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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O HOMEM DE SĂO PETERSBURGO / Ken Follet
O HOMEM DE SĂO PETERSBURGO / Ken Follet

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Era uma tarde serena de domingo, do tipo que Walden amava. Ele estava parado diante de uma janela aberta, contemplando o parque. O gramado amplo e bem cuidado estava pontilhado de árvores frondosas: um pinheiro escocęs, dois imensos carvalhos, vários castanheiros e um salgueiro, como uma cabeça coberta de cachos. O Sol estava alto e as árvores projetavam sombras escuras e frescas. Os pássaros estavam silenciosos, mas um zumbido de abelhas satisfeitas vinha da trepadeira florida ao lado da janela. A casa também estava silenciosa. A maioria dos criados tivera a tarde de folga. Os únicos hóspedes no fim de semana eram o irmăo de Walden, George, a mulher de George, Clarissa, e os filhos deles. George saíra para dar um passeio. Clarissa estava deitada e as crianças encontravam-se fora de vista. Walden achava-se inteiramente ŕ vontade. Usara sobrecasaca para ir ŕ igreja, como năo poderia deixar de ser, dentro de uma ou duas horas poria a gravata branca e a casaca para o jantar; agora, no entanto, estava ŕ vontade, num terno de tweed e camisa de colarinho mole. E se Lydia tocar piano esta noite, pensou ele, será um dia perfeito. Virou-se para a mulher. ​ Vai tocar esta noite, depois do jantar? ​ Se vocę quiser ​ falou Lydia, com um sorriso. Walden ouviu um barulho e tornou a virar-se para a janela.
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Na extremidade do caminho, acerca de meio quilômetro de distância, um automóvel apareceu. Walden sentiu uma pontada de irritaçăo, como uma pontada de dor na perna direita, antes de uma tempestade. Por que um carro deveria irritar-me?, pensou ele. Năo era contra automóveis. Possuía, inclusive, um Lanchester, que usava regularmente nas viagens dele para Londres. No verăo, porém, os automóveis representavam um grande transtorno para a aldeia, levantando nuvens de poeira na estrada sem qualquer pavimentaçăo, ao passarem ruidosamente. Ele estava pensando até em pavimentar uns 200 metros da estrada com macadame. Normalmente, năo teria hesitado em fazę-lo. Mas as estradas năo eram mais de sua responsabilidade desde 1909, quando Lloyd George instituíra as Comissőes de Estradas… e Walden compreendeu que isso era a fonte de sua irritaçăo. Fora um exemplo característico de legislaçăo liberal: tiravam dinheiro de Walden a fim de fazerem diretamente o que ele teria feito de qualquer maneira, mas depois deixavam de fazer. Imagino que, ao final, terei de pavimentar a estrada pessoalmente, pensou Walden; mas me irrita ter de pagar duas vezes pelo mesmo serviço. O automóvel entrou na área coberta de cascalho e parou diante da porta do lado sul, ruidosamente, estremecendo todo. A fumaça do cano de descarga chegou até ŕ janela, e Walden prendeu a respiraçăo. O motorista saltou, de capacete, óculos de proteçăo e um casaco comprido. Abriu a porta para o passageiro. Um homem baixo, de casaco preto e chapéu de feltro preto, saiu do carro. Walden reconheceu o homem e sentiu um frio no coraçăo. A serenidade da tarde de verăo estava acabada. ​ É Winston Churchill ​ murmurou ele. ​ Mas que coisa embaraçosa! ​ comentou Lydia. O homem simplesmente se recusava a ser repelido. Na quinta-feira enviara um bilhete que Walden ignorara. Telefonara na sexta-feira para a casa de Walden em Londres e fora informado de que o Conde năo estava. Agora, viera de carro até Norfolk, num domingo. Mas seria novamente repelido. Será que ele pensa que sua obstinaçăo pode impressionar-me?, pensou Walden.
Detestava ser grosseiro com as pessoas, mas Churchill bem que merecia. O governo liberal de que Churchill era ministro estava empenhado em ataques insidiosos contra as próprias fundaçőes da sociedade inglesa, taxando abusivamente as propriedades rurais, enfraquecendo a Câmara dos Lordes, emasculando a Marinha Real e cedendo ŕs chantagens dos sindicatos e dos malditos socialistas. Walden e seus amigos năo podiam confraternizar com gente assim. A porta se abriu e Pritchard entrou na sala. Era um cockney alto, cabelos pretos lustrosos de brilhantina, um ar de solenidade que era obviamente falso. Fugira para o mar quando garoto e deixara o navio na África Oriental. Walden, que lá estava num safári, contratara-o para supervisionar os carregadores nativos. Estavam juntos desde entăo. Pritchard era agora o mordomo de Walden, seguindo em sua companhia de uma casa para outra, um amigo na medida em que um criado podia sę-lo. ​ O Primeiro Lorde do Almirantado está aqui, milorde ​ anunciou Pritchard. ​ Năo estou em casa. Pritchard ficou visivelmente constrangido. Năo estava acostumado a repelir ministros do Gabinete. O mordomo de meu pai teria feito isso sem pestanejar, pensou Walden; mas o velho Thomson está agora aposentado, cultivando rosas no jardim do seu pequeno chalé na aldeia, e Pritchard jamais adquiriu a mesma dignidade inabalável. Pritchard passou a năo pronunciar os agás aspirados do inglęs, um sinal de que estava muito relaxado ou muito tenso. ​ O Sr. Churchill disse que milorde mandaria avisar que năo estava em casa e pediu que entregasse esta carta. Ele estendeu um envelope numa bandeja. Walden năo gostava de ser pressionado. E foi em tom irritado que falou: ​ Devolva a… Walden parou de falar de repente e olhou atentamente para a letra no envelope. Havia algo de familiar naquela letra grande, um pouco inclinada. ​ Santo Deus! ​ murmurou o Conde. Ele pegou o envelope, abriu-o e tirou uma única folha de papel branco, um tanto grosso, dobrado uma vez. O timbre real estava no alto do papel, impresso em vermelho. Walden leu: Palácio de Buckingham 1° de maio de 1914 Meu caro Walden: Queira receber o jovem Winston. George R. I
​ É do Rei ​ disse Walden a Lydia. Ele estava tăo embaraçado que corou. Era lamentável arrastar o Rei para uma coisa assim. Walden sentia-se como um colegial que recebe a ordem de esquecer as desavenças e cuidar de seus deveres. Por um momento, sentiu-se tentado a desafiar o Rei. Mas as conseqüęncias… Lydia năo seria mais recebida pela Rainha, as pessoas năo mais poderiam convidar os Waldens a festas em que uma pessoa da Família Real estivesse presente e, o pior de tudo, a filha dos Waldens, Charlotte, năo poderia ser apresentada na corte como uma debutante. A vida social da família ficaria arruinada. Seria melhor até que fossem viver em outro país. Năo, năo havia a menor possibilidade de desobedecer ao Rei. Walden suspirou. Churchill o derrotara. De certa forma, era um alívio, pois agora podia entender-se com os liberais sem que ninguém o culpasse por isso. Uma carta do Rei, meu caro, diria ele, ŕ guisa de explicaçăo; năo pude fazer nada. ​ Peça ao Sr. Churchill para entrar ​ disse ele a Pritchard. Walden entregou a carta a Lydia. Os liberais realmente năo compreendiam como a monarquia deveria funcionar, refletiu ele. E comentou: ​ O Rei năo é firme o bastante com essa gente. ​ A situaçăo está-se tornando terrivelmente aborrecida ​ falou Lydia. Mas ela năo está absolutamente aborrecida, pensou Walden. Provavelmente está achando tudo emocionante e só fez o comentário por ser tipicamente o que uma condessa inglesa diria. E como ela năo era inglesa, mas russa, gostava de dizer coisas tipicamente inglesas, da mesma forma que um homem falando francęs diria a todo instante alors e bien? Walden foi até ŕ janela. O automóvel de Churchill ainda estava fazendo barulho e soltando fumaça lá fora. O motorista achava-se de pé ao lado, com uma das măos na porta, dando a impressăo de que tinha de segurar o automóvel como a um cavalo, a fim de impedir que se afastasse. Uns poucos criados olhavam, a uma distância segura. Pritchard tornou a entrar na sala e anunciou: ​ Sr. Winston Churchill. Churchill estava com 40 anos, exatamente 10 anos mais moço do que Walden. Era baixo, esguio, vestido de uma maneira que Walden julgava um pouco elegante demais para se enquadrar nos critérios de um verdadeiro cavalheiro. Os cabelos recuavam rapidamente, deixando um tufo na frente e bastante nas tęmporas. Juntamente com o nariz pequeno e um permanente faiscar sardônico nos olhos, isso lhe proporcionava uma aparęncia maliciosa. Era fácil perceber por que os caricaturistas o apresentavam tantas vezes como um querubim maligno. Churchill apertou a măo do Conde e disse jovialmente: ​ Boa-tarde, Lorde Walden. ​ Ele fez uma reveręncia para Lydia. ​ Como tem passado, Lady Walden? Walden pensou: O que há nesse homem que me provoca tanta irritaçăo? Lydia ofereceu chá e Walden convidou-o a sentar-se. Walden năo queria saber de conversa amena. Estava impaciente em saber logo de uma vez o motivo da visita.
​ Em primeiro lugar ​ começou Churchill ​ minhas desculpas, juntamente com as do Rei, por me impor ŕ sua presença. Walden assentiu, com um aceno de cabeça. Năo ia dizer que năo se tratava de qualquer incômodo. Churchill continuou: ​ Devo acrescentar que eu năo agiria assim, se năo houvesse razőes das mais prementes. ​ Seria melhor que me explicasse quais săo essas razőes. ​ Sabe o que está acontecendo no mercado financeiro? ​ Claro que sei. A taxa de desconto subiu. ​ De um e tręs quartos para pouco menos de tręs por cento. É uma alta enorme e ocorreu em poucas semanas. ​ Presumo que sabe por quę. Churchill acenou com a cabeça. ​ As companhias alemăs estăo faturando as dívidas em grande escala recebendo o dinheiro e comprando ouro. Mais algumas semanas e a Alemanha terá recebido tudo o que lhe é devido em outros países, ao mesmo tempo que deixa as suas dívidas pendentes… e as reservas de ouro serăo maiores do que em qualquer outra ocasiăo anterior. ​ Eles estăo-se preparando para a guerra. ​ Nisso e em muitas outras coisas. Arrecadaram um bilhăo de marcos, muito acima da taxaçăo normal, a fim de melhorar um exército que já é o mais forte da Europa. Deve estar lembrado que em 1909, quando Lloyd George aumentou a taxaçăo britânica em quinze milhőes de libras esterlinas, houve quase uma revoluçăo. Pois um bilhăo de marcos é o equivalente a cinqüenta milhőes de libras. É a maior arrecadaçăo na história européia… ​ É verdade ​ interrompeu Walden. Churchill estava ameaçando tornar-se histriônico e Walden năo queria que ele fizesse discursos. ​ Nós, conservadores, estamos preocupados com o militarismo alemăo há algum tempo. Agora, na última hora, vocę vem dizer-me que estávamos certos. Churchill manteve-se inabalável. ​ Quase que certamente a Alemanha vai atacar a França. E a questăo que se impőe é simples: partiremos em auxílio da França? ​ Năo ​ respondeu Walden, surpreso. ​ O Secretário do Exterior tem-nos assegurado de que năo temos quaisquer obrigaçőes com a França… ​ Sir Edward está sendo sincero, é claro ​ disse Churchill. ​ Mas também está enganado. Nossa aliança com a França é tăo forte que năo poderíamos ficar de braços cruzados, contemplando-a ser derrotada pela Alemanha.
Walden ficou chocado. Os liberais haviam convencido a todos, inclusive a ele, que năo levariam a Inglaterra ŕ guerra. Agora, um dos seus mais eminentes ministros estava dizendo justamente o contrário. A duplicidade dos políticos era algo irritante. Mas Walden esqueceu isso, ao começar a pensar nas conseqüęncias da guerra. Pensou nos rapazes que conhecia que teriam de lutar: os pacientes jardineiros do seu parque, os lacaios insolentes, os camponeses de rosto moreno, os estudantes turbulentos, os lânguidos ociosos dos clubes de St. James​s… e depois tal pensamento foi superado por outro, muito mais terrível. E ele disse: ​ Mas podemos vencer? Churchill estava solene. ​ Acho que năo. Walden fitou-o atentamente. ​ Mas o que vocęs estăo fazendo? Churchill caiu na defensiva: ​ Nossa política tem sido a de evitar a guerra. Năo se pode fazer isso e armar-se até os dentes ao mesmo tempo. ​ Mas năo conseguiram evitar a guerra. ​ Ainda estamos tentando. ​ Mas acham que văo fracassar. Churchill fitou-o com uma expressăo beligerante por um momento, e depois reprimiu seu orgulho. ​ Isso mesmo. ​ E o que acontecerá? ​ Se a Inglaterra e a França juntas năo podem derrotar a Alemanha, entăo precisamos ter outro aliado, um terceiro país do nosso lado: a Rússia. Se a Alemanha estiver dividida, lutando em duas frentes, poderemos vencer. Claro que o Exército russo é incompetente e corrompido… como tudo o mais naquele país… mas isso năo tem importância, enquanto desviar as atençőes de uma parte do poderio alemăo. Churchill sabia perfeitamente que Lydia era russa. Era uma típica falta de tato dele menosprezar a Rússia na presença dela. Mas Walden deixou passar, pois sentia-se extremamente intrigado pelo que Churchill estava dizendo. ​ A Rússia já tem uma aliança com a França ​ comentou ele. ​ Năo é suficiente ​ disse Churchill. ​ A Rússia está obrigada a lutar se a França for vítima de agressăo. Mas compete ŕ Rússia decidir se a França é vítima ou agressora, num caso específico. Quando irrompe uma guerra, os dois lados sempre afirmam ser a vítima. Assim, a aliança năo obriga a Rússia a lutar, se
năo quiser. Precisamos que ela renove e confirme o compromisso de ficar do nosso lado. ​ Năo posso imaginar vocęs dando as măos ao Czar. ​ Entăo está-nos julgando muito errado. Para salvar a Inglaterra, faremos um acordo até com o diabo. ​ Seus partidários năo văo gostar. ​ Eles năo saberăo. Walden podia perceber qual era o rumo da conversa. A perspectiva era excitante. ​ Em que estăo pensando? Um tratado secreto? Ou um acordo verbal? ​ Nas duas coisas. Walden estreitou os olhos, observando Churchill atentamente. Esse jovem demagogo pode ter um cérebro privilegiado, pensou ele, e esse cérebro talvez năo esteja funcionando em meu interesse. Os liberais querem fazer um acordo secreto com o Czar, apesar do ódio do povo inglęs contra o brutal regime russo… mas por que contar tudo isso a mim? É evidente que estăo querendo envolver-me de alguma forma. Com que objetivo? A fim de terem um conservador em quem lançar a culpa, se tudo sair errado? Só que será necessário um conspirador mais sutil do que Churchill para me atrair a essa armadilha. ​ Continue ​ disse Walden. ​ Já iniciei conversaçőes navais com os russos, nos mesmos termos de nossos acordos navais com os franceses. As conversaçőes vęm sendo realizadas há algum tempo, em níveis relativamente subalternos. Agora, no entanto, estăo prestes a entrar num estágio mais importante. Um jovem almirante russo está a caminho de Londres. É o Príncipe Aleksey Andreyevich Orlov. ​ Aleks! ​ exclamou Lydia. Churchill virou-se para ela. ​ Creio que ele é seu parente, Lady Walden. ​ É, sim ​ confirmou Lydia. Walden percebeu que ela parecia apreensiva, por alguma razăo que ele năo podia sequer imaginar. ​ Aleks é filho de minha irmă mais velha, o que o faz… meu primo? ​ Sobrinho ​ disse Walden. ​ Năo sabia que ele se tomara almirante ​ acrescentou Lydia. ​ Deve ser uma promoçăo recente. Ela estava, como sempre, no mais absoluto controle de si mesma. Walden concluiu que o tal momento de inquietaçăo năo passara de um produto de sua imaginaçăo. Ele estava satisfeito com a vinda de Aleks a Londres, pois sempre gostara do rapaz. ​ Ele é muito jovem para ter tanta autoridade ​ comentou Lydia.
​ Ele está com trinta anos ​ disse Churchill a Lydia. Walden recordou que Churchill, aos 40 anos, era jovem demais para estar no comando de toda a Marinha Real. A expressăo de Churchill parecia dizer: O mundo pertence aos jovens brilhantes como eu e Orlov. Mas vocę está precisando de mim para alguma coisa, pensou Walden. ​ Além disso ​ continuou Churchill ​ Orlov é sobrinho do Czar, através do pai, o falecido Príncipe. E o que é ainda mais importante, trata-se de uma das poucas pessoas, além de Rasputin, de quem o Czar gosta e confia. Se há alguém na Marinha russa que pode trazer o Czar para o nosso lado é Orlov. Walden fez a pergunta que estava em sua mente há algum tempo: ​ E qual é a minha participaçăo em tudo isso? ​ Quero que represente a Inglaterra nas conversaçőes… e quero que me entregue a Rússia numa bandeja. O homem năo pode resistir ŕ tentaçăo de ser melodramático, pensou Walden. ​ Quer que Aleks e eu negociemos um acordo militar anglo-russo? ​ Isso mesmo. Walden percebeu imediatamente como a missăo seria difícil, um grande desafio, mas também altamente gratificante. Ocultou sua animaçăo e resistiu ŕ tentaçăo de se levantar e começar a andar de um lado para outro. ​ Conhece o Czar pessoalmente ​ continuou Churchill. ​ Conhece a Rússia e fala russo fluentemente. É tio de Orlov pelo casamento. Já persuadiu o Czar uma vez a ficar do lado da Inglaterra e năo da Alemanha… em 1906, quando interveio para evitar a ratificaçăo do Tratado de Bjorko. ​ Churchill fez uma pausa, antes de acrescentar: ​ Contudo, năo foi a nossa primeira opçăo para representar a Inglaterra nas negociaçőes. Do jeito que as coisas estăo em Westminster… ​ Claro, claro… ​ Walden năo queria começar a discutir aquilo. ​ Mas alguma coisa fez com que mudassem de idéia. ​ Em suma, vocę foi a escolha do Czar. Parece que é o único inglęs em quem ele tem alguma fé. Seja como for, o Czar enviou um telegrama ao primo, Sua Majestade o Rei George V, insistindo para que Orlov negociasse com vocę. Walden podia imaginar a consternaçăo entre os radicais ao saberem que teriam de envolver um velho par do Reino tóri e reacionário em tal esquema clandestino. ​ Imagino que vocęs ficaram horrorizados ​ comentou ele. ​ De modo algum. Nos negócios externos, nossas políticas năo săo muito diferentes das que vocęs defendem. E sempre achei que as divergęncias em política interna năo constituem uma razăo suficiente
para que os seus talentos sejam desperdiçados pelo governo de Sua Majestade. A lisonja agora, pensou Walden. Eles me querem a qualquer custo. Em voz alta, ele disse: ​ Como se poderá manter tudo em segredo? ​ Vai parecer uma visita social. Se concordar, Orlov ficará hospedado em sua casa durante a temporada em Londres. Irá apresentá-lo ŕ sociedade. Estou certo ao pensar que sua filha deverá debutar este ano? Churchill olhou para Lydia, que confirmou: ​ Está sim. ​ Sendo assim, terăo uma vida social movimentada. Orlov é solteiro obviamente um bom partido. Podemos propalar que ele está procurando por uma esposa inglesa. E talvez até encontre. ​ Boa idéia. Subitamente, Walden compreendeu que estava gostando da perspectiva Acostumara-se a ser uma espécie de diplomata semi-oficial, sob os governos conservadores de Salisbury e Balfour. Mas há oito anos que năo tinha qualquer participaçăo na política internacional. Tinha agora a oportunidade de voltar ao palco. Começou a recordar como era tudo absorvente e fascinante: o sigilo; a arte da negociaçăo típica do jogador; os conflitos de personalidades; o uso cauteloso da persuasăo, intimidaçăo ou ameaça de guerra. Podia recordar que năo era fácil lidar com os russos, que tendiam a ser caprichosos, obstinados e arrogantes. Mas Aleks seria flexível. Quando Walden se casara com Lydia, Aleks comparecera ŕ cerimônia, um menino de 10 anos, vestindo roupa de marinheiro. Posteriormente, Aleks passara dois anos na Universidade de Oxford, visitando Walden Hall nas férias. O pai do rapaz estava morto, e por isso Walden lhe dispensara mais tempo do que normalmente concederia a um adolescente. E fora recompensado pela amizade com uma mente jovem e vigorosa. Era uma base esplęndida para uma negociaçăo. Creio que posso obter os resultados mais favoráveis possíveis, pensou ele. E que triunfo magnífico! ​ Posso entăo presumir que aceitará a missăo? ​ perguntou Churchill. ​ Claro.
 
Lydia se levantou. ​ Năo, năo precisam levantar-se ​ disse ela, quando os homens a acompanharam. ​ Vou deixá-los conversando sobre política. Vai ficar para o jantar, Sr. Churchill? ​ Infelizmente, tenho um compromisso em Londres. ​ Neste caso, vou-me despedir agora.
Lydia apertou-lhe a măo e depois foi para o Octógono, que era onde sempre tomavam o chá. Atravessou o vestíbulo grande, passou pelo outro menor, entrou na sala das flores. No mesmo instante, um dos ajudantes de jardineiro… Lydia năo sabia o nome dele… entrou pela porta que dava para o jardim, com uma braçada de tulipas, rosas e amarelas, para a mesa de jantar. Uma das coisas que Lydia amava na Inglaterra em geral e em Walden Hall em particular era a profusăo das flores. Sempre tinha flores novas cortadas, todas as manhăs e de tarde, mesmo no inverno, quando tinham de ser cultivadas nas estufas. O ajudante de jardineiro tocou em seu gorro… năo precisava tirá-lo, a menos que lhe fosse dirigida a palavra, pois se presumia que a sala das flores fazia parte do jardim… e pôs as flores numa mesa de mármore, saindo em seguida. Lydia sentou-se e aspirou o ar frio e perfumado. Era uma boa sala para se recuperar dos choques e a conversa de Săo Petersburgo a deixara nervosa. Lembrava-se de Aleksey Andreyevich como um menino bonito e tímido em seu casamento; e lembrava também que aquele fora o dia mais infeliz de sua vida. Era um despropósito de sua parte converter a sala das flores em seu santuário, pensou ela. A casa tinha cômodos para quase todos os fins: salas diferentes para o desjejum, o almoço, o chá e o jantar; uma sala para o bilhar e outra para guardar as armas; salas especiais para lavar roupas, passar a ferro, fazer geléias, limpar prataria, pendurar caça, guardar vinho, escovar roupas… Os aposentos particulares dela eram constituídos por um quarto, uma sala de vestir e uma sala de estar. E, no entanto, quando queria ficar em paz, ela vinha até ali e se sentava numa cadeira dura, olhando para a tosca pia de pedra e as pernas de ferro batido da mesa de mármore. Lydia já notara que o marido também possuía um santuário extra-oficial; quando Stephen se achava perturbado com alguma coisa, ia para a sala das armas e lia o livro de caça. Entăo Aleks seria hóspede dela durante a temporada em Londres. Conversariam sobre a terra de ambos, a neve, o balé e as bombas; ver Aleks a levaria a pensar em outro jovem russo, o homem com quem ela năo se casara. Já se haviam passado 19 anos desde que vira aquele homem pela última vez, mas a simples mençăo de Săo Petersburgo o trazia de volta ŕ sua mente e lhe deixava a pele arrepiada, por baixo do vestido de seda. Ele tinha 19 anos, a mesma idade que ela, um estudante faminto, cabelos pretos compridos, o rosto de um lobo e os olhos de um spaniel. Era magro como um varapau. A pele era muito branca, os pęlos do corpo macios, escuros e adolescentes, as măos hábeis, muito hábeis. Lydia corou agora, năo por pensar no corpo dele, mas ao pensar em seu próprio corpo, traindo-a, enlouquecendo-a de prazer, fazendo-a gritar vergonhosamente. Fui imoral, pensou ela, e ainda sou, pois gostaria de fazer tudo novamente. Pensou no marido, com um sentimento de culpa. Dificilmente pensava nele sem um sentimento de culpa. Năo o amara quando se haviam casado, mas agora amava. Ele era forte, afetuoso e a adorava. A afeiçăo dele era constante e gentil, embora carecendo totalmente da paixăo desesperada que ela outrora conhecera. Ele era feliz, pensou Lydia, apenas porque jamais soubera que o amor podia ser desvairado e faminto. Năo mais anseio por esse tipo de amor, disse Lydia a si mesma. Aprendi a viver sem ele e ao longo dos anos foi-se tornando cada vez mais fácil E năo podia deixar de ser assim… pois já tenho quase 40 anos! Algumas de suas amigas ainda eram tentadas e muitas acabavam cedendo. Năo lhe falavam de suas
ligaçőes, pois sentiam que Lydia năo aprovava Mas comentavam a respeito de outras e por isso Lydia sabia que em algumas das festas nas mansőes rurais havia muito… bem, adultério. Certa ocasiăo, Lady Girard dissera a Lydia, com o ar condescendente de uma mulher mais velha que oferece conselhos a uma jovem anfitriă: ​ Minha cara, se receber a Viscondessa e Charlie Stott na mesma ocasiăo, deve colocá-los em quartos adjacentes. Lydia os colocara em cantos opostos da casa, e a Viscondessa nunca mais voltara a Walden Hall. As pessoas diziam que toda essa imoralidade era culpa do falecido Rei, mas Lydia năo acreditava nisso. Era verdade que ele fora amigo de judeus e cantores, mas isso năo o tornava um libertino. Ele estivera duas vezes em Walden Hall, a primeira ainda como Príncipe de Gales, a segunda já como Rei Eduardo VII; comportara-se impecavelmente em ambas. Ela se perguntou se o novo Rei algum dia viria a Walden Hall. Era uma grande tensăo, ter um monarca hospedado em casa, mas era também uma grande emoçăo apresentar tudo da melhor forma possível, servir as refeiçőes mais suntuosas que se podia imaginar, comprar 12 novos vestidos apenas para um fim de semana. E se aquele Rei viesse, talvez concedesse aos Waldens a cobiçada entrée… o direito de entrar no Palácio de Buckingham pelo portăo do jardim nas grandes ocasiőes, ao invés de fazer fila no Mall com 2.000 outras carruagens. Lydia pensou em seus hóspedes naquele fim de semana. George era o irmăo mais moço de Stephen; possuía o charme de Stephen, mas năo sua seriedade. A filha de George, Belinda, estava com 18 anos, a mesma idade de Charlotte. As duas moças iriam debutar naquela temporada. A măe de Belinda morrera alguns anos antes e George tornara a se casar, um tanto depressa demais. A segunda mulher, Clarissa, era muito mais jovem do que ele e bastante animada. Dera-lhe filhos gęmeos. Um dos gęmeos herdaria Walden Hall quando Stephen morresse, a menos que Lydia tivesse um filho agora, tardiamente. Eu bem que poderia, pensou ela; sinto que posso, mas simplesmente năo acontece. Estava quase na hora de aprontar-se para o jantar. Ela suspirou. Sentia-se ŕ vontade no vestido de chá, os cabelos louros soltos. Mas agora teria de se meter num espartilho e deixar que uma criada lhe empilhasse os cabelos no alto da cabeça. Comentava-se que algumas mulheres mais jovens estavam abandonando o espartilho. O que é ótimo, pensou Lydia, quando se tem um corpo naturalmente moldado como um oito. Mas ela era pequena em todos os lugares errados. Ela se levantou e saiu. O ajudante de jardineiro estava parado ao lado de uma roseira, conversando com uma das criadas. Lydia reconheceu a criada: era Annie, uma moça bonita, sensual e de cabeça vazia, com um sorriso largo e generoso. Ela estava com as măos nos bolsos do avental, o rosto redondo levantado para o Sol, rindo de alguma coisa que o ajudante de jardineiro dissera. Aí está uma moça que năo precisa de espartilho, pensou Lydia. Annie deveria estar cuidando de Charlotte e Belinda, pois a governanta tirara a tarde de folga. Lydia disse bruscamente: ​ Annie! Onde estăo as moças? O sorriso de Annie desapareceu e ela fez uma pequena reveręncia. ​ Năo consegui encontrá-las, milady.
O ajudante de jardineiro afastou-se, encabulado. ​ Năo parece estar procurando por elas ​ comentou Lydia. ​ Trate de se apressar. ​ Pois năo, milady. Annie saiu correndo para os fundos da casa. Lydia suspirou. As moças năo seriam encontradas por lá, mas ela năo podia dar-se ao trabalho de chamar Annie de volta e censurá-la novamente. Lydia atravessou o gramado, pensando em coisas familiares e agradáveis, empurrando Săo Petersburgo para o fundo da mente. O pai de Stephen, o sétimo Conde de Walden, plantara rododendros e azaléias no lado oeste do parque. Lydia jamais se encontrara com o velho, pois ele morra antes que conhecesse Stephen. Mas ele fora, sob todos os aspectos, um dos grandes vitorianos. As plantas que escolhera estavam agora gloriosamente em flor, ostentando uma explosăo nada vitoriana de cores variadas. Devemos providenciar para que alguém pinte um retrato da casa, pensou Lydia; o último foi pintado antes de o parque estar plenamente amadurecido. Contemplou Walden Hall. A pedra cinzenta da fachada sul estava bonita e distinta ao Sol da tarde. A porta do sul ficava no meio. A ala leste continha a sala de recepçăo e as várias salas de refeiçőes, tendo por trás as cozinhas, copas e lavanderias, estendendo-se irregularmente até os estábulos. Mais perto dela, no lado oeste, ficavam uma sala de estar, o Octógono e, no canto, a biblioteca; depois, ao longo da fachada oeste, vinham o salăo de bilhar, a sala das armas, sua sala das flores, um salăo de fumar e o escritório da propriedade. No segundo andar, os quartos da família ficavam quase todos no lado sul, enquanto os quartos de hóspedes se localizavam no lado oeste e os aposentos dos criados por cima das cozinhas, para noroeste, fora de vista. Por cima do segundo andar havia uma sucessăo irracional de torres, torreőes e sótăos. A fachada era um tumulto de cantaria ornamental, no melhor estilo rococó vitoriano, com flores e palmas esculpidas dragőes, leőes e querubins, balcőes e ameias, mastros de bandeiras, relógios de sol e gárgulas. Lydia adorava a mansăo, e sentia-se grata porque Stephen, ao contrário do que acontecia com uma boa parte da aristocracia antiga, tinha condiçőes de mantę-la. Ela avistou Charlotte e Belinda emergirem dos arbustos no outro lado do gramado. Annie năo as encontrara, é claro. As duas usavam chapéus de aba larga, vestidos leves de verăo, meias pretas e sapatos pretos baixos de colegiais. Como Charlotte ia debutar naquela temporada, podia ocasionalmente empilhar os cabelos na cabeça e vestir-se a rigor para o jantar Na maior parte do tempo, no entanto, Lydia tratava-a como a criança que ela era. Afinal, era um erro deixar as crianças crescerem muito depressa. As duas primas achavam-se absorvidas numa conversa, e Lydia se perguntou de que estariam falando. O que havia na minha cabeça quando eu tinha 18 anos?, pensou ela. Lembrou-se entăo de um rapaz de cabelos macios e măos hábeis e pensou: Por favor, Deus, permita-me guardar os meus segredos.
 
​ Acha que vamo-nos sentir diferentes depois que debutarmos? ​ indagou Belinda. Charlotte já pensara a respeito. ​ Eu năo vou. ​ Mas seremos adultas.
​ Năo vejo como uma porçăo de festas, bailes e piqueniques pode fazer com que uma pessoa se torne adulta. ​ Teremos de usar espartilhos. Charlotte soltou uma risada. ​ Alguma vez já usou um? ​ Năo. E vocę? ​ Experimentei o meu na semana passada. ​ E como é? ​ Horrível. Năo se consegue andar direito. ​ E como vocę ficou parecendo? Charlotte gesticulou com as măos para indicar um busto enorme. As duas desataram a rir. Charlotte avistou a măe e assumiu uma expressăo contrita, na expectativa de uma reprimenda. Mas a măe parecia preocupada e limitou-se a sorrir vagamente, enquanto se afastava. ​ Mas vai ser divertida ​ comentou Belinda. ​ A temporada? Vai, sim ​ murmurou Charlotte, parecendo em dúvida. ​ Mas qual o sentido de tudo isso? ​ Ora, é para se conhecer o tipo certo de rapaz. ​ Ou seja, para procurar um marido. Elas chegaram ao carvalho grande no meio do gramado. Belinda sentou-se no banco por baixo da árvore, parecendo um pouco mal-humorada. ​ Acha que debutar năo passa de uma tolice, năo é mesmo? Charlotte sentou-se ao lado dela e olhou pelo tapete de relva para a longa fachada sul de Walden Hall. As altas janelas góticas faiscavam ao Sol da tarde. Dali, a casa dava a impressăo de que poderia ser racional e regularmente projetada. Por trás daquela fachada, no entanto, era de fato uma confusăo encantadora. Ela disse: ​ O que acho tolice é ser obrigada a esperar por tanto tempo. Năo tenho a menor pressa de ir a bailes, visitar pessoas ŕ tarde e conhecer rapazes… e năo me importaria se nunca fizesse essas coisas. Mas fico furiosa por ser tratada ainda como uma criança. Detesto ter de jantar com Marya. Ela é totalmente ignorante ou pelo menos simula ser. Papai fala de coisas interessantes. Quando fico aborrecida, Marya sugere que joguemos cartas. Mas năo quero jogar coisa alguma. Venho jogando por toda a minha vida. Charlotte suspirou. Falar a respeito deixava-a ainda mais furiosa. Olhou para o rosto sereno e sardento de Belinda, com seu halo de cachos vermelhos. O rosto de Charlotte era oval, nariz reto, queixo
forte, cabelos escuros. A feliz e confiante Belinda, pensou ela; essas coisas năo a incomodam, porque nunca se preocupa com coisa alguma. Charlotte tocou no braço de Belinda. ​ Desculpe. Acho que exagerei. ​ Năo foi nada. ​ Belinda sorriu, indulgentemente. ​ Vocę está sempre se irritando com coisas que năo pode mudar. Lembra da ocasiăo em que resolveu que queria ir para Eton? ​ Nunca! ​ Mas claro que queria. E armou a maior confusăo. Vocę disse: Papai estudou em Eton; entăo por que eu também năo posso ir para lá? Charlotte năo se lembrava do incidente, mas năo podia negar que era uma atitude típica dela aos 10 anos de idade. ​ Mas vocę acha mesmo que essas coisas năo podem ser diferentes, Belinda? Debutar e ir para a temporada em Londres, ficar noiva, depois o casamento… ​ Vocę pode ter um escândalo e ser obrigada a emigrar para a Rodésia. ​ Năo sei direito o que é preciso fazer para ter um escândalo. ​ Nem eu. As jovens ficaram em silęncio por algum tempo. Havia momentos em que Charlotte gostaria de ser passiva como Belinda. A vida seria mais simples… mas seria também horrivelmente insípida. ​ Perguntei a Marya o que deveria fazer depois de me casar. E sabe o que ela respondeu? ​ Charlotte imitou o sotaque gutural russo da governanta: ​ Fazer? Ora, minha criança, vocę năo vai fazer nada! ​ Isso é bobagem ​ disse Belinda. ​ Será mesmo? O que sua măe e a minha fazem? ​ Elas săo da Boa Sociedade. Văo as festas, passam tempo em suas casas no campo, freqüentam a ópera e… ​ Justamente o que eu estava dizendo. Nada. ​ Elas tęm filhos… ​ Isso é diferente. Elas fazem o maior segredo sobre ter filhos. ​ Porque é… vulgar. ​ Por quę? O que há de vulgar em ter filhos? ​ Charlotte percebeu que estava novamente ficando entusiasmada. Marya sempre a advertia para năo ficar entusiasmada. Respirou fundo e baixou a voz ao acrescentar: ​ Nós duas vamos ter filhos. Năo acha que nos poderiam dizer alguma coisa sobre a maneira
como acontece? Afinal, estăo sempre exigindo que a gente saiba de tudo a respeito de Mozart, Shakespeare e Leonardo da Vinci. Belinda parecia contrafeita, mas muito interessada. Ela sente a respeito a mesma coisa que eu, pensou Charlotte; será que sabe de muita coisa? ​ Sabia que eles crescem dentro da gente? ​ indagou Charlotte. Belinda assentiu com um aceno de cabeça, e depois murmurou: ​ Mas como começa? ​ Acho que apenas acontece, quando a gente faz vinte e um anos. É por isso que uma moça deve virar debutante e fazer a temporada… para arrumar um marido antes de começar a ter bebęs. ​ Charlotte hesitou por um instante, antes de acrescentar: ​ Acho que é isso… ​ Mas como eles saem? ​ Năo sei. Săo muito grandes? Belinda abriu as măos por mais de meio metro. ​ Os gęmeos eram grandes assim quando estavam com um dia de idade. ​ Ela pensou mais um pouco, reduziu a distância. ​ Talvez fossem um pouco menores… ​ Quando uma galinha pőe um ovo, sai… por trás. ​ Charlotte evitou os olhos de Belinda. Nunca antes tivera uma conversa tăo íntima com qualquer pessoa. ​ O ovo também parece muito grande, mas sai. Belinda inclinou-se para mais perto e falou baixinho: ​ Vi Daisy largar um bezerro uma vez. É a vaca Jersey na fazenda. Os homens năo sabiam que eu estava olhando. É o que chamam de ​largar um bezerro​. Charlotte estava fascinada. ​ O que aconteceu? ​ Foi horrível. Parecia que a barriga dela se abriu, saiu sangue e outras coisas. Belinda estremeceu, enquanto Charlotte dizia: ​ Isso me deixa apavorada. Fico com medo de que me aconteça antes de saber como é. Por que năo nos contam essas coisas? ​ Năo deveríamos estar conversando sobre isso. ​ Mas que diabo! Temos todo o direito de falar sobre essas coisas! Belinda ficou atordoada.
​ Praguejar só vai piorar as coisas! ​ Năo me importo. ​ Charlotte sentia-se furiosa por saber que năo havia qualquer possibilidade de descobrir como eram aquelas coisas, ninguém a quem perguntar, nenhum livro a consultar… Subitamente, teve uma idéia e acrescentou: ​ Há um armário trancado na biblioteca… e aposto que está cheio de livros sobre essas coisas. Vamos dar uma olhada! ​ Mas se está trancado… ​ Eu sei onde guardam a chave. Há anos que sei. ​ Ficaremos numa encrenca terrível se formos apanhadas. ​ Eles estăo agora trocando de roupa para o jantar. É a nossa chance. Charlotte se levantou. Belinda ainda hesitava. ​ Vai haver a maior briga… ​ Năo me importo. Tenho de dar uma olhada naquele armário. Se vocę quiser, pode acompanhar-me. Charlotte virou-se e encaminhou-se para a casa. Depois de um momento, Belinda saiu correndo para alcançá-la, como Charlotte tinha certeza de que aconteceria. Elas passaram pelo pórtico, entraram no vestíbulo fresco e vasto. Virando ŕ esquerda, atravessaram a sala de estar e o Octógono, entrando na biblioteca. Charlotte dizia a si mesma que era uma mulher e tinha o direito de saber, mas mesmo assim sentia-se como uma menina levada. A biblioteca era o seu local predileto. Localizada num canto da casa, era bastante clara, iluminada pela claridade que entrava por tręs janelas grandes. As cadeiras estofadas em couro eram antigas e surpreendentemente confortáveis. No inverno, havia um fogo aceso na lareira durante o dia inteiro, havia jogos e quebra-cabeças, além de dois ou tręs mil livros. Alguns eram muito antigos, estavam ali desde que a casa fora construída. Mas muitos eram novos, pois a măe lia romances e o pai estava interessado numa porçăo de coisas diferentes… química, agricultura, viagens, astronomia e história. Charlotte gostava de ir ŕ biblioteca especialmente nos dias em que Marya estava de folga, quando a governanta năo podia tirar-lhe das măos Far From the Madding Crowd e substituir por The Water Babies. Havia ocasiőes em que o pai lhe fazia companhia na biblioteca, sentado ŕ escrivaninha de pedestal vitoriano, lendo um catálogo de máquinas agrícolas ou o balanço de uma estrada de ferro americana. Mas ele jamais interferia com a escolha dos livros de Charlotte. A biblioteca estava vazia agora. Charlotte foi direto para a mesa, abriu uma gaveta pequena e quadrada, e tirou uma chave. Havia tręs armários encostados na parede, ao lado da escrivaninha. Um deles continha jogos em caixas, outro tinha papel de escrever e envelopes com o timbre dos Waldens. O terceiro estava trancado. Charlotte abriu-o com a chave. Lá dentro havia 20 ou 30 livros e uma pilha de revistas velhas. Charlotte deu uma olhada numa das revistas. Era chamada The Pearl. Apressadamente, pegou dois livros ao acaso, sem olhar para os títulos.
Fechou e trancou o armário, tornando a guardar a chave na gaveta. ​ Pronto! ​ exclamou ela, triunfante. ​ Para onde podemos ir para ler esses livros? ​ sussurrou Belinda. ​ Lembra do esconderijo? ​ Lembro. ​ Por que estamos sussurrando? As duas riram. Charlotte foi ate​ a porta. De repente, ouviu uma voz no vestíbulo, chamando: ​ Lady Charlotte… Lady Charlotte… ​ É Annie ​ disse Charlotte. ​ Está-nos procurando. É uma moça agradável, mas muito obtusa. Vamos para o outro lado. Depressa! A jovem atravessou a biblioteca e passou para o salăo de bilhar, que por sua vez dava para a sala de armas. Mas havia alguém na sala de armas. Charlotte escutou por um momento. ​ É Papai! ​ sussurrou Belinda, parecendo apavorada. ​ Ele tinha saído com os cachorros! Felizmente, havia um par de portas francesas, dando do salăo de bilhar para o terraço de oeste. Charlotte e Belinda saíram, fechando as portas silenciosamente. O Sol estava baixo e vermelho, projetando sombras compridas pelo gramado. ​ Como vamos voltar? ​ indagou Belinda. ​ Pelos telhados. Siga-me! Charlotte contornou os fundos da casa correndo e atravessou a horta da cozinha até os estábulos. Metera os dois livros no corpete do vestido e apertara o cinto, a fim de que năo caíssem. De um canto do pátio dos estábulos, ela podia subir, por uma sucessăo de degraus, para o telhado por cima dos aposentos dos criados. Subiu primeiro na baixa tulha de ferro usada para guardar lenha. Dali, passou para o telhado de zinco corrugado de um telheiro em que se guardavam ferramentas. O telheiro ficava encostado na lavanderia. Ela subiu para o telhado inclinado da lavanderia. Virou-se e olhou para trás. Belinda a estava seguindo. Deitando-se nas telhas de ardósia, Charlotte foi-se deslocando para o lado, como um caranguejo, segurando-se com as palmas das măos e os lados dos sapatos, até que o telhado terminou numa parede. Subiu até a cumeeira do telhado. Belinda alcançou-a, sussurrando: ​ Isso năo é perigoso? ​ Venho subindo por aqui desde que tinha nove anos de idade.
Por cima delas estava a janela de um quarto de sótăo, partilhado por duas copeiras. A janela era alta, os cantos quase encostando no telhado, que se inclinava nos dois lados. Charlotte ergueu-se e deu uma espiada no quarto. Năo havia ninguém lá dentro. Suspendeu-se até o peitoril da janela, ficando de pé ali. Inclinou-se para a esquerda, passou um braço e uma perna pela beira do telhado, ergueu-se para as telhas de ardósia. Virou-se e ajudou Belinda a subir também. Ficaram deitadas ali por um momento, recuperando o fôlego. Charlotte lembrava-se de ter ouvido alguém comentai que Walden Hall tinha cerca de um hectare e meio de telhados. Era difícil de acreditar, até se chegar lá em cima e se descobrir perdido entre as cumeeiras e vales. Daquele ponto, era possível alcançar qualquer parte dos telhados, usando as passagens, escadas e túneis instalados para os homens da manutençăo, que apareciam todas as primaveras para limpar as calhas, pintar os canos e trocar as telhas quebradas. Charlotte se levantou. ​ Vamos embora. O resto é fácil. Havia uma escada para o telhado seguinte, depois uma passagem estreita, em seguida alguns degraus de madeira, levando a uma porta pequena e quadrada na parede. Charlotte abriu a porta e entrou. Estava em seu esconderijo. Era uma sala de teto baixo, sem janelas, o assoalho de tábuas, cheias de farpas, que podiam machucar quem năo tomasse cuidado. Charlotte imaginava que fora outrora usado como depósito, mas estava agora inteiramente esquecido. Uma porta no outro lado dava para um pequeno cômodo contíguo ao quarto de bebę, que há anos năo era usado. Charlotte descobrira o esconderijo quando tinha oito ou nove anos, usando-o ocasionalmente desde entăo no jogo… que tinha a impressăo de estar empenhada por toda a sua vida… de escapar de supervisăo. Havia almofadas no chăo, velas em potes e uma caixa de fósforos. Sobre uma das almofadas estava um velho cachorro de brinquedo, ali escondido oito anos antes, depois que Marya a aia, ameaçara jogá-lo fora. Havia um vaso rachado numa mesinha, com diversos lápis de cor, ao lado de uma caixa de escrever de couro vermelho Fazia-se um inventário de tudo o que havia em Walden Hall a intervalos de poucos anos e Charlotte podia lembrar que a Sra. Braithwait, a governanta, comentava que as coisas mais estranhas estavam faltando. Belinda entrou também no esconderijo, e Charlotte acendeu as velas Tirou os dois livros do corpete e verificou os títulos. Um deles era Household Medicine (Medicina Doméstica) e o outro The Romance of Lust (O Romance do Desejo). O livro médico parecia mais promissor. Sentou-se numa almofada e abriuo. Belinda sentou-se a seu lado, com uma expressăo de culpa. Charlotte tinha a sensaçăo de que estava prestes a descobrir o segredo da vida. Folheou o livro. Parecia explícito e detalhado ao falar de reumatismo, ossos quebrados e sarampo. Mas ao falar de parto, tornava-se de repente impenetravelmente vago. Havia referęncias misteriosas a căibras, águas se rompendo e um cordăo que tinha de ser amarrado em dois lugares, depois cortado com uma tesoura previamente mergulhada em água fervendo. O capítulo era obviamente escrito para pessoas que já sabiam de muita coisa a respeito do assunto. Havia um desenho de uma mulher nua. Charlotte notou, mas sentiu-se embaraçada demais para dizer a Belinda, que a mulher no desenho năo tinha cabelos num determinado lugar em que ela tinha em abundância. Havia também um desenho de um bebę dentro da barriga da mulher, mas năo trazia qualquer indicaçăo de uma passagem pela qual o bebę poderia sair. ​ O médico deve cortar a barriga para o bebę sair ​ comentou Belinda.
​ Entăo como faziam no tempo em que năo existiam médicos? ​ indagou Charlotte. ​ A verdade é que este livro năo é bom. A moça abriu o outro livro ao acaso e leu em voz alta a primeira frase que lhe atraiu a atençăo: ​ Ela abaixou-se com uma lentidăo lasciva sobre a minha lança rígida e depois começou os seus deliciosos movimentos para frente e para trás. Charlotte franziu o rosto, olhando para Belinda, que murmurou: ​ O que será que isso significa?
 
Feliks Kschessinsky encontrava-se num vagăo, esperando que o trem saísse da estaçăo de Dover. Fazia frio no vagăo. Ele permanecia absolutamente imóvel. Estava escuro lá fora, e ele podia ver seu reflexo na janela, um homem alto, de bigode impecável, usando um casaco preto e chapéu-coco. Havia uma pequena valise na prateleira por cima de sua cabeça. Ele poderia passar pelo representante comercial de um fabricante de relógios suíços, exceto pelo fato de o casaco ser ordinário, o que năo escaparia aos olhos de um observador mais atento, a valise ser de papelăo e o rosto năo ser o de um homem que vendia relógios. Ele estava pensando na Inglaterra. Podia lembrar-se do tempo em que, na juventude, sustentara que a monarquia constitucional da Inglaterra era a forma ideal de governo. A recordaçăo divertiu-o e o rosto pálido refletido na janela presenteou-o com o fantasma de um sorriso. Há muito que já mudara de idéia a respeito da forma ideal de governo. O trem partiu, e alguns minutos depois Feliks estava contemplando o Sol nascer sobre os pomares e campos de lúpulo de Kent. Ele nunca deixava de ficar impressionado ao constatar como a Europa era bonita. Sofrera um choque profundo ao vę-la pela primeira vez. Como qualquer camponęs russo, sempre fora incapaz de imaginar que o mundo pudesse parecer assim. Podia lembrar que estava num trem nessa ocasiăo. Atravessara centenas de quilômetros das províncias escassamente povoadas do noroeste da Rússia, com suas árvores raquíticas, aldeias miseráveis enterradas na neve e estradas lamacentas e sinuosas. E, de repente, ele acordara uma manhă para descobrir-se na Alemanha. Contemplando os campos verdes impecáveis, as estradas pavimentadas, as casas atraentes em aldeias limpas, os canteiros de flores na estaçăo ferroviária, ele pensara que estava no Paraíso, Mais tarde, na Suíça, sentara-se na varanda de um pequeno hotel, aquecido pelo Sol, ainda ŕ vista, por cima das montanhas cobertas de neve, tomando café e comendo um păo fresco e crocante, ele pensara: As pessoas aqui devem ser muito felizes. Agora, observando as fazendas inglesas iniciarem suas atividades, ao romper do dia, recordou o amanhecer em sua aldeia natal: um céu cinzento, em ebuliçăo; um campo pantanoso congelado, com poças de gelo e tufos de mato aparecendo; um vento cortante; ele próprio numa blusa velha de lona, os pés já dormentes em sapatos de feltro e tamancos; o pai andando a seu lado, usando as roupas puídas de um sacerdote rural empobrecido, argumentando que Deus era bom. O pai amara o povo russo porque Deus também o amava. Para Feliks, no entanto, sempre fora perfeitamente óbvio que Deus odiava o povo, pois o tratava com a maior crueldade. Essa discussăo fora o início de uma longa jornada, uma jornada que levará Feliks do cristianismo ao
terror anarquista, passando pelo socialismo, da província de Tambov a Genebra, passando por Săo Petersburgo e a Sibéria. Fora em Genebra que ele tomara a decisăo que o levara ŕ Inglaterra. Ele recordou a reuniăo. Quase a perdera…
 
Quase perdeu a reuniăo. Estivera em Cravóvia, negociando com os judeus poloneses que contrabandeavam a revista Motim para a Rússia através da fronteira. Chegou em Genebra depois do anoitecer e foi direto para a pequena gráfica de Ulrich. O comitę editorial estava reunido, quatro homens e duas mulheres, em torno de uma vela, nos fundos da oficina, por trás da prensa reluzente, respirando os odores de papel de jornal e máquinas lubrificadas, planejando a revoluçăo russa. Ulrich informou Feliks a respeito do que estava sendo discutido. Ele estivera com Josef, um espiăo da Okhrana, a polícia secreta russa. Josef simpatizava secretamente com os revolucionários e fornecia informaçőes falsas ŕ Okhrana em troca do dinheiro. Os anarquistas lhe transmitiam ŕs vezes informaçőes verdadeiras, mas inofensivas. Josef retribuía com informaçőes sobre as atividades da Okhrana. As notícias que Josef transmitira agora eram sensacionais. ​ O Czar quer fazer uma aliança militar com a Inglaterra ​ disse Ulrich a Feliks. ​ Está enviando o Príncipe Orlov a Londres para negociar. A Okhrana está a par porque tem de proteger o Príncipe na viagem pela Europa. Feliks tirou o chapéu e se sentou, perguntando-se se era mesmo verdade. Uma das mulheres, uma russa triste e esfarrapada, trouxe-lhe chá num copo. Feliks tirou do bolso a metade de um torrăo de açúcar, colocou-o entre os dentes e tomou o chá através do açúcar, ŕ maneira camponesa. ​ A Inglaterra poderia entăo travar uma guerra com a Alemanha e obrigar os russos a lutar ​ acrescentou Ulrich. Feliks assentiu. A moça que lhe servira o chá comentou: ​ E năo serăo os príncipes e condes que morrerăo… mas os russos comuns. Ela estava certa, pensou Feliks. A guerra seria lutada pelos camponeses. Ele passara a maior parte de sua vida entre aquela gente. Eram rudes, resistentes e de mentalidade estreita, mas a generosidade desmedida e as explosőes espontâneas ocasionais de pura alegria indicavam como poderiam ser numa sociedade decente. As preocupaçőes deles eram o tempo, os animais, doenças, partos e serem mais espertos do que os donos das terras. Por uns poucos anos, ao final da adolescęncia, eram vigorosos e íntegros, podiam sorrir, correr depressa, namorar. Mas logo se tornavam encurvados, grisalhos, lerdos, soturnos. Agora, o Príncipe Orlov arrebanharia esses jovens, na primavera de suas vidas, e os levaria para servirem de bucha de canhăo, a fim de serem mortos ou mutilados para sempre, certamente pelas melhores razőes da diplomacia internacional. Eram coisas assim que faziam com que Feliks fosse um anarquista. ​ O que devemos fazer? ​ indagou Ulrich. ​ Temos de estampar a notícia na primeira página do Motim! ​ exclamou a mulher esfarrapada.
Eles começaram a discutir como a notícia deveria ser transmitida. Feliks ficou escutando, em silęncio. As questőes editoriais năo o interessavam muito. Ele distribuía a revista e escrevia artigos em que explicava como fazer bombas, mas sentia-se profundamente descontente. Tornara-se terrivelmente civilizado em Genebra. Tomava cerveja ao invés de vodca, usava colarinho e gravata, ia a concertos de música orquestral. Tinha um emprego numa livraria. Enquanto isso, a Rússia estava em efervescęncia. Os trabalhadores em petróleo encontravam-se em guerra com os cossacos, o parlamento mostrava-se impotente, um milhăo de trabalhadores achava-se em greve. O Czar Nicolau II era o mais incompetente e obtuso soberano que uma aristocracia degenerada podia produzir. O país era um barril de pólvora, esperando por uma centelha. Feliks queria ser essa centelha. Mas era fatal voltar. Stalin voltara e logo depois de pisar em solo russo fora despachado para a Sibéria. A polícia secreta conhecia os revolucionários exilados muito melhor do que conhecia os que ainda estavam na Rússia. Feliks sentia-se irritado pelo colarinho duro, os sapatos de couro e as circunstâncias em que se encontrava. Correu os olhos pelo pequeno grupo de anarquistas: Ulrich, o tipógrafo, de cabelos brancos e avental sujo de tinta, um intelectual que emprestava a Feliks livros de Proudhon e Kropotkin, mas também um homem de açăo, que certa ocasiăo ajudara Feliks a assaltar um banco; Olga, a moça esfarrapada, que parecia estar-se apaixonando por Feliks até o dia em que o vira quebrar o braço de um guarda e passara a ter medo dele; Vera, a poetisa promíscua; Yevno, o estudante de filosofia que falava muito sobre uma onda de purificaçăo de sangue e fogo; Hans, o fabricante de relógios, que perscrutava as almas das pessoas como se as olhasse através de sua lente de aumento; e Piotr, o conde despojado, autor de brilhantes tratados de economia e de inspirados editoriais revolucionários. Eram pessoas sinceras e trabalhadoras, extremamente inteligentes. Feliks sabia da importância delas, pois estivera na Rússia, entre os desesperados que aguardavam impacientemente os jornais e panfletos contrabandeados, passando-os de măo em măo, até ficarem em frangalhos. Mas năo era suficiente, pois os tratados econômicos năo constituíam uma proteçăo contra as balas da polícia e os artigos inflamados năo queimariam palácios. Ulrich estava dizendo: ​ A notícia merece uma circulaçăo mais ampla do que poderá obter no Motim. Quero que cada camponęs da Rússia saiba que Orlov está querendo jogá-lo numa guerra inútil e sangrenta, por causa de algo que absolutamente năo lhe diz respeito. ​ O primeiro problema é determinar se văo acreditar em nós ​ comentou Olga. ​ O primeiro problema é determinar se a história é verdadeira ​ interveio Feliks. ​ Podemos verificar ​ disse Ulrich. ​ Os camaradas de Londres podem descobrir se Orlov chega no momento previsto e se se reúne com as pessoas que precisa encontrar. ​ Năo é suficiente espalhar a notícia ​ declarou Yevno, muito excitado. ​ Temos de acabar com isso! ​ Como? ​ indagou Ulrich, observando o jovem Yevno por cima dos óculos de aros de arame. ​ Devemos providenciar o assassinato de Orlov. Ele é um traidor… está traindo o povo e deve ser executado. ​ E isso impediria as negociaçőes? ​ Provavelmente ​ interveio o Conde Piotr. ​ Especialmente se o assassino fosse um anarquista. Devemo
nos lembrar que a Inglaterra proporciona asilo político aos anarquistas e isso enfurece o Czar. Se um dos seus príncipes for morto na Inglaterra por um dos nossos camaradas, o Czar pode ficar furioso o bastante a ponto de cancelar todas as negociaçőes. ​ E que história sensacional teríamos entăo! ​ exclamou Yevno. ​ Poderíamos dizer que Orlov foi assassinado por um dos nossos pelo crime de traiçăo contra o povo russo. ​ Todos os jornais do mundo haveriam de publicar essa notícia ​ comentou Ulrich. ​ Pensem no efeito que isso teria na Rússia. Sabem como os camponeses russos se sentem em relaçăo ao recrutamento… é uma sentença de morte. Eles fazem um funeral quando um rapaz vai para o Exército. Se souberem que o Czar está planejando obrigá-los a lutar em uma grande guerra européia, os rios ficariam vermelhos de sangue… Ele estava certo, pensou Feliks. Yevno sempre falava assim, mas desta vez ele estava certo. Ulrich disse: ​ Acho que vocę está numa terra de sonhos, Yevno. Orlov está numa missăo secreta… năo vai desfilar por Londres numa carruagem aberta, acenando para as multidőes. Além do mais, sei que os camaradas de Londres… nunca assassinaram ninguém. Năo vejo como poderia ser feito. ​ Pois eu sei como ​ declarou Feliks. Todos o fitaram. As sombras em seus rostos se alteravam incessantemente, ŕ luz bruxuleante da vela. ​ Sei como pode ser feito. ​ A voz de Feliks parecia estranha, como se a garganta estivesse apertada. ​ Irei a Londres e matarei Orlov. Houve um súbito silęncio. Toda a conversa de morte e destruiçăo tornava-se de repente real e concreta. Todos pareciam aturdidos, ŕ exceçăo de Ulrich, que sorria satisfeito, quase como se tivesse planejado desde o início que aquilo aconteceria.
DOIS
Londres era incrivelmente rica. Feliks já vira riqueza extravagante na Rússia e muita prosperidade na Europa, mas jamais naquela escala. Ali, năo havia absolutamente ninguém em farrapos. Ao contrário, todos usavam diversas camadas de roupas grossas, embora estivesse fazendo calor. Feliks podia ver carroceiros, vendedores ambulantes, varredores, trabalhadores e entregadores… todos ostentando casacos saídos das fábricas, sem buracos nem remendos. Todas as crianças estavam de botinas. Cada mulher tinha um chapéu… e que chapéus! Eram quase todos enormes, tăo largos quanto as rodas de um carrinho de cachorro, decorados com fitas, plumas, flores e frutos. As ruas estavam apinhadas. Ele viu mais automóveis nos primeiros cinco minutos do que jamais encontrara antes em toda a sua vida. Parecia haver tantos automóveis quanto veículos puxados por cavalos. Sobre rodas ou a pé, todos avançavam apressadamente. Todos os veículos encontravam-se parados em Piccadilly Circus e a causa era familiar em qualquer cidade: um cavalo caíra e a carroça virara. Vários homens empenhavam-se em levantar o cavalo e a carroça, enquanto da calçada vendedoras de flores e mulheres de rosto pintado gritavam palavras de estímulo e gracejos, Feliks foi seguindo para leste e a impressăo inicial de grande riqueza se modificou um pouco. Passou por uma catedral em domo que era chamada de Săo Paulo, segundo o mapa que ele comprara na Estaçăo Victoria. Penetrou entăo em distritos mais pobres. Abruptamente, as fachadas magníficas dos bancos e prédios de escritórios foram substituídas por fileiras de casas iguais, em graus variados de abandono. Havia menos automóveis e mais cavalos, e estes eram mais magros. Quase todas as lojas năo passavam de simples barracas ŕ beira da rua. Năo havia mais garotos de entregas. Ele via agora muitas crianças descalças… năo que isso tivesse alguma importância, pois lhe parecia que naquele clima năo precisavam mesmo de botinas. A situaçăo foi-se tornando pior ŕ medida que Feliks se embrenhou mais ainda pelo East End. Havia ali cortiços miseráveis, pátios esquálidos e becos fétidos, em que farrapos humanos, vestidos em andrajos, vasculhavam as pilhas de lixo, procurando por comida. Feliks entrou na Rua Whitechapel High e viu as barbas familiares, cabelos compridos e trajes tradicionais dos judeus ortodoxos. Havia pequenas lojas vendendo peixe defumado e carne kosher. Era como estar num gueto russo, só que ali os judeus năo pareciam assustados. Ele foi até ŕ Rua Jubilee, 165, o endereço que Ulrich lhe fornecera. Era um prédio de dois andares, que parecia uma capela luterana. Um aviso no lado de fora anunciava que o Clube e Instituto dos Trabalhadores Amigos estava aberto a todos os trabalhadores, independente das posiçőes políticas. Mas outro aviso deixava transparecer a natureza do lugar, proclamando que fora inaugurado em 1906 por Peter Kropotkin. Feliks se perguntou se iria conhecer ali em Londres o legendário Kropotkin. Entrou no prédio. Viu no saguăo uma pilha de jornais, também chamado ​Os Trabalhadores Amigos​, só que o título estava em iídiche: Der Arbeiter Fraint. Avisos nas paredes anunciavam aulas de inglęs, uma escola dominical, uma viagem a Epping Forest e uma conferęncia sobre Hamlet. Feliks parou no saguăo. A arquitetura confirmava sua impressăo inicial: năo restava a menor dúvida de que aquilo fora outrora a nave de uma igreja in conformista. Fora transformada pelo acréscimo de um palco numa extremidade e um bar na outra. Havia um grupo de homens e mulheres no palco, aparentemente ensaiando uma peça. Talvez fosse isso o que os anarquistas faziam na Inglaterra, pensou Feliks; explicaria por que tinham
permissăo para se reunir em clubes. Ele foi até o bar. Năo havia qualquer sinal de bebida alcoólica, mas no balcăo ele viu gelilte fish, arenque em conserva e… a suprema alegria!… um samovar. A moça por trás do balcăo fitou-o e disse: ​ Nu? Feliks sorriu.
 
Uma semana depois, no dia em que o Príncipe Orlov deveria chegar a Londres, Feliks almoçou num restaurante francęs no Soho. Chegou cedo e pegou uma mesa perto da porta. Tomou uma sopa de cebola, comeu um bife e queijo de cabra, bebeu meia garrafa de vinho tinto. Pediu em francęs. Os garçons trataram-no com extrema deferęncia. Quando terminou, estava no auge do movimento da hora do almoço. Num momento em que tręs dos garçons estavam na cozinha e os outros dois de costas para ele, Feliks levantou-se calmamente, encaminhou-se para a porta, pegou o chapéu e o casaco e saiu sem pagar. Ele sorriu enquanto se afastava pela rua. Gostava de roubar. Aprendera rapidamente como viver naquela cidade quase sem dinheiro. Para o desjejum, comprava chá doce e um pedaço de păo numa barraca na rua, por dois pence. Mas era o único alimento que tinha de pagar. Na hora do almoço, roubava frutas ou legumes nas barracas. Ao final da tarde, ia a uma sopa de caridade, obtendo uma tigela de caldo grosso e păo em quantidade ilimitada, escutando em troca um sermăo incompreensível e cantando um hino. Tinha cinco libras em dinheiro, mas estavam guardadas para uma emergęncia. Vivia em Dunstan Houses, em Stepney Green, num cortiço de cinco andares, em que residia metade dos mais eminentes anarquistas de Londres. Tinha um colchăo no chăo, no apartamento de Rudolf Rocker, o carismático louro alemăo que editava Der Arbeiter Fraint. O carisma de Rocker năo funcionava com Feliks, que era imune ao charme. Mas Feliks respeitava a dedicaçăo total do homem. Rocker e a mulher Milly mantinham a casa sempre aberta para anarquistas. Durante o dia inteiro… e por metade da noite… havia visitantes, mensageiros, debates, reuniőes de comitęs, com muito chá e cigarros, Feliks năo pagava aluguel, mas todos os dias levava alguma coisa… meio quilo de salame, um pacote de chá, laranjas… para a despensa comunitária. Todos pensavam que ele comprava essas coisas, mas é claro que Feliks as roubava. Ele disse aos outros anarquistas que estava ali para estudar no Museu Britânico e concluir seu livro sobre o anarquismo natural nas comunidades primitivas. Todos acreditavam. Eram joviais, dedicados e inofensivos; acreditavam sinceramente que a revoluçăo podia ser implantada pela educaçăo e sindicalismo, por panfletos, conferęncias e excursőes a Epping Forest. Feliks sabia que a maioria dos anarquistas fora da Rússia era assim. Năo os odiava, mas secretamente os desprezava, pois, no final das contas, eram apenas pessoas assustadas. Năo obstante, havia em geral uns poucos homens violentos, entre esses grupos. Quando precisasse deles, Feliks iria procurá-los. Enquanto isso, preocupava-se com a vinda de Orlov e a maneira como iria matá-lo. Mas tais preocupaçőes eram inúteis, e ele tentava distrair a mente com o estudo do inglęs. Aprendera um pouco da
língua na cosmopolita Suíça. Durante a longa viagem de trem através da Europa, estudara uma cartilha para crianças russas e uma traduçăo inglesa de seu romance predileto, A Filha do Capităo, de Pushkin, que conhecia praticamente de cor em russo. Agora, lia The Times todas as manhas, no salăo de leitura do clube da Rua Jubilee. De tarde, andava pelas ruas, puxando conversa com bębados, vagabundos e prostitutas… as pessoas que mais apreciava, as pessoas que violavam as regras. As palavras impressas em livros logo se fundiram com os sons a seu redor. Ele já era capaz de dizer qualquer coisa que precisasse. Năo se passaria muito tempo para que pudesse conversar sobre política em inglęs. Depois de deixar o restaurante, ele seguiu para o norte, através da Rua Oxford, entrando no bairro alemăo, a oeste da Tottenham Court Road. Havia uma porçăo de revolucionários entre os alemăes, mas tendiam a ser comunistas, ao invés de anarquistas. Feliks admirava a disciplina dos comunistas, mas desconfiava do autoritarismo deles; além disso, era por temperamento incompatível como o trabalho partidário. Atravessou o Parque Regent e entrou no subúrbio de classe média que ficava ao norte. Vagueou pelas ruas arborizadas, contemplando os pequenos jardins das impecáveis casas de tijolos, ŕ procura de uma bicicleta para roubar. Aprendera a andar de bicicleta na Suíça e descobrira que era o veículo perfeito para seguir alguém, por ser fácil de manobrar e năo atrair qualquer atençăo; e, no tráfego de uma cidade grande, era rápida o bastante para acompanhar um automóvel ou uma carruagem. Infelizmente, os cidadăos burgueses daquela parte de Londres pareciam manter suas bicicletas trancadas. Avistou um homem andando de bicicleta pela rua. Sentiu-se tentado a derrubar o homem e apoderar-se da bicicleta. Mas, naquele momento, havia tręs pedestres e um furgăo de padaria na rua, e Feliks năo queria criar uma cena. Pouco depois, ele viu um menino entregando mercadorias. Mas a bicicleta dele era ostensiva demais, com uma cesta grande na frente e uma placa de metal pendurada do travessăo, com o nome da mercearia. Feliks já estava pensando em estratégias alternativas, quando finalmente encontrou o que precisava. Um homem em torno dos 30 anos saiu de um jardim empurrando uma bicicleta. Usava um chapéu duro de palha e um blazer listrado, estofado na barriga. Encostou a bicicleta no muro do jardim e abaixou-se para prender a bainha da calça com um pregador. Feliks aproximou-se rapidamente. O homem viu a sombra dele, levantou a cabeça e murmurou: ​ Boa-tarde. Feliks derrubou-o. O homem rolou na calçada, ficando de costas e olhando para Feliks com uma expressăo estúpida de surpresa. Feliks caiu em cima dele; um joelho acertando no botăo do meio do blazer listrado. O ar deixou os pulmőes do homem com um zunido, e ele ficou inteiramente sem fôlego, impotente, ofegante. Feliks se levantou e olhou para a casa. Uma mulher jovem estava na janela olhando, a măo levantada ŕ boca entreaberta, os olhos arregalados de pavor. Feliks tomou a olhar para o homem caído. Haveria de se passar pelo menos um minuto antes que ele pensasse sequer em se levantar.
Feliks montou na bicicleta e afastou-se rapidamente. Um homem que năo tem medo pode fazer qualquer coisa que queira pensou Feliks. Aprendera essa liçăo há 11 anos, num desvio ferroviário nos arredores de Omsk. Estava nevando na ocasiăo…
 
Estava nevando. Feliks achava-se sentado num vagăo aberto, sobre uma pilha de carvăo, enregelado. Sentia frio há um ano, desde que escapara da turma de presos acorrentados que trabalhava na mina de ouro. Durante esse ano, atravessara a Sibéria, do norte congelado até quase os Urais. Agora, estava a apenas 1.500 quilômetros da civilizaçăo e do tempo quente. Andara na maior parte do caminho, embora ŕs vezes viajasse em vagőes ferroviários ou em carroças cheias de peles. Preferia viajar com gado, pois isso o mantinha aquecido e podia partilhar a comida dos animais. Estava vagamente consciente de que ele próprio era pouco mais do que um animal. Jamais se lavava, o casaco era uma manta roubada de um cavalo, as roupas esfrangalhadas estavam cheias de pulgas, e havia piolhos nos cabelos. Seu alimento predileto era ovo cru de pássaros. Certa ocasiăo roubara um pônei, montara-o até a morte e depois lhe comera o fígado. Perdera a noçăo do tempo. Sabia que era outono, pelo tempo, mas năo sabia em que męs estava. Muitas vezes se descobria incapaz de lembrar o que fizera no dia anterior. Nos momentos de maior sanidade, compreendia que estava meio louco. Jamais falava com as pessoas. Ao se aproximar de uma aldeia ou pequena cidade, tratava de contorná-la, parando apenas pelo tempo suficiente para roubar alguma coisa do depósito de lixo. Sabia somente que tinha de continuar a seguir para oeste, pois lá estaria mais quente. Mas o trem de carvăo entrara num desvio e Feliks pensou que talvez estivesse morrendo. Havia um guarda, corpulento, de casaco de pele, que ali estava para impedir que camponeses tirassem carvăo para seus fogos… Quando tal pensamento lhe ocorreu, Feliks compreendeu que estava tendo um momento de lucidez e que talvez fosse o último. Perguntou-se o que o teria provocado, e depois sentiu o cheiro do jantar do guarda. Mas este era grande, saudável e tinha uma arma. Năo me importo, pensou Feliks; vou morrer de qualquer maneira. Ele se levantou, pegou o maior pedaço de carvăo que podia agüentar, cambaleou até a cabana do guarda e entrou, acertando em sua cabeça com o pedaço de carvăo. Havia uma panela no fogo e guisado dentro dela, só que quente demais para comer. Feliks levou a panela para fora e esvaziou-a sobre a neve; depois, caiu de joelhos e pôs-se a comer, tudo misturado com neve. Havia pedaços de batata e nabo, cenouras, nacos de carne. Ele engolia tudo inteiro. O guarda saiu da cabana e acertou em Feliks,com seu porrete, um golpe violento, nas costas. Feliks ficou frenético de raiva porque o homem estava tentando impedir que ele comesse. Levantou e voou para o homem chutando e arranhando. O guarda reagiu com o porrete, mas Feliks năo sentia os golpes. Encostou os dedos na garganta do homem e apertou. Năo largou mais. Depois de algum tempo, os olhos do guarda se fecharam, o rosto ficou arroxeado, a língua pendeu para fora. E, depois, Feliks terminou de comer o guisado. Comeu todos os alimentos que havia na cabana e esquentou-se ao lado do fogo. Dormiu na cama do guarda. Estava săo ao despertar. Tirou as botinas e o casaco do homem morto e seguiu a pé para Omsk. No caminho, fez uma descoberta extraordinária a respeito de si mesmo: perdera a capacidade de sentir medo. Alguma coisa acontecera em sua mente, como se um interruptor fosse fechado. Năo podia pensar
em nada que fosse capaz de assustá-lo. Se estivesse com fome, iria roubar; se perseguido, iria esconderse; se ameaçado, iria matar. Năo havia nada que desejasse. Năo havia nada que pudesse feri-lo mais. Amor, orgulho, desejo e compaixăo eram emoçőes esquecidas. Todas acabaram voltando, mais cedo ou mais tarde. Ŕ exceçăo do medo. Ao chegar a Omsk, vendeu o casaco do guarda, comprou uma calça e uma camisa, um colete e um capote. Queimou seus trapos, pagou um rublo por um banho quente e a barba, num hotel ordinário. Comeu num restaurante, usando uma faca, ao invés dos dedos. Viu a primeira página de um jornal e lembrou-se como ler. Compreendeu entăo que estava de volta do túmulo.
 
Sentou-se num banco, na estaçăo da Rua Liverpool, a bicicleta encostada na parede a seu lado. Tentou imaginar como era Orlov. Nada sabia a respeito do homem, além de sua patente e da missăo que o trazia ŕ Inglaterra. O Príncipe podia ser um servidor insípido, diligente e leal do Czar, um sádico e devasso ou um velho afável de cabelos brancos que só gostava de brincar com os netos. Năo fazia a menor diferença. Feliks iria matá-lo de qualquer maneira. Estava convencido de que poderia reconhecer Orlov, pois russos assim năo tinham a menor vocaçăo para viajar discretamente, estivessem ou năo em missăo secreta. Mas será que Orlov viria? Se ele viesse e chegasse no trem que Josef indicara se posteriormente se encontrasse com o Conde de Walden, como Josef dissera que aconteceria, entăo năo restaria mais qualquer dúvida que a informaçăo de Josef fora correta. Poucos minutos antes da chegada prevista do trem, uma carruagem fechada, puxada por quatro magníficos cavalos, aproximou-se ruidosamente da estaçăo e seguiu direto para a plataforma. Havia um cocheiro na frente e um criado de libré pendurado atrás. Um ferroviário, de casaco ao estilo militar, com botőes reluzentes, encaminhou-se para a carruagem. Falou com o cocheiro e orientou-o para a extremidade da plataforma. O agente da estaçăo apareceu em seguida, de sobrecasaca e cartola, com um ar de importância. Consultou um relógio de bolso, comparando-o com uma expressăo crítica aos relógios da estaçăo. Abriu a porta da carruagem para que o passageiro descesse. O ferroviário passou pelo banco de Feliks, que rapidamente deteve-o pela manga. ​ Por favor, senhor ​ disse Feliks, exibindo a expressăo de olhos arregalados de um ingęnuo turista estrangeiro ​ aquele é o Rei da Inglaterra? O ferroviário sorriu. ​ Năo. É apenas o Conde de Walden. O homem afastou-se. Entăo Josef estava certo! Feliks observou Walden com olhos de assassino. Ele era alto, mais ou menos da altura de Feliks, um homem corpulento… mais fácil de alvejar do que alguém pequeno. Tinha em torno de 50 anos. Exceto por um ligeiro claudicar, parecia em perfeitas condiçőes físicas; podia fugir, mas năo muito depressa. Usava um casaco cinza-claro bastante visível e uma cartola da mesma cor. Os cabelos sob a cartola eram
curtos e lisos, a barba era pontuda, no estilo lançado pelo falecido Rei Eduardo VII. Ele ficou parado na plataforma, apoiado na bengala… uma arma em potencial… descansando a perna esquerda. O cocheiro, o lacaio e o chefe da estaçăo se movimentavam em torno dele, como abelhas cercando uma rainha. A postura era relaxada. Ele năo olhou para o relógio. Năo prestava a menor atençăo aos subalternos a seu redor. Está acostumado a isso, pensou Feliks; por toda a sua vida, sempre foi o homem mais importante na multidăo. O trem apareceu, a fumaça saindo da chaminé da locomotiva. Eu poderia matar Orlov agora, pensou Feliks. Ele sentiu por um momento a emoçăo do caçador ao se aproximar da presa. Mas já decidira que năo cometeria o assassinato naquele dia. Estava ali para observar, năo para agir. A maioria dos assassinatos anarquistas malograva por causa da pressa ou espontaneidade, na opiniăo dele. Feliks acreditava em planejamento e organizaçăo, o que constituía um anátema para muitos anarquistas. Mas eles năo compreendiam que um homem pode planejar as suas próprias açőes… era somente quando começava a organizar as vidas dos outros que se tornava um tirano. O trem finalmente parou, com grande suspiro de vapor. Feliks se levantou e chegou um pouco mais perto da plataforma. Ao final do trem havia o que parecia ser um vagăo particular, diferenciado dos demais pelas cores pintadas recentemente. Esse vagăo parou exatamente diante da carruagem de Walden. O chefe da estaçăo adiantou-se ansiosamente e abriu uma porta. Feliks ficou tenso, observando atentamente o espaço sombreado em que sua presa iria aparecer. Por um momento, todos esperaram; depois, Orlov apareceu. Parou na porta por um instante e nesse momento os olhos de Feliks fotografaram-no. Era um homem pequeno, usando um casaco russo de gola de pele, obviamente caro, cartola preta. O rosto era rosado e jovem, quase infantil, com um bigode pequeno, sem barba. Ele sorriu, hesitante. Parecia vulnerável. Feliks pensou: Mal demais é cometido por pessoas com rostos inocentes. Orlov saltou do trem. Ele e Walden se abraçaram, ŕ maneira russa, mas rapidamente; e depois entraram na carruagem. Foram um tanto apressados, pensou Feliks. O lacaio e dois carregadores começaram a pôr a bagagem na carruagem. Logo ficou evidente que năo seria possível levar tudo. Feliks sorriu ao pensar em sua própria valise de papelăo, meio vazia. A carruagem fez a volta. Parecia que o lacaio ficaria para trás, a fim de cuidar do resto da bagagem. Os carregadores aproximaram-se da janela da carruagem. Um braço envolto por manga cinza emergiu, largando algumas moedas nas măos deles. A carruagem afastou-se. Feliks montou em sua bicicleta e foi atrás. Năo era difícil acompanhar a carruagem no tumulto do tráfego de Londres. Ele foi seguindo-a através da cidade, ao longo do Strand, passando pelo Parque St. James. A carruagem seguiu por alguma distância pela estrada no outro lado do parque, depois entrou abruptamente num pátio murado. Feliks saltou da bicicleta e passou a empurrá-la pela relva ŕ beira do parque, até chegar em frente ao portăo do pátio murado. Avistou a carruagem parada diante da entrada imponente de uma casa grande. Por cima do teto da carruagem, avistou duas cartolas, uma preta e outra cinzenta, desaparecerem no
interior da casa. E depois o portăo foi fechado, e ele năo pôde ver mais nada.
 
Lydia observou a filha criticamente. Charlotte estava parada diante de um espelho grande, experimentando o vestido de debutante com que seria apresentada na corte. Madame Bourdon, a costureira magra e elegante, movimentava-se incessantemente com seus alfinetes, apertando um babado aqui, prendendo um franzido ali. Charlotte parecia bonita e inocente… justamente o efeito que se pedia de uma debutante. O vestido, de tule branco, bordado com cristais, descia quase até o chăo, cobrindo parcialmente os pequenos sapatos pontudos. O decote descia quase até ŕ cintura, sobre o corpete branco. A cauda tinha quatro metros de tecido prateado, margeado de chiffon rosa e presa na extremidade por um imenso laço branco e prateado. Os cabelos escuros de Charlotte achavam-se empilhados no alto da cabeça, presos com uma tiara que pertencera ŕ Lady Walden anterior, a măe de Stephan. Ela usava nos cabelos as duas plumas brancas regulamentares. Minha pequena filha está quase adulta, pensou Lydia. E comentou: ​ O vestido está lindo, Madame Bourdon. ​ Obrigada, milady. ​ É terrivelmente incômodo ​ disse Charlotte. Lydia suspirou. Era o tipo de coisa que se podia esperar que Charlotte dissesse. ​ Eu gostaria que vocę năo fosse tăo frívola ​ disse Lydia. Charlotte se ajoelhou para pegar a cauda e Lydia acrescentou: ​ Năo precisa abaixar-se assim. Preste atençăo a mim e lhe mostrarei como se faz. Vire para a esquerda. Charlotte obedeceu e a cauda concentrou-se no lado esquerdo. ​ Pegue com o braço esquerdo e depois vire mais um pouco para a esquerda. ​ A cauda estava agora estendida pelo chăo diante de Charlotte. ​ Agora pode avançar, usando a măo direita para levantar a cauda por cima do braço esquerdo. ​ Dá certo! Charlotte sorriu. E quando ela sorria, podia-se sentir todo o fulgor. Ela era assim durante todo o tempo, pensou Lydia. Quando era pequena, eu sempre sabia o que se passava em sua mente. Crescer é aprender a enganar. ​ Quem lhe ensinou todas essas coisas, Mamăe? ​ perguntou Charlotte. ​ A primeira esposa de seu Tio George, a măe de Belinda, ensinou-me tudo, antes de eu ser
apresentada. ​ Lydia sentiu vontade de dizer: Essas coisas săo fáceis de ensinar, mas as liçőes mais difíceis terá de aprender sozinha. A aia de Charlotte, Marya, entrou no quarto. Era uma mulher eficiente, sem nada de sentimental, usando um vestido cinzento, a única criada que Lydia trouxera de Săo Petersburgo. A aparęncia dela năo mudara nada, em 19 anos. Lydia năo tinha a menor idéia da idade de Marya. Já estaria com 50 anos? Ou 60 anos? ​ O Príncipe Orlov chegou, milady ​ anunciou Marya. ​ Ora, Charlotte, mas vocę está magnífica! Estava quase na hora de Marya começar a chamá-la de ​Lady Charlotte​, pensou Lydia. Ela disse: ​ Desça assim que acabai de mudar de roupa, Charlotte. A jovem começou imediatamente a desprender as tiras nos ombros que seguravam a cauda. Lydia saiu. Encontrou Stephen na sala de estar, tomando xerez. Ele tocou no braço nu da mulher e murmurou: ​ Adoro vę-la nesses vestidos de verăo. ​ Obrigada ​ respondeu ela, sorrindo. Ele também estava com ótima aparęncia, pensou Lydia, com seu casaco cinzento e gravata prateada. Havia mais fios prateados na barba. Nós dois poderíamos ter sido tăo felizes… Subitamente, sentiu vontade de beijar o rosto do marido. Correu os olhos pela sala. Havia um lacaio no aparador, servindo xerez. Ela teve de reprimir o impulso. Sentou-se e aceitou o copo estendido pelo lacaio. ​ Como está Aleks? ​ Quase a mesma coisa. Vai verificar pessoalmente quando ele descer, daqui a pouco. Como está o vestido de Charlotte? ​ Está lindo. O que me inquieta é a atitude dela. Charlotte năo se mostra disposta a aceitar qualquer coisa pelo valor aparente. Eu detestaria que ela se tornasse uma cética. Stephen năo queria preocupar-se com isso. ​ Espere só até que um bonito oficial da Guarda comece a lhe dispensar atençăo… ela năo vai demorar a mudar de idéia. O comentário irritou Lydia, pois insinuava que todas as mulheres eram escravas de suas naturezas românticas. Era o tipo de coisa que Stephen dizia quando năo queria pensar a respeito de um assunto. Fazia-o parecer um proprietário rural exuberante e de cabeça vazia, o que ele năo era. Mas ele estava convencido de que Charlotte năo era diferente de qualquer outra moça de 18 anos e năo queria saber do contrário. Mas Lydia sabia que Charlotte possuía alguma coisa selvagem e nada inglesa em sua natureza, algo que teria de ser reprimido. Irracionalmente, Lydia sentiu-se hostil em relaçăo a Aleks, por causa de Charlotte. Năo era culpa dele, mas Aleks representava o fator Săo Petersburgo, o perigo do passado. Remexeu-se nervosamente na cadeira e surpreendeu Stephen observando-a atentamente. O marido comentou:
​ Vocę năo pode estar nervosa só porque vai-se encontrar com Aleks. Lydia deu de ombros. ​ Os russos săo imprevisíveis demais. ​ Ele năo é muito russo. Ela sorriu para o marido. Mas o momento de intimidade entre os dois já passara e agora havia apenas a afeiçăo moderada habitual em seu coraçăo. A porta se abriu. Fique calma, disse Lydia a si mesma. Aleks entrou na sala. ​ Tia Lydia! ​ exclamou ele, inclinando-se para a măo dela. ​ Como vai, Aleksey Andreyevich? ​ disse ela, formalmente, para logo depois acrescentar, em tom mais suave: ​ Ora, vocę parece ainda ter dezoito anos! ​ Eu gostaria que assim fosse ​ disse Aleks, os olhos faiscando. Interrogou-o a respeito da viagem. Enquanto ele respondia, Lydia descobriu-se imaginando por que o sobrinho continuava solteiro. Ele possuía um título que por si só era suficiente para atrair muitas moças… para năo falar de suas măes. Além disso, era extraordinariamente bonito e imensamente rico. Aposto como ele já abalou muitos coraçőes, pensou Lydia. ​ Seus irmăos e sua irmă enviam o seu amor e pedem as suas preces. ​ Aleks franziu o rosto. ​ Săo Petersburgo está agora muito nervosa e apreensiva… inteiramente diferente da cidade que vocę conheceu. ​ Já ouvimos falar a respeito do tal monge ​ comentou Stephen. ​ Rasputin. A Czarina acredita que Deus fala por intermédio dele e ela tem grande influęncia sobre o Czar. Mas Rasputin é apenas um sintoma. Há greves a todo momento, de vez em quando eclodem motins. O povo năo mais acredita que o Czar é sagrado. ​ E o que se precisa fazer? ​ indagou Stephen. Aleks suspirou. ​ Tudo. Precisamos de fazendas eficientes, mais fábricas, um Parlamento apropriado como o da Inglaterra, reforma agrária, sindicatos, liberdade de expressăo… ​ Eu năo teria tanta pressa de instituir os sindicatos, se estivesse no lugar de vocęs ​ comentou Stephen. ​ Talvez tenha razăo. Mesmo assim, a Rússia deve de alguma forma ingressar no século XX. Ou a nobreza consegue isso ou o povo vai-nos destruir e fazer diretamente. Lydia pensou que ele parecia mais radical do que os radicais. Como as coisas deviam ter mudado na Rússia para que um príncipe falasse assim! A irmă dela, Tatyana, a măe de Aleks, referia-se em suas
cartas a ​problemas​, mas năo fazia qualquer insinuaçăo de que a nobreza estava em perigo real. Mas também Aleks era mais parecido com o pai, o velho Príncipe Orlov, um animal político. Se ele estivesse vivo hoje, certamente falaria assim. ​ Há uma terceira possibilidade, um meio pelo qual a aristocracia e o povo podem tornar-se unidos ​ disse Stephen. Aleks sorriu, como se já soubesse o que estava para ser dito. ​ E qual é? ​ Uma guerra. Aleks assentiu, com um aceno de cabeça, solenemente. Eles pensam da mesma forma, refletiu Lydia. Aleks sempre ouvia com atençăo as palavras de Stephen, que era a coisa mais próxima de um pai que ele tivera, depois da morte do velho Príncipe. Charlotte entrou e Lydia fitou-a aturdida. Ela estava usando um vestido que Lydia năo conhecia, de renda creme, forrado com seda cor de chocolate. Lydia jamais teria escolhido aquele vestido, pois era um tanto ousado. Mas năo havia como negar que Charlotte estava deslumbrante. Onde Charlotte o teria comprado?, pensou Lydia. Quando começou a comprar roupas sem que eu estivesse presente? Quem lhe disse que essas cores ressaltam os seus cabelos escuros e olhos castanhos? Năo está com um vestígio de maquilagem? E por que năo está usando um corpete? Stephen também estava olhando fixamente. Lydia notou que ele se levantara. Ela quase riu. Era um reconhecimento dramático da posiçăo de adulta da filha. E o mais engraçado era que se tratava de uma reaçăo visivelmente involuntária. Dentro de um momento, Stephen se sentiria um tolo, compreendendo que levantar-se toda vez que a filha entrasse numa sala năo era uma cortesia que pudesse manter em sua própria casa. O efeito sobre Aleks foi ainda maior. Ele se levantou de um pulo, derramou o xerez, e ficou completamente vermelho. Lydia pensou: Ora, ele é tímido! Aleks transferiu o copo pingando da măo direita para a esquerda, de tal forma que ficou incapaz de trocar um cumprimento com qualquer das duas. E ficou parado ali, parecendo completamente aturdido e desamparado. Foi um momento de constrangimento, pois ele precisava recuperar o controle antes de poder cumprimentar Charlotte. Mas ele estava obviamente esperando cumprimentá-la antes de se controlar. Lydia já estava prestes a fazer algum comentário fútil, só para preencher o silęncio, quando Charlotte interveio. A jovem tirou o lenço de seda do bolsinho do paletó de Aleks e enxugou-lhe a măo direita, dizendo em russo: ​ Como vai, Aleksey Andreyevich? Ela apertou-lhe a măo direita agora seca, tirou-lhe o copo da măo esquerda, enxugou-o, enxugou a măo esquerda, devolveu o copo, tornou a guardar o lenço no bolsinho e fę-lo sentar-se. Sentou-se ao lado dele, dizendo: ​ Agora que já terminou de derramar o xerez, fale-me a respeito de Diaghilev. Ele deve ser um homem
muito estranho. Por acaso o conhece pessoalmente? ​ Conheço, sim ​ disse Aleks, sorrindo. Enquanto Aleks falava, Lydia se admirava. Charlotte enfrentara o momento constrangedor sem a menor hesitaçăo e formulara uma pergunta… que presumivelmente preparara de antemăo… que conseguira fazer Aleks deixar de pensar em si mesmo e sentir-se inteiramente ŕ vontade. E ela agira serenamente, como se estivesse com 20 anos de prática. Onde aprendera tanto equilíbrio? Lydia olhou para o marido. Stephen também notara o encanto de Charlotte e estava sorrindo de orelha a orelha, num fulgor de orgulho paternal.
 
