Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O HOMEM DE TERNO MARROM / Agatha Christie
O HOMEM DE TERNO MARROM / Agatha Christie

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O HOMEM DE TERNO MARROM

 

                       

 

Nadina, a bailarina russa que tomara Paris de assalto, inclinava-se ora para um lado ora para o outro, ao som dos aplausos. Os negros olhos oblíquos pareciam estreitas frestas a acompanhar a linha dos lábios rubros, curvados num meio sorriso. Franceses entusiastas continuavam a bater com os pés no soalho, em sinal de aprovação, enquanto a cortina, ao fechar-se com um som sibilante, ocultava o bizarro décor colorido de vermelho, azul e carmesim. Envolta num turbi­lhão de gazes azuis e cor de laranja, a dançarina retirou-se do palco. Um senhor de barba recebeu-a nos braços. Era o empresário.

— Magnífico, petite, magnífico — exclamou. — Esta noite, você superou a si mesma. — Beijou-a com galanteria, em ambas as faces.

Habituada a elogios, Mme Nadina aceitou o tributo, sem constrangimento, e seguiu para o camarim. Aí se viam, por toda parte, ramos de flores amontoados descuidadamente e vestidos maravilhosos confeccionados em tecidos com desenhos futuristas. O odor das flores em abundância e os perfumes e essências sofisticados misturavam-se à atmosfera morna, tornando-a levemente adocicada. Jeanne, a camareira, atendia a jovem, tagarelando sem parar, numa torrente de elogios fastidiosos.

O dilúvio de palavras que lhe escorria dos lábios foi interrompido por uma leve batida na porta. Jeanne abriu-a, voltando com um cartão de visita.

— A senhora recebe?

— Quero saber quem é.

Languidamente, a bailarina estendeu o braço, mas, ao

ler o nome — Conde Sergius Paulovitch —, rápida centelha perpassou-lhe pelo olhar.

— Diga-lhe que entre. Depressa, Jeanne, o penhoar amarelo-claro. Quando o conde entrar, você pode retirar-se.

— Bien, madame.

Sorrindo para si mesma, Nadina vestiu o penhoar — uma coisinha original, feita de chiffon amarelo ornado de arminho. Instantes depois, dedos longos, muito brancos, tamborilavam suavemente no espelho do toucador.

O visitante era de estatura mediana, talhe esbelto, ele­gante; o rosto pálido aparentava extrema fadiga. Os traços fisionômicos não despertavam a atenção; seria mais fácil re­conhecê-lo pelo tratamento cortês, um tanto exagerado, que costumava dispensar às pessoas. O conde curvou-se para beijar a mão da bailarina, pois bem avaliava o valor do pri­vilégio que lhe era concedido.

— Senhora, é um grande prazer...

Ao fechar a porta atrás de si, Jeanne ainda teve tempo de ouvir a frase. Tão logo se viu a sós com o jovem, o sorriso de Nadina transformou-se.

— Creio que, embora sejamos compatriotas, não vamos falar russo — observou.

— Será como quiser, visto não conhecermos uma única palavra desse idioma — concordou o moço.

Feita a combinação, continuaram a exprimir-se em in­glês. Agora que o conde abandonara os maneirismos, nin­guém teria dúvidas sobre o seu país de origem. De fato, começara a vida como artista nos teatros de variedades de Londres. Era exímio em mudar rapidamente de trajes e de caracterização.

— Esta noite você fez um verdadeiro sucesso — obser­vou. — Minhas felicitações.

— No entanto — disse Nadina —, estou preocupada. Não me sinto em situação segura. A suspeita perdura desde a guerra. Sei que me espreitam, que sou continuamente vi­giada.

— Já a acusaram de espionagem?

— Nosso chefe está tramando para que isso venha a acontecer.

— Muitos anos de vida ao "Coronel" — disse o conde, sorrindo. — A notícia de que pretende aposentar-se é simplesmente espantosa, não acha? Aposentar-se! Como um sim­ples médico, açougueiro ou encanador...

— Ou como qualquer comerciante — terminou Na­dina. — Não nos surpreenderia. É o que sempre foi: um excelente comerciante. Soube organizar o crime tão bem quanto o faria alguém com relação a uma fábrica de botas. Sem comprometer-se, foi capaz de planejar e dirigir, em todos os ramos da "profissão", uma série de coups estupendos. Roubos de jóias, sabotagens, falsificações de assinaturas, es­pionagem (trabalho mais rendoso durante a guerra), assassínios cometidos em surdina, quase nada lhe escapou do campo de ação. Inteligentíssimo, sempre descobre o ponto a que pode chegar. A brincadeira está se tornando muito pe­rigosa? É o momento de, dignamente, bater em retirada — levando consigo uma fortuna incalculável!

— Humm... — murmurou o conde com ar de dúvi­da. — É simplesmente desconcertante para todos nós. Esta­mos, por assim dizer, em uma situação indesejável.

— Mas... somos pagos regiamente.

Algo, o tom irônico quase imperceptível, talvez, e o sorriso estranho nos lábios da jovem, despertou a curiosida­de do rapaz. Mas, diplomaticamente, ele nada deixou perce­ber, e continuou:

— Sim, o Coronel sempre foi generoso. A essa quali­dade atribuo grande parte do seu êxito, como também à ca­pacidade de conseguir um bode expiatório apropriado ao momento. É muito inteligente, não se pode negar, muito inteligente! E apóstolo do aforismo "Quem deseja uma coisa bem-feita manda outro em seu lugar!" Por isso aqui esta­mos, você e eu, inculpados até a alma e sob o domínio abso­luto desse homem, sem que nenhum de nós tenha sequer uma prova contra ele.

Fez uma pausa, como à espera de que a moça discor­dasse, mas ela continuou calada, ainda a sorrir para si mesma.

— Nenhum de nós — sussurrou o conde. — Além disso, você sabe, o velho é supersticioso. Há alguns anos, foi tirar a sorte. A cartomante não só lhe profetizou uma vida repleta de êxitos, como também que a sua ruína lhe adviria de uma mulher.

Despertado o interesse, Nadina olhou-o com vivacidade.

— É esquisito, muito esquisito! De uma mulher?

O conde sorriu, encolhendo os ombros.

— Agora está aposentado... com certeza vai casar-se, provavelmente com uma jovem bonita, pertencente à socie­dade, e que esbanjará os seus milhões em muito menos tem­po do que o que ele levou para adquiri-los.

A dançarina sacudiu a cabeça.

— Não e não, não vai ser assim. Ouça, meu amigo, sigo amanhã para Londres.

— E o contrato aqui em Paris?

— Pretendo ausentar-me apenas por uma noite. Viaja­rei incógnita, como os membros da realeza. Ninguém jamais saberá que saí da França. Adivinha o motivo da minha ida?

— Para divertir-se, evidentemente... Nesta época do ano — estamos em janeiro —, quando o nevoeiro é mais intenso! Deve haver alguma coisa atrás disso, hein?

— Exatamente. — Levantando-se, Nadina foi postar-se defronte do rapaz. Nas linhas graciosas de seu corpo trans­pareciam arrogância e altivez. — Você acabou de dizer que nenhum de nós nada poderá provar contra ele. Pois está muito enganado. Eu posso. Eu, uma simples mulher, tenho agido com inteligência, sim, e com coragem — sei que é preciso coragem — para conseguir ludibriá-lo. Lembra-se dos diamantes de De Beers?

— Lembro-me, sim. Não foi em Kimberley, pouco antes de estourar a guerra? Nada tive com a história, como também nada soube acerca dos pormenores; por esta ou aque­la razão, abafaram o caso, não é isso mesmo? Rendeu uma bela bolada...

— Diamantes no valor de cem mil libras. Eu e mais uma pessoa fomos destacadas para trabalhar no caso — sob as ordens do Coronel, evidentemente. Era a minha oportu­nidade. Veja, o plano consistia em substituir alguns dos dia­mantes de De Beers por amostras trazidas da América do Sul. Por coincidência, achavam-se em Kimberley, nessa oca­sião, dois exploradores de minas. A suspeita, forçosamente, tinha de recair sobre eles.

— Bem pensado — interrompeu o conde, dando sinais de aprovação.

— O Coronel age sempre com inteligência. Pois bem, além de executar a minha parte, desempenhei mais uma, não prevista pelo velho. Fiquei com alguns diamantes sul-americanos — um ou dois deles são raros —, e fácil será provar não terem passado pelas mãos de De Beers. A posse das pe­dras torna-me possível controlar o meu estimado chefe. Assim que os dois moços forem postos em liberdade, a suspeita só poderá recair sobre o Coronel. Durante todos esses anos, nunca mencionei o fato, mas alegra-me saber que possuo esse trunfo de reserva; agora as coisas mudaram. Exigirei o meu preço — será enorme, arrasador.

— Extraordinário — disse o conde. — Sem dúvida, traz sempre os diamantes com a senhora?

E o rapaz percorreu o camarim com olhar indiferente. Nadina riu baixinho.

— Nem por sombra! Não sou tola... Estão em lugar seguro, onde a ninguém, nem mesmo em sonho, ocorrerá procurá-los.

— Nunca pensei que fosse tola, senhora, mas permita-me a ousadia de dizer-lhe que a considero bastante impru­dente. O Coronel não é dos que se deixam extorquir. Sabe disso muito bem.

— Não tenho medo dele — respondeu rindo. — Em toda a minha vida só temi um único homem — mas ele já morreu.

O moço encarou-a cheio de curiosidade.

— Esperemos que não ressuscite — observou em tom despreocupado.

— Que quer dizer com isso? — exclamou a bailarina imediatamente.

O conde lançou-lhe um olhar em que transparecia sur­presa.

— Apenas que a ressurreição a deixaria em maus len­çóis — explicou. — Seria brincadeira de mau gosto.

Nadina deu um suspiro de alívio.

— Oh! não, não há perigo! Ele morreu durante a guerra. Andou apaixonado por mim.

— Na ocasião em que estava na África do Sul?

— Já que pergunta, é isso mesmo, na África do Sul.

— Você nasceu lá, não foi?

A bailarina concordou com um aceno de cabeça. Le­vantando-se, o visitante pegou o chapéu.

— Pois bem — disse —, quem entende melhor dos seus negócios é você; mas, em seu lugar, eu sentiria muito mais medo do Coronel do que de qualquer amante desi­ludido.

Nadina riu com desprezo.

— Como se eu não o conhecesse, depois desses anos todos!

— Será? — perguntou o conde com voz suave. — Gos­taria muito de saber se é realmente assim.

— Oh! já disse que não sou tola! E, além disso, não sou a única nesse negócio. Amanhã, aporta em Southampton um navio que vem da África do Sul; um dos passageiros veio da África exclusivamente a meu pedido; foi quem executou minhas ordens. O Coronel terá, portanto, de haver-se não com uma, mas com duas pessoas.

— Acha isso aconselhável?

— É necessário.

— Confia nesse homem?

O rosto da bailarina iluminou-se num sorriso.

— Sem restrição. É ineficiente, mas digno de abso­luta confiança. — Fez uma pausa e, num tom de voz indife­rente, acrescentou: — Acontece que ele é meu marido.

 

Não posso mais recusar-me a escrever esta história. Os insistentes pedidos partem não só de pessoas de destaque — Lorde Nasby, por exemplo — como de criaturas humildes — haja vista Emily, minha ex-empregada. Por sinal, encontrei-a na Inglaterra, quando lá estive a última vez. Correu ao meu encontro exclamando: "Meu Deus! senhorita. Dá um livro lindo! Até parece fita de cinema!"

Reconheço possuir certa aptidão para essa classe de trabalho. Desde o início, fiz parte integrante do caso, das suas partes primordiais, e dele saí vitoriosa, "por cima", até o final. O diário escrito por Sir Eustace Pedler — posto à minha inteira disposição — ser-me-á de grande valia; len­do-o, poderei preencher as lacunas existentes, advindas de fatos que não chegaram ao meu conhecimento.

Comecemos, então. Anne Beddingfield passa a narrar suas aventuras.

Levo vida horrivelmente monótona, eu que sempre so­nhei com aventuras. Meu pai, o Professor Beddingfield, foi, na Inglaterra, uma das maiores autoridades contemporâneas em assuntos concernentes ao homem primitivo. Um gênio, realmente — ninguém duvida disso. Visto seu espírito habi­tar as eras paleolíticas, era-lhe de suma inconveniência que o corpo vivesse no mundo moderno. Não se preocupava com o homem de hoje e sentia desprezo pelo homem neolítico — simples vaqueiro, no seu entender. Nada aquém do pe­ríodo musteriano poderia interessá-lo.

Infelizmente, não podemos prescindir por completo do homem moderno. Somos obrigados a manter uma espécie de intercâmbio com açougueiros, padeiros, leiteiros e merceeiros. Eu contava meses de vida quando perdi minha mãe e, com papai imerso no passado, coube-me a tarefa de levar avante o lado prático da vida. Ficaram a meu cargo a maior parte dos trabalhos de datilografia e de revisão do livro que ele escreveu: O homem de Neandertal e seus ancestrais. Falando com franqueza, detesto o homem paleolítico, seja aurignaciano, musteriano, cheliano ou outro qualquer. Sinto verdadeira aversão pelos homens de Neandertal, e penso, com muita freqüência, que é uma felicidade estarem extin­tos desde épocas remotas.

Não sei se papai chegou a perceber a impressão que me causavam. Provavelmente nem desconfiou; mas, de qualquer maneira, isso não o interessaria. A opinião de terceiros era-lhe de todo indiferente, indício, por certo, da sua inteligência superior. Vivia também completamente desinteressado das necessidades da vida cotidiana. Comia tudo o que eu lhe punha no prato, de maneira exemplar; todavia, as questões financeiras mortificavam-no. Nunca tínhamos dinheiro sufi­ciente. A celebridade de que gozava não lhe proporcionava lucros. Apesar de pertencer a quase todas as sociedades im­portantes e de possuir uma série de títulos em seqüência ao nome, o grande público o desconhecia, mal sabendo da sua existência. Os longos livros eruditos que publicou concorre­ram, evidentemente, para aumentar o cabedal do conheci­mento humano, sem contudo exercer atração sobre as mas­sas. Uma única vez foi alvo da atenção geral. Meu pai havia lido, numa sociedade, um trabalho referente aos filhotes dos chimpanzés. Dizia que os seres humanos, na infância, apre­sentam alguns aspectos antropóides, ao passo que os filhotes dos chimpanzés aproximam-se muito mais intimamente do ser humano do que os chimpanzés adultos. Assim sendo, pa­recia querer demonstrar que não só nossos ancestrais eram mais símios do que nós, como também que os ancestrais dos chimpanzés pertenciam a um tipo mais elevado que as espé­cies atuais — por outras palavras, o chimpanzé é um dege­nerado. O Daily Budget, arrojado matutino, sempre à esprei­ta de um estimulante para o público, imprimiu a notícia em letras garrafais: "Não descendemos dos macacos; são os ma­cacos que descendem de nós. Eminente professor afirma que os chimpanzés são seres humanos em decadência". Nesse mesmo dia, apareceu em casa um repórter. Tencionava indu­zir meu pai a escrever uma série de artigos populares sobre a teoria que expusera. Raras vezes tive oportunidade de vê-lo tão zangado. Pôs o rapaz porta afora, sem a menor cerimô­nia, o que me causou profunda tristeza, visto estarmos, na­quela ocasião, com o dinheiro bastante escasso. Por um mo­mento, pensei em sair correndo atrás do jovem e avisá-lo de que meu pai estava disposto a enviar os artigos, pois mudara de opinião. Ser-me-ia muito fácil escrevê-los, e, como papai não era leitor do Daily Budget, provavelmente jamais ficaria sabendo da transação. Contudo, abandonei o projeto, por achá-lo arriscado; então, coloquei na cabeça o meu melhor chapéu e saí tristemente em direção da aldeia, onde tencio­nava conseguir uma entrevista com o merceeiro, que, com toda a razão, andava furioso.

O repórter do Daily Budget foi o único jovem a apare­cer em casa.

Havia momentos em que eu invejava Emily, a empregadinha; todas as vezes em que a ocasião se apresentava, "saía a passeio" com um marinheiro alto e espadaúdo — o noivo. Nos intervalos, para "não perder o costume", segundo dizia, passeava com um verdureiro jovem ou com o ajudante do farmacêutico. Punha-me a cismar, imersa na tristeza de não ter com quem "não perder o costume". Os amigos de meu pai eram professores de meia-idade, de longas barbas. Uma ocasião — confesso —, o Professor Peterson, depois de segurar-me delicadamente, deu-me tapinhas amistosos, di­zendo que eu tinha "cinturinha bem-feita", e, nesse momen­to, tentou beijar-me. A frase foi suficiente para que, irrevogavelmente, o classificasse de velho. No tempo em que eu ainda era criança de colo, já mulher nenhuma que se prezas­se gostaria de ouvir frase semelhante. Estava condenada a levar vida insípida, eu que ansiava por uma existência de aventuras, cheia de amor e romantismo.

Existia, na aldeia, uma biblioteca repleta de livros de ficção, estraçalhados. Deleitavam-me aquelas páginas reple­tas de amor e de aventuras arriscadas. À noite, sonhava com valentes rodesianos silenciosos e homens muito fortes que, "de um só golpe, punham o adversário por terra". Na aldeia, porém, ninguém era capaz de "pôr por terra" o adversário com diversos golpes, quanto mais com um.

O cinema apresentava semanalmente um episódio do filme Pamela corre perigo. Pamela, belíssima mulher, desconhecia o medo. Saltava de aeroplanos, praticava façanhas no interior de submarinos, escalava arranha-céus, conseguia insinuar-se no mundo do crime sem que um único fio de cabelo lhe saísse do lugar. Contudo, não devia ser muito inteligente. O chefe de polícia acabava fatalmente por agarrá-la, mas, como parecia avesso à idéia de desferir-lhe forte pancada na cabeça, achava preferível condená-la à morte, por asfixia, numa câmara de gás, ou por outro meio incrível e original. No início do episódio seguinte, o herói conseguia salvá-la. Eu deixava o cinema com a cabeça numa zonzeira... Uma vez, ao chegar a casa, encontrei um aviso da companhia de gás notificando-nos do atraso no pagamento das contas!

E, embora o ignorasse, o transcorrer dos segundos apro­ximava-me cada vez mais da aventura.

Haverá muita gente que jamais ouviu falar da desco­berta de um crânio muito antigo, encontrado na Mina da Montanha Partida, situada no norte da Rodésia. Certa ma­nhã, deparei com papai, muito agitado, quase apoplético. Em poucos instantes pôs-me a par da história.

— Compreendeu, Anne? Tem certas semelhanças com o crânio de Java, mas são superficiais — apenas superficiais. Agora, posso comprovar a minha hipótese: a forma ancestral da raça de Neandertal. Você garante que o crânio de Gibraltar é realmente o mais antigo que se encontrou até hoje? Por quê? A África foi o berço da raça. De lá, passaram para a Europa...

— Não ponha geléia no arenque — disse eu depressa, segurando a mão do meu distraído pai. — O que é que o senhor estava dizendo?

— Que se transferiu para a Europa...

De repente parou, como se estivesse com uma pequena crise de sufocação; sofria, apenas, a conseqüência de um bocado imoderado de arenque.

— Temos que partir imediatamente — afirmou, quan­do se levantava após terminar a refeição. — Não podemos perder tempo. Precisamos chegar o mais depressa possível. Podem-se fazer descobertas incalculáveis nos arredores. In­teressa-me saber se os utensílios são típicos do período musteriano — deve haver remanescentes do boi primitivo, mas não do rinoceronte lanuginoso. Sim, é preciso que um

pequeno exército siga imediatamente. E nós, antes dele. Quer escrever uma carta, hoje, para a Agência Cook, Anne?

— E o dinheiro, papai? — sugeri com delicadeza. Ele lançou-me um olhar reprovador.

— O modo como você encara os fatos deixa-me depri­mido, minha filha. Não podemos ser egoístas. Não, não, em se tratando da ciência, não podemos ser egoístas.

— É provável que a Cook seja, papai. A aflição transparecia no seu rosto.

— Anne, faça o pagamento à vista.

— Não temos dinheiro em caixa, papai. Dessa vez o velho exasperou-se.

— Minha filha, não quero, de maneira alguma, aborre­cer-me com pormenores vulgares sobre dinheiro. O banco... ontem, recebi uma carta do administrador; tenho vinte e sete libras a receber.

— Suponho que se trate do saque a descoberto.

— Ah! Lembrei-me de uma coisa! Escreva aos meus editores!

Concordei, sem muito entusiasmo. Os livros que meu pai escrevia lhe proporcionavam mais glória do que dinheiro.

Fiquei contentíssima com o projeto da viagem à Ro­désia.

— Homens calmos e corajosos — murmurei, em êxtase, para mim mesma. Olhando para meu pai, notei, de repente, algo inusitado na sua aparência.

— Que botas esquisitas, papai! — disse-lhe. — Tro­que a bota marrom pela preta. E não vá se esquecer do ca­checol; está muito frio.

Daí a instantes, ele saía de casa, com as botas certas e bem agasalhado.

Nesse dia, voltou tarde, e com desespero verifiquei que não trazia cachecol nem sobretudo!

— Caramba! Anne, tem toda a razão. Tirei-os antes de entrar na caverna. Não queria sujá-los.

Foi a caverna de Hampsley, situada nos arredores da aldeia, o motivo principal que nos induziu a fixar residência em Little Hampsley. Tratava-se de uma gruta — opulenta depositária de remanescentes da cultura aurignaciana. Exis­tia, na aldeia, um pequenino museu onde o administrador e papai passavam a maior parte do dia. Ficavam remexendo a caverna e dali subiam com fragmentos de um rinoceronte lanuginoso ou de algum urso da caverna.

Papai tossiu muito durante a noite inteira; na manhã seguinte, estava febril, motivo por que mandei chamar o médico.

Coitado! Nunca teve uma oportunidade na vida. Quatro dias depois, morria de pneumonia dupla.

 

Apalermada como estava, fiquei gratíssima a toda aque­la gente tão boa. A dor que senti não foi profunda, confesso, pois papai — bem o sabia — nunca me dedicara afeto. Caso contrário, eu teria retribuído. Não, entre nós não existira afeição; era, apenas, como se pertencêssemos um ao outro. Sua cultura, e o devotamento inflexível pela ciência, causa­vam-me íntima admiração. Magoava-me saber que ele dei­xara de existir no momento exato em que atingia o ponto culminante, o motivo primordial de interesse da sua vida. Sentir-me-ia mais feliz se ao menos houvesse a possibilidade de sepultá-lo numa gruta, ornada de utensílios de pedra e figuras de renas pintadas nas paredes; mas, graças ao poder da opinião pública, seu corpo repousa numa alva tumba (com laje de mármore), no horrendo cemitério local. As palavras confortadoras do pastor, embora ditas com boa intenção, de nada me valeram.

Custou-me algum tempo chegar à evidência de que o meu maior desejo — a conquista da liberdade — por fim se realizara. Era órfã e praticamente sem vintém, mas livre, afinal.

Nessa ocasião pude avaliar a bondade daquela gente simples. Insistente, o pastor procurava persuadir-me da ne­cessidade urgente de encontrar alguém que pudesse auxiliar sua esposa nos trabalhos domésticos. De repente, a peque­nina biblioteca local decidiu contratar uma assistente de bi­bliotecária. Por fim, recebi a visita do médico. Após vários pedidos de desculpas, verdadeiramente ridículas, a respeito da conta, começou a gaguejar e, intempestivamente, insinuou que deveríamos nos casar.

A proposta causou-me espanto. O médico estava mais próximo dos quarenta do que dos trinta e, além disso, sua figura assemelhava-se a uma barriquinha. Nada na sua pes­soa lembrava o herói de Pamela corre perigo, quanto mais os rodesianos fortes e silenciosos. Depois de um minuto de reflexão, acabei por perguntar-lhe por que desejava casar-se comigo. Bastante confuso, murmurou que a esposa representa auxílio de grande valia ao médico de clínica geral. A situação tornara-se ainda menos romântica; não obstante, algo impe­lia-me a aceitar o pedido de casamento. Oferecia-me segu­rança e um lar confortável. Pensando agora no caso, acredito ter sido injusta com o homenzinho. Estava sinceramente apaixonado, mas uma excessiva delicadeza de sentimentos impedia-o de tocar no assunto. De qualquer maneira, as minhas idéias românticas rebelavam-se.

— É muita bondade sua — respondi. — Mas é impos­sível. Só me casarei com o homem a quem vier a amar com loucura.

— Não acha... ?

— Não, não acho — respondi com firmeza. O médico suspirou.

— Mas, minha filha querida, o que pretende fazer?

— Aventurar-me pelo mundo — afirmei, sem a menor hesitação.

— A senhorita ainda é muito criança. Não com­preende...

— As dificuldades de ordem prática? Compreendo-as, sim, doutor. Não sou uma estudante sentimental — mas uma mulher briguenta, mercenária e de cabeça dura! Se nos ca­sássemos, o senhor ficaria sabendo!

— Gostaria que reconsiderasse...

— É impossível.

O homenzinho tornou a suspirar.

— Vou fazer-lhe outra proposta. Minha tia, que mora no País de Gales, está precisando de uma jovem que a ajude nos trabalhos caseiros. Que acha?

— Não, doutor, vou para Londres. Se acontecem coisas por toda parte, por que não acontecerão em Londres tam­bém? Vou ficar de olhos bem abertos — o senhor terá opor­tunidade de verificar —, alguma coisa há de acontecer! A próxima vez que ouvir falar em mim, será por notícias vin­das da China ou de Timbuctu.

Recebi, a seguir, a visita de Mr. Flemming, procurador de papai, que residia em Londres. Antropólogo entusiasta, sentia grande admiração pelos livros que meu pai escrevera. Magro e alto, tinha o rosto alongado e cabelos grisalhos. Quando entrei na sala, levantou-se e, tomando-me ambas as mãos entre as suas, começou a dar-lhes pancadinhas afe­tuosas.

— Coitadinha! — disse. — Coitadinha, coitadinha! Inconsciente da minha própria hipocrisia, simulei o comportamento de uma órfã desolada, porque sob a suges­tão de suas palavras fui forçada a assim proceder. Bondoso, afável e paternal, considerava-me — não me restava a menor sombra de dúvida — uma perfeita sonsinha, desorientada frente ao mundo perverso. Desde o primeiro instante, senti a inutilidade de querer convencê-lo do contrário. O fio da conversa fez-me mudar de opinião.

— Filhinha, está em condição de prestar atenção? Queria esclarecê-la sobre alguns pontos.

— Oh! estou.

— Como sabe, seu pai foi uma pessoa de muito valor. A posteridade dirá. Só que não entendia muito de negócios.

Ciente eu estava, tanto ou mais do que o próprio Mr. Flemming; nada disse, porém. Ele continuou:

— Suponho que não conheça grande coisa desses assun­tos. Procurarei explicar-lhe da maneira mais simples possível.

E a explicação, longa e desnecessária, resumia-se no se­guinte: eu receberia, para enfrentar as despesas, a quantia de oitenta e sete libras, dezessete xelins e quatro pence, a meu ver, montante pouco satisfatório. Um tanto agitada, aguardei a seqüência da conversa, temerosa de que o advo­gado tivesse uma tia na Escócia, necessitada da companhia de uma jovem inteligente que a auxiliasse nos trabalhos do­mésticos. Mas, pelo jeito, não tinha.

— A dúvida — prosseguiu — é a respeito do seu futu­ro. Creio que não tem parentes...

— Sou sozinha no mundo — respondi. Como a situa­ção se assemelhava a fita de cinema!

— E relações de amizade?

— Todos foram muitos gentis comigo — respondi,

comovida.

— Quem não o seria com uma pessoa tão jovem e encantadora? — continuou Mr. Flemming, em tom galante.

— Muito bem, minha filha, muito bem; vamos ver o que se pode fazer. — Hesitou por uns instantes, dizendo depois: — Suponhamos... Que tal a idéia de passar uns tem­pos conosco?

Agarrei a oportunidade com unhas e dentes. Londres! A terra dos grandes acontecimentos!

— O senhor é muito amável — respondi. — Posso ir mesmo? Só enquanto estiver procurando emprego; preciso ganhar a vida, sabe?

— Sim, está certo, minha filha. Compreendo perfeita­mente. Vamos procurar alguma coisa... que convenha.

Senti, instintivamente, que o procurador de papai e eu divergíamos bastante quanto ao conceito da frase "alguma coisa que convenha"; sendo, porém, o momento inoportuno, não dei expansão ao meu ponto de vista.

— Então, está combinado. Quer ir hoje, comigo?

— Oh, muito obrigada, Mr. Flemming, mas...

— Minha mulher vai ficar contentíssima em recebê-la. Será que os maridos conhecem realmente as esposas tão bem quanto julgam? Tenho certas dúvidas. Se fosse ca­sada, acharia detestável que meu marido levasse órfãs para casa, sem antes me consultar.

— Passaremos um telegrama na estação — continuou o advogado.

Em pouco tempo arrumei a mala — a roupa não era muita — e os objetos de uso pessoal. Antes de pôr o cha­péu, olhei-o tristemente. A princípio, chamava-o de "Mary"; o apelido me ocorrera pelo fato de assemelhar-se aos que costumam usar as empregadinhas nos seus dias de folga — toas, agora, nem isso!... Tornara-se uma coisa flácida, de abas despencadas. Um dia, num momento de inspiração genial, dei-lhe um soco, dois puxões, apertei a copa em diversos pontos e, por fim, acrescentei-lhe um enfeite, semelhante a uma cenoura, algo com que poderia sonhar um pintor cubista. O resultado revelou-se muito chique. Agora, depois de reti­rar a cenoura, é claro, desfiz o resto do trabalho anterior. Mary recobrou a primitiva aparência, um pouco mais flácida, talvez. Acredito que eu apresentasse um verdadeiro aspecto de órfã, segundo a concepção popular. Agia como um autô­mato, nervosa ao pensar na recepção que me faria Mrs. Flem­ming, esperando, ao mesmo tempo, que minha aparência viesse, possivelmente, em meu socorro.

Quando subíamos a escada do casarão situado numa sossegada praça de Kensington, constatei que o advogado também estava nervoso. A esposa cumprimentou-me alegre­mente. Era alta, com um ar sereno; enfim, classificava-se entre o tipo das "boas esposas e mães". Conduziu-me a um quarto imaculadamente limpo, forrado de fazenda estampa­da. Esperava, disse-me, que estivesse tudo em ordem, e, depois de avisar-me de que, dentro de quinze minutos mais ou menos, o chá seria servido, saiu, deixando-me entregue aos meus próprios pensamentos.

Quando entrou no salão do primeiro andar, abaixo do meu, percebi leve alteração na sua voz.

— Mas, que diabo, Henry, por que... — Perdi o restante da frase, porém o tom acre não me deixava dúvida. Alguns minutos após, chegou-me aos ouvidos outra frase, dita com mais azedume:

— Concordo com você! Ela é muito bonita!

Esta vida é engraçada. As mulheres belas recebem amabilidades dos homens; as que não o são recebem-nas das ou­tras mulheres.

Com um profundo suspiro, continuei a pentear os ca­belos, que, por sinal, são muito bonitos. Negros — muito negros, e não castanho-escuros —, nascem no alto da testa, caindo sobre as orelhas. Com mãos impiedosas, repuxei-os para cima da cabeça. Sei que, atualmente, falar em orelhas é démodé; mas as minhas são perfeitas. Isso fez-me lembrar as "pernas da rainha da Espanha", na época da mocidade do Professor Peterson. Após terminar o penteado, asseme­lhava-me incrivelmente a essas órfãs que saem, em fila, pelas ruas, de touquinha amarrada sob o queixo e agasalhadas numa capa vermelha.

Quando desci, observei o olhar bondoso com que Mrs. Flemming fitou-me as orelhas descobertas. O marido parecia perplexo. Tive certeza de que dizia com os seus botões: "O que é que essa menina fez?

De modo geral, o resto do dia transcorreu sem novida­des. Havíamos combinado que eu sairia imediatamente à procura de emprego.

Antes de deitar-me, postei-me diante do espelho, a observar cuidadosamente o rosto. Seria bonita realmente? Fa­lando com franqueza, não ousava afirmá-lo! O nariz não era de linhas clássicas, nem os lábios como botão de rosa; enfim, não fora dotada dos requisitos de beleza necessários para merecer o qualificativo de bela. Um dia, lembro-me bem, o auxiliar do pastor disse serem meus olhos como "raios de sol prisioneiros num bosque negro, negro" — mas esses jovens auxiliares de pastor lançam a esmo as numerosas citações que sabem de cor. A meu ver, os olhos azuis são mais boni­tos do que os verdes salpicados de pontinhos amarelos. Ape­sar disso, o verde é a cor adequada a quem anda à cata de aventuras.

Vesti um traje preto, bem ajustado ao corpo, que me desnudava os braços e o colo. Escovei os cabelos; penteei-os de modo que encobrissem as orelhas. Espessa camada de pó-de-arroz deu à minha pele uma tonalidade bem mais clara. Difícil foi encontrar o óleo medicinal para lábios ressequi­dos, que apliquei generosamente sobre os meus. Os olhos não ficaram esquecidos: passei nas pálpebras pó de rolha queimada. Finalmente, com uma fita vermelha a enfeitar-me o ombro nu, uma pena rubra espetada nos cabelos, ci­garro no canto da boca, dei por terminada a toilette. O re­sultado foi muito do meu agrado.

— Anne, a Aventureira! —- exclamei, inclinando-me diante do espelho. — Anne, a Aventureira! Primeiro capí­tulo: A casa de Kensington!

As jovens não passam de umas tolinhas.

 

As semanas seguintes foram simplesmente tediosas. Mrs. Flemming e as amigas afiguravam-se-me desinteressantíssimas. Durante horas, falavam de si mesmas, dos filhos e das dificuldades em conseguir leite de boa qualidade para as crianças. Repisavam as reclamações feitas ao leiteiro, no caso de ser indesejável o produto. Discorriam, em seguida, sobre as criadas e quão difícil se tornava conseguir alguém cujo trabalho as satisfizesse! Vinha depois a repetição do diálogo travado com a funcionária da agência. Creio que não liam jornais ou então se desinteressavam por completo dos acon­tecimentos mundiais. Não apreciavam as viagens — na In­glaterra era tudo tão diferente... A Ri viera, sim, valia a pena; encontravam-se todos os amigos por lá.

Eu ouvia, mas custava conter-me. Quase todas essas senhoras eram ricas. Poderiam, se lhes aprouvesse, percorrer este mundo tão cheio de beleza; no entanto, deleitavam-se em permanecer deliberadamente em Londres — sempre tristonha e monótona —, a discorrer sobre leiteiros e cria­dos! Volvendo os olhos ao passado, penso que, naquela oca­sião, talvez eu tivesse sido um tanto intolerante. Elas, por sua vez, eram tolas — tolas até na escolha das tarefas diá­rias: a maior parte delas fazia a contabilidade doméstica de forma inapropriada e confusa.

Meus negócios não progrediam com muita rapidez. Vendidas a casa e a mobília, recebi a exata quantia com que saldar as dívidas. Além disso, ainda não tinha conseguido emprego, coisa, aliás, pouco do meu agrado. Estava con­victa de que, se saísse em busca de aventura, ela viria ao meu encontro até a metade do caminho. Sempre conseguimos o que desejamos — eis minha teoria. Pouco faltava para pô-la em prática.

Estávamos em princípios de janeiro — no dia 8, para ser exata. Foi quando li um anúncio no jornal. Referia-se a uma senhora interessada em contratar uma dama de com­panhia. Os entendimentos malograram porque, na realidade, ela necessitava dos serviços de uma robusta arrumadeira, capaz de labutar doze horas por dia, a vinte e cinco libras anuais. De ambas as partes, a despedida revestiu-se de ve­lada impolidez. Desci a Edgware Road — o senhora residia em St. John's Wood —, atravessei o Hyde Park em direção ao Hospital St. George. Aí, entrei na Estação de Hyde Park do metrô e adquiri um bilhete para a Gloucester Road.

Pus-me a percorrer a plataforma em toda a sua exten­são. Dotada de espírito indagador, desejava saber se os dois túneis eram inteiriços ou se havia uma abertura logo depois da estação, do lado da Down Street. Fiquei contentíssima, embora o motivo fosse de somenos importância, ao verificar que tudo era como realmente eu imaginara. A estação estava praticamente vazia; na extremidade da plataforma, apenas um homem e eu. Ao passar por ele, espirrei. Não suporto o cheiro de naftalina! Com certeza, seu pesado sobretudo esta­va impregnado desse odor desagradável. A maioria dos ho­mens começa a usar agasalhos antes de janeiro, e, em con­seqüência, o cheiro já devia ter desaparecido. De pé, muito perto do túnel, ele parecia perdido em pensamentos. Sem mostrar-me incivil, pude então observá-lo atentamente. Baixo e magro, de pele morena, tinha olhos azuis e barba preta, não muito longa.

Acaba de chegar do exterior, deduzi. Por isso o sobre­tudo exala tão forte odor de naftalina. Veio da índia. Usa barba, portanto não é militar. Talvez seja proprietário de alguma plantação de chá.

Nesse momento, o homem voltou-se, como se tencionasse percorrer a plataforma. Fitou-me de relance; depois, dirigiu o olhar para alguma coisa que se encontrava por trás de mim e, então, suas feições alteraram-se desfiguradas pelo medo, próximo do terror. Retrocedeu um passo, como se, involuntariamente, quisesse fugir de algum perigo. Es­quecido porém do local em que se achava, caiu da plata­forma. Instantes depois, vivido clarão iluminou os trilhos e alguma coisa, estalando, fendia-se. Dei um grito. Pessoas acorreram. Como por magia, surgiram dois funcionários da estação, prontos para tomar as providências que o caso re­queria.

Eu continuava no mesmo lugar, pregada ao solo por uma espécie de terrível encantamento. O acidente amedrontou-me, mas ao mesmo tempo observava fria e calmamente como procediam à retirada do homem de cima dos trilhos elétricos e o colocavam na plataforma.

— Sou médico, deixem-me passar, por favor.

Um homem alto, de barba castanha, atravessou a mul­tidão e, passando perto de mim, curvou-se sobre o corpo imóvel do ferido.

Enquanto o examinava, estranha sensação de irreali­dade apossou-se do meu ser. Aquilo tudo era irreal — não podia deixar de ser. Por fim, o médico levantou-se e abanou a cabeça.

— Está morto. Nada há que fazer.

Como todos os presentes se tivessem aglomerado junto do acidentado, um carregador, elevando a voz, disse em tom tristonho:

— Querem se afastar, por favor? Que estão fazendo aqui?

Sufocada por súbita náusea, voltei-me e, correndo, subi às cegas a escadaria que levava ao elevador. Sentia todo o horror da cena a que acabara de assistir e ansiava por respirar desafogadamente ao ar livre. Na minha frente ca­minhava o médico que, há pouco, fizera o exame do cadáver. O elevador estava prestes a subir. Para não perdê-lo, o ho­mem disparou numa corrida. Foi quando lhe caiu do bolso um pedaço de papel.

Parei, apanhei-o e segui no seu encalço. Fecharam-se as grades do elevador e lá fiquei com o papel na mão. Subi no seguinte, mas na rua não encontrei sinal do médico. Fiz votos para que a perda do papel não lhe trouxesse transtor­nos, e pela primeira vez pus-me a examiná-lo. Era meia fo­lha de um caderninho de notas, com números e palavras ra­biscadas a lápis, mais ou menos assim:

 

17.122  Castelo de Kilmordem

 

Pelo jeito, parecia não ter a menor importância. Assim mesmo, hesitei em desfazer-me dele. Continuava a segu­rá-lo, quando, involuntariamente, franzi o nariz. Naftalina outra vez! Aspirei-o novamente. Sem dúvida, provinha dali o forte odor. Mas então...

Guardei-o na bolsa, bem dobradinho. Sem pressa, pus-me a caminhar, a cabeça fervilhando de pensamentos.

A Mrs. Flemming expliquei que, transtornada por haver presenciado um terrível acidente na estação do metrô, pre­feria subir diretamente para o quarto. A boa mulher insistiu em que eu tomasse uma xícara de chá. Logo mais, a sós com meus pensamentos, tratei de executar o plano idealizado durante o trajeto da volta. Queria deslindar a causa daquela curiosa sensação de irrealidade que se apossara do meu ser enquanto o médico procedia ao exame do cadáver. Em primeiro lugar, deitei-me no soalho, procurando imitar a posição do morto. Levantei-me, repeti a operação, mas dessa vez com almofadas. Comecei então a reproduzir da maneira mais aproximada possível os movimentos e gestos do médico. E assim acabei descobrindo o que me intrigava. Sentada no chão, franzi os sobrolhos para a parede fronteira.

Os jornais da tarde publicaram breve notícia a respeito da morte de um homem ocorrida numa estação do metrô. Dizia pairar dúvida quanto a ser suicídio ou acidente. Eu tinha, pois, um dever a cumprir. Mr. Flemming, após ouvir minha história, concordou plenamente comigo.

— Com certeza vai ser chamada para depor. Garante que ninguém mais presenciou o acidente?

— Garantir não posso, mas tive a impressão de que alguém vinha atrás de mim; de qualquer maneira, não podia estar tão perto quanto eu.

Aberto o inquérito, Mr. Flemming acompanhou-me à. polícia. Temia que eu estivesse passando por grande pro­vação. Para não o desapontar, procurei disfarçar minha se­renidade.

O morto foi identificado como L. B. Carton. Encon­traram em seus bolsos apenas um bilhete de uma imobiliária, autorizando-o a ver uma casa em Marlow, situada à margem do rio. A ordem fora expedida em nome de L. B. Carton, Russel Hotel. Um funcionário da portaria não só o identi­ficou, como esclareceu ter a vítima chegado na véspera, registrando-se com o nome de L. B. Carton, procedente de Kimberley, África do Sul. Desembarcara pouco antes, evi­dentemente.

— Acha que foi acidente? — perguntou-me o juiz.

— Tenho certeza. Alguma coisa assustou-o e, impen­sadamente, deu um passo para trás, sem saber o que fazia.

— E por que se assustou?

— Não sei. Mas assustou-se. Deu-me a impressão de estar louco de medo.

Um estólido jurado lembrou haver pessoas que ficam apavoradas à vista de um gato. Talvez o homem tivesse visto um. A sugestão não me pareceu muito brilhante, mas foi levada em consideração pelos colegas, obviamente impa­cientes para regressarem aos seus lares e satisfeitíssimos por poderem dar o veredicto de acidente.

— É esquisito! — disse o juiz. — O médico que exa­minou o cadáver pela primeira vez não apareceu até agora! Constitui irregularidade não terem tomado seu nome e en­dereço.

Sorri interiormente; já havia elaborado minha própria teoria a respeito. Em vista disso, decidi fazer daí a alguns dias uma visitinha à Scotland Yard.

Na manhã seguinte, tive uma surpresa. Os Flemming haviam comprado um exemplar do Daily Budget, que, por certo, devia estar nadando em felicidade.

"seqüência extraordinária do acidente do metrô: mulher estrangulada numa casa solitária."

Li a notícia de um só fôlego:

"Verificou-se ontem, em Marlow, sensacional descober­ta. Foi cometido um crime na Casa do Moinho, propriedade de Sir Eustace Pedler, membro do Parlamento. O homem que se atirou nos trilhos elétricos da Estação de Hyde Park trazia no bolso uma autorização para entrar no prédio, que, no momento, está desalugado. Ontem, encontraram no andar superior da Casa do Moinho uma linda jovem, morta por estrangulamento. O cadáver ainda não foi identificado, mas parece tratar-se de estrangeira. A polícia foi notificada do crime. Sir Eustace Pedler, proprietário da Casa do Moinho, encontra-se na Riviera, onde foi passar o inverno".

 

Ninguém apareceu para identificar o corpo. As inves­tigações trouxeram à luz os seguintes fatos:

No dia 8 de janeiro, à uma hora da tarde, mais ou me­nos Mr. Butler e Mr. Park, corretores de imóveis, com escri­tório em Knightsbridge, receberam a visita de uma cliente. Tratava-se de uma mulher bem-trajada, que se exprimia com leve sotaque estrangeiro. Disse estar interessada em alugar ou comprar uma casa à margem do Tâmisa e de fácil acesso a Londres. Ofereceram-lhe diversas propriedades, inclusive a Casa do Moinho. A jovem declarou chamar-se Mrs. de Castina, residente no Ritz. O nome entretanto não figurava na lista de hóspedes, e os empregados do hotel não identificaram o cadáver.

Mrs. James — a caseira —, mulher do jardineiro de Sir Eustace Pedler, prestou depoimento. Mora num pequeno chalé com frente para a estrada principal. Nessa mesma tarde, cerca das três horas, apareceu uma senhora interessada em ver a casa. Apresentou a autorização fornecida pelos corretores. Mrs. James entregou as chaves à visitante. O chalé situa-se a certa distância da propriedade, e ela não costumava acompanhar os inquilinos em perspectiva. Alguns minutos depois chegou um moço. Segundo a descrição da caseira, tratava-se de um rapaz alto, de ombros largos, quei­mado pelo sol, bem-escanhoado e de olhos cinza-claros. Usa­va terno marrom. Explicou-lhe ser amigo da senhora que estava vendo a casa e atrasara-se por haver parado no cor­reio, onde fora passar um telegrama. A mulher do jardineiro indicou-lhe o caminho e não pensou mais no assunto.

Cinco minutos depois o moço voltou e devolveu-lhe as chaves esclarecendo que a casa talvez não lhes conviesse. Mrs. James não viu a jovem, mas julgou que já tivesse par­tido. Notou, no entanto, o grande nervosismo do rapaz.

"Até parece que viu fantasma. Cheguei a pensar que estava doente."

No dia seguinte, tendo ido um casal ver a casa, encon­trou o cadáver estendido no soalho de uma das salas do andar superior. Mrs. James identificou-o como a pessoa que aparecera no dia anterior. Os corretores também reconhe­ceram "Mrs. de Castina". Segundo o laudo fornecido pelo médico-legista, a jovem morrera há vinte e quatro horas. O Daily Budget chegou à conclusão de que o homem da estação do metrô se suicidara, após cometer o assassínio. Como, porém, sua morte se verificou às duas horas e a da moça às três, a única conclusão lógica possível é a não-existência de conexão entre as duas ocorrências. Portanto, a au­torização encontrada em poder do homem não passava pura e simplesmente de mais uma dessas coincidências tão fre­qüentes.

Voltou à baila a possibilidade de tratar-se de "crime premeditado" contra uma pessoa ou pessoas desconhecidas. A polícia e o Daily Budget também se puseram no encalço do "homem do terno marrom". Mrs. James afirmou que só a jovem estava no interior da casa. Pessoa alguma lá entrara até a tarde do dia seguinte, salvo o moço em questão. Con­clui-se, portanto, ser ele o assassino da infeliz Mrs. de Cas­tina. O criminoso, era evidente, apanhando-a distraída, sem tempo de gritar, estrangulou-a com forte corda negra. A bolsa de seda preta continha quantia elevada, algum dinhei­ro miúdo, fino lenço de renda sem iniciais e a passagem de volta, em primeira classe, para Londres. Resumindo: o caso continuava sem solução.

Foram essas as notícias publicadas pelo Daily Budget, e "Procurem o homem do terno marrom" o seu grito de guerra. Em média, quinhentas pessoas por dia escreviam, comunicando terem obtido êxito em suas investigações. Com isso, os jovens altos e de rosto bronzeado começaram a amal­diçoar a hora em que seus alfaiates os induziram a enco­mendar terno dessa cor. O acidente ocorrido na estação do metrô, mera coincidência, na opinião geral, desvaneceu-se da memória do povo.

Coincidência realmente? Eu não estava tão segura assim. Tinha idéias preconcebidas, é verdade — o incidente ocor­rido na estação era segredo só meu —, mas considerava-o como o ponto de conexão entre os dois casos fatais. Em ambos, além de outras coisas, surgia a figura de um homem de rosto bronzeado pelos raios do sol. Levando em conta essas outras coisas, resolvi tomar o que denominei uma atitude audaciosa. Apresentei-me na Scotland Yard e pedi para falar com a pessoa encarregada do crime da Casa do Moinho.

Demoraram algum tempo em entender o que eu dese­java, pois, inadvertidamente, tinha-me encaminhado para o Departamento de Objetos Perdidos. Finalmente, introdu­ziram-me numa saleta onde me apresentaram ao Inspetor-Detetive Meadows.

Baixo, de cabelos ruivos, classificava-se o Inspetor Meadows entre os tipos que considero supinamente irritan­tes. Um auxiliar seu, também em trajes civis, estava sen­tado discretamente a um canto.

— Bom dia — cumprimentei meio nervosa.

— Bom dia. Faça o favor de sentar-se. Segundo me disseram, a senhorita tem alguma coisa que acredita nos seja útil relatar.

O tom com que me falou significava "algo completa­mente inverossímil". Comecei a irritar-me.

— O senhor com certeza ouviu falar no homem da estação do metrô, não? Aquele que tinha no bolso uma auto­rização para ver a casa em Marlow.

— Ah! — exclamou o inspetor. — Já sei, é Miss Beddingfield, testemunha no inquérito. Sim, o homem trazia uma autorização no bolso. Muitas outras pessoas também podem trazê-la — mas acontece que não foram assassinadas.

Reuni toda a coragem e continuei.

— O senhor não acha esquisito que ele não tivesse passagem?

— Perder a passagem é coisa fácil. Já aconteceu co­migo.

— Nem dinheiro.

— Tinha uns miúdos no bolso da calça.

— E estava sem carteira.

— Alguns homens não costumam trazer dinheiro, nem carteira de espécie nenhuma.

Experimentei dirigir a conversa para outro rumo.

— O senhor não acha esquisito que o médico não se apresentasse até agora?

— É muito natural que médicos ocupados não tenham tempo de ler jornais. Provavelmente já nem se lembra do acidente.

— Realmente, inspetor, o senhor está decidido a não achar nada esquisito — disse suavemente.

— Pois bem, estou começando a pensar que a senhorita está gostando um pouco demais desse termo, Miss Bedding­field. As jovens são românticas, bem sei — apreciam o mistério e outras coisas semelhantes. Mas sou um homem ocupado...

Aceitei a sugestão e levantei-me.

O homem sentado no canto da sala disse em tom hu­milde:

— Que tal se a senhorita nos contasse em poucas pala­vras o que pensa realmente sobre o assunto, inspetor?

O policial concordou imediatamente com a sugestão.

— Vamos, Miss Beddingfield, não quis ofendê-la. A senhorita fez-me perguntas com segunda intenção. Agora, diga apenas a sua opinião sobre o caso.

Vacilei em escolher entre a dignidade ofendida e o pujante desejo de expor minhas teorias. Acabei por mandar às favas a dignidade ofendida.

— A senhorita afirmou, no inquérito, ter certeza de que não foi suicídio?

— Sim, certeza absoluta. O homem estava amedronta­do. Amedrontado por quê? Não por minha causa. Mas na plataforma podia estar caminhando na nossa direção alguém que ele reconheceu.

— A senhorita não viu ninguém?

— Não — respondi. — Não voltei a cabeça. Mas, assim que removeram o cadáver do trilho, um homem, dizendo-se médico, atravessou apressadamente pela multidão e foi examinar o corpo estendido na plataforma.

— Nada vejo de extraordinário — comentou o ins­petor secamente.

— Ele não é médico.

— O quê?

— Não é médico — repeti.

— Como pode saber, Miss Beddingfield?

— É difícil explicar. Durante a guerra trabalhei em diversos hospitais, onde tive oportunidade de presenciar exames feitos em cadáveres. O homem não possuía essa es­pécie de insensibilidade nem a perícia profissional comuns aos médicos. Além disso, geralmente não se ausculta o cora­ção do lado direito do paciente.

— E ele auscultou?

— Sim, embora na ocasião eu não o notasse — mas percebi que alguma coisa estava errada. Chegando a casa, repeti a cena diversas vezes e acabei descobrindo o motivo por que tudo me pareceu tão esquisito.

— Humm... — resmungou o inspetor. Vagarosamen­te, pegou o lápis e uma folha de papel.

— Enquanto deslizava as mãos pela parte superior do corpo do morto tinha oportunidade de tirar-lhe dos bolsos tudo quanto desejava.

— Não me parece provável — disse o inspetor. — Mas... Bem, é capaz de descrever o homem?

— Alto, ombros largos; usava sobretudo escuro, sapa­tos pretos e chapéu-coco. A barba preta terminava em ponta, e trazia óculos com aros de ouro.

— Sem o sobretudo, a barba e os óculos, seria difícil reconhecê-lo — murmurou o inspetor. — Poderá facilmente mudar de aparência e certamente o fará, se se tratar real­mente, como sugeriu a senhorita, de um exímio batedor de carteiras.

Eu não pretendia sugerir nada disso. A partir daquele momento desisti de convencer o inspetor.

— Há mais alguma coisa para contar? — perguntou, quando me levantava para sair.

— Sim — respondi. Aproveitei a oportunidade para disparar o último tiro. — O homem é braquicéfalo, e isso ele não poderá alterar com facilidade.

Observei que a caneta do Inspetor Meadows corria hesitante no papel. Ele não sabia — era evidente — sole­trar a palavra "braquicéfalo".

 

Saí furiosa. Naquele momento, achei fácil tentar resol­ver a etapa seguinte do trabalho. Quando entrei na Scotland Yard, tinha um plano mais ou menos arquitetado, caso mi­nhas informações não dessem resultado satisfatório (e pro­varam ser profundamente insatisfatórias), isto é, caso ti­vesse coragem de ir diretamente ao fim.

Num acesso de cólera, muitas vezes achamos fácil tentar resolver problemas que, em outro estado de espírito, jamais o faríamos. Sem refletir, segui diretamente para a casa de Lorde Nasby, milionário, dono do Daily Budget e de outros jornais. Mas o Daily Budget era o seu filho predileto. Todas as donas-de-casa do Reino Unido conheciam-no como pro­prietário desse matutino. Um guia do horário de trabalho dos homens de projeção no país, publicado recentemente, deu-me a conhecer onde encontrá-lo naquele momento. De­veria estar em casa, ditando para a secretária. Não supunha, claro está, fosse admitida à sua augusta presença uma jovem que por lá aparecesse. Mas já havia pensado sobre isso. Há no vestíbulo da casa dos Flemming uma salva onde vi depositado o cartão de visita do Marquês de Loamsley, um dos mais famosos pares da Inglaterra. Tirei-o e, depois de limpá-lo cuidadosamente com miolo de pão, nele escrevi a lápis o seguinte: "Peço-lhe conceder alguns momentos a Miss Beddingfield". As aventureiras não podem ser muito escrupulosas quanto aos métodos de que se utilizam.

Obtive bom resultado. Um lacaio de peruca empoada recebeu o cartão. Daí a momentos, surgiu um pálido secre­tário e, após luta renhida, o rapaz, vencido, retirou-se para dali a pouco retornar, solicitando-me que o acompanhasse. Ao entrar numa sala ampla, passou por mim um taquígrafo de olhar assustado, qual visitante do mundo dos espíritos. A porta abriu-se e encontrei-me face a face com Lorde

Nasby.

