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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O HOMEM / Artur Azevedo
O HOMEM / Artur Azevedo

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Artur Azevedo

 

 

 

 

Revista Fluminense de 1887, em prosa e verso, em três atos e dez quadros, em colaboração com Moreira Sampaio.
PERSONAGENS: MAGDÁ A ÉPOCA DONA JUANITA O CAFÉ ORIENTE COMPANHIA FORÇA E LUZ A RELÍQUIA UMA ATRIZ CANTORA CANJA A JUSTIÇA A COLÔNIA PORTUGUESA DONA LIBÂNIA A POPULAÇÃO FLUMINENSE A GAZETA NACIONAL FRANCILLON A ACADEMIA DE BELAS ARTES A GAZETA DE NOTÍCIAS A COMPANHIA HELLER LUCRÉCIA BÓRGIA O CONSELHEIRO PINTO MARQUES O DOUTOR LOBÃO A DÍVIDA LAMBERTI O PESCADOR KEAN O BARÃO DE CAIAPÓ UM INGLÊS O CAPADÓCIO DE MERCÚRIO UM SUICIDA UM ABOLICIONISTA O PORTEIRO DO PALÁCIO DA IMPRENSA UM ADMINISTRADOR O HOMEM DOS DUZENTOS E CINQUENTA LUÍS CAVOQUEIRO O DOUTOR MODESTO O DOUTOR COW-POX UM CRÍTICO ANTÔNIO JOSÉ O BATATA O GENERAL UM ATOR ESPANHOL FERNANDO CAVAIGNAC O PADRE CANECA O GABINETE PORTUGUÊS DE LEITURA OUTRO ATOR ESPANHOL UM ASTRÓLOGO OUTRO SUICIDA PRUD'HOMEM O FISCAL UM LOGRADOURO OUTRO SUICIDA UM ALFAIATE O NOVIDADES O HOMEM DOS PAPAGAIOS O DIRETOR DO ÉDEN-CONCERTO OUTRO SUICIDA OUTRO ABOLICIONISTA SOUVENIR UM MEMBRO DO GRÊMIO DE LETRAS E ARTES O PADRE INÁCIO O RIO DE JANEIRO UM INIMIGO DA JUSTIÇA O SPORTMAN UM ESPECTADOR UM REPÓRTER UM EMPREGADO DO TESOURO O ESPORTE UM ESPECTADOR E AINDA-OUTRO UM AGENTE DE POLÍCIA PRIMEIRO SECRETÁRIO SEGUNDO SECRETÁRIO TERCEIRO SECRETÁRIO DUAS MENINAS CEARENSES UM MANÍACO UMA ATRIZ A BENEFICÊNCIA PORTUGUESA A CAIXA DE SOCORRO COM DOM PEDRO V O CLUBE GINÁSTICO PORTUGUÊS O CONGRESSO GINÁSTICO PORTUGUÊS O RETIRO LITERÁRIO PORTUGUÊS O CONGRESSO MARTINS DE PINHO OUTRAS ASSOCIAÇÕES PORTUGUESAS Transeuntes, passageiros, vendedores ambulantes, marinheiros franceses, inimigos da justiça, policiais, carregadores, keans, atores e atrizes.


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MONÓLOGO PRELIMINAR
O ATOR COLÁS (vindo do proscênio antes de subir o pano para o primeiro quadro) Senhoras excelentíssimas.  Ilustríssimos senhores,  Desta revista os autores,  Qualquer deles bom rapaz,  Depois de mil circunlóquios,  Cada qual mais estudado,  Chamaram-me de lado,  E me disseram: — Colás. 
 
Utilizar os teus préstimos  Nós pretendemos, amigo:  Contamos ambos contigo  Oh! não nos digas que não  — Pra recitar o monólogo  Feito em verso fantasista,  Que à nossa pobre revista  Servirá de introdução. 
 
Porém, do ponto na cúpula  Permitirás que eu me assente:  Assim mais comodamente  Posso conversar talvez.  No Casamento de Fígaro  (Este exemplo é respeitável)  O Emanuel, ator notável,  A mesma coisa já fez.
 
(Senta-se na cúpula do ponto, mas fica mal acomodado)
Muitos supõem que a plateia  Facilmente se conquista  Por meio de uma revista  Que faça rir um calhau...  Não! pra aquela Macedônia  Não há decerto Alexandre...
 
(Levantando-se incomodado e referindo-se à cúpula do ponto)
 
Esta é de folha-de-flandres,  E a do outro era de pau...  Tanto o Artur como o Sampaio,  Apesar de bem tratados,  Cada vez mais empolgados  Se sentem pelo terror...  De uma batalha o prenúncio  Têm por pérfida tortura: 
 
Não lhes aumenta a bravura,  Não lhes inflama o valor.
 
De medo tremem os míseros,  E não se diga, senhores,  Que esses naturais temores  Sejam tolos, sejam vãos;  Eles receiam que o público,  Com pateada bravia,  Desfaça c’os pés, um dia,  O que têm feito co’as mãos! 
 
Não teve nada de cômico  Este ano de oitenta e sete;  Fez-nos suar o topete,  Um ano bárbaro foi!  Ano cruel dos naufrágios,  Ano cruel das bexigas,  Lá no inferno em que te abrigas  O mundo te amaldiçoa! 
 
Vão lá de um ano tão fúnebre,  De males enciclopédia,  Extrair uma comédia  Que possa fazer-vos rir!  Que peseis tais circunstâncias  E sempre as tenhais em vista  Os autores da revista  Por mim vos mandam pedir. 
 
Buscaram eles o título  Desta peça num romance:  Haverá quem se abalance  Ao levar-lhes isso mal?  Pois teve o livro tal êxito,  Que aproveitar-lhe passagens  E dois ou três personagens 
 
Foi coisa bem natural.  Mas que não veja o Aluísio  Nesta paródia vazia  Menos que uma cortesia  Que ao seu talento se faz.
(Cumprimentando)
Sou de vossas excelências Um servo dos mais submissos, Precisam dos meus serviços? Procurem pelo Colás.
(Retira-se; sobe o pano)
 
 
ATO I
QUADRO I Sala em casa do Conselheiro Pinto Marques. Sobre uma mesa, entre outras coisas, um grupo de biscuit, representando o Amor e Psiché.
 
CENA I O Conselheiro, depois o Doutor.
 
(Ao erguer o pano, ouvem-se os gritos da Magdá, que tem um ataque. A pouco e pouco os gritos vão diminuindo até cessarem de todo. Ouve-se tocar uma campainha. O Conselheiro saí da direita, em robe de chambre e boné, atravessa a cena e vai abrir a porta da esquerda. Entra o Doutor, que conserva o chapéu na cabeça e tem modos brutais)
CONSELHEIRO Ah! venha, venha, Doutor. Estou numa ansiedade!
 
O DOUTOR Viva, para que me mandou incomodar? Pra ver a Barata Velha? Dêlhe uma pitada de estricnina, e mande atirá-la ao mar!
 
CONSELHEIRO Não, Doutor, não se trata de minha irmã, mas de minha filha, de minha querida Magdá.
 
O DOUTOR Que tem ela? Hão de ver que são luxos! E para isto incomoda-se um homem que tem tanto que fazer!
 
CONSELHEIRO Peço-lhe que me ouça com toda a paciência.
 
O DOUTOR Vá lá.
 
CONSELHEIRO Lembra-se do Fernandinho?
 
O DOUTOR Que Fernandinho?
 
CONSELHEIRO Ora! aquele rapaz que eu eduquei e que morava conosco... Aquele que se formou há um mês, e partiu logo para a Europa.
 
O DOUTOR Já sei... a pequena gostava dele... está com saudades, e tem faniquitos. Para isto incomoda-se um grande médico? Ora viva! (Vai a sair)
 
CONSELHEIRO (retendo-o)  Venha cá, pelo amor de Deus! Que homem! A coisa é mais séria do que se pode supor. A pequena gostava dele... mas imagine que são irmãos.
 
O DOUTOR Irmãos?
 
CONSELHEIRO O Fernandinho é meu filho.
 
O DOUTOR Seu filho? Natural?
 
CONSELHEIRO Naturalmente.
 
O DOUTOR Rapaziadas... Eu também no meu tempo...
 
CONSELHEIRO Hein?
 
O DOUTOR Nada; não nos lembremos de coisas tristes. E sua filha sabe que ele é seu irmão?
 
CONSELHEIRO Fui obrigado a dizer-lhe, mesmo porque o caso complicava-se. Magdá a princípio pareceu resignar-se... mas desde que o rapaz se foi embora, adeus minhas encomendas! são ataques, espasmos nervosos, alucinações maluquices, verdadeiras maluquices. O outro dia deu-lhe para subir ali à pedreira... Subi com ela... Ficamos a botar os bofes pela boca. Ela teve um delírio e desceu nos braços de um cavoqueiro... Por sinal que fiquei de dar-lhe uma gorjeta e ele ainda não veio buscá-la.
 
O DOUTOR Você fez muito mal em deixar estes dois irmãos crescerem ao lado um do outro, expostos a todos os perigos da convivência e do Amor. Você é um idiota!
 
CONSELHEIRO Escolha os termos, Doutor!
 
O DOUTOR Um idiota, um pedaço d'asno, ouviu? Isto não se faz! Agora queixese de si!
 
CONSELHEIRO Olhe, ela aí vem. Ainda agora acabou de ter um ataque.
 
 
CENA II Os mesmos, Magdá.
 
(Magdá, de penteador e cabelos soltos, entra triste e abatida, e canta)
 
COPLAS
 
I Dês que perdi meu Fernandinho, Sinto estalar-me o coração... Ele fugiu de nosso ninho... Vivo a chamar por ele em vão.  Ó Fernandinho! Meu doce irmão!  Vem cá!  Vem já! Não tardes não!  Ah! ah! ah! ah!
 
II Hoje, meu Deus, de amor definho... Sinto fugir-se-me a razão... E não há luz no meu caminho: As cegas vou na escuridão. Ó Fernandinho! etc.
 
(Pegando na estatueta e examinando-a) Amor e Psiché! Abraçados! Como são felizes! Irrita-me tanta felicidade! (Atira a estatueta pela janela)
 
CONSELHEIRO Ó minha filha! Um objeto de arte!... E me custou tanto dinheiro!... 
 
(Magdá não responde e afasta-se)
 
O DOUTOR Aquilo cura-se. Xarope de Easton com ela.
 
CONSELHEIRO Já ontem quebrou um quadro que representava Romeu e Julieta... Tive que esconder o pendant, que era Fausto e Margarida.
 
MAGDÁ Recebeu cartas de Fernandinho, papai?
 
CONSELHEIRO Não, minha filha... Pois se não há ainda vinte dias que teu irmão partiu!
 
MAGDÁ (consigo dolorosamente)  Meu irmão...
 
CONSELHEIRO (ao Doutor)  Faz a mesma pergunta de duas em duas horas.
 
O DOUTOR (ao Conselheiro)  Você tem sido um idiota. (Aproximando-se de Magdá) Venha cá, menina, venha cá... deixe ver a língua... (Magdá obedece) Está saturada de embaraço gástrico... Agora os olhos... (Examina-os) Falta de sangue... olheiras profundas... noites mal dormidas... sonhos... pesadelos... (Auscultando-a) Palpitações irregulares... Tussa. (Magdá tosse) Os pulmões estão perfeitos, mas há contração tônica dos músculos...
 
CONSELHEIRO (à parte)  Que diabo será contração tônica dos músculos?
 
O DOUTOR E como vamos de apetite?
 
CONSELHEIRO Come muito pouco... é um passarinho...
 
O DOUTOR Pois é preciso alimentar-se bem... Carne sangrenta, mariscos, bom vinho do Porto... Diga-me cá: tem tido muito namorados? (Magdá tem gesto de ofendida)Pergunto-lhe se tem tido muitos namorados!
 
MAGDÁ (com o primeiro grito de um ataque)  Ah!
 
CONSELHEIRO Ai, mau! ai, mau! aí volta o ataque!
 
MAGDÁ Ah! ah! ah! (Tem um ligeiro ataque; o Conselheiro e o Doutor seguram-na)
 
O DOUTOR Vai passando...
 
CONSELHEIRO Vou levá-la para o quarto. (Leva Magdá carregada)
 
O DOUTOR Você é um idiota.
 
 
CENA III O Doutor, só, abanando a cabeça.
 
O DOUTOR Hum... hum... hum... É preciso um tratamento enérgico!
 
COPLAS
 
I Estes dados sintomáticos Causam graves apreensões; Há fenômenos dispépticos, Sobressalto dos tendões. Pode a excitação do encéfalo Consequências ter fatais; Alguma coisa há no cérebro Ou de menos ou de mais.
 
II Bom regime higiênico Sem tardar se faz mister; Não dispensam certos tônicos Macacoas de mulher... Não convém que o estado anêmico Continue a progredir. Hei de ver a terapêutica Que tal possa conseguir.
 
 
CENA IV O Doutor, o Conselheiro.
 
CONSELHEIRO (entrando a limpar o suor)  Lá ficou mais sossegada.
 
O DOUTOR Meu amigo, sua filha precisa entrar em obras.
 
CONSELHEIRO Em obras!
 
O DOUTOR Noto na rapariga uma perigosa exaltação nervosa que, uma vez agravada, pode interessar os órgãos encefálicos e degenerar em histeria... É o diabo! sua filha já se devia ter casado!
 
CONSELHEIRO Isso sei eu... e, se ainda não tem marido, não é por falta de esforços de minha parte, creia.
 
O DOUTOR Se não se casar quanto antes, hum! não respondo pelo resultado.
 
CONSELHEIRO Então o Doutor acha que...
 
O DOUTOR Você, se não fosse um idiota, bem podia compreender o que são esses temperamentozinhos impressionáveis. São terríveis, violentos, sobretudo quando os contrariam. Não pedem: exigem, reclamam!
 
CONSELHEIRO Oh! meu amigo!... assusta-me!...
 
O DOUTOR Se não alcançam o que reclamam, aniquilam-se, estrangulam-se, como leões atacados de cólera. É perigoso brincar com a fera que principia a despertar!... O monstro já deu sinal de si... e, pelo primeiro berro, você bem pode calcular o que será quando estiver deveras assanhado!
 
CONSELHEIRO Valha-me Deus! Que hei de fazer, não me dirá?
 
O DOUTOR Já lhe disse... procure um marido, seja como for, custe o que custar... Se for preciso, necessário, compre-o.
 
CONSELHEIRO Mas isso não é coisa fácil... minha filha tem recusado uma dúzia de noivos...
 
O DOUTOR Pois case à força... O que é preciso é um homem, ora aí tem você! Se ela não se casar quanto antes, irá padecer muito, irá viver em luta aberta consigo mesma!
 
CONSELHEIRO Em luta?... que luta, Doutor?
 
O DOUTOR Ora é boa! A luta da matéria, que impõe, e da vontade, que resiste. Imagine você que tem uma fome de três dias, e que, para comer, só dispõe de um meio. Que faria neste caso?
 
CONSELHEIRO Não sei, mas com certeza não roubava.
 
O DOUTOR Então morria de fome. Todavia, um homem de moral mais fácil que a sua não morreria, porque roubava. Compreende? Pois aí tem!
 
CONSELHEIRO Mas, meu Deus! que hei de fazer? Não posso ir para rua com minha filha à procura de um marido.
 
O DOUTOR E por que não? É justamente o que deve fazer. Vá até o inferno, se for preciso, mas descubra um homem! Meta a rapariga à cara de quantos vistam calças! Vamos ao gabinete; quero receitar. Você é um idiota!
 
CONSELHEIRO Seja tudo pelo amor de Deus! Vamos. 
 
(Saem)
 
 
 
CENA V Luís, depois Magdá.
 
LUÍS  Bossoria dá licença? Nan está cá ninguém!
 
MAGDÁ (aparecendo)  Quem é?... quem está aí?
 
LUÍS  Sou eu, menina... Binha pelo patrão!... Sou o moço dali da pedreira, que carregou a menina...
 
MAGDÁ (enlevada)  Ah! reconheço-te!... És o meu príncipe...
 
LUÍS (espantado)  O quê?
 
MAGDÁ Como rescendes a murta, meu amor!...
 
LUÍS  Bossoria está muito mal enganada. Olhe que eu sou o moço dali da pedreira, que...
 
MAGDÁ Sim... bem sei que te aprouve tomar este disfarce, meu formoso  cavalheiro...
 
LUÍS  Aproube, nan senhora... a mim nan me aproubo nada... e eu nan sou cabaleiro, proque eu nan monto a cabalo... (À parte) A moça nan me parece voa... (Alto, querendo sair) Eu bolto noutra ocasião...
 
MAGDÁ Oh! não! não vás!... não fujas!... Aqui me tens!... sou tua!...
 
LUÍS (conseguindo fugir-lhe)  Quando Bossoria quiser dar a gorjeta, pode mandá-la à pedreira...
 
MAGDÁ Oh! não! Vamos antes para a gruta!...
 
LUÍS  Com sua licença. Bou deitar fogo a uma minota... (Saindo, à parte) Coitadinha! é doida!
 