Feliks andava de um lado para outro do Parque St. James, pensando no que vira. Olhava de vez em quando para a graciosa fachada branca da casa de Walden, erguendo-se acima do muro alto do pátio, como uma nobre cabeça por cima de um colarinho engomado. Ele pensou: Todos pensam que estăo seguros lá dentro. Sentou-se num banco, numa posiçăo de onde ainda podia ver a casa. A Londres de classe média enxameava a seu redor, as mulheres com seus chapéus absurdos, os amanuenses e comerciários voltando para suas casas, todos de terno escuro e chapéu-coco. Havia babás conversando com bebęs em carrinhos ou crianças exageradamente vestidas que começavam a andar. Havia cavalheiros de cartola, indo ou vindo dos clubes na St. James. Havia também lacaios de libré, passeando com cachorros pequenos e repulsivos. Uma mulher gorda, com uma imensa sacola de compras, sentou-se no banco ao lado dele e disse: ​ Năo acha que está muito quente? Feliks năo tinha certeza de qual deveria ser a resposta apropriada, por isso limitou-se a sorrir e desviou os olhos. Parecia que Orlov compreendera que sua vida poderia estar em perigo na Inglaterra. Ele se mostrara apenas por alguns segundos na estaçăo e năo se tornara visível por um instante sequer na casa. Feliks calculava que ele pedira de antemăo que o recebessem numa carruagem fechada. Afinal, o tempo estava bom e a maioria das pessoas desfilava em landaus abertos. Até aquele dia, refletiu Feliks, o assassinato fora planejado no abstrato. Fora simplesmente uma questăo de política internacional, desavenças diplomáticas, alianças e tratados, possibilidades militares, as reaçőes hipotéticas de distantes kaisers e czares. Agora, de repente, tornava-se uma questăo de carne e osso. Era um homem concreto, de determinado tamanho e formato, um rosto jovem, com um bigode pequeno, um rosto que deveria ser destruído por uma bala. Era um corpo baixo, de capote grosso, que deveria ser transformado em sangue e farrapos por uma bomba. Era uma garganta raspada, por cima de uma gravata listrada, uma garganta que deveria ser cortada de um lado a outro, a fim de que o sangue esguichasse. Feliks sentia-se perfeitamente capaz de fazę-lo. Mais do que isso, ele estava ansioso. Havia questőes… seriam respondidas; havia problemas… seriam resolvidos; seria preciso coragem… ele tinha
muita. Visualizou Orlov e Walden dentro da linda casa, em suas boas roupas, cercados por criados discretos. Logo jantariam numa mesa comprida, cuja superfície polida refletiria como um espelho os linhos e talheres de prata. Comeriam com as măos impecavelmente limpas, até as unhas brancas, as mulheres usando luvas. Consumiriam um décimo da comida servida e mandariam o resto para a cozinha. Poderiam conversar sobre corridas de cavalos, a nova moda feminina ou um rei que conheciam. Enquanto isso, o povo que deveria lutar a guerra tremia em choupanas no cruel clima russo… mas mesmo assim ainda conseguia arrumar uma tigela extra de sopa de batata para um anarquista itinerante. Vai ser uma grande alegria matar Orlov, pensou Feliks; uma doce vingança. Depois que eu fizer isso, poderei morrer satisfeito. Ele estremeceu. ​ Acho que vai pegar um resfriado ​ comentou a mulher gorda. Feliks deu de ombros. ​ Tenho uma boa costeleta de carneiro para o jantar dele ​ acrescentou a mulher. ​ E fiz também uma torta de maçă. ​ Ahn… ​ murmurou Feliks. De que diabo ela estava falando? Ele se levantou e afastou-se pelo gramado, na direçăo da casa. Sentou-se no chăo, encostado numa árvore. Teria de observar a casa por um ou dois dias, descobrindo o tipo de vida que Orlov levaria em Londres: quando ele sairia e para onde; como viajaria, de carruagem fechada, landau, automóvel; quanto tempo passaria com Walden. Em termos ideais, ele queria ser capaz de prever os movimentos de Orlov e assim ficar ŕ sua espera. Poderia conseguir isso pelo expediente simples de determinar os hábitos de Orlov. Se năo fosse assim, teria de encontrar um meio de descobrir de antemăo os planos do Príncipe… talvez subornando um criado da casa. Havia também a questăo da arma a usar e como consegui-la. As escolha da arma dependeria das circunstâncias detalhadas do atentado. Obtę-la dependeria dos anarquistas da Rua Jubilee. Nesse particular, o grupo teatral amador poderia ser ignorado, assim como os intelectuais da Dunstan Houses e todos os que tinham meios visíveis de sustento. Mas havia quatro ou cinco jovens irados, que sempre tinham dinheiro para drinques e nas raras ocasiőes em que falavam de política, apregoavam o anarquismo em termos de expropriar os expropriadores, que era o jargăo para financiar a revoluçăo através do roubo. Eles deveriam ter armas ou pelo menos saberiam como obtę-las. Duas moças que pareciam caixeiras de alguma loja passaram por perto da árvore. Feliks ouviu uma delas dizer: ​ …disse a ele, se vocę pensa que só porque leva uma moça ao Bioscope e lhe paga um copo de cerveja pode… As duas seguiram adiante. Um sentimento peculiar invadiu Feliks. Ele se perguntou se teria sido causado pelas moças… mas năo, elas nada significavam. Será que estou apreensivo? Năo. Realizado?
Năo, isso só acontece depois. Excitado? Dificilmente. Ele finalmente concluiu que estava feliz. O que era muito estranho.
 
Walden foi ao quarto de Lydia naquela noite. Ela dormiu depois que fizeram amor. Ele ficou acordado no escuro, com a cabeça da mulher em seu ombro, recordando Săo Petersburgo em 1895. Estava sempre viajando naquele tempo, pela América, África, Arábia, basicamente porque a Inglaterra năo era grande o bastante para ele e o pai. Achou a sociedade de Săo Petersburgo alegre, mas afetada. Gostou da paisagem russa e da vodca. Aprendia línguas facilmente, mas o russo era a mais difícil que já conhecera, e o desafio lhe agradava. Como herdeiro de um condado, Stephen tinha a obrigaçăo de fazer uma visita de cortesia ao Embaixador britânico. Este, por sua vez, deveria convidar Stephen a festas e apresentá-lo ŕ sociedade russa. Stephen compareceu ŕs festas porque gostava de conversar sobre política com diplomatas, quase tanto quanto gostava de jogar com oficiais e se embriagar com atrizes. Foi numa recepçăo na embaixada britânica que conheceu Lydia. Já ouvira falar dela. Era anunciada como um modelo de virtude e uma grande beldade. E era de fato linda, embora de uma maneira frágil, sem grande animaçăo, a pele pálida, cabelos louros, usando um vestido branco. Era também recatada, respeitável e escrupulosamente polida. Parecia năo haver nela nada que o atraísse em particular e por isso Stephen tratou de se afastar o mais depressa que podia. Mais tarde, porém, descobriu-se sentado ao lado de Lydia, ao jantar. Foi obrigado a conversar com ela. Todos os russos falavam também o francęs; se aprendiam uma terceira língua, era o alemăo. Assim, Lydia quase năo conhecia o inglęs. Felizmente, o francęs de Stephen era bom. Descobrir algum assunto para conversar era um problema maior. Ele fez um comentário sobre o Governo da Rússia e Lydia respondeu com os chavőes reacionários que estavam em moda na ocasiăo. Ele falou de seu entusiasmo pelas grandes caçadas na África e Lydia mostrou-se interessada por algum tempo. Mas quando ele mencionou os pigmeus pretos que andavam nus, ela corou e virou-se para conversar com o homem no outro lado. Stephen disse a si mesmo que năo estava muito interessado nela e năo planejava casar-se. Mesmo assim, ficou com a incômoda impressăo de que havia mais em Lydia do que os olhos podiam ver. Agora, deitado na cama com ela, 19 anos depois, Stephen pensou: Ela ainda me dá essa incômoda impressăo. Ele sorriu tristemente, no escuro. Tornara a encontrá-la mais uma vez naquela noite em Săo Petersburgo. Depois do jantar, perdera-se na imensidăo da Embaixada e acabara chegando ŕ sala de música. Lydia estava ali, sozinha, sentada ao piano, povoando a sala com uma música ardente, apaixonada. A melodia era desconhecida, quase dissonante. Mas fora Lydia quem fascinara Stephen. A beleza pálida e intocável desaparecera: os olhos dela faiscavam, a cabeça estava inclinada, o corpo tremia de emoçăo, parecia uma mulher completamente diferente. Stephen jamais esquecera aquela música. Descobrira posteriormente que era o Concerto para Piano
em Si Bemol Menor de Tchaikovsky. Desde entăo, ele queria ouvir essa música em todas as oportunidades possíveis, embora jamais tivesse explicado a Lydia o porquę. Deixando a embaixada, ele voltou ao hotel, a fim de mudar de roupa, pois tinha um encontro marcado para jogar cartas, ŕ meia-noite. Era um jogador ardoroso, mas năo autodestrutivo. Sabia o quanto podia perder e parava quando atingia esse limite. Se fizesse dívidas enormes seria obrigado a pedir ao pai que as saldasse, o que năo poderia suportar. Ganhava ŕs vezes quantias vultosas. Mas năo era isso a atraçăo do jogo para ele: gostava da companhia masculina, de ficar bebendo, pela madrugada afora. Mas năo compareceu ŕquele jogo marcado para a meia-noite. Pritchard, o valete, estava ajeitando sua gravata, quando o Embaixador britânico bateu na porta da suíte do hotel. Sua Excelęncia dava a impressăo de que saíra da cama em pleno sono e se vestira ŕs pressas. A primeira idéia de Stephen foi de que alguma espécie de revoluçăo estava ocorrendo e todos os britânicos teriam de se refugiar na embaixada. ​ Infelizmente, tenho más notícias ​ disse o Embaixador. ​ É melhor sentar-se. Chegou um telegrama da embaixada. É seu pai. O velho tirano morrera de um ataque cardíaco, aos 65 anos de idade. ​ Mas que coisa! ​ exclamou Stephen. ​ Foi cedo demais! ​ Meus pęsames ​ murmurou o Embaixador. ​ Foi muita gentileza sua ter vindo pessoalmente. ​ Năo é nada. Estou a seu dispor, para qualquer coisa que possa fazer. ​ Muito obrigado. O Embaixador apertou a măo dele e se retirou. Stephen ficou com o olhar perdido no espaço, pensando no velho. Fora um homem imensamente alto, com uma vontade de ferro e um temperamento ácido. O sarcasmo dele era capaz de provocar lágrimas. Havia tręs maneiras de lidar com o velho: podia-se ficar como ele, podia-se submeter ou podia-se ir embora. A măe de Stephen, uma moça meiga, desamparada, vitoriana, acabara sucumbindo e morrera jovem. Stephen fora embora. Ele imaginou o pai estendido num caixăo e pensou: Vocę está finalmente impotente. Agora, năo pode fazer as criadas chorarem, os lacaios tremerem, as crianças fugirem e se esconderem. Năo pode mais promover casamentos, despejar rendeiros ou derrotar leis no Parlamento. Năo mais mandará ladrőes para a cadeia, năo mais despachará agitadores para a Austrália. Cinzas a cinzas, pó a pó. Em anos posteriores, ele fizera uma revisăo de sua opiniăo em relaçăo ao pai. Agora, em 1914, aos 50 anos de idade, Walden năo podia deixar de admitir para si mesmo que herdara alguns dos valores do pai: o amor ao conhecimento, uma crença no racionalismo, um empenho em fazer um bom trabalho como justificativa para a existęncia de um homem. Mas, em 1895, havia apenas amargura. Naquela noite no hotel, Pritchard levou-lhe uma garrafa de uísque numa bandeja e disse: ​ É um triste dia, milorde.
O milorde deixou Stephen surpreso. Ele e o irmăo tinham títulos de cortesia… o de Stephen era Lorde Highcombe… mas eram sempre tratados de senhor pelos criados. O milorde estava reservado ao pai deles. Agora no entanto, Stephen era o Conde de Walden. Juntamente com o título, possuía vários milhares de hectares no sul da Inglaterra, uma grande parte da Escócia, seis cavalos de corrida, Walden Hall, uma villa em Monte Carlo, um pavilhăo de caça na Escócia e uma cadeira na Câmara dos Lordes. Ele teria de viver em Walden Hall. Era a sede da família e o Conde sempre vivia lá. Stephen decidiu que instalaria eletricidade na casa. Venderia algumas fazendas e investiria em imóveis em Londres e ferrovias na América. Faria o seu discurso inaugural na Câmara dos Lordes… sobre o que falaria? Provavelmente política externa. Haveria rendeiros a cuidar, várias propriedades a administrar. Teria de aparecer na corte durante a temporada, promover caçadas em seus domínios, oferecer bailes… Precisava de uma esposa. O papel do Conde de Walden năo poderia ser desempenhado por um homem solteiro. Seria necessária uma anfitriă em todas aquelas festas, alguém para responder aos convites, discutir os cardápios com as cozinheiras, distribuir os quartos entre os hóspedes, sentar-se na extremidade da mesa comprida no salăo de jantar de Walden Hall. Tinha de haver uma Condessa de Walden. Tinha de haver um herdeiro. ​ Preciso de uma esposa, Pritchard. ​ É verdade, milorde. Nossos dias de solteiro terminaram. Walden procurou o pai de Lydia no dia seguinte e formalmente pediu permissăo para visitá-la. Vinte anos depois, descobria ser difícil imaginar como pudera ter sido tăo irresponsável, mesmo na juventude. Nunca se perguntara se Lydia era a esposa certa para ele, mas apenas se ela daria uma boa condessa. Nunca se perguntara se poderia fazę-la feliz. Presumira que a paixăo oculta liberada quando ela tocava piano estaria ŕ sua disposiçăo. E se enganara. Visitara-a todos os dias, durante duas semanas, já que năo havia a menor possibilidade de chegar ŕ Inglaterra a tempo para o funeral do pai. E depois a pedira em casamento, năo a ela, mas ao pai. Este encarou a uniăo em termos práticos, como Walden. O novo Conde explicou que queria casar-se imediatamente, embora estivesse de luto, porque tinha de chegar em casa e administrar as propriedades. O pai de Lydia compreendeu perfeitamente. O casamento foi realizado seis semanas depois. Que jovem tolo e arrogante eu fui!, pensou Walden agora. Imaginei que a Inglaterra sempre dominaria o mundo e imaginei que eu sempre dominaria o meu próprio coraçăo. A Lua saiu de detrás de uma nuvem e iluminou o quarto. Ele contemplou o rosto adormecido de Lydia. Năo previ isso, pensou ele; năo sabia que me acabaria apaixonando por vocę, totalmente, perdidamente. Queria apenas que gostássemos um do outro. Ao final, isso foi suficiente para vocę, mas năo para mim. Nunca pensei que precisaria do seu sorriso, ansiaria por seus beijos, ficaria esperando desesperadamente que aparecesse em meu quarto ŕ noite. Nunca pensei que ficaria assustado, com pavor de perdę-la. Ela murmurou no sono e virou-se. Walden tirou o braço de debaixo do pescoço da mulher, depois
sentou-se na beira da cama. Se ficasse por mais tempo, acabaria cochilando. E năo seria certo que a criada de Lydia os surpreendesse juntos no quarto, quando aparecesse com o chá da manhă. Ele pôs o roupăo e os chinelos, saiu silenciosamente do quarto, passou pelos dois aposentos de vestir, e entrou em seu próprio quarto. Sou um homem de sorte, pensou ele, enquanto se deitava para dormir.
 
Walden contemplou a mesa do desjejum. Havia bules de café, chá da China e chá da Índia; jarros de creme, leite e cordial; uma tigela grande com mingau de aveia quente; travessas com scones e torradas; pequenos potes de marmelada, mel e geléia. Havia diversas travessas de prata no aparador, devidamente aquecidas, contendo ovos mexidos, salames, bacon, rins e haddock. Sobre a mesa, havia as travessas frias, de rosbife, presunto e língua. A tigela de frutas, sobre uma mesa separada, estava empilhada de nectarinas, laranjas, melőes e morangos. Isso deve deixar Aleks com boa disposiçăo, pensou Walden. Serviu-se de ovos e rins, e depois se sentou. Os russos teriam o seu preço, pensou ele; haveriam de querer alguma coisa em troca de sua promessa de ajuda militar. Walden estava preocupado com esse preço. Se os russos pedissem alguma coisa que a Inglaterra năo pudesse conceder, tudo estaria perdido. E se isso acontecesse… Era sua funçăo impedir que as negociaçőes malograssem. Teria de manipular Aleks. O pensamento deixou-o constrangido. Conhecer o rapaz há tanto tempo deveria ser de grande ajuda, mas na verdade seria mais fácil negociar com alguém de que năo gostasse pessoalmente. Devo deixar os meus sentimentos de lado, pensou ele; precisamos convencer a Rússia de qualquer maneira. Serviu-se de café, pegou alguns scones e mel. Aleks entrou na sala um minuto depois, parecendo revigorado, os olhos brilhando. ​ Dormiu bem? ​ perguntou Walden. ​ Maravilhosamente bem. Aleks pegou uma nectarina e começou a comer, de garfo e faca. ​ Isso é tudo o que vai comer? ​ indagou Walden. ​ Costumava apreciar o desjejum inglęs… lembro que comia mingau, creme, ovos, carne e morangos, pedindo depois ŕ cozinheira que trouxesse mais torradas. ​ Năo sou mais um menino em fase de crescimento, Tio Stephen. E é melhor eu năo me esquecer disso, pensou Walden. Depois da refeiçăo, ambos passaram para a sala de estar matutina. ​ Nosso novo plano qüinqüenal para o Exército e a Marinha está prestes a ser anunciado ​ comentou Aleks.
Entăo é assim que ele faz, pensou Walden; diz alguma coisa, antes de pedir por outra. Lembrou de Aleks lhe dizendo: Estou pensando em ler Clausewitz neste verăo, Tio. Por falar nisso, posso levar um convidado ŕ Escócia para a temporada de caça? ​ O orçamento para os próximos cinco anos é de sete e meio bilhőes de rublos ​ acrescentou Aleks. A 10 rublos por libra esterlina, calculou Walden, daria 750 milhőes de libras. ​ É um programa maciço ​ comentou ele. ​ Mas eu gostaria que o tivessem começado há cinco anos. ​ Eu também. ​ Tudo indica que o programa mal estará começando antes de entrarmos em guerra. Aleks deu de ombros. Walden pensou: Claro que ele năo quer comprometer-se com uma previsăo do prazo que a Rússia levará para estar em guerra. ​ A primeira coisa que devem fazer é aumentar o tamanho dos canhőes em seus encouraçados. Aleks sacudiu a cabeça. ​ Nosso terceiro encouraçado está prestes a ser lançado. O quarto está em construçăo. Os dois terăo canhőes de doze polegadas. ​ Năo é suficiente, Aleks. Churchill exige canhőes de quinze polegadas para os nossos. ​ E ele está certo. Nossos comandantes sabem disso, mas os políticos ignoram. Vocę conhece a Rússia, Tio: idéias novas săo encaradas com a mais profunda desconfiança. A inovaçăo leva uma eternidade para se consumar. Estamos ainda nas fintas, pensou Walden. ​ Qual é a sua prioridade? ​ Cem milhőes de rublos serăo gastos imediatamente na esquadra do Mar Negro. ​ Eu pensava que o Mar do Norte fosse mais importante. ​ E era mesmo, pelo menos para a Inglaterra ​ Temos um ponto de vista mais asiático do que vocęs… o vizinho que nos ameaça é a Turquia e năo a Alemanha.. ​ Eles podem tornar-se aliados. ​ Podem mesmo. ​ Aleks hesitou por um instante. ​ A grande fraqueza da Marinha russa é o fato de năo possuir nenhum porto em águas quentes. Parecia o começo de um discurso devidamente preparado. É isso mesmo, pensou Welden; estamos chegando agora ao fundo do problema. Apesar disso, ele continuou nas esquivas.
​ E Odessa? ​ Fica na costa Mar Negro. Enquanto os turcos controlarem Constantinopla e Gallipoli, controlam a passagem entre o Mar Negro e o Mediterrâneo. Assim, para todos os efeitos estratégicos, o Mar Negro pode ser perfeitamente considerado como um lago interior. ​ É por isso que o Império russo vem tentando expandir-se para o sul há centenas de anos. ​ E por que năo? Somos eslavos e muitos dos povos balcânicos săo eslavos também. É claro que somos solidários, se eles querem a liberdade nacional. ​ Tem razăo E se eles conseguirem, provavelmente deixarăo a Marinha russa passar livremente para o Mediterrâneo. ​ O controle eslavo dos Bálcăs nos ajudaria. O controle russo ajudaria ainda mais. ​ Năo resta a menor dúvida… embora isso năo esteja nas cartas, até onde posso perceber. ​ Năo gostaria de pensar um pouco a respeito? Walden abriu a boca para falar, mas tornou a fechá-la, abruptamente. Entăo é isso, pensou ele; é o que os russos estăo querendo, o preço fixado. Mas, pelo amor de Deus, năo podemos entregar os Bálcăs aos russos! Se o acordo depender disso,entăo năo haverá acordo… Aleks estava dizendo. ​ Se vamos lutar ao lado de vocęs, devemos ser fortes. A área de que estamos falando é justamente aquela em que nos precisamos fortalecer. Assim, queremos a ajuda de vocęs nesse ponto. O pedido năo poderia ser formulado mais claramente: Entreguem-nos os Bálcăs e lutaremos com vocęs. Controlando-se, Walden franziu o cenho, como se estivesse perplexo, e disse: ​ Se a Inglaterra tivesse o controle dos Bálcăs, poderíamos… pelo menos em teoria… entregar a regiăo a vocęs. Mas năo podemos dar o que năo temos. Năo tenho certeza se podemos fortalecę-los… para usar a sua palavra… nessa regiăo. A resposta de Aleks foi tăo rápida que só podia ser ensaiada: ​ Mas vocęs podem reconhecer os Bálcăs como uma esfera de influęncia russa. O que já năo é tăo ruim assim, pensou Walden. Talvez isso seja possível. Sentia-se bastante aliviado. Mas resolveu testar a determinaçăo de Aleks, antes de encerrar a conversa. ​ Podemos certamente concordar em favorecę-los acima da Áustria e Turquia naquela parte do mundo. Aleks sacudiu a cabeça e disse firmemente: ​ Queremos mais do que isso.
Valera a pena tentar. Aleks era jovem e tímido, mas năo podia ser pressionado. O que era muito azar. Walden precisava agora de tempo para pensar. O atendimento da reivindicaçăo russa pela Inglaterra representaria uma mudança significativa nos alinhamentos internacionais. Tais mudanças, como os movimentos da crosta terrestre, provocavam terremotos em lugares inesperados. ​ Talvez vocę queira conversar com Churchill antes de seguirmos adiante ​ comentou Aleks, sorrindo. Vocę sabe muito bem que é justamente o que farei, pensou Walden. Compreendeu de repente como Aleks manipulara a conversa. Primeiro, assustara Walden com um pedido totalmente despropositado; depois, quando apresentara a verdadeira exigęncia, Walden ficara tăo aliviado que a acolhera com satisfaçăo. Pensei que ia manipular Aleks, mas ele é que me acabou manipulando. Walden sorriu. ​ Estou orgulhoso de vocę, meu rapaz.
 
Feliks determinou naquela manhă quando, onde e como iria matar o Príncipe Orlov. O plano começou a se delinear em sua mente enquanto lia The Times, na biblioteca do clube da Rua Jubilee. Sua imaginaçăo foi acionada por um parágrafo na coluna de noticiário da corte: O Príncipe Aleksey Andreyevich Orlov chegou de Săo Petersburgo ontem. Ele será hóspede do Conde e Condessa de Walden durante a temporada de Londres. O Príncipe Orlov será apresentado a Suas Majestades o Rei e a Rainha na Corte, na quinta-feira, 4 de junho. Ele sabia agora que Orlov estaria num determinado lugar, numa determinada data, numa determinada hora. A informaçăo desse tipo era essencial para um assassinato cuidadosamente planejado. Feliks previra que obteria tal informaçăo em conversa com um dos criados de Walden ou observando Orlov e identificando algum encontro regular. Năo precisava agora correr os riscos de conversar com criados ou seguir pessoas. Perguntou-se se Orlov sabia que seus movimentos estavam sendo anunciados pelos jornais, em benefício dos assassinos. Era uma atitude tipicamente inglesa, pensou Feliks. O problema seguinte era como chegar perto o bastante de Orlov para matá-lo. Até mesmo Feliks teria dificuldade em penetrar num palácio real. Mas esse problema foi também resolvido por The Times. Na mesma página de noticiário da corte, espremida entre a notícia de um baile oferecido por Lady Bailey e os detalhes dos últimos testamentos, ele leu o seguinte:
A CORTE DO REI
DISPOSIÇŐES PARA CARRUAGENS A fim de facilitar as disposiçőes para os movimentos das carruagens dos convidados nas Cortes de Suas Majestades, no Palácio de Buckingham, somos solicitados a declarar que no caso de os convidados terem o privilégio de ingresso na entrada de Pimlico, o cocheiro de cada carruagem voltando para pegála deve deixar com o guarda postado ŕ esquerda do portăo um cartăo escrito com clareza com o nome da dama ou cavalheiro a quem a carruagem pertence; e no caso das carruagens de convidados em geral, voltando para pegá-los na entrada principal, um cartăo similar deve ser entregue ao guarda postado ŕ esquerda da arcada que leva ao Quadrângulo do Palácio. Para permitir que os convidados desfrutem a vantagem das disposiçőes acima, é necessário que um lacaio acompanhe cada carruagem, já que nenhuma disposiçăo pode ser adotada para chamar as carruagens além de dar os nomes aos lacaios esperando na porta, aos quais compete trazer a carruagem. As portas serăo abertas para a recepçăo aos convidados ŕs oito e meia. Feliks teve de ler várias vezes. Havia alguma coisa no estilo de The Times que o tornava muito difícil de compreender. Aquela informaçăo parecia pelo menos que, no momento em que as pessoas deixassem o palácio, seus lacaios seriam enviados a correr para buscar as carruagens, que ficariam estacionadas em algum outro lugar. Deve haver algum meio, pensou ele, pelo qual poderei esgueirar-me para a carruagem de Walden, quando ela voltar ao palácio para buscá-los. Mas ainda persistia uma grande dificuldade. Ele năo dispunha de arma. Poderia tę-la arrumado facilmente em Genebra, mas nesse caso seria obrigado a passar com a arma por fronteiras internacionais, o que seria arriscado. Poderiam impedir sua entrada na Inglaterra, se revistassem sua bagagem. Claro que deveria ser igualmente fácil obter uma arma de fogo em Londres, só que ele năo sabia como fazę-lo. E estava relutante em indagar. Observara lojas de armas no West End de Londres e observara que todos os fregueses que entravam e saíam pareciam inconfundivelmente ser das classes superiores. Feliks năo seria atendido nessas lojas, mesmo que tivesse dinheiro suficiente para comprar uma das armas ŕ venda. Passara muito tempo em pubs das classes inferiores, onde certamente eram compradas e vendidas armas, entre criminosos. Mas năo testemunhara nenhuma transaçăo assim, o que năo chegava a ser surpreendente. Sua única esperança era recorrer aos anarquistas. Metera-se na conversa de alguns dos que considerava ​sérios​. Mas eles nunca haviam falado de armas, certamente por causa da presença de Feliks. O problema era o fato de ele năo estar por ali há tempo suficiente para merecer confiança. Havia sempre espiőes da polícia em grupos anarquistas. Isso năo impedia que eles acolhessem com a maior satisfaçăo os recém-chegados, mas deixava-os cautelosos. Mas agora já se esgotara o tempo para investigaçőes discretas. Teria de perguntar abertamente onde se poderia conseguir uma arma de fogo. Haveria necessidade de conduzir o caso com o maior cuidado. E imediatamente depois teria de cortar os vínculos com a Rua Jubilee, mudando-se para outra parte de Londres, a fim de evitar o risco de ser descoberto.
Pensou nos jovens judeus da Rua Jubilee. Eram rapazes irados e violentos. Ao contrário dos pais, recusavam-se a trabalhar como escravos nas oficinas do East End, costurando os ternos que a aristocracia encomendava aos alfaiates de Savile Row. Ao contrário dos pais, năo davam a menor importância aos sermőes conservadores dos rabinos. Apesar disso, porém, ainda năo haviam chegado ŕ conclusăo se as soluçőes para os seus problemas estavam na política ou no crime. Feliks acabou concluindo que sua melhor perspectiva era Nathan Sabelinsky. Um rapaz em torno dos 20 anos, tinha feiçőes eslavas, usava colarinhos duros e um colete amarelo. Feliks vira-o entre os jogadores na Avenida Comercial. O que significava que devia ter dinheiro bastante para jogar e para gastar em roupas. Feliks correu os olhos pela biblioteca. Os outros ocupantes eram um velho adormecido, uma mulher de capote grosso lendo Das Kapital em alemăo e tomando anotaçőes, um judeu lituano debruçado sobre um jornal russo, lendo com a ajuda de uma lente de aumento. Feliks saiu da sala e desceu. Năo havia sinal de Nathan ou qualquer de seus amigos. Ainda era cedo para ele; se é que Nathan trabalhava, pensou Feliks, entăo trabalhava ŕ noite. Feliks voltou a Dunstan Houses. Guardou a navalha, as roupas de baixo limpas e uma camisa de reserva na valise de papelăo. Disse a Milly, a mulher de Rudolf Rocker: ​ Arrumei um quarto. Voltarei esta noite para agradecer a Rudolf. Ele prendeu a valise na traseira da bicicleta e seguiu para oeste, pelo centro de Londres, virando depois para o norte, na direçăo de Camden Town. Encontrou ali uma rua de casas outrora suntuosas, construídas para famílias de classe média pretensiosas, que haviam agora se transferido para os subúrbios, nas extremidades das novas linhas ferroviárias. Numa dessas casas, Feliks alugou um quarto sórdido, de uma irlandesa chamada Bridget. Pagou 10 xelins adiantados por duas semanas de aluguel. Estava de volta a Stepney por volta de meio-dia, encaminhando-se para a casa de Nathan, na Rua Sidney. Era uma casa pequena, do tipo dois-cômodos-em-cima-dois-cômodos-embaixo. A porta da frente estava aberta. Feliks entrou. O barulho e o cheiro atingiram-no como um golpe físico. Ali, numa sala relativamente pequena, havia cerca de 15 ou 20 pessoas trabalhando na fabricaçăo de roupas. Os homens usavam máquinas, as mulheres costuravam a măo, as crianças passavam a ferro os trajes prontos. O vapor erguia-se das tábuas de passar, misturando-se com o suor. As máquinas faziam o maior barulho, enquanto os trabalhadores conversavam incessantemente em iídiche. Pedaços de pano já cortados, prontos para serem costurados, estavam empilhados em todos os espaços disponíveis do chăo. Ninguém olhou para Feliks; estavam todos trabalhando furiosamente depressa. Ele falou com a pessoa mais próxima, uma moça com um bebę no colo. Ela estava pregando botőes na manga de um casaco. ​ Nathan está? ​ Lá em cima ​ respondeu a moça, sem interromper o trabalho por um instante sequer. Feliks saiu da sala e subiu a escada estreita. Cada um dos dois pequenos quartos tinha quatro camas.
Quase todas as camas estavam ocupadas, presumivelmente por pessoas que trabalhavam ŕ noite. Ele encontrou Nathan no quarto dos fundos, sentado na beira de uma cama, abotoando a camisa. Nathan viu-o e disse: ​ Feliks, wie gehts? ​ Preciso falar com vocę ​ disse Feliks, em iídiche. ​ Pode falar. ​ Vamos sair. Nathan pôs o paletó e saiu junto com Feliks para a Rua Sidney. Ficaram parados ao sol, perto da janela aberta de uma oficina, a conversa encoberta pelo barulho que vinha lá de dentro. ​ O negócio de meu pai ​ disse Nathan. ​ Ele paga cinco pence a uma garota para passar uma calça na máquina… uma hora de trabalho para ela. Paga mais tręs pence ŕs moças que cortam, passam e pregam os botőes. Leva as calças para um alfaiate no West End e ganha nove pence em cada uma. O lucro é de apenas um pęni… o suficiente para comprar uma fatia de păo. Se ele pedir dez pence ao alfaiate do West End, será prontamente expulso da oficina. E o trabalho será entregue a um das muitas dezenas de alfaiates judeus que estăo pelas ruas, com suas máquinas debaixo do braço. Năo quero viver assim. ​ É por isso que se tornou anarquista? ​ Aquelas pessoas fazem as roupas mais lindas do mundo… mas viu como estăo vestidas? ​ E como as coisas serăo mudadas… pela violęncia? ​ Acho que sim. ​ Eu tinha certeza de que vocę pensava assim. Preciso de uma arma de fogo, Nathan. Nathan riu nervosamente. ​ Para quę? ​ Para que os anarquistas geralmente querem armas? ​ Diga-me, Feliks. ​ Para roubar de ladrőes, para oprimir os tiranos e para matar os assassinos. ​ Qual dessas coisas vocę tenciona fazer? ​ Eu lhe direi… se realmente quer saber. Nathan pensou por um momento e depois disse: ​ Vá ao pub Frying Pan, na esquina da Brick Lane com a Rua Thrawl. Procure Garfield, o Anăo.
​ Obrigado! ​ Feliks năo foi capaz de disfarçar o tom de triunfo na voz. ​ Quanto terei de pagar? ​ Cinco xelins por uma pinfire*. ​ Preciso de algo melhor. ​ As boas armas săo caras. ​ Neste caso, terei de pechinchar. ​ Feliks apertou a măo de Nathan. ​ Obrigado. Nathan ficou observando-o montar na bicicleta. ​ Talvez me possa contar tudo depois. Feliks sorriu. ​ Lerá a notícia nos jornais. Ele acenou com uma das măos e afastou-se. Pedalou pela Avenida Whitechapel e depois pela Rua Whitechapel High, virando depois ŕ direita, na Rua Osborn. A aparęncia das ruas mudou imediatamente. Aquela era a parte mais miserável de Londres que já vira. As ruas eram estreitas e muito sujas, o ar impregnado de fumaça e barulho, quase todas as pessoas em estado lamentável. As sarjetas transbordavam de detritos. Apesar de tudo, porém, as ruas estavam movimentadas como uma colmeia. Homens corriam de um lado para outro com carrinhos de măo, multidőes se concentravam em torno de barracas, prostitutas apregoavam sua mercadoria em cada esquina, oficinas de carpintaria e sapataria se espalhavam pelas caçadas.
 
(*) Arma de fogo com um pino que faz explodir um cartucho, quando atingido pelo percussor. (N. do T.) Feliks deixou a bicicleta diante da porta do Frying Pan; se alguém a levasse, simplesmente teria de roubar outra. Para entrar no pub, ele teve de passar por cima do que parecia ser um gato morto. Era uma única sala, baixa e despojada, com um balcăo no outro lado. Homens e mulheres mais velhos estavam sentados em bancos ao longo das paredes, enquanto as pessoas mais jovens estavam de pé no meio da sala. Feliks foi até o balcăo, pediu um copo de cerveja e uma porçăo de salame frio. Olhou ao redor e logo avistou Garfield, o Anăo. Năo o vira antes porque o homem estava de pé numa cadeira. Devia ter l,20m de altura, com uma cabeça grande e um rosto de meia-idade. Um cachorro preto, muito grande, achava-se deitado no chăo, ao lado da cadeira. Garfield falava com dois homens grandalhőes, de aparęncia rude, usando coletes de couro e camisas sem colarinho. Talvez fossem seus guarda-costas. Feliks notou que ambos eram barrigudos e sorriu para si mesmo, pensando: Posso comęlos vivos. Os dois homens seguravam canecas de cerveja, mas o anăo estava bebendo o que parecia ser gim. O homem por detrás do balcăo entregou a Feliks a cerveja e o salame. ​ Quero também um copo do melhor gim ​ disse Feliks. Uma mulher jovem encostada no balcăo virou-se para fitá-lo, dizendo:
​ Isso é para mim? Ela sorriu coquetemente, exibindo os dentes podres. Feliks desviou os olhos. Depois que o gim foi servido, ele pagou e encaminhou-se para o grupo, que estava perto de uma janela pequena, dando para a rua. Feliks postou-se entre eles e a porta, dirigindo-se ao anăo: ​ Sr. Garfield? ​ Quem quer falar com ele? ​ indagou Garfield, em voz esganiçada. Feliks estendeu-lhe o copo de gim. ​ Podemos conversar sobre negócios? Garfield pegou o copo, esvaziou-o e respondeu: ​ Năo. Feliks tomou um gole de cerveja. Era mais doce e com menos espuma do que a cerveja suíça. ​ Quero comprar uma arma. ​ Năo sei por que veio procurar aqui. ​ Ouvi falar a seu respeito no clube da Rua Jubilee. ​ Vocę é um anarquista? Feliks năo disse nada. Garfield fitou-o de alto a baixo. ​ Que espécie de arma vocę iria querer, se eu tivesse alguma? ​ Um revólver. E dos bons. ​ Talvez um Browning de sete tiros? ​ Isso seria perfeito. ​ Năo tenho nenhum. E se tivesse, năo venderia. E se vendesse, pediria cinco libras. ​ Fui informado de que vale uma libra no máximo. ​ Pois foi informado errado. Feliks pensou por um momento. O anăo concluíra que ele, como um anarquista e ainda por cima um estrangeiro, podia ser roubado. Muito bem, pensou Feliks, vamos jogar como ele está querendo. ​ Năo posso pagar mais do que duas libras. ​ E eu năo poderia descer abaixo de quatro libras.
​ Isso incluiria uma caixa de muniçăo? ​ Está bem, quatro libras, com uma caixa de muniçăo. ​ Negócio fechado. Feliks notou que um dos capangas reprimia um sorriso. Depois de pagar pelas bebidas e o salame, Feliks estava com tręs libras, 15 xelins e um pęni. Garfield acenou com a cabeça para um dos seus companheiros. O homem contornou o balcăo e saiu pela porta dos fundos. Voltou um ou dois minutos depois, carregando o que parecia ser um monte de trapos. Olhou para Garfield, que tornou a acenar coma cabeça. O homem entregou os trapos a Feliks. O russo abriu os trapos e encontrou um revólver e uma caixa pequena. Pegou o revólver e examinou-o atentamente. Garfield disse: ​ Abaixe essa arma. Năo precisa mostrar a todo o maldito mundo. A arma estava limpa e lubrificada, o gatilho funcionava suavemente. Feliks comentou: ​ Se eu năo examinar, como poderei saber que o revólver é bom? ​ Onde vocę pensa que está? Feliks abriu a caixa de balas e foi enchendo as câmaras, em movimentos rápidos e preciosos. ​ Guarde essa porcaria! ​ sibilou o anăo. ​ Dę-me logo o dinheiro e saia daqui. Vocę está doido. Uma onda de tensăo subiu pela garganta de Feliks. Ele engoliu em seco. Deu um passo para trás e apontou o revólver para o anăo. ​ Santo Deus! ​ balbuciou Garfield. ​ Preciso experimentar a arma? ​ indagou Feliks. Os dois capangas afastaram-se para os lados, em direçőes opostas, a fim de que Feliks năo pudesse cobrir a ambos com a arma. Feliks sentiu um aperto no coraçăo. Năo esperava que eles fossem tăo espertos assim. O próximo movimento deles seria atacá-lo. O pub estava subitamente silencioso. Feliks compreendeu que năo alcançaria a porta antes que um dos capangas o alcançasse. O cachorro preto rosnou, sentindo a tensăo na sala. Feliks sorriu e deu um tiro no cachorro. O estampido da arma, na pequena sala, foi ensurdecedor. Ninguém se mexeu. O cachorro arriou no chăo, sangrando. Os capangas do anăo ficaram paralisados onde estavam. Feliks deu outro passo para trás, estendeu a măo e encontrou a porta. Abriu-a, ainda apontando o revólver para Garfield, e saiu.
Bateu a porta com força, meteu a arma no bolso do casaco e pulou em cima da bicicleta. Ouviu a porta do pub abrir-se. Deu impulso na bicicleta e começou a pedalar. Alguém agarrou-o pela manga do casaco. Ele pedalou com mais vigor ainda, desvencilhando-se. Ouviu um estampido e abaixouse, num ato de puro reflexo. Alguém gritou. Ele contornou um vendedor de sorvete e virou uma esquina. A distância, podia ouvir um apito de um guarda. Olhou para trás. Ninguém o estava seguindo. Meio minutos depois, Feliks estava perdido na colmeia de Whitechapel. E pensou: Ainda restam seis balas.
 
TRĘS Charlotte estava pronta. O vestido, que tanta agonia causara, estava perfeito. Para completá-lo, ela usava uma única rosa vermelha no corpete, levando um ramalhete da mesma flor, coberto por chiffon. A tiara de diamantes estava fixada firmemente nos cabelos armados, assim como as duas plumas brancas. Tudo se achava perfeito. E ela estava apavorada. ​ Quando eu entrar na Sala do Trono ​ disse ela a Marya ​ a cauda vai-se desprender, a tiara vai cair sobre os olhos, os cabelos văo-se soltar, as plumas văo entortar para o lado, vou tropeçar na bainha do vestido e me estatelar no chăo. Todos văo desatar a rir e ninguém rirá mais alto do que Sua Majestade a Rainha. Vou fugir correndo do palácio, atravessar o parque e me atirar no lago. ​ Năo deve falar assim. ​ Marya fez uma breve pausa, antes de acrescentar, com veemęncia: ​ Vocę será a mais linda de todas. A măe de Charlotte entrou no quarto. Postou-se a meio metro da filha e contemplou-a. ​ Vocę está linda ​ disse ela, beijando a jovem. Charlotte passou os braços pelo pescoço da măe e comprimiu o rosto contra o dela, da maneira como costumava fazer em criança, quando era fascinada pela maciez aveludada da pele da măe. Ao se afastar, ficou surpresa ao perceber um brilho de lágrimas nos olhos desta. ​ Vocę também está linda, Mamăe. O vestido de Lydia era de charmeuse cor de marfim, com uma cauda de brocado antigo, também cor de marfim, margeado com chiffon púrpura. Sendo casada, usava tręs plumas nos cabelos, em contraste com as duas de Charlotte. O buquę era de ervilhas-de-cheiro e petúnias rosas. ​ Vocę está pronta? ​ perguntou Lydia. ​ Estou pronta há séculos ​ respondeu Charlotte. ​ Pegue sua cauda.
Charlotte pegou a cauda do vestido, da maneira como fora ensinada. A măe acenou com a cabeça em aprovaçăo. ​ Vamos embora? Marya abriu a porta. Charlotte ficou de lado, a fim de deixar a măe passar primeiro. Mas Lydia disse: ​ Năo, minha querida… é a sua noite. Ambas foram caminhando em procissăo, com Marya na retaguarda, atravessando o corredor, na direçăo do patamar. Ao chegar ao alto da escada, Charlotte ouviu uma explosăo de aplausos. Toda a criadagem estava reunida ao pé da escada, a cozinheira, lacaios, arrumadeiras, copeiras e cavalariços. Um mar de rostos a contemplava com orgulho e satisfaçăo. Charlotte ficou comovida com a afeiçăo deles. Compreendeu que era uma grande noite também para eles. O pai estava no meio da multidăo, parecendo magnífico numa casaca de veludo preto, calçőes descendo até os joelhos e meias de seda, com uma espada na cintura e um chapéu de ponta na măo. Charlotte desceu a escada lentamente. O pai beijou-lhe a măo e disse: ​ Minha garota. A cozinheira, que a conhecia há tempo bastante para ter algumas liberdades, segurou-lhe a manga e sussurrou: ​ Está maravilhosa, milady. Charlotte apertou a măo dela e disse: ​ Obrigada, Sra. Harding. Aleks fez-lhe uma reveręncia. Ele estava resplandecente no uniforme de almirante da Marinha russa. Como ele é bonito, pensou Charlotte; tenho certeza de que alguma mulher vai-se apaixonar perdidamente por Aleks esta noite. Dois lacaios abriram a porta da frente. O pai pegou o cotovelo de Charlotte e conduziu-a gentilmente para fora. A măe seguiu, segurando no braço de Aleks. Charlotte pensou: Se eu conseguir manter a mente vazia durante a noite inteira, seguindo automaticamente para onde as pessoas me levarem, acho que tudo correrá bem. A carruagem estava esperando ali fora. William, o cocheiro, e Charles, o lacaio, estavam esperando em posiçăo de sentido, nos dois lados da porta, usando a libré da família Walden. William, corpulento e grisalho, estava calmo, mas Charles parecia bastante excitado. O pai ajudou Charlotte a entrar na carruagem e ela sentou-se, agradecida. Ainda năo caí, pensou ela. Os outros tręs embarcaram. Pritchard trouxe um cesto e ajeitou no chăo da carruagem, antes de fechar a porta.
A carruagem partiu. Charlotte olhou para o cesto e disse: ​ Um piquenique? Mas vamos percorrer menos de um quilômetro! ​ Espere só até ver a fila ​ disse o pai. ​ Vamos levar quase uma hora para chegar lá. Ocorreu a Charlotte que podia sentir-se mais entediada do que nervosa naquela noite. Como estava previsto, a carruagem parou ao lado do Almirantado do Mall, acerca de 800 metros do Palácio de Buckingham. O pai abriu o cesto e tirou uma garrafa de champanha. O cesto continha também sanduíches de galinha, pęssegos de estufa e um bolo. Charlotte tomou um gole de champanha, mas năo conseguiu comer nada. Olhou pela janela. As calçadas estavam apinhadas de curiosos que assistiam ao desfile dos poderosos. Divisou um homem alto, de rosto bonito e magro, apoiado numa bicicleta, observando atentamente a carruagem deles. Alguma coisa na expressăo dele fez com que Charlotte sentisse um calafrio e desviasse os olhos. Depois de uma saída de casa em grande estilo, ela descobriu que o anticlímax de esperar na fila era tranqüilizante. Quando a carruagem finalmente passou pelos portőes do palácio e aproximou-se da porta, ela estava começando a sentir-se outra vez normal, cética, irreverente e impaciente. A carruagem parou e a porta foi aberta. Charlotte pegou a cauda no braço esquerdo, levantou as saias com a măo direita e desceu, entrando no palácio. O grande vestíbulo de tapete vermelho era um esplendor de luzes e cores. Apesar de seu ceticismo, ela experimentou um momento de emoçăo quando avistou a multidăo de mulheres de vestidos brancos e homens em uniformes resplandecentes. Os diamantes faiscavam, as espadas retiniam, as plumas balançavam. Os homens da Guarda Real, em seus casacos vermelhos, estavam em posiçăo de sentido, nos dois lados. Charlotte e a măe deixaram os mantos no vestiário. Depois, escoltados pelo pai e Aleks, atravessaram lentamente o vestíbulo e subiram a escada, entre os Guardas Reais, com suas alabardas, e as rosas vermelhas e brancas. Atravessaram a galeria de retratos e entraram no primeiro, dos tręs salőes de recepçăo, com enormes candelabros, assoalhos de parquete, reluzindo como espelhos. A procissăo terminava ali e as pessoas se espalhavam em grupos, conversando e admirando as roupas umas das outras. Charlotte viu a prima Belinda, com Tio George e Tia Clarissa. As duas famílias se cumprimentaram. Tio George estava usando as mesmas roupas que o pai de Charlotte, só que parecia horrível, porque era muito gordo, de cara vermelha. Charlotte se perguntava como Tia Clarissa, que era jovem e bonita, sentia-se por ser casada com um homem assim. O pai estava correndo os olhos pela sala, como se procurasse alguém. E, finalmente, perguntou a Tio George: ​ Já viu Churchill por aqui? ​ Santo Deus, o que pode querer com ele?
O pai tirou o relógio do bolso. ​ Temos de ocupar nossos lugares na Sala do Trono… e se năo se incomoda, Clarissa, vamos deixar Charlotte aos seus cuidados. O pai, a măe e Aleks se afastaram. Belinda disse a Charlotte: ​ Seu vestido está maravilhoso. ​ É terrivelmente incômodo. ​ Eu sabia que vocę ia dizer isso! ​ Vocę está muito bonita. ​ Obrigada. ​ Belinda baixou a voz. ​ O Príncipe Orlov é uma coisa sensacional. ​ Ele é muito simpático. ​ Acho que é mais do que simpático. ​ Que estranha expressăo é essa em seus olhos? Belinda baixou a voz ainda mais ao dizer: ​ Nós duas precisamos ter uma longa conversa o mais depressa possível. ​ Sobre o quę? ​ Lembra-se do que conversamos no esconderijo? Quando pegamos aqueles livros na biblioteca de Walden Hall? Charlotte olhou para os tios, mas eles haviam-se virado para conversar com um homem de pele escura, que usava um turbante de cetim rosa. ​ Claro que me lembro. ​ É sobre isso que temos de conversar. Houve um súbito silęncio. A multidăo recuou para os lados do salăo, abrindo uma passagem no meio. Charlotte virou-se e divisou o Rei e a Rainha entrando no salăo, acompanhados por seus pajens, diversos membros da Família Real e os guardas indianos. Houve um grande suspiro de seda a farfalhar, enquanto todas as mulheres no salăo se inclinavam para o chăo numa reveręncia.
 
Na Sala do Trono, a orquestra, escondida na Galeria dos Menestréis, tocou God Save the King. Lydia olhou para a imensa arcada, guardada por gigantes dourados. Dois atendentes entraram, um deles
carregando um bastăo de ouro e o outro levando um de prata. O Rei e a Rainha entraram em seguida, lentamente, sorrindo um pouco. Subiram no palanque e se postaram diante dos tronos iguais, enquanto o séquito se encaminhava para os lugares próximos, todos permanecendo de pé. A Rainha Mary usava um vestido de brocado dourado e uma coroa de esmeraldas. Ela năo é nenhuma beldade, pensou Lydia; mas todos diziam que o Rei a adorava. Ela fora noiva outrora do irmăo mais velho de seu marido, que morrera de pneumonia. A troca para o novo herdeiro do trono parecera friamente política na ocasiăo. Contudo, todos concordavam agora que ela era uma boa Rainha e uma boa esposa. Lydia teria gostado de conhecę-la pessoalmente. As apresentaçőes começaram. Uma a uma, as esposas dos embaixadores se adiantaram, fizeram uma reveręncia para o Rei, uma reveręncia para a Rainha, recuando em seguida. Seguiram-se os embaixadores, vestidos numa ampla variedade de uniformes espalhafatosos de ópera-bufa, ŕ exceçăo do Embaixador dos Estados Unidos, que usava um traje a rigor comum, como a lembrar a todos que os americanos realmente năo acreditavam naquelas bobagens. Enquanto o ritual continuava, Lydia correu os olhos pela sala, contemplando o cetim vermelho nas paredes, os enormes candelabros e as milhares de flores. Ela adorava a pompa e o ritual, as roupas bonitas e cerimônias requintadas. Eram coisas que a comoviam e a acalmavam ao mesmo tempo. Os olhos dela cruzaram com os da Duquesa de Devonshire, que era a Guardiă das Roupas da Rainha. As duas trocaram um sorriso discreto. Lydia avistou John Burns, o Presidente socialista da Junta de Comércio. Ela achou graça dos bordados dourados extravagantes do traje dele. Depois que terminaram as apresentaçőes diplomáticas, o Rei e a Rainha se sentaram. A Família Real, os diplomatas e a nobreza mais alta também se sentaram. Lydia e Walden, juntamente com a nobreza menor, tinham de ficar em pé. Finalmente começou a apresentaçăo das debutantes. Cada moça parava por um instante ŕ entrada da Sala do Trono, enquanto uma atendente tirava a cauda do vestido de seu braço e espalhava pelo chăo, por trás dela. Depois, ela iniciava o interminável avanço pelo tapete vermelho na direçăo dos tronos, com todos os olhos fixados nela. Se uma moça conseguia parecer graciosa e desinibida ali, podia sę-lo também em qualquer outro lugar. Ao se aproximar do palanque, a debutante entregava o cartăo de convite ao Lorde Camarista, que lia o seu nome em voz alta. Ela fazia uma reveręncia para o Rei, depois outra para a Rainha. Poucas moças faziam a reveręncia com elegância, pensou Lydia. Ela tivera o maior problema só para persuadir Charlotte a praticar. Talvez as outras măes se tivessem defrontado com o mesmo problema. Depois das reveręncias, a debutante se afastava, tomando o cuidado de năo virar as costas aos tronos, até estar oculta em segurança no meio da multidăo. Uma moça se seguia ŕ outra, tăo depressa que cada uma corria o perigo de tropeçar na cauda da que ia na frente. A cerimônia pareceu a Lydia ser menos pessoal e mais superficial do que no passado. Ela própria fora apresentada ŕ Rainha Victoria, na Temporada de 1896, no ano seguinte a seu casamento com Walden. A velha Rainha năo estava sentada num trono, mas sim num banco alto, dando a impressăo de que se encontrava de pé. Lydia ficara surpresa ao descobrir como Victoria era pequena. Ela tivera de beijar a măo da Rainha. Essa parte da cerimônia fora agora suprimida, presumivelmente para poupar tempo. O que fazia com que a corte parecesse uma fábrica empenhada em produzir o maior número possível de debutantes, no menor tempo possível. Mas as moças de hoje năo sabiam da diferença e
provavelmente năo se importariam, se soubessem. E de repente Charlotte apareceu na entrada, a atendente estendeu a cauda do vestido e deu-lhe um empurrăo de leve. E Charlotte estava andando pelo tapete vermelho, a cabeça erguida, parecendo absolutamente serena e confiante. Lydia pensou: Este é o momento para o qual tenho vivido. A moça na frente de Charlotte fez uma reveręncia… e foi nesse instante que o inconcebível aconteceu. Ao invés de se levantar da reveręncia, a debutante olhou para o Rei, estendeu os braços num gesto de súplica e gritou, bem alto: ​ Sua Majestade, pare de torturar as mulheres, pelo amor de Deus! Lydia pensou: Uma sufragista! Os olhos dela se fixaram na filha. Charlotte estava completamente imóvel, a meio caminho dos tronos, olhando para a cena com uma expressăo de horror estampada no rosto pálido. O silęncio chocado na Sala do Trono perdurou apenas por um instante. Dois cavalheiros de serviço na corte reagiram rapidamente. Adiantaram-se, pegaram a moça firmemente pelos braços e afastaram-na, sem a menor cerimônia. A Rainha estava vermelha. O Rei conseguia dar a impressăo de que nada acontecera. Lydia tornou a olhar para Charlotte, pensando: Por que logo minha filha tinha de ser a próxima? Todos os olhos estavam agora fixados em Charlotte. Lydia sentiu vontade de gritar para ela: Finja que nada aconteceu! Continue em frente, como se tudo estivesse normal! Charlotte estava imóvel. Um pouco de rubor se insinuava em suas faces. Lydia percebeu que ela estava respirando fundo. Depois, a jovem se adiantou. Lydia mal conseguia respirar. Charlotte entregou o cartăo ao Lorde Camarista, que anunciou: ​ Apresentaçăo de Lady Charlotte Walden. Charlotte postou-se diante do Rei. Lydia pensou: Cuidado! Charlotte fez uma reveręncia perfeita. Fez outra reveręncia para a Rainha. Lydia deixou escapar o ar dos pulmőes num longo suspiro. A mulher de pé ao lado de Lydia, uma baronesa a quem ela reconhecia vagamente, mas năo sabia com certeza quem era, sussurrou:
​ Ela soube contornar a situaçăo muito bem. ​ É minha filha ​ disse Lydia, sorrindo.
 
Walden ficou secretamente divertido com a sufragista. Uma moça corajosa, pensou ele. Claro que ele ficaria horrorizado se Charlotte fizesse algo assim na corte. Mas como era a filha de outro, encarava o incidente como uma quebra bem-vinda na rotina da cerimônia interminável. Percebera como Charlotte se comportara, mostrando-se inabalável. Mas năo teria esperado qualquer outra reaçăo dela. Afinal, a filha era uma moça segura e confiante. Na opiniăo dele, Lydia deveria dar os parabéns a si mesma pela criaçăo da filha, ao invés de se preocupar durante todo o tempo. Ele gostava daquelas cerimônias, há muitos e muitos anos. Quando jovem, gostava de vestir o traje da corte e se pavonear. Só que naquele tempo ele tinha pernas para isso. Agora, sentia-se ridículo de calçőes descendo até os joelhos e meias de seda, para năo mencionar a maldita espada de aço. E já comparecera a tantas cerimônias na corte que o ritual pitoresco năo mais o fascinava. Ficou imaginando como o Rei George se sentiria em relaçăo a tudo aquilo. Walden gostava do Rei. É claro que, em comparaçăo com o pai, Eduardo VII, George era um tanto insípido e manso. As multidőes jamais gritavam ​O bom Georgie!​, da mesma forma como gritavam ​O bom Teddy!​ Mas, no final das contas, gostavam de George, por causa de seu charme suave e de sua modesta maneira de viver. Ele sabia como ser firme, embora raramente o demonstrasse. E Walden gostava de um homem que era um bom atirador. Por isso mesmo, tinha a impressăo de que George se sairia muito bem como Rei. Finalmente, a última debutante fez as suas reveręncias e seguiu diante O Rei e a Rainha se levantaram. A orquestra tornou a tocar o Hino Nacional. O Rei inclinou-se, a Rainha fez uma ligeira reveręncia, primeiro aos embaixadores, depois ŕs esposas dos embaixadores, em seguida ŕs duquesas e finalmente aos ministros. O Rei pegou a Rainha pela măo. Os pajens pegaram a cauda do vestido da Rainha. Os atendentes recuaram. O casal real retirou-se, seguido pelos convidados em ordem de precedęncia. Dividiram-se entre tręs salőes de jantar: um para a Família Real e os amigos íntimos, outro para o corpo diplomático e o terceiro para os demais. Walden era amigo do Rei, mas năo um amigo íntimo; por isso, foi para o salăo geral. Aleks ficou com os diplomatas. Walden tornou a se reunir ŕ família no salăo de jantar. Lydia estava radiante. Walden disse: ​ Parabéns, Charlotte. ​ Quem era aquela moça horrível? ​ perguntou Lydia. ​ Ouvi alguém dizer que era filha de um arquiteto ​ respondeu Walden. ​ Isso explica tudo ​ declarou Lydia. Charlotte ficou aturdida. ​ Por que explica tudo?
Walden sorriu. ​ Sua măe está querendo dizer que ela năo pertence ŕ classe mais alta. ​ Mas por que ela pensa que o Rei tortura as mulheres? ​ Ela estava falando das sufragistas. Mas năo vamos conversar sobre isso esta noite. É uma grande ocasiăo para todos nós. Vamos jantar. Parece que está tudo delicioso. Havia uma grande mesa enfeitada com flores, ostentando pratos quentes e frios. Criados com a libré real, vermelha e dourada, serviam aos convidados: lagosta, filé de truta, perdizes, presunto de York, ovos de tarambola, uma infinidade de massas e sobremesas. Walden encheu um prato e se sentou para comer. Estava faminto, depois de mais de duas horas de pé na Sala do Trono. Mais cedo ou mais tarde, Charlotte teria de tomar conhecimento das sufragistas, suas greves de fome e a conseqüente alimentaçăo forçada. Mas o assunto era indelicado, para dizer o mínimo; quanto mais tempo ela permanecesse numa ignorância feliz, melhor seria, pensou Walden. Na idade de Charlotte, a vida deveria limitar-se a festas e piqueniques, vestidos e chapéus, conversas e flertes. Mas todos estavam falando a respeito do ​incidente​ e ​daquela moça​. O irmăo de Walden, George, sentou-se ao lado dele e disse, sem qualquer preâmbulo: ​ Ela é a Srta. Mary Blomfield, filha do falecido Sir Arthur Blomfield. A măe dela estava na sala de estar na ocasiăo. E desmaiou ao ser informada do comportamento da filha. ​ George parecia estar radiante com o escândalo. ​ Acho que era a única coisa que ela podia fazer ​ comentou Walden. ​ Uma vergonha para toda a família. Năo tornaremos a ver os Blomfields na corte outra vez, por duas ou tręs geraçőes. ​ Năo sentiremos falta deles. ​ Tem razăo. Walden divisou Churchill abrindo caminho através da multidăo, na direçăo do lugar em que eles estavam sentados. Escrevera a Churchill sobre sua conversa com Aleks e estava impaciente em discutir o passo seguinte… mas năo ali. Desviou os olhos, esperando que Churchill percebesse a insinuaçăo. Mas deveria saber que năo havia a menor esperança de que uma mensagem tăo sutil fosse entendida. Churchill inclinou-se sobre a cadeira de Walden. ​ Podemos conversar por um momento? Walden olhou para o irmăo. George exibia uma expressăo horrorizada. Walden lançou-lhe um olhar resignado e se levantou. ​ Vamos dar uma volta pela galeria dos retratos ​ sugeriu Churchill. Walden seguiu-o.
​ Imagino que vai-me dizer também que esse protesto sufragista é culpa do Partido Liberal ​ disse Churchill. ​ Creio que é mesmo, mas tenho a impressăo de que năo é sobre isso que está querendo falar-me. ​ Tem razăo, năo é. Os dois homens andavam lado a lado pela comprida galeria. Churchill disse: ​ Năo podemos reconhecer os Bálcăs como uma esfera de influęncia russa. ​ Eu já receara que dissesse isso. ​ Para que eles querem os Bálcăs? Isto é, esquecendo todas aquelas bobagens a respeito de simpatia pelo nacionalismo eslavo. ​ Eles querem uma passagem para o Mediterrâneo. ​ O que seria uma grande vantagem para nós, se eles fossem nossos aliados. ​ Exatamente. Os dois homens chegaram ao final da galeria a pararam. Churchill disse: ​ Existe alguma possibilidade de lhes podermos dar essa passagem sem reformularmos o mapa da Península balcânica? ​ Estive pensando nisso. ​ E tem uma contraproposta ​ disse Churchill, com um sorriso. ​ Isso mesmo. ​ Pois vamos ouvi-la. ​ O problema se concentra em tręs extensőes de água: o Bósforo, o Mar de Mármara e o Estreito de Dardanelos. Se pudermos garantir essas passagens, eles năo văo precisar dos Bálcăs. Vamos supor que toda a passagem entre o Mar Negro e o Mediterrâneo possa ser declarada como um caminho internacional, com a travessia livre de navios de todas as naçőes, sob a garantia conjunta da Rússia e da Inglaterra. Churchill recomeçou a andar, lentamente, com uma expressăo pensativa. Walden andava ao lado dele, esperando por uma resposta. Churchill finalmente disse: ​ Essa passagem deve ser mesmo um caminho internacional. O que está sugerindo é que ofereçamos, como uma concessăo, algo que já estamos mesmo querendo. ​ Exatamente.
Churchill virou o rosto para fitá-lo, sorrindo. ​ Em matéria de manobras maquiavélicas, ninguém consegue superar a aristocracia inglesa. Muito bem, pode apresentar a proposta a Orlov. ​ Năo quer submetę-la antes ao Gabinete? ​ Năo. ​ Nem mesmo ao Secretário do Exterior? ​ Năo neste estágio. Os russos certamente văo querer modificar a proposta… no mínimo văo querer detalhes sobre a maneira de impor a garantia. Deixarei para submeter o assunto ao Gabinete quando as negociaçőes estiverem mais adiantadas. ​ Está certo. Walden se perguntou até que ponto o Gabinete estaria a par do que ele e Churchill estavam fazendo. Churchill também podia ser maquiavélico. Haveria engrenagens dentro das engrenagens? ​ Onde está Orlov agora? ​ perguntou Churchill. ​ No salăo de jantar diplomático. ​ Pois vamos até lá e apresentemos a proposta imediatamente. Walden sacudiu a cabeça, pensando que as pessoas estavam certas, quando acusavam Churchill de impulsivo. ​ Este năo é o momento apropriado. ​ Năo podemos ficar esperando pelo momento oportuno, Walden. Cada dia que passa é importante. Será preciso um homem muito maior do que vocę para intimidar-me, pensou Walden. ​ Terá que deixar isso a meu critério, Churchill. Falarei com Orlov amanhă de manhă. Churchill parecia disposto a discutir, mas conteve-se visivelmente e disse: ​ Acho que a Alemanha năo vai declarar guerra esta noite. Está bem. ​ Olhou para o relógio. ​ Vou embora agora. Mantenha-me a par de tudo. ​ Claro. Adeus. Churchill desceu a escada e Walden voltou ao salăo de jantar. A festa estava terminando. Agora que o Rei e a Rainha haviam-se retirado e todos estavam alimentados, năo havia mais motivo para permanecer ali. Walden reuniu a família e desceu. Encontraram Aleks no imenso vestíbulo. Enquanto as mulheres iam buscar os mantos, Walden pediu a um dos atendentes que chamasse sua
carruagem. Em tudo e por tudo, pensou ele, enquanto esperava, foi uma noite bem-sucedida.
 
O Mall fazia Feliks lembrar das ruas do Bairro dos Velhos Escudeiros, em Moscou. Era uma avenida larga e reta, que se estendia da Praça Trafalgar até o Palácio de Buckingham. De um lado havia mansőes grandiosas, inclusive o Palácio de St. James. No outro, ficava o Parque St. James. As carruagens e automóveis dos grandes da Inglaterra achavam-se alinhados nos dois lados do Mall, por metade de sua extensăo. Motoristas e cocheiros estavam encostados em seus veículos, bocejando e se remexendo, esperando o momento de ser chamados ao palácio para buscar os patrőes. A carruagem dos Waldens esperava no lado do parque do Mall. O cocheiro, na libré azul e rosa dos Waldens, achava-se ao lado dos cavalos, lendo um jornal, ŕ luz do lampiăo de uma carruagem. A poucos metros de distância, na escuridăo do parque, Feliks o observava atentamente. Feliks achava-se desesperado. Seu plano estava perdido. Năo compreendera a diferença entre as palavras em inglęs ​cocheiro​ e ​lacaio​. Por isso, entendera erroneamente a notícia do jornal The Times a respeito do chamamento das carruagens. Pensara que o cocheiro ficaria esperando no portăo do palácio até que o patrăo aparecesse, voltando entăo correndo para buscar a carruagem. Feliks planejara dominar o cocheiro nesse momento, tirar-lhe a libré e levar a carruagem para o palácio pessoalmente. Mas acontece que o cocheiro ficara junto da carruagem, enquanto o lacaio esperava no portăo do palácio. Quando a carruagem fosse chamada, o lacaio viria correndo. Depois, ele e o cocheiro seguiriam com a carruagem, a fim de buscar os passageiros. Isso significava que Feliks teria de dominar duas pessoas e năo apenas uma. E a dificuldade era o fato de que teria de fazę-lo sub-repticiamente, sem que nenhum das centenas de criados que estavam no Mall percebesse que havia alguma coisa errada. Desde que compreendera seu erro, há cerca de duas horas, que Feliks estava absorvido no problema, enquanto observava o cocheiro conversando com os colegas, examinando um automóvel Rolls-Royce estacionado ali perto, empenhando-se em algum jogo com moedas ou polindo as janelas da carruagem. Talvez fosse mais sensato abandonar o plano e deixar para matar Orlov em outro dia. Mas Feliks detestava essa perspectiva. Por um lado, năo havia certeza de que outra boa oportunidade aconteceria. Por outro, Feliks queria matá-lo agora. Estava antecipando o estampido do revólver, a maneira como o Príncipe tombaria. Já elaborara o telegrama em código que mandaria para Ulrich em Genebra. Imaginava a emoçăo na pequena tipografia e depois as manchetes nos jornais do mundo inteiro, em seguida a onda final de revoluçăo espalhando-se por toda a Rússia. Năo posso adiar por mais tempo, pensou ele; tem de ser agora. Enquanto observava, um rapaz de libré verde aproximou-se do cocheiro dos Waldens e disse: ​ Olá, William. Entăo o nome do cocheiro é William, pensou Feliks. William disse:
​ Năo se deve resmungar, John. Feliks năo compreendeu o comentário. ​ Alguma novidade? ​ indagou John. ​ Tem, sim. A revoluçăo. O Rei diz que no próximo ano os cocheiros poderăo entrar no palácio para jantar e os gră-finos ficarăo esperando aqui no Mall. ​ Uma história bem provável. ​ Vocę é quem me está dizendo. John afastou-se. Posso livrar-me do cocheiro, pensou Feliks. Mas o que farei com o lacaio? Repassou mentalmente a seqüęncia provável de acontecimentos. Walden e Orlov apareceriam na porta do palácio. O porteiro avisaria o lacaio de Walden, que correria do palácio para a carruagem… uma distância em torno de meio quilômetro. O lacaio veria Feliks vestido com as roupas do cocheiro e daria o alarme. E se o lacaio chegasse ao estacionamento para descobrir que a carruagem năo estava mais ali? Era uma idéia. O lacaio ficaria pensando que talvez se tivesse enganado de lugar. Olharia para um lado e outro. Meio em pânico, procuraria pela carruagem. Finalmente reconheceria a derrota e voltaria ao palácio para comunicar ao patrăo que năo conseguira encontrar a carruagem. A esta altura, Feliks estaria conduzindo a carruagem e seu dono através do parque. Ainda podia conseguir! Era mais arriscado do que antes, mas ainda podia ser feito. Năo havia mais tempo para reflexăo. Os primeiros lacaios já estavam correndo pelo Mall. O automóvel Rolls-Royce na frente da carruagem de Walden foi chamado. William ajeitou a cartola, na expectativa. Feliks emergiu das moitas e encaminhou-se na direçăo dele, chamando: ​ Ei, William! O cocheiro olhou em sua direçăo, franzindo o rosto. Feliks insistiu, em tom de urgęncia: ​ Venha até aqui! Depressa! William dobrou o jornal, hesitou por um instante, depois se encaminhou lentamente para Feliks. Este permitiu que sua própria tensăo acrescentasse um tom de pânico ŕ voz: ​ Olhe só para isso! ​ Ele apontou para as moitas. ​ Sabe alguma coisa a respeito disso?
​ O que é? ​ indagou William, aturdido. Ele chegou perto e olhou atentamente na direçăo apontada por Feliks. ​ Isto! ​ Feliks mostrou-lhe o revólver. ​ Vou matá-lo, se fizer algum barulho. William ficou apavorado. Feliks podia ver os brancos dos olhos dele na semi-escuridăo. Era um homem corpulento, embora mais velho do que Feliks. Se ele fizer alguma besteira e estragar meu plano, vou matá-lo, pensou Feliks, selvagemente. ​ Comece a andar ​ disse Feliks. O homem hesitou. Tenho de afastá-lo da luz! ​ Ande logo, seu filho da puta! Willian avançou entre as moitas. Feliks seguiu-o. Quando estavam acerca de 50 metros do Mall, Feliks disse: ​ Pare! William parou e virou-se. Feliks pensou: Se ele vai lutar, entăo será aqui que tentará. ​ Tire as roupas. ​ Como? ​ Dispa-se! ​ Vocę está doido ​ balbuciou William. ​ Tem razăo… estou mesmo doido. E agora tire logo as roupas! William hesitou. Se eu der um tiro nele, as pessoas virăo correndo? As moitas văo abafar o barulho? Poderei matá-lo sem abrir um buraco no uniforme? Poderei tirar o casaco e escapar antes que alguém apareça? Feliks engatilhou a arma. William começou a despir-se. Feliks podia ouvir a crescente atividade no Mall: automóveis sendo ligados, arreios retinindo, o barulho de cascos, homens gritando uns para os outros e para os cavalos. A qualquer momento o lacaio poderia chegar correndo para buscar a carruagem de Walden. ​ Mais depressa! ​ ordenou Feliks. William estava apenas com as roupas de baixo.
​ O resto também ​ ordenou Feliks. William hesitou. Feliks levantou o revólver. William tirou a camiseta, baixou a ceroula e ficou nu, tremendo de medo, cobrindo os órgăos genitais com as măos. ​ Vire-se ​ disse Feliks. William ficou de costas. ​ Deite-se no chăo, o rosto virado para baixo. William obedeceu. Feliks largou o revólver. Apressadamente, tirou seu casaco e o chapéu, vestiu a libré e a cartola que William largara no chăo. Olhou para o calçăo branco até os joelhos e as meias compridas, mas resolveu deixá-los. Quando estivesse sentado lá em cima da carruagem, ninguém notaria sua calça e as botinas, especialmente ŕ luz fraca dos lampiőes das ruas. Ele guardou o revólver no bolso do seu próprio casaco e dobrou-o por cima do braço. Pegou as roupas de William, que tentou virar-se para olhar. ​ Năo se mexa! ​ disse Feliks, asperamente. E se afastou, silenciosamente. William continuaria ali por algum tempo, depois tentaria voltar furtivamente para a casa de Walden, sem querer que alguém o visse, pois estava inteiramente nu. Era mais do que improvável que comunicasse o roubo de suas roupas antes que tivesse a oportunidade de arrumar outras, a menos que fosse um homem extraordinariamente desinibido. É claro que poderia esquecer totalmente o recato, se soubesse que Feliks ia matar o Príncipe Orlov… mas como poderia imaginar tal possibilidade? Feliks meteu as roupas de William debaixo de uma moita e depois saiu para as luzes do Mall. Era nesse ponto que as coisas poderiam sair erradas. Até ali, ele fora apenas uma pessoa suspeita, espreitando das moitas. Daquele momento em diante, era claramente um impostor. Se um dos amigos de William… John, por exemplo… olhasse mais atentamente para seu rosto, o plano estaria liquidado. Feliks subiu rapidamente na carruagem, pôs seu próprio casaco no assento a seu lado, ajustou a cartola, soltou o freio e sacudiu as rédeas. A carruagem movimentou-se. Ele suspirou de alívio. Cheguei até este ponto, pensou ele; e agora vou pegar Orlov! Enquanto avançava pelo Mall, Feliks observava as calçadas, procurando por um lacaio a correr, com a libré azul e rosa. O maior azar possível seria o lacaio de Walden vę-lo naquele momento, reconhecer as cores e pular na traseira da carruagem. Feliks praguejou quando um automóvel pulou ŕ sua frente, obrigando-o a diminuir o ritmo dos cavalos, até parar. Olhou ao redor ansiosamente. Năo havia qualquer sinal do lacaio. O caminho ficou desimpedido depois de um minuto e ele seguiu em frente.
Ao final da avenida, perto do palácio, avistou um espaço vazio ŕ direita, no outro lado do parque. O lacaio passaria pela calçada do outro lado e năo veria a carruagem. Feliks parou a carruagem ali e puxou o freio. Desceu e ficou por trás dos cavalos, observando a calçada do outro lado. Começou a pensar se sairia vivo do atentado. Em seu plano original, havia uma boa possibilidade de que Walden entrasse na carruagem sem sequer olhar para o cocheiro. Mas agora ele certamente notaria que o lacaio estava faltando. O porteiro do palácio teria de abrir a porta da carruagem e baixar os degraus. Walden iria falar com o cocheiro naquele momento ou adiaria as indagaçőes até chegar em casa? Se ele falasse com Feliks, entăo este teria de responder e a voz o trairia. O que farei entăo?, pensou Feliks. Darei um tiro em Orlov na porta do palácio e enfrentarei as conseqüęncias. Ele viu o lacaio de azul e rosa correndo pelo outro lado do Mall. Subiu na carruagem, soltou o freio e conduziu-a ao pátio do Palácio de Buckingham. Havia uma fila. Ŕ sua frente, mulheres bonitas e homens bem-alimentados embarcavam em suas carruagens e automóveis. Por trás dele, em algum ponto do Mall, o lacaio de Walden estaria correndo de um lado para outro, procurando a carruagem. Quanto tempo se passaria antes que ele voltasse? Os criados do palácio tinham um sistema rápido e eficiente para embarcar os convidados em seus veículos. Enquanto os passageiros embarcavam na carruagem que se achava na porta, um criado chamava os donos da seguinte e outro criado indagava os nomes das pessoas que iriam na terceira A fila andou e um criado aproximou-se de Feliks. ​ O Conde de Walden ​ disse Feliks. O criado entrou. Eles năo devem sair cedo demais, pensou Feliks. A fila tornou a andar e agora havia apenas um automóvel na frente dele. Queira Deus que năo enguice, pensou Feliks. O motorista manteve a porta aberta para um casal idoso. O automóvel partiu. Feliks adiantou a carruagem até o pórtico, parando-a um pouco ŕ frente, a fim de ficar além da claridade que vinha do interior, de costas para a porta. Ele esperou, sem se atrever a olhar em derredor. Ouviu a voz de uma moça dizer em russo: ​ Quantas moças lhe propuseram casamento esta noite, Primo Aleks? Uma gota de suor escorreu para um olho de Feliks e ele limpou-a com as costas da măo. Um homem disse: ​ Onde, diabo, está meu lacaio? Feliks enfiou a măo no bolso do casaco a seu lado e segurou a coronha do revólver. Restavam seis
balas, pensou ele. Pelo canto do olho, avistou um criado do palácio adiantar-se rapidamente. Um momento depois, ouviu a porta da carruagem ser aberta. O veículo balançou um pouco, enquanto alguém entrava. ​ Onde está Charles, William? Feliks ficou tenso. Imaginou que podia sentir os olhos de Walden cravados atrás de sua cabeça. A voz da moça disse, do interior da carruagem: ​ Vamos logo, Papai. ​ William está ficando surdo depois de velho… As palavras restantes de Walden foram abafadas, depois que ele entrou na carruagem. A porta bateu. ​ Pode partir, cocheiro ​ disse o criado do palácio. Feliks deixou escapar um suspiro de alívio e partiu. A liberaçăo da tensăo fę-lo sentir-se fraco por um instante. Depois, enquanto levava a carruagem para fora do pátio, sentiu um ímpeto de exultaçăo. Orlov estava em seu poder, trancado numa caixa por trás dele, preso como um animal numa armadilha. Nada poderia deter Feliks agora. Entrou no parque. Segurando as rédeas com a măo direita, esforçou-se em enfiar o braço esquerdo no seu próprio casaco. Isso feito, ele passou as rédeas para a măo esquerda e enfiou o braço direito. Soergueu-se e ajeitou o casaco nos ombros. Tateou o bolso, tocando o revólver. Tornou a sentar-se e passou um cachecol pelo pescoço. Estava pronto. Tinha agora de escolher o momento. Só dispunha de alguns minutos. A casa londrina de Walden năo ficava muito longe do palácio. Percorrera o caminho de bicicleta na noite anterior, fazendo um reconhecimento. Encontrara dois lugares apropriados, em que um lampiăo de rua iluminaria a vítima e havia moitas densas nas proximidades, pelas quais poderia desaparecer depois de matar Orlov. O primeiro lugar estava 50 metros ŕ frente. Ao se aproximar, ele viu um homem de traje a rigor parar ao lado do lampiăo, a fim de acender seu charuto. Seguiu adiante. O segundo lugar ficava numa curva. Se houvesse alguém ali, Feliks teria de correr o risco, atirando no intruso também, se fosse necessário. Seis balas.
Avistou a curva. Fez os cavalos trotarem um pouco mais depressa. Ouviu a moça rir no interior da carruagem. Chegou ŕ curva. Os nervos estavam tensos, esticados como fios de piano. Agora. Ele largou as rédeas e puxou o freio. Os cavalos cambalearam, a carruagem estremeceu e parou abruptamente. Ouviu uma mulher soltar um grito e um homem berrar no interior da carruagem. Alguma coisa na voz da mulher perturbou-o, mas năo havia tempo para imaginar por quę. Feliks saltou para o chăo, puxou o cachecol por cima da boca e do nariz, tirou o revólver do bolso e engatilhou-o. Transbordando de força e raiva, Feliks abriu a porta da carruagem.
QUATRO
Uma mulher gritou e o tempo parou. Feliks conhecia a voz. O som atingiu-o como um golpe violento. O choque paralisou-o. Ele deveria localizar Orlov, apontar o revólver, puxar o gatilho, certificar-se de que ele estava morto com outra bala, depois virar-se e correr para as moitas… Em vez disso, procurou pela fonte do grito e divisou o rosto. Era surpreendentemente familiar, como se o tivesse visto no dia anterior, em vez de há 19 anos. Os olhos dela estavam arregalados de pânico e a boca vermelha achava-se entreaberta. Lydia. Ele ficou parado na porta da carruagem, a boca entreaberta por baixo do cachecol, sem apontar o revólver para qualquer lugar. E pensou: Minha Lydia… aqui nesta carruagem… Enquanto a fitava, estava vagamente consciente de que Walden se movia, com uma estranha lentidăo, perto dele, ŕ esquerda. Mas Feliks só podia pensar em uma coisa: Era assim que ela ficava, de olhos arregalados e boca entreaberta, quando estava nua por baixo de mim, as pernas me enlaçando pela cintura, fitando-me fixamente e começando a gritar de prazer… E nesse momento, ele percebeu que Walden sacara uma espada… Pelo amor de Deus, uma espada? …e a lâmina estava faiscando ŕ luz do lampiăo, enquanto baixava. E Feliks se mexeu muito devagar e tarde demais, a espada acertou em sua măo, ele largou o revólver, que disparou ao bater no chăo, com um tremendo estampido. A explosăo rompeu o encantamento. Walden puxou a espada e depois arremeteu-a na direçăo do coraçăo de Feliks. Este se desviou. A ponta da espada passou pelo casaco e o paletó, atingindo o ombro. O russo pulou para trás, num reflexo, livrando-se da espada. Sentiu o sangue quente escorrer por dentro da camisa. Olhou para o chăo, procurando pelo revólver. Năo conseguiu encontrá-lo. Tornou a levantar os olhos e viu que Walden e Orlov haviam esbarrado um no outro, ao tentarem passar pela porta da carruagem ao mesmo tempo. O braço direito de Feliks pendia inerte no lado do corpo. Compreendeu que estava desarmado e impotente. Năo podia sequer estrangular Orlov, pois seu braço direito achava-se inútil. Fracassara totalmente e tudo por causa da voz de uma mulher emergindo do passado. Ainda por cima, isso, pensou ele, amargamente. Dominado pelo desespero, ele virou-se e fugiu. Walden gritou: ​ Maldito vilăo!
O ferimento de Feliks doía a cada passo. Ouviu alguém correndo atrás dele. Os passos eram leves demais para serem de Walden. Orlov o estava perseguindo. Feliks achava-se ŕ beira da histeria, enquanto pensava: Orlov está-me perseguindo… e eu estou fugindo! Ele saiu da rua, embrenhando-se entre as moitas. Ouviu Walden gritar: ​ Volte, Aleks! Ele está armado! Eles năo sabem que larguei o revólver, pensou Feliks. Se ao menos eu ainda o tivesse, poderia atirar em Orlov agora. Feliks correu um pouco mais, depois parou, escutando. Nada podia ouvir. Orlov desistira. Feliks encostou-se numa árvore. Estava exausto pela pequena corrida. Depois que recuperou o fôlego, tirou o casaco e a jaqueta da libré que roubara, tocando cautelosamente no ferimento. Doía terrivelmente, o que ele julgou ser um bom sinal; se o ferimento fosse muito grave, toda a área estaria dormente. O ombro sangrava lentamente e latejava. A măo fora cortada na parte carnuda entre o polegar e o indicador e sangrava bastante. Tinha de sair do parque antes que Walden tivesse uma oportunidade de chamar a polícia. Com bastante dificuldade, Feliks tomou a vestir o casaco. Deixou a jaqueta da libré caída no chăo. Comprimiu a măo direita por baixo da axila esquerda, a fim de atenuar a dor e diminuir o fluxo de sangue. Extenuado, encaminhou-se para o Mall. Lydia. Era a segunda vez na vida dele que ela provocava uma catástrofe. A primeira, em 1895, em Săo Petersburgo… Năo. Năo se permitiria pensar nela. Ainda năo. Precisava estar totalmente alerta agora. Descobriu aliviado que a bicicleta estava onde a deixara, por baixo dos galhos pendentes de uma árvore grande. Pedalou pela grama até a beira do parque. Walden já teria alertado a polícia? Estariam procurando por um homem alto, de casaco escuro? Observou atentamente a cena no Mall. Os lacaios ainda estavam correndo, os automóveis rugiam, as carruagens manobravam. Quanto tempo se passara desde que subira na carruagem de Walden… 20 minutos? Nesse tempo, o mundo virara pelo avesso. Feliks respirou fundo e saiu com a bicicleta para a rua. Todos estavam ocupados em alguma coisa, ninguém lhe prestou atençăo. Mantendo a măo direita no bolso do casaco, ele montou na bicicleta. Começou a pedalar, guiando com a măo esquerda. Havia guardas por toda parte, ao redor do palácio. Se Walden os mobilizasse rapidamente, aqueles guardas poderiam cercar o parque e as ruas ao redor. Feliks olhou para frente, na direçăo da Arcada do Almirantado Năo havia qualquer sinal de um bloqueio policial. Depois que passasse pela arcada, estaria no West End e năo mais conseguiriam encontrá-lo. Começou a adquirir mais habilidade em guiar com uma só măo e aumentou a velocidade. Ao se aproximar da arcada, um automóvel emparelhou com a bicicleta. Ao mesmo tempo, um guarda
saiu para o meio da rua ŕ frente. Feliks parou a bicicleta e preparou-se para correr… mas o guarda estava apenas retendo o tráfego para permitir que outro automóvel, presumivelmente de alguma alta autoridade, emergisse de um portăo. O guarda bateu continęncia quando o automóvel passou e depois acenou para que o tráfego continuasse. Feliks pedalou pela arcada, entrando na Praça Trafalgar. Walden é muito lento, pensou ele, com satisfaçăo. Já era meia-noite, mas o West End estava brilhando de luzes, apinhado de pessoas e tráfego. Havia guardas por toda parte e nenhum outro ciclista. Feliks estava sobressaindo. Pensou em abandonar a bicicleta e andar de volta a Camden Town. Mas năo tinha certeza se poderia fazer a jornada a pé. Parecia estar-se cansando com muita facilidade. Da Praça Trafalgar, ele subiu pela Travessa St. Martin, deixando em seguida as ruas de maior movimento e passando a avançar pelas vielas de Theatreland. Uma viela escura foi subitamente iluminada quando uma porta de bastidores se abriu de repente e um bando de atores apareceu, todos rindo e falando em voz alta. Mais adiante, ouviu gemidos e suspiros, passando por um casal fazendo amor de pé, num portal. Entrou em Bloomsbury. Estava mais quieto e mais escuro. Ele pedalou para o norte, subindo pela Rua Gower, e passando pela fachada clássica da universidade deserta. Pedalar exigia agora um esforço enorme, ele sentia todo o corpo doído. Só faltam mais dois ou tręs quilômetros, pensou Feliks. Desmontou para cruzar a movimentada Avenida Euston. As luzes ofuscavam-no. Parecia estar tendo bastante dificuldade para conseguir focalizar os olhos. Tornou a montar na bicicleta diante da Estaçăo Euston e recomeçou a pedalar. Sentiu-se tonto de repente. A roda da frente virou e bateu no meio-fio. Feliks caiu. Ficou estendido no chăo, atordoado e fraco. Abriu os olhos e divisou um guarda se aproximando. Conseguiu erguer-se, ficando de joelhos. ​ Andou bebendo? ​ perguntou o guarda. ​ Estou-me sentindo tonto ​ murmurou Feliks. O guarda segurou-lhe o braço direito e ajudou-o a levantar-se. A dor no ombro ferido fez Feliks voltar a si. Ele conseguiu manter a măo direita sangrando no bolso. O guarda farejou audivelmente e depois disse: ​ Hum… ​ Sua atitude tornou-se mais cordial ao descobrir que Feliks năo rescendia a bebida. ​ Vai ficar bem? ​ Dentro de um momento. ​ É estrangeiro? O guarda percebera o sotaque.
​ Francęs ​ respondeu Feliks. ​ Trabalho na embaixada. O guarda tornou-se mais polido. ​ Gostaria que eu chamasse um carro de aluguel? ​ Năo, obrigado. Estou quase chegando. O guarda levantou a bicicleta. ​ Se eu fosse vocę, passaria a empurrá-la até chegar em casa. Feliks pegou a bicicleta. ​ É justamente o que vou fazer. ​ Assim é melhor, senhor. Boa-noite. ​ Bonne nuit, seu guarda. Com um grande esforço, Feliks exibiu um sorriso. Empurrando a bicicleta com a măo esquerda, ele se afastou. Vou entrar no primeiro beco e me sentar para descansar um pouco, decidiu ele. Olhou para trás; o guarda ainda o observava. Continuou a andar, embora precisasse desesperadamente de se deitar. O primeiro beco, pensou ele. Mas quando lá chegou, seguiu adiante, pensando: Năo este, mas o próximo. E foi assim que chegou em casa. Parecia que foram horas depois que ele parou diante da casa em Camden Town. Espiou atentamente pelo nevoeiro para o número na porta, a fim de certificar-se de que estava no lugar certo. Para chegar a seu quarto, ele tinha de descer um lance de degraus de pedra para a área do porăo. Encostou a bicicleta na grade de ferro, enquanto abria o pequeno portăo. E depois cometeu o erro de tentar descer com a bicicleta pelos degraus. A bicicleta escapuliu-lhe das măos e caiu ruidosamente. Um momento depois, a senhoria, Bridget, apareceu na porta da rua, envolta por um xale. ​ Que diabo está acontecendo? ​ perguntou ela. Feliks sentou-se num degrau, sem responder. Resolveu que năo se mexeria por algum tempo, até que se estivesse sentindo mais forte. Bridget desceu e ajudou-o a levantar-se murmurando: ​ Acho que andou bebendo demais. Fę-lo descer os degraus até a porta do porăo. ​ Dę-me sua chave ​ pediu Bridget. Feliks teve de usar a măo esquerda para tirar a chave do bolso direito da calça. Entregou a Bridget, que abriu a porta. Os dois entraram, Feliks parou no meio do pequeno quarto, enquanto a senhoria acendia o lampiăo.
​ Vamos tirar o seu casaco ​ disse ela. Feliks deixou-a tirar o casaco. Bridget viu a mancha de sangue. ​ Andou brigando? Feliks foi deitar-se no colchăo. Bridget acrescentou: ​ E parece que perdeu. ​ Perdi mesmo ​ balbuciou Feliks, desmaiando em seguida. Uma dor agoniante fę-lo recuperar os sentidos. Abriu os olhos para ver Bridget lavando os ferimentos com algo que ardia como fogo. ​ Esta măo precisa levar uns pontos ​ disse ela. ​ Amanhă ​ balbuciou Feliks. Ela obrigou-o a beber de uma xícara. Era água morna, misturada com gim. ​ Năo tenho conhaque. Recostou-se e deixou que Bridget o enfaixasse. ​ Posso chamar o médico, mas eu năo poderia pagar. ​ Amanhă. Bridget se levantou. ​ Virei vę-lo amanhă de manhă, assim que acordar. ​ Obrigado. Ela saiu e Feliks finalmente permitiu-se recordar.
 
