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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O HISTORIADOR - P.2 / Elizabeth Kostova
O HISTORIADOR - P.2 / Elizabeth Kostova

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O HISTORIADOR

Segunda Parte

 

A minha intenção era terminar de maneira mais eloquente, mas pelos vistos agradara à plateia, e houve uma sonora salva de palmas. Para minha surpresa, tinha acabado. Nada de terrível acontecera. Helen afundou-se na cadeira, visivelmente aliviada, e o professor Sandor veio a sorrir apertar-me a mão. Olhando em volta, vi Eva no fundo da sala, aplaudindo com o seu largo sorriso adorável. No entanto, havia qualquer coisa de errado na sala, e um minuto depois notei que o vulto imponente de Géza desaparecera. Não me lembrava de o ter visto sair, mas talvez a parte final da minha palestra tivesse sido demasiado enfadonha para ele.

O que eu mais temia era a sessão de perguntas e respostas depois da palestra, especialmente uma do tipo que normalmente fazíamos no nosso departamento na universidade uma oportunidade para o corpo docente criticar o orador convidado, uma espécie de disputa entre a equipe da casa e a equipe de fora. Eu mesmo já participara daqueles massacres. Rossi, folgo em dizer, matava com gentileza, mas alguns dos outros professores viam aquelas sessões como uma oportunidade para uma carnificina. Felizmente, essa tradição parecia não existir ali; nenhum dos outros oradores se tinha oferecido para responder a uma só pergunta depois das suas palestras, portanto achei que era perfeitamente justificável recolher a minha papelada enquanto os aplausos morriam e voltar depressa para o meu lugar.

Imediatamente, todos se levantaram e começaram a conversar numa confusão de línguas. Três ou quatro dos historiadores húngaros vieram apertar a minha mão e felicitar-me. O professor Sándor estava radiante.

— Excelente! — exclamou. — É um grande prazer ver que os senhores na América entendem tão bem a nossa história da Transilvânia.

Imaginei o que ele pensaria se soubesse que eu aprendera todo o tema da palestra com uma das suas colegas, sentado à mesa de um restaurante de Istambul.

Eva aproximou-se e estendeu-me a mão. Não sabia se devia beijá-la ou apertá-la, mas finalmente decidi-me pela segunda opção. Eva parecia ainda mais alta e mais majestosa do que na véspera, no meio daquela multidão de homens com fatos coçados. Usava um vestido verde-escuro e pesados brincos de ouro, e os seus cabelos, encaracolados por baixo de um pequeno chapéu verde, tinham mudado de magenta para negro da noite para o dia.

Helen também veio falar com ela, e notei como foram formais uma com a outra nesse encontro; era difícil acreditar que Helen correra para os seus braços na noite anterior. Helen traduziu-me os cumprimentos da tia:

— Excelente trabalho, meu jovem amigo. Pelo que pude ver nos rostos de todos, conseguiu não ofender ninguém; por isso, provavelmente não deve ter dito muita coisa. Mas mantém-se direito no pódio e olha a plateia nos olhos... isso há-de levá-lo longe.

A tia Eva misturava essas observações com o seu sorriso ofuscante, de dentes impecáveis.

— Agora tenho de voltar para casa para resolver algumas coisas, mas vemo-nos ao jantar amanhã à noite. Podemos jantar no vosso hotel.

Eu não sabia que iríamos jantar com ela outra vez, mas fiquei feliz por sabê-lo.

— Sinto muito não poder oferecer-lhe um jantar realmente bom lá em casa, como gostaria — desculpou-se. — Mas se lhe disser que estou em obras, como o resto de Budapeste, tenho a certeza de que você compreende. Não poderia receber visitas na minha sala de jantar no meio daquela confusão.

O seu sorriso prendia-me completamente a atenção, mas consegui colher duas informações desse discurso — uma, que naquela cidade de apartamentos (presumivelmente) pequenos, ela dispunha de uma sala de jantar; e, dois, houvesse ou não confusão, ela era demasiado desconfiada para dar um jantar a um americano estranho em sua casa.

— Preciso conversar com a minha sobrinha. Helen pode ficar comigo esta noite, se a puder dispensar.

Helen traduziu tudo isto com uma exatidão cheia de culpa.

— É claro — disse eu, retribuindo o sorriso da tia Eva. — Estou certo de que têm muito que conversar depois de uma separação tão longa. E julgo que também tenho planos para o jantar. — Os meus olhos já estavam à procura do casaco de tweedde Hugh James no meio da multidão.

— Muito bem. — Ela estendeu-me novamente a mão, e desta vez beijei-a como um verdadeiro Húngaro, a primeira vez que beijei a mão de uma mulher, e a tia Eva foi-se embora.

Ao intervalo seguiu-se uma palestra em francês sobre revoltas camponesas em França no início da época moderna, a que se seguiram outras intervenções em alemão e húngaro. Ouvi-as sentado novamente ao fundo da sala, ao lado de Helen, saboreando o meu anonimato. Quando o russo que estudava os Estados Bálticos deixou o pódio, Helen assegurou-me em voz baixa de que já ficáramos ali tempo suficiente e podíamos ir-nos embora.

— A biblioteca ainda está aberta mais uma hora. Vamos pôr-nos a andar agora.

— Um momento — disse eu. — Quero garantir a minha companhia para o jantar.

Não precisei me esforçar muito para encontrar Hugh James outra vez; ele estava claramente também a minha procura. Concordamos encontrar-nos às sete no vestíbulo do hotel da universidade. Helen apanharia um autocarro para a casa da tia, e vi no seu rosto que passaria o tempo a perguntar-se o que Hugh James teria para nos dizer.

As paredes da biblioteca da universidade, quando chegamos, eram de um ocre imaculado e brilhante, e dei por mim mais uma vez maravilhado com a velocidade com que a nação húngara se reconstruía depois da catástrofe da guerra. Nem mesmo o mais tirânico dos governos podia ser completamente mau se era capaz de recuperar tanta beleza para os seus cidadãos em tão pouco tempo. Esse esforço fora provavelmente alimentado tanto pelo nacionalismo húngaro, especulei, lembrando-me dos comentários evasivos da tia Eva, como pelo fervor comunista.

— Em que é que está a pensar? — perguntou-me Helen Tinha calçado as luvas e a mala estava firmemente pendurada no braço.

— Estou a pensar na sua tia

— Se gosta tanto assim da minha tia, talvez a minha mãe não seja bem o seu estilo — disse, com uma risada provocante. — Mas vamos ver, amanhã. Agora, vamos procurar uma coisa lá dentro.

— O quê? Não seja tão misteriosa.

Ela ignorou-me e entramos na biblioteca juntos através de portas pesadamente esculpidas.

— Renascença? — sussurrei para Helen, mas ela abanou a cabeça.

— É uma imitação feita no século dezenove. A coleção original daqui nem sequer estava em Peste até ao século dezoito, penso eu; estava em Buda, como a universidade original. Lembro-me de um dos bibliotecários me ter dito uma vez que muitos dos livros mais antigos desta coleção foram doados à biblioteca por famílias que estavam a fugir dos invasores otomanos no século dezesseis. Como vê, devemos algumas coisas aos Turcos, afinal. De outra forma, quem sabe onde estariam agora todos estes livros?

Era bom entrar numa biblioteca novamente; o cheiro era familiar. Aquela era uma preciosa construção neoclássica, toda de madeira escura entalhada, com balcões, galerias, frescos. Mas o que me chamou a atenção foram as filas de livros, centenas de milhares deles a forrar as salas, do teto ao chão, as suas encadernações vermelhas e castanhas e douradas em fileiras cerradas, as suas capas marmoreadas e as suas guardas macias ao toque, as vértebras salientes das lombadas, acastanhadas como velhos ossos. Perguntei-me onde teriam sido escondidos durante a guerra, e quanto tempo tinha sido necessário para os arrumar de novo em todas aquelas prateleiras reconstruídas.

Ainda havia alguns estudantes a folhear livros nas mesas compridas, e um jovem estava a pôr em ordem pilhas deles atrás de uma grande secretária. Helen parou para lhe falar e ele concordou com um gesto da cabeça, levando-nos até uma grande sala de leitura que eu já vira através de uma porta aberta. Ali, localizou-nos um grande fólio, colocou-o sobre uma mesa e deixou-nos. Helen sentou-se e tirou as luvas.

— Sim — disse baixinho. — Acho que é este de que me lembrava. Examinei este volume antes de sair de Budapeste no ano passado, mas nessa altura não achava que tivesse grande importância.

Abriu o livro na página de título e vi que estava escrito numa língua que eu não conhecia. As palavras pareciam-me estranhamente familiares, e no entanto não era capaz de ler uma sequer.

— O que é isto? — Pus um dedo sobre o que eu achava que era o título. A folha era de bom papel espesso, impressa a tinta castanha.

— É romeno — disse Helen.

— Consegue lê-lo?

— Claro. — Pousou a mão sobre a página, junto da minha. Notei que as nossas mãos eram quase do mesmo tamanho, embora a dela tivesse ossos mais finos e as pontas dos dedos fossem quadradas e estreitas.

— Veja — disse ela. — Você estudou francês?

— Sim — respondi. Então, percebi o que ela queria dizer e comecei a decifrar o título. Baladas dos Cárpatos, 1790.

— Bom — disse ela. — Muito bem.

— Julguei que não sabia falar romeno — disse eu.

— Falo muito mal, mas sei ler, mais ou menos. Estudei latim durante dez anos na escola, e a minha tia ensinou-me a ler e a escrever em romeno. Contra a vontade da minha mãe, é claro. A minha mãe é muito teimosa. Raramente fala da Transilvânia, mas também nunca a abandonou, no seu coração.

— E que livro é este?

Helen virou a primeira página, delicadamente. Vi uma longa coluna de texto, de que à primeira vista não consegui entender nada; além da falta de familiaridade com as palavras, várias letras latinas com que o texto estava escrito eram ornamentadas com cruzes, cedilhas, acentos circunflexos e outros símbolos. Parecia-se mais com bruxaria do que com uma língua românica.

— Encontrei este livro durante as minhas últimas pesquisas, antes de partir para Inglaterra. Na verdade, não há muito material sobre ele nesta biblioteca. Mas encontrei alguns documentos sobre vampiros em geral, porque Mátyás Corvinus, o nosso rei bibliófilo, tinha curiosidade sobre eles.

— Hugh disse o mesmo — murmurei.

— O quê?

— Explico-lhe depois. Continue.

— Bem, não queria deixar nenhuma ponta por atar aqui, por isso, li uma enorme quantidade de coisas sobre a história da Valáquia e da Transilvânia. Levei meses. Forcei-me a ler mesmo o que estava em romeno. Evidentemente, muitos documentos e histórias sobre a Transilvânia estão em húngaro, dos séculos de domínio da Hungria, mas também há algumas fontes romenas. Esta é uma coletânea de letras de canções folclóricas da Transilvânia e da Valáquia, publicada por um colecionador anônimo. Algumas são mais do que canções folclóricas, são poemas épicos.

Senti um ligeiro desapontamento; estava à espera de um documento histórico raro, qualquer coisa sobre Drácula.

— Alguma delas menciona o nosso amigo?

— Não, creio que não. Mas havia uma canção aqui que me ficou na cabeça, e pensei nela de novo quando você me disse o que Selim Aksoy queria que víssemos no arquivo em Istambul sabe, aquele texto sobre os monges dos Cárpatos que entravam na cidade de Istambul com a sua carroça e as suas mulas, lembra-se? Foi pena não termos pedido a Turgut que nos traduzisse o texto.

Começou a folhear o livro com muito cuidado. Alguns dos longos textos eram ilustrados no alto da página com xilogravuras, na maioria ornamentos com aspecto de bordados populares, mas havia também árvores, casas, animais. A impressão era perfeita, mas o livro propriamente dito tinha algo de tosco, de feito em casa. Helen correu o dedo ao longo das primeiras linhas dos poemas, com os lábios a mover-se lentamente, e abanou a cabeça.

— Alguns são tão tristes disse. — Sabe, no fundo, nós, Romenos, somos diferentes dos Húngaros.

— Como é isso?

— Bem, há um provérbio húngaro que diz: "O Magiar vive os seus prazeres com tristeza." E é verdade. A Hungria também está cheia de canções tristes, e as aldeias são cheias de violência, de álcool, de suicídios. Mas os Romenos são ainda mais tristes, ainda mais tristes. Não somos tristes por causa da vida mas por natureza, acho. Inclinou a cabeça para o livro antigo e baixou os olhos. Ouça isto; é típico destas canções.

Traduziu, hesitante, e o resultado foi qualquer coisa como o que se segue, embora esta canção não seja a mesma e venha de um pequeno volume de traduções do século dezenove que agora se encontra na minha biblioteca particular:

 

Uma irmãzinha, a criança que morreu tinha. Depois que ela se foi, ainda que cedo fosse, Ficou bem mais alegre aquela sua irmãzinha. E disse à mãe: "Seu lindo sorriso doce, A que morreu, quando partiu, me deu: E a vida toda que ela não viveu. Agora vive por inteiro em mim." Mas a mãe, ao ouvi-la falar assim, Pôs-se a chorar, a sua cabeça pendeu, Lembrando apenas a filha que morreu.

 

— Santo Deus — disse eu, estremecendo. — É fácil ver como uma cultura capaz de criar uma canção dessas acreditava em vampiros; chegou a produzi-los, aliás.

— Sim — disse Helen, abanando a cabeça, mas já a procurar outra coisa mais adiante no mesmo livro. — Espere — e parou de repente. — Pode ter sido esta. — Apontou para um poema curto com uma elaborada xilogravura por baixo que parecia representar construções e animais enredados numa floresta espinhosa.

Fiquei em suspense durante longos minutos enquanto Helen lia o poema em silêncio, até que finalmente ela levantou os olhos para mim. Havia no seu rosto uma centelha de excitação; os seus olhos brilhavam.

— Ouça este. Vou traduzir o melhor que puder.

E aqui reproduzo para ti, minha filha, uma tradução exata, que guardei nos últimos vinte anos com os meus papéis:

 

Chegaram aos portões, às portas da grande cidade. Chegaram à grande cidade vindos da terra da morte. "Somos homens de Deus, homens dos Cárpatos. Somos monges e santos homens, mas trazemos más notícias. Trazemos notícias de uma peste à grande cidade. Servindo o nosso mestre, viemos chorar a sua morte." Chegaram aos portões e a cidade chorou com eles Quando nela entraram.

 

Senti um calafrio ao ouvir aqueles estranhos versos, mas tive de objetar.

— É demasiado impreciso. Os Cárpatos são mencionados, mas devem aparecer em dezenas, mesmo centenas de textos antigos. E a "grande cidade" pode significar qualquer coisa. Talvez signifique a Cidade de Deus, o Reino dos Céus.

Helen fez que não com a cabeça.

— Não me parece — disse. Para os povos dos Balcãs e da Europa Central, cristãos ou muçulmanos, a grande cidade sempre foi Constantinopla, a não ser que se leve em consideração as pessoas que fizeram peregrinações a Jerusalém ou a Meca através dos séculos. E a referência a uma peste e a monges, parece-me de certo modo relacionada com a história de Selim Aksoy. Não seria possível que o mestre de que falam seja o próprio Vlad Tepes?

— É possível — disse eu, duvidando, — mas gostaria de mais qualquer coisa em que nos apoiarmos. De que época será essa canção?

— É sempre muito difícil dizer, no caso de letras de canções folclóricas. — Helen ficou pensativa. — Este volume foi impresso em 1790, como pode ver, mas não tem o nome do editor nem o local onde foi impresso. As canções folclóricas podem facilmente sobreviver dois, três ou quatro séculos; portanto, estas podem ser alguns séculos mais antigas do que o livro. A canção pode ser do final do século quinze ou ainda mais antiga, o que não serviria os nossos objetivos.

— A xilogravura é curiosa — disse eu, olhando mais de perto.

— O livro está cheio delas — murmurou Helen. — Lembro-me de que me chamaram a atenção da primeira vez que vi o livro. Esta parece não ter nada a ver com o poema; devia ser ilustrada com um monge a orar ou uma cidade com muralhas altas, qualquer coisa desse gênero.

— É verdade — disse eu, devagar, — mas veja bem de perto. — Inclinámo-nos sobre a pequena ilustração, as nossas cabeças quase a tocarem-se por cima dela.

— Quem me dera ter uma lupa — disse eu. — Não acha que esta floresta, ou matagal, ou o que quer que seja, esconde alguma coisa? Não há nenhuma grande cidade mas, se olhar com cuidado, verá uma construção que parece uma igreja, com uma cruz no cimo de uma cúpula, e, perto dela...

— Um pequeno animal — semicerrou os olhos. E então. — Meu Deus, — disse:

— É um dragão.

Concordei com a cabeça, e debruçámo-nos ambos sobre a ilustração, mal respirando. A pequena forma tosca era assustadoramente familiar asas abertas, cauda curvando-se num anel minúsculo. Não era necessário recorrer ao livro guardado na minha pasta para comparar os desenhos.

— O que significa?

A visão do dragão, mesmo em miniatura, fazia o meu coração palpitar incomodamente.

— Espere. — Helen examinava a xilogravura, com o rosto a poucos centímetros da página. — Meu Deus — disse. — Quase não consigo ver, mas há aqui uma palavra, acho eu, distribuída entre as árvores, uma letra de cada vez. São muito pequenas, mas tenho a certeza de que são letras.

— Drácula? — disse eu, no tom de voz mais baixo que consegui. Ela fez que não com a cabeça.

— Não. Mas pode ser um nome: Ivi. Ivireanu. Não sei o que é. Não é uma palavra que eu já tenha visto, mas "u" é uma terminação comum dos nomes romenos. Que diabo será isto?

Suspirei.

— Não sei, mas acho que o seu instinto está certo; esta página tem alguma ligação com Drácula, ou o dragão não estaria aqui. Não este dragão, pelo menos.

Impotentes, entreolhamo-nos. A sala, tão agradável e convidativa meia hora antes, parecia-me agora lúgubre, um mausoléu de conhecimentos esquecidos.

— Os bibliotecários não sabem nada sobre este livro — disse Helen. — Lembro-me de lhes ter perguntado, porque o livro é uma raridade.

— Bem, então também não podemos solucionar isso — disse eu, por fim. — Pelo menos, vamos levar uma tradução conosco, para sabermos o que vimos.

Escrevi o que ela me ditou numa folha de caderno e fiz um esboço apressado da xilogravura. Helen olhava para o relógio.

— Tenho de voltar ao hotel — disse.

— Eu também, ou vou me desencontrar de Hugh James. — Agarramos nas nossas coisas e voltamos a colocar o livro na respectiva prateleira, com toda a reverência que uma relíquia exige.

Talvez tenha sido o turbilhão de imaginação em que o poema e a sua ilustração me lançaram, ou talvez estivesse mais cansado do que pensava, cansado da viagem, de ficar acordado até tarde no restaurante com a tia Eva e de fazer uma palestra para uma multidão de desconhecidos. Quando entrei no meu quarto, levei um longo momento para registrar o que via, e um momento ainda mais longo para concluir que Helen poderia estar a ver a mesma coisa no seu quarto, dois andares acima. Então, receei pela segurança dela e corri para as escadas sem parar para examinar nada. O meu quarto tinha sido revistado, canto por canto, gavetas e armário e roupas de cama, e cada objeto que eu possuía fora revirado, danificado, destruído mesmo, por mãos não só apressadas, mas maldosas.

 

— Mas não podem pedir ajuda à polícia? Este lugar está repleto de polícias, ao que parece. — Hugh James partiu um pedaço de pão em dois e comeu um deles com vontade. — Que coisa horrível, e logo num hotel estrangeiro.

— Chamamos a polícia — assegurei-lhe. — Ou pelo menos acho que sim, porque foi o funcionário do hotel que fez a chamada. Disse que ninguém pode vir antes de hoje à noite ou amanhã de manhã, e que não devemos tocar em nada. Fomos instalados noutros quartos.

— O quê? Quer dizer que o quarto de Miss Rossi também foi revistado? — Os grandes olhos de Hugh ficaram ainda mais redondos. — Mais alguém no hotel foi atacado?

— Duvido — disse eu, soturno.

Estávamos sentados num restaurante ao ar livre em Buda, não longe da Colina do Castelo, de onde podíamos ver o Parlamento no lado de Peste, na outra margem do Danúbio. Ainda havia muita luz, e o céu da tardinha projetava reflexos azuis e rosados sobre a água. Fora Hugh que descobrira aquele sítio era um dos seus preferidos, disse. Pessoas de todas as idades passeavam pela rua à nossa frente, muitas parando nas balaustradas sobre o rio para observar a deslumbrante vista, como se também nunca se cansassem de a ver. Hugh pedira vários pratos típicos para eu provar, e tínhamos acabado de nos instalar com o onipresente pão de crosta dourada e uma garrafa de Tokay, um vinho famoso da região nordeste da Hungria, conforme ele me explicou. Já tínhamos despachado os preliminares as nossas respectivas universidades, a minha dissertação daquela tarde (ele riu-se quando lhe contei a confusão do professor Sándor sobre o âmbito do meu trabalho), a pesquisa de Hugh sobre a história dos Balcãs e o seu futuro livro sobre as cidades otomanas na Europa.

— Roubaram alguma coisa? Hugh encheu-me o copo.

— Nada — respondi, abatido. — Evidentemente, não tinha deixado dinheiro no quarto, nem qualquer... objeto de valor... e os passaportes estão na recepção, ou talvez na esquadra da polícia, tanto quanto sei.

— Então de que é que estavam à procura? — Hugh fez-me um ligeiro brinde e bebeu um gole.

— É uma história muito, muito comprida — suspirei. — Mas encaixa-se muito bem com algumas outras coisas sobre as quais precisamos conversar.

Ele concordou com a cabeça.

— Muito bem. Comece, então.

— Depois é a sua vez...

— É claro.

Bebi metade do meu copo para me dar ânimo e comecei pelo princípio. Não precisava do vinho para afastar as minhas dúvidas sobre se deveria contar ou não a Hugh James toda a história de Rossi; se não lhe contasse tudo, não ficaria a saber tudo o que ele sabia. Ele ouviu em silêncio, obviamente concentrado, a não ser quando mencionei a decisão de Rossi em prosseguir as pesquisas em Istambul. Nessa altura, deu um salto.

— Por Júpiter — disse. — Eu também tinha pensado em ir para lá. Em voltar lá, quero dizer: já estive em Istambul duas vezes, mas nunca para procurar Drácula.

— Vou facilitar-lhe as coisas. — Dessa vez, fui eu que lhe enchi o copo, e contei-lhe as aventuras de Rossi em Istambul e o seu desaparecimento. Foi aí que os olhos de Hugh quase saltaram, embora não tenha dito nada. Finalmente, descrevi-lhe o meu encontro com Helen, não lhe escondendo nada sobre as intenções dela a respeito de Rossi, e todas as nossas viagens e pesquisas até àquele momento, incluindo os nossos encontros com Turgut.

— Como vê — concluí, — por esta altura já não me surpreende ver o meu quarto virado de pernas para o ar.

— Sim, de fato — e pareceu refletir por um momento.

Tínhamos devorado uma infinidade de guisados e picles, e ele baixou o garfo com uma certa tristeza, como se lamentasse que tivessem acabado.

— É muito estranho termo-nos encontrado desta maneira. Mas agora fiquei apreensivo com o desaparecimento do professor Rossi, muito apreensivo. É terrivelmente estranho. Antes de ouvir a sua história, não diria que houvesse mais gente envolvida nas pesquisas sobre Drácula do que as de sempre. Só que, durante todo este tempo, tenho tido esta sensação estranha, sabe, sobre o meu próprio livro. Não gosto de me deixar influenciar por sensações estranhas, mas é assim mesmo.

— Vejo que não desafiei a sua credulidade tanto como receei ter feito.

— E esses livros — ponderou ele. — São quatro: o meu, o seu, o do professor Rossi e o que pertence àquele professor de Istambul. É muito estranho que haja quatro iguais.

— Alguma vez conheceu Turgut Bora? — perguntei. — Disse que já esteve em Istambul algumas vezes.

Ele abanou a cabeça.

— Não, nem sequer ouvi mencionar esse nome. Mas ele é da área da Literatura; por isso, é pouco provável que nos tivéssemos encontrado no departamento de História de lá, ou em conferências. Ficar-lhe-ia grato se me ajudasse a entrar em contato com ele, se puder. Nunca estive no arquivo que mencionou, mas já li qualquer coisa sobre ele em Inglaterra e estava a pensar em dar lá uma espreitadela. No entanto, como você mesmo disse, já me facilitou as coisas. Sabe, nunca teria imaginado que aquela coisa pudesse ser um mapa. O dragão do meu livro. É uma idéia extraordinária.

— Sim, e possivelmente uma questão de vida ou de morte para Rossi — disse eu — Mas agora é a sua vez. Como encontrou o seu livro?

Ele assumiu uma expressão grave.

— Como contou, no seu caso e nos outros dois, não encontrei exatamente o meu livro, mas recebi-o, embora não saiba dizer de quem ou de onde. Talvez deva explicar-lhe melhor as circunstâncias. — Ficou em silêncio por um momento, e tive a sensação de que o assunto era difícil para ele. — Está a ver, formei-me em Oxford há sete anos e fui lecionar na Universidade de Londres. A minha família mora em Cumbria, no Lake District, e não é rica. Lutaram muito, e eu também, para que eu tivesse a melhor educação possível. Sempre me senti um pouco deslocado, sabe, principalmente no colégio. Foi o meu tio que me pôs lá. Acho que estudei mais do que todos, procurando ser o melhor. A História era a minha grande paixão, desde o início.

Hugh limpou os lábios com o guardanapo e abanou a cabeça, como se estivesse a recordar loucuras da juventude.

— Lá pelo fim do segundo ano da universidade, já sabia que me iria sair bem, e isso deu-me ânimo para seguir em frente. Então veio a guerra e interrompeu tudo. Já completara quase três anos em Oxford. Aliás, foi lá que ouvi falar de Rossi pela primeira vez, embora nunca o tenha encontrado. Ele deve ter parado para a América alguns anos antes de eu ter chegado à universidade.

Acariciou o queixo com uma mão grande e bastante áspera.

— Não podia gostar mais dos meus estudos, mas também amava o meu país, e alistei-me imediatamente, na Marinha. Fui mandado para Itália e, um ano depois, voltava para casa com ferimentos nos braços e nas pernas.

Tocou com cuidado na manga da sua camisa branca de algodão, logo acima do punho, como se sentisse novamente a surpresa de ver sangue ali.

— Recuperei-me rapidamente e queria voltar, mas não me aceitaram, a minha visão tinha sido afetada quando o navio explodiu. Assim, voltei para Oxford e tentei ignorar os alarmes antiaéreos e acabei o curso depois de a guerra ter acabado. As últimas semanas que lá passei foram das melhores da minha vida, acho eu, apesar de todas as coisas que faltavam. Aquela ameaça terrível tinha sido varrida do mundo, eu tinha quase acabado os meus estudos adiados e uma rapariga de Surrey que eu amara quase toda a minha vida aceitara finalmente casar-se comigo. Não tinha dinheiro, e de qualquer maneira não havia comida, mas eu comia sardinhas no meu quarto e escrevia cartas de amor acho que não se importa que eu lhe conte tudo isto e estudava como um doido para os exames. Entrei num estado de grande cansaço, evidentemente.

Pegou na garrafa de Tokay, que estava vazia, e voltou a pô-la em cima da mesa, com um suspiro.

— Já tinha quase acabado com aquele esforço todo e tínhamos marcado a data do casamento para o final de Junho. Na noite anterior ao último exame, fiquei acordado até de madrugada, a reler os meus apontamentos. Sabia que já tinha estudado tudo o que era preciso, mas simplesmente não conseguia parar. Estava a trabalhar num canto da biblioteca da minha faculdade, meio oculto por trás de algumas estantes, de onde não via os outros malucos que também reliam os respectivos apontamentos.

— Há alguns livros muito bonitos nessas pequenas bibliotecas, e distraí-me por uns instantes com um volume dos sonetos de Dryden que estava ao alcance da mão. Depois forcei-me a voltar a pô-lo no lugar, pensando que era melhor sair, fumar um cigarro e depois tentar concentrar-me novamente. Meti o livro na estante e fui para o pátio. Estava uma deliciosa noite de Primavera, e fiquei ali a pensar em Elspeth, e na casinha que ela estava a preparar para nós, e no meu melhor amigo teria sido o meu padrinho de casamento que morrera nos campos de petróleo de Ploiesti, com os Americanos, e depois voltei para a biblioteca. Para minha surpresa, o livro de Dryden estava de novo na minha secretária como se nunca o tivesse colocado no seu lugar, e pensei que estava a ficar maluco de tanto estudar. Virei-me para o pôr na estante, mas vi que não havia espaço para ele. Anteriormente estava ao lado de Dante, tinha a certeza, mas agora estava lá outro livro, um livro com uma lombada de aparência muito antiga onde havia um pequeno animal gravado. Puxei-o para fora e ele abriu-se nas minhas mãos, no... bem, você sabe.

O seu rosto simpático estava agora pálido, e procurou primeiro nos bolsos da camisa e depois nos das calças até encontrar um maço de cigarros.

— Você não fuma? — acendeu um e tragou com força. — Fui atraído pela aparência do livro, pela sua evidente antiguidade, pelo ar ameaçador do dragão, tudo o que também lhe chamou a atenção no seu livro. Não havia ali nenhum bibliotecário às três da manhã; por isso, fui até ao ficheiro e investiguei um pouco por conta própria, mas fiquei a saber apenas o nome e a linhagem de Vlad Tepes. Como não havia nenhum carimbo da biblioteca no livro, levei-o comigo para casa.

— Dormi mal e não conseguia de maneira nenhuma concentrar-me no meu exame na manhã seguinte; só pensava em ir a outras bibliotecas e talvez a Londres para ver o que podia descobrir sobre o livro. Mas não tive tempo e quando fui para o Surrey, para o meu casamento, levei comigo o livrinho e ficava a olhar para ele nos momentos mais estranhos. Elspeth apanhou-me com ele e, quando lhe expliquei, não gostou mesmo nada. Faltavam cinco dias para o nosso casamento e eu não conseguia parar de pensar no livro e também de falar com Elspeth sobre ele, até que ela me pediu para não o fazer

— Então, certa manhã faltavam dois dias para o casamento — tive uma inspiração súbita. Há uma grande casa não muito longe da aldeia dos meus pais, sabe, uma mansão jacobina que as pessoas vão visitar em excursões de autocarro Sempre achei aquilo tudo muito aborrecido durante as nossas excursões escolares, mas lembrei-me de que o fidalgo que a construíra tinha sido um colecionador de livros e tinha coisas do mundo inteiro. Já que não podia ir a Londres antes do casamento, tive a idéia de ir a biblioteca da casa, que é famosa, e dar uma olhadela, talvez encontrasse alguma coisa sobre a Transilvânia. Disse aos meus pais que ia dar um passeio e sabia que eles pensariam que me ia encontrar com Elsie.

— Estava uma manhã chuvosa, cheia de neblina, também, e fria. A governanta da mansão disse-me que não estavam abertos para os turistas naquele dia, mas deixou-me entrar para ver a biblioteca. Ouvira falar do casamento na aldeia, conhecia a minha avó, e ofereceu-me uma chávena de chá. Quando já tinha tirado o meu impermeável e encontrado vinte prateleiras de livros provenientes do Grand Tour do velho jacobino, que fora muito mais para oriente do que muitos outros, já me esquecera de todo o resto

— Folheei todas aquelas maravilhas e outras que ele colecionara em Inglaterra, talvez depois da viagem, até encontrar uma História da Hungria e da Transilvânia, na qual deparei com uma referência a Vlad Tepes, e mais outra, e, finalmente, para minha alegria e espanto, encontrei um relato do enterro de Vlad no lago Snagov, diante do altar de uma igreja que ele restaurara lá. Esse relato era uma lenda passada para o papel por um aventureiro inglês que estivera na região, alguém que se autodenominava simplesmente "Um Viajante" na página de rosto e que fora contemporâneo do colecionador jacobino. Isto deve ter sido cerca de cento e trinta anos depois da morte de Vlad.

"Um Viajante" tinha visitado o mosteiro de Snagov em 1605. Tinha conversado bastante com os monges de lá e estes contaram-lhe que, de acordo com a lenda, um grande livro, um tesouro do mosteiro, fora colocado sobre o altar durante o funeral de Vlad, e que os monges presentes na cerimônia tinham assinado nele os seus nomes, e os que não sabiam escrever tinham desenhado um dragão, em homenagem à Ordem do Dragão. Infelizmente, não havia referência ao que aconteceu ao livro depois disso. Mas achei tudo muito impressionante Então, o Viajante disse que pediu para ver a tumba e os monges mostraram-lhe uma pedra rasa no chão em frente ao altar. Tinha um retrato de Vlad Drácula pintado e palavras em latim, talvez também pintadas, já que o Viajante não dizia que estavam gravadas na pedra, e estranhou não ver a habitual cruz a marcar a lápide. O epitáfio, que copiei com cuidado guiado por um instinto que não sei explicar estava em latim. — Hugh baixou a voz, olhou para trás e apagou o cigarro no cinzeiro que estava em cima da mesa.

— Depois de o ter escrito e ter vencido algumas dificuldades, li a minha tradução em voz alta: "Leitor, desenterra-o com uma..." você sabe a continuação. A chuva ainda caía com força lá fora, e uma janela que se soltara, algures na biblioteca, batia, abrindo-se e fechando-se, e senti um bafo de ar úmido junto de mim. Devia estar nervoso, porque derrubei a chávena e uma gota de chá caiu sobre o livro. Enquanto enxugava o livro, sentindo-me mal por ser tão desajeitado, olhei para o relógio — já era uma hora e tinha de voltar para casa para almoçar. Aparentemente, não havia mais nada de relevante para ver ali; por isso, voltei a pôr os livros no lugar, agradeci à governanta e regressei por entre as veredas ladeadas por todas aquelas rosas de Junho.

— Quando cheguei a casa dos meus pais, esperando vê-los, talvez com Elsie, juntos à mesa, encontrei um pandemónio. Estavam lá vários amigos e vizinhos e a minha mãe estava a chorar. O meu pai parecia muito perturbado. — Aqui, Hugh acendeu outro cigarro e o fósforo balançou na escuridão. — Pôs-me a mão no ombro e disse que tinha havido um acidente de automóvel na estrada principal, quando Elsie conduzia um carro emprestado, voltando das compras numa cidade vizinha. Tinha estado a chover intensamente, e eles pensavam que ela devia ter visto alguma coisa e ter-se desviado. Não estava morta, graças a Deus, mas gravemente ferida. Os pais dela tinham ido imediatamente para o hospital e os meus ficaram em casa à minha espera, para me contarem.

— Encontrei um carro e dirigi-me para o hospital, tão depressa que quase sofri também um acidente. Tenho certeza de que não vai querer ouvir isto tudo, mas... ela estava deitada, com a cabeça enfaixada e os olhos muito abertos. Era assim que estava. Atualmente vive numa espécie de lar, onde é muito bem tratada, mas não fala nem percebe muita coisa, e não consegue alimentar-se sozinha. O mais terrível de tudo isto é que... — e a voz dele começou a tremer. — O mais terrível é que sempre achei que tivesse sido um acidente, um acidente de fato, e agora que ouvi as suas histórias, sobre Hedges, o amigo de Rossi, e o seu... o seu gato... não sei o que pensar.

Tragou o fumo com força. Eu soltei profundamente o ar dos pulmões.

— Sinto muito, muito mesmo. Não sei o que dizer. Que coisa horrível.

— Obrigado. — Parecia estar a tentar recuperar um pouco das suas maneiras habituais. — Já foi há alguns anos, sabe, e o tempo ajuda. Só que...

Eu não sabia, como sei agora, o que havia na outra extremidade daquela frase que ele não concluiu, as palavras inúteis, a indizível litania da perda. Enquanto estávamos ali, com o passado suspenso sobre nós, um criado aproximou-se com uma vela numa lanterna de vidro e pousou-a na nossa mesa. O café estava a encher-se de gente e eu ouvia risadas vindas lá de dentro.

— Estou perplexo com o que você acabou de me contar sobre Snagov — disse eu, algum tempo depois. — Sabe, nunca tinha ouvido nada disso sobre a tumba; quero dizer, a inscrição, o rosto pintado e a ausência de uma cruz.

A correspondência entre a inscrição e as palavras que Rossi encontrou nos mapas do arquivo de Istambul é extremamente importante, creio eu; é uma prova de que Snagov foi pelo menos a localização original da tumba de Drácula. Apertei as têmporas com os dedos.

— Por que é que então, o mapa, o mapa-dragão nos livros e no arquivo não corresponde à topografia de Snagov — o lago, a ilha?

— Quem me dera saber...

— Você continuou a sua pesquisa sobre Drácula, depois daquilo?

— Só muitos anos depois. — Hugh apagou o cigarro. — Não tinha coragem. Mas há cerca de dois anos, dei comigo a pensar nele outra vez e, quando comecei a trabalhar no meu livro atual, o meu livro húngaro, deixei uma janela aberta para o assunto.

Tinha escurecido bastante agora, e o Danúbio brilhava com os reflexos das luzes da ponte e dos edifícios de Peste. Um criado veio oferecer um eszpresszó, e aceitamos agradecidos. Hugh bebeu um gole e pousou a chávena.

— Gostaria de ver o livro? — perguntou.

— O livro em que está a trabalhar? — Fiquei momentaneamente confuso.

— Não. O meu livro do dragão.

Dei um salto.

— Você tem-no aqui?

— Trago-o sempre comigo — disse ele, sério. — Bem, quase sempre. Na verdade, deixei-o no hotel durante as palestras de hoje porque achei que estaria mais seguro lá enquanto eu intervinha. Quando penso que poderia ter sido roubado... — deteve-se. — O seu não estava no quarto, estava?

 

— Não. — Tive de sorrir. — Também trago sempre o meu comigo.

Hugh afastou cuidadosamente as nossas chávenas de café e abriu a pasta. Retirou dela uma caixa de madeira polida e desta um volume embrulhado em tecido, que pôs em cima da mesa. Dentro do embrulho havia um livro menor que o meu, mas encadernado com o mesmo pergaminho gasto. As páginas eram de um castanho mais escuro e mais frágeis do que as do meu livro, mas o dragão no centro era o mesmo, ocupando as páginas até às margens e olhando furiosamente para nós. Em silêncio, abri a minha pasta e tirei o meu livro, colocando a sua imagem perto do dragão de Hugh. Eram idênticos, pensei, curvando-me sobre cada um deles.

— Olhe para esta mancha aqui: até a mancha é a mesma. Foram impressos com o mesmo bloco de madeira — disse Hugh em voz baixa.

Tinha razão, como pude ver.

— Sabe, isto faz-me lembrar outra coisa, que me esqueci de lhe contar há pouco. Helen Rossi e eu passamos pela biblioteca da universidade esta tarde, antes de voltarmos ao hotel, porque ela queria procurar uma coisa que vira lá há algum tempo. — Descrevi o volume de canções folclóricas romenas, e a estranha letra da canção que falava de monges a entrarem numa grande cidade. — Ela achava que poderia ter alguma coisa a ver com a história do manuscrito de Istambul sobre o qual lhe falei. A letra da canção era muito imprecisa, mas havia uma xilogravura interessante no alto da página, uma espécie de bosque com uma igreja pequenina e um dragão entre os dois, e uma palavra.

— "Drácula"? — arriscou Hugh, como eu fizera na biblioteca.

— Não, Ivireanu. — Procurei a palavra no meu caderno de apontamentos e mostrei-lhe como se escrevia.

Os olhos dele arregalaram-se.

— Mas é incrível — exclamou.

— O quê? Diga depressa.

— Bem, é que vi esse nome na biblioteca ontem.

— Na mesma biblioteca? Onde? No mesmo livro? — Estava demasiado impaciente para esperar educadamente por uma resposta.

— Sim, na biblioteca da universidade, mas não no mesmo livro. Passei a semana a remexer por lá à procura de material para o meu projeto e, como o nosso amigo está sempre num canto da minha mente, estou sempre a encontrar estranhas referências ao mundo dele. Sabe, Drácula e Hunyadi eram inimigos mortais, e, mais tarde Drácula e Mátyás Corvinus; por isso, de vez em quando deparo-me com Drácula. Comentei consigo, durante o almoço, que tinha encontrado um manuscrito encomendado por Corvinus, o documento que menciona o fantasma na ânfora.

— Ah, sim — disse eu, ansioso. — Foi lá que viu a palavra "Ivireanu"?

— Na realidade, não. O manuscrito de Corvinus é muito interessante, mas por outras razões. O manuscrito diz... bem, copiei uma parte. O original está em latim.

Pegou no seu caderno de apontamentos e leu-me algumas linhas:

"No ano de Nosso Senhor de 1463, o humilde servo do rei vem oferecer-lhe estas palavras oriundas de grandes escritos, tendo em vista informar Sua Majestade sobre a maldição do vampiro, que ele pereça no inferno. Esta informação destina-se ao acervo real de documentos de Sua Majestade. Que o possa ajudar a livrar a nossa cidade desse mal, pondo fim à presença de vampiros e afastando a peste das nossas casas." E por aí fora. Em seguida, o bom escriba, quem quer que tenha sido, prossegue, nomeando as referências que encontrou em diversas obras clássicas, inclusivamente lendas sobre o fantasma na ânfora. A data do manuscrito é o ano posterior à captura de Drácula e ao seu primeiro encarceramento perto de Buda. Sabe, a referência que fez à mesma preocupação por parte do sultão turco, e que identificou naqueles documentos em Istambul, leva-me a pensar que Drácula causava problemas onde quer que fosse. Ambos os documentos mencionam a peste, e ambos estão preocupados com a presença de vampirismo. Bastante semelhantes, não lhe parece?

Fez uma pausa e ficou com ar pensativo.

— Na verdade, de certo modo essa relação com a peste não é assim tão descabida. Li num documento italiano, no Museu Britânico, que Drácula usava armas biológicas contra os Turcos. De fato, deve ter sido um dos primeiros europeus a usá-las. Gostava de enviar para os campos turcos, vestidos como otomanos, súditos seus que tivessem contraído doenças infecciosas. — À luz do lampião, os olhos de Hugh semicerraram-se, o rosto animado por uma intensa concentração. Subitamente, percebi que tínhamos encontrado em Hugh James um aliado com uma inteligência fora do comum.

— Tudo isso é fascinante — disse eu. Mas, e quanto à menção da palavra "Ivireanu"?

— Oh, desculpe-me. — Hugh sorriu. — Desviei-me um bocado do assunto. Sim, vi a palavra aqui na biblioteca. Dei com ela há três ou quatro dias, acho eu, num Novo Testamento do século dezessete, em romeno. Estava a folhear o volume porque achei que a capa mostrava uma influência pouco vulgar do estilo otomano. A palavra "Ivireanu" aparecia em baixo na página de rosto tenho a certeza de que era a mesma palavra. Na altura não pensei muito sobre o assunto para ser sincero, passo a vida a encontrar palavras romenas que me confundem, pelo fato de conhecer tão pouco a língua. Na verdade, chamou-me a atenção por causa do tipo de letra, que tinha uma certa elegância. Achei que fosse o nome de um lugar ou qualquer coisa desse gênero.

Soltei um gemido.

— E mais nada? Nunca a viu em mais sítio nenhum?

— Infelizmente, não. — Hugh estava a dar atenção à sua chávena de café abandonada. — Se a encontrar novamente, pode ter certeza de que o informarei.

— Bem, afinal de contas, pode não ter muito a ver com Drácula — disse eu, para me reconfortar. — Só gostaria que tivéssemos mais tempo para examinar essa biblioteca. Infelizmente, temos de voltar para Istambul na segunda-feira. Não tenho autorização para ficar além da duração da conferência. Se encontrar alguma coisa interessante...

— É evidente — disse Hugh. — Vou ficar aqui mais seis dias Se encontrar alguma coisa, escrevo-lhe para o seu departamento?

Aquilo abalou-me, há dias que eu não pensava seriamente nos Estados Unidos, e não tinha a menor idéia de quando abriria a minha caixa de correio no meu departamento.

— Não, não — apressei-me a dizer. — Pelo menos por enquanto, não. Se encontrar alguma coisa que realmente ache que pode ajudar-nos, por favor telefone para o professor Bora. Explique-lhe apenas que falamos sobre este assunto. Se eu próprio falar com ele, aviso-o de que você talvez o contacte. — Peguei no cartão-de-visita de Turgut e dei o número do telefone dele a Hugh.

— Muito bem. — Guardou o cartão no bolso da camisa. — E este é o meu cartão. Espero que nos encontremos novamente.

Ficamos ali em silêncio durante alguns segundos, o olhar dele fixo na mesa, com os pratos e chávenas vazios e a chama tremulante da vela.

— Ouça — disse ele, finalmente. — Se tudo o que me disse é verdade — ou pelo menos tudo o que Rossi disse — e existir mesmo um conde Drácula, ou um Vlad o Empalador... sobrevivente... de alguma forma horrível, nesse caso eu gostaria de o ajudar...

— A eliminá-lo? — concluí em voz baixa. — Não me vou esquecer.

Parecia não haver mais nada a dizer naquele momento, embora eu esperasse que pudéssemos voltar a conversar no futuro. Encontramos um táxi que nos levou de volta a Peste, e ele insistiu em acompanhar-me até ao vestíbulo do hotel. Estávamos a despedir-nos cordialmente junto à recepção quando o funcionário com quem eu falara anteriormente saiu do seu cubículo e agarrou-me no braço.

— Herr Paul! — disse, com insistência.

— O que foi? — Tanto eu como Hugh nos viramos para olhar para o homem. Era alto, curvado, com um casaco azul de operário e bigodes que ficariam bem num guerreiro huno. Puxou-me para junto de si, falando-me em voz baixa, e arranjei maneira, com um gesto, de pedir a Hugh que não nos deixasse. Não havia mais ninguém à vista e eu não estava particularmente disposto a enfrentar sozinho uma nova crise.

— Herr Paul, sei quem esteve no seu zimmer esta tarde.

— O quê? Quem? — perguntei.

— Humm, humm — o funcionário começou quase a murmurar para si mesmo e a lançar olhares rápidos em volta, ao mesmo tempo que procurava alguma coisa no bolso do casaco, no que seria um gesto muito significativo se eu percebesse o que ele queria dizer. Perguntei a mim próprio se o homem não seria uma espécie de atrasado mental.

— Ele quer uma gorjeta — traduziu Hugh em voz baixa.

— Oh, por favor — disse eu, exasperado, mas os olhos do homem pareceram desinteressar-se, recomeçando a brilhar apenas depois de eu lhe ter estendido duas grandes notas húngaras. Agarrou-as discretamente e escondeu-as no bolso, mas não disse nada que admitisse a capitulação.

— Herr American — sussurrou. Sei que não foi só em homem esta tarde. É dois homens. Um entra primeiro, homem muito importante. Depois o outro. Vejo ele quando subo com uma mala para outro zimmer. Então vejo eles. Eles falam. Eles saem juntos.

— E ninguém os deteve? — protestei, com rudeza. — Quem eram? Eram húngaros? — O homem olhava novamente em volta, e engoli a vontade de o estrangular. Aquele clima de censura estava a dar-me cabo dos nervos. Devo ter parecido zangado, porque Hugh agarrou-me o braço, apaziguador.

— Importante homem húngaro. Outro homem não húngaro.

— Como é que sabe? — Ele baixou a voz.

— Um homem húngaro, mas eles falam Anglisch juntos.

E não disse mais nada, apesar das minhas perguntas cada vez mais ameaçadoras. Como aparentemente tinha decidido que me fornecera informações suficientes para os florins que eu lhe dera, talvez não me dissesse mais nenhuma palavra se não fosse uma coisa que repentinamente lhe chamou a atenção. Olhava para um ponto atrás de mim e, logo a seguir, também me virei para seguir o seu olhar através da grande vidraça junto à porta do hotel. Do outro lado, durante uma fração de segundo, vi uma fisionomia ávida, de olhos encovados, que conhecia bem demais, um rosto que pertencia a um túmulo, e não às ruas. O funcionário do hotel balbuciava, agarrando-me no braço.

— Lá está ele, com o seu rosto de demônio, o homem Anglischer!

Devo ter deixado escapar um uivo e, ao mesmo tempo, livrei-me do funcionário e corri para a porta; Hugh, com grande presença de espírito (como constatei mais tarde), agarrou num guarda-chuva no suporte junto ao balcão e disparou atrás de mim. Apesar do susto, segurava a minha pasta com firmeza, o que me atrapalhava enquanto corria. Viramos aqui e ali, corremos a rua de cima a baixo, mas foi inútil. Nem sequer os passos do homem eu chegara a ouvir; por isso, não podia dizer em que direção fugira.

Finalmente, parei para me apoiar na parede de um edifício, tentando recuperar o fôlego. Hugh ofegava.

— Quem era? — arquejou.

— O bibliotecário — respondi, quando consegui emitir algumas palavras. — O que nos seguiu em Istambul. Tenho certeza de que era ele.

— Santo Deus — Hugh enxugou a testa com a manga da camisa. — O que é que ele está a fazer aqui?

— A tentar apanhar o resto dos meus apontamentos — respondi, ofegando. — É um vampiro, se é que acredita nisso, e agora trouxemo-lo para esta bela cidade. — Na realidade, eu tinha dito mais do que aquilo, e Hugh deve ter reconhecido, na nossa língua comum, todas as variantes americanas da raiva. O pensamento da maldição que eu arrastava atrás de mim quase me trouxe as lágrimas aos olhos.

— Ora, não pense nisso — disse Hugh, confortando-me. — Já houve aqui vampiros antes, como ambos sabemos. — Mas o seu rosto estava pálido e olhou em volta, segurando o guarda-chuva.

— Droga! — bati na parede com o punho na parede lateral do prédio.

— Você precisa estar alerta — disse Hugh, sensato. — Miss Rossi já voltou?

— Helen! — Não pensara uma única vez nela, e Hugh quase esboçou um sorriso perante a minha exclamação. — Vou voltar para o hotel para ver se já chegou. E vou telefonar ao professor Bora. Ouça, Hugh, fique atento também. Tenha cuidado, está bem? Ele viu-o, e ultimamente isso não tem trazido muita sorte para ninguém.

— Não se preocupe comigo. — Hugh olhava pensativo para o guarda-chuva que tinha na mão. — Quanto deu àquele funcionário do hotel?

Eu ri, apesar da minha falta de fôlego.

— Sim, pode ficar com ele.

Apertamos as mãos cordialmente e Hugh desapareceu na rua, na direção do seu hotel, que não ficava longe. Não me agradava a idéia de vê-lo ir embora sozinho, mas havia outras pessoas na rua, a passear e a conversar. De qualquer maneira, sabia que ele sempre seguiria o seu próprio caminho; era esse tipo de pessoa.

De volta ao vestíbulo do hotel, não havia sinal do aterrorizado funcionário. Talvez o seu turno tivesse acabado, porque um rapaz bem barbeado tomara o lugar dele atrás do balcão. Garantiu-me que a chave do novo quarto de Helen estava pendurada no lugar, portanto ainda devia estar com a tia. O rapaz deixou-me usar o telefone, depois de negociar meticulosamente o preço, e tive de tentar mais de uma vez até conseguir a ligação para Turgut. Não gostava da idéia de ligar do telefone do hotel, que eu sabia que podia estar sob escuta, mas era a única possibilidade àquela hora. Só me restava esperar que a nossa conversa fosse tão peculiar que não pudesse ser compreendida. Por fim, ouvi um clique na linha e a voz de Turgut, muito longe mas jovial, atendendo em turco.

— Professor Bora! — gritei. — Turgut, é Paul, estou a ligar de Budapeste.

— Paul, meu caro! — Pensei que nunca tinha ouvido nada tão reconfortante como aquela voz longínqua e retumbante. — Há um problema qualquer com a linha; dê-me o seu número daí, para o caso de a ligação cair.

O funcionário do hotel deu-me o número e eu gritei-o ao telefone. Turgut respondeu também aos gritos:

— Como estão? Encontraram-no?

— Não! gritei. — Estamos bem, e fiquei a saber um bocado mais, mas aconteceu uma coisa muito desagradável.

— O que foi? — Pude ouvir a sua consternação, debilmente, através da linha. — Está ferido? E Miss Rossi?

— Não, estamos bem, mas o bibliotecário seguiu-nos até aqui. — Ouvi uma enxurrada de palavras que podiam ser alguma maldição shakespeariana, mas era impossível distinguir através da estática. — O que acha que devíamos fazer?

— Ainda não sei a voz de Turgut estava um pouco mais clara agora. — Ainda tem consigo o estojo que lhe dei?

— Sim — respondi. — Mas não consigo chegar suficientemente perto desse demônio para o usar. Acho que ele revistou o meu quarto hoje enquanto estávamos na conferência, e aparentemente alguém o ajudou. — Talvez a polícia estivesse a ouvir-nos naquele momento. — Quem sabe o que pensariam de tudo aquilo, afinal?

— Tome muito cuidado, professor — a voz de Turgut soava preocupada. — Não tenho conselhos sábios para lhe dar, mas terei novidades em breve, talvez mesmo antes do seu regresso a Istambul. Estou contente que tenha ligado esta noite. Mr. Aksoy e eu encontramos um novo documento, que nenhum de nós tinha visto antes. Achou-o no arquivo de Mehmed. Esse documento foi escrito por um monge da Igreja Ortodoxa Oriental em 1477, e tem de ser traduzido.

Mais uma vez, a linha foi invadida pela estática e fui forçado a gritar:

— Disse 1477? Em que língua está escrito?

— Não consigo ouvi-lo, meu caro — berrou Turgut, de muito longe. — Houve aqui uma tempestade. Telefono-lhe amanhã à noite.

Uma babel de vozes — não conseguia distinguir se eram húngaras ou turcas interrompeu-nos e engoliu as suas palavras. Seguiram-se mais alguns cliques e a linha caiu de vez. Pousei o telefone devagar, ponderando se deveria ligar outra vez, mas o funcionário já estava a tirar-me o telefone da mão com uma expressão preocupada e a calcular a minha conta num pedaço de papel. Paguei, mal-humorado, e fiquei ali por alguns momentos, sem vontade de subir para o meu novo quarto, para onde só fui autorizado a levar os meus apetrechos de barbear e uma camisa lavada. O meu ânimo estava a diminuir rapidamente afinal, o dia tinha sido muito longo, e o relógio do vestíbulo marcava quase onze horas.

Teria diminuído ainda mais se um táxi não tivesse parado lá fora naquele momento. Helen saiu, pagou ao motorista e entrou pela grande porta. Não reparara que eu me encontrava ali junto do balcão, e o seu rosto estava sério e taciturno, com a intensidade melancólica que eu notara nele algumas vezes. Estava envolta num xale preto e vermelho de lã macia que eu nunca tinha visto antes, talvez um presente da tia. Suavizava-lhe as linhas duras do casaco e dos ombros, e fazia a sua pele brilhar, branca e luminosa, mesmo à luz crua do vestíbulo. Parecia uma princesa, e fiquei a olhar descaradamente para ela por alguns momentos antes que me visse. Não era apenas a sua beleza, realçada pela lã macia e pelo ângulo nobre do seu queixo, que me mantinha fascinado. Lembrava-me mais uma vez, com um desconfortável estremecimento interior, do retrato no escritório de Turgut — a cabeça orgulhosa, o longo nariz retilíneo, os grandes olhos escuros com as pálpebras pesadas e veladas. Talvez eu estivesse apenas muito cansado, disse a mim próprio, e, quando Helen me viu e sorriu, a imagem desapareceu novamente da minha visão interior.

 

Acho que se eu não tivesse sacudido Barley para o acordar, ou se ele estivesse sozinho, teria passado a dormir pela fronteira com a Espanha, e o funcionário da alfândega espanhola tê-lo-ia acordado de forma rude. Mas o fato foi que descemos na gare de Perpignan ainda meio adormecidos, por isso fui eu que perguntei o caminho para a rodoviária. O condutor vestido de azul franziu o sobrolho, como se achasse que àquela hora crianças como nós deviam estar a dormir, mas foi suficientemente educado para encontrar as nossas malas abandonadas atrás do balcão da estação. Para onde íamos? Disse-lhe que queríamos um autocarro para Lês Bains, e ele sacudiu a cabeça. Para isso, teríamos de esperar até à manhã seguinte eu não sabia que era quase meia-noite? Havia um hotel asseado no cimo da rua onde eu e o meu... "irmão", acrescentei depressa, poderíamos encontrar um quarto. O condutor olhou-nos de cima a baixo, ao ver-me tão morena e tão nova, supus, enquanto Barley era loiro e alto, mas limitou-se a dar um estalo com a língua e seguiu o seu caminho.

 

A manhã seguinte surgiu ainda mais clara e mais bonita do que a do dia anterior e, quando encontrei Helen na sala do hotel para o pequeno-almoço, os maus presságios da noite anterior já eram um sonho distante. O sol entrava através das janelas empoeiradas e iluminava as toalhas de mesa brancas e as grossas chávenas de café. Helen estava a tomar notas num pequeno caderno sobre a mesa.

— Bom — dia disse afavelmente, enquanto eu me sentava e me servia de café. — Está pronto para conhecer a minha mãe?

— Não penso noutra coisa desde que chegamos a Budapeste — confessei. — Como vamos chegar até lá?

— A aldeia fica no percurso de um autocarro que passa a norte da cidade. Só há um autocarro para lá nas manhãs de domingo; portanto, não podemos perdê-lo. A viagem dura cerca de uma hora, e atravessa subúrbios muito maçadores.

Duvidava de que alguma coisa nessa viagem me pudesse maçar, mas fiquei calado. No entanto, havia uma coisa que ainda me incomodava.

— Helen, tem a certeza de que quer que eu vá? Podia ir falar com ela sozinha. Talvez assim seja menos embaraçoso para ela do que se aparecer com um completo desconhecido e americano, ainda por cima. E se a minha presença lhe causar problemas?

— É exatamente a sua presença que tornará mais fácil para ela falar — disse Helen com firmeza. — É muito reservada comigo, sabe. Você vai deixá-la encantada.

— Bem, nunca fui acusado de ser encantador antes. — Servi-me de três fatias de pão e de um pires de manteiga.

— Não se preocupe; não é. — Helen fez-me o seu sorriso mais sardônico, mas pensei ter visto um lampejo de afeição nos seus olhos. — É que a minha mãe é fácil de encantar.

Não acrescentou: "Rossi encantou-a, por que não você?" Achei melhor deixar o assunto como estava.

— Espero que a tenha avisado de que vamos visitá-la.

Pensava, olhando para ela do outro lado da mesa, se contaria à mãe o ataque do bibliotecário. O lencinho estava enrolado firmemente em volta do pescoço, e esforcei-me para não olhar para ele.

— A tia Eva mandou-lhe um recado ontem à noite — disse Helen calmamente, e passou-me as compotas.

O autocarro, que apanhamos no extremo norte da cidade, entrava e saía dos subúrbios, como Helen tinha previsto, passando primeiro pelos bairros antigos circundantes, muito danificados pela guerra, e depois por uma infinidade de novos edifícios, altos e brancos como pedras tumulares para gigantes. Era aquele o progresso comunista do qual frequentemente se falava com hostilidade na imprensa ocidental, pensei a aglomeração de milhões de pessoas de todo o Leste Europeu em apartamentos insípidos construídos em altura. O autocarro parava em vários destes complexos habitacionais, e dei por mim a perguntar-me se seriam assim tão insípidos; junto de cada um deles havia jardins acolhedores cheios de vegetais e ervas aromáticas, flores de cores vivas e borboletas. Num banco no exterior de um desses edifícios, perto da paragem do autocarro, dois velhos de camisas brancas e coletes escuros jogavam um jogo de tabuleiro que não consegui identificar àquela distância. Várias mulheres entraram no autocarro com as suas blusas bordadas com cores alegres — seriam trajes domingueiros? e uma delas transportava uma gaiola com uma galinha viva. O motorista meteu a gaiola com a galinha lá dentro com o resto das pessoas e a mulher acomodou-se ao fundo do autocarro com o seu tricô.

Quando deixamos os subúrbios para trás, o autocarro arrastou-se por uma estrada rural, de onde vi campos férteis e estradas largas e poeirentas. Aqui e ali, passamos por uma carroça puxada por um cavalo a carroça feita como um simples cesto de ramos de árvores entrançados conduzidas por camponeses de chapéu de feltro e colete pretos. De vez em quanto, cruzávamo-nos com um automóvel que nos Estados Unidos estaria num museu. A terra era linda, verde e viçosa, e salgueiros de folhas amarelas curvavam-se sobre os riachos que a cortavam. De vez em quando, entrávamos numa aldeia; às vezes, conseguia ver as cúpulas em forma de bolbo de uma igreja ortodoxa no meio das torres de outras igrejas. Helen debruçava-se sobre mim para ver também.

— Se continuássemos nesta estrada, chegaríamos a Esztergom, a primeira capital dos reis húngaros. Vale com certeza a pena vê-la. Se tivéssemos tempo...

— Fica para a próxima — menti. — Por que é que a sua mãe escolheu viver aqui?

— Mudou-se para cá quando eu ainda andava na escola, para ficar perto das montanhas. Não quis vir com ela; fiquei em Budapeste com Eva. A minha mãe nunca gostou da cidade, e dizia que as montanhas Bórzsõny, a norte daqui, lhe lembravam a Transilvânia. Todos os domingos vai para as montanhas com o clube de montanhismo, a não ser quando a neve está muito alta.

Isto juntou um outro pequeno fragmento ao retrato em mosaico da mãe de Helen que eu ia construindo na minha cabeça.

— Por que não se mudou logo para as montanhas?

— Não há trabalho lá, é principalmente um parque nacional. Além disso, a minha tia não teria permitido, e ela sabe ser muito rígida quando quer. Acha que a minha mãe já se isolou demais.

— Onde é que a sua mãe trabalha? — Olhei para fora, para a paragem de autocarro de uma aldeia; a única pessoa que ali estava era uma velha toda vestida de preto, com um lenço preto na cabeça e um ramo de flores vermelhas e cor-de-rosa numa das mãos. Não entrou no autocarro quando paramos nem cumprimentou nenhuma das pessoas que desceram. Quando voltamos a partir, pude vê-la a olhar para nós, segurando o seu ramo.

— Trabalha no centro cultural da aldeia, a preencher papelada, a datilografar umas coisas e a fazer café para os presidentes das câmaras das cidades maiores, quando vêm em visita. Já lhe disse que é um trabalho degradante para alguém com a sua inteligência, mas ela encolhe os ombros e continua. A minha mãe fez da simplicidade uma carreira. — Havia uma nota de amargura na voz de Helen, e perguntei-me se ela pensaria que essa simplicidade prejudicara não só a carreira da mãe, como as oportunidades da filha. Estas tinham-lhe sido abundantemente proporcionadas pela tia Eva, refleti. Helen estava a sorrir o seu sorriso invertido, que era arrepiante. — Vai ver...

A aldeia da mãe de Helen estava indicada por uma placa nos limites da cidadezinha, e em poucos minutos o nosso autocarro parou numa praça cercada de plátanos empoeirados, com uma igreja fechada com tábuas num dos lados. Uma velha, gémea daquela avó vestida de preto que vira na última aldeia, esperava sozinha sob o abrigo da paragem de autocarro. Olhei inquisitivamente para Helen, mas ela abanou a cabeça e, dito e feito, a velha senhora abraçou um soldado que desceu à nossa frente.

Helen parecia encarar com naturalidade a nossa chegada solitária, e conduziu-me rapidamente por ruas laterais, passando por casas silenciosas com flores nas floreiras das janelas e persianas fechadas contra a forte luz do sol. Um velho sentado numa cadeira de madeira do lado de fora de uma casa fez um gesto com a cabeça e levou a mão ao chapéu. Perto do fim da rua, um cavalo cinzento estava amarrado a um poste, a beber avidamente água de um balde. Duas mulheres com vestidos de trazer por casa e chinelos conversavam em frente de um café que parecia fechado. Para lá dos campos, ouvia-se o toque dos sinos de uma igreja e, mais próximo, o canto dos pássaros nas tílias. Havia por toda a parte um sonolento rumorejar; a natureza estava apenas a um passo de distância, se soubéssemos que direção tomar.

Então, a rua terminou abruptamente num campo invadido por ervas daninhas, e Helen bateu à porta da última casa. Era muito pequena, uma casinha de estuque amarelo com um telhado de telhas vermelhas, e parecia acabada de pintar por fora. O telhado ultrapassava a frente da casa, formando um alpendre natural, e a porta da frente era de madeira escura, com uma grande aldraba enferrujada. A casa ficava ligeiramente afastada das casas vizinhas, e não havia nenhuma horta colorida ou caminho de pedras recém-colocadas que levassem até ela, ao contrário de muitas outras casas da rua. Devido à pesada sombra do beiral, no primeiro minuto não pude ver o rosto da mulher que respondeu à chamada de Helen. Então pude vê-la claramente, e um momento depois estava a abraçar Helen e a beijá-la no rosto, com calma, quase formalmente, e em seguida virou-se para me apertar a mão.

Não sei exatamente o que esperava; talvez a história da deserção de Rossi e do nascimento de Helen me tivesse levado a imaginar uma beldade envelhecida e de olhos tristes, melancólica ou mesmo desamparada. A mulher real à minha frente tinha a postura direita de Helen, embora fosse mais baixa e mais pesada do que a filha, e um rosto firme e alegre, de faces redondas e olhos escuros. O cabelo escuro e liso estava preso num carrapito. Usava um vestido de algodão às riscas e um avental às flores. Ao contrário da tia Eva, não usava maquiagem ou jóias, e as suas roupas eram semelhantes às das donas de casa que eu tinha visto na rua. Tinha estado a fazer uma tarefa doméstica qualquer, de fato, porque tinha as mangas arregaçadas até aos cotovelos. Deu um aperto de mão amistoso, sem dizer nada mas olhando-me diretamente nos olhos. E, só por um momento, vislumbrei a rapariga tímida que ela devia ter sido duas décadas antes, escondida nas profundezas daqueles olhos escuros, rodeados de pés-de-galinha.

Levou-nos para dentro e indicou-nos por gestos que nos sentássemos à mesa, onde havia colocado três chávenas lascadas e um prato de pãezinhos.

Senti o aroma do café acabado de fazer. Também tinha estado a cortar verduras, e um forte cheiro a cebolas cruas e batatas flutuava no ar.

Era a sua única divisão, reparei, tentando não olhar em volta de maneira muito evidente funcionava como cozinha, quarto de dormir e zona de estar. Estava imaculadamente limpa, a cama estreita num canto, coberta por uma colcha branca e enfeitada com várias almofadas brancas bordadas com cores vivas. Junto à cama, ficava uma mesinha onde havia um livro, um candeeiro com globo de vidro e uns óculos, e, ao lado dessa mesinha, uma cadeira pequena. Ao pé da cama, via-se um baú de madeira, pintado com flores. A área da cozinha, onde estávamos sentados, consistia num simples fogão e numa mesa com cadeiras Não havia eletricidade nem casa de banho (só mais tarde fiquei a saber da casinha no jardim das traseiras). Pendurado numa das paredes, havia um calendário com uma fotografia de operários numa fábrica, e, noutra parede, um bordado a vermelho e branco. Havia flores numa jarra e cortinas brancas nas janelas. Uma pequena salamandra ficava, próxima da mesa da cozinha, com toros de lenha cortados e empilhados ao lado

A mãe de Helen sorria-me, ainda um pouco tímida, e, pela primeira vez, vi a sua semelhança com a tia Eva, e talvez também algo do que deve ter atraído Rossi. Tinha um sorriso excepcionalmente caloroso, que começava devagar e depois se abria luminoso e completamente aberto para a pessoa a quem se destinava, quase radiante. O sorriso desapareceu também lentamente, enquanto ela se sentava para cortar mais verduras. Olhou para mim outra vez e disse qualquer coisa em húngaro a Helen.

— Ela quer que eu lhe sirva o café. — Helen foi ocupar-se do fogão e encheu uma chávena, tirando açúcar de uma lata e mexendo. A mãe de Helen pousou a faca para empurrar o prato de pãezinhos na minha direção. Peguei num educadamente e agradeci-lhe com as minhas duas desajeitadas palavras de húngaro. Aquele sorriso radioso e lento começou a brilhar novamente e ela olhou de mim para Helen, dizendo mais uma vez à filha algo que eu não conseguia entender. Helen corou e voltou ao café.

— O que foi.

— Nada. São só as idéias provincianas de minha mãe, mais nada. — Veio sentar-se à mesa, colocando uma chávena em frente da mãe e enchendo a sua.

— Agora, Paul, se não se importar, vou perguntar à minha mãe como tem passado e as novidades da aldeia.

Enquanto conversavam, Helen na sua rápida voz de contralto e a sua mãe em respostas murmuradas, deixei o meu olhar passear novamente pela casa. Aquela mulher vivia não só com uma impressionante simplicidade talvez acontecesse o mesmo com os vizinhos, mas também imersa numa grande solidão. Havia só dois ou três livros à vista, nenhum animal, nem sequer uma planta num vaso. Era como a cela de uma freira.

Voltando a olhar para ela, reparei como era nova, muito mais do que a minha mãe. A sua cabeleira tinha uns fios grisalhos no alto da cabeça, onde o cabelo se repartia, e o rosto estava marcado pelos anos, mas havia alguma coisa de extraordinariamente firme e saudável nela, uma capacidade de atração completamente independente da moda ou da idade. Podia ter-se casado muitas vezes, refleti, e no entanto escolhera viver naquele silêncio de convento. Sorriu para mim outra vez, e eu retribuí-lhe o sorriso; o seu rosto era tão caloroso que tive de resistir à vontade de estender a minha mão e segurar uma das dela, que descascava delicadamente uma batata.

— A minha mãe gostaria de saber tudo a seu respeito — disse-me Helen, e, com a ajuda dela, respondi a todas as perguntas o melhor que pude. Cada pergunta foi-me feita em húngaro e em voz baixa, com um olhar inquisitivo da minha interlocutora, como se pudesse fazer-me entender através do poder do seu olhar. De que parte da América era eu? Por que viera até ali? Quem eram os meus pais? Não se importavam que eu viajasse para tão longe? Como conhecera Helen? Nesse ponto, introduziu várias outras perguntas que Helen parecia relutante em traduzir, uma delas acompanhada por uma carícia maternal no rosto de Helen. Helen parecia indignada e eu não a pressionei para que se explicasse. Em vez disso, voltamos aos meus estudos, aos meus planos, aos meus pratos preferidos.

Quando a mãe de Helen se deu por satisfeita, levantou-se e começou a dispor numa travessa grande vegetais e pedaços de carne, que temperou com uma coisa vermelha saída de uma jarra que estava por cima do fogão e depois meteu no forno. Limpou as mãos ao avental e sentou-se, olhando de mim para Helen sem dizer nada, como se tivéssemos todo o tempo do mundo. Por fim, Helen mexeu-se e, pelo modo como limpou a garganta, adivinhei que pretendia abordar o objetivo da nossa visita. A mãe observava-a em silêncio, sem alterar a expressão, até que Helen apontou para mim e disse a palavra "Rossi". Tive de recorrer a toda a minha coragem, sentado à mesa de uma aldeia longe de tudo o que me era familiar, para fixar o meu olhar naquele rosto tranquilo sem vacilar. A mãe de Helen pestanejou, uma vez, quase como se alguém tivesse ameaçado bater-lhe, e por um segundo os seus olhos desviaram-se rapidamente para o meu rosto. Então, abanou a cabeça, pensativa, e fez uma pergunta a Helen.

— Ela está a perguntar há quanto tempo conhece o professor Rossi.

— Há três anos -respondi.

— Agora — disse Helen — vou contar-lhe o desaparecimento dele.

Gentil e determinadamente, não tanto como se estivesse a falar com uma criança, mas como se estivesse a forçar-se a continuar contra a sua própria vontade, Helen falou com a mãe, às vezes fazendo um gesto na minha direção e outras vezes formando um desenho no ar com as mãos. Finalmente, captei a palavra "Drácula" e, ao ouvir este som, vi a mãe de Helen empalidecer e segurar a borda da mesa. Helen e eu levantámo-nos e Helen trouxe depressa um copo de água de um jarro. A mãe de Helen disse qualquer coisa rápida e áspera. Helen virou-se para mim.

— Ela diz que sempre soube que isto aconteceria.

Fiquei ali sem saber o que fazer mas, depois de ter bebido uns goles de água, a mãe de Helen parecia ter recuperado. Olhou para mim e, para minha surpresa, pegou-me na mão, como eu tivera vontade de fazer com a sua minutos antes, e fez-me sentar de novo. Segurava-me na mão com ternura, com simplicidade, acariciando-a como se estivesse a confortar uma criança. Não conseguia imaginar nenhuma mulher do meu país a fazer aquilo a primeira vez que encontrava um homem, e, no entanto, nada me parecia mais natural. Compreendi o que Helen tinha querido dizer quando me avisou que, das duas mulheres mais velhas da sua família, seria da mãe que eu gostaria mais.

— A minha mãe quer saber se acredita honestamente que o professor Rossi tenha sido raptado por Drácula.

Inspirei profundamente.

— Acredito.

— E quer saber também se gosta muito do professor Rossi. — A voz de Helen era levemente desdenhosa, mas o seu rosto revelava expectativa. Se pudesse ter segurado sem correr risco a mão dela com a minha outra mão, tê-lo-ia feito.

— Daria a vida por ele — disse eu.

Helen repetiu a minha resposta para a mãe, que subitamente apertou a minha mão com toda a força, mais tarde, percebi que aquela força era o resultado de trabalhos infindáveis. Senti a aspereza dos dedos, os calos nas palmas, as articulações inchadas. Olhando para aquela mão pequena mas vigorosa, vi que era muitos anos mais velha do que a mulher a que pertencia.

Depois de alguns instantes, a mãe de Helen soltou-me a mão e foi até ao baú aos pés da cama. Abriu-o lentamente, mexeu em várias coisas no interior, e tirou o que imediatamente identifiquei como um maço de cartas. Os olhos de Helen arregalaram-se e fez uma pergunta em tom ríspido; a mãe não disse nada, limitou-se a voltar em silêncio para a mesa e pôs-me o maço de cartas na mão.

As cartas estavam em envelopes, sem selos, amarelecidas pelo tempo e atadas juntas com um cordão vermelho esfiapado. Enquanto me dava as cartas, a mãe de Helen fechou-me os dedos sobre o cordão com ambas as mãos, como se me exortasse a cuidar delas com carinho. Bastou olhar um segundo para a caligrafia no primeiro envelope para ver que era de Rossi, e para ler o nome a quem estavam endereçadas. O nome já eu conhecia, nos recessos da minha memória, e o endereço era Trinity College, Universidade de Oxford, Inglaterra.

 

Estava profundamente emocionado ao pegar nas cartas de Rossi mas, antes de pensar nelas, tinha uma obrigação a cumprir.

— Helen — disse eu, virando-me para ela —, sei que por vezes sentiu que eu não acreditava na história do seu nascimento. É verdade que em certos momentos duvidei. Por favor, perdoe-me

— Estou tão surpreendida como você — respondeu Helen em voz baixa. — A minha mãe nunca me contou que tinha cartas de Rossi. Mas não foram escritas para ela, pois não? Pelo menos, essa primeira não foi.

— Não — disse eu — Mas reconheço o nome. Era um grande historiador da literatura inglesa, escrevia sobre o século dezoito. Li um dos seus livros na faculdade, e Rossi mencionou-o nas cartas que me deu.

Helen parecia confusa.

— O que é que isto tem a ver com Rossi e a minha mãe?

— Tudo, talvez. Não está a ver? Deve ter sido Hedges, o amigo de Rossi, era por esse nome que Rossi o tratava, lembra-se? Rossi deve ter-lhe escrito da Romênia, embora isso não explique por que razão a sua mãe tem estas cartas

A mãe de Helen mantinha-se sentada com as mãos entrelaçadas, olhando para nós com uma expressão de grande paciência, mas pensei ter detectado um rubor de excitação no seu rosto. Depois falou, e Helen traduziu-me.

— Ela diz que vai contar-lhe a sua história toda. — Helen falava com a voz embargada e eu prendi a respiração.

Era um sistema cheio de pausas, a mulher mais velha a falar devagar e Helen a funcionar como tradutora, parando de tempos a tempos para expressar a sua própria surpresa. Aparentemente, Helen só ouvira até então os contornos da história, e agora estava chocada. Quando voltei para o hotel naquela noite, passei-a para o papel, de memória, o melhor que pude, lembro-me de que isso me levou uma boa parte daquela noite. Entretanto, muitas outras coisas estranhas tinham acontecido, e eu devia estar cansado, mas ainda me lembro de a ter registado com uma espécie de meticulosidade exaltada.

 

— Quando eu era pequena, vivia na aldeia de R, na Transilvânia, muito perto de Arges. Tinha muitos irmãos e irmãs, e a maioria deles ainda vive naquela região. O meu pai sempre dizia que descendíamos de famílias antigas e nobres, mas que os meus antepassados tinham passado por dificuldades, e cresci sem sapatos nem cobertores quentes. Era uma região pobre, e as únicas pessoas que viviam bem eram umas poucas famílias húngaras, nas suas grandes casas junto à margem do rio. O meu pai era terrivelmente severo e nós todos tínhamos medo do seu chicote. A minha mãe estava muitas vezes doente. Eu trabalhava no nosso campo fora da aldeia desde muito pequena. Às vezes, o padre trazia-nos comida ou mantimentos, mas, em geral, tínhamos de nos governar como podíamos, sozinhos.

Quando eu tinha mais ou menos dezoito anos, uma velha chegou à nossa aldeia vinda de outra aldeia, lá em cima nas montanhas, a montante do rio. Era uma vidente, e disse ao meu pai que tinha um presente para ele e para os seus filhos, que tinha ouvido falar da nossa família e queria dar-lhe algo de mágico que era dele por direito. O meu pai era um homem impaciente, sem tempo para superstições de velhas, embora ele próprio esfregasse sempre alho em todas as aberturas da nossa casa — a chaminé e o batente da porta, o buraco da fechadura e as janelas — para espantar os vampiros. Enxotou a velha rudemente, dizendo que não tinha dinheiro para lhe dar, fosse o que fosse que ela queria impingir-lhe. Mais tarde, quando fui ao poço da aldeia buscar água, encontrei-a lá e dei-lhe um gole de água e um pedaço de pão. Ela abençoou-me e disse que eu era mais bondosa do que o meu pai, e que recompensaria a minha generosidade. Então, tirou de uma bolsa que trazia a cintura uma pequena moeda e pôs-ma na mão, dizendo-me que a escondesse e a guardasse em segurança, porque pertencia a nossa família. Também disse que a moeda vinha de um castelo a montante do Arges.

Eu sabia que devia mostrar a moeda ao meu pai, mas não o fiz, porque pensei que ele ficaria zangado por eu ter falado com a velha bruxa. Então, escondi-a no meu canto da cama, que dividia com as minhas irmãs, e não contei a ninguém sobre a moeda. As vezes, pegava nela, quando sabia que ninguém estava a ver. Segurava-a na mão e perguntava-me com que intenção a velha ma teria dado. Numa das faces da moeda via-se uma estranha criatura com a cauda enrolada, e, na outra, um pássaro e uma pequena cruz.

Passaram-se alguns anos e eu continuei a trabalhar a terra do meu pai e a ajudar a minha mãe em casa. O meu pai ficava desesperado por ter várias filhas. Dizia que nunca nos casaríamos porque ele era demasiado pobre para nos dar um dote, e que seríamos sempre um problema para ele. Mas a minha mãe contava-nos que todos na aldeia diziam que éramos tão bonitas que alguém acabaria por casar conosco. Eu tentava manter as minhas roupas limpas e o meu cabelo penteado e bem entrançado para que um dia alguém me escolhesse. Não gostava de nenhum dos rapazes que me convidavam para dançar nas festas, mas sabia que em breve teria de me casar com um deles para não me tornar um fardo para os meus pais. A minha irmã Eva partira há muito para Budapeste com a família húngara para quem trabalhava, e às vezes mandava-nos algum dinheiro. Uma vez, mandou-me mesmo um bom par de sapatos, sapatos de couro da cidade, nos quais tinha muito orgulho.

Era essa a minha situação quando conheci o professor Rossi. Não era vulgar que estrangeiros viessem à nossa aldeia, especialmente alguém de tão longe, mas um dia todos comentaram a novidade, que um homem de Bucareste estivera na taberna, e com ele um homem de outro país. Faziam perguntas sobre as aldeias ao longo do rio e sobre o castelo em ruínas nas montanhas mais acima do rio, a um dia de viagem a pé da nossa aldeia. O vizinho que passou lá em casa para nos contar esta novidade também sussurrou qualquer coisa ao meu pai, que estava sentado no seu banco à porta de casa. O meu pai fez o sinal da cruz e cuspiu no chão de terra.

— Tolice e disparate — disse. — Ninguém devia fazer perguntas dessas. É um convite ao Demônio.

Mas fiquei curiosa. Saí para ir buscar água e poder ouvir mais sobre aquela história e, quando entrei na praça da aldeia, vi os estrangeiros sentados a uma das duas mesas do lado de fora da taberna, a conversar com um velho que estava sempre ali. Um dos estrangeiros era alto e moreno, como um cigano, mas usava roupas de cidade. O outro vestia um casaco castanho de um estilo que eu nunca tinha visto, calças largas enfiadas em botas de caminhar, e um chapéu castanho de abas largas na cabeça. Fiquei do outro lado da praça, perto do poço, e dali não conseguia ver o rosto do estrangeiro. Duas das minhas amigas queriam ver mais de perto, e chamaram-me baixinho para ir com elas. Fui, relutante, sabendo que o meu pai não aprovaria.

Quando passamos em frente da taberna, o homem estrangeiro olhou para mim e vi, para minha surpresa, que era jovem e bonito, com uma barba dourada e brilhantes olhos azuis como as pessoas das aldeias alemãs do nosso país. Estava a fumar cachimbo e a falar em voz baixa com o seu companheiro. No chão, perto dele, havia uma bolsa de lona muito usada, com tiras para os ombros, e ele estava a escrever qualquer coisa num livro com capa de cartão. Tinha um aspecto de que gostei imediatamente era distraído, amável e muito vivo, tudo ao mesmo tempo. Cumprimentou-nos levando a mão ao chapéu e desviou rapidamente o olhar, e o homem feio levou também a mão ao chapéu e olhou para nós, e em seguida voltaram a conversar com o velho Ivan e a anotar coisas. O homem grandalhão parecia estar a falar em romeno com o velho Ivan, e de vez em quando virava-se para o homem mais novo e dizia qualquer coisa numa língua que eu não entendia. Continuei a andar depressa com as minhas amigas, não querendo que o belo estrangeiro pensasse que eu era mais atrevida do que elas.

Na manhã seguinte, dizia-se na aldeia que os estrangeiros tinham dado dinheiro a um jovem na taberna para lhes mostrar o caminho até ao castelo em ruínas chamado Poenari, muito acima do Arges. Ficariam fora até ao dia seguinte. Ouvi o meu pai contar a um amigo que eles estavam à procura do castelo do príncipe Vlad. Lembrava-se de outra vez em que o doido com cara de cigano estivera lá, à procura do castelo.

— Os doidos nunca aprendem — dizia o meu pai, com raiva.

Eu nunca tinha ouvido aquele nome príncipe Vlad — antes. As pessoas da nossa aldeia costumavam chamar ao castelo Poenari ou Arefu. O meu pai disse que o homem que levara os estrangeiros até lá era louco por dinheiro. Jurou que dinheiro nenhum no mundo seria capaz de fazer com que ele, o meu pai, passasse lá a noite, porque as ruínas estavam cheias de espíritos malignos. Disse que provavelmente o estrangeiro estava à procura de algum tesouro, o que era uma loucura, porque todo o tesouro do príncipe que vivera ali estava enterrado bem fundo, e havia um feitiço maligno relacionado com ele. O meu pai disse que, se alguém o encontrasse e o tesouro fosse exorcizado, ele deveria receber uma parte, porque parte daquele tesouro lhe pertencia por direito próprio. Depois, reparou que eu e as minhas irmãs estávamos a ouvir e calou-se.

O que o meu pai disse fez-me lembrar a pequena moeda que a velha me dera, e pensei, cheia de remorsos, que tinha uma coisa que devia ter dado ao meu pai. Mas uma revolta cresceu dentro de mim, e decidi encontrar uma maneira de dar a minha moeda ao belo estrangeiro, já que ele estava à procura do tesouro no castelo. Quando tive uma oportunidade, tirei a moeda do seu esconderijo e atei-a no canto de um lenço, que, por sua vez, amarrei ao meu avental.

O estrangeiro só voltou a aparecer dois dias depois, e então vi-o sentado sozinho à mesma mesa, parecendo muito cansado, com as roupas sujas e rasgadas. As minhas amigas disseram que o cigano da cidade partira naquele dia e que o estrangeiro estava sozinho. Ninguém sabia por que é que ele queria ficar mais tempo. Tinha tirado o chapéu e pude ver os seus cabelos castanho-claros, despenteados. Havia outros homens com ele, e estavam a beber. Não ousei aproximar-me ou falar com o estrangeiro porque aqueles homens estavam com ele, e parei para conversar um pouco com uma amiga. Enquanto conversávamos, o estrangeiro levantou-se e entrou na taberna.

Fiquei muito triste e pensei que seria impossível dar-lhe a minha moeda. Mas eu estava com sorte naquela tarde. Quando ia a sair do campo do meu pai, onde ficara a trabalhar enquanto os meus irmãos e irmãs estavam ocupados com outras tarefas, vi o estrangeiro a caminhar sozinho nos limites do bosque.

Andava ao longo do atalho que levava ao rio, com a cabeça baixa e as mãos atrás das costas. Estava completamente sozinho e, agora que tinha oportunidade de falar com ele, senti medo. Para me dar coragem, segurei o nó do lenço onde a moeda estava escondida. Andei na direção dele e parei no atalho, esperando que se aproximasse.

Tive a impressão de que demorou muito tempo, enquanto fiquei ali à espera. Ele não deve ter notado a minha presença até estarmos quase cara a cara. Então, levantou o olhar, parecendo surpreendido e embaraçado. Tirou o chapéu e afastou-se para o lado, como a dar-me passagem, mas fiquei muito quieta, a ganhar coragem, e saudei-o. Ele inclinou-se um pouco e sorriu e ficamos ali a olhar-nos por um momento. Não havia nada no seu rosto ou nas suas maneiras que me fizesse sentir medo, mas estava quase paralisada pela timidez.

Antes de perder a coragem, desamarrei o lenço do meu cinto e desembrulhei a moeda. Dei-lha, em silêncio, e ele pegou nela e virou-a, examinando-a com cuidado. De repente, um clarão surgiu no seu rosto e olhou para mim novamente com um olhar muito penetrante, como se pudesse ver através do meu coração. Tinha os olhos mais brilhantes, mais azuis que se pode imaginar. Senti-me tremer toda.

— De onde? De onde? — gesticulou ele para me explicar a sua pergunta. Fiquei espantada por ele conhecer algumas palavras na nossa língua. Ele bateu com o pé no chão, e compreendi. Eu tinha tirado a moeda da terra? Sacudi a cabeça.

— De undé?

Tentei imitar uma mulher velha, com um lenço na cabeça e apoiada numa bengala — imitei-a a dar-me a moeda. Ele fez que sim com a cabeça, franziu a testa. Depois fez os gestos da mulher e apontou ao longo do atalho na direção da nossa aldeia.

— De lá?

Não sacudi a cabeça de novo e apontei rio acima e para o céu, para onde achava que o castelo ficava, e para a aldeia onde a velha morava. Apontei para ele e imitei os pés a caminhar — lá para cima! O clarão apareceu novamente no seu rosto e ele fechou a mão sobre a moeda. Quis devolver-ma, mas eu recusei, apontando para ele e sentindo que estava a corar. Ele sorriu, pela primeira vez, e inclinou-se para mim, e eu senti-me como se o céu se tivesse aberto diante dos meus olhos por um momento.

— Multumesc — disse ele. — Obrigado.

Então, quis ir-me embora a correr, antes que o meu pai desse pela minha falta à mesa do jantar, mas o estrangeiro deteve-me com um gesto rápido. Apontou para si mesmo.

— Ma numesc Bartolomeo Rossi — disse. Repetiu, depois escreveu o nome na terra aos nossos pés. Ri ao tentar pronunciar o nome dele. E depois ele apontou para mim.

-Vot? — disse. — Qual é o teu nome?

Respondi e ele repetiu, sorrindo de novo.

— Família? — ele parecia estar à procura das palavras.

— O nome da minha família é Getzi — disse-lhe eu.

O seu rosto pareceu encher-se de surpresa. Apontou na direção do rio, depois para mim, e disse qualquer coisa várias vezes, seguida da palavra "Drácula", que compreendi significar "do dragão". Não conseguia entender o que queria dizer. Por fim, abanando a cabeça e suspirando, ele disse: "amanhã". Apontou para mim, para ele, para o lugar onde estávamos, e para o Sol no céu. Percebi imediatamente que estava a pedir-me para estar ali à mesma hora na tarde seguinte. Sabia que o meu pai ficaria muito zangado se descobrisse. Apontei para o chão, depois levei um dedo aos lábios. Não conhecia outra maneira de lhe dizer que não falasse sobre aquilo com ninguém na aldeia. Ele pareceu alarmado, mas depois levou por sua vez o dedo aos lábios e sorriu-me. Até àquele momento, eu ainda sentia um pouco de medo dele, mas o seu sorriso era maravilhosamente gentil e os seus olhos azuis brilhavam. Tentou mais uma vez devolver-me a moeda e, quando voltei a recusar, inclinou-se, pôs o chapéu na cabeça e voltou para o bosque na direção de onde tinha vindo. Percebi que estava a permitir-me voltar sozinha para a aldeia, e parti rapidamente, sem me virar para trás para olhar para ele.

Toda aquela noite, à mesa do meu pai, lavando e limpando a louça com a minha mãe, pensei no estrangeiro. Pensava nas suas roupas estrangeiras, nos seus modos bem-educados, na expressão do seu rosto, que era distraída e alerta ao mesmo tempo, nos seus olhos brilhantes. Pensei nele durante todo o dia seguinte enquanto fiava com as minhas irmãs, preparava o jantar, ia buscar água e trabalhava no campo. A minha mãe repreendeu-me muitas vezes por não estar a prestar atenção ao que fazia. A tardinha, fiquei para trás a acabar de arrancar as ervas daninhas, e fiquei aliviada quando os meus irmãos e o meu pai desapareceram na direção da aldeia.

Logo que eles se foram embora, corri para a orla do bosque. O estrangeiro estava lá sentado, encostado a uma árvore, e, quando me viu, pôs-se de pé num salto e ofereceu-me um lugar para me sentar num tronco próximo do atalho. Mas eu tinha medo que alguém da aldeia passasse e levei-o mais para dentro do bosque, com o coração a bater com força pelo que estava a fazer. Lá, sentámo-nos em duas pedras. O bosque estava cheio dos sons vespertinos dos pássaros era o início do Verão e tudo estava muito verde e impregnado de calor.

O estrangeiro tirou do bolso a moeda que eu lhe dera e colocou-a no chão, com cuidado. Depois, tirou uns livros da mochila e começou a folheá-los. Mais tarde soube que eram dicionários de Romeno e da língua que ele falava. Muito devagar, consultando frequentemente os seus livros, perguntou-me se eu tinha visto outras moedas como a que lhe dera. Respondi que não. Explicou-me que o animal na moeda era um dragão e perguntou-me se eu já tinha visto aquele dragão em qualquer outro lugar, num edifício ou num livro. Respondi que tinha um igual no meu ombro.

A princípio, não percebeu nada do que eu estava a dizer. Eu orgulhava-me de saber escrever o nosso alfabeto e ler um pouco houvera uma escola na aldeia durante algum tempo, quando eu era pequena, e um padre vinha ensinar-nos. O dicionário do estrangeiro era muito confuso para mim, mas juntos encontramos a palavra "ombro". Ele pareceu intrigado e perguntou-me novamente: "Drákula?" Pegou na moeda. Toquei no meu ombro por cima da blusa e fiz que sim com a cabeça. Ele olhou para o chão, com o rosto a ficar corado, e de repente senti que eu era a mais corajosa dos dois. Desabotoei o meu casaco de lã e despi-o, depois abri a gola da minha blusa. O coração batia-me com força, mas alguma coisa tomara conta de mim e eu não conseguia parar. Ele olhou para o outro lado, mas baixei a manga da blusa e apontei.

Não conseguia lembrar-me desde quando tinha um pequeno dragão verde-escuro estampado no ombro. A minha mãe dizia que o dragão era marcado num filho de cada geração da família do meu pai, e que ele me escolhera porque pensava que eu provavelmente seria a mais feia de todas quando crescesse. O meu pai dizia que o avô dele lhe contara que aquilo era necessário para manter os espíritos malignos longe da nossa família. Ouvi aquela história apenas uma ou duas vezes, porque normalmente o meu pai não gostava de falar no assunto, e eu não sabia sequer quem era o parente da geração dele que possuía a marca, se estava no seu corpo ou no de um dos seus irmãos ou irmãs. O meu dragão era muito diferente do pequeno dragão da moeda e, por isso, até o estrangeiro me perguntar se eu tinha mais qualquer coisa com a imagem de um dragão, nunca associara os dois.