MAGDÁ Foi-se!... Ingrato!...
 
A VOZ DO CONSELHEIRO Magdá! Magdá! Minha filha!
 
MAGDÁ Aí vou, papai. (Sai. Mutação!)
 
 
QUADRO II A Praça Dom Pedro II. À direita a Estação das Barcas Ferry. A cena está cheia de transeuntes, pessoas que vão tomar a barca, catraieiros, vendedores, etc.
 
CENA I Figurantes, primeiro suicida, depois segundo, terceiro e quarto suicidas.
 
CORO Um dos maiores prazeres É decerto passear; Em vez de fazer colheres, Passeemos à beira-mar.
 
(Primeiro suicida entrando muito triste e vindo ao proscênio)
 
PRIMEIRO SUICIDA  Não resisto... Não posso resistir... Retroceder não posso... Começava a sorrir
 
O mundo agora ao coração de moço  Que aqui palpita, e não palpitará Dentro de meia hora... Ingrata, fica em Jacarepaguá, Enquanto expira o tolo que te adora! Para eu matar-me, bastam, meu amor, Dois tostões... e coragem... Coragem tenho, sobra-me o valor, E o níquel aqui está para a passagem, Vou a barca tomar, de Niterói, E atirar-me do pélago no fundo,  Ria-se embora o mundo E diga o que disser Elói, o Herói!  (Entra na Estação)
 
SEGUNDO SUICIDA (entrando) Estou de falência aberta, E é mentiroso infeliz, Mente o povo quando diz: Quem quebra vai pela certa. Os meus credores — uns ursos! — Desejam todos que eu morra, E que ao recurso recorra Dos que já não têm recursos.  (Ouve-se apitar a barca) A barca da Praia Grande  Está chamando por mim! (Vai a entrar na Estação, dá um encontrão no terceiro suicida, que entra da esquerda, e toma a mesma direção) Desculpe.
 
TERCEIRO SUICIDA  Senhor! Assim  Pisando os outros não ande!  Mas não me engano; é o Macedo!
 
SEGUNDO SUICIDA  O Juca Santos! Homessa!...
 
TERCEIRO SUICIDA  Onde ias com tanta pressa?
 
SEGUNDO SUICIDA Direi, se guardas segredo.  (Depois de ver que o não o ouvem) Eu ia atirar-me ao mar!
 
TERCEIRO SUICIDA (com o mesmo jogo de cena)  E dois!
 
SEGUNDO SUICIDA  Também?
 
TERCEIRO SUICIDA  Também. Outro recurso não tem Ao que cheguei quem chegar Estou de todo perdido: Querem abrir-me a falência...
 
SEGUNDO SUICIDA Na mesmíssima emergência  Estou.
 
TERCEIRO SUICIDA  Falido?
 
SEGUNDO SUICIDA  Falido.
 
TERCEIRO SUICIDA  Estimo.
 
SEGUNDO SUICIDA  Estimas, ó Santos!
 
TERCEIRO SUICIDA  Um mergulho na baia, De um amigo em companhia Talvez tenha os seus encantos.
 
SEGUNDO SUICIDA Experimentemos... Morramos!...  (Ouve-se novo apito) Segundo apito da barca!
 
TERCEIRO SUICIDA Não é barca, não: é Parca! Vamos meu amigo!
 
SEGUNDO SUICIDA  Vamos!
 
(Dirigem-se para a Estação, um deles pisa no pé ao quarto suicida, que entra da esquerda com o mesmo destino)
 
QUARTO SUICIDA  Safe! estão cegos, senhores? Esborracharam-me um dedo!... Mas... o Santos e o Macedo! São ambos meus devedores!
 
SEGUNDO e TERCEIRO SUICIDAS O Soares!...
 
QUARTO SUICIDA  Ah! tratantes! Deus vos conduziu aqui Para que vejais suicidar-se  a flor dos negociantes! Vós e outros tais como vós, Causastes as minhas mágoas! Eu vou atirar-me às águas! Eu vou morrer!
 
SEGUNDO e TERCEIRO SUICIDAS  Também nós.
 
QUARTO SUICIDA  Vão suicidar-se?
 
SEGUNDO SUICIDA  Bem vês.
 
QUARTO SUICIDA  Rapazes, têm companheiro: Onde morre um brasileiro  Podem morrer dois e três.
 
SEGUNDO SUICIDA  Cara alegre! Bizarria!
 
TERCEIRO SUICIDA  Não tarda a barca a largar!
 
QUARTO SUICIDA  Eu acabei de almoçar: Receio uma apoplexia...
 
SEGUNDO SUICIDA  Eia! a morte satisfaz-nos!
 
TERCEIRO SUICIDA  Não nos falte a intrepidez! (Vai saindo, o quarto suicida retém-nos)
 
QUARTO SUICIDA  Um instante... nós somos três...
 
SEGUNDO e TERCEIRO SUICIDAS  Somos.
 
QUARTO SUICIDA  Três pedaços de asnos.
 
SEGUNDO SUICIDA  Eu só vejo dois...
 
TERCEIRO SUICIDA  E eu...
 
QUARTO SUICIDA  Tem razão: só vejo dois...  Mas deixemos pra depois A modéstia.
 
SEGUNDO SUICIDA  Sim.
 
TERCEIRO SUICIDA  Valeu!
 
QUARTO SUICIDA  A morte é uma covardia. Diz a conhecida chapa: Se a gente da morte escapa E funda uma companhia?
 
SEGUNDO SUICIDA  Mas não temos um ceitil!...
 
QUARTO SUICIDA  Razão demais.
 
TERCEIRO SUICIDA  Sim... que em suma...
 
QUARTO SUICIDA Eu tenho o projeto de uma  Associação dos Cem Mil
 
SEGUNDO SUICIDA  Vamos estudá-lo?
 
TERCEIRO SUICIDA  E já!
 
QUARTO SUICIDA  Verão... é o rei dos projetos! Publicados os prospectos, Dinheiro não faltará!... Dos tolos a espécie abunda (Não é tolice supô-lo) Mas dos tolos o mais tolo É o que nas águas se afunda, Pois se podemos achar Em terra firme a ventura, Por que buscar sepultura Ali no fundo do mar? Embarquemos, não na barca, Mas numa especulação, E os outros, de nós dirão: Oh! que espertalhões de marca! Eia! tempo não percamos! Time is money, diz o inglês.
 
Muito breve todos três Enriqueceremos.
 
OS TRÊS  Vamos!
 
(Saem abraçados. Logo que desaparecem, há muito movimento em cena; ouvem-se vivas, aclamações. Entram o Conselheiro e Magdá, que vêm da Estação com outros passageiros, que desaparecem)
 
 
CENA II O Conselheiro, Magdá.
 
CONSELHEIRO Bem, está feita a tua vontade: fomos à Praia Grande. Agora esperemos aqui um bondinho do Rossio Pequeno.
 
MAGDÁ (que olha para o bastidor)  Que é aquilo, papai?
 
CONSELHEIRO São os acadêmicos, que foram buscar a bordo o Doutor Domingos Freire.
 
MAGDÁ Ah! sim! o tal que descobriu o micróbio da febre amarela. Dizem que fez um figurão na Europa!
 
CONSELHEIRO E há de fazer outro figurão nos Estados Unidos, para onde vai brevemente partir. É pena que não seja solteiro... Aí estava um ótimo partido para a pequena! 
 
(Tem se restabelecido o silêncio sai da Estação um indivíduo acompanhado por um agente)
 
 
CENA III Os mesmos, um agente de polícia, acompanhado por um maníaco, depois o general e sua comitiva, primeiro, segundo e terceiro secretários.
 
O AGENTE  Ora a minha vida! ora a minha vida! 
 
(O Maníaco para a acender um charuto e o Agente para também)
 
CONSELHEIRO Por que tanto se lastima, meu amigo? (A Magdá) É um rapaz bem apessoado; não te parece?
 
MAGDÁ Ora, papai!
 
O AGENTE  E obriga-se a isto um homem casado e pai de filhos!
 
CONSELHEIRO (à parte)  Casado... (Alto) Mas a que o obrigam, afinal?
 
O AGENTE  A acompanhar aquele senhor, que tem a mania das perseguições. Fui dar hoje com os ossos em Icaraí.
 
CONSELHEIRO (examinando o Maníaco com interesse)  Ora ali está um moço que...
 
MAGDÁ E de quem se queixa ele?
 
O AGENTE  Queixa-se principalmente da esposa, que é, aliás, uma excelente senhora.
 
CONSELHEIRO (à parte)  Também casado! Que sina!
 
O AGENTE  Quando eu menos esperar, este sujeito será capaz de me fazer alguma. Veja como ele me olha! Agora quer ir por força ao Café de Java... e não há remédio senão acompanhá-lo. (O Maníaco tem acendido o charuto e sai) Lá vai ele! (Sai)
 
CONSELHEIRO Acho que o mais prudente seria trancafiá-lo. E este bondinho, que não chega!
 
MAGDÁ Naturalmente houve transtorno na linha.
 
(Entra o General acompanhado por sua comitiva e por pessoas do povo. Todos o examinam com admiração. O General traz brilhantes por toda parte: no peito da camisa, no cabo do guarda-sol, nos dedos e até nos botões da sobrecasaca) Canto
 
O GENERAL Eis aqui o ex-presidente!
 
OS SECRETÁRIOS  És muito valiente!
 
O GENERAL Eu venho fazer figura, E talvez fique por cá; Aqui qualquer caradura Perfeitamente se dá.
 
No Rio de Janeiro Faz o que bem quer, Tipo de dinheiro,
 
Venha de onde vier. Nos bolsos não trago Menos de um milhão! Tenho muito bago, Muito patacão.
 
CORO  Que grande charlata! Vale um Potosi! Maior patarata Não vimos aqui!
 
MAGDÁ Papai, veja como este homem tem brilhantes por toda parte!
 
CONSELHEIRO É verdade! Até nos botões da sobrecasaca!
 
O GENERAL Ainda não viram nada. No meu palácio não há porta sem brilhantes, nas maçanetas dos trincos.
 
CONSELHEIRO (à parte)  Oh! que partido! (Cumprimentando-o com muita amabilidade) Eu sou o Conselheiro Pinto Marques, e tenho a honra de apresentar a vossa excelência minha filha.
 
O GENERAL É guapa... Minha mulher estimará muito conhecê-la.
 
CONSELHEIRO (à parte)  Ora bolas! É também casado!
 
O GENERAL Señor secretario...
 
PRIMEIRO SECRETÁRIO  General!
 
O GENERAL Tenciono partir hoy mismo para Petrópolis. Infórmese usted a que horas tendremos conduccíón.
 
PRIMEIRO SECRETÁRIO  Señor secretario.
 
SEGUNDO SECRETÁRIO  Presente!
 
PRIMEIRO SECRETÁRIO  Infórmese usted a que horas tendremos conducción para Petrópolis.
 
SEGUNDO SECRETÁRIO  Señor secretario!
 
TERCEIRO SECRETÁRIO  Presente.
 
SEGUNDO SECRETÁRIO  Infórmese usted a que horas tendremos conducción para Petrópolis.
 
TERCEIRO SECRETÁRIO  Voy a mandar mi secretario (Sai)
 
CONSELHEIRO Safa! é uma secretaria ambulante! (A Magdá) E vão ver que nenhum destes secretários é solteiro.
 
O GENERAL Estão todos admirados e de boca aberta, a olhar para mim, como se fosse alguma raridade!
 
MAGDÁ Têm-no pintado como um herói.
 
O GENERAL E o sou, caramba! É justamente por isso que me expatriaram, depois de me terem quase dado cabo do canastro!... Olhe... Vê? (Mostra a boca) Faltam-me aqui dois dentes: foi uma bala!
 
CONSELHEIRO Olhem que brincadeira!
 
O GENERAL Agora vou, mas é tratar de tornar a minha vida aqui o mais agradável possível. Vou comprar uma casa... vou mandar vir os meus animais de corridas...
 
MAGDÁ Ah! Vossa excelência também é amador de esporte?
 
O GENERAL Tenho uns cavalos que não correm...
 
CONSELHEIRO Então não servem?
 
O GENERAL Não correm: voam, caramba! são tão velozes, que, ainda bem não se deu o sinal de partida, e já eles estão no poste do vencedor.
 
TERCEIRO SECRETÁRIO (voltando ao segundo secretário)  Mi secretario informa que la barca de Petrópolis parte a las cuatro.
 
PRIMEIRO SECRETARIO (ao General)  El secretario del secretario del secretario de mi secretario informa que la barca de Petrópolis parte a las cuatro.
 
O GENERAL Não temos muito tempo. Vamos. (Ao Conselheiro) Caballero... señoríta... 
 
(Saem repetindo o coro. O Conselheiro e Magdá acompanham-no até o bastidor)
 
 
CENA IV Conselheiro, Magdá, afastada, o primeiro suicida, depois o Doutor Modesto, e mais tarde um alfaiate.
 
PRIMEIRO SUICIDA (muito alegre, sem chapéu, vindo ao proscênio) Eu não tive coragem... Quando cheguei ao meio da viagem, Olhei para esta bela natureza, Contemplei esta esplêndida riqueza, E resolvi da vida não dar cabo... A água deve estar fria como o diabo! Mas fiz uma pilhéria Que vai dar que falar à imprensa séria;  Deixei na barca o meu chapéu e a carta Que do mundo me aparta...  Quando ela ler aquela despedida,  Há de chorar o mísero suicida! Ó tu, que amor esbanjas  Sem que me dês uma migalha ao menos,  Chora por mim, que eu vou formosa Vênus,  Pra Jacarepaguá comer laranjas. (Sai)
 
CONSELHEIRO (descendo com Magdá)  E nada do bondinho!
 
MAGDÁ Alguma coisa que atravancou a linha.
 
CONSELHEIRO (ao Doutor Modesto, que sai da Estação)  Oh, meu caro Doutor! que feliz encontro!
 
MAGDÁ (à parte) 
 
Deus queira que seja casado.
 
CONSELHEIRO Desejava imensamente falar com vossa senhoria.
 
O DOUTOR Estou sempre às suas ordens.
 
CONSELHEIRO Ainda hoje li um anúncio seu: é certo que pretende introduzir efetivamente entre nós o hipnotismo?
 
O DOUTOR Assim é; hoje só curo por sugestão hipnótica, sem ser preciso adormecer o doente. Tem que me fazer alguma consulta?
 
CONSELHEIRO Mais tarde trataremos desse ponto...
 
MAGDÁ (baixo ao pai)  Eu comigo não quero sugestões... fique papai sabendo desde já.
 
CONSELHEIRO (à filha)  Espera. (Ao Doutor) O que antes de mais nada eu desejo saber é se a sugestão se aplica a todos os entes humanos independentemente de qualquer ação patológica.
 
O DOUTOR (sem entender)  Como?
 
CONSELHEIRO (à parte)  Mau! parece que disse asneira... (Alto) Por exemplo: um indivíduo pode tocar piano, fazer uma fritada, pôr fundilhos numas calças por sugestão hipnótica, ou para isso é necessário que ele seja pianista, cozinheiro ou remendão?
 
O DOUTOR Conforme: depende do indivíduo, cuja natureza pode prestar-se ou não à influência hipnótica.
 
ALFAIATE (entrando arrebatadamente, ao Doutor)  Apanhei-te, cavaquinho! Se é capaz, negue-se agora! Diga que não está em casa!
 
O DOUTOR (à parte)  Oh, diabo! o alfaiate!... (Alto) Que quer o senhor, não me dirá? Que modos são estes?
 
ALFAIATE  Ainda mo pergunta? Quero dinheiro! Há mais de um ano que o senhor anda a zombar de mim... a esconder-se... A fazenda custou dinheiro e o feitio também... Quero para aqui os meus trezentos e vinte e sete mil e quinhentos!...
 
O DOUTOR (ao Conselheiro)  Ora vamos ver se este sujeito tem uma natureza flexível. (Aproximase do criado e começa a fazer-lhe passes magnéticos) Com que então o meu amigo diz que...
 
ALFAIATE (abrandando-se a pouco e pouco)  Sim, os meus trezentos... e vinte e sete mil e quinhentos...
 
O DOUTOR (continuando com os passes)  Pois já se não lembra que eu?...
 
ALFAIATE  Sim... que vossa senhoria... me pagou... Pois não... Não havia tanta pressa... Quer que lhe passe o recibo? Onde há de ser? Ah! ali! Já lho trago! já lho trago!(Sai)
 
CONSELHEIRO É espantoso!
 
MAGDÁ Assombroso!
 
O DOUTOR Não acham?
 
CONSELHEIRO Pouco liso... mas espantoso...
 
O DOUTOR Ah! foi apenas uma experiência. Não vá agora pensar que eu me valho do hipnotismo para pagar as minhas dívidas.
 
CONSELHEIRO Se o Doutor pudesse fazer com que chegasse por sugestão hipnótica o bondinho do Rossio Pequeno...
 