Era um homem corpulento, de cabeça grande, vastos bigodes e ventre volumoso. Bem, minha finalidade não é tecer comentários sobre a barriga de Lorde Nasby, que nesse momento me falava aos gritos:

— Então, que quer dizer isso? Que deseja Loamsley? A senhorita é a secretária dele? O que significa tudo isso?

— Antes de mais nada — respondi, procurando manter aparência de calma absoluta —, não conheço Lorde Loams­ley, e com certeza ele ignora a minha existência. O cartão estava na bandeja da casa de uma família com quem estou passando uns tempos e eu mesma escrevi as palavras que acaba de ler. Precisava vê-lo.

Por alguns instantes imaginei que Lorde Nasby ia ser vítima de um ataque apoplético; por fim, engoliu em seco duas vezes e venceu a crise.

— Seu sangue-frio é admirável. Muito bem, agora a senhorita está me vendo! Se o assunto me interessar, conti­nuará a ver-me por mais dois minutos, exatamente.

— São mais do que suficientes — retruquei. — E o senhor vai interessar-se. É a respeito do mistério da Casa do Moinho.

— Se vai dizer que encontrou o "homem do terno marrom", escreva à seção competente do jornal — atalhou apressadamente.

— Se o senhor continuar a me interromper, terei de ficar além de dois minutos — disse com firmeza. — Não descobri quem é o "homem do terno marrom", mas tenho toda a probabilidade de que isso venha a acontecer.

Fiz uma súmula dos fatos ligados ao acidente da esta­ção do metrô e relatei as conclusões a que chegara. Termi­nada a exposição, Lorde Nasby disse-me inesperadamente:

— O que sabe a respeito de crânios braquicéfalos? Mencionei o nome de meu pai.

— O homem do macaco? Hein? Muito bem, seu senso prático é muito grande, menina. Mas, como vê, esses dados são bastante deficientes. Não temos pistas, e, no pé em que as coisas estão... nada disso adianta.

— Estou perfeitamente ciente.

— O que deseja, então?

— Quero trabalhar no jornal para poder investigar o caso.

— Não pode ser. Temos uma pessoa especialmente de­signada para esse fim.

— Eu tenho meus próprios conhecimentos.

— Os que a senhorita acabou de expor?

— Oh! não, Lorde Nasby. Tenho planos particulares.

— Oh, tem, senhorita? É realmente uma moça muito inteligente. E, então, de que se trata?

— Quando o pseudomédico entrou no elevador, deixou cair um pedacinho de papel. Ao erguê-lo, senti que exalava odor de naftalina. As roupas do morto tinham o mesmo cheiro, mas as do médico, não. Percebi imediatamente que o papel fora retirado das vestes do cadáver. Nele estão es­critos alguns números e duas palavras.

— Quero ver o papel.

— Não posso lhe mostrar — disse, sorrindo. — É o meu trunfo.

— De acordo. A senhorita é inteligente! Faz bem em ser perseverante. Não sente escrúpulo em deixar de entregá-lo à polícia?

— Estive lá, hoje de manhã, exatamente para isso. Continuam considerando o caso de Marlow inteiramente à parte do acidente da estação do metrô; por isso, em vista das circunstâncias, explica-se o motivo por que fiquei de posse do papel. Além do mais, o inspetor me provocou.

— Que homem de idéias curtas! Bem, menina, eis o que posso fazer; continue seguindo a sua diretriz. Se conse­guir alguma coisa — qualquer que seja — venha contar-me e lhe daremos uma oportunidade. No Daily Budget sempre há lugar para os verdadeiros talentos, devidamente com­provados. Está bem assim?

Depois de agradecer, pedi desculpas pela maneira como me fizera introduzir na sua presença.

— Não tem importância. Aprecio a imprudência — quando parte de moça bonita. A propósito, a senhorita pediu-me dois minutos e ficou três, descontadas as interrup­ções. Em se tratando de mulher, é simplesmente admirável! Deve ser o seu treino científico.

 

Quando saí à rua, respirava ofegante, como se tivesse corrido. Pouco conheço sobre Lorde Nasby, mas achei-o simplesmente cansativo.

 

Voltei exultante para casa. Meu plano resultou em êxito muito maior do que eu podia esperar. Lorde Nasby fora real­mente genial. De acordo com sua expressão, era-me neces­sário apenas "confirmar". Fechada no meu quarto, peguei o precioso pedacinho de papel e pus-me a examiná-lo com grande cuidado. Ali estava a chave do mistério.

Antes de tudo, que significavam aqueles algarismos? Eram cinco e um ponto depois do segundo.

— Dezessete mil cento e vinte e dois — murmurei. Não era possível chegar a conclusão alguma.

Em seguida, somei-os. É o procedimento usual nos livros de ficção, que conduz a deduções verdadeiramente surpreendentes.

— Um mais sete são oito; mais um, nove; mais dois, onze; mais dois, treze.

Treze! Número fatídico! Seria o aviso para que aban­donasse o caso? Era muito possível. De qualquer maneira, a não ser como advertência, parecia-me completamente inú­til. Não acreditava que na vida real os conspiradores es­crevessem treze dessa maneira. Se o fizessem seria assim: treze, ou então assim: 13.

O espaço entre o 1 e o 2 era maior. Subtraí vinte e dois de cento e setenta e um. Deu cento e cinqüenta e nove. Repeti a operação e obtive cento e quarenta e nove. Cálculos aritméticos não deixam de ser excelente exercício, mas, considerados como meio de solução de mistérios, con­tinuam totalmente ineficazes. Abandonei a aritmética antes de tentar as contas complicadas de dividir e multiplicar, e passei ao exame das palavras.

Castelo de Kilmorden. Era o nome de um lugar, de alguma coisa mais positiva. O berço, talvez, de alguma fa­mília aristocrática. (Herdeiro desaparecido? Pretendente ao título?) Ou apenas uma ruína pitoresca. (Tesouro oculto?)

Sim, de modo geral, estava propensa a acreditar na idéia do tesouro. Números fazem boa parceria com tesou­ros enterrados. Um passo à direita, sete passos à esquerda,

cavar trinta e um centímetros, descer vinte e dois degraus. Devia ser mais ou menos isso. Na ocasião, veria. O pro­blema era chegar ao Castelo de Kilmorden o mais rapida­mente possível.

Usei de um estratagema para sair do quarto; quando voltei, trazia diversos livros de consulta: Quem ê quem, Whitaker, um Dicionário de nomes geográficos, uma Genealogia de famílias escocesas, e Nomes de destaque nas ilhas Britânicas.

O tempo urgia. Com tédio crescente diligenciava nas pesquisas. Por fim, fechando violentamente o último livro, concluí pela não-existência do Castelo de Kilmorden.

Mas surgiu um obstáculo. Esse lugar forçosamente tem de existir. Qual a razão por que uma pessoa iria inventar esse nome e escrevê-lo num pedaço de papel? Simplesmente absurdo!

Ocorreu-me outra idéia. Talvez fosse uma daquelas horrorosas construções acasteladas dos subúrbios, a que os proprietários batizam com nome pomposo. Se assim fosse, tornava-se dificílimo descobri-la. Tristemente, sentei-me no soalho (é o que sempre faço quando tenho em mente algum problema importante), perguntando-me por que cargas d'água estaria levando a sério um caso que não me dizia respeito.

Haveria outra diretriz a seguir? Refletia cheia de an­siedade, quando de um salto, satisfeitíssima, pus-me de pé. Claro! Precisava ver a "cena do crime". Assim proce­diam os melhores detetives! Embora, dias depois, acabassem sempre descobrindo algo que passara despercebido à polícia. Traçada a diretriz, precisava ir a Marlow imediatamente. Como entrar na casa? Desprezei diversos métodos arris­cados, preferindo um bastante simples. A propriedade estava para alugar — presumivelmente ainda estaria. Pretendia passar por alguém interessado no negócio.

Resolvi dirigir-me aos corretores locais, pois geralmente são em menor número as casas a seu cargo.

Comecei a agir sem consultar a opinião de Mr. Flemming.

Um funcionário atencioso informou-me a respeito de diversas propriedades muito convenientes. Usei de ardis a fim de conseguir encontrar objeções contra elas. Afinal, temia nada conseguir.

— Não há mais nenhuma? — indaguei, fitando com expressão patética os olhos do funcionário.

"Uma casa à margem do rio, com amplo jardim e um chalé", acrescentei, citando os dados principais da Casa do Moinho, numa repetição do que havia lido nos jornais.

— Sim, a de Sir Eustace Pedler — disse o rapaz com hesitação. — A Casa do Moinho, a senhorita sabe.

— Não... não onde... — falei titubeante. (Realmen­te, titubear está se tornando o meu forte.)

— Essa mesma! Onde cometeram o crime. Talvez a senhorita não...

— Oh! Não me importa — atalhei, procurando dar à voz entonação de zombaria. Percebi que minha bona fide se assentava em base sólida. — E talvez até pudesse con­segui-la por melhor preço, em vista das circunstâncias.

Golpe de mestre, pensei.

— Sim, é possível. Não creio que seja fácil alugá-la agora... por causa dos empregados e de outros problemas, a senhorita bem pode imaginar. Se lhe convier, aviso-a para que faça a oferta. Quer a autorização?

— Sim, senhor.

Quinze minutos mais tarde encontrava-me no chalé da Casa do Moinho. Em resposta ao toque da campainha, a porta abriu-se e uma senhora alta, de meia-idade, irrompeu porta afora.

— Ninguém entra na casa, está ouvindo? Estou farta de repórteres. Sir Eustace Pedler deu ordens para...

— Pensei que a casa estivesse para alugar — disse em tom gélido, apresentando a autorização. — Está certo, se já...

— Oh! Peço mil desculpas, senhorita. Esse pessoal dos jornais vem me aborrecendo continuamente. Não tenho um minuto de paz. Não, a casa ainda não está alugada — e agora, é pouco provável que o seja.

— O encanamento está com defeito? — perguntei em ansioso murmúrio.

— Oh! Meu Deus! Senhorita, o encanamento está funcionando bem! Com certeza ouviu falar da estrangeira que foi assassinada aqui?

— Devo ter lido alguma coisa a respeito — respondi despreocupadamente.

O meu ar de indiferença provocava a boa mulher. Se revelasse interesse pelo caso, era muito possível que se fe­chasse em copas. Caso contrário, ela daria com a língua nos dentes.

— Com certeza leu, senhorita! Saiu em todos os jor­nais. O Daily Budget está procurando descobrir a pista do criminoso. Assim como falam, parece que a polícia não vale nada. Tenho esperança de que agarrem o homem, apesar de ser um moço muito bonito, não há dúvida. Com jeito de militar, ferido em combate, talvez. Quem sabe, ficou com a cabeça um pouco transtornada como meu sobrinho, filho de minha irmã. Decerto a moça o maltratava — essas estrangei­ras são más. Era linda! Ficou aí mesmo, nesse lugar em que a senhorita está.

— Morena ou loira? — arrisquei a perguntar. — Nun­ca se pode ter certeza, pelas fotografias dos jornais.

— Cabelos pretos, pele claríssima — clara demais; não podia ser natural, pensei —, e os lábios pintados de verme­lho davam-lhe um ar de crueldade. Não gosto de ver coisas assim; que se use um pouquinho de pó-de-arroz, de vez em quando, está certo.

Conversávamos como velhas amigas; então perguntei:

— E parecia nervosa, preocupada?

— Nem um pouquinho. Sorria a si mesma, muito cal­ma, como se achasse graça em alguma coisa. Fiquei parali­sada de susto, quando no dia seguinte, à tarde, vieram cor­rendo me pedir para chamar a polícia, porque a moça estava morta. O susto não passou até agora; nem por todo o dinheiro do mundo ponho os pés nessa casa depois que escurece. Olhe, se Sir Eustace Pedler não me implorasse de joelhos, ia-me embora daqui.

— Julguei que Sir Eustace Pedler estava em Cannes.

— Estava, sim, senhorita. Voltou para a Inglaterra assim que soube das novidades. Eu falei que ele se ajoe­lhou, mas foi maneira de dizer. O secretário dele, o Sr. Pagett, ofereceu o dobro do ordenado para a gente continuar aqui. E, como diz John, dinheiro é sempre dinheiro.

Concordei prazerosamente com as observações pouco originais de Mrs. James.

— Mas o moço — prosseguiu a caseira, retornando ao assunto anterior — estava preocupadíssimo. Os olhos claros, prestei bem atenção, brilhavam. Está nervoso, pensei. Mas nem em sonhos podia imaginar que tivesse acontecido algu­ma coisa de mal. Nem quando ele voltou, com um ar tão esquisito.

— Quanto tempo se demorou na casa?

— Oh! pouco, uns cinco minutos, talvez.

— A senhora lembra-se se era alto? Cerca de um metro e oitenta...

— Acho que sim.

— E tinha feito a barba?

— Sim, senhorita — e não usa bigode, nem desses que parecem escova de dentes.

— Lembra-se também se o queixo era lustroso? Mrs. James fitou-me admirada.

— Olhe, agora me lembro; era, senhorita. Como sabe?

— É realmente uma coisa esquisita, mas os assassinos geralmente têm queixos lustrosos — foi a minha explicação.

Mrs. James aceitou-a de boa fé.

— Não diga, senhorita! Nunca soube disso em toda a minha vida.

— A senhora, decerto, não reparou no formato da cabeça dele, não?

— Era como qualquer outra, senhorita. Quer as chaves então?

Peguei-as e pus-me a andar na direção da Casa do Moinho. Estava satisfeita, pois até aquele momento tudo caminhava bem. As diferenças existentes entre o homem descrito pela caseira e o meu "médico" da estação do metrô não eram essenciais. Barba, óculos de aros de ouro, sobre­tudo. O "médico" aparentava meia-idade, mas a maneira como se curvou sobre o cadáver demonstrava flexibilidade nas articulações.

A vítima do acidente (o "homem da naftalina", co­mo eu o chamava) e a estrangeira, Mrs. de Castina, seja ou não seu verdadeiro nome, marcaram encontro na Casa do Moinho. Eu estava começando a reunir #s peças do quebra-cabeça. O temor de serem vigiados, ou qualquer outro motivo, levou-os à escolha de um ardil bastante engenhoso: munirem-se de autorização para verem a mesma casa. Assim, o encontro se revestiria da aparência de mera casualidade. Eu tinha absoluta certeza não só de que o "homem da naftalina" avistou de repente o "médico", como também de que se alarmou com esse encontro inesperado. E o que aconteceu depois? O "médico" removeu o disfarce e seguiu a mulher até Marlow. Mas havia a possibilidade de que, retirando a barba apressadamente, permanecessem vestígios de goma no queixo. Daí a razão da pergunta a Mrs. James. Imersa em pensamentos, cheguei até a porta baixa e antiquada da Casa do Moinho. Abri-a com a chave e entrei. O vestíbulo baixo e escuro recendia a mofo e a coisas que estavam em abandono. Involuntariamente, estremeci. Será que a jovem "a sorrir a si mesma" não sentiu ao entrar na casa um arrepio de pressentimento? Acredito que sim. Teria o sorriso desaparecido dos lábios, o coração a oprimi-la como num pesadelo medonho? Ou subiu a escada, ainda sorri­dente, sem tomar consciência da desgraça que se ia abater sobre ela? As pulsações do meu coração aceleravam-se. E se houvesse alguém na casa à minha espera também? Pela primeira vez, entendi o significado da palavra tão cor­riqueira — "atmosfera". Havia atmosfera nessa casa, atmos­fera de crueldade, de ameaça, de maldade.

 

Subi depressa a escada, procurando livrar-me desses pen­samentos opressores. Logo deparei com a sala onde ocorrera a tragédia. No dia em que encontraram o cadáver, chovia incessantemente. Não era de admirar que de todos os lados grandes rastros de botas lamacentas marcassem o piso. Pus-me a pensar se o assassino teria deixado pegadas. Havia a possibilidade de que a polícia tivesse dúvidas a respeito; mas, refletindo bem, decidi pela negativa; o tempo estivera seco e bom. Na sala, nada de interessante. De forma retan­gular, tinha duas amplas janelas de sacada e paredes pinta­das de branco. No pavimento, destacava-se a área anterior­mente coberta pelo tapete. Dei buscas cuidadosas, mas não encontrei nem um alfinete. Parece que a jovem e talentosa detetive estava fadada a não descobrir a pista negligenciada pela polícia.

Tinha levado lápis e um caderninho. Dado o fracasso da pesquisa, e com o intuito de disfarçar meu desapontamento, melancolicamente pus-me a rabiscar a planta da sala. No momento em que ia guardar o esquema na bolsa, o lápis escorregou-me entre os dedos e rolou pelo soalho.

Visto ser a Casa do Moinho muito antiga, as tábuas do pavimento não se conservavam no mesmo nível. O lápis rolou até uma reentrância, sob o batente de uma das janelas, onde havia um armário. De repente, ocorreu-me a idéia de que, se a porta não estivesse fechada, o lápis passaria por ela. Abrindo-a, vi que rolava, indo abrigar-se humildemente no cantinho no fundo. Às apalpadelas, consegui alcançá-lo. A escassez de luz e o formato pouco comum do móvel difi­cultavam a visão da parte interna. Exceto o lápis, nada mais havia. Renitente como sou, dirigi-me para o armário instalado sob a outra janela.

À primeira vista, dava a impressão de estar vazio tam­bém; apesar disso comecei a passar repetidas vezes a palma da mão pelo seu interior. Fui recompensada; num canto do fundo, encontrava-se um cilindro confeccionado em papel áspero, colocado dentro de um objeto côncavo, uma espé­cie de pequenino cocho. Reconheci imediatamente tratar-se de um rolo de filme Kodak. Que achado maravilhoso!

Lembrei-me de que bem podia ser um filme antigo, pertencente a Sir Eustace Pedler e que, rolando até o fundo do armário, lá ficara esquecido. Mas, na realidade, não acre­ditava nisso. O invólucro de papel vermelho era novo e a camada de poeira não ia além de dois ou três dias — isto é, desde a ocasião do assassinato. Caso contrário, seria muito mais espessa.

Quem o deixara cair? A jovem ou o rapaz? Lembra­va-me de que o conteúdo da bolsa de Mrs. de Castina estava intato. Supondo que o fecho se abrisse durante a luta, deduzi que o rolo cairia, mas o dinheiro miúdo ter-se-ia espa­lhado pela sala. Não, o filme não pertencia à mulher.

De repente, dei um espirro. Estaria o cheiro de naftalina tornando-se obsessão? Era capaz de jurar que o odor provinha do objeto encontrado. Levei-o ao nariz, Além do cheiro característico, havia mais um, muito desagradável. Não me foi difícil descobrir a causa. Enroscado no tubo central de madeira achava-se um minúsculo retalho de fa­zenda impregnada do cheiro de naftalina. Por certo,de vez em quando o homem da estação do metrô deveria trazê-lo no bolso do sobretudo. Seria ele quem deixara cair o rolo? Pouco provável, pois seus movimentos eram caute­losos.

Não, tinha sido o outro homem, o "médico". Tirou dos bolsos do cadáver o filme e o papel na mesma ocasião. O fil­me caiu enquanto lutava com a moça.

Descobrira a pista! Depois de revelado pela Kodak, ou­tras pistas surgiriam.

Saí da casa entusiasmadíssima e, depois de devolver as chaves a Mrs. James, encaminhei-me rapidamente à estação. Durante o trajeto de volta, tirei o papel e, mais uma vez, pus-me a examiná-lo. De repente os algarismos adquiriram sig­nificado. E se significassem uma data? 17 1 22. 17 de janei­ro de 1922. Não podia deixar de ser! Era uma tola por não ter pensado nisso antes. Assim sendo, precisava desco­brir a localização do Castelo de Kilmorden, pois estávamos em 14 de janeiro. Três dias. Muito pouco — quase de desesperar, principalmente quando não temos idéia de que recursos lançar mão!

Àquela hora já não podia mandar revelar o filme. Tra­tei de voltar bem depressa para casa — não queria chegar tarde para o jantar. Ocorreu-me um meio bastante simples de verificar a exatidão de minhas conclusões. Indaguei de Mr. Flemming se havia máquina fotográfica entre os pertences do morto. Sabia do seu interesse pelo caso; ele o conhecia com pormenores.

A resposta negativa surpreendeu-me desagradavelmente. E, embora continuasse a fazer-lhe perguntas com o intuito de avivar-lhe a memória, prosseguiu firme na mesma res­posta.

A minha teoria retrocedeu um passo. Por que o rolo de filme, se não trazia máquina fotográfica?

Saí cedo, na manhã seguinte, a fim de providenciar a revelação do precioso achado. Atarantada como estava, per­corri a Regent Street em toda a sua extensão para ir à gran­de casa Kodak. Lá chegando, encomendei uma cópia do filme. O rapaz, depois de empilhar diversas caixinhas ama­relas de artigo especial para climas tropicais, pegou o rolo que eu lhe estendia.  Em seguida, olhou-me.

— A senhorita enganou-se — disse sorrindo.

— Oh! Não! — respondi. — Tenho certeza.

— O filme é virgem.

Saí com ares de dignidade ofendida. Imagino que de vez em quando nos seja salutar saber a que ponto podemos ser idiotas. Mas ninguém gosta de passar pelo processo que leva a essa conclusão.

Estaquei de súbito, frente ao escritório de uma grande companhia de navegação. A vitrina expunha a bela minia­tura de um navio — o Castelo de Kenilworth. Uma idéia extravagante brotou no meu cérebro. Empurrei a porta e entrei. Encaminhei-me à seção de venda de passagens e, ga­guejando (desta vez era sincera), murmurei:

— O Castelo de Kilmorden?

— Parte de Southampton, no dia 17. Cidade do Cabo? Primeira ou segunda classe?

— Quanto custa?

— De primeira, oitenta e sete libras...

Interrompi-o. Que coincidência! A quantia exata da minha herança! Joguei minha última cartada!

— Primeira classe — confirmei.

Era o compromisso categórico com a aventura.

 

(Fragmentos do diário de Sir Eustace Pedler, membro do Parlamento)

Coisa extraordinária! Não consigo levar a vida em paz. E como são aprazíveis os dias tranqüilos! Aprecio o clube, umas partidas de bridge, opíparos jantares regados a bom vinho. Gosto da Inglaterra no verão e, no inverno, da Riviera. Detesto participar de acontecimentos sensacionais. Basta-me tomar conhecimento deles pelos jornais ao calor da lareira. Meu objetivo é viver no maior conforto. Para atin­gir essa finalidade, dediquei grande esforço e considerável soma de dinheiro. Mas nem sempre obtive sucesso. Quando os acontecimentos não me atingem de maneira direta, de­senrolam-se freqüentemente ao meu redor, independentes da minha vontade, e fatalmente acabam por envolver-me também. E é justamente o que detesto.

A entrada de Guy Pagett, hoje, no meu quarto de dor­mir, provocou-me esse preâmbulo; na mão trazia um tele­grama, e na fisionomia uma expressão tão triste que mais se assemelhava a agente funerário em dia de enterro.

Guy Pagett, meu secretário, é rapaz zeloso, diligente, dedicado ao trabalho; enfim, admirável sob todos os pontos de vista; mas é quem me causa o maior número de abor­recimentos. Durante muito tempo, quebrei a cabeça à pro­cura de um ardil que me livrasse da sua presença. Não podemos, porém, despedir um secretário pelo fato de preferir o trabalho à diversão, por levantar-se cedo e preservar-se de todos os vícios. O rosto de Pagett é, na sua pessoa, a única coisa que me diverte. Lembra-me um envenenador do século XIV — o tipo que os Bórgia tomariam a seu serviço, para executar-lhes os trabalhos um tanto singulares.

Eu passaria por cima de tudo isso caso o moço não me obrigasse a trabalhar também. Na minha opinião, o trabalho é algo que se pode realizar despreocupada e alegre­mente — na brincadeira, enfim! Duvido que Guy Pagett, uma vez na vida, tivesse procedido dessa forma. Pelo con­trário, toma tudo a sério. Eis por que se torna difícil viver na sua companhia.

Há alguns dias, como me falasse de Florença, de quanto gostaria de conhecê-la, ocorreu-me a brilhante idéia de satisfazer-lhe a vontade.

— Meu caro rapaz! — exclamei — parta amanhã. As despesas correm por minha conta.

Janeiro não é a época ideal para uma estada em Flo­rença, mas a Guy Pagett tanto se lhe dava. Imaginei-o passeando, com um guia nas mãos, a visitar religiosamente todas as galerias de arte. E, afinal, uma semana de liberdade valia bem mais do que a quantia despendida. Passei dias agradabilíssimos, sozinho, inteiramente senhor dos meus atos.

Quando, porém, ao abrir os olhos, divisei-o de pé, o vulto contra à luz do abajur, numa hora disparatada como aquela — nove da manhã —, percebi que a liberdade fin­dara.

— Meu caro rapaz — disse —, o enterro já se realizou ou é mais tarde?

Pagett não apreciava o humor negro. Continuava a fitar-me.

— Então, o senhor já sabe, Sir Eustace?

— Sabe o quê? — perguntei em tom acre. Pela sua expressão deduzi que acabava de perder um parente querido e que o enterro se realizaria naquela manhã.

Meu secretário não tomou conhecimento do gracejo.

— Pensei que o senhor ainda ignorava o fato — e batia com os dedos no telegrama. — Sei que não gosta de acordar cedo, mas são nove horas — Pagett insiste em considerar nove da manhã quase o meio do dia —, então julguei que, nessas condições... — Tornou a dar pancadinhas no tele­grama.

— O que é isso? — perguntei.

— Telegrama da polícia de Marlow. Assassinaram uma mulher na sua casa.

Tornei-me sério.

— Que descaramento! — exclamei. — Por que em minha casa? Quem é o assassino?

— Nada explicam. Suponho que temos de voltar para a Inglaterra imediatamente, não, Sir Eustace?

— Não suponha nada. Por que voltar?

— A polícia...

— Com todos os diabos, que quer a polícia?

— O crime foi cometido na sua casa.

— Isso — falei — é desgraça e não culpa. Guy Pagett abanou a cabeça tristemente.

— Vai repercutir desfavoravelmente no seu distrito eleitoral — observou com voz lúgubre.

Por motivos que desconheço, tinha, e ainda tenho, a impressão de que nesses assuntos o instinto de Pagett segue sempre a trilha certa. Aparentemente, um membro do Par­lamento pode continuar a ser eficiente, apesar de uma jovem ser assassinada na casa vaga de sua propriedade, mas é im­possível prever como o respeitável povo inglês encara o as­sunto.

— Além disso, trata-se de uma estrangeira, o que piora a situação — continuou o rapaz em tom sombrio.

Novamente dei-lhe razão. Se é vergonhoso o fato de uma mulher ser assassinada numa casa que nos pertence, torna-se ainda mais vergonhoso quando se trata de uma estrangeira. Ocorreu-me outra idéia.

— Bom Deus! — exclamei. — Tomara que Caroline não fique assustada.

Caroline é a senhora que cozinha para mim. Por sorte minha, casou-se com o jardineiro. Quanto a ser boa esposa ignoro; mas é excelente cozinheira. James, no entanto, não cuida bem do jardim — faço vista grossa à sua vadiação. O casal mora gratuitamente no chalé, graças à boa cozi­nheira que é Caroline.

— Não acredito que ela fique — disse Pagett.

— Você é muito engraçado — murmurei.

Acho que tenho de voltar para a Inglaterra. Pelo me­nos, é o que o meu secretário pensa. E, além disso, urge acalmar Caroline.

 

Três dias depois

 

É inacreditável! Pessoas que podem viajar passam o inverno na Inglaterra. O clima aqui é abominável. Todos esses aborrecimentos irritam-me sumamente. Dizem os corretores que, com a publicidade em torno do caso, será quase impossível alugar a Casa do Moinho. Caroline acalmou-se após a oferta de ordenado em dobro. Bem podíamos ter-lhe enviado um telegrama de Cannes, nesse sentido. Realmente, não havia necessidade de deixarmos a Suíça. Voltarei amanhã.

 

No dia seguinte

 

Ocorreram diversos fatos verdadeiramente surpreen­dentes. Em primeiro lugar, encontrei Augustus Milray, o maior cretino que o atual governo jamais apresentou. Quan­do me puxou para um canto sossegado do clube, percebi por suas maneiras melífluas que estava em vias de cochichar-me algum segredo diplomático. Falou-me demoradamente da África do Sul, da situação industrial local, acerca dos cres­centes rumores que circulavam sobre uma greve no Rand e das suas causas secretas — dos verdadeiros agentes que a tinham provocado. Limitava-me a ouvi-lo com paciência. Afinal, baixando a voz, explicou-me num murmúrio que se fazia necessário entregar ao General Smuts certos documen­tos recentemente descobertos.

— Não duvido de que você esteja certo — disse, dis­farçando um bocejo.

— Mas como encaminhá-los se estamos em posição deli­cada — muito delicada?

— Está acontecendo alguma coisa com o correio? — perguntei alegremente. — Sele a carta com dois pence e coloque-a na caixa mais próxima.

A sugestão escandalizou Milray.

— Meu caro Pedler! No correio!

Considero verdadeiro mistério o fato de o governo uti­lizar-se de mensageiros do rei e simultaneamente chamar a atenção do público para documentos confidenciais.

— Se o envio pelo correio não for conveniente, mande um dos rapazes que trabalham com você. Ele vai divertir-se com a viagem.

— Impossível — disse Milray, abanando a cabeça à Janeira dos velhos. — Existem motivos — asseguro-lhe, existem motivos.

— Bem — e fui-me levantando —, a conversa está muito interessante, mas preciso retirar-me...

— Um minuto, meu caro Pedler, um minuto, peço-lhe. Escute; aqui entre nós, é verdade que pretende viajar para a África do Sul, dentro de pouco tempo? Você tem negócios na Rodésia, e, além disso, sei também do seu grande inte­resse em que ela passe a pertencer à União.

— Penso em partir daqui a um mês, mais ou menos.

— Não pode ir antes? Este mês? Esta semana, talvez?

— Poderia — disse, encarando-o com curiosidade. — Acontece que ainda não sei se quero.

— Prestaria grande serviço ao governo — muito grande mesmo. E ele não é — humm... — ingrato.

— Quer dizer que eu faria o papel de mensageiro?

— Exatamente. Você não desempenha função oficial, vai viajar bona fide. Tudo se engrena para que o resultado seja plenamente satisfatório.

— Pois bem — disse lentamente. — Não me importo de levar os documentos. A única coisa que realmente me interessa é deixar a Inglaterra o mais depressa possível.

— O clima da África do Sul é agradável — agradabilíssimo.

— Meu caro, sei tudo a respeito do clima. Estive lá pouco antes de deflagrar a guerra.

— Agradeço-lhe muito, Pedler. Mando-lhe os docu­mentos por um mensageiro. Deverá entregá-los ao próprio General Smuts, compreende? O Castelo de Kilmorden parte sábado — um navio e tanto!

Antes de nos separarmos, acompanhei-o em pequena parte do trajeto pelo Pall Mall. Apertou-me as mãos calo­rosamente, repetindo com efusão frases de agradecimento. Pus-me a caminhar, refletindo sobre os curiosos meios se­cretos de que se serve a polícia governamental.

Na tarde seguinte uma pessoa foi procurar-me. Não quis declinar o nome, mas desejava falar-me sobre assunto particular. Os agentes de seguros deixam-me vivamente apre­ensivo; então pedi a Jarvis, o mordomo, que o recebesse. Por azar, Guy Pagett, justamente na ocasião em que podia ser-me de real auxílio, sofria uma crise hepática. Jovens muito trabalhadores, mas de saúde frágil, sempre estão su­jeitos a achaques dessa natureza.

Daí a pouco, o mordomo voltou.

— Ele pediu-me para comunicar-lhe que vem da parte de Mr. Milray.

A questão tomava novo aspecto. Instantes depois, na biblioteca, eu defrontava o visitante. Era um rapaz ele­gante, de pele bronzeada. A não ser uma cicatriz que, desfigurando-lhe o semblante, cortava-o do canto do olho até o queixo, seria o que se pode chamar de belo rapaz.

— Então — perguntei —, de que se trata?

— Mr. Milray mandou-me falar com o senhor, Sir Eustace. Devo acompanhá-lo à África do Sul, como seu se­cretário.

— Meu caro rapaz — disse —, já tenho secretário e não preciso de mais nenhum.

— Creio que precisa, Sir Eustace. Onde se encontra seu secretário neste momento?

— Está de cama, com crise de fígado — expliquei.

— Tem certeza de que é só isso?

— Tenho. Não é a primeira. O moço sorriu.

— Talvez seja ou não crise de fígado. O tempo dirá. Mas acho conveniente avisá-lo, Sir Eustace, de que Mr. Milray não se surpreenderia se tentassem afastar seu secre­tário. Oh! quanto ao senhor, não há perigo — suponho que, por um momento, minhas feições denotaram pavor —, nem mesmo ameaça. Afastado o secretário, será mais fácil aproximar-se da sua pessoa. De qualquer maneira, é desejo de Mr. Milray que eu o acompanhe. Cuidaremos da passa­gem, é claro, mas o senhor terá que tomar providências quanto ao passaporte, esclarecendo a necessidade de fazer-se acompanhar de um segundo secretário.

O rapaz era realmente decidido. Trocamos um olhar; ele fitava-me com expressão severa.

— Muito bem — murmurei.

— Não conte nada a ninguém a meu respeito.

— Muito bem — repeti.

Afinal, talvez fosse melhor que o moço me acompa­nhasse; contudo, tinha pressentimento de que ia meter-me em complicações, justamente quando pensava ter alcançado um período de paz!

Interrompi os passos do visitante, no momento em que se voltava para deixar o recinto.

— Parece-me razoável que queira saber o nome do meu novo secretário — observei com sarcasmo.

Após instantes de silêncio, respondeu:

— Harry Rayburn é um nome aceitável. Que extravagante maneira de apresentar-se!

 

(Resumo da narrativa de Anne)

Sentir-se mareada é para uma heroína coisa das mais humilhantes. Nos romances, quanto mais o oceano se agita, melhor ela se sente. Quando todos os passageiros já enjoaram a intrépida criatura permanece no convés, desafiando a tormenta. Confesso que, ao primeiro balanço do Kilmorden, senti-me empalidecer, sendo forçada a buscar abrigo na ca­bina. Recebeu-me uma simpática camareira. Sugeriu-me um copo de ginger ale com torradas simples. Durante três dias fiquei no camarote, a gemer. Desvanecera-se o interesse pela solução do mistério. Tornei-me uma Anne totalmente diversa daquela que, ao voltar do escritório da companhia de navegação, acorrera à South Kensington Square, radiosa de felicidade.

Sorrio, agora, ao recordar-me da maneira abrupta como entrei no salão de estar, ao encontro de Mrs. Flemming. Ao ruído de passos ela voltou a cabeça, fitando-me:

— Ah! É você, Anne querida? Quero falar-lhe sobre

um assunto.

— Pois não — disse, refreando a impaciência.

— Miss Emery vai embora. — Tratava-se da gover­nanta. — Como você ainda não conseguiu encontrar em­prego, queria saber se se importaria... Como seria bom se ficasse conosco!

A proposta comoveu-me, porque, na realidade, ela não precisava de mim. O oferecimento fora inspirado em pura caridade cristã. Senti remorso pelas críticas secretas que lhe fazia. Num ímpeto, atravessei a sala e abracei-a.

— A senhora é um amor! — exclamei. — Um amor, um amor, um amor! Muito obrigada! Mas já consegui o que desejava. Sigo viagem para a África do Sul, no próximo sá­bado.

Tomada de assalto, a boa senhora assustou-se. Não estava habituada a demonstrações inesperadas de afeto. Mi­nhas palavras amedrontaram-na ainda mais.

— À África do Sul? Anne querida! Precisamos exa­minar o projeto com muito cuidado.

Era o que menos desejava. Expliquei-lhe que já tinha comprado a passagem e que, logo após a minha chegada, pro­punha-me arranjar um lugar de arrumadeira. Em situação tão premente, foi a única saída que imaginei. Na África do Sul, continuei, havia grande procura de arrumadeiras. Garanti-lhe que tinha capacidade de cuidar de mim. Por fim, com um suspiro de alívio e retirando suas mãos das minhas, concordou com o plano, sem nada mais indagar. No momento da partida, fez deslizar um envelope para o interior da minha bolsa. Dentro dele, havia cinco notas novas de cinco libras e um bilhete: “Espero que não se ofenda e aceite o presente com toda a minha afeição". Era, real­mente, boa pessoa. Jamais poderia continuar a viver na mes­ma casa que ela, mas não deixava de reconhecer o seu valor intrínseco. Achava-me, pois, de posse de vinte e cinco libras para enfrentar o mundo e ir no encalço da aventura.

No quarto dia de viagem, a camareira insistiu em que eu subisse ao tombadilho. Recusei-me firmemente a deixar o camarote, dominada pela impressão de que lá embaixo levaria menos tempo para morrer. A jovem procurou despertar-me o interesse pela chegada à ilha da Madeira. A esperança nasceu em meu coração. Pensei em deixar o navio e arran­jar um lugar de arrumadeira ou outro emprego qualquer, contanto que fosse em terra firme. Encapotada, uma manta a cobrir-me o corpo, débil como filhote de passarinho, fui arrastada ao convés e depositada, qual massa inerte, numa cadeira preguiçosa. Lá fiquei, de olhos fechados, cheia de ódio pela vida. O comissário de bordo, moço loiro, de rosto redondo, aproximou-se e tomou assento na cadeira ao meu lado.

— Olá! Sentindo-se mal, hein?

— Sim — respondi irritadíssima.

— Amanhã ou depois nem vai acreditar no que acon­teceu. O nevoeiro na baía estava pavoroso, mas daqui por diante teremos bom tempo. Amanhã, vamos jogar malha.

Nada respondi.

— Está pensando que não vai ficar boa, hein? Vi pessoas em pior estado que a senhorita, e dois dias depois eram a alma do navio. Com a senhorita vai ser a mesma coisa.

Não me sentia suficientemente combativa para dizer

francamente que ele não passava de um mentiroso. Fiz um esforço e concordei com um olhar. Continuou a tagarelar alegremente. Por felicidade, retirou-se minutos depois. No tombadilho havia um vaivém de passageiros, de pares a ca­minhar em passos rápidos, "fazendo exercício", jovens risonhos, crianças que saltavam alegremente. Nas espreguiçadeiras jaziam, como eu mesma, alguns pálidos sofredores.

A temperatura era amena, não demasiadamente fria, e o sol brilhava em todo o esplendor. Insensivelmente, sen­ti-me reanimar. Comecei a observar os passantes. Uma mu­lher, principalmente, atraiu-me a atenção. Aparentava cerca de trinta anos; tinha estatura média, cabelos louríssimos, rosto redondo de pele sardenta e olhos muito azuis. No ves­tido, embora simples, um quê indefinível traía a origem parisiense. Gestos calmos, muito segura de si, parecia a dona do navio! Os garçons corriam de um lado para outro, obedecendo às suas ordens. Tinha uma cadeira preguiçosa especial e inexaurível reforço de almofadas. Mudava diver­sas vezes de opinião antes de escolher o lugar mais apropria­do para cada uma. Tudo nela atraía e encantava. Talvez fosse uma das raras pessoas que sabem o que querem, cuidam de consegui-lo e agem de forma a não ofender ninguém. Julguei que, tão logo me restabelecesse — mas é evidente que isso não ia acontecer —, conversar com ela seria uma boa distração.

Ao meio-dia, mais ou menos, o navio aportou na ilha da Madeira. Eu ainda estava apática, sem coragem de mover-me; divertia-me, contudo, apreciar o espetáculo dos ven­dedores com suas mercadorias espalhadas no tombadilho. E as flores, então! Enfiei o nariz num ramo de aromáticas violetas orvalhadas e imediatamente senti-me melhor. Veio-me a esperança de chegar com vida ao fim da viagem. A camareira ofereceu-me caldo de galinha. Após débeis pro­testos acabei por tomá-lo prazerosamente.

A jovem simpática desceu à terra. Voltou acompanhada de um homem, com ares de militar. Os cabelos pretos, de alvas mechas nas têmporas, emolduravam o semblante bron­zeado; já o notara antes, a andar, muito cedo, por toda a extensão do convés. Classifiquei-o, imediatamente, como um dos homens fortes e silenciosos da Rodésia. Aproxi­mava-se dos quarenta anos e sem dúvida era o homem mais bonito de bordo.

Quando a camareira me trouxe mais um agasalho, inda­guei se sabia quem era aquela moça tão atraente.

— É uma senhora muito conhecida na alta-roda. Mrs. Clarence Blair. Já deve ter lido sobre ela nos jornais.

Concordei com um sinal de cabeça e continuei a fitar a jovem com redobrado interesse. Mrs. Blair figurava entre as mulheres mais elegantes do país. Observei, meio diver­tida, que ela era o centro da atenção geral. Diversas pes­soas tentaram aproximar-se dela, dada a informalidade rei­nante na vida de bordo. Admirei a maneira polida como as afastava. Parecia ter adotado o homem forte e calmo como seu par predileto, o que muito o sensibilizava.

Na manhã seguinte, depois de dar umas voltas ao redor do tombadilho, admirei-me ao ver Mrs. Blair parar junto da minha espreguiçadeira.

— Está melhor esta manhã?

Agradeci, e disse que me sentia um pouquinho mais como um ser humano.

— Ontem, parecia bem abatida. O Coronel Race e eu ficamos certos de que assistiríamos a um funeral no mar — mas ficamos desapontados.

Ri alegremente. — O ar livre fez-me bem.

— Não há como o ar fresco — disse o Coronel Race, sorrindo.

— A atmosfera abafada dos camarotes mata qualquer pessoa — declarou Mrs. Blair, tomando assento ao meu lado; com leve aceno de cabeça dispensou o companheiro e continuou:

— Conseguiu cabina externa? Respondi negativamente.

— Coitadinha! Por que não muda? Há tantas vagas! Muitos passageiros ficaram na ilha da Madeira. Fale com o comissário. É muito simpático — graças a ele transfe­ri-me para um ótimo camarote. Faça-lhe o pedido na hora do almoço.

Estremeci.

— Não consigo sair daqui.

— Tolice! Vamos dar um passeio.

Curvou-se para mim, como a encorajar-me. A princípio, faltavam-me forças; porém, à medida que andava rapida­mente de um lado para outro, comecei a sentir-me bem mais disposta.

Após uma ou duas voltas, o Coronel Race reuniu-se a nós.

— Do outro lado já se avista o grande pico de Tenerife.

— Já? Dá para tirar uma fotografia?

— Não... mas nada impede que a senhora fotografe a paisagem.

Mrs. Blair riu.

— Que indelicadeza! Já tirei algumas fotografias muito boas.

— Três por cento, de certo.

Atravessamos o tombadilho. Coberto de neve, brilhante e envolto em tênue nevoeiro rosado, elevava-se o pico. Esca­pou-me uma exclamação de surpresa. Mrs. Blair saiu cor­rendo em busca da máquina fotográfica.

Sem se importar com a zombaria do Coronel Race, fazia o aparelho funcionar ininterruptamente.

— Ora, o rolo está no fim. Oh! — exclamou com tris­teza — tirei todos os instantâneos no mesmo filme!

— Gosto de ver crianças com brinquedo novo — mur­murou o coronel.

— Que criatura horrível! Felizmente trouxe mais um filme.

Retirou-o, com ar triunfante, do bolso do casaquinho de malha. Subitamente a oscilação do navio tirou-lhe o equi­líbrio e, enquanto se agarrava à grade, o filme rolou pelo tombadilho.

— Oh! — disse Mrs. Blair, fingindo desespero. E curvou-se sobre as grades. — Será que caiu no mar?

— Não, mas considere-se feliz se tiver caído na cabeça de algum infeliz garçom do segundo convés.

Um rapazinho com uma cometa, cuja presença nos pas­sara despercebida, emitiu um prolongado som ensurdecedor.

— Almoço! — bradou Mrs. Blair extasiada. — Estou sem alimento desde cedo. Só tomei duas xícaras de chá. Vamos almoçar, Miss Beddingfield?

— Bem... — respondi hesitante. — Vamos, estou com muita fome.

— Ótimo. Já a vi à mesa do comissário. Convença-o a dar-lhe o camarote.

Atravessei o salão e principiei a comer devagar, caute­losamente. No final da refeição tinha devorado um enorme prato. O meu amigo da véspera congratulou-se pelo meu res­tabelecimento. Naquele dia, disse-me, muitas pessoas fala­ram-lhe em mudar de cabina. Prometeu-me, porém, que sem demora me transferiria para uma externa, conforme lhe pedira.

Éramos quatro à mesa; eu, duas senhoras e um missio­nário a tagarelar sobre os "coitados dos nossos irmãos negros".

Lancei um olhar ao redor. Mrs. Blair sentava-se à mesa do capitão, tendo de um lado o Coronel Race e do outro um homem grisalho, de aparência muito distinta. Vinham depois outras pessoas. Já as vira no convés, com exceção de um homem que não havia aparecido antes. Caso contrário, dificil­mente escaparia à minha observação. Era alto e magro, e de semblante tão sinistro, que me assustei. Cheia de curiosi­dade, indaguei do comissário quem era.

— Aquele homem? Ah! é o secretário de Sir Eustace Pedler. Coitado! Enjoou muito; hoje é o primeiro dia em que desce para a sala de almoço. Sir Eustace trouxe dois secretários, e ambos ressentiram-se da viagem. Este chama-se Pagett; o outro ainda não apareceu.

Então, o proprietário da Casa do Moinho estava a bor­do; podia ser mera coincidência, mas, assim mesmo...

— Aquele — prosseguiu meu informante —, sentado ao lado do capitão, é Sir Eustace Pedler. Velho imbecil e pretensioso.

Quanto mais observava o semblante do secretário, me­nos o apreciava. A palidez das faces, as pálpebras semicerradas como que a resguardar o olhar cauteloso, a cabeça de formato extravagante, bastante achatada — tudo nele causa­va-me repulsa e apreensão.

Deixamos a sala ao mesmo tempo; no momento em que subia a escada, encontrei-me justamente atrás dele e pude, então, sem ser pressentida, ouvir fragmentos do diálogo que mantinha com Sir Eustace Pedler.

— Vou providenciar a cabina imediatamente, não é mesmo? É impossível trabalhar na sua, com todas as malas a tomar espaço.

— Caro rapaz — respondeu Sir Eustace —, minha ca­bina destina-se a ser: (a) quarto de dormir e (b) o lugar onde mal consigo me vestir. Não quero absolutamente que tome posse dela. Você bem sabe que não suporto o ruído infernal da máquina de escrever.

— O senhor tem toda a razão, Sir Eustace, precisamos

de um lugar para trabalhar...

Nesse instante separei-me deles e desci, a fim de verifi­car se minha mudança progredia. Essa tarefa estava a cargo do camaroteiro.

— Conseguiu uma cabina ótima, senhorita, na ala D, número 13.

— Oh! não — exclamei —, 13, não. Tenho superstição pelo número 13.

A cabina era realmente muito confortável. Hesitante, inspecionei-a, mas a tola superstição predominou. Chamei o camaroteiro, prestes a chorar.

— Não haverá outra cabina vaga? O jovem pôs-se a refletir.

— Sim, a 17, a estibordo. De manhã ainda estava de­socupada, mas acho que um senhor a reservou. Em todo caso, como ainda não fizeram a mudança e sendo os homens menos supersticiosos do que as mulheres, é bem possível que lhe seja indiferente vir para esta.

A proposta deixou-me contentíssima, e o camaroteiro partiu a fim de obter a autorização do comissário. Voltou sorridente.

— Está tudo arranjado, senhorita. Vamos.

E conduziu-me à cabina 17. Não era tão espaçosa quan­to a 13, mas satisfazia-me plenamente, e isso me bastava.

— Vou providenciar a mudança imediatamente, se­nhorita.

Nesse instante, o homem de rosto sinistro (assim o apelidara) apareceu diante da porta.

— Desculpe-me — disse —, esta cabina está reservada para Sir Eustace Pedler.

— Pois não, senhor — explicou o camaroteiro —, já estamos preparando a 13 para ele.

— Não, reservei a 17.

— A 13 é melhor, senhor — muito maior.

— Preferi esta às outras e tenho o consentimento do comissário.

— Peço-lhe desculpa — interrompi com frieza —, mas eu também a reservei para mim.

— Não concordo.

O camaroteiro intrometeu-se na conversa.

— É a mesma coisa, somente que a outra é melhor.

— Desejo ficar com esta.

— Que significa isso? — perguntou uma voz estranha. E, dirigindo-se ao empregado: — Traga minha bagagem para cá. Esta cabina é minha.

Quem falava era o Reverendo Edward Chichester, meu vizinho à mesa do almoço.

— Peço perdão — disse. — Esta cabina é minha.

— Está reservada para Sir Eustace Pedler — insistiu o Sr. Pagett.

A discussão acalorava-se.

— Sinto muito, mas tenho o direito de contestar — disse Chichester com um sorriso humilde, que desmentia a determinação de conseguir o seu intento.

De há muito notei que as pessoas humildes geralmente são obstinadas.

O camaroteiro, ao ver o reverendo introduzir-se na ca­bina, disse:

— Sua cabina é a 28, na ala esquerda. É muito con­fortável, senhor.

— Sinto ter de continuar a insistir. Esta é a que me prometeram.

Chegáramos a um impasse. Estávamos decididos a não ceder. Sinceramente, preferia de qualquer forma contornar a situação e desistir da contenda aceitando a cabina 28. Exce­to a 13, era de somenos importância que ficasse em outro camarote. Mas meu sangue fervia. Não desejava, de forma alguma, ser a primeira a recuar. Além do mais, não simpa­tizava com Chichester, nem com sua dentadura, que estalava durante a mastigação. Motivos inferiores a esse levam-nos, muitas vezes, a detestar alguém.

Repetimos os mesmos argumentos mais uma vez. Ga­rantia-nos o camaroteiro, cada vez com mais firmeza, que ambas as cabinas eram melhores. Ninguém lhe dava atenção. Pagett começou a zangar-se, mas Chichester conserva­va-se sereno. Embora com esforço, eu procurava fazer o mesmo. Ninguém cedia.

Uma piscadela e uma palavra murmurada pelo empre­gado foram suficientes para que eu desempenhasse a con­tento o meu papel. Abandonei a cena discretamente. Por sorte, não demorei a encontrar o comissário.

— Oh! por favor! — exclamei — o senhor não disse que eu poderia ficar com a cabina 17? Mas os outros não querem ir embora. Mr. Chichester e Mr. Pagett. O senhor vai dar-me a cabina, não vai?

Sempre afirmei serem os homens do mar exímios no trato gentil com as mulheres. O meu caro comissário corres­pondeu maravilhosamente à expectativa. Com largas passa­das, entrou em cena e não só informou aos disputantes que a cabina 17 era minha, como também que a 13 e a 28 esta­vam à disposição de ambos os senhores.

Dei-lhe a entender que ele era um verdadeiro herói e saí imediatamente para instalar-me no meu novo domínio. A altercação foi-me salutar. Ademais, o oceano estava calmo, os dias cada vez mais quentes e o enjôo de mar era coisa do passado. Subi ao convés a fim de iniciar-me no jogo de ma­lha e inscrever-me em diversos esportes. Na hora do chá, servido no tombadilho, comi com entusiasmo. Depois, fui jogar shovel-board em companhia de rapazes simpáticos e amabilíssimos. Como era agradável viver! Surpreendi-me ao ouvir o toque de cometa — era o momento de vestir-me para jantar —, então apressei-me em chegar à minha nova cabina. O camareiro esperava-me.

— A cabina está com um cheiro horrível, senhorita! Não atino com a razão; creio mesmo que a senhorita não suportará passar a noite aí. Poderia mudar-se para um cama­rote vago do convés C, somente por uma noite.

O odor era realmente desagradabilíssimo — quase nau­seante. Expliquei ao rapaz que pensaria no caso enquanto me preparava para o jantar. Vesti-me apressadamente, espirrando amiúde.

Que cheiro seria aquele? Rato morto? Não, pior ainda — e completamente diferente. Mas sabia o que era aquilo!

Conhecia esse odor tão desagradável! Alguma coisa... Ah! Descobri afinal! Assa-fétida! Na época da guerra, trabalhei por algum tempo no dispensário de um hospital e familia­rizei-me com diversos medicamentos de odor simplesmente nauseante.

Sem dúvida, era assa-fétida. Como, porém...

Afundei o corpo no sofá, ao descobrir a solução do ca­so. Alguém pusera uma pitada de assa-fétida na cabina. Qual o objetivo? Que me mudasse? Por que tanta ansiedade em ver-me fora de lá? Rememorei a cena ocorrida à tarde sob um ângulo diverso. Que havia com a cabina 17 para ser tão solicitada? Os outros dois camarotes eram melhores. E essa obstinação em preferir o 17?

Dezessete. Que número insistente! Parti de Southampton no dia 17. Era o número 17... fiquei imóvel, com a respiração ofegante. Abri rapidamente a mala e tirei o pre­cioso papel escondido dentro da meia.

17 1 22 — Tinha imaginado que esses algarismos signi­ficassem uma data: a data da partida do Castelo de Kilmorden. E se estivesse enganada? Pensando bem, quando escre­vemos uma data é necessário acrescentar o mês e o ano? Suponhamos que 17 significasse cabina 17? E 1? A hora — uma hora. Então, 22 só podia ser a data. Procurei-a no calendário.

O dia seguinte era 22!

 

Tomei-me de grande nervosismo. Trilhava por fim o caminho certo. Estava claro que não podia ausentar-me da cabina. A assa-fétida tinha de brotar. Examinei novamente os fatos.

No dia seguinte, 22, à uma da madrugada ou uma da tarde, alguma coisa ia acontecer. Optei pelo primeiro ho­rário. Eram sete da noite. Dentro de seis horas, ficaria sa­bendo ao certo.

Não me recordo de como transcorreu a tarde. Retirei-me cedo, depois de explicar à aflita camareira que, resfriada como estava, perdera o olfato. Ante a perspectiva de impre­vistos, envolvi-me num penhoar de espessa flanela, calcei chinelos e recolhi-me tristemente ao leito. Nesses trajes, ser-me-ia fácil saltar da cama e tomar parte ativa em qualquer espécie de acontecimentos.

Que podia esperar? Ignorava. Pensamentos vagos adejavam-se no cérebro. De uma coisa estava firmemente con­vencida: algo ia suceder.

Ouvi meus companheiros de viagem dirigirem-se para suas cabinas. Fragmentos de conversa, despedidas alegres flutuavam através da bandeira da porta. Silêncio. Apagou-se a maior parte das luzes. Uma, na passagem externa, conti­nuava acesa, irradiando claridade dentro do camarote.

Soaram oito badaladas. O transcorrer da hora seguinte pareceu-me o mais longo da minha vida. Consultei o relógio de pulso para verificar se não me enganara.