O estrangeiro examinou com atenção o dragão na minha pele, segurando a moeda perto dele, mas sem me tocar ou mesmo aproximar-se. O seu rosto continuava corado e pareceu aliviado quando fechei novamente a minha blusa e vesti o casaco. Consultou os seus dicionários e perguntou-me com dificuldade quem pusera o dragão ali. Quando eu disse que fora o meu pai com a ajuda de uma velha da aldeia, uma curandeira, perguntou se podia falar com o meu pai sobre aquilo. Eu neguei com tanta força que ele ficou muito vermelho outra vez. Então disse-me, com muita dificuldade, que a minha família descendia de um príncipe maligno que construíra o castelo a montante do rio. Esse príncipe tinha sido chamado "o filho do dragão", e havia morto muitas pessoas. Disse que o príncipe se tornara um pricolic, um vampiro. Fiz o sinal da cruz e pedi à Virgem Maria que me protegesse. Perguntou se eu conhecia aquela história e eu respondi que não. Perguntou-me a idade, se tinha irmãos e irmãs e se havia outras pessoas na aldeia com o nosso apelido.

Finalmente, apontei para o Sol, que já se tinha quase posto, para mostrar que tinha de voltar para casa, e ele levantou-se rapidamente, com uma expressão séria. Deu-me a mão e ajudou-me a levantar. Quando segurei na sua mão, o coração saltou-me para os dedos. Fiquei embaraçada e voltei-me rapidamente. Mas refleti que ele estava demasiado interessado nos espíritos malignos e poderia correr algum perigo. Talvez eu devesse dar-lhe alguma coisa que o protegesse. Apontei para o chão e para o Sol. "Venha amanhã", disse-lhe. Ele hesitou por um instante e finalmente sorriu. Pôs o chapéu e levou a mão à aba. Depois desapareceu no bosque.

Na manhã seguinte, quando fui ao poço, ele estava sentado na taberna com os velhos, a escrever outra vez qualquer coisa. Pensei tê-lo visto olhar para mim, mas ele não deu qualquer sinal de me reconhecer. Eu estava muito feliz por dentro, porque vi que ele tinha mantido o nosso segredo. À tarde, quando o meu pai, a minha mãe, e os meus irmãos e irmãs estavam fora de casa, fiz uma coisa feia. Abri o baú de madeira dos meus pais e tirei dele uma pequena adaga de prata que vira lá muitas vezes. A minha mãe tinha-me dito uma vez que servia para matar vampiros se eles viessem incomodar as pessoas ou os rebanhos. Também peguei num punhado de cabeças de alho da horta da minha mãe. Escondi tudo no lenço quando fui para o campo.

Daquela vez, os meus irmãos trabalharam durante muito tempo ao meu lado e eu não conseguia livrar-me deles, mas finalmente disseram que iam voltar para a aldeia e queriam que eu fosse com eles. Eu disse-lhes que ia apanhar umas ervas no bosque e já voltava. Estava muito nervosa quando finalmente cheguei junto do estrangeiro, que encontrei no fundo do bosque, no nosso ressalto de pedras. Estava a fumar o seu cachimbo, mas, quando me aproximei, pô-lo de lado e levantou-se rapidamente. Sentei-me junto dele e mostrei-lhe o que trouxera. Ficou espantado quando viu a faca, e muito interessado quando lhe expliquei que poderia usá-la para matar pricoliri. Não queria aceitá-la, mas insisti com tanta veemência para que a levasse, que ele parou de sorrir e guardou-a com ar pensativo na mochila, embrulhando-a primeiro no meu lenço. A seguir, entreguei-lhe as cabeças de alho e mostrei-lhe que devia ter sempre algumas no bolso do casaco.

Perguntei-lhe quanto tempo ficaria na nossa aldeia e ele mostrou-me cinco dedos mais cinco dias. Deu-me a entender que visitaria várias aldeias nas redondezas, indo a pé para cada uma delas a partir da nossa aldeia, para conversar com as pessoas sobre o castelo. Perguntei-lhe para onde iria quando deixasse a nossa aldeia ao fim dos cinco dias. Disse que iria para um país chamado Grécia, de que eu já tinha ouvido falar antes, e depois para a sua cidade, no seu país. Fez um desenho no chão da floresta, mostrando-me que o seu país, que se chamava Inglaterra, era uma ilha muito longe dali. Mostrou-me também onde ficava a sua universidade não percebi o que ele quis dizer e escreveu o nome dela na terra. Ainda me lembro daquelas letras: OXFORD. Eu escrevia-as às vezes, mais tarde, para poder olhar para elas outra vez. Era a palavra mais estranha que eu já vira.

De repente, tomei consciência de que ele partiria em breve e que eu nunca mais o veria, ou a alguém como ele, e os meus olhos encheram-se de lágrimas. Eu não queria chorar nunca tinha chorado pelos rapazes enfadonhos da aldeia —, mas as minhas lágrimas não me obedeciam e desciam-me pela cara. Ele parecia muito aflito e tirou um lenço branco do bolso do casaco e deu-mo. O que acontecera? Sacudi a cabeça. Ele levantou-se devagar e deu-me a mão para me ajudar a levantar, como tinha feito na noite anterior. Enquanto eu me levantava, tropecei e caí em cima dele sem querer, e, quando ele me segurou, beijámo-nos. Depois, virei-me e corri pelo bosque. Quando cheguei ao atalho, olhei para trás. Lá estava ele, de pé, imóvel como uma árvore, a olhar para mim. Fui a correr até à aldeia e fiquei toda a noite acordada com o lenço dele escondido na mão.

Na tarde seguinte, ele estava no mesmo lugar, como se nunca tivesse saído de onde eu o tinha deixado. Corri para ele, que abriu os braços e me recebeu neles. Quando não podíamos mais beijar-nos, ele estendeu o casaco no chão e deitámo-nos juntos. Durante essa hora, aprendi sobre o amor, um momento de cada vez. De perto, os olhos dele eram tão azuis como o céu. Pôs-me flores nas tranças e beijou-me os dedos. Surpreendi-me com muitas coisas que fez, e com outras que eu fiz, e sabia que era errado, um pecado, mas sentia a alegria do céu abrir-se à nossa volta.

Depois daquilo, houve três tardes antes de ele partir. Encontrávamo-nos cada dia mais cedo. Dava qualquer desculpa que conseguia inventar ao meu pai e à minha mãe e chegava sempre a casa com ervas do bosque, como se tivesse ido lá para as colher. Todas as tardes, Bartolomeo dizia que me amava e implorava que eu me fosse embora com ele quando ele deixasse a aldeia. Eu queria, mas tinha medo do grande mundo de onde ele vinha, e não conseguia imaginar como escaparia ao meu pai. Todas as tardes lhe perguntava por que é que ele não podia ficar comigo na aldeia, e ele sacudia a cabeça e dizia que tinha de voltar para a sua casa e para o seu trabalho.

No último dia antes de ele deixar a aldeia, comecei a chorar assim que nos tocamos. Ele abraçou-me e beijou-me o cabelo. Eu nunca tinha conhecido um homem tão gentil e bondoso. Quando parei de chorar, ele tirou do dedo um pequeno anel de prata com um brasão. Não tenho a certeza, mas hoje acho que era o brasão da universidade dele. Usava no dedo mindinho da mão esquerda. Tirou-o e colocou-o no meu anular. E pediu-me em casamento. Devia ter andado a estudar o dicionário, porque eu percebi imediatamente.

A princípio, parecia uma idéia tão impossível que comecei outra vez a chorar eu era muito jovem, mas depois aceitei. Ele fez-me entender que voltaria para me buscar daí a quatro semanas. Iria à Grécia para resolver qualquer coisa eu não conseguia entender o que era. Depois, voltaria para me buscar e daria dinheiro ao meu pai para ele ficar feliz. Tentei explicar-lhe que não tinha dote, mas ele não ouvia. Sorrindo, mostrou-me a adaga e a moeda que eu lhe dera, fez um círculo com as mãos em volta do meu rosto e beijou-me.

Eu devia ter ficado feliz, mas tinha a sensação de que havia espíritos malignos presentes e tive medo de que acontecesse alguma coisa que o impedisse de voltar. Cada momento que passamos juntos naquela tarde foi muito doce, porque eu pensava que cada um seria o último. Ele estava tão confiante, tão seguro de que nos voltaríamos a ver em breve. Não consegui dizer-lhe adeus enquanto não ficou quase escuro no bosque, mas comecei a ter medo da raiva do meu pai e por fim beijei Bartolomeo uma última vez, certificando-me de que o alho estava no seu bolso, e deixei-o. Virei-me uma vez, e mais outra. A cada vez que eu olhava para trás, avistava-o parado no bosque, segurando o chapéu nas mãos. Parecia muito solitário.

Chorei a medida que andava, e tirei o anelzinho do meu dedo, beijando-o, e atei-o no meu lenço. Quando cheguei a casa, o meu pai estava zangado e queria saber onde é que eu tinha estado depois do pôr do Sol sem autorização. Disse-lhe que a minha amiga Maria tinha perdido um cabrito e que eu tinha andado a ajudá-la a procurá-lo. Fui para a cama com o coração pesado, sentíndo-me ora esperançada, ora triste de novo.

Na manhã seguinte, ouvi dizer que Bartolomeo tinha deixado a aldeia, viajando com um lavrador na carroça deste, na direção de Târgoviste. O dia foi muito longo e triste para mim, e à tardinha fui ao nosso ponto de encontro no bosque para aí ficar sozinha. Ver aquele lugar fez-me chorar outra vez. Sentei-me nas nossas pedras e finalmente deitei-me no mesmo sítio onde nos tínhamos deitado todas as tardes. Encostei a cara à terra e solucei. Então, senti que a minha mão esbarrava em qualquer coisa entre as avencas, e, para minha surpresa, encontrei um pacote de cartas em envelopes. Não conseguia ler o que estava escrito no lugar onde estavam endereçados a alguém, mas no remetente de cada envelope estava estampado o lindo nome dele, como num livro. Abri algumas cartas e beijei a escrita dele, embora pudesse ver que não me eram dirigidas. Por um momento, perguntei-me se não teriam sido escritas para outra mulher, mas afastei imediatamente esta idéia da cabeça. Percebi que as cartas deviam ter caído da mochila quando ele a abrira para me mostrar a adaga e a moeda que eu lhe dera.

Pensei em tentar enviar-lhas para Oxford, na ilha da Inglaterra, mas não era capaz de encontrar nenhuma maneira de as enviar sem dar nas vistas. Também não sabia como poderia pagar para enviar fosse o que fosse. Devia custar dinheiro enviar um pacote para aquela ilha distante, e eu nunca tivera nenhum dinheiro além da pequena moeda que dera a Bartolomeo. Decidi guardar as cartas para lhas devolver quando ele voltasse para mim.

Quatro semanas passaram, muito, muito devagar. Eu fazia cortes numa árvore perto do nosso local secreto para poder contar os dias. Trabalhava no campo, ajudava a minha mãe, fiava e tecia para as nossas roupas do próximo Inverno, ia à igreja e ficava de ouvido alerta onde era possível, esperando notícias de Bartolomeo. A princípio, os velhos falavam um pouco dele, e sacudiam as cabeças por causa do seu interesse por vampiros. "Nada de bom pode vir daquilo", dizia um deles, e os outros concordavam. Ouvir isso causava-me uma mistura terrível de felicidade e dor. Ficava feliz ao ouvir alguém falar dele, já que não podia dizer uma palavra a ninguém, mas também sentia um arrepio ao pensar que ele podia estar a atrair a atenção dos pricolici.

Imaginava constantemente o que aconteceria quando ele voltasse. Iria até a porta do meu pai, bateria e pediria ao meu pai a minha mão em casamento? Imaginava como a minha família ficaria surpreendida. Haviam de se reunir todos à porta e ficariam a olhar enquanto Bartolomeo lhes dava presentes e eu lhes dava beijos de despedida. Então, ele levava-me embora numa carroça que estaria à nossa espera, talvez até num automóvel. Partiríamos da aldeia e atravessaríamos terras que eu nem podia imaginar, para lá das montanhas, para lá da grande cidade onde a minha irmã Eva vivia. Esperava que pudéssemos parar para visitar Eva, pois sempre gostara mais dela que dos outros. Bartolomeo também haveria de gostar dela, porque era forte e corajosa, uma viajante como ele.

Passei quatro semanas desta maneira e, no fim da quarta semana, estava cansada e pouco conseguia comer ou dormir. Quando já tinha feito quase quatro semanas de talhos na árvore, comecei a ficar à espera de um indício do seu regresso. Todas as vezes que uma carroça chegava à aldeia, o som das rodas fazia o meu coração dar um salto. Ia buscar água ao poço três vezes por dia, de olhos e ouvidos atentos, à espera de notícias. Dizia a mim mesma que ele provavelmente não viria depois de quatro semanas exatas, e que eu devia esperar mais uma semana. Depois da quinta semana, adoeci e tive a certeza de que o príncipe dos pricolici o matara. Uma vez, cheguei mesmo a pensar que o meu amado poderia voltar para mim sob a forma de um vampiro. Corri para a igreja em pleno dia e rezei em frente do ícone da Virgem para me livrar daquela idéia horrível.

Na sexta e na sétima semanas, comecei a perder as esperanças. Na oitava semana, soube, através de muitos sinais de que tinha ouvido falar as mulheres casadas, que ia ter um filho. Então, chorei em silêncio na cama das minhas irmãs, à noite, e senti que o mundo inteiro, até mesmo Deus e a Mãe Santíssima, se tinha esquecido de mim. Não sabia o que acontecera com Bartolomeo, mas pensava que devia ter sido algo terrível, porque sabia que ele me amava de verdade. Em segredo, colhi as ervas e raízes que sabia que impediam uma criança de vir ao mundo, mas foi inútil. O meu bebê estava forte dentro de mim, mais forte do que eu, e comecei a amar aquela força, mesmo sem querer. Quando levava a mão discretamente à barriga, sentia o amor de Bartolomeo e acreditava que ele não podia ter-se esquecido de mim.

Sabia que teria de abandonar a aldeia antes de trazer vergonha à minha família e desencadear a ira do meu pai sobre mim. Pensei em tentar encontrar a velha mulher que me dera a moeda. Talvez ela me acolhesse e me deixasse cozinhar e limpar a casa. Ela viera de uma das aldeias acima do Arges, perto do castelo do pricolic, mas não sabia que aldeia era, nem se ela ainda estava viva. Havia ursos e lobos nas montanhas e muitos espíritos malignos, e eu não me atrevia a deambular pela floresta sozinha.

Finalmente, resolvi escrever à minha irmã Eva, o que fizera uma ou duas vezes antes. Tirei papel e um envelope da casa do padre, onde às vezes trabalhava na cozinha. Na carta, contei-lhe a minha situação e implorei-lhe que viesse buscar-me. A resposta dela demorou outras cinco semanas a chegar. Graças a Deus, o lavrador que a trouxe, juntamente com alguns mantimentos, entregou-me e não ao meu pai, e eu li-a em segredo, no bosque. A parte do meio do meu corpo já estava a crescer e a arredondar-se, provocando-me uma sensação estranha quando me sentava num tronco, embora ainda conseguisse esconder a barriga com o avental.

Havia algum dinheiro na carta, dinheiro romeno, mais do que eu alguma vez vira, e o bilhete de Eva era curto e prático. Dizia que eu deveria deixar a aldeia a pé, caminhar até à próxima aldeia, a cerca de cinco quilômetros de distância, e aí arranjar boleia numa carroça ou num caminhão até Târgoviste. Dali, poderia conseguir transporte até Bucareste, e, em Bucareste, apanhar o comboio até à fronteira com a Hungria. O marido dela iria esperar-me no posto fronteiriço de T. no dia vinte de Setembro ainda me lembro da data. Dizia-me para eu programar a minha viagem da melhor maneira possível para chegar lá nesse dia. Dentro da carta, encontraria um convite timbrado do Governo da Hungria que me ajudaria a entrar no país. Despedia-se com afeto, dizia para eu ter muito cuidado e desejava-me uma viagem segura. Quando cheguei ao fim da carta, beijei a assinatura dela e abençoei-a com todo o meu coração.

Arrumei os meus poucos pertences numa pequena bolsa, incluindo os meus sapatos bons, guardados para a viagem de comboio, as cartas que Bartolomeo perdera e o seu anel de prata. Uma manhã, ao sair da nossa casa, abracei e beijei a minha mãe, que estava a ficar velha e mais doente. Queria que ela soubesse, mais tarde, que de alguma forma eu me despedira dela. Acho que ficou surpreendida, mas não me fez nenhuma pergunta. Nessa manhã, em vez de ir para o campo, atravessei o bosque, evitando a estrada. Parei para me despedir do lugar secreto no bosque onde me deitara com Bartolomeo. As quatro semanas de cortes na árvore já estavam a desaparecer. Naquele mesmo sítio, pus o anel de prata no dedo e atei um lenço à cabeça, como uma mulher casada. Sentia o Inverno a chegar nas folhas amareladas e no ar fresco. Fiquei ali parada por alguns momentos e depois parti ao longo do atalho até à aldeia mais próxima.

Não me lembro de toda a viagem, apenas de que estava muito cansada e às vezes ficava com muita fome. Uma noite, dormi em casa de uma senhora idosa que me deu uma boa sopa e disse que o meu marido não devia deixar-me viajar sozinha. Outra vez, tive de dormir num celeiro. Finalmente, consegui transporte até Târgoviste, e depois para Bucareste. Quando podia, comprava pão, mas, como não sabia de quanto dinheiro precisaria para o comboio, fui muito cuidadosa. Bucareste era muito grande e bonita, mas assustava-me porque havia tantas pessoas, todas muito bem vestidas, e homens que me olhavam com ousadia nas ruas. Tive de dormir na estação de caminho-de-ferro. O comboio também era assustador, um enorme monstro negro. Depois de me sentar lá dentro, junto de uma janela, senti o meu coração ficar mais leve. Passamos por muitas paisagens maravilhosas montanhas e rios e campos de girassóis, todos a virar as cabeças na mesma direção.

Na estação da fronteira, fiquei a saber que era dezenove de Setembro e dormi num banco até que um dos guardas me deixou entrar na sua barraca e me deu café quente. Perguntou onde estava o meu marido e eu disse-lhe que ia para a Hungria para me encontrar com ele. Na manhã seguinte, um homem de fato e chapéu pretos veio procurar-me. Tinha um rosto muito bondoso, beijou-me nas duas faces e chamou-me irmã. Amei o meu cunhado desde aquele momento até ao dia em que ele morreu, e ainda o amo. Foi mais meu irmão do que qualquer outro irmão da minha família. Tomou conta de tudo, ofereceu-me um jantar quente no comboio, que comemos a uma mesa com toalha. Comíamos e olhávamos pela janela do comboio para todas as coisas que passavam.

Eva estava à nossa espera na estação de Budapeste. Usava um fato de saia e casaco e um lindo chapéu, e achei que ela parecia uma rainha. Abraçou-me e beijou-me muitas vezes. O meu bebê nasceu no melhor hospital de Budapeste. Eu queria chamar-lhe Eva, mas Eva disse que preferia ser ela a escolher o nome, e chamou-lhe Elena. Era um bebê adorável, com grandes olhos escuros, e sorriu muito cedo, com apenas cinco dias de vida. Todos diziam que nunca tinham visto um bebê sorrir tão cedo. Tivera esperanças que nascesse com os olhos azuis de Bartolomeo, mas parecia-se apenas com a minha família.

Esperei para lhe escrever até que o bebê nascesse, porque queria contar-lhe de um bebê verdadeiro, e não falar apenas sobre a minha gravidez. Quando Elena fez um mês, pedi ao meu cunhado que me ajudasse a encontrar a morada da universidade de Bartolomeo, Oxford, e fui eu própria que escrevi aquela estranha palavra no envelope. O meu cunhado escreveu-me a carta em alemão e assinei-a com a minha mão. Na carta, contei a Bartolomeo que tinha esperado três meses por ele, e que deixara a aldeia porque sabia que esperava um filho seu. Contei-lhe as minhas viagens e da casa da minha irmã em Budapeste. Contei-lhe de Elena, como ela era doce, como era feliz. Disse que o amava e que tinha medo de que algo de terrível tivesse acontecido que o tivesse impedido de voltar. Perguntei-lhe quando o veria, e se ele podia vir a Budapeste buscar-nos, a mim e a Elena. Disse-lhe que, fosse o que fosse que tivesse acontecido, o amaria até ao fim da minha vida.

Então, esperei de novo, dessa vez por um longo, longo tempo e, quando Elena já estava a dar os primeiros passos, chegou uma carta de Bartolomeo. Vinha da América, e não da Inglaterra, e estava escrita em alemão. O meu cunhado traduziu-me com uma voz muito gentil, mas percebi que ele era demasiado honesto para alterar o que ela dizia. Na sua carta, Bartolomeo dizia que recebera uma carta minha que tinha seguido primeiro para a sua antiga morada em Oxford. Dizia-me, educadamente, que nunca tinha ouvido falar em mim nem vira o meu nome antes, e que nunca estivera na Romênia, de maneira que a criança que eu descrevia não podia ser dele. Lamentava muito ouvir uma história tão triste e desejava-me boa sorte. Era uma carta curta e muito delicada, não ríspida, e não havia nela qualquer indício de que ele realmente me conhecesse.

Chorei durante muito tempo. Era jovem e não percebia que as pessoas podem mudar, que as suas mentes e os seus sentimentos podem mudar. Quando já estava na Hungria há vários anos, comecei a compreender que é possível ser-se uma pessoa na sua terra e uma pessoa diferente quando se está num país diferente. Percebi que alguma coisa desse gênero tinha acontecido com Bartolomeo. No fim, o meu único desejo era que ele não tivesse mentido, não tivesse dito que não me conhecia. Queria isso porque, quando estávamos juntos, tinha sentido que ele era uma pessoa honrada, uma pessoa de confiança, e não queria pensar mal dele.

Eduquei Elena com a ajuda dos meus parentes e ela tornou-se uma rapariga linda e brilhante. Tenho a certeza disto porque ela tem o sangue de Bartolomeo. Contei-lhe sobre o pai nunca lhe menti. Talvez não tenha contado o suficiente, mas ela era demasiado nova para entender que o amor torna as pessoas cegas e tolas. Foi para a universidade e eu tinha muito orgulho nela, e contou-me que ouvira dizer que o pai era um grande letrado na América. Eu tinha esperança de que um dia ela pudesse encontrá-lo. Mas não sabia que ele estava na universidade para onde foste — acrescentou a mãe de Elena, virando-se quase com censura na voz para a filha, e foi desse modo abrupto que terminou a sua história.

Helen murmurou o que podia ser uma desculpa ou uma manifestação de autodefesa, e abanou a cabeça. Parecia tão atordoada como eu. Durante toda a história, tinha ficado quieta, traduzindo como se mal respirasse, murmurando qualquer coisa só quando a mãe descreveu o dragão no seu ombro. Muito mais tarde, Helen contou-me que a mãe nunca se despira na sua presença, e também nunca a levara aos banhos públicos como Eva fazia.

A princípio, ficamos em silêncio sentados à mesa, mas depois Helen virou-se para mim, e fez um gesto de impotência na direção do pacote de cartas à nossa frente, em cima da mesa. Eu percebi; estava a pensar a mesma coisa. Por que razão não enviara algumas daquelas cartas a Rossi para provar que ele estivera com ela na Romênia?

Helen olhou para a mãe com uma profunda hesitação no olhar, pareceu-me e então aparentemente fez a pergunta. A resposta da mãe, quando a traduziu, trouxe-me um nó à garganta, um sofrimento que era em parte por ela e, em parte, pelo meu pérfido mentor.

— Pensei em fazê-lo, mas a carta dele fez-me compreender que mudara completamente de idéia. Concluí que para mim não faria qualquer diferença mandar-lhe estas cartas, só me traria mais dor, e teria perdido as poucas coisas que possuía dele. — Estendeu a mão como para tocar a letra dele, depois recolheu-a. — Só lamentava não lhe devolver o que de fato lhe pertencia. Mas ele tinha ficado com tanto de mim, talvez não fosse errado eu ficar com as cartas? — E olhava de Helen para mim, os olhos subitamente menos tranquilos. Não era desafio o que via neles, pensei, mas o fogo de uma paixão antiga, muito antiga. Desviei o olhar.

Helen era desafiadora, embora a mãe não o fosse.

— Então, por que é que, pelo menos, não me mostrou as cartas há mais tempo? — A pergunta era ameaçadora, e ela disparou-a à mãe no instante seguinte. A mulher mais velha sacudiu a cabeça.

— Ela disse — relatou Helen, o rosto a endurecer — que sabia que eu odiava o meu pai, e estava à espera de alguém que o amasse. — Como ela mesma ainda o ama, poderia eu ter completado, pois o meu próprio coração estava tão cheio que parecia dar-me uma percepção acrescida do amor enterrado durante anos naquela casinha despojada.

Os meus sentimentos não eram só por Rossi. Sentado ali à mesa, peguei a mão de Helen com uma das minhas mãos, e a da sua mãe, gasta pelo trabalho, com a outra, e segurei-as com força. Naquele momento, o mundo em que eu crescera, a sua discrição e os seus silêncios, os seus usos e costumes, o mundo em que eu estudara e obtivera sucesso e ocasionalmente tentara amar, pareceu-me tão remoto como a Via Láctea. Não teria conseguido dizer uma palavra mesmo que quisesse, mas, se a minha garganta não estivesse tão apertada, talvez tivesse encontrado uma maneira de dizer a essas duas mulheres, ligadas a Rossi de maneiras tão diferentes mas igualmente intensas, que sentia a presença dele entre nós.

Depois de um momento, Helen soltou discretamente a sua mão da minha, mas a mãe inclinava-se para mim, fazendo uma pergunta com a sua voz suave.

— Ela quer saber como pode ajudá-lo a encontrar Rossi.

Diga-lhe que já me ajudou, e que vou ler estas cartas assim que partirmos para ver se podem levar-nos mais longe. Diga-lhe que a avisaremos quando o encontrarmos.

A mãe de Helen curvou a cabeça humildemente e levantou-se para vigiar o guisado no fogão. Cheirava maravilhosamente e até Helen sorriu, como se este regresso a um lar que não era o seu tivesse as suas compensações. A paz do momento deu-me coragem.

— Por favor, pergunte-lhe se sabe alguma coisa a respeito de vampiros que possa ajudar-nos nas nossas buscas.

Quando Helen traduziu isto, vi que acabava de quebrar a nossa frágil calma. A mãe desviou o olhar e fez o sinal da cruz, mas um momento depois pareceu estar a reunir forças para falar. Helen ouviu com atenção e abanou a cabeça.

— Ela diz que não se deve esquecer de que um vampiro pode mudar de forma. Pode vir até si de muitas formas.

Eu queria saber exatamente o que aquilo queria dizer, mas a mãe de Helen já se levantara para nos servir com mãos trêmulas. O calor do fogão e o aroma da carne e do pão encheram a pequena casa e todos comemos com vontade, embora em silêncio. De vez em quando, a mãe de Helen oferecia-me mais pão, tocando-me no braço, ou servia-me de chá. A comida era simples mas deliciosa e abundante, e a luz do sol entrava pelas janelas da frente para iluminar a nossa refeição.

Quando acabamos, Helen foi lá para fora com um cigarro, e a mãe fez-me sinal para que eu a seguisse, contornando a casa. Na parte de trás, havia uma casota com algumas galinhas debicando à volta e uma coelheira com dois coelhos de orelhas compridas. A mãe de Helen pegou num dos coelhos e ficamos juntos amigavelmente, como num filme mudo, coçando a cabeça macia do animal enquanto ele piscava e esperneava um pouco. Através de uma das janelas, ouvia Helen a lavar a louça dentro de casa. O sol batia-me, morno, na cabeça e, para lá da casa, os campos verdejantes rumorejavam e ondulavam com um inesgotável otimismo.

Chegou a hora de partirmos, de caminharmos de volta ao autocarro, e guardei as cartas de Rossi na minha pasta. Ao sairmos, a mãe de Helen deteve-se à porta; não parecia querer atravessar a aldeia a pé para nos acompanhar até ao autocarro. Segurou as minhas mãos nas suas e apertou-as calorosamente, olhando-me no rosto.

— Ela diz que lhe deseja só viagens seguras, e que encontre o que deseja — explicou Helen.

Olhei para dentro das trevas dos olhos da mulher mais velha e agradeci-lhe de todo o meu coração. Ela abraçou Helen, segurando-lhe o rosto tristemente entre as mãos por um momento e em seguida deixou-nos ir.

No fim da rua, virei-me para trás para a ver outra vez. Estava parada à porta, uma das mãos apoiada na ombreira, como se a nossa visita a tivesse enfraquecido. Larguei a pasta no chão poeirento e corri para ela tão depressa que, por um momento, nem me dei conta de que me estava a mover. Então, lembrando-me de Rossi, abracei-a e beijei-lhe o rosto macio e marcado pelo tempo. Ela agarrou-se a mim, uma cabeça mais baixa do que eu, e escondeu o rosto no meu ombro. Subitamente, afastou-se e desapareceu dentro de casa. Pensei que quisesse ficar sozinha com as suas emoções e virei-me também, mas um segundo depois ela estava de volta. Para minha surpresa, agarrou na minha mão e fechou-a em torno de um objeto pequeno e duro.

Quando abri os dedos, vi um anel de prata com um pequeno brasão. Compreendi logo que era o anel de Rossi, que ela estava a devolver-lhe por meu intermédio. O seu rosto estava radiante por cima do anel; os seus olhos escuros brilhavam. Inclinei-me e beijei-a novamente, desta vez nos lábios. Os seus lábios eram quentes e doces. Quando a deixei, dirigindo-me rapidamente para onde deixara Helen e a minha pasta, vi no rosto da mulher o brilho de uma única lágrima. Li algures que não há uma lágrima única, essa velha metáfora poética. E talvez não haja mesmo, porque a lágrima dela era companheira da minha.

Assim que nos sentamos no autocarro, tirei as cartas de Rossi e abri a primeira, com cuidado. Ao contar isto, honrarei o desejo de Rossi de proteger a privacidade do seu amigo com um nom-de-plume um nom-de-guerre, como ele lhe chamara. Foi muito estranho ver de novo a escrita de Rossi aquela sua versão mais jovem e menos comprimida nas folhas amareladas.

— Vai ler as cartas aqui? — Helen, debruçada no meu ombro, parecia chocada.

— Porquê, você consegue esperar?

— Não — admitiu.

 

20 de Junho de 1930

Meu caro amigo,

Não tenho ninguém no mundo com quem falar neste momento, e estou com a caneta na mão desejando a sua companhia em particular, ficaria espantado se visse o panorama que está diante de mim agora. Eu próprio fiquei hoje num estado de incredulidade como você ficaria se pudesse ver onde estou num comboio, embora isto, por si só, não seja uma pista. Mas o comboio está a resfolegar em direção a Bucareste. "Meu Deus, homem", quase posso ouvi-lo dizer no meio dos apitos do comboio. Mas é verdade. Eu não tinha planejado vir para aqui, mas algo de muito importante me trouxe. Estava em Istambul há poucos dias, a pesquisar uma coisa que tenho mantido escondida na manga, e o que lá encontrei fez-me querer vir até aqui. Ou não querer, na verdade: seria mais correto dizer que estou apavorado por ir, mas ao mesmo tempo sinto-me impelido. Você, que é um racionalista à antiga, não vai ligar nenhuma a tudo isto, mas quem me dera ter o seu cérebro comigo nesta minha empreitada; vou precisar de cada bocado do meu, e não vai chegar, para encontrar o que procuro.

Estamos a diminuir a velocidade em direção a uma cidadezinha onde temos uma hipótese de tomar o pequeno-almoço vou interromper a carta agora e voltar a escrever mais tarde.

 

Tarde Bucareste

Estaria a dormir uma sesta se a minha mente não estivesse num tal estado de inquietude e excitação. Está amaldiçoadamente quente aqui julgava que fosse uma terra de montanhas frescas, mas se assim é, ainda não cheguei a nenhuma. Bonito hotel, Bucareste é uma espécie de pequena Paris do Leste, grandiosa e pequena e um pouco decadente, tudo ao mesmo tempo. Deve ter sido deslumbrante nos anos oitenta e noventa. Levei séculos para encontrar um táxi, e depois um hotel, mas o meu quarto é bastante confortável e posso descansar, tomar banho e pensar no que fazer. Estou quase tentado a não escrever nesta carta o que estou afazer aqui, mas você vai ficar tão perplexo com os meus delírios se eu não escrever, que acho melhor fazê-lo. Para tornar a história mais curta e chocante, estou numa espécie de missão, um historiador atrás de Drácula não o conde Drácula dos palcos românticos, mas um Drácula real. Drácula, Vlad III, um tirano do século XV que viveu na Transilvânia e na Valáquia e se dedicou a manter o Império Otomano fora das suas terras tanto tempo quanto possível. Parei em Istambul durante quase uma semana para visitar um arquivo que contém alguns documentos sobre ele reunidos pelos Turcos, e lá descobri um extraordinário conjunto de mapas que acredito serem pistas para a localização da sua tumba. Quando voltar para casa, vou tentar explicar-lhe mais pormenorizadamente o que me levou a esta perseguição, e neste meio-tempo peço-lhe apenas que seja paciente comigo. Pode culpar a minha juventude, seu velho sábio, por eu ter partido nesta expedição.

De qualquer maneira, a minha permanência em Istambul ensombrou-se no final e assustou-me bastante, embora tudo isso possa vir a parecer ridículo no futuro. Mas não desisto facilmente de uma missão depois de a ter começado, como muito bem sabe, e não pude deixar de vir para aqui com as cópias que fiz daqueles mapas para procurar mais informações sobre a tumba de Drácula. Devo explicar-lhe, pelo menos, que em teoria ele foi enterrado num mosteiro localizado numa ilha do lago Snagov, na Romênia Ocidental,Valáquia é o nome da região. Os mapas que encontrei em Istambul, em que a sua tumba está claramente assinalada, não mostram nenhuma ilha, nenhum lago, e, tanto quanto sei, nada que se assemelhe à Romênia Ocidental. Parece-me sempre boa idéia verificar o óbvio primeiro, já que o óbvio às vezes é a resposta certa. Estou decidido, portanto mas tenho a certeza de que você está a sacudir a cabeça para o que considera uma teimosia insensata a ir até o lago Snagov com os mapas e certificar-me pessoalmente de que a tumba não está lá. Como vou fazê-lo, ainda não sei, mas não vou ficar satisfeito procurando noutros lugares enquanto não eliminar essa possibilidade. E, talvez, afinal, os meus mapas sejam uma espécie de antigo embuste, e encontrarei inúmeras provas de que o tirano está sepultado ali, como sempre esteve.

Tenho de estar na Grécia pelo dia cinco, ou seja, tenho pouquíssimo tempo para toda esta excursão. Só quero saber se os meus mapas condizem com alguma coisa no local da tumba. Por que preciso descobrir isto, não lhe sei dizer nem mesmo a si, meu caro eu próprio gostaria de saber. Pretendo concluir a minha viagem à Romênia visitando o máximo que puder da Valáquia e da Transilvânia. O que lhe vem à cabeça quando pensa na palavra "Transilvânia", se é que pensa sequer nisso? Sim, como imaginei sabiamente, não pensa. Mas o que me vem à cabeça, a mim, são montanhas de beleza selvagem, castelos antigos, lobisomens e feiticeiras — uma terra de mágica obscuridade. Resumindo, como acreditar que ainda estamos na Europa, ao entrar numa região assim? Dir-lhe-ei se é Europa ou terra de conto-de-fadas quando lá chegar. Primeiro, Snagov parto amanhã.

Seu devotado amigo, Bartholomew Rossi

 

22 de Junho Lago Snagov

Meu caro amigo,

Ainda não vi lugar nenhum de onde possa enviar a minha primeira carta ou melhor, de onde possa enviá-la com a certeza de que chegará às suas mãos mas apesar disso vou continuar aqui, e com esperanças, já que muitas coisas aconteceram. Passei todo o dia de ontem em Bucareste a tentar encontrar bons mapas agora tenho pelo menos alguns mapas rodoviários da Valáquia e da Transilvânia e a conversar com todos os que encontrei na universidade que pudessem ter algum interesse pela história de Vlad Tepes. Ninguém aqui parece querer discutir o assunto, e tenho a sensação de que fazem o sinal da cruz por dentro, quando não por fora, sempre que menciono o nome de Drácula. Depois das minhas experiências em Istambul, isto deixa-me um tanto nervoso, confesso, mas por agora vou continuar a insistir.

De qualquer maneira, ontem encontrei um jovem professor de arqueologia na universidade que teve a gentileza de me informar que um dos seus colegas, um senhor Georgescu, se especializou na história de Snagov e está lá a escavar neste Verão. Claro que fiquei tremendamente excitado ao saber isto, e decidi entregar-me, com mapas, malas e tudo, aos cuidados de um motorista que possa levar-me até lá hoje; fica apenas a algumas horas de carro de Bucareste, diz ele, e partiremos à uma da tarde. Agora tenho de ir almoçar num sítio qualquer antes de partir os pequenos restaurantes daqui são incrivelmente bonitos, com uma cozinha que conserva traços de um certo luxo oriental.

Noite

 

Meu caro amigo,

Não consigo interromper esta nossa correspondência espúria espero que um dia ela se revele aos seus olhos porque hoje foi um dia tão memorável que simplesmente preciso falar com alguém. Deixei Bucareste numa espécie de pequeno táxi bem cuidado, dirigido por um homenzinho tão bem cuidado como o seu carro, com quem mal troquei duas palavras (sendo que uma delas foi Snagov). Depois de uma breve consulta aos meus mapas rodoviários e muitas palmadinhas tranquilizadoras no ombro (no meu ombro, quero dizer), partimos. Levamos a tarde inteira. Percorremos estradas quase sempre asfaltadas mas muito poeirentas, e atravessamos uma paisagem linda, na sua maioria agrícola, mas de vez em quando coberta de florestas, até chegarmos ao lago Snagov.

O meu primeiro contato com o local foi através do motorista, que agitava a mão, excitado, pelo que olhei para fora, mas só vi floresta. Mas aquilo era apenas uma introdução. Não sei muito bem o que esperava; acho que tenho estado tão embrenhado na minha curiosidade de historiador que não me detive para esperar qualquer coisa em particular. Fui arrancado da minha obsessão pela primeira visão do lago. É um lugar excepcionalmente belo, meu amigo, bucólico e irreal. Imagine um espelho d’água comprido e cintilante, que se deixa entrever da estrada por entre o denso arvoredo. Aninhadas aqui e ali dentro do bosque, há bonitas casas de campo muitas vezes só conseguimos ver uma chaminé elegante ou um muro em curva, muitas das quais parecem ser do início do século passado, ou mais antigas.

Quando se chega a uma clareira na floresta estacionamos perto de um pequeno restaurante com três barcos atracados nas traseiras, vê-se no lago a ilha onde fica o mosteiro, e ali, finalmente tem-se diante dos olhos um panorama que com certeza mudou muito pouco através dos séculos. A ilha fica a uma curta viagem de barco a partir da margem e é cheia de árvores, como as margens do lago. Acima dessas árvores, elevam-se as esplêndidas cúpulas bizantinas da igreja do mosteiro e, por cima da água, chega o som dos sinos tocados (soube mais tarde) pelo maço de madeira de um monge. O som dos sinos, flutuando através da água, fez-me estremecer o coração; pareceu-me exatamente uma daquelas mensagens do passado que gritam para serem ouvidas ao longe, mesmo que ninguém tenha a certeza do que dizem. O meu motorista e eu, ali parados à luz do entardecer refletida na água, podíamos ter sido espiões do exército turco, observando aquele bastião de uma fé estrangeira, em vez de dois homens modernos e empoeirados encostados a um automóvel.

Eu teria ficado ali a olhar e a ouvir durante muito mais tempo sem me impacientar, mas a minha determinação em encontrar o arqueólogo antes do cair da noite fez com que me dirigisse para o restaurante. Usei um pouco de linguagem gestual e o meu melhor latim coxo para conseguir um barco até à ilha. Sim, sim, havia lá um homem de Bucareste a cavar com uma pá, conseguiu informar-me o proprietário, e vinte minutos depois desembarcávamos no litoral da ilha. O mosteiro era ainda mais bonito visto de perto, e bastante ameaçador, com os seus muros antigos e cúpulas altas, cada uma coroada por uma cruz de sete pontas ornamentada. O barqueiro guiou-nos até lá por degraus íngremes, e eu teria entrado imediatamente pelas grandes portas de madeira, mas o indivíduo indicou-nos a parte de trás.

Enquanto contornava aqueles belos muros antigos, ocorreu-me que, pela primeira vez, estava realmente a seguir os passos de Drácula. Até então, seguira o seu rastro através de um emaranhado de documentos, mas agora estava a pisar um solo que se eu fosse do gênero de fazer o sinal da cruz, tê-lo-ia feito naquele momento; como não era o caso, tive uma vontade repentina de bater no ombro do barqueiro, vestido de lã áspera, e pedir-lhe que nos levasse de volta em segurança para a margem do lago. Mas, como pode imaginar, não o fiz, e espero não vir a arrepender-me de ter reprimido esse gesto.

Atrás da igreja, no meio de uma grande ruína, encontramos de fato um homem com uma pá. Era um homem de meia-idade, de aspecto vigoroso, com cabelos pretos e crespos, com a camisa branca para fora das calças e as mangas arregaçadas até aos cotovelos. Dois garotos trabalhavam ao lado dele, revolvendo cuidadosamente o solo com as mãos, e de vez em quando ele pousava a pá e fazia o mesmo. Estavam concentrados em volta de uma área muito pequena, como se tivessem encontrado algo de interessante ali, e só levantaram os olhos quando o nosso barqueiro gritou uma saudação.

O homem da camisa branca aproximou-se, examinando-nos com uns olhos escuros muito vivos, e o barqueiro fez uma espécie de apresentação, ajudado pelo motorista. Estendi a mão e tentei uma das minhas poucas frases em romeno antes de cair no inglês: "Ma numesc Bartolomeo Rossi. Nu vá suparati..." Aprendi esta frase deliciosa, com a qual se interrompem estranhos com um pedido de informação, com o porteiro do meu hotel em Bucareste. Significa, literalmente, "Não fique zangado" consegue imaginar uma frase do dia-a-dia com mais reminiscências de História? "Não puxe da sua adaga, amigo só estou perdido neste bosque e preciso de indicações para sair." Não sei se foi a maneira como usei a frase ou o meu sotaque provavelmente horrível, mas o arqueólogo deu uma gargalhada e apertou-me a mão.

Visto de perto, era um sujeito robusto, bronzeado, com uma teia de rugas em volta dos olhos e da boca. Ao seu sorriso faltavam dois dentes de cima e a maioria dos outros brilhava com obturações de ouro. A mão era prodigiosamente forte, seca e áspera como a de um camponês. "Bartolomeo Rossi", disse, com uma voz cheia, ainda a rir-se. "Ma numesc Velior Georgesca Como vai? Em que posso ajudá-lo?" Por um momento, fui transportado à nossa excursão a pé do ano passado; ele poderia ter sido qualquer um daqueles Highlanders curtidos pelo tempo a quem estávamos sempre a pedir informações, só que de cabelos escuros em vez de loiros.

Fala inglês? perguntei, estupidamente embaraçado.

Um pouco disse Mr. Georgescu. Já lá vai muito tempo desde que tive oportunidade de praticar, mas vai acabar por voltar à minha língua. Falava com fluência, arranhando os erres de vez em quando.

Desculpe apressei-me a dizer. Vejo que tem um interesse especial por Vlad III, e gostaria muito de conversar consigo. Sou um historiador da Universidade de Oxford.

Ele acenou com a cabeça.

Fico contente por saber do seu interresse. O senhor veio de tão longe só parra verre esse túmulo?

Bem, esperava...

Ah, o senhor esperrava, o senhor esperrava disse Mr. Georgescu, batendo-me no ombro, não sem gentileza. Mas tenho de abalar um pouco as suas esperranças, meu rapaz. O meu coração deu um pulo — seria possível que aquele homem também pensasse que Vlad não estava enterrado ali? Mas decidi esperar e ouvir com atenção antes de fazer mais perguntas. Ele estava a observar-me com curiosidade e sorriu novamente. Venha, vou levá-lo parra uma volta a pé. Deu rápidas instruções aos seus assistentes, que aparentemente significavam que deviam interromper o trabalho, porque eles limparam as mãos e foram sentar-se debaixo de uma árvore. Apoiando a sua pá num muro meio escavado, chamou-me com um gesto. Avisei o motorista e o barqueiro que ficava por minha conta, e dei uma moeda de prata ao barqueiro. Ele levou a mão ao chapéu e desapareceu, e o motorista sentou-se numa das ruínas e tirou uma garrafinha do bolso.

Muito bem. Primeirro vamos andar pelo lado de forra. Mr. Georgescu fez um gesto amplo com a mão em volta. Conhece a história desta ilha? Um pouco? Havia uma igreja aqui no século catorze, e o mosteiro foi construído um pouco mais tarde, também no mesmo século. A primeirra igreja erra de madeirra, e a segunda de pedrra, mas a igreja de pedrra afundou-se no lago em 1453. Notafel, não acha? Drácula subiu ao poder na Valáquia pela segunda vez em 1462, e tinha idéias próprias. Acredito que gostava deste mosteirro porque uma ilha é mais fácil de proteger; ele andava sempre à procurra de lugarres que pudesse fortificar contra os Turcos. Este é um bom lugar, não acha?

Concordei, tentando não olhar muito para ele. O inglês do homem era tão fascinante que eu tinha dificuldade em concentrar-me no que ele dizia, mas o seu último argumento tinha calado fundo. Bastava olhar em volta para imaginar apenas um quantos monges a defender aquela fortaleza contra invasores. Velior Georgescu também estava a olhar em redor com aprovação.

Portanto, Vlad transformou o mosteirro existente numa fortaleza. Construiu murralhas em volta, uma prisão e uma câmarra de torturra. Também um túnel de fuga e uma ponte até à margem. Erra um sujeito astuto, Vlad. A ponte já se foi há muito tempo, é clarro, e estou a escavar o resto. O que estamos a escavar agorra erra a prisão. Já encontramos vários esqueletos. Fez um grande sorriso e os seus dentes de ouro reluziram ao sol.

Então esta era a igreja de Vlad? Apontei para a linda construção próxima, com as suas cúpulas altas e as árvores escuras farfalhando à volta dos seus muros.

Não, lamento dizer que não — disse Georgescu. — O mosteirro foi parcialmente queimado pelos Turcos em 1462, quando Radu, irmão de Vlad, um títerre dos Turcos, estava no trono da Valáquia. E logo depois que Vlad foi enterrado aqui, uma terrível tempestade atirrou a sua igreja parra o lago.

Vlad estava enterrado ali? Estava cheio de vontade de perguntar, mas mantive a boca firmemente fechada.

Os camponeses devem ter pensado que erra uma punição de Deus pelos pecados dele A igreja foi reconstruída em 1517; levou três anos, e pode ver os resultados. Os murros externos do mosteirro são um restauro, datado de há apenas trinta anos.

Tínhamos caminhado até junto da igreja e ele acariciava a alvenaria friável como se fosse o dorso de um cavalo preferido. Enquanto estávamos ali, um homem contornou subitamente a esquina da igreja e veio na nossa direção um velho curvado, de barba branca, com uma túnica preta e um chapéu preto de copa cilíndrica e longas abas que lhe desciam até aos ombros. Caminhava com a ajuda de uma bengala e a sua túnica estava atada com uma corda fina da qual pendia um molho de chaves. Ao pescoço, numa corrente, balançava uma cruz muito bonita, igual às que eu tinha visto sobre as cúpulas da igreja.

Fiquei tão surpreendido com aquela aparição que quase caí para trás; não lhe posso descrever o efeito que me causou, só posso dizer que era como se Georgescu tivesse invocado um fantasma e este se tivesse materializado. Mas o meu novo conhecido dirigiu-se, sorrindo, para o monge, e curvou-se para a sua mão nodosa, onde brilhava um anel de ouro que Georgescu beijou respeitosamente. O velho parecia gostar dele também, porque pousou os seus dedos por um momento sobre a cabeça do arqueólogo e sorriu, um sorriso leve e sereno, que exibia ainda menos dentes do que o de Georgescu. Ouvi o meu nome no meio das apresentações e inclinei-me para o monge tão amavelmente quanto pude, embora não tenha chegado ao ponto de lhe beijar o anel.

Este é o abade — explicou-me Georgescu. — É o último, e só há outros três monges a viver com ele agora. Está aqui desde que erra muito jovem, e conhece a ilha melhor do que eu alguma vez conhecerrei. Ele dá-lhe as boas-vindas e a sua bênção. Se tiver alguma pergunta parra lhe fazer, diz ele, tentarrá responder-lhe.

Agradeci com uma vénia, e o velho seguiu vagarosamente o seu caminho. Alguns minutos depois, avistei-o sentado em silêncio na beira do muro em ruínas atrás de nós, como um corvo repousando à luz do sol da tarde.

Vivem aqui o ano inteiro? — perguntei a Georgescu.

Ah, sim. Passam aqui mesmo os invernos mais difíceis. — O meu guia abanou a cabeça. — Vai ouvi-los cantar a missa, se não for emborra muito cedo.

Assegurei-lhe que não tinha intenção de perder uma experiência daquelas.

Vamos entrar na igreja agorra.

Demos a volta até às portas da frente, grandes portas de madeira entalhada, e penetrei num mundo que me era completamente desconhecido, completamente diferente das nossas capelas anglicanas.

Fazia frio lá dentro e, antes de conseguir divisar alguma coisa na escuridão espessa do interior, senti um fumo aromático no ar e uma emanação úmida vinda das pedras, como se elas estivessem a respirar. Quando os meus olhos se adaptaram à penumbra, só consegui perceber ténues reflexos de metal dourado e chamas de vela. A luz do dia filtrava-se, turva, através dos vidros pesados, de cores escuras. Não havia bancos nem cadeiras, apenas alguns assentos altos, de madeira, ao longo de uma das paredes. Perto da entrada, havia um pedestal cheio de velas acesas que pingavam intensamente e exalavam um cheiro a cera queimada; algumas estavam presas a uma coroa de latão no alto e outras colocadas num pote de areia em volta da base.

Os monges acendem-nas todos os dias, e de vez em quando há outros visitantes que também o fazem — explicou Georgescu. — As que estão no alto são parra os vivos, e as que estão em baixo são parra as almas dos mortos. Queimam até se apagarrem sozinhas.

No centro da igreja, apontou para cima e vi um rosto indistinto, flutuando acima de nós, no meio da cúpula.

Conhece as nossas igrejas bizantinas? — perguntou Georgescu, olhando para mim com uma curiosidade sincera. — Cristo fica sempre no centro, olhando para baixo. — Esse candelabro uma enorme coroa descia, pendendo do peito de Cristo, preenchendo o espaço principal da igreja, mas as velas ali tinham-se consumido também é típico.

Andamos até ao altar. De repente, senti-me como um invasor, mas não havia sinal dos monges e Georgescu prosseguia com a alegria de um proprietário. O altar estava enfeitado com panos bordados, e diante dele havia uma porção de tapetes e passadeiras de lã com motivos folclóricos que eu teria pensado serem turcos, se estivesse menos bem informado. A parte superior do altar estava adornada com muitos objetos ricamente decorados, entre eles um crucifixo esmaltado e um ícone da Virgem e do Menino emoldurado em ouro. Por detrás do altar erguia-se uma parede coberta de santos de olhos tristes e anjos ainda mais tristes e, no meio, havia um par de portas de ouro martelado com cortinas de veludo roxo, que levavam a algum lugar completamente escondido e misterioso.

Distingui tudo isto com dificuldade, à meia-luz, mas a beleza melancólica da cena comoveu-me. Virei-me para Georgescu:

Vlad rezava aqui? Na igreja anterior, quero dizer?

Ah, com certeza. — O arqueólogo riu-se. — Erra um homem piedoso e um assassino. Construiu muitas igrejas e outros mosteirros parra ter a certeza de que haverria muita gente a rezar pela sua salvação. Este erra um dos seus lugares preferridos e ele erra muito chegado aos monges daqui. Não sei o que eles pensavam das suas más ações, mas apreciavam o apoio que ele dava ao mosteirro. Além disso, prrotegia-os dos Turcos. Mas os tesourros que vê aqui foram trazidos de outras igrejas; os camponeses roubaram tudo o que havia de valioso no século passado, quando a igreja foi fechada. Olhe aqui: era isto que lhe queria mostrar. — Agachou e afastou os tapetes em frente do altar. Ali mesmo, vi uma longa pedra retangular, lisa e sem decorações, mas sem dúvida a laje de um túmulo. O meu coração começou a bater com força.

A tumba de Vlad?

De acordo com a lenda, sim. Alguns dos meus colegas e eu escavamos aqui há alguns anos e encontramos um burraco vazio. Continha apenas alguns ossos de animais.

Sustive a respiração.

Ele não estava aqui?

De maneirra nenhuma. — Os dentes de Georgescu reluziram como o latão e o ouro que nos rodeavam. — Os registros escritos dizem que ele foi enterrado aqui, diante do altar, e que a nova igreja foi construída sobre as mesmas fundações da antiga, de modo que a sua tumba não foi mexida. Pode imaginar como ficamos decepcionados quando não o encontramos.

Decepcionados? pensei comigo. Achava a idéia da tumba vazia muito mais assustadora do que decepcionante.

De qualquer modo, decidimos esquadrinhar mais um pouco e, ali adiante levou-me outra vez para a nave, até um ponto próximo da entrada principal e levantou outro tapete do chão encontramos uma segunda pedra exatamente igual à primeirra. — Olhei para a pedra. Era realmente do mesmo tamanho e forma da outra, e também não era ornamentada. Então escavamos aqui também — explicou Georgescu, tocando na pedra.

E encontraram...?

Ah, um esqueleto muito bom — contou, obviamente satisfeito. — Num caixão que ainda tinha parte da mortalha, o que é incrível, depois de cinco séculos. A mortalha era cor de púrpurra com bordados a ourro, e o esqueleto lá dentro estava em boas condições. Lindamente vestido, também, de brocado roxo com mangas vermelho-escurras. A coisa mais marravilhosa era que, cosido numa das mangas, encontramos um pequeno anel. O anel é muito simples, mas um dos meus colegas acredita que tenha sido parte de um aderreço maior que ostentava o símbolo da Ordem do Dragão.

Confesso que naquele momento o meu coração parou de bater. O símbolo?

Sim, um dragão com longas garras e uma cauda enrolada. Os que eram investidos na Ordem usavam esta imagem em todos os momentos, geralmente como um broche ou fivela para a capa. O nosso amigo Vlad fazia sem dúvida parte dela, provavelmente levado pelo pai quando chegou à idade adulta. — Georgescu sorriu-me. — Mas tenho a impressão de que já sabia disto, Professor.

Eu lutava com emoções antagónicas de desapontamento e alívio.

Então este era o seu túmulo, e as lendas apenas identificavam erradamente o local exato.

Ah, não, não acho. — Voltou a estender o tapete sobre a pedra. — Nem todos os meus colegas concordam comigo, mas acho que as evidências vão clarramente contra isso.

Não pude deixar de olhar para ele com surpresa.

Mas, e as roupas reais, e o anel?

Georgescu fez que não com a cabeça.

Esse sujeito provavelmente erra também um membro da Ordem, um nobre de alta estirpe, e talvez estivesse vestido com as melhorres roupas de Drácula para a ocasião. Talvez tivesse sido mesmo convidado a morrer para que houvesse um corpo para ocupar a tumba... sabe-se lá quando.

Voltaram a enterrar o esqueleto? — Tive de perguntar, a pedra estava mesmo ali, aos nossos pés.

Ah, não, enviámo-lo para o Museu de História de Bucareste, mas não é possível vê-lo; trancarram-no nas reservas, com as suas belas roupas. Foi uma pena.

Georgescu não parecia muito contristado, como se o esqueleto fosse interessante mas não importante, pelo menos quando comparado com a sua verdadeira presa

Não compreendo — disse eu, olhando para ele. — Com tantas provas, por que é que não acredita que o esqueleto seja de Vlad Drácula?

É muito simples — replicou Georgescu alegremente, acariciando o tapete. — Aquele sujeito ainda estava com a cabeça no lugar. A cabeça de Drácula foi cortada e levada para Istambul pelos Turcos como um troféu. Todas as fontes estão de acordo sobre isso. Por isso agora estou a escavar na antiga prisão, à procura de outra tumba. Acho que o corpo foi removido da sepulturra diante do altar para despistar os ladrões de túmulos, ou talvez para o proteger das invasões turcas subsequentes. Ele está algures nesta ilha, o velho safado.

Eu estava paralisado, tantas eram as perguntas que queria fazer a Georgescu, mas ele levantou-se e espreguiçou-se.

Não quer atravessar o lago até ao restaurrante parra jantar? Estou com tanta fome que sou capaz de devorrar um carneirro inteirro Mas podemos ouvir o início da missa antes, se quiser. Onde está hospedado?

Confessei que ainda não tinha a menor idéia, e que também precisava de arranjar alojamento para o meu motorista.

— Há muitas coisas sobre as quais gostaria de conversar consigo — acrescentei.

E eu consigo — concordou ele. — Podemos fazê-lo durrante o jantar.

Eu precisava falar com o motorista, de modo que voltamos para a prisão em ruínas. Acontece que o arqueólogo tinha um bote perto da igreja que nos levaria para o outro lado, e disse que falaria com o dono do restaurante para nos arranjar quartos ali por perto. Georgescu guardou o seu equipamento, dispensou os assistentes e voltamos à igreja a tempo de ver o abade e os seus três monges, identicamente trajados de preto, a entrar em fila na igreja pelas portas do santuário. Dois dos monges eram idosos, mas o terceiro ainda tinha a barba castanha e mantinha-se firmemente direito. Deram a volta lentamente até ficarem de frente para o altar, o abade à frente com uma cruz nas mãos. Os seus ombros curvados estavam cobertos por um manto roxo e dourado que captava o brilho das chamas das velas.

Os monges inclinaram-se perante o altar e, em seguida, prostraram-se no chão de pedra durante alguns instantes exatamente sobre a tumba vazia, reparei. Por um momento, tive a sensação horrível de que não se inclinavam para o altar, mas para a tumba do Empalador.

De repente, surgiu um som misterioso; parecia vir da própria igreja e emanar das paredes e da cúpula como uma névoa. Os monges salmodiavam. O abade passou pelas pequenas portas atrás do altar tentei não esticar o pescoço para espreitar o interior do sacrário e trouxe um livro grande com capa esmaltada, fazendo o sinal da cruz sobre ele. Pousou-o sobre o altar. Um dos monges entregou-lhe um incensório com uma longa corrente que ele balançou sobre o livro, envolvendo-o num fumo aromático A nossa volta, acima, atrás e abaixo, elevou-se aquela música sagrada e dissonante com a sua ladainha monótona e os seus sons altos e ondulantes. A minha pele arrepiou-se, porque percebi naquele momento que estava mais perto do coração de Bizâncio do que jamais estivera em Istambul. A música antiga e o ritual que a acompanhava provavelmente pouco tinham mudado desde que haviam sido executadas para o imperador, em Constantinopla.

A missa é muito longa — sussurrou-me Georgescu. — Não se importarrão se nos formos emborra. — Tirou uma vela do bolso, acendeu-a num pavio que ardia no suporte perto da entrada e colocou-a na areia, na parte de baixo.

No restaurante na margem do lago, um lugar pequeno e encardido, comemos com apetite ensopados e saladas servidos por uma rapariga tímida com trajes de aldeã. Havia um frango inteiro e uma garrafa de pesado vinho tinto, que Georgescu servia com generosidade. Aparentemente, o meu motorista fizera amigos na cozinha, de maneira que nos encontramos completamente sozinhos na sala revestida de madeira, com a vista do lago e da ilha a desvanecer-se pouco a pouco.

Tendo saciado em grande parte a nossa fome, interroguei o arqueólogo sobre o seu maravilhoso domínio do inglês. Ele riu-se com a boca cheia.

Devo-o ao meu pai e à minha mãe, Deus tenha as suas almas — disse ele. — O meu pai erra um arqueólogo e medievalista escocês e ela uma cigana escocesa. Cresci num celeirro em Fort William e trabalhei com o meu pai até ele morrer. Então, uns parrentes da minha mãe pedirram-lhe que viajasse com eles para a Romênia, de onde tinham vindo. Ela nascerra e crescerra numa aldeia no Oeste da Escócia mas, quando o meu pai morreu, ela só pensava em ir-se emborra. A família do meu pai não foi muito boa parra ela, sabe. Ela trouxe-me parra cá quando eu tinha só quinze anos, e desde então vivo aqui. Quando viemos parra cá, adotei o apelido dela. Para me integrar melhor.

Aquela história deixou-me sem palavras por um momento, e ele sorriu.

É bastante forra do comum, eu sei. E quanto a si?

Contei-lhe, por alto, a minha vida e os meus estudos e falei-lhe do livro misterioso que me tinha vindo parar às mãos. Ele ouviu-me com as sobrancelhas franzidas e, quando acabei, abanou lentamente a cabeça.

Uma histórria estranha, sem dúvida.

Tirei o livro da bolsa e estendi-lho. Examinou-o com atenção, parando para olhar demoradamente a xilogravura no centro.

Sim — disse ele, muito sério. — É muito parrecido com muitas imagens associadas à Ordem. Já vi dragões semelhantes em jóias; naquele anelzinho, por exemplo. Mas nunca tinha visto um livro como este. Não tem nenhuma idéia de onde possa ter vindo?

Nenhuma admiti. Espero poder levá-lo um dia para ser examinado por um especialista, talvez em Londres.

É uma peça admirável. — Georgescu devolveu-me o livro com delicadeza. — E agora que já viu Snagov, parra onde pretende ir? Voltar a Istambul?

Não. — Estremeci, mas não queria explicar-lhe porquê. — Tenho de voltar à Grécia para participar de uma escavação, na verdade, dentro de duas semanas, mas pensei em dar uma olhadela a Târgoviste, já que era a principal capital de Vlad. Já lá esteve?

Ah, sim, é clarro. — Georgescu limpou o prato como um menino faminto. — "É um lugar interressante parra quem quer que ande atrás de Drácula. Mas o mais interressante realmente é o castelo dele.

O castelo dele? Ele tem realmente um castelo? Quer dizer, ainda existe?

Bem, está em ruínas, mas são umas belas ruínas. Uma fortaleza em ruínas. Fica a alguns quilómetros a montante do rio Argês a partir de Târgoviste, e é fácil chegar lá por estrada, com uma subida a pé até ao cimo no final. Drácula preferria os lugarres que pudessem ser facilmente defendidos dos Turcos, e aquele ali é um primor. Vou dizer-lhe uma coisa... — Estava à procura de qualquer coisa nos bolsos e encontrou um pequeno cachimbo de barro, que começou a encher com tabaco aromático. Dei-lhe lume. — Obrigado, meu rapaz. Vou dizer-lhe uma coisa: vou consigo até lá. Só posso ficar uns dias, mas poderria ajudá-lo a encontrar a fortaleza. É muito mais fácil quando se tem um guia. Não vou lá há séculos e gostarria de voltar a vê-la.

Agradeci-lhe do fundo do coração; admito que a idéia de partir para os confins da Romênia sem um intérprete me deixava inquieto. Concordamos em partir no dia seguinte se o meu motorista pudesse levar-nos até Târgoviste. Georgescu conhece uma aldeia perto do Argês onde podemos dormir por pouco dinheiro; não é a mais próxima da fortaleza, mas ele não quer ir até à mais próxima, porque uma vez foi quase expulso de lá. Despedimo-nos com um boa-noite cordial, e agora, meu amigo, preciso de apagar a minha vela e dormir até a próxima aventura, sobre a qual o manterei informado.

Com afeto, Bartholomew

 

Meu querido amigo,

O meu motorista conseguiu de fato levar-nos hoje a Târgoviste, no Norte, depois do que voltou para junto da família, em Bucareste, enquanto nós nos instalamos numa velha estalagem para passar a noite. Georgescu é um excelente companheiro de viagem, durante o percurso, regalou-me com a história da região rural que íamos atravessando. Os seus conhecimentos são muito amplos e os seus interesses incluem a arquitetura e a botânica locais, de modo que hoje aprendi imensas coisas.

Târgoviste é uma linda cidade, de carácter ainda medieval, e conta pelo menos com esta boa estalagem onde um viajante pode lavar o rosto com água limpa. Estamos agora no coração da Valáquia, numa terra de colinas entre montanhas e planície. Vlad Drácula reinou na Valáquia várias vezes durante as décadas de 1450 e 1460; Târgoviste era a sua capital, e esta tarde percorremos as importantes ruínas do seu palácio, com Georgescu a indicar-me as diversas divisões e a descrever-me os seus prováveis usos. Drácula não nasceu aqui, mas na Transilvânia, numa cidade chamada Sighisoara. Não vou ter tempo de a visitar, mas Georgescu esteve lá várias vezes e contou-me que a casa em que o pai de Drácula vivia, o lugar onde Vlad nasceu, ainda está de pé.

O mais impressionante dos muitos locais impressionantes que aqui vimos hoje, enquanto vagueávamos pelas velhas ruas e ruínas, foi a torre de vigia de Drácula, ou melhor, um belo restauro dessa torre, realizado no século dezenove. Georgescu, como bom arqueólogo, torce o seu nariz escocês-romeno aos restauros, explicando que neste caso as ameias em volta da parte superior não estão muito corretas; mas o que se pode esperar, perguntou-me, mordaz, quando os historiadores resolvem usar a imaginação. Restauro impecável ou não, o que Georgescu me contou sobre a torre provocou-me calafrios. Era usada por Vlad Drácula não só como posto de vigia naquela era de frequentes invasões turcas, mas também como bom ponto de observação de onde podia assistir aos empalamentos que eram realizados no pátio em baixo.

Tomamos a nossa refeição da noite num pequeno bar perto do centro da cidade. Dali podíamos ver as muralhas exteriores do palácio em ruínas e, enquanto comíamos o pão e o ensopado, Georgescu contou-me que Târgoviste é o lugar ideal para partir até à fortaleza de Drácula nas montanhas.

Na segunda vez em que ele tomou o trono da Valáquia, em 1456 explicou, decidiu construir um castelo acima do Argês, parra o qual pudesse fugir no caso de invasões vindas da planície. As montanhas entre Târgoviste e a Transilvânia — e as terras selvagens da própria Transilvânia sempre forram um local de refúgio para os Valaquianos

Partiu um pedaço de pão e encharcou-o no molho do ensopado, sorrindo.

Drácula sabia que acima do rio havia já algumas fortalezas em ruínas, datadas no mínimo do século onze. Decidiu reconstruir uma delas, o antigo Castelo Argês. Precisava de mão-de-obra barrata essas coisas não se resumem sempre a ter alguém parra ajudar? Então, com o seu habitual espírrito generoso, convidou todos os seus boiardes os seus vassalos, sabe, para uma pequena celebração da Páscoa. Chegarram com as suas melhorres roupas àquele grande pátio aqui mesmo em Târgoviste, e ele deu-lhes comida e bebida com farturra. Depois matou os que achava mais incómodos e fez marchar os restantes com as mulherres e os filhos cinquenta quilómetros montanha acima, parra reconstruir o Castelo Arges.

Georgescu esquadrinhou a mesa com os olhos, aparentemente à procura de outro pedaço de pão.

Bem, na verdade a coisa é mais complicada do que isso, a historia romena é sempre. O irmão mais velho de Drácula, Mircea, tinha sido assassinado anos antes por inimigos políticos em Târgoviste. Quando Drácula subiu ao poder, mandou desenterrar o caixão do irmão e descobriu que o pobre homem forra enterrado vivo. Foi então que mandou os convites parra a festa de Páscoa, e assim vingou o irmão, além de ter conseguido mão-de-obra barrata para erguer o seu castelo nas montanhas. Mandou construir olarias perto da fortaleza original, e quem sobreviveu à viagem foi forçado a trabalhar noite e dia, a carregar tijolos e a construir as murralhas e as torres. As antigas canções desta região dizem que as belas roupas dos boiardos lhes caíam do corpo em farrapos antes de terem acabado o trabalho. — Georgescu rapou o prato. — Já reparrei que Drácula era também um sujeito muito prático, além de cruel.

E então amanhã, meu amigo, partiremos seguindo o caminho desses infelizes fidalgos, mas de carroça, pelas montanhas que eles subiram penosamente a pé.

É notável ver os camponeses andarem por aí com as suas roupas típicas entre os trajes mais modernos das pessoas da cidade. Os homens usam camisas brancas com coletes escuros e umas sandálias de couro amarradas até aos joelhos por tiras também de couro, em tudo idênticos a pastores romanos que voltassem à vida. As mulheres, que na sua maioria são tão morenas como os homens e geralmente muito bonitas, usam saias e blusas pesadas, com um carpete fechado firmemente por cima de tudo, e as suas roupas são bordadas com motivos vistosos. Parecem ser um povo alegre, rindo e falando alto enquanto regateiam no mercado, que visitei ontem de manhã logo que cheguei.

É mais difícil do que nunca encontrar maneira de enviar esta carta, por isso, por enquanto, vou mantê-la em segurança na minha bolsa.

Com afeto, Bartholomew

 

Meu querido amigo,

Para minha felicidade, conseguimos chegar até uma aldeola nas margens do Argês, uma viagem de um dia através de montanhas íngremes, míticas, na carroça de um lavrador cuja mão enchi generosamente de moedas. Como resultado, hoje estou dorido até aos ossos, mas feliz. Esta aldeola é para mim um lugar de maravilhas, como se tivesse saído de um conto dos irmãos Grimm, e não da vida real, e gostaria que você pudesse vê-la nem que fosse por uma hora para sentir a imensa distância que a separa de todo o mundo europeu ocidental. As casinhas, algumas pobres e em mau estado, mas a maioria com aparência bastante alegre, têm beirais compridos e baixos e grandes chaminés, em cujo cimo se vêem os gigantescos ninhos das cegonhas que passam o Verão aqui.

Visitei tudo hoje à tarde com Georgescu e descobri que uma praça no centro da aldeia é o ponto de reunião deles, com um poço para os moradores e um grande bebedouro para os animais, que são conduzidos através da aldeia duas vezes por dia. Debaixo de uma árvore periclitante fica a taberna, um sítio barulhento onde tive de pagar rodadas e mais rodadas de uma aguardente horrorosa aos bebedores locais pense nisto quando estiver no Golden Wolf com o seu meio litro de suave cerveja preta! Há um ou dois homens entre os habitantes com quem consigo comunicar um pouco.

Alguns destes homens também se lembram de Georgescu, da última vez que aqui veio, há seis anos, e cumprimentaram-no com grandes palmadas nas costas quando entramos na taberna pela primeira vez hoje à tarde, se bem que outros parecessem evitá-lo. Georgescu diz que a viagem de ida e volta à fortaleza demora um dia, e ninguém ainda se mostrou disposto a levar-nos até lá. Falam de lobos, de ursos e, claro, de vampiros pricolici, como lhes chamam na sua língua. Estou a começar a compreender algumas palavras de romeno, e o meu francês, o meu italiano e o meu latim são uma grande ajuda quando tento adivinhar as coisas. Enquanto entrevistávamos alguns dos bebedores de cabelos brancos esta noite, a maior parte da aldeia apareceu para olhar para nós, nada discretamente donas de casa, lavradores, grupos de crianças de pés descalços, e as jovens donzelas, que, de modo geral, são beldades de olhos escuros. Num dado momento, encontrei-me tão rodeado de aldeãos a fingir que iam buscar água ou varrer os degraus da frente ou conversar com o dono da taberna que tive de dar uma gargalhada, o que os fez olhar para mim, espantados.

Amanhã há mais o que eu gostaria de ter uma boa hora de conversa consigo! e na minha na nossa língua!

Seu amigo devotado, Rossi.

 

Meu querido amigo,

Estivemos, para meu assombro, na fortaleza de Vlad. Agora sei porque queria vê-la; tornou-me um pouco real em vida afigura assustadora que procuro na morte ou estarei em breve a procurar, de alguma maneira, num lugar qualquer, se os meus mapas forem de alguma ajuda. Tentarei descrever-lhe a nossa excursão porque gostaria que pudesse imaginar a cena, e porque quero conservar um registro dela.

Partimos ao nascer do dia na carroça de um jovem lavrador daqui, que parece ser um indivíduo próspero e é o filho de um dos velhos que frequentam a taberna. Tudo indica que tenha recebido ordens do pai para nos levar, e não gostou muito da incumbência. Quando subimos para a carroça, à primeira claridade do dia, na praça da aldeia, apontou para as montanhas umas poucas de vezes, sacudindo a cabeça e dizendo: "Poenart? Poenan?" Finalmente, pareceu resignar-se à tarefa e deu rédeas aos cavalos, dois grandes animais castanhos, afastados do trabalho nos campos por aquele dia.

O homem propriamente dito era um sujeito de aspecto formidável, alto e de ombros imensamente largos sob a camisa e o colete de lã, e com o chapéu posto, era com certeza duas cabeças mais alto que nós. Isto fez-me parecer as suas reservas sobre a excursão um tanto cômicas, embora eu certamente não devesse rir-me dos medos destes camponeses depois do que vi em Istambul (sobre isto, como já lhe disse, falaremos pessoalmente). Georgescu tentou envolvê-lo na conversa durante o nosso percurso na floresta densa, mas o pobre homem segurava as rédeas num desespero silencioso (pareceu-me), como um prisioneiro a ser levado para o patíbulo. De vez em quando, a sua mão deslizava para dentro da camisa como se trouxesse ali algum tipo de amuleto protetor imaginei isto por causa da tira de couro que tinha ao pescoço, e tive de resistir à tentação de lhe pedir para dar uma olhadela. Senti pena do homem e daquilo por que o estávamos a fazer passar, contra todos os interditos da sua cultura, e decidi que lhe daria uma pequena remuneração suplementar no fim da viagem.

Tínhamos a intenção de passar ali a noite para termos tempo de examinar tudo e tentar conversar com camponeses que encontrássemos e que vivessem perto dali, e para isso o pai do homem tinha-nos fornecido mantas de viagem e cobertores, e a mãe dera-nos pão, queijo e maçãs, tudo amarrado numa trouxa e colocado no fundo da carroça. Assim que entramos na floresta, senti uma excitação pouco acadêmica, e lembrei-me do herói de Bram Stoker partindo para as florestas da Transilvânia uma versão ficcionada delas, de qualquer maneira, de diligência, e quase desejei que tivéssemos partido à noite, para que também eu pudesse ter visões de misteriosas fogueiras na floresta e ouvir lobos a uivar. Era uma pena, pensei, que Georgescu nunca tivesse lido o livro, e decidi tentar enviar-lhe um exemplar de Inglaterra, se algum dia voltar àquele lugar enfadonho. E então, lembrei-me do meu encontro em Istambul, o que me trouxe de volta à razão.

Atravessamos a floresta lentamente, porque a estrada estava toda sulcada por rodas de carroças e cheia de buracos e porque quase imediatamente começava uma subida. Estas florestas são muito profundas, sombrias mesmo ao meio-dia mais quente, com a frescura sobrenatural do interior de uma igreja. Ao viajarmos por dentro delas, vemo-nos totalmente cercados de árvores e de um silêncio palpitante; da carroça, nada se avista durante quilômetros a fio a não ser os infindáveis troncos e a vegetação rasteira, uma densa mistura de abetos e diversos tipos de madeiras duras. Muitas árvores são descomunalmente altas e as suas copas tapam o céu. É como passar entre os pilares de uma vasta catedral, mas uma catedral escura, uma catedral assombrada onde ninguém espera vislumbrar a Madona Negra ou santos martirizados em cada nicho. Vi pelo menos uma dúzia de espécies de árvores, entre as quais altos castanheiros e um tipo de carvalho que nunca tinha visto.

Num determinado ponto, onde o chão se endireitava, penetramos numa nave de troncos prateados, um bosque de faias do tipo dos que ainda encontramos mas raramente nos terrenos mais arborizados de certos solares ingleses. Sem dúvida que já os deve ter visto. Aquele poderia servir de salão de festas para o casamento do próprio Robin dos Bosques, com enormes troncos sustentando um teto de milhões de diminutas folhas verdes, e a folhagem do ano anterior estendendo-se como um tapete castanho-claro sob os nossos pés. O nosso condutor não parecia reparar em nada de toda aquela beleza — quando se vive a vida inteira entre paisagens assim, talvez deixem de ser vistas como "beleza", mas como o próprio mundo e permanecia sentado, curvado, imerso no mesmo silêncio reprovador. Georgescu estava ocupado a tomar notas sobre o seu trabalho em Snagov, de modo que eu não tinha ninguém com quem trocar uma palavra sobre aquele deslumbramento que nos rodeava.

Depois de viajarmos durante quase meio dia, chegamos a um campo aberto, verde e dourado à luz do sol. Constatei que tínhamos subido bastante desde a aldeia, e tínhamos uma vista cerrada das copas das árvores, que desciam de forma tão íngreme nas extremidades do campo que dar um passo na sua direção significaria cair abruptamente. Dali, a floresta afundava-se num desfiladeiro, e vi pela primeira vez o rio Arges, uma tira de prata lá em baixo. Da margem oposta, erguiam-se enormes encostas cobertas de florestas, aparentemente impossíveis de escalar. Era uma região para águias, não para pessoas, e pensei com espanto nos muitos combates travados ali entre Otomanos e Cristãos. Que um império, por mais ousado que fosse, tentasse penetrar naquela paisagem, parecia-me o cúmulo da loucura. Compreendi melhor por que razão Vlad Drácula escolhera aquela região para seu baluarte; quase não precisava de uma fortaleza para a tornar mais inexpugnável.

O nosso guia saltou da carroça e desembrulhou a nossa refeição do meio-dia, que comemos sentados na relva, sob carvalhos e bétulas esparsos. Depois, estendeu-se debaixo de uma árvore e tapou a cara com o chapéu, e Georgescu estendeu-se debaixo de outra árvore, como se fosse a coisa mais natural do mundo, e dormiram durante uma hora enquanto eu passeava pelo prado. O silêncio era maravilhoso, a não ser pelo gemido do vento naquelas florestas sem limites. O céu, de um azul-vivo, estendia-se por cima de tudo. Ao caminhar para o outro lado do campo, avistei uma clareira semelhante muito mais abaixo, presidida por um pastor com roupas brancas e um largo chapéu acastanhado. O seu rebanho de ovelhas, parecia-me movia-se à sua volta como nuvens, e conjecturei que ele poderia estar ali de pé, exatamente daquela maneira, apoiado no seu cajado, desde os dias de Trajano. Senti uma grande paz descer sobre mim. A natureza macabra da nossa missão evaporou-se da minha mente, e achei que seria capaz de ficar naquela campina perfumada durante uma ou duas eras, como o pastor.

Na parte da tarde, o nosso caminho levou-nos a estradas cada vez mais íngremes e finalmente a uma aldeia que Georgescu disse ser a mais próxima da fortaleza; lá, sentámo-nos por algum tempo na taberna local com copos desse conhaque muito revigorante a que eles chamam pãlincà. O nosso guia tornou claro que pretendia ficar com os cavalos enquanto nós seguíamos a pé até à fortaleza; em nenhuma circunstância ele subiria até lá, muito menos passaria a noite conosco nas ruínas. Quando insistimos, ele resmungou: "Pentru nimicaín lime", e levou a mão à tira de couro que usava ao pescoço. Georgescu disse que aquilo significava "De maneira nenhuma". O homem mostrava-se tão obstinado que Georgescu acabou por dar uma gargalhada, dizendo que a caminhada não era assim tão grande e que de qualquer maneira a última parte teria de ser feita a pé. Admirava-me que Georgescu quisesse dormir a céu aberto em vez de voltar para a aldeia e, para ser sincero, também não me agradava muito a idéia de passar lá a noite, embora não tenha dito nada.

Acabamos por deixar o indivíduo com o seu conhaque, os cavalos com a sua água e retomamos o nosso caminho com as trouxas de comida e os cobertores às costas. Enquanto percorríamos a rua principal, lembrei-me novamente da história dos boiardos de Târgoviste, a caminharem trôpegos para a fortaleza original em ruínas lá no alto, depois pensei no que vira ou acreditava ter visto em Istambul, e senti uma pontada de inquietação.

A vereda depressa se estreitou até se transformar num pequeno caminho para carroças e em seguida num atalho que subia à nossa frente através da floresta. Apenas a última parte nos valeu uma escalada íngreme, que superamos com facilidade. De repente, estávamos no cimo de um cume batido pelo vento, um espinhaço de pedra que saía da floresta. No ponto mais elevado desse espinhaço, numa vértebra mais alta do que as outras, agarravam-se duas torres em ruínas e destroços de muralhas, tudo o que restava do Castelo Drácula. A vista era de tirar o fôlego; estávamos a uma enorme altitude, com o rio Argês a reluzir distante no desfiladeiro lá em baixo e pequenas aldeias espalhadas aqui e ali ao longo das suas margens. Para sul, vi colinas baixas que Georgescu disse serem as planícies da Valáquia, e para norte montanhas altíssimas, algumas com os picos cobertos de neve. Tínhamos chegado ao poleiro de uma águia.

Georgescu foi a frente na escalada sobre as rochas caídas, e finalmente vimo-nos no meio das ruínas. Vi imediatamente que a fortaleza tinha sido pequena, e que fora abandonada aos elementos ha muito tempo, flores silvestres de todas as espécies, líquenes, musgo cogumelos e árvores retorcidas, deformadas pelo vento, tinham-se instalado ali ha muito. As duas torres ainda de pé eram silhuetas ossudas contra o céu. Georgescu explicou que originalmente a fortaleza tivera cinco torres, de onde os homens de Drácula podiam manter a vigilância contra incursões turcas O pátio onde nos encontrávamos fora outrora um poço profundo para possíveis cercos, e também segundo a lenda uma passagem secreta que levava a uma caverna na margem do Arges, muito mais abaixo Através dessa passagem, Drácula escapara aos Turcos em 1462, depois de utilizar a fortaleza de modo intermitente durante cerca de cinco anos. Tanto quanto se sabia, nunca mais ali voltara. Georgescu acreditava ter identificado a capela do castelo numa das extremidades do pátio, onde espreitamos para o interior de uma abóbada desmoronada. Pássaros voavam para dentro e para fora das paredes da torre, cobras e pequenos animais desapareciam com leves ruídos a nossa frente, e tive a sensação de que a natureza estava prestes a apossar-se do que restava da cidadela.

Quando a nossa lição de arqueologia acabou, o Sol pendia mesmo por cima das colinas a ocidente e as sombras das rochas, das árvores e das torres tinham-se alongado a nossa volta

Podíamos voltar parra a aldeia — disse Georgescu, pensativo. — Mas aí vamos ter de subir outra vez se quisermos explorrar mais amanhã de manhã Por mim, prefirro acampar aqui, e você?

Naquela altura, sem dúvida que eu preferia não acampar, mas Georgescu parecia tão prosaico, tão científico, sorrindo-me com o seu caderno de desenhos na mão, que eu não quis dizer o que preferia. Começou a juntar madeira seca, eu ajudei-o, e em breve tínhamos uma fogueira a estalar sobre as lajes de pedra do antigo pátio, cujo musgo tínhamos raspado cuidadosamente com esse propósito. Georgescu parecia estar a apreciar enormemente a fogueira, assobiando, ajeitando os galhos soltos, e instalando uma armação primitiva para a panela que tirou da mochila. Depressa estava a preparar um ensopado e a cortar o pão, sorrindo para as chamas, e lembrei-me de que ele era, afinal, tão cigano como escocês.

O Sol pôs-se antes que o nosso jantar ficasse pronto e, quando desapareceu por detrás das montanhas, as ruínas mergulharam na escuridão, as torres a destacarem-se contra um crepúsculo perfeito. Alguma coisa — corujas, morcegos esvoaçavam através dos buracos vazios das janelas, de onde haviam voado flechas na direção das tropas turcas tanto tempo antes. Peguei na minha manta de viagem e coloquei-a o mais perto possível do fogo. Georgescu serviu uma refeição miraculosamente boa e, enquanto comíamos, falou mais uma vez sobre a história do lugar.

Uma das histórias mais tristes sobre Drácula aconteceu aqui Já ouviu falar da primeirra mulher de Drácula?

Fiz que não com a cabeça.

Os camponeses que vivem aqui à volta contam uma história sobre ela que penso que deve ser verdadeirra. Sabe-se que, no Outono de 1462, Drácula foi expulso desta fortaleza pelos Turcos, e que não voltou aqui quando reinou novamente sobre a Valáquia em 1476, pouco antes de ser assassinado. As canções das aldeias das redondezas dizem que, na noite em que o exército turco alcançou aquele penhasco ali em frente — e ele apontou para o veludo escuro da floresta, — os soldados acamparram na velha florresta de Poenari e tentarram deitar abaixo o castelo de Drácula disparrando com os seus canhões por cima do rio. Não forram bem sucedidos, por isso o seu comandante deu ordens parra um grande assalto ao castelo na manhã seguinte

Georgescu fez uma pausa para atiçar o fogo, a luz dançava-lhe no rosto moreno e nos dentes de ouro, e os seus caracóis escuros tomavam a forma de chifres

Durrante a noite, um escravo que estava no acampamento turco e que erra parrente de Drácula, atirrou secretamente uma flecha parra a aberturra da torre deste castelo, no ponto onde sabia que ficavam os aposentos pessoais de Drácula. Amarrado à flecha, havia um aviso a Drácula parra que fugisse do castelo antes que ele e a sua família fossem feitos prisioneirros. O escravo conseguiu ver o vulto da mulher de Drácula a ler a mensagem à luz das velas Os camponeses contam nas suas velhas canções que ela disse ao marrido que preferria ser devorrada pelos peixes do Arges a tornar-se escrava dos Turcos. Os Turcos não erram muito simpáticos com os prisioneirros, sabe? — Georgescu sorriu-me com ar demoníaco por cima do ensopado. — Então, ela subiu a correr os degraus da torre provavelmente aquela ali e atirrou-se lá de cima. E Drácula, é clarro, escapou através da passagem secreta. — Abanou a cabeça com ar óbvio. — Esta parte do Arges ainda é chamada de Riul Doamnei, que significa o rio da Princesa.

Senti um calafrio, como pode imaginar eu tinha olhado naquela tarde para o precipício. A queda até ao rio lá em baixo é quase inimaginavelmente longa.

Drácula teve filhos dessa esposa?

Ah, sim — Georgescu serviu-me um pouco mais de ensopado. — O filho deles foi Mihnea o Mau, que reinou na Valáquia no início do século dezesseis. Outro sujeito encantador. A sua linhagem deu orrigem a toda uma sérrie de Mihneas e Mirceas, todos desagradáveis. E Drácula casou-se de novo, a segunda vez com uma húngarra que era parrente de Máthyás Corvinus, rei da Hungria. Produzirram uma quantidade de Dráculas

Ainda há Dráculas na Valáquia ou na Transilvânia?

Creio que não. Eu tê-los-ia encontrado, se existissem. — Partiu um pedaço de pão e deu-mo. — Essa segunda linhagem possuía terras na região de Szekler, e misturrarram-se com os Húngarros O último deles casou-se com alguém da nobre família dos Getzi, e estes também desaparreceram

Anotei tudo no meu caderno entre uma garfada e outra, embora não acreditasse que aquilo pudesse levar-me a alguma tumba Isto sugeriu-me uma última pergunta, que não me agradava muito fazer naquela escuridão enorme e cada vez mais profunda.

Não é possível que Drácula esteja enterrado aqui, ou que o seu corpo tenha sido trazido de Snagov para cá como medida de segurança?

Georgescu riu.

Ainda esperrançoso, não é? Não, o sujeito está num lugar qualquer em Snagov, ouça o que lhe digo. É clarro, aquela capela ali tinha uma cripta; existe uma árrea afundada, com uns degraus até abaixo. Escavei ali há anos, quando vim aqui pela primeirra vez. — Fez-me um sorriso aberto. — Os aldeões ficarram semanas sem falar comigo. Mas a cripta estava vazia. Nem uns poucos ossos encontrei.

Pouco depois, começou a dar grandes bocejos. Puxamos os nossos mantimentos para junto do fogo, enrolámo-nos nas nossas mantas de viagem e ficamos em silêncio. A noite estava fria e eu felizmente vestira as minhas roupas mais quentes. Fiquei a olhar para as estrelas durante algum tempo pareciam maravilhosamente próximas daquele precipício negro e a ouvir Georgescu a ressonar.

Devo ter adormecido também porque, quando acordei, o fogo estava baixo e um fiapo de nuvem cobria o topo da montanha. Eu tremia de frio, e estava prestes a levantar-me para deitar mais lenha na fogueira quando um ruído me fez gelar o sangue. Não estávamos sozinhos nas ruínas, e o que quer que fosse que partilhava conosco aquele lugar escuro e agreste estava muito perto. Levantei-me devagar, pensando em acordar Georgescu se fosse necessário e conjecturando se ele teria alguma arma na sua bolsa cigana, junto com as panelas. Um silêncio mortal havia descido sobre nós mas, depois de uns segundos, o suspense tornou-se demasiado para mim. Tirei um ramo da pilha de lenha e pu-lo na fogueira e, quando pegou fogo, fiquei com uma tocha, que ergui com cuidado.

De repente, nas profundezas do local da capela, coberto de vegetação, a luz da minha tocha deparou-se com o brilho vermelho de um par de olhos. Estaria a mentir, meu amigo, se dissesse que não fiquei com os cabelos em pé. Os olhos aproximaram-se um pouco mais e eu não conseguia determinar a distância a que estavam do chão. Por um longo momento, olharam para mim, e senti, irracionalmente, que havia neles uma espécie de reconhecimento, que sabiam quem eu era e que me avaliavam. Então, com um restolhar seco da vegetação rasteira, avistei metade do corpo de um grande animal, que virou a cabeça para um lado e para o outro e se afastou, trotando, para a escuridão. Era um lobo de um tamanho assustador; àquela luz precária, consegui ver por um segundo o seu pêlo desgrenhado e a sua grande cabeça antes que se esgueirasse para fora das ruínas e desaparecesse.

Deitei-me novamente, sem querer acordar Georgescu, agora que o perigo parecia ter passado, mas não consegui dormir. Via, uma e outra vez na minha mente, pelo menos aqueles olhos penetrantes, astutos. Acredito que acabei por dormitar mas, ali deitado, apercebi-me de um som distante, que parecia vir do negrume da floresta. Por fim, senti-me demasiado agitado para ficar debaixo das mantas, levantei-me outra vez e atravessei furtivamente o pátio coberto de mato para olhar por cima da muralha. O declive mais abrupto do precipício era o que acabava no Arges, como já descrevi, mas à minha esquerda havia uma área onde as florestas desciam mais suavemente, e dali ouvi subir um murmurar de muitas vozes, e vi um clarão que poderia ser de fogueiras de acampamento. Não sabia se os ciganos acampavam naquelas florestas; teria de perguntar a Georgescu de manhã. Como se este pensamento o tivesse chamado, o meu novo amigo apareceu de repente, indistinto, ao meu lado, arrastando os pés, cheio de sono.

Algum problema? — e espreitou por cima da muralha. Apontei para baixo.

Será um acampamento cigano? — Ele riu.

Não, é demasiado longe da civilização. — Um bocejo seguiu-se à frase, mas os seus olhos, à luz do nosso fogo moribundo, mostravam-se brilhantes e atentos. — Mas é esquisito. Vamos verificar.

Não gostei nada da idéia, mas minutos depois tínhamos calçado as nossas botas e movíamo-nos em silêncio, descendo o atalho na direção do som. Este foi ficando cada vez mais forte, subindo e descendo, numa cadência misteriosa não eram lobos, refleti, mas vozes de homens. Eu tentava não pisar nenhum ramo. Uma vez, vi Georgescu meter a mão dentro do casaco — afinal, tinha uma arma, concluí, satisfeito. Em breve avistamos a luz de fogueiras a tremer entre as árvores e, com um gesto, ele mandou-me agachar e depois estender-me ao seu lado no mato rasteiro.

Chegáramos a uma clareira na floresta que, surpreendentemente, estava cheia de homens. Estavam de pé em dois círculos em volta de uma fogueira brilhante, de frente para ela, e cantavam uma ladainha monótona. Um deles, aparentemente o líder, estava perto do fogo, e todas as vezes que o cântico subia até atingir um crescendo, todos levantavam um braço esticado para o saudarem, apoiando a outra mão no ombro do homem ao lado. Os seus rostos, de um estranho tom alaranjado à luz do fogo, eram duros e não sorriam, e os olhos brilhavam. Usavam uma espécie de uniforme, casacos escuros por cima de camisas verdes e gravatas pretas.

O que é isto? — murmurei para Georgescu. — O que estão eles a dizer?

"Tudo pela Pátria!" segredou-me ao ouvido. — Fique quieto e calado, ou estamos mortos. Acho que é a Legião do Arcanjo Miguel.

O que é isso? — tentei mover apenas os lábios.

Era difícil imaginar qualquer coisa menos angélica do que aqueles rostos petrificados e os braços rígidos estendidos. Georgescu fez-me sinal para nos irmos embora e voltamos sorrateiramente para a floresta. Antes de nos virarmos, porém, percebi um movimento do outro lado da clareira e, para meu crescente espanto, vi um homem alto e de ombros largos envolto numa capa, o cabelo escuro e o rosto lívido entrevistos por um segundo à luz da fogueira. Estava de pé fora dos círculos dos homens uniformizados, o rosto alegre; na verdade, parecia mesmo estar a rir-se. No segundo seguinte deixei de o ver e pensei que devia ter-se esgueirado por entre as árvores, e então Georgescu puxou-me ladeira acima.