ALFAIATE (voltando)  Cá está o recibo... e sempre às suas ordens. (Dá a mão a apertar ao Doutor, que lhe faz novos passes magnéticos) Ah! sim... queira desculpar-me... ia-me esquecendo do troco... Vossa senhoria deu-me duzentos e cinquenta mil réis; aqui estão vinte e dois mil e quinhentos... (Cumprimentando) Quando precisar de alguma coisa, lembre-se de nossa casa, tenho agora umas casimiras... (Sai)
 
O DOUTOR Conselheiro, apareça... Minha senhora... (À parte, saindo) Já não perdi o meu dia...
 
CONSELHEIRO Que grande gatuno...
 
MAGDÁ Hipnótico!...
 
 
CENA V
 
O Conselheiro, Magdá, marinheiros franceses, Cavaignac, duas meninas cearenses.
 
CONSELHEIRO Xi! que porção de marinheiros! Ah! vejo que pertencem à guarnição da fragata francesa que ali está no porto.
 
MAGDÁ Parecem contentes.
 
(Entram os marinheiros franceses e saem depois de cantar um longo coro, cuja letra se suprime, porque tomaria muito espaço e não interessa à leitura da revista)
 
CAVAIGNAC (entrando com as duas meninas)  Senhor Conselheiro, minha senhora, compadeçam-se destas pobres meninas.
 
CONSELHEIRO Quem são estas crianças?
 
CAVAIGNAC  As heroínas do naufrágio do Bahia... Ando a esmolar em favor delas... Fui levá-las à Praia Grande, onde tenho muitas relações.
 
CONSELHEIRO (dando-lhe dinheiro)  Pela minha parte não duvido concorrer...
 
CAVAIGNAC  Vão vossas excelências amanhã, no Teatro Lucinda, assistir à conferência que o Paula Ney realiza em benefício destas infelizes... a tese é O Ceará e suas Grandezas... As ordens de vossas excelências. (Sai com as meninas)
 
CONSELHEIRO Passar bem, Senhor Cavaignac. (À Magdá) Também é casado... Uma conferência de Paula Ney! Deve ser enorme!
 
MAGDÁ Enorme é aquela mulher que ali vem. Quem será? 
 
(Entra a Dívida Lamberti, representada por uma mulher extremamente alta)
 
 
CENA VI O Conselheiro, Magdá, a Dívida Lamberti.
 
A DÍVIDA LAMBERTI (zangada)  Súcia de galfarros! Cheirou-lhes bem a coisa! (Ao Conselheiro, apontando para o bastidor) Não vê, meu senhor? A Praça do Mercado está sitiada... São trinta cães a um osso... Querem todos arrendá-la... Mas a minha proposta é a melhor, e a que mais vantagens oferece. Só assim poderei diminuir, porque, crescendo desta maneira, não sei onde vá parar!
 
CONSELHEIRO (a Magdá)  Tu percebeste?
 
MAGDÁ Nada!
 
CONSELHEIRO Quem é a senhora?
 
A DÍVIDA LAMBERTI  Pois não me conhece? Sou a Dívida Lamberti!
 
TERCETINO
 
A DÍVIDA LAMBERTI Há poucos anos passados, Eu era assim pequerrucha...
 
CONSELHEIRO e MAGDÁ Pequerrucha...
 
A DÍVIDA LAMBERTI  E não tinha estes ares de bruxa...
 
CONSELHEIRO e MAGDÁ E não tinha estes ares de bruxa!
 
A DÍVIDA LAMBERTI  Com juros acumulados, Eu fui crescendo... crescendo...
 
CONSELHEIRO e MAGDÁ Foi crescendo...
 
A DÍVIDA LAMBERTI Do tamanho fiquei que estão vendo! Por sentença do juiz do Comércio, Há de a tal Municipalidade, Muito embora não tenha vontade, Escarrar o meu justo valor; Porém ela não sei com que conta: Cada vez que lhe falo, respinga, E vai sempre fugindo à seringa Com desculpas de mau pagador. Há poucos anos passados, etc.
 
CONSELHEIRO Ela até já parece maior do que quando chegou! 
 
(A Dívida Lamberti tem saído depois do canto)
 
MAGDÁ Papai, vamos a pé... Decididamente não chega o tal bondinho!
 
CONSELHEIRO Pois vamos, filha! 
 
(Vozeria; a cena enche-se de gente, que foge toda para direita, como atraída por alguma coisa) Que é isto? Vamos ver também! (Sai com Magdá. A cena fica vazia. A orquestra executa o Hino Nacional em surdina, enquanto lá fora continua uma vozeria confusa)
 
 
CENA VII
 
A POPULAÇÃO FLUMINENSE Sou a População chorosa, amargurada, Que vê partir pra longe a pérola dos pais... Forte, robusto e são, de novo à Pátria amada, Trazei-o meigamente, ondas que mo levais! e este dia de luto ateste o mundo inteiro O seu merecimento e o meu profundo amor, Transunto fiel de todo o povo brasileiro, O povo fluminense adora o Imperador.
 
(Sai. A cena transforma-se)
 
 
QUADRO III A baía do Rio de Janeiro no dia da partida do Imperador para a Europa, em 1887. A orquestra executa a toda força o Hino Nacional.
 
 
 
ATO II
 
QUADRO IV A Praça da Aclamação na parte não ajardinada. A cena está cheia de curiosos, que esperam por um meeting abolicionista. Formam-se e dissolvem-se grupos. Um movimento extraordinário.
 
CENA I Prud'homem, primeiro abolicionista, segundo abolicionista, curiosos, depois o Conselheiro e Magdá.
 
CORO Só curiosidade  Traz os que aqui 'stão:
 
Querem ver se o meeting Se fará ou não... Vão ferver, decerto, Murro e cachação!
 
PRUD'HOMEM  Sempre quero ver se havemos ou não de fazer o meeting!
 
PRIMEIRO ABOLICIONISTA  Decerto que faremos! Tinha graça que nos sujeitássemos a semelhante imposição!
 
SEGUNDO ABOLICIONISTA  Homem, não seja tão exaltado... não sejamos abolicionistas a ponto de querermos abolir a força da polícia.
 
PRUD'HOMEM  Fizeram-nos sair do Politeama, mas não nos arrancarão da praça pública.
 
SEGUNDO ABOLICIONISTA  Conforme... conforme...
 
PRUD'HOMEM  Podem assestar contra mim uma peça de artilharia.
 
SEGUNDO ABOLICIONISTA  Não diga isso!
 
PRUD'HOMEM  Daqui não arredo pé!
 
SEGUNDO ABOLICIONISTA  Arredo eu.
 
PRIMEIRO ABOLICIONISTA  Pois deixa-nos?
 
SEGUNDO ABOLICIONISTA  Tenho que escrever o meu terceiro artigo contra o vizinho...
 
PRUD'HOMEM  O senhor tem estado de uma violência...
 
SEGUNDO ABOLICIONISTA  Sou delicado... sou brando... calço luva de pelica... Mas quando me fazem sair fora do sério, não respondo por mim! Estão vendo esta gravidade? Pois tudo isto desaparece desde o momento em que a mostarda me suba ao nariz. (Cumprimenta com muita gravidade. Entram o Conselheiro e Magdá)
 
PRUD'HOMEM  Aí vem o Conselheiro Pinto Marques... (Ao primeiro abolicionista) Tu, que tens com ele mais intimidade, vê se o resolves a tomar logo a palavra. (Dirigindo-se ao Conselheiro) Ó, excelentíssimo, como tem passado? Minha senhora!
 
CONSELHEIRO Logo vi que o havia de encontrar, Senhor Prud'homem. Um exaltado de sua força! (Prud'homem cumprimenta e afasta-se. O Conselheiro, ao primeiro abolicionista) Ó Senhor Barroso! (Baixo à Magdá) Que tal o achas? Tem alguma coisa de seu...
 
PRIMEIRO ABOLICIONISTA  Aproveito o feliz encontro para participar a vossa excelência que me caso sábado. Se quiser dar-me a honra...
 
CONSELHEIRO Felicito-o. (À parte, despeitado) Mais um!
 
MAGDÁ (à parte, com alegria)  Menos um!
 
CONSELHEIRO Então? temos ou não temos meeting?
 
O ABOLICIONISTA  Se temos! É possível até que haja sangue, muito sangue mesmo!
 
CONSELHEIRO (assustado)  Acha?
 
O ABOLICIONISTA  Sangue? Que digo? Mortes!... Mas há de fazer-se o meeting!
 
CONSELHEIRO (querendo sair)  Com sua licença: tenho que tratar num negócio importante...
 
O ABOLICIONISTA  Nada! Já o não largo! Um homem como vossa excelência é que nós procuramos!
 
CONSELHEIRO Ah! andam também à procura de um homem? Pois consolem-se comigo, que sou uma espécie de Diógenes.
 
 
CENA II Os mesmos, a Justiça, depois doze inimigos da Justiça.
 
JUSTIÇA (entrando com as vestes rotas, a balança quebrada e os olhos vendados)  Socorro! Acudam-me! Socorro!
 
TODOS  Que é isto? que foi? quem é a senhora?
 
JUSTIÇA  Eu sou a Justiça... e tão esfarrapada que, confesso, estou vendida no meio de tanta gente... Doze cidadãos, que deviam defender-me, juraram dar cabo de mim... Já me deixaram neste estado, e, não satisfeitos ainda de me haverem posto fora de casa a pontapés, perseguem-me até a rua!
 
MAGDÁ Coitadinha! Ah! se eu fosse homem! 
 
(Entram os Doze Inimigos da Justiça armados de cacete e ameaçadores)
 
UM INIMIGO  Havemos de levá-la a toque de caixa até o Asilo de Mendigos!
 
OS OUTROS  Isso! isso! Asilo com ela!
 
CONSELHEIRO Pois, senhores, não se envergonham de tratar desta maneira uma pobre mulher vendida... quero dizer vendada?
 
O INIMIGO  Não atendemos a razões! Siga!
 
TODOS  Siga!
 
CORO Vá lá! Vá lá! Sem respingar, siga adiante! Vá já! Vá já! Saia daqui no mesmo instante!
 
Inda o asilo está distante,  Mas depressa chegará. Vá lá! Vá lá!
 
(Saem esbordoando e perseguindo a Justiça)
 
CONSELHEIRO Mas com que ardor eles lhe atiçam!
 
MAGDÁ Dir-se-ia que estão pagos para isso!
 
 
CENA III Os mesmos, um empregado do tesouro, depois o Doutor Cow-Pox.
 
O EMPREGADO  Ó Senhor Conselheiro! Venho agora mesmo de sua casa! tinha que falar-lhe sobre um negócio...
 
CONSELHEIRO Ah! Sim? (À parte) Vai pedir-me a pequena! (Alto, à filha) Magdá, minha filha, cumprimente aqui o senhor: é um moço distinto.
 
MAGDÁ Senhor...
 
O EMPREGADO  Há mais de oito dias que faço tenção de procurá-lo. Infelizmente um filhinho meu foi atacado de varíola...
 
CONSELHEIRO (à parte)  Um filhinho! Ora sebo! (Alto, secamente) Queira dizer então o que pretende.
 
O EMPREGADO  Como sabe, sou empregado do Tesouro, e, organizando a relação dos devedores à Fazenda Nacional, por títulos, condecorações, etc., encontrei o seu nome e lembrei-me de preveni-lo.
 
CONSELHEIRO Quê! O senhor pensa que não tenho em que empregar o meu dinheiro? Como eu, há muitos, há milhares!
 
O EMPREGADO Assim é, com efeito... mas, conhecendo e sabendo como são austeros os seus princípios...
 
CONSELHEIRO O meu principal princípio, meu caro senhor, é que quem é tolo pede a Deus que o mate e ao diabo que o carregue! Desde que a maior parte não paga, não serei tão pacóvio que...
 
O EMPREGADO  Porém...
 
CONSELHEIRO E demais, escrevi no álbum que vamos oferecer ao Ministro...
 
MAGDÁ Ah! papai escreveu? Algum pensamento? Qual foi, papai?
 
CONSELHEIRO O meu nome... como todos.
 
MAGDÁ Ora um álbum de nomes!... que lembrança!
 
CONSELHEIRO Sua Excelência vai ter algumas horas de deleitosa e instrutiva leitura.
 
MAGDÁ Antes lhe oferecessem o Indicador Laemmert.
 
CONSELHEIRO Pelo menos era muito mais barato.
 
MAGDÁ E lia-se melhor, por ser letra de imprensa...
 
O EMPREGADO  Então não quer pagar?
 
CONSELHEIRO Eu me entenderei com o Ministro.
 
O EMPREGADO  Faz muito bem: procure o homem...
 
CONSELHEIRO Procure o homem! Mas eu não faço outra coisa há tanto tempo! Olhe, ali vem o Doutor Cow-Pox com a vacina animal. Agarre-se a ele para vacinar-lhe a família.
 
O EMPREGADO  O conselho não é mau; vou aproveitá-lo.
 
(Entra o Doutor Cow-Pox, puxando uma vaquinha que traz chocalho no pescoço)
 
O DOUTOR Vacina animal! único preservativo eficaz contra a varíola!
 
COPLAS
 
I Quem me vir co'esta vaquinha Pensará que eu vendo leite, Porém tal ninguém suspeite,
 
Pois que leite ela não dá; Não é vaca a vaca minha; Não é vaca e sim vitela, Quando a vaca inda é donzela Não é vaca: sê-lo-á.  Tlin! tim! tlin! Quem quiser boa vacina  Superfina Aproxima-se de mim.
 
II Mas, voltando à vaca fria, Saibam todos que esta vaca Da varíola a sanha aplaca, Ande embora a quatro pés. Quem temer a epidemia Vamos lá! não perca a vaza: No Hospital da Santa Casa Me achará das oito às dez.  Tim! tlin! tím!
 
Assim pois, meus senhores, só terá hoje varíola quem quiser tê-la!
 
O EMPREGADO  Se Sua Senhoria pudesse chegar com a vaquinha até a nossa casa... Tenho uma porção de filhos. É perto daqui.
 
O DOUTOR Vamos lá então. (Saindo, acompanhado pelo Empregado e por alguns curiosos) Vacina animal! o único preservativo eficaz contra a varíola!
 
CONSELHEIRO É um servição que nos está prestando esse doutor...
 
MAGDÁ Por que não lhe pediu que me vacinasse?
 
CONSELHEIRO (distraído)  É impossível, o doutor é casado...
 
MAGDÁ Falo-lhe da vacina, e papai responde-me que o doutor é casado. Que maçada!
 
CONSELHEIRO Sim... bem sei... mas não é de vacina que tu precisas: é de...
 
MAGDÁ (vendo entrar o Padre Inácio)  Um Padre!
 
CONSELHEIRO O padre é o menos... Apareça o homem, que padres andam por aí às dúzias.
 
 
CENA IV Os mesmos, o Padre Inácio, depois o Barão de Caiapó.
 
O PADRE (cumprimentando)  Senhor... Sou o Padre Inácio.
 
CONSELHEIRO Perdão, não era com Vossa Reverendíssima que eu falava. Não tenho a honra de conhecê-lo.
 
O PADRE  Eu sou o Padre Inácio.
 
MAGDÁ O da cartilha?
 
O PADRE  Não, minha filha, o do balão. (Ao Conselheiro) Já que o encontro: a sua graça?
 
CONSELHEIRO Conselheiro Pinto Marques.
 
O PADRE  Já que o encontro, Senhor Conselheiro Pinto Marques, tenho a satisfação de convidá-lo para a experiência que vou, pela centésima vez, realizar daqui a pouco.
 
CONSELHEIRO Pela centésima vez? De que se trata então?
 
O PADRE  Da direção dos aeróstatos.
 
CONSELHEIRO Homem, Padre, eu acho que Vossa Reverendíssima faria muito melhor tratando da direção das almas.
 
O PADRE E a glória? e a imortalidade?
 
CONSELHEIRO Histórias, Padre, histórias.
 
O PADRE  Histórias, não, senhor; descobri o meio de dirigir os balões... Comprei o Santa Maria de Belém.
 
CONSELHEIRO Entra, Santa Maria!
 
O PADRE (espantado)  Como?
 
CONSELHEIRO Nada. Lembrei-me agora de uma nova gíria de capoeiras, que li nas Notícias Várias... Entra, Santa Maria!
 
O PADRE  Noventa e nove vezes tentei subir...
 
CONSELHEIRO Mas não subiu?
 
O PADRE  Não subi, porque, em havendo gás, o balão arrebentava, e quando o balão não arrebentava...
 
MAGDÁ Não havia gás.
 
O PADRE  É verdade, minha filha; mas hoje...
 
CONSELHEIRO e MAGDÁ Hoje?
 
O PADRE  Hoje, ou eu vou aos ares no balão, ou vai tudo pelos ares! Foi um padre brasileiro o inventor dos aeróstatos... Outro padre, e também brasileiro, descobrirá o ponto de apoio.
 
CONSELHEIRO Está então disposto a pintar o padre?
 
O PADRE  Pintar o!... Estou disposto a pintar sua avó torta! Veja lá se quer divertir-se à minha custa! (Saindo) Eu lhe mostro se subo ou se não subo. (Sai)
 
MAGDÁ Para que papai foi bulir com o padre?
 