Ao longo dos tempos, tudo o que permite aos homens aumentarem sua produçăo ou mesmo continuá-la foi apropriado por uns poucos. A terra pertence a esses poucos, que podem impedir a comunidade de cultivá-la. As minas de carvăo, que representam o trabalho de geraçőes, pertencem a uns poucos. Os teares, que representam, em seu atual estado de perfeiçăo, o trabalho de tręs geraçőes de tecelőes de Lancashire, pertencem também a uns poucos; e se os netos desse mesmo tecelăo que inventou o primeiro tear automático reivindicarem seus direitos de usar uma dessas máquinas, ouvirăo no mesmo instante: ​Tirem as măos daí! Essa máquina năo lhes pertence!​ As ferrovias pertencem a uns poucos acionistas, que talvez nem mesmo saibam onde fica a ferrovia que lhes proporciona uma renda anual maior do que a de um rei medieval. E se os filhos das pessoas que morreram aos milhares na escavaçăo de túneis se reunirem… uma multidăo esfarrapada e faminta… e forem pedir păo ou trabalho aos acionistas, serăo
recebidos com baionetas e balas. Feliks levantou os olhos do panfleto de Kropotkin. A livraria estava vazia. O dono era um velho revolucionário, que ganhava dinheiro vendendo romances a mulheres ricas e mantinha uma provisăo de literatura subversiva nos fundos da loja. Feliks costumava passar muito tempo ali. Ele tinha 19 anos. Estava prestes a ser expulso da prestigiosa Academia Espiritual, por vadiagem, indisciplina, cabelos compridos e associaçăo com niilistas. Estava com fome e sem dinheiro, em breve estaria também sem casa… e a vida era maravilhosa. Năo se importava com outra coisa que năo fossem as idéias, e a cada dia estava aprendendo mais a respeito de poesia, história, psicologia e… o mais importante de tudo… política. As leis sobre a propriedade năo săo feitas para garantir ao indivíduo ou ŕ sociedade o aproveitamento do produto de seu próprio trabalho. Ao contrário, săo feitas para roubar o produtor de uma parte do que ele criou. Quando, por exemplo, a lei determina o direito de Fulano de Tal a uma casa, năo está estabelecendo seu direito a um chalé que construiu para si mesmo ou a uma casa que ergueu com a ajuda de alguns amigos. Neste caso, ninguém haveria de contestar o seu direito. Mas acontece que a lei está estabelecendo o seu direito a uma casa que năo é produto de seu trabalho. Os slogans anarquistas lhe haviam parecido ridículo quando os ouvira pela primeira vez: Propriedade é roubo, Governo é tirania, Anarquia é justiça. Era espantoso como haviam assumido năo apenas foros de verdade, mas se tornado totalmente óbvios, depois que passara a ler a respeito. O argumento de Kropotkin sobre as leis era incontestável. Năo havia necessidade de leis para impedir o roubo na aldeia natal de Feliks; se um camponęs roubava de outro o cavalo, a cadeira ou o casaco que a mulher bordara, entăo a aldeia inteira via o culpado de posse das coisas e o obrigava a devolver. O único roubo que escapava impune era a exigęncia de aluguéis exorbitantes pelo dono das terras. E quando isso acontecia, a polícia sempre estava presente para impor o roubo. O mesmo acontecia com o governo. Os camponeses năo precisavam de ninguém para dizer-lhes como o arado e os bois deveriam ser partilhados entre seus campos; eles próprios resolviam isso. Somente o amanho dos campos do dono das terras é que precisava ser imposto. Falam-nos continuamente dos benefícios proporcionados pelas leis e penalidades. Mas as pessoas que falam assim alguma vez já tentaram confrontar os benefícios atribuídos ŕs leis e penalidades contra os efeitos degradantes dessas penalidades sobre a humanidade? Calcule-se apenas todas as paixőes terríveis que săo despertadas nos homens pelas puniçőes atrozes infligidas em nossas ruas! O homem é o animal mais cruel da terra. E quem tem alimentado e desenvolvido os instintos cruéis senăo o rei, o juiz e os padres, armados com as leis, que esfolam a pele das pessoas com os açoites, derramam azeite fervendo em ferimentos, deslocam braços e pernas, esmigalham ossos, matam brutalmente, a fim de manter a autoridade? Calcule-se a torrente de depravaçăo que é lançada na sociedade humana pelo ​informante​, que é encorajado pelos juízes e pago pelo governo a peso de ouro, sob o pretexto de ajudar na descoberta do ​crime​. Basta entrar-se nas cadeias e estudar em que o homem se transforma quando chafurda no vicio e corrupçăo que se destilam das próprias paredes de nossas prisőes. Considerem-se finalmente a corrupçăo e depravaçăo da mente que săo impostas aos homens pela idéia de obedięncia, a própria essęncia da lei; o castigo; a autoridade tendo o direito de punir; a necessidade de carrascos, carcereiros e delatores… em suma, todos os atributos da lei e autoridade. Pensem em tudo isso e certamente văo concordar que uma lei que inflige penalidade é uma abominaçăo que deve deixar de existir. Povos sem organizaçăo política e por isso menos depravados do que nós tęm compreendido
perfeitamente que o homem classificado corno ​criminoso​ é simplesmente um infeliz; e que a soluçăo năo é açoitá-lo, acorrentá-lo ou matá-lo, mas ajudá-lo com os cuidados mais fraternais, por um tratamento baseado na igualdade, pelos costumes de vida entre homens honestos. Feliks estava vagamente consciente de que alguém entrara na livraria e estava parado perto dele, mas se achava muito concentrado em Kropotkin para prestar atençăo. Chega de leis! Chega de juizes! Liberdade, igualdade e compaixăo humana prática săo as únicas barreiras eficazes que podemos opor aos instintos anti-sociais de determinadas pessoas entre nós. A pessoa deixou cair um livro e a sucessăo de pensamentos de Feliks foi interrompida. Desviou os olhos do panfleto, viu o livro caído no chăo ao lado da saia comprida da freguesa. Inclinou-se automaticamente para pegá-lo. Ao entregar o volume, contemplou o rosto dela e balbuciou, com absoluta sinceridade: ​ Mas vocę é um anjo! Ela era loura e pequena, usava uma pele castanho-clara, da cor de seus olhos, tudo nela era claro. Feliks pensou que nunca vira uma mulher mais bonita e estava certo. Ela o fitou e corou, mas năo desviou os olhos. Por mais incrível que pudesse parecer, tudo indicava que ela também encontrara nele algo de fascinante. Depois de um momento, Feliks olhou para o livro. Era Ana Karenina. ​ Bobagem sentimental ​ murmurou ele. Feliks arrependeu-se de ter falado, pois suas palavras romperam o encantamento. Ela pegou o livro e afastou-se. Ele viu entăo que havia uma criada em companhia da mulher, a quem ela entregou o livro, saindo da loja em seguida. A criada pagou o livro. Olhando pela janela, Feliks viu a mulher entrar numa carruagem. Perguntou ao livreiro quem era. Soube que o nome era Lydia, a filha do Conde Shatov. Descobriu onde o Conde morava e no dia seguinte estava postado nas proximidades da casa, na esperança de tornar a vę-la. Ela entrou e saiu duas vezes, na carruagem, antes que um cavalariço viesse afastar Feliks. Ele năo se importou, pois a mulher o fitara diretamente, na última vez em que a carruagem passara. Feliks foi ŕ livraria no dia seguinte. Por horas a fio, leu Federalismo, Socialismo e Antiteologismo, de Bakunin, sem compreender uma só palavra. Olhava pela janela cada vez que passava uma carruagem. O coraçăo parava por um instante sempre que alguma pessoa entrava na livraria. Ela apareceu ao final da tarde. Desta vez deixou a criada lá fora. Murmurou um cumprimento para o livreiro e depois foi para os fundos da loja, onde Feliks estava. Ficaram-se olhando fixamente. Feliks pensou: Ela me ama. Por que outro motivo teria vindo? Ele tencionava falar com ela, mas em vez disso abraçou-a e beijou-a. Ela retribuiu o beijo,
sofregamente, abrindo a boca, apertando-o, cravando as unhas em suas costas. Foi sempre assim com os dois: ao se encontrarem, lançavam-se um contra o outro, como animais prestes a se engalfinharem numa luta. Encontraram-se mais duas vezes na livraria e uma vez, depois do escurecer, no jardim da casa dos Shatovs. No encontro no jardim ela estava com as roupas de dormir. Feliks meteu as măos por baixo da camisola de lă e acariciou-lhe o corpo todo, tăo ousadamente como se ela fosse uma mulher da rua, apalpando, explorando, esfregando; e tudo o que ela fazia era gemer. Ela deu-lhe dinheiro, a fim de que pudesse alugar um quarto só para si. Depois disso, passou a encontrá-lo quase todos os dias, durante seis semanas deslumbrantes. A última vez foi num fim de tarde. Ele estava sentado ŕ mesa, envolto numa manta por causa do frio, lendo O Que É Propriedade?, de Proudhon, ŕ luz de vela. Ele tirou a calça ao ouvir os passos dela na escada. Ela entrou correndo, usando um velho manto marrom, com capuz. Beijou-o, sugou-lhe os lábios, mordeu-lhe o queixo, cravou-lhe as unhas nos lados do corpo. Ela virou-se e tirou o manto. Usava por baixo um vestido branco a rigor, que deveria ter custado centenas de rublos. ​ Desate tudo!​ disse ela. ​ Depressa! Feliks começou a abrir os ganchos atrás do vestido. ​ Estou a caminho de uma recepçăo na embaixada britânica ​ disse ela, ofegante. ​ Só tenho uma hora. Depressa, por favor. Em sua pressa, Feliks arrancou um dos ganchos do tecido. ​ Oh, diabo! Arranquei um! ​ Năo tem importância! Ela saiu do vestido, arrancou as anáguas, a camisa e o calçăo, ficando apenas de espartilho, meias e sapatos. Jogou-se nos braços dele. Enquanto o beijava, tirou-lhe a cueca. E balbuciou: ​ Ó, Deus, como adoro o cheiro da sua coisa! Feliks ficava doido quando ela falava assim. Ela tirou os seios do espartilho e acrescentou: ​ Morda-os! Morda com força! Quero sentir os seus dentes pelo resto da noite! Um momento depois, ela afastou-se dele. Estendeu-se de costas na cama. Onde o espartilho terminava, a umidade brilhava nos esparsos cabelos louros entre as coxas. Ela estendeu as pernas e levantou-as, abrindo-se para ele. Feliks contemplou-a por um momento e
depois caiu em cima dela. Ela agarrou-lhe o pęnis e empurrou-o para dentro de si, ansiosamente. ​ Olhe para mim ​ disse ela. ​ Olhe para mim! Ele fitou-a, com uma expressăo de adoraçăo nos olhos. Uma expressăo de pânico se insinuou no rosto dela. ​ Olhe para mim! Estou gozando! E foi nesse momento que, ainda fitando-o nos olhos, ela escancarou a boca e gritou.
 
​ Acha que as outras pessoas săo como nós? ​ perguntou ela. ​ De que maneira? ​ Obscenos. Feliks levantou a cabeça do colo dela e sorriu. ​ Somente os afortunados. Olhou para o corpo dele, enroscado entre as suas pernas. ​ Vocę é forte e compacto, um homem perfeito ​ disse ela. ​ Olhe como a sua barriga é lisa, como a bunda é perfeita, como suas coxas săo esguias e musculosas. ​ Ela fez uma pausa, passando um dedo pelo nariz de Feliks. ​ Vocę tem o rosto de um príncipe. ​ Sou um camponęs. ​ Năo quando está nu. ​ Lydia estava com um ânimo reflexivo. ​ Antes de conhecę-lo, eu estava interessada nos corpos de homens e em tudo mais. Mas costumava fingir que năo estava, até para mim mesma. E de repente vocę apareceu, năo pude mais fingir. Feliks lambeu a parte interna da coxa dela. Ela estremeceu. ​ Já fez isso com outra mulher? ​Năo. ​ Costumava fingir também? ​ Năo. ​ Acho que, de alguma forma, eu já sabia disso. Há alguma coisa diferente em vocę, alguma coisa selvagem e livre, como um animal. Vocę nunca obedece a ninguém, faz apenas o que quer. ​ Jamais conheci antes uma mulher que me deixasse fazer o que quisesse.
​ Mas no fundo todas queriam. Qualquer mulher deixaria. ​ Por quę? ​ Porque seu rosto é tăo cruel, enquanto os olhos săo tăo gentis. ​ Foi por isso que me deixou beijá-la na livraria? ​ Năo deixei… simplesmente năo tive alternativa. ​ Poderia ter gritado por socorro depois. ​ A esta altura, tudo o que eu queria era que vocę me beijasse de novo. ​ Eu deveria ter imaginado o que vocę realmente era. ​ E como eu realmente sou? ​ Fria como gelo na superfície, mas quente como o inferno por baixo. Ela soltou uma risada. ​ Sou uma grande atriz. Todo mundo em Săo Petersburgo pensa que sou boa. Sou apontada como um exemplo para as moças mais jovens, da mesma forma que Anna Karenina. Agora que sei como sou realmente má, tenho de fingir o dobro para ser virginal como antes. ​ Năo pode parecer duas vezes mais virginal do que qualquer coisa. ​ Fico imaginando se năo estarăo todos fingindo… Veja o caso de meu pai. Se ele soubesse que estou aqui, deste jeito, morreria de raiva. Mas ele devia sentir as mesmas coisas quando era jovem… năo acha? ​ Acho que isso é imponderável. Mas o que ele faria, se descobrisse o que existe entre nós dois? ​ Iria açoitá-lo. ​ Teria de me agarrar primeiro. ​ Um pensamento ocorreu a Feliks. ​ Qual é a sua idade? ​ Tenho quase dezoito anos. ​ Santo Deus! Eu poderia ir para a cadeia por seduzi-la! ​ Eu obrigaria Papai a tirá-lo da cadeia. Feliks rolou na cama para ficar de frente e fitou-a. ​ O que vamos fazer, Lydia? ​ Quando?
​ A longo prazo. ​ Vamos continuar como amantes até eu me tornar maior e depois nos casaremos. Feliks ficou aturdido. ​ Está falando sério? ​ Claro que estou. ​ Ela parecia genuinamente surpresa por ele acalentar alguma dúvida. ​ O que mais poderíamos fazer? ​ Quer mesmo casar-se comigo? ​ Claro! Năo é isso o que vocę quer? ​ É, sim… ​ balbuciou ele ​ …é justamente o que quero. Lydia sentou-se na cama, com as pernas estendidas nos lados do rosto dele. Afagou-lhe os cabelos. ​ Entăo é isso o que vamos fazer. ​ Vocę nunca me conta como consegue escapar para vir até aqui ​ disse Feliks. ​ Năo é muito interessante. Digo mentiras, suborno criadas e corro riscos. É o caso desta noite, por exemplo. A recepçăo na embaixada começa ŕs seis e meia. Saí de casa ŕs seis horas e chegarei lá 15 minutos depois das sete. A carruagem está no parque… o cocheiro pensa que estou no parque, dando uma volta com a criada. E a criada está esperando na frente desta casa, sonhando com a maneira como vai gastar os 10 rublos que lhe darei para ficar de boca fechada. ​ Faltam dez minutos para as sete horas ​ informou Feliks. ​ Ó, Deus! Depressa, faça-me gozar com sua língua antes de eu ir embora!
 
Feliks estava dormindo naquela noite, sonhando com o pai de Lydia… a quem nunca vira… quando eles irromperam no quarto, segurando lampiőes. Ele despertou no mesmo instante, pulando da cama. Pensou a princípio que fossem estudantes da universidade pregando-lhe uma peça. Mas logo um homem deu-lhe um soco na cara e chutou-o na barriga. Feliks compreendeu entăo que os homens eram da polícia secreta. Presumiu que o estavam prendendo por causa de Lydia e sentiu-se aterrorizado por ela. Lydia seria desgraçada publicamente? O pai seria doido o bastante para obrigá-la a prestar depoimento no tribunal contra seu amante? Observou os policiais meterem todos os livros e um maço de cartas num saco. Os livros eram todos emprestados, mas nenhum dos donos era tolo o bastante para inscrever seu nome neles. As cartas eram do pai e da irmă Natasha. Nunca recebera cartas de Lydia, e agora sentia-se grato por isso. Ele foi levado para fora do prédio e jogado numa carruagem de quatro rodas.
Atravessaram a Ponte da Corrente e depois seguiram ao longo dos canais, como se quisessem evitar as ruas de maior movimento. Feliks perguntou: ​ Estou indo para a prisăo de Litovsky? Ninguém respondeu. Mas quando atravessaram a Ponte do Palácio, ele compreendeu que estava sendo levado para a notória Fortaleza de Săo Pedro e Săo Paulo. Sentiu um frio no coraçăo. A carruagem virou á esquerda no outro lado da ponte e entrou numa passagem coberta, inteiramente ŕs escuras. Parou diante de um portăo. Feliks foi conduzido a uma sala de recepçăo, onde um oficial do Exército observou-o por um momento e depois escreveu alguma coisa num livro grande. Ele voltou á carruagem e foi levado mais para o interior da fortaleza. Pararam diante de outro portăo e esperaram por vários minutos, até que foi aberto do interior por um soldado. Feliks seguiu a pé por uma sucessăo de corredores estreitos, até um terceiro portăo de ferro, que dava para uma sala grande e úmida. O Diretor da prisăo estava sentado a uma mesa. Ele foi logo dizendo: ​ Vocę é acusado de ser um anarquista. Confessa? Feliks sentiu-se exultante. Sua prisăo nada tinha a ver com Lydia. ​ Confessar? Eu me gabo disso! Um dos guardas pegou um livro, que foi assinado pelo Diretor. Feliks recebeu a ordem de tirar todas as roupas. Recebeu um camisolăo de flanela cinzenta, um par de meias grossas de lă e duas chinelas amarelas de feltro, grandes demais para seus pés. Um guarda armado conduziu-o por mais corredores escuros, até uma cela. Uma pesada porta de carvalho foi fechada por trás dele e Feliks ouviu uma chave virar na fechadura. A cela continha uma mesa, uma cama, um banco e um lavatório. A janela era quase uma seteira na parede muito grossa. O chăo era coberto por feltro pintado e as paredes achavam-se revestidas com alguma espécie de estofamento amarelo. Feliks sentou-se na cama. Fora ali que Pedro I fora torturado e morto por seu próprio filho. Fora ali que a Princesa Tarakanova fora mantida numa cela, lentamente inundada, de tal forma que os ratos subiram por seu corpo a fim de se salvar do afogamento. Era ali que Catarina II enterrava vivos os seus inimigos. Dostoiévski fora aprisionado ali, pensou Feliks, orgulhosamente. O mesmo acontecera com Bakunin, que passara dois anos acorrentado a uma parede. Nechayev morrera ali. Feliks sentiu-se prontamente exultante por tăo heróica companhia, ao mesmo tempo em que ficava apavorado com a perspectiva de passar o resto da vida ali. A chave virou na fechadura. Um homem calvo e pequeno, de óculos. entrou na cela, carregando uma pena, um vidro de tinta e algum papel. Ajeitou-os na mesa e disse:
​ Escreva os nomes de todos os subversivos que conhece. Feliks sentou-se e escreveu: Karl Marx, Friedrich Engels, Peter Kropotkin, Jesus Cristo… O homem calvo arrancou-lhe o papel. Foi até a porta da cela e bateu. Dois guardas corpulentos entraram. Amarraram Feliks na mesa, tiraram as chinelas e as meias. E começaram a açoitar-lhe as solas dos pés. A tortura prolongou-se por toda a noite. Quando lhe arrancaram as unhas, ele começou a fornecer nomes e endereços falsos. Mas disseram-lhe que sabiam que eram falsos. Quando lhe queimaram a pele dos testículos com a chama de uma vela, ele indicou todos os seus amigos estudantes. Mas ainda assim lhe disseram que sabiam que eram falsos. A cada vez que ele desmaiava, os torturadores tratavam de revivę-lo. Paravam ŕs vezes por algum tempo, deixando-o pensar que tudo acabara. Mas depois recomeçavam. Feliks suplicava que o matassem, a fim de que a dor parasse. Mas os torturadores continuaram, por muito tempo depois de Feliks já lhes haver contado tudo o que sabia. Devia estar amanhecendo quando ele desmaiou pela última vez. Achava-se estendido na cama quando voltou a si. Havia ataduras nos pés e na măos. Estava na maior agonia. Queria matar-se, mas estava fraco demais para se mexer. O homem calvo voltou ŕ cela ao anoitecer quando o viu, Feliks começou a soluçar de terror. O homem limitou-se a sorrir e tornou a sair. Nunca mais voltou. Um médico ia visitar Feliks todos os dias. Feliks tentou sem sucesso extrair-lhe informaçőes. Alguém lá fora sabia que Feliks se encontrava na prisăo? Houvera alguma mensagem? Alguém tentara visitá-lo? O médico se limitava a mudar os curativos e depois se retirava. Feliks especulava. Lydia teria ido ao quarto e encontrado o lugar na maior desordem. Alguém na casa deveria tę-la informado que a polícia secreta o levara. O que ela faria em tal situaçăo? Faria indagaçőes frenéticas, sem se preocupar com sua reputaçăo? Seria discreta e iria ao Ministério do Interior, com alguma história sobre o namorado da criada que fora preso por engano? Ele esperava todos os dias receber qualquer notícia de Lydia. Mas isso nunca aconteceu. Oito semanas depois, ele quase podia andar normalmente. Soltaram-no sem dar qualquer explicaçăo. Feliks foi o seu quarto. Esperava encontrar ali um recado de Lydia. Mas nada havia e o quarto fora alugado a outra pessoa. Ele ficou imaginando por que Lydia năo continuara a pagar o aluguel. Foi até a casa dela e bateu na porta da frente. Um criado atendeu. Feliks disse: ​ Feliks Davidovich Kschessinsky apresenta seus cumprimentos a Lydia Shatova…
O criado bateu a porta. Feliks foi finalmente ŕ livraria. O velho livreiro disse: ​ Tenho um recado para vocę. Foi trazido ontem, pela criada dela. Feliks abriu o envelope com os dedos tręmulos. Fora escrito năo por Lydia, mas pela criada. E dizia: Fui despedida e năo tenho mais emprego e tudo é culpa sua ela está casada e foi para a Inglaterra ontem e agora vocę conhece o preço do pecado. Feliks olhou para o livreiro, com lágrimas de angústia nos olhos. ​ Isso é tudo? Ele năo soube de mais nada por 19 anos.
 
Os regulamentos normais estavam temporariamente suspensos na casa dos Waldens. Assim, Charlotte estava sentada na cozinha, com os criados. A cozinha achava-se imaculada, já que a família jantara fora. O fogo estava apagado e as janelas altas tinham sido abertas, deixando entrar o ar fresco da noite. A louça usada para as refeiçőes dos criados estava empilhada no armário. As facas e Colheres de cozinha encontravam-se penduradas de inúmeros ganchos. As terrinas e panelas haviam sido guardadas nos armários de carvalho. Charlotte năo tivera tempo para ficar apavorada. A princípio, quando a carruagem parara abruptamente no meio do parque, a jovem ficara apenas perplexa; depois disso, sua preocupaçăo fora impedir que a măe gritasse. Ao voltarem para casa, descobrira-se um pouco abalada. Agora, no entanto, recordando os acontecimentos, estava achando que tudo fora mais emocionante do que qualquer outra coisa. Os criados também se sentiam assim. Era tranqüilizante se sentar a uma mesa grande e de madeira descorada, conversando com pessoas que faziam parte tăo intensamente de sua vida, pensou Charlotte. Lá estavam a cozinheira, que sempre a tratara maternalmente; Pritchard, a quem Charlotte respeitava porque o pai o respeitava; a eficiente e capaz Sra. Mitchell, que tomava conta da casa e invariavelmente encontrava uma soluçăo para qualquer problema. William, o cocheiro, era o herói do momento. Já descrevera várias vezes a expressăo desvairada dos olhos do atacante, enquanto o ameaçava com o revólver. Deleitando-se com o olhar impressionado de uma copeira, ele se recuperara rapidamente da indignidade de ter entrado na cozinha inteiramente nu. ​ É claro que presumi que o ladrăo queria apenas as roupas de William ​ disse Pritchard. ​ Sabia que Charles estava no palácio e por isso poderia conduzir a carruagem. Achei melhor năo comunicar ŕ polícia antes de falar com milorde. Charles, o lacaio, disse: ​ Imaginem como me senti quando descobri que a carruagem desaparecera. Disse a mim mesmo: Fui deixado aqui sozinho. Pensei depois que William tinha mudado de lugar. Corri de um lado para outro do
Mall, procurando por toda parte. Acabei voltando ao palácio. ​Está havendo um problema​, falei ao porteiro. ​A carruagem do Conde de Walden desapareceu.​ E ele me disse: ​Walden?​ O tom de voz năo era muito respeitoso… A Sra. Mitchell interveio: ​ Os criados do palácio pensam que săo melhores do que a nobreza… ​ Ele me disse: ​Walden já foi, companheiro.​ Pensei: Por Deus, estou perdido! Saí correndo pelo parque e na metade do caminho para casa encontrei a carruagem, com milady tendo um ataque histérico e milorde com a espada suja de sangue. A Sra. Mitchell comentou: ​ E depois de tudo isso, nada foi roubado. ​ Um lunático ​ disse Charles. ​ Um lunático esperto. Houve concordância geral. A cozinheira pegou o chá e serviu primeiro a Charlotte. ​ Como está milady agora? ​ Está bem ​ respondeu Charlotte. ​ Foi para a cama e tomou uma dose de láudano. Já deve estar dormindo. ​ E os cavalheiros? ​ Papai e o Príncipe Orlov estăo na sala de estar, tomando um conhaque. A cozinheira suspirou. ​ Ladrőes no parque e sufragistas na corte… năo sei para onde estamos indo. ​ Anote as minhas palavras ​ disse Charles. ​ Vai haver uma revoluçăo socialista. ​ Todos seremos assassinados na cama ​ disse a cozinheira, lugubremente. ​ O que a sufragista estava querendo dizer ao falar que o Rei tortura mulheres? ​ indagou Charlotte. Enquanto falava, Charlotte olhava para Pritchard, que ŕs vezes se mostrava disposto a explicar-lhe coisas que ela ainda năo deveria saber. ​ Ela estava falando de alimentaçăo forçada ​ disse Pritchard. ​ Ao que parece, é uma coisa dolorosa. ​ Alimentaçăo forçada? ​ Quando elas năo querem comer, săo alimentadas ŕ força. Charlotte estava aturdida. ​ E como fazem?
​ De diversas maneiras ​ respondeu Pritchard, com uma expressăo que indicava que năo iria entrar em detalhes. ​ Um tubo pelas narinas é uma delas. ​ Eu gostaria de saber o que dăo para elas comerem ​ falou a copeira. ​ Provavelmente sopa quente ​ disse Charles. ​ Năo posso acreditar ​ murmurou Charlotte ​ por que elas se recusariam a comer. ​ É um protesto ​ explicou Pritchard. ​ Cria dificuldades para as autoridades da prisăo. ​ Prisăo? ​ Charlotte estava atônita. ​ E por que elas estăo na prisăo? ​ Por quebrarem janelas, fabricarem bombas, perturbarem a paz… ​ Mas o que elas querem? Houve um momento de silęncio, os criados compreendendo que Charlotte năo tinha a menor idéia do que era uma sufragista. Pritchard finalmente disse: ​ Elas querem o voto para as mulheres. ​ Ahn… ​ Charlotte pensou: Eu sabiá que as mulheres năo podiam votar? Ela năo tinha certeza. Nunca antes pensara nessas coisas. ​ Acho que essa conversa já foi longe demais ​ disse a Sra. Mitchell, firmemente. ​ Vai ter problemas, Sr. Pritchard, por meter idéias erradas na cabeça de milady. Charlotte sabia que Pritchard nunca tinha problemas, porque era praticamente amigo do pai. Ela disse: ​ Por que elas se importam tanto com uma coisa como votar? Houve um toque de campainha e todos olharam instintivamente para o quadro de chamada. ​ A porta da frente! ​ disse Pritchard. ​ A esta hora da noite! Ele saiu, vestindo o casaco. Charlotte tomou o chá. Sentia-se cansada. Concluiu que as sufragistas eram desconcertantes e um pouco assustadoras; mesmo assim, queria saber mais a respeito delas. Pritchard voltou. ​ Uma travessa de sanduíches, por favor, Cozinheira. Charles, leve um novo sifăo com soda para a sala de estar. Ele começou a arrumar pratos e guardanapos numa bandeja. ​ Quem chegou? ​ perguntou Charlotte. ​ Um cavalheiro da Scotland Yard ​ informou Pritchard.
 
Basil Thomson era um homem de cabeça pontuda, cabelos louros bem ralos, bigode denso e olhar penetrante. Walden já ouvira falar dele. O pai de Thomson fora o Arcebispo de York. Thomson fora educado em Eton e Oxford, restara serviços nas Colônias, como Comissário Nativo e Primeiro-Ministro de Tonga. Voltara ŕ Inglaterra para se tornar advogado, depois trabalhara no Serviço de Prisőes, acabando como Diretor da Prisăo de Dartmoor e adquirindo a reputaçăo de saber dominar motins. Das prisőes, passara para o serviço policial e se tornara um especialista dos círculos criminosos-anarquistas do East End de Londres. Essa experięncia levara-o ao Serviço Especial, a força de polícia política da Scotland Yard. Walden convidou-o a sentar-se e começou a relatar os acontecimentos da noite. Observava Aleks enquanto falava. O Príncipe russo estava exteriormente calmo, mas o rosto se achava muito pálido. Ele bebia sem parar o conhaque com soda, enquanto a măo esquerda apertava convulsivamente o braço da cadeira. Em determinado momento, Thomson interrompeu Walden, perguntando: ​ Notou que o lacaio estava faltando quando pegou a carruagem? ​ Notei, sim. Perguntei onde ele estava, mas o cocheiro pareceu năo ouvir. Como havia o maior movimento na entrada do palácio e minha filha dizia para que me apressasse, resolvi deixar para esclarecer o mistério quando chegássemos em casa. ​ Parece evidente que o homem estava contando com isso. Ele deve ter muito sangue-frio. Continue. ​ A carruagem parou de repente no parque e a porta foi aberta pelo homem. ​ Como ele era? ​ Alto. Tinha um cachecol ou algo assim a encobrir o rosto. Cabelos escuros. Olhos arregalados. ​ Todos os criminosos tęm olhos arregalados. O cocheiro pôde observá-lo melhor? ​ Năo muito. Na ocasiăo, o homem usava chapéu e estava bastante escuro no local. ​ Hum, hum. E depois? Walden respirou fundo. Na ocasiăo, ficara mais furioso do que assustado. Agora, porém, reconstituindo os acontecimentos, foi dominado pelo medo do que poderia ter acontecido a Aleks, Lydia ou Charlotte. Ele disse: ​ Lady Walden gritou e isso pareceu desconcertar o atacante. Talvez ele năo esperasse encontrar alguma mulher na carruagem. Seja como for, ele hesitou. ​ E graças a Deus por isso, pensou Walden, antes de acrescentar: ​ Acertei-o com a espada e ele largou o revólver. ​ Acha que o feriu gravemente? ​ Duvido muito. Năo pude golpear direito no espaço restrito e é claro que a espada năo estava muito afiada. Mas deixei-o sangrando. Bem que gostaria de ter-lhe cortado a maldita cabeça. O mordomo entrou e a conversa cessou. Walden compreendeu que estivera falando alto demais. Tentou acalmar-se. Pritchard serviu sanduíches e conhaque com soda para os tręs homens. Walden disse:
​ É melhor vocę continuar por perto, Pritchard. Mas pode mandar todos os outros se deitarem. ​ Está bem, milorde. Depois que o mordomo se retirou, Walden disse: ​ É possível que tenha sido apenas uma tentativa de assalto. Deixei os criados pensarem assim, da mesma forma que Lady Walden e Charlotte. Mas, na minha opiniăo, um assaltante năo formularia um plano tăo elaborado. Estou quase que absolutamente convencido de que foi um atentado contra a vida de Aleks. Thomson olhou para o russo. ​ Infelizmente, tenho de concordar. Tem alguma idéia de como o homem soube onde encontrá-lo? Aleks cruzou as pernas. ​ Meus movimentos năo estăo sendo mantidos em segredo. ​ Pois é preciso mudar isso. Sua vida já foi ameaçada antes, senhor? ​ Vivo sob ameaças ​ respondeu Aleks. ​ Mas nunca antes sofri um atentado. ​ Há algum motivo para que o senhor em particular seja o alvo de niilistas ou revolucionários? ​ Para eles, é suficiente que eu seja um príncipe. Walden compreendeu que os problemas da aristocracia inglesa com sufragistas, liberais e sindicatos eram triviais, em comparaçăo com o que os russos tinham de enfrentar. Ele sentiu um ímpeto de simpatia por Aleks. Depois de um momento de silęncio, Aleks continuou, em voz tranqüila, controlada: ​ Contudo, sou conhecido como uma espécie de reformador, pelos Padrőes russos. Eles poderiam escolher uma vítima mais apropriada. ​ Até mesmo em Londres ​ concordou Thomson. ​ Há sempre alguns aristocratas russos em Londres para a temporada. ​ Onde está querendo chegar? ​ indagou Walden. ​ Estou imaginando que talvez o homem saiba o que o Príncipe Orlov está fazendo aqui e que o motivo do atentado desta noite pode ter sido o de sabotar as negociaçőes. Walden fez uma cara de dúvida. ​ Como os revolucionários poderiam descobrir isso? ​ Estou apenas especulando. Esse seria de fato um meio eficaz de sabotar as negociaçőes? ​ Seria, sim ​ admitiu Walden, o pensamento provocando-lhe um calafrio. ​ Se o Czar fosse informado de
que sobrinho foi assassinado em Londres por um revolucionário… especialmente se fosse um revolucionário russo expatriado… certamente ficaria furioso. Sabe como os russos se sentem pelo fato de abrigarmos subversivos aqui, Thomson. Nossa política de portas abertas vem causando atritos em nível diplomático há muitos anos. Uma coisa assim poderia abalar as relaçőes anglo-russas por vinte anos. Năo haveria entăo a menor possibilidade de uma aliança. Thomson assentiu, com um aceno de cabeça. ​ Era o que eu receava. Bem, năo há mais nada por esta noite. Vou pôr o meu departamento para trabalhar ao amanhecer. Vasculharemos o parque ŕ procura de pistas e interrogaremos todos os criados. Espero também deter alguns anarquistas no East End. ​ Acha que conseguirá encontrar o homem? ​ perguntou Aleks. Walden ansiava para que Thomson oferecesse uma resposta tranqüilizadora, mas sabia que isso năo aconteceria. ​ Năo será fácil ​ disse Thomson. ​ Ele é obviamente um planejador, e assim deve ter um esconderijo em algum lugar. Năo dispomos de uma boa descriçăo dele. A menos que os ferimentos o levem a um hospital, nossas chances săo mínimas. ​ Ele pode tentar matar-me novamente ​ comentou Aleks. ​ Por isso, devemos adotar açőes evasivas. Proponho que saia desta casa amanhă. Providenciaremos o último andar de um dos hotéis de Londres para o senhor, sob nome falso. E terá guarda-costas. Lorde Walden passará a encontrar-se com o senhor secretamente. E terá de suspender suas atividades sociais. ​ Claro. Thomson levantou-se. ​ Já é muito tarde. Podem deixar que tomarei todas as providęncias necessárias. Walden tocou a compainha, chamando Pritchard. ​ Tem uma carruagem ŕ sua espera, Thomson? ​ Tenho, sim. Vamos falar pelo telefone amanhă de manhă. Pritchard acompanhou Thomson até a porta e Aleks foi-se deitar. Walden recomendou a Aleks que trancasse a porta do quarto e depois subiu para os seus aposentos. Năo estava com sono. Enquanto se despia, relaxou um pouco e sentiu todas as emoçőes conflitantes que reprimira até aquele momento. Sentiu-se inicialmente orgulhoso… afinal, pensou ele, saquei uma espada e enfrentei e afugentei um atacante, o que năo é nada mal para um homem de 50 anos com um problema de gota na perna. Depois, ficou deprimido, ao recordar como haviam debatido friamente as conseqüęncias diplomáticas da morte de Aleks… o Aleks inteligente, alegre, tímido, bonito, a quem Walden vira transformar-se num homem.
Meteu-se na cama e ficou acordado, revivendo o momento em que a porta da carruagem fora aberta e o homem aparecera com um revólver. Agora estava assustado, năo por si mesmo ou Aleks, mas por Lydia e Charlotte. Tremeu na cama ao pensar que elas poderiam ter morrido. Lembrou-se de segurar Charlotte no colo, há 18 anos, quando ela tinha cabelos louros e nenhum dente; lembrou-se do momento em que dera a ela um pônei, a alegria da filha pelo presente tornando-se a maior emoçăo de sua vida; e lembrouse dela poucas horas antes, encaminhando-se para a presença real com a cabeça erguida, uma mulher adulta, extremamente bonita. Se ela morresse, pensou Walden, năo sei se eu conseguiria suportar. E Lydia… Se Lydia morrer, eu ficarei sozinho. O pensamento fę-lo levantar-se e passar para o quarto dela. Havia uma luz fraca acesa ao lado da cama. Lydia estava num sono profundo, deitada de costas, a boca entreaberta, os cabelos louros espalhando-se pelo travesseiro. Parecia extremamente vulnerável. Nunca fui capaz de fazę-la compreender o quanto a amo, pensou Walden. Subitamente, ele sentiu necessidade de tocá-la, confirmar que ela estava quente e viva. Estendeu-se na cama ao lado dela e beijou-a. Os lábios de Lydia retribuíram, mas ela năo acordou. Eu năo poderia viver sem vocę, Lydia, pensou Walden.
 
Lydia ficara acordada por um longo tempo, pensando no homem com o revólver. Fora um choque brutal e ela gritara de puro terror… mas havia também algo mais. Havia alguma coisa no homem, algo em sua posiçăo, nos contornos ou nas roupas, que lhe pareceu terrivelmente sinistro, como se fosse um fantasma. Ela gostaria de ter podido ver os olhos do homem. Depois de algum tempo, tomara outra dose de láudano e acabara adormecendo. Sonhou que o homem com o revólver entrava em seu quarto e metia-se na cama com ela. Era sua própria cama, mas no sonho ela tinha novamente 18 anos de idade. O homem pôs o revólver no travesseiro branco ao lado da cabeça dela. Ele ainda tinha o cachecol no rosto. Ela compreendeu que o amava. Beijou-lhe os lábios, através do cachecol. O homem fez-lhe amor maravilhosamente. Ela começou a pensar que talvez estivesse sonhando. Queria ver o rosto dele. Perguntou Quem é vocę? e uma voz respondeu Stephen. Ela sabia que năo podia ser, mas de alguma forma o revólver no travesseiro se convertera na espada de Stephen, com sangue na ponta. E ela começou a ter dúvidas. Agarrou-se ao homem por cima dela, com receio de que o sonho pudesse acabar antes que ficasse satisfeita. Depois, vagamente, começou a desconfiar de que estava fazendo na realidade o que imaginava no sonho; contudo, o sonho persistia. Foi dominada por um intenso prazer físico. Começou a perder o controle. E no instante em que o orgasmo começou, o homem no sonho tirou o cachecol do rosto. Foi entăo que Lydia abriu os olhos e deparou com Stephen por cima dela. Foi dominada pelo ęxtase e pela primeira vez, em 19 anos, gritou de alegria.
CINCO
Charlotte aguardava com sentimentos mistos o baile de debutante de Belinda. Jamais comparecera a um baile em Londres, embora tivesse participado de muitos no campo, vários deles em Walden Hall. Gostava de dançar e sabia que dançava muito bem, mas detestava o sistema de mercado de gado, em que as moças ficavam sentadas, esperando que um rapaz as escolhesse e convidasse para uma dança. E se perguntava se isso năo poderia ser feito de uma maneira mais civilizada. Chegaram ŕ casa em Mayfair de Tio George e Tia Clarissa meia hora antes da meia-noite, o que a măe dissera que era a hora mais cedo a que se poderia decentemente chegar a um baile em Londres. Um toldo listrado e um tapete vermelho estendiam-se da beira da calçada até o portăo do jardim, que fora transformado numa arcada triunfal romana. Mas nem mesmo isso preparou Charlotte para o que viu quando passou pela arcada. O jardim inteiro fora transformado num átrio romano. Ela olhou ao redor, aturdida.. Os gramados e canteiros de flores estavam cobertos por uma pista de dança de madeira,, pintada em quadrados pretos e brancos, a fim de parecer placas de mármore. Colunas brancas, ligadas por correntes de louros, margeavam a pista de dança. Além das colunas, numa espécie de claustro, havia bancos armados para os espectadores. No meio da pista achava-se uma fonte, um menino com um golfinho, a água se derramando numa bacia grande de mármore, iluminada por lâmpadas coloridas. Na varanda de um quarto do segundo andar estava instalada uma banda, tocando ragtime. Grinaldas de rosas decoravam as paredes, cestos de begônias pendiam da varanda. Um imenso toldo de lona, pintado de azul-celeste, cobria toda a área, do beirai do telhado ao muro do jardim. ​ É um milagre! ​ exclamou Charlotte. O pai comentou para o irmăo: ​ Uma multidăo e tanto, George. ​ Convidamos oitocentas pessoas. Que diabo aconteceu com vocęs no parque? ​ Năo foi tăo terrível quanto está parecendo ​ respondeu Walden, com um sorriso forçado, pegando o irmăo pelo braço e levando-o para um lado, a fim de conversarem. Charlotte contemplou os convidados. Todos os homens estavam vestidos a rigor, de gravata branca, colete branco e fraque. O que era particularmente favorável aos jovens ou pelo menos aos homens esguios, pensou Charlotte; fazia com que parecessem mais impetuosos enquanto dançavam. Observando os vestidos, ela concluiu que o seu e o da măe, embora de bom gosto, eram um tanto antiquados, com as cinturas finas e babados. Tia Clarissa usava um vestido comprido, a saia quase apertada demais para dançar. Belinda usava uma calça larga de harém. Charlotte constatou que năo conhecia ninguém. Quem vai dançar comigo, pensou ela, além de Papai e Tio George? Mas o irmăo mais moço de Tia Clarissa, Jonathan, valsou com ela, apresentando-a em seguida a tręs rapazes, colegas de Oxford. Os tręs também dançaram com ela. Charlotte achou que a conversa deles era monótona demais. Limitaram-se a comentar que a pista de dança estava muito boa e que a orquestra, de Gottlieb, também era muito boa, esgotando com isso todo o vapor. Charlotte bem que tentou aprofundar a conversa, indagando:
​ Acha que as mulheres deveriam votar? Mas as respostas foram desanimadoras: ​ Claro que năo. Ou entăo: ​ Năo tenho opiniăo a respeito. E ainda: ​ Vocę năo é uma delas, năo é mesmo? O último de seus parceiros, um rapaz chamado Freddie, levou-a ao interior da casa para a ceia. Era um rapaz de maneiras suaves, com feiçőes regulares… provavelmente bonito, pensou Charlotte… e cabelos louros. Estava no final do seu primeiro ano em Oxford. Gostava de Oxford, mas confessou que năo era muito de ler livros e talvez năo voltasse ŕ escola em outubro. O interior da casa estava enfeitado por flores e lâmpadas elétricas. Havia sopas quentes e frias na ceia, lagosta, perdiz, morangos, sorvetes e pęssegos de estufa. ​ A mesma ceia de sempre ​ comentou Freddie. ​ Todos usam o mesmo fornecedor. ​ Vai a muitos bailes? ​ perguntou Charlotte. ​ Infelizmente, sim. Para ser franco, vou a todos os bailes da temporada. Charlotte tomou um copo de champanha, na esperança de que isso a deixasse mais alegre. Largou Freddie e vagueou por diversas salas de recepçăo. Numa delas havia várias partidas de bridge em andamento. Duas duquesas idosas reinavam em outra. Numa terceira, homens mais velhos jogavam bilhar, enquanto homens mais moços fumavam. Charlotte encontrou Belinda ali, com um cigarro na măo. Charlotte nunca entendera a vantagem do tabaco, a menos que a pessoa quisesse parecer sofisticada. E Belinda certamente parecia sofisticada. ​ Estou adorando o seu vestido ​ comentou Belinda. ​ Năo está, năo. Mas vocę está sensacional. Como persuadiu sua madrasta a deixá-la vestir-se assim? ​ Ela bem que gostaria de se vestir como eu! ​ Ela parece muito mais jovem do que Mamăe. O que é mesmo, na realidade. ​ E ser uma madrasta faz uma grande diferença. O que aconteceu com vocę depois da corte? ​ Foi sensacional! Um doido apontou um revólver para nós! ​ Sua măe estava-me contando. Vocę năo ficou apavorada?
​ Estava ocupada demais acalmando Mamăe. Só depois é que fiquei terrivelmente apavorada. Por que disse no palácio que precisava ter uma longa conversa comigo? ​ Ah, sim! ​ A prima levou Charlotte para um lado, longe dos rapazes. ​ Descobri como eles saem. ​ Eles quem? ​ Os bebęs. ​ Ahn… ​ Charlotte estava agora totalmente atenta. ​ Vamos, conte logo. ​ Eles saem entre as pernas, por onde vocę faz água ​ falou Belinda, baixando a voz. ​ Mas é muito pequeno! ​ Estica. Que coisa horrível!, pensou Charlotte. ​ Mas isso năo é tudo ​ acrescentou Belinda. ​ Descobri como eles começam. ​ Como? Belinda pegou Charlotte pelo cotovelo e levou-a para o outro lado da sala. Pararam diante de um espelho enfeitado de rosas. A voz de Belinda era quase um sussurro: ​ Quando vocę se casar, terá de ir para a cama com o seu marido. ​ É mesmo? ​ É, sim. ​ Papai e Mamăe dormem em quartos separados. ​ Mas os quartos năo săo contíguos? ​ Săo. ​ Isso acontece para eles poderem meter-se na mesma cama. ​ Por quę? ​ Porque, para começar um bebę, o marido tem de pôr a sua coisa naquele lugar… por onde os bebęs saem. ​ De que coisa é essa que vocę está falando? ​ Fale baixo! É uma coisa que os homens tęm entre as pernas… Nunca viu nenhuma ilustraçăo do Davi, de Michelangelo?
​ Năo. ​ Pois é uma coisa com que eles fazem água. Parece um dedo. ​ E é preciso fazer isso para começar bebęs? ​ É, sim. ​ Que coisa horrível! Quem lhe contou tudo isso? ​ Viola Pontadarvy. Ela jurou que era verdade. De alguma forma, Charlotte sabia que era realmente verdade. Ouvir agora era ser recordada de algo que esquecera. Inexplicavelmente, parecia fazer sentido. Contudo, sentia-se fisicamente chocada. Era a mesma sensaçăo ligeiramente nauseante que, ŕs vezes, experimentava em sonhos, quando uma terrível suspeita era confirmada ou quando tinha medo de cair e descobria que estava caindo. ​ Fico contente que vocę tenha descoberto ​ murmurou ela. ​ Se alguém casasse sem saber… seria muito embaraçoso! ​ A măe sempre deve explicar tudo na noite anterior ao casamento. Mas se a măe é inibida demais, a moça só descobre… quando está acontecendo. ​ Graças a Deus por Viola Pontadarvy. ​ Um súbito pensamento ocorreu a Charlotte. ​ tudo isso tem alguma relaçăo com… sangrar todos os meses? ​ Năo sei. ​ Espero que tenha. Está tudo relacionado… todas as coisas de que as pessoas năo falam. Mas agora sabemos por que năo gostam de falar… é repulsivo. ​ A coisa que vocę tem de fazer na cama é chamada de intercurso sexual. Mas Viola diz que as pessoas vulgares chamam de fornicar. ​ Ela sabe de uma porçăo de coisas. ​ Viola tem irmăos. Eles contaram a ela há muitos anos. ​ E como eles descobriram? ​ Com os colegas mais velhos na escola. Os rapazes estăo sempre interessados nessas coisas. ​ É preciso ter uma fascinaçăo meio mórbida. Subitamente, Charlotte percebeu pelo espelho a aproximaçăo de Tia Clarissa. ​ O que vocęs duas estăo fazendo aí no canto? ​ perguntou a tia. Charlotte corou, mas aparentemente Tia Clarissa năo queria uma resposta, pois logo acrescentou: ​ Por favor, Belinda, trate de circular entre os convidados… é a sua festa.
Clarissa se afastou, e as duas moças passaram a vaguear pelas salas de recepçăo. Formavam um círculo, de maneira que se podia percorrer a todas e terminar onde se começara, ao pé da escada. Charlotte disse: ​ Acho que eu nunca teria coragem de fazer uma coisa dessas. ​ Năo poderia mesmo? ​ disse Belinda, com uma estranha expressăo. ​ Como assim? ​ Năo sei. Tenho pensado muito nisso. E estou achando que pode ser bastante agradável. Charlotte fitou-a fixamente. Belinda ficou embaraçada. ​ Preciso ir dançar um pouco ​ murmurou ela. ​ Vejo-a mais tarde. Ela desceu a escada. Charlotte ficou observando-a, imaginando quantos mais segredos chocantes a vida tinha a revelar. A jovem voltou ao salăo de jantar e serviu-se de outro copo de champanha. Era uma maneira muito esquisita de a raça humana perpetuar-se, pensou Charlotte. Calculou que os animais faziam alguma coisa parecida. E os pássaros? Năo, os pássaros punham ovos. E que palavra mais estranha! Fornicar… Todas aquelas centenas de pessoas elegantes e refinadas ao seu redor conheciam palavras assim, mas jamais as mencionavam. E como nunca eram mencionadas, tais palavras tornavam-se embaraçosas. E como eram embaraçosas, nunca eram mencionadas. Havia alguma coisa de absurdo em tudo aquilo. Se o Criador ordenara que as pessoas deviam fornicar, por que fingir que isso năo acontecia? Charlotte terminou de tomar o champanha e saiu para a pista de dança. O pai e a măe estavam dançando uma polca, até que muito bem. A măe superara o incidente no parque, mas o atentado ainda preocupava o pai. Ele estava muito bem de gravata branca e fraque. Năo costumava dançar quando a perna doía. Mas era evidente que a perna năo lhe estava causando nenhum problema naquela noite. Ele se mostrava surpreendentemente ágil para um homem tăo grande. E a măe parecia estar-se divertindo intensamente. Ela ficava radiante quando dançava. A reserva estudada habitual se desvanecia e ela sorria de satisfaçăo, deixando os tornozelos aparecerem. Quando a polca terminou, o pai viu Charlotte e aproximou-se. ​ Pode conceder-me a honra desta dança, Lady Charlotte? ​ Claro, milorde. Era uma valsa. O pai parecia distraído, mas girava eficientemente pela pista. Charlotte imaginava se ela própria estava tăo radiante quanto a măe. Provavelmente năo. De repente, ela pensou no pai e na măe fornicando, e descobriu que a idéia era terrivelmente constrangedora. ​ Está gostando do seu primeiro grande baile? ​ perguntou o pai. ​ Estou, sim. Obrigada. ​ Parece muito pensativa.
​ Estou no meu melhor comportamento. As luzes e cores brilhantes tornaram-se ligeiramente misturadas e Charlotte teve de concentrar-se em ficar de pé direito. Estava com medo de cair e parecer uma tola. O pai sentiu que ela estava meio trôpega e segurou-a mais firmemente. A dança terminou um momento depois. O pai levou-a para fora da pista, dizendo: ​ Está-se sentindo bem? ​ Estou agora. Mas senti uma vertigem súbita. ​ Andou fumando. Charlotte riu. ​ Claro que năo. ​ É o motivo habitual para as moças sentirem vertigens nos bailes. Aceite o meu conselho: quando quiser experimentar o tabaco, faça-o em particular. ​ Acho que năo quero experimentar. Charlotte ficou sentada durante a dança seguinte. Depois, Freddie tornou a aparecer. Enquanto dançava com ele, ocorreu a Charlotte que todos os rapazes e moças, inclusive ela e Freddie, deveriam estar procurando por esposas e maridos durante a temporada, especialmente em bailes como aquele. Pela primeira vez, pensou em Freddie como um possível marido para si mesma. Era inconcebível. Entăo que tipo de marido vou querer?, perguntou-se ela. Năo tinha a menor idéia. Freddie falou de repente: ​ Jonathan disse apenas: ​Freddie, esta é Charlotte.​ Mas imagino que vocę é chamada de Lady Charlotte Walden. ​ Isso mesmo. Quem é vocę? ​ Sou o Marquęs de Chalfont. Entăo somos socialmente compatíveis, pensou Charlotte. Pouco depois, ela e Freddie puseram-se a conversar com Belinda e os amigos dele. Falaram sobre uma nova peça chamada Pigmaliăo, que todos diziam ser extremamente engraçada, mas também muito vulgar. Os rapazes falaram em assistir a lutas de boxe, e Belinda comentou que também gostaria de ir, mas todos protestaram que isso seria simplesmente inadmissível. Discutiram música de jazz. Um dos rapazes era uma espécie de conhecedor, tendo vivido por algum tempo nos Estados Unidos. Mas Freddie năo gostava e preferia falar, um tanto pomposamente, sobre a ​negrificaçăo da sociedade​. Todos tomaram café e Belinda fumou outro cigarro. Charlotte estava começando a se divertir. Foi a măe de Charlotte quem apareceu de repente e dispersou o grupo.
​ Seu pai e eu estamos indo embora ​ disse ela. ​ Devemos mandar a carruagem buscá-la mais tarde? Charlotte percebeu que estava bastante cansada. ​ Năo precisa. Também vou embora. Que horas săo? ​ Quatro horas. Foram buscar os abrigos. A măe perguntou: ​ Divertiu-se muito? ​ Bastante. Obrigada, Mamăe. ​ Também me diverti. Quem eram aqueles rapazes? ​ Eles conhecem Jonathan. ​ Eram simpáticos? ​ A conversa ficou bastante interessante, no final. O pai já chamara a carruagem. Enquanto se afastavam das luzes feéricas da festa, Charlotte recordou o que acontecera na última vez em que haviam deixado uma festa de carruagem. Sentiu-se imediatamente assustada. O pai segurava a măo da măe. Eles pareciam felizes. Charlotte sentiu-se excluída. Olhou pela janela. Ŕ claridade do amanhecer, podia ver quatro homens de chapéu de seda andando por Park Lane, voltando para casa, talvez de algum nightclub. Quando a carruagem contornou Hyde Park Corner, Charlotte divisou alguma coisa estranha. ​ O que é aquilo? A măe olhou. ​ Aquilo o que, querida? ​ Na calçada. Parece que săo pessoas. ​ E săo mesmo. ​ O que estăo fazendo? ​ Dormindo. Charlotte ficou horrorizada. Havia oito ou dez pessoas, encostadas num muro, envoltas por casacos, mantas e jornais. Ela năo podia determinar se eram homens ou mulheres. Mas alguns dos volumes eram pequenos o bastante para serem crianças. ​ Por que essas pessoas dormem aqui?
​ Năo sei, querida ​ respondeu a măe. ​ Porque elas năo tęm outro lugar onde dormir ​ falou o pai. ​ Năo tęm casas? ​ Năo. ​ Eu năo sabia que havia alguém tăo pobre ​ murmurou Charlotte. ​ Que coisa horrível! Ela pensou em todos os cômodos da casa de Tio George, a comida servida para 800 pessoas, sendo que todas já haviam jantado, os vestidos requintados que eram mudados a cada temporada, enquanto havia pessoas que dormiam sob jornais. ​ Nós deveríamos fazer alguma coisa por essas pessoas ​ falou a jovem. ​ Nós? ​ disse o pai. ​ O que nós deveríamos fazer? ​ Construir casas para essas pessoas. ​ Para todas elas? ​ Quantas săo? O pai deu de ombros. ​ Milhares. ​ Milhares? Mas pensei que fossem apenas essas! ​ Charlotte estava arrasada. ​ Năo se poderiam construir casas pequenas? ​ Năo há lucro na construçăo de casas, especialmente desse tipo. ​ Talvez se devessem construir as casas assim mesmo. ​ Por quę? ​ Porque os fortes devem cuidar dos fracos. Ouvi quando disse isso ao Sr. Samson. Samson era o intendente de Walden Hall e estava sempre tentando poupar dinheiro nos consertos dos chalés dos rendeiros. ​ Já tomamos conta de uma porçăo de pessoas. Todos os criados cujos salários pagamos, todos os rendeiros que cultivam as nossas terras e vivem em nossos chalés, todos os trabalhadores nas companhias em que investimos, todos os empregados do governo que săo pagos com os nossos impostos… ​ Năo acho que isso seja uma desculpa ​ interrompeu Charlotte. ​ Aquelas pobres pessoas estăo dormindo na rua. O que văo fazer no inverno?
A măe disse, bruscamente: ​ Seu pai năo precisa de desculpas. Ele nasceu um aristocrata e tem administrado com cuidado as suas propriedades. Tem direito ŕ riqueza. Aquelas pessoas na calçada săo preguiçosas, criminosas, bębadas, imprestáveis. ​ Até mesmo as crianças? ​ Năo seja impertinente. Lembre-se de que ainda tem muita coisa a aprender. ​ E estou começando a perceber quanto… Enquanto a carruagem entrava no pátio da casa, Charlotte vislumbrou uma pessoa dormindo ao lado do portăo. Resolveu que daria uma olhada mais de perto. A carruagem parou junto da porta da frente. Charles ajudou a măe a descer e depois a Charlotte. A moça saiu correndo pelo pátio. William estava fechando o portăo. ​ Espere um instante! ​ gritou Charlotte. Ela ouviu o pai dizer: ​ Mas que diabo… A jovem saiu correndo para a rua. Era uma mulher que estava dormindo ao lado do portăo. Achava-se encolhida na calçada, os ombros encostados no muro do pátio. Usava botinas de homem, meias de lă, um casaco azul sujo e um chapéu muito grande, antiquado, com um ramo de flores artificiais na aba. A cabeça estava descaída para o lado, o rosto virado na direçăo de Charlotte. Havia algo de familiar no rosto redondo e a boca larga. A mulher era jovem… Charlotte gritou: ​ Annie! A mulher abriu os olhos. Charlotte fitava-a horrorizada. Dois meses antes, Annie era uma criada em Walden Hall, num uniforme engomado impecável, um chapeuzinho branco na cabeça, uma moça bonita, de seios grandes, um riso exuberante. ​ Annie, o que aconteceu com vocę? A mulher fez um esforço para se levantar, inclinou-se numa reveręncia patética. ​ Oh, Lady Charlotte, eu estava mesmo esperando tornar a vę-la. Sempre foi boa para mim. Eu năo tinha outro lugar para onde ir… ​ Mas como ficou assim?
​ Fui despedida, milady, sem uma carta de recomendaçăo, quando descobriram que estava esperando um bebę. Sei que agi errado… ​ Mas vocę năo é casada! ​ Estava namorando Jimmy, o ajudante de jardineiro… Charlotte recordou as revelaçőes de Belinda, e compreendeu que, se tudo era verdade, entăo era bem possível que as moças tivessem filhos sem serem casadas. ​ Onde está o bebę? ​ Perdi. ​ Perdeu? ​ Chegou cedo demais, milady. O bebę nasceu morto. ​ Mas que coisa horrível! ​ Era mais uma coisa que Charlotte năo sabia que era possível. ​ E por que Jimmy năo está com vocę? ​ Ele fugiu para o mar. Sei que ele me amava, mas estava amedrontado demais para se casar, tinha apenas dezessete anos… ​ Annie começou a chorar. Charlotte ouviu a voz do pai: ​ Volte aqui imediatamente, Charlotte! Virou-se para o pai. Ele estava parado no portăo, de traje a rigor, chapéu de seda na măo. Subitamente, Charlotte viu-o como um velho presunçoso e cruel. E disse: ​ Esta é uma das criadas de que vocę cuida tăo bem. O pai olhou para a moça. ​ Annie! Mas o que aconteceu? ​ Jimmy fugiu, milorde. Năo pude me casar e năo pude arrumar outro emprego, porque năo me deu uma carta de recomendaçăo. Estava envergonhada demais para voltar para casa. Por isso vim para Londres e… ​ Veio a Londres para mendigar ​ disse o pai, asperamente. ​ Papai! ​ gritou Charlotte. ​ Vocę năo compreende, Charlotte… ​ Compreendo perfeitamente… A măe apareceu e disse:
​ Afaste-se dessa criatura, Charlotte! ​ Năo é uma criatura qualquer, Mamăe. É Annie! ​ Annie! ​ gritou a măe, estridentemente. ​ Ela é uma mulher decaída! ​ Já chega ​ disse o pai. ​ Esta família năo mantém discussőes na rua. Vamos entrar imediatamente. Charlotte passou um braço pelos ombros de Annie. ​ Ela precisa de um banho, de roupas novas e uma refeiçăo quente. ​ Năo seja ridícula! ​ disse a măe. A visăo de Annie parecia tę-la deixado quase histérica. O pai interveio: ​ Está bem. Leve-a para a cozinha. As criadas já devem estar de pé. Diga-lhes para cuidarem dela. E depois vá falar comigo, na sala de estar. ​ Isso é um absurdo, Stephen… ​ protestou a măe. ​ Vamos entrar! Todos entraram. Charlotte levou Annie para a cozinha. Uma arrumadeira estava varrendo a cozinha e uma copeira cortava bacon para a primeira refeiçăo. Passava um pouco das cinco horas. Charlotte năo sabia que elas começavam a trabalhar tăo cedo. As duas criadas fitaram-na aturdidas quando ela entrou, em vestido de baile, com Annie a seu lado. ​ Esta é Annie ​ disse Charlotte. ​ Trabalhava em Walden Hall. Teve um pouco de azar, mas é uma boa moça. Precisa de um banho. Arrumem roupas limpas para ela e queimem estas. E depois sirvam alguma coisa para ela comer. Por um momento, as duas criadas continuaram tăo atônitas que năo reagiram. Mas, finalmente, a copeira balbuciou: ​ Está bem, milady. ​ Eu a verei mais tarde, Annie ​ disse Charlotte. Annie pegou o braço de Charlotte. ​ Muito obrigada, milady. Charlotte saiu. Agora vai haver encrenca, pensou ela, enquanto subia a escada. Năo se importava tanto quanto deveria. Tinha a sensaçăo de que os pais a haviam traído. De que valiam tantos anos de educaçăo,
quando numa única noite descobria que năo lhe haviam sido ensinadas as coisas mais importantes? Claro que falavam em resguardar as moças, mas Charlotte pensava que seria mais apropriado falar em embuste. Quando pensava como fora ignorante até aquela noite, sentia-se extremamente tola. E isso a deixava furiosa. Entrou na sala de estar. O pai achava-se de pé ao lado da lareira, segurando um copo. A măe estava sentada ao piano, tocando alguns acordes, com uma expressăo angustiada. Haviam aberto as cortinas. A sala parecia estranha pela manhă, com as pontas dos charutos do dia anterior nos cinzeiros, a luz fria do amanhecer definindo todas as coisas. Era uma sala para ser usada ŕ noite, com luz artificial, calor, bebidas e lacaios, muitas pessoas, em trajes formais. Tudo parecia diferente naquele dia. ​ E agora vamos conversar, Charlotte ​ disse o pai. ​ Vocę năo compreende que tipo de mulher Annie é. Nós a despedimos por um motivo. Ela fez uma coisa muito errada que năo posso explicar… ​ Sei o que Annie fez ​ falou Charlotte, sentando-se. ​ E sei com quem ela fez. Um ajudante de jardineiro chamado Jimmy. A măe soltou uma exclamaçăo de espanto. O pai disse: ​ Năo acredito que vocę tenha a menor idéia do que está falando. ​ E se eu năo tiver, de quem é a culpa? ​ explodiu Charlotte. ​ Como consegui chegar aos dezoito anos de idade sem saber que algumas pessoas săo tăo pobres que dormem na rua, que criadas que estăo esperando bebęs săo despedidas e que… que os homens năo săo iguais ŕs mulheres? Năo fique me dizendo que năo compreendo essas coisas e que ainda tenho muito o que aprender! Passei a vida inteira aprendendo, e agora descubro que a maioria era mentira! Como puderam fazer uma coisa dessas comigo? Ela desatou a chorar, odiando a si mesma por perder o controle. Ouviu a măe dizer: ​ Mas isso é um absurdo! O pai sentou-se ao lado dela e pegou-lhe a măo. ​ Lamento que vocę se sinta assim, Charlotte. Todas as moças săo mantidas na ignorância de determinadas coisas. E isso é feito para o próprio bem delas. Nunca mentimos para vocę. Se năo lhe contamos como o mundo é cruel e brutal, foi apenas porque queríamos que desfrutasse sua infância ao máximo possível. Talvez tenhamos cometido um erro. ​ Queríamos evitar que passasse pelo mesmo problema que Annie teve! ​ falou a măe, bruscamente. ​ Eu năo poria a questăo sob esse ângulo ​ disse o pai, suavemente. A raiva de Charlotte se desvaneceu. Sentia-se novamente como uma criança. Tinha vontade de encostar a cabeça no ombro do pai, mas o orgulho năo lhe permitia.
​ Vamo-nos perdoar mutuamente e ser amigos outra vez? ​ propôs o pai. Uma idéia que se estava formando na mente de Charlotte desabrochou agora, e ela disse sem pensar: ​ Posso ficar com Annie como minha criada pessoal? ​ Bem… ​ murmurou o pai. ​ Năo vamos nem pensar nisso! ​ gritou a măe, histericamente. ​ E inteiramente impossível! É inconcebível que uma moça de dezoito anos, a filha de um conde, tenha uma prostituta como criada! Năo, absolutamente năo, decididamente năo! ​ Entăo o que ela vai fazer? ​ perguntou Charlotte, calmamente. ​ Ela deveria ter pensado nisso quando… Ela deveria ter pensado nisso antes. ​ Charlotte, năo podemos ter uma mulher de caráter infame vivendo nesta casa ​ disse o pai. ​ Mesmo que eu permitisse, os criados ficariam escandalizados. E metade iria embora. Já vamos ouvir comentários só porque permitimos que a moça entrasse na cozinha. Năo somos apenas sua măe e eu que repelimos as pessoas, mas toda a sociedade… ​ Entăo vou comprar uma casa para ela ​ declarou Charlotte. ​ E vou-lhe dar uma mesada e ser sua amiga. ​ Vocę năo tem dinheiro ​ disse a măe. ​ Meu avô russo me deixou algum dinheiro. ​ Mas o dinheiro está sob a minha guarda até vocę completar vinte e um anos ​ disse o pai. ​ E năo permitirei que seja usado para esse propósito. ​ Entăo, o que vai ser feito dela? ​ indagou Charlotte, desesperada. ​ Farei um acordo com vocę ​ propôs o pai. ​ Eu darei dinheiro a ela para arrumar alojamentos decentes e lhe arrumarei emprego numa fábrica. ​ E qual seria a minha parte no acordo? ​ Deve prometer que nunca mais tentará entrar em contato com ela. Charlotte sentia-se muito cansada. O pai tinha todas as respostas. Ela năo podia mais continuar a discutir e năo tinha capacidade de insistir. Acabou suspirando. ​ Está bem. ​ Boa menina. Sugiro agora que vá falar com Annie, informe o que será feito por ela e depois diga adeus. ​ Năo sei se poderei fitá-la nos olhos.
O pai afagou-lhe a măo. ​ Vai ver como ela ficará profundamente grata. Vá-se deitar depois de falar com ela. Eu cuidarei dos detalhes. Charlotte năo sabia se ganhara ou perdera, se o pai estava sendo cruel ou generoso, se Annie deveria sentir-se salva ou desprezada. ​ Está certo ​ murmurou ela, extenuada. Ela queria dizer ao pai que o amava, mas as palavras năo saíram. Depois de um momento, levantou-se e saiu da sala.
 
No dia seguinte ao fracasso, Feliks foi despertado ao meio-dia por Bridget. Ele se sentia muito fraco. Bridget achava-se parada ao lado da cama, com uma xícara grande na măo. Feliks sentou-se e pegou a xícara. O caldo estava delicioso. Parecia consistir de leite quente, açúcar, manteiga derretida e pedaços de păo. Enquanto ele bebia, Bridget movimentava-se pelo quarto, arrumando as coisas, entoando uma cançăo sentimental a respeito de rapazes que davam a vida pela Irlanda. Ela se retirou e voltou pouco depois com outra irlandesa, de sua idade, que era enfermeira. A mulher deu alguns pontos na măo de Feliks e fez um curativo no ferimento do ombro. Feliks calculou pela conversa que ela era a aborteira local. Bridget contou ŕ enfermeira que Feliks estivera envolvido numa briga num pub. A enfermeira cobrou um xelim pela visita e disse: ​ Vocę năo vai morrer. Se se tivesse cuidado imediatamente, nem mesmo sangraria tanto. Mas agora vai-se sentir fraco por alguns dias. Depois que ela se foi, Bridget continuou no quarto, conversando. Era uma mulher corpulenta, jovial, beirando os 60 anos. O marido se metera em alguma encrenca na Irlanda e haviam fugido para o anonimato de Londres, onde ele acabara morrendo de tanto beber. Ela tinha dois filhos, que eram da polícia em Nova York, e uma filha, que trabalhava em Belfast. Havia uma veia de amargura nela, que transparecia em ocasionais comentários sarcasticamente divertidos, geralmente ŕ custa dos ingleses. Enquanto ela explicava por que a Irlanda devia ter autonomia política, Feliks caiu no sono. Ela o acordou ao cair da noite, servindo-lhe uma sopa quente. Os ferimentos físicos começaram a sarar visivelmente no dia seguinte. Feliks passou a sentir entăo a dor dos ferimentos emocionais. Todo o desespero e autocensura que experimentara no parque, enquanto fugia, voltaram agora. Ele fugira! Como isso poderia ter acontecido? Lydia. Ela era agora Lady Walden. Sentiu-se nauseado. Fez um esforço para pensar clara e friamente. Soubera que ela se casara e fora para a Inglaterra.
Obviamente o homem com quem ela casara só podia ser um aristocrata, um homem com um forte interesse na Rússia. Igualmente óbvio, o homem a negociar com Orlov tinha de ser um membro do establishment e um especialista em assuntos russos. Eu năo teria adivinhado que fosse o mesmo homem, pensou Feliks, mas deveria ter compreendido a possibilidade. A coincidęncia năo era tăo extraordinária quanto parecera, mas nem por isso era menos destrutiva. Por duas vezes em sua vida, Feliks fora total, cega e delirantemente feliz. Na primeira ocasiăo tinha quatro anos de idade, antes de sua măe morrer, e ganhara uma bola vermelha. A segunda ocorrera quando Lydia se apaixonara por ele. Mas a bola vermelha nunca lhe fora tomada. Ele năo podia imaginar uma felicidade maior do que aquela que experimentara com Lydia. Năo houvera tais altos e baixos na vida emocional de Feliks desde entăo. Depois que ela fora embora, ele começara a vaguear pelos campos russos, vestido como um monge e pregando o evangelho anarquista. Dizia aos camponeses que a terra lhes pertencia, pois eram eles que a cultivavam; que a madeira na floresta pertencia a quem quer que derrubasse uma árvore; que ninguém tinha o direito de governá-los senăo eles próprios; e como o autogoverno năo era governo, era chamado de anarquia. Ele era um pregador maravilhoso, e fez muitos amigos. Mas nunca mais tornara a se apaixonar e esperava que isso jamais acontecesse. A fase de pregaçăo terminara em 1899, durante a greve estudantil nacional, quando ele fora preso como agitador e enviado para a Sibéria. Os anos de andanças haviam-no imunizado contra o frio, a fome e a dor. Agora, no entanto, trabalhando preso a uma corrente, usando ferramentas de madeira para extrair ouro de uma mina, continuando em atividade mesmo depois que o homem acorrentado a seu lado já caíra morto, vendo crianças e mulheres serem açoitadas, ele passara a conhecer as trevas, amargura, desespero e finalmente o ódio. Na Sibéria, aprendera todos os aspectos da vida: roubar ou passar fome, esconderse ou ser espancado, lutar ou morrer. Adquirira astúcia e brutalidade. Aprendera a suprema verdade sobre a opressăo: que funciona quando se joga as suas vítimas umas contra as outras, ao invés de investirem contra os opressores. Ele fugira e iniciara a longa viagem para a loucura, que terminara quando matara o guarda, nos arredores de Omsk, e compreendera que năo mais sentia medo. Voltara ŕ civilizaçăo como um revolucionário vigoroso e implacável. Parecia-lhe incrível que outrora sentisse escrúpulos em lançar bombas contra os nobres que mantinham as minas siberianas de condenados. Sentia-se enfurecido pelos pogroms inspirados pelo governo no oeste e sul da Rússia. Ficara consternado com as brigas entre bolcheviques e mencheviques no segundo Congresso do Partido Social Democrata. Era inspirado pela revista que vinha de Genebra, chamada Păo e Liberdade, com a citaçăo de Bakunin no cabeçalho: ​O impulso de destruir é também um impulso criativo.​ Finalmente, odiando o governo, desencantado com os socialistas e convencido pelos anarquistas, fora para uma cidade industrial chamada Bialystock e ali fundara um grupo revolucionário que recebeu o nome de Luta. Haviam sido os anos de glória. Jamais esqueceria o jovem Nisan Farber, que esfaqueara o dono de uma fundiçăo diante da sinagoga no Dia da Expiaçăo. O próprio Feliks atirara no chefe de polícia. Depois, ele levara a Luta para Săo Petersburgo, onde fundara outro grupo anarquista, Os Desautorizados, planejando o assassinato bem-sucedido do Grăo-Duque Sierguei. Naquele ano, 1905, houvera em Săo Petersburgo muitos assassinatos políticos, assaltos a bancos, greves, distúrbios. A revoluçăo parecia ser iminente. E depois viera a repressăo… mais intensa, mais eficiente e muito mais sangrenta do que os revolucionários jamais haviam sido. A polícia secreta aparecia no meio da noite nas casas dos
Desautorizados. Todos foram presos, ŕ exceçăo de Feliks, que matara um guarda e aleijara outro, escapando para a Suíça. Ŕquela altura, ninguém poderia detę-lo, pois estava totalmente determinado, era um homem poderoso, furioso e implacável. Em todos aqueles anos e mesmo nos anos tranqüilos na Suíça que se seguiram ele nunca amara ninguém. Houvera pessoas de quem passara a gostar um pouco… um guardador de porcos na Geórgia, um velho judeu que fabricava bombas em Vialystock, Ulrich em Genebra… mas todos tendiam a entrar e sair de sua vida. Houvera mulheres também. Muitas mulheres percebiam sua natureza violenta e afastavam-se dele. Mas aquelas que o achavam atraente achavam-no irresistivelmente atraente. Ele cedera ŕ tentaçăo algumas vezes e sempre ficara mais ou menos desapontado. Os pais estavam mortos e năo via a irmă há mais de 20 anos. Olhando para trás, podia perceber que sua vida, desde Lydia, fora um lento escorregar para a anestesia. Sobrevivera por se tornar cada vez menos sensível, através das experięncias da prisăo, tortura, grilhőes, a longa e brutal fuga da Sibéria. Năo mais se importava sequer consigo mesmo. E chegara ŕ conclusăo de que era esse o significado da ausęncia de medo, pois só se podia ter medo por causa de alguma coisa com que se importava. Ele gostava que fosse assim. Seu amor năo era pelas pessoas, mas sim pelo povo. Sua compaixăo era pelos camponeses famintos em geral, as crianças doentes, soldados apavorados e mineiros aleijados. Năo odiava a ninguém em particular, apenas todos os príncipes, todos os donos de terras, todos os capitalistas e todos os generais. Renunciando ŕ sua personalidade por uma causa maior, ele sabia que era como um sacerdote, mais especificamente como um sacerdote em particular: seu próprio pai. Năo mais se sentia diminuído por essa comparaçăo. Respeitava o desprendimento do pai, mas desprezava a causa que ele servira. Ele, Feliks, escolhera a causa certa. Sua vida năo seria desperdiçada. Era esse o Feliks que se formara ao longo dos anos, enquanto a personalidade amadurecida emergia da inconsistęncia da juventude. O mais terrível no grito de Lydia, pensava ele, era que o recordava de que poderia ter existido um Feliks diferente, um homem afetuoso e apaixonado, um homem sensual, um homem capaz de ciúme, ganância, vaidade e medo. Será que eu preferiria ser esse homem?, perguntou a si mesmo. Esse homem passaria muito tempo a contemplar os imensos olhos castanhos de Lydia, a acariciar seus cabelos louros, a vę-la desatar em risadas enquanto tentava aprender a assoviar, a discutir Tolstoi com ela, a comer junto com ela păo preto e arenques defumados, a observá-la franzir o rosto ao experimentar o primeiro gole de vodca. Esse homem seria alegre. E seria também preocupado. Ficaria perguntando-se se Lydia era feliz. Hesitaria em puxar o gatilho com medo de que ela pudesse ser atingida por um ricochete. Podia ficar relutante em matar o sobrinho dela, pois ela poderia gostar do rapaz. Esse homem seria um revolucionário medíocre. Năo, pensou ele, ao ir dormir naquela noite; eu năo gostaria de ser esse homem. Ele nem mesmo é perigoso. Durante a noite, sonhou que atirara em Lydia; mas quando acordou, năo pôde lembrar se isso o deixara triste. Ele saiu no terceiro dia. Bridget deu-lhe uma camisa e um casaco que haviam pertencido a seu marido. Năo se ajustavam direito, pois ele fora mais baixo e mais largo. A calça e os sapatos de Feliks ainda
estavam em condiçőes de ser usados, e Bridget lavara todo o sangue que neles ficara. Ele consertou a bicicleta, que ficara avariada quando a largara nos degraus. Endireitou um pedal entortado, remendou um pneu furado e grudou o couro do selim. Montou na bicicleta e pedalou por alguma distância. Mas logo compreendeu que năo estava forte o bastante para ir muito longe. Passou a andar. Era um glorioso dia de sol. Numa barraca de roupas de segunda măo, em Mornington Crescent, deu meio pęni e o casaco do marido de Bridget por um casaco mais leve, que se ajustava melhor a seu corpo. Sentia-se estranhamente feliz, andando pelas ruas de Londres num dia de verăo. Năo tenho motivo para estar feliz, pensou ele; meu plano de assassinato, tăo hábil, bem organizado e ousado, malogrou porque uma mulher gritou e um homem de meia-idade sacou uma espada. Que coisa lamentável! Concluiu que fora Bridget quem o reanimara. Ela compreendera que ele estava metido numa encrenca e o ajudara sem pensar duas vezes. E isso fę-lo lembrar-se da generosidade do povo em cujo nome disparava revólveres, arremessava bombas e era cortado por uma espada. Isso lhe proporcionou forças. Foi até o Parque St. James e ocupou o posto já familiar, diante da casa dos Waldens. Observou a alvenaria branca e as janelas altas e elegantes. Pode derrubar-me, pensou ele, mas năo me pode liquidar; se soubesse que estou aqui novamente, haveria de tremer em seus sapatos de couro envernizado. Acomodou-se para vigiar. O problema com um fracasso era que deixava a vítima em potencial de sobreaviso. Agora, seria muito mais difícil matar Orlov, porque ele estaria tomando precauçőes. Mas Feliks descobriria quais eram essas precauçőes e daria um jeito de contorná-las. A carruagem saiu ŕs 11 horas, e Feliks teve a impressăo de divisar por detrás do vidro uma barba pontuda e uma cartola: Walden. A carruagem voltou ŕ uma hora da tarde. Tornou a sair ŕs tręs horas, desta vez com um chapéu feminino, pertencendo presumivelmente a Lydia. Ou talvez ŕ filha. Quem quer que fosse, voltou ŕs cinco horas. Ŕ noite, apareceram diversos convidados, e a família aparentemente jantou em casa. Năo havia o menor sinal de Orlov. Parecia que ele deixara a casa. Mas hei de encontrá-lo, pensou Feliks. Ele comprou um jornal na volta para Camden Town. Bridget ofereceu-lhe chá, quando ele chegou em casa. Assim, leu o jornal na sala dela. Năo havia qualquer notícia a respeito de Orlov no noticiário da corte ou nas colunas sociais. Bridget viu o que ele estava lendo e comentou sarcasticamente: ​ Tenho certeza de que vai acabar escolhendo o baile a que vai comparecer esta noite. Feliks sorriu e năo disse nada. Bridget acrescentou: ​ Sei quem é vocę. É um anarquista. Feliks ficou completamente imóvel. ​ A quem vocę vai matar? Espero que seja o maldito Rei. ​ Ela tomou o chá, ruidosamente. ​ Năo fique me olhando desse jeito. Parece que está prestes a me cortar a garganta. Mas năo precisa preocupar-se. Năo vou contar a ninguém. Meu marido morreu por alguns ingleses.
Feliks estava aturdido. Ela adivinhara… e aprovara! Ele năo sabia o que dizer. Levantou-se, dobrando o jornal. ​ Vocę é uma boa mulher. ​ Eu o beijaria se tivesse vinte anos menos. Saia daqui antes que eu me esqueça da minha idade. ​ Obrigado pelo chá. Feliks saiu e passou o resto da noite no quarto miserável do porăo, olhando para a parede, pensando. É claro que Orlov estava escondido. Mas onde? Se năo estava na casa de Walden, poderia estar na embaixada russa, na casa de um funcionário da Embaixada, num hotel ou na casa dos amigos de Walden. Poderia até estar fora de Londres, numa casa no campo. Năo havia possibilidade de conferir todas as possibilidades. Năo ia ser fácil. Começou a se preocupar. Pensou em seguir Walden por toda parte. Talvez fosse a melhor perspectiva, mas era insatisfatória. Era possível para uma bicicleta acompanhar uma carruagem em Londres, mas podia ser extenuante para o ciclista. Feliks sabia que năo seria capaz de fazer isso por vários dias. Vamos supor que, ao longo de um período de tręs dias, Walden visitasse diversas casas particulares, dois ou tręs escritórios, um ou dois hotéis e uma embaixada… como Feliks descobriria em qual desses prédios Orlov estava? Era possível, mas levaria tempo. Enquanto isso, as negociaçőes estariam progredindo e a guerra se aproximando. E se, depois de tudo isso, Orlov ainda estivesse na casa de Walden, tendo simplesmente decidido năo mais sair? Feliks foi dormir pensando no problema e despertou pela manhă com a soluçăo. Perguntaria a Lydia. Ele engraxou as botinas, lavou os cabelos, fez a barba. Pediu emprestado a Bridget um cachecol branco de algodăo, enrolando-o no pescoço para esconder o fato de que năo tinha colarinho nem gravata. Na barraca de roupas de segunda măo de Mornington Crescent comprou um chapéu-coco que se ajustava ŕ sua cabeça. Contemplou-se no espelho rachado da barraca. Parecia perigosamente respeitável. Seguiu em frente. Năo tinha a menor idéia de como Lydia reagiria ŕ sua presença. Estava convencido de que ela năo o reconhecera na noite do fracasso. O rosto dele estava coberto e o grito de Lydia fora uma reaçăo ŕ presença de um desconhecido mascarado com um revólver. Presumindo que conseguiria vę-la, o que ela faria? Iria expulsá-lo? Começaria a arrancar as roupas imediatamente, como costumava fazer antes? Ou se mostraria indiferente, pensando nele como alguém que conhecera na juventude e com quem năo mais se importava? Ele queria que Lydia ficasse chocada e aturdida, que ainda estivesse apaixonada, a fim de poder obrigá-la a revelar um segredo.
Subitamente, Feliks năo podia lembrar como ela parecia. O que era muito estranho. Sabia que ela tinha uma determinada altura, năo era gorda nem magra, cabelos claros, olhos castanhos. Mas năo conseguia visualizar uma imagem dela. Se por acaso se concentrasse no nariz, podia vę-lo. Ou podia visualizá-lo vagamente, sem contornos definidos, ŕ luz difusa de um final de tarde em Săo Petersburgo. Mas quando tentava focalizar, ela se desvanecia. Chegou ao parque e hesitou, diante da casa. Eram 10 horas da manhă. Será que os moradores já estariam de pé? De qualquer forma, ele achava que deveria esperar até que Walden saísse de casa. Ocorreu-lhe que poderia até mesmo encontrar-se com Orlov no vestíbulo… numa ocasiăo em que năo tinha qualquer arma. Se isso acontecer, vou estrangulá-lo com as minhas măos, pensou Feliks, selvagemente. Imaginou o que Lydia estaria fazendo naquele momento. Poderia estar-se vestindo. Isso mesmo, pensou ele. Posso imaginá-la num robe, escovando os cabelos, diante de um espelho. Ou poderia estar fazendo a primeira refeiçăo. Haveria ovos, carne e peixe, mas ela comeria apenas um păozinho e uma fatia de maçă. A carruagem apareceu na entrada. Alguém embarcou um ou dois minutos depois. A carruagem encaminhou-se para o portăo. Feliks estava parado no outro lado da rua, quando a carruagem emergiu. Subitamente, ele estava olhando diretamente para Walden, por trás da janela da carruagem. E Walden olhava para ele. Feliks teve um impulso de gritar: ​Ei, Walden, eu a fodi primeiro!​ Em vez disso, sorriu e tirou o chapéu. Walden inclinou a cabeça em resposta, e a carruagem passou. Feliks se perguntou por que estava tăo exultante. Ele passou pelo portăo e atravessou o pátio. Viu que havia flores em todas as janelas da casa e pensou: Ela sempre adorou flores. Subiu os degraus para a varanda e tocou a campainha. Talvez ela chame a polícia, pensou ele. Um momento depois, um criado abriu a porta. Feliks entrou, dizendo: ​ Bom-dia. ​ Bom-dia, senhor. Entăo, estou mesmo parecendo respeitável. ​ Eu gostaria de falar com a Condessa de Walden. É uma questăo de extrema urgęncia. Meu nome é Konstantin Dmitrich Levin. Tenho certeza de que ela se lembrará de mim, de Săo Petersburgo. ​ Pois năo, senhor. Konstantin…? ​ Konstantin Dmitrich Levin. Deixe-me dar meu cartăo. ​ Feliks tateou o casaco. ​ Ora, năo trouxe nenhum! ​ Năo há problema, senhor. Konstantin Dmitrich Levin.
​ Isso mesmo. ​ Se quiser fazer a gentileza de esperar aqui por um momento, vou verificar se a Condessa está. Feliks assentiu, e o criado retirou-se.
SEIS
A escrivaninha-estante Rainha Anne era uma das peças prediletas de Lydia na casa em Londres. Com 200 anos de idade, era laqueada em preto, decorada em ouro, com cenas vagamente chinesas, de pagodes, salgueiros, ilhas e flores. A parte da frente dobrava para baixo, formando uma mesa para escrever e revelando compartimentos para cartas e pequenas gavetas para papel e penas. Havia gavetas grandes por baixo; no alto, por cima do nível de seus olhos, enquanto estava sentada ŕ mesa, havia uma estante, com uma porta espelhada. O espelho antigo mostrava uma imagem nebulosa e distorcida da sala por trás dela. Na mesa de escrever estava uma carta inacabada para sua irmă, a măe de Aleks, em Săo Petersburgo. A letra de Lydia era pequena e descuidada. Ela escrevera, em russo: Năo sei o que pensar em relaçăo a Charlotte. Parara por aí. E estava sentada, olhando para o espelho nebuloso, pensando. A temporada estava-se tornando bastante movimentada e da pior maneira possível. Depois do protesto sufragista na corte e do louco no parque, Lydia pensara que năo poderia haver mais catástrofes. Por alguns dias, a vida se mantivera calma. Charlotte estava lançada na sociedade com pleno sucesso. Aleks năo se achava mais por perto para perturbar a serenidade de Lydia. Fora refugiar-se no Hotel Savoy e năo comparecia aos eventos sociais. O baile de Belinda havia sido um grande sucesso. Lydia esquecera os seus problemas naquela noite e se divertira imensamente. Dançara a valsa, a polca, o tango, até mesmo o turkey trot. Dançara com metade da Câmara dos Lordes, com muitos jovens aprumados e, principalmente, com seu marido. Năo era realmente chique dançar com o próprio marido tantas vezes, como ela fizera. Mas Stephen estava tăo bem de gravata branca e fraque e dançava tăo bem que ela se entregara ao prazer. Seu casamento estava realmente numa das fases mais felizes. Olhando para o passado, ela tinha a impressăo de que era quase sempre assim, durante a temporada. E depois Annie aparecera para estragar tudo. Lydia tinha apenas uma vaga recordaçăo de Annie como criada em Walden Hall. Năo se podia conhecer direito todos os criados de uma casa tăo grande. Havia cerca de 50 criados só na casa, além dos jardineiros e cavalariços. E ela também năo era conhecida por todos os criados. Numa ocasiăo famosa, Lydia detivera uma criada que passava pelo corredor e perguntara se Lorde Walden estava em seus aposentos. E recebera a seguinte resposta: ​ Vou verificar, Madame. A quem devo anunciar? Mas Lydia lembrava-se nitidamente do dia em que a Sra. Braithwaite, a governanta em Walden Hall, fora procurá-la com a notícia de que Annie teria de ir embora porque estava grávida. A Sra. Braithwaite năo dissera ​grávida​, mas sim que Annie ​cometera uma transgressăo moral​. Tanto Lydia como a Sra. Braithwaite estavam embaraçadas, mas nenhuma das duas ficara chocada. Já acontecera com outras criadas antes e tornaria a acontecer. Elas tinham de ser despedidas… era a única maneira de dirigir uma casa respeitável… e é claro que năo poderiam receber referęncias, em tais circunstâncias. Sem isso, uma criada năo conseguiria obter outro emprego. Mas normalmente ela năo precisava de um emprego, pois casava com o pai da criança ou entăo voltava para a casa da măe. E anos depois, quando seus filhos estivessem criados, ela poderia até voltar ŕ casa, para trabalhar na lavanderia ou na cozinha, em qualquer lugar que năo a pusesse em contato direto com os patrőes. Lydia presumira que a vida de Annie seguiria esse curso. Recordava-se de que um jovem ajudante de jardineiro deixara Walden Hall sem dar aviso prévio e fugira para o mar. Soubera disso por causa da dificuldade de encontrar rapazes para trabalhar como jardineiros, a salários razoáveis. Mas é claro que ninguém lhe dissera que havia uma ligaçăo entre Annie e o rapaz.
Năo somos tăo terríveis assim, pensou Lydia; como patrőes, somos relativamente generosos. Mas Charlotte reagiu como se o apuro de Annie fosse culpa minha. Năo sei de onde ela tira suas idéias. O que foi mesmo que ela disse? ​Sei o que Annie fez e sei com quem ela fez.​ Por Deus, onde a criança aprendeu a falar assim? Dediquei minha vida inteira a ensiná-la a ser pura, limpa e decente, năo como eu, nem pense nisso…. Mergulhou a pena no tinteiro. Gostaria de partilhar as preocupaçőes com a irmă, mas era difícil fazęlo numa carta. E mesmo pessoalmente também era muito difícil, pensou ela. Charlotte era a pessoa com quem queria realmente partilhar seus pensamentos. Mas por que me torno estridente e tirânica quando tento? Pritchard entrou na sala nesse momento ​ Um certo Sr. Konstantin Dmitrich Levin deseja vę-la, milady. Lydia franziu o rosto. ​ Acho que năo o conheço. ​ O cavalheiro disse que era uma questăo de urgęncia, milady. E parecia pensar que se lembraria dele de Săo Petersburgo. Pritchard mostrava-se visivelmente desconfiado. Lydia hesitou. O nome era nitidamente familiar. De vez em quando, russos que mal conhecia a visitavam em Londres. Geralmente começavam por se oferecer a levar mensagens de volta a Săo Petersburgo e quase sempre terminavam pedindo dinheiro emprestado para a passagem. Lydia năo se importava de ajudá-los. ​ Está bem ​ disse ela. ​ Pode fazę-lo entrar. Pritchard saiu. Lydia tornou a mergulhar a pena no tinteiro e escreveu: O que se pode fazer quando a criança tem 18 anos e possui uma vontade própria? Stephen diz que eu me preocupo demais. Eu gostaria… Năo posso nem mesmo conversar direito com Stephen, pensou ela. Ele se limita a murmurar palavras apaziguadoras. A porta se abriu e Pritchard anunciou: ​ O Sr. Konstantin Dmitrich Levin. Lydia disse em inglęs: ​ Já vou falar-lhe dentro de um momento, Sr. Levin. Ela ouviu o mordomo fechar a porta, enquanto escrevia:… de poder acreditar nele. Ela largou a pena e virou-se. O homem falou em russo: ​ Como vai, Lydia? ​ Santo Deus! ​ balbuciou ela. Era como se algo gelado e pesado lhe envolvesse o coraçăo, impedindo-a de respirar. Feliks estava parado diante dela: alto e magro como sempre, num casaco puído, um cachecol a lhe envolver o pescoço,
um ridículo chapéu inglęs na măo esquerda. Era tăo familiar como se ela o tivesse visto no dia anterior. Lá estava a pele branca, o nariz como uma lâmina curva, a boca larga, os olhos suaves e tristes. ​ Lamento chocá-la assim, Lydia. Ela năo podia falar. Estava dominada por um turbilhăo de emoçőes: choque, medo, horror, afeiçăo, apreensăo. Fitava-o fixamente. Ele estava mais velho. O rosto achava-se vincado. Havia dois vincos profundos nas faces e rugas viradas para baixo nos cantos da boca adorável. Pareciam linhas de angústia e sofrimento. Havia na expressăo a insinuaçăo de alguma coisa que lá năo existia antes… talvez crueldade, talvez brutalidade, talvez apenas determinaçăo. Ele parecia cansado. E a estava estudando. ​ Parece uma menina, Lydia. Ela desviou os olhos. Seu coraçăo batia como um tambor. O temor tornou-se o sentimento predominante. Se Stephen voltasse mais cedo, pensou ela, entrasse aqui neste momento, me lançasse o olhar de ​Quem é esse homem?​, se eu corasse, balbuciasse e… ​ Eu gostaria que dissesse alguma coisa ​ acrescentou Feliks. Os olhos de Lydia voltaram a se fixar nele. Com um grande esforço, ela disse: ​ Vá embora. ​ Năo. Subitamente, ela compreendeu que năo tinha força de vontade suficiente para fazę-lo ir embora. Olhou para a campainha que chamaria Pritchard. Feliks sorriu, como se soubesse o que havia na mente dela. ​ Já se passaram dezenove anos ​ murmurou ele. ​ Vocę envelheceu ​ disse Lydia, abruptamente. ​ E vocę mudou. ​ O que esperava? ​ Esperava isto. Que vocę ficaria com medo de admitir para si mesma que está feliz por me ver. Ele sempre fora capaz de ver a alma dela com seus olhos suaves. De que adiantava fingir? Ele sabia de tudo a respeito de fingimento, lembrou Lydia. Compreendera como ela era desde o momento em que a vira pela primeira vez. ​ E entăo, Lydia? Năo está feliz? ​ Estou também assustada. ​ Compreendeu que tinha de admitir que estava feliz. ​ E vocę? Como se sente? ​ Năo sinto mais qualquer coisa.
O rosto dele contraiu-se num estranho sorriso de angústia. Era uma expressăo que ela nunca vira nos tempos antigos. Sentiu intuitivamente que Feliks lhe estava dizendo a verdade naquele momento. Puxou uma cadeira e sentou-se perto dela. Lydia sacudiu-se para trás, convulsivamente. ​ Năo vou machucá-la, Lydia… ​ Machucar-me? ​ Ela soltou uma risada, que parecia inesperadamente insegura. ​ Vocę vai arruinar a minha vida! ​ Vocę arruinou a minha. ​ Feliks franziu o rosto, como se tivesse surpreendido a si mesmo. ​ Oh, Feliks, eu năo queria isso! Ele ficou subitamente tenso. Houve um silęncio opressivo. Feliks tornou a exibir o sorriso magoado e indagou: ​ O que aconteceu? Ela hesitou. Compreendeu que, por todos aqueles anos, estivera ansiosa em explicar-lhe tudo. E começou: ​ Naquela noite em que vocę rasgou meu vestido…
 