Quando estávamos em segurança nas ruínas ironicamente, as ruínas pareciam agora seguras, por contraste, Georgescu sentou-se junto do fogo e acendeu o cachimbo, como que aliviado.

Meu Deus, homem — disse ele, e respirou fundo. — Podia ter sido o nosso fim!

Quem são?

Ele atirou o fósforo para a fogueira.

Criminosos — disse secamente. — Também são conhecidos por Guarda de Ferro. Passam de roldão pelas aldeias desta parte do país, recrutando rapazes e convertendo-os ao ódio. Odeiam os judeus em particular, e querrem livrar o mundo deles. — Sorveu com força o cachimbo. — Nós, ciganos, sabemos que quando matam judeus, os ciganos são sempre assassinados também. E depois, em geral, mais uma quantidade de gente.

Descrevi a figura bizarra que vira do lado de fora do círculo.

Ah, com certeza — murmurou Georgescu. — Eles atraem todo o tipo de estranhos admiradorres. Não vai demorrar muito parra que todos os pastorres das montanhas decidam juntar-se a eles.

Demorou algum tempo até adormecermos novamente, mas Georgescu garantiu-me que a Legião dificilmente escalaria a montanha uma vez iniciados os seus rituais. Consegui cair apenas num sono leve e desconfortável, e fiquei aliviado ao ver que a aurora chegava cedo àquele ninho de águias. Tudo estava silencioso, ainda bastante enevoado, e nenhum vento fazia mexer as árvores em redor. Assim que a luz ficou suficientemente forte, caminhei com cautela até às abóbadas desmoronadas da capela e examinei as pegadas do lobo. Eram claramente visíveis no lado mais próximo da capela, grandes e pesadas, marcadas na terra. O estranho é que havia apenas um conjunto de pegadas, que saía da área da capela, diretamente das camadas afundadas da cripta, sem nenhum vestígio de como o lobo lá chegara ou talvez fosse eu que não conseguia interpretar bem as suas marcas no mato atrás da capela. Pensei muito aquilo, mesmo depois de termos tomado o pequeno-almoço, feito mais alguns desenhos e começado a descer a montanha.

Mais uma vez, tenho de parar aqui, mas envio-lhe o meu afeto desta terra longínqua

Rossi

 

Meu querido amigo,

Não consigo imaginar o que irá pensar desta correspondência estranha e unilateral quando finalmente lhe chegar às mãos, mas sinto-me impelido a continuar, ainda que seja apenas para tomar notas para mim mesmo. Ontem à tarde, regressamos à aldeia no Arges de onde iniciamos a nossa viagem até à fortaleza de Drácula, e Georgescu partiu para Snagov, com um abraço caloroso, um abanão nos meus ombros e o desejo de que possamos um dia retomar o contato um com o outro. Foi o mais bem-humorado dos guias e certamente vou sentir a sua falta. No último momento, senti uma pontada de culpa por não lhe ter contado tudo o que vi em Istambul, mas não consegui romper o meu próprio silêncio. De qualquer forma, ele não teria acreditado, portanto não valeria a pena contar-lhe. Podia imaginar muito bem a sua risada franca, o seu científico sacudir de cabeça, a sua troça da minha fantástica imaginação.

Pediu-me que viajasse com ele até Târgoviste, mas eu já tinha resolvido ficar mais alguns dias nesta região para visitar algumas igrejas e mosteiros locais e aprender, talvez, um pouco sobre a área que circundava o baluarte de Vlad. Esta foi pelo menos a justificação que dei a mim mesmo e a Georgescu, e ele recomendou-me vários locais que Drácula sem dúvida terá visitado em vida. Penso que tinha outra motivação, meu amigo, que é a sensação de que talvez nunca mais volte a um lugar assim, tão remoto, tão distante das minhas pesquisas habituais e tão pungentemente belo. Tendo decidido passar aqui os meus últimos dias livres em vez de correr para a Grécia antes do previsto, tenho-me descontraído um pouco na taberna, tentando melhorar os meus conhecimentos de Romeno, tentando com pouco sucesso conversar com os mais velhos sobre as lendas da região. Hoje passeei pelos bosques próximos da aldeia e cheguei a um altar solitário, debaixo de uma árvore. Foi construído com pedras antigas e tem um telhado de colmo, e penso que a sua parte original deve estar ali desde muito antes de as tropas de Drácula galoparem por estas estradas As flores no interior tinham murchado há pouco, e cera derretida de velas acumulava-se por baixo do crucifixo.

Quando regressava à aldeia, deparei com uma visão igualmente impressionante uma rapariga da aldeia, parada no meu caminho com o seu traje de camponesa, parecendo uma figura saída da História. Como não dava sinais de se afastar, parei para falar com ela e, para minha surpresa, deu-me de presente uma moeda. Era visivelmente muito antiga, medieval e numa das faces mostrava a figura de um dragão. Tive a certeza, embora não tivesse provas, de que deve ter sido cunhada para a Ordem do Dragão. É claro que a rapariga só falava Romeno, mas consegui entender que a moeda lhe fora dada por uma mulher que descera a esta aldeia vinda dos penhascos do rio próximo do castelo de Vlad. A rapariga também me contou que o seu nome de família é Getzi, se bem que ela aparentemente não tenha qualquer noção do que isso significa. Pode imaginar a minha excitação perante isto: havia uma grande probabilidade de estar frente a frente com uma descendente de Vlad Drácula. A idéia era ao mesmo tempo espantosa e assustadora (ainda que os traços puros da rapariga e as suas maneiras graciosas estivessem o mais longe possível de qualquer coisa monstruosa ou cruel). Quando tentei devolver-lhe a moeda, insistiu para que eu ficasse com ela, o que fiz até agora, mas certamente tentarei de novo devolver-lha. Combinamos conversar mais amanhã, e agora tenho de parar de escrever para fazer um desenho da moeda e estudar o meu dicionário, na esperança de conseguir perguntar-lhe mais informações sobre a sua família e as origens dela.

 

Meu querido amigo,

Ontem à noite, fiz mais um pequeno progresso ao conversar com a rapariga de quem lhe falei o seu apelido é realmente Getzi, e ela soletrou-o do mesmo modo que Georgescu fizera ao ditá-lo para as minhas anotações. Fiquei admirado com a rapidez com que ela me compreendia à medida que tentávamos conversar, e descobri que, além dos seus grandes talentos naturais de percepção, sabe ler e escrever e conseguiu ajudar-me a encontrar palavras no dicionário. Gostei de observar o seu rosto vivo e os seus olhos escuros, brilhantes, a abrir-se a cada nova coisa que compreendia. Nunca aprendeu outro idioma, é claro, mas não tenho dúvidas de que poderia fazê-lo com facilidade se tivesse o ensino adequado.

Isto pareceu-me um fenómeno extraordinário, encontrar uma tal inteligência neste lugar remoto e simples; talvez seja mais uma prova de que ela é descendente de gente nobre, educada, inteligente. A família do pai veio para cá há tanto tempo que já ninguém se lembra disso, mas alguns eram húngaros, pelo que consegui entender. Ela disse-me que o pai acredita ser o herdeiro do príncipe do Castelo Argês, e que há lá um tesouro enterrado, o que aparentemente todos os camponeses daqui também acham. Com dificuldade, deduzi que acreditam que nos dias de alguns santos uma luz sobrenatural ilumina o local do tesouro enterrado, mas nas aldeias todos têm demasiado medo para ir procurá-lo. As qualidades da rapariga, tão nitidamente superiores ao seu meio, fazem-me lembrar a maravilhosa Tese de D’Urberville, de Hardy. Sei que não se aventura para lá de 1800, meu amigo, mas reli o livro o ano passado e recomendo-lho como um desvio às suas deambulações habituais. Já agora, duvido que haja algum tesouro, ou Georgescu já o teria encontrado.

Ela também me explicou o fato surpreendente de que um membro de cada geração da sua família tem, marcado na pele, um pequeno dragão. Isto, tanto como o seu nome e a história do seu pai sobre ele, convenceu-me de que ela faz parte de um ramo vivo da Ordem do Dragão. Gostaria de conversar com o pai dela, mas, quando o sugeri, mostrou-se tão aflita que seria grosseiro da minha parte insistir. Esta é uma cultura tradicional, extremamente tradicional, e tomo o maior cuidado para não colocar em risco a reputação dela perante a sua gente — tenho certeza de que já se arriscou só por falar comigo sozinha, e estou-lhe muito grato pelo seu interesse e pela sua ajuda.

Agora vou passear um pouco nos bosques, tenho tanto em que pensar que sinto necessidade de arejar um pouco a cabeça.

 

Meu querido amigo, meu único confidente,

Passaram-se dois dias e não sei bem como escrever-lhe sobre eles, ou se algum dia mostrarei isto a alguém. Estes dois dias fizeram para mim a diferença de uma vida. Encheram-me, em doses iguais, de esperança e de medo. Sinto que, no seu decurso, atravessei uma linha e entrei numa nova vida. O que tudo isto vai significar, no fim, não sei dizer. Sou ao mesmo tempo o homem mais feliz da Criação e o mais ansioso.

Há dois dias, ao cair da tarde, depois de lhe ter escrito pela última vez, encontrei mais uma vez a rapariga angelical que já lhe descrevi, e a nossa conversa, desta vez, levou a uma mudança repentina, um beijo, na verdade — antes que ela fugisse. Passei a noite sem dormir e, quando a manhã chegou, saí do meu quarto na aldeia e ao vaguear pelo bosque. Andei um pouco, sentando-me de vez em quando numa pedra ou tronco de árvore, sob a luminosidade esverdeada e cambiante do começo da manhã, vendo o seu rosto por entre as árvores ou na própria luz e interrogando-me muitas vezes se deveria deixar a aldeia imediatamente, pois podia tê-la já ofendido.

O dia inteiro passou-se desta maneira, enquanto eu caminhava por aqui e por ali, voltando à aldeia apenas para a refeição do meio-dia, com medo de a encontrar a cada instante e ao mesmo tempo esperando que isso acontecesse. Mas não vi sinal dela, e à tardinha voltei ao nosso ponto de encontro, pensando que, se ela aparecesse, lhe diria, da melhor maneira possível, que lhe devia um pedido de desculpas e que não a incomodaria mais. Quando já estava a perder a esperança de a ver e tinha concluído que a ofendera profundamente e devia deixar a aldeia na manhã seguinte, ela surgiu entre as árvores. Vi-a por um segundo com as suas saias pesadas e o carpete preto, a cabeça descoberta e escura como madeira polida, a trança sobre o ombro. Os seus olhos também escuros estavam assustados, mas a radiosa inteligência do seu rosto atingiu-me em cheio.

Abri a boca para falar com ela, mas nesse momento ela voou na minha direção, atravessando a distância que nos separava, e lançou-se nos meus braços. Para minha surpresa, parecia entregar-se-me completamente, e os nossos sentimentos em breve nos levaram a uma intimidade completa, tão terna e pura quanto fora espontânea. Descobri que podíamos falar livremente um com o outro em qual das nossas línguas já não tenho a certeza e que eu podia interpretar o mundo e talvez todo o meu futuro na escuridão dos olhos dela, com as suas pestanas espessas e a delicada dobra asiática nos cantos.

Quando ela foi embora e fiquei sozinho com as minhas emoções, tentei considerar o que tinha feito, o que tínhamos feito, mas a minha sensação de plenitude e felicidade interferiam no meu raciocínio. Hoje voltarei lá para esperar por ela de novo, porque não consigo evitar, porque todo o meu ser parece estar agora ligado a um ser tão diferente de mim e ao mesmo tempo tão estranhamente familiar que dificilmente posso compreender o que aconteceu.

 

Meu querido amigo (se é ainda para si que escrevo),

Vivi os últimos quatro dias no paraíso, e o meu amor pelo anjo que lhe preside parece ser exatamente isso amor. Nunca senti por nenhuma mulher o que sinto agora, neste lugar estrangeiro. Com apenas mais alguns dias para refletir, evidentemente que tenho procurado considerar a situação de todos os ângulos. A idéia de a deixar e nunca mais a ver parece-me tão impossível como a de nunca mais voltar a ver a minha terra. Por outro lado, tenho pensado muito sobre o que significaria levá-la comigo ou seja: em primeiro lugar, iria afastá-la cruelmente do seu lar e da sua família, e não sei quais seriam as consequências se ela fosse comigo para Oxford. Este último pensamento é extremamente complicado, mas a crueza da situação está muito clara para mim: se eu me fosse embora sem ela, partiria os nossos dois corações, além de ser também um ato covarde e vil depois do que se passou entre nós.

Decidi finalmente fazer dela minha esposa o mais depressa possível. As nossas vidas tomarão sem dúvida um caminho singular, mas tenho a certeza de que a natural graciosidade dela e a sua inteligência aguda vão ajudá-la a superar o que quer que se nos depare. Não posso deixá-la aqui e passar toda a minha vida a imaginar como poderia ter sido, nem posso abandoná-la numa situação como esta. Decidi que esta noite vou pedir-lhe que se case comigo daqui a um mês. Penso voltar primeiro à Grécia, onde posso pedir emprestado aos meus colegas ou mandar vir por telégrafo dinheiro suficiente para dar ao pai dela como compensação por a levar daqui; tenho pouco dinheiro comigo, e não ousaria enfrentar esta situação de outro modo. Além disso, sinto que devo apresentar-me na escavação arqueológica para que fui convidado, o túmulo de um nobre, perto de Cnossos. O meu trabalho no futuro pode estar relacionado com esses colegas, e com ele poderei mantê-la e a mim na vida que construiremos juntos.

Depois, voltarei para a vir buscar e como serão longas essas quatro semanas de separação. Quero ver se os padres de Snagov nos podem casar lá, e assim Georgescu poderia ser nossa testemunha. Evidentemente, se os pais dela insistirem que devemos casar-nos antes de deixar a aldeia, estou disposto a fazê-lo. Em qualquer dos casos, viajará comigo como minha mulher. Penso mandar um telegrama aos meus pais da Grécia, e depois levá-la-ei para passar uma temporada com eles quando chegarmos a Inglaterra. E você, querido amigo, se já estiver a ler estas linhas, poderia tentar saber alguma coisa sobre a questão das acomodações fora da universidade? Muito discretamente e levando em conta que o preço é muito importante. Gostaria também que ela começasse a aprender inglês o mais breve possível, tenho a certeza de que se sairá muito bem. Talvez o Outono o encontre sentado à nossa lareira, meu amigo, e então há-de compreender a razão da minha loucura. Até lá, é a única pessoa com quem me sinto a vontade para comentar este assunto, logo que eu conseguir enviar-lhe estas cartas, e peço-lhe que me julgue com benevolência, com toda a grandeza do seu coração

Seu amigo, feliz e ansioso, Rossi

 

Esta foi a última das cartas de Rossi, provavelmente a última que escrevera ao seu amigo. Sentado ao lado de Helen no autocarro de regresso a Budapeste, voltei a dobrar cuidadosamente as páginas e peguei-lhe na mão só por um segundo.

— Helen — disse, hesitante, porque senti que um de nós, pelo menos, tinha de o dizer em voz alta. — Você é descendente de Vlad Drácula.

Ela olhou para mim, depois para fora da janela do autocarro, e pareceu-me ter visto no seu rosto que ela própria não sabia como se sentir em relação àquilo, mas que sabê-lo fazia todo o seu sangue retorcer-se, revirar-se nas suas veias.

Já era quase noite quando Helen e eu descemos do autocarro em Budapeste, mas apercebi-me, com uma sensação de choque, de que tínhamos saído da estação rodoviária naquele mesmo dia, naquela manhã. Era como se tivesse vivido alguns anos desde então. As cartas de Rossi estavam em segurança na minha pasta e o seu conteúdo enchia-me a cabeça de imagens comoventes; também via um reflexo delas nos olhos de Helen. Ela mantinha uma das suas mãos aninhada no meu braço, como se as revelações daquele dia tivessem abalado a sua segurança. A minha vontade era passar o meu braço em volta dela, abraçá-la e beijá-la ali na rua, dizer-lhe que nunca a deixaria e que Rossi nunca deveria... nunca deveria ter deixado a sua mãe, é isso. Contentei-me em apertar firmemente a mão dela contra o meu corpo e deixar que ela nos guiasse de regresso ao hotel.

No momento em que entramos no vestíbulo, tive outra vez a sensação de que tínhamos estado ausentes durante um longo tempo como era estranho que estes lugares desconhecidos começassem a parecer-me familiares em poucos dias, refleti. Havia um bilhete para Helen, da tia, que ela leu ansiosa.

— Eu já imaginava. Ela quer que jantemos com ela esta noite, aqui no hotel. Suponho que vem despedir-se de nós.

— Vai contar-lhe?

— Sobre as cartas? Provavelmente sim. Conto sempre tudo a Eva, mais cedo ou mais tarde.

Perguntei-me se teria contado à tia alguma coisa sobre mim que eu não soubesse, depois tirei a idéia da cabeça. Tínhamos pouco tempo para nos lavarmos e vestirmos nos nossos quartos antes do jantar, vesti a camisa mais limpa das duas sujas que tinha, fiz a barba no lavatório requintado e, quando desci novamente, Eva já lá estava, mas Helen não. Eva estava de pé diante da janela da frente, de costas para mim, o rosto virado para a rua e para a luz do entardecer que aos poucos se desvanecia. Vista assim, não mostrava toda a vigilância e intensidade do seu comportamento em público; as suas costas, num casaco verde-escuro, estavam relaxadas, mesmo um pouco curvadas. Virando-se de repente, poupou-me ao problema de decidir chamá-la ou não, e vi preocupação no seu rosto antes que o seu maravilhoso sorriso se acendesse na minha direção. Apressou-se a apertar-me a mão, e eu a beijar a sua. Não trocamos uma palavra, mas mesmo assim era como se fôssemos velhos amigos que se reencontrassem depois de uma separação de meses ou anos.

Logo a seguir Helen apareceu, para meu alívio, e conduziu-nos para a sala de jantar, com as suas toalhas brancas engomadas e a sua porcelana feia. A tia Eva fez os pedidos por todos nós, como anteriormente, e recostei-me, cansado, enquanto elas conversavam um pouco. De início, pareceram gracejar entre si afetuosamente, mas logo a seguir o rosto de Eva turvou-se e vi-a pegar no garfo e rodá-lo, taciturna, entre o polegar e o indicador. Então, sussurrou qualquer coisa a Helen que a fez também franzir a testa.

— Qual é o problema? — perguntei, inquieto. Já tinha a minha conta de segredos e mistérios.

— A minha tia fez uma descoberta. — Helen baixou o tom de voz, embora poucas das pessoas que jantavam ali pudessem saber inglês. — Uma coisa que pode ser desagradável para nós.

— O quê?

Eva fez um gesto com a cabeça e falou de novo, outra vez em voz muito baixa, e a testa de Helen franziu-se ainda mais.

— Isto é mau — sussurrou ela. — A minha tia foi interrogada sobre si... sobre nós. Disse que recebeu uma visita esta tarde, de um detetive da polícia que ela conhece há muito tempo. Ele pediu desculpa e disse que era só uma questão de rotina, mas interrogou-a sobre a sua presença na Hungria, os seus interesses, e o nosso... o nosso relacionamento. A minha tia é muito esperta nestes assuntos e, quando por sua vez o interrogou, ele acabou por revelar que tinha sido... como é que se diz... posto no caso por Géza József. — A sua voz baixou para um murmúrio quase inaudível.

— Géza! — Exclamei, olhando para ela.

— Eu disse-lhe que ele é uma peste! Tentou fazer-me perguntas também durante a conferência, mas ignorei-o. Aparentemente, isso deixou-o mais zangado do que eu imaginava. — Fez uma pausa. — A minha tia diz que ele pertence a polícia secreta e que pode ser muito perigoso para nós. Eles não gostam das reformas liberais do governo e estão a tentar manter os velhos métodos. — Alguma coisa no seu tom de voz fez-me perguntar:

— Você já sabia disto? Da posição que ele ocupa?

Ela fez que sim com a cabeça, culpada.

— Conto-lhe isso mais tarde.

Eu não tinha a certeza de quanto mais queria saber, mas a idéia de sermos perseguidos pelo belo gigante era-me sem dúvida desagradável.

— O que é que ele quer?

— Parece que ele acha que você está envolvido em algo mais do que pesquisas históricas. Acredita que veio aqui procurar outra coisa.

— E tem razão — observei em voz baixa.

— Está determinado a descobrir o que é. Tenho certeza de que sabe aonde fomos hoje, e espero que não vá interrogar também a minha mãe. A minha tia desviou o detetive... do nosso rastro o melhor que pôde, mas agora está preocupada.

— A sua tia sabe do que... de quem... estou à procura?

Helen ficou em silêncio por um momento e, quando levantou o olhar, havia como que um apelo nos seus olhos.

— Sim. Pensei que ela pudesse ajudar-nos de alguma forma.

— Ela tem algum conselho para nos dar?

— Só diz que é bom sairmos da Hungria amanhã. Disse para não falarmos com estranhos quando formos embora.

— É claro — disse eu, irritado. — Talvez József queira estudar os documentos de Drácula conosco, no aeroporto.

— Por favor — a voz dela era um mero sussurro. — Não brinque com isto, Paul. Pode ser muito sério. Se eu quiser voltar para cá um dia...

Remeti-me a um silêncio cheio de culpa. Não tivera a intenção de dizer uma piada, estava apenas a manifestar a minha irritação. O criado acabava de trazer a sobremesa doces e café que a tia Eva nos obrigou a comer com uma preocupação maternal, como se, ao engordar-nos um pouco, pudesse proteger-nos dos males do mundo. Enquanto comíamos, Helen contou a tia sobre as cartas de Rossi, e Eva assentia movimentando devagar a cabeça, atenta, mas não disse nada. Quando as nossas chávenas se esvaziaram, virou-se deliberadamente para mim, e Helen traduziu com os olhos baixos.

— Meu caro jovem — disse Eva, apertando a minha mão exatamente como a sua irmã fizera antes. — Não sei se nos veremos outra vez, mas tenho esperança de que sim. Entretanto, tome conta da minha querida sobrinha, ou pelo menos deixe-a tomar conta de si — e lançou um olhar malicioso a Helen, que esta fingiu não notar — e certifique-se de que ambos voltam em segurança para os vossos estudos. Helen contou-me sobre a sua missão, e é uma missão meritória, mas, se não a realizar em breve, volte para casa com a convicção de que fez tudo o que podia. E daí em diante terá de continuar com a sua vida, meu amigo, porque você é jovem e tem a vida pela frente.

Limpou os lábios com o guardanapo e levantou-se. À porta do hotel, abraçou Helen em silêncio e inclinou-se para me dar um beijo em cada face. A sua expressão era grave e nenhuma lágrima brilhava nos seus olhos, mas vi-lhe no rosto uma tristeza profunda e silenciosa. O carro elegante estava à espera. A minha última visão dela foi o seu aceno discreto pelo vidro de trás.

Por alguns segundos, Helen pareceu incapaz de falar. Virou-se para mim, virou-se para o outro lado. Então recompôs-se e olhou para mim, decidida.

— Vamos, Paul. Esta é a nossa última hora de liberdade em Budapeste. Amanhã vamos ter de ir cedo para o aeroporto. Quero dar uma volta.

— Uma volta? — disse eu. — E quanto à polícia secreta e ao seu interesse por mim?

— Eles querem saber o que você sabe, e não esfaqueá-lo num beco escuro. E não seja vaidoso — disse, sorrindo. — Estão interessados em si tanto como em mim. Vamos ficar apenas em lugares bem iluminados, ao longo da rua principal, mas quero que veja a cidade mais uma vez.

A idéia não podia agradar-me mais, sabendo que poderia ser a minha última visão de Budapeste em toda a vida, e saímos novamente para a noite fragrante. Caminhamos na direção do rio, permanecendo, como Helen prometera, nas ruas de maior tráfego. Ao chegar a grande ponte, paramos, e então Helen entrou nela, fazendo deslizar uma das mãos pelo parapeito, pensativa. Acima da vastidão da água, paramos novamente, olhando para os dois lados de Budapeste, e novamente senti a sua majestade e a violência da guerra que quase a destruíra. As luzes da cidade brilhavam em toda a parte, tremulando na superfície negra da água. Helen ficou junto ao parapeito por um momento e depois virou-se, relutantemente, para voltar para Peste. Tinha tirado o casaco e, quando se virou, vi uma forma irregular nas costas da sua blusa. Ao chegar mais perto, percebi que era uma aranha enorme. Tecera uma teia de um lado ao outro das costas dela; viam-se nitidamente os filamentos brilhantes. Lembrei-me então de ter visto teias de aranha ao longo de todo o parapeito da ponte, onde ela passara a mão.

— Helen — disse-lhe suavemente. — Não fique nervosa... tem uma coisa nas costas.

— O quê? — Perguntou, petrificada.

— Vou tirá-la — disse eu calmamente. — É só uma aranha.

Um calafrio percorreu-a, mas ficou parada, obediente, enquanto eu tirava a aranha das suas costas com um piparote. Admito que também senti um arrepio, porque era a maior aranha que eu já vira, quase metade da largura da minha mão. Caiu sobre o parapeito junto de nós com um ruído audível e Helen gritou. Nunca a ouvira expressar medo antes, e aquele grito curto fez-me querer agarrá-la e sacudi-la, até mesmo bater-lhe.

— Está tudo bem — disse eu depressa, segurando-lhe o braço, tentando ficar calmo. Para minha surpresa, ela deu um ou dois soluços antes de conseguir recompor-se. Admirava-me que uma mulher capaz de disparar contra vampiros ficasse tão abalada por causa de uma aranha, mas o dia tinha sido longo e tenso. Voltou a surpreender-me ao virar-se para o rio dizendo, em voz baixa:

— Prometi contar-lhe o que sei sobre Géza.

— Não precisa me contar nada.

Esperava que a minha voz não tivesse soado irritada.

— Não quero mentir por omissão. — Afastou-se alguns passos, como para deixar a aranha completamente para trás, embora o animal tivesse desaparecido, talvez caído no Danúbio. — Quando era estudante universitária, estive apaixonada por ele durante algum tempo, ou pensei que estava, e em troca ele ajudou a minha tia a conseguir-me uma bolsa de estudo e o passaporte para deixar a Hungria.

Recuei, olhando fixamente para ela.

— Ah, não foi assim tão óbvio — disse ela. — Ele não disse "Dormes comigo, e depois podes ir para Inglaterra." Na verdade, ele é bastante sutil. Também não conseguiu de mim tudo o que queria. Mas quando deixei de estar apaixonada por ele, já tinha o meu passaporte na mão. Foi assim que aconteceu e, quando percebi, já possuía um bilhete para a liberdade, para o Ocidente, e não estava disposta a desistir dele. E eu pensava que tudo aquilo valia a pena para encontrar o meu pai. Então, fiz o jogo de Géza até conseguir escapar para Londres e deixei-lhe uma carta a cortar os meus laços com ele. Queria ser honesta sobre isso, pelo menos. Ele deve ter ficado muito zangado, mas nunca me escreveu.

— E como é que soube que ele pertencia à polícia secreta? — Ela riu.

— Ele era demasiado vaidoso para guardar o segredo só para si, queria impressionar-me. Não lhe disse que fiquei mais assustada do que impressionada, e mais enojada do que assustada. Ele contou-me de pessoas que mandara para a prisão ou para a tortura, e insinuava que havia coisas piores. Em última análise, é impossível não odiar uma pessoa assim.

— Não fico contente por saber isso, já que ele está interessado nos meus movimentos — disse eu. — Mas fico contente por saber que é isso que sente por ele.

— O que é que pensava? — perguntou ela. — Tenho tentado ficar longe dele desde o momento em que aqui chegamos.

— Mas reparei que havia algum sentimento complicado em si quando o viu na conferência — admiti. — Não consegui deixar de pensar que talvez o tivesse amado, ou ainda o amasse, qualquer coisa assim.

— Não — sacudiu a cabeça, olhando para a corrente escura lá em baixo. — Nunca poderia amar um interrogador, um torturador, provavelmente um assassino. E se não o rejeitei por tudo isso, no passado e mais ainda agora, haveria outras coisas pelas quais o rejeitaria. Virou-se ligeiramente na minha direção, mas sem encontrar o meu olhar. São coisas menores, mas ainda assim muito importantes. Ele não é gentil. Não sabe quando deve dizer palavras de conforto ou quando deve ficar calado. Não se interessa realmente por História. Não tem olhos cinzentos suaves nem sobrancelhas espessas, nem arregaça as mangas até aos cotovelos. — Olhei para ela, e então ela olhou-me diretamente no rosto com uma espécie de coragem determinada. — Em suma, o maior problema dele é não ser você.

O olhar dela era praticamente indecifrável, mas depois de um momento começou a sorrir, quase sem querer, como se estivesse a lutar contra si mesma, e era o lindo sorriso de todas as mulheres da sua família. Olhei-a fixamente, ainda incrédulo, e então tomei-a nos meus braços e beijei-a apaixonadamente.

— O que é que pensavas? — sussurrou ela, assim que consegui soltá-la por um segundo. — O que é que pensavas?

Ficamos ali durante longos minutos pode ter sido uma hora e então de repente afastou-se com um gemido e levou a mão ao pescoço.

— O que foi? — perguntei imediatamente. Ela hesitou.

— A minha ferida — disse ela, devagar. — Já sarou, mas às vezes ainda dói, por um momento. E agora mesmo pensei que... talvez não devesse ter-te tocado.

Entreolhámo-nos.

— Deixa-me ver — disse eu. — Helen, deixa-me ver.

Em silêncio, ela desamarrou o lenço e levantou o queixo, à luz do candeeiro da rua. Na pele do seu pescoço vigoroso vi duas marcas roxas, quase completamente fechadas. Os meus receios diminuíram um pouco; era evidente que não fora mordida novamente desde o primeiro ataque. Inclinei-me e toquei o sítio com os meus lábios.

— Oh, Paul, não! — Exclamou ela, afastando-se.

— Não me importo — disse eu. — Sou eu que vou curar isso. — Examinei-lhe o rosto. — Ou o meu beijo fez-te doer?

— Não, aliviou-me — admitiu ela, mas cobriu a ferida com uma das mãos, de modo quase protetor, e logo a seguir amarrou novamente o lenço. E concluí que, embora a sua contaminação tivesse sido ligeira, precisava de a observar com mais cuidado do que nunca. Procurei uma coisa no bolso.

— Devíamos ter feito isto há muito tempo. Quero que uses isto. — Era um dos pequenos crucifixos que tínhamos comprado na Igreja de Saint Mary, nos Estados Unidos. Coloquei-lho no pescoço, de maneira que pendesse discretamente por baixo do lenço. Ela deu um suspiro que pareceu de alívio, tocando-lhe com os dedos.

— Não sou religiosa, como sabes, e sentia-me demasiado intelectual para...

— Eu sei. Mas e aquela vez na Igreja de Saint Mary?

— Saint Mary? — Ela franziu a testa.

— Nos Estados Unidos, perto da universidade. Quando foste ler as cartas de Rossi comigo, puseste água benta na testa.

Ela pensou um minuto.

— Sim, é verdade. Mas isso não era fé. Eram saudades de casa. — Caminhamos vagarosamente pela ponte e ao longo das ruas escuras, sem nos tocarmos. Ainda sentia os braços dela em volta de mim.

— Deixa-me ir contigo para o teu quarto — murmurei quando avistamos o hotel.

— Aqui não — pensei ver os seus lábios a tremer. — Estamos a ser observados.

Não repeti o meu pedido e fiquei agradecido pela distração que nos aguardava na recepção do hotel. Quando pedi a minha chave, o recepcionista deu-me também um pedaço de papel rabiscado em alemão: Turgut tinha telefonado e queria que eu lhe ligasse. Helen esperou enquanto enfrentei o ritual de implorar por um telefone e dar ao porteiro um pequeno incentivo para que me ajudasse — eu tinha caído muito baixo naqueles últimos dias ali — e então marquei os números sem grande esperança durante algum tempo até que ouvi os toques, muito longe. Turgut respondeu com um brado indistinto e rapidamente mudou para o inglês.

— Paul, meu caro! Graças aos deuses que telefonou. Tenho novidades para si... novidades importantes!

O coração caiu-me aos pés.

— Encontrou... um mapa? A tumba? Rossi?

— Não, meu amigo, nada tão miraculoso. Mas a carta que Selim encontrou foi traduzida, e é um documento estarrecedor. Foi escrita por um monge de fé ortodoxa, em Istambul, em 1477. Está a ouvir-me?

— Estou, estou! gritei, — fazendo com que o recepcionista me fulminasse com um olhar e Helen ficasse ansiosa. — Continue.

— Em 1477. Há muito mais. Acho que é importante seguirem as informações desta carta. Vão vê-la quando voltarem, amanhã. Está bem?

— Sim! — berrei. — Mas a carta diz se o enterraram em Istambul?

Helen estava a abanar a cabeça, e pude ler os seus pensamentos: a linha podia estar a ser vigiada.

— Pela carta, não sei dizer — bradou Turgut. — Ainda não tenho certeza onde é que ele está sepultado, mas é muito pouco provável que seja aqui. Acho que devem preparar-se para outra viagem. É possível que precisem outra vez dos préstimos da boa tia, também. — Apesar da estática, percebi uma certa dureza na voz dele.

— Outra viagem? Mas para onde?

— Para a Bulgária — gritou Turgut, de muito longe. Olhei para Helen, o telefone a escorregar-me da mão.

— Bulgária?

 

Mais majestoso do que os restantes, erguia-se um túmulo enorme, bem proporcionado, onde só estava escrito um nome: DRÁCULA.

Bram Stoker, — DRÁCULA, 1897 Capítulo 49

 

Há alguns anos encontrei, no meio da papelada do meu pai, um bilhete que não teria lugar nesta história a não ser pelo fato de ser a única recordação do seu amor por Helen que me chegou às mãos, além das suas cartas para mim. Não mantinha diários propriamente ditos, e as anotações ocasionais que fazia para si próprio eram quase inteiramente relacionadas com o seu trabalho reflexões sobre problemas diplomáticos, ou sobre História, sobretudo se estivessem relacionados com algum conflito internacional. Estas reflexões, e as palestras e artigos que evoluíram a partir delas, estão agora na biblioteca da sua fundação e, depois de tudo, só fiquei com um fragmento que ele redigiu apenas para si mesmo — para Helen. Conheci o meu pai como um homem dedicado aos fatos e aos ideais, mas não à poesia, o que torna este documento ainda mais importante para mim. Por este não ser um livro para crianças, e porque gostaria que fosse um registro tão completo quanto possível, incluí aqui o bilhete, apesar dos meus escrúpulos. É bem possível que ele tenha escrito outras cartas como esta, mas teria sido típico dele destruí-las — talvez queimá-las no pequeno jardim nas traseiras da nossa casa em Amsterdã, onde, quando eu era pequena, encontrava às vezes pedaços de papel queimados e ilegíveis na pequena grelha de pedra e esta pode ter sobrevivido por acaso. A carta não está datada, por isso hesitei um pouco quanto a onde inseri-la nesta cronologia. Apresento-a agora porque se refere aos primeiros dias do amor deles, embora a angústia que está presente nela me leve a acreditar que o meu pai a escreveu quando já não era possível enviá-la a Helen.

 

Ah, meu amor, queria dizer-te como tenho pensado em ti. A minha memória pertence-te inteiramente, porque volta constantemente, nestes últimos tempos, aos nossos primeiros momentos juntos, a sós. Perguntei-me muitas vezes por que razão não podem outros afetos substituir a tua presença, e volto sempre à ilusão de que ainda estamos juntos, e depois sem querer à consciência de que estou refém da tua recordação. Quando menos espero, sou invadido pela lembrança das tuas palavras. Sinto o peso da tua mão sobre a minha, ambas as nossas mãos escondidas debaixo do meu casaco, o meu casaco dobrado sobre o banco entre nós, a extraordinária leveza dos teus dedos, o teu perfil virado para o lado oposto, a tua exclamação quando entramos na Bulgária juntos, quando sobrevoamos pela primeira vez as montanhas búlgaras.

Desde a nossa juventude, minha querida, houve uma revolução sexual, uma bacanal de proporções míticas que não viveste para ver agora, pelo menos no mundo ocidental, os jovens parecem encontrar-se sem preliminares. Mas lembro-me das nossas restrições com quase tanta saudade como me lembro da sua consumação legal, muito mais tarde. É este tipo de lembranças que não posso partilhar com ninguém: a intimidade que tínhamos com as roupas um do outro, numa situação em que tínhamos de adiar a satisfação plena, a maneira como o despir uma peça de roupa era uma pergunta ardente entre nós, de forma que me lembro, com uma clareza angustiante e quando menos desejo lembrar-me, tanto da delicada base do teu pescoço como da gola delicada da tua blusa, aquela blusa cujos contornos eu já conhecia de cor antes de os meus dedos tocarem o seu tecido ou os seus botões em forma de pérola. Lembro-me do cheiro da viagem de comboio e do sabonete barato no ombro do teu casaco preto, da ligeira aspereza do teu chapéu de palha preta tanto quanto me lembro da suavidade dos teus cabelos, que eram quase exatamente da mesma cor do chapéu. Quando ousávamos passar meia hora juntos no meu quarto de hotel em Sofia antes de descermos para outra refeição soturna, sentia que o meu desejo iria acabar por me destruir. Quando pendurava o teu casaco numa cadeira e a blusa por cima dele, lenta e deliberadamente, quando te viravas para mim com um olhar que nunca se desviava do meu, eu ficava paralisado pelo fogo do meu desejo. Quando punhas as minhas mãos na tua cintura e elas tinham de escolher entre a textura pesada da sua saia e a outra, mais fina, da tua pele, quase tinha vontade de chorar.

Talvez tenha sido então que descobri a tua única mácula o único ponto, talvez, que nunca beijei o pequeno dragão retorcido no teu ombro. As minhas mãos devem ter passado por ele antes de o ver. Lembro-me de que prendi a respiração e tu também quando o descobri e o acariciei com um dedo relutantemente curioso. Com o tempo, o dragão tornou-se para mim parte da geografia das tuas costas lisas, mas naquele primeiro momento veio misturar temor ao meu desejo. Tenha isto acontecido ou não no nosso hotel em Sofia, devo tê-lo sabido mais ou menos na época em que estava a memorizar a borda dos teus dentes de baixo e o seu fino serrilhado, e a pele em volta dos teus olhos, com os primeiros sinais da idade, como teias de aranha...

Neste ponto as anotações de meu pai interrompem-se, e só posso remeter-me às cartas mais contidas que me escreveu.

 

Turgut Bora e Selim Aksoy estavam à nossa espera no aeroporto de Istambul. Paulo Turgut abraçou-me e beijou-me e deu-me palmadinhas nos ombros.

— Senhora Professora — E apertou a mão de Helen nas suas. — Graças aos céus, estão sãos e salvos. Bem-vindos ao vosso retorno triunfal!

— Bem, eu não diria triunfal — disse eu, rindo a contragosto.

— Havemos de conversar, havemos de conversar! — exclamou Turgut, batendo-me nas costas. Selim Aksoy acompanhou tudo isto com uma saudação menos efusiva. Uma hora mais tarde, estávamos à porta do apartamento de Turgut, onde Mrs Bora se mostrou visivelmente satisfeita por voltar a ver-nos. Tanto Helen como eu expressamos a nossa admiração em voz alta quando a vimos: naquele dia, estava vestida de um azul muito pálido, como uma pequena flor primaveril. Ela olhou-nos sem compreender.

— Gostamos do seu vestido — explicou Helen, apertando a pequena mão de Mrs. Bora na sua mão comprida. Ela riu.

— Obrigada — disse. — Sou eu própria que faço todas as minhas roupas.

Em seguida, ela e Selim Aksoy serviram-nos café e uma coisa que ela explicou ser borek, um rolinho de massa com recheio de queijo salgado, além de um jantar de cinco ou seis outros pratos.

— Agora, meus amigos, contem-nos o que descobriram.

Era um pedido difícil, porque havia muito a dizer, mas juntos contamos-lhes o que se tinha passado na conferência em Budapeste, o meu encontro com Hugh James, a história da mãe de Helen, as cartas de Rossi. Turgut escutou com os olhos arregalados a narrativa de como Hugh James encontrara o seu livro do dragão. Ao relatar tudo isto, achei que de fato tínhamos descoberto muita coisa. Infelizmente, nada que levasse à localização de Rossi.

Turgut contou-nos, por sua vez, que tinham acontecido coisas graves durante a nossa ausência de Istambul; duas noites antes, o seu bom amigo, o arquivista, fora atacado pela segunda vez, no apartamento onde estava a repousar. O primeiro homem que tinham a vigiá-lo adormecera em serviço e não vira nada. Agora tinham um novo guarda, que, esperavam, seria mais cuidadoso. Estavam a tomar todas as precauções, mas o pobre bibliotecário estava muito mal.

Também tinham notícias de outro gênero. Turgut engoliu a segunda chávena de café e apressou-se a ir buscar uma coisa ao seu inquietante escritório na porta ao lado. (Foi um alívio não ter sido convidado a entrar lá de novo.) Reapareceu trazendo um caderno e voltou a sentar-se perto de Selim Aksoy. Olharam ambos para nós com ar sério.

— Eu contei-lhe ao telefone que encontramos uma carta na sua ausência — disse Turgut. — A carta original está em Eslavómo, a antiga língua das igrejas cristãs. Como lhe contei, foi escrita por um monge dos Cárpatos e refere-se às suas viagens a Istambul. O meu amigo Sehm ficou surpreendido ao ver que a carta não está em latim, mas talvez este monge fosse eslavo. Querem que a leia de imediato?

— É claro — disse eu, mas Helen levantou a mão.

— Um momento, por favor. Como e onde a encontraram?

Turgut fez um gesto de aprovação com a cabeça.

— Na verdade, Mr. Aksoy encontrou-a no arquivo, o mesmo que os senhores visitaram conosco Passou três dias lá a examinar todos os manuscritos do século quinze que o arquivo contém. Encontrou esta carta junto com uma pequena coleção de documentos das igrejas infiéis, ou seja, das igrejas cristãs que foram autorizadas a permanecer abertas em Istambul durante o reinado do Conquistador e dos seus sucessores. Não há muitas cartas como esta no arquivo porque, em geral, eram guardadas pelos mosteiros, principalmente pelo Patriarcado de Constantinopla. Mas alguns documentos dessas igrejas chegaram as mãos do sultão, sobretudo os que diziam respeito a novos acordos para as igrejas sob o Império — a um acordo desse tipo chamava-se um "firmão". Às vezes, o sultão recebia cartas de... como se diz?... petição sobre algum assunto relacionado com as igrejas, e essas também estão no arquivo.

Ele traduziu rapidamente para Aksoy, que queria que ele explicasse mais uma coisa.

— Sim; o meu amigo dá-nos uma boa informação sobre este assunto. Está a lembrar-me de que, logo depois que o Conquistador tomou a cidade, nomeou um novo patriarca para os cristãos, o patriarca Gennadius. — Ao ouvir o nome, Aksoy fez que sim vigorosamente com a cabeça. — E o sultão e Gennadius tinham uma amizade muito cordial. Como já lhes disse, o Conquistador era tolerante com os cristãos no seu Império depois da conquista. O sultão Mehmed pediu a Gennadius que lhe escrevesse uma explicação da fé ortodoxa e depois a mandasse traduzir, para a sua biblioteca pessoal. Há uma cópia dessa tradução no arquivo. Também há cópias de alguns forais das igrejas, que tinham de ser submetidos ao Conquistador, e esses também lá estão. O meu amigo estava a examinar um desses documentos, de uma igreja da Anatólia, e entre duas das suas páginas encontrou esta carta.

— Obrigada Helen — reclinou-se novamente nas almofadas.

— Infelizmente, não lhes posso mostrar o original, mas é evidente que não podíamos retirá-lo dos arquivos. Se quiserem, podem ir vê-los pessoalmente enquanto aqui estiverem. É uma carta escrita em bela caligrafia, numa pequena folha de pergaminho, com um dos cantos rasgado. Agora, vou ler-lhes a nossa tradução, que foi feita em inglês. Por favor, tenham em conta que se trata da tradução de uma tradução, e que um pouco do sentido pode ter-se perdido no caminho.

E leu-nos o seguinte:

 

A Sua Excelência, Abade-mor Maxim Eupraxius:

Um humilde pecador implora a vossa atenção. Como já relatei, houve grande controvérsia nesta companhia desde que a nossa missão falhou ontem. A cidade não é um lugar seguro para nós, e no entanto acreditávamos que não a podíamos deixar sem descobrir o que aconteceu com o tesouro que procuramos. Esta manhã, pela graça do Todo-Poderoso, um novo caminho se abriu, de que vos devo informar aqui. O abade de Panachrantos, ao ouvir do abade nosso hospedeiro, seu bom amigo, a nossa amarga e particular aflição, veio em pessoa até nós, em Santa Irina. É um afável e santo homem de cinquenta anos, que viveu a sua longa vida primeiramente no mosteiro de Grande Lavra em Athos, e agora, há muitos anos, como monge e abade em Panachrantos. Ao chegar, reuniu-se a sós com o nosso hospedeiro, e em seguida falaram conosco nos aposentos do nosso hospedeiro, em completo segredo, tendo antes todos os noviços e servos deixado os aposentos. Disse-nos que até àquela manhã não ouvira falar da nossa presença aqui e, ao tomar conhecimento dela, viera junto do seu amigo para dar-lhe notícias que não compartilhara com ninguém até então, não o querendo pôr em perigo a ele ou aos seus monges. Em suma, revelou-nos que o que procuramos já foi transportado para fora da cidade, para um refúgio nas terras ocupadas dos Búlgaros. Transmitiu-nos as mais secretas instruções para a nossa segurança durante a viagem até lá e deu-nos o nome do santuário que devemos encontrar. Nós esperaríamos um pouco aqui de bom grado para entrar em contacto com Vossa Senhoria e aguardar as vossas ordens sobre este assunto, mas estes abades disseram-nos também que algum janízaros da corte do sultão já vieram junto do patriarca para o questionarem sobre o desaparecimento daquilo que procuramos. É muito perigoso para nós agora demorarmo-nos nem que seja mais um dia aqui, e estaremos mais seguros mesmo durante a nossa viagem através das terras infiéis do que estamos aqui. Excelência, perdoai-nos a nossa obstinação em partir sem esperarmos as vossas instruções, e que a bênção de Deus e a vossa estejam conosco nesta nossa decisão. Se necessário, destruirei mesmo este registro antes que chegue às vossas mãos e virei contar-vos tudo acerca da nossa busca com a minha própria língua, se não for cortada antes.

O humilde pecador Irmão Kiril Abril do Ano 6985 de Nosso Senhor

Fez-se um silêncio profundo quando Turgut acabou. Selim e Mrs. Bora permaneceram sentados em silêncio, e Turgut esfregou a cabeleira cor de prata com uma mão agitada. Helen e eu entreolhamo-nos.

— O ano 6985 de Nosso Senhor? — disse eu, por fim. — O que significa isso?

— Os documentos medievais eram datados a partir de um cálculo da data da Criação, no Génesis — explicou Helen.

— Sim — concordou Turgut. — 6985, pela datação atual, corresponde a 1477.

Não consegui evitar um suspiro.

— É uma carta muito vívida, e revela uma grande preocupação com alguma coisa. Mas ainda estou perdido confessei, pesaroso. A data, evidentemente, faz suspeitar que haja alguma relação entre esta carta e o trecho que Mr. Aksoy encontrou antes. Mas que prova temos de que o monge que escreveu esta nova carta vinha dos Cárpatos? E por que é que acham que isto está relacionado com Vlad Drácula?

Turgut sorriu.

— Excelentes perguntas, como sempre, meu jovem cético. Deixe-me tentar responder-lhes. Como já lhe contei, Selim conhece muito bem a cidade e quando encontrou esta carta e compreendeu o suficiente dela para ver que poderia ser útil, levou-a a um amigo seu que é o responsável pela antiga biblioteca do mosteiro de Santa Irina, que ainda existe. Esse amigo traduziu-a para turco a seu pedido e ficou muito interessado na carta, porque mencionava o seu mosteiro. No entanto, na biblioteca deste não encontrou qualquer registro dessa visita em 1477 ou a visita não foi registrada, ou quaisquer documentos sobre ela desapareceram há muito tempo.

— Se a missão que eles descrevem era secreta e perigosa — observou Helen, — é pouco provável que a tenham registrado.

— Muito verdadeiro, cara senhora. — Turgut fez-lhe um gesto com a cabeça. — De qualquer maneira, o amigo monástico de Selim ajudou-nos numa questão importante: procurou as mais antigas histórias de igrejas que estão ali guardadas e descobriu que o abade a quem a carta era dirigida, esse Maxim Eupraxius, foi numa fase mais tardia da sua vida um grande abade no monte Athos. Mas, em 1477, quando a carta lhe foi escrita, era abade do mosteiro do lago Snagov. — Turgut proferiu estas últimas palavras com uma ênfase triunfante.

Por alguns instantes, ficamos mergulhados num silêncio excitado. Finalmente, Helen quebrou-o:

— "Somos homens de Deus, homens dos Cárpatos" — murmurou ela.

— Como disse? — Turgut olhou-a com interesse.

— Sim! — retomei a frase de Helen. – "Homens dos Cárpatos." É de uma canção, uma canção folclórica romena que Helen encontrou em Budapeste.

Descrevi-lhes a hora que passáramos a folhear o antigo livro de canções na biblioteca da Universidade de Budapeste, a bela xilogravura no alto da página, de um dragão e uma igreja escondidos entre as árvores. As sobrancelhas de Turgut subiram quase até aos seus cabelos desgrenhados quando a mencionei, e vasculhei rapidamente a minha papelada.

— Onde é que está isso? — Um momento depois tinha encontrado a minha tradução manuscrita, entre os papéis da minha pasta. Meu Deus, pensei, se eu algum dia perder esta pasta! e li-a em voz alta, fazendo pausas para que Turgut traduzisse para Selim e Mrs. Bora:

 

Chegaram aos portões, às portas da grande cidade. Chegaram à grande cidade vindos da terra da morte. "Somos homens de Deus, homens dos Cárpatos. Somos monges e homens santos, mas trazemos más notícias. Trazemos notícias de uma peste na grande cidade. Servindo o nosso mestre, vimos chorar a sua morte." Chegaram aos portões e a cidade chorou com eles Quando nela entraram.

 

Céus, como é peculiar e assustador — disse Turgut. — Todas as vossas canções locais são assim, minha senhora?

— Sim, a maioria — disse Helen, sorrindo.

Notei que na minha excitação me esquecera, por dois minutos, de que ela estava sentada junto de mim. Com dificuldade, forcei-me a não estender a minha mão para pegar na dela, a não olhar fixamente para o seu sorriso ou para a melena de cabelo escuro que lhe caía para a cara.

— E o nosso dragão no cimo, escondido entre árvores... Deve haver alguma relação.

— Gostaria de saber qual — suspirou Turgut. Então, bateu com a mão na beira da mesa de latão, tão subitamente que todas as nossas chávenas tremelicaram. Mrs. Bora pôs-lhe suavemente a mão no braço e ele acariciou-a, tranquilizando-a. — Não... vejam bem: a peste! — Virou-se para Selim e os dois trocaram uma rápida saraivada de palavras em turco.

— O quê? — Helen apertara os olhos, concentrada. — A peste citada na canção?

— Sim, minha cara — Turgut penteou os cabelos para trás com a mão. — Além da carta, encontramos outro fato sobre Istambul nesse exato período, algo que na verdade o meu amigo Aksoy já sabia. No final do Verão de 1477, sob um calor intenso, houve o que os nossos historiadores chamam Pequena Peste. Ceifou muitas vidas no antigo bairro Pêra, a que agora, chamamos Gaiata. Os corpos eram empalados no coração antes de serem queimados. Isto é muito pouco habitual, diz ele, porque normalmente os corpos dos infelizes eram simplesmente queimados fora dos portões da cidade, para evitar outras infecções. Mas foi uma epidemia breve e não levou muitas pessoas.

— Acha que estes monges, se é que eram os mesmos, trouxeram a peste à cidade?

— É claro que não podemos saber — admitiu Turgut. — Mas se a sua canção descrever o mesmo grupo de monges..

— Estive a pensar numa coisa — Helen pousou a chávena. — Não me lembro, Paul, se já te contei, mas Vlad Drácula foi um dos primeiros estrategas militares na História a usar.. como se diz... doenças na guerra.

— Armas biológicas — ajudei-a — Hugh James contou-me.

— Sim. — Ela encolheu os pés debaixo do corpo. — Durante as invasões da Valáquia pelo sultão, Drácula gostava de enviar pessoas doentes de peste ou varíola para os campos otomanos disfarçadas de turcos. Infectavam o maior número possível de pessoas antes de morrerem ali mesmo.

Se aquilo não fosse tão horrível, eu teria sorrido. O príncipe da Valáquia era tão formidavelmente criativo como era destrutivo, um inimigo extremamente inteligente. Um segundo depois, percebi que acabara de pensar nele no presente.

— Percebo — assentiu Turgut. — A senhora quer dizer que talvez esse grupo de monges, se eram realmente os mesmos monges, tenha trazido a peste consigo, da Valáquia.

— Mas no entanto isso não explica uma coisa — Helen franziu a testa. — Se alguns deles estivessem doentes com a peste, por que teria o abade de Santa Inna permitido que se hospedassem lá?

— Minha senhora, isso é verdade — admitiu Turgut. — Entretanto, se não fosse a peste, mas outro tipo de contaminação... Mas não há maneira de saber.

Ficamos ali sentados, frustrados, meditando sobre a questão.

— Muitos monges ortodoxos passavam por Constantinopla em peregrinação, mesmo depois da conquista — disse Helen, por fim — Talvez fossem simplesmente um grupo de peregrinos.

— Mas estavam à procura de alguma coisa que, aparentemente, não encontraram na sua peregrinação, pelo menos não em Constantinopla — observei.

— E o irmão Kinl diz que estavam a caminho da Bulgária disfarçados de peregrinos, como se não fossem realmente peregrinos. Pelo menos é o que ele parece estar a dizer.

Turgut coçou a cabeça.

— Mr. Aksoy pensou nisso — disse. — Explicou-me que a maior parte das relíquias cristãs importantes das igrejas de Constantinopla foram destruídas ou roubadas durante a invasão: ícones, cruzes, ossos de santos. Evidentemente, não havia aqui tantos tesouros em 1453 como na época em que Bizâncio era uma grande potência, porque as mais belas coisas antigas foram roubadas pela Cruzada Latina de 1204 — sem dúvida que sabem isso — e levadas para Roma e Veneza e outras cidades do Ocidente. — Turgut abriu as mãos a sua frente, com um gesto de reprovação. — O meu pai falou-me dos maravilhosos cavalos da Basílica de São Marcos em Veneza, roubados de Bizâncio por cruzados. Os invasores cristãos eram tão maus como os otomanos, sabem. De qualquer modo, meus amigos, durante a invasão de 1453, certos tesouros das igrejas foram escondidos e alguns foram mesmo levados para fora da cidade, antes do cerco do sultão Mehmed, e escondidos em mosteiros fora das muralhas ou levados em segredo para outras terras Se os nossos monges fossem peregrinos, talvez tivessem vindo à cidade na esperança de visitar um objeto sagrado e então descobriram que já lá não estava. Talvez o que o abade do segundo mosteiro lhes contou tenha sido a história de um grande ícone levado em segurança para a Bulgária. Mas não temos maneira de saber só com esta carta.

— Agora percebo por que é que quer que a gente vá à Bulgária. — Resisti novamente à vontade de pegar na mão de Helen. — Embora eu não consiga imaginar como poderemos descobrir mais pormenores dessa história quando lá chegarmos, e muito menos como conseguiremos entrar no país. O senhor tem a certeza de que não há outro lugar em Istambul onde possamos procurar?

Turgut fez que não com a cabeça, sombrio, e pegou na sua chávena de café abandonada.

Usei todas as fontes de informação que me ocorreram, incluindo algumas, sinto muito dizer-lhes, que não posso mencionar. Mr. Aksoy procurou em todos os lugares, nos seus próprios livros, nas bibliotecas dos seus amigos, nos arquivos da universidade. Conversei com todos os historiadores que encontrei, inclusive um que estuda os cemitérios de Istambul, os senhores já viram os nossos belos cemitérios. Não conseguimos encontrar uma única referência a um enterro fora do comum de um estrangeiro naquele período. Pode ser que tenhamos deixado escapar alguma coisa, mas não sei onde procurar mais em pouco tempo. Olhou para nós com seriedade. Sei que seria muito difícil irem à Bulgária. Eu próprio iria, mas para mim seria ainda mais difícil, meus amigos. Sendo turco, não poderia participar sequer numa das suas conferências acadêmicas. Ninguém odeia mais os descendentes do Império Otomano do que os Búlgaros.

— Ah, os Romenos fazem o melhor que podem — assegurou-lhe Helen, mas as suas palavras foram amenizadas por um sorriso que ele lhe retribuiu.

— Mas... meu Deus — recostei-me outra vez nas almofadas do sofá, sentindo-me submergir em mais uma daquelas ondas de irrealidade que ultimamente passavam por mim com uma frequência cada vez maior. — Não sei como vamos conseguir.

Turgut inclinou-se e colocou à minha frente a tradução em inglês da carta do monge.

— Ele também não sabia.

— Quem? — gemi.

— O irmão Kiril. Escute, meu amigo, quando é que Rossi desapareceu?

— Há mais de duas semanas --admiti.

— Não têm tempo a perder. Sabemos que Drácula não está no seu túmulo em Snagov. Pensamos que não foi sepultado em Istambul. Mas — e bateu no papel com um dedo temos aqui um indício. — De quê, não sabemos, mas em 1477 alguém do mosteiro de Snagov foi à Bulgária; ou tentou ir. Vale a pena tentar saber mais. Se não encontrarem nada, pelo menos terão feito o que estava ao vosso alcance. E então podem voltar para casa e chorar o vosso mestre com o coração limpo, e nós, os vossos amigos, honraremos para sempre a vossa coragem. Mas se não tentarem, passarão toda a vida a interrogarem-se e a mortificarem-se, sem alívio.

Pegou novamente na tradução, correu um dedo sobre ela e leu em voz alta:

"É muito perigoso para nós agora demorarmo-nos nem que seja mais um dia aqui, e estaremos mais seguros mesmo durante a nossa viagem através das terras infiéis do que estamos aqui." Tome, meu amigo. Coloque-a na sua bolsa. Esta cópia é para si, a tradução em inglês. E aqui está uma cópia em Eslavónio, que o monge amigo de Mr. Aksoy transcreveu.

Turgut inclinou-se para a frente.

— Ouvi dizer que há um estudioso na Bulgária a quem os senhores podem pedir ajuda. O seu nome é Anton Stoichev. O meu amigo Aksoy admira muito o trabalho dele, já publicado em muitas línguas. — Ao ouvir o nome, Selim Aksoy assentiu com a cabeça. — Stoichev sabe mais sobre os Balcãs medievais do que qualquer outra pessoa viva, principalmente sobre a Bulgária. Vive perto de Sofia: terão de perguntar por ele.

Helen agarrou-me de repente na mão, às claras, surpreendendo-me; tinha pensado que iríamos manter a nossa relação em segredo, mesmo aqui, entre amigos. Vi Turgut a olhar de relance para o gesto dela. As linhas calorosas em volta dos seus olhos e da sua boca aprofundaram-se e Mrs. Bora sorriu-nos abertamente, com as suas mãos de menina enlaçadas em torno dos joelhos. Era evidente que ela aprovava a nossa união, e senti-a subitamente abençoada por aquelas pessoas de bom coração.

— Nesse caso, vou telefonar para a minha tia — disse Helen com firmeza, apertando-me os dedos.

— Eva? O que pode ela fazer?

— Como sabes, pode fazer tudo — Helen sorriu-me. — Não, não sei exatamente o que pode e o que estará disposta a fazer. Mas ela tem amigos, e inimigos, na polícia secreta do nosso país — baixou a voz, quase involuntariamente — e eles tem amigos em todo o Leste Europeu. E inimigos, evidentemente, eles espiam-se todos uns aos outros. É possível que venha a correr algum perigo, e é só isso que me preocupa E vamos precisar de uma grande, grande quantia para o suborno

— Bakshish — assentiu Turgut — Com certeza Selim Aksoy e eu já pensamos no assunto. Encontramos vinte mil liras que podem utilizar. E embora eu não possa ir convosco, meus amigos, dar-lhes-ei toda a ajuda que puder, assim como Mr Aksoy

Olhei fixamente para ele e para Aksoy — sentados a nossa frente, com as suas chávenas de café esquecidas, muito direitos e sérios. Alguma coisa nos seus rostos — o largo e corado de Turgut, o delicado de Aksoy, ambos de olhos penetrantes, ambos calmos mas alerta de uma forma quase ameaçadora — não me era estranha. Uma sensação que não conseguia identificar invadiu-me, por um segundo travou-me a pergunta na boca. Então apertei mais a mão de Helen na minha — aquela mão forte, rija e já amada — e olhei de frente os olhos escuros de Turgut.

— Quem são os senhores? — perguntei

Turgut e Selim entreolharam-se e algo pareceu passar silenciosamente entre eles E Turgut falou, numa voz baixa e clara.

— Nós trabalhamos para o sultão.

 

Helen e eu recuamos ao mesmo tempo. Por um segundo, pensei que Turgut e Selim pudessem estar associados a algum poder oculto, e lutei contra a tentação de agarrar a minha pasta e o braço de Helen e sair a correr do apartamento. Como, a não ser através de forças ocultas, podiam aqueles dois homens, que eu considerava nossos amigos, trabalhar para um sultão morto há tanto tempo? Na realidade, há muito tempo que todos os sultões estavam mortos, portanto qualquer um a que Turgut se estivesse a referir já não podia ser deste mundo. E não nos teriam também mentido sobre uma quantidade de outros assuntos?

A minha confusão mental foi interrompida pela voz de Helen. Inclinou-se para a frente, pálida, os olhos muito abertos, mas fez uma pergunta calma e eminentemente prática, dada a situação — tão prática que levei uns instantes para a compreender.

— Professor Bora — disse ela, devagar —, que idade tem?

Ele sorriu-lhe.

— Ah, minha querida senhora, se quer saber se tenho quinhentos anos, a resposta é, felizmente, não. Trabalho para o Majestoso e Esplêndido Refúgio do Mundo, o sultão Mehmed II, mas nunca tive a honra incomparável de o conhecer.

— Então, que diabo de história é esta? — explodi.

Turgut sorriu de novo e Selim inclinou gentilmente, a cabeça na minha direção.

— Não pretendia contar-lhes nada disto — disse Turgut. — Contudo, depositaram tanta confiança em nós em tantas coisas, e como fez essa pergunta tão perspicaz, cara amiga, vamos explicar-lhes tudo. Nasci normalmente em 1911 e espero morrer normalmente na minha cama em... digamos, por volta de 1985. — Deu uma risadinha. — No entanto, a minha família vive sempre muito, muito tempo, por isso vou ser condenado a ficar sentado neste divã quando for velho demais para ser respeitável. — Passou um braço em torno dos ombros de Mrs. Bora. — Mr. Aksoy também tem a idade que aparenta. Não há nada de estranho em nós. O que vamos contar-lhes, que é o maior segredo que eu podia confiar a alguém e que devem guardar aconteça o que acontecer, é que somos parte da Guarda do Crescente do sultão.

— Creio que nunca ouvi falar dela — disse Helen, franzindo o sobrolho.

— Não, Senhora Professora, de fato nunca ouviu.

Turgut lançou um olhar a Selim, que estava a ouvir pacientemente, tentando acompanhar a nossa conversa, os olhos verdes tranquilos como um lago.

— Acreditamos que ninguém ouviu falar de nós, exceto os nossos membros. Formamos uma guarda secreta com membros selecionados nas unidades de elite dos janízaros.

Vieram-me à mente aqueles rostos jovens de olhos brilhantes e duros como pedra que eu vira nas pinturas do Topkapi Saray, as suas sólidas fileiras agrupadas junto do trono do sultão, suficientemente próximos para saltar sobre um potencial assassino ou, já agora, sobre qualquer um que repentinamente perdesse as graças do sultão.

Turgut pareceu ler-me os pensamentos, pois abanou a cabeça.

— Vejo que já ouviram falar dos janízaros. Bem, meus caros, em 1477, Mehmed, o Magnífico e Glorioso, reuniu vinte oficiais que eram os mais dignos de confiança e os mais instruídos de todas as suas tropas, e concedeu-lhes secretamente o novo símbolo da Guarda do Crescente. Receberam uma única missão, que deveriam cumprir mesmo que lhes custasse a vida. A missão era evitar que a Ordem do Dragão trouxesse mais sofrimentos ao nosso grande Império, e perseguir e matar os seus membros onde quer que se encontrassem.

Helen e eu tomamos fôlego ao mesmo tempo para falar, mas por uma vez falei antes dela.

— A Guarda do Crescente foi formada em 1477, no mesmo ano em que os monges vieram para Istambul! — Tentei encaixar os fatos à medida que ia falando. — Mas a Ordem do Dragão foi fundada muito antes disso, pelo imperador Segismundo em 1400, não é assim?

Helen concordou com um gesto.

— Em 1408, para ser mais preciso, meu amigo. Evidentemente. Por volta de 1477, os sultões já estavam a ter problemas sérios com a Ordem do Dragão e com as suas guerras contra o Império. Em 1477, porém, o nosso Glorioso Refúgio do Mundo concluiu que a Ordem do Dragão poderia vir a realizar ataques ainda piores no futuro.

— O que quer dizer com isso?

A mão de Helen estava imóvel dentro da minha, e fria.

— Nem mesmo o nosso estatuto diz isso diretamente — admitiu Turgut, — mas estou certo de que não é coincidência o sultão ter fundado a Guarda poucos meses depois da morte de Vlad Tepes. — Juntou as mãos, como se rezasse, embora eu me lembrasse bem que os seus antepassados rezavam prosternados, com o rosto no chão. — O estatuto diz que Sua Magnificência fundou a Guarda do Crescente para perseguir a Ordem do Dragão, inimigos desprezíveis do seu majestoso império, por todos os tempos e lugares, por terra e por mar, mesmo para lá da morte.

Turgut inclinou-se para a frente, os olhos fulgurantes e a cabeleira prateada projetando-se para cima desordenadamente.

— A minha teoria é que o Glorioso teve o pressentimento, ou o conhecimento, do perigo que Vlad Drácula poderia representar para o Império depois da morte de Drácula. — Penteou o cabelo para trás com os dedos. — Como vimos, o sultão também fundou nessa época o seu arquivo de documentos sobre a Ordem do Dragão, arquivo esse que não era secreto mas era usado em segredo pelos nossos membros, e ainda continua a ser. E agora, essa carta maravilhosa que Selim encontrou, e a sua canção folclórica, madame, são provas adicionais de que o Glorioso tinha boas razões para se preocupar.

A minha cabeça ainda fervilhava de perguntas.

— Mas como é que o senhor e Mr. Aksoy vieram a fazer parte dessa Guarda?

— O direito de pertencer à Guarda passa do pai para o filho mais velho. Cada filho faz a sua... como se diz em inglês?... a sua iniciação aos dezenove anos. Se um pai tem apenas filhos indignos, ou se não tem filhos, deixa o segredo morrer com ele. — Turgut agarrou finalmente sua chávena de café esquecida e Mrs. Bora levantou-se para a encher. — A Guarda do Crescente foi mantida de tal modo em segredo que nem os outros janízaros sabiam que alguns companheiros das suas fileiras pertenciam a tal grupo. O nosso amado fatih morreu em 1481, mas a sua Guarda continuou. Os janízaros tiveram um grande poder em certas épocas, sob sultões mais fracos, mas o sigilo foi mantido. Quando o Império finalmente se desvaneceu, mesmo de Istambul, ninguém sabia da nossa existência e assim permanecemos. O nosso estatuto foi mantido em segurança pelo pai de Selim Aksoy durante a Primeira Guerra Mundial e por Selim durante a Segunda. Ele é agora o seu guardião, num lugar secreto que faz parte da nossa tradição.

Turgut respirou fundo e bebeu um gole do seu café.

— Julguei que tinha dito que o seu pai era italiano — disse Helen, um tanto desconfiada. — Como poderia ele pertencer à Guarda do Crescente?

— Sim, minha senhora — Turgut assentiu com a cabeça por cima da chávena. O meu avô materno, na realidade, era um membro muito ativo da Guarda e não se conformou que a linhagem terminasse com ele, já que só tinha uma filha. Quando viu que o Império acabaria para sempre durante a sua vida...

— A sua mãe! — exclamou Helen.

— Sim, minha cara — Turgut sorriu com ar melancólico. — Não é a única entre nós que pode gabar-se de ter uma mãe extraordinária. Como julgo ter-lhes já dito, ela foi uma das mulheres mais instruídas do seu tempo no nosso país. Na verdade, uma das únicas a ter recebido uma educação verdadeiramente extraordinária. E o meu avô não se poupou a esforços para incutir nela todos os seus conhecimentos e ambições a fim de a preparar para servir na Guarda. Ela interessou-se por engenharia quando isso ainda era uma ciência nova aqui e, depois da sua iniciação na Guarda, o meu avô permitiu que ela fosse estudar para Roma — ele tinha amigos lá. Ela dominava a matemática mais avançada e sabia ler em quatro línguas, incluindo Grego e Árabe. — Turgut disse alguma coisa em turco para Selim e para Mrs. Bora e ambos fizeram um gesto de concordância. — Montava tão bem como qualquer cavaleiro dos sultões e, embora pouca gente soubesse, disparava igualmente tão bem como eles. — Ele quase piscou o olho a Helen, e lembrei-me do pequeno revólver dela — afinal, onde é que ela o guardava? — Aprendeu muito com o meu avô sobre a lenda do vampiro e sobre como proteger os vivos das suas maléficas estratégias. Tenho um retrato dela aqui, se quiserem ver.

Levantou-se e trouxe o retrato, de uma mesa de madeira trabalhada, a um canto, colocando-o com muito cuidado na mão de Helen. Era uma imagem admirável, com aquela maravilhosa e delicada nitidez dos retratos do princípio do século. A dama que posara para a prolongada sessão num estúdio fotográfico de Istambul tinha um ar paciente e composto, mas o fotógrafo, escondido debaixo do grande pano preto da máquina, captara um certo divertimento no seu olhar. O sépia da sua pele destacava-se, imaculado, acima do vestido escuro. O rosto era igual ao de Turgut, mas com o nariz e o queixo finos, enquanto os dele eram pesados, e abria-se como uma flor sobre o caule do seu pescoço esguio — o rosto de uma princesa otomana. O cabelo, sob um sofisticado chapéu de plumas, estava penteado para cima, formando ondas castanhas. Os seus olhos fitaram os meus com aquele lampejo de humor e subitamente lamentei os anos que nos separavam.

Turgut pegou outra vez com carinho na pequena moldura.

— O meu avô tomou uma sábia decisão quando rompeu com as tradições e a tornou um membro da Guarda. Foi ela que encontrou alguns documentos dispersos do nosso arquivo noutras bibliotecas e os trouxe de novo para a coleção. Quando eu tinha cinco anos, ela matou um lobo na nossa casa de Verão e, quando eu tinha onze, ensinou-me a montar e a disparar. O meu pai era-lhe muito devotado, embora ela o assustasse com o seu destemer — ele dizia sempre que viera atrás dela de Roma para a Turquia para a convencer a deixar de lado tanta bravura. Tal como as esposas mais fidedignas dos membros da nossa Guarda, o meu pai sabia do compromisso dela e preocupava-se constantemente com a sua segurança. Ele está ali adiante — e apontou para um retrato a óleo em que eu reparara anteriormente, pendurado junto às janelas. O homem que nos olhava era uma pessoa sólida, segura de si, de uma elegância antiquada, vestido com um fato escuro, de olhos e cabelos negros e uma expressão de brandura no rosto, Turgut dissera nos que o pai tinha sido um historiador especializado na Renascença italiana, mas não era difícil imaginar o homem do retrato a jogar ao berlinde com o filho pequeno enquanto a mãe cuidava da parte mais séria da educação do rapaz.

Helen mexeu-se ao meu lado, estendendo discretamente as pernas

— Disse que o seu avô era um membro ativo da Guarda do Crescente O que é que isso significa? Quais são as vossas atividades?

Turgut sacudiu a cabeça, pesaroso

— Sobre isso, minha cara amiga, não posso entrar em pormenores, nem mesmo convosco. Algumas coisas têm de permanecer secretas. Se vos contamos tudo isto foi porque perguntaram, na verdade, quase adivinharam, e por que gostaríamos que confiassem plenamente na nossa ajuda. É de grande interesse para a Guarda que sigam para a Bulgária, e quanto mais cedo melhor. Hoje em dia a Guarda é pequena, restam só poucos membros. — Suspirou. — Pela minha parte, infelizmente, não tenho filho nem filha a quem passar a minha missão, no entanto, Mr Aksoy esta a educar um sobrinho dentro das nossas tradições. Mas podem estar certos de que toda a força da determinação otomana vos acompanhará, de uma forma ou de outra.

Resisti novamente ao impulso de suspirar alto. Poderia talvez discutir a questão com Helen, mas discutir com a força secreta do Império Otomano estava para lá da minha capacidade. Turgut levantou um dedo.

— Tenho de fazer lhes uma advertência, e muito séria, caros amigos Depositamos nas vossas mãos um segredo que tem sido mantido com cuidado e com sucesso, quero crer durante quinhentos anos. Não temos razões para suspeitar de que o nosso antigo inimigo tenha conhecimento dele, embora ele certamente odeie e tema a nossa cidade como o fez em vida. Nos estatutos da Guarda, Sua Magnificência estabeleceu a sua regra. Quem trair o segredo da Guarda aos nossos inimigos será punido com execução imediata. Isto nunca ocorreu, que eu saiba. Mas peço lhes que tenham cuidado, tanto para o vosso bem, como para o nosso.

Não havia qualquer vestígio de maldade ou de ameaça na sua voz, apenas uma profunda gravidade, e percebi nela a inexorável lealdade que fizera do seu sultão o conquistador da Grande Cidade, a antes inexpugnável e arrogante cidade dos Bizantinos. Quando tinha dito "Trabalhamos para o sultão", queria dizer exatamente isso, mesmo tendo nascido meio milénio depois da morte de Mehmed. O Sol já ia baixo do lado de fora das janelas da sala de visitas e uma luz rosada banhava o rosto largo de Turgut, enchendo o subitamente de nobreza. Ocorreu-me que Rossi teria ficado fascinado por Turgut, que teria visto nele a história viva, e imaginei que perguntas, perguntas que eu não podia sequer começar a formular, Rossi lhe teria feito.

Todavia, foi Helen quem disse o que tinha de ser dito. Pondo-se de pé, o que fez com que todos nos levantássemos com ela, estendeu a mão a Turgut.

— Sentimo-nos honrados pelo que nos contou — disse ela, olhando-o no rosto, orgulhosa. — Vamos guardar o seu segredo e os desejos do sultão com as nossas próprias vidas.

Turgut beijou-lhe a mão, visivelmente emocionado, e Selim Aksoy curvou-se para ela.

Eu não precisava de acrescentar mais nada; pondo de lado momentaneamente o ódio tradicional do seu povo pelos opressores otomanos, Helen falara por nós dois.

Podíamos ter ficado assim o resto do dia, olhando uns para os outros sem palavras enquanto o crepúsculo caía, se o telefone de Turgut não tivesse subitamente tocado, estridente. Ele inclinou-se, pedindo licença, e atravessou a sala para ir atender, enquanto Mrs. Bora começava a colocar os restos da nossa refeição numa bandeja. Turgut ouviu o seu interlocutor durante alguns minutos, falou com uma certa agitação, depois desligou de modo abrupto. Dirigiu a Selim rápidas palavras em turco e Selim vestiu rapidamente o seu casaco coçado.

— Aconteceu alguma coisa? — perguntei.

— Sim, lamentavelmente — Turgut deu uma pancada no peito com a mão, punindo-se. — Foi o bibliotecário, o meu bom amigo bibliotecário. O homem que deixei a tomar conta dele saiu por um momento e agora ligou a dizer que o meu amigo foi atacado de novo. Erozan está inconsciente e o homem vai à procura de um médico. Isto é muito sério. É o terceiro ataque, e exatamente ao pôr do Sol

Abalado, peguei também no meu casaco, e Helen calçou os sapatos, apesar de Mrs. Bora ter pousado a mão suplicante no seu braço. Turgut beijou a esposa e, quando saíamos, apressados, virei-me uma vez e vi-a, pálida e assustada, de pé à porta do apartamento.

 

— Onde vamos dormir? — perguntou Barley, indeciso. Estávamos no nosso quarto de hotel em Perpignan, um quarto de casal que nos foi dado pelo idoso funcionário da recepção quando lhe dissemos, também a ele, que éramos irmãos. Dera-nos o quarto sem titubear, embora lançasse olhares duvidosos de um para o outro. Não tínhamos dinheiro para quartos separados, e ambos sabíamos isso.

— E então? — disse Barley, meio impaciente.

Olhamos para a cama. Não havia outro lugar, nem sequer um tapete no chão nu e encerado. Finalmente, Barley tomou uma decisão — para si próprio, pelo menos. Enquanto eu permanecia paralisada, foi para a casa de banho com umas roupas na mão e uma escova de dentes, surgindo minutos depois vestido com um pijama de algodão de uma cor tão clara como o seu cabelo.

Algo sobre a cena toda e o esforço inútil dele para parecer descontraído fez-me rir alto, mesmo com as faces coradas de embaraço, e ele começou a rir também. Rimo-nos até as lágrimas nos correrem pela cara, Barley com o corpo dobrado, os braços cruzados por cima da cintura magra e eu agarrada ao deprimente e velho guarda-fatos do quarto. Rindo histericamente, aliviamos toda a tensão da viagem, os meus receios, a desaprovação de Barley, as cartas angustiadas do meu pai, as nossas discussões. Anos mais tarde, aprendi a expressão founre um louco ataque de riso e aquele foi o meu primeiro, ali naquele hotel francês. O meu primeiro founre foi seguido de outras primeiras coisas quando caímos um por cima do outro. Barley agarrou-me pelos ombros com tão pouca elegância como eu me tinha agarrado ao guarda-fatos pouco antes, mas o seu beijo foi angelicamente gracioso, a sua jovem experiência pressionando suavemente a minha absoluta falta de experiência. Tal como as nossas gargalhadas, deixou-me sem fôlego.

Todo o meu conhecimento prévio das práticas amorosas fora tirado de filmes decentes e livros confusos, e quase não sabia como continuar. Barley, entretanto, continuou por mim, e eu segui-o agradecida, embora desajeitada. Quando nos vimos deitados na cama bafienta, eu já tinha aprendido alguma coisa da negociação entre os amantes e as suas roupas. Cada peça parecia-me uma decisão importante, o casaco de pijama de Barley antes de tudo; ao tirá-lo, revelou um torso de alabastro e ombros surpreendentemente musculosos. O despir da minha blusa e do meu feio soutien branco foi uma decisão tanto minha como dele. Ele disse que gostava muito da cor da minha pele porque era completamente diferente da dele, e era verdade que o meu braço nunca pareceu tão moreno como ao descansar ao lado do braço cor de neve de Barley. Ele percorreu com a palma da mão o meu corpo e o que restava da minha roupa e, pela primeira vez, fiz-lhe o mesmo, descobrindo os contornos desconhecidos do corpo masculino; parecia estar a tatear timidamente as crateras da Lua. O coração batia-me com tanta força dentro do peito que tive medo de que ele o sentisse bater de encontro ao seu peito.

De fato, havia tanto a fazer, a ocupar-nos, que não tiramos mais nenhuma peça de roupa, e um grande período de tempo pareceu transcorrer até Barley se aconchegar a mim com um suspiro engasgado, murmurando:

— Tu és só uma miúda — e passou um braço possessivo sobre os meus ombros e pescoço.

Quando ele disse isto, dei-me conta de repente de que ele também era só um miúdo — um miúdo honesto. Acho que o amei mais naquele momento do que em qualquer outro.

 

O apartamento emprestado onde Turgut deixara Mr. Erozan ficava talvez a uns dez minutos de caminhada ou uns dez minutos de corrida, porque todos corremos, mesmo Helen, em cima dos seus saltos altos. Turgut resmungava (e praguejava, acho eu) em voz baixa. Levava consigo uma maleta preta, que presumi conter material de primeiros socorros, caso o médico não aparecesse, ou não chegasse a tempo. Por fim, subimos as escadas de madeira de uma casa velha, em tropel atrás de Turgut, que escancarou uma porta ao chegar ao cimo.

A casa parecia ter sido dividida em pequenos apartamentos encardidos; naquele, uma cama, cadeiras e uma mesa mobilavam o quarto principal, iluminado por uma única lâmpada. O amigo de Turgut estava deitado no chão com um cobertor por cima e, ao seu lado, um homem balbuciante de cerca de trinta anos levantou-se para nos receber. Estava quase histérico de pavor e arrependimento; não parava de torcer as mãos e repetia incessantemente a mesma frase para Turgut. Turgut empurrou-o para o lado e ele e Selim ajoelharam-se junto de Mr. Erozan. O rosto da pobre vítima estava cor de cinza, os olhos fechados e a respiração saía-lhe em estertores. Tinha um corte muito feio no pescoço, maior do que aquele que tínhamos visto na última vez, mas mais horrível porque estava estranhamente limpo, embora com as bordas rasgadas, e apenas um traço de sangue nas pontas. Ocorreu-me que uma ferida tão profunda deveria sangrar copiosamente, e a percepção disso provocou-me uma onda de náusea no estômago. Passei um braço pelos ombros de Helen e ficamos a olhar, sem conseguirmos desviar os olhos.

Turgut examinou a ferida sem lhe tocar e depois olhou rapidamente para nós.

— Há minutos atrás, esse desgraçado saiu para ir procurar um médico desconhecido sem me consultar, mas o médico não estava. Isso, pelo menos, é uma sorte, porque não queremos um médico aqui agora. Mas ele deixou Erozan sozinho exatamente ao pôr do Sol. — Falou com Aksoy, que se levantou inopinadamente e, com uma força que eu não teria imaginado, agrediu o infeliz vigia e arremessou-o para fora do quarto. O homem recuou e em seguida ouvimos os seus passos apavorados a descer depressa a escada. Selim trancou a porta depois de ele sair e foi à janela espreitar a rua, como se quisesse ter certeza de que o pobre coitado não voltaria. Depois, ajoelhou-se junto de Turgut e os dois conferenciaram em voz baixa.

Momentos depois, Turgut procurou qualquer coisa na bolsa que trouxera. Vi-o tirar de dentro dela um objeto que já se me tornara familiar: era um estojo de caça aos vampiros semelhante ao que ele me dera no seu gabinete mais de uma semana antes, só que este estava numa caixa mais requintada, ornamentada com caligrafia árabe e com o que me pareceu incrustações de madrepérola. Abriu-o e percorreu com o olhar os instrumentos no seu interior. Depois, levantou outra vez os olhos para nós.

— Senhores — disse ele, controlado, — o meu amigo foi mordido pelo vampiro pelo menos três vezes e está a morrer. Se morrer naturalmente nesta situação, tornar-se-á um morto-vivo. — Enxugou a testa com a mão enorme. — Este é um momento terrível, e tenho de pedir-lhes que saiam do quarto. Minha senhora, não deve assistir a isto.

— Por favor, deixe-nos fazer qualquer coisa para o ajudarmos — comecei, hesitante, mas Helen deu um passo adiante.

— Deixe-me ficar — disse a Turgut em voz baixa. — Quero saber como se faz.

Por um momento, perguntei a mim próprio para que quereria ela saber, e dei por mim a lembrar-me — pensamento surreal que, afinal de contas, ela era antropóloga. Ele lançou-lhe um olhar penetrante, depois pareceu concordar sem palavras e curvou-se de novo sobre o amigo. Eu ainda esperava que o que adivinhava não fosse verdade, mas Turgut estava a murmurar qualquer coisa ao ouvido do amigo. Pegou na mão do homem e afagou-a.

Então e isso foi talvez a pior de todas as coisas terríveis que se seguiram Turgut apertou a mão do amigo contra o seu próprio coração e rompeu num lamento fúnebre, com palavras que pareciam chegar-nos das profundezas de uma história não só demasiado antiga, mas que me era demasiado estranha para me permitir distinguir as suas sílabas, um gemido de dor semelhante à chamada do muezzin para a oração, que tínhamos ouvido sair dos minaretes na cidade, com a diferença de que o pranto de Turgut soava mais como uma inumação ao inferno, uma fiada de notas trespassadas de horror que pareciam erguer-se da memória de mil acampamentos otomanos, de um milhão de soldados turcos. Vi os seus estandartes a esvoaçar, os salpicos de sangue nas pernas dos seus cavalos, a lança e o crescente, o brilho do sol nas cimitarras e nas cotas de malha, as magníficas cabeças, rostos e corpos jovens mutilados; ouvi os gritos dos homens entregando a alma a Alá e os queixumes distantes das suas mães e dos seus pais; senti o cheiro fétido das casas incendiadas e de sangue fresco, do enxofre dos tiros de canhão, dos rebentamentos de tendas e pontes e de carne de cavalo.

O que me causou mais estranheza foi ouvir, no meio desse clamor, um grito que eu compreendia muito bem: "Kaziklu Bey! O Empalador!" E, no centro do caos, parecia ver uma figura diferente das outras, um homem a cavalo com um manto escuro girando entre as cores vivas, o rosto contraído num esgar de concentração e a sua espada a fazer a colheita de cabeças otomanas, que rolavam pesadas dentro dos seus elmos pontiagudos.

A voz de Turgut extinguiu-se e vi-me de pé junto dele, os olhos postos no homem agonizante. Helen estava ao meu lado, uma presença abençoadamente real. Abri a boca para lhe fazer uma pergunta e vi que ouvira o mesmo horror na ladainha monótona de Turgut. Sem querer, veio-me à cabeça que o sangue do Empalador lhe corria nas veias. Virou-se para mim por um segundo, a fisionomia abalada mas firme; e ocorreu-me no mesmo instante que a herança de Rossi — branda, patrícia, toscana e anglo-saxônica — também existia dentro dela, e vi nos seus olhos a incomparável bondade de Rossi. Naquele momento, creio eu e não mais tarde, no meu país, na insípida igreja castanha dos meus pais, diante de um pastor —, casei-me com ela, desposei-a no meu coração, uni-me a ela para o resto da vida.

Turgut, agora calado, pousara a fieira de contas de oração sobre a garganta do amigo, o que fez o corpo estremecer um pouco, e escolheu no cetim manchado do interior da caixa um instrumento mais comprido do que a minha mão e feito de prata brilhante.

— Nunca tinha tido de fazer isto antes, Deus me perdoe, em toda a minha vida — disse ele, baixinho.

Abriu a camisa do amigo e vi a pele envelhecida, os pêlos do peito encaracolados e grisalhos, cor de cinza, subindo e descendo de modo irregular. Selim procurou pelo quarto com silenciosa eficiência e trouxe a Turgut um tijolo que aparentemente fora usado para prender a porta, e este segurou o grosseiro objeto na mão, sopesando-o por um segundo. Apoiou a extremidade aguda da estaca no lado esquerdo do peito do homem e entoou um cântico em voz baixa, no qual percebi palavras de que me lembrava de algum lugar — livro, filme, conversa? "Allahu akbar, Allahu akbar: Alá é grande." Sabia que não podia forçar Helen a sair do quarto nem podia eu mesmo sair, mas puxei-a um passo para trás quando o tijolo desceu. A mão de Turgut era grande e firme. Selim manteve a estaca a prumo e, com um golpe surdo, de sucção e estilhaço, ela penetrou no corpo. O sangue espalhou-se lentamente em torno do ponto atingido e manchou a pele pálida. O rosto do bibliotecário contorceu-se horrivelmente por um segundo e os seus lábios arreganharam-se, mostrando os dentes amarelados, como os de um cão. Helen não despregara os olhos dele e eu não me atrevi a desviar a vista; não queria que ela visse alguma coisa que eu não pudesse ver com ela. O corpo do bibliotecário estremeceu, a estaca de prata desceu subitamente até ao punho e Turgut endireitou o corpo e sentou-se, como se esperasse. Os lábios tremiam-lhe e o suor espalhara-se por todo o seu rosto.

Em seguida, o corpo relaxou, depois o rosto; os lábios desceram pacificamente e a boca fechou-se; um suspiro brotou-lhe do peito; os pés, dentro das meias pateticamente gastas, contraíram-se levemente e ficaram imóveis. Eu segurava Helen com firmeza e senti-a tremer de encontro a mim, mas ela manteve-se em silêncio. Turgut ergueu a mão sem vida do amigo e beijou-a. Vi as lágrimas descerem-lhe pelo rosto avermelhado, escorrerem-lhe para o bigode, e ele cobriu os olhos com uma das mãos. Selim tocou na testa do bibliotecário morto, depois levantou-se e apertou o ombro de Turgut.

Pouco depois, Turgut recuperou-se o suficiente para se pôr de pé e assoar-se com um lenço.

— Era muito bom homem — disse-nos, com a voz trêmula. — Um homem generoso, amável. Agora, descansa na paz de Maomé, em vez de fazer parte das legiões do inferno. — Virou-se para enxugar os olhos. — Companheiros, temos de tirar este corpo daqui. Há um médico num dos hospitais que... pode ajudar-nos. Selim vai permanecer aqui com a porta trancada enquanto eu chamo o médico, que virá com a ambulância e assinará os certificados necessários.

Turgut tirou vários dentes de alho do bolso e colocou-os delicadamente dentro da boca do homem morto. Selim removeu a estaca, lavou-a no lavatório que havia num canto e guardou-a com todo o cuidado na bonita caixa. Turgut limpou todos os vestígios de sangue, enfaixou o peito do homem com um pano da louça e abotoou de novo a camisa, depois retirou um lençol da cama e deixou que eu o ajudasse a estendê-lo sobre o corpo, cobrindo o rosto já sereno.

— E agora, meus caros amigos, peço-vos um favor. Viram do que os mortos-vivos são capazes, e sabemos que estão aqui. Devem procurar proteger-se cada minuto. E precisam ir para a Bulgária o mais cedo possível nos próximos dias, se conseguirem. Telefonem-me para o meu apartamento quando tiverem feito os vossos planos. — Olhou intensamente para mim. — Se não nos virmos antes de partirem, desejo-vos a melhor sorte e a maior segurança possíveis. Vou pensar em ambos a cada momento. Por favor, liguem-me logo que voltarem para Istambul, se voltarem para cá.

Tinha esperança que esta frase significasse: "se forem esses os vossos planos de viagem", e não "se sobreviverem à Bulgária". Apertou-nos calorosamente a mão e Selim fez o mesmo, beijando em seguida a mão de Helen muito timidamente.

— Vamos embora, agora — disse Helen simplesmente, dando-me o braço, e saímos daquele quarto triste e descemos as escadas para a rua.

 

A minha primeira impressão da Bulgária e a lembrança que guardei dela para sempre foi a de montanhas vistas do ar, montanhas altas e profundas, de vegetação escura e quase intocada por estradas, embora aqui e ali uma tira castanha corresse entre aldeias ou ao longo de súbitos penhascos a pique. Helen estava sentada em silêncio ao meu lado, os olhos fixos na pequena janela do avião, a mão dentro da minha debaixo do meu casaco dobrado. Sentia o calor da palma da sua mão, os dedos finos ligeiramente frios e a ausência de anéis. Avistávamos de vez em quando veios cintilantes nas fendas das montanhas, que deviam ser rios, pensava eu, e esforçava-me sem grandes esperanças para distinguir o formato de uma cauda ondulante de dragão que pudesse ser a resposta ao nosso enigma. Nada, evidentemente, se ajustava aos contornos que eu já conhecia de olhos fechados.

E provavelmente nada se ajustaria, lembrei a mim próprio, quanto mais não fosse para mitigar aquela esperança que renascia incontrolavelmente dentro de mim à vista daquelas antigas montanhas. A sua própria obscuridade, a impressão que davam de não terem sido tocadas pela história moderna, a misteriosa ausência de cidades ou industrialização alimentava essa esperança. Tinha a vaga sensação de que, naquele país, quanto mais escondido estivesse o passado, maior a probabilidade de ter sido preservado. Os monges, cujo rastro perdido sobrevoávamos agora, tinham viajado através de montanhas como aquelas talvez passado por aqueles mesmos picos, apesar de não sabermos qual teria sido o seu percurso. Comentei isto com Helen, querendo ouvir-me expressar as minhas esperanças em voz alta. Ela abanou a cabeça.

— Não sabemos se de fato chegaram à Bulgária ou até se se dirigiram para lá — lembrou-me ela, mas amenizou o inexpressivo tom acadêmico com uma carícia na minha mão sob o casaco.

— Não sei nada sobre a história da Bulgária — confessei. — Vou ficar perdido lá.

Helen sorriu.