CONSELHEIRO Ora! um homem... que não é homem! Oh! Há quem aqui vem: o Barão de Caiapó.
 
O BARÃO (que tem entrado)  Barão por hora: qualquer dia passo a Visconde. Nada, agora fia-se mais fino! Riem-se? Continuem a rir, se lhes parece. A coisa custou, mas veio.
 
CONSELHEIRO O que é que veio, Barão? Você explique-se!
 
O BARÃO  Não vê esta encadernação de luxo? Calça da Estrela do Brasil... sobrecasaca do Simonetti... Ah! Meu amigo! Passei a minha concessão a uma grande companhia inglesa, e recebi bom número de pelegas. Estou rico! Arre! que já não é sem tempo!
 
CONSELHEIRO Está rico! (Tirando o chapéu) O senhor vai agora quebrar a castanha na boca de muita gente!
 
O BARÃO  Vou mesmo.
 
CONSELHEIRO Eu por mim declaro que vossa senhoria nunca me pareceu ridículo, sempre censurei certas pilhérias de mau gosto.
 
O BARÃO  Eu sei... Agora sou um cidadão importante.
 
CONSELHEIRO (depois de alguma hesitação e consultando Magdá com os olhos)  E vossa excelência não pretende mudar de estado?
 
O BARÃO  Casar-me, eu? Está doido! Pois acabo de sofrer horrores durante tantos anos para obter a minha concessão, e agora, depois de velho e de arranjado, hei de procurar nova sarna para me coçar? Ora viva! casar-me! Nem uma princesa que me aparecesse! (Sai)
 
MAGDÁ Ora que lembrança, papai! Fazer de mim Baronesa de Caiapó!
 
CONSELHEIRO Minha filha, este homem é uma mina! Hei de voltar à carga!... (Vendo uns tipos suspeitos) Sabe que mais? Vamos embora. Isto por aqui está cheio de capoeiras, e eu respeito muito esses senhores.
 
MAGDÁ Capoeiras? ainda?... Mas depois das medidas votadas pelo Parlamento...
 
CONSELHEIRO Pois sim! ainda agora acabam de formar uma nova malta... Os Conceições da Marinha... Estamos perto do Museu... Vamos ver o esqueleto da baleia que apareceu na Copacabana.
 
 
CENA V Os mesmos, o primeiro abolicionista.
 
PRIMEIRO ABOLICIONISTA  Conselheiro, aproxima-se a hora do meeting.
 
CONSELHEIRO Hem? Já? Vamo-nos embora!
 
PRIMEIRO ABOLICIONISTA (agarrando-o)  Não consinto! vossa excelência há de soltar o verbo!
 
CONSELHEIRO E o senhor há de soltar-me o casaco. Está maluco? (Desprendendose) Vamos ver a baleia! (Sai levando Magdá)
 
PRIMEIRO ABOLICIONISTA (falando a um grupo que se tem reunido)  Cidadãos, as cenas de violência de que foi teatro o Teatro Politeama...
 
VOZES  Apoiado!
 
PRIMEIRO ABOLICIONISTA  A perseguição sem tréguas de que somos vítimas... 
 
(Ouve-se apitar)
 
VOZES  A polícia! 
 
(O primeiro abolicionista deita a fugir e desaparece. Entra a polícia, que dispersa o povo. Grande tumulto. Música na orquestra. Mutação)
 
 
QUADRO V O peristilo do Palácio da Imprensa.
 
CENA I Um porteiro.
 
PORTEIRO  Isto aqui é o soberbo peristilo Do Palácio da Imprensa. Meus, senhores, e aquilo, Aquela casa imensa, É o Palácio, onde exerço De porteiro as funções em prosa e verso.  A gente que me vê pasmada fica De ter casa tão rica 
 
Um porteiro tão sujo... Quintino, Castro, Chaves, Araújo E os demais jornalistas, bem quiseram Despedir-me daqui, porém toleram  Minha ignóbil presença, Porque sem mim, não pode haver imprensa  No Rio de Janeiro, Nem no Brasil inteiro. Dizem todos de mim o que Mafoma Ao toicinho poupou, mas ninguém toma A deliberação de me pôr fora. Eu passo muito bem, não vou me embora. Às ordens me acho aqui todos os dias De vossas senhorias: Se pretendeis na imprensa Dirigir uma ofensa Por detrás da cortina, Quaisquer injúrias esta mão assina. Nem procuro sequer saber o assunto, Nem o nome da vítima pergunto. Se acaso contra mim se volta a vítima, Eu digo-lhe chorando  Que exerço honesta profissão legítima, E movo-lhe a piedade, E ela deixa-me em paz. É bem verdade  Que vou, de quando em quando, Na cadeia cumprir uma sentença  Por delitos de imprensa.  Não faço cara feia,  Pois tenho na cadeia  Casa, cama e comida;  Só não tenho jornais, que é coisa proibida. Se alguém precisa de ladrão pra cima Ao próximo chamar, burro, bilontra,  Tudo quanto quiser, ao seu dispor me encontra:  Eu chamo-me Romão José de Lima.
 
 
CENA II  O porteiro, o Conselheiro, Magdá.
 
PORTEIRO  Quem procura o senhor? Deseja acaso  Passar descomponenda  Que deite tudo raso,  Sem que dessa coragem se arrependa,  Ou que ponha vermelha, A cara de Brantôme e a de Bocácio?  Quem procura o senhor neste Palácio?
 
CONSELHEIRO O Doutor Várias e o Doutor Zé Telha. (A Magdá)  Fala-me em verso; em verso lhe respondo.
 
MAGDÁ Antes os versos do que a prosa chata!
 
PORTEIRO  Procura os dois? Será coisa de estrondo?
 
CONSELHEIRO Coisa particular.
 
MAGDÁ De que se trata?
 
CONSELHEIRO De ti se trata, minha filha: andamos Há tanto tempo a procurar um homem; Daqui pr'ali constantemente vamos, E as ilusões efêmeras se somem. Só poderemos encontrar marido  Que ofereça magnífico partido 
 
Na bela imprensa. José Telha é moço  E de espírito um poço;  Tem pelas sogras um rancor profundo:  Tu não tens mãe, que a minha Gabriela,  Para eterno descanso — meu e dela— Deixou-me só no mundo.  O outro, o Várias, é talvez mais velho, Mas não é trapo que se atire ao canto: Agrada-me, porquanto Não quero ver-te esposa de um fedelho.
 
MAGDÁ  Mas porque carga d'água lhe deu na veneta Ser o sogro de um jornalista?
 
CONSELHEIRO Filha, eu leio o Jornal, leio a Gazeta: Vi uma discussão fisiologista Entre esses dois senhores, a propósito Das suas respectivas qualidades, E nenhum deles, se escreveu verdades, É traste que se mande pro Depósito. Se eu quero achar um homem, certamente Melhor não posso desejar que aquele Que declara que o é, publicamente.
 
PORTEIRO  Permita que uma coisa eu lhe revele: O Telha e o Várias são papéis queimados.
 
CONSELHEIRO Casados!
 
MAGDÁ (à parte, contente)  São casados!...
 
CONSELHEIRO É mais uma ilusão deitada fora. (À Magdá)  Estás muito caipora!
 
 
CENA III Os mesmos, o Rio de Janeiro.
 
MAGDÁ Veja, papai, que tipo extravagante!
 
CONSELHEIRO Um defunto ambulante! Olá, senhor, fugiu do cemitério,  Ou anda a procurar o necrotério?
 
PORTEIRO  Eis um que ao termo da viagem chega, Sem me dar a ganhar uma pelega!
 
RIO DE JANEIRO Ó meu Romão, comigo não se enfade, Porque não foi por falta de vontade.
 
CONSELHEIRO Ele fala!
 
RIO DE JANEIRO  Meu caro Conselheiro, Já não conhece o Rio de Janeiro? Contemple neste pobre moribundo Mais um jornal que resistir não pode  Aos artigos de fundo, Se benéfica mão há que os pode,  Eu esfalfei-me a defender governos,  Escrevendo cadernos e cadernos,
 
Pra provar, com cinismo,  Que não estamos à beira de um abismo;  E, no entanto, de dívidas cativo,  Eu passo por defunto estando vivo!
 
CONSELHEIRO Eu supunha-o já morto, porque, em suma,  Não há meio de vê-lo em parte alguma!
 
PORTEIRO  Por que não passa a publicar-se à tarde?
 
CONSELHEIRO Cure-se: o mesmo redator não guarde.
 
RIO DE JANEIRO Mudei de redator e noutra não me meto,  Pois foi pior a emenda que o soneto! (Mostrando muitos papéis que traz debaixo do braço) Toda minha esperança Na papelada que aqui está, descansa. É do Bíblia o famoso testamento E são todas as peças do processo. Vou fazer um romance de espavento! Se isto não me salvar, desapareço! (Apertando a mão ao Conselheiro) Se eu morrer, acompanhe o meu enterro. (Cumprimentando Magdá com a cabeça, e o Porteiro com um gesto) Minha senhora! — Adeus, testa-de-ferro!  (Entra no Palácio)
 
PORTEIRO Está por um momento!
 
MAGDÁ Pois se ele até já leva o testamento!
 
 
 
CENA IV O porteiro, o novidades, o Conselheiro, Magdá.
 
NOVIDADES (saindo do Palácio e falando para dentro) Arrasta-te, peralta! Morre, vadio, que não fazes falta!  (Descendo ao Porteiro) Recusa-se o Governo a socorrê-lo: Pena melhor tem cá pra defendê-lo.
 
MAGDÁ Este rapaz quem é, tão sacudido?
 
CONSELHEIRO É um jornal, não serve pra marido.
 
NOVIDADES  Pois não conhece, moça, O Novidades? Ouça:
 
COPLA
 
Nasci modestamente Na Rua do Ouvidor, E tive incontinenti O público a favor. Na de Gonçalves Dias, Par'onde me mudei, Maiores simpatias, Senhores, encontrei. Das três às cinco e meia Não há quem me não leia;  Não há quem não procure novidades No Novidades!
 
(Declamando) 
 
Não me dei bem c'os ares matutinos, E mudei para tarde os meus passeios, Ando na mão de trêfegos meninos,  Outros tantos esteios Dos meus risonhos, prósperos destinos.
 
CONSELHEIRO Mas a sua política tendência  Simpática não é...
 
NOVIDADES  Não é?... Paciência, Não posso ser um patacão luzente Que agrada a toda gente...
 
PORTEIRO  Têm merecido apaixonadas críticas  Suas Notas Políticas...
 
CONSELHEIRO Eu tenho-as lido... no Jornal.
 
NOVIDADES  Transcritas Por algum tipo que as achou bonitas.  Mas... político eu sou por incidente; Tenho principalmente Notícias... novidades...  E me esforço por serem só verdades.
 
MAGDÁ Tem o "Palanque"
 
NOVIDADES  Isso é o pior que tenho. Falta-lhe graça, não lhe sobra engenho, 
 
E decorre de graves e de agudos  Nestes tempos bicudos.
 
 
CENA V O Porteiro, o Conselheiro, Magdá, o novidades, Caneca.
 
CANECA (entrando) Eu sou poeta; eu canto as borboletas E o brilho das esplêndidas auroras... Fiz um volume ornado de vinhetas E intitulei-o Ondulações Sonoras.
 
NOVIDADES  Vem oferecê-lo à imprensa?
 
MAGDÁ (à parte) Ele é poeta, E tem na fonte a palidez do asceta!
 
CANECA  Eu venho com meus versos sonorosos, Tristes, ardentes, pudibundos, castos,  Encher o batalhão dos numerosos  Nunes Garcias e Barretos Bastos.
 
MAGDÁ (entusiasmada) Fez um livro de versos?
 
CANECA  E são meus! Ninguém, graças a Deus,  Lhes dirá o que disse um crítico iracundo  Do soneto das Pombas do Raimundo.
 
CONSELHEIRO (à parte) Querem ver que afinal achei o homem?
 
(Alto, a Caneca) Senhor, poeta, diga-me: é solteiro?
 
CANECA  Certamente.
 
MAGDÁ (contente)  Solteiro!
 
CONSELHEIRO Cavalheiro, Quer casar-se?
 
CANECA  Casar-me? Vade retro! Se me tomam por doido, não me tomem! Um casamento?! Pavoroso espectro! Pois não vê que sou padre?!
 
CONSELHEIRO Mais um padre!
 
CANECA  Eu casar-me? Essa é boa!
 
PORTEIRO (tirando o chapéu a Caneca)  Pois se o homem tem c'roa!...
 
CONSELHEIRO (a Magdá)  E não achamos noivo que te quadre!
 
MAGDÁ (à parte)  Fernandinho, perdoa!...
 
 
CENA VI Os mesmos, Souvenir, o Diário Ilustrado.
 
SOUVENIR (ao Novidades) Sabes? um telegrama aí está de Pernambuco  Dando eleito o Nabuco!
 
NOVIDADES O Nabuco?! E Portela, o meu melhor amigo?!  Vou fazer um artigo! (Entra no Palácio)
 
SOUVENIR  Acabo de assistir aos últimos momentos  De três colegas! Três falecimentos!...
 
O RIO DE JANEIRO Inda agora soltou o artigo derradeiro.
 
O DIÁRIO ILUSTRADO Tinha apenas, coitado, Nascido, e de repente... neste instante, Morreu de apoplexia fulminante! Pobre Vida Moderna!  De nada lhe valeu chamar-se Vida!
 
PORTEIRO  Não era a vida eterna!
 
SOUVENIR  Morreu também... morreu por não ser lida! (Vendo Magdá e tomando notas a lápis num caderninho) Olé? uma senhora! Caderninho na mão! lápis de fora!  Tomemos nota da toalete!
 
CONSELHEIRO Diga. Quem é aquele tipo interessante? 'Stá fazendo o retrato à rapariga?
 
PORTEIRO  É o Cupido da Imprensa, o petulante  Gregório Souvenir. Faz as delícias  Dos leitores do Diário de Notícias. Se vê dama janota,  Das fanfreluches corre a tomar nota.
 
CONSELHEIRO Que vocação tem ele pra modista!
 
CANECA Tem vantagens a lista,  Que publica, das gentis madamas  Que pela Rua do Ouvidor passeiam.
 
CONSELHEIRO Reverendo, quais são?
 
CANECA  Famosas damas, Que daqui para ali saracoteiam Na ausência dos maridos, Temendo ver seus nomes inseridos Na lista, deixam-se ficar em casa,  E o jantar não se atrasa...
 
SOUVENIR  Eu vi uma dengosa moreninha  Comendo no Pascoal uma empadinha;  Os seus dentes alvíssimos entravam Num camarão gostoso,  E os seus olhares rútilos lançavam Um raio luminoso Entraste na crisálida do beijo, Ditoso camarão! como eu te invejo! Avec un charme extrême
 
Ela trajava bela jupe en faille, Corset vertceladon, chapeau en paille, Garni de roses et de ruban crème. Vi mesdames: T, F, A, B, P, M. G, K, T, O, P, A, B, B, C, T. G, R, A, G, T, A, D, I, J, V.
 
(Quinteto)
 
Desse modo, meu amigo,  Poderá vossemecê Transformar qualquer artigo  Numa carta de abc! Tal sistema, com certeza, Faz lembrar a Arquiduquesa. A.B. C.D. E.F.G. H.I.J.K.L.M.N.O.P.Q. R.S.T. U.V. X.Y.Z.
 
TODOS  A.B.C. etc.
 
PORTEIRO (a Souvenir) É certo que o Diário Mudou de proprietário?
 
SOUVENIR  Mudou; mas eu fiquei... Não me repeles,  Meu bom Diário, enquanto neste mundo Comprido, largo e fundo, Houver madames e mademoiselles!
 
PORTEIRO  Eis aí vem a Gazeta de Notícias. A Gazeta? Que pândega!
 
(A Gazeta de Notícias, entrando acompanhada de dois carregadores trazendo um caixão em que se lê: "Senhores Araújo e Mendes, Rio de Janeiro")
 
A GAZETA  Bravo! tenho as primícias De um belo livro! Fui buscá-lo à Alfândega!  Valioso mimo que me manda o Eça. (Ao porteiro)  Abre aquilo depressa.
 
(Aberto o caixão, sai de dentro a Relíquia. Os carregadores saem levando o caixão)
 
 
CENA VII O porteiro, o Conselheiro, Magdá, Caneca, Souvenir, a Gazeta de Notícias, a Relíquia.
 
A GAZETA  Como te chamas, meu tudo?
 
A RELÍQUIA  A Relíquia.
 
CONSELHEIRO Um belo título!
 
A GAZETA Que livro! Cada capítulo  Vai dar-me um conto...
 
O PORTEIRO (à parte)  E um canudo! (Alto) O meu Bacharel Raposo Há de ser apreciado, Por estar monografado De um modo meticuloso, Porém o que mais espanta, E o que mais agradar deve, É o trecho em que se descreve A famosa Terra Santa.
 
CONSELHEIRO Ora! o mau gosto penetra Em toda a parte hoje em dia. Preferirão a Judia: "Fui, corri o mapa... Et cetera."
 