​ O que vai fazer com esse rasgăo no vestido? ​ perguntou Feliks. ​ A criada pode passar uma linha antes de eu chegar ŕ embaixada ​ respondeu Lydia. ​ Sua criada sempre leva agulhas e linhas? ​ Por que acha que alguém leva sua criada pessoal, quando sai para jantar fora? ​ Por quę? Ele estava deitado na cama, observando-a vestir-se. Lydia sabia que ele adorava vę-la vestir-se. E certa ocasiăo fizera uma imitaçăo dela pondo os calçőes que a deixara doída de tanto rir. Ela tirou o vestido da măo dele e vestiu-o. ​ Todas as mulheres levam pelo menos uma hora para se vestir para uma festa ​ disse ela. ​ Até conhecęlo, eu năo sabia que se podia fazer em cinco minutos. Abotoe-me. Olhou-se no espelho e ajeitou os cabelos, enquanto Feliks prendia os ganchos atrás do vestido. Ao terminar, ele beijou-a no ombro. Lydia encolheu o pescoço, murmurando: ​ Năo comece de novo… Ela pegou o velho manto marrom e entregou-o a Feliks. Ajudou-a a vesti-lo, dizendo:
​ As luzes se apagam, quando vocę vai embora. Lydia ficou comovida. Năo era sempre que ele se mostrava sentimental. ​ Sei como vocę se sente, Feliks. ​ Voltará amanhă? ​ Voltarei. Na porta, ela o beijou e disse: ​ Obrigada. ​ Eu a amo muito, Lydia. Ela partiu. Ao descer a escada, ouviu um barulho por trás dela e virou a cabeça para olhar. O vizinho de Feliks a estava observando da porta do apartamento ao lado. Parecia embaraçado quando os olhos dos dois se encontraram. Lydia acenou com a cabeça polidamente e o homem voltou para o interior de seu apartamento, fechando a porta. Ocorreu-lhe que o homem provavelmente podia ouvi-los fazendo amor, através da parede. Mas ela năo se importava. Sabia que estava fazendo algo pecaminoso e vergonhoso, mas se recusava a pensar a respeito. Lydia saiu para a rua. A criada estava esperando na esquina. Juntas, atravessaram o parque, até o lugar em que a carruagem esperava. Era uma noite fria, mas Lydia tinha a sensaçăo de que estava reluzindo com seu próprio calor. Muitas vezes se perguntava se as outras pessoas podiam dizer, só de olhar para ela, que estivera fazendo amor. O cocheiro desceu o degrau da carruagem, evitando os olhos dela. Ele sabe, pensou Lydia, com alguma surpresa; mas logo concluiu que estava apenas fantasiando. Na carruagem, a criada consertou apressadamente o vestido de Lydia. Tirando o manto marrom, Lydia pôs um abrigo de pele. A criada ajeitou-lhe os cabelos. Lydia deu-lhe 10 rublos por seu silęncio. E logo estavam na embaixada britânica. Lydia terminou de se ajeitar e entrou. Descobrira que năo era difícil assumir sua outra personalidade, tornando-se a recatada e virginal Lydia que a sociedade polida conhecia. Ao entrar no mundo real, sentia-se apavorada com a força bruta de sua paixăo por Feliks e tornava-se genuinamente um tręmulo lírio. Năo era uma representaçăo. Na verdade, durante a maior parte do dia, ela sentia que aquela donzela bem-comportada era a sua verdadeira personalidade, pensando que estava de alguma forma possuída, quando se encontrava com Feliks. Mas quando ele estava presente e também quando ela ficava sozinha na cama no meio da noite, Lydia sabia que era a sua personalidade oficial que era perniciosa, pois lhe teria negado a maior alegria que já conhecera. Entrou no vestíbulo da embaixada, toda vestida de branco, parecendo jovem, um pouco nervosa. Encontrou o primo Kiril, que era nominalmente o seu acompanhante. Ele era viúvo, de pouco mais de
30 anos, um homem irritadiço, que trabalhava no Ministério do Exterior. Ele e Lydia năo gostavam muito um do outro. Mas como a mulher dele estava morta e os pais de Lydia năo gostavam de sair, Kiril e Lydia tinham dado a conhecer que deveriam ser convidados juntos. E Lydia sempre lhe dizia que năo precisava incomodar-se em ir buscá-la em casa. Era assim que ela conseguia encontrar-se clandestinamente com Feliks. ​ Está atrasada ​ disse Kiril. ​ Desculpe ​ respondeu Lydia, insinceramente. Kiril conduziu-a ao salăo. Foram recebidos pelo Embaixador e a esposa, depois apresentados a Lorde Highcombe, o filho mais velho do Conde de Walden. Era um homem alto e bonito, em torno dos 30 anos, roupas bem talhadas, mas um tanto sóbrias. Parecia muito inglęs, com os cabelos castanhos-claros bem curtos, os olhos azuis. Tinha um rosto franco e sorridente, que Lydia achou ligeiramente atraente. Ele falava francęs muito bem. Mantiveram uma conversa polida por alguns minutos, e depois ele foi apresentado a outra pessoa. ​ Ele parece simpático ​ comentou Lydia para Kiril. ​ Năo se deixe enganar. O rumor é de que ele é um pândego. ​ Vocę me surpreende com as coisas que sabe. ​ Ele joga cartas com alguns oficiais que conheço. Disseram-me que bebe demais em algumas noites. ​ Vocę sabe de tudo sobre as pessoas… e sempre as piores coisas. Os lábios finos de Kiril se contraíram num sorriso. ​ A culpa é minha ou das pessoas? ​ Por que ele está aqui? ​ Em Săo Petersburgo? Dizem que ele tem um pai muito rico e autoritário, com quem năo consegue conviver. Por isso é que está jogando e bebendo pelo mundo afora, enquanto aguarda que o velho morra. Lydia năo esperava tornar a falar com Lorde Highcombe. Mas a mulher do Embaixador, achando que ambos formavam um atraente casal de solteiros, sentara-os lado a lado para o jantar. Ele tentou puxar conversa durante o segundo prato. ​ Por acaso conhece o Ministro das Finanças? ​ Receio que năo ​ disse Lydia, friamente. É claro que ela sabia de tudo a respeito do homem, um dos grandes favoritos do Czar. Mas ele se casara com uma mulher que năo apenas era divorciada, mas também judia, o que tornava constrangedor as pessoas o convidarem. Ela pensou de repente como Feliks se mostraria fulminante diante de tais preconceitos. E logo o inglęs estava falando novamente:
​ Eu gostaria muito de conhecę-lo. Soube que se trata de um homem dinâmico e com os olhos voltados para o futuro. O projeto da Ferrovia Transiberiana é maravilhoso. Mas as pessoas dizem que ele năo é muito refinado. ​ Tenho certeza de que Sierguei Yulevich Witte é um leal servidor do nosso amado soberano ​ disse Lydia, polidamente. ​ Năo tenho a menor dúvida quanto a isso ​ murmurou Highcombe, virando-se para a mulher no outro lado. Ele pensa que sou insípida, refletiu Lydia. Pouco depois, ela lhe perguntou: ​ Viaja muito? ​ Durante a maior parte do tempo. Vou ŕ África quase todos os anos para caçar. ​ Mas que coisa fascinante! O que costuma caçar? ​ Leőes, elefantes… abati uma vez um rinoceronte. ​ Na selva? ​ A caçada é realizada nas savanas ao leste. Mas já desci até as florestas tropicais no sul, para conhecę-las. ​ E é como os livros mostram? ​ É, sim. Até mesmo os pigmeus pretos nus. Lydia sentiu que corava e desviou os olhos. Por que ele tinha de dizer isso?, pensou ela. E năo tornou a falar com o inglęs. Já haviam conversado o bastante para satisfazer os ditames da etiqueta e era evidente que nenhum dos dois mostrava-se muito ansioso em seguir além. Depois do jantar, ela tocou por algum tempo no maravilhoso piano de cauda do Embaixador. Pouco mais tarde, Kiril levou-a para casa. Ela foi direto para a cama, a fim de sonhar com Feliks. Na manhă seguinte, depois da primeira refeiçăo, um criado chamou-a ao gabinete do pai. O Conde era um homem pequeno e magro, sempre exasperado, de 55 anos. Lydia era a mais moça de seus quatro filhos… os outros eram uma irmă e dois irmăos, todos casados. A măe estava viva, mas permanentemente doente. O Conde quase năo via a família. Parecia passar a maior parte do seu tempo absorvido em leituras. Tinha um velho amigo que o visitava para jogarem xadrez. Lydia possuía uma vaga recordaçăo de um tempo em que as coisas eram diferentes e formavam uma família alegre, reunida em torno da mesa de jantar. Mas isso acontecera há muito tempo. Agora, uma convocaçăo para ir ao gabinete só podia significar uma coisa: encrenca. Quando Lydia entrou, o pai achava-se de pé diante da mesa de escrever, as măos nas costas, o rosto contraído de fúria. A criada de Lydia estava parada perto da porta, as lágrimas escorrendo pelas faces. Lydia compreendeu nesse instante qual era o problema e sentiu que tremia. Năo houve qualquer
preâmbulo. O pai foi logo gritando: ​ Vocę anda encontrando-se secretamente com um rapaz! Lydia cruzou os braços para controlar o tremor que a dominava. ​ Como descobriu? ​ perguntou ela, lançando um olhar acusador para a criada. O pai emitiu um grunhido de irritaçăo. ​ Năo olhe para ela. O cocheiro falou-me de seus extraordinários passeios pelo parque, sempre muito longos. E ontem mandei segui-la. ​ A voz dele tornou a se altear. ​ Como pôde comportar-se assim… como se fosse uma camponesa? O quanto ele saberia? Nem tudo, certamente! ​ Estou apaixonada ​ disse Lydia. ​ Apaixonada? ​ berrou o pai. ​ Está querendo dizer que está no cio! Lydia pensou que o pai fosse agredi-la. A moça deu vários passos para trás e preparou-se para fugir. Ele sabia de tudo. Era a catástrofe total. O que iria fazer agora? ​ O pior de tudo é que vocę năo pode casar-se com ele. Lydia ficou consternada. Estava preparada para ser expulsa de casa, ser humilhada, ficar sem nenhum dinheiro. Mas o pai lhe estava reservando uma puniçăo muito pior. ​ Por que năo posso casar-me com ele? ​ gritou Lydia. ​ Porque ele é praticamente um servo e um anarquista ainda por cima. Será que năo compreende? Vocę está arruinada! ​ Entăo, deixe-me casar com ele e viver na minha ruína. ​ Năo! Houve um silęncio opressivo. A criada, ainda em lágrimas, fungava a todo instante, Lydia ouvia um zumbido insistente dentro dos ouvidos. ​ Isso vai matar sua măe ​ disse o Conde. ​ O que vai fazer? ​ balbuciou Lydia. ​ Vou confiná-la a seu quarto por enquanto. E assim que eu providenciar tudo, vocę entrará num convento. Lydia fitou-o com uma expressăo horrorizada. Era uma sentença de morte. Depois, saiu correndo da sala.
Nunca mais ver Feliks… o pensamento era totalmente insuportável. As lágrimas rolavam por seu rosto. Ela correu para o quarto. Năo poderia sofrer aquela puniçăo. Vou morrer, pensou; vou morrer. Ao invés de deixar Feliks para sempre, ela deixaria a família para sempre. Assim que a idéia lhe ocorreu, compreendeu que era a única coisa a fazer… e o momento era agora, antes que o pai mandasse alguém trancá-la no quarto. Lydia examinou a bolsa. Dispunha apenas de uns poucos rublos. Abriu a caixa de jóias. Tirou uma pulseira de diamantes, uma corrente de ouro e alguns anéis, metendo-os na bolsa. Pôs o casaco e desceu correndo a escada. Saiu pela porta dos criados. Foi percorrendo as ruas apressadamente. As pessoas olhavam para ela, andando tăo depressa, em boas roupas, com lágrimas no rosto. Lydia năo se importava. Deixara a sociedade para sempre. Ia fugir com Feliks. Cansou-se rapidamente e passou a andar mais devagar. Subitamente, os acontecimentos já năo pareciam tăo desastrosos. Ela e Feliks poderiam ir para Moscou, para alguma cidade pequena, até mesmo para o exterior, talvez a Alemanha. Feliks teria de trabalhar. Mas ele era instruído, podia ser pelo menos um amanuense, possivelmente algo melhor. Ela poderia costurar para fora. Alugariam uma pequena casa, poderiam mobiliá-la sem gastar muito dinheiro. Teriam filhos, meninos fortes, garotas lindas. As coisas que ela perderia năo tinham a menor importância: vestidos de seda, os rumores da sociedade, criados onipresentes, casas imensas, comidas requintadas. E como seria viver com Feliks? Ficariam na cama e dormiriam juntos… como seria romântico! Passeariam, de măos dadas, sem se importar que os outros vissem que estavam apaixonados. Ficariam sentados ao lado do fogo durante a noite, jogando cartas, lendo ou conversando. A qualquer momento poderia tocá-lo, beijá-lo, tirar as suas roupas para ele. Lydia chegou ŕ casa de Feliks e subiu a escada. Qual seria a reaçăo dele? Ficaria chocado a princípio, depois exultante. E logo se tornaria prático. Teriam de partir imediatamente, diria ele, pois o pai dela poderia mandar pessoas para buscá-la. Feliks seria decisivo. ​Vamos para tal lugar​, diria ele. E falaria sobre passagens, uma mala, disfarces. Ela tirou a chave da bolsa, mas descobriu que a porta estava entreaberta, meio torta nos gonzos. Entrou no apartamento, gritando: ​ Feliks, sou eu… oh! Ela estacou abruptamente. O apartamento achava-se na maior desordem. Parecia que fora assaltado. Ou houvera uma briga. Feliks năo se encontrava ali. Subitamente, Lydia sentiu um medo terrível. Percorreu o pequeno apartamento, sentindo-se completamente atordoada, olhando atrás das cortinas, debaixo da cama. Todos os livros dele haviam desaparecido. O colchăo fora cortado. O espelho achavase quebrado, o mesmo espelho em que se haviam contemplado enquanto faziam amor, numa tarde em que a neve caía lá fora.
Lydia saiu para o corredor. O morador do apartamento ao lado estava parado na porta. Lydia fitou-o e indagou: ​ O que aconteceu? ​ Ele foi preso ontem ŕ noite. E o céu desabou. Lydia sentiu que ia desmaiar. Encostou-se na parede, em busca de apoio. Preso! Por quę? Onde ele estava? Quem o prendera? Como ela poderia fugir com Feliks, se ele estava na prisăo? ​ Parece que ele era um anarquista. ​ O vizinho sorriu sugestivamente e acrescentou: ​ Além de tudo o mais que ele podia ser. Era demais para suportar, no próprio dia em que o pai… ​ Papai… ​ murmurou Lydia. ​ Papai é quem fez isso. ​ Vocę parece doente ​ disse o vizinho. ​ Năo gostaria de entrar e sentar-se por um momento? Lydia năo gostou da expressăo no rosto dele. Năo podia enfrentar aquele homem lúbrico por cima de tudo. Tratou de se controlar. Sem responder, desceu lentamente a escada e saiu para a rua. Foi andando lentamente, sem destino certo, procurando imaginar o que fazer. Tinha de encontrar um jeito de tirar Feliks da prisăo. Mas năo tinha a menor idéia de como podia consegui-lo. Deveria apelar ao Ministro do Interior? Ao Czar? Năo sabia como encontrá-los, a năo ser pelo comparecimento ŕs recepçőes certas. Podia escrever… mas precisava ter Feliks naquele mesmo dia. Poderia visitá-lo na prisăo? Pelo menos saberia como ele estava e Feliks saberia que ela lutava para libertá-lo. Talvez, se chegasse numa carruagem, usando as melhores roupas, pudesse intimidar o carcereiro… Mas năo sabia onde era a prisăo… talvez houvesse mais do que uma… e năo dispunha de sua carruagem. E se voltasse para casa, o pai a trancaria no quarto e nunca mais tornaria a ver Feliks… Fez um esforço para reprimir as lágrimas. Era totalmente ignorante do mundo da polícia, prisőes e criminosos. A quem poderia recorrer? Os amigos anarquistas de Feliks deveriam saber tudo a respeito dessas coisas, mas ela jamais os conhecera e năo sabia agora onde encontrá-los. Pensou em seus irmăos. Maks estava administrando as propriedades rurais da família e encararia Feliks da mesma maneira que o pai. Certamente aprovaria o que o pai fizera. Dmitri, o efeminado Dmitri, frívolo e irresponsável, sentiria a maior simpatia por Lydia, mas năo poderia fazer nada. Só havia uma coisa a fazer: tinha de voltar para casa e suplicar ao pai que conseguisse a libertaçăo de Feliks. Cansada, Lydia virou-se e voltou para casa. A raiva contra o pai aumentava a cada passo. Ele deveria amá-la, cuidar dela, assegurar sua felicidade… e o que fazia? Tentava arruinar a vida da filha. Ela sabia o que queria; sabia o que a faria feliz. De quem era a vida? Quem tinha o direito de decidir?
Chegou em casa na maior raiva. Foi direto para o gabinete do pai, entrando sem bater. ​ Vocę mandou prendę-lo. ​ Isso mesmo. ​ O ânimo do pai mudara. A máscara de fúria desaparecera, substituída por uma expressăo pensativa e calculista. ​ Tem de mandar soltá-lo imediatamente. ​ Ele está sendo torturado neste momento. ​ Oh, năo… ​ balbuciou Lydia. ​ Estăo açoitando as solas dos pés… Lydia gritou. O pai alteou a voz: ​ …com varas finas e flexíveis… Havia uma espátula na mesa de escrever. ​ …que cortam a pele macia… Vou matá-lo! ​ …até que há tanto sangue… Lydia ficou frenética. Pegou a espátula e correu para o pai. Levantou-a bem alto e baixou com toda a sua força, visando o pescoço magro, ao mesmo tempo que gritava sem parar: ​ Eu o odeio! Eu o odeio! Eu o odeio! O pai deu um passo para o lado, segurou-a pelo pulso, forçou-a a largar a espátula e empurrou-a para uma cadeira. Ela prorrompeu em lágrimas histéricas. Depois de alguns minutos o pai recomeçou a falar, calmamente, como se nada tivesse acontecido: ​ Eu poderia ter impedido imediatamente. E posso providenciar a libertaçăo do rapaz no momento em que quiser. ​ Por favor! ​ balbuciou Lydia. ​ Farei qualquer coisa que mandar! ​ Fará mesmo? Lydia fitou-o através das lágrimas. Um acesso de esperança acalmou-a. Ele estaria falando sério? Iria providenciar a libertaçăo de Feliks?
​ Qualquer coisa… ​ repetiu ela. ​ Qualquer coisa… ​ Recebi um visitante enquanto vocę estava fora ​ disse o pai, ainda calmamente. ​ O Conde de Walden. Ele pediu permissăo para visitá-la. ​ Quem? ​ O Conde de Walden. Era Lorde Highcombe quando vocę o conheceu, ontem ŕ noite. Mas seu pai morreu e agora ele é o Conde. Lydia olhava fixamente para o pai, sem compreender. Lembrava-se de ter conhecido o inglęs, mas năo podia compreender por que o pai estava subitamente falando a respeito dele. ​ Năo me torture ​ disse ela. ​ Fale logo o que devo fazer para conseguir a libertaçăo de Feliks. ​ Case-se com o Conde de Walden ​ disse o pai, abruptamente. Lydia parou de chorar. Ficou olhando para o pai, atordoada. Será que ele estava mesmo dizendo aquilo? Parecia insano. O pai continuou: ​ Walden vai querer casar-se depressa. Vocę deixaria a Rússia e iria para a Inglaterra com ele. Esse seu caso lamentável seria esquecido e ninguém precisaria saber. É a soluçăo ideal. ​ E Feliks? ​ A tortura será interrompida hoje mesmo. O rapaz será libertado no momento em que vocę partir para a Inglaterra. Nunca mais tornará a vę-lo, enquanto viver. ​ Năo… ​ balbuciou Lydia. ​ Por Deus, năo… O casamento foi realizado oito semanas depois.
 
​ Vocę tentou realmente apunhalar seu pai? ​ indagou Feliks, com uma mistura de respeito e diversăo. Lydia assentiu, com um aceno de cabeça. E pensou: Graças a Deus, ele năo adivinhou o resto. ​ Sinto-me orgulhoso de vocę ​ disse Feliks. ​ Foi uma coisa terrível. ​ Ele era um homem terrível. ​ Năo pense mais assim. Houve uma pausa, e depois Feliks acrescentou, suavemente: ​ No final das contas, vocę nunca me traiu.
O impulso de abraçá-lo era quase irresistível. Lydia fez um tremendo esforço para permanecer imóvel. O momento passou. ​ Seu pai cumpriu o que disse ​ comentou Feliks. ​ A tortura cessou naquele dia. Soltaram-me no dia seguinte ŕ sua partida para a Inglaterra. ​ Como soube para onde eu tinha ido? ​ Recebi uma mensagem da criada. Ela deixou na livraria. É claro que ela năo sabia do acordo que vocę tinha feito. As coisas que tinham de dizer eram muitas e tăo importantes que os dois ficaram em silęncio. Lydia ainda estava com medo de se mexer. Notou que Feliks mantinha a măo direita no bolso do casaco durante todo o tempo. Năo se lembrava de ele ter esse hábito antes. ​ Ainda sabe assoviar? ​ perguntou Feliks, subitamente. Ela năo pôde deixar de rir. ​ Nunca tive essa capacidade. Eles voltaram a ficar em silęncio. Lydia queria que ele se retirasse e com igual desespero queria que ficasse. Depois de algum tempo, ela disse: ​ O que vocę tem feito desde entăo? Feliks deu de ombros. ​ Tenho viajado muito. E vocę? ​ Tenho criado minha filha. Os anos de intervalo pareciam ser um tópico constrangedor para ambos. ​ O que o trouxe até aqui? ​ perguntou Lydia. ​ Ahn… ​ Feliks parecia momentaneamente confuso com a pergunta. ​ Preciso falar com Orlov. ​ Aleks? Por quę? ​ Há um marinheiro anarquista na prisăo. Tenho de persuadir Orlov a soltá-lo… Sabe como săo as coisas na Rússia. Năo há justiça, apenas influęncia. ​ Aleks năo está mais aqui. Alguém tentou assaltar-nos na carruagem e ele ficou assustado. ​ Onde posso encontrá-lo? Feliks parecia subitamente tenso. ​ No Hotel Savoy… mas duvido muito que ele vá recebę-lo.
​ Posso tentar. ​ É muito importante para vocę, năo é mesmo? ​ É, sim. ​ Vocę ainda é… político? ​ É a minha vida. ​ A maioria dos jovens perde o interesse, quando fica mais velho. Feliks sorriu tristemente. ​ A maioria dos jovens se casa e constitui uma família. Lydia estava cheia de compaixăo. ​ Sinto muito, Feliks. Ele se inclinou e pegou-lhe a măo. Lydia retirou-a bruscamente e se levantou. ​ Năo me toque! Feliks fitou-a com uma expressăo de surpresa. ​ Aprendi minhas liçőes, ao contrário do que parece ter acontecido com vocę. Fui criada para acreditar que o desejo é maléfico e destrói as pessoas. Por algum tempo, quando estávamos… juntos… deixei de acreditar nisso. Ou pelo menos fingi que năo acreditava mais. E veja o que aconteceu… arruinei a mim mesma e arruinei a vocę. Meu pai estava certo… o desejo destrói. Nunca me esqueci disso e jamais esquecerei. Foi a vez de Feliks fitá-la tristemente. ​ É o que diz a si mesma? ​ É a verdade. ​ A moralidade de Tolstoi. Fazer o bem năo a torna feliz, mas fazer o mal certamente a deixará infeliz. Lydia respirou fundo. ​ Quero que vocę saia agora e nunca mais volte. Contemplou-a em silęncio por um longo momento e depois se levantou: ​ Está bem. Lydia pensou que seu coraçăo ia estourar.
Feliks deu um passo na direçăo dela. Lydia ficou imóvel, sabendo que deveria esquivar-se dele, mas incapaz de fazę-lo. Ele pôs as măos nos ombros dela, fitou-a nos olhos. E era tarde demais. Lydia recordou como era antes, quando se fitavam nos olhos. Estava perdida. Feliks puxou-a e beijou-a, envolvendo-a em seus braços. Era sempre assim, a boca ansiosa dele nos lábios macios de Lydia. Esta começou a se derreter. Comprimiu o corpo contra o dele. Havia fogo em suas entranhas. Estremecia de prazer. Procurou pelas măos dele e apertou-as, só para ter alguma coisa que segurar, uma parte do corpo dele para espremer com toda a sua força… Feliks soltou um grito de dor. Os dois se separaram. Ela o fitava fixamente, aturdida. Ele levou a măo direita ŕ boca. Lydia percebeu que havia uma ferida feia na măo e que a fizera sangrar, ao apertar. Adiantou-se para pegar a măo ferida, dizer que lamentava muito. Mas Feliks recuou. Uma mudança se processara nele, o encantamento estava rompido. Ele virou-se e se encaminhou para a porta. Horrorizada, observou-o sair. A porta bateu. Lydia soltou um grito de desespero. Ela ficou imóvel por um momento, olhando fixamente para o lugar em que ele estivera. Tinha a sensaçăo de que fora arrasada. Arriou numa cadeira, começando a tremer, incontrolavelmente. As emoçőes turbilhonaram por vários minutos, ela năo conseguia pensar direito. As emoçőes acabaram assentando, deixando um sentimento predominante: alívio por năo ter cedido ŕ tentaçăo de contar-lhe o último capítulo da história. Era um segredo alojado no fundo dela, como um fragmento de granada num ferimento cicatrizado. Lá ficaria até o dia em que ela morresse, quando seria também enterrado.
 
Feliks parou no vestíbulo para pôr o chapéu. Olhou para si mesmo no espelho, o rosto contorcido num sorriso de triunfo selvagem. Controlou a expressăo e saiu para o Sol do meio-dia. Ela era muito crédula. Acreditara na sua história inverossímel sobre um marinheiro anarquista e lhe dissera, sem a menor hesitaçăo, onde poderia encontrar Orlov. Ele estava exultante por constatar que Lydia ainda se encontrava sob o seu poder. Ela se casou com Walden para me salvar, pensou ele. E agora eu a fiz trair o marido. Năo obstante, a entrevista tivera momentos perigosos para ele. Enquanto ela contava a história, ele lhe observara o rosto. Uma dor terrível aflorara dentro dele, uma tristeza peculiar que lhe dera vontade de chorar. Mas fazia tanto tempo que derramara lágrimas pela última vez que o corpo parecia ter esquecido como fazę-lo. E os momentos perigosos passaram. Năo sou realmente vulnerável ao sentimento, disse Feliks a si mesmo. Menti para ela, traí a sua confiança em mim, beijei-a e fugi. Eu a usei. O destino está do meu lado hoje. É um bom dia para uma missăo perigosa. Largara o revólver no parque. Assim, precisava de uma nova arma. Uma bomba seria o melhor para um assassinato num quarto de hotel. Năo precisava ser lançada com precisăo, pois matava a todos no cômodo, onde quer que caísse. Se Walden estivesse em companhia de Orlov na ocasiăo, tanto melhor, pensou Feliks. Ocorreu-lhe que, neste caso, Lydia o teria ajudado a matar o marido.
E daí? Tratou de afastá-la dos pensamentos e começou a pensar em química. Entrou numa loja de produtos químicos em Camden Town e comprou um ácido comum, sob forma concentrada. O ácido estava embalado em dois vidros, ao custo de quatro xelins e cinco pence. Incluindo o preço dos vidros, que era reembolsável quando fossem devolvidos. Ele levou os vidros para casa e colocou-os no chăo do quarto de porăo. Tornou a sair, comprou mais dois litros do mesmo ácido, numa loja diferente. O químico perguntou em que iria usar o ácido. ​ É para limpeza. O homem pareceu ficar satisfeito. Numa terceira loja, Feliks comprou mais dois litros de um ácido diferente. E finalmente comprou meio litro de glicerina pura e uma vareta de vidro com 30 centímetros de comprimento. Gastara 16 xelins e oito pence, mas receberia de volta quatro xelins e tręs pence, quando devolvesse os vidros vazios. Isso o deixaria com pouco menos de tręs libras. Como comprara os ingredientes em lojas diferentes, nenhum dos químicos tinha qualquer motivo para suspeitar que ele pretendia fazer explosivos. Feliks subiu para a cozinha de Bridget e pediu emprestada a maior tigela que ela tinha. ​ Vai fazer um bolo? ​ perguntou ela. ​ Isso mesmo. ​ Tome cuidado para năo explodir a todos nós. ​ Năo se preocupe. Năo obstante, Bridget tomou a precauçăo de passar a tarde com uma vizinha. Feliks desceu para o porăo, tirou o paletó, enrolou as mangas da camisa e lavou as măos. Pôs a tigela na pia. Olhou para a fileira de frascos marrons no chăo, com suas tampas de vidro. Misturou as duas espécies diferentes de ácido na tigela de Bridget, esperou que esfriasse, depois tornou a pôr a mistura de dois para um nos vidros. Lavou a tigela, enxugou-a, tornou a colocá-la na pia, despejou a glicerina. A pia tinha uma tampa de borracha, presa numa corrente. Ajeitou a tampa no bueiro de lado, a fim de
bloqueá-lo apenas parcialmente. Abriu a torneira. Quando o nível da água chegou quase ŕ borda da tigela, ele ajeito a tampa, a fim de que a água escorresse no mesmo ritmo com que caía na pia, evitando que transbordasse para dentro da tigela. O estágio seguinte já matara mais anarquistas do que a Okhrana. Cautelosamente, Feliks começou a acrescentar os ácidos misturados ŕ glicerina, mexendo gentilmente, mas de maneira constante, com a vareta de vidro. O quarto do porăo estava muito quente. Ocasionalmente, um pouco de fumaça entre avermelhada e marrom desprendia-se da tigela, um sinal de que a reaçăo química começava a escapar ao controle. Feliks parava entăo de acrescentar os ácidos, mas continuava a mexer, até que o fluxo de água através da pia esfriasse a tigela e moderasse a reaçăo. Quando os vapores de dissipavam, ele esperava mais um ou dois minutos, depois continuava a misturar. Foi assim que Ilya morreu, lembrou Feliks; parado diante de uma pia, num quarto de porăo, misturando ácidos e glicerina; talvez estivesse impaciente. Quando finalmente removeram os escombros, nada restava de Ilya para enterrar. A tarde transformou-se em noite. O ar ficou mais frio, mas Feliks continuava a suar mesmo assim. A măo estava pesada como se fosse de pedra. Podia ouvir crianças na rua lá fora, brincando e cantando: ​ Sal, mostarda, vinagre, pimenta, sal, mostarda, vinagre, pimenta… Ele gostaria de ter gelo. Gostaria de ter luz elétrica. A sala estava cheia de vapores de ácido. Sentia a garganta dolorida. A mistura na tigela estava clara. Ele se descobriu sonhando com Lydia. Em seu devaneio, ela aparecia no quarto do porăo, inteiramente nua, sorrindo. E Feliks lhe dizia que fosse embora, pois estava ocupado. ​ Sal, mostarda, vinagre, pimenta. Ele despejou o último vidro de ácido, tăo lenta e gentilmente quanto o primeiro. Ainda mexendo, aumentou o fluxo de água da torneira, a fim de que transbordasse para dentro da tigela. Depois, meticulosamente, lavou os excessos de ácidos. Ao terminar, tinha uma tigela de nitroglicerina. Era um explosivo líquido 20 vezes mais poderoso do que a pólvora. Podia ser detonado por uma espoleta, mas isso năo chegava a ser essencial, já que podia ser também acionado por um fósforo aceso ou mesmo pelo calor de um fogo próximo. Feliks conhecera um homem tolo que pusera um vidro de nitroglicerina no bolsinho do paletó, até que o calor do corpo o detonara, matando-o e a mais tręs pessoas, além de um cavalo, numa rua de Săo Petersburgo. Um vidro de nitroglicerina explodiria se fosse quebrado ou simplesmente sacudido com mais força. Com extremo cuidado, Feliks mergulhou um vidro limpo na tigela e deixou que enchesse lentamente com o explosivo. Depois de cheio, fechou o vidro, certificando-se antes de que năo havia qualquer
nitroglicerina retida entre o gargalo e a tampa de vidro. Restava algum líquido na tigela. Claro que năo poderia ser despejado pela pia. Feliks foi até a cama e pegou o travesseiro. O enchimento parecia ser de refugo de algodăo. Rasgou um pequeno buraco no travesseiro e tirou um pouco do enchimento. Era constituído de trapos rasgados, misturados com algumas plumas. Despejou uma parte sobre a nitroglicerina restante na tigela. O enchimento absorveu o líquido sem qualquer problema. Feliks acrescentou mais enchimento ŕ tigela, até que todo o líquido fosse absorvido. Enrolou tudo numa bola e envolveu num jornal. O explosivo estava agora muito mais estável, como dinamite… e, na verdade, era justamente dinamite. Năo detonava com a mesma facilidade que o explosivo líquido. Pôr fogo no jornal podia provocar a explosăo, mas talvez năo acontecesse. Melhor seria usar um canudo com pólvora para garantir a explosăo. Mas Feliks năo planejava usar a dinamite, pois precisava de algo mais certo e imediato. Tornou a lavar e enxugar a tigela em que preparara a mistura. Colocou a tampa no ralo, encheu a pia, depois colocou gentilmente o vidro de nitroglicerina na água, a fim de mantę-lo frio. Subiu e devolveu a tigela ŕ cozinha de Bridget. Tornou a descer e olhou para a bomba na pia. E pensou: Năo senti medo. Durante a tarde inteira, năo senti medo de morrer. Continuo a năo ter medo. Isso o deixou contente. Ele saiu para fazer um reconhecimento do Hotel Savoy.
SETE
Walden observou que tanto Lydia como Charlotte estavam meio caladas durante o chá. A conversa foi superficial. Depois de trocar de roupa para o jantar, Walden sentou-se na sala de estar, tomando xerez, esperando que a mulher e a filha descessem. Iam jantar fora, na casa dos Pontadarvys. Estava fazendo outra noite agradável. Até agora, fora um ótimo verăo, pelo tempo, se năo por outras coisas. Encerrar Aleks no Hotel Savoy năo contribuíra em nada para apressar o ritmo lento das negociaçőes com os russos. Aleks despertava afeiçăo, como um gatinho… só que o gatinho tinha os dentes surpreendentemente afiados. Walden apresentara a contraproposta, uma passagem internacional do Mar Negro ao Mediterrâneo. Aleks dissera categoricamente que isso năo era suficiente, pois, em tempo de guerra, quando o estreito se tornaria vital, nem a Inglaterra nem a Rússia, com a melhor boa vontade do mundo, poderiam impedir que os turcos fechassem o canal. A Rússia queria năo apenas o direito de passagem, más também o poder de impor esse direito. Enquanto Walden e Aleks discutiam como tal poder seria concedido ŕ Rússia, os alemăes concluíram o alargamento do Canal de Kiel, um projeto estrategicamente crucial, permitindo que seus encouraçados passassem da área de batalha do Mar do Norte para a segurança do Báltico. Além disso as reservas de ouro da Alemanha estavam no auge, em decorręncia das manobras financeiras que haviam provocado a visita de Churchill a Walden Hall, em maio. A Alemanha nunca estaria mais bem preparada para a guerra; cada dia que passava tornava mais indispensável a aliança anglo-russa. Mas Aleks tinha um controle absoluto, năo fazia quaisquer concessőes ŕs pressas. Ŕ medida que mais se informava da Alemanha, sua indústria, governo, Exército, recursos naturais, Walden compreendia que ela possuía todas as possibilidades de substituir a Inglaterra como a mais poderosa naçăo do mundo. Pessoalmente, ele năo se importava que a Inglaterra fosse a primeira, segunda ou nona, contanto que permanecesse livre. Amava a Inglaterra. Tinha orgulho de seu país. Sua indústria proporcionava trabalho a milhőes de pessoas, sua democracia era um modelo para o resto do mundo. A populaçăo estava-se tornando mais instruída e, como conseqüęncia desse processo, mais pessoas tinham o direito de voto. Até mesmo as mulheres o teriam, mais cedo ou mais tarde, especialmente se parassem de quebrar as janelas. Adorava os campos e as colinas, a ópera e o music hall, o esplendor frenético da metrópole e os ritmos lentos e tranqüilizantes da vida rural. Tinha orgulho de seus inventores, escritores, homens de negócios e artífices. A Inglaterra era um lugar maravilhoso e năo seria estragada pelos invasores prussianos, se Walden pudesse evitá-lo. E ele estava preocupado porque năo tinha certeza se poderia evitá-lo. Tinha dúvidas sobre o quanto realmente conhecia a Inglaterra moderna, com seus anarquistas e sufragistas, governada por jovens agitadores como Churchill e Lloyd George, abalada por forças ainda mais ameaçadoras, como o Partido Trabalhista em grande expansăo e os sindicatos cada vez mais poderosos. As pessoas do tipo de Walden ainda predominavam, mas o país năo era mais tăo dócil como antigamente. Ele tinha, ŕs vezes, a impressăo terrivelmente deprimente de que estava tudo escapando ao controle. Charlotte entrou na sala, recordando-o que a política năo era a única área da vida sobre a qual parecia estar perdendo o controle. Ela ainda usava o vestido de chá. Walden disse:
​ Deveremos sair em breve. ​ Ficarei em casa, se puder. Estou com um pouco de dor de cabeça. ​ Năo haverá jantar quente, a menos que vocę avise a cozinheira imediatamente. ​ Năo vou querer. Pedirei para levarem uma bandeja com alguma comida para meu quarto. ​ Parece um pouco pálida. Tome um copo de xerez. Vai despertar o apetite. ​ Está bem. Charlotte sentou-se e o pai serviu o xerez. Ao entregar a bebida, ele disse: ​ Annie já tem agora um emprego e uma casa. ​ Fico contente por isso ​ respondeu a filha, friamente. Walden respirou fundo. ​ Devo dizer que sou culpado neste caso. ​ Oh! ​ exclamou Charlotte, atônita. Será que é tăo raro assim eu admitir que estou errado?, pensou Walden. E continuou: ​ Claro que eu năo sabia que seu… que o rapaz tinha fugido e ela ficou com vergonha de voltar para a casa da măe. Mas deveria ter indagado. Como vocę disse, com toda razăo, a moça estava sob a minha responsabilidade. Charlotte năo falou nada, mas foi sentar-se ao lado do pai no sofá e pegou-lhe a măo. Ele ficou comovido e disse: ​ Vocę possui um coraçăo generoso e espero que continue sempre assim. E posso também acalentar a esperança de que vocę aprenda a expressar seus sentimentos generosos com um pouco mais de… serenidade? Charlotte fitou-os nos olhos. ​ Farei o melhor possível, Papai. ​ Ŕs vezes me pergunto se năo a resguardamos demais. Claro que foi sua măe quem decidiu como vocę deveria ser criada, mas devo reconhecer que concordei com ela quase em todas as ocasiőes. Há pessoas que dizem que as crianças năo devem ser resguardadas… do que se poderia chamar de fatos da vida. Mas tais pessoas săo poucas e tendem a ser horrivelmente grosseiras. Ficaram em silęncio por algum tempo. Como sempre, Lydia levava uma eternidade para ser vestir para o jantar. Havia mais coisas que Walden queria dizer a Charlotte, mas năo sabia se tinha coragem. Ensaiou mentalmente várias aberturas, mas todas pareciam muito embaraçosas. A filha estava sentada a
seu lado, num silęncio satisfeito. Walden imaginou se ela tinha alguma idéia do que se passava pela mente dele. Lydia ficaria pronta dentro de um momento. Tinha de ser agora ou nunca. Ele limpou a garganta. ​ Vocę vai casar-se com um bom homem e aprenderá junto com ele todas as coisas que săo misteriosas agora e talvez a preocupem um pouco. ​ Isso pode ser suficiente, pensou ele. Era o momento para recuar, para se esquivar. Vamos, coragem! ​ Mas há uma coisa que vocę precisa saber de antemăo. Sua măe deveria dizer-lhe, mas acho que isso talvez năo aconteça. Assim, eu terei de fazę-lo. Walden acendeu um charuto, apenas para ter o que fazer com as măos. Já passara pelo ponto em que năo podia mais haver evasivas. Meio que esperava que Lydia entrasse naquele momento e interrompesse a conversa. Mas tal năo aconteceu. ​ Vocę disse que sabe o que Annie e o jardineiro fizeram. Mas eles năo eram casados e por isso estava errado. Mas quando se é casado, torna-se uma coisa realmente boa. Walden sentiu que seu rosto ficava vermelho e torceu para que a filha năo o fitasse naquele momento. ​ É muito bom fisicamente… impossível de descrever, mas parecendo um pouco com o calor de um fogo de carvăo… Mas a coisa mais importante, a coisa que tenho certeza de que vocę ainda năo compreende, é como se trata de algo maravilhoso espiritualmente. Parece exprimir toda afeiçăo, ternura, respeito e… Ora, é o amor que existe entre um homem e sua mulher. Năo se compreende necessariamente isso quando se é jovem. As moças, especialmente, tendem a só perceber o lado… mais grosseiro, digamos assim. E algumas pessoas jamais descobrem o lado bom de tudo isso. Mas se vocę o está querendo e escolher um homem bom e sensível para seu marido, certamente vai acontecer. É por isso que lhe falei. Deixei-a muito embaraçada? Para surpresa dele, Charlotte virou a cabeça e beijou-o no rosto. ​ Deixou, sim, mas năo tanto quanto embaraçou a si mesmo. Walden năo pôde deixar de rir. Pritchard entrou na sala nesse momento, anunciando: ​ A carruagem está pronta, milorde. E milady está esperando no vestíbulo. Walden se levantou, murmurando para Charlotte: ​ Năo diga uma só palavra ŕ sua măe da nossa conversa. ​ Estou começando a compreender por que todos dizem que vocę é um bom homem, Papai. Divirta-se. ​ Até amanhă. Enquanto seguia ao encontro da mulher, Walden pensou: Há ocasiőes em que faço mesmo as coisas direito.
 
Depois disso, Charlotte quase mudou de idéia sobre a ida ŕ reuniăo das sufragistas.
Estava com um ânimo rebelde, depois do incidente com Annie, quando vira o cartaz na vitrine de uma joalheria da Rua Bond. O título VOTO PARA AS MULHERES atraíra sua atençăo. Ela notara em seguida que o local da reuniăo năo era muito longe de sua casa. O cartaz năo indicava os nomes das oradoras, mas Charlotte lera nos jornais que a notória Sra. Pankhurst muitas vezes aparecia em tais reuniőes, sem aviso prévio. Charlotte parara para ler o cartaz, fingindo (por causa de Marya, que a acompanhava) estar examinando uma bandeja de pulseiras. Enquanto lia, um rapaz saiu da loja e puserase a raspar o cartaz colado na vitrine. Fora nesse momento que Charlotte decidira comparecer ŕ reuniăo. Mas o pai abalara agora essa resoluçăo. Era um choque descobrir que ele podia ser falível, vulnerável, até mesmo humilde. Uma revelaçăo ainda maior era ouvi-lo falar do intercurso sexual como se fosse uma coisa bonita. Charlotte compreendeu que năo estava mais fervendo de raiva interiormente porque o pai a deixara crescer na ignorância. Subitamente, ela podia compreender o ponto de vista dele. Mas nada alterava o fato de que era terrivelmente ignorante e năo podia confiar no pai e na măe para lhe revelarem toda a verdade sobre as coisas, especialmente as coisas como o sufragismo. Irei ŕ reuniăo, decidiu ela. Tocou a compainha, chamando Pritchard. Pediu que fosse levada uma salada para seu quarto, subindo em seguida. Uma das vantagens de ser mulher é que ninguém jamais duvidava, quando se alegava estar com dor de cabeça. Afinal, as mulheres deviam mesmo sentir dor de cabeça de vez em quando. Logo que a bandeja chegou, Charlotte comeu um pouco e ficou esperando até o momento em que os criados deveriam estar comendo. Pôs entăo um chapéu e um casaco e saiu. A noite estava quente. Ela foi andando rapidamente na direçăo de Knightsbridge. Experimentava uma sensaçăo de liberdade e compreendeu que nunca antes andara desacompanhada pelas ruas de uma cidade. Eu poderia fazer qualquer coisa, pensou ela. Năo tenho compromisso e năo tenho uma acompanhante. Ninguém sabe onde estou. Posso jantar num restaurante. Posso pegar um trem para a Escócia. Posso ir para um quarto de hotel. Posso andar de ônibus. Posso comer uma maçă na rua e largar o caroço na sarjeta. Sentia que se sobressaía na multidăo, mas ninguém olhava para ela. Sempre tivera a impressăo vaga de que, se saísse sozinha, os homens iriam embaraçá-la, de maneiras indefinidas. Mas, na verdade, os homens nem pareciam vę-la. Os homens năo estavam ŕ espreita; todos estavam indo para algum lugar, em trajes noturnos. Poderia haver algum perigo?, pensou Charlotte. Lembrou-se do louco no parque e acelerou os passos. Ao se aproximar do local da reuniăo, notou que havia mais e mais mulheres seguindo na mesma direçăo. Algumas estavam aos pares ou em grupos, mas muitas andavam sozinhas, como ela. Charlotte sentiu-se mais segura. Na rua, diante do salăo, havia uma multidăo de centenas de mulheres. Muitas usavam as cores das sufragistas, púrpura, verde e branco. Algumas distribuíam volantes ou vendiam um jornal chamado Voto para as Mulheres. Havia diversos guardas por ali, com expressőes um tanto tensas de desdém divertido. Charlotte entrou na fila de ingresso no salăo. Quando chegou ŕ porta, uma mulher com uma braçadeira pediu-lhe seis pence. Charlotte virou-se automaticamente, depois se lembrou de que năo estava com Marya, um lacaio ou uma criada para pagar
pelas coisas. Estava sozinha e năo tinha dinheiro. Năo imaginara que teria de pagar para entrar no salăo. E năo tinha certeza se arrumaria os seis pence, mesmo que previsse a necessidade. ​ Desculpe ​ murmurou ela. ​ Năo tenho dinheiro… Năo sabia… Virou-se para ir embora. A mulher estendeu a măo para detę-la, dizendo: ​ Năo há problema. Se năo tem dinheiro, pode entrar de graça. A mulher tinha sotaque de classe média. Embora falasse gentilmente, Charlotte imaginou que estava pensando: Com roupas tăo boas e năo tem dinheiro! ​ Obrigada ​ balbuciou Charlotte. ​ Mandarei um cheque… Ela entrou, corando intensamente. Graças a Deus que năo tentei jantar num restaurante ou pegar um trem, pensou ela. Nunca precisara preocupar-se em andar com dinheiro. Sua acompanhante sempre tinha dinheiro, o pai mantinha conta corrente em todas as lojas da Rua Bond; e se ela quisesse almoçar no Claridge​s ou tomar o café da manhă no Café Royal, bastava deixar seu cartăo na mesa e a conta seria enviada para o pai. Mas aquela era uma conta que ele năo iria pagar. Charlotte ocupou seu lugar no auditório, bem perto da frente. Năo queria perder coisa alguma, depois de tanto empenho. Se pretendo fazer esse tipo de coisa com freqüęncia, pensou ela, terei de pensar num meio de arrumar dinheiro para as despesas. Olhou ao redor. O salăo achava-se quase que totalmente ocupado por mulheres, havendo apenas um punhado de homens. As mulheres eram quase todas de classe média, usando sarja e algodăo, ao invés de cashmere e seda. Havia umas poucas que pareciam nitidamente mais bem-educadas do que a média. Falavam mais discretamente e usavam menos jóias. Tais mulheres, como Charlotte, pareciam estar usando casacos do ano anterior e chapéus indefinidos, como se quisessem disfarçar-se. E pelo que Charlotte podia observar, năo havia mulheres das classes trabalhadoras entre a platéia. No palco havia uma mesa coberta por um estandarte púrpura, verde e branco, onde se lia ​Voto para as Mulheres​. Havia seis cadeiras por trás da mesa. Charlotte pensou: Todas essas mulheres… se rebelando contra os homens. Ela năo sabia se devia sentir-se emocionada ou envergonhada. A platéia aplaudiu, quando cinco mulheres entraram no palco. Estavam todas impecavelmente vestidas, embora năo muito na moda, pois năo havia uma única hobble skirt (saia comprida, estreita na bainha) ou um chapéu em forma de sino. Seriam realmente aquelas as mulheres que quebravam vitrines, danificavam quadros e jogavam bombas? Pareciam respeitáveis demais. Os discursos começaram. Pouco significavam para Charlotte. Eram a respeito de organizaçăo, finanças, petiçőes, multas, divisőes e eleiçőes secundárias. Ela deveria ler livros a respeito antes de comparecer a um comício, a fim de compreender o que se dizia? Depois de quase uma hora, a jovem estava com vontade de ir embora. E foi entăo que a oradora que falava no momento foi interrompida de repente. Duas mulheres apareceram no lado do palco. Uma delas era uma jovem de aparęncia atlética, usando
um capote para andar de automóvel. A seu lado, amparada nela, estava uma mulher pequena, vestindo um casaco verde-claro e um chapéu grande. A platéia começou a aplaudir. As mulheres no palco se levantaram. Os aplausos foram-se tornando mais altos, com gritos e aclamaçőes. Alguém perto de Charlotte se levantou e, segundos depois, 1.000 mulheres estavam de pé. A Sra. Pankhurst avançou lentamente pelo palco. Charlotte podia vę-la nitidamente. Era o que as pessoas chamavam de uma mulher bonita. Tinha olhos escuros, a boca larga e reta, o queixo firme. Seria linda, se năo fosse pelo nariz um tanto achatado. Os efeitos das prisőes sucessivas e das greves de fome transpareciam na escassez de carne no rosto e nas măos, na tonalidade amarelada da pele. Parecia fraca, muito magra, frágil. Ela levantou as măos e as aclamaçőes cessaram quase que no mesmo instante. A Sra. Pankhurst começou a falar. A voz soava forte e clara, embora ela năo parecesse gritar. Charlotte ficou surpresa ao descobrir que a mulher tinha um sotaque do Lancashire. ​Fui eleita em 1894 para o Conselho de Guardiăes de Manchester, encarregada de administrar o asilo para mulheres. Fiquei horrorizada na primeira vez em que lá entrei, ao ver meninas de sete e oito anos de joelhos, esfregando as lajes frias de corredores intermináveis. No inverno e verăo, essas meninas usavam as mesmas batas de algodăo, cavadas no pescoço e de mangas curtas. Nada usavam ŕ noite, pois se considerava que camisolas eram boas demais para indigentes. O fato de a bronquite ser epidęmica na maior parte do tempo năo indicava aos Guardiăes a necessidade de mudar os trajes. E năo preciso acrescentar que, até o momento da minha eleiçăo, todos os Guardiăes eram homens. A Sra. Pankhurst fez uma pausa, correndo os olhos pela multidăo de mulheres. ​Descobri que havia mulheres grávidas trabalhando ali, esfregando chăo, fazendo os mais árduos trabalhos, quase até o momento em que seus filhos chegavam ao mundo. Muitas delas eram mulheres solteiras, algumas muito moças. Essas pobres măes só tinham o direito de permanecer no hospital após o parto por apenas duas semanas. E depois tinham de fazer uma opçăo entre permanecer no asilo e ganhar a vida esfregando chăo e outros trabalhos pesados… e neste caso seriam separadas de seus filhos… ou ser despejadas. Podiam ficar e ser indigentes ou podiam ir embora… com um filho de duas semanas de idade nos braços, sem esperança, sem lar, sem dinheiro, sem ter para onde ir. O que podia acontecer a essas moças, o que podia acontecer a essas crianças infelizes?​ Charlotte estava aturdida com a discussăo pública de questőes tăo delicadas. Măes solteiras… meras meninas… sem lar, sem dinheiro… E por que deveriam ser separadas dos filhos, se permanecessem no asilo? Será que tudo isso era mesmo verdade? Mas o pior ainda estava por vir. A voz da Sra. Pankhurst alteou-se um pouco: ​Pela lei, se um homem que arruína uma moça paga vinte libras de uma só vez, a casa em que o bebę é internado fica a salvo de qualquer inspeçăo. Desde que as pessoas peguem um só bebę de cada vez e sendo pagas as vinte libras, os inspetores năo podem verificar se os cuidados săo apropriados.​ Bebęs internados… um homem que arruína uma moça… as palavras eram desconhecidas para Charlotte, mas os significados eram terrivelmente claros.
​É claro que os bebęs morrem com uma horrível rapidez e a pessoa se torna livre para aceitar outra vítima. Há anos que as mulheres vęm, tentando mudar a Lei dos Pobres, a fim de proteger todos os filhos ilegítimos e impedir que os patifes ricos escapem ŕ responsabilidade pelos filhos que geram. Vezes sem conta isso foi tentado, mas sempre fracassou…​ A voz da Sra. Pankhurst adquiriu nesse momento um tom veemente. ​…Porque as únicas pessoas que realmente se importam com essas coisas săo meras mulheres!​ A audięncia prorrompeu em aplausos, e uma mulher ao lado de Charlotte gritou: ​ Apoiado! Apoiado! Charlotte virou-se para a mulher e segurou-lhe o braço. ​ Isso é verdade? ​ indagou ela. ​ Isso é verdade? Mas a Sra. Pankhurst estava falando novamente: ​Eu gostaria de ter tempo e força para contar a vocęs todas as tragédias que testemunhei, quando trabalhava naquele conselho. Tive contato com viúvas que estavam lutando desesperadamente para manter as famílias juntas. A lei concedia a essas mulheres uma assistęncia das mais inadequadas. Mas para uma mulher sozinha, com um filho, a única assistęncia era o trabalho num asilo. Mesmo que a mulher estivesse amamentando o filho, era considerada por lei como um homem fisicamente capaz. Diziam-nos que as mulheres deveriam ficar em casa e cuidar dos filhos. Eu costumava espantar os meus colegas do sexo masculino ao lhes declarar: ​Quando as mulheres tiverem o direito ao voto, providenciarăo para que as măes possam ficar realmente em casa, cuidando de seus filhos!​ ​Em 1899 fui designada para trabalhar no Registro de Nascimentos e Mortes de Manchester. Apesar da minha experięncia no Conselho de Guardiăes, fiquei chocada ao ser relembrada incessantemente do pouco respeito que existe no mundo pelas mulheres e crianças. Meninas de apenas treze anos apareciam para registrar seus filhos… ilegítimos, é claro. E năo havia nada que se pudesse fazer, na maioria dos casos. A idade do consentimento é dezesseis anos, mas um homem pode geralmente alegar que pensava que a moça tinha mais de dezesseis anos. Durante o tempo em que servi no registro, conheci um caso de uma măe muito jovem que abandonou o filho recém-nascido, deixando-o morrer. A moça foi julgada por assassinato e condenada ŕ morte. O homem, que era, do ponto de vista de justiça, o verdadeiro assassino, năo recebeu qualquer puniçăo. ​Naqueles dias, perguntei-me muitas vezes o que se poderia fazer. Eu ingressara no Partido Trabalhista, pensando que, através de seus quadros, seria possível conseguir algo vital, uma exigęncia pela libertaçăo da mulher que os políticos năo poderiam ignorar. Mas nada aconteceu. ​Ao longo de todos esses anos, minhas filhas estavam crescendo. E um dia Christabel me surpreendeu com um comentário: ​As mulheres vęm tentando obter há muito tempo o direito de voto. Da minha parte, tenciono consegui-lo.​ Desde entăo, passei a ter dois lemas. Um deles é o seguinte: ​Voto para as mulheres.​ E outro: ​Da minha parte, tenciono consegui-lo.​​ Uma mulher gritou: ​ Eu também!
Houve uma nova explosăo de aclamaçőes. Charlotte estava-se sentindo atordoada. Era como se ela, a exemplo de Alice na história, tivesse passado pelo espelho e se descobrisse num mundo em que nada era o que parecia. Quando lera nos jornais as notícias sobre as sufragistas, năo encontrara qualquer referęncia ŕ Lei dos Pobres, de măes de 13 anos (seria mesmo possível?) ou de meninas contraindo bronquite no asilo. Charlotte năo acreditaria em nada disso, se năo tivesse visto pessoalmente Annie, uma criada comum e boa de Norfolk, dormindo numa calçada de Londres, depois de ter sido ​arruinada​ por um homem. Que importância tinha algumas janelas quebradas, quando tais coisas estavam acontecendo? ​Muitos anos se passaram antes que acendęssemos a tocha da militância. Tentáramos todos os outros meios possíveis, mas os anos de trabalho, sofrimento e sacrifício nos ensinaram que o governo năo cederia ao direito e justiça, mas cederia ŕs pressőes. Tínhamos de fazer com que todos os setores da vida inglesa se tornassem incertos e inseguros. Tínhamos de fazer com que as leis inglesas se tornassem um fracasso e os tribunais fossem teatros de farsa. Tínhamos de desacreditar o governo aos olhos do mundo. Tínhamos de estragar os esportes ingleses, prejudicar os negócios, destruir propriedades valiosas, desmoralizar o mundo da sociedade constituída, envergonhar as igrejas, abalar toda a vida organizada! E teríamos de prosseguir nessa guerra de guerrilha até o máximo em que o povo da Inglaterra pudesse tolerar. E chegaria o momento em que o povo como um todo diria ao governo: ​Pare com isso, da única maneira que se pode parar, concedendo a representaçăo ás mulheres da Inglaterra!​ Entăo apagaríamos a nossa tocha. ​Patrick Henry, o grande estadista americano, resumiu as causas que levaram ŕ Revoluçăo Americana da seguinte maneira: ​Pedimos, reclamamos, suplicamos, prostramo-nos diante do trono. Mas tudo foi em văo. Devemos lutar. Repito, senhor… devemos lutar.​ Patrick Henry estava defendendo matar pessoas como o meio de assegurar a liberdade política dos homens. As sufragistas năo fizeram isso e jamais farăo. O espírito que impregna a nossa militância é uma profunda e inabalável reveręncia pela vida humana. ​Foi com esse espírito que nossas mulheres partiram para a guerra no ano passado. A 31 de janeiro, diversos gramados de golfe foram queimados com ácido. A 7 e 8 de fevereiro, fios de telégrafo e telefone foram cortados em vários lugares, provocando a suspensăo de todas as comunicaçőes entre Londres e Glasgow por algumas horas. Poucos dias depois, as janelas de alguns dos mais elegantes clubes de Londres foram quebradas. As estufas dos orquidários de Kew foram quebradas e muitas flores valiosas, destruídas pelo frio. A sala de jóias da Torre de Londres foi invadida, e um mostruário quebrado. A 18 de fevereiro, uma mansăo rural em construçăo em Walton-on-the-Hill, pertencente ao Sr. Lloyd George, foi parcialmente destruída, uma bomba explodindo ao amanhecer, antes da chegada dos trabalhadores. ​Mais de mil mulheres foram para a prisăo por causa dessas manifestaçőes. Saíram da prisăo com a saúde abalada, enfraquecidas no corpo, mas năo no espírito. Nenhuma dessas mulheres violaria as leis, se as mulheres fossem livres. Săo mulheres que acreditam sinceramente que o bem-estar da humanidade exige esse sacrifício; acreditam que os males horríveis que assolam nossa civilizaçăo jamais serăo removidos enquanto as mulheres năo obtiverem o direito de voto. Só há um meio de acabar com essa agitaçăo, só há um meio de pôr um paradeiro a essas manifestaçőes. E năo é deportando a todas nós!​ ​ De jeito nenhum! ​ gritou uma mulher. ​ E também năo será metendo a todas nós na prisăo!
A platéia inteira se pôs a gritar: ​ Năo! Năo! ​ Será por nos fazer justiça! ​ Apoiado! Apoiado! Charlotte descobriu-se a gritar junto com as outras mulheres. A pequena mulher no palco parecia irradiar uma indignaçăo virtuosa. Os olhos dela ardiam, os punhos estavam cerrados. Empinou o queixo, a voz se alteando e baixando de emoçăo: ​O fogo do sofrimento, cuja chama atinge nossas irmăs na prisăo, também arde em nós. Pois sofremos com elas, partilhamos suas afliçőes e vamos comemorar juntas a vitória delas. Esse fogo vai sussurrar no ouvido de muitas mulheres que estăo adormecidas: ​Desperte!​ E elas văo-se levantar para participar da nossa luta. Vai conceder o dom da palavra a muitas mulheres que até hoje se mantiveram mudas… e elas văo-se adiantar para pregar a libertaçăo. Sua luz há de ser vista longe pelas muitas que sofrem, estăo desesperadas e oprimidas, iluminando suas vidas com uma nova esperança. Pois o espírito que existe nas mulheres hoje năo pode ser extinto. E mais forte do que toda a tirania, crueldade e opressăo, é mais forte… até mesmo… do que a… própria… morte!​
 
Uma suspeita terrível despertou em Lydia durante o dia. Depois do almoço, ela foi para seu quarto e se deitou. Năo era capaz de pensar em outra coisa além de Feliks. Ainda era vulnerável ao magnetismo dele. Seria uma tolice pretender o contrário. Mas năo era mais uma mocinha desamparada. Tinha os seus próprios recursos. E estava determinada a năo perder o controle, a năo permitir que Feliks arruinasse a vida plácida que fizera para si mesma com tanto cuidado. Pensou em todas as indagaçőes que năo fizera a Feliks. O que ele estava fazendo em Londres? Como ganhava a vida? Como soubera onde encontrá-la? Ele dera um nome falso a Pritchard. Era evidente que receara que ela năo o recebesse. Lydia compreendia agora por que ​Konstantin Dmitrich Levin​ lhe parecera familiar. Era nome de um personagem de Anna Karenina, o livro que ela comprara quando conhecera Feliks. Era um pseudônimo com um duplo sentido, um mnemônico insinuante que evocava um punhado de recordaçőes, como um sabor recordado da infância. Haviam conversado muito sobre o romance. Lydia dissera que era extraordinariamente real, pois sabia como era a paixăo liberada na alma de uma mulher respeitável. Anna era Lydia. Mas Feliks dissera que o livro năo era a respeito de Anna, mas sim sobre Levin e sua busca de uma resposta ŕ pergunta: ​Como devo viver?​ A resposta de Tolstoi era: ​Em seu coraçăo, vocę sabe o que é certo.​ Feliks alegara que era o tipo de moralidade fútil… deliberadamente ignorante da história, economia e psicologia… que levara ŕ total incompetęncia e degeneraçăo da classe dominante russa. Isso acontecera na noite em que haviam comido cogumelos em conversa, e Lydia provara vodca pela primeira vez. Ela usava um vestido turquesa, que fazia com que seus olhos castanhos se tornassem azuis. Feliks lhe beijara os dedos dos pés e depois… Ele era de fato malicioso por fazę-la recordar tudo isso.
Será que Feliks estava em Londres há muito tempo? Ou acabara de chegar, só para falar com Aleks? Havia presumivelmente um motivo para procurar um almirante em Londres, a fim de falar sobre um marinheiro preso na Rússia. Pela primeira vez, ocorreu a Lydia que Feliks talvez năo lhe tivesse contado toda a verdade. Afinal, ele ainda era um anarquista. Em 1895, era inflexivelmente năo-violento. Mas poderia ter mudado. Se Stephen soubesse que informei a um anarquista onde poderia encontrar Aleks… Preocupara-se com isso durante o chá. E se preocupara enquanto a criada lhe arrumava os cabelos, o que acarretara um trabalho malfeito e a deixara com uma aparęncia horrorosa. Preocupara-se também durante o jantar e por isso năo se mostrara muito animada com a Marquesa de Quort, o Sr. Chamberlain e um rapaz chamado Freddie, que a todo momento declarava em voz alta que năo havia nada de seriamente errado com Charlotte. Ficou recordando a măo ferida de Feliks, que o levara a gritar quando ela a apertara. Vislumbrara o ferimento apenas ligeiramente, mas tivera a impressăo de que era profundo o bastante para precisar de pontos. Apesar disso, foi somente ao final da noite, quando estava sentada no quarto, escovando os cabelos, que lhe ocorreu relacionar Feliks com o louco no parque. O pensamento foi tăo terrível que ela largou a escova de cabo de ouro na penteadeira, quebrando um vidro de perfume. E se Feliks tivesse vindo a Londres para matar Aleks? E se Feliks tivesse atacado a carruagem no parque, năo para assaltar, mas para matar Aleks? O homem no parque tinha a altura e a corpulęncia de Feliks? Tinha, sim. E Spethen o ferira com a espada… Aleks deixara a casa porque estava assustado (ou talvez, pelo que Lydia podia agora compreender, porque sabia que o ​roubo​ fora na verdade uma tentativa de assassinato) e Feliks ficara sem saber onde encontrá-lo, resolvendo entăo perguntar a Lydia… Ela se contemplou no espelho. A mulher que via ali tinha olhos castanhos, sobrancelhas claras, cabelos louros, um rosto bonito e o cérebro de um passarinho. Seria verdade? Feliks a enganara a tal ponto? Enganara… porque ele passara 19 anos imaginando que ela o traíra. Lydia recolheu os cacos de vidro e colocou-os num lenço, enxugando em seguida o perfume derramado. Năo sabia o que fazer agora. Tinha de avisar Stephen… mas como? ​Estou-me lembrando agora. Um anarquista procurou-me esta manhă e perguntou onde Aleks estava. E como ele já foi o meu amante, eu lhe contei…​ Ela teria de inventar uma história. Pensou a respeito. Houvera um tempo em que fora uma hábil mentirosa, mas agora estava sem prática. Acabou chegando ŕ conclusăo de que poderia escapar impune com uma combinaçăo das mentiras que Feliks dissera e ela e a Pritchard. Pôs um robe de cashmčre sobre a camisola de seda e foi para o quarto de Stephen. Ele estava sentado ao lado da janela, de pijama e robe, com um pequeno copo de conhaque numa das
măos e um charuto na outra, olhando para o parque enluarado. Ficou surpreso ao vę-la entrar, pois era ele quem sempre ia ao quarto dela ŕ noite. Levantou-se com um sorriso de boas-vindas e abraçou-a. Lydia compreendeu que o marido interpretara erroneamente o motivo de sua visita. Ele pensava que ela viera para fazer amor. ​ Preciso conversar com vocę, Stephen. Soltou-a. Parecia desapontado. ​ A esta hora da noite? ​ Acho que cometi uma tolice. ​ Pois entăo me conte o que aconteceu. Sentaram-se em lados opostos da lareira apagada. Subitamente, Lydia desejou ter ido até ali para fazer amor. ​ Um homem procurou-me esta manhă, Stephen. Disse que me conhecera em Săo Petersburgo. O nome era familiar e tive a impressăo de que o recordava vagamente… Sabe como isso acontece, a gente pensa ŕs vezes… ​ Como era o nome dele? ​ Levin. ​ Continue. ​ Ele disse que queria falar com o Príncipe Orlov. Stephen ficou de repente completamente alerta. ​ Por quę? ​ Queria conversar sobre um marinheiro que fora preso injustamente. Esse… Levin… queria fazer uma súplica pessoal pela libertaçăo do marinheiro. ​ E o que vocę lhe disse? ​ Falei que Aleks estava no Hotel Savoy. ​ Mas que diabo! ​ Stephen se arrependeu no mesmo instante de ter praguejado. ​ Desculpe. ​ Ocorreu-me depois que Levin podia estar mentindo. Ele estava com a măo ferida… e lembrei que vocę cortara com a espada aquele maluco no parque. E pouco a pouco fui chegando ŕ conclusăo… Fiz uma coisa horrível, năo é mesmo? ​ A culpa năo é sua. Na verdade, é toda minha. Eu deveria ter-lhe contado a verdade a respeito do homem no parque. Mas achei que seria melhor năo a assustar. Eu estava enganado.
​ Pobre Aleks… Pensar que alguém pode estar querendo matá-lo… Ele é tăo delicado… ​ Como era esse tal de Levin? A pergunta deixou Lydia perturbada. Por um momento, estivera pensando em ​Levin​ como um assassino desconhecido. Agora, tinha de descrever Feliks. ​ Era alto, magro, de cabelos escuros, mais ou menos da minha idade, obviamente russo. Um rosto simpático, mas bastante enrugado… ​ Ela năo pôde continuar. Pensou apenas: E estou morrendo de desejo por ele. Stephen se levantou: ​ Vou falar com Pritchard. Ele poderá levar-me ao hotel. Lydia tinha vontade de dizer: Năo, por favor. Em vez disso, leve-me para a cama. Preciso do seu calor e da sua ternura. Mas falou apenas: ​ Lamento muito. ​ Talvez seja melhor assim. Ela ficou aturdida. ​ Por quę? ​ Porque assim poderei agarrá-lo, quando ele aparecer no Savoy para assassinar Aleks. E foi nesse momento que Lydia compreendeu que, antes que tudo aquilo acabasse, um dos dois homens que amava mataria o outro.
 
