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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O HOMEM DUPLO / Philip K. Dick
O HOMEM DUPLO / Philip K. Dick

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O HOMEM DUPLO

 

Certa vez, um sujeito passou o dia todo sacudindo insetos do cabelo. O médico disse a ele que não havia insetos em seu cabelo. Depois de tomar um banho de oito horas, parado interminavelmente sob a água quente, sofrendo a dor dos insetos, ele saiu e se secou e ainda havia insetos no cabelo; na verdade, havia insetos em todo o corpo. Um mês depois, ele tinha insetos nos pulmões.

Sem nada mais a fazer ou pensar, ele começou a tentar entender o ciclo vital dos insetos e, com a ajuda da Britannica, identificar especificamente aqueles insetos. Agora eles enchiam a casa. Ele leu sobre muitos tipos diferentes e por fim percebeu insetos do lado de fora, então concluiu que eram afídios. Depois que lhe ocorreu, essa conclusão não mudou, independentemente do que os outros lhe dissessem, como: “Os afídios não picam as pessoas.”

Eles diziam isso porque as picadas intermináveis dos insetos o atormentavam continuamente. Na loja 7-11, de uma cadeia espalhada pela maior parte da Califórnia, ele comprou latas de spray de Raid, Black Flag e Yard Guard. Primeiro ele borrifou a casa, depois a si mesmo. O Yard Guard pareceu funcionar melhor.

No aspecto teórico, ele percebeu três estágios no ciclo dos insetos. Primeiro, eles apareciam e o contaminavam por intermédio do que ele chamava de “gente-correio”, que eram pessoas que não entendiam seu papel na distribuição dos insetos. Durante essa fase, os insetos não tinham maxilar nem mandíbula (ele aprendeu essa palavra durante as semanas de pesquisa acadêmica, uma ocupação incomumente livresca para um cara que trabalhava na Handy Brake and Tire realinhando os tambores de freios dos outros). A gente-correio, portanto, nada sentia. Ele costumava se sentar no canto mais distante da sala de estar para observar diferentes pessoas-correio entrarem — a maioria delas ele conhecia havia algum tempo, mas algumas eram novas para ele — cobertas de afídios na fase específica em que não picavam. Ele meio que sorria para si mesmo, porque sabia que a pessoa estava sendo usada pelos insetos e não se desesperava com isso.

— Do que está rindo, Jerry? — diziam elas.

Ele se limitava a rir.

Na fase seguinte, os insetos desenvolviam asas ou coisa parecida, mas na verdade não eram exatamente asas; de qualquer modo, eram uma espécie de apêndice funcional que lhes permitia enxamear e era assim que migravam e se disseminavam — em especial para ele. A essa altura o ar ficava cheio deles; deixavam a sala de estar e toda a casa nevoentas. Nessa fase, ele procurava não os inalar.

Acima de tudo, ele lamentava pelo cachorro, porque podia ver os insetos pousando e se fixando em todo o corpo e provavelmente entrando nos pulmões do cão, como entraram no dele próprio. Provavelmente — pelo menos lhe disse sua capacidade de ter empatia — o cachorro estava sofrendo tanto quanto ele. Será que devia expulsar o cão para ter conforto? Não, decidiu; agora o cachorro estava infestado sem querer e carregaria os insetos com ele a toda parte.

Às vezes, ele ficava debaixo do chuveiro com o cão, tentando limpar o cachorro também. Não tinha mais sucesso com ele do que consigo mesmo. Doía sentir o cão sofrer; ele nunca deixou de tentar ajudá-lo. De certa forma, essa era a pior parte, o sofrimento do animal, que não podia reclamar.

— Que merda você está fazendo o dia todo no chuveiro com a droga do cachorro? — perguntou seu amigo Charles Freck certa vez, aparecendo durante o banho.

Jerry disse:

— Tenho de tirar os afídios dele. — Ele tirou Max, o cachorro, do chuveiro e começou a secá-lo. Charles Freck observava, aturdido, enquanto Jerry esfregava óleo de bebê e talco no pêlo do cão. Por toda a casa, latas de spray inseticida, frascos de talco, óleo e condicionadores para bebê estavam empilhados e jogados, a maioria vazia; ele agora usava muitas latas por dia.

— Não estou vendo afídio nenhum — disse Charles. — Aliás, o que é um afídio?

— Um dia ele te mata — disse Jerry. — Assim é um afídio. Eles estão no meu cabelo, na minha pele e nos meus pulmões e a maldita dor é insuportável... vou ter de ir para o hospital.

— Como é que eu não consigo vê-los?

Jerry baixou o cão, que estava enrolado numa toalha, e se ajoelhou no tapete puído.

-Vou te mostrar um — disse ele. O tapete estava coberto de afídios; eles saltavam por toda parte, para cima e para baixo, alguns mais alto do que outros. Ele procurou por um especialmente grande, devido à dificuldade que as pessoas tinham de vê-los. — Traga uma garrafa ou um vidro — disse ele —, procure embaixo da pia. Vamos cobrir um ou colocar uma tampa nele e depois posso levá-lo comigo quando for ao médico e ele vai poder analisá-lo.

Charles Freck lhe trouxe um vidro de maionese. Jerry começou a busca e por fim conseguiu interceptar um afídio que pulou no ar pelo menos 120 centímetros. O afídio tinha três centímetros de comprimento. Ele o apanhou, levou-o para o vidro, largou-o cuidadosamente dentro dele e atarraxou a tampa. Depois ergueu o vidro, triunfante.

— Está vendo? — disse ele.

— Ééééééé — disse Charles Freck, os olhos arregalados enquanto analisava o conteúdo do vidro. — Que grandão! Uau!

— Me ajude a encontrar mais para o médico poder ver — disse Jerry, novamente se agachando no tapete, o vidro ao lado dele.

— Claro — disse Charles Freck e obedeceu.

Meia hora depois, eles tinham três vidros cheios dos insetos. Charles, embora novo no assunto, encontrou alguns dos maiores.

Era meio-dia, em junho de 1994. Na Califórnia, em uma região de casas de plástico baratas, mas duráveis, havia muito desocupadas pelos caretas. Mas Jerry, anteriormente, tinha borrifado tinta metálica em todas as janelas para evitar a luz; a iluminação da sala vinha de uma luminária em que só atarraxara lâmpadas de luz dirigida, que brilhavam dia e noite, de forma a abolir o tempo para ele e os amigos. Ele gostava disso; gostava de se livrar do tempo. Deste modo, podia se concentrar em coisas importantes, sem ser interrompido. Como isto: dois homens ajoelhados em um tapete velho, encontrando um inseto após outro e colocando-os em vidro após vidro.

— O que vamos conseguir com isso? — disse Charles Freck, mais tarde. — Quer dizer, será que o médico vai pagar uma recompensa ou coisa assim? Um prêmio? Uma grana?

— Tenho de ajudar a aperfeiçoar uma cura para eles desse jeito — disse Jerry. A dor, constante, tornara-se insuportável, ele não conseguia se acostumar com ela e sabia que nunca se acostumaria. O impulso ou anseio de tomar outro banho o subjugava. — Ei, cara — ele arfou, endireitando-se —, vai colocando os insetos no vidro enquanto eu tomo um banho. — Ele partiu para o banheiro.

— Tudo bem — disse Charles, as pernas compridas cambaleando enquanto gingava para um vidro, as mãos em concha. Era um ex-veterano e ainda tinha um bom controle muscular, porém; ele conseguiu pegar o vidro. Mas depois disse de repente: — Olha, Jerry... esses insetos meio que me assustam. Não gosto de ficar sozinho com eles. — Ele se levantou.

— Seu cretino covarde — disse Jerry, arfando de dor enquanto hesitava no banheiro por um momento.

— Será que você podia...

— Tenho de tomar um banho! — Ele bateu a porta e girou as torneiras do chuveiro. A água jorrou.

— Estou com medo. — A voz de Charles Freck chegou fraca, embora ele evidentemente estivesse gritando.

— Então vai se foder! — respondeu Jerry aos gritos e entrou no chuveiro. Que porra de amigos são esses?, perguntou-se amargamente. Nada bom, nada bom! Não é nada bom mesmo!

— Essas merdas picam? — gritou Charles, bem junto à porta.

— E, eles picam — disse Jerry enquanto passava xampu no cabelo.

— Foi o que eu pensei. — Uma pausa. — Posso lavar minhas mãos, me livrar deles e esperar por você?

Covarde, pensou Jerry com uma furia amargurada. Ele não disse nada, apenas continuou seu banho. O cretino não valia resposta alguma. Ele não deu atenção a Charles Freck, só a si mesmo. A suas necessidades vitais, exigentes, terríveis e urgentes. Todo o resto teria de esperar. Não havia tempo, tempo nenhum, essas coisas não podiam ser adiadas. Todo o resto era secundário. A não ser o cachorro; ele se perguntou sobre Max, o cão.

Charles Freck telefonou para alguém que ele esperava que estivesse vendendo.

— Pode me passar umas dez mortes?

— Cara, estou totalmente zerado... estou tentando arrumar para mim. Me avise quando encontrar alguém, eu podia usar.

— Qual é o problema com o fornecimento?

— Acho que teve algumas quebras.

Charles Freck desligou e passou um número de fantasia na cabeça enquanto se arrastava desanimado da cabine telefônica — nunca se usava o telefone de casa para uma chamada dessas — de volta ao Chevy estacionado. Em sua fantasia, ele estava passando de carro pela Thrifty Drugstore e eles tinham uma vitrine enorme; frascos de Slow Death, latas de Slow Death, vidros e banheiras e tonéis e tigelas de Slow Death, milhões de cápsulas e tabletes e injeções de Slow Death, Slow Death batizada com speed e heroína e barbitúricos e psicodélicos, tudo — e uma placa gigante: VOCÊ TEM CRÉDITO AQUI. Para não falar de: PREÇOS MUITO BAIXOS, OS MAIS BAIXOS DA CIDADE.

Mas, na realidade, a Thrifty em geral tinha uma vitrine de nada: pentes, frascos de óleo mineral, latas de desodorante spray, sempre porcarias assim. Mas aposto que nos fundos da farmácia tem Slow Death trancada a chave que não é malhada, de uma forma pura, sem adulteração, sem mistura, pensou ele enquanto dirigia do estacionamento para o Harbor Boulevard, entrando no trânsito da tarde. Mais ou menos um saco de 25 quilos.

Ele se perguntou quando e como eles descarregavam o saco de 25 quilos da Substância D na Thrifty Drugstore toda manhã, de onde ele vinha — só Deus sabia, talvez da Suíça ou de outro planeta, onde vivia alguma raça sábia. Eles deviam entregar bem cedo e com seguranças armados - os Homens parados ali com rifles a laser parecendo maus, como os Homens sempre estavam. Qualquer um que tentar levar minha Slow Death, pensou ele com a cabeça de um dos Homens, eu apago.

Provavelmente a Substância D é um ingrediente de toda medicação legal que vale alguma coisa, pensou ele. Um pouquinho aqui e ali, de acordo com a fórmula secreta exclusiva do fabricante da Alemanha ou Suíça que a inventou. Mas, na verdade, ele sabia mais do que isso; as autoridades ou apagavam ou mandavam todo mundo vender ou transportar ou usar então nesse caso a Thrifty Drugstore — todos os milhões de Thrifty Drugstores — seria alvejada a tiros ou bombardeada ou sairia do negócio ou acabaria de alguma forma. Mais provavelmente acabaria. A Thrifty tinha pistolão. Como é que se fecha uma cadeia de grandes drogarias? Ou as mata?

Eles conseguem coisas extraordinárias, pensou ele enquanto circulava. Ele se sentiu repugnante porque só tinha trezentos tabletes de Slow Death no esconderijo. Enterrados em seu quintal debaixo da camélia, aquela híbrida de flores grandes que não ficavam marrons de queimadas na primavera. Eu só tenho suprimento para uma semana, pensou ele. E quando estiver sem nada? Merda!

Imagine que todos na Califórnia e em partes do Oregon fiquem sem nada no mesmo dia, pensou ele. Caramba!

Essa era a maior fantasia de terror de todos os tempos que lhe passava na cabeça, essa de cada entorpecente acabando. Todo o lado leste dos Estados Unidos sem nada ao mesmo tempo e todo mundo entrando em colapso no mesmo dia, provavelmente lá pelas seis da manhã. Domingo de manhã, enquanto os caretas se vestiam para a porra das orações.

Cena: a Primeira Igreja Episcopal de Pasadena, às oito e meia da manhã, de um Domingo de Colapso.

“Sagrados paroquianos, vamos apelar a Deus agora, neste momento, para pedir Sua intervenção na agonia daqueles que estão se agitando em suas camas com privação.”

“Sim, sim.” A congregação concorda com o pastor.

“Mas antes que Ele intervenha com um novo suprimento de...”

Um preto-e-branco evidentemente percebeu alguma coisa no modo como Charles Freck dirigia que ele próprio não notou; tinha saído de seu ponto de estacionamento e seguia atrás dele no trânsito, até agora sem as luzes e sirene, mas...

Talvez eu esteja andando em ziguezague ou coisa assim, pensou ele. Merda de malditas viaturas me vendo fodido. Eu imagino bem o quê.

POLICIAL: “Muito bem, qual é o seu nome?”

“Meu nome?” (NÃO CONSIGO PENSAR NO NOME.)

“Não sabe seu próprio nome?” O policial sinaliza para outro na radiopatrulha. “Esse cara está chapado pra valer.” “Não atire em mim aqui.” Charles Freck em sua fantasia de terror induzida pela visão do preto-e-branco vindo na direção dele. “Pelo menos me leve para a delegacia e atire em mim lá, fora de vista.”

Para sobreviver neste Estado policial fascista, pensou ele, sempre é preciso ser capaz de soltar um nome, o seu nome. Em todas as ocasiões. Esse é o primeiro sinal que eles procuram de que você está doidão, quando você não consegue saber quem diabos você é.

O que vou fazer, concluiu ele, é parar assim que encontrar uma vaga, parar voluntariamente antes que ele acenda as luzes ou faça alguma coisa, e depois, quando ele vier para o meu lado, eu digo que estou com o volante frouxo ou com outro problema mecânico.

Eles sempre acham isso ótimo, pensou ele. Quando você desiste desse jeito e não consegue continuar. Como se você se atirasse no chão como faz um animal, expondo sua barriga macia, indefesa e desprotegida. Vou fazer isso, pensou ele.

E ele fez, parando à direita e batendo as rodas dianteiras do carro no meio-fio. O carro da polícia passou por ele.

Parei por nada, pensou ele. Agora vai ser difícil voltar com o trânsito tão pesado. Ele desligou o motor. Talvez eu fique sentado aqui, parado, por algum tempo, concluiu ele, e alfa-medite ou entre em vários estados alterados de consciência. Possivelmente vendo as gatas passando a pé. Eu me pergunto se fabricam um bioscópio para se ficar excitado. Em vez de ficar em alfa. Ondas de excitação, primeiro bem curtas, depois mais longas, maiores, maiores, até que saem da escala.

Isso não está levando a lugar algum, percebeu ele. Eu devia estar tentando localizar alguém que venda. Tenho de conseguir meu suprimento ou logo, logo vou ficar descontrolado e depois não vou conseguir fazer nada. Nem me sentar no meio-fio como estou agora. Nem vou saber quem sou, não vou saber sequer onde estou ou o que está acontecendo.

O que está acontecendo?, perguntou-se ele. Que dia é hoje? Se eu soubesse que dia era, saberia de todo o resto, voltaria tudo aos pedacinhos.

Quarta-feira, no centro de Los Angeles, no bairro Westwood. Na frente, um daqueles shoppings gigantescos cercados por um muro onde você quica feito uma bola de borracha — a não ser que tenha um cartão de crédito e o passe pelo aro eletrônico. Sem ter nenhum cartão de crédito para nenhum dos shoppings, ele só podia se fiar no relato verbal para saber como eram as lojas por dentro. Todo um monte delas, evidentemente, vendendo produtos bons aos caretas, em especial às esposas caretas. Ele viu os seguranças armados e uniformizados no portão do shopping verificando cada pessoa. Vendo se o homem ou a mulher correspondia a seu cartão de crédito e se não tinha sido rasgado, vendido, comprado, usado fraudulentamente. Pencas de pessoas passando pelo portão, mas ele deduziu que muitas sem dúvida iam olhar as vitrines. Nem toda aquela gente podia ter a grana ou o impulso para comprar a essa hora do dia, refletiu ele. É cedo, mal passa das duas. À noite, essa é a hora. As lojas todas iluminadas. Ele podia — todos os irmãos e irmãs podiam — ver as luzes de fora, como chuva de faíscas, como um parque de diversões para crianças adultas.

As lojas desse lado do shopping não exigiam cartão de crédito, não tinham guardas armados nem valiam grande coisa. Lojas de utilidade: uma sapataria e uma loja de TVs, uma padaria, consertos de pequenos aparelhos, uma lavanderia automática. Ele viu uma garota que usava um casaco de plástico curto e calças stretch vagando de loja em loja; tinha o cabelo bonito, mas ele não conseguiu ver o rosto, ver se ela era gostosa. Não era nada má, pensou ele. A garota parou por um tempo em uma vitrine onde eram exibidos objetos de couro. Ela olhou uma bolsa com borlas; ele a podia ver espiando, preocupando-se, tramando com a bolsa. Aposto que ela vai entrar e pedir para ver, pensou ele.

A garota entrou na loja, como ele imaginou.

Apareceu outra garota no meio do trânsito da calçada com uma blusa de babados, saltos altos, cabelo prateado e maquiagem demais. Tentando parecer mais velha do que é, pensou ele. Nem deve ter saído do secundário. Depois dela, nada digno de menção, então ele tirou o cordão que fechava o porta-luvas e pegou um maço de cigarros. Acendeu um e ligou o rádio do carro, em uma estação de rock. Antigamente ele tinha um toca-fitas estéreo, mas um dia, finalmente, enquanto tomava uma, esqueceu-se de trazê- lo para dentro quando fechou o carro; naturalmente, quando voltou, todo o sistema de som tinha sido roubado. É nisso que dá ser descuidado, pensou ele, e então agora ele só tinha o rádio ordinário. Um dia eles o levariam também. Mas ele sabia onde podia conseguir outro por quase nada, usado. De qualquer forma, o carro um dia ia ser destruído; os anéis de óleo estavam deformados e a compressão tinha caído. Evidentemente, ele havia queimado uma válvula na via expressa quando ia para casa numa noite cheio de um monte de coisas boas; às vezes, quando pegava pesado mesmo, ele ficava paranóico — não tanto com a polícia, mas com outros doidões dilacerando-o. Um doidão desesperado de abstinência e podre como um filho-da-puta.

Agora havia uma mulher andando que chamou a atenção dele. Cabelo preto, bonita, movimentos lentos; usava uma blusa até a barriga e calças brancas de brim que foram muito lavadas. Ei, ele a conhecia, pensou. É a mulher de Bob Arctor. Essa é a Donna.

Ele abriu a porta do carro e saiu. A garota o olhou e continuou. Ele a seguiu.

Ela acha que estou me preparando para cair em cima, pensou ele enquanto a seguia em meio às pessoas. Com que facilidade ela ganhou velocidade; agora ele mal podia vê-la enquanto ela olhava para trás. Um rosto firme, calmo... Ele viu olhos grandes que o avaliavam. Calculavam a velocidade dele e se ele a alcançaria. Não neste ritmo, pensou ele. Ela andava de verdade.

Na esquina, as pessoas tinham parado em um sinal que dizia SIGA, em vez de PARE; os carros estavam virando à esquerda como loucos. Mas a garota continuou, rápida, mas com dignidade, avançando entre os carros malucos. Os motoristas olhavam indignados para ela. Ela não pareceu perceber.

— Donna! — Quando o sinal brilhou SIGA, ele atravessou correndo atrás dela e a alcançou. Ela desistiu de correr, apenas andava rapidamente. — Você não é a mulher do Bob? — perguntou ele. Ele conseguiu se colocar diante dela para examinar o rosto.

— Não — disse ela. — Não. — Ela foi para ele, diretamente para ele; ele recuou porque ela segurava uma faca curta apontada para a barriga dele. — Cai fora — disse ela, continuando a andar sem reduzir o passo nem hesitar.

— Claro que é — disse ele. — Eu te conheci na casa dele.

— Ele mal podia ver a faca, só um pedacinho do metal da lâmina, mas sabia que ela estava ali. Ela podia esfaqueá-lo e continuar andando. Ele continuava a recuar, protestando. A garota segurava a faca tão bem escondida que provavelmente ninguém, os outros que andavam, perceberia. Mas ele percebeu, ia direto para ele à medida que ela se aproximava sem hesitação. Ele deu um passo para o lado, então, e a garota passou por ele em silêncio.

— Porra!- disse ele às costas dela. Eu sei que é a Donna, pensou ele. Ela só não se tocou de quem eu sou, que ela me conhece. Assustada, acho; com medo de que eu vá atacá-la. E preciso ter cuidado, pensou ele, quando você se aproxima de uma estranha na rua; agora todas estão preparadas. Já aconteceu coisas demais com elas.

Que faquinha engraçada, pensou ele. As garotas não deviam portar essas facas, qualquer cara podia girar o pulso e a lâmina se voltaria para ela quando ele quisesse. Eu podia ter feito isso. Se realmente quisesse fazer. Ele ficou parado ali, sentindo-se irritado. Eu sei que era a Donna, pensou.

Ao começar a voltar para o carro estacionado, ele percebeu que a garota tinha parado, não acompanhava o movimento dos transeuntes e agora olhava silenciosamente para ele.

Ele andou com cautela na direção dela.

— Uma noite — disse ele eu, Bob e outra garota tínhamos umas fitas velhas de Simon and Garfunkel e você estava sentada lá... — Ela estava enchendo cápsulas com morte de alta qualidade, uma por uma, dolorosamente. Por mais de uma hora. El Primo. Numero Uno: Morte. Depois de terminar, ela deu uma cápsula para cada um deles e eles tomaram, todos juntos. Menos ela. Eu só vendo, ela dissera. Se começar a tomar, vou devorar meus lucros.

A garota disse:

— Pensei que você ia me derrubar e querer transar comigo.

— Não — disse ele. — Eu só me perguntava se você... — Ele hesitou. — Assim, se queria uma carona. Na calçada? — disse ele, sobressaltado. — Em plena luz do dia?

— Talvez na soleira de uma porta. Ou me empurrar para um carro.

— Eu conheço você — protestou ele. — E o Arctor ia me matar se eu fizesse isso.

— Bom, eu não te reconheci. — Ela deu três passos na direção dele. — Eu sou meio míope.

— Devia usar lentes. — Ele pensou que os olhos dela eram escuros, grandes, calorosos e adoráveis. O que significava que ela não era junkie.

— Eu tinha. Mas caiu uma numa tigela de ponche. Ponche ácido, numa festa. Foi até o fundo e acho que alguém se serviu dele e bebeu. Espero que o gosto tenha sido bom porque me custou 35 dólares.

— Quer uma carona para onde está indo?

— Você vai me pegar no carro.

— Não — disse ele —, não consigo transar nessas últimas semanas. Deve ser alguma coisa que estão usando para adulterar tudo. Alguma química.

— Essa é uma desculpa legal, mas já ouvi antes. Todo mundo transa comigo. — Ela se corrigiu. — Tentam, de qualquer forma. É nisso que dá ser mulher. Estou processando um cara no tribunal agora, por maus-tratos e agressão. Vamos pedir indenização por danos de mais de quarenta mil.

— Até onde ele foi?

Donna disse:

— Pôs a mão no meu peito.

— Isso não vale quarenta mil.

Juntos, eles voltaram ao carro dele.

— Tem algum pra vender? — perguntou ele. — Estou procurando mesmo. Estou praticamente sem nada, que droga, estou sem nada, imagina só. Mesmo um pouco, se você puder ceder um pouco.

— Posso te arrumar algum.

— Tabletes — disse ele. — Eu não sei me aplicar quando é líquido.

— Tá. — Ela assentiu intensamente, de cabeça baixa. — Mas, olha, agora eles são bem raros... o suprimento secou temporariamente. Você já deve ter descoberto. Não posso te arrumar muito, mas...          N

— Quando? — ele a interrompeu. Eles chegaram ao carro; ele parou, abriu a porta, entrou. Do outro lado, Donna entrou. Eles se sentaram lado a lado.

— Depois de amanhã — disse Donna. — Se eu puder pegar com um cara aí. Acho que posso.

Merda, pensou ele. Só depois de amanhã!

— Não dá antes? Não dá, digamos, amanhã?

— Amanhã é muito cedo.

— Quanto?

— Sessenta dólares a centena.

— Porra! — disse ele. — Isso é roubo!

— São superbons. Eu comprei com ele antes, não são o que você costuma comprar. Pode acreditar em mim... valem a pena. Na verdade, prefiro comprar com ele do que com qualquer outra pessoa. Olha, acho que ele viajou para o Sul há pouco tempo. Acabou de voltar. Ele próprio comprou, então eu sei que são bons, com toda a certeza. E você não precisa me pagar adiantado. Só quando eu conseguir. Tudo bem? Eu confio em você.

— Eu nunca adianto nada — disse ele.

— Às vezes, é preciso.

— Tudo bem — disse ele. — Então pode me conseguir pelo menos cem? — Ele tentou calcular, rapidamente, quanto conseguiria; em dois dias, provavelmente podia levantar 120 dólares e comprar duzentos dela. E se ele fechasse um negócio melhor nesse meio-tempo, de outras pessoas que estavam vendendo, podia esquecer o trato com ela e comprar delas. Essa era a vantagem de nunca adiantar pagamento, a vantagem de nunca ser roubado.

— Sorte sua você ter vindo atrás de mim — disse Donna enquanto ele dava a partida no carro e voltava para o trânsito. — Eu tenho de encontrar esse cara daqui a uma hora e ele deve ter arranjado tudo o que eu posso comprar... você teve muita sorte. Hoje é o seu dia. — Ela sorriu e ele também.

— Queria que você pegasse mais cedo — disse ele.

— Se eu puder... — Abrindo a bolsa, ela tirou um bloquinho e uma caneta com a gravação REGULAGEM DE BATERIAS SPARKS. — Como vou fazer para te encontrar? E esqueci seu nome.

— Charles B. Freck — disse ele. Ele deu o telefone a ela

— não o dele, na verdade, mas um que ele costumava usar, da casa de um amigo careta, para recados assim —, que anotou laboriosamente. Que dificuldade a garota tinha para escrever, pensou ele. Perscrutando e rabiscando lentamente... Não ensinam mais as merdas na escola às garotas, pensou ele. Analfabeta direta. Mas gostosa. Quer dizer que ela mal sabia ler e escrever, e daí? O que importa numa gata são os peitos bonitos.

— Acho que me lembro de você — disse Donna. — Mais ou menos. Naquela noite, tudo estava uma névoa só; eu estava chapada pra caramba. Só me lembro de colocar o pó naquelas cápsulas pequenas... cápsulas de Librium... depois que a gente esvaziou o conteúdo. Eu devo ter deixado cair metade. No chão. — Ela o olhou de um jeito meditativo enquanto ele dirigia. — Você parece um cara tranqüilo — disse ela. — E vai ao mercado depois? Vai querer mais depois de um tempo?

— Claro — disse ele, perguntando-se se podia derrubar o preço dela quando a visse novamente; ele achava que podia, mais provavelmente. De qualquer forma, ele ganhava. Isto é, de qualquer forma ele arranjava um.

A felicidade, pensou ele, é saber que você tem uns comprimidos.

O dia fora do carro e todas as pessoas ocupadas, a luz do sol e a atividade passavam num fluxo despercebidos; ele estava feliz.

Veja o que ele tinha encontrado por acaso — porque, na verdade, um preto-e-branco o estava seguindo por acidente. Um novo suprimento inesperado de Substância D.

O que mais ele podia pedir da vida? Agora podia contar com mais duas semanas, quase meio mês, antes de empacotar ou quase isso — a abstinência da Substância D igualava as duas coisas. Duas semanas! Seu coração cantou e ele cheirou, por um momento, aproximando-se da janela aberta do carro, a breve empolgação da primavera.

— Quer ir comigo ver Jerry Fabin? — perguntou ele à garota. — Estou levando umas coisas para ele na Clínica Federal Número Três, aonde o levaram ontem à noite. Só estou transportando um pouco, porque há uma possibilidade de ele poder voltar e eu não quero ter de arrastar tudo de volta.

— É melhor eu não vê-lo — disse Donna.

— Você o conhece? Jerry Fabin?

— Jerry Fabin acha que eu o contaminei com aqueles insetos.

— Afídios.

— Bom, na época ele não sabia o que eram. É melhor eu ficar longe. Da última vez que o vi, ele ficou bem hostil. São os sítios receptores dele, no cérebro, pelo menos eu acho que são. Parece isso, pelo que dizem os folhetos do governo.

— Não pode ser restaurado, pode? — disse ele.

— Não — disse Donna. — É irreversível.

— O pessoal da clínica disse que eu poderia vê-lo e que acreditavam que ele podia ficar meio, sabe como é... — Ele gesticulou. — Não ser... — Novamente ele gesticulou. Era difícil encontrar palavras para isso, o que ele estava tentando dizer sobre o amigo.

Olhando para ele, Donna disse:

— Você não tem danos no centro da fala, tem? Em seu... como é que se chama?... lobo occipital.

— Não — disse ele. Vigorosamente.

— Tem algum tipo de dano? — Ela bateu na cabeça.

— Não, é só que... sabe como é. Eu tenho problemas para dizer isso, sobre essas clínicas de merda; odeio as Clínicas de Afasia Neural. Uma vez eu fui visitar um cara, ele tentava encerar o chão... disseram que ele não podia encerar o chão, quer dizer, ele não podia entender como fazer isso... O que me pegou é que ele continuava tentando. Quer dizer, não só por uma hora; ele ainda estava tentando um mês depois, quando eu voltei. Como tinha feito, sem parar, quando eu o vi pela primeira vez ali, quando fui visitá-lo ele pela primeira vez. Ele não conseguia entender por que não podia fazer direito. Eu me lembro de olhar na cara dele. Ele tinha certeza de que ia fazer direito se continuasse tentando identificar o que fez de errado. “O que estou fazendo de errado?”, ele ficava perguntando. Não tinha jeito de dizer a ele. Quer dizer, eles disseram... droga, eu disse a ele... mas ele não conseguia entender.

— Eu li que em geral são os sítios receptores do cérebro que vão primeiro — disse Donna placidamente. — O cérebro de uma pessoa, onde ela levou uma pancada forte, ou coisa assim, tipo pesada demais. — Ela estava olhando os carros na frente. — Olha, é um desses Porsches novos de dois motores. — Ela apontou, animada. — Uau!

— Conheci um cara que fez uma ligação direta num desses Porsches novos — disse ele — e o levou pela Riverside Freeway e meteu 120 por hora... destruiu. — Ele gesticulou. — Bem na traseira de uma carreta. Nunca vi uma coisa dessas. — Em sua cabeça, ele passou um número de fantasia; ele mesmo ao volante de um Porsche, mas percebendo a carreta, todas as carretas. E todo mundo na via expressa - a Hollywood Freeway na hora do rush — vendo-o. Vendo-o com toda a certeza, o cara bonitão, magro e de ombros largos no Porsche novo, andando a 300 por hora e a expressão de impotência de todos os policiais.

— Você está tremendo — disse Donna. Ela estendeu a mão e pegou o braço dele. Um gesto suave com a mão a que antigamente ele reagia. — Calma.

— Estou cansado — disse ele. — Fiquei acordado duas noites e dois dias contando insetos. Contando e colocando em vidros. E Finalmente, quando tínhamos acabado, a gente se levantou e se preparou para na manhã seguinte colocar os vidros no carro, para levar ao médico e mostrar a ele, e não havia nada nos vidros. Vazios. — Agora ele mesmo podia sentir o tremor e vê-lo nas mãos, no volante, as mãos trêmulas no volante, a 30 quilômetros por hora. — Cada uma daquelas merdas — disse ele. — Nada. Inseto nenhum. E depois eu percebi, eu percebi aquela porra. A ficha caiu, sobre o cérebro dele, o cérebro do Jerry.

O ar não cheirava mais a primavera e ele pensou, repentinamente, que precisava com urgência de uma dose de Substância D; era mais tarde do que ele percebera ou ele tinha menos do que pensava. Felizmente ele trazia o suprimento portátil no fundo do porta-luvas. Ele começou a procurar uma vaga para estacionar.

— A mente prega peças na gente — disse Donna, distante; ela parecia ter se retirado para si mesma, ter se afastado. Ele se perguntou se sua direção errática a estava aborrecendo. Provavelmente estava.

Outro filme de fantasia rolou de repente em sua cabeça, sem o consentimento dele. Primeiro, ele viu um grande Pontiac estacionado com um macaco hidráulico escorregando na traseira e um garoto de uns 13 anos e cabelo comprido lutando para evitar que o carro rolasse enquanto pedia ajuda aos gritos. Ele viu Jerry Fabin e a si mesmo correndo juntos da casa. Da casa de Jerry, pela entrada cheia de latas de cerveja até o carro. Ele mesmo, ele pegou a porta do carro do lado do motorista para abri-la, para pisar no pedal de freio. Mas Jerry Fabin, usando só as calças, sem sapatos até, o cabelo todo embaraçado e flutuando — ele estava dormindo antes Jerry passou correndo para a traseira do carro e, com o ombro nu e branco que nunca viu a luz do dia, empurrou o garoto para longe do carro. O macaco se inclinou e caiu, a traseira do carro arriou, o pneu e a roda rolaram para longe e o garoto estava bem.

— Tarde demais para o freio — disse Jerry, arfando, tentando tirar os cabelos feios e oleosos dos olhos e piscar. — Não deu tempo.

— Ele está bem? — gritou Charles Freck. O coração ainda martelava.

— Está. — Jerry ficou ao lado do garoto, arfando. — Merda! — gritou ele para o menino, furioso. — Eu não te disse para esperar até que a gente fizesse isso com você? E quando um macaco escorrega... Merda, cara, você não pode segurar 2.500 quilos! — Seu rosto se retorceu. O menino, como um bebum, parecia infeliz e se contorcia de culpa. — Eu te disse isso mil vezes!

— Eu procurei pelo freio — explicou Charles Freck, sabendo que sua idiotice, sua própria merda, era tão grande quanto a do garoto e igualmente letal. Um fracasso ao tentar reagir como adulto. Mas ele queria se justificar de alguma forma, como fez o garoto, em palavras. — Mas agora eu entendi... — gaguejou ele e depois o número de fantasia parou; era na verdade uma reprise de documentário, porque ele se lembrava do dia em que isso aconteceu, quando todos moravam juntos. O bom instinto de Jerry — caso contrário, o bebum ia parar debaixo da traseira do Pontiac com a coluna esmagada.

Os três andaram lentamente de volta à casa, sem ir atrás da roda e do pneu, que ainda estavam rolando.

— Eu estava dormindo — murmurou Jerry enquanto eles entravam na casa escura. — Foi a primeira vez em semanas que os insetos me deixaram dormir. Não durmo nada há cinco dias... Eu só fico rolando pra lá e pra cá. Achei que eles talvez tivessem ido embora, que eles foram embora. Achei que finalmente tinham desistido e foram para outro lugar, para o vizinho, e saído totalmente desta casa. Agora posso senti-los de novo. Esse é o décimo No Pest Strip que eu compro ou o décimo primeiro... Eles me enganaram de novo, como fizeram com todos os outros. — Mas agora a voz dele estava mais branda, não com raiva, só lenta e perplexa. Ele pôs a mão na cabeça do bebum e lhe deu um tapa. — Você, seu burro... quando um macaco escorregar, saia de perto dele. Esqueça o carro. Não fique atrás tentando empurrar de volta, com toda aquela massa, e bloquear com o seu corpo.

— Mas, Jerry, eu estava com medo de que o eixo...

— Foda-se o eixo. Foda-se o carro. E a sua vida. — Eles atravessaram a sala escura, os três, e a reprise de um momento que agora era passado tremeluziu e desapareceu para sempre.

 

 

     — Cavalheiros do Lions Club de Anaheim — disse o homem ao microfone o Condado de Orange nos deu a maravilhosa oportunidade esta tarde, como verão, de ouvir... e depois participar de uma sessão de perguntas e respostas... um agente disfarçado da divisão de narcóticos do Departamento de Polícia do Condado de Orange. — Ele exultava, o homem com seu terno cor-de-rosa de fibra de waffle, gravata plástica amarela, camisa azul e sapatos de couro falso; era um homem com peso demais, idade demais e animado demais mesmo quando havia pouco ou nenhum motivo para ser animado.

Observando-o, o agente disfarçado da divisão de narcóticos sentiu náuseas.

— Agora vocês vão perceber — disse o anfitrião do Lions Club — que mal podem ver esse indivíduo, que está sentado bem à minha direita, porque ele está usando o que se chama um traje misturador, e é esse traje mesmo que ele usa... e, na verdade, deve usar... em algumas, de fato, na maioria de suas atividades diárias de agente da lei. Mais tarde ele explicará por quê.

O público, que espelhava as virtudes do anfitrião de todo jeito possível, observou o indivíduo no traje misturador.

— Esse homem — declarou o anfitrião —, que chamaremos de Fred, porque esse é o codinome com o qual relata as informações que colhe, depois de que veste o traje misturador não pode ser identificado pela voz, nem ao menos por tecnologia de impressão vocal, nem pela aparência. Não acham que ele parece um vago borrão, nada além disso? Não estou certo? — Ele abriu um largo sorriso. Seu público, achando que isso era mesmo divertido, deu seu próprio sorrisinho.

O traje misturador era uma invenção da Bell Laboratories, obtido por acidente por um funcionário chamado S. A. Powers. Alguns anos antes, ele estava fazendo experiências com substâncias desinibidoras que afetam o tecido neural e, numa noite, depois de ter administrado em si mesmo uma injeção intravenosa considerada segura e levemente cuforizante, teve uma queda desastrosa de fluido GABA no cérebro. Subjetivamente, testemunhou uma horripilante atividade de fosfeno projetada na parede de seu quarto, uma montagem que progredia freneticamente a partir do que, na época, ele deduziu que fossem pinturas abstratas da era moderna.

Por cerca de seis horas, em transe, S. A. Powers viu milhares de pinturas de Picasso alternando-se na velocidade de um raio e depois ele se deleitou com Paul Klees, com mais do que o pintor produzira em toda a vida. S. A. Powers, agora vendo telas de Modigliani se sucedendo numa velocidade furiosa, conjecturou (é preciso ter uma teoria para tudo) que os rosa-cruzes estavam irradiando telepaticamente pinturas para ele, provavelmente impulsionadas por sistemas avançados de microrrelé; mas depois, quando as pinturas de Kandinsky começaram a importuná-lo, ele lembrou que o maior museu de arte de Leningrado era especializado nesse tipo de moderno abstrato e concluiu que os soviéticos estavam tentando entrar em contato telepático com ele.

Pela manhã, ele se lembrou de que uma queda drástica no fluido GABA do cérebro normalmente produzia essa atividade de fosfeno; ninguém estava tentando entrar em contato telepático com ele, com ou sem impulsionador de microondas. Mas isso deu a ele a idéia do traje misturador. Basicamente, seu desenho consistia em lentes de quartzo multifacetadas conectadas a um computador miniaturizado cujo banco de memória guardava até um milhão e meio de frações de representações fisionômicas de várias pessoas: homens, mulheres e crianças,, com cada variante codificada e em seguida projetada igualmente, em todas as direções, em uma membrana superfina semelhante a um manto, grande o suficiente para se ajustar a um ser humano médio.

À medida que o computador fazia o circuito pelo banco, ele projetava cada cor de olho, cor de cabelo, formato e tipo de nariz, estrutura dos dentes, configuração da estrutura óssea facial, cada traço concebível — toda a membrana-manto assumia quaisquer características físicas que fossem projetadas em um dado nanossegundo e depois passava à seguinte. Assim, para tornar o traje misturador mais eficaz, S. A. Powers programou o computador para randomizar a seqüência de características dentro de cada conjunto. E, para baixar os custos (os federais sempre gostavam disso), ele encontrou a fonte para o material da membrana em um subproduto de uma grande indústria que já fazia negócios com Washington.

De qualquer forma, o usuário do traje misturador era Todo Mundo e em todas as combinações (até combinações de um milhão e meio de sub-bits) a cada hora. Daí, nenhuma descrição dele — ou dela — tinha sentido. É desnecessário dizer que S. A. Powers alimentou as unidades de computação com suas próprias características fisionômicas, de forma que, enterrado na permutação frenética de traços faciais, os dele vinham à superfície e se combinavam em média, segundo ele calculou, a cada 15 anos por traje, fornecido e remontado, desde que o traje sobrevivesse tanto tempo. Era o mais próximo da imortalidade que ele podia pretender.

— Vamos ouvir o borrão vago! — disse o anfitrião em voz alta e houve um aplauso da massa.

Em seu traje misturador, Fred, que era também Robert Arctor, rosnou e pensou: “Isso é horrível.”

Uma vez por mês, um agente disfarçado da divisão de narcóticos do condado era designado aleatoriamente para falar em reuniões de cabeças-ocas como esta. Hoje era a vez dele. Olhando para seu público, ele percebeu o quanto detestava os caretas. Eles pensavam que tudo estava ótimo. Eles estavam sorrindo. Estavam se divertindo.

Talvez nesse momento os componentes quase incontáveis de seu traje misturador tenham exibido S. A. Powers.

— Mas, para falar a sério por um momento — disse o anfitrião —, este homem aqui... — Ele se interrompeu, tentando se lembrar.

— Fred — disse Bob Arctor. S. A. Fred.

— Fred, isso. — O anfitrião, revigorado, reassumiu, retumbando na direção do público. — Vejam vocês que a voz de Fred é como uma daquelas vozes computadorizadas de robô do banco em San Diego, quando se entra perfeitamente sem tom e artificial. Não deixa qualquer característica em nossa mente, exatamente como acontece quando ele se reporta aos superiores no Programa, é..., de Abuso de Drogas do Condado de Orange. — Ele fez uma pausa sugestiva. — Vejam vocês que esses policiais correm um risco terrível, porque as forças das drogas, como sabemos, penetraram com uma habilidade extraordinária nas várias instâncias da lei em toda a nossa nação, ou podem bem ter penetrado, de acordo com os especialistas mais informados. Assim, para a proteção desses homens dedicados, é necessário esse traje misturador.

Um leve aplauso para o traje misturador. E depois olhares de expectativa para Fred, que se escondia dentro de sua membrana.

— Mas, em sua linha de trabalho no campo — acrescentou por fim o anfitrião enquanto se afastava do microfone para abrir espaço para Fred —, é claro que ele não usa isso. Ele se veste como vocês ou eu, embora, evidentemente, com as roupas hippies daqueles vários grupos da subcultura nos quais ele penetra de forma incansável.

Ele fez um movimento para Fred se levantar e se aproximar do microfone. Fred, Robert Arctor, já fizera isso seis vezes e sabia o que dizer e o que lhe estava reservado: perguntas idiotas e estupidez opaca em graus variados. Uma perda de tempo para ele, além da raiva por esse papel e a eterna sensação de inutilidade.

— Se vocês me vissem na rua — disse ele ao microfone, depois que os aplausos esmoreceram —, diriam: “Lá vai um drogado viciado e doidão.” E sentiriam aversão e se afastariam.

Silêncio.

— Eu não sou como vocês — disse ele. — Não posso ser. Minha vida depende disso. — Na verdade, ele não era assim tão diferente. E, de qualquer modo, ele teria vestido o que vestia diariamente, a trabalho ou não. Ele gostava das roupas que usava. Mas o que ele estava dizendo fora escrito, em linhas gerais, pelos outros e colocado diante dele para que memorizasse. Ele podia se desviar um pouco, mas todos usavam um formato padrão. Introduzido alguns anos antes por um chefe de divisão que queria mostrar serviço, agora se tornara obrigatório.

Ele esperou enquanto absorviam o que acabara de dizer.

— Não vou dizer a vocês — disse ele — o que estou tentando fazer como policial disfarçado, envolvido na identificação de traficantes e na maior parte de toda a fonte das drogas ilegais nas ruas de nossas cidades e corredores de nossas escolas aqui no Condado de Orange. Vou contar a vocês — ele fez uma pausa, como o haviam treinado nas aulas de RP na academia — do que eu tenho medo — concluiu ele.

Isso os fisgou; agora eles eram só olhos.

— Meu medo — disse ele —, dia e noite, é de que nossos filhos, seus filhos e meus filhos... — Novamente ele fez uma pausa. — Eu tenho dois — disse ele. Depois, muito baixinho: — Pequenos, muito pequenos. — E depois ele ergueu a voz enfaticamente: — Mas não pequenos demais para se viciarem, para serem viciados de forma calculada, por lucro, por aqueles que destruiriam esta sociedade. — Outra pausa. — Ainda não sabemos — continuou ele logo em seguida, mas com calma — especificamente quem são estes homens... ou melhor, animais... que pilham nossos filhos, como se estivessem numa selva, como num país estrangeiro e não no nosso. A identidade dos fornecedores dos venenos do lixo que destrói o cérebro, injetado diariamente, tomado por via oral diariamente, fumado diariamente por vários milhões de homens e mulheres... ou melhor, que um dia foram homens e mulheres... aos poucos está sendo revelada. Mas finalmente, se Deus quiser, teremos certeza.

Uma voz do público:

— Acaba com eles!

Outra voz, igualmente entusiasmada:

— Pega os comunas!

Robert Arctor parou. Olhando para eles, para os caretas com seus ternos gordos, suas gravatas gordas, seus sapatos gordos, ele pensou, a Substância D não pode destruir o cérebro deles porque eles não têm cérebro.

— Conte como é — gritou uma voz um pouco menos enfática, uma voz de mulher. Procurando, Arctor localizou uma senhora de meia-idade, não tão gorda, as mãos batendo de ansiedade.

— Todo dia — disse Fred, Robert Arctor, que seja — essa doença cobra seu tributo de nós. No final de cada dia que passa, o fluxo dos lucros... e para onde eles vão, nós... — ele se interrompeu. Mesmo que sua vida dependesse disso, ele não conseguia puxar o resto da frase da memória, embora a houvesse repetido um milhão de vezes, tanto em aula como nas palestras anteriores.

Todos no salão estavam em silêncio.

— Bem — disse ele mas não são os lucros. É outra coisa. O que vocês vêem acontecer.

Eles não notaram qualquer diferença, percebeu ele, embora ele tenha largado o discurso preparado e estivesse divagando, por conta própria, sem a ajuda dos rapazes da RP do Centro Cívico do Condado de Orange. Que diferença fazia, afinal?, pensou ele. E daí? O que realmente faz com que eles saibam ou se importem? Os caretas, pensou ele, moram em seus enormes complexos de apartamentos fortificados guardados por seus seguranças, prontos para abrir fogo em qualquer drogado que suba no muro com uma fronha vazia para roubar em piano ou relógio elétrico ou barbeador ou aparelho de som pelos quais não tiveram de pagar, para poder conseguir sua dose, conseguir a merda que, se não tiverem, talvez eles morram, morram rápida e completamente da dor e do choque da abstinência. Mas, pensou ele, quando se mora em um lugar que parece seguro, seu muro é eletrificado e sua segurança é armada, por que pensar nisso?

— Se vocês fossem diabéticos — disse ele — e não tivessem dinheiro para uma injeção de insulina, roubariam para conseguir o dinheiro? Ou simplesmente morreriam?

Silêncio.

Nos fones de ouvido de seu traje misturador uma vozinha disse: “Acho melhor você voltar ao texto preparado, Fred. Eu o aconselho a fazer isso.”

No microfone em sua garganta, Fred, Robert Arctor, quem quer que fosse, disse: “Eu esqueci.” Só seu superior no Q. G. do Condado de Orange, que não era o sr. F., isto é, Hank, podia ouvir isso. Era um superior anônimo, designado a ele somente para essa ocasião.

“Legaaaaaal”, disse o minúsculo ponto no fone de ouvido. “Vou ler para você. Repita, mas procure transmitir despreocupação.” Uma leve hesitação, um revirar de páginas. “Vamos ver... A cada dia, o fluxo de lucros, para onde eles vão, nós...’ Foi aí que você parou.”

“Eu tenho um bloqueio com esse troço”, disse Arctor. logo vamos identificar’”, disse o ponto do policial, distraído, ‘“e a punição rapidamente virá. E nesse momento eu não gostaria de estar no lugar deles.’”

“Sabe por que eu tenho um bloqueio com esse troço?”, disse Arctor. “Porque é isso que leva as pessoas à droga.” Ele pensou, é por isso que você tropeça e se torna um drogado, esse tipo de coisa. É por isso que você desiste e parte. De desgosto.

Mas então ele olhou mais uma vez para o público e percebeu que para eles não era assim. Essa era a única maneira de alcançar aquela gente. Ele estava falando para patetas. Simplórios mentais. Tinha de ser dito da mesma forma como na primeira série: A de Abacate e Abacate é Redondo.

— D — disse ele em voz alta para o público — é a Substância D. Que significa Desespero e Desilusão, e Desdém, o desdém de seus amigos por você, de você por eles, de todos por todos, isolamento, solidão, ódio e suspeitas mútuas. D — disse ele então — é, por fim, Death, Morte. Slow Death, Morte Lenta. Nós... — Ele se interrompeu. — Nós, os drogados — disse ele —, chamamos assim. — Sua voz ficou rouca e falhou. — Como vocês devem saber. Slow Death. Da cabeça para baixo. Bom, é isso. — Ele voltou à sua cadeira e se sentou novamente. Em silêncio.

“Você deturpou o texto”, disse seu superior, a voz no ponto. “Vá falar comigo em meu escritório quando voltar. Sala 430.”

“É”, disse Arctor. “Eu deturpei.”

Estavam olhando para ele como se ele tivesse urinado no palco diante de todos. Mas ele não tinha certeza do motivo.

Andando pomposamente para o microfone, o anfitrião do Lions Club disse:

— Antes desta palestra, Fred me pediu que fosse principalmente um fórum de perguntas e respostas, com apenas uma pequena declaração introdutória feita por ele. Eu esqueci de mencionar isso. Muito bem — ele levantou a mão direita —, quem será o primeiro, gente?

Arctor de repente se levantou de novo, desajeitado.

— Parece que Fred tem algo mais a dizer — disse o anfitrião, acenando para ele.

Voltando lentamente ao microfone, Arctor disse, de cabeça baixa, falando claramente:

— Só uma coisa. Não os expulsem quando eles se viciarem. Os usuários, os viciados. Metade deles, a maioria deles, em especial as mulheres, não sabe onde entrou nem que está se metendo em alguma coisa. Apenas impeçam as pessoas, qualquer um de nós, de entrar nessa. — Ele ergueu os olhos brevemente. — Olha, eles dissolvem umas pílulas vermelhas de secobarbital em uma taça de vinho, os traficantes, quero dizer... eles dão a bebida a uma garota, uma menor de idade, com oito a dez vermelhas nela, e ela desmaia, e depois eles injetam nela a mistura, que é metade heroína e metade Substância D... — Ele se interrompeu. — Obrigado — disse ele.

Um homem gritou:

— Como vamos deter essa gente, senhor?

— Matem os traficantes — disse Arctor e voltou à sua cadeira.

Ele não teve vontade de voltar direto para o Centro Cívico do Condado de Orange, então vagou por uma das ruas comerciais de Anaheim, inspecionando as lojas de McDonaldburger, os lava-jatos, postos de gasolina, Pizza Huts e outros prodígios.

Vagando sem rumo desse jeito na rua pública com todo tipo de gente, ele sempre tinha a estranha sensação de quem era. Como ele disse ao pessoal do Lions no salão, ele parecia um drogado quando estava sem o traje misturador; ele falava como um drogado; as pessoas à sua volta agora sem dúvida o tomavam por um drogado e reagiam de acordo com isso. Outros drogados — olha aí, pensou ele, “outros”, por exemplo — davam-lhe um olhar de “paz, irmão”, e os caretas, não.

Vista uma batina e mitra de bispo, refletiu ele, e se andar como um bispo e as pessoas se curvarem e se ajoelharem e coisas assim e tentarem beijar seu anel, se não a sua bunda, logo você será um bispo. Por assim dizer. O que é identidade?, ele se perguntou. Onde termina a atuação? Ninguém sabe.

O que realmente estragava o senso que tinha de quem era e o que era acontecia quando os Homens o interrogavam. Quando detetives, patrulheiros ou policiais em geral, qualquer um deles, por exemplo, aproximavam-se lentamente dele pelo meio-fio de uma forma intimidadora enquanto ele andava, analisando-o com um olhar intenso, incisivo, frio e vazio, e depois, em geral, isso não acontecia, evidentemente porque dava na veneta, estacionavam e acenavam para ele.

— Tudo bem, quero ver sua identidade — dizia o policial, estendendo a mão; e depois, enquanto Arctor-Fred-Deus- Sabe-Quem vasculhava o bolso, o policial gritava com ele: “Já foi PRESO?” Ou, como uma variação, acrescentando: “ANTES?” Como se ele estivesse prestes a ir para a cadeia naquele momento.

— O que é que tá pegando? — ele dizia em geral, quando dizia alguma coisa. Uma multidão naturalmente se formava. A maioria achava que ele fora apanhado traficando na esquina. Eles sorriam inquietos e esperavam para ver o que ia acontecer, embora alguns, em geral chicanos, negros ou doidões óbvios, demonstrassem raiva. E depois de um curto intervalo, aqueles que demonstravam raiva começavam a ter consciência de que demonstravam raiva e mudavam rapidamente para uma atitude impassível. Porque todos sabiam que qualquer um que demonstrasse raiva ou inquietação — não importava qual das duas coisas — perto de policiais devia estar escondendo alguma coisa. Os policiais em especial sabiam disso, eram lendários por isso e abordavam essas pessoas automaticamente.

Dessa vez, porém, ninguém incomodou. Muitos doidões estavam em evidência, ele era apenas um entre muitos.

O que eu sou realmente?, perguntou-se ele. Por um momento ele quis seu traje misturador. Depois, pensou, eu podia continuar a ser um borrão vago e as pessoas que passassem na rua aplaudiriam. Vamos ouvir o borrão vago, pensou ele, fazendo uma pequena reprise. Que maneira de conseguir reconhecimento! Como, por exemplo, eles poderiam ter certeza de que não era outro borrão vago e não o borrão certo? Podia ser alguém e não Fred ali dentro ou outro Fred e eles nunca saberiam, nem mesmo quando Fred abrisse a boca e falasse. Eles não saberiam realmente. Nunca saberiam. Podia ser Todo Mundo fingindo ser Fred, por exemplo. Podia ser qualquer um ali, o traje podia até estar vazio. No Q. G. do Condado de Orange, ele podia transmitir uma voz para o traje misturador, animando-o a partir da sala do xerife. Fred, nesse caso, poderia ser qualquer um que por acaso estivesse à sua mesa naquele dia e por acaso pegasse o roteiro e o microfone ou um composto de todos os tipos de caras e suas mesas.

Mas acho que o que eu disse no final, pensou ele, acabou com isso. Que não havia ninguém no escritório. Era sobre isso que os caras no escritório queriam falar comigo.

Ele não ansiava por isso, então continuou a vagar e se arrastar, indo a lugar nenhum, indo a toda parte. No sul da Califórnia não fazia diferença para onde você ia; sempre havia os mesmos McDonaldburgers repetidamente, como uma pista circular que passava por você enquanto você fingia ir a algum lugar. E quando finalmente você sentisse fome e fosse a um McDonaldburger e comprasse um hambúrguer do McDonald, era aquele que lhe venderam da última vez e antes disso e assim por diante, voltando a antes de você nascer, e além disso pessoas cruéis — mentirosas — diziam que era feito de moela de peru.

De acordo com a placa nova, eles agora vendiam o mesmo hambúrguer original cinqüenta bilhões de vezes. Ele se perguntou se era a mesma pessoa. A vida em Ana- heim, na Califórnia, era um comercial reprisado interminavelmente. Nada mudava, só se alastrava mais e mais como um pântano de néon. O que sempre havia de mais fora congelado na permanência havia muito tempo, como se a fábrica automática que produzia esses objetos aos montes estivesse emperrada na posição liga. Como a Terra virou plástico, pensou ele, lembrando-se do conto de fadas “Como o mar virou sal”. Um dia, pensou ele, seria obrigatório que todos vendêssemos hambúrguer do McDonald da mesma forma com que comprávamos; venderemos de um para o outro para sempre em nossa sala de estar. Assim, nem vamos precisar sair.

Ele olhou o relógio. Duas e meia: hora de dar um telefonema. De acordo com Donna, ele podia conseguir, por intermédio dela, talvez uns mil tabletes de Substância D batizada com metanfetamina.

Naturalmente, depois que comprasse, ele levaria a partida para o Abuso de Drogas do condado para que fosse analisada e depois destruída ou o que quer que fizessem com ela. Tomando eles mesmos, talvez, ou assim dizia outra lenda. Ou a venderiam. Mas a compra não era para prendê- la por tráfico; ele tinha comprado muitas vezes dela e nunca a prendera. Não era isso que interessava, prender uma traficante local menor, uma garota que considerava legal e incrível traficar drogas. Metade dos agentes da narcóticos do Condado de Orange sabia que Donna traficava e a reconhecia de vista. Donna vendia às vezes no estacionamento da loja 7-11, na frente do holo-scanner automático que a polícia tinha por ali e escapava impune. De certa forma, Donna não podia ser presa, independentemente do que fizesse e na frente de quem fizesse.

O que representava sua transação com Donna, como todas as anteriores, era uma tentativa de abrir caminho para chegar ao fornecedor de quem ela comprava. E assim, aos poucos, ele aumentava a quantidade do que comprava com ela. No início, ele a cantara — se essa era a palavra — a arranjar dez tabletes para ele, como um favor; coisa de amigos. Depois, mais tarde, ele conseguiu um saco de cem como recompensa, depois três sacos. Agora, se tivesse sorte, podia arranjar mil, o que significava dez sacos. Um dia, ele compraria uma quantidade que estivesse além da capacidade econômica de Donna; ela não poderia adiantar a grana para o fornecedor e garantir a parada. E assim ela perderia, em vez de ter um bom lucro. Eles discutiriam; ela insistiria em que ele adiantasse pelo menos parte do dinheiro; ele se recusaria; ela não podia adiantar sozinha para a sua fonte; o tempo passaria — até em um negócio pequeno cresceria uma certa tensão; todos ficariam impacientes; o fornecedor dela, quem quer que fosse, estaria esperando e irritado porque ela não aparecera. E então um dia, se tudo desse certo, ela desistiria e diria a ele e ao fornecedor: “Olha, é melhor vocês negociarem diretamente. Eu conheço os dois, os dois são legais. Eu garanto os dois. Vou marcar lugar e hora e vocês dois podem se encontrar. Então, de agora em diante, Bob, você pode começar a comprar direto, se vai mesmo comprar essa quantidade.” Porque nessa quantidade ele seria, para todos os fins, um traficante; estavam se aproximando de quantidades de tráfico. Donna acharia que ele estava revendendo a um lucro por centena, uma vez que ele comprava mil de cada vez, pelo menos. Dessa forma ele podia subir a escada e chegar ao próximo da fila, tornar-se traficante como Donna, e depois, mais tarde, talvez subisse outro degrau, e outro, à medida que a quantidade fosse aumentando.

Um dia — esse era o nome do projeto — ele conheceria alguém superior o bastante para valer uma prisão. Isso significava alguém que soubesse de alguma coisa, o que significava alguém que ou tivesse contato com os que fabricavam ou fosse das relações do fornecedor que conhecesse a fonte.

Ao contrário das outras drogas, a Substância D só tinha — ao que parecia — uma fonte. Ela era sintética e não orgânica; portanto, vinha de um laboratório. Podia ser sintetizada e já o fora em experimentos federais. Mas os componentes eram derivados de substâncias complexas quase igualmente difíceis de sintetizar. Teoricamente, a Substância D podia ser fabricada por alguém que tivesse, primeiro, a fórmula e, segundo, capacidade tecnológica para montar uma fábrica. Mas, na prática, o custo era proibitivo. Além disso, quem a inventou e a estava disponibilizando vendia barato demais para haver concorrência. E a ampla distribuição sugeria que, embora existisse uma única fonte, tinha um aparato diversificado, provavelmente uma série de laboratórios em áreas-chave, talvez perto de cada grande centro urbano de usuários de drogas na América do Norte e na Europa. Era um mistério o fato de nenhum deles ter sido localizado, mas suspeitava-se, tanto publicamente e sem dúvida sob sigilo oficial, de que a Agência S. D. — como as autoridades a batizaram arbitrariamente — penetrara em tantos grupos policiais, municipais e nacionais, que aqueles que descobrissem alguma coisa de útil sobre suas operações ou não se importavam, ou não existiam.

Naturalmente ele tinha vários outros caminhos no momento, além de Donna. Outros traficantes que ele pressionou, pedindo progressivamente quantidades maiores. Mas como Donna era sua gatinha — ou ele esperava que fosse —, era mais fácil para ele. Visitá-la, conversar com ela por telefone, levá-la ou convidá-la para sair — esse também era um prazer pessoal. De certa forma, era a linha de menor resistência. Se você tivesse de espionar e informar sobre alguém, melhor que fosse uma pessoa com quem já convivesse normalmente; era menos suspeito e dava menos trabalho. E se você não os visse com freqüência antes de começar sua vigilância, um dia teria de ver, de qualquer forma; no final, acabava dando certo.

Entrando na cabine telefônica, ele fez a chamada.

Ring-ring-ring.

— Alô — disse Donna.

Cada telefone público do mundo era grampeado. Ou, se não fosse, alguma turma em algum lugar largara o grampo havia pouco. As gravações eram alimentadas eletronicamente em cilindros de armazenagem em um local central e de dois em dois dias um policial, que ouvia muitos telefonemas sem ter de sair de sua sala, fazia um relatório impresso. Ele apenas ligava os cilindros de armazenagem e, a um sinal, eles tocavam, pulando todas as gravações inúteis. A maioria das chamadas era inócua. O policial podia identificar prontamente as que porventura não fossem. Essa era a habilidade dele. Era para isso que era pago. Alguns policiais eram melhores do que outros.

Enquanto ele e Donna conversavam, portanto, ninguém estava ouvindo. A gravação seria tocada talvez no dia seguinte de manhã cedo. Se eles discutissem alguma coisa notavelmente ilegal e o policial do monitoramento pegasse, tirariam impressões vocais. Mas só o que ela e ele tinham de fazer era continuar tranqüilos. O diálogo ainda podia ser reconhecido como tráfico de drogas. Entrava em jogo aqui uma certa economia governamental — não valia a pena passar pela confusão de impressões vocais e identificação com transações ilegais de rotina. Havia muita coisa todo dia da semana, em muitos telefones. Donna e ele sabiam disso.

— Como está? — perguntou ele.

—Tudo bem. — Pausa na voz calorosa e rouca de Donna.

— Como está sua cabeça hoje?

— Meio avoada. Meio pra baixo. — Pausa. — Fiquei irritada com meu chefe na loja de manhã. — Donna trabalhava no balcão de uma pequena perfumaria no Gateside Mall, na Costa Mesa, aonde ela ia toda manhã em seu MG. — Sabe o que ele disse? Ele disse que aquele cliente, aquele velho, de cabelo grisalho, que nos enganou com dez pratas... ele disse que foi minha culpa e que vou ter de pagar. Vai sair do meu contracheque. Então vou perder dez pratas sem ter porra nenhuma... desculpe... de culpa.

Arctor disse:

— Ei, posso arranjar alguma coisa com você?

Agora ela parecia soturna. Como se não quisesse. O que era meio decepcionante.

— Quanto... Quanto você quer? Eu não sei.

— Dez deles — disse ele. Como eles haviam combinado, um significava cem; esse era, então, um pedido de mil.

De fachada, se as transações tivessem de acontecer por comunicações públicas, uma boa opção consistia em mascarar uma compra grande com outra aparentemente pequena. Eles podiam ficar negociando para sempre com quantidades assim, sem que as autoridades tivessem algum interesse; caso contrário, as equipes de narcóticos dariam uma busca em apartamentos e casas em cada rua a toda hora do dia e pouco conseguiriam.

— Dez — resmungou Donna, irritada.

— Estou na pior, de verdade — disse ele, como um usuário. Em vez de traficante. — Vou te pagar depois, quando arranjar.

— Não — disse ela rigidamente. — Arranjo pra você grátis. Dez. — Agora, sem dúvida, ela estava especulando se ele estava traficando. Provavelmente estava. — Dez. Por que não? Que tal daqui a três dias?

— Não dá mais cedo?

— Tem os...

— Tudo bem — disse ele.

— Vou ficar sem nada.

— A que horas?

Ela calculou.

— Digamos umas oito da noite. Olha, eu quero te mostrar um livro que peguei, alguém deixou na loja. E legal. Tem a ver com lobos. Sabe o que os lobos fazem? Os machos? Quando derrotam o inimigo, eles não matam, eles urinam nele. É verdade! Eles ficam ali, mijam no inimigo derrotado e depois se separam. E isso. Eles brigam principalmente por território. E pelo direito de trepar. Sabe como é.

Arctor disse:

— Eu mijei numas pessoas faz um tempo.

— Tá brincando! Como foi isso?

— Metaforicamente — disse ele.

— Não do jeito de sempre?

— Quer dizer — disse ele —, eu disse a eles... — Ele se interrompeu. Falando demais; uma merda. Meu Deus, pensou ele. — Aqueles caras — disse ele — tipo motoqueiros, saca? Pelo Fosters Freeze? Eu estava passando por ali e eles disseram um troço obsceno. Então eu me virei e disse uma coisa do tipo... — Ele não conseguiu pensar em nada por um momento.

— Pode me contar — disse Donna —, mesmo que seja supergrosso. Você tem de ser supergrosso com esses motoqueiros ou eles não entendem.

Arctor disse:

— Eu disse que um dia desses eu ia comer uma das galinhas deles.

— Essa eu não entendi.

— Bom, uma galinha é uma garota que...

— Ah, sim. Tudo bem. Agora entendi. Eca.

— Eu te vejo na minha casa, como você disse — disse ele.

— Tchau. — Ele começou a desligar.

— Posso levar o livro dos lobos pra te mostrar? E de Konrad Lorenz. A capa diz que ele era a maior autoridade em lobos do mundo. Ah, sim, mais uma coisa. Seus colegas de quarto foram à loja hoje. Ernie não-sei-das-quantas e aquele Barris. Procurando por você, se você podia...

— O quê? — disse Arctor.

— Seu cefalocromoscópio que te custou 900 dólares, que você sempre liga e toca quando chega em casa... Ernie e Barris estavam tagarelando uma coisa assim. Eles tentaram usar hoje e não funcionou. Sem cor nem nenhum padrão cef, nada. Então eles pegaram o kit de ferramentas de Barris e abriram a base.

— Mas o que é que você está dizendo! — disse ele, indignado.

— E eles disseram que estava todo ferrado. Sabotado. Fios cortados e uma coisa meio estranha... sabe como é, coisas anormais. Curtos e peças quebradas. Barris disse que ele tentou...

— Vou para casa agora — disse Arctor e desligou. A coisa que eu mais valorizo, pensou ele com amargura. E aquele idiota do Barris mexendo nela. Mas não posso ir para casa agora, percebeu ele. Tenho de passar na New-Path para ver o que andaram aprontando.

Essa era sua designação: obrigatória.

 

 

     Charles Freck também andava pensando em visitar a New-Path. O doidão do Jerry Fabin gostava muito dele.

Sentado com Jim Barris na Cafeteria Fiddlers Three, em Santa Ana, ele brincava, rabugento, com o donut açucarado.

— É uma decisão difícil — disse ele. — O que eles fazem é crise de abstinência. Eles só mantêm você dia e noite lá para que você não se mate nem morda seu braço, mas nunca te dão nada. Um médico vai receitar. Valium, por exemplo.

Com uma risadinha, Barris examinou seu sanduíche patty, que tinha imitação de queijo derretido e hambúrguer de carne falsa em pão orgânico especial.

— Que tipo de pão é esse? — perguntou ele.

— Olha o cardápio — disse Charles Freck. — Está explicado aí.

— Se você entrar nessa — disse Barris —, vai ter sintomas que surgem dos fluidos básicos do corpo, especificamente aqueles localizados no cérebro. Estou me referindo às catecolaminas, como a noradrenalina e a serotonina. Olha só, suas funções são assim: a Substância D, na verdade todas as drogas viciantes, mas sobretudo a Substância D, interage com as catecolaminas de tal forma que o envolvimento fica travado no nível subcelular. Houve uma contra-adaptação biológica e de certa forma para sempre.

— Ele comeu um pedaço enorme do lado direito do sanduíche. — Antigamente acreditavam que isso só acontecia com os entorpecentes alcalóides, como a heroína.

— Eu nunca tomei pico de heroína. Ela baixa a bola.

A garçonete, atraente e elegante com o uniforme amarelo, com peitos empinados e cabelo louro, aproximou-se da mesa deles.

— Oi — disse ela. — Está tudo bem?

Charles Freck olhou para ela com medo.

— Seu nome é Patty? — perguntou Barris a ela, sinalizando a Charles Freck que estava tudo bem.

— Não. — Ela apontou o crachá no peito direito. — É Beth.

Imagino do que chamariam o esquerdo, pensou Charles Freck.

—A garçonete da última vez era Patty — disse Barris, olhando a garçonete grosseiramente. — Como o sanduíche.

— Deve ter sido uma Patty diferente do sanduíche. Acho que se escreve com i.

— Está tudo ótimo — disse Barris. Acima da cabeça dele, Charles Freck podia ver um balão de pensamento em que Beth estava tirando as roupas e gemendo para ser comida.

— Não comigo — disse Charles Freck. — Eu tenho um monte de problemas que ninguém mais tem.

Numa voz sombria, Barris disse:

— Mais gente do que você pensa. E mais a cada dia. Este é um mundo doentio e fica cada vez pior. — Acima da cabeça dele, o balão de pensamento também ficava pior.

— Gostaria de pedir sobremesa? — perguntou Beth, sorrindo para eles.

— O que tem aqui? — disse Charles Freck, desconfiado.

— Temos torta de morango e torta de pêssego — disse Beth, sorrindo — que nós mesmos fazemos.

— Não, não vamos comer sobremesa — disse Charles Freck. A garçonete saiu. — Isso é coisa de velha — disse ele a Barris —, essas tortas de fruta.

— A idéia de se entregar para a reabilitação — disse Barris

— certamente está te deixando apreensivo. Isto é uma manifestação de sintomas negativos voluntários, o seu medo. E a droga falando, para evitar que você entre na New-Path e para impedir que você saia dessa. Como pode ver, todos os sintomas são voluntários, sejam negativos ou positivos.

— Tá de sacanagem — murmurou Charles Freck.

— Os negativos se manifestam como ânsias, que são deliberadamente geradas por todo o corpo para obrigar seu dono... neste caso, você... a procurar freneticamente...

— A primeira coisa que eles te fazem quando você vai para a New-Path — disse Charles Freck — é cortar sua pica. Como uma aula prática. E depois eles cortam pra todo lado a partir dali.

— Seu baço vem depois — disse Barris.

— Eles o que, eles cortam... O que isso faz, um baço?

— Ajuda a digerir sua comida.

— Como?

— Removendo a celulose dela.

— Então acho que depois disso...

— Só alimentos sem celulose. Nada de folhas nem alfafa.

— Quanto tempo se pode viver desse jeito?

Barris disse:

— Depende de sua atitude.

— Quantos baços tem a média das pessoas? — Ele sabia que o normal era ter dois rins.

— Depende de seu peso e sua idade.

— Por quê? — Charles Freck sentiu uma desconfiança aguda.

— A pessoa desenvolve mais baços com o passar dos anos. Quando chega aos 80...

— Está de sacanagem comigo.

Barris riu. Ele sempre ria estranho, pensou Charles Freck. Um riso irreal, como de alguma coisa se quebrando.

— Por que essa sua decisão — disse Barris agora — de se apresentar para terapia de internação no centro de reabilitação de drogas?

— Jerry Fabin — disse ele.

Com um gesto de leve repúdio, Barris disse:

— Jerry era um caso especial. Uma vez vi Jerry Fabin cambaleando e caindo, se cagando todo, sem saber onde estava, tentando me convencer a pesquisar que veneno ele tinha apanhado, mais provavelmente sulfato de tálio... é usado em inseticidas e para matar ratos. Era armação, alguém se vingando dele. Eu pude pensar em dez toxinas e venenos diferentes que podiam...

— Há outro motivo — disse Charles Freck. — Estou ficando sem suprimento e não dá para suportar isso, ficar sempre com pouco e sem saber se vou conseguir encontrar mais dessa porra.

— Bom, nem podemos ter certeza de que veremos o sol nascer de novo.

— Mas que merda... agora estou com tão pouco que é uma questão de dias. E, além disso, acho que estou sendo roubado. Não é possível que eu esteja tomando tão rápido; alguém deve estar saqueando a porra do meu esconderijo.

— Quantos tabletes você toma por dia?

— É muito difícil saber. Mas não são muitos.

— Está tolerizando, você sabe disso.

— Claro, eu sei, mas não é isso. Não posso ficar sem nada. Por outro lado... — Ele refletiu. — Acho que consegui uma nova fonte. Aquela garota, a Donna. Donna qualquer coisa.

— Ah, a garota do Bob.

— A mulher dele — disse Charles Freck, assentindo.

— Não, ele nunca conseguiu transar com ela. Ele tenta.

— Ela é de confiança?

— De que maneira? Deitada ou... — Barris gesticulou: a mão na boca e sorvendo...

— Que tipo de sexo é esse? — Depois ele entendeu. — Ah, sim, o último.

— De toda confiança. Meio desmiolada. O que você espera de uma garota, em especial das mais caladonas? Tem o cérebro entre as pernas, como a maioria delas. Provavelmente o esconderijo fica ali também. — Ele riu. — O esconderijo de todo o tráfico que ela faz.

Charles Freck se inclinou para ele.

— Arctor nunca trepou com a Donna? Ele fala dela como se tivesse trepado.

Barris disse:

— Esse é o Bob Arctor. Fala como se tivesse feito muita coisa. Não é a mesma coisa, de jeito nenhum.

— Bom, como é que ele nunca dormiu com ela? Ele não conseguiu?

Barris refletiu sensatamente, ainda mexendo no sanduíche; ele agora o dividira em pedacinhos.

— Donna tem problemas. E provável que ela seja junkie. A aversão que tem ao contato físico em geral... os junkies perdem o interesse pelo sexo porque os órgãos incham com a vasoconstrição. E Donna, como observei, mostra uma falta incomum de excitação sexual, a um ponto que não é natural. Não só com relação a Arctor, mas com relação... — Ele se interrompeu, mal-humorado — a outros homens.

— Que merda, você quer dizer que ela não dá pra ninguém.

— Ela daria — disse Barris —, se fosse bem manipulada. Por exemplo... — Ele ergueu os olhos de forma misteriosa.

— Posso te mostrar como dormir com ela por 98 cents.

— Eu não quero dormir com ela. Só quero comprar dela. — Ele se sentia inquieto. Sempre havia algo em Barris que revirava seu estômago. — Por que 98 cents? — disse ele.

— Ela não ia aceitar dinheiro, ela não trepa por dinheiro.

E, de qualquer forma, é mulher do Bob.

— O dinheiro não seria pago diretamente a ela — disse Barris com seu jeito meticuloso e educado. Ele se inclinou para Charley Freck, o prazer e a malícia palpitando entre as narinas peludas. E não só isso, o tom verde dos óculos de sol tinha se vincado. — Donna gosta de coca. Para qualquer um que lhe dê um grama de coca ela sem dúvida nenhuma vai abrir as pernas, principalmente se uma certa substância química rara for acrescentada de uma forma estritamente científica que eu consegui à custa de muita pesquisa.

— Gostaria de que não falasse desse jeito — disse Charles Freck. — Sobre Donna. E depois, agora um grama de coca custa mais de cem dólares. Quem tem isso tudo?

Meio espirrando, Barris declarou:

— Posso obter um grama de cocaína pura, dos ingredientes a partir dos quais consigo, sem incluir minha mão-de-obra, a um custo total de menos de um dólar.

— Besteira.

— Vou te dar uma demonstração.

— De onde vêm esses ingredientes?

— Da loja 7-11 — disse Barris e se colocou de pé, descartando pedaços de sanduíche em sua empolgação. — Pague a conta — disse ele —, vou te mostrar. Montei um laboratório provisório em casa, até que consiga criar um melhor. Pode me ver extrair um grama de cocaína de materiais comuns e sancionados comprados abertamente na loja 7-11 por um dólar de custo total. — Ele começou a andar pelo corredor. — Vamos. — O tom de voz dele era urgente.

— Claro — disse Charles Freck, pegando a conta e seguindo. Um cascateiro, pensou ele. Ou talvez não fosse. Com todos aqueles experimentos químicos que ele fazia e lendo e relendo a biblioteca do condado... talvez houvesse alguma verdade na coisa. Imagine o lucro, pensou ele. Imagine o que podemos faturar!

Ele correu atrás de Barris, que estava pegando as chaves do Karmann Ghia em seu macacão de pára-quedista enquanto andava, passando pelo caixa.

Eles pararam no estacionamento da 7-11, saíram do carro e entraram na loja. Como sempre, um policial enorme e caladão estava parado ali, fingindo ler uma revista grossa como um livro no balcão da frente; na realidade, como sabia Charles Freck, ele estava verificando todo mundo que entrava para ver se pretendiam assaltar o lugar.

— O que vamos comprar aqui? — perguntou ele a Barris, que estava andando casualmente pelos corredores de pilhas de comida.

— Uma lata de spray — disse Barris. — De Solarcaine.

— Spray para queimadura de sol? — Charles Freck não acreditava que isso estivesse acontecendo, mas, por outro lado, quem sabe? Quem podia ter certeza? Ele seguiu Barris até o balcão; dessa vez Barris pagou.

Eles compraram a lata de Solarcaine, passaram pelo policial e voltaram ao carro. Barris saiu rapidamente do estacionamento, pegou a rua e prosseguiu a toda, ignorando as placas de limite de velocidade, até que por fim reduziram e pararam diante da casa de Bob Arctor, com todos os jornais velhos ainda fechados na grama alta do jardim.

Saindo do carro, Barris ergueu alguns objetos com fios pendurados no banco traseiro para levar para dentro. Voltímetro, viu Charles Freck. E outro aparelho eletrônico de teste e uma pistola de solda.

— Para que isso? — perguntou ele.

— Tenho um trabalho longo e árduo a fazer — disse Barris, levando pela calçada os vários objetos, além do Solarcaine, até a porta da casa. Ele passou a chave a Charles Freck. — E provavelmente não vou receber nada por isso. Como sempre.

Charles Freck destrancou a porta e eles entraram na casa. Dois gatos e um cachorro partiram para cima deles, fazendo barulhos esperançosos; ele e Barris afastaram os animais cuidadosamente com as botas.

Ao longo das semanas, Barris tinha montado uma espécie de laboratório estranho nos fundos da saleta de jantar, frascos e pedaços de refugo aqui e ali, objetos aparentemente sem valor que ele furtara de diferentes fontes. Barris, como Charles Freck ouvira falar, não era tão adepto da parcimônia, mas da engenhosidade. Você deve ser capaz de usar a primeira coisa que cai em suas mãos para conseguir seu objetivo, pregava Barris. Uma tacha, um clipe de papel, parte de um aparelho que se quebrou ou se perdeu... Charles Freck teve a impressão de que um sucateiro tinha montado oficina aqui e estava fazendo experimentos com o que agradava a um sucateiro.

A primeira atitude no esquema de Barris foi pegar um saco plástico do rolo perto da pia e nele esguichar o conteúdo da lata de spray, sem parar, até que a lata ou o gás acabou.

— Isso é irreal — disse Charles Freck. — Superirreal.

— O que eles fizeram deliberadamente — disse Barris, cauteloso, enquanto trabalhava — foi misturar a cocaína com óleo para que não possa ser extraída. Mas meu conhecimento de química é tão bom que sei exatamente como separar a coca do óleo. — Ele começou a sacudir sal na gosma pegajosa do saco. Depois colocou tudo em um jarro de vidro. — Vou congelar — anunciou ele, sorrindo —, o que faz com que os cristais de cocaína subam, porque são mais leves do que o ar. Do que o óleo, quero dizer. E depois a última etapa, é claro, eu guardo para mim mesmo, mas envolve um complicado processo metodológico de filtragem. — Ele abriu o congelador acima da geladeira e colocou com cuidado o vidro dentro dele.

— Quanto tempo vai ficar aí? — perguntou Charles Freck.

— Meia hora. — Barris pegou um dos cigarros enrolados à mão, acendeu e depois foi até o monte de equipamento eletrônico de teste. Ficou parado ali, meditando, esfregando o queixo barbado.

— É — disse Charles Freck —, mas quero dizer, então, mesmo que você consiga disso aí um grama inteiro de coca pura, não posso usar em Donna para... sabe como é, transar com ela. E como comprá-la; é o que isto significa.

—Troca — corrigiu Barris. — Você dá um presente a ela, ela te dá outro. O presente mais precioso de uma mulher.

— Ela ia saber que estava sendo comprada. — Ele tinha visto Donna o suficiente para entender isso; Donna ia entender o engodo de imediato.

— A cocaína é afrodisíaca — murmurou Barris, meio para si mesmo; estava instalando o equipamento ao lado do cefalocromoscópio de Bob Arctor. — Depois que cheirar uma boa parte, ela vai ficar feliz em se arreganhar.

— Que merda, cara — protestou Charles Freck. — Está falando da garota do Bob Arctor. Ele é meu amigo e é o cara com quem você e Luckman moram.

Barris ergueu a cabeça desgrenhada por um momento. Analisou Charles Freck por um tempo.

— Tem uma coisa ótima sobre Bob Arctor que você não sabe — disse ele. — Que nenhum de nós sabe. Sua visão é simplista e ingênua e você acredita sobre o Bob o que ele quer que você acredite.

— Ele é um cara cem por cento legal.

— Certamente — disse Barris, assentindo e sorrindo. — Sem dúvida nenhuma, um dos melhores do mundo. Mas eu tenho... nós temos, nós que observamos Arctor com precisão e percepção... distinguindo nele algumas contradições. Tanto em relação à estrutura da personalidade como no comportamento. No total desligamento com a vida. No, digamos assim, estilo inato dele.

— Pode ser mais específico?

Os olhos de Barris, por trás das lentes verdes, dançaram.

— Seus olhos dançando não significam nada para mim — disse Charles Freck. — O que há de errado com o cefscópio em que você está trabalhando? — Ele se aproximou para olhar.

Inclinando o chassis central na ponta, Barris disse:

— Me diga o que está vendo aqui na fiação por baixo.

— Estou vendo fios cortados — disse Charles Freck. — E um monte do que parecem curtos provocados. Quem fez isso?

Novamente os olhos risonhos e sagazes de Barris dançaram com um prazer especial.

— Essa porcaria ordinária não significa merda nenhuma para mim — disse Charles Freck. — Quem destruiu o cefscópio? Quando isso aconteceu? Você descobriu há pouco tempo? Arctor não disse nada da última vez em que eu o vi, e isso foi antes de ontem.

Barris disse:

— Talvez ele ainda não estivesse preparado para falar no assunto.

— Bom — disse Charles Freck —, para mim você está falando por enigmas de doidão. Acho que vou dar um pulo a uma das clínicas da New-Path, me apresentar, passar pelo tratamento de choque e fazer terapia, entrar no jogo destrutivo deles e ficar com aqueles caras dia e noite, sem malucos misteriosos como você que não dizem nada que faça sentido e eu não consigo entender. Posso ver que esse cefscópio foi destruído, mas você não está me dizendo nada. Está tentando alegar que Bob Arctor fez isso, com o próprio equipamento caro, não está? O que você está dizendo? Eu queria era morar na New-Path, onde eu não precisaria passar por essa merda cheia de significados que eu não entendo dia após dia, se não com você, então com algum doidão acabado como você, igualmente chapado. — Ele olhou de um jeito feroz.

— Eu não destruí essa unidade de transmissão — disse Barris especulativamente, coçando os pêlos da barba — e duvido muito de que Ernie Luckman tenha feito isso.

— Eu duvido muito de que Ernie Luckman tenha destruído qualquer coisa na vida, a não ser aquela vez em que ele se empolgou com um ácido ruim e atirou a mesa de centro da sala e todo o resto pela janela do apartamento que ele tinha, ele e aquela Joan, no estacionamento. Isso é diferente. Normalmente Ernie não se descontrola mais do que todos nós. Não, Ernie não sabotaria o cefscópio de ninguém. E Bob Arctor... é dele, não é? O que ele fez, levantou em segredo no meio da noite sem saber e fez isso, estragando desse jeito o que era dele? Isso foi feito por alguém que queria acabar com ele. Foi isso que aconteceu. — Você deve ter feito isso, seu filho-da-puta nojento, pensou ele. — Quem fez isso — disse ele — devia ir para uma clínica de afasia federal ou para a cova. De preferência, na minha opinião, a última. Bob sempre relaxava com esse cefscópio Altec; eu o vi usando sempre, toda vez que chegava do trabalho à noite, assim que entrava pela porta. Todo cara tem alguma coisa que preza. Essa é a dele. Então eu digo que é uma merda fazer isso com ele, cara, uma merda.

— É o que eu quero dizer.

— O que você quer dizer?

— “Toda vez que chegava do trabalho” — repetiu Barris.

— Andei conjecturando por um tempo quem é que realmente emprega Bob Arctor, que organização específica é essa que ele não pode nos contar.

— E a porra do Blue Chip Redemption Stamp Center, em Placentia — disse Charles Freck. — Ele já me contou.

— Eu me pergunto o que ele faz lá.

Charles Freck suspirou.

— Tinge os selos de azul. — Na verdade, ele não gostava de Barris. Freck queria estar em outro lugar, talvez arranjando uma com a primeira pessoa que ele visitasse ou a quem telefonasse. Talvez seja melhor eu dar o fora, disse ele a si mesmo, mas lembrou-se do vidro de óleo e cocaína no congelador, 98 cents que valiam cem dólares.

— Aí — disse ele —, quando é que esse troço vai ficar pronto? Acho que você está me enrolando. Como o pessoal da Solarcaine vende esse troço por tão pouco se tem um grama de coca pura? Como é que eles têm lucro?

— Eles compram — declarou Barris — em grandes quantidades.

Rolou na cabeça de Charles Freck uma fantasia instantânea: caminhões basculantes cheios de cocaína indo à fábrica de Solarcaine, onde quer que fosse, talvez em Cleveland, descarregando toneladas e mais toneladas de cocaína pura, sem malho, sem mistura, de alta qualidade, em uma extremidade da fábrica, onde era misturada com óleo e gás inerte e outros trecos, e depois enfiada em latinhas de spray coloridas que seriam empilhadas nos milhares de lojas 7-11, drogarias e supermercados. O que devíamos fazer, ruminou ele, era parar um desses caminhões e pegar a carga toda, uns 300 ou 400 quilos — que droga, muito mais. Quanto carrega um caminhão basculante?

Barris levou para ele a lata de Solarcaine agora vazia, para que ele examinasse; ele lhe mostrou o rótulo, em que estavam relacionados todos os componentes.

— Está vendo? Benzocaína. O que só algumas pessoas dotadas sabem que é o nome comercial da cocaína. Se eles dissessem cocaína no rótulo, as pessoas iriam sacar e acabariam fazendo o que eu faço. As pessoas simplesmente não são instruídas para perceber isso. Não têm o treinamento científico que eu tive.

— O que vai fazer com esse conhecimento? — perguntou Charles Freck. — Além de deixar Donna Hawthorne ligadona?

— Pretendo escrever um best-seller um dia desses — disse Barris. — Um texto para a maioria das pessoas sobre como fabricar droga segura na cozinha sem infringir a lei. Isso não infringe a lei, entende? A benzocaína é legalizada. Telefonei para uma farmácia e perguntei. Está em um monte de coisas.

— Poxa! — disse Charles Freck, impressionado. Ele olhou o relógio de pulso para ver quanto tempo tinham de esperar.

Bob Arctor fora avisado por Flank, que era o sr. F., para verificar os centros de internação da New-Path da cidade, a fim de localizar um traficante importante que ele estivera vigiando, mas que de repente tinha sumido de vista.

De vez em quando, um traficante, percebendo que estava prestes a ser flagrado, refugiava-se em um dos centros de reabilitação de drogas, como a Synanon, o Center Point, a X-Kalay e a New-Path, bancando um viciado à procura de ajuda. Depois que entra, ele é despojado de tudo o que o identifica, sua carteira, até o nome, como preparação para formar uma nova personalidade que não é orientada para as drogas. Neste processo de despojamento, desaparece grande parte do que os policiais precisam para localizar o suspeito. Mais tarde, quando a pressão é aliviada, o traficante sai e reassume sua atividade externa de sempre.

Ninguém sabia com que freqüência isso acontecia. As unidades de reabilitação de drogas tentavam discernir quando estavam sendo usadas, mas nem sempre tinham sucesso. Um traficante com medo de pegar quarenta anos de prisão tinha motivação para contar uma boa história para a equipe de reabilitação, que tinha o poder de admiti-lo ou rejeitá-lo. Sua agonia a essa altura era essencialmente verdadeira.

Dirigindo devagar pelo Katella Boulevard, Bob Arctor procurava pela placa da New-Path e o prédio de madeira, antigamente uma residência particular, operada nessa área pelo pessoal ativo da reabilitação. Ele não gostava de enganar um centro de reabilitação dessa maneira, fingindo ser um possível interno que precisava de ajuda, mas essa era a única forma de conseguir. Se ele se identificasse como agente da narcóticos à procura de alguém, o pessoal da reabilitação — a maioria deles, de qualquer forma — naturalmente começaria uma ação evasiva. Eles não queriam sua família abordada pelos Homens e ele tinha de entrar de cabeça ali para entender a validade disso. Aqueles ex-viciados deviam estar seguros lá; na verdade, a equipe da reabilitação costumava garantir oficialmente sua segurança quando eles entravam. Por outro lado, o traficante que ele procurava era uma fonte de primeira e usar centros de reabilitação dessa maneira contrariava o interesse de todos. Ele não viu alternativa para si mesmo ou para o sr. E, que originalmente o colocara na cola de Spade Weeks. Weeks foi o principal tema de Arctor por um tempo interminável, sem resultado nenhum. E agora, por dez dias inteiros, fora impossível localizá-lo.

Ele viu a placa nítida, parou no pequeno estacionamento, que essa filial da New-Path dividia com uma padaria, e andou de maneira irregular pelo passadiço até a porta da frente, as mãos nos bolsos, fazendo seu número de oprimido-e-infeliz.

Pelo menos o departamento não se colocou contra ele por ter perdido Spade Weeks de vista. Em sua estimativa, oficialmente, só provou como Weeks era esperto. Tecnicamente, Weeks era um contrabandista e não traficante; ele enviava drogas pesadas do México a intervalos regulares para algum lugar perto de Los Angeles, onde os compradores se reuniam e dividiam a carga. O método que Weeks usava para contrabandear a carga pela fronteira era eficaz: ele a colava embaixo do carro de algum careta que atravessava a fronteira na frente dele, depois pegava o cara no lado americano e o matava na primeira oportunidade conveniente. Se a patrulha da fronteira dos EUA descobrisse a droga colada embaixo do carro do careta, o careta seria pego, e não Weeks. A posse era prima facie na Califórnia. Péssimo para o careta, a esposa e os filhos dele.

Mais do que qualquer outro no trabalho sob disfarce do Condado de Orange, ele reconhecia Weeks de vista: um negro gordo, em seus trinta anos, com um padrão de fala singular, lento e elegante, como se o tivesse memorizado em uma falsa escola inglesa. Na verdade, Weeks vinha das favelas de Los Angeles. Era mais provável que ele tenha aprendido essa dicção em fitas educativas que pegou em alguma biblioteca universitária.

Weeks gostava de se vestir de forma discreta, mas classuda, como se fosse médico ou advogado. Em geral, portava uma pasta executiva cara, de crocodilo, e usava óculos de aro de chifre. Além disso, costumava andar armado, com uma pistola que encomendara, com um cabo feito sob medida na Itália, muito elegante e cheia de estilo. Mas na New-Path ele seria despido de seus variados paramentos, eles o vestiriam como qualquer outro, com roupas aleatórias de doações, e trancariam sua pasta no armário.

Abrindo a sólida porta de madeira, Arctor entrou.

Um saguão escuro, uma sala de estar à esquerda, com homens lendo. Uma mesa de pingue-pongue no outro extremo, depois uma cozinha. Uns lemas nas paredes, alguns feitos à mão e alguns impressos: O ÚNICO FRACASSO VERDADEIRO É FALHAR COM OS OUTROS e assim por diante. Pouco barulho, pouca atividade. A New-Path mantinha variados negócios de varejo; provavelmente a maioria de seus internos, homens e mulheres também, estava trabalhando em seus salões de beleza, postos de gasolina e empregos burocráticos. Ele ficou parado ali, esperando, parecendo abatido.

— Pois não? — Apareceu uma mulher, bonita, usando uma saia de algodão azul extremamente curta e uma camiseta com NEW-PATH pintado de um mamilo a outro.

Ele disse, numa voz embargada, lamentativa e humilhada:

— Eu estou... numa pior. Não consigo agüentar mais. Posso me sentar?

— Claro. — A mulher acenou e surgiram dois homens de aparência medíocre, olhando impassíveis. — Levem ele para onde possa se sentar e dêem um café.

Arrastando-se, Arctor pensou enquanto deixava que os dois homens o levassem a um sofá estofado de aparência puída. Paredes lúgubres, ele percebeu. Tinta lúgubre de baixa qualidade que fora doada. Mas eles sobreviviam de contribuições, era difícil conseguir financiamento.

— Obrigado — chiou ele, trêmulo, como se fosse um alívio esmagador estar ali e se sentar. — Uau — disse ele, tentando alisar o cabelo; fez com que parecesse que não conseguia e desistiu.

A mulher, bem na frente dele, disse com firmeza:

— Parece péssimo, senhor.

— É — concordaram os dois homens, num tom surpreendentemente animado. — Uma bosta de verdade. O que andou fazendo, deitou na própria merda?

Arctor pestanejou.

— Quem é você? — quis saber um dos homens.

— Dá para ver o que ele é — disse o outro. — Um rebotalho da porra da lata de lixo. Olha. — Ele apontou para o cabelo de Arctor. — Piolhos. É por isso que você coça, cara.

A mulher, calma e sobranceira, mas de maneira nenhuma amistosa, disse:

— Por que veio aqui, senhor?

Para si mesmo, Arctor pensou, porque você tem um contrabandista dos grandes em algum lugar por aqui. E eu sou um dos Homens. E vocês são uns idiotas, todos vocês. Mas, em vez disso, ele murmurou de modo servil, o que evidentemente era o que esperavam:

— Você disse...

— Sim, senhor, pode tomar um café. — A mulher inclinou a cabeça e um dos homens foi obedientemente para a cozinha.

Uma pausa. Depois a mulher se curvou e tocou o joelho dele.

— Sente-se muito mal, não é? — disse ela delicadamente.

Ele só pôde assentir.

— Sente vergonha e repulsa pelo que você é — disse ela.

— É — concordou ele.

— Pelo lixo que você fez de si mesmo. Um esgoto. Enfiando aquela agulha no traseiro dia após dia, injetando no seu corpo...

— Eu não posso mais continuar — disse Arctor. — Este lugar é a única esperança que me ocorre. Um amigo meu vem para cá, eu acho, ele disse que vinha. Um cara negro, uns trinta anos, instruído, muito educado e...

— Vai encontrar a família mais tarde — disse a mulher. — Se estiver qualificado. Precisa passar por nossas exigências, entendeu? E a primeira delas é uma necessidade sincera.

— Eu tenho — disse Arctor. — Uma necessidade sincera.

— Deve estar muito mal para vir parar aqui.

— E estou mesmo — disse ele.

— O quanto você é chapado? Qual é o seu hábito?

— Trinta gramas por dia — disse Arctor.

— Pura?

— É. — Ele assentiu. — Eu guardo num açucareiro na mesa.

— Vai ser dureza. Você vai roer seu travesseiro até as penas a noite toda; só vai haver penas em toda parte quando você acordar. E você terá espuma presa na boca. E vai se sujar como os animais doentes. Está pronto para isso? Entenda que não vamos dar nada a você aqui.

— Tudo bem — disse ele. Isso era um estorvo e ele se sentia inquieto e irritadiço. — Meu amigo — disse ele —, o negro. Ele conseguiu vir para cá? Espero que os canalhas não o tenham pegado no caminho... Ele estava tão acabado, cara, que mal podia se orientar. Ele pensou...

— Não existem relacionamentos pessoais na New-Path — disse a mulher. — Você vai aprender isso.

— É, mas ele conseguiu vir para cá? — disse Arctor. Ele podia ver que estava perdendo tempo. Meu Deus, pensou, isto é pior do que o que fazemos no centro da cidade, essa abordagem. E ela não vai me contar merda nenhuma. E política do lugar, percebeu ele. Como um muro de ferro. Depois que você entra num desses locais, está morto para o mundo. Spade Weeks podia estar sentado depois da divisória, ouvindo e dando gargalhadas, ou não estar aqui ou qualquer coisa entre essas duas. Mesmo com um mandado — que nunca funcionava. As unidades de reabilitação sabiam enrolar, protelando até que um interno procurado pela polícia tenha escapulido por uma porta lateral ou se atirado na fornalha. E nenhum órgão da lei gostava da idéia de revirar um centro de reabilitação: os gritos do público não acabariam nunca.

Hora de desistir de Spade Weeks, decidiu ele, e me livrar dessa. Não surpreende que eles nunca tenham me mandado aqui antes; esses caras não são legais. E depois ele pensou: “Então, no que me diz respeito, eu definitivamente perdi minha principal designação; Spade Weeks não existe mais.”

Vou informar ao sr. E, disse ele a si mesmo, e esperar por outra tarefa. Para o inferno com isso! Ele se levantou rigidamente e disse:

— Vou dar o fora. — Os dois homens tinham voltado, um deles com uma caneca de café, o outro com literatura, aparentemente do tipo instrutiva.

— Está com medo? — disse a mulher, arrogante, com desdém. — Não tem coragem de se prender a uma decisão? De deixar a imoralidade? Vai rastejar para fora daqui de barriga? — Os três olharam para ele com raiva.

— Depois — disse Arctor e andou até a porta para ir embora.

— Porra de drogado — disse a mulher atrás dele. — Não tem coragem, torrou o cérebro, não tem nada. Fuja, pode fugir, a decisão é sua.

— Eu vou voltar — disse Arctor, exasperado. O ambiente daqui o oprimia e, agora que ele estava partindo, tinha se intensificado.

— É possível que a gente não queira você de volta, covarde — disse um dos homens.

— Vai ter de implorar — disse o outro. — Pode ter de implorar muito. E mesmo aí é possível que a gente não queira você.

— Na verdade, não queremos você agora — disse a mulher.

A porta, Arctor parou e se virou para encarar seus acusadores. Ele queria dizer alguma coisa, mas não conseguiu pensar em nada. Eles haviam esvaziado sua mente.

Seu cérebro não funcionou. Nenhum pensamento, nem reações, nenhuma resposta a eles, nem uma fraquinha ocorreu a Arctor.

Estranho, pensou ele, e ficou perplexo.

E saiu do prédio, indo em direção ao carro estacionado.

No que diz respeito a mim, pensou ele, Spade Weeks desapareceu para sempre. Não vou voltar para um lugar desses.

Hora, decidiu ele nauseado, de pedir outra tarefa. De caçar outra pessoa.

Eles são mais durões do que nós.

 

 

   Dentro do traje misturador, o borrão nebuloso indicava que Fred estava diante de outro borrão nebuloso que se apresentava como Hank.

— Nada com Donna, nem Charley Freck, e... deixe-me ver... — A voz monótona e metálica de Hank estalou por um segundo. — Tudo bem, você cobriu Jim Barris. — Hank fez uma anotação no bloco diante dele. — Doug Weeks, segundo você acha, deve estar morto ou fora da área.

— Ou escondido ou inativo — disse Fred.

— Já ouviu falar neste nome: Earl ou Art De Winter?

— Não.

— E numa mulher chamada Molly? Uma grandalhona.

— Não.

— E numa dupla de crioulos, irmãos, uns 20 anos, chamados qualquer coisa Hatfield? Possivelmente traficando sacos de meio quilo de heroína.

— Meio quilo? Sacos de meio quilo de heroína?

— É isso mesmo.

— Não — disse Fred. — Eu me lembraria disso.

— Um sueco, alto, nome sueco. Cumpriu pena, senso de humor distorcido. Alto e magro, anda com muito dinheiro, provavelmente da partilha de um embarque no início do mês.

— Vou ficar de olho nele — disse Fred. — Meio quilo. — Ele sacudiu a cabeça ou pelo menos o borrão nebuloso balançou.

Hank arrumou as notas holográficas.

— Bom, este está na cadeia. — Ele ergueu uma foto brevemente, depois leu o verso. — Não, está morto, estão com

o corpo lá embaixo. — Ele separou. O tempo passou. — Acha que a Jora está se prostituindo?

— Duvido. — Jora Kajas só tinha 15 anos. Já dominada pela Substância D injetável, ela morava em um quarto de um cortiço em Brea; o único calor que irradiava era de um aquecedor a água, sua fonte de renda era uma bolsa de estudos do estado da Califórnia que ela ganhara. Não comparecia às aulas, pelo que ele sabia, havia seis meses.

— Quando ela aprontar, me informe. Depois podemos procurar os pais dela.

— Tudo bem — assentiu Fred.

— Rapaz, a garotada está descendo a ladeira rapidinho. Tivemos uma aqui outro dia... ela parecia ter uns cinqüenta anos. Cabelo grisalho ralo, sem dentes, olhos no buraco, os braços umas varetas... Perguntamos a idade dela e ela disse: “Dezenove.” Verificamos a informação. “Sabe que idade parece ter?”, disse aquela matrona a ela. “Olhe-se no espelho.” Então ela se olhou no espelho. E começou a chorar. Perguntei a ela há quanto tempo estava injetando.

— Um ano — disse Fred.

— Quatro meses.

— As coisas na rua estão bem ruins — disse Fred, sem tentar imaginar a garota, de 19 anos, com o cabelo caindo.

- Malhadas com porcarias piores do que o normal.

— Sabe como a garota entrou nessa? Os irmãos dela, os dois, eram traficantes, foram ao quarto dela uma noite, prenderam ela na cama e injetaram, depois treparam com ela. Os dois. Para jogá-la numa nova vida, eu acho. Ela já estava nessa havia meses quando nós a trouxemos para cá.

— Onde eles estão agora? — Ele pensou que podia esbarrar nos dois.

— Cumprindo uma sentença de seis meses por posse. A garota também pegou gonorréia e não percebeu isso. A doença foi bem fundo nela, como costuma acontecer. Os irmãos dela acharam isso hilário.

— Gente boa... — disse Fred.

— Vou te contar uma que com toda certeza vai te derrubar. Está sabendo dos três bebês no Fairfield Hospital que precisam receber umas doses todo dia porque ainda são novos demais para retirar a droga? Uma enfermeira tentou...

— Você já me derrubou — disse Fred, com voz mecânica. — Já ouvi o bastante, obrigado.

Hank continuou:

— Quando se pensa em recém-nascidos viciados em heroína porque...

— Obrigado — repetiu o borrão nebuloso chamado Fred.

— Que castigo você daria a uma mãe que dá uma dose de heroína a um recém-nascido para acalmá-lo, para evitar que chore? Pernoite na fazenda do condado?

— Alguma coisa assim — disse Fred monotonamente. — Talvez um fim de semana, como fazem com os bêbados. Às vezes, eu queria saber como pirar. Eu esqueci.

— É uma arte esquecida — disse Hank. — Talvez haja um manual de instruções.

— Tinha um filme lá pelos anos 70 — disse Fred — chamado Operação França, sobre dois homens da narcóticos de heroína, e quando eles fizeram sucesso um deles ficou totalmente pirado e começou a atirar em todo mundo que via, inclusive nos superiores. Não fez diferença alguma.

— Talvez seja melhor você não saber quem eu sou, então — disse Hank. — Só pode me pegar por acidente.

— Um dia — disse Fred — alguém vai nos pegar.

— Vai ser um alívio. Um alívio e tanto. — Avançando em sua pilha de anotações, Hank disse: — Jerry Fabin. Bom, vamos cancelar esse. Não é mais cidadão. Os rapazes do final do corredor contaram que Fabin, a caminho da clínica, disse aos policiais que um homenzinho de um metro de altura, sem pernas, em um carrinho, rolava atrás dele dia e noite. Mas ele nunca contou a ninguém porque, se contasse, iam se irritar e o diabo a quatro e depois ele não teria amigos, ninguém com quem conversar.

— É — disse Fred estoicamente. — Fabin está bem ferrado. Li a análise de EEG da clínica. Não podemos nos esquecer dele.

Sempre que se sentava de frente para Hank e fazia esse relatório ele vivia uma certa mudança profunda em si mesmo. Só percebia isso depois, embora na hora sentisse que, por algum motivo, ele assumia uma atitude calculada e bem distante. Para ele, nenhum acontecimento e ninguém tinha significado emocional durante essas sessões.

No início, ele acreditava que eram os trajes misturadores que os dois usavam; eles não podiam sentir fisicamente um ao outro. Mais tarde conjecturou que os trajes não faziam qualquer diferença, era a situação em si. Hank, por motivos profissionais, menosprezava intencionalmente o valor habitual, a excitação habitual em todos os sentidos; nenhuma raiva, nenhum amor, nenhum tipo de emoção forte ajudaria qualquer um dos dois. Como é que o envolvimento emocional intenso podia ser de alguma utilidade quando eles estavam discutindo crimes, crimes graves, cometidos por pessoas próximas a Fred e até, como no caso de Luckman e Donna, pessoas queridas a ele? Ele precisava se neutralizar; os dois faziam isso, ele mais do que Hank. Eles ficavam neutros, falavam de forma neutra, pareciam neutros. Aos poucos ficou fácil conseguir isso, sem combinação prévia.

E depois todos os seus sentimentos voltavam de mansinho.

A indignação com muitos dos acontecimentos que testemunhava, até o pavor, em retrospectiva: o choque. Grandes seqüências esmagadoras para as quais não havia trailer. Com o áudio sempre alto demais dentro de sua cabeça.

Mas, enquanto estava sentado à mesa, de frente para Hank, ele não sentia nada disso. Teoricamente, podia descrever, impassível, qualquer coisa que testemunhasse. Ou ouvir qualquer coisa de Hank.

Por exemplo, ele podia dizer descuidadamente: “Donna está morrendo de hepatite e usa a agulha para eliminar o máximo de amigos que pode. A melhor coisa neste caso seria dar umas coronhadas nela até ela parar com isso.” A própria garota dele... se ele tivesse observado isso ou tivesse certeza... Ou: “Outro dia Donna sofreu uma vasoconstrição maciça com um análogo de LSD vagabundo e metade dos vasos sangüíneos do cérebro dela morreu.” Ou: “Donna está morta.” E Hank registraria isso e talvez dissesse: “Quem vendeu a droga a ela e onde foi feita?” ou “Onde vai ser o funeral? Devemos conseguir números de licença e nomes”, e ele discutiria isso sem sentimento nenhum.

Esse era Fred. Mas depois Fred evoluía para Bob Arctor, em algum lugar na calçada entre o Pizza Hut e o posto de gasolina Arco (gasolina comum agora a 25 cents o litro), e as cores terríveis voltavam a ele, gostasse ou não.

Essa mudança nele como Fred era uma economia das paixões. Bombeiros, médicos e agentes funerários faziam a mesma viagem em seu trabalho. Nenhum deles podia pular e exclamar a cada momento; eles primeiro esgotavam a si mesmos e ficavam imprestáveis, e depois esgotavam os outros, como técnicos no trabalho e como seres humanos. Um indivíduo tinha energia limitada.

Hank não forçava essa imparcialidade nele, ele lhe permitia ser assim. Para o próprio bem. Fred gostava disso.

— E Arctor? — perguntou Hank.

Além de todos os outros, Fred, em seu traje misturador, subordinava naturalmente a si mesmo. Se não fosse assim, seu superior — e através dele todo o aparato da lei — ficaria ciente de quem era Fred, com ou sem traje. Os agentes plantados transmitiriam a informação e muito em breve ele, como Bob Arctor, sentado em sua sala fumando bagulho e tomando droga com os outros viciados, acharia que tinha um homenzinho de um metro de altura em um carrinho deslizando atrás dele também. E não estaria alucinado, como acontecia com Jerry Fabin.

— Arctor não tem feito muita coisa — disse Fred, como sempre fazia. — Trabalha no Blue Chip Stamp em lugar nenhum, toma uns tabletes de morte batizada com met durante o dia...

— Não tenho certeza disso. — Hank remexeu em uma determinada folha de papel. — Temos uma dica aqui de um informante cujas dicas em geral são boas e ele diz que Arctor tem capital acima do que o Blue Chip Redemption Center paga a ele. Ligamos para eles e perguntamos qual é o salário líquido de Arctor. Não é muito. E depois investigamos o porquê disso e descobrimos que ele não está em um emprego de tempo integral a semana toda.

— Tá brincando — disse Fred meio lúgubre, percebendo que o capital “acima” era claramente aquele que ele recebia como agente da Narcóticos. Toda semana ele pegava uma certa quantia em notas baixas em um aparelho disfarçado de máquina de Dr. Pepper, em um bar e restaurante mexicano em Placentia. Eram essencialmente pagamentos por informações que ele dava e que resultavam em prisões. Às vezes, essa soma se tornava excepcionalmente alta, quando ocorria uma importante apreensão de heroína.

Hank leu ponderadamente:

— E de acordo com esse informante, Arctor some e aparece misteriosamente, em especial pelo pôr-do-sol. Depois que chega em casa ele come, depois arranja uma desculpa para sair de novo. Às vezes muito rápido. Mas ele nunca sai por muito tempo. — Ele ergueu os olhos. — O traje misturador ergueu os olhos — para Fred. — Tem observado alguma dessas coisas? Pode verificar? Será que significa alguma coisa?

— Mais provavelmente a garota dele, Donna — disse Fred.

— Bem, “mais provavelmente”. Você devia saber.

— E Donna. Ele transa com ela dia e noite. — Ele se sentia verdadeiramente pouco à vontade. — Mas vou verificar e te informar. Quem é esse informante? Pode estar aprontando para cima do Arctor.

— Porra, não sabemos. É tudo por telefone. Nada impresso... ele usou um tipo de grade eletrônica vagabunda. — Hank deu uma risada; parecia estranha, saindo tão metálica daquele jeito. — Mas funcionou. Satisfatoriamente.

— Meu Deus — protestou Fred —, é aquele maluco ferrado do Jim Barris jogando seu ressentimento esquizóide pra cima do Arctor! Barris fez cursos intermináveis de conserto de eletrônicos nas forças armadas, além de manutenção de maquinaria pesada. Eu não daria nem um centavo a ele como informante.

Hank disse:

— Não sabemos se é Barris e, de qualquer modo, pode haver mais em Barris do que um “maluco ferrado”. Conseguimos várias pessoas que investigaram isso. Nada do que eu ache seria de utilidade para você, pelo menos por enquanto.

— Mas é um dos amigos de Arctor — disse Fred.

— Sim, indubitavelmente é armação por vingança. Esses viciados... eles te telefonam toda vez que ficam irritados. Na realidade, ele parecia conhecer Arctor muito intimamente.

— Gente boa — disse Fred com amargura.

— Bem, foi assim que descobrimos — disse Hank. — Qual é a diferença entre isso e o que você está fazendo?

— Não estou fazendo isso por rancor — disse Fred.

— Por que está fazendo, na realidade?

Fred, depois de um intervalo, disse:

— Bem que eu gostaria de saber.

— Você perdeu o Weeks. Acho que por enquanto vou mandar você observar Bob Arctor. Ele tem um nome do meio? Usa a inicial...

Fred fez um ruído engasgado, de robô.

— Por que Arctor?

— Financiado às ocultas, envolvido às ocultas, fazendo inimigos por suas atividades. Qual é o nome do meio de Arctor? — A caneta de Hank pacientemente postada. Ele esperou para saber.

— Postlethwaite.

— Como se escreve isso?

— Não sei. Não sei dessa porra — disse Fred.

— Postlethwaite — disse Hank, escrevendo algumas letras. — De que nacionalidade é?

— Galês — disse Fred rispidamente. Ele mal conseguia ouvir, seus ouvidos tinham se toldado e seus sentidos também, um por um.

— São aquelas pessoas que cantam sobre os homens de Harlech? O que é “Harlech”? Uma cidade de algum lugar?

— Foi em Harlech que a defesa heróica contra os yorkistas em 1468... — Fred se interrompeu. Merda, pensou ele. Isso é horrível.

— Espere, quero tomar nota disso — estava dizendo Hank, escrevendo com a caneta.

Fred disse:

— Isso significa que você vai grampear a casa e o carro de Arctor?

— Sim, com o novo sistema holográfico; é melhor e, atualmente, temos vários deles parados. Você vai gravar e imprimir tudo. E o que eu suponho. — Hank anotou isso também.

— Vou pegar o que eu puder — disse Fred. Ele se sentia totalmente por fora de tudo isso, queria que a sessão de relatório terminasse e pensou: se ao menos eu pudesse tomar uns tabletes...

Na frente dele, o borrão sem forma escrevia e escrevia, preenchendo todos os números de registro de todas as engenhocas tecnológicas que, se aprovadas, logo estariam disponíveis para ele, com as quais montaria um sistema de monitoramento constante de última geração em sua própria casa, nele mesmo.

 

Por mais de uma hora, Barris ficou tentando aperfeiçoar um silenciador feito de materiais caseiros comuns que não custavam mais de 11 cents. Ele quase conseguira fazer um, com chapa de alumínio e um pedaço de espuma de borracha.

Na escuridão da noite, no quintal de Bob Arctor, entre os montes de mato e lixo, ele se preparava para disparar a pistola com o silenciador caseiro instalado.

— Os vizinhos vão ouvir — disse Charles Freck, inquieto. Ele podia ver janelas acesas em toda parte, muitas pessoas provavelmente vendo TV ou enrolando baseados.

Luckman, fora de vista, mas capaz de ver, disse:

— O único chamado por assassinato neste bairro.

— Por que precisa de um silenciador? — perguntou Charles Freck a Barris. — Quer dizer, eles são ilegais.

Barris disse, mal-humorado:

— Em nossa época, com o tipo de sociedade degenerada em que vivemos e a depravação do indivíduo, todo mundo que vale alguma coisa precisa de uma arma o tempo todo. Para se proteger. — Ele semicerrou os olhos e disparou a pistola com o silenciador caseiro. Soou um estrondo enorme, ensurdecendo temporariamente os três. Latiram cães em quintais distantes.

Sorrindo, Barris começou a desenrolar a chapa de alumínio da espuma de borracha. Ele parecia estar se divertindo.

— Mas é um silenciador e tanto — disse Charles Freck, perguntando-se quando a polícia ia aparecer. Num monte de carros.

— O que ele fez — explicou Barris, mostrando a ele e a Luckman trechos crestados de preto e queimados na espuma de borracha — foi aumentar o som, em vez de abafá-lo. Mas eu quase cheguei lá. Consegui em princípio, aliás.

— Quanto vale essa arma? — perguntou Charles Freck. Ele nunca teve uma arma. Por várias vezes teve uma faca, mas alguém sempre a roubava dele. Uma vez uma garota a roubou, enquanto ele estava no banheiro.

— Não muito — disse Barris. — Uns trinta dólares, usada, o que ela é. — Ele a estendeu a Freck, que recuou apreensivamente. — Vou vender para você — disse Barris. — Você devia ter uma mesmo, para se proteger de quem pode te machucar.

— Eles são muitos — disse Luckman de seu jeito irônico, com um sorriso. — Eu vi no Times de Los Angeles, outro dia, que estão dando um rádio transistor para os que tiverem mais sucesso em ferir Freck.

— Vou trocar com você por um tacômetro Borg-Warner — disse Freck.

— Que você roubou da oficina do cara do outro lado da rua — disse Luckman.

— Bom, a arma também deve ser roubada — disse Charles Freck. A maioria das coisas que valiam algum dinheiro foi originalmente roubada de alguma forma; isso indicava que o objeto tinha valor. — Na realidade — disse ele —, o cara do outro lado da rua roubou o tacômetro primeiro. Deve ter trocado de mãos umas 15 vezes. Quer dizer, é um tacômetro realmente legal.

— Como você sabe que ele roubou? — perguntou-lhe Luckman.

— Que droga, cara, ele tem oito tacômetros ali na oficina, todos pendurados por fios! O que mais ele estaria fazendo com eles, com tantos, quero dizer? Quem é que sai e compra oito tacômetros?

Para Barris, Luckman disse:

— Pensei que você estivesse ocupado trabalhando no cefscópio. Já terminou?

— Não posso trabalhar continuamente dia e noite, porque sai caro demais — disse Barris. — Tive de dar uma parada. — Ele cortou, com um canivete complicado, outra seção de espuma de borracha. — Este vai ficar totalmente sem som.

— O Bob pensa que você está trabalhando no cefscópio — disse Luckman. — Ele está deitado ali na cama do quarto, imaginando isso, enquanto você está aqui fora atirando com a pistola. Não concorda com Bob que o aluguel que você deve seria compensado por seu...

— Como se fosse moleza — disse Barris — uma reconstrução intrincada e trabalhosa de um aparelho eletrônico danificado...

— Atire com o maior silenciador de 11 cents de nossos tempos — disse Luckman e arrotou.

 

Estou lascado, pensou Robert Arctor.

Ele estava deitado sozinho à meia-luz de seu quarto, de costas, olhando carrancudo para o nada. Debaixo do travesseiro tinha o revólver .32 especial da polícia; ao som do .22 de Barris sendo disparado no quintal, ele por reflexo pegou a própria arma sob a cama e a colocou em um lugar mais fácil de alcançar. Um movimento seguro, contra todo e qualquer perigo; nem precisava pensar nele conscientemente.

Mas o .32 sob o travesseiro não seria muito bom contra algo tão indireto como sabotagem de seu bem mais precioso e caro. Assim que chegou em casa, depois do relatório com Hank, ele verificou todos os outros aparelhos e viu que estava tudo bem — especialmente o carro, sempre o carro primeiro — numa situação dessas. O que quer que acontecesse, pelo que fosse que passasse, seria uma covardia e uma trapaça: um sujeito sem integridade ou coragem escondido na periferia de sua vida, dando tiros nele a esmo, de uma posição oculta e segura. Não uma pessoa, porém mais uma espécie de sintoma ambulante e escondido de seu jeito de viver.

Houve uma época, antigamente, quando ele não vivia assim, com um 32 debaixo do travesseiro, um lunático nos fundos disparando uma pistola Deus sabe por quê, outro maluco ou talvez o mesmo colocando em curto uma impressão encefálica dele mesmo em um cefscópio inacreditavelmente caro e valioso que todo mundo na casa, além de todos os amigos, adorava e do qual desfrutava. Antigamente Bob Arctor cuidava de suas coisas de forma diferente: havia uma esposa, como muitas outras esposas, duas filhas pequenas, uma casa estável que era varrida, limpa e esvaziada diariamente, os jornais antigos sequer abertos levados da calçada da frente para a lata de lixo ou até, às vezes, lidos. Mas um dia, enquanto pegava uma pipoqueira elétrica debaixo da pia, Arctor bateu a cabeça na quina de um armário de cozinha que estava bem acima dele. A dor, o corte no couro cabeludo, tão inesperado e injusto, por algum motivo eliminou as teias de aranha. Ele entendeu de imediato que não odiava o armário da cozinha: odiava a esposa, as duas filhas, toda a casa, o quintal com o aparador de grama elétrico, a garagem, o sistema de aquecimento, o jardim, a cerca, toda a porra do lugar e tudo o que havia nele. Ele quis o divórcio, ele quis se separar. E assim fez logo em seguida. E entrou, aos poucos, em uma vida nova e sombria, em que tudo isso estava ausente.

Provavelmente ele devia ter se arrependido da decisão que tomou. Ele não se arrependera. Aquela vida não tinha entusiasmo, não tinha aventura. Era segura demais. Todos os elementos que a caracterizavam estavam bem diante dos olhos dele e não se podia esperar nada de novo. Certa vez, ele pensou que era como um barquinho de plástico que navegaria para sempre, sem incidentes, até que finalmente afundasse, o que seria um alívio secreto para todos.

Mas, nesse mundo escuro em que ele agora vivia, coisas feias, coisas surpreendentes e de vez em quando coisas assombrosas caíam em cima dele constantemente; ele não podia confiar em nada. Como os danos deliberados e cruéis a seu cefalocromoscópio Altec, em torno do qual ele construiu a parte prazerosa de sua vida, a parte do dia em que todos relaxavam e se acalmavam. Não tinha sentido alguém destruir isso, se visto racionalmente. Mas não havia muito em meio a essas longas sombras escuras da noite que fosse verdadeiramente racional, pelo menos no sentido estrito. O ato misterioso podia ter sido cometido por qualquer um, por quase qualquer motivo. Por qualquer pessoa que ele conhecesse ou tivesse encontrado. Qualquer uma das oito dúzias de esquisitões, doidões variados, drogados fodidos, paranóicos psicóticos com ressentimentos alucinatórios demonstrados na realidade e não na fantasia. Alguém, na verdade, que ele nunca vira. Que o escolhera aleatoriamente da lista telefônica.

Ou seu amigo mais íntimo.

Talvez Jerry Fabin, pensou ele, antes de o levarem daqui. Era uma casca seca e ferrada, envenenado. Ele e seus bilhões de afídios. Culpando Donna — culpando todas as mulheres, na verdade — por “contaminarem-no”. A bicha. Mas, pensou ele, se Jerry tivesse de pegar alguém, teria sido Donna e não eu. Ele pensou: “E eu duvido de que Jerry soubesse como retirar a placa da base da unidade; ele podia tentar, mas ainda estaria ali agora, abrindo e fechando o mesmo parafuso. Ou ia tentar tirar a placa com um martelo.” De qualquer forma, se Jerry Fabin tivesse feito isso, a unidade estaria cheia de ovos de inseto, que cairiam dela. Dentro de sua cabeça, Bob Arctor sorriu de um jeito pervertido.

Pobre fodido, pensou ele, e seu sorriso íntimo desapareceu. Pobre filho-da-mãe: depois que quantidades vestigiais de metais pesados complexos entraram no cérebro dele — bom, isso acabou com ele. Mais um em uma longa linha, uma entidade melancólica entre muitas outras iguais a ele, um número quase interminável de retardados com o cérebro arruinado. A vida biológica continua, pensou ele. Mas a alma, a mente — todo o resto está morto. Uma máquina de reflexos. Como um inseto. Repetindo padrões determinados, um único padrão, agora sem parar. Adequados ou não.

É incrível que ele fosse assim, refletiu ele. Não conhecia Jerry por muito tempo. Charles Freck afirmou que antes Jerry estava muito bem. Eu precisava ver isso, pensou Arctor, para acreditar.

Talvez eu deva contar a Hank sobre a sabotagem no meu cefscópio, pensou ele. Eles iam saber de imediato o que isso implica. Mas o que podem fazer por mim? Esse é o risco que se corre quando se faz esse tipo de trabalho.

Não vale tudo isso, esse trabalho, pensou ele. Nem por todo o dinheiro da porra do planeta. Mas não era pelo dinheiro, de qualquer forma. “Como é que você faz esse troço?”, perguntou Hank a ele. O que qualquer homem, nesse tipo de trabalho, sabia sobre seus verdadeiros motivos? Tédio, talvez, o desejo de um pouco de ação. Hostilidade secreta com relação a todos em volta dele, todos os amigos, até com relação às mulheres. Ou um motivo positivo horrível: ter observado um ser humano que você amou profundamente, de quem era realmente íntimo, que abraçou e com quem dormiu, que beijou e com quem se preocupou, amparou e, acima de tudo, admirou — ver a pessoa generosa e viva arder a partir de dentro, queimar do coração para fora. Até que ficou estalando feito um inseto, repetindo uma frase sem parar. Uma gravação. O ciclo completo de uma fita.

“... Eu sei que se eu conseguisse outra dose...”

Eu ia ficar bem, pensou ele. E, ainda dizendo isso, como Jerry Fabin, quando três quartos do cérebro eram um mingau.

“... eu sei, se eu tivesse só outra dose, que meu cérebro ia se consertar sozinho.”

E aí ele teve uma idéia: o cérebro de Jerry Fabin como a fiação fodida do cefalocromoscópio: fios cortados, curto-circuito, fios torcidos, peças sobrecarregadas e imprestáveis, oscilações de corrente, fumaça e um cheiro ruim. E alguém sentado lá com um voltímetro, seguindo o circuito e murmurando: “Cara, precisa trocar um monte de resistores e condensadores” e assim por diante. E finalmente sairia de Jerry Fabin um zumbido de 60 ciclos. E eles desistiriam.

E na sala de Bob Arctor seu cefscópio de mil dólares produzido pela Altec, depois de supostamente consertado, lançaria em um pontinho na parede em cinza baço: EU SEI QUE SE CONSEGUISSE SÓ MAIS UMA DOSE...

Depois disso eles atirariam o cefscópio, destruído e sem conserto, e Jerry Fabin, destruído e sem conserto, na mesma lata de lixo.

Ah, bem, pensou ele. Quem precisa de Jerry Fabin? A não ser talvez Jerry Fabin, que antigamente imaginava projetar e montar um sistema de console som-e-TV de quase três metros como presente para um amigo, e quando indagado sobre como ia tirá-lo de sua garagem e colocar na casa do amigo, sendo tão imenso quando montado e pesando tanto, ele respondeu: “Tudo bem, cara, eu vou dobrá-lo — já comprei as dobradiças para ele — dobrar, entendeu, dobrar a coisa toda, colocar num envelope e mandar pelo correio pra ele.”

De qualquer forma, pensou Bob Arctor, não íamos ter de ficar varrendo afídios da casa depois de Jerry ter se ausentado. Ele teve vontade de rir ao pensar nisso; uma vez eles inventaram — principalmente Luckman, porque era bom nisso, divertido e inteligente — uma explicação psiquiátrica para a viagem de afídios de Jerry. Tinha a ver, naturalmente, com Jerry Fabin quando criança. Jerry Fabin, veja só, chega da escola primária um dia, com os livrinhos debaixo do braço, assoviando alegremente e, de repente, sentado na sala de jantar, ao lado da mãe, há um grande afídio, de mais de um metro de altura. A mãe está olhando para ele com afeto.

— O que está acontecendo? — pergunta o pequeno Jerry Fabin.

— Este é seu irmão mais velho — diz a mãe —, que você ainda não conhecia. Ele veio morar conosco. Eu gosto mais dele do que de você. Ele sabe fazer um monte de coisas que você não sabe.

E, a partir daí, a mãe e o pai de Jerry Fabin comparavam-no continuamente e de forma desfavorável com o irmão mais velho, que é um afídio. À medida que os dois cresceram, Jerry adquiriu aos poucos um complexo de inferioridade cada vez maior — naturalmente. Depois do secundário, o irmão recebeu uma bolsa de estudos para a universidade, enquanto Jerry foi trabalhar no posto de gasolina. Depois disso, o irmão afídio tornou-se médico ou cientista famoso, ganhou o prêmio Nobel; Jerry ainda estava girando pneus no posto de gasolina, ganhando um dólar e meio por hora. A mãe e o pai nunca deixam de lembrá-lo disso. Eles falam sem parar:

“Se ao menos você pudesse ser como o seu irmão.”

Por fim, Jerry foge de casa. Mas subconscientemente ele ainda acredita que os afídios são superiores a ele. No início, imagina que está seguro, mas começa a ver afídios em toda parte do cabelo e pela casa, porque seu complexo de inferioridade se transformou numa espécie de culpa sexual e os afídios são um castigo que ele se inflige etc.

Agora isso não parecia engraçado. Agora que Jerry tinha sido arrastado no meio da noite a pedido dos próprios amigos. Eles mesmos, todos presentes com Jerry naquela noite, decidiram fazer isso; não podia ser adiado nem evitado. Jerry, naquela noite, tinha empilhado cada maldito objeto da casa contra a porta da frente, inclusive sofás, cadeiras, a geladeira e o aparelho de TV, e depois disse a todos que um afídio gigante e superinteligente de outro planeta estava lá fora preparando-se para invadir e pegá-lo. E outros pousariam mais tarde, mesmo que ele conseguisse pegar esse. Esses afídios extraterrestres eram muito mais inteligentes do que qualquer ser humano e atravessariam as paredes, se necessário, revelando seus poderes secretos dessa maneira. Para se salvar pelo máximo de tempo possível, ele tinha de encher a casa de gás de cianeto, o que estava preparado para fazer. Como estava preparado para fazer isso? Ele já havia vedado portas e janelas. Depois propôs abrir as torneiras de água na cozinha e no banheiro, inundando a casa, dizendo que o tanque de água quente na garagem estava cheio de cianeto e não de água. Ele sabia disso havia muito tempo e estava poupando isso para o final, como uma última defesa. Todos eles se matariam, mas pelo menos se livrariam dos afídios superinteligentes.

Os amigos telefonaram para a polícia, a polícia irrompeu pela porta da frente e arrastou Jerry para a Clínica A. F. A última coisa que Jerry disse a eles foi: “Levem minhas coisas depois... levem meu casaco novo com as miçangas nas costas.” Ele tinha acabado de comprar. Era do que ele mais gostava, achava que todo o resto que possuía estava contaminado.

Não, pensou Bob Arctor, não parecia engraçado agora, e ele se perguntou por que achou graça antes. Talvez tivesse origem no medo, o medo pavoroso que todos sentiram nas últimas semanas perto de Jerry Às vezes, à noite, segundo Jerry dizia a eles, ele rondava pela casa com uma arma, sentindo a presença de um inimigo. Preparando-se para atirar primeiro, antes de ser alvejado. Isto é, os dois.

E agora, pensou Bob Arctor, eu tenho um inimigo. Ou cheguei no rabo dele: sinais dele. Outro doidão piegas em seus últimos estágios, como Jerry E quando batem os últimos estágios dessa merda, pensou ele, ela realmente bate. Melhor do que qualquer Ford ou GM especial já patrocinado no horário nobre da TV.

Uma pancada na porta do quarto.

Tocando a arma debaixo do travesseiro, ele pergunta:

— Que é?

Murmura-murmura a voz de Barris.

— Entra — disse Arctor. Ele estende a mão para acender um abajur na mesa-de-cabeceira.

Barris entrou, os olhos cintilando.

— Ainda acordado?

— Acordei com um sonho — disse Arctor. — Um sonho religioso. Nele teve um enorme estrondo de trovão. De repente os céus se abriram e Deus apareceu e a voz Dele trovejou para mim... o que diabos Ele disse mesmo?... ah, sim: “Eu estou contrariado com você, meu filho.” Ele disse. Ele estava carrancudo. Eu estava tremendo, no sonho, e olhei para cima e disse: “O que eu faço agora, Senhor?” E Ele disse: “Você deixou a pasta de dentes destampada de novo.” E depois percebi que era minha ex-mulher.

Sentando-se, Barris colocou a mão em cada um dos joelhos cobertos de couro, alisou-se, sacudiu a cabeça e confrontou Arctor. Ele parecia estar de excelente humor.

— Bom — disse ele, animado —, eu tenho uma teoria inicial sobre quem pode ter destruído sistematicamente e com maldade seu cefscópio e pode fazer isso de novo.

— Se vai dizer que foi Luckman...

— Escute — disse Barris, balançando-se de agitação. — E-e-e se eu te dissesse que previ faz semanas um defeito grave em um dos aparelhos da casa, especialmente um caro e difícil de consertar? Minha teoria anunciou que isso ia acontecer! É uma confirmação de toda a minha teoria!

Arctor olhou para ele.

Afundando lentamente, Barris reassumiu a calma e o sorriso luminoso.

— Você — disse ele, apontando.

— Acha que eu fiz isso — disse Arctor. — Estraguei meu próprio cefscópio, sem ter seguro nenhum. — O desgosto e a raiva avultaram nele. E era tarde da noite, ele precisava dormir.

— Não, não — disse Barris rapidamente, parecendo aflito. — Você está procurando pela pessoa que fez isso. Que barbarizou seu cefscópio. Essa era a frase completa que eu queria dizer, que não pude terminar.

— Você fez isso? — Desorientado, ele encarou Barris, cujos olhos estavam sombrios, numa espécie de triunfo obscuro. — Por quê?

— Quer dizer, segundo minha teoria, eu fiz — disse Barris. — Sob sugestão hipnótica, evidentemente. Com um bloqueio amnésico para eu não poder me lembrar. — Ele começou a rir.

— Mais tarde a gente fala sobre isso — disse Arctor e desligou o abajur. — Bem mais tarde.

Barris se levantou, tremendo.

— Olhe, você não entende? Eu tenho as habilidades eletrônicas e técnicas especializadas e avançadas e eu tenho acesso a ele... eu moro aqui. Mas o que não consigo entender é o meu motivo.

— Você fez isso porque é maluco — disse Arctor.

— Talvez eu tenha sido contratado por forças secretas — murmurou Barris, perplexo. — Mas quais seriam os motivos deles? Talvez para criar suspeita e problemas entre nós, para causar dissensão e nos separar, levando-nos a brigar, todos nós, sem ter certeza de em quem confiar, quem é nosso inimigo e coisas assim.

— Então eles conseguiram — disse Arctor.

— Mas por que querem fazer isso? — Barris estava falando enquanto ia para a porta; suas mãos se agitavam com urgência. — Tanto trabalho... retirar aquela placa na base, conseguir a senha para a porta da frente...

Vou ficar feliz, pensou Bob Arctor, quando conseguirmos os holo-scanners e os instalarmos em toda esta casa. Ele tocou a arma, sentiu-se tranqüilizado, depois se perguntou se devia se certificar de que ainda estava carregada. Mas então, percebeu ele, vou imaginar que o percussor sumiu ou que a pólvora foi retirada das balas e assim por diante, repetidamente, obsessivamente, como um garotinho contando rachaduras na calçada para reduzir o medo. O pequeno Bobby Arctor, voltando da escola com seus livrinhos, assustado com o desconhecido que tinha à frente.

Abaixando a mão, ele tateou na cama, prosseguindo até que os dedos tocaram a fita adesiva. Puxando, ele a tirou, com Barris ainda no quarto e olhando, dois tabletes de Substância D batizados com quaak. Levando-os à boca, ele os atirou na garganta, sem água, e depois deitou-se, suspirando.

— Cai fora — disse ele a Barris.

E dormiu.

 

 

Era necessário que Bob Arctor estivesse fora de casa por algum tempo para que ela fosse adequadamente (o que significa infalivelmente) grampeada, inclusive o telefone, embora as ligações telefônicas fossem gravadas de outro lugar. Em geral, o procedimento consistia em observar a casa envolvida até que vissem todos saírem, de forma a sugerir que não iam voltar logo. As autoridades às vezes tinham de esperar dias ou até várias semanas. Por fim, se nada mais funcionasse, arranjava-se um pretexto: os moradores eram informados de que um fumigador ou uma dessas personalidades sem importância ia aparecer por toda uma tarde e todos teriam de sair até, digamos, às 18 horas.

Mas, nesse caso, o suspeito Robert Arctor saiu obsequiosamente de casa, levando os dois amigos, para ver um cefalocromoscópio que poderiam usar até que Barris estivesse trabalhando novamente. Os três foram vistos saindo no carro de Arctor parecendo sérios e decididos. Mais tarde, em um local conveniente, que era um telefone público de um posto de gasolina, usando a grade de áudio de seu traje misturador, Fred ligaria para relatar que não haveria absolutamente ninguém em casa pelo resto do dia. Ele ouvira os três homens decidindo atravessar todo o caminho até San Diego em busca de um cefscópio barato e roubado que um cara tinha para vender por cinqüenta pratas. Uma bagatela. Esse preço valia a longa viagem de carro e todo o tempo consumido.

Além de tudo, com isso as autoridades tiveram a oportunidade de fazer alguma busca ilegal, além do que seu pessoal disfarçado fazia quando ninguém estava vendo. Eles

abriram gavetas do escritório para ver o que estava colado no fundo. Tiraram lâmpadas de luminárias para ver se surgiam centenas de tabletes. Olharam dentro de privadas para ver que tipo de pacotinhos em papel higiênico abrigavam-se fora de vista, onde a água corrente automaticamente os descarregaria. Olharam o congelador para ver se alguns pacotes de ervilhas e feijões congelados continham droga congelada, marcados dissimuladamente. Enquanto isso, os complicados holo-scanners eram montados, com os policiais sentados em vários lugares para testar os scanners. O mesmo fizeram com os dispositivos de áudio. Mas a parte do vídeo era mais importante e levou mais tempo. E é claro que os scanners não deveriam ficar visíveis. Era preciso habilidade para montá-los. Vários locais tinham de ser testados. Os técnicos que faziam isso eram bem pagos, porque, se errassem e mais tarde um holo-scanner fosse detectado por um ocupante da casa, todos os ocupantes saberiam que foram invadidos e estavam sob vigilância e moderariam suas atividades. E além disso eles às vezes arrancavam todo o sistema de varredura e o vendiam.

Fora difícil nos tribunais, refletia Bob Arctor enquanto ia para o sul pela San Diego Freeway, conseguir condenações por roubo e venda de dispositivos de detecção eletrônica instalados ilegalmente na casa de uma pessoa. A polícia só podia fazer o flagrante em outro lugar, por outra violação dos estatutos. Porém, os traficantes, em uma situação análoga, reagiam diretamente. Ele se lembrava de um caso em que um traficante de heroína, para ferrar uma garota, plantara dois pacotes de heroína no punho do ferro de passar, depois telefonou para o WE TIP, o serviço de denúncias anônimas, com uma dica sobre ela. Antes que a denúncia pudesse ser comprovada, a garota encontrou a heroína, mas, em vez de se livrar da droga, ela a vendeu. A polícia chegou, não encontrou nada, fez uma impressão vocal da denúncia telefônica e prendeu o traficante por dar informações falsas às autoridades. Fora da cadeia, o traficante visitou a garota de madrugada e quase a matou por espancamento. Quando preso e indagado por que tinha arrancado um dos olhos e quebrado os dois braços e várias costelas da garota, ele explicou que ela havia encontrado dois pacotes de heroína que pertenciam a ele, vendera-os por um bom lucro e não dividira a grana com ele. Essa, refletiu Arctor, era a mentalidade de um traficante.

Ele largou Luckman e Barris para fingir que ia roubar o cefscópio; isso não só prenderia os dois homens e evitaria que voltassem para casa enquanto continuava a instalação dos grampos como permitiria que Bob verificasse uma pessoa que não via por mais de um mês. Ele raras vezes agia desse jeito, e a garota parecia não estar fazendo nada além de injetar metanfetamina duas ou três vezes ao dia e se vender para pagar pela droga. Ela morava com o traficante, que portanto era também o cara dela. Em geral, Dan Mancher passava o dia fora, o que era bom. O traficante era também viciado, mas Arctor não conseguira saber em quê. Evidentemente numa variedade de drogas. De qualquer forma, o que quer que fosse, Dan tinha ficado estranho e perverso, imprevisível e violento. Era surpreendente que a polícia não o tivesse apanhado havia muito tempo por perturbação da paz. Talvez estivessem recebendo algum por fora. Ou, o que era mais provável, eles simplesmente não se importavam; essas pessoas viviam em uma área de cortiços, entre cidadãos idosos e outros pobres. A polícia só entrava quando ocorriam crimes graves no conjunto de prédios, estacionamentos, ruas de cascalho da Cromwell Village e de lixeiras semelhantes.

Parecia não haver nada que contribuísse mais para a imundície do que um monte de estruturas em blocos de basalto projetadas para tirar as pessoas da imundície. Ele estacionou, encontrou a escada certa fedida a urina, subiu no escuro, encontrou a porta do Prédio 4 marcada com um G. Uma lata cheia de soda cáustica Drãno estava diante da porta e ele a pegou automaticamente, imaginando que muitas crianças brincavam aqui e se lembrando, por um momento, das próprias filhas e da atitude protetora que assumira por elas durante anos. Agora estava tendo uma atitude dessas, pegando a lata. Ele bateu na porta com ela.

Rapidamente a fechadura da porta estalou e a porta se abriu, com a corrente passada por dentro; a garota, Kimberly Hawkins, espiou.

— Sim?

— Oi, e aí? — disse ele. — Sou eu, Bob.

— O que você tem aí?

— Uma lata de Drãno — disse ele.

— Tá brincando. — Ela destravou a porta de forma apática; a voz dela também era apática. Kimberly estava mal, ele podia ver: bem mal. Além disso, a garota estava com um olho roxo e o lábio cortado. E enquanto olhavam em volta, ele viu que as janelas do apartamento pequeno e bagunçado estavam quebradas. Havia cacos de vidro no chão, junto com cinzeiros virados e garrafas de Coca-Cola.

— Está sozinha? — perguntou ele.

— Tô. Dan e eu brigamos e ele saiu. — A garota, meio chicana, baixa e não muito bonita, com a pele insípida de uma viciada em bolinha, olhou para baixo cegamente e ele percebeu que a voz dela raspava quando ela falava. Algumas drogas faziam isso. E também garganta inflamada. O apartamento não devia ter aquecimento, não com as janelas quebradas.

— Ele bateu em você. — Arctor pôs a lata de Drãno numa prateleira alta, em cima de alguns romances pornôs em brochura, a maioria antiga.

— Bom, ele não estava com a faca, graças a Deus. A faca Case, que ele agora usa numa bainha no cinto. — Kimberly se sentou em uma poltrona que cuspia enchimento. — O que você quer, Bob? Eu estou na pior, de verdade.

— Quer que ele volte?

— Bom... — Ela tremeu um pouco. — Quem sabe?

Arctor foi até a janela e olhou para fora. Dan Mancher

sem dúvida apareceria cedo ou tarde: a garota era uma fonte de dinheiro e Dan sabia que ela ia precisar de doses regulares depois de que o suprimento acabasse.

— Quanto tempo você agüenta? — perguntou ele.

— Mais um dia.

— Pode conseguir em outro lugar?

— Posso, mas não tão barato.

— Qual é o problema com a sua garganta?

— Uma gripe — disse ela. — Do vento que entra aqui.

— Você devia...

— Se eu for a um médico — disse ela —, ele vai ver que estou cheia de bolinha. Não posso ir.

— Um médico não ia ligar.

— É claro que ia. — Ela o ouviu, o som do escapamento do carro, irregular e alto. — É o carro do Dan? O Ford Torino vermelho 79?

Na janela, Arctor olhou o estacionamento imundo, viu um Torino vermelho e batido parando, os canos de descarga duplos exalando fumaça escura, a porta do motorista se abrindo.

-É.

Kimberly trancou a porta: duas trancas extras.

— Ele deve estar com a faca.

— Você tem telefone?

— Não — disse ela.

— Devia ter um telefone.

A garota deu de ombros.

— Ele vai te matar — disse Arctor.

— Agora não. Você está aqui.

— Mas depois, quando eu for embora.

Kimberly voltou a se sentar e deu de ombros de novo.

Depois de alguns segundos, eles ouviram passos do lado de fora e uma batida na porta. E então Dan gritou para ela abrir a porta. Ela gritou que não e que estava com alguém ali.

— Tudo bem — gritou Dan, numa voz aguda —, vou cortar seus pneus. — Ele desceu correndo e Arctor e a garota viram pela janela quebrada juntos enquanto Dan Mancher, um cara magrelo, de cabelo curto e que parecia homossexual, acenar com uma faca, aproximar-se do carro dela, ainda gritando para ela, as palavras audíveis a todos no conjunto habitacional.

— Vou cortar seus pneus, a porra dos seus pneus! E depois vou te matar! — Ele se curvou e cortou primeiro um pneu e depois outro do Dodge velho da garota.

Kimberly de repente despertou, disparou para a porta do apartamento e começou freneticamente a abrir as várias trancas.

— Preciso parar o Dan! Ele está cortando todos os meus pneus! Eu não tenho seguro!

Arctor a deteve.

— Meu carro está aqui. — Ele não estava armado, é claro, e Dan tinha a faca Case e estava descontrolado. — Pneus não são...

— Meus pneus! — Guinchando, a garota lutava para abrir a porta.

— E o que ele quer que você faça — disse Arctor.

— Lá embaixo. — Ofegou Kimberly. — Podemos telefonar para a polícia... eles têm telefone. Me deixa sair! — Ela o afastou com uma força tremenda e conseguiu abrir a porta.

— Vou ligar para a polícia. Meus pneus! Um deles é novo!

— Eu vou com você. — Ele a agarrou pelo ombro; ela tropeçou na frente dele na escada e ele mal conseguiu acompanhá-la. Ela já havia alcançado o apartamento seguinte e estava batendo na porta.

— Abra, por favor! — gritou ela. — Por favor, quero chamar a polícia! Por favor, me deixe ligar para a polícia!

Arctor se colocou atrás dela e bateu.

— Precisamos usar seu telefone — disse ele. — E uma emergência.

Um idoso, vestindo suéter cinza, calças formais com vinco e gravata, abriu a porta.

— Obrigado — disse Arctor.

Kimberly entrou, correu ao telefone e discou para a telefonista. Arctor ficou parado de frente para a porta, esperando que Dan aparecesse. Não havia qualquer som agora, a não ser de Kimberly balbuciando com a telefonista: um relato deturpado, algo sobre uma briga a respeito de um par de botas que valia sete dólares.

— Ele disse que eram dele porque eu comprei para ele no Natal — ela tagarelava —, mas eram minhas porque eu paguei por elas e depois ele começou a pegá-las e eu arranhei as costas delas com um abridor de latas, então ele... — ela se interrompeu; depois, assentindo: — Tudo bem, obrigada. Sim, vou esperar.

O idoso olhou para Arctor, que olhou para ele. No cômodo ao lado, uma senhora idosa de vestido estampado observava em silêncio, o rosto enrijecido de medo.

— Deve ser ruim para vocês — disse Arctor aos dois idosos.

— Acontece o tempo todo — disse o velho. — Nós ouvimos esses dois a noite toda, noite após noite, brigando, e ele dizendo o tempo todo que vai matá-la.

— Devíamos ter voltado para Denver — disse a idosa. — Eu lhe disse isso, devíamos ter voltado para lá.

— Essas brigas horríveis — disse o idoso. — E coisas quebrando e o barulho. — Ele olhou para Arctor, magoado, talvez apelando por ajuda, ou talvez compreendendo. — Sem parar, o tempo todo, e depois, o que é pior, sabe que toda vez...

— Sim, conte a ele — instou a idosa.

— O que é pior — disse o idoso com dignidade — é que toda vez que saímos, sempre que vamos fazer compras ou vamos ao correio, pisamos em... sabe no quê, o que os cachorros fazem.

— Os cachorros fazem — disse a idosa, indignada.

O carro da polícia chegou. Arctor depôs como testemunha, sem se identificar como agente da lei. O policial pegou o depoimento dele e tentou pegar o de Kimberly, como parte queixosa, mas o que ela dizia não fazia sentido; ela tagarelava repetidamente sobre as botas e por que as pegara, o quanto significavam para ela. O policial, sentado com a prancheta e o papel, olhou uma vez para Arctor e considerou-o com uma expressão fria que Arctor não conseguiu interpretar, mas de que não gostou nem um pouco. O policial por fim aconselhou Kimberly a instalar um telefone e ligar se o suspeito voltasse e causasse mais algum problema.

— Anotou os pneus cortados? — disse Arctor enquanto o policial ia embora. — Examinou o veículo no estacionamento e anotou pessoalmente o número de pneus cortados, os invólucros rasgados com um instrumento cortante, feito recentemente... ainda está escapando ar?

O policial olhou de novo para ele com a mesma expressão e saiu sem fazer comentário.

— É melhor você não ficar aqui — disse Arctor a Kimberly. — Ele devia ter te aconselhado a dar o fora. Devia ter perguntado se havia outro lugar para você ficar.

Kimberly se sentou no sofá puído da sala imunda, os olhos apáticos novamente, agora que acabara o esforço inútil de tentar explicar sua situação ao investigador. Ela deu de ombros.

— Eu te levo a algum lugar — disse Arctor. — Sabe de algum amigo onde possa...

— Dá o fora daqui, porra! — disse Kimberly abruptamente, com rancor, num tom de voz parecido com o de Dan Mancher, só que mais áspero. — Dá o fora daqui, Bob

Arctor... Cai fora, cai fora, que merda! Vai cair fora? — A voz dela se elevou e depois se interrompeu de desespero.

Ele saiu e desceu lentamente a escada, degrau por degrau. Quando chegou à base, algo bateu e rolou atrás dele: era a lata de Drãno. Ele a ouviu fechar a porta, uma tranca após a outra. Trancas inúteis, pensou ele. Tudo inútil. Como pode ficar assim, sem sair do apartamento? E Dan Mancher ia esfaqueá-la como fez com os pneus. E — lembrando-se da queixa dos velhos do andar de baixo — ela provavelmente vai dar o primeiro passo e depois cair morta na merda de cachorro. Ele se sentia como se risse histericamente das prioridades dos velhos; não só tinham um doidão ferrado no andar de cima noite após noite espancando e ameaçando matar, e talvez logo matasse, uma jovem viciada que se prostituía e que sem dúvida tinha inflamado a garganta, se não muito mais além disso, mas além disso...

Enquanto levava Luckman e Barris de carro para o norte, ele riu em voz alta.

— Merda de cachorro — disse ele. — Merda de cachorro.

- Humor sobre merda de cachorro, pensou ele, veja se dá para entender isso! Merda de cachorro engraçada.

— É melhor trocar de pista e passar aquele caminhão da Safeway — disse Luckman. — O grandalhão mal está andando.

Ele passou para outra pista, à esquerda, e ganhou velocidade. Mas então, quando tirou o pé do acelerador, o pedal desabou no carpete do piso, ao mesmo tempo o motor roncou furiosamente e o carro disparou para a frente numa velocidade louca e enorme.

— Reduz! — gritaram Luckman e Barris juntos.

Agora o carro tinha chegado a quase 160 por hora; à frente, avultou-se uma van VW. O pedal do acelerador estava morto: não voltava e não fazia nada. Luckman, que estava sentado ao lado dele, e Barris, atrás, atiraram os braços para cima, por instinto. Arctor girou o volante e passou pela van VW, à esquerda, onde havia um espaço limitado antes de um Corvette preenchê-lo. O Corvette buzinou e eles ouviram o freio guinchar. Agora Luckman e Barris estavam gritando; Luckman de repente estendeu a mão e desligou a ignição; enquanto isso, Arctor passava a marcha para ponto morto. O carro reduziu e ele freou, passou para a pista à direita e depois, com o motor finalmente morto e a transmissão interrompida, seguiu até um recuo de emergência e foi reduzindo até parar.

O Corvette, já bem distante na rua, ainda buzinava sua indignação. E agora o caminhão gigantesco da Safeway passou por eles e por um momento ensurdecedor soou sua própria buzina de alerta.

— Que diabos aconteceu? — disse Barris.

Arctor, com as mãos, a voz e todo o resto tremendo, disse:

— O recuo de mola no cabo do acelerador. Deve ter travado ou quebrou. — Ele apontou para baixo. Todos olharam para o pedal, que ainda estava encostado no piso. O motor tinha girado até a rotação máxima, o que para esse carro era considerável. Não atingira sua mais alta velocidade na estrada, provavelmente bem mais de 160. E, percebeu ele, embora ele tivesse pisado nos freios por reflexo, o carro só reduziu.

Silenciosamente, os três saíram para a pista de emergência e ergueram o capô. Uma fumaça branca saía da tampa do óleo e também de baixo. E a água quase fervente chiava do bico transbordante do radiador.

Luckman estendeu a mão para o motor e apontou.

— Não foi a mola — disse ele. — É a união do pedal com o carburador. Está vendo? Está partida. — A haste comprida estendia-se despropositadamente no bloco, pendurada impotente e inútil com o parafuso ainda no lugar. — Então o pedal do acelerador não voltou quando você tirou o pé.

Mas... — Ele examinou o carburador por um momento, com o rosto franzido.

— Tem um grampo de segurança no carburador — disse Barris, sorrindo e mostrando os dentes que pareciam sintéticos. — Este sistema, quando as peças de transmissão...

— Por que se partiu? — interrompeu Arctor. — Este parafuso não devia prender a porca? — Ele passou o dedo no parafuso. — Como isso foi quebrar desse jeito?

Como se não estivesse ouvindo, Barris continuou:

— Se por qualquer motivo a união cede, o motor deve morrer. Como fator de segurança. Mas, em vez disso, ele girou completamente. — Ele se curvou para dar uma olhada melhor no carburador. — Este parafuso foi totalmente solto — disse ele. — O parafuso da transmissão. Então, quando a haste se soltou, a marcha foi para outro lado, para cima, em vez de ir para baixo.

— Como isso pôde acontecer? — disse Luckman em voz alta. — O parafuso pode se soltar sozinho desse jeito, por acidente?

Sem responder, Barris pegou o canivete, abriu a pequena lâmina e começou lentamente a apertar o parafuso de ajuste da transmissão. Ele contou em voz alta. Vinte voltas do parafuso para colocá-la no lugar.

— Para afrouxar o parafuso e a porca que seguram as hastes de transmissão do acelerador — disse ele — seria necessária uma ferramenta especial. Na verdade, duas. Acho que vou levar uma meia hora para colocar isso no lugar. Eu tenho as ferramentas na minha caixa.

— Sua caixa de ferramentas ficou em casa — disse Luckman.

— Sim. — Barris assentiu. — Então vamos ter de ir até um posto de gasolina e pegar a deles emprestada ou trazer o reboque deles aqui. Sugiro que eles venham aqui para olhar antes de dirigir este carro de novo.

— Ei, cara — disse Luckman em voz alta —, isso aconteceu por acidente ou foi feito de propósito? Como o cefscópio?

Barris ponderou, ainda dando seu sorriso ardiloso e triste.

— Não posso dizer com certeza. Normalmente, a sabotagem em um carro, o dano maldoso para causar um acidente... — Ele olhou para Arctor, os olhos invisíveis por trás dos óculos de sol verdes. — Nós quase batemos. Se aquele Corvette estivesse vindo mais rápido... quase não teve espaço. Você devia ter desligado a ignição assim que percebeu o que estava acontecendo.

— Eu coloquei o carro em ponto morto — disse Arctor.

— Quando percebi. Por um segundo não consegui pensar em nada. — Ele pensou: se tivesse sido o freio, se o pedal de freio tivesse caído, eu teria entendido tudo antes, saberia melhor o que fazer. Isso era tão... estranho.

— Alguém fez isso de propósito — disse Luckman em voz alta. Ele andou em círculos, furioso, investindo com os dois punhos no ar. — MAS QUE PORRA! Nós quase morremos! Eles quase foderam a gente!

Barris, parado, visível ao lado da via expressa com todo o tráfego pesado zumbindo por eles, pegou uma caixinha de chifre com tabletes de morte e tomou vários. Ele passou a caixinha para Luckman, que tomou alguns, depois a passou para Arctor.

— Talvez seja isso que esteja fodendo com a gente — disse Arctor, recusando, irritado. — Acabando com nosso cérebro.

— A droga não pode desparafusar uma transmissão de acelerador e o ajuste de carburador — disse Barris, ainda estendendo a caixinha para Arctor. — É melhor tomar pelo menos três... são de primeira, mas suaves. Batizadas com um pouco de metanfetamina.

— Sai pra lá com essa porcaria de caixinha — disse Arctor. Ele sentia, em seu cérebro, uma cantoria de vozes altas: uma música horrível, como se a realidade em torno dele tivesse ficado azeda. Agora tudo — os carros em alta velocidade, os dois homens, seu próprio carro com o capô erguido, o cheiro de fumaça, a luz quente e forte do meio-dia —, tudo tinha certa rancidez, como se o mundo dele tivesse apodrecido, em vez de qualquer outra coisa. Mas nem por isso ficou tudo perigoso ou assustador, mais como se apodrecesse, a visão, o som e o odor fedorentos. Deixou-o enjoado e ele fechou os olhos e teve arrepios.

— Está sentindo cheiro de quê? — perguntou Luckman. — Um cheiro estranho, cara? Alguns motores têm esse cheiro...

— Merda de cachorro — disse Arctor. Ele podia sentir o fedor, de dentro da área do motor. Curvando-se, ele fungou, sentindo distintamente seu cheiro, e mais forte. Estranho, pensou ele. Mas que porra de coisa esquisita. — Estão sentindo cheiro de merda de cachorro? — perguntou ele a Barris e Luckman.

— Não — disse Luckman, olhando para ele. Para Barris, ele disse: — Tem algum psicodélico nessa droga?

Barris, sorrindo, sacudiu a cabeça.

Enquanto estava curvado sobre o motor quente, sentindo cheiro de merda de cachorro, Arctor no fundo sabia que era uma ilusão, não havia cheiro de merda de cachorro. Mas ele ainda sentia. E agora ele via, espalhadas pelo bloco do motor, especialmente embaixo das tampas, manchas marrons escuras, uma substância feia. Óleo, pensou ele. Óleo vazado, óleo jogado: pode ser que a junta de vedação esteja vazando. Mas ele precisava estender a mão e tocar para ter certeza, para fortalecer sua convicção racional. Seus dedos encontraram a mancha marrom pegajosa e recuaram rapidamente. Tinha passado os dedos em merda de cachorro. Havia uma camada de merda de cachorro em todo o bloco, por cima dos cabos. Depois ele percebeu que também estava no anteparo contra fogo. Olhando para cima, ele a viu no revestimento à prova de som do capô. O fedor o dominou e ele fechou os olhos, tremendo.

— Ei, cara — disse Luckman animadamente, segurando Arctor pelo ombro. — Está tendo um flashback, não é?

— Ingressos grátis para o teatro — concordou Barris e riu.

— É melhor se sentar — disse Luckman; ele guiou Arctor até o banco do motorista e o colocou sentado ali. — Cara, você está mesmo doidão. Fica sentado aqui. Relaxa. Ninguém morreu e agora estamos prevenidos. — Ele fechou a porta ao lado de Arctor. — Estamos bem agora, tá entendendo?

Barris apareceu na janela e disse:

— Quer um pedaço de merda de cachorro, Bob? Para mascar?

Abrindo os olhos, sentindo frio, Arctor o encarou. As lentes de vidro verde de Barris não diziam nada, nenhuma pista. Será que ele realmente disse aquilo?, perguntou-se Arctor. Ou foi invenção da minha cabeça?

— Que foi, Jim? — disse ele.

Barris começou a rir. E riu sem parar.

— Deixa ele em paz, cara — disse Luckman, empurrando Barris para trás. — Vai se foder, Barris!

Arctor disse a Luckman:

— O que ele acabou de dizer? Que diabos ele me disse exatamente?

— Eu não sei — disse Luckman. — Nem imagino metade das coisas que o Barris joga pra cima das pessoas.

Barris ainda sorria, mas agora em silêncio.

— Barris, seu canalha — disse Arctor a ele. — Eu sei que você fez isso, destruiu o cefscópio e agora o carro. Você fez essa porra, seu filho-da-puta maluco e pervertido. — Ele mal ouvia a própria voz, mas, enquanto gritava para o sorridente Barris, aumentava o fedor medonho de merda de cachorro. Ele desistiu de tentar falar e ficou sentado ali, ao volante inútil de seu carro, esforçando-se para não vomitar. Graças a Deus Luckman veio conosco, pensou ele. Ou hoje tudo estaria acabado para mim. Tudo estaria acabado nas mãos desse nojento fodido, esse puto que mora na mesma casa que eu.

— Relaxa, Bob — a voz de Luckman chegou a ele filtrada por ondas de náusea.

— Eu sei que foi ele — disse Arctor.

— Mas que droga, por quê? — Luckman parecia estar dizendo ou tentando dizer. — Desse jeito, ele ia se matar também. Por quê, cara? Por quê?

O cheiro de Barris ainda sorrindo sobrepujou Arctor e ele vomitou no painel do carro. Mil vozinhas tiniam, irradiando para ele, e o cheiro finalmente passou. Umas mil vozinhas gritando sua estranheza: ele não as entendia, mas pelo menos conseguia enxergar e o cheiro tinha desaparecido. Ele tremeu e pegou o lenço no bolso.

— O que tinha naqueles tabletes que você nos deu? — perguntou Luckman para o sorridente Barris.

— Merda, eu também tomei — disse Barris —, e você também. E não deu bad trip na gente. Então não foi a droga. E foi cedo demais. Como pode ter sido a droga? O estômago não pode absorver...

— Você me envenenou — disse Arctor furiosamente, sua visão quase nítida, a mente clareando, a não ser pelo medo. Agora o medo tinha começado, uma reação racional, em vez de insana. Medo do que quase aconteceu, do que isso significava, medo, medo terrível, medo de Barris sorridente e da porra da caixinha dele e das explicações dele e das coisas assustadoras que ele dizia e do jeito e dos hábitos e dos costumes e das idas e vindas dele. E da denúncia anônima por telefone que ele fez para a polícia sobre Robert Arctor, do dispositivo vagabundo que ele usou para esconder a voz e que funcionara muito bem. Só que tinha de ser Barris.

Bob Arctor pensou: O puto está no meu pé.

— Nunca vi ninguém ficar chapado tão rápido — estava dizendo Barris —, mas...

— Está bem agora, Bob? — disse Luckman. — Vamos limpar o vômito, não se preocupe. É melhor ir para o banco traseiro. — Ele e Barris abriram a porta do carro; Arctor deslizou para fora, tonto. A Barris, Luckman disse: — Tem certeza de que não deu nada a ele?

Barris ergueu as mãos para o alto, em protesto.

 

 

Informação. O que mais teme um agente disfarçado da Narcóticos não é levar um tiro nem apanhar, mas cometer o erro de tomar uma grande dose de alguma droga psicodélica que vai rolar um filme interminável de terror em sua cabeça pelo resto da vida, ou que vá levar um pico de uma dose mista, metade heroína e metade Substância D, ou as duas coisas, mais um veneno, como a estricnina, que quase vai matá-lo completamente, de modo que pode ocorrer o seguinte: vício por toda a vida, filme de terror por toda a vida. Ele vai afundar numa existência de agulha-e-colher ou quicar nas paredes de um hospital psiquiátrico, ou, o pior de tudo, numa clínica federal. Ele vai tentar se livrar dos afídios no corpo dia e noite ou jamais entenderá por que não consegue mais encerar um chão. E tudo isso vai acontecer deliberadamente. Alguém deduziu o que ele estava fazendo e depois o pegou. E eles o pegaram desse jeito. Da pior maneira de todas: com o troço que vendem e que ele queria comprar.

O que significava, considerou Bob Arctor enquanto dirigia cautelosamente para casa, que traficantes e agentes da Narcóticos sabiam o que as drogas de rua faziam com as pessoas. E concordavam com isso.

Um mecânico do posto Union, perto de onde eles estacionaram, havia chegado num reboque, foi até o carro e finalmente o consertou, a um custo de trinta dólares. Não parecia haver mais nada de errado, só que o mecânico examinou a suspensão frontal esquerda por algum tempo.

— Tem alguma coisa errada aí? — perguntou Arctor.

— Parece que o senhor vai ter problemas quando fizer uma curva fechada — disse o mecânico. — Ele não dá guinada nenhuma?

O carro não dava guinadas, não que Arctor tenha percebido. Mas o mecânico se recusou a dizer mais; só ficou cutucando a mola espiral, a junta de esfera e o pára-choque cheio de óleo. Arctor pagou ao mecânico e o reboque partiu; depois ele voltou ao próprio carro, junto com Luckman e Barris — os dois agora no banco de trás e partiu para o norte, em direção ao Condado de Orange.

Enquanto dirigia, Arctor ruminou sobre outras convenções irônicas na cabeça de agentes da Narcóticos e traficantes. Vários agentes que ele conhecia bancavam traficantes em seu trabalho sob disfarce e acabavam vendendo haxixe e depois, às vezes, até heroína. Era um bom disfarce, mas aos poucos também levava o agente a aumentar o lucro, bem acima de seu salário oficial, além do que ele ganhava quando ajudava a flagrar e apreender uma partida de bom tamanho. Além disso, os agentes se aprofundavam cada vez mais no uso de suas próprias drogas, em todo o jeito de viver, como rotina; eles se tornavam traficantes viciados e ricos, além de X-9, e depois de um tempo alguns começavam a deixar suas atividades policiais em favor do tráfico, integralmente. Mas acontecia também de alguns traficantes, para ferrar os inimigos ou quando esperavam um flagra iminente, começarem a agir como X-9 e seguirem por aí, acabando como uma espécie de dedos- duros disfarçados não-oficiais. Era tudo muito sombrio. O mundo das drogas era um mundo sombrio para todos. Para Bob Arctor, por exemplo, agora se tornara sombrio: nessa tarde, pela San Diego Freeway, enquanto ele e os dois amigos estavam a segundos de ser mortos, as autoridades, em seu nome, tinham — assim ele esperava — grampeado devidamente sua casa e, se isso foi feito mesmo, então de agora em diante ele estaria seguro contra o tipo de coisa que acontecera hoje. Era uma sorte que pudesse haver uma diferença entre ele terminar envenenado ou levar um tiro, ou acabar viciado ou morto se comparado a pegar o inimigo, pegar quem quer que estivesse atrás dele e quem hoje quase o matou. Depois que os holo-scanners estivessem instalados, refletiu ele, haveria muito pouca sabotagem ou ataques contra ele. Ou, pelo menos, sabotagem e ataques bem-sucedidos.

Essa era a única idéia que o tranqüilizava. O culpado, refletiu ele enquanto dirigia com o maior cuidado possível no trânsito pesado de final de tarde, pode desaparecer quando ninguém está procurando — ele ouviu dizer isso e talvez fosse verdade. O que com toda certeza era verdade, porém, era que o culpado fugia, fugia como o diabo da cruz e tomava muitas precauções repentinas quando alguém o perseguia: alguém real e especializado e, ao mesmo tempo, escondido. E muito perto. Tão perto; pensou ele, quanto o banco traseiro do carro. Que, se estiver com a grotesca pistola .22 de ação simples e fabricação alemã e seu suposto silenciador vagabundo igualmente grotesco e risível, e Luckman tiver ido dormir como sempre, pode abrir um buraco a bala no meu crânio e eu estarei morto como Bobby Kennedy, que morreu de ferimentos a bala de mesmo calibre — um buraquinho pequeno assim.

E não só hoje, mas todo dia. E toda noite.

Só que, quando eu verificar os cilindros de armazenagem dos holo-scanners, vou saber muito em breve o que todos na minha casa estão fazendo, quando fazem e provavelmente até o porquê, inclusive eu. Vou ver a mim mesmo, pensou ele, levantando-me à noite para mijar. Vou ver todos os cômodos 24 horas por dia... Embora com algum atraso. Não vai me adiantar muito se os holo-scanners me pegarem levando uma dose de alguma droga desorientadora roubada pelos Hells Angels de um arsenal militar e colocada no meu café; outra pessoa da academia que tateie pelos cilindros de armazenagem terá de me ver me debatendo, incapaz de ver ou saber onde ou o que eu sou. Será uma visão tardia que eu nunca precisarei ter. Outra pessoa terá de fazer por mim.

Luckman disse:

— O que será que rolou em casa enquanto estivemos fora o dia todo? Sabe como é, essas provas que você conseguiu de alguém te ferrando são bem ruins, Bob. Tomara que ainda estejam lá quando voltarmos para casa.

— É — disse Arctor. — Não acho isso. E não conseguimos um cefscópio. — Ele fez com que a voz parecesse tomada de resignação.

Barris disse, numa voz surpreendentemente animada:

— Eu não lamentaria tanto.

Com raiva, Luckman disse:

— Não lamentaria? Meu Deus, eles podem ter quebrado e roubado tudo o que temos. Tudo o que o Bob tem, quer dizer. E matado ou pisado nos bichos. Ou...

— Eu deixei uma surpresinha — disse Barris — para quem entrasse na casa quando saímos hoje. Aperfeiçoei hoje de manhã cedo... Trabalhei nela até conseguir. Uma surpresa eletrônica.

Bruscamente, escondendo sua preocupação, Arctor disse:

— Que tipo de surpresa eletrônica? Na minha casa, Jim, você não pode começar a armar...

— Calma, calma — disse Barris. — Como nossos amigos alemães diriam, leise. Isso significa fica frio.

— O que é?

— Se a porta da frente for aberta — disse Barris — na nossa ausência, meu gravador cassete vai começar a gravar. Está debaixo do sofá. Tem uma fita de duas horas. Eu coloquei três microfones Sony onidirecionais em três diferentes...

— Devia ter me contado — disse Arctor.

— E se eles entrarem pela janela? — disse Luckman. — Ou pela porta dos fundos?

— Para aumentar a probabilidade de eles entrarem pela porta da frente — continuou Barris —, em vez de por meios pouco comuns, deixei providencialmente a porta da frente destrancada.

Depois de uma pausa, Luckman soltou um riso abafado.

— Imagine que eles não saibam que está destrancada? — disse Arctor.

— Eu coloquei um bilhete — disse Barris.

— Tá de sacanagem comigo!

— É — disse Barris, logo em seguida.

— Está sacaneando a gente ou não? — disse Luckman. — Não posso confiar em você. É sacanagem dele, Bob?

— Vamos ver ao chegar — disse Arctor. — Se houver um bilhete na porta e ela estiver destrancada, vamos saber se ele está de sacanagem.

— Eles provavelmente arrancariam o bilhete — disse Luckman —, depois iriam roubar e barbarizar na casa, e depois trancariam a porta. Então não íamos saber. Nunca vamos saber. Ter certeza. É uma área cinzenta de novo.

— E claro que eu estou brincando! — disse Barris, com vigor. — Só um psicótico faria isso, deixar a porta da frente da casa destrancada e um bilhete na porta.

Virando-se, Arctor disse a ele:

— O que você escreveu no bilhete, Jim?

— Para quem é o bilhete? — Luckman fez coro. — Eu nem imaginava que você sabia escrever.

Com condescendência, Barris disse:

— Eu escrevi: “Donna, entre, a porta está destrancada. Nós...” — Barris se interrompeu. — É para Donna — concluiu ele, mas não com tranqüilidade.

— Ele fez isso — disse Luckman. — Ele fez mesmo. Tudo isso.

— Desse jeito — disse Barris, tranqüilo novamente — vamos saber quem anda aprontando, Bob. E é de suma importância.

— A não ser que eles roubem a fita quando roubarem o sofá e todo o resto — disse Arctor. Ele estava pensando rapidamente se isso era mesmo um problema, esse exemplo a mais do gênio eletrônico atrapalhado de Barris, o gênio de jardim-de-infância. Que droga, concluiu Arctor, eles vão encontrar os microfones nos primeiros dez minutos e localizar o gravador. Vão saber exatamente o que fazer. Vão apagar a fita, rebobiná-la, deixar como estava, deixar a porta destrancada e o bilhete nela. Na verdade, talvez a porta destrancada vá facilitar o trabalho deles. Que merda o Barris!, pensou ele. Planos ótimos de gênio que funcionam maravilhosamente para ferrar o universo. Ele deve ter se esquecido de ligar o gravador na tomada da parede. E claro que, se descobrirem que estava desplugado...

Ele vai raciocinar que isso prova que alguém esteve lá, percebeu ele. Vai entender e tagarelar sobre isso por dias. Alguém entrou, achou o dispositivo e espertamente o desplugou. Então, concluiu Arctor, se eles o encontrarem desplugado, espero que pensem em plugar, e não só isso, que o gravador funcione corretamente. Na verdade, o que eles devem fazer é testar todo o sistema de detecção deles, repassar todo o ciclo, como sempre fazem, ter absoluta certeza de que funciona com perfeição e depois rebobinar e deixar uma tabula rasa, uma tabuleta em que nada está inscrito, mas na qual algo certamente acusaria que alguém

— eles mesmos, por exemplo — entrou na casa. Caso contrário, as suspeitas de Barris não vão acabar nunca.

Enquanto dirigia, Arctor continuou sua análise teórica da situação por meio de um segundo exemplo bem estabelecido. Eles tinham aprendido e exercitado em seus próprios bancos de memória durante o treinamento policial na academia. Ou ele lera nos jornais.

Informação. Uma das formas mais eficazes de sabotagem industrial ou militar se limita a danos que jamais podem ser inteiramente provados — ou provados de alguma forma — e que foram propositais. É como um movimento político invisível, talvez não estivesse ali. Se uma bomba é conectada à ignição de um carro, obviamente houve um inimigo, se um prédio público ou uma sede política é explodida, então há um inimigo político. Mas se ocorre um acidente ou uma série de acidentes, se o equipamento simplesmente deixa de funcionar, se ele parece ter defeito, em especial de forma lenta, por um período de tempo natural, com várias pequenas falhas e defeitos — então a vítima, seja uma pessoa, um partido ou um país, não pode tomar posição para se defender.

Na realidade, especulava Arctor enquanto dirigia bem lentamente pela via expressa, a pessoa começa a achar que está paranóica e que não tem inimigos, ela duvida de si mesma. Seu carro quebrou normalmente, ela teve azar. E isso a aniquila mais do que qualquer coisa que possa ser identificada. Porém, leva mais tempo. A pessoa ou as pessoas que estavam fazendo isso devem fazer um trabalho porco e fazem uso do acaso por um longo intervalo. Enquanto isso, se puder deduzir quem eles são, a vítima tem uma probabilidade maior de pegá-los — certamente maior do que, digamos, se atirarem nele com um rifle com mira telescópica. Essa é a vantagem dele.

Ele sabia que cada nação do mundo treina e manda uma quantidade de agentes para afrouxar parafusos aqui, descascar fios ali, cortar fios e começar pequenos incêndios, perder documentos — pequenos infortúnios. Uma bola de chiclete dentro de uma copiadora Xerox em uma agência do governo pode destruir um documento insubstituível e vital: em vez de sair uma cópia, o original é apagado. Sabonete e papel higiênico demais, como sabiam os Yippies dos anos 60, podem acabar com toda a rede de esgoto de um prédio comercial e obrigar todos os funcionários a se ausentarem por uma semana. Uma bolinha de naftalina no tanque de gasolina de um carro desgasta o motor duas semanas depois, quando ele está em outra cidade, e não deixa no combustível contaminantes que possam ser analisados. Qualquer emissora de rádio e TV pode sair do ar por um bate-estacas que acidentalmente corta um cabo de microondas ou um cabo de força. E assim por diante.

Antigamente, muitos da classe aristocrática sabiam de empregadas, jardineiros e outros de seus serviçais: um vaso quebrado aqui, um objeto de família inestimável que escorrega da mão de um mal-humorado...

“Por que você fez isso, Rastus Brown?”

“Ah, madame, desculpa...” e não havia remédio ou muito pouco. Do rico proprietário de uma casa, de um escritor político impopular com o regime, uma pequena nação nova erguendo o punho para os EUA ou a URRS...

Certa vez, a esposa de um embaixador americano na Guatemala se vangloriou publicamente de que o marido, “munido de uma pistola”, tinha derrubado o governo de esquerda daquele pequeno país. Depois de sua queda súbita, o embaixador, destituído do cargo, foi transferido para uma pequena nação asiática e, enquanto dirigia seu carro esporte, descobriu de repente um lento caminhão de feno saindo de uma estrada vicinal diretamente na frente dele. Um minuto depois, nada restava do embaixador, a não ser pedaços espalhados. Portar uma pistola, levantar toda a CIA a um chamado dele não lhe fizeram bem algum. A esposa não teceu loas sobre isso.

“Hein, fazer o que?”, provavelmente disse o proprietário do caminhão de feno às autoridades locais. “Fazer o que, seu moço? Foi uma pena...”

Ou como a própria ex-mulher, lembrou Arctor. Na época em que ele era investigador de uma seguradora (“Seus vizinhos de corredor bebem muito?”), ela reclamava de ele preencher seus relatórios tarde da noite, em vez de se emocionar só de vê-la. Perto do fim do casamento, ela aprendeu a fazer essas coisas durante o período de trabalho à noite, como queimar a mão enquanto acendia um cigarro, colocar alguma coisa no olho, limpar o escritório dele ou procurar interminavelmente por um pequeno objeto em toda parte ou perto da máquina de escrever dele. No início, ele parava de trabalhar, ressentido, e sucumbia à emoção de vê-la, mas depois ele bateu com a cabeça na cozinha enquanto pegava a pipoqueira e encontrou uma solução melhor.

— Se eles matarem nossos bichos — estava dizendo Luckman —, vou detonar todos eles. Vou pegar todos eles. Vou contratar um profissional de Los Angeles, como um bando dos Panteras.

— Eles não vão fazer isso — disse Barris. — Não se ganha nada machucando animais. Os animais não fizeram nada.

— E eu fiz? — perguntou Arctor.

— Evidentemente é o que eles pensam — disse Barris.

Luckman disse:

— Se eu soubesse que era inofensivo, eu mesma teria matado. Lembra?

— Acontece que ela era careta — disse Barris. — A garota nunca ficava ligada e tinha muita grana. Lembra do apartamento dela? Os ricos não sabem o valor da vida. E outra coisa. Lembra de Thelma Kornford, Bob? A baixinha dos peitões? A que não usava sutiã e a gente costumava ficar sentado, olhando os mamilos dela? Ela veio a nossa casa para pedir que a gente matasse aquela libélula para ela, lembra? E quando explicamos...

Ao volante de seu carro lento, Bob Arctor se esqueceu de questões teóricas e fez uma reprise de um momento que impressionara todos eles: a garota careta, bonita e elegante com o suéter de gola rulê, calça boca-de-sino e peitos saltitantes que queria que eles matassem um grande inseto inofensivo que na verdade fazia o bem livrando-a dos mosquitos — e em um ano em que surgira um surto de encefalite no Condado de Orange — e quando eles viram o que era e explicaram, ela disse palavras que, para eles, tornaram-se uma paródia do mal a ser temida e desprezada: SE EU SOUBESSE QUE ERA INOFENSIVO EU MESMA O TERIA MATADO.

 

Isso tinha resumido para eles (e ainda resumia) o que detestavam nos inimigos caretas, pressupondo-se que tivessem inimigos; de qualquer modo, uma pessoa como a bem-educada-com-todas-as-vantagens-financeiras Thelma Kornford tornou-se repentinamente uma inimiga por ter declarado isso, e a partir daí eles desistiram desse dia, saíram do apartamento dela e voltaram à própria casa desarrumada, para perplexidade dela. O abismo entre o mundo deles e o dela tinha se manifestado, embora eles tivessem refletido muito sobre como trepar com ela, e continuou. O coração dela, refletiu Bob Arctor, era uma cozinha vazia: ladrilhos no piso, canos de água e um escorredor de louça com superfícies claras e escovadas e um copo abandonado na beira da pia, com que ninguém se importava.

Numa época anterior, ele pegou somente um trabalho sob disfarce em que tomou o depoimento de um casal de caretas ricos e de classe alta cuja mobília fora roubada na ausência deles, evidentemente por viciados; naquela época, as pessoas ainda moravam em áreas onde perambulavam bandos de ladrões que roubavam o que podiam, deixando pouca coisa. Bandos profissionais, com walkie-talkies nas mãos de olheiros que observavam a alguns quilômetros na rua, esperando que os otários voltassem. Ele se lembrava do homem e da esposa dizendo: “As pessoas que invadem sua casa e levam sua TV em cores são do mesmo tipo de criminosos que matam animais ou destroem obras de arte inestimáveis.” Não, explicou Bob Arctor, parando de registrar o depoimento, o que os faz acreditar nisso? De acordo com a experiência dele, os viciados raras vezes machucam animais. Ele testemunhava, junkies alimentando e cuidando de animais feridos por longos períodos de tempo, enquanto que os caretas provavelmente teriam “colocado os animais para dormir”, um termo do tipo careta, se houver algum — e também um termo do velho sindicato para assassinato. Uma vez, ele viu dois doidões totalmente chapados na triste tarefa de soltar de uma janela quebrada uma gata empalada nela. Os doidões, mal sendo capazes de ver ou entender qualquer outra coisa, levaram quase uma hora soltando a gata com paciência e habilidade até ela se livrar, sangrando um pouco, todos doidões e a gata, com a gata calma nas mãos deles, um dentro da casa com Arctor, outro do lado de fora, onde estavam o rabo e o traseiro da gata. No final, a gata fora libertada sem nenhum ferimento grave e depois eles a alimentaram. Eles não sabiam de quem era a gata; evidentemente ela estava com fome, sentiu o cheiro de comida pela janela quebrada e, por fim, incapaz de acordá-los, tentou pular para dentro. Eles só perceberam quando a gata guinchou e depois se esqueceram das várias viagens e sonhos por algum tempo por causa da gata.

Quanto às “obras de arte inestimáveis”, ele não tinha certeza, porque não entendia exatamente o que isso significava. Em My Lai, durante a Guerra do Vietnã, 450 obras de arte inestimáveis foram destruídas por ordem da CIA — obras de arte inestimáveis, além de bois, frangos e outros animais não arrolados. Quando ele pensava nisso, sempre ficava meio deprimido e era difícil pensar em pinturas em museus desse jeito.

— Vocês acham — disse ele em voz alta, enquanto dirigia cuidadosamente — que quando morrermos e aparecermos diante de Deus, no Dia do Juízo Final, nossos pecados serão relacionados por ordem cronológica ou por ordem de gravidade, que pode ser em ordem crescente ou decrescente ou por ordem alfabética? Porque não quero que Deus troveje para mim quando eu morrer aos 85 anos: “Então você é aquele garotinho que roubou três garrafas de Coca do caminhão da Coca-Cola que estava parado no estacionamento dos fundos da 7-11 em 1962? Você tem muito o que explicar.”

— Acho que eles usam referências cruzadas — disse Luckman. — E só te passam um impresso de computador que totaliza uma coluna comprida que já foi compilada.

— O pecado — disse Barris, rindo — é um mito judaico- cristão ultrapassado.

Arctor disse:

— Talvez eles tenham todos os seus pecados em um barril grande de picles — ele se virou para olhar para Barris, o anti-semita —, um barril de picles kosher, e eles só o levantam e atiram todo o conteúdo de uma vez na sua cara e você fica parado ali, escorrendo pecados. Seus próprios pecados, talvez mais alguns de outra pessoa, que entraram ali por engano.

— Outra pessoa de mesmo nome — disse Luckman. — Outro Robert Arctor. Quantos Robert Arctors você acha que existem, Barris? — Ele assentiu para Barris. — Será que os computadores da CalTech nos dizem isso? E cruzam os arquivos de todos os Jim Barris também enquanto fazem isso?

Para si mesmo, Bob Arctor pensou: Quantos Bob Arctor existem? Uma idéia estranha e fodida. Pelo menos dois, que ele soubesse, pensou ele. Um chamado Fred, que ficará vigiando o outro, chamado Bob. A mesma pessoa. Será? Será que Fred é realmente Bob? Alguém sabe disso? Eu pelo menos saberia, porque sou a única pessoa no mundo que sabe que Fred é Bob Arctor. Mas, pensou ele, quem sou eu? Qual deles sou eu?

Quando eles chegaram à entrada da garagem, estacionaram e andaram cautelosamente até a porta da frente, encontraram o bilhete de Barris na porta destrancada, mas, quando abriram a porta, com cuidado, tudo parecia estar como quando saíram.

As suspeitas de Barris vieram imediatamente à tona.

— Ah — murmurou ele, entrando. Estendeu habilmente a mão para o alto da estante que ficava perto da porta e alcançou a pistola .22, que pegou enquanto os outros andavam pela sala. Os animais se aproximaram deles como sempre faziam, pedindo para ser alimentados.

— Bom, Barris — disse Luckman —, parece que você tem razão. Definitivamente alguém esteve aqui, porque está vendo... está vendo também, não está, Bob?... o acobertamento escrupuloso de todos os sinais que eles deixaram prova que eles... — Ele peidou então, de repulsa, e entrou na cozinha para pegar uma lata de cerveja na geladeira. — Barris — disse ele você está fodido.

Ainda andando atentamente com a arma, Barris o ignorou enquanto procurava descobrir vestígios reveladores. Arctor, observando, pensou: “Talvez ele encontre. Eles podem ter deixado alguma pista.” E pensou: “E estranho como de vez em quando a paranóia pode ter relação com a realidade, por pouco tempo. Sob muitas condições especiais, como a de hoje. Em seguida, Barris vai raciocinar que eu armei tudo na casa, de propósito, para permitir que invasores secretos fizessem o que quisessem aqui. E mais tarde ele vai deduzir por quê, quem e todo o resto e, na realidade, talvez ele já tenha deduzido. Já há algum tempo, na verdade: tempo suficiente para iniciar sabotagem e atos destrutivos no cefscópio, no carro e Deus sabe onde mais. Talvez, quando eu acender a luz da garagem, a casa vá explodir. Mas o caso é que a turma do grampo chegou e instalou todos os monitores e os lugares onde os cilindros de armazenagem podem receber manutenção. E qualquer informação adicional que o chefe da equipe de grampo, além de outros especialistas envolvidos nessa operação, quiser jogar pra cima dele. Em sua armação contra Bob Arctor, o suspeito.”

— Olha isto aqui! — disse Barris. Ele se curvou sobre um cinzeiro na mesa de centro. — Vem cá! — gritou ele animado para os dois e estes se aproximaram.

Estendendo a mão, Arctor sentiu um calor subindo do cinzeiro.

— Uma ponta de cigarro ainda está acesa — disse Luckman, admirando-se. — Sem dúvida nenhuma.

Meu Deus, pensou Arctor. Eles ferraram tudo. Um dos homens fumou e depois, por reflexo, colocou a ponta aqui. Depois eles devem ter ido embora. O cinzeiro, como sempre, estava abarrotado; o homem provavelmente supôs que ninguém fosse perceber outra guimba e em mais alguns minutos ela teria apagado.

— Espere um segundo — disse Luckman, examinando o cinzeiro. Ele pegou, em meio às pontas de cigarro, um baseado. — E isto que está quente, este baseado. Eles acenderam um bagulho enquanto estavam aqui. Mas o que diabos eles fizeram? — Ele franziu o cenho e olhou em volta, com raiva e atarantado. — Bob, que porra! Barris tinha razão. Alguém veio aqui! Este baseado ainda está quente e dá para sentir o cheiro dele, se você segurar... — Ele o segurou debaixo do nariz de Arctor. — É, ainda está queimando por dentro. Deve ser uma semente. Não prepararam muito bem antes de apertar.

— Esse baseado — disse Barris, igualmente inflexível — pode não ter sido largado aí por acaso. Essa prova pode não ser acidental.

— E agora? — disse Arctor, perguntando-se que tipo de turma policial de grampo teria um membro que fumava um baseado diante dos outros enquanto todos trabalhavam.

— Talvez estivessem especificamente plantando drogas nesta casa — disse Barris. — Montando tudo, depois fazendo uma denúncia telefônica... Talvez haja drogas escondidas como esta no telefone, por exemplo, e nas tomadas das paredes. Vamos ter de vasculhar a casa toda e limpar absolutamente tudo antes que dedurem. E provavelmente só temos algumas horas.

— Você vê as tomadas — disse Luckman. — Eu desmonto o telefone.

— Espera — disse Barris, erguendo a mão. — Se eles nos virem revirando tudo pouco antes da batida...

— Que batida? — disse Arctor.

— Se ficarmos correndo freneticamente atrás de drogas

- disse Barris —, depois não vamos poder alegar, embora seja verdade, que não sabíamos que as drogas estavam aqui. Eles vão nos pegar por posse. E talvez isso também seja parte do plano deles.

— Ah, que merda! — disse Luckman com nojo. Ele se atirou no sofá. — Merda, merda, merda! Não podemos fazer nada. Eles devem ter escondido drogas em mil lugares e nunca vamos achar. Estamos ferrados. — Ele olhou para Arctor numa furia atordoada. — Estamos ferrados!

Arctor disse a Barris:

— E a parada do seu cassete eletrônico ligada à porta da frente? — Ele tinha se esquecido disso. E Barris também, evidentemente. Luckman também.

— Sim, isso deve informar sobre toda a questão — disse Barris. Ele se ajoelhou perto do sofá, estendeu a mão por baixo, resmungou, depois apareceu com um pequeno gravador cassete de plástico. — Isso deve nos contar muita coisa — começou ele e depois sua cara caiu. — Bom, é provável que no fim não prove nada de importante. — Ele puxou o plugue do fio de trás e baixou o gravador na mesa de centro. — Sabemos do principal... Que eles entraram durante nossa ausência. Essa foi sua principal tarefa.

Silêncio.

— Aposto que posso adivinhar — disse Arctor.

Barris disse:

— A primeira coisa que eles fizeram quando entraram foi colocar na posição off. Eu o deixei em on, mas olha... agora está em off. Então, embora eu...

— Não gravou? — disse Luckman, decepcionado.

— Eles agiram com muita habilidade — disse Barris. — Antes que uns três centímetros de fita passassem pelo cabeçote de gravação. Este, aliás, é um aparelhinho dos bons, um Sony. Tem cabeçotes separados para tocar, apagar e gravar, e tem sistema Dolby de redução de ruídos. Consegui baratinho. Em uma reunião de escambo. E nunca me deu problema.

Arctor disse:

— Hora da inspiração.

— Sem dúvida nenhuma — concordou Barris enquanto se sentava em uma cadeira e se recostava, retirando os óculos de sol. — A esta altura não temos outro recurso, em vista dessas táticas evasivas. Bob, tem uma coisa que você pode fazer, embora vá levar tempo.

— Vender a casa e me mudar — disse Arctor.

Barris assentiu.

— Mas que droga! — protestou Luckman. — Esta é a nossa casa.

— Quanto vale uma casa como esta nesta região? — perguntou Barris, as mãos na nuca. — No mercado? Imagino também que as taxas de juros tenham aumentado. Talvez você possa ter um lucro considerável, Bob. Por outro lado, pode ter prejuízo vendendo às pressas. Mas, Bob, se toque! Você está lutando contra profissionais.

— Alguém conhece um bom corretor? — perguntou Luckman aos dois.

Arctor disse:

— Que motivo daríamos para vender? Eles sempre perguntam.

— E, não podemos contar a verdade ao corretor — concordou Luckman. — A gente podia dizer... — Ele ponderou enquanto bebia soturnamente a cerveja. — Não consigo pensar num motivo. Barris, que motivo, que desculpa podemos dar?

Arctor disse:

— Vamos dizer simplesmente na cara que a Narcóticos plantou drogas na casa toda e, como não sabemos onde está, decidimos nos mudar e deixar que o novo proprietário seja preso no lugar da gente.

— Não — discordou Barris —, não acho que possamos abrir tanto o jogo assim. Sugiro que você diga, Bob, que você diga que foi transferido no emprego.

— Para onde? — disse Luckman.

— Cleveland — disse Barris.

— Acho que devemos contar a verdade — disse Arctor. — Podemos colocar um anúncio no L. A. Times: “Casa moderna de três quartos com dois banheiros para descarga fácil e rápida, drogas de alta qualidade escondidas em todos os cômodos. Drogas incluídas no preço de venda.”

— Mas vão perguntar que tipo de droga — disse Luckman.

— E não sabemos; pode ser qualquer coisa.

— E o volume — murmurou Barris. — Os candidatos a compradores podem perguntar qual a quantidade.

— Tipo assim — disse Luckman —, podem ser trinta gramas de bagulho, só uma merda dessas, ou podem ser quilos de heroína.

— O que eu sugiro — disse Barris — é telefonar para o setor de abuso de drogas do condado, informar a situação a eles e pedir para virem aqui retirar a droga. Dar uma busca na casa, encontrar, dispor dela. Porque, para ser realista, não há tempo para vender a casa. Eu pesquisei a situação legal uma vez para esse tipo de situação e muitos livros de direito concordam...

— Está maluco — disse Luckman, encarando-o como se ele fosse um dos afídios de Jerry. — Telefonar para o abuso de drogas? Vai ter agentes da Narcóticos aqui em menos tempo do que...

— É a melhor possibilidade — continuou Barris tranqüilamente — e podemos fazer todos os testes com detectores de mentiras para provar que não sabíamos onde ela estava, o que era ou até se estava aqui. Foi sem o nosso conhecimento e a nossa permissão. Se contar isso a eles, Bob, eles vão te absolver. — Depois de uma pausa, ele admitiu: — Um dia. Quando toda a verdade for revelada no tribunal.

— Mas, por outro lado — disse Luckman —, vamos perder nossos próprios esconderijos. Nós sabemos onde eles ficam e essas coisas. Isso significa que vamos limpar nossos esconderijos? E imagine que a gente se esqueça de alguns. Até de um? Meu Deus, isso é pavoroso!

— Não tem saída — disse Arctor. — Parece que eles nos pegaram.

De um dos quartos, apareceu Donna Hawthorne, usando uma calça estranha na altura dos joelhos, o cabelo desarrumado, a cara inchada de sono.

— Eu entrei — disse ela —, como dizia o bilhete. E fiquei sentada por um tempo e depois apaguei. O bilhete não dizia quando vocês iam voltar. Por que estavam gritando? Meu Deus, vocês estão agitados. Me acordaram.

— Você fumou um baseado agora há pouco? — perguntou Arctor a ela. — Antes de apagar?

— Claro — disse ela. — Se não, eu não ia conseguir dormir.

— E o baseado de Donna — disse Luckman. — Dê a ela.

Meu Deus, pensou Bob Arctor. Eu entrei nessa viagem tanto quanto eles. Todos entramos fundo nela. Ele se sacudiu, tremeu e pestanejou. Sabendo o que eu sei, ainda entrei nessa viagem paranóica de doidão com eles, vi o que eles viram — tudo atrapalhado, pensou ele. As trevas de novo, as mesmas trevas que cobrem os dois me cobrem também, as trevas desse lúgubre mundo de sonho em que flutuamos.

— Você nos tirou de uma — disse ele a Donna.

— Tirei do quê? — disse Donna, confusa e sonolenta.

Não que eu soubesse, pensou ele, ou saiba o que deve ter acontecido aqui hoje, mas essa garota — ela pôs a minha cabeça no lugar, puxou os três de volta. Uma garotinha de cabelo preto usando uma roupa esquisita que eu vigio, estou enganando e com quem espero trepar... outro mundo de realidade engana-e-fode, pensou ele, com essa garota bonita no meio: um ponto racional que nos separa de repente. Caso contrário, onde nossas cabeças iam parar? Nós, os três, ficamos totalmente sem noção.

Mas não pela primeira vez, pensou ele. Nem mesmo hoje.

— Não devia deixar sua casa destrancada desse jeito — disse Donna. — Você podia ser roubado e seria culpa sua. Até as grandes seguradoras capitalistas dizem que não pagam se você deixar uma porta ou janela destrancada. Foi esse o principal motivo para eu ter entrado quando vi o bilhete. Alguém devia estar aqui, se está destrancada desse jeito.

— Há quanto tempo está aqui? — perguntou Arctor a ela. Talvez ela tenha abortado o grampo, talvez não. Provavelmente não.

Donna consultou o relógio elétrico Timex de vinte dólares no pulso, que ele lhe dera.

— Tem uns 38 minutos. — Sua face se iluminou. — Bob, eu trouxe o livro dos lobos... quer ver agora? Tem muita coisa barrão, se dá pra entender.

— A vida — disse Barris, como que para si mesmo — é barrão e ponto, há somente uma viagem, totalmente barrão. Barrão, que leva ao túmulo. Para todos e para tudo.

— Ouvi você dizer que vai vender a casa? — perguntou Donna a ele. — Ou eu... sabe como é, estava sonhando? Não dá para saber, o que ouvi parecia distante e estranho.

— Todos estamos sonhando — disse Arctor. Se o último a saber que é um viciado é o viciado, então talvez o último a saber que um homem é sincero no que diz é o próprio homem, refletiu ele. Ele se perguntou quanto lixo entreouvido por Donna fora dito a sério. Ele se perguntou quanto da insanidade do dia — da insanidade dele — tinha sido real ou só induzida pela situação, como uma espécie de loucura de contato. Donna era sempre um lixo da realidade para ele; para ela, essa era a pergunta básica, natural. Ele queria poder responder.

 

 

       No dia seguinte, Fred apareceu com o traje misturador para saber da instalação do grampo.

— Os seis holo-scanners agora estão operando no local; por enquanto seis devem ser suficientes, segundo pensamos; transmitem para um apartamento seguro na rua, no mesmo bloco da casa de Arctor — explicou Hank, estendendo uma planta baixa da casa de Bob Arctor na mesa de metal entre os dois. Ver isso deu arrepios em Fred, mas não abertamente. Ele pegou a folha de papel e analisou as localizações dos vários scanners nos vários cômodos, aqui e ali, de modo que tudo parecia sob constante escrutínio de vídeo, bem como de áudio.

— Então eu faço a gravação no apartamento — disse Fred.

— Usamos o apartamento como ponto monitor de gravação para umas oito... talvez agora nove... casas ou apartamentos sob análise neste bairro em particular. Então você vai topar com outro agente disfarçado fazendo gravações. Sempre use seu traje.

— Vão me ver indo para o apartamento. Fica perto demais.

— Acho que sim, mas é um prédio enorme, com centenas de unidades, e é o único que encontramos que era eletronicamente viável. Terá de fazer, pelo menos até que consigamos expropriação legal de outra unidade em outro lugar. Estamos trabalhando nisso, fica a duas quadras de distância, onde você será menos visível. Uma semana mais ou menos, eu acho. Se os holo-scanners puderem ser transmitidos com uma resolução aceitável por cabos de microrrelé e linhas ITT como o anterior...

— Vou usar a desculpa de que estou transando com uma garota do prédio se Arctor, Luckman ou qualquer um dos doidões me vir entrando. — Na verdade, não era uma questão complicada; reduziria seu tempo não remunerado em trânsito, o que era um fator importante. Ele podia muito bem dirigir para o apartamento seguro, ver as gravações do scanner, determinar o que era relevante para seus relatórios, o que podia ser descartado e depois voltar rapidamente para...

Para minha própria casa, pensou ele. A casa de Arctor. Naquela rua, na casa onde sou Bob Arctor, o drogado suspeito que está sendo vigiado sem saber, e depois de dois em dois dias encontro um pretexto para descer a rua e entrar no apartamento, onde sou Fred repassando quilômetros de gravação para ver o que eu fiz; todo esse negócio, pensou ele, realmente me deprime. A não ser pela proteção — as informações pessoais valiosas — que me dará.

Provavelmente quem está me perseguindo será pego pelos holo-scanners na primeira semana.

Percebendo isso, ele se sentiu bem.

— Ótimo — disse ele a Hank.

— Então está vendo onde foram colocados os holos. Se precisarem de manutenção, você provavelmente poderá fazer sozinho enquanto estiver na casa de Arctor e ninguém estiver por perto. Você entra na casa dele normalmente, não é?

Mas que merda!, pensou Fred. Se eu fizer isso, aparecerei nas gravações. E então, quando eu as entregar a Flank terei de ser, obviamente, um dos indivíduos visíveis nelas e isso vai estragar tudo.

Até agora ele não pressionara Hank sobre como ele sabia que sabia sobre seus suspeitos; ele mesmo como Fred, o dispositivo de varredura eficaz que levava as informações. Mas agora áudio e holo-scanners, que não editavam automaticamente como o relatório verbal que fazia, identificando menções a si mesmo. Haveria Robert Arctor mexendo nos holos quando funcionassem mal, seu rosto crescendo e enchendo a tela. Mas, por outro lado, ele seria o primeiro a tocar as gravações, ele ainda podia editar. Só que isso ia requerer tempo e cuidado.

Mas editar o quê? Editar Arctor — inteiramente? Arctor era o suspeito. Exatamente Arctor, quando fosse mexer nos holos.

— Vou editar a mim mesmo — disse ele. — Então você não vai me ver. Uma questão de proteção convencional.

— É claro. Já fez isso antes? — Hank estendeu a mão para mostrar a ele algumas imagens. — Você usa um dispositivo apagador que elimina qualquer seção onde aparece como informante. Isso nos holos, é claro; para o áudio não há uma política a ser seguida. Mas você não terá problema. Sabemos que você é um dos indivíduos do círculo de amigos de Arctor que freqüentam aquela casa; você ou é Jim Barris ou Ernie Luckman, ou Charles Freck ou Donna Hawthorne...

— Donna? — Ele riu. O traje riu, na verdade. À sua maneira.

— Ou Bob Arctor — continuou Hank, analisando a lista de suspeitos.

— Faço relatórios sobre mim mesmo o tempo todo — disse Fred.

— Então você terá de se incluir de vez em quando nas holofitas que nos entregar, porque se editar sistematicamente a si mesmo podemos deduzir quem é você por um processo de eliminação, quer você queira ou não. O que você deve fazer, na verdade, é eliminar a si mesmo na edição... como devo chamar isso?... de forma inventiva, artística... que droga, a palavra é criativa... como, por exemplo, durante os breves intervalos em que você estiver sozinho na casa e fizer a busca, revirando papéis e gavetas ou consertando um scanner no campo de visão de outro scanner ou...

— Você devia simplesmente mandar alguém uniformizado à casa uma vez por mês — disse Fred. — E ele diria: “Bom-dia! Estou aqui para fazer a manutenção dos dispositivos de monitoramento instalados em sua casa, em seu telefone e em seu carro.” Talvez Arctor acabe pagando a conta.

— Arctor provavelmente sairia e depois desapareceria.

O traje misturador Fred disse:

— Se Arctor está escondendo tanto assim. Isso não foi provado.

— Arctor pode estar escondendo muito. Reunimos e estamos analisando informações mais recentes sobre ele. Não há uma dúvida substancial sobre isso: ele é um embuste, ele simplesmente não existe. E um impostor. Então fique de olho nele até que ele caia, até que a gente tenha o bastante para prendê-lo e provar sua culpa.

— Quer que eu plante coisas?

— Vamos discutir isso mais tarde.

— Acha que ele está aprontando muito na, você sabe, agência S. D.?

— O que achamos não tem importância no nosso trabalho — disse Hank. — Nós avaliamos; você informa, com suas próprias conclusões limitadas. Isso não é uma descortesia contigo, mas temos informações, montes delas, que não estão disponíveis para você. O quadro mais amplo. O quadro computadorizado.

— Arctor está condenado — disse Fred. — Está aprontando alguma. E eu tenho um pressentimento, baseado no que você diz, que é ele.

— Logo vamos ter um processo contra ele — disse Hank. — E depois podemos fechar este caso, o que agradará a todos nós.

Fred memorizou estoicamente o endereço e o número do apartamento e, de repente, se lembrou de que tinha visto um jovem casal do tipo doidão que havia pouco tempo

desaparecera de repente e de vez em quando entrava e saía do prédio. Foram pegos e o apartamento fora tomado para isso. Ele gostava deles. A garota tinha cabelo comprido cor-de-linho e não usava sutiã. Uma vez ele passou por ela de carro enquanto ela carregava umas compras e lhe ofereceu uma carona; eles conversaram. Ela era do tipo orgânico, de megavitaminas, kelp e luz do sol, simpática, tímida, mas rejeitou a carona. Agora ele podia entender por quê. Evidentemente os dois eram usuários. Ou, mais provavelmente, traficavam. Por outro lado, se o apartamento era necessário, uma batida por posse resolveria e sempre se conseguia isso.

Ele se perguntou o que as autoridades fariam com a casa desordenada e grande de Bob Arctor quando ele fosse preso. Um centro ainda maior de processamento de informações, mais provavelmente.

— Você gostou da casa de Arctor — disse ele em voz alta.

— Está em ruínas e é suja como as casas de drogados, mas é grande. Tem um bom quintal. Montes de arbustos.

— Foi isso que a turma de instalação relatou. Algumas possibilidades excelentes.

— Eles o quê? Eles relataram que é “cheia de possibilidades”, foi isso? — A voz do traje misturador estalou irritantemente sem tom nem ressonância, o que o deixou com uma raiva ainda maior. — O quê, por exemplo?

— Bem, uma possibilidade óbvia: a sala tem vista para um cruzamento, então os veículos que passam podem ser diagramados e as placas... — Hank analisou seus muitos, muitos documentos. — Mas Burt Qual-é-a-cara-dele, que chefiou a equipe, achou que deixaram que a casa se deteriorasse tanto que não valeria a pena a tomarmos. Como um investimento.

— De que maneira? A casa se deteriorou de que forma?

— O telhado.

— O telhado está perfeito.

— A pintura por dentro e por fora da casa. O estado do piso. Os armários da cozinha...

— Que besteira! — disse Fred monotonamente. — Arctor pode ter deixado pilhas de pratos e lixo e não ter limpado a casa, mas, afinal, três caras morando ali sem mulher nenhuma? A esposa dele o deixou, são as mulheres que devem fazer essas coisas. Se Donna Hawthorne tivesse se mudado para lá, como queria o Arctor, como ele lhe implorou, ela teria cuidado disso. De qualquer forma, qualquer serviço profissional de faxina pode colocar toda a casa em ordem e até limpar tudo na metade de um dia. No que diz respeito ao telhado, isso realmente me deixa louco, porque...

— Então você nos recomenda adquiri-la depois que Arctor for preso e perder a escritura.

Fred, o traje, encarou-o.

— E então? — disse Hank, impassível, a esferográfica a postos.

— Não tenho opinião. De uma forma ou de outra. — Fred se levantou da cadeira para ir embora.

— Você ainda não vai sair — disse Hank, acenando para que ele se sentasse novamente. Ele vasculhou os papéis em sua mesa. — Tenho um memorando aqui...

— Você sempre tem memorandos — disse Fred. — Para todo mundo.

— Este memorando — disse Hank — me instrui a te mandar para a Sala 203 antes de você ir embora hoje.

— Se é sobre a palestra antidrogas que dei no Lions Club, já me esculacharam o bastante.

— Não, não é isso. — Hank atirou para ele o bilhete. — E uma coisa diferente. Terminei com você, então por que não vai lá agora e encerra o assunto?

 

Ele se viu confrontando uma sala completamente branca com acessórios, cadeiras e mesa de aço, tudo aparafusado, uma sala que parecia de hospital, purificada, estéril e fria, com a luz forte demais. Na realidade, à direita havia uma balança com a placa AJUSTADA SOMENTE POR TÉCNICOS. Dois agentes o olharam, ambos com uniforme completo do escritório do xerife do Condado de Orange, mas com divisas médicas.

— Você é o policial Fred? — disse um deles, com um bigode de pontas viradas.

— Sim, senhor — disse Fred. Ele estava com medo.

— Tudo bem, Fred, primeiro deixe-me dizer que, como sem dúvida deve estar ciente, seus relatórios e interrogatórios são monitorados e depois repassados para análise, para o caso de alguma coisa ter sido perdida nas sessões originais. Isso é padrão, é claro, e é válido para todos os policiais que fazem relatórios verbais, não só para você.

O outro agente médico disse:

— Além de todos os outros contatos que você mantém com o departamento, como contatos telefônicos e atividades adicionais, como sua recente palestra em Anaheim para os rapazes do Rotary Club.

— Do Lions — disse Fred.

— Você toma a Substância D? — perguntou o agente médico, canhoto.

— Essa pergunta — disse o outro — é discutível porque consideramos que em seu trabalho você é levado a isso. Então não responda. Não que seja incriminador, mas simplesmente porque é discutível. — Ele indicou uma mesa em que havia um monte de blocos e outros objetos baratos de plástico colorido, além de itens peculiares que o policial Fred não conseguiu identificar. — Venha aqui e se sente, policial Fred. Vamos lhe aplicar, brevemente, vários testes fáceis. Não vai consumir muito o seu tempo e não haverá nenhum desconforto físico.

— Sobre a palestra que eu dei... — disse Fred.

— Isto aqui — disse o agente médico canhoto, enquanto se sentava e pegava uma caneta e alguns formulários — tem origem em um recente levantamento departamental que mostra que vários agentes que trabalham sob disfarce nesta área foram admitidos nas clínicas de afasia neurai no mês passado.

— Você está ciente do alto fator viciante da Substância D? — indagou o outro agente a Fred.

— Claro — disse Fred. — É claro que estou.

— Vamos lhe aplicar estes testes agora — disse o agente sentado nesta ordem, a começar pelo que chamamos de FF ou...

— Acha que sou viciado? — disse Fred.

— Se você é ou não viciado não é a principal questão, uma vez que esperamos um agente bloqueador da Divisão de Guerra Química do exército nos próximos cinco anos.

— Estes testes não dizem respeito às propriedades viciantes da Substância D, mas... bem, deixe-me primeiro aplicar o Teste de Figura e Fundo, que determina sua capacidade de distinguir prontamente uma figura do fundo. Vê este diagrama geométrico? — Ele estendeu na mesa um cartão desenhado diante de Fred. — Dentro das linhas aparentemente sem sentido está um objeto familiar que todos reconheceríamos. Você vai me dizer qual é...

Informação. Em julho de 1969, Joseph E. Bogen publicou seu artigo revolucionário “O Outro Lado do Cérebro: uma Mente Aposicional”. Nesse artigo, ele citou um obscuro dr. A. L. Wigan, que escreveu em 1844:

 

“A mente é essencialmente dual, como os órgãos pelos quais é exercitada. Essa idéia me ocorreu e eu a analisei por mais de um quarto de século, sem conseguir descobrir uma só objeção válida ou mesmo plausível. Acredito que sou capaz de provar (1) que cada metade do cérebro é um todo distinto e perfeito como órgão do pensamento; (2) que um processo separado e distinto de pensamento ou raciocínio pode ser realizado em cada metade do cérebro simultaneamente.”

 

Nesse artigo, Bogen concluiu: “Acredito [como Wigan] que cada um de nós tem duas mentes em uma pessoa. Há uma série de detalhes a dispor neste caso. Mas um dia devemos confrontar diretamente a principal resistência à concepção de Wigan, isto é, a sensação subjetiva que cada um de nós possui de que somos Um. Essa convicção íntima da Unidade é uma opinião muito valorizada pelo homem ocidental...”

— ... o objeto e apontá-lo no campo.

Estão brincando de tira bom/tira mau comigo, pensou Fred.

— O que significa tudo isso? — disse ele, olhando para o agente e não para o diagrama. — Aposto que é a palestra do Lions Club — disse ele. Ele foi incisivo.

O agente sentado disse:

— Em muitos que tomam a Substância D, acontece uma divisão entre os hemisférios direito e esquerdo do cérebro. Há uma perda de gestaltismo adequado, que é um defeito nos sistemas de percepção e cognição, embora aparentemente o sistema de cognição continue a funcionar normalmente. Mas o que agora se recebe do sistema de percepção é contaminado pela divisão e também esse, portanto, deixa aos poucos de funcionar, deteriorando-se progressivamente. Já localizou o objeto conhecido neste desenho? Pode apontá-lo para mim?

Fred disse:

— Não está falando de depósitos de vestígios de metais pesados nos sítios neurorreceptores, está? Irreversíveis...

— Não — disse o agente de pé. — Não é dano cerebral, mas uma forma de toxicidade, de toxicidade cerebral. E uma psicose tóxica do cérebro que afeta o sistema de percepção, dividindo-o. O que tem diante de você, este teste FF, mede a precisão de seu sistema de percepção para agir como um todo unificado. Consegue ver a forma aqui? Deve estar saltando diante de seus olhos.

— Vejo uma garrafa de Coca-Cola — disse Fred.

— Uma garrafa de refrigerante, está correto — disse o agente sentado e afastou o desenho, substituindo-o por outro.

— Percebeu alguma coisa — disse Fred — no estudo de meus relatórios e coisas assim? Alguma baboseira? — Na palestra, pensou ele. — E a palestra que eu dei? — disse ele.

— Eu mostrei disfunção bilateral ali? É por isso que fui mandado aqui para estes testes? — Ele tinha lido sobre os testes de cérebro dividido, aplicados pelo departamento de tempos em tempos.

— Não, isso é rotina — disse o agente sentado. — Entendemos, policial Fred, que os agentes disfarçados precisam tomar drogas no cumprimento do dever; aqueles que tiveram de ir para as federais...

— Permanentemente? — perguntou Fred.

— Não muitos permanentemente. Repito, essa é uma contaminação que pode, com o passar do tempo, ser retificada como...

— Trevas — disse Fred. — As trevas encobrem tudo.

— Está passando por algum diálogo cruzado? — perguntou um dos agentes a ele de repente.

— Como é? — disse ele, inseguro.

— Entre os hemisférios. Se houver dano no hemisfério esquerdo, onde normalmente estão localizadas as habilidades lingüísticas, às vezes o hemisfério direito compensa com o máximo de sua capacidade.

— Eu não sei — disse ele. — Não que eu tenha percebido.

— Pensamentos que não são seus. Como se outra pessoa ou outra mente estivesse pensando. Mas diferente do modo como você pensaria. Até palavras estrangeiras que você não conhece. Que são aprendidas de sua percepção periférica de vez em quando durante a sua vida.

— Nada parecido com isso. Eu não percebi.

— Provavelmente perceberia. Pelo que informaram pessoas com danos no hemisfério esquerdo, evidentemente é uma experiência muito perturbadora.

— Bom, acho que não percebi.

— Antigamente se acreditava que o hemisfério direito não tinha faculdades lingüísticas, mas isso foi antes de tanta gente arruinar o hemisfério esquerdo com drogas e dar ao lado direito a oportunidade de aparecer. Para preencher o vazio.

— Certamente vou ficar atento para isso — disse Fred e ouviu a mera qualidade mecânica de sua voz, como a de uma criança diligente na escola. Concordando em obedecer a qualquer ordem estúpida que lhe fosse imposta por uma autoridade. Aos que eram superiores a ele e em condições de impor sua força e vontade sobre ele, quer isso fosse razoável ou não.

Só concorde, pensou ele. E faça o que mandarem.

— O que está vendo nesta segunda imagem?

— Uma ovelha — disse Fred.

— Mostre-me a ovelha. — O agente sentado inclinou-se e girou a imagem. — Uma deterioração na discriminação figura-fundo pode metê-lo em um monte de problemas... em vez de não perceber formas, você percebe formas imperfeitas.

Como merda de cachorro, pensou Fred. Merda de cachorro certamente seria considerada uma forma imperfeita. Por qualquer padrão. Ele...

 

“Os dados indicam que o hemisfério menor e mudo é especializado na percepção Gestalt, sendo principalmente um sintetizador ao lidar com as informações recebidas. O hemisfério maior e falante, ao contrário, parece operar de maneira mais lógica, analítica, como de computador, e as descobertas sugerem que um possível motivo para a lateralização cerebral no homem é uma incompatibilidade fundamental de funções de linguagem, de um lado, e funções de percepção sintética, de outro.”

 

... se sentia doente e deprimido, quase como se sentiu durante a palestra no Lions Club. — Não tem ovelha alguma, não é? — disse ele. — Mas cheguei perto?

— Isto não é um teste de Rorschach — disse o agente sentado —, onde uma mancha confusa pode ser interpretada de muitas maneiras por muitas pessoas. Neste, um objeto específico, por exemplo, foi delineado e há somente um. Neste caso, é um cachorro.

— Um o quê? — disse Fred.

— Um cachorro.

— Como pode dizer que é um cachorro? — Ele não viu cachorro algum. — Me mostre. — O agente...

 

“Essa conclusão encontra sua prova experimental no animal de cérebro dividido cujos dois hemisférios podem ser treinados para perceber, considerar e agir de forma independente. No ser humano, em que o pensamento proposicional em geral é lateralizado em um hemisfério, o outro hemisfério evidentemente se especializa em um modo diferente de pensamento, que pode ser chamado aposicional. As regras ou métodos pelos quais o pensamento proposicional é elaborado ‘nesse’ lado do cérebro (o lado que fala, lê e escreve) têm sido submetidos a análise de sintaxe, semântica, lógica matemática etc. há muitos anos. As regras pelas quais o pensamento aposicional é elaborado no outro lado do cérebro precisarão de estudo por muitos anos ainda.”

 

... virou o cartão; no verso, o perfil formal, cabal e simples de um CACHORRO tinha sido inscrito e agora Fred o reconhecia como a forma desenhada dentro das linhas na frente do cartão. Na verdade, era um tipo específico de cão: um greyhound, com a tripa desenhada.

— O que significa — disse ele — eu ter visto uma ovelha?

— Provavelmente só um bloqueio psicológico — disse o agente de pé, passando o peso de uma para a outra perna.

— Só quando todo o conjunto de cartões é mostrado e depois temos os vários outros testes...

— Este é um teste superior ao de Rorschach — interrompeu o agente sentado, pegando o desenho seguinte —, porque não é interpretativo; há muitas respostas erradas em que você pode pensar, mas só uma resposta certa. O objeto correto que o Departamento de Psigrafia dos EUA desenhou nele e certificou, para cada cartão; isso é o que é certo, porque foi passado de Washington. Ou você consegue ou não consegue e, se demonstrar uma série sem conseguir, então temos um problema de deterioração funcional na percepção e vamos afastá-lo por algum tempo, até que seu teste seja bom.

— Uma clínica federal? — disse Fred.

— Sim. Agora, o que você vê neste desenho, entre estas linhas pretas e brancas?

Cidade da Morte, pensou Fred enquanto analisava o desenho. E o que eu vejo: morte multiforme, não naquela forma correta, mas total. Homenzinhos de um metro em carrinhos.

— Só me diga uma coisa — disse Fred —, foi a palestra no Lions Club que alertou vocês?

Os dois agentes médicos trocaram olhares.

— Não — disse por fim o de pé. — Teve a ver com uma conversa que foi... na verdade... de improviso, na realidade, só uma besteirada entre você e Hank. Há cerca de duas semanas. Perceba que há um atraso tecnológico no processamento de todo esse lixo, todas essas informações cruas que aparecem. Eles ainda não analisaram sua palestra. Na realidade, vão levar mais uns dias.

— O que foi essa besteirada?

— Algo sobre uma bicicleta roubada — disse o outro agente. — Uma chamada bicicleta de sete marchas. Você ficou tentando deduzir onde foram parar as três marchas perdidas, foi isso? — Novamente eles se olharam, os dois agentes médicos. — Você achou que tinham ficado no chão da garagem de onde foi roubada?

— Que droga! — protestou Fred. — Foi culpa do Charles Freck, não minha; ele deixou todo mundo maluco com uma algazarra sobre isso. Eu só achei engraçado.

BARRIS: (Parado no meio da sala com uma bicicleta nova, reluzente e grande, muito satisfeito.) Olha o que eu comprei por vinte dólares.

FRECK: O que é?

BARRIS: Uma bicicleta, uma bicicleta de corrida de dez marchas, praticamente nova. Vi no jardim do vizinho e perguntei sobre ela, e eles tinham quatro, então ofereci vinte dólares em dinheiro e eles me venderam essa. Um pessoal de cor. Eles até a levantaram pela cerca para mim.

LUCKMAN: Não sei como conseguiu uma bicicleta de dez marchas quase nova por vinte dólares. É incrível o que se consegue com vinte dólares.

DONNA: Parece com a que roubaram faz um mês de uma garota que mora na frente da minha casa. Eles devem ter roubado dela, aqueles negros.

ARCTOR: Claro que sim, eles tinham quatro. E vender assim tão barato.

DONNA: Você devia devolver à garota da minha rua, se é dela. Ou devia deixar ela dar uma olhada para ver se é dela mesmo.

BARRIS: E uma bicicleta masculina. Então não pode ser dela.

FRECK: Por que você diz que tem dez marchas quando só tem sete?

BARRIS: (Atordoado.) Como é que é?

FRECK: (Aproximando-se da bicicleta e apontando.) Olha, cinco marchas aqui, duas aqui na outra ponta da corrente. Cinco e dois...

 

“Quando o quiasma ótico de um gato ou de um macaco é dividido sagitalmente, as informações recebidas pelo olho direito vão somente para o hemisfério direito e, da mesma forma, o olho esquerdo informa somente ao hemisfério esquerdo. Se um animal com essa operação é treinado para escolher entre dois símbolos enquanto usa somente um olho, testes posteriores mostram que ele pode fazer a escolha adequada com o outro olho. Mas, se as comissuras, em especial o corpo caloso, forem seccionadas antes do treinamento, o olho inicialmente coberto e seu hemisfério ipsolateral deverão ser treinados desde o início. Isto é, o treinamento não será transferido de um hemisfério para outro se as comissuras forem cortadas. Esse é o experimento de divisão cerebral fundamental de Myers e Sperry (1953; Sperry, 1961; Myers, 1965; Sperry, 1967).”

 

... dão sete. Então é uma bicicleta de só sete marchas.

LUCKMAN: É, mas nem uma bicicleta de corrida de sete marchas vale vinte dólares. Ele ainda conseguiu uma pechincha.

BARRIS: (Confuso.) Aqueles negros me disseram que tinha dez marchas. Isso é roubo.

(Todos se reúnem para examinar a bicicleta. Eles contam as marchas repetidamente.)

FRECK: Agora contei oito. Seis na frente, duas atrás. Dá oito.

ARCTOR: (Logicamente.) Mas devia ter dez. Não existem bicicletas de sete ou oito marchas. Não que eu saiba.

O que acha que aconteceu com as marchas que estão faltando?

BARRIS: Aqueles caras de cor devem ter trabalhado nela, desmontando-as com ferramentas inadequadas e sem conhecimento técnico, e quando remontaram deixaram três marchas no chão da garagem deles. Provavelmente elas ainda estão lá.

LUCKMAN: Então a gente devia pedir as marchas de volta.

BARRIS: (Refletindo com raiva.) Mas é aí que está o roubo: eles vão se oferecer para me vender as marchas e não dá-las a mim, como deviam. Imagino o que mais eles estragaram. (Inspeciona toda a bicicleta.)

LUCKMAN: Se todos formos juntos, eles vão dar as marchas para a gente; pode apostar nisso, cara. Vamos todos, está bem? (Olha em volta procurando por aprovação.)

DONNA: Tem certeza de que só tem sete marchas?

FRECK: Oito.

DONNA: Sete, oito. Quer dizer, antes de vocês irem lá, perguntem a alguém. Quer dizer, não me parece que eles fizeram nada do tipo desmontar a bicicleta. Antes de você ir lá e pegar pesado com eles, descubra. Sacou?

ARCTOR: Ela tem razão.

LUCKMAN: A quem vamos perguntar? Quem aqui conhece uma autoridade em bicicletas de corrida?

FRECK: Vamos perguntar à primeira pessoa que encontrarmos. Vamos levar a bicicleta para a porta e, quando um cara passar, a gente pergunta a ele. Assim vamos ter uma opinião neutra.

(Eles levaram juntos a bicicleta para a frente, bem ao lado de onde os negros estacionam o carro. Eles apontaram para as sete — oito?— marchas de forma questionadora e perguntaram quantas eram, embora pudessem ver — a não ser por Charles Freck — que eram somente sete: cinco em uma ponta da corrente, duas na outra. Cinco e dois somam sete. ELes puderam verificar isso com os próprios olhos. O que está pegando?)

JOVEM NEGRO: (Calmamente.) O que vocês têm de fazer é multiplicar o número de marchas na frente pelo número da traseira. Não é somar, mas multiplicar, porque, estão vendo, a corrente pula de uma marcha para outra e, em termos de proporção de marcha, vocês têm cinco (Ele indica as cinco marchas) vezes uma das duas da frente (Ele aponta para ela), o que dá um vezes cinco, que é cinco, e depois, quando você muda com esta alavanca no punho (Ele demonstra), a corrente pula para a outra das duas da frente e interage com as mesmas cinco de trás novamente, o que dá mais cinco. A adição envolvida é cinco mais cinco, que dá dez. Estão vendo como funciona? Viu, as proporções de marchas são sempre derivadas de...

(Eles agradecem e silenciosamente levam a bicicleta de volta para dentro de casa. O jovem negro, que eles nunca viram na vida, não tem mais de 17 anos e dirige um carro incrivelmente surrado que parece de transportadora, foi trancar o carro e eles fecharam a porta da frente da casa eficaram parados ali.)

LUCKMAN: Alguém arrumou algum bagulho? “Onde há substância, há esperança.” (Ninguém...)

 

“Todas as evidências indicam que essa separação dos hemisférios cria duas esferas independentes de consciência em um único crânio, isto é, dentro de um único organismo. Essa conclusão é perturbadora para algumas pessoas, que vêem a consciência como uma propriedade indivisível do cérebro humano. Parece prematuro para outros, que insistem em que as capacidades até agora reveladas pelo hemisfério direito permanecem no nível do automatismo. Há, certamente, desigualdade hemisférica nos casos presentes, mas pode bem ser uma característica dos indivíduos que estudamos. E inteiramente possível que, se um cérebro humano fosse dividido em uma pessoa muito jovem, os dois hemisférios poderiam, por conseqüência, desenvolver de forma separada e independente funções mentais de uma ordem superior ao nível que corresponde somente ao hemisfério esquerdo de indivíduos normais.”

 

(... ri.)

— Sabemos que você era uma das pessoas naquele grupo — diz o agente médico sentado. — Não importa quem. Nenhum de vocês conseguiu olhar a bicicleta e perceber a simples operação matemática envolvida na determinação do número de seu pequeno sistema de marchas. — Na voz do agente Fred sentiu uma certa compaixão, uma tentativa de ser gentil. — Uma operação dessas, que constitui um teste de aptidão de primeiranista do secundário. Vocês estavam todos chapados?

— Não — disse Fred.

— Fazem testes de aptidão assim com as crianças — disse o outro agente médico.

— Então, qual era o problema, Fred? — perguntou o primeiro agente.

— Esqueci — disse Fred. Ele se calou agora. E depois disse: — Isso me parece uma merda cognitiva e não per- ceptiva. Não tem pensamento abstrato envolvido numa coisa dessas? Não...

— É o que você pode imaginar — disse o agente sentado.

— Mas os testes mostram que o sistema cognitivo falha, porque não está recebendo dados exatos. Em outras palavras, as informações são distorcidas de tal forma que, quando você raciocina sobre o que vê, raciocina erroneamente, porque não... — O agente gesticulou, tentando encontrar uma forma de se expressar.

— Mas uma bicicleta de dez marchas tem sete marchas

— disse Fred. — O que vimos foi exato. Duas na frente, cinco atrás.

— Mas vocês não perceberam, nenhum de vocês, como as marchas interagem: cinco atrás com cada uma das marchas da frente, como disse o negro. Ele era um homem muito instruído?

— Provavelmente não — disse Fred.

— O que o negro viu — disse o agente de pé — foi diferente do que todos vocês viram. Ele viu duas linhas de conexão separadas entre o sistema de marcha traseira e o frontal, duas linhas diferentes e simultâneas, perceptíveis para ele, entre as marchas da frente, passando para cada uma das traseiras... O que vocês viram foi uma conexão para todas as traseiras.

— Mas isso daria seis marchas, então — disse Fred. — Duas marchas da frente mais uma de conexão.

— Essa é uma percepção imprecisa. Ninguém ensinou isso ao negro, o que lhe ensinaram a fazer, se alguém ensinou mesmo, foi deduzir, cognitivamente, o significado daquelas duas de conexão. Vocês deixaram passar inteiramente uma delas, todos vocês. O que vocês fizeram foi que, embora contassem duas marchas na frente, perceberam as marchas como uma homogeneidade.

— Vou me sair melhor da próxima vez — disse Fred.

— Que próxima vez? Quando comprar uma bicicleta de dez marchas roubada? Ou abstrair todas as informações diárias que percebe?

Fred continuou em silêncio.

— Vamos continuar o teste — disse o agente sentado. — O que vê neste, Fred?

— Merda de cachorro, de plástico — disse Fred. — Como vendem aqui na região de Los Angeles. Posso ir agora? — Era a palestra do Lions Club toda de novo.

Os dois agentes, porém, riram.

— Está vendo, Fred — disse o sentado se você pode manter seu senso de humor como agora, talvez consiga fazer.

— Fazer? — ecoou Fred. — Fazer o quê? A equipe? A garota? Sucesso? As conclusões? Fazer sentido? Dinheiro? Tempo? Defina o que quer dizer. A palavra latina para “fazer” é facere, que sempre me lembra de fuckere, que é “foder” em latim, e eu não...

 

“O cérebro dos animais superiores, inclusive o homem, é um órgão duplo, consistindo em hemisférios direito e esquerdo, conectados por um istmo de tecido nervoso chamado corpo caloso. Cerca de 15 anos atrás, Ronald E. Myers e R. W. Sperry, então na Universidade de Chicago, fizeram uma descoberta surpreendente: quando essa conexão entre as duas metades do cérebro foi cortada, cada hemisfério funcionou de forma independente, como se fosse um cérebro completo.”

 

— ... tenho entendido merda alguma ultimamente, merda de plástico ou qualquer outra, qualquer tipo de merda. Se vocês são psicólogos e andaram ouvindo meus relatórios intermináveis com Hank, como é que se pega a Donna? Como consigo chegar nela? Quer dizer, como se faz? Com esse tipo de garota doce, singular e teimosa?

— Cada garota é diferente — disse o agente sentado.

— Quero dizer, chegar nela eticamente — disse Fred. — E não a encher de vermelhas e álcool e depois meter nela enquanto ela está deitada no chão da sala.

— Compre flores para ela — disse o agente de pé.

— Quê? — disse Fred, arregalando os olhos filtrados pelo traje.

— Nesta época do ano, você pode comprar umas florezinhas de primavera. Na seção de plantas da, digamos, Penney’s ou da K Mart. Ou uma azaléia.

— Flores — murmurou Fred. — Quer dizer flores de plástico ou flores de verdade? As de verdade, eu acho.

— As de plástico não são boas — disse o agente sentado.

— Elas parecem... bem, falsas. Meio falsas.

— Posso sair agora? — perguntou Fred.

Depois de uma troca de olhares, os dois agentes assentiram.

— Vamos avaliar você outra hora, Fred — disse o de pé. — Não é tão urgente. Depois Hank vai notificá-lo de um horário.

Por algum motivo obscuro, Fred teve vontade de trocar um aperto de mãos com eles antes de sair, mas não o fez; ele só saiu, sem dizer nada, meio deprimido e meio desnorteado, devido, provavelmente, à forma como tinha sido dispensado, tão de repente. Eles vão repassar todo o meu material, pensou ele, tentando encontrar sinais de que estou ferrado e eles vão descobrir algum indício. O bastante, de qualquer modo, para querer aplicar esses testes.

Flores de primavera, pensou ele enquanto chegava ao elevador. Pequenininhas; elas provavelmente crescem perto do solo e um monte de gente pisa nelas. Elas são silvestres? Ou são criadas em vasos comerciais especiais ou em enormes fazendas fechadas? Fico imaginando como é o interior. Os campos e essas coisas, os cheiros estranhos. E, perguntou-se ele, onde se encontra isso? Aonde se vai e como fazer para chegar lá e ficar por lá? Que tipo de viagem é essa e que tipo de passagem tem? E de quem se compra a passagem?

E, pensou ele, eu queria levar alguém comigo quando fosse lá, talvez a Donna. Mas como pedir isso a ela, pedir a uma garota assim, quando você nem sabe como chegar nela? Quando você fica tramando sobre ela sem conseguir nada, nem mesmo dar o primeiro passo. A gente devia se apressar, pensou ele, porque depois todas as flores da primavera de que eles falaram estarão mortas.

 

  

   A caminho da casa de Bob Arctor, onde em geral se podia encontrar um bando de doidões para ficar ligado e relaxar por algum tempo, Charles Freck imaginou uma piada para enganar o velho Barris, retribuindo a sacanagem do baço no Restaurante Fiddler’s Three naquele dia. Em sua cabeça, enquanto evitava habilidosamente os radares que a polícia tinha em toda parte (as vans de radar da polícia que verificavam os motoristas em geral eram disfarçadas de velhas vans VW sujas, pintadas de um marrom desbotado, dirigidas por uns caras barbados; quando ele via uma dessas vans, reduzia), ele passou uma pré-estréia de fantasia de sua pegadinha:

FRECK: (Casualmente.) Comprei uma produção de met hoje que vai dar que nem mato.

BARRIS: (Com uma expressão irritada.) A metanfetamina é uma bolinha, como o speed, é anfetamina, feita sinteticamente em laboratório. Então não é orgânica, como a maconha. Não existe isso de met dar que nem mato como existe maconha dando que nem mato.

FRECK: (Soltando o final da piada.) Eu quis dizer que herdei quarenta mil de um tio e comprei uma fábrica escondida na garagem de um cara, onde ele faz met. Quer dizer, ele tem uma fábrica onde produz metanfetamina. É dar que nem mato no sentido de...

 

Ele não conseguiu elaborar a frase exata enquanto dirigia, porque parte de sua mente estava nos veículos em volta dele e nos sinais, mas sabia que, quando chegasse à casa de Bob, ia se dar bem para cima de Barris. E, especialmente se um monte de gente estivesse ali, Barris ficaria na berlinda e rapidinho ficaria claro para todos que ele era um idiota. E essa seria uma boa vingança, porque Barris, menos do que qualquer um, não agüentava que se divertissem à custa dele.

Quando encostou o carro, Freck encontrou Barris do lado de fora trabalhando no carro de Bob Arctor. O capô estava erguido e Barris e Arctor estavam juntos com uma pilha de ferramentas.

— Oi, cara — disse Freck, batendo a porta e perambulando casualmente. — Barris — disse ele imediatamente, de forma fria, colocando a mão no ombro de Barris para atrair a atenção dele.

— Depois — grunhiu Barris. Ele estava com as roupas de conserto; graxa e similares cobriam um tecido que já estava sujo.

Freck disse:

— Comprei uma produção de met hoje que vai dar que nem mato.

Com uma carranca impaciente, Barris disse:

— De que tamanho?

— Como assim?

— Um mato de que tamanho?

— Bem — disse Freck, imaginando como prosseguir.

— Quanto pagou por ela? — disse Arctor, também cheio de graxa do conserto do carro. Ele tinham tirado o carburador, como viu Freck, o filtro de ar, as mangueiras e tudo.

Freck disse:

— Uns dez paus.

— Jim podia ter conseguido mais barato — disse Arctor, reassumindo o trabalho. — Não podia, Jim?

— Eles praticamente me dão matagais de metanfetamina — disse Barris.

— Fica na porra de uma garagem! — protestou Freck. — Uma fábrica! Produz um milhão de comprimidos por dia, com a maquinaria de rolar as bolinhas e tudo. Tudo!

— E isso tudo custou dez dólares? — disse Barris, com um largo sorriso.

— Onde fica? — disse Arctor.

— Não fica perto daqui — disse Freck, inquieto. — Aí, fodam-se os dois.

Fazendo uma pausa no trabalho — Barris fazia muitas pausas no trabalho, quer estivessem falando com ele ou não Barris disse:

— Sabe de uma coisa, Freck, se você tomar ou injetar muita met vai começar a falar como o Pato Donald.

— E daí? — disse Freck.

— Daí que ninguém vai entender o que você falar.

Arctor disse:

— O que você disse mesmo, Barris? Não consegui entender.

Com o rosto dançando de contentamento, Barris imitou a voz do Pato Donald. Freck e Arctor sorriram e gostaram. Barris continuou, gesticulando, por fim, para o carburador.

— E o carburador? — disse Arctor, agora sem sorrir.

Barris, com a voz normal, mas ainda com um sorriso largo, disse:

— A haste do afogador entortou. Todo o carburador tem de ser refeito. Caso contrário, o afogador vai parar enquanto você estiver dirigindo pela via expressa e depois você vai ver que seu motor está inundado e morto e um babaca vai te rebocar. E é bem possível que, além disso, essa gasolina bruta inunde as paredes do cilindro, se sair por bastante tempo vai inundar a lubrificação, então seus cilindros vão se acabar e ficar estragados para sempre. E depois vai precisar que sejam retificados.

— Por que a haste do afogador entortou? — perguntou Arctor.

Dando de ombros, Barris voltou a desmontar o carburador e não respondeu. Ele deixou essa para Arctor e Charles

Freck, que nada sabiam de motores, em especial de consertos complexos como esse.

Vindo da casa, Luckman, usando uma camisa da moda e jeans Levis apertados de cós alto, portando um livro e usando óculos de sol, disse:

— Eu telefonei e eles vão ver se conseguem um carburador retificado para um carro desses. Vão telefonar daqui a algum tempo, então eu deixei a porta da frente aberta.

Barris disse:

— Não pode colocar um de quatro cilindros, em vez desse de dois, enquanto estiver em atividade. Mas vai ter de colocar um cano de distribuição novo. Podemos conseguir um usado mais barato.

— Vai girar demais em falso — disse Luckman — com um Rochester de quatro cilindros... é o que quer dizer? E não ia mudar a marcha adequadamente. Não ia subir.

— Os pulverizadores de ponto morto podem ser substituídos por pulverizadores menores — disse Barris — que iam compensar. E com um tacômetro ele pode ver as rotações, então não terá muita rotação. Ele ia saber pelo tacômetro quando não estava subindo. Em geral, só de soltar o pedal do acelerador já dá para subir, se a ligação automática para a transmissão não fizer isso. Eu sei onde podemos conseguir um tacômetro também. Na verdade, eu tenho um.

— Tá — disse Luckman —, bem, se ele pegar pesado ao reduzir a marcha para ter muito torque numa emergência na via expressa, vai aumentar tanto a rotação que vai explodir a vedação ou coisa pior, muito pior: explodir todo o motor.

Barris, pacientemente, disse:

— Ele ia ver a agulha do tacômetro pular e ia soltar o pedal.

— Enquanto ultrapassa? — disse Luckman. — No meio de uma ultrapassagem de uma porra de jamanta? Que merda, ele ia ter de continuar abusando dos cilindros, com alta rotação ou não; ia ter de acelerar o motor, em vez de reduzir, porque se reduzisse nunca ia contornar o que estava tentando ultrapassar.

— Um momento — disse Barris. — Em um carro com esse peso, o momento levaria ele até se ele reduzisse.

— E numa subida? — disse Luckman. — O momento não ia te levar muito longe numa subida se você estivesse ultrapassando.

Para Arctor, Barris disse:

— O que este carro... — Ele se curvou para ver qual era. — Este... — Seu lábios se mexeram. — Olds.

— Ele pesa uns 450 quilos — disse Arctor. Charles Freck o viu piscar para Luckman.

— Tem razão, então — concordou Barris. — Não haveria muita massa inercial com um peso tão pequeno. Ou haveria? — Ele procurou por uma caneta e alguma coisa onde escrever. — Quatrocentos e cinqüenta quilos viajando a 130 por hora dá uma força igual a...

— São 450 quilos — acrescentou Arctor — com os passageiros, o tanque cheio de gasolina e uma carga de tijolos na mala.

— Quantos passageiros? — disse Luckman, fingido seriedade.

— Doze.

— Isso dá seis atrás — disse Luckman — e seis na...

— Não — disse Arctor. — São 11 atrás e o motorista sozinho na frente. Então, como vê, teria mais peso nas rodas traseiras, para mais tração. Assim não ia guinar.

Barris olhou, alerta.

— Este carro dá guinada?

—A não ser que você leve 11 pessoas atrás — disse Arctor.

— Então é melhor colocar sacos de areia na mala — disse Barris. — Sacos de 1.500 quilos. Assim os passageiros podiam ser distribuídos mais igualmente e teriam mais conforto.

— E uma caixa de 300 quilos de ouro na mala? — perguntou Luckman a ele. — Em vez de sacos de 150 quilos...

— Dá um tempo, tá legal? — disse Barris. — Estou tentando calcular a força inercial desse carro viajando a 130 por hora.

— Eu não faço 130 — disse Arctor. — Ele tem um cilindro acabado. Foi o que quis dizer a você. Ele perdeu uma biela ontem à noite, quando eu vinha da 7-11.

— Então, por que estamos tirando o carburador? — quis saber Barris. — Temos de tirar todo o cabeçote. Na verdade, muito mais. Na verdade, você pode ter um motor rachado. Bom, é por isso que não dá a partida.

— Seu carro não dá a partida? — perguntou Freck a Bob Arctor.

— Ele não dá a partida — disse Luckman — porque tiramos o carburador.

Confuso, Barris disse:

— Por que a gente tirou o carburador? Eu esqueci.

— Para substituir todas as molas e pecinhas pequenininhas — disse Arctor. — Assim não vai se foder de novo e quase nos matar. O mecânico do posto Union nos aconselhou a fazer isso.

— Se vocês, cretinos, calassem essas matracas — disse Barris — de doidões de speed, eu podia concluir meus cálculos e dizer como esse carro, com seu peso, lidaria com um carburador Rochester de quatro cilindros modificado naturalmente com pulverizadores menores. — Agora ele estava genuinamente irritado. — Então CALEM A BOCA!

Luckman abriu o livro que trazia. Ele se inflou, depois, para muito maior do que o normal; seu peito grande inchou e o mesmo aconteceu com os bíceps.

— Barris, vou ler para você. — Ele começou a ler o livro, de forma particularmente fluente: — “Ele, a quem é dado ver Cristo mais real do que qualquer outra realidade...”

— Como é que é? — disse Barris.

Luckman continuou a ler:

— “...do que qualquer outra realidade no mundo, Cristo presente em toda parte e em toda parte tornando-se maior, Cristo, a determinação final e o Princípio plasmático do Universo...”

— O que é isso? — disse Arctor.

— Chardin. Teilhard de Chardin.

— Poxa, Luckman! — disse Arctor.

— "... que o homem vive em uma área em que nenhuma multiplicidade pode perturbá-lo e que é todavia a oficina mais ativa da satisfação universal.” — Luckman fechou o livro.

Muito apreensivo, Charles Freck se colocou entre Barris e Luckman.

— Fica fria aí, gente.

— Sai da frente, Freck — disse Luckman, recuando o braço direito, baixo, para dar um soco violento em Barris.

— Vem, Barris, eu vou te dar porrada até amanhã por falar de seus superiores desse jeito.

Com um berro de terror desenfreado e aterrador, Barris largou a esferográfica e o bloco de papel e fugiu erraticamente para a porta aberta da casa, gritando enquanto corria.

— Eu ouvi o telefone tocar; deve ser sobre o carburador retificado.

Eles o observaram ir.

— Eu só estava brincando com ele — disse Luckman, esfregando o lábio inferior.

— E se ele foi pegar a arma com o silenciador? — disse Freck, o nervosismo extrapolando totalmente. Ele andou devagar na direção do próprio carro estacionado, para se jogar rapidamente atrás dele se Barris reaparecesse atirando.

— Vamos — disse Arctor a Luckman; eles voltaram juntos a trabalhar no carro, enquanto Freck se demorava apre- ensivamente perto de seu próprio veículo, perguntando- se por que tinha decidido dar as caras por ali hoje. “Não havia nada de tranqüilo por aqui, absolutamente nada, como sempre houve.” Ele sentiu as vibrações ruins com a brincadeira desde o começo. Que porra estava errada?, ele se perguntou e voltou sombriamente para o próprio carro, para dar a partida.

Será que as coisas vão ficar pesadas e ruins por aqui também, imaginou ele, como aconteceu na casa de Jerry Fabin nas últimas semanas? Eu costumava relaxar aqui, pensou ele, todo mundo tomava uma e ficava ligado, curtindo acid rock, em especial os Stones. Donna ficava sentada aqui com o casaco e as botas de couro, enchendo cápsulas, Luckman enrolando baseados e contando do seminário que pretendia dar na UCLA sobre fumar e enrolar baseado e que um dia ele de repente ia enrolar o baseado perfeito e ele seria colocado debaixo de um vidro sob uma lâmpada de hélio no Constitution Hall, como parte da história americana, junto com aqueles outros objetos de importância semelhante. Quando penso no passado, refletiu ele, até quando Jim Barris e eu estávamos sentados no Fiddlers no outro dia... era melhor nessa época. Foi Jerry que começou isso, pensou ele; isso que baixou por aqui levou embora o Jerry. Como pode ser que os dias, os acontecimentos e os momentos tão bons fiquem tão rapidamente feios e sem nenhum motivo, sem nenhum motivo verdadeiro? Só mudam. Sem que nada tenha causado isso.

— Vou nessa — disse ele a Luckman e Arctor, que estavam vendo a rotação do motor.

— Não, fica aí, cara — disse Luckman com um sorriso caloroso. — Precisamos de você. Você é um irmão.

— Não, tô caindo fora.

Vindo da casa, Barris apareceu cautelosamente. Trazia um martelo.

— Foi engano — gritou ele, avançando com grande cautela, parando e olhando como um caranguejo em um filme de drive-in.

— Para que é o martelo? — disse Luckman.

Arctor disse:

— Para consertar o motor.

— Pensei que tinha trazido — explicou Barris enquanto voltava cauteloso para o Olds —, porque eu estava lá dentro e vi o martelo.

— O tipo mais perigoso de pessoa — disse Arctor — é aquela que tem medo da própria sombra. — Essa foi a última coisa que Freck ouviu enquanto partia; ele refletiu sobre o que Arctor quis dizer, se se referiu a ele, Charles Freck. Sentiu vergonha. Mas que merda, pensou, por que ficar aqui quando estão supermal desse jeito? Onde está a covardia nisso? Nunca participe de cenas ruins, lembrou-se ele; esse era o lema de sua vida. Então ele partiu, sem olhar para trás. Deixe que se matem, pensou. Quem precisa deles? Mas se sentiu mal, muito mal, por deixá-los e ter testemunhado a mudança sombria, e se perguntou de novo por que e o que significava, mas lhe ocorreu que talvez as coisas mudassem de novo e melhorassem e isso o animou. Na verdade, levou-o a rolar uma fantasia curta em sua cabeça enquanto dirigia, evitando carros da polícia invisíveis: TODOS VÃO FICAR SENTADOS COMO ANTES.

 

Até as pessoas que estavam mortas ou ferradas, como Jerry Fabin. Todas estavam sentadas aqui e ali numa espécie de luz branca e clara, que não era a luz do dia, mas uma luz melhor do que essa, uma espécie de mar que se estendia embaixo e acima deles.

Donna e outras duas garotas estavam muito gostosas — vestiam tops e calças sensuais ou tops sem sutiã. Ele podia ouvir música, embora não conseguisse distinguir que faixa era e de que disco. Talvez Hendrix!, pensou ele. E, uma faixa do velho Hendrix ou agora, de repente, era J. J. Todos eles: Jim Croce e J. J., mas especialmente Hendrix. “Antes de morrer”, murmurava Hendrix, “deixe-me viver minha vida como eu quiser”, e depois, imediatamente, a fantasia sumiu porque ele tinha se esquecido de que Hendrix estava morto e de como Hendrix e Joplin morreram, para não falar de Croce. Hendrix e J. J. Overdose de heroína, os dois, duas pessoas tão bacanas, dois seres humanos sensacionais, e ele se lembrou de que soube que o empresário de Janis só permitia que ela recebesse algumas centenas de dólares de vez em quando; ela não podia ter o resto, tudo o que ganhava, por causa do vício. E depois ele ouviu em sua cabeça a canção de Janis “Ali Is Loneliness” e começou a chorar. E, nesse estado, dirigiu para casa.

Na sala, sentado com os amigos e tentando decidir se precisava de um carburador novo, um carburador retificado ou uma modificação carburador-e-cano, Robert Arctor percebeu o exame constante e silencioso, a presença eletrônica dos holo-scanners. E se sentiu bem com isso.

— Você parece legal — disse Luckman. — Perder umas 100 pratas não ia me deixar legal.

— Eu decidi andar pela rua até encontrar um Olds igual ao meu — explicou Arctor e depois desparafusar o carburador e não pagar nada. Como todo mundo que conhecemos.

— Especialmente Donna — disse Barris, concordando.

— Eu queria que ela não tivesse vindo aqui no outro dia, quando a gente estava fora. Donna rouba as coisas que pode carregar e, se não puder carregar, ela telefona para uns amigos de uma gangue de ladrões e eles aparecem e levam para ela.

— Vou te contar uma história que soube da Donna — disse Luckman. — Uma vez, ela pôs uma moeda numa dessas máquinas automáticas de selo que operam com rolos e a máquina estava com defeito e só ficava rolando selos para fora. No final, ela estava com uma cesta de compras cheia. A máquina ainda ficou vomitando os selos. No final das contas, ela teve tipo... ela e os amigos ladrões contaram... mais de 18 mil selos americanos de 15 cents. Bom, isso foi legal, só que o que Donna Hawthorne ia fazer com eles? Ela nunca escreveu uma carta na vida, a não ser para o advogado, para processar um cara que ferrou com ela numa parada de drogas.

— A Donna fez issó* — disse Arctor. — Ela tem um advogado para usar em um processo por uma transação ilegal? Como pode fazer isso?

— Ela deve dizer simplesmente que o cara deve uma grana a ela.

— Imagine receber uma carta irritada, do tipo ou-paga- ou-vai-para-o-tribunal, de um advogado sobre um negócio ilegal — disse Arctor, surpreendendo-se com Donna, como freqüentemente acontecia.

— Mas aí — continuou Luckman — lá estava ela com uma cesta cheia de pelo menos 18 mil selos americanos de 15 cents e que diabos fazer com eles? Não dá para vender aos correios. Porque aí, quando os correios fizessem a manutenção na máquina, iam ver que estava com defeito e qualquer um que aparecesse em um guichê com todos aqueles selos de 15 cents, em especial um rolo deles... que merda, eles iam sacar; na verdade, eles iam esperar por Donna, né? Então ela pensou nisso... depois de, é claro, colocar o rolo de selos no MG dela e arrancar... e depois ela telefonou para outros daqueles ladrões com quem ela trabalhava e pediu que eles viessem com algum tipo de britadeira, resfriada a água e com silencioso a água, um daqueles troços especiais que, meu Deus, eles roubaram também, eles arrancaram a máquina de selos do concreto no meio da noite e levaram para a casa dela na traseira de um Ford Ranchero. Que eles devem ter roubado também. Para os selos.

— Quer dizer que ela vendeu os selos? — disse Arctor, surpreendendo-se. — De uma máquina de venda? Um por um?

— Eles a remontaram... foi isso que eu soube... eles recolocaram a máquina de selos em um cruzamento movimentado por onde passa muita gente, mas fora de vista, onde nenhum caminhão dos correios visse, e colocaram a máquina para funcionar de novo.

— Eles teriam sido mais espertos se simplesmente tivessem quebrado a caixa de moedas — disse Barris.

— E aí eles ficaram vendendo selos — disse Luckman — por tipo algumas semanas até que a máquina zerou, como tinha de acontecer naturalmente um dia. E que merda fizeram depois? Posso imaginar o cérebro de Donna trabalhando naquelas semanas, aquele cérebro de ladra da roça... A família dela é de origem camponesa, de um país europeu. Mas aí, quando a máquina ficou sem rolo, Donna decidiu convertê-la em máquina de refrigerantes, que é dos correios... eles estavam realmente precavidos. E você é incriminado para sempre por isso.

— Isso é verdade? — disse Barris.

— O que é verdade? — disse Luckman.

Barris disse:

— Essa garota é perturbada. Ela devia ser internada. Percebe que todos os nossos impostos aumentaram porque ela roubou aqueles selos? — Ele estava com raiva novamente.

— Escreva ao governo e conte a eles — disse Luckman, a face fria de repulsa por Barris. — Peça a Donna um selo para postar a carta, ela vai te vender um.

— Sem desconto — disse Barris, igualmente irritado.

Os holos, pensou Arctor, terão quilômetros e quilômetros disso em suas fitas caras. Não quilômetros e quilômetros de nada, mas quilômetros e quilômetros de uma trip gravada.

Não importava tanto o que ocorria enquanto Robert Arctor estava sentado diante de um holo-scanner, pensou ele; era o que acontecia — pelo menos para ele... para quem?... para Fred — enquanto Bob Arctor estava em outro lugar, ou dormindo, e os outros dentro do alcance do scanner. Então eu devia ir embora, pensou ele, como havia planejado, deixando esses caras, e mandar outras pessoas que eu conheço para cá. Eu devia tornar minha casa superacessível de agora em diante.

E depois uma idéia pavorosa e feia surgiu dentro dele. Suponha, quando eu tocar as gravações, que eu veja Donna quando ela está aqui, abrindo uma janela com uma colher ou com a lâmina de uma faca, entrando de mansinho e destruindo meus bens e roubando. Outra Donna: a garota que ela realmente é ou que ela é quando eu não posso vê-la. Como é a Donna quando ninguém está por perto para observá-la?

Será, perguntou-se ele, que uma garota gentil, adorável, sagaz e muito delicada, superdelicada se transforma instantaneamente em uma sonsa? Será que vou ver uma mudança que vai acabar com a minha cabeça? Donna ou Luckman, alguém de quem eu gosto. Como seu gato ou cachorro de estimação quando você está fora de casa... o gato esvazia um travesseiro e começa a enfiar seus bens valiosos nele: relógio elétrico e rádio de cabeceira, barbeador, tudo que pode enfiar antes de que você volte: outro gato inteiramente diferente enquanto você está fora, roubando você e empenhando suas coisas ou acendendo seus baseados ou andando pelo telhado, ou fazendo interurbano para as pessoas... Só Deus sabe. Um pesadelo, outro mundo estranho através do espelho, uma cidade de terror toda ao contrário, com entidades rastejantes irreconhecíveis; Donna arrastando-se de quatro, comendo de tigelas de animais... um tipo de viagem psicodélica maluca, imensurável e horrenda.

Que droga!, pensou ele; nesse aspecto, talvez Bob Arctor acorde no meio da noite de seu sono profundo e faça trips como essa. Tem relações sexuais com a parede. Ou aparecem uns caras misteriosos que ele nunca viu, um bando deles, com cabeças especiais que giram completamente, feito corujas. E os áudio-scanners vão pegar rapidinho os conspiradores dementes que maquinaram contra ele e depois explodir o banheiro dos homens do posto Standard, enchendo a privada de explosivos plásticos por Deus sabe que propósito de doidão. Talvez esse tipo de coisa aconteça toda noite enquanto ele simplesmente imagina que está dormindo — e tudo passe durante o dia.

Bob Arctor, especulou ele, pode receber novas informações sobre si mesmo, mais do que está preparado, mais do que deseja saber sobre Donna e seu casaquinho de couro e Luckman em suas roupas da moda e até Barris — talvez, quando ninguém está por perto, Jim Barris meramente vá dormir. E durma até que eles reapareçam.

Mas ele duvidava disso. Era mais provável que Barris sacasse um transmissor escondido da bagunça e do caos do quarto dele — que, como todos os outros cômodos da casa, agora pela primeira vez estava sob varredura 24 horas por dia — e mandasse um sinal secreto para outro bando de filhos-da-puta secretos com quem ele conspirava por quaisquer pessoas como ele ou eles conspiravam. Outro ramo, refletiu Bob Arctor, das autoridades.

Por outro lado, Hank e aqueles caras do centro não ficariam muito satisfeitos se Bob Arctor deixasse a casa agora que os monitores tinham sido instalados de forma cara e elaborada e nunca fosse visto novamente: nunca mais aparecesse em ponto nenhum das gravações. Ele não podia ir embora para satisfazer seus planos de vigilância pessoal à custa dos outros. Afinal, era o dinheiro deles.

No roteiro sendo filmado, ele teria de ser o ator principal o tempo todo. Ator, Arctor, pensou ele. Bob, o Ator, que está sendo caçado, ele que é o procurado número um.

Dizem que você não reconhece a própria voz quando a ouve pela primeira vez numa gravação. E quando você se vê em um videoteipe, ou como, nesse caso, em um holograma em 3D, você não se reconhece visualmente também. Você se imaginava gordo, alto e de cabelo preto, mas em vez disso é uma mulher magrela e baixinha sem cabelo nenhum... É assim? Tenho certeza de que vou reconhecer Bob Arctor, pensou ele, pelo menos pelas roupas que ele usa ou por um processo de eliminação. Quem não for Barris ou Luckman e morar aqui deve ser Bob Arctor. A não ser que seja um dos cães ou dos gatos. Vou tentar manter meu olho profissional treinado em qualquer coisa que ande ereta.

— Barris — disse ele vou sair pra ver se arranjo uns grãos. — Depois ele fingiu se lembrar de que não tinha carro; fez uma expressão desse tipo. — Luckman — disse ele —, seu Falcon está legal?

— Não — disse Luckman pensativamente, depois de ponderar —, acho que não.

— Posso pegar o seu carro, Jim? — perguntou Arctor a Barris.

— Estou me perguntando... se você sabe lidar com o meu carro — disse Barris.

Isso sempre surgia como uma defesa quando alguém tentava pegar o carro de Barris emprestado, porque Barris tinha feito modificações secretas inespecíficas nele, em

(a) suspensão,

(b) motor,

(c) transmissão,

(d) pára-choque traseiro,

(e) trem de direção,

(f) sistema elétrico,

(g) pára-choque frontal e volante

(h) e também no velocímetro, acendedor de cigarros, cinzeiro, porta-luvas. Em particular, o porta-luvas. Barris o mantinha sempre trancado. O rádio também tinha sido sutilmente alterado (nunca explicou como ou por quê). Quando se sintonizava numa emissora, só se conseguiam sinais eletrônicos a intervalos de um minuto. Todos os botões levavam a uma mesma transmissão que não fazia sentido e, estranhamente, nunca tocava rock algum. Às vezes, quando eles estavam acompanhando Barris numa compra e Barris estacionava e saía do carro, deixando-os sozinhos, ele sintonizava numa determinada emissora e colocava o volume muito alto. Se eles mudassem enquanto Barris estava fora, ele ficava incoerente e se recusava a falar no assunto ou até explicar. Ele ainda não tinha explicado isso. Provavelmente, quando sintonizado nessa freqüência, o rádio dele transmitia

(a) às autoridades,

(b) a uma determinada organização política paramilitar,

(c) ao sindicato,

(d) a extraterrestres de inteligência superior.

— O que eu quero dizer — disse Barris — é que ele vai rodar...

— Ah, vai se foder! — interrompeu Luckman asperamente. — É um motor comum de seis cilindros, seu mané. Quando a gente estacionou no centro de Los Angeles, o manobrista dirigiu. Então, por que o Bob não pode? Seu babaca!

Bob Arctor também tinha alguns dispositivos, algumas modificações encobertas e embutidas no rádio de seu próprio carro. Mas ele não ia falar nelas. Na verdade, era Fred que tinha. Ou outra pessoa, e eles fizeram algumas coisas um pouco como o que Barris afirmava que faziam seus vários dispositivos eletrônicos e, por outro lado, não faziam.

Por exemplo, toda viatura policial emite uma determinada interferência de amplo espectro que parece, nos rádios comuns de carro, um defeito nos supressores de faísca do veículo. Como se a ignição da viatura policial estivesse com defeito. Contudo, Bob Arctor, como policial, tinha recebido uma engenhoca que lhe dizia muita coisa quando ele a instalou dentro do rádio do carro, enquanto os ruídos não davam aos outros — à maioria das pessoas — absolutamente qualquer informação. Essas outras pessoas nem mesmo reconheciam a estática como informação. Primeiro, os subsons diferentes avisavam a Bob Arctor que ele estava perto do carro da polícia e, depois, que variedade de departamento ele representava: cidade ou condado, Patrulha Rodoviária ou federal, o que fosse. Ele também pegava os sinais com intervalos de um minuto que agiam como um controle de tempo para um carro estacionado; quem estivesse no carro estacionado podia determinar quantos minutos tinha esperado sem nenhum gesto óbvio do braço. Isso era útil, por exemplo, quando eles concordavam em chegar a uma casa em exatamente três minutos. O zt zt zt no rádio de seus carros lhes dizia precisamente quando se passaram três minutos.

Ele sabia também sobre a emissora AM que tocava as dez músicas de maior sucesso e entre elas uma enorme falação dos DJs, o que às vezes não era falação, de certa forma. Se essa emissora fosse sintonizada e a barulheira enchesse seu carro, qualquer um que casualmente escutasse ouviria uma emissora de música pop convencional e a típica tagarelice chata de um DJ e ou não prestaria atenção ou entenderia de alguma forma o fato de que o chamado DJ, de repente, exatamente no mesmo estilo tagarela animadinho em que dizia: “Agora aqui vai uma para Phil e Jane, uma nova canção de Cat Stevens chamada...”, de vez em quando dizia alguma coisa como: “Veículo azul seguindo a um quilômetro ao norte para Bastanchury e as outras unidades vão...” e assim por diante. Ele nunca — mesmo com todos os muitos caras e garotas que andavam com ele, mesmo quando tinha sido obrigado a se manter sintonizado na infoinstrução da polícia, como acontecia quando havia uma prisão importante ou qualquer grande ação que poderia envolvê-lo — viu alguém perceber. Ou, se percebiam, provavelmente pensavam que estavam chapados e paranóicos e se esqueciam do assunto.

Ele também sabia das muitas viaturas sem marcas, como velhos Chevys elevados na traseira com colunas altas (ilegais) e listras de corrida, com uns hippies que pareciam malucos dirigindo-os erraticamente em alta velocidade — ele sabia o que o rádio deles emitia na forma de estação de informações especiais e todas as freqüências, quando um deles zumbia ou passava voando por ele. Ele sabia ignorar.

Além disso, quando ele apertava o botão que supostamente trocava de AM para FM no rádio de seu carro, uma emissora em uma determinada freqüência gemia uma música indefinida do tipo Muzak, mas esse ruído transmitido a seu carro era filtrado, purificado pelo microfone- transmissor dentro do rádio, de modo que o que quer que dissessem dentro do carro era captado pelo equipamento e transmitido às autoridades, mas esta estação esquisita, independentemente do volume, não era recebida por eles e não interferia em nada; a grade a eliminava.

O que Barris afirmava haver feito tinha certa semelhança com o que ele, Bob Arctor, como policial sob disfarce, tinha em seu próprio rádio do carro, mas além disso, com relação a outras modificações, como suspensão, motor, transmissão etc., não havia alteração alguma. Isso não seria legal e seria óbvio. E, em segundo lugar, milhões de tarados também podiam fazer modificações perigosas em seus carros, então ele simplesmente conseguira verba para uma fresa bem potente para suas rodas e deixou ficar. Qualquer veículo de alta potência pode alcançar e deixar qualquer outro para trás. Barris era cheio de merda com essas coisas; uma Ferrari tinha suspensão, direção e volante que “nenhuma modificação especial” podia igualar; então, ao inferno com isso. E os policiais não podem dirigir carros esporte, nem os baratos. Muito menos Ferraris. Definitivamente, é a habilidade do motorista que decide tudo.

Mas ele recebeu outra verba policial. Pneus muito incomuns. Tinham mais do que faixas de aço por dentro, como a Michelin introduzira anos atrás em seus modelos X. Eram todos de metal e se gastavam rapidamente, mas tinham vantagens na velocidade e na aceleração. Sua desvantagem era o custo, mas ele os conseguiu de graça, de sua verba de serviço, que não era uma máquina de Dr. Pepper como a do dinheiro. Funcionava bem, mas ele podia conseguir verba somente quando era absolutamente necessário. Os pneus ele mesmo colocou quando ninguém estava olhando. Como tinha feito com as alterações no rádio.

O único medo sobre o rádio não era a detecção por algum xereta como Barris, mas o simples roubo. Tinha dispositivos adicionais cuja substituição seria cara se fossem roubados; ele precisaria inventar uma desculpa.

Naturalmente, ele também levava uma arma escondida no carro. Barris, em todas as suas fantasias sinistras de viagem de ácido, nunca teria descoberto seu esconderijo, onde a arma realmente estava. Barris teria imaginado um lugar exótico para escondê-la, como uma coluna de direção em uma câmara vazia. Ou dentro do tanque de gasolina, pendurada por um fio, como a coca no clássico filme Easy Rider, aliás, esse lugar, como esconderijo, era o pior em uma moto. Todo policial que tivesse visto esse filme deduziu de imediato o que psiquiatras inteligentes tinham concluído: que os dois motoqueiros queriam ser pegos e, se possível, mortos. A arma dele, no carro dele, estava no porta-luvas.

O treco pseudo-engenhoso a que Barris continuamente aludia em seu próprio carro devia ter alguma semelhança com a realidade, a realidade do carro modificado de Arctor, porque muitos dos truques de rádio que Arctor usava eram procedimento padrão e tinham sido demonstrados em programas noturnos de TV, nos talk shows da rede, por especialistas em eletrônica que ajudaram a projetá-los ou leram sobre eles em publicações especializadas ou os viram ou foram demitidos de laboratórios da polícia e guardavam rancor. Então o cidadão médio (ou, como sempre dizia Barris, de forma arrogante e quase educada, o cidadão médio típico) agora sabia que nenhum preto-e- branco corria o risco de mandar encostar um Chevy 57 veloz e envenenado com o que parecia um adolescente doidão ao volante com uma cerveja Coors — e depois descobrir que ele tinha parado um veículo disfarçado da Narcóticos em plena caça de sua vítima. Então o cidadão médio típico, naquela época, entendia como e por que existiam todos aqueles veículos da Narcóticos enquanto eles passavam rugindo, assustando velhas e caretas indignados que escreviam para reclamar, continuamente indicando sua identidade pelas ruas para os outros e para os colegas... Que diferença isso fazia? Mas o que faria mesmo a diferença — espantosa — seria se os punks, os donos de carros envenenados, os motoqueiros e especialmente os traficantes, mulas e aviões conseguissem construir e incorporar em seus carros similares esses dispositivos sofisticados.

Eles podiam então passar zunindo. Impunemente.

— Então eu vou nessa — disse Arctor, que era o que ele queria fazer; ele tinha armado com Barris e Luckman. Tinha de sair.

— Aonde você vai? — disse Luckman.

— À casa da Donna. — Ir à casa dela a pé era quase impossível; ao dizer isso, ele garantia que nenhum homem o acompanharia. Vestiu o casaco e dirigiu-se à porta da frente. — Depois a gente se vê.

— Meu carro... — continuou Barris como quem se desculpa.

— Se eu tentasse dirigir seu carro — disse Arctor —, ia apertar o botão errado e ele flutuaria sobre o centro da Grande Los Angeles como o dirigível da Goodyear e eles iam ter de me despejar borato nas chamas de um poço de petróleo.

— Ainda bem que você compreendeu minha posição — murmurou Barris quando Arctor fechou a porta.

Sentado ao lado do cubo de holograma do Monitor 2, Fred, em seu traje misturador, assistia impassível enquanto o holograma mudava continuamente diante de seus olhos. No apartamento seguro, outros observadores viam outros hologramas de outras fontes; a maioria gravações. Fred, porém, via um holograma ao vivo; gravava, mas ele tinha passado pela gravação para pegar a transmissão no momento em que ela era emitida da casa supostamente arruinada de Bob Arctor.

Dentro do holograma, em cores vivas, com alta resolução, estavam Barris e Luckman sentados. Na melhor poltrona da sala de estar, Barris estava curvado sobre um cachimbo de haxixe que ele vinha criando há dias. O rosto dele tornou-se uma máscara de concentração enquanto ele passava a corda em volta do fornilho do cachimbo. Na mesa de centro, Luckman curvou-se sobre uma refeição congelada de frango Swanson, comendo em grandes bocados enquanto via um western na TV. Quatro latas de cerveja — vazias — foram amassadas por seu punho forte na mesa; agora ele estendeu a mão para a quinta lata pela metade, derrubou-a, ela vazou, ele a pegou e xingou. Ao palavrão, Barris espiou, parecendo Mime em O anel dos Nibelungos, e voltou a trabalhar.

Fred continuou a ver.

— Merda de programação noturna da TV — gargarejou Luckman, a boca cheia de comida, e depois, de repente, ele largou a colher e ficou de pé num pulo vacilante, cambaleou, girou para Barris as mãos erguidas, gesticulando, sem dizer nada, a boca aberta e a comida meio mastigada caindo em suas roupas, no chão. Os gatos correram para ela ansiosamente.

Barris parou a fabricação do cachimbo de haxixe e olhou para o infeliz Luckman. Em um frenesi, agora gargarejando barulhos horríveis, Luckman, com uma das mãos, varreu as latas de cerveja e a comida da mesa de centro; tudo se espatifou no chão. Os gatos fugiram, apavorados. Ainda assim, Barris ficou sentado, olhando fixamente para ele. Luckman avançou alguns passos para a cozinha; o scanner dali, em seu cubo diante dos olhos apavorados de Fred, pegou Luckman enquanto ele tateava às cegas na semi-escuridão da cozinha procurando por um copo e tentava abrir a torneira para enchê-lo de água. No monitor, Fred deu um pulo; transfixado, no Monitor Dois, ele viu Barris, ainda sentado, voltar a laboriosamente enrolar a corda no fornilho de seu cachimbo de haxixe. Barris não desviou os olhos novamente; o Monitor Dois mostrou-o de novo mergulhado intensamente no trabalho.

O áudio explodia em sons de agonia dilacerantes; o sufocamento humano e o alarido furioso de objetos batendo no chão enquanto Luckman atirava panelas, caçarolas, pratos e pires numa tentativa de atrair a atenção de Barris. Barris, em meio ao barulho, continuava metodicamente com seu cachimbo e não desviou os olhos de novo.

Na cozinha, no Monitor Um, Luckman desabou no chão, não devagar, de joelhos, mas completamente, com um baque surdo e ficou deitado ali, esparramado. Barris continuou a enrolar a corda no cachimbo e agora um sorrisinho falso apareceu em seu rosto, nos cantos da boca.

De pé, Fred encarou chocado, ao mesmo tempo galvanizado e paralisado. Pegou o telefone da polícia ao lado do monitor e parou, ainda observando.

Por vários minutos, Luckman ficou deitado no chão da cozinha, sem se mexer, enquanto Barris enrolava a corda. Barris estava curvado como uma velha concentrada tricotando, sorrindo para si mesmo, sorrindo sem parar, e balançava-se um pouco; depois, de repente, Barris atirou longe o cachimbo de haxixe, levantou-se, olhou atentamente para a forma de Luckman no chão da cozinha, o copo de água quebrado ao lado dele, todos os cacos e panelas e pratos quebrados, e depois o rosto de Barris reagiu subitamente com um terror fingido. Barris tirou os óculos escuros, os olhos arregalados grotescamente, bateu os braços em um pavor desamparado, correu um pouco por ali, depois precipitou-se para Luckman, parando a pouca distância dele, correu de volta, agora ofegando.

Estava fazendo sua cena, percebeu Fred. Estava encenando o Pânico e a Descoberta juntos. Como se tivesse acabado de chegar. Barris, no cubo do Monitor 2, girou o corpo, arfou de pesar, o rosto vermelho-escuro, e depois cambaleou para o telefone, ergueu-o, deixou-o cair, pegou-o com os dedos trêmulos... Ele acabara de descobrir que Luckman, sozinho na cozinha, tinha morrido sufocado com um pedaço de comida. E agora Barris estava tentando freneticamente conseguir ajuda. Tarde demais.

Ao telefone, Barris dizia, numa voz estranha, aguda e lenta: “Telefonista, chame a brigada de inalação ou a brigada de ressuscitação.”

“Senhor”, guinchou o fone para Fred, “tem alguém incapaz de respirar? Quer que...”

“Acho que é uma parada cardíaca”, estava dizendo agora a voz de Barris ao telefone em seu tom calmo, lento, urgente, de profissional, uma voz implacável com a consciência do perigo, da gravidade e da escassez de tempo. “Ou isso ou aspiração involuntária de uma massa de comida no...”

“Qual é o endereço, senhor?”, interrompeu a telefonista. “O endereço”, disse Barris, “deixe-me ver, o endereço é...” Fred, em voz alta, de pé, disse:

— Meu Deus!

De repente, Luckman, estendido no chão, ergueu-se convulsivamente. Estremeceu e expeliu o material que lhe obstruía a garganta, sacudiu-se e abriu os olhos, que encaravam numa confusão crescente.

“Olha, parece que está tudo bem agora”, disse Barris com delicadeza ao telefone. “Obrigado, não será necessária assistência alguma, afinal.” Ele desligou rapidamente.

“Meu Deus”, murmurou Luckman numa voz grossa enquanto se levantava. “Que merda!” Ele ofegava, tossindo e lutando para respirar.

“Você está bem?”, perguntou Barris, num tom preocupado. “Eu devo ter engasgado. Eu desmaiei?”

“Não exatamente. Mas você entrou em um estado alterado de consciência. Por alguns segundos. Provavelmente um estado alfa.”

“Meu Deus! Eu me sujei!” De forma instável, cambaleando de fraqueza, Luckman conseguiu se colocar de pé e ficou oscilando, tonto, segurando-se na parede para se apoiar. “Eu devo estar mesmo me acabando”, murmurou ele, com nojo. “Como um doidão velho.” Ele foi até a pia para se lavar, os passos incertos.

Observando tudo isso, Fred sentiu o medo se esvair dele. O homem ia ficar bem. Mas Barris! Que tipo de pessoa era ele? Luckman tinha se recuperado apesar dele. Mas que sujeitinho!, pensou. Que pervertido! Onde estava a cabeça dele para ficar parado daquele jeito?

“Assim um cara pode empacotar”, disse Luckman enquanto se lavava na pia.

Barris sorriu.

“Eu tenho uma constituição bem forte mesmo”, disse Luckman, bebendo água de uma caneca. “O que você estava fazendo enquanto eu estava deitado aqui? Batendo uma punheta?”

“Você me viu ao telefone”, disse Barris. “Chamando os paramédicos. Eu entrei em ação em...”

“Uma ova”, disse Luckman amargamente e bebeu mais água fresca. “Eu sei o que você ia fazer se eu morresse: ia roubar meu esconderijo. Você ia até vasculhar meus bolsos.” “É incrível”, disse Barris, “a limitação da anatomia humana, o fato de que comida e ar devem dividir a mesma passagem. Então há risco de...”

Em silêncio, Luckman mostrou o dedo médio a ele.

 

Pneus cantando. Uma buzina. Bob Arctor olhou rapidamente para o trânsito noturno. Um carro esporte, o motor ligado, junto ao meio-fio; dentro dele, uma garota acenava para ele.

Donna.

— Meu Deus — disse ele novamente. Ele foi até o meio-fio.

Abrindo a porta do MG, Donna disse:

— Eu te assustei? Passei por você quando estava indo para casa e percebi que era você andando, então peguei o retorno e voltei. Entra aí.

Silenciosamente, ele entrou e fechou a porta do carro.

— Por que está a pé? — disse Donna. — Por causa do seu carro? Ainda não foi consertado?

— Acabei de ter uma viagem estranha — disse Bob Arctor. — Não como uma viagem de fantasia, só... — ele estremeceu.

Donna disse:

— Estou com as suas coisas.

— O quê? — disse ele.

— Mil tabletes de morte.

— Morte? — ecoou ele.

— E, morte de alta qualidade. E melhor a gente ir. — Ela engrenou a primeira, saiu do acostamento e pegou a rua; quase de imediato já estava dirigindo rápido demais. Donna sempre dirigia rápido demais e colava nos outros carros, mas sabia o que fazia.

— Aquele puto do Barris! — disse ele. — Sabe como ele age? Ele não mata ninguém que ele quer morto; só fica por perto até surgir a situação em que eles morrem. E ele só fica sentado ali, enquanto eles morrem. Na verdade, ele os prepara para morrer enquanto fica por perto. Mas não tenho certeza de como faz isso. De qualquer forma, ele dá um jeito para que eles morram. — Ele caiu em silêncio então, ruminando. — Tipo assim — disse ele Barris não conectaria explosivos plásticos no sistema de ignição de seu carro. O que ele ia fazer...

— Está com o dinheiro? — disse Donna. — Para a parada? É de primeira mesmo e preciso do dinheiro agora. Preciso ter o dinheiro esta noite porque vou ter de comprar outras coisas.

— Claro. — O dinheiro estava na carteira dele.

— Não gosto do Barris — disse Donna enquanto dirigia — e não confio nele. Acho que é maluco. E quando você está perto dele, fica maluco também. E depois, quando você não está com ele, você fica legal. Agora você está maluco.

— Estou? — disse ele, sobressaltado.

— Está — disse Donna calmamente.

— Bom... — disse ele. — Meu Deus! — Ele não sabia o que dizer a ela. Em especial porque Donna não estava errada.

— Olha — disse Donna com entusiasmo —, pode me levar a um show de rock? No Anaheim Stadium, na semana que vem? Você pode?

— Claro — disse ele mecanicamente. E depois percebeu o que Donna tinha dito: pedindo a ele para levá-la para sair. — Claaaaro! — disse ele, satisfeito. A vida voltou para ele. Novamente, a garotinha de cabelo escuro que ele amava tanto o havia restaurado. — Que noite?

— No domingo à tarde. Vou levar um pouco daquele haxixe gorduroso e preto e ficar bem chapada. Eles não vão saber a diferença, vai ter milhares de doidões por lá. — Ela olhou para ele, criticamente. — Mas você vai ter de vestir uma roupa legal, não essas roupas esquisitas que às vezes usa. Quer dizer... — A voz dela se suavizou. — Eu queria que você ficasse um gato, porque você é um gato.

— Tudo bem — disse ele, encantado.

— Estamos indo para a minha casa — disse Donna enquanto disparava pela noite no carrinho — e você está com o dinheiro e vai dar para mim e depois vamos tomar uns tabletes, ficar doidões e bem relaxados e talvez você vá querer comprar pra gente uma garrafa de Southern Comfort e a gente pode ficar de porre também.

— Legal! — disse ele com sinceridade.

— O que eu quero fazer mesmo hoje à noite — disse Donna enquanto reduzia, entrava na rua em que morava e chegava à entrada de carros — é ir a um drive-in. Comprei um jornal e li, mas não consegui achar nada de bom, a não ser no Torrance Drive-in, mas já começou o filme. Começou às cinco e meia. Que saco!

Ele olhou o relógio.

— Então perdemos...

— Não, a gente ainda pode ver a maior parte dele. — Ela deu um sorriso caloroso para ele enquanto parava o carro e desligava o motor. — São todos os filmes de O planeta dos macacos, todos os 11; eles começam às sete e meia da noite e vão direto até as oito da manhã de amanhã. Vou trabalhar diretamente do drive-in, então tenho de me trocar agora. Vamos ficar sentados lá no cinema, chapados e bebendo Southern Comfort a noite toda. Cara, dá pra sacar?

— Ela olhou para ele cheia de esperança.

— Tudo bem — repetiu ele.

— Tá, tá, tá. — Donna saltou do carro e voltou para ajudá-lo a abrir a portinha. — Quando foi a última vez em que você viu os filmes de O planeta dos macacos? Eu vi a maioria deles no início do ano, mas depois passei mal em um dos últimos e precisei sair. Foi um sanduíche de presunto que me venderam no drive-in. Isso me deixou muito puta, perdi o último filme, onde revelavam que todas as pessoas famosas da história, como Lincoln e Nero, eram macacos disfarçados e dirigiram toda a história humana desde o começo. E por isso que eu quero tanto ir agora. — Ela baixou o tom de voz enquanto eles seguiam para a porta da casa. — Eles me ferraram vendendo aquele sanduíche de presunto, e aí... não vai me dedurar... da vez seguinte que a gente foi ao drive-in, aquele em La Habra, enfiei uma moeda torta na fenda e em outras máquinas de venda além daquela. Eu e Larry Talling... lembra do Larry, aquele cara com quem eu estava saindo? Nós entortamos um monte de moedas de 25 e de cinqüenta usando o torno e uma chave inglesa dele. Tive o cuidado de ver se todas as máquinas de venda eram da mesma empresa, é claro, e depois arrasamos um monte delas, praticamente todas, pra dizer a verdade. — Ela abriu a porta da frente com a chave, lenta e arrastada, à luz fraca.

— Não é um bom negócio te enganar, Donna — disse ele enquanto os dois entravam na casa pequena e arrumada.

— Não pise no carpete felpudo — disse ela.

— Onde vou pisar, então?

— Fique parado ou pise nos jornais.

— Donna...

— Agora não vá ficar cheio de merda por ter de andar em jornais. Sabe quanto me custou mandar lavar o carpete?

— Ela estava parada, desabotoando o casaco.

— Economia — disse ele, tirando o próprio casaco. — Economia de merda. Já jogou alguma coisa fora? Você guarda barbantes curtos demais para...

— Um dia — disse Donna, sacudindo o longo cabelo preto nas costas enquanto tirava o casaco de couro — vou me casar e precisarei disso tudo, de tudo o que guardei. Quando você se casou, precisou de tudo isso. Tipo assim, você viu aquele espelho grande no jardim ao lado da porta; foram necessárias três pessoas por mais de uma hora para passar o espelho pela cerca. Um dia...

— Quanto do que você guarda foi comprado — perguntou ele — e quanto você roubou?

— Comprado? — Ela estudou o rosto dele sem ter certeza. — O que quer dizer com comprado?

— Como quando você compra drogas — disse ele. — Uma parada com as drogas. Como agora. — Ele pegou a carteira. — Eu dou o seu dinheiro, não é?

Donna assentiu, observando-o obedientemente (na verdade, mais por educação), mas com dignidade. Com uma certa reserva.

— E depois você me entrega o monte de drogas por isso — disse ele, estendendo as notas. — O que eu quero dizer com comprar é uma extensão no mundo das transações humanas dos negócios que temos agora, conosco, como a parada com as drogas.

— Acho que entendi — disse ela, os olhos grandes e escuros, plácidos, mas atentos. Ela estava disposta a aprender.

— Quantas... como na vez em que roubou o caminhão da Coca-Cola em que você ficou na cola naquele dia... quantas garrafas de Coca você roubou? Quantos engradados?

— O equivalente a um mês — disse Donna. — Para mim e meus amigos.

Ele olhou para ela de forma reprovadora.

— É uma forma de escambo — disse ela.

— O que você... — Ele começou a rir. — O que você deu em troca?

— Eu dei a mim mesma.

Agora ele riu alto.

— A quem? Ao motorista do caminhão, que deve ter se dado bem...

— A Coca-Cola Company é um monopólio capitalista. Ninguém mais pode fazer Coca-Cola, só eles, como a companhia telefônica, quando você quer ligar para alguém. Todos são monopólios capitalistas. Você sabe — os olhos dela brilharam — que a fórmula da Coca-Cola é um segredo muito bem guardado, transmitido há séculos, que só algumas pessoas conhecem, todas da mesma família, e quando morrer a última delas que tiver a fórmula memorizada não terá mais Coca-Cola? Então tem uma fórmula escrita em um lugar seguro — acrescentou ela, meditativamente. — Queria saber onde — ruminou ela para si mesma, os olhos vibrando.

— Você e seus amigos ladrões nunca vão descobrir a fórmula da Coca-Cola, nem em um milhão de anos.

— QUEM VAI QUERER FABRICAR A PORRA DA COCA-COLA QUANDO PODE ROUBAR OS CAMINHÕES DELES? Eles têm um monte de caminhões. A gente vê eles andando por aí, o tempo todo, bem devagar. Eu colo na traseira deles sempre que posso; eles me deixam maluca. — Ela deu um sorrisinho misterioso, sagaz, adorável e travesso para ele, como se tentasse seduzi-lo a entrar na estranha realidade dela, onde ela colava na traseira de um caminhão lento, ficava cada vez mais irritada e mais impaciente, e depois, quando ele encostava, em vez de passar por ele como fariam outros motoristas, ela também encostava e roubava tudo o que tinha no caminhão. Não tanto por ser ladra ou por vingança, mas porque na hora em que finalmente encostou ela vira os engradados por tanto tempo que deduziu o que podia fazer com todos eles. A impaciência rendera a engenhosidade. Ela estava com o carro — não o MG, mas um Camaro maior que dirigia na época, antes de acabar com ele — com engradados e mais engradados de Coca-Cola, e depois, por um mês, ela e todos os amigos bacacas beberam toda a Coca-Cola de graça que quiseram e depois disso...

Ela devolveu as garrafas vazias a diferentes lojas em troca do depósito.

— O que você faz com as tampas das garrafas? — ele perguntou a ela um dia. — Embrulha em musselina e guarda em sua arca de cedro?

— Eu jogo fora — disse Donna, mal-humorada. — Não se pode fazer nada com tampas de Coca-Cola. Não tem mais concurso, nem nada disso.

Agora ela desapareceu no outro cômodo e voltou com vários sacos de polietileno. — Quer contar estes? — perguntou ela. — Tem mil com toda a certeza. Eu pesei na minha balança antes de pagar por eles.

— Está tudo bem — disse ele. Ele aceitou os sacos, ela aceitou o dinheiro e ele pensou: “Donna, mais uma vez eu podia te entregar, mas provavelmente nunca vou ligar para o que você faz, mesmo que seja comigo, porque há algo maravilhoso, cheio de vida e doce em você, e eu nunca destruiria isso. Não entendo, mas é assim.”

— Posso ficar com dez? — perguntou ela.

— Dez? Dez tabletes de volta? Claro. — Ele abriu um dos sacos — era difícil de desamarrar, mas ele era habilidoso — e contou precisamente dez para ela. E depois dez para si mesmo. E amarrou o saco de novo. E depois levou todos os sacos para o casaco no armário.

— Sabe o que eles fazem agora nas lojas de fitas cassetes? — disse Donna toda animada quando ele voltou. Agora os dez tabletes não estavam à vista, ela já os havia escondido. — As fitas de gravação?

— Eles te prendem — disse ele — se as roubar.

— Sempre fizeram isso. Agora o que eles fazem... sabe quando você leva um disco ou uma fita até o balcão e o vendedor tira a etiqueta de preço que está colada neles? Bom, adivinha só. Adivinha o que eu descobri, quase do pior jeito. — Ela se atirou em uma cadeira, sorrindo de expectativa, e pegou um cubinho embrulhado em alumínio que ele identificou como um fragmento de haxixe mesmo antes de ela desembrulhar. — Não é só uma etiqueta colada. Também é um pedacinho minúsculo de uma liga metálica e, se a etiqueta não for retirada pelo vendedor, e você tentar sair pela porta com ela, o alarme dispara.

— Como você descobriu isso quase do pior jeito?

— Uma adolescente tentou sair com uma debaixo do casaco na minha frente, o alarme disparou, eles pegaram e a polícia chegou.

— Quantos você colocou debaixo do casaco?

— Três.

— Você também tinha drogas no seu carro? — disse ele. — Porque depois que foi pega por roubar as fitas eles iam recolher seu carro, porque você ia ser vigiada no centro, o carro seria rebocado o tempo todo e depois eles iam descobrir as drogas e te prender por isso também. Aposto que não foi na cidade, aposto que você fez isso onde... — ele começara a dizer. Onde você não conhece ninguém da polícia que possa intervir. Mas ele não podia dizer isso, porque implicava a si mesmo; se Donna fosse pega, pelo menos onde ele tinha alguma influência, ele faria de tudo para ajudá-la. Mas ele não podia fazer nada, digamos, no condado de Los Angeles. E se isso acontecesse, o que um dia ia acontecer, assim seria: rápido demais para ele tomar conhecimento ou ajudar. Agora ele tinha um cenário tocando em sua cabeça, uma fantasia de terror: Donna, como Luckman, morrendo sem que ninguém ouvisse, nem se importasse, nem fizesse alguma coisa; eles podiam ouvir, mas eles, como Barris, continuariam impassíveis e imóveis até que tudo estivesse acabado para ela. Ela não morreria literalmente, como aconteceu com Luckman — morreria? Ele quis dizer que podia. Mas ela, sendo viciada na Substância D, não só estaria na cadeia, mas teria de passar pela crise de abstinência. E uma vez que ela traficava, não só usava — e havia punição por roubo também —, ela iria em cana por algum tempo e um monte de outras coisas, coisas apavorantes, aconteceriam com ela. E depois, quando ela voltasse, seria uma Donna diferente. A expressão suave e carinhosa de que ele gostava tanto, o calor — isso seria transformado em Deus sabe o quê. Algo vazio e usado demais. Donna traduzida em uma coisa e era o que ia acontecer com todos eles um dia, mas com Donna, assim ele esperava, muito mais e bem além de sua própria vida. E não onde ele não pudesse ajudar.

— Fantasminha — disse ele a ela agora, de um jeito infeliz —, mas nada Camarada.

— O que é isso? — Depois de um momento, ela entendeu. — Ah, a terapia TA. Mas quando eu fumo um... — Ela havia apanhado o próprio cachimbinho de cerâmica para haxixe, como um corrupio, que ela mesma fez, e estava acendendo. — Eu viro Soneca. — Olhando para ele, os olhos brilhantes e felizes, ela riu e estendeu o precioso cachimbo de haxixe. — Vou te sobrecarregar — declarou ela. — Senta aí.

Enquanto ele se sentava, ela se levantou, ficou fumando o cachimbo animadamente, depois andou até ele, curvou-se e, enquanto ele abria a boca — como um filhote de passarinho, pensou ele, como ele sempre pensava quando ela fazia isso —, ela exalou grandes jatos cinzentos e vigorosos de fumaça de haxixe nele, enchendo-o de seu próprio calor, ousadia e energia incorrigíveis, o que era ao mesmo tempo um tranqüilizante que relaxava os dois: ela, que sobrecarregava, e Bob Arctor, que recebia.

— Eu te amo, Donna — disse ele. Essa sobrecarga, isso era o substituto que ele tinha para as relações sexuais com ela, e talvez fosse melhor; valia muito; não só era íntimo e muito estranho se visto dessa forma, porque primeiro ela podia colocar alguma coisa dentro dele e depois, se ela quisesse, ele colocava algo dentro dela. Como uma troca, de um lado para outro, até que o haxixe acabasse.

— E, eu entendo a sua paixão por mim — disse ela, dando uma risadinha, sentada ao lado dele, sorrindo, agora para dar uma tragada no cachimbo para ela mesma.

 

 

— Ei, Donna, aí — disse ele. — Você gosta de gatos?

Ela pestanejou, os olhos vermelhos.

— Coisinhas piegas. Andando acima do chão.

— Acima não, em cima do chão.

— Piegas. Atrás dos móveis.

— Florezinhas de primavera, então — disse ele.

— É — disse ela. — Essa eu saco... florezinhas de primavera, com um amarelo nelas. As primeiras que aparecem.

— Antes — disse ele. — Antes de alguém.

— É. — Ela assentiu, os olhos fechados, na própria trip.

— Antes que alguém pise nelas e elas... morram.

— Você me entende — disse ele. — Você entende o que eu digo.

Ela se deitou de costas, baixando o cachimbo de haxixe. Tinha acabado.

— Não entendo mais — disse ela e seu sorriso lentamente desapareceu.

— Qual é o problema? — disse ele.

— Nada. — Ela sacudiu a cabeça e só.

— Posso te abraçar? — disse ele. — Eu queria segurar você. Tudo bem? Te abraçar? Tudo bem?

Os olhos escuros, alargados, sem foco e cansados abriram-se.

— Não — disse ela. — Não, você é feio demais.

— Quê? — disse ele.

— Não! — disse ela, agora incisivamente. — Eu cheirei muita coca, tenho de ser supercuidadosa porque cheirei muita coca.

— Feio! — ecoou ele, furioso com ela. — Vai se foder, Donna!

— Só deixe o meu corpo em paz — disse ela, encarando-o.

— Claro — disse ele. — Claro. — Ele se levantou e recuou.

— Pode acreditar nisso. — Ele teve vontade de ir até o carro, pegar a pistola no porta-luvas e atirar na cara dela, explodindo o crânio e os olhos de Donna. E depois isso passaria essa mistura de ódio e fúria. — Vai se foder — disse ele com tristeza.

— Não gosto que as pessoas peguem meu corpo — disse Donna. — Eu tenho de tomar cuidado com isso porque uso muita coca. Um dia pretendo ir para a fronteira do Canadá com dois quilos de coca na minha buceta. Vou dizer que sou católica e virgem. Aonde você vai? — Agora ela estava alarmada, ela ergueu meio corpo.

— Vou cair fora — disse ele.

— Seu carro está na sua casa. Eu te levo. — A garota lutou para se levantar, desgrenhada, confusa e meio adormecida, vagando até o armário para pegar o casaco de couro. — Eu te levo lá. Mas você pode entender por que eu tenho de proteger minha buceta. Dois quilos de coca valem...

— De jeito nenhum — disse ele. — Você está chapada demais para dirigir até por três metros e não deixa ninguém dirigir a porra do seu patim.

Encarando-o, ela gritou furiosa:

— Isso porque ninguém mais consegue dirigir a porra do meu carro! Ninguém faz direito, especialmente nenhum homem! Nem dirigir nem nada! Você estava com as mãos no meu...

E depois ele estava em algum lugar do lado de fora, na escuridão, andando, sem casaco, em uma parte estranha da cidade. Ninguém com ele. Totalmente só, pensou ele, e depois ouviu Donna correndo atrás dele, tentando alcançá-lo, ofegando, porque ultimamente ela andava fumando maconha e haxixe demais e os pulmões estavam meio obstruídos de resina. Ele parou, ficou parado, sem se virar, esperando, sentindo-se muito deprimido.

Aproximando-se dele, Donna reduziu o ritmo, ofegando.

— Eu peço mil desculpas por ter magoado você. Pelo que eu disse. Eu estava pirada.

— E — disse ele. — Feio demais!

— As vezes, quando eu trabalho o dia todo e estou super, supercansada, o primeiro tapa me deixa doidona. Quer voltar? Ou o quê? Quer ir ao drive-in? E o Southern Comfort? Não posso comprar... não vão vender para mim — disse ela e fez uma pausa. — Eu sou menor de idade, né?

— Tudo bem — disse ele. Juntos, eles voltaram caminhando.

— E um haxixe dos bons, não é? — disse Donna.

Bob Arctor disse:

— E haxixe preto, o que significa que é saturado de alcalóides do ópio. O que você está fumando é ópio e não haxixe... sabia disso? E por isso que custa tão caro... sabia disso? — Ele ouviu a própria voz se elevar; parou de andar.

— Não está fumando haxixe, meu bem. Estava fumando ópio e isso significa um hábito de toda a vida a um custo de... Vendem o quilo de haxixe por quanto? E você vai ficar fumando e dando cabeçada, não vai conseguir engrenar seu carro e colar em caminhões, e precisará dele todo dia antes de ir para o trabalho...

— Eu preciso agora — disse Donna. — Preciso dar uns tapas antes de ir trabalhar. E ao meio-dia, e assim que eu chegar em casa. E por isso que eu trafico, para comprar meu haxixe. Haxixe relaxa. Haxixe é o bicho.

— Ópio — repetiu ele. — Por quanto vendem o haxixe agora?

— Uns vinte mil dólares o quilo — disse Donna. — O dos bons.

— Meu Deus! Quase o preço da heroína.

— Eu nunca uso agulha. Nunca usei e nunca vou usar. Você dura seis meses quando começa a tomar pico, qualquer coisa que aplicar. Até água da bica. Você pega o vício...

— Você já tem um vício.

Donna disse:

— Todos nós temos. Você toma a Substância D. E daí? Qual é a diferença? Eu estou feliz. Você não está feliz? Preciso ir para casa e fumar um haxixe do bom a noite inteira... é a minha viagem. Não procure me mudar. Nem tente me mudar. A mim ou a meus costumes. Eu sou o que sou. E viajo com haxixe. E a minha vida.

— Alguma vez já viu fotos de um velho fumante de ópio? Como na China, nos velhos tempos? Ou um fumante de haxixe na índia agora, que parece que eles usam quando ficam mais velhos?

Donna disse:

— Eu não espero viver muito. E daí? Não quero ficar por aqui muito tempo. Você quer? Por quê? O que tem neste mundo? E você já viu... que merda, o Jerry Fabin; aí está alguém que foi longe demais na Substância D. O que tem realmente neste mundo, Bob? E um lugar de parada para o próximo, onde eles nos castigam aqui porque nascemos maus...

— Você é mesmo católica.

— A gente está sendo castigada aqui; então, se pudermos fugir em uma trip de vez em quando, que se foda, vamos fugir. Outro dia eu quase bati com meu MG quando ia para o trabalho. Eu tinha ligado o aparelho de som de oito faixas, estava fumando meu haxixe e não vi aquele velho num Ford Imperator 84...

— Você é muito tapada — disse ele. — Supertapada.

— Eu, sabe como é, eu vou morrer cedo. De qualquer forma. O que quer que eu faça? Provavelmente na via expressa, mal tenho freio no meu MG, tá entendendo? E eu recebi quatro multas por velocidade só este ano. Agora tenho de ir para a escola de direção. E um saco! Seis meses inteiros lá.

— Então um dia — disse ele —, de repente, eu não vou mais te ver. Não é? Nunca mais.

— Por causa da escola de direção? Não, depois dos seis meses...

— No cemitério — explicou ele. — Morta antes de ter permissão, de acordo com as leis da Califórnia, a porra das leis da Califórnia, de comprar uma lata de cerveja ou uma garrafa de birita.

— E! — exclamou Donna, alerta. — O Southern Comfort! Agora! Vamos comprar uma garrafa de Southern Comfort e tomar nos filmes dos Macacos? Vamos? Ainda faltam oito, inclusive aquele...

— Olha aqui — disse Bob Arctor, pegando-a pelo ombro; ela instintivamente se afastou.

— Não — disse ela.

Ele disse:

— Sabe o que eles devem deixar você fazer uma vez? Talvez só uma vez? Deixar você ser ilegal só uma vez e comprar uma lata de cerveja.

— Por quê? — disse ela, assombrada.

— Um presente pra você porque você é boa — disse ele.

— Eles me serviram uma vez! — exclamou Donna, deliciada. — Em um bar! A garçonete... eu estava toda produzida e com algumas pessoas... me perguntou o que eu queria e eu disse: “Vou tomar um Collins de vodca” e ela me serviu. Foi no La Paz, também, que é um lugar bem legal. Cara, dá pra acreditar nisso? Eu tinha decorado, o Collins de vodca, de um anúncio que vi. Então, se eu um dia tivesse de pedir em um bar como esse, ia ficar bacana. Não é? — Ela de repente passou o braço pelo dele e o abraçou enquanto andavam, algo que ela quase nunca fazia. — Foi a maior superviagem da minha vida.

— Então eu acho — disse ele — que você já teve seu presente. Seu único presente.

— Tô entendendo — disse Donna. -Tô sacando! E claro que eles me disseram depois... aquelas pessoas com quem eu estava... que eu devia ter pedido uma bebida mexicana feita de tequila, porque, olha só, é um bar mexicano, ali no Restaurante La Paz. Da próxima vez eu vou saber; já colei nos meus bancos de memória, se eu for lá de novo. Sabe o que vou fazer um dia, Bob? Vou me mudar para o norte, para o Oregon, e morar na neve. Vou tirar a neve da calçada da frente toda manhã. E ter uma casinha e uma horta.

Ele disse:

— Vai precisar economizar para isso. Economizar todo o seu dinheiro. Vai sair caro.

Olhando para ele, de repente tímida, Donna disse:

— Ele vai me dar. O Cara.

— Quem?

— Você sabe. — A voz dela era delicada ao dividir aquele segredo. Dividindo com ele porque ele, Bob Arctor, era amigo dela e ela podia confiar nele. — O Sr. Perfeito. Eu sei como ele vai ser... ele vai ter um Aston-Martin e vai me levar para o norte nele. E lá estará a casinha antiquada na neve, ao norte daqui. — Depois de uma pausa, ela disse: — A neve deve ser legal, né?

Ele perguntou:

— Não conhece?

— Nunca estive na neve, a não ser uma vez, em San Berdoo, naquelas montanhas, mas aí estava meio dura e cheia de lama e eu caí. Não quis dizer neve assim, eu quis dizer neve de verdade.

Bob Arctor, com o coração meio pesado, disse:

— Você se sente confiante com relação a isso? Vai mesmo acontecer?

— Vai acontecer! — Ela assentiu. — Está nas cartas, pra mim.

Eles andaram em silêncio. De volta à casa dela, para pegar o MG de Donna. Donna, envolvida em seus sonhos e planos, e ele — ele se lembrou de Barris e se lembrou de Luckman, de Hank e do apartamento seguro, e ele se lembrou de Fred.

— Olha só — disse ele —, posso ir com você para o Oregon? Quando você der o fora de vez?

Ela sorriu para ele, com gentileza e uma forte ternura, com a resposta não.

E ele entendeu, por conhecê-la, que ela foi sincera. E não ia mudar. Ele tremeu.

— Está com frio? — perguntou ela.

— Estou — disse ele. — Muito frio.

— Meu MG tem um bom aquecedor — disse ela — porque, quando estivermos no drive-in... você vai ficar aquecido lá. — Ela pegou a mão dele, apertou-a, segurou-a e depois, de repente, Donna a largou.

Mas esse toque real persistiu no coração dele. Continuou. Em todos os anos de vida à frente, os longos anos sem ela, sem nunca vê-la, ouvi-la ou saber alguma coisa sobre ela, se estava viva ou feliz ou morta ou o quê, esse toque ficou dentro dele, selado nele, e nunca passaria. Esse toque da mão de Donna.

 

Naquela noite, ele levou para casa uma linda viciadinha em pico chamada Connie para trepar com ela em troca de um saco de dez doses da mistura.

Magra e de cabelo escorrido, a garota se sentou na beira da cama dele, penteando o cabelo estranho; era a primeira vez que ela ia para a casa dele — ele a conhecera em uma festa de doidões — e ele sabia muito pouco dela, embora tivesse seu número de telefone fazia algumas semanas. Sendo viciada em pico, ela era naturalmente frígida, mas isso não era problema; fazia com que fosse indiferente ao sexo com relação ao próprio prazer, mas, por outro lado, ela não se importava com o tipo de sexo que teria.

Isso ficava óbvio só de observá-la. Connie estava sentada meio vestida, sem sapatos, um grampo de cabelo na boca, olhando de maneira apática, evidentemente fazendo uma viagem particular na cabeça. O rosto dela, alongado e ossudo, tinha certa força; deve ser, concluiu ele, porque os ossos, em especial as linhas do queixo, eram pronunciados. Na face direita, havia uma espinha. Sem dúvida ninguém lhe disse e ela nem percebeu isso; como o sexo, as espinhas pouco significavam para ela.

Talvez ela não pudesse saber a diferença. Talvez, para ela, uma viciada em pico há tempos, o sexo e as espinhas tivessem características semelhantes ou fossem até idênticos. Que idéia, pensou ele, para surgir só de olhar uma doidona por um momento.

— Tem uma escova de dentes que eu possa usar? — disse Connie; ela começara a cabecear um pouco e a resmungar, como os doidões de pico tendiam a fazer àquela hora da noite. — Tá ferrado... dentes são dentes. Vou escovar. — A voz dela era tão baixa que ele não conseguia ouvi-la, embora soubesse, pelo movimento dos lábios, que ela estava falando monotonamente.

— Sabe onde fica o banheiro? — perguntou ele.

— Que banheiro?

— Desta casa.

Despertando, ela voltou a se pentear por reflexo.

— Quem são aqueles caras lá fora a esta hora? Enrolando baseados e falando sem parar? Acho que eles moram aqui com você. Claro que moram. Caras como esses devem...

— Dois deles moram — disse Arctor.

Os olhos de peixe morto de Connie viraram-se para se fixar nos dele.

— Você é viado? — perguntou Connie.

— Estou tentando deixar de ser. É por isso que você está aqui hoje.

— Está travando uma batalhazinha contra isso?

— Pode acreditar que sim.

Connie assentiu.

— E, acho que estou prestes a descobrir. Se você é um gay latente, provavelmente vai querer que eu tome a iniciativa. Deita aí que eu faço. Quer que eu tire a sua roupa? Tudo bem, você fica deitado aí e eu faço tudo. — Ela estendeu a mão para o zíper de Bob.

 

Mais tarde, na semi-escuridão, ele cochilou — por assim dizer — com seu próprio dilema. Connie roncava ao lado dele, deitada de costas, com os braços ao lado, fora das cobertas. Ele podia vê-la vagamente. Eles dormiam como o Conde Drácula, pensou ele, os junkies. Olhando para cima até que de repente se sentavam, como uma máquina que passou da posição A para a B. “Deve... ser... dia...”, diz o junkie, ou diz a gravação na cabeça dele. Toca as instruções para ele, a mente de um junkie é como a música que se ouve de um radiorrelógio... Às vezes é bonita, mas só está ali para levar você a fazer alguma coisa. A música do radiorrelógio é para te acordar; a música do junkie é para conseguir que você se torne um meio para ele obter mais droga, da forma com que puder. Ele, uma máquina, vai transformar você na máquina dele.

Todo junkie, pensou ele, é uma gravação.

Novamente ele cochilou, meditando sobre essas coisas ruins. E por fim o junkie, se for uma mulher, nada tem a vender a não ser o corpo. Como Connie, pensou ele, Connie, que estava bem ali.

Abrindo os olhos, ele se virou para a garota ao lado dele e viu Donna Hawthorne.

Bob se sentou de imediato. Donna!, pensou ele. Ele podia distinguir o rosto dela com clareza. Sem dúvida. Meu Deus!, pensou ele, e estendeu a mão para o abajur da mesa- de-cabeceira. Os dedos dele o tocaram, o abajur se inclinou e caiu. A garota, porém, continuou dormindo. Ele ainda a encarava, e depois, aos poucos, viu Connie novamente, o rosto fino e comprido, o maxilar frio, encovado, o rosto macilento dt junkie chapada, Connie e não Donna, uma garota, não a outra.

Ele deitou novamente e, infeliz, de certa forma dormiu, perguntando-se o que significava isso, perguntando- se repetidamente, na escuridão.

— Não tô nem aí se ele fedia — murmurou a garota ao lado dele depois, sonhadoramente, enquanto dormia. — Eu ainda o amava.

Ele se perguntou o que ela quis dizer. Um namorado?

O pai dela? Um gato? Um brinquedo de pelúcia precioso da infância? Talvez todas essas coisas, pensou ele. Mas as palavras foram “Eu amava”, e não “Ainda amo”. Evidentemente ele, quem quer ou o que quer que fosse, não existia mais. Talvez, refletiu Arctor, eles (o que quer que fossem) a tenham obrigado a jogar fora, porque ele fedia muito.

Devia ser isso. Ele se perguntou que idade Connie tinha na época, a junkie acabada, com suas recordações, que dormitava ao lado dele.

 

 

No traje misturador, Fred estava sentado diante do turbilhão de uma bateria de holos gravados, vendo Jim Barris lendo um livro sobre cogumelos na sala de Bob Arctor. Por que cogumelos?, perguntou-se Fred, e colocou a gravação na velocidade alta, avançando para uma hora depois. Barris ainda estava sentado, muito concentrado na leitura e tomando notas.

Barris baixou o livro e deixou a casa, saindo do alcance do scanner. Quando voltou, trazia um saquinho de papel pardo que depositou na mesa de centro e abriu. Dele retirou cogumelos secos, que começou a comparar, um por um, com as fotos coloridas no livro. Com um vagar excessivo, incomum em Barris, ele comparou cada um dos cogumelos. No final, deixou de lado um cogumelo que parecia desprezível e recolocou os demais no saco; do bolso tirou um punhado de cápsulas vazias e, depois, com o mesmo cuidado, começou a esfarelar um determinado cogumelo nas cápsulas e fechou cada uma delas.

Depois disso, Barris começou a telefonar. O grampo telefônico gravou os números discados.

“Alô, é o Jim.”

“E aí?”

“Eu arranjei uma.”

“Tá brincando.”

“Psilocybe mexicana.”

“O que é isso?”

“Um cogumelo alucinógeno raro, usado em cultos de mistério da América do Sul milhares de anos atrás. Você fica invisível, entende o que os animais falam...”

“Não, obrigado.” Clique.

Rediscando.

“Alô, é o Jim.”

“Jim? Que Jim?”

“O da barba... óculos verdes, calça de couro. Eu te conheci numa inauguração em Wanda...”

“Ah, sim. Jim. Sei.”

“Está interessado em comprar uns psicodélicos orgâni- co sr

“Bem, sei lá...” Inquietação. “Tem certeza de que é o Jim? Não parece ser ele.”

“Consegui uma coisa incrível, um cogumelo orgânico raro da América do Sul, usado em cultos de mistério dos índios há milhares de anos. Você voa, fica invisível, seu carro desaparece, você consegue entender o que os animais falam...”

“Meu carro desaparece o tempo todo. Quando eu o deixo em uma área sujeita a reboque. Rá, rá.”

“Posso te arrumar umas seis cápsulas desse Psilocybe.”

“Por quanto?”

“Cinco dólares a cápsula.”

“Chocante! Tá de sacanagem? Aí, vou te encontrar em algum lugar.” Depois, suspeita. “Sabe de uma coisa, acho que me lembrei de você... você me ferrou uma vez. Onde arrumou essas doses de cogumelo? Como vou saber que não são ácido fraco?”

“Elas foram trazidas para os Estados Unidos dentro de um ídolo de barro”, disse Barris. “Como parte de um carregamento de arte cuidadosamente guardado para um museu com esse ídolo marcado. Os cretinos da alfândega nem desconfiaram.” Barris acrescentou: “Se não bater, eu te devolvo o dinheiro.”

“Bom, isso não vai querer dizer nada se minha cabeça for devorada e eu ficar me balançando nas árvores.”

“Eu tomei um faz uns dois dias”, disse Barris. “Para testar. A melhor viagem que já tive... montes de cores. Melhor do que mescalina, pode acreditar. Não quero ferrar meus clientes. Eu sempre testo minhas coisas primeiro em mim. É garantido.”

Atrás de Fred, agora outro traje misturador também estava vendo o holomonitor.

— O que ele está vendendo? Mescalina, foi isso que ele disse?

— Ele colocou cogumelos em cápsulas — disse Fred — que ou ele colheu ou alguém colheu na cidade mesmo.

— Alguns cogumelos são extremamente tóxicos — disse o traje misturador atrás de Fred.

Um terceiro traje misturador interrompeu a análise que fazia em seu holo e agora estava de pé com eles.

— Alguns cogumelos Amanita contêm quatro toxinas que são agentes que detonam os glóbulos vermelhos. Levam duas semanas para morrer e não existe antídoto. É terrivelmente doloroso. Só um especialista pode dizer que cogumelo está colhendo quando eles são silvestres.

— Eu sei — disse Fred e marcou o número de entrada desse trecho da fita para uso do departamento.

Barris estava discando novamente.

— Qual é o artigo do estatuto violado nesse caso? — disse Fred.

— Propaganda enganosa — disse um dos trajes misturadores e os dois riram e voltaram a seus próprios monitores. Fred continuou vendo.

No Holomonitor 4, a porta da frente da casa se abriu e Bob Arctor entrou com cara desanimada.

“Oi!”

“E aí”, disse Barris, juntando suas cápsulas e enfiando-as bem fundo no bolso. “Como se entendeu com a Donna?” Ele riu. “De várias maneiras talvez, hein?”

“Tá, vai se foder”, disse Arctor, e passou do Holomonitor Quatro para ser pego em seu quarto um momento depois pelo scanner 5. Ali, com a porta trancada, Arctor puxou vários sacos plásticos cheio de tabletes brancos; ele ficou de pé por um momento, sem ter certeza do que fazer, e depois os enfiou debaixo das cobertas da cama, fora de vista, e tirou o casaco. Parecia cansado e infeliz, seu rosto estava repuxado.

Por um momento, Bob Arctor ficou sentado na beira da cama desfeita, imerso em pensamentos. Ele por fim sacudiu a cabeça, levantou-se, ficou parado, inseguro... depois alisou o cabelo e saiu do quarto, para ser captado pelo scanner central da sala enquanto se aproximava de Barris. Durante esse tempo, o scanner 2 tinha testemunhado Barris esconder o saco de papel pardo de cogumelos debaixo das almofadas do sofá e colocado o livro sobre cogumelos de volta à estante, onde não ficasse visível.

“O que estava fazendo?”, perguntou Arctor a ele.

Barris declarou: “Uma pesquisa.”

“Sobre o quê?”

“As propriedades de algumas entidades micóticas de natureza delicada.” Barris riu. “Não combina muito com uma mexida nuns peitinhos de moça, né?”

Arctor olhou para ele e foi para a cozinha ligar a cafeteira.

“Bob”, disse Barris, seguindo-o sossegadamente. “Desculpe se eu disse alguma coisa que te ofendeu.” Ele ficou por ali enquanto Arctor esperava que a cafeteira aquecesse, tamborilando e zumbindo a esmo.

“Cadê o Luckman?”

“Acho que saiu para tentar roubar um telefone público. Ele levou o macaco hidráulico de eixo; em geral isso significa que ele vai arrancar um telefone público, não é?”

“Meu macaco hidráulico”, repetiu Arctor.

“Sabe de uma coisa?”, disse Barris. “Eu podia te ajudar profissionalmente nas suas tentativas de dar uma cantada na mocinha...”

Fred avançou a gravação em alta velocidade. A leitura indicava uma passagem de duas horas.

“... pague seu maldito aluguel ou vai trabalhar na porcaria do cefscópio”, dizia Arctor para Barris com vigor.

“Eu já encomendei os resistores que...”

Novamente Fred avançou a gravação. Mais duas horas se passaram.

Agora o Holomonitor 5 mostrava Arctor no quarto, na cama, um radiorrelógio FM sintonizado na KNX, tocando folk rock baixinho. O Monitor 2 da sala mostrava Barris sozinho, novamente lendo sobre cogumelos. Nenhum dos dois fez grande coisa por um bom tempo. Uma vez, Arctor se agitou e estendeu a mão para aumentar o volume do rádio enquanto tocava uma música de que ele evidentemente gostava. Na sala, Barris lia sem parar e mal se mexia. Arctor novamente se deitou de costas na cama e ficou imóvel.

O telefone tocou. Barris pegou o fone e levou ao ouvido. “Alô?”

No grampo do telefone, um homem disse:

“Sr. Arctor?”

“Sim, sou eu”, disse Barris.

Vou ser fodido por um babaca, disse Fred a si mesmo. Ele estendeu a mão para aumentar o volume do grampo do telefone.

“Sr. Arctor”, disse a voz não identificada, de forma arrastada e baixa. “Lamento incomodá-lo tão tarde, mas seu cheque voltou...”

“Ah, sim”, disse Barris. “Eu pretendia ligar para o senhor sobre isso. A situação é a seguinte, senhor: eu tive uma gripe grave, com perda de calor corporal, espasmos pilóricos, cólicas... Simplesmente agora eu não tenho condições de cobrir esse chequezinho de vinte dólares e, francamente, não pretendo fazer isso.”

“Como?”, disse o homem, sem sobressaltos, mas com a voz rouca. Agourentamente.

“Sim, senhor”, disse Barris, assentindo. “O senhor me ouviu bem, senhor.”

“Sr. Arctor”, disse o homem, “esse cheque já voltou do banco duas vezes, e esses sintomas de gripe que o senhor descreveu...”

“Acho que alguém me passou um troço bem ruim”, disse Barris com um sorriso duro na cara.

“Eu acho”, disse o homem, “que o senhor é um daqueles...” Ele procurou pela palavra.

“Pense o que quiser”, disse Barris, ainda sorrindo.

“Senhor Arctor”, disse o homem, respirando audivelmente no fone. “Vou à promotoria com esse cheque e, aproveitando que estou no telefone, tenho algumas coisas a dizer ao senhor sobre o que eu acho...”

“Ligando, desligando e adeus”, disse Barris, e desligou o telefone.

A unidade de grampo telefônico registrou automaticamente o número do homem que ligou, pegando-o eletronicamente de um sinal inaudível, gerado assim que o circuito foi acionado. Fred leu o número agora visível em um mostrador, depois fechou o transportador de gravação de todos os seus holo-scanners, ergueu o telefone da polícia e pediu o registro do número.

— Chaveiro Englesohn, Harbor, 1.343, em Anaheim — disse a telefonista das informações policiais a ele. — Garotão.

— Chaveiro — disse Fred. — Tudo bem. — Ele escrevera os dados e agora desligou. Um chaveiro... Vinte dólares, uma quantia redonda: isso sugeria um trabalho fora da oficina — provavelmente saiu de carro e fez uma cópia de chave. Quando a chave “do proprietário” sumiu.

Teoria. Barris fingiu ser Arctor, telefonou para o chaveiro Englesohn para fazer uma “cópia” de chave ilicitamente, para a casa ou para o carro ou as duas coisas. Dizendo a Englesohn que tinha perdido todo o jogo de chaves... Mas depois o chaveiro, fazendo uma verificação de segurança, tinha pedido a Barris um cheque como identificação. Barris entrou na casa e roubou um talão em branco de Arctor e preencheu um cheque para o chaveiro. O cheque não tinha fundos. Mas por que não? Arctor tinha um saldo alto na conta; um cheque tão pequeno não ia voltar. Mas, se voltou, Arctor teria visto no extrato e o reconheceria não como dele, mas de Jim Barris. Então Barris tinha vasculhado os armários de Arctor e localizou — provavelmente já há algum tempo — um talão velho de uma conta abandonada e o usou. Como a conta estava encerrada, o cheque não bateu. Agora Barris estava em apuros.

Mas por que Barris não pagava o cheque em dinheiro? A atitude dele irritara o credor que telefonara e por fim levaria o caso à promotoria. Arctor descobriria. Ia cair um monte de merda para cima de Barris. Mas, pelo modo como Barris falara ao telefone ao já ultrajado credor, ele havia espicaçado ainda mais a hostilidade dele e com isso o chaveiro podia fazer qualquer coisa. E pior — a descrição que Barris fez da “gripe” era uma descrição da privação de heroína e qualquer um entenderia isso. E Barris tinha encerrado o telefonema com uma insinuação de que ele era um drogado pesado, e daí? Indicou tudo isso como Bob Arctor.

O chaveiro a essa altura sabia que tinha um devedor junkie que lhe havia passado um cheque borrachudo e não dava a mínima, não tinha a intenção de cobrir. E o junkie tinha essa atitude porque obviamente estava ligadão, chapado, excitado demais pela droga e por isso não se importava. E isso era um insulto à América. Proposital e desagradável.

Na verdade, a última frase de Barris ao telefone foi uma citação direta do ultimato estranho e original de Tim Leary ao establishment e a todos os caretas. E esse era o Condado de Orange. Cheio de gente disposta a dar uma surra de vara e pronta para entrar em ação. Com armas. Procurando exatamente pelos desbocados arrogantes dos drogados barbudos.

Barris tinha acionado uma bomba-relógio para Bob Arctor. Uma prisão por cheque sem fundos, no mínimo, uma bomba-relógio ou outro enorme golpe de retaliação, na pior das hipóteses, sem que Arctor tivesse alguma idéia do que estava acontecendo.

Por quê?, perguntou-se Fred. Ele anotou no bloco o código de identificação dessa seqüência da gravação, além do código de grampo telefônico. Do que Barris estava se desforrando em Arctor? O que diabos Arctor fizera? Arctor deve ter aprontado uma das grossas com ele por isso, pensou Fred. Era pura maldade. Mesquinha, desprezível e cruel.

Esse Barris, pensou ele, é um filho-da-puta. Ele ainda vai conseguir matar alguém.

Um dos trajes misturadores no apartamento seguro interrompeu sua introspecção:

— Você conhece mesmo esses caras? — O traje gesticulou para os holomonitores, agora vazios, que Fred tinha diante de si. — Está infiltrado aí numa designação sob disfarce?

— É — disse Fred.

— Não seria má idéia avisar a eles sobre a toxicidade desse cogumelo a que estão se expondo, que aquele palhaço de óculos verdes está vendendo. Pode passar isso a eles sem revelar seu disfarce?

O outro traje misturador falou, de sua cadeira giratória:

— Uma hora dessas um deles vai ter uma náusea violenta... às vezes é uma dica de envenenamento por cogumelos.

— Parecendo estricnina? — disse Fred. Um insight frio grudou em sua cabeça, uma reprise do dia da merda de cachorro de Kimberly Hawkins e o enjôo dele no carro depois de...

Dele.

— Vou contar ao Arctor — disse ele. — Com ele eu posso falar. Sem que ele me identifique. Ele é tratável.

— E é feio também — disse um dos trajes misturadores. — É o sujeito que chegou à porta de ombros arriados e ressaca?

— É — disse Fred e voltou a seus holos. Ah, que droga, pensou ele, naquele dia Barris nos deu tabletes na estrada — sua mente deu voltas, viajou e depois se dividiu bem ao meio. A próxima coisa que ele sabia é que estava no banheiro do apartamento seguro com um copo de água, lavando a boca, sozinho, onde podia pensar. Quando acabar com isso, eu serei Arctor, pensou ele. Sou o homem nos scanners, o suspeito que Barris está fodendo com seu telefonema estranho ao chaveiro e eu estava perguntando: “O que Arctor aprontou para Barris agir desse jeito com ele?” Eu estou acabado, meu cérebro está acabado. Isso não é real. Não estou acreditando nisso, vendo o que sou eu, o que é Fred — era Fred ali, sem o traje misturador, é assim que Fred fica sem o traje!

E outro dia Fred quase morreu por fragmentos de cogumelo tóxico, percebeu ele. Ele quase não conseguiu vir para este apartamento seguro para ver os holos. Mas agora estava ali.

Agora Fred tinha uma chance. Mas muito fraca.

Droga de trabalho maluco que me deram, pensou ele. Mas, se eu não fizesse isso, outra pessoa ia fazer e podiam entender tudo errado. Eles iam incriminá-lo, iam incriminar Arctor. Iam entregá-lo em troca da recompensa, iam plantar drogas nele e recolher a grana. Se alguém, pensou ele, tinha de vigiar esta casa, era melhor que fosse eu, apesar das desvantagens; só proteger a todos do puto pervertido do Barris já justificava estar ali.

E, se qualquer outro policial que monitorasse os atos de Barris visse o que eu provavelmente vou ver, vai concluir que Arctor é o maior traficante de drogas do Oeste dos Estados Unidos e recomendar — meu Deus! — uma morte dissimulada. Por nossas forças não-identificadas. Aquelas de preto que pegamos emprestado do Leste, que anda muito na ponta dos pés e porta uma Winchester 803 com mira telescópica. As novas miras telescópicas de infravermelho sincronizadas com projéteis tróficos EE. Aqueles caras que não recebem pagamento algum, nem de uma máquina do Dr. Pepper; eles tiram a sorte no palitinho para ver qual deles vai ser o próximo presidente dos EUA. Meu Deus, pensou ele, aqueles putos podem derrubar um avião. E fazer com que pareça que o motor sugou um bando de pássaros. Aqueles projéteis tróficos EE — por que eu, porra, pensou ele —, eles deixam vestígios de penas nos destroços dos motores; eles arrumam os motores assim.

Isso é pavoroso, refletiu ele, pensando no assunto. Não Arctor como suspeito, mas Arctor como... sei lá. Alvo. Vou ficar de olho nele; Fred vai continuar fazendo as coisas de Fred; eu vou ser muito melhor; posso editar, interpretar e apelar muito para o “Vamos esperar até que ele realmente” e assim por diante. E, percebendo isso, ele atirou a caneca longe e saiu do banheiro do apartamento seguro.

— Você parece esgotado — disse a ele um dos trajes misturadores.

— Bom — disse Fred aconteceu uma coisa engraçada comigo quando eu ia para o túmulo. — Ele viu em sua mente uma imagem do projetor supersônico de feixe estreito que tinha levado um advogado de 49 anos a ter um ataque cardíaco fatal quando estava prestes a reabrir o caso de um assassinato político horrível e famoso da Califórnia.

— Eu quase cheguei lá — disse ele em voz alta.

— Faltou o quase — disse o traje misturador. — Não está lá ainda.

— Ah — disse Fred. — E. Tá certo.

— Sente-se — disse um traje misturador — e volte ao trabalho ou não vai haver sexta-feira para você, só ajuda do governo.

— Dá para imaginar mencionar este trabalho como habilidade profissional no... — começou Fred, mas os outros dois trajes misturadores não acharam graça e, na realidade, sequer estavam ouvindo. Então ele se sentou novamente e acendeu um cigarro. E recomeçou na bateria de holos.

O que eu devia fazer, decidiu ele, é voltar pela rua a pé até a casa, agora mesmo, enquanto estou pensando nisso, antes que alguém me impeça, e ir até Barris rapidinho e dar um tiro nele.

No cumprimento do dever.

Eu vou dizer: “Aí, cara, tô meio mal... dá pra você apertar um baseado pra mim? Eu te pago um dólar.” E ele vai fazer isso e depois vou prendê-lo, arrastá-lo para o meu carro, atirá-lo lá dentro, dirigir pela via expressa e depois dar uma coronhada nele do lado de fora do carro, na frente de um caminhão. E posso dizer que ele lutou para se soltar e tentar pular. Acontece o tempo todo.

Porque, se eu não fizer isso, nunca mais vou poder comer ou beber qualquer comida ou bebida aberta na casa, nem Luckman, Donna ou Freck, senão vamos todos empacotar com fragmentos de cogumelo tóxico e depois disso Barris vai explicar que estávamos todos no bosque catando os cogumelos aleatoriamente e comendo-os e ele tentou nos dissuadir, mas nós não ouvimos porque não fizemos faculdade.

Mesmo que os psiquiatras do tribunal descubram que ele está totalmente ferrado e maluco e discutam o assunto para sempre, alguém vai morrer. Ele pensou: “Talvez Donna, por exemplo. Talvez ela vá zanzar por ali, chapada de haxixe, procurando por mim e pelas florezinhas de primavera que eu prometi a ela, e Barris vá oferecer a ela uma tigela de gelatina especial que ele mesmo fez e dez dias depois ela vai se debater de agonia em uma unidade de tratamento intensivo e isso não vai lhe fazer bem algum.”

Se isso acontecer, pensou ele, eu vou ferver o Barris em soda cáustica, na banheira, em soda cáustica quente, até que só restem os ossos, e depois mando os ossos pelo correio para a mãe dele ou para os filhos, o que quer que ele tenha, e se ele não tiver nada disso, só atiro os ossos aos cães que passarem. Mas aquela garotinha será vingada de qualquer forma.

Eu estou lascado, pensou ele, e ligou os holos para não atrair mais estática dos outros trajes no ambiente seguro.

No Monitor 2, Barris estava falando com Luckman, que aparentemente tinha rolado na porta da frente torto de bêbado, sem dúvida de Ripple.

— Tem mais pessoas viciadas em álcool nos Estados Unidos — dizia Barris a Luckman, que tentava encontrar a porta para o quarto dele, para desmaiar e passar por um período terrível — do que viciados em outras formas de drogas. E os danos cerebrais e ao fígado provocados pelo álcool, além das impurezas...

Luckman desapareceu sem sequer perceber que Barris estava ali. Boa sorte, pensou Fred. Mas não é uma política viável, não por muito tempo. Porque o puto está ali.

Mas agora Fred está aqui também. Mas só o que Fred podia fazer era olhar. A não ser, pensou ele, a não ser que talvez, se eu voltasse as hologravações... Então eu ia chegar primeiro, antes de Barris. O que eu fizesse ia anteceder o que Barris fizesse. Se, comigo ali primeiro, ele conseguisse fazer alguma coisa.

E depois o outro lado de sua cabeça se abriu e falou com ele mais calmamente, como outro eu, com uma mensagem mais simples sobre como lidar com a situação:

“Para regularizar o cheque do chaveiro”, disse a ele, “vá até Harbor amanhã bem cedo, pague o valor e pegue o cheque. Faça isso primeiro, antes de qualquer outra coisa. Faça imediatamente. Reduza a possibilidade de crise. E depois disso faça outras coisas mais sérias, depois que isso tiver terminado. Está bem?” Está bem, pensou ele. Isso vai me retirar da lista de inadimplentes. E por aí que vou começar.

Ele acelerou a gravação, sem parar, até que deduziu, pelos mostradores, que apareceria uma cena noturna em que todos estivessem dormindo. Para ter uma desculpa para terminar o dia de trabalho.

Agora apareciam as luzes apagadas, os scanners em infra. Luckman na cama em seu quarto, Barris na dele e, no próprio quarto, Arctor ao lado de uma garota, os dois dormindo.

Vamos ver, pensou Fred. Alguma coisa. Ela está nos arquivos do computador como totalmente doidona por drogas pesadas e também prostituta e traficante. Uma verdadeira fracassada.

— Pelo menos você não tem de ver seu suspeito transando — disse um dos outros trajes misturadores, vendo de trás dele e afastando-se.

— Isso é um alívio — disse Fred, olhando estoicamente as duas figuras dormindo na cama; sua mente estava no chaveiro e no que tinha de fazer lá. — Eu sempre odeio...

— É bom de fazer — concordou o traje misturador —, mas não é bom de olhar.

Arctor dormia, pensou Fred. Com a putinha dele. Bom, eu posso terminar logo, eles sem dúvida vão trepar quando acordarem, mas isso é problema deles.

Mas ele continuou vendo. A visão de Bob Arctor dormindo... sem parar, pensou Fred, hora após hora. E depois ele percebeu uma coisa que não tinha notado. Essa parece ser Donna Hawthorne!, pensou ele. Ali na cama, deitada com Arctor.

Isso não tem sentido, pensou ele, e estendeu a mão para fechar os scanners. Ele voltou a gravação, depois avançou. Bob Arctor e uma garota, mas não era Donna! Era a junkie, Connie! Ele tinha razão. Os dois indivíduos deitados ali, um ao lado do outro, os dois dormindo.

E depois, enquanto Fred observava, as feições de Connie se derreteram, sumiram suavemente e transformaram-se no rosto de Donna Hawthorne.

Ele parou a gravação de novo. Sentou-se ereto, confuso. Não entendo, pensou ele. Isso é... como é que chamam mesmo? Dissolução! Uma técnica de cinema. Porra, o que é isso? Pré-edição de TV? Por um diretor, usando efeitos visuais especiais?

Novamente ele voltou a gravação e em seguida avançou; quando chegou à alteração nas feições de Connie, ele parou o rolo, deixando o holograma se encher com um quadro congelado.

Ele girou o ampliador: todos os outros cubos sumiram; um cubo enorme se formou dos oito anteriores. Uma única cena noturna; Bob Arctor, imóvel, em sua cama, a garota imóvel, ao lado dele.

De pé, Fred entrou no holocubo, na projeção tridimensional, e se aproximou da cama para analisar o rosto da garota.

Entre uma coisa e outra, concluiu ele. Ainda meio Connie e já meio Donna. É melhor levar isso ao laboratório, pensou, foi adulterada por um especialista. Eu recebi uma gravação falsa.

Quem adulterou?, perguntou-se ele. Ele saiu do holocubo, desligou-o e restaurou os oito pequenos. Ficou sentado ali, meditando.

Alguém fraudou Donna. Sobreposta em Connie. Evidência forjada de que Arctor estava dormindo com a garota Hawthorne. Por quê? Como um bom técnico pode fazer com áudio ou vídeo e agora — como testemunha — com holofitas. E difícil de fazer, mas...

Se isso era um scanner liga-desliga, pensou ele, tivemos uma seqüência mostrando Arctor na cama com a garota que ele nunca deve ter levado para a cama e nunca levará, mas é o que está na gravação.

Ou talvez seja uma interrupção visual ou paralisação eletrônica, refletiu ele. O que chamam de impressão. Holoimpressão: de uma seção da gravação para outra. Se a fita parar por muito tempo, se a amplificação da gravação for alta demais inicialmente, fica impresso. Meu Deus!, pensou ele. Donna impressa de uma cena anterior ou posterior, talvez da sala de estar.

Queria saber mais sobre o aspecto técnico disso, refletiu ele. É melhor adquirir mais conhecimento sobre isso antes de tomar uma atitude precipitada. Como outra emissora AM filtrando, interferindo...

Fala cruzada, concluiu ele. Assim mesmo: acidental.

Como fantasmas na tela de TV. Funcional, um problema funcional. Um transdutor aberto por pouco tempo.

De novo ele passou a gravação. Connie novamente e Connie continuou. E em seguida... De novo, Fred viu Donna aparecer e, dessa vez, o homem que dormia ao lado dela na cama, Bob Arctor, acordou depois de um momento e se sentou abruptamente, depois tateou, procurando pelo abajur ao lado dele; o abajur caiu no chão e Arctor estava encarando a garota que dormia, Donna dormindo.

Quando o rosto de Connie voltou, Arctor relaxou e por fim afundou na cama e dormiu de novo. Mas teve um sono inquieto.

Bom, isso elimina a teoria da “interferência técnica”, pensou Fred. Impressão ou fala cruzada. Arctor também viu. Acordou, viu, encarou e depois desistiu.

Meu Deus, pensou Fred, e desligou o equipamento diante dele.

— Acho que para mim, por hoje, chega — declarou e se levantou trêmulo. — Estou arrasado.

— Viu algum sexo perverso, não viu? — perguntou um traje misturador. — Vai se acostumar com esse trabalho.

— Eu nunca vou me acostumar com esse trabalho — disse Fred. — Pode escrever isso.

 

 

Na manhã seguinte, de táxi, já que agora não era só o cefscópio que precisava de conserto, mas também o carro, ele apareceu à porta do chaveiro Englesohn com 40 pratas em dinheiro e muita preocupação em seu íntimo.

A loja tinha um quê de madeira antiga, com uma placa mais moderna, mas muitos trecos de latão nas vitrines trancadas: caixas de correio ornamentadas, maçanetas feitas de forma a parecer cabeças humanas, grandes chaves de ferro falso e preto. Ele entrou na semi-escuridão. Como a casa de um drogado, pensou ele, apreciando a ironia.

Num balcão onde assomavam duas enormes copiadoras de chaves, além de centenas de moldes de chaves penduradas em ganchos, uma idosa gorducha o recebeu.

— Sim, senhor? Bom-dia.

Arctor disse:

— Estou aqui...

 

     Ihr Instrumente freilich spottet mein,

     Mit Rad und Kämmen, Walz’ und Bügel:

     Ich stand am Tor, ihr solltet Schlüssel sein;

     Zwar euer Bart ist kraus, doch hebt ihr nicht die Riegel.

 

— ... para pagar por um cheque meu que voltou do banco. De vinte dólares, acho.

— Ah! — A senhora ergueu afavelmente um arquivo de metal, procurou pela chave para abri-lo, depois descobriu que o arquivo não estava trancado. Ela o abriu e encontrou o cheque imediatamente, com um bilhete. — Sr. Arctor?

— Sim — disse ele, já com o dinheiro na mão.

— Sim, vinte dólares. — Soltando o bilhete do cheque, ela começou laboriosamente a escrever no papel, indicando que ele tinha aparecido e pago pelo cheque.

— Desculpe por isso — disse ele a ela —, mas preenchi um cheque por engano, de uma conta encerrada, em vez de minha conta ativa.

— Sei... — disse a mulher, sorrindo enquanto escrevia.

— Além disso — disse ele —, eu agradeceria se a senhora dissesse a seu marido, que me ligou outro dia...

— Meu irmão, Carl — disse a mulher —, na verdade. — Ela olhou sobre o ombro. — Se Carl disse ao senhor... — Ela gesticulou, sorrindo. — Às vezes ele fica muito nervoso com os cheques... Me desculpe se ele falou... o senhor sabe.

— Diga a ele — disse Arctor, o discurso memorizado — que quando telefonou eu estava perturbado e peço desculpas por isso também.

— Acho que ele disse alguma coisa sobre isso sim. — Ela estendeu o cheque, ele lhe deu os vinte dólares.

— Alguma taxa? — disse Arctor.

— Não, nenhuma.

— Eu estava perturbado — disse ele, olhando brevemente para o cheque e depois colocando-o no bolso — porque um amigo meu tinha acabado de morrer, de repente.

— Ah, lamento — disse a mulher.

Arctor, demorando-se ali, disse:

— Ele morreu sufocado, sozinho, no quarto dele, com um pedaço de carne. Ninguém o ouviu.

— O senhor sabia, sr. Arctor, que acontecem mais mortes do que as pessoas percebem? Eu li que, quando o senhor estiver jantando com um amigo e ele não falar por um tempo e só ficar sentado ali, o senhor deve se aproximar dele e perguntar se ele consegue falar. Porque ele pode não conseguir, ele pode estar entalado, sem conseguir dizer ao senhor.

— Sim — disse Arctor. — Obrigado. É verdade. E obrigado pelo cheque.

— Mais uma vez, lamento pelo seu amigo — disse a senhora.

— Sim — disse ele. — Ele era o melhor amigo que eu tinha.

— Isso é terrível! — disse a mulher. — Quantos anos ele tinha, sr. Arctor?

— Trinta e poucos — disse Arctor, o que era verdade: Luckman tinha 32.

— Ah, que coisa horrível! Vou contar a Cari. E obrigada por ter o trabalho de vir até aqui.

— Eu é que agradeço — disse Arctor. — E agradeça ao sr. Englesohn também por mim. Muito obrigado aos dois. — Ele partiu, vendo-se de volta à calçada no calor da manhã, pestanejando com a luz forte e o ar poluído.

Ele pediu um táxi por telefone e, na viagem de volta a casa, certificou-se de como tinha se saído bem da armadilha de Barris sem fazer nenhuma cena. Podia ter sido muito pior, assinalou ele a si mesmo. O cheque ainda estava lá. E eu não tive de enfrentar o cara.

Ele pegou o cheque para ver o quanto Barris fora capaz de se aproximar de sua letra. Sim, era uma conta encerrada, ele reconheceu a cor do cheque de imediato, uma conta inteiramente encerrada, e o banco tinha carimbado CONTA ENCERRADA. Não surpreende que o chaveiro tenha ficado louco da vida. E depois, analisando o cheque enquanto prosseguia no táxi, Arctor viu que a letra era dele.

Não era nada parecida com a de Barris. Uma fraude perfeita. Ele nunca saberia que não era dele, só que, pelo que se lembrava, ele não o havia preenchido.

Meu Deus, pensou ele, quantos destes Barris fez a esta altura? Talvez ele tenha me desfalcado de metade do que eu tenho.

Barris, pensou ele, é um gênio. Por outro lado, provavelmente é uma reprodução por decalque ou algo feito mecanicamente. Mas eu nunca fiz um cheque para o chaveiro Englesohn; então, como a fraude pôde ser decalcada?

Este cheque é único. Vou levar ao departamento de grafologia, decidiu ele, e deixar que eles deduzam como foi feito. Talvez só com prática, muita prática.

Como no papo furado do cogumelo, ele pensou, vou procurá-lo e dizer que as pessoas me contaram que ele andou tentando vender doses de cogumelo para elas. E encerrar o assunto. Eu tive informações de alguém preocupado, como deve estar mesmo.

Mas, pensou ele, estes itens são só indicações aleatórias do que ele está aprontando, descobertos na primeira reprise. Eles só representam amostras do que vou ter de combater. Só Deus sabe o que mais ele fez; ele teve todo o tempo do mundo para andar por aí, ler livros de referência e imaginar tramóias, intrigas, conspirações e assim por diante... Talvez, pensou ele abruptamente, seja melhor eu dar uma olhada no meu telefone agora mesmo, para ver se está grampeado. Barris tem uma caixa de equipamentos eletrônicos, e até a Sony, por exemplo, fabrica e vende uma bobina de indução que pode ser usada como dispositivo para grampo telefônico. O telefone deve estar grampeado. Provavelmente já há algum tempo.

Quer dizer, pensou ele, além de meu próprio grampo recente — e necessário.

Novamente ele analisou o cheque enquanto o táxi se sacudia e, de repente, pensou: “E se eu fiz isso comigo mesmo? E se Arctor escreveu isso? Acho que eu fiz”, pensou ele, “acho que o próprio filho-da-puta lascado do Arctor preencheu este cheque, muito rápido — as letras estavam inclinadas —, porque, por algum motivo, ele estava com pressa; ele preencheu às pressas, pegou o talão errado e depois se esqueceu totalmente disso, esqueceu-se de todo o incidente.”

Esqueceu-se, pensou ele, da vez em que Arctor...

 

Was grinsest du mir, hohler Schädel, her?

Als dass dein Hirn, wie meines, einst verwirret

Den leichten Tag gesucht und in der Dämmrung schwer,

Mit Lust nach Wahrheit, jämmerlich geirret.

 

... saiu daquela enorme festa de doidão em Santa Ana, onde ele conhecera aquela lourinha de dentes tortos, cabelo louro comprido e uma bunda grande, mas tão cheia de energia e tão simpática... Ele não conseguiu dar a partida no carro; Arctor estava totalmente chapado. Ele continuou tendo problemas — tinha tomado muita droga e pico naquela noite, quase até o amanhecer. E também muita Substância D e de primeira. De primeiríssima. Material dele.

Curvando-se para a frente, ele disse:

— Pare no posto Shell. Vou ficar ali.

Ele saiu, pagou ao taxista, depois entrou na cabine telefônica, procurou pelo número do chaveiro e ligou para ele.

A senhora atendeu.

— Chaveiro Englesohn, bom...

— É o sr. Arctor novamente. Desculpe-me por incomodá-la. Qual foi o endereço da chamada, para o serviço feito em troca do meu cheque?

— Bem, vamos ver. Um minutinho, sr. Arctor. — Uma pancada no telefone enquanto ela o baixava.

Uma voz de homem, distante e abafada: — Quem é? Aquele tal de Arctor?

— Sim, Carl, mas não diga nada, por favor. Ele acabou de vir aqui...

— Me deixa falar com ele.

Pausa. Depois a velha novamente.

— Bem, eu tenho este endereço, sr. Arctor. — Ela leu o endereço da casa dele.

— Foi para lá que chamaram o seu irmão? Para fazer uma chave?

— Espere um minuto. Cari? Você se lembra aonde foi na picape para fazer a chave do sr. Arctor?

Um murmúrio distante de homem: “Em Katella.”

“Não foi à casa dele?”

“Em Katella!”

— Em algum lugar em Katella, sr. Arctor. Em Anaheim. Não, espere... Carl disse que foi em Santa Ana, em Main. Que...

— Obrigado — disse ele e desligou. Santa Ana. Main. Foi onde aconteceu a porra da festa de drogas e eu devo ter informado uns trinta nomes e placas de carros naquela noite; aquela não foi uma festa comum. Um grande carregamento tinha chegado do México, os compradores estavam fazendo a partilha e, como sempre acontece com os compradores, provavam o que dividiam. Metade deles agora deve ter sido presa por agentes de compra mandados... Caramba, pensou ele, eu ainda me lembro — ou nunca vou me lembrar corretamente — daquela noite.

Mas isso ainda não era desculpa para Barris fingir ser Arctor maldosamente naquele telefonema. A não ser que, pelos indícios, Barris tenha inventado tudo certinho — improvisado. Que merda, talvez Barris estivesse chapado na outra noite e fez o que faz um monte de gente quando está chapada: divertindo-se com o que está acontecendo. Arctor preencheu o cheque, sem dúvida nenhuma; Barris, por acaso, só pegou o telefone. Mas, em sua cabeça ferrada, foi só uma brincadeira. Estava apenas sendo irresponsável, mais nada.

E, refletiu ele enquanto chamava novamente o táxi, Arctor não tinha sido muito responsável ao pagar este cheque depois de um longo período. De quem era a culpa? Pegando-o mais uma vez, ele examinou a data do cheque. Um mês e meio. Meu Deus... e vem falar de irresponsabilidade! Arctor podia se animar por causa disso; graças a Deus o biruta do Carl não foi ao escritório do promotor. Provavelmente a doce irmã o impediu.

Arctor, concluiu ele, é melhor começar a agir; ele mesmo fez umas coisas estranhas que só foi saber agora. Barris não é o único ou talvez nem seja o primeiro. Uma coisa é certa: ainda é preciso explicar a causa da maldade intensa e concentrada de Barris com relação a Arctor; um homem não perde tanto tempo para ferrar outro sem motivo nenhum. E Barris não está tentando ferrar mais ninguém, não, digamos, Luckman ou Charles Freck, ou Donna Hawthorne; ele ajudou a colocar Jerry Fabin na clínica federal mais do que qualquer outra pessoa e ele gosta de todos os animais da casa.

Uma vez, Arctor ia mandar uma cadela — qual era mesmo o nome da pretinha, Popo ou coisa assim? — para o abrigo, a fim de ser sacrificada, ela não podia ser adestrada, e Barris passou horas, na verdade dias, com Popo, treinando-a delicadamente e falando com ela até que ela se acalmou, pôde ser adestrada e assim não teve de ser morta. Se Barris tinha maldade generalizada com relação a tudo, ele não daria exemplos, bons exemplos como esse.

— Táxi — disse ao telefone.

Ele deu o endereço do posto da Shell.

E se Carl, o chaveiro, reconheceu Arctor como um usuário pesado de drogas, ponderou ele enquanto esperava malhumorado pelo táxi, não foi culpa de Barris; quando Carl chegou de picape às cinco da manhã para fazer uma chave para o Olds de Arctor, Arctor provavelmente estava andando torto, subindo pelas paredes e piscando os olhos de peixe e todas as outras coisas de uma bela trip de drogas. Carl tirou as conclusões dele aí. Enquanto Carl fazia a chave nova, Arctor deve ter ficado plantando bananeira ou batendo a cabeça, dizendo coisas sem sentido. Não surpreende que Carl não tenha achado graça.

Na verdade, especulou ele, talvez Barris estivesse tentando dar cobertura para as merdas cada vez maiores de Arctor. Arctor não mantinha mais seu carro em condições seguras, como fazia antigamente; estava indolente, não de propósito, mas porque a porcaria do cérebro dele está podre pelas drogas. Mas, se é assim, então é pior ainda. Barris está fazendo o que pode, essa é uma possibilidade. Só que o cérebro dele também está podre. O cérebro de todos eles está...

 

Dem Wurme gleich’ ich, der den Staub durchwühlt,

Den, wie er sich im Staube nährend lebt,

Des Wandrers Tritt vernichtet and begräbt.

 

... podre e eles interagiam de forma podre. É podre levando a podre. E direto para a perdição.

Talvez, conjecturou ele, Arctor tenha cortado e dobrado os fios e provocado todos os curtos no cefscópio. No meio da noite. Mas por que motivo?

Esta era difícil: por quê? Mas com cérebros podres, tudo era possível, qualquer variedade de motivos distorcidos — como os próprios fios. Ele tinha visto isso, durante seu trabalho como policial disfarçado, muitas, muitas vezes. Essa tragédia não era nova para ele; seria, em seus arquivos de computador, só mais um caso. Essa era uma fase anterior à viagem para uma clínica federal, como aconteceu com Jerry Fabin.

Todos aqueles caras andavam em um tabuleiro de jogo, parados agora em diferentes quadrados a distâncias variadas da meta e a atingiriam em diferentes tempos. Mas um dia todos chegariam lá, às clínicas federais.

Estava inscrito em seu tecido nervoso. Ou no que restava dele. Nada podia deter ou reverter isso agora.

E, ele começou a acreditar, principalmente para Bob Arctor. Era intuição dele, só um começo, sem depender de nada do que Barris fizesse. Um insight novo e profissional.

E, além disso, seus superiores no Departamento de Polícia do Condado de Orange tinham decidido se concentrar em Bob Arctor; eles sem dúvida tinham motivos que ele desconhecia. Talvez esses fatos confirmassem outro: o crescente interesse deles em Arctor — afinal, custou uma grana preta ao departamento instalar os holo-scanners na casa de Arctor e pagar a ele para analisar os impressos, bem como a outros acima dele para avaliar o que ele fornecia periodicamente —, isso combinava com a atenção incomum de Barris com relação a Arctor, ambos escolherem Arctor como principal alvo. Mas o que ele tinha visto na conduta de Arctor que parecesse incomum? Em primeira mão, sem depender daquelas duas partes interessadas?

Enquanto o táxi prosseguia, ele refletiu que teria de observar por algum tempo para entender alguma coisa, mais provavelmente; ele grudaria nos monitores um dia inteiro. Ele precisaria ser paciente, precisaria se resignar a uma análise longa e a se colocar em um espaço onde estivesse disposto a esperar.

Mas depois de que visse algo nos holo-scanners, um comportamento enigmático ou suspeito por parte de Arctor, passaria a existir um dilema triplo para ele, uma terceira verificação dos interesses dos outros. Certamente seria uma confirmação. Justificaria as despesas e o tempo de todos.

Eu me pergunto o que Barris sabe que nós não sabemos, pensou ele. Talvez devêssemos detê-lo e perguntar. Mas — é melhor obter material desenvolvido de forma independente de Barris, caso contrário seria uma reprodução do que tinha Barris, quem quer que ele fosse ou representasse.

E depois ele pensou: “De que diabos eu estou falando? Eu devo estar maluco. Eu conheço Bob Arctor, ele é uma boa pessoa. Ele não está aprontando nada. Pelo menos nada de ofensivo. Na realidade, pensou ele, ele trabalha para o Departamento de Polícia do Condado de Orange, sob disfarce. E deve ser por isso...”

 

Zwei Seelen wohnen, ach! in meiner Brust,

Die eine will sich von der andem trennen:

Die eine hält, in derber Liebeslust,

Sich an die Welt mit klammernden Organen;

Die andre hebt gewaltsan sich vom Dust

Zu den Gefilden hoher Ahnen.

 

“... que Barris o está perseguindo.”

Mas, pensou ele, isso não explicaria por que o Departamento de Polícia do Condado de Orange o estava perseguindo — em especial a ponto de instalar todos aqueles holos e designar um agente em tempo integral para vigiar e fornecer relatórios sobre ele. Isso não é explicação.

Não faz sentido, pensou ele. Mais, muito mais deve estar rolando naquela casa, aquela casa em ruínas cheia de entulho, com o quintal cheio de mato, a caixa de areia do gato que nunca é limpa e animais andando pela mesa da cozinha e lixo cuspindo pela lata que ninguém recolhe.

Que desperdício, pensou ele, de uma casa realmente boa. Tanta coisa podia ser feita com ela. Uma família, filhos e uma mulher podiam morar ali. Foi projetada para isso: três quartos. Que desperdício, que porra de desperdício! Deviam tomá-la dele, pensou Arctor, entrar na situação e impedir. Talvez eles façam isso. E dêem melhor uso a ela, aquela casa anseia por isso. Aquela casa viu dias muito melhores há muito tempo. Esses dias podem voltar. Se outro tipo de pessoa a tiver e a conservar.

Especialmente o quintal, pensou ele, enquanto o táxi encostava na entrada cheia de jornais espalhados.

Ele pagou ao motorista, pegou a chave da porta e entrou na casa.

Imediatamente sentiu algo o observando; os holo-scanners nele. Assim que passou pela soleira da porta. Sozinho — não havia ninguém na casa a não ser ele. Mentira! Ele e os scanners, insidiosos e invisíveis, que o observavam e registravam. Tudo o que ele fazia. Tudo o que ele exprimia.

Como os garranchos na parede quando você urinava em um mictório público, pensou ele. SORRIA! VOCÊ ESTÁ SENDO FILMADO! Eu estou, pensou ele, assim que entro nesta casa. E sinistro. Ele não gostava disso. Sentia- se constrangido, a sensação vinha aumentando desde o primeiro dia, quando eles chegaram em casa — o “dia da merda de cachorro”, como ele o considerava, não conseguia deixar de pensar nele. A cada dia a experiência dos scanners aumentava.

— Parece que não tem ninguém em casa — declarou ele em voz alta, como sempre, e estava ciente de que os scanners tinham pegado isso. Mas ele tinha de ter cuidado o tempo todo, não devia saber que eles estavam ali. Como um ator diante de uma câmera de cinema, concluiu ele, você age como se a câmera não existisse ou acaba ferrando tudo. Tudo se acaba.

E para essa merda não vai haver mais de uma tomada.

O que você consegue, em vez disso, é apagar, quer dizer, o que eu consigo. Não as pessoas por trás dos scanners, mas eu.

O que eu devia fazer, pensou ele, para sair dessa, é vender a casa, é acabar com tudo. Mas... eu adoro esta casa. De jeito nenhum!

É a minha casa.

Ninguém pode me expulsar daqui.

Por quaisquer motivos que tenham para fazer isso.

Pressupondo-se que “eles” realmente existam.

O que pode ser só minha imaginação, o “eles” me observando. Paranóia. Ou melhor, a “coisa”. A coisa despersonalizada.

O que quer que o estivesse observando, não era humano.

Não por meus padrões, de qualquer forma. Nada que eu reconheça.

Embora isso seja uma tolice, pensou ele, é assustador. Algo está sendo feito comigo e por uma simples coisa, aqui, na minha própria casa. Diante de meus olhos.

Nos olhos de alguma coisa; na visão de uma coisa. O que, ao contrário dos olhinhos escuros de Donna, nem mesmo pisca. O que um scanner vê?, perguntou-se ele. Quer dizer, ele realmente vê? Na cabeça? No coração? Será que um scanner de infravermelho passivo, como costumavam usar, ou um holo-scanner do tipo cubo, como os que usam hoje em dia, o mais recente, me vê — vê a nós — com clareza ou obscuramente? Eu espero que ele veja com clareza, pensou ele, porque ultimamente não consigo mais ver a mim mesmo. Só vejo minhas trevas. Trevas por fora, trevas por dentro. Espero, para o bem de todos, que os scanners façam melhor do que isso. Porque, pensou ele, se o scanner só vê obscuramente, como eu me vejo, então estamos amaldiçoados, amaldiçoados de novo, como temos sido continuamente, e vamos morrer desse jeito, sabendo muito pouco e entendendo também esse pedacinho da forma errada.

Da estante da sala de estar, ele tirou um volume ao acaso; acabou sendo, como descobriu, O livro ilustrado do amor sexual. Abrindo ao acaso, ele viu uma página — que mostrava um homem mordiscando satisfeito o peito direito de uma mulher, e a mulher suspirava — e disse em voz alta, como se lesse para si mesmo do livro, como se citasse um filósofo famoso de antigamente, o que ele não era:

— Qualquer homem só vê uma parte mínima da verdade total e, com muita freqüência, na realidade quase...

 

Weh! steck’ ich dem Kerker noch?

Verfluchtes dumpfes Mauerloch,

Wo selbst das liebe Himmelslicht

Trüb durch gemalte Scheiben bricht!

Beschränkt mit diesem Bücherhauf,

Den Würme nagen, Staub bedeckt,

Den bis ans hohe.

 

— ... eternamente, ele deliberadamente se ilude também com este pequeno fragmento precioso. Uma parte dele se volta contra ele e age como outra pessoa, derrotando-o a partir de dentro. Um homem dentro de um homem. O que não é homem nenhum.

Assentindo, como se movido pela sabedoria das inexistentes palavras escritas nessa página, ele fechou o livro grande de capa vermelha e estampa em ouro, O livro ilustrado do amor sexual, e o recolocou na prateleira. Espero que os scanners tenham dado um zoom na capa desse livro, pensou ele, e tenham estragado meu disfarce.

 

Charles Freck, cada vez mais deprimido com o que estava acontecendo com todo mundo que ele conhecia, decidiu finalmente dar um fim à própria vida. Não havia problema, nos círculos que ele freqüentava, em se matar, você só comprava uma grande quantidade de vermelhas e as tomava com um vinho barato, de madrugada, com o telefone fora do gancho para ninguém interrompê-lo.

A parte do planejamento tinha de ser feita com os artefatos que você quisesse que os arqueólogos encontrassem com você mais tarde. Assim eles iam saber de que estrato você veio. E também podiam reconstituir sua cabeça como tinha sido na época em que você viveu.

Ele passou vários dias decidindo sobre os artefatos. Muito mais tempo do que tinha gasto decidindo se matar e aproximadamente o mesmo tempo necessário para conseguir tantas vermelhas de secobarbital. Ele seria encontrado deitado de costas, em sua cama, com um exemplar de A nascente, de Ayn Rand (o que provaria que ele fora um super-homem incompreendido, rejeitado pelas massas, e assim, de certa forma, fora assassinado pelo desprezo delas), e uma carta inacabada para a Exxon, protestando contra o cancelamento de seu cartão de crédito de combustível. Assim, ele culparia o sistema e conseguiria alguma coisa com sua morte, além do que a própria morte conseguia.

Na verdade, ele não tinha tanta certeza de que a morte conseguiria o que seria conseguido pelos dois artefatos, mas de qualquer modo tudo se encaixava e ele começou a se preparar, como um animal sentindo que sua hora chegara, agindo de acordo com a programação de seu instinto, derrubado pela natureza, quando seu fim inevitável estava próximo.

 

No último minuto (o prazo se encerrava) ele mudou de idéia sobre uma questão categórica e decidiu tomar as vermelhas com um vinho sofisticado, em vez de Ripple ou Thunderbird; assim, foi com o carro pela última vez até o Trader Joe’s, que era especializado em vinhos finos, e comprou uma garrafa de Mondavi Cabernet Sauvignon 1971, que lhe custou quase trinta dólares — tudo o que ele tinha.

Em casa de novo, ele abriu o vinho, deixou que ele respirasse, tomou algumas taças, passou alguns minutos contemplando a página preferida de O livro ilustrado do amor sexual, que mostrava a garota por cima, depois colocou o saco plástico com as vermelhas ao lado da cama, deitou-se com o livro de Ayn Rand e a carta de protesto inacabada para a Exxon, tentou pensar em uma coisa significativa, mas não conseguiu, embora continuasse se lembrando da garota por cima, e depois, com uma taça do Cabernet Sauvignon, engoliu todas as vermelhas de uma vez. Depois disso, feita a proeza, ele se deitou de costas, o livro de Ayn Rand e a carta em seu peito, e esperou.

Mas ele acabou se ferrando. As cápsulas não eram de barbitúricos, como deviam. Eram um tipo de psicodélico vagabundo, de uma espécie que ele nunca tinha tomado na vida, provavelmente uma mistura e nova no mercado. Em vez de sufocar tranqüilamente, Charles Freck começou a ter alucinações. Bem, pensou ele filosoficamente, essa é a história de minha vida. Sempre sendo roubado.

Ele teve de encarar o fato — considerando-se quantas cápsulas tinha tomado — de que estava entrando numa viagem.

A próxima coisa que ele percebeu foi uma criatura interdimensional parada ao lado de sua cama, olhando para ele de cima, com desaprovação.

A criatura tinha muitos olhos, em todo o corpo, roupas ultramodernas que pareciam caras e mais de dois metros e meio de altura. Além disso, portava um rolo enorme de pergaminho.

— Você vai ler meus pecados para mim — disse Charles Freck.

A criatura assentiu e abriu o rolo.

Freck disse, deitado impotente na cama:

— E vai levar umas 100 mil horas.

Fixando seus muitos olhos compostos nele, a criatura interdimensional disse:

— Não estamos mais no universo mundano. Categorias do plano inferior de existência material, como “espaço” e “tempo”, não são mais válidas para você. Você se elevou ao reino do transcendente. Seus pecados serão lidos para você incessantemente, em turnos, por toda a eternidade. A lista nunca terminará.

Conheça seu traficante, pensou Charles Freck, e ele quis poder voltar para a última meia hora de sua vida.

Mil anos depois, ele ainda estava deitado na cama com o livro de Ayn Rand e a carta para a Exxon no peito, ouvindo-os lerem seus pecados para ele. Tinham chegado à primeira série, quando ele tinha seis anos de idade.

Dez mil anos depois, eles chegaram à sexta série.

No ano em que ele descobriu a masturbação.

Ele fechou os olhos, mas ainda podia ver o ser de múltiplos olhos e dois metros e meio de altura com o rolo interminável, lendo sem parar.

— E a seguir... — estava dizendo a criatura.

Charles Freck pensou: “Pelo menos tomei um bom vinho.”

 

 

Dois dias depois, Fred, desnorteado, observou o Holoescanner 3 quando seu suspeito, Robert Arctor, puxou um livro, evidentemente ao acaso, de sua estante na sala de estar da casa. Tinha droga escondida ali?, perguntou-se Fred, e deu um zoom na lente do scanner. Ou um número de telefone ou endereço escrito no livro? Ele pôde ver que Arctor não tinha pegado o livro para ler; Arctor acabara de entrar em casa e ainda estava de casaco. Havia um jeito peculiar nele: ao mesmo tempo tenso e deprimido, numa espécie de urgência embotada.

As lentes de zoom do scanner mostraram a página com uma foto em cores de um homem mordiscando o mamilo direito de uma mulher, os dois nus. A mulher estava evidentemente tendo um orgasmo; os olhos dela estavam entreabertos e a boca se abria em um gemido mudo. Talvez Arctor estivesse usando a foto para ficar excitado, pensou Fred enquanto observava. Mas Arctor não deu atenção à foto, em vez disso recitou de forma chiada algo misterioso, parcialmente em alemão, obviamente para confundir qualquer um que o estivesse ouvindo. Talvez ele imaginasse que os amigos estivessem em algum lugar da casa e quisesse que eles aparecessem, especulou Fred.

Ninguém apareceu. Luckman, como sabia Fred por estar vendo os scanners por um bom tempo, tinha tomado um monte de vermelhas misturadas com Substância D e desmaiou totalmente vestido no chão do quarto, a alguns passos da cama. Barris tinha saído.

O que Arctor está fazendo?, perguntou-se Fred, e anotou o código de identificação dessas seções. Ele ficava cada vez mais estranho. Agora posso entender o que quis dizer o informante que fez a denúncia telefônica.

Ou, conjecturou ele, aquelas frases que Arctor dizia em voz alta podiam ser um comando de voz para um aparelho eletrônico que ele instalara na casa. Ligar ou desligar. Talvez até criar um campo de interferência contra uma varredura como essa. Mas ele duvidava disso. Duvidava de que houvesse nisso qualquer coisa de racional, premeditada ou significativa, a não ser para Arctor.

O cara está pirado, pensou ele. Está maluco mesmo. Desde o dia em que descobriu o cefscópio sabotado — certamente desde o dia em que chegou em casa com o carro todo fodido, fodido de tal forma que quase o matou — ele vem pirando. E de certa forma antes disso, pensou Fred. De certa forma, desde o “dia da merda de cachorro”, como Arctor o chamava.

Na verdade, ele não podia culpá-lo. Isso, refletiu Fred enquanto via Arctor tirar o casaco de um jeito cansado, acabaria com a cabeça de qualquer um. Mas a maioria das pessoas pararia aos poucos. Ele não, ele ficava pior. Lendo em voz alta, para ninguém, mensagens que não existem e em línguas estranhas.

A não ser que ele esteja me enganando, pensou Fred com inquietude. De algum jeito, deduziu que está sendo monitorado e está... acobertando o que realmente está fazendo? Ou só brincando de jogos mentais conosco? O tempo, concluiu ele, vai dizer.

Eu digo que ele está nos enganando, decidiu Fred. Algumas pessoas podem saber quando estão sendo observadas. Um sexto sentido. Não é paranóia, mas um instinto primitivo, que um camundongo tem, qualquer coisa que é caçada tem. Sabe que está sendo perseguido. Sente que está. Ele está fazendo essas merdas para nós, para nos ludibriar. Mas não se pode ter certeza. Existem tramóias por cima de tramóias. Camadas e mais camadas.

O som de Arctor lendo obscuramente acordou Luckman, de acordo com o scanner que cobria o quarto dele. Luckman se sentou, grogue, e prestou atenção. Depois, ouviu o barulho de Arctor deixando cair um cabideiro ao tentar pendurar o casaco. Luckman deslizou suas pernas compridas e musculosas e, em um só movimento, pegou uma machadinha que mantinha na mesinha ao lado da cama; ele se levantou e movimentou-se com a suavidade de um animal até a porta do quarto.

Na sala, Arctor pegou a correspondência da mesa de centro e começou a repassá-la. Atirou um grande envelope de propaganda na lixeira. E errou.

No quarto, Luckman ouviu isso. Ele se enrijeceu e ergueu a cabeça como quem fareja o ar.

Arctor, lendo a correspondência, de repente franziu o cenho e disse: “Vou tomar uma.”

Em seu quarto, Luckman relaxou, baixou a machadinha com um tinido, passou a mão no cabelo, abriu a porta e saiu. “E aí? O que está rolando?”

Arctor disse: “Passei pelo prédio da Maylar Microdot Corporation.”

“Tá de sacanagem comigo.”

“E”, disse Arctor, “eles estava recebendo um estoque. Mas um dos empregados evidentemente tinha seguido o estoque de perto. Então eles estavam todos lá fora, no estacionamento da Maylar Microdot Corporation, com um par de pinças e um monte de lentes de aumento. E um saquinho de papel.”

“Alguma recompensa?”, disse Luckman, bocejando e batendo as palmas das mãos na barriga reta e dura.

“Tinha uma recompensa que eles estavam oferecendo”, disse Arctor. “Mas eles perderam essa também. Era uma moedinha muito pequena.”

Luckman perguntou: “Você vê muitos acontecimentos dessa natureza enquanto dirige por aí?”

“Só no Condado de Orange.”

“Qual é o tamanho do prédio da Maylar Microdot Corporation?”

“Uns três centímetros de altura”, disse Arctor. “Quanto você acha que ele pesa?”

“Incluindo os empregados?”

 Fred avançou a gravação rapidamente. Quando se passou uma hora, de acordo com o mostrador, ele parou por um momento.

“... uns cinco quilos”, estava dizendo Arctor.

“Bom, como você pode saber, então, quando passa por lá, se só tem três centímetros de altura e pesa cinco quilos?” Arctor, agora sentado no sofá com os pés para cima, disse: “Eles têm uma placa bem grande.”

Meu Deus!, pensou Fred, e novamente avançou a fita. Parou apenas dez minutos depois, por palpite.

   “... como é a placa?”, dizia Luckman. Ele estava sentado no chão, limpando uma caixa de erva. “Néon, essas coisas? Cores? Será que eu já vi? É bem visível?”

“Olha, vou te mostrar”, disse Arctor, colocando a mão no bolso da camisa. “Eu trouxe pra casa comigo.” Novamente Fred avançou a fita.

“... sabe como pode contrabandear micropontos para um país sem que eles saibam?”, estava dizendo Luckman.

“Quase de qualquer forma que você queira”, disse Arctor, recostando-se, fumando um baseado. O ar estava enevoado.

“Não, quero dizer de uma forma que eles não percebam”, disse Luckman. “Foi o Barris que me sugeriu isso outro dia, confidencialmente; eu não devia contar a ninguém, porque ele vai contar no livro dele.”

“Que livro? Drogas Caseiras Comuns e..."

“Não. Um jeito simples de contrabandear objetos para os EUA e outros países, dependendo do rumo que você tomar. Você contrabandeia o troço com uma partida de drogas. Como faz com a heroína. Os micropontos ficam dentro dos pacotes. Ninguém ia perceber, eles estão muito pequenos. Eles não...”

“Mas aí um viciado ia tomar um pico de metade heroína e metade micropontos.”

“Bom, aí ele ia ser o junkie mais educado que você viu na vida.”

“Depende do que estava nos micropontos.”

“O Barris tem outra maneira de contrabandear droga pela fronteira. Sabe como os caras da alfândega te pedem para declarar o que você tem? E você não pode dizer drogas, porque...”

“Tá, como?

“Bom, olha só, você pega um bloco enorme de haxixe e cava um buraco no formato de um homem. Depois tira o miolo de uma parte e coloca um motor a vento, como um mecanismo de corda, e uma pequena fita cassete, e fica atrás dele e depois, pouco antes de ele passar pela alfândega, você gira a corda e vai até o cara da alfândega, que pergunta: ‘Tem alguma coisa a declarar?’, e o bloco de haxixe diz: ‘Não, não tenho’, e continua andando. Até que chega do outro lado da fronteira.”

“Você podia colocar uma bateria solar nele, em vez de uma mola, e podia ficar andando por anos. Para sempre.” “Que utilidade teria isso? Um dia ia chegar ao Pacífico ou ao Atlântico. Na verdade, ia andar pela beira da Terra, feito um...”

“Imagina só uma aldeia esquimó e um bloco de haxixe de um e oitenta de altura que vale... Quanto ia valer o bloco?”

“Tipo um bilhão de dólares.”

“Mais. Dois bilhões.”

“Os esquimós estão mascando couro e entalhando lanças de osso, e o bloco de haxixe de dois bilhões de dólares aparece andando pela neve dizendo sem parar: ‘Não, não tenho.’” “Eles iam se perguntar o que isso significava.”

“Iam ficar confusos para sempre. Viraria uma lenda.”

“Dá para imaginar dizer aos seus netos: ‘Eu vi com meus próprios olhos o bloco de haxixe de um metro e oitenta aparecer da névoa ofuscante e passar andando, desse jeito, valendo dois bilhões de dólares, dizendo: Não, não tenho.’ Os netos dele iam mandar o velho ao médico.” “Não, olha só, as lendas crescem. Depois de alguns séculos, eles iam dizer: ‘No tempo dos meus antepassados, um dia um bloco de haxixe afegão de alta qualidade, com uns trinta metros de altura, valendo oito trilhões de dólares, apareceu, cuspiu fogo e gritou: Morram, cães esquimós!, e nós lutamos sem parar contra ele, usando nossas lanças, e no final ele morreu.”’

“As crianças não iam acreditar nisso também.”

“Crianças nunca acreditam em nada.”

“É deprimente contar alguma coisa a uma criança. Uma vez, uma criança me perguntou: ‘Como é que foi ver o primeiro automóvel?’ Que merda, cara, eu nasci em 1962!” “Meu Deus”, disse Arctor, “uma vez teve um cara que eu conhecia, todo ferrado de ácido, que me disse isso. Ele tinha 27 anos. Eu só era três anos mais velho do que ele. Ele não sabia de nada, não sabia mais. Mais tarde ele tomou outras doses de ácido... ou o que ele vendeu como ácido... e depois disso mijou e cagou no chão, e quando você dizia alguma coisa pra ele, tipo ‘Como você está, Don?’, ele só repetia o que você tinha dito, como um passarinho: ‘Como você está, Don?”’

Silêncio, então. Entre os dois homens que fumavam um baseado na sala de estar. Um silêncio longo e sombrio.

“Bob, sabe de uma coisa...”, disse Luckman por fim. “Antigamente eu tinha a mesma idade de todo mundo.” “Acho que eu também”, disse Arctor.

“Não sei o que rolou.”

“É claro, Luckman”, disse Arctor, “que você sabe o que rolou com todos nós.”

“Bom, não vamos falar nesse assunto.” Ele continuou inalando ruidosamente, o rosto comprido amarelado à luz fraca do meio-dia.

 

Um dos telefones do apartamento seguro tocou. Um traje misturador atendeu, depois estendeu o fone a Fred.

— Fred.

Ele desligou os holos e pegou o fone.

— Lembra quando você esteve no centro na semana passada? — disse uma voz. — Fazendo o teste FF?

Depois de um intervalo de silêncio, Fred disse:

— Sim.

— Você devia voltar. — Uma pausa depois disso também. — Processamos mais material recente sobre você... Eu mesmo me encarreguei de marcar para você uma bateria completa de testes de percepção, além de outros testes. Está marcada para amanhã, às três da tarde, na mesma sala. Vai levar quatro horas no total. Lembra o número da sala?

— Não — disse Fred.

— Como está se sentindo?

— Bem — disse Fred, estoicamente.

— Algum problema? Em seu trabalho ou fora dele?

— Eu briguei com a minha namorada.

— Alguma confusão? Está passando por alguma dificuldade para identificar pessoas ou objetos? Alguma coisa que você veja e pareça invertida ou ao contrário? E, já que estou perguntando, alguma desorientação espaço-temporal ou de linguagem?

— Não — disse ele, carrancudo. — Nenhuma das anteriores.

— Vamos ver você amanhã na Sala 203 — disse o agente psicólogo.

— Que material meu vocês acharam que era...

— Vamos falar disso amanhã. Esteja lá. Está bem? E, Fred, não fique desanimado. — Clique.

Bom, clique para você também, pensou ele e desligou.

Irritado, sentindo que eles o estavam provocando, levando-o a fazer uma coisa de que ele se ressentia, ele ligou os holos em modo de impressão outra vez; os cubos se acenderam com cenas coloridas e tridimensionais animadas. Das gravações de áudio mais inúteis e frustrantes — para Fred — surgiu uma tagarelice:

“A tal garota”, disse Luckman monotonamente, “acabou engravidando e se candidatou a um aborto porque quatro menstruações não tinham vindo e era visível que ela estava inchando. Ela não tinha grana para pagar pelo aborto e não conseguiu assistência pública por algum motivo. Um dia, eu estava na casa dela e uma amiga da garota dizia que ela só estava com uma gravidez histérica. ‘Você só quer acreditar que está grávida, tagarelava a garota para ela. ‘É uma trip de culpa e o aborto, e a grana preta que vai te custar, é uma trip de penitência.’ E aí a garota... eu gostava de verdade dela... olhou calmamente e disse: ‘Tá legal, então, se é uma gravidez histérica, vou fazer um aborto histérico e pagar por ele com dinheiro histérico.”’ Arctor disse: “Qual será a cara na nota de cinco dólares histéricos?”

“Bom, quem foi nosso presidente mais histérico?”

“Bill Falkes. Ele só achava que era presidente.”

“Quando foi que ele governou?”

“Ele imaginava ter governado em dois mandatos por volta de 1882. Depois de muita terapia, ele passou a imaginar que só teve um mandato...”

Tomado de fúria, Fred avançou nos holos mais duas horas e meia. Até onde ia essa porcaria?, perguntou-se ele. O dia todo? Para sempre?

“... e aí você leva seu filho ao médico, ao psicólogo e diz a ele que seu filho grita o tempo todo e tem ataques de raiva.” Luckman tinha dois montes de erva diante dele na mesa de centro, além de uma lata de cerveja; estava examinado a maconha. “E mente; a criança mente. Inventa histórias exageradas. E o psicólogo examina a criança e o diagnóstico dele é: ‘Senhora, seu filho é histérico. A senhora tem um filho histérico. Mas eu não sei por quê.’ E depois você, a mãe, me sai com esta: ‘Eu sei por quê, doutor. É porque eu tive uma gravidez histérica.’” Luckman e Arctor riram, e Jim Barris também; ele tinha voltado em algum momento naquelas duas horas e estava com eles, trabalhando no cachimbo de haxixe estranho, enrolando uma corda branca.

Novamente Fred avançou uma hora inteira na fita.

“... esse cara”, dizia Luckman, preparando uma caixa cheia de maconha, curvado sobre ela enquanto Arctor estava sentado diante dele, mais ou menos olhando, “apareceu na TV afirmando ser um impostor famoso no mundo todo. Ele disse ao entrevistador que de vez em quando fingia que era um grande cirurgião da Faculdade de Medicina Johns Hopkins, um físico teórico que pesquisava partículas submoleculares de alta velocidade com uma verba federal em Harvard, um romancista finlandês que ganhou o prêmio Nobel de literatura, um presidente deposto da Argentina casado com...”

“E ele se deu bem em tudo isso?”, perguntou Arctor. “Ele nunca foi apanhado?”

“O cara nunca bancou nada disso. Nunca bancou nada, a não ser que era um impostor mundialmente famoso. Isso apareceu depois no Times de Los Angeles... eles verificaram. O cara é gari da Disneylândia, ou era, até ler a autobiografia de um impostor famoso no mundo todo... existiu um mesmo... e ele decidiu: ‘Que droga, posso fingir que sou todos esses caras exóticos e me dar bem como ele.’ E depois ele resolveu: ‘Que droga, por que fazer isso? Vou só fingir que sou outro impostor.’ Ele ganhou um monte de grana desse jeito, segundo o Times. Quase tanto quanto o verdadeiro impostor mundialmente famoso. E ele disse que foi muito mais fácil.”

Barris, desligado em um canto, enrolando a corda, disse: “Encontramos impostores de vez em quando. Na nossa vida. Mas não bancando físicos subatômicos.”

“X-9, quer dizer”, disse Luckman. “É, X-9. Eu me pergunto quantos dedos-duros a gente conhece. Como é um X-9?”

“Isso é o mesmo que perguntar: Como é um impostor?”, disse Arctor. “Uma vez eu falei com um grande traficante de haxixe que tinha sido apanhado com cinco quilos da droga. Perguntei a ele como era o X-9 que dedurou ele. Sabe como é, o... como é que chamam mesmo?... o agente de compra que apareceu e fingiu que era amigo de um amigo e conseguiu que ele vendesse algum haxixe.”

“É parecido”, disse Barris, enrolando a corda, “com a gente.”

“Mais até”, disse Arctor. “O traficante de haxixe, ele já tinha sido sentenciado e ia pra cadeia no dia seguinte; ele me disse: ‘O cabelo deles é mais comprido do que o da gente.’ Então eu acho que a moral da história é: fique longe dos caras que parecem com a gente.”

“Tem X-9 mulher também”, disse Barris.

“Eu queria conhecer um X-9”, disse Arctor. “Quer dizer, conscientemente. Onde eu pudesse ser positivo.”

“Bom”, disse Barris, “você pode ser positivo quando ele fechar as algemas em você, quando esse dia chegar.”

Arctor perguntou: “Quer dizer, os X-9 têm amigos? Que tipo de vida social eles têm? As mulheres deles sabem?”

“Os X-9 não têm mulher”, disse Luckman. “Eles moram em cavernas e aparecem de carros estacionados quando você passa. Como os trolls."

“O que eles comem?”, disse Arctor.

“Gente”, disse Barris.

“Como um cara pode fazer isso?”, disse Arctor. “Bancar o X-9?”

“Como é que é?", Barris e Luckman disseram juntos.

“Que merda, eu tô doidaço”, disse Arctor, sorrindo. “Bancar o X-9... caramba.” Ele sacudiu a cabeça e fez uma careta.

Encarando-o, Luckman disse: “BANCAR UM X-9? BANCAR UM X-9?”

“Meu cérebro está embaralhado hoje”, disse Arctor. “É melhor eu ir dormir.”

Nos holos, Fred interrompeu o movimento das fitas; todos os cubos congelaram e o som cessou.

— Dando um tempo, Fred? — disse um dos trajes misturadores para ele.

— É — disse Fred. — Estou cansado. Depois de algum tempo essa porcaria acaba com a gente. — Ele se levantou e pegou os cigarros. — Não entendo nem metade do que eles dizem, estou tão cansado! Cansado — acrescentou ele — de ouvir esses caras.

— Quando você realmente está lá com eles — disse um traje misturador — não é assim tão ruim, sabia? Como eu acho que você esteve... na própria cena até agora, sob disfarce. Não é?

— Eu nunca devia andar com essa gente esquisita — disse Fred. — Falando as mesmas coisas o tempo todo, como uns prisioneiros velhos. Por que eles fazem essas coisas, sentados ali, falando de nada?

— Por que a gente faz o que faz? É terrivelmente monótono, quando se pensa no assunto.

— Mas temos de fazer, é nosso trabalho. Não temos opção.

— Como os prisioneiros — assinalou um traje misturador. — Não temos opção.

Bancar o X-9, pensou Fred. O que isso significa? Ninguém sabe...

Bancar, refletiu ele, um impostor. Um impostor que mora debaixo de carros estacionados e come terra. Não um cirurgião, romancista ou político famoso no mundo todo: nada que alguém fosse se dar ao trabalho de ouvir na TV. Nenhuma vida que alguém em seu juízo perfeito...

 

Eu pareço aquele verme que rasteja na terra,

Mora na terra, come terra,

Até ser pisado pelo pé de alguém.

 

Sim, isso expressa a questão, pensou ele. Esse poema. Luckman deve ter lido para mim ou talvez eu tenha lido na escola. É engraçado o que aparece na cabeça da gente. Lembranças.

As estranhas palavras de Arctor não desgrudavam de sua mente, embora ele tivesse desligado a gravação. Queria poder esquecer, pensou ele. Eu queria poder, por algum tempo, esquecer Arctor.

— Tenho a sensação — disse Fred — de que às vezes sei o que eles vão dizer antes mesmo que digam. As palavras exatas.

— É o chamado déjà-vu — concordou um dos trajes misturadores. — Deixa eu te dar umas dicas. Avance a fita por intervalos de tempo maiores, não uma hora, mas umas seis horas. Depois volte, se não houver nada, até chegar a alguma coisa. Volte, está entendendo, em vez de avançar. Assim você não entra no ritmo do fluxo deles. Seis ou até oito horas à frente, depois pule de volta... Você vai pegar o jeito bem rápido, conseguirá sentir quando está passando quilômetros de nada ou quando pegou alguma coisa útil.

— E você não quer mesmo ouvir tudo — disse outro traje misturador — até conseguir realmente alguma coisa. Como uma mãe quando está dormindo... Nada a acorda, nem um caminhão passando pela rua, até que ela ouve o bebê chorar. Isso a acorda, isso a alerta. Mesmo que o choro seja fraquinho. O inconsciente é seletivo, quando se aprende a ouvir.

— Eu sei — disse Fred. — Eu tive duas crianças.

— Meninos?

— Meninas — disse ele. — Duas garotinhas.

— Que legaaaaal — disse um dos trajes misturadores. — Eu tenho uma filha de um ano.

— Nada de nomes, por favor — disse outro traje misturador e todos riram. Um pouco.

Mas de qualquer forma há uma informação, disse Fred para si mesmo, a ser extraída de toda a gravação e transmitida. Aquela declaração misteriosa sobre “bancar um X-9”. Os outros homens na casa com Arctor — isso os surpreendeu também. Quando eu for amanhã, às três, pensou ele, vou levar uma cópia disso — só o áudio já vai bastar — e discutir com Hank, junto com o que eu obtiver até lá.

Mas mesmo que seja só o que eu puder mostrar a Hank, pensou ele, já é um começo. Mostra, pensou ele, que essa varredura de Arctor 24 horas por dia não é um desperdício.

Isso mostra, pensou ele, que eu tinha razão.

Aquela observação foi um deslize de Arctor.

Mas o que significava ele ainda não sabia.

Mas vamos saber, disse ele a si mesmo, vamos descobrir. Vamos ficar de olho em Bob Arctor até ele cair. Embora seja desagradável ter de vê-lo e ouvi-lo, a ele e aos amigos, o tempo todo. Aqueles amigos, pensou Fred, são tão ruins quanto ele. Como é que eu fico sentado naquela casa com eles tanto tempo? Que jeito de viver; como disseram os outros policiais agora, que nada interminável!

Lá no fundo, pensou ele, nas trevas, as trevas da mente e as trevas também do lado de fora; trevas em toda parte. Graças ao que eles são: esse tipo de gente.

Levando os cigarros, ele foi até o banheiro, trancou a porta e depois, de dentro do maço, pegou dez tabletes de morte. Enchendo uma caneca de água, ele tomou os dez tabletes. Fred queria ter trazido mais tabletes. Bom, pensou ele, posso tomar um pouco mais quando terminar o trabalho, quando voltar para casa. Olhando o relógio, tentou calcular quanto tempo ainda faltava. Sua mente parecia de porre. Quanto faltava mesmo?, perguntou-se ele, imaginando em que se transformara seu senso de tempo. Ver os holos estava fodendo com tudo, percebeu ele. Não sei mais que horas são.

Parece que tomei ácido e depois passei por um lava- jato, pensou ele. Montes de escovas titânicas cheias de sabão zumbindo para mim, arrastadas por uma corrente em túneis de espuma preta. Que jeito de ganhar a vida, pensou Fred, e destrancou a porta do banheiro para voltar — com relutância — ao trabalho.

Quando ligou o aparelho mais uma vez, Arctor estava dizendo: “... pelo que eu sei, Deus está morto.”

Luckman respondeu: “Eu não sabia que Ele estava doente.” “Agora que meu Olds está parado indefinidamente”, disse Arctor, “decidi que tenho de vender e comprar um Henway.”

“O que é um Henway?”, disse Barris.

Para si mesmo, Fred disse: “Tipo um quilo e meio.”

“Tipo um quilo e meio”, disse Arctor.

 

Na tarde seguinte, às três horas, dois agentes médicos — não os mesmos — aplicaram vários testes em Fred, que estava se sentindo ainda pior do que na véspera.

— Em rápida sucessão, você verá vários objetos com os quais deve estar familiarizado, passando em seqüência diante, primeiro, de seu olho esquerdo e depois do direito. Ao mesmo tempo, no painel iluminado bem na sua frente, vão aparecer simultaneamente reproduções em perfil de vários desses objetos conhecidos e você precisa combinar, com o lápis, o que considera visível naquele momento. Agora, esses objetos vão se mover com muita rapidez, então não hesite por muito tempo. Seu tempo será marcado, assim como a sua precisão. Tudo bem?

— Tudo bem — disse Fred, o lápis a postos.

Todo um monte de objetos conhecidos passou rapidamente por ele e ele apontou as fotos iluminadas embaixo. Isso aconteceu para o olho esquerdo e depois tudo foi novamente feito para o direito.

— Agora, com seu olho esquerdo coberto, uma imagem de um objeto conhecido vai aparecer para seu olho direito. Você deverá estender a mão esquerda, repito, a mão esquerda, para um grupo de objetos e encontrar aquele que corresponde à imagem que você viu.

— Tudo bem — disse Fred. Apareceu uma foto de um dado; com a mão esquerda, ele procurou entre pequenos objetos colocados diante dele até encontrar um dado de jogo.

— No próximo teste, várias letras que formam uma palavra estarão disponíveis para a sua mão esquerda, sem ser vistas. Você deverá senti-las e depois, com a mão direita, escrever a palavra com as letras.

Ele fez isso. As letras diziam QUENTE.

— Agora diga que palavra é.

Então ele disse.

— Quente.

— Em seguida, você vai colocar a mão nesta caixa absolutamente escura e, com os olhos cobertos, ponha a mão esquerda em contato com um objeto, para identificá-lo. Depois nos diga o que é o objeto, sem que o tenha visto. Depois disso você mostrará três objetos que tenham alguma semelhança entre si e vai nos dizer qual dos três, que você vê, mais se parece com o objeto que tocou.

— Tudo bem — disse Fred e ele fez esse e outros testes, por quase uma hora. Tatear, falar, olhar com um dos olhos, escolher. Tatear, falar, olhar com o outro olho, escolher. Escrever, desenhar.

— No teste seguinte, novamente com os olhos cobertos, você tocará e sentirá um objeto com cada mão. Você vai nos dizer se o objeto apresentado à sua mão esquerda é idêntico ao objeto apresentado à mão direita.

Ele fez isso.

— Aqui, em rápida sucessão, estão imagens de triângulos em várias posições. Você vai nos dizer se é o mesmo triângulo ou...

Duas horas depois, eles o fizeram encaixar blocos complicados em buracos complicados e cronometraram. Ele se sentia novamente na escola e se dando mal. Saindo-se pior do que naquela época. A srta. Finkel, pensou ele, a velha srta. Finkel, a professora de inglês. Ela costumava ficar de pé, me vendo fazer essa merda na época, mostrando-me mensagens em inglês: “Die!", como dizem em análise transacional. Die. Dado de jogo. Ou morrer. Não existir. Que mensagens. Todo um monte delas, até que eu finalmente me fodia. Agora a srta. Finkel devia estar morta. Provavelmente alguém conseguiu mostrar a ela a mensagem “Die!” e acertou em cheio. Ele esperava que sim. Talvez acontecesse com ele. Como nos testes psicotécnicos agora, talvez ele visse mensagens assim.

Isso não parecia estar adiantando. O teste continuou.

— O que há de errado com esta imagem? Um objeto que não combina com os outros. Você deve marcar...

Ele marcou. E depois foram objetos de verdade, um dos quais não combinava; ele devia estender a mão e retirar o objeto transgressor, e depois, quando o teste acabasse, pegar os objetos transgressores de uma variedade de “conjuntos”, como eles chamaram, e dizer as características, se houvesse alguma, que todos os objetos transgressores tinham em comum: se eles constituíssem um “conjunto”.

Ele ainda estava tentando fazer isso quando eles contaram o tempo, a bateria de testes terminou e lhe disseram para tomar uma xícara de café e esperar do lado de fora até ser chamado.

Depois de um tempo — que pareceu longo demais para ele —, um dos agentes do teste apareceu e disse:

— Mais uma coisa, Fred... queremos uma amostra de seu sangue. — Ele lhe deu uma folha de papel: uma requisição de laboratório. — Desça o corredor até a sala com a placa “Laboratório de Patologia”, entregue isso a eles e, depois que colherem uma amostra de seu sangue, volte aqui e espere.

— Claro — disse ele, taciturno, e saiu com a requisição. Vestígios no sangue, percebeu ele. Eles vão examinar isso. Quando estava de volta à Sala 203, vindo do laboratório

de patologia, ele procurou um dos examinadores e disse:

— Haveria algum problema em subir para conversar com seu superior enquanto estou esperando pelos resultados? Ele vai embora daqui a pouco.

— Afirmativo — disse o examinador. — Como decidimos tirar uma amostra de sangue, vai demorar mais antes de fazermos nossa avaliação; sim, vá em frente. Vamos telefonar lá para cima quando estivermos prontos para você. Hank é o nome dele, não é?

— Sim — disse Fred. — Vou subir e falar com Hank.

O examinador disse:

— Certamente você parece muito mais deprimido hoje do que quando o vimos pela primeira vez.

— Como? — disse Fred.

— Na primeira vez em que veio aqui. Na semana passada. Você estava brincalhão e risonho. Embora estivesse muito tenso.

Olhando para ele, Fred percebeu que esse era um dos dois agentes médicos que ele encontrara antes. Mas ele não disse nada, apenas resmungou e saiu da sala, indo para o elevador. Que coisa deprimente, pensou ele. Tudo isso. Qual dos dois agentes médicos será?, ponderou ele. O do bigode de pontas viradas ou o outro... acho que é o outro. O que não tem bigode.

— Você vai sentir esse objeto com a mão esquerda — disse ele a si mesmo — e ao mesmo tempo vai olhar para ele com a direita. E depois, em suas próprias palavras, vai nos dizer... — Ele não conseguiu pensar em nada mais absurdo. Não sem a ajuda deles.

 

Quando entrou na sala de Hank, encontrou outro homem, não no traje misturador, sentado no canto, olhando para Hank.

Hank disse:

— Este é o informante que telefonou sobre Bob Arctor usando a grade... eu falei dele com você.

— Sim — disse Fred, parado ali, imóvel.

— Este homem ligou novamente, com mais informações sobre Bob Arctor; ele nos contou que teve de se apresentar e se identificar. Combinamos com ele de vir aqui e ele veio. Você o conhece?

— Claro que sim — disse Fred, encarando Jim Barris, que estava sentado sorrindo e remexendo em uma tesoura. Barris parecia pouco à vontade e feio. Muito feio, pensou Fred, com repulsa. — Você é James Barris, não é? — disse ele. — Já foi preso?

— A identidade dele mostra que é James R. Barris — disse Hank — e que ele é quem afirma ser. — E acrescentou:

— Ele não tem registro de prisão.

— O que ele quer? — Para Barris, Fred disse: — Qual é sua informação?

— Eu tenho provas — disse Barris em voz baixa — de que o sr. Arctor faz parte de uma grande organização secreta, bem financiada, com arsenais de armas à sua disposição, usando palavras em código, provavelmente dedicada à destruição de...

— Esta parte é especulação — interrompeu Hank. — O que você acha que pode fazer? Quais são suas provas? Não nos dê nada que não seja de primeira mão.

— Já foi mandado a um hospital psiquiátrico? — disse Fred a Barris.

— Não — disse Barris.

— Vai assinar uma declaração juramentada e autenticada no escritório da promotoria — continuou Fred — com relação a suas provas e a suas informações? Estará disposto a aparecer em juízo sob juramento e...

— Ele já indicou que sim — interrompeu Hank.

— Minhas provas — disse Barris —, que eu não trago comigo hoje, mas que posso trazer, consistem em gravações que fiz de conversas telefônicas de Robert Arctor. Quer dizer, conversas quando ele não sabia que eu estava ouvindo.

— Que organização é essa? — disse Fred.

— Acredito que seja... — começou Barris, mas Hank sinalizou para ele se calar. — É política — disse Barris, suando e tremendo um pouco, mas parecendo satisfeito — e contra o país. Do exterior. Um inimigo dos Estados Unidos.

Fred disse:

— Qual é a relação de Arctor com a fonte da Substância D?

Pestanejando, depois lambendo o lábio e sorrindo, Barris disse:

— Está em minha... — ele se interrompeu. — Quando examinarem todas as informações que trarei... isto é, minhas provas... sem dúvida vão concluir que a Substância D é produzida por uma nação estrangeira decidida a destruir os Estados Unidos e que o sr. Arctor está profundamente envolvido com a maquinaria dessa...

— Pode nos dar especificamente o nome de mais alguém dessa organização? — disse Hank. — Pessoas com quem Arctor se encontrou? Você sabe que dar informações falsas a autoridades legais é um crime e, se assim for, você pode e provavelmente será intimado.

— Eu sei disso — disse Barris.

— Com quem Arctor conversava? — disse Hank.

— Com uma tal srta. Donna Hawthorne — disse Barris. — Usando várias desculpas, ele vai à sua casa e conspira com ela regularmente.

Fred riu.

— Conspira. O que quer dizer com isso?

— Eu o tenho seguido — disse Barris, falando lenta e distintamente — em meu carro. Sem que ele saiba.

— Ele vai lá com freqüência? — disse Hank.

— Sim, senhor — disse Barris. — Com muita freqüência. E sempre como...

— Ela é namorada dele — disse Fred.

Barris disse:

— O sr. Arctor também...

Virando-se para Fred, Hank disse:

— Acha que há algo de substancial nisso?

— Sem nenhuma dúvida, devemos ver as provas dele — disse Fred.

— Traga suas provas — Hank instruiu Barris. — Todas elas. Queremos principalmente nomes... nomes, placas de carro, números de telefone. Já viu Arctor profundamente envolvido com uma grande quantidade de drogas? Mais do que de usuário?

— Certamente — disse Barris.

— De que tipo?

— De vários tipos. Tenho amostras. Eu peguei amostras com todo o cuidado, para que vocês analisem. Posso trazer também. Bastantes e variadas.

Hank e Fred olharam-se.

Barris, olhando cegamente para a frente, sorriu.

— Há mais alguma coisa que queira nos dizer agora? — perguntou Hank a Barris. Para Fred, ele disse: — Talvez devamos mandar um agente com ele para pegar as provas. — O que significava: ter certeza de que ele não vai entrar em pânico e sumir, não vai tentar mudar de idéia e pular fora.

— Há mais uma coisa que gostaria de dizer — disse Barris. — O sr. Arctor é um viciado, viciado em Substância D, e a mente dele agora está perturbada. Há algum tempo, vem ficando perturbado, aos poucos, e ele é perigoso.

— Perigoso — repetiu Fred.

— Sim — declarou Barris. — Ele já teve episódios como os que acontecem com danos cerebrais por Substância D. O quiasma ótico deve estar deteriorado, uma vez que um componente ipsolateral fraco... Mas também... — Barris pigarreou. — Deterioração também no corpo caloso.

— Esse tipo de especulação sem fundamento — disse

Hank —, como já o informei, já o alertei, não tem valor algum. De qualquer forma, vamos mandar um agente com você para pegar suas provas. Tudo bem?

Dando um sorriso forçado, Barris assentiu.

— Mas naturalmente...

— Vamos usar um policial à paisana.

— Eu posso... — Barris gesticulou — ser assassinado. O sr. Arctor, como eu disse...

Hank assentiu.

— Tudo bem, sr. Barris, nós agradecemos por isso, pelo risco extremo que está correndo e, se isso der certo, se suas informações forem de valor significativo na obtenção de uma condenação no tribunal, naturalmente...

— Eu não estou aqui por esse motivo — disse Barris. — O homem está doente. Com danos cerebrais. Da Substância D. O motivo para eu vir aqui...

— Não ligamos para os seus motivos — disse Hank. — Só nos importa se suas provas e o material significam alguma coisa. O resto é problema seu.

— Obrigado, senhor — disse Barris e manteve um sorriso forçado interminável.

 

Novamente na Sala 203, o laboratório de testes psicológicos da polícia, Fred ouviu sem interesse enquanto os resultados de seus testes eram explicados pelos dois psicólogos.

— Você mostra o que consideramos mais um fenômeno de competição, em vez de deterioração. Sente-se.

— Tudo bem — disse Fred estoicamente, sentando-se.

— Competição — disse o outro psicólogo — entre os hemisférios direito e esquerdo de seu cérebro. Não é um sinal único, deficiente ou contaminado, é mais como dois sinais que interferem um no outro ao transmitir informações conflitantes.

— Normalmente — explicou o outro psicólogo — uma pessoa usa o hemisfério esquerdo. O auto-sistema do ego, ou consciência, localiza-se ali. É dominante, porque é sempre no hemisfério esquerdo que se localiza o centro da fala; mais precisamente, a bilateralização envolve uma capacidade verbal ou valência no esquerdo, com capacidades espaciais no direito. O esquerdo pode ser comparado com um computador digital; o direito, com um analógico. Então a função bilateral não é uma simples duplicação, os dois sistemas de percepção monitoram e processam de forma diferente as informações que recebem. Mas, para você, nenhum dos dois hemisférios é dominante e eles não agem de forma compensatória, um com o outro. Um lhe diz uma coisa, o outro diz outra.

— É como se você tivesse dois mostradores de combustível em seu carro — disse o outro homem. — Um lhe diz que seu tanque está cheio, e o outro registra que está vazio.

Não é possível que os dois estejam certos. Eles estão em conflito. Mas, no seu caso, não é que um esteja funcionando bem e o outro mal, é que... Quero dizer o seguinte: os dois mostradores analisam exatamente a mesma quantidade de combustível, o mesmo combustível, o mesmo tanque. Na verdade, eles testam a mesma coisa. Você, como motorista, só tem uma relação indireta com o tanque de combustível, por meio do mostrador ou, no seu caso, dos mostradores. De fato, o tanque pode se esvaziar inteiramente e você só vai saber quando um mostrador do painel lhe disser, ou quando o motor finalmente parar. Não deve haver dois mostradores dando informações conflitantes, porque, assim que isso acontece, você não tem qualquer conhecimento da situação que está sendo informada. Não é a mesma coisa que um mostrador e um mostrador de apoio, em que o de apoio entra em ação quando o normal dá defeito.

Fred disse:

— E o que isso significa?

—Tenho certeza de que você já sabe — disse o psicólogo à esquerda. — Você anda vivendo isso, sem saber por que ou o que é.

— Os dois hemisférios de meu cérebro estão competindo? — disse Fred.

— Sim.

— Por quê?

— A Substância D. Ela costuma causar isso, funcionalmente. Era o que esperávamos, foi o que os testes confirmaram. Quando os danos ocorrem no hemisfério esquerdo, normalmente dominante, o hemisfério direito tenta compensar a deterioração. Mas as funções gêmeas não se misturam porque este é um problema anormal, para o qual o corpo não está preparado. Não deve acontecer. Chamamos de sugestão cruzada. Relacionada com o fenômeno da divisão cerebral. Podemos fazer uma hemisferectomia direita, mas...

— Isso vai desaparecer — interrompeu Fred — quando eu largar a Substância D?

— Provavelmente — disse o psicólogo da esquerda, assentindo. — É uma deterioração funcional.

O outro homem disse:

— Pode ser um dano orgânico. Pode ser permanente. O tempo dirá e só depois de que você largar a Substância D por algum tempo. E largar inteiramente.

— Como é? — disse Fred. Ele não entendeu a resposta: era sim ou não? Ele tinha danos para sempre ou não? O que eles disseram?

— Mesmo que haja um dano no seu tecido cerebral — disse um dos psicólogos —, há experimentos em andamento agora, na remoção de pequenas seções de cada hemisfério, para abortar o processamento competitivo de Gestalt. Acredita-se que um dia isso possa levar o hemisfério original a recuperar a dominância.

— Porém, o problema aqui é que o indivíduo só pode receber impressões parciais... informações que recebe dos sentidos... pelo resto da vida. Em vez de dois sinais, ele recebe meio sinal. O que é igualmente prejudicial, na minha opinião.

— Sim, mas uma função parcial não-competitiva é melhor do que não ter função alguma, uma vez que a sugestão cruzada competitiva equivale a recepção zero.

— Está vendo, Fred — disse o outro homem você não tem mais...

— Nunca mais vou tomar a Substância D — disse Fred.

— Pelo resto da minha vida.

— Quantas está tomando agora?

— Não muito. — Depois de um intervalo, ele disse: — Mais, recentemente, por causa do estresse no trabalho.

— Ela sem dúvida deve aliviá-lo de suas atribuições — disse um psicólogo. — Isolá-lo de tudo. Você está mesmo com deterioração, Fred. E ficará assim por mais tempo.

Provavelmente. Depois disso, ninguém poderá ter certeza. Você poderá ter uma recuperação total, mas pode ser que' não.

— Como é — disse Fred numa voz aguda — que mesmo que os dois hemisférios de meu cérebro sejam dominantes eles não recebem os mesmos estímulos? Por que os dois não podem ser sincronizados, como um aparelho de som estéreo?

Silêncio.

— Quer dizer — disse ele, gesticulando —, a mão esquerda e a mão direita, quando pegam um objeto, o mesmo objeto, devem...

— O uso da mão esquerda comparado com o da mão direita, como, por exemplo, o que é indicado por, digamos, uma imagem especular... em que a esquerda “se torna” a mão direita... — O psicólogo se inclinou para Fred, que não olhou para ele. — Como você definiria uma luva esquerda se comparada com uma luva direita, de rnodo que uma pessoa que não conheça estes termos possa entender o que você quer dizer? E não entender o contrário? O oposto especular?

— Uma luva esquerda... — disse Fred e depois parou.

— É como se um hemisfério de seu cérebro estivesse percebendo o mundo refletido em um espelho. Através de um espelho. Entendeu? Então esquerda se torna direita e tudo o que isso implica. E não sabemos ainda o que isso implica, ver o mundo invertido desse jeito. Do ponto de vista topológico, uma luva esquerda é uma luva direita salva da infinidade.

— Através de um espelho — disse Fred. Um espelho escuro, pensou ele, um scanner escuro. E São Paulo quis dizer, por um espelho, não um espelho de vidro — eles não existiam na época —, mas um reflexo de si mesmo quando ele olhava para a base polida de uma panela de metal. Lu- ckman, em suas leituras de teologia, contara isso a ele.

Não por um telescópio ou sistema de lentes, que não invertem, não através de nada, mas ver sua própria face refletida nele, invertida — salva da infinidade. Como eles estavam me dizendo. Não é através do vidro, mas volta refletido por um vidro. É esse reflexo que volta a você: é você, é seu rosto, mas não é. E eles não tinham câmeras naquela época e essa era a única maneira de uma pessoa se ver: ao contrário.

Eu tenho me visto ao contrário.

De certa forma, eu tenho começado a ver todo o universo ao contrário. Com o outro lado do meu cérebro!

— Topologia — estava dizendo um dos psicólogos. — Uma ciência ou matemática pouco compreendida. Como os buracos negros no espaço, como...

— Fred, está vendo o mundo de dentro para fora — declarava o outro homem no mesmo momento. — De frente e de trás ao mesmo tempo, acho. É difícil sabermos como é para ele. A topologia é o ramo da matemática que investiga as propriedades de uma forma geométrica ou outra configuração que fica inalterada se o objeto é submetido a uma transformação contínua aos pares, somente aos pares. Mas aplicada à psicologia...

— E quando isso acontece com objetos, quem sabe que aparência eles terão? Eles são irreconhecíveis. Como acontece quando um ser primitivo vê pela primeira vez uma fotografia de si mesmo, ele não se reconhece nela. Embora ele tenha visto seu reflexo muitas vezes nos regatos, em objetos de metal. Porque seu reflexo é invertido e a fotografia dele não é. Então ele não sabe que a pessoa é idêntica.

— Ele só está acostumado com a imagem refletida e invertida e acha que ele é assim.

— Em geral, uma pessoa que ouve a própria voz numa gravação...

— Isso é diferente. Tem a ver com a ressonância no sinus...

— Talvez sejam vocês, seus merdas — disse Fred —, que estejam vendo o universo ao contrário, como num espelho. Talvez eu esteja vendo certo.

— Você vê das duas formas.

— O que é...

Um psicólogo disse:

— Costumavam falar de ver somente “reflexos” da realidade. Não a realidade em si. O principal erro em um reflexo não é que ele não seja real, mas que seja invertido. Fico admirado com isso. — Ele estava com uma expressão estranha. — Paridade. O princípio científico da paridade. O universo e a imagem refletida, tomamos essa última pela primeira, por algum motivo... porque não temos paridade bilateral.

— Ao passo que uma fotografia pode compensar a falta de paridade bilateral hemisférica; não é o objeto, mas não é invertido, de modo que a oposição faria das imagens fotográficas não imagens, mas a forma verdadeira. O inverso do inverso.

— Mas uma foto pode ser invertida acidentalmente também, se o negativo é virado... impresso ao contrário. Em geral, só podemos saber se houver algo escrito. Mas não com um rosto humano. Podem-se ter duas impressões por contato de um determinado homem, uma invertida e outra não. Uma pessoa que nunca o viu não sabe qual é a correta, mas pode ver que são diferentes e não podem ser sobrepostas.

— É isso aí, Fred, o que lhe mostra como é complexo o problema de formular a distinção entre uma luva esquerda e...

— Então acontecerá o que está escrito — disse uma voz. — A morte é destruída. Na vitória. — Talvez só Fred estivesse ouvindo isso. — Porque — disse a voz —, assim que a escrita parece invertida, sabeis o que é ilusão e o que não é. A confusão termina e a morte, a derradeira inimiga, a Substância Dorte, desaparece, não no corpo, mas na vitória. Vede, eu agora vos conto o segredo sagrado: não iremos todos dormir na morte.

O mistério, pensou ele, a explicação, ele quis dizer. De um segredo. Um segredo sagrado. Não vamos morrer.

Os reflexos partirão

E tudo acontecerá rápido.

Todos seremos mudados e, com isso, ele quis dizer invertido novamente, de repente. Num...

... piscar de olhos!

Porque, pensou ele, taciturno, enquanto observava os psicólogos da polícia escreverem suas conclusões e assiná- las, estamos ao contrário neste exato momento, eu acho, cada um de nós; cada um e todas as coisas, e o espaço, e até o tempo. Mas quanto tempo, pensou ele, quando é feita uma impressão, uma impressão de contato, quando o fotógrafo descobre que usou o negativo invertido, quanto tempo leva para virar? Para invertê-lo novamente para o que deveria ser?

Uma fração de segundo.

Eu entendo, pensou ele, o que quer dizer a passagem da Bíblia. Através de um vidro escuro. Mas meu sistema de percepção está fodido, como sempre foi. Como eles dizem. Eu entendo, mas não posso me ajudar.

Talvez, pensou ele, depois que eu enxergar as duas formas de uma só vez, corretamente e invertidas, eu seja a primeira pessoa na história a ver virado e não virado simultaneamente e tenha um vislumbre do que vai ser quando estiver correto. Embora eu também tenha o outro, o normal. E o que é o quê?

O que é invertido e o que não é?

Quando vejo uma foto, quando vejo um reflexo?

E quanto vou receber de licença médica ou aposentadoria ou invalidez enquanto estiver me tratando?, perguntou-se ele, sentindo já o terror, o pavor profundo e o frio em tudo. Wie kalt ist es in diesem unterirdischen Gewôlbe! Das ist natürlich, es ist ja tief. Tenho de me afastar dessa merda. Já vi pessoas passando por isso. Meu Deus, pensou ele, e fechou os olhos.

— Isso pode parecer metafísica — estava dizendo um deles —, mas os matemáticos dizem que podemos estar à beira de uma nova cosmologia, tanto...

O outro disse, animado:

— A infinidade do tempo, que é expressa como eternidade, como um circuito! Como um circuito de uma fita cassete!

 

Ele tinha uma hora para matar, antes de precisar voltar ao escritório de Hank, para ouvir e analisar as provas de Jim Barris.

A cantina do prédio o atraiu, então ele foi até lá, passando pelos que estavam uniformizados, os que vestiam trajes misturadores e os que estavam de terno e gravata.

Enquanto isso, as descobertas dos psicólogos presumivelmente estavam sendo levadas a Hank. Elas estariam lá quando ele chegasse.

Isso lhe dava tempo para pensar, refletiu ele enquanto entrava na cantina e na fila. Tempo. Suponha, pensou ele, que o tempo seja redondo, como a Terra. Você navega para o Oeste e chega à índia. Eles riram de você, mas por fim lá estava a índia, na frente e não atrás. Com o tempo, talvez a Crucificação esteja à nossa frente enquanto navegamos, achando que está no Leste.

Na frente dele, uma secretária. Suéter azul apertado, sem sutiã, quase saia nenhuma. Era bom ficar olhando para ela; ele olhou sem parar e, por fim, ela percebeu e se afastou com sua bandeja.

O Primeiro e o Segundo Adventos de Cristo sendo o mesmo acontecimento, pensou ele; o tempo como uma volta de fita cassete. Não surpreende que eles tivessem certeza de que ia acontecer. Ele ia voltar.

Ele viu que a secretária estava atrás, mas depois percebeu que ela não podia vê-lo de trás como ele a via, porque o traje dele não tinha rosto nem bunda. Ela, porém, sente que estou armando pra cima dela, concluiu ele. Qualquer mulher com pernas assim sentiria isso de qualquer homem.

Sabe de uma coisa, pensou ele, neste traje misturador eu podia bater na cabeça da mulher por trás, foder muito com ela e quem ia saber que fui eu? Como poderia ela me identificar?

Os crimes que podem ser cometidos nesses trajes, refletiu ele. Também viagens mais curtas, crimes menores, o que você nunca fez; sempre quis, mas nunca fez.

— Senhorita — disse ele à mulher de suéter azul apertado —, certamente tem pernas lindas. Mas acho que sabe disso ou não estaria usando uma microssaia assim.

A garota ofegou.

— Quê — disse ela. — Ah, agora sei quem você é.

— Sabe? — disse ele, surpreso.

— Pete Wickam — disse a mulher.

— Quê? — disse ele.

— Você não é o Pete Wickam? Você sempre está sentado na minha frente... não é você, Pete?

— Eu sou o cara — disse ele — que sempre está sentado lá, olha suas pernas e pensa muito em você sabe o quê?

Ela assentiu.

— Eu tenho alguma chance? — disse ele.

— Bom, isso depende.

— Posso te levar para jantar uma noite dessas?

— Acho que sim.

— Pode me dar o número do seu telefone? Para eu poder te ligar?

A garota murmurou:

— Me dê você o seu.

— Eu vou te dar — disse ele — se você ficar sentada comigo agora, aqui, e se você ficar comigo enquanto eu como meu sanduíche e tomo meu café.

— Não, tem uma amiga minha aqui... ela está esperando.

— Eu posso ficar com vocês, com as duas.

— Nós duas vamos ter uma conversa particular.

— Tudo bem — disse ele.

— Bom, então a gente se vê, Pete. — Ela andou pela fila com a bandeja, os talheres e o guardanapo.

Ele pegou o café e o sanduíche, encontrou uma mesa vazia e se sentou sozinho, colocando pequenos pedaços de sanduíche no café e olhando para ele.

Eles vão me tirar a porra do Arctor, concluiu ele. Vou para a Synanon ou para a New-Path, ou para um desses lugares de privação e eles vão designar outra pessoa para observá-lo e avaliá-lo. Algum babaca que não sabe merda alguma do Arctor — vão ter de começar tudo do zero.

Pelo menos eles podem me deixar avaliar as provas de Barris, pensou ele. Só me suspender depois que repassarmos a coisa toda, o que quer que seja.

Se eu pegar essa mulher e ela engravidar, ruminou ele, os bebês — sem rosto. Só borrões. Ele estremeceu.

Eu sei que serei afastado. Mas por que necessariamente agora? Se eu pudesse fazer mais algumas coisas... processar as informações de Barris, participar da decisão. Ou até ficar sentado lá e ver o que ele tem. Descobrir, para minha própria satisfação, finalmente descobrir o que Arctor está aprontando. Ele está aprontando alguma coisa? Ou não está? Eles devem isso a mim: permitir que eu fique por tempo suficiente para descobrir.

Se eu pudesse só ouvir e observar e não dizer nada.

Ele ficou sentado ali interminavelmente e depois percebeu a garota do suéter azul apertado e a amiga dela, que tinha cabelo preto e curto, levantarem-se da mesa e começarem a partir. A amiga da garota, que não era muito bonita, hesitou e se aproximou de Fred, onde ele estava sentado, curvado sobre o café e os fragmentos de sanduíche.

— Pete? — disse a garota de cabelo curto.

Ele olhou para ela.

— Hummm, Pete — disse ela de um jeito nervoso. — Eu só tenho um segundinho. Hmmm, a Ellen queria te dizer isso, mas não teve coragem. Pete, ela teria saído com você há muito tempo, talvez há um mês, tipo em março, até. Se...

— Se o quê? — disse ele.

— Bom, ela me pediu para te dizer que por algum tempo ela queria que você soubesse que você se daria muito melhor se usasse, digamos, Scope.

O desinfetante bucal.

— Eu queria ter sabido disso — disse ele, sem entusiasmo.

— Tá legal, Pete — disse a garota, aliviada agora e partindo. — Te vejo depois. — Ela se apressou, sorrindo.

Coitado do fodido do Pete, pensou ele consigo mesmo. Isso era pra valer? Ou era só uma afronta chocante feita por duas maldosas que bolaram isso ao vê-lo — ao verem a mim — sentado aqui sozinho? Só uma maldadezinha — ah, ao inferno com isso, pensou ele.

Ou pode ser verdade, concluiu ele enquanto limpava a boca, amassava o guardanapo e se levantava pesadamente. Eu me pergunto se São Paulo tinha mau hálito. Ele saiu da cantina, as mãos enfiadas no fundo dos bolsos. Nos bolsos do traje misturador e depois nos bolsos do terno. Talvez seja por isso que Paulo tenha ficado na cadeia na última parte da vida. Eles o atiraram lá por isso.

Essas trips de foder com a cabeça sempre apareciam numa fase dessas, pensou ele enquanto saía da cantina. Ela jogou essa pra cima de todos os outros babacas hoje — a grande sabedoria que vinha de séculos de pontificação de teste psicológico. Isso e aquilo. Que merda!, pensou ele. Ele se sentia ainda pior agora do que antes; mal conseguia andar, mal podia pensar, sua mente zumbia de confusão. Confusão e desespero. De qualquer forma, pensou ele, Scope não é nada bom, Lavoris é melhor. A não ser quando você cospe e parece que está cuspindo sangue. Talvez Micrin, pensou ele. Isso poderia ser melhor.

Se tivesse uma drogaria neste prédio, pensou ele, eu podia comprar um frasco e usar antes de subir para encarar Hank. Assim talvez eu me sentisse mais confiante. Talvez eu tivesse mais chance.

Eu podia usar, refletiu ele, qualquer coisa que ajudasse, qualquer coisa mesmo. Qualquer pista, como daquela garota, qualquer sugestão. Ele se sentiu desanimado e com medo. Que merda!, pensou ele, o que eu vou fazer?

Se estou fora de tudo, pensou ele, então nunca vou ver qualquer deles de novo, nenhum dos meus amigos, as pessoas que eu observei e conheci. Vou ficar de fora, talvez fique afastado pelo resto da vida — de qualquer modo, eu vi Arctor, Luckman, Jerry Fabin e Charles Freck pela última vez e, acima de tudo, Donna Hawthorne. Nunca mais vou ver meus amigos, pelo resto da eternidade. Acabou.

Donna. Ele se lembrou de uma canção que o tio-avô costumava cantar anos atrás, em alemão. “Ich seh’ wie ein Engel im rosigen Duft/Sich tröstend zur Seite mir stellet”, que o tio-avô lhe explicara que significava “Eu vejo, vestida como um anjo, parada ao meu lado para me dar conforto”, a mulher que ele amava, a mulher que o salvou (na música). Na música, não na vida real. O tio-avô estava morto e havia muito tempo ele não ouvia essas palavras. O tio- avô, alemão, cantando na casa ou lendo em voz alta:

 

Gott! Welch Dunkel hier! O grauenvolle Stille!

Od’ ist es um mich her. Nichts lebet auszer mir...

 

Deus, como está escuro aqui, e num silêncio completo.

Nada a não ser eu vivo neste vácuo...

Mesmo que seu cérebro não estivesse estragado, percebeu ele, outra pessoa terá recebido minhas atribuições quando eu voltar ao trabalho. Ou eles estarão mortos ou em clínicas federais, ou só dispersos, dispersos, dispersos. Ferrados e destruídos, como eu, incapazes de deduzir que porra está acontecendo. Tinha chegado ao fim de qualquer forma, para mim. Eu, sem saber, já havia dito adeus.

Só o que posso fazer um dia, pensou ele, é tocar as holofitas, para me lembrar.

— Eu devia ir para o apartamento seguro... — ele olhou em volta e ficou em silêncio. Eu devia ir para o apartamento seguro e roubá-las agora, pensou ele. Enquanto posso. Depois, elas podem ser apagadas e, mais tarde, eu não teria acesso. Foda-se o departamento, pensou ele, eles podem descontar do meu salário. Segundo qualquer consideração ética, as gravações daquela casa e das pessoas nela pertencem a mim.

E agora aquelas fitas são tudo o que me resta nesta história, elas são a única coisa que posso esperar levar.

Mas também, pensou ele rapidamente, para tocar as fitas eu preciso de todo o sistema de resolução com transporte de projeção em cubo ali no apartamento seguro. Vou precisar desmontá-lo e levá-lo de lá, peça por peça. Dos scanners e aparelhos de gravação não vou precisar; só do transporte, dos componentes de reprodução e em especial de todos os aparelhos de projeção em cubo. Posso fazer isso aos pouquinhos, eu tenho a chave do apartamento. Eles vão exigir que eu devolva a chave, mas posso fazer uma cópia bem aqui antes de entregar; é uma chave convencional Schlage. Depois posso pegar tudo! Ele se sentiu melhor ao perceber isso; ele se sentiu cruel, digno e um pouco irritado. Com todos. O prazer de como agiria fazia diferença.

Por outro lado, pensou ele, se eu roubar os scanners e as cabeças de gravação e coisas assim, posso continuar monitorando. Por minha conta. Manter a vigilância ativa, como eu venho fazendo. Por algum tempo, pelo menos. Mas tudo na vida é por algum tempo — como testemunhar isso.

A vigilância, pensou ele, devia essencialmente ser mantida. E, se possível, por mim. Eu sempre devia estar observando, observando e tirando conclusões, mesmo que eu nunca faça nada com o que vejo; mesmo que eu só fique sentado lá e observe em silêncio, sem ser visto; isto é importante: que eu, como observador de tudo o que acontece, deva estar na minha casa.

Não para o bem deles. Para o meu.

É, corrigiu-se ele, para o bem deles também. No caso de acontecer alguma coisa, como quando Luckman sufocou. Se alguém estiver vendo — se eu estiver vendo —, posso perceber e conseguir ajuda. Telefonar pedindo ajuda. Levar assistência a eles de imediato, o tipo certo de ajuda.

Por outro lado, pensou ele, eles podiam morrer e ninguém iria saber. Saber ou mesmo se importar.

Em vidinhas infelizes assim, alguém deve intervir. Ou, pelo menos, marcar suas tristes idas e vindas. Marcar e, se possível, gravar permanentemente, para que eles sejam lembrados. Para uma época melhor, no futuro, quando as pessoas entenderão.

 

Na sala de Hank, ele se sentou com Hank, com um policial uniformizado e com o informante suarento e sorridente Jim Barris, enquanto uma das fitas cassete de Barris tocava na mesa diante deles. Ao lado, outra fita cassete gravava o que estava tocando, para uma cópia do departamento.

Ah, oi! Olha, não posso conversar.”

“Então, quando?”

“Eu te ligo.”

“Isso não pode esperar.”

“Bom, o que é?”

“Nós planejamos...”

Hank estendeu a mão, indicando a Barris para parar a fita.

— Pode identificar as vozes para nós, sr. Barris? — disse Hank.

— Sim — concordou Barris ansiosamente. — A voz de mulher é de Donna Hawthorne, e a de homem, de Robert Arctor.

— Muito bem — disse Hank assentindo, olhando depois para Fred. Estava com o relatório médico de Fred diante dele e o via. — Continue com sua gravação.

“... chegar à metade do sul da Califórnia amanhã à noite”, continuou a voz masculina, identificada pelo informante como de Bob Arctor. “O Arsenal da Força Aérea na base de Vanderberg será atingido por armas automáticas e semi-automáticas...”

Hank parou de ler o relatório médico e prestou atenção, inclinando a cabeça borrada pelo traje misturador.

Para si mesmo e agora para todos na sala, Barris sorriu; seus dedos mexiam em clipes de papel tirados da mesa, mexiam sem parar, como se tecesse uma teia de arame, tecendo e mexendo, suando e tecendo.

A mulher, identificada como Donna Hawthorne, disse: “E a droga de desorientação que os motoqueiros roubaram para nós? Quando vamos levar essa porcaria para a área da vertente?...”

“A organização precisa das armas primeiro”, explicou a voz de homem. “Esse é o passo B.”

“Tudo bem, mas agora eu preciso ir, tenho um cliente.”

Clique. Clique.

Barris, remexendo-se na cadeira, disse:

— Posso identificar a gangue de motoqueiros mencionada. É citada em outra...

— Você tem mais material desse tipo? — disse Hank. — Para dar fundamento? Ou é substancialmente esta fita?

— Muito mais.

— Mas é o mesmo tipo de coisa.

— Refere-se, sim, à mesma organização conspiradora e aos planos dela, sim. Essa trama em particular.

— Quem são essas pessoas? — disse Hank. — Que organização?

— Eles agem em todo o mundo...

— Os nomes. Você está especulando.

— Robert Arctor, Donna Hawthorne, principalmente. Tenho anotações codificadas também... — Barris fuçou um caderno encardido que despencava enquanto ele tentava abri-lo.

Hank disse:

— Estou apreendendo todas essas coisas, sr. Barris, as fitas e o que o senhor tiver. Temporariamente, elas são de nossa propriedade. Vamos examinar nós mesmos.

— Minha letra e o material cifrado que eu...

— O senhor estará disponível para nos explicar quando chegarmos a esse ponto ou acharmos que queremos que explique alguma coisa. — Hank fez um sinal para que o policial uniformizado, não Barris, desligasse o gravador. Barris estendeu a mão para o aparelho. Rapidamente o policial o deteve e o empurrou. Barris, pestanejando, olhou em volta, ainda com um sorriso fixo. — Sr. Barris — disse Hank —, o senhor só será liberado quando analisarmos este material. O senhor está sendo acusado, para que formalmente o mantenhamos disponível, de dar falsas informações às autoridades, intencionalmente. Isso, é claro, é só um pretexto para sua própria segurança e todos entendemos isso, mas a acusação formal será apresentada de qualquer modo. Será transmitida à promotoria, com indicação para que aguardem. É satisfatório? — Ele não esperou resposta; em vez disso, fez um sinal para o policial uniformizado levar Barris dali, deixando as provas e as merdas e os trecos em cima da mesa.

O policial levou o sorridente Barris para fora. Hank e Fred se sentaram de frente um para o outro à mesa abarrotada. Hank não disse nada, estava lendo as conclusões dos psicólogos.

Depois de um tempo, ele pegou o fone e discou um número interno.

— Recebi um material aqui que não foi avaliado. Quero que você o examine em detalhes e determine o quanto dele é falso. Me informe disso e depois lhe direi o que fazer a seguir. Tem uns seis quilos; vai precisar de uma caixa de papelão, tamanho 3. É só isso, obrigado. — Ele desligou. — Era o laboratório de eletrônica e criptografia — informou ele a Fred e reassumiu a leitura.

Surgiram dois técnicos de laboratório, uniformizados e fortemente armados, trazendo uma caixa de aço com tranca.

— Só conseguimos encontrar isto — um deles se desculpou enquanto cuidadosamente enchiam a caixa com os itens da mesa.

— Quem está lá embaixo?

— Hurley.

— Certifique-se de que Hurley analise isto ainda hoje e reporte quando terá um fator-índice espúrio para mim. Deve ser hoje, diga isso a ele.

Os técnicos de laboratório trancaram a caixa de metal e a levaram da sala.

Atirando o relatório médico na mesa, Hank recostou- se e disse:

— O que você... Tudo bem, qual é a sua resposta às provas de Barris até agora?

Fred disse:

— É o meu relatório médico que você tem aí, não é? — Ele estendeu a mão para pegá-lo, depois mudou de idéia. — Acho que o que ele tocou, o pouco que tocou, parecia autêntico.

— É falso — disse Hank. — Não vale nada.

— Você pode ter razão — disse Fred —, mas eu não concordo.

— O arsenal de que estavam falando em Vanderberg deve ser o arsenal OSI. — Hank pegou o telefone. Para si mesmo, mas em voz alta, ele disse: — Vamos ver... quem é o cara da OSI com quem eu conversei daquela vez... Ele apareceu na quarta com umas fotos... — Hank sacudiu a cabeça e desviou-a do telefone para confrontar Fred. — Vou esperar. Posso esperar pelo relatório preliminar espúrio, Fred?

— O que meu relatório médico...

— Diz que você está totalmente pirado.

Fred deu de ombros (o melhor que pôde).

— Totalmente?

Wie kalt ist es in diesem unterirdischen Gewolbe!

— E possível que duas células cerebrais ainda funcionem. Mas só isso. Existem principalmente curtos-circuitos e faíscas.

Das ist natürlich, es ist ja tief.

— Duas, você diz — disse Fred. — Duas em quantas?

— Não sei. O cérebro tem um monte de células, pelo que sei... trilhões.

— Há mais conexões possíveis entre elas — disse Fred — do que estrelas no universo.

— Se é assim, então agora você está longe da média. Umas duas células em... talvez 65 trilhões?

— Mais para 65 trilhões de trilhões — disse Fred.

— Isso é pior do que o Philadelphia Athledcs com o Connie Mack. Eles costumavam terminar a temporada com um percentual...

— O que posso conseguir — disse Fred —, dizendo que isso aconteceu no cumprimento do dever?

— Consegue ficar sentado na sala de espera e ler um monte de Saturday Evening Posts e Cosmopolitans de graça.

— Onde?

— Onde gostaria que fosse?

Fred disse:

— Me deixa pensar melhor.

— Vou te dizer o que eu faria — disse Hank. — Eu não iria para uma clínica federal; compraria umas seis garrafas de um bom uísque, I. W. Harper, e iria para o alto de uma montanha, nas montanhas San Bernardino, perto de um dos lagos, sozinho, e ficaria ali totalmente só até que passasse. Onde ninguém pudesse me encontrar.

— Mas pode ser que não passe nunca — disse Fred.

— Então eu nunca voltaria. Conhece alguém que tenha uma cabana por lá?

— Não — disse Fred.

— Pode dirigir?

— Meu... — ele hesitou e uma energia como de sonho se abateu sobre ele, relaxando-o e deixando-o mole. Todas as relações espaciais na sala mudaram; a alteração afetou até sua consciência de tempo. — Ele está no... — Ele bocejou.

— Você não se lembra.

— Eu me lembro de que não está funcionando.

— Podemos conseguir quem dirija para você. Isso seria mais seguro, de qualquer modo.

Dirigir para onde?, perguntou-se ele. A que lugar? Subir estradas, trilhas, caminhos, escalando e caminhando através de gelatina, feito um gato em uma trela que só quer entrar em casa ou se libertar.

Ele pensou: “Ein Engel, der Gattin, so gleich, der fuhrt mich zur Freiheit ins himmlische Reich. ”

— Claro — disse ele e sorriu. Aliviado. Puxando a trela, tentando e se esforçando para se libertar e depois se deitar.

— O que você acha de mim agora — disse ele —, agora que eu provei que estou... ferrado, temporariamente, de qualquer modo. Talvez permanentemente.

Hank disse:

— Acho que você é uma pessoa muito boa.

— Obrigado.

— Leve a arma com você.

— Como é? — disse ele.

— Quando for para as montanhas San Bernardino com as cinco garrafas de I. W. Harper. Leve sua arma.

— Quer dizer, para o caso de eu não sair dessa?

Hank disse:

— Para qualquer caso. Sair da quantidade que eles dizem que você toma... Leve a arma com você.

— Tudo bem.

— Quando voltar — disse Hank —, me ligue. Me informe.

— Que droga, não sou dono do meu traje.

— Me ligue de qualquer forma. Com ou sem o traje.

Novamente ele disse:

— Tudo bem. — Evidentemente isso não importava. Evidentemente tudo estava acabado.

— Quando pegar seu próximo pagamento, a quantia vai ser diferente. Muito diferente.

Fred disse:

— Vou ganhar uma espécie de bonificação por isso, pelo que aconteceu comigo?

— Não. Leia seu Código Penal. Um policial que voluntariamente se torna viciado e não informa isso prontamente está sujeito a uma acusação de contravenção... uma multa de três mil dólares e/ou seis meses. Você deve apenas ser multado.

— Voluntariamente? — disse ele, surpreso.

— Ninguém segurou uma arma na sua cabeça e te deu um tiro. Ninguém colocou alguma coisa na sua sopa. Você tomou uma droga viciante consciente e voluntariamente, uma droga desorientadora e prejudicial para o cérebro.

— Não tomei voluntariamente não!

Hank disse:

— Você podia ter fingido que tomava. A maioria dos policiais consegue lidar com isso. E, pela quantidade que eles dizem que você estava tomando, você deve ter sido...

— Está me tratando como um vigarista. Eu não sou vigarista.

Pegando um bloco e uma caneta, Hank começou a calcular.

— Quanto você recebe de pagamento? Posso calcular agora se...

— Será que posso pagar a multa depois? Talvez em uma série de prestações mensais, tipo por dois anos?

Hank disse:

— Qual é, Fred...

— Tudo bem — disse ele.

— Quanto por hora?

Ele não conseguiu se lembrar.

— Bom, então, quantas horas anotadas?

Isso também não.

Hank atirou o bloco na mesa.

— Quer um cigarro? — Ele ofereceu o maço a Fred.

— Estou parando com isso também — disse Fred. — Tudo, até amendoins e... — Ele não conseguia pensar. Os dois ficaram sentados ali, os dois, em seus trajes misturadores, ambos em silêncio.

— Como eu digo a meus filhos — começou Hank.

— Eu tive dois filhos — disse Fred. — Duas meninas.

— Não acredito em você; você não deve ter.

— Talvez não. — Ele começara a tentar deduzir quando começaria a crise de abstinência e depois começou a tentar deduzir quantos tabletes de Substância D ele tinha escondidos aqui e ali. E quanto dinheiro ele teria, quando recebesse, para comprar.

— Talvez você queira que eu continue calculando em que consiste seu pagamento — disse Hank.

— Tudo bem — disse ele e assentiu vigorosamente. — Faça isso. — Ele ficou sentado esperando, tenso, tamborilando na mesa. Como Barris.

— Quanto por hora? — repetiu Hank e depois pegou o telefone. — Ligue para a tesouraria.

Fred não disse nada. Olhando para baixo, esperou. Ele pensou: “Talvez Donna possa me ajudar.” Donna, pensou ele, por favor, me ajude agora.

— Não acho que você vá para as montanhas — disse Hank. — Mesmo que alguém te leve lá.

— Não.

— Para onde quer ir?

— Deixe-me ficar sentado e pensar.

— Clínica federal?

— Não.

Eles continuaram sentados.

Ele se perguntou o que não devia dizer.

— E Donna Hawthorne? — disse Hank. — Pelas informações que você trouxe e que todos têm, eu sei que vocês são próximos.

— Sim. — Ele assentiu. — Somos. — E depois ele olhou para Hank e disse: — Como sabe disso?

Hank disse:

— Por um processo de eliminação. Eu sei quem você não é e não há um número infinito de suspeitos nesse grupo... na verdade, é um grupo bem pequeno. Pensávamos que eles iam nos levar a um nível mais alto e talvez Barris faça isso. Você e eu passamos muito tempo conversando. Eu juntei as peças há muito tempo. Você é Arctor.

— Eu sou quem? — disse ele, encarando Hank no traje misturador diante dele. — Eu sou Bob Arctor? — Ele não conseguia acreditar nisso. Não fazia sentido para ele. Não se encaixava com nada que ele tivesse feito ou pensado, era grotesco.

— Deixa pra lá — disse Hank. — Qual é o telefone de Donna Hawthorne?

— Ela deve estar no trabalho. — A voz dele tremia. — A perfumaria. O número é... — Ele não conseguiu manter a voz estável e não conseguiu se lembrar do número. Uma ova que eu sou, disse ele a si mesmo. Eu não sou Bob Arctor. Mas quem sou eu? Talvez eu seja...

— Me dê o número do trabalho de Donna Hawthorne — estava dizendo Hank rapidamente ao telefone. — Tome — disse ele, segurando o telefone para Fred. — Vou colocar você na linha. Não, acho que é melhor não fazer isso. Vou dizer a ela para te buscar... Onde? Vamos levar você e te deixamos lá; não podemos encontrá-la aqui. Que lugar é bom? Onde você costuma encontrá-la?

— Me leve à casa dela — disse ele. — Eu sei como entrar.

— Vou dizer a ela que você está lá e que está passando pela privação. Só vou dizer que te conheço e que você me pediu para ligar.

— Claro — disse Fred. — Saquei. Obrigado, cara.

Hank assentiu e começou a rediscar, um número externo. Pareceu a Fred que ele discava cada algarismo com uma lentidão cada vez maior e continuaria nisso para sempre e ele fechou os olhos, murmurando consigo mesmo e pensando: “Caramba! Estou acabado pra valer.”

Você está mesmo, concordou ele. Chapado, ligado, ferrado e lascado e fodido. Totalmente fodido. Teve vontade de rir.

— Vamos te levar à casa da tua... — começou Hank e depois voltou a atenção para o telefone, dizendo: — Oi, Donna, aqui é um amigo do Bob, tá legal? Olha, cara, ele tá numa pior, não tô de sacanagem contigo não. Olha, ele...

Saquei, pensaram duas vozes dentro de sua mente em uníssono enquanto ele ouvia o amigo falando com Donna. E não se esqueça de dizer a ela para me levar alguma coisa, está brabeza! Pode me arrumar alguma coisa? Talvez me sobrecarregar, como Donna faz? Ele estendeu a mão para tocar em Hank, mas não conseguiu, a mão dele não alcançava.

— Um dia eu faço o mesmo por você — prometeu ele a Hank enquanto Hank desligava.

— Só fique sentado aí até que o carro esteja lá fora. Vou pedir agora. — Novamente Hank telefonou, desta vez dizendo: — Garagem? Quero um carro sem marcas e um policial à paisana. O que vocês têm disponível?

Eles, dentro do traje misturador, o borrão nebuloso, fecharam os olhos para esperar.

— Pode ser que eu tenha que te levar para o hospital — disse Hank. — Você está muito mal; talvez Jim Barris tenha te envenenado. Estamos na verdade interessados em Barris, não em você, fizemos a varredura da casa principalmente para ficar de olho em Barris. Esperávamos atraí-lo para cá... e conseguimos. — Hank ficou em silêncio. — E é por isso que eu sei muito bem que as fitas e os outros itens dele são falsos. O laboratório vai confirmar. Mas Barris está metido em alguma coisa pesada. Pesada, doentia e tem a ver com armas.

— Eu sou o quê, então? — disse ele de repente, num tom muito alto.

— Temos de pegar Jim Barris e apresentar uma acusação contra ele.

— Vocês são uns merdas — disse ele.

— Do modo como arranjamos, Barris... se é isso que ele é... vai ficar cada vez mais desconfiado de que você era um agente disfarçado da polícia, prestes a desmascará-lo e usá-lo para chegar aos superiores. Então ele...

O telefone tocou.

— Tudo bem — disse Hank depois. — Só fique sentado aí, Bob. Bob, Fred, o que for. Fique à vontade... Vamos pegar o patife e ele é um... bom, o que você acaba de nos chamar. Uma coisa assim, o que quer que ele esteja fazendo.

— Claro, vale a pena. — Ele mal conseguia falar; chiou mecanicamente.

Juntos, eles ficaram sentados.

 

No caminho para a New-Path, Donna saiu da estrada, onde eles podiam vez as luzes embaixo, de todos os lados. Mas agora ele começara a sentir dor, ela podia ver isso, e não restava muito tempo. Ela queria ficar com ele mais um pouco. Bem, ela esperara tempo demais. As lágrimas rolaram do rosto dele e ele tinha começado a arquejar e vomitar.

— Vamos ficar sentados por uns minutos — disse ela a ele, guiando-o pelos arbustos e pelo mato, atravessando um solo arenoso entre latas de cerveja descartadas e lixo. — Eu...

— Está com o seu cachimbo de haxixe? — ele conseguiu dizer.

— Estou — disse ela. Eles estavam longe da estrada, o bastante para não serem vistos pela polícia. Ou, pelo menos, longe o bastante para poder jogar o cachimbo fora, se aparecesse um policial. Ela veria o carro da polícia estacionado, suas luzes apagadas, às ocultas, a certa distância, e a aproximação do policial a pé. Haveria tempo.

Ela pensou: tempo suficiente para isso. Tempo suficiente para ficar a salvo da lei. Mas não havia mais tempo para Bob Arctor. O tempo dele — pelo menos o tempo medido pelos padrões humanos — tinha acabado. Era outro tipo de tempo em que ele entrara agora. Como, pensou ela, o tempo de um rato; correr de um lado para outro, ser inútil. Para se mover sem planejamento, de um lado a outro, de um lado a outro. Mas pelo menos ele podia ver as luzes lá embaixo. Embora para ele isso talvez não importasse.

Eles acharam um lugar protegido e ela pegou o haxixe embrulhado em papel-alumínio e acendeu o cachimbo. Bob Arctor, ao lado dela, não pareceu perceber. Tinha se borrado, mas ela sabia que ele não pôde evitar. Na verdade ele provavelmente nem sabia disso. Todos ficavam desse jeito durante a privação.

— Toma. — Ela se curvou para ele, para sobrecarregá-lo. Mas ele tampouco pareceu dar pela presença dela. Só ficou sentado ali, recurvado, suportando as cólicas de estômago, vomitando e se borrando, tremendo e gemendo loucamente para si mesmo, uma espécie de canção.

Ela pensou então em um cara que tinha conhecido certa vez, que tinha visto Deus. Ele agira da mesma forma, gemendo e chorando, embora não tivesse se borrado. Ele vira Deus em um flasbback depois de uma viagem de ácido; estava experimentando vitaminas hidrossolúveis, enormes doses dela. A fórmula ortomolecular que devia melhorar o circuito nervoso do cérebro, acelerá-lo e sincronizá- lo. Esse cara, porém, em vez de ficar mais inteligente, tinha visto Deus. Fora uma surpresa completa para ele.

— Eu acho — disse ela — que nunca vamos saber o que está reservado para nós.

Ao lado dela, Bob Arctor gemia e não respondeu.

— Conhece um cara chamado Tony Amsterdam?

Não houve resposta.

Donna inalou do cachimbo e contemplou as luzes que se espalhavam abaixo deles; ela sentiu o cheiro no ar e escutou.

— Depois que viu Deus, ele se sentiu realmente bem, por quase um ano. E aí ele se sentiu bem mal. Pior do que nunca na vida. Porque um dia a ficha dele caiu, ele começou a perceber que nunca veria Deus novamente; ele ia viver tudo o que restava da vida, décadas, talvez 50 anos, e não ver nada além do que sempre viu. O que a gente vê. Ele ficou pior do que se não tivesse visto Deus. Um dia ele me disse que ficou puto de verdade, tinha acabado de tomar uma e começou a xingar e esmagar coisas no apartamento dele. Até o aparelho de som ele destruiu. Ele percebeu que ia ter de viver para sempre como ele era, sem ver nada. Sem nenhum propósito. Só um pedaço de carne mourejando, comendo, bebendo, dormindo, trabalhando, cagando.

— Como todos nós. — Era a primeira coisa que Bob Arctor conseguia dizer; cada palavra saiu com uma ânsia de vômito.

Donna disse:

— Foi o que eu disse a ele. Eu assinalei isso para ele. Todos estávamos no mesmo barco e isso não pirava o resto de nós. E ele disse: “Você não sabe o que eu vi. Não sabe.”

Um espasmo passou por Bob Arctor, convulsionando-o, e depois disse, engasgado:

— Ele... ele disse como era?

— Faíscas. Chuvas de faíscas coloridas, como acontece quando dá alguma coisa errada na TV. Faíscas subindo pelas paredes, faíscas no ar. E todo o mundo era uma criatura viva, para onde quer que ele olhasse. E não havia acaso: tudo se encaixava e acontecia com um propósito, para chegar a alguma coisa... uma meta no futuro. E depois ele viu a soleira de uma porta. Por uma semana ele a viu, para onde quer que olhasse... dentro do apartamento dele, do lado de fora, quando estava indo para a loja ou andando de carro. E eram sempre as mesmas proporções, bem estreitas. Ele disse que era muito... agradável. Foi a palavra que ele usou. Ele nunca tentou passar por ela, só ficava olhando, porque era muito agradável. Com um contorno brilhante em vermelho vivo e ouro, foi o que ele disse. Como se as faíscas tivessem se reunido em linhas, como em geometria. E depois disso ele nunca mais viu de novo em toda a vida, e foi isso que um dia acabou com ele.

Depois de um tempo, Bob Arctor disse:

— O que havia do outro lado?

Donna disse:

— Ele disse que tinha outro mundo do outro lado. Ele podia ver.

— Ele... nunca atravessou?

— Foi por isso que ele chutou a merda toda no apartamento dele; ele nunca atravessou, só admirava a soleira da porta, depois ele não conseguiu ver mais nada e era tarde demais. Ela se abriu para ele por alguns dias e depois se fechou e foi embora para sempre. Ele ficou tomando um monte de LSD e umas vitaminas hidrossolúveis, mas nunca mais viu, nunca encontrou a combinação.

Bob Arctor disse:

— O que tinha do outro lado?

— Ele disse que era sempre noite.

— Noite!

— Tinha luar e água, sempre a mesma coisa. Nada se mexia nem mudava. Uma água preta, como tinta, e uma praia, a praia de uma ilha. Ele tinha certeza de que era a Grécia, a Grécia antiga. Ele deduziu que a soleira da porta era uma passagem no tempo e ele estava vendo o passado. E depois, quando ele não conseguiu ver mais a porta, estava na via expressa, de carro, com todos os caminhões, e foi ficando muito irritado. Disse que não conseguia suportar todo o movimento e o barulho, tudo indo de um lado para outro, todo o barulho e as explosões. Mas aí ele nunca entendeu por que eles mostraram o que mostraram. Ele realmente acreditou que era Deus e era a porta para o além, mas na análise final só o que fez foi embolar a cabeça dele. Ele não conseguiu segurar, então não podia lidar com isso. Toda vez que ele conhecia alguém, contava depois de algum tempo que tinha perdido tudo.

Bob Arctor disse:

— É assim que eu estou.

— Tinha uma mulher na ilha. Não exatamente... mais uma estátua; ele disse que era de Afrodite Cirenaica. Parada ali na luz da lua, pálida, fria e feita de mármore.

— Ele devia ter atravessado a porta quando teve chance.

Donna disse:

— Ele não teve chance. Era uma promessa. Alguma coisa que ia acontecer. Algo melhor, para depois de muito tempo. Talvez depois de ele... — Ela fez uma pausa. — Quando ele morresse.

— Ele perdeu — disse Bob Arctor. — Você tem uma chance e só. — Ele fechou os olhos novamente, a dor e o suor raiando seu rosto. — Mas o que é que sabe um doidão ferrado de ácido? O que nós sabemos? Não consigo falar. Esquece. — Ele se afastou dela, foi para a escuridão, sacudindo-se e tremendo.

— Agora eles dão trailers à gente — disse Donna. Ela passou os braços nele e o abraçou com a máxima força que pôde, balançando-o de um lado para outro. — Então vamos ficar firmes.

— É o que você está tentando fazer. Comigo, agora.

— Você é um bom homem. Tem passado por uma barra pesada. Mas a vida não acabou para você. Eu sinto muito carinho por você. Eu queria... — Ela continuou a abraçá-lo, em silêncio, na escuridão que o estava tragando para dentro. Tomando conta mesmo enquanto ela o abraçava. — Você é uma pessoa boa e gentil — disse ela. — E isso é injusto, mas tem de ser assim. Tente esperar pelo fim. Um dia, daqui a um bom tempo, você vai ver do jeito como via antes. A visão vai voltar para você. — Restaurado, pensou ela. No dia em que tudo que foi tirado injustamente das pessoas for restaurado a elas. Pode levar mil anos, ou mais do que isso, mas esse dia chegará e todas as contas serão acertadas. Talvez, como Tony Amsterdam, você tenha tido uma visão de Deus que foi apenas temporária; a privação, pensou ela, em vez de o fim. Talvez, por dentro, os circuitos terrivelmente danificados e deteriorados de sua cabeça, que queimam cada vez mais, mesmo enquanto eu te abraço, uma faísca de cor e luz em alguma forma disfarçada que se manifestou, sem ser reconhecida, para levar você, por sua memória, pelos anos que virão, uma coisinha vista, mas não compreendida, um fragmento de estrela misturado com o lixo deste mundo, para te guiar por reflexo até o dia... mas isso está tão longe... Ela não conseguia verdadeiramente imaginar. Mesclado com o lugar-comum, algo de outro mundo talvez tenha aparecido a Bob Arctor antes que acabasse. Só o que ela podia fazer agora era abraçá-lo e esperar.

Mas quando ele o encontrasse novamente, se eles tivessem sorte, haveria um padrão de reconhecimento. A comparação correta no hemisfério certo. Mesmo no nível subcortical que ele tivesse. E a viagem, tão pavorosa para ele, tão custosa, tão evidentemente sem sentido, estaria terminada.

Uma luz brilhou nos olhos dela. Parado diante dela, um policial de cassetete e lanterna.

— Poderiam se levantar, por favor? — disse o policial. — E me mostrarem a identidade? A senhorita primeiro.

Ela soltou Bob Arctor, que deslizou de lado até cair no chão; ele não tinha consciência do policial, que se aproximou deles pelo morro, furtivamente, de uma estrada vicinal abaixo. Pegando a carteira na bolsa, Donna fez um sinal para o policial se afastar, onde Bob Arctor não pudesse ouvir. Por vários minutos, o policial analisou a identidade dela com a luz fraca da lanterna e depois disse:

— Você é uma federal disfarçada.

— Fale baixo — disse Donna.

— Desculpe. — O policial devolveu a carteira a ela.

— Só dá o fora daqui, porra — disse Donna.

O policial jogou a luz da lanterna no rosto de Donna brevemente e depois se afastou; ele partiu como havia se aproximado, sem fazer ruído.

Quando ela voltou a Bob Arctor, era óbvio que ele não tomara conhecimento do policial. Agora não tinha consciência de quase nada. Mal tinha consciência dela, que diria de outra pessoa ou outra coisa.

Ao longe, ecoando, Donna podia ouvir o carro da polícia descendo a estrada vicinal sulcada e invisível. Alguns insetos e talvez um lagarto andavam pelo mato seco em volta deles. A distância, na 91 Freeway, brilhava um padrão de luzes, mas não chegava som algum a eles, era longe demais.

— Bob — disse ela com delicadeza. — Pode me ouvir?

Nenhuma resposta.

Todos os circuitos estão fundidos, pensou ela. Derretidos e fundidos. E ninguém vai conseguir reabri-los, independentemente do quanto tentarem. E eles vão tentar.

— Vamos — disse ela, puxando-o, tentando fazer com que ele se levantasse. — Já devíamos ter começado.

Bob Arctor disse:

— Não podemos transar. Meu troço sumiu.

— Estão esperando pela gente — disse Donna com firmeza. — Eu tenho de assinar sua entrada.

— Mas o que eu vou fazer se meu troço sumiu? Eles vão me aceitar assim mesmo?

Donna disse:

— Eles vão te aceitar.

Isso requer uma espécie maior de sabedoria, pensou ela, saber quando aplicar a injustiça. Como pode a justiça ser vítima, sempre, do que é certo? Como isso pode acontecer? Ela pensou: “Porque há uma maldição neste mundo e tudo prova isso, a prova está bem aqui.” Em algum lugar, no nível mais profundo possível, o mecanismo, a construção das coisas, se separa e do que restou vem a necessidade de cometer todos os vários tipos de erros incompreensíveis pelos quais optamos por parecerem os mais sensatos. Deve ter começado há milhares de anos. Agora está infiltrado na natureza de tudo. E, pensou ela, em cada um de nós. Não podemos nos virar ou abrir a boca e falar, tomar decisões, sem fazer isso. Eu nem me importo com como, quando ou por que isso começou. Ela pensou: “Só espero que um dia termine. Como com o Tony Amsterdam; só espero que um dia a chuva de faíscas coloridas e brilhantes volte e dessa vez todos nós a veremos. A soleira estreita onde há paz do outro lado. Uma estátua, o mar e o que parece um luar. E nada se agita, nada destrói a calma.” Há muito, muito tempo, pensou ela. Antes da maldição e de tudo e todos ficarem assim. A Era de Ouro, pensou ela, quando sabedoria e justiça eram a mesma coisa. Antes de tudo se espatifar em fragmentos cortantes. Em cacos que não se encaixam, que não podem ser reunidos por mais que tentemos.

Abaixo dela, na escuridão e na distribuição das luzes urbanas, soou uma sirene da polícia. Uma viatura policial em plena perseguição. Parecia um animal enlouquecido, sôfrego para matar. E sabendo que isso logo aconteceria. Ela tremeu; o ar da noite ficara frio. Era hora de ir.

Agora não estávamos na Era de Ouro, pensou ela, com barulhos como esse no escuro. Será que eu emito esse tipo de barulho voraz?, perguntou-se ela. Eu sou essa coisa? Me aproximando ou fechando o cerco?

Conseguindo pegar?

Ao lado dela, o homem se agitou e gemeu enquanto ela o ajudava a se levantar. Ajudou-o a se pôr de pé e voltar ao carro dela, passo a passo, ajudou-o, ajudou-o a continuar em frente. Abaixo deles, o barulho da viatura cessara abruptamente, tinha parado sua caçada. Seu trabalho estava feito. Segurando Bob Arctor apoiado nela, ela pensou: O meu também acabou.

 

Os dois integrantes da equipe da New-Path estavam de pé avaliando a coisa a seus pés, que vomitava, tremia e se emporcalhava, os braços envolvendo o próprio corpo, abraçando-se como que para deter o frio que o fazia tremer com tanta violência.

— O que é isso? — disse um membro da equipe.

Donna disse:

— Uma pessoa.

— Substância D?

Ela assentiu.

— Ela devorou a cabeça dele. Mais um fracassado.

Ela disse aos dois:

— É fácil vencer. Qualquer um pode vencer. — Curvando-se para Robert Arctor, ela disse, em silêncio:

— Adeus.

Estavam colocando um velho cobertor do exército em cima dele enquanto ela saía. Ela não olhou para trás.

Chegando ao carro, ela partiu para a via expressa mais próxima, para o trânsito mais pesado possível. Da caixa de fitas no chão do carro pegou Tapestry, de Carole King, a preferida de todas que tinha, e colocou no toca-fitas; ao mesmo tempo, ela soltou a pistola Ruger, colocada magneticamente fora de vista, abaixo do painel. Engrenando a quinta, ela colou na traseira de um caminhão que transportava caixas de madeira de garrafas médias de Coca-Cola e, enquanto Carole King cantava no som, ela esvaziou o pente da Ruger nas garrafas de Coca a pouca distância do carro.

Enquanto Carole King cantava suavemente sobre pessoas transformando-se em sapos, Donna conseguiu atingir quatro garrafas antes que o pente da arma se esvaziasse. Cacos de vidro e manchas de Coca-Cola se espalharam pelo pára-brisa do carro. Ela se sentiu melhor.

Justiça, honestidade e lealdade não eram propriedades deste mundo, pensou ela, e depois, por Deus, ela investiu para seu velho inimigo, seu antigo adversário, o caminhão de Coca-Cola, que continuou em frente sem perceber nada. O impacto fez seu carrinho rodar; os faróis se apagaram, barulhos horríveis de pára-lamas nos pneus guinchando e depois ela saiu da via expressa, na faixa de emergência, na contramão, a água cuspindo do radiador, os motoristas reduzindo a velocidade, embasbacados.

Volta, seu filho-da-puta, disse ela a si mesma, mas o caminhão da Coca-Cola tinha partido, provavelmente sem nenhum amassado. Talvez com um arranhão. Bom, isso ia acontecer cedo ou tarde, a guerra dela, ela enfrentando um símbolo e uma realidade que a oprimia. Agora minhas taxas de seguro vão aumentar, percebeu ela enquanto saltava do carro. Neste mundo, você paga por combater o mal com o dinheiro frio e duro.

Um Mustang último modelo reduziu e o motorista, um homem, chamou por ela:

— Quer uma carona, senhorita?

Ela não respondeu. Só andou. Uma figurinha a pé enfrentando uma infinidade de luzes que se aproximavam.

 

Recorte de revista preso com tachas na parede da sala de estar na Samarkand House, o prédio residencial da New-Path em Santa Ana, Califórnia:

 

“Quando o paciente senil acordar pela manhã e perguntar pela mãe, lembre a ele que ela morreu há muito tempo, que ele tem mais de oitenta anos, mora em um asilo e que estamos em 1992, e não em 1913, e que ele deve enfrentar a realidade e o fato de que...”

   Um interno tinha rasgado o resto do recorte; terminava ali. Evidentemente tinha sido retirado de uma revista para profissionais de enfermagem; era um papel acetinado.

   — A primeira coisa que você vai fazer aqui — disse-lhe George, o membro da equipe, levando-o pelo corredor — são os banheiros. O piso, a pia, especialmente a privada. São três banheiros nesta estrutura, um em cada andar.

   — Tudo bem — disse ele.

   — Aqui está um esfregão. E um balde. Acha que sabe como fazer isso? Limpar um banheiro? Comece e vamos observar você e lhe dar as dicas.

   Ele levou o balde para a banheira ao fundo, colocou sabão nele e depois abriu a água quente. Só o que ele podia ver era a espuma da água diretamente diante de si, a espuma e o rugido.

   Mas ele podia ouvir a voz de George, fora de vista.

— Não encha demais, porque não vai conseguir levantar o balde.

— Tudo bem.

— Você tem um probleminha para saber onde está — disse George depois de um tempo.

— Estou na New-Path. — Ele baixou o balde no chão e o balde salpicou água; ele ficou parado, olhando para baixo.

— New-Path onde?

— Em Santa Ana.

George ergueu o balde para ele, mostrando-lhe como pegar a alça de arame e balançando-o enquanto ele andava.

— Mais tarde acho que vamos transferir você para a ilha ou para uma das fazendas. Primeiro, você tem de passar pela lavagem da louça.

— Posso fazer isso — disse ele. — Lavar a louça.

— Você gosta de animais?

— Claro.

— Ou de agricultura?

— Animais.

— Veremos. Vamos esperar até te conhecer melhor. De qualquer modo, levará algum tempo; todo mundo fica lavando a louça por um mês. Todo mundo que entra pela porta.

— Eu meio que gostaria de morar no campo — disse ele.

— Mantemos vários tipos de instalações. Vamos decidir o que é mais adequado. Sabe de uma coisa, você pode fumar aqui, mas não estimulamos isso. Aqui não é a Synanon; lá eles não te deixam fumar.

Ele disse:

— Eu não tenho mais cigarro.

— Damos a cada interno um maço por dia.

— Dinheiro? — Ele não tinha.

— Sem custos. Nunca tem custo. Você paga por seu custo. — George pegou o esfregão, enfiou-o no balde, mostrou a ele como esfregar.

— Como é que não tenho dinheiro algum?

— Pelo mesmo motivo que não tem carteira nem sobrenome. Será devolvido a você, tudo será devolvido. É o que todos queremos fazer: te devolver o que foi tirado de você.

Ele disse:

— Esses sapatos não cabem em mim.

— Dependemos de doações, mas só novas, de lojas. Mais tarde talvez a gente possa tirar suas medidas. Experimentou todos os sapatos da caixa de papelão?

— Sim — disse ele.

— Tudo bem, este é o banheiro daqui do porão, faça este primeiro. Depois, quando tiver acabado e realmente bem-feito, realmente perfeito, suba... leve o esfregão e o balde... e vou te mostrar o banheiro lá de cima e, depois disso, o banheiro do terceiro andar. Mas você tem de pedir permissão para subir daqui para o terceiro andar, porque é lá que moram as mulheres, então primeiro peça a alguém da equipe, nunca suba lá sem permissão. — Ele lhe deu um tapinha nas costas. — Tudo bem, Bruce? Entendeu?

— Tudo bem — disse Bruce, esfregando.

George disse:

— Vai fazer esse tipo de trabalho, limpar estes banheiros, até que possa fazer um bom trabalho. Não importa o que uma pessoa faz, é o que ela consegue, para que possa fazer direito e se orgulhar disso.

— Vou voltar a ser como eu era antes? — perguntou Bruce.

— Foi o que você era que te trouxe aqui. Se você se tornar o que era novamente, mais cedo ou mais tarde vai vir para cá de novo. E possível que da próxima vez nem consiga vir para cá. Não é assim? Você tem sorte por estar aqui, quase não conseguiu vir.

— Uma pessoa me trouxe para cá.

— Você tem sorte. Da próxima vez, podem não trazer. Podem te largar no acostamento da via expressa em algum lugar e mandar tudo para o inferno.

Ele continuou esfregando.

— A melhor maneira é fazer primeiro as pias, depois a banheira, depois as privadas e, por último, o chão.

— Tudo bem — disse ele e guardou o esfregão.

—Tem um jeitinho de fazer isso. Você vai acabar sabendo.

Concentrando-se, ele viu diante de si rachaduras no esmalte da pia; passou desinfetante nas rachaduras e abriu a água quente. O vapor subiu e ele ficou parado nele, imóvel, enquanto o vapor aumentava. Ele gostou do cheiro.

 

Depois do almoço, ele se sentou na sala, tomando café. Ninguém falou com ele, porque entendiam que estava passando pela crise de abstinência. Sentado, bebendo de sua caneca, ele podia ouvir a conversa dos outros. Todos se conheciam.

— Se você pudesse ver de dentro de um morto que ainda pudesse ver, mas não pudesse controlar os músculos dos olhos, então você não ia poder focalizar. Não ia poder virar a cabeça nem os globos oculares. Só o que podia fazer era esperar até que um objeto passasse por você. Você ficaria congelado. Só esperando. Seria uma cena terrível.

Ele olhou para o vapor do café, só isso. O vapor subia, ele gostava do cheiro.

— Oi!

Certa mão o tocou. De uma mulher.

— Oi!

Ele olhou um pouco de lado.

— Como está?

— Tudo bem — disse ele.

— Sente-se melhor?

— Eu estou bem — disse ele.

Ele via seu café e o vapor e não olhou para ela, nem para nenhum deles; ele olhava para baixo, sem parar, para o café. Ele gostava do calor e do cheiro.

— Você ia poder ver alguém quando passasse bem na sua frente e só nessa hora. Ou para o lado para que você estivesse olhando e não para outro. Se uma folha ou coisa assim flutuasse em cima de seu olho, seria só isso, para sempre. Só uma folha. Mais nada, você não ia poder se virar.

— Tudo bem — disse ele, segurando o café, a caneca nas duas mãos.

— Imagine perceber as coisas, mas não estar vivo. Ver e até saber, mas não estar vivo. Só olhar. Reconhecer, mas não estar vivo. Uma pessoa pode morrer e ainda continuar. As vezes, o que olha para você, dos olhos de uma pessoa, talvez tenha morrido na infância. O que está morto ali ainda olha. Não é só o corpo olhando para você sem nada dentro dele; ainda existe alguma coisa ali, mas morreu e só fica olhando e olhando, não pode parar de olhar.

Outra pessoa disse:

— E isso que significa morrer, não ser capaz de parar de olhar para o que está na sua frente. Uma maldita coisa colocada bem ali e você não pode fazer nada, como escolher ou mudar alguma coisa. Você só pode aceitar o que puseram ali do jeito como é.

— Você gostaria de olhar uma lata de cerveja por toda a eternidade? Podia não ser assim tão ruim. Não haveria nada a temer.

 

Antes do jantar, que era servido na sala de jantar, eles tiveram a hora do Conceito. Vários Conceitos eram colocados no quadro-negro por diferentes funcionários e discutidos.

Ele se sentou com as mãos cruzadas no colo, vendo o chão e ouvindo a grande cafeteira se aquecer; fazia wup- wup e o som o assustava.

— Viver e não viver as coisas são propriedades intercambiantes.

Sentados aqui e ali em cadeiras dobráveis, todos discutiram isso. Eles pareciam familiarizados com o Conceito. Evidentemente havia partes do modo de pensar da New- Path, talvez até memorizada e depois repensada insistentemente. Wup-wup.

— O impulso para não viver as coisas é mais forte do que o de viver as coisas.

Eles discutiram sobre isso. Wup-wup. O barulho da cafeteira ficou cada vez mais alto e o assustou mais; ele, porém, não se mexeu nem olhou, ficou sentado onde estava, ouvindo. Era difícil ouvir o que estavam dizendo, por causa da cafeteira.

— Estamos incorporando demais um impulso para não viver dentro de nós. E o intercâmbio... Alguém pode dar uma olhada na maldita cafeteira para ver por que está fazendo isso?

Houve uma interrupção enquanto alguém examinava a cafeteira. Ele ficou sentado olhando para baixo, esperando.

— Vou escrever isto novamente. Estamos trocando uma vida passiva demais pela realidade que está fora de nós.

— Não quer um café? — Uma voz atrás dele e alguém o tocou. — Ned? Bruce? Qual é o seu nome mesmo? Bruce?

— Tudo bem. — Ele se levantou e os seguiu até a cafeteira. Ele esperou pela vez. Eles observaram enquanto ele colocava creme e açúcar na caneca. Eles o observaram voltar à sua cadeira, a mesma cadeira; ele se certificou de encontrá-la, para se sentar novamente e continuar ouvindo. O café quente, seu vapor, fez com que ele se sentisse bem.

— Atividade não significa necessariamente vida. Os quasares são ativos. E um monge meditando não é inanimado.

Ele ficou sentado olhando a caneca vazia; era uma caneca de porcelana. Virando-a, ele descobriu um impresso no fundo e o esmalte rachado. A caneca parecia velha, mas tinha sido feita em Detroit.

— O movimento circular é a forma preferida do universo.

Outra voz disse:

— Tempo.

Ele sabia a resposta para isso. O tempo é redondo.

— Sim, vamos fazer uma pausa agora, mas alguém tem um último comentário a fazer?

— Bom, seguir a linha de menor resistência, essa é a regra da sobrevivência. Seguir e não liderar.

Outra voz, mais velha, disse:

— Sim, os seguidores sobrevivem ao líder. Como aconteceu com Cristo. E não o contrário.

— É melhor comermos, porque Rick pára de servir exatamente às cinco e cinqüenta.

— Vamos falar disso no Jogo, não agora.

Cadeiras rangeram, estalaram. Ele se levantou também, levando a caneca velha para a bandeja das outras, e se juntou aos demais na fila. Ele podia sentir o cheiro de roupas velhas à sua volta, um cheiro bom, mas frio.

Parecia que estavam dizendo que a vida passiva era boa, pensou ele. Mas não havia essa história de vida passiva. É uma contradição.

Ele se perguntou o que era a vida, o que ela significava, talvez ele não entendesse.

 

Tinha chegado um monte enorme de ostentosas roupas doadas. Várias pessoas ficaram com braçadas e algumas tinham vestido camisas, experimentando-as e obtendo aprovação.

— Ei, Mike. Você é um cara esperto.

No meio da sala de estar, havia um homem baixo e atarracado, de cabelo crespo e cara de pug; ele mexeu no cinto, carrancudo.

— Como se lida com isto aqui? Não entendo como se faz para usar. Por que não fica mais frouxo? — Ele tinha um cinto de sete centímetros, sem fivela, com aros de metal, e não sabia como apertar os aros. Olhando em volta, com os olhos piscando, ele disse: — Acho que me deram um que ninguém pode usar.

Bruce apareceu atrás dele, estendeu a mão e fechou o cinto, passando-o pelos aros.

— Obrigado — disse Mike. Ele vasculhou várias camisas sociais, os lábios franzidos. — Quando eu conseguir me casar, vou usar uma dessas.

— Legal — disse ele.

Mike andou até duas mulheres na outra ponta da sala; elas sorriram. Segurando uma camisa florida vinho contra o peito, Mike disse:

— Vou à cidade.

— Tudo bem, vá e trate de jantar! — gritou o diretor da casa animadamente com sua voz poderosa. Ele piscou para Bruce. — Como está se saindo, colega?

— Bem — disse Bruce.

— Parece que você pegou uma gripe.

— É — concordou ele —, foi de sair. Posso tomar um Dristan ou...

— Nada de substâncias químicas — disse o diretor da casa. — Nada. Trate de entrar e comer. Como está seu apetite?

— Melhor — disse ele, seguindo. Eles sorriram para ele, das mesas.

 

Depois do jantar, ele se sentou no meio da escada para o segundo andar. Ninguém falou com ele, estava acontecendo uma reunião. Ele ficou sentado ali até que tivesse terminado. Todos surgiram, enchendo o corredor.

Ele sentiu que o viam e talvez alguns tenham falado com ele. Ele ficou sentado na escada, curvado, os braços em volta do corpo, vendo e vendo. O carpete escuro diante de seus olhos.

Logo não havia mais vozes.

— Bruce?

Ele não se mexeu.

— Bruce? — Certa mão o tocou.

Ele não disse nada.

— Bruce, venha para a sala. Você devia estar em sua cama, mas olha só, queremos conversar com você. — Mike o levou, acenando para que ele o seguisse. Ele acompanhou Mike pela escada e entrou na sala, que estava vazia. Quando estavam na sala, Mike fechou a porta.

Sentando-se em uma poltrona funda, Mike indicou-lhe para se sentar de frente para ele. Mike parecia cansado, seus olhos pequenos estavam anelados e ele esfregou a testa.

— Estou acordado desde as cinco e meia da manhã — disse Mike.

Uma batida; a porta começou a se abrir.

Muito alto, Mike gritou:

— Não quero que ninguém entre aqui, estamos conversando. Entendeu?

Murmúrios. A porta se fechou.

— Sabe de uma coisa, é melhor você trocar de camisa algumas vezes por dia — disse Mike. — Você está suando de forma meio assustadora.

Ele assentiu.

— De que parte do estado você é?

Ele nada disse.

— Você vai me procurar a partir de agora quando estiver se sentindo mal desse jeito. Eu passei pela mesma coisa, há um ano e meio. Eles costumavam me levar nos carros deles. Membros da equipe. Você conheceu Eddie? O cara alto e magro que humilha todo mundo? Ele me levou por oito dias, andando por aí de carro. Nunca me deixou sozinho. — Mike gritou de repente: — Quer sair daqui? Estamos conversando. Vá ver TV. — Sua voz diminuiu e ele olhou para Bruce. — Às vezes, você tem de fazer isso. Nunca deixar alguém sozinho.

— Entendi — disse Bruce.

— Bruce, cuidado para não tirar a própria vida.

— Sim, senhor — disse Bruce, agora olhando-o.

— Não me chame de senhor!

Ele assentiu.

— Você estava na prisão, Bruce? Era isso? Você entrou nessas coisas na prisão?

— Não.

— Você se aplicava ou tomava?

Ele não fez qualquer som.

— “Senhor” — disse Mike. — Eu cumpri, eu mesmo, dez anos na prisão. Uma vez vi oito caras em nossa fila de celas cortarem a garganta em um dia. A gente dormia com os pés na privada, nossas celas eram muito pequenas. Isso é que é uma prisão, você dorme com os pés na privada. Nunca esteve numa prisão, não é?

— Não — disse ele.

— Mas, por outro lado, vi prisioneiros de oitenta anos ainda felizes por estarem vivos e esperando continuar vivos. Eu me lembro de quando eu era drogado e tomava pico; comecei a me aplicar quando era adolescente. Não fazia mais nada. Eu me aplicava e depois continuei por dez anos. Tomei tanto pico... heroína e M juntas... que nunca fazia mais nada, nunca via mais nada. Agora estou fora dessa, saí da prisão e estou aqui. Sabe o que eu mais percebi? Sabe qual é a grande diferença que eu percebi? Agora posso andar pela rua lá fora e ver alguma coisa. Posso ouvir a água quando vamos à floresta... Você vai ver nossas outras instalações mais tarde, fazendas e assim por diante. Posso andar pela rua, a rua comum, e ver os cachorrinhos e os gatos. Eu nunca havia visto. Só o que eu via era a droga. — Ele olhou o relógio de pulso. — Então — acrescentou ele — entendo como você se sente.

— É difícil — disse Bruce — largar.

— Todo mundo aqui largou. É claro que alguns voltam. Se você sair daqui, vai voltar. Você sabe disso.

Ele assentiu.

— Ninguém aqui teve uma vida fácil. Não estou dizendo que a sua vida tem sido fácil. Eddie diria isso. Ele ia te dizer que seus problemas são fichinha. Os problemas de ninguém são fichinha. Sei como você se sente mal, mas eu já me senti assim. Agora me sinto muito melhor. Quem é seu colega de quarto?

— John.

— Ah, sim. John. Então você deve dormir no porão.

— Eu gosto de lá — disse ele.

— É, lá é quentinho. Você deve sentir muito frio. Mais do que nós, e eu lembro que sentia; eu tremia o tempo todo e borrava minhas calças. Bom, vou te contar, você não vai ter de passar por isso de novo, se ficar aqui na New-Path.

— Quanto tempo? — disse ele.

— Pelo resto da vida.

Bruce ergueu a cabeça.

— Eu não posso ir embora — disse Mike. — Eu voltaria para a droga se saísse daqui. Tenho muitos amigos lá fora. Eu voltaria para a esquina de novo, traficando e me aplicando, e depois ia voltar para a prisão por 20 anos. Sabe de uma coisa... olha... eu tenho 35 anos e vou me casar pela primeira vez. Já conheceu a Laura? A minha noiva?

Ele não teve certeza.

— Uma mulher bonita, rechonchuda. Atraente.

Ele assentiu.

— Ela tem medo de sair. Alguém tem de ir com ela. Nós vamos ao zoológico... Vamos levar o filhinho do diretor executivo ao zoológico de San Diego na semana que vem e Laura está apavorada. Mais assustada do que eu.

Silêncio.

— Ouviu o que eu disse? — disse Mike. — Que estou com medo de ir ao zoológico?

— Sim.

— Eu nunca fui ao zoológico, pelo que me lembro — disse Mike. — O que a gente faz num zoológico? Talvez você saiba.

— Olha jaulas e áreas cercadas.

— Que tipo de animais eles têm por lá?

— De todo tipo.

— Os selvagens, eu acho. Normalmente os selvagens. E os exóticos.

— No zoológico de San Diego eles têm quase todos os animais selvagens — disse Bruce.

— Eles têm um daqueles... como é mesmo? Coalas.

— Têm.

— Eu vi num comercial da TV — disse Mike. — Um urso coala. Eles pulam. Parecem de pelúcia.

Bruce disse:

— O velho ursinho de pelúcia, que as crianças têm, que foi criado com base no coala, na década de 20.

— É isso mesmo. Acho que você deve ir à Austrália para ver um coala. Ou agora eles estão extintos?

— Tem muitos na Austrália — disse Bruce —, mas a exportação é proibida. Vivos ou a pele. Eles quase foram extintos.

— Eu nunca fui a lugar algum — disse Mike —, a não ser quando levei uns trecos do México para Vancouver, na Colúmbia Britânica. Eu sempre pegava a mesma rota, então nunca via nada. Eu só dirigia muito rápido para terminar com aquilo. Eu dirigia um dos carros da fundação. Se você se sentir assim, se você se sentir muito mal, eu passeio de carro com você. Eu te levo e a gente pode conversar. Eu não me importo. Eddie e uns outros que não estão aqui agora fizeram isso comigo. Eu não me importo.

— Obrigado.

— Agora nós dois temos de ir dormir. Eles o fizeram arrumar as coisas na cozinha para de manhã? Colocar as mesas e servir?

— Não.

— Então você tem de dormir no mesmo horário em que eu. Te vejo no café-da-manhã. Você fica na minha mesa e eu te apresento a Laura.

— Quando vocês vão se casar?

— Daqui a um mês e meio. Será um prazer para a gente se você for. E claro que vai ser aqui no prédio, então todos vão comparecer.

— Obrigado — disse ele.

 

Ele ficou sentado no Jogo e eles gritavam com ele. Rostos, todos eles, gritando; ele olhou para baixo.

— Sabe o que ele é? Um puxa-saco! — Uma voz estridente fez com que ele olhasse. Entre as pavorosas distorções dos gritos, havia uma garota chinesa berrando.

— Você é um puxa-saco, é isso que você é!

— Dá pra se foder? Dá pra você se foder? — entoaram os outros para ele, enroscados em uma roda no chão.

O diretor executivo, de camisa vermelha e calça rosa, sorriu. Olhos como pequenas fendas brilhantes, feito os de um espectro. Balançando-se, as pernas compridas por baixo do corpo, sem uma almofada.

— Vamos ver você se foder!

O diretor executivo parecia estar gostando quando seus olhos viram uma coisa irromper; seus olhos cintilaram e se encheram de alegria. Como um louco dramático, de uma corte antiga, cheio de habilidade, colorido, ele olhou em volta e gostou. E depois, de vez em quando, a voz dele trinava, irritante e monótona, como um ruído metálico. Uma dobradiça mecânica raspando.

— O puxa-saco! — berrou a chinesa para ele; ao lado dela, outra garota batia os braços e inchava as bochechas, plop-plop. — Aqui! — berrou a chinesa, girando para projetar o traseiro para ele, apontando-o e berrando para ele: — Beija isto aqui, então, puxa-saco! Ele quer beijar as pessoas, beija isto, puxa-saco!

— Vamos ver você se foder! — entoou a família. — Bate uma punheta, puxa-saco!

Ele fechou os olhos, mas os ouvidos ainda escutavam.

— Seu cafetão — disse o diretor executivo lentamente para ele, monotonamente. — Seu fodido. Seu caralho. Seu merda. Monte de bosta. Seu... — e assim por diante.

Os ouvidos dele ainda captavam sons, mas eles se misturavam. Ele olhou para cima mais uma vez quando percebeu a voz de Mike, audível durante uma calmaria. Mike estava sentado, olhando impassivelmente para ele, um pouco ruborizado, o pescoço duro no colarinho apertado demais da camisa social.

— Bruce — disse Mike —, qual é o problema? O que te trouxe aqui? O que você quer nos dizer? Pode nos contar alguma coisa sobre você?

— Cafetão! — gritou George, quicando como uma bola de borracha. — O que você era, cafetão?

A chinesa deu um pulo, guinchando:

— Conta aí, seu cafetão de puta de boquete, seu beija- cu, seu fodido!

Ele disse:

— Eu sou detetive.

— Seu monte de bosta — disse o diretor executivo. — Seu covarde. Seu vômito. Seu babaca. Seu buceta.

Ele agora não ouvia nada. E se esqueceu do significado das palavras e, por fim, das próprias palavras.

Só que ele sentiu Mike observando-o, observando e ouvindo, sem escutar nada; ele não sabia, ele não se lembrava, ele pouco sentia, ele se sentia mal, ele queria ir embora.

O Vácuo nele crescia. E, na realidade, ele estava um pouco feliz.

 

Era o fim do mesmo dia.

— Olha aqui — disse uma mulher. — E aqui que guardamos os caras.

Ele ficou com medo enquanto ela abria a porta. A porta caiu de lado e o barulho escapou do quarto; o volume o surpreendeu, mas ele viu muitas criancinhas brincando.

Nessa tarde, ele viu dois velhos sendo alimentados com leite e comida para crianças, sentados em um pequeno nicho separado perto da cozinha. Rick, o cozinheiro, dava o alimento infantil aos dois velhos primeiro, enquanto todos esperavam na sala de jantar.

Sorrindo para ele, uma chinesa, levando pratos para a sala de jantar, disse:

— Gosta de crianças?

— Gosto — disse ele.

— Pode ficar sentado com as crianças e comer com elas.

— Ah — disse ele.

— Vai poder alimentá-las elas mais tarde, tipo daqui a um ou dois meses. — Ela hesitou. — Quando tivermos certeza de que você não vai bater nelas. Temos uma regra: as crianças não apanham por nada do que fizerem.

— Tudo bem — disse ele. Ele sentiu vontade de viver, olhando as crianças comerem; ele se sentou e um dos menores engatinhou para o colo dele. Ele começou a dar colheradas de comida à criança. Ele e a criança sentiam, pensou ele, o mesmo calor. A chinesa sorriu para ele e depois passou com os pratos para a sala de jantar.

Por um bom tempo ele ficou sentado entre as crianças, segurando primeiro uma e depois outra. Os dois velhos brigaram com as crianças e criticaram o modo como o outro se alimentava. Pedaços e nacos e manchas de comida cobriam a mesa e o chão; sobressaltado, ele percebeu que as crianças tinham sido alimentadas e estavam indo para o grande quarto de brincar, para ver desenhos animados na TV. Desajeitado, ele se curvou para limpar a comida cuspida.

— Não, esse trabalho não é seu! — disse um dos idosos agudamente. — Eu é que tenho de fazer isso.

— Tudo bem — concordou ele, levantando-se, batendo a cabeça na beira da mesa. Ele segurou comida cuspida na mão e olhou para ela, surpreso.

— Vá ajudar a limpar a sala de jantar! — disse o outro velho a ele. Ele tinha um leve problema de fala.

Um dos ajudantes de cozinha, alguém que lavava a louça, disse a ele de passagem:

— Você precisa de permissão para se sentar com as crianças.

Ele assentiu, parado ali, confuso.

— Isso é para os caras velhos — disse o lavador de pratos. — Bancar a babá. — Ele riu. — Eles não conseguem fazer mais nada. — Ele continuou andando.

Restava uma criança. Ela o analisou, os olhos grandes, e perguntou a ele:

— Qual é o seu nome?

Ele nada respondeu.

— Eu perguntei o seu nome.

Estendendo a mão cautelosamente, ele tocou um pedaço de carne na mesa. Agora estava frio. Mas, ciente da criança ao lado dele, ele ainda se sentia quente; ele a tocou na cabeça, brevemente.

— Meu nome é Thelma — disse a criança. — Você esqueceu seu nome? — Ela deu um tapinha nele. — Se você esqueceu seu nome, pode escrever na sua mão. Quer que eu te mostre? — Ela deu um tapinha nele de novo.

— Não vai sair? — ele perguntou a ela. — Se você escrever na sua mão, na primeira vez em que fizer alguma coisa ou tomar um banho vai sair.

— Ah, entendi. — Ela assentiu. — Bom, você pode escrever na parede, em cima da sua cabeça. No seu quarto, onde você dorme. No alto, onde não vai poder ser lavado. E depois, quando você quiser saber seu nome...

— Thelma — murmurou ele.

— Não, esse é o meu nome. Você tem um nome diferente. E esse é um nome de menina.

— Vamos ver — disse ele, meditando.

— Se eu te encontrar de novo, vou te dar um nome — disse Thelma. — Vou arranjar um nome pra você. Tá?

— Você não mora aqui? — disse ele.

— Moro, mas minha mãe pode sair. Ela está pensando em levar a gente, eu e meu irmão, e ir embora.

Ele assentiu. Parte do calor o deixou.

De repente, por nenhum motivo que ele pudesse ver, a criança se afastou correndo.

Eu devia saber o meu nome, pensou ele, é minha responsabilidade. Ele examinou a mão e se perguntou por que estava fazendo isso; não havia nada para ver. Bruce, pensou ele. E esse o meu nome. Mas deve haver nomes melhores do que esse, pensou ele. O calor que restava aos poucos desapareceu, como a criança.

Ele se sentiu sozinho, estranho e perdido de novo. E não muito feliz.

 

Um dia Mike Westaway conseguiu ser enviado para buscar uma carga de produtos semi-estragados, doados por um supermercado da cidade à New-Path. Porém, depois de se certificar de que nenhum membro da equipe o tivesse seguido, ele deu um telefonema e encontrou-se com Donna Hawthorne em uma lanchonete do McDonalds.

Eles se sentaram juntos na calçada, com Coca-Colas e hambúrgueres entre eles na mesa de madeira.

— Já conseguimos domar o cara? — perguntou Donna.

— Sim — disse Westaway. Mas ele pensou: O cara está tão ferrado. Será que isso importa? Eu me pergunto se conseguimos alguma coisa. E, no entanto, tem de ser assim.

— Não estão paranóicos com ele.

— Não — disse Mike Westaway.

Donna disse:

— Está pessoalmente convencido de que eles estão desenvolvendo o troço?

— Eu não. Não é no que eu acredito. Eles sim. — Aqueles que nos pagam, pensou ele.

— O que significa o nome?

— Mors ontologica. Morte do espírito. A identidade. A natureza essencial.

— Ele será capaz de agir?

Westaway viu os carros e as pessoas passando; ele ficou olhando, mal-humorado, enquanto remexia na comida.

— Na verdade, você não sabe.

— Nunca podemos saber, até que acontece. Uma lembrança. Algumas células cerebrais queimadas que palpitam. Como um reflexo. Reage, não age. Só podemos esperar. Lembrando o que disse Paulo na Bíblia: fé, esperança e abrir mão de seu dinheiro. — Ele olhou com atenção a jovem bonita, de cabelos pretos, na frente dele e pôde perceber, no rosto inteligente de Donna, por que Bob Arctor — não, pensou ele, eu sempre tenho de pensar nele como Bruce. Caso contrário, vou deixar escapar que sei demais: coisas que eu não devo, que não posso saber. Por que Bruce pensava tanto nela. Pensava quando era capaz de pensar.

— Ele foi muito bem treinado — disse Donna, no que pareceu a ele uma voz de desamparo extraordinário. E ao mesmo tempo uma expressão de tristeza cruzou o rosto dela, lhe tensionando e arqueando as linhas da face. — Como um custo a ser pago — disse ela então, meio para si mesma, e bebeu a Coca-Cola.

Ele pensou: “Mas não tem outro jeito.” Para entrar lá. Eu não posso entrar. Isso agora está estabelecido; pense em quanto tempo eu andei tentando. Eles só deixam entrar uma casca ferrada como o Bruce. Inofensivo. Ele teria de ser... como ele é. Ou eles não assumiriam o risco. E a política deles.

— O governo cobra um quinhão apavorante — disse Donna.

— A vida cobra um quinhão apavorante.

Erguendo os olhos, ela o confrontou, numa irritação sombria.

— Nesse caso, o governo federal. Especificamente. De você, de mim. De... — Ela se interrompeu. — Do que era o meu amigo.

— Ele ainda é seu amigo.

Furiosa, Donna disse:

— O que resta dele.

O que resta dele, pensou Mike Westaway, ainda está procurando por você. De certo modo. Ele também estava triste. Mas o dia estava lindo, as pessoas e os carros o animavam, o ar tinha um cheiro bom. E havia a perspectiva de sucesso; isso o animava acima de tudo. Eles tinham chegado a esse ponto. Podiam percorrer o resto do caminho.

Donna disse:

— Acho mesmo que não há nada mais terrível do que sacrificar alguém ou alguma coisa, um ser vivo, sem que ele sequer tome conhecimento. Se ele soubesse. Se entendesse e se dispusesse a fazer. Mas... — Ela gesticulou. — Ele não sabe, ele nunca soube. Ele não foi voluntário...

— Claro que foi. Era o trabalho dele.

— Ele não tinha idéia disso e não tem a menor idéia agora, porque agora não tem idéia alguma. Você sabe disso tão bem quanto eu. E nunca mais na vida, enquanto viver, ele vai ter idéias. Só reflexos. E isso não acontece por acaso, era para ser assim. Então temos esse... carma ruim. Eu o sinto nas minhas costas. Feito um cadáver. Estou carregando um cadáver... o cadáver de Bob Arctor. Mesmo que ele tecnicamente esteja vivo. — A voz dela se elevou; Mike Westaway gesticulou e, com um esforço visível, ela se acalmou. As pessoas das outras mesas, desfrutando de seus hambúrgueres e milk-shakes, olharam de um jeito inquisitivo.

Depois de uma pausa, Westaway disse:

— Bom, veja desta forma: eles não podem interrogar uma coisa, alguém, que não tem mente.

— Tenho de voltar para o trabalho — disse Donna. Ela olhou o relógio de pulso. — Vou dizer a eles que está tudo bem, de acordo com o que você me contou. Em sua opinião.

— Espere pelo inverno — disse Westaway.

— Pelo inverno?

— Vou conseguir até lá. Não importa por quê, mas como é; vai funcionar no inverno ou não vai funcionar de jeito algum. Ou vamos conseguir nessa época ou nunca. — Bem no solstício, pensou ele.

— Um período adequado. Quando tudo está morto e debaixo de neve.

Ele riu.

— Na Califórnia?

— O inverno do espírito. Mors ontologica. Quando o espírito está morto.

— Só dormindo — disse Westaway. Ele se levantou. — Preciso ir também, tenho de pegar uma carga de vegetais.

Donna olhou para ele com desânimo, triste, mudo e aflito.

— Para a cozinha — disse Westaway delicadamente. — Cenouras e alface. Desse tipo. Doados pelo Mercado McCoy para os pobres da New-Path. Lamento ter dito isso. Não era para ser uma piada. Não era para significar nada. — Ele deu um tapinha no ombro do casaco de couro de Donna. E, ao fazer isso, ocorreu-lhe que provavelmente Bob Arctor, em dias melhores e mais felizes, tinha dado esse casaco de presente a ela.

— Estamos trabalhando nisso juntos há um bom tempo — disse Donna numa voz moderada e estável. — Não quero ficar nessa por muito tempo. Quero que termine. Às vezes, à noite, quando não consigo dormir, eu penso: Que merda!, somos mais insensíveis do que eles. Que o adversário.

— Não vejo uma pessoa insensível quando olho para você — disse Westaway. — Embora eu ache que não conheço você muito bem. O que eu vejo, e vejo claramente, é uma das pessoas mais calorosas que já conheci.

— Sou calorosa por fora, o que as pessoas vêem. Olhos calorosos, rosto caloroso, uma porra de sorriso falso caloroso, mas por dentro sou fria o tempo todo e cheia de mentiras. Não sou o que pareço ser, sou horrível. — A voz da garota continuava estável e, enquanto falava, ela sorriu. Suas pupilas estavam grandes, calmas e sem malícia. — Mas então, não tem outro jeito. Tem? Imagino que há muito tempo talvez eu mesma fosse assim. E todo mundo é assim, de certa forma. O que eu sou que é realmente tão ruim... eu sou uma mentira. Eu menti para o meu amigo. Eu menti para Bob Arctor o tempo todo. Eu cheguei a dizer a ele uma vez para não acreditar em nada do que eu dissesse, e é claro que ele achou que eu estava brincando; ele não ouviu. Mas se eu contasse a ele, seria responsabilidade dele não ouvir, não acreditar mais em mim, depois do que eu dissesse. Eu o alertei. Mas ele esqueceu assim que eu disse e continuou em frente. Sempre em frente.

— Você fez o que devia fazer. Fez mais do que tinha de fazer.

A garota começou a se afastar da mesa.

— Tá legal, então realmente não há nada para eu relatar, até agora. A não ser sua confiança. Só que ele está controlado e eles o aceitaram. Eles não arrancaram nada dele naqueles... — Ela estremeceu. — Naqueles jogos estúpidos.

-É.

— Te vejo depois. — Ela fez uma pausa. — Os federais não vão querer esperar até o inverno.

— Mas o inverno é isso — disse Westaway. — O solstício de inverno.

— O quê?

— Só espere — disse ele. — E reze.

— Isso é besteira — disse Donna. — Rezar, quer dizer. Eu rezava há muito tempo, rezava muito, mas não rezo mais. Não precisaríamos fazer isso, o que fazemos, se rezar desse certo. E outro engodo.

— A maioria das coisas é assim. — Ele seguiu a garota por alguns passos enquanto ela ia embora, atraído por ela, gostando dela. — Não acho que você tenha destruído seu amigo. Me parece que você é que foi destruída, você foi a vítima. Só que em você isso não aparece. De qualquer modo, não havia alternativa.

— Eu vou para o inferno — disse Donna. Ela sorriu de repente, um sorriso largo e moleque. — Minha criação católica.

— No inferno eles te vendem sacos de moedas e quando você chega em casa vê que são M-Ms.

— Os M-Ms são feitos de titica de peru — disse Donna, e depois, de repente, ela havia partido. Desaparecera no ir e vir das pessoas; ele pestanejou. Era assim que se sentia Bob Arctor?, perguntou-se ele. Deve ser. Lá estava ela, estável e como sempre; depois... nada. Desaparece como fogo ou ar, um elemento da terra voltando para a terra. Para se misturar com todas as outras pessoas que nunca deixaram de ser. Despejada entre elas. Que vêm e vão de acordo com a vontade dela. E ninguém, nada, pode prendê-la.

Estou tentando pegar o vento numa rede. E Bob Arctor também. Inútil, pensou ele, tentar colocar as mãos firmemente em um dos agentes federais do abuso de drogas. Eles são furtivos. Sombras que desaparecem quando seu trabalho determina. Como se nunca tivessem estado lá. Arctor, pensou ele, estava apaixonado por um fantasma de autoridade, uma espécie de holograma através do qual um homem normal podia andar e sair do outro lado, sozinho. Sem sequer ter conseguido uma boa compreensão disso — da própria garota.

Deus é o momento, refletiu ele, é para transmutar o mal no bem. Se Ele está ativo aqui, Ele está fazendo isso agora, embora nossos olhos não possam perceber; o processo está oculto abaixo da superfície da realidade e só aparece depois. Para, talvez, nossos herdeiros que aguardam. Uma gente insignificante que não conhecerá a guerra medonha que estávamos travando e as perdas que suportamos, a não ser em uma nota de rodapé de um livro de história menor que tenha captado a concepção. Uma breve menção. Sem uma lista das baixas.

Devia haver um monumento em algum lugar, pensou ele, listando aqueles que morreram nisso. E, pior ainda, aqueles que não morreram. Que têm de viver, de passar pela morte. Como Bob Arctor. O mais triste de todos.

Acho que Donna é uma mercenária, pensou ele. Não é assalariada. E eles são os mais fantasmagóricos. Desaparecem para sempre. Nomes novos, localizações novas. Você se pergunta: Onde ela está agora? E a resposta é...

Em lugar nenhum. Porque ela não estava aqui, para começo de conversa.

Sentando-se novamente à mesa de madeira, Mike Westaway terminou de comer o sanduíche e beber a Coca.

Isso era melhor do que o que eles serviam na New-Path. Mesmo que o hambúrguer fosse feito de ânus de boi moído.

Ligar para Donna de novo, tentar encontrá-la ou pos- suí-la... Eu procuro o que Bob Arctor procurava, então talvez seja melhor que ele agora esteja melhor desse jeito. A tragédia da vida dele já existiu. Amar um espírito atmosférico. Esse era o verdadeiro desgosto. A própria desesperança. Em lugar nenhum nas páginas impressas, em nenhum lugar nos anais humanos o nome dela apareceria; nenhum domicílio, nenhum nome. Há garotas assim, pensou ele, e aqueles que você mais ama, aqueles onde não há esperança porque a esperança escapou de você no momento em que você fechou as mãos em volta dela.

Então talvez nós o tenhamos salvado de coisa pior, concluiu Westaway. E, enquanto fazemos isso, colocamos o que restava dele em uso. Em uso bom e valioso.

Se por acaso tivermos sorte.

— Você conhece alguma história? — perguntou Thelma um dia.

— Conheço a história de um lobo — disse Bruce.

— O lobo mau e a vovozinha?

— Não — disse ele. — O lobo preto-e-branco. Ele ficava no alto de uma árvore e caía sem parar em cima dos animais da fazenda. Finalmente, um dia, o fazendeiro pegou todos os filhos e todos os amigos dos filhos e eles ficaram parados, esperando que o lobo preto-e-branco descesse da árvore. Por fim, o lobo caiu em um animal marrom que parecia sarnento e ali, com seu casaco preto-e-branco, ele foi morto a tiro por eles.

— Que pena! — disse Thelma. — Isso é muito ruim.

— Mas eles salvaram a pele — continuou ele. — Eles despelaram o grande lobo preto-e-branco que descia da árvore e preservaram sua linda pele, de modo que os que vieram depois, os que nasceram depois, puderam ver como ele era e como era maravilhoso, com sua força e seu tama- nho. E as gerações futuras falaram dele e contaram muitas histórias de sua coragem e sua majestade, e choraram sua morte.

— Por que atiraram nele?

— Tinham de atirar — disse ele. — Você deve fazer isso com lobos assim.

— Você sabe outras histórias? Melhores do que essa?

— Não — disse ele —, essa é a única história que eu sei. — Ele ficou sentado, lembrando-se de como o lobo gostava de sua grande habilidade de saltar, o lobo pulando repetidamente em seu corpo elegante, mas agora esse corpo se fora, morto a tiros. E por animais magros, para ser chacinado e devorado. Animais sem força que nunca saltam, que não têm orgulho de seus corpos. Mas, de qualquer modo, no aspecto bom, esses animais continuavam em frente. E o lobo preto-e-branco não reclamou, nada disse quando atiraram nele. Suas garras ainda estavam fundas na presa. Para nada. Só que era o jeito dele e ele gostava de fazer isso. Esse era o único caminho dele. O único estilo pelo qual viver. Tudo o que ele sabia. E eles o pegaram.

— Lá vai o lobo! — exclamou Thelma, pulando meio desajeitada. — Vub, vub! — Ela pegava as coisas e largava, e ele viu com desânimo que havia algo de errado com ela. Ele viu pela primeira vez, angustiado e se perguntando como isso podia acontecer, que ela era deficiente.

Ele disse:

— Você não é o lobo.

Mas mesmo assim, enquanto ela tateava e mancava, ela tropeçava; mesmo assim, percebeu ele, a deficiência continuava. Ele se perguntou como podia ser...

 

Ich unglückseTget Atlas! Eine Welt,

Die ganze Welt der Schmerzen muss ich tragen,

Ich trage Unerträgliches, und brechen Will mir das Herz im Leibe.

 

... que uma tristeza dessas existisse. Ele se afastou.

Atrás dele, ela ainda brincava. Ela tropeçava e caía. Como pode ser assim?, perguntou-se ele.

 

 

Ele andou pelo corredor, procurando pelo aspirador de pó. Disseram-lhe que devia aspirar cuidadosamente o quarto grande de brincar, onde as crianças passavam a maior parte do dia.

— No final do corredor, à direita — apontou uma pessoa. Earl.

— Obrigado, Earl — disse ele.

Quando chegou à porta fechada, ele começou a bater e depois a abriu.

Dentro da sala, uma velha estava parada segurando três bolas de borracha, com que fazia malabarismo. Ela se virou para ele, o cabelo grisalho pegajoso caindo nos ombros, sorrindo para ele, quase sem dentes. Ela usava meias brancas e tênis. Olhos fundos, viu ele; olhos fundos, boca sorridente e vazia.

— Consegue fazer isto? — disse a velha ofegando e atirou as três bolas no ar. Elas caíram, atingiram-na, quicando para o chão. Ela se abaixou, cuspindo e rindo.

— Não consigo fazer isso — disse ele, parado ali, desanimado.

— Eu consigo. — A criatura velha e magra, os braços estalando enquanto se movia, ergueu as bolas, semicerrou os olhos, tentou fazer direito.

Outra pessoa apareceu na porta atrás de Bruce e ficou parada com ele, também assistindo.

— Há quanto tempo ela está praticando? — perguntou Bruce.

— Há muito tempo. — A pessoa gritou: — Tente de novo. Está quase lá!

A velha cacarejou enquanto se curvava para pegar as bolas mais uma vez, desajeitada.

— Tem uma lá — disse a pessoa ao lado de Bruce. — Debaixo de sua mesa-de-cabeceira.

— Oohhh! — ofegou a velha.

Eles viram a velha tentar novamente, sem parar, deixando as bolas caírem, pegando-as, mirando com cuidado, balançando-se, atirando-as para o ar e depois curvando-se enquanto elas choviam sobre ela, às vezes batendo em sua cabeça.

A pessoa ao lado de Bruce fungou e disse:

— Donna, é melhor você se limpar. Você não está limpa.

Bruce, chocado, disse:

— Essa não é a Donna. E a Donna? — Ele levantou a cabeça para espiar a velha e sentiu um grande pavor; umas lágrimas estavam paradas nos olhos da velha enquanto ela olhava para ele, mas a mulher estava rindo, rindo enquanto atirava as três bolas para ele, esperando atingi-lo. Ele se abaixou.

— Não, Donna, não faça isso — disse a ela a pessoa ao lado de Bruce. — Não machuque as pessoas. Só continue tentando fazer o que você viu na TV, sabe como é, pegar as bolas e atirá-las direto de novo. Mas agora vá se limpar, você está fedendo.

— Tudo bem — concordou a velha e correu, curvada e pequena. Ela deixou as três bolas ainda rolando no chão.

A pessoa ao lado de Bruce fechou a porta e eles andaram pelo corredor.

— Há quanto tempo Donna está aqui? — disse Bruce.

— Há muito tempo. Desde que eu cheguei, e já faz seis meses. Ela começou a tentar fazer malabarismo há mais ou menos uma semana.

— Então não é a Donna — disse ele. — Se está aqui há tanto tempo. Porque eu cheguei só há uma semana. — E, pensou ele, Donna me trouxe aqui no MG dela. Eu me lembro disso, porque tivemos de parar por um tempo enquanto ela enchia o radiador. E ela parecia bem. Olhos tristes, escuros, silenciosos e calmos em seu casaquinho de couro, suas botas, com a bolsa que tinha um pé de coelho pendurado. Como sempre.

Ele continuou então, procurando pelo aspirador de pó. Ele se sentiu muito melhor. Mas não entendeu por quê.

 

 

Bruce perguntou:

— Posso trabalhar com animais?

— Não — disse Mike —, acho que vou te colocar em uma de nossas fazendas. Por enquanto, quero tentar te colocar com plantas, por alguns meses. No espaço aberto, onde você possa tocar a terra. Com todas essas sondas espaciais e foguetes, tem se tentado muito chegar ao céu. Quero que você tente chegar...

— Eu quero ficar com alguma coisa viva.

Mike explicou:

— A terra está viva. A Terra ainda está viva. Você pode conseguir muita ajuda lá. Tem alguma experiência em agricultura? Semente, cultivo e colheita?

— Eu trabalhei em escritório.

— Vai ficar ao ar livre a partir de agora. Se sua mente voltar, terá de voltar naturalmente. Você não pode se obrigar a pensar novamente. Só pode continuar trabalhando, como na semeadura de safras ou cultivando nossas plantações de vegetais, como as chamamos, ou matando insetos. Fazemos muito disso, eliminar a existência de insetos com o tipo certo de spray. Tomamos muito cuidado, porém, com os sprays. Eles podem fazer mais mal do que bem. Podem envenenar não só as safras e o solo, mas a pessoa que os usa. Devoram a sua cabeça. — Ele acrescentou: — Como a sua foi devorada.

— Tudo bem — disse Bruce.

Você foi borrifado, pensou Mike enquanto olhava o homem, de modo que agora você se tomou um inseto. Borrife um inseto com uma toxina e ele morre; borrife seu cérebro e ele se torna um inseto que estala e vibra quase que em um ciclo eterno. Uma máquina de reflexos, como uma formiga. Repetindo sua última instrução.

Nada de novo entrará em seu cérebro, pensou Mike, porque esse cérebro se acabou.

E, com ele, a pessoa que um dia foi atenta. Que eu não conheci.

Mas talvez, se ele for colocado no lugar certo, na posição certa, ainda possa olhar para baixo e ver a terra. E reorganizar o que há nela. E colocar alguma coisa que esteja viva, algo diferente de si mesmo, nela. Para crescer.

Porque isso é o que ele não pode mais fazer: essa criatura a meu lado morreu e não pode crescer novamente. Só pode decair aos poucos até que o que reste também esteja morto. E depois o removemos.

Há pouco futuro, pensou Mike, para alguém que está morto. Há, em geral, só o passado. E, para Arctor-Fred-Bruce, não há sequer passado, há somente isso.

Ao lado dele, enquanto dirigia o carro da equipe, a figura curvada se sacudia. Animada pelo carro.

Será, pensou ele, que foi a New-Path que fez isso com ele? Mandou uma substância pegá-lo desse jeito, para torná-lo assim de modo que eles um dia o recebessem?

Para construir, pensou ele, a civilização deles dentro do caos. Se “civilização” fosse realmente isso.

Ele não sabia. Não estava na New-Path havia muito tempo; os objetivos deles, informara o diretor executivo certa vez, seriam revelados somente depois que ele fosse membro da equipe por mais dois anos.

Esses objetivos, dissera o diretor executivo, nada tinham a ver com a reabilitação de drogas.

Ninguém, a não ser Donald, o diretor executivo, sabia de onde se originava o financiamento para a New-Path. O dinheiro sempre estava ali. Bom, pensou Mike, há muito dinheiro na fabricação da Substância D. Em várias fazendas da área rural, em lojinhas, em várias instalações rotuladas de “escolas”. Pelo menos o bastante para manter a New-Path solvente e em crescimento. E mais: suficiente para uma variedade de objetivos definidos.

Dependendo do que a New-Path pretendesse fazer.

Ele sabia de uma coisa — a Repressão a Drogas dos EUA sabia de uma coisa — que a maior parte do público, até a polícia, não sabia.

A Substância D, como a heroína, era orgânica. Não era produto de laboratório.

Então ele indicou muita coisa quando pensou, como freqüentemente fazia, que todos aqueles lucros podiam muito bem manter a New-Path solvente — e em crescimento.

Os vivos, pensou ele, nunca devem ser usados para servir aos propósitos dos mortos. Mas os mortos — ele olhou para Bruce, a forma vazia ao lado dele — devem, se possível, servir aos propósitos dos vivos.

Essa, raciocinou ele, é a lei da vida.

E os mortos, se pudessem sentir, podiam se sentir melhor fazendo isso.

Os mortos, pensou Mike, que ainda podem ver, mesmo que não possam entender: eles são a nossa câmera.

 

 

Debaixo da pia da cozinha ele encontrou um pequeno fragmento de osso, junto com as caixas de sabão, escovas e baldes. Parecia humano e ele se perguntou se era de Jerry Fabin.

Isso o fez se lembrar de um evento que aconteceu muito tempo antes em sua vida. Certa vez, ele havia morado com dois caras e às vezes eles brincavam com a idéia de que tinham um rato chamado Fred que morava debaixo da pia. E quando eles conseguiram se acostumar com isso, diziam às pessoas que tinham comido o pobre e velho Fred.

Talvez esse seja um dos fragmentos dos ossos dele, do rato que morou debaixo da pia deles, que eles inventaram para ter companhia.

 

Ouvindo-os conversando na sala de estar.

— O cara estava mais ferrado do que aparentava. Eu sentia isso. Ele dirigia o Ventura um dia, andando por toda parte para encontrar um velho amigo no interior, em Ojai. Reconheceu de vista a casa sem número, parou e perguntou às pessoas se ele podia ver o Leo. “O Leo morreu. Lamento que não saiba disso.” Então o cara disse: “Tudo bem, vou voltar na quinta.” E ele foi embora com o carro, voltou pelo litoral e acho que estava de volta na quinta procurando por Leo. Que tal isso?

Ele os ouviu conversar, bebendo o café.

— ... funcionou, a agenda telefônica só tinha um número; você liga para esse número para o que for. Escrito em uma página depois da outra... Estou falando de uma sociedade totalmente ferrada. E em sua carteira você tem

esse número, o número, escrito em diferentes bilhetes e cartões, para diferentes pessoas. E se você esquecer o número, não pode ligar para ninguém.

— Pode ligar para Informações.

— É o mesmo número.

Ele ainda ouvia; era interessante esse lugar que eles estavam descrevendo. Quando você ligava, o número telefônico estava fora de operação ou, se não estivesse, diziam: “Desculpe, é engano.” Então você ligava novamente, o mesmo número, e conseguia falar com a pessoa com que queria.

Quando uma pessoa ia ao médico — só havia um e ele era especializado em tudo — havia apenas um remédio. Depois do diagnóstico, ele lhe receitava o remédio. Você levava a receita à farmácia para que fosse aviada, mas o farmacêutico não conseguia ler o que o médico havia escrito, então ele lhe dava o único comprimido que tinha, que era aspirina. E isso curava o que quer que você tivesse.

Se você infringisse a lei, só havia uma lei, a que todos desobedeciam repetidamente. A polícia escrevia laboriosamente tudo, que lei, que infração a cada vez, a mesma infração. E sempre havia a mesma punição para qualquer infração à lei, de atravessar fora da faixa, a traição: a punição era a pena de morte e havia um movimento para que ela fosse abolida, mas não podia ser porque, para o pedestre abusado, por exemplo, não haveria punição alguma. Então ela ficava nos livros e, por fim, a comunidade se ferrou toda e morreu. Não, não se ferrou — eles já estavam ferrados. Eles desapareceram, um por um, enquanto infringiam a lei, e meio que morreram.

Ele pensou: “Acho que quando as pessoas ouvissem que a última delas tinha morrido, elas iam dizer: ‘Como será que essas pessoas eram? Vamos ver — bom, vamos voltar na quinta.’” Embora ele não tivesse certeza, ele riu e, quando disse isso em voz alta, todos os outros na sala riram.

— Essa foi boa, Bruce — disseram eles.

Isso virou uma espécie de bordão; quando alguém na Samarkand House não entendia uma coisa ou não conseguia descobrir o que mandaram pegar, como um rolo de papel higiênico, dizia: “Bom, acho que vou voltar na quinta.” Geralmente, era creditado a ele. O que ele disse, como aconteceu com os seriados cômicos da TV, que repetiam o bordão toda semana. Tomou conta da Samarkand House e significava alguma coisa para todos eles.

Mais tarde, no Jogo em uma noite, quando eles deram crédito a cada pessoa pelo que levaram para a New-Path, como os Conceitos, deram a ele o crédito por levar o humor para lá. Ele o havia levado com uma capacidade de ver as coisas de modo divertido, independentemente do quanto se sentisse mal. Todos na roda bateram palmas e, olhando para cima, sobressaltado, ele viu o círculo de sorrisos, os olhos de todos, calorosos de aprovação, e o barulho do aplauso continuou nele por um bom tempo, dentro de seu coração.

 

No final de agosto daquele ano, dois meses depois de ele ter entrado na New-Path, foi transferido para uma fazenda em Napa Valley, que se localiza no interior da Califórnia. E uma área dedicada ao vinho, onde existem muitas boas vinícolas da Califórnia.

Donald Abrahams, o diretor executivo da New-Path Foundation, assinou a ordem de transferência. Por sugestão de Michael Westaway, um membro da equipe que se tornara especialmente interessado em ver o que podia ser feito com Bruce. Em particular, desde que o Jogo não conseguia mais ajudá-lo. Na verdade, fizera-o deteriorar-se mais.

— Seu nome é Bruce — disse o administrador da fazenda, enquanto Bruce saía desajeitado do carro, trazendo a mala.

— Meu nome é Bruce — disse ele.

— Vamos tentar com você na fazenda por algum tempo, Bruce.

— Tudo bem.

— Acho que vai gostar mais daqui, Bruce.

— Acho que vou gostar — disse ele. — Mais daqui.

O administrador da fazenda o analisou.

— Eles rasparam sua cabeça há pouco tempo.

— Sim, eles rasparam a minha cabeça. — Bruce estendeu a mão para tocar a cabeça careca.

— Para quê?

— Eles rasparam meu cabelo porque me acharam no setor das mulheres.

— Foi a sua primeira vez?

— Foi a minha segunda vez. — Depois de uma pausa, Bruce disse: — Uma vez eu fiquei violento. — Ele ficou parado, ainda segurando a mala; o administrador gesticulou para ele baixá-la no chão. — Eu quebrei a regra da violência.

— O que você fez?

— Atirei um travesseiro.

— Tudo bem, Bruce — disse o administrador. — Venha comigo e vou te mostrar onde você vai dormir. Não temos uma residência central aqui, cada grupo de seis pessoas tem uma pequena cabana. Elas dormem, fazem suas refeições e moram ali quando não estão trabalhando. Não existem sessões do Jogo aqui, só trabalho. Não vai mais haver Jogo para você, Bruce.

Bruce pareceu satisfeito, um sorriso apareceu em seu rosto.

— Gosta das montanhas? — O administrador da fazenda indicou-lhe a direita. — Olhe lá. Montanhas. Sem neve, mas montanhas. Santa Rosa fica à esquerda; cultivam uma uva ótima na encosta daquelas montanhas. Não cultivamos uva alguma. Vários outros produtos agrícolas, mas não uva.

— Eu gosto de montanhas — disse Bruce.

— Olhe para elas. — O administrador novamente apontou. Bruce não olhou. — Vamos arrumar um chapéu para você — disse o administrador. — Não pode trabalhar no campo com a cabeça careca sem usar chapéu. Não saia para trabalhar enquanto não te dermos um chapéu. Está bem?

— Não vou sair para trabalhar enquanto não tiver um chapéu — disse Bruce.

— O ar é bom aqui — disse o administrador.

— Eu gosto do ar — disse Bruce.

— É — disse o administrador, indicando para Bruce pegar a mala e segui-lo. Ele se sentia estranho olhando para Bruce, não sabia o que dizer. Uma experiência comum para ele quando chegavam pessoas assim. — Todos gostamos do ar, Bruce. Gostamos de verdade. Temos isso em comum. — Ele pensou: “Ainda temos isso.”

— Eu vou ver meus amigos? — perguntou Bruce.

— Quer dizer, de antes de vir para cá? Na instalação de Santa Ana?

— Mike e Laura e George e Eddie e Donna e...

— As pessoas das instalações residenciais não saem das fazendas — explicou o administrador. — São operações fechadas. Mas você provavelmente vai voltar uma ou duas vezes por ano. Fazemos reuniões no Natal e também no...

Bruce tinha parado.

— A próxima — disse o administrador, novamente indicando para que ele continuasse andando — é o Dia de Ação de Graças. Mandamos os trabalhadores de volta a suas residências de origem para isso, por dois dias. Eles voltam para cá até o Natal. Então você vai vê-los de novo. Se eles não forem transferidos para outras instalações. Isso daqui a três meses. Mas você não deve fazer qualquer relacionamento pessoal aqui na New-Path... não te disseram isso? Você deve se relacionar somente com a família.

— Eu entendo — disse Bruce. — Eles me fizeram memorizar isso como parte do Credo da New-Path. — Ele olhou em volta e disse: — Posso beber água?

— Vamos te mostrar a sua fonte de água aqui. Você tem uma na sua cabana, mas tem uma pública, para toda a família daqui. — Ele levou Bruce para uma das cabanas pré-fabricadas. — As instalações desta fazenda são fechadas porque temos safras experimentais e híbridas e queremos evitar a infestação de insetos. As pessoas que vêm para cá, até da equipe, trazem pragas nas roupas, nos sapatos e nos cabelos. — Ele escolheu uma cabana ao acaso. — A sua é a 4-G — concluiu ele. — Pode se lembrar dela?

— Elas parecem iguais — disse Bruce.

— Você pode pregar um objeto pelo qual reconheça esta cabana. Para você poder se lembrar facilmente. Algo colorido. — Ele abriu a porta da cabana; o ar quente e pungente soprou neles. — Acho que vamos colocar você com as alcachofras primeiro — ruminou ele. — Vai ter de usar luvas... elas têm espinhos.

— Alcachofras — disse Bruce.

— Ora, também temos cogumelos aqui. Cultivo experimental de cogumelos, fechado, é claro... E os cogumelos domésticos que crescem precisam estar fechados em seus campos para evitar que os esporos patogênicos voem e contaminem os leitos. Esporos de fungos, é claro, são transportados pelo ar. É um perigo para as culturas de cogumelos.

— Cogumelos — disse Bruce, entrando na cabana quente e escura. O administrador o observou entrar.

— Sim, Bruce — disse ele.

— Sim, Bruce — disse Bruce.

— Bruce — disse o administrador. — Acorde.

Ele assentiu, parado no escuro bolorento da cabana, ainda segurando a mala.

— Tudo bem — disse ele.

Eles cabeceiam de sono assim que escurece, disse o administrador para si mesmo. Feito galinhas.

Um vegetal entre vegetais, pensou ele. Fungo em meio a fungo. Escolha o seu.

Ele puxou a corrente da luz elétrica da cabana e depois começou a mostrar a Bruce como operá-la. Bruce não pareceu se importar; agora tinha captado um vislumbre das montanhas e estava parado, olhando para elas fixamente, ciente delas pela primeira vez.

— Montanhas, Bruce, montanhas — disse o administrador.

— Montanhas, Bruce, montanhas — disse Bruce e olhou.

— Ecolalia, Bruce, ecolalia — disse o administrador.

— Ecolalia, Bruce...

— Tá legal, Bruce — disse o administrador e fechou a porta da cabana atrás dele, pensando: “Acho que vou colocá-lo com as cenouras. Ou beterrabas. Alguma coisa simples. Algo que não o confunda.”

E outro vegetal no outro beliche ali. Para que ele tenha companhia. Eles podem bater cabeça pela vida juntos, em uníssono. Filas deles. Hectares inteiros.

Eles o colocaram de frente para o campo e ele viu o milho, como projeções esfarrapadas. Ele pensou: “Lixo crescendo. Eles têm uma fazenda de lixo.”

Ele se curvou e viu, crescendo junto ao solo, uma flor- zinha azul. Muitas delas, rasteiras, tilintando. Como uma barba por fazer. Palha.

Um monte delas, agora ele via que podia aproximar bem o rosto para entendê-las. Campos, com as filas mais altas de milho. Aqui, escondidas por dentro, como muitos agricultores plantavam: uma safra dentro da outra, como anéis concêntricos. Como, lembrou-se ele, os agricultores do México plantam sua marijuana: cercadas — aneladas — por plantas altas, para que os federales não as localizem de jipe. Mas depois eles as localizam pelo ar.

E os federales, quando localizam uma plantação de maconha ali — disparam a metralhadora no fazendeiro, na esposa dele, nos filhos, até nos animais. E depois partem. E sua busca de helicóptero continua, apoiada pelos jipes.

Essas adoráveis florzinhas azuis.

— Você está vendo a flor do futuro — disse Donald, o diretor executivo da New-Path. — Mas não para você.

— Por que não para mim? — disse Bruce.

— Você já teve demais do que é bom — disse o diretor executivo. Ele riu. — Então levante-se e pare com essa adoração... Isso não é mais seu deus, seu ídolo, embora antigamente fosse. Uma visão transcendente, é o que está vendo crescer aqui? Parece que é. — Ele bateu firmemente no ombro de Bruce e depois, estendendo a mão para baixo, interrompeu a visão dos olhos congelados.

— Foram embora — disse Bruce. — As flores de primavera foram embora.

— Não, você simplesmente não pode vê-las. E um problema filosófico que você não ia entender. Epistemologia... a teoria do conhecimento.

Bruce só viu a palma da mão de Donald barrando a luz e ele a encarou por mil anos. Ela bloqueou, ela havia bloqueado; bloqueará para ele, bloqueará para sempre para olhos mortos até o fim dos tempos, olhos que não podem olhar e certa mão que não se mexeria. O tempo cessou enquanto os olhos olhavam e o universo se consolidava junto com ele, pelo menos para ele, congelava com ele e sua compreensão, enquanto sua inércia se tornava completa. Não havia nada que ele não soubesse, nada mais aconteceria.

— Volte ao trabalho, Bruce — disse Donald, o diretor executivo.

— Eu vi — disse Bruce. Ele pensou: “Eu sabia. Era isso? Eu vi a Substância D crescendo, eu vi a morte subindo da terra, do próprio chão, em um campo azul, numa cor eriçada.”

O administrador da fazenda e Donald Abrahams se olharam e depois se abaixaram até a figura ajoelhada, o homem ajoelhado e a Mors ontologica plantada em toda parte, por dentro do milho que a cercava.

— Volte ao trabalho, Bruce — disse então o homem ajoelhado e se colocou de pé.

Donald e o administrador da fazenda afastaram-se para o Lincoln estacionado. Conversando. Ele observou — sem se virar, sem ser capaz de se virar — os dois partirem.

Abaixando-se, Bruce pegou uma das plantas azuis e eriçadas, depois a colocou no sapato direito, tirando-a de vista. Um presente para os meus amigos, pensou ele, e ansiou, em sua mente, onde ninguém podia ver, pelo Dia de Ação de Graças.

 

                                                                                 Philip K. Dick  

 

                      

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