A GAZETA (dando a mão à Relíquia) Anda daí por quem é! Não temos tempo a perder! Venha, sinhá! vai fazer Figura no rodapé.  (Entra no Palácio com a Relíquia)
 
MAGDÁ (ao pai)  Vamos, basta de maçadas!
 
CONSELHEIRO Se o homem... Mas se encontram camaradas.
 
 
CENA VIII O porteiro, o Conselheiro, Magdá, Caneca, Souvenir, Prud'homem, depois o Sportman, depois o Esporte, depois a Época, depois a Gazeta Nacional.
 
COPLAS)
 
PRUD'HOMEM Inda eu tenho miolos na pinha!  Inda um fogo bem vivo aqui arde Não escrevo nem mais uma linha Pra famosa Gazeta da Tarde. Mas eu vejo mil crimes impunes E não quero passar por vadio: Lá na casa que foi Faro e Nunes Vou fundar a Cidade do Rio. (Sai)
 
SOUVENIR  Tem talento: longe irá.
 
PORTEIRO  Um cidadão prestadio: Funda a Cidade do Rio  Depois de Estácio de Sá.
 
MAGDÁ (vendo entrar o Sportman que vem chorando)  Papai, um homem chorando!
 
PORTEIRO  O Sportman, um jornal novo...  Saiu agora do ovo, Mas vai posição tomando.  (Recrudesce o choro do Sportman)
 
CANECA  Mancebo, não te desvaires!
 
SOUVENIR  Por que choras?
 
SPORTMAN  Faça ideia:
 
A nossa grande Frineia  Foi perder em Buenos-Aires!
 
SOUVENIR  Talvez seja algum cancã...
 
CONSELHEIRO Mas esse animal querido  Tinha sido aqui batido  Por Salvatus e Satã.
 
SPORTMAN  Não é vergonhoso, creia,  Fazer má figura em casa,  Mas é coisa que atenaza  Fazê-la na casa alheia.
 
PORTEIRO (vindo buscar o Esporte que entra com a cabeça amarrada, emplastro no olho e manqueando)  Um jornal recém-nascido.
 
O ESPORTE  O Esporte!
 
CONSELHEIRO Ainda! Mas veja!  Traz ligaduras!... Manqueja!...  Onde é que esteve metido?
 
O ESPORTE  Ó senhor, não me exacerbe Recordando-me a desgraça: Eu quase deixo a carcaça Numa corrida do Derby.
 
SOUVENIR  São de prazer os percalços.
 
PORTEIRO  Tenha o Derby uma botica,  Onde haja bastante arnica,  Unguentos e pontos falsos.
 
A ÉPOCA (entrando)  Meus senhores, com licença...
 
CONSELHEIRO Que bela menina!
 
SOUVENIR Olé! (Toma nota)
 
A ÉPOCA  Sabem dizer-me: não é  Este o Palácio da Imprensa?
 
PORTEIRO  Sim, minha bela senhora;  E, mal seu nome disser,  Levá-la-ei, se quiser  Sem a mínima demora.
 
A ÉPOCA  Eu sou a época. Acabo Neste instante de nascer, Porém prometo fazer Na nossa imprensa o diabo. Não tenho programa.
 
CONSELHEIRO Homessa! Mas isso é programa?
 
SOUVENIR  Imenso!
 
A ÉPOCA  Terei sintaxe e bom senso, Não é programa: é promessa. O meu redator em chefe, Conquanto ensine rapazes, Não tem mãozinhas capazes De palmatória e tabefe; Eu, por conseguinte, espero Que as folhas, colegas minhas, Me recebam nas palminhas, E é um sorriso...
 
PORTEIRO  Oh! sincero!
 
(Entra a Gazeta Nacional arrebatadamente, cantando a Marselhesa. Todos se assustam) 
 
Olé! Também é jornal!
 
CONSELHEIRO (que de medroso se escondeu reaparecendo)  Desculpa: doida supu-la. (A Gazeta Nacional mostra-lhe o seu barrete frígio) Bravo! Como se intitula? A Gazeta Nacional. A Gazeta Nacional.
 
PORTEIRO  Dona, se não a importuna  A pergunta, dê licença: Que veio fazer na Imprensa?
 
GAZETA NACIONAL  Vim preencher uma lacuna.
 
MAGDÁ  É justamente o que faz  Toda a folha recém-nata.
 
GAZETA NACIONAL  Republicana exaltada, De grandes coisas capaz, Venho salvar o país... E, sem mais tirte nem guarte, Vou metendo em toda parte O petulante nariz.
 
 
CENA IX O porteiro, o Conselheiro, Magdá, Caneca, Souvenir, Prud'homem, a Época, o pescador, pessoas do povo, depois a Gazeta de Notícias, depois um crítico.
 
PRUD'HOMEM  Encontrei um grande amigo  E venho à imprensa trazê-lo.
 
TODOS  Quem é?
 
PRUD'HOMEM  Um homem modelo!
 
CONSELHEIRO Modelo? Então é comigo.
 
PRUD'HOMEM  Um pescador.
 
TODOS  Pescador! (Aparecendo) 
 
Para servi vosmecês.
 
PORTEIRO  Que fez ele?
 
MAGDÁ Ele o que fez?
 
PRUD'HOMEM  Fez prodígios de valor; Por entre vagas daninhas, Vendo um vapor naufragar, Foi pescar homens no mar Como quem pesca sardinhas.
 
PESCADOR  Quaqué outro em meu lugá A mesma coisa faria; É o mundo uma pescaria É coisa face pesca. A incasiáo não é má: Eu estou entre gente amiga Vou cantá uma cantiga Do Esp'rito Santo...
 
TODOS  Vá lá.
 
CANTIGA (Música popular do Norte)
 
I PESCADOR  Nesta vida de interesse, Neste mundo enganadô, Não há home que não seja Mais ou menos pescadô.
 
Pesca o pobre, pesca o rico, Pesca aqui, pesca acolá; Pesca uns porque precisa, E outros pesca por pescá. Atira a rede, Pesca, seu bem! Tem paciência, Que o peixe vem!
 
CORO  Atira a rede, etc.
 
II PESCADOR  Pescadores de águas turva Na política se vé; Há nas classes elevada Pescadores como quê. Mas há muito quem na pesca Tenha só contrariação: Desejando peixe fino, Só apanha algum cação,  Atira a rede, etc., etc.
 
III Se alguém vê uma menina Na janela namorá, Fique certo de que aquilo É que chama-se pesca. Mas cuidado, sinhazinha: Nunca pesque um peixe só. Lance a três a mesma isca, Prende seis no mesmo anzó!... Atira a rede, etc.
 
GAZETA DE NOTÍCIAS (entra, vem pensativa ao proscênio e cruza os braços)
 
Não há decepção tamanha Que, com a minha, se meça: Fez a Relíquia do Eça Fiasco monumental. (Alegre) Mas ora adeus! cara alegre! Tréguas ao meu desespero! Para consolar-me, espero  As cartas do Demerval.
 
TODOS  Apoiado! (olhando para dentro)
 
A GAZETA Silêncio! Ei-lo que volta! Foi a São Paulo, andou à rédea solta... Ei-lo outra vez!
 
O CRÍTICO (entrando, lançando-se nos braços da Gazeta) Venha esse longo abraço!  Pode apertar-me o rígido espinhaço!
 
A GAZETA  Vens encantado de São Paulo?
 
O CRÍTICO  Venho. Não fui a Santos, apesar do empenho  Que houve pra que lá fosse; Mas fui ameaçado c'um banquete.  Eu farto estava já de tanto doce,  E a viagem tornava-se cacete.
 
CONSELHEIRO (aproximando-se do Crítico) Eu folgo de encontrá-lo, Porque necessitava consultá-lo; Em primeiro lugar saber preciso: Se é solteiro ou casado?
 
O CRÍTICO  Sou casado. Digo-lhe mais: não tardo a ter netinhos.
 
CONSELHEIRO Ouviste, minha filha? Eu perco o juízo! Marido assim, nem mesmo encomendado!
 
MAGDÁ (à parte, depois de olhar para o Crítico) Não há dois Fernandinhos!
 
CONSELHEIRO Agora as impressões que daqui leva Diga, embora mais tarde um livro escreva.
 
O CRÍTICO  Muito me agrada esta cidade: é linda; Mas muita, muita coisa falta ainda Para um país primeiro entre os primeiros.
 
A GAZETA  Já viste o nosso Corpo de Bombeiros?
 
O CRÍTICO  Podia ser mais limpa esta cidade. Há ruas onde a vossa Edilidade Deixa ficar imundos atoleiros...
 
CONSELHEIRO Mas, entretanto, o Corpo de Bombeiros...
 
O CRÍTICO  Ser melhor a polícia bem podia...
 
MAGDÁ O Corpo de Bombeiros, todavia...
 
O CRÍTICO  E não andar nas mãos de uns paturebas!
 
PESCADOR  Temos um Corpo de Bombeiros tebas!
 
O CRÍTICO  Deviam-se alargar diversas ruas, Ficando apenas uma onde estão duas, E pôr abaixo uns tantos pardieiros...
 
SOUVENIR  É pena que não visse o Corpo de Bombeiros!
 
O CRÍTICO  Mas construções oficiais, não deixo De notar, francamente, algum desleixo Por parte de arquitetos e engenheiros...
 
CANECA  Porém temos um Corpo de Bombeiros...
 
O CRÍTICO  As Belas-artes, coitadinhas, morrem, E em seu auxílio rápidos não correm Os velhos conselheiros...
 
PRUD'HOMEM  Mas deixa lá, que o Corpo de Bombeiros...
 
O CRÍTICO  Nas folhas diárias vejo as cerebrinas, As ignóbeis mofinas, A vergonha maior dos brasileiros...
 
PORTEIRO  Por que não vai ao Corpo de Bombeiros?
 
O CRÍTICO (impacientado)  Pois bem! eu juro e atesto: Tendes um belo Corpo de Bombeiros, Mas falta-vos... o resto.
 
TODOS  Pois viva o nosso Corpo de Bombeiros!
 
(Música na orquestra. Olham todos para fora e apontam. Movimento)
 
 
CENA X Os mesmos, a Colônia Portuguesa, trazida num palanquim, acompanhada por algumas associações portuguesas do Rio de Janeiro; depois o Gabinete Português de Leitura. (Depois de uma grande marcha) Música de Adolfo Lidner. A colônia Portuguesa desce do palanquim e aproxima-se o Crítico.
 
COLÔNIA PORTUGUESA Não vou a nenhuma parte  Senão por motivo forte...  Soube que estavas na Corte E venho cumprimentar-te,  Merece tanta fineza Tão robusta inteligência.
 
O CRÍTICO  Mas quem é vossa excelência?
 
COLÔNIA PORTUGUESA  A Colônia Portuguesa.
 
O CRÍTICO  Oh! perdão, formosa dama! Eu protesto-lhe o respeito A que tem todo o direito
 
A sua esplêndida fama. Nesta cidade formosa, Onde sei que não te queixas, Tive uma mala do Seixas, Tive a comenda de Rosa, Tive uma pena, e o diploma De presidente honorário De um congresso humanitário, Que, por patrono, me toma. Enfim pelo brasileiro Fui nas palminhas tratado; Porém, senhora, ao teu lado Menos me sinto estrangeiro.
 
COLÔNIA PORTUGUESA Nunca to sintas; bem vês Que neste país tamanho Uma coisa é ser estranho E é outra ser português. No fundo do coração Pelo Brasil recebidos, Nós somos irmãos queridos, Não somos hóspedes, não. Se o primeiro Imperador Fez, numa situação crítica, A independência política, Não fez decerto a do amor. Mas, para mostrar que valho Tanta afeição e tão terna, Esta divisa moderna Eu adotei — o Trabalho. Longo fora enumerar-te Tudo quanto tenho feito, Mas ficarás satisfeito Se as minhas obras mostrar-te.
 
O CRÍTICO  Mostra-mas, e não presumas Que com isso me incomodas.
 
COLÔNIA PORTUGUESA Não, posso mostrar-te todas,  Mas posso mostrar-te algumas. (As associações)  Em linha, desfilar! Um por um venha! (Ao Crítico) Verás! quando outro espírito não tenha, Possuo, ao menos, o de associação. Atenção!
 
TODOS  Atenção!
 
(Música em surdina na orquestra. As associações desfilam à medida que são nomeadas pela Colônia Portuguesa)
 
Eis a Beneficência, A minha glória, o meu eterno orgulho!
 
O CRÍTICO  Porém houve entre os médicos barulho.
 
COLÔNIA PORTUGUESA Uma greve... não teve consequência. O Liceu Literário... Vê como vai catita;  Não há colégio mais humanitário, Nem mais cosmopolita,  Não faz questão de nacionalidade: Para aprender ali, basta a vontade. A Caixa de Socorros, A Caridade a jorros! O Real Clube Ginástico...
 
Inteligente, pândego, fantástico... Este é o Retiro Literário... um ninho... O Congresso Ginástico aparece... O Congresso a que vem Martins de Pinho...
 
O CRÍTICO  Bem sei, o tal que teve uma quermesse.
 
COLÔNIA PORTUGUESA Enfim traz cada qual o seu letreiro. Não há em Portugal poeta ou guerreiro, Varão ilustre que não esteja aqui... Camões, Egas Munis, Vasco da Gama... Vê... figurões de mais ou menos fama... Bocage, Afonso Henrique...
 
O CRÍTICO  Vejo ali O Marquês de Pombal, se não me iludo...
 
COLÔNIA PORTUGUESA  Há meia dúzia de Pombais.
 
O CRÍTICO (vendo passar o último)  É tudo?
 
GABINETE PORTUGUÊS DE LEITURA (entrando) Falta eu só pra que  O grupo se complete.  Tardei um pouco mais do que devia,  Porque estive a mudar de freguesia.
 
O CRÍTICO  Quem é? Não tem letreiro
 
GABINETE PORTUGUÊS DE LEITURA  O Gabinete Português de Leitura
 
Nasci modestamente há cinquenta anos, Toda à casta sofri de desenganos, E já bem perto andei da sepultura. Mas felizmente esta senhora aos poucos Se convenceu da minha utilidade; Aos rogos meus não fez ouvidos moucos, E abriu-me as portas da prosperidade.
 
COLÔNIA PORTUGUESA  Dei-lhe um palácio!
 
O CRÍTICO Cáspite!
 
COLÔNIA PORTUGUESA  Menino, Português, e mãos largas são sinônimos.
 
GABINETE  Um palácio soberbo, manuelino, Que é, por fora, o Convento dos Jerônimos, E, por dentro, um alcácer peregrino!
 
O CRÍTICO  Vai o palácio então fazer barulho?
 
COLÔNIA PORTUGUESA  É digno das maiores capitais.
 
GABINETE  A todo Portugal enche de orgulho E causa inveja aos próprios nacionais.
 
O CRÍTICO Os próprios nacionais... um calembur diviso... Mas vamos!... quero vê-lo!... e que me leve a breca,
 
Se aquilo é gabinete, e não biblioteca! Vamos!
 
COLÔNIA PORTUGUESA  Não é preciso Que saiamos daqui...
 
O CRÍTICO  Inda que invoques As artes de berliques e berloques, Duvido que possamos O Gabinete ver sem que saiamos.
 
COLÔNIA PORTUGUESA  Esqueces com certeza Que tudo pode a colônia portuguesa! O edifício apareça resplendente Que há de honrar o meu nome eternamente!
 
(Gesto, mutação)
 
 
QUADRO VI O interior do novo edifício do Gabinete Português de Leitura. Música na orquestra. Todos os personagens dão vivas à Colônia Portuguesa.
 
 
ATO III
 
QUADRO VII (Parte do saldo do Teatro São Pedro de Alcântara Ao fundo a estátua de Antônio José)
 
CENA I Conselheiro, Magdá, espectadores.
 
CORO Que bela música! Que perfeição! Canta-nos, fala-nos Ao coração!
 
UM ESPECTADOR (a outro)  Então, seu Viana, que tal lhe pareceu a primeira parte do concerto?
 
O OUTRO  Magnífica. Gostei muito da Dança Macabra.
 
O ESPECTADOR  Não diga macabra... É macbra que se diz.
 
CONSELHEIRO (a Magdá) Decididamente estes concertos populares hão de popularizar-se. Eu, por mim, declaro que nunca ouvi tão boa música no Rio de Janeiro.
 
MAGDÁ Temos andado estes últimos dias numa dobadoura!
 
CONSELHEIRO Só exposições de pintura visitamos umas poucas. Nunca se pintou tanto nesta terra. Praias de Icaraí, vimos seguramente vinte...
 
MAGDÁ Ainda ontem visitamos a exposição dos caminhos de ferro.
 
CONSELHEIRO Não perdemos nada. Saí encantado da Liceu de Artes e Ofícios. (Vendo que os figurantes têm se retirado todos) Já cá não está ninguém. Parece que principiou a segunda parte.
 
MAGDÁ (que se tem aproximado da estátua)  Papai, quem é este sujeito?
 