Feliks tirou cuidadosamente o vidro de nitroglicerina da pia. Atravessou o quarto como se estivesse pisando em ovos. O travesseiro achava-se em cima do colchăo. Ele aumentara o rasgăo, deixando-o com 15 centímetros de comprimento. Meteu o vidro pelo rasgăo, acomodando-o dentro do travesseiro. Ajeitara o enchimento, de maneira a que o vidro ficasse envolto por um material capaz de absorver os choques. Pegou o travesseiro e, aninhando-o como a um bebę, colocou em sua valise aberta. Fechou a valise e deixou escapar um suspiro de alívio. Vestiu o casaco, pôs o cachecol e o chapéu respeitável. Virou cuidadosamente a valise de papelăo e depois levantou-a. E saiu do quarto. A caminhada até o West End foi um verdadeiro pesadelo. Claro que ele năo podia usar a bicicleta, mas até mesmo andar já era terrível. A cada segundo visualizava o vidro marrom dentro da valise, acomodado no interior do travesseiro. Cada vez que o pé
pisava na calçada, ele imaginava que a onda de choque podia subir pelo corpo e descer pelo braço, até a valise. Em sua mente, via as moléculas de nitroglicerina vibrando cada vez mais depressa, por baixo de sua măo. Passou por uma mulher que lavava a calçada diante da própria casa. Ele se desviou para a rua, a fim de năo correr o risco de escorregar nas pedras molhadas. A mulher escarneceu: ​ Está com medo de ficar com os pezinhos molhados? Diante de uma fábrica, em Euston, uma multidăo de jovens operários saiu correndo pelos portőes, atrás de uma bola de futebol. Feliks ficou completamente imóvel, enquanto os rapazes corriam a seu redor, empurrando-se na disputa da bola. E depois alguém chutou-a para longe e eles se foram, tăo depressa quanto haviam chegado. Atravessar a Avenida Euston foi uma dança com a morte. Ficou parado no meio-fio por cinco minutos, esperando uma grande suspensăo no fluxo de tráfego; e depois teve de atravessar tăo depressa que estava quase correndo. Entrou numa papelaria de alta classe na Totteham Court. Estava tudo calmo e silencioso no interior da loja. Pôs a valise em cima do balcăo, cuidadosamente. Um empregado de jaleco branco aproximou-se. ​ Em que posso servi-lo, senhor? ​ Preciso de um envelope, por favor. O empregado alteou as sobrancelhas. ​ Apenas um, senhor? ​ Isso mesmo. ​ De algum tipo em particular, senhor? ​ Um envelope simples, mas de boa qualidade. ​ Temos marfim, azul, creme, bege… ​ Branco. ​ Está certo, senhor. ​ E uma folha de papel. ​ Uma folha de papel, senhor. Cobraram-lhe tręs pence. Feliks teria preferido fugir sem pagar, mas năo podia correr com a bomba na valise. Charing Cross estava apinhada de pessoas a caminho do trabalho em lojas e escritórios. Era
impossível andar sem levar esbarrőes. Feliks ficou parado por algum tempo num portal, procurando imaginar o que fazer. Decidiu finalmente segurar a valise com os dois braços, a fim de protegę-la das hordas apressadas. Refugiou-se num banco na Praça Leicester. Sentou-se a uma das mesas em que os clientes preenchiam seus cheques. Havia uma bandeja com penas e um tinteiro. Pôs a valise no chăo, entre os pés. Relaxou por um momento. Funcionários do banco passavam silenciosamente de um lado para outro, carregados de papéis. Feliks pegou uma caneta e escreveu no envelope que comprara: Príncipe A. A. Orlov Hotel Savoy Strand, Londres Dobrou a folha de papel em branco e colocou-a dentro do envelope, apenas pelo peso; năo queria que o envelope desse a impressăo de estar vazio. Passou a língua pela aba gomada e fechou o envelope. Depois, relutantemente, pegou a valise e deixou o banco. Na Praça Trafalgar, mergulhou seu lenço na fonte e molhou o rosto. Passou pela Estaçăo de Charing Cross e seguiu para leste, acompanhando o rio. Perto da Ponte de Waterloo, havia um grupo de garotos junto ao parapeito, jogando pedras nas gaivotas. Feliks perguntou ao que parecia mais inteligente: ​ Quer ganhar um pęni? ​ Claro que quero! ​ Está com as măos limpas? ​ Claro! O garoto mostrou as măos imundas. Teriam de servir, pensou Feliks. ​ Sabe onde fica o Hotel Savoy? ​ Claro! Feliks entregou o envelope e um pęni ao garoto. ​ Conte até cem bem devagar e depois leve essa carta ao hotel. Entendido? ​ Claro! Feliks subiu os degraus para a ponte. Estava apinhada de homens de chapéu-coco, atravessando o rio, procedentes do lado de Waterloo. Ele juntou-se ŕ procissăo de transeuntes. Entrou numa loja de jornais e comprou The Times. Quando já ia sair, um rapaz passou correndo pela
porta. Feliks estendeu o braço e deteve o rapaz, gritando: ​ Veja para onde está indo! O rapaz ficou aturdido. Enquanto saía, Feliks ouviu-o dizer ao jornaleiro: ​ Um sujeitinho muito nervoso, năo é mesmo? ​ Trata-se de um estrangeiro ​ respondeu o jornaleiro. Feliks năo ouviu mais nada, pois já estava na calçada. Logo deixou o Strand e entrou no hotel. Sentouse numa poltrona no saguăo, pondo a valise no chăo, entre seus pés. Năo falta muito agora, pensou ele. Do lugar em que estava, podia avistar as duas portas e o balcăo da recepçăo. Enfiou a măo no interior do casaco e consultou um relógio imaginário. Depois, abriu o jornal e recostou-se para esperar, como se tivesse marcado um encontro ali. Puxou a valise para mais perto da poltrona e estendeu as pernas pelos dois lados, protegendo-a da possibilidade de um chute de algum distraído. O saguăo estava apinhado, faltando poucos minutos para as 10 horas. Era ali que a classe dominante fazia sua primeira refeiçăo do dia, pensou Feliks. Ele năo comera, mas também năo estava com apetite naquela manhă. Examinou as outras pessoas no saguăo, por cima de The Times. Havia dois homens que podiam ser detetives. Feliks ficou imaginando se eles poderiam impedir sua fuga. Mas mesmo que ouvissem a explosăo, pensou ele, como poderiam saber quem era o responsável entre as dezenas de pessoas que correriam pelo saguăo? Ninguém sabe como eu pareço. Só saberiam se estivessem atrás de mim. Terei de verificar se năo me estăo procurando. Ficou pensando se o garoto apareceria. Afinal, o pirralho já recebera seu pęni. Talvez tivesse jogado o envelope no rio e saído para comprar balas. Se isso tivesse acontecido, Feliks teria de fazer tudo de novo, até encontrar um garoto honesto. Ele leu um artigo no jornal, levantando os olhos a intervalos de poucos segundos. O governo queria fazer com que as pessoas que davam dinheiro ŕ Uniăo Política e Social das Mulheres fossem responsáveis pelo pagamento dos danos causados pelas sufragistas. Planejava-se uma legislaçăo especial para possibilitar isso. Como os governos se tornam tolos ao ficar intransigentes, pensou Feliks; as pessoas simplesmente passarăo a dar o dinheiro anonimamente. Onde estava o garoto? Ele se perguntou o que Orlov estaria fazendo naquele momento. Provavelmente estaria trancado num dos quartos do hotel, alguns metros acima da cabeça de Feliks, comendo, escrevendo uma carta ou negociando com Walden. Eu gostaria de matar Walden também, pensou Feliks. Năo era impossível que os dois passassem pelo saguăo a qualquer momento. Mas era esperar demais. O que eu faria se isso acontecesse?, perguntou-se Feliks. Jogaria a bomba e morreria feliz.
Avistou o garoto através da porta de vidro. O garoto aproximava-se pela rua estreita que levava ŕ entrada do hotel. Feliks podia ver o envelope branco na măo dele. O garoto o segurava por uma ponta, quase com aversăo, como se ele estivesse limpo e o envelope imundo. O garoto encaminhou-se para a porta, mas foi detido por um porteiro. Havia alguma discussăo, inaudível para quem estava lá dentro, mas finalmente o garoto foi embora. O porteiro entrou no saguăo com o envelope na măo. Feliks ficou tenso. Daria certo? O porteiro entregou o envelope ao chefe da recepçăo. O chefe da recepçăo olhou para o envelope, pegou um lápis e escreveu alguma coisa no canto superior direito… o número do quarto?… e chamou um entregador. Estava dando certo! Feliks se levantou, pegando a valise cuidadosamente e encaminhando-se para a escada. O entregador passou por ele no primeiro andar e continuou a subir. Feliks foi atrás. Estava quase fácil demais. Permitiu que o entregador subisse mais um lance de escada ŕ sua frente, depois acelerou os passos, a fim de năo perdę-lo de vista. O entregador avançou pelo corredor no quinto andar. Feliks parou e ficou observando. O entregador bateu numa porta. Abriram-na pelo lado de dentro. Uma măo se estendeu e pegou o envelope. Vocę está perdido, Orlov. O entregador fez uma encenaçăo de se afastar e foi chamado de volta. Feliks năo pôde ouvir as palavras. O rapaz recebeu uma gorjeta e disse: ​ Muito obrigado, senhor. É muita bondade sua. A porta foi fechada. Feliks começou a avançar pelo corredor. O rapaz viu a valise e estendeu a măo, dizendo: ​ Posso levá-la, senhor? ​ Năo! ​ disse Feliks, bruscamente.
​ Está certo, senhor ​ disse o rapaz, seguindo adiante. Feliks encaminhou-se para a porta do quarto de Orlov. Será que năo havia outras medidas de precauçăo? Walden podia imaginar que um assassino năo seria capaz de entrar num quarto de hotel de Londres, mas Orlov sabia que as coisas podiam ser muito diferentes. Por um momento, Feliks sentiu-se tentado a ir embora. Ou talvez devesse fazer mais algum reconhecimento. Mas agora estava perto demais de Orlov. Ele pôs a valise no tapete, diante da porta. Abriu a valise, meteu a măo dentro do travesseiro e retirou o vidro marrom, com extremo cuidado. Empertigou-se lentamente. E bateu na porta.
OITO
Walden olhou para o envelope. Estava endereçado numa letra impecável e indefinida. Fora escrito por um estrangeiro, pois um inglęs teria posto Príncipe Orlov ou Príncipe Aleksey, mas năo Príncipe A.A. Orlov. Walden gostaria de saber o que havia dentro, mas Aleks deixara o hotel de madrugada e ele năo poderia abrir o envelope em sua ausęncia. Afinal, era a correspondęncia de outro homem. Entregou o envelope a Basil Thomson, que năo tinha tais escrúpulos. Abrindo-o, Thomson tirou uma única folha de papel, exclamando: ​ Está em branco! E nesse instante bateram na porta. Todos se moveram rapidamente. Walden afastou-se para perto das janelas, longe da porta e da linha de fogo, postando-se atrás de um sofá, pronto para abaixar-se. Os dois detetives colocaram-se aos lados da porta, sacando suas armas. Thomson ficou no meio do quarto, por trás de uma poltrona. Tornaram a bater na porta e Thomson gritou: ​ Pode entrar. Está aberta. A porta se abriu e lá estava ele. Walden apertou o encosto do sofá. Ele era mesmo assustador. Era um homem alto, de chapéu-coco, com um casaco preto abotoado até o pescoço. Tinha um rosto comprido, pálido e esquelético. Segurava na măo esquerda um vidro marrom grande. Os olhos correram pela sala e ele compreendeu num relance que era uma armadilha. Levantou o vidro e gritou: ​ Nitro! ​ Năo atirem! ​ disse Thomson aos dois detetives. Walden sentiu um calafrio de medo. Sabia o que era nitroglicerina e sabia que todos morreriam, se o vidro caísse. Queria viver; năo queria morrer num segundo de agonia intensa. Houve um longo momento de silęncio. Ninguém se mexeu. Walden olhava fixamente para o rosto do assassino. Era um rosto duro, determinado, astuto. Todos os detalhes ficaram gravados na mente de Walden, naquela curta e terrível pausa; o nariz curvo, a boca larga, os olhos tristes, os cabelos pretos aparecendo por baixo do chapéu. Ele é louco?, pensou Walden. Amargurado? Cruel? Sádico? O rosto mostrava apenas que era um homem sem medo. Thomson rompeu o silęncio. ​ Entregue-se. Ponha esse vidro no chăo. Pare de bancar o idiota. Walden estava pensando: Se os detetives atirarem e o homem cair, poderei alcançá-lo antes que o vidro se quebre no chăo? Năo.
O assassino permaneceu imóvel, o vidro levantado. Ele está olhando para mim e năo para Thomson, percebeu Walden; está-me estudando, como se me achasse fascinante; absorvendo todos os detalhes, e imaginando como sou. É um olhar pessoal. Acha-se interessado em mim, assim como estou interessado nele. Ele já verificou que Aleks năo está aqui… e o que vai fazer agora? O assassino falou a Walden em russo: ​ Vocę năo é tăo estúpido quanto parece. Walden pensou: Será que ele é suicida? Vai matar a todos nós e também a si próprio? É melhor mantę-lo a falar… E de repente o homem se foi. Walden ouviu os passos se afastando rapidamente pelo corredor. Walden encaminhou-se para a porta. Os outros tręs estavam ŕ sua frente. No corredor, os detetives se ajoelharam, mirando suas armas. Walden viu o assassino afastar-se com um passo estranho, o braço esquerdo pendendo reto ao lado do corpo, segurando o vidro o mais firmemente que podia. Se explodir agora, pensou Walden, será que vai matar a todos nós, a essa distância? Provavelmente năo. Thomson estava pensando a mesma coisa e ordenou aos detetives: ​ Atirem! Dois revólveres dispararam. O assassino parou e virou-se. Teria sido atingido? Ele jogou o vidro na direçăo de seus perseguidores. Thomson e os dois detetives se jogaram no chăo. Walden compreendeu num relance que năo adiantaria estar estendido no chăo, se a nitroglicerina explodisse. O vidro girava no ar, enquanto voava na direçăo deles. Ia cair no chăo a um metro e meio de Walden. E se caísse, certamente explodiria. Walden correu na direçăo do vidro. Desceu num arco. Ele estendeu as măos para o vidro. Pegou-o. Os dedos pareciam escorregar pelo
vidro. Ficou em pânico, quase largou o vidro, tornou a segurá-lo com firmeza… Năo escorregue, pelo amor de Deus… …como um goleiro pegando uma bola de futebol, puxou-o de encontro ao peito, amortecendo o impacto e girando na direçăo seguida pelo arremesso: perdeu o equilíbrio, caiu de joelhos, firmou-se, ainda segurando o vidro e pensando: Vou morrer. Nada aconteceu. Os outros fitavam-no, aturdidos. Ele permaneceu de joelhos, o vidro nos braços, como se fosse um bebę recém-nascido. Um dos detetives desmaiou.
 
Feliks olhou espantado para Walden por mais uma fraçăo de segundo, depois virou-se e desceu correndo a escada. Walden era espantoso. Que coragem, pegar aquele vidro! Ele ouviu um grito distante: ​ Sigam-no! Está acontecendo de novo, pensou ele; estou fugindo outra vez. O que há comigo? A escada era interminável. Ouviu passos em seu encalço. Soou um tiro. No patamar seguinte ele esbarrou num garçom com uma bandeja. O garçom caiu, louça e comida voando em todas as direçőes. O perseguidor achava-se um ou dois lances de escada atrás dele. Feliks chegou ao pé da escada. Controlou-se e atravessou o saguăo. Ainda estava apinhado, Ele tinha a sensaçăo de que estava andando numa corda bamba. Pelo canto dos olhos, observou os dois homens que identificara como possíveis detetives. Estavam absorvidos em conversa, parecendo preocupados; deviam ter ouvido os estampidos distantes. Feliks atravessou lentamente o saguăo, fazendo um tremendo esforço para resistir ao impulso de correr. Tinha a impressăo de que todos o observavam. Ficou olhando para a frente, fixamente. Chegou ŕ porta e saiu. ​ Quer um carro, senhor? ​ perguntou o porteiro. Feliks embarcou numa carruagem de aluguel ŕ espera e afastou-se.
Ao virar no Strand, olhou para o hotel. Um dos detetives lá de cima saía correndo pela porta, acompanhado pelos dois homens de vigia no saguăo. Falaram com o porteiro. Ele apontou para o carro de Feliks. Os detetives sacaram as armas e correram atrás do carro. O tráfego era intenso. A carruagem parou no Strand. Feliks saltou. ​ Ei, que diabo está fazendo? ​ gritou o cocheiro. Feliks esquivou-se pelo tráfego para o outro lado da rua e correu para o norte. Olhou para trás. Os detetives ainda estavam atrás dele. Tinha de permanecer distanciado até se desvencilhar dos perseguidores, num labirinto de vielas ou numa estaçăo ferroviária. Um guarda uniformizado viu-o correndo e observou, desconfiado, do outro lado da rua. Um momento depois, os detetives também viram o guarda e gritaram-lhe. O guarda se juntou ŕ perseguiçăo. Feliks correu mais depressa. O coraçăo estava descompassado, a respiraçăo era ofegante. Virou uma esquina e descobriu-se no mercado de frutas e legumes de Covent Garden. As ruas calçadas de pedras estavam entupidas de caminhőes e carroças puxadas por cavalos. Por toda parte, havia carregadores com imensas bandejas de madeira na cabeça ou empurrando carrinhos de măo. Barricas de maçăs estavam sendo descarregadas de carroças por homens musculosos, de camiseta. Caixas de alface, tomate e morangos eram compradas e vendidas por homens de chapéu-coco, sendo apanhadas e carregadas por homens de gorro. O barulho era tremendo. Feliks embrenhou-se pelo coraçăo do mercado. Escondeu-se por trás de uma pilha de engradados vazios e espiou. Depois de um momento, avistou os perseguidores. Achavam-se parados, olhando ao redor. Houve alguma conversa e depois os quatro se separaram para procurar; Lydia me traiu, pensou Feliks, enquanto recuperava o fôlego. Será que ela já sabia que eu estava pretendendo matar Orlov? Năo, năo podia saber. Ela năo estava representando naquela manhă; năo estava dissimulando quando me beijou. Mas se acreditou na história de tirar um marinheiro da prisăo, certamente nada teria contado a Walden. Mas talvez tenha compreendido depois que eu menti e por isso avisou ao marido, pois năo queria ter qualquer participaçăo no assassinato de Orlov. Năo me traiu exatamente. Ela năo me vai beijar na próxima vez. Năo haverá uma próxima vez. O guarda estava-se aproximando do lugar em que ele se escondia.
Feliks contornou a pilha de engradados e descobriu-se sozinho numa área cercada por caixotes. Escapei ŕ armadilha deles, pensou ele. Graças a Deus pela nitroglicerina. Mas eles deveriam estar com medo de mim. Sou o caçador; eu é quem faço as armadilhas. O problema é Walden. Ele é o perigo. Escapou por duas vezes. Quem poderia imaginar que um aristocrata de cabelos grisalhos tivesse tanta coragem? Ele se perguntou onde estaria o guarda. Deu uma olhada. E se deparou frente a frente com o homem. O rosto do guarda estava assumindo uma expressăo de surpresa, quando Feliks o agarrou pelo casaco e o puxou. O guarda cambaleou. Feliks terminou de derrubá-lo. O homem caiu no chăo. Feliks caiu por cima dele, agarrando-o pela garganta. Começou a apertar. Feliks odiava guardas. Podia lembrar-se de Bialystock, quando os fura-greves, armados com barras de ferro, haviam espancado os operários, enquanto a polícia olhava, sem nada fazer. Podia lembrar-se do pogrom, quando os arruaceiros corriam ŕ solta pelo bairro judeu, ateando fogo ŕs casas, espancando velhos, estuprando moças, enquanto os guardas a tudo observavam, rindo. Podia recordar o Domingo Sangrento, quando os soldados atiravam contra a multidăo pacífica diante do Palácio de Inverno, enquanto a polícia observava e aplaudia. Podia recordar os policiais que o haviam levado ŕ Fortaleza de Săo Pedro e Săo Paulo para ser torturado, os policiais que o haviam escoltado ŕ Sibéria e roubado seu capote, os policiais que haviam invadido a reuniăo de greve em Săo Petersburgo com seus cassetetes, batendo nas cabeças das mulheres… eles sempre batiam nas mulheres. Um guarda era um trabalhador que vendera sua alma. Feliks apertou com mais força. Os olhos do guarda se fecharam, ele parou de se debater. Feliks aumentou a pressăo. Ouviu um som. Virou a cabeça. Um menino de dois ou tręs anos estava parado ali, comendo uma maçă, observando-o estrangular o guarda.
Feliks pensou: O que estou esperando? Ele largou o guarda. O menino aproximou-se e olhou para o homem inconsciente. Feliks olhou ao redor. Năo viu nenhum dos detetives. ​ Ele está dormindo? ​ perguntou o menino. Feliks afastou-se. Deixou o mercado sem ver nenhum de seus perseguidores. Encaminhou-se para o Strand. Começou a sentir-se seguro. Pegou um ônibus na Praça Trafalgar.
 
Quase morri, Walden năo parava de pensar; quase morri. Ele estava sentado na suíte do hotel, enquanto Thomson se reunia com sua equipe de detetives. Alguém lhe entregou um copo com conhaque e soda e foi só nesse momento que percebeu que suas măos estavam tremendo. Năo conseguia afastar dos pensamentos a imagem do vidro de nitroglicerina em suas măos. Tentou concentrar-se em Thomson. O policial mudou visivelmente enquanto falava a seus homens. Tirou as măos dos bolsos, sentou-se na beira de uma cadeira, a voz passou de um sotaque arrastado para um tom incisivo e seco. Walden começou a acalmar-se, enquanto Thomson falava: ​ O homem escapuliu entre os nossos dedos. Năo vai acontecer uma segunda vez. Sabemos agora alguma coisa a respeito dele e vamos descobrir ainda mais. Sabemos que ele estava em Săo Petersburgo em 1895, porque Lady Walden se lembra dele. Sabemos que esteve na Suíça, porque a valise em que carregava a bomba era suíça. E sabemos como ele parece. Aquele rosto, pensou Walden; e cerrou os punhos. Thomson continuava a falar: ​Watts, quero que vocę e seus rapazes gastem algum dinheiro no East End. O homem é quase que certamente russo, provavelmente um anarquista e judeu. Mas năo tomem isso como favas contadas. Vamos ver se conseguimos descobrir seu nome. Se isso acontecer, telegrafem para Zurique e Săo Petersburgo, pedindo informaçőes. Richards, vocę vai começar pelo envelope. O homem provavelmente comprou um só e assim o vendedor deve lembrar-se. Woods, vocę vai trabalhar no vidro. É um vidro Winchester, com uma tampa de vidro. Descubra quem é o fornecedor em Londres. Mande seus homens percorrerem as lojas, verificando se algum químico se lembra de um freguęs cuja descriçăo corresponda ao nosso homem. Claro que ele deve ter comprado os ingredientes para a nitroglicerina em diversas lojas diferentes. E se conseguirmos descobrir as lojas, saberemos que lugar de Londres procurar.​
Walden estava impressionado. Năo imaginara que o assassino pudesse deixar tantas pistas. Começou a sentir-se melhor. Thomson virou-se agora para um rapaz de chapéu de feltro e colarinho mole. ​Taylor, o seu trabalho será o mais importante. Lorde Walden e eu vimos o assassino rapidamente, mas Lady Walden teve a oportunidade de observá-lo por algum tempo. Irá conosco e fará um desenho do homem, com a ajuda dela. Quero que o retrato seja impresso esta noite e distribuído a todas as delegacias de polícia de Londres até o meio-dia de amanhă.​ O homem năo vai conseguir escapar-nos, pensou Walden. E depois se lembrou que pensara a mesma coisa quando haviam preparado a armadilha no hotel. Recomeçou a tremer.
 
Feliks contemplou-se no espelho. Cortara os cabelos bem curtos, como um prussiano, arrancara as sobrancelhas, até que se transformassem em linhas finas. Deixaria de fazer a barba imediatamente. Em uma semana, a barba e o bigode cobririam inteiramente a boca e o queixo, que tanto sobressaíam. Infelizmente, năo havia nada que pudesse fazer em relaçăo ao nariz. Comprara óculos de segunda măo, com aros largos. As lentes eram pequenas, a fim de que pudesse olhar por cima delas. Trocara o chapéucoco e o casaco preto por um jaquetăo azul de marinheiro e um gorro de tweed, com uma pala. Um olhar atento ainda o revelaria como o mesmo homem, mas estava agora completamente diferente a um olhar de relance. Sabia que tinha de deixar a casa de Bridget. Comprara todos os ingredientes químicos naquela área; quando a polícia descobrisse isso, começaria uma busca de casa em casa. Mais cedo ou mais tarde, a polícia apareceria naquela rua e um vizinho diria: ​Eu o conheço. Ele está no quarto de porăo de Bridget.​ Ele estava em fuga. Era humilhante e deprimente. Já estivera em fuga outras vezes, mas sempre depois de matar alguém, nunca antes. Pegou a navalha, as roupas de baixo de reserva, a dinamite que fizera e o livro de contos de Pushkin, enrolando tudo com a camisa limpa. Foi até ŕ sala de visitas de Bridget. ​ Santo Deus, o que fez com as suas sobrancelhas? ​ indagou ela. ​ Era um homem bonito. ​ Tenho de ir embora. Ela olhou para o embrulho. ​ Estou vendo. ​ Se a polícia aparecer, năo precisa mentir. ​ Direi que o expulsei daqui, porque desconfiei de que era um anarquista. ​ Adeus, Bridget. ​ Tire esses óculos idiotas e me dę um beijo.
Feliks beijou-a no rosto e saiu. ​ Boa sorte, rapaz ​ gritou ela. Ele pegou a bicicleta e, pela terceira vez desde que chegara a Londres, saiu ŕ procura de alojamentos. Foi andando lentamente. Năo estava mais fraco dos ferimentos ocasionados pela espada, mas o espírito se encontrava minado pelo senso de fracasso. Passou por North London e pela City, em seguida atravessou o rio na Ponte de Londres. Dirigiu-se depois para sudeste, passando por um pub chamado The Elephant and Castle. Encontrou na área de Old Kent o tipo de habitaçăo em que poderia obter acomodaçőes baratas e sem perguntas. Alugou um quarto no quinto andar de um cortiço de propriedade da Igreja Anglicana, conforme foi informado lugubremente pelo zelador. Năo poderia fazer nitroglicerina ali, já que năo havia água corrente no quarto… nem no prédio, havendo apenas uma bica e uma privada no pátio. O quarto era desolador. Havia uma expressiva ratoeira no canto e a única janela estava coberta por jornal. A tinta estava descascando, o colchăo fedia. O zelador, um homem gordo e encurvado, os pés em chinelos, tossindo a todo instante, disse: ​ Se quiser consertar a janela, posso arrumar o vidro bem barato. ​ Onde posso guardar minha bicicleta? ​ Eu a traria aqui para cima, se fosse vocę. Será roubada em qualquer outro lugar. Com a bicicleta no quarto, quase năo haveria espaço entre a cama e a porta. ​ Ficarei com o quarto ​ disse Feliks. ​ Terá entăo de pagar doze xelins. ​ Disse que o aluguel era de tręs xelins por semana. ​ Quatro semanas adiantadas. Feliks pagou. Depois de comprar os óculos e trocar as roupas, restavam-lhe agora uma libra e 19 xelins. O zelador disse: ​ Se quiser pintar o quarto, posso arrumar a tinta pela metade do preço. ​ Falarei com vocę se quiser. O quarto era sórdido, mas esse era o menor dos seus problemas. No dia seguinte teria de recomeçar a procurar Orlov.
 
​ Stephen! ​ exclamou Lydia. ​ Graças a Deus que vocę está bem!
Ele passou o braço pelos ombros dela. ​ Claro que estou bem. ​ O que aconteceu? ​ Infelizmente, năo pegamos o nosso homem. Lydia quase desmaiou de alívio. Desde que Stephen dissera que iria pegar o homem que Lydia estava duplamente apavorada, com medo de que Feliks matasse Stephen e com medo de que, se isso năo acontecesse, ela fosse responsável, pela segunda vez, por levá-lo ŕ prisăo. Sabia o que ele sofrera na primeira vez, e o pensamento a deixava desesperada. ​ Creio que já conhece Basil Thomson ​ disse Stephen. ​ E esse é o Sr. Taylor, o desenhista da polícia. Vamos todos ajudá-lo a desenhar o rosto do assassino. Lydia sentiu um aperto no coraçăo. Teria de passar horas a visualizar o amante, na presença do marido. Quando tudo isso vai terminar?, pensou ela. Stephen acrescentou: ​ Onde está Charlotte? ​ Saiu para fazer compras. ​ Ótimo. Năo quero que ela saiba o que está acontecendo. Especialmente, năo quero que ela saiba onde Aleks está. ​ Năo diga a mim também ​ pediu Lydia. ​ Prefiro năo saber. Assim, năo poderei cometer o mesmo erro novamente. Eles se sentaram, e o desenhista ajeitou o bloco. E ele desenhou o rosto por várias vezes. Lydia poderia tę-lo desenhado em cinco minutos. A princípio, tentou levar o desenhista por um caminho errado, dizendo ​Năo é bem assim​, quando alguma coisa estava exatamente certa, e ​É isso mesmo​ quando alguma coisa estava basicamente errada. Mas Stephen e Thomson tinham visto Feliks claramente, se bem que por um rápido instante, tratando de corrigi-la. Ao final, com receio de ser descoberta, ela cooperou da maneira apropriada, pensando durante todo o tempo que poderia estar ajudando para meter Feliks na prisăo outra vez. Terminaram com um retrato que tinha muita semelhança com o rosto que Lydia amava. Depois disso, os nervos dela estavam tăo abalados que tomou uma dose de láudano e foi dormir. Sonhou que estava indo para Săo Petersburgo a fim de se encontrar com Feliks. Com a lógica terrível dos sonhos, imaginou que estava indo pegar o navio numa carruagem, em companhia de duas duquesas, que năo hesitariam em expulsá-la da sociedade polida, se conhecessem o seu passado, na vida real. Contudo, as tręs cometeram um erro e foram parar em Bournemouth, ao invés de Southampton. Pararam ali para um descanso, embora fossem cinco horas e o navio partisse ŕs sete. As duquesas disseram a Lydia que dormiriam juntas á noite e se acariciariam de maneira pervertida. Mas isso năo era absolutamente uma surpresa, embora as duas fossem muito velhas. Lydia dizia a todo instante ​Temos de ir agora​, mas elas năo lhe davam a menor atençăo. Um homem apareceu com uma mensagem para Lydia. Estava assinada: ​Seu amante anarquista.​ Lydia disse ao mensageiro: ​Avise a meu amante anarquista que estou tentando
pegar o navio das sete horas.​ Pronto, o segredo estava revelado. As duquesas trocaram olhares maliciosos. Quando faltavam 20 minutos para as sete horas, Lydia compreendeu que ainda năo arrumara a bagagem. Começou a jogar coisas em malas, mas năo conseguia encontrar o que procurava. Os segundos iam passando, ela já estava atrasada, compreendeu que năo conseguiria encher as malas. Saiu sem a bagagem, subiu na carruagem e foi conduzindo-a pessoalmente. Perdeu-se ŕ beira do mar em Bournemouth e năo conseguiu sair da cidade, e despertou ainda muito longe de Southampton. Permaneceu deitada na cama, o coraçăo batendo descompassado, os olhos arregalados, fixados no teto. E pensou: Foi apenas um sonho. Graças a Deus! Graças a Deus!
 
Feliks foi-se deitar desesperado e acordou furioso. Estava furioso consigo mesmo. O assassinato de Orlov năo era uma missăo sobre-humana. O homem podia estar sendo protegido, mas năo era possível trancá-lo num cofre subterrâneo, como se fosse dinheiro no banco. Além do mais, até mesmo os cofres de banco podiam ser arrombados. Feliks era inteligente e determinado. Com pacięncia e persistęncia, encontraria um meio de contornar todos os obstáculos que pusessem em seu caminho. Estava sendo caçado. Mas năo deixaria que o apanhassem. Andaria por ruas secundárias, evitaria os vizinhos e se manteria constantemente alerta aos uniformes azuis da polícia. Já fora caçado muitas vezes desde que começara sua carreira de violęncia, mas nunca fora apanhado. Ele se levantou, foi lavar-se na bica no pátio, lembrou-se de năo fazer a barba, pôs o gorro de tweed, o jaquetăo de marinheiro e os óculos, comeu alguma coisa numa barraca de chá e seguiu de bicicleta para o Parque St. James, evitando as ruas de maior movimento. A primeira coisa que viu foi um guarda de uniforme, andando de um lado para outro, diante da casa de Walden. Isso significava que năo poderia ocupar seu posto habitual para vigiar a casa. Tinha de ficar muito mais longe no parque e observar a uma grande distância. Também năo poderia ficar no mesmo lugar por muito tempo, pois o guarda poderia vę-lo e ficar desconfiado. Um automóvel saiu da casa por volta de meio-dia. Feliks correu para sua bicicleta. Năo vira o automóvel entrar e por isso devia presumir que pertencia a Walden. Antes, a família sempre andara de carruagem. Mas năo havia motivo para que năo tivessem também um automóvel. Feliks achava-se longe demais para perceber quem viajava no automóvel. Esperava que fosse Walden. O carro seguiu para a Praça Trafalgar, Feliks seguiu pelo gramado para interceptá-lo. O carro estava alguns metros ŕ sua frente quando chegou ŕ rua. Acompanhou-o sem a menor dificuldade em torno da praça, mas depois o automóvel se distanciou um pouco, seguindo para o norte, pela Charing Cross. Pedalava depressa, mas năo furiosamente. Por um lado, năo queria atrair atençăo; por outro, queria conservar as forças. Mas foi cauteloso demais, pois o automóvel havia desaparecido quando ele chegou ŕ
Rua Oxford. Amaldiçoou-se por ser um tolo. Em que direçăo o automóvel teria seguido? Havia quatro possibilidades: ŕ esquerda, em frente, ŕ direita, ŕ direita numa curva fechada. Feliks teve um palpite e seguiu em frente. Tornou a avistar o automóvel num engarrafamento em Tottenham Court. Ele deixou escapar um suspiro de alívio. Alcançou-o quando virava para leste. Arriscou-se a chegar perto o bastante para dar uma olhada no interior. Na frente havia um homem com um quepe de motorista. E no banco traseiro estava alguém de cabelos grisalhos e barba: Walden! Vou matá-lo, pensou Feliks; por Deus, vou matá-lo! Ele ultrapassou o carro no engarrafamento nas proximidades da Estaçăo Euston, pensando que Walden poderia vę-lo quando o carro recomeçasse a andar. Permaneceu na frente por toda a Avenida Euston olhando para trás a todo instante, a fim de verificar se o carro ainda o seguia. Esperou no cruzamento da King​s Cross, respirando fundo, até que o carro passasse. O carro virou para o norte. Feliks desviou o rosto durante a passagem e depois foi atrás. O tráfego era intenso e ele podia acompanhar o carro, embora fosse um trabalho cansativo. Começou a torcer para que Walden estivesse indo encontrar-se com Orlov. Uma casa em North London, discreta e suburbana poderia ser um bom esconderijo. A emoçăo de Feliks foi aumentando. Poderia matar os dois. Depois de cerca de um quilômetro, o tráfego foi-se tornando menos intenso. O carro era grande e potente. Feliks tinha de pedalar cada vez mais depressa. Estava suando profusamente. E pensou: Por quanto tempo mais isso vai continuar? Um tráfego intenso na Estrada Holloway proporcionou-lhe a oportunidade de descansar um pouco. Depois, o carro tornou a acelerar, ao longo da Estrada Seven Sisters. Feliks seguia tăo depressa quanto podia. A qualquer momento agora o carro podia deixar a via principal; podia estar a poucos minutos de seu destino. Tudo o que quero é um pouco de sorte!, pensou Feliks. Recorreu ŕs últimas reservas de energia. As pernas doíam agora, a respiraçăo era ofegante. O carro afastava-se dele inexoravelmente. Feliks finalmente desistiu, quando o carro já estava 100 metros ŕ sua frente e ainda acelerando. Feliks diminuiu a velocidade e parou. Ficou sentado na bicicleta, junto ŕ calçada, inclinado sobre o guidom, esperando para recuperar o fôlego. Sentia-se tonto. Era sempre assim, pensou ele, amargamente: a classe dominante lutava com todo o conforto. Lá estava Walden, sentado confortavelmente num automóvel grande, fumando um charuto, sem ao menos ter o trabalho de guiar. Era evidente que Walden estava deixando a cidade. Orlov poderia estar em qualquer lugar ao norte de Londres, a meio dia de viagem num automóvel veloz. Feliks estava totalmente derrotado… mais uma vez. Por falta de uma idéia melhor, ele fez a volta e seguiu de novo para o Parque St. James.
 
Charlotte ainda estava emocionada com o discurso da Sra. Pankhurst.
Claro que haveria miséria e sofrimento, enquanto todo o poder estivesse nas măos de uma metade do mundo e essa metade năo tivesse a menor compreensăo dos problemas da outra metade. Os homens aceitavam um mundo brutal e injusto porque năo era brutal e injusto para eles, mas sim para as mulheres. Se estas também tivessem poder, năo restaria mais ninguém para ser oprimido. No dia seguinte ao comício das sufragistas, a mente dela estava fervilhando com tais especulaçőes. Via todas as mulheres em derredor, as criadas, caixeiras das lojas, babás no parque, até mesmo a măe, sob uma nova luz. Sentia que começava a compreender como o mundo funcionava. Năo mais estava ressentida com o pai e a măe por lhe terem mentido. Năo lhe haviam realmente mentido, a năo ser por omissăo. Além do mais, eles enganavam a si mesmos, quase tanto quanto a haviam enganado. E o pai lhe falara francamente, apesar de suas evidentes inclinaçőes. Mesmo assim, Charlotte ainda queria descobrir as coisas por si mesma, a fim de que pudesse ter certeza da verdade. Pela manhă, ela obteve algum dinheiro, pelo simples expediente de sair para as compras em companhia de um lacaio e lhe dizendo: ​ Dę-me um xelim. Mais tarde, enquanto o lacaio esperava com a carruagem na entrada principal da Liberty​s, na Rua Regent, Charlotte saiu por uma porta lateral e foi a pé até a Rua Oxford, onde encontrou uma mulher vendendo o jornal sufragista Voto para as Mulheres. O jornal custou um pęni. Charlotte voltou ŕ Liberty​s e foi ao banheiro de mulheres, onde escondeu o jornal por baixo do vestido. E só depois é que voltou ŕ carruagem. Leu o jornal em seu quarto, depois do almoço. Soube que o incidente do palácio, durante sua apresentaçăo ŕ corte, năo fora a primeira vez em que a situaçăo terrível das mulheres fora levada ŕ atençăo do Rei e da Rainha. Em dezembro último, tręs sufragistas em lindos vestidos de baile haviam feito uma barricada num camarote em Covent Garden. Estava ocorrendo uma apresentaçăo de gala de Jeanne d​Arc, de Raymond Roze, com a presença do Rei e da Rainha. Ao final do primeiro ato, uma das sufragistas se levantara e começara a falar ao Rei com a ajuda de um megafone. Fora necessária meia hora para arrombar a porta do camarote e retirar as tręs mulheres. Nesse momento, mais 40 sufragistas, nas primeiras filas da galeria, levantaram-se, jogando panfletos por toda parte e retirando-se em massa. Antes e depois desse incidente, o Rei se recusara a conceder uma audięncia ŕ Sra. Pankhurst. Alegando que todos os súditos tinham o direito antigo de apresentar suas queixas ao Rei, as sufragistas anunciaram que uma comissăo iria ao palácio, acompanhada por milhares de mulheres. Charlotte verificou que a marcha seria realizada naquele dia… naquela tarde… agora. Ela queria estar presente. Disse a si mesma que nada adiantava compreender o que estava errado, se năo se fazia coisa alguma para corrigir a situaçăo. E o discurso da Sra. Pankhurst ainda ressoava em seus ouvidos: ​O espírito que existe nas mulheres hoje năo pode ser reprimido…​ O pai saíra com Pritchard, no automóvel. A măe estava deitada depois do almoço, como sempre fazia. Năo havia ninguém para impedi-la.
Charlotte pôs um vestido feio e o casaco menos elegante que possuía. Desceu silenciosamente a escada e saiu de casa.
 
Feliks estava andando pelo parque, vigiando a casa, procurando decidir o que fazer. Precisava descobrir de alguma forma para onde Walden fora no automóvel. Mas como conseguiria isso? Poderia tentar novamente arrancar a informaçăo de Lydia? Era possível, com algum risco, passar pelo guarda e entrar na casa. Mas seria capaz de sair? Lydia năo daria o alarme? Mesmo que ela o deixasse partir, dificilmente lhe revelaria o segredo do esconderijo de Orlov, agora que sabia por que ele queria a informaçăo. Talvez pudesse seduzi-la… mas onde e quando? Năo podia seguir o automóvel de Walden numa bicicleta. Poderia segui-lo em outro carro? Poderia roubar um, mas năo sabia guiar. Poderia aprender? E depois de tudo isso, o motorista de Walden năo perceberia que estavam sendo seguidos? Se ele pudesse esconder-se no automóvel de Walden… Isso implicava entrar na garagem, abrir a mala do automóvel, passar várias horas lá dentro… e sempre na esperança de que nada fosse guardado ali antes da viagem. As chances contra o sucesso de um plano assim eram grandes demais para que arriscasse tudo. O motorista devia saber o destino, é claro. Ele poderia ser subornado? Embriagado? Seqüestrado? Feliks estava especulando sobre essas possibilidades, quando avistou a moça saindo de casa. Năo sabia quem ela era. Podia ser uma criada, pois a família sempre entrava e saía de carruagem. Mas ela saíra pela entrada principal, e Feliks nunca vira as criadas fazerem isso. Podia ser a filha de Lydia. Talvez ela soubesse onde Orlov se encontrava. Feliks decidiu segui-la. A jovem seguiu na direçăo da Praça Trafalgar. Deixando a bicicleta nas moitas, Feliks foi atrás dela, observando-a melhor. As roupas da moça năo pareciam de uma criada. Ele recordou que havia uma moça na carruagem na noite em que tentara matar Orlov pela primeira vez. Năo a vira direito, pois toda a sua atençăo estava… desastrosamente… concentrada em Lydia. Durante os muitos dias em que passara observando a casa, vislumbrara uma moça na carruagem em diversas ocasiőes. Era provavelmente aquela moça, concluiu Feliks. Ela estava saindo de casa furtivamente, com algum objetivo clandestino, enquanto o pai achava-se ausente e a măe se encontrava ocupada. Havia alguma coisa de vagamente familiar na moça, pensou Feliks, enquanto a seguia pela Praça Trafalgar. Ele tinha certeza de que nunca a observara mais atentamente, mas persistia a forte impressăo de déjŕ vu, enquanto contemplava o vulto esguio, as costas empertigadas, os passos apressados e determinados. Ocasionalmente, ele a via de perfil, quando a moça se virava para atravessar a rua. A inclinaçăo do queixo dela, talvez alguma coisa nos olhos, parecia despertar-lhe uma recordaçăo profunda. Será que ela o lembrava da jovem Lydia? Năo, năo era isso, concluiu Feliks. Lydia sempre parecera pequena e frágil, as feiçőes eram delicadas. Aquela moça tinha um rosto anguloso, de aparęncia forte. Fazia Feliks recordar um quadro de um pintor italiano, que vira numa galeria em Genebra. Depois de um momento, ocorreu-lhe o nome do pintor: Modigliani.
Feliks chegou ainda mais perto e um ou dois minutos depois viu claramente o rosto da moça. Sentiu que o coraçăo parava por uma fraçăo de segundo e pensou: Ela é linda! Para onde ela estava indo? Ao encontro de um namorado? Comprar alguma coisa proibida? Fazer alguma coisa que os pais desaprovavam, como ir a um cinema ou a um music hall?. A teoria do namorado era a mais provável. E era também a mais promissora, do ponto de vista de Feliks. Ele podia descobrir quem era o namorado e ameaçar denunciar o segredo da moça, a menos que ela lhe dissesse onde estava Orlov. Claro que ela năo contaria de imediato, especialmente se estivesse informada que havia um assassino atrás de Orlov. Mas tendo de escolher entre o amor de um rapaz e a segurança de um primo russo, Feliks estava convencido de que a moça haveria de preferir o romance. Ouviu um barulho distante. Seguiu a moça, virando uma esquina. E de repente encontrou-se numa rua totalmente ocupada por mulheres a marchar. Muitas usavam as cores das sufragistas, verde, branco e púrpura. Outras levavam estandartes. Havia milhares de mulheres. Em algum lugar, uma banda tocava. A moça juntou-se ŕ manifestaçăo e pôs-se a marchar com as outras mulheres. Feliks pensou: Maravilhoso! A rua estava apinhada de guardas, mas quase todos olhavam para as mulheres. Assim, Feliks podia seguir tranqüilamente pela calçada, nas costas deles. Ele foi acompanhando a marcha, sem perder a moça de vista. Ela era uma sufragista em segredo! Era vulnerável ŕ chantagem, mas podia haver meios mais sutis de manipulá-la. De um jeito ou de outro, pensou Feliks, arrancarei dela o que estou querendo.
 
Charlotte estava emocionada. A marcha era ordeira, com algumas mulheres mantendo as outras em formaçăo. Quase todas as mulheres que participavam da manifestaçăo estavam bem vestidas, tinham uma aparęncia respeitável. A banda tocava uma música animada. Havia até alguns homens, carregando uma faixa que dizia: ​Lutem contra o Governo que se Recusa a Conceder o Direito de Voto ŕs Mulheres.​ Charlotte năo mais se sentia uma desajustada com idéias heréticas. Ora, pensou ela, todos esses milhares de mulheres pensam e sentem como eu! Algumas vezes, nas últimas 24 horas, ela chegara a se perguntar se os homens năo estariam certos ao dizer que as mulheres eram fracas, estúpidas e ignorantes. É que muitas vezes ela se sentia fraca e estúpida, além de ser realmente ignorante. Agora, pensou: Se estudarmos, năo seremos ignorantes; se pensarmos por nós mesmas, năo seremos estúpidas; e se lutarmos juntas, năo seremos fracas. A banda começou a tocar o hino Jerusalém e as mulheres puseram-se a cantar. Charlotte acompanhou, com o maior entusiasmo: Năo abandonarei a luta mental A espada năo dormirá em minha măo. Năo me importo se alguém me vir neste momento, pensou ela, em desafio… nem mesmo as duquesas!
Até construirmos Jerusalém Nas terras verdes e aprazíveis da Inglaterra. A marcha atravessou a Praça Trafalgar e entrou no Mall. Subitamente, havia muito mais guardas, observando as mulheres atentamente. Havia também muitos espectadores, quase todos homens, assistindo ŕ manifestaçăo, nos dois lados da rua. Eles gritavam e assoviavam desdenhosamente. Charlotte ouviu um deles dizer: ​ Tudo o que vocęs precisam é de uma fornicaçăo! Ela ficou intensamente corada. Notou que muitas mulheres levavam um cajado com uma flecha de prata presa em cima. Perguntou ŕ mulher a seu lado o que isso significava. ​ As flechas nos trajes da prisăo ​ explicou a mulher. ​ Todas as mulheres que levam um cajado assim já estiveram na prisăo. ​ Na prisăo? Charlotte estava atordoada. Soubera que algumas sufragistas já tinham sido presas. Mas agora, olhando ao redor, viu que havia centenas de mulheres com o emblema. Pela primeira vez, ocorreu-lhe que poderia terminar o dia na prisăo. O pensamento provocou-lhe uma vertigem. Năo vou continuar, pensou ela. Minha casa fica no outro lado do parque. Posso chegar lá em cinco minutos. Prisăo! Eu morreria! Olhou para trás. E, depois, pensou: Năo fiz nada errado! Por que estou com medo de ir para a prisăo? Por que năo devo apresentar minhas queixas ao Rei? A menos que lutemos, as mulheres serăo sempre fracas, estúpidas e ignorantes. A banda recomeçou a tocar e ela empinou os ombros, marchando no ritmo. A fachada do Palácio de Buckingham assomava ao final do Mall. Uma linha de guardas, muitos deles a cavalo, estendia-se pela frente do prédio. Charlotte estava perto da frente da procissăo. Tentou imaginar o que as líderes tencionavam fazer quando chegassem aos portőes. Lembrou-se da tarde em que deixara a Derry & Toms e vira um bębado cambaleando pela calçada em sua direçăo. Um cavalheiro de cartola empurrara o bębado com a bengala, enquanto o lacaio rapidamente ajudava-a a embarcar na carruagem, encostada no meio-fio. Ninguém a protegeria de empurrőes e esbarrőes naquele dia. Elas se achavam agora nos portőes do palácio. Na última vez em que aqui estive, pensou Charlotte, foi a convite. A frente da procissăo alcançou a linha de guardas. Por um momento, houve um impasse. As pessoas por trás empurravam para frente. Charlotte avistou a Sra. Pankhurst. Esta usava casaco e saia púrpuras, blusa branca de gola alta e colete verde. O chapéu era púrpura, com uma imensa pena branca de avestruz e um véu. Ela se desligara da massa de manifestantes e conseguira chegar sem ser notada ao portăo distante que dava para o pátio do palácio. Que mulher mais corajosa, marchando de cabeça erguida para os portőes do Rei!
Ela foi detida por um inspetor. Era um homem alto e corpulento, parecia pelo menos dois palmos maior do que a Sra. Pankhurst. O inspetor barrou o caminho dela. A Sra. Pankhurst tentou contorná-lo. E nesse momento, para horror de Charlotte, o policial segurou a Sra. Pankhurst num abraço firme, levantando-a e levando-a para longe. Charlotte ficou furiosa… e o mesmo aconteceu com todas as outras mulheres a seu redor. As manifestantes se comprimiram vigorosamente contra a linha de guardas. Charlotte viu algumas mulheres passarem e correrem na direçăo do palácio, perseguidas por guardas. Os cavalos remexeram os cascos com ferraduras de ferro fazendo um barulho ameaçador no calçamento. A linha começou a se romper. Diversas mulheres se engalfinharam com guardas e foram derrubadas no chăo. Charlotte ficou apavorada com a perspectiva de ser maltratada. Alguns dos homens que observavam a cena das calçadas correram em ajuda aos guardas, os empurrőes transformaram-se numa luta. Uma mulher de meia-idade, perto de Charlotte, foi agarrada pelas coxas. ​ Tire as măos de mim, senhor! ​ protestou ela, indignada. Ao que o guarda respondeu: ​ Posso segurá-la onde bem quiser hoje! Alguns homens de chapéu de palha avançaram pela multidăo, empurrando e esmurrando as mulheres. Charlotte gritou. Subitamente, algumas sufragistas contra-atacaram, manejando os cajados. Chapéus de palha voaram por toda parte. Năo havia mais quaisquer espectadores; todos estavam envolvidos na confusăo. Charlotte queria escapar, mas havia violęncia em todas as partes para que se virava. Um homem de chapéu-coco agarrou uma moça, estendendo um braço pelos seios dela e pondo a outra măo no encontro das coxas. Charlotte ouviu-o dizer: ​ Era isso o que vocę estava querendo há muito tempo, năo é mesmo? A brutalidade de tudo aquilo horrorizava Charlotte. Era como um daqueles quadros medievais do Purgatório, em que todas as pessoas sofriam torturas terríveis. Só que aquilo era real e ela estava metida na confusăo. Foi empurrada por trás e caiu, esfolando as măos e os joelhos. Alguém pisou em sua măo. Tentou levantar-se e foi novamente derrubada. Compreendeu que podia ser pisoteada por um cavalo e morrer. Desesperada, segurou-se no casaco de uma mulher e conseguiu ficar de pé. Algumas mulheres estavam jogando pimenta nos olhos dos homens. Mas era impossível fazę-lo com precisăo, e elas atingiam também outras mulheres. A luta era cada vez mais terrível. Charlotte viu uma mulher caída, com o sangue esguichando do nariz. Ela quis ajudar a mulher, mas năo podia mexer-se. Todo o seu esforço se concentrava em ficar de pé. Começou a sentir-se furiosa, além de assustada. Os homens, tanto os guardas como os civis, estavam esmurrando e chutando as mulheres com a maior satisfaçăo. Charlotte pensou, histericamente: Por que eles sorriem assim? Para seu horror, sentiu que uma măo imensa lhe agarrava o seio. A măo apertou e torceu. Ela virou-se, empurrando o braço, meio desajeitada. Foi confrontada por um homem de cerca de 20 anos, bem vestido, num terno de tweed. Ele estendeu as măos e segurou os seios dela, comprimindo os dedos com força. Ninguém jamais a tocara ali! Charlotte lutou com o homem, vendo no rosto dele uma expressăo desvairada, em que se misturavam ódio e desejo. O homem gritou: ​ Năo é isso o que vocę está precisando? E foi nesse momento que ele acertou um soco na barriga de Charlotte. O punho pareceu afundar na
carne dela. O choque foi terrível, a dor pior ainda. Mas o que a deixou em pânico foi o fato de năo conseguir respirar. Inclinou-se para frente, com a boca escancarada. Queria ofegar, queria gritar, mas nada podia fazer. Percebeu vagamente que um homem muito alto passava por ela, abrindo caminho pela multidăo, como se estivesse num trigal. O homem alto agarrou a lapela do homem de terno de tweed e acertou-lhe um soco no queixo. O golpe pareceu levantar o rapaz pelo ar. A expressăo de surpresa no rosto dele era quase cômica. Charlotte finalmente conseguiu respirar, aspirando o ar sofregamente. O homem alto passou o braço firmemente pelos ombros dela e disse em seu ouvido: ​ Venha comigo. Charlotte compreendeu que estava sendo salva e a sensaçăo de estar nas măos de alguém forte e protetor era um alívio tăo grande que ela quase desmaiou. O homem alto conduziu-a para a beira da multidăo. Um sargento da polícia atacou Charlotte com um cassetete. O protetor dela levantou o braço para desviar o golpe, soltando um grito de dor quando o porrete de madeira acertou em seu antebraço. Ele largou Charlotte. Houve uma breve confusăo de golpes e um momento depois o sargento estava caído no chăo, sangrando, enquanto o homem alto mais uma vez conduzia Charlotte através da confusăo. E de repente achavam-se do lado de fora. Ao compreender que estava a salvo, Charlotte começou a chorar, baixinho, as lágrimas escorrendo-lhe pelas faces. O homem obrigou-a a continuar a andar, dizendo: ​ Vamos sair daqui imediatamente. Ele tinha um sotaque estrangeiro. Charlotte estava inteiramente destituída de vontade própria e se deixava levar docilmente pelo homem. Depois de algum tempo, ela começou a recuperar o controle. Percebeu que estavam na área de Victoria. O homem parou diante de uma Lyons Corner House e perguntou: ​ Năo quer tomar uma xícara de chá? Charlotte assentiu com um aceno de cabeça, e os dois entraram. Conduziu-a a uma cadeira, sentou-se diante dela. Charlotte fitou-o pela primeira vez. Por um instante, sentiu-se novamente apavorada. Ele tinha um rosto comprido, o nariz curvo. Os cabelos eram curtos, mas as faces năo estavam raspadas. Parecia perigoso, ameaçador. Mas depois Charlotte percebeu que só havia compaixăo nos olhos dele. Ela respirou fundo e disse: ​ Como lhe posso agradecer? Ele ignorou a pergunta. ​ Quer comer alguma coisa? ​ Apenas chá. ​ Charlotte identificou o sotaque e passou a falar em russo. ​ De onde vocę é? Ele pareceu satisfeito por descobrir que ela falava sua língua.
​ Nasci na província de Tambov. Vocę fala russo muito bem. ​ Minha măe é russa, assim como minha aia. A garçonete aproximou-se e o homem disse: ​ Dois chás, por favor, meu bem. Charlotte pensou: Ele está aprendendo inglęs com os cockneys. Ela disse em russo: ​ Nem mesmo sei o seu nome. Sou Charlotte Walden. ​ Feliks Kschessinsky. Foi muito corajosa ao entrar naquela marcha. Charlotte sacudiu a cabeça. ​ A coragem nada tem a ver com isso. Simplesmente năo sabia que seria assim. Ela estava pensando: Quem e o que é esse homem? De onde ele veio? Parece um homem fascinante. Mas é visivelmente cauteloso. Eu gostaria de saber mais a respeito dele. ​ O que esperava? ​ perguntou o homem. ​ Na marcha? Năo sei… Por que aqueles homens gostam de atacar as mulheres? ​ É uma questăo interessante. ​ Ele ficou subitamente animado, e Charlotte viu que tinha um rosto atraente e expressivo. ​ Colocamos a mulher num pedestal e pretendemos que todas elas sejam puras de mente e desamparadas fisicamente. Assim, pelo menos na chamada sociedade polida, os homens devem dizer a si mesmos que jamais sentem qualquer hostilidade contra as mulheres, assim como também năo sentem qualquer desejo pelos corpos delas. Mas eis que surgem algumas mulheres… as sufragistas… que obviamente năo estăo desamparadas e năo precisam ser idolatradas. E, ainda por cima, elas violam as leis. Negam os mitos que os homens se obrigaram a acreditar e por isso podem ser agredidas impunemente. Os homens sentem-se enganados e tratam de descarregar o desejo e a raiva que năo deveriam estar experimentando. É uma válvula de escape para a tensăo, e eles adoram. Charlotte ficou aturdida. Era uma explicaçăo completa e fantástica, apresentada com a maior clareza. Gosto desse homem, pensou ela. ​ O que vocę faz para viver? O homem mostrou-se novamente cauteloso. ​ Sou um filósofo desempregado. O chá foi servido. Era forte e muito doce, restaurou um pouco as forças de Charlotte. Sentia-se atraída por aquele estranho russo e queria saber mais coisas a respeito dele. ​ Vocę parece pensar que tudo isso… a posiçăo das mulheres na sociedade e o resto… é tăo terrível para os homens quanto para as mulheres.
​ Tenho certeza que é. ​ Por quę? O homem hesitou. ​ Homens e mulheres săo felizes quando se amam. ​ Uma sombra se insinuou pelo rosto dele, mas logo se desvaneceu. ​ A relaçăo de amor năo é a mesma que a relaçăo de idolatria. Idolatra-se a um deus. Somente os seres humanos podem ser amados. Quando idolatramos uma mulher, năo podemos amá-la. E quando descobrimos que ela năo é uma deusa, passamos a odiá-la. Isso é lamentável. ​ Eu nunca tinha pensado nisso ​ murmurou Charlotte, com evidente admiraçăo. ​ Além do mais, năo podemos esquecer que todas as religiőes possuem deuses bons e maus. O Senhor e o Demônio. Da mesma forma, temos mulheres boas e mulheres más. E pode-se fazer qualquer coisa com as mulheres más, como as sufragistas e prostitutas. ​ O que săo prostitutas? Ele ficou surpreso. ​ Mulheres que se vendem para… O homem usou uma palavra russa que Charlotte năo conhecia. ​ Pode traduzir isso? ​ Fornicar ​ respondeu o homem, em inglęs. Charlotte corou e desviou os olhos. O homem acrescentou: ​ É uma palavra grosseira? Desculpe. Mas năo conheço outra. Charlotte reuniu coragem e disse, em voz baixa: ​ Intercurso sexual. O homem voltou a falar em russo: ​ Acho que vocę foi colocada num pedestal. ​ Năo pode imaginar como é horrível ser tăo ignorante! ​ disse Charlotte, com a maior veemęncia. ​ As mulheres realmente se vendem assim? ​ É a pura verdade. As mulheres casadas respeitáveis devem fingir que năo gostam do intercurso sexual. Isso estraga ŕs vezes o prazer para os homens, e por isso eles procuram as prostitutas. E as prostitutas fingem gostar muito, embora realmente năo apreciem, já que fazem muitas vezes, com homens diferentes. No final das contas, todas acabam fingindo.
Mas săo justamente essas coisas que eu preciso saber!, pensou Charlotte. Ela tinha vontade de levar aquele homem para casa e prendę-lo em seu quarto, a fim de que ele lhe explicasse todas as coisas, dia e noite. ​ Como ficamos assim… reduzidos a essa farsa? ​ A resposta é uma vida inteira de estudo. No mínimo. Mas tenho certeza de que está tudo relacionado com o poder. Os homens tęm poder sobre as mulheres, os ricos tęm poder sobre os pobres. Săo necessárias muitas fantasias para legitimar esse sistema… fantasias sobre monarquia, capitalismo, procriaçăo e sexo. Essas fantasias nos deixam infelizes, mas sem elas alguém perderia o poder. E os homens năo estăo dispostos a renunciar ao poder, mesmo que isso os deixe angustiados. ​ Mas o que se pode fazer? ​ Uma indagaçăo famosa. Deve-se tirar o poder dos homens que năo estăo dispostos a renunciá-lo. Uma transferęncia de poder de uma facçăo para outra, dentro da mesma classe, é chamada de golpe… e năo muda nada. Uma transferęncia de poder de uma classe para outra é chamada de revoluçăo e muda as coisas. ​ Hesitou por um instante, antes de acrescentar: ​ É verdade que as mudanças năo săo necessariamente as que os revolucionários desejam. As revoluçőes só ocorrem quando o povo se levanta em massa contra seus opressores… como as sufragistas parecem estar fazendo. As revoluçőes săo sempre violentas, pois as pessoas năo hesitam em matar para manter o poder. Năo obstante, as revoluçőes acontecem, pois as pessoas estăo sempre dispostas a sacrificar a vida pela causa da liberdade. ​ Vocę é um revolucionário? ​ Pode dar tręs palpites ​ respondeu ele, em inglęs. Charlotte riu.
 
Foi a risada que ofereceu a revelaçăo. Enquanto falava, uma parte da mente de Feliks ficara observando o rosto dela, avaliando as reaçőes. Estava gostando dela, a afeiçăo que experimentava era de certa forma familiar. Ele pensou: Eu deveria estar seduzindo-a, mas é ela quem me está seduzindo. E foi entăo que ela riu. Rugas apareceram nos cantos dos olhos castanhos. Ela inclinou a cabeça para trás, o queixo apontando para a frente. Levantou as măos, as palmas viradas para a frente, num gesto que era quase defensivo. Riu efusivamente, o som se elevando do fundo da garganta. Feliks foi transportado por 25 anos para o passado. Viu uma cabana de tręs cômodos, encostada no lado de uma igreja de madeira, Um menino e uma menina estavam sentados dentro da cabana, em lados opostos de uma tosca mesa de madeira. Havia no fogo um caldeirăo de ferro, com repolho, um pequeno pedaço de toucinho e muita água. Estava quase escuro lá fora e o pai chegaria em casa em breve, para o jantar. Feliks, de 15 anos, acabara de contar ŕ irmă, Natasha, de 18 anos, a piada sobre o viajante e a
filha do fazendeiro. Ela inclinou a cabeça para trás e riu. Feliks olhava fixamente para Charlotte. Ela era muito parecida com Natasha. Ele perguntou: ​ Qual é a sua idade? ​ Estou com dezoito anos. Ocorreu a Feliks um pensamento tăo espantoso, tăo inacreditável e tăo devastador que ele sentiu o coraçăo parar. Engoliu em seco e murmurou: ​ Quando é o seu aniversário? ​ No dia 2 de janeiro. Ele ficou completamente atordoado. A moça nascera exatamente sete meses depois do casamento de Lydia com Walden, e nove meses depois que Feliks fizera amor com Lydia pela última vez. E Charlotte era igualzinha a Natasha, a irmă de Feliks. E agora ele conhecia a verdade. Charlotte era sua filha.
NOVE
​ O que foi? ​ perguntou Charlotte. ​ Como? ​ Parece que viu um fantasma. ​ É que vocę me fez lembrar de uma pessoa. Fale-me a seu respeito. Charlotte franziu o rosto. Ele parecia ter um aperto na garganta, pensou ela. ​ Vocę vai pegar um resfriado. ​ Nunca fico resfriado. Qual é a sua recordaçăo mais antiga? Ela pensou por um momento. ​ Fui criada numa mansăo no campo chamada Walden Hall, em Norfolk. É uma bela construçăo, de pedras cinzentas, com um lindo jardim. No verăo tomávamos chá ao ar livre, debaixo de um castanheiro. Eu devia ter quatro anos de idade, quando me permitiram pela primeira vez tomar chá com Papai e Mamăe. Era muito aborrecido. Năo havia nada para investigar no gramado. Eu estava sempre querendo voltar para casa, visitar os estábulos. Selaram um burro um dia e me deixaram montar. Eu já vira muitas pessoas andarem a cavalo e pensava que sabia como fazę-lo. Disseram-me que ficasse quieta ou cairia. Mas năo acreditei. Primeiro, alguém pegou as rédeas e conduziu-me de um lado para outro. Depois me deixaram segurar as rédeas. Tudo parecia tăo fácil que dei um chute no burro, como já vira as pessoas fazerem com os cavalos, levando-os a trotar. E no instante seguinte eu estava caída no chăo, em lágrimas. E simplesmente năo podia acreditar que tivesse caído! Ela riu da recordaçăo e Feliks comentou: ​ Parece que foi uma infância feliz. ​ Năo diria isso se conhecesse a minha aia. O nome dela é Marya, uma megera russa. ​As pequenas damas sempre estăo com as măos limpas.​ Ela ainda năo desgrudou… continua tomando conta de mim. ​ Mesmo assim, vocę teve boa comida e boas roupas, nunca sentiu frio, havia um médico para tratá-la quando ficava doente. ​ E isso é suficiente para fazer uma pessoa feliz? ​ Eu me teria contentado com isso. Qual é a sua melhor recordaçăo? ​ Quando Papai me deu um pônei de presente ​ respondeu Charlotte, no mesmo instante. ​ Eu queria tanto ter um pônei que foi como um sonho que se convertesse em realidade. Jamais esquecerei aquele dia. ​ Como é ele? ​ Quem?
Feliks hesitou. ​ Lorde Walden. ​ Papai? Bem… Era uma boa pergunta, pensou Charlotte. Para um total estranho. Feliks se mostrava extraordinariamente interessado nela. Mas a jovem estava ainda mais interessada nele. Parecia haver uma profunda melancolia por trás das perguntas dele, algo que năo existia poucos minutos antes. Talvez fosse porque ele tivera uma infância infeliz e a dela parecia muito melhor. ​ Acho que Papai talvez seja um homem terrivelmente bom… ​ Mas? ​ Ele me trata como uma criança. Sei que provavelmente sou muito ingęnua, mas nunca poderei ser qualquer outra coisa, se năo aprender. Ele năo vai explicar-me as coisas da maneira… da maneira como vocę fez. Ele fica embaraçado se fala a respeito… de homens e mulheres… e quando fala de política suas opiniőes parecem um pouco… presunçosas. ​ O que é perfeitamente natural. Durante toda a vida, ele sempre conseguiu tudo o que queria. E sem a menor dificuldade. Claro que ele acha que o mundo é maravilhoso do jeito como está, exceto por alguns pequenos problemas, que serăo resolvidos com o tempo. Vocę o ama? ​ Amo, sim… a năo ser nos momentos em que o odeio. ​ A intensidade do olhar de Feliks estava começando a deixar Charlotte constrangida. Parecia estar absorvendo sofregamente as palavras dela, gravando as feiçőes dela em sua mente. ​ A verdade é que Papai é um homem adorável. Mas por que está tăo interessado? Feliks exibiu um sorriso estranho. ​ Estive lutando contra as classes dominantes por toda a minha vida, mas raramente tenho a oportunidade de falar com alguma pessoa que a ela pertença. Charlotte podia perceber que năo era esse o verdadeiro motivo e imaginou vagamente por que ele lhe estaria mentindo. Talvez estivesse embaraçado com alguma coisa… o que era o motivo habitual para que as pessoas lhe escondessem alguma coisa. ​ Năo pertenço ŕ classe dominante. Tenho a mesma posiçăo que um cachorro de meu pai. ​ Fale-me a respeito de sua măe ​ disse Feliks, sorrindo. ​ Ela tem problemas de nervos. Toma láudano ŕs vezes. ​ O que é láudano? ​ Um medicamento com ópio. ​ Parece uma coisa sinistra ​ disse ele, alteando as sobrancelhas.
​ Por quę? ​ Pensei que tomar ópio fosse considerado uma coisa degenerada. ​ Năo, se a pessoa está tomando por motivos médicos. ​ Ahn… ​ Vocę parece cético. ​ Sempre sou. ​ Vamos, diga-me o que está pensando. ​ Se sua măe precisa de ópio, desconfio que isso acontece porque ela é infeliz, ao invés de estar doente. ​ Por que ela deveria ser infeliz? ​ Diga-me vocę. Afinal, ela é sua măe. Charlotte pensou por um momento. Será que a măe era infeliz? Certamente năo parecia contente como o pai. Ela se preocupava demais, perdia o controle ŕ menor provocaçăo. ​ Ela é nervosa ​ disse Charlotte, finalmente. ​ Mas năo posso pensar em qualquer motivo para que ela deva ser infeliz. Será que isso tem alguma relaçăo com o fato de deixar seu país? ​ É bem possível. ​ Mas Feliks năo parecia convencido. ​ Vocę tem irmăs? ​ Năo. Minha melhor amiga é a Prima Belinda, que tem a mesma idade que eu. ​ Quais os seus outros amigos? ​ Năo tenho outros amigos, apenas conhecidos. ​ E năo tem outros primos? ​ Dois meninos gęmeos, de seis anos. Claro que tenho uma porçăo de primos na Rússia, mas nunca vi nenhum deles, ŕ exceçăo de Aleks, que é muito mais velho do que eu. ​ E o que pretende fazer com a sua vida? ​ Mas que pergunta! ​ Năo sabe? ​ Ainda năo me decidi. ​ Quais săo as alternativas?
​ Na verdade, essa é a grande questăo. Devo casar-me com um rapaz da minha classe e ter filhos. É o que esperam de mim, e acho que vou acabar mesmo me casando. ​ Por quę? ​ Walden Hall năo ficará para mim quando Papai morrer. ​ Por que năo? ​ Walden Hall acompanha o título… e năo posso ser o Conde de Walden. Assim, a propriedade ficará para Peter, o mais velho dos gęmeos. ​ Entendo… ​ E eu năo seria capaz de ganhar a vida. ​ Claro que seria. ​ Năo fui preparada para nada. ​ Pois entăo prepare-se vocę mesma. ​ O que eu poderia fazer? Feliks deu de ombros. ​ Crie cavalos. Vire comerciante. Ingresse no serviço público. Torne-se professora de matemática. Escreva uma peça. ​ Vocę fala como se eu pudesse fazer qualquer coisa que desejasse. ​ Creio que pode mesmo. Mas tenho uma boa idéia. Seu russo é perfeito. Poderia traduzir romances russos para o inglęs. ​ Acha mesmo que eu poderia? ​ Năo tenho a menor dúvida. Charlotte mordeu o lábio. ​ Por que tem tanta fé em mim, ao contrário do que acontece com meus pais? Ele pensou por um momento e depois sorriu. ​ Se eu a tivesse criado, haveria de se queixar que era obrigada a estudar durante todo o tempo, sem jamais poder ir a bailes. ​ Vocę năo tem filhos? Feliks desviou os olhos.
​ Nunca me casei. Charlotte estava fascinada. ​ E vocę quis se casar? ​ Quis. Ela sabia que năo deveria continuar, mas năo podia resistir. Queria saber como fora aquele estranho homem quando estivera apaixonado. ​ O que aconteceu? ​ A moça se casou com outro homem. ​ Como era o nome dela? ​ Lydia. ​ É o nome da minha măe. ​ É mesmo? ​ Ela era Lydia Shatova. Deve ter ouvido falar do Conde Shatov, se já esteve alguma vez em Săo Petersburgo. ​ Já ouvi, sim. Vocę tem relógio? ​ Como? Năo, năo tenho. ​ Nem eu. Feliks olhou ao redor e viu um relógio na parede. Charlotte acompanhou o olhar dele. ​ Santo Deus, săo cinco horas da tarde! Eu tencionava chegar em casa antes de Mamăe descer para o chá! ​ E se levantou. ​ Vai ter algum problema por causa disso? ​ perguntou Feliks, levantando-se também. ​ Acho que sim. Ela virou-se para deixar o café. ​ Ahn… Charlotte… ​ O que é? ​ Năo poderia pagar o chá? Sou um homem muito pobre. ​ Acho que năo tenho dinheiro… Ah, năo! Tenho onze pence. Será que é suficiente?
​ Claro que é. Pegou seis pence na măo dela e foi ao balcăo para pagar. É curioso como a gente tem de lembrar de coisas quando năo se está em sociedade, pensou Charlotte. O que Marya pensaria de mim, se soubesse que paguei um chá a um estranho? Ela ficaria apoplética. Feliks deu-lhe o troco e segurou a porta para que ela saísse. ​ Vou acompanhá-la por uma parte do caminho. ​ Obrigada. Feliks segurou-lhe o braço enquanto seguiam pela rua. O Sol ainda era forte. Um guarda se aproximou e Feliks fę-la parar e olhar para uma vitrine, enquanto ele passava. ​ Por que năo quer que ele nos veja? ​ perguntou Charlotte. ​ Eles podem estar procurando pelas pessoas que foram vistas na marcha. Charlotte franziu o rosto. Parecia um pouco improvável, mas ele devia saber melhor. Continuaram andando. Charlotte comentou: ​ Adoro o męs de junho. ​ O tempo na Inglaterra é maravilhoso. ​ Acha mesmo? Entăo nunca esteve no Sul da França. ​ Mas é evidente que vocę já esteve. ​ Vamos para lá todos os invernos. Temos uma villa em Monte Carlo. ​ Um pensamento ocorreu a Charlotte. ​ Espero que năo pense que me estou gabando. ​ Claro que năo. ​ Ele sorriu. ​ A esta altura, já deve ter percebido que considero a grande riqueza algo de que se envergonhar, năo um motivo de orgulho. ​ Eu deveria ter percebido, mas tal năo aconteceu. Quer dizer entăo que me despreza? ​ Năo. Afinal, a riqueza năo é sua. ​ Vocę é a pessoa mais interessante que já conheci ​ disse Charlotte, num súbito impulso. ​ Posso tornar a vę-lo? ​ Claro que pode. Vocę tem um lenço? Charlotte tirou um lenço do bolso do casaco e entregou a ele. Feliks assoou o nariz. ​ Vocę vai pegar um resfriado​ disse Charlotte. ​ Seus olhos estăo até lacrimejando. ​ Vocę deve estar certa. ​ Feliks enxugou os olhos. ​ Vamo-nos encontrar novamente neste café?
​ Năo acha que năo é um lugar dos mais simpáticos? Vamos pensar em outro lugar… Ah, já sei! Podemo-nos encontrar na Galeria Nacional. E se eu encontrar alguém que conheço, posso fingir que năo estamos juntos. ​ Está certo. ​ Gosta de pintura? ​ Eu gostaria que me instruísse. ​ Entăo está combinado. Está livre depois de amanhă, ŕs duas horas da tarde? ​ Está ótimo para mim. Ocorreu a Charlotte que talvez năo conseguisse sair de casa. ​ Se surgir alguma problema e eu tiver de cancelar o encontro, posso mandar-lhe um bilhete? ​ Hum… Estou sempre mudando… ​ Feliks teve uma idéia. ​ Mas sempre pode deixar um recado com a Sra. Bridget Callahan, na Rua Cork, 19, em Camden Town. Ela repetiu o endereço. ​ Vou anotar assim que chegar em casa. Eu moro perto daqui. ​ Hesitou. ​ Espero que năo fique ofendido, mas acho melhor que ninguém o veja em minha companhia. ​ Ofendido? ​ repetiu ele, com seu estranho sorriso. ​ Năo, claro que năo. Charlotte estendeu-lhe a măo. ​ Adeus. ​ Adeus. Feliks apertou a măo dela, firmemente. Charlotte virou-se e se afastou. Terei problemas quando chegar em casa, pensou ela. Văo descobrir que năo estou em casa e haverá um interrogatório. Direi que saí para dar uma volta pelo parque. Eles năo văo gostar. Mas ela năo se importava com o que eles pensassem. Encontrara um amigo de verdade. E sentia-se muito feliz. Quando chegou ao portăo, ela se virou e olhou para trás. O homem estava parado no lugar em que o deixara, observando-a. Ela fez um aceno discreto. Ele acenou em resposta. Por algum motivo, ele parecia vulnerável e triste, parado ali, sozinho. O que era uma bobagem, pensou Charlotte, recordando a maneira como ele a salvara durante a confusăo. Muito ao contrário, era um homem dos mais duros.
 
Walden chegou em Walden Hall sofrendo de indigestăo nervosa. Partira correndo de Londres antes do
almoço, assim que o desenhista da polícia acabara de fazer o rosto do assassino. Comera alguma coisa e tomara uma garrafa de Chablis, no caminho, sem parar o carro. Além disso, achava-se nervoso. Teria naquele dia outra reuniăo com Aleks. Calculava que Aleks tinha uma contraproposta e esperava para aquele dia o telegrama de aprovaçăo do Czar. Contava que a embaixada russa tivesse o bom senso de encaminhar para Walden Hall todos os telegramas para Aleks. Esperava também que a contraproposta fosse razoável, algo que pudesse apresentar a Churchill como um triunfo. Walden sentia-se impaciente em tratar de negócios com Aleks, mas sabia que alguns minutos a mais năo fariam a menor diferença. Era sempre um erro parecer ansioso demais numa negociaçăo. Assim, ele parou por um instante no vestíbulo, controlando-se, antes de seguir para o Octógono. Aleks achava-se sentado junto ŕ janela, com uma expressăo pensativa, tendo uma bandeja grande ao lado, com chá e bolos intactos. Ele levantou os olhos ansiosamente e perguntou: ​ O que aconteceu? ​ O homem apareceu, mas infelizmente năo conseguimos agarrá-lo. Aleks desviou os olhos. ​ Ele foi-me matar… Walden sentiu um súbito ímpeto de compaixăo por ele. Aleks era jovem, estava com uma imensa responsabilidade num país estrangeiro, com um assassino a persegui-lo. Mas năo era bom deixá-lo remoer a terrível situaçăo. Walden procurou imprimir um tom mais animado ŕ voz, quando falou: ​ Temos agora a descriçăo do homem… e um desenhista da polícia fez até um retrato dele. Thomson vai agarrá-lo dentro de mais um ou dois dias. E vocę está seguro aqui. Ele jamais conseguirá saber onde encontrá-lo. ​ Pensávamos que eu estava seguro no hotel… mas ele acabou descobrindo-me. ​ Isso năo pode acontecer novamente. ​ Era um mau começo para uma sessăo de negociaçőes, pensou Walden. Ele tinha de encontrar um meio de desviar os pensamentos de Aleks para assuntos mais amenos. ​ Já tomou o chá? ​ Năo estou com fome. ​ Vamos dar uma volta. Vai despertar seu apetite para o jantar. ​ Está bem. Aleks se levantou. Walden pegou uma espingarda… para os coelhos, conforme explicou… e seguiram para a Home Farm. Um dos dois guarda-costas destacados por Basil Thomson seguia 10 metros atrás deles. Walden mostrou a Aleks sua porca campeă, a Princesa de Walden. ​ Ela ganhou o primeiro pręmio na Mostra Agrícola de East Anglia nos dois últimos anos.
Aleks admirou os chalés de tijolos dos rendeiros, os estábulos altos, pintados de branco, e os magníficos garanhőes. ​ Năo ganho dinheiro com tudo isso, é claro ​ comentou Walden. ​ Todo o lucro é investido em novos animais, drenagem, construçőes, cercas… Mas representa um padrăo para as fazendas de rendeiros. Home Farm valerá muito mais quando eu morrer do que na ocasiăo em que a herdei. ​ Năo podemos fazer uma coisa assim na Rússia ​ comentou Aleks. Ótimo, pensou Walden. Ele está pensando em outras coisas. Aleks continuou: ​ Nossos camponeses năo usam métodos novos, năo tocam em máquinas, năo conservam as construçőes e as boas ferramentas. Ainda săo servos, psicologicamente, embora năo mais legalmente. Quando há uma colheita desfavorável e passam fome, sabe o que eles fazem? Queimam os coleiros vazios. Os homens estavam colhendo feno no South Acre. Doze trabalhadores formavam uma linha irregular pelo campo, inclinados sobre as foices. Havia um zunido constante, enquanto as hastes de feno caíam, como dominós. Samuel Jones, o mais antigo dos trabalhadores, terminou primeiro a sua fileira. Aproximou-se, com a foice na măo, e tocou no gorro, cumprimentando Walden. O Conde apertou-lhe a măo calosa. Era como segurar uma pedra. ​ Milorde encontrou tempo para ir ŕ exposiçăo em Lunnun? ​ perguntou Jones. ​ Claro que sim. ​ Viu a tal máquina de ceifar de que falou? Walden exibiu uma expressăo de dúvida. ​ É uma linda obra de engenharia, Sam… mas năo sei… Sam assentiu, com um aceno de cabeça. ​ As máquinas nunca fazem o trabalho tăo bem quanto um trabalha dor. ​ Por outro lado, poderíamos colher o feno em tręs dias, ao invés de levarmos uma quinzena… e assim correríamos menos risco de uma chuva imprevista. Poderíamos entăo alugar a máquina para as fazendas dos rendeiros. ​ Mas também precisaria de menos trabalhadores. Walden pareceu ficar desapontado. ​ Tem razăo. Eu năo poderia deixar que ninguém ficasse desempregado. Mas a máquina só teria uma conseqüęncia: năo precisaríamos mais contratar os ciganos para nos ajudar na época da colheita. ​ Nesta caso, năo faria muita diferença.
​ Năo, năo faria. Mas estou um pouco preocupado com a reaçăo dos homens. O jovem Peter Dawkins, por exemplo, aproveita qualquer pretexto para criar encrenca. Sam emitiu um grunhido um pouco neutro. ​ Seja como for ​ continuou Walden ​ o Sr. Samson vai dar uma olhada na máquina na próxima semana. Samson era o intendente. Walden fez uma breve pausa, antes de acrescentar abruptamente, como se uma idéia acabasse de lhe ocorrer. ​ Năo gostaria de ir com ele, Sam? Sam fingiu năo dar muita importância ŕ idéia. ​ A Lunnun? Já estive lá em 1888. Năo gostei. ​ Poderia pegar o trem com o Sr. Samson… talvez levar também o jovem Dawkins… ver a máquina, almoçar em Londres, voltar ao final da tarde. ​ Năo sei se minha mulher vai gostar. ​ Mas eu gostaria que vocę visse a máquina. ​ Claro que isso me interessa. ​ Entăo está combinado. Direi a Samson para tomar as providęncias necessárias. ​ Walden sorriu, como um conspirador. ​ Pode insinuar ŕ Sra. Jones que eu praticamente o forcei. ​ É o que farei, milorde ​ disse Sam, sorrindo. A colheita estava quase terminada. Os homens suspenderam o trabalho. Podia haver coelhos escondidos nos últimos metros de feno. Walden chamou Dawkins e entregou-lhe a espingarda. ​ Vocę é um bom atirador, Peter. Veja se consegue pegar um coelho para vocę e um para o Hall. Todos ficaram parados ŕ beira do campo, fora da linha de fogo. O resto do feno foi cortado pelo lado, a fim de impelir os coelhos para o campo aberto. Quatro saíram e Dawkins acertou dois com o primeiro disparo, um com o segundo. Os estampidos fizeram Aleks estremecer. Walden pegou a arma e um dos coelhos, voltando em seguida para o Hall, junto com Aleks. O russo sacudiu a cabeça, com uma expressăo de admiraçăo. ​ Vocę tem um jeito maravilhoso com os homens ​ comentou ele. ​ Eu năo consigo encontrar o equilíbrio certo entre disciplina e generosidade. ​ Exige prática. ​ Walden suspendeu o coelho. ​ Năo precisamos realmente disso no Hall… mas peguei-o para lembrar a eles que os coelhos săo meus. E todos os que pegarem constituem um presente meu, năo lhes pertencem por direito. ​ Se eu tivesse um filho, pensou Walden, seria assim que lhe explicaria as coisas.
​ Deve-se avançar pela discussőes e consentimento ​ comentou Aleks. ​ É o melhor método… mesmo que vocę tenha de renunciar a alguma coisa. ​ O que nos leva de volta aos Bálcăs ​ disse Aleks, sorrindo. Graças a Deus… finalmente, pensou Walden. ​ Năo seria melhor que eu fizesse um sumário? ​ continuou Aleks. ​ Nós estamos dispostos a lutar do seu lado contra a Alemanha, vocęs estăo dispostos a reconhecer nosso direito de passagem pelo Bósforo e Dardanelos. Só que năo queremos apenas o direito, mas também o poder. Nossa sugestăo para que reconheçam toda a Península balcânica, da Romęnia a Creta, como uma esfera de influęncia russa, năo recebeu aprovaçăo. Năo resta a menor dúvida de que vocęs acharam que seria dar demais a nós. Assim, minha funçăo era formular uma exigęncia menor, garantindo nossa passagem marítima, mas sem comprometer a Inglaterra numa política balcânica incondicionalmente pró-russa. ​ Isso mesmo. ​ E Walden pensou: Ele possui uma mente como o bisturi de um cirurgiăo. Há poucos minutos, eu lhe estava dando conselhos paternais. Agora, de repente, ele parece meu igual… no mínimo. Imagino que é assim quando um filho se torna um homem. ​ Lamento ter demorado tanto ​ disse Aleks. ​ Enviei telegramas em código para Săo Petersburgo, através da embaixada russa. As discussőes e essa distância năo podem ser tăo rápidas como eu gostaria. ​ Eu compreendo. ​ Walden pensou: Vamos, diga logo de uma vez! ​ Há uma área de aproximadamente vinte e cinco mil quilômetros quadrados, de Constantinopla a Adrianópolis, equivalente ŕ metade da Trácia, que atualmente faz parte da Turquia. A costa começa no Mar Negro, prolonga-se pelo Bósforo, o Mar de Mármara e os Dardanelos, terminando no Mar Egeu. Em outras palavras, estende-se por toda a passagem do Mar Negro, ao Mediterrâneo. ​ Aleks fez uma pausa. ​ Dę-nos isso, e estaremos do seu lado. Walden fez um esforço para disfarçar sua animaçăo. Ali estava uma base concreta para negociaçőes. ​ Persiste o problema de que a regiăo năo nos pertence para entregá-la a vocęs. ​ Considere as possibilidades, se eclodir uma guerra. Um: Se a Turquia estiver do nosso lado, teremos o direito de passagem de qualquer maneira. Só que isso é bastante improvável. Dois: Se a Turquia ficar neutra, esperaríamos que a Inglaterra insistisse em nosso direito de passagem, como um sinal de que a neutralidade da Turquia era genuína. Isso năo sendo possível, entăo a Inglaterra deveria apoiar nossa invasăo da Trácia. Tręs: Se a Turquia ficar do lado dos alemăes… o que constitui a mais provável das tręs possibilidades… entăo a Inglaterra reconheceria que a Trácia é nossa, assim que conseguirmos conquistá-la. Walden disse, em tom de dúvida: ​ Fico imaginando o que os trácios pensam de tudo isso.
​ Eles preferem pertencer ŕ Rússia do que ŕ Turquia. ​ Sempre imaginei que eles gostariam de ser independentes. Aleks exibiu um sorriso infantil. ​ Nem eu nem vocę… nem os nossos respectivos governos, diga-se de passagem… estamos absolutamente preocupados com o que os habitantes da Trácia possam preferir. ​ Tem toda razăo. O Conde năo podia deixar de concordar. Era a combinaçăo produzida por Aleks, de charme infantil e cérebro de adulto, que deixava Walden desnorteado. Ele sempre pensava que tinha a situaçăo sob controle, até que Aleks aparecia com alguma coisa que demonstrava o fato de estar controlando tudo durante todo o tempo. Subiram a encosta que levava a Walden Hall. Walden notou que o guarda-costas estava esquadrinhando os bosques nos dois lados. A poeira grudava em seus sapatos marrons. O terreno estava muito seco. Quase năo chovia há tręs meses. Walden achava-se bastante animado com a contraproposta de Aleks. O que diria Churchill? Claro que se podia dar uma parte da Trácia aos russos. Afinal, quem se importava com a Trácia? Atravessaram a horta. Um ajudante de jardineiro estava regando os pés de alface. Levou a măo ao gorro, cumprimentando-os. Walden rebuscou a memória, ŕ procura do nome do homem. Mas Aleks foi mais rápido, dizendo: ​ Um dia agradável, Stanley. ​ Mas bem que poderíamos aproveitar uma chuva, alteza. ​ Mas năo demais, hem? ​ Tem toda razăo, alteza. Aleks está aprendendo, pensou Walden. Eles entraram na casa. Walden tocou uma campainha, chamando um lacaio. ​ Vou enviar um telegrama a Churchill, marcando um encontro para amanhă de manhă. Voltarei de automóvel para Londres ao amanhecer. ​ Ótimo. O tempo está-se escoando.
 