Caso minhas deduções estivessem erradas e nada acon­tecesse à uma hora, não teria passado de uma tola, a gastar num logro o dinheiro que possuía. O coração batia-me des­compassado.

Ouvi o soar de dois relógios. Uma hora! E nada suce­dia! Espere... o que seria aquilo? Percebi o leve ruído de alguém que corria...

Rápida como uma bomba, a porta abriu-se e um homem projetou-se para dentro da cabina.

— Salve-me — disse uma voz rouca. — Estão à minha procura.

O momento não era próprio para argumentar ou pedir explicações. Ouvia ruído de passos. Tinha cerca de quarenta segundos para agir. De um salto, pus-me de pé frente ao estranho, postado no meio da saleta.

Não é fácil esconder um homem de um metro e oitenta num camarote de navio. Abri o porta-malas, dando tempo ao rapaz de se esconder debaixo do beliche, enquanto eu, com a outra mão, puxava para perto de mim a bacia para lavar o rosto. Destramente, enrolei o cabelo no alto da ca­beça. O penteado, desprovido de elegância, podia, de certo ponto de vista, ser considerado uma suprema obra de arte. Uma mulher com o cabelo no alto da cabeça, e no ato de tirar o sabonete da mala, está-se preparando evidentemente para lavar o rosto e o pescoço. Quem me julgaria conivente de um fugitivo?

Uma pancadinha e a porta abriu-se antes que eu dis­sesse: — Entre.

Não conseguia prever o desenrolar dos acontecimentos. Ocorreu-me que podia ser tanto Mr. Pagett brandindo o re­vólver como o meu amigo missionário com um saco de areia ou outra arma mortífera. O que menos esperava era a cama­reira da noite, com olhar inquisidor — a personificação da respeitabilidade.

— Desculpe, a senhorita chamou?

— Não — disse —, não chamei.

— Desculpe incomodá-la.

— Não tem importância. Como não conseguia dormir, achei oportuno fazer uma ablução. — Assim falando dava a impressão de estar fora da rotina.

— Desculpe, senhorita — repetiu a jovem. — Mas como um senhor muito embriagado se dirigiu para estes la­dos, achamos que podia entrar na cabina de uma das senho­ras, pregando-lhes um susto.

— Que horror! — exclamei com expressão alarmada. — Será que ele não vem para cá?

— Oh, não creio, senhorita. Se vier, toque a campai­nha. Boa noite.

— Boa noite.

Abrindo a porta, espiei o corredor. Ninguém à vista, exceto a camareira, que se afastava.

Bêbado! Eis a explicação do fato! Desperdiçara inutil­mente meus dotes artísticos... Abri um pouco mais o porta-malas, dizendo em tom áspero:

— Faça o favor de sair imediatamente!

Não houve resposta. Espiei embaixo do beliche. O visi­tante jazia imóvel, como se dormisse. Bati-lhe no ombro, sem

resultado.

Completamente embriagado, pensei louca de raiva. Que fazer?

A vista de uma pequena mancha de sangue no soalho cortou-me a respiração.

Reunindo toda a força consegui arrastá-lo para o cen­tro do camarote. O semblante mortalmente pálido indicava ter perdido os sentidos. Recebera profundo ferimento — uma punhalada sob a omoplata esquerda. Tirei-lhe o paletó e pus-me a cuidar da ferida.

Moveu-se ao contacto da água, fria como uma ferre-toada; em seguida, sentou-se.

— Faça o favor de ficar imóvel — ordenei.

O rapaz voltava a si rapidamente. Levantou-se, conse­guindo manter-se em pé, sem recobrar inteiramente o equi­líbrio.

— Obrigado; não é preciso que me faça coisa ne­nhuma.

Falou em tom de desafio, quase agressivo, sem me dirigir sequer uma palavra de agradecimento.

— A ferida é profunda; vou fazer um curativo.

— Não vai fazer nada.

Lançou-me em rosto as palavras como se eu lhe tivesse pedido um favor. Zango-me com facilidade, por isso respon­di-lhe friamente:

— Suas maneiras não são dignas de aplauso.

— Posso, pelo menos, livrá-la da minha presença. — Cambaleante, deu alguns passos na direção da porta. Num movimento brusco, puxei-o rapidamente para o sofá.

— Deixe de tolice — falei sem a menor cerimônia. — Por acaso pretende continuar desse jeito, com o ferimento sangrando pelo navio todo?

Ele entendeu o sentido das palavras, pois permaneceu imóvel durante o tempo em que lhe enfaixava a ferida.

— Pronto — disse momentos depois, tocando-lhe de leve no ombro —, por agora é só. E então, está mais bem humorado e disposto a contar o que significa isso tudo?

— Sinto não poder satisfazer sua vontade; é muito natural que esteja curiosa.

— Por que não pode? — perguntei contrariada. O sorriso do rapaz era maldoso.

— Quem quiser espalhar uma notícia, que a conte a uma mulher; caso contrário, deve conservar a boca fechada.

— Acha que não sou capaz de guardar um segredo?

— Acho, não, tenho certeza. — E levantou-se.

— De qualquer forma — continuei ferinamente —, sou capaz de espalhar um pouco do que sucedeu esta noite.

— Sem dúvida — falou com indiferença.

— Que ousadia! — exclamei zangada.

Estávamos frente a frente, olhares chispantes, ferozes como dois inimigos figadais. Pela primeira vez, tive opor­tunidade de observá-lo pormenorizadamente: cabelo escuro cortado rente, queixo proeminente, cicatriz na face morena, olhos cinza-claros, fitando-me de forma estranha — difícil de descrever —, como que a zombar de mim. Aparentava ser pessoa perigosa.

— Salvei-lhe a vida e nem ao menos agradece! — ex­clamei com falsa doçura. Fazia questão de insistir nesse ponto. Percebi distintamente que hesitava. Sabia, por intui­ção, que ele não gostava de tocar no assunto e o quanto detestava dever-me a vida. Não dei a mínima importância ao fato; procurava feri-lo, como nunca o fizera em toda a minha vida.

— Prouvera a Deus que não me salvasse! — disse numa explosão. — Queria morrer para livrar-me disso.

— Fico satisfeita por saber que reconhece a dívida. E não vai se livrar disso. Salvei-lhe a vida e estou à espera de ouvir um "muito obrigado".

Se olhar matasse, eu cairia fulminada no mesmo instan­te. Passou desabridamente por mim, e, perto da porta, fa­lou-me por sobre o ombro:

— Não espere que eu lhe agradeça, nem agora nem nunca. Apenas reconheço a dívida. Algum dia será paga.

Desapareceu, e eu fiquei de punhos cerrados e com o coração a bater desesperadamente.

 

O resto da madrugada transcorreu calmo. Tomei café na cama e levantei-me tarde. Ao chegar ao convés, Mrs. Blair recebeu-me festivamente.

— Bom dia, ciganinha. Sente-se aqui perto de mim. Parece que não dormiu bem à.noite.

— Por que me chama assim? — indaguei, enquanto obedientemente me sentava.

— Importa-se? A alcunha assenta-lhe bem. Desde o primeiro dia dei-lhe esse apelido. Você tem um ar de cigana, que a torna diferente de todo mundo. Cheguei à conclusão de que você e o Coronel Race eram as duas únicas pessoas com quem seria agradável conversar.

— É engraçado — disse. — Pensei a mesma coisa da senhora. Só que, da minha parte, compreende-se perfeita­mente. A senhora... a senhora é um primor!

— Nada mau o elogio — disse Mrs. Blair, agradecendo com um sinal de cabeça. — Fale-me de sua vida, ciganinha. Qual o motivo que a leva à África do Sul?

Contei-lhe alguns fatos sobre meu pai.

— Mas, então, é filha de Charles Beddingfield? Logo percebi que não era uma simples provinciana! Vai a Broken Hill desenterrar crânios?

— Talvez — respondi cautelosamente. — Tenho ou­tros planos também.

— Que criatura de coragem! E misteriosa! Mas você está cansada. Não passou bem a noite? A bordo não consigo ficar acordada. Os tolos dormem dez horas, segundo dizem.

Sou capaz de dormir vinte. — Bocejou, como uma gatinha sonolenta. — Um empregado idiota acordou-me durante a noite para entregar-me o filme que perdi ontem no convés. Estendeu o braço através da escotilha e jogou-o bem em cima de minha barriga. No primeiro momento, até pensei que fosse uma bomba!

— Aí vem seu amigo, o coronel — observei, quando a figura alta e marcial do Coronel Race surgiu no tombadilho.

— Não é só meu. Sente grande admiração por você, ciganinha. Por isso, não fuja.

— Vou buscar um lenço para amarrar à cabeça. É mais confortável do que chapéu.

E saí imediatamente. Desconhecia a razão por que o Coronel Race não me agradava. Sentia-me tímida na sua presença.

Entrei na cabina e principiei a procurar alguma coisa com que prender as madeixas rebeldes. Naqueles dias pro­curava ser meticulosa no arranjo dos meus pertences e con­servá-los numa determinada ordem. Nem bem abri a gaveta, percebi que tinham mexido nos meus guardados. Examinei o armarinho e as outras gavetas. Foi a mesma coisa. Era como se tivessem dado uma busca apressada e de resultado negativo.

Sentei-me, muito séria, na beirada do beliche. Quem seria o autor da busca? Qual a finalidade? Seria pelo papel com números e palavras rabiscadas? Abanei a cabeça, em sinal de contrariedade. Isso, com certeza, era coisa passada. O que mais podia ser?

Precisava meditar sobre o assunto. Os acontecimentos ocorridos na noite anterior, apesar de empolgantes, nada elucidavam. Quem seria o moço que entrara de maneira tão abrupta na minha cabina? Não o vira antes no convés, nem no salão. Era funcionário da companhia de navegação ou passageiro? Quem o havia ferido? E por que, meu Deus, estava a cabina 17 tão visada? Tudo era mistério, mas sem dúvida estavam se passando fatos extraordinários no Castelo de Kilmorden.

Contei nos dedos as pessoas que convinha manter em observação.

Pondo de lado o visitante da noite anterior, mas com a promessa a mim mesma de descobri-lo a bordo antes do tér­mino do dia, achei conveniente atentar nas seguintes pessoas:

(1) Sir Eustace Pedler. Proprietário da Casa do Moi­nho, cuja presença a bordo do Castelo de Kilmorden parecia ser mera coincidência.

(2) Mr. Pagett, o secretário de fisionomia sinistra, tão ansioso por conseguir a cabina 17. N. B. — Descobrir se acompanhou Sir Eustace a Cannes.

(3) Reverendo Edward Chichester. Temperamento um tanto esquisito. A animosidade que sinto por ele foi provocada pela sua obstinação em obter a cabina 17. A obstinação é coisa terrível.

Contudo, não seria inoportuna a troca de algumas pa­lavras com esse senhor. Amarrei rapidamente um lenço na cabeça e subi outra vez ao convés, bem decidida a realizar meu plano. A fortuna me sorria. O homem lá estava, apoiado na grade, tomando caldo de carne. Caminhei diretamente para ele.

— Espero que já me tenha perdoado pelo que sucedeu com a cabina 17 — disse acompanhando as palavras com meu sorriso mais simpático.

— É anticristão guardar rancor — respondeu Mr. Chichester friamente. — Mas o comissário me prometeu a cabina.

— Os comissários são tão ocupados, não acha? — per­guntei. — Acredito que, às vezes, se esquecem das pro­messas.

O reverendo nada respondeu.

— É a primeira vez que vai à África? — indaguei em tom convencional.

— Para a África do Sul, é a primeira. Trabalhei estes dois últimos anos na África oriental.

— Formidável! Deve ter escapado por um triz!

— Escapado?

— De ser devorado, quero dizer.

— Não deve tratar de assuntos sagrados com tanta le­viandade, Miss Beddingfield.

— Ignorava que o canibalismo fosse assunto sagrado — repliquei zangada.

Nova idéia acudiu-me ao cérebro, mal terminei de pronunciar essas palavras. Se Mr. Chichester realmente passou os dois últimos anos na África, como é que seu rosto não estava queimado pelo sol? E a pele alva e rosada como a de um bebê? Surgiam-me suspeitas. Além disso, as maneiras e a voz eram exatamente como manda o figurino. Demasiada­mente, talvez. Era — ou não — apenas um clérigo de fachada?

Lembrei-me dos padres de Little Hampsley. Alguns me foram simpáticos, outros, não, mas nenhum, claro está, asse­melhava-se ao missionário. Os de Little Hampsley eram seres humanos — Mr. Chichester, o símbolo da magnificência.

Enquanto assim pensava, passou Sir Eustace Pedler. Quando se achava em frente do reverendo, curvou-se, er­gueu um pedaço de papel e, estendendo-o a Mr. Chichester, observou:

— O senhor deixou cair alguma coisa.

E prosseguiu no passeio, provavelmente sem notar o nervosismo do sacerdote. A devolução dó papel — ignoro o seu valor — agitou-o profundamente. Sua tez cobriu-se de uma cor esverdinhada e começou a amarrotar a folha até transformá-la numa bolinha. As minhas suspeitas multi­plicaram-se.

Percebendo o meu olhar, apressou-se em dar expli­cações.

— É... é... um trecho do sermão que estou escre­vendo — disse num sorriso contrafeito.

— É? — retorqui polidamente.

Ora essa! Trecho de sermão! Os argumentos de Mr. Chichester eram realmente muito fracos!

Deixou-me logo depois, murmurando uma desculpa. Oh! Como desejei — e quanto — tivesse sido eu e não Sir Eustace Pedler a apanhar a folha de papel! De uma coisa estava bem certa: o nome do reverendo seria o primeiro dos três a figurar na lista de suspeitos.

Terminado o almoço, fui tomar café na sala de estar. Lá divisei Sir Eustace e Pagett sentados junto de Mrs. Blair e do Coronel Race. Visto a jovem ter me saudado com um sorriso, decidi reunir-me ao grupo. Conversavam sobre a Itália.

— Mas é engano — insistia Mrs. Blair. — "Aqua calda" deve ser "água fria" — e não quente.

— A senhora não é estudiosa da língua latina — disse Sir Eustace, sorrindo.

— Os homens vangloriam-se de saber latim — conti­nuou Mrs. Blair. — No entanto, observo que, quando lhes pedimos que traduzam inscrições das igrejas antigas, jamais conseguem fazê-lo! Principiam a pigarrear até darem um jei­to de cair fora da questão.

— Muito bem — disse o Coronel Race. — É exa­tamente o que faço.

— Mas adoro os italianos — prosseguiu a senhora. — São realmente atenciosos — o que não deixa de ter seu lado desagradável. Se lhes pedimos esclarecimentos sobre um trajeto a seguir, em lugar de dizerem "primeiro à direita, depois à esquerda", respondem com verdadeira torrente de explicações. Ao ver-nos atônitas, pegam-nos delicadamente o braço e fazem todo o caminho conosco.

— Passou por experiência semelhante em Florença, Pagett? — indagou Sir Eustace, voltando-se sorridente para o secretário.

A pergunta desconcertou o rapaz. Corou e, gaguejando, respondeu:

— Oh! Foi assim mesmo, foi... hum... assim mesmo.

Murmurou um pedido de desculpa e, levantando-se da mesa, afastou-se.

— Começo a suspeitar de que Guy Pagett cometeu algum ato ignominioso durante a estada em Florença — observou Sir Eustace, fitando a silhueta distante do secre­tário. — Toda vez que se menciona Florença ou Itália ele muda de assunto ou retira-se precipitadamente.

— Cometeu, talvez, algum assassinato por lá — disse Mrs. Blair esperançosa. — Pela aparência — não se ofenda com isso, Sir Eustace —, ele dá a impressão de ser capaz de matar alguém.

— Sim, é puro Cinquecento! Às vezes, o coitado me diverte — principalmente quando sabemos como é honrado e obediente às leis.

— Trabalha há tempo com o senhor, Sir Eustace? — inquiriu o Coronel Race.

— Há seis anos — respondeu, suspirando profunda­mente.

— Deve ser ótimo secretário — observou Mrs. Blair..— Oh! Inestimável, sim, realmente inestimável.

O pobre homem sentia-se cada vez mais deprimido, vis­to o valor de Mr. Pagett constituir a causa da sua secreta mágoa. Acrescentou vivamente:

— O rapaz devia inspirar-lhe confiança, minha senhora. Nenhum criminoso tem fisionomia suspeita. Crippen, creio eu, foi um dos moços mais agradáveis que se possa ima­ginar.

— Foi preso num transatlântico, não? — murmurou Mrs. Blair.

Um tilintar de louça fez-me voltar rapidamente a ca­beça para trás; Mr. Chichester deixara cair a xícara de café.

Pouco depois, terminada a reunião, Mrs. Blair foi fazer a sesta e eu subi ao convés na companhia do Coronel Race.

— A senhorita é muito esquiva, Miss Beddingfield; on­tem à noite, durante o baile, procurei-a por toda parte.

— Fui cedo para a cama — expliquei.

— E hoje, vai fugir também? Ou vai dançar comigo?

— Será um grande prazer dançar com o senhor — murmurei timidamente. — Mas, Mrs. Blair...

— Nossa amiga, Mrs. Blair, não aprecia a dança.

— E o senhor?

— Gostaria de dançar com a senhorita.

— Oh! — exclamei com nervosismo.

O Coronel Race infundia-me certo medo. Mas, ao mes­mo tempo, a sua palestra me distraía. Era mais agradável do que discutir sobre crânios fossilizados com professores ve­lhos e gordos! Personificava exatamente o ideal dos rodesianos fortes e silenciosos. Quem sabe me casaria com ele! Não me pedira a mão — confesso —, mas, como dizem os escoteiros, estava de prontidão. Todas as mulheres, sem o menor motivo, consideram cada homem que conhecem co­mo um marido em perspectiva, ou para si mesmas, ou para as suas melhores amigas.

O coronel, exímio bailarino, tirou-me diversas vezes para dançar. Terminado o baile, pensava em voltar à cabina quando, por sugestão sua, fomos ao tombadilho dar uma volta. Depois de percorrê-lo três vezes em toda a sua exten­so, sentamo-nos nas cadeiras preguiçosas. Não se via nem um vulto sequer. A princípio a conversa seguiu ao léu. De­pois ele me perguntou:

— Sabe, Miss Beddingfield, encontrei-me uma vez com seu pai. Pessoa muito interessante. Discorreu sobre o seu assunto preferido, que, aliás, me fascina também. Fiz alguns trabalhos nesse sentido, mas são insignificantes. Quando esti­ve na região da Dordogne...

Passamos a uma conversa técnica. Dados os conheci­mentos que possuía, a ostentação de Race tinha razão de ser. Contudo, por duas vezes incorreu em enganos singula­res, que classifiquei como lapsos. Apreendia rapidamente as minhas sugestões, conseguindo disfarçar as falhas cometi­das. Uma delas foi mencionar o período musteriano como posterior ao aurignaciano — erro absurdo, mesmo para quem conhece o assunto pela rama. À meia-noite, desci para a ca­bina. Intrigavam-me ainda aquelas discrepâncias fora de pro­pósito. Seria possível que tudo aquilo não passasse de sim­ples "encenação"? Talvez nem conhecesse arqueologia... Abanei a cabeça, num vago descontentamento.

Quando ia caindo no sono, sentei-me repentinamente na cama; uma idéia, qual relâmpago, atravessou-me o cérebro. E se ele me estivesse perquirindo? Os pequenos deslizes poderiam ser nada mais do que meros testes — meios de verificar se eu possuía realmente conhecimentos sobre o as­sunto. Por outras palavras, suspeitava de que eu não fosse a verdadeira Anne Beddingfield.

 

(Fragmentos do diário de Sir Eustace Pedler, membro do Parlamento)

 

A única coisa digna de menção na vida de bordo é a tranqüilidade. Afortunadamente, meus cabelos grisalhos isentam-me da afronta de correr no convés, de baixo para

cima, carregando batatas e ovos, de praticar esportes fatigantes como Brother Bill e Bolster Bar.

É um verdadeiro mistério! Como podem achar graça em divertimentos tão cansativos! Mas o mundo está repleto de tolos. Devemos render graças a Deus por eles existirem e não pertencermos ao seu número.

Felizmente sou ótimo marinheiro. Já não posso dizer o mesmo do coitado do Pagett. Foi tomando uma cor esverdinhada, logo que zarpamos de Solent. Meu segundo secre­tário também deve estar mareado, pois ainda não apareceu. Alta diplomacia, talvez, e não enjôo de mar. O principal é que ainda não me incomodou.

De modo geral, a turma de bordo é cacetíssima, à parte dois razoáveis parceiros de bridge e uma senhora bem bo­nita — Mrs. Blair. Já nos encontramos em Londres, é claro. É das poucas mulheres que têm senso de humor. Aprecio sua conversa; apreciá-la-ia muito mais não fora a presença de um cretino taciturno, de longas pernas, que se agarra a ela como um molusco. A presença desse tal Coronel Race não lhe pode ser agradável. É, de certa forma, um belo rapaz, mas inerte como água de poço. Um desses tipos de homens fortes e silenciosos adorados pelas novelistas e pelas adolescentes.

Logo depois que deixamos a ilha da Madeira, subi ao tombadilho e Guy Pagett com voz cavernosa principiou a gaguejar alguma coisa sobre trabalho. Com milhões de diabos, para que trabalhar a bordo de um navio? A verdade seja dita: prometi aos editores entregar-lhes as minhas Reminiscências no início do verão, mas que importa! Quem lê reminiscências? Senhoras idosas que moram em subúrbios. E em que se resumem essas reminiscências? No decorrer da vida, lutei contra um determinado número de pessoas tidas • havidas como importantes. Auxiliado por Pagett, invento anedotas insípidas sobre elas. O rapaz, porém, excessivamen­te honesto, não permite que as invente sobre pessoas com quem poderia ter-me encontrado, mas que na realidade nem sequer divisei.

Com maneiras afáveis procurei persuadi-lo.

— Você parece um trapo — disse tranqüilamente. — por que não vai estender-se ao sol numa espreguiçadeira? Não, não diga mais uma palavra. O trabalho pode esperar.

Soube depois que ele tentava reservar mais um ca­marote.

— Não consigo trabalhar na cabina, Sir Eustace. Está apinhada de malas.

Pelo tom de voz podia-se pensar que as malas eram besouros negros ou qualquer outra inutilidade.

Expliquei-lhe que, apesar de ele não estar ciente do fato, é hábito mudar-se de roupa durante a viagem. Sorriu-me com aquele sorriso descorado com que sempre ouve minhas piadas e retornou aos seus afazeres.

— Mal podemos trabalhar nessa "toquinha".

Bem conheço as "toquinhas" de Pagett. Geralmente apossa-se da melhor que existe no navio.

— Pena o capitão não ter dado preferência a você desta vez — disse com sarcasmo. — Quer trazer algumas das suas malas para a minha cabina?

Usar de sarcasmo com alguém como Pagett é perigoso.

Animou-se imediatamente.

— Se fosse possível livrar-me da máquina de escrever e da mala de papéis...

A mala, pesadíssima, causa aborrecimentos sem conta aos carregadores. Pagett e eu vivemos em luta contínua; tei­ma em considerá-la objeto de minha propriedade pessoal. Até chego a acreditar que o objetivo da vida do rapaz é dei­xá-la aos meus cuidados. Eu, por meu lado, considero-a como a oportunidade para um secretário mostrar-se real­mente útil.

— Vamos pedir mais uma cabina — disse-me apres­sadamente.

Tudo parecia muito simples, mas Pagett adora o mis­tério. Apareceu no dia seguinte com cara de verdadeiro conspirador renascentista.

— Lembra-se de ter dito que eu utilizasse a cabina 17 como escritório?

— E que tem isso? A mala não passa na porta?

— As portas de todas as cabinas são do mesmo ta­manho — respondeu com seriedade. — Mas vou contar-lhe, Sir Eustace, está acontecendo uma coisa muito esquisita.

Recordações da leitura de O beliche superior borbulharam na minha mente.

— Está querendo dizer que é assombrada? — repliquei. — Mas, se não vamos dormir lá, qual a importância do caso? Fantasmas não gostam de datilógrafos.

Explicou-me Pagett que não se tratava de fantasma e que, afinal de contas, não conseguira obter a cabina 17. Relatou-me, em seguida, longa e confusa história. Segundo a narrativa, um certo Mr. Chichester, uma moça chamada Beddingfield e ele quase chegaram às vias de fato por causa do camarote. Inútil dizer — a jovem levou a melhor, dei­xando o rapaz muito sentido.

— A l3 e a 28 são melhores — afirmou —, mas eles nem ao menos se interessaram em vê-las.

— Muito bem — atalhei abafando um bocejo —, você também não se interessou, meu caro Pagett.

Fitou-me com olhar reprovador.

— O senhor disse que reservasse a cabina 17 — insis­tiu, com ares de vítima.

— Meu caro rapaz — repliquei irritado —, mencionei a 17 por estar desocupada. Não quis dizer com isso que você devia resistir até a morte por causa dela — 13 ou 28, tanto se me dá.

Havia mágoa no seu olhar.

— Há ainda mais uma coisa — teimava. — Miss Beddingfield ficou com a cabina, e, no entanto, esta manhã vi Chichester saindo de lá.

Encarei-o com severidade.

— Se está procurando fazer escândalo em torno de Chichester, que é missionário — deletéria criatura, por sinal —, e essa atraente criança, Anne Beddingfield, não acredito numa só palavra das suas insinuações — atalhei friamente. — Anne Beddingfield é uma moça simpaticíssima, com a vantagem de ter lindas pernas. Ganha por grande diferença de todas as outras que circulam pelo navio.

Meu secretário não apreciou essas considerações. Ele pertence ao tipo de homens que ou não observam pernas ou, se não for o caso, morrem mas não confessam. Julga frívolo o meu gosto por essas coisas. E, como me diverte aborrecê-lo, prossegui maliciosamente:

— Visto já terem travado conhecimento, você bem po­dia convidá-la para jantar à nossa mesa amanhã à noite. Vai haver baile à fantasia. Por falar nisso, acho conveniente que você desça à loja do barbeiro para escolher o meu traje.

— O senhor decerto não vai fantasiar-se, vai? — per­guntou Pagett horrorizado.

Percebi perfeitamente ser isso incompatível com a idéia que fazia da minha dignidade. Mostrava-se desgostoso e escandalizado. Na realidade, minha intenção era outra, mas, em vista do seu grande desapontamento, não resisti à ten­tação de continuar.

— Que quer dizer com isso? — perguntei. — É claro que vou vestir uma fantasia. E você também.

O moço estremeceu.

— Vá então ao barbeiro tomar providências — concluí.

— Creio que só tem tamanho médio — murmurou o rapaz, medindo-me com o olhar.

Não foi propositado, mas Pagett, de vez em quando, diz-me coisas terrivelmente ofensivas.

— E encomende mesa para seis no salão — disse. — Vou convidar o capitão, a menina das pernas bonitas, Mrs.

Blair...

— Sem o Coronel Race Mrs. Blair não aceita — inter­pôs meu secretário. — Soube que ele a convidou para jantar.

Pagett sempre está a par de tudo. Fiquei contrariado, e com razão.

— Quem é Race? — indaguei exasperado.

Como já disse antes, Pagett sempre está a par de tudo — ou pensa que está. Tomou ares misteriosos.

— Dizem que faz parte do serviço secreto, Sir Eustace. E é formidável no gatilho. Mas não sei se isso é verdade.

— Isso é bem do governo, não? — exclamei. — Eis um homem a bordo cuja função é levar documentos secre­tos, e no entanto, entregam-nos a mim, pacato cidadão desejoso de tranqüilidade.

A expressão do rapaz tornava-se cada vez mais miste­riosa. Aproximou-se um passo e, baixando a voz, falou:

— Se me permite, essa história é muito esquisita, Sir Eustace. Lembra-se de como fiquei doente, antes de par­tirmos...

— Meu caro rapaz — interrompi brutalmente —, foi simplesmente uma crise hepática. Você as tem freqüente­mente.

Pagett estremeceu.

Desta vez não foi como as outras. Desta vez...

— Pelo amor de Deus, não entre em detalhes, Pagett. gosto de ouvir falar nisso.

— Pois não, Sir Eustace. Acredito, porém, que deliberadamente tentaram me envenenar.

— Ah! — exclamei. — Andou conversando com Rayburn.

O rapaz não pôde negar.

— De qualquer forma, Sir Eustace, ele acha — e quem pode saber melhor?

— Por falar nisso, onde está o rapaz? — indaguei. — Não lhe pus os olhos em cima desde que zarpamos.

— Diz que está doente; não sai da cabina, Sir Eustace. Outra vez Pagett principiou a falar num sussurro:

— Mas não passa de camouflage, tenho certeza. Fica mais fácil de velar.

— Velar?

— Pela sua segurança, Sir Eustace. Caso o senhor seja agredido.

— Você é impagável, Pagett — disse. — Sou capaz de jurar que sua imaginação tem asas. Se eu fosse você, iria ao baile mascarado de Morte ou de carrasco. Combina com o tipo lúgubre de beleza tão do seu agrado.

Ao ouvir essas palavras Pagett calou-se. Deixei-o e subi ao convés. Lá estava a jovem Beddingfield em animada palestra com o padre missionário Chichester. As mulheres estão sempre volitando ao redor de sacerdotes.

Um homem de minha individualidade detesta curvar-se; no entanto, fiz a gentileza de erguer um pedacinho de papel a esvoaçar em derredor dos pés do missionário.

Esta ação não foi sequer merecedora de um agradeci­mento. Realmente, não pude deixar de ler as palavras escri­tas no papel. Formavam apenas uma sentença:

"Quem tudo quer tudo perde".

Bonita frase para sermão. Quem é, afinal, o jovem Chi­chester? Parece tão puro como o leite. Mas as aparências enganam. Meu secretário me informará a respeito. Pagett sempre está a par de tudo. Com ares dignos sentei-me ao lado de Mrs. Blair, interrompendo o tête-à-tête com Race. Notei que o clérigo vinha na nossa direção.

Convidei-a para jantar comigo na noite do baile à fantasia. De vez em quando, Race procurava um jeito de ser incluído no convite.

Terminado o almoço, a jovem Beddingfield veio sen­tar-se conosco para tomar café. Quanto às suas pernas, mi­nha opinião está confirmada. São realmente as mais bonitas que circulam pelo navio. Vou convidá-la também para o jantar.

Gostaria muito de saber que brincadeira de mau gosto andou Pagett fazendo em Florença. Todas as vezes que se menciona a Itália, o rapaz fica desarvorado. Se eu não esti­vesse ciente da sua respeitabilidade, suspeitaria de algum amour inconfessável...

Imagino bem! Pois se até os homens mais conceitua­dos... Seria sobremaneira divertido se fosse esse o pro­blema.

Pagett com um segredo culposo! Esplêndido!

 

A tarde decorreu de forma verdadeiramente singular. A única fantasia que me serviu foi a de ursinho. Não me desgosta, na Inglaterra, brincar de urso, à noite, com algu­mas meninas bonitas; em regiões equatoriais, entretanto, é desagradável. Muni-me de grande dose de espírito folião e tirei o primeiro prêmio de "fantasia de bordo" — expres­são absurda designativa de fantasia alugada por uma noite. Como todo mundo ignorava se fora confeccionada ou não especialmente para mim, nada disso importava.

Mrs. Blair compareceu em traje a rigor. Aparentemen­te está de acordo com Pagett sobre o assunto. O Coronel Race seguiu o exemplo e Anne Beddingfield idealizou um costume de cigana que lhe assentou às mil maravilhas. Meu secretário, pretextando dor de cabeça, não apareceu. Convidei em seu lugar um rapaz de fisionomia estranha chamado Reeves, membro destacado do Partido Trabalhista Sul-Afri­cano. Convém manter-me em boas relações de amizade com esse homenzinho horroroso, a fim de obter informações de que necessito. Ser-me-á interessante conhecer os prós e os contras relativos à questão do Rand.

A noite está quentíssima. Anne Beddingfield, meu par duas vezes, simulou apreciar as contradanças.

Com Mrs. Blair dancei apenas uma vez. Ela, porém, não se deu o trabalho de fingir coisa nenhuma. Tiranizei ainda diversas senhoritas, cuja aparência atraente me chamou a atenção.

À hora da ceia pedi champanha. O garçom sugeriu Clicquot 1911, o melhor vinho da adega de bordo. Foi a única coisa que destravou a língua do Coronel Race. Adeus, taciturnidade! O homem tornou-se realmente tagarela. Di­verti-me com isso durante algum tempo, até o momento em que verifiquei ser ele e não eu a alma da reunião. Ele chegou a ponto de caçoar abertamente do meu diário.

— Qualquer dia suas indiscrições virão a público, Pedler.

— Meu caro Race — disse —, permita-me sugerir que não sou tão tolo quanto julga. Talvez cometa indiscrições, mas não as consigno em branco e preto. Após minha morte os testamenteiros irão conhecer minha opinião sobre grande número de pessoas, mas duvido que valorizem ou depreciem a que têm a meu respeito. O diário é útil como registro das idiossincrasias de outrem — não das nossas.

— Não obstante, existe uma coisa chamada auto-revelação inconsciente.

— Aos olhos do psicanalista, todas as coisas são torpes — repliquei sentenciosamente.

— Deve ter tido uma vida interessantíssima, Coronel Race — disse Miss Beddingfield, fitando-o com olhos bri­lhantes.

As jovens são assim! Otelo, com suas narrativas, con­quistou Desdêmona. E como foi conquistado? Ora! Pelo jeitinho com que Desdêmona sabia ouvi-lo...

Pois bem, a moça prendeu a atenção de Race. Ele pôs-se a contar aventuras de caçadas. Homens que já caçaram numerosos leões levam vantagem colossal sobre os outros.

Já era tempo de eu contar também histórias sobre esses animais bravios. Escolhi duas cheias de vivacidade e alegria.

— Por falar em leão — observei —, lembrei-me de um fato muito emocionante. Um amigo meu foi caçar na África oriental. Uma noite, por motivo que não vem ao caso, saiu da tenda quando, então, ouviu um rugido abafado. Cheio de pavor, voltou-se rapidamente e viu um leão pronto para dar o bote. A arma estava na barraca. Veloz como o pensamento, meu amigo desviou o corpo e o leão saltou, indo cair alguns passos adiante da cabeça do rapaz. Contra­riado por haver errado o alvo, o animal soltou um rugido e preparou-se para o segundo ataque. O moço abaixou-se novamente e o leão tornou a errar o alvo. Na terceira inves­tida, o caçador já se achava perto da entrada da tenda e, num relance, pegou a arma. Quando voltou, de espingarda na mão, o leão desaparecera. Intrigadíssimo, arrastou-se até o fundo da barraca, na direção de uma pequena clareira. Lá — é a pura verdade — estava o leão atarefadíssimo, a pra­ticar pequeninos saltos.

A narrativa foi recebida com risos e aplausos. Então, bebi uns goles de champanha.

 — Noutra ocasião — narrei —, o meu amigo passou por experiência muito curiosa. Viajava numa dessas carro­ças comuns no sul da África, ansioso por chegar ao fim da viagem antes do sol a pino. Era ainda noite quando or­denou aos rapazinhos que ajoujassem as mulas. A inquietação dos animais dificultou-lhes a tarefa; mas, uma vez concluí­da, puseram-se a caminho. As mulas voavam. Aos primeiros raios do sol verificaram que, ajoujado perto da roda, estava um leão.

Essa história também foi recebida com explosão de gargalhadas, mas acredito que o maior tributo partiu do meu sisudo e pálido amigo do Partido Trabalhista.

— Bom Deus! — exclamou aflito. — Quem desatrelou os animais?

— Preciso ir à Rodésia — disse Mrs. Blair. — Depois das suas narrativas, Coronel Race, tenho mesmo de ir, ape­sar de a viagem ser horrível: cinco dias de trem!

— Vai no meu carro particular — disse-lhe galante­mente.

— Oh! como o senhor é gentil, Sir Eustace! Devo aceitar?

— Como não! — exclamei em tom reprovador, e to­mei mais uma taça de champanha.

— Daqui a uma semana chegaremos à África do Sul _- suspirou Mrs. Blair.

— Ah! a África do Sul — exclamei em tom repassado de sentimentalismo, e pus-me a citar um trecho de recente discurso que pronunciei no Instituto das Colônias. — O que possui a África do Sul digno de mostrar ao mundo? O quê, realmente? Frutas e propriedades rurais, lã e vime, rebanhos e couro cru, ouro e diamantes...

Falava rapidamente; se fizesse uma pausa, Reeves se intrometeria com o intuito de informar que o couro cru era desprovido de valor; freqüentemente, os animais fica­vam presos em arames farpados ou em qualquer outra coisa semelhante, faziam danificações e sempre acabavam morren­do por maus-tratos nas mãos dos mineiros do Rand. Não é por ser capitalista que estaria disposto a ouvir insultos. Ao som da palavra mágica — diamantes — a interrupção pro­veio de outra fonte.

— Diamantes! — exclamou Mrs. Blair em êxtase.

— Diamantes! — suspirou Miss Beddingfield. Ambas dirigiram a palavra ao Coronel Race.

— Decerto já esteve em Kimberley, não?

Eu também lá estivera, mas nada disse. Crivaram Race de perguntas. Como eram as minas? Fechavam mesmo os nativos em compartimentos? E assim por diante.

O coronel respondeu, dando mostras de profundo co­nhecimento do assunto. Descreveu a maneira como alojavam os nativos, como efetuavam as revistas e as várias precauções que De Beers era obrigado a tomar.

— Pelo que vejo, é praticamente impossível roubar diamantes, não? — perguntou Mrs. Blair com entonação de grande desapontamento. Até parecia estar empreendendo a viagem com finalidade expressa.

— Nada é impossível, Mrs. Blair. Sempre se praticam roubos — haja vista o caso do negro que escondeu a pedra preciosa na ferida.

— São muito numerosos?

— Um único, nesses últimos anos, pouco antes da guerra. Você deve lembrar-se do fato, Pedler. Ocorreu du­rante a sua estada na África do Sul.

Concordei com um sinal de cabeça.

— Conte o caso — exclamou Miss Beddingfield. — Oh! Por favor!

Race sorriu.

— Muito bem, vou contá-lo. Creio que todos já ouvi­ram falar de Sir Laurence Eardsley, grande magnata da mi­neração sul-africana. Era proprietário de minas de ouro, mas sua pessoa participa da história através do filho. Talvez se recordem de que, pouco antes da Grande Guerra, corre­ram rumores sobre a existência de nova mina, em Kimberley, oculta na base de um rochedo perdido na jângal da Guiana Inglesa. Dois moços exploradores — assim correu a notícia — de volta dessa região sul-americana traziam valiosíssima coleção de diamantes brutos, alguns de tamanho apreciável. Já haviam sido descobertos diamantes pequenos nos arredo­res dos rios Essequibo e Mazaruni. Contudo, os dois explo­radores, John Eardsley e o amigo Lucas, reivindicaram os. direitos da descoberta de filões de grandes depósitos de car­vão situados na nascente comum aos dois rios. Os diaman­tes, de coloridos vários, eram azuis, rosados, amarelos, ver­des, negros. Havia-os também do mais puro branco. Eardsley

e Lucas chegaram a Kimberley, local onde pretendiam man­dar examinar as gemas. Na mesma ocasião, efetuou-se sensa­cional roubo de diamantes pertencentes a De Beers. As pe­dras enviadas à Inglaterra seguiam reunidas em volumes guardados no interior de grande cofre-forte, cujas chaves — eram duas — ficavam em poder de dois homens. A um ter­ceiro davam a conhecer a combinação do segredo do cofre. Os diamantes eram entregues ao banco, que por sua vez os encaminhava à Inglaterra. Cada pacote tem o valor aproximado de cem mil libras esterlinas.

"O banco foi alertado pelo aspecto um pouco diferente do selo de lacre. Uma vez abertos os pacotes, verificaram que continham torrões de açúcar!

"Não sei exatamente como a suspeita recaiu sobre John Eardsley. Surgiu à tona a sua vida turbulenta em Cambridge e as dívidas saldadas pelo pai. De qualquer for­ma, logo se espalhou a notícia de que a história das terras--' diamantíferas sul-americanas não passava de pura fantasia.

£ John Eardsley foi preso. Em seu poder encontraram parte dos diamantes de De Beers.

"O caso nunca foi a julgamento. Sir Laurence Eardsley saldou a dívida e De Beers não instaurou processo. Nun­ca se soube ao certo como o roubo foi cometido. Mas, ao ter conhecimento de que o filho era ladrão, o velho ficou desesperado. Logo depois, sofreu uma crise cardíaca. De certo modo, John teve um destino clemente. Alistou-se e seguiu para o front; combateu corajosamente e por fim mor­reu no campo de batalha, dirimindo dessa forma a mácula que jazia sobre seu nome. Cerca de um mês depois, Sir Laurence, não resistindo a uma terceira crise do coração, faleceu sem deixar testamento. A enorme fortuna passou ao seu parente consangüíneo mais próximo, a um homem a quem mal conhecia."

O coronel fez uma pausa. Explodiu uma verdadeira babel de exclamações e perguntas. Miss Beddingfield, com a atenção atraída para um determinado ponto, voltou-se na cadeira, com a respiração suspensa. Então voltei-me também.

Meu novo secretário, Rayburn, estava de pé à porta. Sob o queimado da pele percebia-se a palidez de seu rosto, como alguém na presença de um fantasma. Era evidente, a história o emocionara profundamente.

De súbito, cônscio dos nossos olhares, virou-se num movimento brusco e desapareceu.

— Conhece? — indagou Anne de maneira abrupta.

— É meu secretário também — expliquei. — Mr. Rayburn. Está adoentado até hoje.

A jovem pôs-se a brincar com um pedacinho de pão sobre o prato.

— Há muito que é seu secretário?

— Muito, não — respondi cautelosamente.

É inútil precavermos-nos contra as mulheres. Quanto maior a nossa resistência, mais forçam a situação. Anne Beddingfield não titubeou.

— Há quanto tempo? — inquiriu asperamente.

— Bem... hum... tomei-o a meu serviço nas véspe­ras de viajar. Veio recomendado por um velho amigo meu.

Ela nada mais perguntou e, silenciosa, parecia meditar. Voltei-me para o coronel, achando que era a minha vez de Espertar interesse pela história.

— Sabe que é o parente mais próximo de Sir Laurence, Race?

— Tinha de saber — respondeu com um sorriso. —

Pois se sou eu!

 

(Resumo da narrativa de Anne)

Na noite do baile à fantasia, tomei a decisão de contar os fatos a alguém de confiança. Até o presente momento, agira sozinha, e com isso me deliciava. Inopinadamente, tu­do mudou. Duvidava do próprio julgamento, e, pela pri­meira vez, crescia dentro de mim estranha sensação de solitude e desolação.

Ainda vestida de cigana, sentei-me na beira do beliche, e pus-me a considerar a situação. Pensei, primeiro, no Co­ronel Race. Simpatizava comigo e estava certa de que me trataria com bondade. Ademais, não era tolo. Apesar disso, quanto mais refletia/ maior era a incerteza. Possuidor de personalidade dominadora, tomaria a si a resolução do caso. E o mistério era meu! Ainda havia outras razões que eu não desejava reconhecer, mas que tornavam desaconselhável recorrer ao Coronel Race.

Meu segundo pensamento foi para Mrs. Blair. Ela, também, tratava-me com gentileza. Não me iludia com a crença de que isso tivesse alguma significação. Talvez fosse um capricho momentâneo. Estava em mim interessá-la, pois tratava-se de pessoa que experimentara a maior parte das sensações comuns da vida. Propunha-me acrescentar-lhe uma realmente extraordinária! E depois, gostava dela, dos seus modos desenvoltos, da falta de sentimentalismo, das manei­ras libertas de qualquer indício de afetação.

Resolvi procurá-la imediatamente, onde quer que se encontrasse. Àquela hora era provável que ainda não estives­se recolhida ao leito.

Como não soubesse o número da sua cabina, resolvi recorrer ao auxílio da minha amiga, a camareira da noite.

Toquei a campainha. Após pequena demora, atendeu-me um homem que me forneceu a informação desejada. O camarote de Mrs. Blair era o número 71. Desculpou-se por tardar em atender-me, explicando que todas as cabinas esta­vam a seu cargo.

— Onde está a camareira? — perguntei.

— Deixam o trabalho às dez da noite.

— Não... refiro-me à camareira da noite.

— As camareiras não trabalham à noite, senhorita.

— Mas... uma camareira atendeu-me uma noite des­sas... mais ou menos à uma hora.

— Acho que a senhorita estava sonhando. Nenhuma camareira trabalha depois das dez.

Afastou-se, e eu lá fiquei ruminando esse bocado de­sagradável de informação. Quem seria a mulher que viera à minha cabina na noite de 22? O semblante tornou-se-me mais sisudo, à medida que avaliava a sagacidade e a audácia dos meus antagonistas desconhecidos. Então, para adiantar o expediente, saí em busca de Mrs. Blair. Bati à porta do seu camarote.

— Quem é? — ouvi-lhe a voz.

— Sou eu, Anne Beddingfield.

— Oh! Entre, ciganinha.

Dentro da cabina divisei inúmeras peças de vestuário espalhadas pelo recinto. Mrs. Blair vestia o mais encantador quimono que eu já vira: alaranjado, ouro e negro, de causar inveja a qualquer mulher.

— Mrs. Blair — disse abruptamente —, queria con­tar-lhe minha vida, se achar que não é muito tarde e que não a aborreço.

— Nem um pouco. Detesto ir para a cama — disse com aquele jeito encantador, o rosto aberto num sorriso. — Será simplesmente adorável. Você é uma criatura origina­líssima, ciganinha. Quem pensaria em irromper por aqui adentro, à uma da madrugada, para narrar a história de Sua vida? E como soube refrear durante semanas minha natural curiosidade! Não estou habituada a isso. Vai ser uma novidade muito agradável. Sente-se no sofá e desabafe.

Narrei toda a história. Foi longa, pois me lembrava de todos os pormenores. Quando terminei, deu um profundo suspiro, e nada disse do que eu esperava. Fitando-me, riu baixinho e falou:

— Sabe, Anne, que você é uma garota original? Nun­ca desmaiou?

— Desmaiar? — indaguei intrigada.

— Sim, desmaiar, desmaiar, desmaiar! Por partir so­zinha, com tão pouco dinheiro. Que vai fazer quando se encontrar, sem vintém, num país estrangeiro?

— Não adianta preocupar-me antes da hora. Ainda possuo muito dinheiro. As vinte e cinco libras, presente de Mrs. Flemming, estão praticamente intactas. Ontem ganhei quinze libras no jogo. Ora, tenho rios de dinheiro. Quarenta libras!

— Rios de dinheiro! Santo Deus! — murmurou Mrs. Blair. — Eu não me arriscaria, Anne, e sou muito corajosa, à minha moda, bem entendido. Não teria ânimo de viajar alegremente com algumas libras no bolso, sem a menor idéia do que estaria fazendo e para onde me dirigiria.

— Aí está a graça — exclamei, inflamada de entu­siasmo. — É o que dá a formidável sensação de aventura!

Fitou-me, abanou uma ou duas vezes a cabeça e depois sorriu:

— Você é uma felizarda, Anne! Poucas pessoas no mundo são como você.

— Sim — disse com impaciência —, mas o que pensa disso tudo, Mrs. Blair?

— Foi a coisa mais emocionante que já ouvi! Antes de mais nada, não me chame de Mrs. Blair. Suzanne — é muito mais simples. Combinado?

— Como não, Suzanne.

— Você é um amor. Agora, ataquemos a questão. Dis­se que reconheceu o secretário de Sir Eustace? Não me refiro a Pagett, aquele de rosto longo, mas ao outro, o ferido que entrou na sua cabina pedindo guarida.

Fiz sinal que sim.

— Então, são dois os elos que ligam Sir Eustace ao caso. A jovem foi assassinada na casa dele e seu secretário aparece ferido à uma hora da madrugada. Não lanço sus­peitas sobre Sir Eustace, mas não pode ser mera coincidên­cia. Existe algures um ponto de ligação entre os fatos, mes­mo que ele não esteja ciente disso.

— E além do mais, há o caso um tanto esquisito da camareira — continuou pensativa. — Que jeito tinha?

— Mal prestei atenção nela. Estava tão agitada, os ner­vos tão tensos, que o aparecimento da camareira foi verda­deira ducha fria. Mas... sim... creio que a fisionomia dela me é familiar. Talvez a tivesse visto de passagem.

— Acredita que a conhece — disse Suzanne. — Tem certeza de que não era um homem?

— Era muito alta — admiti.

— Hummm. Não pode ser Sir Eustace nem Mr. Pa­gett. Espere!

Pegando um pedaço de papel, pôs-se a desenhar freneticamente. Com a cabeça inclinada para um lado, examinou o desenho.

— Muito parecido com o Reverendo Edward Chichester. Vamos agora aos pormenores. — E passou-me o papel. — A camareira era assim?

— Era — exclamei. — Suzanne, como você é inteli­gente!

Com leve gesto, desdenhou do cumprimento.

— Sempre desconfiei desse tal Chichester. Lembra-se de que deixou cair a xícara de café e ficou mortalmente pá­lido quando, outro dia, falamos de Crippen?

— E ele queria por toda lei ficar com a cabina 17!

— Sim, até agora os fatos se encadeiam. Mas o que significa tudo isso? O que tencionavam realmente fazer na cabina 17, à uma da madrugada? Agredir o secretário? Não. Seria uma incongruência marcarem determinada hora, num determinado dia e lugar, para praticarem o crime. Absolu­tamente, não. Iam reunir-se e o rapaz foi apunhalado no momento em que se dirigia à cabina. Mas com quem seria o encontro? Não era com você, evidentemente. Com Chi­chester, talvez, ou Pagett.

— Pouco provável — objetei. — Os dois secretários podem encontrar-se a qualquer hora.

Guardamos silêncio durante alguns instantes. Suzanne teve outra idéia:

— Poderá dar-se o caso de haver alguma coisa escon­dida na cabina?

— Parece mais razoável — concordei. — Isso explica por que remexeram os meus guardados. Estou certa de que não havia coisa nenhuma escondida.

— Talvez, na noite anterior, o moço tivesse colocado, sem que você percebesse, alguma coisa na gaveta.

— Eu teria visto.

— Quem sabe procuravam o seu precioso pedaço de papel?

— Pode ser, mas acho completamente desprovido de sentido. Contém apenas hora e data — já passadas. Suzanne concordou.

— É mesmo. Não foi por causa do papel. Já que esta­mos no assunto, você o trouxe? Gostaria de vê-lo.

Estava comigo — era a prova A —, e estendi-o a Su­zanne. Ela examinou-o, franzindo as sobrancelhas.

Depois do 17 há um ponto. E por que não outro de­pois do 1?

— Há um espaço — mencionei.

— Sim, existe um espaço, mas...

De repente, Suzanne levantou-se, continuando a anali­sá-lo, muito próximo da lâmpada. Reprimiu um movimento, como era de seu feitio.

— Anne, não é um ponto! O papel está rasgado! As­sim como um filete, está vendo? Você não reparou e guiou-se pelos espaços — pelos espaços.

Levantei-me e, de pé junto dela, li os números da ma­neira como agora se apresentavam.

— 1 71 22.

— Viu? — perguntou Suzanne. — São os mesmos, mas não são a mesma coisa. A hora e o dia não mudaram — uma hora, dia 22 —, a cabina é a 71! A minha cabina,

Anne!

Entreolhamo-nos, encantadas com a descoberta, exta­siadas como se tivéssemos resolvido a chave do mistério. Com um choque, caí na realidade.

— Mas, Suzanne, aconteceu alguma coisa aqui, à uma hora do dia 22?

Ela ficou desapontada.

— Não... não aconteceu.

Ocorreu-me uma idéia.

— Esta cabina não é a sua, não é mesmo, Suzanne? Quero dizer, não é a que você reservou antes de partir, não?

— Não, o comissário fez a troca.

— Será que a reservaram para alguém — alguém que não embarcou? Não é difícil descobrir.

— Não é necessário descobrir, ciganinha — exclamou Suzanne. — Eu já sei! O comissário falou-me a esse respei­to. A reserva estava em nome de Mrs. Grey — nome falso de Mme Nadina, famosa bailarina russa, você sabe. Nunca se exibiu em Londres, mas enlouqueceu toda Paris e fez verdadeiro sucesso durante o tempo da guerra. É atraentíssima e dizem ter péssima reputação. Quando o comissário me ofereceu a cabina, mostrava-se realmente pesaroso pela au­sência da dançarina. O Coronel Race contou-me histórias a respeito dela, histórias singulares que circulam em Paris. Dizem que é espiã; até hoje, porém, não há provas. Deve ser esse o motivo que o levou a Paris. Narrou-me diversos fatos interessantes. Havia um grupo organizado, de origem não-alemã. O chefe, a quem chamam de Coronel, talvez seja inglês, embora nunca chegassem a uma conclusão quanto à sua identidade. Está fora de dúvida ser ele o dirigente de uma grande organização de escroques internacionais com finalidade de roubos, espionagem, assaltos. Sempre conse­guiu fazer recair a culpa dos seus atos numa vítima inocen­te. Deve ter inteligência diabólica! Supõem que a bailarina é um dos agentes do grupo. Sim, Anne, estamos seguindo a pista certa. Nadina pertence à espécie de mulheres que rea­lizam negócios excusos como este. O encontro marcado para o dia 22 à noite deveria realizar-se nesta cabina. Onde será que ela está? E por que não embarcou?

Qual relâmpago, um pensamento brotou no meu cé­rebro.

— Ela pretendia embarcar — pronunciei bem devagar.

— Então, por que não veio?

— Porque estava morta. Suzanne, a mulher assassina­da em Marlow era Nadina!

Minha mente retrocedeu à sala nua da casa vaga, e outra vez apossou-se de mim a sensação indefinível de ameaça e perigo. Por associação de idéias, lembrei-me do lápis rolando no soalho e da descoberta do rolo de filmes. Um rolo de filmes — foi como o soar de nova tecla. Onde ouvira falar em filmes? Por que os associara a Mrs. Blair?

De súbito, voei na direção de Suzanne e, agitadíssima, quase a sacudi.

— Os filmes! Aqueles que atiraram pela escotilha!

Não foi no dia 22?

— Como sabe que são os mesmos? Por que devolvê-los assim, no meio da noite? Só um louco teria tal idéia. Não. Eles contêm uma mensagem; foram retirados da latinha amarela para serem substituídos por alguma outra coisa.

— Está guardada?

— Não estou certa. Deve estar aqui. Lembro-me de tê-la colocado na prateleira ao lado do beliche.

Suzanne estendeu o braço, entregando-me a caixinha.

Era um cilindro comum, próprio para acondicionamento de filmes destinados a uso em climas tropicais. Peguei-o com mãos trêmulas, e o coração a bater aceleradamente. No­tei que o peso era acima do comum.

Ainda a tremer, retirei o papel adesivo que se destina a impedir a entrada do ar. Empurrei a tampa e numerosas pedras de vidro baço rolaram pelo leito.

— Pedras — disse profundamente desapontada.

— Pedras? — bradou Suzanne. O timbre da sua voz alertou-me.