CONSELHEIRO Não vês o letreiro? "Antônio José, poeta cômico". Foi grande brasileiro que morreu nas fogueiras do Santo Ofício.
 
MAGDÁ Coitado. 
 
(A estátua reanima-se: o Conselheiro e Magdá fogem espavoridos cada um para seu lado)
 
 
CENA II Conselheiro, Magdá, Antônio José.
 
(Quando a estátua se reanima, há um acorde na orquestra, e a música continua em surdina até que Antônio José desça do pedestal)
 
ANTÔNIO JOSÉ  Agradecido, senhora, Senhora, muito obrigado: Essa palavra — coitado — Me comove e me penhora. Em tempos que já lá vão, Quando o mundo andava torto, Eu, com efeito, fui morto Pela Santa Inquisição. Mas o espírito travesso Que engendrou tanta obra-prima De vez em quando reanima Este boneco de gesso.. Sabem? fizeram de mim, Pondo-me neste salão, Comediógrafo não, Mas moço de botequim. Quando por trás do balcão Eu presidia às bebidas,
 
As toalhas sujas, servidas, Me penduravam na mão.
 
CONSELHEIRO (ainda espantado) Em coisa tão singular  Custa-me crer, minha filha!
 
MAGDÁ (idem) Não há maior maravilha  Do que uma estátua a falar!
 
ANTÔNIO JOSÉ  O fato é bem natural,  Mas, pra falar mais a gosto,  Eu vou sair do meu posto,  Saltar do meu pedestal. (Salta para o palco. Os dois se assustam)  Pronto!
 
MAGDÁ  E ele pôde saltar Sem que ficasse em pedaços!
 
CONSELHEIRO Se dá mais dois ou três passos, Em fanicos vai ficar!
 
ANTÔNIO JOSÉ  Mas por que atônito estás? Sou homem, como pareço!
 
CONSELHEIRO Homem?!... Nada... Homem de gesso Não nos faz conta.
 
MAGDÁ  E por que sérios motivos
 
Deixas, agora, pergunto, A posição de defunto, E vens flanar entre os vivos?
 
ANTÔNIO JOSÉ  Senhora, descer aqui Considero um sacrifício, Triste percalço do ofício Que neste mundo exerci. São bem pouco interessantes Estas vindas aqui em baixo; Melhor lá nos mundos me acho Dos espíritos errantes. Se à minha terra natal Atualmente eu venho ter, É pra revista fazer Do movimento teatral.
 
CONSELHEIRO O mais honroso lugar Na projetada revista, A Emanuel, o grande artista, Parece que deves dar. A sua estreia no Otelo Foi um acontecimento; Não 'spero ver um talento Mais singular, nem mais belo. Não viste o velho Arduíno? Nem Mercadet? nem Alceste? Não sabes quanto perdeste...
 
ANTÔNIO JOSÉ  Era bom?
 
MAGDÁ  Era divino!
 
Na noite de sua festa, Teve uma ovação... que horror!...
 
CONSELHEIRO Raro com tanto calor O povo se manifesta! Nessa revista fecunda Deve também ter entrada A companhia chamada Dona Maria Segunda, Composta de alguns atores De muito merecimento.
 
MAGDÁ Brasão tem muito talento.
 
CONSELHEIRO E os Rosas são duas flores. — Não te esqueças também disto... (Põe-se a imitar os fantoches)
 
ANTÔNIO JOSÉ  Isso o que é? (Conselheiro continua)  Não me deboches!  'Stou imitando os Fantoches. (Continua)
 
ANTÔNIO JOSÉ  Não continues... tenho visto...  No circo de cavalinhos,  Estiveram duas vezes Uns senhores japoneses...
 
MAGDÁ Por sinal, que bem sujinhos...
 
86
 
ANTÔNIO JOSÉ  Pelo teatro te interessas? Verás que Antônio José, Sem daqui arredar pé, Evoca artistas e peças. Poder sobrenatural, Força magnética, imensa, Faz vir à minha presença Todo o mundo teatral. Mas não aparecerão Nesta cômica revista Qualquer peça ou mesmo artista De que hajas feito menção. (Vendo entrar a Companhia Heller) 'Stás vendo? a dança começa!  (À Companhia Heller) Quem és tu, bela menina? És uma atriz papa-fina? És um teatro? uma peça?
 
 
CENA III Os mesmos, a Companhia Heller.
 
A COMPANHIA HELLER  Sou do Heller a Companhia. O meu querido empresário Fez um ato extraordinário: Dissolveu-me.
 
CONSELHEIRO Quem diria?
 
A COMPANHIA HELLER  Em seguida, anunciou  Que nova empresa formava...
 
CONSELHEIRO Bem sei: que te reformava...  Porém não te reformou.
 
A COMPANHIA HELLER  Causar não pôde alvoroto  Reforma tão pequenita: Pôs-se pra fora o Mesquita,  Pôs-se pra dentro o Peixoto.
 
ANTÔNIO JOSÉ  Que peças tens?
 
A COMPANHIA HELLER  Imagine: A Princesa Flor de Maio...
 
ANTÔNIO JOSÉ  Uma mágica? Desmaio! De que autor?
 
A COMPANHIA HELLER  Do Carrancini.
 
ANTÔNIO JOSÉ  Vamos, vamos! que mais há?
 
A COMPANHIA HELLER Serviram de amargo exemplo A Toutinegra do Templo E O Moleiro de Alcalá. Sempre o teatro vazio! Mas Jacinto não cansa, Nem nunca perde a esperança...
 
ANTÔNIO JOSÉ  Essa virtude aprecio.
 
A COMPANHIA HELLER Pôs o Amor Molhado agora E as mãos para o céu levanta, Pois a concorrência é tanta, Que vai muita gente embora, Por não ter bilhete achado. O bilheteiro, por isso, Vendo aumentar o serviço, Pede aumento de ordenado.
 
 
CENA IV Os mesmos, um admirador, trazendo pela mão uma atriz.
 
O ADMIRADOR  Já que se faz a revista  Das teatrices deste ano,  Venho entusiasmado, ufano,  Apresentar uma artista. (Apresenta a atriz, que cumprimenta e é Cumprimentada)
 
A COMPANHIA HELLER  Eu despeço-me à francesa... (Sai)
 
O ADMIRADOR Chegou há pouco da roça; É nossa, nossa, bem nossa, E vale bem quanto pesa. Sem que dos gestos abuse, Sem que os efeitos ignore, Faz esquecer a Ristori E põe num chinelo a Duse! Sabendo do despontar Desta estrela brasileira, Resolveu fazer-se freira A grande Sarah Bernhardt. 
 
(Novos cumprimentos) Faz amanhã benefício: Pois há de encher-se o teatro E há de haver o diabo a quatro! Nada, que eu sou seu patrício! Haverá chuva de flores... Musicata no jardim...  Balões chineses... assim! (Gestos de que serão muitos) Poesias de bons autores! Ao terminar a função, Ao som de duas charangas, Os fanáticos em mangas De camisa ficarão. Eu, que não sou nenhum gebo, Organizei pr'esta atriz, Uma marcha au flam-b-a-u-x, Porém com velas de sebo, Um belo carro ela toma, Mas, antes de entrar em casa, Há de, embora não lhe apraza, Beber parati com goma. Metidos entre os varais Do carro a que ela subir, Nós havemos de suprir A ausência dos animais! Mas basta de dar-lhes trela! Ando c’os preparativos Para que tenha atrativos Tão barulhenta ovadela! (Sai com a atriz, depois de novos cumprimentos)
 
ANTÔNIO JOSÉ  Como fala este rapaz!
 
CONSELHEIRO E a pobre da atriz, coitada, De um modo atroz debicada,  Deve andar de pé atrás.
 
 
CENA V Conselheiro, Magdá, Antônio José, Kean, outros Keans.
 
(Os Keans aparecem trazendo cada um uma cadeira na mão)
 
CONSELHEIRO, MAGDÁ e ANTÔNIO JOSÉ  Oh! que é isto?
 
KEAN  Eu sou o Kean, Quando, no ato terceiro,  Se veste de marinheiro  Na cena do botequim.
 
ANTÔNIO JOSÉ  Estes senhores, já vejo, São todos Keans... não me engano...
 
KEAN  Ah! nós temos Keans este ano Por atacado e a varejo!
 
(CORO)
 
KEANS  Dos Keans que o mundo conhece A coleção aqui está; E quanto mais Keans houvesse,  Mais Keans estariam cá.
 
PRIMEIRO KEAN (declamando) Nós temos o Kean... Brasão
 
E pesa bem um Kean tal, Por isso é bem natural Do povo a consagração. Nós temos o Kean Giovani, Que, não sendo um manequim, Não é, todavia, um Kean De quem a arte se ufane. Temos o Kean... Braga.
 
CONSELHEIRO Oh! Oh!
 
KEAN  Não é nenhum Kean à toa, Mas temos o Kean Lisboa Que parece um Kean gombó.
 
CONSELHEIRO Pois é artista terrível Na opinião de muita gente; Faz não só um Kean possível, Como até um Kean decente.
 
KEAN  Vamos ter. (Oh! que o destino Dos Keans a raça dissipe!) No Príncipe, o Kean — Filipe, E no Santana, o Kean — Nino. Mas de todos esses Keans, O de mais aceitação É decerto o Kean — Brasão, Que tem do povo os quindins. Se o Jordão pergunta assim, Fazendo o anúncio: — Que drama Quer que eu bote no programa? Diz o Braga: — Bote Kean.
 
(Os Keans repetem o coro e saem)
 
CONSELHEIRO Que brava gente!
 
ANTÔNIO JOSÉ Pois sim! Parecem bem contrafeitos Alguns daqueles sujeitos.
 
MAGDÁ Julgam que o Kean é o Nhô Quim.
 
 
CENA VI O Conselheiro, Magdá, Antônio José, o fiscal, depois Francillon, depois Lucrécia Bórgia.
 
O FISCAL (entrando esbaforido) Socorro! Socorro!... Acudam, que eles aí vêm A perseguir-me!...
 
CONSELHEIRO, MAGDÁ e ANTÔNIO JOSÉ  Eles quem?
 
O FISCAL  Se me não escondem, morro! Ah! parece-me que, agora, Já me perderam de vista! Porém vinham-me na pista  Por esse Rossio fora!
 
ANTÔNIO JOSÉ  Mas quem? Meirinhos?
 
MAGDÁ Soldados?
 
CONSELHEIRO Credores?
 
ANTÔNIO JOSÉ  Ou inimigos?  Que é lá?
 
O FISCAL  Uma récua de mendigos  Famintos, esfarrapados!
 
CONSELHEIRO Mendigos? que lhe queriam?
 
O FISCAL  Esmolas de dez tostões.  Violentas imprecações Em coro me dirigiam. Do Recreio o empresário Teve hoje grande despesa: Para festejar da empresa O faustoso aniversário, Abriu da bolsa os cordéis, Puxou pelos belos cobres, E mandou dar a cem pobres Esmolinhas de mil réis. A capital do Brasil Não sabe os pobres que tem: Olhem... convidamos cem, E apresentaram-se mil! Eu, que estava encarregado De por co' dono a cobreira, Tive tão grande canseira, Que quase morro esfalfado!
 
Fui obrigado a fugir! Livre do perigo me acho... Mas se eles estão lá abaixo, Esp'rando ver-me sair...
 
ANTÔNIO JOSÉ  Diga-me... Saber preciso! Não leve a pergunta a mal... O que é lá você?
 
O FISCAL  Fiscal.
 
ANTÔNIO JOSÉ  E o que é que faz?
 
O FISCAL  Fiscalizo.
 
ANTÔNIO JOSÉ  Que tem havido de bom?... (De bom no tocante à arte) No Recreio este ano?
 
O FISCAL À parte A Lucrécia e a Francillon, Que são dois grandes primores Como os não faz toda gente, E virão diretamente Apresentar-se aos senhores, Houve a Família Fantástica. É muito boa família...
 
ANTÔNIO JOSÉ  Tenho ao gênero quizília, Que é do teatro a ginástica.
 
FISCAL  Houve mais o Vinte Nove.
 
MAGDÁ Qual? o que anda pelas ruas?
 
O FISCAL  O do tempo do Dom Fuas, Coitado! Já não comove.  Pelo empresário mandado,  Eu fui, numa noite escura,  Tirá-lo da sepultura Em que se achava enterrado.
 
ANTÔNIO JOSÉ  E deu no vinte o empresário  Pondo o Vinte e Nove?
 
O FISCAL Nada.
 
CONSELHEIRO Com peça desenterrada Embirra o público vário.
 
O FISCAL  Oh, que opinião obtusa! Conquanto em cinzas desfeito,  Foi perfeitamente aceito O Naufrágio da Medusa. Parecia um drama novo!  Teve o público sufrágio!
 
CONSELHEIRO Foi o único naufrágio 
 
Que pôde agradar ao povo.  E o Guilherme?
 
O FISCAL Está co’a gente.
 
ANTÔNIO JOSÉ  Ah! Ah!
 
O FISCAL  Trouxe-nos este ator O Prestidigitador, Em que vai perfeitamente, E a grande Grande Avenida, Peça arquipiramidal, Que, na Espanha e em Portugal, Foi cem mil vezes ouvida. Adeus.
 
OS OUTROS  Adeus.
 
(O Fiscal indo a sair, encontra-se com Francillon e apresenta-a. Sai)
 
FRANCILLON  Procuro um pintalegrete,  Pra levá-lo a um gabinete  Reservado da Maison. (Ao Conselheiro)  Meu velho, comigo vem!
 
CONSELHEIRO Eu, senhora, um Conselheiro!
 
FRANCILLON  Receias gastar dinheiro? Eu pago a ceia, meu bem.
 
CONSELHEIRO Por quem me toma a senhora?
 
FRANCILLON  Prometo não abusar,  Vais simplesmente cear...  Pod'rás depois ir te embora.
 
CONSELHEIRO Não tenho fome.
 
ANTÔNIO e JOSÉ FRANCILLON  Ora ouve: Desejo que meu marido, Pela aparência iludido, Pense que houve o que não houve. Aquele mau me atormenta: Com ela fui surpreendê-lo, Que não tem tanto cabelo, Nem cabelinho na venta! O beijinho das esposas Quer que sofra esse vilão A pena de Talião!
 
CONSELHEIRO A pena de tal... e coisas...
 
FRANCILLON  Porém, como eu me respeito,  E a minha virtude acato, Não desejo ser... de fato, Seja embora de direito. Uma espécie de José Do Egito procuro, amigo, Que, estando a cear comigo, Não passe além do café...
 
ANTÔNIO JOSÉ  É bem boa, reconheço, A ideia que hoje lhe acode,  Mas este senhor não pode...
 
CONSELHEIRO E este senhor é de gesso.
 
FRANCILLON  Então, permitam que eu saia. (Sai)
 
CONSELHEIRO Um homem minh'alma anseia,  Não para dar-lhe uma ceia, Mas para dar-lhe uma saia.
 
(Entra Lucrécia Bórgia com um B. dourado na mão)
 
MAGDÁ Quem será esta gorducha?
 
LUCRÉCIA  Lucrécia Bórgia... Conhece?
 
MAGDÁ De nome.
 
CONSELHEIRO (à parte)  Pois me parece  Mais a Maria Cachucha!
 
LUCRÉCIA  Veem este B?  (Ao Conselheiro) Vê? (A Antônio José) Vê? (A Magdá) Vê?
 
ANTÔNIO JOSÉ  V ou B?
 
LUCRÉCIA  B?
 
CONSELHEIRO B?
 
MAGDÁ B?
 
TODOS  B?
 
LUCRÉCIA  É de gloriosa memória! 'Stava o meu nome na porta Lá no palácio pregado, Porém veio um desalmado E arrancou-lhe o B...
 
CONSELHEIRO Que importa? Mande soldá-lo de novo.
 
LUCRÉCIA  És tolo.
 
CONSELHEIRO Tolo é você.
 
LUCRÉCIA  Vê que o meu nome sem b Será o escárnio do povo.
 
ANTÔNIO JOSÉ  Não te percebo, vovó.
 
LUCRÉCIA  Não vês que chamo-me Bórgia? Tira-lhe o B.
 
ANTÔNIO JOSÉ  Fica órgia.
 
LUCRÉCIA  Tira esse acento do o!
 
ANTÔNIO JOSÉ  Fica orgia.
 
LUCRÉCIA  Orgia!
 
TODOS  Orgia!
 
ANTÔNIO JOSÉ  Calembur inconveniente!
 
MAGDÁ Foi uma injúria pungente!
 
CONSELHEIRO Foi grande patifaria!
 
MAGDÁ Se lhe dá na fantasia  Tirar três letras, não uma, Não tinha graça nenhuma Era chamá-la de gia!
 
ANTÔNIO JOSÉ  Se arrancasse o i e o a, E, no seu lugar, pusesse Um e, e depois um s, Borges, ficaria, olá!
 
CONSELHEIRO Ora, adeus! o o tirassem, Tirassem o i e o g, Deixassem a, r, b, Um u, e um r, buscassem; Onde está o o, colocassem Um u, e um r adiante. Quero morrer neste instante,  Se burra não a chamassem!
 