Charlotte teve uma reaçăo imediata do lacaio que lhe abriu a porta. ​ Graças a Deus que está em casa, Lady Charlotte!
A jovem entregou-lhe o casaco. ​ Năo sei por que deve dar graças a Deus, William. ​ Lady Walden estava muito preocupada. Pediu que fosse vę-la assim que chegasse. ​ Vou-me arrumar primeiro. ​ Lady Walden falou ​imediatamente​. ​ E estou falando que vou-me arrumar primeiro. Charlotte subiu para seu quarto. Lavou o rosto, soltou os cabelos. Sentia dor na barriga, do soco que recebera. As măos estavam esfoladas, mas năo demais. Os joelhos achavam-se machucados, mas ninguém podia vę-los. Foi para trás do biombo e tirou o vestido. Parecia intacto. Năo estou dando a impressăo de que estive naquela confusăo, pensou Charlotte. Ouviu a porta do quarto abrir-se. ​ Charlotte! Era a voz da măe. Charlotte pôs um robe, pensando: Mamăe deve estar histérica. Ela saiu de detrás do biombo. ​ Estávamos frenéticas de preocupaçăo! ​ disse a măe. Marya entrou no quarto, por trás dela, parecendo indignada, implacável. ​ Pois estou aqui, Mamăe, să e salva. Pode parar de se preocupar agora. A măe ficou vermelha e gritou estridentemente: ​ Mas que criança atrevida! E avançou e deu uma bofetada no rosto de Charlotte, que cambaleou para trás e caiu sentada na cama. A moça estava completamente atordoada, năo pelo golpe propriamente dito, mas pelo que representava. A măe nunca lhe batera antes. De certa forma, parecia doer mais do que todos os golpes que recebera durante o tumulto na rua. Olhou para Marya e percebeu uma estranha expressăo de satisfaçăo no rosto dela. Charlotte recuperou o controle e murmurou: ​ Nunca a perdoarei por isso. ​ Mas que absurdo, falar em me perdoar! ​ No acesso de raiva, a măe estava falando em russo. ​ E como vou perdoá-la por se juntar a um bando de mulheres diante do Palácio de Buckingham? Charlotte ficou espantada. ​ Como soube? ​ Marya a viu marchando pelo Mall com aquelas… aquelas sufragistas. Estou-me sentindo terrivelmente envergonhada. Só Deus sabe quem mais a viu. Se o Rei algum dia descobrir, vocę será
banida para sempre da corte. ​ Estou entendendo. ​ Charlotte ainda se achava revoltada com a bofetada e foi por isso que acrescentou: ​ Năo estava preocupada com a minha segurança, apenas com a reputaçăo da família. A măe pareceu ficar magoada. E Marya interveio: ​ Estávamos preocupadas com as duas coisas. ​ Cale-se, Marya ​ disse Charlotte. ​ Já causou mal suficiente com a língua. ​ Marya fez o que era certo! ​ gritou a măe. ​ Como ela poderia deixar de me contar? ​ Năo acha que as mulheres devem ter o direito de voto, Mamăe? ​ Claro que năo… e vocę também deveria achar que năo. ​ Mas acontece que penso que as mulheres devem votar. ​ Vocę năo sabe de nada… ainda é uma criança. ​ Sempre acabamos nisso, năo é mesmo? Sou uma criança e năo sei nada. Mas quem é responsável por minha ignorância? Marya está no comando da minha educaçăo há quinze anos. Quanto a ser uma criança, sabe perfeitamente que há muito deixei de sę-la. Vocę ficaria muito feliz se eu me casasse até o Natal. E algumas moças já săo măes aos treze anos de idade, casadas ou năo. A măe estava chocada. ​ Quem lhe disse essas coisas? ​ Pode estar certa de que năo foi Marya. Ela nunca me disse nada importante. Nem vocę, Mamăe. A voz da măe tornou-se quase suplicante: ​ Vocę năo precisa conhecer essas coisas… é uma dama. ​ Está vendo o que eu queria dizer? Vocę quer que eu seja ignorante. Mas năo pretendo ser. A măe murmurou, queixosamente: ​ Quero apenas que vocę seja feliz! ​ Năo quer, năo ​ disse Charlotte, obstinadamente. ​ Quer que eu seja como vocę. ​ Năo, năo, năo! Năo quero que vocę seja como eu! Năo quero! A măe desatou a chorar e saiu correndo do quarto. Charlotte ficou olhando para a porta, aturdida e envergonhada. Marya disse: ​ Está vendo que vocę fez?
Charlotte fitou-a de alto a baixo: vestido cinza, cabelos grisalhos, rosto feio, expressăo presunçosa. ​ Vá embora, Marya. ​ Vocę năo tem a menor idéia dos problemas e angústias que causou esta tarde. Charlotte sentiu-se tentada a dizer: Se vocę tivesse ficado de boca fechada, nada disso teria acontecido. Mas se limitou a ordenar: ​ Saia. ​ Tem de me escutar, pequena Charlotte… ​ Sou Lady Charlotte para vocę. ​ Vocę é a pequena Charlotte e… Charlotte pegou um espelho pequeno e jogou-o em Marya. A aia soltou um grito. O espelho se espatifou contra a parede. Marya deixou o quarto apressadamente. Sei agora como lidar com ela, pensou Charlotte. Ocorreu-lhe que conquistara uma vitória e tanto. Deixara a măe em lágrimas e expulsara Marya do quarto. É alguma coisa, pensou Charlotte; no final das contas, posso ser mais forte do que elas. E as duas mereciam o tratamento: Marya foi-me denunciar e Mamăe me esbofeteou. Mas năo rastejei, năo pedi desculpas, năo prometi que seria boazinha no futuro. Deveria estar orgulhosa. Por que, entăo, estou-me sentindo envergonhada? Odeio a mim mesma, pensou Lydia. Sei como Charlotte se sente, mas năo lhe posso dizer que compreendo. Sempre acabo perdendo o controle. Eu năo era assim. Sempre me mantinha calma e distinta. Quando ela era pequena, eu podia rir de seus pecadilhos. Agora, ela é uma mulher. Santo Deus, o que eu fiz? Ela está contaminada pelo sangue do pai, o sangue de Feliks. Tenho certeza. O que vou fazer? Pensei que, se fingisse que ela era a filha de Stephen, Charlotte podia tornar-se realmente como uma filha de Stephen… inocente, inglesa, uma verdadeira dama. Năo adiantou. Por todos esses anos, o sangue ruim permaneceu em suas veias, adormecido. E agora está começando a se manifestar. Todo o ímpeto amoral de camponęs russo dos seus ancestrais está começando a dominá-la. Fico em pânico ao perceber os sinais. Năo posso evitar. Estou amaldiçoada, todos estamos amaldiçoados, os pecados dos pais se transmitem aos filhos, mesmo na terceira e quarta geraçőes. Quando serei perdoada? Feliks é um anarquista, e Charlotte é uma sufragista. Feliks é um fornicador, e Charlotte fala em măes de 13 anos. Ela năo tem a menor idéia de como é horrível ser possuída pela paixăo. Minha vida foi arruinada, a vida dela também o será. É o que me amedronta, o que me faz gritar e chorar, deixa-me histérica, leva-me a bater nela. Oh, meu Deus, năo deixe que ela se arruíne! Essa menina é a razăo da minha vida. Vou trancá-la em casa. Se ela se casar em breve com um bom rapaz, antes de ter tempo para se desencaminhar, antes de as pessoas perceberem que há algo errado nela, entăo tudo se resolverá. Gostaria que Freddie a pedisse em casamento antes do final da temporada. Seria a soluçăo. Devo dar um jeito para que isso aconteça, preciso casá-la o mais depressa possível! Será entăo tarde demais para que ela se arruíne. E com um ou dois filhos, ela năo terá tempo. Preciso dar um jeito para que ela se encontre com Freddie mais freqüentemente. Ela é bonita, será
uma boa mulher para um homem forte, que possa mantę-la sob controle, um homem decente que a amará sem desencadear os desejos sinistros que estăo ŕ espreita nela, um homem que dormirá no quarto ao lado e partilhará sua cama uma vez por semana, com a luz apagada. Freddie é o homem certo para Charlotte. Ela năo passará entăo por tudo o que passei, năo terá de aprender pelo caminho mais difícil que o desejo é terrível e destrói, o pecado năo será transmitido a outra geraçăo, ela năo será má como eu. Ela pensa que eu a quero igual a mim. Ah, se ela soubesse, se ela soubesse…
 
Feliks năo podia parar de chorar. As pessoas fitavam-no enquanto ele seguia pelo parque, indo pegar a bicicleta. Feliks tremia todo, com soluços incontroláveis, as lágrimas escorrendo-lhe pelo rosto. Isso nunca lhe acontecera antes, e ele năo podia compreender. Estava impotente diante da angústia. Encontrou a bicicleta onde a deixara, debaixo de uma moita. A visăo familiar acalmou-o um pouco. O que me está acontecendo?, pensou ele. Muitas pessoas tęm filhos. Sei agora que também tive. E daí? E desatou a chorar outra vez. Sentou-se na relva seca, ao lado da bicicleta. Ela é linda, pensou ele. Mas năo estava chorando pelo que encontrara e sim pelo que perdera. Há 18 anos que era pai, sem o saber. Enquanto vagueava de uma aldeia desolada para outra, enquanto estava na prisăo, na mina de ouro, atravessando a Sibéria, fazendo bombas em Bialystock, ela estava crescendo. Aprendera a andar e a falar, a comer sozinha e a amarrar os cordőes das botinas. Brincara num gramado verde, debaixo de um castanheiro, durante o verăo, e caíra de um burro e chorara. O ​pai​ lhe dera um pônei de presente, enquanto Feliks trabalhava preso a grilhőes. Ela usara vestidos brancos no verăo e meias de lă no inverno. Sempre falara duas línguas, russo e inglęs. Alguém mais lera contos de fadas para ela; alguém mais lhe dissera ​Vou pegá-la!​ e saíra correndo atrás dela pela escada acima, ŕs risadas; alguém mais a ensinara a apertar as măos dos adultos e dizer ​Como tem passado?​; alguém mais lhe dera banho, escovara-lhe os cabelos, obrigara a comer todo o repolho no prato. Muitas vezes Feliks observara os camponeses russos com os filhos, sem entender como, em suas vidas de sofrimento e miséria terrível, conseguiam encontrar afeiçăo e ternura pelos bebęs que alimentavam. Sabia agora: o amor simplesmente surgia, quer se quisesse ou năo. Por suas recordaçőes dos filhos de outras pessoas, podia visualizar Charlotte em diversos estágios de desenvolvimento: aprendendo a andar, a barriga protuberante, sem quadris para segurar a saia; como uma menina exuberante de sete anos, correndo, caindo, rasgando o vestido, esfolando os joelhos; como uma garota de 10 anos, alta e magra, desajeitada, os dedos sujos de tinta, as roupas sempre parecendo um pouco pequenas; como uma adolescente tímida, rindo com os rapazes, experimentando secretamente o perfume da măe, louca por cavalos e depois… E depois aquela moça linda, corajosa, alerta, inquisitiva, admirável. E eu sou o pai dela, pensou Feliks. O pai! O que fora mesmo que ela dissera? Vocę é a pessoa mais interessante que já conheci… posso tomar a vę-lo? Estava-se preparando para despedir-se dela para sempre. Quando soubera que năo teria de fazęlo, seu autocontrole começara a desmoronar. Charlotte pensara que ele estava resfriado. Ainda era muito
jovem para fazer aqueles comentários joviais para um homem cujo coraçăo se estava despedaçando. Estou-me tomando sentimental, pensou Feliks. Preciso controlar-me. Levantou-se e pegou a bicicleta. Enxugou o rosto com o lenço que ela lhe dera. Tinha uma flor azul bordada num canto. Feliks năo sabia se fora ela mesma quem bordara. Montou na bicicleta e seguiu para a Old Kent. Estava na hora do jantar, mas ele sabia que năo conseguiria comer. O que era ótimo, pois seu dinheiro estava quase acabando, e naquela noite năo tinha ânimo para roubar. Ansiava agora a escuridăo do seu quarto no cortiço, onde poderia passar a noite sozinho com seus pensamentos. Reconstituiria cada minuto do encontro, desde o momento em que ela saíra da casa até o aceno final de despedida. Ele gostaria de ter uma garrafa de vodca por companhia, mas năo estava em condiçőes de comprá-la. Ficou imaginando se alguém dera algum dia a Charlotte uma bola vermelha. A noite estava amena, mas o ar da cidade parecia vicioso. Os pubs já se estavam enchendo com as mulheres vistosamente vestidas da classe média e seus maridos, namorados ou pais. Num súbito impulso, Feliks parou diante de um pub. O barulho de um piano antigo saía pela porta aberta. Feliks pensou: Eu gostaria que alguém me sorrisse, mesmo que fosse apenas uma garçonete. Posso tomar pelo menos uma caneca de cerveja. Ele amarrou a bicicleta numa grade e entrou. O lugar estava sufocante, cheio de fumaça e recendendo a cerveja inglesa. Era cedo, mas já havia muitos risos e gritinhos femininos. Todos pareciam extremamente alegres. Feliks pensou: Ninguém sabe gastar dinheiro melhor do que os pobres. Juntou-se ao grupo no balcăo. O piano passou a tocar uma nova melodia e todos cantaram. Era uma vez uma donzela, que se sentou nos joelhos de um velho E lhe pediu que contasse uma história: ​Tio, por favor. Por que é solteiro, por que vive sozinho? Será que năo tem filhos, năo tem um lar?​ ​Tive uma namorada, há muitos e muitos anos; Onde ela está agora, vocę já vai saber, Escutando a minha história, a tudo contarei; Achei que ela era infiel, depois do baile.​ A cançăo tola, sentimental, trouxe lágrimas aos olhos de Feliks. Ele deixou o pub sem pedir a cerveja. Montou na bicicleta e afastou-se, deixando o riso e a música para trás. Aquele tipo de jovialidade năo era para ele; nunca fora e nunca seria. Voltou ao cortiço, subiu a escada com a bicicleta até seu quarto, no último andar. Tirou o chapéu e o casaco, e se deitou na cama. Tornaria a vę-la, dentro de dois dias.
Olhariam os quadros juntos. Feliks decidiu que iria a uma casa de banhos pública antes do encontro. Coçou o queixo. Năo podia fazer nada para que a barba crescesse de maneira decente em dois dias. Voltou a pensar no momento em que a vira saindo da casa. Vira-a a grande distância, sem jamais sonhar… O que eu estava pensando naquele momento? E, de repente, ele se lembrou. Estava perguntando a mim mesmo se ela poderia revelar o paradeiro de Orlov. Năo pensei mais em Orlov durante toda a tarde. É bem provável que ela saiba onde Orlov está; e se năo souber, pode descobrir. Posso usá-la para me ajudar a matá-lo. Sou capaz disso? Năo, năo sou. Năo o farei. Năo, năo, năo! O que está acontecendo comigo?
 
Walden encontrou-se com Churchill no Almirantado ao meio-dia. O Primeiro Lorde estava impressionado. ​ Trácia! ​ disse ele. ​ Claro que lhes podemos dar a metade da Trácia. Quem se importa se eles ficarem até com tudo? ​ Foi o que pensei. ​ Walden ficou satisfeito com a reaçăo de Churchill. ​ Seus colegas văo concordar? ​ Creio que sim ​ respondeu Churchill, pensativo. ​ Falarei com Grey depois do almoço e com Asquith ao final da tarde. ​ E o Gabinete? ​ Walden năo queria firmar um acordo com Aleks para vę-lo depois vetado pelo Gabinete. ​ Amanhă de manhă. Walden se levantou. ​ Posso entăo planejar a volta a Norfolk amanhă. ​ Isso mesmo. Já pegaram aquele maldito anarquista? ​ Vou almoçar com Basil Thomson, do Serviço Especial. Descobrirei entăo como estăo as investigaçőes.
​ Mantenha-me informado. ​ Está certo. ​ E obrigado… por esta proposta. ​ Churchill olhou pela janela, com uma expressăo sonhadora, murmurando para si mesmo: ​ Trácia! Quem já ouviu falar da Trácia? Walden deixou-o com seus devaneios. Achava-se bastante animado ao seguir do Almirantado para o seu clube, em Pall Mall. Geralmente almoçava em casa, mas năo queria perturbar Lydia com policiais, especialmente porque ela se encontrava naquele momento com um estranho ânimo. Năo havia a menor dúvida de que estava preocupada com Aleks, da mesma forma que Walden. O rapaz era a coisa mais próxima de um filho que eles tinham. Se alguma coisa lhe acontecesse… Walden subiu os degraus do clube e entregou o chapéu e as luvas a um lacaio, logo depois da porta. ​ Estamos tendo um verăo maravilhoso, milorde ​ comentou o homem. O tempo estava excelente há muitos meses, refletiu Walden, enquanto subia para o salăo de jantar. Năo deveria continuar assim por muito tempo. Teremos tempestades em agosto, pensou ele. Thomson estava esperando. Parecia satisfeito consigo mesmo. Será um alívio se ele já houver pegado o assassino, pensou Walden. Trocaram um aperto de măo, e Walden sentou-se. Um garçom trouxe o cardápio. ​ E entăo? ​ indagou Walden. ​ Já o prenderam? ​ Só falta isso ​ respondeu Thomson. O que significa que năo, pensou Walden. Sentiu um aperto no coraçăo. ​ Oh, diabo! O garçom que servia as bebidas aproximou-se. Walden perguntou a Thomson: ​ Aceita um coquetel? ​ Năo, obrigado. Walden aprovou. Coquetéis eram um desagradável hábito americano. ​ E um copo de xerez? ​ Aceito, sim, por favor. ​ Dois ​ disse Walden ao garçom. Pediram sopa Brown Windsor e salmăo. Walden escolheu uma garrafa de vinho branco do Reno para
acompanhar. Depois, Walden disse: ​ Pode imaginar como tudo isso é importante? Minhas negociaçőes com o Príncipe Orlov estăo quase concluídas. Se ele for assassinado agora, tudo estará perdido… com graves conseqüęncias para a segurança deste país. ​ Compreendo perfeitamente, milorde. Deixe-me contar-lhe nossos progressos. O homem que procuramos é Feliks Kschessinsky. O sobrenome é tăo difícil de pronunciar que proponho chamá-lo apenas de Feliks. Tem 40 anos, é filho de um sacerdote rural, nasceu na província de Tambov. A polícia de Săo Petersburgo tem um grosso dossię sobre ele. Já foi preso por tręs vezes e é procurado por participaçăo em meia dúzia de assassinatos. ​ Santo Deus! ​ murmurou Walden. ​ Meu amigo em Săo Petersburgo informa que ele é um perito na fabricaçăo de bombas e também um lutador implacável. ​ Thomson fez uma pausa. ​ Foi extremamente corajoso ao pegar aquele vidro, milorde. Walden exibiu um tęnue sorriso. Preferia năo ser lembrado do incidente. A sopa foi servida e os dois homens comeram em silęncio por algum tempo. Thomson tomava o vinho do Reno frugalmente. Walden gostava de seu clube. A comida năo era tăo boa quanto a de sua casa, mas havia um clima descontraído. As poltronas no salăo de fumar eram antigas e confortáveis, os garçons eram velhos e lerdos, o papel de parede estava desbotado. Ainda tinham iluminaçăo a gás. Homens como Walden freqüentavam o clube porque suas casas eram muito arrumadinhas, com aparęncia de novas, um toque feminino. ​ Pensei que tivesse dito que só faltava apanhá-lo ​ comentou Walden, quando o salmăo chegou. ​ Ainda năo lhe contei nem a metade. ​ Ahn… ​ Ao final de maio, ele apareceu no clube anarquista da Rua Jubilee, em Stepney. Năo sabiam quem ele era, e Feliks contou algumas mentiras. É um homem cauteloso… e com toda razăo, do seu ponto de vista, uma vez que alguns daqueles anarquistas trabalham para mim. Meus espiőes comunicaram a chegada dele, mas a informaçăo năo me foi levada, pois, ŕquela altura, ele parecia ser inofensivo. Disse que estava escrevendo um livro. Mas, depois, ele roubou um revólver e sumiu. ​ Sem contar a ninguém para onde estava indo, é claro. ​ Exatamente. ​ Um homem furtivo. Um garçom aproximou-se para recolher os pratos e perguntou: ​ Văo querer mais alguma coisa, cavalheiros? Temos carneiro hoje. Os dois pediram carneiro com passas, batatas cozidas e aspargos. ​ Ele comprou os ingredientes para a nitroglicerina em quatro lojas diferentes, todas situadas em
Camden Town ​ disse Thomson. ​ Fizemos uma investigaçăo de casa em casa. O policial levou ŕ boca um pedaço de carneiro. ​ E o que descobriram? ​ indagou Walden, impacientemente. ​ Ele estava vivendo na Rua Cork, 19, em Camden, numa casa pertencente a uma viúva chamada Bridget Callahan. ​ Mas ele se mudou. ​ Isso mesmo. ​ Mas que diabo, Thomson, será que năo percebe que o sujeito é mais esperto do que vocę? Thomson fitou-o friamente, sem fazer qualquer comentário. Walden acrescentou: ​ Peço desculpas. Foi uma descortesia da minha parte. Mas é que o homem me deixa irritado. ​ A Sra. Callahan diz que expulsou Feliks porque o achou suspeito. ​ E por que ela năo comunicou ŕ polícia? Thomson terminou de comer, ajeitou o garfo e a faca no prato. ​ Ela diz que năo havia motivo para isso. Achei que tal atitude era um tanto suspeita. E resolvi investigá-la. O marido era um rebelde irlandęs. Se ela soubesse quem era o nosso amigo Feliks, poderia perfeitamente mostrar-se simpática. Walden preferia que Thomson năo chamasse Feliks de ​nosso amigo​. ​ Acha que ela sabe para onde o homem foi? ​ Se ela sabe, năo vai dizer. Mas năo há motivo para que ele informasse. A única possibilidade é a de Feliks tornar a aparecer por lá. ​ A casa está sendo vigiada? ​ Discretamente. Um dos meus homens já se instalou no quarto do porăo, como inquilino. De passagem, ele encontrou uma vareta de vidro, do tipo usado nos laboratórios químicos. É evidente que Feliks fez a bomba na pia do quarto. Era aterrador para Walden pensar que, em pleno coraçăo de Londres, alguém podia comprar alguns ingredientes químicos, misturá-los numa pia e produzir um vidro de um líquido terrivelmente explosivo… levando depois para uma suíte de hotel no West End. O carneiro foi seguido por um prato de foie gras. Walden perguntou: ​ O que vai fazer agora?
​ O retrato de Feliks está pendurado em todas as delegacias de polícia de Londres. A menos que ele passe o dia inteiro trancado num quarto, acabará sendo reconhecido por algum guarda observador, mais cedo ou mais tarde. Mas como é possível que seja mais tarde ao invés de mais cedo, meus homens estăo visitando os hotéis de quinta categoria e as pensőes, mostrando o retrato. ​ E se ele alterar sua aparęncia? ​ É um pouco difícil, no caso dele. Thomson foi interrompido pelo garçom. Os dois recusaram o bolo Black Forest, pedindo sorvete em vez disso. Walden pediu também meia garrafa de champanha. Depois, Thomson continuou: ​ Ele năo pode esconder a altura nem o sotaque russo. E tem feiçőes características. Ainda năo teve tempo para deixar crescer a barba. Pode usar roupas diferentes, raspar a cabeça para ficar calvo, pôr uma peruca. Se eu fosse ele, sairia com algum uniforme… de marinheiro, lacaio ou padre. Mas os guardas estăo devidamente alertados para essas coisas. Depois do sorvete, eles comeram queijo Stilton e biscoitos doces, com um pouco do vinho do Porto exclusivo do clube. Walden estava com a impressăo de que tudo era vago demais. O fato concreto é que Feliks continuava á solta, e Walden năo se sentiria seguro enquanto o homem năo estivesse preso, acorrentado a uma parede. Thomson disse: ​ Năo resta a menor dúvida de que Feliks é um dos maiores assassinos da conspiraçăo revolucionária internacional. É muito bem informado. Sabia, por exemplo, que o Príncipe Orlov viria ŕ Inglaterra. Ę também inteligente e extraordinariamente determinado. Mas Orlov está agora escondido em segurança. Walden năo podia imaginar onde Thomson estava querendo chegar. O policial continuou: ​ Em contraste, o senhor continua andando pelas ruas de Londres, bem visível. ​ E por que năo? ​ Se eu estivesse no lugar de Feliks, iria agora concentrar-me no senhor. Começaria a segui-lo, na esperança de que me levasse a Orlov. Ou o seqüestraria e torturaria, até que me revelasse o esconderijo de Orlov. Walden baixou os olhos para ocultar o medo. ​ E como ele poderia fazer isso sozinho? ​ Ele pode obter ajuda. Eu gostaria que o senhor aceitasse um guarda-costas. Walden sacudiu a cabeça. ​ Já tenho Pritchard. Ele arriscaria a própria vida por mim… como já fez no passado. ​ Ele anda armado?
​ Năo. ​ Sabe atirar? ​ Muito bem. Ele me acompanhou várias vezes ŕ África, nos meus tempos de grandes caçadas. Foi nessa ocasiăo que arriscou a vida por mim. ​ Pois entăo deixe-o usar uma pistola. ​ Está bem. Irei ao campo amanhă. Tenho um revólver guardado lá que ele poderá usar. Para encerrar a refeiçăo, Walden comeu um pęssego, enquanto Thomson preferiu uma pęra. Depois, passaram para o salăo de fumar, a fim de tomar o café, com biscoitos. Walden acendeu um charuto. ​ Acho que vou para casa a pé, para ajudar a digestăo. ​ Ele tentou falar calmamente, mas a voz soou estranhamente estridente. ​ Preferia que năo o fizesse ​ disse Thomson. ​ Năo trouxe sua carruagem? ​ Năo… ​ Eu ficaria mais tranqüilo com a sua segurança se, daqui por diante, sempre andasse em seus próprios veículos. ​ Está certo. ​ Walden suspirou. ​ Terei de comer menos. ​ Pegue hoje um carro de aluguel. E talvez seja melhor eu o acompanhar. ​ Acha que é realmente necessário? ​ Ele pode estar ŕ sua espera diante do clube. ​ E como ele descobriria a que clube pertenço? ​ Basta procurar no Quem É Quem. ​ Tem razăo. ​ Walden sacudiu a cabeça. ​ A gente nunca se lembra dessas coisas. Thomson olhou para o relógio. ​ Tenho de voltar para a Yard… se o senhor já está pronto. ​ Estou, sim. Eles deixaram o clube. Feliks năo estava esperando lá fora. Pegaram um carro e foram até a casa de Walden, depois Thomson seguiu para a Scotland Yard. Walden entrou em casa. Sentia-se vazio. Foi para seu quarto. Ficou sentado ao lado da janela e terminou de fumar o charuto. Sentia necessidade de conversar com alguém. Olhou para o relógio. Lydia já devia ter terminado a sesta e estava agora se vestindo para o chá e para receber as visitas. Ele foi para o quarto dela.
Lydia estava sentada diante do espelho, de robe. Achava-se tensa, pensou Walden; é toda essa confusăo. Ele pôs as măos nos ombros dela, contemplando-a pelo reflexo no espelho, depois inclinou-se e beijou-a năo alto da cabeça. ​ Feliks Kschessinsky. ​ Como? ​ Ela parecia apavorada. ​ É esse o nome do nosso assassino. Significa alguma coisa para vocę? ​ Năo. ​ Tive a impressăo de que reconheceu o nome. ​ Ahn… lembra alguma coisa. ​ Basil Thomson descobriu tudo a respeito do homem. É um assassino, um tipo diabólico. Năo é impossível que vocę o tenha encontrado em Săo Petersburgo. Isso explicaria por que ele lhe pareceu vagamente familiar quando esteve aqui, por que o nome a faz lembrar de alguma coisa. ​ Deve ser isso… Walden foi até ŕ janela e olhou para o parque. Era o momento do dia em que as babás saíam com as crianças para darem uma volta. Os caminhos estavam apinhados de carrinhos de bebę, todos os bancos ocupados por mulheres conversando, nas roupas mais deselegantes. Ocorreu a Walden que Lydia podia ter tido algum relacionamento com Feliks em Săo Petersburgo… um relacionamento que ela năo queria admitir. O pensamento era vergonhoso, e ele tratou de afastá-lo. ​ Thomson acha que Feliks vai tentar seqüestrar-me, quando compreender que Aleks está escondido. Lydia se levantou e aproximou-se dele. Enlaçou-o pela cintura, encostou a cabeça em seu peito. Năo disse nada. Walden afagou-lhe os cabelos. ​ Tenho de ir a qualquer lugar em minha própria carruagem, daqui por diante. E Pritchard deverá andar armado com uma pistola. Ela fitou-o. Walden descobriu, surpreso, que os olhos da mulher estavam marejados de lágrimas. ​ Por que isso tudo está acontecendo conosco? Primeiro, Charlotte se envolve num distúrbio, depois vocę é ameaçado… Parece que todos estamos correndo perigo. ​ Isso é bobagem. Vocę năo corre qualquer perigo e Charlotte está apenas sendo uma moça tola. Quanto a mim, estarei bem protegido. Walden acariciou os flancos de Lydia. Podia sentir o calor do corpo dela através do robe fino, já que ela năo estava usando espartilho naquele momento. Queria fazer amor com ela, agora. Nunca o tinham feito ŕ luz do dia. Beijou-a na boca. Ela comprimiu o corpo contra o dele. Walden compreendeu que ela também queria
fazer amor. Năo podia recordar-se de qualquer outra ocasiăo anterior em que ela se tivesse mostrado assim. Ele olhou para a porta, pensando em trancá-la. Olhou para Lydia e ela acenou com a cabeça, quase imperceptivelmente. Uma lágrima rolou pelo nariz dela. Walden foi até a porta. Alguém bateu. ​ Mas que diabo! ​ murmurou Walden. Lydia desviou o rosto da porta, enxugando os olhos com um lenço. Pritchard entrou. ​ Com licença, milorde. Um telefonema urgente do Sr. Basil Thomson. Descobriram o paradeiro do homem chamado Feliks. Se quiser estar presente no momento em que for efetuada a prisăo, o Sr. Thomson virá apanhá-lo aqui dentro de tręs minutos. ​ Pegue meu chapéu e o casaco ​ disse Walden.
DEZ
Ao sair para comprar o jornal da manhă, Feliks teve a impressăo de que havia crianças por toda parte. No pátio, algumas meninas estavam empenhadas num jogo que envolvia dançar e cantar. Os garotos estavam jogando críquete, com as marcaçőes a giz no muro e um pedaço de tábua podre como bastăo. Na rua, meninos mais velhos empurravam carrinhos de măo. Comprou o jornal de uma adolescente. Ao voltar para seu quarto, descobriu o caminho bloqueado por uma criança que subia a escada de gatinhas. Enquanto ele olhava, a criança… era uma menina… levantou-se meio trôpega e lentamente cambaleou para trás. Feliks pegou-a e colocou-a no patamar. A măe saiu por uma porta aberta. Era uma jovem pálida, cabelos desgrenhados, já grávida de outro filho. Pegou a menina no chăo e desapareceu em seu quarto, depois de lançar um olhar desconfiado para Feliks. Cada vez que ele tentava pensar num meio de enganar Charlotte e levá-la a revelar o paradeiro de Orlov, parecia esbarrar num muro de tijolos em sua mente. Pensou em arrancar-lhe a informaçăo subrepticiamente, sem que ela soubesse que lhe estava dizendo tudo. Ou lhe contar uma história semelhante ŕ que dissera a Lydia. Ou lhe declarar francamente que queria matar Orlov. Mas a imaginaçăo dele recuava horrorizada a cada cena. Ao pensar no que estava em jogo, achava que seus sentimentos eram ridículos. Tinha a possibilidade de salvar milhőes de vidas e talvez desencadear a Revoluçăo russa… e estava preocupado em mentir a uma moça das classes dominantes! Nem mesmo tinha intençăo de causar algum mal a ela. Iria apenas usála, enganá-la e trair a confiança dela, sua própria filha, a quem acabara de conhecer… A fim de ocupar as măos, começou a ajeitar a dinamite de fabricaçăo doméstica numa bomba primitiva. Colocou o algodăo encharcado em nitroglicerina num vaso rachado de porcelana. Pensou no problema da detonaçăo. Somente um papel em chamas talvez năo fosse suficiente. Meteu meia dúzia de fósforos no algodăo, de tal forma que apenas as cabeças vermelhas ficaram aparecendo. Era difícil manter os fósforos na posiçăo correta, pois suas măos năo estavam firmes. Minhas măos jamais tremem. O que está acontecendo comigo? Torceu um pedaço de jornal, formando um pavio. Meteu uma das pontas entre os fósforos, depois amarrou as cabeças com um barbante. Teve a maior dificuldade em dar o nó. Leu todas as notícias internacionais publicadas em The Times, empenhando-se obstinadamente em compreender as empoladas frases britânicas. Estava mais ou menos certo de que haveria uma guerra, só que mais ou menos certo năo parecia agora ser suficiente. Ficaria feliz em matar um ocioso inútil como Orlov, mesmo que descobrisse depois que isso năo servira a qualquer propósito. Mas destruir seu relacionamento com Charlotte sem nenhum propósito… Relacionamento? Que relacionamento? Sabe muito bem que relacionamento. Ler The Times deixou-o com dor de cabeça. As letras eram muito pequenas e o quarto era escuro. Era um jornal terrivelmente conservador. Devia ser explodido com uma bomba.
Ansiava em rever Charlotte. Ouviu o barulho de passos no patamar e depois houve uma batida na porta. ​ Entre. O zelador entrou, tossindo. ​ Bom-dia. ​ Bom-dia. Sr. Price. ​ O que o velho idiota estava querendo agora? ​ O que é isso? ​ perguntou Price, olhando para a bomba na mesa. ​ Uma vela de fabricaçăo doméstica. Dura muitos meses. O que deseja? ​ Queria saber se năo está precisando de um par extra de lençóis. Posso arrumar muito barato… ​ Năo, obrigado. Adeus. ​ Adeus. Price saiu. Eu deveria ter escondido a bomba, pensou Feliks. O que está acontecendo comigo?
 
​ Ele está, sim ​ disse Price a Basil Thomson. A tensăo provocou uma contraçăo no estômago de Walden. Os dois estavam sentados no banco traseiro de um automóvel da polícia, parado depois da esquina, perto do Canada Buildings, onde Feliks se encontrava. Com eles, achava-se também um inspetor do Serviço Especial e um superintendente uniformizado da delegacia de polícia de Southwark. Se conseguirem prender Feliks agora, pensou Walden, Aleks estará seguro e o alívio será geral. Thomson explicou: ​ O Sr. Price procurou a polícia para comunicar que alugara um quarto a um tipo suspeito, com um sotaque estrangeiro, muito pouco dinheiro e deixando crescer a barba, como se quisesse mudar a aparęncia. Identificou Feliks pelo retrato do nosso desenhista. Fez muito bem, Price. ​ Obrigado, senhor. O Superintendente uniformizado desdobrou um mapa em grande escala. Seus movimentos eram irritantemente lentos e deliberados. ​ O Canada Buildings é formado por tręs prédios de cinco andares, em torno de um pátio. Cada prédio tem tręs escadas. Para quem está na entrada do pátio, Toronto House fica ŕ direita. Feliks está na escada
do meio, no último andar. Por trás de Toronto House fica o pátio de uma companhia construtora. Walden tinha de fazer um grande esforço para conter a impacięncia. ​ Vancouver House situa-se ŕ esquerda e por trás há outra rua. O terceiro prédio, em frente de quem entra pelo pátio, é Montreal House, os fundos dando para a linha do trem. ​ O que é isto bem no meio do pátio? ​ indagou Thomson, apontando para o mapa. ​ É o banheiro ​ respondeu o Superintendente. ​ O cheiro é horrível, com tantas pessoas usando. Walden pensou: Vamos acabar logo com isso! ​ Parece que Feliks tem tręs caminhos para sair do pátio ​ disse Thomson. ​ Em primeiro lugar, a entrada. É claro que vamos bloqueá-la. Em segundo lugar, no lado oposto do pátio, a viela entre Vancouver House e Montreal House. Leva ŕ rua ao lado. Ponha tręs homens nessa viela, Superintendente. ​ Está certo, senhor. ​ Em terceiro lugar, a viela entre Montreal House e Toronto House, que leva ao pátio da companhia construtora. Quero outros tręs homens ali. O Superintendente assentiu. ​ Os prédios tęm janelas para os fundos? ​ Tęm, sim, senhor. ​ Entăo Feliks tem uma quarta saída da Toronto House: pelas janelas dos fundos, atravessando o pátio da construtora. É melhor pôr seis homens no pátio da construtora. E, finalmente, vamos fazer uma boa demonstraçăo de força bem no meio do pátio, a fim de persuadi-lo a se entregar sem resistęncia. Tudo isso conta com sua aprovaçăo, Superintendente? ​ Eu diria que é mais do que apropriado, senhor. Ele năo sabe com que tipo de homem estamos lidando, pensou Walden. ​ Vocę e o Inspetor Sutton podem efetuar a prisăo ​ disse Thomson. ​ Está com sua arma, Sutton? Sutton abriu o paletó, mostrando um pequeno revólver por baixo do braço. Walden ficou surpreso. Sempre pensara que nenhum policial britânico andasse armado. Mas era evidente que o Serviço Especial era diferente. Sentiu-se contente por isso. Thomson acrescentou, para Sutton: ​ Aceite o meu conselho… esteja com o revólver na măo, quando bater na porta. ​ Virou-se para o Superintendente que estava uniformizado. ​ É melhor vocę levar minha arma. O Superintendente mostrou-se ligeiramente ofendido. ​ Estou na polícia há vinte e cinco anos e nunca senti falta de uma arma de fogo, senhor. Assim, se năo
se incomoda, prefiro năo começar a usar uma arma agora. ​ Policiais já morreram ao tentar prender esse homem. ​ Năo me ensinaram a atirar, senhor. Santo Deus, pensou Walden desesperado, como pessoas como nós podem enfrentar alguém como Feliks? ​ Lorde Walden e eu estaremos na entrada do pátio ​ acrescentou Thomson. ​ Ficará no carro, senhor? ​ Ficaremos no carro. Vamos logo com isso!, pensou Walden. ​ Vamos começar ​ disse Thomson.
 
Feliks descobriu que estava com fome. Năo comia nada há mais de 24 horas. Ficou imaginando o que fazer. Agora que estava com a barba crescendo no rosto e usando roupas de trabalhador, seria mais atentamente observado pelos comerciantes. Assim, seria muito mais difícil roubar alguma coisa. Tratou de se controlar diante de tal pensamento. Nunca é difícil roubar, disse a si mesmo. Vamos ver… Eu poderia ir a uma casa suburbana, do tipo que provavelmente tem uma ou duas criadas, entraria pela porta de serviço. Encontraria uma criada na cozinha e diria, com um sorriso: ​Sou um louco. Mas se me fizer um sanduíche, năo vou violentá-la.​ Eu avançaria até a porta, a fim de bloquear-lhe a passagem. A mulher pode gritar. Neste caso, simplesmente me afasto e tento em outra casa. É mais provável, no entanto, que ela me dę a comida. E eu diria: ​Obrigado. Vocę é muito bondosa.​ E depois iria embora. Nunca é difícil roubar. Dinheiro era um problema. Feliks pensou: Como se eu pudesse dar-me ao luxo de comprar um par extra de lençóis! O zelador era um otimista. Claro que ele sabia que Feliks năo tinha dinheiro… Claro que ele sabe que eu năo tenho dinheiro. Pensando nisso, o motivo da visita de Price ao quarto de Feliks era suspeito. Ou ele estava apenas sendo otimista? Ou será que estava simplesmente verificando minha presença? Parece que estou ficando muito lerdo, pensou Feliks. Levantou-se e foi até ŕ janela. Santo Deus! O pátio estava repleto de guardas de uniforme azul. Feliks ficou olhando, imóvel, dominado pelo horror. A visăo fę-lo pensar num ninho de vermes, contorcendo-se, rastejando, uns por cima dos outros, num
buraco no chăo. O instinto lhe dizia: Fuja! Fuja! Fuja! Como? Haviam bloqueado todas as saídas do pátio. Feliks lembrou-se das janelas dos fundos. Saiu correndo do quarto, foi até os fundos do prédio. Havia uma janela que dava para o pátio da construtora, atrás do prédio. Ele observou o pátio e avistou cinco ou seis guardas tomando posiçăo, entre as pilhas de tijolos e de tábuas. Năo havia a menor possibilidade de escapar por aquele lado. Restava apenas o telhado. Voltou correndo a seu quarto e deu uma espiada no pátio. Os guardas estavam parados, ŕ exceçăo de dois homens, um de uniforme, o outro ŕ paisana, que avançavam decididos para a escada de Feliks. Ele pegou a bomba e a caixa de fósforos, e desceu correndo para o patamar inferior. Uma porta pequena, com um trinco, dava acesso ao armário por baixo da escada. Feliks abriu a porta e colocou a bomba lá dentro. Acendeu o pavio de papel e fechou a porta do armário. Virou-se. Tinha tempo de subir correndo a escada antes que o pavio ardesse… A menina estava subindo a escada de gatinhas. Mas que merda! Pegou-a no colo e correu para o quarto dela. A măe estava sentada na cama suja, o olhar vazio fixado na parede. Feliks entregou-lhe a menina e gritou: ​ Fique aqui! Năo se mexa! A mulher ficou assustada. Ele saiu correndo. Os dois homens estavam um andar abaixo. Feliks subiu a escada correndo… Năo exploda agora năo exploda agora năo … até seu patamar. Os homens ouviram-no e um deles gritou: ​ Ei, vocę! Feliks entrou correndo em seu quarto, pegou a cadeira, saiu para o patamar, colocou-a por baixo do alçapăo que dava para o forro. A bomba năo explodira. Talvez năo funcionasse.
Feliks subiu na cadeira. Os dois homens chegaram lá em cima. Feliks empurrou o alçapăo para o forro. O policial uniformizado gritou: ​ Vocę está preso! O homem ŕ paisana ergueu o revólver e apontou para Feliks. A bomba explodiu. Houve um baque intenso, como se algo muito pesado caísse. A escada foi inteiramente destruída, os dois homens foram arremessados para trás, e os destroços se incendiaram. Feliks ergueu-se para o forro.
 
​ Mas que diabo! ​ gritou Thomson. ​ Ele explodiu uma bomba! Walden pensou: Está dando errado… mais uma vez. Houve um tremendo barulho, logo depois da explosăo, enquanto os destroços de uma janela do quarto andar caíam no chăo. Walden e Thomson saltaram do cano e correram pelo pátio. Thomson escolheu dois guardas ao acaso. ​ Vocę e vocę… entrem comigo. ​ Virou-se para Walden. ​ Vocę fica aqui. Os tręs entraram correndo no prédio. Walden recuou pelo pátio, olhando para as janelas da Toronto House. Onde está Feliks? Ele ouviu um guarda dizer: ​ Sou capaz de apostar que ele saiu pelos fundos. Quatro ou cinco telhas caíram do telhado e se espatifaram no pátio… desprendidas pela explosăo, presumiu Walden. Ele tinha de conter o impulso de olhar para trás a todo instante, como se Feliks pudesse aparecer de repente ás suas costas, surgindo do nada. Os moradores dos prédios começavam a aparecer nas portas e janelas, querendo descobrir o que estava acontecendo. O pátio se enchia de pessoas. Alguns guardas fizeram um esforço năo muito vigoroso de obrigá-las a voltar. Uma mulher saiu correndo da Toronto House, gritando:
​ Fogo! Onde está Feliks? Thomson e um guarda saíram do prédio, carregando Sutton. Ele se achava inconsciente. Ou morto. Walden olhou mais atentamente. Năo, ele năo está morto. E continua a empunhar o revólver. Mais telhas caíram no pátio. O guarda ao lado de Thomson comentou: ​ Está uma confusăo terrível lá dentro. ​ Viu onde Feliks está? ​ perguntou Walden. ​ Năo pude ver nada. Thomson e o guarda tomaram a entrar no prédio. Mais telhas caíram… Um pensamento ocorreu a Walden. Ele olhou para cima. Havia um buraco no telhado e Feliks estava passando por ali. ​ Lá está ele! ​ gritou Walden. Todos ficaram observando, impotentes, enquanto Feliks saía engatinhando do forro e subia até a cumeeira do telhado. Se eu tivesse uma arma… Walden ajoelhou-se ao lado do corpo inconsciente de Sutton e tirou a pistola de seus dedos. Olhou para cima. Feliks estava-se ajoelhando no alto do telhado. Eu gostaria que fosse um fuzil, pensou Walden, enquanto levantava a pistola. Ele mirou pelo cano. Feliks olhou em sua direçăo. Os olhos se encontraram.
 
Feliks se moveu. Um tiro soou. Ele nada sentiu. Começou a correr. Era como correr numa corda bamba. Tinha de abrir os braços para manter o equilíbrio, tinha de colocar os pés em cheia na cumeeira estreita, tinha de evitar pensar na queda de quase 20 metros até o
pátio. Houve outro tiro. Feliks entrou em pânico. Correu ainda mais depressa. O final do telhado se achava logo ŕ frente. Feliks já podia ver o telhado inclinado da Montreal House. Năo tinha a menor idéia da distância entre os dois prédios. Diminuiu a velocidade, hesitante. E foi nesse momento que Walden atirou outra vez. Feliks correu até a beira do telhado. E pulou. Voou pelo ar. Ouviu a própria voz gritando, como se estivesse muito longe. Vislumbrou por um instante os tręs guardas, na viela quase 20 metros abaixo, observando-o, boquiabertos. E depois bateu no telhado da Montreal House, batendo com força de măos e joelhos. O impacto deixou-o inteiramente sem fôlego. Escorregou pelo telhado. Os pés bateram na calha. Esta parecia que ia ceder sob o peso dele. Feliks teve a impressăo de que ia cair, interminavelmente… Mas a calha agüentou e ele parou de escorregar. Estava assustado. Um canto distante de sua mente protestava: Mas nunca me senti assustado! Subiu até o alto do telhado e desceu pelo outro lado. Os fundos da Montreal House davam para a linha férrea. Năo havia guardas ali. Eles năo previram isso, pensou Feliks, exultante. Pensaram que eu ficaria acuado no pátio. Nunca lhes ocorreu que eu poderia escapar pelos telhados. Agora, só preciso descer. Espiou por cima da calha para a parede do prédio por baixo. Năo havia canos. A água canalizada pelas calhas esguichava nos cantos do prédio. Mas as janelas do último andar ficavam perto do beiral e tinham platibandas largas. Feliks segurou a calha com a măo direita e puxou, testando a resistęncia. Desde quando me importei se vou viver ou morrer? (Vocę sabe desde quando.) Postou-se por cima de uma janela, segurou a calha com as duas măos e passou lentamente pelo beirai.
Por um momento, ficou suspenso no ar. Os pés encontraram o peitoril da janela. Ele tirou a măo direita da calha e tateou pela parede em torno da janela, procurando um ponto em que se segurar. Os dedos encontraram uma reentrância rasa, ele tirou a outra măo da calha. Olhou pela janela. Um homem lá dentro o fitava, gritando de pavor. Feliks abriu a janela com um pontapé e entrou no quarto. Empurrou o apavorado morador para o lado e saiu correndo pela porta. Desceu a escada de quatro em quatro degraus. Se conseguisse alcançar o térreo a tempo, poderia sair por uma das janelas dos fundos para a linha férrea. Chegou ao último patamar e parou no alto do lance de escada final, respirando fundo. Um uniforme azul apareceu na entrada da frente. Feliks virou-se e correu para os fundos do andar. Levantou a janela que havia ali. Estava emperrada. Fez força e conseguiu abri-la. Ouviu passos subindo a escada. Passou pela janela, ficou pendurado pelas măos por um momento, deu impulso para longe da parede e largou. Caiu sobre a relva alta da elevaçăo da linha férrea. Ŕ direita, dois homens estavam pulando a cerca do pátio da construtora. Um tiro soou ŕ esquerda, a distância. Um guarda apareceu na janela de onde Feliks pulara. Ele subiu correndo pela encosta para a linha férrea. Havia quatro ou cinco pares de trilhos. A distância, um trem se aproximava rapidamente. Parecia estar vindo pelos trilhos do outro lado. Feliks experimentou um momento de covardia, com medo de cruzar os trilhos na frente do trem. Mas logo desatou a correr. Os dois guardas do pátio da construtora e o que saíra da Montreal House perseguiam-no pelos trilhos. Ŕ esquerda, uma voz gritou: ​ Saiam da linha de tiro! Os tręs perseguidores dificultavam os tiros de Walden. Feliks olhou para trás. Os tręs homens haviam ficado para trás. Um tiro soou. Ele começou a se abaixar, correndo em ziguezague. O trem soava muito alto. Ele ouviu um apito. Houve outro tiro. Ele virou-se de lado abruptamente, depois cambaleou e caiu sobre o último par de trilhos. Uma terrível trovoada soava em seus ouvidos. Viu a locomotiva quase em cima dele. Sacudiu-se convulsivamente, lançando-se para fora dos trilhos e caindo sobre o cascalho no outro lado. O trem passou ruidosamente ao lado de sua cabeça. Por uma fraçăo de segundo, Feliks vislumbrou o rosto do maquinista, pálido e apavorado. Levantou-se e desceu correndo pela encosta.
 
Walden estava parado na cerca, observando o trem passar. Basil Thomson veio postar-se a seu lado. Os guardas que haviam alcançado a linha férrea chegaram aos últimos trilhos e pararam, impotentes,
esperando que o trem passasse. E parecia levar uma eternidade. Depois que o trem passou, năo havia o menor sinal de Feliks. ​ O bandido escapou ​ murmurou um guarda. ​ Mas que diabo! ​ disse Basil Thomson. Walden virou-se e voltou para o carro.
 
Feliks caiu no outro lado de um muro e descobriu-se numa rua miserável, de pequenas casas iguais. Achava-se também na boca do gol de uma partida de futebol improvisada na rua. Alguns garotos, usando gorros imensos, pararam de jogar e ficaram olhando para ele, aturdidos. Feliks saiu correndo. Seriam necessários alguns minutos para redistribuir os guardas pelo outro lado da linha férrea. Viriam ŕ sua procura, mas já seria tarde demais. Quando conseguissem desencadear uma busca, ele já estaria a um quilômetro da linha férrea, e ainda em movimento. Feliks continuou a correr, até alcançar uma movimentada rua comercial. Ali, num súbito impulso, embarcou num ônibus. Conseguira escapar, mas estava terrivelmente preocupado. Coisas assim já lhe haviam acontecido antes, mas nunca sentira medo, nunca entrara em pânico. Lembrou-se do pensamento que lhe ocorrera enquanto escorregava pelo telhado: Năo quero morrer. Na Sibéria, perdera a capacidade de sentir medo. Agora, no entanto, o medo voltara. Pela primeira vez em muitos anos, ele queria permanecer vivo. Tornei-me humano outra vez, pensou Feliks. Olhou pela janela do ônibus para as ruas miseráveis do sudeste de Londres, imaginando se as crianças imundas e as mulheres de rostos pálidos podiam fitá-lo e ver um homem que renascera. Era um desastre. Iria afetar seus movimentos, prejudicar seu estilo, interferir com seu trabalho. Estou com medo, pensou ele. Quero viver. Quero ver Charlotte outra vez.
ONZE
O primeiro bonde do dia despertou Feliks com seu barulho. Ele abriu os olhos e observou-o passar, arrancando centelhas azuis do cabo por cima. Homens de olhos sem brilho, em roupas de trabalhador, sentavam-se ŕs janelas, fumando e bocejando, a caminho de seus empregos como garis, carregadores no mercado e operários na construçăo civil. O Sol estava baixo e brilhante, mas Feliks se encontrava ŕ sombra da Ponte de Waterloo. Estava deitado na calçada, com a cabeça junto do muro, coberto por jornais. A seu lado achava-se uma velha fedorenta, com o rosto vermelho de uma ébria. Ela parecia gorda, mas Feliks podia perceber agora, entre a bainha do vestido e os canos das botas de homem, alguns centímetros das pernas brancas e sujas, muito finas. Ele concluiu que a aparente obesidade da mulher devia ser uma decorręncia de várias camadas de roupa. Feliks gostava dela. Na noite anterior, ela divertira todos os vagabundos, ensinando-lhes as palavras vulgares de inglęs para designar as diversas partes do corpo. Feliks repetira as palavras, uma a uma, arrancando risadas gerais. No outro lado estava um garoto de cabelos vermelhos da Escócia. Para ele, dormir ao relento era uma aventura. Era destemido, vigoroso e exuberante. Olhando agora para o rosto adormecido dele, Feliks constatou que năo havia a barba do amanhecer. Ele era muito jovem. O que lhe aconteceria quando o inverno chegasse? Havia cerca de 30 pessoas deitadas ao longo da calçada, todas com a cabeça virada para o muro, os pés na direçăo da rua, cobertas por casacos, sacos ou jornais. Feliks foi o primeiro a se mexer. Perguntou-se se algum deles năo teria morrido durante a noite. Levantou-se. Sentia o corpo dolorido, depois de uma noite exposto ao frio da rua. Saiu de debaixo da ponte para a luz do Sol. Deveria encontrar-se com Charlotte naquele dia. E năo restava a menor dúvida de que parecia e cheirava como um vagabundo. Pensou em lavar-se no Tâmisa, mas o rio parecia mais sujo do que ele. Saiu ŕ procura de uma casa de banhos pública. Encontrou uma no lado sul do rio. Um aviso na porta anunciava que abriria ŕs nove horas. Feliks achou que isso era característico do governo social-democrata: construíam uma casa de banhos pública para que os trabalhadores pudessem manter-se limpos, depois só a abriam num horário em que todos estavam trabalhando. Năo havia a menor dúvida de que se queixavam de que as massas năo estavam interessadas em aproveitar as instalaçőes que lhes eram tăo generosamente oferecidas. Encontrou uma barraca de chá perto da Estaçăo de Waterloo e comeu alguma coisa. Sentiu-se muito tentado a pedir um sanduíche de ovo estrelado, mas năo tinha condiçőes para isso agora. Tomou chá com păo, como sempre, guardando o dinheiro para o jornal. Achava-se contaminado pela noite em companhia dos vagabundos. O que era irônico, pensou ele, pois na Sibéria sentia-se contente em dormir com porcos, pelo calor. Năo era difícil compreender por que se sentia diferente agora. Ia-se encontrar com a filha, ela estaria viçosa e limpa, recendendo a perfume, vestida de seda, com luvas e um chapéu, talvez uma sombrinha para protegę-la do Sol. Feliks entrou na estaçăo ferroviária e comprou The Times. Depois, sentou-se num banco de pedra diante da casa de banhos e leu o jornal, enquanto esperava que o estabelecimento abrisse.
A notícia deixou-o totalmente aturdido. HERDEIRO AUSTRÍACO E ESPOSA ASSASSINADOS Alvejados em cidade da Bósnia CRIME POLÍTICO DE UM ESTUDANTE Bomba lançada no início do dia
O PESAR DO IMPERADOR
O Herdeiro Presuntivo do Império austro-húngaro, o Arquiduque Francisco Ferdinando, e sua esposa, a Duquesa de Hohenberg, foram assassinados ontem de manhă em Serajevo, a capital da Bósnia. O assassino é descrito como um estudante de escola secundária que disparou contra suas vítimas, utilizando-se de uma pistola automática, com efeito fatal, no momento em que voltavam de uma recepçăo no prédio da municipalidade. O crime foi evidentemente o fruto de uma conspiraçăo cuidadosamente tramada. A caminho do prédio da municipalidade, o Arquiduque e a esposa escaparam da morte por um triz. Um indivíduo, descrito como um compositor de Trebinje, uma cidade de guarniçăo militar no extremo sul da Herzegovina, lançara uma bomba contra o automóvel deles. Poucos detalhes desse primeiro atentado foram recebidos. Informa-se que o Arquiduque desviou a bomba com o braço. A bomba explodiu por trás do carro, ferindo os ocupantes do outro veiculo. O autor do segundo atentado, ao que se informa, é natural de Grabovo, na Bósnia. Ainda năo há informaçőes sobre sua raça ou credo. Presume-se que ele pertence ao contingente sérvio ou ortodoxo da populaçăo bósnia. Ambos os criminosos foram presos imediatamente, e foi com dificuldade que foram salvos do linchamento. Enquanto essa tragédia ocorria na capital bósnia, o idoso Imperador Francisco José estava viajando de Viena para sua residęncia de verăo em Ischl. Teve uma despedida entusiástica de seus súditos em Viena, e uma recepçăo ainda mais entusiástica ao chegar a Ischl. Feliks ficou abalado. Por um lado, sentia-se feliz por saber que outro inútil parasita aristocrata fora destruído, outro golpe desfechado contra a tirania. Ao mesmo tempo, sentia-se envergonhado por saber que um colegial fora capaz de matar o herdeiro do trono austríaco, enquanto ele, Feliks, fracassava repetidamente nas tentativas de matar o príncipe russo. Mas sua mente estava ainda mais preocupada com as mudanças no quadro político mundial que certamente se seguiriam. Os austríacos, com o apoio dos alemăes, iriam vingar-se da Sérvia. Os russos protestariam. Será que os russos mobilizariam seu exército? Se estivessem certos do apoio britânico, provavelmente o fariam. A mobilizaçăo russa acarretaria a mobilizaçăo alemă; e a partir do momento em que os alemăes estivessem mobilizados, ninguém poderia impedir que os generais partissem para a guerra. Com o maior esforço, Feliks decifrou o inglęs bombástico das outras notícias na mesma página relacionadas com o atentado. Havia histórias com títulos de COMUNICADO OFICIAL SOBRE O CRIME, IMPERADOR AUSTRÍACO E A NOTÍCIA, TRAGÉDIA DE UMA CASA REAL e CENÁRIO DO CRIME (Do Nosso Correspondente Especial). Havia muitas baboseiras sobre como todos haviam ficado chocados, horrorizados e consternados. Podiam-se ler também afirmativas insistentes de que năo havia motivo para alarme indevido e que o assassinato, por mais trágico que fosse, năo representaria qualquer mudança para a Europa. Mas Feliks já aprendera a reconhecer tais manifestaçőes como características do The Times, um jornal que descreveria os Quatro Cavaleiros do Apocalipse como soberanos firmes, que só poderiam causar o bem para a estabilidade da situaçăo internacional. Até o momento, ainda năo se falava em represálias austríacas. Mas Feliks tinha certeza de que isso
năo demoraria a acontecer. E depois… E depois haveria a guerra. Năo havia qualquer motivo concreto para que a Rússia entrasse em guerra, pensou Feliks, furioso. O mesmo se aplicava ŕ Inglaterra. A França e a Alemanha é que eram beligerantes. Desde 1871 que os franceses estavam querendo reconquistar os territórios perdidos da Alsácia e Lorena, enquanto os generais alemăes achavam que a Alemanha era uma potęncia de segunda classe e năo começava a exercer o seu poderio. O que poderia impedir a Rússia de entrar na guerra? Uma briga com seus aliados. O que poderia provocar um atrito entre a Rússia e a Inglaterra? O assassinato de Orlov. Se o assassinato em Serajevo podia desencadear uma guerra, outro assassinato em Londres poderia evitar uma guerra. E Charlotte podia descobrir onde Orlov estava. Exausto, Feliks pensou mais uma vez no dilema que o atormentava há 48 horas. Alguma coisa mudara com o assassinato do Arquiduque? Isso lhe dava o direito de usar uma moça? Estava quase na hora de a casa de banhos abrir. Uma multidăo de mulheres, carregando trouxas de roupa, reuniu-se em torno da porta. Feliks dobrou o jornal e levantou-se. Sabia que iria usá-la. Năo resolvera o dilema… simplesmente decidira o que fazer. Toda a sua vida parecia conduzir ao assassinato de Orlov. Havia em seu progresso um impulso na direçăo desse objetivo. Năo podia ser desviado, mesmo sabendo que sua vida se baseara num equívoco. Pobre Charlotte. As portas se abriram, e Feliks entrou para tomar um banho.
 
Charlotte planejara tudo. O almoço era servido a uma hora quando os Waldens năo tinham convidados. A măe estaria no quarto por volta das duas e meia, deitada. Charlotte poderia esgueirar-se de casa a tempo de se encontrar com Feliks ŕs tręs horas. Passaria uma hora em companhia dele. Estaria de volta em casa ŕs quatro e meia, poderia lavar-se e mudar de roupa, a tempo de servir o chá e receber as visitas junto com a măe. Mas tal năo aconteceria. Ao meio-dia, a măe arruinou todo o plano, ao anunciar: ​ Esqueci de avisá-la. Vamos almoçar com a Duquesa de Middlesex, na casa dela, na Praça Grosvenor. ​ Mas năo gosto desses almoços! ​ protestou Charlotte. ​ Năo seja tola. Tenho certeza de que vocę vai divertir-se. Falei a coisa errada, pensou Charlotte no mesmo instante. Deveria ter dito que estou com uma dor de
cabeça de rachar e năo posso ir. Vacilei demais. Poderia ter mentido, se soubesse de antemăo. Mas năo sou capaz de fazę-lo de improviso. Ela tentou de novo: ​ Desculpe, Mamăe, mas năo estou com vontade de ir. ​ Vocę vai e chega de bobagem. Quero que a Duquesa a conheça… pois ela pode ser muito útil. E o Marquęs de Chalfont estará presente. Aqueles almoços geralmente começavam ŕ uma e meia e se prolongavam além das tręs horas. Posso estar em casa ŕs tręs e meia e chegar ŕ Galeria Nacional por volta das quatro horas, pensou Charlotte. Mas ele provavelmente já terá desistido e ido embora. Além disso, mesmo que ele fique esperando eu teria de deixá-lo quase que imediatamente, a fim de chegar em casa a tempo para o chá. Ela queria conversar com Feliks a respeito do assassinato. Estava ansiosa em saber a opiniăo dele. Năo queria almoçar com a velha Duquesa e… ​ Quem é o Marquęs de Chalfont? ​ Vocę o conhece. É Freddie. Năo acha que ele é encantador? ​ Ah, ele… Encantador? Nem percebi. Eu poderia escrever um bilhete, pôr o endereço de Camden Town e deixar na mesa do vestíbulo para o lacaio remeter pelo Correio. Mas Feliks năo vive lá, e de qualquer maneira năo receberia o bilhete antes das tręs horas. ​ Mas vai perceber hoje ​ disse a măe. ​ Tenho a impressăo de que vocę o seduziu. ​ A quem? ​ Freddie. Deveria prestar mais atençăo a um rapaz, Charlotte, quando ele lhe dedica uma atençăo toda especial. Entăo era por isso que a măe se mostrava tăo ansiosa pelo almoço. ​ Ora, Mamăe, năo seja tola… ​ O que há de tolice nisso? ​ disse a măe, a voz começando a ficar exasperada. ​ Mal falei meia dúzia de frases com ele. ​ Entăo năo é a sua conversa que o deixou fascinado. ​ Por favor, Mamăe! ​ Está bem, năo vou insistir. E agora vá-se vestir para o almoço. Ponha aquele vestido creme, com renda marrom… combina muito bem com vocę. Charlotte desistiu de argumentar e subiu para seu quarto. Acho que eu deveria sentir-me lisonjeada com a atençăo de Freddie, pensou ela, enquanto tirava o vestido. Por que năo consigo interessar-me por
nenhum desses rapazes? Talvez eu ainda năo esteja pronta para essas coisas. No momento, há muitas outras coisas a absorver meus pensamentos. De manhă, Papai disse que haveria uma guerra por causa do assassinato do Arquiduque. Mas as moças năo deveriam interessar-se por tais assuntos. O auge da minha ambiçăo deveria ser o de ficar noiva antes do final da minha primeira temporada… é nisso que Belinda está pensando. Mas nem todas as moças săo como Belinda… e basta lembrar-se das sufragistas. Charlotte terminou de vestir-se e desceu. Sentou-se e ficou conversando, enquanto a măe tomava um copo de xerez. Depois, as duas seguiram para a Praça Grosvenor. A Duquesa era uma mulher gorda, na casa dos 60 anos. Fazia Charlotte pensar num velho navio de madeira apodrecendo por baixo de uma nova camada de tinta. O almoço foi um espetáculo e tanto. Se fosse uma peça, pensou Charlotte, haveria um poeta de olhos sonhadores, um discreto membro do Gabinete, um refinado banqueiro judeu, um príncipe herdeiro e pelo menos uma mulher extraordinariamente bonita. Na verdade, os únicos homens presentes, além de Freddie, eram um sobrinho da Duquesa e um parlamentar conservador. As mulheres foram apresentadas como esposas de alguém. Se me casar algum dia, pensou Charlotte, insistirei em ser apresentada como eu mesma, năo como a esposa de alguém. Claro que era difícil para a Duquesa promover festas interessantes, porque muitas pessoas tinham o acesso proibido ŕ sua mesa: todos os liberais, todos os judeus, qualquer pessoa no comércio, qualquer pessoa dos palcos, todas as divorciadas e todas as pessoas que, em um momento ou outro, haviam contrariado as idéias da Duquesa sobre o que era certo. Com isso, seu círculo de amizades tornava-se bastante insípido. O tópico predileto de conversa da Duquesa era a questăo do que estava arruinando o país. Os assuntos principais eram a subversăo (por Lloyd George e Churchill), a vulgaridade (por Diaghilev e os pósimpressionistas) e o imposto adicional (um xelim e tręs pence por libra). Naquele dia, porém, a ruína da Inglaterra ficou em segundo lugar para a morte do Arquiduque. O parlamento conservador explicou, de forma longa e bastante tediosa, por que năo haveria guerra. A esposa de um embaixador sul-americano disse, numa vozinha infantil que deixou Charlotte irritada: ​ O que năo compreendo é por que esses niilistas querem jogar bombas e atirar nas pessoas. A Duquesa tinha a resposta para isso. Seu médico explicara que todas as sufragistas sofriam de um mal nervoso conhecido pela cięncia médica como histeria. Na opiniăo dela, os revolucionários sofriam do equivalente masculino dessa doença. Charlotte, que lera The Times da primeira ŕ última página naquela manhă, disse: ​ Por outro lado, é possível que os sérvios simplesmente năo queiram ser dominados pela Áustria. A măe lançou-lhe um olhar sombrio e todos a fitaram por um momento como se ela estivesse inteiramente louca… e ignoraram suas palavras. Freddie estava sentado ao lado dela. O rosto redondo dele parecia sempre brilhar ligeiramente. Ele disse a Charlotte, em voz baixa:
​ Vocę fala as coisas mais afrontosas. ​ O que há de afrontoso no que falei? ​ Pelo que vocę diz, pode-se pensar que aprova o fato de as pessoas atirarem em arquiduques. ​ Acho que se os austríacos tentassem ocupar a Inglaterra, vocę também atiraria em arquiduques, năo é mesmo? ​ Vocę é demais! ​ falou Freddie. Charlotte virou o rosto. Estava começando a sentir que perdera a voz, já que ninguém parecia ouvir o que dizia. E isso a deixava bastante irritada. Enquanto isso, a Duquesa estava iniciando sua cantilena. As classes inferiores eram ociosas, disse ela. Charlotte pensou: E quem diz é vocę, que nunca trabalhou em um só dia de sua vida! Pelo que lhe disseram, continuou a Duquesa, cada trabalhador tinha atualmente um rapaz para carregar as suas ferramentas. Era evidente que um homem tinha a obrigaçăo de carregar as próprias ferramentas, declarou ela, enquanto um lacaio lhe oferecia uma travessa com batatas cozidas em uma bandeja de prata. Começando a tomar o seu terceiro copo de vinho, ela falou que os trabalhadores bebiam tanta cerveja no meio do dia que ficavam incapazes de trabalhar ŕ tarde. As pessoas hoje em dia querem ser mimadas, disse ela, enquanto tręs lacaios e duas copeiras tiravam o terceiro prato e serviam o quarto. Năo era funçăo do governo proporcionar assistęncia aos pobres, seguro médico e pensőes. A pobreza estimulava as classes inferiores a serem frugais, o que era uma virtude, declarou ela, ao final de uma refeiçăo que daria para alimentar uma família de 10 pessoas da classe trabalhadora por duas semanas. As pessoas deveriam contar apenas com elas próprias, proclamou a Duquesa, enquanto o mordomo a ajudava a levantar-se da mesa e passar para a sala de estar. A esta altura, Charlotte estava fervilhando de raiva reprimida. Quem podia culpar os revolucionários por atirar em pessoas como a Duquesa? Freddie entregou-lhe uma xícara de café, dizendo: ​ Năo acha que ela é uma velha maravilhosa? ​ Acho que ela é a velha mais repulsiva que já conheci. O rosto redondo de Freddie se contraiu de espanto, e ele balbuciou: ​ Fale baixo! Pelo menos, pensou Charlotte, ninguém pode dizer que o estou estimulando. Um relógio de carrilhăo por cima da lareira assinalou as tręs horas. Charlotte tinha a sensaçăo de que estava na cadeia. Feliks achava-se naquele momento esperando por ela nos degraus da Galeria Nacional. Ela tinha de encontrar um meio de deixar a casa da Duquesa. Pensou: O que estou fazendo aqui, quando poderia estar conversando com alguém que fala coisas que fazem sentido? O parlamentar conservador anunciou: ​ Preciso ir para a Câmara.
Sua esposa se levantou para acompanhá-lo. Charlotte percebeu que ali estava sua oportunidade para escapar. Aproximou-se da esposa do parlamentar e disse baixinho: ​ Estou com um pouco de dor de cabeça. Posso ir junto? Terá de passar por minha casa, no caminho para Westminster. ​ Claro que pode, Lady Charlotte. A măe estava conversando com a Duquesa. Charlotte interrompeu-as e repetiu a história da dor de cabeça. ​ Sei que Mamăe gostaria de ficar mais um pouco e por isso irei embora com a Sra. Shakespeare. Obrigada por um almoço maravilhoso, Duquesa. A Duquesa assentiu, com um aceno de cabeça, altivamente. Consegui escapar com a maior classe, pensou Charlotte, enquanto atravessava o vestíbulo e descia os degraus. Ela forneceu seu endereço ao cocheiro dos Shakespeares e acrescentou: ​ Năo há necessidade de entrar no pátio. Pode deixar-me no lado de fora. No caminho, a Sra. Shakespeare aconselhou-a a tomar uma colher de láudano para a dor de cabeça. O cocheiro seguiu as orientaçőes e, ŕs tręs e vinte, Charlotte achava-se de pé na calçada diante de sua casa, observando a carruagem afastar-se. Ao invés de entrar em casa, ela seguiu para a Praça Trafalgar. Chegou pouco depois das tręs e meia e subiu correndo a escada da Galeria Nacional. Năo viu Feliks. Ele já foi embora, pensou ela. E depois de todo o meu esforço… Mas Feliks emergiu de repente de detrás de uma coluna grande, como se ali estivesse ŕ espera. Charlotte ficou tăo satisfeita ao vę-lo que quase poderia beijá-lo. ​ Desculpe tę-lo feito esperar ​ disse ela, apertando-lhe a măo. Mas tive de ir a um almoço horrível. ​ Năo tem mais importância, agora que vocę está aqui. Ele estava sorrindo, mas apreensivamente. Charlotte pensou: Como alguém cumprimentando um dentista antes de ter um dente arrancado. Os dois entraram. Charlotte adorava o museu fresco e silencioso, com suas clarabóias, colunas de mármore, assoalhos cinzentos, paredes beges, os quadros cheios de cores vivas, beleza e paixăo. ​ Meus pais me ensinaram pelo menos a apreciar a pintura ​ comentou ela. Feliks fitou-a com seus olhos tristes e escuros, murmurando: ​ Vai haver uma guerra. Entre todas as pessoas que lhe haviam falado sobre a possibilidade naquele dia, apenas Feliks e o pai pareciam realmente preocupados com a perspectiva.
​ Papai disse a mesma coisa. Mas năo entendo por quę. ​ Tanto a França como a Alemanha acham que podem ganhar muita coisa com a guerra. E a Áustria, a Rússia e a Inglaterra podem ser atraídas para a guerra. Os dois foram andando. Feliks năo parecia interessado nos quadros. Charlotte disse: ​ Por que está tăo preocupado? Terá de lutar? ​ Estou velho demais. Mas penso em todos os milhőes de inocentes rapazes russos, saídos das fazendas, que ficarăo mutilados, cegos ou mortos, por uma causa que năo compreendem e com a qual năo se importariam, se compreendessem. Charlotte sempre pensara na guerra como uma questăo de homens matando outros. Mas Feliks encarava o problema como homens sendo mortos pela guerra. Como sempre, ele lhe mostrava as coisas sob um novo ângulo. ​ Nunca pensei dessa maneira. ​ O Conde de Walden também nunca encarou a guerra por esse ângulo. É por isso que deixará acontecer. ​ Tenho certeza de que Papai năo deixaria acontecer, se pudesse evitar… ​ Vocę está enganada ​ interrompeu Feliks. ​ Ele está contribuindo para a guerra acontecer. Charlotte franziu o rosto, perplexa. ​ Como assim? ​ É para isso que o Príncipe Orlov está aqui. A perplexidade de Charlotte aumentou. ​ Como sabe de alguma coisa a respeito de Aleks? ​ Sei muito mais do que vocę. A polícia tem espiőes entre os anarquistas, mas estes tęm espiőes entre os espiőes da polícia. E conseguimos descobrir todas as coisas. Walden e Orlov estăo negociando um tratado, cujo objetivo é arrastar a Rússia para a guerra, no lado britânico. Charlotte já se dispunha a protestar que o pai jamais faria uma coisa dessas, mas depois compreendeu que Feliks estava certo. Explicava alguns comentários trocados entre o pai e Aleks, quando este ainda estava hospedado na casa. Explicava também por que o pai andava chocando os amigos, ao se ligar a liberais como Churchill. ​ Por que ele faria isso? ​ Infelizmente, ele năo se importa com quantos camponeses russos possam morrer, desde que a Inglaterra continue a dominar a Europa.
É verdade, pensou Charlotte, Papai encararia a questăo nesses termos. ​ É horrível ​ murmurou ela. ​ Mas por que năo diz essas coisas ŕs pessoas? Fale para todo mundo ouvir. ​ E quem daria atençăo? ​ Năo dariam na Rússia? ​ Só se pudéssemos encontrar um meio dramático de denunciar a conspiraçăo. ​ E qual poderia ser? Feliks fitou-a nos olhos. ​ Seqüestrar o Príncipe Orlov, por exemplo. Era tăo absurdo que Charlotte riu. Mas interrompeu a risada abruptamente. Ocorreu-lhe que Feliks poderia estar fazendo um jogo, simulando para acentuar um argumento. Mas observou-o atentamente e compreendeu que ele falava sério. Pela primeira vez, ela se perguntou se Feliks seria perfeitamente săo. ​ Năo pode estar falando sério ​ disse ela, incrédula. Ele sorriu, meio contrafeito. ​ Acha que estou louco? Charlotte sabia que ele năo estava. Sacudiu a cabeça. ​ É o homem mais săo que já conheci. ​ Entăo vamos sentar e lhe explicarei tudo. Charlotte deixou-se levar para um banco. ​ O Czar já desconfia dos ingleses, porque eles deixam refugiados políticos como eu virem para a Inglaterra. Se um de nós seqüestrasse o seu sobrinho predileto, haveria uma desavença concreta… e nesse caso eles năo poderiam ter certeza da ajuda mútua numa guerra. E quando o povo russo souber o que Orlov estava tentando fazer, vai ficar tăo furioso que o Czar năo poderá mais obrigá-lo a ir ŕ guerra. Está entendendo? Charlotte observava-lhe o rosto enquanto ele falava. Era um homem calmo, objetivo, apenas um pouco tenso. Năo havia em seus olhos o brilho alucinado do fanatismo. Tudo o que ele dizia fazia sentido, mas era como a lógica do conto de fadas… uma coisa se seguia a outra, mas parecia uma história sobre um mundo diferente, năo o mundo em que ela vivia. ​ Estou, sim. Mas năo pode seqüestrar Aleks. Ele é um homem muito bom. ​ Esse homem muito bom vai levar um milhăo de outros homens muito bons ŕ morte, se lhe for permitido. Isso é real, Charlotte, năo como as batalhas nesses quadros de deuses e cavalos. Walden e
Orlov estăo discutindo a guerra… homens se cortando mutuamente com espadas, meninos tendo as pernas arrancadas por balas de canhăo, pessoas sangrando e morrendo nos campos lamacentos, gritando de dor, sem ninguém para ajudá-las. É isso o que Walden e Orlov estăo combinando. Metade do sofrimento do mundo é causado por rapazes simpáticos como Orlov, que pensam que tęm o direito de promover guerras entre as naçőes. Um pensamento assustador ocorreu a Charlotte. ​ Já tentou seqüestrá-lo uma vez. Feliks assentiu, com um aceno de cabeça. ​ No parque. Vocę estava na carruagem. Mas o plano năo deu certo. ​ Ó, Deus! ​ Charlotte sentia-se angustiada e deprimida. Ele lhe pegou a măo. ​ Vocę sabe que estou certo, năo é mesmo? Ela tinha a impressăo de que Feliks estava mesmo certo. O mundo dele era o real, ela é quem vivia num conto de fadas. No seu país das maravilhas, debutantes de branco eram apresentadas ao Rei e ŕ Rainha, o príncipe ia para a guerra, o conde era bondoso com seus criados e todos o amavam, a duquesa era uma velha dama distinta, năo existiam coisas como intercurso sexual. No mundo real, o bebę de Annie nascia morto, porque a măe de Charlotte despedia Annie sem referęncias, uma măe de 13 anos era condenada ŕ morte porque deixava seu bebę morrer, as pessoas dormiam nas ruas porque năo tinham casa, havia pessoas que aceitavam cuidar de bebęs por dinheiro e os deixavam morrer, a duquesa era uma velha megera, um homem sorridente de terno de tweed esmurrava Charlotte na barriga diante do Palácio de Buckingham. ​ Sei que vocę está certo ​ disse a Feliks. ​ Isso é muito importante. Vocę está com a chave para tudo o que pode acontecer. ​ Eu? Oh, năo! ​ Preciso de sua ajuda. ​ Por favor, năo diga isso! ​ O problema é que năo consigo descobrir onde Orlov está. Năo é justo, pensou Charlotte; tudo está acontecendo depressa demais. Sentia-se desesperada e acuada. Queria ajudar Feliks e podia compreender como era importante. Mas Aleks era seu primo e fora hóspede em sua casa… como poderia traí-lo? ​ Vai-me ajudar? ​ indagou Feliks. ​ Năo sei onde está Aleks ​ murmurou ela, evasivamente.
​ Mas pode descobrir. ​ Posso. ​ E vai descobrir? ​ Năo sei ​ respondeu ela, com um suspiro. ​ Mas precisa, Charlotte. ​ Năo me diga o que devo ou năo fazer! Todo mundo está sempre me dizendo o que devo fazer! Pensei que tivesse mais respeito por mim! Feliks parecia consternado. ​ Gostaria de năo lhe ter pedido… Charlotte apertou a măo dele. ​ Vou pensar. Ele abriu a boca para protestar, mas Charlotte levou um dedo aos lábios dele, a fim de silenciá-lo, murmurando: ​ Terá de se satisfazer com isso.
 
Walden saiu no Lanchester ŕs sete e meia, usando um traje para a noite e chapéu de seda. Agora sempre andava no automóvel. Numa emergęncia, seria mais veloz e mais fácil de manobrar do que uma carruagem. Pritchard estava sentado ao volante, com um revólver no coldre, por baixo do casaco. A vida civilizada parecia ter chegado ao fim. Seguiram para a entrada dos fundos da Rua Downing, 10. O Gabinete se reunira naquela tarde para discutir o acordo que Walden combinara com Aleks. Walden ia agora saber se o plano fora ou năo aprovado. Foi conduzido ŕ pequena sala de jantar. Churchill já estava ali, junto com Asquith, o PrimeiroMinistro. Estavam ao lado do aparador, tomando xerez. Walden trocou um aperto de măo com Asquith. ​ Como tem passado, Primeiro-Ministro? ​ Muito bem, obrigado. Foi muita gentileza sua ter vindo, Lorde Walden. Asquith tinha cabelos prateados e o rosto raspado. Havia indícios de bom humor nas rugas em torno dos olhos. Mas a boca era pequena, de lábios finos, expressăo obstinada, o queixo era largo e quadrado. Walden achava que havia em sua voz um vestígio do sotaque de Yorkshire que sobrevivera ŕ City of London School e ao Balliol College, Oxford. Ele possuía uma cabeça excepcionalmente grande, que todos diziam conter um cérebro que funcionava com a precisăo de uma máquina. Mas a verdade é que as pessoas sempre creditam aos primeiros-ministros muito mais inteligęncia do que possuem, pensou Walden.
​ Infelizmente, o Gabinete năo quis aprovar sua proposta ​ disse Asquith. Walden sentiu um aperto no coraçăo. Para ocultar o desapontamento, assumiu uma atitude brusca. ​ Por que năo? ​ A oposiçăo partiu principalmente de Lloyd George. Walden olhou para Churchill, alteando as sobrancelhas. Churchill acenou com a cabeça. ​ Provavelmente pensou, como todas as pessoas, que L.G. e eu sempre votamos da mesma maneira em todas as questőes. Sabe agora que isso năo acontece. ​ Qual é a objeçăo dele? ​ Uma questăo de princípio ​ respondeu Churchill. ​ Ele diz que estamos oferecendo os Bálcăs como uma caixa de bombons: sirvam-se ŕ vontade, escolham o sabor predileto, Trácia, Bósnia, Bulgária, Sérvia. E acrescenta que os pequenos países também tęm direitos. É isso o que dá ter um galęs no Gabinete. Um galęs, e advogado ainda por cima. Năo sei o que é pior. A jovialidade de Churchill irritou Walden. O projeto é tanto dele quanto meu, pensou Walden. Por que năo está tăo consternado quanto eu? Sentaram-se para jantar. A refeiçăo foi servida por um mordomo. Asquith comeu parcamente. Churchill bebeu demais, na opiniăo de Walden, que estava sombrio, amaldiçoando Lloyd George mentalmente, a cada minuto. Ao final do primeiro prato, Asquith disse: ​ Precisamos desse tratado. Haverá uma guerra entre a França e a Alemanha, mais cedo ou mais tarde. Se os russos ficarem de fora, a Alemanha conquistará a Europa. Năo podemos permitir que isso aconteça. ​ O que se deve fazer para levar Lloyd George a mudar de idéia? ​ indagou Walden. Asquith sorriu debilmente. ​ Se eu recebesse uma libra por cada vez que essa pergunta fosse formulada, seria um homem rico. O mordomo serviu uma perdiz a cada homem e despejou vinho clarete nos copos. Churchill disse: ​ Devemos providenciar uma proposta modificada que atenda ŕ objeçăo de L.G. O tom despreocupado de Churchill enfureceu Walden. E ele disse, bruscamente: ​ Sabe perfeitamente que năo é tăo simples assim. ​ Tem razăo, năo é mesmo ​ interveio Asquith, suavemente. ​ Mesmo assim, devemos tentar. A Trácia pode tornar-se um país independente, sob a proteçăo da Rússia. Ou algo parecido. ​ Passei o último męs discutindo todas as possibilidades ​ comentou Walden, em tom de cansaço.
​ Seja como for, o assassinato do pobre Francisco Ferdinando muda completamente a situaçăo ​ disse Asquith. ​ Agora que a Áustria está novamente se tornando agressiva nos Bálcăs, os russos precisam mais do que nunca de uma base forte na regiăo, que em princípio estamos dispostos a conceder. Walden pôs de lado o seu desapontamento e passou a pensar de forma construtiva. Depois de um momento, ele disse: ​ O que acham de Constantinopla? ​ Como assim? ​ Se oferecęssemos Constantinopla aos russos… Lloyd George faria alguma objeçăo? ​ Ele pode dizer que é a mesma coisa que entregar Cardiff aos republicanos irlandeses ​ comentou Churchill. Walden ignorou-o, olhando para Asquith. O Primeiro-Ministro largou o garfo e a faca. ​ Agora que já firmou os seus princípios, ele pode querer demonstrar que é um homem razoável, quando lhe oferecem um compromisso. Creio que pode aceitar. Mas será suficiente para os russos? Walden năo tinha certeza, mas se sentia animado com sua nova idéia. Impulsivamente, ele falou: ​ Se vocę puder vender a idéia a Lloyd George, posso vender a Orlov. ​ Esplęndido! ​ exclamou Asquith. ​ E agora me diga uma coisa: como está a situaçăo em relaçăo ao tal anarquista? O otimismo de Walden ficou abalado. ​ Estăo fazendo todo o possível para proteger Aleks, mas ainda assim a situaçăo é perigosa. ​ Pensei que Basil Thomson fosse um bom agente. ​ É excelente ​ disse Walden. ​ Mas parece que Feliks é ainda melhor. ​ Creio que năo devemos permitir que esse sujeito nos assuste ​ comentou Churchill. ​ Estou realmente assustado ​ confessou Walden. ​ Feliks já escapuliu por nossos dedos em tręs ocasiőes. Na última vez, mobilizamos trinta policiais para prendę-lo. Năo sei como ele poderia alcançar Aleks agora. Mas o fato de eu năo poder imaginar um meio năo significa que Feliks também năo possa. E sabemos o que acontecerá se Aleks for assassinado: nossa aliança com a Rússia estará liquidada. Feliks é o homem mais perigoso na Inglaterra neste momento. Asquith assentiu, com uma expressăo sombria. ​ Se estiver menos que perfeitamente satisfeito com a proteçăo dispensada a Orlov, entre em contato comigo, diretamente, por favor.
​ Obrigado. O mordomo ofereceu um charuto a Walden, mas ele sentiu que a reuniăo estava encerrada. ​ A vida deve continuar ​ disse ele. ​ Tenho de comparecer a uma reuniăo social na casa da Sra. Glenville. Fumarei o meu charuto quando chegar lá. ​ Năo lhes diga onde jantou ​ disse Churchill, com um sorriso. ​ Năo me atreveria… pois eles nunca mais falariam comigo. ​ Walden terminou de tomar o vinho do Porto e se levantou. ​ Quando vai apresentar a nova proposta a Orlov? ​ perguntou Asquith. ​ Irei a Norfolk de automóvel amanhă de manhă. ​ Esplęndido! O mordomo trouxe o chapéu e as luvas de Walden, que se despediu. Pritchard estava parado no portăo do jardim, conversando com o guarda de serviço. ​ Vamos voltar para casa ​ falou Walden. Fora um tanto precipitado, pensou ele, enquanto avançavam pelas ruas. Prometera obter o consentimento de Aleks para o plano de Constantinopla, mas năo sabia como fazę-lo. Era angustiante. Ele começou a ensaiar as palavras que diria no dia seguinte. Mas chegou em casa antes de fazer qualquer progresso. ​ Vamos precisar novamente do automóvel dentro de poucos minutos, Pritchard. ​ Está certo, milorde. Walden entrou em casa e subiu para lavar as măos. Encontrou Charlotte no patamar. ​ Sua măe já está pronta? ​ perguntou ele. ​ Ficará pronta dentro de poucos minutos. Como văo as suas conversaçőes políticas? ​ Avançando lentamente. ​ Por que se envolveu em tudo isso outra vez? Walden sorriu. ​ Para resumir: estou querendo impedir que a Alemanha conquiste a Europa. Mas năo preocupe sua linda cabecinha… ​ Năo vou-me preocupar. Mas onde foi que escondeu o Primo Aleks? Ele hesitou, Năo havia mal nenhum em contar a Charlotte. Mas se ela soubesse, poderia
acidentalmente revelar o segredo. É melhor deixá-la na ignorância. ​ Se alguém lhe perguntar, diga que năo sabe. ​ Ele sorriu e subiu para seus aposentos.
 
Havia ocasiőes em que o charme da vida inglesa ficava bastante desgastado para Lydia. Geralmente, ela gostava das grandes reuniőes. Várias centenas de pessoas se reuniam na casa de alguém, para năo fazer absolutamente nada. Năo havia dança, năo havia uma refeiçăo formal, năo havia jogos de cartas. Apertavam-se as măos dos anfitriőes, tomava-se um copo de champanha e vagueava-se pela casa grande, conversando com os amigos e admirando as roupas das outras pessoas. E hoje Lydia estava consternada com a futilidade de tudo aquilo. O descontentamento dela assumiu a forma de nostalgia pela Rússia. Achava que lá as beldades seriam mais deslumbrantes, os intelectuais menos polidos, o ar noturno năo tăo perfumado e soporífico, as conversas mais profundas. Na verdade, ela estava preocupada demais… com Stephen, com Feliks e com Charlotte… para poder desfrutar uma reuniăo social. Subiu pela escadaria larga, com Stephen de um lado e Charlotte do outro. O seu colar de diamantes foi admirado pela Sra. Glenville. Seguiram adiante. Stephen afastou-se para falar com um dos seus colegas na Câmara dos Lordes. Lydia ouviu as palavras ​Lei da Reforma​ e năo quis saber de mais nada. Foi avançando pela multidăo, sorrindo e cumprimentando as pessoas. Năo parava de pensar: O que estou fazendo aqui? ​ Lembrei-me de uma coisa, Mamăe ​ disse Charlotte de repente. ​ Por onde anda Aleks? ​ Năo sei, querida ​ respondeu Lydia, distraidamente. ​ Pergunte a seu pai. Boa-noite, Freddie. Freddie estava interessado em Charlotte, năo em Lydia. ​ Estive pensando no que vocę falou no almoço ​ disse ele. ​ Cheguei ŕ conclusăo de que há uma diferença: nós somos ingleses. Lydia deixou os dois conversando. No meu tempo, pensou ela, as discussőes políticas năo eram absolutamente o meio de conquistar um homem. Mas talvez as coisas tenham mudado. Começa a parecer que Freddie vai-se interessar por qualquer coisa que Charlotte disser. Será que ele vai pedi-la em casamento? Ó, Deus, que grande alívio seria! Na primeira das salas de recepçăo, onde um quarteto de cordas tocava inaudivelmente, ela se encontrou com a cunhada, Clarissa. Conversaram a respeito das filhas. Lydia sentiu-se secretamente confortada ao saber que Clarissa estava extremamente preocupada com Belinda. ​ Năo me importo que ela compre essas roupas ultramodernas e mostre os tornozelos, năo me importaria até que ela fumasse cigarros, desde que fosse mais discreta ​ comentou Clarissa. ​ Mas ela vai aos lugares mais horríveis para ouvir bandas de negros tocando música de jazz. E na semana passada ela foi a uma luta de boxe. ​ E a dama de companhia dela?
Clarissa suspirou. ​ Eu disse a ela que podia sair sem uma acompanhante, se estivesse com moças que conheço. Sei agora que foi um erro. Imagino que Charlotte só sai com uma dama de companhia. ​ Em teoria, sim ​ disse Lydia. ​ Mas ela é terrivelmente desobediente. Houve um dia em que ela saiu de casa sem falar a ninguém e compareceu a uma reuniăo de sufragistas. ​ Lydia năo estava preparada para contar toda a verdade vergonhosa a Clarissa. De certa forma, ​uma reuniăo de sufragistas​ năo parecia tăo horrível quanto ​uma manifestaçăo pública​. Ela acrescentou: ​ Charlotte está interessada em coisas que năo săo apropriadas a uma dama, como política. Năo sei de onde ela tira as suas idéias. ​ Tenho pensado na mesma coisa. Belinda sempre foi criada com a melhor música, a boa sociedade, livros salutares e uma aia rigorosa. Por isso, năo consigo entender onde ela adquiriu seu gosto pela vulgaridade. E o pior é que năo consigo fazę-la compreender que estou preocupada por sua felicidade e năo pela minha. ​ Năo sabe como fico contente por ouvi-la dizer isso ​ murmurou Lydia. ​ É justamente assim que me sinto. Charlotte parece pensar que há algo falso ou tolo em nosso empenho de protegę-la. ​ Lydia suspirou, antes de acrescentar: ​ Devemos casá-las o mais depressa possível, antes que lhes aconteça algum mal. ​ Tem toda razăo. Há algum rapaz interessado em Charlotte? ​ Freddie Chalfont. ​ Ah, sim… Já me tinham falado. ​ Ele parece disposto até a conversar sobre política com Charlotte. Mas, infelizmente, ela năo está muito interessada em Freddie. E Belinda? ​ O problema é justamente o oposto. Ela gosta de todos os rapazes. ​ Ó, Deus! Lydia riu e seguiu adiante, sentindo-se melhor. De certa forma, Clarissa, como madrasta, tinha uma tarefa muito mais difícil. Deveria sentir-me grata por isso, pensou ela. A Duquesa de Middlesex estava na sala contígua. Numa reuniăo daquele tipo, a maioria das pessoas ficava de pé. Mas a Duquesa, caracteristicamente, estava sentada, deixando que as pessoas fossem procurá-la. Lydia aproximou-se dela no momento em que Lady Gay-Stephens se afastava. ​ Imagino que Charlotte já se recuperou inteiramente da dor de cabeça ​ disse a Duquesa. ​ Já, sim. É muita gentileza sua indagar. ​ Eu năo estava indagando. Meu sobrinho viu-a na Galeria Nacional ŕs quatro horas. A Galeria Nacional? Mas o que Charlotte estava fazendo lá? Ela saíra furtivamente outra vez! Mas Lydia năo ia permitir que a Duquesa soubesse que Charlotte estava-se comportando de maneira imprópria. E procurou improvisar:
​ Charlotte sempre gostou de arte. ​ Ela estava com um homem. Freddie Chalfont deve ter um rival. Mas que coisa horrível! Lydia disfarçou sua fúria, murmurando, com um sorriso forçado: ​ É verdade. ​ Quem é ele? ​ Apenas um rapaz do mesmo grupo ​ respondeu Lydia, desesperada. ​ Năo pode ser ​ disse a Duquesa, com um sorriso malicioso. ​ Era um homem em torno dos quarenta anos, usando um gorro de tweed. ​ Um gorro de tweed? Lydia estava sendo humilhada e sabia disso, mas năo se importava. Quem poderia ser o homem? O que Charlotte estava pensando? Sua reputaçăo… ​ Eles estavam de măos dadas ​ acrescentou a Duquesa, sorrindo e mostrando os dentes podres. Lydia năo podia mais fingir que estava tudo bem. ​ Ó, Deus, em que a menina se meteu agora? ​ No meu tempo, o sistema de dama de companhia era eficaz para evitar esse tipo de coisa. Lydia ficou subitamente furiosa com o prazer que a Duquesa demonstrava por aquela catástrofe. E disse, asperamente: ​ Isso foi há cem anos. Afastou-se. Um gorro de tweed! De măos dadas! Quarenta anos! Era terrível demais para sequer pensar. O gorro significava que o homem era das classes trabalhadoras, a idade indicava que era um libertino, as măos dadas insinuavam que as coisas haviam ido muito longe, talvez longe demais. O que posso fazer, pensou ela, desesperada, se a criança sai de casa sem meu conhecimento? Oh, Charlotte, Charlotte, vocę năo sabe o que está fazendo consigo mesma!
 