— Pedras? Não, Anne, não são pedras! São diamantes!

 

Diamantes!

Fascinada, fiquei a contemplar os fragmentos de vidro espalhados pelo beliche. Peguei um deles, que, pelo peso, poderia ser considerado como um caco de garrafa.

— Tem certeza, Suzanne?

— Ora! Sem dúvida, minha cara. Já vi diamantes bru­tos tantas vezes que não posso ter a menor dúvida. E perfei­tos, também, Anne; alguns são raros. Deve haver uma his­tória atrás disso.

— A que ouvimos esta noite — exclamei.

— Você quer dizer...

— A história contada pelo Coronel Race. Não pode ser coincidência. Havia uma finalidade.

— Observar a reação, você quer dizer? Aquiesci com um sinal de cabeça.

— A reação que provocaria em Sir Eustace?

— Sim.

Nesse instante, uma dúvida assaltou-me. Era Sir Eusta­ce a pessoa visada ou ele tentava vir em meu auxílio? Recor­dei-me da impressão que me causou naquela noite, quando deliberadamente procurou "sondar-me". Por esta ou aquela razão, o Coronel Race desconfiava. Aonde queria chegar? Qual a ligação possível com os acontecimentos?

— Quem é o Coronel Race? — indaguei.

— É difícil responder — disse Suzanne. — Figura muito conhecida entre os caçadores, e, como você mesma o ouviu dizer esta noite, aparentado com Sir Laurence Eardsley. Conheci-o agora. Viaja freqüentemente para a África. Dizem que faz parte do serviço secreto, mas ignoro se é ou não verdade. Acho-o muito misterioso.

— Como herdeiro de Sir Laurence Eardsley vai rece­ber grande fortuna, não?

— Anne, ele nada em dinheiro! Ótimo casamento para você!

— Nem ouso tentar — disse rindo. — Com você a bordo... Oh! As mulheres casadas!

— Bem, nós levamos vantagem — murmurou Suzan­ne complacentemente. — Mas todo mundo conhece minha inteira devoção por Clarence — meu marido, você sabe. E ele acha tão tranqüilizador e agradável amar uma esposa dedicada...

— Clarence deve sentir-se feliz em ter-se casado com uma pessoa como você.

— Bem, habituei-me a viver com ele! Ademais, meu marido vai freqüentemente ao Ministério das Relações Ex­teriores, coloca o monóculo e dorme sentado numa vasta poltrona. Vamos passar um cabograma pedindo-lhe que nos conte tudo acerca de Race? Adoro mandar cabogramas. E Clarence se aborrece muito com isso. Sempre diz que cartas resolvem o problema do mesmo jeito. Não acredito que nos informe nada, porque é discretíssimo. Por isso acho difícil viver eternamente em sua companhia. Mas vamos continuar a falar sobre o seu casamento. Tenho certeza de que o Co­ronel Race está ficando apaixonado, Anne. É só você dar umas olhadelas para ele, e pronto! Muitas moças arranjam noivo nas viagens.

— Não quero me casar.

— Não? — disse Suzanne. — Por quê? Acho prefe­rível continuar casada, mesmo que seja com Clarence!

Não levei em consideração a sua leviandade.

— O que me interessa — prossegui com firmeza — é saber o que o Coronel Race tem a ver com o caso. Está metido nisso, sem dúvida.

— Que coincidência ter contado aquela história!

— Não foi coincidência — afirmei categoricamente —, porque nos observava com a maior atenção. Lembra-se? Conseguiram reaver alguns diamantes, não todos. Talvez sejam os que estão faltando... ou talvez...

— Talvez o quê?

— Gostaria de saber — era uma resposta indireta — o que aconteceu ao outro moço. Não me refiro a Eardsley, mas a — como é o nome dele? — Lucas!

— De qualquer forma, estamos deslindando o assunto. Toda essa gente está atrás dos diamantes. Decerto o "ho­mem do terno marrom" matou Nadina para apoderar-se das pedras.

— Não foi ele quem a matou — disse repentinamente.

— Claro que foi. Quem mais poderia ser?

— Ignoro. Mas tenho certeza de que não foi ele.

— Como não, se entrou na casa três minutos depois dela e voltou branco feito cera...

— Porque a encontrou morta.

— Mais ninguém entrou na casa...

— Então é porque o assassino já estava lá ou entrou de algum outro jeito. Não é necessário passar pelo chalé; bem podia ter subido pela parede.

Suzanne fitou-me atentamente.

— O "homem do terno marrom" — disse cismadora. —Quem será? De qualquer maneira, era idêntico ao "mé­dico" da estação do metrô. Teve tempo de tirar a maquilagem e seguir a mulher até Marlow. Ela e Carton iam en­contrar-se lá; ambos tinham autorização para entrar na casa e, se tomaram tantas precauções para dar aparência de na­turalidade ao encontro, é porque suspeitavam de que esta­vam sendo vigiados. Carton, não obstante, não sabia que o "homem do terno marrom" o seguia secretamente. Ao re­conhecê-lo, recebeu tão forte impacto que, desvairado, retro­cedeu um passo e caiu nos trilhos. Tudo está tão claro, não acha, Anne?

Nada respondi.

— Sim, a coisa passou-se dessa forma. Tirou o papel do bolso do cadáver e, com pressa de ir embora, deixou-o cair. Pôs-se então a seguir a mulher até Marlow. E o que fez quando saiu da casa, depois que assassinou a bailarina, ou, segundo sua opinião, quando a encontrou morta? Para onde foi?

Continuei muda.

— E agora... — disse Suzanne pensativa. — Será pos­sível que o moço tenha induzido Sir Eustace Pedler a levá-lo como secretário? Seria a única maneira de sair a salvo da Inglaterra e ao mesmo tempo enganar a justiça. Como conse­guiu subornar Sir Eustace? Dá a impressão de ter certa for­ça sobre ele.

— Ou sobre Pagett — sugeri, independente da minha vontade.

— Parece que você não gosta de Pagett, Anne. É tra­balhador e muito competente. Todos sabemos disso e assim diz Sir Eustace. Bem, continuando com a minha hipótese: Rayburn é o "homem do terno marrom". Já tinha lido o pa­pel, quando o deixou cair. Como você mesma, iludido pelo que julgava um ponto, dirigiu-se à cabina 17, à uma hora da madrugada do dia 22. A reserva do camarote já tinha sido providenciada anteriormente por intermédio de Pagett. Durante o trajeto, alguém apunhalou-o...

— Quem? — interrompi.

— Chichester. Tudo combina, você vê. Envie um ca­bograma a Lorde Nasby, Anne, dizendo que encontrou o "homem do terno marrom". O prêmio é seu!

— Você passou por cima de diversas coisas.

— De que coisas? Rayburn tem uma cicatriz, bem sei — mas isso é fácil de imitar. Ele e o assassino são da mes­ma altura e compleição. E a cabeça? Como é mesmo a des­crição com que você reduziu a pó a Scotland Yard?

Tremi. Suzanne era culta, lia muito, mas pedi aos céus que não começasse a conversar em termos técnicos de an­tropologia.

— Dolicocéfala — disse despreocupadamente. Minha amiga duvidava.

— Foi esse o termo?

— Sim. Cabeça de forma alongada, você sabe. Uma cabeça cuja largura é setenta e cinco por cento menor do que o comprimento — expliquei facilmente.

Houve uma pausa. Começava a respirar livremente quando Suzanne, de repente, disse:

— E o oposto qual é?

— O que quer dizer com... o oposto?

— Ora, deve haver um formato oposto. Como se cha­ma a cabeça cuja largura é setenta e cinco por cento maior do que o comprimento?

— Braquicéfala — murmurei a contragosto.

— Isso mesmo. Foi o que pensei.

— É? Só se cometi um lapso. Quis dizer dolicocéfala — afirmei com segurança.

Suzanne fitava-me com olhar inquisidor. Depois, riu.

— Como você mente, ciganinha! Mas, se me contasse tudo, ganharíamos tempo e evitaríamos aborrecimentos.

— Nada tenho para contar — disse constrangida.

— Nada? — perguntou Suzanne de maneira gentil.

— Creio que já contei tudo — respondi devagar. — Nao me envergonho disso. Não podemos nos envergonhar de uma coisa que... nos aconteceu. Foi por causa do que ele fez. Achei-o detestável, rude e ingrato, mas eu o com­preendi. Parecia um cão que viveu acorrentado, ou que re­cebeu maus-tratos, disposto a morder a primeira pessoa que encontrasse. Deu-me a impressão de ser muito agressivo e cheio de amargura. Não sei por que penso tanto nele, mas é assim. Preocupa-me horrivelmente. Só de vê-lo, fiquei trans­tornada. Estou apaixonada. Gosto muito dele. Sou capaz de percorrer de pés nus a África inteira para encontrá-lo e con­quistar o seu amor. Sou capaz de morrer por ele. Sou capaz de trabalhar, de me escravizar, de roubar, até de mendigar, tudo por causa dele! Pronto — agora você já sabe! Suzanne fitou-me demoradamente.

— Você não parece inglesa, ciganinha! — disse por fim. — Não é sentimental. Nunca encontrei alguém de es­pírito tão prático e ao mesmo tempo tão apaixonado! Jamais poderei amar assim — graças a Deus. — No entanto... no entanto, eu a invejo, ciganinha. Você não é como a maioria das pessoas: possui grande capacidade de amar. É uma bên­ção que não se case com o seu doutorzinho. Não me parece, de jeito nenhum, o tipo de pessoa que aprecie ter um explo­sivo em casa! Então, nada de cabograma a Lorde Nasby?

Abanei a cabeça.

— Continua acreditando na inocência do rapaz?

— Acredito também que os inocentes vão para a forca.

— Hummm! É verdade! Anne querida, você é capaz de enfrentar os fatos, enfrente-os agora! Apesar de tudo o que me contou, talvez seja ele o criminoso.

— Não — afirmei. — Ele, não.

— Isso é sentimentalismo.

— Não, não é. Admito que fosse capaz de matar. Ad­mito até que tenha seguido a mulher com essa idéia em men­te. Mas não a estrangularia com um pedacinho de corda preta. Se o fizesse, seria com as próprias mãos.

Suzanne estremeceu levemente. Fitou-me com os olhos quase fechados.

— Hummm! Anne, estou principiando a entender por que esse moço tanto a encantou!

 

Na manhã seguinte tive oportunidade de fazer pergun­tas capciosas ao Coronel Race. Terminada a limpeza do con­vés, andávamos de um lado para outro.

— Como vai a ciganinha esta manhã? Com saudades de terra firme e da carroça com a barraquinha?

Sacudi a cabeça negativamente.

— Agora que o mar está tão calmo, tenho a impressão de que gostaria de ficar por aqui eternamente.

— Que entusiasmo!

— Ora, a manhã está tão linda!

Debruçamo-nos na grade. Reinava grande tranqüilida­de. O oceano parecia coberto de uma camada oleosa, e, na sua superfície, as enormes áreas azuis, verde-claras, esme­ralda, púrpura e alaranjadas, lembravam um quadro cubista. Vez por outra, passava um peixe-voador, qual relâmpago prateado. O ar, úmido e quente, parecia viscoso, mas a brisa assemelhava-se a uma carícia.

— Muito interessante a história que nos contou on­tem à noite — disse, quebrando o silêncio.

— Qual?

— A dos diamantes.

— Creio que todas as mulheres se interessam por esse assunto.

— É claro! Por falar nisso, o que aconteceu ao outro rapaz? Eram dois.

— A Lucas? Ah! Sim; ausente o companheiro, não foi possível prosseguir no julgamento. Saiu livre, também.

— Sabem do seu paradeiro?

O Coronel Race olhava em frente, para o mar. O sem­blante inexpressivo como uma máscara dava-me, contudo, a impressão de não ter gostado das perguntas.

Respondeu prontamente:

— Seguiu para a guerra e portou-se como um bravo. Recebeu um ferimento e, como tivesse desaparecido, foi dado por morto.

Fiquei sabendo o que desejava. Nada mais perguntei.

Nunca como naquele momento quis tanto saber até que pon­to chegavam os conhecimentos do coronel sobre o caso. Intrigava-me o papel que desempenhava naquilo tudo.

Ainda faltava uma coisa: ter uma conversa com o cama­reiro da noite. Com um pequeno estímulo financeiro, logo consegui que destravasse a língua.

— A senhorita não ficou assustada, ficou? Parecia uma brincadeira inocente. Alguma aposta, ou outra coisa assim, foi o que deduzi.

Aos poucos, foi vomitando tudo. Durante a viagem da Cidade do Cabo à Inglaterra, um passageiro entregou-lhe um rolo de filmes, instruindo-o para que no trajeto de volta o jogasse no camarote 71, à uma da madrugada do dia 22 de janeiro. O camarote deveria estar ocupado por uma senhora, e toda a história não passava de uma simples aposta. Deduzi que o empregado fora regiamente pago para realizar o negó­cio. Não mencionaram o nome da senhora. Naturalmente, assim que subiu ao navio, Mrs. Blair, por intermédio do co­missário, conseguiu a cabina 71. Ao camareiro não poderia ocorrer tratar-se de outra pessoa. Chamava-se Carton o pas­sageiro que lhe fizera o pedido sobre o filme, e o tipo des­crito combinava exatamente com o do homem morto na estação do metrô.

Em todo caso, parte do mistério estava desvendada. Os diamantes constituíam, pois, a chave da situação.

Os últimos dias no Kilmorden transcorreram rapida­mente. À medida que nos aproximávamos da Cidade do Ca­bo, achei de bom alvitre considerar cuidadosamente meus planos futuros e manter diversas pessoas em observação: Mr. Chichester, Sir Eustace e o secretário e, por certo, o Coronel Race também! Como agir? Chichester estava em primeiro lugar. Na verdade, embora com relutância, estava a ponto de dispensar a vigilância sobre Sir Eustace e Mr. Pagett, quando uma conversa oportuna me despertou novas dúvidas.

Não me esquecera de que, à simples menção de Florença, Mr. Pagett mostrava-se incompreensivelmente emocio­nado. Na última noite a bordo, estávamos todos sentados no convés, quando Sir Eustace dirigiu uma pergunta inteira­mente inocente ao secretário. Não me lembro do assunto; só sei que se relacionava com os atrasos verificados nas estradas de ferro italianas. Notei imediatamente o constrangi­mento de Mr. Pagett, como da outra vez. Quando Sir Eustace tirou Mrs. Blair para dançar, sentei-me na cadeira vaga ao seu lado. Estava firmemente determinada a chegar ao âmago da questão.

— Sempre tive vontade de ir a Itália — disse. — Principalmente a Florença. Aproveitou bastante a estada lá?

— Muitíssimo, Miss Beddingfield. Com licença, há a correspondência de Sir Eustace que...

Segurei-o com firmeza pela manga do paletó.

— Oh! Não é preciso fugir! — exclamei num tom afe­tado de viúva rica. — Tenho certeza de que Sir Eustace não gostaria que me deixasse sozinha, sem ninguém com quem conversar. Parece que não aprecia falar sobre Florença. Oh! Mr. Pagett, estou começando a acreditar que o senhor guar­da o segredo de um crime!

Ainda com a mão a segurar-lhe o braço, senti seu corpo estremecer repentinamente.

— Não, Miss Beddingfield! De forma alguma! — dis­se aflito. — Teria imenso prazer, mas, creia, há uns cabogramas...

— Oh! Mr. Pagett, que desculpa! Vou contar a Sir Eustace...

Não foi preciso prosseguir. Ou ira vez o rapaz estreme­ceu. Dava a impressão de estar sob grande tensão nervosa.

— O que deseja saber?

O tom de mártir resignado fez-me sorrir interiormente.

— Oh! Tudo! Os quadros, as oliveiras... Fiz uma pausa, meio embaraçada.

— O senhor fala italiano?

— Infelizmente, nem uma palavra, a não ser, é claro, com os porteiros de hotéis... humm... os guias...

— Ah! Muito bem — apressei-me em responder. — E qual o quadro que mais apreciou?

— Oh! humm... a Madona... humm, Rafael, a senhorita sabe.

— Velha Florença querida — murmurei em tom senti­mental. — Tão pitoresca, às margens do Arno. Lindo rio. E o Duomo, lembra-se do Duomo?

— É claro, é claro.

— Rio lindo também, não acha? — arrisquei. — Qua­se tão belo quanto o Arno.

— Sim, sem dúvida.

Prossegui, embalada pelo sucesso da cilada. Agora, já não tinha dúvida. A cada palavra pronunciada, Mr. Pagett atrapalhava-se. Nunca estivera em Florença. Mas então on­de? Na própria Inglaterra, quando surgiu o mistério da Casa do Moinho? Decidi dar um golpe de audácia.

— Coisa curiosa! — exclamei. — Penso que já o vi antes. Devo estar enganada, porque o senhor estava em Florença nessa ocasião. Mas, assim mesmo...

Observei-o francamente. Lançou-me um olhar de caça acuada e passou a língua pelos lábios secos.

— Onde... humm... onde...

— Acho que o vi? — disse terminando a frase. — Em Marlow. Conhece Marlow? Ora! Tolice minha, pois se Sir Eustace tem uma casa lá!

Murmurando uma desculpa incoerente, minha vítima levantou-se e saiu quase a correr.

Nessa noite, tomada de ardente entusiasmo, invadi a cabina da minha amiga.

— Veja, Suzanne — insisti ao terminar a história —, ele estava na Inglaterra, em Marlow, na ocasião do crime. Ainda tem certeza, agora, de que o "homem do terno mar­rom" é o culpado?

— De uma coisa estou certa — respondeu, com os olhos brilhando inesperadamente.

— De quê?

— De que o "homem do terno marrom" é mais bonito do que o coitado do Pagett. Não, Anne, não fique zangada. Estava querendo apenas amolar você. Brincadeira à parte, fez uma descoberta importantíssima. Até este momento Pa­gett tinha álibi. Agora, não tem mais.

— Exatamente — disse. — Precisamos ficar de olho nele.

— Em todos — murmurou tristemente. — Muito bem, quero tratar de outro assunto. É sobre finanças. Não, não faça cara feia. Sei quanto é orgulhosa e independente, mas ouça a voz do bom senso. Somos sócias; não lhe ofere­ceria um real só porque gosto de você, ou porque está de­samparada; o que quero é emoção e estou pronta a pagar por ela. Vamos seguir juntas, sem olhar despesas. Antes de mais nada, você vai comigo, às minhas expensas, para o Mount Nelson Hotel, e então planejaremos a campanha. Discutimos, mas afinal concordei, embora ficasse des­contente. Desejava realizar o plano por minha própria conta.

— Está decidido — disse Suzanne por fim. Levantando-se, espreguiçou-se e disse num grande bocejo: — Minha eloqüência exauriu-me. Vamos agora falar sobre as nossas vítimas. Mr. Chichester vai para Durban. Sir Eustace para o Mount Nelson Hotel, na Cidade do Cabo, e depois para a Rodésia, em vagão reservado da estrada de ferro. Ontem à noite, num momento de expansão, depois da quarta taça de champanha, convidou-me a ir em sua companhia. Pensou talvez que eu não aceitasse; mas, se eu continuar firme, não poderá retirar o oferecimento.

— Ótimo! — concordei. — Vigie Sir Eustace e Pagett e deixe Chichester por minha conta. E o Coronel Race?

Suzanne fitou-me de maneira estranha.

— Anne, não é possível que suspeite...

— Como não! Suspeito de todos. Estou disposta a vigiar qualquer pessoa, por menos visada que seja.

— O Coronel Race também vai para a Rodésia — continuou Suzanne, pensativa. — Se conseguirmos que Sir Eustace o convide...

— Você é capaz disso; consegue o que quer.

— Adoro lisonjas — ronronou Suzanne.

Quando nos separamos, ficou combinado que Suzanne usaria de toda a habilidade para o bom resultado dos nossos intentos.

Eu estava tão agitada, que preferi não ir deitar-me ime­diatamente. Era a última noite a bordo. No dia seguinte, bem cedinho, chegaríamos à baía de Table.

Corri para o convés. Soprava uma brisa fresca, agradá­vel, e o navio oscilava no mar levemente encapelado. O tombadilho deserto estava às escuras. Passava da meia-noite.

Curvada sobre a grade, pus-me a observar o rastro fosforescente de espuma. Deslizávamos velozmente nas águas negras, em direção à África. Sentia como se fosse o único ser num mundo maravilhoso. Fiquei imóvel, envolta em estranha paz, perdida em sonhos, despercebida do perpas­sar das horas.

Inopinadamente, estranha sensação alertou-me contra um possível perigo. Nada ouvira, mas instintivamente olhei ao redor. Protegido pela escuridão, um vulto arrastava-se por trás de mim. No momento em que me voltava para o seu lado, deu um salto e, apertando-me o pescoço, sufo­cava-me os gritos. Lutei desesperadamente, mas debalde. Meio asfixiada, mordia e arranhava meu antagonista — não fosse eu mulher! Com uma das mãos o homem continuava a apertar-me o pescoço e, com isso, levava desvantagem. Se me tivesse apanhado distraída, ser-lhe-ia facílimo, num único e súbito movimento, atirar-me no mar. Os tubarões se encarregariam do resto.

Aos poucos, as forças me abandonavam. O assaltante despendia todas as energias na luta. Foi quando outro vulto, correndo com os pés de veludo, juntou-se a nós. Com um único soco, estendeu o adversário no tombadilho. A tremer, recostei-me na grade, dominada por uma sensação de mal-estar.

Com rápido movimento, meu salvador voltou-se para mim:

— Está ferida!

O tom ríspido era uma ameaça contra quem ousara ofender-me. Reconheci-o antes de ouvir-lhe a voz. Era o moço — o homem da cicatriz.

Nesse instante, o agressor levantou-se rápido como um relâmpago e disparou pelo convés. Soltando uma imprecação, Rayburn saiu a persegui-lo.

Detesto não participar dos acontecimentos, por isso fui também no encalço do fugitivo. Seguimos pelo convés, a estibordo do navio. Perto da porta do salão, jazia, todo encurvado, o corpo inerte do homem. Rayburn inclinou-se sobre ele.

— Deu outro soco? — perguntei com a respiração suspensa.

— Não foi necessário — respondeu sorridente. — En­contrei-o assim. Ou não conseguiu abrir a porta ou então ^ pura simulação. Logo veremos. E vamos também saber quem é.

Aproximei-me, com o coração a bater, descompassado. Percebi, imediatamente, que o assaltante era mais alto do que Chichester. O missionário, de compleição delicada, seria capaz de, numa situação premente, fazer uso da faca. De resto, em suas mãos nuas, de pouco lhe serviria.

Rayburn acendeu um fósforo. Ambos soltamos uma exclamação de surpresa. O homem era Guy Pagett.

Rayburn mostrava-se estupefato com a descoberta.

— Pagett — murmurou. — Bom Deus, é Pagett! Senti-me em situação de superioridade.

— Está admirado?

— Estou — respondeu lentamente. — Jamais suspei­tei... — Mirou-me atentamente. — E a senhorita não está? Conseguiu reconhecê-lo no momento em que a atacou?

— Não, em absoluto. Apesar disso, não estou tão sur­presa.

O rapaz encarou-me com desconfiança.

— Pergunto-me a mim mesmo que proveito vai tirar disso. Sabe alguma coisa a respeito?

Sorri.

— Bastante, Mr.... humm... Lucas!

Franzi os sobrolhos, dada a força com que me apertou o braço.

— Onde descobriu esse nome? — perguntou rude­mente.

— Pois não é assim que se chama? — disse com doçu­ra.— Ou prefere o apelido de o "homem do terno marrom"?

Minhas palavras confundiram-no; retirando a mão do meu braço, afastou-se um pouco.

— Moça ou feiticeira? — disse tomando fôlego.

— Amiga — e aproximei-me dele. — Ofereci-lhe mi­nha ajuda uma vez e ofereço-a novamente. Aceita?

Diante da resposta violenta, recuei:

— Nada quero das mulheres. Para o inferno as boas intenções.

Como da outra vez, comecei a impacientar-me.

— Talvez — disse — o senhor não avalie até que ponto está em meu poder. A uma palavra minha o ca­pitão...

— Pois então diga essa palavra — falou em tom zombeteiro. E, adiantando um passo: — Embora esteja imagi­nando coisas, minha cara, não imaginou que está em meu poder neste minuto? Posso agarrá-la pelo pescoço, assim. — Num rápido gesto, a ação seguiu-se às palavras. Senti

Suas mãos ao redor do pescoço, a comprimi-la — mas sem­pre de leve. — Assim, e asfixiá-la aos poucos! Depois, com mais sorte do que este nosso amigo inconsciente, fácil seria atirar o seu cadáver no mar. E agora, que me diz?

Minha resposta foi uma risada, embora soubesse que o perigo era real. Naquele instante, Rayburn odiou-me. Eu adorava o perigo, da mesma forma como adorei o contato das suas mãos em torno do meu pescoço. Jamais trocaria esse momento por outro qualquer da minha vida.

Deu uma risadinha e libertou-me.

— Como se chama? — inquiriu abruptamente.

— Anne Beddingfield.

— Nada a amedronta, Anne Beddingfield?

— Oh! Sim — respondi, adotando um tom indiferente que estava longe de sentir. — Vespas, mulheres sarcásticas, adolescentes, baratas e chefes de balconistas.

Riu o mesmo riso curto de antes. Em seguida, com os pés, moveu o corpo inanimado de Pagett.

— Que fazer com este rebotalho? Jogar no mar? — perguntou despreocupado.

— Como quiser — respondi com a mesma calma.

— - Admiro seus instintos sanguinários, Miss Bedding­field. Bem, ele vai se recobrar aos poucos.

— Pelo que vejo, é incapaz de cometer um segundo assassinato — disse com voz macia.

— Segundo assassinato? Fitou-me sinceramente intrigado.

— A mulher de Marlow — relembrei, observando atentamente o resultado da frase.

Horrenda expressão perpassou-lhe pela fisionomia. Pa­recia ter-se esquecido da minha presença.

— Podia tê-la matado — disse. — Às vezes, chego a acreditar que desejava matá-la...

Invadiu-me violenta onda de ódio pela mulher morta. Naquele instante, eu é que me sentia com forças de matá-la, caso aparecesse na minha frente... Houve tempo em que ele a amara... com certeza... com certeza... Por isso fica­ra tão transtornado!

Recuperando o sangue-frio, falei:

— Creio que nada mais temos para dizer, a não ser um boa-noite.

— Boa noite e até a vista, Miss Beddingfield.

— Au revoir, Mr. Lucas.

Sobressaltou-se novamente ao ouvir o nome. Aproxi­mando-se, disse:

— Por que me falou assim — isto é, au revoir?

— Porque alguma coisa me diz que ainda nos encon­traremos.

— Não, se depender de mim.

O tom enfático não me ofendeu. Pelo contrário, en­cheu-me de íntima alegria. Não sou tão tola, afinal.

— Apesar disso — falei em tom grave —, creio que nos encontraremos.

— Por quê?

Sacudi a cabeça, incapaz de explicar o que me levara a pronunciar aquelas palavras.

— Não quero vê-la nunca mais — confirmou num im­pulso violento.

A frase era rude, confesso, mas, rindo baixinho, desa­pareci na escuridão.

Ouvi seus passos seguindo-me, depois foi o silêncio, e então o som de uma palavra ficou a flutuar na escada. "Fei­ticeira", talvez...

 

(Fragmentos do diário de Sir Eustace Pedler)

Mount Nelson Hotel, Cidade do Cabo.

 

Foi uma verdadeira satisfação para mim deixar o Kilmorden. Durante a viagem, tive a impressão de estar envol­vido numa trama de intrigas. Em resumo: na última noite, Guy Pagett bebeu e andou metido em briga. Que pensar de um homem que me aparece com uma pelota do tamanho de um ovo no lado direito da cabeça e a pálpebra matizada de todas as cores do arco-íris?

Pagett, como não podia deixar de ser, continua miste­rioso, e quer me fazer crer que os acontecimentos da véspera sejam o resultado do seu devotamento aos meus interesses. Contou-me uma história muito vaga, entremeada de divagações. Custou-me entendê-la.

Primeiro, encontrou-se com um homem cuja atitude lhe despertou desconfiança — estou transcrevendo suas pró­prias palavras; com certeza extraiu-as diretamente das pá­ginas de algum conto sobre espionagem alemã. Nem ao me­nos sabe o que significa "um homem de cuja atitude descon­fiou". Foi o que lhe disse.

— Andava sorrateiramente, altas horas da noite, Sir Eustace.

— E você, o que estava fazendo? Por que não foi para a cama dormir como um bom cristão? — indaguei, irritado.

— Estava providenciando o código dos cabogramas para o senhor, Sir Eustace, e depois datilografei o diário.

— E então?

— Pensei em dar um giro antes de me recolher, Sir Eustace. O homem estava passando no corredor justamente em frente da sua cabina. Pelo seu olhar, julguei que tinha acontecido alguma coisa. Saiu furtivamente pela escadaria do salão, e eu atrás dele.

— Meu caro Pagett — falei —, qual a razão por que o coitado do rapaz não poderia ir ao convés? Tantas pes­soas dormem lá — e de maneira muito desconfortável. Sempre pensei assim. Às cinco em ponto, os marinheiros pro­cedem à limpeza do tombadilho e borrifam-nas com água. — Estremeci à simples idéia de que isso me acontecesse. — De qualquer maneira — prossegui —, se você importunou um pobre-diabo que sofre de insônia, não admira que lhe desse um soco bem dado.

Pagett continuava paciente.

— Se quiser ter a bondade de me ouvir, Sir Eustace... Percebi que o homem estava rondando sua cabina. E o que e que tinha de fazer por lá? No corredor só há duas cabinas: a sua e a do Coronel Race.

— Race — afirmei, acendendo cuidadosamente um cigarro — sabe tomar conta de si próprio sem seu auxílio, Pagett. — Depois, acrescentei como conclusão: — Eu tam­bém.

Pagett aproximou-se, fungando, como sói acontecer quando vai contar um segredo.

— Veja, Sir Eustace, imaginei — e agora tenho certe­za de que é Rayburn.

— Rayburn?

— Sim, Sir Eustace. Abanei a cabeça.

— Rayburn tem suficiente bom senso para não me acordar durante a noite.

— É verdade, Sir Eustace. Creio que foi encontrar-se com o Coronel Race. Encontro secreto, para receber ins­truções!

— Não assobie no meu ouvido, Pagett — falei, afastando-me um pouco —, e veja se controla a respiração. A idéia é simplesmente absurda. Por que marcar encontro altas horas da noite? Se tiverem alguma coisa que dizer, nada mais fácil do que conversar perfeitamente à vontade à hora em que servem o consommé.

Pagett não concordou.

— Alguma coisa estava acontecendo ontem à noite, Sir Eustace — insistiu. — Por que Rayburn me assaltou de maneira tão brutal?

— Tem certeza de que foi Rayburn?

Pagett parecia convencido do fato. Foi a única parte da história em que se mostrou positivo.

— Tudo isso é muito esquisito — continuou. — Em primeiro lugar, que fim levou Rayburn?

É verdade; desde o desembarque não lhe pusemos os olhos em cima. Não nos acompanhou ao hotel, mas não acredito que esteja com medo de Pagett.

Essa história me aborrece muitíssimo. Um dos meus secretários some como por encanto e o outro mais parece um desconceituado pugilista profissional. Nessas condições, é impossível levá-lo comigo, a não ser que queira passar por palhaço na Cidade do Cabo. Hoje à tarde, tenho encontro marcado para entregar o billet-doux do velho Milray, mas Pagett não vai comigo. Para o diabo com essa mania de es­preitar os outros!

Decididamente, estou de mau humor. Tive um desjejum venenoso em companhia de pessoas venenosas. Garçonetes holandesas de grossos tornozelos levaram meia hora para me servir um péssimo pedaço de peixe. Além disso, essa farsa de submeter-me ao maldito exame médico! Ficar plantado às cinco da madrugada de mãos para o alto can­sa-me horrivelmente.

 

Mais tarde.

Deu-se um fato muito grave. Fui levar a carta de Mil­ray ao primeiro-ministro. O envelope lacrado parecia in­tacto, mas o conteúdo era uma folha em branco!

Meti-me numa confusão dos diabos. Não sei como, mas Milray, esse cretino choramingas, sempre consegue enredar-me em casos complicados.

Pagett é péssima companhia nos momentos em que necessito de conforto. Manifesta certa satisfação sombria que me enlouquece. Ainda mais, aproveitou-se da minha perturbação para deixar a mala de papéis inteiramente a meu cargo. Se o rapaz não tomar cuidado, o próximo enterro será o dele.

Por fim, tive de ouvi-lo.

— Quem sabe, Sir Eustace, Rayburn, sem ser pressen­tido, escutou uma ou duas palavrinhas da conversa que manteve, na rua, com Mr. Milray. Lembre-se, o senhor não recebeu autorização escrita de Mr. Milray. Aceitou Rayburn pelo que ele próprio lhe disse.

— Então, julga Rayburn um escroque? — disse pausadamente.

Pagett confirmou. Ignoro até que ponto o ressentimen­to pelo olho preto influenciava a sua opinião sobre Rayburn. Falou-me longamente contra o companheiro. Não pensei em tomar providências. O homem a quem fazem de tolo não se apressa em espalhar o fato aos quatro ventos.

Não obstante o recente infortúnio, Pagett, com a ener­gia costumeira, estava pronto a tomar medidas drásticas. A seu modo, evidentemente. Pôs em alvoroço o posto policial, enviou inúmeros telegramas e convidou uma verdadeira multidão de militares ingleses e holandeses para tomar uísque com soda, às minhas expensas.

Nessa tarde chegou a resposta de Milray. Nada sabia a respeito do meu secretário! Afinal, restava um pequenino conforto.

— Apesar dos pesares — disse a Pagett —, não o en­venenaram. Apenas sofreu mais uma das suas crises hepáticas.

O rapaz franziu os sobrolhos. Foi a minha única des­forra.

Mais tarde.

Pagett está no seu elemento. Agora que Rayburn nada mais é do que o "homem do terno marrom", o cérebro do meu secretário cintila, repleto de idéias brilhantes. Acho que ele está com a razão, como sempre. Essa confusão está se tor­nando desagradável. Quanto antes seguir para a Rodésia, melhor. Já comuniquei a Pagett que ele não vai comigo.

— Escute, meu caro rapaz, a sua presença é necessária aqui. A qualquer momento, poderá ser chamado para iden­tificar Rayburn. Além disso, na qualidade de membro do Parlamento inglês, tenho de zelar pela minha própria digni­dade. Não posso apresentar-me em público acompanhado de um secretário cuja aparência dá a impressão de ter-se imis­cuído em briga de bêbados.

Pagett fitou-me com ar sisudo. Por ser tão respeitável, seu aspecto causa-lhe tristeza e aflição.

— Mas e a correspondência e as anotações para os dis­cursos, Sir Eustace?

— Eu me arranjo — respondi despreocupadamente.

— O vagão reservado segue no trem das onze, ama­nhã, quarta-feira — continuou Pagett. — Já tomei todas as providências. Mrs. Blair vai levar empregada.

— Mrs. Blair? — murmurei, com indiferença.

— Ela me disse que é sua convidada.

Era verdade, agora me lembrava. Na noite do baile à fantasia, convidei-a com insistência. Nunca pensei que acei­tasse. Apesar de encantadora, não estou certo se realmente quero a companhia de Mrs. Blair durante todo o trajeto da

viagem à Rodésia. As mulheres exigem tanta atenção da nossa parte! E, além disso, são difíceis como o diabo!

— Convidei mais alguém? — indaguei nervoso. — Num momento de expansividade, fazemos cada coisa!

— Mrs. Blair deu a entender que o Coronel Race tam­bém é seu convidado.

Senti-me simplesmente arrasado.

— Devia estar embriagado quando convidei Race, mui­to embriagado mesmo. Siga meu conselho, Pagett, e que o seu olho negro lhe sirva de aviso; não vá cair na bebedeira outra vez.

— Como é de seu conhecimento, sou abstêmio, Sir Eustace.

— Em vista da sua fraqueza, é mais prudente que faça voto de abstenção de todas as bebidas. Não convidei mais ninguém, não, Pagett?

— Não, que eu saiba. Dei um suspiro de alívio.

— E Miss Beddingfield? — disse pensativo. — Quer ir à Rodésia desenterrar ossos, creio. Estou disposto a ofe­recer-lhe trabalho, temporariamente, como minha secretária. Ela me contou que é datilografa.

Surpreendeu-me a veemência com que Pagett se opôs à idéia. O rapaz não gosta de Anne Beddingfield. Desde a noite do baile, demonstra emoção incontrolável quando se fala na moça.

Vou convidá-la, uma vez que isso o aborrece. Já men­cionei antes as belíssimas pernas da jovem.

 

(Resumo da narrativa de Anne)

 

Por mais que viva, jamais poderei esquecer-me da pri­meira vez que divisei o monte Table. Levantei-me de madrugada e subi ao tombadilho, diretamente para os barcos. Sa­bia estar cometendo verdadeiro crime, mas decidi fazer algu­ma coisa com o propósito de minorar a minha solidão. Estávamos justamente entrando na baía de Table. Nuvens que mais pareciam alvos carneirinhos pairavam acima da montanha, e nas encostas, até a orla do mar, aninhava-se a cidade adormecida, cor de ouro, como que enfeitiçada pelos raios de sol.

Prendi a respiração, presa desse sentimento estranho que nos domina quando deparamos com o supremamente belo. Não me exprimo com facilidade, mas sabia ter encon­trado — durante um momento fugaz, é verdade — aquilo por que ansiava desde a minha partida de Little Hampsley. Era algo novo, que ultrapassava a minha imaginação, sa­ciando o meu ardente desejo de romance e aventura.

Em completo silêncio — assim me parecia —, o Kilmorden deslizava, aproximando-se da baía. Era como num sonho e, como todos os sonhadores, não podia abandonar a irrealidade. Nós, pobres seres humanos, nada queremos perder.

— É a África do Sul — repetia ininterruptamente. — África do Sul, África do Sul. Você está vendo o mundo. Isto é o mundo. Você está vendo o mundo. Pense nisso, Anne Beddingfield, sua cabeça oca. Você está diante do mundo!

Julguei que o convés ia ser só meu, mas logo notei uma silhueta debruçada na grade, absorta também na contem­plação da rápida aproximação da cidade. Antes que voltasse a cabeça, sabia de quem se tratava. Na tranqüila manhã ensolarada, a cena da noite anterior parecia irreal e melodra­mática. Que pensaria de mim? Senti-me enrubescer quando me lembrei do que lhe dissera. Contudo, não fora — ou fora — por mal?

Resolutamente, virei a cabeça para o outro lado e pus-me a contemplar a montanha. Se Rayburn desejava ficar só, não iria perturbá-lo, atraindo a atenção para a minha presença.

Com profunda surpresa, ouvi passos leves por trás de mim, e em seguida uma voz alegre chamou-me:

— Miss Beddingfield. Voltei-me.

— Quero pedir desculpas. Procedi como um verdadei­ro selvagem, ontem à noite.

— Ontem, foi... foi uma noite diferente — disse depressa.

A observação não era das mais brilhantes, mas foi a única que me ocorreu.

— Quer me perdoar?

Tomou a mão que lhe estendi em silêncio.

— Quero dizer mais uma coisa. — Sua expressão tornou-se mais grave. — Miss Beddingfield, talvez não saiba que se meteu num negócio muito perigoso.

— Também cheguei a essa conclusão.

— Não creio. Não é possível saber, por isso quero avisá-la. Abandone a idéia, mesmo porque não lhe diz res­peito. Não permita que a curiosidade a leve a intrometer-se em negócios alheios. Por favor, não se zangue outra vez. Estou falando para seu bem. Sei que não faz idéia do que pode acontecer; nada detém esses homens. São implacáveis. Já correu perigo — lembre-se de ontem à noite. Imaginam que a senhorita sabe alguma coisa. A única saída é persua­di-los de que estão enganados. Mas tome cuidado, sempre de atalaia contra o perigo, e se algum dia cair nas mãos deles, não force a situação; aja com inteligência — conte a verdade. Repito: é a única esperança de salvar-se.

— Estou ficando arrepiada de medo, Mr. Rayburn — disse. Principiava a acreditar no que me dizia. — Por que se dá o trabalho de avisar-me?

Levou alguns instantes para responder; depois, falou baixinho:

— Talvez seja a última coisa que posso fazer pela senhorita. Quando descer em terra, estarei a salvo; mas não sei se conseguirei...

— O quê? — exclamei.

— Bem vê, temo não seja a única pessoa a bordo a saber que sou o "homem do terno marrom".

— Se está pensando que contei... — disse em tom de protesto.

Rayburn tranqüilizou-me com um sorriso.

— Não estou duvidando, Miss Beddingfield. Se alguma vez o disse, foi mentira. A bordo existe um homem que sabe. Se resolver falar, estou perdido. Em todo caso, estou levando a coisa na esportiva; quem sabe ele não venha a falar.

— Por quê?

— Porque é pessoa que prefere agir sozinha. Quando eu cair nas garras da polícia, não mais poderei ser-lhe útil. Se conseguisse me livrar! Bem, dentro de pouco tempo sa­berei.

Riu com escárnio, mas notei a expressão dura de seu rosto. Se apostava com o destino, era bom jogador. Era dos que sabem perder e ainda sorriem.

— De qualquer maneira — falou —, não acredito que nos encontremos outra vez.

— Não — confirmei pausadamente. — Não acredito.

— Então... adeus.

— Adeus.

Durante alguns instantes, segurou com força a minha mão, os olhos claros, tão singulares, como que a lançar chispas dentro dos meus; depois, voltando-se abruptamente, afastou-se. E eu fiquei a ouvir o ruído dos passos soando e tornando a soar no tombadilho. Jamais poderia esquecê-lo. Passos... que deixavam um vazio na minha vida.

Confesso francamente, não pude aproveitar as duas horas seguintes. Só depois de chegar ao cais e de preencher todas as ridículas formalidades exigidas pela burocracia, res­pirei livremente. Como não efetuassem nenhuma prisão, des­cobri que o dia estava maravilhoso, e que sentia uma fome canina. Fui ao encontro de Suzanne, porque íamos pernoi­tar no mesmo hotel. O vapor, com destino a Port Elizabeth e Durban, só partiria na manhã seguinte. Tomamos um táxi e nos dirigimos ao Mount Nelson.

Tudo me parecia celestial. O sol, o ar, as flores! Lem­brei-me de Little Hampsley, em janeiro, de ruas enlameadas e a chuva que "com certeza ia cair". Julguei-me digna de felicitações. Suzanne não participava dos meus entusiasmos. Viajara muito, sem dúvida. Além disso, era incapaz de ani­mar-se antes do café da manhã. Lançou-me verdadeira ducha fria diante do meu entusiasmo por uma gigantesca trepadeira coberta de flores azuis.

A propósito, quero deixar bem claro que não vou dis­correr sobre a África do Sul. Nada de cor local — sabemos bem o que significa: meia dúzia de palavras em itálico por página. É coisa que muito admiro, mas não posso imitar. Quando falamos das ilhas dos mares do sul, referimo-nos imediatamente a bêche-de-mer. Não sei o que quer dizer bêche-de-mer, nunca soube e provavelmente nunca saberei. Uma ou duas vezes, cheguei a ter uma idéia, mas estava erra­da. Na África do Sul, falamos de stoep, mas isso eu sei o que significa: é uma coisa redonda, que se coloca ao redor das casas e serve de sala de estar. Em várias outras partes do mundo recebe outras denominações: varanda, piazza e ha-ha. Existe também o mamão. Já tive ocasião de ler sobre esse fruto, por isso não tive dúvida quando o puseram na minha frente, na hora do café. A primeira impressão foi a de um melão passado. Experimentei-o novamente, depois dos esclarecimentos prestados pela garçonete holandesa, que me convenceu a comê-lo com umas gotas de limão. Tive prazer em travar conhecimento com o mamão. Associava-o. vagamente à hula-hula. Mas, se não me engano, hula-hula é uma saia de palha usada pelas havaianas. Não, enganei-me outra vez; a saia é lava-lava.

Em contraposição à maneira tão diversa como nos ex­primimos na Inglaterra, essas coisas são muito divertidas. Não posso deixar de imaginar o quanto a nossa ilha, tão fria, se tornaria mais alegre se comêssemos bacon-bacon no desjejum ou então vestíssemos uma blusa-blusa para sair à rua.

Depois da primeira refeição, Suzanne tornou-se mais sociável. Da janela do meu quarto, contíguo ao dela, descor­tinava-se o lindo panorama da baía de Table. Contemplava-o enquanto minha amiga se punha à procura de um pote de beleza. Encontrando-o, começou imediatamente a aplicá-lo e, então, pôde prestar atenção às minhas palavras.

— Viu Sir Eustace? — perguntei. — Saía da sala do café justamente na hora em que entrávamos. Não gostou do peixe ou não sei de quê e queixou-se ao chefe dos gar­çons. Jogou um pêssego no chão para mostrar como estava duro — não tanto quanto pensava, e o pêssego esborrachou-se.

Suzanne sorriu.

— Sir Eustace, como eu mesma, não gosta de levan­tar-se cedo. Anne, e Mr. Pagett? Você o viu? Encontramo-nos no corredor. Está com um olho amassado. Que terá acontecido?

— Ora! Quis apenas atirar-me pela grade do navio —-respondi com indiferença.

Foi um sucesso! Suzanne interrompeu a massagem fa­cial, assediando-me com perguntas. Não me fiz de rogada.

— O mistério aumenta dia a dia — exclamou. — Se se tratasse de Sir Eustace, eu resolveria facilmente o caso, enquanto você se divertiria à custa do Reverendo Edward Chichester; mas agora a coisa mudou de figura. Vamos ver se, numa noite escura, Pagett não me vai atirar do trem.

— Você está fora de suspeita, Suzanne. Mas, caso aconteça alguma coisa, telegrafarei imediatamente a Clarence.

— Ah! Agora me lembro — dê-me um impresso de telegrama. Vamos ver, que é que eu digo? "Envolvida no mistério mais emocionante favor mandar mil libras imedia­tamente Suzanne."

Peguei o impresso e sugeri eliminar o "no" e, se não fizesse muita questão de ser delicada, o "favor" também. Suzanne dá a impressão de não ligar a mínima importância aos assuntos de ordem financeira. Em lugar de atender às minhas sugestões de economia, acrescentou mais três pala­vras: "divertindo-me imensamente".

Minha amiga combinara almoçar com amigos, que a foram buscar no hotel, às onze horas mais ou menos. Fiquei sozinha, entregue aos meus próprios pensamentos. Desci e pus-me a caminhar nos terrenos de propriedade do hotel, atravessei as linhas da estrada de ferro e segui por fresca avenida sombreada, até alcançar a rua principal. Sempre ca- * minhando, admirava o panorama, deliciada com o sol e a divertir-me em ver os vendedores negros apregoando flores e frutas. Encontrei um lugar onde havia o melhor sorvete com soda. Por fim, acabei comprando uma cestinha de pês­segos e voltei ao hotel.

Foi-me alegre surpresa encontrar um bilhete do admi­nistrador do museu, dizendo ter sabido da minha chegada no Kilmorden, onde o informaram ser eu filha do Professor Beddingfield. Conheceu meu pai, por quem sentia grande admiração. Acrescentou que a esposa tinha muito prazer em convidar-me para tomar chá, à tarde, na sua vila, em Mui-zenberg. Em seguida vinham instruções sobre o trajeto.

Alegrou-me saber que meu pobre pai ainda era alta­mente considerado. Achei que seria bom levar alguém co­migo até o museu, mas resolvi assumir o risco e segui so­zinha.

Saí logo após o almoço. Vestida de linho branco e com o melhor chapéu (um dos que Suzanne pusera de lado), to­mei o expresso para Muizenberg e meia hora mais tarde lá chegava. O trajeto é muito bonito. Contornamos a base do monte Table, onde se viam lindas flores. Como sou fraca em geografia, nunca me passou pela cabeça que a Cidade do Cabo se localizasse numa península; por isso, surpreendi-me quando, ao sair do trem, novamente divisei o mar. Pessoas sobre pequenas tábuas de bordos recurvos vogavam ao sabor das ondas. Dirigi-me ao pavilhão de banhos, e, quando me perguntaram se queria uma daquelas pranchas, respondi: "Sim, por favor". Julguei facílima a prática desse esporte. Pois não é. E não digo mais nada. Furiosa, arremessei a prancha bem longe de mim. Não obstante, estava resolvida a voltar na primeira oportunidade e experimentá-la outra vez. Não me deixaria vencer. Por casualidade, finalmente, consegui deslizar sobre as águas. Fiquei louca de alegria. Esse esporte é assim: ou dizemos terríveis impropérios ou ficamos tolamente satisfeitas com nós mesmas.

Foi um pouco difícil encontrar a Vila Madgee. Situa­va-se no alto da encosta da montanha, isolada dos outros chalés e vilas. Sorridente, um negrinho banto respondeu ao toque da campainha.

— Mrs. Raffini? "

Fez-me entrar e, precedendo-me no corredor, abriu uma porta. No momento de transpor o limiar, hesitei. Assal­tou-me súbito pressentimento, mas assim mesmo atravessei-o. Com um baque, a porta fechou-se por trás de mim.

Um homem sentado a uma mesa levantou-se e diri­giu-se para o meu lado com a mão estendida, dizendo:

— Quanto prazer com sua visita, Miss Beddingfield. Era alto, holandês, evidentemente, de barba flamejante.

Não tinha aspecto de administrador de museu. No mesmo instante, percebi que levara um logro. Estava em poder do inimigo.

 

Não pude deixar de me lembrar da terceira parte de Vameia corre perigo. Quantas vezes me sentei naquelas ca­deiras de preço ínfimo, mastigando uma barra de chocolate, ansiosa por que aquelas coisas me acontecessem! Pois bem, aconteceram muito mais. Só que não as achava tão divertidas como imaginara. No cinema, tudo corre muito bem; sabía­mos, para nosso sossego, que viria a quarta parte. Mas quem poderia garantir que para Anne, a Aventureira, o filme não ia terminar abruptamente no fim de qualquer episódio?

Sim, estava metida em maus lençóis. Veio-me à memó­ria o que Rayburn me dissera com rude franqueza naquela manhã. "Fale a verdade", tinha dito. Seria conveniente? Em primeiro lugar, que crédito merecia? Achariam plausível que me envolvesse nessa louca aventura, estribada unicamente num pedacinho de papel com cheiro de naftalina? A história era inacreditável. Enquanto raciocinava friamente, amaldi­çoei-me, chamei-me de idiota melodramática. E quanto de­sejei voltar à vida calma e aborrecida de Little Hampsley!

Todos esses pensamentos atravessaram-me o cérebro como um relâmpago. Instintivamente, olhei para a maçaneta da porta. O homem limitou-se a sorrir. Depois, disse com expressão zombeteira:

— Aqui está e aqui fica. Resolvi encarar de frente a questão.

— O administrador do Museu da Cidade do Cabo con­vidou-me a vir. Se cometi um engano...

— Engano? Oh! Sim, e bem grande! Riu um riso selvagem.

— Não tem direito de deter-me aqui. Vou informar a polícia...

— De que maneira? — E riu novamente. Sentei-me numa cadeira.

— Devo concluir que o senhor é um louco perigoso — disse em tom gélido.

— Sou?

— Quero avisá-lo de que meus amigos estão perfeitamente a par dos meus passos. Se eu não voltar até a tarde, sairão à minha procura. Entendeu?

— Então, seus amigos sabem onde está, hein? Qual deles?

Lançado o desafio, pus-me rapidamente a calcular de que possibilidade dispunha. Deveria mencionar Sir Eustace? Era muito conhecido e seu nome bem podia fazer pender a balança para o meu lado. Mas, caso os meus adversários estivessem em contacto com Pagett, a mentira viria à luz. Melhor deixar Sir Eustace em paz.

— Mrs. Blair é minha amiga — disse despreocupadamente. — Viemos juntas.

— Não acredito — disse o meu guardião, sacudindo a cabeça ruiva. — Não se vêem desde as onze da manhã. E você leu o bilhete a hora do almoço.

Percebi, então, o quanto era rigorosa a vigilância exer­cida sobre a minha pessoa. Contudo, não estava disposta a entregar os pontos antes de lutar.

— É muito inteligente — observei ironicamente. — Talvez já tenha ouvido falar numa útil invenção — o tele­fone. Mrs. Blair telefonou-me depois do almoço, enquanto eu descansava no quarto.

Com grande satisfação notei que o homem dava sinais de leve inquietação. Esquecera-se, evidentemente, da possi­bilidade de um chamado de Suzanne. Como desejei que fos­se verdade!

— Basta! — disse rudemente. E levantou-se.

— Que vai fazer de mim? — indaguei, esforçando-me para aparentar calma.

— Levá-la para onde não possa causar aborrecimentos, caso seus amigos venham procurá-la.

O sangue gelou-me nas veias; mas tranqüilizei-me com as palavras que proferiu em seguida.

— Amanhã, terá de responder a algumas perguntas, e somente depois saberei que atitude tomar. Uma coisa lhe digo, jovem, temos diversas maneiras de fazer falar os tolinhos obstinados.

Nada animador, mas pelo menos haveria uma trégua. Dispunha de todo o tempo até o dia seguinte. O homem, claro está, não passava de um subalterno obediente às ordens superiores. E se esse superior fosse Pagett?

Ao seu chamado acorreram dois negrinhos, que me le­varam escada acima. Debati-me sem cessar; os rapazinhos, porém, ataram-me pés e mãos. A saleta, uma espécie de sótão, situava-se logo abaixo do telhado. Apesar de bastante empoeirada, apresentava indícios de haver sido ocupada ante­riormente. O holandês, em atitude zombeteira, fez uma reve­rência e retirou-se fechando a porta.

Fiquei ao desamparo. Amarrada fortemente, não con­seguia de forma nenhuma desatar os nós que me prendiam, e além disso a mordaça impedia-me de gritar. Se por acaso chegasse alguém à casa, eu nada poderia fazer para atrair-lhe a atenção. Do andar inferior veio o som de uma porta que se fechava. Decerto o holandês ia embora.

Impossibilitada de tomar providências, sentia-me enlou­quecer. Forcei novamente as cordas que me imobilizavam, mas em vão. Desisti, afinal, e não sei se desmaiei ou ador­meci. Quando voltei a mim, estava com o corpo dolorido. A escuridão na saleta fazia crer que a noite ia avançada. A lua, alta no céu, misturava seu brilho à poeira cintilante das estrelas. Insuportáveis eram a dor e a imobilidade; havia ainda a mordaça que me asfixiava.

Foi quando pousei o olhar num pedacinho de vidro, meio escondido num cantinho do soalho. Um raio de luar incidia sobre ele. Enquanto o olhava, ocorreu-me uma idéia. Não contava com o auxílio nem dos braços nem das pernas, mas podia rolar. Lentamente, com grande dificulda­de, pus-me em movimento. Além da dor e da falta de meios de proteger o rosto com os braços, não era fácil seguir na direção desejada. Por fim, consegui alcançar meu objetivo. Levei muito tempo antes de colocar o vidro de modo que, encostado na parede, pudesse, por fricção, cortar os laços que me prendiam. O processo era demorado, cruciante e sim­plesmente desesperador. Afinal, serrei as cordas que me li­gavam os pulsos. Esfreguei-os vigorosamente e, refeita a circulação, desatei a mordaça. Algumas inspirações profun­das fizeram-me um bem extraordinário.