ANTÔNIO JOSÉ  Ah! mas esse peralvilho,  Troca-tintas, dizer quero, Troca-nomes, teve, espero,  Punição!
 
LUCRÉCIA  Era meu filho!...
 
TODOS  Seu filho!...
 
LUCRÉCIA  Salvá-lo qu'ria,  Mas meu marido, um tirano,  Sanguinário, desumano,  Não me atendeu!...
 
ANTÔNIO JOSÉ  Todavia, 
 
Ele era o pai, e ao suplício,  Um pai o filho não manda!
 
LUCRÉCIA  Vou pôr-te de cara à banda, Meu filho é filho ex-officio!...
 
ANTÔNIO JOSÉ  Nesse caso, desgraçada, Vai cumprir o teu destino!
 
LUCRÉCIA  Meu Gennaro! meu menino! Quem deita cabeçada!... (Sai)
 
MAGDÁ  Pobre mulher! que funesta Estrela!
 
CONSELHEIRO Se aquele b Fosse, em vez de b, um t,  Eu pregava-lho na testa.
 
 
CENA VII Conselheiro, Magdá, Antônio José, Dona Joanita, o vestuário velho e remendado, o homem dos papagaios.
 
COPLAS
 
I DONA JOANITA Eis aqui Dona Joanita, Das operetas foi a flor; Outra peça mais bonita Não havia, não senhor.
 
Já ninguém por mim palpita, Não inspiro mais amor...  És muito caipora! És muito infeliz! Isto ao ver-me agora  Toda a gente diz!
 
TODOS És muito caipora!  És muito infeliz! Isto, no vê-la, agora  Toda a gente diz!
 
II DONA JOANITA  Maltratou-me tanta gente,  Tanta gente me estragou,  Que nem sombra infelizmente  Do que fui agora sou. Vou morrer como indigente... Num hospício morrer vou... És muito caipora! etc. (Chorando e declamando)  Dona Joanita morreu...  Pelo passado suspiro.
 
MAGDÁ Coitada!
 
CONSELHEIRO O último tiro Foi a Nághel quem lhe deu...
 
DONA JUANITA  Adeus! (Sai)
 
MAGDÁ Sorte desumana!
 
ANTÔNIO JOSÉ  Aterradora desdita!
 
CONSELHEIRO Já não é Dona Joanita: É antes a mãe Joana... (Vendo entrar o homem dos papagaios) Amigo, quem é você?
 
O HOMEM DOS PAPAGAIOS Sou um grande vagabundo;  Vivo a enganar meio mundo  E sempre encontro com quê.
 
CONSELHEIRO Donde vem?
 
O HOMEM DOS PAPAGAIOS Da Detenção. Pra lá mandou-me um juiz.
 
ANTÔNIO JOSÉ  Ah! não foi pelo que eu fiz.
 
CONSELHEIRO Pelo que eu fiz, também não.
 
MAGDÁ E agora?
 
O HOMEM DOS PAPAGAIOS Vou dar um plano: O Ferrari cá não vem; Os fluminenses não têm Teatro lírico este ano.
 
Vou, portanto, organizar, Com elementos da terra, Companhia que na berra Inda verão que há de estar.
 
MAGDÁ (contente)  Vamos ter lírico!
 
CONSELHEIRO Filha, Não creias nele.
 
O HOMEM DOS PAPAGAIOS Pois creia. Já tenho peça de estreia: O Barbeiro de Sevilha.
 
ANTÔNIO JOSÉ  O Barbeiro? Rua! rua!...  Ó meu grandíssimo burro,  Sai, se não queres, c'um murro,  Ir de catrâmbias à Lua! (Expele o homem dos papagaios, que sai) Que atrevimento! Rossini Posto em cena — faze ideia! Por quem saiu da cadeia. E...
 
CONSELHEIRO Amigo, não se amofine.
 
 
CENA VIII O Conselheiro, Magdá, Antônio José, primeiro ator, segundo ator, uma atriz cantora, atores e atrizes da Companhia de Zarzuelas.
 
(Entram todos cantando e dançando a Zamacoeca da Zarzuela Los Sobrifios del Capitán Grant)
 
PRIMEIRO ATOR  Vea usted la compania De Zarzuelas!
 
ANTÔNIO JOSÉ  Já vi.
 
ATRIZ CANTORA  Suceso haceme aquí Mucho mayor que en Bahia
 
CONSELHEIRO Sois mui guapos.
 
ATRIZ CANTORA  Como vedes
 
MAGDÁ És linda!
 
ATRIZ CANTORA  Una sierva vuestra.
 
CONSELHEIRO Quieremos ver una amuestra.  Del repertorio de ustedes.
 
ATRIZ CANTORA (ao primeiro ator)  Lo quieres, chico?
 
PRIMEIRO ATOR  Lo quiero. Como no, mi bonitota?
 
ATRIZ CANTORA  Vamos darles una jota.
 
CONSELHEIRO Que tenga mucho salero.
 
(Cantam a jota da zarzuela "La Nueve de la Noche")
 
ATRIZ CANTORA  Bien, vamos, que no pudiemos Demoramos, mis señores.  Adiós.
 
CONSELHEIRO Adiós, mis amores!
 
ATRIZ CANTORA  Espectáculo tenemos.
 
(Saem repetindo um motivo do coro)
 
CONSELHEIRO La española cantoria Palpitar hace mi pecho!
 
SEGUNDO ATOR (que vai a sair por último) Yo soy el brazo derecho  De toda la compañia.
 
 
CENA IX Conselheiro, Magdá, Antônio José, primeiro ator.
 
ANTÔNIO JOSÉ  Bom: está acabada a revista Do movimento teatral; Eu volto ao meu pedestal... Amigos, até à vista.
 
CONSELHEIRO Espera: o Éden-concerto Hoje inaugurar-se vai. Vamos vê-lo?
 
MAGDÁ  Mas por quê...  Um homem de gesso!...
 
ANTÔNIO JOSÉ  É certo; Mas tomarei a figura  De um indivíduo qualquer.
 
CONSELHEIRO Deveras? Qual há de ser?
 
ANTÔNIO JOSÉ  Pois procuremos... procura...
 
CONSELHEIRO Uma figura de artista?
 
ANTÔNIO JOSÉ  Qualquer serve... a de um ator. Eu tomo seja qual for...
 
CONSELHEIRO (com uma ideia) A do Batata cambista!
 
ANTÔNIO JOSÉ  Pois seja! Como num sonho Me metamorfosearei; O tal Batata serei Pelo poder de que disponho.
 
MAGDÁ Mais tempo aqui não percamos.
 
ANTÔNIO JOSÉ  Já que com bons modos pedem,  De súcia vamos ao Éden!
 
CONSELHEIRO Vamos!
 
MAGDÁ Vamos!
 
ANTÔNIO JOSÉ  Vamos! (Saem)
 
(Mutação)
 
 
QUADRO VIII No Éden-concerto.
 
CENA I Espectadores, um inglês, um espectador, depois o homem dos duzentos e cinquenta, e, mais tarde, o Café Oriente.
 
CORO Como é bom! Vai sempre haver aqui gente do tom! Muito teremos que folgar e rir!  O prazer O seu reinado aqui vai exercer! Não há, pois, resistir!
 
O INGLÊS (a um espectador)  Oh, yes! estar very beautiful Eden-concerta!
 
ESPECTADOR  Ah! mussiú, ainda não viu nada! Quando ouvir a moça gorda cantar, é que há de ficar satisfeito.
 
O INGLÊS  Oh, no! mim no gostar de moce gorde... gostar de moce magre... pequeninhe... Que instrumenta toca moce pequeninhe?
 
ESPECTADOR  Ah! é Mademoiselle Olga! Não toca instrumento algum, mussiú: canta também.
 
O INGLÊS  Ah! very well. Mim vai ouve e oferece uma rama bonita.
 
ESPECTADOR  Mussiú já foi ver a exposição permanente?
 
O INGLÊS  Permenenta? no! onde estar permenenta?
 
ESPECTADOR  Ali, naquela sala... Vai ver, que vale a pena.
 
O INGLÊS Estar ali para prende gatuna?
 
ESPECTADOR  Qual gatuno o quê? Falo da exposição.
 
O INGLÊS  Ah! exposição... Yes, mim vai ver.
 
O HOMEM DOS DUZENTOS E CINQUENTA (entrando e indo ao espectador)  Não sabes? Marquei duzentos e cinquenta pontos.
 
ESPECTADOR  Duzentos e cinquenta! O quê?
 
O HOMEM DOS DUZENTOS E CINQUENTA  Duzentos e cinquenta! Na cabeça do turco!
 
O INGLÊS  Aoh! estar homa de pulsa!
 
ESPECTADOR  Quanto pagaste pela experiência?
 
O HOMEM DOS DUZENTOS E CINQUENTA  Barato. Cada dois murros, cem réis.
 
O INGLÊS  Aoh! mim no sabe português, mas cada dois parece estar asneira.
 
O HOMEM DOS DUZENTOS E CINQUENTA  O letreiro assim diz. Hei de consultar o Doutor Lopes. 
 
(O Café Oriente entra e dirige-se aos grupos do fundo)
 
ESPECTADOR  Olha que rapariga interessante.
 
O HOMEM DOS DUZENTOS E CINQUENTA  Parece que anda a oferecer a xícara que tem na mão. Dirige-se para nós. Vamos já saber quem é.
 
CAFÉ ORIENTE  Meus senhores, Café Oriente! Oferecemos hoje, grátis, aos frequentadores do Éden uma xícara do precioso grão.
 
O INGLÊS  Aoh! xícara de preciosa grau estar dois murras!
 
CAFÉ ORIENTE Vai uma xicarinha?
 
COPLAS
 
I Permitam que eu lhes ofereça Uma mostrinha de café, Pois não há quem não apeteça Provar daquilo que bom é. Sem cerimônia é, pois, prová-lo, E como é esplêndido, verão. Mas outras noites um tostão Pagará quem quiser tomá-lo.  Que melhor há  Ninguém dirá! E que gostinho! Provem lá! Quem duvidá-lo experimente O belo Café Oriente!
 
II Dá-nos prazer, produz conforto Um gole só deste café. E pode até fazer que um morto, Salte da cova e fique em pé. Restaura a força quebrantada; Se dele usar um ancião, Sentirá tal transformação... Que eu até não lhes digo nada... Que melhor há, etc. Quando quiserem, sem cerimônia... estamos ali... (Sai)
 
O INGLÊS  Mim vai tomá café. Estar deliciosa rapariga. (Sai)
 
 
CENA II Os mesmos, um logrado, depois um astrólogo, depois um repórter, depois Conselheiro, Magdá e o Batata.
 
ESPECTADOR (indo ao encontro do Logrado)  Ora até que afinal! Julguei que não aparecesses! Onde estiveste metido?
 
O LOGRADO  Deixa-me, estou danado!
 
O HOMEM DOS DUZENTOS E CINQUENTA  Por quê?
 
O LOGRADO  Nunca mais dou crédito a notícias dos jornais! Pego hoje numa folha, e leio que há um terremoto no Rio Comprido... Rachou uma montanha, e há uma pedra cai não cai... Uma pedra tão grande, que, se cai, derriba não sei quantas casas... os moradores estão seriamente incomodados... e, como os incomodados é que se mudam, os moradores mudam-se. Tudo isto leio... vou averiguar a data: não estamos em 1° de abril. Resolvo ir ao Rio Comprido. Passo pelo Diário de Notícias... Está um boletim no Necrotério. Aproximome para saber quem morreu. O boletim reza assim: "Continuam os roncos no Rio Comprido". Os roncos! não quero saber de mais nada! Tomo imediatamente o bonde. Levo o coração nas mãos. Ali pelas alturas da Rua de Itapagipe, ouço, efetivamente, um ronco. Tremo dos pés à cabeça. É um porco que levam para o Seminário. Ah! meus amigos, noutra não caio eu!
 
O HOMEM DOS DUZENTOS E CINQUENTA  Hum!...
 
ESPECTADOR  Mas, afinal o terremoto?
 
O LOGRADO Que terremoto, que nada! Foi pulha! Mas não perdi o tempo: ao menos fui ver as obras do túnel. Entrei no Rio Comprido e saí nas Laranjeiras. Ah! mas estou moído como não fazem ideia!
 
ASTRÓLOGO (entrando)  Não a viram, meus amigos não a viram?...
 
TODOS  Quem?
 
ASTRÓLOGO  Ela, Cinira, a minha estrela! Uma estrela que eu descobri, e que desapareceu do meu firmamento! (Vendo o repórter, que entra) Ah! um repórter! Chega a propósito... vai prestar-me um grande serviço!
 
REPÓRTER  Qual?
 
ASTRÓLOGO  O senhor, que anda à cata de notícias, vai descobrir onde se oculta a minha estrela!
 
REPÓRTER  É impossível... Tenho entre mãos uma diligência importantíssima. Imagine que a polícia atirou no que viu e matou o que não viu. Deitou a unha num fabricante de moeda falsa, quando julgava apanhar um casal de pombinhos.
 
ASTRÓLOGO  Que com certeza não fabricavam notas...
 
REPÓRTER  Quando disse fabricante, disse mal... O homem levava uma máquina.
 
ASTRÓLOGO  De fazer dinheiro?
 
REPÓRTER  De fingir que o faz.
 
ASTRÓLOGO  Ora bolas!
 
REPÓRTER  O sujeito pretendia dá-la por bom preço a um matuto. (Sai)
 
ASTRÓLOGO  Mas venha cá... a minha fugitiva... (Desaparece com o repórter. Entram o Conselheiro, Magdá e Batata)
 
BATATA  Aqui se esconde a pessoa Daquele Antônio José, Morto num auto de fé De Santo Ofício em Lisboa. É este o Éden-concerto Tão gabado e tão falado, Que tem o grande Furtado Por diretor?
 
CONSELHEIRO Sim
 
MAGDÁ Decerto.
 
BATATA  Palavra que é bonito!
 
CONSELHEIRO O Furtado não é Manuel de Sousa.
 
MAGDÁ Tem dedo para a coisa.
 
BATATA  Que gastasse bons cobres acredito.
 
CONSELHEIRO Em matéria de gosto não dá raia, Justamente ele aí vem. (Batata quer sair)  Então? não saia!
 
BATATA  Ia ver as pequenas, Pois há delas aqui um sortimento De todos a contento: Magras e gordas, claras e morenas.
 
CONSELHEIRO (à parte)  Ora o diabo é sujo! (Alto)  Pois até o senhor.
 
BATATA  Psiu... Eis o cujo.
 
(Entra o Diretor do Éden-concerto e dirige-se aos grupos com os quais conversa)
 
 
CENA III O conselheiro, Magdá, Batata, figurantes, o diretor, depois o astrólogo.
 
MAGDÁ (Ao pai)  Como é lindo o Furtado! Inda o não tinha visto assim barbado!  Por ele amor dentro em meu peito ferve.
 
CONSELHEIRO Tira a ideia daí: esse não serve.
 
MAGDÁ Será também casado?
 
CONSELHEIRO Pois não sabes ainda Que ele é o marido da gentil Lucinda?
 
MAGDÁ (à parte)  Fernandinho, perdão!
 
BATATA (ao Diretor, que desce) Comendador, consinta Que eu, com todo o prazer, tenha a distinta De apresentar-lhe aqui O Conselheiro Pinto Marques.
 
CONSELHEIRO Senhor...
 
O DIRETOR  Ah!... verdadeiro. Prazer é o meu.
 
BATATA  E a sua gentilíssima Filha Dona Magdá.
 
O DIRETOR  Excelentíssima! Como quê, vieram ver meu Paraíso? Satisfeitos então? Saber preciso.
 
MAGDÁ Decerto.
 
CONSELHEIRO Com efeito,  Não pensei que isto fosse tão bem feito.
 
MAGDÁ É na verdade, um Éden.
 
DIRETOR  Certamente. Só lhe falta... a serpente.
 
CONSELHEIRO Mas as Evas aqui são levadinhas, E os Adões uns janotas...
 
BATATA  Sim, mas é para que eles tragam botas  E elas tragam anquinhas...
 
ASTRÓLOGO (entrando e vendo Magdá) É ela! a minha estrela!  Torno, afinal, a vê-la!... Vem, meu querido amor; vem, meu tesouro!  Não pode haver sem ti nem Galo de Ouro,  Nem Bearnesa, nem Mercúrio, nada! (Agarra Magdá)
 
CONSELHEIRO Querem ver que esse tipo tem pancada?
 
MAGDÁ Senhor, me largue, que não sou peteca!
 
CONSELHEIRO (arrebatando Magdá) Não julgue ser alguma fulustreca À mercê de casquilhos!  É solteira, e o respeito sabe dar-se,
 
Em breve há de casar-se E há de, querendo Deus, ser mãe de filhos!
 
ASTRÓLOGO  Não pega essa mentira! Sua filha? Ora qual!  Esta é minha Cinira! Há de ser filha, mas do Senescal.
 
BATATA  Não te deixes levar pela aparência;  Tem razão no que diz Sua Excelência.
 
CONSELHEIRO É minha.
 
