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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O HOMEM DO REI - P.2 / Juliette Benzoni
O HOMEM DO REI - P.2 / Juliette Benzoni

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

DOIS CRAVOS COR-DE-ROSA

Laura pegou numa das asas do grande tabuleiro de ameixas que acabava de colher com Marie para o levar à cozinha, onde o jovem Rollet procedia, há dois dias, à confecção das compotas. A colheita fora boa: o Verão quente, mas não demasiado seco, dera magníficos resultados e o pomar da actriz regurgitava de frutos tão inchados de açúcar que a pele, por vezes, estalava. Marie pegou numa ameixa e trincou-a.

 

 

 

 

—   Estão verdadeiramente deliciosas, este ano — disse ela. — Há tantas que não vamos conseguir comê-las todas...

—   Nós, na Bretanha, metemos o excedente numa pipa para fa­zer aguardente — disse Laura.

—   Nós também, claro, mas nos outros anos dávamos ameixas ao bairro todo: as crianças vinham apanhá-las. Também as mandá­vamos para a casa de saúde do Dr. Belhomme. Os que têm vinhas davam um pouco de vinho, mas agora cada um vive fechado para si. Toda a gente tem medo de toda a gente. É muito triste!

—   É lamentável. É por isso que estais tão melancólica?

—   Oh, sem dúvida. Paris tornou-se tão perigosa que hesitamos aventurar-nos para as compras mais simples... e até esta casa já não é o que era. É verdade que se conspirava nela, mas era pelo Rei e aqueles que viviam nela eram amigos seguros, com quem se podia conversar e rir sem segundas intenções. Desde domingo que tenho a impressão de que esta casa transporta uma máscara e que o ar, aqui, é menos puro. Aqueles homens que foi necessário receber...

— Reconheço — disse Laura rindo — que aquela plantação de gorros vermelhos em volta da mesa teve qualquer coisa de incongruente, mas sabeis com que intenção foi decidida e demonstras­tes, nessa ocasião, como sois uma grande actriz! E Batz estava tão feliz!

—   Sim, estava e eu, podeis ter a certeza, também o estava, por-que ainda podia partilhar do seu projecto e do risco que o acom­panha. O que não é, agora, o caso... — acrescentou a jovem, vi­rando o rosto.

—   Que quereis dizer? — perguntou Laura com doçura.

—   Antigamente, ele dizia-me tudo, trabalhava aqui, perto de mim. Agora, vejo-o cada vez menos. Está... em Paris e ignoro o que faz. Vós vistes: desde segunda-feira que partiu sem qualquer ex­plicação, sem dizer, sobretudo, quando esperava regressar. E eu fico para aqui... morrendo de medo por ele!

Chegaram à cozinha, onde já cheirava a açúcar queimado e a frutos descaroçados. Blaise Papillon, o pequeno criado, precipitou--se para livrar as duas mulheres do fardo que transportavam.

—   Penso que chega por hoje. Ainda não acabámos de prepa­rar o último cabaz — disse ele, designando a sua irmã Marguerite e Nicole, a criada de quarto, ocupadas naquela tarefa. A vasta sala, de cobres cintilantes e faianças brilhantes e coloridas, parecia uma colmeia silenciosa. Apenas o grande relógio tinha direito à palavra, enquanto Rollet oficiava com a gravidade de um celebrante no al­tar. O cozinheiro sorriu para as recém-chegadas:

—   A primeira fornada está cozida. Quereis provar? — pergun­tou ele, fazendo escorrer para um prato uma pequena concha de frutos e sumo de um belo castanho-dourado ainda fumegante, onde elas mergulharam uma pequena colher prudente. Em seguida, acrescentou: — Creio que o senhor barão ficará contente: ele gosta muito de compota de ameixa... Haverá para todo o Inverno.

Bruscamente, Marie deixou cair a colher, sufocou um soluço e fugiu. Surpreendida, Laura pousou o prato que segurava e precipi­tou-se atrás dela. O batimento de uma porta no andar superior deu-lhe a entender que a jovem se refugiara no seu quarto. No en­tanto, antes de entrar, parou. A porta não era suficientemente es­pessa para abafar os soluços desesperados de Marie. O abcesso que Laura adivinhara ao chegar e que via crescer, estava em vias de rebentar, mas Marie, da qual conhecia o pudor e a reserva, dei­xá-la-ia ver o fundo da chaga?

Após um instante de hesitação voltou a descer para a cozinha, chamou Nicole com um gesto e levou-o até ao alto da escadaria, no alto da qual o imobilizou: os soluços não cessavam.

—   Que se passa, Nicole? — interrogou-a ela. — Não lhe peço que traia os segredos da sua senhora, mas desde a minha chegada que sinto que ela não está bem... e sei que você lhe é muito de-votada. Vê alguma razão para este desespero? O senhor barão tem sido... menos amável?

—   Ele? Não! Evidentemente, não o vemos muito ultimamente, mas creio que continua tão apaixonado por Mlle. como antes. É sempre muito meigo e quando passa uma noite na casa, é sempre com ela.

—   Então, como é que explica este desgosto? Mlle. disse-lhe al­guma coisa?

—   Não, nada... mas também tenho sentido que ela já não é o que era... Tentei saber, mas ela não me quis dizer nada. Falámos, com Marguerite, que é mais velha do que eu e conhece Mlle. há muito tempo. Ela diz que ela está assim há 15 dias... desde uma visita que recebeu.

—   Uma visita? Que visita?

—   Uma senhora... ou antes, uma menina, toda de negro e mui-to bonita, ao que parece. Eu não a vi: estava no lavadouro.

—   E... não sabe o nome dela?

—   Ninguém o sabe. Nem sequer Biret-Tissot, que lhe abriu o portão quando ela chegou num fiacre.

—   No entanto, ele não costuma abrir a uma pessoa qualquer?

—   Não, mas a campainha soou como costuma soar quando tocam aqueles que estão no segredo da casa. Ela pediu para falar com Mlle. da parte do senhor barão. Foi o suficiente para aquele pacóvio! Eu tentaria saber mais. Depois, aquela mulher voltou a partir como chegou. Após a sua partida, Mlle. subiu para o quarto, dizendo que não a incomodassem. Não quis jantar e, no dia se­guinte, viu-se, pelo rosto, que não tinha dormido bem...

—   E você não lhe fez pergunta nenhuma?

—   Oh, sim, claro, mas Mlle. fechou-se como uma ostra e quan­do Marguerite quis voltar ao assunto ela zangou-se e proibiu-nos, assim como a Biret, de fazer a menor alusão a essa visita ao senhor barão.

—   Obrigada, Nicole. Vou tentar saber um pouco mais!

Laura voltou a subir, bateu levemente à porta e entrou sem ser convidada. Marie, de ventre sobre o leito, como se se tivesse atirado para cima dele, jazia numa confusão de percal florido, fitas de cetim e saiotes espumosos. Continuava a chorar, se bem que mais suavemente e não reagiu quando a amiga se sentou ao pé dela.

—   Marie — disse Laura com muita doçura — e se me dissés­seis o que vos faz tanto desgosto? Alivia, sabeis, partilhar. A menos que não tenhais confiança em mim?

A resposta veio de sob a massa brilhante de caracóis castanhos que escondiam, por completo, o rosto enfiado na colcha.

—   Oh sim!...

E subitamente Marie endireitou-se, oferecendo o espectáculo pungente de um rosto feito para o sorriso e perturbado pelas lá-grimas.

—   Vós sois a única em quem posso confiar, para além da mi­nha velha Marguerite e Nicole. Mas, peço-vos, esquecei tudo isto e não vos inquieteis. Exigi demais aos meus nervos, nos últimos dias: deram de si. Nervos de actriz, sabeis...

—   Não tenteis enganar-me, Marie! Já vos conheço e sei que es­pécie de mulher corajosa sois. Para que os vossos nervos «dêem de si», como dizeis, necessitam de uma razão grave. E vós deveis con­fiar-ma porque, sem ajuda, não resistireis muito mais tempo, receio, à tensão a que tendes vindo a ser sujeita desde há meses. Houve aquela agressão de que fostes vítima no dia da morte do Rei', de-pois a nossa partida para Inglaterra enquanto permanecíeis aqui. É verdade que Batz voltou, mas nunca fica por muito tempo: volta a mergulhar em Paris sob um aspecto ou outro para tecer a teia onde espera apanhar a Convenção e a Comuna. Joga a vida a cada ins­tante e, a vós, a angústia não vos abandona. É isso?

Marie fez um esforço para esboçar um sorriso. Ao mesmo tem­po, respondeu com uma voz um pouco rápida demais, um pouco mecânica demais:

—   Sim... sim, é isso!

Laura franziu as sobrancelhas e apertou as mãos da amiga para a obrigar a olhar para ela.

—   Não. Não me estais a dizer tudo! Acabo de vos oferecer uma escapatória e agarraste-la, mas há outra coisa, Marie. Outra coisa que vos tortura... desde que recebestes a visita de uma rapariga de luto...

O choro de protesto de Marie fê-la saber que tinha acertado. Aliás, as lágrimas voltavam:

—   Oh! porquê — murmurou Marie — por que é que Nicole e Marguerite vos contaram isso?

— Justamente porque elas gostam de vós e vós podeis confiar nelas para vos defender. Mas contra quem? Essa rapariga, que es-teve cá no outro dia, que queria ela de vós? Quem era ela?

— A noiva de Jean...

— A... que história é essa e de onde saiu ela?

—   Da realidade, ai de mim, e de uma excelente família de ma­gistrados originária de Bordéus. O pai dela, Jacques Thilorier é... ou antes, era advogado no Parlamento e são, sei-o, excelentes amigos de Jean, que, aliás, falou deles várias vezes. Chama-se Michelle. A irmã mais velha dela casou com um d'Epremesnil. Tem 22 anos...

—   Não vos atormenteis! Não é uma adolescente e lembro-vos que vós só tendes 26. E que queria ela?

—   Que eu renuncie a Jean... que lhe devolva a liberdade...

—   Como se ele, alguma vez, a tivesse perdido junto de vós! Nun­ca uma mulher apaixonada deixou um homem mais livre de movi-mentos do que vós! Para fazer o quê, dessa liberdade? Para casar com ele?

— Bem entendido... e sobretudo partir com ele para Inglaterra, para o subtrair aos seus numerosos inimigos!

Laura inclinou-se para olhar a amiga no fundo dos belos olhos cinzentos marejados de lágrimas e pôs-se a rir:

—   E vós acreditastes nisso? Marie, sede razoável! Falastes com uma louca. Estais a imaginar Batz a desistir de todos os seus pro­jectos, do seu desejo furioso de salvar o jovem Rei e a sua mãe, para seguir beatificamente para Inglaterra uma rapariga, filha de magistrados, que assim decidiu? É de morrer a rir!

—   Não, é de morrer a chorar! Se eu me afastar ela levá-lo-á... quando ele souber!

—   Quando ele souber o quê? Por Deus, Marie, é preciso ar­rancar-vos as palavras — exclamou Laura, que sentia a mostarda subir-lhe ao nariz.

—   Que ela... espera um bebé...

E Marie sacudida pelos soluços, enfiou de novo o rosto na col­cha, deixando Laura espantada pelo que acabava de ouvir.

—   Um bebé? — repetiu ela com voz baixa.

—   Co... Como é que vós... quereis que eu... lute... contra isso? — soluçou Marie.

Laura lutava contra a cólera que sentia subir nela e que, por um instante, a cegou. Com as orelhas a ferver, a garganta estrangulada pelo furor, sentiu uma vontade irresistível de partir qualquer coisa.

—   Não... não... é impossível! Jean, não! Nunca faria semelhan­te coisa. Ele ama-vos, Marie... salta aos olhos! Ou então, é o mais hábil dos comediantes.

Arrependeu-se imediatamente de ter dito aquilo, porque sabia, assim como Marie, que Jean era, justamente, um comediante mara­vilhoso. Quando evocava o aguadeiro de Saint-Sulpice, o Guarda Nacional da Força, o austero Dr. John Imlay, o médico quaker da estrada de Valmy e do castelo de Hans — não conhecia todas as suas metamorfoses! — tinha que reconhecer que ignorava tudo da natureza profunda daquele homem, infinitamente sedutor para o repouso moral das mulheres que conhecia.

—   Falastes-lhe dessa visita? — perguntou ela com uma certa brusquidão.

— Não, não, com certeza que não! Essa Michelle pediu-me, por ele, que guardasse silêncio.

—   E sairdes na ponta dos pés?

—   Fazê-lo docemente... progressivamente, a fim de não o perturbar na sua tarefa actual. Jurei-lhe que não diria nada...

—   Mas, sois louca? — explodiu Laura. Completamente louca! Tudo isso não passa de uma teia de mentiras e, no vosso lugar, teria posto essa rapariga no olho da rua e, sobretudo, não teria jurado nada. Ela aproveitou-se da vossa fraqueza, desse amor dema­siado grande que sentis! Eu teria dito tudo a Jean quando ele regressasse.

—   Não. Não vos escondo que, a despeito do mal que me fez, senti piedade dela. Uma jovem presa por um princípio de gravidez, neste momento! Ela chorava, suplicava...

—   Decididamente, tínheis ido ao teatro! — deixou sair Laura, desdenhosa. — Comédia! Tenho a certeza... sinto-o! Muito bem, se fostes suficientemente tola para jurar, serei eu que falarei a Batz! É preciso que ele saiba!

Marie levantou-se bruscamente, as lágrimas subitamente secas sob o fogo da indignação.

—   Se fizerdes isso, deixareis de ser minha amiga! Disse-vos tudo na esperança de que me ajudaríeis e proíbo-vos de trair a confiança que depositei em vós!

—   Marie, Marie, não sejais estúpida! Não podeis aceitar isso sem dizer nada. Não podeis aceitar ser um joguete e deixardes, assim, partir o vosso coração!

Marie não respondeu de imediato. Olhou para a jovem, no fun­do dos olhos, com um sorriso triste:

—   Quando chegastes aqui, Mme. a marquesa de Pontallec, não tínheis aceitado tudo... e pior ainda, do homem de quem usáveis o nome, porque o amáveis? Até queríeis morrer... e eu esforcei-me por vos compreender. Agora, a história é «minha» e tenciono vivê-la como me agradar. Jurai calar-vos, Anne-Laure... ou deixai esta casa!

Tinha tanta grandeza, naquele instante, a pequena Marie Grand­maison, e tanta nobreza, também, que Laura sentiu vergonha. O que ela dizia era justo! Por seu turno, sentiu as lágrimas subirem-lhe aos olhos.

—   A vossa amizade é-me infinitamente querida, Marie... e peço-vos perdão!

—   Quero um juramento!

—   Juro-vos... mas, por vossa parte, prometei-me uma coisa.

—   O quê?

—   Não precipitar nada, não deixar a vossa casa e, sobretudo, não mudar nada na vossa maneira de ser com ele, enquanto não levar a bom termo os seus projectos! Seja o que for que vos tenham pedido e que possais pensar, continuo persuadida de que ele vos ama... e só a vós — acrescentou ela, com uma dor que não con­seguiu dominar. — Se ele ficar sem vós, sentir-se-á desestabiliza­do, perdido! Tem absoluta necessidade de estar seguro de vós!

Marie tomou a amiga nos braços e apertou-a contra si durante um momento.

—   Tendes a minha palavra, Laura! Nunca farei nada que pro­voque o sofrimento de Jean, por pouco que seja! E... perdoai-me por ter acordado recordações tão cruéis!

Por um longo momento as duas jovens permaneceram ali, apertadas uma contra a outra, em silêncio, procurando uma espé­cie de abrigo contra a dor e a decepção e ignorando a que ponto eram semelhantes...

 

No regresso de Charonne, os Frey levaram o amigo Chabot para a sua soberba residência da Rua d'Anjou, Ali o fizeram jantar e até dormir, já que o antigo capuchinho de Rodez estava podre de bêbado. Desde esse dia, os três homens... e a bela Léopoldine, claro, quase nunca se deixavam, vivendo uma espécie de lua-de-mel, na qual Chabot não tardaria a cair. Poucos dias após a festa campestre, com efeito, propôs à Convenção o levantamento dos selos judiciais apostos nos agentes de câmbio e nos bancos, argu­mentando que essas medidas de rigor interrompiam as relações comerciais e até — Junius Frey havia doutrinado bem o seu «ami­go» — serviam de pretexto para várias falências simuladas.

Obteve satisfação: os selos foram levantados em todos os ban­cos, com uma única excepção: os financeiros ingleses Boyd e Kerr, que possuíam nos seus cofres parisienses mais de quatro mi­lhões de valores sobre o Estado. Empurrado por Frey, Chabot cor­reu à Comissão de Salvação Pública, onde encontrou Lullier, que acabava de ser nomeado. Este acolheu-o com amabilidade, escu­tou as suas críticas, prometeu ocupar-se dessa «grande injustiça»... e não fez nada. Indignado, Chabot foi lembrá-lo, desta vez no seu gabinete do Hôtel de Ville. Lullier, volúvel, desculpou-se, invo­cando os numerosos negócios que lhe pesavam sobre os ombros, prometeu que tudo reentraria nos eixos no dia seguinte... e não cumpriu.

Chabot voltou furioso para casa dos Frey, onde Junius o tran­quilizou.

—   Não te preocupes! Os selos vão ser levantados. Batz tratou disso. Ele faz o que quer na Comuna.

—   Batz? Aquele homem um pouco elegante demais, com quem jantámos em casa da Grandmaison?

—   Claro. É amante dela e a sua presença era natural. — Mas não foi ele que tentou raptar o Cabeçudo a caminho do cadafalso?

— Com efeito, mas não te enganes: arriscando assim a sua vida, Batz pagava uma dívida de honra. Luís XVI tinha sido bom para ele e ele gostava muito do Rei. Entretanto, não esqueças que foi deputado à Constituinte e que é um amigo da Revolução. O seu Rei está morto, só pensa na fortuna da França e põe ao seu servi­ço todo o seu talento de grande financeiro. E nas altas instâncias sabem apreciá-lo, mesmo se alguns, que não o conhecem, o de-testem e queiram a sua perda. Muitas vezes, aliás, pessoas que ele ajudou. Mais vale ser amigo dele, podes acreditar-me!

—   E tu és?

— Claro, assim como o meu irmão. Se não fosse assim, não nos teríamos encontrado em casa da amante dele.

Alguns dias mais tarde, num corredor das Tulherias, onde fun­cionava a Convenção, Chabot, que depois do seu discurso sobre os selos servia de alvo do Père Duchesne, o jornal sulfuroso de Hé­bert, encontrou Delaunay, que não via desde Charonne. Este feli­citou-o por ter «trabalhado, para o bem da comunidade, criticando--o por ter posto um pouco de calor a mais no discurso. Espanto de Chabot:

—   Ou se fazem as coisas, ou não se fazem! Mas não te escon­do que os ataques de Hébert me incomodam...

— Não te atormentes! Hébert acalmará, não pode agir de outra forma. As violências do esfregão dele não passam de um bom pa­ravento para mascarar os seus interesses pessoais. Na realidade, pertence-nos...

—   Quem são esses „nós»?

—   Quero dizer... a mim, a Cambon, Ramel, Batz, Julien e ou­tros bons amigos. É natural que ele queira fazer os seus negócios: tem mulher e filhos. Aliás, não é o único: Danton, por exemplo, que cobre de cetim e jóias a sua jovem mulher de 16 anos, pela qual está louco...

—   Danton? Estás a sonhar?

—   Oh, não! Quando uma mulher se agarra... Ouvi mesmo di­zer que ela lhe tinha exigido que o seu casamento fosse abençoado... e por um padre que não fosse blasfemador. «Louise Gély exprimiu, com efeito, esse desejo e foi o abade de Keravenan, escondido no bair­ro de Saint-Sulpice, que confessou os noivos e os casou. Nunca foi denunciado.»

Portanto, precisa de dinheiro. Que mal tem, no fundo, fazer os seus negócios, ao mesmo tempo que os da República? O povo gosta que os seus re­presentantes tenham um certo nível. Sente-se envaidecido. Fazes mal em viver tão mal, meu pobre Chabot! Sobretudo para quem corteja uma rapariga irmã de banqueiros...

—   Se ela me ama, ter-me-á como sou! — assegurou o despa­drado numa pose que julgou suficientemente «romana».

—   Sim, mas os Frey, talvez não. Tu agora conheces Junius e sa­bes como ele é sábio, austero e de costumes justos. Um modelo para todos.

—   Sim, sim, mas...

— ... mas é um banqueiro e o dinheiro conta para ele. Se que­res a irmã dele, tens que te mostrar digno e isso não é difícil. Po­des tornar-te rico sem abandonar a tua consciência.

—   Crês que sim?

—   Bem entendido. Olha, vais ter outra ocasião para fazer um pouco de dinheiro. Sabes que se reclama a confiscação dos bens dos estrangeiros, mas não se precisaram quais: bens móveis e imó­veis. Ora, os banqueiros estão à espera que se apropriem das suas casas, mas não do que elas contêm e isso representa verdadeiras fortunas em jóias, móveis, quadros, objectos de arte...

Rapidamente, Chabot recordou a decoração na qual vivia Léo­poldine, refinada, elegante, feita de belas coisas e que convinham à sua beleza. Não iam privá-la disso? E, já agora, também a ele, já que, cada vez mais frequentemente, lhe pediam que fosse viver para a Rua d'Anjou? Desde que, pelo menos, se desembaraçasse da sua «governanta», que era, também, sua amante. Uma amante grá­vida, ainda por cima. Até para isso iria precisar de dinheiro!

—   E tu tens um meio de evitar isso?

— Tenho: pede-se aos banqueiros uma honesta compensação... um milhão, por exemplo, e eles podem ficar com os móveis. Aliás, sei que o nosso amigo Batz está a trabalhar neste momento, com Lullier, numa lista que visa esses imóveis! Se quiseres, podes apro­veitar! Queres que fale com ele?

Batz! Ainda e sempre Batz! Se não tivesse participado tanta gen­te, Chabot acabaria por se perguntar se a Revolução não teria sido feita para único proveito daquele homem. Acabou por pensar em voz alta:

—   Portanto, ele está em todos os negócios, o teu Batz? Delaunay levantou uma sobrancelha, melindrado:

—   Ele não é mais o meu Batz do que o teu, ou de muitos ou­tros dos nossos amigos. Atenta no seguinte: é ele que inspira toda a política financeira da Montanha. Junius Frey sabe-o bem e não vê qualquer desvantagem. Podias falar com ele...

—   E... Robespierre, no meio de tudo isso? Desde o dia 27 de Julho que está na Comissão de Salvação Pública.

—   É um caso à parte. Ninguém sabe o que ele pensa, nem se pode dizer amigo dele, salvo a família Duplay. É frio, secretista, desconfiado e cruel. Traça o seu caminho na sombra visando o po­der supremo, tenho a certeza e posso, até, confiar-te uma coisa: fa­zia medo ao próprio Marat. Mas nós temos Danton, Saint-Just e os bons companheiros da Montanha para lhe barrar o caminho se­gundo as necessidades. Quanto a ti, pensa um pouco na tua pró­pria felicidade: merece-la bem... e a Revolução não durará sempre!

Aquela era uma linguagem que Chabot apreciava. Não chega­ra a altura de se ocuparem da sua felicidade? Ao deixar Delaunay, sentia-se nas nuvens: um futuro com as cores da aurora abria-se diante dele e daquela que escolhera. Ainda era jovem, tinha dese­jo de viver intensamente e foi a assobiar um alegre Ça ira! que se foi na direcção da Rua d'Anjou onde Junius lhe confirmou tudo o que dissera Delaunay, lhe acrescentou a sua própria convicção de que um Estado tão violento não se poderia eternizar e que viria o dia em que seria preciso harmonizar-se com as realidades de uma vida normal para o povo.

No fundo, o banqueiro pregava a um convertido. Chabot sabia que tudo ia mal na Revolução. 60 departamentos estavam rebelados, os Vendéens, vencedores em toda a parte, ganhavam terreno; as fronteiras estavam cortadas. O general de Custine ia ser guilho­tinado por não ter conseguido salvar Mayence, Valenciennes aca­bava de capitular diante do duque de Iorque e os austríacos esta­beleciam, nos territórios ocupados do Norte, uma espécie de «junta militar, restabelecendo o Antigo Regime. O aprovisionamento de Paris tornava-se difícil. Era verdade que eram enviados às provín­cias «procônsules', encarregados de abafar as rebeliões locais e im­por a lei. Assim, Chalier em Lyon — Fouché viria mais tarde com a sua metralha — Carrier em Nantes, que, achando a guilhotina demasiado lenta, instituiu os afogamentos em massa — e ainda ou­tros, que foram expedidos para toda a parte onde os Girondinos haviam acendido as suas revoltas. Era verdade que tinham apa­nhado a maioria desses agitadores e Brissot, o chefe, cuja cabeça Hébert não cessava de reclamar, estava na Abadia. Era verdade, en­fim, que a Convenção, decidida a acabar com a Vendêe, chamava às fronteiras de Leste algumas das suas tropas e enviava-as, sob as ordens de Westermann, praticar a política da terra queimada e o massacre sistemático, mas a agitação estava ainda bem longe de acalmar e ninguém podia estar seguro das reacções de uma Paris sempre imprevisível, que sofria privações, sem antever os dias fe­lizes que lhe anunciavam sem cessar.

Assim, para a baralhar, Barére, um dos oradores mais escutados, decidiu oferecer-lhe uma distracção. No dia 31 de Julho subiu à tribuna da Convenção para anunciar:

— No momento em que queremos celebrar dignamente o ani­versário do 10 de Agosto, que abateu o trono, peço que se des­truam os mausoléus e túmulos de Saint-Denis, que nos lembram recordações terríveis dos reis.

Não precisou de o repetir. Que grande ideia! Foi aplaudido, houve entusiasmo e, durante semanas homens, armados de picaretas, invadem a basílica real, partem os monumentos, as estátuas, o mais ínfimo dos emblemas reais e, sobretudo, encarniçam-se so­bre as urnas — a primeira a ser violada será a do marechal Tu­renne! — arrancam os corpos, que depois atiram para a lixeira, ou para fossas escavadas à pressa, após terem-nas ultrajado, retiran­do-lhes algumas recordações. As rainhas serão as mais maltratadas: megeras insultam-nas, arrancam-lhes tufos de cabelos ou os restos dos vestidos. Mesmo Henrique IV, apesar da sua conserva­ção extraordinária e a imagem afectuosa que dele guardava o povo, não escapará à profanação: cortar-lhe-ão a barba e o bigode para os darem como presente. Semanas na poeira e um odor nauseabundo!

Num outro plano, foi proposta uma lei dos Suspeitos, que abriria a porta ao Terror, denunciando tanta gente à ira popular que seria cada vez mais difícil não cair sob os seus golpes. Por fim, a Rainha foi transferida para a Conciergerie para que o seu processo fosse instruído... Estava-se a 2 de Agosto.

No dia seguinte foi anunciado que os exércitos austríaco e in­glês se reuniam para marcharem sobre Paris, o que incitou a Co-muna a pedir o recrutamento maciço da Nação para avançar con­tra o invasor... e teve como resultado, naturalmente, uma ordem de prisão para todos os súbditos britânicos, ou austríacos, residentes em França... Não sem dificuldade, Batz conseguiu que Charlotte Atkyns pensasse, seriamente, voltar para casa.

—   O vosso passaporte de dama flamenga não vos protegerá durante muito tempo e, se quiserdes partir para a Flandres, as tro­pas não vos deixarão passar. Acusar-vos-ão de ser uma espia da re­gente, a arquiduquesa Maria Cristina, irmã da Rainha...

—   Eu não quero partir, sabei-lo bem e faríeis melhor se me aju­dásseis a entrar na Conciergerie: lembro-vos que quero propor à Rainha tomar o lugar dela!

—   Isso é irrealizável. Pensais que aqueles carcereiros não pen­saram: nenhuma mulher se pode aproximar, com excepção daque­las que tratam dela.

—   Irei disfarçada de homem.

—  Ela está guardada à vista, ou quase. Já não está no Templo. Aliás, sabei que não abandonei o desejo de a salvar. Tenho um pla­no que está em vias de execução. Portanto, deixai-me agir... e parti! Não esqueçais que tendes um filho e não sacrifiqueis a vossa vida por nada...

—   Mas, e a criança, o pequeno Rei? Aquele pobre pequeno, nas mãos daquele bruto! Ele matá-lo-á!

Um fogo sombrio acendeu-se no olhar do barão.

—   Ele terá cuidado: o Rei é um refém demasiado precioso para a República. Por outro lado, Simon sabe que não o deixarei viver 24 horas depois da sua morte. Por fim, posso assegurar-vos que ele é bem tratado: a mulher de Simon está doida por ele e trata-o como deve ser. Parti tranquila, eu tenho os olhos nele enquanto espero outra coisa melhor!

—   Partir, como? Num dos vossos barcos de Bolonha?

—   Desde a declaração de guerra que não podem sair livre-mente: as flotilhas de pesca estão vigiadas. Mais vale ir pela Nor­mandia. Embarcareis... num navio americano: o coronel Swan es­pera-vos no Havre...

Lady Atkyns compreendeu que não conseguiria dobrar a von­tade daquele homem e que, sem ele, não poderia fazer nada.

—   Está bem. Vou-me preparar, mas... tendes mesmo um plano para ela?

—   Tomais-me por mentiroso? Na próxima noite, saíreis de Paris. Estai pronta!

Ela estendeu-lhe uma mão desiludida, que ele beijou. Em se­guida, ela perguntou:

—   Voltais para Charonne?

—   Não. Não voltarei para lá enquanto este assunto não for re­solvido, para não pôr Marie em perigo. Fico... em casa de amigos.

Na madrugada do dia seguinte, lady Atkyns passava a barreira da Conferência num casco de nogueira, no meio de outros que iam ser cheios de cerveja na fábrica de cerveja de Suresnes, instalada, desde o ano anterior, no antigo castelo de la Source, por cinco com-padres, dos quais três, o coronel Bourgeois, o antigo soldado da Guarda Real Fallois e o ex-abade Huvelle, eram fregueses. O pró­prio Batz, soberbamente embriagado na aparência, mau grado a hora matinal, conduzia a carroça, oscilando e berrando canções de fazer corar um ajudante. A inglesa saiu de lá lívida e meio asfixiada pelo odor acre da cerveja, mas encantada, no fundo, com a aventura. Passou o dia na Source e voltou a partir na noite seguinte num veí­culo mais confortável, munida de um maço de cédulas não muito novo e muito bem imitado, graças à fábrica clandestina que coabi­tava harmoniosamente, no castelo, com a boa cerveja de Suresnes.

 

Alguns dias mais tarde, o cidadão Michonis, com a faixa em volta do ventre e o chapéu de plumas na cabeça, penetrava no Pa­lácio seguido por um pequeno ruivo de gorro vermelho e calças de tela raiada, cuja carmanhola, nova, de um elegante cinzento «dama de Paris» estava ornamentada com dois cravos cor-de-rosa metidos numa botoeira: era o cavaleiro de Rougeville, que se apresta­va a desempenhar o papel com que sonhava há muito. E o coração batia-lhe com força.

O de Michonis também, quando introduziu o amigo no pequeno pátio sobre o qual se abria a porta da Conciergerie.

— Vamos passar pelo postigo — cochichou ele numa voz um pouco oprimida. — Sobretudo, não digas uma palavra e deixa-me agir!

Rougeville aprovou com um sinal de cabeça e avançaram na di­recção dos municipais de guarda ao portão. Estes conheciam bem o cidadão Michonis, que vinha todos os dias fazer a sua volta de inspecção, tal como nas outras prisões. Nem sequer lhe pediram o salvo-conduto, contentando-se em tocar nos bicornes polidamente com um dedo, mas interessaram-se pelo seu companheiro, que Michonis se apressou a apresentar:

—   É o cidadão Gousse e é meu adjunto — grunhiu ele. — Fa­ríeis bem se vos habituásseis ao rosto dele, porque ireis vê-lo com frequência, sozinho ou comigo. Já não consigo fazer tudo sozinho. As prisões estão a abarrotar e, em breve, não se saberá onde pôr os suspeitos...

Um dos municipais desatou a rir, escarrou majestosamente e prendeu o cachimbo a um canto da boca:

— Porqu'é que nã dás uma palavrinha ao Fouquier-Tinville, ci­dadão administrador? Uma palavra dele e terás todo o espaço que quiseres. Até poderás ir de férias! Como diz o Padre Duchesne, a navalha de barba nacional» não está cansada...

E continuou a rir, enquanto Michonis replicava que seria de­masiado belo se pudesse ser assim tão fácil.

Passado o postigo e chegados ao vestíbulo do porteiro que se lhe seguia, Rougeville tirou o bigode e enxugou a testa. A atmos­fera parecia-lhe irrespirável. Michonis, que se 'apercebeu, deu-lhe uma cotovelada:

—   Atenção! Vem ali o porteiro!

Com efeito, um homem saía da sombra. Reconhecendo Micho­nis, tocou no gorro vermelho. O director das prisões recomeçou as apresentações e trocaram alguns gracejos. Em seguida, o porteiro perguntou:

—   Começas pela viúva Cabeçuda, como habitualmente? Bom comediante, Michonis fez uma careta:

—   É preciso, mas devo dizer-te que não me apetece nada. Há sempre alguma coisa que não está bem, com aquela!

—   É uma Dama — troçou o outro — mas aqui não é o Tria­non. É menos alegre, mas com este calor, é mais fresco!

Sempre a falar, precedeu os dois homens num corredor obscu­ro, no qual se abriam várias portas de postigos gradeados e armadas de grossas fechaduras medievais. Em frente da primeira, que estava aberta, dois gendarmes jogavam aos dados em cima de um banco, iluminados por uma vela que fazia as vezes da luz do dia, muito pobre. Levantaram-se para acolher o administrador e en­quanto um deles empurrava a porta, o outro, um tal Gilbert, con­tava a Michonis as últimas notícias. Rougeville combatia, como po­dia, a emoção violenta que sentia.

Seguindo Michonis, penetrou numa cela baixa, mal iluminada por uma janela colocada quase ao nível do solo do pátio das Mulheres. Um leito, uma cadeira, uma mesa sobre a qual estava co­locado um crucifixo, um lavatório e um grande biombo, que escondia os objectos mais íntimos, compunham todo o mobiliário da­quele retiro onde, apesar do Sol no exterior, apenas entrava uma luz parcimoniosa e triste. Havia duas mulheres: uma era jovem. In­sinuante e fresca, permanecia de pé perto do lavatório. Era Rosa-lie Lamorlière, sobrinha do porteiro Richard. A outra, sentada na cadeira e completamente vestida de negro, mantinha as mãos pá-lidas cruzadas sobre os joelhos. Ao vê-la, o coração de Rougeville falhou um batimento: era a Rainha.

Ela levantou-se para acolher os dois homens com uma polidez resignada que não lhe foi devolvida.

— Venho, como é hábito, ver se tu não precisas de nada, ci­dadã — disse Michonis. — E também para te apresentar o meu ad­junto, o cidadão Gousse, que me assiste na minha pesada tarefa...

Estrangulado pela emoção, incapaz de falar, Rougeville tocou vagamente no seu gorro, ao mesmo tempo que a Rainha inclinava a cabeça. Ao encontrá-la assim, a sua alma inchou-lhe de aflição. Diante de si via uma mulher de 37 anos envelhecida precocemen­te, o rosto ceroso marcado pela doença, pela dor, pelas injúrias quotidianas e, sobretudo, pelo desgosto sentido desde que fora separada dos seus filhos. Era verdade que, sob a touca de cambraia, cercada por uma fita negra, os belos cabelos desciam-lhe sobre os ombros em caracóis graciosos, mas eram quase brancos. Quanto ao olhar azul, as lágrimas já lhe tinham lavado a cor, apagado a chama. No entanto, prisioneira, ameaçada, insultada, aquela mu­lher conservava uma majestade inimitável. Continuava a ser aque­la que o cavaleiro adorava e venerava quando, no seu regresso da América, se inclinara, pela primeira vez, perante ela. E o pior era não poder atirar-se-lhe aos pés.

Entretanto, o olhar com o qual Maria Antonieta aflorara o recém--chegado animou-se um pouco, ao mesmo tempo que uma certa cor fugitiva lhe passava pelas maçãs-do-rosto. Esboçou, até, um sorriso e Rougeville compreendeu que ela o reconhecera como aque­le que, no dia 20 de Junho, a salvara, obrigando-a a juntar-se ao Rei na sala do Conselho. Então, as lágrimas subiram-lhe aos olhos.

Michonis, por seu lado, entretinha o guarda Gilbert com as nu­merosas dificuldades do seu cargo. Rougeville aproveitou para se aproximar do fogão e deixar cair, como por descuido, um dos seus cravos, deitando depois um olhar à Rainha, que ela não com­preendeu. Então, aproximando-se, inclinou-se e, rapidamente, co­chichou:

— Apanhai o cravo, que contém os meus votos mais ardentes. Voltarei na sexta-feira... — Depois, ainda em voz mais baixa: — Quando sairmos, reclamai qualquer coisa!

Dito isto, sai com Michonis que, por fim, terminou o seu dis­curso e quer levá-lo na visita ao pátio das Mulheres. É lá que Gil­bert se lhes junta, anunciando que a prisioneira quer fazer uma re­clamação a propósito da alimentação. E Michonis grunhe:

—   Espantar-me-ia muito se assim não fosse. Agora, tenho para um quarto de hora de lamentações...

Parece tão descontente que o cidadão Gousse propõe-lhe, na­turalmente, ir no seu lugar. E Michonis, claro, aceita:

—   Bom, vai lá, mas não te deixes enrolar! É que ela é manho­sa, a espertalhona!

—   Volto daqui a cinco minutos...

O diálogo, com efeito, é rápido. Rosalie saiu, a Rainha está só.

— A vossa temeridade faz-me estremecer — disse Maria Anto­nieta, que teve tempo, ao abrigo do seu biombo, de encontrar o bilhete e de o ler. Contém o anúncio de que voltarão na sexta-fei­ra seguinte com ouro para comprar os guardas.

—   Era preciso que eu viesse — responde ele. — Tenho di­nheiro e cúmplices, entre os quais estão Michonis e Batz, assim como um meio seguro de vos tirar daqui.

—   Fiz o sacrifício da minha vida e apenas a recordação dos meus filhos me atormenta.

—   Ocupar-nos-emos deles. A vossa coragem está enfraquecida? — A minha saúde, sim, mas o meu coração, não.

—   Então, mantende a esperança, Senhora salvar-vos-emos...

Não teve oportunidade de dizer mais nada: a mulher Harel, que trata da Rainha com Rosalie, acaba de entrar com uma celha de água. Certamente não era uma simpatizante: Rougeville compreendeu-o e saiu sem saudar, resmungando ao melhor estilo de Michonis.

Saindo da Conciergerie, dirigiu-se a casa de Roussel, onde dormia com Batz e da qual se serviam como uma espécie de quartel--general. Deu conta da sua visita e passou, em seguida, uma das melhores noites da sua vida, embalado pela esperança. Mas no dia seguinte, quando os três homens estavam à mesa, apareceu Mi­chonis. Parecia muito perturbado.

—   Venho da Conciergerie — disse ele, deixando-se cair numa cadeira — e creio que escapámos de boa...

—   Passou-se alguma coisa? — perguntou Batz já na defensiva.

—   Sim. Uma coisa que podia ter sido grave. Esta manhã, Ri­chard, a porteira que leva as refeições à Rainha, quis, por brinca­deira, explorar as algibeiras do gendarme Gilbert, uma maneira de lhe surripiar as cartas de amor da namorada. Ignoro se havia lá al­guma, mas, entre os papéis que ela tirou, encontrou um que me trouxe imediatamente, dizendo que lhe parecia suspeito.

E tirou da algibeira um pequeno rolo de papel fino cinzento, que Rougeville reconheceu imediatamente. Na verdade, não pas­sava de um pedaço daquele que ele enrolara no cravo, mas, ao de­senrolá-lo, apercebeu-se de que estava picotado por numerosos fu­rinhos de alfinete.

—   Repara! — disse ele a Batz. — Dir-se-ia uma escrita... Assim era, com efeito. De frente para a luz, o papel revelou al­gumas palavras: «Confio em vós. Irei...»

— Ela aceita! — exclamou Rougeville, deixando-se cair de joe­lhos com a emoção. — Ela aceita. Meu Deus, tinha tanto medo que recusasse para não abandonar os filhos à cólera dos carrascos!

—   Sim — disse Michonis — mas esperemos que a mulher Ri­chard não alimente alguma suspeita a meu respeito. Se, em vez de mo ter trazido, tivesse a má ideia de o levar a Fouquier-Tinville, es­taríamos perdidos e connosco a Rainha.

—   Sim... mas não o fez! — cortou Batz, irritado. — Penso que isto é, talvez, a melhor das notícias. Diz-me, Michonis, sabes se Gil­bert tentou defender as algibeiras contra a curiosidade da porteira?

—   Sim, parece que ele se defendeu como um diabo!

—   Excelente! Bem, meus amigos, se o bilhete estava na algibei­ra dele e se ele quis impedir a mulher de o tirar, isso quer dizer que a Rainha conseguiu ganhá-lo para a causa dela e deixar-nos-á agir.

Michonis esvaziou, de um trago, o copo de vinho que Roussel lhe tinha servido e estendeu-o para que lho enchessem de novo:

—   Tens razão. Também achava que não teríamos grandes pro­blemas com Gilbert. Sei que ele tem pena da Rainha — até já lhe le­vou flores — e estou quase certo de que deixou entrar um padre clandestinamente para ir ter com ela. Quanto ao sargento de cavalaria Dufresne, é um bom homem que não tem nada de sanguinário.

—   Resumindo! — continuou Batz. — Amanhã dou-te o ouro que anunciaste a Sua Majestade. Em seguida, passaremos à acção, porque é preciso apressarmo-nos. O mais tardar no dia 2 de Se­tembro, raptaremos a Rainha. Tratarei de arranjar uma viatura que levarei para o pátio da Conciergerie com dois gendarmes, que se­rão amigos nossos. Enquanto isso, ireis buscar a prisioneira, pre­tensamente para a levar ao Templo, por ordem da Comissão de Salvação Pública. Caso seja necessário, podeis servir-vos, como pretexto, do bilhete picado: a Comissão, inquieta, pensaria que a Rainha não está a ser bem guardada na Conciergerie. Os Richard não verão nisso senão uma coisa muito natural...

—   E depois, levamo-la para onde?

—   Para o castelo de Livry, para casa de Mme. de Jarjayes, ou antes, para casa do pai dela. A mulher do cavaleiro retirou-se para lá depois da partida do marido. Ela vive lá com o pai, Quelpée de la Borde, o genro, o sr. de Berny e a filha, que está à espera de bebé'. De lá, a Rainha será conduzida, com dinheiro e papéis fal­sos, à Alemanha, onde chegará, espero, sã e salva!

—   Livry? — murmurou Rougeville. — Uma das mudas da via­gem para Varennes...

—   Sim, mas agora é o caminho mais rápido para a pôr ao abri­go e ninguém suspeitará que ela tenha ousado retomar essa estra­da fatal.

No dia seguinte, sexta-feira de 30 de Agosto, Michonis e Rou­geville repetiram a sua visita à Conciergerie. Mas desta vez o cavaleiro dissimulava nas largas algibeiras do seu vestuário cinzento uma quantia importante em luízes de ouro e cédulas.

Encontraram a Rainha na companhia da mulher Harel, que lhe prestava alguns cuidados. A saúde da prisioneira, minada por cons­tantes hemorragias, maus tratos, falta de ar e reclusão, deteriorava--se de maneira inquietante. Quando os dois homens entraram, es­tava estendida no catre com uma coberta sobre as pernas. Ao ver Rougeville, as suas mãos começaram a tremer, mas escondeu-as sob a coberta com um gesto natural, como que para as aquecer.

Como a mulher Harel não parecia disposta a deixar o local, Mi­chonis começou a falar com ela, a fim de permitir que Rougeville pudesse entregar o dinheiro. O assunto da conversação era fácil de encontrar: a saúde da prisioneira, já que a tinham encontrado dei­tada. A fim de poder falar mais discretamente, Michonis levou a mulher para o pé da janela, o largo dorso tapando a vista.

—   Dir-se-ia que a viúva Cabeçuda declina? Não achas, cidadã?

— Bah — disse esta com um sorriso mau — ela aguenta até ao dia do cadafalso. Aquilo é má semente: tem maleitas, mas é sólida!

— Esperemos — disse Michonis com uma grande risada. — Seria bem triste se ela se passasse aqui.

—   Velaremos para que ela se aguente até lá — troçou ela, fa­zendo eco da risada dele.

Enquanto isso, Rougeville inclinava-se sobre o leito como se quisesse examinar a figura da Rainha e, cochichando, introduziu, suavemente, o dinheiro sob a coberta:

—   Será na segunda-feira à noite. Tereis força?

—   Terei...

—   E os vossos guardas?

—   Estão do nosso lado. E Rosalie também...

—   E... esta mulher? — perguntou ele, designando com o quei­xo a mulher Harel.

—   Não. Ela não gosta de mim e não cessa de me fazer per­guntas...

—   Então, não falaremos mais dela.

O sábado e o domingo pareceram intermináveis a Rougeville, que se juntara à sua amiga Sophie Dutilleul, mas para Maria Anto­nieta o mais duro foi o dia todo de 2 de Setembro e foi na oração que encontrou o melhor refúgio.

As paredes da velha prisão, se bem que espessas, não eram de­fesa suficiente contra o calor que, durante todo o dia, fora pesado. O ar estagnava no pátio das Mulheres, difícil de respirar. Quando caiu a noite, o sino do claustro soou para ordenar às detidas as ce­las respectivas. De facto, apenas a Rainha estava permanentemen­te fechada e quando passavam diante da sua janela, as outras pri­sioneiras elevavam sempre a voz, a fim de a informar um pouco sobre o que se passava na prisão ou na cidade.

Quando o grande relógio do cais soou as 11 horas, os sons da Conciergerie apagaram-se. Ouviu-se o rolar de uma viatura atrelada a vários cavalos e depois o bater de portas. Ouviram-se passos no corredor e apareceu uma luz no postigo, ao mesmo tempo que o coração de Maria Antonieta falhava um batimento. A Rainha, que per­manecera na sua cadeira, virou-se para a porta franqueada por quatro homens: Michonis, Rougeville, Gilbert e Dufresne.

—   Ainda não estás deitada, cidadã? — perguntou o administra-dor. — Tanto melhor, porque viemos buscar-te.

—   Para onde me levais?

—   Para o Templo. A Comuna decidiu que fosses levada para lá no interesse da tua segurança. Devo escoltar-te...

— Vou, portanto, voltar a ver os meus filhos?

— Não tenho ordens nesse sentido — disse Michonis, de rosto fechado. — Prepara-te!

— Estou pronta, Rosalie enviar-me-á o resto das minhas coisas.

A jovem que entrara atrás dos homens deitou-lhe sobre os om­bros uma capa de capuz e depois, de lágrimas nos olhos, beijou-lhe a mão. Emocionada, Maria Antonieta abraçou-a. Entre Gilbert e Dufresne, abandonou a cela, precedida por Michonis e seguida por Rougeville, que se sentia num suplício. Chegaram ao vestíbu­lo do porteiro, onde Richard esperava de lanterna na mão. Ali, pa­raram. Richard foi buscar o registo do transporte da prisioneira e Michonis falou por um instante com ele, sem grandes dificuldades, aliás, porque o porteiro não via nada de extraordinário naquela transferência nocturna. Por fim, os dois guardas iam abrir o posti­go quando uma voz brincalhona soou:

—   Bem entendido, cidadão Michonis, tens uma ordem expres­sa da Comissão de Salvação Pública que te ordena que leves a viú­va Cabeçuda para o Templo?

Era a mulher Harel. Com um sorriso que mais parecia uma careta, acaba de sair de trás de um grande pilar. Rougeville sentiu uma mão gelada apertar-lhe o coração, mas Michonis, face ao pe­rigo, quis ser autoritário:

—   Naturalmente que tenho.

—   Então, mostra-a!

— Não a tenho aqui. Deixei-a em minha casa e não temos tem­po de a ir buscar. Vamos, homens!

Mas o ódio tornava-a clarividente e a mulher Harel não se dei­xou intimidar.

—   Seria melhor para ti, assim como para os outros, que desses um salto até tua casa. — Em seguida, virando-se para o porteiro e para os guardas e mudando de tom: — Sabeis o que significaria para todos nós se o cidadão Michonis não fosse o que parece e se a viúva Cabeçuda não fosse para o Templo? Tendes vontade de co­nhecer a guilhotina?

—   É ridículo — grunhiu Michonis — Toda a gente aqui me co­nhece e conhece o meu civismo. Tu também, cidadã e devias sa­ber que sou homem para te fazer pagar... muito caro um insulto como esse.

—   Quando voltares com o teu papel, pedir-te-ei todas as des­culpas que quiseres. Aliás, a propósito de papel, que é daquele que a cidadã Richard encontrou nas algibeiras do gendarme Gil­bert? És tu que o tens?

—   Bem entendido, visto que mo entregaram...

Sempre a falar, Michonis olhou para Rougeville, viu-o lívido, quase a desfalecer e desviou os olhos, para constatar que os ou­tros não estavam melhor. Compreendeu que tudo estava perdido. Mesmo um golpe de força era impossível: ele e Rougeville estavam sem armas e os dois outros, a despeito do ouro que lhes tinham dado, tinham demasiado medo para mudar de campo. Era verda­de que Batz estava no exterior, na boleia da viatura com os dois falsos gendarmes, mas a espessura das paredes mantinham-nos longe do alcance da voz e podiam contar com a mulher Harel para chamar ó-da-guarda e amotinar o bairro todo. No entanto, estava disposto a lançar-se na aventura. Foi a Rainha que o impediu.

—   Não seria melhor — disse ela com doçura — irdes buscar esse maldito papel? Isso retardar-nos-á, talvez, um pouco, mas é assim tão importante? Quanto a mim, tenho o tempo todo e preferia esperar na minha cela.

E, virando a cabeça para não ver a expressão torturada de Rou­geville, retomou o caminho da prisão, seguida pelos dois gendar­mes, que tremiam como folhas ao vento. Michonis encolheu os ombros:

—   Ela tem razão. Vamos lá!

No exterior juntaram-se a Batz, disfarçado de Guarda Nacional. Um simples olhar fê-lo adivinhar que, uma vez mais, o golpe falhara. Enquanto Rougeville se enfiava na viatura, sacudido pelas lágrimas, Michonis saltou para a boleia para contar o que se pas­sara.

—   Que estupidez! — rugiu Batz. — Tu tinhas uma ordem da Comuna! Aquela que te dei.

—   Sim e teria sido suficiente sem aquela mulher horrível.

—   De facto, que fazia ela ali em plena noite? Não vive na Con­ciergerie, que eu saiba?

—   Isso é um mistério!

—   Que eu esclarecerei. Enquanto isso, vais voltar para tua casa, mas como é preciso, a qualquer preço, que mantenhas as tuas fun­ções, vais gritar bem alto que foste enganado pelo cidadão Gous­se — que eu vou fazer desaparecer a partir desta noite — e que estás inocente. Levarás, mesmo, o famoso papel picotado à mesa do Tribunal Revolucionário depois de o tornares ilegível com ou­tros furos. Quanto à ordem que ficou, pretensamente, em tua casa, ter-te-á sido roubada e dir-te-ás vítima de uma infame maquinação. E agora, separemo-nos! Tu voltas para tua casa.

Parara a viatura no lado de lá da pont-au-Change, saltara da bo­leia, ordenara a Roussel, um dos falsos gendarmes, que conduzisse a viatura e Rougeville a casa dele e confiara o outro cavalo a La Guiche — o segundo gendarme.

—   E tu — perguntou este — que vais fazer?

—   Eu? Volto para além — disse ele, apontando para as torres pontiagudas que se recortavam no céu nocturno. Há uma coisa que quero saber... Não te inquietes!

—   Não queres que vá contigo?

—   E com toda esta cavalaria? Obrigado, La Guiche! E até bre­ve. Toma cuidado contigo!