​ Como foi a luta de boxe? ​ perguntou Charlotte a Belinda. ​ De uma maneira horrível, foi bastante emocionante. Aqueles dois homens enormes, vestindo apenas shorts, tentando esmurrar-se até a morte! Charlotte năo concebia como uma coisa assim podia ser emocionante. ​ Parece mesmo horrível.
​ Fiquei tăo excitada… ​ Belinda baixou a voz. ​ … que quase deixei Peter ir longe demais. ​ Como assim? ​ Vocę sabe como. Voltando para casa, no carro, deixei que ele… me beijasse e tudo o mais. ​ O que significa esse tudo o mais? ​ Ele beijou meu seio ​ sussurrou Belinda. ​ Oh! ​ Charlotte franziu o rosto. ​ E foi bom? ​ Celestial! ​ Hum… Charlotte tentou imaginar Freddie lhe beijando o seio. Sabia que năo seria celestial. A măe passou por ela neste momento e disse: ​ Estamos indo embora, Charlotte. ​ Ela parece irritada ​ comentou Belinda. ​ Năo há nada de anormal nisso ​ falou Charlotte, dando de ombros. ​ Vamos a um show negro depois. Năo quer ir também? ​ O que é um show negro? ​ Jazz. É uma música maravilhosa. ​ Mamăe năo deixaria. ​ Sua măe é muito antiquada. ​ E como! Mas é melhor eu ir agora. ​ Adeus. Charlotte desceu a escada e foi pegar o casaco. Tinha a sensaçăo de que duas pessoas habitavam em seu corpo, como Dr. Jekyll e Mr. Hyde. Uma delas sorria, conversava polidamente, falava com Belinda sobre coisas de adolescentes. A outra pensava em seqüestro e traiçăo, e fazia perguntas insidiosas com uma expressăo inocente. Sem esperar que os pais saíssem, ela disse ao lacaio que estava na porta: ​ O carro do Conde de Walden. O Lanchester achava-se diante da porta dois minutos depois. Era uma noite quente e Pritchard arriara a capota. Ele saiu do carro e abriu a porta para Charlotte.
​ Pritchard, onde está o Príncipe Orlov? ​ Isso deve ser um segredo, milady. ​ Mas pode contar-me. ​ Preferiria que perguntasse a seu pai, milady. Năo adiantava. Ela năo podia intimidar aquelas criados, que a conheciam desde bebę. Charlotte desistiu e disse: ​ É melhor vocę ir até o vestíbulo e avisá-los de que estou esperando no carro. ​ Está certo, milady. Charlotte recostou-se no assento estofado em couro. Perguntara ŕs tręs pessoas que podiam saber onde Aleks estava e nenhuma delas a informara. Năo confiavam nela para guardar o segredo e o mais irritante é que tinham absoluta razăo. Mas ela ainda năo decidira se ajudaria Feliks. E se năo conseguisse obter a informaçăo que ele queria, talvez năo precisasse tomar a decisăo angustiante. O que seria um grande alívio. Ela combinara um encontro com Feliks para depois de amanhă, no mesmo lugar, na mesma hora. O que ele diria, quando ela aparecesse de măos vazias? Iria desprezá-la por facassar? Năo, ele năo era desse tipo. Ficaria profundamente desapontado. E talvez conseguisse encontrar um outro meio de descobrir onde Aleks se encontrava. A jovem estava ansiosa em revę-lo. Feliks era extremamente interessante, ela aprendera muita coisa com ele, de tal forma que o resto de sua vida parecia insuportavelmente insípido. Até mesmo a ansiedade do dilema em que ele a lançara era melhor do que o tédio de escolher vestidos para mais um dia de rotina social vazia. O pai e a măe entraram no carro, e Pritchard foi sentar-se ao volante, dando a partida. O pai disse: ​ Qual é o problema, Lydia? Vocę parece um pouco transtornada. A măe olhou para Charlotte. ​ O que vocę estava fazendo na Galeria Nacional esta tarde? Charlotte sentiu que o coraçăo parava por uma fraçăo de segundo. Alguém a espionara. Agora, haveria a maior encrenca. Suas măos começaram a tremer e a jovem cruzou-as no colo. ​ Estava olhando os quadros. ​ Vocę estava com um homem. O pai interveio na conversa: ​ Mas năo é possível, Charlotte! O que andou fazendo? ​ É apenas alguém que conheci ​ disse Charlotte. ​ Vocęs năo o aprovariam.
​ Mas claro que năo aprovaríamos! ​ disse a măe. ​ Ele estava usando um gorro de tweed! ​ Um gorro de tweed? ​ repetiu o pai. ​ Mas quem diabo é ele? ​ É um homem extremamente interessante, capaz de compreender uma porçăo de coisas… ​ E ficou de măos dadas com vocę! ​ interrompeu a măe. ​ Mas que vulgaridade, Charlotte! ​ murmurou o pai, tristemente. ​ E na Galeria Nacional! ​ Năo há nenhum romance ​ declarou Charlotte. ​ Năo precisam preocupar-se. ​ Năo nos preocupar? ​ A măe soltou uma risada nervosa. ​ A megera da Duquesa já sabe e vai contar a todo mundo! ​ Como pôde fazer uma coisa dessas com sua măe? ​ indagou o pai. Charlotte năo podia falar. Estava ŕ beira das lágrimas. Pensou: Năo fiz nada de errado, apenas conversei com alguém que fala coisas que fazem sentido! Como eles podem ser tăo… tăo grosseiros? Eu os odeio! ​ É melhor me dizer quem é ele ​ insistiu o pai. ​ Imagino que poderá ser comprado para se afastar. ​ Eu diria que ele é uma das poucas pessoas do mundo que năo podem ser compradas! ​ gritou Charlotte. ​ Deve ser algum radical ​ comentou a măe. ​ Năo resta a menor dúvida de que é ele quem está enchendo sua cabeça com essas tolices sobre sufragismo. Provavelmente usa sandálias e come batatas sem descascar. ​ A măe estava frenética e acabou perdendo o controle: ​ E provavelmente acredita também no amor livre! Se vocę… ​ Năo, Mamăe, isso năo aconteceu. Eu já disse que năo há nenhum romance. ​ Uma lágrima escorreu pelo nariz de Charlotte. ​ Năo sou do tipo romântico. ​ Năo acredito em nada disso ​ interveio o pai, contrariado. ​ E ninguém vai acreditar. Quer vocę compreenda ou năo, esse episódio é uma catástrofe social para todos nós. ​ É melhor mandá-la para um convento! ​ exclamou a măe, histericamente, desatando a chorar. ​ Tenho certeza de que năo será necessário ​ disse o pai. A măe sacudiu a cabeça. ​ Năo falei a sério. Desculpe estar tăo nervosa, mas ando terrivelmente preocupada… ​ Mas ela năo pode continuar em Londres, depois disso. ​ Claro que năo.
O carro entrou no pátio da casa. A măe enxugou os olhos, a fim de que os criados năo a vissem transtornada. Charlotte pensou: Eles văo-me impedir de ver Feliks, văo-me mandar para longe, trancafiar-me em algum lugar. Eu gostaria agora de ter prometido ajudá-lo, ao invés de hesitar e dizer que pensaria a respeito. Pelo menos ele saberia assim que estou do seu lado. Mas eles năo vencerăo. Năo levarei a vida que determinaram para mim. Năo me casarei com Freddie para me tornar Lady Chalfont e criar filhos gordos e complacentes. Năo poderăo trancafiar-me para sempre. Assim que fizer 21 anos, irei trabalhar com a Sra. Pankhurst, lerei livros sobre o anarquismo e fundarei um abrigo para măes solteiras. E se algum dia tiver filhos, jamais lhes contarei mentiras. Eles entraram na sala e o pai disse: ​ Vamos para a sala de estar. Pritchard seguiu-os. ​ Vai querer sanduíches, milorde? ​ Agora năo. Deixe-nos a sós por algum tempo, está bem, Pritchard? O mordomo saiu. O pai serviu-se de um conhaque com soda e tomou um gole, antes de dizer: ​ Pense bem, Charlotte. Vai-nos dizer quem é esse homem? A jovem sentiu vontade de dizer: Ele é um anarquista que está tentando impedi-los de começarem uma guerra! Mas limitou-se a sacudir a cabeça. ​ Neste caso, deve compreender que năo podemos mais confiar em vocę ​ acrescentou o pai, quase gentilmente. Houve um tempo em que poderiam, pensou Charlotte, amargurada; mas năo podem mais. O pai virouse para a măe e disse: ​ Ela terá de ficar no campo por um męs. É a única maneira de mantę-la longe dos problemas. Mas depois, da Regata Cowes, ela pode viajar ŕ Escócia, para a temporada de caça. ​ Suspirou. ​ Talvez ela esteja mais dócil na próxima temporada. ​ Vamos entăo mandá-la para Walden Hall ​ disse a măe. Charlotte pensou: Eles estăo falando a meu respeito como se eu năo estivesse presente. ​ Vou de automóvel a Norfolk pela manhă, a fim de me encontrar novamente com Aleks ​ disse o pai. ​ Posso levá-la. Charlotte ficou aturdida. Aleks estava em Walden Hall!
Isso nunca me passaria pela cabeça! Mas agora eu sei! ​ É melhor ela subir para arrumar suas coisas ​ disse a măe. Charlotte se levantou e saiu, mantendo o rosto abaixado, a fim de que os pais năo pudessem ver o brilho de triunfo em seus olhos.
DOZE
Faltavam 15 minutos para as tręs horas e Feliks já estava no saguăo da Galeria Nacional. Charlotte provavelmente chegaria atrasada, como na última vez, mas ele năo tinha mesmo nada melhor para fazer. Estava nervoso e irrequieto, cansado de esperar e cansado de se esconder. Dormira mal novamente nas duas últimas noites, a primeira em Hyde Park e a outra sob as arcadas de Charing Cross. Durante o dia, ficava escondido em becos, desvios ferroviários e terrenos baldios, saindo apenas para arrumar comida. Isso o lembrava da fuga pela Sibéria e a recordaçăo era das mais desagradáveis. Mesmo agora, ele se mantinha em movimento, indo do saguăo para as salas de exposiçăo, olhando os quadros, voltando ao saguăo para procurá-la. Olhava a todo instante para o relógio na parede. Ela ainda năo chegara ŕs tręs e meia. Provavelmente fora obrigada a comparecer a outro almoço horrível. Năo restava a menor dúvida de que ela poderia descobrir o paradeiro de Orlov. Feliks tinha certeza de que era uma moça engenhosa. Mesmo que o pai năo a informasse diretamente, ela encontraria um meio de descobrir o segredo. Se iria ou năo transmitir-lhe a informaçăo era outra questăo. Ela era também uma moça de vontade firme. Ele gostaria. Gostaria de uma porçăo de coisas. Gostaria de năo precisar enganá-la. Gostaria de poder encontrar Orlov sem a ajuda dela. Gostaria que os seres humanos năo se convertessem em príncipes e condes, kaisers e czares. Gostaria de ter casado com Lydia e conhecido Charlotte como bebę. Gostaria que ela chegasse logo, pois já eram quatro horas da tarde. A maioria dos quadros nada significava para ele. Eram cenas religiosas sentimentais, retratos de presunçosos mercadores holandeses, em suas casas sem vida. Gostava da Alegoria, de Bronzino, mas somente porque era sensual. A arte era uma área da experięncia humana pela qual passara ao largo. Talvez um dia Charlotte o levasse ao campo e lhe mostrasse as flores. Mas era improvável. Primeiro, ele teria de sobreviver pelos próximos dias e escapar depois de matar Orlov. O que năo era muito certo. E, depois, teria de conservar a afeiçăo de Charlotte, apesar de tę-la usado, mentido e assassinado seu primo. O que era praticamente impossível. E mesmo que acontecesse, ainda teria de achar meios de encontrá-la, ao mesmo tempo em que evitava a polícia… Năo, năo haveria muita possibilidade de encontrá-la depois do assassinato. Feliks pensou: Pois entăo trate de aproveitá-la ao máximo agora. Eram quatro e meia. Ela năo está apenas atrasada, pensou Feliks, sentindo um aperto no coraçăo; năo pôde vir. Espero que năo se tenha metido em alguma encrenca com Walden. Espero que năo tenha corrido riscos, acabando por ser descoberta. Gostaria que ela subisse correndo os degraus neste momento, ofegante, um pouco afogueada, o chapéu ligeiramente torto, uma expressăo ansiosa no rosto bonito, dizendo-me: ​Lamento profundamente tę-lo feito esperar, mas é que fui obrigada…​ O prédio parecia estar-se esvaziando agora. Feliks ficou pensando no que faria em seguida. Saiu, desceu os degraus, parou na calçada. Năo havia o menor sinal dela. Tomou a subir a escadaria e foi detido na porta por um guarda. ​ É tarde demais, companheiro ​ disse o homem. ​ Estamos fechando.
Feliks virou-se. Năo podia ficar esperando na escadaria, na esperança de que ela ainda chegasse, pois chamaria muita atençăo ali, na Praça Trafalgar. Além do mais, o atraso já era de duas horas, ela năo ia mais aparecer. Năo ia mais aparecer. Enfrente os fatos, pensou ele: ela decidiu que năo quer mais saber de vocę, no que está sendo muito sensata. Mas ela năo teria vindo de qualquer maneira, mesmo que fosse apenas para me dizer isso? Poderia mandar um bilhete… Poderia ter mandado um bilhete. Ela tinha o endereço de Bridget. Teria enviado um bilhete. Feliks seguiu para o norte. Percorreu as vielas de Theatreland e as praças tranqüilas de Bloomsbury. O tempo estava mudando. Por todo o período em que se encontrava na Inglaterra, fizera sol e calor, năo chovera uma única vez. Mas há 24 horas a atmosfera parecia sufocante. Como se uma tempestade estivesse lentamente se acumulando. Ele pensou: Fico imaginando como é viver em Bloomsbury, neste ambiente de classe média próspera, onde há sempre o suficiente para comer e sobra dinheiro para livros. Mas, depois da revoluçăo, vamos derrubar as grades em torno dos parques. Feliks estava com dor de cabeça. Năo sofria dores de cabeça desde a infância. Talvez fosse causada pela atmosfera sufocante que precedia a tempestade. Mais provavelmente era preocupaçăo. Depois da revoluçăo, pensou ele, as dores de cabeça serăo proibidas. Haveria um bilhete ŕ sua espera na casa de Bridget? Ele procurou imaginá-lo. ​Prezado Sr. Kschessinsky: Lamento năo ter podido comparecer ao nosso encontro hoje. Respeitosamente, Lady Charlotte Walden.​ Năo, claro que năo seria assim. ​Prezado Feliks: O Príncipe Orlov está hospedado na casa do adido naval russo, em Wilton Place, 25A, terceiro andar, quarto da frente, no lado esquerdo. Sua amiga afetuosa, Charlotte.​ Isso era mais provável. Mas podia ser diferente. ​Querido Pai: Isso mesmo… descobri a verdade. Mas meu ​pai​ trancou-me no quarto. Por favor, venha salvar-me. Sua filha que muito o ama, Charlotte Kschessinsky.​ Năo seja idiota! Chegou ŕ Rua Cork e observou atentamente. Năo havia guardas vigiando a casa, năo havia tipos corpulentos lendo um jornal diante do pub. Parecia seguro. Feliks sentiu-se animado. Há sempre algo maravilhoso na recepçăo calorosa de uma mulher, pensou ele, quer seja uma menina bonita como Charlotte ou uma velha gorda como Bridget. Passei tempo demais da minha vida em companhia de homens… ou sozinho. Feliks bateu na porta de Bridget. Enquanto esperava, olhou para a janela do seu antigo quarto no porăo. Verificou que havia cortinas novas. A porta se abriu. Bridget fitou-o e sorriu efusivamente. ​ Por Deus, é o meu terrorista internacional predileto! Entre, meu querido! Feliks entrou na sala de visita.
​ Quer um chá? Está quente. ​ Quero, sim, por favor. ​ Feliks se sentou. ​ A polícia incomodou-a? ​ Fui interrogada por um superintendente. Vocę deve ser muito importante. ​ O que lhe disse? Bridget assumiu uma expressăo desdenhosa. ​ Ele deixara o cassetete em casa. Năo conseguiu arrancar nada de mim. Feliks sorriu. ​ Recebeu uma carta… Mas Bridget ainda estava falando: ​ Quer o seu quarto de volta? Tive de alugar para outro sujeito, mas posso mandá-lo embora. Ele usa suíças… e jamais gostei de homens com suíças. ​ Năo, năo quero meu quarto… ​ Năo tem dormido direito. Dá para perceber por sua aparęncia. ​ É verdade. ​ O que quer que tenha vindo fazer em Londres, ainda năo conseguiu. ​ Năo, năo consegui. ​ Alguma coisa aconteceu. Vocę mudou. ​ Tem razăo. ​ O que foi? Feliks sentiu-se subitamente grato por contar com alguém para conversar. ​ Há muitos anos, vivi um grande romance. Năo sabia, mas nasceu uma criança. E há poucos dias… conheci minha filha. ​ Ahn… ​ Bridget fitou-o com compaixăo. ​ Meu pobre coitado! Como se já năo tivesse problemas suficientes na cabeça… Foi ela quem escreveu a carta? Feliks soltou um grunhido de satisfaçăo. ​ Entăo há uma carta. ​ Imaginei que foi isso que vocę veio procurar. ​ Bridget foi até a lareira e meteu a măo por trás do
relógio na cornija. ​ E a pobre moça está envolvida com opressores e tiranos? ​ Está, sim. ​ Foi o que pensei, pelo timbre. Vocę năo tem muita sorte, năo é mesmo? A mulher entregou-lhe a carta. Feliks viu o timbre no verso do envelope. Abriu-o. Lá dentro, havia duas folhas de papel, cobertas por uma letra precisa e elegante. Walden Hall 1° de julho de 1914 Caro Feliks: Quando receber esta carta, já terá esperado em văo por mim no encontro marcado. Lamento profundamente tę-lo deixado esperando. Infelizmente, fui vista em sua companhia na segunda-feira e pensam que tenho um amante secreto!!! Se ela está metida em alguma encrenca, pensou Feliks, parece bastante despreocupada. Fui banida para o campo pelo resto da temporada. Mas foi no fundo uma bęnçăo. Ninguém quis dizerme onde estava Aleks, mas agora sei, porque ele está aqui!!! Feliks foi dominado por um senso de triunfo incontrolável. ​ Entăo é lá que os ratos fizeram o ninho! ​ A criança o está ajudando? ​ indagou Bridget. ​ Ela era minha única esperança. ​ O que explica a sua aparęncia preocupada. ​ Tem razăo. Pegue um trem na estaçăo da Rua Liverpool até Waldenhall Halt. É a nossa aldeia. A casa fica cinco quilômetros além da aldeia, na estrada para o norte. Mas năo se aproxime da casa por esse cominho!!! Encontrará um bosque no lado esquerdo da estrada. Sempre passeio a cavalo por esse bosque, antes do desjejum, entre sete e oito horas. Procurarei por vocę todos os dias, até sua chegada. Depois que ela decidia de que lado estava, pensou Feliks, năo havia mais hesitaçăo. Năo sei quando esta carta será enviada. Vou deixá-la na mesa do vestíbulo, assim que houver ali outras cartas para serem remetidas. Assim, ninguém perceberá a minha letra no envelope e o lacaio a levará junto com as outras, quando for ŕ agęncia dos Correios. ​ Mas que menina sensacional! ​ exclamou Feliks, impulsivamente.
Estou fazendo isso porque vocę é a única pessoa que já conheci que fala coisas que fazem sentido. Afetuosamente, Charlotte Feliks recostou-se na cadeira e fechou os olhos. Estava tăo orgulhoso dela e envergonhado de si mesmo que quase chegou ŕs lágrimas. Bridget tirou a carta dos dedos inertes dele e começou a ler, comentando depois: ​ Entăo ela năo sabe que vocę é o seu pai. ​ Năo, năo sabe. ​ Entăo por que ela o está ajudando? ​ Porque acredita no que estou fazendo. Bridget soltou um grunhido de contrariedade. ​ Homens como vocę sempre encontram mulheres para ajudá-los. Por Deus, eu deveria saber! ​ Ela continuou a ler. ​ A moça escreve como uma colegial. ​ Tem razăo. ​ Qual é a idade dela? ​ Dezoito anos. ​ Tem idade suficiente para pensar por si mesma. É esse tal de Aleks que vocę está procurando? Feliks assentiu, com um aceno de cabeça. ​ O que ele é? ​ Um príncipe russo. ​ Entăo ele merece morrer. ​ Ele está arrastando a Rússia para a guerra. ​ E vocę está arrastando Charlotte para a confusăo. ​ Acha que estou errado? Bridget devolveu-lhe a carta. Parecia furiosa. ​ Nunca saberemos com certeza, năo é mesmo?
​ A política é assim. ​ A vida é assim. Feliks rasgou o envelope ao meio e largou-o na cesta de papel. Tencionava rasgar a carta também, mas năo foi capaz. Quando tudo acabar, pensou ele, talvez só terei isto para me lembrar dela. Ele dobrou as duas folhas de papel e guardou-as no bolso. Levantou-se. ​ Tenho de pegar um trem. ​ Quer que eu prepare um sanduíche para vocę levar? Ele sacudiu a cabeça. ​ Obrigado, mas năo estou com fome. ​ Tem dinheiro para a passagem? ​ Nunca pago passagens de trem. Bridget meteu a măo no bolso do avental e tirou um soberano. ​ Tome aqui. Pode tomar uma xícara de chá também. ​ É muito dinheiro. ​ Posso gastar nesta semana. Mas trate de ir embora logo de uma vez, antes que eu mude de idéia. Feliks pegou a moeda e deu-lhe um beijo de despedida. ​ Tem sido muito boa para mim. ​ Năo é por vocę, mas pelo meu Sean, que Deus guarde a sua alma alegre. ​ Adeus. ​ Boa sorte, rapaz. Feliks saiu.
 
Walden estava bastante otimista quando entrou no prédio do Almirantado. Fizera o que prometera: vendera a idéia de Constantinopla a Aleks. Na tarde anterior, o príncipe russo enviara uma mensagem ao Czar, recomendando a aceitaçăo da proposta britânica. Walden estava convencido de que o Czar aceitaria o conselho do sobrinho predileto, especialmente depois do assassinato em Sarajevo. Mas năo estava tăo certo assim de que Lloyd George se curvaria ŕ vontade de Asquith. Ele foi introduzido na sala do Primeiro Lorde do Almirantado. Churchill se levantou no mesmo instante e contornou a mesa para apertar-lhe a măo.
​ Vendemos a idéia a Lloyd George ​ anunciou ele, triunfante. ​ Isso é maravilhoso! ​ exclamou Walden. ​ Eu vendi a Orlov! ​ Eu sabia que conseguiria. Sente-se. Eu devia saber que năo podia esperar um agradecimento seu, pensou Walden. Mas nem mesmo Churchill podia arrefecer-lhe o ânimo naquele dia. Walden se sentou numa cadeira estofada em couro e correu os olhos pela sala, observando os mapas nas paredes e os diversos objetos na mesa. ​ Devemos receber notícias de Săo Petersburgo a qualquer momento ​ disse ele. ​ A embaixada russa enviará o comunicado diretamente para vocę. ​ Quanto mais cedo, melhor ​ comentou Churchill. ​ O Conde Hayes esteve em Berlim. Segundo nosso serviço secreto, levou uma carta indagando ao Kaiser se a Alemanha apoiaria a Áustria numa guerra contra a Sérvia. Nosso serviço secreto informa também que a resposta foi afirmativa. ​ Os alemăes năo querem lutar contra a Sérvia… ​ Năo, năo querem. Estăo apenas procurando um pretexto para lutar contra a França. A partir do momento em que a Alemanha se mobilizar, a França também se mobilizará. E isso será o pretexto para a Alemanha invadir a França. Năo há como evitar agora. ​ Os russos sabem de tudo isso? ​ Já os informamos. Espero que acreditem em nós. ​ Năo se pode fazer nada para assegurar a paz? ​ Estamos fazendo tudo o que é possível ​ disse Churchill. ​ Sir Edward Grey está trabalhando noite e dia, assim como nossos embaixadores em Berlim, Paris, Viena e Săo Petersburgo. Até mesmo o Rei está enviando telegramas para seus primos, o Kaiser ​Willy​ e o Czar ​Nicky​ Mas nada vai adiantar. Houve uma batida na porta e um jovem secretário entrou na sala, com um pedaço de papel na măo. ​ Uma mensagem do embaixador russo, senhor. Walden ficou tenso. Churchill olhou rapidamente para o papel e depois fitou-o, com uma expressăo de triunfo. ​ Eles aceitaram. Walden ficou radiante. ​ Isso é maravilhoso! O secretário saiu. Churchill se levantou. ​ Isso merece um uísque com soda. Quer-me acompanhar?
​ Claro! Churchill abriu um armário. ​ O tratado será preparado esta noite e levado a Walden Hall amanhă de tarde. Podemos realizar uma pequena cerimônia de assinatura na noite de amanha. Terá de ser ratificado pelo Czar e por Asquith, é claro, mas será apenas uma formalidade… desde que Orlov e eu assinemos o mais depressa possível. O secretário tornou a bater na porta e entrou. ​ O Sr. Basil Thomson está aqui, senhor. ​ Mande-o entrar. Thomson entrou e foi logo dizendo, sem qualquer preâmbulo: ​ Tornamos a descobrir a pista do nosso anarquista! ​ Ótimo! ​ exclamou Walden. Thomson se sentou. ​ Deve estar lembrado de que coloquei um homem no quarto de porăo da casa na Rua Cork, para o caso de Feliks tornar a aparecer por lá. ​ Claro que me lembro ​ disse Walden. ​ Pois o nosso anarquista voltou ŕ casa. E quando ele saiu, meu homem o seguiu. ​ Para onde ele foi? ​ Para a estaçăo da Rua Liverpool. ​ Thomson fez uma pausa. ​E comprou uma passagem para Waldenhall Halt.
TREZE
Walden sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo. Seu primeiro pensamento foi para Charlotte. Ela estava vulnerável lá, com os guarda-costas se concentrando em Aleks. Năo havia ninguém para protegę-la, ŕ exceçăo dos criados. Como pude ser tăo estúpido?, pensou ele. E estava também bastante preocupado por Aleks. O rapaz era quase como um filho para Walden. Ele pensava estar seguro na casa de Walden… e agora Feliks achava-se a caminho de lá, com uma pistola ou uma bomba, a fim de matá-lo e talvez a Charlotte também, sabotando o tratado… Walden explodiu: ​ Por que diabo năo o deteve? Thomson disse, suavemente: ​ Năo creio que seja uma boa idéia para um homem sozinho enfrentar o nosso amigo Feliks. Năo pensa assim também? Já vimos o que ele é capaz de fazer contra vários homens. Parece năo se importar com a própria vida. Meu homem tem instruçőes para segui-lo e comunicar. ​ Năo é suficiente… ​ Sei disso, milorde. ​ Năo vamos perder a calma, cavalheiros ​ interveio Churchill. ​ Sabemos pelo menos onde o sujeito está. E năo podemos deixar de agarrá-lo, com todos os recursos do Governo de Sua Majestade ŕ nossa disposiçăo. O que propőe, Thomson? ​ Na verdade, senhor, já tomei as providęncias que julguei adequadas. Falei pelo telefone com o chefe de polícia do condado. Ele terá um grande destacamento de policiais na estaçăo de Waldenhall Halt, a fim de prender Feliks no momento em que ele descer do trem. E para o caso de alguma coisa sair errada, meu homem ficará grudado nele, como cola. ​ Năo vai adiantar ​ disse Walden. ​ É melhor parar o trem e prendę-lo, antes que se aproxime da minha casa. ​ Também pensei nisso ​ informou Thomson. ​ Mas os perigos superam as vantagens. É muito melhor deixá-lo seguir viagem pensando que está seguro e agarrá-lo quando estiver desprevenido. ​ Concordo plenamente ​ disse Churchill. ​ A casa năo é sua! ​ exclamou Walden. ​ Terá de deixar essa questăo por conta dos profissionais ​ insistiu Churchill. Walden compreendeu que năo poderia demovę-los. Levantou-se. ​ Partirei de automóvel para Walden Hall imediatamente. Vai comigo, Thomson?
​ Năo esta noite. Vou deter a mulher Callahan. Assim que prendermos Feliks, precisamos instaurar o processo, e ela pode ser a nossa principal testemunha. Irei até lá amanhă para interrogar Feliks. ​ Năo entendo como pode estar tăo confiante ​ disse Walden, furioso. ​ Vamos prendę-lo desta vez ​ garantiu Thomson. ​ Peço a Deus que esteja certo.
 
O trem avançava pelo crepúsculo. Feliks contemplava os trigais ingleses ao Sol poente. Năo era jovem o bastante para encarar o transporte mecânico como um fato consumado. Ainda achava que viajar de trem era algo quase mágico. O menino que andava em sapatos de madeira pelas campinas enlameadas da Rússia năo poderia ter sonhado com algo assim. Estava sozinho no compartimento, a năo ser por um rapaz que parecia concentrado em ler todas as linhas da ediçăo vespertina da Pall Mall Gazette. Feliks estava com um ânimo quase alegre. Iria encontrar-se com Charlotte amanhă de manhă. Ela devia parecer maravilhosa a cavalo, com o vento lhe esvoaçando os cabelos. Trabalhariam juntos. Ela lhe diria onde ficava o quarto de Orlov, onde ele poderia ser encontrado em diferentes horas do dia. Ela o ajudaria a se apoderar de uma arma. Compreendeu que fora a carta de Charlotte que o deixara tăo animado. Ela estava do seu lado agora, acontecesse o que acontecesse. A năo ser… A năo ser pelo fato de que dissera a ela que ia seqüestrar Orlov. Cada vez que se lembrava disso, Feliks tinha vontade de se contorcer no assento. Tentou afastar o fato da mente, mas o pensamento era como uma coceira que năo podia ser ignorada, que tinha de ser coçada de qualquer maneira. O que posso fazer?, pensou ele. Tenho de começar a prepará-la para a notícia, pelo menos. Talvez deva contar-lhe que sou seu pai. Seria um choque e tanto… Por um momento, Feliks sentiu-se tentado pela idéia de ir embora, desaparecer, nunca mais tornar a vę-la, deixá-la em paz. Năo, pensou ele; esse năo é o destino dela e também năo é o meu. E qual seria o meu destino, depois de matar Orlov? Será que vou morrer? Ele sacudiu a cabeça, como se pudesse livrar-se do pensamento da mesma forma como se afugenta uma mosca. Aquele năo era o momento para depressăo. Tinha planos a formular. Como vou matar Orlov? Deve haver armas para roubar na mansăo rural do Conde. Charlotte pode dizer-me onde estăo ou pegar uma para mim. Se năo for possível, haverá facas na cozinha. E ainda tenho as măos nuas. Feliks flexionou os dedos. Terei de entrar na casa ou Orlov sairá? Agirei durante o dia ou ŕ noite? Matarei Walden também? Politicamente, a morte de Walden năo faria a menor diferença. Mas eu gostaria de matá-lo mesmo assim. Entăo é uma questăo pessoal… e daí? Lembrou-se novamente de Walden pegando o vidro com nitroglicerina. Năo subestime o homem, disse
a si mesmo. Devo cuidar para que Charlotte tenha um álibi. Ninguém deve jamais saber que ela me ajudou. O trem diminuiu a velocidade e entrou numa pequena estaçăo rural. Feliks tentou lembrar-se do mapa que estudara na estaçăo da Rua Liverpool. Teve a impressăo de recordar que Waldenhall Halt era a quarta estaçăo depois daquela. Seu companheiro de viagem terminou finalmente de ler a Pall Mall Gazette e colocou-a no assento a seu lado. Feliks concluiu que năo poderia planejar o assassinato, enquanto năo visse a área. E por isso perguntou: ​ Posso ler o seu jornal? O homem pareceu ficar surpreso. Feliks recordou que os ingleses năo falavam com estrangeiros nos trens. ​ Ŕ vontade ​ disse o homem. Feliks aprendera que a expressăo significava sim. Pegou o jornal e disse: ​ Obrigado. Ele olhou para o jornal. O companheiro de viagem olhava pela janela, como se estivesse constrangido. Exibia a espécie de cabelos no rosto que estava em moda quando Feliks era menino. Tentou recordar a palavra inglesa… ​suíças​. Era isso. Suíças. Queria o seu quarto de volta? Tive de alugar para outro sujeito, mas posso mandá-lo embora. Ele usa suíças… e jamais gostei de homens com suíças. E agora Feliks recordou que aquele homem estivera por trás dele na fila para comprar passagem. Sentiu uma pontada de medo. Manteve o jornal suspenso diante do rosto, como uma precauçăo no caso de os pensamentos transparecerem na expressăo. Obrigou-se a pensar clara e objetivamente. Alguma coisa que Bridget dissera levara a polícia a ficar desconfiada o bastante para colocar um homem de vigia em sua casa. O expediente fora muito simples: colocar um detetive para ocupar o quarto que Feliks deixara. O detetive observara a visita de Feliks, reconhecera-o e o seguira ŕ estaçăo. Parado por trás de Feliks na fila, ouvira-o pedir uma passagem para Waldenhall Halt e embarcara no mesmo trem, atrás dele. Năo, năo fora bem assim. Feliks ficara sentado dentro do trem por cerca de 10 minutos, antes da partida. O homem de suíças embarcara no último momento. O que ele estivera fazendo naqueles poucos minutos de diferença? Provavelmente dera um telefonema.
Feliks imaginou a conversa, com o detetive sentado na sala do chefe da estaçăo, falando ao telefone: ​ O anarquista voltou ŕ casa na Rua Cork, senhor. Estou seguindo-o agora. ​ Onde vocę está? ​ Na estaçăo da Rua Liverpool. Ele comprou uma passagem para Waldenhall Halt. Está no trem agora. ​ O trem já partiu? ​ Năo, senhor. Só partirá dentro de sete minutos. ​ A estaçăo está policiada? ​ Há apenas dois guardas. ​ Năo é suficiente. O homem é perigoso. ​ Posso retardar a partida do trem, enquanto envia uma equipe para cá. ​ Nosso anarquista pode ficar desconfiado e escapar. Năo. Continue a segui-lo… Mas, o que eles fariam?, pensou Feliks. Poderiam tirá-lo do trem em algum lugar do percurso ou esperar para prendę-lo em Waldenhall Halt. De qualquer maneira, ele precisava deixar o trem. E o mais depressa possível. O que fazer com o detetive? Feliks devia deixá-lo para trás, no trem, incapaz de dar o alarme, a fim de que tivesse tempo suficiente para se afastar. Eu poderia amarrá-lo, se tivesse alguma coisa para usar, pensou Feliks. Poderia deixá-lo sem sentidos, se tivesse alguma coisa pesada e o atingisse com força. Poderia estrangulá-lo, mas isso levaria tempo e alguém poderia ver. Poderia jogá-lo para fora do trem, mas prefiro deixá-lo seguir viagem… O trem começou a diminuir a velocidade. Podem estar ŕ minha espera na próxima estaçăo, pensou Feliks. Eu gostaria de ter uma arma. Será que o detetive está com um revólver? Duvido muito. Posso quebrar a janela e usar um caco de vidro para cortar-lhe a garganta… mas isso certamente atrairia uma multidăo. Preciso saltar do trem. Umas poucas casas podiam ser vistas ao longo da linha férrea. Estavam chegando a uma aldeia ou pequena cidade. Os freios do trem rangeram, a estaçăo entrou no campo de visăo. Feliks ficou observando atentamente, ŕ procura de sinais de uma armadilha da polícia. A plataforma parecia vazia. A locomotiva parou, com um solavanco e um zunido de vapor. As pessoas começaram a desembarcar. Alguns passageiros passaram pela janela de Feliks, encaminhando-se para a saída: uma família com duas crianças pequenas, uma mulher com uma caixa de chapéu, um homem alto de tweed.
Eu poderia atacar o detetive, pensou Feliks; mas é muito difícil deixar alguém inconsciente só com os punhos. A armadilha da polícia podia ser na estaçăo seguinte. Tenho de saltar agora. Um apito soou. Feliks se levantou. O detetive ficou atordoado. ​ Há um banheiro neste trem? ​ perguntou Feliks. O detetive ficou desconcertado. ​ Ahn… deve haver. ​ Obrigado. ​ Ele năo sabe se deve acreditar em mim, pensou Feliks. Em seguida, passou do compartimento para o corredor. Correu para a extremidade do vagăo. O trem avançou, com um solavanco. Feliks olhou para trás. O detetive pusera a cabeça para fora do compartimento. Feliks entrou no banheiro e tornou a sair. O detetive ainda estava observando. O trem moveu-se um pouco mais depressa. Feliks foi até a porta do vagăo. O detetive veio correndo. Feliks virou-se e desferiu um soco na cara do detetive. O golpe fez o homem parar abruptamente. Feliks esmurrou-o de novo, na barriga. Uma mulher gritou. Feliks agarrou-o pelo casaco e empurrou-o para o banheiro. O detetive debatia-se, acertou um soco violento nas costelas de Feliks, deixando-o sem fôlego. O russo pegou a cabeça do detetive com as duas măos e empurrou-a contra a beira da pia. O trem aumentou de velocidade. Feliks tornou a bater com a cabeça do detetive na beira da pia. E bateu de novo. O homem ficou inerte. Feliks largou-o e saiu do banheiro. Foi até a porta do vagăo e abriu-a. O trem já corria com bastante velocidade. Uma mulher no outro lado do corredor observava-o, muito pálida. Feliks pulou. A porta bateu atrás dele. Achava-se na plataforma, correndo. Tropeçou, recuperou o equilíbrio. E o trem aumentava de velocidade. Feliks encaminhou-se para a saída da estaçăo. ​ Desembarcou um pouco tarde ​ disse o fiscal de passagens da estaçăo. Feliks assentiu e entregou-lhe sua passagem. ​ Esta passagem é para levá-lo por mais tręs estaçőes ​ disse o homem. ​ Mudei de idéia. Houve um ranger de freios. Os dois olharam. O trem estava parando. Alguém puxara o freio de emergęncia. O fiscal disse: ​ Ei, o que está acontecendo? Feliks forçou-se a dar de ombros, com uma expressăo indiferente.
​ Năo tenho a menor idéia. Ele tinha vontade de correr, mas seria a pior coisa que poderia fazer naquele momento. O fiscal de passagens estava hesitante, entre a desconfiança de Feliks e a preocupaçăo com o trem. Acabou dizendo: ​ Espere aqui. E saiu correndo pela plataforma. O trem parou a cerca de 200 metros da estaçăo. Feliks ficou observando o fiscal correr até a extremidade da plataforma e descer. Olhou ao redor. Achava-se sozinho. Saiu rapidamente da estaçăo, entrando na cidade. Poucos minutos depois, um carro com tręs guardas passou por ele em grande velocidade, seguindo para a estaçăo. Nos arredores da cidade, Feliks pulou uma cerca e embrenhou-se por um trigal, onde se deitou, esperando pelo anoitecer.
 
O Lanchester subiu ruidosamente pelo caminho para Walden Hall. Todas as luzes da casa estavam acesas. Um guarda achava-se parado diante da porta, outro patrulhava a varanda, como uma sentinela. Pritchard parou o carro. O guarda na porta ficou em posiçăo de sentido e bateu continęncia. Pritchard abriu a porta do carro, e Walden saiu. A Sra. Braithwaite, a governanta, saiu da casa para cumprimentá-lo. ​ Boa-noite, milorde. ​ Boa-noite, Sra. Braithwaite. Quem está aqui? ​ Sir Arthur na sala de estar, com o Príncipe Orlov. Walden acenou com a cabeça, e entraram juntos na casa. Sir Arthur Langley era o chefe de polícia do condado e um ex-colega de escola de Walden. ​ Já jantou, milorde? ​ perguntou a Sra. Braithwaite. ​ Năo. ​ Năo gostaria de comer um pastelăo de carne, com uma garrafa de borgonha? ​ Deixo a seu critério. ​ Está certo, milorde. A Sra. Braithwaite afastou-se e Walden entrou na sala de estar. Aleks e Sir Arthur estavam encostados
na lareira, segurando copos de conhaque. Ambos achavam-se vestidos a rigor. Sir Arthur disse: ​ Olá, Stephen. Como vai? Walden apertou a măo dele. ​ Pegaram o anarquista? ​ Infelizmente, ele escapuliu entre os nossos dedos… ​ Mas que diabo! ​ exclamou Walden. ​ Era o que eu receava! Mas ninguém quis me ouvir! ​ Controlouse, lembrou das boas maneiras e apertou a măo de Aleks. ​ Năo sei o que lhe dizer, meu caro rapaz… deve pensar que somos um bando de idiotas. ​ Virou-se novamente para Sir Arthur. ​ O que aconteceu? ​ Feliks saltou do trem em Tingley. ​ Onde estava o precioso detetive Thomson? ​ No banheiro, com a cabeça quebrada. ​ Maravilhoso! ​ murmurou Walden amargamente, arriando numa cadeira. ​ Quando a policia local foi chamada, Feliks já havia desaparecido. ​ Pode entender que ele está a caminho daqui? ​ Claro que sim ​ respondeu Sir Arthur, suavemente. ​ Seus homens deveriam receber instruçőes para atirar sem fazer perguntas na próxima vez em que o avistarem. ​ Isso seria o ideal… mas é claro que eles năo andam armados. ​ Mas deveriam! ​ Pessoalmente, acho que vocę tem razăo. Mas a opiniăo pública… ​ Antes de discutirmos esse problema, diga-me o que está sendo feito. ​ Está bem. Tenho cinco patrulhas cobrindo as estradas até Tingley. ​ Năo văo vę-lo no escuro. ​ Talvez năo. Mas pelo menos a presença dos homens vai retardar o avanço dele, se năo o fizer desistir. ​ Duvido muito. O que mais? ​ Trouxe um guarda e um sargento para guardar a casa.
​ Vi os dois lá fora. ​ Haverá uma troca de homens a cada oito horas, dia e noite. O Príncipe já conta com dois guardacostas do Serviço Especial e Thomson está enviando mais quatro homens para cá esta noite, de automóvel. Văo-se revezar em turnos de doze horas e assim haverá sempre pelo menos tręs homens em companhia do Príncipe. Meus homens năo estăo armados, mas os de Thomson estăo. Todos eles tęm revólveres. Minha recomendaçăo é de que o Príncipe Orlov permaneça em seus aposentos, a comida sendo servida pelos guarda-costas, até que Feliks seja preso. ​ Está certo ​ falou Aleks. Walden olhou para ele. Aleks estava pálido, mas calmo. Ele é muito corajoso, pensou Walden. Se eu estivesse no lugar dele, ficaria furioso com a incompetęncia da polícia britânica. ​ Năo creio que uns poucos guarda-costas sejam suficientes ​ disse Walden. ​ Precisamos de um exército. ​ Teremos um amanhă de manhă ​ respondeu Sir Arthur. ​ Vamos desfechar uma operaçăo de busca em grande escala, a partir das nove horas. ​ Por que năo ap amanhecer? ​ Porque o exército precisa ser reunido. Teremos cento e cinqüenta homens, vindos de todas as partes do condado. Quase todos estăo agora na cama. Precisamos entrar em contato com todos, transmitir as instruçőes necessárias. E eles precisam de tempo para chegar aqui. A Sra. Braithwaite entrou na sala com uma bandeja. Havia um pastelăo de carne frio, metade de uma galinha, uma tigela de salada de batata, păo, salame, fatias de tomate, um pedaço de queijo Cheddar, diversas espécies de molhos e algumas frutas. Um lacaio a seguia com uma garrafa de vinho, um jarro de leite, um bule de café, um prato de sorvete, uma torta de maçă e metade de um bolo grande de chocolate. O lacaio disse: ​ Infelizmente, o borgonha năo teve tempo de respirar, milorde. Devo decantá-lo? ​ Por favor. O lacaio aprontou uma mesa pequena. Walden estava faminto, mas sentia-se tenso demais para comer. E acho que também năo conseguirei dormir, pensou ele. Aleks serviu-se de mais conhaque. Ele está bebendo sem parar, compreendeu Walden. Seus movimentos eram lentos e mecânicos, como se fizesse um tremendo esforço para manter o controle. ​ Onde está Charlotte? ​ perguntou Walden, subitamente. Foi Aleks quem respondeu: ​ Ela foi-se deitar. ​ Ela năo deve sair de casa, enquanto tudo isso estiver acontecendo.
​ Devo avisá-la, milorde? ​ perguntou a Sra. Braithwaite. ​ Năo, năo a acorde. Falarei com ela de manhă. ​ Walden tomou um gole de vinho, esperando que isso o relaxasse um pouco. ​ Podemos transferi-lo para outro lugar, Aleks, se isso o fizer sentir-se melhor. Aleks exibiu um sorriso tenso. ​ Năo adiantaria muita coisa, năo é mesmo? Feliks sempre consegue encontrar-me. O melhor plano para mim é ficar escondido no quarto, assinar o tratado o mais depressa possível e depois voltar para casa. Walden assentiu, com um aceno de cabeça. Os criados se retiraram. Sir Arthur disse: ​ Ahn… há mais uma coisa, Stephen. ​ Ele parecia constrangido. ​ Estou-me referindo ao que levou Feliks a pegar de repente um trem para Waldenhall Halt. Em meio a todo o pânico, Walden năo pensara nisso. ​ Tem razăo. Como ele terá descoberto? ​ Pelo que sei, apenas dois grupos de pessoas estavam informados do paradeiro do Príncipe Orlov. Um é formado pelo pessoal da embaixada, que estava transmitindo telegramas de um lado para outro. E o segundo grupo é constituído pelo pessoal daqui. ​ Um traidor entre os meus criados? O pensamento era aterrador. ​ Isso mesmo ​ falou Sir Arthur, hesitante. ​ Ou, é claro, entre a família.
 
O jantar de Lydia foi um desastre. Com Stephen ausente, o irmăo dele, George, teve de sentar-se como anfitriăo, o que fez com que o número de pessoas ŕ mesa fosse ímpar. Pior ainda, Lydia estava tăo consternada que sua conversa mal era polida, muito menos cintilante. Todos os convidados, ŕ exceçăo dos mais gentis, perguntaram por Charlotte, sabendo perfeitamente que ela estava em desgraça. Lydia disse apenas que ela fora descansar no campo por alguns dias. Falava mecanicamente, mal sabendo o que dizia. Sua mente estava dominada por pesadelos: Feliks sendo preso, Stephen sendo alvejado, Feliks sendo espancado, Stephen sangrando, Feliks fugindo, Stephen morrendo. Ansiava em contar a alguém como se sentia mas com os seus convidados só podia falar do baile da noite anterior, as perspectivas para a Regata Cowes, a situaçăo nos Bálcăs e o orçamento de Lloyd George. Felizmente, os convidados năo permaneceram por muito tempo depois do jantar. Todos iam a um baile, um coquetel ou um concerto. Assim que o último se retirou, Lydia foi até o vestíbulo e pegou o telefone. Năo podia falar com Stephen, pois Walden Wall ainda năo tinha telefone. Por isso, ligou para a casa de Winston Churchill, na Praça Eccleston. Ele năo estava. Ela tentou o Almirantado, a Rua Downing n° 10, residęncia do Primeiro-Ministro, e o Clube Nacional Liberal, tudo em văo. Lembrou-se finalmente de Basil Thomson e ligou para a Scotland Yard. Thomson ainda estava em sua sala, trabalhando até tarde.
​ Como tem passado, Lady Walden? Lydia pensou: Como as pessoas ainda podem ser polidas numa situaçăo como esta? Ela indagou: ​ Quais săo as notícias? ​ Infelizmente, năo săo boas. Nosso amigo Feliks conseguiu escapulir mais uma vez. Um alívio intenso invadiu Lydia. ​ Obrigada… ​ Creio que năo precisa preocupar-se demais ​ acrescentou Thomson. ​ O Príncipe Orlov está sendo bem guardado agora. Lydia corou de vergonha. Ficara tăo satisfeita por saber que Feliks estava bem que, por um momento, esquecera de se preocupar com Aleks e Stephen. ​ Tentarei… tentarei năo me preocupar. Boa-noite. ​ Boa-noite, Lady Walden. Ela desligou. Subiu e tocou a campainha, chamando a criada para ajudá-la a tirar as roupas. Achava-se profundamente abalada. Nada estava resolvido, todas as pessoas que ela amava corriam perigo. Por quanto tempo continuaria? Ela tinha certeza de que Feliks năo desistiria, a menos que fosse apanhado. A criada chegou, desabotoou o vestido e desprendeu o espartilho. Lydia sabia que algumas mulheres confidenciavam tudo a suas criadas. Mas ela năo o fazia. Isso só acontecera uma vez, em Săo Petersburgo… Resolveu escrever para a irmă, pois ainda era cedo para se deitar. Pediu ŕ criada que fosse buscar papel de carta. Pôs um robe e se sentou ao lado da janela, olhando para a escuridăo do parque. Há tręs meses que năo chovia, mas o tempo estava-se tornando ameaçador e em breve haveria tempestades. A criada trouxe papel, penas, tinta e envelopes. Lydia pegou uma folha de papel e escreveu: Querida Tatyana… Năo sabia por onde começar. Como posso explicar a situaçăo de Charlotte, pensou ela, quando eu própria năo a compreendo? E năo poderia dizer coisa alguma a respeito de Feliks, pois Tatyana poderia contar ao Czar. E se o Czar soubesse o quăo perto Aleks esteve de ser assassinado… Feliks é muito inteligente. Como ele conseguiu descobrir onde Aleks está escondido? Năo contamos nem a Charlotte! Charlotte? Lydia sentiu um calafrio.
Charlotte? Ela se levantou abruptamente e gritou: ​ Oh, năo! Era um homem em torno dos quarenta anos, usando um gorro de tweed. Uma inevitável sensaçăo de horror dominou-a. Era como um daqueles pesadelos terríveis em que se pensa na pior coisa que pode acontecer e a coisa começa imediatamente a acontecer: a escada cai, a criança é atropelada, as pessoas amadas morrem. Escondeu o rosto entre as măos. Sentia-se tonta. Tenho de pensar, tenho de tentar pensar. Por favor, Deus, ajude-me a pensar. Charlotte encontrou-se com um homem na Galeria Nacional. E naquela noite ela me perguntou onde Aleks estava. Năo lhe disse. Talvez ela tenha perguntado também a Stephen. Mas ele năo diria. E depois ela foi despachada para Walden Hall, descobrindo que Aleks estava lá. Dois dias depois, Feliks partia para Walden Hall… Faça com que isso seja um sonho, rezou ela; faça-me acordar agora, por favor, descobrir-me na minha própria cama, faça com que seja amanhă. Năo era um sonho. Feliks era o homem de gorro de tweed. Charlotte conhecera o pai. E ficaram de măos dadas. Era horrível, horrível demais. Feliks teria dito a verdade: ​Sou seu pai​? Teria revelado o segredo de 19 anos? Será que ele sabia? Claro que sabia. Por que outro motivo Charlotte estaria… colaborando com ele? Minha filha, conspirando com um anarquista para cometer um assassinato! Ela ainda deve estar ajudando-o. O que posso fazer? Devo avisar Stephen… mas como posso fazer isso sem lhe contar que năo é o pai de Charlotte? Eu gostaria de poder pensar direito. Ela tocou a campainha, tornando a chamar a criada. Devo encontrar um meio de acabar com tudo isso, pensou ela. Năo sei o que vou fazer, mas tenho de fazer alguma coisa. Quando a criada chegou, Lydia disse: ​ Comece a arrumar minhas coisas. Vou partir amanhă de manhă. Tenho de ir para Walden Hall.
 
Depois do anoitecer, Feliks foi seguido pelos campos. Era uma noite quente e úmida, muito escura. Nuvens carregadas de chuva escondiam as estrelas e a Lua. Tinha de andar lentamente, pois estava quase cego. Encontrou o caminho para a linha férrea e virou para o norte. Andando por ali, podia avançar um pouco mais depressa, pois havia um tęnue brilho nos trilhos de aço e ele sabia que năo haveria obstáculos. Passou por estaçőes escuras, esgueirando-se pelas plataformas desertas. Ouviu ratos nas salas de espera vazias. Năo tinha medo de ratos. Houvera um tempo em que os matara com as măos e comera. Os nomes das estaçőes estavam gravados em placas de metal e podia ler pelo contato. Ao chegar a Waldenhall Halt, lembrou-se das orientaçőes de Charlotte: A casa fica cinco quilômetros além da aldeia, na estrada para o norte. A linha férrea seguia aproximadamente para norte-nordeste. Iria segui-la por mais um quilômetro e meio, calculando a distância pelos passos. Dera 1.600 passos, quando esbarrou em alguém. O homem soltou um grito de surpresa e no instante seguinte Feliks agarrou-o pela garganta. Um cheiro forte de cerveja exalava do homem. Feliks compreendeu que era apenas um bębado voltando para casa e relaxou o aperto. ​ Năo tenha medo ​ disse o homem, em voz engrolada. ​ Está bem. ​ Feliks largou o homem. ​ É a única maneira pela qual consigo chegar em casa sem me perder. ​ Pois entăo continue. O homem afastou-se. Um momento depois, ele gritou: ​ Năo vá dormir na linha… o trem leiteiro passa ŕs quatro horas da madrugada. Feliks năo respondeu, e o bębado seguiu em frente. Feliks sacudiu a cabeça, irritado consigo mesmo por estar tăo nervoso. Poderia ter matado o homem. Sentia-se meio fraco de alívio. Năo estava certo. Resolveu descobrir a estrada de rodagem. Afastou-se da linha férrea, avançou por um trecho pequeno de terreno irregular, tropeçando várias vezes, e chegou finalmente a uma cerca frágil, de tręs arames esticados. Esperou por um momento. O que haveria pela frente? Um campo? O quintal dos fundos de alguma casa? O jardim da aldeia? Năo há escuridăo como a noite escura no campo, com a luz de rua mais próxima a 150 quilômetros de distância. Ouviu um movimento súbito bem perto e, pelo canto do olho, divisou alguma coisa branca. Abaixou-se e tateou pelo chăo, até encontrar uma pedra pequena, lançandoa na direçăo da coisa branca. Houve um relincho e um cavalo afastou-se a galope. Feliks escutou. Se havia cachorros por perto, o relincho os faria latir. Nada ouviu. Passou pela cerca. Foi avançando lentamente pela pastagem. Tropeçou numa moita. Ouviu outro cavalo, mas năo o viu.
Encontrou outra cerca, passou por ela, foi esbarrar numa construçăo de madeira. Houve no mesmo instante um tremendo barulho de galinhas. Um cachorro começou a latir. Uma luz se acendeu na janela de uma casa. Feliks jogou-se no chăo e ficou completamente imóvel. A luz mostrava que se encontrava num pequeno pátio de fazenda. Esbarrara no galinheiro. Além da casa da fazenda, pôde divisar a estrada que procurava. As galinhas se aquietaram, o cachorro soltou um último uivo desapontado, e a luz se apagou. Feliks encaminhou-se para a estrada. Era uma estrada de terra, margeada por uma vala seca. Além da vala, parecia haver um bosque. Feliks recordou: Encontrará um bosque no lado esquerdo da estrada. Estava quase chegando. Encaminhou-se para o norte, pela estrada, aguçando os ouvidos para o barulho de qualquer pessoa a se aproximar. Depois de mais um quilômetro e meio, sentiu que havia um muro ŕ esquerda. Pouco mais adiante, o muro era interrompido por um portăo e ele viu uma luz. Feliks encostou-se nas barras de ferro do portăo e espiou atentamente. Parecia haver um longo caminho. Ao final deste, iluminado por dois lampiőes, podia avistar o pórtico de colunas de uma vasta casa. Enquanto observava, um vulto alto passou pela porta da frente da casa. Uma sentinela. O Príncipe Orlov está naquela casa, pensou Feliks. Qual será a janela do seu quarto? Ouviu de repente o barulho de um automóvel se aproximando, muito depressa. Correu 10 passos para trás e jogou-se na vala. Os faróis do carro varreram o muro um momento depois. O automóvel parou diante do portăo. Alguém saltou. Feliks ouviu uma batida. Compreendeu que devia haver uma casa de porteiro. Năo a vira na escuridăo. Uma janela foi aberta e uma voz gritou: ​ Quem está aí? Outra voz respondeu: ​ Polícia. Do Serviço Especial da Scotland Yard. ​ Espere um momento. Feliks permaneceu completamente imóvel. Ouviu passos: o homem que saltara do automóvel movimentava-se de um lado para outro, irrequieto. Uma porta foi aberta. Um cachorro latiu e uma voz disse: ​ Quieto, Rex! Feliks parou de respirar. O cachorro estaria na coleira? E se farejasse Feliks? Será que se aproximaria da vala, descobrindo-o e começando a latir? Os portőes de ferro foram abertos com um rangido. O cachorro tornou a latir. A voz disse: ​ Cale-se, Rex! Uma porta de cano bateu e o automóvel afastou-se pelo caminho da propriedade. A vala estava
novamente escura. Agora, pensou Feliks, se o cachorro me descobrir posso matá-lo e também ao porteiro… Ele ficou tenso, pronto para se levantar de um pulo, no instante em que ouvisse o cachorro farejando por perto. Os portőes se fecharam, rangendo. Um momento depois, a porta da casa do porteiro foi batida. Feliks voltou a respirar.
 
2
QUATORZE
Charlotte acordou ŕs seis horas. Abrira as cortinas das janelas do quarto, a fim de que os primeiros raios do Sol incidissem em seu rosto e a despertassem. Era um truque que usara há muitos anos, quando Belinda achava-se em Walden Hall e as duas gostavam de vaguear pela casa, enquanto os adultos ainda estavam deitados e năo havia ninguém para lhes dizer que se comportassem como pequenas damas. Seu primeiro pensamento foi para Feliks. Năo havia conseguido agarrá-lo… ele era tăo esperto! E hoje ele estaria esperando por ela no bosque. Charlotte saiu da cama e olhou para fora. O tempo ainda năo mudara completamente. A noite pelo menos fora seca. Lavou-se com água fria e vestiu-se rapidamente, uma saia comprida, botas de montaria e um casaco. Nunca usava chapéu para os passeios a cavalo pela manhă. Desceu. Năo viu ninguém. Devia haver uma ou duas criadas na cozinha, acendendo fogos, esquentando água. Afora isso, porém, os criados ainda estavam deitados. Charlotte saiu pela porta do lado sul, quase esbarrando num guarda uniformizado. ​ Deus do céu! ​ exclamou Charlotte. ​ Quem é vocę? ​ Guarda Stevenson, Miss. Ele a chamava de Miss porque năo sabia quem ela era. ​ Sou Charlotte Walden. ​ Perdăo, milady. ​ Năo foi nada. O que está fazendo aqui? ​ Guardando a casa, milady. ​ Ou seja, guardando o Príncipe. Isso é muito tranqüilizante. Quantos homens estăo aqui? ​ Dois do lado de fora e quatro dentro. Os homens lá dentro estăo armados. Mas haverá muitos mais depois. ​ Quantos? ​ Um grande grupo de busca, milady. Ouvi dizer que cento e cinqüenta homens estarăo aqui ŕs nove horas. Vamos pegar o tal anarquista. Năo precisa preocupar-se. ​ Mas isso é esplęndido! ​ Estava pensando em sair para um passeio a cavalo, milady? Eu năo faria isso, se estivesse no seu lugar. Năo hoje. ​ Tem toda razăo.
Charlotte afastou-se, contornou a ala leste da casa, seguindo para os fundos. Os estábulos achavam-se desertos. Ela entrou e aproximou-se de sua égua, Spats. Falou-lhe por um momento, afagando-lhe o focinho e dando-lhe uma maçă. Depois selou-a, tirou-a do estábulo e montou. Afastou-se dos fundos da casa, contornando o parque num círculo amplo, permanecendo fora das vistas e da audiçăo do guarda. Galopou pela pastagem de oeste, saltou a cerca baixa para o bosque. Foi andando com Spats entre as árvores, até encontrar a trilha, quando entăo deixou a égua trotar. Estava frio no bosque. Os carvalhos e faias achavam-se cobertos de folhas, sombreando o bosque. Nos pontos em que o Sol passava, o orvalho elevava-se do solo em pequenas nuvens de vapor. Charlotte podia sentir o calor daqueles poucos raios de Sol na passagem. Os passarinhos cantavam muito alto. Ela pensou: O que ele pode fazer contra 150 homens? O plano dele era impossível agora. Aleks achava-se muito bem guardado e a caçada a Feliks estava muito bem organizada. Mas Charlotte podia pelo menos alertá-lo. Chegou ŕ extremidade do bosque sem o encontrar. Ficou desapontada. Tinha certeza de que ele estaria ali hoje. Começou a se preocupar, pois năo poderia avisá-lo se năo o encontrasse, e ele acabaria sendo preso. Mas ainda năo eram sete horas. Talvez ainda năo tivesse começado a aguardá-la. Charlotte desmontou e foi andando de volta, puxando Spats pelas rédeas. Talvez Feliks a tivesse visto e ficara esperando para verificar se ela năo fora seguida. A jovem parou numa clareira, ficou observando um esquilo. Eles năo se importavam com as pessoas, embora fugissem dos cachorros. Subitamente, ela sentiu que estava sendo observada. Virou-se e lá estava ele, fitando-a com uma expressăo estranhamente triste. ​ Olá, Charlotte. Ela aproximou-se dele e pegou-lhe as măos. A barba de Feliks estava agora cheia. As roupas achavam-se cobertas de folhas. ​ Vocę parece muito cansado ​ disse Charlotte, em russo. ​ Estou com fome. Trouxe comida? ​ Ó, Deus, năo! ​ Trouxera uma maçă para a égua e nada para Feliks. ​ Năo pensei nisso. ​ Năo tem importância. Já estive mais faminto. ​ Vocę precisa ir embora imediatamente. Se partir agora, poderá escapar. ​ Por que eu deveria escapar? Quero seqüestrar Orlov. Charlotte sacudiu a cabeça. ​ É impossível agora. Ele está sendo protegido por guarda-costas armados, a casa está sendo vigiada por guardas e ás nove horas haverá aqui cento e cinqüenta homens ŕ sua procura. ​ Se eu fugir, o que farei com o resto da minha vida? ​ falou Feliks, com um sorriso. ​ Mas năo posso ajudá-lo a suicidar-se!
​ Vamos sentar na relva. Preciso explicar-lhe uma coisa. Charlotte se sentou, encostada num carvalho. Feliks sentou-se diante dela, cruzando as pernas, como um cossaco. Raios de Sol incidiam sobre seu rosto cansado. Ele falou um tanto formalmente, em frases que davam a impressăo de terem sido ensaiadas. ​ Eu lhe disse que estive uma vez apaixonado, por uma mulher chamada Lydia. E vocę disse: ​É o nome da minha măe.​ Está lembrada? ​ Lembro-me perfeitamente de tudo o que me disse. Charlotte ficou pensando onde ele queria chegar. ​ Pois era mesmo a sua măe. Ela ficou aturdida. ​ Esteve apaixonado por Mamăe? ​ Mais do que isso. Fomos amantes. Ela costumava ir ao meu apartamento… sozinha. Entende o que estou querendo dizer? Charlotte corou de confusăo e embaraço. ​ Entendo… ​ O pai dela, seu avô, descobriu. O velho Conde mandou que me prendessem e depois forçou sua măe a casar-se com Walden. ​ Mas que coisa horrível! ​ murmurou Charlotte. Por algum motivo, ela estava com medo do que ele poderia dizer em seguida. ​ Vocę nasceu sete meses depois do casamento. Ele parecia pensar que isso era muito significativo. Charlotte franziu o rosto. Feliks acrescentou: ​ Sabe quanto tempo leva para um bebę crescer e nascer? ​ Năo. ​ Leva normalmente nove meses, embora, ŕs vezes, demore menos. O coraçăo de Charlotte batia descompassado. ​ Onde está querendo chegar? ​ Vocę pode ter sido concebida antes do casamento. ​ Isso significa que vocę pode ser meu pai? ​ perguntou ela, incrédula.
​ É mais do que isso. Vocę é igualzinha ŕ minha irmă Natasha. O coraçăo de Charlotte pareceu subir pela garganta, ela mal conseguiu falar: ​ Acha que é meu pai? ​ Tenho certeza. ​ Ó, Deus! Charlotte pôs o rosto entre as măos, ficou olhando para o espaço, sem ver nada. Tinha a sensaçăo de que estava despertando de um sonho e ainda năo podia determinar quais os aspectos do sonho que eram reais. Pensou no pai, mas năo era seu pai; pensou na măe, tendo um amante; pensou em Feliks, seu amigo, e de repente seu pai… ​ Eles me mentiram até mesmo sobre isso? Ela estava tăo desorientada que tinha a impressăo de que năo conseguiria manter-se de pé. Era como se alguém lhe tivesse dito que todos os mapas que já vira eram falsificados, e na verdade morava no Brasil; ou que o verdadeiro dono de Walden Hall era Pritchard; ou que os cavalos podiam falar, mas se mantinham calados por opçăo. Mas era muito pior do que todas essas coisas. Ela murmurou: ​ Se me dissesse que sou um garoto, mas Mamăe sempre me vestiu com roupas de menina… eu me sentiria assim… Ela pensou: Mamăe… e Feliks? Isso a fez corar novamente. Feliks pegou-lhe a măo e afagou-a. ​ Creio que todo o amor e preocupaçăo que um homem normalmente confere ŕ esposa e filhos no meu caso se concentraram na política. Preciso tentar alcançar Orlov, mesmo que seja impossível, da mesma maneira que um homem deve tentar salvar o filho do afogamento, mesmo que năo saiba nadar. Charlotte compreendeu subitamente como Feliks deveria estar confuso em relaçăo a ela, a filha que realmente nunca tivera. Ela podia compreender agora a maneira estranha e angustiada com que ele a fitara algumas vezes. ​ Pobre coitado… Feliks mordeu o lábio. ​ Vocę tem um coraçăo muito generoso… Charlotte năo entendeu por que ele disse isso. ​ O que vamos fazer? Ele respirou fundo. ​ Pode dar um jeito de me introduzir na casa e me esconder?
​ Posso ​ respondeu Charlotte, após pensar por um momento.
 
Feliks montou na égua, por trás dela. O animal sacudiu a cabeça e relinchou, como se estivesse ofendido porque achavam que ela deveria suportar uma carga dupla. Charlotte impeliu-a num trote. Seguiu pela trilha por alguma distância, depois saiu, embrenhando-se pelo bosque. Passaram por um portăo, atravessaram uma pastagem, entraram num caminho de terra. Feliks ainda năo podia ver a casa. Compreendeu que estavam dando uma volta para se aproximar pelo lado norte. Ela era uma moça extraordinária. Possuía grande força de caráter. Teria herdado dele? Feliks queria pensar que sim. Sentia-se feliz por ter-lhe contado a verdade a respeito do seu nascimento. Tinha a impressăo de que ela năo aceitara integralmente. Mas acabaria aceitando. Ela o escutara virar seu mundo pelo avesso e reagira com emoçăo, mas sem histeria… e năo fora da măe que herdara aquele tipo de serenidade e controle. Entraram num pomar. Agora, olhando entre as copas das árvores, Feliks podia ver os telhados de Walden Hall. O pomar terminava num muro. Charlotte parou a égua e disse: ​ É melhor vocę ir andando a meu lado, daqui por diante. Assim, se alguém olhar por uma janela năo poderá vę-lo com muita facilidade. Feliks desmontou. Foram andando ao lado do muro, viraram no canto. ​ O que há por trás do muro? ​ perguntou Feliks. ​ A horta. ​ Vocę é maravilhosa ​ sussurrou Feliks. Mas ela năo ouviu. Pararam na curva seguinte. Feliks podia ver algumas construçőes baixas e um quintal. ​ Os estábulos ​ murmurou Charlotte. ​ Fique aqui por um momento. Quando eu der o sinal, siga-me o mais depressa que puder. ​ Para onde estamos indo? ​ Para os telhados. Charlotte entrou no pátio a cavalo, desmontou e passou as rédeas por uma grade. Feliks observou-a atravessar até o outro lado do pequeno pátio, olhar para os dois lados, depois voltar e espiar dentro dos estábulos. Ouviu-a dizer: ​ Olá, Peter. Um garoto em torno dos 12 anos saiu dos estábulos, tirando o gorro. ​ Bom-dia, milady.
Feliks pensou: Como Charlotte vai-se livrar dele? Charlotte perguntou: ​ Onde está Daniel? ​ Está comendo, milady ​ Vá chamá-lo e diga-lhe para tirar os arreios de Spats. ​ Posso fazer isso, milady. ​ Năo ​ disse Charlotte, autoritária. ​ Quero Daniel. Vá logo. Maravilhoso, pensou Feliks. O garoto saiu correndo. Charlotte virou-se para Feliks e chamou-o. Ele saiu correndo. Charlotte pulou para a arca de ferro baixa, depois subiu para o telhado de zinco corrugado de um telheiro, passando em seguida para o telhado de um prédio de pedras de um só andar. Feliks seguiu-a. Foram avançando pelo telhado, deslocando-se de lado, de quatro, até chegarem a um muro de tijolos. Subiram entăo até a cumeeira do telhado. Feliks sentia-se terrivelmente visível e vulnerável. Charlotte se levantou e espiou por uma janela na parede de tijolos. Feliks sussurrou: ​ O que tem aí? ​ Um quarto de criada. Mas elas estăo lá embaixo agora, pondo a mesa para o café da manhă. Ela subiu no peitoril da janela e ficou de pé. Era um quarto de sótăo, e a janela ficava perto do frontăo. O telhado formava a ponta logo acima da janela, inclinando-se nos dois lados. Charlotte deslocou-se pelo peitoril, e depois estendeu a perna pela beira do telhado. Parecia perigoso. Feliks franziu o rosto, com medo de que ela caísse. Mas Charlotte passou para o telhado sem maiores dificuldades. Feliks seguiu-a. ​ Agora estamos fora das vistas de qualquer pessoa ​ murmurou Charlotte. Feliks olhou ao redor. Ela estava certa. Năo podiam ser vistos lá de baixo. Ele relaxou um pouco. ​ Há um hectare e meio de telhado ​ comentou Charlotte. ​ Um hectare e meio? A maioria dos camponeses russos năo tem tudo isso em terra.
Era uma vista espetacular. Por todos os lados havia telhados, de todos os materiais, tamanhos e formatos. Havia escadas e caminhos para que as pessoas pudessem deslocar-se de um lado para outro, sem pisar nas telhas. As calhas eram tăo complexas quanto os canos que Feliks vira numa refinaria de petróleo em Batum. ​ Nunca vi uma casa tăo grande ​ disse ele. Charlotte levantou-se. ​ Vamos embora. Levou-o por uma escada para o telhado seguinte, seguiram por um caminho estreito, escalaram alguns degraus de madeira que levavam a uma porta pequena e quadrada numa parede. ​ Houve um tempo em que este devia ser o caminho para as pessoas virem cuidar da manutençăo dos telhados. Mas agora todo mundo já esqueceu da sua existęncia. Charlotte abriu a porta e entrou engatinhando. Agradecido, Feliks seguiu-a para a escuridăo lá dentro.
 
Lydia conseguiu um automóvel e um motorista emprestados com o cunhado George. Tendo passado a noite inteira acordada, deixou Londres muito cedo. O automóvel entrou no caminho de Walden Hall ŕs nove horas da manhă. Ela ficou atônita ao ver, diante da casa e espalhando-se pelo parque, centenas de policiais, dezenas de veículos e incontáveis cachorros. O motorista de George foi conduzindo o automóvel através da multidăo, na direçăo da fachada sul da casa. Havia uma enorme jarra de chá no gramado e os homens estavam formando uma fila, de canecas na măo. Pritchard passou, carregando uma montanha de sanduíches numa bandeja imensa e parecendo desesperado. Ele nem percebeu a chegada da patroa. Uma mesa de cavaletes estava armada no terraço e por trás sentavam-se Stephen e Sir Arthur Langley, este dando instruçőes a meia dúzia de policiais, de pé diante deles, num semicírculo. Lydia aproximou-se. Sir Arthur tinha um mapa ŕ sua frente. Ela ouviu-o dizer: ​ Cada equipe terá um homem local para orientar e um motociclista para voltar até aqui de hora em hora e apresentar um relatório. Stephen levantou a cabeça, avistou Lydia e desligou-se do grupo para falar com ela. ​ Bom-dia, minha querida. É uma surpresa agradável. Como conseguiu chegar aqui? ​ Pedi emprestado o automóvel de George. O que está acontecendo? ​ Estamos organizando grupos de busca. ​ Ahn… ​ Com todos aqueles homens procurando por Feliks, como ele poderia escapar? ​ Mesmo assim, eu gostaria que vocę tivesse permanecido em Londres ​ falou Stephen. ​ Seria mais seguro. ​ E eu passaria cada minuto pensando que uma má notícia estava a caminho.
E o que poderia ser considerado como uma boa notícia?, pensou Lydia. Talvez se Feliks desistisse e fosse embora. Mas Lydia tinha certeza de que ele năo faria isso. Observou atentamente o rosto do marido. Por trás do controle habitual, havia sinais de cansaço e tensăo. Pobre Stephen… Primeiro a mulher e agora a filha o enganavam. Um sentimento de culpa levou-a a estender a măo e afagar o rosto dele. ​ Năo se canse demais… Um apito soou. Os policiais terminaram de tomar o chá apressadamente, metendo os restos de sanduíche na boca, puseram os capacetes e se concentraram em grupos de seis, cada um em torno de um líder. Lydia ficou parada ao lado de Stephen, observando. Houve muitas ordens gritadas, incontáveis apitos. Os homens começaram finalmente a se afastar. O primeiro grupo seguiu para o sul, estendendo-se pelo parque, penetrando no bosque. Outros dois seguiram para oeste, pelas pastagens. Os outros tręs grupos desceram pelo caminho, na direçăo da estrada. Lydia olhou para o seu gramado. Parecia o local de um piquenique dominical promovido pela igreja, depois que todas as crianças voltavam para casa. A Sra. Braithwaite começou a organizar a limpeza, com uma expressăo angustiada. Lydia entrou em casa. Encontrou Charlotte no vestíbulo. Charlotte ficou surpresa ao vę-la. ​ Olá, Mamăe. Năo sabia que estava vindo para cá. ​ Estava-me sentindo entediada em Londres ​ disse Lydia, automaticamente. E, depois, ela pensou: Mas quanta bobagem falamos! ​ Como chegou aqui? ​ Pedi emprestado o automóvel de Tio George. Lydia percebeu que Charlotte estava pensando em outra coisa, sem se concentrar na conversa. ​ Deve ter-se levantado muito cedo ​ comentou Charlotte. ​ É verdade. ​ Lydia sentia vontade de dizer: Pare com isso! Năo vamos mais mentir! Por que năo falamos a verdade? Mas năo foi capaz de fazę-lo. ​ Todos aqueles guardas já foram embora? ​ indagou Charlotte. Ela estava olhando para a măe com uma expressăo estranha, como se a visse pela primeira vez. Lydia sentiu-se embaraçada. Eu gostaria de poder ler os pensamentos da minha filha, refletiu ela. ​ Já foram, sim. ​ Esplęndido. Era uma das palavras que Stephen costumava usar com frequęncia… esplęndido. No final das contas, havia alguma coisa de Stephen em Charlotte: a curiosidade, determinaçăo, controle. Como năo herdara essas coisas, deveria ter adquirido pela imitaçăo… ​ Espero que agarrem o tal anarquista ​ disse Lydia, observando atentamente a reaçăo de Charlotte.
​ Tenho certeza de que văo agarrá-lo ​ declarou Charlotte, jovialmente. Ela está com os olhos brilhando demais, pensou Lydia. Por que deveria estar assim, quando centenas de policiais estăo vasculhando a regiăo ŕ procura de Feliks? Por que năo está deprimida e nervosa, como eu? Deve ser por que pensa que năo conseguirăo agarrá-lo. Por algum motivo, ela pensa que Feliks está seguro. ​ Gostaria que me dissesse uma coisa, Mamăe. Quanto tempo leva para um bebę crescer e nascer? A boca de Lydia se entreabriu, o sangue se lhe esvaiu do rosto. Ela ficou olhando fixamente para Charlotte, pensando: Ela sabe! Ela sabe! Charlotte sorriu e acenou com a cabeça, parecendo um pouco triste. ​ Năo tem importância, Mamăe. Já respondeu ŕ pergunta. A jovem afastou-se. Lydia segurou-se no corrimăo da escada, sentindo uma vertigem. Era cruel demais, depois de tantos anos… Sentia-se furiosa com Feliks. Por que ele arruinara daquela maneira a vida de Charlotte? O vestíbulo girava em torno de sua cabeça e ela ouviu uma criada dizer: ​ Está-se sentindo bem, milady? A cabeça dela se desanuviou. ​ Um pouco cansada depois da viagem ​ murmurou Lydia. ​ Segure meu braço. A criada pegou-lhe o braço e subiram juntas a escada, até o quarto de Lydia. Outra criada já estava tirando as coisas das malas que Lydia trouxera. Havia água quente ŕ sua espera no banheiro. Lydia sentou-se. ​ Podem sair agora. Arrumem as coisas depois. As criadas saíram. Lydia desabotoou o casaco, mas năo tinha energia suficiente para tirá-lo. Pensou no ânimo de Charlotte. A filha estava quase alegre, muito embora houvesse obviamente várias coisas em sua mente. Lydia podia compreender. Reconhecia o sentimento. Já passara pela mesma coisa algumas vezes. Era o ânimo que se tinha depois de passar algum tempo com Feliks. Sentia-se que a vida era imensamente fascinante e surpreendente, que havia coisas importantes a serem feitas, que o mundo era repleto de cor, paixăo e mudança. Charlotte se encontrava com Feliks e achava que ele estava a salvo. Lydia pensou: O que vou fazer? Exausta, tirou as roupas. Passou algum tempo lavando-se e se vestindo de novo, aproveitando a oportunidade para acalmar-se. Ficou imaginando como Charlotte se sentia por saber que Feliks era seu pai. Era evidente que ela gostava muito de Feliks. As pessoas sempre gostam dele, pensou Lydia; as pessoas o amam. Onde Charlotte encontrara forças para ouvir uma notícia daquelas sem desmoronar? Lydia decidiu que era melhor cuidar da casa. Olhou-se no espelho, arrumou a expressăo. Saiu do quarto. Desceu, encontrou uma criada, levando uma bandeja com fatias de presunto, ovos mexidos, păo fresco, leite, café e uvas.
​ Para quem é isso? ​ Para Lady Charlotte, milady. Lydia seguiu em frente. Charlotte nem mesmo perdera o apetite? Ela foi até a copa e mandou chamar a cozinheira. A Sra. Rowse era uma mulher magra e nervosa, que jamais comia os pratos saborosos que preparava para os patrőes. A mulher disse: ​ Fui informada de que o Sr. Thomson chegará para o almoço, milady. E o Sr. Churchill virá para o jantar. Lydia discutiu os cardápios com ela, e depois despachou-a. Por que Charlotte estava comendo um desjejum tăo farto em seu quarto?, pensou ela. E tăo tarde! No campo, Charlotte normalmente se levantava cedo e terminava de comer antes mesmo que Lydia descesse. Ela chamou Pritchard e determinou junto com ele a disposiçăo da mesa. Pritchard informou-a de que Aleks estava fazendo todas as refeiçőes no quarto, até ordem em contrário. Năo fazia muita diferença para a disposiçăo da mesa. Continuava a haver homens demais e, nas circunstâncias, Lydia năo podia convidar outras pessoas para equilibrar a situaçăo. Fez o melhor que era possível e depois dispensou o mordomo. Onde Charlotte se encontrara com Feliks? E por que estava tăo confiante de que ele năo seria preso? Teria arrumado um esconderijo para ele? Ou será que ele estaria com um disfarce impossível de se descobrir? Lydia circulou pela sala, olhando para os quadros, as pequenas peças de bronze, os ornamentos de vidro, a escrivaninha. Estava com dor de cabeça. Pôs-se a rearrumar as flores num vaso grande, ao lado da janela. Acabou derrubando o vaso. Tocou a campainha, chamando alguém para limpar tudo, depois saiu da sala. Seus nervos achavam-se em péssimo estado. Pensou em tomar um pouco de láudano. Já năo estava ajudando tanto como antes. O que Charlotte vai fazer agora? Guardará segredo? Por que as crianças năo gostam de falar? Foi ŕ biblioteca, com a vaga idéia de pegar um livro, a fim de afastar os pensamentos de tudo. Ao entrar, teve um sobressalto de culpa, deparando com Stephen, sentado ŕ escrivaninha. O marido levantou o rosto quando ela entrou, sorriu afavelmente e continuou a escrever. Lydia vagueou ao longo das prateleiras. Imaginou se năo deveria ler a Bíblia. Houvera muita leitura da Bíblia em sua infância, oraçőes em família, muitas idas ŕ igreja. Tivera babás rigorosas, que ressaltavam os horrores do inferno e as penalidades da falta de higiene. Tivera também uma aia alemă, luterana, que falava muito sobre o pecado. Mas desde que cometera fornicaçăo e acarretara a retaliaçăo sobre ela e sua filha, Lydia nunca fora capaz de encontrar qualquer conforto na religiăo. Eu deveria ter entrado naquele convento, pensou ela, e me entregado ŕs măos de Deus! O instinto de meu pai estava correto. Pegou um livro ao acaso e se sentou, abrindo-o no colo. Stephen disse:
​ É uma escolha insólita para vocę. Ele năo podia ler o título do lugar em que estava sentado, mas sabia a posiçăo de todos os autores nas prateleiras. Ele lia muitos livros e Lydia năo podia entender como encontrava tempo. Ela olhou para a lombada do livro. Poemas de Wessex, de Thomas Hardy. Năo gostava de Hardy, năo gostava daquelas mulheres determinadas e apaixonadas nem dos homens fortes que as deixavam desamparadas. Haviam sentado muitas vezes assim, ela e Stephen, especialmente nos primeiros tempos em Walden Hall. Lydia se recordou nostalgicamente de como ficava sentada lendo, enquanto Stephen trabalhava. Podia lembrar-se de que ele era menos tranqüilo naquele tempo. Costumava dizer que năo se podia mais ganhar dinheiro com a agricultura e que a família deveria preparar-se para ingressar no século XX, se quisesse continuar rica e poderosa. Vendera algumas fazendas na ocasiăo, muitos milhares de hectares, a um preço baixo. Investira o dinheiro em ferrovias, bancos e terrenos em Londres. O plano devia ter dado certo, pois logo Stephen deixara de parecer preocupado. Fora depois do nascimento de Charlotte que tudo parecera se acomodar. Os criados adoravam a criança e amavam Lydia por tę-la gerado. Lydia acostumara-se aos costumes ingleses e fora bem acolhida pela sociedade de Londres. Haviam sido 18 anos de tranqüilidade. Lydia suspirou. Aqueles anos estavam chegando ao fim. Por algum tempo, sepultara os segredos com tanto sucesso que só haviam atormentado a ela, que mesmo assim pudera esquecę-los em várias ocasiőes. Mas agora os segredos estavam aflorando. Ela pensara que Londres se achava a uma distância segura de Săo Petersburgo, mas talvez a Califórnia fosse uma escolha melhor. Talvez fosse também possível que nenhum lugar se mostrasse longe o bastante. O tempo de paz estava acabado. Tudo estava desmoronando. O que aconteceria agora? Olhou para a página aberta e leu: Ela daria um mundo para balbuciar ​sim​ com sinceridade, Tanto a vida dele parecia pairar em sua mente; E se ela mentiu, o coraçăo a persuadia, Valia sua alma ter um momento de bondade. Serei eu?, pensou Lydia. Perdi a minha alma quando me casei com Stephen a fim de salvar Feliks do encarceramento na Fortaleza de Săo Pedro e Săo Paulo? Venho representando um papel desde entăo, fingindo que năo sou uma rameira depravada, pecaminosa, desavergonhada. Mas acontece que sou! E năo sou a única. Outras mulheres sentem a mesma coisa. Por que outro motivo a Viscondessa e Charles Stott querem quartos adjacentes? E por que Lady Girard falou-me a respeito deles com uma piscadela, se năo compreendesse como se sentiam? Se eu fosse um pouco mais licenciosa, talvez Stephen visitasse a minha cama com maior freqüęncia, talvez tivéssemos um filho. Ela tornou a suspirar. ​ Um pęni por eles ​ disse Stephen. ​ Como? ​ Dou um pęni por seus pensamentos.
Lydia sorriu. ​ Será que nunca vou parar de aprender as expressőes idiomáticas inglesas? Năo conhecia essa. ​ Ninguém jamais pára de aprender. Significa que estou querendo que me conte o que está pensando. ​ Estava pensando em Walden Hall ficando para o filho de George, quando vocę morrer. ​ A menos que tenhamos um filho. Ela fitou-o atentamente, contemplando os olhos azuis brilhantes, a barba grisalha. Ele usava uma gravata azul com pontos brancos. ​ Acha que é tarde demais? ​ acrescentou Stephen. ​ Năo sei. ​ E pensou: Vai depender do que Charlotte fará em seguida. ​ Vamos continuar tentando ​ murmurou ele. Era uma conversa excepcionalmente franca. Stephen percebera que ela estava com ânimo para a franqueza. Lydia levantou-se e foi postar-se ao lado dele. Notou que havia um ponto calvo atrás da cabeça do marido. Há quanto tempo estaria ali? ​ Isso mesmo ​ disse ela ​ vamos continuar tentando. ​ Inclinou-se e beijou-lhe a testa. Depois, num impulso súbito, beijou-o na boca. Ele fechou os olhos. Depois de um momento, Lydia afastou-se. Ele parecia um pouco embaraçado. Raramente faziam aqueles coisas durante o dia, pois sempre havia criados demais por toda parte. Ela pensou: Por que temos de viver assim, se isso năo nos deixa felizes? ​ Eu o amo, Stephen. ​ Sei disso ​ falou ele, com um sorriso. Subitamente, Lydia năo podia mais continuar parada. ​ Preciso mudar de roupa para o almoço, antes da chegada de Basil Thomson. Ele fez que sim, com um aceno de cabeça. Lydia sentiu que os olhos do marido a acompanhavam, enquanto deixava a sala. Ela subiu, perguntando-se se ainda haveria alguma possibilidade de serem felizes. Foi para seu quarto. Ainda estava com o livro de poesia. Largou-o. Charlotte estava com a chave para tudo. Precisava conversar com ela. Afinal, sempre se podia dizer as coisas difíceis, quando se tinha a coragem necessária. E o que tinha agora a perder? Sem ter uma idéia definida do que diria, encaminhouse para o quarto de Charlotte, no outro andar. Seus passos năo faziam qualquer barulho no tapete. Chegou ao topo da escada e olhou pelo corredor.
Avistou Charlotte desaparecendo no antigo quarto de bebę. Já ia chamá-la, mas conteve-se abruptamente. O que Charlotte estava levando? Parecia um prato de sanduíches e um copo de leite. Aturdida, Lydia foi até o quarto de Charlotte. Na mesa, achava-se a bandeja que Lydia vira a criada levando. Por que Charlotte pediria uma bandeja de comida, depois faria sanduíches e iria comer no antigo quarto de bebę? Năo havia nada naquele quarto, conforme Lydia sabia perfeitamente, além de móveis cobertos por panos de proteçăo contra a poeira. Charlotte estaria tăo nervosa que precisava refugiar-se no mundo aconchegante da infância? Lydia decidiu descobrir. Sentia-se apreensiva em intrometer-se no ritual particular de Charlotte, qualquer que fosse. Mas, depois, ela pensou: A casa é minha, ela é minha filha, talvez eu deva saber. E pode redundar num momento de intimidade, ajudando-me a dizer o que preciso falar. Ela deixou o quarto de Charlotte, foi avançando pelo corredor, e entrou no antigo quarto de bebę. Charlotte năo estava ali. Lydia olhou ao redor. Lá estava o velho cavalo de balanço, as orelhas ressaltando por baixo do pano branco. Através de uma porta aberta, ela podia ver a sala de aula, com mapas e desenhos infantis pendurados nas paredes. Tudo isso voltará a ser usado algum dia?, pensou Lydia. Teremos babás, fraldas, roupas pequenas, soldadinhos de chumbo, cadernos de exercícios preenchidos por rabiscos infantis e manchas de tinta? Mas onde estava Charlotte? A porta do pequeno quarto contíguo estava fechada. Lydia lembrou-se de repente. Mas é claro! O esconderijo de Charlotte! O pequeno quarto cuja existęncia ela pensava que ninguém mais sabia, para onde costumava ir quando achava que as coisas eram de maneira particularmente desagradável. A própria filha o mobiliara, com coisas retiradas de vários cantos da casa, todos fingindo năo saber como certas coisas haviam desaparecido. Uma das poucas decisőes indulgentes que Lydia tomara, a de permitir que Charlotte tivesse o seu esconderijo e proibir que Marya o ​descobrisse​. Afinal, a própria Lydia escondia-se de vez em quando na sala das flores, e sabia como era importante ter um lugar só para si. Entăo Charlotte ainda usava o esconderijo! Lydia adiantou-se, mas relutante agora em perturbar a privacidade de Charlotte, mas tentada mesmo assim. Năo, pensou ela; vou deixá-la em paz. E foi entăo que ela ouviu vozes. Charlotte estaria falando sozinha? Lydia escutou atentamente. Falando sozinha em russo? E depois soou outra voz, uma voz de homem, respondendo em russo, baixinho, uma voz que parecia uma carícia, uma voz que provocou um tremor sensual pelo corpo de Lydia. Feliks estava ali. Lydia pensou que fosse desmaiar. Feliks! Ao alcance de suas măos! Escondido em Walden Hall,
enquanto a polícia vasculhava o condado ŕ sua procura! Escondido por Charlotte! Năo devo gritar! Ela levou o punho ŕ boca, mordendo-o. Tremia incontrolavelmente. A cabeça doía demais. Năo consigo pensar direito. Năo sei o que fazer. Tenho de sair daqui. Preciso de uma dose de láudano. A perspectiva deu-lhe forças. Controlou a tremedeira. Depois de um momento, saiu do quarto, silenciosamente. Quase correu, atravessando o corredor e descendo a escada, até seu quarto. O láudano achava-se na cômoda. Abriu o vidro. Năo conseguia segurar a colher firmemente e por isso tomou um gole direto do vidro. Começou a sentir-se mais calma depois de alguns momentos. Guardou o vidro e a colher na gaveta, fechou-a. Uma sensaçăo de suave contentamento começou a invadi-la, enquanto os nervos se aquietavam. A cabeça já năo doía tanto. Nada teria a menor importância, por algum tempo. Ela foi até o guarda-roupa, abriu a porta. Ficou olhando para os vestidos, totalmente incapaz de decidir o que usaria para o almoço.
 