Não conseguia manter-me de pé, mesmo depois de de­satar o último nó. Balancei os braços para a frente e para trás com o fito de restabelecer a circulação. Pensava, antes de mais nada, em conseguir alimento.

Esperei um quarto de hora. Queria ter certeza de que a circulação se normalizara. Depois, na ponta dos pés, sem fazer o menor ruído, encaminhei-me para a porta. Como pre­via, não estava fechada a chave. Abri-a e espiei fora.

Reinava silêncio. Os raios da lua, atravessando a ja­nela, iluminavam a escada empoeirada e sem tapete. Arras­tei-me com cuidado pelos degraus abaixo. Ainda o silêncio. À medida que descia, comecei a ouvir leve murmúrio de vo­zes. Parei imediatamente e pus-me à escuta. Um relógio de parede marcava mais de meia-noite.

Prossegui na descida, perfeitamente cônscia dos riscos que corria, mas a curiosidade impelia-me. Com infinitas pre­cauções, preparei-me para iniciar as investigações. Escorre­guei de mansinho pelo último lance da escada até alcançar o vestíbulo. Olhei ao redor e, assustada, prendi a respiração. Sentado perto da porta estava um negrinho banto. Percebi que dormia.

Que fazer? Voltar ou prosseguir? As vozes vinham da mesma sala onde estivera na ocasião da chegada. Reco­nheci a voz do holandês; a outra não me era estranha.

Achei que devia ouvir a conversa, embora arriscando-me a passar perto do negrinho. Atravessei o vestíbulo e, com o corpo colado à porta, ajoelhei-me. Durante alguns instantes nada ouvi. Falavam alto, mas as palavras eram inin­teligíveis.

Espiei pela fechadura. Tinha acertado: um dos homens era o holandês; o outro estava sentado fora da minha área visual.

De repente, levantou-se para preparar um drinque. Vi-o de costas, vestido de preto. Antes que se voltasse já sabia de quem se tratava.

Era nem mais nem menos que Mr. Chichester!

Agora a conversa tornava-se clara.

— De qualquer maneira, não deixa de ser perigoso. E se os amigos vierem à procura dela? — falava o holandês.

Chichester tinha abandonado por completo o timbre clerical. Não era de admirar que eu não o reconhecesse.

— É blefe. Não têm a menor idéia de onde se en­contra.

— Ela afirmou com segurança.

— Talvez. Pensei no caso; nada temos que temer.

Além do mais, são ordens do Coronel. Não vai desobede­cer-lhe, não é?

O holandês proferiu uma exclamação no próprio idio­ma. Pela entonação parece que desaprovava.

— Uma pancada na cabeça resolvia tudo — resmun­gou. — É coisa simples. O navio está de saída. Podíamos levá-la a bordo e...

— Certo — disse Chichester em tom meditativo. — É o que eu faria. Ela sabe demais, quanto a isso não há dú­vida. O Coronel, como sabemos, prefere agir sozinho, mas não admite o mesmo de ninguém.

Falou como se algum fato desagradável se lhe reavi­vasse na memória.

— Ele quer, primeiro, obter umas tantas... informa­ções da moça.

Fez uma pausa antes de pronunciar a palavra "infor­mações". O holandês imediatamente compreendeu o que queria dizer.

— Informações?

— Mais ou menos isso. "Diamantes", disse comigo mesma.

— E agora — continuou Chichester — dê-me as listas. Durante longo tempo a conversação tornou-se quase

inaudível. Falaram muito em hortaliças. Mencionaram da­tas, preços, vários nomes de lugares que eu desconhecia, e levaram mais de meia hora a acertar aquela intrincada con­tabilidade.

— Bem — disse Chichester. Ouvi o ruído de uma ca­deira arrastada no soalho. — Vou levar estas para o Co­ronel ver.

— Quando pretende partir?

— Lá pelas dez da manha.

— Quer ver a moça antes de ir?

— Não. Há ordens severas para que ninguém a veja antes de o Coronel chegar. Ela está bem?

— Vi-a antes do jantar. Estava dormindo, creio. E a comida?

— Sentir um pouco de fome não lhe fará mal nenhum. Assim responderá melhor às perguntas do Coronel. E, até lá, que ninguém se aproxime dela. Está bem amarrada?

O holandês riu.

— O que está pensando?

Ambos desataram numa risada. Interiormente, fiz o mesmo. Os ruídos indicavam estarem prestes a deixar a sala; por isso, bati em retirada. E já não era sem tempo. Quando alcancei o topo da escada, ouvi a porta abrir-se e percebi que o negrinho se levantava. Era impossível escapar pelo vestíbulo. Movida pela prudência, voltei ao sótão, envol­vi-me nas cordas e deitei-me no soalho. Caso fossem ver-me, nada lhes chamaria a atenção.

Felizmente não apareceram. Cerca de uma hora mais tarde, arrastei-me novamente escada abaixo. Desta vez o ne­grinho, sentado perto da porta, cantarolava. Ansiava por sair da casa, mas não via meios para isso.

Por fim, fui obrigada a voltar outra vez ao sótão, pois era evidente que o negrinho fazia a guarda noturna. Esperei pacientemente até que, de madrugada, fizeram-se ouvir os primeiros ruídos na casa. Os homens tomavam a refeição no vestíbulo, e fácil me foi distinguir as vozes dos dois. Sen­tia-me cada vez mais fraca. De que maneira conseguiria sair de lá?

Resolvi munir-me de paciência. Um gesto desastrado e tudo estaria perdido. Terminado o repasto, percebi que Chichester partia, e, para meu sossego, o holandês o acom­panhou.

Mal respirava. Tiraram a mesa e deram início à limpeza da casa. Por fim, saí da toca mais uma vez. Deslizei vagaro­samente pela escada até o vestíbulo. Atravessei-o, rápida como o raio, e, abrindo a porta, encontrei-me fora, à luz do sol.

Desci a ladeira como louca, e então retomei o passo normal. Os transeuntes fitavam-me cheios de curiosidade, o que, aliás, não era de admirar. Depois de tanto rolar no soalho do sotão, trazia o rosto e as vestes cobertas de pó. Finalmente deparei com uma garagem. Entrei.

— Sofri um acidente — expliquei. — Preciso de um carro para ir à Cidade do Cabo imediatamente. Tenho de alcançar o navio para Durban.

A espera não foi longa. Dez minutos depois, o automó­vel disparava na direção indicada. Era mister verificar se Chichester embarcara. Após alguns momentos de reflexão, resolvi partir também. O pseudomissionário ignorava que eu o vira na vila, em Muizenberg. Não era difícil prever que ia armar outras ciladas... Mas tratava-se do homem que eu perseguia, daquele que andava à procura dos diamantes a mandado do misterioso Coronel.

Adeus, planos! Quando cheguei ao porto, o Kilmorden zarpava. Fiquei sem saber se Chichester embarcara ou não!

 

Segui diretamente para o hotel. Nenhum conhecido no vestíbulo. Subi a escadaria e bati na porta do quarto de Suzanne, que me convidou a entrar. Quando me viu, abra­çou-me com efusão.

— Anne querida, onde esteve? Fiquei mortalmente preocupada. O que andou fazendo todo esse tempo?

— Em aventuras — respondi. — Terceira parte de P ameia corre perigo.

— Por que será que essas coisas só acontecem a você? — perguntou em tom lamentoso. — Por que ninguém me amordaça nem me amarra as mãos e os pés?

— Não ia gostar nem um pouquinho — garanti. — Falando francamente, não estou entusiasmada por aventuras. Coisas como essas por que passei deixam impressão du­radoura.

Suzanne não se convencia. Se lhe pusessem mordaça e a atassem com cordas durante uma ou duas horas, mudaria de opinião imediatamente. Adora emoções, mas abomina o desconforto.

— E agora, que vamos fazer? — perguntou.

— Ainda não sei muito bem — respondi pensativa-mente. — Você vai à Rodésia vigiar Pagett...

— E você?

Aí estava a dificuldade. Chichester teria ou não partido no Kilmorden? Pretenderia realizar o primitivo plano de se­guir para Durban? A hora em que deixou Muizenberg pa­recia confirmar ambas as questões. Nesse caso, seguindo de trem, eu chegaria antes do vapor. Por outro lado, se infor­massem Chichester a respeito da minha fuga e que deixara a Cidade do Cabo com destino a Durban, ser-lhe-ia muito simples desembarcar em Port Elizabeth ou em East London. Quer de uma forma quer de outra, eu o perderia com­pletamente de vista.

O problema era realmente intrincado.

— Não importa — disse. — Vamos indagar o horário dos trens para Durban.

— Está na hora do chá — lembrou Suzanne. — Va­mos ao salão.

Informaram-me na portaria que o trem partia às oito e quinze da noite. Retardei o momento de tomar a decisão e fui reunir-me a Suzanne.

— Se Chichester usar outro disfarce, você será capaz de reconhecê-lo? — perguntou Suzanne.

Abanei a cabeça tristemente.

— Se não fosse pelo desenho, jamais o reconheceria vestido de camareira.

— Tenho certeza de que é ator profissional — disse Suzanne pensativa. — Sabe maquilar-se com perfeição. É muito capaz de sair do navio vestido com um macacão ou com qualquer outro disfarce, e você jamais o reconheceria.

— Como você é animadora... — murmurei.

Nesse momento o Coronel Race veio ao nosso encontro.

— Que fim levou Sir Eustace? — indagou Suzanne. — Não o vi hoje.

Pela fisionomia do coronel perpassou estranha ex­pressão.

— Anda muito ocupado por causa de uns imprevistos.

— O que aconteceu?

— Não conto o que não deve ser contado...

— Então conte outra coisa, só para distrair-nos, mesmo que seja invenção.

— Bem, sabem que viajamos com o famoso "homem do terno marrom"?

— O quê?

Senti-me empalidecer e que imediatamente as faces se me tornavam cor de lacre. Felizmente o coronel não me estava olhando nesse momento.

— Creio que é verdade; todos os portos estavam aler­ta. Conseguiu iludir Pedler e veio como seu secretário!

— Mr. Pagett?

— Oh! Não... o outro rapaz. Dizia chamar-se Rayburn.

— Conseguiram prendê-lo? — perguntou Suzanne. Por sob a mesa apertou-me a mão como a querer tranqüilizar-me. Eu mal respirava, à espera da resposta.

— Não, desapareceu como por encanto.

— Qual foi a reação de Sir Eustace?

— Considera o caso como um insulto pessoal que o destino lhe reservou.

Mais tarde, tivemos oportunidade de ouvir o relato de Sir Eustace sobre o assunto. Estávamos tirando uma soneca depois do almoço quando um mensageiro nos acordou para entregar um bilhete. Em termos patéticos, solicitava a nossa companhia para o chá.

O pobrezinho estava realmente era estado lamentável. Encorajado pelas palavras de Suzanne, murmuradas em tom de simpatia, contou-nos tudo de um só fôlego. (Suzanne é muito jeitosa para essas coisas.)

— Antes de mais nada: uma estrangeira teve a impertinência de deixar-se assassinar em minha casa — de propó­sito, só para me aborrecer. Por que logo na minha casa? Por que, com tantas casas na Grã-Bretanha, foi logo escolher a Casa do Moinho? Que mal fiz a essa mulher para que fosse morrer justamente lá?

Suzanne tornou a ronronar com simpatia e Sir Eustace prosseguiu num tom ainda mais lastimoso:

— E, como se não bastasse, o criminoso teve a desfa­çatez, a enorme desfaçatez de empregar-se como meu secre­tário! Meu secretário, ora bolas! Estou farto de secretários, não quero mais secretários. Ou são assassinos disfarçados ou então bêbados contumazes. Viram o olho amarrotado de Pagett? Com certeza viram. Como pode um mortal sair em público com um secretário nessas condições? E o rosto de um amarelo repelente — o tom exato que absolutamente não combina com o olho preto. Basta de secretários — a menos que seja uma moça. Uma moça bonita, de olhos brilhantes.

que saiba segurar minhas mãos entre as suas quando eu esti­ver contrariado. Que me diz sobre isso, Miss Anne? Aceita a oferta?

— Terei de segurar suas mãos muitas vezes? — per­guntei, rindo.

— O dia inteiro — foi a resposta galante.

— Assim, pouco tempo restará para a datilografia...

— Não importa. Toda esta trabalheira é idéia de Pa­gett. Ele me mata com tanto trabalho. Estou providenciando para que fique na Cidade do Cabo.

— Ele vai ficar aqui?

— Vai, sim; diverte-se imensamente em andar atrás das pegadas de Rayburn. Gosta dessas coisas e adora fazer intrigas. Mas eu estava falando a sério sobre o trabalho. Aceita? Mrs. Blair é ótima companheira e a senhorita terá meio dia, de vez em quando, para andar à procura de ossos.

— Muito agradecida, Sir Eustace — disse cautelosa­mente — sigo hoje à noite para Durban.

— Ora! Não seja teimosa. E lembre-se, existem inúme­ros leões na Rodésia. Vai gostar de vê-los, pois todas as mo­ças gostam.

— Quando estão praticando saltinhos? — perguntei a rir. — Não, muito obrigada, mas preciso mesmo ir a Durban.

Sir Eustace fitou-me, deu profundo suspiro e, abrindo a porta da sala contígua, chamou Pagett.

— Se já tiver terminado a sesta, meu caro rapaz, talvez queira trabalhar um pouco, para variar.

Guy Pagett apareceu à porta. Cumprimentou com um aceno de cabeça e estremeceu levemente quando me viu. En­tão respondeu com voz melancólica:

— Estive a tarde toda passando à máquina os memo­randos, Sir Eustace.

— Pois pare com isso. Vá à Câmara de Comércio, ou ao Departamento de Agricultura, ou ao Departamento de Mineração, ou a qualquer outro lugar, e peça emprestada uma secretária que possa acompanhar-me à Rodésia. É im­prescindível que tenha olhos brilhantes e não faça objeção em segurar-me as mãos.

— Pois não, Sir Eustace. Vou pedir uma taquígrafa competente.

— Pagett é malicioso — disse, depois que o secreta rio saiu. — Sou capaz de apostar que ele vai escolher d propósito, uma criatura horrorosa só para me aborrecer Esqueci-me de mencionar que ela deve ter bonitos pezinhos também.

Agarrei a mão de Suzanne e quase a arrastei até o quarto.

— E então, Suzanne, vamos preparar os planos bem depressa. Pagett vai ficar aqui; você ouviu?

— Ouvi. Quer dizer que não posso ir à Rodésia; fiquei contrariada porque eu quero ir. Que caceteação!

— O que é isso!? Você vai, sim. Uma desistência no último momento dá margem a suspeitas. E, além disso, Sir Eustace pode mudar de idéia sobre Pagett. E daí, como é que você vai arranjar novamente para ir no carro reservado?

— Bem — disse Suzanne sorrindo. — A única descul­pa — não muito louvável, é verdade — seria confessar-me irremediavelmente apaixonada por ele.

— Além disso, será perfeitamente natural que você esteja lá na ocasião em que Pagett chegar. E depois, não me parece conveniente perder de vista os outros dois.

— Ora, Anne! Não é possível suspeitar do Coronel Race ou de Sir Eustace.

— Suspeito de todos — afirmei em tom sombrio —, e se tiver lido histórias policiais, deve saber, Suzanne, que geralmente o vilão é o menos visado. Inúmeros criminosos são homens gordos, alegres como Sir Eustace.

— Não se pode dizer que o Coronel Race seja gordo, nem muito alegre.

— Às vezes são magros e melancólicos — repliquei. — Não digo que tenha graves suspeitas contra eles. mas, afinal de contas, a mulher foi assassinada na casa de Sir Eustace...

— Sei, sei, não é preciso repetir tudo outra vez. Vou ficar de atalaia, Anne, e, se por acaso ele engordar ou se tornar alegre, envio-lhe um telegrama imediatamente: "Gran­de suspeita Sir E engordando. Venha imediatamente".

— Ora, Suzanne — exclamei —, parece que você esta levando tudo na brincadeira!

— Sei que estou — disse Suzanne impassível. —- E a culpa é sua, Anne. Você me influenciou, lembra-se? "É preciso ter espírito aventureiro. Nada disso se parece com a realidade." Meu Deus! Se Clarence soubesse que estou ro­dando pela África atrás de temíveis criminosos, teria um ata­que na certa.

— Por que não lhe telegrafa? — perguntei em tom sarcástico.

O sexto sentido de Suzanne sempre falhava quando se tratava de enviar telegramas; por isso aceitou de boa fé a sugestão.

— É mesmo. Vou mandar um bem longo. — Seus olhos brilharam. — Pensando bem, é melhor não mandar. Os maridos sempre interferem nos divertimentos mais ino­centes.

Voltei ao assunto:

— Bem — você fica de olho em Sir Eustace e no Co­ronel Race...

— Sei por que temos de vigiar Sir Eustace — inter­rompeu Suzanne —, é por causa da aparência e da conversa humorística. Mas suspeitar do Coronel Race é levar a coisa muito adiante; eu pelo menos acho. Ora, pois se ele per­tence ao serviço secreto! Sabe, Anne, o melhor que temos a fazer é confiar nele e contar-lhe toda a história.

Fui contrária à proposta; não me parecia conveniente. Saltavam aos olhos os efeitos desastrosos a que o matrimô­nio conduz. Quantas vezes não ouvi mulheres inteligentíssi­mas porem um ponto final no assunto, dizendo: "Edgar acha... " E sabíamos muito bem que Edgar não passava de um perfeito simplório. Suzanne, por ser casada, sentia ne­cessidade de apoio masculino.

Prometeu-me, porém, não repetir uma só palavra ao Coronel Race. Continuamos, pois, a elaborar planos.

— É evidente que preciso ficar para manter Pagett sob vigilância. Finjo que vou a Durban esta noite, mando descer a bagagem, mas na realidade vou para um holtezinho aqui na cidade. Mudando um pouco de aparência — é só colocar uma peruca e uns véus brancos rendados —, será fácil ver o que Pagett está maquinando, se acreditar que estou fora do seu caminho.

Suzanne aprovou o plano, sem restrição. Preparamos o ambiente de maneira a dar na vista: indagamos mais uma vez na portaria o horário do trem e fizemos as malas.

Jantamos no restaurante. O Coronel Race não apare­ceu, mas Sir Eustace e o secretário ocupavam a mesa perto da janela. Pagett retirou-se quando a refeição ia em meio. Fiquei aborrecida, pois planejara despedir-me dele. Termi­nado o jantar, dirigi-me a Sir Eustace.

— Até a vista, Sir Eustace — disse. — Sigo hoje para Durban.

Ele deu um profundo suspiro.

— Já sabia. Gostaria que eu a acompanhasse, gostaria?

— Seria simplesmente adorável.

— Que amor de menina! A senhorita não mudaria de opinião? Não quer mesmo ir ver os leões da Rodésia?

— Não, mesmo.

— Ele deve ser um belo rapaz — continuou em tom lamentoso. — Algum pretensioso lá de Durban que está fazendo sombra aos meus atrativos de homem de meia-idade. Pagett daqui a pouco vai sair de carro. Poderá le­vá-las à estação.

— Oh! não, muito obrigada — falei depressa. — Mrs. Blair e eu já encomendamos um táxi.

Ir na companhia de Pagett seria a última coisa que eu desejava! Sir Eustace fitava-me com insistência.

— Parece não gostar de Pagett. Não a censuro. É o maior cretino; leva a vida como um mártir, fazendo tudo para me aborrecer e contrariar!

— E agora, o que foi que ele fez? — indaguei curiosa.

— Precisava ver a secretária que me arranjou! Qua­renta anos, pince-nez, botinas e uns ares de grande eficiência. Vai ser um horror! Em resumo: uma mulher pavorosa.

— Não quer que ela pegue nas suas mãos?

— Deus me livre! — exclamou. — Seria o fim do mundo. Então, adeus, menina dos olhos bonitos. Se eu caçar um leão, não lhe darei a pele, porque a senhorita me abandonou.

Partimos depois de um aperto de mão muito cordial. Suzanne esperava-me no vestíbulo, para acompanhar-me à estação.

— Vamos imediatamente — disse depressa, e pediu a um empregado que lhe arranjasse um táxi.

Uma voz por trás de mim pregou-me um susto:

— Com licença, Miss Beddingfield, vou sair de carro agora. Posso deixá-las na estação.

— Oh! agradecida, é muito trabalho. Eu...

— Não é trabalho nenhum, pode ficar descansada. Car­regador, ponha a bagagem no carro.

Fiquei desesperada. Ia protestar, quando Suzanne, tocando-me com o cotovelo, fez sinal para que me calasse.

— Obrigada, Mr. Pagett — agradeci friamente. Entramos no carro. Enquanto deslizávamos pela estrada

em direção à cidade, eu quebrava a cabeça procurando algu­ma coisa que dizer. Por fim, o próprio Pagett rompeu o silêncio.

— Arranjei uma secretária muito competente para Sir Eustace — observou. — Miss Pettigrew.

— Ele não estava muito entusiasmado. O moço lançou-me um olhar gélido.

— É ótima taquígrafa — disse sufocado. Descemos na estação. Naturalmente, tinha chegado o momento de deixar-nos; então voltei-me para ele com a mão estendida, mas a situação era bem diferente.

— Vou assistir à sua partida. São oito em ponto e o trem sai dentro de um quarto de hora.

E começou a dar ordens aos carregadores. Desespera­da, nem ousava olhar para Suzanne. O homem suspeitava. Decidira ver com os próprios olhos a minha partida. £ eu, que poderia fazer? Absolutamente nada. Imaginava o trem saindo dali a quinze minutos e Pagett plantado na estação a dizer-me adeus. Transtornara-me os planos com habilidade. Repugnava-me aquela astúcia cheia de maldade. Tentara ma­tar-me e agora desfazia-se em gentilezas! Supunha, porven­tura, que eu não o reconhecera naquela noite no navio? Impossível! Estava disfarçando e com isso forçava-me à co­nivência. E disfarçava o riso o tempo todo, também. Obri­gava-me a agir segundo as suas ordens, como se eu fosse um carneiro indefeso.

A bagagem estava empilhada no vagão-dormitório. Re­servara só para mim um compartimento com dois beliches. O relógio marcava oito e doze; portanto, em três minutos o trem estaria de partida.

Mas Pagett esquecera-se de incluir Suzanne nos seus planos.

— O dia vai ser quentíssimo, Anne — disse ela, de repente. — Principalmente quando você passar por Karoo amanhã. Trouxe água-de-colônia ou lavanda, não?

A intenção era clara.

— Oh! Meu Deus! — exclamei. — Esqueci-me da água-de-colônia em cima do toucador, lá no hotel.

Suzanne também tinha o hábito de mandar; por isso, com ar autoritário, voltou-se para Pagett, dizendo:

— Mr. Pagett, depressa. Está quase na hora. Vá à drogaria, em frente à estação, e compre um vidro de água-de-colônia para Anne.

Ele hesitou, mas a atitude autoritária da jovem ven­ceu-o. E bateu em retirada. Minha amiga seguiu-o com o olhar, até que desaparecesse.

— Depressa, Anne, vá para o outro lado, talvez não tenha se afastado e esteja nos observando da extremidade da plataforma. Não se importe com a bagagem. Amanhã você telegrafa para a companhia. Oh! Se ao menos o trem partir no horário!

Abri o portãozinho do lado oposto e escondi-me. Nin­guém me observava. Vi Suzanne, de pé no mesmo lugar onde a deixara, olhando para a janela do trem, como se conversasse comigo. Um apito agudo e o trem pôs-se em marcha. Então, ouvi passos de alguém que corria na plata­forma. Procurei a proteção de uma banca de livros e espiei.

Suzanne, deixando de dizer adeus com o lenço, vol­tou-se.

— Tarde demais, Mr. Pagett — disse alegremente. — Ela já partiu. Trouxe a água de colônia? Pena não nos lem­brarmos antes!

Passaram perto de mim quando saíram da estação. Viu-se que Guy Pagett estava acalorado. Decerto tinha cor­rido no percurso até a drogaria.

— Vai tomar táxi, Mrs. Blair?

Suzanne continuou a desempenhar muito bem o papel que lhe cabia.

— Vou. Quer voltar comigo? Está trabalhando muito para Sir Eustace? Queria tanto que Anne Beddingfield fos­se conosco amanhã! Não aprovo a idéia de uma moça viajar sozinha para Durban. Mas ela é teimosa. Interessada por alguém, talvez...

Não consegui ouvir mais nada. Suzanne é um colosso. Foi quem salvou a situação.

Esperei um pouquinho e, quando saía, dei um encontrão num homem de aparência muito desagradável, com um nariz enorme, que destoava da fisionomia.

 

Não foi difícil prosseguir na realização dos planos. To­mei um quarto num hotelzinho de certa rua sossegada. Como não trazia bagagem, não tive de pagar depósito e tran­qüilamente fui me deitar.

No dia seguinte, levantei-me cedo para ir à cidade com­prar alguma roupa. Não pretendia agir antes da partida do trem das onze para a Rodésia, que levava a maior parte do grupo. O mais provável era Pagett entrar nas suas atividades nefastas só depois que ficasse sozinho. Tomei um ônibus, ansiosa por um passeio campestre. A temperatura baixara um pouco, mas sentia-me feliz em poder andar livremente. Tam­bém, depois daquela longa viagem e da prisão em Muizenberg!

Muitas vezes, coisas importantes dependem de ninha­rias. Ao sair de uma curva da estrada, notei que o laço do sapato estava desfeito. Curvei-me para atá-lo, quando um homem quase caiu por cima de mim. Tirou o chapéu, mur­murando uma desculpa, e prosseguiu o caminho. A fisiono­mia não me era estranha, mas não me detive a pensar nisso. Olhei as horas no relógio de pulso. O tempo passava rapida­mente. Fiz meia-volta e segui em direção à Cidade do Cabo.

Apressei-me em alcançar o ônibus já quase de partida, quando principiei a ouvir passos atrás de mim. Entrei apres­sadamente, mas percebi que meu seguidor me acompanhava. Reconheci-o imediatamente: tratava-se do homem que encontrará na estrada no momento em que refazia o laço do sa­pato. De repente, verifiquei que o seu rosto me era familiar. Tratava-se do homenzinho de nariz enorme, que na noite anterior me dera um esbarrão quando eu saía da estação.

A coincidência dava o que pensar. Seria possível que o homem deliberadamente me seguia? Decidi tirar a prova imediatamente. Toquei a campainha e desci no primeiro pon­to. O desconhecido continuou no ônibus. Pus-me a obser­vá-lo, abrigada na porta de uma loja. Apeou no ponto se­guinte e caminhou na minha direção.

O caso se esclarecia: vigiavam-me os passos. Minha alegria durou pouco, pois a vitória que imaginara ter obtido sobre Guy Pagett tomou aspecto diverso. Entrei no ônibus seguinte e, exatamente como eu esperava, meu seguidor imi­tou-me. Desisti de pensar seriamente no caso.

Segundo tudo indicava, os acontecimentos de que par­ticipava eram mais importantes do que julgava. Não podia considerar o crime na casa de Marlow um incidente isolado, de autoria de um único indivíduo. Percebi que enfrentava um grupo de pessoas e, graças às revelações do Coronel Race feitas a Suzanne, e também pelo que ouvira na vila, em Muizenberg, estava apta a compreender algumas das di­versas atividades em que se ocupavam. Era o crime organi­zado. E por quem? Pelo homem a quem seus asseclas tra­tavam de Coronel. Lembrei-me das conversas que ouvira a bordo sobre a greve no Rand, suas causas — verdadeiras raízes ocultas — e os boatos de que uma organização secreta agia com o propósito de fomentar a agitação. Era obra do Coronel, cujos emissários trabalhavam mancomunados. Se­gundo diziam, ele próprio não participava dessas atividades; limitava-se apenas a dirigir a organização. Idealizava o plano, mas a parte perigosa, ou melhor, a sua realização, recaía sobre terceiros. Bem podia ser que estivesse agora por ali, agindo como o cérebro pensante do grupo, escudado porém numa posição sólida.

A presença do Coronel Race a bordo do Castelo de Kilmorden explicava-se perfeitamente: vinha em perseguição do grande criminoso. A hipótese confirmava-se. Race desfrutava de grande prestígio no serviço secreto, cuja finalidade era agarrar o Coronel.

Os fatos tornavam-se cada vez mais claros. E a mim, que parte tocava? Afinal, por que participava disso? Seria pelos diamantes? Abanei a cabeça negativamente. Por maior que fosse o valor das gemas, não era menor o esforço despen­dido para me tirarem fora da jogada. Eu possuía valor ines­timável aos olhos do bando criminoso. De qualquer forma, sem que o soubesse, tornara-me uma ameaça, um verdadeiro perigo! O conhecimento dos fatos — ou o que supunham que eu tivesse — deixava-os desesperados para afastar-me a qualquer preço. Deduzi que esse conhecimento se ligava de uma ou de outra maneira às pedras preciosas. Uma única pessoa poderia elucidar-me! O "homem do terno marrom", Harry Rayburn. Ele conhecia a segunda metade da história. Sumira como uma sombra, não passava de um ser acuado como um animal, fugindo de um cerco cerrado. Eu não via a probabilidade de um dia nos encontrarmos outra vez...

Esforcei-me por retornar à realidade do momento. Não adiantava pensar com ternura em Harry Rayburn depois da­quela ostensiva demonstração de antipatia pela minha pes­soa. Ou, quem sabe... Já estava novamente... sonhando! Urgia resolver o problema atual — imediatamente!

Eu, tão orgulhosa do meu papel de vigilante, passara agora a ser vigiada. E sentia-me amedrontada! Pela primeira vez perdi o controle dos nervos. Era o pequenino grão de areia que impedia o funcionamento normal da grande má­quina. Imaginei quão pouco tempo de vida lhe restaria fun­cionando fora do ritmo, só por causa de pequeninos grãos de areia. De uma feita, Harry Rayburn salvara-me; de outra, eu mesma conseguira fugir ao perigo; mas, de repente, senti que a fatalidade trabalhava contra a minha pessoa. Encon­trava inimigos por toda parte, em. todas as direções, e assim o cerco apertava. Se continuasse sozinha no jogo, perderia.

Esforcei-me por readquirir ânimo. Afinal, que poderia acontecer? Achava-me numa cidade civilizada, muito bem po­liciada. Era mister acautelar-me daí em diante. Nada de cila­das como a de Muizenberg.

Enquanto meditava, o ônibus alcançou a Adderley Street. Desci. Indecisa, pus-me a caminhar na calçada do lado esquerdo da rua, sem dar-me ao trabalho desnecessário de observar se estava sendo seguida. Entrei no Cartwright's e pedi dois sorvetes de café com soda para revigorar os ner­vos. Um homem na mesma situação pediria um aperitivo bem forte; mas as mulheres obtêm o mesmo resultado com sorvetes. Gostosamente, pus-me a tomá-los com o canudinho de palha. O líquido gelado, descendo pela garganta, produzia agradável sensação. Afastei o primeiro copo vazio.

Estava sentada num desses banquinhos altos, frente ao balcão. Com o rabo do olho, observei que o homem entrava, dirigindo-se discretamente para uma mesinha perto da porta. Sou capaz de tomar um número ilimitado de sor­vetes com soda.

Fiquei surpresa quando, inopinadamente, ele se levan­tou e saiu. Se pensava em esperar-me fora, por que não agira sempre dessa forma? Saltei do banquinho e com cuida­do aproximei-me da porta, mas voltei depressa. O homem estava conversando com Guy Pagett!

Se ainda me restassem dúvidas, ter-se-iam desvanecido nesse momento. Pagett estava alerta, mantendo vigilância. Trocaram rapidamente algumas palavras e, em seguida, o secretário desceu a rua rumo à estação. Fora, claro estava, transmitir as ordens recebidas. Mas quais?

De repente, pareceu-me que o coração queria saltar pela boca: o homem atravessou a rua e dirigiu-se a um policial. Falou durante algum tempo, apontando diversas vezes para a confeitaria, como se estivesse dando explicações. Percebi o plano imediatamente. Queria mandar me prender, sob a alegação de algum motivo, qualquer que fosse — roubo de carteira, talvez. Nada mais fácil para o bando criminoso do que levar avante um problema tão corriqueiro. De nada adiantaria protestar inocência. Com certeza já tinham estu­dado os pormenores. Há muito tempo não tinham lançado sobre Harry Rayburn a culpa do roubo dos diamantes de De Beers? E o moço não conseguira eximir-se do crime, se bem que a meus olhos fosse inocente. Com que probabili­dade eu poderia contar numa "tramóia" maquinada pelo

Coronel?

Automaticamente ergui os olhos para o relógio e no mesmo instante esclareceu-se o outro lado da questão. Vi Pagett olhar para o relógio de pulso. Eram onze horas em ponto. O trem com destino à Rodésia devia estar de partida, levando os amigos influentes que poderiam vir em meu auxí­lio. Essa a razão por que ainda gozava de imunidade. Estava

a salvo, desde a noite anterior até as onze horas do dia se­guinte; mas, agora, o cerco fechava-se ao meu redor.

Quando apressadamente abri a bolsa para pagar os sor­vetes, encontrei dentro dela uma carteira de homem re­cheada de notas! Só podia ter sido colocada ali por mãos ágeis, no momento em que saí do ônibus.

Perdi a cabeça. Saí do Cartwright's quase correndo. O homenzinho de nariz disforme e o policial estavam atraves­sando a rua. Quando me viram, o homem, muito agitado, me apontou ao guarda. Disparei numa corrida desabalada, com a impressão de que o policial não me seguia com muita rapidez. Até aquele momento não tinha arquitetado nenhum plano. Para salvar a pele corri até a Adderley Street. Os tran­seuntes olhavam-me, assustados. Receei que me detivessem a qualquer momento.

Uma idéia atravessou-me o cérebro.

— A estação? — perguntei ofegante.

— À direita.

Continuei a correr, porque em se tratando de alcan­çar o trem isso é natural. O homenzinho do nariz disforme era campeão de corrida. Calculei que seria detida antes de chegar à plataforma. Olhei as horas; faltava um minuto para as onze. Talvez ainda conseguisse realizar o plano.

Eu entrara na estação pela porta principal, na Adderley Street. Como uma flecha, segui pela saída lateral. Por coin­cidência, no edifício do correio também havia uma porta la­teral, fronteira à da estação; e a principal dava para a Adder­ley Street.

Como imaginara, o homem, em vez de ir atrás de mim, correu pela rua, com o intuito de cortar-me a saída, caso eu surgisse na entrada principal; ou então talvez quisesse pre­venir o policial da minha presença.

Num abrir e fechar de olhos atravessei a rua e em seguida voltei à estação. Corria como uma desesperada. Eram onze em ponto. Quando cheguei à plataforma, o trem estava de partida. Um carregador tentou segurar-me, mas com um safanão livrei-me dele e saltei para o estribo do vagão. Subi os dois degraus e abri a porta. Salva, enfim! O comboio ga­nhava velocidade.

Ao passar por um homem em pé -na extremidade da plataforma, acenei-lhe com a mão.

— Adeusinho, Mr. Pagett — gritei.

Nunca vi ninguém mais atônito em toda a minha vida. Dava a impressão de estar vendo alma do outro mundo.

Daí a pouco tive um atrito com o chefe do trem. A única saída seria assumir atitude arrogante.

— Sou a secretária de Sir Eustace Pedler — expliquei em tom altivo. — Faça o favor de me informar onde é o carro reservado.

Suzanne e o Coronel Race estavam de pé na plataforma de trás do vagão. Ao ver-me, ambos soltaram uma exclama­ção de surpresa.

— Olá, Miss Anne — disse o Coronel Race. — De onde surgiu? Pensei que tinha ido a Durban. É a criatura das surpresas!

Suzanne nada disse, mas com o olhar fazia-me mil

perguntas.

— Preciso apresentar-me ao meu patrão — falei com gravidade afetada. — Onde está?

— No escritório; é o compartimento central. Continua ditando como uma torrente para a coitada da Miss Pettigrew.

— Esse entusiasmo pelo trabalho é novidade para mim

— comentei.

— Humm! — murmurou o Coronel Race. — Creio que pretende sobrecarregar de trabalho a secretária de ma­neira a acorrentá-la à máquina de escrever, no escritório dela, para o resto do dia.

Ri gostosamente. Acompanhada de Suzanne e do coro­nel, fui procurar Sir Eustace. Ele percorria de um lado a outro o pequeno compartimento, ditando aos borbotões para a infeliz secretária. Vi-a pela primeira vez. Alta, de ombros largos, trajava um vestido de cor pardacenta e usava pince-nez. Parecia ser muito eficiente, mas ao mesmo tempo deu-me a impressão de estar encontrando dificuldade em viver em paz com Sir Eustace. De fato, enquanto o lápis voava sobre o papel, ela franzia horrivelmente os sobrolhos.

Entrei no compartimento.

— O trem vai partir, sir — falei com ar atrevido.

Sir Eustace fez uma pausa em meio a uma sentença complicada sobre a situação trabalhista e encarou-me. Ape­sar de ter fisionomia de pessoa resoluta, Miss Pettigrew devia ser criatura nervosíssima, porquanto deu um salto na cadeira como se tivesse levado um tiro.

— Bendito seja Deus! — exclamou Sir Eustace. — E o moço de Durban?

— Prefiro a sua companhia — murmurei com doçura.

— Querida, pode começar imediatamente a segurar minhas mãos.

Miss Pettigrew tossiu, e bem depressa Sir Eustace afastou-se.

— Muito bem! — disse. — Vejamos, onde estávamos? Ah! Já sei. No discurso que proferiu, Tylman Roos... O que aconteceu? Por que não está tomando nota?

— Creio — interrompeu o Coronel Race — que Miss Pettigrew quebrou a ponta do lápis.

O coronel tomou-lhe o lápis e pôs-se a fazer-lhe a ponta com o canivete. Sir Eustace e eu observávamos a cena, ambos admirados. Havia no tom de voz do Coronel Race algo que me escapou a compreensão.

 

(Fragmentos do diário de Sir Eustace Pedler)

 

Estou pensando em deixar de lado temporariamente as minhas Reminiscências para escrever um pequeno artigo inti­tulado "Meus ex-secretários". Por falar em secretários, pa­rece que me rogaram praga. Há ocasiões em que não tenho nenhum, noutras tenho-os de sobra.

Estou de viagem para a Rodésia, acompanhado de um bando de mulheres. Race está continuamente ao lado das duas mais bonitas, e, quanto a mim, sobra-me o restolho. Isso sempre me aconteceu; afinal de contas, estou no meu vagão reservado, não no de Race.

Anne Beddingfield também vai à Rodésia, como minha secretária. Não obstante, passou a tarde inteira na plataforma do carro, em companhia de Race, admirando a beleza do desfiladeiro do rio Hex. A sua principal obrigação é se­gurar as minhas mãos; no entanto, nem isso faz. Talvez seja por temor a Miss Pettigrew. Mas não merece censura por isso. Nada existe menos atraente do que Miss Pettigrew; é simplesmente repulsiva. Os pés enormes mais parecem de homem que de mulher.

Paira grande mistério ao redor de Anne Beddingfield. Tomou o trem de um salto, no último instante, bufando como máquina a vapor. Parecia até que estava apostando corrida. Além disso, Pagett assegurou-me tê-la visto partir para Durban ontem à noite! Ou o rapaz andou bebendo outra vez ou então a jovem possui o dom da ubiqüidade. E ela nada explica a respeito. Aliás, ninguém me explica nada.

Ah! "Meus ex-secretários!" O número 1, assassino, fu­gitivo da justiça; o número 2, um homem que bebe às escon­didas, e, na Itália, imiscui-se em casos amorosos infamantes. O número 3, ainda jovem, possui a faculdade bastante van­tajosa de estar em dois lugares ao mesmo tempo; o número 4, Miss Pettigrew, é certamente um perigosíssimo escroque disfarçado em secretária! É provavelmente um dos amigos italianos que Pagett teve a ousadia de me impingir. Rayburn foi o melhor do bando. Nunca me causou aborrecimentos nem interferiu na minha vida. Guy Pagett teve a impertinência de colocar a mala de material de escritório no meu compartimento. Por causa dela ninguém se move sem levar um tropeção.

Há pouco fui à plataforma. Julguei que saudariam mi­nha chegada com exclamações de alegria. Ambas as senhoras ouviam atentas uma daquelas histórias de Race. Vou colocar uma tabuleta neste carro; em vez de "Sir Eustace Pedler e amigos", escreverei "Coronel Race e seu harém".

Em seguida, Mrs. Blair começou a tirar fotografias desprovidas de significação; cada vez que o trem fazia uma curva fechada, ela tirava um instantâneo.

— Estão percebendo a minha intenção? — perguntou encantada. — Tirando a foto do último vagão, no momento em que a máquina faz a curva e com a montanha ao fundo, vou obter uma bela visão da profundidade do despenhadeiro.

Fiz-lhe notar a possibilidade de as pessoas não perceberem que a fotografia tinha sido tirada do interior do trem. Ela fitou-me consternada.

— Escrevo embaixo: "Tirada do interior do trem. Má­quina na curva".

— Devia escrever embaixo de todas — afirmei. Por que será que as mulheres nunca pensam nessas coisas tão simples?

— Estou contente por fazermos a viagem durante o dia — exclamou Anne Beddingfield. — Se tivesse seguido on­tem à noite para Durban, teria perdido todas estas mara­vilhas, não é mesmo?

— É, sim — disse o Coronel Race, sorrindo. — Teria acordado amanhã cedo no Karoo. É um deserto tórrido, poei­rento, cheio de pedras e rochas.

— Foi bom ter mudado de idéia — continuou Anne, suspirando alegremente. E continuou a contemplar a pai­sagem.

A vista era belíssima. O trem serpenteava, contornando as grandes montanhas, e a subida tornava-se cada vez mais difícil.

— É este o único diurno para a Rodésia? — indagou Anne Beddingfield.

— Diurno? — repetiu Race, dando uma risada. — Ora! Minha cara Miss Anne, existem três por semana. Às segundas, quartas e sábados. Só chegaremos às cataratas no sábado.

— Há tempo para ficarmos nos conhecendo bem! — falou Mrs. Blair com malícia. — Vamos nos demorar nas cataratas, Sir Eustace?

— Depende — respondi ressabiado.

— De quê?

— De como encontrar as coisas em Johannesburg. Meu plano inicial era ficar uns dois dias nas cataratas, porque não as conheço, embora já tenha vindo três vezes à África, e depois ir a Jo'burg examinar a situação do Rand. Na Ingla­terra, a senhora sabe, sou tido como autoridade em matéria de política africana. Mas, pelo que é de meu conhecimento, Jo'burg está se tornando um lugar muito desagradável para uma estada de mais de uma semana. Não tenho a menor in­tenção de fazer estudos em meio a uma revolução desen­freada.

Race sorriu com ares de superioridade.

— Creio que seu temor é exagerado, Sir Eustace. Não correrá grande perigo em Jo'burg.

As senhoras imediatamente fitaram-no com um olhar onde se traduzia a expressão: "Que grande herói!" Fi­quei contrariadíssimo, pois me considero tão corajoso quanto Race. O que me falta é a sua estampa. Os homens altos, elegantes e morenos têm tudo a seu favor.

— Você passará por lá — disse friamente.

— É muito provável. Poderemos viajar juntos.

— Não tenho certeza de ficar nas cataratas — respon­di, para não assumir compromisso. Por que esta ansiedade de Race em querer que eu vá a Jo'burg? Creio que está de olho em Anne. — Quais são os seus planos, Miss Anne?

— Depende — respondeu com reserva, irritando-me.

— Pensei que era minha secretária — objetei.

— Ora, o senhor me dispensou... Miss Pettigrew aca­riciou suas mãos a tarde inteira...

— Fiz muitas coisas, mas juro que isso não — garanti.

Quinta-feira à noite

Deixamos Kimberley há poucos momentos. Novamente obrigaram Race a contar o caso dos diamantes. Por que será que as mulheres ficam tão alvoroçadas quando ouvem falar em pedras preciosas?

Finalmente! Caiu o véu de mistério que envolvia Anne Beddingfield. Ela é correspondente de um periódico, e hoje de manhã enviou telegrama longuíssimo de De Aar. A julgar pelo rumor de vozes que perdurou quase a noite inteira na cabina de Mrs. Blair, ela devia ter lido em voz alta todos os artigos que pretende mandar publicar.

Ninguém me tira da idéia: a jovem está à procura do "homem do terno marrom". Pelo que me é dado observar, não conseguiu descobri-lo no Kilmorden. Realmente, não houve oportunidade; no entanto, telegrafou para a Ingla­terra: "Viajei em companhia do assassino" — e inventou his­tórias tais como "O que ele me disse, etc." Conheço essas coisas. Eu próprio as pratico nas Reminiscências, quando Pagett não se opõe. Com detalhes floreados pelo pessoal de

Nasby, nem Rayburn vai se reconhecer nos artigos do Daily Budget.

A moça é inteligente. Pelo jeito, andou esquadrinhan­do, por conta própria, a identidade da mulher assassinada em minha casa. Trata-se de uma bailarina russa chamada Nadina. Indaguei de Anne se tinha certeza disso. Respondeu-me que era pura dedução — à maneira de Sherlock Holmes. Jul­go, porém, que telegrafou a Nasby como se fosse fato con­sumado. As mulheres são dotadas dessas intuições. Não du­vido que Anne Beddingfield esteja certa nas suas conjeturas, mas chamar isso de dedução é simplesmente absurdo.

Não posso imaginar como conseguiu fazer parte do corpo de redatores do Daily Budget, embora se enquadre entre as mulheres capazes de audácias na consecução do que desejam. Impossível opor-lhe resistência. Tem um jeitinho todo especial de agradar, que encobre uma invencível força de vontade. Haja vista a maneira como entrou no meu vagão reservado!

Soube um boato. Segundo Race, a polícia desconfia de que Rayburn seguiu para a Rodésia. Decerto partiu no trem de segunda-feira. Telegrafaram o tempo todo, suponho, sem encontrar ninguém do tipo que corresponda ao do rapaz. Rayburn é astuto e, além disso, conhece a África.

Provavelmente, já se disfarçou em negra banto e a po­lícia ainda continua procurando um bonito rapaz com uma cicatriz segundo o último figurino europeu. Jamais acreditei na cicatriz.

Anne Beddingfield, porém, insiste em persegui-lo. Quer desfrutar da glória de tê-lo descoberto sozinha, para o Daily Budget. Hoje em dia, as jovens são muito cruéis. Dei-lhe a entender que praticava uma ação desumana. Riu na minha cara e garantiu-me que era muito feliz, mesmo que tivesse de ir atrás dele até o fim do mundo. Bem vejo a desaprovação de Race. Talvez Rayburn esteja neste trem. Se assim for, corremos o risco de ser assassinados nos.próprios leitos. Externei minha hipótese a Mrs. Blair; ela achou plausível a idéia, acrescentando que, se eu fosse assassinado, Anne teria um formidável furo jornalístico! Com efeito!

Amanhã chegaremos à Bechuanalândia. Lá, a poeira é simplesmente atroz. Em todas as estações aparecem crian­ças vendendo figuras de animais que elas mesmas talham em madeira. Vasilhas e cestos de palha de milho também. Receio que Mrs. Blair fique furiosa, porquanto esses brin­quedos exercem um encanto selvagem sobre certas pessoas. Temo que isso lhe aconteça.

Sexta-feira à tarde

Exatamente como eu previa, Mrs. Blair e Anne adqui­riram quarenta e nove animaizinhos de madeira!

 

(Resumo da narrativa de Anne)

A viagem à Rodésia foi simplesmente adorável. Diaria­mente aconteciam coisas novas e emocionantes. A primeira foi o cenário maravilhoso onde se estende o vale do rio Hex; depois, o suntuoso e desolado Karoo, e, por fim, a belíssima reta que conduz à Bechuanalândia. E que dizer dos bichinhos esculpidos pelos nativos! Suzanne e eu atrasamo-nos em qua­se todas as estações — se é que aquilo merece o nome de estação! Tinha a impressão de que o trem parava por quanto tempo lhe aprazia, enquanto verdadeira horda de na­tivos surgia da paisagem nua, trazendo vasilhas confecciona­das com palha de milho, ou cana-de-açúcar, mantos de peles de animais e adoráveis bichinhos esculpidos em madeira. Sem perda de tempo, Suzanne iniciou uma coleção. Imitei-lhe o exemplo. A maior parte custava um tiki (três pence), e a variedade era enorme: girafas, tigres, serpentes, um antí­lope de expressão melancólica e incríveis guerreiros, bem pequeninos. Divertimo-nos a granel.

Sir Eustace procurou conter-nos, mas em vão. Foi mi­lagre não termos ficado em algum oásis perto da estrada. Os trens sul-africanos não apitam nem fazem ruído no momento da partida; apenas deslizam tranqüilamente. Inter­rompíamos o regateio e era um salve-se-quem-puder.

Imagino o susto de Suzanne quando subi no trem na Cidade do Cabo. Estudamos a situação minuciosamente. Fi­camos a conversar metade da noite e decidi-me a usar não só táticas de defesa como de ataque. Estava a salvo enquanto viajasse com Sir Eustace e o grupo que o acompanha. Ele e o Coronel Race são protetores poderosos e meus adver­sários não serão tolos a ponto de querer mexer em vespeiro. Enquanto permanecesse na companhia de Sir Eustace, estaria em contacto com Guy Pagett — o pivô do mistério. Pergun­tei a Suzanne se via possibilidade de ser ele o misterioso Coronel. A posição de subordinado era, por certo, contrária à hipótese. Uma ou duas vezes, no entanto, deu para per­ceber como suas maneiras autoritárias exerciam influência sobre Sir Eustace. Dada a natureza indolente do patrão, não era difícil ao secretário manobrá-lo com o dedo mindinho. O cargo, relativamente obscuro, podia ser-lhe útil, uma vez que lhe convinha manter-se fora da ribalta.

Suzanne, porém, discordou in totum das minhas idéias. Recusava-se a acreditar que Guy Pagett era o espírito diri­gente do negócio. O verdadeiro cérebro — o Coronel — devia ser alguém que ficava nos bastidores e já estaria em território africano antes da nossa chegada.

Esse ponto de vista não deixava de ser digno de consi­deração, mas não me satisfazia, pois em todos os momentos suspeitos Pagett surgia como dirigente. À sua personalidade faltavam a segurança e a decisão próprias de um potentado do crime; afinal de contas, de acordo com o Coronel Race, ao líder misterioso competia unicamente o trabalho cerebral. E, como sói acontecer, ao gênio criador freqüentemente se alia uma constituição fraca e timorata.

— Fala a filha do professor — interrompeu Suzanne, quando cheguei às conclusões dos meus argumentos.

— De qualquer maneira, essa é a verdade. Por outro lado, pode dar-se o caso de Pagett ser o grão-vizir do todo-poderoso.

Nada mais acrescentei durante alguns instantes; depois, falei pensativa:

— Gostaria de saber a origem da fortuna de Sir Eustace!

— Duvida dele outra vez?

— Suzanne, cheguei a um ponto em que não posso dei­xar de desconfiar de quem quer que seja! Não levanto suspei­tas propriamente, mas, afinal de contas, ele é o patrão de Pagett e proprietário da Casa do Moinho.

— Sempre constou que adquiriu fortuna por meios so­bre os quais prefere silenciar — disse Suzanne em tom me­ditativo. — No entanto, isso não significa que sejam meios criminosos; tanto poderia ser fabricante de pregos como de tônico para cabelo!

Concordei tristemente.

— Será — continuou Suzanne — que estamos perden­do nosso tempo? Não estaremos completamente fora da rota, isto é, admitindo a cumplicidade de Pagett? E se ele for um homem honesto?

Considerei os argumentos e, em seguida, abanei a ca­beça em sinal negativo.

— Não acredito.

— Afinal, ele tem explicações para tudo.

— Sim... mas não convence. Por exemplo, na noite em que tentou atirar-me pela amurada do Kilmorden, alegou ter seguido Rayburn ao convés e que o próprio Rayburn se voltou e deu-lhe um soco. Sabemos que essa não é a expres­são da verdade.

— Não — concordou Suzanne a contragosto. — Mas soubemos dessa história por intermédio de Sir Eustace. Se a contasse o próprio Pagett, quem sabe teria sido diferente. Bem sabe que quem conta um conto aumenta um ponto.

Fiquei ruminando o assunto.

— Não — disse por fim —, não vejo saída para o caso. Pagett é culpado. Não vejo como menosprezar o fato de tentar atirar-me ao mar. E, além disso, tudo o mais com­bina. Por que você persiste nessa idéia?

— Por causa da fisionomia dele.

— Fisionomia? Mas...

— Sim, sei o que vai dizer. Tem uma fisionomia sinis­tra, apenas isso. A natureza pregou-lhe uma peça de mau gosto.

Não acreditei no argumento de Suzanne. Conheço mui­to bem os métodos da natureza, desde os seus tempos prime­vos, e, se ela tiver realmente senso de humor, não o demonstra como no caso de Suzanne, com todos os atributos que lhe prodigalizou.

Passamos a discutir os planos de ordem imediata. Urgia firmar minha situação. Não podia continuar evitando as explicações. A solução do problema estava ao meu alcan­ce, sem que dela me lembrasse. O Daily Budget! Falasse ou não, nada mais prejudicaria Harry Rayburn. Todos acre­ditavam que ele era o "homem do terno marrom". Não por minha culpa. Julguei que o auxiliaria se conseguisse dar a impressão de estar contra ele. Fazia-se mister que o Coronel e seu bando não suspeitassem das boas relações existentes entre mim e o assassino de Marlow. Ao que eu sabia, a ví­tima ainda não tinha sido identificada. Achei bom telegrafar a Lorde Nasby, nesse sentido, esclarecendo que se tratava nem mais nem menos de Nadina, famosa bailarina russa que fascinara toda Paris. Parecia-me incrível que ainda não a ti­vessem identificado. Quando, porém, muito mais tarde, sou­be pormenores do caso, achei tudo muito natural.

Nadina nunca fora à Inglaterra na época da brilhante carreira que realizava em Paris. Nada mais natural que o público londrino não a conhecesse. As fotografias nos jor­nais, publicadas na ocasião do crime, tornavam-na irreco­nhecível. Além disso, Nadina guardara segredo quanto à in­tenção de visitar a Inglaterra. No dia seguinte ao do crime, o empresário recebeu uma carta forjada, na qual a bailarina explicava que motivos urgentes e de ordem pessoal a obri­gavam a voltar à Rússia e solicitava desfazer o contrato da melhor forma possível.