MAGDÁ Sou sua filha!
 
TODOS  É sua filha!
 
ASTRÓLOGO  Bom... 'stá bem... Visto isto,  Senhores, não insisto.  Vou procurá-la! Oh! hei de reavê-la,  A minha linda estrela! (Sai)
 
BATATA (com muita volubilidade) Imaginem se é possível Um relógio sem ponteiro,  Um engenheiro sem nível, Satisfeitos então? Saber preciso. Um jardim sem jardineiro, Uma casa sem janela, Uma missa sem sacrista, Um bonde sem manivela,
 
Um cosmorama sem vista; Modista sem figurino, Sapateiro sem tripeça, Festa de gala sem hino, Defunto rico sem essa; Copo-d'água sem discurso, Sorveteiro sem sorvetes, Um teatro sem Castro Urso, Um Castro Urso sem bilhetes; Uma pesca sem caniços, Um engraxate sem graxa, Um mulher sem postiços, Um São Jorge sem tarraxa.
 
CONSELHEIRO Oh! que grande linguarudo  Veja ao menos se respira!
 
BATATA  Pois o pior do que isso tudo  É o Lucinda sem Cinira!
 
 
CENA IV Os mesmos, depois Canja, um poeta, depois o Capadócio do Mercúrio, depois a Academia de Belas-Artes.
 
O DIRETOR  C... Can... Canja! Conselheiro.  Olhe ali!
 
CONSELHEIRO Onde!
 
O DIRETOR  Não vê?
 
Ó menina do letreiro! Diga lá: quem é você?
 
CANJA  Uma bebida afamada.
 
BATATA  Produz dores de barriga.  É tal qual a limonada  De citrato...
 
CONSELHEIRO Olha que espiga!
 
CANJA (a Batata) És o primeiro, asseguro, Que me tens tamanha birra!
 
BATATA  Ah! és melhor que o maduro E mesmo que a gengibirra...
 
CANJA  Maldizente! petulante! (Sai)
 
CONSELHEIRO Vexada, se pôs a fresco.
 
BATATA  Anda a fingir que é refresco, E não passa de laxante.
 
O POETA (entrando choroso e cabisbaixo) Quando o desânimo ataca Um corpo sadio e nédio, O corpo não tem remédio: Morre de morte macaca.
 
É triste encontrar a morte Tendo alguns meses apenas...
 
CONSELHEIRO Bolem comigo estas cenas.
 
BATATA  Confesso que não sou forte...
 
O DIRETOR  Quem és, mancebo?
 
O POETA  Um boêmio.
 
CONSELHEIRO Onde tu moras?
 
O POETA  Não moro.
 
BATATA  Que fazes?
 
O POETA  Soluço e choro.
 
MAGDÁ Por quem choras?
 
O POETA  Pelo Grêmio. Grêmio de Letras e Artes, Ouve, atende às minhas queixas! Ó Grêmio, por que te partes? Ó Grêmio, por que me deixas? (Sai)
 
CONSELHEIRO Conheço a história do Grêmio; Era bem intencionado, Porém só teve, coitado! O ridículo por prêmio.
 
O DIRETOR  Quem o ridiculizou?
 
CONSELHEIRO A imprensa.
 
MAGDÁ  Por que razão? Ele injuriou-a?
 
CONSELHEIRO Não.
 
BATATA  Mas, meu Deus! por que o matou?
 
CONSELHEIRO Ora adeus! a imprensa é fresca: Do Grêmio teria dó, Se ele fosse alguma  sociedade carnavalesca.
 
ACADEMIA DE BELAS-ARTES (entrando arrebatadamente) Ah! malcriados! tratantes! Súcia vil de gazeteiros! Cambadas de sapateiros! Beidroegas! ignorantes!
 
CONSELHEIRO Reduzir o mundo a pó Quer com certeza esta harpia!
 
BATATA  Livra!
 
A ACADEMIA  Eu sou a Academia  De Belas-artes.
 
O DIRETOR  Oh! Oh!
 
A ACADEMIA  Eu há dias em concurso Pus um prêmio de pintura,  E os rapazes má figura Fizeram.
 
CONSELHEIRO Figura d'urso.
 
A ACADEMIA  Mas, tratando-se de expor Ao povo péssimas telas, Escolhi de todas elas Naturalmente a pior. Tão lógica solução Aos gazeteiros espanta! Toda a imprensa se levanta!
 
CONSELHEIRO A imprensa não tem razão!
 
A ACADEMIA  Que de insultar-me se farte! Bem me importa o seu latido!
 
O DIRETOR  Qual foi o ponto escolhido?
 
A ACADEMIA  A flagelação da arte.
 
CONSELHEIRO Da razão queira escutar  A fria e dura linguagem: Pois que o prêmio é de viagem,  Mande-os a todos passear.
 
BATATA  Se é, na verdade, um artista O candidato premiado, De prêmio tão cobiçado É natural que desista; Se a imprensa tanto o acachapa, Que não persista em partir.
 
O DIRETOR  É ir. A Roma, e não ver o Papa.
 
A ACADEMIA  Isso resolva o rapaz! O que eu fiz, fiz: sou quem sou. O braço a torcer não dou! Não volto! não volto atrás! (Sai arrebatadamente como entrou)
 
O CAPADÓCIO (entrando com um violão debaixo do braço)  Seu Furtado, andava a sua procura.
 
O DIRETOR  Quem é?
 
CONSELHEIRO Mas não me engano: já o vi...
 
O CAPADÓCIO  Pode sê, seu doutô.
 
CONSELHEIRO Já o vi e já o ouvi. Então? ficou bom daqueles ferimentos?
 
O CAPADÓCIO  Os tais das Folia da Guarda-velha, quando entrei naquele sarnambi grosso e desci rente na poeira? Já, sim, senhô.
 
CONSELHEIRO Meus senhores, este homem é um grande cantador de modinhas.
 
O CAPADÓCIO  Antes sesse... Ah! mas as modinha já ninguém faz caso... Agora só canto lundus... lundus da minha terra... e venho oferecê meus serviços a seu Furtado... Se vossia qué, aqui mesmo capino no duro.
 
TODOS  Queremos! queremos!
 
O CAPADÓCIO  Então, lá vai obra! (Canta um lundu) Então, que diz, seu Furtado?
 
O DIRETOR  Venha amanhã de dia, para conversarmos.
 
 
CENA V Os mesmos, a Companhia Força e Luz.
 
CONSELHEIRO Olá, quem é esta guapa mocetona?
 
A COMPANHIA  A Companhia Força e Luz.
 
BATATA  A tal que tem dois mil contos subscritos?
 
A COMPANHIA  Essa mesma; mas o meu maior capital é a eletricidade!
 
CANTO)
 
A COMPANHIA  Força e Luz é o meu nome, senhores,  Forte e luminosa Por ser, Eu mereço rasgados louvores;  Vida gloriosa Vou ter!
 
CORO  Tão bela empresa famosa será!
 
A COMPANHIA  Verdade aqui falais,  Porque mais  Bela empresa  Decerto que não há! Muito cobre, com certeza, Para os cofres meus virá! Vão eletricidade Por toda a parte ver! Em breve esta cidade Elétrica vai ser!
 
CORO  Não há que ver: empresa tal  Fará furor na capital!
 
Sim, furor muito  Piramidal!
 
(A Companhia Força e Luz converte-se numa estrela de luz elétrica. Mutação)
 
 
QUADRO IX
 
CENA I Conselheiro, Magdá, que entram de braço dado, vindo da rua.
 
CONSELHEIRO Muito bem, minha filha; agora vai descansar um pouco: deves estar fatigada.
 
MAGDÁ Nem por isso, papai.
 
CONSELHEIRO O passeio fez-te bem; vais muito melhor; mas, por isso mesmo, não deves abusar. E ainda não encontramos o homem... Imagina lá se o tivéssemos encontrado.
 
MAGDÁ Qual o quê, papai! Todos os homens me aborrecem, nenhum me agrada.
 
CONSELHEIRO Entretanto, estou mais que convencido de que o Doutor Lobão acertou com a tua moléstia. Ainda hoje deu-me por escrito o seu décimo quinto parecer. Só esta roda-viva em que temos andado, à procura do remédio que precisas, já produziu em ti sensíveis melhores. Olha que se as coisas continuassem, eu estava disposto a procurar até o tal cavoqueiro... o Luís...
 
MAGDÁ (envergonhada) 
 
Ora, papai, não me fale em semelhante bruto!
 
CONSELHEIRO Mas tu parecias doida por ele!
 
MAGDÁ Eu só amei a um homem... ao Fernandinho. Não pude ser dele, não serei de mais ninguém. (Chorando) Sou muito desgraçada! muito! muito!
 
CONSELHEIRO Mau! já começam os nervos... Vai descansar, anda! Toma uma colher do teu xarope, e vê se dormes um pouco. (Levando-a até a porta) Vai, anda. 
 
(Magdá sai)
 
 
CENA II O Conselheiro, depois Dona Libânia, depois o Doutor Lobão.
 
CONSELHEIRO Cumpri o meu dever, se mais não fiz, foi porque não pude. Cumpri o meu dever é modo de falar... Mirem-se neste espelho todos aqueles que andam a fazer diabruras na mocidade. Eis o resultado que produzem os casamentos de mão esquerda. Se o Fernandinho não fosse meu filho, teria casado com ela, e não teria ido para a Europa, ou iriam ambos, e seriam ambos felizes. Mancebos! miraivos neste espelho! Não vos metais em frota sem bandeira! É bom, mas sai muito caro.
 
DONA LIBÂNIA (da porta, e com o rosto coberto por um véu)  Dá licença?
 
CONSELHEIRO Entre, quem é?
 
DONA LIBÂNIA (entrando)  É aqui que mora o Conselheiro Pinto Marques? (Vendo o Conselheiro, que se volta, e levando a mão ao coração. À parte) É ele! Cala-te, coração!
 
CONSELHEIRO (à parte)  Eu sei o que aquilo é. (Alto, dando-lhe dinheiro) Aqui tem, minha senhora, não repare a insignificância...
 
DONA LIBÂNIA  Que é isto?
 
CONSELHEIRO Já estou prevenido. Tome. Desculpe: não tenho um envelope à mão...
 
DONA LIBÂNIA  Mas...
 
CONSELHEIRO Pois a senhora não anda agenciando donativos para o jubileu do Papa?
 
DONA LIBÂNIA (tirando o véu)  Que Papa nem meio Papa! Olha para mim... Vê que sou a tua Libânia!
 
CONSELHEIRO (estupefato)  A Libânia!...
 
DONA LIBÂNIA  A Libânia, sim, que vem de Lisboa expressamente para salvar seu filho!
 
CONSELHEIRO O Fernandinho? Como assim?
 
DONA LIBÂNIA  Recordas-te que ele obrigou-te a dizer quem era sua mãe?
 
CONSELHEIRO Sim, e depois?
 
DONA LIBÂNIA  Depois é que O rapaz foi ter comigo a Lisboa e disse-me tudo.
 
CONSELHEIRO Tudo quê?
 
DONA LIBÂNIA  Que se apaixonou pela menina sem saber que era sua irmã. O rapaz estava magro que metia dó. Consultou-se um médico... e o médico receitou-lhe... uma mulher. Levamos muito tempo à procura de uma mulher.
 
CONSELHEIRO Como eu à procura de um homem!
 
DONA LIBÂNIA  Mas qual! não havia mulher que lhe agradasse...
 
CONSELHEIRO Tal qual a irmã!
 
DONA LIBÂNIA Resolvi então contar-lhe tudo.
 
CONSELHEIRO Tudo quê?
 
DONA LIBÂNIA Era preciso muitos rodeios... tu sabes como o Fernandinho é um rapaz de brios.
 
CONSELHEIRO Sai ao pai.
 
DONA LIBÂNIA  Isso sai.
 
CONSELHEIRO Eu sou um homem brioso.
 
DONA LIBÂNIA  Mas não és pai dele. E foi isso o que lhe disse, que, se o não fizesse, o pobre rapaz estava ali, estava no cemitério dos Prazeres.
 
CONSELHEIRO (atônito) Como? Pois o Fernandinho não é meu...
 
DONA LIBÂNIA  Filho? Não é, não, senhor. Pois não foste!
 
CONSELHEIRO (crescendo para ela)  Miserável!
 
DONA LIBÂNIA  Olha, Pinto Marques, bem sei que mereço a tua cólera... mas se eu te dissesse a verdade, tu retiravas-me a mesada, e então... impingi-te aquele filho... E assim o rapaz criou-se, educou-se, e hoje está um homem às direitas. Não procuravas um homem? Ali o tens!
 
CONSELHEIRO E ainda se diz isto com semelhante frescura! E onde está ele, o Fernandinho?
 
DONA LIBÂNIA  Veio comigo... exigiu que eu viesse de Lisboa para dizer-te tudo isto de viva voz...
 
CONSELHEIRO Mas onde está ele neste momento, é o que eu pergunto!
 
DONA LIBÂNIA  Perto daqui, à minha espera. Não se apresentará sem saber que me perdoas, e que a menina é sua.
 
CONSELHEIRO Pois mande-o ter comigo imediatamente.
 
DONA LIBÂNIA  E eu?
 
CONSELHEIRO A senhora suma-se e não me apareça mais! Se acha que é brincadeira impingir-me um filho durante vinte e tantos anos, e fazer-me andar da sala para a cozinha por não poder casá-lo com a pequena!
 
DONA LIBÂNIA (com um suspiro)  Ah! Pinto Marques! se quisesses... Juro-te que nunca mais!
 
CONSELHEIRO Pudera! na sua idade! É o caso do soldado que não faz fogo porque não tem pólvora! Nada, minha senhora, contente-se com ver feliz seu filho, o que já não é pouco. Mas diga-me: quem é o verdadeiro pai?
 
DONA LIBÂNIA  O verdadeiro pai... (Vendo entrar o Doutor Lobão) O verdadeiro pai, ei-lo!
 
DOUTOR e CONSELHEIRO Hem?
 
DONA LIBÂNIA  Não me conheces, Lobão? Olha bem para mim, sou a Libânia.
 
O DOUTOR A minha rapaziada!
 
DONA LIBÂNIA  A mãe de teu filho!
 
O DOUTOR De meu filho? Já aqui não estou bem! (Sai correndo)
 
DONA LIBÂNIA  Não me escaparás! (Corre atrás do Doutor)
 
CONSELHEIRO (indo à porta e gritando) Senhora, mande-me o rapaz! mande-me o rapaz!
 
 
CENA III Conselheiro, depois Magdá, depois Fernando.
 
CONSELHEIRO Creio que é esta a primeira vez que um homem dá graças a Deus por não ser pai de seu filho. Mas o Lobão... quem diria? Ora adeus! não importa! Minha filha achou o homem... que felicidade! (Chamando) Magdá. Magdá! Daqui a quinze dias, o mais tardar, quero vê-los casados. Magdá!
 
MAGDÁ (entrando)  Que é, papai?
 
CONSELHEIRO Ah, minha filha, se soubesse!
 
MAGDÁ O quê? papai está me assustando!
 
CONSELHEIRO Que ventura, meu amor! Prepara-te para a mais agradável das surpresas. O Fernandinho...
 
MAGDÁ Diga, diga, papai!
 
CONSELHEIRO Estás preparada?
 
MAGDÁ Estou! Diga!
 
CONSELHEIRO O Fernandinho... Espera! (Batendo palmadas) Um... dois... e...
 
MAGDÁ Três.
 
CONSELHEIRO O Fernandinho não é teu irmão!
 
MAGDÁ Não é meu irmão? Como assim?
 
CONSELHEIRO É filho do Doutor Lobão.
 
MAGDÁ Hein?
 
CONSELHEIRO Depois tudo te contarei. É teu noivo. Não tarde aí. (Fernando aparece) Ei-lo. 
 
(Magdá solta um grito e corre a abraçar Fernando)
 
TERCETO
 
MAGDÁ Fernandinho!
 
FERNANDO Magdá! Eis-me de novo ao teu lado!
 
MAGDÁ És o meu noivo adorado!
 
CONSELHEIRO E teu marido será,  Olá!
 
FERNANDO  Eu hei de ser eternamente teu!
 
MAGDÁ E eu hei de ser eternamente tua!
 
CONSELHEIRO Em casa homem tinha eu  E a procurá-lo andei na rua.
 
JUNTOS  Eis-me aqui! Eis-te aqui!  Ei-lo aqui! Que alegria!  Esqueço neste dia  As mágoas que sofri.
 
MAGDÁ (ao público) A peça está terminada; Falta a apoteose final, Que deve ser explicada De um modo muito cabal... Ali figurar devia
 
Uma entidade qualquer; Um autor o homem queria, E o outro autor, a mulher. Pra que a questão se acabasse, Foi chamado um mediador, E achou que se consagrasse A apoteose do amor. O alvitre foi logo aceito; O amor agrada a qualquer; Fica o homem satisfeito, E satisfeita a mulher.
 
JUNTOS  Fica o homem satisfeito,  E satisfeita a mulher.

 

 

                                                                  Artur Azevedo

 

 

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