Lançou-se na direcção da Conciergerie empurrado por uma pressa, por um impulso que não conseguia explicar. Aquilo, por vezes, acontecia-lhe e sabia que, se não obedecesse àquela ordem misteriosa que se poderia chamar pressentimento, arrepender-se-ia. De facto, estava persuadido de que, depois da sua reles tarefa cumprida, a mulher Harel não ficaria muito mais tempo na prisão e ele queria segui-la até onde morava, na esperança que se situasse num local suficientemente obscuro e retirado para poder apagar aquela miserável da superfície da terra. Que ao menos a Rainha nunca mais voltasse a ver aquele rosto odiento!

Estava decidido a esperar o tempo que fosse preciso, nem que fosse até de manhã, ou mais, com a paciência do caçador à es­preita. Não foi assim tão longo. Não se tinha ainda escoado meia hora quando uma mulher de saiote raiado e corpete escuro, sob um lenço sarapintado, saía da Conciergerie, saudada por uma das sentinelas com um:

— `Inda `tás aqui, cidadã Harel? Gostas tanto disto que traba­lhas metade da noite?

— Tinha coisas a fazer. Boa noite, cidadão Gras!

Batz pensava que ela ia atravessar a ponte, mas, pelo contrá­rio, voltou-lhe as costas, passou diante da velha igreja de São Bar­tolomeu, transformada em teatro de la Cité e atravessou a praça para se enfiar pelo dédalo de ruas mais ou menos sórdidas que separavam o Palácio da Justiça e Notre-Dame, transformada, esta, num templo da Razão com, em vez de um tabernáculo, uma es­pécie de montanha, diante da qual oficiava Mlle. Aubry, actriz pro­movida ao cargo de deusa. Como o local era mal afamado, mesmo perigoso, Batz ficou surpreendido por ver a mulher de um polícia dirigir-se para ele, ou até viver nele. Mas a mulher não ia para casa. Batz compreendeu-o quando a viu parar diante de uma taberna onde um pouco de luz se filtrava através dos vidros sujos protegi-dos por uma grade. Estava-se na Rua de la Lanterne e, sobre a porta baixa, pendiam três cachos de uvas secas. Rapidamente, o inte­resse de Batz aumentou: era ali, sem dúvida, a Trois-Pampres, da qual Lenoir o aconselhara a nunca se aproximar, porque certos agentes de Antraigues — portanto do conde de Provença — ali recrutavam os seus homens de mão... Iria ter a sorte de matar dois coelhos com uma cajadada?

Sem hesitar, a mulher Harel empurrou a porta, mas ficou na so­leira, iluminada pelos candeeiros do interior. Batz viu-a fazer um sinal de chamamento e, com efeito, alguns instantes mais tarde, saiu um homem. Não trazia a sempre eterna vestimenta igualitária, mas antes um traje negro, que nenhuma ponta de roupa branca aclarava. Único sinal colorido: a enorme roseta republicana do seu chapéu redondo. Tomou o braço da mulher e afastou-a uns pou­cos metros da tasca. A sorte quis que fosse para o lado em que es­tava Batz, escondido na ombreira de uma porta mais abaixo.

—   Então? — perguntou o homem — tens novidades?

—   E das boas! Aconteceu há bocado. Michonis e Gousse, o ad­junto dele, tentaram raptar Antonieta, sob o pretexto de a levar para o Templo, mas eu estava lá. Tinha as minhas desconfianças, depois do papel encontrado nas algibeiras de Gilbert, de que al­guma coisa se preparava e que não ia demorar muito. E dizer que não me querias acreditar quando te preveni!

—   Oh! Acontece que passar as noites nesta baiúca não é muito agradável, apesar de me sentir um pouco em minha casa. Mas reconheço que tinhas razão. Pega lá o que ganhaste...

Uma bolsa, bastante redonda, que não continha, certamente, cé­dulas, passou da mão do homem para as da mulher, que a sopesou.

—   O que é isto?

—   Amarelinhas'. Aqueles que nos empregam são generosos, como vês, mas continua a abrir os olhos. Pode ser que haja mais tentativas e ela não pode escapar! Senão, os austríacos serão os Regentes, com tudo o que se seguirá e nós não queremos isso.

—   Não te preocupes! O dia em que ela for decapitada será o mais belo da minha vida! Como sabes, odeio-a!

—   O que é que ela te fez?

—   Tinha tudo e eu nada! Eram horas de mudar...

—   Bom, previne-me se houver mais qualquer coisa. Eu vou acabar o copo que estava a beber e vou para casa...

O homem voltou para a taberna. A mulher Harel seguiu-o com os olhos e depois, com uma pequena risada, fez saltar a bolsa uma ou duas vezes na mão, antes de a meter no corpete sob o abrigo do len­ço. Em seguida, quis seguir na direcção do Palais, mas Batz atacou. Os seus dedos de aço fecharam-se no pescoço da mulher, que não o vira chegar. Não teve tempo de lançar um grito e caiu na poeira, morta.

Por um instante ele olhou-a, invadido por uma alegria sombria e depois, puxando-a pelos pés, aproximou-a da Trois-Pampres, para ficar seguro de que o homem a veria, ao sair. O que não tardaria muito, porque tinha dito que iria para casa mal terminasse o copo que estava a beber. Batz escondeu-se de novo, mas mais perto e esperou. Não muito, três ou quatro minutos, se tanto, quando o homem reapareceu.

Teve um sobressalto ao ver o cadáver, quase deitou a correr, mas mudou de ideias, olhou em volta e, seguindo à letra o racio­cínio de Batz, ajoelhou-se para vasculhar a cúmplice e reaver a bol­sa que lhe dera. Então, Batz atirou-se a ele gritando «Ó-da-guarda!», sabendo muito bem que tinha poucas hipóteses de a ver aparecer àquela hora da noite, mas a sua voz sonora ecoou no silêncio da noite, afugentando os gatos e atraindo, ao exterior, os poucos clien­tes da taberna.

Apanhado desprevenido, o homem caiu sob o peso do barão no momento preciso em que retirava a bolsa com corpete da mu­lher. Tentou levantar-se, mas Batz estendeu-o por terra com um formidável murro.

—   O que é que se passa? — perguntou o dono da Trois-Pam­pres, que acorrera com uma lanterna. — Quem és tu?

—   Cabo Forget, da secção Le Pelletier. Acabo de ver este ban­dido a estrangular esta mulher para a roubar. Olha!

O agressor, caído perto da sua pretensa vítima, tentava recupe­rar os sentidos. Largara a bolsa e algumas moedas de ouro brilha­ram na poeira, acendendo chamas curiosas nos olhos do tabernei­ro e daqueles que o haviam seguido.

— E que queres tu que nós façamos?

— Que a ponhas na tua cave até que a guarda a venha buscar. É uma das nossas, uma mulher do povo e deve ser vingada...

—   A Guarda Nacional? — resmungou o outro. — Não gostamos muito dela. É quase tão curiosa como a polícia... Além disso, ele é um cliente.

—   Não és tu que denuncias, sou eu e vi tudo. Além disso, um serviço vale outro: deixa apenas uma moeda na bolsa. As outras, partilha-as com esses bons homens...

Os «bons homens» tinham todos feições de fazer tremer, mas aquela linguagem agradava-lhes. Por outro lado, fazer um favor ao cabo Forget dava-lhes quase direito a um certificado de civismo, algo muito precioso para vadios, naqueles tempos em que a virtu­de estava na ordem do dia.

— Vai buscar os teus companheiros, cidadão, nós tratamos dele — concluiu o taberneiro, dando um murro no «cliente», que tenta­va fugir. Em seguida, iluminou, com a lanterna, o rosto da morta:

—   Não conheço! Sabes quem é?

—   Talvez — disse Batz, inclinando-se sobre ela. — Sim, claro que a conheço. É a mulher do Harel, o polícia. Vi-a, não há muito tempo, na Conciergerie, onde vigiava a Austríaca. O Harel não vai ficar nada contente e Fouquier-Tinville tão-pouco.

Não havia necessidade de acrescentar mais nada. O discurso estava feito... e as moedas de ouro já tinham desaparecido quando o homem foi levado para o interior e fechado na cave.

—   Ficamos à tua espera, cidadão cabo — concluiu o tabernei­ro. — Podes confiar em nós. Ele daqui, não escapa!

Uma hora mais tarde, o cúmplice da mulher Harel era preso. Batz não tivera qualquer dificuldade em reconhecer nele Louis--Guillaume Armand, o espião que quase conseguira prendê-lo em casa de Roussel, após o seu regresso de Londres. Agora sabia para quem ele, na realidade, trabalhava e, finalmente, lamentou não o ter reconhecido mais cedo. Teria sido tão fácil matá-lo também! Mas o cabo Forget não teria adquirido um estatuto privilegiado na taberna onde Antraigues e os outros agentes de Monsieur recruta­vam pessoal...

 

            O PARAÍSO PERDIDO

Ao longo de toda a sua vida, Batz iria lamentar não ter morto Armand. Este não ficou muito tempo na prisão. Conhecia-as todas, em Paris, ou quase, por ali ter estado ao pé deste ou daquele pri­sioneiro, no papel infame de espião. Eram muito apreciados, nas altas esferas, os serviços da horrível personagem, para não lhe res­tituírem, rapidamente, a liberdade, da qual ele fazia tão bom uso.

Michonis, por seu lado, gritou alto e bom som por escândalo e fez o papel de imbecil com uma naturalidade admirável, dizen­do-se surpreendido na sua boa-fé e rejeitando qualquer responsa­bilidade na tentativa do «cidadão Gousse», não imaginando, por um só instante, que ele pudesse sentir a menor simpatia pela viúva Ca­beçuda. Sabia que podia acusar Rougeville sem medo de lhe pro­vocar o menor problema: antes da alvorada, Batz pusera o amigo a salvo nas pedreiras de gesso de Montmartre. Michonis também não ficou preso na Força.

Foi a Rainha que mais sofreu com o fracasso. Os dois gendar­mes, Gilbert e Dufresnes, foram destituídos, o casal Richard despe­dido. Apenas a jovem Rosalie Lamorlière foi autorizada a manter o seu posto, mas, a partir do dia seguinte, a cela foi vasculhada de cima a baixo. Através de um refinamento mesquinho, tiraram à pri­sioneira os dois anéis que lhe restavam e a roupa branca: dora­vante, as camisas ser-lhe-iam dadas uma a uma. Em seguida, mu­daram-na de prisão, já que a cela inicial estava demasiado próxima da porta. Agora, seria preciso passar cinco portões de ferro para chegar até ela e os guardas instalaram-se no próprio quarto dela, não hesitando em obrigar a Rainha a levantar-se de noite para lhe vasculharem o leito. O complô do cravo apenas tornara mais cruel o calvário que ela suportava.

Batz, cujo nome nem sequer fora pronunciado, teve disso ple­na consciência e sofreu como um danado. O assassínio da mulher Harel não o apaziguara. Não cessava de se censurar por não a ter eliminado mais cedo. Sem aquele miserável grão de areia repleto de ódio, talvez a Rainha já estivesse em segurança do outro lado da fronteira! Marie, a quem ele se foi juntar, como um condenado perseguido que se asila numa igreja, era a testemunha aflita das suas noites sem sono, passadas em idas e voltas no seu gabinete de trabalho, ou a errar pelo jardim, como se esperasse da terra uma resposta às perguntas angustiantes que punha a si próprio.

Nas duas primeiras noites, Marie não tentou intrometer-se. Já passara por horas semelhantes após a morte do Rei e amava-o de­masiado para não sentir o seu sofrimento, como se estivesse a ser esfolado vivo, ao ponto de esquecer a sua própria dor. Na terceira noite, no entanto, ouviu, por volta da uma hora, o ligeiro guinchar da porta-janela e, saindo de um salto do leito, juntou-se a ele no jar­dim. Estava sentado num banco de pedra, disposto de maneira a po­der contemplar-se os botões de rosa, a tal ponto prisioneiro dos seus sombrios pensamentos que não a ouviu chegar e nem sequer estre­meceu quando ela lhe apoiou a mão no ombro. Com um gesto na­tural, ele pousou, sem se virar, a sua mão sobre os dedos suaves:

—   Não consegues dormir?

— Como poderia eu, quando vejo o que sofres? Torturas-te em censuras que não mereces... que ninguém, aliás, merece. Nem Mi­chonis, Nem Rougeville, que deve estar a sofrer um martírio, por-que, ainda por cima, está apaixonado pela Rainha.

— Meu amor, isso não muda nada. De facto, nós não tomámos as devidas precauções.

—   Poderíeis ter tomado 100 vezes mais, 1000 vezes mais, que não teriam mudado nada: não se pode ir contra o Destino.

—   E o da Rainha estava selado, é isso que queres dizer?

Sem responder, ela sentou-se ao pé do amante, que lhe passou um braço pelos ombros.

—   Durante estes dias em que estiveste ausente, La Harpe veio ver-me. Aliás, tinha-lho pedido.

— Tinhas vontade de ouvir os versos dele? No entanto, não são grande coisa...

—   Alguma vez ele te contou o jantar em casa do príncipe de Beauvau, do qual ele foi um dos convidados, em 1788?

—   Aquele em que Cazotte fez estranhas previsões? Uma vez, sim, há muito tempo. Sei que ele previu uma revolução sanguiná­ria. Mas, sabes, esse bom homem aborrece-me um pouco e nunca mais voltámos a falar.

—   Eu interroguei-o a seguir ao almoço de Chabot e, para que me dissesse algo mais, pedi-lhe que voltasse. Ele previu a morte do Rei... e também a da Rainha! Cessa de te atormentares, Jean. Faças o que fizeres, tentes o que tentares, ela morrerá. Tenta não arras­tar muita gente nisso. Sabias que Sophie Dutilleul foi presa?

—   A amiga de Rougeville? Pobre inocente! O crime dela é amá--lo... pelo menos, tanto quanto ele ama a Rainha...

—   Ora, em vez de repisares os teus agravos contra ti mesmo, por que não tentar salvá-la? Pelo menos, ela! — murmurou Marie sem puder evitar o soluço que lhe subiu pela garganta.

Emocionado, ele tomou-a nos braços, apertando-a contra si para lhe cobrir o rosto de beijos.

—   Marie, Marie! Perdoa-me! Tu é que tens razão, sempre, e eu tenho melhor que fazer do que chorar. Vou tentar libertá-la. E de-pois, ainda há uma criança... o meu pequeno Rei! É a ele que me devo dedicar e à destruição dos monstros pomposos que fazem pe­sar, sobre nós, a sua sanguinária ditadura!

A jovem mal teve tempo de saborear aquele instante de doçu­ra. Ele já se levantava, mas sem a deixar.

—   Vem — disse ele ternamente — vem dar-me forças! Vou pre­cisar tanto delas! Amanhã volto para o combate!

—   Que vais fazer?

—   Umas visitas! E depois, ver por onde anda Chabot!

—   Então, é a minha vez de te pedir que não me fales desse homenzinho! A noite está tão bela!

—   Muito menos bela do que tu!

Mais tarde, Marie pediu:

—   Já que não queres saber das previsões de Cazotte, por que não vais ver Bonaventure Guyon'? As visões dele eram-te favorá­veis...

—   Fui lá, mas não o encontrei. Ele é padre, sabes, e o sótão não é um esconderijo seguro. Se alguma vez o foi. Alguém me dis­se que desapareceu de repente, como se se tivesse volatilizado. Mas fizeste bem em mo lembrares. Vou ver Le Noir, talvez ele sai­ba alguma coisa.

Pela primeira vez, o antigo tenente-general de polícia ignorava para onde fora o estranho homenzinho e não procurara saber: se Bonaventure Guyon julgara por bem sair de Paris, seria um mau serviço correr atrás dele.

—   Talvez o devêsseis imitar? — suspirou Le Noir. — Deveríeis levar Marie e partir para a vossa região de Armagnac. O vosso pai ainda é vivo?

— Se bem que esteja sem notícias dele desde há algum tempo, espero que sim...

—   Não tendes vontade de o voltar a ver?

—   Seria uma grande alegria, mas sabeis que não sou dono do meu tempo, que já não tenho o direito de pensar em mim, quan­to mais na felicidade. E Marie sabe isso muito bem...

—   Tudo em prol da vossa honra. Entretanto, deveis saber que as ruas de Paris podem tornar-se demasiado quentes para vós. Mesmo se o vosso nome não foi pronunciado, a propósito do complô do cravo, permanece alojado nalgumas memórias perigosas. Robespierre terá começado a pensar que, de todos os seus inimigos, vós sois o pior.

—   Ele odeia-me, mas no dia em que ele cair, serei o homem mais feliz deste mundo.

—   Tomai atenção para não cairdes antes dele! Espero que não tenteis mais nada para salvar a Rainha. Ela está perdida, sem recurso.

—   Nem sequer foi julgada.

—   Em breve o será e, podeis crer, será rápido: a sentença já foi pronunciada e a execução acontecerá nas horas que se aproxi­mam. Não podeis fazer mais nada!...

O sorriso trocista de Batz não alegrou o seu velho amigo.

—   Temeis que recomece o que fiz com o Rei? Raptá-la, com ou sem viatura, a caminho do cadafalso?

—   A viatura? Credes, seriamente, que ela vai ter direito à mes­ma honra do esposo? Ele era o Rei, apesar de tudo, uma espécie de Pai. Ela não passa da Austríaca execrável: não lhe perdoarão nada. Irá numa carroça, exposta aos olhos de todos, para que o calvário seja ainda mais cruel. O pelourinho, antes do machado!

O sorriso desaparecera, substituído, nos olhos de Batz, pelo fogo sombrio que Marie tanto temia.

— Então, resta-me servi-la uma última vez: acertar-lhe com uma bala na cabeça ou no coração, para lhe evitar essa afronta!

— Sei muito bem como a vossa mão é segura e o vosso golpe de vista, para tentardes essa loucura... da qual não sairíeis vivo. E vós deveis viver, Jean de Batz! Pelo vosso Rei... e para acabardes o que começastes. Ou então, voltemos ao que vos aconselhei: parti com Marie! Precisais de lógica na vossa vida e vós nunca fugistes a ela. Suplico-vos, tende cuidado: o jogo que jogais com Chabot é perigo­so. O homem é um cobarde, podre até à medula: denunciará tudo e seja quem for, se pensar que a cabeça lhe pode sair dos ombros.

— Pensais que não o sei? Mas o jogo, como dizeis, compensa...

 

Entretanto, o dito Chabot vivia uma espécie de sonho acor­dado. Os seus bons ofícios na Assembleia rendiam-lhe dinheiro, amava, era amado por uma rapariga encantadora e, quando a des­posasse, o que não tardaria, receberia um dote de 200000 libras que, juntas ao que já possuía, fariam dele um homem rico. Melhor ainda, os Frey propunham-lhe que fosse viver para a residência de­les, na Rua d'Anjou, onde a cornucópia e as suas delícias pareciam inesgotáveis. Propuseram-lhe o apartamento situado no sótão, ao qual se acedia por meio de uma bela e larga escadaria de pedra. Todo mobilado, claro, e de que maneira!

Passada a antecâmara, que Léopoldine lhe dera para ali colocar algumas recordações: um busto de Brutus e gravuras representando o túmulo de Marat e o juramento do Jogo da Pela, mais um cabide para nele colocar o seu gorro vermelho, entrava-se num grande sa­lão, com papel de parede verde e branco, espessos cortinados de tafetá aos quadrados, da mesma cor e toda uma espécie de objec­tos que mais lembravam o Trianon, em vez do clube dos Jacobinos. Assim como dois candelabros de prata e um relógio de mármore azul e branco, suportando um casal de namorados, em porcelana de Sèvres. O quarto era ainda mais sedutor: tapeçarias de damasco amarelo e branco forradas de tafetá branco, das quais algumas en­volviam uma grande cama de madeira dourada, de quatro colunas, sustentando um dossel emplumado. Quanto à mobília, compunha-se de dois canapés, quatro poltronas, dois cadeirões, um lavatório de mogno, um grande espelho para reflectir a beleza da querida «Poldine» e, enfim, um armário, suportando — sabe Deus porquê — um busto de Cícero, destinado, sem dúvida, a lisonjear as convic­ções republicanas do dono da casa... A delicadeza da escolha exta­siou-o: colocar os seus futuros folguedos amorosos sob a égide do ferrabrás de Catilina parecia-lhe o cúmulo do requinte. Era, para o ex-capuchinho, infinitamente mais exaltante do que os crucifixos colocados negligentemente sobre os leitos. E tinha pressa de se ins­talar naquele delicioso ninho de amor onde a sua noiva, por fim, seria sua, quer dizer, depois do dia do casamento. Até lá, o austero Junius, que se perfumava com virtude, como outros com íris de Flo­rença, velaria de perto para que o seu futuro irmão refreasse o seu temperamento excessivo e respeitasse as conveniências.

Durante os meses de Agosto e Setembro, Chabot levou uma bi­zarra vida dupla, acentuada pelas suas mudanças de aparência. Se, por um lado, não abordava a doce Léopoldine senão lavado, bar­beado e penteado como um peralta — o gorro, ao qual não re­nunciaria por nada deste mundo, andava, agora, ornamentado com borlas douradas — vestia as calças rasgadas, de pernas nuas, ca­misa desabotoada, a velha carmanhola e um gorro imundo para ir até aos Jacobinos ou à Convenção, propor moções furiosas, de­nunciando com toda a força este ou aquele, segundo os vagos ru­mores que pudera recolher, na esperança, sem dúvida, de refazer uma virgindade revolucionária que temia, acima de tudo, se viesse a suspeitar não passar já de uma recordação. Exagerava, até, um pouco, dando que pensar a alguns, mesmo sem se dar conta. Para sua felicidade, via agora a França como um imenso tesouro, no qual iria mergulhar graças a esse homem mágico, esse homem dourado que se chamava Jean de Batz, perante o qual as barreiras caíam. Encorajados pelos homens do barão, alguns convencionais começavam a pensar nos seus negócios, ao mesmo tempo que nos da Nação. Chabot não era excepção.

Entre eles estava Stanislas Maillard, o assassino de Setembro, o antigo meirinho, que instituíra os tribunais de excepção, encarregados de «julgar» e enviar, depois, para o massacre, os infelizes apinhados nas prisões após a queda das Tulherias. Terminada a sua sinistra tarefa, Maillard e o seu bando de «arruaceiros tinham-se visto no de­semprego. Eram vistos na primeira fila cada vez que uma desordem atirava o povo contra as portas da Convenção, mas sem nunca en­contrarem um trabalho tão bem remunerado como o das prisões, onde os despojos das vítimas, espancadas e degoladas, lhes tinham dado bom lucro. Maillard e alguns dos seus homens acabaram por entrar para a polícia, onde se vivia miseravelmente, a despeito da «protecção» que Maillard oferecera à cervejaria da Source, em Sures­nes, onde ia divertir-se de tempos a tempos. Mas era insuficiente.

A súbita prosperidade de Chabot, que era seu amigo, deu-lhe que pensar. Fez umas perguntas e obteve outras respostas daque­la espécie de iluminado permanente. Este deu-lhe a entender que a razão da sua felicidade lhe vinha dos futuros cunhados, mas tam­bém do barão de Batz, que era, sem dúvida, o homem mais rico de França. Falou, com alma, da agradável casa de Marie Grand­maison, em Charonne, onde a sua Poldine lhe aparecera pela pri­meira vez e onde encontrara Batz.

Para Maillard, foi uma revelação. Minado, aos 30 anos, por uma tuberculose que o esgotava, estava farto da miséria de escarrar os pulmões nas ruas de Paris. Sonhava com uma casa acolhedora, com um jardim onde pudesse aquecer-se ao sol, repousando, por fim, dos seus duros trabalhos. Além disso, nunca as suas convic­ções republicanas tinham sido tão sólidas. O seu deus era o lucro e teria, de bom grado, degolado a Convenção inteira e as duas Co-missões de segurança geral e de Salvação Pública, por um cofre cheio daquelas belas moedas de ouro com o perfil do Rei mártir, que eram cada vez mais raras. Pediu para conhecer Batz, com Cha­bot como intermediário.

Encontraram-se no Corazza, onde o barão ia ainda de tempos a tempos beber um café ou comer um gelado com Pitou, Delau­nay ou Julien de Toulouse. Graças a Cortey, que também o fre­quentava, e a despeito da penúria engendrada pela guerra, o café continuava ali a ser bom, a baunilha perfumada e, graças a Lullier, a carta de civismo do barão, em ordem.

Batz hesitara um pouco antes de aceitar o encontro. Aquele Maillard, que vira agir, repugnava-lhe, mas, quando se monta uma conspiração de envergadura, não se pode ser difícil na escolha dos homens encarregados da inevitável tarefa mesquinha. Já recom­pensara alguns dos seus confrades policiais ou denunciantes e aquele podia vir a ser útil...

Ao chegar ao célebre estabelecimento do Palais-Royal, encon­trou ali Pitou que, excepcionalmente à civil, estava ocupado a re­digir, no canto de uma mesa de mármore, um artigo para um dos jornais clandestinos, nos quais colaborava mais activamente desde que Batz preferira mantê-lo afastado do seu grande projecto». Sim­plesmente porque gostava muito dele e temia que, um dia, perdesse a cabeça. Pitou era o homem dos golpes de mão tipo rapto e encontraria para ele serviço quando o seu amigo decidisse raptar do Templo o pequeno Rei. Os assuntos de finanças não eram o seu forte e ele tinha-o compreendido bem. Só que, por isso mesmo, Pi­tou aborrecia-se. Ia, de tempos a tempos, à Rua du Mont-Blanc e esses momentos eram, para ele, puras delícias porque, visivelmen­te, Laura ficava sempre feliz por vê-lo, mas o jornalista não ousava multiplicar as visitas. Não por causa de Jaouen: Laura fizera com­preender a este, com firmeza, que recebia quem lhe agradava, mas, muitas vezes, não estava só: Julie Talma e o marido tinham adqui­rido para si próprios o estatuto de íntimos e Laura, aliás, aprecia­va-os. E havia também Elleviou, que fez dela confidente dos seus amores secretos com a encantadora Émilie de Sartine, assim como das suas altercações com a bailarina Clothilde Mafleuroy, sua aman­te oficial. Enfim e sobretudo, havia o coronel Swan, que aparecia quase todos os dias. Por vezes, levava consigo amigos americanos, como Joel Barlow e a sua mulher, alojados na Rua du Bac, no pala­cete da cidadã Saint-Hilaire — Barlow fornecia potássio à Conven­ção, o que lhe valera a dupla nacionalidade — ou ainda Edward Church, a sua mulher Hannah e as três filhas, que habitavam, tam­bém eles, no hotel da cidadã Saint-Hilaire. E por vezes Gouverneur Morris, o embaixador, quando sentia coragem para deixar a sua re­forma preguiçosa de Seine-Port, perto de Melun. Pitou compreen­dia que toda aquela gente era, para a ex-marquesa de Pontallec, a melhor garantia de civismo e contribuía para a sua segurança, mas não esquecia o tempo em que, com Marie Grandmaison, era a úni­ca companhia de miss Laura Adams. Então, sem nunca lhos ofere­cer, escrevia poemas, onde exprimia todo o seu amor.

Desta vez, Batz fez apenas uma pequena paragem na mesa do seu amigo.

—   Vou — cochichou ele — encontrar-me com dois persona­gens que não lhe agradam muito.

—   E a vós, agradam?

—   Quando os vir, a resposta estará dada.

E foi-se instalar ao fundo da sala, num canto onde poucos con­sumidores o podiam ver. Chabot e Maillard chegaram juntos à hora combinada e os olhos de Pitou arredondaram-se quando os reco­nheceu. Ainda outra jogada para Chabot: Pitou sabia o papel que Batz lhe destinava na tragédia que estava a compor, mas Maillard, o assassino de Setembro, Maillard, o feroz assassino de tanta po­bre gente! Era inacreditável!

Batz pensava mais ou menos a mesma coisa ao responder à saudação daquele homem, vendo-o sentar-se em frente de si. Na verdade, tinha uma face assustadora, que a longa veste negra abotoada até ao pescoço e o chapéu redondo não melhoravam. A tez era macilenta, com rubores doentios nas maçãs-do-rosto, a voz bai­xa, rouca, mas os olhos, móveis, que já tinham dado a volta ao cé­lebre café, guardavam toda a sua acuidade. Fixaram com porme­nor e com uma espécie de avidez a elegante sobrecasaca de tela branca que Batz trazia nesse dia, as mãos finas e fortes, sempre ad­miravelmente tratadas, o rosto enérgico de traços denunciados, o fulgor das pupilas cor de avelã sob a inclinação das sobrancelhas direitas e a longa boca de sorriso desenvolto. Aquele homem res­pirava dinheiro e esse era o perfume que Maillard preferia entre todos. Entretanto, Chabot abriu o debate.

—   Cidadão Batz — disse ele — trago-te aqui um bom rapaz que prestou grandes serviços à República e que esta não recom­pensa segundo os seus méritos.

—   Conheço-os — disse Batz — e, justamente, espanta-me que a República se mostre assim tão-pouco avisada. Ora, cidadão Mail­lard, não te deram o posto de responsabilidade que tu merecias? Que fazes?

— Sou polícia e mais nada — grunhiu o outro. — Um beleguim que Garat nem sequer parece reconhecer quando me encontra...

— Isso é mesquinho! E em que te posso ser útil? Ser-me-ia muito difícil fazer-te subir, já que sou apenas um financeiro, não um alto funcionário...

—   Os altos funcionários só pensam em encher os bolsos e eu gostaria que alguém se ocupasse dos meus...

Um brutal acesso de tosse cortou-lhe a palavra e fê-lo dobrar--se em dois durante alguns instantes. Rapidamente, Batz encheu um copo de água e estendeu-lho. Quando recobrou um pouco de fô­lego, Maillard bebeu-o com a avidez de um doente cheio de febre.

—   Estás doente? — perguntou o barão.

— Como vês. A febre não me deixa e eu gostaria, pelo menos, de poder tratar-me, em vez de fazer rondas durante noites inteiras com os pés na lama...

—   Se não é uma infelicidade! — indignou-se Chabot. — Um homem que poderia prestar tão grandes serviços...

—   À Convenção, sem dúvida, mas e a mim?

—   Se puderes pagar — disse Maillard com súbita brutalidade, verás o que posso fazer. Não devo nada a ninguém e é a mim que devem! Aqueles miseráveis, gostaria de os poder massacrar a todos como...

Teve a presença de espírito de parar, mas Batz, impiedoso, con­tinuou:

— ... como os da Abadia?

—   Por que não? Posso sempre contar com os meus rapazes, os meus arruaceiros. É uma força a não desprezar, podes crer. E sem­pre é melhor tê-los connosco do que contra nós!

— Não duvido — disse Batz, que sentira a ameaça. — Pode ser que te peça ajuda um dia destes. Entretanto e para permitir que ve­jas um bom médico...

Três moedas de ouro passaram para a mão do polícia, sem que este compreendesse como elas lá foram parar. Acenderam um re­flexo no seu olhar, mas o homem não julgou útil agradecer e con­tentou-se em perguntar:

—   Onde posso encontrar-te doravante?

— Em lado nenhum e em todos os lados. Serei eu a chamar-te. Compreendendo que a entrevista terminara, Maillard levantou--se e saiu, seguido, quase imediatamente, por Chabot.

—   Fizeste bem, camarada! Verás que ficarás contente. Quanto a mim, tenho que ir aos meus negócios: é amanhã que me instalo em casa dos nossos amigos! Ah, já me esquecia: o meu casamento está marcado para o dia 14 de Outubro. Conto contigo...

E sem ouvir a resposta esquivou-se no passo alegre que era o seu desde que frequentava Léopoldine. Batz esperou um instante, pediu café e mandou que o servissem na mesa de Pitou, com quem se juntou:

—   Sonhei — disse este — ou pagastes àquele miserável? Não me digais que o recrutastes?

—   Não. Mesmo que me trouxesse a cabeça de Robespierre numa salva de prata, não o poderia fazer. Inspira-me demasiada repugnância... mas é um homem muito doente: fui apenas carido­so...

—   Escolheis mal a vossa caridade.

—   Não é preciso ver as coisas desse modo. Apenas o neutralizei. No estado de saúde em que se encontra, a única coisa que o inte­ressa é o dinheiro. Fazendo-o pensar que terá muito, incito-o a per­manecer tranquilo. Não se mata a galinha dos ovos de ouro e este polícia reles é, só por si, um verdadeiro ninho de víboras. Mas falemos de outra coisa. Por que é que não o vemos mais em Charonne? Marie inquieta-se e, neste momento, deixo-a muitas vezes só...

—   Apesar de Devaux e Biret, sem falar dos outros criados? Não, não vos zangueis, compreendi o que queríeis dizer, mas agora é a minha vez de vos criticar: dir-se-ia que não precisais de mim?

— Não quero estragá-lo em operações onde apenas faria núme­ro e que já o teriam comprometido. Digamos... que o guardo para o grande dia!

—   Não ides mais tentar salvar a Rainha?

—   Não — respondeu Batz, o rosto subitamente gelado. — Só Deus, creio, poderia salvá-la. Está demasiadamente bem guardada: não tanto pela força, talvez, mas pelo ódio e eu, tanto como você, devemos permanecer vivos.

—   A que chamais o grande dia?

—   Preciso mesmo de lho dizer? Continuo sempre o homem do Rei, Pitou e o meu Rei existe!

—   Não muito feliz! Fui há dois dias ao Templo para ver... um camarada que está lá muitas vezes de guarda. Vi de longe a crian­ça, que brincava no jardim sob a vigilância de Simon: pareceu-me fino, bem-vestido e de boa saúde...

—   A mulher Simon é boa mulher. Dizem que simpatizou com ele.

— ... mas a educação que Simon lhe dá é pavorosa. Jurou fa­zer dele um perfeito revolucionário e não negligencia nada nesse sentido: não lhe bate, mas fá-lo beber e ensina-lhe canções terrí­veis, vocabulário abominável e o pequeno, pelo que dizem, aprende demasiado bem! Ao ponto de, muitas vezes, indignar os municipais...

—   Não passa de uma criança e as crianças adoram as novida­des! Passar de Mme. Tourzel para Simon faz uma diferença tre­menda! Também eu recebi algumas informações: Simon explica-lhe o que é ser um homem, agir e falar como tal...

—   De qualquer modo, há limites — murmurou Pitou com tris­teza. — Disseram-me que um dia — a Rainha ainda estava no Tem­plo — o pequeno Luís jogava às damas com Simon quando no andar superior ouviu um grande barulho, como se arrastassem mó­veis. Aquilo irritou-o e teria dito: «Aquelas porcalhonas ainda não foram guilhotinadas?» Uma criança que adorava a mãe, pode mudar assim tanto em alguns dias? — acrescentou o jovem, agoniado.

Levantando os olhos para o amigo, Batz leu-lhe horror no rosto.

— Não tenho resposta para isso, Pitou. Senão, talvez... sem dú­vida que ele repete, como um papagaio, as palavras novas que lhe ensinam, sem lhes conhecer o sentido.

—   Passe o insulto, mas a guilhotina deve saber o que é? Não lhe esconderam a maneira como o pai foi morto?

—   Para isso também não tenho resposta... ou então, a sua in­teligência, aguçada pelo medo e pelo desgosto, será mais viva do que pensamos? Talvez já saiba que uivar com os lobos é a melhor maneira de se proteger e de adormecer a desconfiança do inimigo. Mas tem razão, Pitou: é preciso fazer de maneira a que essa «edu­cação» não se prolongue por muito tempo! Nem o hábito de beber! — acrescentou ele com raiva fria.

 

Sem que o suspeitasse, Maillard foi seguido. Armand, tendo ido a sua casa depois do meio-dia, chegou mesmo a tempo de o ver sair com um passo apressado que não era habitual naquele doen­te. O que foi suficiente para lançar o espião nos seus passos. Viu--o juntar-se a Chabot e chegar, com ele, ao Palais-Royal, entrar no Corazza e tomar lugar à mesa de um homem que o seu ódio reconheceu antes dos olhos. Não havia gente suficiente no célebre café para que pudesse entrar sem ser visto. Ficou, então, por trás da montra e compreendeu que o antigo meirinho estava em vias de se vender e que a estranha mudança de Chabot podia estar na origem desse comportamento.

Quando o conciliábulo terminou, não seguiu aquilo que não era, ao fim e ao cabo, senão peixe-miúdo, fácil de encontrar, para se colar ao homem que ousava aparecer em público de rosto des­coberto. Prendê-lo era impossível: nenhum mandato, com efeito, existia contra ele e, se tivesse havido, se o seu nome tivesse apa­recido no momento da execução do Cabeçudo, tinha desaparecido. Por outro lado, precisaria de gente e no Corazza não tinha grandes hipóteses de arranjar ajuda. O que era preciso era saber onde se alojava o conspirador.

Viu-o levantar-se, atirar algumas cédulas para cima da mesa, apertar duas mãos à passagem, dirigir um sinal de amizade ao pro­prietário e, por fim, permanecer, por um instante, na galeria, para depois se precipitar na escadaria vizinha que levava a um daque­les salões de jogo, quase tão numerosos no Palais-Égalité como as casas de passe. Como o mais célebre deles e também o mais ele­gante, o do sr. Aucane e das damas de Sainte-Amaranthe, tinha de­saparecido, os outros recusavam clientes quase 24 sobre 24 horas. Havia uma multidão em volta das mesas de faraó ou de 30-e-40, uma multidão heterogénea, díspar, cheirando a vinho, a tabaco frio e suor, mais do que a íris, botânica, ou rosa. Armand viu Batz abrir passagem até à roleta e entrar no jogo. Sem querer, o espião viu a pequena bola de marfim seguir o seu curso. O número jogado por Batz ganhou... mas a aposta ficou sobre o pano e, quando o es-pião procurou aquele que já chamava a sua caça, já não o encon­trou. Batz tinha desaparecido sem que ninguém pudesse dizer o que lhe acontecera: os jogadores não se interessam senão no que se passa em cima da mesa.

Bem procurou, mas não encontrou, em parte nenhuma, qual-quer traço do homem de sobrecasaca branca. Então, furioso e des­norteado, foi a casa de Robespierre para denunciar os actos sus-peitos de Maillard e, nessa mesma noite, o polícia comparecia perante o incorruptível.

Na noite do dia seguinte, Pitou jantava em casa de Cortey, como fazia muitas vezes quando não estava de serviço. Entre ele e o       sólido folgazão que era o pasteleiro nascera uma amizade, du­rante a preparação do rapto de Luís XVI, que crescera, cimentara, mesmo. Habitados pela mesma fé realista e a mesma devoção a Jean de Batz, os dois homens haviam-se reconhecido como irmãos e    no período de «maré baixa» que Pitou acabava de atravessar por exigências do seu serviço e da vontade do barão em se manter um pouco à parte dos acontecimentos, frustrado, por outro lado, no seu amor por Laura, a bela saúde moral, o optimismo e o calor ir-radiados pelo chefe militar da secção Le Pelletier haviam-se reve­lado singularmente reconfortantes.

A despeito das dificuldades de abastecimento, a refeição servi-da por Marie-Rose, a robusta quinquagenária que tratava da pe­quena filha de Cortey e da casa — a esposa morrera pouco tempo depois do nascimento da criança — fora muito boa e acabou com um doce acompanhado de biscoitos e vinho de Malvoisie, do qual, na cave, havia ainda algumas garrafas. Eram mais ou menos 11 ho­ras quando os passos de uma patrulha em marcha acordaram ecos e pararam diante da porta, que, em breve, soou sob os golpes de um punho de sabre.

—   Senhor! — resmungou Marie-Rose, que assistia à apreciação da sua obra-prima. — O que é isto?

—   Vamos já saber!

Ponto de lado o guardanapo, Cortey precipitou-se para a jane­la que estava aberta para uma noite singularmente doce para um 30 de Setembro e inclinou-se, reconhecendo aquele que batera:

— És tu, cidadão Vergne? O que é que queres?

O interpelado levantou para o quadrado iluminado da janela, onde se recortava a poderosa silhueta, um sorriso ameaçador, agi­tando um papel:

— Investigar... cidadão. Tenho uma ordem da Comissão de se­gurança geral!

—   Um mandato de busca? Em minha casa e pelos meus ho­mens? — grunhiu Cortey, vendo os poucos Guardas Nacionais de que Vergne, de quem ele não gostava, vinha rodeado. Antigo mei­rinho, como Maillard, com quem havia sido um dos assassinos, de­sempenhava, na secção, as funções de comissário político, tal como o seu colega Lafosse, cujo focinho de fuinha apareceu, su­bitamente. Eram «robespierristas» puros e duros, hostis, desde o pri­meiro dia, à força militar da secção. Cortey sabia que ambos o de-testavam e invejavam e infelizmente, depois da tentativa de rapto da família real do Templo, o generoso capitão afastara aqueles dos seus homens que poderiam ficar comprometidos. Restavam alguns, no entanto, mas não estavam de serviço esta noite e aqueles dois estavam-no.

— Exactamente, em tua casa — chiou Vergne. — És acusado de abrigar o perigoso conspirador chamado barão Bac. Então, abres, ou arrombamos a porta?

—   Já vou! — atirou Cortey fechando a janela e depois, recuan­do na divisão, acrescentou para Pitou: — É inútil... e perigoso se te encontram aqui. Marie-Rose faz-te sair pela Rua des Filles-Saint--Thomas enquanto eu os recebo.

A casa de Cortey formava, com efeito, um ângulo com aquela rua e a Rua de la Loi, quase em frente da Rua Ménars, onde haviam vivido Batz e Marie. Era uma grande construção que comportava a habitação, a loja e até uma residência mobilada, dita mansão de Ca­lais, onde abrigava algumas pessoas de idade. Uma porta, bastante bem dissimulada, permitia sair-se da casa sem se ser visto.

Rapidamente, Marie-Rose pegou numa vela e empurrou Pitou para a escada, apressada por Cortey que, antes de ir enfrentar os assaltantes, murmurou:

—   Ouviste? Eles andam à procura de Batz. Vai preveni-lo, se sa­bes onde ele está.

—   Creio que sim.

Ao deixá-lo, na véspera, no Corazza, o barão dissera-lhe ser sua intenção ir passar um dia ou dois com Marie, «para lavar o espíri­to e os olhos», após a sua entrevista com o assassino. No entanto, Pitou não queria afastar-se sem ver como terminava a incom­preensível visita domiciliária. Uma vez no exterior, correu na direcção do antigo convento abandonado, virou na Rua Vivienne e na Rua Colbert, onde parou um instante perto da fonte para re­frescar o rosto e afastar os vapores do conhaque e do malvoisie de Cortey, voltando depois para a Rua de la Loi, onde se escondeu numa porta de cocheira, de onde via perfeitamente o que se pas­sava em casa de Cortey.

Evidentemente, vasculharam a casa de cima a baixo, sob o olhar zombeteiro do pasteleiro que Pitou conseguia ver pela jane­la, os braços cruzados e o cachimbo ao canto da boca, seguindo os esforços dos invasores para descobrir o que não podiam en­contrar. Tudo aquilo orquestrado pelos gritos de Marie-Rose que, gritando aqui d'El-Rei, fazia um barulho dos demónios, fazendo abrir muitas janelas e atraindo gente à rua. O que permitiu a Pitou aproximar-se. Tomando o bairro como testemunha de um perfeito escândalo, Marie-Rose desceu para se juntar a duas vizinhas, a quem contou, indignada, como as gentes da secção a tinham im­pedido de terminar a sobremesa: «Um doce como os de antiga-mente e que eu tinha feito para o «pequeno» e para mim, rugia ela. E viraram-me a casa de pernas para o ar. Vou levar oito dias para pôr tudo em ordem de novo! Sem contar com as coisas partidas! E tudo isto para nadal...»

Era evidente. Os homens de Vergne e Lafosse, que tinham fei­to sair da cama todos os clientes da mansão de Calais, voltado os colchões ao contrário e vasculhado o mais pequeno dos armários, estavam decepcionados. Sem se preocuparem com os curiosos, os dois chefes armaram conselho no meio da rua. Quatro homens fo­ram destacados para conduzirem Cortey à secção para interrogató­rio, mas recusaram levar Marie-Rose, em volta da qual vigorosas comadres formavam um escudo inquietante.

—   De qualquer maneira — grunhiu Vergne — não interessa! É Bac que queremos, não uma megera em fúria!

—   Ele não está aqui — disse o outro. — O que é que fazemos?

— Vamos ser obrigados a marchar um pouco. O cidadão Mail­lard falou da casa de campo da amiguinha dele, a actriz Grand­maison.

—   No campo? — gemeu um deles, que devia sofrer dos pés. — Mas qual?

— Charonne... Não é longe.

— Achas que não? E sabes que horas são?

—   Não há horas para os valentes! E depois, chega, Lognon! Ou marchas ou dou parte de ti à secção... ou serás cúmplice?

A ameaça era clara. O dito Lognon calou-se e tentou esquecer os pés dolorosos, mas Pitou já não escutava. Voltara para a Rua Colbert, onde as altas paredes da Biblioteca do Rei provocavam uma obscuridade propícia. De lá lançou-se na direcção da Praça des Victoires e enfiou-se pelo dédalo de Ruas du Marais que, como bom jornalista parisiense, conhecia como a palma das suas mãos, para chegar ao deserto mal iluminado onde se erguera a Bastilha e a interminável Rua de Charonne. Era preciso, a qualquer preço, chegar a casa de Marie antes dos lorpas, que se preparavam para a invadir, mas tinha vantagem: era jovem, alerta e não era a pri­meira vez, antes pelo contrário, que efectuava aquele trajecto.

A inquietação e a amizade davam-lhe asas e, hora e meia de-pois, chegava ao alpendre coberto que fechava o domínio de Ma­rie. Tudo estava calmo. Não havia luz em parte nenhuma. Tocou a campainha de acordo com o código previsto, mas teve que o fazer três vezes antes de ouvir a voz de Biret-Tissot:

—   Quem vem lá?

—   Eu, Pitou! Abre... e depressa!

Ouviu-se o barulho de fechaduras e dobradiças, mas o batente entreabriu-se apenas, com um rangido. Pitou insinuou-se no interior:

—   Ele está cá?

—   O barão? Claro! Está a dormir há muito... jantou com dois amigos que também estão a dormir.

—   É preciso acordá-los. Um destacamento da secção Le Pelle­tier vem vasculhar a casa. Eu encarrego-me de Batz.

Encontrou-o no alto da escadaria, metido num roupão. A som­bra branca de Marie apareceu por trás dele e apoiou-se no seu om­bro. Em poucas palavras, Auge Pitou contou os factos de que fora testemunha.

—   Deveis isto ao vosso novo amigo Maillard! — escarrou ele com desgosto. — Deveis todos fugir... e depressa!

—   Não — disse Marie, colocando-se diante do seu amante. — Ele deve fugir, mas eu não tenho qualquer razão para isso. Bem pelo contrário! Vêm vasculhar a minha casa? Muito bem, acolherei eu mesma os visitantes...

— Marie, és louca! — protestou Batz, tomando-a nos braços. — Tu não pensas que te vou deixar fazer isso?

—   Olha — reprovou-o ela com um sorriso — tratais-me por tu na presença de terceiros? Não tendes escolha. Eu, não tenho nada a temer: os meus papéis estão em ordem e tenho uma carta de ci­vismo em boa e devida forma. O que é preciso é que façais desaparecer daqui qualquer sinal da vossa passagem: roupa, papéis, tudo o que possa ser comprometedor. Depois, iremos todos deitar-nos de novo — acrescentou ela na direcção dos «convidados», que tinham acorrido. Eram La Guiche, Sartiges e um velho actor cha­mado Marignan, de quem Marie gostava muito e que albergava desde há alguns dias.

—   Quereis que eles sejam presos? — indignou-se Batz. Foi o marquês de La Guiche que lhe respondeu:

— Marie tem razão. Não temos tempo de pôr a casa em ordem, como se não houvesse aqui ninguém. Sartiges e eu, o «cidadão Sé­vignon», temos nomes e papéis falsos, muito bem-feitos. Despacha--te a esvaziar o teu quarto, meu caro Batz. Nós voltamos para a cama, apagamos tudo... e esperamos. Espero desempenhar o meu papel como deve ser — acrescentou ele, sorrindo.

Os criados também estavam todos presentes, animados da mes­ma coragem. O olhar de Batz percorreu o círculo de rostos determinados e olhos brilhantes.

—   Depressa! — disse Pitou. — Eles não tardam! Apressai-vos a voltar para os vossos quartos e apagar as luzes. Eu vou ajudar o nosso amigo na mudança. Encarrego-me da roupa, ele vai buscar os documentos, que não devem cair nas mãos do inimigo.

Mas Batz não o escutava. Tinha-se aproximado de Marie es­treitava-a:

—   Vem comigo, meu amor! Não suporto a ideia de te deixar correr este risco insensato. Quero ficar contigo...

—   E eu não quero! Pensai... em todos aqueles que necessitam de vós! Além disso, não tenho grande coisa a recear.

Escapou-lhe dos braços e subiu a escadaria seguida de Pitou, que ia meter num saco a roupa de Batz — pouco numerosa, por-que deixava muita dela nas suas diversas residências. Enquanto isso, Jean tirava do seu gabinete de trabalho o dinheiro e os do­cumentos mais importantes. Deles também não tinha necessidade, porque sabia que nenhuma casa de França estava mais ao abrigo de uma busca. Desde há muito que levara os principais para a cave secreta onde se encontrava a impressora de cédulas, máquina esta que, tinha a certeza, não seria descoberta.

A casa já tinha voltado a ficar às escuras quando os dois ho­mens atravessaram o jardim, correndo para subir o muro que o isolava do parque do castelo de Bagnolet, antiga residência do duque de Orleães. Um parque abandonado, que voltava, lentamente, ao estado selvagem e no qual Batz e Pitou se sumiram.

Enquanto isso, Vergne, Lafosse e os seus homens, um pouco fa­tigados, haviam chegado à aldeia de Charonne, onde começaram por acordar o presidente da câmara, Jean Piprel e o chefe de pos­to da Guarda Nacional local, a fim de se assegurarem de uma le­galidade absoluta para a investida contra a casa de um perigoso conspirador. O oficial municipal conhecia bem Marie Grandmaison e começou por mandar passear os perturbadores da sua noite, mas estes diziam-se enviados pela Comissão de segurança geral e não se podia brincar com aquela gente. Deixou-se convencer, mandou buscar Jean Panier, que comandava a Guarda Nacional e toda a gente foi tocar à campainha da cidadã Grandmaison.

Marie desempenhou o seu papel como grande artista que era. Quando os invasores penetraram no pátio, apareceu na soleira da porta, os braços cruzados sobre o roupão de cambraia e renda branca, ornamentado com fitas de cetim azul-pálidas. Desempe­nhava, na perfeição, o papel da mulher acordada em sobressalto e estava tão bela e graciosa, que Vergne e Lafosse saudaram-na maquinalmente:

—   Não é a ti que queremos, cidadã Grandmaison. Procuramos o barão de Batz — entretanto, o presidente da câmara tinha corri­gido a consonância do nome. — Sabemos que ele é teu amante...

—   Talvez, mas ele não está aqui...

—   Estás só nesta casa?

—   Com os meus «oficiosos»», que podeis ver e alguns amigos que se atrasaram e que convidei para jantar... e que estão aqui — acrescentou ela, designando os três homens que saíam do pavilhão.

—   E Batz não está cá?

—   Não o vejo pelo menos há 15 dias.

—   É o que vamos ver! Vamos, homens! Vasculhai-me esta casa... estas duas casas. Enquanto isso, vamos interrogar-te, aos teus ami­gos» e aos teus «oficiosos».

Aquilo durou horas. A propriedade foi vista da cave ao sótão e até ao fundo do jardim, enquanto Vergne, sentado à mesa ainda por levantar da sala de jantar do pavilhão — Biret-Tissot tinha, ha­bilmente, subtraído um dos talheres — interrogava os empregados e os amigos de Marie, apreciando, com os restos do bolo, o talen­to do cozinheiro Rollet. Lafosse, esse, encarregava-se da jovem a um canto do salão. Ela parecia fasciná-lo, mas como não era mui-to inteligente, não sabia, senão, fazer-lhe uma única pergunta: onde estava Batz? Contentando-se em variar o tom, alternando ameaças com boas palavras do género: «Deixamos-te tranquila ime­diatamente se nos disseres onde está ele.» E, infatigavelmente, sem que a sua voz doce traísse a menor impaciência, a jovem repetia que não sabia. O que era verdade, apesar de pensar que ele procuraria, talvez, refúgio nas pedreiras de Charonne, no convento deserto des Hospitalières de Saint-Mandé, instaladas anteriormente na an­tiga residência do superintendente Fouquet, ou mais simplesmen­te no bosque de Vincennes, esperando que a abertura das barrei­ras lhe permitam regressar a Paris.

Finalmente, Vergne juntou-se ao colega:

— Levamos toda a gente — grunhiu ele. — Vai-te vestir, cidadã.

Ela obedeceu sem protestar, sentindo mesmo um certo alívio ao constatar, de regresso ao seu quarto, que a busca não causara gran­des estragos. Vestiu-se com um vestido de tela de lã ligeiro, do mesmo cinzento-claro que os seus olhos e guarnecido de veludo negro, assim como dos rituais lenços e punhos de musselina bran­ca, pegou numa capa de capuz e, à pressa, encheu um saco com roupa branca e alguns objectos usuais, juntamente com um rolo de cédulas. Sabia que nas prisões tudo se comprava e que poderia ter necessidade, para ela própria, para Marguerite, a sua costureira e para Nicole, a sua criada de quarto. Algo lhe dizia que não regres­saria brevemente à sua querida casa. Se chegasse, alguma vez, a regressar...

Foi, portanto, com passo firme que a deixou. A dor que lhe ia no coração, desde há tantos dias, era substituída por uma feroz re­solução: fazer tudo para proteger Jean. Jamais o seu amor por ele fora tão grande, tão puro, porque já o julgava perdido... Quando reapareceu no pátio onde a sua carruagem já estava preparada, atravessou a pequena multidão de seccionistas e municipais e o presidente da câmara veio corajosamente ajudá-la a subir para o cabriolé que tinha sido atrelado:

—   Espero ver-te de novo em breve, cidadã! Sempre foste ge­nerosa para os daqui...

—   Obrigada! Tenta cuidar da minha casa, cidadão Piprel.

Uma carroça tinha sido trazida para os outros «acusados» e a tropa pôs-se em marcha. Para melhor manter a coragem, Marie não voltou a cabeça para voltar a ver aquele domínio, do qual fizera o seu paraíso. E foi assim que, por sua vez, deixou o eremitério de Charonne...

Na secção Le Pelletier encontrou Maillard, que se passava de um lado para o outro da sala, de ar feroz e rebarbativo, como du­rante nos seus melhores tempos de façanhas assassinas. A sua im­paciência estava no auge porque não cessava, desde há duas horas, de repetir que lhe iam trazer o barão e não escondeu a de­cepção ao ver que ele não estava presente. Marie fez as despesas da conversa, assim como La Guiche, que ele enviou para a Força no decorrer da sessão. Todos os outros foram autorizados a voltar para casa, para grande alívio da jovem, feliz por ver que iam vol­tar para Charonne...

E o interrogatório foi retomado, mais feroz, mais insidioso, por causa dos minutos bastante desagradáveis que o assassino de Se­tembro passara com Robespierre. Este dera-lhe a escolher: ou en­tregava o homem a quem se quisera vender, ou ia provar as pri­sões que sabia tão bem esvaziar!

Marie foi, por aquele miserável, coberta de injúrias e ameaças, sem que ousasse, porém, pousar-lhe a mão em cima. Finalmente, disse-lhe:

—   Tu tens um apartamento no número 7 da Rua Ménars. Dá--me as chaves!

—   Já não moro lá há meses. E não quero que pretendam en­contrar lá o que não está lá. Quanto aos objectos que me perten­cem, exijo que os examinem na minha presença!

Maillard tinha vontade de a maltratar, de lhe arrancar à força o que queria, mas na secção Le Pelletier, onde a influência de Cor­tey era tão grande, fizeram-no compreender que mais valia levar a cidadã Grandmaison — uma actriz amada pelo público e não uma aristocrata — nessa visita domiciliária. Conduziram-na à Rua Mé­nars e não foi sem emoção que ela voltou a encontrar o cenário dos seus primeiros amores com Jean. Bem entendido, não descobriram nada e o processo verbal daquela visita domiciliária traz escrito que «nada se encontrou de suspeito em casa da cidadã Grandmaison...».

Em nome da justiça, deveria ter sido libertada, mas Maillard es­tava demasiado decepcionado para a deixar escapar. Meter aquela mulher encantadora na prisão, não seria a melhor forma de fazer o conspirador sair do seu buraco? Sob a força do apoio de Robes­pierre, passou por cima de todos os protestos da comissão da sec­ção.

E Marie foi conduzida, imediatamente, à prisão de Sainte-Pélagiet.

«Antigo convento de raparigas arrependidas, entre a Rua Lacépède e a Rua de Ia Clef, nas fal­das da montanha Sainte-Geneviève»

 

             O REFÚGIO

Na noite desse dia, o primeiro da prisão de Marie, Laura tinha--se deixado convencer por Julie Talma em acompanhá-la ao teatro. Estava-se a 1 de Outubro de 1793. Já se dizia o 10 de Vendemiário ano II, porque, dentro de quatro dias, o calendário republicano seria imposto, em vez do calendário gregoriano, o que iria complicar singularmente a vida das gentes sensatas e também das outras.

Fora para dar prazer à sua amiga que Laura aceitara. Depois da captura dos seus amigos girondinos, a inquietação grassava na Rua Chantereine e Talma evitava dar garantias ao poder montanhês. Cochichava-se mesmo que ele lhes tinha dado uma enorme, ao de­nunciar os comediantes rivais do bairro de Saint-Germain. O que era completamente falso. Se, na noite de 3 para 4 de Setembro, os tinham prendido em massa e atirado para a prisão — os homens para Madelonnettes, as mulheres para Sainte-Pélagie — por inci­vismo, correspondência com o estrangeiro e sobretudo fidelida­de ao teatro tradicional, a vedeta da Rua de la Loi não sofreu nada. Era Barère, da Comissão de Salvação Pública, que consegui­ra o encerramento da venerável casa e o encarceramento dos seus actores.

Temendo por si próprio e pelos seus, Talma abstivera-se, pro­visoriamente, de desmentir, mas procurou preservar um pouco o futuro, mostrando-se com gente que não tinha nada a ver com os raivosos que lhe enchiam o teatro. Bem-vista pela Convenção, a pequena colónia americana fazia parte desse número e o actor su­plicara à sua mulher que lhe obtivesse, pelo menos uma vez, a pre­sença do coronel Swan, cavaleiro andante quase oficial de Laura e dos seus amigos Ruth e Joel Barlow. Uma espécie de gente «do meio».

Há anos que Laura não punha os pés numa sala de espectácu­los. Não só como Laura Adams, também como Anne-Laure de Pon­tallec que, no momento do seu casamento, em Versalhes, recebe­ra o favor de ser admitida, com o marido, no pequeno teatro da Rainha, no Trianon, para uma representação privada das Bodas de Fígaro. Guardara no fundo dos olhos a imagem refinada de uma sinfonia azul e ouro, na qual se destacavam, juntamente com ra­mos de flores, os vestidos imensos das mulheres cobertas de jóias e    os fatos sumptuosos dos homens. Tudo, então, respirava o faus­to, a juventude, o brilho, mas naquele teatro da República — cuja sala fora bela — tudo estava negligenciado, mesmo sujo, a come­çar pelo público, onde floriam gorros vermelhos, chapéus de plu­mas e mais aventais do que saias de balão. Ao ponto de a direc­ção ter decidido afixar uma recomendação que não teria sido vista dois ou três anos antes: «Por favor, cidadãos, tirai os vossos gorros e     não façais porcarias nas galerias»... Por isso, era passada uma se­rapilheira após cada representação.

A bem dizer, Talma estava inquieto quanto ao efeito que o es­pectáculo daquela noite iria produzir nos convidados da sua mu­lher. Ia ser representada, com efeito, uma nova peça: O Último Jul­gamento dos Reis, da pena cortesã de um certo Sylvain Marèchal e o   actor de tragédias confessava, em voz baixa, que se tratava de um verdadeiro horror, mas agora era o povo mais grosseiro, para não dizer a canalha, que encomendava, que pagava — tarifa re­duzida, bem entendido — e que exigia ver peças a seu gosto, representadas pelos actores que tinham a sua protecção. Talma era desses e David, que desenhava os figurinos, comprazia-se, como na antiguidade os patrícios romanos, perante os seus «clientes», em dar-lhes os espectáculos de que eles gostavam, por mais horríveis que fossem.

Aliás, David estava lá. Sentado num camarote com duas belas raparigas, mostrava uma admirável sobrecasaca amarela e a atitu­de negligente e indiferente de um potentado oriental no meio do seu harém. Laura, que não gostava dele, fez uma careta ao consta­tar que apenas um camarote a separava da do ocupado pelo pin­tor, Certamente, ele ia-lhe, mais uma vez, pedir que posasse para ele... e ela recusaria uma vez mais com toda a graça de que era ca-paz. O pintor era um grande artista, mas o homem era detestável.

Talma tinha razão em mostrar-se preocupado. O Último Julga-mento dos Reis era de uma tal indigência, de uma tal trivialidade, que não merecia o nome de obra teatral. O cenário representava uma ilha habitava por selvagens para onde valentes revolucioná­rios franceses levavam, acorrentados, todos os reis da Europa e em primeiro lugar o Papa, seguido do Rei de Espanha, ornamentado com um longo nariz de papelão, o gordo Rei de Inglaterra, o Rei da Prússia, o Rei de Nápoles, o da Polónia e, para terminar, a Grande Catarina, Imperatriz de todas as Rússias. A fim de obede­cerem a Deus, por uma qualquer ideia barroca, os Reis eram levados para lá para serem enforcados. Entretanto, como morriam de fome, imploravam comida e o chefe dos revolucionários mandava atirar-lhes um único bocado de pão, sobre o qual eles saltavam como cães esfaimados, terminando a peça — a bem dizer bastan­te curta, mas ainda demasiado longa — terminava com uma batalha feroz, no decurso da qual o Rei de Espanha perdia o nariz, o Papa enviava a sua tiara à cabeça de Catarina, que lhe respondia com golpes de ceptro, antes da Natureza fazer valer os seus direi-tos e o vulcão da ilha, revoltando-se, engolir toda aquela boa gen­te sob os aplausos frenéticos de uma multidão em delírio, que não cessava de reclamar que certas passagens fossem novamente representadas...

No camarote de Julie Talma, era a consternação:

—   É preciso aplaudir! — cochichou ela. — David está a olhar para nós...

—   Eu, aplaudir esta infâmia? — insurgiu-se Laura, vermelha de cólera e vergonha.

—   É indispensável! Olhai, lá vem o autor agradecer. A voz de Joel Barlow interveio, conciliadora:

—   Podemos sempre aplaudir o combate de boxe! Foi bem con­seguido, apesar de as regras do marquês de Queensbury não terem contado muito.

E, levantando-se, começou a bater palmas com convicção, acompanhado pelo coronel Swan, que acabava de cochichar a Laura:

—   Fingi que vos sentis mal! Faz calor suficiente para isso...

A ideia era boa. Laura assim fez a seguir, com tanta convicção que caiu por terra. Ruth Barlow, cujo barulho dos aplausos acaba­va de acordar — a monotonia chata dos versos, juntamente com o facto de que ela não compreendia nada, tinham-lhe provocado um bem-aventurado sono — precipitou-se para a fazer respirar sais.

A jovem não pôde fazer outra coisa senão «retomar a cons­ciência», espirrando violentamente. As aclamações continuavam, mas, abrindo os olhos, viu uma mão estendida para a ajudar a le­vantar-se:

—   A peça é, talvez, um pouco violenta para uma dama — iro­nizou David — mas eu pensava que as raparigas da América livre estariam menos submetidas às emoções? O autor deveria estar feliz!

—   Faria mal! — disse Laura. — Não tem nada a ver com esta breve má-disposição. Foi apenas o calor...

— Nesse caso, vamos todos comer gelados ao Corazza. Isso re­compor-vos-á!

—   Mas ainda falta outra peça — protestou Julie, deitando uma olhadela ao programa.

—   Espantar-me-ia muito que a representassem — respondeu o pintor. — Ouvi-os! Estão de tal modo contentes que querem uma segunda edição do Julgamento.

— Então, voto pelos gelados! — disse James Swan, pegando na mão de Laura. — Nunca se deve abusar das coisas boas. Vindes, Se­nhora Talma? O entreacto vai, seguramente, ser longo, se for preci­so pôr tudo de novo no lugar... Depois, levarei miss Adams a casa!

—   Entretanto — interveio David — sou eu que convido e sou eu que a levo!

Tinha que aceitar a mão oferecida e dirigiram-se ao Italiano, no meio da barafunda que era a atmosfera habitual da galeria Mont­pensier. Em caminho, David inclinou-se para a sua companheira:

—   Sede franca! Não foi a emoção que vos fez desfalecer, não é verdade? Sois uma mulher de gosto. Não podeis ser sensível a se­melhante burrice!

—   Se julgais isso, por que trabalhastes nela? Os figurinos são muito belos... de uma grande elegância!

—   Minha cara, a plebe romana reclamava, para os jogos do cir­co, sangue e morte. A nossa não é muito mais refinada e isto é me-nos mau: é preciso dar-lhe o que ela quer...

—   É por isso que a guilhotina funciona todos os dias... ou quase?

—   Não é a mesma coisa! — disse secamente o pintor. — Nesse caso, não se trata de um jogo, mas sim de tirar o sangue impuro que sufocava a França. Mas voltaremos a falar de tudo isso mais tarde... se me fizerdes o favor de me receber em vossa casa proximamente?

Era difícil dizer não. Com graça, mas com aquele tom um pou­co impessoal que banaliza as palavras mais amáveis, Laura res­pondeu que apreciaria a visita. Dito sem calor e ele não teve ou­tro remédio senão dar-se por contente. Ao sair do Corazza para voltar ao teatro, onde tinha abandonado as suas duas companhei­ras com grande desenvoltura, David ofereceu o seu braço a uma Julie pouco entusiasta, mas que não podia escapar à estopada por razões conjugais e demonstrou uma surpresa aborrecida quando os três americanos declinaram o convite para os seguirem.

—   Eu vou levar miss Adams! — declarou James Swan.

— A minha mulher suporta mal o calor do teatro — alegou Joel Barlow. — Só veio para dar prazer a Talma...

— Também eu — ripostou o pintor. — Para dar prazer ao povo. Ele aprecia a presença dos seus dirigentes.

—   Coisa que nós não somos! — disse secamente Swan, irritado com a arrogância da personagem. — E esse povo que se espo­ja numa lama sanguinolenta não é o nosso.

—   Não sois nossos irmãos?

—   Evidentemente que somos! Mas devíeis saber que os irmãos não estão sempre de acordo.

David não insistiu, mas o olhar com que envolveu o americano falava por ele.

—   Receio que tenhais feito um inimigo — murmurou Laura.

—   Não vos atormenteis! Ele nunca ousará atacar-me. A Con­venção tem grande necessidade dos meus barcos e daquilo que eles transportam...

 

Já passava da uma hora da manhã e Laura não conseguia con­ciliar o sono. O lamentável espectáculo era, sem dúvida, o res­ponsável, mas apenas aumentara o que sentia desde manhã. In-quieta, nervosa, tivera a impressão, durante todo o dia, de uma catástrofe iminente. Cansada de se virar e revirar no leito, enfiou as pantufas e o roupão para descer ao andar inferior, na intenção de dar uma volta no jardim. Sem acender a mais pequena vela. A noite estava clara e ela conhecia bem a sua casa!

Quando ia chegar a uma das portas-janela do salão, ouviu a campainha do portão e ficou hirta, o coração parado. Os visitantes de uma hora tão tardia não vinham, geralmente, animados de boas intenções. Significava, mais frequentemente, uma visita domiciliá­ria, ou mesmo uma prisão... No entanto, armou-se de coragem e dirigiu-se ao vestíbulo. Mas já uma luz estava acesa no cubículo do porteiro onde morava Jaouen e ela viu-o sair para ir abrir a porta pequena, inserida no grande portão. Dois Guardas Nacionais en­traram rapidamente. À luz da lanterna que Jaouen segurava, Laura reconheceu Pitou, que parlamentou, por um instante, com o mor-domo. Quanto ao outro, era-lhe desconhecido, mas qualquer coi­sa na sua silhueta lhe chamou a atenção. Seria a maneira desen­volta com que vestia o uniforme desbotado, a largura dos ombros, o dorso tão direito, um não sei quê... saiu para o patamar:

—   Que se passa Jaouen? É o nosso amigo Pitou, parece-me? Por que o retém?

—   Não vos queria acordar...

— Ainda não estava a dormir. Até ia dar uma volta pelo jardim. Entrai! Entrai depressa!

Ela viu-os subir na sua direcção e uma alegria súbita encheu-lhe o coração, coração que não se deixou enganar pela aparência do cabo Forget. Foi para ele, aliás, que estendeu, primeiro, as mãos.

— Terei, desta vez, a alegria de saber que precisais de mim?

O seu sorriso era radioso, mas Batz não respondeu. Enquanto tirava o chapéu, peruca e bigode com um gesto fatigado, a ruga dolorosa entre as sobrancelhas não se apagou.

—   É verdade, Laura, venho pedir-vos asilo. Charonne foi inva­dida a noite passada; Marie e Pitou convenceram-me a fugir, mas... Marie foi presa com toda a nossa gente. Pouco tempo antes, apa­nharam Cortey.

Laura deixou sair um gemido:

—   Marie! Marie presa? Mas por quê?

—   Sem dúvida para a obrigarem a dizer onde me encontro... Mas, não podemos ir para outro sitio, que não este vestíbulo?

—   É imperdoável! Vinde! Jaouen, vinho... e qualquer coisa para os reconfortar! Pareceis terrivelmente fatigados, meus pobres amigos.

Ela tomara o braço de Batz para o levar para o salão onde Bina, que acorrera ao ouvir o barulho, já acendia um candelabro. Rece­beu ordens de preparar um quarto, ou antes, dois, já que Pitou tam­bém precisava de repouso.

—   Aceito de boa vontade — suspirou este, abandonando-se às doçuras de uma poltrona. — Ainda não parámos de correr desde a última noite...

Contou, com mais pormenores, o que se passara em casa de Cortey, depois de Marie, como, após terem fugido pelo parque do castelo de Bagnolet, Batz e ele tinham encontrado um refúgio pro­visório no convento abandonado de Saint-Mandé, esperando pela abertura das barreiras. Fora lá que Batz vestira o uniforme do cabo Forget. Em seguida, tinham ido à secção Le Pelletier para saberem notícias: Cortey não tinha reaparecido e Marie fora conduzida a Sainte-Pélagie. Tinham ido lá e Pitou, que conhecia vagamente o porteiro, dera-lhe dinheiro para que a «cidadã Grandmaison», de quem era admirador e que era também amiga de vários conven­cionais, fosse tratada tão bem quanto possível. Tranquilizados so­bre esse ponto, voltaram a partir: tratava-se de encontrar um abri­go para a noite e nessa busca andaram de decepção em decepção: Roussel estava ausente por uns dias, Benoist d'Angers e Delaunay em missão, em casa de Pitou era impossível, já que o apartamen­to era muito exíguo e o olhar da senhoria demasiado curioso. Res­tavam as casas da Rua de la Tombe-Issoire e o local da Rua des Deux-Ponts, mas Batz não aparecia lá senão sob uma determinada aparência e, para já, a de Guarda Nacional era a mais cómoda.

—   Fui eu que pensei em vós, Mlle. Laura — disse Pitou. — O barão não queria...

—   E por quê, se faz favor?

Batz, meio estendido numa cadeira, fechara os olhos. No en­tanto, respondeu:

— Porque é perigoso estar entre os meus amigos. Dar-me hos­pitalidade revela temeridade.

—   Eu cria — disse Laura suavemente — ter-vos exposto, um dia, neste mesmo local, que a minha casa estava aberta para vós a qualquer momento e vós aceitastes, parece-me?

—   Sim, porque estava persuadido de que nunca precisaria. Dito isto, não me julgueis ingrato! Agradeço-vos do fundo do co­ração. Aliás, não será por muito tempo. Quando Roussel voltar...

—   Não — cortou a jovem — não será prudente, porque esse endereço já é conhecido. Lembrai-vos, quando me levastes para vossa casa, não me dissestes que ninguém me procuraria lá? É a minha vez de vos dizer: ninguém vos procurará em casa de uma americana. Ou então, abandonai Paris!

—   E abandonar Marie... e os meus projectos? Preferia morrer a renunciar a isso! Os meus planos estão bem encaminhados, devo continuar...

—   Então, ficai aqui, peço-vos! O tempo que for preciso.

—   E se a vossa amizade vos levar ao cadafalso? Sabeis, este povo está a enlouquecer.

—   Apercebi-me disso esta noite mesmo. É possível, com efei­to, que o meu passaporte americano se mostre insuficiente. Nesse caso, lembrar-vos-ei que, quando me obrigastes a aceitar continuar a viver, foi contra a promessa de utilizar essa vida por uma causa nobre, em vez de a perder por nada. O nosso pacto, neste mo-mento, está reatado.

—   Não o tínheis declarado caduco?

—   Talvez, mas mudei de ideias. Correr atrás de Pontallec já não me parece uma prioridade. Tenho coisas melhores a fazer a partir do momento em que precisais de mim...

Nesse momento, Pitou aplaudiu-a como se estivesse no teatro e, enquanto os outros dois o olhavam com uma surpresa um pou­co escandalizada, teve um sorriso:

—   Bravo! Mas não poderiam deixar essa bela oratória para amanhã de manhã? Caio de sono, eu!

Laura pôs-se a rir:

—   Tem razão. Vamos dormir!

Mas, se se deitou, não encontrou o sono que procurava antes da chegada dos dois homens. A presença de Batz em sua casa cau­sava-lhe uma grande excitação, ao mesmo tempo que um senti-mento estranho. Ele estava ali, em sua casa, a dois passos, o ho­mem que amava mais do que tudo no mundo e, no entanto, não sentia a mesma alegria de antigamente. Defendê-lo-ia, escondê-lo-ia, ajudá-lo-ia com todas as suas forças, mas as confidências dolorosas de Marie, de Marie, que se deixara prender para preservar a sua fuga, davam um gosto amargo àquele amor: o da dúvida que se insinuava. Para ela, Jean e Marie não eram senão um e se a fe­licidade que a jovem irradiava certas manhãs, em Charonne, a fa­ziam sentir os tormentos de um desejo do qual tinha vergonha, esse desejo estava fora de questão. Mesmo se Jean lhe tenha testemunhado, a ela, qualquer coisa mais quente do que a amizade e por vezes ela tenha tido esperança. Agora, havia aquela jovem que se dizia sua noiva... e mais ainda, aquela Michelle Thilorier, sufi-cientemente audaciosa para vir reclamar o seu amante a casa da sua rival. Portanto, punha-se a questão lancinante: quem era Batz e quem amava ele? As mulheres que ele admitia na partilha da sua vida de conspirador não passavam de repousos do guerreiro? Flo­res que ele colhia para esquecer, o tempo de uma exaltação, entre a grande ideia que o habitava e o austero dever que daí derivava? Como saber qual o rosto escondido no fundo daquele coração her­mético?

Laura abriu a janela e saiu para a varanda, na esperança de que a frescura da noite lhe acalmasse os batimentos demasiado rápidos do seu coração. Em breve o dia apareceria e tudo estava tranqui­lo. Nenhuma brisa fazia mexer as folhas das grandes árvores. Ha-via ali algo de mágico. Muitas vezes, antes do seu casamento, fica­va uns dias no seu pequeno castelo de Komer e saía na escuridão para ver nascer o dia na orla da floresta. E aquele, que ia nascer, parecia-lhe de uma tal importância, que lhe apeteceu ir ter com ele como antigamente. Desceu.

Sentada num banco de pedra, de costas voltadas para a casa si­lenciosa, a cabeça levantada para o céu, esperou. O dia veio. Pri­meiro malva, depois rosa-pálido, carregando-se, depois, de ouro e púrpura, à medida que o Sol, ainda invisível, subia. E Laura estre­meceu, porque aquela aurora se parecia com um pôr do Sol glo­rioso, mas sangrento, fascinante e que ela contemplou durante longos minutos. Tão longos que não teve consciência do tempo passado e foi assim que Jaouen a encontrou.

—   Não dormistes, não é verdade? — perguntou ele e era ape­nas uma pergunta.

—   Você também não, suponho? Ou então, foi muito madruga-dor. Aliás, ainda bem. Preciso de lhe falar.

—   Do que se passou ontem à noite e dos dias que se vão se­guir, suponho?

A sua voz era calma, fria, quase impessoal, mas, levantando os olhos para ele, Laura viu a crispação nos traços do rosto dele. Estendeu a mão e tocou no gancho de ferro que lhe substituía o braço.

—   Sente-se ao pé de mim.

—   Perdoai-me. Prefiro ficar de pé. Será melhor, mais conve­niente, se decidistes despedir-me.

—   Deveria fazê-lo?

—   Não sei. Vós é que sabeis...

—   Pensa isso? Então, vou fazer-lhe uma outra pergunta: Dese­ja-o?

—   É a minha vez de dizer: devo-o?

— Talvez. A sua ligação por mim — da qual não duvido — não o obriga, de maneira nenhuma, a seguir-me nas direcções que es-colho. Nunca fez alarde disso, mas você é um verdadeiro, um puro republicano no sentido mais nobre do termo. E aquele que vai viver aqui... algum tempo é o seu oposto: um homem dedicado ao Rei, posso dizer, desde a noite dos tempos. Renunciou a salvar a Rainha porque sabe, agora, que é impossível, mas quer a liberda­de para o pequeno Rei que vive no Templo e eu quero-a pela irmã dele, a pequena Madame, que acabei por amar porque me recor­da, um pouco, Céline.

—   Eu sei tudo isso e vós não tendes qualquer razão para ad­vogar uma causa que eu conheço. Quando deixámos Cancale, não vos segui unicamente para vos proteger de Pontallec e tentar sal­var a vossa mãe — que Deus tenha a sua alma! — mas também para ser o vosso escudo, o vosso socorro contra todos os males, todo o sofrimento...

—   Então, fica comigo? — perguntou Laura, comovida.

—   Não me digais que tínheis dúvidas? Não é na hora em que o perigo se aproxima de vós que vos vou abandonar. Acompanhar--vos-ei, seguro, em todos os caminhos que escolherdes, ajudar-vos--ei com toda a lealdade... se for preciso, matar-vos-ei para vos evi­tar o cadafalso, mas não esqueçais isto: é a vós que sirvo... não ao homem que dorme lá em cima! — acrescentou Jaouen, com um olhar para o andar onde as persianas permaneciam fechadas.

—   Não gosta dele?

—   Apesar de vos ter salvo, não. Não gosto dele, apesar de não me poder defender de uma certa admiração pela sua coragem, mas ele é mau para as mulheres!

—   Mau?

—   Sim, porque é um homem aventureiro e não há lugar para elas na vida dele. Toma tudo e não dá nada! Se vos fizer mal, terá em mim um inimigo...

Jaouen saudou e afastou-se após estas últimas palavras. A des­peito do tom ameaçador, Laura sentiu-se aliviada: ser-lhe-ia penoso afastar-se daquele amigo — o termo parecia-lhe mais apropriado do que o de servidor — taciturno, sem dúvida, mas cuja lealdade ela nunca punha em causa.

Dois Guardas Nacionais tinham entrado, dois Guardas Nacio­nais saíram, acompanhados até à saída por um Jaouen quase jovial.

—   Volto esta noite — disse Batz. — Talvez sob outra aparên­cia. O melhor será dar-me uma chave... como se eu fosse um ser­vidor.

—   Não será imprudente? — objectou Laura.

Batz pôs-se a rir:

—   Não pensáveis que eu ia ficar escondido em vossa casa, de portas e janelas fechadas, sem me mexer? Não mudeis os vossos hábitos por minha causa! Deixai-me ir e vir à minha maneira e se acontecer ter aqui alguma reunião, pedir-vos-ei, antes, autorização.

Ele ia partir, mas ela reteve-o.

—   E... Marie?

—   É dela, bem entendido, que eu agora me vou ocupar... — E se me deixásseis, ao menos uma vez, fazer as coisas? Creio que tenho uma ideia.

—   Qual?

O tom era tão hirto que ela se arrependeu, imediatamente, do seu gesto espontâneo. E não precisava da permissão dele para agir à sua maneira.

— Falar-vos-ei dela esta noite. Agi como muito bem entendeis! Ele olhou-a por um instante e depois, compreendendo que ela não lhe diria mais nada, levantou ligeiramente os ombros e saiu. Já Laura se precipitava pela escada acima para se vestir. Sabia muito bem o que era uma prisão para não tentar tudo para libertar a doce e encantadora Marie que, um ano antes, a tinha acolhido como uma irmã, como a desconhecida desesperada e suicida que era então...

Uma hora mais tarde subia, quase correndo, a alameda da Rua Chantereine, que ia dar a casa de Talma.

Ao aproximar-se da grande escadaria, no entanto, refreou o andamento: vozes atravessavam as paredes e as janelas e não eram próprias de uma conversação séria, na qual a serenidade era in­dispensável. Cunégonde, que saía pela porta para chegar às águas calmas da sua cozinha, informou-a:

—   Isto dura desde a meia-noite! Se eu fosse a vós... cidadã — Cunégonde, sempre zangada com o vocabulário republicano, con­sentia, por vezes, em lhe atirar algumas migalhas — pensava duas vezes antes de me atirar ali para dentro.

—   É que... tinha uma coisa importante para lhes dizer...

—   E isso não pode esperar?

Foi Julie que se encarregou de responder. Tinha apercebido Laura e apressou-se na sua direcção, para a levar para o interior da casa e reforçar a sua posição:

—   Minha querida Laura, chegastes mesmo a tempo! Vinde, vin­de dizer àquele monstro imbecil o que pensais da representação de ontem!

O campo de batalha, nessa manhã, era a sala de jantar. Talma, vestido com uma espécie de toga violeta, os cotovelos nus sobre a mesa e os punhos fechados escorando a sua máscara romana co­roada, com graça, pelas mechas em desordem da sua cabeleira à Titus, parecia um buldogue rabugento. A aparição de Laura nem sequer lhe arrancou um sorriso: saltou da cadeira para a segurar.

—   Há horas que esta megera me grita aos ouvidos! Como se eu tivesse alguma coisa a ver com a escolha dos programas! Além dis­so, não quer compreender que, se não fizermos o que agrada ao povo, arriscamo-nos a desagradar-lhe definitivamente.

—   De qualquer maneira, há limites! — exclamou Julie, tentan­do recuperar a amiga. — Alguma vez vistes coisa tão grotesca, tão baixa, tão ridícula, como o Último Julgamento? Nunca os Raucourt, os Contat, os Fleury, os Saint-Prix, os do teatro da Nação, enfim, se teriam rebaixado a representar uma mentira tão repugnante!

—   Ah não? E quando, no princípio de Britannicus, Albine diz a Agripina:

»Cidadã, voltai para o vosso apartamento!» não é ainda mais ri­dículo? Durante meses, empenharam-se em expurgar os grandes textos para eliminar as palavras rei, rainha, imperador, majestade, etc. Isso também não é ridículo? O que não os impediu de serem atirados para a prisão para esperarem sabe Deus que sorte horro­rosa! É isso que queres para nós?... E vós, minha cara Laura, quereis um pouco de café? Foi acabado de fazer.

A sua bela voz encontrava, de um só golpe, o seu encanto un­tuoso. Ao mesmo tempo, avançava uma cadeira para a jovem, pe­gava numa chávena e deitava nela o café fumegante, enquanto, apanhada pelo súbito volte face, Julie ficava um instante sem voz e sem argumentos, também ela acalmada. Maquinalmente, sentou--se ao pé de Laura, estendendo a chávena vazia ao marido.

—   Não tendes sorte com os espectáculos que vos oferecemos — suspirou ela. — O de ontem era estúpido e o desta manhã não é melhor! A nossa desculpa é que somos casados. Um estado que tendes a sorte de ignorar.

— Mas que consigo, muito bem, imaginar — sorriu aquela que fora Anne-Laure de Pontallec. — Aliás, cabe-me a mim pedir-vos perdão: chegar assim a vossa casa, sem dizer água-vai, seria in­desculpável, se não tivesse uma razão grave...

—   Tão grave assim? — murmurou Talma.

—   Sim. Esta manhã o... coronel Swan foi a minha casa. Acaba de saber da prisão de uma amiga comum, uma amiga que me é muito cara.

—   Quase todos os nossos amigos estão na prisão — disse Ju­lie com amargura. — Esse género de novidade é, infelizmente, muito frequente nos tempos que correm.

—   Sim, mas os vossos são todos homens políticos. Marie não passa de uma artista!

—   Marie? — perguntou Talma. — Qual Marie?

—   Marie Grandmaison. Eu sei que a conheceis, assim como a casa de Charonne, de onde foi arrancada na noite de antes de on­tem, com toda a sua gente. E sem a menor razão...

A máscara romana tornou-se grave, mas foi Julie que respon­deu:

— As mulheres de todos os nossos amigos, Brissot, Pétion, Ro­land, estão encarceradas. O único crime delas é o de serem mulheres deles. Toda a Paris sabe que Marie é a companheira amada de Batz e, desde há algum tempo, esse nome é pronunciado com uma certa frequência...

—   É ridículo! Batz, de quem gosto muito, não é um político: é um financeiro!

— Seria ingénua a esse ponto? — suspirou Talma. — Batz, cuja lenda diz que quis raptar o Rei, não é um político? Sabei que não se pode ser um homem de finanças se se imiscuir nos negócios da Nação.

—   Talvez. É possível, mas vós conheceis Marie? Ela retirou-se do teatro, afastou-se, mesmo, da vida parisiense, para viver o seu amor longe das turbulências. A prisão destruí-la-á.

—   Não. Creio-a mais forte do que pensais. Mas, se esperáveis que eu poderia ajudar-vos a tirá-la de lá, enganais-vos. Não tenho qualquer poder, se não, podeis ter a certeza de que me serviria dele.

— Vós não, mas o vosso amigo David? É um artista. Não pode deixar de ser sensível às infelicidades de outro artista...

—   Por que não lho perguntais vós mesma? — interveio Julie. — Ele demonstrou-vos, ontem, muita atenção, parece-me?

—   Com efeito, mas... não vos escondo que ele me mete um pouco de medo. O que faz com que me constranja pedir-lhe seja o que for. Vós, vós sois íntimos dele. Vem a vossa casa quase todos os dias...

—   Nos últimos tempos, tem vindo menos — notou Julie, que se tinha levantado para ir arranjar, diante de um espelho, as me­chas escapadas do seu carrapito desapertado. — Nunca gostou dos Girondinos, que sempre achou frouxos e de nós, pergunto-me se não somos para ele mais um hábito do que uma verdadeira afei­ção. Aliás, David não sabe o que é gostar. Crede-me: se ele consentir em vos ajudar — e tem poder para isso, porque é um dos raros amigos de Robespierre! — tereis que lho pedir vós mesma. Sabeis onde ele mora?

—   No Louvre, parece-me?

—   Sim. Tem lá um atelier imenso. Ide vê-lo, Laura! Que arris­cais?

Era justamente o que se perguntava a jovem quando, após o meio--dia, mandou atrelar a sua viatura para se dirigir a casa do pintor.

Tinha mudado muito, o velho Louvre! Desde os tempos dos reis, mas também desde os princípios da Revolução, onde abrigava, não apenas a Academia, mas também numerosos artistas, pintores, es-cultores, gravadores, os maiores, sem dúvida. A invasão das Tulhe­rias, no dia 10 de Agosto de 1792, o massacre dos Suíços, que foram perseguidos até suas casas, tinha afastado, assustados, nume­rosos artistas como Carle Vernet — partido sem mesmo levar o ad­mirável grupo de cavalos deixado no cavalete — Vien, Mme. Vigée-Lebrun, Lagrenée e outros ainda, até Fragonard que, por um momento, teve medo. Depois, uma multidão disparatada de preten­sos artistas tomara conta do lugar, estabelecendo-se não importa onde, não importa como, pilhando as decorações interiores e abatendo paredes e tabiques, instalando cozinhas improvisadas, que aumentaram, consideravelmente, os riscos de incêndio e pondo, democraticamente, a roupa a secar às janelas, onde tantas ilustres personagens se tinham debruçado. Quanto aos velhos canteiros, trans­formados em jardins de subúrbio, cresciam neles mais alhos-porros e cenouras do que rosas. A Academia de escultura e pintura acaba­va de ser abatida por David, que tinha por ela um velho rancor — e Deus sabe como ele era rancoroso! As outras Academias foram su­primidas com o impulso. No Louvre, apenas devia reinar o mestre e os seus pupilos, que por vezes se comportavam como terroristas.

A morte das Academias entregou à pilhagem os tesouros de arte (tapeçarias Gobelins, bronzes, bustos, baixos-relevos e, quan­to a registos e medalhas, uma fortuna em moedas de grande va­lor), que David não julgou útil mandar proteger. O que foi tanto mais absurdo, já que o pintor queria para si a direcção do «Museu que a Convenção queria instalar no Louvre.

De facto, no dia em que Laura se resignou a ir a casa dele, Da­vid reinava, quase só, nas Galerias. Ainda restava Hubert Robert, o bon vivant, a força da natureza, que desprezava com desenvoltura as decisões arbitrárias do governo, recusava participar na mais pe­quena comissão e nunca quisera entregar à Comuna o seu diplo­ma de pintor do Rei, para fazer dele um auto-de-fé. Pelo contrário, a sua pintura continuava a agradar, era rico e, até nova ordem, conservador do futuro Museu. Tudo más notas, que o seu vizinho consignava com delícia[. Restava, também, o velho Fragonard, que voltara porque não podia viver longe de Paris e que David prote­gia porque sempre tinham sido amigos e porque a sua pintura li­bertina já não estava na moda...

No Louvre Laura não teve qualquer dificuldade em saber onde era o apartamento do mestre. Era o mais importante do primeiro andar.

Ao chegar à galeria que lhe fazia serviço, procurou o número indicado e ia tocar quando teve apenas tempo para recuar: a porta acabava de se abrir violentamente, mostrando uma jovem em ca­misa de dormir de seda negra com um cinto azul-pálido, cuja toi­lette estava desarranjada e que parecia presa de um verdadeiro terror. Tinha grandes olhos sombrios e, quando encontraram os seus, Laura pensou ver neles um pedido de socorro.

—   Madame... começou ela, mas no mesmo momento uma voz furiosa berrou do interior:

—   Põe-te a andar!... E que nunca mais te veja, ouviste? Nunca! Serás tu que ouvirás falar de mim!

Com um grito, a desconhecida desapareceu nas profundezas da galeria, ao mesmo tempo que David, espumando de raiva, surgia por sua vez, a camisa completamente aberta sobre o peito e o ros­to convulso pela raiva. Estava de tal modo assustador que Laura quase seguiu a jovem, mas já ele a tinha reconhecido:

—   Miss Adams! ... — ofegou ele, procurando recuperar o fôle­go. — Que surpresa!

—   Estou desolada, venho em má hora. Desculpai-me, virei num outro dia.

A jovem tremia em frente daquele homem que se esforçava por recuperar o sangue-frio e ela não tinha outra vontade senão a de abandonar aquele local estranhamente deserto: os gritos não ti­nham atraído um único curioso. Não havia ninguém, ou era costu­me ouvir gritar uma mulher no atelier de David? Como não era possível escapar, entrou lentamente na vasta divisão iluminada por altas janelas, onde se amontoavam, numa desordem bastante se­dutora, belos móveis e material de pintura. Na parede, uma sober­ba tapeçaria, assim como telas, nas quais se afirmava a mestria do pintor. Uma outra, ainda no cavalete, e Laura reconheceu aquela que acabava de fugir. Estava sentada numa cadeira diante de um tapete de um belo vermelho, sobre o qual sobressaía o seu vestido negro, as fitas azuis e a palidez da sua tez delicada. Era, na ver­dade, muito bela e naturalmente, Laura, fascinada, perguntou:

—   Quem é?

—   Uma tola sem interesse!

Sem interesse? Na verdade? Laura não sabia muito de pintura, mas era preciso ser cega para não ver que aquele retrato inacaba­do era obra de um apaixonado. Teve vontade de saber mais:

—   Mesmo os tolos têm direito a um nome? Gostaria de o co­nhecer.

—   Não o procureis, perderíeis o vosso tempo!

—   Peço-vos?

—   Se assim o quereis... É a cidadã Émilie Chalgrin. É filha do pintor Joseph Vernet, irmã de Carle e passou a infância aqui. Casou com o arquitecto Chalgrin, 20 anos mais velho, mas riquíssi­mo... e que se apressou a emigrar, como cobarde que é, abando­nando a mulher e a filha.

—   Ela não quis segui-lo?

—   Não. Émilie é estúpida, mas é dedicada às nossas ideias de liberdade. Só que, depois do 10 de Agosto, tem medo: enquanto Carie e a família se refugiavam em Asnières, juntou-se à amiga Ro­salie Filleul, que mora em Passy, nas instalações domésticas do cas­telo de la Muette. Sente-se lá mais segura, sem dúvida, mas é ridí­culo! Aqui, sob a minha protecção, não teria nada a temer!

—   E ela voltou, portanto?

—   Não para ficar. Vem de tempos a tempos, para este retrato que nunca mais acaba. Foi por isso que quis convencê-la a ficar.

Os meios por ele empregues estavam bem visíveis nas almofa­das maltratadas de uma espécie de divã vermelho. A luta devia ter sido quente... Laura reparou, encostado a uma parede, num dese­nho a carvão que representava uma gigantesca estátua de homem apoiando-se, com uma mão, numa moca e segurando na outra duas figuras femininas, das quais uma era a Liberdade, porque ti­nha asas. Na fronte da estátua estava escrito «Luz», no peito <<Natureza» e »Verdade», nos braços »Força» e nas mãos <Trabalho».

—   O que é aquilo? — perguntou ela, encantada por encontrar assunto de diversão.

—   É o projecto de uma estátua para a Pont-Neuf. Está destinada a substituir a estátua equestre de um déspota que lá esteve tempo de mais. Terá 15 metros de altura e, sob os pés, elevar-se-á uma montanha.

—   Uma montanha? Sobre a ponte? Não resistirá!

— Alarga-se... com as pedras de Notre-Dame, que eu vou man­dar demolir... como todos os outros antros do pretenso Deus.

Laura estremeceu. Desta vez, tinha a certeza, o homem era lou­co! O seu génio, de que não duvidava, conduzia-o à megalomania. No entanto, não se pôde impedir de murmurar:

—   Eu sei que suprimiríeis Deus. Porém, parece-me que os ho­mens têm necessidade de acreditar em qualquer coisa?

—   Acreditarão na Liberdade, na Fraternidade, no Progresso e, se precisarem de um ídolo, terão Robespierre, o maior homem que a terra fez nascer!

—   Portanto, é a ele que se devem as preces? Tenho uma, jus­tamente...

— Uma prece? Tendes necessidade de ajuda? — perguntou Da­vid, tomando-lhe o braço para a dirigir suavemente para o divã... que ela evitou habilmente, sentando-se antes numa pequena ca­deira.

—   Não eu, mas uma amiga que me é tão querida como uma irmã. Foi ela que me acolheu quando cheguei a Paris, mesmo a tempo de ver morrer o meu único parente, o almirante John Paul--Jones. É a mulher mais agradável, mais doce, que conheço. Des­de que renunciou ao teatro, só se ocupa com as flores e os frutos do seu jardim. Foi lá que a foram prender, antes de ontem...

—   Uma actriz? Do teatro da Nação?

—   Não. Dos Italianos. Cantava. O nome dela é Marie Grand­maison. Talvez a conheçais? — acrescentou Laura, espiando o ros­to do pintor, mas não leu nele senão uma indiferença misturada com desdém:

—   Nunca gostei da Ópera, nem dos Italianos, antros de vício e prostituição, onde os senhores apodrecidos de Versalhes vinham escolher, como num mercado de escravos.

—   Se calhar, foi por isso que Marie se afastou? — disse Laura com doçura. — Comprou uma casa fora de portas e vive nela tran­quilamente desde há alguns anos...

—   Não tem amantes?

—   Um único, desde sempre, creio... e que partiu para longe.

—   Mais um desses emigrados cobardes? O nome dele?

—   Jean de Batz, mas toda a gente o sabe e vós tendes amigos comuns.

O desagradável beiço natural de Louis David tornou-se agres­sivo:

—   Já não estamos no tempo em que os «amigos» constituíam uma recomendação válida. Essa mulher embeiçou-se por um ho­mem perigoso, um homem de quem eu não gosto e que começa a aborrecer Robespierre.

Laura levantou-se, empurrada por uma súbita cólera, que lhe purpurou a tez delicada:

—   Embeiçou? É a nova palavra republicana para denominar o amor? O menos que se pode dizer é que não ganha nada com a troca. O de Marie é puro. Renunciou à sua vida brilhante para es-colher, senão a solidão, pelo menos uma existência simples... tal como a concebemos entre nós, na América.

—   Que comovente! Muito bem, minha cara, ides ficar decep­cionada. A vossa amiga não me interessa e não tenho qualquer ra­zão para me preocupar com ela... a menos que...

—   Não sou mulher de a menos que...» — disse Laura com um desdém esmagador. — O afecto por uma mulher inocente trouxe--me a vossa casa, porque pensava que poderíeis pôr em prática as vossas grandes palavras de Justiça, Virtude, Solidariedade, mas, em vez disso, traficais, como um intermediário, com uma prostituta! Isso não se faz entre nós, em Boston!

Dito isto, girou nos calcanhares e dirigiu-se para a porta, onde ele a apanhou:

—   Vamos, não vos zangueis! Compreendestes-me mal e, so­bretudo, não me deixastes acabar a minha frase. Eu ia dizer: a menos que aceiteis posar para mim. Sabeis quanto quero fazer o vos­so retrato? Justamente, o de uma mulher livre da América! Poderia ser a grande atracção do próximo Salão.

—   Não me apetece ser a grande atracção de coisa nenhuma! Tudo o que desejo é que Marie seja socorrida!

—   Concedei-me o tempo de um rápido esboço... e prometo pensar nisso!

Laura hesitou. Por si, partiria batendo a porta, mas o pensa-mento de Marie reteve-a. Aquele homem era perigoso, estava certa, e não gostava nada daquelas narinas frementes quando ele se aproximara dela: Um cão a cheirar um osso! pensou, sem se preo­cupar muito com a poesia, mas, no fim de contas, um esboço faz--se depressa e posso muito bem aceitar isso se Marie beneficiar...

Sem dizer uma palavra, voltou para o centro do atelier e permi­tiu que o pintor a sentasse numa cadeira perto de uma janela. Não quis a do estrado. Aliás, o cortinado vermelho estendido por trás de si ia mal com o seu vestido de suave fazenda violeta, rematado por um lenço engomado que ia até ao queixo e por um pequeno cha­péu do mesmo tecido, ornamentado com pequenas penas brancas. David gostaria que ela tirasse aquele acessório, mas ela recusou:

—   Não fico por muito tempo e não quero ficar despenteada.

Ele não insistiu, pegou num caderno de folhas brancas, um lá-pis e começou a desenhar com rapidez incrível. Uma folha, depois outra e outra ainda e outra, ao mesmo tempo que, com voz breve, ordenava ao seu modelo que mudasse de posição ou virasse a ca-beça. Num quarto de hora, tinha terminado...

—   Pronto! — suspirou ele. — Não abusei da vossa paciência?

—   Não, a sério!

—   Da próxima vez, durará mais tempo. E... por favor, vesti-vos de branco, o mais simples possível e não friseis os cabelos. A ima­gem da América livre não precisa das complicações de um cabe­leireiro.

—   E... Marie?

—   Vou tratar disso.

—   Espero que sim. Senão, não haverá uma próxima vez...

Não queria nada que houvesse uma próxima vez, mas o im­portante era que Marie fosse libertada. Quando ela estivesse longe — porque seria preciso escondê-la! — Laura poderia iludir as in­vestidas do pintor. A sorte de Émilie Chalgrin não a tentava!

 

Enquanto isso, aquela cujo futuro preocupava tanto a sua ami­ga e o seu amante, vivia horas penosas. Sainte-Pélagie, cujo nome era o de uma comediante de Antioche que vestira as vestes mona-cais após ter escandalizado os seus contemporâneos com os seus deboches, era uma das prisões mais insalubres de Paris. Como qua­se todas as novas prisões nascidas depois da queda da realeza, era um antigo convento. Ali iam cair mulheres, reclusas voluntárias, esposas adúlteras, raparigas seduzidas e abandonadas às suas lá-grimas e ao furor das suas famílias «desonradas». Estava entre as Madelonnettes, reservada às mulheres de alto estatuto social e a Salpêtrière, onde eram encarceradas aquelas que pertenciam à ralé. Coisa curiosa, foi uma das raras prisões onde os assassinos de Se­tembro não encontraram ninguém para matar, tendo os porteiros de então, Bouchard e a sua mulher, escolhido deixarem-se amarrar pelos seus pensionistas, permitindo-lhes, assim, fugir: um belo acto, sobre o qual meditaram, depois, na Força. No seguimento, o estatuto mudou: Sainte-Pélagie transformou-se numa prisão políti­ca para os dois sexos. Após uma curta estadia na Abadia, Mme. Ro­land foi ali encerrada no dia 24 de Junho.

Como a prisão de Marie foi decretada por Maillard — sem que tivesse poder para isso — a jovem foi atirada para um calabouço no subsolo, no qual uma abertura ao nível do chão mal iluminava o espaço. Não havia nada senão uma enxerga de palha meio apo­drecida e um cobertor em farrapos. Não passava de uma cave hú­mida e fria, onde a infeliz se esforçou para aquecer um pouco, enrolando-se no dito cobertor e no mau colchão. Como alimentação, não lhe deram senão um bocado de pão e uma bilha de água. Ig­norava ainda que, para ser um pouco mais bem tratada, deveria pa­gar ao novo porteiro, que tinha por divisa uma frase lapidar: «Aqui, não há nada para ninguém!» Mas a jovem já não tinha dinheiro. Maillard tirara-lho todo.

Chegada a noite, no entanto, o dito porteiro levou-lhe um prato de feijões, um pouco de vinho e um cobertor a sério: o resultado do dinheiro depositado por Pitou. E, ao retirar-se, o homem acrescentou:

— Dir-se-ia que tens amigos que te querem bem, cidadã. Se te conseguirem tirar do segredo, será um bocadinho melhor! Sobre-tudo, se continuarem a pagar!

No dia seguinte, à hora em que Laura penetrava no Louvre, a coisa estava feita. Retirada da cave, Marie foi elevada ao posto de prisioneira normal. O que queria dizer que a tinham transferido para uma cela do rés-do-chão, um pouco menos húmida e pouco mais confortável. Em Sainte-Pélagie, com efeito, «o corpo central destinado às mulheres está repartido por longos corredores, muito estreitos, num lado dos quais se encontram pequenas celas.... Esta tinha uma pequena janela guarnecida de grossas barras de ferro, uma enxerga fina, um colchão, um cobertor e, segundo o dinhei­ro de que se podia dispor, uma mesa, uma cadeira e diversos uten­sílios. A grande diferença era que, todas as manhãs, o guarda abria as grossas fechaduras e abria todas as portas, podendo as prisioneiras sair para os corredores, sentarem-se nas escadas, no pequeno pátio, ou numa sala repugnante, onde a limpeza nunca era feita.

Mal Marie teve tempo de se «instalar, encontrou-se no centro de um verdadeiro aviário, composto por mulheres de todas as ida­des, das quais uma boa parte pertencera à Comédie-Française do bairro Saint-Germain. Foi imediatamente reconhecida:

—   Mas, é a Grandmaison! — exclamou uma grande e bela mu­lher loura, que era a famosa Raucourt. — Que estais vós aqui a fa­zer? Há lustres que Paris não vos via?

—   Vivia no campo — disse Marie, estendendo a mão à actriz trágica. — No entanto, foi lá que me foram buscar.

—   Sob que pretexto?

—   Querem que eu entregue um homem.

—   Um homem? Mas como eu sou burra! — exclamou Françoi­se Raucourt, batendo com a mão numa testa que usara todos os dia­demas antigos. — O barão de Batz, claro! Aquele que vos tirou aos vossos admiradores! Um grande figurão! Corre, sobre ele, toda a es­pécie de lendas. Um verdadeiro cavaleiro, perdido entre os loucos!

Da parte de Raucourt, não era um cumprimento menor porque, se os amantes «úteis nunca lhe faltaram, toda a gente sabia que os seus gostos iam mais para as suas belas companheiras, o que não a impedia de ser mulher até à raiz dos cabelos, conservando, no fundo daquela prisão, uma elegância e um bom humor incríveis. Fez com Marie a volta social, apresentando-lhe aquelas que a re­cém-chegada não conhecia. Estava ali, com efeito, a «nata» de saias da casa de Molière: Mmes. la Chassaigne, Suin, Contat, Thénard, Joly, Devienne, Petit, Fleury, Mézeray, Montgautier, Ribou e Lange. Marie foi recebida como amiga, mesmo pelas outras prisioneiras que não pertenciam ao teatro, como Mmes. de Gouy, de Créqui-Montmorency, M11e. de Montcrif e as esposas de Brissot e Pétion - o antigo presidente da câmara de Paris — dois dos Girondinos encarcerados no Luxemburgo. Apenas Mme. Roland faltou à cha­mada: nunca saía da sua cela, onde escrevia a maior parte do tempo.

   Não sereis muito infeliz aqui — explicou Raucourt. — Todas estas senhoras são encantadoras e, quando chegámos, na ma-nhã de 4 de Setembro, aplaudiram-nos como se acabássemos de entrar no teatro. Em troca, fizemos-lhes uma bela reverência...

Marie, entretanto, reparou numa mulher que se mantinha à parte, escrevendo sobre os joelhos, num caderno e levantando a ca-beça de tempos a tempos, os olhos no céu, na atitude de quem procura lembrar-se de algo. Loira a roçar a brancura, teria uns 40 anos.

No entanto, a sua beleza permanecia notável.

—   Mas... — sussurrou Marie. — É a Du Barry?

—   Sim. Foi presa recentemente, no regresso de Londres, para onde partira à procura das jóias roubadas do seu pavilhão de Lou­veciennes. Ali onde a vedes, prepara a sua defesa, no caso de ser citada para o Tribunal Revolucionário.

Marie abriu muito os olhos:

—   No caso de? Ela não sabe que isso é quase certo?

—   Sim, mas ela não acredita que alguém lhe queira mal. Pri­meiro, não é emigrada, já que voltou. Depois, pensa que poderá sempre comprar a absolvição com a fortuna que lhe resta. Quereis que vos apresente? Somos muito amigas, sabeis? É a ela e ao Rei Luís XV que devo os meus primeiros contratos... E ela é verdadei­ramente encantadora. Alimenta as de nós que estão desprevenidas.

—   Com prazer, mas será pura curiosidade. Eu tenho alguns meios de sobrevivência.

—   De qualquer maneira, ajudar-vos-emos. Formamos uma es­pécie de comunidade, aqui. É — acrescentou Ia Raucourt com uma súbita angústia que lhe fez flectir a célebre voz — a única manei­ra de fazer face ao medo de um amanhã de que nos esforçamos por esquecer o horror.

 

     A IMOLAÇÃO

CHABOT, O CAPITÓLIO E O ROCHEDO DE TARPEIA

—   David? Fostes ver David?

A cólera que vibrava na voz de Batz não anunciava nada de bom. Só o nome do pintor chegava para a fazer explodir e Laura sentiu um choque: era a primeira vez que Jean se zangava com ela. Não lhe fez, por isso, menos frente, com determinação:

—   E por que não, se faz favor? Os artistas devem ajudar-se e esse homem pode fazer com que libertem Marie. Talma disse-me...

—   O que Talma diz não tem qualquer importância. O infeliz já tem muito que fazer entre os seus amigos girondinos ameaçados de morte e a acusação que lhe é feita de ter denunciado os seus antigos camaradas da Comédie-Française.

—   Estou certa de que não fez nada!

—   Também o creio, mas, vai ter dificuldade em justificar-se, ou então vai parar à prisão. Então, como não conseguia desembara­çar-se de vós, enviou-vos ao seu amiguinho David?

—   Nem pensar! Fui eu que lhe pedi que interviesse junto de David. Ele e Julie responderam-me, então, que seria mais bem su­cedida se fosse eu mesma a tratar disso.

—   E que vos disse o mestre? — disse Batz com um sorriso feroz.

—   Que trataria do caso se lhe permitisse fazer-me o retrato. Aliás, fez uns esboços numas folhas de papel.

—   O vosso retrato! A sério? E, bem entendido, virá pintar-vos aqui, em vossa casa?

—   Não. As telas dele são, geralmente, grandes. Vi o retrato inacabado de Mme. Chalgrin. Admirável, se bem que um pouco grande. Vou a casa dele, mas não irei senão quando Marie for li­bertada!

—   Sois, na verdade, de uma inocência! — fulminou-a Batz. Vou-vos explicar, o que vai acontecer: ireis a casa dele uma vez e outra e outra, destilando- vos a esperança. Ele disse-vos que fez o retrato de Mme. Chalgrin? Não sei como conseguiu ele isso, por-que posso assegurar-vos que ele lhe inspira um medo terrível. Sem dúvida suplicando-lhe uma graça qualquer! Mas não a terá, essa graça, senão quando aceitar ser amante dele. E convosco aconte­cerá o mesmo, miss Adams!

Laura empalideceu. Lembrava-se muito bem da cena violenta de que fora testemunha ao chegar ao Louvre: Émilie Chalgrin es-capando do atelier meio vestida, perseguida pelas injúrias e amea­ças de um homem que mais parecia um sátiro, do que um génio do pincel.

—   Não ousará tal. Pensa que eu sou uma estrangeira mais ou menos protegida pelo governo actual. Além disso, se Marie não es-tiver livre quando lá voltar, dir-lhe-ei que não voltarei. Recuso-me à ideia de que Marie possa permanecer muito tempo na prisão.

—   Nesse caso, dar-vos-á a escolher: ou vos deitais com ele, ou abandona Marie à sua sorte!

—   Bem, se chegarmos a isso, deitar-me-ei com ele...

A bofetada cortou-lhe o fôlego. Com os olhos subitamente ma­rejados de lágrimas, olhou com estupor para o rosto convulso de furor que lhe fazia frente e levou, maquinalmente, a mão à face do­lorida. Então, ele virou-lhe as costas:

—   Perdoai-me! Imaginar-vos nos braços daquele homem é-me insuportável! Proíbo-vos de lá voltar, entendeis? Proíbo-vos! Não... não preciso de vós para tirar Marie da prisão. Já tomei as minhas providências.

—   Não duvido — murmurou ela, confusa — mas... estais cer­to que serão eficazes?

— Assim o creio... Espero-o com toda a minha alma!

Ela aproximou-se dele, que já não a olhava e pousou-lhe uma mão tímida no ombro sólido, que sentiu estremecer.

—   E se isso não for suficiente? — perguntou ela docemente. — Duas precauções valem mais do que uma e creio ser suficientemen­te forte para levar David a ajudar-nos sem correr demasiados riscos.

—   Jurai! — rugiu ele. — Jurai que não voltareis lá!

—   Se não voltar lá, pelo menos mais uma vez, pode ser im­prudente. Se desencadeio a cólera dele...

Desta vez ele virou-se e ela viu o olhar dele cheio de uma ira sombria:

—   Sois louca, ou é preciso dizer-vos? O perigo de ser violada por David não é o único que podeis correr com ele.

—   E depois? — disse ela encolhendo os ombros, pensando que ele a tomava, na verdade, por uma rapariguinha, diante de quem se pode agitar todos os fantasmas da terra.

—   Poderíeis encontrar lá... o vosso marido.

—   O meu... marido? Quereis dizer... Pontallec?

—   Não vos conheço outro — disse ele com uma careta, cons­ciente de ter, por fim, tocado numa corda sensível. — Ele e David são... se não excelentes amigos, têm, pelo menos, grandes relações comerciais.

Estupefacta, ela conseguiu, mesmo assim, articular:

—   Mas... como sabeis vós isso?

—   Vou-vo-lo dizer.

E Batz contou como, no estabelecimento termal de Passy, lhe tinha acontecido surpreender uma conversação entre os dois ho­mens e as conclusões que dela tinha tirado:

— Pareceu-me que mais valia não vos revelar nada. Se, para se apoderar dos negócios daquela que matou, Pontallec desceu — ou fez de conta que desceu, porque continua, certamente, ligado ao conde da Provença — a dar-se com Lecarpentier, o carrasco de Cotentin, está mais perigoso do que nunca e eu não gostaria que vos lançásseis ao assalto de uma fortaleza cujo primeiro contacto vos derrotaria. Ora, como vos conheço, não ouviríeis nada. Sobretudo, a voz da razão!

Laura guardou silêncio por um momento, esforçando-se por assimilar aquelas revelações extraordinárias. Ainda era pior do que supunha: Pontallec, mão-na-mão com assassinos, terroristas! Aqui­lo ultrapassava a imaginação.

—   Se bem que o possais pensar — murmurou ela por fim — não sou nenhuma tola. Atirar-me para as goelas de um lobo não é o que desejo. Pelo menos de momento — acrescentou ela com tris­teza. E como precisais de mim...

No instante seguinte ela estava nos braços dele. Jean apertava--a com uma violência que não sabia medir, mas que traduzia, bem demais, o tumulto que lhe ia na alma:

— Sim, preciso de vós! De tal maneira, que nem podeis imagi­nar! Para levar a minha tarefa a bom termo, sem dúvida, mas tam­bém porque não consigo imaginar-vos longe de mim, sem vos po­der olhar, tocar a vossa mão com os meus lábios! Oh, Laura! Há tanto tempo que luto contra esta paixão que me inspirais! Desde o dia, creio, em que vos levei para minha casa...

Enfiou o rosto no pescoço da jovem, acariciando-o com os lá­bios. Deslumbrada, maravilhada pela súbita revelação daquele so­nho que se esforçara por sufocar, esconder, deixou-se ir contra ele, de olhos fechados, unicamente consciente daquela carícia que acendia nela uma sensação terrível e deliciosa. Os lábios de ambos uniram-se e o tempo parou...

Foi um momento de exaltação total, de esquecimento de tudo o que existia em volta do casal unido que acabava de se reconhe­cer, como se, desde sempre, tivessem sido destinados um ao outro.

Eram como uma árvore batida por uma tempestade, da qual não se queriam aperceber, mas que os impelia para a realização total. Era noite, tarde e em volta deles a casa mantinha-se em silêncio, atenta àquele acontecimento divino, um amor que acorda para a vida e vai levantar voo... E Jean ia levar Laura para o quarto tépi­do, para a doçura sedosa do leito, onde a deporia para a fazer sua, quando subitamente um clarão de consciência trespassou a jovem, arrancando-lhe um grito:

—   Marie! Não podemos fazer isto a Marie!

Ele largou-a tão subitamente que ela quase perdeu o equilíbrio e, sem uma palavra, foi sentar-se na beira de um canapé, onde es­condeu o rosto nas mãos. Laura pôde ver que aquelas mãos tre­miam. Quando ele levantou a cabeça para a olhar, havia lágrimas nos seus olhos:

—   Por que deixei eu escapar o meu segredo? Tinha jurado que nunca saberíeis nada deste amor e que... não passo de um homem! Vai ser preciso esquecer... esquecer que vós também me amais! Isso vai ser mais difícil...

—   Será, talvez, mais fácil para vós do que para mim. Amais Ma­rie, sejam quais forem os sentimentos que vos inspiro.

—   É verdade. Também... a amo, mas não da mesma maneira: com uma infinita doçura, uma infinita ternura. Não com a violên­cia que sinto perto de vós. Laura, acreditai... nunca mais haverá na minha vida outra mulher, senão vós!

E Laura ouviu-se a si própria responder como se uma voz es­tranha falasse por ela:

—   Que parte, nisso tudo, reservais para a vossa noiva? Um instante de silêncio, o dos grandes espantos e depois:

—   A minha noiva? Eu não tenho noiva! Onde fostes buscar isso? — À dor de Marie, quando uma jovem, vestida de negro, a foi

visitar a Charonne há pouco... para vos reclamar para ela. Uma jovem que disse chamar-se Michèle Thilorier...

—   Ela foi a Charonne? Teve coragem? Mas, com que direito?

—   Aquele que lhe destes, sem dúvida? De qualquer maneira — acrescentou Laura com um rancor que não conseguia dominar — pareceis saber muito bem quem ela é?

—   Sobretudo, o que sei é o que ela não é! — resmungou Batz, que sentia a cólera invadi-lo. — Nunca, juro-vos, pedi a mão dela aos pais.

—   A sério? Então, por que está ela grávida de vós?

—   Por todos os diabos do inferno, que história de loucos é esta? Michèle grávida... de mim? Arranjai-me qualquer coisa de be­ber, Laura! Qualquer coisa forte! Bem preciso...

Ela foi à sala de jantar e voltou com uma garrafa de um líqui­do de uma bela cor ambarina: a aguardente que os camponeses fa­ziam na região de Armagnac e da qual Jean lhe dera uma garrafa. Ela estendeu-lha com um pequeno copo, que ele emborcou de um trago. O que para ele era uma heresia e mostrava a medida da sua perturbação. Em seguida, respirou profundamente e ordenou:

—   Agora, contai-me tudo!

—   Cabe-vos a vós, parece-me, falar. Por que iria aquela meni­na inventar semelhante coisa se vós não lhe sois nada?

—   Seja: Michèle Thilorier é filha de um casal de amigos: ele, Jacques, era advogado no Parlamento de Paris, ela, bastante mais nova, de uma boa família de Bordéus. A irmã mais velha dela casou com o pequeno d'Epremesnil, filho de um dos meus amigos. Via-os muito antes da agitação, mas confesso que os negligenciei um pouco, depois... Como é sina minha, Michèle, que é um pouco mais velha do que vós, apaixonou-se por mim, ao ponto de en­trar, o ano passado, na minha casa da Rua Mesnard que, aliás, está selada. Ela detesta Marie, sem conhecer outra coisa dela senão os laços que nos unem.

—   Ao ponto de vir contar seja o que for?

—   Creio-a capaz de tudo para nos separar. No entanto, devo--lhe uma desculpa: há meses que não a vejo, mesmo quando o pai dela morreu, pouco depois do Rei. Eu estava em Inglaterra e, no regresso, não fui vê-las, a ela e à mãe que, aliás, é uma mulher ex­tremamente bela e pela qual o meu amigo Jean-Jacques d'Epre­mesnil, sogro da filha mais velha, está apaixonado há muito. Um poeta, Parny, cantou-lhe a beleza e não vos escondo que se eu me apaixonasse por uma dessas três mulheres, seria por Françoise Thi­lorier. Antes de conhecer Marie, estive, mesmo, um pouco enamo­rado dela. E é isto, já sabeis tudo!

—   Tudo, mesmo?

—   Pela minha honra! Michèle inventou essa história do bebé que está para nascer porque quer que eu case com ela. E eu, como sabeis, não me reconheço o direito de me casar... admitindo que o queira. O que não é o caso.

Levantou-se e andou com passos nervosos pelo salão, para fi­nalmente se deter diante de Laura, nos olhos da qual mergulhou o olhar, mas sem a tocar.

—   Não me acreditais, ao menos?

Claro que acreditava nele! O seu alívio era tão grande que teria rido e cantado, tão feliz estava por lhe poder restituir aquela bela confiança que a história de Michèle, tão cruelmente, lhe reti­rara. Mas no fundo dos olhos cor de avelã que ela tanto amava, pa­receu-lhe adivinhar uma outra aparência, doce e desolada...

—   Sim — disse ela por fim — acredito-vos, mas é Marie que precisa de ser tranquilizada! Estou convicta de que, ao recusar fu­gir convosco, ao deixar-se prender, se sacrificou. Aquela rapariga queria o campo livre — acrescentou ela com cólera. — Muito bem, fica com ele livre... para ela e para o seu bebé!

—   Tendes razão. É preciso que ela saiba a verdade! E depres­sa! É preciso restituir-lhe a vontade de lutar.

—   E, antes de mais, tirá-la da prisão! Que fizestes quanto a isso enquanto... eu ia ao Louvre?

O olhar negro que ele lhe lançou fê-la compreender que fora infeliz.

—   Fui ver Lullier, um dos meus amigos. É procurador-síndico da Comuna. Prometeu-me fazer diligências.

Lullier cumpriu a promessa: dois dias mais tarde, Marie aban­donava Sainte-Pélagie, na condição de não sair de Paris. Fixaram--lhe residência no seu apartamento da Rua Ménars, onde seria mais fácil vigiá-la: os caminhos de Charonne abriam com muita facilida­de para a liberdade do campo...

—   Não consegui mais — explicou Lullier. — Parece que Ro­bespierre tem Marie Grandmaison debaixo de olho, porque vê nela o melhor meio de vos apanhar. Estais em vias, meu caro Batz, de vos tornardes a ovelha negra dele.

—   Por outras palavras, Marie é a ovelha presa a uma corda para apanhar o tigre?

—   A imagem é pouco lisonjeira, mas exacta — suspirou Lullier. — E desaconselho-vos, fortemente, a que vos aproximeis da vossa antiga casa. Dai-vos por satisfeito por ela ter trocado uma prisão sórdida por uma casa confortável!

—   Tendes razão e nunca vos agradecerei o suficiente. Entre-tanto, não gosto de a saber só. Não poderíeis conseguir, já que os servidores puderam todos voltar para Charonne, que Nicole, a criada de quarto e Biret-Tissot se juntassem a ela?

—   Não há nada contra eles! Deve ser possível... mas não ten­teis, sequer, escrever-lhe! O mais pequeno bilhete pode permitir que eles cheguem até vós. E não esqueçais que também eu jogo a minha cabeça nesta história. Portanto, a vossa palavra?

—   Tende-la!

—   Obrigado... Ah! quase me esquecia! Mandei prender Mail­lard, para o ensinar a não usar poderes que não tem. Uns tempos na prisão far-lhe-ão bem, mesmo que não fique lá muito tempo. E achei que isso vos daria um certo prazer...

 

Enquanto isso, Chabot nadava em felicidade. O seu casamento estava marcado para o dia 14 de Outubro «5 de Vindemiário»

e, alguns dias antes, tinha subido à tribuna dos Jacobinos para anunciar a notícia e con­vidar a sociedade a nomear uma delegação para assistir à cerimó­nia e ao banquete cívico que se lhe seguiria.

— Aviso — clamou ele — que nenhum padre manchará a mi­nha boda e que apenas utilizaremos a municipalidade. A delega­ção deverá comparecer às oito horas, para que tudo esteja termi­nado às nove (O quê? o banquete também?), porque não quero ausentar-me da Convenção e a minha mulher disse que deixaria de me amar se isso me fizesse negligenciar os meus deveres para com a Convenção e os Jacobinos'.

Este discurso virtuoso caiu em cheio, no meio de um daqueles grandes silêncios que não anunciam nada de bom. É que antes de for­mular o seu convite, o ex-capuchinho não encontrou nada melhor do que fazer o elogio da futura esposa, anunciando o montante do dote — 200000 libras! — que iam mergulhar na opulência o indigente que fora até então. E, na mesma ocasião, cantou os seus próprios louvores de cidadão sem medo e sem censura, pobre, mas honesto.

Mesmo assim, os Jacobinos decidiram enviar alguns de entre eles — todos voluntários, sobretudo para o banquete! — para os representar naqueles estranhos esponsais de um monge despadrado com uma judia austríaca e milionária. E no dia 14 de Outubro, o cortejo entrava na residência Frey para ali fazer um festim...

Delaunay fazia parte dos convidados, assim como Julien de Toulouse. Batz enviara um presente ao jovem casal, mas escusara--se: o seu pai, doente, na Gasconha, forçava-o a deixar Paris onde a sua presença, aliás, não era indispensável para o mais violento golpe que contava desferir contra os que o queriam destruir. Foi, portanto, Delaunay que, após um repasto copioso, tomou conta do recém-casado para lhe propor um novo negócio, o mais suculento dos que, até à data, a eles fora associado: tratava-se de apoiar, na Convenção, a proposta de liquidação das 40000 acções da Com­panhia das Índias que, por ordem de Batz, ele lançara na Conven­ção, no decurso de uma intervenção incendiária. Era, sem dúvida, o negócio mais frutuoso do século.

Dizer a nova Companhia das Índias seria estar mais perto da verdade. Luís XVI tinha-a ressuscitado no dia 14 de Abril de 1785.

Sucedia à criada por Law em 17171 e cujos privilégios haviam sido suspensos em 1769, no seguimento das guerras de Sucessão da Áustria e dos Sete Anos. Seguiu-se a dissolução. Calonne propôs a sua sobrevivência em novos moldes: unicamente comerciante, sem poderes civis e militares. Isenta dos serviços da guerra e provida, por sete anos, do monopólio do comércio com todos os países si­tuados para lá do Cabo da Boa Esperança (menos a ilha de Fran­ça e a ilha Boubon)2, prosperou rapidamente, Batz, o seu amigo d'Eprémesnil e o curioso abade d'Espagnac, que dirigia ainda a importante companhia dos Charrois, contavam-se entre os princi­pais accionistas. A Companhia tinha, naturalmente, perdido os seus privilégios no princípio da Revolução, mas continuava a ser a mais rentável.

—   Podíamos tirar enormes benefícios da liquidação — defen­deu Delaunay. — Tu, sobretudo. Compreendes, nós, os teus ami­gos, sentimo-nos pesarosos por te ver entrar nesta casa um pouco como parente pobre, a despeito do que te fizemos ganhar. Assim, poderás afirmar-te, se nos apoiares.

—   Não peço mais, claro, mas como será isso possível?

—   Nada mais simples: vou-te explicar. A minha proposta de dissolução levará o terror à alma dos administradores e accionistas da Companhia. O que fará baixar as acções. Na ocasião desta bai­xa, Benoist e Batz comprá-las-ão a preço baixo. Em seguida, sub­meteremos à Companhia dois projectos de decreto. Um mais sua­ve, o outro mais rigoroso e dir-lhes-emos: «Escolhei! Tereis de dar tanto pelo decreto que vos é mais favorável.

—   E depois?

—   Depois? Essa soma servirá para as especulações de Benoist e de Batz e nós teremos os lucros. Estás a ver, é muito fácil de com­preender.

Quando se falava de dinheiro, Chabot compreendia o incom­preensível. Aplaudiu com as duas mãos, jurou que «entrava» e abandonou-se às doçuras daquele dia de núpcias, que punha a en­cantadora Léopoldine no seu belo leito dourado. O que ele igno­rava era que, nessa noite, nos Jacobinos — onde, claro, ele não foi! — Hébert, o temível redactor do Père Duchesne, cortava-lhe na casaca e fazia chacota da «Austríaca de Chabot».

Aquilo poderia não ter passado de uma brincadeira, mas o ter­rível acontecimento do dia dava-lhe uma cor singularmente amea­çadora: com efeito, à hora em que Chabot voltava para a Rua d'An­jou, escoltado pelos seus amigos e com a sua bela mulher pelo braço, a Rainha comparecia pela primeira vez perante o Tribunal Revolucionário. Um dos processos mais infames da História come­çava e era Hébert que ia fazer, contra aquela mãe desesperada, a mais ignóbil das acusações.

Dois dias depois, de manhã, a 16 de Outubro, a Rainha de França, por sua vez, morreria...

 

Desde antes do nascer do dia, por volta das 5 horas, que Paris entrou em rebuliço: o estrondo metálico das rodas dos canhões, que tomavam posições, o passo cadenciado de 30000 soldados, de guarda ao longo do caminho da Conciergerie até à praça da Revo­lução, o rufar dos tambores, o som de passos de homens de gor­ros vermelhos nas cabeças e armados de chuços, voluntários para ajudarem os soldados em caso de ataque e a multidão que se le­vantara cedo e se punha em marcha para conseguir um «bom lu­gar» no local onde fosse possível não perder nada do espectáculo.

Estava frio, Não tanto como em Janeiro, mas o suficiente para fazer tremer na sua prisão aquela que a pequena Rosalie Lamor­lière acordou, levando-lhe um pouco de caldo quente — do qual ela não pode absorver senão algumas colheres — a ajudou a ves­tir, a mudar a camisa manchada de sangue, «Ela era, é sabido, sujeita a hemorragias, que a minavam», tentando afastá-la um pouco do olhar desavergonhado do gendarme «que não deve tirar os olhos dela». Maria Antonieta voltou a vestir um saiote negro, mas o seu vestuário de morte seria branco, porque é o luto das Rainhas e ela assim o quis: uma espécie de roupão, ou manto, com um grande lenço de musselina cruzado no alto, sob o queixo.

Ainda um longo momento — faz-se durar o tempo, quando se assassina uma Rainha: é preciso fazer durar o prazer! — em segui-da será preciso começar a trepar os degraus do calvário: o padre blasfemador», o abade Girard, cuja assistência a Rainha recusara — «Deus já providenciou, meu caro senhor!» — o escrivão que vem ler a sentença, o carrasco que retira a suave musselina branca, massacra os cabelos ainda tão belos, recoloca às três pancadas a tou­ca branca sobre a sua «obra» e, por fim, ata as mãos até aos cotovelos, puxando-os, cruelmente, para trás das costas. A corda, guardá-la-á na mão até ao cadafalso, ficando assim com o ar de le­var a Rainha pela trela. Por fim, a saída para o pátio — são agora mais ou menos 11 horas — e o sentimento de horror perante a viatura que espera: uma carroça de estrume que nem sequer tiveram o    cuidado de limpar...

Batz subiu a Rua Saint-Honoré em todo o seu comprimento, procurando, sem muita fé, um local propício, de onde poderia li­vrar Maria Antonieta daquele pesadelo, sem ali deixar a vida que deve a Luís XVII. Sob a sua sobrecasaca cinzento-ferro há uma pistola carregada, mas a multidão já é muito densa, o cordão de tro­pas serrado e é proibido assomar às janelas, que devem permane­cer fechadas. Tinha pensado nas escadas da igreja de Saint-Roch, de onde poderia fugir através do santuário, do qual conhecia bem as saídas, mas um bando espesso de «tricotadeiras» estava praticamen­te ali acampado, grotesco e sinistro, com as suas toucas vermelhas e        chuços que, em honra do acontecimento, substituíam as agulhas de tricô. A mesma coisa à entrada da passagem que vai dar aos Ja­cobinos e que é decorada com uma curiosa inscrição: <Atelier de armas republicanas para fulminar os tiranos.» Quando chega à entrada da Rua Saint-Florentin, compreende que qualquer intervenção será uma loucura e que não há mais nada a fazer. Aliás, quando a Rainha ali chegar, a sua via dolorosa terá quase terminado...

Subitamente, à sua frente, do outro lado da rua, Batz distingue um rosto: Rougeville! Pálido, de traços vincados, vestido como um operário, um operário sujo — as pedreiras de Montmartre não são muito propícias à limpeza — está ali e Batz não o consegue expli­car. Como pode ele estar ali? Como é que ele soube? Aqueles que o       abastecem tinham ordens de não lhe dizer nada, mas as pedrei­ras são enormes caixas de ressonância, capazes de captar os sons da cidade.

Batz gostaria de se juntar ao seu amigo, visto que teme que ele tente algum excesso, como suicidar-se à passagem do cortejo, mas atravessar a rua é impossível. Aliás, é demasiado tarde. A conde-nada aproxima-se, rodeada de gendarmes e de gritos de ódio, que se ouvem aqui e ali.

Ao ver o veículo, Batz sente um baque no coração ao lembrar--se da profecia de Lenoir. A Austríaca não terá carruagem! Vem sentada sobre uma prancha, de costas para a frente, com o abade Girard que reza, a seu lado, os olhos postos num pequeno crucifi­xo de marfim. À frente da carroça, não é Santerre que caracoleia sobre o seu grande cavalo: é um comediante sem talento, um cer­to Grammont, que desempenha o papel da sua vida e que as mu­lheres aplaudem.

Quando a carroça chega onde ele está, Batz fica, por um ins­tante, gelado de admiração e respeito: a mulher que passa diante de si não passa de uma sombra da mais resplandecente das rai­nhas, mas que grandeza, que dignidade! Que incrível majestade! De olhos fechados, mantém-se direita, levando, como uma coroa, a touca branca mal colocada sobre a cabeleira massacrada. Então, esquece toda a prudência e, tal como na manhã do dia 21 de Ja­neiro, a sua voz de bronze troa:

—   Cabeças descobertas!

E tão poderosa é a vontade daquele homem que lhe obede­cem, maquinalmente. Apenas um não ouviu: David que, numa ja­nela em frente, desenha com, a um canto da boca, um trejeito mau.

Grammont, então, berra do alto do seu cavalo:

—   Ei-la, a infame Antonieta! Está tramada, meus amigos!

Aquele ali — pensa Batz, hei-de matá-lo! Mas a sua intervenção não foi do gosto de toda a gente. Dois homens, armados de chuços caem-lhe em cima para o maltratarem. Os outros não se importam de perder umas migalhas do espectáculo. Atirado por terra, vai ser espetado pelos chuços quando, de repente, os agressores o aban­donam, ao mesmo tempo que uma voz autoritária declara:

—   Não lhe toqueis, meus amigos! Ele é meu. Há muito tempo que o procuro!

Quem o salva é Jaouen. De carmanhola ao ombro e gorro ver­melho na cabeça, inspira confiança àquela gente, mas, sobretudo, o seu gancho de ferro que encostou ao pescoço de um dos ho­mens, no sítio onde bate a jugular. Bastaria um pequeno toque para que o sangue jorrasse...

—   Está bem, cidadão! É teu, mas arranja-te para que ele não nos impeça de nos divertirmos.

A pressa é tão grande que não é fácil desembaraçarem-se. Jaouen consegue, no entanto, levar Batz para a Rua Saint-Floren­tin, onde não há muita gente, porque não há nada para ver.

—   Obrigado, disse Batz. — Mas, por que me salvou? Você de-testa-me!

—   É verdade. Mas ela ama-o e eu não quero que chore mais! E depois... eu aprecio a coragem... mesmo que seja inútil. Por fim, aquela que vai morrer com tanta grandeza tem direito ao meu res­peito!

Chegados ao fim da rua, foi-lhes impossível passar: a praça es­tava negra de gente. Os dois homens, então, içaram-se, ora sobre o candeeiro ao canto da rua, ora sobre as pedras do Guarda-Mó­vel. E viram...

O cadafalso rodeado por um quíntuplo cordão de soldados não estava longe, mesmo no alinhamento da ex-Rua Royale. Os ajudantes do carrasco exibiam-se. A carroça parou, saudada por aclamações ferozes. Chapéus e gorros vermelhos voavam pelo ar. Empoleirado na sua parede, Batz viu Maria Antonieta descer, se­guida do abade Girard. Continuava direita, sempre digna e como a temperatura aquecera um pouco com o sol, já não tremia. Vi­ram-na, não sem surpresa, subir rapidamente a escadaria fatal, precipitar-se, literalmente, para o cadafalso, com tanta pressa, que perdeu um dos pequenos sapatos cor de abrunho e pisou o pé de Sanson:

— Peço-lhe desculpa, senhor. Não fiz de propósito.

Mas Batz não ouviu isso. Ainda viu os ajudas segurarem na condenada que, com um vivo movimento de cabeça atirou ao ven­to que se levantava a sua touca, ligarem-na à prancha, levaram um tempo infinito a fecharem-lhe a luneta sobre o pescoço delgado... sempre pelo prazer! Um relâmpago por fim, um choque surdo e a cabeça repugnantemente cheia de sangue reapareceu, pendurada pelos cabelos, na mão do carrasco, que a passeou como um troféu em volta do cadafalso, enquanto estalavam gritos, um bando de tri­cotadeiras dançava de alegria e o canhão troava...

Batz saltou para o chão, mas quando procurou Jaouen, já este tinha desaparecido. Lá em baixo, a carroça levava o corpo para o cemitério de la Madeleine, para onde já fora atirado Luís XVI. Ao chegar lá, o carroceiro viu que nada estava preparado, nem sequer havia uma campa aberta. Era tarde — muito depois do meio-dia! — e aquele homem tinha fome. Contentou-se em puxar o cadáver pelos pés, atirá-lo para cima da erva, a cabeça entre as pernas. Era a vez de o coveiro fazer o seu trabalho.

Enquanto isso, no Templo, Simon brindava com o seu «aluno» à saúde da Nação e ensinava-o a cantar o Ç'a ira.

Ao voltar para a Rua du Mont-Blanc, Batz encontrou Laura no jardim. Os olhos dela estavam vermelhos e vestígios de areia no ves­tido mostravam que se devia ter ajoelhado diante do banco de pe­dra para rezar ao ouvir os canhões.

—   Não gostáveis dela, no entanto — notou ele.

—   Não, mas o que lhe fizeram é abominável! Todas as mulhe­res deviam chorar por ela. Não conseguistes? — acrescentou, ven­do Batz tirar a pistola e pousá-la sobre o banco.

—   Não, era impossível e arriscava-me a matar outra pessoa qualquer. Quanto a mim, não teria escapado vivo. Quase fui espe­tado por um chuço só por tê-la saudado e, sem o vosso Jaouen...

—   Jaouen? Ele estava lá?

—   Estava e salvou-me. Quero agradecer-lhe.

—   Não o vi. Ainda não deve ter voltado.

Apareceu nesse instante e encaminhou-se na direcção dos dois. Nunca estivera tão pálido e o seu passo, tão deliberado habitual-mente, tinha qualquer coisa de automático. Batz foi ter com ele:

—   Disse a miss Adams o que você fez por mim e quero agra­decer-lhe...

—   É inútil. Teria feito o mesmo por outra pessoa qualquer. To­mai! Consegui roubar isto...

E estendeu-lhe um objecto envolto num saco de papel cuja for-ma o barão adivinhou o que era: um pequeno sapato de pele cor de abrunho, cuja aparição provocou em Laura um grito:

—   Meu Deus, é...

—   Sim, a Rainha perdeu-o ao chegar ao cadafalso. Sereis vós que o guardará, Laura. Um dia entregá-lo-eis ao seu filho... ou à sua filha! Duas vezes obrigado, Jaouen! Mas, por que é que fez isto?

—   Para que parásseis de desconfiar de mim, tanto um como a outra. Sim, eu sou republicano, mas um povo que comete tais ac­tos, desonra-se. Tornou-se capaz do pior... e é preciso salvar as crianças. Ajudar-vos-ei, se o desejardes!

—   Então, pela terceira vez: obrigado!

Quando Joël Jaouen já se tinha retirado, Batz regressou lenta-mente à casa com Laura. Continuava a segurar entre as mãos a co­movente relíquia e não cessava de a contemplar:

—   Sabeis qual é o nome desta cor?

—   Naturalmente: é abrunho!

—   O nome completo é «abrunho de Saint-Huberty». Como igno­rais certamente, Saint-Huberty era uma cantora de ópera. Muito cé­lebre! Mas desde há três anos que é a mulher do homem que mais odeio no mundo: o conde de Antraigues. Um intriguista perverso que, do seu refúgio suíço, onde não tem nada a temer, dirige uma agência de espionagem ao serviço dos príncipes, mas sobretudo do conde da Provença. Foi ele que fez fracassar todas as nossas tentativas de salvar a Rainha, para que ela não pudesse reclamar a re­gência. Mas não lhe entregarei o Rei! Pode ser que parta em breve...

—   Com ele?

—  Ainda não. A partida dele necessita de uma preparação mi­nuciosa, que pode levar alguns meses. Quando o assunto que te­nho em mãos neste momento não precisar mais de mim, conto deslocar-me a Auvergne, onde um dos meus amigos, um suiço, está em vias de comprar, em meu nome, um domínio muito belo, onde instalarei Marie, quando conseguir fazê-la sair de Paris. Um castelo, desta vez — acrescentou ele, sorrindo ante a imagem — e que, no coração de França, poderá acolher o jovem Rei quando o reconduzirmos na conquista do seu reino.

— Vós vedes longe! = murmurou Laura com um nada de amar­gura, porque, naquele futuro, Jean não parecia reservar-lhe um lu­gar e mudando de tom: — Onde pensais conduzir o Rei quando ele deixar o Templo?

— Jérsia... Inglaterra... talvez mesmo a América, como me pro­pôs o nosso amigo Swan. O importante é tirá-lo deste corta-gar­gantas em que se transformou o reino dele.

—   O mais longe possível dos tios dele, suponho? Onde está Monsieur?

—   Pelo que sei, em Hamm, na Alemanha, mas teria na ideia vir para Toulon, onde estão os ingleses. Depois da morte do irmão, aborrece as chancelarias europeias todas para se fazer reconhecer como regente, um título que pertence à mãe do Rei, porque a re­gência não se submete à lei sálica. Em vão, até à data! No meio dis­to tudo, a Europa apoia o ponto de vista da Áustria; mas agora...

Imaginava sem dificuldade qual seria a reacção de Monsieur quando lhe chegasse, em breve, a notícia da execução da Rainha. Quase o conseguia ouvir e, de facto, ao receber o correio de Paris, este deixou cair com um sorriso sarcástico:

—   Veremos agora se a corte de Viena recusa reconhecer-me como regente.

Laura, entretanto, tentava saber um pouco mais sobre os pro­jectos daquele que amava:

—   Estais certo que uma vez em Auvergne não sereis tentado a ir mais além? Para agradecer ao vosso amigo suiço, por exem­plo?

—   E atacar Antraigues no seu covil? Mas ele deixou Mendrisio em Julho último, para se instalar em Veneza, perto do seu amigo Las Casas, embaixador de Espanha junto da Sereníssima, que ele convenceu para que o ligasse, oficialmente, ao seu serviço. De lá, ele pode comunicar mais facilmente com Inglaterra, Áustria e Rús­sia, o que aumenta bastante as suas remunerações. Como Toulon não lhe parecia seguro, tenta convencer Monsieur a ir para Verona, onde o teria debaixo de olho.

—   Estou a ver — suspirou Laura, na qual o fluxo de informa­ções não lhe diminuíam as dúvidas. — Mas, fica assim tão longe, a Suiça de Veneza? Será suficiente para vos evitar a tentação?

Batz pegou na mão de Laura para nela pousar um beijo infini­tamente terno, que não chegou a atenuar o seu sorriso trocista:

— Só quando a afrontamos é que podemos saber se lhe é pos­sível resistir. Admito que ela será - forte, mas, para já, ainda tenho que fazer aqui.

Era preciso empurrar a roda do negócio da Companhia das Índias, que. Chabot, perdido nas delícias da sua lua-de-mel, parecia ter perdido de vista. Ora, como este o tinha anunciado, conti­nuava a ir com assiduidade às sessões da Convenção, assim como dos Jacobinos.

Dois dias depois da boda, Delaunay passou à segunda fase da acção decidida. Sem se preocupar em perturbar um terno frente-a--frente, desembarcou, de manhãzinha, na Rua d'Anjou, de expres­são preocupada.

—   Lamento incomodar-te — disse ele quando o outro apare­ceu vestido com um galante roupão, quer dizer, meio nu e com os cabelos desalinhados — mas fala-se, na Comissão de segurança ge­ral, em te acusar.

—   A mim? E quem?

—   Amar, Panis, David... Estou desolado por to dizer, mas o teu casamento com uma austríaca teve um efeito deplorável.

—   Como, deplorável? Todos eles sabiam muito bem que Poldi­ne era austríaca! Primeiro, já não o é, porque a minha mulher não saberia ser outra coisa senão francesa e até os irmãos dela obtive­ram a nossa nacionalidade. Depois, ninguém duvida do civismo deles. Junius é um grande homem.

—   Bem, justamente... não tão grande como isso! Diz-se que a fortuna dele é fictícia e que em vez de receberes 200000 libras de dote, foste tu que as trouxeste e que são o fruto das tuas especu­lações.

—   Mas isso é ridículo! — bufou Chabot, atordoado. — Toda a gente sabe que os Frey são ricos, muito conhecidos em Viena e...

—   Muito conhecidos, sim... mas não como se pensava. De fac­to, eles não são nem Frey, nem ricos. São judeus da Morávia, cha­mados Drobuska, célebres pelos seus desfalques. Teriam mesmo fugido da Áustria, deixando lá a família, enquanto lhes enforcavam as efígies no Kohlmarkt.

—   A família? Mas ela está aqui, a família deles: é Léopoldine!

—   Não! A mulher de Junius e as duas filhas teriam ficado na Áustria. Também tem um filho de 16 anos que trouxe para França e que está no exército.

—   Não é filho dele, é sobrinho e é a prova viva do patriotismo deles, visto que é soldado!

—   Seria, sobretudo, espião!

—   Oh! É ignóbil! Que infâmia! E a minha Poldine, seria o quê? Uma espia, também?

Delaunay fez um pequeno intervalo, como se hesitasse em con­tinuar e depois suspirou:

—   Isso ainda é mais aborrecido. Ela talvez seja irmã deles, a mais jovem. Haveria duas outras, uma das quais vegeta na Áustria e a outra é ricamente mantida por um barão alemão. Quanto a Léo­poldine, as denúncias que chegam à Comissão pretendem que ela saiu da cama do imperador da Áustria, a quem os irmãos a vende­ram, ainda criança. Eu não acredito, sabes muito bem — acres­centou ele, ao ver Chabot decompor-se diante dos seus olhos.

—   Denúncias — balbuciou ele — mas de onde vêm elas?

—  Vá-se lá saber? O teu casamento deu brado, e mais vale, sem­pre, não despertar invejas. A inveja nunca desarma.

—   E eu que pensava que só tinha irmãos! — choramingou o ex-capuchinho.

— Há irmãos e irmãos! Escuta, de qualquer maneira, ainda tens alguns a ajudar-te. E Batz tem grande influência na Comissão. Sim­plesmente, se tu lhe desagradares no negócio da Companhia das Índias, ele pode muito bem deixar-te cair e então...

—   Achas que tenho cabeça para me preocupar com isso?

—   Olha, fazes mal! Sobretudo se a tua mulher não tem dote. Vamos meter-te imediatamente no negócio sem esperar pelos re­sultados. Benoist dar-te-á 100000 francos e tu colocá-los-ás ime­diatamente. De qualquer maneira, terás a tua parte quando com­prarmos de novo as acções.

Delaunay ganhara. Chabot, indignado com as «calúnias» derra­madas sobre a «sua família», pôs-se em campanha para defender o decreto proposto por Delaunay. Este, entretanto, suportava, não uma derrota, mas um sério contratempo. Alguém se levantava con­tra o projecto tal como ele o apresentara e que dizia, concluindo, que os administradores da Companhia das Índias procederiam, eles mesmos, à liquidação. O que forneceria à Companhia um bom pre­texto para permanecer viva. Esse alguém era Fabre d'Eglantine, o imediato de Robespierre. E Fabre d'Eglantine, esse, exigia que a Convenção se encarregasse, ela mesma, da liquidação. O que de­moliria o belo plano de Batz... Indignação, protestos, grandes mo­vimentos oratórios e grandes gestos depois, a Convenção acabou por enviar o projecto perante uma comissão encarregada da re­dacção definitiva. Uma comissão composta pelo próprio Delaunay, Chabot, Ramel, Cambon e Fabre d'Eglantine. Como Cambon e Ra-mel eram homens honrados e fechados aos jogos de agiotagem, o negócio parecia malparado: esses dois votariam com Fabre. De­launay foi receber ordens à Rua du Mont-Blanc:

—   Precisamos da maioria — disse Batz — e, para isso, preci­samos de Fabre. Portanto, compremo-lo!

—   Achas que é possível?

—   É a única possibilidade. Por baixo dos ares de revolucioná­rio puro e duro que se dá para agradar a Robespierre, não passa de um comediante falhado, um cantor de ópera sem sucesso, que vegetou através da Europa, com algumas estadias na prisão. Tudo nele é falso. A única coisa verdadeira é o golpe de génio que teve ao escrever Está a chovei; pastora.... Essa canção encantadora va­leu-lhe uma grande vida durante algum tempo, ao ponto de ser ameaçado de prisão por dívidas. Foi o Rei, pressionado pela Rai­nha, que lha evitou. Como recompensa, transformou-se num revo­lucionário selvagem. Ligou-se a Danton, que o empregou como se­cretário no ministério da Justiça e alojou-o na Chancelaria. Não durante muito tempo, na verdade, mas o suficiente para «mandar fabricar 10000 pares de sapatos com solas de cartão, que o seu crédito lhe permitiu colocar junto dos fornecedores dos exércitos, realizando um lucro de 35000 libras. Essa prova de civismo valeu-lhe um assento na Convenção'». Agora, está instalado na magnífi­ca residência de um emigrado, na Rua de la Ville-l'Evêque e vive nela sumptuosamente com Caroline Rémy, uma actriz do teatro da República. Está sempre a precisar de dinheiro. Acredita, aquele, apanho-o e é Chabot que se vai encarregar disso...

—   Chabot? Esse é cobarde e trapalhão.

—   Sim, mas agora que meteu o nariz na armadilha, é preciso que meta lá o corpo inteiro, esse rato!

Dito isto, Batz redigiu o projecto de decreto tal qual o queria e deu-o a Delaunay, para que este o submetesse a Fabre.

—   Chabot só tem que lhe dizer que, se o aprovar, terá 100000 francos.

No dia seguinte, nas Tulherias, onde funciona a Convenção, Chabot aborda Fabre na sala da Liberdade e estende-lhe o projec­to, dizendo-lhe que só tem que assinar, mas sem acrescentar que seria recompensado de maneira substancial. Nas algibeiras, com efeito, leva 100000 francos em cédulas. Fabre lê o papel e franze as sobrancelhas:

—   Não é exactamente isto que eu quero — resmunga ele.

E tirando da algibeira um «lápis», pousa o pé sobre uma cadei­ra e corrige aqui e ali diferentes parágrafos. Chabot, que o obser­va, tem um momento de hesitação: seria a ocasião de oferecer o dinheiro de que o outro — Batz soube-o — tem grande necessi­dade. Mas reflecte e não diz nada: a escrita a lápis, apaga-se... e os 100000 francos ficam melhor nas suas algibeiras do que nas de Fa­bre! No fundo, está-se nas tintas se o decreto da Companhia das Índias levar esta à ruína. O importante é que ele fique rico. Além disso, já não se arrisca a ser acusado de corrupção...

Um momento mais tarde, juntando-se a Delaunay e Julien, en­trega-lhes o papel, que eles lêem sem compreender:

—   Que gatafunhos são estes? — pergunta Julien de Toulouse. — Ele recusou o dinheiro?

—   Não, não, ficou com ele, mas sabes muito bem que ele não podia aparentar o ar de se pôr do nosso lado sem fazer nada. Não estávamos sós. E fez isso com um lápis. Apaga-se...

—   Sim, mas mais vale voltar a escrever tudo — diz Delaunay, que lia o documento atentamente. — Servindo-nos do que ele escreveu, podemos tornear a dificuldade... por exemplo, in­cluindo que a Companhia seria liquidada «segundo os seus esta­tutos e regulamentos», o que lhe dá o direito de se liquidar a ela própria.

Algumas horas mais tarde, o texto estava pronto. Chabot cor­reu para Fabre e encontrou-o na cama com a amiga, o que fazia com que não estivesse com o espírito muito claro. Percorreu o tex­to com os olhos e, reconhecendo nele a sua «pata«, não procurou mais e assinou.

Pouco tempo depois, Chabot tocava na comissão prometida: 100000 francos que se iam juntar aos que guardara, felicitando-se por se ter mostrado tão hábil. Enrolara toda a gente, até Batz e como este conseguira o seu decreto, não tinha qualquer razão de queixa. Quanto a ele, ia poder afundar-se, durante dias tranquilos, entre a sua Poldine e a sua bela fortuna, que se recusava a colocar no estrangeiro, como o haviam aconselhado os seus «amigos». Era muito mais forte, mais inteligente do que eles todos! Que guardem os seus conselhos, se contentem em pagar os seus serviços e o dei­xem governar a sua barca como muito bem entender!

 

Os acontecimentos fortaleceram-lhe, aliás, as certezas. Alguns dias mais tarde, a 24 de Outubro, começava o processo dos Giron­dinos que se conseguira capturar e na Convenção, como nos Jaco­binos, havia outras coisas a fazer, para além de se preocuparem com ele. Sobretudo Hébert que, no seu Père Duchesne, fazia ouvir a sua 'Grande Alegria», um grande grito de ódio triunfante: «A Fran­ça inteira acusa-vos. Não escapareis ao suplício que haveis mereci-do... E depressa, mestre Sanson, enseba as tuas polés e prepara o balancé para esse bando de celerados que 500000000 de demónios vomitaram e que deveriam ter sido estrangulados no berço!»

Foram 21 a comparecer, todos deputados de um departamento. entre o Somme e o Var, todos revolucionários da primeira hora, sig­natários da Declaração dos direitos do homem, tudo gente de uma certa qualidade, todos na flor da idade. O próprio Chabot compa­receu como testemunha de acusação no terceiro dia do processo, soltando um discurso interminável destinado, sobretudo, à sua pró­pria glória e denunciando, de passagem, um "complô» dos acusados, ao qual teria, virtuosamente, recusado associar-se. Viveu, diante da­quele tribunal, cuja sentença já estava pronta, um intenso momento de auto-satisfação, persuadido de que, esmagando homens impotentes, se colocava acima de qualquer ataque. Na noite de 30 para 31 de Outubro foram todos condenados, mas apenas 20 subiram ao cadafalso, já que Valazé se apunhalou no momento da sentença. Abraçaram-se ao pé da guilhotina e morreram com galhardia.

Mas o mais impressionante, sem dúvida, foi o suplício da sua musa, a jovem e bela Mme. Roland, que morreu oito dias mais tar­de, vestida com um vestido branco e flores cor-de-rosa. Em ne­nhum momento perdeu o seu sorriso, chegando mesmo a elevar a coragem daquele que morreu com ela, o director da fábrica oficial de cédulas...

Chabot podia considerar-se tranquilo quando, na manhã de 9 de Novembro, «19 de Brumário», Julien de Toulouse o foi acordar — na verdadeira acepção do termo. Aquele gostava muito do antigo pastor, no qual via um confrade suficientemente inteligente para compreender que a religião não levava a nada se não se tivesse meios de ocupar os postos elevados. Recebeu-o, portanto, com um entusiasmo que se apagou, como uma vela, quando viu o seu rosto severo.

—   Alguma coisa não vai bem? — perguntou ele.

—   Sim. Tu. Chegou a altura de compreenderes que, nos tem­pos que vivemos, não é possível jogar em dois tabuleiros. Tens esta bela casa, uma bonita mulher — contra a qual, aliás, Hébert se en­carniça cada vez mais todos os dias! — és rico, mas ainda não per­cebeste onde está o teu interesse.

—   E onde queres tu que ele esteja senão aqui? Na minha casa, com a minha mulher, os meus irmãos da Convenção e os Jacobinos...

—   Há alguns a quem não conseguirás convencer de que és seu irmão e, como eles não se calam, cada dia que passa ficam mais persuadidos de que tu não passas de uma ovelha ranhosa. Repara, é apenas um mau momento, que há-de passar: quando eles esti­verem todos mortos, tu ficarás tranquilo. A menos que já o estejas.

—   Mas o que é que tu estás para aí a dizer? O que é que isso quer dizer?

—   Que a contra-revolução está em marcha e tu vais com ela, quer queiras, quer não. Portanto, farias melhor se pusesses os teus bens em segurança e — por que não? — tu também, juntamente com a tua mulher.

Chabot tentou brincar:

—   Estás a brincar! Eu, contra-revolucionário?

—   Exactamente, visto que trabalhas connosco na destruição da Convenção! Vou-te dizer o que vai acontecer num futuro próximo. À excepção dos nossos amigos — e tu nem conheces metade! — todos os convencionais estão prometidos ao cadafalso. Primeiro, os amigos «moderados dos Girondinos. Em seguida, será a vez de Danton, Camille Desmoulins e dos outros. Depois deles, morrerão Thuriot, Basire... o próprio Chabot. Será uma hecatombe de co­missários dos exércitos, contra os quais se fabricam denúncias nos gabinetes da Guerra. Chegará a vez de Billaud-Varenne, que al­guém meteu no negócio dos mercados de trigo e se a corrupção de Robespierre não pode ser provada, pelo menos assentarão na de um homem da sua intimidade. A representação nacional será, assim, dizimada e quando os departamentos virem que os deputados são guilhotinados, nenhum suplente consentirá em deixar a sua pro­víncia para vir substituí-los. Então, a Convenção ficará reduzida a um punhado de homens desconhecidos e desprezados, dos quais abusarão, ou cuja vontade anularão!

Para completar a sua sátira violenta, Julien endireitou-se e, com o braço estendido sobre a cabeça, desempenhou o papel do anjo exterminador, diante do qual Chabot desabou.

—   Estou a sonhar! Não é possível! É um pesadelo! Por que ha-veriam todas essas catástrofes de acontecer?

—   Porque tu não és o único a ter-se deixado comprar, meu paz-d'alma — disse Julien com súbita suavidade. — Além dos nos­sos, os agentes de Pitt estão por toda a parte, mas sobretudo na Comuna, no exército, no ministério da Guerra...

Chabot deixou sair um grito de horror. Pitt! Era a mesma coisa que dizer o Anticristo! E ele ia passar por um dos dele?

—   Mas, que devo fazer?

—   O que te disserem! Vai-te embora com tudo o que possuis, antes que não vejam em ti senão um homem de Pitt, pelo menos o da Áustria. Não esqueças que sucedeste ao imperador na cama da tua mulher. São coisas que aproximam...

E Julien de Toulouse, deixou a residência Frey com passo tran­quilo, deixando o seu «amigo» despedaçado.

 

   ONDE SE FALA DA IMPORTÂNCIA DA NORMANDIA

Durante 24 horas de marasmo, Chabot não saiu de casa, pouco comeu, bebeu muito e, coisa pouco habitual, tratou com dureza Léo­poldine, quando ela se inquietou com o comportamento bizarro dele. Não sabia de todo em que posição estava e procurava, febril-mente, pontos de referência. Que fazer? Como sair de uma situação na qual, deslumbrado com miragens douradas, se tinha deixado cair?

Após uma noite sem sono, decidiu ir apanhar ar até à Conven­ção. Voltou a vestir a sua indumentária de revolucionário genuíno, acrescentando uma confortável peliça, porque estava frio e húmi­do — Brumário merecia bem o nome — e foi para as Tulherias. A Assembleia já estava em sessão quando chegou. Sentando-se o mais discretamente possível, pôs-se a examinar os confrades, um após outro, enquanto lhe passeava pela cabeça a terrível revelação de Julien: «os agentes de Pitt estão por toda a parte...» Então, olha­va para eles, para aqueles homens que pensava conhecer tão bem, que tratava por tu e que pensava serem irmãos, perguntando-se, com angústia, sobretudo para aqueles que pareciam mais afortu­nados: «Será um deles?»

E de súbito, Philippeaux subiu à tribuna com aquela expressão grave e severa que lhe era conhecida. Aquele jurista de 37 anos, nascido em Seine-Maritime, estava entre os deputados mais rigoro­sos. Votara com entusiasmo a morte do Rei, mas suspensa e depois, enviado em missão a Vendée, tivera graves disputas com os seus colegas e os generais, sobretudo com Westermann, que, com as suas «colunas infernais, confundia, com demasiada frequência, re­pressão com genocídio. Já os atacara na tribuna e, de qualquer maneira, todos sabiam que não subia a ela para dizer uma coisa qual-quer. Nesse dia, ia pronunciar palavras terríveis:

— É preciso — martelou ele na sua voz fria — que as másca­ras caiam, que a virtude se mostre completamente nua, que o povo saiba se todos aqueles que se dizem seus amigos trabalham, com efeito, para o seu bem. Mas, comecemos por ser severos com nós mesmos. Peço que cada um dos membros da Convenção... seja obrigado a apresentar, dentro de dez dias, o estado da sua fortuna antes da Revolução e que, se a aumentou depois, que indique por que meios o fez... Peço que os membros da Convenção, que não satisfizerem as disposições do vosso decreto, sejam declarados trai-dores à Pátria e perseguidos como tal.

Um tumulto seguiu-se àquelas palavras. A favor ou contra, toda a gente falava ao mesmo tempo sem que o presidente Laloi con­seguisse restabelecer a calma. Chabot, esse, estava aterrado: páli­do, escutara a diatribe como se escutasse a sua própria condena­ção à morte. Atingido por um raio, não conseguia compreender porquê, justamente naquele dia, Philippeaux manifestara tais exigências. Ignorava, claro, que na véspera, denúncias anónimas, um pouco explícitas de mais, tinham chegado à Convenção e que o meio drástico, preconizado pelo orador era, sem dúvida, o único que poderia salvar a honra da Convenção.

Passou pelo rosto uma mão que tremia um pouco e fechou os olhos por um instante, mas quando voltou a abri-los, apercebeu-se de que Hébert o fixava com um sorriso mau, que lhe provocou um arrepio na espinha. O que ele não viu, foi a tricotadeira que, na primeira fila do público, o devorava com o olhar. Para a condessa de Sainte-Alferine, aliás, Lalie Briquet, o suplício por que passava Chabot era um verdadeiro regalo. E era só o princípio.

— Juro-vos que há-de pagá-las! — tinha-lhe dito Batz. — E ou­tros com ele!

Mal a sessão terminou, Chabot levou o seu amigo Basire pelo braço para o terraço.

—   Ouviste o que Philippeaux pediu?

—   Ouvi, mas não vejo por que me hei-de preocupar. Eu sou o mais pobre de todos.

—   Talvez, mas isso não basta. Também te fiz lucrar com a mi­nha boa fortuna. Se isso se sabe, podes vir a arranjar inimigos...

—   Isso seria mau! Que propões tu?

—   Que me imites em tudo. Vou fazer de maneira a que fiquemos seguros. Só terás que acertar o passo quando te disser...

—   E vai até onde, o teu passo?

—   Até Robespierre! O que eu lhe vou dizer provar-lhe-á que eu sou um bom e verdadeiro patriota...

—   Vamos lá já? — perguntou o outro com uma careta.

—   Não. Irei só. Tu, contenta-te em escrever o que te vou ditar. Para já, volto para casa, onde tenho assuntos para pôr em ordem.

Tinha, sobretudo, necessidade de reflectir calmamente, para afinar a táctica soprada pelo seu cérebro febril e que se resumia em quatro palavras: trair toda a gente!

Como as visitas matinais estavam cada vez mais na moda na­queles tempos perturbados, foi de manhãzinha que Chabot, no dia 14 de Novembro, se dirigiu à Rua Honoré, na esperança de en­contrar Robespierre a sair da cama. O que, já de si, não era boa ideia: muito preocupado com a sua aparência, o Incorruptível ti­nha horror a mostrar-se em roupão. Não foi, portanto, com a me­lhor das disposições, que se viu face a um Chabot titubeante, qua­se aliviado por ser recebido sem testemunhas e que, a medo, descarregou o relato, um pouco incoerente, da maior conspiração jamais montada contra a República. Com a pressa de se desembaraçar de um fardo demasiado pesado, Chabot acusou todos os seus novos amigos, os protagonistas do jantar de Charonne, com Batz à cabeça, mas acrescentando-lhe o seu inimigo Hébert, Fabre d'E-glantine e alguns outros e propondo reuni-los em sua casa para serem presos todos ao mesmo tempo. Robespierre, de rosto gelado, como habitualmente, escutou-o sem dizer nada, até que o ex-ca­puchinho teve necessidade de recuperar o fôlego.

—   Como é que tu soubeste isso tudo?

—   Pensava que tinhas compreendido? Fingi entrar nesses pla­nos monstruosos, para melhor os descobrir. De outra maneira, era impossível.

—   Tens provas?

—   Sim. Isto!

E pegou num pacote que tinha deixado cair sobre uma cadei­ra, ao entrar: os 100000 francos em cédulas, destinadas, primitiva-mente, a Fabre.

— Este pacote foi-me entregue para que eu tratasse (sic) de de-terminar um membro da Montanha que desistisse da oposição que fazia aos projectos da pandilha. Não quis rejeitar esta comissão para não ficar impossibilitado de descobrir o fundo da conspiração, mas a minha intenção era ir à Comissão de segurança geral e de­nunciar os traidores.

— Excelente ideia — cortou Robespierre. — Vai lá e trata disso!

Chabot esperava outro acolhimento e não pronunciara o nome da Comissão, senão para dar mais crédito ao que dissera, quando contava que o assunto ficasse entre Robespierre e ele. Já se via como braço direito do único homem capaz de o proteger com efi­cácia...

—   Não me deixaste acabar a minha frase. Eu disse que a mi­nha intenção era", mas tendo preferido vir primeiro ter contigo, pensava que serias tu a tomar o assunto em mãos?

—   Se esse assunto é tão grave como tu dizes, diz respeito ao país inteiro. A Comissão existe para o proteger. Vai lá e leva-lhe isso! — acrescentou ele, apontando para o pacote aberto, no qual não tocara.

A entrevista terminara. Chabot pegou de novo no seu pacote e abandonou a casa Duyplay com a impressão de que o fardo de há pouco voltara para os seus ombros, mais pesado! Sabia que vários membros da Comissão eram amigos de Delaunay, de Hébert... e também de Batz. Que iriam eles fazer da sua denúncia?

Pouca coisa, aparentemente. Quando Chabot, por fim, se de­sembaraçou das suas cédulas, repetiu o relato perante três homens que lhe pareceram juízes do Inferno: Amar, Jagot e Voulland. Eles escutaram-no, com efeito, sem convicção aparente, contentando-se em ordenar-lhe que pusesse tudo aquilo por escrito.

Tinha de o fazer e, na noite seguinte, voltou lá com os seus pa­péis, aos quais tinha juntado a denúncia ditada ao inocente Basire. Deram-lhe um recibo por aquela bela obra e mandaram-no embo­ra, persuadido de que as ordens de prisão se iriam seguir. A fim de ficar certo de que Hébert, o seu mais perigoso acusador, não es-caparia, quis mesmo certificar-se de que estava em casa. Estava e nada nos arredores anunciava o menor sinal de prisão. Furioso, Chabot regressou à Comissão, encontrou Jagot e deixou explodir a sua cólera:

—   Se não agis já, denunciarei o complô à Convenção nacional já amanhã.

—   Saberemos responder-te — disse Jagot, tão friamente que Chabot sentiu nele uma ameaça. Então, baixou a voz:

—   Vamos lá a ver, escuta-me! Eu só peço 24 horas para man­dar prender os conspiradores e as respectivas provas!

—   Não te preocupes! Tudo isso diz respeito à Comissão...

Na madrugada de 17 de Novembro, Chabot era arrancado ao seu ninho macio, nos braços da sua Poldine chorosa e conduzido à prisão do Luxemburgo, onde o pobre Basire se lhe juntou mais tarde. Foram emitidas outras ordens de prisão, mas, por sorte, ne­nhuma conseguiu encontrar quem elas visavam. Salvo um...

—   Delaunay foi preso — anunciou Batz, preocupado. — Esta­va em casa de Louise Cescoings, onde a polícia foi logo, enquan­to o bilhete que o prevenia esperava em casa dele.

—   E os outros? — perguntou Pitou.

—   Partiram todos! Benoist para a Suiça. Já tinha tomado as suas precauções há muito e estava tudo pronto. Julien, esse, não estava na Rua Saint-Georges, em casa de Mme. de Beaufort, mas sim em Courtalain, onde se ocupa da manufactura de papel. Por sorte, a mulher dele, chegada de Toulouse há dois dias, disse que ele es­tava ausente de Paris. Deve ter conseguido preveni-lo.

—   E os Frey? E Léopoldine?

—   Ainda não foram presos, mas não deve tardar. Se fosse a eles, punha-me ao largo — suspirou o barão, estendendo as mãos para o fogo da chaminé e esfregando-as suavemente.

—   Mas, enfim — disse Laura, oferecendo-lhe uma chávena de café — como pode ter acontecido isso tudo? É uma catástrofe, não?

—   Não, enquanto os nossos «cúmplices» ainda estiverem nos seus postos. Admito que julgava Chabot tão estúpido e cobarde: ir contar tudo a Robespierre, declarando bem alto que estava na jo­gada, é, pelo menos, inesperado. Talvez Julien tenha sido vigoro­so demais quando o fez compreender que não podia recuar, mas sim marchar connosco até onde eu queria levá-lo. Apenas um pouco mais longe! No entanto, penso que o mal está feito: a Convenção está contaminada e o mal é irreversível...

— A não ser que se corte a parte doente?

—   É o que Robespierre não deixará de fazer, mas vai precisar de cortar fundo e muitos dos nossos caros deputados vão ser os doentes — acrescentou ele com o frio sorriso que por vezes tinha e do qual Laura não gostava.

— Não prenderam Hébert e Fabre? — continuou Pitou.

—   Não, mas não tardará muito. Quando os Frey forem presos, por exemplo! Caroline Rémy, a amante de Fabre, é amiga de Léo­poldine. Frequenta a Rua d'Anjou e o próprio Fabre vai lá de tem­pos a tempos. Robespierre há-de saber tudo isso, se já não o sabe. Quanto a Hébert, contenta-se em andar inquieto e essa inquieta­ção, vamos utilizá-la em nosso proveito. Laura, minha querida, vou afastar-me de vós por algum tempo. Devo fazer uma pequena via­gem à província.

— A de que me tínheis falado? — inquietou-se Laura.

— Não. As coisas precipitam-se e, infelizmente, não tenho tem­po. Vou, muito simplesmente, à Normandia. Devaux vai comigo e, se calhar, fica lá.

— É grande, a Normandia — grunhiu Pitou com um olhar para Laura. — Fica mesmo ao lado da Bretanha, não muito longe de Saint-Malo...

A jovem estremeceu e já abria a boca para dizer que também queria ir, mas Batz pegou-lhe na mão, na qual depositou um beijo.

—   Estai tranquila, tenho, para já, mais em que pensar do que correr atrás do sr. de Pontallec. Há-de chegar a vez dele, mas, de momento, vou preparar as mudas para a fuga do Rei. A questão de Jérsia já não se pode pôr. Lecarpentier faz reinar o terror em todas as costas que possam servir de ponto de desembarque. Luís XVII chegará a Inglaterra...

—   Por Bolonha? — completou Pitou. — Num dos vossos navios?

— Deixe a sua imaginação em paz, Pitou! É a mim que Robes­pierre procura em primeiro lugar e você está certo se pensa que ele deve saber o que aconteceu à minha organização. Aliás, dei a liberdade aos meus homens, dando-lhes os barcos de presente. É Swan que está encarregue da travessia da Mancha. Embarcaremos na costa a norte de Caen e eu vou antes disso a Carrouges, onde a criança poderá repousar um pouco. É uma verdadeira fortaleza na orla da grande floresta de Ecouves e há lá subterrâneos em caso de alerta.

—   Carrouges, Carrouges — continuou o jornalista. — Isso não pertence ao general Le Veneur? E ele está na prisão de Amiens, se a memória não me falha.

—   É verdade! É assim que a República recompensa os nobres que cometeram a imprudência de a servir, mas não estou muito in­quieto por Alexis Le Veneur, que conheço muito bem. Primeiro, sempre foi sincero nas suas convicções e nunca traiu. Segundo, o seu ajudante-de-campo, Lazare Hoche, que acaba de agarrar um grande comando, é filho de um dos seus guardas de caça, prefe­rindo morrera deixar o seu general ir para o cadafalso.

—   E vós quereis levar o Rei para o castelo dele?

—   Quero. Le Veneur não está lá, mas a condessa Henriette, a mulher dele, está. E ela é, essa, realista. Eu sei para onde vou, Pi­tou — acrescentou docemente. — E depois disto, até breve, meus amigos!

Um lamento de Laura reteve-o na saída do salão:

—   E Marie?

— Desde que eu não me aproxime dela, está em segurança na Rua Ménars.

— Posso ir vê-la?

—   Desde que eu não esteja em vossa casa, por que não? — Não lhe direi nada da vossa parte? Sabeis como ela vos ama! Um instante de silêncio e depois Batz teve um sorriso infinitamente terno:

—   Sabeis muito bem o que lhe ides dizer. É preciso que ela es­queça Michèle Thilorier!

Laura pensou que até ela tinha dificuldade em esquecê-la. No entanto, nunca poria em dúvida a palavra de Batz.

—   Lembrar-lhe-ei a vossa divisa: «In omni modo fidelis» — mur­murou ela, quase maquinalmente, mas logo se arrependeu diante da careta dolorosa com que ele tentou fazer um sorriso. Parecia-se demasiado com sarcasmo. Ela quis voltar atrás, chamá-lo, mas ele já tinha desaparecido.

No vestíbulo, Batz encontrou Jaouen:

— Vou-me embora — disse-lhe ele — e não sei quando volto. Tome bem conta dela!

—   Uma recomendação supérflua! De qualquer maneira, se vos afastais, o perigo também se afasta. Que Deus vos guarde!

Então, Batz estendeu uma mão, que Jaouen apertou sem hesi­tar. Apesar dos sentimentos contrários, os homens de honra reco­nhecem-se sempre...

 

No dia seguinte, no momento em que Laura se dispunha a sair para ir a casa de Marie e parlamentava com Jaouen, que pretendia acompanhá-la, Jean Elleviou fez a sua aparição. Um lenço de seda e uma enorme écharpe branca, de lã tricotada, comprometiam um pouco a sua elegância habitual. Além disso, tinha o nariz vermelho, os olhos aquosos e um gato parecia ter elegido a sua gargan­ta para domicílio.

—   Misericórdia! — gemeu ele. — Ides sair? E eu que vos vinha pedir um momento de paz, um canto ao fogão e talvez um chá! Es­tou constipado, como podeis ouvir e todo escangalhado!

—   É verdade. Devíeis estar na cama.

—   Eu bem queria... se tivesse a certeza de ficar só! Mas desde que sabe que estou doente, a Mafleuroy acampou no meu quarto com umas intenções tão evidentes que é enjoativo. Aquela mulher nunca compreenderá que não a amo?

—   Seguramente, é a coisa que as mulheres têm mais dificulda­de em compreender — sorriu Laura. — Mas entrai, meu amigo! O canto ao fogão está aberto para vós e tereis o vosso chá! Como é que fizestes para sair?

— Pela janela da cozinha e só parei de correr na Rua Marivaux. Estou todo partido! — acrescentou ele num tom tão lamentoso que Laura o levou pelo braço para o pequeno salão de música, onde ardia um bom fogo. E instalou-o no canapé com uma data de al­mofadas.

—   Bina vai tomar conta de vós.

Ele interrompeu um suspiro de alívio para se inquietar:

—   Ides sair?

—   Vou. Vou ver Marie Grandmaison, à Rua Ménars.

—   Isso não é prudente. Diz-se que ela está muito vigiada.

—   De qualquer maneira, tem direito a receber uma amiga, su­ponho?

—   Não estou bem certo que supunheis bem. Pelo menos, ide acompanhada por esse homem dos bosques que vos serve de mor-domo! As ruas estão cada vez menos seguras...

Nisso já Laura tinha reparado. Depois da morte da Rainha, todos os dias o guinchar sinistro das rodas das carroças que levavam os condenados ao cadafalso fazia tremer os habitantes da Rua Saint-Honoré e Rua Royale. Tinham sido os Girondinos, Mme. Ro­land, o ex-duque de Orleães, Bailly, o antigo presidente da câma­ra de Paris, o sedutor Barnave, que se dizia, no entanto, «o filho querido da Revolução»... e que amara a Rainha, mas esses eram as vedetas. Outros infelizes, mais ou menos anónimos, como o anti­go ministro da Justiça, Duport-Dutertre, morto com Barnave, acom­panhavam-nos ou seguiam-nos nos degraus da guilhotina. A polí­cia estava por toda a parte e já ninguém estava ao abrigo de uma denúncia. O medo, como os nevoeiros gelados desses fins de Novembro, estendiam-se, pouco a pouco, sobre a cidade...

No fim de contas, Laura deixou-se convencer em sair com Jaouen, tanto mais que iria a pé. A menor viatura parecia-se, en­tão, com uma provocação e até os fiacres eram menos utilizados, porque o seu uso significava um certo desafogo. Envolta numa gran­de capa negra com capuz, que a defendia tão bem do frio como da humidade, Laura dirigiu-se, então, à Rua Ménars munida, como se fosse ter com uma doente, de um pote de mel e dois potes de compota, as que haviam sido feitas com as ameixas de Charonne! Jaouen levava-os num tabuleiro com um ramo de margaridas de Outono, mas quando chegaram diante da casa de Marie, Laura nem sequer teve tempo de tocar a campainha: um municipal surgiu imediatamente:

—   O que é que tu queres, cidadã?

—   Ver a cidadã Grandmaison. É aqui que ela mora? — respon­deu ela, forçando um pouco o seu sotaque estrangeiro, que fez franzir as sobrancelhas do seu interlocutor:

—   Tu és o quê? Não és uma inglesa?

—   Não. Sou americana. Chamo-me Laura Adams — acrescen­tou ela mostrando a sua carta cívica — e Marie Grandmaison é mi­nha amiga. Venho fazer-lhe uma visita.

—   Bem, estou desolado, mas não a verás. A cidadã Grandmai­son já não recebe visitas! — acrescentou ele com- uma grande risada. — Apanhou uma grande febre e está no choco!

—   Está doente? — interrogou Laura, já inquieta.

—   Pode-se dizer isso! Apanhou a febre má realista. Isso não perdoa, nos tempos que correm!

—   Quer dizer, está prisioneira, na sua própria casa — interveio Jaouen, que começava a ficar impaciente. — Nesse caso, não valia a pena terem-na tirado de S... de Pélagie?

—   Se `tivesses no lugar dela, não dirias tal. Em todo o caso, está melhor entre os seus móveis do que entre os da República. E, já agora, tu és o quê, tu? Um lacaio?

Jaouen colocou-lhe sob o nariz o seu gancho, o que o fez dar um salto à retaguarda:

—   Um veterano de Valmy! Exército Kellermann e aconselho-te a que me fales com um pouco mais de respeito, fedelho.

—   Desculpa, camarada! Está escrito no teu corpo e eu ficaria muito feliz por apertar a mão de um dos nossos bravos — acres­centou ele, oferecendo uma palma calejada, na qual Jaouen meteu a sua mão válida. — Apenas, no que se refere à cidadã Grandmai­son, não te posso dizer mais nada: é guardada de noite e de dia, caso o seu amante, esse malvado, apareça.

—   E ela alimenta-se como? O maná cai-lhe do céu? Ou então, continua a ter o direito de fazer compras?

—   Não. Ela não se mexe. As compras, é o oficioso dela que as faz... sob uma boa guarda, para que não tenha contacto com nin­guém. Portanto, sinto-me desolado, mas não a vereis.

—   Ao menos — pediu Laura, pode dar-lhe o que trazemos para ela?

—   Não há nada escrito aí dentro?

—   Veja você mesmo: mel e compotas que ela me tinha dado. Vêm do jardim dela. Diga-lhe! Isso dar-lhe-á prazer. E diga-lhe tam­bém que é da parte de Laura e que...

—   Chega! — cortou o municipal. — Não direi mais nada! Já é bem bom que eu aceite isso...

Jaouen tirou da algibeira algumas cédulas, das quais mostrou as pontas.

—   Mesmo com isto? — murmurou ele.

— Sim. Mesmo com isso! Tens de compreender, camarada: nos tempos que correm, a navalha de barba nacional barbeia nuito bem! Dai-me isso e desaparecei!

Não insistiram e afastaram-se, mas, em caminho, Jaouen deu li­vre curso ao seu mau humor.

—   Que estupidez! — resmungou ele. — Se é assim que espe­ram apanhar o barão, enganam-se. A casa devia estar vigiada, mas de longe e, sobretudo, não de maneira tão evidente. Nem sequer se preocuparam em montar uma ratoeira conveniente!

— Você devia dar-lhes lições! — disse Laura, cáustica. — Se eu tivesse sabido, teria metido uma mensagem na compota. Marie tem, antes de mais, necessidade de algumas palavras que eu lhe queria dizer, e não de torradas.

—   É tão importante assim?

— Oh sim, é muito importante! Marie pensa que Batz ama outra.

—   E é verdade parece-me? Ele «ama-vos»!

—   Não se trata de mim, mas de uma outra, que lhe foi contar que era noiva dele e que até está à espera de um bebé. Já agora, é longe daqui, a Rua Buffault?

—  Não é longe da nossa casa pela Rua Chantereine — disse Jaouen, que conhecia Paris como a palma das suas mãos e espe­cialmente o bairro onde morava. — Daqui, é preciso ir à Rua do Faubourg-Montmartre: lá faz os três lados de um triângulo. Mas, o que quereis vós ir lá fazer?

—   É lá que mora a tal Michèle Thilorier. Preciso de lhe falar.

Jaouen tinha vontade de fazer notar a Laura que aquela histó­ria não lhe dizia respeito — ou dizia pouco — mas sabia, por ex­periência própria, o que significava uma certa ruga que acabava de aparecer entre as sobrancelhas dela.

—   Vamos à Rua Buffault! — suspirou ela.

Mas estava escrito, nessa manhã, que Laura não entregaria ne­nhuma das suas mensagens. Quando chegaram à rua, composta, sobretudo, de belas casas com jardins, como havia muitas nas en­costas de Montmartre, viram, diante de uma delas, um ajuntamen­to de basbaques e gendarmes em volta de uma viatura fechada: o aparato habitual de uma detenção.

—   Senhor! — soprou Laura — é «a' casa onde eu queria ir.

—   Dir-se-ia que a rival de Mlle. Marie está com problemas?

Misturaram-se com a pequena multidão e Jaouen conseguiu ve­rificar que o fiacre continuava vazio. Um instante depois, uma mulher, vestida de negro e branco, elegante, muito bela, mas tam­bém muito pálida, saiu, arrastada rudemente por duas polícias que a atiraram para a viatura, para onde subiram. Esta arrancou de ime­diato, rodeada pelos cavalos dos gendarmes. Os basbaques e os vi-zinhos ficaram sós com os dois recém-chegados. Laura não com­preendia: a dama que acabavam de levar não podia ser Michèle, porque devia ter uns 40 anos.

—   Quem era? — perguntou a uma mulher de avental, que ar­mada com uma vassoura, vinha de limpar a entrada de uma casa em frente.

—   Era a cidadã Epremesnil! Parece que o marido dela está comprometido em negócios sujos de finanças, a propósito de bar­cos e respectivas cargas. Não o encontraram e, assim, levaram-na a ela!

—   Mas... eu julgava que neste número vivia o advogado Thilo­rier? Vinha vê-lo para um assunto que eu tenho...

—   A mulher desatou a rir:

—   Bem, se eu fosse a ti, procurava outro: o Thilorier está no cemitério já há alguns meses. Aquela que acabas de ver, é a viúva dele.

—   Tu acabas de me dizer que ele se chama... como?

—   Epremesnil. Não ficou viúva durante muito tempo. Havia esse maroto, com quem ela se casou rapidamente. O mais engra­çado é que ele é sogro da filha mais velha dela.

—   Da filha mais velha? Ela tem mais filhos?

—   Tem. Outra filha, a Michèle, que não é casada. Não a vejo há uns dias: deve estar em casa da irmã, algures na Normandia.

—   Estou a ver. E... tu não conheces outro advogado? — per­guntou Laura, fiel à sua personagem.

—   Vou-te dizer uma coisa, cidadã: eu e os «tagarelas» não nos damos bem. E tenho pena de ti, se precisas deles! Farias melhor se fosses, direitinha, ter com a Comissão de Salvação Pública. Talvez lá encontre um... se restou algum! De qualquer maneira, fica-te mais barato. O dinheiro merece respeito...

Compreendendo o que aquilo queria dizer, Laura meteu uma nota na mão da mulher e afastou-se sem acrescentar uma palavra.

Durante todo o caminho que a levou de volta à Rua do Mont--Blanc, guardou silêncio. A dúvida, aquela dúvida terrível que, sempre à espera, não perde uma ocasião para atacar o amor, aca­bava de se manifestar com uma simples palavra. Michêle estava na Normandia e Batz ia partir para a Normandia! Não era, com certe­za, senão uma simples coincidência, mas era suficiente para enve­nenar o dia já de si cinzento. E Laura teria pago bem para saber onde morava aquela outra Mme. d'Epremesnil. Se bem que o belo ducado, do qual o pequeno Luís XVII usara o título, fosse vasto, não o era suficientemente para a tranquilizar.

Em casa, esperava-a uma terceira surpresa desagradável: apa­rentemente, era do dia! Quando ansiava pelo silêncio macio da sua casa, ao doce calor do seu canto à lareira, perto do qual Elleviou devia estar a dormir o sono de um homem por fim entregue à tran­quilidade, furiosas explosões de uma voz feminina esperavam-na quando acabou de atravessar o vestíbulo. Aqueles sons terríveis não podiam estar a ser emitidos por Bina. Tinham que o ser por outras goelas.

—   Misericórdia! — exclamou. — Aquela mulher deve tê-lo se­guido até aqui e agora está a fazer escândalo!

Com efeito, de pé diante do canapé onde se enroscava o «doen­te», uma espécie de estátua grega, vestida com uma longa sobre-casaca azul, chapéu negro masculino, usado altivamente sobre uma massa de cabelos de um admirável louro-dourado, agitava-se freneticamente.

— ... e encontro-te aqui, a chafurdar em casa desta americana devassa, como se não tivesses uma casa encantadora e confortável, onde eu estou sempre pronta a tratar-te, de dia e de noite! Ama-la a esse ponto? Gostaria de saber o que é que te falta na Rua Mari­vaux, a menos que seja a cama dela?

—   O silêncio! — gemeu o infeliz. — O silêncio e a paz! E lem­bro-te que isto é um canapé: não uma cama!

—   Isso vem mais tarde! Onde está ela, aliás, essa rufia, que eu trato já dela?

—   Está aqui! — cortou a voz gelada de Laura. — Aqui, onde não sois bem-vinda e de onde vos peço que saiais!

A outra voltou-se e Laura viu os fulgurantes e brilhantes olhos azuis-safira dirigirem-se para si. Seguidos de um sorriso mau.

—   «Vós»? Estou a ver: somos uma aristocrata, para quem o tra­tamento por tu republicano é uma degradação?

—   Somos uma americana, em cuja língua o tratamento por tu não existe, salvo quando nos dirigimos a Deus. Dito isto, peço-vos, novamente, para sair!

—   Se eu quiser! Não sabes quem eu sou, minha linda!

—   Oh, sei! Vi-vos dançar na Ópera, no... Julgamento de Pâris, creio? Encarnáveis uma Vénus muito convincente... e eu aplaudi. Fá-lo-ei novamente, se puserdes termo a esta comédia grotesca. O cidadão Elleviou é um dos meus amigos e só veio procurar aqui uma tranquilidade que vós lhe recusais. Curiosa maneira de amar um homem!

—   Aparentemente, és capaz de o amar melhor do que eu? Isso não pega, sabes? Elleviou é meu, estás a ouvir, e não deixarei nin­guém tirar-mo. Nem tu, nem aquela Émilie de Sartine delambida, que o seduziu brincando às beatas falsas, ao ponto de o fazer es­quecer que antes de casar era puta nos salões do velho Aucane e da mãe dele, no Palais-Royal! Tenho dito e tu, meu querido doente, vais-te levantar e vens comigo! Tenho uma viatura lá em baixo...

Tinham que resignar-se. Com um suspiro de fazer fender um icebergue, Elleviou abandonou o seu doce casulo para seguir Clo­thilde, que saiu do salão com o porte de uma rainha bárbara, ar­rastando um cativo para o seu carro de guerra. O que fez rir Jaouen, pouco habituado, no entanto, àquele exercício.

—   Um grande cantor, talvez, mas um pobre homem! — co­mentou ele. — Deixar-se levar assim pela trela! Esta rapariga leva-o a golpes de chicote e ele não reage!

—   Talvez sim — disse Laura, pensativa, dirigindo-se à janela para ver o casal a sair — mas ele tem medo desta mulher. Ela é má e ele sabe-a capaz de tudo. Obedecendo-lhe — e vindo, também, aqui! — procura desviar-lhe a atenção dos seus verdadeiros amores.

— Ele disse-vos isso?

—   Disse e confessou-me, num dia como o de hoje, que não ousava juntar-se àquela que ama em Sucy, onde ela se esconde com a família. No dia em que a Mafleuroy tiver a certeza de que ele ama unicamente a ex-Émilie de Sainte-Amaranthe, não hesitará em denunciá-la. Eu já aceitei ser a mensageira dele.

—   Vós fostes a casa dessas mulheres, vós?

—   Fui. Com Bina. Elas são encantadoras e como a pequena Émilie é bonita! Têm, também, um irmão de 16 anos, que não de­genera da família.

—   Eu acho que devíeis deixar-vos disso, doravante.

— Tem razão. A rua, agora, assusta-me, não podemos sair sem encontrar a polícia a tirar de sua casa uma mulher sem a mínima razão. Ou até crianças! É um espectáculo que suporto mal. Nada justifica tanto ódio, tanta crueldade...

Jaouen teria podido argumentar até um certo ponto, mas sabia que Laura não o teria escutado. Aliás, não era mau que ela tivesse um pouco de medo. Talvez se mantivesse mais tranquila em casa?

 

Durante as semanas que se seguiram, Laura, com efeito, não se mexeu, ouvindo, com uma inquietação crescente, os sons da gran­de cidade louca, que vinham bater na sua ilha agradável, trazidos por Jaouen — o único que saía de casa — por Pitou, ou por Swan. O uniforme do primeiro e a protecção da Convenção sobre o ou­tro, por interesse, permitiam-lhes ir a toda a parte, ver tudo e tudo ouvir. Laura soube assim que, após ter violado as sepulturas reais de Saint-Denis, o «povo todo-poderoso» tinha atirado as cinzas de Mirabeau para fora do Panteão e, como desafio, instalara lá Marat, que tinham executado a Du Barry, tão apavorada que desmaiou misericordiosamente quando a ataram à prancha, que em volta das denúncias desvairadas de Chabot, visando confusamente Pitt, Co­bourg e todos aqueles que se sabe, Robespierre, a raposa, tinha di­gerido uma «Conspiração do Estrangeiro», fortalecida pelas flutua­ções da guerra de Vendée, que pregava as pessoas ao chão e desempenhava o papel de Papão entre as crianças. Hébert e Dan­ton eram cada vez mais atacados, sob instigação de Robespierre, candidato à ditadura. Ao ponto de Danton, que tinha partido para Arcis-sur-Aube, para gozar o amor perfeito com a sua encantadora mulher, regressar precipitadamente, chamado por um Camille Des­moulins cada vez mais inquieto, sem, no entanto, perder um gra­ma da sua segurança. Este gigante da tribuna, confiante na sua for­ça, no seu génio da palavra e na resposta pronta, desprezava soberbamente os gnomos ávidos que se agarravam a ele para o fa­zer estrebuchar.

Do lado dos amigos, a coisa não ia melhor. Julie Careau vivia aterrorizada em sua casa com os gémeos, temendo ver aparecer a po­lícia ou os seccionistas: Talma acabava de ser preso. Alguém se lem­brara que, após as vitórias de Dumouriez, no Leste, fora dada uma festa em sua honra na Rua Chantereine e que, seja como for, Talma era amigo dos defuntos Girondinos. Apenas a protecção de David preservava Julie, mas conseguiria ela salvar o grande actor trágico?

Anne-Marie de Beaufort, que vinha, por vezes, da sua Rua Saint-Georges e cujo espírito crítico e vitalidade espantosa Laura apreciava, desaparecera a seguir a Julien de Toulouse. O próprio Pitou, a despeito do que esperara, não conseguia chegar a Marie, sempre enclausurada em casa. Tudo o que ele sabia era que um polícia chamado Armand ia vê-la quase todos os dias... e que não lhe levava flores. Quanto a Batz, ninguém sabia o que era dele.

Na véspera de Natal, um homem, que parecia andar com difi­culdade, curvado sobre uma bengala, deixava a Rua Neuve-de-l'Éga­lilté' para penetrar no vasto pátio das Forjas, assim chamado por cau­sa das oficinas de ferreiro que, no centro, ocupavam um mercado coberto, destinado, primitivamente, às peixarias, mas que nunca vira um rabo de pescada. É verdade que o barulho dos martelos no me-tal era mais brando do que a tagarelice das peixeiras aos gritos: quem, naqueles tempos miseráveis, sonhava poder ornamentar a sua casa com elegantes volutas de ferro, ou balcões floridos, num bairro onde, aliás, eles não faltavam? Por outro lado, o local nunca tivera boa reputação, depois da severa limpeza operada um século antes por Nicolas La Reynie, tenente de polícia de Luís XIV, contra a po­dridão do grande pátio dos Milagres, que era aquele mesmo. O san­gue tinha corrido e alguns espíritos fracos asseguravam que fantas­mas raivosos passeavam-se por ali, ainda. Uma vizinhança que não preocupava muito o cidadão Hébert e a sua família, instalados des­de há pouco num pavilhão situado ao fundo do pátio. Era na direc­ção desse pavilhão que se dirigia o ancião.

Desprezando a tipografia do rés-do-chão, de onde saía todos os dias o fulminante, repugnante Père Duchesne, subiu ao andar de cima como um homem que conhecia o local, tocou à campainha de uma porta pintada de fresco e cuidadosamente polida. Uma mulher, de mais ou menos 30 anos, grande, magra, mas cuidadosa-mente vestida com um vestido azul, com lenço e punhos de fina tela branca, veio abrir-lha:

—   Oh, senhor abade! — disse ela numa voz contida — deste‑vos ao cuidado de vir até aqui com este tempo?

— Este é o tempo da Natividade, minha querida filha e eu pen­sei que vos daria prazer falar comigo. Além disso, acabo de chegar de Carrouges, de onde vos trouxe um pequeno presente — acres­centou ele, tirando de uma algibeira interior do seu capote uma garrafa de aguardente de maçã, ainda com vestígios do pó da cave. — A cidadã Le Veneur manda-a com os seus melhores votos...

—   A querida ama! Mas entrai, senhor abade e sentai-vos ao pé do fogo — disse a mulher, afastando-se para deixar entrar o visi­tante numa pequena antecâmara e depois numa sala brilhante de limpeza, onde a mesa já estava posta para o jantar, sobre uma toalha branca e passada de fresco. Tudo naquele local proclamava as qualidades de dona de casa da cidadã Hébert, uma antiga religio­sa que o Pèr Duchesne desposara nos primeiros dias do ano pre­cedente. Nem um grão de poeira sobre os móveis bem encerados; nem uma mancha no tapete que cobriam os ladrilhos vermelhos. Um belo odor a sopa vinha da cozinha e, na divisão vizinha, o cho­ro de um bebé fazia-se ouvir. Dez meses mais cedo, a mulher de Hébert dera à luz uma rapariga, chamada, curiosamente, Scipion‑Virginie e de quem o amigo Chaumette era o padrinho. Os seus pais adoravam-na.

Não era a primeira vez que o abade de Alençon ia ao pátio das Forjas. Por várias vezes chegara por »ocasião de uma viagem a Paris», onde tinha quase sempre um pé, na Rua Helvétius. Trazia à ex-Marie-Françoise Goupil, ex-religiosa no convento de la Con­ception, na Rua Saint-Honoré, as saudações e até um pequeno pre­sente dos seus protectores, o general Le Veneus de Carrouges e a mulher. Desde sempre, aqueles nobres normandos velavam por Françoise, nascida em Paris, mas filha de uma lavadeira da região. O general até lhe dava, depois da morte da mãe, uma pensão de 600 libras por ano, que era entregue no convento enquanto ela ali esteve e recuperada depois do casamento com Hébert. As más-lín­guas pretendiam que a lavadeira era bonita e que o general não era cego. O facto de Françoise não dever grande coisa à beleza podia-se explicar pela franca fealdade do seu suposto progenitor. Seja como for, Hébert não vira senão vantagens ao casar com a «filha adoptiva» de um dos mais brilhantes soldados da Revolução. Ele próprio nascera em Alençon, onde a sua irmã continuava a viver e era bom, segundo ele, manter as raízes caseiras. Assim, não via qualquer inconveniente em que a sua mulher recebesse a visita de um padre «blasfemados, bem entendido. Era um laço com a Nor­mandia ancestral... e o Père Duchesne tinha a fraqueza de gostar das 600 libras anuais.

Aliás, sabia muito bem que a sua Françoise, se bem que tenha aderido com ardor às novas ideias, quando a expulsaram do con­vento, conservara um fundo cristão. Assim como conservara alguns móveis de Conception: a sua cama de baldaquino de sarja cinzen­ta, a cama, algumas cadeiras e dois ou três objectos que nunca ti­nham pertencido à sua cela... e também a gravura que estava pregada na parede da sala e que retratava o episódio dos Peregrinos de Emaús. Hébert contentara-se em exorcizar a inquietante ima­gem, escrevendo por cima «O revolucionário Jesus jantando com dois dos seus discípulos no castelo do primeiro».

—   O vosso marido ainda não veio, minha querida? — pergun­tou o visitante, tomando lugar na cadeira que lhe era oferecida, com um suspiro que lhe traduzia o cansaço.

—   Ainda não, infelizmente! As sessões na Convenção prolon­gam-se até cada vez mais tarde. O que me preocupa, porque isso cansa-o muito.

—   Sinto-me desolado. Ainda por cima porque, esta noite, gos­taria de lhe falar. Permitis que espere por ele?

—   Naturalmente! Ficai à-vontade. Vamos beber um copinho de licor juntos...

Ela sorriu ao visitante com um ar ingénuo. Não o conhecia muito bem, se bem que ele pretendesse tê-la conhecido ainda rapari­guita na loja da mãe e tê-la visto, mais tarde, no convento, mas o ancião tinha qualquer coisa que lhe agradava. Parecia tão velho e cansado, com os cabelos e a barba brancos, que quase lhe co­briam, por completo, o rosto corado e enrugado, o dorso curvado e as mãos cobertas por luvas franjadas, que deixavam passar as pontas amareladas dos dedos... De facto, o pouco de juventude que lhe restava parecia refugiado nas pupilas cor de avelã, abrigadas por pálpebras avermelhadas e lunetas redondas com armação de ferro.

Não tiveram de esperar muito: ainda o licor não tinha acabado e já Hébert fazia a sua aparição. Ouviram-no gritar na antecâmara, onde ele depositou o seu manto e chapéu redondo:

—   Cheira bem, cidadã Hébert! Uma sopa de couves bem quen­te, é tudo aquilo de que preciso... Ah! — disse ele ao penetrar na sala — temos uma visita?

—   É o ab... o cidadão Alençon, de quem te falei. Acaba de che­gar de Carrouges para nos trazer aguardente de maçã.

Para quem não o conhecia, o Père Duchesnes tinha com que surpreender os seus leitores. Estes imaginavam-no semelhante à personagem impressa na primeira página: um colosso de carma­nhola, duas pistolas à cintura e sabre ao lado, brandindo um ma­chado sobre um pequeno padre ajoelhado a seus pés. Na realida­de, era pequeno, com membros franzinos, tez pálida, rosto fino sob os cabelos castanhos cortados curtos. Tinha mãos delicadas, olhos cinzentos doces e vestia-se com um cuidado que raiava a ele­gância. A sua educação era, também, superior ao que se podia ima­ginar: filho de pequenos negociantes de Alençon, estudara nos Je­suítas, sabia falar uma linguagem castiça quando não vociferava na tribuna e tocava flauta para adormecer a filha.

—   É muito amável da tua parte, cidadão, sobretudo com este tempo. Jantas connosco?

—   Não. Agradeço-te. Na minha idade, vê lá tu, não precisamos de grande coisa e o licor da tua mulher aliviou-me o cansaço. Tu, pelo contrário, devias ir já para a mesa para te reconfortares um pouco, Pareces... cansado?

— É isso! O que é que eu te dizia, cidadão? O meu pobre marido estafa-se nos negócios da Comuna e da Nação. Quer a felici­dade de todos, mas acontece que há gente má que não vê senão o seu próprio interesse e lhe faz a vida negra...

—   Paz, mulher! Serve-me a sopa, já que o cidadão assim o quer. Falaremos enquanto como... mas, não é hora de dar o seio à nossa pequenina?

—   Sim, sim, já lá vou...

— Não gosto que as mulheres estejam presentes quando os ho­mens falam — disse Hébert quando ela desapareceu no quarto — e, se ficaste à minha espera, é porque tens qualquer coisa para me dizer?

—   Sim... Durante quanto ainda quanto tempo pensas que te vais aguentar contra os teus inimigos, cidadão Hébert?

—   Quem te disse isso?

—   Ninguém! Vou muitas vezes à Convenção e tenho ouvidos. Não é difícil compreender que, com aquela famosa conspiração do Estrangeiro, lançada por aquele miserável Chabot•, e que Robes­pierre aumentou, porque lhe dá jeito, É Danton, Chaumette, tu... e todos os vossos amigos que estão à pega. Danton, agora, prega a «indulgência', enquanto Robespierre quer reinar só, pelo Terror. Nem sequer tenho a certeza de que Saint-Jus, o amigo dele, se aguente muito mais tempo. Quando Fabre for abatido...

—   Que sabes tu de Fabre?

—   Que está comprometido até ao pescoço no negócio da Com­panhia das Índias! Reflecte um pouco: viver no palácio de um fi­dalgo, com uma das mais bonitas raparigas de Paris, custa caro! De qualquer maneira, Fabre sempre teve um grande apetite pelo luxo. Não é, de longe nem de perto, um homem sensato como tu, que sabe levar a vida de acordo com os seus princípios. A tua casa é tão clara como a alma da tua mulher, acolhedora e simples como o deveriam ser as de todos os homens. Resta saber se poderás con­servá-la sempre!

—   Que queres dizer?

—   Que do fundo da prisão Chabot continua a descarregar a bí­lis, tentando salvar a cabeça e que tu és o seu pior inimigo.

—   Ele está preso e isso deveria dar às suas denúncias o seu exacto valor.

—   Como qualquer homem sensato, tu tens razão, mas quando se quer matar um cão diz-se que ele está raivoso e Robespierre tem tanta vontade de se desembaraçar daqueles que o incomodam! Tu és dos primeiros. Sabes o que um amigo meu ouviu não há muito tempo nos Jacobinos, após o fim da sessão? Que a tua atitude du­rante o processo da viúva Cabeçuda, as tuas acusações — um pou­co violentas, é preciso dizê-lo — não passaram de fingimento, des­tinadas a esconder a tua intenção de a salvar. Quando se faz mostra de tanto ódio, tem-se muita liberdade de acção...

—   E por que quereria eu uma coisa dessas? — murmurou Hé­bert de nariz na sopa, subitamente pálido.

—   Por um milhão... e a possibilidade de deixar, com a tua fa­mília, um país que já começou a desmembrar-se e que, como Sa­turno, devora os seus filhos... e primeiro os mais tenros!

Hébert levantou a cabeça e dardejou o seu visitante com um olhar selvagem...

— Já tens a minha resposta: Maria Antonieta subiu ao cadafal­so... e eu não sou milionário.

—   Sem dúvida, mas, de qualquer maneira, salvá-la não teria sido boa ideia. Livre, incomodaria muita gente, a começar por aquele caro Pitt, que nos tem dado nas orelhas. E, nas mãos dos de Viena, teria sido perigosa. Mas ainda ficou alguém muito mais importante, muito mais precioso...

Hébert não tropeçou. Tranquilamente, pegou no pão, partiu um belo naco e atacou o grande bocado de toucinho que estava, cozido, dentro da sopa. À maneira camponesa, cortou pequenos bocadinhos, que estendeu em cima do pão. O abade deixou-o co­mer e até regar aquilo tudo com uma golada de cidra. Estava cer­to de que o outro tinha percebido as suas últimas palavras e que reflectia sobre elas. Hébert soltou, por fim, um suspiro de satisfa­ção.

—   Meu Deus, como eu tinha fome! De que falávamos nós?

—   De que hão-de falar os normandos entre si senão do que diz respeito ao seu país? Importa-nos muito mais a nós do que a outros o miúdo do Templo... porque ele é o nosso duque!

—   Era! — grunhiu Hébert. Já não é...

—   Pelo contrário, é-o muito e eu sei de quem, entre nós, olha para esse lado! Gente que pensa que os de Paris, ou de Arras, não têm os mesmos direitos que nós, que, se o tivéssemos connosco, seria uma força formidável face aos apetites de um homem que já é temido, mas que em breve será odiado, porque estará coberto de sangue. Não há razão para lhe deixar um tal refém. Um refém que ele matará um dia, quando achar que já não tem necessidade dele.

Com os cotovelos em cima da mesa, Hébert palitava os dentes com a ponta da faca, um hábito que adoptara para «fazer como o povo» e que aborrecia Robespierre.

— Tu propões o quê?

—   Raptá-lo, claro, e levá-lo para nossa casa.

—   E onde é isso?

Antes de responder, o abade perscrutou o rosto pálido que lhe fazia face, estudando-lhe a mobilidade dos olhos. Aquele homem era mais do que inquietante: sabia que jogava a cabeça desde a de­núncia de Chabot. Finalmente, o ancião decidiu-se:

—   Em Carrouges, claro. Já lá é esperado e eu conheço o cas­telo: é sólido, com saídas interessantes. Em caso de surpresa, podia-se levá-lo, facilmente, ao Champ-de-la-Pierre, casa dos An­digné, mas não haverá qualquer surpresa: Le Veneur continua pre­sidente da câmara de Carrouges e estão todos com ele.

—   Le Veneur está preso. Por traição.

—   Sabes muito bem que não: ele é a lealdade em pessoa e Ho­che, podes crer, há-de tirá-lo de lá! A esse, ninguém pode recusar--lhe nada. Nem sequer Robespierre! O povo vê nele um herói. Ve­neur vai voltar, em breve, para casa...

— Admitamos! E eu, no meio disso tudo, quem sou eu?

—   Tu? Podias ir a Alençon... para apresentar a tua mulher e a tua filha aos teus sogros? Encontrarias lá os títulos de propriedade de um domínio recuperado aos bens nacionais e cartas de câmbio, que te permitiriam levar os teus a respirar onde desejasses, en­quanto outros tratariam de Robespierre.

O olhar de Hébert dardejava sobre o seu visitante, parecia que­rer penetrar-lhe até à alma.

—   Quem és tu? — perguntou ele por fim, com rudeza.

—   Sabe-lo muito bem: sou o abade d'Alençon, padre blasfe­mador, tratado como pária pelos seus confrades, mas como amigo pelos Le Veneur... e também pelas tuas irmãs. Um normando... como tu!

—   E o padre miserável que és tem os meios para levar a bom porto esse empresa?

—   Sozinho, não. Com a tua ajuda, sim.

—   E que seria preciso?

—   Que a Comuna tirasse Simon do Templo, dando-lhe outro pos­to... mais honorífico.

—   Por mais honorífico que seja, não lhe dará, nunca, o que ele e a mulher ganham com o... rapaz. Não aceitará.

O abade notou, com satisfação, que o jornalista hesitara antes de falar nele. Que não tenha dito o Cabeçudo, ou o Lobinho, já era sintomático.

- a ordem não se discute. Além disso, a mulher dele está doente. Engordou, sofre das pernas e aborrece-se: o confinamento não lhe faz bem. Ora, Simon ama a mulher... e a questão financei­ra podia arranjar-se.

Hébert levantou-se para ir buscar a garrafa trazida pelo abade. Abriu-a humedeceu o gargalo, pegou em dois copos e, deitando o líquido perfumado com cuidado:

— Pode ser que dê resultado! — suspirou ele — mas esqueces--te de uma coisa: quando o rapaz deixar o Templo, começará o combate. Todas as forças de polícia e gendarmeria, sem contar com todos os rufiões de Paris, se lançarão nos calcanhares dele...

—   Mas ninguém se aperceberá da sua ausência — disse – o abade com doçura. Um outro rapaz, parecido com ele, tomar-lhe-á o lugar e quando perceberem a substituição, já Luís estará longe. Es­pantar-me-ia muito, vê lá tu, se os guardas dele clamassem aos quatro ventos que lhes roubaram o prisioneiro, porque será tirar bilhete para o Tribunal Revolucionário. Eu creio que farão tudo para esconder essa fuga!

—   Bem achado — admitiu Hébert, empurrando um dos copos para o seu visitante — mas esse rapaz, onde vais tu buscá-lo?

—   Já o temos e estamos a preparar o papel dele. E vais-te rir: é normando!

Os dois homens tocaram os copos de olhos nos olhos e bebe­ram tudo de um só trago.

 

           MEUS SENHORES!... AO REI!

—   A luz, aqui, é má! — praguejou David, atirando com o ca­derno e o lápis de que acabava de se servir para fazer um novo es­boço de Laura. — Assim, não faço nada de bom!

—   Não deve ser melhor em vossa casa — ironizou a jovem. — Este mês de Janeiro tem sido tão triste, tão cinzento, tão frio! Es­perai pela Primavera! Iremos para o jardim. Não há pressa, aliás!

—   É que estou sempre com medo que me anuncieis que quereis voltar para a América! Além disso, crede-me, a luz é, realmen­te, melhor no meu atelier. Porquê, mas por que não quereis ir lá?

—   O tempo está muito mau para sair!

—   Eu venho buscar-vos com uma viatura e trar-vos-ei de volta.

De súbito, a jovem enfureceu-se:

—   Como é amável da vossa parte oferecer-me, já por duas ve­zes, o abominável espectáculo das charretes que conduzem ao ca­dafalso tantos inocentes, a cada dia que Deus fez. Porque, para ir daqui ao Louvre e vice-versa, é preciso atravessar aquela horrível Rua Saint-Honoré.

—   Rua Honoré — rectificou ele friamente, o que não arrefeceu a cólera de Laura.

—   Para o diabo com essas palhaçadas ridículas! Para a popula­ça, ainda vá, mas para um homem inteligente como vós, um artis­ta, dobrar-se perante essas chalaças degradantes! Desantificar os santos mudará alguma coisa na posição deles ao pé de Deus? Digo--vo-lo pela última vez: se quereis fazer o meu retrato, consinto, mas será aqui! Daqui, não saio!

—   E tendes toda a razão! — disse uma voz alegre, ao mesmo tempo que, introduzido por Bina, o coronel Swan penetrava no pe­queno salão. — Está um tempo, que não se pode pôr um pé na rua!

—   No entanto, viestes — disse o pintor com o azedume que lhe inspirava a chegada do americano. Não gostava dele e ainda menos da maneira como chegava a casa de Laura, de improviso.

—   É verdade, é verdade, mas tinha um assunto a tratar aqui no bairro e aproveitei para vir pedir uma chávena de chá à nossa amiga.

—   Bem, tomá-lo-eis sem mim! Tenho horror dessa mania in­glesa. Cara amiga, já que o desejais absolutamente, terei o prazer de trazer para aqui, a partir de amanhã, todo o material necessário à obra projectada! Não vos queixeis se for um pouco incómodo!

Dito aquilo, David beijou a mão de Laura, dirigiu um vago si­nal de cabeça a Swan e saiu, seguido pelos olhos do coronel, que esperou, sensatamente, que o ruído da porta de entrada acabasse, para retomar a palavra.

—  Nunca mais conseguireis desembaraçar-vos dele? — suspi­rou ele, sempre virado para o vestíbulo.

—   Prefiro isso a deslocar-me ao Louvre para sofrer as investi-das dele. Aqui, sabe que estou protegida. Jaouen não lhe permitiria o menor gesto deslocado.

—   Não poderíeis, simplesmente, recusar?

—   Não sois vós que me ides ensinar a lidar com ele — disse Laura encolhendo os ombros.

—   Certo, certo, mas, quando ele vier, arranjai-vos para o pôr na rua bem cedo: a coisa é para amanhã à noite!

Laura ficou hirta, a boca subitamente seca.

—   Amanhã?

—   Sim. Amanhã, 19 de Janeiro, os Simon deixam a torre. A criança partirá com eles.

—   Custa a crer. Onde vão eles? Regressam para casa, na Rua des Cordeliers?

—   Não. A mulher arranjou alojamento no Templo, a algumas toesas da torre. Um alojamento encostado ao antigo pátio das es­trebarias. Há lá uma porta muito conveniente para sair do períme­tro perigoso sem se ser visto e sem passar pelo corpo da guarda. Muito judicioso, como escolha!

—   E tendes a certeza de que não ides ser traídos no último mo-mento?

—   Certeza absoluta! Batz tratou disso.

Batz! Laura não o via há semanas e essa ausência era-lhe cruel. Mais do que imaginara. E foi com toda a naturalidade que pergun­tou:

—   Onde está ele?

—   No Templo desde há 15 dias... como doméstico, para ajudar a mulher Simon, que, na realidade, sofre muito e até lhe custa des­locar-se.

—   Doméstico, ele?

—   Fá-lo muito bem — disse Swan, rindo. — Varre, faz a barrela e limpa. Julgam-no um pobre de espírito, mas por vezes joga aos dados com o sapateiro. Gostam dele!

—   Incrível! E eu, que devo fazer?

—   Esperar! Se tudo correr bem, a criança estará em vossa casa ao fim da noite. Só ficará até à noite seguinte. Batz fá-lo-á passar a barreira logo após a abertura matinal... mas ele próprio vos dará as instruções.

—   Qual é o vosso papel nisto tudo?

— Muito importante! — disse o americano com satisfação. — Sou eu que vou fazer sair de França aquela «fiança tão preciosa», como dizem os bons autores. Amanhã parto para Le Havre, onde vou es­perar um dos meus compatriotas, o capitão Clough, que comanda um dos meus navios mercantes. A Convenção cedeu-me — finan­ceiramente, claro — permissão para levar uma carga de objectos de valor, de...

— De despojos das nossas casas! — precisou Laura com amar­gura. — Já o fizestes uma primeira vez, creio?

—   Com efeito e não me devíeis censurar. Primeiro, porque os negócios são negócios, segundo, porque o meu pequeno tráfico me torna inatacável aos olhos da Convenção; por fim, porque nin­guém terá a ideia de procurar o vosso pequeno Rei entre um lote de cadeiras, um contador e uma colecção de quadros!

—   Como é que pensais fazê-lo?

—   É simples. Vou ao Havre esperar Clough. De lá, levo-o a Caen, onde a municipalidade tem, à minha disposição, um certo número de objectos. Em seguida, voltaremos para o Havre, para completar o carregamento e meter-mo-nos, finalmente, à vela para as costas inglesas... onde deixaremos o nosso grumete,, e a pessoa que o acompanhará... a menos que ele prefira refugiar-se entre nós'. Gostaria que ele fosse para a América. Lá, não teria mais nada a temer! E por que não regressaríeis vós também? Este país é tão perigoso!

—   Nem sonheis! — impacientou-se a jovem. Dizei-me, antes, em que momento dessa expedição pensais embarcar a criança?

—   Em Caen. Segundo as minhas previsões, devemos lá chegar no começo de Fevereiro. O pequeno terá sido conduzido, por Batz, para um castelo na orla de uma grande floresta, que se encontra a 20 léguas de distância. Irá para Caen na altura pretendida.

—   20 léguas? Isso é muito, Por quê tão longe?

—   O castelo pertence a um general republicano. Ninguém o irá lá procurar...

—   Parece-me perfeito — suspirou Laura. — Mas, dizei-me, pensais fazer tudo isso com toda a tranquilidade? Quando a fuga for conhecida, tereis todos os esbirros da Convenção nos vossos calcanhares.

—   É que, justamente, a fuga não será conhecida. Pelo menos, ao princípio... e poucas pessoas estarão dentro do segredo. Muito poucas!

Não havia nada a acrescentar. Laura pensou naquela outra noi­te inteira, passada à espera da pequena princesa, que nunca viera e de quem, aparentemente, ninguém se lembrava. Não era a her­deira, ela! Não era o Rei! Seria, por isso, menos infeliz, fechada na­quela horrível torre, com uma tia como única companhia, querida sem dúvida, mas que ninguém poderia dizer que não estava tam­bém ameaçada? Como seria Marie-Thérèse quando crescesse? Acabava de fazer 15 anos e Laura não ignorava que já tinham sido ati­rados para a guilhotina crianças daquela idade. É certo que eram rapazes. A feminilidade da adolescente protegê-la-ia ainda durante quanto tempo?

Quando os seus visitantes partiram, Laura sentiu um estremeci-mento e aproximou-se do fogo, aconchegando em volta dos ombros o xaile de lã branca que trazia desde manhã. Estava frio. A neve recomeçara a cair, tornando tudo mais difícil e qualquer ves­tígio fácil de encontrar.

— Meu Deus! — disse ela em voz alta. — Irão eles, finalmen­te, conseguir?

 

Na manhã de domingo, o tempo ainda estava pior do que na véspera. O degelo nocturno transformara a neve em lama e envol­via Paris como um nevoeiro que não se dissipava facilmente. O frio cedera, mas a atmosfera húmida era penosa de suportar. Entretan­to, no Templo, a mulher Simon afadigava-se no seu alojamento, es-colhendo aquilo que queria levar. Tinham-lhe permitido que levasse alguns móveis e objectos para a nova morada. Em baixo, uma carroça esperava. E ao longo da escadaria em caracol dos dois andares, o vaivém tinha começado: Simon e o cidadão Gaspard, o doméstico, desciam juntos a cómoda vazia de todas as gavetas, que em seguida transportaram à cabeça para as reporem nos seus lu-gares. Enquanto isso, a mulher fazia pacotes de panos e de roupas. Engordara muito e as pernas tinham dificuldade em transportá-la, mas não se mexia menos através do torreão para distribuir «adeus» e cavaquear um pouco...

— Não são necessários tantos adeuses! — grunhiu o marido. — Não vamos para o fim do mundo: são só 20 toesas. Ver-nos-emos...

O sapateiro estava nervoso, inquieto e com um humor massa­crante. A lentidão da mulher enervavam-no, ao mesmo tempo que o fôlego asmático, mas ela fazia questão de que as coisas fossem feitas «como deve ser». De tempos a tempos, interrompia-se para abraçar o pequeno que, sentado em cima de uma cama. Observa­va toda aquela agitação e não o presente que lhe tinham dado, oferecido pela «mãe da comida»: um cavalo de cartão e madeira, pin­tado de cores violentas e ajaezado.

Finalmente, como os móveis já estavam na carroça, Simon de­clarou:

— Podes acabar com o Gaspard. Eu vou pagar um copo aos ami­gos... Volto já com os comissários, para lhes entregar o Cabeçudo. — Em seguida, dirigindo-se ao pequeno, que parecia dormir acordado na beira da cama: — E então, miúdo? Não gostas desse cavalo?

Foi Marie-Jeanne que respondeu em voz alta e bem inteligível:

—   Dir-se-ia que lhe faz medo! Aliás, já é tarde. Vou-lhe dar de comer e depois vou deitá-lo.

—   Mau! E os comissários, a quem o devemos entregar?

—   Vêem-no na cama, é simples! Se lho mostrássemos assim, di­riam sabe-se lá o quê, que não é normal, que o fizemos beber de-mais...

—   É um pouco verdade, não? — troçou o sapateiro. — Ele até gosta...

O pequeno virou para ele um olhar inexpressivo:

—   Estou cansado — disse ele.

— Olha, faz como quiseres, mulher! Tens razão, no fim de con­tas: ele estará melhor na cama.

De orelha à escuta, Marie-Jeanne permaneceu sem se mexer até que os passos do marido desaparecessem na escada. Depois, voltando-se para Gaspard:

—   Faz o que tens a fazer! Vou despir o pequeno.

Colocou o rapazinho nos joelhos para lhe começar a tirar a roupa. Enquanto isso, Gaspard abria o corpo do cavalo de Tróia de um novo género e tirava de lá um rapazinho profundamente ador­mecido. Como o pequeno príncipe, tinha cabelos louros e naturalmente encaracolados, penteados da mesma maneira, um rosto cuja forma era semelhante e que apresentava, até, vagas parecenças.

—   Para quem o conhece bem, não ilude, mas, de qualquer ma­neira, é parecido. De onde vem ele?

—   Não precisas de saber... Em todo o caso, não terás nada a temer dos comissários: são novos. Reconhecê-lo-ão sem hesitar.

— Gosto mais assim... Olha, meu pombinho — acrescentou ela para o pequeno príncipe que acabava de despir — vais beber isto e depois vais dormir muito bem...

Estendeu-lhe um copo onde Gaspard acabava de deitar o con­teúdo de uma pequena garrafa.

—   É ele que vai ficar no meu lugar? — perguntou a criança an­tes de fechar os lábios no copo.

—   É — disse Gaspard. — Ele bebeu a mesma coisa e, como vês, dorme. Não tenhas medo!

—   E assim — retomou Marie Jeanne, acariciando a fronte do pequeno — vais poder partir comigo sem que ninguém saiba.

—   E Simon?

—   Sim. Ele também vai, mas não saberá nada, verás!

—   Despachemo-nos! — impacientou-se Gaspard. — Se alguém tem a ideia de subir para me dar uma ajuda suplementar...

—   Tens razão, cidadão! Vamos, meu pombinho, bebe depressa!

— Vão-me meter ali dentro?

—   Não. Depressa, vá lá!

Bebeu tudo de um trago. No instante seguinte, o falso Gaspard instalava-o, o mais confortavelmente possível, num cabaz meio cheio de roupa suja, que aquele acabou de encher, ao mesmo tem­po que Marie-Jeanne deitava o recém-chegado, pondo-o na posi­ção que Luís Carlos gostava. O cavalo foi fechado de novo e Gas­pard pegou no cabaz de roupa suja para o levar para a carroça.

—   Não é muito pesado? — inquietou-se Marie-Jeanne.

—   Não. É muito pequeno e franzino, para a idade... e eu sou mais sólido do que pareço.

Assim carregado, chegou à saída. Marie-Jeanne pôs um pouco de ordem na sala, lavou uma escudela de que não precisava para fazer crer que a criança tinha comido, pegou num pacote de rou­pa e desceu, após ter fechado cuidadosamente a porta. Tendo pou­sado o pacote na carroça, voltou a subir e sentou-se perto da cama para esperar o marido.

Eram quase 9 horas da noite quando este chegou, tendo bebido bem e acompanhado dos quatro comissários comissionados à guar­da, nesse dia. Chamavam-se Legrand, Lasnier, Cochefe e Lorinet. Marie-Jeanne levantou-se mal eles entraram e pegou numa vela:

—   Tratai de não o acordar! — recomendou ela, ríspida. — Ele tem dificuldade em adormecer...

A luz amarela da vela que ela levantou sobre a cabeça do pe­queno adormecido tocou nos cabelos louros e deslizou por uma face ainda redonda. Uma das mãos escondia um pouco o rosto, como se a criança acabasse de largar o dedo que sugava. Simon, esse, estirado numa cadeira, esperava.

— Está bem! — disse um dos comissários. — Vamos dar-te a qui­tação do teu cargo.

Foi sentar-se à mesa, pegou num papel oficial e começou a es­crever: «... Simon e a sua mulher exibiram-nos a pessoa do Cabeçudo prisioneiro, estando de boa saúde, requerendo-nos que nos encarreguemos da guarda do dito Cabeçudo e de lhes conceder de­sobrigação provisória...

—   Quem é que vai tratar dele? — grunhiu Marie-Jeanne. — Es­pero que tratem tão bem dele como eu...

—   Não te preocupes! Faremos turnos: duas pessoas todos os dias. Pelo menos, foi isso o que eu compreendi...

— Não gosto muito disso. Enfim, talvez quando eu estiver me­lhor a Comuna me permita voltar. Ah! levamos este cavalo: ele não o quer. Tem medo...

Toda a gente saiu e a porta da antiga prisão de Luís XVI foi fechada sobre a criança adormecida, deixada sozinha. Em baixo, a carroça esperava sempre. Gaspard estava ao pé dela, segurando no cavalo. Vendo que Simon cambaleava, fê-lo subir.

—   Eu vou-te acompanhar, cidadã, para te ajudar a levar para tua casa este último carregamento.

—   És bom rapaz, cidadão Gaspard. Obrigada!

A carroça afastou-se. A noite ia longa, já, uma noite que o ne­voeiro espesso tornava sinistra. O pequeno cortejo mergulhou nele e desapareceu.

No terceiro andar do lúgubre torreão, duas mulheres rezavam, incapazes de dormir. Durante todo o dia tinham ouvido o barulho da mudança e estavam persuadidas de que o seu sobrinho e irmão ia para longe delas. Eram Madame Élisabeth e Madame Royale.

De facto, a carroça percorreu apenas uma centena de metros, até ao pátio das antigas estrebarias, onde a esperava uma casa de dois andares encostada ao muro que fechava a antiga propriedade do Grande Mestre e da qual o pátio fazia parte. Perto da casa havia uma porta, não guardada porque não se tratava da muralha construída por Palloy para isolar a prisão real e que permitia che­gar à rua sem dificuldade.

Os Simon não seriam os únicos a ocupar aquela casa. Habita­va lá Piquet, o porteiro do Templo e o cozinheiro Gagnié, mas em cima — no primeiro andar — das duas divisões e cozinha deles, havia um apartamento idêntico vazio, que tinha uma janela que dava para a rua.

A primeira coisa que Gaspard fez foi ajudar Simon a subir para o quarto já mobilado e a estendê-lo sobre a cama, onde o sapateiro se pôs a roncar aplicadamente. Enquanto isso, o cozinheiro Gagnié e a mulher acolhiam Marie-Jeanne, que conheciam bem e convidavam-na a ir descansar um pouco e comer qualquer coisa em casa deles.

—   Vai, cidadã Simon! — encorajou-a Gaspard. — Eu levo isto tudo lá para cima antes de regressar ao Templo. Tu já subiste e des­ceste escadas suficiente por hoje!

—   Lá isso é verdade! — suspirou ela. — Depois daqueles ter­ríveis andares da Torre, estes vão parecer doces às minhas pernas!

—   Quando acabares, vens beber um copo? — propôs Gagnié.

—   Muito obrigado, cidadão, mas tenho que voltar para a pri­são. Em princípio não devo sair de lá e aqui estamos praticamen­te fora dela.

Enquanto Marie-Jeanne se dirigia para casa do cozinheiro, aju­dado por este, Gaspard pegou no cabaz de roupa onde estava o pequeno e começou a subir as escadas com ele, mas em vez de entrar em casa dos Simon, tirou uma chave da algibeira e abriu a porta do alojamento livre. Foi até à janela, abriu-a sem barulho, in­clinou-se para fora e miou suavemente duas vezes. Apareceram logo duas sombras que se colocaram sob a janela. Então, o homem tirou o pequeno do cabaz após ter estendido por terra uma gran­de cobertura que esperava ali, atou-a nos quatro cantos, ligou tudo a uma corda trazida, também ela antecipadamente e, chegando o pacote à janela, fê-lo deslizar suavemente até aos braços daqueles que, em baixo, estendiam os braços para o receber. Em seguida voltou a fechar a janela e a porta, levou o cabaz para casa de Si­mon, acabou o seu trabalho, voltou a descer para o pátio das es­trebarias e desatrelou o cavalo, que levou para uma das baias va­zias, onde o seu proprietário o recuperaria no dia seguinte. Depois, deixando a carroça no local, tirou uma nova chave da algibeira, abriu a porta que dava para a rua e partiu com passo tranquilo, conseguindo conter, com todas as forças, a vontade que tinha de cantar a plenos pulmões a alegria que lhe provocava o seu suces­so. Numa rua vizinha, uma viatura esperava, conduzida por Pitou. Saltou para o interior com um salto tão ligeiro que quase caiu nos braços de Cortey e Devaux, que já tinham tirado o pequeno, ain­da adormecido, do cobertor em que estava enrolado. Pitou arran­cou de imediato e a atrelagem chegou, sem se apressar, à avenida do Templo, onde a camada de neve tardava em derreter. Ali, Pitou, deu rédea aos cavalos, que partiram a galope...

Era mais ou menos uma hora da manhã quando Cortey deposi­tou, sobre o tapete do salão de Laura o pequeno Luís-Carlos, um pouco vacilante, mas acordado. A criança teve, para a decoração elegante que o rodeava, o olhar aliviado de quem acorda de um pesadelo e para a bela jovem loura que lhe fazia uma reverência um sorriso... como antigamente!

—   Quem sois vós, Madame? — perguntou ele.

—   A fiel servidora de Vossa Majestade, O meu nome é Laura...

—   O nome de uma amiga! — cortou Batz — e como ela aca­ba de dizer, de uma amiga, como todos nós!

Nesse instante entrou Jaouen, trazendo num tabuleiro uma gar­rafa de vinho de Champanhe e taças de cristal. Pousou-o sobre uma mesa redonda e depois, de olho fixo na criança que o obser­vava com gravidade, inclinou-se. Profundamente.

Já Batz enchia as taças, as distribuía, virava-se para o filho de Luís XVI e levantava a sua, translúcida, com orgulho:

—   Meus senhores! Ao Rei!

Beberam e depois, num só movimento, ajoelharam diante da criança que os observara sem nada dizer, mas que, subitamente, protestou:

—   Muito bem e eu? Não tenho direito de beber convosco à mi­nha saúde? Eu gosto de vinho, sabeis?

Batz franziu as sobrancelhas. Era o primeiro indício da odiosa «educação» ministrada por Simon há seis meses. Mas Laura encheu até metade um dos copos e ofereceu-o a Luís com um sorriso.

—   O Rei tem razão — disse ela. — É normal que festeje con­nosco a sua libertação.

— Mmmh! É bom — disse o pequeno, que bebera tudo de um trago. — Quero mais!

—   Certamente que não, Sire — cortou Batz. — O vinho ener­va e o Rei deve pensar em repousar. Nós vamos ficar aqui até amanhã à noite, após o que empreenderemos uma grande viagem. Grande e difícil, a fim de que o Rei escape definitivamente aos seus inimigos. Portanto, antes de mais, recuperar forças, porque depois, será necessário aceitar tudo: os maus caminhos, os disfarces, as se­nhas... e, primeiro do que tudo, obedecer-me.

—   Quem sois vós para me exigirdes isso?

—   O Rei saberá quando estiver fora de qualquer perigo. Terei a honra de me apresentar a ele... antes de o deixar. Para já, o meu nome é Jean. Mais nenhum, até lá!

—   E se eu quiser saber, eu?

—   Dizíeis »eu quero!» a Simon?

O pequeno corou e baixou a cabeça, mas foi para olhar por baixo para o homem que lhe falava com tanta firmeza.

—   Para quê? — resmungou ele. — Com ele, pelo menos, di­vertia-me. Contava-me histórias, ensinava-me palavras novas... e bebíamos!

Ao ver as narinas dele fremirem, Laura sentiu que Batz ia ex­plodir de cólera e apressou-se a intervir.

—   O quarto está pronto — disse ela — e teremos muito tem­po de falar amanhã. Esperai-me aqui um pouco — acrescentou. — Volto dentro de instantes.

Estendeu a mão, mas a criança fez de conta que não a viu e di­rigiu-se sozinha para a porta, saudado pelos quatro homens. Lau­ra saiu atrás dele. Quando voltou, um pouco mais tarde, Cortey, Devaux e Pitou tinham partido. Batz, de pé diante da chaminé, na qual apoiava as duas mãos, um pé sobre um dos cães, olhava para as chamas com ar sombrio, que inquietou a jovem.

— Alguma coisa que não vai bem? — murmurou ela.

—   Sim. Confesso que não compreendo. Este rapaz devia estar contente por ter escapado àquele inferno. Ora, pondo de parte o champanhe, pergunto-me se não está arrependido. Não teve, se-quer, uma palavra de gratidão...

— Talvez tenhamos feito mal em tratá-lo como Rei. A partir daí, vê-nos como servidores. Simon, esse, tratava-o como ele é na rea­lidade: um rapazinho que ainda não tem nove anos e, ao mesmo tempo, ensinava-lhe hábitos de homem do povo. Fazia-o beber, talvez para que esquecesse mais rapidamente um passado dema­siado belo, reduzindo-o ao seu nível. Tenho a certeza de que o ensinou a praguejar e vós deveríeis estar feliz por ele não o ter feito diante de nós.

— Talvez tenhais razão. No entanto, não vos escondo que a mi­nha primeira impressão não é muito boa. Enquanto o íeis deitar, lembrou-se dos pais?

—   Não. Nem uma palavra e não me cabia a mim falar primeiro, porque penso que ele não ignora nada do destino deles. O abominá­vel Simon não se deve ter privado do prazer de lhe dar a novidade, acrescentando, talvez, que os pais dele eram, agora, ele e a mulher.

—   O «amor querido» da pobre Rainha! — grunhiu Batz entre-dentes. — Já a terá esquecido?... É verdade que quando o interro­garam, durante o processo, ele chegou a acusá-la do pior dos cri­mes, para uma mãe!

—   Também a teria acusado de fabricar dinheiro falso! — ex­clamou Laura, indignada. — Esta criança devia estar morta de medo! De medo, compreendeis? Lembrai-vos que, após a separa­ção, ouviram-no chorar, no Templo, e chamar por ela durante três dias. Talvez o sapateiro o tenha calado com pancada, antes de lhe dar os consolos que sabeis? Não passa de um rapazinho, Jean, e sofreu mais do que aquilo que lhe cabia de monstruosidade e hor­ror! Deve ter construído uma concha para se abrigar. Além disso, não conhece nenhum dos que acabam de o raptar. É preciso dar--lhe tempo... e vós também precisais!

Abandonando, por fim, a chaminé, Batz aproximou-se de Lau­ra e tomou-a nos braços, mas para lhe apoiar a cabeça nos ombros.

—   Talvez eu não passe de um bruto, Laura, mas deveis perdoar-me. Ignoro tudo da verdadeira natureza dele e ele é o meu Rei, compreendeis? Aquele a quem entreguei todos os meus so­nhos, todas as minhas esperanças! Ele pertence à História com todas as fibras do seu ser e eu queria tanto que ele fosse digno!

— Então, escutai-me! Dai-lhe tempo! E, sobretudo, dai-lhe uma família para ele amar!

—   O amor é, raramente, permitido aos Reis. Se esta criança fosse ainda o Delfim e Versalhes a sua casa, já teria sido entregue aos homens. Teria um aio, preceptores, uma «casa» e veria o pai mais vezes do que a mãe. O que eu quero é que ele se transfor­me num verdadeiro príncipe, ligado à reconquista do seu reino, como o fez Henrique IV, para felicidade do seu povo e para gran­deza de França.

Ela afastou-se docemente dele.

—   Não olheis demasiado longe nem demasiado depressa! Pri­meiro, é preciso que ele cresça. A quem o quereis entregar, no imediato?

—   A escolha ficou diminuída depois da morte da Rainha. Ir para Jérsia está fora de questão! A ilha foi invadida por gente de Monsieur e eu desconfio de Pitt.

—   Ides levá-lo para qualquer lado, de qualquer maneira?

—   Se eu desse ouvidos a Swan, o barco do capitão Clough levá-lo-ia para Boston, mas seria afastá-lo de todos os seus parti­dários. É preciso que ele fique na Europa... e escondido, para que os seus tios lhe dêem tempo de crescer. Eles representam, para ele, um perigo tão grande como Robespierre. Assim, penso desembar­car em Inglaterra.

—   Para casa de lady Atkyns?

—   Talvez não. Ela ficaria tão feliz e orgulhosa que chamaria os amigos e os conhecimentos todos para irem admirar a maravilha! Graças a Deus, tenho outros amigos, mais discretos. A duquesa de Devonshire «Georgiana Spencer, da mesma família de lady Diana. De uma grande beleza, viu a luz do dia, também ela, no castelo de Althorp», por exemplo, que é uma mulher espantosa e que gostava muito da Rainha. No seu imenso castelo de Chatsworth, ao norte das Midlands, o pequeno poderá descansar, longe de Londres. De lá, levá-lo-ei para a Holanda e depois para a Alemanha para, por fim, o entregar ao príncipe de Condé. Esse sabe o que Provença quer e desconfia: saberá proteger este depósito precio­so... E, coisa boa, viverá perto da fronteira francesa.

—   Então, por quê esse grande desvio?

—   Porque é impossível de outro modo e porque assim as pis-tas ficarão baralhadas.

—   E... vós ficareis perto dele? — murmurou Laura, sem dissi­mular a tristeza.

— Não creio. Se ainda estiver vivo, voltarei para terminar a mi­nha tarefa: ainda restam duas princesas para salvar e a Convenção ainda não foi abatida.

Assim, Jean não se contentaria em conduzir o pequeno à Nor­mandia. Ia afastar-se durante longas semanas, talvez mais e, ao pensar nisso, Laura sentiu vacilar a sua coragem. Lágrimas, que ela gostaria de esconder, subiram-lhe aos olhos, mas a dor que sentia era demasiado grande.

—   Quando voltarei a ver-vos?

Fora-se sentar numa cadeira baixa, perto da chaminé e, muni-da do tição, agitava as brasas, antes de pôr um pouco de madeira para que o fogo ardesse de novo. Ele veio ajoelhar-se ao pé dela.

—   Estais a ver como me amais? — disse ele, segurando o ros­to delicado entre as mãos.

—   Como se não o soubésseis...

— Talvez, mas queria tanto ouvir-vos dizê-lo!

—   Ficaríeis mais descansado?

—   Muito mais!... Vamos, Laura, dizei-o! Nem que seja apenas uma vez... uma só!

Incapaz de resistir à prece daqueles olhos, da voz que tanto amava, Laura rodeou o pescoço de Jean com os braços, aproximou os lábios da boca dele, até a tocar, e murmurou:

—   Amo-te... — e completou o beijo que os manteve enlaçados durante longo tempo, vivendo intensamente um minuto de pura felicidade, que ambos ignoravam se um dia se renovaria, cons­cientes da harmonia perfeita que o seu amor podia atingir. No en­tanto, a ideia de procurarem uma união mais íntima nem ao de leve os tocou. A imagem desoladora de Marie erguia-se entre eles como a espada de Tristão. Limitaram-se a ficar, um longo momen­to, apertados um contra o outro...

 

O dia que se seguiu foi bizarro. A casa viveu a sua vida habi­tual, mas ninguém teve o direito de ultrapassar a soleira, sobretudo David, quando apareceu, depois do meio-dia, para uma sessão de pose decidida por sua própria vontade e sem avisar Laura. Desde a véspera que o seu material ocupava uma grande parte do salão e ele pensava que a jovem estava pronta a recebê-lo todos os dias. Mas quando se apresentou, Jaouen fê-lo saber que a cidadã Adams estava doente e que, aliás, nem sequer o esperava. A despeito dos seus esforços para ser recebido, como simples amigo», não conse­guiu forçar a barreira constituída pelo homem do gancho de ferro.

—   Não gosto disto! — notou Batz, que observava a cena es-condido por trás de um reposteiro do primeiro andar. — Quando este homem encontra uma presa, não a larga...

—   Não dramatizeis! — disse Laura. — Ele renunciou a Mme. Chalgrin, imagino?

— Não acrediteis nisso! Ela não quer voltar ao Louvre, mas sei, por uma amiga, que ele vai muitas vezes a Passy. E, infelizmente, ele é perigoso.

—   Esquecei-o, meu amigo! Tendes outras preocupações e eu tenho Jaouen. É o mais temível dos guardas.

Pitou chegou ao cair da noite e foi o único a entrar na casa. As notícias que trazia eram estranhas. A fuga do pequeno Rei parecia desconhecida de todos. No Templo, onde o jornalista que ele era sabia obter algumas informações por meios financeiros, estava tudo mais morno e triste do que habitualmente. Os Simon tinham partido, sim, mas isso não mudava nada nas ordens de todos os dias. A única coisa que soube — embora tenha sido através de um pedreiro que viu subir com um saco de estuque e tijolos — foi que a Comuna mandara efectuar trabalhos na prisão do jovem Cabe­çudo, mas foi-lhe impossível saber mais.

—   De qualquer maneira, preciso de saber o fim desta história — confiou ele a Batz. — Trabalhos que precisam de tijolos no an­tigo apartamento do Rei? Para quê?

—   Talvez para reduzir a superfície. É um pouco grande para um prisioneiro tão pequeno. Mas, para já, Pitou, não tente obter outras informações! O assunto está muito quente. Eu creio que os guardas se aperceberam da substituição e estão a tentar escondê--la para salvar as cabeças. As ordens vêm da Comuna. Hébert está por trás de tudo isso! Quando voltar, irei ver Lullier. Ele dir-me-á o que aconteceu.

—   Lullier foi preso — disse Pitou, desviando a cabeça. — Es­tavam a levá-lo quando cheguei ao Hôtel de Ville para lhe falar.

— Ah! — disse Batz, que tinha empalidecido. — Acusam-no de quê?

—   De tudo e de nada — disse Pitou com um encolher de om­bros acabrunhado. — Ah! sim... Ouvi dizer que estava comprome­tido no chamado complô do Estrangeiro.

— Por outras palavras, o caso Chabot! Do fundo da prisão, esse miserável continua a denunciar todos os nomes que lhe passam pela cabeça. — Em seguida, virando-se para Laura: — Vós também deveríeis partir, não achais?

— Convosco? — murmurou ela com uma nota de esperança na voz.

Desde a véspera que esperava que ele lho propusesse. A des­peito dos perigos a que se expusera, a viagem a Valmy contava-se no número das suas — raras — boas recordações. Mas a esperan­ça nem sequer teve tempo de abrir as asas:

—   Não. A partida que vou jogar, devo jogá-la só. Com a crian­ça, bem entendido... Entretanto, Laura, mantenho o que disse: dei­xai Paris! Chabot deve ter dado os nomes de todos aqueles que viu em Charonne, no decurso daquele famoso jantar. E, além do mais, vós sois uma «estrangeira».

—   Sim, mas não uma qualquer. Sou americana. E depois, uma detenção não significa obrigatoriamente julgamento e condenação: Talma foi libertado. Vai voltar ao seu lugar no teatro por estes dias. Enfim, para onde quereis que eu vá? Para a Bretanha? O meu maior desejo é regular as contas que tenho com Pontallec.

—   Não façais essa loucura! A luta seria demasiado desigual e eu creio poder ajudar-vos.

—   Estais a ver? Deixai-me aqui sem receio. Esperarei... esperarei o vosso regresso.

— Tereis notícias através de Swan quando ele regressar do Ha­vre, depois da partida do navio do capitão Clough.

—   Espero que tudo corra bem.

Laura tinha um pouco a impressão de dizer coisas sem impor­tância, de encher um silêncio incómodo, porque, por trás do ino­cente Pitou, que bebia uma chávena de café, o seu olhar e o de Jean falavam-se. Cada um podia ver o reflexo do seu amor no outro. Fi­nalmente, ela não encontrou mais nada que dizer e, durante um ins­tante, não se ouviu mais nada senão a voz de Luís Carlos que, na co­zinha, se regalava com as fatias de bolo feitas por Bina. No fundo, era com ela que ele mais gostava de estar. A pequena bretã, que sem­pre se dera mal ao tratar a sua patroa por outra coisa que não Anne--Laure, não conhecia qualquer protocolo, mas, em contrapartida, era alegre e sabia contar histórias da sua região. Com Jaouen, era a mes­ma coisa: o lado rude do antigo soldado não lhe metia medo porque, com ele, sentia-se confiante. O que não era o caso de Batz: este impressionava-o pela vontade de ferro que adivinhava nele. Quanto a Laura, achava-a bonita, mas lembrava-lhe as damas-de-honor da sua mãe, que brincavam com ele como se ele fosse uma boneca, apesar de ela o tratar com uma doçura misturada com respeito.

—   Parece que vou partir esta noite! Tu vens comigo? — per­guntou ele subitamente.

—   Eh não! — disse Bina. — Temos de ficar aqui para não le­vantar suspeitas... mas encontrar-nos-emos um destes dias! — apressou-se ela a acrescentar ao ver a decepção no pequeno rosto manchado de bolo.

—   Achas que sim?

—   Claro que acho, mas esta noite é melhor que... vás sozinho com o senhor. Quando se foge, é muito mau viajar com várias pes­soas ao mesmo tempo.

—   Como quando fomos a Varennes? — perguntou a criança, subitamente triste. — Quando partimos, foi agradável... toda a gen­te estava disfarçada. Até eu: tinham-me vestido de rapariga, estás a ver? Não gostei nada daquilo!

—   No entanto — interveio Jaouen com a sua voz grave — vai ser preciso fazer isso outra vez esta noite.

—   Oh, não!

—   Oh, sim! A esta hora, a polícia deve andar à procura de um rapazinho. Uma rapariga tem mais hipóteses de lhes escapar. Ten­des de ser razoável.

—   O que é que aconteceria se me apanhassem? Matavam-me?

—   Não sei... mas nós, todos os que estamos aqui, seríamos executados.

O pequeno baixou subitamente a cabeça e começou a chorar:

—   Como o meu pai e a minha mãe!... Não, isso não quero! Não quero!

Foi assim que se soube que Luís XVII não ignorava nada do destino dos seus pais e que sofria por isso.

 

Era tarde, nessa noite, quando dois Guardas Nacionais saíram de casa de Laura. Por causa do frio, tinham vestidos os seus lon­gos capotes do uniforme, mas sem os fechar. Não havia vivalma na Rua do Mont-Blanc e a lanterna que iluminava vagamente os con­tornos da casa estava apagada. Passada a Avenida, um deles fez sair das pregas rígidas a «rapariguinha» pobremente vestida que se apertava contra ele e tomou-a nos braços. O fim da expedição era a casa de Cortey e como o trajecto era bastante curto, tinham esperança de o percorrer sem encontrar qualquer patrulha. De qual-quer maneira, se isso acontecesse, Batz e Pitou tinham uma histó­ria pronta: ao saírem de uma taberna da avenida, tinham visto aquela pequenita, que errava por ali com ar de não saber onde es­tava. Ainda por cima, parecia muda. Então, tinham decidido con­duzi-la à secção Le Pelletier para que terminasse a noite no quen­te e no dia seguinte levá-la-iam ao hospício dos Enfants-Trouvés.

Mas o céu estava com eles. Percorreram as Ruas de la Micho­dière e Neuve-Augustin sem se cruzarem com ninguém e, um mo-mento mais tarde, a pequena porta da casa Cortey, que ninguém fechara à chave, absorvia-os. Mas apenas um Guarda Nacional vol­tou a sair: Pitou, que voltou para sua casa, tranquilo quanto ao su­cesso daquele pequeno começo da grande aventura. Restava rezar para que o seguimento corresse assim tão bem!

Quando o dia chegou, cinzento-amarelado, anunciando neve, a carroça do cidadão Goguet, carregada com as suas habituais pi­pas de cerveja, foi a primeira a apresentar-se na barreira da Con­fèrence, quando esta abriu. Sem a menor descrição: berrando a plenos pulmões um Ça ira tonitruante e notavelmente desafinado, que não pareceu perturbar os guardas. Aquilo era mesmo do cida­dão Goguet!

—   Aposto que já está bêbedo como uma burra — disse um de­les ao companheiro quando se aproximaram da atrelagem.

—   Oh, eu não aposto. Perdia logo!

Com efeito, o odor do vinho que se evolava do cidadão Go­guet era perceptível a cinco passos.

—   E então, cidadão? — exclamou o primeiro — vais buscar mais cerveja de Suresnes? Ainda não bebeste o suficiente?

—   Nunca se bebe o suficiente!... e digo-te, um copito de cer­veja fresca com um bocado de toucinho e um bocado de pão, não há nada melhor p'ra afastar o Inverno! Têm alguma coisa contra? Não? Então, cá vou!

— Eh lá, um momento! Temos que ver o que vai dentro das pi­pas!

—   O que é que tu queres que vá? Vão cheias de vazio, porque vou enchê-las!

—   Talvez, mas precisamos de ter a certeza! São as novas or­dens: tudo o que sai de Paris tem de ser vasculhado!

o homenzinho esparramou-se na boleia e bocejou, dizendo:

—   Bem, vasculhai para aí! Tanto me faz! — disse ele tirando uma garrafa de entre as pernas para beber uma golada, não sem antes, amavelmente, a oferecer.

Entretanto, os municipais entregavam-se a uma busca em regra. Todas as pipas foram examinadas. Apenas uma se recusou a abrir:

—   Não toqueis nessa, é p'ra mim!

—   E por que é que é para ti? — perguntou um dos homens, desconfiado.

—   Eu explico! — disse Goguet majestosamente. Fiz-lhe uma preparaçãozinha de aguardente, que torna a cerveja melhor. Então, p'ra não perder propriedades, fecho-a bem...

—   Mas vais ter que a abrir!

—   Sois mesmo chatos! — choramingou o velho, sem se mexer do assento. — E já agora, o que é que procurais?

—   Não tens nada com isso! Vamos, vocês aí, uma ajuda!

Dois homens pegaram no barril, fizeram-no passar por cima do taipal e atiraram-no ao chão onde se partiu, libertando apenas um pouco de álcool!

—   Ah, que maldade! — protestou o cidadão Goguet. — Um barril a menos! E qu'é que vou dizer ao cidadão Desfieux, qu'é o meu patrão?

—   Lamento, tio Goguet, mas acabámos de to dizer, procuramos uma certa coisa. Encontrarás em Suresnes um barril vazio para substituir esse! Desculpa-nos e continua o teu caminho.

O homenzinho ia arrancar quando um sargento saiu do posto e gritou:

—   Vais a Suresnes, cidadão?

—   Claro. E não é a primeira vez. Vou à Fonte — explicou ele, pondo um dedo sujo debaixo do nariz do graduado. — A Fonte de lá tem a melhor cerveja do mundo! Até te trago um pouco, se qui­seres!

—   Fazias melhor se voltasses para trás! Ouvi dizer que os cer­vejeiros da Fonte foram presos!

O    coração de Batz falhou um batimento, mas continuou fiel à sua personagem: os olhos, a boca, tudo se arredondou:

—   Oh! E quando foi isso?

—   Não sei... É o que se diz!

—   Tens a certeza?

—   Não e teria sido há pouco. Vais lá, na mesma?

—   Claro! Vou lá ver o que se passa!

Depois, inclinando-se para falar ao ouvido do sargento com um ar misterioso:

—   És capaz de ter razão, camarada! Mas eu, se calhar, talvez não tenham prendido também os tonéis... e talvez tenha ficado um pouco para o Desfieux e para mim. E ainda seria melhor, porque seria de graça!

—   Velho manhoso! Pensas que as pessoas de Suresnes são tão estúpidas que deixem ir assim a boa mercadoria?

—   Talvez sim e talvez não, como se diz na minha terra! Mas posso ir ver?

—   Oh, vai lá! — concluiu o sargento, dando uma pancada na garupa sólida do cavalo. — Depois, dizes-nos o que aconteceu.

—   Podes ter a certeza! Obrigado, camarada!

A carroça retomou a sua marcha. Batz tirou da algibeira um len­ço aos quadrados e secou com ele a testa e a nuca. A despeito do frio, sentia-se a arder, como se estivesse cheio de febre. Inclinando-se para baixo, para as suas pernas afastadas, perguntou:

— Vai tudo bem, Monsieur?

—   Vai, mas... ainda falta muito?

—   Não. Só mais um pouco e já vos liberto. O resto da viagem será mais confortável...

O    pequeno, com efeito, estava todo dobrado dentro da caixa que servia de assento ao tio Goguet!

O    dia clareava com dificuldade! O Sena carregava brumas, para lá das quais não se conseguia ver a extensão imensa do Champ--de-Mars, barrado pela Escola militar. Batz respirou profundamen­te o ar carregado de humidade, para dar aos batimentos do seu co­ração o tempo de acalmarem. Sabia que os seus amigos da Fonte tinham sido presos na antevéspera, mas também sabia onde en­contrar, nas casas à beira da água, a carroça coberta que já levara na direcção do mar tantos inocentes ameaçados, a começar por lady Atkyns... Bastaria atrelar-lhe o cavalo que puxava a carroça da cerveja, após o que se dirigiriam a Poissy, onde Batz tinha um re­fúgio, nas antigas construções da abadia real, um retiro e amigos. Passariam lá a noite.

O cidadão Goguet não iria mais longe. Aquele que tomaria a estrada de Dreux seria um bravo camponês normando da região de Avranches, o tio Morel, cuja filha única acabava de morrer em Poissy e que levava para a sua terra a sua netinha, atacada por uma doença da pele», como o atestavam as manchas vermelhas com que estava decorada e que se destinavam a afastar os curiosos. Àqueles que encontrasse — e que depressa se afastariam! — o avô desolado explicaria, choroso, que só tinha fé na Pedra milagreira da aldeia de Saint James, perto de Avranches. E, conhecedor da na­tureza humana, Batz pensava que tinha boas hipóteses de o con­seguir...

Assim, por aquele caminho cinzento à borda-d'água, o filho de Luís XVI e Maria Antonieta mergulhou lentamente nas brumas ma­tinais que eram também, mal ele sabia, as brumas da História. Es­tava-se a 21 de Janeiro de 1794. Um ano antes, dia após dia, o seu pai encaminhava-se para o cadafalso...

Na noite desse dia, Robespierre mandava prender de novo Cor­tey, mas também Devaux e Roussel. Sem esquecer Marie Grand­maison, retirada da sua semi-reclusão da Rua Ménars para ser con­duzida à prisão das Inglesas. O Incorruptível estava decidido a empregar todos os meios para se apoderar, por fim, daquele que ele apelidava de o Invisível! Mas, para paz da sua alma, Batz não o sabia...

 

           AS VÍTIMAS

Na prisão do Luxemburgo, Chabot acabara por se tranquilizar. Seguramente, tinham-no prendido para o subtrair à vingança daque­les que pusera em causa e cuja detenção não tardaria! Após alguns dias no segredo, tinham-no transferido para uma divisão que não ti­nha nada a ver com o seu belo quarto da Rua d'Anjou, mas, no fim de contas, suportável. Além disso, podia mandar vir a sua alimenta­ção da casa Coste, o estalajadeiro da Rua de Tournon e, como não lhe faltava o dinheiro, engordava suavemente. Quase todos os dias comia uma galinha de três ou quatro quilos, sopa, uma «infusa» e so­bremesa, quando não eram costeletas, frango com trufas ou perdi­zes. Tudo, evidentemente, regado com qualquer coisa que não água. Além disso, forneciam-lhe toda a tinta e papel que queria e, persua­dido de que se esperava sempre dele revelações novas, que a sua vida seria preservada desde que falasse, Chabot escrevia ao longo de todo o dia, denunciando ainda e sempre, não apenas Hébert, Fabre d'Eglantine, Danton, Lacroix e até David, sem contar com Batz, bem entendido, procurando fundo na memória para encontrar outros no­mes, outras ocasiões mais ou menos verosímeis. Quando soube da detenção dos seus dois cunhados, escreveu uma carta incrível:

 

Agradeço à Providência por ter, enfim, permitido que os meus dois cunhados fossem detidos. Creio-os puros como o Sol e fran­cos Jacobinos, mas, se não o fossem, seriam os maiores hipócritas do universo.»

Mesmo a detenção de Léopoldine não pareceu causar-lhe uma dor excessiva: Chabot já não sentia qualquer ternura — admitindo que alguma vez a sentira! — senão por si mesmo e, quando não denunciava, escrevia versos destinados à sua própria glória:

 

         La prison n'est un triste asile

         Qu'au crime qui ronge le coeur

         On goúte partout le bonheur

         Quand Ia conscience est tranquille...

A Comissão de Salvação Pública, pela sua parte, via engordar, dia após dia, e não sem algum espanto, o monte de papéis prove­niente do Luxemburgo. Sem lhe dar muita importância ao princí­pio — sabia-se o que valia Chabot! — mas acabando por pensar que não há fumo sem fogo e que, no fim de contas, talvez aquela salgalhada contivesse algumas verdades. E começou a estudá-la, tanto mais que Robespierre e o seu acusador público, Fouquier--Tinville, viam nela uma boa ocasião para se desembaraçarem de todos aqueles que podiam incomodá-los na sua marcha para a di­tadura. Pouco a pouco, a lama que não cessava de cair sobre Cha­bot sujava a Comuna e a Convenção. Entretanto, vítimas inocentes eram atoladas. E, em primeiro lugar, Marie Grandmaison...

A jovem, que enregelava na Rua Ménars, sem notícias de nin­guém, sem qualquer meio de correspondência com o exterior de-vido à vigilância estreita de que era objecto, ficou quase contente por ser levada para a prisão, porque lá, pelo menos, podia esperar saber o que se passava no exterior. Mas, desta vez, não a levaram para Sainte-Pélagie, onde teria gostado de reencontrar Raucourt. A despeito dos carregamentos de vítimas que eram levados, todos os dias, para a praça da Revolução, como para o matadouro, as prisões estavam cheias. Mais de seis mil pessoas permaneciam encarceradas e outras eram construídas a partir de conventos desertos.

"A prisão não é um asilo triste

Senão quando o crime nos rói o coração

A felicidade está sempre presente

Quando a consciência está em paz..

«A população de Paris era, então, de 620.000 habitantes, mais ou menos»

Foi o caso da das Filies-Anglaises, das Beneditinas, cuja missão na terra era rezar pelo regresso da Inglaterra à fé católica. Recentemente ex­pulsas da sua casa, tinham-nas amontoado no segundo andar do torreão de Vincennes t. As prisioneiras — ainda não tinham enviado para lá senão mulheres — ocupavam as celas das religiosas.

Marie e Nicole foram lá parar, preocupadas com a sorte de Bi­ret-Tissot, que tinham levado para a Força, mas um pouco aliviadas por se verem livres das visitas quase quotidianas do polícia Armand, cuja conversa se reduzia a pouca coisa, mas quão lancinante: Dizei-nos onde está Batz e sereis libertada imediatamente!»

Começara por lhe rir na cara: como podia ela saber onde se en­contrava Batz, o homem-Proteu, a corrente de ar, se estava fechada em sua casa e quase guardada à vista? Depois, viera o cansaço e Marie acabara por não lhe responder, mesmo quando ele a bru­talizava, o que não era raro. Mas a repugnância que ele lhe inspi­rava era ainda mais difícil de suportar: aquele homem fora hóspe­de de Charonne — ignorando Batz até que ponto ele podia ser infame, mas tratando-o como amigo — e chegara a ousar falar-lhe de amor. O pior era que continuava! Nas Inglesas, Marie podia, pelo menos, esperar que ele não a seguisse. Iria, em breve, des­cobrir que a esperava outra provação.

Recentemente liberta das religiosas que, durante um certo tem­po estiveram misturadas com as novas pensionárias, a casa, limpa, era mais suportável do que as outras prisões. Além de que era bo­nita, possuía jardins, uma horta, assim como um cemitério, tão bem tratado como os canteiros por onde as detidas tinham autorização de passear.

Foi lá que Marie conheceu uma mulher ainda muito bela, de uns 40 anos, que se passeava melancolicamente entre as campas, doravante ao abandono. Essa mulher, após observá-la com aten­ção, aproximou-se:

— Vós sois Mile. Grandmaison, não é verdade?

—   Para vos servir, Mme. De onde me conheceis?

—   Sois célebre, ou antes, éreis, porque escolhestes deixar o tea­tro, mas nós temos um... amigo comum. Jean de Batz não vos falou de mim? Eu sou Mme. d'Epremesnil.

Um arrepio, com o qual o frio húmido daquele dia não tinha nada a ver, deslizou ao longo do dorso de Marie e ela perscrutou, com uma espécie de avidez, o belo rosto ainda liso e puro sob os cachos de cabelos castanhos ligeiramente acinzentados, procuran­do uma parecença.

—   Com efeito — admitiu ela, sem se comprometer. O conse­lheiro d'Epremesnil é muito conhecido pelo seu talento oratório e ataques contra os abusos da realeza...

— ... que lhe valeram uma desagradável estadia na ilha de Santa Margarida no tempo do caso Collier, porque ele tinha tomado posição contra a Rainha? — disse Françoise d'Epremesnil, sorrindo. — Mas essa é uma velha história e nós só nos casámos pouco de-pois. Batz, creio bem, nem sequer soube do nosso casamento, se bem que ambos fossem, sempre, muito próximos. O meu marido é, ou antes, era, administrador da Companhia das Índias e Jean era um dos seus principais accionistas.

—   Dizeis «era? Espero que não esteja...

—   Morto? Não, preso, simplesmente — disse a dama com tris­teza — e receio muito por ele. O povo que em tempos ele sabia tão bem cativar, odeia-o agora.

Seguiu-se uma longa evocação de um esposo que ela parecia amar muito. Falou, mesmo, da sua infância em Pondichéry, de que o seu tio, Duval de Leyrit, era governador, enquanto o seu pai, Du­val d'Epremesnil, genro do grande Dupleix, reinava sobre Madras. Marie escutou-a pacientemente: tinha a impressão de que aquela mulher, ao fazer ressurgir da sua memória as glórias passadas e o encanto exótico de terras longínquas, procurava repelir a cor cin­zenta e a mesquinhice de um presente de perspectivas assustadoras.

— Foi preso antes de mim — suspirou ela, concluindo. — Vol­tava da Normandia, onde temos um castelo perto do Havre, Maré-fosse. O filho dele, que, aliás, se casou com a minha filha mais ve­lha, vive lá permanentemente. Jean de Batz foi lá muitas vezes...

Era impossível Marie não agarrar a ocasião pelos cabelos, fin­gindo-se ignorante:

—   A vossa filha mais velha? Tendes outras? Como éreis casada há pouco...

—   Tratou-se de um segundo casamento. Com efeito, tenho duas filhas de uma primeira união com o advogado do Parlamen­to Jacques Thilorier. Deixou-nos há alguns meses.

—   E... a vossa segunda filha é casada?

—   Michèle? Não, claro, mas vós devíeis saber tudo isso. Não é verdade que Batz preferiu manter-se discreto?

—   Discreto? Por quê?

—   A palavra é imprópria. Por que revelaria ele o segredo do coração de uma rapariga à...

Marie inteirou-se:

— À sua amante? Portanto, a vossa filha seria... noiva dele?

—   Não inteiramente. Ela considera-se como tal porque o ama há muito e está persuadida de que, mais dia menos dia, ele lhe de-volverá esse amor. Talvez tenha razão: ele sempre foi encantador com ela!

—   Ele é encantador com todas as mulheres — murmurou Marie.

—   É verdade! E tão sedutor!... Mas, não vos devia ter falado como acabo de o fazer. Também o amais?

—   Sim, Mme., amo-o tanto quanto é possível amar.

Disse-o com uma espécie de regozijo na voz. O que acabava de ouvir tirava-lhe uma grande parte de um peso intolerável, sob o qual sufocava: Michèle amava Jean, mas nada, nas palavras da mãe, dava a entender que este amor era recíproco. Quanto à futu­ra maternidade, talvez não prevalecesse e Marie, agora, sentia-se arrependida por ter guardado tudo aquilo para si, não se ter expli­cado com Jean. Ele teria sabido tão bem apaziguar-lhe a mágoa! Sa­bia tão bem amá-la e dar à sua vida o gosto maravilhoso, insubsti­tuível, do amor total...

Durante alguns dias, Marie viveu quase feliz. Mme. d'Epremes­nil ocupava uma cela vizinha da que ela partilhava com Nicole e uma espécie de entendimento estabeleceu-se entre as duas mulhe­res, felizes por poderem falar de um homem que lhes era querido a ambas, se bem que em graus diferentes. E depois, uma manhã, uns prisioneiros apareceram nas Inglesas e, entre eles, estava Louis--Guillaume Armand.

—   Fui preso por vossa culpa — disse ele a Marie com a sua voz má. Eu devia entregar Batz e falhei. O que me pode levar ao cadafalso. Juro-vos que haveis de falar, porque a minha vida de-pende disso...

De facto, desempenhava o seu papel habitual e sórdido de «toupeira». E o inferno recomeçou para Marie, atormentada, como que por uma mosca nociva, por aquele miserável, que sabia muito bem que os guardas não interviriam. Quem o fez foi Françoise d'Epremesnil, indignada por ver aquela personagem colar-se aos passos de Marie desde que esta saía da sua cela e que muitas ve­zes, de noite, lha mandava abrir, de onde vinham, então, os gritos desesperados de uma mulher que não podia mais:

—   Não sei que espécie de monstro sois — disse-lhe ela — mas vou-vos denunciar.

—   Já o fui! Que haveis de fazer mais? — respondeu ele com in­solência.

—   É justo. Então, empregaremos outros meios.

No dia seguinte, Armand viu-se encurralado contra a parede do cemitério por uma verdadeira horda furiosa, na qual as mulheres desempenhavam um papel pelo menos tão activo como os ho­mens. Cheio de golpes, meio morto, o espião ficou a dever a vida à intervenção dos guardas. Nessa mesma noite, desapareceu. Ma­rie reencontrou um pouco de paz...

 

Enquanto isso, a de Laura, bastante precária depois da partida de Batz, acabou por se esboroar. A atmosfera de Paris tornava-se sufocante, feita de medo, raiva e desconfiança. Depois de o públi­co ter conhecimento da pretensa conspiração do Estrangeiro, per­suadia-se de que o perigo espreitava a nação inteira, que a dita conspiração tinha por fim destruir a Convenção e restabelecer a monarquia, com tudo o que esse regresso comportava de vingan­ças globais ou particulares. Dizia-se que um exército de aristocra­tas se aprestava para assaltar a República, mas ignoravam-se os seus nomes e isso permitia que se suspeitasse de toda a gente. As denúncias afluíam às duas Comissões e os espiões da polícia apro­veitavam para ajustar as suas contas e dar ouvidos a boatos, tais como: «O caso Chabot não seria senão uma fábula inventada por Hébert e Chaumette para fazer cair sobre uma única cabeça todo o peso da indignação pública...»

Batz não teria feito melhor para semear a confusão e a discór­dia entre os Jacobinos. Por vezes, reinava ali uma verdadeira at­mosfera de loucura. Em Março, descobriu-se que, sobre um cartaz da Comissão de Salvação Pública alguém escrevera «Antropófago» sob o nome de Robespierre e, sob os de Prieur, Barère e Llindet: «Trapaceiros do povo sempre burro e estúpido» e depois, mais lon­ge: «Ladrões e assassinos». Por fim, sobre um outro cartaz na Te­souraria nacional: «Morte à República! Viva Luís XVII!» Ao mesmo, outros ainda, no cabeçalho do clube dos Cordeliers, apelavam ao povo para que se levantasse em massa para assegurar a subsistên­cia e libertar os patriotas prisioneiros. Robespierre e o seu amigo Saint-Just pensaram que era tempo de intervir e, atribuindo tudo aquilo a Hébert e companheiros, lançaram a ordem de detenção. Na noite de 13 para 14 de Março, o Père Duchesne era enviado para a Conciergerie, onde a mulher se lhe juntou na manhã se­guinte. Outros iriam seguir-se por razões mais ou menos obscuras. Mas, para Laura, o destino dos hébertistas não tinha grande im­portância: não tinham lugar nas suas afeições e ela sabia o papel infame que o Père Duchesne desempenhara no processo de Maria Antonieta. Aqueles por quem ela tremia eram os seus amigos pri­sioneiros e, em primeiro lugar Marie, mas também Devaux, Rous­sel, Biret, cujas notícias, trazidas por Pitou, eram cada vez mais ra­ras. O golpe mais rude, recebeu-o no dia em que Jaouen, que passava muito tempo na rua para apanhar ar e fazer as compras, regressou descomposto: Pitou, por sua vez, acabava de ser preso e conduzido à Força, o que não pressagiava nada de bom.

—   Sabe-se como aconteceu? — perguntou Laura quando a sua crise de choro se apaziguou. — Foi por causa do jornal em que ele colaborava?

—   Como quereis que saiba? Tudo o que pude saber, quando fui a casa dele, é que foram buscá-lo ontem à noite. Se quereis sa­ber mais, perguntai-o ao vosso pintor — acrescentou Jaouen na­quele tom que empregava sempre que se falava de David.

Laura absteve-se de o repreender: se Joël Jaouen não existisse, jamais ela teria concedido a David permissão para instalar o cava­lete no seu salão, para um retrato singularmente lento de executar. Agora que Pitou já não tinha os movimentos livres, o artista seria, sem dúvida, o único visitante a franquear a soleira da sua casa.

Com efeito, sem falar de Batz, do qual não se sabia nada há dois meses, nem de Swan, sempre ausente, os amigos americanos já não se aventuravam na cidade. Os Barlow, por exemplo, tinham--se juntado ao embaixador em Seine-Port. Aliás, tinham levado a Laura um convite para os seguir, visto que Gouverneur Morris se preocupava com a sorte da sua bonita «compatriota». Os outros mantinham-se longe de Paris, pouco desejosos de partilhar a sorte de Thomas Paine, cujo estatuto de deputado já não o protegia e cujo endereço era agora a prisão do Luxemburgo. A mesma pru­dência por parte dos Talma: Julie já não punha o nariz na rua e o próprio Talma voltava para casa apressadamente após cada repre­sentação. Restava, apenas, David, o único que a jovem não gosta­va muito de receber, mas que sabia que, fechando-lhe a porta po­deria ter as mais graves consequências. Ele dera-lho a entender, negligentemente, entre dois golpes de pincel e, além do mais, es-colhia a ocasião. Mostrando-se, de resto, perfeitamente cortês e até encantador, sem se permitir a menor palavra o menor gesto deslo­cado. Mas subitamente, ao observá-lo, Laura sentiu-se um ratito vigiado por um gato tão paciente como guloso...

Nesse dia, no entanto, foi incapaz de guardar silêncio sobre um tormento que os seus olhos vermelhos, pelas lágrimas, denuncia­vam.

— Que quereis vós que eu faça com semelhante rosto? — ra­bujou David sem mesmo lhe perguntar a razão do seu desgosto.

—   Receio não ter outro para vos oferecer, se os vossos amigos continuam a prender os meus! — exclamou ela, indignada.

—   Mudai de amigos! Arranjai uns que pensem como deve ser! Quem é que vos pôs a cara do avesso?

— Um simples Guarda Nacional, o meu amigo Ange Pitou, que é o rapaz mais humano que pode haver. Nunca fez mal a ninguém...

— ... o que não impede que se tenha servido de uma pena en­venenada. O vosso Pitou, minha cara, é um jornalista contra-revolu­cionário e se o prenderam foi por causa de uma canção demasiado insolente que compôs. Foi denunciado por uma vizinha, mas há muito tempo que já o deviam ter preso. Não posso fazer nada por ele.

—   Dizei antes que não quereis fazer nada! Nesse caso, tereis que esperar que eu acabe de chorar para continuardes a pintar-me.

— Muito bem, eu espero! Ao diabo as mulheres e as suas sen­sibilidades!

E partiu batendo com a porta, mas dois dias mais tarde Laura recebeu dele o bilhete seguinte:

 

«Devido a um aviso discreto que recebeu, o vosso amigo en­contra-se doente. Foi transferido para Bicètre e eu espero, ao des­locar-me aí amanhã,- poder contemplar uma imagem suportável!»

 

No entanto, Laura não teve tempo para se alegrar com a mu-dança de regime que concediam ao seu amigo.

—   Bicètre? — exclamou Jaouen, posto ao corrente. — É o hos­pital mais terrível que há: ali são amontoados os febris, os ulcerosos, as vítimas de epidemias, os doentes mais graves. Pitou vai respirar um ar pestilento, acotovelado pelas piores misérias humanas e, se não está doente, em breve ficará! Bonita graça lhe foi concedida!

—   E eu que estava tão contente por ele já não estar na Força.

—   Estou certo que não se arrisca à guilhotina, mas não é muito melhor...

Mas nem por isso Laura se sentiu menos obrigada a agradecer a David, mas fê-lo de má vontade e ele voltou a partir tão des­contente como da vez anterior, não tendo obtido o menor sorriso.

Laura perguntava-se se, um dia, voltaria a sorrir. David ainda não devia ter chegado à esquina quando ela viu chegar Elleviou. Um Elleviou como nunca tinha visto: devastado pelo desgosto, inundado de lágrimas e sacudido por soluços: na véspera, 1 de Abril, às nove horas da noite, as damas de Sainte-Amaranthe, o pequeno Luís, de 16 anos e o sr. de Sartine, o marido da encantado­ra Émilie, tinham sido detidos na sua propriedade de Sucy-en-Brie e trazidos para Paris.

—   Como pudestes ser avisado assim tão depressa? — pergun­tou Laura.

Ele estendeu-lhe um bilhete, de tal modo amarrotado, que era difícil de ler, mas explicou:

— Recebi isto do sr. Aucane, que é protector deles há anos. Ele está muito doente e, por essa razão, deixaram-no em casa, mas ele conseguiu fazer-me chegar esta mensagem com as últimas palavras de Émilie: «Dizei ao meu querido Elleviou que o meu último pen­samento será para ele...» Mas por quê, meu Deus, por quê? Eles não incomodavam ninguém. A casa deles era a mais tranquila da aldeia e toda a gente adorava Émilie! Não compreendo...

Laura deixou-o chorar por um instante, sabendo como as lágri­mas podiam trazer alívio, mas elas pareciam inesgotáveis. Foi, então, encher um copo da aguardente cara a Batz e fê-lo bebê-la, per­guntando depois:

—   Permiti-me uma pergunta... indiscreta.

—   Sois minha amiga. Não pode haver indiscrição entre nós. Que quereis saber?

—   Continuáveis a ser o amante de Émilie?

—   Claro! Não podeis imaginar a intensidade da nossa paixão comum! Não posso suportar a ideia de estar separado dela.

—   E a Mafleuroy, no meio disso tudo?

—   Fazia todos os esforços possíveis para a conseguir enganar. Conheceis os ciúmes dela...

—   Enganar? Uma mulher possessiva e ciumenta daquela ma­neira? Só um homem para imaginar isso possível... — Entretanto, a última pergunta abria caminho no espírito do pobre apaixonado.

—   Por que me falais dela? Não pensais?...

—   Uma denúncia? Na realidade não sei e vós conhecei-la me­lhor do que eu.

—   Ela era capaz disso, creio... Oh, se ela fez isso!

Tetanizado de horror, Elleviou já não chorava. Levantou-se e, sem acrescentar uma palavra, dirigiu-se para a porta com o passo mecânico de um sonâmbulo.

—   Onde ides? Ficai mais um pouco! — pediu Laura, mas ele não a ouviu e saiu da casa deixando todas as portas abertas atrás de si. Desencorajada, Laura renunciou a correr atrás dele.

 

Nesse mesmo dia, 2 de AbrilDanton, Camille Desmoulins, os seus amigos e aqueles que se supunha ligados a eles compareciam diante do Tribunal Revolucionário. Apareceram livres de quaisquer ferros e tomaram lugar em duas filas, de modo a serem vistos por todos. Para além dos dois acusados principais, estavam presentes Fabre d'Eglantine, Basire, Delaunay d'Angers, Lullier, Philippeaux, Hérault de Céchellese, o abade d'Espagnac, os irmãos Frey, um certo Guzman, um advogado da corte do Rei da Dinamarca cha­mado Deiderischen... e Chabot. Um Chabot doente, esverdeado, porque, no seguimento da sua notificação para comparecer, tentara levar a cabo uma tentativa de suicídio que ele pensara genial: após ter escrito uma bela carta, bebera uma poção bizarra gritan­do «Viva a República», apressando-se, depois, a tocar a campainha para chamar o porteiro e ser socorrido. Infelizmente, o que ingur­gitou era mais nefasto do que pensava e podia muito bem ter morrido. Mas enfim, estava presente!

Para grande felicidade de Lalie Briquet. Na primeira fila do pú­blico, devorava-o com os olhos, gozando, gulosamente, as premis­sas de uma vingança da qual tinha feito o objectivo da sua vida. Sabia que não ficaria desiludida, que no fim do processo contem­plaria, por fim, a imagem que lhe assombrava as noites sem sono: o assassino da sua filha atirado para as goelas da guilhotina pelos mesmos que lhe tinham permitido os crimes! Na algibeira do seu avental havia um rosário sob a habitual bola de lã e, de tempos a tempos, tocava-o, para que Deus não permitisse que Chabot esca­passe ao cadafalso. Tinha tão má cara que poderia perguntar-se se aguentaria até lá.

Aquele processo, que seria conhecido na História como nome de 'processo dos Indulgentes, era, de facto, uma negação da jus­tiça, porque aqueles homens iam ser julgados, aqueles verdadeiros republicanos, não pelos crimes que tinham cometido, mas por aqueles que não queriam cometer: o seu grande pecado fora o de ter empurrado Hébert e os seus para o carrasco, porque, agora, en­contravam-se, eles mesmos, na primeira fila, face à fria determina­ção de Robespierre e Saint Just. «Fora Saint-Just que, ao cabo de uma violenta sátira, exigira as detenções de Danton e dos seus amigos»

De facto, aqueles homens acredi­tavam profundamente que era tempo de acabar com a carnificina e reconciliarem-se como franceses, para trazer de volta a paz e a prosperidade. Já não sentiam ódio pelas suas antigas vítimas, talvez porque eles próprios eram a garantia e queriam tirar partido dela. Era por isso que iam morrer: no domínio de Robespierre não havia lugar para eles. E o Incorruptível só tinha que deixar agir o seu amigo Fouquier-Tinville.

Este sentia-se às mil maravilhas, na limpeza. As suas petições tinham força de lei perante o tribunal e os jurados, cujo único pa­pel era aprová-las. Aliás, não hesitava em acrescentar acusados no decurso de processos. Assim, na manhã da primeira audiência — os «debates» iriam durar três dias — viu-se chegar o general Westermann. O negociador de Valmy, o carrasco de Vendée, cu­jas Colunas infernais tinham devastado e sangrado o país, encon­trava-se com os «Indulgentes». O pobre Lullier também compare­ceu. Não havia grande coisa a respeito dele, mas pertencia à Comuna, como Hébert e o seu antigo mister de prestamista e a sua administração de bens de emigrados saltavam-lhe, agora, à cara. De facto, aquela sábia ««montagem»» contra Danton preten­dia cobri-lo com a mesma lama que Chabot. Ao cabo dos três dias, a sentença de morte caía sobre todos, mas Lullier conseguiu abrir as veias na prisão. E no dia 5 de Abril à noite foi a marcha para o suplício.

Duas carroças cheias dirigiram-se para a praça da Revolução no meio de uma multidão imensa. Todos queriam ver Danton, que o povo amava e cuja silhueta colossal, máscara leonina, atitude or­gulhosa e desdenhosa impunham respeito. Não olhava para nin­guém, ocupado em acalmar Camille Desmoulins, que urrava de de­sespero e se debatia tanto com as ataduras que chegou meio nu ao cadafalso. Chabot, esse, estava prostrado, de cabeça baixa e olhar perdido, visivelmente vencido pelo destino que tanto quisera evi­tar. Todo o seu corpo tremia.

No momento em que o içaram para a plataforma, uma mulher conseguiu afastar os soldados e as tricotadeiras, que não a reco­nheceram. Não era, com efeito, a cidadã Lalie Briquet, mas uma outra. Toda vestida de negro e na sua condição de nobre dama, uma cruz ao pescoço e um missal na ponta dos dedos metidos em luvas de renda, apostrofou o condenado:

— Olha para mim, Chabot! Reconheces-me? Sou aquela cuja fi­lha violaste! Sou a condessa de Sainte-Alferine e vim ver morrer o cobarue assassino que tu és! Sê maldito até à eternidade!...

Passado o momento de surpresa, os soldados pegaram nela para a levar, mas ela tivera tempo de ver o seu inimigo a urrar sob a lâmina e ouvir o som sinistro que fazia ao cair. E foi com aque­le sorriso que »»Lalie» se deixou conduzir para a prisão...

Danton foi o último a morrer. Por um instante, direito na pla­taforma, viu o Sol poente envolvê-lo com a sua luz vermelha e de-pois, virando-se para o carrasco, disse:

— Não te esqueças de mostrar a minha cabeça ao povo! Ela vale bem a pena!

Como o cemitério de la Madeleine já não tinha lugar, foi no parque de Monceau, a «loucura» do duque de Orleães, que abriram para eles uma vala comum.

No dia 10 de Maio, o corpo decapitado de Madame Elizabeth, a irmã de Luís XVI, foi também, por sua vez, para ali atirado.

Foi da boca de David que Laura soube a notícia. Agora, vinha todos os dias, menos para pintar e mais para conversar, desempe­nhando, pouco a pouco, o papel de amigo fiel. Trazia os rumores do exterior, flores, por vezes frutos, mas sem conseguir vencer a desconfiança da sua anfitriã. Desconfiança que, evidentemente, ela escondia o melhor que sabia. De facto, se aceitava a presença dele, era mais por cansaço do que por medo do que lhe pudesse fazer se o rejeitasse.

E depois, sobretudo, ele mantinha-a ao corrente da vida das prisões e da actividade do Tribunal Revolucionário. Podia ver a lista dos condenados, tornadas quotidianas. Fouquier-Tinville adop­tara uma fórmula definitiva e invariável para as suas detenções: «X... é culpado de ser um dos cúmplices da conspiração que exis­tiu contra a unidade e indivisibilidade da República, a liberdade e a segurança do povo francês.» Os hébertistas tinham-na inaugurado e iria servir para uma multidão de infelizes, saídos de todas as categorias do que fora a sociedade francesa: tanto as duquesas como os pedreiros, os parlamentares como os polícias, os padres, as raparigas, os jovens, as viúvas, os trabalhadores... Uma miscelâ­nea trágica, nascida daquela loucura que era a denúncia e que, a despeito do destino de Chabot, parecia a melhor maneira de as pessoas se preservarem. A fórmula mágica serviu também, para Madame Elisabeth.

O anúncio da sua morte desencadeou em Laura uma verdadei­ra crise de furor, tanto mais violenta porque nascida do assombro:

— Ousastes matá-la, àquela pobre jovem, que nunca fez mal a ninguém? A caridade em pessoa! Aquela a quem chamavam o Anjo da realeza? Mas de que barro sois vós feitos? Quem ides extermi­nar agora? As duas crianças ainda prisioneiras no Templo? Oh sim, sois muito bem capazes disso! Sois uns monstros, os piores que o inferno alguma vez vomitou...

Branco como a cal, o pintor sofreu a avalancha sem ousar re­plicar. Laura já não se controlava. Urrava, pegava nos objectos que se encontravam ao seu alcance para os atirar. Ia atirar-se a ele, de unhas em riste, quando Jaouen e Bina acorreram, uma da cozinha, o outro do fundo do jardim. Os dois dominaram a jovem fúria, que acabou por se desmoronar, sacudida pelos soluços. Mas na másca­ra convulsa de Jaouen, nos seus olhos contraídos, David viu o de­sejo de matar...

— Juro-vos que não fiz nada! — exclamou ele. — Não lhe to­quei.

—   Então, que lhe dissestes? Porquê estas injúrias, estes gritos? A despeito da sua segurança, o artista desviou a cabeça:

—   Todos os dias, como sabeis, ponho-a ao corrente das últimas condenações, porque ela quer saber. Ontem... foi a irmã do Cabeçudo.

— Aqui, respeitamos os mortos — troou Jaouen. — Dizemos o Rei... ou Luís XVI! As vossas alcunhas grotescas só vos desonram! Se os vossos ousaram matar aquela inocente, não vos espanteis pelo que acaba de se passar.

—   Sim, justamente! — disse David, que recuperava o sangue--frio. — Gostaria de saber por que é que o destino das raparigas de França interessa tanto a uma americana? Não é um pouco anormal?

Jaouen compreendeu que acabava de cometer uma falta, pela qual Laura poderia muito bem vir a pagar. E não tinha vontade ne­nhuma de dar explicações. Limitou-se a encolher os ombros e de-pois, dirigindo-se para o canapé onde Bina tentava reanimar a jo­vem, desmaiada, tomou-a nos braços para a levar para o quarto.

—   Se ela consentir, explicar-vos-á quando estiver melhor. Para já, faríeis melhor se voltásseis para casa!

—   Talvez. Mas voltarei!

 

Voltou, com efeito, durante três dias seguidos, para trazer notí­cias, sem nunca ser recebido. O choque fora tão violento para Lau­ra que caiu doente. O pintor convenceu-se, ao ver um médico fran­quear a soleira daquela porta que lhe era interdita. Durante ainda dois dias, mandou saber notícias através de um dos seus alunos portadores de flores e recebeu, por fim, a resposta que esperava:

Miss Adams aceitava recebê-lo no dia seguinte. De facto, Laura es­tava bastante melhor desde há 48 horas, mas precisara de reflectir.

Recebeu-o estendida numa chaise-longue que Jaouen instalara no jardim, perto de um arco de rosas que aquele magnífico mês de Maio fazia florir com abundância. O próprio David trazia um enor­me braçado, que tivera a delicadeza de não escolher vermelho‑vivo, mas sim de um rosa delicado, suave e perfumado, no qual ela enfiou o rosto antes de dizer:

—   Peço-vos desculpa pela minha atitude do outro dia. A terrí­vel notícia que me trouxestes apanhou-me desprevenida e emo­cionou-me mais do que devia...

—   Confesso que fiquei surpreendido. De onde conhecíeis aque­la infeliz?

O tom era amável, cortês, mas não retirava nada à acuidade da pergunta, tal como poderia ter sido feita por um juiz. Laura sentiu‑o e fixou os seus olhos sombrios nos do pintor.

—   Das Tulherias, onde fui recebida quando souberam da pre­sença, em Paris, de uma prima do almirante John Paul Jones, que acabava de morrer. Naquele tempo já não havia corte e foi com grande simplicidade que fui admitida ao pé da Rainha, dos filhos e da cunhada. Fiquei seduzida, confesso...

—   Por toda a família, ou apenas por... Madame Elisabeth?

—   Nem por uma, nem por outra. Sobretudo pela pequena Ma­rie-Thérèse, porque se parecia muito com uma... irmãzinha que perdi. Que ela esteja prisioneira naquele torreão terrível que me mos­traram sempre me chocou profundamente, mas estava mais ou menos tranquila, sabendo que lhe restava, pelo menos, a tia, e que não estava completamente abandonada. Foi nela que pensei quan­do me falastes na morte daquela infeliz princesa, porque...

Parou, invadida por uma imagem de um tal horror que não se conseguia exprimir.

—   Porque o quê? Vamos, dizei-me tudo!

—   Pronunciastes o nome de Madame Elisabeth, mas, de facto, foi a criança, a pequena Marie-Thérèse, que me pareceu ver arras­tada para a vossa horrível máquina de morte. Não o suportei...

—   A «vossa» máquina de morte! — exclamou ele. — Não fui eu que a inventei e não convido ninguém para ela. Eu não sou Fou­quier-Tinville!

—   Sois a Comissão de Salvação Pública, não? Os que decretam as detenções? Então, quantas vítimas vos faltam? E quanto tempo de vida resta a Marie-Thérèse?

—   Ela não tem nada a recear — deixou sair David após um ins­tante de silêncio. — Ela e o irmão são reféns da República e nós não somos nenhuns loucos para nos privarmos deles.

Era bom saber aquilo e Laura respirou melhor. Encontrou, mes­mo, um sorriso para aquele homem de quem não gostava, mas que era a sua única ligação com as prisões:

— Acredito. Mas, de facto, nunca vos perguntei quem substituiu Simon junto do pequeno?

—   Ninguém... ou antes, muita gente. Todos os dias, dois co­missários vigiam o seu quarto, levam-lhe comida e estão atentos a que nada lhe falte. São mudados quotidianamente...

—   Mas, enfim, uma criança daquela idade tem necessidade de uma mulher ao pé dela, para o tratar se estiver doente, para o la­var, tratar-lhe da roupa? Aqueles homens, ao menos, brincam com ele, quando sai?

Subitamente, David, já de si pouco expansivo, pareceu fechar-se:

— Não digas tolices! Ele tem nove anos. Nessa idade, um rapaz pode tratar de si mesmo. E ele não sai: é tratado como outro pri­sioneiro qualquer.

—   Oh, é horrível. Que o juntem à irmã, ao menos? Ou ainda tendes medo daqueles dois inocentes?

— A Europa tem os olhos fixos naqueles dois inocentes, como dizeis, e nós devemos velar para que nenhuma evasão seja possí­vel... Agora, repousai: volto amanhã...

Após a sua partida, Laura permaneceu mergulhada, durante al­guns momentos, em reflexão. Se não tivesse visto com os seus pró­prios olhos, se não o tivesse acolhido em sua casa, jamais teria ima­ginado que o pequeno Rei tinha saído do Templo. Nenhum rumor transpirara e os seus guardas agiam como se nada se tivesse passado. No entanto, alguns de entre eles deviam ter-se apercebido de que o pequeno prisioneiro não era o mesmo? Mas o medo de que o rumor transpirasse selava-lhes os lábios e Laura perguntava-se se o próprio David estaria ao corrente. O pequeno não tinha qualquer estatuto especial: era — acabavam de lho dizer — tratado como ou­tro cativo qualquer e talvez mesmo como um cativo no segredo...

Fosse quem fosse o pequeno que substituíra Luís Carlos, a vida que lhe impunham era terrível. Quando Batz voltasse, seria preci­so, a qualquer preço, restituir-lhe a liberdade, também a ele... mas Batz voltaria algum dia? Já tinha o seu Rei e o seu dever ordenava-lhe que continuasse a protegê-lo. Face a essa exigência, que im­portava o sofrimento e as lágrimas daqueles que deixava para trás? Que importava o destino de uma rapariguinha de 15 anos enterrada viva numa torre medieval?...

— Meu Deus — orou Laura — Vós não podeis tolerar tais in­fâmias. Dai-me uma ideia, um pouco de ajuda! Inspirai-me! Preci­so de fazer qualquer coisa!

Nunca o sentimento da sua impotência e solidão fora tão cruel. O seu único conforto era saber que Marie e Pitou continuavam vi-vos. Mas por quanto tempo?

Entretanto, David não voltou nesse dia de manhã nem nos se­guintes, absorvido nos preparativos da festa gigantesca ordenada por Robespierre, doravante no auge do poder. Este, considerando que os seus inimigos tinham sido abatidos, salvo um, decidiu agra­decer a alguém mais credível do que a deusa Razão: um Ser su­premo que não pode deixar de existir, mas ao qual, no entanto, re­cusa o nome de Deus. E depois de a 7 de Maio ter declarado à Convenção estupefacta querer render homenagem a essa entidade suprema que fez dele o eleito, Louis David desenha, prepara, tra­ça planos para a imensa manifestação que terá lugar, como que por acaso, no dia 20 de Prairial, antigo Domingo de Pentecostes. Na es­perança, talvez, de que o Espírito Santo interceda...

Durante esses preparativos, com os quais toda a Paris se entre-tinha, comentando-os de diversas maneiras, dois incidentes, acon­tecidos um logo a seguir ao outro, iriam persuadir o povo de que a conspiração do Estrangeiro acabava de estalar: no dia 3 de Prai­rial, um certo Admiral, que morava no número 4 da Rua Favart, na mesma casa de Collot d'Herbois, apresentou-se, por volta das nove horas da manhã em casa de Robespierre, mas não foi recebido. Passou então o dia a comer, a beber — sobretudo! — e a distrair--se de diversas maneiras para voltar à sua casa às onze horas da noite, mas, em vez de entrar, ficou no patamar, à espera. Quando, por volta da uma da manhã, Collot d'Herbois subiu as escadas, Ad­miral foi esperá-lo diante da porta deste e, chegado lá, deu-lhe um tiro de pistola em pleno rosto. Mas a arma falhou. Espantado, Col­lot baixou-se para apanhar a bengala, o que lhe evitou o segundo tiro. Um momento mais tarde, o furioso era detido, que se tinha barricado na Conciergerie. Exprimiu, apenas, o seu pesar por o tiro ter falhado e por ter comprado uma arma tão cara que não funcionara...

O segundo acontecimento — diga-se antes a segunda história de loucos — teve lugar no próprio dia 4 de Prairial. Por volta das seis horas da tarde, uma jovem de 20 anos, Cécile Renault, filha de um papeleiro abastado de la Cité, abandonava o seu domi­cilio da Rua de la Lanterne sem prevenir ninguém — ela vive com o pai e três irmãos, dos quais dois estão no exército — e, durante três horas, ninguém saberá o que lhe aconteceu. Às nove horas, Cécile, que é uma rapariga um pouco provocante, apresenta-se em casa de Robespierre. Dizem-lhe que ele ainda não voltou, o que a irrita:

—   Como funcionário público — disse ela — tem que receber todos aqueles que se apresentam!

O tom é rígido, mesmo arrogante e desagrada aos dois amigos de Robespierre que se encontram no pátio. Ameaçam Cécile de a conduzir à Comissão de segurança geral e um deles segura-a pelo braço para a reconduzir à rua.

—   No Antigo Regime — grita então a jovem — uma pessoa en­trava imediatamente, quando se apresentava em casa do Rei... — Tens saudades do tempo dos reis?

—   Ah, verteria todo o meu sangue por esse tempo. Vós não passais de tiranos!

Perante a Comissão de segurança geral, onde a conduziram imediatamente, manteve os seus propósitos, acrescentando que, se quisera ser recebida por Robespierre, fora para ver de que é feito um tirano! Quanto ao pequeno pacote que levava debaixo do bra­ço, continha um vestido de musselina branca e roupa interior para uma muda, no lugar para onde a levaria». E como lhe perguntassem para onde pensava ir, respondeu serenamente:

— Para a prisão! E de lá para a guilhotina...

Estes dois casos simultâneos fizeram um barulho enorme: con­cluiu-se que, por duas vezes no mesmo dia, tinham querido assas­sinar o Incorruptível ! A famosa conspiração tomava forma, rosto e Robespierre só se limitou a ter mais cuidado na preparação da fes­ta da qual seria o único herói, ele, o grande sacerdote da Era Su­prema. Em seguida, seria oferecida ao povo o espectáculo da pu­nição exemplar dos membros dessa infame conspiração: os amigos de Batz. Até lá, talvez se conseguisse deitar a mão ao barão fan­tasma.

Quatro dias antes da festa, a 16 de Prairial', Robespierre foi eleito presidente da Convenção por unanimidade, mas — teria um certo peso no seguimento dos acontecimentos — 48 horas mais tarde, o cidadão Fouché tornava-se presidente dos Ja­cobinos. E Fouché odiava Robespierre...

A despeito das censuras de Julie, Talma e David, que queria que ela fosse contemplar a sua obra, Laura recusou ferozmente deslocar-se à festa. Os seus amigos americanos não vão e, de qual-quer maneira, ela tem horror às multidões em geral e aquela que se vai juntar far-lhe-ia medo: sabe do que ela é capaz.

— Ide sem mim — disse-lhes ela. — Depois contais-me.

Pelo contrário, concedeu de boa vontade permissão a Jaouen para lá ir: com ele, tem a certeza de ter uma relação fiel, desprovi-da de qualquer auto-satisfação e elogios obrigatórios. Mas, na ver­dade, Robespierre, David e os milhares de trabalhadores que, du­rante um mês trabalharam como escravos construindo pirâmides, fizeram bem o seu trabalho: um imenso cortejo deve conduzir o carro da Liberdade das Tulherias, onde se faz a reunião, ao Champ-de-Mars, escolhido como o local mais importante da cerimónia. Da­vid deu livre curso ao seu gosto pelo gigantesco. Sobre o terraço das Tulherias construiu um anfiteatro cujo estrado cobre até ao grande lago. Em volta estão implantadas imensas estátuas do Ateís­mo, da Ambição, da Discórdia e do Egoísmo, que a magia dos irmãos Ruggieri, os mestres pirotécnicos, fará explodir mais tarde.

Às nove horas da manhã o anfiteatro está cheio e a multidão amontoa-se em volta. Está recheado com todos os deputados da Convenção, vestidos de azul-escuro com chapéus empenachados tricolores e segurando um pequeno ramo de espigas de trigo mis­turadas com campainhas azuis e papoilas artificiais. Os jovens formam quadrados em volta da bandeira da sua secção, ao mesmo tempo que as mães, munidas de ramos de rosas, seguram pela mão as filhas vestidas com túnicas brancas. E depois, aparece Robes­pierre!

Precedido do rufar dos tambores e saudado pelo estrépito das orquestras, aparece subitamente no alto do anfiteatro, silhueta es-guia cintada num fraque de seda azul com calção e meias brancas, com a sua habitual peruca com um rolo de cabelo entrançado atado no alto da cabeça: quase um elegante do Antigo Regime. Segu­ra no braço um ramo de espigas de trigo e é com esta pompa que começa um discurso: «Chegou, enfim, o dia venturoso que o povo consagra ao Ser supremo...» Um discurso que nem todos ouvirão, porque sempre teve a voz um pouco fraca. Em seguida, põe-se em marcha para o Champ-de-Mars, ao mesmo tempo que as estátuas, que substituem a da Sabedoria, flamejam. Um pouco cedo demais, aliás, porque já cheira a queimado e a cabeça desta vai cair. O que faz rir francamente os convencionais, visivelmente irritados com uma cerimónia que julgam ridícula.

À passagem daquele que pretende ser o grande pai de um cul­to novo, «Louis Pauwels, Robespierre, ou a religião que durou um dia« em Histórias mágicas da histó­ria de França, t.II», explodem as aclamações, os vivas, os cantos, mas, de tem­pos a tempos, os seus ouvidos — que ele tem muito finos, se bem que não veja muito bem — ouvem gritos menos amáveis: «Ditador!» ou «Charlatão!». E, sob o impacte da cólera, fica ainda mais pálido do que habitualmente. Por fim, chegam ao Champ-de-Mars e, ali, David excedeu-se. Se ainda não conseguiu construir uma monta­nha sobre a Pont-Neuf, com as pedras de Notre-Dame, erigiu uma aqui: a «Sainte-Montagne», onde tomarão lugar os representantes do povo, os coros, as orquestras e os porta-bandeiras. No cume, uma coluna de 30 metros guarda a entrada de uma gruta profunda, ilu­minada por candelabros gigantes. Um rio serpenteia, em surdina, por entre túmulos etruscos, sombreados por carvalhos. Um altar antigo, uma pirâmide, um sarcófago e um templo, sustido por 20 colunas, completam aquela mitologia.

Assim que a Convenção tomou lugar no cume da montanha, um coro de 2500 vozes entoou um hino ao Pai do Universo, com-posto por Marie-Joseph Chénier, ao mesmo tempo que as rapari­gas atiravam flores sobre a multidão em volta, as mães levantavam as crianças sobre as cabeças e os jovens brandiam sabres, jurando servir-se deles até à vitória. Após o que, claro, os assistentes se en­tregaram a uma espécie de enorme piquenique copiosamente re­gado: fazia tanto calor!

Entre os deputados, dois homens tinham seguido o delirante acontecimento com olhos frios e sorriso gelado. Um deles disse:

—   Não basta ser o patrão? Aquele patife também quer ser um deus?

—   Talvez seja bom começar a pensar em pôr-lhe um freio? Um chamava-se Barras e o outro Fouché...

O próprio Robespierre, estaria ele satisfeito? Cheio de exaltação pela manhã ao deixar a casa Duplay, voltou para ela à noite, sem­pre calmo, sempre impenetrável, mas àquela família, a quem se en­tregara e que o felicitava, chorando de alegria, declarou:

—   Não me vereis durante muito mais tempo...

Pensaram que ele estava cansado, mas desejavam que ele com­pletasse a cerimónia desse dia com uma oferta à sua nova divin­dade, um sacrifício propício, susceptível de aterrorizar aqueles que iriam conspirar para a sua queda. Primeiro, era preciso conceder uma graça aos habitantes da sua rua, na qual alguns não escon­diam o seu descontentamento por verem passar todos os dias, sob as suas janelas, as sinistras carroças da morte, nas quais, por vezes, reconheciam amigos. Uma semana mais tarde, o carrasco Sanson desmontava a guilhotina para a levar para a ponta da Avenida Saint-Antoine, para a vasta praça do Trône-renversé. Tinha-se pen­sado, primeiro, na Bastilha, mas os habitantes tinham-se oposto fir­memente.

—   Eles vão morrer! Eles vão morrer todos!...

Elleviou, de olhos esbugalhados, feições torturadas, acabava de entrar no jardim, onde Laura lia, sentada sob uma árvore. O livro escapou das mãos da jovem, que se levantou imediatamente:

—   Quem é que vai morrer? Vamos, falai!

—   Émilie... a mãe dela... o irmão... o marido... e Marie... Marie Grandmaison! E uma multidão de outros! Saíram do tribunal há 20 minutos. Agora... estão a prepará-los. Vinde! Vinde depressa!

—   Marie? Marie vai morrer? Oh meu Deus! não! Mas, como é possível?

—   Não sei. Vinde! Tenho ali um cavalo!

Já ele a arrastava e, atingida pelo horror, por uma dor que não conseguia controlar, Laura deixou-se levar, atravessaram a casa a correr, para chegarem ao pátio, onde Jaouen tentou colocar-se en­tre eles e o cavalo.

—   Onde a levais? — gritou ele pronto para a batalha, mas foi Laura que o afastou:

—   Eles vão matar Marie, compreende? Marie... Afaste-se!

Elleviou já tinha montado: ela saltou para a garupa passando os braços em volta dele e partiram a galope, mas abrandaram logo a seguir para um trote mais sensato e, sobretudo, menos perigoso. Havia pouca gente nas ruas porque ainda estava muita gente à mesa. Além disso, o Sol daquele dia 29 de Prairial, «17 de junho», estava tão quen­te como o de um pleno dia de Verão. Mas quando desembocaram na Rua de la Barillerie, que era o prolongamento da ponte au Change, já viram muita gente: o rumor de que iam executar os au­tores da conspiração do Estrangeiro propagara-se como um rasti­lho de pólvora e o habitual público de revolucionários armados de chuços e megeras uivadoras, estava no seu posto. Todos eles, aliás, perfeitamente imóveis e, nos arredores do Palais, nada mexia:

— Ainda não saíram e não tarda nada são duas horas — disse Elleviou, consultando o seu relógio. — É surpreendente...

O ferreiro do cais de Gesvres, ao qual ele confiou o cavalo, in­formou-o:

—   Parece que são muitos. E depois, segundo a minha mulher, que voltou para comer uma bucha, parece também que quando iam a sair, fizeram-nos entrar de novo...

—   Haverá novidades? — murmurou Laura, prestes a acolher a menor esperança. Um... perdão, talvez?

—   Estás a sonhar, cidadã! Um perdão? E que mais? Não sabes que são todos inimigos do povo? Não, a Julienne esperou para sa­ber e viu chegar grandes rolos de tecido vermelho. Parece que é para lhes fazer camisas!

—   Camisas? — perguntou Elleviou. — Mas para quê?

—   Porque parece que são assassinos dos representantes do povo. Como se fossem assassinos do próprio pai!

Laura não conseguiu ouvir mais e refugiou-se na oficina para se apoiar à parede. A mulher do ferreiro, que saía nesse momento a comer uma maçã, não a viu e precipitou-se para a multidão cada vez mais densa, que se comprimia na ponte e nas vizinhanças ime­diatas da Conciergerie e do palácio contíguo. Uma multidão esti­val, de vestuário ligeiro, de cores claras a maior parte e sobre os quais, por vezes, se viam boiar sombrinhas. Uma multidão que po­deria estar ali para uma festa...

— Vamos à ponte Notre-Dame — suspirou Elleviou. Os... con­denados devem passar por ela antes de atravessar a Grève. Passa­rão diante de nós e saberemos, então, se aqueles que amamos fa­zem parte deles...

Ali chegados, ele fez com que Laura se sentasse no parapeito da ponte e apoiou-se ao pé dela. Do outro lado do Sena, as torres pontiagudas da Conciergerie luziam ao sol como pontas de gládios. Pareciam-se com uma muralha erguida entre o mundo dos vivos e o dos mortos. De tempos a tempos, o cantor virava-se para obser­var o rio a correr. Punha então a cabeça entre as mãos e Laura po­dia ouvi-lo a chorar, mas não tinha qualquer consolação para lhe oferecer. A sua angústia era-lhe suficiente, assim como a decepção, de onde a cólera brotava. Onde estava Batz àquela hora, em que se dizia que Marie ia morrer? Não sabia ele que o rapto do pequeno Rei aumentaria, sem qualquer dúvida, os perigos que ela po­deria correr? Por que é que, antes de desaparecer, não a arrancara à força aos seus guardas, quando ainda estava na Rua Ménars, para a esconder... pelo menos nas pedreiras de Montmartre, como Rou­geville? Depois, poderia tê-la levado com ele naquela louca expe­dição, onde talvez já tivesse deixado a vida? No fundo da sua alma, Laura sabia que, se ele não o fizera, era porque era impossível, porque ele tinha uma missão a cumprir, com a qual estava comprometido: já não raciocinava, sentindo apenas um desgosto que jamais teria julgado tão profundo. E depois, tinha calor naquela ponte sem sombra! Tendo saído sem chapéu, esforçava-se por pre­servar a cabeça por meio do grande lenço de organza, apertado nos cabelos...

Um homem que a olhava com complacência há uns momen­tos, aproximou-se dela e estendeu-lhe um jornal:

— Põe isto à frente do rosto, cidadã! O Sol está muito forte: seria uma pena se ele se queimasse.

Ela agradeceu com um sorriso pálido, sem que o seu olhar fixo na entrada do Palais se desviasse um instante. Nunca saberia o as­pecto dele porque, nesse instante, um enorme clamor explodiu, sau­dando a abertura das grades. Elleviou virou-se. Laura deixou-se des­lizar para o chão e, agarrados um ao outro como náufragos num rochedo, viram aparecer, uma após outra, as oito carroças da morte.

À vista dos condenados, a multidão exalou um suspiro que era quase um estertor de prazer: vinham todos vestidos com uma es­pécie de longas blusas escarlates, de facto longos bocados de tecido com um buraco para passarem as cabeças, parecidas com as ca­sulas usadas pelos padres para celebrarem a missa do martírio.

Enquadrado por gendarmes a cavalo e a pé, que afastavam brutalmente os curiosos, o sinistro cortejo avançava e Laura apoiou-se, com todas as forças, no ombro do companheiro: Marie vinha na primeira, onde, aliás, só havia mulheres...

Vinham de pé, atadas ao taipal por correias de couro que lhes ligavam os braços até aos cotovelos. Seis mulheres que, à excep­ção de uma, uma infeliz chamada Catherine Vincent, que não con­seguia compreender porque estava ali, davam provas de grande coragem. No primeiro plano e em frente de Marie, a pequena Cé­cile Renault, acusada de ter querido «assassinar Robespierre, Ia morrer ao mesmo tempo que o pai, o irmão e também a tia, uma velha religiosa, todos inocentes condenados devido aos laços de família. Mme. d'Epremesnil, Nicole Bouchard, a aia de Marie e, por fim, uma mulher que era a amante de Admiral, o pseudo assassi­no de Collot d'Herbois, mas Laura só via Marie...

Os belos cabelos castanhos, cortados à altura da nuca, mas en­quadrando ainda o rosto pálido com alguns caracóis, mantinha-se direita, olhando o céu azul e, por cima, a infame túnica vermelha tomava o aspecto de um traje de teatro. De tempos a tempos, uma lágrima deslizava-lhe pela face. Na multidão, alguns reconheceram--na: a Grandmaison! Uma tão bela e grande artista, mas, sobretudo, a amante de Batz, o homem invisível, do qual se sabia ela nun­ca ter aceitado revelar o paradeiro, mesmo com o preço da própria vida! Sabia-se que ia morrer por ele, houve até alguns aplausos, que ela não ouviu...

Laura quis pôr-se em marcha perto daquela carroça, para acom­panhar a sua amiga o melhor que podia, mas era impossível: a pressão era demasiado grande e era preciso esperar que todas as carroças passassem. Laura foi forçada a esperar e o que viu acabou por desesperá-la.

Na segunda carroça seguiam as damas de Sainte-Amaranthe e de Sartine, com o pequeno Louis, cujos 16 anos não tinham en­contrado o perdão de Fouquier-Tinville, uma outra mulher e o Sr. de Sartine. Também ali a coragem era grande, sobretudo a de Émi­lie. Quase sorridente, esforçava-se por confortar a mãe desesperada por ver morrer o filho tão jovem e a sua beleza resplandecia, justificando o grito de dor que Elleviou não conseguiu evitar, antes de se desfazer em soluços. Mas não era o epílogo trágico daquele amor que fendia o coração de Laura. Nos outros veículos seguiam todos os amigos de Batz, que também eram seus, à excepção de Pitou. Viu Biret-Tissot, o fiel servidor, o encantador Devaux, o ale­gre Roussel e também Cortey, Jauge, o banqueiro da Rua du Mont--Blanc, Michonis e o príncipe de Saint-Mauris, que ela vira várias vezes em Charonne, assim como outros ainda, cujos rostos, a des­peito dos nomes, lhe traziam recordações desse tempo feliz em casa de Marie. Iam todos ali! E iam morrer, sem um grito, sem uma queixa, alguns mesmo rindo, como Roussel e Devaux, que grace­javam juntos... Era um verdadeiro pesadelo, do qual Laura sabia que nunca acordaria.

À saída da ponte, um esquadrão de cavalaria tomou a cabeça do cortejo, por trás do qual, com um mesmo movimento, se lan­çaram Laura e Elleviou. E a marcha para o suplício continuou. Du­rante três horas!

Pela praça de Grèves, a antiga Rua Saint-Antoine, local onde se erguera a Bastilha e o bairro ex-Saint-Antoine, chegaram, por fim, às sete horas, à praça do Trono-derrubado, onde ia ter lugar o grande sacrifício.

O local onde se ergueu, em tempos, o trono, construído para a alegre entrada de Luís XIV e Maria Teresa no regresso do seu ca­samento em Saint-Jean-de-Luz, era agora um vasto espaço redon­do encostado à parede dos Arrematantes dos impostos régios, pou­co habitado e guardando a estrada de Vincennes, no meio de dois pavilhões quadrados, obra de Ledoux e de duas altas colunas, que formavam a barreira do Trono. O aparelho do suplício estava er­guido nesse lado, próximo do pavilhão mais a sul e de umas ár­vores que o envolviam. Bancos haviam sido ali colocados diante do cadafalso para os condenados se sentarem, de costas para a má-quina terrível. Só estava ali há três dias, mas o buraco que fora escavado para colher o sangue e que em seguida era fechado com uma tela, exalava, com o calor, um odor penoso que se tornava, rapidamente, nauseabundo... Em linha, os 11 ajudantes do carras­co — Sanson pedira reforços, dado o número de vítimas — espe­ravam, de braços cruzados, a chegada das carroças. O grande altar estava pronto para o que o convencional Voulland chamava «a mis­sa vermelha». E estava presente, com Fouquier-Tinville, que queria ver se a bela Émilie conservaria, até ao fim, a coragem e a digni­dade.

Já havia muita gente, mas o bairro pareceu explodir quando os condenados e respectiva escolta penetraram na praça. Todos aque­les que os acompanhavam começaram a correr para se colocarem melhor.

Levados na onda, Laura e Elleviou viram-se separados. A jovem quase foi espezinhada pelo cavalo do gendarme mais próximo de Marie. Um punho vigoroso levantou-a e ela viu, nesse momento, uma mulher, que investia para a segunda carroça, aquela onde se encontrava Émilie de Sainte-Amaranthe, gritando, o rosto crispado por uma alegria maligna:

— Fui eu que te denunciei, desavergonhada! E agora vou ver‑te morrer! Morrer, enquanto eu vou viver, eu, com o meu amante! Clothilde Mafleuroy gozava o seu triunfo. Émilie fechou os olhos para não ver o rosto que o ódio fazia assustador e que, aliás, não voltou a ver: indignada pelo que acabava de ouvir, uma mulher do povo agarrou a bailarina pelos cabelos e arrastou-a até à parede de uma casa, para a encher de pancada. O humor da mul­tidão mudava pouco a pouco e, quando as vítimas foram descidas e alinhadas nos bancos, vestidas com aqueles ouropéis cor de san­gue, ouviram-se murmúrios. Alguém disse:

— O quê? Tantas vítimas para vingar Robespierre? O que seria se ele fosse Rei?

Laura, que se esforçava para estar tão próxima de Marie quan­to podia, ouviu aqueles murmúrios e um pouco de esperança su­biu-lhe ao coração: iria aquela gente fazer alguma coisa? Levantar--se em massa para arrancar ao carrasco aqueles 60 infelizes? Mas não, os soldados da escolta tomaram posição em volta do cadafal­so, perto do qual nenhuma tricotadeira ousou tomar lugar. A sua atitude era ameaçadora e o medo recobrou os seus direitos. Foi num perfeito silêncio que a pequena Cécile Renault subiu as esca­das fatais sem fraquejar, a fisionomia altiva. Depois, foi a vez de Marie. Nesse momento, Laura viu Batz.

Mantinha-se encostado a uma árvore, no seu traje de viagem poeirento e o rosto estava tão cinzento como o deles. As mãos cris­padas sobre os braços cruzados, olhava intensamente aquela que ia morrer. E esse olhar atraiu o de Marie, como um íman. Acaba­vam de lhe arrancar a túnica absurda e nunca ela estivera tão bela, com os ombros nus, o longo pescoço gracioso suportando, bem alto, a bela cabeça, onde as lágrimas corriam em silêncio. Marie ia morrer desesperada quando viu Jean e uma expressão de felicida­de pousou-lhe no rosto. Fez um movimento como que para se di­rigir a ele, mas os ajudantes do carrasco, que tinham oferecido à multidão o prazer de a admirar por um instante, seguraram-na e atiraram-na para a prancha. Um fulgor e tudo terminou...

O grito de Laura fez de eco ao barulho pesado da lâmina. Ex­plodiu em soluços, virou-se sobre si mesma para fugir através da­quela multidão que a rodeava, chegar ao pé de Batz e, em vez de a reter, a multidão entreabriu-se, mas, quando chegou à árvore onde tinha visto Jean, não estava lá ninguém. Pareceu-lhe ver uma silhueta familiar que se afastava e quis lançar-se na sua perseguição, mas alguém a segurou por um braço e reteve-a rude-mente:

— Que fazeis vós aqui? — rugiu a voz de David. — Pensava que não gostáveis de multidões?

Uma cólera louca apoderou-se dela. Puxando o braço, gritou:

—   E vós, que fazeis vós aqui? Vindes alimentar-vos com todo este horror que ordenastes, vós e os vossos semelhantes? O quê, não trazeis lápis, papel? Não tentais imortalizar este massacre?

Não vira dois homens que se mantinham a uma certa distância, mas um deles aproximou-se:

—   Dir-se-ia que a cidadã não dá a este grande momento o seu justo valor?... Não sabe ela que toda aquela gente conspirou con­tra a Nação, que são apoiados pelos tiranos estrangeiros?

Se Laura não estivesse fora de si, talvez se tivesse contido por-que, como toda a cidade, conhecia a figura amarela de Fouquier--Tinville, mas tê-lo-ia dito ao próprio Robespierre, se o encontrasse.

—   Não, a cidadã não dá, porque aquilo que vós chamais de grande momento, não passa de uma infame carnificina oferecida à vossa crueldade e à daquele a quem chamais mestre! Mas o san­gue que derramais hoje, nele haveis de resvalar... todos, porque as gentes corajosas acabarão por compreender que sois apenas mons­tros! Entendeis? Monstros e virá o dia em que pagareis tudo isto! Deus queira que esteja próximo!

O rosto magro, de queixo de velha, de pesadas pálpebras cain­do sob o arco espesso e negro das sobrancelhas, pareceu encher--se de fel, mas a voz que se fez ouvir era de uma inquietante do­çura:

—   Diz-me, cidadã? Tu sabes com quem estás a falar?

—   Com certeza que sei. Vós sois o acusador público, aquele que reclamou todo este sangue e sobre quem ele, um dia, recairá! David quis interpor-se:

—  Não prestes atenção, cidadão! É uma estrangeira, uma ame­ricana, não está habituada à nossa rude justiça... Deixa-se levar pela emoção. É preciso confessar que é bastante... impressionante — acrescentou ele com um olhar para o cadafalso coberto de sangue, onde as vítimas se sucediam, sempre perante espectadores mudos.

—   Uma americana, hã? Fala francês muito bem... e sem sotaque!

Com efeito, perturbada como estava, Laura esquecera o ligeiro — muito ligeiro mesmo, porque, com o tempo, o hábito instalara--se — constrangimento que impusera à sua linguagem. A fria ob­servação acalmou-a subitamente e recompôs-se rapidamente.

— Desde que vivo em França, tenho tendência para o perder — disse ela com insolência, contendo ligeiramente, no entanto, as suas palavras. — Acrescento que sou amiga do coronel Swan e que até somos um pouco primos...

O nome pareceu fazer efeito no acusador público: o seu olhar tornou-se menos ameaçador, mas nesse momento um terceiro ho­mem, que se mantinha ainda na sombra das árvores, aproximou-se:

— Não a escutes, cidadão! Essa mulher é uma espia inglesa, uma amiga de Batz. Vi-os na sua missão, os dois, em Valmy, junto do du­que de Brunswick.

Ao ouvir o som daquela voz Laura sobressaltou-se e virou-se para ver Josse de Pontallec, que a olhava com um sorriso mau. A sur­presa prendeu-lhe o protesto na garganta.

— A sério? — disse Fouquier-Tinville. — Nesse caso, vamos tra­tar dela. E, entretanto, vamos pô-la ao fresco.

Duas horas mais tarde Laura, imediatamente detida por polícias e municipais, era encarcerada na Conciergerie.

 

Na praça, o drama terminara. Os curiosos dispersavam na doçu­ra de um crepúsculo de Verão. Cada um voltava para sua casa. Os ajudas de Sanson faziam a limpeza, com vista à «fornada" do dia se­guinte. Um pouco mais longe, acabavam de atirar, para as carroças abertas, os corpos e as cabeças dos supliciados, sob o olhar dos con­cessionários e dos guardas da barreira do Trono. Os cachimbos acen­diam-se, porque o odor do sangue era terrível. Em seguida, os car­roceiros subiram para as boleias e deram ordem de marcha aos grandes cavalos, que dirigiram na direcção do campo. Quer dizer que viraram no ângulo da parede dos Arrematantes dos impostos ré­gios, que rodeava o pavilhão sul e que seguiram o caminho estreito, areento que, através de vinhas e pequenos campos, se dirigia para a avenida de Saint-Mandé. Demasiado carregadas, as carroças abertas, de rodas baixas, seguiam com dificuldade por aquele caminho por onde tinham entrado, obrigando os cavalos a grande esforço. Não eram difíceis de seguir.

Batz, que se mantivera escondido por trás das árvores, entre o muro e o pavilhão, esperou que elas tivessem passado as grades da barreira, onde as lanternas já tinham sido acesas. Em seguida escalou o muro — não muito bem conservado — e aterrou do ou­tro lado, sobre a terra mole, sem o menor ruído. De qualquer modo, o guinchar das rodas e os encorajamentos dos carroceiros às suas atrelagens não lhes permitia ouvir outra coisa. Não havia Lua, mas a noite de Junho, de um belo azul cheio de estrelas, per­mitia que seguisse sem dificuldade e não perdesse de vista o lú­gubre comboio. Para maior discrição, as lanternas tinham sido apa­gadas. Onde iam, naquele bairro deserto chamado Picpus e cujo bom ar era célebre? Onde queria a Convenção esconder as provas dos seus crimes?

Após uns 400 metros, as carroças viraram à direita para a Ave­nida de Saint-Mandé, onde percorreram uma centena de metros, antes de obliquar à esquerda, através dos campos, na direcção do alto muro que delimitava uma propriedade que Batz não teve qual-quer dificuldade em identificar. Conhecia demasiado bem aquele bairro para hesitar: iam a direito para a extremidade do grande jar­dim das antigas Freiras de Saint-Augustin, cuja casa ladeava a gran­de Rua de Picpus, juntamente com outras propriedades.

Freiras já não havia. Há dois anos, o seu convento fora com-prado por um político interessado em negócios para ali abrir uma «casa de saúde», mas nenhuma entrada era possível por aquele can­to do jardim; ora, parecia, no entanto, que aquele era o fim da ex­pedição. A resposta àquela pergunta foi rápida: uma porta para car­roças, recentemente aberta, sem dúvida, abriu-se no muro. Havia homens à espera. As carroças entraram e os batentes fecharam-se de novo.

Algo se animou no coração gelado do barão: a sua querida Ma­rie, iria ela repousar em chão de Igreja, já que se tratava do jardim de um convento? Quis saber mais.

Aquele muro era alto, mas algumas árvores cresciam perto e ele escolheu uma, para a qual trepou sem muita dificuldade. E o que viu espantou-o: tinham isolado, no meio de uma paliçada, uma grande parte do jardim, da qual tinham, até, tirado as árvores e toda a vegetação, deixando apenas, contra o muro, uma pequena gruta artificial que servia, em tempos, de oratório. E ali duas grandes fossas profundas tinham sido abertas e que duas fogueiras ilu­minavam. As carroças estavam alinhadas perto de uma delas e Batz pensou que iam precipitar nela o lúgubre carregamento, mas o que viu eriçou-lhe os cabelos: não se contentavam em atirar os corpos e as cabeças, despojavam-nos dos trajes sujos de sangue, que uma espécie de escrivão, sentado a uma pequena mesa, contabilizava... O trabalho fazia-se com método: alguns daqueles tarefeiros do inferno tiravam os corpos das carroças, outros despiam-nos retiran­do os sapatos e as meias, com os quais faziam montes distintos. Uma terceira equipa arrastava os pobres restos na direcção da fos­sa — apenas uma estava ao serviço — para os passar a camaradas que, no fundo, se encarregavam de os arrumar... Não fora previs­to o menor saco de cal e o odor era incrível, porque já tinham para ali deitado outros corpos mutilados, mal cobertos com algumas pa­zadas de terra...

Sobre a sua árvore, Batz foi incapaz de ver mais e deixou-se deslizar para o chão, onde vomitou. Esperara poder assinalar a tumba de Marie, a fim de, mais tarde lhe poder render homena­gem, mas o que acabava de ver era capaz de enlouquecer um ho­mem...

Permaneceu muito tempo de joelhos, dobrado sobre si mesmo e chorou, chorou o ser encantador que se lhe dera sem jamais nada exigir em troca, sem jamais uma censura e que acabava de morrer para não o trair... Chorou também os seus companheiros perdidos, homens tão valentes, tão alegres, seus amigos tão chegados, seus irmãos, que nunca mais estariam a seu lado... Agora sentia-se só, nu e no peito o coração pesava-lhe, como uma pedra...

Foi a chegada da alvorada que o afastou...

 

       UM TIRO DE PISTOLA

A Conciergerie era a antecâmara da morte e Laura sabia-o, mas o medo não era o seu sentimento mais profundo quando a obri­garam a passar o pequeno pátio por baixo do tribunal de Mai, à di­reita da grande escadaria do Palais, por onde se entrava na prisão. Era a cólera, o desgosto, a raiva contra o Destino, que acabava de permitir que um génio mau a atingisse de novo num momento de menor resistência devida à dor de ter visto morrer Marie e ou­tros bons amigos. Por que tinha de aparecer Pontallec, ali, sempre, sem qualquer vergonha, sem qualquer honra, ligado ao carrasco de Robespierre e àquele David que não pronunciara uma só palavra uma única, para a subtrair ao que a esperava? Após tantas tentati­vas infrutíferas, Pontallec ia, por fim, conseguir o objectivo fixado desde há muito: matá-la sem lhe pôr a mão em cima! Não pergun­tava a si própria se ele a reconhecera ou não e talvez a enviasse para o cadafalso para se desembaraçar da imagem demasiado fiel de Anne-Laure de Laudren... Fora-lhe suficiente mencionar a sua presença no castelo de Hans e ao lado de Batz para conseguir a sua condenação seguinte...

Eram quase dez horas da noite e a vida tumultuosa da Con­ciergerie durante o dia acalmara, com o regresso dos detidos às suas celas. Apresentada no arquivo, Laura teve que declinar a sua «identidade» a um encarregado tanto mais resmungão quanto tinha de escrever um nome estrangeiro cuja ortografia, se bem que sim­ples, ultrapassava, aparentemente, as suas faculdades. Após o que a entregaram ao chaveiro encarregado de a conduzir a uma cela sem dúvida provisória...

—   Apesar dos que saem todos os dias, temos falta de lugares — resmungou o homem. — Vou-te pôr com outras duas velhacas: uma que já cá está há algum tempo e outra que chegou há pouco.

—   Tenho sede — disse Laura. — Posso beber?

—   Elas têm água. Talvez ta dêem. Já é tarde para qualquer serviço e não vais comer nada senão amanhã.

—   Não tenho fome.

—   Está bem, mas amanhã não será assim. Podemos trazer-te o que quiseres, se puderes pagar. Senão...

Mostrando o simples vestido de musselina branca e as mãos nuas, Laura respondeu-lhe que não tinha dinheiro.

—   Bem, é pena, porque aquilo que te resta de vida não vai ser nada bom. Comerás o que houver e não terás cama, porque uma cama custa 15 francos por mês, pagos antecipadamente... e se fi­cares só uma noite, não te devolvemos nada, claro! — concluiu ele com um riso que eriçou os nervos de Laura como uma lima...

Seguindo a lanterna que ele balouçava com o braço, Laura, cu­jas mãos tinham sido desatadas, percorreu o longo corredor cen­tral abobadado em ogiva, ao qual se acedia passando por um por-tão de ferro, um dos muitos que o compartimentavam de longe em longe. Delimitava a secção dos homens, a norte, servida por uma outra artéria chamada »rua de Paris» e a secção das mulheres, re­partida em volta do pátio com o mesmo nome. Um pátio em parte coberto por um telheiro, que não era mais do que uma espécie de poço lúgubre. Dificilmente se podia acreditar que na Idade Mé­dia aquilo era um bonito jardim!... Após ter arrastado os socos por outros corredores mais estreitos, o carcereiro abriu, por fim, uma porta que dava acesso a uma pequena cela onde duas mulheres, sentadas ambas em camas de tiras de lona, separadas por um tam­borete onde ardia uma vela. Num canto, havia palha.

—   Viva, cambada! — disse o carcereiro, jovial. — Trago-vos uma compincha, mas não vos preocupeis com ela! A palha chega!

As duas mulheres levantaram-se ao mesmo tempo sem se preo­cuparem com o carcereiro, que saiu a ruminar. Laura viu, então, que uma delas era a jovem que vira fugir do atelier de David, mas foi a mais velha que falou primeiro:

—   É difícil desejar as boas-vindas em semelhante local, Mada­me — disse ela, — mas podeis ter a certeza de que Mme. Chalgrin e eu própria faremos o melhor que pudermos para que vos seja suportável. Eu sou a condessa Eulalie de Sainte-Alferine.

—  O meu nome é Laura Adams. Sou americana — respondeu Laura, um pouco irritada pela sua personalidade emprestada.

A sua entrada naquela masmorra recordava-lhe a que efectua­ra na Força depois do 10 de Agosto, quando era marquesa de Pon­tallec. As suas companhias eram a governanta dos meninos de França Mme. de Tourzel, a sua filha Pauline e a infeliz princesa de Lamballe.

—  Sou acusada de ser uma espia inglesa e amiga do barão de Batz...

A antiga Lalie Briquet estendeu-lhe espontaneamente as mãos:

—   A maior parte das acusações é estúpida. Se sois americana, não podeis ser uma espia inglesa... E se sois amiga do barão, sois minha amiga. Para já, vamos fazer de maneira a que possais re­pousar...

—   Obrigada pelo vosso acolhimento! Mas não quero incomo­dar-vos. Apenas... se tivésseis um pouco de água? Tenho... tanta sede!

—   Temos água de groselha — disse Émilie Chalgrin, indo bus­car, por trás de uma das camas, uma garrafa e um copo, que lim­pou antes de encher.

Laura bebeu, reconhecida. Estava fresca e um pouco acidulada, verdadeiramente deliciosa! Entretanto, o olhar de Mme. Chalgrin não a abandonava:

— Parece-me que vos conheço — disse ela. — Vi-vos um dia... mas onde?

—   No Louvre. Eu ia a casa de Louis David e... vós estáveis de saída!

—   Sois amiga desse miserável? — gemeu a jovem, cujo olhar sombrio se carregou de desconfiança.

—   Não. Fui ter com ele para que intercedesse por alguém que acabava de ser detido...

—   E ele não fez nada, não foi? — exclamou Émilie Chalgrin, exaltada. — Se estou aqui é por culpa dele e o meu pobre irmão, Carle Vernet, esforça-se, sem resultados, para me libertar. Se lhe re­cusastes, fosse o que fosse, estais perdida...

—   Foi ele que vos mandou... prender?

—   Foi... assim como à minha amiga Rosalie Filleul e todos aqueles que habitavam nos comuns do castelo de la Muette. De-pois da cena que surpreendestes, nunca mais deixou de me im­portunar, vezes sem conta, até que, farta, o pus na rua! Diz que me ama, mas o seu amor é a pior coisa que pode acontecer a uma mu­lher...

Enquanto isso «Lalie» tirara o colchão da sua cama e estendera‑o num local onde as lajes estavam, mais ou menos, limpas.

—   Teremos todo o tempo, amanhã, para nos conhecermos — disse ela — miss Adams parece muito cansada...

Confusa, Laura quis opor-se àquela que se despojava assim da sua cama, mas a condessa não a quis ouvir:

—   Dorme-se muito bem na cama só com as tiras de lona e fico com o cobertor porque sei que Mme. Chalgrin tem dois e vai dar‑vos um.

—   Bem entendido. Resta-me a sorte de o meu irmão não dei­xar que me falte nada.

As três mulheres deitaram-se. No entanto, Laura não pôde con­ciliar o sono. A horrível cena de que fora testemunha impotente não lhe saía da cabeça. Revia Marie no cadafalso e todos aqueles rostos amigos... e Batz, que observava com a sombra da morte nas feições. Por fim, os nervos cederam e pôde chorar. Tão docemen­te quanto possível, mas a condessa tinha bons ouvidos. Voltou a acender a vela e veio sentar-se, no chão, ao lado de Laura.

—   Quereis dizer-me alguma coisa? — cochichou ela para não acordar a companheira, mas a precaução era inútil: apoiada nos cotovelos, Émilie Chalgrin escutava-as. «Amo Batz como um filho. Ele salvou-me do desespero no momento da minha grande infeli­cidade e gostaria de fazer o mesmo por vós... Por vezes, falar ali-via a dor.»

Então Laura falou. E, desta vez, contou tudo a começar pela sua verdadeira identidade, porque aquela mulher de idade, atenta e grave, inspirava-lhe uma confiança espontânea. Disse como tinha sido salva dos massacres de Setembro, a sua vida em casa de Batz, a sua amizade por Marie — mas sem mencionar, no entanto, o seu amor por Jean! — a sua actividade após se ter tornado Laura Adams, enfim o drama que se tinha jogado há pouco na barreira do Trono e o que lhe acontecera logo a seguir...

— E David deixou-vos ir presa sem levantar um dedo, não foi? — disse Mme. Chalgrin com desprezo. — Quando tanto queria ser vosso amigo?

— Estamos todos nas mãos de Deus — suspirou Lalie — mas eu sou, sem dúvida, a única, aqui, a desejar a morte. Mesmo na guilhotina!

— Por que desejais morrer? — perguntou Laura. — Não tendes ninguém a quem amar?

—   Não. Tinha uma filha única e amava-a acima de tudo.

Por sua vez, contou a sua história, que Laura escutou com pro­funda emoção, porque sabia o que sofre uma mãe quando lhe morre um filho. Também ela quis morrer quando Céline lhe foi le­vada e sentia-se atraída, por uma força estranha, para aquela mu­lher ainda desconhecida algumas horas antes e que conseguia fazê--la rir ao evocar a silhueta do cidadão Agricol.

Levada pelo exemplo, Émilie Chalgrin contou, também, o que fora a sua vida, uma vida feliz na esteira do seu pai Joseph Vernet, os ateliers do Louvre, as longas viagens do pintor para realizar a série dos «Portos de França», o seu casamento com Chalgrin. A vida brilhante como mulher de um arquitecto célebre, mas não muito feliz, embelezada, no entanto, com a chegada da sua filha única, porque, tal como as outras duas, apenas tivera uma, ainda viva, ao menos ela, e em boas mãos em casa de Carle e da mulher, mas que ignorava se algum dia a voltaria a ver. E depois, a perseguição de David...

—   Talvez eu esteja a ser punida por não ter querido seguir o meu marido na emigração, mas as ideias novas, aquele belo ar de liberdade e fraternidade, cantado por toda a parte, seduzia-me e desprezava-o por ele lhes ter querido fugir... David é a punição que Deus me reservava.

—   Como é que se pode acreditar — observou Laura — que num tal génio possa habitar uma alma tão cruel, tão egoísta?

—   A pintura dele é admirável mas fria — suspirou Émilie. — Não lhe vi emoção no retrato de Marat assassinado.

As três mulheres falaram, assim, durante uma grande parte da noite e o coração de Laura apaziguou-se um pouco. Conseguiu, depois, dormir duas ou três horas, antes de o despertar da prisão, que parecia uma explosão, a acordar daquele sono benfazejo.

Quando as celas se abriram, parecia que se estava no mercado de Halles.

De toda aquela gente destinada a morrer libertava-se uma vida intensa, barulhenta, uma fome de viver, rapidamente, os últimos prazeres da vida. Os que têm dinheiro gastam-no sem conta em vi­nho, refeições finas, que partilham com aqueles que nada têm. Riem, cantam, desafiam a morte tão próxima, fazendo pouco dos juízes, dos carrascos, dos guardas, de todo aquele aparelho feroz, prestes a esmagá-los. É um tumulto incessante, uma febre. Todos os dias, novos futuros condenados chegam de diversas prisões de Paris e são acolhidos com alegria, porque, muitas vezes, são ami­gos reencontrados. Todo aquele mundo se reunia nos pátios para procurar um raio de sol e Laura ficou surpreendida por constatar quantas mulheres se interessavam por si próprias. Em condições de alojamento frequentemente abomináveis, encontravam meios de se sentirem frescas, bem-vestidas, penteadas com elegância. Serviam umas às outras de camaristas e em todos os calabouços era feita, todos os dias, uma lavagem. Os homens, esses, cuidavam-se menos, não possuindo as mesmas virtudes de donas de casa... A des­peito do cenário sinistro, feito de corredores escuros, de grandes salas góticas sucedendo-se a cárceres tão baixos que não se podia estar em pé dentro deles mas possuindo grades sólidas, de abóba­das negras e do fedor que reinava por toda a parte, poderia pen­sar-se, por instantes, que se estava na Corte, tanto aqueles futuros condenados sabiam transportar, com eles, a sua atmosfera...

Toda aquela agitação parava, como por magia quando todos os dias se procedia à chamada daqueles que, no dia seguinte de manhã, compareceriam perante o Tribunal Revolucionário para irem, em seguida, para o cadafalso, porque, salvo raras excepções, os julgamentos eram pronunciados antecipadamente e a escolha das sentenças existia pouco, ou não existia mesmo! Então, quan­do o arauto da Morte, escoltado por três ou quatro carcereiros e cães intratáveis, chegava com a sua lista, fazia-se silêncio. Apenas nesse momento as dores explodiam, quando um homem ia ser separado da sua mulher, uma mãe do seu filho, um amante da sua amante, mas não durava muito. Logo a seguir a festa era retomada, para confortar aqueles que iam partir e festejar mais um dia de vida...

Por volta das seis horas da manhã os carcereiros juntavam aqueles que iam subir ao Tribunal, que funcionava no primeiro andar do Palais numa vasta sala nua e bem iluminada, onde a po­pulaça se acotovelava desde a alvorada. E foram os passos deles, o bater de portas, que acordou Laura nesse primeiro dia. As com­panheiras explicaram-lhe o que se passava e, as três ao mesmo tempo, puseram-se de joelhos a fim de rezar, sabendo que, talvez nesse dia os seus nomes viessem na lista. Só depois se prepararam para se misturarem às outras habitantes do pátio das Mulheres.

Para seu espanto, Laura recebeu uma cama e uma pequena re­feição de leite, pão e compota, semelhante à que recebiam as suas companheiras:

— Esteve aqui um homem — explicou o carcereiro — um tipo antipático com um gancho de ferro a fazer de mão. Trouxe dinheiro e disse que traria mais...

Jaouen! Jaouen conseguira encontrá-la, continuando, de longe, a velar por ela! Sem saber porquê, Laura sentiu-se menos angus­tiada, com o pensamento bizarro de que nada de mal lhe poderia acontecer enquanto ele estivesse por perto. E via naquela cama, naquele pão, uma espécie de milagre.

No entanto, não tinha nada de miraculoso. Na véspera, Jaouen renunciara a seguir o cavalo que levava Laura e Elleviou. Lançara--se na sua perseguição sem ter tempo de selar um para si e, durante algum tempo, conseguiu não os perder de vista. Mas dir-se-ia que a cidade inteira corria na direcção da Conciergerie e no meio da­quela multidão enorme fora-lhe impossível encontrá-los. A onda levara-o até à praça do Trono, demasiado longe, no entanto, do lo­cal onde se encontrava Laura e não vira nada da sua detenção. En­tão voltara para casa na esperança de que ela já lá estaria, mas Bina estava só e preocupada. Uma preocupação que ele partilhou. Por volta da uma hora da manhã, tomou uma decisão. Correu à Rua Marivaux, onde morava Elleviou, encontrou o cantor meio embria­gado e banhado em lágrimas; com a ajuda de um jarro de água e algumas bofetadas, conseguiu obrigá-lo a dizer o que acontecera a Laura. Aliás, fora uma sorte ele ter assistido à cena porque, fulmi­nado pela morte da sua bela amante, procurara refúgio nas árvo­res, para ali chorar toda a sua dor, mas a violenta invectiva de Lau­ra a Fouquier-Tinville chamou-lhe a atenção. Assistiu à altercação e ouviu darem ordem para que conduzissem Laura à Conciergerie. O infeliz cantor foi, então, o alvo da ira do bretão:

— Tinhas alguma necessidade de a ir buscar para assistir àque­la carnificina? — rugiu ele, sacudindo-o como se ele fosse uma ár­vore, antes de o deitar ao chão com um grande murro.

Após o que, mais descansado, voltou para a Rua Mont-Blanc, para pegar no que precisava antes de correr para a prisão, onde passaria, doravante, a maior parte do tempo, voltando só a casa de-pois de ter verificado, na lista afixada todas as noites, se o nome de Laura lá constava, ou não.

Aquele primeiro dia na Conciergerie não foi muito penoso para a jovem graças às suas duas companheiras, mas era de Mme. de Sainte-Alferine que ela se sentia mais próxima. A sua humanidade, a sua coragem e a sua fé em Deus, conservada a despeito do calvário sofrido, assim como a sua serenidade, faziam dela o apoio mais seguro nas horas negras. Além disso, conhecia Batz! Enquan­to os seus dedos ágeis tricotavam um pequeno capuz de lã azul para a filha de Émilie, falava dele durante horas e era incrivelmen­te reconfortante! Sobretudo quando ouviu, indignada, Laura falar--lhe de Michèle Thilorier e da sua gravidez:

— Ele é incapaz de uma coisa dessas! Não sei dizer se passou a vida a coleccionar amantes antes de Marie Grandmaison, mas desde que ela entrou na vida dele, foi-lhe sempre fiel. Aposto a mi­nha entrada no Paraíso!

Mas quando à noite vinha a leitura fatal, não havia serenidade possível. A prisão inteira retinha a respiração até o homem do cha­péu negro dobrar o papel.

Naquela primeira noite a chamada tocou 17 pessoas, das quais apenas uma mulher: a esposa de um modesto sapateiro. Pétre­mont, que iria morrer unicamente porque era mulher dele, da mes­ma maneira que morreram Lucile Desmoulins e Françoise Hébert. Aliás, aquela lista tinha qualquer coisa de inverosímil e até insen­sato, porque para além do presidente da câmara de Perpignan, Vacquié e Sézanne, presidente do departamento dos Pirinéus Orientais, só nela se encontrava mais dois fidalgos, ambos militares. Os outros eram trabalhadores, estofadores, vendedores de li­monada, como o defunto Michonis, guardas campestres e até men­digos! Um pobre diabo chamado Le Maule...

—   Que crime poderão ter cometido aqueles infelizes? — mur­murou Laura.

—   E eu, que crime cometi eu? — exclamou Émilie Chalgrin — e a nossa amiga Eulalie e vós? No entanto, vamos todas morrer!

Foi no quarto dia, quando o arauto deixou cair um nome, que Laura teve o sobressalto:

—   A cidadã Adame, Laure...

—   Meu Deus! — gemeu a condessa — sois vós, minha pobre criança! Não há dúvida possível. Esta gente confunde os nomes, muitas vezes...

A jovem empalidecera, mas reuniu toda a sua coragem para ir ter com o homem:

—   Não posso ser eu: eu chamo-me Laura Adams...

—   Bem e o que é que eu disse?

—   Não é a mesma coisa! E de que é que eu sou acusada?

—   De espionagem! Até `tás com sorte por ires a Tribunal. Os ti­pos da tua espécie, matamo-los sem julgamento...

—   Muito bem, se sou uma espia quero ver o cidadão Fouquier‑Tinville... o mais rapidamente possível, porque não me resta muito tempo!

—   Pensas que ele não tem mais nada que fazer?

—   Se o bem da Nação lhe diz alguma coisa, receber-me-á: te­nho revelações para ele! Diz-lhe! E se não quiser que eu, em ple­no tribunal, arme escândalo, receber-me-á.

O homem não respondeu, contentando-se em encolher os om­bros com ar céptico enquanto Laura voltava para o seu lugar. No entanto, viu-o escrever qualquer coisa num papel e dá-lo a um dos guardas, com um gesto que designava o exterior. Em seguida, con­tinuou a sinistra leitura e foi quase completamente tranquila que Laura se juntou às companheiras desoladas.

—   Por que é que avançastes? — reprovou-a Eulalie de Sainte‑Alferine. — Eu queria tomar o vosso lugar. Se não vos tivessem visto...

—   Obrigada, obrigada de todo o meu coração condessa, mas isso era irrealizável. Fouquier-Tinville conhece-me e podeis estar segura de que quererá ver-me subir para a carroça. Aliás, pedi-lhe uma entrevista...

—   Quereis... encontrar-vos com esse assassino?

—   Quero. Vou morrer, sim, mas quero ficar certa de que Pon­tallec não me sobreviverá e que pagará pelos seus crimes. Deveis compreender isto, vós que, juntamente com Batz, preparastes, com tanta paciência, a morte do vosso inimigo?

—   É verdade! E não posso dizer que estejais a fazer mal, bem pelo contrário! Vou rezar para que Deus vos ajude...

—   Rezai antes para que desvie os olhos — disse Laura com a sombra de um sorriso. — Aquilo que vou fazer não abona muito a moral cristã. A vingança pertence-lhe a Ele!

—   Sempre pensei que nessa matéria Deus pode muito bem precisar de ajuda — observou Eulalie, fazendo o sinal da cruz an­tes de se ajoelhar ao lado da sua cama.

Lá fora ainda era dia, mas na prisão a noite já chegara e as três mulheres dispunham-se a deitarem-se quando o carcereiro entrou, armado de lanterna e fez sinal a Laura:

—   Tu vens comigo! Tens alguém à tua espera!

Laura deixou a secção das mulheres para atravessar a imensa sala, abobadada em ogiva, que fora a dos guardas de Philippe le Bel e meter por uma estreita escada que conduzia directamente ao primeiro andar das duas torres gémeas — torre de César e torre de Prata — que enquadravam, então, o que era a entrada do palácio. Eram ali os gabinetes do acusador público...

Laura foi introduzida numa grande divisão redonda cujas di­mensões, se bem que respeitáveis, se encontravam reduzidas por uma acumulação de arquivos visivelmente a transbordar e fichei­ros acumulados um pouco por toda a parte. Outros ainda forma­vam uma bela pilha sobre a secretária, onde um homem, iluminado por uma lanterna, estava sentado, de pena na mão que acabava de mergulhar no tinteiro, mas que, à entrada de Laura deixou pin­gar sobre o mata-borrão; aquela tinta era vermelha e a jovem não conseguiu reter um arrepio.

Sob as espessas sobrancelhas negras, o frio olhar deslizou por ela:

—   Tens revelações a fazer-me, parece? Toma cuidado, se não forem interessantes...

— Tomar cuidado? Com quê? — disse ela com um encolher de ombros. — Amanhã vou comparecer perante o Tribunal Revolu­cionário. Não me podeis matar duas vezes e eu só tenho uma ca-beça para vos dar!

O olhar de Fouquier-Tinville tornou-se mais agudo.

—   É preciso reconhecer que não te falta coragem, mas eu te­nho que fazer, estás a ver, e o meu tempo é precioso. Portanto, despacha-te! Que tens para me dizer?

—   Primeiro, uma pergunta, se não vos importais! Conheceis o homem que me denunciou como espia inglesa?

— Tanto quanto se pode conhecer um provinciano que não se vê muitas vezes. É o cidadão Pontallec. Foi-me muito recomendado pelo meu amigo Lecarpentier, que administra o Contentin e uma parte da Bretanha, mas foi Louis David que mo apresentou.

—   O cidadão Pontallec é, de facto, o marquês de Pontallec.

—   Só pelo ar já dava para adivinhar, mas alguns deles são in­teligentes. Se é tudo o que tinhas para me dizer...

—   Também é agente do conde da Provença, que se diz regen­te de França.

As sobrancelhas franziram-se até formarem apenas uma risca negra:

—   Foi por ele te denunciar que te lembraste disso?

—   Foi porque o conheço bem. Sou mulher dele.

—   O quê?

A surpresa era real e Laura sentiu uma certa satisfação. Não de-via ser fácil surpreender aquele homenzinho. O que a ajudou a oferecer-lhe a sombra de um sorriso.

—   É verdade. Na realidade, chamo-me Anne-Laure de Laudren, marquesa de Pontallec. Casámo-nos em Versalhes na Primavera de 1789.

—   Que história é essa? Pontallec casou com uma Laudren, mas era uma mulher mais velha do que tu, que teve a boa ideia de mor­rer, o que permitiu ao marido colocar uma bela casa de armamen­to à disposição de Lecarpentier...

Decididamente, sabia algumas coisas, mas não sabia tudo e Laura tratou de levantar o véu:

—   Era minha mãe. Casou com ela pela sua fortuna e porque ambos me julgavam morta. Pontallec, aliás, bem o tentou, porque, por várias vezes, tentou mandar-me assassinar. A última, ou antes, a penúltima, visto que acaba de me mandar para o cadafalso, foi em Setembro de 1792: denunciou-me antes de se ir juntar ao con­de da Provença, na Alemanha.

—   Quem é que te salvou?

—   O barão de Batz. Foi ele que me deu esta identidade ame­ricana...

— ... e tu estavas em Valmy? Isso ele não inventou?

—   Estava no castelo de Hans, em casa de uma amiga, Rosalie de Ségur, uma paragem a caminho da emigração. Mas há uma di­ferença. Pontallec, com efeito, estava lá, representando Monsieur junto do Rei da Prússia e do duque de Brunswick. Também lá es­tava Westermann, que tinha ido negociar em vez de Dumouriez...

—   Os traidores!... E, diz-me, não terás tu conhecimento de uma traficância que diz respeito... às jóias da Coroa roubadas pouco antes?

Noutras circunstâncias, a chama ávida que se acendeu nos olhos de Fouquier teria divertido Laura. Desta vez, limitou-se a mostrar-se interessada. De qualquer maneira, todos aqueles que evocava estavam mortos.

—   O Tosão d'Ouro de Luís XV e uma parte dos diamantes da Coroa levados pelo secretário de Danton antes da batalha, a fim de convencer Brunswick a não marchar sobre Paris? Claro!

—   Muito... muito interessante! Pelo menos, saberemos onde en­contrá-las quando os nossos valentes soldados entrarem em Bruns­wick, o que não tardará... Mas, diz-me, acabas de me dizer que querias emigrar. Por que é que não o fizeste?

—   Se tivésseis visto o estado em que estava o exército prussia­no quando começou a retirada, não me faríeis essa pergunta. Além disso, Pontallec ia com eles e não me reconheceu. Como mulher dele, entenda-se. Pensava que eu era Laura Adams.

—   Por quê um nome americano?

—   Para mim, era um símbolo. A América é o país da liberdade e eu, tendo escapado por três vezes ao meu assassino queria ser li­vre. E nunca pus os pés em Inglaterra...

Fouquier-Tinville tinha cruzado os braços em cima da secretá­ria e deixado as pálpebras cair. Parecia-se com um gato adormecido, mas não dormia:

—   É tudo o que tens para me dizer?

—   Posso ainda acrescentar que Pontallec matou a minha mãe...

—   Ela... afogou-se, parece-me?

—   Não. Ele afogou-a. Ou, pelo menos, tentou. Depois de ter fomentado contra ela alguns... incidentes um pouco assustadores, conseguiu convencê-la a deixá-lo levá-la a Jérsia. Uma vez no mar, drogou-a e atirou-a borda fora. Ela salvou-se por milagre graças a um pescador, mas ficou gravemente ferida e morreu assim que re­gressou a casa. Eu estava lá e ela contou-me a verdade. É tudo! Não tenho mais nada a dizer — concluiu ela, virando-se na direcção da porta.

—   Um momento! Que esperas tu de mim? A tua vingança?

—  A punição de um criminoso como há poucos! Morro mais tranquila, estais a perceber? Vingança? Sim. Uma coisa é certa: esse homem fez mal de mais. Se o deixarem viver e lucrar com o que roubou, ainda fará mais... Diz-se que tendes família, cidadão? Se a amais, deveríeis compreender-me...

Ele não respondeu, contentando-se em chamar o carcereiro para que levasse de volta Laura à sua cela. Mas antes de ela sair, ele atirou:

—   Pode ser que ainda precise de ti...

—   Então, despachai-vos, porque morro amanhã...

—   Muito bem, digamos que não morres amanhã. Não estás com pressa, pois não?

—   Quem está?

—   Não te animes muito! Não passa de um adiamento! Eu não esqueço as injúrias...

Pela primeira vez, ela abandonou o tratamento senhorial.

—   Não to reprovarei, cidadão Fouquier-Tinville, sobretudo se te lembrares das que eu e a minha mãe sofremos!

Ao regressar à prisão, Laura sentia-se melhor. Não porque ti­vesse esperança de que o cadafalso se afastava dela momentanea­mente, mas porque, enfim, uma pedra iria aparecer no caminho demasiado plano do miserável a quem, num dia de Primavera, ju­rara o seu amor e fidelidade. Se ao menos pudesse ficar a saber que ele pagara, enfim, pelos seus crimes, deixaria sem arrependi-mento uma vida que já não a interessava. Mesmo o seu amor por Batz parecia afastar-se, como se o sangue derramado na praça do Trono formasse um mar cada vez mais vasto, afastando os rios opostos onde cada um deles se mantinha...

No dia seguinte, com efeito, a «cidadã Adame» não foi chamada e as suas companheiras alegraram-se. Sobretudo a condessa, que a abraçou com as lágrimas nos olhos:

—   Sois tão jovem, minha querida, e tão encantadora! Ter-vos ao pé de mim dá-me uma alegria que eu já não esperava...

—   Também fico muito feliz com o nosso reencontro, mas não devemos ter muitas ilusões: não fui agraciada e muito menos li­bertada. Mas, se pudermos... partir juntas, parece-me que tudo será mais fácil?

—   Também penso assim. Só nos resta esperar...

Émilie Chalgrin não sentia a mesma resignação. Pensava, sem cessar, na filha, nos irmãos, em todos aqueles que amava, e queria viver. Daí as suas crises de desespero, que as duas companheiras não conseguiam apaziguar, senão com grande dificuldade. A pobre mulher recebia, por vezes, bilhetes, que Carie Vernet conseguia fa­zer passar com grande dificuldade e que pretendiam ser tranquilizadores: David prometera ocupar-se dela... ia ver Robespierre, mas era preciso ter paciência... Começariam, talvez, por mudá-la de pri­são... etc. A angústia do irmão podia ler-se nas entrelinhas. David não prometera a Émilie que a faria arrepender-se da sua recusa?

Entretanto, os dias de Verão iam passando, sufocantes, angus­tiantes, cortados por tempestades violentas que transformavam os pátios em lodaçais, ao mesmo tempo que a água se infiltrava nos calabouços mais baixos. A Conciergerie parecia-se cada vez mais com uma gare miserável, onde se cruzavam os que chegavam e os que partiam. Todos os dias, uma fornada era retirada de uma pri­são ou de outra. A Força, a Abadia, as Madelonnettes e todas as outras despejavam no pátio de Mai um contingente, cuja impor­tância parecia cada vez maior. Ao chegarem, os infelizes podiam ver, no arquivo, aqueles que, amarrados, tosquiados, o pescoço e os ombros nus, despojados, pelos «revistadores», de todos os ob­jectos que tinham conseguido conservar, se iam embora, a cami­nho do terrível destino que seria o seu uma hora ou duas mais tarde. O que restava sobre a terra natal, do armorial de França, mis­turava-se, nas prisões repletas, com a gente simples, horrorizada, que não compreendia o que lhe estava a acontecer e que, no en­tanto, morria «bem». A Convenção parecia ter-se dado ao trabalho de reduzir o número de franceses, sem que se pudesse imaginar quando pararia. As fornadas de 40 ou 50 pessoas não eram raras. Houve mesmo algumas maiores do que a das Camisas ver­melhas...

Em volta das três mulheres que pareciam esquecidas no seu ca­labouço desfilavam desconhecidos, na sua maior parte. Mme. de Sainte-Alferine nunca tinha saído da sua propriedade de Touraine antes de vestir a personalidade de Lalie Briquet; Émilie Chalgrin só conhecia as pessoas recebidas, outrora, pelo marido. Quanto a Laura, mantida à parte da Corte por Pontallec e pelos acontecimentos, não conhecera muita gente para além do velho duque de Nivernais, Mme. de Tourzel e da filha, que temia ver aparecer, mais dia menos dia, naquela antecâmara do inferno. Mas aquele que ela mais temia ver chegar era Pitou, que ela não sabia se ainda estava preso...

Como, no entanto, ficar indiferente a alguns daqueles desco­nhecidos? Por exemplo, aquelas 16 carmelitas de Compiègne, que foram para o Tribunal vestidas com longos mantos brancos. Uma alegoria clara e pura naqueles rostos emagrecidos, resplandecendo de alegria e paz. Dir-se-ia que já viam abrirem-se diante delas as portas do Céu. Estava-se a 17 de Julho' e soube-se no dia seguinte, na Conciergerie, que tinham ido para a guilhotina a cantar o Mi­serere e depois o Veni Creator, diminuindo o coro à medida que a morte desferia os seus golpes, até que se extinguiu com a última, a superiora: madre Thérèse de Saint-Augustin. Como não reveren­ciar aquelas mulheres e aqueles homens da casa de Noailles, fidal­gos entre fidalgos, que assassinaram no mesmo dia? Impossível imaginar uma atitude diante da morte mais serenamente admirável! Mas não eram os únicos: quase todos os que partiam martirizavam o medo, para não mostrar àquela canalha, que os massacrava com insultos, senão o orgulho e o desprezo. Alguns, mesmo, partiam a cantar, a rir ou a brincar. Apenas as mães que deixavam para trás os filhos mostravam as lágrimas.

E depois, uma manhã — a chamada era feita, agora, de manhã e em apenas algumas horas era-se julgado e executado! — um nome caiu da boca mal barbeada do arauto:

— A cidadã Vernet, mulher Chalgrin...

Com um grito de horror que se lhe estrangulou na garganta, Émilie, que se mantinha sentada entre as duas companheiras perto de um pilar, levantou-se, mas as pernas dobraram-se-lhe e «Lalie» susteve-a, crendo que ela, felizmente, desmaiara. Mas não: os seus grandes olhos abertos reflectiam um terror louco e a jovem fez o gesto de se agarrar ao pilar, como se esperasse dissimular-se nele, mas já dois guardas a seguravam e, quase arrastando-a, levaram-na pela pequena escada que ia dar aos portões de entrada, por onde eram empurrados os outros condenados. Aquelas que ficaram ou-viram ainda a sua voz, que lhes gritava:

— Dizei à minha filha que a amo!...

— E nós teremos tempo? — observou Mme. de Sainte-Alferine, retirando as lunetas para as limpar.

Ainda dois nomes e a chamada terminou. Os portões voltaram a fechar-se sobre os que restavam, no meio dos quais muitos dei­xaram escapar exclamações de alegria, de alívio. Mais um dia e um dia é uma coisa enorme. Tudo pode acontecer num dia... Pelo menos, era o que se dizia.

— Podemos sempre sonhar — disse a condessa. — Mas não vejo razão para que possa ser de outra forma. Seria preciso uma outra revolução, creio, para abater o «divino» Robespierre!

Estava-se a 6 de Termidor e as duas prisioneiras ignoravam que na prisão de Carmes, no dia seguinte, uma das mais belas mulhe­res da época, conseguia fazer chegar ao seu amante, o convencio­nal Tallien, um pequeno bilhete onde escrevera: «O administrador de polícia acaba de sair daqui. Veio anunciar-me que amanhã su­birei ao Tribunal, quer dizer, ao cadafalso. Parece-se pouco com o sonho que tive esta noite. Robespierre já não existia e as prisões ti­nham sido abertas. Mas graças à vossa insigne cobardia, em breve não haverá ninguém em França para realizar o meu sonho.»

Tinha assinado Theresia. Era a mulher separada de um discutí­vel «marquês» de Fontenay e passava dias angustiantes no velho convento em companhia da sua amiga Rose-Josèphe de Beauhar­mais...

No dia 9, de manhã, o dia anunciava-se tempestuoso. Sob um céu de chumbo, por onde corriam relâmpagos e um calor que che­garia, ao meio-dia, aos 40 graus, instalou-se uma atmosfera bizarra. Na chamada da manhã, os polícias estavam nervosos e os cães, que eles seguravam pelas trelas, rosnavam como que à aproximação de um qualquer perigo. À pressa, reuniram o contingente para o Tri­bunal: uma cinquentena, mais ou menos onde, entre um fabricante de fogões e um vendedor de limonadas, ia a encantadora princesa de Mónaco, de 26 anos. Soube-se mais tarde, no bairro de Saint-An­toine, que o povo quis libertá-los, mas uma ordem expressa de Fou­quier-Tinville, apesar de tudo, conseguiu levá-los até ao fim.

Porque Paris acordava. Irritada com o culto grotesco instaurado no Champ-de-Mars pela ditadura que Robespierre exercia, assim como com a sua atitude moralisadora, enjoada com a subida em flecha do número de execuções, a cidade rugia, ao mesmo tempo que, tanto nas Comissões, como na Convenção, a hostilida­de, orquestrada por Fouché, Tallien, Barras e Fréron crescia contra o Incorruptível... Na verdade, um dia terrível!...

E à noite, um som ligeiro, que em breve se transformou num rumor e quase atingiu o grito, correu sobre Paris e infiltrou-se nas prisões: Robespierre, o irmão e os amigos, tinham sido abatidos... Dizia-se que no Hotel de Ville o tiro de pistola de um gendarme despedaçara o queixo do tirano, doravante prisioneiro e que sozi­nho, com a ajuda dos seus ajudantes e das últimas vítimas o car­rasco Sanson desmontava a sua sinistra máquina. Teria recebido or­dem de a levar para a praça da Revolução...

No dia seguinte não houve chamada e a notícia confirmou-se: Robespierre marchava para o suplício na carroça onde o haviam deitado, o rosto envolto em ligaduras sujas e sangrentas, com o ir-mão Augustin, o amigo Sint-Just e os seus fiéis, que enchiam três viaturas... E as janelas da Rua Saint-Honoré abriram-se, desta vez, e por completo, para um público em dia de festa... Havia mesmo belas mulheres e belas toilettes.

O pesadelo terminava. A alegria explodia por toda a parte... Laura e Mme. de Sainte-Alferine caíram nos braços uma da outra porque, mesmo quando se deseja morrer com todas as forças, é bom sentir a vida e, sobretudo, escapar ao horror!

 

Nunca o sol daquela manhã de Agosto parecera tão belo àque­les a quem se abriam as portas das prisões!

Ao saírem para o pátio de Mai, sem as carroças do desespero, as duas mulheres iam de mão dada. Havia muita gente porque, como no regresso de uma viagem, vinham esperar aqueles que chegavam do país da angústia e da morte. As pessoas acotovelavam-se um pouco, içavam-se nas pontas dos pés para poderem ver mais depressa o ente querido e sob as lágrimas que o momento desencadeava, os rostos resplandeciam de felicidade...

Foi Pitou que Laura viu primeiro e, deixando a sua amiga, pre­cipitou-se para ele com um grito de alegria.

—   Graças a Deus está vivo, meu amigo! Tive tanta pena por si! Dia após dia, temia vê-lo aparecer naquele horrível lugar!

Demasiado emocionado para falar, ele recebeu-a nos braços e abraçou-a, mas depressa a desprendeu diante de Jaouen, cujas olheiras diziam das noites por que acabava de passar. Então, Lau­ra pousou-lhe as mãos nos ombros e atraiu-o contra si:

— Joël! Não tenho palavras para dizer o que sinto. Graças a si, que velou por mim, passei todos estes dias sem sofrer a miséria ou a fome.

—   Limitei-me a trazer o que vos pertence. Não sou vosso ser­vidor?

—   Não. É um amigo, mas isso já eu sei há muito tempo. Um amigo que desejo guardar ao pé de mim...

—   Se depender dele, será assim! Entretanto, há mais al­guém...

Afastou-se e Laura viu Jean de Batz que, a dois passos, tinha nos braços a sua velha amiga Lalie, banhada em lágrimas. Ela foi ter com eles e ele, confiando a velha dama ao peito de Pitou, foi ter com ela. Mas nenhum falou e, quando ficaram muito próxi­mos, não se tocaram. Apenas os olhos, naquela linguagem muda de que o amor tem o segredo, diziam o que tinham sofrido, o que sofriam ainda. Talvez nunca se tivessem amado tanto, mas a ima­gem de Marie, tal como a tinham visto no último instante, estava entre eles e proibia-lhes que se entregassem à paixão.

—   Mais tarde, talvez? — disse por fim Laura, respondendo à pergunta que Jean não ousava formular. — É preciso deixar agir o tempo.

—   Sou e serei sempre vosso, pronto a responder ao menor apelo... Que ides fazer agora?

Ela estendeu a mão para a amiga.

—   Lalie e eu vamos partir para a Bretanha. Ela será a minha fa­mília e eu serei a dela, porque não temos mais ninguém...

—   É inútil perguntar o que fareis lá?

—   É inútil, com efeito. Quero saber o que aconteceu e, se ele continua vivo, fazer com que não possa continuar a fazer mal...

— Então, deixai-me acompanhar-vos! Enquanto ele respirar, es-tareis em perigo.

—   Não, Jean! Não tenho esse direito... nem a força para poder partilhar a vossa vida, mesmo durante alguns dias, mesmo para conseguir a minha vingança. No entanto, não fiqueis preocupado: entre Lalie e Jaouen, estarei bem protegida, bem aconselhada. E depois — acrescentou com um sorriso — já terminastes a vossa... grande tarefa?

—   Não. Não, confesso — murmurou ele com o rosto subita­mente tenso. — A Revolução terminou e as prisões vão-se encher com aqueles que desencadearam o Terror, mas a Convenção con­tinua nas Tulherias... e eu... vou recomeçar tudo de novo!

—   Como assim? — E de súbito mais baixo: — Onde está... a criança?

Ele baixou a cabeça e desviou o olhar:

—   Não sei nada. Foi raptado de Inglaterra, quando eu julgava que estávamos seguros.

—   Por quem?

—   Isso, também não sei. Uma noite, uns homens mascarados invadiram-nos a casa. Fui espancado, ferido... não com gravidade, tranquilizai-vos! Quando recobrei a consciência estava só, amarrado. Tive sorte em não me terem morto! Enfim, se se pode chamar sorte, porque falhei a minha missão...

—   E não encontrastes nenhuma pista?

—   A suficiente para supor, após semanas de buscas vãs, que foi trazido para França...

—   Meu pobre amigo!

—   Não tenhais pena de mim, peço-vos... e falemos de outra coisa! A vossa viatura está ali, pronta, permitis-me que vos leve até ela?

Ela compreendeu que uma recusa lhe provocaria um desgosto, do qual não havia necessidade. Além disso, não tinha coragem para recusar a si própria aquela alegria e, metendo-lhe a mão no braço:

—   Quereis vir até minha casa?

—   Não, é preferível... Eu vou partir, mas antes quero ir a Cha­ronne... a casa de Marie.

Ambos sentiram a mesma emoção e a mão de Batz pousou so­bre a de Laura, que a apertou por um instante. Ela murmurou:

— A minha casa estará sempre à vossa disposição. Deixarei as chaves na Julie Talma...

Ainda mais uns passos e chegaram à viatura, da qual Jaouen es­tava a abrir a portinhola para ajudar a velha senhora a subir. Mas antes de pousar o sapato no degrau, Lalie aproximou-se de Batz e abraçou-o:

— Alguém tinha que vos dar um beijo — cochichou ela. — Não é o que vós escolheríeis, mas, para já, tendes de vos conten­tar com ele...

Ele pôs-se a rir, abraçou-a, por sua vez e ajudou-a a sentar-se. — Eu fico com ele — disse Pitou em resposta ao olhar de Lau­ra. — Vou ver-vos antes de partirdes.

Ela sorriu, estendeu-lhe a mão e ofereceu-a, depois, a Jean e, desta vez, ele pousou nela os lábios durante um pouco mais de tempo do que o necessário, não a deixando se não quando ela en­trou na viatura. Jaouen saltou para a boleia. Batz fechou a porti­nhola, recuou e depois, com os olhos nos de Laura:

— Não esqueçais! «In omni modo Fidelis,,!

E saudou profundamente, como teria saudado uma Rainha, ao mesmo tempo que Jaouen dava rédea aos cavalos...

 

                                                                                Juliette Benzoni  

 

 

                      

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