Todos esses fatos, como já mencionei, só chegaram mais tarde ao meu conhecimento. De De Aar enviei, com a apro­vação irrestrita de Suzanne, um longo telegrama a Lorde Nasby, o qual chegou no momento psicológico exato (é claro que só o soube depois). O Daily Budget ansiava por assun­tos sensacionais. Depois de estudada e aprovada, minha hipó­tese constituiu o maior furo jornalístico publicado por esse matutino: "Vítima da Casa do Moinho identificada por enviado especial do Daily Budget"'. E a notícia continuava: "Nosso repórter viaja com o assassino, o 'homem do terno marrom'".

Os principais fatos retornavam por cabograma à África do Sul. È eu só tive conhecimento deles muito tempo depois! Em Bulawayo, recebi congratulações e instruções com­pletas, pois passara a fazer parte do Daily Budget. Lorde Nasby enviou-me um bilhete de congratulações, escrito do próprio punho, no qual me autorizava definitivamente a prosseguir na caça ao assassino. E, no entanto, eu e somente eu sabia que o criminoso não era Harry Rayburn! Mas dei­xemos todo mundo pensar o contrário; no momento é a melhor solução.

 

Sábado de manhã chegamos a Bulawayo. Fiquei desapon­tada. Era uma cidade quentíssima e o hotel, simplesmente detestável. E Sir Eustace, então? Cada vez mais rabugento. A causa talvez fossem os bichinhos de madeira, principal­mente a girafa. De fato, era enorme, com um pescoço incrí­vel, de olhar manso e cauda pendurada. Mas, não posso negar, tinha personalidade, possuía encanto. Entre mim e Suzanne surgiu uma dúvida. A quem pertencia o animalzinho? Cada uma de nós contribuíra com um tiki. Minha amiga reivindicou o direito de prioridade e o seu estado civil; eu fiquei firme, alegando tê-lo visto em primeiro lugar.

Entrementes — confesso —, ela ocupava grande parte do espaço tridimensional de que dispúnhamos. Viajar com quarenta e nove bichinhos de variadas formas, confecciona­dos em madeira quebradiça, é realmente um problema. Para o transporte, foi necessário o auxílio de dois carregadores, sobraçando um punhado deles cada um. Assim mesmo, dei­xaram cair um grupo de encantadores avestruzes, e todas ficaram com a cabeça quebrada. Suzanne e eu, de sobreaviso, decidimos carregar, nós mesmas, todos os que pudéssemos. O Coronel Race prestou-nos grande auxílio. E eu empurrei a girafa, que era o maior de todos, para os braços de Sir Eustace. Nem a sisuda secretária escapou: coube-lhe o trans­porte de um enorme hipopótamo e de dois guerreiros negros. Miss Pettigrew dava-me a impressão de que não me apre­ciava. Talvez me achasse com jeito de moça sapeca e atre­vida. De qualquer forma, evitava-me ao máximo. Coisa en­graçada! A sua fisionomia não me era estranha, mas não conseguia identificá-la.

Passamos em repouso a maior parte da manhã. À tar­de fomos ao Matoppos visitar o imponente Rodes. Ou me­lhor, deveríamos ter ido, mas, no último instante, Sir Eusta­ce arrepiou carreira. Estava quase tão mal-humorado como na manhã em que chegamos à Cidade do Cabo, quando ati­rou os pêssegos no chão e eles se esborracharam! Levantar-se de manhãzinha é nocivo ao seu temperamento. Amaldiçoou os carregadores, o garçom, os administradores do hotel, e certamente teria gosto em amaldiçoar Miss Pettigrew, que, de papel e lápis em punho, andava de um lado para o outro. No entanto, não acredito que Sir Eustace tivesse a ousadia de amaldiçoá-la. A secretária é a eficiência personificada, tal como nos romances. Felizmente salvei a girafa ainda a tem­po. Pressenti que Sir Eustace era capaz de lançá-la ao solo.

Volto a contar sobre a expedição:

Miss Pettigrew ofereceu-se para ficar no hotel. Sir Eustace poderia necessitar dos seus serviços. No último ins­tante, Suzanne mandou um recado, dizendo estar com forte dor de cabeça. Diante disso, o Coronel Race e eu partimos sozinhos.

Que homem esquisito! Numa conversa em grupo, isso pode passar despercebido, mas, quando se está a sós com ele, nota-se que tem uma personalidade realmente dominadora. Mostra-se taciturno e, no entanto, o seu silêncio parece exprimir mais do que as palavras.

Naquele dia também se mostrou sombrio, durante o percurso ao Matoppos, através da planície cheia de arbustos cobertos de uma folhagem dourada. Tudo parecia estar en­volto em estranho silêncio, exceção feita ao nosso carro; parecia ser o primeiro Ford que apareceu sobre a terra! O estofamento dilacerado dava a impressão de ter sido con­feccionado em tiras, e, apesar da minha ignorância em relação a máquinas, podia imaginar que o motor não funcionava como na época da sua montagem.

Aos poucos, o aspecto da região mudou. Começaram a aparecer grandes pedras arredondadas, empilhadas de modo fantástico. Senti que penetrava numa era primitiva. Durante um instante, os homens de Neandertal tornaram-se-me tão reais como tinham sido também aos olhos de meu pai. Tudo aquilo assemelhava-se a um sonho. Voltei-me para o Coronel Race e disse:

— Certamente existiram gigantes por aqui. E os seus filhos deveriam ter sido como as crianças de agora; brin­cavam com punhados de seixos, que empilhavam para depois deitá-los abaixo. E quanto mais a torre oscilasse, mais graça achavam no brinquedo. Se me fosse dado escolher um nome para este lugar, eu o chamaria o País dos Filhos dos Gi­gantes.

— Talvez esteja mais próxima da verdade do que real­mente imagina — respondeu o Coronel Race. — Simplici­dade, primitivismo, grandiosidade — assim é a África.

— Gosta daqui, não é verdade?

— Gosto. E aqui gostaria de viver para sempre. No entanto, este país torna as pessoas cruéis. Pouco apreço se dá tanto à vida como à morte.

— É isso mesmo — disse, pensando em Harry Rayburn. — Mas são cruéis com os seres fracos?

— As opiniões diferem quanto ao que chama de "se­res fracos", Miss Anne.

Havia uma nota de tristeza na sua voz que me sobressaltou. Percebi quão pouco sabia a respeito desse homem.

— Referia-me a crianças e cães.

— Digo sinceramente que jamais fui cruel com as crian­ças ou com os cães. Quer dizer que não classifica as mulheres como "seres fracos"?

Depois de refletir alguns instantes, respondi:

— Não, não as classifico como tal, embora talvez o sejam, pelo menos atualmente. Papai sempre dizia que no começo os homens e as mulheres percorriam o mundo, per­feitamente unidos, iguais em força, como os leões e os tigres.

— E as girafas? — interrompeu o rapaz, maliciosa­mente.

Não pude deixar de rir. Ninguém perdia a oportuni­dade de gracejar a respeito do animalzinho.

— E as girafas também. Eram nômades, como sabe, até o dia em que se fixaram em comunidades, vivendo em grupos. As mulheres e os homens, porém, passaram a ativi­dades diferentes; é por isso que as mulheres se tornaram frágeis. Mas a estrutura de base é a mesma, percebemos que é igual, sendo esse o motivo pelo qual as mulheres adoram a força física nos homens, essa força que um dia já possuí­ram e que depois perderam.

— Em conclusão, é quase uma adoração dos ancestrais?

— Mais ou menos isso.

— A senhorita também acredita nisso? Quero dizer, que as mulheres adoram a força?

— Acredito piamente. O senhor julga que admira as qualidades morais; no entanto, se se apaixonar, reverterá ao primitivismo, isto é, levará em consideração somente a apa­rência física. Ainda não expliquei tudo; se o senhor vivesse numa sociedade primitiva, então estaria certo, mas não vive; e, afinal de contas, a primeira idéia vence. O que importa é o que realmente conquistamos. A Bíblia fala em perder e encontrar a vida.

— Afinal — disse o Coronel Race, pensativo —, al­guém se apaixona e depois renuncia a esse amor; é a isso que se refere?

— Não exatamente a isso; mas, se preferir, pode con­siderar o assunto desse ponto de vista.

— Não creio que já tenha renunciado a algum amor, Miss Anne.

— É verdade, não renunciei.

— Nem que já tenha amado. Nada respondi.

O carro continuou a subir a estrada íngreme até che­garmos ao nosso destino. E a conversa parou aí. Descemos e pusemo-nos a caminhar numa lenta ascensão à World's View. Não era a primeira vez que me sentia um tanto cons­trangida na companhia do Coronel Race. Percebia que ele ocultava os pensamentos por trás dos impenetráveis olhos negros. Intimidada na sua presença, tinha a impressão de que pisava em terreno incerto.

Subimos em silêncio, até nos aproximarmos de Rodes, resguardado por gigantescas pedras. Era um lugar estranho, misterioso, isolado da presença do homem, e parecia entoar ininterruptamente uma canção de alegria e triunfo, plena de beleza.

Sentamo-nos durante algum tempo, sempre em silêncio. Depois, descemos a encosta, afastando-nos da estrada. O chão era acidentado, e chegamos a descer uma escarpa quase íngreme.

O Coronel Race seguia na frente e, em dado momento, voltou-se para mim:

— Vou ajudá-la — disse, de repente, erguendo-me num rápido movimento.

Quando me colocou no chão, percebi a força dos seus braços, dos seus músculos de aço. Outra vez senti medo, principalmente porque ele não se movia, fitando-me direta­mente com um olhar penetrante.

— Falando com franqueza, Anne Beddingfield, que está fazendo aqui? — perguntou-me abruptamente.

— Sou uma cigana que saiu por este mundo afora.

— Sim, essa é a verdade, e as notícias que manda para o jornal são um pretexto. A senhorita não tem veia jornalís­tica. Está desorientada, procurando agarrar-se à vida. E não  é só isso.

 Estaria forçando uma explicação? O medo tornou a me assaltar; não obstante, encarei-o de frente. Meus olhos não são como os dele, não sabem guardar segredos, mas são capazes de conduzir a guerra até o campo inimigo.

— O que está realmente fazendo aqui, Coronel Race? — perguntei de propósito.

Por um instante julguei que ele ia responder. Mostrou-se surpreso e finalmente falou, como se as palavras lhe fos­sem um desagradável divertimento:

— Por ambição. Apenas isso, por ambição. A senho­rita deve estar lembrada de que "por cometer esse pecado os anjos caíram", etc.

— Dizem — continuei vagarosamente — que o senhor está ligado ao governo, que faz parte do serviço secreto. É verdade?

Foi obra de imaginação ou teria ele hesitado uma fra­ção de segundo, antes de responder?

— Garanto-lhe, Miss Beddingfield, que estou viajando em caráter exclusivamente particular, em viagem de recreio.

Mais tarde, ao recordar essas palavras, elas pareceram-me um tanto ambíguas. Talvez fosse essa a sua intenção.

Voltamos para o carro em silêncio. Em meio ao per­curso para Bulawayo, paramos para tomar chá numa casa de construção primitiva, junto à estrada. O proprietário, distraído com trabalhos de jardinagem, deu-nos a impressão de ficar aborrecido com a interrupção das suas atividades. Todavia, prometeu amavelmente fazer o que estivesse ao seu alcance. Após uma espera interminável, serviu-nos fatias de bolo seco e chá morno. Em seguida, desapareceu novamente no jardim.

Tão logo nos deixou, seis gatos nos rodearam, miando em coro, desesperadamente. Para acalmar a algazarra ensur­decedora dei-lhes alguns bocados de bolo, que os animais de­voraram num instante. Despejei todo o leite num pires e pu­seram-se em luta para consegui-lo.

— Oh! — exclamei indignada — estão morrendo de fome! É horrível! Por favor, peça mais leite e outro prato de bolo.

Atendendo à minha solicitação, o Coronel Race levan­tou-se sem dizer palavra. Os gatos novamente começaram a miar. O grande jarro de leite que ele trouxe foi devorado num abrir e fechar de olhos.

Ergui-me. Tinha tomado uma decisão.

— Vou levar os gatos; não os deixarei aqui.

— Não seja absurda, menina. Não pode levar seis gatos tão facilmente como os cinqüenta bichos de madeira que comprou.

— Não se importe com os bichos de madeira. Estes gatos estão vivos e vou levá-los comigo.

— Não vai fazer nada disso. Fitei-o, cheia de ressentimento.

— Julga-me cruel — prosseguiu —, mas não é possí­vel viver encarando com sentimentalismo coisas triviais como essas. Não adianta insistir; não consentirei que os leve. Esta­mos num país primitivo, bem sabe, e eu sou mais forte do que a senhorita.

Sempre percebo quando estou derrotada. Desci para o carro com os olhos marejados de lágrimas.

— É provável que justamente hoje tenham comido pouco — explicou-me a guisa de consolação. — A dona deles deve ter ido a Bulawayo para fazer compras. Quando voltar, não haverá mais problema. De mais a mais, o mundo está cheio de gatos famintos; sabe disso, não é verdade?

— Não, não está — repliquei com arrogância.

— Estou procurando ensiná-la a interpretar a vida co­mo ela é. Eu a estou ensinando a ser dura e insensível como eu. Aí reside o segredo da força e o segredo do sucesso.

— Prefiro morrer a ser desumana — concluí apaixo­nadamente.

Partimos. Aos poucos fui readquirindo calma. Subita­mente, com grande admiração minha, ele tomou-me a mão.

— Anne — falou docemente. — Quero-a muito. Quer casar-se comigo?

A minha surpresa atingiu o auge.

— Oh! Não — murmurei. — Não posso.

— Por quê?

— Quero-o de maneira diferente. Sempre pensei no senhor com amizade.

— Eu sabia. É esse o único motivo? Achei que devia dar uma resposta sincera.

— Não, não é. O senhor compreende... eu... gosto de alguém.

— Eu sabia — disse ele pela terceira vez. Agora havia na sua voz uma nota dissonante, que fez com que me vol­tasse para fitá-lo. Tinha uma expressão sombria como jamais vira.

— Que... que quer dizer? — balbuciei. Olhou-me de maneira impenetrável e dominadora.

— Apenas... sei agora o que tenho a fazer.

Essas palavras fizeram-me estremecer. Por trás delas havia uma intenção além do meu alcance, que me sobressaltou.

Nada mais dissemos até a chegada ao hotel. Segui dire­tamente para o quarto de Suzanne. Ainda estava deitada, lendo, e não dava a impressão de estar com dor de cabeça.

— Aqui repousa a perfeita companheira — observou. — Aliás, a amiga diplomata. Que é isso, Anne? Que acon­teceu?

Eu tinha caído em pranto.

Contei-lhe somente o caso dos gatos, porquanto não me parecia delicado mencionar o que se passara com o Coronel Race. Como Suzanne é muito observadora, é bem possível que percebesse algo de anormal na minha atitude.

— Não apanhou algum resfriado, não, Anne? Com este calor seria absurdo, mas você está tremendo.

— Não é nada — respondi. — Estou com um mau pressentimento. Tenho a impressão de que vai suceder uma desgraça.

— Deixe de tolice — falou-me, num tom peremptório..— Vamos mudar de assunto, conversar sobre alguma coisa interessante. Anne, os diamantes...

— Aconteceu alguma coisa?

— Não sei se estarão seguros comigo. Anteriormente, sim, porque ninguém poderia imaginar que os guardava entre os meus pertences. Agora todos sabem que somos ami­gas e poderão suspeitar de mim também.

— Toda gente ignora que estão numa caixinha de filmes — argumentei. — O esconderijo é seguro e não acredito que possamos conseguir outro melhor.

Suzanne concordou em parte, mas propôs voltarmos ao assunto quando chegássemos às cataratas.

O trem partiu às nove horas da noite. Sir Eustace continuava mal-humorado. Miss Pettigrew, no entanto, pa­recia mais tratável. Quanto ao Coronel Race, mantinha-se senhor de si, fazendo-me crer que fora um sonho toda aquela conversa que tivéramos.

Nessa noite dormi um sono profundo, agitado por pesa­delos terríveis e confusos. Como despertasse com dor de cabeça, resolvi tomar ar na plataforma de observação, onde a temperatura estava fresca e agradável. De todos os lados divisavam-se montanhas onduladas cobertas de árvores. O belíssimo panorama que se descortinava aos meus olhos foi o mais lindo que já vi. Imaginei como seria bom ter uma cabana no coração da floresta, e lá viver para sempre... sempre.

Antes das duas e meia, o Coronel Race chamou-me do "escritório" e, apontando para o nevoeiro suspenso acima de um grupo de arbustos, disse:

— A névoa que se desprende das cataratas. Já nos estamos aproximando delas.

Envolvia-me ainda a estranha sensação de um sonho agitado que sucede às noites mal dormidas, e parecia-me que estava de volta à casa... ao lar! Mas nunca estivera aí... em sonho talvez?

Caminhamos até o hotel, um grande edifício de paredes brancas, com redes de arame para proteção contra mosqui­tos. Não se viam estradas nem casas. Subimos num stoep e, a meia milha de caminhada, não contive uma exclamação, ao defrontarmos as cataratas. Nunca presenciara espetáculo tão grandioso e tão belo. Acredito que jamais verei outro igual.

— Anne, você está infeliz — disse Suzanne, quando nos sentávamos para almoçar. — Nunca a vi desse jeito.

E fitava-me com curiosidade.

— Será que estou? — respondi rindo, ciente de que meu riso soava falso. — É apenas porque me sinto encan­tada com o passeio.

— Não é só isso.

Franziu levemente as sobrancelhas, apreensiva.

Realmente, eu estava feliz, mas, além disso, assalta­va-me o estranho sentimento de que esperava por mais al­guma coisa... algo que logo aconteceria e que me tirava o sossego e me inquietava.

Depois do lanche, negros sorridentes conduziram-nos até a ponte, em vagonetes que deslizavam sobre trilhos.

Era um quadro maravilhoso: o abismo profundo, a água despencando do alto, o véu de névoa que se partia de vez em quando, por um breve instante, deixando entrever as cataratas para depois fechar-se no seu impenetrável mistério. Era o que me pareceu ser a grande fascinação das cataratas: o seu aspecto ilusório. Julgamos que vamos ver, e nunca o conseguimos.

Atravessamos a ponte e, caminhando vagarosamente por uma vereda delimitada por seixos brancos, atingimos a beira do precipício. Por fim, alcançamos uma grande clarei­ra, onde se via, à esquerda, um estreito caminho que descia para o abismo.

— A descida para o precipício — exclamou o Coronel Race. — Vamos? Ou preferem deixar para amanhã? É de­morada e a subida é íngreme.

— Deixemos para amanhã — disse Sir Eustace, reso­lutamente, tomando a dianteira do caminho de volta.

Já notei que detesta os exercícios físicos extenuantes.

Enquanto caminhávamos, um elegante nativo passou por nós, pavoneando-se; atrás seguia uma mulher que parecia trazer todos os utensílios caseiros à cabeça! A coleção incluía uma frigideira.

— Nunca trago a máquina fotográfica nos momentos oportunos — resmungou Suzanne.

— Essas ocasiões se repetirão freqüentemente, Mrs. Blair — disse o Coronel Race. — Não há razão para la­mentar-se.

Chegamos à ponte.

— Vamos à floresta dos arco-íris? — continuou. — Ou receiam molhar-se?

Suzanne e eu o acompanhamos e Sir Eustace regressou ao hotel. A floresta deixou-me desapontadíssima. Vimos al­guns arco-íris e ficamos encharcadas até os ossos. De vez em quando vislumbrávamos o lado oposto das cataratas, o que nos permitiu fazer uma idéia da sua grandiosidade. Santo Deus! Como são belas! Quanto as admiro!

Regressamos ao hotel no exato momento de nos prepa­rarmos para o jantar. Sir Eustace parecia antipatizar solene­mente com o Coronel Race. Suzanne e eu pusemo-nos a zombar carinhosamente dele, mas inutilmente.

Depois do jantar, retirou-se para a sala de estar, levando Miss Pettigrew em sua companhia. Suzanne e eu ficamos conversando durante algum tempo com o Coronel Race. Como ela declarasse, em meio a um grande bocejo, que ia se deitar, não quis permanecer sozinha com o rapaz e subi também para os meus aposentos.

Era tal a minha emoção que não podia dormir; por isso não me despi. Sentei-me numa poltrona, entregando-me aos devaneios, cônscia porém de que algo se aproximava cada vez mais...

Ao ouvir uma batida à porta, estremeci. Levantei-me e fui abri-la, deparando com um negrinho que segurava um envelope sobrescritado numa caligrafia desconhecida. Pe­guei-o e voltei ao quarto. Fiquei a contemplá-lo e por fim abri-o. Continha poucas palavras!

"Preciso vê-la. É-me impossível procurá-la no hotel. Quer ir à clareira próxima ao caminho-que desce para as cataratas? Peço-lhe, invocando a lembrança dos acontecimentos ocorridos na cabina 17. Aquele a quem você cha­mava de Harry Rayburn."

As pulsações do meu coração sufocavam-me. Era ele! Oh! Eu o sabia, soube-o sempre! Tinha pressentido a sua presença junto a mim. Involuntariamente fora ao seu encon­tro no seu esconderijo.

Cobri a cabeça com uma écharpe e saí sorrateiramente. Urgia tomar toda a cautela, pois ia avistar-me com um con­denado à morte e ninguém deveria ver-me ao seu lado. Pas­sando furtivamente pelo quarto de Suzanne, verifiquei que dormia e pude até ouvir a sua respiração regular.

E Sir Eustace? Parei junto à porta da sua sala de estar. Felizmente continuava a ditar para Miss Pettigrew com sua voz monótona, repetindo a frase: "Portanto, tomo a liber­dade de sugerir que, ao tentar resolver esse problema do trabalho confiado aos negros..." A taquígrafa fez uma pausa para que ele continuasse; percebi que o velho res­mungava algumas palavras, furioso.

Prossegui o percurso, andando sempre nas pontas dos pés. O Coronel Race não estava em seus aposentos nem no vestíbulo. E era justamente a quem eu mais temia! Não podia, contudo, perder tempo. Esgueirei-me pela porta do hotel e segui pela vereda que conduzia à ponte.

Atravessei-a, ficando à espera, imersa na escuridão. Se alguém me tivesse seguido, eu o veria quando atravessasse a ponte. Os minutos se escoavam e ninguém aparecia. Nin­guém me acompanhara. Voltei-me, tomando o caminho que levava à clareira. Andei alguns passos e estaquei ao ouvir um leve ruído junto a mim. Eu saíra do hotel sem ser seguida; portanto só podia ser alguém que já estava ali, de embos­cada.

Repentinamente, sem o menor motivo, mas com uma segurança instintiva, percebi que corria perigo. Era uma sen­sação idêntica à que experimentara naquela noite, no Kilmorden — um aviso de perigo próximo.

Virei a cabeça. Silêncio. Andei alguns passos. Nova­mente fez-se ouvir o leve ruído e um vulto de homem surgiu da escuridão. Percebendo que eu o vira, aproximou-se de um salto por trás de mim.

A noite estava muito escura para que eu pudesse reco­nhecê-lo. No entanto, consegui ver que era um europeu de grande estatura; não podia ser nativo. Fugi o mais depressa possível, sem deixar de perceber que ele vinha ao meu encal­ço, e corri com os olhos fixos nas pedrinhas brancas que me serviam de guia.

De repente, meus pés falsearam. Ouvi o homem rir um riso mau e sinistro, ao mesmo tempo em que caía esten­dida no chão, parecendo que me afundava, aos poucos, até a completa destruição do meu ser.

 

Voltei a mim lentamente, com forte dor de cabeça, e quando tentei mover-me meu braço esquerdo também doía. Tudo me parecia irreal como numa atmosfera de sonho. Vi­sões de pesadelo desfilavam ante meus olhos. Novamente as coisas se desvaneceram, e foi como se aos poucos me estivesse afundando no vácuo. Pareceu-me, por um instante, divisar o rosto de Harry Rayburn aproximando-se em meio à névoa para depois afastar-se, com uma expressão de zom­baria. Lembro-me também que alguém me chegou uma xí­cara aos lábios, dando-me de beber. Um rosto negro, um rosto demoníaco sorria para mim. Gritei. Os sonhos volta­ram, longos e inquietadores, e em todos debalde procurava Harry Rayburn para avisá-lo... avisá-lo... de quê? De alguma coisa que eu mesma ignorava. Não obstante, sabia da existência de um perigo, de um grande perigo, e só eu podia salvá-lo. Mergulhei mais uma vez na escuridão, a benfajeza escuridão acompanhada de um sono reparador.

Afinal acordei. O pesadelo acabara. Lembrei-me niti­damente de todos os acontecimentos: da fuga apressada do hotel para encontrar-me com Harry, do homem escondido nas sombras e do último e terrível momento em que tudo se desvaneceu...

Um milagre salvara-me de ser assassinada. Estava muito fraca, com o corpo dolorido e cheio de contusões, mas vivia. E onde me encontrava? Olhei em torno, movendo a cabeça com dificuldade. O quarto era pequeno, com paredes de madeira tosca, onde se viam penduradas peles de animais e diversas presas de elefantes. Estava deitada numa espécie de sofá, também coberto de peles. O braço esquerdo, firmemen­te enfaixado, incomodava-me. No primeiro momento, julguei estar sozinha; depois, divisei o vulto de um homem sentado entre mim e a luz, com a cabeça voltada para a janela. Era tamanha a sua imobilidade que poderia passar por uma fi­gura talhada em madeira. Havia algo nos seus cabelos negros que me pareceu familiar, mas não quis dar largas à imagina­ção. De súbito ele virou-se e eu fiquei com a respiração em suspenso. Era Harry Rayburn. Harry Rayburn em pessoa.

Levantando-se, aproximou-se de mim.

— Está melhor? — indagou, meio desajeitado.

Não consegui responder. Lágrimas escorriam-me pelas faces, ao mesmo tempo em que segurava as suas mãos nas minhas. Se ao menos pudesse morrer assim, enquanto ele me contemplava com um olhar que eu nunca vira antes...

— Não chore, Anne. Por favor, não chore. Está a salvo, agora. Ninguém vai magoá-la.

Afastou-se para ir buscar uma xícara.

— Tome um pouco de leite.

Obedeci-lhe passivamente. Continuou a falar baixinho, num tom carinhoso, como o faria a uma criança:

— Não me faça perguntas. Procure dormir outra vez. Aos poucos ficará mais forte e, se preferir, sairei daqui.

— Não, não — repeti. — Não saia.

— Então, ficarei.

Colocou um banquinho ao meu lado e sentou-se. Pou­sou a mão sobre a minha, e, calma e reconfortada, tornei a adormecer profundamente.

Creio que adormeci à tarde, mas, quando acordei, o sol brilhava alto. Estava sozinha na cabana; no entanto, ao per­ceber que me movia, uma nativa idosa aproximou-se, cor­rendo. Era medonha como o pecado, mas sorriu como que para me encorajar. Trouxe água numa bacia e ajudou-me a

lavar o rosto e as mãos. Em seguida serviu-me uma grande tigela de uma sopa deliciosa! Fiz-lhe diversas perguntas. Ela limitava-se a sorrir, a acenar com a cabeça, tagarelando numa linguagem gutural, a única que conhecia.

De repente ergueu-se e afastou-se respeitosamente, no momento em que Harry dava entrada na cabana. Ele fez-lhe um sinal, dispensando-a. A negra saiu, deixando-nos a sós.

— Está melhor hoje! — exclamou sorrindo.

— É verdade, embora um tanto confusa. Onde estou?

— Numa pequena ilha do rio Zambeze, mais ou me­nos a quatro milhas das cataratas.

— E... meus amigos sabem que estou aqui? Harry sacudiu a cabeça.

— É preciso avisá-los.

— Fará como quiser, é claro, mas, se eu estivesse em seu lugar, esperaria até ficar um pouco mais forte.

— Por quê?

Ele não respondeu imediatamente. Então continuei:

— Há quanto tempo estou aqui? A resposta assustou-me:

— Há quase um mês.

— Oh! Preciso avisar Suzanne para que não se preo­cupe.

— Quem é Suzanne?

— Mrs. Blair. Estávamos hospedadas no mesmo hotel que Sir Eustace e o Coronel Race. Sabia disso, não é ver­dade?

Harry sacudiu negativamente a cabeça.

— Nada sei, exceto que a encontrei inconsciente, enroscada nos galhos de uma árvore e com uma luxação no braço.

— Onde fica essa árvore?

— Inclinada sobre o despenhadeiro. Se suas roupas não se tivessem enroscado nos galhos, certamente você es­taria esfacelada.

Um pensamento fez-me estremecer.

— Você disse que não sabia que eu estava lá. E o bilhete que recebi?

— Que bilhete?

— O que me mandou, pedindo-me que fosse encontrá-lo na clareira.

Harry fitava-me, sem compreender.

— Não mandei bilhete nenhum.

O rubor subiu-me ao rosto até a raiz dos cabelos. Fe­lizmente pareceu-me que ele nada notara.

— Então foi por mera casualidade que estava lá? —. perguntei, assumindo um ar de indiferença. — E quer explicar o que anda fazendo por estas paragens?

— Moro aqui — respondeu com simplicidade.

— Nesta ilha?

— Exatamente. Vim para cá depois do término da guerra. Às vezes faço excursões no meu barco com grupos de hóspedes do hotel, e, como levo vida simples, vivo folgadamente.

— Mora sozinho?

— Não lamento viver afastado da sociedade, pode estar certa disso — respondeu com rispidez.

— Pois eu lamento impor-lhe a minha presença — repliquei —, mas parece que pequena culpa me cabe nessa questão.

Surpresa, vi seus olhos brilharem.

— Não lhe cabe nenhuma. Parte do caminho veio nos meus ombros, como um saco de carvão, e depois no barco, como o faria um homem primitivo da Idade da Pedra.

— Mas por motivo bem diverso.

Dessa vez, ele enrubesceu, e a cor morena de seu rosto escondeu-se sob esse rubor.

— Até agora não me contou qual foi o milagre que, felizmente para mim, o levou ao local onde eu estava — indaguei muito depressa, para disfarçar a sua confusão.

— Não conseguia dormir. Estava inquieto... pertur­bado... com a impressão de que alguma coisa ia acontecer. Resolvi remar um pouco; depois desci e caminhei até as cataratas. Estava junto ao precipício quando ouvi o seu grito.

— Por que não pediu auxílio ao pessoal do hotel, ao invés de trazer-me para cá?

Novamente ele enrubesceu.

— Suponho que, na sua opinião, tomei uma liberdade imperdoável... mas julgo que ainda não compreende o quanto se arriscou! Informar os seus amigos! Bons amigos esses, que a deixam ir ao encontro da morte! Dou-lhe mi­nha palavra: sou mais capaz de cuidar de você do que qual-

quer outra pessoa. Nesta ilha não aparece ninguém. Trouxe a velha Batani, a quem há tempos curei de uma febre, para olhar por você. É uma criatura muito fiel, sempre calada. Você poderia ficar aqui, sob minha proteção, durante meses, sem que ninguém jamais suspeitasse.

Você poderia ficar aqui, sob minha proteção, durante meses, sem que ninguém jamais suspeitasse! Que palavras agradáveis de ouvir!

— Fez muito bem — murmurei. — Não mandarei avisar ninguém. Mais alguns dias de preocupação não farão muita diferença. Não são amigos, propriamente, apenas co­nhecidos... mesmo Suzanne. Quem escreveu o bilhete de­veria saber muito sobre mim. Não pode ser um estranho.

Dessa vez, mencionei a cartinha sem corar.

— Se você se guiasse por mim... — disse ele, hesi­tando.

— Não poderia — respondi francamente. — Mas não vejo inconveniência em ouvi-lo.

— Sempre faz o que quer, Miss Beddingfield?

— Geralmente — respondi com cautela. A qualquer outra pessoa teria dito: "Sempre".

— Tenho pena do seu marido — continuou de modo inesperado.

— Não é necessário — retorqui. — Jamais pensaria em casar-me, a não ser que ficasse perdidamente apaixonada. E certamente, o que mais uma mulher aprecia é fazer o que não lhe agrada por amor de quem ela gosta. E quanto mais teimosa for, mais prazer terá nisso.

— Pois eu discordo. Muitas vezes a verdade está na direção inversa daquilo que se afirmou — disse Harry, com um sorriso irônico.

— Deveras — exclamei impulsivamente. — E é essa a razão por que existem tantos casamentos infelizes. A culpa é dos homens; ou se deixam dominar pelas esposas, e elas passam a desprezá-los; ou então se mantêm fechados no seu egoísmo, firmes na maneira de agir, sem ao menos dizer um "muito obrigado". Os maridos que se conside­ram bem-sucedidos obrigam as mulheres a proceder con­soante a vontade deles, mas fazem um verdadeiro estardalha­ço quando elas agem por conta própria. As mulheres gostam de ser dominadas, mas detestam que não reconheçam os seus sacrifícios. Por outro lado, os homens realmente não apre­ciam as mulheres submissas. Quando me casar, serei uma peste; mas, vez por outra, quando meu marido menos es­perar, mostrar-lhe-ei que perfeito anjo posso ser! Harry deu uma gargalhada.

— Vão viver como cão e gato!

— As pessoas que se amam sempre brigam, porque não se entendem. No momento, porém, que se entenderem, deixarão de se amar.

— O inverso também é certo? Sempre que duas pes­soas vivem brigando isso quer dizer que se amam?

— Não... não sei — respondi, confusa. Voltando-se para o fogãozinho, perguntou-me num tom indiferente:

— Quer mais sopa?

— Aceito, obrigada. Sinto tamanha fome que seria capaz de engolir um hipopótamo.

— Bom sinal.

Enquanto ele atiçava o fogo, pus-me a observá-lo.

— Quando estiver mais forte, vou cozinhar para você

— prometi.

— Não acredito que entenda desses assuntos.

— Sou capaz de aquecer latarias tão bem quanto você

— disse, apontando para as latinhas enfileiradas na pra­teleira.

— Touché — disse-me rindo.

Quando ria, sua fisionomia mudava. Parecia um me­nino.

Tomei a sopa com prazer. Em seguida, lembrei-lhe que, afinal, não me pusera a par da sua opinião.

— Ah! É verdade; o que tenho para dizer é o seguinte: em seu lugar, eu ficaria calmamente perdu por aqui até me restabelecer. Os seus inimigos vão pensar que morreu. Fi­carão admirados de não encontrar o corpo, mas acreditarão que você se despedaçou nas rochas e foi levada pela cor­renteza.

Estremeci.

— Quando estiver bastante forte, viajará sossegada-mente até Beira, e um vapor a levará de volta à Inglaterra.

— Não sou tão dócil assim — objetei, num tom de desprezo.

— Você fala como uma criança sem juízo.

— Não sou criança sem juízo — exclamei indignada. — Sou mulher.

Ele fitou-me com uma expressão indefinível, enquanto eu me sentava, muito irritada, o rosto em fogo.

— Que Deus me ajude; disso sei eu — murmurou, saindo abruptamente do quarto.

Restabeleci-me rapidamente. A pancada na cabeça não fora grave, mas o braço incomodava-me muito. A princípio, meu protetor julgou que houvesse fratura. Após um exame cuidadoso, porém, concluiu tratar-se de violenta distensão dos ligamentos de uma articulação. Embora sentisse muita dor, dentro de pouco tempo recobrei os movimentos.

Vivi nessa ocasião dias realmente singulares. Estáva­mos segregados do mundo, sozinhos como Adão e Eva, mas ao mesmo tempo, que diferença! A velha Batani andava de um lado para outro, à maneira dos cães. Insisti em pre­parar eu mesma as refeições, ou melhor, em ajudar no que pudesse ser feito com uma só mão. Harry ausentava-se gran­de parte do dia, mas sempre sobravam horas que passáva­mos estendidos sob o céu aberto, à sombra das palmeiras, ora conversando, ora abordando os mais variados assuntos. Discutíamos muito também, mas entre nós nascia uma sólida e duradoura camaradagem, como nunca imaginei que pudesse existir. Havia isso... e mais alguma coisa.

Amargurada, pensava no momento em que, inteira­mente restabelecida, teria de deixá-lo. E ele? Deixar-me-ia partir sem me dizer uma palavra? Sem uma leve manifesta­ção de carinho? Às vezes Harry ficava silencioso durante grandes lapsos de tempo, e, subitamente, levantava-se e saía sozinho, caminhando sem destino. Uma tarde, mergulhou numa dessas crises de silêncio. Terminada a nossa frugal re­feição, sentamo-nos à porta da cabana. O sol desaparecia no horizonte.

Como Harry não conseguisse arranjar grampos, meus cabelos lisos e negros pendiam, soltos, até os joelhos. Apoiei o queixo nas mãos e fiquei a meditar, sentindo o olhar de Harry pousado em mim.

— Parece uma feiticeira, Anne — disse por fim. Havia na sua voz algo que ainda não notara.

Estendeu a mão, tocando de leve os meus cabelos.

Estremeci. De repente, levantou-se de um salto, dizendo violentamente:

— Você tem de ir embora amanhã, está ouvindo? Eu... eu não suporto mais esta situação. Afinal de contas, sou homem. Tem de ir, Anne. É preciso. Você não é tola e bem sabe que isto não pode continuar.

— Também acho. Mas... foram dias felizes, não?

— Felizes? Foi um inferno!

— Achou tão ruim assim?

— Por que me atormenta? Por que caçoa de mim? Por que diz isso... rindo e escondendo-se por trás dos cabelos?

— Não estava rindo e não estou caçoando. Se quer que eu vá embora, irei. Mas se quiser que fique... ficarei.

— Não! — exclamou com veemência. — Não, não me tente, Anne. Avalia o que sou? Duas vezes criminoso. Um homem perseguido. Aqui me conhecem como Harry Parker; pensam que estou percorrendo o país; mas qualquer dia vão me descobrir, e então a notícia se espalha. Você é jo­vem, Anne, e tão linda; possui uma beleza capaz de en­louquecer os homens. Tem amor, vida, o futuro diante de si. Para mim, tudo passou; minha vida está arruinada, des­truída, vivo amargurado.

— Se não me quiser...

— Sabe muito bem que a quero, como sabe também que daria tudo para que ficasse aqui, nos meus braços, afas­tada, escondida do mundo para sempre. E você procurando me demover, Anne. Você, com esses longos cabelos de feiti­ceira, esses olhos que são cor de ouro, e castanhos, e verdes, sempre risonhos, mesmo quando seus lábios estão sérios. Mas vou salvá-la de si mesma e de mim. Partirá hoje à noite. Vai para Beira...

— Para Beira, não — interrompi.

— Vai, sim. Vai para Beira nem que eu tenha de le­vá-la, e só a deixarei depois que tiver embarcado no navio. De que pensa que sou feito? Sabe que acordo noite após noite, temendo que a descubram aqui? Não podemos con­tar com milagres. Tem de voltar para a Inglaterra, Anne... e... case-se. Seja feliz.

— Com um homem de sólida posição que me dê uma vida confortável!

— É preferível à... desgraça completa.

— E você?

— Já posso levar avante o meu trabalho — disse, com as feições contraídas. — Não me faça perguntas. Suponho que saiba do que se trata. Uma coisa, porém, posso dizer: vou reabilitar meu nome, nem que tenha de esperar até o último dia de vida, e estrangular o miserável que tentou matá-la naquela noite.

— Temos que ser justos — repliquei. — Afinal, ele não me empurrou no precipício.

— Não era preciso, pois maquinara habilmente o pla­no. Quando subi até o caminho que vai dar no abismo, tudo me pareceu normal, mas as marcas existentes no terreno davam a perceber que alguém mudara de lugar as pedras que o delimitam. Além disso, essa pessoa colocou mais al­gumas sobre o maciço de árvores que crescem à beira do abismo. Julgando pisar em terreno firme, você iria rolar pela encosta abaixo. Que Deus tenha piedade dele, se lhe puser as mãos em cima!

Calou-se durante alguns momentos e depois prosseguiu, falando num tom completamente diferente:

— Nunca tocamos nesse assunto, Anne, não é verdade? Agora é oportuno. Queria que você ouvisse a história com­pleta, desde o princípio.

— Se falar no passado o entristece, nada me conte — murmurei.

— Mas quero que você saiba tudo. Nunca pensei que um dia pudesse falar a alguém sobre essa parte da minha vida. Como são engraçadas as peças que o destino nos prega, não acha?

E novamente guardou silêncio. O sol descambara e o negror aveludado das noites africanas envolvia-nos como um manto.

— Já sei alguma coisa — disse suavemente.

— Sabe o quê?

— Que o seu verdadeiro nome é Harry Lucas. Hesitou um momento e não me fitou uma vez sequer;

continuava olhando fixamente para um ponto à sua frente. Eu não fazia a menor idéia do que se passava na sua mente; mas ele, por fim, lançando a cabeça num movimento brusco,

como se aquiescesse a uma decisão muda, começou a contar a sua história.

— Você acertou. Realmente, chamo-me Harry Lucas. Meu pai era um soldado reformado que veio para a Rodésia e aqui comprou uma fazenda. Morreu quando eu cursava o segundo ano, em Cambridge.

— Você gostava dele? — perguntei subitamente.

— Não... não sei.

Corou, prosseguindo com súbita veemência:

— Por que me pergunta? Gostava muito de meu pai. Na última vez que nos vimos, trocamos palavras duras por causa do meu temperamento violento e das dívidas que con­traí, mas não deixei de gostar do velho. Tenho consciência disso, mas agora é tarde.

"Em Cambridge encontrei um rapaz...", prosseguiu mais calmamente.

— Eardsley?

— Isso mesmo, Eardsley. Seu pai, como sabe, gozava de uma situação das mais destacadas na África do Sul. Ime­diatamente ficamos íntimos amigos. Tínhamos em comum o amor pela terra sul-africana e o desejo de conhecer regiões do mundo ainda inexploradas. Depois de sair de Cambridge, ele teve uma altercação definitiva com o pai. Duas vezes o velho lhe pagara as dívidas, mas se recusava a fazê-lo nova­mente. Houve entre eles uma cena violenta. Sir Laurence, com a paciência esgotada, afirmou que nada mais faria em favor do filho. Eardsley deveria cuidar de manter-se às suas custas. O resultado foi que, como já é sabido, os dois par­tiram juntos para a América do Sul, com o projeto de explo­rar minas diamantíferas. Não vou entrar em pormenores; mas, apesar dos pesares, passamos uma temporada maravi­lhosa. Dificuldades surgiam freqüentemente, é verdade; em compensação a vida era boa; lutávamos pela subsistência, isolados do convívio humano, mas Deus sabe como se pode ficar conhecendo um amigo. Formou-se um laço de amizade entre nós que só a morte podia desfazer. Pois bem, como disse o Coronel Race, os nossos esforços foram coroados de êxito. Deparamos com uma segunda Kimberley no coração das selvas da Guiana Inglesa. O nosso entusiasmo foi indes­critível, não pelo valor material que a descoberta represen­tava, pois Eardsley sempre viveu na abastança, e sabia que por morte do pai herdaria milhões. Lucas crescera na po­breza, estava habituado à vida simples. Não, era pura alegria provocada pela descoberta.

Fez uma pausa, acrescentando depois, quase como se fosse um pedido de desculpa:

— Não ficou aborrecida com a maneira como contei toda esta história, não? É como se eu não tivesse tomado parte nela. Assim me parece, quando olho para o passado e vejo aqueles dois rapazes. Quase já esqueci que um deles era... Harry Rayburn.

— Conte da maneira que preferir — disse eu, e então ele prosseguiu:

— Voltamos a Kimberley muito orgulhosos do nosso achado, trazendo magníficos diamantes selecionados, para serem submetidos à apreciação de técnicos. Nessa ocasião, no hotel de Kimberley, encontramos...

Retesei os músculos e a mão que se apoiava na ombreira da porta contraiu-se involuntariamente.

— Anita Grünberg, assim se chamava. Era atriz, bas­tante jovem e muito bonita. Nascera na África do Sul, filha de mãe húngara, se bem me lembro. Pairava certo mistério em torno dela, aumentando a atração que exercia sobre os dois rapazes recém-chegados da selva. Deve ter-se desincumbido facilmente da tarefa. Ambos nos apaixonamos por ela e levamos o caso a sério. Foi a primeira sombra que surgiu entre nós; mas, mesmo assim, não turvou a nos­sa amizade. Cada um, sinceramente falando, procurava afas­tar-se para que o outro tivesse oportunidade de conquis­tá-la. Da parte dela, porém, o jogo era outro. Às vezes, eu ficava intrigado por não compreender como podia ela não se entusiasmar pelo ótimo partido, o filho único de Sir Lau­rence Eardsley. A verdade é que era casada com um classificador de diamantes de De Beers, mas ninguém sabia. Si­mulava enorme interesse pela nossa descoberta, e, diante disso, não só lhe contamos tudo como também lhe mostra­mos as pedras. Dalila — assim deveria chamar-se. Como re­presentava bem o papel!

"Descoberto o roubo de que De Beers fora vítima, a polícia caiu como um raio sobre nós e apoderou-se dos dia­mantes. A princípio, rimos, tal o absurdo do fato. As pedras apresentadas no júri eram, sem a menor sombra de dúvida, os diamantes pertencentes a De Beers. Anita Grünberg desa­parecera depois de efetuar habilmente a substituição. A his­tória de serem nossos os diamantes provocou a zombaria de toda gente.

"Devido à enorme influência de que desfrutava, Sir Laurence Eardsley conseguiu impedir o andamento do pro­cesso judicial. Dois moços, porém, ficaram com a reputação arruinada, desonrados perante a sociedade e com o estigma de ladrões conspurcando seus nomes. Além disso, Sir Lau­rence sofreu uma crise cardíaca, após uma conversa violenta com o filho, na qual cumulou-o de acerbas censuras. Fizera o possível para salvar o nome da família, mas desse dia em diante não mais o consideraria como seu filho. Expulsou-o de casa, e o rapaz, orgulhoso como era, guardou silêncio, deixando de protestar inocência ante a atitude de descrença do pai. Saiu indignado ao encontro do companheiro que o esperava. Uma semana mais tarde foi declarada a guerra. Os dois moços alistaram-se. Você sabe o que aconteceu. Morreu o melhor amigo que um homem já teve. Sem necessidade, ele avançou temerariamente de encontro ao perigo, morren­do com o nome maculado.

"Dou-lhe minha palavra, Anne, de que, principalmente por causa dele, foi que guardei tanto rancor por essa mulher. Atingiu-o muito mais do que a mim. Naquela ocasião, apai­xonei-me loucamente, mas julgo que às vezes eu a intimi­dava; para Eardsley, foi um sentimento mais calmo e pro­fundo. Anita tornou-se o centro do seu universo, e a traição de que foi vítima tirou-lhe a vontade de viver. O golpe so­frido deixou-o confuso e indiferente a tudo."

Harry fez uma pausa e, após alguns momentos, pros­seguiu:

— Como é do seu conhecimento, fui considerado "de­saparecido, morto talvez". Nunca me dei o trabalho de cor­rigir o erro. Adotei o nome de Parker e vim para esta ilha, minha velha conhecida. No início da guerra, tinha esperan­ças de poder provar a minha inocência; agora, porém, essa ambição desapareceu por completo. Às vezes pergunto a mim mesmo: para quê? Meu companheiro está morto, e ne­nhum de nós tem parentes vivos que possam importar-se com o caso. Todos supõem que morri também; deixemos as coisas como estão. Levei uma vida tranqüila aqui; não era feliz nem infeliz, nesse entorpecimento de todos os sentidos. Só agora percebo que, em parte, sofria as conseqüências da guerra.

"Certo dia, porém, aconteceu um fato que me fez des­pertar. No meu barco, levava rio acima um grupo de pessoas. Estava na plataforma de embarque, auxiliando os passagei­ros, quando alguém soltou uma exclamação de espanto, atraindo-me a atenção. Um homem baixo, magro, de barbas, fitava-me como se eu fosse alma do outro mundo. Era ta­manha a sua emoção, que me despertou a curiosidade. Inda­guei a respeito dele no hotel e fiquei sabendo que se cha­mava Carton, viera de Kimberley e trabalhava no comércio de diamantes como empregado de De Beers. Em poucos instantes toda a lembrança do passado voltou-me à memória. Deixando a ilha, parti para Kimberley.

"Pouca coisa, porém, consegui descobrir a respeito dele. Por fim, resolvi obrigá-lo a encontrar-se comigo. Levei o revólver, mas, num relance, percebi que estava diante de um covarde. Bastou-me defrontá-lo para certificar-me de que o homem sentia medo de mim. Sem demora consegui fazê-lo contar tudo o que sabia. Ele próprio traçara parte do plano do roubo para sua mulher, Anita Grünberg. Vira-nos juntos uma vez durante o jantar no hotel e, como havia lido a notícia da minha morte, o meu aparecimento em carne e osso nas cataratas deixara-o simplesmente apavorado. Ha­viam-se casado ainda muito jovens, mas logo depois ela o deixou, pois se imiscuíra com gente de má fama, assim ele me disse. Pela primeira vez ouvi falar no Coronel. Carton afirmou jamais ter-se envolvido em casos escusos, a não ser esse, a que já me referi. Pareceu-me sincero e digno de crédito. Não tem o aspecto característico dos homens que fizeram carreira no crime.

"Apesar disso, fiquei com a impressão de que me ocultava alguma coisa. Ameacei dar-lhe uns tiros, afirman­do que pouco me importavam as conseqüências. Aterroriza­do, contou-me, de um jato, mais uma história. Deu a enten­der que Anita Grünberg não confiava inteiramente no Coronel. Simulando entregar-lhe todas as pedras que sub­traíra do hotel, ficou com algumas em seu poder. Carton, técnico no assunto, aconselhou-a sobre as que devia guardar. Os diamantes eram de coloração e qualidade raras, de ma­neira que, caso fosse necessário exibi-las, seriam prontamen­te identificáveis. Os técnicos de De Beers imediatamente concordariam em que jamais teriam passado por suas mãos. Desse modo, a história da substituição teria razão de ser, e, com a reputação salva, a suspeita recairia sobre o próprio grupo. Deduzi que, contrariamente aos seus hábitos, o Co­ronel em pessoa tomara parte no negócio, e, assim sendo, Anita sabia que o tinha em suas mãos. Carton propôs-me procurar Anita ou Nadina, seu nome atual, para entrarmos em acordo, julgando que, por uma quantia razoável, ela de­sistiria dos diamantes e trairia o seu antigo patrão. Ofere­ceu-se para telegrafar-lhe imediatamente.

"Eu ainda suspeitava de Carton. Era fácil amedrontá-lo, mas, quando dominado pelo pavor, mentia tanto que se tornava difícil descobrir o verdadeiro e o falso nas suas palavras. Voltei ao hotel e fiquei à espera, imaginando que na tarde seguinte teria conhecimento da resposta ao seu telegrama. Indaguei nas vizinhanças da sua casa e fiquei sa­bendo que Mr. Carton viajara, devendo estar de volta na manhã seguinte. Fiquei desconfiado. No último momento, descobri que, na realidade, ele estava de partida para a In­glaterra. O Castelo de Kilmorden zarpava da Cidade do Cabo dentro de dois dias. Cheguei no momento exato de alcançar o mesmo vapor.

"Não pretendia revelar minha presença a bordo pa­ra não alarmar Carton. Em Cambridge, representei muitas vezes no teatro da universidade e por isso não tive dificulda­de em desempenhar o papel de um circunspecto senhor bar­budo, de meia-idade. Evitei a presença de Carton, e, pretextando indisposição, passei a maior parte da viagem fechado na cabina.

"Em Londres, não me foi difícil acompanhar-lhe os pas­sos. Seguiu diretamente para o hotel, e só saiu no dia se­guinte, pouco antes da uma hora. Eu continuava vigilante. Em Knightsbridge, dirigiu-se a uma imobiliária e informou-se sobre prédios situados à margem do rio.

"Postei-me na mesa ao lado, indagando também sobre casas. De repente, entrou Anita Grünberg, Nadina, ou outro nome que tenha, não me importa. Arrogante, insolente e quase tão bela como antes. Meu Deus! Que ódio senti por aquela mulher, a causadora da ruína da minha vida e de outra ainda mais valiosa. Nesse momento tive vontade de agarrá-la pelo pescoço, fazendo destilar sua vida gota a gota! Via tudo vermelho em torno de mim. Mal compreendi as palavras do corretor. Ouvia a voz dela, alta e nítida, com um sotaque estrangeiro carregado: 'Casa do Moinho, Marlow. Propriedade de Sir Eustace Pedler. Creio que me con­vém. De qualquer modo, vou vê-la'.

"O rapaz entregou-lhe a autorização e ela saiu com aquele ar altaneiro, como uma rainha. Nem por uma palavra, nem por um sinal, deu a perceber que conhecia Carton; no entanto, fiquei certo de que aquele encontro fora premedita­do. Comecei a tirar conclusões. Ignorava que Sir Eustace se achava em Cannes, por isso julguei ser a casa mero pretexto para um encontro. Sabia que estivera na África do Sul, na época do roubo, e, como nunca o tivesse visto antes, cheguei à conclusão de que ele era o misterioso Coronel de que tanto ouvira falar.

"Segui os dois suspeitos até Knightsbridge. Nadina en­trou no Hyde Park Hotel, dirigiu-se ao restaurante, e eu, apressando o passo, acompanhei-a. Como achasse mais pru­dente não me arriscar a ser reconhecido naquele momento, pus-me no encalço de Carton. A minha esperança era que ele fosse em busca dos diamantes e o meu aparecimento ines­perado lhe provocasse a confissão da verdade. Segui-o passo a passo até a Estação de Hyde Park Corner. Estava sozinho na extremidade da plataforma, e a pequena distância havia uma moça. Sem mais delongas, resolvi abordá-lo. Você sabe o que aconteceu. Apavorado ao ver um homem que supunha estarna África do Sul, perdeu a cabeça e, dando uns passos para trás, caiu nos trilhos elétricos. Sempre fora covarde. Alegando ser médico, tive oportunidade de remexer-lhe os bolsos. Encontrei uma carteira com alguns papéis, que depois perdi, duas cartas desprovidas de interesse para mim, um rolo de filmes e um pedaço de papel em que anotara a data de um encontro: dia 22 no Castelo de Kilmorden. Preocupa­do em me afastar antes que alguém me detivesse, perdi-o também; por sorte, lembrava-me da data.

"Corri ao vestiário mais próximo e rapidamente tirei o disfarce, pois não tinha a menor vontade de ser preso por ter mexido nos bolsos de um cadáver. Voltando imediata­mente ao Hyde Park Hotel, encontrei Nadina ainda almo­çando. Não vou contar os pormenores da minha viagem a Marlow. Ela entrou na casa. Falando com a caseira, pretex­tei estar na companhia da visitante e fácil me foi entrar também."

Harry fez uma pausa. O silêncio pesava.

— Anne, você acredita em mim, não é? Juro perante Deus como vou dizer a verdade. Entrei na casa, muito exal­tado, com vontade de matá-la, e ela estava morta! Encon­trei-a no primeiro andar. Meu Deus! Que coisa horrível! Morta — e eu havia chegado não mais do que três minutos depois! Não percebi o menor indício da presença de outra pessoa na casa! Imediatamente tomei consciência da situação crítica em que me encontrava. Com um golpe de mestre, a vítima da chantagem livrara-se da chantagista, e ao mesmo tempo inculpava um inocente do crime que cometera. O método do Coronel estava patente. Fui sua vítima pela se­gunda vez. Que tolice a minha, cair tão facilmente na arma­dilha!