— Também não sou perita no assunto, mas posso dizer-te que os Eslavos migraram do Norte para esta região nos séculos seis e sete, e uma tribo turca conhecida por Búlgaros veio para ca no século sete, creio. Uniram-se sabiamente contra o Império Bizantino e o seu primeiro governante foi um búlgaro chamado Asparuh. O czar Boris I fez do Cristianismo a religião oficial no século nove. Apesar disso, é considerado um grande herói no país. Os Bizantinos governaram do século onze ao princípio do século treze, e então a Bulgária tornou-se muito poderosa até que os Otomanos a esmagaram, em 1393.

— Quando é que os Otomanos foram expulsos? — perguntei, interessado. Parecíamos deparar com eles em toda a parte

— Só em 1878 — admitiu Helen — A Rússia ajudou a Bulgária a expulsá-los

E depois a Bulgária apoiou o Eixo nas duas guerras

— Sim, e o exército soviético trouxe uma revolução gloriosa logo depois da guerra. — O que faríamos sem o exército soviético? Helen fez me o seu sorriso mais brilhante e amargo, mas apertei lhe a mão

— Fala baixo — pedi — Se não tiveres cuidado, vou precisar ter cuidado pelos dois.

O aeroporto de Sófia era diminuto, eu esperava um palácio do moderno comunismo, mas descemos numa pista modesta e atravessamo-la a pé juntamente com os outros passageiros. Quase todos eram búlgaros, presumi, tentando captar alguma coisa das suas conversas. Eram pessoas bonitas, algumas extremamente bonitas, e os seus rostos variavam dos eslavos de pele clara e olhos escuros para os de um bronzeado típico do Médio Oriente, um caleidoscópio de ricas colorações e fartas sobrancelhas desgrenhadas, narizes longos e de narinas largas, ou aquilinos, ou muito aduncos, raparigas com cabelos negros encaracolados e testas majestosas, homens idosos quase sem dentes mas cheios de energia. Sorriam ou riam e conversavam animadamente uns com os outros, um homem alto gesticulava para o companheiro com um jornal dobrado. As suas roupas eram claramente não ocidentais, embora me fosse difícil apontar o que havia nos cortes dos fatos e das saias, nos sapatos pesados e nos chapéus escuros que não me era familiar

Também tive a impressão de que havia uma alegria mal disfarçada nessas pessoas quando os seus pés tocaram no solo ou asfalto búlgaro, o que não correspondia a imagem que levava comigo, a de uma nação inabalavelmente aliada aos Soviéticos, ainda a principal aliada de Stalin, mesmo agora, um ano depois da sua morte um país sem alegria preso a ilusões de que talvez nunca despertasse. As dificuldades para obter um visto búlgaro em Istambul uma etapa oleada em grande parte pelos fundos fornecidos por Turgut provenientes da Guarda do Sultão e pelos telefonemas da homônima búlgara da tia Eva em Sofia só fizeram aumentar a minha ansiedade em relação ao país, e os desalentados burocratas que finalmente e de má vontade tinham carimbado a sua aprovação nos nossos passaportes em Budapeste pareceram-me já embalsamados em opressão. Helen confidenciara-me que o próprio fato de a embaixada búlgara nos ter concedido os vistos a deixava inquieta.

Os Búlgaros de carne e osso, contudo, pareciam ser uma raça inteiramente diferente. Ao entrar no edifício do aeroporto, vimo-nos nas filas da alfândega, e ali o alarido de risadas e conversas era mais alto ainda, com parentes a acenar por cima das barreiras e a gritar saudações. Em torno de nós, as pessoas declaravam às autoridades pequenas quantidades de dinheiro e lembranças trazidas de Istambul e de destinos anteriores. Quando chegou a nossa vez, fizemos o mesmo.

As sobrancelhas do jovem funcionário da alfândega desapareceram sob o boné ao ver os nossos passaportes, que pôs de lado por uns minutos para consultar outro funcionário.

— Não é bom sinal — disse Helen, baixinho.

Vários homens uniformizados cercaram-nos, e o mais velho e de aparência mais imponente começou a interrogar-nos em alemão, depois em francês e finalmente num inglês rudimentar. Seguindo as instruções de tia Eva, apresentei calmamente a nossa carta da Universidade de Budapeste, que solicitava ao governo da Bulgária que nos deixasse entrar no país para uma importante atividade acadêmica e a outra carta que a tia Eva conseguira de um amigo na embaixada búlgara.

Não sei que efeito causou no funcionário a carta acadêmica com a sua extravagante mistura de inglês, húngaro e francês, mas a carta da embaixada estava escrita em búlgaro e ostentava o selo da embaixada. O funcionário leu-a em silêncio, as suas imensas sobrancelhas escuras a juntar-se acima do nariz, e em seguida o seu rosto assumiu uma expressão de surpresa, mesmo de assombro, e olhou para nós com espanto. Isto pôs-me ainda mais nervoso do que a sua hostilidade anterior, e ocorreu-me que a tia Eva tinha sido muito vaga sobre o teor daquela carta da embaixada. Evidentemente, eu não podia perguntar agora ao homem de que se tratava, e senti-me desnorteado, aflito, quando o funcionário abriu um sorriso e me deu umas palmadinhas no ombro. Encaminhou-se para um telefone numa das pequenas cabinas da alfândega e, depois de um esforço considerável, conseguiu entrar em contacto com alguém. Não gostei da maneira como ele sorria para o telefone e relanceava o olhar para nós de vez em quando. Helen mexia-se, inquieta, junto de mim e eu sabia que ela devia estar a interpretar ainda melhor do que eu o significado de tudo aquilo. Por fim, o funcionário desligou o telefone com um floreado, ajudou-nos a reencontrar as nossas malas empoeiradas e levou-nos para um bar dentro do aeroporto, onde nos ofereceu pequenas doses de uma aguardente fortíssima chamada rakiya, que ele próprio também ia bebendo. Perguntou-nos nos seus vários idiomas estropiados há quanto tempo estávamos envolvidos com a revolução, quando tínhamos entrado para o Partido, e assim por diante, nenhuma das perguntas contribuindo para me deixar mais à vontade. Tudo isto me fez ponderar mais do que nunca nas possíveis incorreções da nossa carta de apresentação, mas segui o exemplo de Helen e limitei-me a sorrir ou a fazer observações neutras. Ele brindou à amizade entre os operários de todas as nações, voltando a encher os nossos copos e o dele. Se um de nós dizia alguma coisa alguma trivialidade sobre visitar o seu bonito país, por exemplo —, abanava a cabeça de um lado para outro com um sorriso aberto, como se discordasse das nossas afirmações. Aquilo estava a deixar-me nervoso até Helen me sussurrar que lera algures sobre aquela idiossincrasia cultural: os Búlgaros abanavam a cabeça para os lados quando concordavam e sacudiam-na para cima e para baixo quando discordavam.

Quando já havíamos tomado mais rakiya do que eu podia impunemente aguentar, fomos salvos pelo aparecimento de um homem de ar austero com um fato escuro e chapéu. Parecia ser apenas um pouco mais velho do que eu e teria sido considerado bonito se alguma expressão de prazer tivesse alguma vez aflorado ao seu rosto. Tal como era, o seu bigode escuro mal escondia os lábios apertados de modo desaprovador e a melena de cabelo negro não disfarçava a sua testa franzida. O funcionário cumprimentou-o com deferência e apresentou-o como sendo o guia que nos fora sido designado na Bulgária, explicando que era um privilégio porque Krassimir Ranov era muito respeitado no governo búlgaro, estava associado à Universidade de Sofia e conhecia como ninguém os pontos turísticos mais interessantes do seu antigo e glorioso país.

Através da névoa do álcool, apertei a mão do homem, fria como um peixe morto, e implorei aos céus que pudéssemos ver a Bulgária sem um guia. Helen parecia menos surpreendida com o fato e cumprimentou-o, pareceu-me, com a mistura certa de enfado e desprezo. Mr. Ranov ainda não tinha pronunciado sequer uma palavra, mas deu-me a impressão de antipatizar profundamente com Helen antes mesmo que o funcionário informasse que ela era húngara e estava a estudar nos Estados Unidos. A explicação fez o bigode dele retorcer-se por cima de um sorriso soturno.

— Professor, minha senhora — disse ele, falando conosco pela primeira vez e virando-nos as costas logo de seguida.

O funcionário da alfândega sorriu radiante, apertou-nos a mão, deu-me uma palmada no ombro, como se já fôssemos velhos amigos e depois fez um gesto a indicar que devíamos seguir Ranov.

Fora do aeroporto, Ranov chamou um táxi, que possuía o interior mais antiquado que já vi num automóvel, um tecido preto estofado com um recheio que presumi ser crina de cavalo, e comunicou-nos do banco da frente que nos tinham sido reservados quartos num hotel com uma excelente reputação.

Acredito que vão achá-lo confortável, e tem um excelente restaurante. Amanhã, encontrar-nos-emos lá para o pequeno-almoço e poderão explicar-me a natureza da vossa pesquisa e de que maneira posso ajudá-los a levá-la a cabo. Certamente vão querer encontrar-se com os vossos colegas na Universidade de Sofia e os ministérios convenientes. Depois, providenciaremos uma rápida excursão por alguns locais históricos da Bulgária.

Sorriu um sorriso azedo e fiquei a olhar para ele com um horror crescente. O inglês dele era bom demais; apesar do sotaque acentuado, tinha o som correto e sem inflexões de um desses discos com que se aprende um idioma em trinta dias.

O rosto dele tinha também algo de familiar. Evidentemente, nunca o vira antes, mas fazia-me lembrar alguém que eu conhecia, com a frustração inerente de não conseguir identificar quem diabo poderia ser. Essa sensação persistiu durante aquele primeiro dia em Sofia, atormentando-me durante a nossa visita excessivamente guiada pela cidade. Sofia era singularmente bela, contudo uma mistura de elegância do século dezenove, esplendor medieval e brilhantes monumentos novos no estilo socialista. No centro da cidade, percorremos um lúgubre mausoléu que guardava o corpo embalsamado do ditador estalinista Georgi Dimitrov, que morrera cinco anos antes. Ranov tirou o chapéu antes de entrar no edifício e fez Helen e eu passarmos à sua frente. Entramos numa fila de búlgaros silenciosos que desfilavam diante do caixão aberto de Dimitrov. O rosto do ditador era cor de cera, com um espesso bigode escuro como o de Ranov. Pensei em Esfaime, cujo corpo se dizia ter ido para junto do de Lenin, num mausoléu semelhante na Praça Vermelha. Estas culturas ateístas ainda preservavam diligentemente as relíquias dos seus santos, disso não havia dúvida.

Os meus maus pressentimentos em relação ao nosso guia aumentaram quando lhe perguntei se poderia pôr-nos em contacto com Anton Stoichev e o vi recuar.

— Mr. Stoichev é um inimigo do povo — assegurou-nos com a sua voz irritada. — Por que é que querem vê-lo? — E depois, estranhamente: — Evidentemente, se assim o desejam, posso providenciar. Ele já não dá aulas na universidade; com os seus pontos de vista religiosos, não oferece confiança para lidar com a nossa juventude. Mas é famoso, e talvez seja por esse motivo que desejam encontrar-se com ele?

— Ranov foi instruído para fazer tudo o que quisermos — disse-me Helen em voz baixa quando tivemos um momento a sós, fora do hotel. — Por que será? Por que é que alguém pensa que é uma boa idéia?

Entreolhamo-nos, receosos.

— Eu gostaria muito de saber — disse eu.

— Temos de ter muito cuidado aqui — o rosto de Helen estava sério, a voz, baixa, e eu não me atrevia a beijá-la em público. — Vamos combinar que, de agora em diante, só vamos revelar os nossos interesses acadêmicos, e mesmo assim o mínimo possível, se tivermos de falar do nosso trabalho na frente dele.

— Combinado.

 

Nesses últimos anos, dei por mim varias vezes a rememorar a primeira visão que tive da casa de Anton Stoichev. Talvez essa imagem me tenha deixado uma impressão tão duradoura por causa do contraste entre a Sofia urbana e o refúgio dele fora da cidade, exatamente nos seus limites, ou talvez a lembrança seja tão recorrente por causa do próprio Stoichev — da natureza especial e sutil da sua presença. Acredito, contudo, que sinto uma expectativa tensa, quase arrebatadora, ao evocar a imagem do portão da frente da casa de Stoichev porque o nosso encontro com ele foi o ponto de viragem na nossa busca de Rossi.

Muito tempo depois, quando li em voz alta sobre os mosteiros situados fora das muralhas da Constantinopla bizantina onde às vezes os seus habitantes buscavam asilo, a fim de escapar a editais que impunham dentro do perímetro urbano um ou outro ponto do ritual da igreja, e onde não contavam com a proteção das grandes muralhas da cidade mas ficavam um grau mais distantes do alcance tirânico do Estado, pensei em Stoichev — no seu jardim, nas suas macieiras e cerejeiras salpicadas de branco, na casa instalada dentro de um pátio comprido, nas folhagens novas e nas colmeias azuis, no velho portão duplo de madeira com um postigo que nos mantinha do lado de fora, na atmosfera calma do lugar, no clima de devoção, de retiro deliberado.

Paramos diante do portão enquanto a poeira assentava em volta do carro de Ranov. Helen foi a primeira a tentar abrir um dos ferrolhos antigos, Ranov deixara-se ficar para trás com ar rabugento, como se detestasse ser visto ali, até mesmo por nós, e eu tinha a estranha sensação de estar colado ao chão. Por um momento, fiquei hipnotizado pela vibração matinal de folhas e abelhas e por uma apreensão inesperada e nauseante. Podia ser que Stoichev afinal não contribuísse para coisa alguma, que ali fosse o fim da linha, e nesse caso voltaríamos para casa depois de percorrermos um longo caminho para nada. Já imaginara a cena milhares de vezes o voo em silêncio para Nova Iorque de Sofia ou de Istambul eu iria querer ver Turgut uma vez mais, pensei e a reorganização da minha vida sem Rossi, as perguntas sobre onde eu estivera, os problemas com o departamento causados pela minha ausência prolongada, o retomar do meu trabalho sobre os mercadores holandeses aquelas pessoas plácidas, prosaicas — sob a supervisão de algum novo orientador imensamente inferior, e a porta fechada do escritório de Rossi. Acima de tudo, receava encontrar aquela porta fechada, e a investigação em curso, o interrogatório medíocre da polícia "Quer dizer, senhor... hum... Paul, não é? Quer dizer que foi viajar dois dias depois do desaparecimento do seu orientador?" a reunião de um pequeno grupo de pessoas perplexas numa cerimônia qualquer em sua memória, eventualmente a questão das obras de Rossi, dos seus direitos de autor, da sua herança.

Voltar com a minha mão entrelaçada na de Helen seria um grande consolo, é claro. Pretendia pedir-lhe que se casasse comigo quando todo aquele pesadelo terminasse; teria de economizar algum dinheiro, se pudesse, e levá-la a Boston para conhecer os meus pais. Sim, voltaria com a mão dela na minha, mas não haveria um pai a quem pedi-la em casamento. Vi Helen abrir o portão de Stoichev através de uma névoa difusa de tristeza.

Passado o portão, a casa de Stoichev afundava-se mansamente num terreno irregular — em parte um pátio, em parte um pomar. As fundações da casa tinham sido construídas com uma pedra castanho-acinzentada assentada com argamassa branca; mais tarde, soube que essa pedra era uma espécie de granito com que a maioria dos velhos edifícios da Bulgária fora construída. Por cima das fundações, as paredes eram de tijolos, mas tijolos de um suave e ameno vermelho-dourado, como se tivessem estado mergulhadas na luz do sol durante gerações. O telhado era de telhas de canudo de barro vermelho. Tanto o telhado como as paredes estavam um tanto dilapidados. A casa inteira parecia ter brotado lentamente da terra e estar agora a voltar lentamente para dentro dela, como se as árvores tivessem crescido por cima dela apenas para lhe dar sombra a esse processo. O andar térreo desenvolvera-se numa ala mais elevada num dos lados e prolongara-se para o outro num caramanchão coberto pelas tenras gavinhas de uma parreira no cimo e por uma trepadeira de rosas pálidas na parte de baixo. Debaixo da treliça do caramanchão havia uma mesa de madeira e quatro cadeiras toscas, e imaginei como a sombra da parreira se iria adensando ali à medida que o Verão avançasse. Adiante, e debaixo da mais venerável das macieiras, pairavam duas colmeias fantasmagóricas; perto delas, sob o sol a pique, estendia-se um pequeno canteiro onde alguém plantara verduras translúcidas em filas ordenadas. Senti o cheiro de ervas aromáticas, talvez de lavanda, de relva fresca e de cebolas a serem fritas. Alguém tratava com carinho daquele lugar antigo que se ia afundando devagar, e quase esperei vislumbrar Stoichev metido num hábito de monge, ajoelhado na terra com um sacho de jardineiro na mão. Então, uma voz começou a cantar lá dentro, talvez perto da chaminé arruinada e das janelas do andar térreo. Não era a voz de barítono de um eremita, mas uma voz feminina, doce e forte, uma melodia enérgica que fez até Ranov, de mau humor junto de mim com o seu cigarro, parecer interessado.

— Izvinetel — chamou ele. — Dobarden.

O canto parou abruptamente e seguiu-se um estrépito e um baque surdo. A porta da frente de Stoichev abriu-se e a rapariga que estava ali parada ficou a olhar para nós, espantada, como se a última coisa que pudesse imaginar aparecer no pátio da sua casa fossem pessoas.

Eu ia adiantar-me mas Ranov passou-me à frente, tirando o chapéu, curvando a cabeça, inclinando-se e cumprimentando-a com uma torrente de palavras em búlgaro. A rapariga pusera a mão na cara, olhando para Ranov com uma curiosidade que me pareceu misturada com desconfiança. Olhando-a melhor, não era tão nova como eu tinha pensado, mas havia nela uma energia e um vigor que me fizeram supor que talvez fosse a autora do luminoso jardinzinho e dos aromas agradáveis que vinham da cozinha. Tinha o cabelo penteado para trás, mostrando o rosto redondo; tinha um sinal escuro na testa. Os olhos, queixo e boca pareciam os de uma bonita criança. Usava um avental por cima da blusa branca e da saia azul. Examinou-nos com uma expressão perspicaz que nada tinha a ver com a inocência dos seus olhos e vi que, no seguimento das suas rápidas perguntas, Ranov tinha mesmo aberto a carteira e mostrara-lhe um cartão. Fosse ela filha de Stoichev ou sua governanta os professores universitários aposentados teriam governantas nos países comunistas?, não era nenhuma parva. Ranov parecia estar a fazer um esforço extraordinário para agradar; virou-se, sorridente, para nos apresentar.

— Esta é Irina Hristova — explicou, enquanto trocávamos apertos de mão. — É a sobrinha do professor Stoichev. A filha da irmã dele disse Ranov.

Acendeu outro cigarro e ofereceu um a Irina Hristova, que recusou com um gesto decidido da cabeça. Quando ele explicou que éramos da América, ela arregalou os olhos e examinou-nos com todo o cuidado. Depois deu uma risada, que eu nunca soube o que significava. Ranov ficou de novo carrancudo, acho que só conseguia parecer agradável poucos minutos de cada vez e ela virou-se e fez-nos sinal para entrarmos.

A casa apanhou-me novamente de surpresa; podia ser uma velha e encantadora quinta vista de fora, mas lá dentro, imersa numa penumbra que contrastava fortemente com a luz do sol da entrada, era um museu. A porta abria-se diretamente para uma grande sala com uma lareira, onde a luz do sol batia nas pedras em vez do fogo. A mobília cômodas de madeira escura com ricos trabalhos de entalhe e guarnecidas de espelhos, cadeiras e bancos principescos teria sido impressionante por si só, mas o que chamou a minha atenção e despertou murmúrios de admiração em Helen foi a rara mistura de tecidos tradicionais e pinturas primitivas ícones, sobretudo, de uma qualidade que em muitos casos parecia superar o que tínhamos visto nas igrejas de Sófia. Havia madonas de olhar luminoso e santos tristonhos de lábios finos, grandes e pequenos, ornamentados com pinturas douradas ou emoldurados em prata batida, apóstolos de pé em barcos e mártires suportando pacientemente os seus martírios. As cores ricas, antigas, patinadas, repetiam-se por todos os lados em tapeçarias e painéis tecidos com padrões geométricos e até num colete bordado e um par de estolas orlados de pequeninas moedas. Helen apontou para o colete, que tinha filas horizontais de bolsos cosidos de cada lado

— Para balas — disse ela, simplesmente

Junto ao colete, estava pendurado um par de adagas. Eu queria perguntar quem tinha usado o colete, quem juntara aquelas balas, quem manejara as adagas. Alguém enchera uma jarra de cerâmica numa mesa por baixo destas peças com rosas e folhagem, que pareciam sobrenaturalmente vivas no meio de todos aqueles tesouros desbotados O soalho estava perfeitamente encerado. Percebi que mais adiante havia outra sala parecida com aquela.

Ranov também olhava em volta, e fungou, desdenhoso

— Na minha opinião, deixam o professor Stoichev guardar propriedades nacionais em excesso. Deviam ser vendidas para benefício do povo.

Ou Irin não compreendia inglês ou não se dignou responder-lhe, virou-lhe as costas e levou-nos até um estreito lanço de escada fora da sala. Não sei o que esperava ver lá em cima Talvez fosse encontrar um cubículo atravancado, uma caverna onde o velho professor hibernasse, ou talvez, pensei — com aquela pontada de sofrimento a que já me ia acostumando —, encontrássemos um escritório arrumado, organizado, igual ao que camuflava a esplêndida e tumultuosa mente do professor Rossi. Mal pusera de lado essa imagem quando a porta no cimo dos degraus se abriu e um homem de cabeça branca, baixo mas direito, saiu para o patamar da escada. Irina correu para ele, agarrando-lhe o braço com as mãos e dirigindo-lhe rápidas palavras em búlgaro entremeadas de um riso excitado.

O velho voltou-se para nós, calmo, calado, o rosto profundamente absorto, tanto que tive a impressão de que olhava para baixo, para o chão, embora estivesse a olhar diretamente para nós. Adiantei-me então e estendi-lhe a mão. Ele apertou a gravemente, virou se para Helen e apertou-lhe também a mão. Era educado, formal, demonstrava o tipo de deferência que não é de fato deferência mas dignidade, e os seus grandes olhos escuros iam de um de nós para o outro, até que deparou com Ranov, que ficara atrás a observar a cena. Nesse ponto, Ranov aproximou se e trocou também um aperto de mão com ele com condescendência, pensei, gostando cada vez menos do nosso guia. Desejava ardentemente que nos deixasse para podermos falar a sós com o professor Stoichev. Perguntava a mim próprio como poderíamos ter uma conversa franca com Stoichev, receber alguma informação da sua parte, com Ranov a rondar a nossa volta como uma mosca.

O professor Stoichev virou-se devagar e convidou-os a entrar no aposento. Este era um dos muitos do andar de cima da casa. Nunca ficou claro para mim, durante as nossas duas visitas, onde dormiam os seus habitantes. Até onde podia ver, o andar superior continha apenas a comprida e estreita sala de estar onde acabávamos de entrar e diversas pequenas divisões que davam para ela. As portas dessas divisões estavam escancaradas, e a luz do sol filtrava-se para dentro delas através das folhas verdes das árvores diante das janelas do lado oposto, acariciando as capas dos incontáveis livros, livros que cobriam as paredes, repousavam dentro de caixas no chão ou amontoavam-se por cima das mesas. No meio deles, nas prateleiras, havia documentos soltos de todos os tamanhos e formatos, muitos deles visivelmente muito antigos. Não, não era igual ao gabinete organizado de Rossi, e sim um laboratório desordenado, o depósito da mente de um colecionador. Por toda a parte, via o sol tocando o velino antigo, couro antigo, capas e lombadas filetadas, traços de ouro, folhas gastas, encadernações nodosas livros maravilhosos, vermelhos, castanhos e cor de osso livros e rolos e manuscritos numa desordem laboriosa. Nenhum deles empoeirado, nada que fosse pesado apoiado em algo frágil, e no entanto esses livros, esses manuscritos, estavam absolutamente em toda a parte nos aposentos de Stoichev, e tive a sensação de estar cercado por eles de uma maneira que ninguém pode estar nem mesmo num museu, onde esses preciosos objetos teriam ficado dispostos mais espaçadamente, mais metodicamente.

Numa das paredes da sala de estar estava pendurado um mapa, pintado, para minha surpresa, em couro. Não pude deixar de me aproximar dele, e Stoichev sorriu.

— Gosta? — perguntou. — É o Império Bizantino em cerca de 1150. — Era a primeira vez que falava, e usou um inglês pausado e correto.

Quando a Bulgária ainda era um dos seus territórios — disse Helen, contemplando-o pensativa.

Stoichev lançou-lhe um olhar rápido, claramente satisfeito.

— Sim, exatamente. Penso que esse mapa foi feito em Veneza ou Génova e depois levado para Constantinopla, talvez como presente para o imperador ou para alguém da sua corte. Este é uma cópia que um amigo me fez.

Helen sorriu, tocando o queixo e refletindo. Então, quase lhe piscou o olho.

— O imperador Manuel I Comnenus, talvez?

Fiquei pasmado e Stoichev também pareceu espantado. Helen deu uma risada.

— Bizâncio costumava ser quase um passatempo para mim.

O velho historiador abriu um largo sorriso e curvou-se diante dela, cortês Apontou para as cadeiras em torno de uma mesa no meio da sala e sentamo-nos. De onde estava, podia ver o quintal atrás da casa, o terreno a descer gradualmente até à orla de um bosque e as árvores de fruto, algumas já carregadas de pequenos frutos verdes. As janelas estavam abertas e o mesmo zumbir de abelhas e restolhar de folhas chegava até nós. Pensei como deveria ser agradável para Stoichev, mesmo no exílio, sentar-se ali com os seus manuscritos e ler ou escrever enquanto ouvia aqueles sons, que nenhum governo opressivo podia abafar, ou de que nenhum burocrata resolvera afastá-lo ainda. Era uma prisão feliz e talvez mais voluntária do que tínhamos maneira de saber.

Stoichev não disse mais nada por algum tempo, apesar de olhar atentamente para nós, e tive curiosidade em saber o que pensava do fato de termos aparecido ali, e se planeava descobrir quem éramos.

Depois de alguns minutos, achando que ele nunca se dirigiria a nós, dirigi-me a ele.

— Professor Stoichev, perdoe-nos por invadirmos a sua solidão. Estamos muito gratos ao senhor e à sua sobrinha por permitirem que os visitemos.

Ele olhou para as próprias mãos sobre a mesa eram finas e cobertas de manchas da idade — e depois para mim. Os seus olhos, como já disse, eram muito escuros, e eram os olhos de um rapaz, apesar de o seu rosto bem barbeado e moreno ser velho. As orelhas eram extraordinariamente grandes e sobressaíam dos lados da cabeça no meio do cabelo branco bem aparado; captavam um pouco da luz das janelas, de modo que ficavam translúcidas, com os contornos rosados como as de um coelho. Aqueles olhos, em que a brandura e a cautela se combinavam, tinham também algo de animal. Os dentes eram amarelados e tortos, e um deles, na frente, estava coberto de ouro. Mas estavam todos no lugar, e o seu rosto tornava-se quando sorria iluminado e surpreendente, como se um animal selvagem assumisse subitamente uma expressão humana. Era um rosto maravilhoso, um rosto que na juventude devia ter tido um brilho invulgar, um grande e visível entusiasmo — devia ter sido um rosto irresistível.

Depois Stoichev sorriu, com tanta intensidade que nos fez sorrir também, a mim e a Helen. Irina olhou para nós. Sentara-se numa cadeira debaixo de um ícone de um santo — presumo que fosse S. Jorge que atravessava vigorosamente com a espada um dragão subnutrido.

— Estou muito contente que tenham vindo ver-me — disse Stoichev. — Não costumamos receber muitas visitas, e visitas que falem inglês são ainda mais raras. Estou satisfeito por poder praticar o meu inglês convosco, embora receie que já não seja tão bom como era dantes.

— O seu inglês é excelente — disse eu. — Onde o aprendeu, se não se importa que pergunte?

— Oh, não me importo — disse o professor Stoichev. — Tive a sorte de estudar no estrangeiro quando era novo, e alguns desses estudos foram feitos em Londres. Há alguma coisa em que possa ajudá-los ou desejam apenas visitar a minha biblioteca?

Disse aquilo com tanta simplicidade que me apanhou de surpresa.

— Ambas as coisas — respondi. — Gostaríamos de visitar a sua biblioteca e de lhe fazer algumas perguntas para a nossa pesquisa. — Fiz uma pausa, procurando as palavras. — Miss Rossi e eu estamos muito interessados na história do seu país na Idade Média, embora eu saiba muito menos desse assunto do que devia, e estamos a escrever uns... — e comecei a gaguejar porque me ocorreu que, apesar da breve preleção de Helen no avião, eu nada sabia sobre a história da Bulgária, ou sabia tão pouco que tudo o que dissesse só pareceria absurdo àquele homem erudito que era o guardião do passado do seu país; e também porque o que tínhamos a discutir era extremamente pessoal, terrivelmente improvável e de maneira alguma algo que eu quisesse mencionar diante de Ranov, que nos observava com o seu sorriso escarninho por cima da mesa.

— Quer dizer que estão interessados na Bulgária medieval? — perguntou Stoichev, e tive a impressão de que também ele relanceava os olhos na direção de Ranov.

— Sim — disse Helen, vindo rapidamente em meu auxílio. — Estamos interessados na vida monástica da Bulgária medieval, que temos vindo a pesquisar o melhor que podemos para alguns artigos que gostaríamos de escrever. Mais especificamente, gostaríamos de saber sobre a vida nos mosteiros da Bulgária no último período medieval, e sobre algumas rotas que trouxeram peregrinos à Bulgária, bem como sobre as rotas que os peregrinos da Bulgária seguiam quando viajavam para outras terras.

Stoichev iluminou-se, sacudindo a cabeça com prazer evidente, de tal modo que as suas grandes orelhas delicadas captaram a luz.

— É um tema muito bom — declarou. O seu olhar perdeu-se ao longe, e imaginei que estivesse a ver um passado tão longínquo que era realmente o poço do tempo, e a ver com mais clareza do que qualquer outra pessoa no mundo o período a que nos referíamos. — Há alguma coisa em especial sobre a qual querem escrever? Tenho muitos manuscritos aqui que lhes podem ser úteis, e terei o maior prazer em deixar que os examinem, se quiserem.

Ranov mexeu-se na cadeira e pensei de novo como me aborrecia tê-lo ali a observar-nos. Felizmente a sua atenção concentrava-se no lindo perfil de Irina, do lado oposto da sala.

— Bem — disse eu —, gostaríamos de saber mais sobre o século quinze, o final do século quinze, e a doutora Rossi fez um bom trabalho sobre esse período no país natal da sua família...

— Que é a... Romênia — completou Helen. Mas fui criada e educada na Hungria.

— Ah, sim, então é nossa vizinha. — O professor Stoichev voltou-se para Helen e dirigiu-lhe o mais amável dos sorrisos. — E é da Universidade de Budapeste?

— Sou — respondeu Helen.

— Talvez conheça um amigo meu lá. O professor Sándor.

— Oh, sim, é o diretor do nosso departamento de História. É muito meu amigo.

— Ah, isso é ótimo, ótimo — disse o professor Stoichev. — Por favor, transmita-lhe os meus mais calorosos cumprimentos quando tiver oportunidade.

— Com prazer — e Helen sorriu-lhe.

— E quem mais? Acho que não conheço mais ninguém que esteja lá agora. Mas o seu nome, professora, é muito interessante. Conheço esse nome. Nos Estados Unidos — voltou-se para mim outra vez, e novamente para Helen; inquieto, vi os olhos de Ranov fixos em nós —, há um famoso historiador chamado Rossi. Será parente seu?

Para minha surpresa, Helen corou violentamente. Pensei que talvez ela não gostasse de admitir isso em público, ou ainda sentisse um resto de dúvida se devia fazê-lo ou não, ou talvez tivesse notado o súbito interesse de Ranov na conversa.

— Sim — respondeu ela, lacônica. — É o meu pai, Bartholomew Rossi. — Pensei que seria muito natural Stoichev interrogar-se por que razão a filha de um historiador inglês alegava ser romena e ter sido criada na Hungria. Entretanto, se ele tinha essas dúvidas, guardou-as para si.

— Sim, é esse mesmo o nome dele. Escreveu livros muito bons. E abrangendo um espectro tão amplo de assuntos! — Passou a mão pela testa. — Quando li alguns dos seus primeiros trabalhos, pensei que daria um ótimo historiador dos Balcãs, mas vi que abandonou essa área e foi para muitas outras.

Foi um alívio ouvir que Stoichev conhecia o trabalho de Rossi e tinha boa opinião dele, isso podia dar-nos credibilidade aos seus olhos e também tornar mais fácil conquistar a sua simpatia.

— É verdade — disse eu. — Na realidade, o professor Rossi não só é o pai de Helen como também é o meu orientador. Estou a trabalhar com ele na minha tese de doutoramento.

— Que sorte a sua — Stoichev dobrou uma das mãos cobertas de veias sobre a outra. — E a respeito de que é a sua tese?

— Bem — comecei, e dessa vez fui eu quem corou; esperava que Ranov não estivesse a observar estas mudanças de cor com muita atenção —, é sobre os mercadores holandeses do século dezessete.

— Excelente — disse Stoichev. — É um tema muito interessante. Então, o que o trouxe à Bulgária?

— É uma longa história — respondi. — Miss Rossi e eu estamos interessados em fazer algumas pesquisas sobre as ligações entre a Bulgária e a comunidade ortodoxa de Istambul depois da conquista otomana da cidade. Mesmo sendo um desvio do assunto da minha tese, temos escrito alguns artigos sobre isso. Na verdade, acabei de fazer uma palestra na Universidade de Budapeste sobre a história de... certas partes da Romênia sob o domínio dos Turcos. — Imediatamente, percebi que cometera um erro, talvez Ranov ainda não soubesse que tínhamos estado em Budapeste, além de Istambul. Helen estava tranquila, porém, e segui-lhe o exemplo. — Gostaríamos muito de terminar a nossa pesquisa aqui na Bulgária e achamos que o senhor talvez nos possa ajudar.

— Claro — disse Stoichev, pacientemente. — Talvez pudessem dizer-me exatamente o que lhes interessa mais na história dos nossos mosteiros medievais e das rotas de peregrinação, e no século quinze em particular. É um século fascinante da história da Bulgária. Sabem que, depois de 1393, a maior parte do nosso país estava sob o jugo otomano, se bem que algumas partes da Bulgária só tenham sido conquistadas quando o século quinze já ia bem avançado. A nossa cultura intelectual nativa foi preservada a partir dessa época em grande parte nos mosteiros. Fico contente que se interessem pelos mosteiros porque são uma das fontes mais ricas da nossa herança na Bulgária. — Fez uma pausa e dobrou de novo as mãos uma sobre a outra, como se esperasse para ver até que ponto essa informação nos era familiar.

— Sim — concordei. Não havia outra maneira. Teríamos de conversar sobre algum aspecto da nossa pesquisa com Ranov sentado mesmo à nossa frente. Se eu lhe pedisse para sair, ficaria logo desconfiado dos nossos objetivos. A nossa única esperança era fazer as perguntas soarem tão acadêmicas e impessoais quanto possível. — Acreditamos que existam certas ligações interessantes entre a comunidade ortodoxa de Istambul no século quinze e os mosteiros da Bulgária.

— Sim, isso é certamente verdade — disse Stoichev, — sobretudo desde que a Igreja búlgara foi colocada sob a jurisdição do patriarca de Constantinopla por Mehmed o Conquistador. Antes disso, é claro, a nossa igreja era independente, com o seu próprio patriarca em Veliko Trnovo.

Senti uma onda de gratidão por aquele homem com a sua maravilhosa erudição. Os meus comentários tinham sido pouco mais que frívolos, e contudo ele respondera com uma delicada além de informativa circunspeção.

— Exatamente — disse eu. — E estamos especialmente interessados... encontramos uma carta... isto é, estivemos recentemente em Istambul — tive o cuidado de não olhar para Ranov — e descobrimos uma carta que tem a ver com a Bulgária... com um grupo de monges que viajou de Constantinopla para um mosteiro na Bulgária. Para os objetivos de um dos nossos artigos, estamos interessados em reconstituir o percurso deles através da Bulgária. Talvez andassem em peregrinação, não temos certeza.

— Entendo — disse Stoichev. Os seus olhos estavam cheios de cautela e mais luminosos do que nunca. — Há alguma data nessa carta? Podem falar-me um pouco sobre o seu teor ou sobre quem a escreveu, se é que sabem quem foi, e onde a encontraram? A quem estava endereçada, e assim por diante, se souberem essas coisas?

— Certamente — disse eu — De fato, temos aqui uma cópia. O original está em Eslávomo, e um monge em Istambul copiou-o para nós. Está guardado no arquivo estatal de Mehmed II. Talvez queira ler a carta pessoalmente. — Abri a minha pasta e tirei a cópia da carta, entregando-lha e esperando que Ranov não pedisse para a ver depois

Stoichev pegou na carta e vi os seus olhos dispararem pelas primeiras linhas

— Interessante — disse, e, para minha decepção, colocou a em cima da mesa. Talvez ao fim e ao cabo não fosse ajudar-nos, nem ao menos ler a carta

— Minha querida — disse ele, virando se para a sobrinha. — Acho que não podemos examinar velhas cartas sem oferecer as visitas alguma coisa para comer e beber. Podes trazer nos raktya e um almoço leve? — E curvou a cabeça com especial cortesia para Ranov

Irina levantou-se prontamente, sorrindo

— Claro, tio — disse ela, num bonito inglês. Nunca mais acabavam, pensei, as surpresas naquela casa — Mas preciso de ajuda para trazer tudo aqui para cima — Olhou de relance para Ranov com os seus olhos claros e ele levantou-se, ajeitando o cabelo

— Terei muito prazer em ajudá-la — disse ele, e os dois desceram juntos, Ranov batendo ruidosamente com os pés nos degraus e Irina tagarelando com ele em búlgaro

Logo que a porta se fechou atrás deles, Stoichev inclinou se para a frente e leu a carta com ávida concentração. Quando terminou, ergueu os olhos para nós. O seu rosto perdera uns dez anos, mas estava tenso.

— Isto é extraordinário — disse, em voz baixa. Instintivamente, eu e Helen levantamo-nos ao mesmo tempo e fomos sentar-nos junto dele na extremidade da mesa comprida. — Estou espantado por ver esta carta

— Sim como? — disse eu, ansioso — Tem alguma idéia do que ela pode significar?

— Alguma. — Os olhos de Stoichev estavam enormes e olhou firmemente para mim — Sabe — acrescentou —, eu também tenho uma das cartas do irmão Kiril.

 

Lembrava-me muito bem da estação rodoviária de Perpignan, onde estivera com o meu pai no ano anterior, esperando pelo autocarro empoeirado que ia para as aldeias. Agora, o autocarro encostou novamente e Barley e eu entramos nele. A nossa viagem a Lês Bains, percorrendo largas estradas rurais, também me era familiar As cidades pelas quais passávamos eram circundadas por plátanos com as copas aparadas em quadrado. Árvores, casas, campos, carros velhos, tudo parecia ser feito da mesma poeira, uma nuvem cafe-au-lait que cobria tudo.

O hotel em Lês Bains também era como me lembrava, com os seus quatro andares revestidos de estuque, grades de ferro nas janelas e floreiras com flores rosadas. Dei por mim ansiando pelo meu pai, ficando sufocada só de pensar que o veríamos em breve, talvez dentro de poucos minutos. Desta vez, fui eu que guiei Barley, empurrando a pesada porta e depositando a minha mala em frente ao balcão com tampo de mármore da recepção do hotel. Mas aquele balcão pareceu-me tão alto e cheio de dignidade que me senti novamente tímida, e tive de me forçar a dizer ao empertigado senhor de idade atrás dele que pensava que o meu pai podia estar hospedado ali. Não me lembrava daquele senhor da nossa visita anterior, mas ele foi paciente, e depois de um minuto disse que de fato havia um monsieur estrangeiro com aquele nome hospedado ali, mas que a chave dele não estava no lugar, e portanto devia ter saído. Mostrou-nos o ganchinho vazio. O meu coração deu um salto, e logo depois outro quando um homem de quem me lembrava abriu a porta atrás do balcão. Era o maître do pequeno restaurante, cerimonioso, amável e apressado. O velho deteve-o com uma pergunta e ele virou-se para mim, étonné, e disse imediatamente que ali estava a jovem menina, e como estava crescida, e adorável. E o seu amigo.

Cousin — corrigiu Barley

— Mas monsieur não mencionara que a sua filha e o seu sobrinho viriam juntar-se-lhe, que bela surpresa! Tínhamos de jantar lá todos juntos naquela noite.

Perguntei-lhe onde estava o meu pai, se alguém sabia, mas ninguém sabia. Saíra cedo, interrompeu o mais velho, talvez para uma caminhada matinal. O maître disse que ainda estavam cheios mas, se precisássemos de outros quartos, ele tomaria providências. Por que não subíamos para o quarto do meu pai, pelo menos para deixar a nossa bagagem? O meu pai estava numa suite com uma bela vista e uma pequena sala de estar. Ele o maître ia dar-nos a outra de fazermos um café. O meu pai provavelmente voltaria em breve. Agradecidos, concordamos com todas as sugestões. O elevador barulhento levou-nos para cima tão devagar que me perguntei se não seria o próprio maître que estava a puxar os cabos no porão.

O quarto do meu pai, quando abrimos a porta, era espaçoso e agradável, e eu teria apreciado cada recanto dele se não tivesse sentido, constrangida, que estava a invadir o seu santuário pela terceira vez numa semana. Pior ainda foi a inesperada visão da mala do meu pai, das suas roupas familiares espalhadas pelo quarto, o seu velho estojo de barbear em couro e os seus sapatos de boa qualidade. Eu vira aqueles objetos apenas alguns dias antes, no quarto dele na casa do reitor James em Oxford, e a sua familiaridade atingiu-me em cheio.

Mas mesmo isto foi eclipsado por outro choque. O meu pai era um homem naturalmente organizado; qualquer quarto ou escritório que ocupava, por mais curto que fosse o período, era um modelo de ordem e método. Ao contrário de muitos solteiros, viúvos ou divorciados que vim a conhecer mais tarde, o meu pai nunca descera àquele estado que faz com que homens sozinhos despejem o conteúdo dos bolsos em pilhas sobre mesas e escrivaninhas, ou guardem as suas roupas em pilhas sobre os espaldares das cadeiras. Nunca vira os objetos pessoais do meu pai em tal desordem. A sua mala estava meio desfeita junto à cama. Aparentemente, revirara-a para tirar uma ou duas peças, deixando pelo chão um rastro de meias e roupa interior. O seu casaco leve de linho estava esparramado em cima da cama. De fato, mudara de roupa muito à pressa e largara o fato num monte junto da mala. Ocorreu-me que talvez aquilo não fosse obra do meu pai, que o quarto tivesse sido revistado na sua ausência. Mas aquele fato amontoado, despido como uma pele de cobra no chão, fez-me mudar de idéias. Os seus sapatos de caminhada não estavam no lugar habitual na mala, e as formas de cedro para sapatos que mantinha dentro deles tinham sido atiradas para o lado. Evidentemente, nunca estivera com tanta pressa na vida.

 

No momento em que Stoichev nos contou que possuía uma das cartas do irmão Kino, Helen e eu entreolhamo-nos, pasmados.

— O que quer dizer? — disse ela, por fim.

Stoichev bateu com os dedos excitados na cópia de Turgut

— Tenho um manuscrito que me foi dado em 1924 pelo meu amigo Atanas Angelov. Descreve uma parte diferente da mesma viagem, tenho certeza. Não sabia da existência de outros documentos sobre essas viagens. Na verdade, o meu amigo morreu repentinamente logo a seguir a ter-mo dado, pobre tipo. Esperem — levantou-se, cambaleando com a pressa, e tanto eu como Helen levantamo-nos de um salto para o amparar, se caísse No entanto, ele endireitou-se sem ajuda e entrou numa das divisões menores, fazendo um gesto para que o seguíssemos e tentássemos não tropeçar nas pilhas de livros que o contornavam. Examinou as prateleiras e depois esticou-se para agarrar numa caixa que o ajudei a trazer para baixo. Dela tirou uma pasta de cartão atada com um cordão desfiado. Levou a pasta até a mesa e abriu-a sob os nossos olhos ansiosos, retirando um documento tão frágil que estremeci só de o ver manipulá-lo. Ficou ali a olhar para ele por um longo minuto, como que paralisado, e então suspirou

— Este é o original, como podem ver. A assinatura.

Inclinamo-nos sobre ele e, com um arrepio que me percorreu os braços e o pescoço, vi um nome em cinlico, caligrafado com tanto esmero que até eu era capaz de o ler — Kiril e o ano 6985. Olhei para Helen, e ela mordeu o lábio. O nome desbotado daquele monge era terrivelmente real. Assim como real era o fato de que outrora estivera tão vivo como nós e tinha apoiado uma pena sobre aquele pergaminho com a sua mão quente, viva.

Stoichev parecia quase tão impressionado como eu, embora a visão de um manuscrito tão antigo devesse ser o seu quinhão quotidiano.

— Traduzi-o para o Búlgaro — disse, depois de um momento, e puxou outra folha, esta datilografada em papel vegetal. Sentámo-nos — Vou tentar lê-la.

Aclarou a garganta e deu nos uma versão tosca mas adequada de uma carta que desde então foi amplamente traduzida.

 

A Sua Excelência, Abade-mor Eupraxius:

Tomo da pena para cumprir a tarefa de que na vossa sabedoria me incumbísteis, e para vos relatar os particulares da nossa missão conforme chegarmos a eles. Possa eu fazer-lhes jus e aos vossos desejos, com a ajuda de Deus. Dormimos esta noite perto de Virbius, a dois dias de viagem de vós, no mosteiro de S. Vladimir, onde os santos irmãos nos deram as boas-vindas em vosso nome. De acordo com as vossas instruções, fui sozinho junto do abade-mor e contei-lhe a nossa missão em grande segredo, sem que nenhum noviço ou criado estivesse presente. Ele deu ordens para que a nossa carroça ficasse trancada nos estábulos dentro do pátio, com dois guardas de entre os seus monges e dois dos nossos. Espero que possamos encontrar muitas vezes tanta compreensão e proteção, pelo menos até entrarmos em terras infiéis. Como me instruísteis, deixei o livro nas mãos do senhor abade com as vossas recomendações e vi que ele o escondeu imediatamente, sem sequer o abrir na minha frente.

Os cavalos estão cansados depois da subida através das montanhas e dormiremos aqui outra noite ainda, depois desta. Nós próprios estamos agora refeitos pelos serviços da sua igreja aqui, na qual dois ícones da mais pura Virgem realizaram milagres apenas há oitenta anos. Um deles ainda mostra as lágrimas milagrosas que Ela chorou por um pecador e que se transformaram em pérolas raras. Rezamos-lhe preces fervorosas para que nos proteja na nossa missão, para que possamos alcançar em segurança a grande cidade e que até mesmo na capital do inimigo possamos encontrar um abrigo a partir do qual desempenharmos a nossa tarefa.

O vosso mais humilde servo, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Irmão Kiril

 

Abril do ano 6985 de Nosso Senhor

Acho que Helen e eu mal respirávamos enquanto Stoichev lia isto em voz alta. Traduziu lenta e metodicamente, e com significativa habilidade. Eu já estava a ponto de exclamar em voz alta sobre a inquestionável relação entre as duas cartas quando um ruído de pés lá em baixo na escada de madeira nos fez levantar os olhos.

— Estão a voltar — disse Stoichev, em voz baixa. Guardou a carta, e eu juntei-lhe a nossa, provisoriamente, por segurança. — O senhor Ranov... foi designado como vosso guia.

— Sim — disse eu depressa. — E parece estar demasiado interessado no nosso trabalho aqui. Há muito mais coisas que gostaríamos de lhe contar sobre a nossa pesquisa, mas é muito privado e também... — fiz uma pausa.

— Perigoso? perguntou Stoichev, voltando o seu velho e maravilhoso rosto na nossa direção.

— Como adivinhou? — Não conseguia esconder a minha surpresa. Nada do que disséramos até àquele momento dava a entender que houvesse algum tipo de perigo.

Ali abanou a cabeça, e no seu suspiro havia uma profundidade de experiência e pesar que eu não podia sequer imaginar.

— Há algumas coisas que também lhes quero contar. Nunca pensei que veria outra destas cartas. Falem com o senhor Ranov o menos possível.

— Não se preocupe — Helen abanou a cabeça e os dois entreolharam-se por um segundo com um sorriso.

— Silêncio disse Stoichev em voz baixa. — Tomarei providências para que possamos voltar a conversar.

Irina e Ranov entraram na sala de estar fazendo barulho com os pratos, e Irina começou a distribuir copos e uma garrafa com um líquido cor de âmbar. Ranov veio atrás dela trazendo um pão e um prato de feijões brancos. Estava a sorrir e parecia quase domesticado. Desejei poder agradecer à sobrinha de Stoichev. Ela sentou o tio confortavelmente na sua cadeira e convidou-nos a sentar, e percebi que a excursão daquela manhã me tinha deixado com uma fome terrível.

— Por favor, ilustres hóspedes, fiquem à vontade. — Stoichev fez um amplo gesto com a mão sobre a mesa, como se ela pertencesse ao imperador de Constantinopla. Irina encheu os copos de bebida — só o cheiro seria suficiente para matar um animal de pequeno porte e ele brindou-nos, galante, com o seu sorriso de dentes amarelos, mas aberto e franco. — Bebo à amizade entre estudiosos de todo o mundo.

Todos retribuímos o seu brinde com entusiasmo, exceto Ranov, que levantou o copo ironicamente e olhou em volta para nós.

— Que os vossos estudos façam avançar o conhecimento do Partido e do povo — disse, inclinando-se ligeiramente para mim. Aquilo quase me tirou o apetite; estaria ele a falar de um modo geral ou queria fazer avançar o conhecimento do Partido através de algo em especial que nós sabíamos? Mas retribuí a saudação e engoli a minha raktya. Decidi que não havia outra maneira de a beber a não ser rapidamente, e que a queimadura de terceiro grau que recebia no fundo da garganta era logo substituída por uma ardência agradável. Mais um pouco desta bebida, pensei, e corro o risco de começar a gostar ligeiramente de Ranov.

— Estou feliz por ter a oportunidade de conversar com alguém interessado na nossa história medieval — disse-me Stoichev. — Talvez seja interessante o senhor e Miss Rossi presenciarem uma festa que celebra duas das nossas grandes figuras medievais. Amanhã é o dia de Kiril e Methodii, criadores do grande alfabeto eslavónio. Em inglês, diz-se Cyril e Methodius e chamam ao alfabeto cirílico, não é? Nós chamamos-lhe kirilitsa, em homenagem a Kiril, o monge que o inventou.

Por um momento fiquei confuso, pensando no nosso irmão Kiril, mas quando Stoichev voltou a falar percebi o que ele tinha em mente, e como era engenhoso.

— Hoje à tarde estou muito ocupado com os meus escritos — disse, — mas se quiserem voltar amanhã, alguns dos meus antigos alunos estarão aqui para comemorar a data, e poderei contar-lhes mais sobre Kiril.

— É muito gentil da sua parte — disse Helen. — Não queremos abusar muito do seu tempo, mas seria uma honra estar aqui com o senhor. É possível, camarada Ranov?

Ranov não ignorou aquele "camarada", e franziu a testa por trás do seu segundo copo de rakiya.

— Certamente — disse. — Se é assim que desejam realizar a vossa pesquisa, fico feliz por poder ajudar.

— Muito bem — disse Stoichev. — Encontramo-nos aqui cerca da uma e meia, e Irina terá alguma coisa boa para o nosso almoço. É sempre um grupo agradável. Poderão conhecer alguns estudiosos cujo trabalho acharão interessante.

Agradecemos profusamente e obedecemos a Irina, que insistia para que comêssemos, embora eu notasse que Helen também estava a evitar o resto da rakiya. Quando acabamos a nossa refeição simples, Helen levantou-se imediatamente e todos a imitamos.

— Não queremos cansá-lo mais, professor — disse ela, pegando-lhe na mão.

— De maneira nenhuma, minha querida. — Stoichev apertou-lhe as mãos calorosamente, mas pensei que ele parecia realmente cansado. — Aguardo com ansiedade o nosso encontro amanhã.

Irina acompanhou-nos de novo até ao portão, através da horta e do jardim.

— Até amanhã — disse, sorrindo-nos, e acrescentou alguma coisa mais atrevida em búlgaro que fez com que Ranov alisasse o cabelo com a mão antes de voltar a pôr o chapéu.

— É uma rapariga muito bonita — observou, complacentemente, enquanto caminhávamos até ao carro, e Helen revirou os olhos para mim, nas costas dele.

Foi só à noite que tivemos alguns minutos a sós. Ranov tinha-se retirado após um jantar interminável na tristonha sala de jantar do hotel. Helen e eu subimos as escadas juntos o elevador estava outra vez avariado e ficamos um pouco no vestíbulo junto do meu quarto, momentos de doçura roubados à nossa peculiar situação. Quando achamos que Ranov tinha ido embora, descemos novamente as escadas, fomos até um café numa rua transversal ali perto e sentámo-nos sob as árvores.

— Alguém está a vigiar-nos aqui também — disse Helen em voz baixa, enquanto nos sentávamos a uma das mesas. Por prudência, pousei a minha pasta no colo; já desistira até de a deixar no chão por baixo das mesas dos cafés. Helen sorriu. — Mas pelo menos aqui as nossas conversas não são interceptadas, como no meu quarto. E no teu. — Olhou para os ramos verdes por cima de nós. — Tílias — disse. — Dentro de poucos meses, vão estar cobertas de flores. Na minha terra, as pessoas fazem chá com elas; provavelmente aqui também. Quando nos sentamos numa mesa ao ar livre, como aqui, temos primeiro de limpar a mesa porque as flores e o pólen caem por toda a parte. Cheiram a mel, muito doces e frescas. — E fez um movimento leve, como se estivesse a afastar milhares de flores de um verde pálido.

Peguei-lhe na mão e virei-a de modo a poder ver-lhe a palma, com as suas linhas graciosas. Esperava que significassem uma vida longa e boa sorte, ambas partilhadas comigo.

— O que pensas do fato de Stoichev ter aquela carta?

— Pode ser um golpe de sorte para nós — ponderou ela. — No início, pensei que fosse apenas uma peça de um quebra-cabeças histórico, uma peça maravilhosa, mas como iria ajudar-nos? Mas quando Stoichev adivinhou que a nossa carta era perigosa, senti uma grande esperança de que ele saiba qualquer coisa importante.

— Também pensei o mesmo — admiti. — Mas também pensei que ele podia simplesmente estar a querer dizer que era material politicamente sensível, como grande parte do seu trabalho, porque envolve a história da Igreja.

— Eu sei — Helen suspirou. — Pode significar só isso.

— E isso seria suficiente para ele preferir não discutir o assunto na presença de Ranov.

— Sim. Temos de esperar até amanhã para descobrir o que ele quis dizer. — Entrelaçou os seus dedos nos meus. — Esta espera diária é terrível para ti, não é?

Fiz que sim com a cabeça, lentamente.

— Se conhecesses Rossi... — disse, e parei.

Os seus olhos estavam fixos nos meus e lentamente empurrou para trás uma melena de cabelo que tinha escapado dos ganchos. O gesto foi tão triste que deu um enorme peso ao que disse em seguida.

— Estou a começar a conhecê-lo, através de ti.

Naquele momento, uma empregada de blusa branca aproximou-se e perguntou qualquer coisa. Helen virou-se para mim.

— O que pedimos para beber? — A empregada olhava com curiosidade para nós, criaturas que falavam uma língua estranha.

— Como sabes o que pedir? — perguntei, provocando-a.

— Chá — disse ela, apontando para si mesma e para mim. — Chá, por favor. Molya.

— Estás a aprender depressa — disse eu, quando a empregada voltou para dentro.

Ela encolheu os ombros.

— Estudei um pouco de russo. O búlgaro é muito parecido.

Quando a empregada voltou com o nosso chá, Helen mexeu-o, o rosto sombrio.

— É um alívio tão grande estar longe de Ranov que nem posso pensar em voltar a vê-lo amanhã. Não vejo como vamos conseguir fazer uma pesquisa séria com ele nos nossos calcanhares.

— Se eu soubesse que ele realmente suspeita de algo sobre a nossa pesquisa, acho que me sentiria melhor — confessei. — O que é estranho é que ele me lembra alguém que já encontrei antes, mas parece que tenho amnésia e não sei quem é.

Olhei para o rosto sério e lindo de Helen e no mesmo segundo senti o meu cérebro a tatear em busca de alguma coisa, esvoaçando no limiar de um enigma, e não era a questão de existir ou não um possível gêmeo de Ranov. Tinha a ver com o rosto de Helen no crepúsculo, e com o ato de levantar a chávena de chá para beber, e com a estranha palavra que eu escolhera. O meu espírito já tinha esbarrado ali antes, mas desta vez a idéia irrompeu de súbito.

— Amnésia — disse. — Helen, Helen, amnésia.

— O quê? — ela franziu a testa, espantada com a minha veemência.

— As cartas de Rossi! — Praticamente gritei. Abri a minha pasta com tanta pressa que o nosso chá se derramou por cima da mesa. — A carta, a viagem à Grécia!

Levei vários minutos para encontrar o raio da coisa entre a minha papelada, e depois para encontrar o excerto, e depois para o ler em voz alta para Helen, cujos olhos lentamente se arregalaram, enormes, escuros, chocados.

— Lembras-te da carta sobre como ele voltou para a Grécia, para Creta, depois de o seu mapa ter sido roubado em Istambul, e de como a sua sorte mudou para pior e tudo começou a correr mal? — Sacudi a página em frente dela.

— Ouve isto: "Os velhos nas tabernas de Creta mostravam-se mais inclinados a contar-me as suas mil e uma histórias de vampiros do que a indicar-me onde poderia encontrar outros fragmentos de cerâmica como aquele, que navios antigos os seus avós tinham feito naufragar para depois os pilharem. Certa noite, deixei que um estranho me oferecesse uma rodada de uma especialidade local chamada, extravagantemente, amnésia, que me pôs doente durante todo o dia seguinte."

— Oh, meu Deus — disse Helen, baixinho.

— "Deixei que um estranho me oferecesse uma bebida chamada amnésia." — Parafraseei, tentando não levantar a voz. — Quem diabo achas que o estranho era? E foi por isso que Rossi se esqueceu...

— Ele esqueceu — Helen parecia hipnotizada pela palavra. — Ele esqueceu a Romênia...

— Esqueceu completamente que tinha estado lá. As suas cartas para Hedges dizem que estava a sair da Romênia para a Grécia, para conseguir algum dinheiro e participar da escavação arqueológica...

— E ele esqueceu a minha mãe Helen — terminou a frase, de modo quase inaudível.

— A tua mãe — repeti, com a súbita imagem da mãe de Helen parada à porta de casa, vendo-nos partir. — Ele nunca teve a intenção de não voltar. Esqueceu-se de tudo. E foi... foi por isso que me disse que nem sempre conseguia lembrar-se claramente da sua pesquisa.

O rosto de Helen ficou pálido, as mandíbulas contraídas, os olhos com uma expressão dura e enchendo-se de lágrimas.

— Odeio-o — disse em voz baixa, e eu sabia que não estava a referir-se ao pai.

 

Chegamos ao portão de Stoichev na manhã seguinte pontualmente a uma e meia. Helen apertou a minha mão, ignorando a presença de Ranov, e o próprio Ranov parecia estar em clima de festa, estava menos carrancudo do que habitualmente e vestira um pesado fato castanho que ainda não lhe tínhamos visto. De trás do portão, vinham sons de conversas e risadas, e sentíamos o cheiro de lenha a arder e de uma carne deliciosa a ser cozinhada. Se tirasse firmemente da cabeça todos os pensamentos sobre Rossi, também eu conseguiria sentir-me festivo. Sentia que naquele dia, entre todos os outros, alguma coisa aconteceria para me ajudar a encontrá-lo, e resolvi celebrar a festa de Kiril e Methodii com todo o entusiasmo possível

No pátio, víamos grupos de homens e algumas mulheres reunidos sob o caramanchão. Irma borboleteava aqui e ali por trás da mesa, enchendo os pratos das pessoas e servindo copos daquele líquido poderoso cor de âmbar. Quando nos viu, veio rapidamente na nossa direção, os braços estendidos como se já fôssemos velhos amigos. Trocou apertos de mão comigo e com Ranov e beijou Helen

— Fico muito feliz por terem vindo Obrigada — disse. — O meu tio não conseguiu dormir nem comer nada desde que estiveram aqui ontem. Espero que lhe digam que precisa de comer — e franziu o seu rosto bonito

— Por favor, não se preocupe — disse Helen. — Faremos o possível para o convencer.

Encontramos Stoichev a receber a sua corte debaixo das macieiras. Alguém tinha disposto várias cadeiras de madeira em semicírculo e ele estava sentado na maior delas, com os homens mais jovens a sua volta.

— Ah, olá — exclamou, pondo-se de pé com esforço. Os outros levantaram-se imediatamente para o ajudarem e esperaram para nos cumprimentar. — Sejam bem vindos, meus amigos Por favor, conheçam os meus outros amigos. — Com um aceno frágil, indicou os rostos em torno de si. — Estes são alguns dos meus alunos de antes da guerra, e são muito simpáticos em voltar aqui para me visitar. — Muitos daqueles homens, com as suas camisas brancas e fatos escuros coçados, só eram jovens se comparados com Ranov, a maioria estava pelo menos na faixa dos cinquenta anos. Sorriam e apertavam-nos a mão calorosamente, e um deles inclinou-se para beijar a mão de Helen com uma cortesia formal. Gostei dos olhos deles, escuros, vivos, dos seus sorrisos silenciosos em que cintilavam dentes de ouro.

Irina chegou por trás de nós; parecia estar a insistir para que todos comessem novamente, porque logo a seguir fomos arrastados por uma onda de convidados para as mesas instaladas debaixo do caramanchão. Ali encontramos uma refeição realmente farta, e também a origem do cheiro maravilhoso, que provou ser um carneiro inteiro a assar sobre uma cova aberta no quintal junto da casa. A mesa estava posta com pratos de cerâmica com batatas às rodelas, salada de tomate e pepino, queijo branco fresco, fatias de pão e travessas dos mesmos folhados de queijo que tínhamos comido em Istambul. Havia guisados de carne, tigelas de iogurte, beringelas e cebolas grelhadas. Irina não nos deixou em paz enquanto os nossos pratos não ficaram quase pesados de mais para os segurarmos, e seguiu-nos de volta ao pequeno pomar levando copos de rakiya.

Entretanto, os alunos de Stoichev estavam claramente a competir uns com os outros para ver quem lhe levava mais comida, e depois encheram-lhe o copo até à borda, e ele pôs-se lentamente de pé. Por todo o pátio as pessoas gritaram a pedir silêncio, e ele então brindou-as com um breve discurso, no qual distingui os nomes de Kiril e Methodii, bem como o meu e o de Helen. Quando terminou, uma saudação elevou-se de todo o grupo:

— Stoichev! Za zdraveto na Profesor Stoichev! Nazdrave!

Os aplausos soavam à nossa volta. Todos os rostos estavam voltados para Stoichev; toda a gente estava virada para ele com um sorriso e um copo levantado, e alguns tinham lágrimas nos olhos. Lembrei-me de Rossi, de como ouvira com tanta modéstia as saudações e os discursos com que tínhamos comemorado o seu vigésimo ano na universidade. Virei a cara, com um nó na garganta. Ranov, reparei, andava por ali, debaixo do caramanchão, segurando um copo.

Quando o grupo sossegou e recomeçou a comer e a conversar, Helen e eu encontrámo-nos nos lugares de honra, ao lado de Stoichev. Ele sorria e assentia com a cabeça.

— Estou muito feliz por terem podido vir juntar-se a nós hoje. Sabem, este é o meu feriado preferido. Temos muitos dias dedicados a santos no calendário eclesiástico, mas este é particularmente caro a todos os que ensinam e aprendem, porque é quando honramos a herança eslavónia do alfabeto e da literatura, e o ensino e a aprendizagem de muitos séculos que tiveram a sua origem com Kiril e Methodii e a sua grande invenção. Além disso, neste dia, todos os meus alunos e colegas preferidos vêm interromper o trabalho do seu velho professor. E estou-lhes muito grato pela interrupção. — Olhou em volta com aquele sorriso cheio de afeto e deu uma palmadinha no ombro do colega mais próximo. Vi com uma pontada de tristeza como a sua mão parecia frágil, fina e quase translúcida

Algum tempo depois, os alunos de Stoichev começaram a dispersar, dirigindo-se para a mesa onde o carneiro assado tinha acabado de ser trinchado, ou passeando no jardim em grupos de dois e três. Logo que se afastaram, Stoichev virou-se para nós com um ar ansioso

— Venham — disse — Vamos conversar enquanto podemos. A minha sobrinha prometeu manter Mr. Ranov afastado tanto tempo quanto possível. Tenho algumas coisas para lhes contar e acredito que também tenham muito para me dizer

— Com certeza — puxei a minha cadeira para mais perto dele, e Helen fez o mesmo

— Em primeiro lugar, meus amigos — disse Stoichev, — li novamente com atenção a carta que deixaram comigo ontem. Aqui está a vossa cópia. — Tirou-a do bolso da camisa. — Devolvo-a agora para a manter em segurança. Li-a muitas vezes e creio que foi escrita pela mesma mão que escreveu a carta que possuo o irmão Kiril, quem quer que tenha sido, escreveu as duas. Não tenho o original para estudar, é claro, mas se a cópia for exata, o estilo de composição é o mesmo e os nomes e datas coincidem. Acho que podemos ter poucas dúvidas de que essas cartas faziam parte da mesma correspondência, e que, ou foram entregues separadamente, ou separadas uma da outra por circunstâncias que jamais conheceremos. Agora, tenho algumas outras reflexões para ambos, mas primeiro tem de me contar mais sobre a vossa pesquisa. Tenho a impressão de que não vieram a Bulgária apenas para aprender mais sobre os nossos mosteiros. Como encontraram esta carta?

Contei-lhe que tínhamos iniciado a nossa pesquisa por motivos que seriam demasiado difíceis de explicar, porque não pareciam muito racionais.

— O senhor disse que leu os trabalhos do professor Bartholomew Rossi, o pai de Helen. Ele desapareceu recentemente, em circunstâncias muito estranhas.

Do modo mais rápido e claro que pude, resumi a Stoichev a minha descoberta do livro do dragão, o desaparecimento de Rossi, o conteúdo das cartas e as cópias dos estranhos mapas que levávamos conosco, e a nossa pesquisa em Istambul e Budapeste, incluindo a canção folclórica e a xilogravura com a palavra Ivireanu, que tínhamos visto na biblioteca da universidade em Budapeste. Deixei de fora apenas o segredo da Guarda do Crescente. Não me atrevi a tirar nenhum documento da minha pasta com tantas outras pessoas a vista, mas descrevi-lhe os três mapas e a semelhança do terceiro com o dragão dos livros. Ele ouviu com a máxima paciência e interesse, a testa contraída sob os finos cabelos brancos, os olhos escuros muito abertos. Apenas me interrompeu uma vez, para me pedir com ar urgente uma descrição mais exata de cada um dos livros do dragão — o meu, o de Rossi, o de Hugh James, o de Turgut. Vi que, por causa dos seus conhecimentos sobre manuscritos e publicações antigas, os livros deviam ter um especial interesse para ele.

— Tenho o meu aqui — acrescentei, tocando na pasta que tinha no colo. Ele teve um sobressalto, olhando fixamente para mim.

— Gostaria de ver esse livro logo que possível — disse.

Mas o assunto que mais pareceu chamar-lhe a atenção foi a descoberta, por Turgut e Selim, de que o abade a quem as cartas do irmão Kiril eram endereçadas tinha presidido ao mosteiro de Snagov, na Valáquia.

— Snagov — disse ele num sussurro. O seu velho rosto tornou-se violáceo e por um momento perguntei-me se iria desmaiar. — Eu devia ter percebido. E aquela carta está na minha biblioteca há trinta anos!

— Eu esperava ter a oportunidade de lhe perguntar, também, onde encontrara a sua carta.

— Como vê, há indicações bastante seguras de que os monges do grupo do irmão Kiril viajaram da Valáquia para Constantinopla antes de virem para a Bulgária — disse eu.

— Sim — ele sacudiu a cabeça. — Sempre achei que a carta se referia a uma viagem de monges de Constantinopla em peregrinação à Bulgária. Nunca percebi... Maxim Eupraxius... o abade de Snagov... — Parecia dominado por rápidos raciocínios, que se refletiam no seu velho rosto expressivo como a passagem de um golpe de vento e o faziam piscar os olhos rapidamente. — E essa palavra Ivireanu que encontraram, e também Mr. Hugh James, em Budapeste...

— Sabe o que significa? — perguntei, ansioso.

— Sim, sim, meu filho. — Stoichev parecia estar a olhar através de mim, sem me ver. — É o nome de Antim Ivireanu, um estudioso e impressor de Snagov do final do século dezessete. Muito posterior a Vlad Tepes. Já estudei o trabalho de Ivireanu. Foi um nome muito considerado entre os estudiosos do seu tempo e atraiu muitos visitantes ilustres a Snagov. Imprimiu o Evangelho em Romeno e em Árabe, e a sua prensa foi a primeira da Romênia, muito provavelmente. Mas, meu Deus, talvez não tenha sido a primeira, se os livros do dragão forem muito mais antigos. Há muita coisa que preciso de lhes mostrar! — E balançou a cabeça, os olhos abertos. — Vamos para os meus aposentos, rápido.

Helen e eu olhamos em volta.

— Ranov está ocupado com Irma — disse eu, em voz baixa.

— Sim — Stoichev pôs-se de pé. — Vamos por aquela porta lateral da casa. Rápido, por favor.

Não precisávamos de incentivo. Só a expressão do seu rosto teria sido suficiente para que eu o seguisse até ao alto de um penhasco. Subiu as escadas com dificuldade e nós seguimo-lo lentamente. Sentou-se para descansar diante da mesa grande. Notei que estava coberta de livros e manuscritos espalhados que não se encontravam lá na véspera.

— Nunca tive muitas informações sobre aquela carta, nem sobre as outras — disse Stoichev, quando conseguiu recuperar o fôlego.

— As outras? — Helen sentou-se ao seu lado.

— Sim. Há outras duas cartas do irmão Kiril, com a minha e com a de Istambul, são quatro. Precisamos ir ao mosteiro de Rila imediatamente para ver as outras. É uma descoberta incrível, poder reuni-las. Mas não era isso que eu queria mostrar-lhes. Nunca estabeleci nenhuma relação... — mais uma vez parecia demasiado perturbado para falar por muito tempo.

Após um momento, entrou num dos outros quartos e voltou trazendo um volume forrado a papel, que se revelou ser uma antiga revista acadêmica impressa na Alemanha.

— Eu tinha um amigo — deteve-se. — Se ao menos ele tivesse vivido para ver este dia! Já lhes falei dele, o seu nome era Atanas Angelov. Sim, era um historiador búlgaro e foi um dos meus primeiros mestres. Em 1923, estava a fazer uma pesquisa na biblioteca de Rila, que é um dos nossos grandes repositórios de documentos medievais preciosos. Lá, encontrou um manuscrito do século quinze; estava escondido dentro da capa de madeira de um folio do século dezoito. Esse manuscrito que ele queria publicar... é a Crônica de uma viagem da Valáquia a Bulgária. Morreu enquanto ainda estava a elaborar as notas para ele, e eu acabei-as e publiquei-o. O manuscrito original ainda está em Rila e eu nunca soube... — deu uma pancada na testa com a sua mão frágil. — Aqui, rápido. Foi publicado em Búlgaro, mas vamos examiná-lo e eu falo-lhes dos pontos mais importantes.

Abriu a desbotada revista com uma mão trêmula, e a sua voz também tremia a medida que nos fazia um resumo da descoberta de Angelov. O artigo que tinha escrito a partir das notas de Angelov e o documento propriamente dito já foram desde então publicados em inglês, com muitas atualizações e infindáveis notas de rodapé. Mas até hoje não posso olhar para a edição impressa sem ver o rosto envelhecido de Stoichev, os fiapos de cabelo caindo sobre as orelhas protuberantes, os grandes olhos voltados para a página com ardente concentração e sobretudo a sua voz vacilante.

 

A "CRÔNICA" DE ZACHARIAS DE OGRAPHOU

Por Atanas Angelov e Anton Stoichev OGRAPHOU

INTRODUÇÃO

A "Crônica" de Zacharias como Documento Histórico

Apesar da sua reconhecidamente frustrante incompletude, a "Crônica" de Zacharias, com a "História de Stefan, o Andarilho" incluída, é uma importante fonte de confirmação das rotas de peregrinação cristãs nos Balcãs no século quinze, assim como de informações sobre o destino do corpo de Vlad III "Tepes" da Valáquia, que há muito se acredita ter sido sepultado no mosteiro do lago Snagov (na atual Romênia). Também nos oferece um raro relato sobre os neomártires valáquios (embora não possamos saber com certeza as origens nacionais dos monges de Snagov, com exceção de Stefan, o tema da "Crônica"). Há registros de apenas sete outros neomártires de origem valáquia, e nenhum destes, tanto quanto se sabe, foi martirizado na Bulgária.

A "Crônica", como ficou conhecido o documento sem título, foi escrita em Eslavónio em 1479 ou 1480 por um monge chamado Zacharias, no mosteiro búlgaro do monte Athos, Zographou. Zographou, "o mosteiro do pintor", originalmente fundado no século dez e adquirido pela Igreja búlgara na década de 1220, está localizado próximo do centro da península Atônita. Assim como no mosteiro sérvio de Hilandar e no russo Panteleimon, a nacionalidade da população de Zographou não se limitava à do seu patrono; este fato e a falta de qualquer outra informação sobre Zacharias tornam impossível determinar a sua origem: pode ter sido búlgaro, sérvio, russo ou talvez grego, embora o fato de ter escrito em Eslavónio conte a favor de uma origem eslava. A "Crônica" conta-nos apenas que nasceu do decurso do século quinze e que os seus talentos eram apreciados pelo abade de Zographou, uma vez que o abade o escolheu para ouvir a confissão de Stefan, o Andarilho, em pessoa e registrá-la, para um importante objectivo burocrático e talvez teológico.

As rotas de viagem mencionadas por Stefan na sua história correspondem a diversas rotas de peregrinação bem conhecidas. Constantinopla era o destino supremo para os peregrinos valáquios, como o era para todo o mundo cristão oriental. A Valáquia, e particularmente o mosteiro de Snagov, também era um local de peregrinação e não era invulgar que a rota de um peregrino tocasse, nos seus pontos mais distantes, tanto Snagov como Athos. O fato de os monges terem passado por Haskovo a caminho da região de Bachkovo indica que provavelmente escolheram uma rota por terra partindo de Constantinopla, atravessando Edirne (atual Turquia) até ao Sudeste da Bulgária, os portos habituais da costa do mar Negro tê-los-iam deixado muito a norte para uma paragem em Haskovo

O aparecimento de destinos tradicionais de peregrinação na "Crônica" de Zachanas levanta a questão de a história de Stefan ser ou não um documento de peregrinação No entanto, as duas supostas razões para as deambulações de Stefan — exílio da cidade de Constantinopla conquistada após 1453 e o transporte de relíquias e a busca de um "tesouro" na Bulgária depois de 1476 — tornam-na pelo menos uma variante da clássica crônica do peregrino. Além disso, apenas a partida de Stefan de Constantinopla quando era ainda um jovem monge parece ter sido originalmente motivada pelo desejo de visitar lugares sagrados no estrangeiro

Um segundo tópico sobre o qual a "Crônica" fornece informações são os últimos dias de Vlad III da Valáquia (1428-476), popularmente conhecido como Vlad Tepes — o Empalador — ou Drácula. Embora diversos historiadores que foram seus contemporâneos façam descrições das suas campanhas contra os Otomanos e das suas lutas para tomar e manter o trono da Valáquia, nenhum deles trata com pormenores do tema da sua morte e do seu enterro. Vlad III fez contribuições generosas para o mosteiro de Snagov, como afirma a narrativa de Stefan, reconstruindo a sua igreja. Também é provável que tenha pedido para ser sepultado ali, mantendo a tradição dos fundadores e dos grandes doadores a instituições de todo o mundo ortodoxo.

Na "Crônica", Stefan afirma que Vlad visitou o mosteiro em 1476, o último ano da sua vida, talvez poucos meses antes da sua morte. Em 1476, o trono de Vlad III sofria uma imensa pressão do sultão otomano Mehmed II, com o qual Vlad estivera em guerra intermitente desde cerca de 1460. Ao mesmo tempo, o seu poder sobre o trono da Valáquia estava ameaçado por um grupo dos seus boiardos, prontos para se aliar a Mehmed se Vlad preparasse uma nova invasão da Valáquia.

Se a "Crônica" de Zachanas estiver correta, Vlad III fez uma visita a Snagov que não foi registrada em nenhuma outra fonte e que deve ter sido extremamente perigosa para ele, em termos pessoais. A "Crônica" relata que Vlad levou um tesouro para o mosteiro, o fato de o ter feito com enorme risco pessoal mostra a importância da sua ligação a Snagov. Devia estar bem ciente das constantes ameaças à sua vida, tanto da parte dos Otomanos como do seu principal rival valáquio durante aquele período, Basarab Laiota, que ocupou o trono da Valáquia por um breve período de tempo após a morte de Vlad. Uma vez que havia poucas vantagens políticas decorrentes da sua visita a Snagov, é razoável especular que Snagov era importante para Vlad III por razões espirituais ou pessoais, talvez porque planejasse fazer dele o seu último lugar de repouso. De qualquer forma, a "Crônica" de Zacharias confirma que, perto do fim da sua vida, Vlad III deu particular atenção a Snagov.

As circunstâncias da morte de Vlad III são muito pouco claras, e tornaram-se ainda mais nebulosas devido às contradições entre lendas tradicionais e estudos mal conduzidos. No final de Dezembro de 1476 ou no início de Janeiro de 1477, sofreu uma emboscada, provavelmente armada pelo exército turco na Valáquia, e foi morto na batalha que se seguiu. Algumas tradições afirmam que foi morto pelos seus próprios homens, que o confundiram com um oficial turco quando subiu a uma colina para ter uma melhor visão da batalha em curso. Uma variante desta lenda afirma que alguns dos seus homens já esperavam por uma oportunidade para o assassinar, como castigo pela sua infame crueldade. A maioria das fontes que relatam a sua morte estão de acordo sobre o fato de o corpo de Vlad ter sido decapitado e a sua cabeça levada ao sultão Mehmed em Constantinopla como prova da queda de um grande inimigo.

Em qualquer dos casos, de acordo com a história de Stefan, alguns dos homens de Vlad III ainda lhe deviam ser leais, já que correram um grande risco ao levar o seu corpo para Snagov. Durante muito tempo, acreditou-se que o cadáver sem cabeça tivesse sido sepultado na igreja de Snagov, em frente ao altar.

Se pudermos confiar na história de Stefan, o Andarilho, o corpo de Vlad III foi secretamente transportado de Snagov para Constantinopla, e dali para um mosteiro chamado Sveti Georgi, na Bulgária. Não é claro o objetivo desta deportação, nem qual seria o "tesouro" que os monges procuravam, primeiro em Constantinopla e mais tarde na Bulgária. A história de Stefan afirma que o tesouro "apressaria a salvação da alma do príncipe", o que indica que o abade deve ter pensado que essa providência fosse teologicamente necessária. É possível que estivessem à procura de alguma relíquia sagrada de Constantinopla, poupada tanto pelas conquistas latinas como otomanas.

Também é possível que ele não tenha querido assumir a responsabilidade de destruir o corpo em Snagov, ou mutilá-lo de acordo com as crenças sobre a prevenção de vampiros, ou correr o risco de que isso fosse feito pelos aldeões locais. Teria sido uma relutância natural, tendo em vista a posição social de Vlad e o fato de que os membros do clero ortodoxo eram dissuadidos de participar em mutilações de corpos.

Infelizmente, nunca foi encontrado qualquer local provável do sepultamento de Vlad III na Bulgária, e mesmo a localização do mosteiro chamado Svetl Georgl, tal como a do mosteiro búlgaro de Parona, é desconhecida; foi provavelmente abandonado ou destruído durante a era otomana, e a "Crônica" é o único documento que dá indicações sobre uma localização, mesmo geral. A "Crônica" diz que os monges percorreram apenas uma curta distância "não muito além" do mosteiro de Bachkovo, localizado a cerca de trinta e cinco quilómetros a sul de Asenovgrad, junto de Chepelarska. Svetl Georgl certamente ficava algures no Centro-Sul da Bulgária. Essa área, que inclui grande parte dos montes Ródope, foi uma das últimas regiões búlgaras a serem conquistadas pelos Otomanos, parte do terreno particularmente acidentado da região nunca ficou totalmente sob o domínio otomano. Se Svetl Georgl ficava nas montanhas, a sua localização pode ter sido um dos factores que o levou a ser escolhido como local de repouso relativamente seguro para os restos mortais de Vlad III.

Embora a "Crônica" afirme que Svetl Georgl se tornou um local de peregrinação depois que os monges de Snagov se instalaram ali, o local não aparece noutras fontes primárias daquele período, nem em nenhuma fonte mais tardia, o que pode indicar que o lugar desapareceu ou foi abandonado relativamente pouco tempo depois da partida de Stefan. No entanto, sabemos alguma coisa sobre a fundação de Svetl Georgl a partir de uma única cópia do seu typikon, conservada na biblioteca do mosteiro de Bachkovo. De acordo com esse documento, Svetl Georgl foi fundado por Georgios Komnenos, um primo distante do imperador bizantino Alexios I Komnenos, em 1101. A "Crônica" de Zacharias afirma que os monges eram "velhos e poucos" quando o grupo de Snagov chegou; presumivelmente, esses poucos monges haviam preservado o regime estabelecido pelo typikon, e a eles juntaram-se os monges valáquios.

Vale a pena assinalar que a "Crônica" destaca a viagem dos Valáquios através da Bulgária de dois modos diferentes: descrevendo com alguns pormenores o martírio de dois monges às mãos de oficiais otomanos e registando a atenção que a população búlgara dava ao seu avanço através do país. Não há maneira de saber o que terá levado os Otomanos na Bulgária, geralmente tolerantes com as actividades religiosas dos cristãos, para considerarem os monges valáquios como uma ameaça. Stefan relata, através de Zacharias, que os seus amigos foram "interrogados" na cidade de Haskovo antes de serem torturados e assassinados, dando a entender que as autoridades otomanas acreditavam que eles possuíam algum tipo de informação politicamente sensível. Haskovo está localizada no Sudeste da Bulgária, uma região sob sólido controle otomano no século quinze. Estranhamente, os monges martirizados receberam as tradicionais punições otomanas para o roubo (amputação das mãos) e para a tentativa de fuga (amputação dos pés). A maioria dos neomártires sob o domínio otomano era torturada e morta através de outros métodos. Essas formas de punição, assim como a busca efetuada na carroça dos monges, segundo o que é descrito por Stefan na sua história, tornam claras as acusações oficiais de Haskovo, embora aparentemente estas acusações não tenham sido provadas.

Stefan relata uma ampla atenção da população búlgara ao longo do trajeto, o que poderia ter explicado a curiosidade dos Otomanos pelos monges. No entanto, apenas oito anos antes, em 1469, as relíquias de Sveti Ivan Rilski, o eremita fundador do mosteiro de Rila, haviam sido trasladadas de Veliko Trnovo para uma capela em Rila, numa procissão testemunhada e descrita por Vladislav Gramatik na sua "Narrativa do Transporte dos Restos Mortais de Sveti Ivan". Durante esse traslado, os oficiais otomanos toleraram a atenção que os búlgaros locais davam às relíquias e a viagem serviu como um importante símbolo e evento unificador para os cristãos búlgaros. Tanto Zacharias como Stefan decerto tinham conhecimento da famosa viagem das ossadas de Ivan Rilski, e é possível que Zacharias tivesse tido acesso a algum relato escrito sobre ela em Zographou por volta de 1479.

Essa tolerância anterior e muito recente de uma procissão religiosa semelhante através da Bulgária torna a preocupação dos Otomanos com a viagem dos monges valáquios particularmente significativa. A inspeção da sua carroça provavelmente conduzida por oficiais da guarda de um paxá local indica que provavelmente alguma informação sobre o objetivo da viagem tivesse chegado aos oficiais otomanos na Bulgária. Sem dúvida que as autoridades búlgaras não estariam ansiosas por hospedar na Bulgária os restos mortais de um dos seus maiores inimigos políticos, nem iriam tolerar a veneração dos mesmos. Mais desconcertante, no entanto, é o fato de nada ter sido encontrado na revista à carroça, já que a história de Stefan mais tarde menciona a inumação do corpo em Sveti Georgi. Podemos apenas especular sobre como teriam escondido um corpo (ainda que sem cabeça), se é que estavam na realidade a transportá-lo.

Finalmente, um ponto de interesse tanto para historiadores como para antropólogos é a referência que a "Crônica" faz às crenças dos monges de Snagov face ao que viram ali mesmo na igreja. Não chegaram a acordo sobre o que aconteceu com o corpo de Vlad III durante o seu velório, e referiram-se a muitos métodos tradicionalmente citados como base da transformação de um cadáver em morto-vivo, um vampiro, o que aponta para uma crença geral entre eles de que corria o risco de tal destino. Alguns deles acreditavam ter visto um animal a saltar sobre o cadáver, e outros que uma força sobrenatural, sob a forma de uma névoa ou vento, entrara na igreja e fizera com que o corpo se sentasse. O caso de um animal é amplamente documentado no folclore dos Balcãs sobre a gênese dos vampiros, assim como a crença de que os vampiros podem transformar-se em névoa ou bruma. Os notórios hábitos sanguinários de Vlad III e a sua conversão ao catolicismo na corte do rei húngaro Mátyás Corvinus eram provavelmente conhecidos dos monges, a crueldade sendo do conhecimento comum na Valáquia e a conversão porque deve ter sido motivo de preocupação na comunidade ortodoxa local (e em particular no mosteiro preferido de Vlad, onde o abade era provavelmente o seu confessor).

 

Os Manuscritos

A "Crônica" de Zacharias é conhecida através de dois manuscritos, Athos 1480 e R.VII.132: este último também chamado a "Versão do Patriarca". Athos 1480, um manuscrito in quarto e em escrita semiuncial, está na biblioteca do mosteiro de Rila, na Bulgária, onde foi descoberto em 1923. Este, que é a versão mais antiga das duas versões da "Crônica", foi quase certamente escrito pelo próprio Zacharias em Zographou, talvez a partir de anotações feitas no leito de morte de Stefan. Apesar de alegar ter "anotado cada palavra", Zacharias deve ter feito essa cópia depois de uma considerável composição, pois reflete um esmero que não poderia ter sido obtido de imediato e contém apenas uma correção. Esse manuscrito original foi provavelmente mantido na biblioteca de Zographou pelo menos até 1814, pois é mencionado por título numa bibliografia de manuscritos dos séculos quinze e dezesseis em Zographou, com data desse ano. Reapareceu na Bulgária em 1923, quando o historiador búlgaro Atanas Angelov o descobriu escondido na capa de um fólio do século quinze, um tratado sobre a vida de S. Jorge (Georgi 1364.21), na biblioteca do mosteiro de Rila. Em 1924, Angelov confirmou que não havia nenhuma cópia em Zographou. Não se sabe exatamente quando ou como esse original saiu de Athos para Rila, embora a ameaça de incursões piratas em Athos durante os séculos dezoito e dezenove tenham influído na sua remoção (e na de muitos outros documentos e artefatos preciosos) da Montanha Sagrada.

A segunda e única outra cópia ou versão conhecida da "Crônica" de Zacharias — R.VH. 132 ou da "Versão do Patriarca" — está na biblioteca do Patriarcado Ecuménico, em Constantinopla, e foi paleograficamente datada como sendo de meados ou do final do século dezesseis. É possivelmente uma versão posterior de uma cópia enviada ao patriarca pelo abade de Zographou, na época de Zacharias. O original dessa versão presumivelmente acompanhava uma carta do abade ao patriarca, alertando-o para a possibilidade de heresia no mosteiro búlgaro de Sveti Georgi. A carta já não existe, mas é provável que, por motivos de eficiência e discrição, o abade de Zographou tenha pedido a Zacharias que copiasse a sua Crônica para enviar a Constantinopla, mantendo o original na biblioteca de Zographou. Cinquenta a cem anos depois de ter sido recebida, a "Crônica" ainda era considerada tão importante para a biblioteca patriarcal que foi preservada através de novas cópias.

A "Versão do Patriarca", além de ser provavelmente uma cópia posterior de uma missiva de Zographou, difere de Athos 1480 noutro aspecto importante: elimina a parte da história que narra o que os monges afirmam ter testemunhado durante o velório na igreja de Snagov, mais precisamente da linha "Um monge viu um animal" à linha "o corpo sem cabeça do príncipe mexeu-se e tentou levantar-se". Esse trecho pode ter sido eliminado na cópia posterior, numa tentativa de poupar os utilizadores da biblioteca patriarcal a um desnecessário acesso a informações sobre a heresia descrita por Stefan, ou talvez para minimizar o acesso a superstições sobre as origens dos mortos-vivos, um conjunto de crenças ao qual a administração religiosa geralmente se opunha. A "Versão do Patriarca" é difícil de datar, embora seja quase certamente a cópia listada num catálogo de 1605 da biblioteca patriarcal.

Uma semelhança final que surpreende e causa perplexidade existe entre os dois manuscritos existentes da "Crônica". Ambos foram rasgados à mão mais ou menos no mesmo ponto da história. Athos 1480 termina com "Vim a saber", enquanto a "Versão do Patriarca" continua com "que não era uma peste comum, mas", ambas rasgadas com precisão após uma linha completa, presumivelmente removendo a parte da história de Stefan que dava indicações de uma possível heresia ou outro mal no mosteiro de Sveti Georgi.

Uma pista para a datação dessa destruição pode ser encontrada no catálogo da biblioteca acima mencionado, que refere a "Versão do Patriarca" como "incompleta". Podemos, portanto, pressupor que o final desta versão foi rasgado antes de 1605. No entanto, não há maneira de saber se os dois atos de vandalismo ocorreram no mesmo período, ou se um terá inspirado um leitor muito posterior a cometer o outro, ou até que ponto os dois finais dos documentos eram realmente semelhantes. A fidelidade da "Versão do Patriarca" ao manuscrito de Zographou, à exceção do trecho sobre o velório acima mencionado, indica que a história provavelmente terminava de modo idêntico, ou pelo menos muito semelhante, nas duas versões. Além disso, o fato de a "Versão do Patriarca" ter sido rasgada, apesar da eliminação do trecho sobre os eventos sobrenaturais na igreja de Snagov, apoia a idéia de que a citada versão ainda terminava com uma descrição da heresia ou do mal em Sveti Georgi. Até ao momento, não há outros exemplos, entre manuscritos medievais dos Balcãs, de alterações sistemáticas de duas cópias do mesmo documento distantes centenas de quilômetros entre si.

 

Edições e Traduções

A "Crônica" de Zacharias de Zographou foi publicada duas vezes. A primeira edição foi uma tradução para o grego, com comentários limitados, incluída na História das Igrejas Bizantinas de Xanthos Constantinos, 1849. Em 1931, o Patriarcado Ecumênico publicou-a no original eslavónio num opúsculo. Atanas Angelov, que descobriu a versão de Zographou em 1923, planejava publicá-la, com extensos comentários, mas foi impedido de realizar o seu projeto por ter morrido em 1924. Algumas das suas notas foram publicadas postumamente em Balkanski istoncheski pregled, em 1927.

 

A "CRÔNICA" DE ZACHARIAS DE ZOGRAPHOU

Esta história foi-me contada a mim, Zacharias o penitente, pelo meu irmão em Cristo, Stefan, o Andarilho de Tsarigraão. Ele chegou ao nosso mosteiro de Zographou no ano de 6987 (1479). Aqui, contou-nos os estranhos e maravilhosos eventos da sua vida. Stefan, o Andarilho, tinha cinquenta e três anos de idade quando chegou, um homem sábio e devoto que vira muitas terras. Damos graças à Santa Mãe que o guiou até nós vindo da Bulgária, onde tinha deambulado com um grupo de monges da Valáquia e suportado muitos sofrimentos às mãos dos turcos infiéis, e visto dois dos seus amigos martirizados na cidade de Haskovo. Ele e os seus irmãos levavam consigo através das terras infiéis certas relíquias de maravilhoso poder. Com essas relíquias, seguiram em procissão pelo interior do país dos Búlgaros e ficaram famosos em toda a região, de modo que homens e mulheres cristãos vinham à beira das estradas quando a procissão passava para se curvarem para eles ou beijar os lados da carroça. E essas relíquias sagradas foram assim levadas ao mosteiro chamado Sveti Georgi e ali foram guardadas num escrínio. E assim, embora o mosteiro fosse um lugar pequeno e tranquilo, desde então muitos peregrinos passaram a visitá-lo no seu caminho para os mosteiros de Rila e de Bachkovo ou de regresso do sagrado Athos. Mas Stefan, o Andarilho, foi o primeiro que conhecemos aqui que tinha estado em Sveti Georgi.