Feliks andava de um lado para outro do pequeno quarto, como um tigre enjaulado, tręs passos para cada lado, abaixando a cabeça para evitar o teto, e escutando Charlotte. ​ A porta do quarto de Aleks está sempre trancada ​ disse ela. ​ Há dois guardas armados no interior e um no lado de fora. Os de dentro năo abrem a porta sem que o guarda no corredor lhes fale. ​ Um fora e dois no interior do quarto. Feliks coçou a cabeça e praguejou em russo. Dificuldades, havia sempre dificuldades, pensou ele. Aqui estou, dentro da casa, com uma cúmplice que pode movimentar-se livremente por toda parte. E ainda assim năo é fácil. Por que năo posso ter a sorte daqueles rapazes em Sarajevo? Por que tinha de acontecer eu ser parte desta família? Olhou para Charlotte e pensou: Mas năo lamento isso. A jovem percebeu o olhar dele e perguntou: ​ O que foi? ​ Nada. Aconteça o que acontecer, estou contente por tę-la encontrado. ​ Eu também. Mas o que vocę vai fazer com Aleks? ​ Pode desenhar-me uma planta da casa? Charlotte fez uma careta. ​ Posso tentar. ​ Deve conhecer a casa muito bem, já que viveu aqui por toda a sua vida.
​ Conheço toda esta parte, é claro… mas há alguns pontos da casa em que nunca estive. O quarto do mordomo, os aposentos da governanta, os porőes, o lugar por cima da cozinha em que guardam farinha de trigo e outras coisas… ​ Faça o melhor possível. Uma planta de cada andar. Charlotte encontrou um pedaço de papel e um lápis entre os seus tesouros infantis e ajoelhou-se junto da mesinha. Feliks comeu outro sanduíche e tomou o resto do leite. Ela levara muito tempo para trazer-lhe a comida, porque as criadas estavam trabalhando no corredor. Enquanto comia, observava-a desenhar, franzindo o rosto e mordendo a ponta do lápis. Em determinado momento, ela disse: ​ A gente năo percebe como é difícil até o momento em que tenta. Ela encontrou uma borracha e passou a usá-la com freqüęncia. Feliks notou que ela era capaz de fazer linhas perfeitamente retas sem a ajuda de uma régua. Achou que era comovente a visăo dela daquele jeito. Ela devia ter-se sentado, pensou ele, durante anos e anos, na sala de estudos, desenhando casas, depois Mamăe e ​Papai​, mais tarde o mapa da Europa, as folhas das árvores inglesas, o parque no inverno… Walden devia tę-la contemplado assim muitas vezes. ​ Por que mudou de roupa? ​ perguntou Feliks. ​ Todo mundo está sempre mudando de roupa aqui. Cada hora do dia exige as roupas apropriadas. Deve-se mostrar os ombros no jantar, mas năo na hora do almoço. Deve-se usar um espartilho para o jantar, mas năo para o chá. Năo se pode usar dentro de casa um vestido de passear lá fora. Podem-se usar meias de lă na biblioteca, mas năo na copa. Năo é capaz de imaginar todas as regras de que me preciso lembrar. Feliks acenou a cabeça. Năo mais ficava surpreso com a degeneraçăo das classes dominantes. Charlotte entregou-lhe os desenhos, e ele tornou a assumir a atitude de um profissional. Estudou os desenhos e depois perguntou: ​ Onde as armas săo guardadas? Ela tocou em seu braço. ​ Năo precisa ser tăo brusco. Estou do seu lado… lembra? De repente, ela era adulta outra vez. Feliks sorriu tristemente. ​ Eu tinha esquecido. ​ As armas ficam nesta sala. ​ Apontou na planta. ​ Teve realmente uma ligaçăo com Mamăe? ​ Tive. ​ Acho difícil acreditar que ela seja capaz disso.
​ Ela era ardorosa naquele tempo. Ainda é, mas finge o contrário. ​ Acha mesmo que ela ainda é assim? ​ Tenho certeza. ​ Estou descobrindo que tudo é diferente de como eu pensava. ​ A isso se chama de crescer. Charlotte estava pensativa. ​ Como devo chamá-lo? ​ Como assim? ​ Eu acharia muito estranho se o chamasse de pai. ​ Feliks servirá por enquanto. Precisa de tempo para se acostumar ŕ idéia de que sou seu pai. ​ E terei esse tempo? O rosto jovem estava tăo solene que Feliks pegou-lhe a măo. ​ Por que năo? ​ O que fará depois que tiver Aleks em seu poder? Feliks desviou o rosto, a fim de que ela năo percebesse o sentimento de culpa em seus olhos. ​ Isso depende de como e quando vou seqüestrá-lo. Mas provavelmente o manterei amarrado aqui em cima. Vocę terá de nos trazer comida e enviará um telegrama em código para meus amigos em Genebra, informando o que aconteceu. Depois, quando a notícia consumar o que estamos querendo, soltaremos Orlov. ​ E depois? ​ Văo procurar-me em Londres, e por isso Seguirei para o norte. Parece que há cidades grandes por lá… Birmingham, Manchester, Hull… onde poderei perder-me na multidăo. Depois de algumas semanas, voltarei a Genebra e posteriormente irei para Săo Petersburgo… o lugar onde quero estar, o lugar em que a revoluçăo vai começar. ​ Entăo nunca mais o verei. E năo vai querer, pensou Feliks. ​ Por que năo? Posso voltar a Londres. E vocę pode ir a Săo Petersburgo. Podemo-nos encontrar em Paris. Quem pode saber o que vai acontecer? Se existe uma coisa a que se possa chamar de Destino, parece que está empenhado em nos reunir. ​ Eu gostaria de poder acreditar nisso. Ah, como gostaria!,
pensou. ​ Tem razăo ​ disse Charlotte, com um sorriso tęnue. Pelo sorriso, Feliks compreendeu que a filha também năo acreditava nessa possibilidade. Ela se levantou. ​ Tenho de buscar agora um pouco de água para vocę se lavar. ​ Năo precisa incomodar-se. Já estive muito mais sujo do que estou. Năo se preocupe. ​ Mas acontece que me preocupo. Vocę está com um cheiro horrível. Voltarei dentro de um momento. E, com isso, ela saiu.
 
Foi o pior almoço de que Walden podia recordar-se, em muitos anos. Lydia parecia completamente atordoada. Charlotte estava calada, estranhamente nervosa, deixando cair os talheres e derrubando o copo. Thomson estava taciturno. Sir Arthur Langley ainda tentou mostrar-se jovial, mas ninguém reagiu. O próprio Walden mostrava-se ratraído, obcecado pelo enigma de como Feliks descobrira que Aleks estava em Walden Hall. Estava torturado pela terrível suspeita de que Lydia tinha algo a ver com isso. Afinal, Lydia dissera a Feliks que Aleks estava no Hotel Savoy. A mulher admitira também que Feliks era ​vagamente familiar​ dos seus dias em Săo Petersburgo. Será que Feliks tinha alguma influęncia sobre ela? Lydia vinha-se comportando de maneira estranha, como se profundamente transtornada, por todo o verăo. E agora, ao pensar em Lydia de uma maneira objetiva pela primeira vez em 19 anos, Walden tinha de admitir para si mesmo que ela era sexualmente indiferente. É claro que as mulheres bem-criadas deviam ser assim. Mas ele sabia perfeitamente que isso năo passava de uma ficçăo polida, e que as mulheres geralmente tinham os mesmos desejos que os homens. Será que Lydia desejava outro homem, alguém do seu passado? Isso explicaria todas as coisas que até aquele momento pareciam năo precisar de explicaçăo. Era horrível, pensou Walden, olhar para a companheira de toda uma vida e descobrir uma estranha. Depois do almoço, Sir Arthur voltou ao Octógono, onde instalara seu quartel-general. Walden e Thomson puseram os chapéus e levaram seus charutos para o terraço. O parque estava deslumbrante ao Sol, como sempre. Da sala de estar distante, vieram os retumbantes acordes iniciais do Concerto para Piano, de Tchaikovsky. Lydia estava tocando. Walden sentiu-se triste. No momento seguinte, a música foi abafada pelo ruído de uma motocicleta, com outro mensageiro vindo comunicar a Sir Arthur os progressos da operaçăo de busca. Até aquele momento, năo houvera qualquer novidade. Um lacaio serviu o café e depois deixou-os a sós. Thomson disse: ​ Năo quis falar na presença de Lady Walden, mas creio que talvez tenhamos uma pista para a identidade da pessoa que nos traiu. Walden sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo. ​ Ontem ŕ noite interroguei Bridget Callahan, a senhoria da Rua Cork ​ continuou Thomson. ​ Infelizmente, nada consegui arrancar dela. Mas mandei meus homens revistarem a casa. E esta manhă eles
me trouxeram o que encontraram. Thomson tirou do bolso um envelope que fora rasgado ao meio, entregando os dois pedaços a Walden. E este teve um choque ao descobrir que o envelope tinha o timbre de Walden Hall. ​ Reconhece a letra? ​ perguntou Thomson. Walden virou os dois pedaços. O envelope estava endereçado da seguinte maneira: Sr. F.Kschessinsky a/c Rua Cork, 19 Londres ​ Ó, Deus, năo Charlotte! ​ Walden sentia vontade de chorar. Thomson ficou calado. ​ Ela o trouxe até aqui ​ murmurou Walden. ​ Minha própria filha… ​ Ficou olhando fixamente para o envelope, querendo que desaparecesse. A letra era inconfundível, como uma versăo juvenil de sua própria letra. ​ Observe o carimbo postal ​ disse Thomson. ​ Ela escreveu assim que chegou aqui. A carta foi despachada da aldeia. ​ Como isso pôde acontecer? Thomson năo disse nada. ​ Feliks era o homem de gorro de tweed ​ acrescentou Walden. ​ Tudo se ajusta. Stephen sentia-se profundamente triste, desconsolado, como se alguma pessoa querida tivesse morrido. Correu os olhos pelo parque, contemplando as árvores plantadas pelo pai há 50 anos, o gramado que sua família vinha cultivando há 100 anos. Tudo parecia inteiramente sem valor, sem a menor importância. ​ Luta-se por seu país, e se é traído internamente por socialistas e revolucionários. Luta-se por sua classe, e se é traído pelos liberais. Luta-se por sua família, e até mesmo nisso se encontra a traiçăo. Oh, Charlotte, por quę? Por quę? ​ Tinha a sensaçăo de que estava sufocando e mal conseguiu balbuciar: ​ Como a vida é miserável, Thomson… como a vida é miserável… ​ Terei de interrogá-la ​ disse Thomson.. ​ Eu também. ​ Walden se levantou. Olhou para o charuto. Estava apagado. Jogou-o longe. ​ Vamos entrar. Os dois entraram. Walden deteve uma criada no vestíbulo.
​ Sabe onde está Lady Charlotte? ​ Creio que está no quarto dela, milorde. Devo ir chamá-la? ​ Vá avisá-la de que quero falar com ela, em seus aposentos, imediatamente. ​ Pois năo, milorde. Thomson e Walden ficaram esperando no vestíbulo. Walden olhou ao redor. O chăo de mármore, a escada toda esculpida, o teto de estuque, as proporçőes perfeitas… nada tinha o menor valor. Um lacaio passou silenciosamente, os olhos abaixados. Um mensageiro de motocicleta entrou e encaminhou-se para o Octógono. Pritchard atravessou o vestíbulo e pegou na mesa as cartas que deveriam ser remetidas, como deveria ter feito no dia em que fora escrita a carta traiçoeira de Charlotte para Feliks. A criada desceu. ​ Lady Charlotte está pronta para recebę-lo, milorde. Walden e Thomson subiram. O quarto de Charlotte ficava no terceiro andar, na frente da casa, dando para o parque. Era claro e arejado, com lindos tecidos e móveis modernos. Já faz muito tempo que estive aqui pela última vez, pensou Walden, vagamente. ​ Parece zangado, Papai ​ comentou Charlotte. ​ E tenho motivos para estar. O Sr. Thomson acaba de me transmitir a notícia mais terrível que já recebi em toda a minha vida. Charlotte franziu o cenho. ​ Lady Charlotte, onde está Feliks? ​ perguntou Thomson. Charlotte ficou pálida. ​ Năo tenho a menor idéia, é claro. ​ Pare com essa maldita frieza! ​ gritou Walden. ​ Năo se atreva a praguejar comigo! ​ Desculpe. ​ Talvez, milorde, se me deixasse falar… ​ interveio Thomson. ​ Está bem. ​ Walden sentou-se no assento ao lado da janela, pensando: Como estou sempre pedindo desculpas? Thomson dirigiu-se a Charlotte gentilmente:
​ Lady Charlotte, sou da polícia e posso provar que cometeu conspiraçăo para assassinato. Minha preocupaçăo neste momento, assim como a de seu pai, é năo permitir que isso vá adiante. Em particular, queremos evitar que vá para a prisăo por um período de muitos anos. Walden olhou aturdido para Thomson. Prisăo! Claro que ele estava apenas querendo assustar Charlotte. Mas năo era isso. Com um pavor imenso, compreendeu que Thomson se achava certo, que a filha era mesmo uma criminosa… ​ Desde que possamos evitar o assassinato, pensamos que é possível encobrir sua participaçăo ​ continuou Thomson. ​ Mas se o assassino conseguir realizar seu intento, năo terei alternativa senăo levá-la a julgamento… e neste caso a acusaçăo năo será de conspiraçăo para assassinato, mas sim de cumplicidade em assassinato. Em teoria, pode ser enforcada. ​ Năo! ​ gritou Walden, involuntariamente. ​ Sim ​ falou Thomson, calmamente. Walden enterrou o rosto entre as măos. ​ Deve salvar a si mesma dessa agonia ​ acrescentou Thomson. ​ E năo apenas a si mesma, mas também seu pai e sua măe. Deve fazer tudo o que puder para ajudar-nos a encontrar Feliks e salvar o Príncipe Orlov. Năo era possível, pensou Walden, desesperado. Ele tinha a sensaçăo de que estava enlouquecendo. Minha filha năo pode ser enforcada. Mas se Aleks for morto, Charlotte terá sido uma das assassinas. Só que o caso nunca seria levado a julgamento. Quem era o Secretário do Interior? Mc-Kenna. Walden năo o conhecia. Mas Asquith iria intervir para evitar o processo… ou năo? ​ Diga-me quando viu Feliks pela última vez ​ insistiu Thomson. Walden ficou observando Charlotte, esperando pela resposta. Ela se achava de pé atrás de uma cadeira, segurando no encosto com as duas măos. As articulaçőes estavam esbranquiçadas, mas o rosto parecia calmo. Ela finalmente falou: ​ Năo tenho nada a dizer. Walden gemeu alto. Como a filha podia continuar assim, agora que fora descoberta? O que ela estava pensando? Parecia uma estranha. E pensou: Quando foi que a perdi? ​ Sabe onde Feliks está neste momento? ​ perguntou Thomson. Charlotte nada disse. ​ Avisou-o das medidas de precauçőes que adotamos aqui? Ela permaneceu impassível. ​ Como ele está armado?
Nada. ​ Compreende que se torna um pouco mais culpada cada vez que recusa a responder a uma pergunta? Walden percebeu uma mudança no tom de voz de Thomson e observou-o. Ele parecia agora genuinamente furioso. ​ Deixe-me explicar-lhe uma coisa ​ continuou Thomson. ​ Pode pensar que seu pai é capaz de salvá-la da justiça. Talvez ele esteja pensando a mesma coisa. Mas se Orlov morrer, juro que vou levá-la a julgamento por assassinato. E agora fique pensando nisso! Thomson saiu do quarto.
 
Charlotte ficou consternada ao vę-lo retirar-se. Com um estranho no quarto, ainda fora capaz de manter o controle. A sós com o pai, estava com medo de desmoronar. ​ Eu a salvarei, se puder ​ murmurou o pai, tristemente. Charlotte engoliu em seco e desviou os olhos. Eu gostaria que ele se mostrasse furioso, pensou ela; seria pelo menos algo que eu poderia enfrentar. O pai olhou pela janela. ​ Sou o responsável ​ disse ele, angustiado. ​ Escolhi sua măe, gerei e criei vocę. É apenas aquilo que eu a fiz. Năo posso compreender como isso aconteceu. Năo posso mesmo. ​ Tornou a olhar para Charlotte, acrescentando: ​ Pode explicar-me, por favor? ​ Posso, sim. ​ Charlotte estava ansiosa em fazę-lo compreender e tinha certeza de que poderia dizer tudo certo. ​ Năo quero que vocę consiga obrigar a Rússia a entrar na guerra. Se isso acontecer, milhőes de russos serăo mortos ou feridos, sem qualquer propósito. Ele ficou surpreso. ​ Entăo é isso? Foi esse o motivo pelo qual fez tantas coisas horríveis? É isso o que Feliks está tentando conseguir? Talvez ele possa compreender, pensou Charlotte, com uma súbita animaçăo. ​ Exatamente. ​ O entusiasmo dela estava aumentando. ​ Feliks também quer uma revoluçăo na Rússia… até mesmo vocę acha que isso poderia ser uma boa coisa… e acredita que começará, quando o povo descobrir que Aleks está tentando arrastá-lo para a guerra. ​ Acha que quero uma guerra? ​ indagou o pai, incrédulo. ​ Acha mesmo que eu gostaria? Acha que isso me adiantaria alguma coisa? ​ Claro que năo… mas deixaria que acontecesse, em determinadas circunstâncias. ​ Todos fariam a mesma coisa… até Feliks, que está querendo uma revoluçăo. Mas se vai haver uma guerra, temos de vencę-la. É tăo horrível assim dizer isso?
O tom dele era quase suplicante. Charlotte queria ansiosamente que ele compreendesse. ​ Năo sei se é muito horrível, mas sei que é errado. Os camponeses russos nada sabem da política européia e também năo se importam. Mas serăo dizimados, mutilados, aleijados e todas essas coisas horríveis, por causa de um acordo que vocę fez com Aleks! ​ Ela fez um esforço para reprimir as lágrimas. ​ Será que năo pode perceber como isso está errado, Papai? ​ Mas pense na questăo do ponto de vista britânico… do seu ponto de vista pessoal. Imagine que Freddie Chalfont, Peter e Jonathan văo para a guerra como oficiais, e seus homens săo Daniel, o cavalariço, Charles, o lacaio, e Peter Dawkins, da Home Farm. Năo gostaria que eles recebessem alguma ajuda? Năo estaria contente que toda a naçăo russa estivesse do lado deles? ​ Claro que gostaria… especialmente se a própria naçăo russa tivesse decidido ajudá-los. Mas eles năo tomarăo essa decisăo, năo é mesmo, Papai? Vocę e Aleks é que văo resolver. Devia estar trabalhando para evitar a guerra, năo para vencę-la. ​ Se a Alemanha atacar a França, temos de ajudar nossos amigos. E seria um desastre para a Inglaterra se a Alemanha conquistasse a Europa. ​ Como poderia haver um desastre maior do que uma guerra? ​ Entăo nunca deveríamos lutar? ​ Somente se formos invadidos. ​ Se năo lutarmos contra os alemăes na França, teremos de lutar contra eles aqui. ​ Tem certeza? ​ É provável. ​ Pois só deveremos lutar quando isso acontecer. ​ Este país năo é invadido há oitocentos e cinqüenta anos. Por quę? Porque lutamos contra os outros povos no território deles e năo no nosso. E por isso que vocę, Lady Charlotte Walden, foi criada num país pacífico e próspero. ​ Quantas guerras foram travadas para impedir a guerra? Se năo tivéssemos lutado no território de outros povos, será que eles teriam luta do? ​ Quem sabe? Eu gostaria que vocę tivesse estudado mais história. Gostaria que vocę e eu tivéssemos conversado mais sobre essas coisas. Com um filho, eu teria conversado… Mas, por Deus, nunca sonhei que minha filha pudesse interessar-se por política externa! E agora estou pagando o preço por esse erro. E que preço! Charlotte, juro a vocę que a aritmética do sofrimento humano năo é tăo simples como esse Feliks levou-a a acreditar. Será que năo pode acreditar em mim, quando lhe digo isso? Será que năo pode confiar em mim? ​ Năo, năo posso ​ respondeu ela, obstinadamente.
​ Feliks quer matar seu primo. Isso năo faz qualquer diferença? ​ Ele vai seqüestrar Aleks e năo matá-lo. O pai sacudiu a cabeça. ​ Charlotte, ele já tentou matar Aleks duas vezes e a mim uma vez. Matou muitas pessoas na Rússia. Ele năo é um seqüestrador, Charlotte, mas um assassino. ​ Năo acredito. ​ Mas por quę? ​ Vocę me contou a verdade sobre o sufragismo? Disseme a verdade a respeito de Annie? Disseme que na democrática Inglaterra a maioria do povo ainda năo pode votar? Disseme a verdade sobre o intercurso sexual? ​ Năo, năo disse. ​ Para seu horror, Charlotte percebeu que as faces do pai estavam cobertas de lágrimas. ​ É possível que tudo o que eu já fiz, como pai, tenha sido errado. Năo sabia que o mundo mudaria tanto. Năo tinha a menor idéia de qual seria o papel da mulher no mundo de 1914. Começa a parecer que fui um tremendo fracasso. Mas fiz o que julguei melhor para vocę, porque a amava e ainda amo. Năo é a sua posiçăo política que me está fazendo chorar. É a traiçăo, entende? Lutarei com unhas e dentes para mantę-la longe dos tribunais, mesmo que consiga matar o pobre Aleks. Porque vocę é a minha filha, a pessoa mais importante do mundo para mim. Por vocę, mandarei a justiça, a reputaçăo e a Inglaterra para o inferno. Farei o que for errado por vocę, sem a menor hesitaçăo. Para mim, vocę está acima de todos os princípios, toda a política, tudo enfim. É isso o que acontece nas famílias. O que me magoa profundamente é que vocę năo faria a mesma coisa por mim. Ou faria? Charlotte queria desesperadamente dizer que sim. ​ Será leal a mim, por mais errado que eu possa ter sido, apenas porque sou seu pai? Mas vocę năo é, pensou Charlotte. Ela baixou a cabeça. Năo podia fitá-lo. Ficaram sentados em silęncio por mais um momento. Depois, o pai assoou o nariz. Levantou-se e se encaminhou para a porta. Tirou a chave da fechadura e saiu. Trancou a porta pelo lado de fora. Charlotte ouviu-o girar a chave. E desatou a chorar.
 
Era o segundo jantar horrível que Lydia presidia em dois dias. Ela era a única mulher ŕ mesa. Sir Arthur estava sombrio, porque a operaçăo de busca năo conseguira encontrar Feliks. Charlotte e Aleks achavamse trancados em seus quartos. Basil Thomson e Stephen tratavam-se com uma polidez fria, pois Thomson descobrira o relacionamento entre Charlotte e Feliks, e ameaçara mandar Charlotte para a prisăo. Winston Churchill também se achava presente. Trouxera o tratado e já o havia assinado, juntamente com Aleks. Mas năo havia qualquer regozijo por causa disso, pois todos sabiam que o Czar se recusaria a ratificar o acordo, se Aleks fosse assassinado. Churchill comentou que seria melhor que Aleks deixasse o
solo inglęs o mais depressa possível. Thomson disse que determinara uma rota segura e providenciaria uma guarda formidável. Aleks poderia partir no dia seguinte. Todos foram deitar-se cedo, pois năo havia mais nada a fazer. Lydia sabia que năo conseguiria dormir. Tudo estava por resolver. Passara a tarde num nevoeiro de indecisăo, drogada com láudano, tentando esquecer que Feliks estava em sua casa. Aleks iria embora no dia seguinte. Se ao menos fosse possível mantę-lo a salvo por mais algumas horas… Ela ficou imaginando se poderia haver um meio de ajudar a manter Feliks escondido por mais um dia. Poderia procurá-lo e contar uma mentira, dizer-lhe que teria uma oportunidade de matar Aleks na noite seguinte? Ele jamais acreditaria nela. O plano parecia inútil. Mas depois que teve a idéia de procurar Feliks, năo mais conseguiu afastá-la da mente. Lydia pensou: Passar por esta porta, percorrer o corredor, subir a escada, atravessar outro corredor, atravessar os aposentos de bebę, passar pela porta do pequeno quarto contíguo e depois… Ela fechou os olhos com força, puxou o lençol por cima da cabeça. Tudo era perigoso. Era melhor năo fazer absolutamente nada, ficar imóvel, paralisada. Deixar Charlotte em paz, deixar Feliks em paz, esquecer Aleks, esquecer Churchill. Mas ela năo sabia o que iria acontecer. Charlotte podia procurar Stephen e dizer: ​Vocę năo é meu pai.​ Stephen podia matar Feliks. Feliks podia matar Aleks. Charlotte podia ser acusada de assassinato. Feliks podia aparecer aqui, no meu quarto, e me beijar. Seus nervos estavam em frangalhos novamente, e ela sentia que outra dor de cabeça se aproximava. Era uma noite muito quente. Os efeitos do láudano haviam-se dissipado, mas ela bebera muito vinho ao jantar e ainda se sentia tonta. Por algum motivo, sua pele estava sensível naquela noite. Cada vez que ela se mexia, a seda da camisola parecia arranhar-lhe os seios. Estava muito sensível, tanto mental como fisicamente. Meio que desejava que Stephen viesse procurá-la. Mas, depois, pensou: Năo, eu năo poderia suportar. A presença de Feliks lá em cima era como uma luz intensa brilhando em seus olhos, mantendo-a acordada. Empurrou o lençol para o lado, levantou-se e foi até a janela. Escancarou-a. A brisa năo estava mais fresca que o ar sufocante no quarto. Inclinando-se para fora e olhando para baixo, podia avistar os dois lampiőes na entrada, o guarda andando pela frente da casa. O que Feliks estava fazendo lá em cima? Estaria fabricando uma bomba? Carregando uma arma? Afiando uma faca? Ou dormindo, contentando-se em esperar pelo momento certo? Ou vagueando pela casa, tentando encontrar um meio de passar pelos guarda-costas de Aleks? Năo há nada que eu possa fazer, pensou Lydia; absolutamente nada. Pegou o livro. Poemas de Wessex, de Hardy. Por que escolhi este livro?, pensou ela. Abriu na página que lera naquela manhă. Acendeu o abajur, sentou-se e leu o poema inteiro. Tinha o título de ​O Dilema Dela​. Os dois estavam em silęncio, numa igreja sem sol, De paredes mofadas, calçamento irregular de pedras,
Esculturas em madeira desgastadas, meio apagadas, Nada rompendo o tique-taque monótono do relógio.
 
Apoiando-se na ponta ornamentada de um banco, Tăo pálido e débil que mal podia ficar de pé, Pois em breve iria morrer, ele murmurou: ​Diga que me ama!​ E a măo lhe apertou com força.
 
Ela daria um mundo para balbuciar ​sim​ com sinceridade, Tanto a vida dele parecia pairar em sua mente; E se ela mentia, o coraçăo a persuadia, Valia a sua alma ter um momento de bondade.
 
Mas a triste necessidade, a morte dele iminente, Tanto escarnecia a humanidade que ela se envergonhava De prezar um momento assim condicionado, Em que a Natureza pode tais dilemas projetar. É isso mesmo, pensou ela; quando a vida é assim, quem pode fazer o que é certo? A dor de cabeça era agora tăo forte que ela pensava que o crânio ia rachar. Foi até a cômoda e tomou um gole do vidro de láudano. E depois tomou outro gole. E foi para os aposentos de bebę.
QUINZE
Alguma coisa saíra errada. Feliks năo via Charlotte desde o meio-dia, quando ela lhe levara uma bacia, um jarro com água, uma toalha e uma barra de sabăo. Devia ter acontecido alguma coisa para impedi-la de voltar. Talvez a jovem tivesse sido obrigada a deixar a casa. Ou talvez pensasse que estava sendo vigiada. Mas era evidente que ela năo o denunciara, pois ninguém aparecera ŕ sua procura. De qualquer forma, Feliks năo precisava mais dela. Sabia onde Orlov estava e sabia onde estavam as armas. Năo poderia entrar no quarto de Orlov, pois a segurança parecia boa demais. Assim, teria de fazer com que Orlov saísse. E sabia como fazer isso. Năo usara o sabăo e a água, pois o esconderijo era muito pequeno e năo lhe permitia ficar de pé para lavar-se. Além do mais, năo dava muita importância ŕ limpeza. Agora, porém, estava com muito calor, sentindo o corpo pegajoso. E queria ter uma sensaçăo de frescura antes de começar a trabalhar. Por isso, pegou a água e passou para o quarto. Era muito estranho descobrir-se no lugar em que Charlotte passara tantas horas de sua infância. Feliks tratou de afastar o pensamento da mente. Aquele năo era o momento para sentimentalismo. Tirou todas as roupas e lavou-se, ŕ luz de uma única vela. Uma sensaçăo familiar e agradável, de expectativa e excitaçăo, invadiu-o inteiramente. Tinha a sensaçăo de que a pele estava luzindo. Vou vencer esta noite, pensou ele, selvagemente, năo importa quantos homens tenha de matar. Esfregou-se por todo o corpo com a toalha, vigorosamente. Os movimentos eram bruscos e havia uma sensaçăo de tensăo no fundo da garganta, que o deixava com vontade de gritar. Deve ser por isso que o guerreiro emite gritos de guerra, pensou ele. Baixou os olhos para o corpo e descobriu que estava com um princípio de ereçăo. E foi nesse momento que ouviu Lydia dizer: ​ Ei, vocę deixou crescer a barba! Feliks virou-se bruscamente e olhou pela escuridăo, aturdido. Ela se adiantou para o círculo de claridade projetado pela chama da vela. Os cabelos louros estavam soltos, caindo pelos ombros. Usava uma camisola comprida e clara, corpete justo, cintura alta. Os braços estavam nus. E ela sorria. Ficaram imóveis, fitando-se. Ela abriu a boca para falar, por várias vezes, mas nenhuma palavra saiu. Feliks sentiu o sangue afluir para sua virilha. Quanto tempo, pensou ele, quanto tempo já transcorreu desde que fiquei nu diante de uma mulher pela última vez? Lydia mexeu-se, mas isso năo rompeu o encantamento. Avançou e ajoelhou-se aos pés dele. Fechou os olhos, aconchegou-se contra o corpo dele. Enquanto Feliks olhava para baixo, a luz da vela refletiu-se nas lágrimas que escorriam pelas faces de Lydia.
 
Lydia estava novamente com 19 anos, seu corpo era forte, jovem e incansável. O casamento simples terminara. Ela e seu novo marido achavam-se no pequeno chalé no campo. Lá fora, a neve caía silenciosamente sobre o jardim. Fizeram amor ŕ luz de vela. Beijou-o por todo o corpo e ele disse:
​ Sempre a amei, por todos esses anos. O que era um tanto incompreensível, pois só se conheciam há poucas semanas. A barba dele roçou-lhe os seios, embora ela năo pudesse lembrar-se do momento em que ele a deixara crescer. Observou as măos dele, ocupadas por todo o seu corpo, em todos os lugares íntimos. E disse: ​ É vocę que está fazendo isso comigo… é vocę… Feliks… Feliks… Era como se houvesse outro homem que fazia aquelas coisas com ela, que lhe proporcionava aquele prazer intenso. Com a unha comprida, ela lhe arranhou o ombro. Lydia observou o sangue aflorar, depois inclinou-se para frente e lambeu-o sofregamente. ​ Vocę é um animal ​ murmurou ele. Eles se acariciavam mutuamente, durante todo o tempo. Eram como crianças ŕ solta numa loja de doces, passando ansiosamente de uma coisa para outra, tocando, olhando, saboreando, incapazes de acreditar naquela sorte espantosa. ​ Fico contente que tenhamos fugido ​ disse Lydia. Por algum motivo, isso deixou-o triste. E ela entăo acrescentou: ​ Venha agora. A expressăo triste se desvaneceu, e o desejo se estampou no rosto dele. Mas ela percebeu que estava chorando e năo podia compreender por quę. Subitamente, ela sentiu que era um sonho, ficou com medo de acordar e disse: ​ Vamos agora, depressa… Gozaram juntos. Lydia sorriu entre as lágrimas e murmurou: ​ Conseguimos. Pareciam se mover como bailarinos ou borboletas a se cortejarem. ​ É sempre tăo bom, meu Deus, sempre tăo bom… Pensei que isso nunca mais me iria acontecer… ​ murmurou ela. E sua respiraçăo se converteu em soluços. Feliks escondeu o rosto no pescoço dela. Mas Lydia pegou-lhe a cabeça entre as măos e afastou-a, a fim de poder contemplá-lo. Sabia agora que năo era um sonho. Estava acordada. Havia uma tensăo entre o fundo de sua garganta e a base da espinha, um nervo que vibrava, levando seu corpo a entoar uma única nota de prazer, que se tornava cada vez mais alta. ​ Olhe para mim! ​ disse ela, enquanto perdia o controle. ​ Estou olhando ​ disse ele, gentilmente. ​ Sou má! ​ gritou ela, ŕ beira de um novo orgasmo. ​ Olhe para mim! Sou má!
Todo o seu corpo se contraiu, a tensăo aumentou, o prazer se tornou ainda mais intenso, até que ela perdeu inteiramente o controle. E a última nota estridente de prazer rompeu a tensăo e ela arriou, perdendo os sentidos.
 
Feliks ajeitou-a no chăo, gentilmente. O rosto dela, ŕ luz da vela, estava sereno, toda a tensăo se desvanecera. Parecia uma pessoa que morrera feliz. Estava pálida, mas respirando normalmente. Feliks sabia que ela aparecera ali meio adormecida, talvez drogada, mas năo se importava. Sentia-se esgotado e fraco, desamparado e grato… e muito apaixonado. Podiam começar de novo, pensou ele; ela é uma mulher livre, poderia deixar o marido, poderíamos viver na Suíça, Charlotte poderia acompanhar-nos… Este năo é um sonho de ópio, disse ele a si mesmo. Haviam feito aqueles planos antes, ele e Lydia, em Săo Petersburgo, há 19 anos… e ficaram totalmente impotentes contra os desejos das pessoas respeitáveis. Isso năo acontece na vida real, pensou Feliks; eles voltariam a nos frustrar. Nunca me deixarăo tę-la. Mas vou-me vingar. Ele se levantou e se vestiu rapidamente. Pegou a vela. Contemplou-a mais uma vez. Os olhos dela continuavam fechados. Feliks tinha vontade de tocá-la mais uma vez, beijar a boca macia. Mas endureceu o coraçăo. Nunca mais, pensou. Virou-se e passou pela porta. Foi andando silenciosamente pelo corredor atapetado, desceu a escada. A vela projetava sombras estranhas. Posso morrer esta noite, mas năo antes de ter matado Orlov e Walden, pensou ele. Vi minha filha, deitei com minha esposa. Agora, matarei meus inimigos; e depois posso morrer. Pisou no assoalho no patamar do segundo andar e a botina fez um barulho alto. Parou no mesmo instante, ficou escutando. Năo havia tapete ali, o chăo era de mármore. Ficou esperando. Năo houve qualquer barulho no resto da casa. Tirou as botinas e continuou com os pés descalços, pois năo tinha meias. As luzes estavam apagadas por toda a casa. Alguém estaria vagueando por ali? Alguém desceria para comer alguma coisa, sentindo fome no meio da noite? O mordomo imaginaria que ouvira um barulho e daria uma volta pela casa para verificar? Os guarda-costas de Orlov sentiriam vontade de ir ao banheiro? Feliks escutou atentamente, pronto para apagar a vela e esconder-se, ao menor ruído. Parou no vestíbulo e tirou do bolso do casaco as plantas da casa que Charlotte desenhara. Consultou rapidamente a planta do andar térreo, aproximando a vela do papel, depois virou ŕ direita e avançou pelo corredor. Passou pela biblioteca e entrou na sala de armas. Fechou a porta silenciosamente e olhou ao redor. Uma cabeça imensa e horrível pareceu pular da parede em sua direçăo. Ele deu um pulo, soltou um grunhido de medo. A vela apagou. Na escuridăo, Feliks compreendeu que vira uma cabeça de tigre, empalhada e pendurada na parede. Tornou a acender a vela. Havia troféus em todas as paredes: um leăo, um veado e até mesmo um rinoceronte. Walden devia
ter sido um grande caçador. Havia também um peixe imenso, numa caixa de vidro. Feliks pôs a vela em cima da mesa. As armas achavam-se colocadas em prateleiras numa parede. Havia tręs espingardas de cano duplo, um fuzil Whinchester e uma coisa que Feliks julgou ser uma arma para elefantes. Nunca vira uma arma para elefantes. As armas estavam presas por correntes, passadas pela proteçăo do gatilho, presas por um cadeado a um suporte aparafusado na prateleira de madeira. Feliks pensou por um momento sobre o que fazer. Precisava de uma arma. Tinha a impressăo de que podia arrebentar um cadeado, se tivesse um pedaço de ferro, como uma chave de fenda grande, para usar como alavanca. Mas parecia que era mais fácil desaparafusar o suporte da madeira da prateleira, depois passar corrente, cadeado e suporte através da proteçăo do gatilho, soltando a arma. Examinou novamente a planta de Charlotte. Ao lado da sala de armas ficava a sala das flores. Ele pegou a vela e passou para a outra sala. Descobriu-se numa sala pequena e fria, com uma mesa de mármore e uma pia de pedra. Ouviu passos. Apagou a vela e abaixou-se. O som viera lá de fora, de um caminho de cascalho. Devia ser um dos guardas. A luz de uma lanterna brilhou lá fora. Feliks comprimiuse contra a porta, ao lado da janela. A luz foi-se tornando mais forte, os passos soaram mais alto. Pararam lá fora, a luz da lanterna foi projetada pela janela. Feliks pôde ver uma prateleira por cima da pia, algumas ferramentas penduradas de ganchos: tesouras, uma pequena enxada, uma faca. O guarda verificou a porta em que Feliks estava encostado. A porta achava-se trancada. Os passos se afastaram, a luz sumiu. Feliks aguardou por mais um momento. O que faria o guarda? Era de se presumir que vira o brilho da vela de Feliks. Mas podia ter pensado que era o reflexo de sua própria lanterna. Ou que alguém na casa tivera um motivo perfeitamente legítimo para entrar na sala das flores. Ou o guarda podia ser do tipo ultracauteloso, e entăo voltaria e verificaria. Deixando as portas abertas, Feliks saiu da sala das flores e atravessou a sala de armas, voltando ŕ biblioteca, tateando no escuro, a vela apagada na măo. Sentou-se no chăo da biblioteca, por trás de um sofá de couro grande, e contou lentamente até mil. Ninguém apareceu. O guarda năo era do tipo cauteloso. Ele voltou ŕ sala de armas e acendeu a vela. As janelas ali tinham cortinas, o que já năo acontecia na sala das flores. Passou cautelosamente para a sala das flores, pegou a faca que vira na prateleira, voltou ŕ sala de armas, inclinou-se para a prateleira. Usou a lâmina da faca para desatarraxar os parafusos que prendiam o suporte. A madeira era velha e dura, mas os parafusos acabaram-se desprendendo e ele pôde soltar as armas. Havia tręs armários na sala. Um deles continha garrafas de conhaque e uísque, além de copos. Outro continha exemplares encadernados de uma revista chamada Horse and Hound e um imenso caderno de capa de couro, marcado ​Livro de Caça​. O terceiro armário estava trancado. A muniçăo devia ser guardada ali. Feliks arrombou a fechadura com a faca. Dos tręs tipos de armas disponíveis… Winchester, espingarda e arma para elefantes… ele preferia a Winchester. Ao vasculhar as caixas de muniçăo, no entanto, descobriu que năo havia cartuchos para a Winchester nem para a arma para elefantes. Tais armas deviam ser guardadas como souvenirs. Ele tinha de se contentar com uma espingarda. Todas as espingardas eram de calibre .12, mas a muniçăo consistia de cartuchos de calibre seis. Para ter certeza de matar o homem, precisaria atirar de perto… a uma distância năo superior a 20 metros, para que a certeza fosse absoluta. E poderia disparar apenas dois
tiros, antes de recarregar. Năo importa, pensou ele; quero matar apenas duas pessoas. A imagem de Lydia deitada no chăo lá em cima voltava a seus pensamentos a todo instante. Sentia-se exultante quando pensava na maneira como haviam feito amor. Năo mais sentia o fatalismo que o dominara imediatamente depois. Por que devo morrer?, pensou ele. E depois que eu matar Walden, quem sabe o que pode acontecer? Ele carregou a espingarda.
 
E agora, pensou Lydia, terei de me matar. Ela năo via qualquer outra possibilidade. Descaíra para as profundezas da depravaçăo pela segunda vez em sua vida. Todos os anos de autodisciplina de nada lhe haviam valido, só porque Feliks voltara. Năo podia viver com o conhecimento do que era. Queria morrer. Agora. Pensou na maneira de consumá-lo. O que poderia tomar que fosse venenoso? Devia haver veneno de rato em algum lugar da casa, mas é claro que ela năo sabia onde. Uma dose excessiva de láudano? Năo tinha certeza se ainda restava o bastante. Lembrou que podia matar-se com gás, mas Stephen convertera a casa para luz elétrica. Talvez o último andar fosse alto o suficiente para causar-lhe a morte, se pulasse por uma janela. Mas tinha medo de apenas quebrar a espinha e ficar paralítica pelo resto da vida. Năo se julgava com coragem para cortar os pulsos. Além do mais, levaria muito tempo para sangrar até a morte. O meio mais rápido seria um tiro. Tinha a impressăo de que poderia carregar uma arma e dispará-la. Já vira isso sendo feito em inúmeras ocasiőes. Mas lembrou que as armas estavam presas por cadeados. Pensou entăo no lago. Isso mesmo, era a soluçăo. Voltaria a seu quarto e poria um robe. Deixaria a casa por uma porta lateral, para que os guardas năo a vissem. Atravessaria o lado oeste do parque, junto dos rododendros, entraria pelo bosque até chegar ŕ beira d​água. E continuaria andando, até que a água fria cobrisse sua cabeça. Ela abriria entăo a boca e um ou dois minutos depois tudo estaria acabado. Deixou o quarto de bebę e foi avançando pelo corredor no escuro. Divisou uma luz por baixo da porta do quarto de Charlotte e hesitou. Queria ver a filha pela última vez. A chave estava na fechadura, pelo lado de fora. Abriu a porta e entrou. Charlotte encontrava-se sentada em uma cadeira ao lado da janela inteiramente vestida, mas adormecida. O rosto achava-se bastante pálido, a năo ser pela vermelhidăo em torno dos olhos. Havia soltado os cabelos. Lydia fechou a porta e aproximou-se da filha. Charlotte abriu os olhos. ​ O que aconteceu? ​ Nada ​ respondeu Lydia, sentando-se. ​ Lembra da ocasiăo em que Babá foi embora? ​ Lembro, sim. Vocę já tinha idade bastante para ter uma aia e eu năo tivera outro filho.
​ Esqueci tudo por muitos anos. Mas acabei de me lembrar. Vocę nunca soube que eu pensava que Babá era minha măe, năo é mesmo? ​ Năo sabia… Vocę pensava assim? Mas sempre me chamou de Mamăe e a ela de Babá… ​ É verdade. ​ Charlotte falava devagar, quase divagando, como se estivesse perdida no nevoeiro de uma recordaçăo distante. ​ Vocę era Mamăe e Babá era Babá. Mas todos tinham uma măe. E quando Babá me disse que vocę era minha măe, eu disse a ela para năo ser boba. Babá, vocę é que é minha măe. E Babá apenas riu. Fiquei desolada, quando vocę a mandou embora. ​ Nunca pensei… ​ Marya nunca lhe contou, é claro… qual a aia que contaria uma coisa assim? Charlotte estava apenas enunciando a recordaçăo, năo acusando a măe, apenas explicando uma coisa. Continuou: ​ Assim, tenho a măe errada e agora descubro que tenho também o pai errado. Imagino que o fato novo me fez lembrar o antigo. ​ Vocę deve odiar-me, Charlotte. O que posso muito bem compreender. Também odeio a mim mesma. ​ Năo, Mamăe, năo a odeio. Tenho-me sentido furiosa com vocę, mas nunca a odiei. ​ Mas acha que sou uma hipócrita. ​ Nem mesmo isso. Uma sensaçăo de paz envolveu Lydia. Charlotte acrescentou: ​ Estou começando a compreender por que vocę é tăo inflexivelmente respeitável, por que estava tăo determinada a que eu nada soubesse de sexo… queria apenas me resguardar do que lhe aconteceu. E descobri que há decisőes muito difíceis, que ŕs vezes năo se pode determinar o que é bom e certo. Creio que a julguei com muito rigor, quando năo tinha o menor direito de julgá-la… e năo estou muito orgulhosa de mim mesma. ​ Sabe que eu a amo? ​ Sei… e também a amo, Mamăe. É por isso que me sinto tăo infeliz. Lydia ficou atordoada. Era a última coisa que podia esperar. Depois de tudo o que acontecera, as mentiras, traiçăo, raiva, amargura, Charlotte ainda a amava. Sentiu-se envolvida por uma alegria serena. Matar-me?, pensou ela. Por que deveria matar-me? ​ Deveríamos ter conversado assim antes, Charlotte. ​ Năo faz idéia do quanto eu sempre quis, Mamăe. Vocę sempre foi muito boa em me dizer como eu devia fazer reveręncia, levar a cauda do vestido, sentar-me graciosamente, ajeitar os cabelos… Ansiava que me explicasse as coisas importantes da mesma maneira… as coisas sobre o amor e ter filhos. Mas
vocę nunca o fez. ​ Nunca pude… e năo sei por quę. Charlotte bocejou. ​ Acho que vou dormir agora. Ela se levantou. Lydia beijou-a no rosto, e depois a abraçou. ​ Também amo Feliks, Mamăe. Isso năo mudou. ​ Sei disso. Também o amo. ​ Boa-noite, Mamăe. ​ Boa-noite. Lydia saiu depressa e fechou a porta pelo lado de fora. Hesitou por um instante no corredor. O que Charlotte faria se a porta ficasse destrancada? Lydia resolveu poupá-la da ansiedade da decisăo. Passou a chave na fechadura. Desceu a escada, encaminhando-se para seu quarto. Estava contente por ter conversado com Charlotte. Talvez, pensou ela, esta família ainda tenha jeito. Năo sei como, mas tenho certeza de que podemos encontrar um meio. Ela entrou em seu quarto. ​ Onde vocę esteve ? ​ perguntou Stephen.
 
Agora que tinha uma arma, Feliks só precisava tirar Orlov do quarto. E sabia como consegui-lo. Ia incendiar a casa. Levando a espingarda numa das măos e a vela na outra, ainda descalço, ele percorreu a ala oeste e atravessou o vestíbulo para a sala de estar. Só mais alguns minutos, pensou ele; só preciso de uns poucos minutos e tudo estará resolvido. Passou pelas duas salas de jantar e pela copa, entrando nas cozinhas. As plantas de Charlotte se tornavam vagas naquela área e ele tinha de procurar pela saída. Encontrou uma porta grande e tosca, presa por uma tranca de ferro. Levantou a tranca e abriu a porta silenciosamente. Apagou a vela e ficou esperando na porta. Depois de cerca de um minuto, descobriu que podia divisar os contornos das construçőes. Era um alívio; estava com receio de usar a vela lá fora, por causa dos guardas. Havia um pequeno pátio com calçamento de pedras ŕ sua frente. No outro lado, se a planta estava certa, havia uma garagem, uma oficina e… um tanque de gasolina. Atravessou o pátio. Calculou que a construçăo ŕ sua frente fora originariamente um estábulo. Parte, era fechada, provavelmente a oficina, o resto era aberto. Feliks divisou vagamente os faróis redondos de dois carros grandes. Onde estava o tanque de gasolina? Ele levantou os olhos. O prédio era bem alto.
Feliks adiantou-se e bateu com a testa em alguma coisa. Era um cano flexível, com um bocal na extremidade. Vinha da parte superior do prédio. Fazia sentido. Punham os carros no estábulo e o tanque de gasolina no palheiro. Os carros eram tirados para o pátio e abastecidos pelo cano que vinha lá de cima. Ótimo!, pensou Feliks. Precisava agora de um recipiente. Uma lata de 10 litros seria o ideal. Entrou na garagem e contornou os carros, tateando com os pés, cauteloso para năo tropeçar em alguma coisa que pudesse fazer barulho. Năo havia latas. Ele relembrou as plantas. Estava perto da horta. Podia haver um regador na área. Já ia sair para verificar, quando ouviu uma fungadela. Parou no mesmo instante. O guarda passou. Feliks podia ouvir as batidas do próprio coraçăo. A luz da lanterna de óleo do guarda se projetava pelo pátio. Será que fechei a porta da cozinha?, pensou Feliks, em pânico. A lanterna iluminou a porta. Estava fechada. O guarda seguiu em frente. Feliks percebeu que estivera prendendo a respiraçăo e deixou-a escapar, num longo suspiro. Deu um minuto para o guarda se distanciar e depois seguiu na mesma direçăo, procurando pela horta. Năo havia latas ali, mas tropeçou num rolo de mangueira. Calculou que devia ter pelo menos 30 metros de comprimento. E teve uma idéia terrível. Precisava saber primeiro com que freqüęncia os guardas patrulhavam aquela área. Começou a contar. Ainda contando, levou a mangueira da horta para o pátio e escondeu-a e a si mesmo por detrás dos automóveis. Alcançara 902 quando o guarda tornou a aparecer. Levara cerca de 15 minutos. Feliks prendeu uma das extremidades da mangueira no bocal do cano de gasolina, depois atravessou o pátio, desenrolando a mangueira pelo caminho. Parou na cozinha, pegando um espeto grande de carne e tornando a acender a vela. Tornou a percorrer a casa, estendendo a mangueira pela cozinha, copa, salas de jantar, saia de estar, vestíbulo, corredor e biblioteca. A mangueira era pesada e se tornava difícil fazer o trabalho silenciosamente. Escutava atentamente pelo som de passos, durante todo o tempo, mas tudo o que ouvia era o barulho da velha casa se acomodando para a noite. Tinha certeza de que todos estavam deitados. Mas será que alguém desceria para pegar um livro na biblioteca, um conhaque na sala
de estar ou um sanduíche na cozinha? Se isso acontecesse agora, pensou Feliks, meu plano estaria liquidado. Só mais alguns minutos… só mais alguns minutos… Ele se preocupara com a possibilidade de a mangueira năo ser comprida o bastante, mas deu para estendę-la até a porta da biblioteca. Feliks voltou, acompanhando a mangueira e fazendo buracos a intervalos de poucos metros com a ponta afiada do espeto de carne. Passou pela porta da cozinha e parou na garagem. Empunhou a espingarda de dois canos como se fosse um porrete. Teve a impressăo de esperar um século. Finalmente ouviu passos. O guarda passou por ele e parou, a lanterna iluminando a mangueira. O homem soltou um grunhido de surpresa. Feliks acertou-o com a espingarda. O guarda cambaleou. Feliks sibilou: ​ Com todos os diabos, caia logo de uma vez! E ele tornou a bater, com toda a força. O guarda caiu e Feliks golpeou-o mais uma vez, com uma satisfaçăo selvagem. O homem ficou imóvel. Feliks virou-se para o cano de gasolina e encontrou o lugar em que fizera a ligaçăo da mangueira. Havia uma torneira. Havia uma torneira para controlar o fluxo de gasolina. Feliks abriu a torneira.
 
​ Antes de casarmos ​ disse Lydia, impulsivamente ​ tive um amante. ​ Santo Deus! ​ exclamou Stephen. Por que falei isso?, pensou Lydia. Porque mentir a respeito deixara a todos infelizes e năo quero mais que isso aconteça. ​ Meu pai descobriu tudo. Providenciou para que meu amante fosse preso e torturado. Disse que as torturas seriam suspensas imediatamente, se eu concordasse em me casar com vocę. E assim que nós dois chegássemos ŕ Inglaterra, meu amante seria solto. Lydia ficou observando o rosto dele. Stephen năo se mostrava tăo magoado quanto ela esperara, mas estava horrorizado.
​ Seu pai estava errado. ​ Eu também estava errada, ao casar-me sem amor. ​ Oh… ​ Stephen estava agora angustiado. ​ Por falar nisso, eu também năo estava apaixonado por vocę. Pedi-a em casamento porque meu pai morrera e precisava de uma esposa para ser a Condessa de Walden. Foi depois que me apaixonei perdidamente por vocę. Eu deveria dizer que a perdôo, mas năo há nada a perdoar. Poderia ser tăo fácil assim?, pensou Lydia. Será que ele pode perdoar-me tudo e continuar a me amar? Parecia que tudo era possível, porque a morte estava no ar. Lydia descobriu-se a continuar, incapaz de se controlar: ​ Há mais, Stephen. E é pior. A expressăo dele era de angústia profunda. ​ É melhor me contar tudo. ​ Eu já estava… eu já estava grávida quando me casei com vocę. Stephen empalideceu. ​ Charlotte! Lydia limitou-se a acenar com a cabeça, sem falar. ​ Ela… năo é minha filha? ​ Năo. ​ Ó, Deus! Agora eu o magoei, pensou Lydia; vocę nunca sonhou com isso. ​ Oh, Stephen, năo sabe como lamento! O marido ficou olhando para ela fixamente, repetindo, atordoado: ​ Năo é minha… năo é minha… Lydia pensou no quanto isso significava para ele. Mais do que todo mundo, a nobreza inglesa dava a maior importância ŕ genealogia e laços de sangue. Lembrava-se dele olhando para Charlotte e murmurando: ​ Carne da minha carne, sangue do meu sangue… Fora a única citaçăo da Bíblia que ela já o ouvira pronunciar. Lydia pensou em seus próprios sentimentos, a angústia da criança iniciando a vida como parte dela, depois se tornando um indivíduo
separado, mas năo completamente separado. Devia acontecer a mesma coisa com os homens, pensou ela; ŕs vezes pode-se pensar que năo, mas é assim. O rosto de Stephen achava-se pálido e contraído. Ele parecia subitamente mais velho. E disse: ​ Por que está-me contando tudo isso agora? Năo posso revelar mais nada, pensou Lydia; já o magoei demais. Mas era como se ela estivesse numa ladeira e năo pudesse parar. ​ Porque Charlotte conheceu seu verdadeiro pai e sabe de tudo. ​ Pobre menina… Stephen pôs o rosto entre as măos. Lydia compreendeu que a pergunta seguinte era inevitável: Quem é o pai? Foi dominada pelo pânico. Năo podia contar. Isso iria matá-lo. Mas ela precisava contar. Queria remover para sempre o peso terrível daqueles segredos culpados que lhe angustiavam a vida. Năo pergunte, pensou ela, ainda năo, seria demais. Stephen fitou-a. Seu rosto estava terrivelmente inexpressivo. Parecia um juiz, pensou Lydia, pronunciando impassivelmente a sentença; e ela era a prisioneira culpada no banco dos réus. Năo me pergunte. ​ E o pai é Feliks, é claro ​ disse Stephen. Lydia arquejou. Stephen sacudiu a cabeça, como se a reaçăo fosse toda a confirmaçăo de que precisava. O que ele vai fazer?, pensou Lydia, apavorada. Observou atentamente o rosto dele, mas nada pôde depreender de sua expressăo. Era como se um estranho estivesse ŕ sua frente. ​ Santo Deus, o que está havendo conosco? ​ disse Stephen, abruptamente. Lydia começou a falar incontrolavelmente: ​ Ele apareceu no momento em que Charlotte começava a ver os pais como frágeis seres humanos. E lá estava ele, transbordando de vida, idéias e iconoclasmo… justamente as coisas que atraem uma moça de mentalidade independente… e ela sente necessidade de conhecę-lo, passa a gostar dele, năo pode deixar de ajudá-lo… algo parecido aconteceu comigo… mas ela ama vocę, Stephen, ela é sua por esse aspecto. As pessoas năo podem deixar de amá-lo… năo podem evitar… O rosto dele estava impassível. Lydia gostaria que Stephen praguejasse, gritasse, a insultasse, até mesmo a espancasse. Mas ele continuou sentado impassível, com o rosto de um juiz. ​ E vocę, Lydia? Também o ajudou? ​ Năo intencionalmente… mas também năo ajudei a vocę. Sou uma mulher horrível.
Stephen levantou e pôs as măos frias nos ombros dela. ​ Mas vocę é minha, Lydia? ​ Eu queria ser, Stephen… e queria muito… Stephen tocou no rosto dela, mas năo havia amor em sua expressăo. Ela estremeceu e disse: ​ Falei que era demais para perdoar… ​ Sabe onde Feliks está? Lydia năo respondeu. Se eu disser, pensou ela, estarei matando Feliks. Se năo disser, estarei matando Stephen. ​ Vocę sabe onde ele está, Lydia. Ela assentiu, com um aceno de cabeça, atordoada. ​ Vai-me contar? Ela fitou-o nos olhos. Se eu contar, pensou ela, será que ele vai-me perdoar? ​ Tem de escolher agora, Lydia. Ela teve a sensaçăo de que estava caindo de cabeça num poço profundo. Stephen alteou as sobrancelhas, na expectativa. ​ Ele está na casa ​ murmurou Lydia. ​ Santo Deus! Onde? Os ombros de Lydia vergaram. Estava feito. Ela traíra Feliks pela última vez. ​ Está escondido no quarto de bebę ​ balbuciou ela, desesperada. A expressăo de Stephen năo era mais impassível. As faces dele ficaram vermelhas, os olhos arderam de fúria. ​ Diga que me perdoa, Stephen… por favor… Ele se virou e saiu correndo do quarto.
 
Feliks correu pela cozinha e pela copa, levando a vela, a espingarda e os fósforos. Podia sentir o cheiro ligeiramente nauseante da gasolina. Na sala de jantar, um esguicho fino e constante de gasolina saía por um buraco na mangueira. Feliks puxou a mangueira pela sala, a fim de que o fogo năo a destruísse muito depressa. Depois, riscou um fósforo e jogou numa parte do tapete encharcada de gasolina. O tapete se
incendiou no mesmo instante. Feliks sorriu e adiantou-se apressadamente. Na sala de estar, pegou uma almofada de veludo e encostou-a por um minuto em outro buraco na mangueira. Jogou a almofada num sofá, ateou fogo, jogou outras almofadas ao redor. O incęndio se alastrou. Ele correu pelo vestíbulo e pelo corredor até a biblioteca. A gasolina estava ali saindo pela extremidade da mangueira e se espalhando pelo chăo. Feliks arrancou vários livros das prateleiras e jogou-os no chăo, na poça que se espalhava. Atravessou a biblioteca e abriu a porta de comunicaçăo com a sala de armas. Parou na porta por um momento, depois jogou a vela na poça de gasolina. Houve um barulho como o de uma imensa rajada de vento e a biblioteca se incendiou. Livros e gasolina arderam intensamente. Um momento depois, as cortinas estavam em chamas. A gasolina continuava a fluir pela mangueira, alimentando o fogo. Feliks soltou uma risada alta. Entrou na sala de armas. Meteu um punhado de cartuchos extras no bolso do casaco. Passou da sala de armas para a sala das flores. Destrancou a porta para o jardim, abriu-a silenciosamente e saiu. Seguiu diretamente para oeste, afastando-se da casa por 200 passos, fazendo o maior esforço para controlar a impacięncia. Depois virou para o sul, percorreu a mesma distância, finalmente encaminhou-se para leste, até ficar bem em frente da porta principal, e afastado dela pelo gramado escuro. Podia ver o segundo guarda parado na entrada da casa, iluminado por duas lanternas, fumando um cachimbo. O colega dele estava inconsciente, talvez morto, no quintal da cozinha. Feliks podia ver as chamas nas janelas da biblioteca, mas o guarda achava-se a alguma distância e ainda năo podia perceber coisa alguma. Mas descobriria o incęndio muito em breve. Entre Feliks e a casa, a cerca de 50 metros da entrada, havia um imenso castanheiro. Feliks seguiu para lá, atravessando o gramado. O guarda parecia estar olhando mais ou menos na direçăo de Feliks, mas năo o viu. Feliks também năo se importava; se o homem me avistar, pensou ele, vou matá-lo com um tiro. Ninguém pode mais controlar o incęndio. Todos terăo de deixar a casa. A qualquer momento agora, vou matar Orlov e Walden. A qualquer momento. Ele chegou ŕ árvore e encostou-se nela, com a espingarda nas măos. Podia agora ver as chamas no lado oposto da casa, nas janelas da sala de jantar. O que estarăo fazendo lá dentro?, pensou ele.
 
Walden avançou rapidamente pelo corredor e bateu na porta do Quarto Azul, onde Thomson estava dormindo. Ele entrou. ​ O que é? ​ perguntou Thomson, da cama. Walden acendeu a luz.
​ Feliks está na casa. ​ Santo Deus! ​ Thomson se levantou. ​ Como ele conseguiu? ​ Charlotte deixou-o entrar ​ informou Walden, amargurado. Thomson estava vestindo uma calça e pondo um casaco ŕs pressas. ​ Sabe onde ele está? ​ No quarto de bebę. Está com o seu revólver? ​ Năo. Mas tenho tręs homens com Orlov, lembra-se? Vou chamar dois deles e depois pegaremos Feliks. ​ Irei com vocę. ​ Eu preferiria… ​ Năo discuta! ​ gritou Walden. ​ Quero vę-lo morrer! Thomson fitou-o com uma expressăo estranha de compaixăo, e depois saiu apressadamente do quarto. Walden foi atrás. Seguiram pelo corredor até o quarto de Aleks. O homem diante da porta, no lado de fora, levantou-se e cumprimentou Thomson, que lhe disse: ​ Vocę é Barrett, năo é mesmo? ​ Sou, sim, senhor. ​ Quem está lá dentro? ​ Bishop e Anderson, senhor. ​ Mande-os abrir a porta. Barrett bateu na porta. Uma voz disse no mesmo instante: ​ A senha? ​ Mississippi ​ respondeu Barrett. A porta se abriu. ​ O que houve, Charlie? Ah, é o senhor. ​ Como está Orlov? ​ perguntou Thomson. ​ Dormindo como um bebę, senhor. Vamos logo com isso!, pensou Walden.
​ Feliks está na casa ​ continuou Thomson. ​ Barrett e Anderson, venham comigo e com milorde. Bishop, fique dentro do quarto. Verifiquem se as pistolas estăo carregadas, por favor. Todos vocęs. O Conde seguiu na frente, subindo a escada para o quarto de bebę. Seu coraçăo batia forte e ele sentia uma curiosa mistura de medo e ansiedade, como sempre lhe acontecera quando tinha um leăo grande na mira do fuzil. Apontou para a porta do quarto de bebę. Thomson sussurrou: ​ Há luz elétrica nesse quarto? ​ Há, sim. ​ Onde fica o interruptor? ​ Ŕ esquerda da porta, na altura do ombro. Barrett e Anderson sacaram suas pistolas. Walden e Thomson ficaram nos dois lados da porta, fora da linha de fogo. Barrett abriu a porta, Anderson entrou e pulou para um lado. Barrett acendeu a luz. Nada aconteceu. Walden correu os olhos pelo quarto. Anderson e Barrett estavam examinando os outros dois aposentos. Um momento depois, Barrett disse: ​ Năo há ninguém aqui, senhor. No primeiro cômodo havia uma bacia com água suja e uma toalha amarrotada no chăo. Walden apontou para a porta do pequeno quarto que ficava contíguo. ​ Há um pequeno sótăo além daquela porta. Barrett abriu-a. Todos ficaram tensos. Barrett entrou, com a arma na măo. Voltou um momento depois. ​ Ele esteve lá. Thomson coçou a cabeça. ​ Precisamos revistar toda a casa ​ disse Walden. ​ Eu gostaria que tivéssemos mais homens ​ falou Thomson. ​ Começaremos pela ala oeste ​ decidiu Walden. ​ Vamos logo. Todos saíram, atravessaram o corredor até a escada. Enquanto desciam. Walden sentiu o cheiro de fumaça.
​ O que é isso? Thomson farejou. Walden olhou para Thomson e Barrett. Nenhum dos dois estava fumando. O cheiro era cada vez mais forte. Walden podia agora ouvir um barulho como o de vento entre as árvores. Subitamente, ele foi dominado pelo medo e gritou: ​ Minha casa está em chamas! Ele desceu correndo a escada. O vestíbulo estava cheio de fumaça. Walden atravessou correndo o vestíbulo e abriu a porta da sala de estar. O calor atingiu-o como um golpe, e ele cambaleou para trás. A sala era um verdadeiro inferno. O Conde ficou desesperado. Năo havia a menor possibilidade de apagar um incęndio assim. Olhou para a ala oeste e constatou que a biblioteca também se encontrava em chamas. Virou-se. Thomson estava logo atrás dele. Walden gritou: ​ Minha casa está pegando fogo! Thomson segurou-lhe o braço e arrastou-o de volta ŕ escada. Anderson e Barret estavam ali. Walden descobriu que podia respirar e ouvir mais facilmente no meio do vestíbulo. Thomson estava frio e controlado. Começou a dar ordens. ​ Anderson, vá avisar os dois guardas lá fora. Mande um deles conseguir uma mangueira de jardim e uma bica. O outro deve correr até a aldeia e telefonar para os bombeiros. Suba depois pela escada dos fundos e desperte todo mundo nos aposentos dos criados. Diga-lhes para saírem o mais depressa possível. Todos devem reunir-se no gramado da frente, para serem contados. Barrett, vá acordar o Sr. Churchill e tire-o da casa. Eu irei buscar Orlov. Walden, vá pegar Lydia e Charlotte. Depressa, todos! Walden subiu correndo a escada e entrou no quarto de Lydia. Ela se achava sentada na poltrona, de camisola, os olhos vermelhos de tanto chorar. ​ A casa está pegando fogo ​ disse Walden, ofegante. ​ Saia o mais depressa possível para o gramado da frente. Vou buscar Charlotte. ​ Ele se lembrou de uma coisa nesse momento: o sino do jantar. ​ Năo. Vocę chama Charlotte. Vou tocar o sino. Ele tornou a descer a escada, pensando: Por que năo me lembrei disso antes. Havia no vestíbulo uma corda comprida de seda, que acionava sinos por toda parte, avisando a hóspedes e criados que uma refeiçăo estava prestes a ser servida. Walden puxou a corda e ouviu o barulho distante dos sinos em diversas partes da casa. Notou uma mangueira de jardim estendida pelo vestíbulo. Será que já havia alguém combatendo o incęndio? Năo podia imaginar quem fosse. Ele continuou a puxar a corda.
 
Feliks observava ansiosamente. O incęndio estava-se espalhando depressa demais. Já havia áreas extensas do segundo andar em chamas. Ele podia ver o clarăo pelas janelas. E pensou: Saiam logo, seus idiotas! O que estăo fazendo? Ele năo queria queimar todas as pessoas na casa… queria que saíssem. O guarda na frente parecia estar dormindo. Vou dar o alarme pessoalmente, pensou Feliks; năo quero que as
pessoas erradas morram… Subitamente, o guarda olhou ao redor. O cachimbo caiu de sua boca. Ele correu pela varanda, começou a bater na porta. Finalmente!, pensou Feliks. Dę logo o alarme, seu idiota! O guarda correu para uma janela e quebrou-a. Foi nesse instante que a porta se abriu e alguém saiu correndo, em meio a uma nuvem de fumaça. Está acontecendo, pensou Feliks. Ele levantou a espingarda, esquadrinhando a escuridăo. Năo podia ver o rosto da pessoa que saíra. Era um homem e gritou alguma coisa. O guarda saiu correndo. Preciso ver os rostos deles, pensou Feliks; mas se chegar muito perto, văo-me ver cedo demais. O homem correu para os fundos da casa antes que Feliks pudesse reconhecę-lo. Terei de chegar mais perto, correr o risco, pensou Feliks. E foi avançando pelo gramado. Sinos começaram a soar no interior da casa. Agora văo todos sair, pensou Feliks.
 
Lydia correu pelo corredor cheio de fumaça. Como aquilo pudera acontecer tăo depressa? Năo sentira o cheiro de coisa alguma em seu quarto, mas agora as chamas já começavam a aparecer por baixo das portas dos quartos por que passava. Toda a casa devia estar em chamas. O ar estava quente demais para se respirar. Ela chegou ao quarto de Charlotte e virou a maçaneta da porta. É claro que estava trancada. Ela virou a chave. Tentou novamente abrir a porta. Năo se mexeu. Girou a maçaneta, jogou o peso do corpo contra a porta. Alguma coisa estava errada. A porta estava emperrada. Lydia começou a gritar e gritar. ​ Mamăe! ​ gritou Charlotte, do outro lado da porta. Lydia mordeu o lábio com força e parou de gritar. ​ Charlotte! ​ Abra a porta! ​ Năo consigo năo consigo năo consigo. ​ Está trancada! ​ Já destranquei e a porta năo quer abrir e a casa está pegando fogo; Ó, Deus, ajude-me… A porta sacudiu, e a maçaneta foi puxada com força por Charlotte, pelo lado de dentro. ​ Mamăe! ​ Estou aqui! ​ Pare de gritar e escute com atençăo, Mamăe… o assoalho empenou e a porta está emperrada… terá de ser arrombada… vá buscar ajuda! ​ Năo posso deixá-la…
​ MAMĂE, VÁ BUSCAR AJUDA OU MORREREI QUEIMADA! ​ Ó, Deus… já vou! Lydia virou-se e correu, quase sufocada, na direçăo da escada.
 
Walden ainda estava dando o alarme. Através da fumaça, avistou Aleks, flanqueado por Thomson e pelo terceiro detetive, Bishop, descendo a escada. Lydia, Churchill e Charlotte deveriam estar ali também, pensou ele. Mas depois se lembrou que poderiam descer por uma das outras escadas. Só podia verificar no gramado da frente, onde todos deveriam reunir-se. ​ Bishop! ​ gritou Walden. ​ Venha até aqui! O detetive correu para junto dele. ​ Fique tocando o alarme enquanto puder! Bishop pegou a corda, e Walden seguiu Aleks para fora da casa.
 
Era um doce momento para Feliks. Ele levantou a espingarda e caminhou na direçăo da casa. Orlov e outro homem avançavam em sua direçăo. Ainda năo o tinham visto. Ao chegarem mais perto, Walden apareceu por trás deles. Como ratos numa ratoeira, pensou Feliks, triunfante. O homem que Feliks năo conhecia virou a cabeça para trás e falou com Walden. Orlov estava a 20 metros de distância. É agora, pensou Feliks. Ele ajeitou a coronha da espingarda no ombro, mirou cuidadosamente o peito de Orlov e… no momento em que Orlov abria a boca para falar… puxou o gatilho. Um buraco preto grande apareceu no peito de Orlov, no momento em que o cartucho número seis, com cerca de 400 pelotas, penetrou em seu corpo. Os outros dois homens ouviram o estampido e olharam para Feliks, aturdidos. O sangue esguichou do peito de Orlov, e ele caiu para trás. Consegui, pensou Feliks, exultante; matei-o. E agora é a vez do outro tirano. Ele apontou a arma para Walden, gritando:
​ Năo se mexam! Walden e o outro homem ficaram imóveis. E nesse instante todos ouviram um grito. Feliks olhou na direçăo do grito. Lydia saía correndo da casa, com fogo nos cabelos. Feliks hesitou por uma fraçăo de segundo, depois saiu correndo na direçăo dela. Walden também correu. Enquanto corria, Feliks largou a espingarda e tirou o casaco. Alcançou Lydia um segundo antes de Walden. Envolveu a cabeça da mulher com o casaco, abafando as chamas. Ela tirou o casaco da cabeça e gritou: ​ Charlotte está presa no quarto! Walden virou-se e saiu correndo para a casa. Feliks correu atrás dele.
 
Lydia, soluçando de pavor, viu Thomson adiantar-se rapidamente e pegar a espingarda que Feliks largara. Ela ficou olhando, dominada pelo horror, enquanto Thomson levantava a espingarda e mirava as costas de Feliks. ​ Năo! ​ E jogou-se contra Thomson, desequilibrando-o. A espingarda disparou para o chăo. Thomson fitou-a, aturdido. ​ Será que năo entende? ​ gritou Lydia, histericamente. ​ Ele já sofreu o bastante!
 
O tapete do quarto de Charlotte estava pegando fogo. Ela levou a măo cerrada ŕ boca e mordeu as articulaçőes, para năo gritar. Correu para o lavatório, pegou o jarro com água e jogou no meio do quarto. Só aumentou a fumaça. Ela foi até a janela, abriu-a e olhou para fora. Fumaça e fogo saíam pelas janelas por baixo dela. A fachada da casa era de pedra lisa; năo havia como descer. Se năo houver outro jeito, vou pular, pensou ela; será melhor do que morrer queimada. A idéia deixou-a apavorada, e a moça voltou a morder as articulaçőes. Correu para a porta e tornou a sacudir a maçaneta, desesperada.
​ Socorro! Alguém me salve, por favor! As chamas se elevaram do tapete, um buraco apareceu no meio do assoalho. Ela correu em torno do quarto, a fim de ficar perto da janela, pronta para pular. Ouviu alguém chorar e compreendeu que era ela.
 
O vestíbulo estava cheio de fumaça. Feliks mal podia ver. Permaneceu logo atrás de Walden, pensando: Năo vou deixar Charlotte morrer! Năo vou deixar Charlotte morrer! Os dois homens subiram correndo a escada. Todo o andar estava em chamas. O calor era intenso. Walden atravessou uma muralha de chamas e Feliks seguiu-o. Walden parou diante de uma porta e foi dominado por um acesso de tosse. Impotente, ele apontou para a porta. Feliks sacudiu a maçaneta e empurrou a porta com o ombro. A porta năo se mexeu. Ele sacudiu Walden e gritou: ​ Corra para a porta! Ele e Walden, ainda tossindo, postaram-se no outro lado do corredor, de frente para a porta. ​ Agora! ​ gritou Feliks. Lançaram-se juntos contra a porta. A madeira rachou, mas a porta continuou fechada. Walden parou de tossir. O rosto dele era uma máscara de terror. Feliks tornou a gritar: ​ Agora! Lançaram-se de novo contra a porta. Esta rachou mais um pouco. Ouviram Charlotte gritar, no outro lado da porta. Walden soltou um berro de raiva. Olhou ao redor, desesperado. Pegou uma pesada cadeira de carvalho. Feliks pensou que era pesada demais para Walden levantar. Mas o Conde levantou a cadeira acima da cabeça e a jogou contra a porta. A madeira estava-se lascando. Num frenesi de impacięncia, Feliks meteu as măos na rachadura e começou a arrancar as lascas. Os dedos ficaram escorregadios de sangue. Ele recuou e Walden tornou a bater com a cadeira. Mais uma vez, Feliks arrancou as lascas. As măos estavam cheias de farpas. Ouviu Walden murmurar alguma coisa e compreendeu que era uma prece.
Walden golpeou com a cadeira pela terceira vez. A cadeira quebrou, as pernas e assento separando-se do encosto. Mas havia um buraco na porta grande o bastante para que Feliks… mas năo Walden… pudesse passar. Feliks passou pelo buraco e caiu no quarto. O assoalho estava em chamas e ele năo viu a filha. ​ Charlotte! ​ gritou ele, o mais alto que podia. ​ Estou aqui! A voz vinha do outro lado do quarto. Feliks correu pelo lado do quarto em que o fogo era menos intenso. A jovem estava sentada no peitoril da janela aberta, aspirando o ar lá de fora sofregamente. Ele a pegou pela cintura e a suspendeu até o ombro. Correu pelo quarto, de volta a porta. Walden estendeu as măos pelo buraco a fim de recebę-la.
 
Walden enfiou os braços, a cabeça e um ombro no buraco da porta, a fim de pegar Charlotte de Feliks. Percebeu que o rosto e as măos do russo estavam enegrecidos, a calça pegando fogo. Os olhos de Charlotte estavam arregalados de terror. Por trás de Feliks, o assoalho começou a desabar. Walden passou um braço pelo corpo de Charlotte. Feliks parecia cambalear. Walden retirou a cabeça do buraco, com a outra măo segurou Charlotte pela axila. As chamas se estendiam por sua camisola e ela gritou. Walden disse: ​ Está tudo bem. Papai já a pegou. Subitamente, ele estava suportando sozinho todo o peso de Charlotte. Puxou-a pelo buraco na porta. Ela desmaiou, ficando inerte. No momento em que Walden a tirava, o assoalho do quarto desabou. Walden viu o rosto de Feliks, no instante em que o russo caía para o inferno. E Walden murmurou: ​ Deus tenha misericórdia da alma dele… E, depois, ele desceu correndo.
 
Lydia era contida firmemente por Thomson, que năo a deixava voltar ŕ casa em chamas. A mulher olhava fixamente para a porta, rezando para que os dois homens aparecessem, junto com Charlotte. Um vulto apareceu. Quem era? Chegou mais perto. Era Stephen. E estava carregando Charlotte. Thomson largou Lydia. Ela correu para o marido e a filha. Stephen pôs Charlotte na relva, gentilmente. Lydia fitava-o, em pânico. E balbuciou:
​ O que… o que… ​ Ela năo está morta, apenas desmaiada. Lydia abaixou-se, aninhou a cabeça de Charlotte no colo, sentiu-lhe o peito, por baixo do seio esquerdo. O coraçăo batia forte. ​ Oh, minha filha… ​ murmurou Lydia. Stephen sentou-se ao lado dela. Lydia fitou-o. A calça dele queimara, a pele estava enegrecida, cheia de bolhas. Mas ele estava vivo. Lydia olhou para a porta. Stephen percebeu o olhar dela. Lydia compreendeu que Churchill e Thomson estavam de pé ali perto, escutando. Stephen pegou a măo de Lydia e disse: ​ Ele salvou Charlotte. Passou-a para mim. O assoalho desabou nesse momento. Ele está morto. Os olhos de Lydia encheram-se de lágrimas. Stephen viu e apertou-lhe a măo, acrescentando: ​ Vi o rosto dele no momento em que caía. Creio que jamais esquecerei, enquanto viver. Os olhos estavam abertos e ele parecia consciente, mas… năo estava assustado. Ao contrário, parecia… satisfeito. As lágrimas escorriam pelo rosto de Lydia. Churchill disse a Thomson: ​ Livre-se do corpo de Orlov. Pobre Aleks, pensou Lydia, chorando por ele também. Thomson balbuciou, incrédulo: ​ Como? ​ Esconda-o, enterre, jogue no fogo. Năo quero saber como vai fazer, quero apenas que se livre do corpo. Lydia fitou Churchill, consternada. E, através das lágrimas, viu-o tirar um maço de papéis do bolso do robe. ​ O acordo está assinado ​ acrescentou Churchill. ​ O Czar será informado de que Orlov morreu acidentalmente, no incęndio que destruiu Walden Hall. Orlov năo foi assassinado, entende? Năo houve assassino. ​ E fitou cada um, o rosto gorducho e agressivo com uma expressăo feroz. ​ Nunca houve ninguém chamado Feliks. Stephen se levantou e foi até o lugar em que estava o corpo de Aleks. Alguém cobrira o rosto do Príncipe. Lydia ouviu Stephen dizer: ​ Aleks, meu rapaz… o que vou dizer ŕ sua măe?
Stephen se abaixou e cruzou as măos de Aleks sobre o buraco no peito. Lydia ficou olhando para o incęndio, destruindo todos os anos de história, consumindo o passado. Stephen tornou a se aproximar e ficou de pé ao lado dela. ​ Nunca houve ninguém chamado Feliks ​ sussurrou ele. Ela fitou-o. Por trás dele, o céu a leste começava a clarear. Em breve, o Sol surgiria e seria um novo dia.
 
EPÍLOGO No dia 2 de agosto de 1914, a Alemanha invadiu a Bélgica. Em poucos dias, o Exército alemăo estava avançando pela França. Ao final de agosto, quando parecia que a queda de Paris era inevitável, tropas alemăs vitais foram retiradas da França para defender a Alemanha contra uma invasăo russa a leste; e Paris năo caiu. Em 1915, os russos assumiram oficialmente o controle de Constantinopla e do Bósforo. Muitos dos rapazes com quem Charlotte dançara no baile de Belinda foram mortos na França. Freddie Chalfont morreu em Ypres. Peter voltou para casa com neurose de guerra. Charlotte fez um curso intensivo de enfermagem e foi para o front. Lydia teve um filho em 1916. Esperava-se que o parto fosse difícil, por causa de sua idade, mas acabou năo havendo problemas. O menino recebeu o nome de Aleks. Charlotte contraiu pneumonia em 1917 e foi mandada para casa. Durante a convalescença, traduziu para o inglęs A Filha do Capităo, de Pushkin. Depois da guerra, as mulheres conquistaram o direito de voto. Lloyd George tornou-se PrimeiroMinistro. Basil Thomson obteve o título de Cavaleiro do Reino. Charlotte casou-se com um jovem oficial a quem tratara na França. A guerra convertera-o num pacifista e socialista. Ele foi um dos primeiros trabalhistas a se eleger para o Parlamento. Charlotte tornou-se a mais eminente tradutora inglesa de ficçăo russa do século XIX. Os dois foram a Moscou em 1931 e voltaram para a Inglaterra declarando que a Uniăo Soviética era o paraíso dos trabalhadores. Mudaram de idéia por ocasiăo do pacto nazi-soviético. O marido de Charlotte tornou-se um dos ministros do governo trabalhista de 1945. Charlotte ainda está viva. Reside num chalé no que fora antes a Home Farm. O chalé fora construído por seu pai para o intendente. É espaçoso, construçăo boa, móveis confortáveis. A Home Farm é agora um conjunto residencial. Mas Charlotte gosta de estar cercada de pessoas. Walden Hall foi reconstruída por Lutyens e pertence agora ao filho de Aleks Walden. Charlotte fica ŕs vezes um pouco confusa com o passado recente, mas se lembra do verăo de 1914 como se fosse ontem. Uma expressăo um tanto distante e fria aparece em seus olhos e ela se pőe a contar uma de suas histórias comoventes.
Mas ela năo vive apenas de recordaçőes. Denuncia o Partido Comunista da Uniăo Soviética por ter proporcionado uma péssima reputaçăo ao comunismo, e acusa Margaret Thatcher de ter acarretado uma reputaçăo pior ao feminismo. E se alguém lhe diz que a Sra. Thatcher năo é feminista, ela diz que o Sr. Brejnev năo é socialista. Claro que ela năo traduz mais. Contudo, está lendo O Arquipélago Gulag no original russo. Diz que Solzhenitsyn é farisaico, mas está determinada a terminar o livro. Como só pode ler meia hora pela manhă e outra meia hora ŕ tarde, calcula que estará com 99 anos quando chegar ao fim do livro. E acho que ela vai conseguir.

 

 

                                                                  Ken Follet

 

 

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