"Mal me lembro do que fiz então. Procurei aparentar tranqüilidade, e tratei de me afastar daquele lugar. No en­tanto, bem sabia que não iriam demorar a descobrir o crime e que telegrafariam por todo o país descrevendo a minha pessoa.

"Escondi-me durante alguns dias. Por fim surgiu uma oportunidade favorável. Sem ser pressentido, ouvi na rua a conversa entre dois senhores de meia-idade. Um deles era Sir Eustace Pedler. O trecho do diálogo que ouvira deu-me a idéia de empregar-me como seu secretário. Nessa altura dos acontecimentos, já não tinha certeza de que Sir Eustace

Pedler fosse o Coronel. Por mera casualidade, ou por motivo fora de minhas cogitações, sua casa fora escolhida para local do encontro."

— Você sabia — interrompi — que Guy Pagett estava em Marlow na ocasião do crime?

— Isso esclarece muita coisa. Julguei que estivesse em Cannes, com Sir Eustace.

— Supunham que ele estivesse em Florença, mas sei que nunca pôs os pés lá. Garanto que se encontrava em Mar­low, mas não tenho provas disso.

— E pensar que jamais suspeitei de Pagett, um minuto sequer, até a noite em que tentou agarrá-la. Esse homem é um magnífico ator.

— Não é mesmo?

— Isso vem confirmar por que escolheram a Casa do Moinho, onde Pagett, sem chamar a atenção, deve ter livre entrada. Não objetou a que eu acompanhasse Sir Eustace na viagem. A minha prisão imediata não lhe interessava. É fácil deduzir que Nadina não trazia as jóias na ocasião do encon­tro, como imaginaram que o fizesse. Penso que Carton as guardara, escondendo-as no Castelo de Kilmorden. Julgavam que eu soubesse alguma coisa a respeito do local onde esta­vam ocultas. O Coronel estaria em perigo enquanto não con­seguisse ficar na posse dos diamantes; por isso apressava-se em consegui-los, custasse o que custasse. Em que maldito lugar Carton os escondera — se é que foi o caso — eu não sei dizer.

— Essa é outra história — murmurei — que vou contar.

 

Harry ouviu atentamente a narração dos acontecimentos já descritos nestas páginas. Ficou admiradíssimo em saber

171

que durante todo esse tempo eu, ou melhor, Suzanne, fora a guardiã dos diamantes, pois disso nunca desconfiara. Após ouvir sua história, fiquei ciente das maquinações de Carton, ou, preferivelmente, de Nadina, o cérebro idealizador do plano. Não surpreendia, portanto, que pusessem em prática contra ela e o marido táticas destinadas a recuperar os dia­mantes. Nadina ocultava o segredo sozinha. Como poderia o Coronel supor que as pedras haviam sido confiadas a um simples camareiro de bordo?

A reabilitação de Harry parecia assegurada, mas a culpa do homicídio tolhia-nos a liberdade de ação. Como poderia ele, na situação atual, defender-se diante da sociedade?

Preocupávamo-nos continuamente em descobrir a iden­tidade do Coronel. Era ou não Guy Pagett?

— Há um fato que me põe em dúvida — disse Harry. — Estou quase certo de ter sido Pagett quem assassinou Anita Grünberg, em Marlow, e isso confirma a hipótese de que ele seja realmente o Coronel. O caso de Anita não é de natureza a ser discutido com subordinados. O único argu­mento contrário à teoria é o atentado de que você foi vítima na noite da sua chegada aqui. Pagett ficou na Cidade do Cabo; de modo nenhum poderia ter chegado antes de quarta-feira da semana seguinte. É pouco provável que tenha agen­tes nesta parte do mundo e, além disso, todos os seus planos foram concebidos para ser realizados na Cidade do Cabo. Poderia, é claro, dar ordens a um subordinado, em Johannesburg; este, por sua vez, tomaria o trem em Mafeking. Deve­ria ter carta branca para agir; basta ver o bilhete que lhe escreveu.

Guardamos silêncio. Momentos depois Harry continuou falando pausadamente:

— Você disse que quando saiu do hotel Mrs. Blair estava dormindo e que ouviu a voz de Sir Eustace ditando para Miss Pettigrew? E o Coronel Race, onde estava?

— Não o encontrei em parte alguma.

— Ele tem motivos para supor que... você e eu so­mos amigos?

— É possível — respondi, pensativa, lembrando da conversa que tivemos quando voltávamos do Matoppos. —-Ele tem uma personalidade marcante — continuei —, mas não é absolutamente a idéia que faço do Coronel. Além do mais, seria absurdo. O Coronel Race faz parte do serviço secreto.

— Tem certeza? É facílimo espalhar uma notícia des­sas. Ninguém a contradiz, e enquanto isso o boato toma vul­to até merecer a crença de todo mundo, como se fosse uma verdade evangélica, servindo de desculpa para toda espécie de fatos duvidosos. Anne, você simpatiza com Race?

— Sim... e não. Causa-me aversão e ao mesmo tempo me fascina; de uma coisa estou certa: tenho medo dele.

— Ele estava na África do Sul, você sabe, na ocasião do roubo em Kimberley — disse Harry com voz pausada.

— Mas foi quem contou tudo a Suzanne sobre o Coro­nel e a viagem que fez a Paris para tentar agarrá-lo.

— Camouflage... de pessoa muito inteligente.

— E Pagett? Quando entra no jogo? Estará a soldo de Race?

— Talvez, mas sem entrar no jogo.

— O quê?

— Pense bem, Anne. Você ouviu o relato de Pagett sobre os acontecimentos daquela noite no Kilmorden?

— Já, contado por Sir Eustace.

Repeti a história. Harry ouvia-me atentamente.

— Viu um homem caminhando na direção da cabina de Sir Eustace e seguiu-o até o tombadilho. Não foi isso o que contou? E quem estava na cabina fronteira à de Sir Eus­tace? O Coronel Race. Suponhamos que tenha subido sorra­teiramente ao convés e, falhando o golpe que preparava con­tra você, saiu correndo e encontrou Pagett na porta do salão. Derrubou-o com um soco, passou e fechou a porta. Quando chegamos, Pagett estava estendido no chão, inconsciente. O que acha disso?

— Não se esqueça de que ele afirma categoricamente ter sido você quem lhe deu o soco.

— Ora, suponhamos que, no momento exato em que recobrou os sentidos, tenha me visto desaparecendo, já lon­ge. Não seria capaz de jurar ser eu o assaltante? Principal­mente se imaginasse que era a mim que seguiu?

— É provável — respondi pausadamente. — Mas isso não altera a seqüência das nossas idéias. Além disso, há outros fatos a considerar.

— A maior parte deles é de fácil explicação. O homem que a seguiu na Cidade do Cabo falou com Pagett e ele olhou para o relógio. O homem podia estar apenas pergun­tando as horas.

— Quer dizer que foi mera coincidência?

— Não é bem isso. Há uma seqüência, nisso tudo, que liga Pagett ao negócio. Por que escolheram a Casa do Moi­nho para cometer o assassinato? Foi porque Pagett esta­va em Kimberley na ocasião do roubo dos diamantes? Teria sido ele o bode expiatório, caso eu não aparecesse providencialmente em cena?

— Então acredita totalmente na inocência do rapaz?

— É o que parece, e, se assim for realmente, temos de descobrir o que o rapaz estava fazendo em Marlow. Se apresentar uma explicação satisfatória, estaremos na trilha certa.

Harry levantou-se.

— Passa da meia-noite. Entre, Anne, vá dormir. Le­vo-a no barco pouco antes de clarear o dia. Tenho um amigo em Livingstone. Ficará escondida na casa dele até a hora de o trem partir. Em Bulawayo você passará para o trem que vai a Beira. Indagarei do meu amigo o que aconteceu no hotel durante a sua ausência e onde se encontram os seus companheiros de viagem.

— Beira — disse eu pensativamente.

— Anne, você tem que ir para Beira. Só um homem pode resolver esse caso. Deixe isso para mim.

Analisávamos calmamente a situação, quando mais uma vez ficamos dominados pela emoção. Não ousávamos trocar sequer um olhar.

— Está bem — concordei, entrando na cabana. Estendi-me sobre a cama coberta de peles de animais, porém o sono não vinha. Ouvia os passos de Harry, andando de um lado para outro, durante longo tempo. Por fim, cha­mou-me:

— Vamos, Anne, está na hora. Obedientemente levantei-me e saí. Ainda estava escuro, mas já despontavam os primeiros raios da aurora.

— Vamos na canoa, é preferível à lancha... — come­çou Harry a falar, quando repentinamente ficou imóvel, com a mão erguida.

— Silêncio! O que é isso?

Prestei atenção, mas nada percebi. Seus ouvidos eram mais apurados que os meus; eram ouvidos de quem viveu muito tempo nas selvas. Comecei também a ouvir um ruído, um leve bater de remos na água, que vinha da margem direi­ta do rio, aproximando-se rapidamente da pequena platafor­ma em que nos encontrávamos.

Aguçamos a vista em meio à escuridão e divisamos uma mancha na superfície líquida. Era uma canoa. Vimos um rápido clarão. Alguém acendera um fósforo. Foi o bastante para que eu reconhecesse um dos vultos: era o holandês da casa de Muizenberg, acompanhado de nativos.

— Depressa, entre na cabana.

Harry arrastou-me com ele. Pegou duas carabinas e um revólver pendentes da parede.

— Sabe carregar carabinas?

— Não. Mostre-me como se faz.

Aprendi rapidamente. Fechamos a porta e Harry pos­tou-se à janela que abria para a plataforma, no exato momen­to em que a canoa passava.

— Quem vem lá? — gritou.

Se tivéssemos dúvidas quanto à intenção dos nossos visitantes, nesse momento elas se dissipariam. Uma rajada de balas espalhou-se ao nosso redor. Felizmente não fomos atingidos. Harry apontou a carabina, disparando diversas vezes. Ouvi gemidos e o ruído de um corpo caindo na água.

— Isso vai acalmá-los — murmurou zangado, enquanto pegava a outra arma. — Afaste-se, Anne, pelo amor de Deus! E trabalhe depressa.

Os tiros seguiam-se. Um deles raspou o rosto de Harry. Ele respondeu ferozmente aos inimigos. A carabina já estava novamente carregada quando Harry a pegou. Enlaçando-me com o braço esquerdo, beijou-me com violência, antes de voltar à janela. De repente soltou um grito.

— Estão indo embora... já receberam o seu quinhão. Lá no rio, eles são uma esplêndida mira, mas não sabem quantos somos. Fugiram, mas com certeza voltarão. Vamos ficar de atalaia.

Colocou a carabina no chão e, voltando-se para mim, disse:

— Anne! Tão linda! Maravilhosa! E portou-se com a coragem de um leão! Bela feiticeira de cabelos negros!

Harry envolveu-me em seus braços. Beijou-me os cabe­los, os olhos, os lábios.

— E agora, voltemos ao trabalho — disse subitamente, afrouxando o abraço. — Traga aquelas latas de querosene.

Obedeci. Ele estava ocupado no interior da cabana. Vi-o em seguida arrastando-se sobre a cobertura da choupana, se­gurando alguma coisa nos braços e voltando logo depois.

— Vá para a canoa. Temos que levar isso para o outro lado da ilha.

Pegou as latas de querosene enquanto eu me afastava.

— Estão de volta — disse baixinho. — Vi uma man­cha movendo-se do outro lado da praia.

Harry correu para junto de mim.

— Chegamos na hora. Olhe... que fim levou a canoa? Estávamos ao abandono. Harry assobiou baixinho.

— A situação não é para brincadeira, percebeu, que­rida?

— Não na sua companhia.

— Ora! Não acho muita graça em morrermos juntos. Vamos fazer alguma coisa mais aproveitável. Olhe... volta­ram em duas canoas e seguem em rumos diferentes. Agora, vamos ao efeito cênico.

Mal terminara de pronunciar essas palavras, longa cha­ma elevou-se do teto da cabana, iluminando dois vultos agachados, juntos um do outro.

— Com os tapetes fiz um enchimento das minhas roupas velhas; isso vai iludi-los durante algum tempo. Venha, Anne, temos que tentar tudo.

De mãos dadas, saímos numa corrida desabalada pela ilha. De um lado, ela se separava da praia por um estreito canal.

— Vamos atravessar a nado. Sabe nadar, Anne? Se não souber não importa, porque eu posso levá-la. É difícil pas­sar de barco por este lado; há muitas pedras, mas para nadar é ótimo, com a vantagem de que vamos na direção de Livingstone.

— Sou capaz de nadar uma distância um pouco maior do que esta. Estamos correndo perigo, Harry? — Vira a ex­pressão preocupada do seu rosto. — Tubarões?

— Não, tolinha. Os tubarões vivem no mar. Mas quase acertou, Anne. São os crocodilos que nos atrapalham.

— Crocodilos?

— Sim, mas não se preocupe com eles... ou então reze; faça o que achar melhor.

Mergulhamos. Minhas preces devem ter sido muito efi­cientes, pois chegamos incólumes à praia. Saímos molhados, completamente encharcados.

— Vamos direto a Livingstone. O trajeto vai ser duro; e roupas molhadas em nada ajudam. Mas temos de ir.

O percurso foi um pesadelo. O vestuário encharcado colava nas pernas e as meias rasgaram-se nos espinhos. Esta­quei, afinal, vencida pela exaustão. Harry aproximou-se.

— Tenha ânimo, querida. Vou ajudá-la.

E foi assim que cheguei a Livingstone, pendurada nos seus ombros como um saco de carvão. Não sei como ele pôde distinguir o caminho. Viam-se os primeiros rubores da auro­ra. O amigo de Harry era um rapaz de vinte anos, dono de uma loja de souvenirs. Chamava-se Ned. Talvez seu verda­deiro nome fosse outro, mas eu só fiquei conhecendo esse. Não demonstrou a menor surpresa ao ver Harry chegar com­pletamente ensopado, trazendo pela mão uma mulher igual­mente encharcada. Os homens são maravilhosos.

Serviu-nos uma refeição, café quente, pôs as nossas roupas a secar. Envolvemo-nos em cobertores de vistosos matizes e ficamos na saleta da cabana, a salvo de olhares curiosos, enquanto ele partia em busca de informações sobre Sir Eustace e os companheiros. Indagaria também se algum teria ficado no hotel.

Nessa ocasião informei Harry de que nada me conven­ceria a seguir para Beira. Nunca tivera essa intenção, quanto mais agora que esse procedimento me parecia inteiramente descabido. O ponto chave do plano era fazer os meus ini­migos pensarem que eu tinha morrido. Mas já sabiam que isso não acontecera; portanto, minha ida a Beira de nada adiantaria. Poderiam seguir-me até lá para calmamente as­sassinar-me, e além disso não teria quem me protegesse. Finalmente, combinamos que eu iria ao encontro de Suzanne, onde quer que ela estivesse. Prometi não poupar esforços a fim de evitar acidentes, bem como não intentar de maneira nenhuma ir em busca de aventuras, nem dar o xeque-mate no Coronel.

Deveria ainda permanecer tranqüila junto à minha amiga enquanto não recebesse novas instruções de Harry. Quan­to aos diamantes, seriam depositados no Banco de Kimberley, em nome de Parker.

— Esquecia-me de uma coisa — falei, pensativa. — É conveniente usarmos um código. Nada de ir novamente um ao encontro do outro enganados por mensagens falsas.

— É muito simples. Qualquer aviso que provenha real­mente de mim terá a palavra "e" com dois traços cruzados por cima.

— Se não tiver marca registrada, não será genuína — murmurei. — E os telegramas?

— Usarei o nome "Andy" em todos eles.

— O trem chega logo, Harry — disse Ned, enfiando a cabeça pela abertura da porta e saindo imediatamente.

Levantei-me.

— E se eu encontrar um homem simpático, numa só­lida situação, caso-me com ele? — perguntei com ar afetado.

Harry aproximou-se de mim.

— Meu Deus, Anne! Só se casará comigo, senão torço o pescoço do seu pretendente. E você...

— O quê? — perguntei, agradavelmente emocionada.

— Vou levá-la para bem longe e moer-lhe os ossos com pancadas!

— Que marido maravilhoso fui arranjar! — disse em tom de zombaria. — Será que ele não pretende mudar de opinião?

 

(Extratos do diário de Sir Eustace Pedler)

 

Já fiz notar anteriormente que sou essencialmente ami­go da paz. Ambiciono levar uma vida tranqüila, mas, pelo que vejo, não conseguirei realizar esse objetivo. Sempre me encontro em meio a tumultos e sobressaltos. Foi um grande alívio livrar-me de Pagett, com os seus constantes mexericos. Quanto a Miss Pettigrew, é realmente uma cria­tura serviçal. Embora desprovida de encantos, possui uma invejável capacidade de ação. Em Bulawayo sofri uma crise hepática e, por conseqüência, comportei-me como um ani­mal. Não era para menos, pois passara uma noite agitada durante a viagem de trem. Às três da madrugada, entrou na minha cabina um moço vestido de maneira extravagante, parecendo artista de variedades de regiões selvagens, e per­guntou qual o meu destino. Quando murmurei: "Chá... e, pelo amor de Deus, sem açúcar", não tomou conhecimento e insistiu na pergunta, dizendo que não era garçom, mas funcionário da Imigração. Consegui por fim explicar-lhe que não sofria de moléstia infecciosa, que ia viajar pela Rodésia por motivos os mais inocentes. Depois, tive a bondade de dizer-lhe o meu nome completo e o lugar de nascimento. Em seguida, tentei tirar um cochilo, mas um cretino acor­dou-me às cinco e meia para oferecer-me uma xícara de um líquido açucarado, ao qual dava o nome de chá. Não me lembro se a atirei no intruso; mas tenho certeza de que assim deveria ter procedido. Às seis horas, trouxe-me outra xícara de chá, desta vez sem açúcar, porém completamente frio. Exausto, peguei no sono, despertando na hora da chegada. Desci do trem, sobraçando uma abominável girafa de ma­deira, que era só pernas e pescoço!

A não ser esses contratempos insignificantes, tudo cor­reu bem, até o momento em que sobreveio uma desgraça.

Aconteceu na noite em que chegamos às cataratas. Estava na minha sala de estar, ditando para Miss Pettigrew, quando subitamente Mrs. Blair irrompeu porta adentro, sem pedir licença, em trajes muito comprometedores.

— Onde está Anne? -— gritou.

Bela pergunta! Como se eu fosse o responsável pela moça. Que pensaria Miss Pettigrew? Que era fato corri­queiro tirar Anne Beddingfield do bolso à meia-noite ou a qualquer hora da madrugada? Muito comprometedor para uma pessoa da minha posição social.

— Presumo — respondi friamente — que ela já se deitou.

Pigarreei, olhando de soslaio para Miss Pettigrew, su­gerindo dessa forma a conveniência de voltarmos ao ditado.

Esperava também que Mrs. Blair compreendesse a insinuação. Mas foi inútil. Afundou-se numa poltrona e, muito  agitada, começou a balançar o pé calçado apenas com uma chinelinha.

— Ela não está no quarto. Tive um sonho horrível Sonhei que ela corria um grande perigo; levantei-me e fui até o quarto dela apenas para tranqüilizar-me. Anne não se encontrava lá e a cama estava feita.

Olhou-me como a pedir socorro.

— Que farei, Sir Eustace?

Reprimi o desejo de responder: "Vá dormir e não se preocupe. Uma jovem desenvolta como Anne Beddingfield é perfeitamente capaz de cuidar de si mesma". Franzi os sobrolhos e perguntei:

— E Race, o que acha disso?

Por que ficaria à parte do caso? Participasse também das desvantagens, assim como das vantagens da companhia feminina.

— Não consigo encontrá-lo em parte alguma.

Ela estava evidentemente fazendo um drama do caso. Suspirando, sentei-me numa cadeira.

— Não percebo a causa da sua agitação — disse pacien­temente.

— O sonho...

— Ah! Aquele curry que comemos no jantar!

— Oh! Sir Eustace!

A jovem senhora ficou indignada. No entanto, todo mundo sabe que os pesadelos são o resultado direto de uma alimentação inadequada.

— Afinal — continuei, procurando acalmá-la —, não vejo por que Anne Beddingfield e Race não poderiam dar um passeiozinho, sem que o hotel inteiro se alarmasse por causa disso.

— Acha que saíram juntos? Já passa da meia-noite.

— A gente procede tolamente quando é jovem — murmurei —, apesar de Race já ter idade bastante para dis­cernir.

— Acredita realmente nisso?

— Suponho que fugiram — continuei mais calmo, em­bora perfeitamente cônscio de estar fazendo uma sugestão idiota. — Afinal de contas, num lugar como este, para onde se pode fugir?

Não me lembro por quanto tempo continuaria fazendo essas ineficientes observações, se Race não desse entrada na sala. Seja como for, pelo menos em parte, falei com razão: ele saíra para andar um pouco, sem levar Anne em sua companhia. Eu estava enganado; a situação era bem diferente, e dentro de poucos momentos tive a prova disso. Em três minutos, Race revirou o hotel de alto a baixo. Nunca vi alguém tão descontrolado!

O caso é realmente extraordinário. Para onde foi a moça? Saiu vestida do hotel, mais ou menos às onze e dez, e ninguém mais a viu. A idéia de suicídio não procede. Era uma dessas pessoas dotadas de grande vitalidade, que amam a vida e não têm a menor intenção de abandoná-la. Nenhum trem partia antes das doze horas do dia seguinte, portanto, ela não pode ter saído daqui. Então, que diabo a levou?

Race está fora de si, coitado! Remexeu tudo! Movimen­tou toda a polícia num raio de centenas de milhas. Os caça­dores nativos percorreram os quatro cantos da região; tudo fizeram, na medida do possível, e... nem sinal de Anne Beddingfield. A opinião geral é de que se trata de um caso de sonambulismo. Como há vestígios de pegadas na trilha próxima à ponte, conclui-se que ela se dirigiu propositada­mente para o precipício. Se foi o que aconteceu, Anne deve estar lá embaixo, espatifada nas pedras. Infelizmente, a maior parte dos rastros alterou-se, visto ter passado por ali um grupo de turistas que saiu cedo, segunda-feira de manhã.

Não acho a explicação muito satisfatória. Quando era moço, sempre ouvi falar que os sonâmbulos se põem a salvo do perigo graças ao seu sexto sentido, o qual vela por eles. Mrs. Blair não vai contentar-se com essa explicação.

Não consigo entender essa mulher. Mudou completa­mente em relação ao Coronel Race. Observa o rapaz como se fosse um gato à espreita do rato, e percebe-se que se esforça para manter-se cortês. Ela própria também está di­ferente: nervosa, assustadiça, estremecendo ao menor ruído. Começo a achar que já está na hora de partir para Jo'burg.

Ontem correu o boato da existência de uma ilha mis­teriosa, habitada por um rapaz e uma moça. Race ficou agitadíssimo. Afinal, tudo não passou de mero equívoco.

Há anos o homem vive lá e o gerente do hotel o conhece muito bem. Na época de estação, leva grupos de turistas a passeio pelo rio, mostrando-lhes crocodilos e um hipopótamo domesticado, ou coisa que o valha, que se desgarrou por aqui. Acredito mesmo que tenha um desses exemplares ao qual ensinou a arrancar pedacinhos do barco, nos momen­tos oportunos. Então, munido de um croque, ele o afasta, dando aos turistas a impressão de se acharem nos confins do mundo. Ignora-se há quanto tempo a moça está na ilha; é evidente, porém, que não pode tratar-se de Anne. E é preciso certa sutileza para interferir em negócios alheios. Se eu fosse o moço, chutaria Race da ilha, caso viesse a indagar acerca dos meus amores.

 Mais tarde

Resolvi definitivamente partir para Jo'burg amanhã. Race insiste nisso. Pelo que percebi, as coisas por aqui estão se tornando desagradáveis, mas pretendo partir antes que piorem. Receio levar um tiro de algum grevista. Mrs. Blair tinha combinado ir em minha companhia; no último instante, porém, mudou de opinião e resolveu ficar nas cataratas. Parece que não consegue tirar os olhos de Race. Veio pro­curar-me esta noite, e, hesitante, pediu que eu lhe prestasse um favor. Consentiria em guardar-lhe alguns objetos de estimação?

— Os bichos? — indaguei, realmente alarmado. Sem­pre tive o pressentimento de que mais cedo ou mais tarde teria de ficar agarrado a esses incômodos animais.

Por fim, realizamos um acordo. Eu me encarregaria de duas caixinhas de madeira, contendo artigos frágeis. Os animais seguirão em engradados por via férrea, com destino à Cidade do Cabo, onde Pagett providenciará para que fi­quem num depósito.

As pessoas encarregadas dizem que, devido aos variados formatos dos animais (!), será necessário confeccionar cai­xas especiais para o seu acondicionamento. Chamei a atenção de Mrs. Blair para o fato de que, quando os animais chega­rem à sua casa, estarão custando pelo menos uma libra cada um!

Pagett insiste em vir ao meu encontro em Jo'burg. Os engradados de animais de Mrs. Blair servirão de desculpa para retê-lo na Cidade do Cabo. Escrevi-lhe que providencie o seu recebimento e que os deixe depositados em algum armazém de confiança, visto conterem curiosidades raras de imenso valor.

Bem, já que tudo se resolveu, eu e Miss Pettigrew vamos embora juntos. Quem quer que a conheça de vista admitirá perfeitamente a respeitabilidade do caso.

 

Johannesburg, 6 de março

A situação local não está nada favorável. Citando uma frase corriqueira, tantas vezes lida, direi que estamos viven­do à beira de um abismo. Grupos de grevistas, ou melhor, dos chamados grevistas, patrulham as ruas, com ares carrancudos e ameaçadores. Suponho que estejam de olho nos ca­pitalistas empafiados para massacrá-los quando chegar o mo­mento oportuno. É impossível tomar táxi; se o fizermos, os grevistas nos puxam para fora. E, nos hotéis, insinuam deli­cadamente que, acabando o estoque de alimentos, não mais seremos atendidos!

Na noite passada encontrei Reeves, meu amigo do sin­dicato dos trabalhadores e companheiro de viagem no Kilmorden. Jamais vi alguém tão assustado quanto ele, mas procede como os outros, que fazem longos discursos inflama­dos unicamente com finalidade política, e depois arrepen­dem-se. Agora, vive andando de um lado para outro, expli­cando que, na realidade, não pronunciou o tal discurso. Quando nos encontramos, estava de partida para a Cidade do Cabo, onde pretende demorar-se três dias, discursando em língua holandesa, a fim de justificar-se. Provará que o sentido de suas palavras possuía um significado completamente diverso do que efetivamente poderia parecer. Sinto-me feliz por não ter que tomar assento na Assembléia da África do Sul. A Câmara dos Comuns está em má situação, mas ao menos falamos a mesma língua e limitamos a extensão dos discursos. Quando estive presente à Assembléia, antes de deixar a Cidade do Cabo, tive oportunidade de "ouvir um senhor de cabelos grisalhos e bigodes pendentes, muito pa­recido com a Mock Turtle de Alice no País das Maravilhas. Desfiava as palavras, uma a uma, num tom melancólico. De vez em quando, alteava a voz, dizendo frases que me lem­braram "Platt Skeet". Pronunciava-as fortíssimo, num con­traste frisante com o resto do falatório. Nesses momentos, metade do auditório urrava "Whoof, whoof!"} que em ho­landês talvez signifique "Apoiado, apoiado". A outra me­tade acordava sobressaltada da agradável soneca. Pelo que me foi dado entender, o orador estava discursando pelo me­nos há três dias. Na África do Sul a paciência é um fato.

Inventei inúmeros trabalhos com o fito de reter Pagett na Cidade do Cabo; por fim, esgotou-se a fertilidade da minha imaginação. O rapaz chegará amanhã, imbuído do espírito de cão fiel que vem morrer junto ao amo. E as minhas Reminiscências estavam em franco progresso! Já ti­nha imaginado as frases vivas e sutis que os líderes da greve me haviam dito e como lhes respondera à altura.

Esta manhã marquei encontro com um funcionário do governo. Mostrou-se cortês, ao mesmo tempo que convin­cente e misterioso. Para começar, aludiu à minha elevada posição e grande importância, sugerindo que me transfe­risse, ou que lhe permitisse transferir-me, para Pretória.

— Há perigo de barulho por aqui? — indaguei.

Respondeu com palavras desprovidas de sentido; dedu­zi então estar iminente a ocorrência de graves distúrbios. Insinuei que o governo do país estava deixando as coisas irem longe demais.

— É o que se chama fornecer corda para uma pessoa se enforcar, Sir Eustace.

— Oh! Isso mesmo, isso mesmo!

— Não são os grevistas que provocam os distúrbios. Existe uma organização que os instiga. Armas e explosivos aparecem em grande quantidade; descobrimos um maço de documentos e o código de que se utilizam para a sua importação. "Batatas" são "detonadores", "couves-flores", "carabinas", outras verduras significam vários explosivos.

— Muito interessante — comentei.

— Além disso, Sir Eustace, temos motivos de sobra para pensar que o chefe, o gênio que dirige todo esse movimento, está em Johannesburg no momento.

O homem fixou-me com um olhar tão penetrante, que receei estar sob suspeita de ser a pessoa a que se referiu. A esse pensamento, comecei a suar frio, lamentando haver concebido a idéia de inspecionar diretamente uma revolução em miniatura.

— A linha entre Jo'burg e Pretória não está funcio­nando normalmente — prosseguiu. — Mas posso conseguir-lhe um vagão especial e dois passes, caso interrompa a via­gem. Um será emitido pelo governo da União, e o outro conterá uma declaração dizendo que o senhor é um visitante de cidadania inglesa, isento de qualquer relação com a União.

— Um para a sua gente e outro para os grevistas, hein?

— Exatamente.

O projeto não me seduzia; bem sei o que acontece nes­sas ocasiões. Ficamos aturdidos e começamos a agir ataba­lhoadamente. Trocamos o passe na hora de entregá-lo, e por fim acabamos levando um tiro de um rebelde sanguinário ou de um dos mantenedores da lei e da ordem. Já os vi de guarda nas ruas, de chapéu-coco na cabeça, fumando ca­chimbo, e com a carabina debaixo do braço. Além disso, que fazer em Pretória? Admirar a arquitetura dos edifícios construídos pela União e ouvir o eco do tiroteio nos arre­dores de Johannesburg? Vou sentir-me cerceado na minha liberdade e só Deus sabe quanto! Corre o boato de que a via férrea já foi pelos ares. Lá, não se pode sair nem para tomar aperitivo. A cidade está sob lei marcial, há dois dias.

— Meu caro rapaz — argumentei —, não compreende que estou fazendo estudos sobre a situação política do Rand? Por que cargas d'água devo estudá-la em Pretória? Agradeço o seu cuidado pela minha pessoa, mas não há motivo de preocupação. Nada me acontecerá.

— Quero avisá-lo, Sir Eustace, de que a questão de alimentação já é muito grave.

— Um pequeno jejum beneficiará o meu físico — dis­se suspirando.

A chegada de um telegrama interrompeu-nos. Li-o mui­to assustado:

"Arme está salva. Comigo em Kimberley. Suzanne Blair".

Nunca acreditei que Anne pudesse ser destruída. Essa moça possui algo de indestrutível; lembra-me as bolas espe­cialmente confeccionadas para brinquedo dos fox terriers. Tem um jeitinho de sorrir... Ainda não percebi por que saiu àquela hora da noite para ir a Kimberley. E, além disso, não havia trem. Com certeza utilizou-se das asas de um anjo para voar até lá. E não acredito que jamais dê explicações sobre isso, pois ninguém me explica nada. Tenho sempre que adivinhar; mas, depois de algum tempo, isso torna-se monótono. Pensando bem, devem ser as exigências impostas pelo jornalismo. "Como desci às cataratas", pelo nosso enviado especial.

Tornei a dobrar o telegrama e tratei de livrar-me do meu amigo, membro do governo. Desgosta-me a idéia de passar fome, mas a minha segurança pessoal não me preo­cupa. Smuts tem competência bastante para dar um fim na revolução. E eu daria uma elevada quantia por um aperitivo! Gostaria de saber se Pagett vai ter o bom senso de trazer uma garrafa de uísque amanhã.

Pus o chapéu e saí com a intenção de comprar alguns souvenirs. Aqui em Johannesburg as lojas especializadas em objetos regionais são muito interessantes. Entretinha-me em olhar uma vitrina, com diversas mantas de pêlos de animais confeccionadas pelos indígenas, quando um homem, saindo da loja, deu-me violento esbarrão. Surpreendi-me ao reco­nhecer Race.

Não posso vangloriar-me de dizer que o encontro o alegrou. Falando francamente, mostrou-se aborrecidíssimo, mas eu insisti em que me acompanhasse ao hotel. Já estou cansado de conversar com Miss Pettigrew.

— Não fazia a menor idéia de que estivesse em Jo'burg.— disse, procurando dar início à conversa. — Quando chegou?

— Ontem à noite.

— Onde está hospedado?

— Com uns amigos.

Estava realmente lacônico, parecendo embaraçado com as perguntas.

— Espero que haja criação de galinhas por aqui — observei. — O regime de ovos frescos, e de vez em quando carne moída de galo velho, vai ser bem recebido. É o que tenho ouvido dizer.

— A propósito — continuei, quando chegávamos ao hotel — soube que Miss Beddingfield está sã e salva?

Fez sinal que sim.

— Pregou-nos um susto — falei alegremente. — Gos­taria de saber em que diabo de lugar se meteu aquela noite.

— Foi para a ilha.

— Que ilha? Aquela habitada por um moço?

— Sim.

— Que atitude inconveniente — exclamei. — Pagett vai ficar escandalizado. Sempre desaprovou o comporta­mento de Anne. Suponho que pretendia encontrar-se com esse rapaz em Durban.

— Não acredito que seja esse.

— Só me conte o que lhe aprouver — disse para enco­rajá-lo.

— Imagino que se trata do rapaz que gostaríamos de agarrar.

— Não é... ? — exclamei muito emocionado. Race concordou.

— Harry Rayburn, aliás Harry Lucas. Como sabe, esse é o seu verdadeiro nome. Escapou novamente, mas logo o prenderemos.

— Oh! Meu Deus! — murmurei.

— A moça não é suspeita. É apenas... um caso de amor.

Sempre julguei que Race amava Anne. Agora estou certo disso; bastou-me ouvir como pronunciou as últimas palavras.

— Ela está em Beira — continuou falando muito de­pressa.

— Não é possível! — exclamei, fitando-o. — Como sabe?

— Ela me escreveu de Bulawayo, dizendo que voltava para a Inglaterra, via Beira. É a melhor coisa que tem a fazer, coitadinha!

— Contudo, não acredito que esteja em Beira.

— Estava de partida quando me escreveu.

Fiquei intrigado. Alguém estava mentindo descarada­mente. Não refletindo que Anne poderia ter fortes razões para falsear a verdade, entreguei-me ao prazer de derrotar Race. É sempre tão seguro de si! Tirando o telegrama do bolso, mostrei-o.

— E isto, como se explica? — perguntei com indife­rença.

O rapaz ficou aturdido.

— Ela disse que estava de partida para Beira — re­petiu, ainda confuso.

Sei que julgam Race muito inteligente. Na minha opi­nião, não passa de um grande imbecil. Jamais lhe ocorreu que as jovens nem sempre falam a verdade.

— Para Kimberley também. O que estão fazendo lá? — balbuciou.

— É o que me surpreende. Acho que Miss Anne de­veria estar por aqui, coligindo matéria para o Daily Budget.

— Kimberley — murmurou novamente. Esse nome perturbava-o. — Nada há de interessante lá... interrom­peram o trabalho nas jazidas.

— Você sabe como são as mulheres — disse distraidamente.

Race fez um aceno com a cabeça e saiu. Evidentemente, eu lhe dera motivo para pensar.

Mal o rapaz partira, o funcionário do governo voltou outra vez.

— Peço-lhe que me perdoe aborrecê-lo novamente, Sir Eustace — desculpou-se. — Mas queria fazer-lhe algumas perguntas.

— Pois não, meu caro rapaz — disse alegremente. — Pode perguntar.

— É a respeito da pessoa que trabalha para o senhor...

— Nada sei a respeito — disse bem depressa. — Em Londres, aceitei-o quase à força; depois, roubou-me documentos valiosos, pelo que vou ser repreendido, e na Cidade do Cabo desapareceu como por artes mágicas. É certo que a minha permanência nas cataratas coincidiu com a pre­sença dele lá, mas eu estava no hotel e ele numa ilha. Ga­ranto-lhe que nunca lhe pus os olhos em cima, durante todo o tempo da minha estada nesse local. Fiz uma pausa para respirar.

— O senhor não me entendeu bem. Referia-me a outra pessoa.

— Quem? Pagett? — exclamei muito admirado. — Está comigo há oito anos e é um rapaz digno da maior con­fiança.

Meu interlocutor sorriu.

— Está havendo um mal-entendido. Refiro-me ò se­nhora.

— A Miss Pettigrew? — exclamei.

— Sim. Viram-na quando saía da loja de souvenirs, de Agrasato.

— Deus me ajude! — interrompi. — Pretendia ir até lá hoje à tarde. E você podia pilhar-me na hora de eu sair.

Parece que em Jo'burg não se pode praticar um ato, mesmo o mais inocente, sem ser considerado suspeito.

— Ah! Mas ela esteve lá mais de uma vez e... em circunstâncias suspeitas. Digo-lhe confidencialmente: Sir Eustace, desconfiam de que a loja seja ponto de encontro dos membros da organização secreta que apóia a revolução. Daí a conveniência de o senhor me contar tudo o que sabe a respeito dessa senhora.

— Quem me cedeu a secretária foi o seu próprio governo.

O moço ficou arrasado.

 

(Resumo da narrativa de Anne)

 

Chegando a Kimberley, telegrafei imediatamente a Suzanne. Ela veio ao meu encontro com a máxima rapidez, precedendo os telegramas enviados en route. Surpreendeu-me muitíssimo verificar que me dedica profunda amizade, pois julgava ser para ela apenas uma nova sensação. Quando nos encontramos, caiu-me nos braços, e desatou em pranto.

Passados os primeiros momentos de emoção, sentei-me na cama e pus-me a contar toda a história, do começo ao fim.

— Você sempre desconfiou do Coronel Race — falou pensativa, quando terminei o relato. — Eu, não, até a noite em que você desapareceu. Gostava tanto dele e, além disso, imaginava-o um ótimo marido para você. Oh, Anne, não se zangue, mas como pode ter certeza da lealdade desse outro rapaz? Você acredita em tudo o que ele diz?

— É claro que acredito — exclamei indignada.

— O que a atrai tanto? Nada vejo nele de extraor­dinário; é um bonito rapaz e ama-a com o amor de um misto de xeque moderno e homem primitivo.

Durante alguns momentos desabafei toda a minha có­lera:

— Só porque fez um bom casamento e está cada vez mais gorda, se esquece de que o romantismo ainda existe.

— Ora, Anne, não estou engordando. Preocupei-me tanto por sua causa ultimamente; estou simplesmente es­gotada.

— Está com aparência robusta — disse friamente. — Deve estar com alguns quilos a mais.

— E não garanto que tivesse feito um casamento tão bom assim — prosseguiu Suzanne com uma voz melancólica. — Tenho recebido telegramas desagradáveis de Clarence, insistindo para que volte imediatamente. Não respondi a eles, e nestes últimos quinze dias nada mais soube dele.

Receio não ter compreendido bem os problemas matri­moniais de Suzanne. Ela voltará para junto do marido quando for oportuno. Mudei a conversa para a questão dos dia­mantes.

Suzanne olhou-me um tanto constrangida:

— Ainda não lhe contei, Anne. Escute, logo que come­cei a desconfiar do Coronel Race, fiquei preocupadíssima por causa dos diamantes. Achei melhor continuar a estada nas cataratas, pois ele bem podia tê-la seqüestrado. Mas não sabia o que fazer das pedras, e receava guardá-las co­migo...

Suzanne olhou em redor, meio ressabiada, como se te­messe que as paredes tivessem ouvidos, e então murmurou algumas palavras que somente eu poderia ouvir.

— Foi realmente uma boa idéia — aprovei. — Na ocasião, pelo menos. Agora, porém, parece-me um pouco esquisita. Que é que Sir Eustace fez das caixas?

— Despachou as maiores para a Cidade do Cabo, se­gundo informação de Pagett, antes de eu deixar as cataratas. Junto remeteu a quantia para pagamento da armazenagem. Partiu hoje da Cidade do Cabo para encontrar-se com Sir Eustace em Johannesburg.

— Muito bem. E as pequenas, para onde foram?

— Suponho que estejam com Sir Eustace. Examinei o caso durante algum tempo.

— Bom — disse por fim —, é um lugar esquisito, mas seguro. Será melhor deixarmos como está, no momento.

Suzanne fitava-me, sorridente.

— Tomar providências não é o seu forte, hein, Anne?

— Não — respondi sinceramente.

A única coisa que fiz foi pegar um horário de trens para ver a que horas passaria por Kimberley aquele em que viajava Guy Pagett. Chegava às cinco e qua­renta da tarde seguinte, e partia às seis. Queria avistar-me com Pagett o mais cedo possível, e essa oportunidade se me afigurava excelente. A situação no Rand piorava, podendo dar-se o caso de passar muito tempo sem que me aparecesse outra ocasião favorável.

O monótono decorrer das horas foi interrompido unica­mente pela chegada de um telegrama procedente de Johan­nesburg, contendo aparentemente as mais inocentes notícias:

“Cheguei bem. Sem novidades. Eric aqui, Eustace tam­bém, Guy não. Por enquanto continue onde está. Andy".

Eric era o pseudônimo com o qual apelidáramos Race. Escolhi-o porque detesto esse nome. Antes de me avistar com Pagett, nada posso fazer. Suzanne ocupou-se em man­dar um longo telegrama, acalmando o marido. Tornou-se muito sentimental, a sua moda, é verdade, muito diversa da minha e de Harry.

— Gostaria tanto que ele estivesse aqui — disse muito depressa. — Há quanto tempo não o vejo!

— Passe um pouco de creme — insinuei carinhosa­mente.

Suzanne espalhou-o na ponta do narizinho encantador.

— O pote de creme está no fim e dessa marca só se encontra em Paris. — Suspirou. — Paris!

— Logo estará farta da África do Sul e de aventuras, Suzanne.

— É que eu gostaria de comprar um chapéu realmente bonito. Vou à estação com você?

— Prefiro ir sozinha. Receio que ele se sinta ainda mais tímido por ter que falar na presença de ambas.

Combinamos que na tarde do dia seguinte eu me pos­taria à porta do hotel, lutando com uma sombrinha recalcitrante que não queria abrir, enquanto Suzanne ficaria tran­qüilamente no leito, com um livro e um cestinho de frutas.

Segundo informação do porteiro do hotel, não houvera novidades, e o trem estava quase no horário, apesar da dificuldade na travessia de Johannesburg. Os trilhos tinham ido pelos ares, garantiu-me com ar solene. Que boa no­tícia...

O trem chegou dez minutos atrasado. Imediatamente, os passageiros saíram à plataforma, dispersando-se para todos os lados às pressas. Não me foi difícil descobrir Pagett, e dele me aproximei ansiosamente. Ao ver-me, o rapaz teve aquele costumeiro estremecimento nervoso.

— Meu Deus, Miss Beddingfield, pensei que ainda estava desaparecida.

— Tornei a aparecer — disse com ar sério. — E o senhor, como vai, Mr. Pagett?

— Muito bem, obrigado, pronto para recomeçar o tra­balho com Sir Eustace.

— Mr. Pagett — prossegui —, desejo fazer-lhe uma pergunta. Peço-lhe que não se ofenda, mas é muito impor­tante, muito mais do que o senhor pode imaginar. Quero saber o que fazia em Marlow, no dia 8 de janeiro.

Pagett estremeceu violentamente.

— De fato, Miss Beddingfield... eu... realmente...

— Esteve lá, não esteve?

— Estive perto de lá, por motivos particulares.

— Quer me contar quais são?

— Sir Eustace não lhe contou?

— Sir Eustace? Ele sabe?

— Tenho quase certeza de que sabe. Tomara que não me reconhecesse, mas, pelas suas insinuações, receio que saiba. Pretendo falar-lhe abertamente sobre o assunto e pedir demissão. Ele é muito esquisito, Miss Beddingfield; tem um senso de humor muito desagradável. Deixa-me sobre brasas e isso o diverte. Talvez esteja a par dos fatos há anos.

A minha esperança era que, cedo ou tarde, viesse a compreender o significado daquelas palavras. Prosseguiu, falando espontaneamente:

— É difícil para uma pessoa na posição de Sir Eustace colocar-se na minha situação. Errei, é verdade, enganei-o, mas não houve nenhum mal nisso. Julgo preferível agir com mais sinceridade, em vez de divertir-me à custa dos outros.

Ouvimos um apito e os passageiros principiaram a entrar no trem.

— Concordo — interrompi —, concordo plenamente com o que disse a respeito de Sir Eustace. Mas por que o senhor foi a Marlow?

— Não devia ter ido, apenas pareceu-me natural, de acordo com as circunstâncias.

— Que circunstâncias? — perguntei, desesperada. Pela primeira vez Pagett compreendeu que eu lhe fazia

uma pergunta. Deixou de lado as esquisitices de Sir Eustace e as justificativas, voltando à realidade do momento.

— Desculpe, Miss Beddingfield — disse com firmeza —, não vejo que relação a senhorita possa ter com o caso.

Já tinha entrado no vagão, curvando-se para falar-me.

Eu estava aflitíssima. O que se pode fazer em semelhante situação?

— Compreendo, se acha tão difícil a ponto de enver­gonhar-se ao tocar nesse assunto comigo... — falei, usando de malícia.

Encontrara por fim a trilha certa. Pagett endireitou o corpo e corou.

— Difícil? Envergonhar-me? Não entendo.

— Então fale.

Em três curtas sentenças pôs-me a par de tudo. Até que enfim conhecia o segredo de Pagett! Mas não era nada do que imaginava.

Vagarosamente voltei ao hotel. Entregaram-me um te­legrama, que abri imediatamente. Continha instruções com­pletas e precisas para que me dirigisse incontinenti a Johannesburg, ou melhor, a uma estação antes dessa cidade, onde encontraria um carro à minha espera. O telegrama fora ex­pedido por Harry, e não por Andy.

 

(Do diário de Sir Eustace Pedler) Johannesburg, 17 de março

 

Pagett chegou apavorado, como sói acontecer. Sugeriu imediatamente que partíssemos para Pretória. Então, como lhe afirmasse delicada mas firmemente que aqui ficaríamos, ele passou de um extremo a outro. Lastimando não ter tra­zido a carabina, principiou a falar com muito entusiasmo a respeito de uma ponte que esteve sob sua guarda, durante a Grande Guerra. Tratava-se de uma ponte de estrada de ferro, situada no ramal de Little Puddlecombe, ou coisa que o valha.

Cortei cerce o assunto, dizendo-lhe que desencaixotasse a máquina de escrever, a grande, bem entendido, para man­tê-lo ocupado por algum tempo. A máquina está com defeito, e, por conseqüência, ele se demoraria em consertá-la. Esque­ci-me, porém, de que Pagett é impecável.

— Já desencaixotei tudo, Sir Eustace. A máquina está funcionando perfeitamente.

— Que quer dizer com isso... Tirou tudo dos cai­xotes?

— Dos dois pequenos também.

— Seria melhor que não fosse tão eficiente, Pagett. Aqueles dois caixotes não lhe dizem respeito. Pertencem a Mrs. Blair.

Pagett ficou sucumbido. Detesta cometer erros.

— É preciso encaixotar tudo novamente — prossegui. — Depois, se quiser, pode ir dar uma volta. Amanhã, Jo'burg provavelmente será um montão de ruínas fumegantes; esta será, portanto, a sua última oportunidade.

Pretendia ficar livre dele durante toda a manhã.

— Quero falar com o senhor, logo que tenha tempo disponível, Sir Eustace.

— Agora, não — disse muito depressa. — Neste mo­mento, não tenho absolutamente um minuto sequer.

Pagett ia se retirando.

— A propósito — chamei-o —, que continham as cai­xas de Mrs. Blair?

— Alguns tapetes de pele e creio que dois chapéus, também de pele.

— Está certo. Ela os comprou durante a viagem. São chapéus, realmente... e muito me admira você não os ter reconhecido. Presumo que ela vá usá-los em Ascot. Mais alguma coisa?

— Alguns filmes e cestinhas, uma porção de cestinhas...

— É isso mesmo. Mrs. Blair compra tudo às dúzias.

— Era só isso, Sir Eustace, além de muitas bugigangas, um lenço de gaze e uma espécie de luvas esquisitíssimas.

— Se você não fosse idiota de nascença, Pagett, teria percebido que esses objetos de maneira nenhuma poderiam ser meus.

— Pensei que alguns fossem de Miss Pettigrew.

— Ah! Agora me lembro. O que deu na sua cabeça de escolher uma criatura de aspecto tão duvidoso para minha secretária?

Contei-lhe então a respeito do interrogatório a que me haviam submetido. Arrependi-me imediatamente, pois notei no seu olhar um brilho que muito bem conhecia. Tratei de mudar de assunto, mas era tarde. Pagett estava pronto para entrar em combate.

Começou a aborrecer-me com uma longa história ocor­rida no Kilmorden, inteiramente desprovida de fundamento. Tratava-se de uma caixinha de filmes e de uma aposta. Alta noite, a caixinha foi atirada pela vigia por um cama­reiro que devia estar a par do assunto. Detesto brincadeiras de mau gosto. Foi o que disse a Pagett, e ele pôs-se a repetir toda a história. Por sinal que o rapaz se exprime pessima­mente. Custou-me conseguir a concatenação dos fatos.

Não o vi senão à hora do almoço. Voltou agitadíssimo, como um sabujo farejando caça. Nunca me interessei por sabujos. Em conclusão: ele tinha visto Rayburn.

— O quê?

Sim, garantia ter visto Rayburn atravessando a rua e seguiu-o.

— E parou para falar, adivinhe com quem? Com Miss Pettigrew!

— O quê?

— É, sim, Sir Eustace. Ainda há mais uma coisa. Andei indagando a respeito dela...

— Espere um pouquinho. E Rayburn?

— Ele e Miss Pettigrew entraram numa loja de souvenirs...

Involuntariamente soltei uma exclamação. Pagett lan­çou-me um olhar interrogativo.

— Não é nada. Continue.

— Esperei durante um tempo enorme, e não havia meio de saírem. Afinal, resolvi entrar também. Sir Eustace, não havia ninguém na loja! Deve existir outra porta.

Eu olhava-o fixamente.

— Como ia dizendo, voltei ao hotel e fiz umas indaga­ções sobre Miss Pettigrew.

Pagett baixou a voz e respirou fundo, como sói acon­tecer, quando pretende fazer confidencias.

— Sir Eustace, viram um homem sair do quarto dela esta noite.

Ergui as sobrancelhas.

— E eu sempre a considerei uma senhora respeitabilíssima — murmurei.

Pagett prosseguiu sem me dar atenção.

— Fui dar uma busca no seu quarto. O que o senhor acha que encontrei?

Sacudi a cabeça negativamente.

— Isto!

Pagett exibiu um aparelho de barbear e um pedaço de sabão para barba.

— O que faz uma mulher com isso?

Suponho que Pagett jamais lê os anúncios nas revistas femininas de alta classe. Eu leio. Embora não pretendesse discutir o assunto, recusei-me a aceitar o barbeador como prova definitiva do sexo de Miss Pettigrew. Pagett não acompanha a evolução dos tempos, por isso não seria de admirar se apresentasse uma cigarreira em apoio da sua teoria. Tem mentalidade limitadíssima.

— O senhor não está convencido, Sir Eustace. E o que acha disto?

— Se não me engano, é cabelo — observei aborrecido.

— Cabelo mesmo. É o que chamam de peruca.

— Não diga — comentei.

— Convenceu-se afinal de que Pettigrew é homem dis­farçado em mulher?

— Realmente, meu caro Pagett, creio que estou. Devia ter reconhecido pelos pés.

— Então, é assunto liquidado. Agora, Sir Eustace, queria falar-lhe a respeito de um caso que me diz respeito. Pelo que me tem insinuado e pelas contínuas alusões à época da minha estada em Florença, não tenho dúvidas de que o senhor descobriu a verdade.

Por fim! Pagett ia revelar o mistério dos dias passados em Florença!

— Ponha as cartas na mesa, meu caro rapaz — disse bondosamente. — É o melhor que tem a fazer.

— Muito obrigado, Sir Eustace.

— É por causa do marido? Pessoas cacetes, esses ma­ridos. Sempre surgem quando menos se espera.

— Não o compreendo, Sir Eustace. Que maridos?

— O marido dessa senhora.

— Que senhora?

— Benza-me Deus, Pagett, da senhora com quem você se encontrou em Florença. Deve existir uma mulher. Não vá me dizer que você apenas roubou uma igreja ou apunha­lou um italiano pelas costas só porque não gostou da cara dele.

— Está me deixando confuso, Sir Eustace, não consigo entendê-lo. O senhor está brincando.

— Quando quero sou muito engraçado, mas garanto que neste momento não estou fazendo graça nenhuma.

— Como estive muito tempo fora, julguei que o senhor talvez não me reconhecesse, Sir Eustace.

— Reconhecer? Onde?

— Em Marlow, Sir Eustace.

— Em Marlow? Que diabo de coisa estava fazendo em Marlow?

— Imaginei que o senhor sabia...

— Cada vez entendo menos. Comece novamente a his­tória desde o princípio. Você foi a Florença...

— Então, o senhor não sabe absolutamente nada... portanto não me reconheceu!

— Então você viajou sem a menor necessidade... acovardando-se pelo peso da própria consciência. Falarei, porém, com mais segurança, depois de ouvir toda a história. Va­mos, respire fundo e principie outra vez. Foi a Florença...

— Eu não fui a Florença. É justamente por causa disso...

— Muito bem, para onde foi então?

— Para casa... em Marlow.

— Com mil demônios, com que fim foi a Marlow?

— Estava com saudades de minha mulher. Ela não tem muita saúde e está esperando...

— Sua mulher? Não sabia que era casado!

— Não sabia, Sir Eustace, e é exatamente isso que estou lhe contando. Enganei o senhor.

— Quando se casou?

— Há oito anos. Estava casado há seis meses quando vim trabalhar para o senhor, mas não queria perder o em­prego. Ninguém aceitaria um secretário casado para morar na casa do patrão; por isso achei melhor omitir esse fato.

— Você me deixa atônito — observei. — Onde ficou a sua esposa todos esses anos?

— Morávamos num chalezinho à margem do rio, em Marlow, muito perto da Casa do Moinho, há mais de cinco anos.

— Deus tenha piedade de mim — murmurei. — Tem filhos?

— Quatro, Sir Eustace.