Depois de ter vivido conosco por alguns meses, percebemos que ele não falava livremente do seu mosteiro de Sveti Georgi, embora nos contasse muitas histórias de outros lugares abençoados que visitara, compartilhando-as conosco, com a sua piedade natural, para que nós, que sempre vivêramos num só país, pudéssemos ter algum conhecimento das maravilhas da Igreja de Cristo em terras diferentes. Sendo assim, contou-nos uma vez de uma capela numa ilha na Baía de Maria, no mar dos Venezianos, uma ilha tão pequena que as ondas lambiam cada uma das suas quatro paredes, e também da ilha mosteiro de Sveti Stefan, a dois dias de viagem pela costa a sul dessa capela, onde ele assumiu o nome do seu patrono e abdicou do seu próprio nome. Disse-nos isso e muitas outras coisas, até mesmo a visão de temíveis monstros no mar de Mármara.

E contava-nos mais amiúde sobre as igrejas e mosteiros da cidade de Constantinopla antes que as tropas infiéis do sultão as profanassem. Descrevia-nos com reverência os seus ícones valiosos e milagrosos, como a imagem da Virgem na grande igreja de Santa Sofia, e o seu ícone velado no santuário de Blachernae. Tinha visto a tumba de S. João Crisóstomo e dos imperadores, e a cabeça do abençoado S. Basílio na igreja do Panachrantos, assim como numerosas outras relíquias sagradas. Que felicidade para ele, e para nós, que ouvimos as suas histórias, ele ter deixado ainda jovem a cidade para deambular, de modo que estava bem distante quando o demônio Muhammad construiu perto dela uma fortaleza diabolicamente forte com o objetivo de atacar a cidade, e logo depois derrubou as grandes muralhas de Constantinopla e matou ou escravizou o seu nobre povo. Então, quando Stefan estava muito longe e ouviu estas notícias, chorou com o resto da Cristandade pela cidade martirizada.

E trouxe consigo para o nosso mosteiro livros raros e maravilhosos no alforge do seu cavalo, que ele havia recolhido e dos quais tirava inspiração divina, sendo ele próprio mestre nas línguas grega, latina e eslava, e provavelmente noutras além destas. Contou-nos todas essas coisas e guardou os seus livros na nossa biblioteca para lhe trazerem glória para sempre, o que, embora quase todos nós soubéssemos ler apenas uma língua e alguns de nós nenhuma, assim o fizemos. Deu-nos esses presentes dizendo que também ele havia concluído as suas viagens e que permaneceria para sempre, tal como os seus livros, em Zographou.

Apenas eu e outro irmão observamos que Stefan não falou da sua estada na Valáquia, exceto para dizer que fora lá noviço, e muito menos falou do mosteiro búlgaro chamado Sveti Georgi até ao fim da sua vida. Pois quando chegou até nós já estava doente, e sofria muito de febre nos membros, e depois de menos de um ano contou-nos que esperava em breve ajoelhar-se perante o trono do Salvador, se Aquele que perdoa a todos os verdadeiros penitentes pudesse fazer vista grossa aos seus pecados. Quando recolheu ao leito na sua última doença, pediu para se confessar com o nosso abade, porque testemunhara males na posse dos quais não devia morrer, e o abade, muito abalado pela confissão dele, pediu que eu o escutasse novamente e anotasse tudo o que dissesse, porque ele, o abade, queria enviar uma carta sobre a confissão a Constantinopla. Fi-lo rapidamente e sem errar, sentado ao lado do leito de Stefan e ouvindo com o coração cheio de terror a história que pacientemente me contou, após a qual lhe foi dada a sagrada comunhão. E ele morreu durante o sono e foi sepultado no nosso mosteiro.

A história de Stefan de Snagov, fielmente transcrita por Zacharias, o pecador

Eu, Stefan, após anos de deambulação e também após a perda da minha amada e sagrada cidade natal, Constantinopla, parti em busca de repouso a norte do grande rio que divide o país dos Búlgaros da Dácia. Vagueei pela planície e depois pelas montanhas e finalmente encontrei o meu caminho para o mosteiro que fica na ilha do lago Snagov, um local esplendidamente seguro e defensável. Ali, o bom abade recebeu-me e tomei lugar à mesa com monges tão humildes e dedicados à prece como não encontrara outros em todas as minhas viagens. Chamaram-me irmão e dividiram livremente comigo a comida e a bebida das suas refeições, e senti-me mais em paz no meio do seu silêncio devoto do que não me sentia havia muitos meses. Trabalhava arduamente e seguia com humildade todas as instruções do abade, de modo que este depressa me deu permissão para permanecer entre eles. A igreja não era grande, mas de insuperável beleza, com sinos famosos cujas badaladas ressoavam sobre as aguas.

Esta igreja e o mosteiro haviam recebido o maior auxílio e favorecimento por parte do príncipe da região, Vlad, filho de Vlad Drácula, duas vezes expulso do seu trono pelo sultão e por outros inimigos. Também foi uma vez aprisionado durante longo tempo por Mátyás Corvinus, rei dos Magiares. Esse príncipe Drácula era muito corajoso, e em ousadas batalhas saqueava ou resgatava dos infiéis muitas terras por eles roubadas, e dava ao mosteiro os seus espólios de guerra, e desejava constantemente que orássemos por ele e pela sua família e pela sua segurança, o que nós fazíamos. Alguns dos monges murmuravam que ele havia pecado por excessiva crueldade e ainda que, enquanto prisioneiro do rei magiar, se havia convertido à fé latina. Mas o abade recusava-se a ouvir palavras desfavoráveis sobre ele, e mais de uma vez o escondera e aos seus homens no santuário da igreja quando outros nobres o procuravam para o matar.

No último ano da sua vida, Drácula veio ao mosteiro, como costumava fazer com mais frequência em épocas anteriores. Não o vi então, porque o abade me mandara a mim e a outro monge a uma incumbência noutra igreja, onde tinha assuntos a resolver. Quando regressei, ouvi dizer que o lorde Drácula estivera ali e deixara novos tesouros. Um irmão, que obtinha os nossos mantimentos negociando com os camponeses da região e que ouvia muitas histórias no campo, murmurou que Drácula seria bem capaz de apresentar um saco cheio de orelhas e narizes como se fosse um tesouro, mas quando o abade soube desse comentário puniu o maldizente com muito rigor. De modo que nunca vi Vlad Drácula em vida, mas vi-o morto, o que em breve relatarei.

Quatro meses mais tarde, talvez, chegaram-nos notícias de que ele havia sido cercado durante uma batalha e capturado e assassinado pelos soldados infiéis, matando antes mais de quarenta deles com a sua grande espada. Depois da sua morte, os soldados do sultão cortaram-lhe a cabeça e levaram-na com eles para a mostrarem ao seu senhor.

Tudo isso os homens do acampamento do príncipe Drácula sabiam e, apesar de muitos se terem escondido depois da sua morte, alguns trouxeram essas notícias e também o seu corpo para o mosteiro de Snagov, fugindo depois. O abade chorou ao ver o corpo a ser retirado do barco e rezou em voz alta pela alma do lorde Drácula e pela proteção de Deus, porque o crescente dos infiéis estava agora muito próximo. Depois, o abade ordenou que o corpo fosse exposto em câmara ardente na igreja.

Foi uma das visões mais apavorantes que já tive, o corpo sem cabeça trajado de escarlate e púrpura e rodeado pelas chamas tremeluzentes de muitas velas. Fizemos o santo velório na igreja, revezando-nos em turnos por mais três dias e três noites. Fiquei de vigília na primeira noite, e tudo estava em paz na igreja, a não ser pela visão do corpo mutilado. Na segunda, tudo continuou em paz assim disseram os irmãos que participaram da vigília dessa noite. Mas, na terceira noite, alguns dos irmãos adormeceram, cansados, e algo ocorreu que levou o terror ao coração dos outros. Sobre o que se passou, não puderam chegar a acordo mais tarde, cada um tendo visto uma coisa diferente. Um monge viu um animal saltar das sombras do coro e por cima do caixão, mas não pôde afirmar com certeza que forma tinha o animal. Outros sentiram uma rajada de vento ou viram uma neblina espessa entrar na igreja e apagar muitas velas, e juraram pelos santos e pelos anjos, em especial pelos arcanjos Miguel e Gabriel, que, na escuridão, o corpo sem cabeça do príncipe se mexeu e tentou levantar-se. Houve grande alarido entre os irmãos na igreja, que levantaram as suas vozes cheios de terror, e assim toda a comunidade foi despertada. Esses monges, correndo para fora da igreja, contaram as suas visões com grandes discordâncias entre si.

Então o abade veio e vi, à luz da tocha que ele segurava, que ficou muito pálido e assustado com as histórias que eles contavam, fazendo o sinal da cruz muitas vezes. Lembrou a todos que a alma daquele nobre senhor estava nas nossas mãos e que devíamos agir à altura. Levou-nos para a igreja, acendeu novamente as velas, e vimos que o corpo estava no seu caixão, tão tranquilo como antes. O abade ordenou que a igreja fosse revistada, mas nenhum animal ou demônio foi encontrado em nenhum lugar. Então, instou-nos para que nos recompuséssemos e tornássemos às nossas celas e, quando chegou a hora da primeira missa, esta foi rezada como sempre, e tudo estava calmo.

Mas, na noite seguinte, ele reuniu oito monges, honrando-me ao íncluir-me entre eles, e disse que apenas fingiríamos sepultar o corpo do príncipe na igreja, mas que, em vez disso, o cadáver deveria ser levado daquele lugar imediatamente. Disse que contaria só a um de nós, em segredo, para onde o levaríamos e porquê, de modo que os outros permanecessem protegidos durante o maior tempo possível pela ignorância, e assim fez, escolhendo um monge que estivera com ele ali durante muitos anos mas dizendo aos restantes (de nós) apenas para seguirmos obedientemente e não fazer perguntas.

Desta forma, eu, que havia pensado nunca mais vaguear de novo pelo mundo, tornei-me outra vez um viajante e atravessei grandes distâncias, entrando com os meus companheiros na minha cidade natal, que se tornara a capital do reino dos infiéis, e vi que muito havia mudado lá. A grande igreja de Santa Sofia fora transformada em mesquita e não podíamos entrar. Muitas igrejas tinham sido destruídas ou deixadas cair em ruínas, e outras transformadas em casas de adoração para os Turcos, mesmo o Panachrantos. E ali fiquei a saber que estávamos a procura de um tesouro que poderia apressar a salvação da alma deste príncipe, e que este tesouro já tinha sido obtido, com grande risco, por dois monges santos e corajosos do mosteiro de São Salvador, e levado secretamente para fora da cidade. Mas alguns dos janízaros do sultão ficaram desconfiados, e por causa disto fomos postos em perigo e forçados novamente a vaguear pelas estradas para o encontrar, viajando desta vez pelo velho reino dos Búlgaros

Conforme atravessávamos o país, parecia que alguns búlgaros já sabiam da nossa missão, pois mais e mais apareciam ao longo das estradas, inclinando-se em silêncio para a nossa procissão, e alguns seguiam-nos durante muitos quilômetros, tocando a nossa carroça com as mãos ou beijando os seus lados. Durante esta viagem, uma coisa terrível aconteceu. Quando passávamos pela cidade de Haskovo, alguns dos guardas da cidade vieram até nós e detiveram-nos com violência e palavras duras. Revistaram a nossa carroça, declarando que encontrariam o que quer que estivéssemos a transportar e, tendo descoberto dois pacotes, apoderaram-se deles e abriram-nos. Quando viram que se tratava de comida, os infiéis deitaram-nos à estrada com raiva e prenderam dois do nosso grupo. Esses bons monges, ao protestarem que nada sabiam e assim encolerizando os malvados, tiveram as mãos e os pés cortados e foi-lhes polvilhado sal nas suas feridas antes de morrerem. Aos que restávamos deixaram-nos vivos, mas despacharam-nos com maldições e chicotadas. Mais tarde, conseguimos recuperar os corpos e os membros dos nossos queridos amigos e reuni-los para um enterro cristão no mosteiro de Bachkovo, cujos monges oraram durante muitos dias e noites pelas suas almas devotas.

Depois desse episódio, ficamos assaz entristecidos e aterrorizados, mas continuamos a nossa viagem, não muito longe e sem incidentes, até ao mosteiro de Sveti Georgi. Ali, os monges, embora fossem velhos e poucos, receberam-nos bem e disseram-nos que de fato o tesouro que procurávamos fora levado até eles por dois peregrinos alguns meses antes e que tudo estava bem. Não podíamos pensar em voltar à Dácia tão cedo e passando por tantos perigos e, assim sendo, instalámo-nos ali. As relíquias que tínhamos trazido foram secretamente guardadas em Sveti Georgi e a sua fama entre os cristãos trazia muitos deles para orar ali, e também eles mantinham o silêncio. Por algum tempo, vivemos em paz naquele lugar e o mosteiro foi muito melhorado em grande parte com o nosso trabalho. Depressa, porém, uma peste se abateu nas aldeias em redor, embora de início não tivesse contaminado o mosteiro. Vim a saber (que não era uma peste comum, mas)

Neste ponto, o manuscrito foi cortado ou rasgado.

 

Quando Stoichev terminou, Helen e eu ficamos mudos por alguns minutos. O próprio Stoichev sacudia a cabeça de vez em quando, levando a mão ao rosto como para se forçar a acordar de um sonho. Por fim Helen falou.

— É a mesma viagem. Tem de ser a mesma viagem. — Stoichev virou-se para ela.

— Acredito que sim. E com certeza os monges do irmão Kiril estavam a transportar os despojos de Vlad Tepes.

— E isso significa que, exceto os dois que foram assassinados pelos Otomanos, chegaram ao mosteiro búlgaro em segurança. Sveti Georgi: onde fica?

Era a pergunta que eu mais queria fazer, de todos os enigmas que pesavam sobre mim. Stoichev levou a mão à testa.

— Quem me dera saber — murmurou. — Ninguém sabe. Não há nenhum mosteiro chamado Sveti Georgi na região de Bachkovo, e nenhum vestígio de que algum dia tenha existido ali algum. Sveti Georgi é um dos muitos mosteiros medievais da Bulgária que sabemos que existiram, mas que desapareceram durante os primeiros séculos do jugo otomano. É provável que tenha sido queimado e as pedras espalhadas ou usadas para outras construções. — Olhou-nos com tristeza. — Se os Otomanos tinham algum motivo para odiar ou temer esse mosteiro, provavelmente foi completamente destruído. E certamente não permitiram que fosse reconstruído, como o mosteiro de Rila foi. Houve uma época em que estive muito interessado em descobrir a localização de Sveti Georgi. — Ficou um momento em silêncio. — Depois da morte do meu amigo Angelov, tentei continuar as suas pesquisas durante um certo período. Fui a Bachkovski manastir e falei com os monges, interroguei muitas pessoas na região, mas ninguém sabia de um mosteiro chamado Sveti Georgi. Também nunca o encontrei em nenhum dos mapas antigos que examinei. Pensei se Stefan não teria dado a Zacharias um nome falso para o mosteiro. Imaginei que, no mínimo, haveria alguma lenda entre a gente da região se as relíquias de uma figura tão importante como Vlad Drácula tivessem sido enterradas ali. Queria ir a Snagov, antes da guerra, para ver o que podia descobrir ali...

— Se tivesse ido, talvez tivesse conhecido Rossi, ou pelo menos aquele arqueólogo, Georgescu — exclamei.

— Talvez — sorriu de modo estranho. — Se Rossi e eu nos tivéssemos realmente conhecido lá, talvez pudéssemos ter juntado os nossos conhecimentos antes que fosse tarde demais.

Não sabia se o que ele queria dizer era "antes da revolução na Bulgária, antes de eu ser exilado aqui"; preferi não perguntar. Logo a seguir, no entanto, ele explicou.

— Sabem, interrompi as minhas pesquisas de modo muito repentino. No dia em que voltei da região de Bachkovo, com a cabeça cheia de planos de ir à Romênia, entrei no meu apartamento em Sofia e deparei com uma cena terrível.

Fez outra pausa e fechou os olhos.

— Tento não pensar naquele dia. Primeiro, devo dizer-lhes que tinha um pequeno apartamento perto de Rimskaya stena, a muralha romana de Sofia, uma zona muito antiga, e gostava muito dele por causa da história da cidade à sua volta. Saíra para fazer compras e deixara os meus papéis e os meus livros sobre Bachkovo e outros mosteiros abertos em cima da minha escrivaninha. Quando voltei, vi que alguém tinha revirado todas as minhas coisas, tirado livros das prateleiras e remexido no meu armário. Sobre a escrivaninha, por cima dos meus papéis, havia um pequeno rastro de sangue. Sabem como a tinta... mancha... uma página... — Fez uma pausa, olhando-nos com o seu olhar penetrante. — No meio da escrivaninha, estava um livro que eu nunca tinha visto antes...

Inesperadamente, levantou-se e foi novamente até ao outro quarto, e ouvimos o seu andar arrastado lá dentro, tirando e pondo livros no lugar. Deveria ter-me levantado para o ajudar, mas em vez disso fiquei sentado a olhar sem ação para Helen, que também parecia petrificada.

Um momento depois, Stoichev voltou com um grande fólio nos braços. Estava encadernado em couro muito gasto. Colocou-o a nossa frente e observamos enquanto o abria com as suas velhas mãos vacilantes e nos mostrava, sem dizer palavra, as muitas páginas em branco, a grande imagem no centro. O dragão parecia menor ali, porque as páginas maiores do fólio deixavam um considerável espaço vazio à sua volta, mas com certeza era a mesma xilogravura, até com a mancha que eu notara no livro de Hugh James. Havia outra mancha, também, na borda amarelada perto das garras do dragão. Stoichev apontou para ela, mas parecia tão dominado por alguma emoção — repulsa, medo que se esqueceu momentaneamente de falar inglês conosco.

— Kr’v — disse. — Sangue. — Debrucei-me sobre o papel. A mancha acastanhada era visivelmente uma impressão digital.

Meu Deus eu estava a lembrar-me do meu pobre gato, e de Hedges, o amigo de Rossi.

— Havia alguém ou alguma coisa na sala? O que fez, quando viu aquilo?

— Não havia ninguém na sala — disse ele em voz baixa. — A porta tinha sido trancada, e ainda estava trancada quando voltei, entrei e vi aquela cena terrível. Chamei a polícia e eles vasculharam tudo e por fim... como se diz... analisaram... uma amostra do sangue fresco e fizeram algumas comparações. Facilmente descobriram de quem era o tipo de sangue.

— De quem? — Helen inclinou-se para a frente.

A voz de Stoichev baixou ainda mais, de modo que eu também me curvei para ouvir as palavras dele. Gotas de suor brotavam-lhe no rosto enrugado.

— Era meu — disse.

— Mas...

— Não, é claro que não. Eu não estivera ali. Mas a polícia achou que eu próprio tinha montado toda a cena. A única coisa que não condizia era a impressão digital. Disseram que nunca tinham visto uma impressão humana como aquela: tinha muito poucas linhas. Devolveram-me o livro e os meus papéis e fizeram-me pagar uma multa por ter brincado com a lei. E quase perdi o meu lugar de professor.

— E desistiu da sua pesquisa? — adiantei.

Stoichev encolheu os seus ombros magros, impotente.

— Foi o único projeto a que não dei continuidade. Eu poderia ter prosseguido, mesmo assim, a não ser por isto. — Lentamente, virou a segunda folha do fólio. — Isto — repetiu ele, e vimos na página uma única palavra escrita em bela caligrafia arcaica, com tinta antiga e de cor suave. Por essa altura, eu já conhecia o suficiente do famoso alfabeto de Kiril para a decifrar, embora a primeira letra me deixasse confuso por um segundo.

Helen leu em voz alta:

— STOICHEV — murmurou ela. — Oh, o senhor encontrou o seu próprio nome nele. Que horror.

— Sim, o meu próprio nome, e numa caligrafia e com uma tinta que eram nitidamente medievais. Sempre me arrependi de ter sido covarde em relação a esse projeto, mas tive medo. Pensei que me podia acontecer alguma coisa... como o que aconteceu ao seu pai, minha senhora.

— Teve razão para ter medo — disse eu ao velho estudioso. — Mas temos esperanças de que ainda não seja tarde demais para o professor Rossi.

Ele endireitou-se na cadeira.

— Sim. Se de alguma maneira conseguirmos encontrar Sveti Georgi. Primeiro, devemos ir a Rila e examinar as outras cartas escritas pelo irmão Kiril. Como já disse, nunca até agora fiz qualquer ligação entre elas e a "Crônica" de Zacharias. Não tenho cópias delas aqui, e as autoridades de Rila não permitiram que fossem publicadas, embora vários historiadores, inclusivamente eu, tenham pedido autorização para o fazer. E há alguém em Rila com quem gostaria que falassem. No entanto, pode não adiantar nada.

Stoichev olhava-nos como se tivesse mais qualquer coisa para dizer, mas naquele momento ouvimos passos vigorosos na escada. Ele tentou levantar-se, depois lançou-me um olhar suplicante. Agarrei no fólio com o dragão e voei com ele para o quarto ao lado, onde o escondi o melhor que pude, atrás de uma caixa. Juntei-me a Stoichev e Helen a tempo de ver Ranov abrir a porta da biblioteca.

— Ah — disse, — uma conferência de historiadores. O senhor está a perder a sua própria festa, professor. — Examinou descaradamente os livros e papéis sobre a mesa e por fim pegou na velha revista de que Stoichev nos lera partes da "Crônica" de Zachanas. — É este o alvo da vossa atenção? — Quase sorriu para nós. — Talvez eu também o devesse ler, para me instruir. Há muita coisa que ainda desconheço sobre a Bulgária medieval. E a sua sobrinha, que tanto me tem distraído, não está tão interessada em mim como eu pensava. Fiz-lhe um convite sério no canto mais bonito do seu jardim, e ela foi bastante reticente.

Stoichev corou de raiva, e parecia estar a ponto de falar mas, para minha surpresa, Helen salvou-o.

— Mantenha as suas mãos sujas e burocráticas longe daquela rapariga — disse, olhando Ranov nos olhos. — O senhor está aqui para nos incomodar, e não a ela. — Toquei-lhe no braço, esperando que ela não irritasse o homem; a última coisa que queríamos era uma complicação política. Mas ela e Ranov trocaram simplesmente um olhar longo, calculado, e em seguida cada um virou-se para o seu lado.

Entretanto, Stoichev tinha recuperado.

— Seria uma grande ajuda para a pesquisa desses visitantes se pudesse organizar uma viagem a Rila — disse ele com toda a calma a Ranov. — Eu gostaria de ir com eles também, e será uma honra para mim mostrar-lhes pessoalmente a biblioteca de Rila.

— Rila? — Ranov sopesou a revista na mão. — Muito bem. Será a nossa próxima excursão. Talvez possamos ir depois de amanhã. Mandar-lhe-ei uma mensagem, professor, para o informar de quando poderá juntar-se a nós lá.

— Não podemos ir amanhã — tentei parecer despreocupado.

— Então está com pressa? — Ranov arqueou as sobrancelhas. — Leva tempo a dar seguimento a um pedido tão importante.

Stoichev assentiu.

— Esperaremos com paciência, e até lá os professores podem apreciar as vistas de Sofia. Agora, meus amigos, foi uma agradável troca de idéias, mas Kiril e Methode não se importarão se nós também comermos, bebermos e nos divertirmos, como se costuma dizer. Venha, Miss Rossi — estendeu a sua mão frágil a Helen, que o ajudou a levantar-se. — Dê-me o seu braço e vamos celebrar um dia de ensino e aprendizagem.

Os outros convidados tinham começado a reunir-se sob o caramanchão, e logo vimos porquê: três dos homens mais jovens estavam a tirar instrumentos musicais das suas malas, e a instalar-se junto das mesas. Um sujeito magricela com uma cabeleira escura e emaranhada testou as teclas de um acordeão preto e prateado. Um outro homem segurava um clarinete. Tocou algumas notas enquanto o terceiro músico tirava do estojo um grande tambor de pele e um longo bastão com a ponta acolchoada. Sentaram-se em três cadeiras próximas umas das outras, sorriram entre si, tocaram um acorde ou dois, acomodaram-se nos assentos. O clarinetista tirou o casaco.

Então entreolharam-se e começaram a tocar, tecendo do nada a música mais animada que eu já ouvira. Stoichev sorria abertamente no seu trono colocado atrás do assado de carneiro, e Helen, sentada ao meu lado, apertava-me o braço. Era uma melodia que rodopiava no ar como um ciclone, e depois seguia aos arrancos num ritmo que não me era familiar, mas irresistível assim que o meu pé o apanhou. O acordeão fechava-se e abria-se e as notas saltavam dos dedos do acordeonista. Fiquei surpreendido com a velocidade e a energia com que tocavam. O som arrancou à plateia gritos de alegria e incentivo.

Apenas poucos minutos depois, alguns dos homens puseram-se de pé, cada um segurando a parte de trás do cinto do que estava à frente, e começaram uma dança tão animada como a música. Os seus sapatos, muito lustrosos, subiam e depois batiam na relva. Logo a seguir, juntaram-se-lhes várias mulheres com vestidos discretos, que dançavam com a parte superior do corpo direita e imóvel e os pés tão ligeiros que só se via uma mancha. Os rostos dos dançarinos estavam radiantes; todos sorriam como se não pudessem evitar, e os dentes do acordeonista reluziam em resposta. O homem na frente da fila tinha tirado do bolso um lenço branco, que agitava acima da cabeça para guiar os outros, fazendo-o rodar de um lado para o outro. Os olhos de Helen brilhavam muito, e batia com a mão na mesa como se não conseguisse ficar parada. Os músicos tocaram e tocaram, enquanto nós aplaudíamos e brindávamos e bebíamos, e os dançarinos não davam sinal de querer parar. Finalmente, a canção acabou e a fila desmanchou-se, cada dançarino a enxugar o suor e a rir alto. Os homens vieram encher os copos outra vez, e as mulheres procuravam lenços e ajeitavam os cabelos, trocando risadinhas entre si.

Então o acordeonista começou a tocar novamente, mas desta vez era uma lenta sucessão de trinados, notas arrastadas num tom de lamento. Atirava a cabeça desgrenhada para trás, mostrando os dentes ao cantar. Na verdade era metade música e metade uivo, uma melodia para voz de barítono tão dolente que o meu coração se contraiu com a lembrança das perdas, de todas as perdas da minha vida.

— O que é que ele está a cantar? — perguntei a Stoichev, para disfarçar a minha emoção.

— É uma canção antiga, muito antiga. Acho que tem pelo menos trezentos ou quatrocentos anos. Conta a história de uma linda donzela búlgara que é perseguida pelos invasores turcos. Querem-na para o harém do paxá local, e ela recusa. Foge, subindo uma alta montanha próxima da sua aldeia, e eles galopam atrás dela nos seus cavalos. No alto da montanha há um penhasco Ali, ela grita que prefere morrer a tornar-se concubina de um infiel e atira-se do penhasco. Mais tarde, uma fonte nasce no sopé da montanha, e é a água mais pura e doce daquele vale.

Helen fez um gesto com a cabeça.

— Temos canções com temas semelhantes na Romênia.

— Há canções destas onde quer que o jugo otomano tenha pesado sobre os povos balcânicos, — penso eu disse Stoichev gravemente. — No folclore búlgaro, temos milhares de canções desse tipo, com temas variados. Todas são um grito de protesto contra a escravidão do nosso povo.

O acordeonista pareceu sentir que já tinha feito os nossos corações apertarem-se suficientemente, pois no fim da canção fez um sorriso malicioso e explodiu de novo numa música para dançar. Desta vez, a maioria dos convidados levantou-se para se juntar à fila, que serpenteava em redor do terraço. Um dos homens chamou-nos e um segundo depois Helen seguiu-o, embora eu tenha permanecido firme na minha cadeira, ao lado de Stoichev. Mas era um prazer olhar para ela. Bastou uma pequena demonstração para ela aprender o passo da dança. Devia haver algum tipo de dança no seu sangue, a sua postura tinha uma dignidade natural, os pés moviam-se com segurança ao ritmo marcado. Acompanhando com os olhos a sua figura esbelta vestida de blusa clara e saia preta, o rosto luminoso com as madeixas escuras do cabelo soltas em volta dele, dei comigo quase a rezar para que nada de mal lhe acontecesse, perguntando-me, também, se ela me deixaria mantê-la em segurança.

 

Se a minha primeira visão da casa de Stoichev me enchera de súbito desalento, a minha primeira visão do Mosteiro de Rila encheu-me de uma admiração reverente. O mosteiro estava encravado num vale espectacularmente profundo ocupando-o quase por inteiro, naquele ponto e acima das suas muralhas e cúpulas elevavam-se as montanhas de Rila, que são muito escarpadas e cobertas de altas bétulas. Ranov estacionou o carro à sombra, fora do portão principal, e entramos juntamente com vários grupos de outros turistas. O dia estava quente e seco; o verão dos Balcãs parecia avançar de todos os lados, e a poeira do chão nu rodopiava à volta dos nossos tornozelos. As grandes portas de madeira estavam abertas e passamos por elas para dar com uma visão que nunca poderei esquecer. À nossa volta, erguiam-se as muralhas listadas da fortaleza do mosteiro, com os seus padrões alternados de preto e vermelho sobre reboco branco, contornadas por compridas galerias de madeira. Ocupando um terço do enorme pátio, havia uma igreja de requintadas proporções, com pórtico pesadamente revestido de frescos, as cúpulas de um verde pálido iluminadas pelo Sol do meio-dia. Ao lado, uma torre robusta, quadrada, de pedra cinzenta, visivelmente mais antiga do que tudo o resto ali. Stoichev disse-nos que se tratava da Torre Hrelyo, construída por um nobre da Idade Média para lhe servir de refúgio contra os seus inimigos políticos. Era a única parte remanescente do antigo mosteiro que existiu naquele lugar, queimado pelos Turcos e reconstruído séculos depois no seu esplendor listado. Enquanto ali estávamos, os sinos da igreja começaram a tocar, espantando um bando de pássaros. Voaram todos, assustados, e, ao acompanhá-los com os olhos, vi de novo os picos quase inimaginavelmente altos acima de nós um dia inteiro, pelo menos, para serem escalados. Sustive a respiração; estaria Rossi algures aqui, neste lugar antigo?

Helen, de pé junto de mim com um lenço fino amarrado sobre o cabelo, passou o braço pelo meu e lembrei aquele momento em Hagia Sophia, aquele entardecer em Istambul que parecia ser já história mas que na realidade acontecera apenas dias antes, em que ela apertara a minha mão com força. Os Otomanos tinham conquistado aquela terra muito antes de tomarem Constantinopla; logicamente, devíamos ter começado a nossa viagem ali, e não em Hagia Sophia. Por outro lado, antes disso ainda, as doutrinas do Bizantinos, a sua arte e a sua arquitetura elegantes tinham vindo de Constantinopla para dar sabor à cultura búlgara. Agora, Santa Sophia era um museu entre mesquitas, enquanto aquele vale fantasticamente isolado transbordava de cultura bizantina.

Stoichev, ao nosso lado, não disfarçava o seu prazer pelo nosso assombro. Irma, com um chapéu de abas largas, segurava-lhe firmemente o braço. Só Ranov se mantinha à parte, contemplando a bela cena com uma expressão carrancuda, virando a cabeça, desconfiado, quando um grupo de monges encapuzados de preto passou por nós a caminho da igreja. Fora uma luta persuadi-lo a ir buscar Stoichev e Inna no seu carro e trazê-los conosco; queria que Stoichev tivesse a honra de nos mostrar Rila, mas não via razão para que não apanhasse o autocarro como o resto do povo búlgaro. Controlei-me para não comentar que ele próprio, Ranov, não parecia andar muito de autocarro. A nossa vontade prevalecera, o que não impedira Ranov de resmungar sobre o velho professor durante quase todo o percurso de Sofia até à casa de Stoichev. Stoichev usara a sua fama para incentivar a superstição e idéias antipatrióticas, toda a gente sabia que ele se recusara a abandonar a sua muito pouco científica fidelidade à igreja ortodoxa; tinha um filho a estudar na Alemanha Oriental que era quase tão mau como ele. Mas tínhamos ganho a batalha, Stoichev pôde vir conosco e Irma, durante a nossa paragem para almoçar numa taberna das montanhas, sussurrou-nos, agradecida, que teria tentado impedir que o tio viesse, se tivessem mesmo de apanhar o autocarro, ele não aguentaria uma viagem tão incomoda com aquele calor

— Aqui é a ala onde os monges ainda vivem — disse Stoichev. — E lá adiante, daquele lado, é a hospedaria onde vamos dormir. Verão como é tranquilo à noite, apesar de todos estes visitantes durante o dia. Este é um dos nossos grandes tesouros nacionais e muita gente vem vê-lo, sobretudo no Verão. Mas à noite torna-se muito sossegado outra vez. Venham — acrescentou —, vamos entrar para ver o abade. Telefonei-lhe ontem e está à nossa espera.

E seguiu à nossa frente com um vigor surpreendente, olhando em volta com animação, como se o local lhe desse uma vida nova.

As salas de audiência do abade, quando lá chegamos, ficavam no andar térreo da ala monástica. Um monge de túnica negra com uma comprida barba castanha segurou a porta para nos dar passagem e entramos, Stoichev tirando o seu chapéu e entrando primeiro. O abade levantou-se de um banco perto da parede e adiantou-se para nos receber. Ele e Stoichev cumprimentaram-se com muita cordialidade. Stoichev beijou a mão do abade e este abençoou o velho professor. O abade era um homem magro e direito de uns sessenta anos, a barba grisalha e os olhos azuis fiquei bastante surpreendido ao constatar que havia búlgaros de olhos azuis muito serenos. Apertou-nos a mão de uma forma bem moderna, assim como a Ranov, que o tratou com óbvio desdém. Depois, fez sinal para nos sentarmos e um monge entrou com uma bandeja com copos — que naquele lugar não estavam cheios de rakiya, mas de água fresca, acompanhada de pratinhos daquela pasta com cheiro a rosas que já havíamos provado em Istambul. Notei que Ranov não bebeu a sua água, como se desconfiasse que estava envenenada.

O abade mostrou-se claramente encantado por ver Stoichev, e imaginei que a visita fosse um prazer especial para ambos. Perguntou-nos, por intermédio de Stoichev, de que parte da América éramos, se tínhamos visitado outros mosteiros na Bulgária, o que podia fazer para nos ajudar, quanto tempo poderíamos ficar. Em seguida Stoichev falou com ele lentamente, traduzindo de bom grado para que pudéssemos responder às perguntas do abade. Poderíamos usar a biblioteca tanto quanto desejássemos, disse o abade; poderíamos dormir na hospedaria; recomendava que assistíssemos às cerimônias na igreja; éramos bem-vindos em toda a parte, exceto nas dependências reservadas aos monges isto com uma delicada inclinação de cabeça para Helen e Irina e estava fora de questão que os amigos do professor Stoichev pagassem a hospedagem. Agradecemos efusivamente e Stoichev pôs-se de pé.

— Agora — declarou ele, — já que dispomos dessas amáveis autorizações, vamos à biblioteca.

Estava já a dirigir-se para a porta, depois de ter beijado a mão do abade, inclinando-se para ele.

— O meu tio está muito excitado — sussurrou-nos Irina. — Disse-me que a vossa carta é uma grande descoberta para a história da Bulgária.

Perguntei a mim próprio se ela saberia o que estava em jogo naquela pesquisa, que sombras havia no nosso caminho, mas era-me impossível ler fosse o que fosse na sua expressão. Ajudou o tio a sair e nós seguimo-los ao longo das descomunais galerias de madeira que contornavam o pátio, Ranov na retaguarda com um cigarro aceso na mão.

A biblioteca consistia numa comprida galeria no piso térreo, quase defronte dos aposentos do abade. À entrada, um monge de barba negra recebeu-nos; era um homem alto, de rosto macilento, e pareceu-me que olhou intensamente para Stoichev antes de nos cumprimentar com um gesto da cabeça.

— Este é o irmão Rumen — apresentou-nos Stoichev. — É atualmente o monge-bibliotecário. Vai mostrar-nos o que precisamos ver.

Alguns livros e manuscritos estavam expostos em vitrinas e etiquetados, para os turistas; eu teria gostado de os examinar, mas encaminhávamo-nos para um recanto ao fundo que se abria para a parte mais recuada da sala. O ar era um milagre de frescura nas profundezas do mosteiro, e mesmo as poucas e cruas lâmpadas elétricas não conseguiam dissipar a profunda escuridão dos cantos mais recônditos. Neste santuário interior, armários e prateleiras de madeira estavam carregados de caixas e bandejas de livros. Num dos cantos havia um pequeno altar com um ícone da Virgem com o menino, rígido e precoce, ladeados por dois anjos de asas vermelhas, iluminado por uma candeia dourada e cravejada de pedras preciosas. As paredes muito, muito velhas estavam caiadas de branco e o cheiro que nos envolvia era o odor familiar de pergaminho, velino e veludo em lenta decomposição. Fiquei satisfeito ao ver que Ranov tivera pelo menos a delicadeza de apagar o cigarro antes de penetrar conosco naquela casa do tesouro.

Stoichev bateu com o pé no chão de pedra como se conjurasse espíritos.

— Aqui — disse ele, — estão a contemplar o coração do povo búlgaro. Foi aqui que durante centenas de anos os monges preservaram a nossa herança, muitas vezes em segredo. Gerações de monges dedicados copiaram estes manuscritos, ou esconderam-nos quando o mosteiro era atacado pelos infiéis. Esta é uma pequena percentagem do legado do nosso povo; grande parte foi destruída, é claro. Mas estamos gratos pelo que restou.

Falou com o bibliotecário, que começou a examinar com cuidado as caixas etiquetadas nas prateleiras. Minutos depois, trouxe para baixo uma caixa de madeira e tirou de dentro dela diversos volumes. O de cima estava decorado com uma extraordinária pintura representando Cristo ou o que achei que fosse Cristo — com um globo numa mão e um cetro na outra, o rosto ensombrecido pela melancolia bizantina. Para minha decepção, as cartas do irmão Kiril não estavam guardadas naquele esplêndido volume, mas num mais simples, com aspecto de osso antigo. O bibliotecário levou-o para uma mesa e Stoichev sentou-se ansioso diante dele, abrindo-o com grande satisfação. Helen e eu pegamos nos nossos cadernos de anotações e Ranov deambulou por entre as estantes da biblioteca, como se estivesse demasiado entediado para ficar parado no mesmo lugar.

— Tanto quanto me lembro — disse Stoichev —, há duas cartas aqui, e não se sabe se haveria mais, se o irmão Kiril escreveu outras que não subsistiram. — Apontou para a primeira página. Estava coberta por uma caligrafia apertada, arredondada, e o pergaminho estava muito velho, quase castanho. Stoichev virou-se para o bibliotecário e fez-lhe uma pergunta. — Sim — disse-nos, contente. — Eles datilografaram estes documentos em Búlgaro e mais alguns outros documentos raros desse período. O bibliotecário colocou uma pasta diante dele e Stoichev ficou calado por algum tempo, examinando as páginas datilografadas e voltando a olhar para o antigo manuscrito. Fizeram um excelente trabalho declarou, por fim. — Vou traduzir-vos o melhor que puder, para poderem tomar notas.

E leu-nos uma versão, intercalada por pequenas pausas, das duas cartas:

 

A Sua Excelência, Abade-Mor Eupraxius:

Faz hoje três dias que saímos de Laota e estamos a viajar pela estrada principal em direção a Vin. Uma noite dormimos no estábulo de um bom lavrador e outra noite na ermida de S. Miguel, onde nenhum monge vive agora mas que nos ofereceu pelo menos o abrigo seco de uma gruta. Na última noite fomos obrigados pela primeira vez a acampar na floresta, espalhando mantas no chão rústico e deitando-nos dentro de um círculo formado pelos cavalos e pela carroça. Os lobos chegaram suficientemente perto durante a noite para escutarmos os seus uivos, o que fez os cavalos, apavorados, tentarem fugir Com grande dificuldade os controlamos. Agora estou sinceramente feliz com a presença dos irmãos Ivan e Theodosius, com a sua força e a sua altura, e bendigo a vossa sabedoria ao colocá-los entre nós.

Esta noite fomos bem recebidos na casa de um pastor com alguns meios de fortuna e também um homem piedoso, possui três mil ovelhas nesta região, segundo nos diz, e fomos instados a dormir nas suas peles de carneiro e colchões macios, embora eu, pelo meu lado, tenha escolhido o chão, mais apropriado as nossas orações. Estamos fora da floresta aqui, entre colinas abertas que ondulam de todos os lados, onde podemos caminhar com igual bênção a chuva ou ao sol O bom homem da casa contou-nos que por duas vezes foram vítimas dos ataques do infiel vindo do outro lado do rio, que agora fica apenas a uns poucos dias de caminho, se o irmão Angelus sarar e conseguir acompanhar-nos. Pensei em deixá-lo montar um dos cavalos, embora o sagrado peso que carregam seja já demasiado para eles. Felizmente, não vimos sinal de soldados infiéis na estrada

Vosso mui humilde servo em Cristo, Irmão Kiril

 

Abril do ano 6985 de Nosso Senhor

A Sua Excelência, Abade-Mor Eupraxius

Deixamos a cidade para trás há algumas semanas e estamos agora a avançar abertamente pelo território dos infiéis. Não ouso escrever a nossa localização para o caso de virmos a ser capturados. Talvez devêssemos, afinal, ter escolhido a rota do mar, mas Deus será o nosso Protetor ao longo do caminho que escolhemos. Vimos os restos queimados de dois mosteiros e uma igreja. A igreja ainda fumegava. Cinco monges foram ali enforcados por conspirarem para uma rebelião e os seus irmãos sobreviventes já estão dispersos por outros mosteiros. Estas foram as únicas notícias que soubemos, pois não podemos conversar muito com as pessoas que se aproximam da nossa carroça. Contudo, não há motivos para crer que um destes mosteiros seja aquele que buscamos. La, o sinal será claro, o monstro iguala o santo. Se esta missiva puder ser-vos entregue, meu senhor, será o mais breve possível

Vosso mui humilde servo em Cristo, Irmão Kiril

 

Junho do ano 6985 de Nosso Senhor

Quando Stoichev terminou, permanecemos em silêncio. Helen estava ainda a tomar notas, o rosto concentrado na tarefa. Irma estava sentada com as mãos entrelaçadas, Ranov encostara se negligentemente a um armário, coçando o pescoço sob o colarinho da camisa. Eu, por minha vez, desistira de registrar os acontecimentos descritos na carta, de qualquer modo, Helen anotaria tudo. Não havia ali qualquer indicação clara de um destino em particular, nem menção de uma tumba, nenhuma cena de funeral — o meu desapontamento sufocava-me.

Mas Stoichev não parecia nada desanimado

— Interessante — disse ele, depois de longos minutos de pausa. — Interessante Vejam bem, cronologicamente, a vossa carta de Istambul deve estar entre estas duas. Na primeira e na segunda cartas, eles estão a viajar através da Valáquia na direção do Danúbio, como os topônimos deixam claro. Depois, vem a vossa carta, que o irmão Kiril escreveu em Constantinopla, talvez esperando enviá-la de lá juntamente com as anteriores. Mas não pôde ou teve medo de as enviar — a não ser que estas sejam apenas cópias — não temos maneira de saber. E a última carta está datada de Junho. Eles fizeram um percurso por terra igual ao que é descrito pela "Crônica" de Zachanas. Na verdade, deve ter sido o mesmo percurso, de Constantinopla passando por Edirne e Haskovo, por que essa era a principal estrada de Tsangrado para a Bulgária

Helen levantou a cabeça

— Mas como podemos ter certeza de que é de fato a Bulgária que esta última carta descreve?

— Não podemos ter certeza absoluta — admitiu Stoichev — No entanto, creio que é bastante provável Se eles viajaram de Tsangrado, ou seja, Constantinopla, para uma região onde mosteiros e igrejas estavam a ser queimados no final do século quinze, É muito provável que seja a Bulgária. Além disso, na vossa carta de Istambul, ele declara que pretendem ir para a Bulgária

Não consegui deixar de manifestar a minha frustração

— Mas não há mais nenhuma informação sobre a localização do mosteiro de que eles estavam a procura Presumindo que era mesmo Sveti Georgi

Ranov instalara se a mesa conosco e estava a contemplar os polegares, ponderei se deveria esconder dele o meu interesse por Sven Georgi, mas de que outra maneira poderíamos interrogar Stoichev sobre isso?

— Não — concordou Stoichev — O irmão Kiril certamente não escreveria nas cartas o nome do lugar para onde se dirigiam, assim como não citou Snagov juntamente com os títulos de Eupraxius no início delas. Se fossem apanhados, esses mosteiros poderiam sofrer posteriormente ainda mais perseguições, ou pelo menos serem revistados.

— Há aqui uma frase interessante — Helen terminara as suas anotações. — Não se importa de a ler outra vez? A frase que diz que o sinal no mosteiro que procuravam era um monstro que iguala um santo. O que pensa que isto significa?

Lancei um rápido olhar para Stoichev; aquela frase também me chamara a atenção. Ele suspirou.

Pode referir-se a um fresco ou um ícone que haveria no mosteiro. Em Sveti Georgi, se o destino deles era mesmo esse. É difícil imaginar o que uma imagem assim poderia ter sido. E mesmo se pudéssemos encontrar o próprio Sveti Georgi, não há muita esperança de que um ícone que estava lá no século quinze ainda permaneça no mesmo lugar, sobretudo se levarmos em conta que o mosteiro foi provavelmente queimado pelo menos uma vez. Não sei o que significa. Talvez seja até uma referência teológica que o abade compreenderia mas que nós não, ou talvez se refira a alguma combinação secreta entre eles. No entanto, precisamos ter isso presente, pois o irmão Kiril refere-se-lhe como sendo o sinal que lhes indicará que chegaram ao lugar certo.

Eu ainda estava a lutar com a minha decepção; apercebi-me de que esperava que aquelas cartas, nos seus invólucros desbotados, contivessem a chave definitiva da nossa busca, ou pelo menos lançassem alguma luz sobre os mapas que eu ainda esperava usar.

— Há uma questão mais ampla que é muito estranha — Stoichev passou a mão no queixo. — A carta de Istambul diz que o tesouro que eles procuram, talvez uma relíquia sagrada de Tsarigrado, está num determinado mosteiro na Bulgária, e que é por isso que precisam de ir para lá. Por favor, professor, faça-me a gentileza de ler aquela passagem outra vez.

Eu tirara da pasta o texto da carta de Istambul para o ter ao meu lado enquanto estudávamos as outras missivas do irmão Kiril.

— A passagem diz: "... o que procuramos já foi transportado para fora da cidade, para um refúgio nas terras ocupadas dos Búlgaros."

— É esse o trecho — disse Stoichev. — A questão é... — tamborilou com o longo dedo indicador na mesa à sua frente — por que motivo uma relíquia sagrada, por exemplo, teria sido levada clandestinamente para fora de Constantinopla em 1477? A cidade era otomana desde 1453 e a maior parte das suas relíquias foi destruída durante a invasão. Por que razão o mosteiro de Panachrantos enviaria uma relíquia para a Bulgária vinte e quatro anos depois, e por que seria essa relíquia em especial que os monges teriam ido procurar em Constantinopla?

— Bem — lembrei-lhe —, sabemos pela carta que os janízaros estavam à procura da mesma relíquia, portanto também devia ter valor para o sultão.

Stoichev considerou o argumento.—

Certo, mas os janízaros procuraram-na depois de já ter sido levada em segurança para fora do mosteiro.

— Devia ser um objeto sagrado com significado político para os Otomanos e, ao mesmo tempo, um tesouro espiritual para os monges de Snagov.

Helen franzia a testa, batendo de leve com a caneta na cara.

— Um livro, talvez?

— Sim — disse eu, animado. — E se fosse um livro contendo informações que os Otomanos quisessem e de que os monges precisassem?

Ranov, do lado oposto da mesa, lançou-me subitamente um olhar duro.

Stoichev sacudiu a cabeça devagar, mas lembrei-me um segundo depois que isso significava desacordo.

— Os livros desse período geralmente não continham informações políticas, eram textos religiosos, copiados várias vezes para serem usados nos mosteiros ou nas escolas religiosas islâmicas ou nas mesquitas, se fossem otomanos. É pouco provável que os monges empreendessem uma viagem tão perigosa mesmo por uma cópia dos Evangelhos. E já deviam possuir livros assim em Snagov.

— Só um minuto — os olhos de Helen estavam muito abertos, imersos em pensamentos. — Esperem. Deve ter sido alguma coisa relacionada com as necessidades de Snagov, ou da Ordem do Dragão, ou talvez sobre o velório de Vlad Drácula; lembram-se da "Crônica"? O abade queria que Drácula fosse enterrado noutro lugar.

— Isso mesmo — Stoichev meditava. — Ele queria mandar o corpo para Tsarigrado mesmo pondo em risco as vidas dos seus monges.

— Sim — concordei. Acho que estava prestes a dizer alguma coisa, a enveredar por outra linha de investigação, mas Helen virou-se subitamente para mim e sacudiu-me o braço.

— O que foi? — perguntei, mas nessa altura ela já se recompusera por completo.

— Nada — disse baixinho, sem olhar para mim ou para Ranov.

Pedi a Deus que ele se levantasse e saísse para fumar, ou se cansasse da conversa para que Helen pudesse falar à vontade. Stoichev lançou um olhar perspicaz a Helen e então começou a explicar num tom monótono como eram feitos os manuscritos medievais, como eram copiados por monges que muitas vezes eram analfabetos e introduziram neles gerações de pequenos erros e como as suas diferentes caligrafias foram sistematizadas pelos especialistas modernos. Intrigava-me o motivo por que ele se estendia tanto neste assunto, embora o que ele dizia me interessasse muito. Felizmente, fiquei calado durante a sua explanação, pois daí a pouco Ranov começou de fato a bocejar. Finalmente, levantou-se e saiu da biblioteca, procurando um maço de cigarros no bolso do casaco. Logo que ele saiu, Helen agarrou-me o braço de novo. Stoichev olhava atentamente para ela.

— Paul — disse ela, e o seu rosto estava tão estranho que a segurei pelos ombros, pensando que ia desmaiar. — A cabeça dele! Não vês? Drácula voltou para Constantinopla para recuperar a sua cabeça!

Stoichev tossiu, mas era tarde demais Naquele momento, ao olhar em volta, vi o rosto anguloso do irmão Rumen junto a extremidade de uma estante. Voltara silenciosamente para a sala e, apesar de estar de costas enquanto tirava qualquer coisa de uma prateleira, estava a ouvir. Momentos depois, o bibliotecário saiu, ainda silencioso, e nós ficamos sentados sem dizer palavra. Helen e eu entreolhamo-nos, sem poder fazer nada, e levantamo-nos para verificar a parte mais escura da sala. O homem tinha ido embora, mas era apenas uma questão de tempo antes que alguém — Ranov, por exemplo — soubesse da exclamação de Helen. E que uso poderia Ranov fazer daquela informação?

 

Houve poucas ocasiões em todos os meus anos de pesquisa, escrita e pensamento em que tivesse sido acometido por um acesso tão repentino de lucidez como no momento em que Helen formulou a sua hipótese em voz alta na biblioteca de Rila. Vlad Drácula tinha voltado a Constantinopla por causa da sua cabeça — ou, antes, o abade de Snagov enviara o seu corpo para lá com o intento de o reunir à cabeça. Teria Drácula pedido de antemão que isto fosse feito, sabendo a recompensa que em vida fora prometida pela sua famosa cabeça, conhecendo o pendor do sultão para exibir a cabeça dos seus inimigos à populaça? Ou teria o abade chamado a si essa missão, não querendo que o corpo sem cabeça do seu possivelmente herético ou perigoso patrono permanecesse em Snagov? Sem dúvida que um vampiro sem cabeça não era uma grande ameaça — a cena era quase cómica, mas as perturbações entre os seus monges podiam ter convencido o abade a dar a Drácula um enterro cristão apropriado noutro lugar. Era pouco provável que o abade se tivesse incumbido da destruição do corpo do seu príncipe. E quem sabe que promessas o abade fizera a Drácula anteriormente?

Uma imagem singular voltou-me à mente: o palácio Topkapi em Istambul, onde fora passear naquela recente manhã ensolarada, e os portões onde os carrascos otomanos tinham exibido as cabeças dos inimigos do sultão. A cabeça de Drácula teria merecido uma das estacas mais altas, pensei — o Empalador finalmente empalado. Quantas pessoas teriam ido vê-la, aquela prova do triunfo do sultão? Helen contou-me certa vez que mesmo os habitantes de Istambul tinham temido Drácula, receando que ele pudesse fazer chegar as suas tropas à própria cidade. Já nenhum acampamento turco precisaria tremer à sua aproximação; o sultão assumira finalmente o controle daquela região conturbada e podia instalar um vassalo otomano no trono da Valáquia, como quisera fazer anos antes. Tudo o que restava do Empalador era um horrível trofeu, com os seus olhos baços e o cabelo e o bigode emaranhados, cobertos de sangue coagulado.

O nosso companheiro parecia estar a meditar sobre uma imagem semelhante. Logo que nos certificamos de que o irmão Rumem saíra, ele disse em voz baixa:

— Sim, é bem provável. Mas como é que os monges de Panachrantos tiraram a cabeça de Drácula do palácio do sultão? Era de fato um tesouro, como a definiu Stefan na sua narrativa.

— Como é que nós conseguimos vistos para entrar na Bulgária? — perguntou Helen, levantando as sobrancelhas. — Bakshish. Uma quantia enorme. Os mosteiros estavam bastante empobrecidos depois da conquista, mas alguns deles poderiam ter reservas escondidas: moedas de ouro, jóias, que tentariam até mesmo os guardas do sultão.

Ponderei a questão.

— O nosso guia de Istambul dizia que as cabeças dos inimigos do sultão eram atiradas ao Bósforo depois de ficarem algum tempo expostas. Talvez alguém de Panachrantos tenha interceptado a cabeça nessa etapa do processo. Seria menos perigoso do que tentar tirá-la dos portões do palácio.

— Não temos maneira de saber a verdade quanto a isso — disse Stoichev, mas acho que o palpite de Miss Rossi é muito bom. Resgatar a cabeça dele seria o objetivo mais provável dos monges em Tsarigrado. Há uma boa razão teológica, igualmente, para terem feito isso. De acordo com as nossas crenças ortodoxas, o corpo deve estar, tanto quanto possível, inteiro na morte — não praticamos a cremação, por exemplo porque no Dia do Juízo Final ressuscitaremos nos nossos corpos.

— E quanto aos santos, com as suas relíquias espalhadas por toda a parte? — perguntei, com ceticismo. — Como serão ressuscitados inteiros? Sem falar que, há alguns anos, vi cinco mãos de S. Francisco em Itália.

Stoichev achou graça.

— Os santos têm privilégios especiais — respondeu. — Mas Vlad Drácula, apesar de ser um excelente matador de Turcos, não era certamente um santo. De fato, pelo menos de acordo com a narrativa de Stefan, Eupraxius estava bastante preocupado com a alma imortal de Drácula.

— Ou com o seu corpo imortal — observou Helen.

— Quer dizer — resumi — que talvez os monges de Panachrantos tenham levado a cabeça para dar a Drácula um enterro apropriado, com o risco das suas vidas, e os janízaros descobriram o roubo e começaram a procurar, e por isso o abade mandou-a para fora de Istambul em vez de a enterrar ali. Talvez houvesse peregrinos que iam à Bulgária de tempos a tempos — relanceei os olhos para Stoichev esperando a sua confirmação — e a cabeça foi enviada para ser enterrada em, digamos, Sveti Georgi, ou em qualquer outro mosteiro búlgaro onde eles tinham contatos. E então os monges de Snagov chegaram, mas tarde demais para juntar o corpo à cabeça, e o abade de Panachrantos soube disso e foi falar com eles, e os monges de Snagov decidiram completar a sua missão indo atrás dos outros com o corpo. Além do mais, tinham de partir antes que os janízaros se interessassem também por eles.

— Muito bom, como especulação — Stoichev dirigiu-me um largo sorriso. — Como eu disse, não podemos saber com certeza porque são fatos que os nossos documentos apenas insinuam. Mas não há dúvida de que traçou um esboço convincente deles. Vamos acabar por fazer com que deixe os mercadores holandeses de lado.

Senti o meu rosto corar, em parte por prazer e em parte por vergonha, mas o sorriso dele era cordial.

— Então, a rede otomana foi alertada pela presença e pela partida dos monges de Snagov — Helen deu seguimento à possível história — e talvez tenham revistado os mosteiros e descoberto que os monges tinham estado em Santa Irina, e mandaram informações sobre a viagem dos monges para os seus homens ao longo do percurso deles — talvez para Edirne e depois para Haskovo. Haskovo foi a primeira grande cidade búlgara onde os monges entraram, e é lá que são qual é o termo? Detidos.

— Sim — terminou Stoichev. — Os funcionários otomanos torturaram dois deles para obter informações, mas os dois corajosos monges nada disseram. E os oficiais revistaram a carroça e só encontraram comida. Mas isto levanta uma questão: por que é que os soldados otomanos não encontraram o corpo?

Hesitei.

— Talvez não estivessem à procura de um corpo. Talvez ainda estivessem à procura da cabeça. Se os janízaros não tivessem descoberto muita coisa em Istambul sobre toda a questão, poderiam pensar que os monges de Snagov transportavam a cabeça. A "Crônica" de Zacharias diz que os Otomanos ficaram muito zangados quando abriram umas trouxas e só encontraram comida. O corpo poderia ter sido escondido nos bosques dos arredores se os monges tivessem sido avisados de que haveria uma busca.

— Ou talvez tenham construído a carroça de tal modo que houvesse um lugar especial para o esconder — sugeriu Helen.

— Mas um cadáver iria cheirar mal — lembrei, sem rodeios.

— Depende daquilo em que acreditas. — E fez-me o seu sorriso zombeteiro, encantador.

— Daquilo em que acredito?

— Sim. Estás a ver, um corpo que corre o risco de se transformar num morto-vivo, ou que já se transformou, não se deteriora, decompõe-se mais lentamente. De acordo com a tradição, quando os aldeões da Europa Oriental suspeitavam de vampirismo, desenterravam os cadáveres para verificar a decomposição e destruíam ritualmente os que não estavam a decompor-se da maneira adequada. Ainda fazem isso às vezes. Mesmo agora.

Stoichev estremeceu.

— Uma atividade bem peculiar. Ouvi falar disso até na Bulgária, se bem que hoje, é claro, seja ilegal. A Igreja sempre censurou a profanação de túmulos, e agora o nosso governo desencoraja todas as superstições... tanto quanto pode.

Helen quase encolheu os ombros.

— É mais estranho isso do que esperar pela ressurreição dos corpos? — perguntou ela, mas sorriu para Stoichev e também ele ficou encantado.

— Minha senhora — disse ele —, temos interpretações muito diferentes da nossa herança cultural, mas cumprimento-a pela sua agilidade mental. E agora, meus amigos, gostaria de ter algum tempo para estudar os vossos mapas. Ocorreu-me que há material nesta biblioteca que pode auxiliar-me na leitura deles. Dêem-me uma hora o que vou fazer agora vai ser aborrecido para vocês e demorado de explicar.

Ranov acabara de entrar outra vez, desassossegado, e ficou a olhar em volta da sala. Eu esperava que ele não tivesse ouvido a referência aos nossos mapas. Stoichev pigarreou.

— Talvez queiram visitar a igreja e admirar a sua beleza.

Stoichev olhou de relance para Ranov. Helen levantou-se imediatamente e dirigiu-se a Ranov para o envolver numa complicação qualquer, enquanto eu procurava discretamente na minha pasta e tirava as minhas cópias dos mapas. Quando vi a sofreguidão com que Stoichev lhes pegou, o meu coração deu um salto de esperança.

Infelizmente, Ranov parecia mais interessado em bisbilhotar o trabalho de Stoichev e confabular com o bibliotecário do que em seguir-nos, embora eu desejasse ardentemente que conseguíssemos arrastá-lo para fora.

— Pode ajudar-nos a encontrar um sítio para jantar? — perguntei-lhe. O bibliotecário permaneceu calado, observando-me com cuidado. Ranov sorriu.

— Está com fome? Ainda não são horas da refeição aqui, que é uma ceia às seis horas. Vamos esperar por ela. Infelizmente, temos de comer com os monges.

Virou-nos as costas e começou a examinar uma prateleira de volumes encadernados em couro, encerrando a conversa.

Helen seguiu-me até à porta e agarrou-me na mão.

— Vamos dar uma volta? — propôs, assim que saímos.

— Não tenho certeza se ainda sei fazer alguma coisa sem Ranov por perto — disse eu, mordaz. — De que é que vamos conversar, sem a companhia dele?

Ela riu, mas reparei que também estava preocupada.

— Será melhor eu voltar e tentar novamente distraí-lo?

— Não — decidi. — É melhor não. Quanto mais fizermos isso, mais ele vai querer saber de que é que Stoichev está à procura. Não podemos livrar-nos dele, é como querer livrar-se de uma mosca.

— Ele dava uma boa mosca.

Helen deu-me o braço. O sol estava ainda brilhante no pátio, e quente, quando saímos da sombra das imensas muralhas e galerias do mosteiro. Ao olhar para cima, avistava as encostas cobertas de florestas em volta do mosteiro, e os picos rochosos verticais acima delas. No alto, ao longe, uma águia inclinou-se para um lado e volteou no céu. Monges vestidos com pesadas túnicas negras e cintos, chapéus negros de copa alta e compridas barbas negras, iam e vinham entre a igreja e o piso térreo do mosteiro, ou varriam os soalhos de madeira das galerias, ou sentavam-se num triângulo de sombra perto do pórtico da igreja. Perguntava-me como é que eles suportavam o calor do Verão com aqueles trajes. O interior da maravilhosa igreja esclareceu-me um pouco: tinha a frescura de uma daquelas construções erguidas em cima de riachos para refrigerar os alimentos, iluminada apenas por velas tremeluzentes e o cintilar do ouro, do latão dourado, das jóias. As paredes interiores tinham motivos decorativos em dourado e pinturas com imagens de santos e profetas.

— Trabalho do século dezenove — disse Helen, segura; e eu fiz uma pausa diante de uma imagem particularmente sóbria, um santo com uma longa barba comprida e cabelo branco impecavelmente dividido ao meio, que olhava diretamente para nós. Helen soletrou a inscrição perto do seu halo: — "Ivan Rilski."

— Aquele cujos ossos foram trazidos para cá oito anos antes de o nosso amigo valáquio ter entrado na Bulgária? A "Crônica" menciona-o.

— Sim. — Helen demorou-se diante da imagem, como se achasse que poderia falar conosco caso ela esperasse o suficiente.

A espera infindável estava a dar-me cabo dos nervos.

— Helen, vamos fazer uma caminhada — sugeri. — Podemos subir a montanha ali e ver a paisagem.

Se não fizesse um pouco de exercício, ficaria maluco de tanto pensar em Rossi.

— Está bem Helen — concordou e olhou-me atentamente, como se adivinhasse a minha impaciência. — Se não for demasiado longe. Ranov nunca permitiria que nos afastássemos muito.

O caminho montanha acima serpenteava através de uma densa floresta que nos protegia do calor da tarde tanto como a igreja o fizera. Era tão bom ficar livre de Ranov que, durante alguns minutos, balancei com simplicidade a mão de Helen para a frente e para trás enquanto andávamos.

— Achas que foi difícil para ele escolher entre nós e Stoichev?

— Ah, não — respondeu Helen, categórica. — Ele certamente mandou alguém seguir-nos. Vamos encontrar essa pessoa, seja quem for, daqui a algum tempo, principalmente se ficarmos longe mais de meia hora. Provavelmente, tem ordens para não nos deixar sozinhos e tem de vigiar Stoichev para descobrir aonde nos vai levar a nossa pesquisa.

— Falas de uma maneira tão óbvia — disse-lhe, contemplando o seu perfil enquanto ela caminhava pelo caminho de terra. Empurrara o chapéu para trás e o rosto estava um pouco afogueado. — Não consigo imaginar como deve ter sido crescer sabendo todas essas coisas cínicas, viver sob vigilância.

Helen encolheu os ombros.

— Não parecia tão terrível porque eu não conhecia nada de diferente.

— E no entanto quiseste sair do teu país e ir para o Ocidente.

— Sim — disse ela, olhando-me de esguelha. — Eu quis sair do meu país. — Paramos para descansar por alguns minutos numa árvore caída perto do caminho.

— Tenho pensado na razão por que nos deixaram vir à Bulgária — confessei. Até ali, no meio do bosque, eu baixava a voz. — E por que razão nos deixam vaguear por aí sozinhos. — Ela assentiu. — Já pensaste nisso? Tenho a impressão — disse eu devagar — de que, se não nos estão a impedir de encontrar o que quer que seja que estamos a procurar, o que poderiam fazer facilmente, é porque querem que encontremos o que procuramos.

— Muito bem, Sherlock. Estás a aprender umas coisas.

— Portanto, digamos que eles de fato sabem ou desconfiam do que estamos à procura. O que os levaria a pensar que fosse possível que Vlad Drácula fosse um morto-vivo? — Foi-me difícil dizer isto em voz alta, embora a minha voz não passasse de um sussurro. — Tu mesma me disseste muitas vezes que os governos comunistas desprezam as superstições dos camponeses. Por que é que eles nos encorajariam desta maneira, não nos impedindo de agir? Pensarão que podem obter alguma espécie de poder sobrenatural sobre o povo búlgaro se encontrarmos a tumba dele aqui?

Helen sacudiu a cabeça.

— Não deve ser isso. O interesse deles tem certamente a ver com poder, mas tem sempre uma abordagem científica. Além disso, se houver alguma descoberta interessante, não vão querer que seja um Americano a receber os louros por ela. — Refletiu um pouco. — Pensa bem, o que poderia ser mais importante para a ciência do que a descoberta de que os mortos podem ser trazidos de regresso à vida ou à morte em vida, em todo o caso? Sobretudo para o Bloco de Leste, com os seus grandes líderes embalsamados nos seus mausoléus?

A visão do rosto cor de cera de Georgi Dimitrov no mausoléu de Sofia veio-me à mente num relance.

— Mais uma razão para destruir Drácula — disse eu, mas podia sentir a transpiração a brotar-me na testa.

— E eu pergunto-me — disse Helen, sombria — se destruí-lo faria assim tanta diferença no futuro. Vê o que Stalin fez com o seu povo, e Hitler. Não precisaram viver quinhentos anos para cometer aqueles horrores.

— Eu sei — disse eu. — Também já pensei nisso.

— O mais estranho, sabes, é que Stalin admirava abertamente Ivan, o Terrível. Dois líderes dispostos a esmagar e a matar o seu próprio povo, a fazer qualquer coisa para consolidar o seu poder. E quem achas que Ivan, o Terrível, admirava?

Senti o sangue a fugir-me do coração.

— Disseste-me que há muitas histórias russas sobre Drácula.

— Sim. Exatamente.

Olhei fixamente para ela.

— Podes imaginar um mundo em que Stalin vivesse durante quinhentos anos? — Raspou com a unha um pedaço macio do tronco da árvore. — Ou talvez para sempre?

Dei comigo a cerrar os punhos.

— Achas que podemos encontrar um túmulo medieval sem indicar o caminho a mais ninguém?

— Vai ser muito difícil, talvez impossível. Eles têm gente por toda a parte. — Nesse momento, um homem surgiu de uma curva do caminho. Apanhei um susto tão grande com a sua aparição repentina que quase deixei escapar um palavrão em voz alta. Mas era uma pessoa de aspecto simples, vestido com trajes grosseiros e com um feixe de ramos secos ao ombro, que acenou jovialmente para nós e prosseguiu o seu caminho. Olhei para Helen.

— Viste? — disse ela em voz baixa.

Encontramos um afloramento rochoso no meio da subida para a montanha.

— Vamos sentar-nos aqui uns minutos — disse Helen.

O vale alcantilado e coberto de vegetação encontrava-se muito abaixo de nós, quase todo ocupado pelos muros e telhados vermelhos do mosteiro. Agora, víamos claramente as enormes dimensões do conjunto de edifícios. Formava uma concha angulada em torno da igreja, cujas cúpulas reluziam à luz da tarde, e a torre Hrelyo elevava-se no meio.

— Vê-se bem aqui de cima como o lugar era bem fortificado. Imagina quantas vezes os inimigos devem ter olhado lá para baixo, como estamos a fazer.

— Ou os peregrinos — lembrou Helen. — Para eles, devia ser um destino espiritual, não um desafio militar.

Encostou-se a um tronco de árvore, alisando a saia. Tinha largado a bolsa, tirado o chapéu e arregaçado as mangas da blusa clara para aliviar o calor. Uma leve transpiração aparecia-lhe na testa e nas faces. O seu rosto tinha a expressão de que eu mais gostava estava absorta nos seus pensamentos, olhando para dentro e para fora ao mesmo tempo, os olhos muito abertos e atentos, o queixo firme; por qualquer razão, eu gostava ainda mais daquele olhar do que dos que ela me dirigia diretamente. Usava o lenço em volta do pescoço, embora a marca do bibliotecário se tivesse reduzido a uma contusão, e o pequeno crucifixo brilhava abaixo dela. Senti uma pontada de tristeza ao contemplar a sua beleza severa, não só de desejo físico, mas de algo próximo da admiração reverente perante a sua perfeição. Ela era intocável, minha mas perdida para mim.

— Helen — disse eu, sem segurar a mão dela. Não tivera intenção de falar, mas não podia conter-me. — Gostaria de te perguntar uma coisa.

Ela concordou com um gesto da cabeça, os olhos e os pensamentos ainda virados para o imenso santuário lá em baixo.

— Helen, queres casar comigo?

Ela virou-se lentamente para mim e eu não sabia se era espanto, vontade de rir ou prazer o que via no seu rosto.

— Paul — disse ela, com ar sério. — Há quanto tempo nos conhecemos?

— Vinte e três dias — admiti.

Apercebi-me naquele momento que não pensara com cuidado no que faria se ela dissesse que não, mas era demasiado tarde para retirar o pedido, para o deixar para outra altura. E, se ela dissesse não, eu não podia atirar-me do alto de uma montanha no meio da minha tentativa para encontrar Rossi, ainda que ficasse tentado a fazê-lo.

— Achas que me conheces?

— De maneira nenhuma — respondi, lealmente.

— E achas que eu te conheço?

— Não tenho certeza.

— Temos tão pouca experiência um do outro. Pertencemos a mundos completamente diferentes. — Ela sorriu desta vez, como para amenizar a crueza das palavras. — Além disso, sempre achei que não me casaria. Não sou do gênero de casar. E quanto a isto? — Tocou no lenço que tinha ao pescoço. — Casavas-te com uma mulher que foi marcada pelo demônio?

— Eu protegia-te de qualquer demônio que se aproximasse de ti.

— E isso não seria um fardo demasiado pesado? E como poderíamos ter filhos — o seu olhar era duro e direto — sabendo que poderiam ser, de alguma forma, afetados por esta contaminação?

Era-me difícil falar, de tal modo tinha a garganta apertada.

— Então, a tua resposta é não, ou devo perguntar-te outra vez, noutra altura?

A mão dela eu não podia imaginar a vida sem aquela mão, com as suas unhas de pontas quadradas e a pele macia sobre os ossos duros fechou-se sobre a minha e pensei de repente que não tinha um anel para colocar nela.

Helen lançou-me um olhar grave.

— A resposta é que, evidentemente, quero casar contigo.

Depois de semanas procurando em vão a outra pessoa que eu mais amava no mundo, estava demasiado atordoado pela facilidade desta descoberta para dizer fosse o que fosse ou sequer beijá-la. Ficamos sentados em silêncio, olhando para os vermelhos e dourados e cinzentos do vasto mosteiro.

 

Barley ficou ao meu lado no quarto de hotel do meu pai, contemplando a desordem, mas foi mais rápido do que eu e viu o que eu não vi os papéis e livros em cima da cama. Encontramos um exemplar muito usado do Drácula de Bram Stoker, uma nova história das heresias medievais do Sul da França e um volume que parecia muito antigo sobre lendas europeias referentes a vampiros.

No meio dos livros, havia papéis, incluindo anotações com a letra dele, e entre estes, bilhetes-postais espalhados, escritos com uma caligrafia que me era completamente estranha, fina, com tinta escura, ordenada e miúda. Barley e eu começamos espontaneamente e mais uma vez fiquei contente por não estar sozinha a vasculhar tudo, e o meu primeiro instinto foi juntar os bilhetes-postais. Estavam enfeitados com selos de um arco-íris de países: Portugal, França, Itália, Mónaco, Finlândia, Áustria. Os selos estavam imaculados, sem carimbos. As vezes, a mesma mensagem num bilhete continuava em mais quatro ou cinco outros, cuidadosamente numerados. E o mais espantoso é que todos estavam assinados "Helen Rossi". E todos me estavam endereçados a mim. Barley, espreitando por cima do meu ombro, percebeu a minha perplexidade e sentámo-nos juntos na beira da cama. O primeiro era de Roma; uma fotografia a preto e branco das ruínas esquálidas do Fórum.

 

Maio de 1962

Minha querida filha;

Em que língua devo escrever para ti, a filha do meu coração e do meu corpo, que não vejo há mais de cinco anos? Devíamos ter estado a falar uma com a outra durante todo este tempo, uma não-linguagem de pequenos sons e beijos, olhares, murmúrios. É-me tão difícil pensar sobre isto, lembrar o que perdi, que tenho de parar de escrever hoje, quando apenas comecei a tentar.

Com todo o amor da tua mãe Helen Rossi

 

O segundo era um postal colorido, já desbotado, de flores e vasos "jardins de Boboli. Boboli".

 

Maio de 962

Minha querida filha:

Vou contar-te um segredo: detesto o Inglês. O Inglês é um exercício de Gramática ou uma aula de Literatura. No meu coração, sinto que poderia falar melhor contigo na minha própria língua, o Húngaro, ou mesmo na língua que flui dentro do meu Húngaro — o Romeno. O Romeno é a língua do demônio que estou a procurar, mas, para mim, nem mesmo isso a estragou. Se estivesses sentada ao meu colo esta manhã admirando estes jardins, ensinava-te a primeira lição: "Ma numesc..." E, depois, sussurraríamos o teu nome, repetindo-o várias vezes na doce língua que também é a tua língua materna. Eu explicava-te que o Romeno é a língua de gente boa, corajosa, triste, de pastores e camponeses, e da tua avó, cuja vida ele arruinou à distância. Contava-te todas as coisas bonitas que ela me contou, as estrelas à noite no céu da aldeia dela, as lanternas no rio. "Ma numesc..." Contar-te tudo isto seria uma felicidade insuportável para um único dia.

Com todo o amor da tua mãe Helen Rossi

 

Barley e eu entreolhámo-nos e ele passou o braço suavemente em volta do meu pescoço.

 

Encontramos Stoichev num estado de grande excitação diante da mesa da biblioteca. Ranov estava sentado em frente dele, tamborilando com os dedos e de vez em quando relanceando os olhos para um documento que o velho estudioso punha de lado. Parecia mais irritado do que eu alguma vez o vira, o que fazia presumir que Stoichev não tinha estado a responder às suas perguntas. Quando entramos, Stoichev levantou a cabeça, animado.

— Acho que descobri — disse, num sussurro.

Helen sentou-se junto dele e eu debrucei-me sobre os manuscritos que ele estava a examinar. Eram semelhantes às cartas do irmão Kiril na concepção e execução, escritos com uma bela caligrafia compacta e precisa, em folhas desbotadas e com os cantos gastos. Reconheci a escrita eslavónica das cartas. Ao lado deles, Stoichev tinha aberto os nossos mapas. Fiquei quase sem respiração, esperando ardentemente que nos fosse dizer algo de importante. Talvez a tumba fosse ali mesmo, em Rila, pensei de repente; talvez fosse por essa razão que Stoichev insistira em vir ali, porque suspeitava disso. Fiquei surpreendido e apreensivo, porém, por ele querer anunciar o que quer que fosse na presença de Ranov.

Stoichev olhou em volta, lançou um olhar rápido a Ranov, esfregou a testa enrugada com a mão e disse em voz baixa:

— Acredito que a tumba não esteja na Bulgária. — Senti a cabeça esvaziar-se de sangue.

— O quê?

Helen olhava fixamente para Stoichev e Ranov virou-nos as costas, batendo com os dedos na mesa como se não estivesse a prestar muita atenção.

— Lamento desapontá-los, meus amigos, mas com base neste manuscrito, que já não examinava há muitos anos, é muito claro que um grupo de peregrinos viajou de regresso à Valáquia saindo de Sveti Georgi cerca de 1478. Este manuscrito é um documento da alfândega; dava-lhes autorização para levar uma determinada relíquia cristã de origem valáquia de regresso ao país de origem. Lamento muito. Talvez possam viajar até lá um dia e examinar melhor essa questão. No entanto, se quiserem continuar a vossa pesquisa sobre as rotas dos peregrinos na Bulgária, terei muito prazer em ajudá-los.

Arregalei os olhos para ele, sem palavras. Não era possível irmos à Romênia depois de tudo isto, pensei. Já era um milagre termos chegado até ali.

— Recomendo-vos que obtenham autorização para visitar alguns outros mosteiros e as rotas em que estão localizados, em particular o mosteiro Bachkovo. É um belo exemplo do nosso estilo bizantino búlgaro e as construções são muito mais antigas do que as de Rila. Além disso, têm lá alguns manuscritos muito raros que monges em peregrinação levaram para o mosteiro como presente. Será muito interessante para vocês, e dessa forma poderão reunir material para os vossos artigos.

Para meu espanto, reparei que Helen parecia concordar completamente com o plano dele.

— Pode-se conseguir isso, senhor Ranov? — perguntou ela. — Talvez o professor Stoichev deseje também acompanhar-nos.

— Ah, receio bem ter de voltar para casa — disse Stoichev, desculpando-se. — Tenho muito trabalho para fazer. Gostaria de poder ajudá-los em Bachkovo, mas posso dar-vos uma carta de apresentação para o abade. O senhor Ranov pode ser vosso intérprete e o abade vai ajudá-los com qualquer tradução de manuscritos que pretendam fazer. É um grande estudioso da história do mosteiro.

— Muito bem — Ranov pareceu satisfeito ao ouvir que Stoichev nos ia deixar.

Não havia nada que pudéssemos dizer sobre aquela terrível situação, pensei; tínhamos de continuar simplesmente com um pedido para pesquisar noutro mosteiro e decidir no caminho o que fazer em seguida. Romênia? A imagem da porta de Rossi na universidade surgiu diante de mim outra vez: estava fechada, trancada. Rossi nunca mais voltaria a abri-la. Entorpecido, observei Stoichev enquanto ele colocava outra vez os manuscritos na respectiva caixa e fechava a tampa. Helen levou a caixa para uma prateleira em vez dele e ajudou-o a sair. Ranov vinha atrás de nós em silêncio um silêncio que presumi cheio de maldosa satisfação. O que quer que tivéssemos vindo procurar estava agora fora do nosso alcance, e ficaríamos novamente sozinhos com o nosso guia. Depois ele faria com que terminássemos de vez a nossa pesquisa e deixássemos a Bulgária o mais depressa possível.

Irina aparentemente estivera na igreja; quando saímos, veio na nossa direção através do pátio muito quente e, ao vê-la, Ranov afastou-se para fumar numa das galerias, depois dirigiu-se para o portão principal e saiu por ele. Pareceu-me que apressava o passo ao chegar ao portão; talvez ele também precisasse de uma pausa. Stoichev sentou-se pesadamente num banco de madeira próximo do portão, com a mão protetora de Irina pousada no seu ombro.

— Ouçam — disse ele, muito baixo, sorrindo-nos como se estivéssemos apenas a conversar. — Temos de falar depressa enquanto o nosso amigo não pode ouvir-nos. Não foi minha intenção assustá-los. Não há nenhum documento sobre uma peregrinação de regresso à Valáquia com relíquias. Lamento dizer que estava a mentir. Vlad Drácula está mesmo enterrado em Sveti Georgi, onde quer que isso fique, e descobri uma coisa muito importante. Na "Crônica", Stefan diz que Sveti Georgi era perto de Bachkovo. Não vi qualquer relação entre a região de Bachkovo e os vossos mapas, mas há aqui uma carta do abade de Bachkovo para o abade de Rila do princípio do século dezesseis. Não me atrevi a mostrá-la na frente do nosso companheiro. Essa carta declara que o abade de Bachkovo já não precisa da ajuda do abade de Rila, ou de quaisquer outros religiosos, para acabar com a heresia em Sveti Georgi, porque o mosteiro foi queimado e os seus monges dispersos. Recomenda que o abade de Rila fique muito atento a quaisquer monges vindos de lá ou a quaisquer monges que espalhem a idéia de que o dragão matou Sveti Georgi São Jorge porque este é o sinal da heresia deles.

— O dragão matou... espere — disse eu. — O senhor refere-se àquela frase sobre o monstro e o santo? Kiril diz que estavam à procura de um mosteiro com um sinal de que o santo e o monstro eram iguais.

— São Jorge é uma das figuras mais importantes na iconografia búlgara — explicou Stoichev, baixinho. — Seria de fato uma estranha inversão se o dragão vencesse São Jorge. Mas lembrem-se de que os monges valáquios procuravam um mosteiro que já tivesse aquele sinal, porque seria o lugar adequado para juntar o corpo de Drácula à sua cabeça. Agora estou a começar a considerar se não teria havido uma heresia maior sobre a qual não temos conhecimento, uma heresia que já fosse conhecida em Constantinopla, na Valáquia, ou que talvez o próprio Drácula conhecesse. Teria a Ordem do Dragão as suas próprias crenças espirituais, fora dos preceitos da Igreja? Poderia de alguma maneira ter criado uma heresia? Nunca tinha pensado nesta possibilidade, até hoje. Sacudiu a cabeça. Têm de ir a Bachkovo e perguntar ao abade de lá se sabe alguma coisa a respeito dessa igualdade ou inversão de monstro e santo. Têm de lhe perguntar isso em segredo. A minha carta para ele que o vosso guia vos vai levar e ler vai dar a entender que apenas desejam fazer uma pesquisa sobre rotas de peregrinação, mas vão ter de encontrar uma maneira de falar com ele em segredo. Além disso, há um monge lá que foi um estudioso, um conhecido investigador da história de Sveti Georgi. Trabalhou com Atanas Angelov e foi a segunda pessoa a ver a "Crônica" de Zacharias. O nome dele era Pondev quando o conheci, mas não sei como se chama agora, que é monge. O abade pode ajudá-los a identificá-lo. Há mais uma coisa. Não tenho aqui um mapa da região próxima de Bachkovo, mas acho que algures a noroeste do mosteiro há um longo vale sinuoso onde provavelmente existiu um rio. Lembro-me de o ter visto uma vez, e de ter falado com os monges sobre isso quando visitei a região, apesar de não me lembrar agora como lhe chamavam. Poderia ser a cauda do nosso dragão? Mas o que seriam então as asas do dragão? As montanhas, talvez. — Têm de as procurar, também.

Tive vontade de me ajoelhar diante de Stoichev e beijar-lhe os pés.

— Mas o senhor não quer vir conosco?

— Eu enfrentaria até a minha sobrinha para isso — replicou, sorrindo para ela, — mas receio que isso só fosse levantar mais suspeitas. Se o vosso guia pensar que ainda estou interessado nesta pesquisa, vai ficar mais atento. Venham visitar-me logo que voltem para Sofia, se puderem. Vou pensar em vocês todo o tempo e desejar que façam uma viagem segura e descubram o que procuram. Tomem, têm de levar isto. — Pôs um pequeno objeto na mão de Helen, mas ela fechou a mão tão depressa que não vi o que era nem onde o escondeu.

— O senhor Ranov desapareceu durante muito tempo, para os padrões dele — comentou ela, em voz baixa. Olhei-a rapidamente.

— Achas que eu vá procurá-lo? — Eu aprendera a confiar nos instintos de Helen e saí em direção ao portão principal sem esperar resposta.

Do lado de fora do grande mosteiro, vi Ranov a falar com um homem junto de um carro azul e comprido. O outro indivíduo era alto e elegante, no seu fato de Verão e chapéu, e algo nele fez com que me detivesse à sombra do portão. Os dois estavam no meio de uma discussão acalorada, que foi subitamente interrompida. O homem elegante deu uma palmada nas costas de Ranov e entrou no carro. Senti o impacto da palmada amigável conhecia aquele gesto, já acertara no meu ombro uma vez. Sem a menor dúvida, por incrível que fosse, o homem que agora conduzia habilmente pelo estacionamento empoeirado era Géza József. Recuei para o pátio, para junto de Helen e Stoichev, o mais depressa que pude. Helen estudou-me com um olhar penetrante, talvez estivesse também a aprender a confiar nos meus instintos. Puxei-a para um lado por um instante e Stoichev, embora parecesse curioso, era demasiado bem-educado para fazer perguntas.

— Acho que József está aqui — segredei-lhe depressa. — Não lhe vi a cara, mas alguém que se parecia com ele estava agora mesmo a falar com Ranov

— Merda — disse Helen, baixinho. — Acho que foi a primeira e a última vez que a ouvi dizer um palavrão.

Logo depois, surgiu Ranov, apressado.

— Está na hora da ceia — disse ele, peremptório, e suspeitei de que estivesse arrependido de nos ter deixado a sós com Stoichev por alguns minutos. Pelo seu tom de voz, tive a certeza de que não me vira lá fora. — Venham comigo. Vamos comer.

A silenciosa ceia do mosteiro estava deliciosa, uma refeição caseira servida por dois monges. Um pequeno grupo de turistas estava aparentemente instalado na hospedaria juntamente conosco, e notei que alguns falavam outras línguas além de Búlgaro. Os que falavam alemão deviam ser pessoas da Alemanha Oriental, em férias, pensei, e talvez a outra língua fosse tcheco. Comemos com apetite, sentados a uma comprida mesa de madeira, com os monges alinhados noutra mesa próxima, e eu antevia com prazer as camas estreitas que nos aguardavam. Helen e eu não tínhamos tido um momento só para nós, mas eu sabia que ela devia estar a pensar na presença de József. O que quereria ele de Ranov? Ou, antes, o que queria de nós? Lembrei-me da advertência de Helen sobre estarmos a ser seguidos. Quem lhe dissera que estávamos ali?

Fora um dia muito cansativo, mas eu estava tão ansioso para chegar a Bachkovo que teria partido a pé de boa vontade, se isso me fizesse chegar lá mais depressa. Em vez disso, iríamos dormir, para nos prepararmos para a viagem do dia seguinte. Misturadas com os roncos de Berlim Oriental e de Praga, ouviria a voz de Rossi a dissertar sobre algum ponto controverso do nosso trabalho e a de Helen, parecendo achar graça à minha falta de perspicácia e dizendo: "Claro que quero casar contigo."

 

Junho de 1962

Minha querida filha:

Somos ricos, sabes, por causa de umas coisas terríveis que aconteceram comigo e com o teu pai. Deixei quase todo esse dinheiro com o teu pai, para ele cuidar de ti, mas tenho o suficiente para gastar durante uma longa busca, um cerco. Troquei algum desse dinheiro em Zurique há quase dois anos e abri lá uma conta bancária sob um nome que nunca direi a ninguém. A minha conta bancária é grande. Retiro dinheiro dela uma vez por mês para pagar o aluguel dos quartos, as taxas dos arquivos, as refeições em restaurantes. Gasto o mínimo possível para um dia poder dar-te tudo o que restar, minha pequenina, quando fores uma mulher.

A tua mãe que te adora, Helen Rossi

 

Junho de 1962

Minha querida filha:

Hoje foi um dos dias maus. (Nunca enviarei este postal. Se um dia enviar algum, não vai ser este.) Hoje foi um daqueles dias em que não sou capaz de me lembrar se estou à procura daquele demônio ou simplesmente a fugir dele. Fico diante do espelho, um espelho velho no meu quarto no Hotel d’Este; o espelho tem manchas que parecem musgo, subindo furtivamente pela sua superfície curva. Tiro o lenço e fico ali, a tocar com o dedo a cicatriz no meu pescoço, uma vermelhidão que nunca sara inteiramente. Não sei se vais encontrar-me antes de eu conseguir encontrá-lo. Não sei se ele vai encontrar-me antes de eu o encontrar a ele. Não sei se já me encontrou. Não sei se algum dia te voltarei a ver.

A tua mãe que te adora, Helen Rossi

 

Agosto de 1962

Minha querida filha:

Quando nasceste, o teu cabelo era negro e os caracóis colavam-se na tua cabeça pegajosa. Depois de te lavarem e enxugarem, transformou-se numa penugem macia em volta do teu rosto, o teu cabelo escuro como o meu, mas também acobreado como o do teu pai. Eu estava mergulhada num lago de morfina, e segurei-te e vi os reflexos no teu cabelo de recém-nascida mudarem do escuro dos ciganos para o claro, e outra vez para o escuro. Tudo em ti era lustroso e brilhava; eu dera-te forma e dera-te brilho dentro de mim sem saber o que estava a fazer. Os teus dedos eram dourados, as tuas faces eram rosadas, as tuas pestanas e sobrancelhas eram como as plumas de um corvo acabado de nascer. A minha felicidade sobrepunha-se mesmo à morfina.

A tua mãe que te adora, Helen Rossi

 

Acordei cedo no meu catre na camarata para homens em Rila; a luz do sol começava a entrar pelas janelas pequenas, que davam para o pátio, e alguns dos turistas ainda dormiam profundamente nos outros catres. Tinha ouvido o primeiro chamamento do sino da igreja, no escuro, e agora o sino tocava de novo. O meu primeiro pensamento ao acordar foi que Helen aceitara casar-se comigo. Queria vê-la outra vez, vê-la o mais cedo possível para lhe perguntar se o dia anterior fora ou não um sonho. A luz do sol que banhava todo o pátio lá fora era um eco da minha súbita felicidade, e o ar da manhã parecia-me incrivelmente fresco, cheio de séculos de frescura.

Mas Helen não apareceu para o pequeno-almoço. Ranov estava lá, carrancudo como sempre, a fumar, até que um monge veio delicadamente pedir-lhe para ir fumar lá para fora. Assim que a refeição terminou, segui pelo corredor para a ala das mulheres, onde Helen e eu nos tínhamos separado na noite da véspera, e encontrei a porta do quarto escancarada. As outras mulheres, as tchecas e alemãs, já tinham saído, deixando as camas feitas. Pelos vistos, Helen ainda estava a dormir; podia ver-se a sua forma no catre mais próximo da janela. Estava virada para a parede, e eu entrei, sem fazer barulho, raciocinando que ela agora era minha noiva e eu tinha o direito de lhe dar um beijo de bons-dias, mesmo num mosteiro. Fechei a porta atrás de mim, esperando que nenhum monge aparecesse.

Helen estava de costas para o resto do quarto, na sua cama junto da janela. Quando me aproximei, virou o corpo ligeiramente na minha direção, como se pressentisse a minha presença. A cabeça estava inclinada para trás, os olhos fechados, os caracóis escuros espalhados na almofada. Dormia um sono profundo e um som audível, quase estertoroso, saía-lhe dos lábios. Pensei que devia estar cansada das nossas viagens e da caminhada do dia anterior, mas alguma coisa no abandono da sua posição fez-me aproximar, preocupado. Debrucei-me sobre ela, pensando que a beijaria antes que acordasse e então, num único e terrível momento, vi a palidez esverdeada do seu rosto e o sangue fresco no seu pescoço. No sítio onde estivera a ferida quase cicatrizada, na parte mais funda do pescoço, dois pequenos cortes sangravam, vermelhos e abertos.

Havia um pouco de sangue na dobra do lençol branco, também, e mais algum na manga da camisa de dormir de aparência barata, ao ter estendido o braço para trás durante o sono. A frente da camisa fora puxada para o lado e um pouco rasgada, e um dos seus seios estava descoberto quase até ao mamilo escuro. Vi tudo isso num instante imóvel, e o meu coração pareceu parar de bater dentro de mim. Então, puxei o lençol levemente sobre a sua nudez, como se tapasse uma criança para dormir. Não me ocorreu fazer mais nada naquele momento. Um soluço denso encheu-me a garganta, uma raiva que ainda não sentia completamente.

— Helen! — sacudi-lhe levemente o ombro, mas o seu rosto não se alterou. Reparava agora como parecia abatida, como se sentisse dor mesmo a dormir. Onde estava o crucifixo? Lembrei-me dele de repente e procurei em volta. Encontrei-o junto do meu pé: a corrente fina estava rebentada. Alguém a arrancara ou ela própria a rebentara a dormir? Sacudi-a novamente.

— Helen! Acorda!

Desta vez ela mexeu-se, mas aflita, e tive receio de poder fazer-lhe algum mal trazendo-a de volta à consciência demasiado depressa. Um segundo depois, entretanto, ela abriu os olhos, franzindo a testa. Os seus movimentos eram muito fracos. Quanto sangue teria perdido naquela noite, enquanto eu dormia pesadamente no corredor ao lado? Por que a deixara sozinha exatamente naquela noite, e em todas as noites?

— Paul — disse ela, intrigada. — O que estás a fazer aqui? — Fez um esforço para se sentar e descobriu o rasgão na camisa de dormir. Levou a mão ao pescoço, enquanto eu a observava numa angústia muda, e afastou-a devagar. Havia sangue pegajoso, que ainda não secara de todo, nos seus dedos. Ela olhou para os dedos, depois para mim. — Oh, meu Deus — disse. Sentou-se muito direita e senti uma primeira ponta de alívio, apesar do seu rosto horrorizado; se tivesse perdido muito sangue, estaria fraca demais até para aquele gesto.

— Ah, Paul — murmurou.

Sentei-me na beira da cama, peguei-lhe na outra mão e apertei-a.

— Estás completamente acordada? — perguntei. Ela fez que sim com a cabeça. — E sabes onde estás?

— Sei — respondeu, mas em seguida abaixou a cabeça por cima da mão suja de sangue e rompeu em soluços baixos, ásperos, um som horripilante. Nunca a ouvira chorar alto. O som penetrou-me no corpo como uma lufada de ar gelado.

— Estou aqui — consolei-a, e beijei-lhe a mão.

Ela apertou-me os dedos, chorando, depois tentou recompor-se.

— Temos de pensar o que... esse é o meu crucifixo?

É — e levantei-o, observando-a com cuidado, mas, para meu infinito alívio, não houve sinal de repulsa no seu rosto. — Tiraste-o?

— Não, claro que não — ela sacudiu a cabeça e uma lágrima que restava desceu-lhe pela face. — E não me lembro de ter rebentado a corrente. Não acredito que eles... ele... ousasse fazer isto, se a lenda estiver correta. — Enxugou o rosto, mantendo a mão longe da ferida no pescoço. — Devo tê-la rebentado enquanto dormia.

— Acho que sim, considerando o lugar onde o encontrei mostrei-lhe o lugar, no chão. E não te faz sentir... desconfortável... tê-lo perto de ti?

— Não -respondeu, pensativa. — Pelo menos, ainda não. — A frieza daquele ainda não fez-me suster a respiração.

Ela estendeu a mão e tocou no crucifixo, primeiro hesitante, depois pegou nele. Soltei o ar dos pulmões. Helen suspirou também.

— Adormeci a pensar na minha mãe e num artigo que gostaria de escrever sobre os motivos dos bordados da Transilvânia são famosos, sabes e só acordei agora. — Franziu as sobrancelhas. — Tive um sonho mau, mas a minha mãe estava sempre nele, e estava... a espantar um grande pássaro negro. Depois de o ter espantado, inclinou-se para mim e beijou-me na testa, como costumava fazer quando eu era pequena e ia dormir, e vi a marca... — fez uma pausa, como se pensar a fizesse sofrer. — Vi a marca do dragão no ombro dela, mas pareceu-me que era só uma coisa que fazia parte dela, e não algo de terrível. E quando recebi o beijo dela na minha testa, já não tive tanto medo.

Senti uma pontada de um estranho terror, lembrando-me da noite no meu apartamento em que aparentemente mantivera à distância o assassino do meu gato, quando passara a meia-noite lendo sobre as vidas dos mercadores holandeses de que tinha acabado por gostar. Algo protegera Helen, também, pelo menos até certo ponto; fora cruelmente ferida, mas o seu sangue não fora todo sugado. Entreolhámo-nos em silêncio.

— Podia ter sido muito pior — disse ela.

Abracei-a e senti o tremor dos seus ombros sempre tão firmes. Eu também estava a tremer.

— Sim — sussurrei. — Mas temos de te proteger de qualquer outra coisa. — Ela abanou a cabeça, de repente, perplexa.

— E isto é um mosteiro! Não consigo entender. Os mortos-vivos odeiam estes lugares. — Apontou para a cruz por cima da porta, o ícone e a lamparina pendurada no canto. — Aqui, diante da Virgem?

— Também não entendo — disse eu, devagar, virando a mão dela dentro da minha. — Mas sabemos que houve monges que viajaram com os restos mortais de Drácula, e que ele provavelmente foi enterrado num mosteiro. Só isso já é um bocado estranho. Helen — e apertei-lhe a mão, — estou a pensar noutra coisa. O bibliotecário americano: ele encontrou-nos em Istambul e depois em Budapeste. Poderá ter-nos seguido até aqui, também? Poderá ter-te atacado a noite passada?

Ela sobressaltou-se.

— Eu sei. Ele mordeu-me uma vez na biblioteca, portanto pode querer-me outra vez, não é? Mas senti intensamente no meu sonho que não era isso, que era uma coisa muito mais poderosa. Mas como é que um deles entraria aqui, mesmo que não tivesse medo de um mosteiro?

— Essa parte é simples — e apontei para a janela mais próxima, que estava ligeiramente entreaberta, a um metro e meio de distância da cama de Helen. — Ah, meu Deus, por que é que te deixei ficar aqui sozinha?

— Eu não estava sozinha — lembrou ela. — Havia mais cinco pessoas a dormir neste quarto comigo. Mas tens razão. Ele pode mudar de forma, como a minha mãe disse. Um morcego, uma névoa...

— Ou um grande pássaro negro.

O sonho dela voltara à minha mente.

— E agora fui mordida duas vezes, ou quase isso — disse ela, como se sonhasse.

— Helen! — sacudi-a. — Nunca mais te vou deixar sozinha, nem por uma hora sequer.

— Nunca mais vou ter uma hora só para mim? — O seu velho sorriso, sarcástico e carinhoso, voltou por um momento.

— E quero que me prometas: se sentires alguma coisa que eu não possa sentir, se sentires que alguma coisa te procura...

— Eu digo-te, Paul, se sentir alguma coisa assim. — Falou com veemência, e a promessa pareceu despertá-la para a ação. — Vem, por favor. Preciso comer qualquer coisa e de um pouco de vinho tinto ou conhaque, se conseguir encontrar. Traz-me uma toalha, aquela, e a bacia: vou lavar o pescoço e enfaixá-lo. — O seu ardente sentido prático era contagiante e obedeci imediatamente. — Mais tarde, vamos à igreja limpar a ferida com água benta, quando ninguém estiver a olhar. Se eu aguentar, podemos ter esperanças. Ora, vejam só — fiquei contente ao ver o seu velho sorriso cínico outra vez —, sempre achei todos esses rituais das igrejas um disparate, e ainda acho.

— Mas pelos vistos ele não acha que sejam um disparate — disse eu, sério.

Ajudei-a a lavar o pescoço com uma esponja, tendo o cuidado de não tocar nas feridas abertas, e fiquei atento à porta enquanto ela se vestia. Ver as feridas de perto foi tão terrível para mim que cheguei a pensar que teria de sair do quarto para dar vazão às minhas lágrimas. No entanto, apesar da fraqueza visível dos seus movimentos, via-lhe a determinação no rosto. Amarrou o lenço do costume ao pescoço e encontrou na bagagem uma fita para pendurar o crucifixo mais forte, esperava eu. Os seus lençóis estavam irremediavelmente manchados, mas apenas em pequenos pontos.

— Vamos deixar os monges pensarem... bem, que houve mulheres na camarata — disse Helen, com a sua maneira direta. — Não será com certeza a primeira vez que terão lavado algum sangue.

Quando saímos da igreja, Ranov estava a andar indolentemente pelo pátio. Apertou os olhos para Helen.

— Acordou muito tarde hoje — disse ele, em tom acusador.

Olhei com atenção para os seus caninos superiores quando ele falou, mas não me pareceram mais pontiagudos que habitualmente. Quando muito, estavam gastos e cinzentos no seu sorriso desagradável.

 

Tinha achado exasperante a relutância de Ranov em levar-nos a Rila, mas era muito mais preocupante ver o entusiasmo dele em levar-nos a Bachkovo. Durante a viagem de carro, foi apontando todas as vistas possíveis, muitas das quais eram interessantes, apesar dos seus comentários contínuos sobre elas. Helen e eu tentávamos não olhar um para o outro, mas eu sabia que ela sentia a mesma desagradável apreensão que eu. Agora, tínhamos também József com que nos preocupar. A estrada de Plovdiv era estreita e contornava um arroio pedregoso de um lado e penhascos escarpados do outro. Estávamos a avançar aos poucos para as montanhas outra vez na Bulgária, nunca se está longe das montanhas, comentei para Helen, que olhava pela janela do outro lado, no banco de trás do carro de Ranov, e ela concordou.

— Balkan é uma palavra turca que significa montanha.

O mosteiro não tinha uma entrada grandiosa saímos simplesmente da estrada para um espaço de terra batida, onde paramos, e percorremos a pé uma pequena distância até ao portão. Bachkovski manastir situava-se entre altas colinas áridas, em parte arborizadas e em parte rocha nua, junto ao rio estreito; mesmo no início do Verão, a paisagem já estava seca, e era fácil imaginar como os monges deviam dar valor àquela fonte de água que lhes ficava próxima. Os muros exteriores tinham sido feitos com a mesma pedra de cor parda das colinas que os cercavam. Os telhados do mosteiro eram de telhas de barro iguais às que eu vira na velha casa de Stoichev e em centenas de casas e igrejas que ladeavam as estradas. A entrada para o mosteiro era uma passagem em arco na muralha, tão escura como um buraco no chão.

Podemos entrar? — perguntei a Ranov.

Ele sacudiu a cabeça de um lado para o outro, o que significava sim, e penetramos na fria escuridão do arco.

Avançamos devagar para chegar ao pátio ensolarado e, durante esses segundos dentro da espessa muralha do mosteiro, só se ouvia o ruído dos nossos passos.

Talvez eu esperasse encontrar outro grande espaço público, como o de Rila; a intimidade e a beleza do pátio principal de Bachkovo trouxeram-me um suspiro aos lábios, e Helen também murmurou algo. A igreja do mosteiro ocupava quase todo o pátio, e as suas torres eram vermelhas, angulosas, bizantinas. Não havia cúpulas douradas ali, só uma antiga elegância os materiais mais simples dispostos em formas harmoniosas. Trepadeiras subiam pelas torres da igreja; árvores aninhavam-se nelas; um magnífico cipreste elevava-se como um campanário. Três monges de túnicas negras e chapéus de copa alta conversavam do lado de fora da igreja. As árvores lançavam manchas de sombra no pátio brilhantemente ensolarado e uma brisa suave começava a chegar, fazendo mexer as folhas. Para minha surpresa, galinhas corriam aqui e ali, debicando nas antigas lajes de pedra do pavimento, e um gatinho malhado caçava qualquer coisa numa fenda do muro.

Como em Rila, as paredes interiores do mosteiro eram constituídas de compridas galerias, pedra e madeira. As partes inferiores das paredes de pedra de algumas galerias, assim como o pórtico da igreja, estavam cobertas de frescos desbotados. Além dos três monges, das galinhas e do gatinho, não havia mais ninguém à vista. Estávamos ali sozinhos, sozinhos em Bizâncío.

Ranov dirigiu-se aos monges e começou a conversar com eles enquanto Helen e eu esperávamos. Um momento depois, voltou.

— O abade não está, mas o bibliotecário está aqui e pode ajudar-nos. Não gostei daquele nos, mas fiquei calado.

— Podem ver a igreja enquanto vou procurá-lo.

— Nós vamos consigo — disse Helen com firmeza, e seguimos um dos monges, entrando nas galerias.

O bibliotecário estava a trabalhar numa sala do piso térreo; levantou-se da sua escrivaninha para nos cumprimentar quando entramos. O espaço estava vazio, à exceção de uma salamandra de ferro e de um tapete colorido no chão. Perguntei-me onde estariam os livros, os manuscritos. Além de uns dois livros na escrivaninha de madeira, não vi qualquer sinal de uma biblioteca ali.

— Este é o irmão Ivan — explicou Ranov.

O monge inclinou-se para nós sem nos estender a mão; na realidade, as suas mãos não se viam, enfiadas nas longas mangas da túnica, que ele mantinha cruzadas sobre o corpo. Ocorreu-me que não quisesse tocar em Helen. O mesmo deve ter ocorrido a Helen, porque recuou e colocou-se quase atrás de mim. Ranov trocou algumas palavras com ele.

— O irmão Ivan pede que se sentem, por favor.

Sentámo-nos obedientemente. O irmão Ivan tinha um rosto sério e comprido acima da barba, e analisou-nos por uns instantes.

— Podem fazer-lhe perguntas — disse Ranov, incentivando-nos.

Aclarei a garganta. Não havia outra maneira; teríamos de fazer as nossas perguntas em frente de Ranov. Eu tinha de tentar fazê-las parecer puramente acadêmicas.

— Pode perguntar ao irmão Ivan se ele sabe alguma coisa sobre peregrinos vindos da Valáquia para aqui?

Ranov fez a pergunta ao monge e, à menção da palavra Valáquia, o rosto do irmão Ivan iluminou-se.

— Ele diz que o mosteiro teve uma ligação importante com a Valáquia, que começou no final do século quinze.

O meu coração começou a bater com força, embora eu tentasse manter-me calmamente sentado.

— Ah, sim? E qual foi essa ligação?

Conferenciaram um pouco mais, o irmão Ivan fazendo um gesto com a mão na direção da porta. Ranov assentiu.

— Ele diz que, nessa época, os príncipes da Valáquia e da Moldávia passaram a dar grande apoio a este mosteiro. Existem manuscritos na biblioteca que comprovam esse apoio.

— Ele sabe a razão por que fizeram isso? — perguntou Helen, em voz baixa. Ranov perguntou ao monge.

— Não — disse ele. — Só sabe que os manuscritos atestam esse apoio.

— Pergunte-lhe — disse eu — se tem conhecimento de algum grupo de peregrinos que tenha vindo da Valáquia para cá mais ou menos nessa época.

O irmão Ivan sorriu.

— Sim transmitiu Ranov, — houve muitos. O mosteiro era uma paragem importante nas rotas de peregrinação da Valáquia. Muitos peregrinos iam daqui para Athos ou para Constantinopla.

Quase rangi os dentes.

Mas um grupo em especial de peregrinos da Valáquia, transportando um... uma espécie de relíquia, ou à procura de uma relíquia. Ele sabe alguma história dessas?

Ranov parecia estar a esforçar-se para conter um sorriso triunfante.

— Não — disse. — Ele não viu nenhum relato de tais peregrinos. Houve muitos peregrinos durante aquele século. Bachkovski manastir era muito importante então. O patriarca da Bulgária foi exilado aqui do cargo que ocupava em Veliko Trnovo, a antiga capital, quando os Otomanos tomaram o país. Morreu aqui em 1404 e aqui foi sepultado. A parte mais antiga do mosteiro, e a única parte que é original, é o ossário.

Helen falou novamente.

— Pode perguntar-lhe, por favor, se entre os irmãos há um monge que anteriormente se chamava Pondev?

Ranov transmitiu a pergunta e o irmão Ivan pareceu espantado, depois cauteloso.

— Ele diz que deve ser o velho irmão Angel. Chamava Vasil Pondev e foi historiador. Mas já não está... bem da cabeça. Não vão conseguir saber nada se conversarem com ele. O abade é, presentemente, o nosso grande especialista, e é uma pena que esteja ausente agora que estão aqui.

Ainda assim, gostaríamos de falar com o irmão Angel — disse eu a Ranov.

E assim foi feito, se bem que depois de muito cenho franzido por parte do bibliotecário, que nos levou de volta ao pátio, fulgurante à luz do sol, e através de uma segunda passagem em arco. Desembocamos noutro pátio, que tinha uma construção muito antiga no meio. Esse segundo pátio não estava tão bem cuidado como o primeiro, e tanto os edifícios como o piso de pedra, tinham uma aparência de ruína e abandono. Havia ervas daninhas entre as lajes e vi uma árvore a crescer num canto do telhado; com o tempo, se a deixassem ficar, iria aumentar de tamanho e destruir aquela extremidade da estrutura. Podia imaginar facilmente que restaurar aquela casa de Deus não era a maior prioridade do governo búlgaro. Tinham Rila como montra, com a sua história búlgara "pura" e as suas ligações à rebelião contra os Otomanos. Por sua vez, este lugar antigo, bonito como era, criara raízes sob os Bizantinos, sob invasores e ocupantes como os últimos otomanos, e fora ainda arménio, georgiano, grego não tínhamos acabado de ouvir que fora também independente sob os Otomanos, ao contrário dos outros mosteiros búlgaros? Não era de admirar que o governo deixasse árvores crescerem nos seus telhados.

O bibliotecário levou-nos a um quarto de esquina.

— A enfermaria — explicou Ranov.

Aquela versão cooperativa de Ranov estava a deixar-me cada vez mais nervoso. O bibliotecário abriu uma porta de madeira instável e lá dentro vimos uma cena tão patética que nem gosto de a recordar. Dois velhos monges estavam abrigados ali. Toda a mobília do quarto consistia unicamente nos seus catres, uma cadeira de madeira e uma salamandra de ferro; mesmo com a salamandra, o local devia ser extremamente frio durante os invernos na montanha. O chão era de pedra, as paredes caiadas de branco e nuas, à exceção de um altar a um canto: uma lamparina pendurada, uma prateleira profusamente esculpida, um ícone desbotado da Virgem.

Um dos velhos estava deitado na cama estreita e não olhou para nós quando entramos. Após um momento, vi que os seus olhos estavam permanentemente fechados, inchados e vermelhos, e que o homem virava o queixo de vez em quando como se tentasse ver com ele. Estava quase todo coberto com um lençol branco, uma das mãos a tatear na beira da cama, parecendo procurar o limite do espaço, o ponto onde poderia cair se não tomasse cuidado, enquanto a outra mão remexia na pele flácida do seu próprio pescoço.

O residente mais funcional do quarto encontrava-se sentado na única cadeira, um cajado encostado à parede perto dele, como se a sua viagem do catre para a cadeira tivesse sido longa. Estava vestido com uma túnica negra, que lhe caía sem o cinto sobre a barriga protuberante. Os olhos estavam abertos, imensamente azuis, e voltaram-se para nós com uma expressão interrogativa quando entramos. O cabelo e as suíças projetavam-se como um matagal branco em torno dele, e tinha a cabeça descoberta. De certa forma, isto fazia-o parecer mais doente e anómalo do que qualquer outra coisa, aquela cabeça descoberta num mundo em que todos os monges usavam constantemente os seus chapéus altos e negros. Aquele monge de cabeça nua poderia ter servido de modelo para a ilustração de um profeta numa Bíblia do século dezenove, exceto pelo fato de a sua expressão ser tudo menos visionária. Franzia o grande nariz para cima, como se cheirássemos mal, mastigava os cantos da boca e apertava e arregalava os olhos constantemente. Não saberia dizer se ele parecia assustador, sarcástico ou diabolicamente divertido, porque a sua expressão mudava constantemente. O corpo e as mãos repousavam na cadeira gasta, como se todos os movimentos que pudessem fazer fossem sugados para cima pelos espasmos do rosto. Desviei o olhar.

Ranov falava com o bibliotecário, que gesticulava apontando para o quarto.

— O homem na cadeira é Pondev — declarou Ranov, categórico. — O bibliotecário avisa que não esperemos dele um discurso muito normal.

Ranov aproximou-se do monge com cuidado, como se o irmão Angel pudesse morder, e encarou-o. O irmão Angel Pondev — girou a cabeça para olhar para ele, um gesto que imitava o de um animal numa jaula do jardim zoológico. Ranov parecia estar a tentar fazer apresentações, e, segundos depois, os olhos surrealmente azuis do irmão Angel vaguearam pelos nossos rostos. O dele contraía-se e contorcia-se. Então falou, e as palavras vieram em tropel, seguidas de um emaranhado rangente de sons, um grunhido. Uma das suas mãos ergueu-se no ar e fez um sinal que tanto poderia ser uma cruz como uma tentativa de nos manter à distância.

— O que está ele a dizer? — perguntei a Ranov em voz baixa.

— Só disparates — respondeu Ranov, interessado. — Nunca ouvi nada assim. Parecem ser orações, em parte, alguma superstição da liturgia deles, e em parte algo sobre o sistema de elétricos de Sofia.

— Pode tentar fazer-lhe uma pergunta? Diga-lhe que somos historiadores como ele e que queremos saber se um grupo de peregrinos veio da Valáquia para cá passando por Constantinopla no final do século quinze, trazendo uma relíquia sagrada.

Ranov encolheu os ombros, mas fez a tentativa, e o irmão Angel respondeu com um rosnado de sílabas, sacudindo a cabeça. Aquilo queria dizer sim ou não? perguntei a mim mesmo.

— Mais disparates — observou Ranov. — Desta vez, é alguma coisa sobre a invasão de Constantinopla pelos Turcos; portanto, pelo menos isso ele compreendeu.

De repente, os olhos do ancião clarearam, como se o seu foco cristalino reconhecesse a nossa presença pela primeira vez. No meio do bizarro fluxo de sons seria de fato um idioma?, ouvi distintamente o nome Atanas Angelov.

— Angelov! — exclamei, falando diretamente com o velho monge. — O senhor conheceu Atanas Angelov? Lembra-se de ter trabalhado com ele?

Ranov ouvia com atenção.

— Os disparates continuam, em geral, mas vou tentar transmitir-lhes o que ele está a dizer. Ouçam bem.

Começou a traduzir, rápida e desapaixonadamente; por muito que não gostasse dele, tive de admirar a sua habilidade.

 

"Trabalhei com Atanas Angelov. Há anos, séculos, talvez. Ele era maluco. Apague aquela luz ali, incomoda as minhas pernas. Ele queria saber tudo sobre o passado, mas o passado não quer que o conheçamos. Ele diz não não, não. O passado levanta-se e insulta-nos. Eu queria apanhar o número onze, mas esse já não passa no nosso bairro. De qualquer maneira, o camarada Dimitrov cancelou o pagamento que íamos receber, para bem do povo. Bom povo."

 

Ranov parou para tomar fôlego, e nesse meio tempo devemos ter perdido alguma coisa, porque o fluxo de palavras continuou. O velho ainda estava imóvel do pescoço para baixo na sua cadeira, mas abanava a cabeça e contraía o rosto.

 

— "Angelov encontrou um lugar perigoso, encontrou um lugar chamado Sveti Georgi, ele ouviu a cantoria. Foi onde enterraram um santo e dançaram sobre o seu túmulo. Posso oferecer-lhe café, mas é só trigo moído, uma porcaria. Nem pão temos."

 

Ajoelhei-me diante do velho monge e segurei-lhe na mão, embora Helen fizesse menção de me deter. A mão dele estava mole como um peixe morto, branca e inchada, as unhas amareladas e grotescamente compridas.

 

— Onde é Sveti Georgi? — supliquei. Tive a sensação de que no minuto seguinte poderia começar a chorar, na frente de Ranov e Helen e daquelas duas criaturas dessecadas na sua prisão.

 

Ranov agachou-se ao meu lado, tentando captar os olhos errantes do monge.

 

— K de e Sveti Georgi?

Mas o irmão Angel fora outra vez atrás do seu olhar perdido para outro mundo distante.

 

"Angelov foi para o Athos e viu o typikon, foi para as montanhas e encontrou o lugar terrível. Eu apanhava o número onze para ir para o apartamento dele. Ele disse: "Venha depressa, encontrei uma coisa. Vou voltar lá para desenterrar o passado." Eu dava-vos café, mas é intragável. Oh, oh, ele estava morto no seu quarto, e depois o corpo dele não estava no necrotério."

 

O irmão Angel abriu um sorriso que me fez recuar. Tinha dois dentes e as suas gengivas estavam deformadas. O bafo que saiu da sua boca teria morto o próprio demônio. Começou a cantar numa voz alta e trêmula.

 

O dragão desceu ao nosso vale

E queimou as colheitas e tomou as donzelas,

E assustou o turco infiel e protegeu as nossas aldeias

O seu sopro secou os rios e nós atravessámo-los a pé

 

Quando Ranov acabou de traduzir, o irmão Ivan, o bibliotecário, falou com uma certa animação Ainda conservava as mãos dentro das mangas, mas o rosto estava cheio de vivacidade e interesse.

— O que está ele a dizer? — perguntei depressa. Ranov sacudiu a cabeça

— Ele diz que já ouviu essa canção antes. Ouviu-a a uma velha na aldeia de Dimovo chamada Baba Yanka, que é uma grande cantora lá, onde o rio secou há muito tempo. Têm várias festividades nessa aldeia, onde cantam essas velhas canções, e ela é a líder dos cantores Uma dessas festas vai acontecer daqui a dois dias, a festa de S. Petko, talvez queiram ir ouvi-la

— Mais canções folclóricas — resmunguei — Por favor, pergunte ao senhor Pondev ao irmão Angel se sabe o que essa canção significa.

Ranov fez a pergunta com considerável paciência, mas o irmão Angel ficou a fazer caretas e a contrair o rosto sem dizer nada

Depois de um momento, o silêncio levou-me ao mais fundo dos meus sentimentos.

— Pergunte lhe se sabe alguma coisa sobre Vlad Drácula. — gritei. — Vlad Tepes. Ele está enterrado nesta região? Já ouviu esse nome alguma vez? O nome Drácula?

Helen segurou-me o braço, mas eu estava fora de mim. O bibliotecário olhou-me fixamente, apesar de não parecer alarmado, e Ranov lançou-me o que poderia ser considerado um olhar de pena, se eu quisesse prestar lhe atenção

Mas o efeito em Pondev foi impressionante. Ficou muito pálido, os olhos giraram nas órbitas como dois grandes berlindes azuis. O irmão Ivan precipitou-se para a frente e agarrou-o quando ele escorregou da cadeira, e ele e Ranov esforçaram-se para o levarem para a cama. Ele formava um volume desajeitado, com os pés brancos inchados a saírem da roupa de cama, os braços a pender em volta do pescoço de ambos. Quando conseguiram deitá-lo, o bibliotecário tirou água de uma jarra e deitou um pouco no rosto do pobre homem. Eu estava consternado, não tivera a intenção de causar tanta angústia, e talvez tivesse morto uma das nossas únicas fontes de informação que restavam. Depois de um momento interminável, o irmão Angel mexeu-se e abriu os olhos, mas agora eram olhos desvairados, vigilantes como os de um animal acuado, e percorriam o quarto, vacilantes, cheios de terror, como se não nos vissem. O bibliotecário afagou-lhe o peito e tentou acomodá-lo com mais conforto na cama, mas o ancião empurrou-lhe as mãos, tremendo.

— Vamos deixá-lo — disse Ranov, sombrio. — Ele não vai morrer. Disto, pelo menos.

Saímos do quarto atrás do bibliotecário, calados e preocupados.

— Sinto muito — disse eu, na claridade tranquilizadora do pátio. Helen dirigiu-se a Ranov:

— Pode perguntar ao bibliotecário se ele sabe mais alguma coisa sobre aquela canção, ou de que vale é oriunda?

Ranov e o bibliotecário conferenciaram, o bibliotecário lançando-nos olhares rápidos.

— Ele diz que a canção vem de Krasna Polyana, o vale que fica do outro lado destas montanhas, na direção noroeste. Podem ir com ele à festa do santo dentro de dois dias, se quiserem ficar aqui. Pode ser que a velha cantora saiba alguma coisa sobre essa canção. No mínimo, poderá dizer onde a aprendeu.

— Achas que podia ser útil? — murmurei a Helen. Ela olhou para mim com um ar sensato.

— Não sei, mas é tudo o que temos. Já que menciona um dragão, devíamos verificar. Entretanto, podemos explorar Bachkovo de alto a baixo, e talvez usar a biblioteca, se este bibliotecário nos ajudar.

Sentei-me, desalentado, num banco de pedra ao fundo da galeria.

— Está bem — concordei.

 

Setembro de 1962

Minha querida filha

Maldito Inglês! Mas quando tento escrever-te em Húngaro, umas poucas frases, sei de imediato que não estás a ouvir. Tu estás a crescer em Inglês. O teu pai, que pensa que morri, fala contigo em Inglês quando te põe aos ombros. Fala Inglês contigo quando te calça os sapatos já deves usar sapatos a sério há anos e fala Inglês quando te agarra a mão para passear no parque. No entanto, se falo contigo em Inglês, tenho a impressão de que não consegues ouvir-me. Não te escrevo há muito tempo porque não conseguia ouvir-te a aprender em língua nenhuma. Sei que o teu pai pensa que morri porque nunca tentou encontrar-me. Se tivesse tentado, teria conseguido. Mas ele não consegue ouvir-me em língua nenhuma

A tua mãe que te adora, Helen

 

Maio de 1963

Minha querida filha

Não sei quantas vezes te expliquei em silêncio que, nos primeiros meses, tu e eu fomos muito felizes juntas. Ver-te acordar do teu sono, as tuas mãos a mexerem-se antes que qualquer outra parte de ti despertasse, as tuas pestanas escuras a palpitarem em seguida e depois o teu espreguiçar, o teu sorriso, enchia-me completamente o coração. Então, alguma coisa aconteceu. Não era nada fora de mim, nem uma ameaça externa a ti. Era dentro de mim. Comecei a procurar constantemente no teu corpo perfeito algum sinal preocupante. Mas o mal estava em mim, muito antes desta ferida no meu pescoço, e nunca iria sarar completamente. Passei a ter medo de te tocar, meu anjo perfeito

A tua mãe que te adora, Helen

 

Julho de 1963

Minha querida filha:

Hoje, tenho a impressão de que sinto a tua falta mais do que nunca. Estou nos arquivos universitários de Roma. Já aqui estive sete vezes nos últimos dois anos. Os guardas conhecem-me, os arquivistas conhecem-me, o empregado do café do outro lado da rua conhece-me, e gostaria de me conhecer melhor se eu não lhe virasse as costas com frieza, fingindo que não noto o interesse dele. Este arquivo contém registros de uma peste de 1517, cujas vítimas apresentavam apenas uma chaga, um ferimento vermelho no pescoço. O Papa ordenou que fossem enterradas com estacas cravadas no coração e alho dentro da boca. Em 1517. Estou a tentar fazer um mapa dos movimentos dele através dos tempos ou já que é impossível saber a diferença, os movimentos dos seus servos. Esse mapa, na verdade uma lista no meu caderno de anotações, já enche muitas páginas. Mas ainda não sei como vou usá-lo. Enquanto trabalho, estou à espera de tentar descobrir.

A tua mãe que te adora, Helen

 

Setembro de 1963

Minha querida filha:

Estou prestes, ou quase, a desistir e a voltar para ti. O teu aniversário é este mês. Como posso perder outro aniversário teu? Voltaria para ti imediatamente, mas sei que, se o fizer, vai acontecer a mesma coisa. Vou sentir a minha impureza, como senti há seis anos vou sentir o horror dessa impureza, vou ver a tua perfeição. Como posso ficar perto de ti, sabendo que estou maculada? Que direito tenho de tocar na tua face macia?

A tua mãe que te adora, Helen

 

Outubro de 1963

Minha querida filha:

Estou em Assis. Estas extraordinárias igrejas e capelas, subindo a colina, dão-me uma sensação de desespero. Podíamos ter vindo aqui, tu com o teu vestidinho e o teu chapéu, e eu, e o teu pai, os três de mãos dadas, como turistas. Em vez disso, estou a trabalhar no meio dopo de uma biblioteca monástica, a ler um documento de 1603. Dois monges morreram aqui em Dezembro desse ano. Foram encontrados caídos na neve com as gargantas só ligeiramente feridas. O meu latim ainda resiste muito bem, e o meu dinheiro compra toda a ajuda de que preciso para interpretar, traduzir, lavar a minha roupa. Serve também para comprar vistos, passaportes, bilhetes de comboio, um bilhete de identidade falso. Nunca tive dinheiro quando estava a crescer. A minha mãe, na aldeia, mal sabia o que isso era. Agora estou a aprender que o dinheiro compra tudo. Não, nem tudo. Nem tudo o que quero.

A tua mãe que te adora, Helen

 

Aqueles dois dias passados em Bachkovo foram dos mais compridos da minha vida. Por mim, teria corrido para a tal festa imediatamente, queria que estivesse a acontecer naquele exato momento, para podermos tentar seguir aquela única palavra da cantiga dragão até ao seu antro. Também receava o momento que, pensava eu, chegaria inevitavelmente, quando também essa pista se dissipasse como fumo ou acabasse por não se relacionar com coisa nenhuma. Helen já me advertira de que as canções folclóricas eram notoriamente ardilosas neste sentido; as suas origens costumavam perder-se nos séculos, as suas letras mudavam e evoluíam, os seus cantores raramente sabiam de onde ou de que época datavam.

— É o que faz delas canções folclóricas — resumiu, melancólica, alisando o colarinho da minha camisa enquanto estávamos sentados no pátio, no nosso segundo dia no mosteiro.

Ela não era dada a pequenas carícias domésticas como aquela, portanto deduzi que devia estar preocupada. Os olhos ardiam-me e a cabeça doía-me quando olhava em volta para o chão de seixos rolados batidos pelo sol onde as galinhas debicavam. Era um lugar lindo, raro e, para mim, exótico, e ali estávamos nós vendo a sua vida fluir como sempre desde o século onze: as galinhas procuravam insetos para comer, o gatinho rebolava aos nossos pés, a luminosidade brilhante pulsava no primoroso trabalho de cantaria em vermelho e branco que nos rodeava. Eu já quase não conseguia aperceber-me da sua beleza.

Na segunda manhã, acordei muito cedo. Pareceu-me que talvez tivesse ouvido os sinos da igreja a tocar, mas não conseguia decidir se isso tinha feito parte do meu sonho. Da janela de minha cela, com a sua cortina tosca, vi quatro ou cinco monges a caminho da igreja. Vesti as minhas roupas. — Meu Deus, estavam um bocado sujas, mas não podia preocupar-me com a lavagem de roupas e desci sem fazer barulho as escadas da galeria para o pátio. Era mesmo muito cedo, ainda madrugada lá fora, e a Lua estava a desaparecer por cima das montanhas. Por um momento, pensei em entrar na igreja e parei junto da porta, que estava aberta; de dentro, derramava-se a luz das velas e um cheiro a cera e incenso a arder, e o interior do santuário, que me parecera profundamente escuro ao meio-dia, estava aconchegante e caloroso àquela hora. Ouvi os monges entoarem os seus cânticos. A melancolia ondulante do som penetrou no meu coração como uma adaga. Os monges deviam estar a fazer exatamente o mesmo na penumbra de uma certa manhã em 1477, quando os irmãos Kiril e Stefan e os outros monges deixaram para trás os túmulos dos seus amigos mortos estariam no ossário? E partiram através das montanhas, protegendo o tesouro na sua carroça. Mas que direção teriam tomado? Virei-me para leste, depois para oeste — onde a Lua desaparecia muito depressa, e então para sul. Uma brisa começara a agitar de leve as folhas das tílias e, minutos depois, vi os primeiros raios de sol alcançarem as encostas distantes e o alto dos muros do mosteiro. Então, atrasado, um galo cantou algures nos confins do mosteiro. Aquele teria sido um momento de intenso prazer, o tipo de imersão na história com que sempre sonhei, se tivesse ânimo para isso. Dei comigo a virar-me devagar, forçando-me a adivinhar para que direção seguira o irmão Kiril. Num lugar qualquer havia talvez uma tumba cuja localização se perdera há tanto tempo que até o conhecimento dela desaparecera. Podia estar a um dia de viagem a pé, ou três horas, ou uma semana. "Não muito mais longe e sem incidentes", dissera Zacharias. Quão longe seria "não muito mais longe"? Aonde eles teriam ido? A terra estava agora a despertar aquelas montanhas e os seus bosques, os seus afloramentos de rocha cobertos de pó, o pátio de seixos rolados aos meus pés, a quinta e os prados do mosteiro, mas guardava o seu segredo.

Cerca das nove horas da manhã, partimos no carro de Ranov, tendo o irmão Ivan como co-piloto no banco da frente. Tomamos a estrada ao longo do rio durante perto de dez quilômetros, e depois o rio pareceu desaparecer e a estrada acompanhou um comprido vale seco que serpenteava abruptamente em torno das colinas. A vista daquela paisagem agitou alguma coisa na minha memória. Dei uma leve cotovelada a Helen e ela olhou para mim com ar interrogador.

— Helen, o vale do rio.

O seu rosto desanuviou-se e ela deu uma pancadinha no ombro de Ranov.

— Pergunte ao irmão para onde foi o rio. Atravessamo-lo em algum lugar? — Ranov falou com o irmão Ivan sem se virar e transmitiu-nos a resposta.

— Ele diz que o rio secou aqui. Está atrás de nós agora, onde atravessamos a última ponte. Aqui era o vale do rio há muito tempo, mas já não há água no vale.

Helen e eu entreolhamo-nos em silêncio. À nossa frente, no final do vale, avistei dois picos agudos salientando-se das colinas, duas montanhas solitárias parecidas com asas angulosas. E entre elas, ainda distantes, víamos as torres de uma pequena igreja. Subitamente, Helen agarrou a minha mão com toda a força.

Minutos depois, enveredamos por uma estrada de terra batida por dentro de amplas colinas, seguindo uma placa para uma aldeia a que chamarei Dimovo. Em seguida, a estrada ficou mais estreita e Ranov parou o carro em frente da igreja, apesar de Dimovo não estar à vista.

— A igreja de Sveti Petko, o Mártir, era muito pequena — uma capela revestida de estuque e gasta pelo tempo — e erguia-se sozinha num prado onde devia ter havido uma ceifa tardia. Dois carvalhos retorcidos formavam um abrigo por cima dela e ao lado comprimia-se um cemitério de um tipo que eu ainda não vira túmulos de camponeses, alguns datados do século dezoito, como explicou Ranov cheio de orgulho.

— Isto é tradicional, há muitos lugares como este, onde os trabalhadores rurais ainda hoje são enterrados.

Os marcos das sepulturas eram de pedra ou de madeira com uma cobertura triangular no cimo, e muitas tinham pequenas lamparinas colocadas na base.

— O irmão Ivan disse que a cerimônia não vai começar antes das onze e meia — disse Ranov enquanto andávamos por ali. — Estão agora a preparar a igreja. Ele vai levar-nos a visitar Baba Yanka primeiro, depois voltamos para assistir a tudo.

E olhou intensamente para nós, como se quisesse verificar o que nos interessava mais.

— O que está a acontecer ali?

Apontei para um grupo de homens a trabalhar no campo junto à igreja. Alguns estavam a arrastar madeira troncos e grandes ramos e a fazer uma pilha, enquanto outros dispunham tijolos e pedras em volta dela. Já tinham recolhido um vasto arsenal da floresta.

— O irmão Ivan diz que é para a fogueira. Não me tinha apercebido, mas vai haver o ritual de caminhar sobre o fogo.

— Caminhar sobre o fogo! — exclamou Helen.

— Sim — disse Ranov, inexpressivo. — Conhece esse costume? É raro na Bulgária nesta era moderna, e mais raro ainda nesta parte do país. Só ouvi falar deste ritual na região do mar Negro. Mas esta é uma região pobre e supersticiosa que o Partido ainda está a trabalhar para desenvolver. Não tenho dúvidas de que estas coisas acabarão por ser eliminadas.

— Já ouvi falar disso — Helen voltou-se entusiasmada para mim. — Era um costume pagão e tornou-se cristão nos Balcãs quando as pessoas se converteram. Em geral, é mais dançar do que caminhar. Estou muito contente por saber que vamos assistir a uma coisa dessas.

Ranov encolheu os ombros e conduziu-nos para a igreja, mas não sem antes eu ter visto um dos homens que trabalhavam perto do bosque inclinar-se e acender a pilha de lenha. O fogo pegou depressa, uma labareda subiu, depois espalhou-se e começou a rugir. A lenha estava seca e as chamas depressa atingiram o alto da pilha, fazendo todos os galhos faiscar. Até Ranov parou. Os homens que tinham preparado a fogueira recuaram uns passos, depois mais outros, e ficaram parados a limpar as mãos nas calças. Subitamente, o fogo cresceu de vez, vivo. As chamas eram quase tão altas como o telhado da igreja próxima, apesar de estarem a uma distância segura. Contemplamos o fogo a devorar aquela enorme refeição até que Ranov se virou e recomeçou a andar.

— Vão deixá-la arder e apagar-se durante as próximas horas — disse ele. — Nem os mais supersticiosos dançariam ali agora.

Quando entramos na igreja, um homem novo, aparentemente o padre, adiantou-se para nos cumprimentar. Apertou-nos a mão com um sorriso agradável e ele e o irmão Ivan curvaram-se cordialmente um para o outro.

— Ele diz que é uma honra tê-los aqui para o dia do seu santo — transmitiu Ranov com uma certa secura.

— Diga-lhe que é uma honra para nós poder assistir à festa. Pode perguntar-lhe quem é Sveti Petko?

O padre explicou que se tratava de um mártir local, morto pelos Turcos durante a ocupação por se recusar a abdicar da sua fé. Sveti Petko foi o padre de uma igreja anterior que havia naquele local e que os Turcos queimaram e, mesmo depois de a sua igreja ter sido destruída, negou-se a aceitar a fé muçulmana. Esta igreja foi construída mais tarde e as relíquias dele foram sepultadas na antiga cripta. Naquele dia, muita gente viria ajoelhar-se ali. O seu ícone e dois outros de grande poder seriam transportados em procissão em volta da igreja e através do fogo. Ali estava Sveti Petko, pintado na fachada da igreja e apontou para um fresco desbotado atrás dele, que mostrava um rosto barbado não muito diferente do seu. Devíamos voltar para visitar a igreja quando ele tivesse acabado todos os preparativos. Éramos bem-vindos para assistir a toda a cerimónia e receber a bênção de Sveti Petko. Não seríamos os primeiros peregrinos de outras terras que tinham vindo até ele e recebido alívio de doenças e dores. O padre sorriu-nos docemente.

Por intermédio de Ranov, perguntei-lhe se já ouvira falar de um mosteiro chamado Sveti Georgi. Ele balançou a cabeça.

— O mosteiro mais próximo é Bachkovski — respondeu. — De vez em quando, ao longo dos anos, monges de outros mosteiros também vinham aqui em peregrinação; mas isso foi há muito tempo.

A minha interpretação era que as peregrinações tinham provavelmente cessado desde o domínio comunista, e tomei nota mentalmente para fazer a pergunta a Stoichev quando voltássemos para Sofia.

— Vou pedir-lhe que procure Baba Yanka — disse Ranov depois de um momento.

O padre sabia exatamente qual era a casa dela. Explicou que gostaria de ir conosco, mas a igreja ficara fechada durante meses ele só ali vinha nas festividades e, portanto, ele e o seu auxiliar tinham muito que fazer.

A aldeia situava-se numa depressão do terreno mesmo por trás do prado onde ficava a igreja, e era a comunidade mais pequena que eu já vira desde que chegara ao Bloco Oriental: não mais de quinze casas agrupadas quase medrosamente juntas, com macieiras e hortas verdejantes nas cercanias, caminhos de terra apenas suficientemente largos para deixar passar uma carroça, um poço antigo com um poste de madeira e um balde pendurado nele. A absoluta ausência de modernidade impressionou-me, e vi-me a esquadrinhar tudo à procura de sinais do século vinte. Tudo indicava que este século não estava a decorrer ali. Senti-me quase traído quando vi um balde de plástico branco no quintal de uma das casas de pedra. Aquelas casas pareciam ter crescido em cima das pilhas de pedra cinzenta, os andares de cima feitos de alvenaria como se resultassem de uma reflexão posterior, os telhados de finas e lisas telhas de ardósia. Algumas delas exibiam belas estruturas antigas de madeira aparente entre os vãos de alvenaria, que ficariam perfeitamente adequadas numa aldeia de estilo Tudor.

Quando entramos na única rua de Dimovo, as pessoas começaram a sair das suas casas e celeiros para nos cumprimentar na maior parte, anciãos, muitos inacreditavelmente deformados pelo trabalho duro, as mulheres de pernas grotescamente arqueadas, os homens curvados como se carregassem perpetuamente um saco invisível de qualquer coisa pesada. Os seus rostos eram morenos, com bochechas coradas sorriam e davam as boas-vindas, e eu via de relance as gengivas sem dentes ou as obturações de metal a brilhar-lhe nas bocas. Pelo menos, tinham acesso a algum tratamento dentário, pensei, ainda que fosse difícil imaginar onde e como. Alguns adiantaram-se para se curvarem para o irmão Ivan, ele abençoou-os e parecia estar a fazer-lhes perguntas a respeito deles. Andamos até à casa de Baba Yanka no meio de uma pequena multidão, cujos membros mais novos deviam ter setenta anos, embora Helen me dissesse mais tarde que esses camponeses teriam talvez vinte anos menos do que aparentavam.

A casa de Baba Yanka era muito pequena, quase uma cabana, e apoiava-se pesadamente num pequeno palheiro. Ela própria viera à porta da frente para ver o que estava a acontecer; o que primeiro notei nela foi a mancha viva do seu lenço de cabeça estampado de flores vermelhas, depois o seu corpete e o avental às riscas. Ela olhou para nós e alguns do aldeões gritaram o seu nome, o que a fez balançar rapidamente a cabeça. A pele do rosto dela era cor de mogno, tinha o nariz e o queixo pontiagudos, e os olhos à medida que chegávamos mais perto dela pareciam ser castanhos, mas estavam escondidos nas dobras das rugas.

Ranov gritou-lhe qualquer coisa eu só podia esperar que não fosse nada de autoritário ou desrespeitoso e, depois de nos examinar durante uns instantes, fechou a porta de madeira. Esperamos em silêncio do lado de fora e, quando ela a abriu novamente, verifiquei que não era tão baixinha como eu imaginara; chegava solidamente ao ombro de Helen e os seus olhos eram alegres no rosto cauteloso. Beijou a mão do irmão Ivan e trocamos apertos de mão com ela, o que a princípio pareceu embaraçá-la. Depois, enxotou-nos para dentro da casa como se fôssemos um bando de galinhas.

A casa era muito pobre por dentro, mas limpa, e reparei com uma ponta de simpatia que ela a enfeitara com uma jarra de flores silvestres frescas, colocada sobre a mesa riscada mas imaculada. A casa da mãe de Helen era uma mansão comparada com aquele aposento arrumado e decrépito, com uma escada para o piso superior pregada numa parede. Perguntei-me durante quanto tempo ainda Baba Yanka conseguiria usar a escada, mas ela movimentava-se pela casa com tanta energia que, gradualmente, comecei a compreender que não era de fato velha. Fiz esse comentário em voz baixa a Helen, que concordou.

— Deve ter uns cinquenta anos — respondeu ela.

Fiquei impressionado. A minha mãe, em Boston, tinha cinquenta e dois anos, e poderia passar por neta daquela mulher. As mãos de Baba Yanka eram tão nodosas como os seus pés eram ligeiros; observei-a a trazer pratos cobertos com panos e a colocar copos à nossa frente e imaginei o que teria feito com aquelas mãos a vida inteira para ficarem daquela maneira. Abatido árvores, talvez, cortado lenha, trabalhado nas colheitas, ao frio e ao calor. Deu uma ou duas olhadelas para nós enquanto trabalhava, cada uma acompanhada de um rápido sorriso, e por fim serviu-nos uma bebida — uma coisa branca e espessa que Ranov engoliu de um trago, sacudindo a cabeça para ela e limpando a boca com o lenço. Eu fiz o mesmo e a bebida quase me matou; era morna e sabia nitidamente a estábulo. Fiz um esforço para esconder as náuseas enquanto Baba Yanka me piscava o olho. Helen bebeu a sua dose com dignidade e Baba Yanka afagou-lhe a mão.

— Leite de ovelha misturado com água — esclareceu Helen. — Pensa nisso como um batido de leite.

— Agora, vou pedir-lhe para cantar — disse-nos Ranov. — É isso que querem, não é?

Conferenciou com o irmão Ivan, que se dirigiu a BabaYanka. A mulher recusou-se, sacudindo a cabeça desesperadamente. Não, não ia cantar; não queria, era evidente. Fez um gesto na nossa direção e pôs as mãos debaixo do avental. Mas o irmão Ivan era persistente.

— Vamos pedir-lhe para cantar primeiro o que quiser — explicou Ranov. — Depois, podem pedir a canção que vos interessa.

Baba Yanka parecia ter-se resignado, e interroguei-me se todo aquele protesto não teria sido um ritual de modéstia, porque ela já estava a sorrir de novo. Suspirou, depois levantou os ombros sob a blusa bastante usada de flores vermelhas. Olhou para nós muito séria e abriu a boca. O som que saiu de lá era espantoso; antes de tudo, era espantosamente alto, tanto que todos os copos chocalharam sobre a mesa e as pessoas do lado de fora da porta aberta, metade da aldeia devia estar ali reunida puseram as cabeças para dentro. Vibrava das paredes e sob os nossos pés, e fazia as réstias de cebolas e pimentos balançarem por cima do fogão velho. Segurei a mão de Helen às escondidas. Primeiro, uma nota atingiu-nos, depois outra, cada uma longa e lenta, cada uma um lamento de saudade e desesperança. Lembrei-me da donzela que preferira saltar do alto de um penhasco a ser levada para o harém do paxá e imaginei que aquele fosse um tema semelhante. Baba Yanka, entretanto, sorria a cada nota, aspirando enormes quantidades de ar e sorrindo, exultante, para nós. Ouvimos num silêncio atordoado até que ela de repente acabou; a última nota pareceu perdurar muito tempo na casa pequenina.

— Por favor, peça-lhe para nos repetir a letra da música — disse Helen. Com um certo esforço aparente que não diminuiu o seu sorriso, Baba

Yanka recitou a letra da canção e Ranov traduziu.

 

O herói estava a morrer no alto da verde montanha,

O herói estava a morrer com nove feridas no corpo.

Ó falcão, voa até ele e diz-lhe que os seus homens estão salvos,

Salvos nas montanhas, todos os seus homens.

O herói tinha nove feridas no corpo

Mas foi a décima que o matou.

 

Quando terminou, Baba Yanka esclareceu um ou outro ponto com Ranov, ainda a sorrir e sacudindo um dedo para ele. Tive a sensação de que ela lhe daria umas palmadas e o mandaria dormir sem jantar se ele fizesse alguma coisa errada na sua casa.

— Pergunte-lhe se a canção é muito antiga — pediu Helen — e onde a aprendeu.

Ranov fez a pergunta e Baba Yanka explodiu em gargalhadas, fazendo um gesto por cima do ombro, acenando com as mãos. Ranov chegou mesmo a sorrir.

— Ela diz que a canção é velha como as montanhas e nem a sua bisavó sabia quão velha era. Aprendeu-a com a bisavó, que viveu até aos noventa e três anos.

Em seguida, Baba Yanka quis fazer-nos perguntas. Quando fixou os olhos em nós, vi que eram maravilhosos, amendoados, sob o desgaste do sol e do vento, e castanho-dourados, quase cor de âmbar, mais claros sob o vermelho do lenço. Sacudiu a cabeça, incrédula, quando soube que éramos da América.

— Amérika? — Pareceu ponderar. — Isso deve ser para lá da montanha.

— Ela é uma velha muito ignorante — comentou Ranov. — O governo está a fazer o melhor que pode para elevar o padrão de educação aqui. É uma prioridade importante.

Helen tinha pegado num papel e depois agarrou na mão da mulher.

— Pergunte-lhe se conhece uma canção com esta letra. Vai ter de lha traduzir. "O dragão desceu ao nosso vale. E queimou as colheitas e tomou as donzelas."

Ranov traduziu as palavras para Baba Yanka. Ela ouviu, atenta, por um momento, mas depois o seu rosto contraiu-se de medo e desagrado; recuou na cadeira de madeira e fez rapidamente o sinal da cruz.

— Ne! disse com veemência, tirando a mão da mão de Helen. — Ne, ne.

Ranov encolheu os ombros.

— Vocês compreenderam. Ela não a conhece.

— É claro que conhece — disse eu, baixo. — Pergunte-lhe por que está com medo de nos falar sobre isso.

Desta vez, o rosto da mulher assumiu um ar severo.

— Ela não quer falar sobre isso disse Ranov.

— Diga-lhe que lhe daremos uma recompensa.

As sobrancelhas de Ranov ergueram-se outra vez, mas apresentou a proposta a Baba Yanka.

— Ela diz que temos de fechar a porta. — Ranov levantou-se e fechou sem ruído as portas e as janelas de madeira, isolando-nos dos espectadores na rua. — Ela vai cantar agora.

Não podia haver maior contraste entre o desempenho de Baba Yanka da primeira canção e o da segunda. Tínhamos a impressão de que ela se encolhia na cadeira, baixando-se no assento e olhando para o chão. O seu sorriso jovial desaparecera e os seus olhos ambarinos estavam fixos nos nossos pés. A melodia que produzia era certamente melancólica, embora a última frase da estrofe parecesse terminar numa nota de desafio. Ranov traduziu meticulosamente. Por que razão, perguntei-me de novo, estaria a ser tão colaborante?

 

O dragão desceu ao nosso vale.

E queimou as colheitas e tomou as donzelas,

E assustou o turco infiel e protegeu as nossas aldeias.

O seu sopro secou os rios e nós atravessámo-los a pé.

Agora, temos de nos defender.

O dragão era o nosso protetor,

Mas agora defendemo-nos dele.

 

— Bem — disse Ranov. -Não é o que queriam ouvir?

— Sim — Helen acariciou a mão de Baba Yanka e a velha começou a falar em tom de repreensão. — Pergunte-lhe de onde é esta canção e por que motivo ela a receia tanto — pediu Helen.

Ranov precisou de alguns minutos para se desenvencilhar das queixas de Baba Yanka.

— Ela aprendeu esta canção em segredo com a bisavó, que lhe disse para nunca a cantar depois de escurecer. É uma canção que traz má sorte. Não parece, mas é. Eles nunca a cantam aqui, a não ser no dia de São Jorge. É o único dia em que pode ser cantada sem perigo, sem atrair a má sorte. Ela espera que vocês não tenham feito a sua vaca morrer, ou coisa pior, por causa disto.

Helen sorriu.

— Diga-lhe que tenho uma recompensa para ela, um presente que afasta a má sorte e traz boa sorte. — — Abriu a mão calejada de Baba Yanka e pôs dentro dela um medalhão de prata. — Isto pertence a um homem muito devoto e sábio, e ele mandou-o para a senhora, para a proteger. Mostra Sveti Ivan Rilski, um grande santo búlgaro.

Percebi que deveria ser o objeto que Stoichev pusera na mão de Helen. Baba Yanka olhou para ele um instante, virando-o na grossa palma da mão, depois levou-o aos lábios e beijou-o. Em seguida, enfiou-o nalgum compartimento secreto do avental.

— Blagodarya — disse, e beijou a mão de Helen, também, afagando-a como se tivesse encontrado uma filha há muito perdida.

Helen dirigiu-se outra vez a Ranov.

— Por favor, pergunte-lhe só se sabe o que significa a canção e de onde veio, E por que é cantada no dia de São Jorge?

Baba Yanka encolheu os ombros.

— A canção não significa nada. É só uma velha canção que dá azar. A minha bisavó dizia que algumas pessoas achavam que tinha vindo de um mosteiro. Mas não é possível, porque os monges não cantam canções como essa, cantam louvores a Deus. Nós cantamo-la no dia de São Jorge porque ela chama Sveti Georgi para matar o dragão e pôr fim às torturas que ele inflige ao povo.

— Que mosteiro? — perguntei, exaltado. — Pergunte-lhe se sabe de um mosteiro chamado Sveti Georgi, que desapareceu há muito tempo.

Mas Baba Yanka só balançou a cabeça e deu estalidos com a língua.

— Não há nenhum mosteiro aqui. O mosteiro é em Bachkovo. Só temos a igreja, onde vou cantar com a minha irmã esta tarde.

Resmunguei e fiz Ranov tentar uma vez mais. Dessa vez, ele também estalou a língua.

— Ela diz que não. Não conhece nenhum mosteiro. Nunca houve nenhum mosteiro aqui.

— Quando é o dia de São Jorge? — perguntei.

— Dia seis de Maio — Ranov olhou-me com desdém. — Já passou, perderam-no, foi há semanas.

Fiquei calado, mas entretanto Baba Yanka animou-se de novo. Apertou-nos as mãos, beijou Helen e fez-nos prometer que iríamos ouvi-la cantar naquela tarde.

— É muito melhor com a minha irmã. Ela faz a segunda voz.

Dissemos que estaríamos lá. Ela insistiu em oferecer-nos do almoço que estava a preparar quando chegamos; consistia em batatas, uma espécie de papa e mais leite de ovelha, a que eu pensei que poderia acabar por me habituar, se ficasse uns meses ali. Comemos tão agradecidos quanto foi possível, elogiando a sua habilidade culinária, até Ranov dizer que devíamos voltar para a igreja se quiséssemos ver o início da cerimónia. Baba Yanka separou-se de nós com relutância, apertando-nos as mãos e os braços e dando palmadinhas no rosto de Helen.

Naquela altura a fogueira junto à igreja tinha quase acabado de arder, embora alguns troncos ainda chamejassem por cima das brasas, num fogo pálido sob o forte sol da tarde. Os aldeões já começavam a reunir-se perto da igreja, antes mesmo que os sinos começassem a tocar. E os sinos tocaram e tocaram no cimo da pequena torre de pedra, e o jovem padre veio à porta. Estava agora vestido de vermelho e ouro, com um comprido manto bordado por cima da túnica e um xale negro enrolado em volta do chapéu. Segurava um incensório preso a uma corrente de ouro, que balançou em três direcções fora da porta da igreja.

As pessoas ali reunidas mulheres vestidas como Baba Yanka, com riscas e flores ou de preto dos pés à cabeça, os homens de calças e coletes de áspera lã castanha, com camisas brancas atadas ou abotoadas até ao pescoço recuaram quando o padre surgiu. Este dirigiu-se para eles, abençoando-os com o sinal da cruz, e alguns deles curvavam a cabeça e inclinavam-se diante dele. Atrás dele vinha um homem mais velho, vestido como um monge, todo de preto, que deduzi ser o seu auxiliar. O homem segurava nos braços um ícone envolto em seda púrpura. Consegui vislumbrá-lo rapidamente um rosto rígido, pálido, de olhos escuros. Aquele devia ser Sveti Petko, pensei. Os aldeões seguiram o ícone em silêncio em torno da igreja numa única massa ondulante, muitos deles andando com bengalas ou apoiando-se nos braços dos mais jovens. Baba Yanka encontrou-nos e deu-me o braço, orgulhosa, como se quisesse mostrar aos vizinhos como era bem relacionada. Todos olhavam para nós; pensei que estávamos a ser alvo de pelo menos tanta atenção como o ícone.

Os dois padres conduziram-nos a todos em silêncio em volta da parte de trás da igreja e ao longo do outro lado, de onde víamos o anel de fogo a uma curta distância e sentíamos o cheiro do fumo que subia dele. As chamas estavam a morrer, sem serem atiçadas, os últimos grandes toros e os ramos já com uma profunda cor alaranjada, num enorme braseiro. Fizemos essa procissão três vezes à volta da igreja, quando o padre se deteve outra vez diante do pórtico da igreja e começou a entoar um cântico. De vez em quando, o auxiliar mais velho respondia, outras vezes a assembleia de fiéis murmurava uma resposta, benzendo-se ou curvando-se. Baba Yanka largara o meu braço, mas mantinha-se junto de nós. Reparei que Helen observava tudo com enorme interesse, assim como Ranov.

No fim dessa cerimónia ao ar livre, seguimos os fiéis para dentro da igreja, que estava escura como um túmulo depois da claridade dos campos e dos bosques. Era uma igreja pequena, mas o seu interior tinha uma harmonia de proporções de que as igrejas maiores que tínhamos visto não se podiam gabar. O jovem padre pousou o ícone de Sveti Petko em lugar de honra na frente, reclinado num suporte esculpido. Avistei o irmão Ivan curvando-se diante do altar. Como de costume, não havia bancos, as pessoas ficavam de pé ou ajoelhavam-se no frio chão de pedra, e algumas mulheres idosas prostraram-se no meio da igreja. As paredes laterais tinham nichos pintados com frescos ou abrigavam ícones, e num deles escancarava-se uma abertura escura que presumi ser a entrada para a cripta. Era fácil imaginar séculos de devoção dos camponeses neste lugar e na antiga igreja que existira ali antes desta.

Depois do que me pareceu uma eternidade, os cânticos cessaram. As pessoas curvaram-se novamente e começaram a sair da igreja, alguns parando aqui e ali para beijar ícones ou acender velas, que colocavam nos candelabros de ferro perto da entrada. Os sinos da igreja soaram e seguimos os aldeões para o lado de fora outra vez, onde recebemos sem aviso o impacto do sol, da brisa e dos campos cheios de luz. Uma mesa comprida tinha sido instalada sob uma árvore e já havia mulheres a destapar travessas e a servir bebidas de jarros de cerâmica. Vi então que havia um segundo braseiro daquele lado da igreja, este pequeno, onde um cordeiro estava a ser assado num espeto. Dois homens giravam o espeto por cima das brasas com uma manivela e o cheiro trouxe um aguar primitivo à minha boca. Baba Yanka encheu ela própria os nossos pratos e levou-nos para uma manta estendida afastada da multidão. Lá, conhecemos a irmã, que se parecia muito com ela, só que era mais alta e mais magra, e todos nos regalamos com a excelente comida. Até Ranov, dobrando com cuidado em cima da manta de lã as pernas enfiadas no fato citadino, parecia quase contente. Outros aldeões pararam para nos cumprimentar e perguntar a Baba Yanka e à irmã quando iriam cantar, uma atenção que elas recebiam com um aceno e a dignidade de estrelas de ópera.

Quando o cordeiro já tinha sido completamente devorado e as mulheres estavam a limpar os pratos para uma selha de madeira, vi que três homens tinham pegado em instrumentos musicais e preparavam-se para tocar. Um deles tinha o instrumento mais esquisito que já vi de perto uma bolsa feita de pele curtida de animal e flautas de madeira a saírem dela. Era claramente um tipo de gaita-de-foles, e Ranov contou-nos que se tratava de um antigo instrumento da Bulgária, chamado gaida, feito de pele de cabra. O velho que o tinha nos braços inflou-o aos poucos como um grande balão; este processo levou uns bons dez minutos, e ele já estava com a cara de um vermelho intenso ainda antes de acabar. Encaixou-o sob um dos braços, soprou uma das flautas e todos deram vivas e aplaudiram. O som era também o de um animal, um balido alto, um guincho, e Helen deu uma risada.

— Sabes — contou-me ela —, há sempre uma gaita-de-foles em todas as culturas pastoris do mundo.

Então o velho começou a tocar e logo a seguir os seus amigos acompanharam-no, um com uma comprida flauta de madeira, cujo som girava em torno de nós como uma fita fluida, o outro a bater num tambor de pele macia com um bastão acolchoado. Algumas mulheres puseram-se de pé e formaram uma fila, e um homem com um lenço branco, como tínhamos visto na casa de Stoichev, conduziu-as pelo campo fora. Os que eram muito velhos ou doentes para poder dançar permaneciam sentados, sorrindo com os seus dentes terríveis e gengivas nuas, ou batiam com a mão no chão ao seu lado, ou marcavam o ritmo com as bengalas.

Baba Yanka e a irmã ficaram quietas onde estavam, como se o seu momento ainda não tivesse chegado. Esperaram até que o flautista as chamasse, fazendo gestos e sorrindo, e depois até que a sua plateia se lhe juntasse chamando-as. Só então, fingindo uma certa relutância, levantaram-se finalmente e, de mãos dadas, juntaram-se aos músicos. Todos ficaram em silêncio e a gaida tocou uma pequena introdução. As duas velhas começaram a cantar, os braços entrelaçados na cintura uma da outra, e o som que produziram uma harmonia de revirar o estômago, áspera e bela parecia vir de um só corpo. O som da gaida cresceu em torno e as três vozes, as das duas mulheres e a da cabra, elevaram-se juntas e espalharam-se sobre nós como o gemido da própria terra. Os olhos de Helen estavam subitamente marejados de lágrimas, o que era tão pouco o seu gênero que pus o braço à volta dela em frente de todos.

Depois de as mulheres terem cantado cinco ou seis canções, intercaladas pelos vivas da multidão, todos se levantaram, obedecendo não sei a que sinal, até que vi o padre a aproximar-se outra vez. Transportava o ícone de Sveti Petko, agora envolto em veludo vermelho, e atrás dele vinham dois meninos, ambos vestidos com túnicas escuras e cada um trazendo um ícone inteiramente coberto de seda branca. Esta procissão abriu caminho em torno do outro lado da igreja, com os músicos atrás a tocar uma melodia soturna, e deteve-se entre a igreja e o grande anel de fogo. O fogo extinguira-se por completo; só restava um círculo de brasas, infernalmente vermelhas e profundas. Fiapos de fumo desprendiam-se delas de vez em quando, como se algo por baixo estivesse vivo e a respirar. O padre e os seus acólitos ficaram parados junto da parede da igreja, segurando os seus tesouros à sua frente.

Por fim, os músicos começaram a tocar uma nova melodia — viva e sombria ao mesmo tempo, pensei e, um a um, os aldeões que podiam dançar, ou pelo menos andar, formaram uma longa fila sinuosa que lentamente se foi colocando em torno do fogo. Quando a fila serpenteou em frente da igreja, Baba Yanka e outra mulher não era a irmã, desta vez, mas uma mulher ainda mais gasta pelo tempo cujos olhos enevoados pareciam quase cegos adiantaram-se e curvaram-se para o padre e para os ícones. Tiraram os sapatos e as meias e acomodaram-nos com cuidado junto aos degraus da igreja, beijaram o rosto austero de Sveti Petko e receberam a bênção do padre. Os jovens acólitos do padre deram um ícone a cada mulher, retirando-lhes as suas capas de seda. A música soou mais alta, o tocador de gaida suava profusamente, o rosto escarlate, as bochechas enormes.

Em seguida, Baba Yanka e a mulher de olhos enevoados avançaram dançando, sem perder o ritmo, e então, enquanto eu me mantinha imóvel a assistir, elas dançaram descalças sobre o fogo. Cada uma das mulheres segurava o seu ícone bem alto à sua frente ao entrar no anel de brasas; as duas tinham a cabeça erguida, o olhar cheio de dignidade perdido noutro mundo. A mão de Helen apertou tanto a minha que os dedos me doíam. Os pés delas subiam e desciam sobre as brasas ardentes, levantando fagulhas; a certa altura, vi a bainha da saia às riscas de Baba Yanka ser chamuscada. Dançaram sobre as brasas ao ritmo misterioso do tambor e da gaita-de-foles, e cada uma seguia uma direção diferente dentro do círculo de fogo.

Eu não tinha conseguido ver os ícones quando elas entraram no círculo, mas agora reparava que um deles, nas mãos da mulher cega, mostrava a Virgem Maria com o filho nos joelhos, a cabeça inclinada sob uma pesada coroa. Só vi o ícone que Baba Yanka transportava quando ela completou o círculo outra vez. O rosto de Baba Yanka era impressionante, os olhos enormes e fixos, os lábios frouxos, a pele curtida a reluzir com o tremendo calor. O ícone que ela trazia devia ser muito antigo, como o da Virgem, mas, através das suas manchas de fumo e da reverberação do calor, consegui distinguir nitidamente uma imagem: mostrava duas figuras frente a frente numa espécie de dança só delas, duas criaturas igualmente dramáticas e ameaçadoras. Uma era um cavaleiro de armadura e manto vermelho, a outra, um dragão com uma longa cauda enrolada.

 

Dezembro de 1963

Minha querida filha:

Estou agora em Nápoles, Este ano, estou a tentar ser mais sistemática na minha pesquisa. Nápoles é quente em Dezembro e ainda bem, porque estou com uma gripe forte. Nunca soube o que significava estar só antes de vos deixar, porque nunca tinha sido amada como o teu pai me amou e tu também, penso eu. Agora, sou uma mulher sozinha numa biblioteca, a assoar o nariz e a tomar notas. Não sei se alguém alguma vez se sentiu tão solitário como eu estou aqui, e no meu quarto de hotel. Em público, uso a minha écharpe ou uma camisola de gola alta. Enquanto almoço, sozinha, alguém sorri para mim e eu retribuo o sorriso. Depois, desvio o olhar. Tu não és a única pessoa com quem não me posso relacionar.

A tua mãe que te adora, Helen

 

Fevereiro de 1964

Minha querida filha:

Atenas é suja e barulhenta, e tenho dificuldade em conseguir acesso aos documentos de que preciso no Instituto para a Grécia Medieval, que me parece ser tão medieval como o seu conteúdo. Mas, esta manhã, sentada na Acrópole, quase posso imaginar que um dia a nossa separação vai acabar, e vamos sentar-nos tu, uma mulher adulta, talvez nestas pedras caídas e contemplar a cidade de cima. Vejamos: vais ser alta como eu e como o teu pai, cabelos escuros muito curtos, ou presos numa grossa trança? e usas óculos escuros e sapatos próprios para caminhar, talvez um lenço na cabeça, se o vento estiver forte como hoje. E eu estarei a envelhecer, enrugada, orgulhosa só de ti. Os empregados dos cafés vão olhar para ti e não para mim, eu vou rir-me com orgulho e o teu pai vai olhar para eles por cima do jornal.

A tua mãe que te adora, Helen

 

Março de 1964

Minha querida filha:

A minha fantasia sobre a Acrópole ontem foi tão forte que voltei aqui esta manhã só para te escrever. Entretanto, quando estava aqui sentada contemplando a cidade, a ferida no meu pescoço começou a latejar, e pensei que uma presença próxima estava a alcançar-me, portanto só pude olhar à volta constantemente, tentando ver alguém suspeito no meio da multidão de turistas. Não consigo compreender por que razão esse demônio ainda não veio através dos séculos para me encontrar. Já sou presa dele, já fui conspurcada, e de certo modo anseio por ele. Por que não dá ele a estocada final e acaba com esta minha desgraça? Mas, quando penso assim, percebo que tenho de continuar a resistir-lhe, rodeando-me e protegendo-me com todos os amuletos contra ele, e encontrar os seus muitos covis na esperança de o encontrar num deles, apanhá-lo tão completamente desprevenido que talvez eu possa fazer história destruindo-o. Tu, meu anjo perdido, és o fogo que está por detrás desta ambição desesperada.

A tua mãe que te adora, Helen

 

Quando vimos o ícone que Baba Yanka transportava, não sei quem sufocou um grito primeiro, se Helen ou eu, mas ambos nos controlamos no mesmo instante. Ranov estava encostado a uma árvore a menos de dez metros dali e, aliviado, notei que ele olhava para longe, na direção do vale, entediado e desdenhoso, ocupado com o seu cigarro, e tudo indicava que nem tinha reparado no ícone. Segundos depois, Baba Yanka afastara-se e ela e a outra mulher, mantendo o mesmo passo ligeiro e altivo, saíram do fogo a dançar, dirigindo-se para o padre. Devolveram os ícones aos dois meninos, que os voltaram a cobrir imediatamente. Não perdi Ranov de vista. O padre abençoou as mulheres e em seguida estas foram levadas pelo irmão Ivan, que lhes deu água a beber. Baba Yanka lançou-nos um olhar orgulhoso quando passou por nós, corada, sorridente, quase a piscar-nos o olho, e Helen e eu curvamo-nos para ela, cheios de reverência. Prestei atenção aos seus pés quando ela passou; os pés nus, maltratados, pareciam não ter sofrido nenhum dano, assim como os da outra mulher. Só os rostos delas revelavam os efeitos do calor do fogo, como se estivessem queimados pelo sol.

— O dragão — segredou-me Helen enquanto as víamos afastar-se.

— Sim — disse eu. — Temos de descobrir onde eles guardam esse ícone e de que época é. Vamos. O padre prometeu mostrar-nos a igreja.

— E quanto a Ranov?

— Só podemos rezar para que ele não decida seguir-nos — respondi. — Acho que ele não viu o ícone.

O padre estava a voltar para a igreja e as pessoas começavam, pouco a pouco, a ir-se embora. Fomos atrás dele devagar e encontramo-lo a repor o ícone de Svetí Petko no seu suporte. Os outros dois ícones não estavam à vista. Agradeci-lhe, inclinando-me, e disse-lhe em inglês como achara bonita a cerimônia, fazendo gestos com as mãos e apontando para fora. Ele pareceu contente. Depois, fiz um gesto abrangendo a igreja e levantei as sobrancelhas, dizendo:

— Podemos dar uma volta?

— Volta? — Ele franziu a testa por um segundo, depois sorriu de novo e fez um sinal significando: "Esperem." Ia apenas tirar a túnica. Quando voltou, na sua roupa preta de todos os dias, levou-nos a ver cada um dos nichos, apontando e dizendo ikoni, e Hristos, e outras coisas que mais ou menos entendemos. Parecia saber bastante sobre o lugar e a sua história, se ao menos tivéssemos sido capazes de o compreender. Por fim, perguntei-lhe onde estavam os outros ícones, e ele apontou para o buraco escuro que eu vira anteriormente numa das capelas laterais. Aparentemente, tinham sido levados de novo para a cripta, onde eram guardados. Ele pegou na sua lanterna, obsequioso, e guiou-nos para baixo.

Os degraus de pedra eram íngremes e o sopro frio que vinha do subterrâneo fazia a própria igreja parecer quente. Segurei a mão de Helen com firmeza enquanto descíamos atrás da lanterna do padre, que iluminava as velhas pedras em volta. O pequeno aposento lá em baixo, porém, não estava totalmente às escuras; havia dois suportes com velas acesas junto a um altar e pouco depois conseguimos vislumbrar, ainda que pouco distintamente, que não se tratava de um altar mas de um relicário de latão dourado trabalhado, em parte coberto por um pano ricamente bordado de damasco vermelho. Em cima dele, encontravam-se os dois ícones com molduras de prata, a Virgem e dei um passo adiante — o dragão e o cavaleiro.

— Sveti Petko — disse o padre, jovial, tocando o relicário.

Apontei para a Virgem, e ele disse alguma coisa que parecia ter a ver com Bachkwski manastir, que foi só o que compreendemos. Depois, apontei para o outro ícone e o padre sorriu largamente.

— Sveti Georgi — disse ele, indicando o cavaleiro. Apontou para o dragão.

— Drákula.

— Isso provavelmente só quer dizer — dragão advertiu-me Helen. Concordei.

— Como podemos — perguntar-lhe de que época será?

— Star f Staro? -arriscou Helen.

O padre balançou a cabeça, concordando.

— Mnogo star — respondeu, solene.

Olhamos para ele. Levantei a mão e mostrei os dedos: três? Quatro? Cinco? Ele sorriu. Cinco. Cinco dedos — cerca de quinhentos anos.

— Ele acha que é do século quinze — disse Helen. — Meu Deus, como vamos perguntar-lhe de onde veio?

Apontei para o ícone, fiz um gesto à volta da cripta, apontei para a igreja acima de nós. Quando ele compreendeu, fez o gesto universal de quem ignora: os ombros e as sobrancelhas subiram e desceram juntos. Não sabia. Pareceu tentar dizer-nos que o ícone estava ali em Sveti Petko há centenas de anos mais do que isso, não sabia.

Por fim, virou-se, sorridente, e preparámo-nos para o seguir e à sua lanterna de volta pelos degraus íngremes acima. E teríamos deixado para sempre aquele lugar, em completa desesperança, se Helen não tivesse prendido o salto fino do sapato entre duas pedras do piso. Ela resmungou, aborrecida eu sabia que não trouxera outro par de sapatos — e baixei-me depressa para a ajudar. O padre quase desaparecera, mas as velas acesas junto do relicário proporcionavam-me luz suficiente para ver o que estava gravado na parte vertical do último degrau, ao lado do pé de Helen. Era um pequeno dragão, tosco mas inconfundível, e inegavelmente com o mesmo desenho do dragão do meu livro. Caí de joelhos no chão de pedra e acompanhei o seu contorno com a mão. Helen baixou-se junto de mim, esquecendo o sapato.

— Meu Deus disse ela, lentamente. — Que lugar é este?

— Sveti Georgi — disse eu, devagar. Aqui deve ser Sveti Georgi.

Ela olhou-me de perto na penumbra, o cabelo a cair-lhe nos olhos.

— Mas a igreja é do século dezoito — objetou. Depois, o seu rosto abriu-se. — Achas que...

— Muitas igrejas têm fundações muito mais antigas, não é verdade? E sabemos que esta foi reconstruída depois de os Turcos queimarem a original. Não poderia ter sido uma igreja de mosteiro, de um mosteiro esquecido por todos há muito tempo? — Eu sussurrava, cheio de excitação. — Podia ter sido reconstruída décadas ou séculos mais tarde, e recebido o nome do mártir de quem se lembravam.

Helen virou-se, aterrada, e olhou para o relicário de latão atrás de nós.

— Também achas que...

— Não sei — respondi devagar. — Não me parece provável que tivessem confundido um conjunto de relíquias com outro, mas há quanto tempo achas que essa caixa foi aberta pela última vez?

— Não me parece suficientemente grande — observou ela. E não conseguiu dizer mais nada.

— Não parece mesmo — concordei, — mas temos de experimentar. Pelo menos, eu tenho. Quero que fiques fora disto, Helen.

Ela lançou-me um olhar interrogativo, como se estivesse espantada por eu pensar sequer em mandá-la embora.

— É muito grave invadir uma igreja e profanar o túmulo de um santo.

— Eu sei — disse eu. — Mas, e se não for o túmulo de um santo?

Havia dois nomes que nenhum de nós dois tinha coragem de pronunciar ali naquele lugar escuro e frio, com as suas luzes bruxuleantes e o cheiro a cera de vela e a terra. Um desses nomes era o de Rossi.

— Agora mesmo? Ranov deve estar à nossa procura — disse Helen. Quando saímos da igreja, as sombras das árvores junto dela estavam a alongar-se, e Ranov procurava-nos, impaciente. O irmão Ivan encontrava-se ao lado dele, embora eu notasse que mal se falavam.

— A sesta foi boa? — perguntou Helen, gentil.

— Está na hora de voltarmos para Bachkovo — a voz de Ranov era outra vez brusca; perguntei-me se estaria desapontado por aparentemente não termos encontrado ali nada. — Vamos voltar para Sofia amanhã cedo. Tenho assuntos para resolver lá. Espero que estejam satisfeitos com a vossa pesquisa.

— Quase — disse eu. — Gostaria de visitar Baba Yanka de novo e agradecer a ajuda dela.

— Muito bem.

Ranov parecia aborrecido, mas seguiu à frente quando nos dirigimos de regresso à aldeia, o irmão Ivan andando calado atrás de nós. A rua estava quieta à luz dourada do entardecer e por toda a parte havia cheiro a comida a ser cozinhada. Vi um homem idoso aproximar-se da bomba de água central e encher um balde. Na extremidade da pequenina rua de Baba Yanka, um rebanho de cabras e carneiros estava a ser conduzido para o redil; ouvimos os seus balidos lamentosos e vimo-los a amontoar-se entre as casas até surgir um rapazinho que os fez desaparecer numa esquina.

Baba Yanka ficou encantada por nos ver. Cumprimentámo-la, através de Ranov, pelo seu maravilhoso canto e pela dança no fogo. O irmão Ivan abençoou-a com um gesto mudo.

— Como é possível que não se queime? — perguntou-lhe Helen.

— Ah, é o poder de Deus — disse ela mansamente.— Nunca me lembro depois como aconteceu. Às vezes, sinto os pés quentes depois, mas nunca os queimo. É o dia mais bonito do ano para mim, apesar de não me lembrar muito bem do que se passa. Durante meses, fico tão calma como um lago.

Tirou uma garrafa sem rótulo do armário e serviu-nos um licor castanho-claro. Dentro da garrafa, flutuavam ervas compridas, que Ranov explicou servirem para dar sabor. O irmão Ivan recusou, mas Ranov aceitou um copo. Depois de uns goles, começou a interrogar o irmão Ivan sobre qualquer coisa com uma voz tão amistosa como um braçado de urtigas. Depressa estavam mergulhados num debate que não podíamos acompanhar, e no qual eu captava frequentemente a palavra politicheski.

Depois de estarmos sentados a ouvir durante algum tempo, interrompi a conversa para pedir a ajuda de Ranov e perguntar a Baba Yanka se podíamos usar a casa de banho. Ele riu-se de maneira desagradável. Voltara sem dúvida ao seu velho humor, pensei.

— Receio que não seja muito confortável disse ele.

Baba Yanka riu também e apontou para a porta das traseiras. Helen disse que iria também e esperaria a sua vez. A pequena construção onde ficava a casa de banho, no quintal de Baba Yanka, era ainda mais precária do que a sua cabana, mas suficientemente larga para ocultar a nossa fuga silenciosa por entre as árvores e colmeias até ao portão do fundo. Não se via ninguém, mas afrouxamos o passo quando chegamos à estrada, entramos sorrateiros no meio dos arbustos e escalamos a colina. Felizmente, também já não havia ninguém em volta da igreja, que estava imersa em sombras densas. O braseiro reluzia fracamente sob as árvores.

Nem tentamos a porta da frente, onde poderíamos ser vistos da estrada, e corremos para a das traseiras. Havia ali uma janela baixa, tapada por dentro com cortinas roxas.

— Deve ir dar ao interior do santuário — disse Helen.

A moldura de madeira da janela não estava trancada, apenas fechada com um trinco, e bastou um empurrão para a abrirmos e deslizarmos para dentro por entre as cortinas, fechando tudo cuidadosamente atrás de nós. Ao entrarmos, verifiquei que Helen tinha razão: estávamos atrás do iconóstase.

— As mulheres não podem entrar aqui — disse ela em voz baixa, mas olhava à sua volta com uma curiosidade de acadêmica enquanto falava.

O aposento atrás do iconóstase era dominado por um grande altar coberto de finos tecidos e de velas. Dois livros antigos repousavam num suporte de latão junto dele e, de ganchos nas paredes, pendiam as vestes deslumbrantes que tínhamos visto o padre usar anteriormente. Tudo estava terrivelmente parado, terrivelmente silencioso. Encontrei o portal sagrado através do qual o padre aparecia perante a sua congregação, e penetramos cheios de culpa na igreja às escuras. Entrava alguma luz pelas janelas estreitas, mas todas as velas tinham sido apagadas, provavelmente para evitar incêndios, e demorei a encontrar uma caixa de fósforos numa prateleira. Escolhi uma vela para cada um de nós de um dos candelabros e acendi-as. Depois, descemos as escadas com grande cautela.

— Detesto isto — ouvi Helen murmurar atrás de mim, mas sabia que ela não queria dizer que desistia, fossem quais fossem as circunstâncias. — Quanto tempo pensas que Ranov vai demorar a dar pela nossa falta?

A cripta era o lugar mais escuro em que já alguma vez estive, com todas as suas velas apagadas, e fiquei satisfeito pelos dois pontos de luz que trazíamos. Acendi as velas com a que tinha na mão. A chama delas ergueu-se, fazendo cintilar os bordados a ouro do relicário. As minhas mãos tinham começado a tremer bastante, mas consegui tirar a pequena adaga de Turgut do meu bolso, onde a guardava desde que saíra de Sofia. Pousei-a no chão junto do relicário, e Helen e eu tiramos delicadamente os dois ícones dos seus lugares dei comigo a desviar os olhos do dragão e São Jorge e encostamo-los a uma parede. Removemos o pesado tecido e Helen dobrou-o e pô-lo de lado. Durante todo esse tempo, eu estava atento com todas as fibras do meu corpo a qualquer ruído, ali ou na igreja por cima, até que o próprio silêncio começou a zumbir e a sibilar nos meus ouvidos. Houve um momento em que Helen agarrou na minha manga e ficamos a ouvir juntos, mas nada se mexeu.

Quando o relicário ficou descoberto, olhamos trêmulos para ele. A parte de cima era maravilhosamente esculpida em baixo-relevo um santo de cabelos compridos com uma das mãos levantada para nos abençoar, presumivelmente uma representação do mártir cujos ossos poderíamos encontrar lá dentro. Dei por mim a esperar que de fato só encontrássemos uns fragmentos de ossos e depois fechássemos tudo outra vez. Mas então seria o vazio que viria em seguida a falta de Rossi, a ausência de vingança, a perda. A tampa do relicário parecia estar pregada, ou trancada, e tentei tudo para a abrir, em vão. Enquanto tentávamos, torcemo-lo um pouco e qualquer coisa deslizou lá dentro, assustadoramente, parecendo bater contra as paredes internas. Na verdade, o relicário era pequeno demais, nele só caberia um corpo de criança, ou pedaços soltos, mas era muito pesado. Ocorreu-me, durante um medonho instante, que talvez só a cabeça de Vlad tivesse afinal acabado ali, embora isso deixasse muitas outras coisas por explicar. Comecei a suar e a pensar se não deveria subir para procurar uma ferramenta qualquer na igreja, mesmo sem muita esperança de encontrar qualquer coisa

— Vamos tentar pô-lo no chão — disse eu através dos dentes cerrados, e juntos conseguimos fazer a caixa descer em segurança.

Ali, poderia ver melhor as argolas e dobradiças da parte de cima, pensei, ou até tentar abri-la com um puxão forte. Estava quase a tentar isso quando Helen deu um grito breve.

— Paul, olha!

Virei-me depressa e vi que o mármore empoeirado sobre o qual o relicário estivera pousado não constituía um bloco sólido; a parte de cima deslocara-se um pouco com o nosso esforço para remover o relicário. Creio que já nem respirava, mas juntos, sem palavras, conseguimos remover a laje de mármore. Não era grossa mas pesava tremendamente, e estávamos ambos ofegantes quando a apoiamos na parede do fundo. Por baixo, havia uma comprida lousa de pedra, da mesma pedra do chão e das paredes, uma pedra do comprimento de um homem. A efígie que vimos ali era extremamente rude, cinzelada diretamente na superfície dura não era o rosto de um santo mas de um homem verdadeiro, um homem de traços duros com olhos amendoados abertos, nariz comprido, um longo bigode um rosto cruel encimado por um chapéu triangular que conseguia ter uma aparência garbosa mesmo naquele traço rudimentar.

Helen recuou, os lábios brancos à luz das velas, e lutei contra o impulso de lhe agarrar no braço e subir as escadas a correr.

— Helen — comecei a falar, baixinho, mas não havia mais nada a dizer.

Peguei na adaga e Helen enfiou a mão algures dentro da sua roupa nunca cheguei a saber onde — e tirou a pistola diminuta, que colocou ao seu alcance, perto da parede. Então, agarramos na borda da pedra tumular e levantamo-la. A lápide deslizou para fora até meio, uma estrutura maravilhosamente construída. Estávamos ambos a tremer visivelmente, tanto que quase deixamos cair a lápide. Quando acabamos de a tirar, olhamos para o corpo no interior, os olhos pesadamente fechados, a pele amarelada, os lábios excessivamente vermelhos, a respiração oca, sem ruído. Era o professor Rossi.

 

Gostaria de poder dizer que tive um gesto de bravura, ou fiz alguma coisa útil, ou tomei Helen nos braços para ter a certeza de que ela não iria desmaiar, mas não foi o que aconteceu. Há pouca coisa pior do que ver um rosto muito amado transformado pela morte, ou pela degeneração física, ou por uma horrível doença. Esses rostos são monstros da espécie mais aterradora a dos amados intoleráveis.

— Oh, Rossi — disse eu, e as lágrimas vieram-me aos olhos tão repentinamente que nem as senti chegar.

Helen chegou-se mais perto e olhou para ele. Vi que estava vestido com as mesmas roupas que usava na noite em que eu falara com ele pela última vez, quase um mês antes; estavam rasgadas e sujas, como se ele tivesse sofrido um acidente. A gravata tinha desaparecido. Um fio de sangue enchera os vincos de um lado do seu pescoço e formara um estuário escarlate no colarinho manchado. A boca frouxa e inchada deixava escapar uma respiração fraca e, além do movimento do subir e descer da sua camisa, estava imóvel. Helen estendeu a mão.

— Não lhe toques — disse eu, asperamente, o que só fez aumentar o meu próprio horror.

Mas Helen parecia tomada pelo mesmo transe em que ele se encontrava e, com os lábios trémulos, acariciou de leve a face dele com os dedos. Não sei dizer se era ainda pior ele abrir os olhos, mas foi o que fez. Ainda eram muito azuis, mesmo à luz imprecisa das velas, mas o branco dos olhos estava injetado de sangue e as pálpebras inchadas. Aqueles olhos estavam horrivelmente vivos, também, e perplexos, indo de um lado para outro como se tentassem assimilar os nossos rostos, enquanto o corpo permanecia mortalmente parado. Então, o olhar pareceu concentrar-se em Helen, curvada para ele, e o azul dos olhos clareou com tremenda força, abrindo-se como se quisesse vê-la inteira.

— Oh, meu amor — disse ele, muito baixo. Os seus lábios estavam gretados e espessos, mas a voz era a que eu amava, com o sotaque acentuado.

— Não... a minha mãe — disse Helen, esforçando-se por encontrar as palavras. Pousou a mão na face dele. — Pai, sou a Helen... Elena. Sou a sua filha.

Ele então levantou uma das mãos, como se a controlasse apenas de maneira vacilante, e segurou na dela. A sua mão estava ferida, as unhas muito compridas e amareladas. Eu queria dizer-lhe que íamos tirá-lo dali num instante, que íamos para casa, mas já sabia que não havia esperança, ele estava demasiado ferido.

— Rossi — disse eu, debruçando-me. — É o Paul. Estou aqui.

O seu olhar desnorteado ia de Helen para mim e outra vez para Helen, e depois fechou os olhos com um suspiro que percorreu todo o seu corpo inchado.

— Ah, Paul — disse ele. — Veio à minha procura. Não devia ter feito isso. — Olhou de novo para Helen, com os olhos a enevoarem-se, e pareceu querer dizer mais alguma coisa.

— Lembro-me de si — murmurou depois de um momento.

Remexi no bolso interior do meu casaco e tirei de lá o anel que a mãe de Helen me dera. Segurei-o perto dos olhos dele, mas não demasiado perto, e ele largou a mão de Helen e tocou no anel de modo desajeitado.

— Para si — disse a Helen. Ela pegou no anel e colocou-o no dedo.

A minha mãe — disse ela, agora com a boca a tremer visivelmente. — Lembra-se dela? Conheceu-a na Romênia.

Ele olhou para ela com algo semelhante ao seu entusiasmo de outrora e sorriu, o rosto torto.

— Sim — sussurrou finalmente. — Eu amei-a. Para onde foi ela?

— Está em segurança na Hungria.

— Você é filha dela? — Havia uma espécie de assombro na sua voz.

— Sou sua filha.

As lágrimas vieram-lhe lentamente à superfície dos olhos, como se já não fluíssem com facilidade, e escorreram-lhe pelas rugas nos cantos. Os sulcos que deixaram brilhavam à luz das velas.

— Por favor, tome conta dela, Paul — disse ele, fracamente.

— Vou casar-me com ela contei-lhe. Pousei a mão no peito dele. Havia um certo chiar inumano por dentro, mas forcei-me a manter ali a mão.

— Isso é... bom — disse ele finalmente. — A mãe dela está viva, está bem?

— Sim, pai — o rosto de Helen contraiu-se. — Ela está na Hungria, segura.

— Sim, já me disse isso — e fechou de novo os olhos.

— Ela ainda o ama, Rossi — e afaguei o peito da camisa dele com a mão vacilante. — Mandou-lhe esse anel e... um beijo.

— Tentei tantas vezes lembrar-me onde ela estava, mas alguma coisa...

— Ela sabe que tentou. Descanse um pouco.

A respiração dele tornara-se alarmantemente estertorosa.

De repente, os seus olhos escancararam-se e esforçou-se por se levantar. O esforço era doloroso de ver, sobretudo porque não produziu praticamente nenhum resultado.

— Filhos, têm de sair daqui agora — arquejou. — É muito perigoso ficarem aqui. Ele vai voltar e matá-los — e lançava olhares rápidos de um lado para o outro.

— Drácula? perguntei baixinho.

O seu rosto ficou transtornado por um instante à menção do nome.

— Sim. Ele está na biblioteca.

— Biblioteca? — perguntei, olhando em volta espantado, apesar do pavor no rosto de Rossi. — Que biblioteca?

— A biblioteca é ali dentro — e tentou apontar para uma parede.

Ross — disse eu, com urgência na voz. -Diga-nos o que aconteceu e o que devemos fazer.

Ele pareceu lutar com a sua própria visão por um segundo, focalizando-a em mim e piscando rapidamente os olhos. O sangue seco no seu pescoço moveu-se com o esforço para respirar.

— Ele veio buscar-me de repente, ao meu gabinete, e levou-me numa longa viagem. Eu não estava... consciente durante uma parte dela, portanto não sei que lugar é este.

— Bulgária — disse Helen, segurando na mão inchada dele com ternura. Os seus olhos faiscaram de novo com um velho interesse, um lampejo de curiosidade.

— Bulgária? Então, é por isso que... — e tentou umedecer os lábios.

— O que é que ele lhe fez?

Ele trouxe-me para cá para cuidar da sua... diabólica biblioteca. Resisti de todas as maneiras que pude. A culpa foi minha, Paul. Eu tinha começado a fazer umas pesquisas outra vez, para um artigo... — lutou para respirar. — Queria mostrá-lo como parte de uma... tradição. Que começou com os Gregos. Eu... eu ouvi dizer que havia um novo investigador na universidade a escrever sobre ele, apesar de não ter conseguido descobrir o nome do homem.

Nisso, ouvi Helen prender subitamente a respiração. Os olhos de Rossi palpitaram na direção dela.

— Pareceu-me que devia finalmente publicar...

Ele respirava com um ruído sibilante, e fechou um pouco os olhos. Helen, segurando-lhe na mão, tremia encostada a mim; mantive o braço firme na sua cintura.

— Está bem — disse eu. — Descanse.

Mas Rossi estava decidido a acabar.

— Não está bem — quase sufocou, os olhos ainda fechados. — Ele deu-lhe o livro a si. Eu soube então que ele viria buscar-me, e veio. Lutei com ele, mas ele quase me fez... gostar dele... — Parecia incapaz de levantar a outra mão, e virou o pescoço e a cabeça, desajeitadamente, de modo que pudemos ver uma ferida redonda e profunda no lado do seu pescoço. Ainda estava aberta, e, quando ele se mexeu, abriu-se mais e sangrou. O nosso olhar fixo na ferida agitou-o novamente, e olhou para mim, suplicante.

— Paul, está a ficar escuro lá fora?

Uma onda de terror e desespero invadiu-me até à ponta dos dedos.

— Consegue sentir isso, Rossi?

— Sim, sei quando a escuridão está a chegar, fico... faminto. Por favor. Ele vai ouvi-los. Depressa... saiam.

— Diga-nos como encontrá-lo — disse eu, angustiado. — Vamos matá-lo agora.

— Sim, matem-no, se puderem fazer isto sem pôr as vossas vidas em perigo. Matem-no por mim — sussurrou, e, pela primeira vez, vi que ainda podia sentir raiva. — Escute, Paul, há um livro lá dentro. A vida de São Jorge — ele recomeçou a lutar com a respiração. — Muito antigo, com uma capa bizantina... nunca ninguém viu um livro assim. Ele tem muitos livros excelentes, mas esse é... — pensamos que tivesse desmaiado, e Helen apertou a mão dele nas suas, chorando sem poder conter-se. Quando ele voltou a si, murmurou: — Escondi-o atrás do primeiro armário à esquerda. Leve-o consigo, se puder. Escrevi uma coisa... guardei uma coisa dentro dele. Depressa, Paul. Ele está a acordar. Estou a acordar com ele.

— Oh, meu Deus olhei em volta, procurando uma ajuda qualquer, — não sabia qual. — Ross, por favor... não posso deixá-lo ficar consigo. Vamos matá-lo e você vai curar-se. Onde é que ele está?

Agora, porém, Helen estava mais calma e pegou na adaga e mostrou-lha.

Ele pareceu deixar escapar um longo suspiro, misturado com um sorriso. Vi então como os seus dentes tinham crescido, como os de um cão, e como os cantos da sua boca já estavam em carne viva. As lágrimas corriam-lhe livremente dos olhos e escorriam-lhe pelas faces magoadas.

— Paul, meu amigo...

— Onde é que ele está? Onde é a biblioteca? — Fiz a pergunta com mais insistência ainda, mas Rossi não conseguia falar.

Helen fez um gesto rápido, e eu compreendi e arranquei depressa uma pedra de um canto do chão. Levei um longo momento a soltá-la, e durante esse momento receei ter ouvido um movimento na igreja por cima de nós. Helen desabotoou a camisa dele e abriu-a com delicadeza. Depois apoiou a ponta da adaga de Turgut sobre o coração dele.

Ele manteve os olhos fixos em nós por uns segundos, confiante, e estavam tão azuis como os de uma criança, depois fechou-os. Assim que eles se fecharam, reuni todas as minhas forças e arremessei de encontro ao punho da adaga aquela pedra antiga, uma pedra assentada pelas mãos de um monge anônimo ou de um camponês qualquer, algum habitante desaparecido do século doze ou treze. É provável que aquela pedra estivesse ali há séculos, a ser pisada pelos monges que traziam ossos para o seu ossário ou vinho para a sua adega. Aquela pedra não se movera quando o cadáver de um matador de Turcos estrangeiro fora transportado secretamente por cima dela e escondido num túmulo novo no chão ali perto, nem quando os monges valáquios celebraram uma missa herética em cima dela, nem quando a polícia otomana veio procurar em vão o corpo, nem quando os cavaleiros otomanos avançaram sobre a igreja com as suas tochas, nem quando uma nova igreja cresceu sobre ela, nem quando os ossos de Sveti Petko foram trazidos no seu relicário para repousarem perto dela, nem quando os peregrinos se ajoelharam nela para receberem a bênção do mártir. Permanecera ali todos aqueles séculos até eu a arrancar rudemente do seu lugar e dar-lhe um novo uso, e é tudo o que posso escrever sobre isto.

 

Maio, 1954

Não tenho ninguém a quem escrever isto e nenhuma esperança de que algum dia isto seja encontrado, mas parece-me um crime não tentar registar aquilo que sei enquanto ainda sou capaz de o fazer, e só Deus sabe por quanto tempo ainda serei.

Fui levado do meu gabinete na universidade há alguns dias não sei muito bem quantos, mas suponho que ainda estejamos no mês de Maio. Nessa noite, despedi-me do meu querido aluno e amigo, que me mostrou o seu exemplar do livro demoníaco que tentei esquecer durante anos. Vi-o sair com toda a ajuda que me fora possível dar-lhe. Depois, fechei o meu gabinete e sentei-me um pouco, tomado de grande remorso e medo. Sabia que era eu o culpado. Recomeçara em segredo a minha pesquisa sobre a história dos vampiros e pretendia de fato recuperá-la gradualmente e expandir os meus conhecimentos sobre a lenda de Drácula, talvez até resolver finalmente o mistério da localização da sua tumba. Deixara que o tempo, a racionalidade e o orgulho me iludissem e me fizessem acreditar que não haveria consequências se retomasse a minha investigação. Admiti para mim mesmo a minha culpa logo naquele primeiro momento de solidão.

Custou-me terrivelmente dar a Paul as anotações da minha pesquisa e as cartas que escrevera sobre as minhas experiências, não porque ainda as quisesse qualquer vontade de continuar a pesquisa desapareceu no segundo em que ele me mostrou o seu livro. Apenas lamentava profundamente ter de passar todos aqueles conhecimentos horripilantes para as mãos dele, apesar de ter certeza de que, quanto mais ele soubesse, melhor poderia proteger-se. Só esperava que, se alguma punição houvesse, fosse eu a sofrê-la e não Paul, com o seu jovem otimismo, o seu passo ligeiro, o seu brilhantismo ainda não posto aprova. Paul não deve ter mais de vinte e sete anos; eu já vivi décadas de vida e de muita felicidade imerecida. Este foi o meu primeiro pensamento. Os seguintes foram de ordem prática. Mesmo que quisesse proteger-me, não tinha qualquer meio para fazer de imediato, a não ser a minha fé na razão. Guardara as minhas notas, mas nenhum dos meios tradicionais para repelir o mal crucifixos, balas de prata, alho. Nunca lançara mão de nenhum deles, mesmo no auge da minha pesquisa, mas agora começava a arrepender-me de ter aconselhado Paul a usar apenas os recursos da sua própria mente.

Esses pensamentos exigiram o espaço de um minuto ou dois, e, de fato, como as coisas aconteceram, tive apenas um minuto ou dois à minha disposição. Então, com uma lufada repentina de ar frio e fétido, uma imensa presença precipitou-se sobre mim, de tal modo que eu mal podia ver, e o meu corpo inteiro pareceu soltar-se da sua carne, de tanto medo, envolvido, ceguei por um instante, e pensei que devia estar a morrer, embora não soubesse de quê. No meio disto, tive a mais estranha visão de juventude e beleza física, uma sensação mais do que uma visão, uma noção de mim mesmo muito mais jovem e cheio de amor por alguma coisa ou por alguém. Talvez seja assim que se morre. Se for, quando chegar a minha hora e virá em breve, de uma forma terrível, não duvido, espero que essa visão esteja comigo outra vez no último momento.

Depois disto, não me lembro de nada, mas um nada que se prolongou por um período que não pude então, e ainda não posso, calcular. Quando voltei a mim, fiquei surpreendido ao constatar que estava vivo. Não vi nem ouvi nada nos primeiros segundos. Era como sair de uma grande e brutal cirurgia, e o meu despertar foi imediatamente seguido da compreensão de que sentia dor, de que todo o meu corpo estava extremamente fraco e me doía intensamente, que tinha um ardor na perna direita, assim como na garganta e na cabeça. O ar era frio e úmido e o lugar onde eu estava deitado, fosse qual fosse, era frio, de modo que me sentia completamente gelado. A esta sensação, seguiu-se a da luz uma luz fraca mas suficiente para me convencer de que não estava cego e de que os meus olhos estavam abertos. Essa luz e a dor, mais do qualquer outra coisa, foram a confirmação de que estava vivo. Comecei a recordar o que de início pensei ter acontecido na noite anterior Paul a vir ao meu gabinete com a sua chocante descoberta. E então compreendi, com um súbito aperto no coração, que devia estar prisioneiro do mal; era a razão por que o meu corpo fora agredido e por que me parecia estar rodeado pelo próprio cheiro do mal.

Movimentei os membros com a maior cautela possível e consegui, apesar de toda a minha fraqueza, virar a cabeça, depois levantá-la. A minha visão estava bloqueada por uma parede indistinta a menos de dez centímetros de distância, mas a luz ténue que eu já vislumbrara vinha de algum ponto acima dela. Suspirei e ouvi o meu próprio suspiro; isto fez-me acreditar que também ainda podia ouvir, e que tinha sido o fato de estar num lugar tão silencioso que me dera a ilusão de surdez. Fiz um grande esforço para ouvir com a maior atenção possível e, não tendo escutado nada, levantei o corpo com cuidado para me sentar. O gesto espalhou uma dor e uma fraqueza atrozes por todos os meus membros, e senti a cabeça a latejar. Sentado, recuperei um pouco o sentido do tacto e descobri que estava deitado em cima de uma superfície de pedra, e as paredes baixas dos dois lados serviram-me de apoio para me soerguer Sentia um forte zumbido na cabeça, que parecia encher todo o espaço à minha volta. Era um espaço sombrio, como já disse, silencioso, e mais escuro ainda nos cantos. Tateei à minha volta. Estava seminu.

Esta descoberta provocou-me uma onda de náusea, mas ao mesmo tempo reparei que ainda usava a roupa que vestia no meu gabinete, embora a camisa e o casaco tivessem um rasgão numa das mangas e a gravata tivesse desaparecido. O fato de estar vestido com as minhas próprias roupas, porém, tranquilizou-me um pouco; aquilo não era a morte, nem mera insanidade, e eu não despertara noutra era, a não ser que tivesse transportado as minhas roupas para lá comigo. Apalpei a roupa e encontrei a minha carteira no bolso da frente das calças. Foi um choque sentir aquele objeto conhecido sob as minhas mãos O meu relógio, descobri com tristeza, não estava no meu pulso, nem a minha caneta no bolso interior do casaco.

Então, levei a mão à garganta e ao rosto. O rosto parecia inalterado, a não ser por um ferimento muito ligeiro na testa, mas no músculo da garganta encontrei uma perfuração funda, pegajosa ao toque dos meus dedos. Quando virava a cabeça ou engolia com força, a ferida fazia um ruído de sucção que me aterrorizava além de toda a racionalidade. A área perfurada estava também inchada, e latejava e doía-me quando lhe tocava. Pensei que iria desmaiar de novo de tanto horror e desesperança, mas lembrei-me de que tivera forças para me sentar. Talvez não tivesse perdido tanto sangue como a princípio receara, e isto talvez significasse que apenas tivesse sido mordido uma vez. Senti-me eu mesmo, não um demônio; não ansiava por sangue, não sentia maldade no coração. Então, uma enorme tristeza abateu-se sobre mim. Que importava que eu ainda não sentisse sede de sangue? Onde quer que estivesse, seria apenas uma questão de tempo antes de ser completamente contaminado. A não ser, é claro, que conseguisse fugir.

Virei a cabeça devagar, olhando à minha volta, tentando ver com mais clareza, e então fui capaz de distinguir a origem da luz. Era um brilho avermelhado à distância no escuro embora eu não conseguisse saber a que distância e entre mim e esse brilho havia grandes formas escuras. Com as mãos pela face exterior da minha casa de pedra. O sarcófago parecia estar rente ao chão, ou a um piso de pedra, e tateei em volta até concluir que poderia descer dali no escuro sem cair de uma grande altura. Era um longo passo até ao chão e as minhas pernas tremiam terrivelmente, por isso caí de joelhos assim que saí do sarcófago. Agora também conseguia ver um pouco melhor. Dirigi-me para a fonte de luz avermelhada com as mãos estendidas à frente, tropeçando no caminho no que me pareceu ser outro sarcófago, que encontrei vazio, e num móvel de madeira. Quando colidi com o móvel, ouvi algo macio cair, mas não pude ver o que era.

Aquele tatear no escuro era assustador, e eu esperava a qualquer segundo ser atacado pela Coisa que me trouxera ali. Considerei outra vez a possibilidade de estar mesmo morto se aquela não seria alguma horrenda versão da morte, que eu momentaneamente confundira com uma continuação da vida. Mas nada me atacou, a dor nas minhas pernas era suficientemente convincente e eu estava a chegar mais perto da luz, que dançava e tremeluzia numa extremidade da longa câmara. Antes do seu brilho, apercebia-me agora, sobressaía um volume imóvel e escuro. Quando estava a poucos metros dele, vi um lume aceso, a arder baixo e vermelho. Estava emoldurado por uma lareira em arco feita de pedra, e dava luz suficiente para revelar diversas pesadas peças de mobiliário antigo uma grande escrivaninha coberta de papéis, uma arca entalhada, uma ou duas cadeiras altas e angulosas. Numa das cadeiras, de costas para mim e de frente para o fogo, alguém estava sentado muito quieto, vi um vulto escuro acima do encosto da cadeira. Desejei então ter seguido na direção oposta, longe da luz e mais perto de algum ponto por onde fosse possível fugir, mas estava tremendamente atraído por aquela forma escura e pela majestosa cadeira em que se sentava e pelo vermelho suave do fogo. Por um lado, precisei de toda a minha força de vontade para andar naquela direção, e, por outro, não poderia ter voltado atrás ainda que tentasse.

Aproximei-me devagar do fogo com as minhas pernas doloridas e, quando contornei a grande cadeira, uma figura levantou-se lentamente e virou-se para mim. Porque ele estava de costas para o fogo e porque havia tão pouca luz à nossa volta, não podia ver o seu rosto, ainda que por um segundo tenha vislumbrado uma face branca como osso e um olhar rutilante. Tinha cabelos escuros compridos e crespos, que lhe caíam pelos ombros como um manto curto. Havia algo nos seus movimentos que era diferente dos de um homem vivo, mas se eram mais rápidos ou mais lentos, não sei. Era só um pouco mais alto do que eu, mas dava uma impressão de grande estatura e volume, e eu via como os seus ombros largos se destacavam contra a luz da lareira. Então, ele pegou em qualquer coisa, curvando-se para o fogo. Imaginei que estivesse prestes a matar-me e permaneci muito quieto, esperando morrer com uma certa dignidade, o que quer que acontecesse. Mas ele estava apenas a acender no fogo uma vela fina e comprida e, quando o fez, acendeu com ela outras num candelabro junto da sua cadeira, virando-se de novo de frente para mim.

Agora, via-o melhor, embora o seu rosto ainda continuasse na sombra. Usava um chapéu pontiagudo verde e ouro ornamentado com um pesado broche cravejado de pedras preciosas sobre a testa e uma túnica de ombros muito volumosos feita de veludo dourado com uma gola verde e alta atada sob o queixo largo. A jóia na sua testa e os fios dourados da gola cintilavam à luz do fogo. Um manto de pele branca estava enrolado em volta dos seus ombros e preso com um dragão de prata. Os seus trajes eram extraordinários; assustaram-me quase tanto como a sua estranha presença de morto-vivo. Era roupa de verdade, viva, nova, não as peças desbotadas de uma exposição de museu. Ele usava-as com um luxo e uma elegância excepcionais, parado em silêncio à minha frente, de tal modo que o manto caía em torno dele como uma capa ondulada de neve. A luz do fogo revelava a sua mão de dedos de pontas achatadas, cheia de cicatrizes, apoiada no punho da adaga, e mais adiante uma perna vigorosa de calções verdes e pé calçado de bota. Ele deslocou-se um pouco, virando-se para a luz, mas permaneceu calado. Agora, podia ver melhor o seu rosto, e a sua força cruel fez-me recuar, os grandes olhos negros sob as vastas sobrancelhas juntas, o nariz reto e comprido, as faces amplas e ossudas. A sua boca, via agora, estava fechada com um sorriso duro, cor de rubi e curvada sob o bigode escuro e cerdoso. Num dos cantos da sua boca, vi uma mancha de sangue seco, oh, meu Deus, como aquilo me abalou. Só a visão do sangue naquela boca já era suficientemente terrível, mas a percepção imediata de que era provavelmente meu, o meu próprio sangue, pôs-me a cabeça à roda.

Ele levantou-se, ainda mais orgulhoso, e olhou-me diretamente no rosto através da penumbra que nos separava.

Sou Drácula disse.

As palavras soaram frias e claras. Tive a impressão de que vinham numa língua que eu não conhecia, apesar de as compreender perfeitamente. Incapaz de falar, fiquei a olhar para ele, paralisado. O seu corpo estava apenas a três metros do meu e era inegavelmente real e poderoso, quer estivesse vivo ou morto.

Venha disse ele no mesmo tom frio, puro. Está cansado e com fome depois da nossa viagem. Preparei-lhe uma ceia. Os seus gestos eram delicados, corteses mesmo, com um brilho de jóias nos grandes dedos brancos.

Vi uma mesa perto do fogo cheia de travessas cobertas. Senti também cheiro a comida, comida humana, boa, verdadeira e o aroma fez-me sentir fraco. Drácula dirigiu-se sem ruído para a mesa e encheu um copo com um líquido vermelho de uma garrafa, algo que, pensei por um instante, devia ser sangue,

Venha repetiu ele, mais suavemente.

Afastou-se e sentou-se na sua cadeira, como se pensasse que eu me aproximaria da mesa com mais facilidade se ele se conservasse a uma certa distância. Dirigi-me, vacilante, para a cadeira vazia junto da mesa, com as pernas a tremer de pura fraqueza e também de medo. Sentei-me nas almofadas escuras, prostrado, e olhei para os pratos. Por que razão, refleti, queria tanto comer quando poderia morrer a qualquer momento? Era um mistério que só o meu corpo compreendia. Drácula contemplava agora o fogo; vi o perfil agressivo, o nariz longo e o queixo forte, o cabelo negro encaracolado por cima do ombro. Apertava as mãos uma na outra, pensativo, de modo que o seu manto e as mangas bordadas pendiam, mostrando punhos de veludo verde e uma grande cicatriz nas costas de uma das mãos. A sua atitude era calma e melancólica; comecei a sentir que devia estar a sonhar, e não sob ameaça, e atrevi-me a levantar as tampas de algumas travessas.

Subitamente, estava tão faminto que mal podia conter a vontade de comer selvaticamente com as duas mãos, mas controlei-me e peguei no garfo de metal e na faca de osso que estavam em cima da mesa para cortar primeiro uma fatia de galinha assada, depois um pedaço de uma carne escura de caça. Havia tigelas de cerâmica com batatas e papas, um pão rijo, uma sopa quente cheia de verduras. Comi vorazmente, tentando não me apressar para evitar que o estômago me doesse. A taça de prata junto ao meu cotovelo estava cheia de um forte vinho tinto, não de sangue, e bebi-o todo. Drácula não se moveu durante a minha refeição, embora eu não pudesse evitar olhar de relance para ele de vez em quando. Quando acabei, sentia-me quase pronto para morrer, contente por um longo minuto. Era então este o motivo por que se oferece uma última refeição a alguém que vai ser executado. Foi a primeira coisa em que pensei com clareza desde que acordara dentro do sarcófago. Devagar, voltei a colocar as tampas nas travessas vazias, tentando fazer o mínimo de ruído, e recostei-me na cadeira, à espera.

Depois de um longo momento, o meu companheiro virou-se na cadeira.

Já acabou o seu jantar disse calmamente. Então, talvez possamos conversar um pouco, e vou contar-lhe por que o trouxe aqui. A sua voz era clara e fria como anteriormente, mas desta vez percebi uma leve crepitação nas suas profundezas, como se o mecanismo que a produzia fosse infinitamente velho e gasto. Ele permanecia sentado a olhar pensativamente para mim, e senti-me encolher sob o seu olhar.

Tem alguma idéia de onde está?

Eu tinha esperado não ter de falar com ele, mas achei que não ganharia nada em ficar calado, o que poderia irritá-lo, embora ele parecesse bastante calmo naquele momento. Também me ocorrera que, se respondesse, se o entretivesse de alguma forma, poderia ganhar algum tempo para avaliar o que me rodeava para uma possível fuga, ou para descobrir uma maneira de o destruir, se tivesse coragem, ou até as duas coisas. Devia ser noite, ou ele não estaria acordado, se a lenda estivesse certa. A manhã acabaria por chegar e, se eu estivesse vivo nessa altura, ele teria de dormir enquanto eu ficaria acordado.

Tem alguma idéia de onde está? repetiu, quase pacientemente.

Sim respondi. Não fui capaz de me dirigir a ele usando qualquer título. Pelo menos, acho que sim. Esta é a sua tumba.

Uma delas sorriu. A favorita, em todo o caso.

Estamos na Valáquia? Não pude deixar de perguntar.

Ele abanou a cabeça e a luz do fogo passou-lhe pelo cabelo escuro e pelos olhos brilhantes. Havia algo que não era humano naquele gesto, o que fez o meu estômago contrair-se. Ele não se movimentava como uma pessoa viva e, no entanto, mais uma vez, eu não sabia definir com exatidão qual era a diferença.

A Valáquia tornou-se demasiado perigosa. Eu devia ter podido descansar lá para sempre, mas não foi possível. Imagine: depois de lutar tanto pelo meu trono, pela nossa liberdade, não pude sequer deixar lá os meus ossos.

Onde estamos, então? Tentei, mais uma vez em vão, considerar aquilo como uma conversa normal. Depois apercebi-me de que não queria apenas fazer a noite passar depressa ou de modo seguro, se houvesse alguma possibilidade disso.

Queria também aprender alguma coisa sobre Drácula. O que quer que aquela criatura fosse, tinha vivido quinhentos anos. As suas respostas morreriam comigo, é claro, mas este fato não impedia que eu sentisse uma ponta de curiosidade.

Ah, onde estamos repetiu Drácula. Não importa, penso eu. Não estamos na Valáquia, que ainda é governada por loucos.

Olhei para ele, abismado.

Você... você conhece o mundo moderno?

Ele olhou para mim com um ar de divertida surpresa que fez o seu rosto terrível crispar-se. Pela primeira vez, vi os dentes compridos, as gengivas recuadas, que lhe davam a aparência de um cão velho quando sorria. A visão foi-se tão depressa como viera, não, a sua boca era normal, excetuando aquela pequena mancha do meu sangue, ou de alguém sob o bigode preto.

Sim disse ele, e por um segundo receei ter de ouvi-lo rir, conheço o mundo moderno. É o meu orgulho, a minha obra favorita.

Senti que algum tipo de ataque frontal poderia ser do meu interesse, se o ocupasse.

Então, o que quer de mim? Evitei a modernidade durante muitos anos; ao contrário de si, vivo no passado.

Ah, o passado e juntou as pontas dos dedos outra vez diante do fogo. O passado é muito útil, mas só pelo que pode ensinar-nos sobre o presente. O presente é que eriço. Mas gosto muito do passado. Venha. Por que não mostrar-lhe, uma vez que já comeu e descansou?

Levantou-se, outra vez com aqueles movimentos que pareciam determinados por alguma força que não a dos membros do seu corpo, e eu levantei-me depressa com ele, temendo que se tratasse de um ardil, que ele fosse agora lançar-se sobre mim. Mas ele virou-se devagar e tirou uma das velas do suporte próximo da sua cadeira, erguendo-a bem alto.

Leve uma vela consigo disse, afastando-se da lareira e penetrando na escuridão do vasto aposento.

Peguei numa segunda vela e segui-o, ficando longe dos seus estranhos trajes e arrepiantes movimentos. Esperava que não fosse levar-me outra vez para o meu sarcófago.

À luz fraca das nossas velas, comecei a ver coisas que não pudera ver antes coisas maravilhosas. Distinguia agora compridas mesas a minha frente, mesas de uma solidez antiga. E em cima delas havia pilhas e pilhas de livros volumes velhíssimos e gastos encadernados em couro, e capas cujos dourados captavam o brilho da chama da minha vela. Havia outros objetos ainda eu nunca tinha visto um tinteiro como aquele, nem penas e aparos tão extravagantes. Havia uma pilha de folhas de pergaminho, que vislumbrei à luz da vela e uma velha máquina de escrever com um papel muito fino inserido nela. Entrevi os reflexos de encadernações e caixas recamadas de pedras preciosas, rolos de manuscritos pousadas em bandejas de latão dourado. Havia grandes fólios e in-quartos revestidos de couro macio e filas de volumes mais modernos em compridas estantes. Na realidade, estávamos cercados: todas as paredes pareciam estar cobertas de livros. Segurando a minha vela, comecei a decifrar títulos aqui e ali, às vezes um elegante desabrochar de escrita árabe no centro de uma capa de couro vermelho, às vezes uma língua ocidental que eu conseguia ler. A maioria dos volumes, todavia, era antiga demais para ter títulos. Tratava-se de um acervo incomparável, e, contrafeito, comecei a ansiar por abrir alguns daqueles livros, por tocar os manuscritos nas suas bandejas.

Drácula voltou-se para mim, segurando a sua vela com o braço levantado, e a luz fez cintilar as jóias no seu chapéu topázio, esmeralda, pérola. Os seus olhos estavam muito brilhantes.

O que acha da minha biblioteca?

Parece ser uma... coleção excepcional. Um tesouro reconheci.

Uma espécie de prazer passou pelo seu rosto terrível.

Tem razão disse suavemente. Esta biblioteca é a melhor do seu gênero no mundo. É o resultado de séculos de uma seleção cuidadosa. Mas vai ter tempo de sobra para explorar as maravilhas que reuni aqui. Agora, deixe-me mostrar-lhe outra coisa.

Dirigiu-se para um lado da sala de que ainda não nos tínhamos aproximado e ali dei com uma prensa tipográfica muito antiga, como as que vemos em ilustrações do fim da Idade Média um pesado aparelho de metal negro e madeira escura com um enorme parafuso em cima. A placa redonda era de obsidiana com o polimento da tinta, captava a nossa luz como um espelho demoníaco. Havia uma folha de papel espesso estendida na prateleira da prensa. Aproximei-me e vi que estava impressa em parte, uma experiência posta de parte, e que estava escrita em inglês. "O Fantasma na Ânfora", dizia o título. "Vampiros, da Tragédia Grega à Tragédia Moderna". E o nome do autor: "Bartholomew Rossi."

Drácula devia estar à espera da minha manifestação de espanto, e eu não o decepcionei.

Como vê, estou a par do que há de melhor em pesquisa moderna. Bem informado, como se diz. Quando não posso obter uma obra publicada ou quando a quero imediatamente, às vezes imprimo-a eu mesmo. Mas eis uma coisa que sem dúvida lhe vai igualmente interessar.

Apontou para uma mesa atrás da prensa. Em cima dela, havia uma fila de blocos xilográficos. O maior deles era o dragão dos nossos livros do meu e do de Paul invertido, é claro. Com dificuldade, controlei-me para não soltar uma exclamação em voz alta.

Está surpreendido disse Drácula, segurando a sua vela perto do dragão. As linhas da figura eram-me tão familiares que poderia tê-las talhado com as minhas próprias mãos. Conhece esta imagem muito bem, presumo.

Sim segurei a minha vela com firmeza. Imprime os livros pessoalmente? E quantos deles existem?

Os meus monges imprimiram alguns, e eu continuei o trabalho deles disse ele em voz baixa, olhando para as matrizes. Quase realizei a minha ambição de imprimir mil quatrocentos e cinquenta e três, mas devagar, para poder distribuí-los enquanto trabalhava. Este número significa alguma coisa para si?

Sim respondi, depois de um momento. É o ano da queda de Constantinopla

Achei que saberia observou ele com o seu sorriso amargo. É a pior data da História.

Parece-me que há muitas concorrentes a essa honra objetei, mas ele sacudiu a sua grande cabeça sobre os seus grandes ombros.

Não disse ele. Levantou bem alto a vela e à sua luz vi os olhos dele inflamarem-se, vermelhos nas suas profundezas, como os de um lobo, e cheios de ódio. Foi como ver um olhar morto de repente ganhar vida; eu tinha achado os seus olhos brilhantes antes, mas agora estavam ferozmente iluminados. Eu não conseguia falar; não conseguia desviar os olhos. Depois de um segundo, ele voltou-se outra vez para o dragão e, contemplando-o, disse, pensativo: Foi um bom mensageiro.

Foi você que me levou o meu? O meu livro?

Digamos que tomei as providências para isso estendeu os dedos cheios de cicatrizes de batalha para tocar no bloco entalhado. Sou muito cuidadoso quanto à sua distribuição. Vão apenas para os acadêmicos mais promissores, e para aqueles que julgo serem suficientemente persistentes para seguir o dragão até ao seu covil, E você foi o primeiro a fazê-lo, de fato. Cumprimento-o por isso. Os meus outros assistentes, deixo-os no mundo, para fazerem a minha pesquisa.

Não estou a perceber arrisquei-me a dizer. Foi o senhor que me trouxe para cá.

Ah... de novo aquela curvatura nos lábios cor de rubi, a contração do longo bigode. Você não estaria aqui se não quisesse vir. Nunca ninguém ignorou a minha advertência duas vezes na vida. Foi você que se trouxe a si mesmo.

Olhei para a prensa muito velha e para o bloco entalhado com o dragão.

Por que me quer aqui?

Eu não queria despertar a sua ira com as minhas perguntas; amanhã à noite ele poderia matar-me, se quisesse, se eu não encontrasse nenhum meio de escapar durante as horas do dia. Mas não podia deixar de lhe perguntar aquilo.

Há muito tempo que espero por alguém para catalogar a minha biblioteca disse ele, com simplicidade. Amanhã, poderá ver tudo o que há nela à vontade. Esta noite, vamos conversar.

Dirigiu-se de novo para as nossas cadeiras com o seu passo imponente e lento. As suas palavras deram-me uma boa dose de esperança aparentemente, não pretendia matar-me naquela noite e, além disso, a curiosidade crescia dentro de mim. Eu não estava a sonhar, parecia-me; estava a falar com alguém que vivera através de mais História do que qualquer historiador poderia imaginar estudar numa só vida, mesmo que de modo rudimentar. Segui-o a uma distância prudente e sentamo-nos diante do fogo outra vez. Enquanto me instalava, reparei que a mesa com os pratos vazios da minha ceia desaparecera, e no seu lugar surgira uma confortável otomana, sobre a qual apoiei os pés com cuidado. Drácula sentou-se majestosamente direito na sua grande cadeira. Enquanto a cadeira dele era alta, de madeira medieval, a minha era confortavelmente estofada, como a otomana, como se ele tivesse pensado em proporcionar ao seu hóspede algo adequado à fraqueza moderna.

Ficamos sentados em silêncio durante longos minutos, e eu já começava a perguntar-me se ele teria a intenção de ficar assim a noite inteira quando ele falou novamente.

Em vida, eu amava os livros disse. Virou-se um pouco para mim, e via o clarão do seu olhar e o brilho da sua densa cabeleira. Talvez não saiba que eu era de certo modo um estudioso. Isso não parece ser muito conhecido falava com indiferença. Mas sabe que os livros da minha época eram muito limitados quanto aos campos de interesse. Na minha vida mortal, vi sobretudo os textos que a Igreja sancionava os Evangelhos e o comentário ortodoxo deles, por exemplo. Essas obras não tinham qualquer utilidade para mim, no final. E quando ocupei pela primeira vez o meu trono legítimo, as grandes bibliotecas de Constantinopla tinham sido destruídas. O que restou delas, nos mosteiros, nunca pude ver com os meus próprios olhos o seu olhar estava profundamente perdido no fogo. Mas eu possuía outros recursos. Mercadores traziam-me livros estranhos e maravilhosos de muitos lugares do Egito e da Terra Santa, dos grandes mosteiros do Ocidente. Nesses livros, aprendi sobre o antigo ocultismo. Como sabia que não podia alcançar um paraíso celestial de novo aquele tom de voz indiferente, tornei-me um historiador para preservar a minha própria história para sempre.

Calou-se por algum tempo e eu tinha medo de lhe fazer mais perguntas. Finalmente, pareceu sair da apatia, batendo com a mão larga no braço da cadeira.

Foi o princípio da minha biblioteca.

Eu estava demasiado curioso para ficar calado, apesar de achar a pergunta extremamente difícil de formular.

Mas depois da sua... morte, continuou a colecionar estes livros?

Oh, sim. Virou-se então para olhar para mim, talvez por eu ter feito espontaneamente a pergunta, e sorriu, soturno. Os seus olhos, encovados à luz da lareira, eram aterrorizadores de fitar. Como já lhe disse, no fundo sou um estudioso, como sou um guerreiro, e aqueles livros fizeram-me companhia durante os meus longos anos. Há também muita coisa de natureza prática que se aprende nos livros a arte de governar, por exemplo, e as batalhas dos grandes generais. Mas tenho muitos tipos de livros. Vai ver amanhã.

E o que deseja que eu faça pela sua biblioteca?

Como disse, catalogá-la. Nunca fiz um registro completo do que possuo, das suas origens e do seu estado. Esta será a sua primeira tarefa, e vai realizá-la com mais rapidez e brilhantismo do que qualquer outro o faria, devido ao seu domínio de muitas línguas e à vastidão dos seus conhecimentos. No decorrer desse trabalho, vai manusear alguns dos livros mais maravilhosos e mais poderosos alguma vez produzidos. Muitos deles já não existem em nenhum outro lugar. Talvez saiba, professor, que só um milésimo da literatura já publicada até hoje ainda existe... Empenhei-me na tarefa de elevar essa fração ao longo dos séculos.

Enquanto ele falava, notei outra vez a clareza e a frieza peculiares da sua voz, e também aquele crepitar no fundo como o guizo de uma cobra, ou de água fria a correr sobre pedras.

A sua segunda tarefa será muito mais ampla. Na verdade, vai durar para sempre. Quando conhecer a minha biblioteca e os seus objetivos tão intimamente como eu, irá pelo mundo, sob o meu comando, à procura de novas aquisições e antigas também, porque nunca irei parar de colecionar as obras do passado. Colocarei muitos arquivistas à sua disposição os melhores e você trará outros mais para o nosso poder.

As dimensões da sua visão e o seu pleno significado, se eu os compreendia corretamente, caíram sobre mim como um suor frio. Recuperei a minha voz, mas insegura.

Por que não continua a fazer isso pessoalmente?

Ele sorriu para o fogo e vi outra vez aquele lampejo de um rosto diferente o cão, o lobo.

Vou ter outras coisas a que dar atenção agora. O mundo está a mudar e pretendo mudar com ele. Talvez em breve não precise mais desta forma e mostrou com um gesto lento da mão a sua elegância medieval, a grande força letal dos seus membros para realizar as minhas ambições. Mas a biblioteca é-me preciosa e gostaria de a ver crescer. Além disso, há já algum tempo que acho que está cada vez menos segura aqui. Vários historiadores quase a encontraram, e você mesmo tê-la-ia encontrado se eu o tivesse deixado mais tempo entregue aos seus próprios recursos. Mas eu precisava de si aqui com urgência. Pressinto um perigo que se aproxima, e a biblioteca tem de ser catalogada antes de ser levada daqui.

Ajudou-me, por um momento, fingir outra vez que estava a sonhar, e perguntei:

Para onde vai levá-la? E a mim juntamente com ela, podia ter acrescentado.

Para um antigo lugar, mais velho ainda que este, do qual tenho excelentes lembranças. Um lugar remoto, mas próximo das grandes cidades modernas, onde posso ir e vir com facilidade. Vamos instalar a biblioteca, e vou ampliá-la imensamente olhou para mim com uma espécie de confiança que poderia ser afeição num rosto humano. Então levantou-se, com os seus movimentos vigorosos, peculiares.

Já conversamos o suficiente por uma noite vejo que está cansado. Vamos utilizar estas horas para ler um pouco, como costumo fazer, e depois vou-me embora. Quando amanhecer, deve pegar no papel e nas canetas que vai encontrar junto da prensa e começar o seu catálogo. Os meus livros já estão separados por categorias, em vez de séculos ou décadas. Depois verá. Há uma máquina de escrever, também, que providenciei para si. Pode querer compilar o catálogo em Latim, mas deixo isso ao seu critério. E, claro, tem toda a liberdade, agora e em qualquer ocasião, para ler o que desejar.

Com isto, afastou-se da cadeira e escolheu um livro em cima da mesa, depois voltou a sentar-se com ele. Tive receio de não fazer o mesmo e peguei no primeiro livro que encontrei. Era uma das primeiras edições de O Príncipe, de Maquiavel, acompanhado de uma série de discursos sobre moral que eu nunca vira nem ouvira falar antes. Não consegui começar a decifrá-lo, no estado de espírito em que me encontrava, e fiquei a olhar para as letras, ou virava uma página ao acaso. Drácula parecia profundamente concentrado no seu livro. Lançando-lhe um olhar rápido, perguntava a mim próprio como é que ele se habituara àquela existência noturna, subterrânea, a vida de um estudioso, depois de uma vida inteira de batalhas e de ação.

Finalmente, levantou-se e pôs o livro de lado, silenciosamente. Sem dizer palavra, entrou na escuridão da grande sala, e deixei de poder distinguir as suas formas. Então, ouvi um rangido seco, como o de um animal a andar em cima de terra solta, ou de um fósforo a ser riscado, embora nenhuma luz aparecesse, e senti-me imensamente sozinho. Apurei os ouvidos, mas não consegui saber para que lado ele fora. Não iria banquetear-se comigo naquela noite, pelo menos. Perguntei-me, temeroso, com que objetivo estaria a poupar-me, quando poderia ter feito de mim seu servo muito mais depressa e ao mesmo tempo saciado a sua sede. Fiquei algumas horas sentado na minha cadeira, levantando-me de vez em quando para esticar o meu corpo dolorido. Não me atrevi a dormir enquanto era noite, mas sem querer devo ter dormitado um pouco antes do alvorecer, porque acordei de repente sentindo uma mudança no ar, embora nenhuma luz penetrasse naquela câmara sombria, e vi o vulto de Drácula envolto no seu manto aproximando-se da lareira.

Bom dia disse ele, em voz baixa, e encaminhou-se para a parede escura onde ficava o meu sarcófago. Pusera-me de pé, impelido pela sua presença. Então, mais uma vez, deixei de o ver e um profundo silêncio encheu-me os ouvidos.

Muito tempo depois, peguei na minha vela e voltei a acender o candelabro, assim como algumas velas que encontrei em candelabros fixos nas paredes. Em cima das muitas mesas, descobri candeeiros de cerâmica ou pequenas lamparinas de ferro, e acendi também alguns deles. O fato de haver mais iluminação foi um alívio para mim, mas perguntei a mim mesmo se veria a luz do dia outra vez, ou se já teria iniciado uma eternidade de trevas e chamas tremeluzentes de velas, isto por si só estendia-se à minha frente como uma versão do inferno. Pelo menos, podia ver agora um pouco mais da sala; era muito funda em todas as direções e as paredes estavam revestidas de grandes armários e prateleiras. Por toda aparte via livros, caixas, rolos de pergaminhos, manuscritos, as pilhas e filas da vasta coleção de Drácula. Ao longo de uma parede, percebi as formas indistintas de três sarcófagos. Aproximei-me com a minha luz. Os dois menores estavam vazios um deles devia ter sido aquele em que eu acordara.

Então, vi o maior sarcófago de todos, um grande túmulo mais majestoso que tudo o resto; imenso à luz das velas, e de nobres proporções. Num dos lados, havia apenas uma palavra, escrita em caracteres latinos: DRÁCULA. Ergui a vela e olhei para dentro, quase contra a minha vontade. O grande corpo jazia ali, inerte. Pela primeira vez, via com clareza o rosto fechado, cruel, e fiquei a olhar para ele apesar da repulsa. O cenho estava ligeiramente franzido como se um mau sonho o perturbasse, os olhos abertos e fixos, de tal modo que parecia mais morto do que a dormir, a pele de um amarelado cor de cera, as longas pestanas negras imóveis, os traços fortes, quase bonitos, translúcidos Um emaranhado de comprido cabelo escuro caía-lhe em torno dos ombros, enchendo os lados do sarcófago. O mais impressionante para mim era o colorido vivo das suas faces e lábios, e a aparência saciada que o rosto e o corpo não tinham à luz da lareira. Ele poupara-me por algum tempo, era verdade, mas lá fora, na noite, arranjara maneira de se satisfazer. A pequena mancha de sangue desaparecera dos seus lábios; agora, vicejavam, cor de rubi, sob o bigode escuro. Parecia tão cheio de uma vida e saúde artificiais que o meu sangue gelou quando vi que não respirava o seu peito não subia nem descia um milímetro sequer. Outra coisa estranha: usava um novo conjunto de roupas, tão rico e requintado como o que eu já vira, uma túnica e botas de um vermelho intenso, um manto e uma boina de veludo púrpura. O manto estava um pouco gasto nos ombros, o chapéu ostentava uma pluma castanha. A gola faiscava de jóias.

Fiquei a olhar para ele até a estranheza da visão quase me fazer desfalecer, e recuei um passo para tentar organizar os meus pensamentos. Ainda era muito cedo eu dispunha de horas até ao pôr do Sol. Antes de mais nada, iria procurar uma forma de fugir e depois um meio de destruir a criatura enquanto ela dormia, para poder fugir imediatamente, fosse ou não bem sucedido. Segurei a minha luz com firmeza. Não é preciso dizer que esquadrinhei durante mais de duas horas a grande sala de pedra sem encontrar uma única saída. Numa das extremidades, do lado oposto à lareira, havia uma grande porta de madeira com uma tranca de ferro, que empurrei, e puxei até ficar exausto e dolorido. Não se desviou um milímetro; de fato, acredito que estivesse fechada há muitos anos talvez séculos. Não havia outras formas de saída nenhuma outra porta, túnel, ou pedra solta, ou abertura de qualquer tipo. Não havia janelas, sem dúvida, e tinha certeza de que nos encontrávamos num subterrâneo bastante fundo. O único nicho nas paredes era aquele onde estavam os três sarcófagos, e, também lá, as pedras não saíam do lugar. Foi um tormento para mim examinar aquela parede diante do rosto parado de Drácula com os seus enormes olhos abertos; mesmo que os olhos nunca se mexessem, eu sentia que deviam ter um poder secreto de vigiar e amaldiçoar.

Sentei-me de novo junto ao fogo para recuperar as minhas forças que se esvaíam. O lume nunca estivera tão baixo, reparei, estendendo as mãos por cima dele, embora consumisse lenha de verdade e produzisse um calor palpável e reconfortante. Reparei também pela primeira vez que não deitava fumo; teria estado aceso a noite inteira? Passei a mão pela cara, para me aquecer. Precisava da mais ínfima parcela da minha saúde mental. Na verdade naquele momento, tomei uma decisão firme, empenhar-me-ia em manter intactas a minha mente e a minha fibra moral até ao meu último momento. Seria o meu amparo, o último que merestava.

Quando me recompus, comecei a minha busca outra vez, sistematicamente, procurando uma forma possível de destruir o meu monstruoso anfitrião. Se o conseguisse, evidentemente, morreria de qualquer maneira sozinho aqui, sem escapatória, mas ele nunca mais sairia desta câmara para se lançar como uma ave de rapina sobre o mundo exterior. Pensei fugazmente, e não pela primeira vez, no conforto do suicídio mas não podia permitir-me isso. Já estava em risco de me tornar igual a Drácula, e a lenda afirmava que qualquer suicida pode tornar-se um morto-vivo mesmo sem a contaminação adicional que eu já recebera, uma lenda cruel, mas ainda assim eu tinha de levá-la em conta. Esse caminho estava fechado para mim. Investiguei cada recanto e cada fenda da sala, abrindo gavetas e caixas, verificando prateleiras, segurando a vela bem alto. Não era provável que o astucioso príncipe tivesse deixado alguma arma que pudesse ser usada contra ele, mas eu tinha de procurar. Não encontrei nada, nem um pedaço de madeira que pudesse afiar e transformar numa estaca. Quando tentei puxar um toro de lenha da lareira, as labaredas reanimaram-se subitamente, queimando-me a mão. Fiz a tentativa diversas vezes, sempre com o mesmo resultado demoníaco.

Por fim, voltei ao grande sarcófago central, temendo o último recurso que havia ali: a adaga que o próprio Drácula usava no cinto. A sua mão marcada por cicatrizes estava fechada no punho da arma. A adaga podia muito bem ser de prata, e nesse caso enterrá-la-ia no coração dele, se conseguisse tirar-lha do corpo. Sentei-me por um momento para reunir coragem para esse esforço e para superar a minha aversão. Então levantei-me e pus a mão com cuidado perto da adaga, segurando a vela bem alto na outra mão. O meu leve toque não causou nenhuma palpitação de vida no rosto rígido, constatei, embora a crueldade da expressão, aprofunda contração do nariz parecessem intensificar-se. Mas descobri, para meu pavor, que a mão estava fechada sobre a adaga por algum motivo. Eu teria de a abrir à força para tirar a adaga. Coloquei a minha mão sobre a de Drácula e a sensação foi tão medonha que não quero descrevê-la aqui, nem que seja só para mim. A mão dele estava fechada como uma pedra sobre o punho da adaga. Eu não conseguia abri-la nem fazê-la mexer-se; seria o mesmo que tentar arrancar uma adaga de mármore da mão de uma estátua. Os olhos mortos pareceram acender-se de ódio. Lembrar-se-ia daquilo mais tarde, ao acordar? Caí para trás, exausto e enojado para lá das minhas forças, e sentei-me outra vez no chão durante algum tempo com a minha vela.

Por fim, não vendo possibilidade de sucesso para os meus planos, decidi agir de outra maneira. Primeiro, tentaria dormir um pouco, já que devia ser perto do meio-dia, no máximo, para poder acordar muito antes de Drácula, e para que ele não acordasse primeiro e me encontrasse a dormir. Assim fiz durante uma hora ou duas, creio tenho de encontrar uma maneira melhor de calcular ou medir o tempo neste vácuo, deitando-me diante da lareira com o casaco dobrado sob a cabeça. Nada me teria convencido a voltar para dentro daquele sarcófago, mas consegui receber algum conforto do calor das pedras da lareira sob o meu corpo doído.

Quando acordei, fiquei atento aos sons, mas a câmara estava mortalmente silenciosa. Encontrei a mesa próxima da minha cadeira novamente abastecida com uma saborosa refeição, embora Drácula ainda permanecesse no mesmo estado de paralisia dentro da sua tumba. Então, fui procurar a máquina de escrever que vira mais cedo. Aqui estou a escrever desde então, o mais rapidamente possível, para registrar tudo o que observei. Desta maneira, reencontrei também uma certa medida de tempo, pois conheço o ritmo do meu trabalho de dactilografia e sei quantas páginas posso fazer numa hora. Estou agora a escrever estas últimas linhas à luz de uma vela, apaguei as outras para as economizar. Estou faminto e enregelado, na fria umidade distante do lume. Agora vou esconder estas páginas, comer alguma coisa e dedicar-me ao trabalho que Drácula me determinou, para que ele me encontre ocupado nisso quando acordar. Amanhã vou tentar escrever mais, se ainda estiver vivo e ainda me sentir suficientemente eu mesmo para o fazer.

 

Segundo Dia

Depois de ter escrito as minhas notas anteriores, dobrei as páginas e meti-as atrás de um armário próximo, de onde posso tirá-las outra vez e onde não são visíveis de ângulo nenhum. Então, peguei numa vela nova e avancei lentamente por entre as mesas. Haveria dezenas de milhares de livros na sala grande, calculei talvez centenas de milhares, contando com todos os rolos de pergaminho e outros manuscritos. Estavam não apenas sobre as mesas, mas em pilhas dentro dos pesados armários antigos e ao longo das paredes em prateleiras toscas. Livros medievais pareciam estar misturados com magníficos fólios renascentistas e publicações modernas. Encontrei um antigo in-quarto de Shakespeare, histórias ao lado de um volume de São Tomás de Aquino. Havia obras maciças sobre alquimia do século dezesseis ao lado de um armário inteiro de rolos em escrita árabe com iluminuras otomanos, presumi, sermões puritanos sobre bruxaria, e pequenos volumes de poesia do século dezenove, e longos trabalhos sobre filosofia e criminologia do nosso século. Não, não havia um padrão de tempo, mas vi outro padrão a emergir claramente.

Organizar os livros como deveriam estar arrumados na coleção de História de uma biblioteca normal levaria semanas ou meses, mas, uma vez que Drácula os considerava já organizados de acordo com os seus próprios interesses, deixá-los-ia como estavam e tentaria apenas distinguir um tipo de coleção de outro. Deduzi que a primeira coleção começava na parede da câmara perto da porta inamovível e espalhava-se por três armários e duas grandes mesas: poderia classificá-la como a arte de governar e estratégia militar.

Ali encontrei mais Maquiavel, em extraordinários fólios de Pádua e de Florença. Encontrei uma biografia de Aníbal escrita por um inglês do século dezoito e um manuscrito grego enrolado, datando talvez da época da Biblioteca de Alexandria: Heródoto, sobre as guerras de Atenas. Comecei a sentir um novo arrepio à medida que ia de um livro para outro, de um manuscrito para outro, cada um mais espantoso do que o anterior. Havia uma primeira edição muito folheada de Mein Kampf e um diário em francês manuscrito, manchado aqui e ali com um bolor castanho que parecia, pelas datas iniciais e relatos, ser uma Crônica do reinado do Terror do ponto de vista de um funcionário do governo. Teria de examiná-lo melhor mais tarde aparentemente, o autor não mencionava o nome em lugar algum. Encontrei um grande volume sobre as táticas das primeiras campanhas militares de Napoleão, impresso enquanto ele estava em Elba, segundo os meus cálculos. Numa caixa em cima de uma das mesas, dei com um texto datilografado no alfabeto cirílico num papel amarelado; o meu Russo é rudimentar, mas tinha a certeza, pelos cabeçalhos, de que se tratava de um memorando interno de Stalin para alguém do exército russo. Não fui capaz de perceber muita coisa, mas continha uma longa lista de nomes russos e polacos.

Houve alguns livros que não consegui identificar; houve também muitos livros e manuscritos cujos autores ou temas eram completamente novos para mim. Tinha iniciado uma lista de tudo o que pude identificar, fazendo uma divisão aproximada por século, quando senti o frio aumentar, como um vento onde não havia vento, e, ao levantar a cabeça, vi a estranha figura a poucos metros de distância, do outro lado de uma das mesas.

Trajava as esplêndidas roupas em tons de vermelho e violeta com as quais o vira dentro do sarcófago e estava maior e mais sólido do que eu me lembrava da noite anterior. Esperei, sem fala, para ver se me atacaria de imediato será que se lembrava da minha tentativa de lhe tirar a adaga? Mas ele inclinou a cabeça ligeiramente, como se me cumprimentasse.

Vejo que iniciou o seu trabalho. Com certeza, deve ter perguntas a fazer-me. Primeiro, vamos tomar o pequeno-almoço e depois falaremos sobre as minhas coleções.

Vi uma centelha no seu rosto, na meia-luz do salão, talvez um lampejo do brilho dos seus olhos. Seguiu à minha frente com o seu passo inumano, mas imperioso, na direção da lareira, e lá encontrei de novo comida quente e bebidas, incluindo um chá fumegante que trouxe algum alívio ao meu corpo gelado. Drácula sentou-se contemplando o fogo sem fumo, a cabeça ereta sobre os ombros altivos. Sem querer, pensei na decapitação do seu cadáver sobre este ponto, todas as narrativas da sua morte coincidiam. Como é que ele conservava a cabeça agora, ou era tudo uma ilusão? A gola da sua bela túnica subia-lhe até ao queixo, e os caracóis escuros caíam à volta dela até aos ombros.

Agora disse ele, vamos dar um breve passeio. Acendeu outra vez todas as velas e eu segui-o de uma mesa para outra enquanto ele acendia as lanternas pousadas nelas. Vamos ter luz suficiente para ler. Não gostei da maneira como a luz incidia no seu rosto quando se curvava sobre cada nova chama, e procurei concentrar-me nos títulos dos livros em vez de olhar para ele. Veio pôr-se ao meu lado quando parei diante dos rolos de pergaminhos e livros em escrita árabe que anteriormente me tinham chamado a atenção. Para meu alívio, ainda estava a cerca de um metro e meio de distância, mas um cheiro acre emanava da sua presença e lutei contra uma leve tontura. Tenho de manter as minhas faculdades mentais, refleti; não havia maneira de prever o que a noite traria.

Vejo que encontrou uma das minhas preciosidades disse ele. Havia uma nota de satisfação na sua voz fria. Estes são os meus bens otomanos. Alguns documentos são muito antigos, dos primeiros dias desse império diabólico, e esta prateleira aqui contém volumes da sua última década. E sorriu, à luz vacilante. Não pode imaginar a satisfação que foi para mim ver a civilização deles morrer. A sua fé não está morta, é claro, mas os sultões foram-se para sempre, e eu sobrevivi-lhes. Pensei por um instante que fosse dar uma gargalhada, mas as suas palavras seguintes foram proferidas em tom grave. Aqui estão grandes livros feitos para o sultão sobre as suas muitas terras. Aqui e tocou na ponta de um rolo de pergaminho está a história de Mehmed, que ele apodreça no inferno, por um historiador cristão que se tornou um seu adulador. Que também apodreça no inferno. Tentei encontrar pessoalmente esse historiador, mas morreu antes que eu chegasse até ele. Aqui estão os relatos sobre as campanhas de Mehmed pelos seus próprios bajuladores, e sobre a queda da Grande Cidade. Você não lê árabe?

Muito pouco confessei.

Ah parecia divertido. Tive a oportunidade de aprender a língua e a escrita deles quando fui seu prisioneiro. Sabe que estive cativo lá?

Assenti com a cabeça, tentando não olhar para ele.

Sim, o meu próprio pai entregou-me ao pai de Mehmed, como penhor de que não declararia guerra ao Império. Imagine, Drácula, um peão nas mãos do infiel. Não perdi o meu tempo: aprendi tudo o que foi possível sobre eles para poder ultrapassá-los a todos. Foi quando jurei fazer história, e não ser vítima dela. A voz soava tão feroz que instintivamente relanceei os olhos para ele e vi o terrível fulgor do seu rosto, o ódio, a boca sinistramente curvada sob o bigode longo. E de fato deu uma risada, e o som foi igualmente horripilante. Triunfei, e eles foram-se. Pousou a mão numa capa de couro finamente trabalhada. O sultão tinha tanto medo de mim que fundou uma ordem entre os seus cavaleiros para me perseguir. Ainda existem uns quantos, algures em Tsarigrado, um aborrecimento. Mas são cada vez menos, as suas fileiras reduzem-se a nada, enquanto os meus servos se multiplicam pelo globo. Endireitou o corpo vigoroso. Venha. Vou mostrar-lhe os meus outros tesouros, e tem de dizer-me como se propõe catalogá-los a todos.

Conduziu-me de uma seção para outra, apontando algumas raridades especiais, e verifiquei que a minha conjectura sobre os padrões da sua coleção estava correta. Ali estava um grande armário cheio de manuais de tortura, alguns datando do mundo antigo. Iam desde as prisões da Inglaterra medieval, passando pelas câmaras de tortura da Inquisição até às experiências do Terceiro Reich, Algumas obras da Renascença continham xilogravuras mostrando instrumentos de tortura, outras, diagramas do corpo humano. Outra parte da sala era constituída pelos anais das heresias religiosas para as quais muitos daqueles manuais de tortura haviam sido usados. Um outro canto era dedicado à alquimia, outro à feitiçaria, outro à filosofia do gênero mais inquietante.

Drácula parou diante de uma grande estante e pousou a mão sobre ela de modo afetuoso.

Esta tem um especial interesse para mim, e terá para si também, penso. Estas obras são biografias minhas.

Cada um dos livros estava de alguma forma relacionado com a sua vida. Havia obras de historiadores bizantinos e otomanos algumas delas originais muito raros e as suas muitas reimpressões através dos tempos. Havia opúsculos medievais da Alemanha, Rússia, Hungria e Constantinopla, todos documentando os seus crimes. Muitos deles nunca os tinha visto nem os vira referidos no decorrer da minha pesquisa, e senti uma onda irracional de curiosidade antes de me lembrar que já não tinha motivo, nesta altura, para completar a pesquisa. Havia também numerosos volumes sobre folclore, a partir do século dezessete, que se referiam à lenda dos vampiros — achei estranho e terrível que os incluísse tão abertamente entre as suas próprias biografias. Apoiou a mão larga numa das primeiras edições do romance de Bram Stoker e sorriu, mas nada disse. Depois passou em silêncio para outra seção.

Isto é de especial interesse para si também disse. São obras de História sobre o seu século, o século vinte. Um ótimo século, aguardo ansioso pelo seu final. Na minha época, um príncipe só conseguia eliminar os elementos indesejáveis um de cada vez. Vocês fazem isso com um alcance infinitamente maior. Pense, por exemplo, no aperfeiçoamento que houve desde o maldito canhão que derrubou as muralhas de Constantinopla até ao fogo divino que o seu país de adoção lançou contra as cidades japonesas há alguns anos. E esboçou uma vénia, cortês, congratulatório. Já leu muitas dessas obras, professor, mas talvez vá examiná-las agora sob uma nova perspectiva.

Finalmente, convidou-me a sentar novamente junto ao fogo, e encontrei mais chá quente à minha espera. Quando estávamos ambos a descansar nas nossas cadeiras, virou-se para mim.

Daqui a pouco, devo alimentar-me também disse, com calma. Mas antes, vou fazer-lhe uma pergunta. As minhas mãos começaram a tremer contra a minha vontade. Até então, eu tentara falar com ele o mínimo possível sem despertar a sua raiva. Você desfrutou da minha hospitalidade, nas condições em que posso oferecê-la aqui, e da minha confiança ilimitada nos seus talentos. Vai desfrutar da vida eterna que só uns poucos seres podem ambicionar. Tem livre acesso àquele que é certamente o melhor arquivo do gênero à face da terra Estão à sua disposição obras raras que, sem dúvida, não podem ser vistas em nenhum outro lugar. Tudo isto é seu. Mexeu-se na sua cadeira, sem conseguir manter o seu grande corpo morto-vivo completamente parado muito tempo. Além do mais, você é um homem de uma sensibilidade e imaginação sem paralelo, de grande rigor e de profunda capacidade de julgamento. Tenho muito a aprender com os seus métodos de pesquisa, a sua síntese das fontes, a sua imaginação. Foi por todas essas qualidades, bem como pela grande erudição que delas resulta, que o trouxe para aqui, para o depósito dos meus tesouros.

Fez uma nova pausa. Observei o seu rosto, incapaz de desviar o olhar. Ele contemplava o fogo.

Com a sua inflexível honestidade, pode ver qual é a lição da História disse. A História ensinou-nos que a natureza do homem é má, de uma maldade sublime. O bem não é aperfeiçoável, o mal sim Por que não pôr a sua mente privilegiada ao serviço do que é aperfeiçoável? Peço-lhe, meu amigo, que se junte a mim por vontade própria na minha pesquisa. Se o fizer, vai evitar uma grande angústia para si mesmo e vai poupar-me um considerável aborrecimento. Juntos, vamos fazer o trabalho do historiador avançar para lá de qualquer coisa que o mundo alguma vez já viu. Não há pureza como a pureza dos sofrimentos da História. Terá o que todo o historiador quer: a história será realidade para si. Limparemos as nossas mentes com sangue.

Então concentrou todo o fluxo do seu olhar em mim, os olhos resplandecentes de um antigo conhecimento, os lábios entreabertos. Teria sido um rosto refinadamente inteligente, ocorreu-me de repente, se não estivesse deformado por tanto ódio. Lutei para não fraquejar, para não concordar com ele no mesmo instante e atirar-me de joelhos aos seus pés, para não me colocar sob o seu poder. Era um líder, um príncipe. Não tolerava desobediências. Invoquei o amor por tudo o que tivera na minha vida e pronunciei a palavra com a maior firmeza que pude:

Nunca.

O seu rosto inflamou-se, pálido, as narinas e os lábios contraídos.

Vai morrer aqui, professor Rossi disse, como se tentasse controlar a voz. Nunca vai sair vivo destas câmaras, embora vá deixá-las numa nova vida. Não seria melhor poder escolher?

Não respondi o mais suavemente que pude. Ele levantou-se, ameaçador, e sorriu.

Então, vai trabalhar para mim contra a sua vontade declarou.

Uma escuridão começou a tomar forma diante dos meus olhos e agarrei-me interiormente à minha reserva de... de quê? A minha pele começou a formigar e apareceram estrelas à minha frente nas paredes indistintas do aposento. Quando ele se aproximou, vi o seu rosto sem máscara, uma visão tão hedionda que não consigo lembrar-me dela agora, embora tenha tentado. Depois, perdi a consciência por longo tempo.

Acordei no meu sarcófago, no escuro, e pensei de novo que fosse o primeiro dia, o meu primeiro despertar ali, até que me apercebi de que desta vez tinha sabido imediatamente onde estava. Sentia-me muito fraco, muito mais fraco desta vez, e a ferida no meu pescoço sangrava e latejava. Tinha perdido sangue, mas não tanto que me incapacitasse completamente. Depois de algum tempo consegui movimentar-me e sair, a tremer, da minha prisão. Lembrei-me do momento em que perdera os sentidos. À luz das velas que restavam, vi que Drácula dormia novamente na sua grande tumba. Os olhos estavam abertos, vidrados, os lábios vermelhos, a mão fechada na adaga virei-lhe as costas, imerso no mais profundo horror de corpo e alma, e fui agachar-me junto ao fogo e tentar comer a refeição que lá encontrei.

Tudo indica que pretende destruir-me gradualmente, talvez deixar-me em aberto até ao último momento a opção que me apresentou ontem à noite, para que eu possa ainda trazer-lhe todo o poder de uma mente que trabalha de boa vontade. Tenho agora apenas um propósito não, dois: morrer com o máximo de mim intacto, na esperança de que isso sirva mais tarde para refrear um pouco os atos execráveis que cometerei quando for um morto-vivo, e ficar vivo tempo suficiente para registrar aqui tudo o que puder, embora pense que provavelmente estes papéis se transformarão em pó sem ser lidos. Estas ambições são agora o meu único sustentáculo. É um destino muito para lá de qualquer coisa pela qual pudesse chorar.

 

Terceiro Dia

Já não estou absolutamente certo do dia em que estou; começo a sentir que podem ter passado mais dias, ou que sonhei durante várias semanas, ou que o meu rapto ocorreu há um mês. Seja como for, esta é a terceira vez que escrevo. Passei o dia a examinar a biblioteca, não com a intenção de aceder aos desejos de Drácula para que a catalogue, mas para aprender o que puder sobre ela que possa ser benéfico a alguém, mas é inútil. Vou apenas assinalar que descobri hoje que dois dos generais de Napoleão foram assassinados durante o seu primeiro ano como imperador, mortes essas que nunca vi registradas em sítio algum. "Também analisei uma breve obra de Anna Comnena, uma historiadora bizantina, intitulada A Tortura Encomendada pelo Imperador para o Bem do Povo se o meu Grego estiver correto. Encontrei um volume fabulosamente ilustrado da cabala, talvez oriundo da Pérsia, na seção de alquimia. Entre as prateleiras da coleção sobre heresias, deparei com um Evangelho de S. João da época bizantina, mas há qualquer coisa de errado no começo do texto é sobre as trevas, não sobre a luz. Vou ter de examiná-lo com cuidado. Encontrei também um livro inglês de 1521 está datado chamado Filosofia do Terror, uma obra a respeito dos Cárpatos sobre a qual tinha lido mas que pensava já não existir.

Estou demasiado cansado e alquebrado para estudar estes textos como devia ou queria, mas, sempre que vejo algo novo ou extravagante, agarro-o com uma urgência desproporcionada ao meu total desamparo aqui. Agora preciso dormir um pouco outra vez, enquanto Drácula também dorme, para poder enfrentar a minha próxima provação mais repousado, aconteça o que acontecer.

 

Quarto Dia?

Sinto que o meu espírito começa também a desintegrar-se; por mais que tente, não consigo manter uma noção satisfatória do tempo ou dos meus esforços para examinar o conteúdo da biblioteca. Não só me sinto fraco mas também doente, e hoje tive uma sensação que trouxe um novo sofrimento ao que resta do meu coração. Estava a olhar para uma obra no incomparável arquivo de Drácula sobre a tortura e encontrei, num excelente in-quarto francês, o projeto de uma nova máquina destinada a separar instantaneamente cabeças dos respectivos corpos. Havia uma gravura a ilustrar isto as partes da máquina, o homem em trajes elegantes cuja cabeça teoricamente acabara de ser separada do corpo. Enquanto olhava para o desenho, senti não apenas repugnância pela sua finalidade, não apenas admirei o maravilhoso estado em que se encontrava o livro, mas também senti um desejo súbito de assistir à cena verdadeira, de ouvir os gritos da multidão e ver o sangue jorrar sobre aquela gola de renda e aquele casaco de veludo. Qualquer historiador conhece a ânsia de ver a realidade do passado, mas isto era qualquer coisa de novo para mim, uma espécie diferente de avidez. Atirei o livro para o lado, apoiei a cabeça latejante em cima da mesa e chorei pela primeira vez desde o início do meu encarceramento. Há anos que não chorava, de fato, desde o funeral da minha mãe. O sal das minhas lágrimas reconfortou-me, de tão vulgar que era.

 

Dia

O monstro dorme, mas não falou comigo ontem, durante todo o dia, exceto para perguntar como vai o catálogo e para examinar o meu trabalho durante alguns minutos. Neste momento estou demasiado cansado para continuar a tarefa, ou sequer para datilografar muito. Vou sentar-me em frente do fogo e tentar reunir um pouco do meu velho eu.

 

Dia

A noite passada ele sentou-se outra vez comigo diante do fogo, como se ainda mantivéssemos um diálogo civilizado, e contou-me que vai mudar a biblioteca em breve, mais cedo do que pretendia originalmente, porque se aproxima alguma coisa que a ameaça.

Esta será a sua última noite, e depois vou deixá-lo aqui por algum tempo disse, mas virá até mim quando eu o chamar. Nessa altura, poderá retomar o seu trabalho num lugar novo e mais seguro. Pense o mais que puder em quem vai trazer-me, para nos ajudar na nossa tarefa. Para já, em todo o caso, vou deixá-lo onde não será encontrado. Sorriu, o que me toldou a visão, e tentei desviar a vista para o fogo. — Tem sido muito obstinado. Talvez seja melhor disfarçá-lo de relíquia sagrada.

Não tinha qualquer desejo de lhe perguntar o que queria dizer com isso.

Portanto, é só uma questão de tempo antes que ele acabe com a minha vida mortal. Agora, toda a minha energia vai ser canalizada para me fortalecer para os últimos momentos. Tenho o cuidado de não pensar nas pessoas que amei, na esperança de que assim pense menos nelas no meu próximo e amaldiçoado estado. Vou esconder este registro dentro do livro mais maravilhoso que aqui encontrei uma das poucas obras da biblioteca que não me provoca um prazer sinistro — e depois vou esconder também o livro, para que deixe de pertencer a este arquivo. Se ao menos eu pudesse entregar-me ao pó com ele. Sinto o crepúsculo a aproximar-se, algures no mundo lá fora onde luz e trevas ainda existem, e vou usar toda a energia que me resta para me manter eu próprio até ao último momento. Se algum bem existe na vida, na História, no meu próprio passado, invoco-o agora. Invoco-o com toda a paixão com que vivi.

 

Helen tocou na testa do pai com dois dedos, como se o abençoasse. Lutava contra os soluços.

— Como é que podemos tirá-lo daqui? Quero enterrá-lo.

— Não há tempo — disse eu, com amargura. — Ele preferia que saíssemos vivos daqui, tenho certeza.

Tirei o meu casaco e abri-o suavemente por cima dele, cobrindo-lhe o rosto. A tampa de pedra era demasiado pesada para voltar a ser posta no seu lugar. Helen pegou na sua pequena pistola, verificando-a com cuidado mesmo no meio da sua emoção.

— A biblioteca — sussurrou. — Precisamos encontrá-la imediatamente. E não ouviste qualquer coisa agora mesmo?

Fiz que sim com a cabeça.

— Acho que ouvi, mas não sei de onde veio o ruído.

Ficamos imóveis, atentos, à escuta. O silêncio pairava imperturbado acima de nós. Helen estava a tentar encontrar alguma coisa nas paredes, apalpando-as, com a pistola na outra mão. A luz das velas era imprecisa demais, frustrante. Fomos de um lado para o outro, pressionando, batendo. Não havia reentrâncias, nem pedras salientes, nenhuma possível abertura, nada que parecesse suspeito.

— Já deve estar escuro lá fora — murmurou Helen.

— Eu sei. Temos provavelmente só mais dez minutos, e a partir daí não devíamos estar aqui, tenho certeza absoluta.

Percorremos o pequeno aposento de novo, verificando cada centímetro. O ar estava frio, sobretudo agora que já não tinha o meu casaco, mas o suor começou a escorrer-me pelas costas.

— Talvez a biblioteca fique noutra parte da igreja, ou nas fundações.

— Tem de estar completamente escondida, provavelmente debaixo do chão — sussurrou Helen. — De outra maneira, alguém já teria conhecimento dela há muito tempo. Além disso, se o meu pai está nesta tumba... — não terminou a frase, mas aquela era a pergunta que me tinha atormentado mesmo no primeiro momento de choque, ao ver Rossi, onde estava Drácula?

— Não há aqui alguma coisa fora do comum? — Helen olhava para o teto baixo e abobadado, tentando alcançá-lo com as pontas dos dedos.

— Não vejo nada — mas uma idéia repentina fez-me tirar uma vela do suporte e agachar-me. Helen imitou-me, ligeira.

— Isso mesmo — murmurou.

Eu estava a tocar no dragão esculpido na parte vertical do degrau mais baixo. Tinha passado um dedo sobre ele de leve durante a nossa primeira visita à cripta; desta vez, empurrei-o com força, usando todo o meu peso. Estava firme na parede. Mas as mãos sensíveis de Helen tatearam nas pedras à volta e encontraram uma pedra solta; veio simplesmente na mão dela, como um dente, do sítio onde estava encaixada junto ao dragão entalhado. Uma pequena abertura escura apareceu. Introduzi a mão lá dentro e rodei-a em volta, mas só encontrei espaço vazio. Helen fez a dela deslizar, entretanto, e introduziu-a na direção do dragão, atrás do entalhe.

— Paul! — exclamou, baixinho.

Segui a indicação dela no escuro. Havia ali uma maçaneta, uma grande maçaneta fria de ferro, e, quando a empurrei, o dragão deslocou-se facilmente para fora do seu espaço sob o degrau sem afetar nenhuma das outras pedras à sua volta nem o degrau que ficava por cima. Era uma peça habilmente cinzelada, víamos agora, com uma maçaneta de ferro em forma de um animal com chifres presa nela, presumivelmente para que se pudesse fechar a abertura atrás de si ao descer os estreitos degraus de pedra que se abriam diante de nós. Helen pegou numa segunda vela e eu peguei nos fósforos. Entramos de gatas lembrei-me do aspecto de Rossi, arranhado e contuso, com as roupas rasgadas, e imaginei que tivesse sido arrastado mais de uma vez através daquela abertura, mas logo a seguir conseguimos ficar de pé nos degraus.

O ar que veio ao nosso encontro era frio, úmido e extremamente desagradável, e esforcei-me por controlar um tremor ao entrarmos, e agarrar firmemente Helen, que também tremia, durante a descida íngreme. Ao fim de quinze degraus, havia um corredor infernalmente escuro, ainda que a luz das nossas velas revelasse candelabros de ferro presos no alto das paredes, como se um dia aquele lugar tivesse sido bem iluminado. No fim do corredor mais uma vez, pareceu-me que tinha um comprimento de quinze passos, e tivera o cuidado de os contar, havia uma pesada porta de madeira visivelmente muito velha, já a lascar-se na parte de baixo, e outra vez aquela maçaneta lúgubre, uma criatura com longos chifres trabalhados em ferro. Senti, mais do que vi, Helen levantar a pistola. A porta estava firmemente trancada, mas, olhando de perto, descobri que a tranca ficava do lado em que nos encontrávamos. Fiz força com todo o meu peso por baixo da pesada tranca e depois empurrei e abri a porta, com um medo lento que quase me derretia os ossos.

Lá dentro, a luz das nossas velas, embora fraca, projetou-se numa enorme câmara. Havia mesas perto da porta, compridas mesas de uma solidez antiga, e estantes vazias. O ar era surpreendentemente seco depois do frio do corredor, parecendo ter alguma ventilação secreta ou ter sido escavado numa funda camada protegida da terra. Paramos, agarrados um ao outro, e ficamos à escuta, mas não havia qualquer som. Desejei ardentemente que pudéssemos ver para lá da escuridão. A próxima coisa que a nossa luz alcançou foi um candelabro com vários braços cheio de velas meio gastas, que acendi. Iluminou vários armários altos e eu olhei cautelosamente para dentro de um deles. Estava vazio.

— Isto é a biblioteca? — perguntei. — Não há aqui nada.

Ficamos parados de novo, à escuta, e a pistola de Helen reluziu com o aumento da luz. Pensei que devia ter-me oferecido para lhe pegar e usá-la se fosse preciso, mas nunca tinha pegado numa arma e ela, como eu sabia muito bem, era uma atiradora exímia.

— Paul, olha — apontou com a mão livre e vi o que atraíra a sua atenção.

— Helen — chamei, mas ela afastara-se.

Um segundo depois, a minha luz alcançou uma mesa que não tinha sido iluminada antes, uma grande mesa de pedra. Não era uma mesa, vi no instante seguinte, mas um altar não, não era um altar, mas um sarcófago. Havia outro junto dele, seria aquele lugar uma continuação da cripta do mosteiro, onde os abades podiam descansar em paz, longe das tochas bizantinas e das catapultas otomanas? Então, vimos mais adiante o maior sarcófago de todos. Num dos seus lados, havia uma palavra talhada na pedra: DRÁCULA. Helen levantou a pistola e eu agarrei na minha estaca. Ela avançou um passo e eu mantive-me junto dela.

Naquele momento, ouvimos uma agitação atrás de nós, à distância, barulho de passos e um atropelo de gente a correr, que quase escondeu o ligeiro ruído na escuridão atrás da tumba, o de terra seca a cair aos poucos. Precipitámo-nos ambos para a frente ao mesmo tempo e olhamos o sarcófago maior não tinha nenhuma lápide a cobri-lo e estava vazio, como os outros dois. E aquele ruído: algures nas trevas, uma pequena criatura abria caminho entre as raízes das árvores.

Helen disparou para o escuro e houve um estrondo de terra e pedras a deslocar-se, e corri nessa direção com a minha luz. O fundo da biblioteca não tinha saída, e algumas raízes saíam do teto abobadado. Num nicho na parede do fundo onde outrora talvez houvesse um ícone, vi um fio de limo negro nas pedras nuas, sangue? Uma infiltração de umidade vinda da terra?

A porta atrás de nós abriu-se com violência e Helen e eu viramo-nos ao mesmo tempo, a minha mão no braço livre dela. A luz das nossas velas juntou-se à de um forte lampião, lanternas, formas apressadas, um grito. Era Ranov, e com ele uma figura alta cuja sombra se projetou para a frente para nos engolir: Géza József, e, atrás dele, aterrorizado, o irmão Ivan. Era seguido por um burocrata baixinho, magro e rijo, vestido com um fato e chapéu escuros, com um espesso bigode negro. Havia ainda outra figura, que se movimentava com passos incertos e cujo lento avanço, apercebia-me agora, devia ter sido um grande estorvo para os demais: Stoichev. O rosto dele era uma singular mistura de medo, pena e curiosidade, e tinha uma nódoa negra na face. Os seus velhos olhos encontraram os nossos durante um longo e penoso momento, e ele mexeu os lábios, como se agradecesse a Deus por estarmos vivos.

Géza e Ranov caíram sobre nós numa fração de segundo, Ranov apontando-me um revólver e Géza apontando outro a Helen, enquanto o monge assistia a tudo, boquiaberto, e Stoichev esperava, calado e cauteloso, atrás deles. O burocrata de fato escuro mantinha-se afastado da luz.

— Largue essa arma — disse Ranov para Helen, que deixou a pistola cair no chão, obediente.

Passei o meu braço à volta dela, mas lentamente. À luz fraca das velas, os rostos deles pareciam mais do que sinistros, exceto o de Stoichev. Vi que teria arriscado um sorriso para nós se não estivesse tão assustado.

— Que raio está a fazer aqui? — perguntou Helen a Géza antes que eu a pudesse impedir.

Que raio está você a fazer aqui, minha cara? — Foi a sua única resposta. Parecia mais alto do que nunca, vestido com uma camisa e calças claras e grossas botas de caminhar. Na conferência, não me apercebera como me era antipático.

— Onde está ele? — rosnou Ranov. Olhou de mim para Helen.

— Está morto — disse eu. — Vocês vieram pela cripta. — Devem tê-lo visto.

A expressão de Ranov endureceu.

— De que é que está a falar?

Alguma coisa, um instinto qualquer que aprendera com Helen, talvez, impediu-me de falar mais.

— A quem se refere? — perguntou Helen, fria. Géza apontou melhor o revólver para ela.

— Sabe muito bem a quem me refiro, Elena Rossi. Onde está Drácula?

Isto era mais fácil de responder, e deixei Helen falar primeiro.

— Não está aqui, evidentemente — disse ela, com a sua voz mais ríspida. — Pode examinar a tumba.

Com isto, o pequeno burocrata deu um passo à frente e pareceu prestes a dizer alguma coisa.

— Fique com eles — disse Ranov a Géza. Ranov avançou com cuidado por entre as mesas, olhando em volta para tudo; era claro que nunca estivera ali antes. O burocrata de fato escuro seguia-o sem dizer uma palavra. Quando chegaram ao sarcófago, Ranov levantou a lanterna e o revólver e percorreu com os olhos o interior.

Está vazio — gritou para Géza. Dirigiu-se para os dois sarcófagos menores.

— O que é isto? Venham cá, ajudem-me.

O burocrata e o monge adiantaram-se, submissos. Stoichev aproximou-se mais devagar e vislumbrei uma luz no seu rosto enquanto olhava para as mesas vazias e para os armários. Só podia imaginar o que ele pensava daquele lugar.

Ranov examinou o interior dos sarcófagos menores.

— Vazios — disse, mal-humorado. — Ele não está aqui. Procurem na sala. — Géza já percorria a sala a passos largos, passando entre as mesas, iluminando cada uma das paredes com a lanterna, abrindo armários.

— Vocês viram-no ou ouviram-no?

— Não — respondi, mais ou menos sinceramente.

Prometi a mim mesmo que, se eles não ferissem Helen, se a deixassem partir, eu consideraria aquela excursão um sucesso. Não iria querer mais nada da vida. Também pensei, agradecido, que Rossi estava livre daquela situação.

Géza disse alguma coisa que deve ter sido um palavrão em húngaro, porque Helen quase sorriu, apesar do revólver apontado ao seu coração.

— É escusado — disse ele, depois de um momento. — A tumba da cripta está vazia e esta daqui também. E ele nunca mais vai voltar a este lugar, agora que o encontramos.

Demorei um instante a assimilar a informação. A tumba na cripta estava vazia? Então, onde estava o corpo de Rossi, que tínhamos acabado de deixar lá? Ranov dirigiu-se a Stoichev.

— Fale-nos sobre o que está aqui.

Tinham finalmente baixado as armas e puxei Helen para junto de mim, o que fez Géza lançar-me um olhar azedo, embora sem dizer nada.

Stoichev levantou a lanterna, como se estivesse à espera daquele momento. Dirigiu-se para a mesa mais próxima e bateu nela com os nós dos dedos.

— Estas mesas são de carvalho, creio — disse lentamente, — e pelo seu desenho poderiam ser medievais. — Olhou para baixo da mesa, para o encaixe de um dos pés, tamborilou os dedos num armário. — Mas não sei muito sobre mobiliário.

Todos aguardamos, em silêncio.

Géza deu um pontapé na perna de uma das mesas antigas.

— O que é que eu vou dizer ao ministro da Cultura? Aquele Valáquio pertencia-nos. Era um prisioneiro húngaro e o seu país era território nosso.

— Por que não discutimos isso quando o encontrarmos? — resmungou Ranov.

Apercebi-me subitamente de que a única língua que tinham em comum era o Inglês, e que ambos se detestavam. E descobri quem é que Ranov me fazia lembrar. Com o seu rosto de traços largos e grossos bigodes, parecia-se com as fotografias que eu tinha visto do jovem Stalin. Pessoas como Ranov e Géza só causavam danos mínimos porque tinham poderes mínimos.

— Diga à sua tia para ter mais cuidado com os telefonemas — Géza desferiu um olhar maldoso para Helen e senti-a contrair-se. — Agora, deixem esse maldito monge a tomar conta do lugar — acrescentou ele, falando com Ranov, que por sua vez deu uma ordem que fez o pobre irmão Ivan tremer.

Nesse momento, a luz da lanterna de Ranov incidiu subitamente noutra direção. Ele tinha estado a erguê-la de um lado para o outro, examinando as mesas. E a luz incidiu no rosto do pequeno burocrata vestido de escuro, com o seu chapéu austero, de pé em silêncio junto ao sarcófago vazio de Drácula. Talvez não tivesse reparado no rosto dele se não fosse a sua expressão bizarra um olhar de dor pessoal, que a lanterna de repente iluminou. Vi claramente o rosto ossudo, o bigode desleixado e o conhecido brilho dos olhos.

— Helen! — gritei. — Olha! — e ela também viu.

— O quê? — Géza virou-se para ela no mesmo momento.

— Este homem... — Helen estava assustada, — aquele homem ali... é...

— É um vampiro — declarei, sem rodeios. — Seguiu-nos desde a nossa universidade, nos Estados Unidos.

Mal eu acabara de falar, a criatura levantou voo. Teve de vir diretamente na nossa direção para sair, desviando-se de Géza, que tentou segurá-lo, e empurrando Ranov. Ranov foi mais rápido, agarrou o bibliotecário, os dois chocaram com força, depois Ranov afastou-se dele com um grito e o bibliotecário voou novamente. Ainda a poucos metros de distância, Ranov fez pontaria e disparou na direção da criatura, que não vacilou um segundo foi como se Ranov tivesse disparado para o ar. E o perverso bibliotecário desapareceu tão de repente que não tive certeza se chegara ao corredor ou se tinha desaparecido diante dos nossos olhos. Ranov correu atrás dele pela porta fora, mas voltou quase de imediato. Ficamos todos a olhar para ele; o seu rosto estava branco e, no ponto onde segurava o tecido rasgado do casaco, um fio de sangue escorria-lhe por entre os dedos.

— Que raio de coisa é esta? — exclamou com voz trémula. Géza sacudiu a cabeça.

— Meu Deus — disse, — ele mordeu-lhe. Deu um passo para trás, afastando-se de Ranov. — E eu fiquei sozinho com aquele homem várias vezes. Disse-me que sabia onde encontrar os americanos, mas nunca me disse que era...

— Claro que nunca lhe disse — interrompeu Helen, com ar de desprezo, apesar de eu tentar fazê-la calar-se. — Queria encontrar o seu senhor, seguir-nos para chegar até ele, e não matá-lo a si. Você era-lhe mais útil desta maneira. Ele deu-lhe as nossas anotações?

— Cale-se — Géza parecia estar com vontade de lhe bater, mas senti o medo e o assombro na voz dele e levei-a silenciosamente para longe.

 

— Venham — Ranov arrebanhava o grupo com o seu revólver outra vez, uma das mãos no ombro ferido. — Vocês ajudaram muito pouco. Quero-os de volta a Sofia e dentro de um avião o mais cedo possível. Têm sorte por não termos autorização para os fazermos desaparecer, seria demasiado inconveniente.

Pensei que fosse dar-nos um pontapé, como Géza fizera à perna da mesa, mas, em vez disso, fez-nos sair da biblioteca com gestos bruscos. Obrigou Stoichev a ir à frente; imaginei, consternado, o que o velho devia ter passado no decorrer daquela caçada forçada. Claramente, Stoichev não tinha querido que fôssemos seguidos; tive certeza disso assim que o vi, pela aflição no seu rosto. Teria conseguido voltar para Sofia antes que o obrigassem a dar meia volta e vir atrás de nós? Esperava que a reputação internacional de Stoichev o protegesse contra futuros maus tratos, como no passado. Mas Ranov era o pior de tudo. Provavelmente voltaria, contaminado, para as suas obrigações na polícia secreta. Gostaria de saber se Géza pretendia tomar alguma providência em relação a isso, mas o húngaro estava com uma cara tão carrancuda que não me atrevi a perguntar.

Olhei uma vez para trás, da porta, para o principesco sarcófago que ali estivera durante quase quinhentos anos. O seu ocupante podia estar em qualquer lugar agora, ou a caminho de qualquer lugar. No topo da escadaria, arrastamo-nos, um a um, através da abertura eu rezava para que nenhum daqueles revólveres disparasse e, ao sair do outro lado, vi algo de muito estranho. O relicário de S. Petko estava aberto em cima do seu pedestal. Eles deviam ter algumas ferramentas, pois tinham conseguido abri-lo onde nós não tínhamos conseguido. A lápide de mármore, por baixo do relicário, estava de novo no seu lugar e coberta com o seu pano bordado, imperturbada. Helen lançou-me um olhar desconcertado. Quando passamos pelo relicário, vi uns fragmentos de osso, um crânio lustroso tudo o que restava do mártir local.

Fora da igreja, na noite densa, havia uma confusão de carros e pessoas aparentemente, Géza chegara com uma comitiva, e dois dos homens estavam de guarda à porta da igreja. Drácula certamente não tinha fugido por ali, pensei. As montanhas elevavam-se em torno de nós, mais escuras do que o céu escuro. Alguns aldeões tinham tomado conhecimento da chegada daquelas pessoas todas e vindo para a igreja com tochas acesas; recuaram quando Ranov surgiu, pasmados com o casaco rasgado e sujo de sangue, os rostos tensos na luz incerta. Stoichev segurou-me no braço e aproximou a cabeça do meu ouvido.

— Nós fechamo-lo — murmurou.

— O quê? — curvei-me para o ouvir.

— O monge e eu descemos primeiro para a cripta, enquanto esses... esses sicários vasculhavam a igreja e os bosques à vossa procura. Vimos o homem no túmulo não era Drácula e percebemos que vocês tinham estado ali. Então, fechamos o túmulo e, quando eles desceram, só abriram o relicário. Estavam tão zangados que achei que iriam atirar fora os ossos do pobre santo.

O irmão Ivan parecia bastante robusto, mas a fragilidade de Stoichev devia esconder uma força extraordinária. Stoichev virou-se para mim e perguntou, incisivo:

— Mas quem estava naquele túmulo, se não era...?

— Era o professor Rossi — murmurei.

Ranov estava a abrir as portas do carro, mandando-nos entrar. Stoichev deitou-me um olhar rápido, eloquente.

— Sinto muitíssimo.

E foi assim que deixamos o meu mais querido amigo a repousar na Bulgária, que possa dormir lá em paz até ao fim do mundo.

 

Depois da nossa aventura numa cripta, a sala de estar dos Bora era o paraíso. Era um alívio imenso estar lá de novo, com uma chávena de chá quente na mão a temperatura tinha estado surpreendentemente mais fresca naquela semana, embora já fosse Junho — e Turgut a sorrir para nós das almofadas do divã. Helen tinha descalçado os sapatos à porta do apartamento e calçado chinelos vermelhos enfeitados com borlas que Mrs. Bora lhe trouxe. Selim Aksoy também lá estava, sentado num canto, calado, e Turgut procurou fazer com que ele e Mrs. Bora tivessem uma boa tradução de tudo o que tinha acontecido.

— Tem mesmo certeza de que a tumba estava vazia? — Turgut já tinha feito aquela pergunta, mas não conseguia parar de a repetir.

— Certeza absoluta — lancei um olhar para Helen. — O que não sabemos é se o ruído que ouvimos era o som de Drácula a escapar de alguma maneira quando entramos. Provavelmente já estava escuro lá fora e, portanto, era-lhe fácil movimentar-se.

— E podia ter mudado de forma, é claro, se a lenda estiver correta. — Turgut suspirou. — Maldição! Vocês estiveram muito perto de o apanhar, meus amigos, mais perto que a Guarda do Crescente conseguiu chegar em cinco séculos. Estou extremamente feliz por não terem sido mortos, mas também lamento muitíssimo que não tenham podido destruí-lo.

— Para onde lhe parece que ele tenha ido? — Helen inclinou-se para a frente, os olhos intensos e escuros.

Turgut esfregou o seu queixo largo.

— Bem, minha querida, não faço idéia. Ele pode viajar rapidamente e para longe, embora não saiba precisar até que distância iria. Para outro lugar antigo, tenho certeza, algum esconderijo que tenha permanecido intocado durante séculos. Deve ter sido um duro golpe ter de abandonar Sveti Georgi, mas ele sabe que esse local agora será vigiado durante muito tempo. Dava a minha mão direita para saber se ele ainda está algures na Bulgária ou se saiu mesmo do país. Fronteiras e política não significam muito para ele, tenho certeza.

A expressão carrancuda de Turgut não combinava com o seu rosto amável.

— Acha que ele pode ter-nos seguido? — perguntou Helen simplesmente, mas qualquer coisa no formato dos seus ombros fez-me pensar que a própria simplicidade com que formulara a pergunta lhe custara um esforço.

Turgut fez que não com a cabeça.

— Espero que não, Senhora Professora. Eu diria que a esta altura ele deve estar com algum medo de vocês os dois, pois encontraram-no, coisa que nunca ninguém conseguira.

Helen ficou calada, mas não gostei da dúvida no seu rosto. Selim Aksoy e Mrs. Bora também a olhavam com um carinho especial, pensei; talvez estivessem a perguntar a si próprios como é que eu permitira que ela se expusesse a uma situação tão perigosa, mesmo que tivéssemos conseguido voltar ilesos.

Turgut voltou-se para mim.

— E sinto profundamente pelo seu amigo Rossi. Gostaria de o ter conhecido.

— E sei que teriam gostado muito da companhia um do outro — afirmei com sinceridade, segurando a mão de Helen. Os olhos dela enchiam-se de lágrimas sempre que o nome de Rossi surgia, e desviou o olhar, como se procurasse privacidade.

— Também gostaria de ter conhecido o professor Stoichev.

Turgut suspirou novamente e pousou a chávena na mesa de metal dourado diante de nós.

— Teria sido magnífico — disse eu, sorrindo à imagem dos dois estudiosos comparando anotações. — Você e Stoichev poderiam ter explicado o Império Otomano e os Balcãs medievais um ao outro. Quem sabe, talvez um dia se encontrem.

Turgut abanou a cabeça.

— Acho que não — e completou: — As barreiras entre nós são tão altas e... espinhosas... como as que existiam entre um czar e um paxá. Mas se algum dia voltar a falar com ele, ou se lhe escrever, faça-me o favor de lhe transmitir as minhas saudações.

Era uma promessa fácil de cumprir.

Selim Aksoy queria que Turgut nos fizesse uma pergunta, e Turgut ouviu-o com ar sério.

— Gostávamos de saber — disse-nos — se, no meio de todo aquele perigo e caos, viram o livro que o professor Rossi descreveu, a vida de São Jorge, não era? Os Búlgaros levaram-no para a universidade em Sofia?

Helen conseguia dar uma surpreendente risada de menina quando estava realmente alegre, e tive de me controlar para não a beijar em frente de todos. Ela mal sorrira desde que deixáramos a sepultura de Rossi.

— Está na minha pasta — respondi. — Por enquanto.

Os olhos de Turgut dilataram-se, deslumbrados, e precisou de um minuto para retomar os seus deveres de intérprete.

— E como é que o livro encontrou abrigo aí?

Helen estava muda, sorridente, portanto eu expliquei.

Não tinha voltado a pensar no livro até chegarmos a Sofia, ao hotel. Não, não podia contar-lhes a verdade toda, por isso dei-lhes uma versão educada.

A verdade toda era que, quando finalmente conseguimos ficar sozinhos durante dez minutos no quarto de hotel de Helen, segurei-a nos meus braços e beijei o seu cabelo escuro, puxei-a de encontro ao meu peito, encaixando-a no meu corpo através das nossas roupas sujas da viagem como se ela fosse a outra parte de mim a metade ausente de Platão, pensei e, então, não só senti o alívio de termos sobrevivido juntos para nos abraçarmos naquele momento, e a beleza do seu corpo alto, e a respiração dela no meu pescoço, mas também algo inexplicavelmente errado naquele corpo, algo compacto e duro. Afastei-me, olhei para ela, assustado, e vi o seu sorriso esquisito. Levou o dedo aos lábios. Era apenas um lembrete; nós dois sabíamos que num lugar qualquer do quarto devia haver um microfone.

Num segundo, ela levou as minhas mãos aos botões da sua blusa, que agora estava amarrotada e suja das nossas aventuras. Desabotoei-a sem me atrever sequer a pensar, e tirei-a. Já disse que as roupas interiores das mulheres eram mais complicadas nessa época, com arames secretos e ganchos e estranhos compartimentos uma armadura interna. Embrulhado num lenço e aquecido pela pele de Helen, havia um livro não o grande fólio que eu imaginei quando Rossi nos falou da sua existência, mas um livro suficientemente pequeno para caber na minha mão. A sua capa tinha um desenho muito elaborado a ouro sobre madeira pintada e couro. Engastadas no ouro, havia esmeraldas, rubis, safiras, lápis-lazúlis, pérolas excepcionais um pequeno firmamento de jóias, todas para glorificar o rosto do santo colocado no centro. As suas delicadas feições bizantinas pareciam ter sido pintadas alguns dias antes, e não séculos, e os olhos grandes, tristes, capazes de perdoar dragões, davam a impressão de seguir os meus. As sobrancelhas subiam em finos arcos sobre eles, o nariz era longo e direito, a boca de uma severidade tristonha. O retrato tinha uma harmonia, uma plenitude, um realismo que eu nunca vira antes na arte bizantina, um ar de ancestralidade romana. Se não estivesse já apaixonado, diria que aquele era o rosto mais bonito que alguma vez vira: humano mas também celestial, ou celestial mas também humano. Na gola da túnica, vi palavras delicadamente escritas com tinta.

— Grego — disse Helen. A sua voz era menos que um sussurro, pairando no meu ouvido. — São Jorge.

No interior, havia pequenas folhas de pergaminho em condições impressionantemente boas, todas cobertas por uma elegante letra medieval, um texto também em grego. Aqui e ali, primorosas páginas de ilustrações: São Jorge a atravessar com a sua lança o pescoço de um dragão que se contorcia, com uma multidão de nobres a assistir à cena; São Jorge a receber uma minúscula coroa dourada de Cristo, que se inclinava no seu trono divino; São Jorge no seu leito de morte, cercado por anjos de asas vermelhas. Cada ilustração estava repleta de extasiantes pormenores em miniatura. Helen abanou afirmativamente a cabeça e aproximou novamente a sua boca do meu ouvido, mal respirando.

— Não sou perita nisto — sussurrou, — mas acho que pode ter sido feito para o imperador de Constantinopla, resta saber para qual deles. Esta é a insígnia dos últimos imperadores.

De fato, no lado interno da capa, fora pintada uma águia bicéfala, a ave que olhava para trás, para o augusto passado bizantino, e para a frente, para o seu futuro sem limites; o olhar não tinha sido suficientemente aguçado para vislumbrar o colapso do Império causado por um infiel presunçoso.

— Isso significa que data, pelo menos, da primeira metade do século quinze — soprei. — Antes da conquista.

— Ah, não, acho que é muito mais antigo do que isso — sussurrou Helen, tocando de leve na insígnia. — O meu pai... o meu pai disse que era muito antigo. E repara que a insígnia menciona Constantino Porphyrogenitus, que reinou em... — e Helen procurou num arquivo interior — na primeira metade do século dez. Reinou antes de Bachkovski manastir ter sido fundado. A águia deve ter sido acrescentada depois.

Mal consegui articular as palavras.

— Estás a querer dizer que isto tem mais de mil anos?

Segurando o livro nas duas mãos com todo o cuidado, sentei-me na beira da cama ao lado de Helen. Nenhum de nós emitiu qualquer som; falávamos mais ou menos com o olhar.

— Está num estado quase perfeito. E pretendes contrabandear este tesouro para fora da Bulgária Helen? — falei-lhe com o olhar, — perdeste o juízo. E quanto ao fato de pertencer ao povo da Bulgária?

Ela beijou-me, tirou-me o livro das mãos e abriu-o.

— Foi um presente do meu pai — sussurrou. O lado interno da capa tinha uma funda aba de couro sobreposta, e ela pôs a mão com delicadeza no interior. — Esperei para ver isto até podermos fazê-lo juntos.

Tirou um maço de folhas de papel fino dactilografado com um texto compacto. Então lemos juntos, em silêncio, o doloroso diário de Rossi. Quando acabamos, nenhum de nós falou, estávamos ambos a chorar. Por fim, Helen embrulhou o livro novamente no lenço e colocou-o de novo no seu esconderijo, contra a própria pele.

 

Turgut sorriu quando terminei uma versão diluída desta história.

— Mas ainda tenho mais coisas para contar, e é muito importante — disse. Descrevi o terrível encarceramento de Rossi na biblioteca. Escutaram com os rostos sérios e, quando mencionei o fato de que Drácula sabia da existência de uma guarda permanente formada pelo sultão para o perseguir, Turgut prendeu a respiração.

— Sinto muito — disse eu.

Ele traduziu depressa para Selim, que baixou a cabeça e depois disse qualquer coisa numa voz muito suave. Turgut assentiu.

— Ele diz o que também sinto. Essas notícias terríveis significam apenas que devemos ser mais diligentes a perseguir o Empalador e a afastar a sua influência da nossa cidade. Seria o que o Glorioso Refúgio do Mundo nos mandaria fazer, se estivesse vivo. É verdade. E o que fará com o livro quando voltar para casa?

— Conheço uma pessoa que tem um contato com uma casa de leilões — respondi. — Seremos muito cautelosos, é claro, e vamos esperar algum tempo antes de fazer qualquer coisa. Espero que algum museu o compre, mais cedo ou mais tarde.

— E o dinheiro? — Turgut balançou a cabeça. — O que fará com tanto dinheiro?

— Ainda estamos a refletir sobre isso — respondi. — Alguma coisa ao serviço do bem. — Ainda não sabemos o quê.

O nosso avião para Nova Iorque partia às cinco, e Turgut começou a olhar para o relógio assim que acabamos o nosso último enorme almoço nos divãs. Ele tinha uma aula para dar à noite, "ai de mim, que pena", mas Mr. Aksoy iria levar-nos ao aeroporto de táxi. Quando nos levantamos para sair, Mrs. Bora trouxe uma écharpe da mais fina seda, de cor creme bordada a prata, e colocou-a à volta do pescoço de Helen. Escondeu o mau aspecto do seu casaco preto muito gasto e da gola encardida, e todos abafamos uma exclamação — pelo menos eu fi-lo, e não posso ter sido o único. O rosto que emergia da écharpe era o semblante de uma imperatriz.

— Para o dia do casamento — disse Mrs. Bora, pondo-se em bicos de pés para a beijar.

Turgut beijou a mão de Helen.

— Pertenceu à minha mãe — disse ele com simplicidade, e Helen não conseguiu dizer nada.

Falei por nós dois enquanto lhes apertava as mãos. Nós escreveríamos, nós pensaríamos neles. Sendo longa a vida, voltaríamos a ver-nos.

 

A última parte da minha história é para mim talvez a mais difícil de contar, já que começa com tanta felicidade, apesar de tudo. Voltamos discretamente para a universidade e retomamos o nosso trabalho. Fui interrogado pela polícia outra vez, mas pareciam satisfeitos pelo fato de a minha viagem ao estrangeiro estar relacionada com pesquisa e não com o desaparecimento de Rossi. Por essa altura, os jornais já se tinham apoderado do seu desaparecimento, transformando-o num mistério local, que a universidade fez o possível por ignorar. O meu diretor também me interrogou, evidentemente, e é claro que não lhe contei nada, apenas lhe disse que lamentava muito o que acontecera a Rossi, como toda a gente. Helen e eu casamo-nos naquele Outono na igreja dos meus pais em Boston no meio da cerimônia, não pude deixar de reparar como era despojada e insípida, como o incenso fazia falta.

Os meus pais ficaram um pouco atordoados com tudo isto, mas por fim não puderam deixar de gostar de Helen. Nada da sua aspereza natural se manifestava quando estava perto deles e, quando os visitávamos em Boston, costumava encontrar Helen a rir-se com a minha mãe na cozinha, ensinando-a a preparar pratos da culinária húngara, ou a discutir antropologia com o meu pai no escritório atravancado dele. Quanto a mim, mesmo sentindo a dor da morte de Rossi e a melancolia frequente que parecia provocar em Helen, achei aquele primeiro ano cheio de uma felicidade transbordante. Acabei a minha tese com um segundo orientador, cujo rosto foi para mim uma espécie de mancha indistinta durante todo o processo. Não é que me interessasse já pelos mercadores holandeses; só queria completar a minha formação para nos podermos instalar confortavelmente num lugar qualquer. Helen publicou um longo artigo sobre as superstições nas aldeias da Valáquia, que foi bem recebido, e iniciou uma tese sobre os vestígios dos costumes da Transilvânia na Hungria.

Escrevemos ainda outra coisa, assim que voltamos para os Estados Unidos: um bilhete para a mãe de Helen, ao cuidado da tia Eva. Helen não se atreveu a incluir muitas informações no bilhete, mas contou à mãe em poucas linhas que Rossi morrera recordando-a e amando-a. Helen fechou a carta com uma expressão de desespero no rosto.

— Um dia hei-de contar-lhe tudo — disse —, quando puder segredar ao ouvido dela.

Nunca tivemos certeza se a carta chegou ao seu destino, porque nem a tia Eva nem a mãe de Helen responderam e, naquele ano, as tropas soviéticas invadiram a Hungria.

Eu pretendia firmemente ser feliz para sempre, e disse a Helen logo depois do nosso casamento que esperava que tivéssemos filhos. A princípio, ela sacudia a cabeça, tocando de leve com os dedos a cicatriz no pescoço. Eu sabia o que ela queria dizer. Mas fora exposta a uma contaminação mínima, lembrei; estava bem, forte e saudável. À medida que o tempo passava, parecia mais tranquila com a sua completa recuperação e eu via-a a olhar, pensativa, para os carrinhos de bebê que passavam por nós na rua.

Helen terminou o doutoramento em Antropologia na Primavera depois de nos termos casado. A rapidez com que escreveu a sua tese embaraçou-me; muitas vezes naquele ano, eu acordava às cinco da manhã e descobria que ela já se levantara da nossa cama e fora para a secretária trabalhar. Estava pálida e cansada e, no dia seguinte à defesa da tese, acordei com os lençóis cheios de sangue e Helen deitada a meu lado, fraca e torcida com dores: um aborto. Tinha esperado para me surpreender com a boa notícia. Depois disso ficou doente durante semanas, e muito calada. A sua tese recebeu os maiores louvores, mas ela nunca falou sobre o assunto.

Quando consegui o meu primeiro emprego como professor, em Nova Iorque, ela insistiu para que o aceitasse e mudamo-nos. Fomos morar em Brooklyn Heights, num browmtone, um prédio de tijolos de arenito castanho, agradavelmente antiquado. Fazíamos caminhadas à beira da água para ver os rebocadores a navegar pelo porto e os grandes navios de passageiros os álamos da sua estirpe a partir para a Europa. Helen dava aulas numa universidade tão boa como a minha e os alunos adoravam-na; havia um equilíbrio magnífico nas nossas vidas, e ganhávamos o nosso sustento fazendo aquilo de que mais gostávamos.

De vez em quando, pegávamos na Vida de São Jorge e folheávamo-lo devagar, e chegou o dia em que o levamos a uma discreta casa de leilões, e o inglês que o abriu quase desmaiou. Foi vendido particularmente, mas acabou por ir parar ao museu The Cloisters, na parte alta de Manhattan, e uma grande quantia em dinheiro acabou por ir parar a uma conta bancária que abrimos para esse fim. Helen, tal como eu, gostava de viver de maneira simples e, além da tentativa de enviar pequenas quantias para os seus parentes na Hungria, não mexemos no dinheiro naquela época.

O segundo aborto de Helen foi mais dramático que o primeiro, e mais perigoso. Voltei para casa um dia e encontrei pegadas de sangue no soalho da entrada. Helen conseguira chamar uma ambulância e estava quase fora de perigo quando cheguei ao hospital. Mais tarde, a lembrança daquelas pegadas fazia-me acordar várias vezes a meio da noite. Comecei a recear que nunca tivéssemos um filho saudável e a imaginar como isso iria afetar a vida de Helen em particular. Então, ela ficou grávida de novo e os meses seguintes sucederam-se sem qualquer incidente. O olhar de Helen suavizou-se, como o de uma madona, as formas arredondaram-se sob o vestido azul de lã, o andar ficou um pouco pesado. Estava sempre a sorrir: este, dizia, era o que vinha para ficar.

Tu nasceste num hospital que dava para o rio Hudson. Quando vi que eras morena e tinhas a bela testa da tua mãe, que era perfeita como uma moeda nova, e que os olhos de Helen estavam rasos de lágrimas de prazer e dor, peguei em ti, apertada no teu casulo de roupa, e mostrei-te os navios lá em baixo. Fiz isto, em parte, para esconder as minhas próprias lágrimas. Demos-te o nome da mãe de Helen.

Helen estava encantada contigo; gostaria que soubesses isto mais do que quase tudo sobre as nossas vidas. Ela tinha deixado de dar aulas durante a gravidez e parecia contente por passar horas em casa a brincar com os teus dedinhos e os teus pés, que dizia, com um sorriso travesso, serem completamente transilvanos, ou embalando-te na grande cadeira de balanço que lhe comprei. Tu sorriste cedo e os teus olhos seguiam-nos por toda a parte. Eu às vezes deixava o gabinete num impulso para ir para casa e certificar-me de que vocês duas — as minhas mulheres morenas ainda estavam deitadas juntas a dormitar no sofá.

Certo dia, cheguei a casa cedo, às quatro, levando algumas caixinhas de comida chinesa e flores para tu ficares a olhar. Não estava ninguém na sala de estar, e encontrei Helen debruçada sobre o teu berço enquanto dormias. A tua carinha estava perfeitamente tranquila no teu sono, mas o rosto de Helen estava banhado em lágrimas e, por um segundo, não pareceu aperceber-se da minha presença. Abracei-a e senti, com um arrepio, que só uma parte dela retribuía o meu abraço. Não quis dizer-me o que a perturbava e, depois de algumas tentativas em vão, desisti de continuar a perguntar. À noite, já brincava a propósito da comida chinesa e dos cravos, mas na semana seguinte encontrei-a outra vez em pranto, outra vez calada, folheando um dos livros de Rossi, que ele me autografara logo que iniciamos o nosso trabalho juntos. Era o seu enorme livro sobre a civilização minóica, e estava aberto no colo dela na página de uma das fotografias tiradas pelo próprio Rossi de um altar de sacrifícios em Creta.

— Onde está a bebê? — perguntei.

Ela levantou a cabeça devagar e olhou fixamente para mim, como se tentasse lembrar-se em que ano estávamos.

— Está a dormir.

Dei por mim, estranhamente, a resistir à vontade de ir ao quarto ver como estavas.

— Querida, qual é o problema?

Coloquei o livro de lado e abracei-a, mas ela sacudiu a cabeça e não disse nada. Quando finalmente fui ver-te, estavas a acabar de acordar no teu berço, com o teu lindo sorriso, de barriga para baixo, e depois a tentares levantar a cabeça para olhar para mim.

Em breve Helen passou a ficar silenciosa quase todas as manhãs e a chorar sem razão aparente todas as noites. Como se recusava a falar comigo, insisti para que fosse a um médico, e depois a um psicanalista. O médico disse que ela não tinha nada, que as mulheres às vezes ficavam deprimidas durante os primeiros meses de maternidade, que voltaria a ficar bem quando se habituasse ao fato. Descobri, tarde demais, quando um amigo nosso encontrou Helen na Biblioteca Pública de Nova Iorque, que ela não tinha ido pura e simplesmente ao psicanalista. Quando a confrontei com isso, respondeu que decidira que um pouco de pesquisa lhe faria melhor, e que estava a usar o tempo da babysitter para isso, em vez de ir ao psicanalista. Mas algumas noites estava tão desanimada que concluí que precisava desesperadamente de uma mudança de cenário. Tirei algum dinheiro da nossa reserva e comprei passagens de avião para França, para o início da Primavera.

Helen nunca estivera em França, apesar de ter lido sobre o país a vida inteira e falar um excelente francês de colégio. Mostrou-se alegre em Montmartre, comentando com um pouco da sua antiga ironia que o Sacré Coeur era ainda mais monumentalmente feio do que ela alguma vez sonhara. Gostava de empurrar o teu carrinho pelos mercados de flores e ao longo do Sena, onde nos deixávamos ficar, remexendo as mesas dos vendedores de livros enquanto tu olhavas para a água, sentada dentro do carrinho com o teu gorro vermelho na cabeça. Eras uma ótima viajante aos nove meses, e Helen dizia-te que aquilo era apenas o começo.

A concierge da nossa pensão era avó de muitos netos, e assim deixávamos-te a dormir entregue aos cuidados dela enquanto brindávamos um ao outro num bar ou tomávamos café ao ar livre com as luvas calçadas. Acima de tudo, Helen e tu, com os teus olhos brilhantes gostava da abóbada ecoante de Notre Dame, e de vez em quando aventurávamo-nos mais para sul para ver outras cavernosas belezas — Chartres e os seus vitrais; Albi, com a sua peculiar igreja-fortaleza vermelha, centro de heresias; os edifícios públicos de Carcassonne.

Helen queria visitar o antigo mosteiro de Saint-Matthieu-des-Pyrénées-Orientales, e resolvemos passar lá um ou dois dias antes de voltar para Paris e apanhar o avião para casa. Achei que o rosto dela se animara consideravelmente durante a viagem, e gostava da maneira como ela se estendia na nossa cama de hotel em Perpignan, lendo uma história da arquitetura francesa que eu tinha comprado em Paris. O mosteiro fora construído no ano 1000, contou-me, embora soubesse que eu já lera toda aquela parte do livro. Era o exemplo mais antigo da arquitetura românica na Europa.

Quase tão antigo como a Vida de São Jorge comentei, mas ao ouvir isto ela fechou o livro e o rosto e ficou deitada a olhar avidamente para ti, a brincar na cama ao lado dela.

Helen insistiu que chegássemos ao mosteiro a pé, como peregrinos. Subimos a estrada de Lês Bains numa fria manhã de Primavera, com as camisolas amarradas à cintura à medida que aquecíamos. Helen levava-te num suporte de veludo cotelê junto ao peito e, quando ela se cansava, levava-te eu ao colo. A estrada estava deserta naquela estação, à exceção de um camponês silencioso de cabelos escuros que passou por nós no seu cavalo, subindo também. Eu disse a Helen que devíamos ter-lhe pedido boleia, mas ela não respondeu; o seu humor depressivo voltara naquela manhã, e notei com ansiedade e frustração que de vez em quando os seus olhos se enchiam de lágrimas. Já sabia que, se lhe perguntasse o que tinha, sacudiria a cabeça e me sacudiria a mim também, portanto contentei-me em segurar-te com carinho enquanto subíamos, mostrando-te as paisagens quando dobramos uma curva na estrada, longas paisagens de campos e aldeias poeirentas lá em baixo. No cimo da montanha, a estrada abria-se num largo estuário de pó, com um ou dois carros velhos estacionados e o cavalo do camponês aparentemente amarrado a uma árvore, embora o homem não se visse em sítio nenhum. O mosteiro erguia-se acima desta área, pesados muros de pedra erguendo-se até ao cume, e subimos até à entrada e à proteção dos monges.

Naquela época, Saint-Matthieu era um mosteiro muito mais ativo do que é hoje, e devia ter uma comunidade de doze ou treze monges, vivendo a mesma vida que os seus antecessores tinham vivido durante mil anos, à exceção da visita guiada que ocasionalmente ofereciam aos turistas e do automóvel que mantinham estacionado para seu uso fora dos portões. Dois monges acompanharam-nos pelo notável claustro lembro-me da minha surpresa quando me aproximei da extremidade aberta do pátio e vi aquele declive escarpado sobre afloramentos de rocha, aquele despenhadeiro a pique, as planícies lá em baixo. As montanhas em volta do mosteiro eram ainda mais altas do que o pico onde ele se alcandorava, e nas suas vertentes distantes víamos véus brancos que depois percebi serem quedas de água.

Sentamo-nos por algum tempo num banco perto daquele precipício, contigo aninhada entre nós, contemplando o enorme céu do meio-dia e ouvindo a água borbulhar na cisterna do mosteiro no centro do pátio, esculpida em mármore vermelho só Deus sabe como teria sido içada até ali séculos antes. Helen parecia mais alegre ainda, e notei com prazer que havia paz no seu rosto. Embora de vez em quando ficasse triste, a viagem tinha valido a pena.

Por fim, Helen disse que queria ver o mosteiro. Voltamos a pôr-te no teu suporte e fomos visitar as cozinhas, o comprido refeitório onde os monges ainda comiam, a hospedaria onde os peregrinos ainda podiam dormir em catres e o scriptorium, uma das partes mais antigas do local, onde tantos grandes manuscritos tinham sido copiados e iluminados. Havia um deles, protegido por um vidro, um Evangelho de S. Mateus, aberto numa página cujas margens eram contornadas por minúsculos demônios, cada um incitando o seguinte a descer. Helen chegou a sorrir ao vê-los. A capela veio a seguir era pequenina, como tudo o resto no mosteiro, mas as suas proporções eram uma melodia em pedra; eu nunca tinha visto um românico assim, tão íntimo e encantador. O nosso guia turístico afirmava que a curvatura da abside era o primeiro momento do românico, um movimento repentino que trouxe luz para o altar. Havia alguns vitrais do século catorze nas janelas estreitas, e o altar em si estava perfeitamente engalanado para a missa, em vermelho e branco, com castiçais dourados. Saímos silenciosamente.

Por fim, o jovem monge que nos servia de guia disse que tínhamos visto tudo menos a cripta, e descemos para lá atrás dele. Era uma pequena cavidade úmida ao lado do claustro, arquitetonicamente interessante por uma abóboda do românico primitivo sustentada por colunas atarracadas e por um sarcófago de pedra com uma ornamentação austera que datava do primeiro século de existência do mosteiro o local de repouso do primeiro abade, explicou o nosso guia. Ao lado do sarcófago, estava sentado um monge idoso absorto nas suas meditações; levantou os olhos, com uma fisionomia amável e confusa, quando entramos, e inclinou a cabeça para nós sem se levantar da cadeira

— Temos uma tradição aqui há séculos segundo a qual um de nós fica sentado junto ao abade — contou o jovem monge. — Em geral, é um monge mais velho que tem essa honra até ao fim da vida.

— Bastante invulgar — disse eu, mas alguma coisa ali, talvez o frio, fez-te choramingar e espernear junto ao peito de Helen e, vendo que estava cansada, ofereci-me para te levar para o ar livre. Saí daquela gruta úmida com uma sensação de alívio e fui mostrar-te a fonte do claustro.

Esperava que Helen viesse logo atrás de mim, mas ela demorou-se e, quando subiu, o seu rosto estava tão mudado que senti uma onda de preocupação. Parecia animada sim, mais cheia de vivacidade do que a vira nos últimos meses, mas também pálida e com os olhos muito abertos, concentrada em qualquer coisa que eu não via. Dirigi-me para ela da maneira mais natural que consegui; perguntei-lhe se havia alguma coisa interessante lá em baixo e ela respondeu "talvez", mas como se não me ouvisse bem por causa do clamor dos seus próprios pensamentos. Depois virou-se repentinamente para ti e tirou-te dos meus braços, abraçando-te e beijando-te a cabeça e as faces.

— Ela está bem? Ficou assustada?

— Está ótima — disse eu. — Talvez com um pouco de fome.

Helen sentou-se num banco, tirou da bolsa um pote de comida de bebê e começou a dar-te de comer, cantando uma daquelas cantiguinhas que eu não compreendia — em húngaro ou romeno — enquanto tu comias.

— Este lugar é lindo — disse ela, pouco depois. — Vamos ficar aqui uns dois dias.

— Temos de estar em Paris na quinta à noite — objetei.

— Ora, não faz muita diferença ficar uma noite aqui ou em Lês Bains — disse ela calmamente. — Podemos descer a pé amanhã e apanhar o autocarro, se achas que temos de ir tão cedo.

Concordei, pois ela parecia tão estranha, mas senti uma certa relutância mesmo quando fui discutir o assunto com o nosso monge-guia. Este consultou o seu superior, que disse que a hospedaria estava vazia e que éramos bem-vindos. Entre o almoço simples e a ceia ainda mais simples, deram-nos um quarto perto da cozinha, passeamos pelo jardim de rosas, entramos no íngreme pomar do lado de fora dos muros e sentamo-nos ao fundo da capela para ouvir os monges cantar a missa enquanto tu dormias ao colo de Helen. Um monge fez-nos as camas com lençóis limpos e grosseiros. Depois de teres adormecido numa delas, com as nossas encostadas de cada um dos lados para não caíres, deitei-me a ler, fingindo não olhar para Helen. Ela sentou-se na beira da cama, vestida com um vestido preto de algodão, o olhar voltado para a noite. Felizmente as cortinas estavam fechadas, mas ela acabou por se levantar para as abrir e ficou a olhar para fora.

— Deve estar escuro — comentei, — sem nenhuma povoação próxima.

Ela concordou.

— Está muito escuro, mas aqui foi sempre assim, não achas?

— Porque não vens deitar-te? — Estendi o braço por cima de ti e bati de leve com a mão na cama dela.

— Está bem — respondeu, sem qualquer sinal de protesto. Na realidade, sorriu-me e inclinou-se para me beijar antes de se deitar. Abracei-a por um momento, sentindo a força dos seus ombros, a pele macia do seu pescoço. Depois, ela estendeu-se na cama e tapou-se, e pareceu adormecer muito antes de eu acabar o meu capítulo e apagar a lanterna com um sopro.

Acordei ao amanhecer sentindo uma espécie de brisa passar pelo quarto. Estava tudo muito silencioso; tu respiravas ao meu lado debaixo do teu pequeno cobertor de lã, mas a cama de Helen estava vazia. Levantei-me sem ruído, calcei os sapatos e vesti o casaco. Lá fora, o claustro estava na penumbra, o pátio cinzento, a fonte era um volume sombrio. Ocorreu-me que levaria algum tempo até o sol chegar ali, porque primeiro tinha de passar por cima daqueles picos descomunais a leste. Olhei em volta à procura de Helen sem a chamar, porque sabia que ela gostava de se levantar cedo e podia estar sentada num dos bancos, imersa nos seus pensamentos, esperando que o Sol nascesse. No entanto, não havia sinais dela, e, à medida que o céu ia clareando, comecei a procurar mais rapidamente, indo uma vez ao banco onde nos tínhamos sentado no dia anterior e uma vez à capela deserta, com o seu fantasmagórico cheiro a fumo.

Finalmente, comecei a chamá-la em voz baixa, depois mais alto, depois já alarmado. Poucos minutos depois, um dos monges saiu do refeitório, onde deviam estar a tomar a primeira refeição silenciosa do dia, e perguntou-me se podia ajudar-me, se eu precisava de alguma coisa. Expliquei que a minha mulher tinha desaparecido e ele começou a procurar comigo.

— Talvez a senhora tenha saído para dar um passeio.

Mas não havia sinal dela no pomar, nem no estacionamento, nem na cripta escura. Procuramos por toda a parte enquanto o Sol se elevava acima dos picos, em seguida ele foi buscar outros monges, e um deles disse que iria descer de carro até Lês Bains para investigar. Pedi-lhe, num impulso, para trazer a polícia consigo quando voltasse. Então, ouvi-te chorar na hospedaria; corri para lá, com medo que tivesses caído das camas, mas estavas apenas a acordar. Dei-te rapidamente de comer e mantive-te nos braços enquanto procurávamos outra vez nos mesmos sítios.

Por fim, pedi que todos os monges fossem reunidos e interrogados. O abade deu prontamente autorização e levou-os para o claustro. Ninguém vira Helen depois de termos saído da cozinha para a hospedaria na noite anterior. Todos estavam preocupados "La pauvre", disse um monge idoso, o que me provocou uma onda de irritação. Perguntei se alguém falara com ela na véspera ou notara alguma coisa estranha.

— Não falamos com mulheres, como regra geral — esclareceu o abade, delicadamente.

Mas um monge adiantou-se, e reconheci imediatamente o velho monge cuja tarefa era ficar sentado na cripta. O seu rosto estava tão sereno e bondoso como estivera à luz da lanterna dentro na cripta, com aquela expressão ligeiramente confusa que eu notara então.

— Madame parou para falar comigo — contou. — Não queria quebrar a nossa regra, mas era uma senhora tão calma e educada que respondi às suas perguntas.

— O que é que ela lhe perguntou? — O meu coração já estava a bater com força, mas naquele momento disparou dolorosamente.

— Perguntou quem estava enterrado ali e expliquei-lhe que era um dos nossos primeiros abades, e que reverenciamos a sua memória. Depois, perguntou que grandes coisas ele tinha feito, e contei-lhe que temos aqui uma lenda... — neste ponto, olhou de soslaio para o abade, que lhe fez um sinal para continuar — temos uma lenda que diz que ele teve uma vida santa, mas foi a infeliz vítima de uma maldição na morte, de modo que se levantava do caixão para causar dano a outros monges, e o seu corpo teve de ser purificado. Quando foi purificado, uma rosa branca nasceu no seu coração, significando o perdão da Santa Mãe.

— É por que é que está sempre alguém de guarda ao túmulo? — perguntei, desvairado.

O abade encolheu os ombros.

— É simplesmente a nossa tradição, para honrar a sua memória. — Virei-me para o velho monge, refreando a vontade de o estrangular e ver o seu rosto amável ficar azul.

— Foi essa história que contou à minha mulher?

— Ela pediu-me para lhe contar a nossa história, monsieur. Não vi nada de mal em responder às suas perguntas.

— E o que é que ela lhe disse depois de a ouvir?

Ele sorriu.

— Agradeceu-me com a sua voz doce e perguntou-me o meu nome, e eu disse-lhe, Frère Kiril — e cruzou as mãos juntas na cintura.

Levei um momento para captar o sentido destes sons, o nome a soar diferente devido à acentuação francófona na segunda sílaba, por aquele inocente frère. Então, apertei os meus braços à tua volta para não te deixar cair.

— Disse que o seu nome é Kiril? Foi o que disse? Soletre-o! — O monge, espantado, fez o que lhe pedi. — De onde veio esse nome? — interpelei-o. Não conseguia controlar o tremor da minha voz. — É o seu nome verdadeiro? Quem é o senhor?

O abade interveio, talvez porque o velho estivesse genuinamente perplexo.

— Não é o nome de batismo dele — explicou. — Todos nós adotamos outros nomes quando fazemos os nossos votos. Sempre houve um Kiril, há sempre alguém com esse nome. E um Frère Michel, este aqui...

— Está a querer dizer — disse eu, segurando-te firmemente — que houve um irmão Kiril antes deste, e outro antes dele?

— Oh, sim — disse o abade, visivelmente intrigado com o meu interrogatório arrebatado. — Até onde se sabe na nossa história. Temos orgulho nas nossas tradições, não gostamos de mudanças.

— De onde vem essa tradição? — Eu estava quase a gritar naquela altura.

— Não sabemos, monsieur — respondeu o abade, paciente. — Foi sempre o nosso costume aqui.

Dei um passo na sua direção e quase encostei o meu nariz ao dele.

— Quero que abra o sarcófago na cripta — exigi. Ele recuou, assustado.

— O que está a dizer? Não podemos fazer isso.

— Venha comigo. Tome — entreguei-te ao jovem monge que nos acompanhara na visita ao mosteiro no dia anterior, — por favor, pegue na minha filha. — Ele pegou em ti, não tão desajeitadamente como seria de esperar. Tu começaste a chorar. — Venha — disse eu para o abade. Puxei-o na direção da cripta e ele fez um gesto para os outros monges não nos seguirem. Descemos os degraus rapidamente. Na gruta fria, onde o irmão Kiril deixara duas velas acesas, virei-me para o abade e disse-lhe: — O senhor não precisa de contar isto a ninguém, mas tenho de olhar para dentro do sarcófago — fiz uma pausa, para dar ênfase às palavras seguintes. — Se não me ajudar, vou fazer cair todo o peso da lei sobre o seu mosteiro.

Ele lançou-me um olhar rápido de medo? Rancor? Pena? E dirigiu-se sem falar para uma das extremidades do sarcófago. Juntos, fizemos deslizar para um lado a pesada tampa, apenas o suficiente para ver o interior. Levantei uma das velas. O sarcófago estava vazio. Os olhos do abade estavam enormes, e fez a tampa deslizar outra vez com um vigoroso empurrão. Encaramo-nos. Ele tinha um belo e sagaz rosto gaulês de que eu poderia ter gostado imensamente noutra situação.

— Por favor, não conte isto aos irmãos — pediu em voz baixa, depois virou-me as costas e saímos da cripta.

Segui-o, esforçando-me por pensar o que faria em seguida. Pegaria em ti e voltaria para Lês Bains imediatamente, decidi, e verificaria se a polícia tinha de fato sido avisada. Talvez Helen tivesse resolvido voltar para Paris antes de nós porquê, não sabia ou até apanhar um avião de regresso a casa. Sentia um horrível latejar nos ouvidos, no coração e na garganta, um sabor a sangue na boca.

Assim que voltei ao claustro, onde agora o sol inundava a fonte e os pássaros cantavam e pousavam no velho pavimento, soube o que tinha acontecido. Durante uma hora, esforçara-me por não pensar naquela possibilidade, mas agora já nem precisava da notícia, de ver os dois monges a correr para o abade, chamando-o. Lembrei-me de que aqueles dois tinham sido enviados para procurar fora dos muros do mosteiro, no pomar, nas hortas, nos pequenos bosques de árvores secas, nos afloramentos dos rochedos. Tinham acabado de vir do lado escarpado um deles apontava para a extremidade do claustro onde Helen e eu nos tínhamos sentado num banco na véspera contigo entre nós, vendo do alto aquele despenhadeiro insondável.

— Senhor abade! — bradou um deles, como se não conseguisse dirigir-se diretamente a mim. — Senhor abade, há sangue em cima das pedras! Lá em baixo, ali!

Não há palavras para momentos destes. Corri para a extremidade do claustro agarrado a ti, sentindo a pétala macia da tua face no meu pescoço. A primeira das minhas lágrimas encheu-me os olhos, quente e amarga para lá de qualquer coisa que eu tivesse conhecido. Olhei por cima do muro baixo. Numa saliência de rocha a cinco metros de distância, havia uma mancha escarlate não muito grande, mas nítida ao sol da manhã. E, abaixo dela, escancarava-se o abismo, pairavam as névoas, as águias caçavam, as montanhas recuavam até as suas próprias raízes. Corri para o portão principal, andei aos tropeções em volta da parede exterior dos muros. A encosta era tão íngreme que, mesmo que eu não estivesse contigo ao colo, não poderia ter descido com segurança até àquela primeira saliência. Fiquei parado a ver chegar a onda de perda que veio na minha direção pelo ar celestial, naquela linda manhã. Então a dor atingiu-me, um fogo inominável.

 

Fiquei ali três semanas, em Lês Bains e no mosteiro, vasculhando os penhascos e as florestas com a polícia local e com uma equipe que contratei em Paris. A minha mãe e o meu pai apanharam um avião para França e passavam horas a brincar contigo, dando-te de comer e empurrando o teu carrinho pela cidade penso que era isso que faziam. Eu preenchia formulários em pequenos escritórios sonolentos. Fazia telefonemas inúteis, procurando as palavras certas em francês para expressar a urgência da minha perda. Dia após dia, esquadrinhava os bosques no sopé do penhasco, às vezes na companhia de um detetive de rosto impassível e da sua equipe, as vezes sozinho com as minhas lágrimas.

De início, só queria ver Helen viva, caminhando na minha direção com o seu habitual sorriso irônico, mas acabei reduzido a um doloroso anseio de encontrar o seu corpo, esperando dar com ele nalgum ponto dos rochedos e arbustos. Se pudesse levar o corpo para os Estados Unidos ou para a Hungria, pensava as vezes, embora o modo como entraria na Hungria controlada pelos Soviéticos fosse um enigma, teria alguma coisa dela para honrar, para enterrar, uma forma de acabar com aquilo e ficar sozinho com a minha dor. Quase não admitia para mim mesmo que queria o seu corpo também por outro motivo para verificar se a sua morte fora completamente natural, ou se precisaria de mim para cumprir a mesma penosa tarefa que levara a cabo por Rossi. Por que não encontrava o seu corpo. Às vezes, sobretudo de manhã, pensava que ela simplesmente caíra, que nunca nos deixaria de propósito. Conseguia então acreditar que repousava num túmulo inocente e elementar algures nos bosques, mesmo que eu nunca o encontrasse. Quando chegava a tarde, porém, só me lembrava das suas depressões, dos seus estranhos humores.

Eu sabia que iria sofrer para o resto da vida, mas aquela falta absoluta, até do seu corpo, atormentava-me. O médico local deu-me um sedativo, que eu tomava a noite para poder dormir e recuperar as forças para procurar nos bosques outra vez no dia seguinte. Quando a polícia ficou ocupada com outras questões, passei a procurar sozinho.

Por vezes, deparava-me com outras relíquias na vegetação rasteira: pedras, chaminés em ruínas e, certa vez, parte de uma gárgula despedaçada teria caído para tão longe como Helen? Havia agora poucas gárgulas nas paredes do mosteiro.

Por fim, a minha mãe e o meu pai convenceram-me de que eu não podia fazer aquilo para sempre, que devia levar-te para Nova Iorque por uns tempos, que poderia sempre voltar e procurar de novo. A polícia por toda a Europa tinha sido alertada, através da rede francesa; se Helen estivesse viva diziam-me, com suavidade na voz, alguém a encontraria. Por fim, desisti, não por causa desses argumentos, mas por causa da própria floresta, da meteórica inclinação dos penhascos, da cerrada vegetação rasteira que me rasgava as calças e o casaco quando andava pelo meio dela, da altura e largura descomunal das árvores, do silêncio que me rodeava sempre que eu parava de me movimentar, de tatear, e ficava parado alguns minutos.

Antes de partirmos, pedi ao abade que dissesse uma bênção por Helen na extremidade do claustro, de onde ela tinha saltado. Ele fez uma celebração, reunindo os monges à sua volta, erguendo um objeto ritual depois do outro — não me importava saber o que eram realmente e entoando cânticos para uma enormidade de espaço que engolia a sua voz. Os meus pais mantiveram-se junto de mim, a minha mãe a enxugar os olhos rapidamente, e tu a agitares-te nos meus braços. Eu segurava-te com força; quase esquecera, durante aquelas semanas, como o teu cabelo escuro era macio, como eram fortes as tuas pernas que protestavam. Acima de tudo, estavas viva; respiravas de encontro ao meu queixo e o teu bracinho abraçava o meu pescoço, afetuosamente. Quando um soluço me sacudiu, agarraste-me o cabelo, puxaste-me a orelha. Enquanto te segurava, jurei que iria tentar recuperar um pouco de vida, de alguma forma de vida.

 

Bailey e eu olhávamos um para o outro por cima dos postais da minha mãe. Como as cartas do meu pai, interrompiam-se sem me permitir compreender muito do presente. O principal, o que ficara marcado no meu cérebro, eram as datas dos postais. Escrevera-os depois da sua morte.

— Ele foi para o mosteiro — disse eu.

— Foi — concordou Barley.

Juntei os bilhetes-postais e coloquei-os em cima do tampo de mármore do toucador.

— Vamos — chamei-o. Procurei na minha bolsa a pequena faca de prata, desembainhei-a e guardei-a com cuidado no bolso.

Barley curvou-se e deu-me um beijo na cara. Surpreendeu-me.

— Vamos lá — disse ele.

A estrada para Saint-Matthieu era mais comprida do que eu me lembrava, quente e poeirenta mesmo no fim da tarde. Não havia táxis em Lês Bains pelo menos nenhum à vista, portanto partimos a pé, atravessando com passo ligeiro terras cultivadas que subiam e desciam em ondulações suaves, até alcançarmos a orla da floresta. Dali em diante, a estrada começou a subir a montanha. Penetrar no bosque, com a sua mistura de oliveiras e pinheiros, os seus carvalhos gigantescos, era como entrar numa catedral; havia sombra e frescura, e baixamos a voz, apesar de não estarmos a falar muito. Eu estava com fome, no meio da ansiedade; não tínhamos esperado sequer pelo café do maître. Barley tirou o boné de algodão da cabeça e enxugou a testa.

— Ela não teria sobrevivido a uma queda daquelas — disse eu, através da garganta apertada.

— Não.

— O meu pai nunca se interrogou, pelo menos, não o fez nas suas cartas se ela foi empurrada por alguém.

— É verdade — concordou Barley, voltando a pôr o boné.

Fiquei calada por um momento. O barulho dos nossos passos no asfalto irregular — a estrada ainda era alcatroada naquele ponto — era o único som que se ouvia. Eu não queria dizer aquelas coisas, mas de alguma maneira elas vinham à tona dentro de mim.

— O professor Rossi escreveu que o suicídio põe a pessoa em risco de se tornar um... de se tornar...

— Lembro-me disso — disse Barley simplesmente. Arrependi-me de ter falado. A estrada sinuosa tornara-se mais íngreme.

— Talvez apareça algum carro — acrescentou ele.

Mas não apareceu nenhum carro e andávamos cada vez mais depressa, de tal maneira que a certa altura arfávamos em vez de conversar. Os muros do mosteiro apanharam-me de surpresa quandos saímos do bosque e contornamos a última curva; não me lembrava daquela curva, nem da inesperada abertura no pico da montanha, a enorme tarde à nossa volta. Mal me lembrava também da área plana e poeirenta abaixo do portão principal, onde desta vez não havia nenhum carro estacionado. Onde estavam os turistas? perguntei-me. No momento seguinte, chegamos suficientemente perto para ler a placa em obras, fechado aos visitantes este mês. Não foi o bastante para diminuir o ritmo dos nossos passos.

— Vamos — disse Barley.

Agarrou-me na mão e ainda bem, porque ela tinha começado a tremer.

Os muros de cada lado do portão estavam agora ornamentados com andaimes. Uma betoneira portátil. Cimento? Ali? Barrava-nos o caminho. As portas de madeira na fachada principal estavam firmemente fechadas mas não trancadas, como descobrimos, experimentando puxar o anel de ferro. Não me agradava entrar daquela maneira; não gostava do fato de não haver qualquer sinal do meu pai. Talvez ele ainda estivesse lá em baixo, em Lês Bains, ou noutro lugar qualquer. Comecei a arrepender-me do nosso impulso de vir diretamente para o mosteiro. Ainda por cima, embora ainda faltasse cerca de uma hora para o verdadeiro crepúsculo, o Sol estava a cair rapidamente a oeste, por detrás dos Pireneus, escondendo-se visivelmente atrás das montanhas mais altas. Os bosques de onde havíamos saído já estavam mergulhados na escuridão e em breve as últimas cores do dia iriam apagar-se dos muros do mosteiro.

Entramos, cautelosos, e seguimos para o pátio e o claustro. A fonte de mármore vermelho borbulhava, ruidosa, ao centro. Havia as delicadas colunas espiraladas de que me lembrava, o claustro comprido e o jardim de rosas no fim. A luz dourada fora-se, substituída por sombras de um tom profundo de ferrugem. Não se via ninguém.

— Acha que devíamos voltar para Lês Bains? — sussurrei a Barley.

Ele ia responder quando percebemos um som cânticos, vindos da igreja do outro lado do claustro. As portas estavam fechadas, mas ouvíamos distintamente uma cerimônia que se desenrolava no interior, com intervalos de silêncio.

— Estão todos lá dentro — disse Barley. — Talvez o seu pai também esteja. — Mas eu duvidava disso.

— Se ele estiver aqui, provavelmente desceu... — fiz uma pausa e olhei à volta do pátio. Tinham passado quase dois anos desde a minha visita ali com o meu pai a minha segunda visita, sabia agora — e não conseguia lembrar-me onde ficava a entrada para a cripta. De repente, vi o portal, como se ele se tivesse aberto na parede do claustro sem eu dar por isso. Agora vinham-me à memória as criaturas extravagantes esculpidas na pedra em volta dele: grifos e leões, dragões e pássaros, estranhos animais que eu não sabia identificar, híbridos do bem e do mal.

Barley e eu olhamos para a igreja, mas as portas mantinham-se bem fechadas, e atravessamos furtivamente o pátio até à entrada da cripta. Parada um instante sob o olhar daqueles animais petrificados, vi apenas as trevas onde teríamos de penetrar, e o meu coração apertou-se dentro de mim. Então, lembrei-me de que o meu pai poderia estar lá em baixo — e poderia, na realidade, estar em grandes dificuldades. E Barley ainda estava a agarrar-me na mão, magricela e destemido ao meu lado Quase esperava que ele fosse resmungar a qualquer momento sobre as coisas estranhas em que a minha família se metia, mas ele estava alerta junto de mim, preparado como eu para o que viesse.

— Não temos nenhuma luz — murmurou.

— Bem, não podemos entrar na igreja para ir buscar uma — observei, desnecessariamente.

— Trouxe o meu isqueiro. — Barley tirou-o do bolso. Não sabia que ele fumava. Acendeu-o por um instante, ergueu-o acima dos degraus e descemos juntos para a escuridão.

A princípio estava totalmente escuro, e descemos a tatear os íngremes degraus antigos, depois vi uma luz cintilar fracamente nas profundezas da cripta — não era a do isqueiro de Barley, que ele reacendia com intervalos de segundos e fiquei com um medo terrível. A claridade incerta era pior do que o escuro absoluto. Barley apertou-me a mão até eu sentir quase a circulação parar. A escada fazia uma curva no fim e, quando demos a última volta, lembrei-me de que o meu pai me contara que ali havia sido a nave da primitiva igreja. Lá estava o grande sarcófago de pedra do abade. Lá estava a tenebrosa cruz entalhada na antiga abside, a abóbada baixa por cima de nós, uma das mais antigas manifestações do românico em toda a Europa.

No entanto, apercebi-me de tudo isto apenas de relance, porque naquele exato momento uma sombra do outro lado do sarcófago destacou-se das trevas mais densas e levantou-se: um homem segurando uma lanterna. Era o meu pai. O seu rosto parecia exangue na luz imprecisa. Viu-nos no mesmo instante em que o vimos, creio, e soltou uma exclamação: "Jesus Cristo!" Olhamos um para o outro.

— O que estão aqui a fazer? — perguntou em voz baixa, olhando de mim para Barley, segurando a lanterna diante dos nossos rostos. O seu tom de voz era agressivo cheio de raiva, medo, amor. Larguei a mão de Barley e corri para o meu pai, contornando o sarcófago, e ele recebeu-me nos seus braços. — Jesus — disse, acariciando-me o cabelo por um segundo. — Este é o último lugar onde deverias estar.

— Lemos o capítulo no arquivo de Oxford — sussurrei. — Tive medo que estivesse... — e não consegui terminar a frase. Agora que o tinha encontrado e que ele estava vivo, e parecia o mesmo de sempre, toda eu tremia.

— Saiam daqui — disse, depois puxou-me mais para perto. — Não, é tarde demais, não os quero fora daqui sozinhos. Ainda temos alguns minutos antes que o Sol se ponha. Tome — e entregou-me a lanterna, — segure nisto, e você — para Barley, — ajude-me com a tampa. — Barley adiantou-se prontamente, embora eu tenha a impressão de ter visto as pernas dele a tremer também, e ajudou o meu pai a deslocar lentamente a tampa do grande sarcófago. Vi então que o meu pai encostara uma comprida estaca na parede próxima. Devia estar preparado para encontrar dentro daquele caixão de pedra um horror que procurava há muito tempo, mas não para o que de fato viu. Levantei a lanterna, querendo e não querendo ver, e olhamos os três para um interior vazio, para o pó.

— Oh, meu Deus — gemeu ele. Havia na sua voz uma nota que eu nunca ouvira antes, de absoluto desespero, e lembrei-me de que ele já tinha visto antes aquele vazio.

Cambaleou para a frente e ouvi a estaca a bater no chão de pedra. Pensei que ele fosse chorar, ou arrancar os cabelos, ou curvar-se sobre aquele túmulo vazio, mas imobilizou-se na sua dor.

— Meu Deus — repetiu, quase sussurrando. — Pensei que finalmente estivesse no lugar certo, na data certa. Pensei...

Não completou o que dizia porque nesse momento surgiu das sombras do antigo transepto, onde nenhuma luz penetrava, uma figura completamente diferente de tudo que alguma vez tínhamos visto. Era uma presença tão estranha que eu nem teria podido gritar ao vê-la, mesmo que a minha garganta não se tivesse fechado imediatamente. A minha lanterna iluminava-lhe os pés e as pernas, um braço e um ombro, mas não o rosto encoberto, e eu estava demasiado aterrorizada para levantar mais a luz. Encolhi-me junto do meu pai e Barley fez o mesmo, de modo que ficamos os três mais ou menos por detrás da barreira do sarcófago vazio.

A figura chegou mais perto e parou, o rosto ainda escondido. Via agora que tinha a forma de um homem, mas não se movimentava como um ser humano. Os seus pés estavam calçados com estreitas botas negras indescritivelmente diferentes de todas as botas que eu já vira, e produziram um som abafado nas pedras quando ele andou. Em volta deles caía um manto, ou talvez só uma sombra maior, e tinha pernas vigorosas vestidas de veludo escuro. Não era tão alto como o meu pai, mas os seus ombros, sob o manto pesado, eram largos, e algo na sua silhueta indistinta dava a impressão de muito mais altura. O manto devia ter um capuz, porque o seu rosto era todo sombra. Depois do primeiro horrendo instante, vi as suas mãos, brancas como osso junto à roupa escura, e um anel com uma pedra num dos dedos.

Era tão real, estava tão perto de nós que eu mal podia respirar; na verdade, comecei a sentir que, se conseguisse forçar-me a aproximar-me dele, conseguiria respirar outra vez, e então comecei a ansiar por chegar um pouco mais perto. Sentia a faca de prata no bolso, mas nada me teria convencido a pegar-lhe. Algo brilhou onde deveria estar o seu rosto olhos vermelhos? Dentes, um sorriso e, com um jorro de palavras, ele falou. Digo que foi um jorro porque nunca tinha ouvido um som igual, um fluxo gutural de palavras que poderiam ser muitas línguas juntas ou uma língua estranha que nunca tinha ouvido. Um momento depois, organizou-se em palavras que eu conseguia compreender, e tinha a sensação de que eram palavras que eu conhecia com o meu sangue, não com os meus ouvidos.

Boa noite. Felicito-o

Com isto, o meu pai pareceu voltar à vida. Não sei como encontrou forças para falar.

— Onde está ela? gritou. A sua voz tremia de medo e fúria.

O senhor é um estudioso notável.

Não sei porquê, mas, naquele momento, o meu corpo pareceu mover-se por moto próprio na direção dele. O meu pai levantou a mão no mesmo segundo e agarrou-me no braço com muita força, fazendo a lanterna balançar e fantásticas sombras e luzes dançarem em torno de nós. Na claridade oscilante, vi um pouco do rosto de Drácula, apenas a curva de um bigode caído, uma das faces, que poderia ser só o osso.

Foi o mais determinado de todos. Venha comigo e dar-lhe-ei conhecimento para dez mil vidas.

Eu ainda não sabia como conseguia compreendê-lo, mas pareceu-me que estava a chamar o meu pai.

— Não! — exclamei. Fiquei tão apavorada por ter falado com a criatura que senti a consciência abandonar-me momentaneamente. Tinha a sensação de que aquela figura diante de nós podia estar a sorrir, embora o seu rosto estivesse de novo oculto pelas trevas.

Venha comigo, ou deixe a sua filha vir.

O quê? — perguntou-me o meu pai, de modo quase inaudível. Foi então que percebi que ele não compreendia as palavras de Drácula, talvez nem ouvisse Drácula. O meu pai estava a responder ao meu grito.

A criatura pareceu pensar, calou-se. Moveu as suas estranhas botas no chão de pedra. Havia alguma coisa nas suas formas dentro das roupas antigas que era ao mesmo tempo horrível e graciosa, um velho hábito do poder.

Esperei muito tempo por um estudioso com os seus talentos.

A voz era agora suave e infinitamente perigosa. Estávamos numa escuridão que parecia fluir da sua tétrica figura.

Venha comigo de livre vontade.

Nessa altura o meu pai pareceu inclinar-se um pouco para ele, sem largar o meu braço. O que não compreendia, parecia aparentemente sentir. O ombro de Drácula contraiu-se; transferiu o seu terrível peso de uma perna para a outra. A presença do seu corpo era como a presença da morte, e no entanto ele estava vivo e movia-se.

Não me faça esperar. Se não vier, vou eu buscá-lo.

O meu pai reuniu todas as suas forças.

— Onde está ela? — gritou. — Onde está Helen?

A figura ergueu-se e vi um brilho feroz de dentes, ossos, olhos, a sombra do capuz oscilando novamente acima do seu rosto, a mão inumana crispada no limiar da luz. Tive a pavorosa sensação de estar frente a um animal agachado para desferir o golpe, para saltar sobre nós, mesmo antes que ele se movesse, e então ouvimos passos nas escadas atrás dele e o relâmpago de um gesto, que sentimos no ar porque não o podíamos ver. Levantei a lanterna com um grito que pensei ter vindo de fora de mim, e vi o rosto de Drácula inesquecível para sempre e, para meu total assombro, vi outra figura de pé exatamente atrás dele. Esta segunda pessoa parecia ter acabado de descer as escadas, uma forma escura e incompleta como a dele, mas mais volumosa, a silhueta de um homem vivo. O homem movia-se com rapidez e tinha qualquer coisa brilhante na mão levantada. Mas Drácula sentira a sua presença, virou-se com o braço estendido e empurrou o homem para longe. A força de Drácula devia ser prodigiosa porque a robusta figura humana colidiu com a parede da cripta. Ouvimos um baque surdo e um gemido. Drácula virou-se para um lado e para o outro, perturbado, furioso, primeiro para nós, depois para o homem que gemia.

Subitamente, houve outra vez som de passos nas escadas mais leves, desta vez, acompanhados pelo feixe de luz de uma forte lanterna. Drácula foi apanhado desprevenido virou-se tarde demais, um borrão de sombra. Alguém esquadrinhou a cena velozmente com a lanterna, levantou uma arma e disparou uma vez.

Drácula não se moveu como eu tinha esperado um momento antes, arremessando-se por cima do sarcófago na nossa direção; em vez disto, caiu, primeiro para trás, de tal modo que o seu rosto pálido e duramente cinzelado emergiu por um instante, depois para a frente, e outra vez para a frente, até à pancada na pedra, o som de ossos que se despedaçam. Teve alguns espasmos rápidos e parou. Depois, o seu corpo voltou ao pó, ao nada, até as suas roupas antigas se desfizeram à sua volta, ressequidas na claridade confusa.

O meu pai soltou-me o braço e correu para a luz da lanterna, contornando o volume no chão.

— Helen — chamou, ou talvez chorasse o nome dela, ou o murmurasse. Mas Barley também se precipitou, agarrando a lanterna do meu pai. Um homem corpulento estava caído no piso de pedra, com uma adaga ao lado.

— Oh, Elsie — disse uma trémula voz inglesa. Um pouco de sangue escuro escorria-lhe da cabeça e, enquanto olhávamos para ele, paralisados, o seu olhar imobilizou-se.

Barley ajoelhou-se depressa ao lado daquela forma humana desconjuntada. Com a voz estrangulada de surpresa e pesar, disse:

— Reitor James?

 

O hotel em Lês Bains orgulhava-se da sua sala de estar com pé-direito alto e lareira, e o maître acendeu a lareira e teimou em fechar as portas para impedir a entrada de outros hóspedes.

— A viagem ao mosteiro cansou-o — foi tudo o que disse, colocando uma garrafa de conhaque junto do meu pai e copos: cinco, notei, como se o nosso companheiro que faltava ainda estivesse ali para beber conosco, mas vi, pelo olhar que o meu pai trocou com ele, que muito mais que isso se tinha passado entre ambos.

O maître passara a noite ao telefone e, de certa forma, acertara as coisas com a polícia, que nos interrogara apenas no hotel e nos libertara sob o seu olhar benevolente. Suspeitava também que ele tinha entrado em contato com uma morgue ou com uma sala de funerais, qualquer que fosse o costume numa aldeia francesa. Agora que todas as autoridades oficiais se tinham ido embora, eu estava sentada no desconfortável sofá de damasco com Helen, que de vez em quando estendia a mão para me afagar o cabelo, e tentava não pensar no rosto bondoso e no sólido corpo do reitor James inertes sob um lençol. O meu pai sentava-se numa cadeira funda junto à lareira e não tirava os olhos dela, de nós. Barley esticara as suas pernas compridas em cima de uma otomana e tentava, pareceu-me, não olhar fixamente para o conhaque, enquanto o meu pai se recompunha e servia um copo a cada um. Os olhos de Barley estavam vermelhos de chorar em silêncio e aparentemente queria ficar sozinho. Quando olhava para ele, também os meus olhos se enchiam de lágrimas, incontrolavelmente.

O meu pai olhou para Barley e por um momento pensei que ele também fosse chorar.

— Ele foi muito corajoso — disse o meu pai, suavemente. — Foi o ataque dele que permitiu a Helen disparar como disparou. Ela não teria conseguido acertar-lhe no coração se o monstro não tivesse sido apanhado de surpresa. Creio que James, nos últimos momentos, deve ter sabido a diferença que isto fez. E vingou a pessoa que mais amou, além de muitas outras.

Barley assentiu com um gesto, ainda incapaz de falar, e fez-se um curto silêncio entre nós.

— Prometi que contaria tudo a vocês quando pudéssemos nos sentar sossegados — disse Helen por fim, pousando seu copo.

— tem certeza que não preferem que os deixe sozinhos? — falou Barley, relutante.

Helen deu uma risada, e fiquei surpresa com a melodia de seu riso, tão diferente de sua voz ao falar. Mesmo naquele aposento onde pairava uma certa tristeza, sua risada não destoava.

— Não, não, meu caro — disse a Barley. — Não podemos passar sem você.

Eu adorava seu sotaque, aquele inglês dela ao mesmo tempo áspero e doce, que eu achava que já conhecia de tanto tempo que nem lembrava mais desde quando. Ela era uma mulher alta e magra em um vestido preto, um vestido meio antiquado, com um torcido de cabelo grisalho em torno da cabeça. Seu rosto era admirável — marcado, gasto, mas com olhos juvenis. Vê-la era um choque para mim cada vez que eu me virava — não só porque ela estava ali, de verdade, mas porque eu sempre imaginara somente a jovem Helen. Nunca incluíra em minha imaginação todos os anos que passara longe de nós.

— Contar tudo vai levar muito tempo — disse baixinho —, mas posso adiantar algumas coisas agora, ao menos. Primeiro, que sinto muito. Causei-lhe muita dor, Paul, eu sei. — Olhou para meu pai com a claridade do fogo entre eles. Barley ameaçou levantar-se mas ela o impediu com um gesto firme. — Causei uma dor ainda maior a mim mesma. Segundo, eu já deveria ter dito isto a você, mas agora nossa filha — sorriu com doçura e as lágrimas brilharam em seus olhos —, nossa filha e nosso amigo podem ser minhas testemunhas. Estou viva, não morta-viva. Ele nunca me atacou uma terceira vez.

Eu queria olhar para meu pai, mas não consegui nem virar a cabeça. O momento era só dele. Não o ouvi chorar alto, porém. Ela parou e respirou fundo.

— Paul, quando visitamos Saint-Matthieu e descobri sobre as tradições deles — o abade que se levantara da morte e o irmão Kiril, que o vigiava —, fui tomada pelo desespero mas também por uma terrível curiosidade. Achava que não podia ser coincidência eu querer conhecer o lugar, ansiar por ele. Antes de virmos para a França, eu fizera mais pesquisas em Nova York — sem contar a você, Paul —, esperando encontrar o segundo esconderijo de Drácula e vingar a morte de meu pai. Mas nunca encontrei nada sobre Saint-Matthieu. Minha vontade de ir lá só começou quando li a respeito em seu guia turístico. Foi apenas uma vontade, sem nenhuma base acadêmica.

Olhou em torno para nós, inclinando seu belo perfil.

— Eu retomei minha pesquisa em Nova York porque achava que fora a causa da morte dele — com meu desejo de brilhar mais do que ele, de denunciar para todos sua traição à minha mãe — e não suportava pensar mais naquilo. Então, comecei a achar que era meu sangue ruim, o sangue de Drácula, que me fizera agir assim, e dei-me conta de que passara aquele sangue para meu bebê, mesmo parecendo estar curada do toque dos mortos-vivos.

Ela fez uma pausa para afagar meu rosto e segurar minha mão na dela. Eu estremecia ao seu toque, à proximidade daquela mulher estranha e conhecida ao mesmo tempo encostada em meu ombro no diva.

— Sentia-me cada vez mais indigna, e quando ouvi a explicação do irmão Kiril sobre a lenda de Saint-Matthieu, percebi que não descansaria enquanto não soubesse mais. Achava que se encontrasse Drácula e o exterminasse, poderia ficar completamente bem outra vez, ser uma boa mãe, uma pessoa com uma vida nova. Quando adormeceste, Paul, fui para o claustro. Tinha pensado descer à cripta de novo com o meu revólver e tentar abrir o sarcófago, mas achei que não conseguiria fazer isso sozinha. Enquanto estava a tentar decidir se te acordava ou não, para implorar que me ajudasses, sentei-me no banco do claustro, olhando para o precipício. Sabia que não devia estar ali sozinha, mas fui atraída pelo lugar. Havia um luar maravilhoso, e uma névoa subia devagar pelas encostas das montanhas.

Os olhos de Helen estavam estranhamente abertos, rememorando.

— Sentada ali, senti a pele das costas arrepiar-se, como se houvesse alguma coisa mesmo atrás de mim. Virei-me rapidamente e, do outro lado do claustro, onde não havia luar, pareceu-me distinguir um vulto escuro. O seu rosto estava na sombra, mas eu podia sentir, mais do que ver, uns olhos ardentes pousados em mim. Era só questão de um instante mais antes de ele abrir as asas e alcançar-me, e eu estava completamente sozinha junto à balaustrada. De repente, pareceu-me ouvir vozes, vozes angustiadas na minha cabeça que me diziam que eu nunca poderia vencer Drácula, que aquele era o mundo dele, não o meu. Diziam-me para saltar enquanto ainda era eu própria, e então me levantei como uma pessoa em um sonho e pulei.

Ela estava sentada muito ereta, a olhar para o fogo, e o meu pai passou a mão pelo rosto.

— Eu queria cair livremente, como Lúcifer, como um anjo, mas não tinha visto aquelas rochas. Caí em cima delas, e magoei a cabeça e os braços, mas também havia lá uma espessa camada de erva, e a queda não me matou nem me partiu nenhum osso. Horas depois, penso eu, acordei no frio da noite e senti sangue na cara e no pescoço, e vi a Lua a desaparecer e o abismo lá embaixo. Meu Deus, se eu tivesse rolado em vez de desmaiar... — Fez uma pausa. — Sabia que não te poderia explicar o que tinha tentado fazer, e a vergonha apossou-se de mim como uma espécie de loucura. Achava que, depois daquilo, nunca poderia ser digna de ti ou da tua filha. Quando consegui pôr-me de pé, descobri que não tinha sangrado assim tanto. E apesar de estar muito dolorida, não partira nada e sentia que ele não me atacara — deve ter-me dado como perdida, também, quando saltei. Estava terrivelmente fraca e com dificuldade em andar, mas contornei os muros do mosteiro e desci a estrada no escuro.

Pensei que o meu pai ia chorar de novo, mas ele estava quieto, sem tirar os olhos dos dela.

— Saí pelo mundo. Não foi assim tão difícil. Tinha levado a minha bolsa comigo, por hábito, suponho, e porque tinha lá dentro o meu revólver com as balas de prata. Lembro-me de que quase me ri quando dei com a bolsa ainda presa no braço, no precipício. Tinha dinheiro nela, também, uma quantidade de dinheiro no forro, e usei-o com critério. A minha mãe também andava sempre com todo o seu dinheiro. Suponho que era assim que faziam os camponeses na aldeia dela. Nunca confiou em bancos. Muito mais tarde, quando precisei de mais dinheiro, tirei-o da nossa conta em Nova Iorque e depositei algum num banco suíço. Depois parti da Suíça o mais depressa que pude, para o caso de você tentar me localizar, Paul. Ah, perdoa-me! — exclamou ela de repente, apertando-me mais os dedos, e eu sabia que ela se referia à sua ausência, e não ao dinheiro.

O meu pai cerrou as mãos uma na outra.

— Aquela retirada que você fez me deu esperanças durante uns meses, ou pelo menos levantou-me uma dúvida, mas o meu banco não conseguiu descobrir onde fora feito. Recebi o dinheiro de volta. — Mas não você, podia ter acrescentado, mas não o fez. O seu rosto brilhava, fatigado e contente.

Helen baixou os olhos.

— Seja como for, encontrei um lugar para ficar por uns dias, fora de Lês Bains, até as minhas feridas sararem. Escondi-me até poder voltar ao mundo.

Levou os dedos ao pescoço e vi a pequena cicatriz branca em que já reparara muitas vezes

— Tinha o pressentimento de que Drácula não se esquecera de mim e poderia procurar-me de novo. Enchi os bolsos de alho e a mente de força. Conservava o meu revólver sempre junto de mim, a minha adaga, o meu crucifixo. Onde quer que fosse, parava nas igrejas das aldeias e pedia uma bênção, embora por vezes só o fato de entrar nelas fizesse a minha cicatriz latejar. Tinha o cuidado de manter o pescoço coberto. A certa altura, cortei o cabelo curto e pintei-o, mudei de roupas e passei a usar óculos escuros. Durante muito tempo, procurei ficar longe das cidades, e depois comecei pouco a pouco a frequentar os arquivos onde sempre tinha querido fazer a minha pesquisa

Fui meticulosa. Encontrava-o onde quer que fosse em Roma na década de 1629, em Florença sob os Médici, em Madrid, em Paris durante a Revolução. As vezes era o relato de uma estranha peste, outras um surto de vampirismo num grande cemitério o Père Lachaise, por exemplo. Ele parecia ter sempre gostado de escribas, arquivistas, bibliotecários, historiadores quem quer que lidasse com o passado através dos livros. Procurei deduzir, através dos seus movimentos, onde ficava a sua nova tumba, onde se escondera depois de termos aberto a sua tumba em Sveti Georgi, mas não consegui descobrir qualquer padrão. Eu pensava que, quando o encontrasse, quando o matasse, voltaria e dir-vos-ia como o mundo se tornara mais seguro. Passaria a ser digna de vocês. Vivia com medo de que ele me encontrasse antes de eu conseguir encontrá-lo. E, onde quer que fosse, sentia a vossa falta ah, sentia-me tão só.

Ela pegou novamente na minha mão a acariciou-a como se fosse uma cartomante, uma adivinha, e senti, contra a minha vontade, uma onda de ressentimento todos aqueles anos sem ela.

— Por fim, achei que mesmo não sendo digna, queria pelo menos ver-vos. Aos dois. Eu tinha lido sobre a tua fundação nos jornais, Paul, e sabia que estavas em Amsterdã. Não foi difícil encontrar-te, nem sentar-me num café perto do teu escritório, nem seguir-te numa ou duas viagens — com muito cuidado, muito, muito cuidado. Nunca me permiti ver nenhum de vocês frente a frente, receando que me vissem. Ia e vinha. Se a minha pesquisa corria bem, concedia a mim própria uma visita a Amsterdã e seguia-os a partir de lá. Então, um dia — na Itália, em Monteperduto — eu o vi na piazza. Ele estava seguindo vocês, também, observando-os. Foi quando me apercebi de que se tornara suficientemente forte para sair às vezes em pleno dia. Eu sabia que vocês estavam em perigo, mas pensei que, se os abordasse para os prevenir, talvez levasse o perigo para mais perto. Afinal, ele podia estar à minha procura, e não à vossa, ou podia estar a tentar fazer com que o levasse até vocês. Foi uma agonia. Eu sabia que tu devias estar a fazer algum tipo de pesquisa outra vez que devias estar interessado nele outra vez, Paul, para atrair a atenção dele. Não conseguia decidir o que fazer.

— Fui eu, foi culpa minha — murmurei, apertando a mão dela, sem enfeites, enrugada. — Encontrei o livro.

Ela olhou para mim por um momento, a cabeça inclinada para um lado.

— Tu és uma historiadora — disse. Não era uma pergunta. Depois suspirou.

— Durante vários anos escrevi-te bilhetes-postais, filha, sem os enviar, é claro. Um dia, pensei que podia pôr-me em contato convosco à distância, para que soubessem que eu estava viva sem deixar ninguém ver-me. Enviei-os para Amsterdã, para a vossa casa, num pacote dirigido a Paul.

Desta vez, virei-me para o meu pai, surpreendida e zangada.

— Sim — disse-me tristemente. — Achei que não devia mostrar-los a você para não perturbá-la, já que não era capaz de encontrar a tua mãe. Podes imaginar o que esse período foi para mim.

E eu podia. Lembrei-me subitamente do seu terrível cansaço em Atenas, na noite em que o vira meio morto diante da escrivaninha do seu quarto. Mas ele sorriu para nós, e percebi que, de agora em diante, podia sorrir todos os dias.

— Ah! — e ela sorriu também. Vi que tinha vincos fundos à volta da boca e os cantos dos olhos estavam marcados por rugas.

— E comecei a procurar-te. E a procurá-lo. — O seu sorriso tornou-se grave. Ela olhava fixamente para ele. — E então concluí que tinha de parar com a minha pesquisa e simplesmente segui-lo seguindo-te a ti. Via-te de vez em quando, e via-te a fazer a tua pesquisa novamente, observava-te a entrar em bibliotecas, Paul, ou a sair delas, e como eu desejava poder contar-te tudo o que aprendera. Então, foste para Oxford. Eu não tinha estado em Oxford no decorrer das minhas buscas anteriores, apesar de ter lido que houvera lá um surto de vampirismo no fim do período medieval. E, em Oxford, deixaste um livro aberto...

— Mas fechou-o quando me viu — interrompi.

— E a mim — completou Barley com o seu sorriso luminoso. Era a primeira vez que falava, e foi um alívio constatar que ainda podia parecer alegre.

— Bem, da primeira vez que o examinou, esqueceu-se de o fechar. — Helen quase piscou o olho para nós.

— Tens razão — confirmou o meu pai. — Pensando bem, esqueci-me mesmo.

Helen voltou-se para ele com o seu lindo sorriso.

— Sabes que nunca tinha visto aquele livro antes? Vampires du Moyen Age?

— Um clássico — afirmou o meu pai, — mas muito raro

— Acho que o reitor James também o deve ter visto — acrescentou Barley pausadamente. — Sabe, eu vi-o lá logo depois de o surpreendermos na sua pesquisa, senhor. — O meu pai parecia perplexo. — Sim — prosseguiu Barley, — eu tinha deixado o meu impermeável no piso inferior da biblioteca e voltei para o ir buscar menos de uma hora depois. E vi o reitor James a sair da saleta na galeria, mas ele não me viu. Achei que parecia tremendamente preocupado, meio zangado e perturbado. Também pensei nisso quando decidi telefonar-lhe.

— Você telefonou ao reitor James? — Eu estava surpreendida, mas longe de me sentir indignada. — Porquê? Por que é que fez isso?

— Telefonei-lhe de Paris porque me lembrei de uma coisa — disse Barley com simplicidade, esticando as pernas. Tive vontade de me levantar e pôr o braço a volta do pescoço dele, mas não em frente dos meus pais. Ele olhou para mim. — Eu disse-lhe, no comboio, que estava a tentar lembrar-me de uma coisa, uma coisa sobre o reitor James, e quando chegamos a Paris lembrei-me. Tinha visto uma carta em cima da secretária dele certa vez, quando estava a arrumar uns papéis, um envelope, na realidade, e gostei do selo, por isso examinei-o mais de perto. Era da Turquia, e era antigo; foi o que me fez olhar para o selo. Bem, tinha um carimbo do correio que datava de há vinte anos, de um professor Bora, e pensei para comigo que um dia gostaria de ter uma secretária bem grande, e receber cartas do mundo inteiro. O nome Bora ficou-me gravado na cabeça, mesmo naquela época, soava tão exótico. Não abri o envelope nem li a carta, é evidente — acrescentou Barley apressadamente —, nunca faria isso.

— Claro que não — o meu pai fungou levemente, mas pareceu-me que os seus olhos brilhavam de afeto.

— Bem, quando estávamos a descer do comboio em Paris, vi um homem de idade na plataforma, um muçulmano, julgo eu, com um barrete vermelho escuro rematado por uma longa borla na cabeça e uma túnica comprida, como um paxá otomano, que me fez lembrar a carta. Depois foi a história do seu pai, com o nome do professor turco — lançou-me um olhar sombrio — e fui telefonar-lhe. Percebi que o reitor devia ainda estar de alguma forma à caça dele.

— Onde é que eu estava? — perguntei, ciumenta.

— Na casa de banho, suponho. As raparigas estão sempre na casa de banho. — Ele podia muito bem ter-me atirado um beijo, embora não diante dos outros. — O reitor ficou furioso comigo ao telefone, mas quando lhe contei o que se estava a passar, disse que eu podia contar com a gratidão dele para sempre. Os lábios vermelhos de Barley tremeram um pouco. — Não me atrevi a perguntar-lhe o que tencionava fazer, mas agora sabemos.

— Sim, sabemos — repetiu o meu pai tristemente. — Ele também deve ter feito o cálculo ao ler aquele velho livro e concluído que daí a uma semana faria dezesseis anos que Drácula visitara Saint-Matthieu pela última vez. Então deve ter descoberto para onde é que eu ia. Possivelmente andava à minha procura quando entrou naquela sala de livros raros. Em Oxford, insistiu comigo várias vezes para que lhe dissesse o que se estava a passar, preocupado com a minha saúde e o meu estado de espírito. Eu não queria metê-lo naquilo, sabendo os riscos envolvidos.

Helen concordou.

— Deve ter sido isso. Julgo que estive lá pouco antes dele. Encontrei o livro aberto e fiz o cálculo para mim mesma, depois ouvi passos na escada e escapei-me na direção oposta. Tal como o nosso amigo, vi que irias para Saint-Matthieu, Paul, tentar encontrar-me e encontrar aquele demônio, e dirigi-me para lá o mais depressa que pude. Mas não sabia que comboio ias apanhar, e muito menos que a nossa filha também estava a tentar seguir-te.

— Eu vi-a — disse eu, admirada.

Ela olhou para mim, e deixamos o assunto para depois. Haveria tanto tempo para conversar. Notava que ela estava cansada, que estávamos todos exaustos, que nem sequer éramos capazes de começar a dizer uns aos outros, naquela noite, o triunfo que tudo aquilo havia sido. O mundo estaria mais seguro porque estávamos todos juntos ou porque ele finalmente já não fazia parte deste mundo? Vislumbrei um futuro que nunca imaginara antes. Helen passaria a viver conosco e apagaria as velas da mesa da sala de jantar. Iria à minha formatura do curso secundário e ao meu primeiro dia na universidade, e ajudar-me-ia a vestir o vestido de casamento, se eu me casasse. Iria ler-nos em voz alta na sala da frente depois do jantar, voltaria a fazer parte do mundo e daria aulas novamente, iria comigo comprar sapatos e blusas, andaria com o braço à volta da minha cintura.

Eu não podia saber então que de vez em quando ela se distanciaria de nós, sem falar durante horas a fio, a tocar o pescoço com os dedos, nem que uma doença devastadora a levaria definitivamente nove anos mais tarde muito antes de nos habituarmos ao fato de a ter de volta, embora talvez nunca nos habituássemos, nunca nos cansássemos da prorrogação da sua presença. Eu não podia prever que o nosso último presente seria saber que ela repousava em paz, quando poderia ter sido de outra maneira, e que essa certeza seria ao mesmo tempo dolorosa e curativa para nós. Se eu tivesse sido capaz de prever todas essas coisas, também saberia que o meu pai iria desaparecer durante um dia depois do enterro dela, e que a pequena adaga na vitrina da nossa sala iria com ele, e que eu nunca, nunca lhe perguntaria nada sobre isso.

Mas naquele dia, frente à lareira em Lês Bains, os anos que teríamos com ela estendiam-se à nossa frente numa bênção infindável. Começaram minutos mais tarde quando o meu pai se levantou e me beijou, apertou a mão de Barley calorosamente e puxou Helen do divã.

— Vamos — disse, e ela apoiou-se nele, a sua história acabada por agora, o rosto cansado cheio de alegria. Ele juntou as duas mãos dela nas suas. — Vamos para a cama.

 

Há cerca de dois anos, uma extravagante oportunidade apresentou-se a mim enquanto me encontrava na Filadélfia para uma conferência, uma reunião internacional de historiadores medievais. Nunca tinha estado até então em Filadélfia e estava intrigada pelo contraste entre as nossas reuniões, que mergulhavam num passado feudal e monástico, e a vibrante metrópole à nossa volta, com a sua história mais recente de republicanismo e revolução. A Baixa da cidade, vista do meu quarto de hotel no décimo quarto andar, exibia uma mistura singular de arranha-céus e quarteirões de casas dos séculos dezessete e dezoito, que pareciam miniaturas ao lado deles.

Durante as nossas poucas horas de lazer, fugi de uma interminável palestra sobre artefatos bizantinos para ver alguns verdadeiros no magnífico museu de arte. Lá, peguei num folheto de um pequeno museu literário com uma biblioteca, situado na Baixa, cujo nome ouvira o meu pai citar muitos anos antes, e cuja coleção eu tinha motivos para ir conhecer. Era um centro tão importante para os estudiosos de Drácula que, evidentemente, tinham aumentado consideravelmente desde as primeiras investigações do meu pai como muitos arquivos europeus. Recordei-me que os investigadores podiam ver ali as notas de Bram Stoker para Drácula, selecionadas a partir de fontes da Biblioteca do Museu Britânico, bem como um importante opúsculo medieval. A oportunidade era irresistível. O meu pai sempre tinha querido visitar aquela coleção; iria passar lá uma hora em sua homenagem. Ele morrera vítima de uma mina terrestre em Sarajevo há mais de dez anos, trabalhando como mediador no pior conflito europeu das últimas décadas. Só fui informada quase uma semana depois; a notícia, quando a recebi, deixou-me fechada em silêncio durante um ano. Ainda sentia a sua falta todos os dias, às vezes todas as horas.

 

Foi assim que me vi numa pequena sala com temperatura controlada, num dos prédios de tijolos castanhos construídos na cidade no século dezenove, manuseando documentos que me falavam de um passado distante mas também da premência das pesquisas do meu pai. As janelas davam para a folhagem delicada das árvores da rua e, do lado oposto, para outros prédios do mesmo gênero, com as suas fachadas elegantes intocadas pela mácula de acréscimos modernos Havia apenas um outro estudioso na pequena biblioteca naquela manhã, uma mulher italiana que falou baixinho ao telemóvel durante alguns minutos antes de abrir os diários manuscritos de alguém, esforcei-me para não esticar o pescoço para espreitar o que era e começar a ler. Quando me instalei com um caderno e um agasalho leve contra o ar condicionado, a bibliotecária trouxe-me primeiro os documentos de Stoker e depois uma pequena caixa de cartão atada com uma fita.

As notas de Stoker foram uma diversão agradável, um estudo sobre a maneira caótica de tomar notas. Algumas estavam escritas com a letra apertada, outras datilografadas em papel vegetal. No meio delas, havia recortes de jornais sobre acontecimentos misteriosos e folhas da agenda pessoal dele. Pensei como o meu pai teria gostado daquilo, como teria achado graça à maneira ingénua como Stoker lidava com o oculto. Mas depois de meia hora, pu-los de lado e passei para a outra caixa. Continha um livro fino, com uma capa simples e elegante, provavelmente do século dezenove, quarenta páginas impressas num pergaminho do século quinze quase impecável, um tesouro medieval, um milagre do tipo móvel. A estampa da página de rosto era uma xilogravura, um rosto que eu conhecia do meu longo trabalho, com os seus olhos grandes, bem abertos e no entanto dissimulados, olhando penetrantemente para mim, o pesado bigode caindo-lhe pelo queixo quadrado, o nariz longo e fino, porém ameaçador, os lábios sensuais apenas visíveis.

Era um opúsculo de Nuremberg, impresso em 1491, e falava dos crimes de Dracole Waida, da sua crueldade, dos seus banquetes sangrentos. Consegui decifrar as primeiras frases, de tão familiares que eram para mim, escritas em alemão medieval "No Ano de Nosso Senhor 1456, Drákula fez muitas coisas terríveis e curiosas." A biblioteca providenciara uma folha com a tradução, onde reli com um calafrio alguns dos crimes de Drácula contra a humanidade. Ele assou pessoas vivas, esfolou-as, enterrou-as até ao pescoço, empalou bebês no seio das mães. O meu pai tinha examinado outros panfletos como aquele, evidentemente, mas tê-lo-ia apreciado pela sua espantosa frescura, pela firmeza do seu pergaminho, pelo seu estado quase perfeito. Depois de cinco séculos, parecia acabado de imprimir. Essas mesmas qualidades amedrontaram-me e, dentro em pouco, fiquei satisfeita ao guardá-lo e atar a fita novamente, perguntando-me por que desejara ver a coisa em pessoa. Aquele olhar arrogante fitou-me até eu fechar o livro.

Reuni os meus pertences, então, com a sensação de ter completado uma peregrinação, e agradeci à amável bibliotecária. Ela mostrou-se contente com a minha visita; aquele opúsculo era um dos seus itens favoritos do acervo; ela própria escrevera um artigo a respeito dele. Despedimo-nos com palavras cordiais e um aperto de mão, desci para a loja de presentes e dali para o calor da rua, com os seus cheiros a escapes dos automóveis e a comida dos restaurantes.

O contraste entre o ar purificado do interior do museu e o alvoroço da cidade do lado de fora fez a porta de carvalho atrás de mim parecer proibitivamente selada, de modo que me espantei ainda mais ao ver a bibliotecária sair a correr por ela.

— Acho que se esqueceu disto — disse-me. — Ainda bem que a apanhei. — Sorriu-me com o ar de quem sabe que está a devolver um tesouro: uma carteira, umas chaves, uma bonita pulseira. — Não gostaria com certeza de perder isto aqui.

Agradeci e peguei no bloco de notas e no livro que ela me entregava, espantada, abanando a cabeça, aquiescendo, e ela desapareceu dentro do velho prédio tão depressa como surgira à minha frente. O bloco de notas era meu, sem dúvida, embora eu achasse que o tinha metido na minha pasta antes de sair. O livro era... não sei dizer agora o que realmente pensei que fosse naquele primeiro momento, só que a capa era de um veludo gasto e velho, muito, muito velho, e que me era ao mesmo tempo familiar e desconhecido. O pergaminho do interior não tinha nada da frescura das páginas do opúsculo que eu tinha examinado na biblioteca apesar das páginas vazias, recendia a séculos de manuseamento. A feroz e única imagem no centro abriu-se na minha mão antes que eu pudesse impedir-me e fechou-se outra vez antes que eu pudesse olhar muito tempo para ela.

Fiquei absolutamente imóvel na rua enquanto uma sensação de irrealidade tomava conta de mim; os carros que passavam eram tão sólidos como antes, uma buzina soou algures, um homem com um cão pela trela tentava passar entre mim e uma árvore. Olhei rapidamente para cima, para as janelas do museu, pensando na bibliotecária, mas os vidros das janelas refletiam apenas as casas em frente. Nenhuma cortina de renda se moveu ali, também, e nenhuma porta se fechou silenciosamente quando olhei em volta. Não havia nada de errado naquela rua.

No meu quarto de hotel, pousei o livro em cima do tampo de vidro da mesa e lavei a cara e as mãos. Depois, fui até à janela e fiquei a olhar a cidade de cima. No fim do quarteirão, via a nobre feiura do prédio da prefeitura, o Philadelphia City Hall, com a sua estátua de William Penn, o amante da paz, equilibrada no topo. Vistos dali, os parques eram quadrados verdes de copas de árvores. Luzes piscavam nas torres dos bancos. Mais distante, à minha esquerda, via o edifício federal que fora bombardeado um mês antes, os guindastes vermelhos e amarelos a recolher o entulho no meio dele, e conseguia ouvir o ruído da reconstrução.

Mas não era essa cena que enchia o meu olhar. Estava a pensar, contra a minha vontade, numa outra, que me parecia já ter observado antes. Encostei-me à janela, sentindo o sol do Verão, sentindo-me segura apesar da distância a que estava do solo, como se a insegurança para mim pertencesse a um domínio completamente diferente.

 

Eu imaginava uma clara manhã de Outono em 1476, apenas suficientemente fria para fazer a névoa levantar-se da superfície do lago. Um barco atraca na extremidade da ilha, por baixo dos muros e cúpulas com as suas cruzes de ferro. A proa de madeira arranha levemente as pedras e dois monges vêm a correr por entre as árvores para puxar o barco para terra firme. O homem que desembarca está sozinho, e os pés que pisam o desembarcadouro de pedra estão calçados de botas finamente confeccionadas de couro vermelho, ambas com esporas pontiagudas presas nelas. É mais baixo do que os dois jovens monges, mas dá a impressão de os dominar pela altura. Está vestido de damasco púrpura e vermelho, sob um longo manto de veludo negro preso no peito largo por um broche elaborado. O seu chapéu tem a forma de um cone pontiagudo, negro também, com plumas vermelhas à frente. A sua mão, intensamente coberta de cicatrizes nas costas, brinca com a espada curta que traz no cinto. Os olhos são verdes, extraordinariamente grandes e separados, a boca e o nariz são cruéis, o cabelo e o bigode negros exibem ásperas mechas brancas.

O abade foi avisado e apressa-se a vir recebê-lo sob as árvores.

— É uma honra, meu senhor — diz ele, estendendo a mão. Drácula beija o anel e o abade faz o sinal da cruz sobre ele. — Deus vos abençoe, meu filho — acrescenta, numa espontânea ação de graças. Sabe que a aparição do príncipe é quase milagrosa. Drácula provavelmente atravessou terras ocupadas pelos Turcos para chegar ali. Não é a primeira vez que o benfeitor do abade aparece como por transporte divino. O abade ouviu dizer que o metropolita em Curtea de Arges em breve reinvestirá Drácula como governante da Valáquia e então, sem dúvida, o Dragão vai finalmente arrebatar toda a Valáquia aos Turcos. O abade toca a larga testa do seu príncipe numa bênção. — Pensamos o pior quando o senhor não veio na primavera. Deus seja louvado.

Drácula sorri mas nada diz, lançando um longo olhar ao abade. Já discutiram sobre a morte anteriormente, lembra-se o abade; Drácula perguntou-lhe diversas vezes em confissão se ele, o homem santo, acha que todo o pecador será admitido no paraíso se verdadeiramente se arrepender. O abade preocupa-se sobretudo que o seu benfeitor receba os últimos sacramentos quando chegar o momento, ainda que tenha receio de lho dizer. Cedendo à suave insistência do abade, Drácula foi entretanto batizado novamente na legítima fé para mostrar o seu arrependimento pela sua conversão temporária à herética Igreja ocidental. O abade perdoou-lhe tudo, em privado tudo. Não dedicou Drácula a sua vida a conter os infiéis, o monstruoso sultão que está a derrubar todas as muralhas da cristandade? Mas, também em privado, especula que castigos o Todo-Poderoso irá impor a este estranho homem. Espera que Drácula não toque na questão do paraíso e fica aliviado quando o príncipe pede para ver os progressos que fizeram na sua ausência. Contornam juntos a extremidade do pátio do mosteiro, as galinhas a correr e a espalhar-se à sua passagem. Drácula inspeciona as construções recém-terminadas e as hortas viçosas com um olhar de satisfação, e o abade, pressuroso, mostra-lhe os passadiços entre os edifícios que tinham sido construídos desde a sua última visita.

Nos aposentos do abade tomam chá e então Drácula pousa um saco de veludo à frente do abade.

— Abra-a — diz, alisando o bigode.

As suas pernas musculosas estão afastadas uma da outra na cadeira; a sempre presente espada ainda pende ao lado. O abade gostaria que Drácula fizesse as suas dádivas com mais humildade, mas abre a bolsa em silêncio.

— Tesouro turco — diz Drácula, o sorriso aberto. Falta-lhe um dos dentes de baixo, mas os outros são fortes e brancos.

Dentro da bolsa, o abade encontra jóias de infinita beleza, grandes conjuntos de esmeraldas e rubis, pesados anéis de ouro e broches de feitura otomana e ainda outras peças, entre elas uma esplêndida cruz de ouro com safiras escuras embutidas. O abade não quer saber de onde veio tudo isto.

— Vamos mobiliar a sacristia e mandar fazer uma nova pia batismal — determina Drácula. — Quero que mande vir artesãos de onde quiser. Isto vai pagar facilmente a despesa, e ainda sobra o suficiente para o meu túmulo.

— O vosso túmulo, meu senhor? — O abade olha respeitosamente para o chão.

— Sim, Eminência — a sua mão vai outra vez ao punho da espada. — Tenho vindo a pensar nisso e gostaria de ser colocado diante do altar, com uma pedra de mármore por cima. Celebrareis em minha memória as melhores missas cantadas, evidentemente. Instalai um segundo coro para isso. — O abade inclina a cabeça, mas está amedrontado pelo rosto do homem, o lampejo calculista nos olhos verdes. — Em acréscimo, tenho alguns pedidos, que deveis lembrar com cuidado. Quero o meu retrato pintado na pedra tumular, mas não quero nenhuma cruz.

O abade levanta os olhos, atônito.

— Nenhuma cruz, meu senhor?

— Nenhuma cruz — declara o príncipe com firmeza.

Encara o abade, que não ousa perguntar mais nada. Mas ele é o conselheiro espiritual deste homem e, depois de mais um instante, fala.

— Todo o túmulo é marcado com o sofrimento do nosso Salvador, e o vosso deve ter a mesma honra.

O rosto de Drácula fica sombrio.

— Não pretendo sujeitar-me por muito tempo à morte — diz em voz baixa.

— Só existe uma forma de escapar à morte — afirma corajosamente o abade, — é através do Redentor, se Ele nos concede a Sua graça.

Drácula olha fixamente para ele por uns minutos e o abade tenta não desviar o olhar.

— Talvez — diz por fim. — Mas encontrei recentemente um homem, um mercador que viajou para um mosteiro no Ocidente. Disse-me que há um lugar na Gália, a igreja mais velha daquela parte do mundo, onde alguns dos monges latinos venceram a morte por meios secretos. Ofereceu-se para me vender os seus segredos, que escreveu num livro.

O abade estremece.

— Deus nos proteja de tais heresias — diz ele, depressa. — Estou certo, meu filho, de que recusasteis essa tentação.

Drácula sorri.

— Sabeis como gosto de livros.

— Só existe um Livro verdadeiro, e é a esse que devemos amar com todo o nosso coração e toda a nossa alma — diz o abade, mas ao mesmo tempo é incapaz de tirar os olhos da mão cheia de cicatrizes do príncipe e do punho da espada com que ela brinca. Drácula usa um anel no dedo mínimo; o abade conhece bem, sem ver de perto, o símbolo que se contorce ferozmente nele.

— Vinde.

Para alívio do abade, Drácula aparentemente cansou-se deste debate e levanta-se súbita e vigorosamente.

— Quero ver os vossos escribas. Vou ter um trabalho especial para eles em breve.

Seguem juntos para o pequenino scriptorium, onde três dos monges estão sentados a copiar manuscritos, de acordo com os velhos costumes, e um esculpe letras para imprimir uma página da vida de Santo António. A prensa propriamente dita está a um canto. E a primeira prensa tipográfica da Valáquia, e Drácula passa a mão nela com orgulho, a sua mão pesada, quadrada. O mais velho dos monges do scriptorium está numa mesa próxima da prensa, a cinzelar um bloco de madeira. Drácula inclina-se para ele.

— O que vai ser isso, padre?

— São Miguel a matar o dragão, Excelência — murmura o velho monge. Os olhos que ergue são nebulosos, encobertos pelas espessas sobrancelhas brancas pendentes.

— Prefiro o Dragão a matar o infiel — diz Drácula, rindo.

O monge sacode a cabeça, mas o abade estremece por dentro outra vez.

— Tenho uma encomenda especial para vós — diz-lhe Drácula. — Vou deixar um desenho ao abade.

Sob o sol do pátio, faz uma pausa.

— Vou ficar para a missa e receber a comunhão das vossas mãos. — Sorri para o abade. — Tendes uma cama para mim numa das celas esta noite?

— Como sempre, senhor. Esta casa de Deus é a vossa casa.

— E agora vamos subir à minha torre.

O abade conhece bem esta prática do seu patrono; Drácula gosta sempre de inspecionar o lago e as margens circundantes do ponto mais alto da igreja, como se verificasse se haveria inimigos. Tem bons motivos para isso, pensa o abade. Os Otomanos pedem a sua cabeça ano após ano, o rei da Hungria guarda-lhe não pouco rancor, os seus próprios boiardos detestam-no e temem-no. Existe alguém que não seja seu inimigo, além dos residentes daquela ilha? O abade segue-o lentamente pela escada em espiral, preparando-se para o repicar dos sinos, que está prestes a começar, e que soa muito alto ali em cima.

O domo da torre tem compridas aberturas de cada lado. Quando o abade chega ao cimo, Drácula já está de pé no seu posto favorito, olhando para a água, as mãos entrelaçadas nas costas num gesto característico de quem pensa, planeja. O abade já o viu assim de pé em frente dos seus guerreiros, dirigindo a estratégia para o ataque do dia seguinte. Não parece de modo nenhum um homem em perigo constante um líder cuja morte pode ocorrer a qualquer hora, que devia ponderar a cada momento a questão da sua salvação. Ao contrário, pensa o abade, ele parece alguém que tem o mundo inteiro diante de si.

 

                                                                                Elizabeth Kostova  

 

                      

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