Fitei-o meio estonteado. Já devia ter percebido que um homem como Pagett não poderia ter um segredo cul­poso. A honorabilidade do rapaz me aniquila. Era o único segredo da sua vida: esposa e quatro filhos.

— Mais alguém sabe disso? — indaguei por fim, fitando-o durante longo tempo, numa espécie de fascinação.

— Só Miss Beddingfield. Ela estava na estação de Kimberley.

Continuei a olhar fixamente para ele. O rapaz estava pouco à vontade.

— Espero, Sir Eustace, que o senhor não fique muito aborrecido.

— Meu caro rapaz, só posso dizer que você estragou tudo!

Saí irritadíssimo. Ao passar pela esquina da loja de souvenirs, assaltou-me uma irresistível tentação. Entrei. O proprietário adiantou-se obsequiosamente, esfregando as mãos.

— Em que posso servi-lo? Peles, curiosidades do país!

— Alguma coisa original — disse. — Trata-se de um caso excepcional. Vamos ver o que tem.

— Queira acompanhar-me à outra sala. Temos coisas muito finas.

Acabava de cometer um erro. No entanto, iria proce­der com muita inteligência. Segui-o através das portières de vaivém.

 

(Resumo da narrativa de Anne)

Suzanne deu-me um trabalho enorme. Discutiu, implo­rou por entre lágrimas, antes de concordar com a realização do meu plano. Por fim consegui fazer o que queria.. Prome­teu obedecer às instruções contidas na carta e acompanhou-me à estação, desatando em pranto, na hora da despedida.

Cheguei ao meu destino na manhã seguinte, bem cedo. Recebeu-me um holandês baixinho, de barbas pretas, que eu não conhecia. Um carro, à nossa espera, conduziu-nos ao nosso destino. Ouvia-se, a distância, um ruído esquisito. Perguntei-lhe o que significava aquilo.

— Tiros — respondeu laconicamente. Em Jo'burg a luta continuava.

Percebi que nos encaminhávamos para os lados dos subúrbios da cidade. Viramos esquinas em todas as dire­ções até chegarmos ao ponto desejado. Estávamos chegando cada vez mais perto do local do tiroteio. Foram momentos palpitantes! Paramos afinal diante de um edifício meio em ruínas. Um negrinho banto abriu a porta e o guia fez-me sinal para que entrasse. Estaquei, irresoluta, diante do vestíbulo sombrio, mas o homem adiantou-se e escancarou a porta.

— A moça que veio ver Mr. Harry Rayburn — falou rindo.

Depois dessa apresentação, entrei. A sala, parcamente mobiliada, recendia a fumo barato. Um homem escrevia, sentado a uma escrivaninha. Fitou-me, erguendo os sobrolhos.

— Ora essa! Não me diga que é Miss Beddingfield!

— Devo estar bêbada — desculpei-me. — Estou vendo Mr. Chichester ou Miss Pettigrew? Há uma semelhança extraordinária entre ambos.

— Ambos estão em inatividade no momento. Aban­donei as saias e... os trajes eclesiásticos. Sente-se, por favor.

Com a maior calma, aceitei uma cadeira.

— Parece — observei — que me enganei de endereço.

— Do seu ponto de vista, bem entendido. Com efeito, Miss Beddingfield, para cair na armadilha pela segunda vez!

— Não fui muito inteligente — admiti com simpli­cidade.

Havia alguma coisa em mim que o intrigava.

— Parece que os acontecimentos não a perturbam — observou com frieza.

— Se eu me fizesse de valente, produziria algum efeito sobre o senhor?

— Não, é claro.

— Minha tia-avó Jane costumava dizer que uma verda­deira senhora nunca se escandaliza nem se admira de nada — murmurei, cismadora —, e eu me esforço por viver se­gundo os seus preceitos.

A opinião de Mr. Chichester revelou-se tão claramente no seu rosto, que me apressei em continuar no falatório.

— Realmente, como o senhor sabe maquilar-se! Não o reconheci durante o tempo todo em que foi Miss Petti­grew, nem mesmo quando quebrou a ponta do lápis. De­certo assustou-se ao ver-me tomar o trem na Cidade do Cabo.

O moço pôs-se a tamborilar com a ponta dos dedos na escrivaninha.

— Tudo isso está muito certo, mas precisamos tratar de negócios. Talvez imagine por que necessitamos da sua presença, Miss Beddingfield.

— Desculpe, mas só trato de negócios com os supe­riores.

Tinha lido essa frase, ou outra semelhante, numa cir­cular a respeito de empréstimos de dinheiro e achei-a mag­nífica. O caso foi que Mr. Chichester-Pettigrew ficou arra­sado. Abriu e fechou a boca. Eu me rejubilava.

— O axioma preferido pelo meu tio-avô George — acrescentei, como conclusão da minha exposição anterior —, marido da minha tia-avó Jane, o senhor já sabe, fazia ornamentos para camas de metal.

Duvido que alguém já se tivesse divertido à custa de Chichester-Pettigrew. Somente sei que ele não gostou da brincadeira.

— Acho de bom alvitre que mude-a sua maneira de falar, senhorita.

Não respondi, mas bocejei. Foi um leve bocejo, que traía um grande tédio.

— Com todos os demônios... — principiou a falar im­petuosamente.

Interrompi-o.

— Garanto-lhe que não adianta gritar comigo, é pura perda de tempo. Não pretendo absolutamente explicar-me com subalternos. Levando-me diretamente à presença de Sir Eustace Pedler, o senhor evitará um sem-número de aborrecimentos.

— A...

— Isso mesmo — afirmei —, a Sir Eustace Pedler. O homem ficou aturdido.

— Eu... eu... com licença...

Saiu correndo da sala tão rápido como um coelho. Apro­veitei a oportunidade para abrir a bolsa, e, tirando o estojo de pó-de-arroz, empoei o nariz. Em seguida, ajeitei o chapéu, colocando-o com mais elegância, e, munindo-me de paciência, pus-me à espera do meu inimigo.

Quando retornou, mudara a maneira de tratar-me.

— Quer fazer o favor de acompanhar-me, Miss Beddingfield?

Segui-o escada acima. Bateu à porta de uma sala, e, só depois de receber a ordem dada em tom seco, abriu-a, afastando-se para me dar passagem.

Sir Eustace Pedler, amável e sorridente, levantou-se, cumprimentando-me:

— Vejam só, Miss Anne. — Apertou-me efusivamente as mãos. — Prazer em vê-la. Sente-se. A viagem não a cansou? Ótimo!

Sentou-se também, em frente a mim, com a fisionomia radiante. Eu estava desconcertada ante a naturalidade da sua atitude.

— Fez muito bem em insistir para vir à minha pre­sença — prosseguiu. — Minks é um tolo. Um bom ator, mas não passa de um tolo. Estou me referindo à pessoa a quem a senhorita viu lá embaixo.

— Oh! Não diga — murmurei muito baixinho.

— E agora — falou alegremente — vamos direto aos fatos. Há quanto tempo sabia que eu sou o Coronel?

— Desde que Mr. Pagett o viu em Marlow, exata­mente quando todo mundo o supunha em Carmes.

Sir Eustace abanou a cabeça com ar pesaroso.

— Pois é, eu disse àquele maluco que ele estragou tudo, mas decerto ele não compreendeu. A sua única preo­cupação era saber se eu o reconhecera. Jamais lhe ocorreu indagar o motivo da minha ida. Foi um azar. Elaborei o plano com tanto cuidado, mandei-o passear em Florença, disse-lhe em que hotel me hospedaria em Nice, por uma ou duas noites talvez. No momento em que descobriram o crime, eu já estava de volta a Cannes. Ninguém, nem em sonhos, imaginaria que me havia afastado da Riviera.

Continuava falando com toda a naturalidade. Dei um beliscão no meu braço, para ter certeza de que tudo aquilo era real, de que o homem sentado à minha frente era o astuto criminoso, o Coronel. Comecei a tirar conclusões:

— Então, foi o senhor que no Kilmorden tentou ati­rar-me ao mar. Foi o senhor que Pagett perseguiu no tombadilho, naquela noite?

Ele sacudiu os ombros.

— Peço sinceras desculpas, jovem. Sempre gostei da senhorita, mas vivia interferindo constantemente no caso, e eu não podia consentir que uma mocinha atrevida inutilizasse o meu plano.

— O seu plano, nas cataratas, foi deveras o mais inteligente — disse, esforçando-me para dar a impressão de que encarava a situação com indiferença. — Não hesitaria em jurar que o senhor estava no hotel, quando saí. Ver para crer.

— É verdade, Minks foi um colosso no papel de Miss Pettigrew e, além disso, imita perfeitamente a minha voz.

— Gostaria de saber uma coisa.

— O que é?

— Como conseguiu que Pagett a escolhesse?

— Ora, uma coisa tão simples! Foi ao encontro dele na sala de espera do escritório do encarregado do Ministério do Comércio ou do Conselho da Mineração — sei lá qual deles —, dizendo não só ter recebido um telefonema sobre pedido de urgência na solução do caso, como ainda que o departamento a escolhera para exercer as funções de secre­tária. Pagett engoliu a história como um cordeirinho.

— O senhor é muito positivo — disse, enquanto conti­nuava a observá-lo.

— Não vejo a menor razão para que o não fosse.

Não gostei da maneira como pronunciou a frase e tratei de interpretá-la a meu modo.

— Acredita na vitória da revolução? O senhor arre­piou carreira.

— Essa pergunta, feita por uma jovem tão inteligente, parece-me inteiramente despropositada. Não, menina, não acredito nessa revolução. Mais uns dois dias e ela irá fragorosamente por água abaixo.

— Então, desta vez fracassou, não? — perguntei com maldade.

— Como todas as mulheres, a senhorita não entende de negócios. A minha função era fornecer explosivos e armas, muito bem pagos por sinal, destinados a fomentar a opinião pública e a lançar a culpa sobre determinadas pessoas. Obti­ve grande sucesso na execução do contrato, pelo qual recebi pagamento adiantado. Cuidei do negócio com o maior desve­lo, pois é o último de que trato antes de me aposentar. Quanto a arrepiar carreira, como há pouco disse, não com­preendi. Não sou chefe rebelde, nem coisa parecida, mas um eminente visitante de cidadania inglesa, que passou pelo infortúnio de bisbilhotar certa loja de souvenirs, tendo então oportunidade de ver um pouco mais do que esperava. E por isso, coitado de mim, me seqüestraram. Amanhã ou depois, na primeira circunstância favorável, vão encontrar-me algures, completamente aterrorizado e quase morto à míngua.

— Ah! — disse baixinho. — E que farão de mim?

— É a esse ponto que eu queria chegar — disse Sir Eustace com voz suave. — O que farão? Consegui que você viesse até aqui... de maneira nenhuma quero piorar a si­tuação... mas está nas minhas mãos. O problema é: o que fazer da senhorita? A solução simples do caso... e, diga-se de passagem, a mais agradável para mim... será casarmo-nos. Como sabe, a esposa não pode depor contra o marido, além do quê, apreciaria imensamente ter uma mulherzinha jovem e bonita, que me segurasse as mãos, fitando-me com olhos brilhantes... Não me fulmine dessa maneira! A se­nhorita me assusta. Vejo que o plano não lhe convém...

— Absolutamente, não.

Sir Eustace suspirou.

— Que pena! Mas eu não sou uma pessoa vil. O caso de sempre, suponho. Ama outro homem, como dizem os livros.

— Amo outro homem.

— Foi o que imaginei; primeiro julguei que se tratasse de Race, aquele cretino pernalta, vaidoso; mas agora começo a pensar no jovem herói que a pescou à noite, nas cataratas. As mulheres não têm gosto. Nenhum dos dois possui me­tade da minha inteligência. Geralmente subestimam o meu valor.

Achei que ele tinha razão. Não conseguia enquadrá-lo na categoria de homens a que forçosamente devia pertencer. Diversas vezes tentara matar-me; assassinara uma mulher e era o autor de inúmeras façanhas que não tinham chegado ao meu conhecimento. Mesmo assim, era-me impossível ima­giná-lo outro que não o nosso companheiro de viagem, alegre e divertido. Não me inspirava medo... embora soubesse que me mataria a sangue-frio, se lhe parecesse necessário. Era unicamente comparável ao caso de Long John Silver, de Stevenson. Classificava-se certamente na mesma espécie de homem.

— Ora, ora — disse aquela extraordinária criatura, recostando-se na cadeira. — É pena que não lhe agracie a idéia de tornar-se Lady Pedler. As outras alternativas são muito brutais.

Uma sensação de frio percorreu-me a espinha de alto a baixo. Não me esquecera de que estava assumindo um grande risco; contudo, o prêmio não era de se desprezar. As coisas aconteceriam ou não como imaginara?

— Na realidade — continuou Sir Eustace —, sempre tive uma queda pela senhorita. Sinceramente, não pretendo chegar a extremos. Se quiser contar toda a história, do princípio ao fim, veremos o que se pode fazer. Mas nada de fantasia, ouça bem, quero somente a verdade.

Eu não pretendia cometer erro nesse sentido, pois res­peitava muitíssimo a perspicácia de Sir Eustace. Era o mo­mento em que devia falar a verdade, toda a verdade e nada mais do que a verdade. Narrei-lhe os acontecimentos sem nada omitir, até o momento em que Harry me salvou. Quando terminei, ele sacudiu a cabeça em sinal de aprovação.

— Moça esperta. Confessou tudo. Mas fique sabendo que, se não confessasse, eu perceberia. Muita gente não daria crédito à sua história, principalmente ao princípio, eu porém acredito. A senhorita pertence à classe de pessoas que, pelo motivo mais simples, levam avante um empreen­dimento no mesmo instante em que dele têm notícia. Que sorte incrível! Contudo, mais cedo ou mais tarde, o amador dá de encontro com o profissional, e então o resultado é o que já se sabe. Eu sou profissional! Estou neste negócio desde muito jovem. Depois de muito refletir, pareceu-me que era um bom modo de enriquecer rapidamente. Sempre fui meticuloso e hábil em imaginar planos engenhosos... mas nunca cometi o erro de realizar eu mesmo esses planos. Fazer uso, sempre, do serviço de técnicos... esse é o meu lema. A única vez em que me afastei desse princípio foi um desastre... Não confiava em ninguém para fazer esse trabalho. Nadina sabia demais. Sou um sujeito calmo, de bom coração e bem-humorado, quando não se atravessam na minha frente, bem entendido. Nadina não só tentou obstruir meu caminho como também me ameaçou, exatamente na ocasião em que eu me encontrava no ponto culminante da minha carreira. Visto que ela está morta e os diamantes voltarão ao meu poder, sinto-me tranqüilo. Cheguei a pensar que tinha deitado o negócio a perder. Pagett, esse idiota, com a história da mulher e filhos! A culpa foi minha. Mas a sua cara de envenenador do Cinquecento com espírito da época vitoriana divertia-me muito. Serve de aviso para você, Anne: não se deixe levar pelo seu senso de humor. Durante anos o instinto me preveniu da conveniência de afastar Pagett; o rapaz, porém, era tão trabalhador e consciencioso que, honestamente, não consegui arranjar uma desculpa para despedi-lo, e deixei as coisas correrem.

"Mas estamos divagando. A questão é saber o que fa­zer de você. Sua narrativa foi cristalina, mas um ponto ainda me escapa. Que é feito dos diamantes?"

— Estão com Harry Rayburn — respondi, sempre a observá-lo.

Com a fisionomia inalterada, Sir Eustace conservava a expressão de bom humor mesclada de ironia.

— Humm... Quero esses diamantes.

— Não vejo o que poderá fazer nesse sentido.

— Não? Pois eu vejo. Não quero ser desmancha-prazeres, mas, se refletir que a descoberta do cadáver de uma moça neste bairro não provocará a menor surpresa... Lá embaixo está um homem especialista nesse tipo de trabalho. Vamos, a senhorita é sensata. Proponho o seguinte: escreva a Harry Rayburn e peça-lhe que venha ao seu encontro, trazendo os diamantes...

— Nem pense nisso.

— Não interrompa os mais velhos. Troco a senhorita pelas pedras, ou melhor, os diamantes em troca da sua vida. Estou falando bem claro; a sua vida está em minhas mãos.

— E Harry?

— O meu bom coração não me permitiria separar dois jovens que se amam. Ele também ficará em liberdade, com a condição, evidentemente, de que daqui em diante nenhum dos dois interfira na minha vida.

— Qual a garantia de que mostrará a sua palavra nesse contrato?

— Nenhuma, minha cara. Tem de confiar em mim e esperar o melhor. Se quiser usar de valentia, e achar preferível ser destruída, então a coisa muda de figura.

Caíra a sopa no mel. Contudo, tive o cuidado de não morder a isca. Aos poucos, deixei que me ameaçasse para depois me bajular, procurando levar-me à capitulação. Es­crevi as palavras ditadas por ele:

 

"Querido Harry,

Encontrei a grande oportunidade em que poderá provar a sua inocência. Por favor, siga rigorosamente as minhas instruções. Vá à loja de Agrasato e peça que lhe mostre alguma 'raridade', 'para uso em ocasiões excepcionais'. O dono então o convidará a 'entrar na sala ao lado'. Acom­panhe-o. Lá encontrará um guia que o fará chegar até aqui. Proceda exatamente segundo o que ele lhe disser. Não deixe de trazer os diamantes. Nem uma palavra a ninguém".

 

Sir Eustace parou.

— O final da carta fica entregue à sua imaginação — observou. — Tome cuidado, não procure me enganar.

— "Sua para sempre, Anne" é o bastante — falei Escrevi a frase. Estendendo a mão, Sir Eustace pegou a carta e leu-a do começo ao fim.

— Creio que assim está bem. Agora, o endereço.

Dei o endereço de uma lojinha que recebia cartas e telegramas, em atenção aos fregueses.

Com a mão bateu na campainha colocada sobre a mesa. Chichester-Pettigrew, aliás Minks, atendeu ao chamado.

— Mande esta carta imediatamente... pelas vias ha­bituais.

— Muito bem, Coronel.

Leu o nome escrito no envelope. Sir Eustace observa­va-o atentamente.

— É seu amigo?

— Meu amigo? — O homem parecia assustado.

— Você conversou muito tempo com ele em Johannesburg, ontem.

— Um homem aproximou-se e fez perguntas sobre o senhor e o Coronel Race. Forneci-lhe informações falsas.

— Ótimo, meu caro rapaz, ótimo — disse Sir Eustace alegremente. — Enganei-me.

Casualmente olhei para Chichester-Pettigrew, no mo­mento em que deixava a sala. Estava muito pálido e ater­rorizado. Assim que se afastou, Sir Eustace, pegando o tele­fone, falou:

— Schwart? Vigie Minks. Não quero que saia desta casa sem minha ordem.

Colocou o aparelho sobre a mesa outra vez, franziu as sobrancelhas, dando pancadinhas na mesa com as pontas dos dedos.

— Permite que lhe faça algumas perguntas, Sir Eusta­ce? — disse eu após alguns instantes de silêncio.

— Pois não. Tem nervos de aço, Anne! Interessa-se de maneira inteligente por coisas que fariam a maioria das moças ficar no auge da aflição.

— Por que tomou Harry como seu secretário, ao invés de entregá-lo à polícia?

— Porque queria esses malditos diamantes. Nadina, aquela diabinha, instigava Harry contra mim. Ameaçou-me de devolver as pedras ao rapaz, a menos que lhe pagasse o preço estipulado. Pratiquei mais esse erro ao pensar que trazia consigo os diamantes naquele dia. Mas ela era bastante inteligente para fazer uma coisa dessas. Carton, o ma­rido, também já tinha morrido, e eu não fazia a menor idéia de onde os diamantes estariam escondidos. Então, procurei obter a cópia de um telegrama enviado a Nadina por alguém que viajava no Kilmorden. Tanto podia ser de Carton como de Rayburn, não sei qual dos dois. Continha os dizeres da­quele papelzinho que a senhorita pegou. "17 1 22", estava escrito lá. Concluí que se tratava de um encontro com Ray­burn. Quando o vi tão desesperado para viajar no Kilmor­den, convenci-me de que eu tinha razão. Fingi engolir a pílula e consenti na sua vinda. Fiquei de olho no rapaz, à espera do momento em que ficaria a par de mais algum fato. Foi quando encontrei Minks interferindo nos meus projetos, tentando ganhar sozinho a jogada. Imediatamente pus um paradeiro nisso, trazendo-o de volta à disciplina. Fiquei contrariado por não conseguir a cabina 17, como tam­bém me aborreci por não identificá-la, Miss Beddingfield. Seria ou não tão inocente como aparentava? Quando Ray­burn saiu para ir à reunião daquela noite, Minks recebeu ordem de interceptar-lhe os passos, mas a presa escapou.

— E por que o telegrama mencionava "17" em vez de "71"?

— Já pensei no caso. Com certeza, Carton forneceu os dados mas não leu a cópia. O telegrafista cometeu o mes­mo engano que todos nós, lendo "17 1 22" em vez de "1 71 22". Não entendo como é que Minks foi à cabina 17. Guiou-se talvez por puro instinto.

— E a mensagem que devia entregar ao General Smuts? Quem a substituiu?

— Minha cara Anne, a senhorita acha que eu iria comprometer meus planos sem fazer o máximo esforço para salvá-los? Com um secretário assassino, fugitivo da polícia, não hesitei em substituí-la por folhas em branco. Quem sus­peitaria do coitadinho do velho Pedler?

— E o Coronel Race?

— Ah! Esse deu-me dor de cabeça. Quando Pagett me pôs a par de que ele pertencia ao serviço secreto, senti um frio na espinha. Lembrei-me de que durante a guerra andou bisbilhotando a vida de Nadina, em Paris. Assaltou-me uma terrível desconfiança de que o rapaz estava atrás de mim! Não me agrada a maneira pela qual sempre dá um jeito de estar ao meu lado. Ele é desses homens fortes e calados que vivem maquinando alguma coisa.

Ouvimos um som semelhante a um assobio. Sir Eustace pegou o telefone, ouviu atentamente durante alguns instan­tes, e depois disse:

— Muito bem. Mande-o entrar.

"Negócios", observou. "Miss Anne, vou acompanhá-la até o seu quarto."

Introduziu-me num apartamento minúsculo e muito mal-arrumado. Um negrinho trouxe-me a maleta de viagem, e Sir Eustace, após insistir em saber se desejava alguma coisa, retirou-se. Era a imagem do perfeito anfitrião. Sobre o lavatório havia uma vasilha com água quente. Comecei a tirar da mala objetos de uso pessoal. De repente, deparei com um pacote que me intrigou, pois não o reconheci. Desa­tando o nó do barbante, abri-o a fim de saber do que se tratava.

Com grande admiração, dele retirei um pequeno re­vólver incrustado de madrepérola, que absolutamente não colocara na mala quando parti de Kimberley. Após exami­ná-lo cuidadosamente, verifiquei que estava carregado.

Virei-o nas mãos, sentindo-me bastante reconfortada. Na situação em que me encontrava, a posse da arma devol­via-me a tranqüilidade. Mas é difícil esconder um revólver num traje moderno. Por fim, introduzi-o cuidadosamente de molde a ficar seguro na liga, embora deixando à mostra uma saliência bastante volumosa. Fiquei alerta, pois, caso se desprendesse, poderia disparar, atingindo-me a perna. Mas não havia remédio; era o único lugar onde podia guardá-lo.

 

Somente à tarde Sir Eustace mandou chamar-me à sua presença. Serviram-me chá às onze horas e um lauto almoço no meu apartamento. Sentia-me bastante forte para enfrentar conflitos futuros.

Sir Eustace estava sozinho. Percorria a sala de um lado para outro, o olhar brilhante e possuído de grande inquie­tação, o que não me passou despercebido. Estava simples­mente exultante. Notei também a leve modificação que se fizera na maneira de me tratar.

— Tenho novidades para a senhorita. O seu querido jovem está a caminho. Chegará dentro de poucos minutos. Contenha o seu entusiasmo, ainda não terminei. A senhorita tentou enganar-me hoje pela manhã. Avisei-a de que seria mais prudente dizer somente a verdade, e até certo ponto fui obedecido. Depois, tomou outra diretriz. Induziu-me a acreditar que os diamantes estavam em poder de Harry Rayburn. Naquele momento, aceitei a sua explicação, pois facilitava a minha tarefa, ou melhor, a tarefa de atrair Harry Rayburn para cá. Mas, minha cara Anne, os diaman­tes estão comigo desde que deixei as cataratas, apesar de só ontem ter tido conhecimento desse fato.

— O senhor sabe! — disse, arque jante.

— Talvez lhe interesse saber que a descoberta se fez por intermédio de Pagett. Insistia em aborrecer-me, con­tando uma longa história desprovida de sentido, da qual faziam parte uma aposta e uma latinha de filmes. Fácil me foi concatenar os fatos: a desconfiança de Mrs. Blair pelo Coronel Race, sua agitação, os rogos para que eu to­masse conta dos souvenirs... Pagett, excelente criatura, sempre zeloso das suas obrigações, já tinha aberto as caixas. Antes de deixar o hotel, passei todas as latinhas de filmes para o meu bolso interno. Admito que ainda não tinha tido tempo de examiná-las, mas notei que uma era mais pesada, fazia um ruído diferente, e a tampa, fechada de tal forma, só poderia ser aberta com o auxílio de um abridor de latas. O caso está bem claro, não lhe parece? E agora, como vê, tenho-os a ambos presos na armadilha... É pena que não queira considerar a idéia de tornar-se Lady Pedler.

Nada respondi. Olhava-o fixamente.

Ouviu-se o som de passos na escada, a porta escan­carou-se e Harry Rayburn deu entrada na sala. Ladeavam-no dois homens. Sir Eustace lançou-me um olhar triunfante.

— O plano se concretiza — disse em tom suave. — Amadores versus profissionais.

— Que significa tudo isso? — gritou Harry violen­tamente.

— Significa que você entrou na minha sala de visitas, disse a aranha para a mosca — observou Sir Eustace pilheriando. — Meu caro Rayburn, você não tem mesmo sorte.

— Você escreveu que não havia perigo, Anne.

— Não a censure, meu caro rapaz. Ditei o bilhete, e esta jovem senhora não podia deixar de obedecer. Teria agido com mais inteligência se não o fizesse; mas, como na ocasião nada lhe disse a esse respeito... Você seguiu as instruções, foi à loja de souvenirs, e, atravessando a pas­sagem secreta no fundo da sala interna... caiu nas mãos do inimigo!

Harry fitou-me. Compreendi o significado de seu olhar e aproximei-me de Sir Eustace.

— Que coisa! — murmurou. — Decididamente, você não é um rapaz de sorte! Este é... vejamos... o nosso terceiro encontro.

— O senhor tem razão — disse Harry. — É o terceiro encontro. Duas vezes levei a pior; nunca ouviu dizer que na terceira a sorte muda? Agora é a minha vez... O revólver, Anne!

Estava de prontidão. Num abrir e fechar de olhos, puxei a arma da meia, segurando-a à altura da cabeça de Sir Eustace. Os dois homens que vigiavam Harry deram um salto para a frente, mas tiveram que parar.

— Mais um passo... e ele morre! Se não obedecerem, Anne, puxe o gatilho imediatamente.

— Eu, não — repliquei dando uma risada. — Tenho medo disso.

Julgo que Sir Eustace compartilhava desse medo, pois tremia como vara verde.

— Não se movam — ordenou, e os homens obede­ceram.

— Mande-os embora — disse Harry.

Sir Eustace deu a ordem. Os homens saíram depressa e Harry fechou a porta a chave.

— Agora podemos conversar — falou com ar severo, e, atravessando a sala, pegou o revólver da minha mão.

Sir Eustace suspirou de alívio e limpou a testa com o lenço.

— Estou completamente fora de forma — confessou. — Devo estar sofrendo do coração. Felizmente, o revólver passou a mãos competentes. Não tinha confiança em Miss Anne. Pois bem, meu jovem amigo, como disse há pouco, vamos conversar. Estou quase acreditando que está em si­tuação vantajosa. Como esse revólver veio parar aqui, não sei. Revistaram toda a bagagem da moça, assim que chegou. E agora, de onde surgiu? Ainda há pouco não estava com ele.

— Estava na minha meia.

— Não conheço muito bem as mulheres. Devia tê-las estudado um pouco mais — disse tristemente. — Gostaria de saber se Pagett teria percebido.

Harry deu uma pancada na mesa.

— Não se faça de tolo. Se não fossem os seus cabelos brancos eu o atiraria pela janela. Miserável! Que me im­portam os seus cabelos brancos, eu...

Como se aproximasse um pouco, Sir Eustace saltou agilmente para trás da mesa.

— Como os moços são violentos! — disse em tom de censura. — Não usam a cabeça, valem-se unicamente dos músculos. Conversemos com calma. No momento você está por cima, mas essa situação pode não continuar. O meu pes­soal está espalhado pela casa toda. Vocês são a minoria. Esta vantagem momentânea você a ganhou por mero aci­dente...

— Mero acidente?

Sir Eustace fitou-o, atraído pelo tom com que Harry pronunciou essas palavras.

— Sente-se, Sir Eustace, e preste atenção: Apontando ainda o revólver para ele, prosseguiu:

— Desta vez a jogada está contra o« senhor. Para co­meçar, ouça isto!

Isto era uma pesada batida na porta do andar térreo. Ouviram-se gritos, imprecações e em seguida o disparo de tiros. Sir Eustace empalideceu.

— O que é isso?

— Race... e o pessoal. O senhor não sabia, não é, Sir Eustace, que Anne e eu tínhamos feito uma combinação, pela qual teríamos certeza da legitimidade das nossas comu­nicações? Os telegramas seriam assinados por "Andy" e as cartas teriam dois traços cruzados sobre a palavra "e". Anne percebeu que o seu telegrama era forjado. Veio para cá de livre e espontânea vontade, caindo propositadamente na cilada, com a esperança de apanhá-lo na própria arma­dilha que preparou. Antes de deixar Kimberley, telegrafou-me e a Race também. Mrs. Blair comunicava-se continua­mente conosco. Recebi a carta que o senhor ditou, exatamen­te como previa. Conversei com Race sobre a possibilidade da existência de uma saída secreta na loja de souvenirs e já tinha descoberto onde se localizava a porta.

Ouviram um grito, o ruído de um desabamento seguido de forte explosão que estremeceu a sala.

— Estão atirando bombas neste bairro. Vou levá-la daqui, Anne.

Surgiu forte clarão; o prédio fronteiro estava em cha­mas. Levantando-se, Sir Eustace pôs-se a andar de um lado para outro. Harry continuava a apontar o revólver na sua direção.

— Como vê, Sir Eustace, o jogo acabou. Foi o senhor mesmo que atenciosamente nos forneceu a pista deste escon­derijo. O pessoal de Race ficou de atalaia junto à passagem secreta e, a despeito das precauções tomadas pelo seu grupo, conseguiu seguir-me até aqui.

De súbito, Sir Eustace virou-se:

— Bem pensado. E digno de encômios. Contudo, ainda quero dizer uma palavrinha. Perdi a parada, mas você tam­bém a perdeu. Jamais conseguirá culpar-me da morte de Nadina. Estava em Marlow nesse dia; é o meu único ponto desfavorável. Ninguém poderá provar que eu a conhecia. Mas você, sim, você a conhecia e tinha motivos para ma­tá-la... Além disso, o seu passado é contra você. É ladrão, lembre-se, ladrão. Talvez ignore uma coisa: os diamantes estão comigo. Pois então veja...

Num movimento muito rápido, curvou-#se, ergueu o braço e arremessou-o para a frente. Ao som de um ruído de vidros que se partiam, um objeto voou pela janela, desapa­recendo na massa flamejante do prédio fronteiro.

— Assim se acaba a única esperança que lhe restava de poder provar a sua inocência, no caso de Kimberley. E agora, vamos conversar. Estou numa situação difícil. Se puder ir-me embora, ainda terei uma oportunidade na vida. Se ficar, estarei perdido, mas você também, moço! Na sala vizinha existe uma clarabóia. Alguns minutos e estarei a salvo. Já tomei umas providências. Deixe-me ir como lhe falei, dê-me essa oportunidade... e eu, por minha vez, assi­narei a confissão do assassinato de Nadina.

— Aceite, Harry — exclamei. — Aceite, aceite! Ele voltou-se para mim, a fisionomia muito séria.

— Não, Anne, jamais. Não avalia o que está dizendo.

— Avalio, sim. Isso resolve tudo.

— Nunca mais poderia encarar Race. Que o diabo me leve se esta raposa velha e manhosa escapar. É inútil, Anne, não farei tal coisa.

Sir.Eustace procurava disfarçar o riso, pois aceitava a derrota sem a menor emoção.

— Ora, vejam só — observou. — Parece-me que en­controu o seu amo e senhor, Anne. Mas garanto-lhes que a retidão de caráter nem sempre compensa.

Fez-se ouvir um estalido de madeira sob os passos de alguém que subia a escada. Harry abriu a porta. O Coronel Race foi o primeiro a entrar na sala. Ao ver-nos, seu rosto iluminou-se.

— Está salva, Anne. Receava... Voltando-se para Sir Eustace, disse:

— De há muito que ando à sua procura, Pedler... Finalmente, apanhei-o.

— Parece que todo mundo está completamente louco — disse meio distraído. — Estes dois jovens vêm me amea­çando com revólveres e acusando-me de coisas verdadeira­mente estarrecedoras. E eu nem sei o que isso significa.

— Não sabe? Significa apenas que encontrei o Coro­nel. Significa que no dia 8 de janeiro último o senhor não estava em Cannes, mas em Marlow. Significa que quando Mme Nadina, sua auxiliar nesse trabalho, virou-se contra o senhor, planejou matá-la... e, por fim, as provas do crime são contra o senhor.

— São? De quem obteve informações tão interessan­tes? De um homem procurado pela polícia? O depoimento prestado por essa testemunha será considerado de muito valor...

— Existe mais uma testemunha. Alguém sabia que Nadina ia encontrar-se com o senhor na Casa do Moinho.

Sir Eustace admirou-se. Acenando com a mão o Co­ronel Race convidou a entrar Arthur Minks, aliás o Reveren­do Edward Chichester, aliás Miss Pettigrew. O rapaz estava pálido e nervoso, mas falou com firmeza:

— Encontrei-me com Nadina em Paris na noite ante­rior à sua partida para a Inglaterra. Nessa ocasião eu pas­sava por conde russo. Ela contou-me o seu plano. Conhecen­do o tipo de homem com quem ia tratar, procurei aconselhá-la, mas ela não deu ouvidos às minhas palavras. Tendo lido um telegrama que estava sobre a mesa, achei oportuno tentar apossar-me dos diamantes. Em Johannesburg, conversei com, Mr. Rayburn, que me induziu a passar para o seu lado.

Sir Eustace fitava-o, sem nada dizer; Minks, no entanto, estava visivelmente acabrunhado.

— Os ratos abandonam o navio no momento em que vai ao fundo — observou Sir Eustace. — Não presto aten­ção aos ratos; cedo ou tarde, destruirei os animais daninhos.

— Queria contar-lhe uma coisa — falei. — Dentro da latinha que o senhor atirou pela janela havia somente pe­dras falsas. Os diamantes estão em lugar seguro. Falando francamente, acham-se dentro do estômago da girafa. Suzanne esvaziou-o, acondicionou as pedras dentro dele, em mechas de algodão, de maneira a não fazerem barulho, fechando-o novamente.

Sir Eustace olhou-me durante algum tempo e em seguida falou naquele jeito que lhe era peculiar:

— Sempre detestei aquela girafa. Devia ser prevenção instintiva.

 

Não conseguimos voltar a Johannesburg nessa noite, o bombardeio tornava-se cada vez mais intenso.

Deduzi que estávamos sitiados, visto que os rebeldes haviam tomado as áreas circunjacentes da cidade.

Refugiamo-nos numa fazenda a umas vinte milhas mais ou menos de Johannesburg, em plena estepe. Eu morria de cansaço. Toda aquela agitação e ansiedade por que passa­ra nesses dois.últimos dias deixaram-me como um trapo.

Repetia a mim mesma que as nossas preocupações tinham chegado ao fim, que Harry e eu estávamos juntos e nunca mais nos separaríamos. Apesar disso, persistia a impressão de que existia uma barreira entre nós, de algo que o constrangia e cuja razão eu não conseguia descobrir.

Sir Eustace saíra acompanhado por um valente guarda. No momento da partida, disse-nos adeus, com um aceno de mão, distraído.

Na manhã seguinte, ao entrar no stoep, olhei para os lados de Johannesburg e vi os grandes depósitos de armas brilhando aos raios pálidos do sol. Ouvia-se o rumor lon­gínquo do tiroteio. A revolução ainda não tinha terminado.

A mulher do fazendeiro veio chamar-me para o café da manhã. Era uma boa alma, muito maternal, por quem logo me tomei de simpatia. Segundo me informou, Harry tinha saído de madrugada e ainda não voltara. Novamente assaltou-me uma sensação de mal-estar. Que significava aque­la sombra que se interpunha entre nós?

Depois do café, sentei-me no stoep. Levara um livro, mas não conseguia ler. Imersa em pensamentos, não per­cebi o Coronel Race chegar, nem quando desmontou do cavalo. Só ao ouvi-lo dizer "Bom dia, Anne", tive cons­ciência da sua presença.

— Oh! — murmurei, corando — é o senhor.

— Posso sentar-me?

Puxou uma cadeira para perto de mim. Pela primeira vez encontravamo-nos a sós, desde o dia em que fomos a Matoppos. Como soía acontecer, tive a mesma impressão, mescla de fascinação e temor que sempre me inspirava.

— Há novidades? — indaguei.

— Smuts segue amanhã para Johannesburg. Não dou mais do que três dias para que a revolução chegue ao fim; mas nesse meio tempo a luta continua.

— Queria ter certeza de que só morreu quem realmente afrontou a morte, isto é, os que lutaram de livre e espon­tânea vontade, e não os infelizes habitantes das áreas de combate.

Ele concordou com um sinal de cabeça.

— Compreendo o que quer dizer, Anne. Nisso reside a iniqüidade da guerra. Mas trago outras notícias.

— Traz?

— A confissão da minha incompetência. Pedler arran­jou um jeito de fugir.

— O quê?

— É verdade. Ninguém sabe como. Estava preso numa sala do sobrado de uma fazenda, aqui nas vizinhanças, e bem vigiado durante a noite. Hoje de manhã, a sala estava vazia. O pássaro tinha batido a linda plumagem.

Intimamente, fiquei contente. Até essa ocasião não conseguira livrar-me de um sentimento de ternura por Sir Eustace. Sou digna de censura, mas é verdade. Admira­va-o, embora não passasse de um rematado malfeitor, mas era realmente simpático. Foi a pessoa mais divertida que já encontrei.

Ocultei minha maneira de pensar, é claro, ainda mais sabendo que a opinião do Coronel Race divergia inteira­mente da minha. Por ele, Sir Eustace devia ser julgado pela justiça. Quando nos pusemos a refletir sobre a sua fuga, achamos que não era caso de admiração. Ele deveria ter inúmeros espiões e agentes pelos arredores de Jo'burg. Igno­rava a opinião do Coronel Race, mas, quanto a mim, duvi­dava de que ainda conseguissem prendê-lo. Sir Eustace devia ter um bem-elaborado plano de fuga. Aliás, foi o que nos deu a entender.

Não querendo destoar, disse alguma coisa de maneira um tanto indiferente, e a conversa esfriou. Então, subita­mente o Coronel Race perguntou por Harry. Contei-lhe que saíra de madrugada e ainda não o tinha visto naquela manhã.

— Compreende, não é, Anne? Deixando de lado as formalidades, ele está inocente. Há a parte técnica, eviden­temente, mas Sir Eustace não conseguirá eximir-se do crime. Nada os separa agora.

Falou sem olhar-me, numa voz baixa, entrecortada.

— Compreendo — disse, agradecida.

— E já não existe razão para que não volte a usar seu nome verdadeiro.

— Não, claro que não.

— Sabe qual é?

A pergunta surpreendeu-me.

— Claro, é Harry Lucas.

Não insistiu, mas algo no seu silêncio chamou-me a atenção.

— Anne, lembra-se de quando voltávamos do Ma­toppos? Eu lhe disse que sabia o que me competia fazer.

— Certamente que me lembro.

— Creio que executei religiosamente o meu dever. O homem a quem ama está isento de qualquer suspeita.

— Foi isso que quis dizer naquele momento?

— Sem dúvida.

Baixei a cabeça, envergonhada pela minha desconfiança infundada. Ele continuou a falar, pensativo:

— Quando eu era muito moço, apaixonei-me por uma jovem, que rompeu o namoro. Depois disso, só pensei em trabalhar. Minha carreira era tudo para mim. Quando a encontrei, Anne... nada mais me interessou. Mas a mocidade atrai a mocidade... Ainda me resta o trabalho...

Guardei silêncio. Não se pode amar dois homens ao mesmo tempo... embora pareça que isso possa acontecer. Emanava de Race um grande magnetismo. Fitando-o, disse:

— Acho que o senhor vai longe, pois tem toda a pos­sibilidade de realizar uma grande carreira. Ainda será figura de destaque mundial.

Senti que essas palavras eram como uma profecia.

— Mas viverei sozinho.

— Assim vivem todas as pessoas que realizam grandes feitos.

— Acha?

— Tenho certeza.

Tomou a minha mão, dizendo em voz baixa:

— Teria sido preferível que... fosse diferente. Nesse momento Harry chegou e o Coronel Race le­vantou-se.

— Bom dia... Lucas.

Não sei por que Harry corou até a raiz dos cabelos.

— Ora! — continuou alegremente. — Agora elevemos chamá-lo pelo seu verdadeiro nome.

Harry não tirou os olhos do Coronel Race.

— Então o senhor já sabe — disse, por fim.

— Sou muito bom fisionomista. Eu o vi quando era menino.

— Que significa tudo isso? — perguntei, intrigada, fitando ora um, ora outro.

Percebi que tinham tomado resoluções opostas, mas Race ganhou. Harry desviou o olhar.

— Creio que o senhor tem razão. Diga-lhe o meu ver­dadeiro nome.

— Anne, ele não é Harry Lucas. Harry Lucas morreu na guerra. O seu nome é John Harold Eardsley.

 

Mal acabara de pronunciar as últimas palavras, o Coro­nel Race afastou-se. Fiquei a olhá-lo, até desaparecer. A voz de Harry chamou-me à realidade. — Perdoe-me, Anne. Diga que me perdoa.

Tomou minha mão entre as suas e em seguida, num ges­to automático, soltou-a.

— Por que me enganou?

— Não sei se você me compreenderá. Receava diversas coisas: o poder da riqueza e o fascínio que ela exerce. Queria que você gostasse de mim pelo que sou e pelo que era, um rapaz simples e sem dinheiro.

— Quer dizer que não confiava em mim?

— Não foi esse o motivo, mas tem o direito de pensar assim. Eu vivia amargurado, desconfiado de todos, vendo em tudo uma segunda intenção. E achava simplesmente ma­ravilhoso que você gostasse de mim da maneira como gos­tava.

— Compreendo — disse pausadamente. Revolvia na mente a história que me contara, notando pela primeira vez a existência de discrepâncias: o desprendimento pelo dinhei­ro, a vontade de reaver os diamantes em poder de Nadina, por que preferira referir-se aos dois homens como se ele próprio fosse um estranho. E quando mencionara "meu ami­go", não se tratava de Eardsley, mas de Lucas. Era Lucas o rapaz calado, que amara Nadina tão profundamente.

— Como pôde acontecer isso? — perguntei.

— Ambos vivíamos despreocupados... e desejosos de morrer. Certa noite, por sorte, trocamos as chapas de iden­tificação... No dia seguinte Lucas foi morto... Ficou es­traçalhado.

Estremeci.

— Por que não me contou antes? Esta manhã? Já não podia duvidar do meu amor por você.

— Anne, eu não queria alterar a situação. Pretendia levá-la de volta à ilha. De que vale o dinheiro? Não compra a felicidade. Viveríamos felizes na ilha. Confesso que receio essa outra vida... que quase me destruiu uma vez.

— Sir Eustace sabia de sua verdadeira identidade?

— Oh! Sabia, sim.

— E Carton?

— Não. Viu-nos ambos uma noite na companhia de Nadina, em Kimberley, mas não sabia qual dos dois era eu. Acreditou que eu fosse Lucas, e Nadina, por sua vez, deixou-se enganar pelo telegrama. Nunca sentiu medo de Lucas. Ele vivia sempre calado, muito reservado. Mas eu sempre fui explosivo. Ela teria morrido de medo se soubesse que res­suscitei.

— Se o Coronel Race não tivesse contado, o que você pretendia fazer, Harry?

— Nada. Continuar sendo Lucas.

— E os milhões de seu pai?

— Race ficaria muito feliz em recebê-los. Ainda mais, acho que faria deles melhor uso do que eu. Anne, em que está pensando? Que carranca é essa?

— Estou pensando — disse com voz pausada — que talvez fosse preferível o Coronel Race não ter contado nada.

— Não, ele estava certo. Você devia saber a verdade. Fez uma interrupção e de repente falou:

— Sabe, Anne, sinto ciúmes do Coronel Race. Ele a ama também e... tem maior projeção do que eu tenho ou poderei vir a ter.

Rindo, voltei-me para ele:

— Que tolice, Harry! Gosto de você... e só isso importa.

Instantes depois partimos para a Cidade do Cabo, onde Suzanne me esperava para dar-me as boas-vindas. Imediata­mente fomos estripar a girafa. Quando finalmente a revolu­ção foi abafada, o Coronel Race reuniu-se a nós e sugeriu que fixássemos residência na espaçosa vila, em Muizenberg, outrora pertencente a Sir Laurence Eardsley.

Já tínhamos arquitetado planos. Eu retornaria à In­glaterra, em companhia de Suzanne, realizando-se meu casa­mento em sua casa, em Londres. Ainda mais, iria a Paris comprar o enxoval! Suzanne sentia enorme prazer em pla­nejar todos os detalhes. Eu também. Assim mesmo, o futuro me parecia completamente irreal. Às vezes, sem saber por quê, sufocava, como se me faltasse a respiração.

Na noite anterior ao embarque, sentia-me infelicíssima, sem todavia atinar com a causa do meu infortúnio. Não podia suportar a idéia de abandonar a África. Quando re­gressasse, seria tudo tão bom como agora? Continuaria a sê-lo?

Sobressaltei-me ao ouvir fortes batidas na veneziana. Dei um salto. Harry estava fora, no stoep.

— Vista-se, Anne, e venha cá. Quero falar com você.

Enfiei um vestido e saí para a noite fresca, calma e per­fumada, suave como o contato do veludo. Com um aceno de mão, Harry chamou-me para longe da casa. Estava pálido, com os olhos brilhantes e um ar de quem havia tomado uma decisão.

— Lembra-se, Anne, de quando você me disse que, pelo homem amado, as mulheres se sentem felizes em fazer coisas que lhes desagradam?

— Lembro — respondi, perguntando-me o que ele que­ria dizer com isso.

— Anne, venha comigo... agora... esta noite — dis­se, tomando-me nos braços. — Vamos voltar para a Rodésia, para a ilha. Já não suporto todas essas bobagens, nem ficar mais tempo sem você.

Desprendi-me do abraço por um momento:

— E os meus vestidos franceses? — perguntei em tom de caçoada.

A partir desse dia Harry nunca distinguiu quando estou falando sério ou caçoando.

— Que me importam os vestidos franceses! Acha que eu quero pôr..vestidos em você? Prefiro mil vezes tirá-los, aos pedaços, do seu corpo. E não vá embora, está ouvin­do? Você é minha mulher. Se eu a deixar ir, corro o risco de perdê-la. Em se tratando de você, nunca me sinto seguro. Vamos embora agora... esta noite... Que me importam os outros!

Apertou-me fortemente contra si, beijando-me tanto, que eu mal podia respirar.

— Não posso mais viver sem você, Anne. É impossível. Odeio esse dinheiro. Que fique para Race. Vamos, vamos embora.

— E a escova de dentes? — objetei.

— Compra-se outra. Sei que sou um esquisitão, mas, pelo amor de Deus, venha!

Começou a andar apressadamente. Eu o segui, humilde, como a barotsi que vira nas cataratas, com a diferença de que não carregava nenhuma panela na cabeça. Apressou tan­to o passo que eu dificilmente conseguia seguir ao seu lado.

— Harry — disse, por fim, num tom meigo —, nós vamos a pé à Rodésia?

Voltou-se subitamente e, dando uma gargalhada, levou-me em seus braços.

— Estou ficando louco, minha querida, mas é porque a amo tanto!

— Somos uns malucos. Oh! Harry! Embora você não me perguntasse, quero dizer-lhe que não estou fazendo sa­crifício nenhum! Eu queria ir!

 

Dois anos se passaram. Ainda moramos na ilha. Sobre a mesa de tábua tosca, está a carta de Suzanne.

 

"Queridos inocentes habitantes da floresta. Queridos malucos apaixonados.

Não me surpreendi. Bem percebia o seu desinteresse toda vez que falávamos sobre Paris e vestidos, e que mais dia menos dia você desapareceria inesperadamente para casar-se segundo os antigos costumes ciganos. Mas ambos são realmente um casal de malucos! A idéia de renunciar a tão fabulosa fortuna chega às raias do absurdo. O Coronel Race pretendia conversar sobre o assunto com vocês, mas convenci-o a deixar essa questão para mais tarde. Enquanto isso, administrará todos os bens em nome de Harry. Creio ser essa uma boa solução, pois, afinal, lua-de-mel não dura eternamente. Se estou me externando com liberdade é por­que você não está aqui, Anne; caso contrário, sei que você reagiria como uma gata selvagem. O amor nas selvas poderá ser duradouro; dia virá, porém, em que começarão a sonhar com casas em Park Lane, peles caras, vestidos parisienses, carros enormes e carrinhos ultramodernos para bebês, cria­das francesas e pajens nórdicas! Oh! Tenho certeza que vocês hão de querer tudo isso!

Por enquanto, desejo-lhes uma feliz lua-de-mel, queridos maluquinhos, uma longa lua-de-mel! E lembrem-se de mim, de vez em quando, daquela que continua engordando nesta vida regalada.

Da amiga que lhes quer bem, Suzanne Blair.

P.S. — Envio-lhes como presente de casamento uma bateria de cozinha e uma grande terrine de pâté de foie gras para que não se esqueçam de mim."

 

Recebi uma outra carta que releio de vez em quando. Acompanhada de um pacote volumoso, chegou bem depois da primeira, procedente da Bolívia.

"Prezada Anne Beddingfield.

Não resisto à tentação de escrever-lhe, não tanto pelo prazer que isso me proporciona, como pela enorme alegria que, estou certo, sentirá ao ter notícias minhas. O nosso amigo Race, afinal de contas, não era tão inteligente como ele próprio imaginava, não é verdade?

Pensei em designá-la minha testamenteira literária, ra­zão pela qual-lhe envio o meu diário. Não interessa a Race e muito menos aos seus asseclas, mas julgo que certas pas­sagens a divertirão. Faça dele o uso que lhe aprouver. Sugiro apenas que publique um artigo no Daily Budget: 'Crimino­sos que encontrei'. Salientará a minha pessoa, colocando-a como figura principal.

Não tenho dúvida de que agora você já não é Anne Beddingfield, mas Lady Eardsley, uma das rainhas de Park Lane. Queria dizer-lhe que acredito não ter havido de sua parte a menor intenção de prejudicar-me. Mas, na minha idade, é deveras penoso ser forçado a começar tudo de novo. Cá entre nous, eu mantinha um fundo de reserva para usar numa contingência, como a que se apresentou. Muito a pro­pósito, estou reunindo um grupinho muito simpático. Antes que me esqueça, se um dia encontrar o seu amigo tão en­graçado, Arthur Minks, diga-lhe que não me esqueci dele. Quer me fazer esse favor? Tenho certeza de que ele receberá um choque.

De modo geral, creio ter procedido com espírito cristão, capaz de tudo perdoar. Até em relação a Pagett. Soube por acaso que ele, ou melhor, Mrs. Pagett, há poucos dias, deu à luz o sexto filho. Logo a Inglaterra estará totalmente po­voada de Pagetts. Mandei de presente ao bebê uma caneca de prata e um cartão-postal, afirmando o meu desejo de ser padrinho do pimpolho. Imagino perfeitamente Pagett de cara fechada, pegando a caneca e o cartão para seguir diretamente à Scotland Yard!

Que Deus a abençoe, moça dos olhos brilhantes. Dia virá em que terá consciência do erro que cometeu não me desposando.

Atenciosamente, Eustace Pedler."

Harry ficou furioso. É esse o único ponto em que dis­cordamos, pois, para ele, Sir Eustace é a pessoa que tentou matar-me e, ainda mais, o responsável pela morte de seu amigo. Não consigo compreender a causa dos atentados con­tra a minha vida, praticados por Sir Eustace. Soam como notas discordantes, se é que me exprimo bem. Tenho certeza de que sempre nutriu por mim profunda simpatia.

Então, qual o motivo de atentar contra a minha vida? Harry acha que é "por ser uma criatura abominável" e com isso dá o assunto por encerrado. Suzanne entra mais em detalhes. Conversamos diversas vezes sobre o assunto. Ela explica o caso como um "complexo de medo". Minha amiga é dada a esclarecer fatos à luz da psicanálise. Fez-me ver que Sir Eustace, durante a vida inteira, foi influenciado pelo desejo de segurança e conforto, possuindo em alto grau o sentimento de autopreservação. O assassinato de Nadina nada mais foi do que o desejo de livrar-se de certas inibições. Em relação à minha pessoa, seus atos não represen­tavam a verdadeira expressão dos seus sentimentos, sendo somente o resultado do grande temor pela sua segurança. Acredito que Suzanne tem razão. Quanto a Nadina, perten­cia ao tipo de mulher que devia morrer. Por dinheiro os homens praticam ações de toda espécie, mas as mulheres não deveriam fingir amor para atingir outras finalidades.

Perdôo Sir Eustace, de coração, mas Nadina, jamais! Jamais, jamais, jamais!

Há alguns dias, quando desembrulhava algumas latas en­volvidas em folhas de um número antigo do Daily Budget, deparei com o título de uma notícia: "O homem do terno marrom". Como tudo isso me pareceu distante! De há muito cessaram as minhas relações com o Daily Budget, muito antes que o jornal o fizesse. O meu "casamento ro­mântico" cercou-o de enorme popularidade.

Meu filhinho está brincando sob os raios de sol. É o "homem do terno marrom", mas estas vestes jamais se estragam, e, para quem vive na África, são as mais conve­nientes. Está dourado como um fruto maduro, pois passa os dias cavando a terra. Tenho a impressão de que saiu ao avô e acabará obcecado pelo barro plistoceno.

Quando ele nasceu, Suzanne mandou um telegrama:

"Congratulações e abraços pela chegada do recém-nas­cido à ilha dos Lunáticos. Qual a forma da sua cabeça: dolicocéfala ou braquicéfala?"

Suzanne não me faria engolir essa. Com uma palavra — resposta econômica e ao pé da letra —, respondi:

"Platicéfála!"

 

                                                                                            Agatha Christie

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades