Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O HOMEM E O ESPECTRO
COMO SE CONFERE UM DOM
Toda a gente dizia a mesma coisa.
Longe de mim a ideia de querer afirmar que o que toda a gente diz seja sempre verdade: todos estamos igualmente sujeitos a acertar e sujeitos a errar. Na vida prática toda a gente se engana muitas vezes, e na maior parte é necessário tanto tempo para descobrir até que ponto nos enganamos que é caso assente ser muito falível qualquer afirmação. Toda a gente acerta uma ou outra vez; mas isso não faz regra — como diz na sua balada o espectro de Gilles Scroggins.
A terrível palavra “espectro" leva-me a entrar neste assunto. Era voz corrente que o Sr. Redlaw tinha alguma coisa de homem perseguido por um espectro. Pela minha parte, o que eu quero acentuar bem em abono da verdade é que, neste caso, todos tinham razão; pelo menos assim parecia.
De facto, ver-lhe as faces encovadas, os olhos cheios de brilho soterrados nas órbitas, o fato preto que Lhe dava um aspecto indefinivelmente taciturno a despeito da sua estatura proporcionada e elegante, os cabelos grisalhos caídos para a cara, semelhantes a algas marinhas emaranhadas — como se fora perpetuamente açoutado pelas vagas tempestuosas da vida humana —, era suficiente para se dizer que estava ali um homem atormentado por algum espectro!
Se tivessem ouvido a sua voz, que só tinha uma nota baixa, profunda, grave, não sem uma certa melodia natural, mas que ele parecia reprimir cautelosa mente, teríeis dito: É a voz de um homem flagelado por um espectro. Mas se o vissem na sala mais recôndita dos seus aposentos, metade biblioteca, metade laboratório (porque ele era um grande químico e um abalizado professor, a cujas prelecções assistia diariamente um auditório tão numeroso como atento), se o vissem ali, por uma noite de Inverno, sozinho no meio dos seus livros, dos seus instrumentos e das suas drogas, enquanto o candeeiro de trabalho, com o respectivo quebra-luz, projectava na parede a sombra de um enorme escaravelho, entre outras figuras fantásticas traçadas pelos reflexos oscilantes do braseiro em contacto com as retortas e com os vidros cheios de líquidos multicores — trémulos fantasmas que bem haviam de conhecer a pujança do seu engenho para os decompor e restituir à chama e ao vapor dos seus elementos constitutivos; se o vissem então, acabado o seu trabalho, sentado na vasta poltrona junto à lareira, meditabundo, mexendo os lábios delgados como os de um morto, deixariam porventura de dizer que havia um espectro com aquele homem, naquela sala?
Em resumo, não era necessário um grande esforço de imaginação para crer que tudo em redor dele tomava formas sobrenaturais e que vivia numa atmosfera fantástica.
Aquela habitação solitária parecia-se tanto com um túmulo! Era uma sala retirada no velho edifício de um colégio, fundado por doação e edificado outrora num terreno descoberto, onde se erguia desafogadamente; mas isso já ia longe e, ao tempo, a estranha e vetusta fábrica de arquitectos esquecidos, enegrecida pelo fumo, pelos anos e pelas intempéries, achava-se como que abafada de todos os lados pelas novas edificações da grande cidade.
Obstruídos por montões de pedras e de tijolos, os seus pequenos pátios quadrangulares pareciam verdadeiros poços formados pelas ruas e pelos edifícios circundantes, cujos andares sobrepostos tinham ultrapassado de há muito o nível das suas chaminés mais amplas que altas; as velhas árvores que ali vegetavam achavam-se também tisnadas pelo fumo das habitações vizinhas, fumo que não se dignaria descer tanto se não fora a pressão das névoas rebaixadas pelo vento; a relva estorcia-se num solo condenado à esterilidade e verdejava a custo; o empedrado solitário perdera o hábito de ser trilhado; os únicos olhares que nele podiam fixar-se seriam os que baixassem por acaso de alguma janela sobranceira, os quais decerto exprimiriam logo o terror suscitado pela lembrança do que seria aquele antro.
O velho relógio de sol estava relegado a um canto, onde há cem anos não penetrava um raio do astro rei; mas se o sol o não visitava, em compensação, a neve, de que, fora dali, dificilmente se encontraria o mais ténue floco, revestia-o durante semanas, em camadas sobrepostas, e o lôbrego vento de leste, lá fora calmo e silencioso, redemoinhava e zumbia no estreito âmbito como um pião gigante.
A sala onde o Sr. Redlaw se sentava à lareira ficava exactamente no centro do edifício. Era tão baixa e tão velha esta sala, tão escalavrada e ao mesmo tempo tão sólida, com as suas grossas traves carunchosas e o seu tecto reforçado, e com uma empena a terminar no grande painel de carvalho da chaminé, que não se podia imaginar nada que, quanto ao tempo e aos usos e à moda, mais se opusesse à cidade moderna que a envolvia, que a estreitava: nada mais solitário nem mais remansoso — e contudo os seus ecos tinham o quer que fosse do ribombar do trovão quando alguém erguia a voz, distante, ou se fechava alguma porta. Esses ecos não ficavam encarcerados nos muitos e baixos corredores e na sala vazia; continuavam a gemer até se perderem no ar espesso e soturno da esquecida cripta, cujos arcos normandos estavam meio enterrados no chão.
Nessa sala é que era vê-lo, ao crepúsculo, no Inverno, à hora em que assobiava o vento agudo e se escondia o sol mortiço; à hora em que a escuridão era só o suficiente para exagerar e tornar indistintas as formas dos objectos, sem de todo as apagar; à hora em que as pessoas, à lareira, começavam a ver no brasido estranhas miragens, serranias e precipícios, emboscadas e exércitos; à hora em que os transeuntes atravessavam as ruas cabisbaixos, correndo de vento em popa; quando os que tinham de arrostar com o vendaval, detidos a cada esquina como se virassem um cabo difícil de dobrar, sentiam pousar-lhe nas pestanas os flocos errantes, que começavam a cair ainda esparsos e varridos pelo vento agudo com tal presteza que deles não ficavam vestígios no solo endurecido pelo nevão; à hora em que nas casas particulares se fecham as persianas e se correm os cortinados e reposteiros; em que a luz do gás, iluminando ruas buliçosas e ruas solitárias, briga com a invasão das trevas; em que os transeuntes afastados do seu domínio olham de soslaio, tiritantes, para o lume que arde nas cozinhas, e aguçam um apetite já de si bem aguçado haurindo os aromas que rescendem os jantares à hora em que os viajantes, batendo o queixo, já não podem ver desenrolar-se diante de si uma paisagem coberta de névoas, nem ouvir o ramalhar das folhas e os suspiros do vento; em que os marinheiros agarrados às vergas são balouçados e sacudidos pelas vagas rugidoras; em que os faróis erguidos nos cabos e nos promontórios acendem o farol solitário e vigilante de encontro ao qual as aves marinhas surpreendidas pela noite vão esvoaçar e cair mortas; à hora em que os ingénuos leitores das Mil e Uma Noites, agrupados em volta da lareira, tremem como varas verdes ao pensar na pavorosa história de Ali Babá esquartejado na caverna dos salteadores, e começam a temer que a horrorosa velha da muleta, que tão amiúde saltava da sua caixa para a alcova do mercador Abudah, os espere uma noite na escada, durante a fria e escura viagem que têm de fazer em busca de cama; à hora em que, nas quintas, os últimos raios do dia morrem no extremo de longas avenidas cujas árvores já perderam a cor verdejante; em que, nos parques e nas silvas, tanto os arbustos como as mais humildes plantas, tanto as camadas de folhas caídas como os troncos delas despojados, se envolvem em densas sombras, em que as névoas sobem dos fossos, das represas e dos rios; em que as luzes que cintilam nos velhos solares e nas janelas das choupanas são um regozijo para os nossos olhos; em que o moinho deixou de trabalhar; em que o carpinteiro e o ferreiro fecharam a loja; em que se colocaram as barreiras nas passagens defesas durante a noite e se deixou no campo a charrua e a grade, e o lavrador recolheu o gado no curral; à hora em que o relógio da igreja tem um som mais grave que ao meio-dia e em que o portão do cemitério não mais se abrirá até pela manhã; à hora em que o crepúsculo, libertando as sombras enclausuradas durante o dia, deixa que elas se reúnam como enxames de fantasmas; à hora em que estas sombras, a princípio refugiadas nas casas interiores e detrás das portas entreabertas, se preparam para tomar posse dos aposentos desabitados, bailam no chão, nas paredes e nos tectos dos quartos habitados e, consoante o braseiro esmorece ou se ateia projectando vividos clarões, assim oferecem, como o mar, o seu fluxo e refluxo; à hora em que estas sombras dão a todos os objectos formas fantásticas; em que a ama das crianças se converte em papão, o cavalo de papelão num monstro fabuloso; em que a criança, admirada de ver o seu vulto na parede, não sabe se há-de rir ou chorar de medo; em que as tenazes, encostadas ao fogão, representam um gigante de mão nas ilhargas, ameaçador e que, pressentindo carne tenra, se prepare para nos tragar; à hora em que as mesmas sombras levantam nos espíritos mais reflectidos outras ideias e lhes fazem ver imagens que são de todo diferentes; em que elas saem do seu esconderijo e lembram formas e semblantes do passado, da campa, do abismo profundo onde não cessam de tumultuar as coisas que podiam ser e nunca foram; a essa hora é que era vê-lo.
Como dissemos, estava à lareira olhando para o braseiro e, conforme a chama subia ou baixava, assim diminuíam ou cresciam as sombras. Ele, porém, não atentava nisso, pelo menos com os olhos do corpo, que não desfitava do lume.
Os sons nocturnos, despertados pelas trevas, e saídos com elas dos seus confins, à invocação do crepúsculo, pareciam tornar ainda mais profundo, pelo contraste, o remanso em que tudo jazia em volta dele. O vento assobiava na chaminé, e ora gemia ora uivava pela casa: As velhas árvores do pátio eram de tal maneira açoitadas pelo vento que uma velha coruja protestava de vez em quando contra esta violência piando de leve. A espaços, as vidraças estremeciam, o enferrujado catavento lamentava-se no cimo da torre, o martelo do relógio lembrava que tinha passado mais um quarto de hora e o fogo amortecia esboroando-se. Nesse instante, uma pancada na porta despertou-o da sua meditação.
Quem está aí? — disse ele. — Entre.
É mais que certo que ninguém estava junto à poltrona do químico, que ninguém tinha os olhos fitos nele, que não se ouviu ruído de passos quando ele levantou a cabeça e falou. Também não havia espelho na sala que pudesse reflectir a sua melancólica imagem, e, contudo, viu-se atravessar na sombra uma forma humana.
— Mil desculpas, senhor — disse um homem de faces rosadas, abrindo pressurosamente a porta com o pé para dar passagem a um tabuleiro que trazia nas mãos, evitando em seguida cautelosamente que a porta se fechasse com ruído. — Tardámos muito hoje, senhor, mas Mistress William foi bastantes vezes levada...
— Pelo vento, sem dúvida? Efectivamente, eu ouvi-o soprar rijo.
— Pelo vento, sim, senhor; foi um milagre que pudesse chegar a casa. Se não fosse o vento, já o senhor Redlaw estava servido há mais de uma hora.
E, dizendo isto, depôs o tabuleiro com a louça para o jantar, após o que acendeu o candeeiro e estendeu a toalha, apressando-se em seguida a atear o braseiro. A luz que acabava de acender, o clarão que o fogo espargiu, mudaram tão subitamente o aspecto do quarto que a entrada deste homem activo e diligente, cujo semblante rosado e bonacheirão cativava à primeira vista, pareceu ser o bastante para operar a mutação.
— Mistress William — prosseguiu o recém-chegado coma sua habitual jovialidade — está sujeita, como toda a criatura humana, a perder o equilíbrio: poderia ela, porventura, ser mais forte que os elementos, meu senhor?
— Não — replicou o Sr. Redlaw. A despeito da entoação benevolente com que foi proferida, aquela palavra tinha o quer que fosse de seco.
— Como ia dizendo, meu senhor, o equilíbrio de Mistress William pode ser perturbado pelos quatro elementos e em primeiro lugar pela terra. Fez domingo oito dias, para não irmos mais longe, havia muita lama, as ruas estavam escorregadias, e Mistress William resolveu ir tomar chá a casa da sua nova cunhada, gabando-se de antemão de que havia de fazer o trajecto a pé e não havia de se enlamear. Mas a mulher põe e Deus dispõe... O ar também pode fazer perder o pé a Mistress William, como aconteceu no dia em que, cedendo às instâncias de uma amiga, se aventurou a andar de balouço na feira de Peckam; esta diversão aérea produziu imediatamente na sua pessoa o efeito que produz em geral o balanço de um barco a vapor. Mistress William pôde igualmente sentir perturbado o seu equilíbrio pelo terceiro ele mento, o fogo; foi por isso que, em consequência de ter havido um rebate falso de incêndio em casa da mãe, ela saiu pelo portal, em touca de dormir, e só parou dali a duas léguas. Também a água, enfim, pode deslocar Mistress William do seu centro de gravidade, como aconteceu um dia em Battersea, quando a canoa em que ela imprudentemente embarcou foi arrastada pela corrente de encontro aos pilares da ponte, por azelhice do seu sobrinho, o Charles Swidger, que contava então doze anos de idade e nunca tinha empunhado uma cana de leme. Mas só os elementos podem fazer perder a Mistress William a sua base habitual, sem outro resultado senão despertar toda a energia do seu carácter.
Calou-se, à espera da réplica, que foi um sim pronunciado no mesmo tom.
É tal qual, assim Deus tenha piedade da minha alma — volveu o Sr. Swidger continuando a pôr a mesa e nomeando, por entre os diversos períodos do discurso, os objectos que ia colocando. — As coisas são como são. É o que eu não me canso de dizer a mim mesmo; nós somos um verdadeiro rosário de Swidgers, o vidro da pimenta. Primeiro temos meu pai, antigo porteiro e guarda deste edifício, com os seus oitenta e sete anos de idade. É o decano dos Swidgers! A colher.
— Sim, William — foi a resposta paciente e abstracta do Sr. Redlaw.
— Já se deixa ver — prosseguiu Swidger, após uma breve pausa, à espera de resposta. — É o que eu digo sempre para os meus botões: o meu pai é verdadeira mente o tronco da árvore. Esquecia-me o pão! Segue-se este seu humilde servo. Ah!, o sal. Aí temos já dois Swidgers, faca e garfo! Depois vêm os meus ir mãos com as respectivas famílias, homens e mulheres, rapazes e raparigas, uma infinidade de Swidgers! Na verdade, se se contarem os tios e as tias, os primos e as primas em todos os graus possíveis, os casamentos e os nascimentos, os Swidgers — ah, o copo! —, os Swidgers, vinha eu dizendo, dando a mão uns aos outros formavam uma roda em que cabia toda a Inglaterra!
Como desta vez o Sr. Redlaw lhe não desse resposta, William aproximou-se mais e fingiu bater acidentalmente com a garrafa na mesa. Este pequeno ardil surtiu o efeito desejado: o químico levantou os olhos, e William, muito satisfeito com a tácita aquiescência do seu interlocutor, prosseguiu, com a sua natural loquacidade: — Sim, senhor, é exactamente o que eu digo, o que Mistress William e eu dizemos amiudadas vezes: há já uma boa porção de Swidgers sem a nossa contribuição voluntária. Aqui está a manteiga. O caso é meu senhor, que só o meu velho pai reclama tantos cuidados como uma família inteira. Devemos, pois dar graças a Deus por não termos filhos, embora a Mistress William pudesse apetecer essa distracção, cuja falta Lhe permite, entretanto, consagrar-se exclusivamente à sua cozinha. Está posta a mesa, senhor, só falta o frango e o puré de batata. Mistress William disse-me, quando eu vinha a sair, que não tardaria dez minutos.
— Estou pronto — disse o Sr. Redlaw, parecendo despertar de um pesadelo e começando a passear lentamente de um a outro extremo da sala.
— Mistress William voltou onde vossa senhoria sabe — prosseguiu o filho e sucessor do porteiro, aquecendo um prato.
Redlaw parou, e no seu rosto desenhou-se uma expressão de interesse.
— É o que eu estou sempre a dizer a mim mesmo, meu caro senhor. Verá que há-de fazê-lo. Há no coração de Mistress William um sentimento maternal que tem fatalmente de procurar um derivativo.
Que fez ela então?
— O que fez, senhor? Não contente em ser uma espécie de mãe para quantos rapazes aqui vêm parar de todas as partes do país, para frequentarem as aulas dadas neste velho estabelecimento... É singular como a porcelana aquece com o frio que está! — e dizendo isto voltou o prato, soprando os dedos.
— Mas depois? — inquiriu o professor.
— É justamente o que eu digo a mim mesmo, senhor — replicou William, falando por cima do ombro e continuando a manifestar o seu contentamento pela aprovação tácita do grande professor. — Como estava a dizer, por mais que se faça as coisas são o que são. Não há aqui um único estudante que não considere Mistress William sob este aspecto maternal. Não há um só que deixe de estender o pescoço para dentro da loja quando entra ou quando sai; têm sempre alguma coisa que dizer ou que pedir a minha mulher. Swidge, sem mais nada, é o nome pelo qual eles designam geralmente Mistress William, segundo parece; isso pouco importa, porque eu sempre disse: mais vale ver uma pessoa um pouco escalavrado o seu nome ou o seu apelido, quando isso sucede por pura amizade, que saber que esse nome é tão indiferente que ninguém faz caso dele. No fim de contas, o que é um nome? É uma maneira de reconhecer uma pessoa. Se Mistress William é conhecida por alguma coisa melhor que o nome, quero dizer, pelas qualidades e pela boa índole, que importa como a nomeiam, conquanto o seu apelido seja Swidger, em virtude das leis matrimoniais? Feliz o marido cuja escritura nupcial não sofre outras arranhaduras. Por conseguinte chamem a minha mulher Swidge, Widge, Bridge tudo quanto quiserem, nada disso me faz mossa, contanto que minha mulher seja minha mulher e que não haja equívoco a tal respeito.
Ao rematar esta magnífica peroração acerca da reputação sem mácula da sua metade, William colocou ou, para melhor dizer, deixou cair em cima da mesa o prato que aquecia, com a viva sensação do seu mais que suficiente calor. Ao mesmo tempo entrava na sala, com outro tabuleiro e outra lanterna! quem era objecto dos seus elogios. Acompanhava-a um venerável ancião de longos cabelos brancos.
Como o marido, Mrs. William parecia ser uma criatura simples e excelente. O rosto fresco oferecia um reflexo extremamente agradável e brando do vermelho-escarlate do jaquetão oficial do marido; mas ao passo que os cabelos louros e hirsutos de William se mostravam sempre de pé, parecendo só pela tensão do couro cabeludo conservar-lhes os olhos desmedidamente abertos, como quem está sempre à espreita de prestar algum serviço, os formosos cabelos castanhos escuros de Mistress William andavam sempre cuidadosamente alisados, e os seus caracóis; aconchegados numa touquinha muito limpa, tinham toda a simetria e alinho imagináveis. Ao passo que as calças de mescla de William, participando de certa maneira na sua índole activa e buliçosa, não podiam conservar-se como deviam e andavam sempre divorciadas dos tornozelos e mais ou menos à banda, a saia de raminhos de Mrs. William, cor-de-rosa e branca como o seu lindo rosto, andava sempre tão brunida, tão aprumada, tão correcta, que nem o vento que então soprava parecia ter o poder de lhe desmanchar uma só prega. Ao passo que o jaquetão de William ameaçava fugir-lhe do peito e trepar-lhe à nuca, como se estivesse meio vestido, o corpete de Mrs. William ajustava-se-lhe de tal modo ao corpo, denotava tanta regularidade, tanto comedimento e tanta modéstia que ele por si só bastaria para protegê-la contra os mais atrevidos. Quem havia de ter coragem de perturbar um seio tão sereno, fazê-lo arfar de tristeza, palpitar de temor ou estremecer perante um pensamento vergonhoso? Quem não respeitaria o seu doce remanso do mesmo modo que se respeita o sono de uma criança?
— Pontual como sempre, Milly — disse o marido aliviando-a do peso do tabuleiro. — Aqui está Mistress William, senhor! Acho-o esta noite ainda mais taciturno que de costume — murmurou ele ao ouvido da mulher. — Devem ser os espectros que o perseguem.
Sem fazer ruído, sem um único movimento escusado, sem dar ao Sr. Redlaw o espectáculo do seu zelo, Milly pôs na mesa o que trouxera, ao passo que William, depois de muita lida e de dar umas poucas de voltas à roda da mesa, nada mais encontrara para servir a não ser uma molheira que apresentava ao Sr. Redlaw, mas que este não via porque estava a olhar para outro lado.
— Que traz o tio Philippe na mão? — perguntou o químico, abancado à mesa de jantar, solitário.
É azevinho, senhor — respondeu a meiga voz de Milly.
É exactamente o que eu estava dizendo a mim mesmo — interrompeu William, ainda em acção de oferecer a molheira. — As bagas daquele arbusto são muito apreciadas nesta época do ano! Queira vossa senhoria servir-se deste molho, que é excelente.
— Mais um Natal — murmurou o químico, soltando um profundo suspiro —, mais um ano volvido!
Mais algumas parcelas a juntar à enorme soma de recordações que agrupamos sem cessar e de todos os modos para nosso martírio, até que a morte tudo apague! Então, tio Philippe! — prosseguiu ele, interrompendo o seu monólogo e levantando a voz para o ancião, que se conservava a respeitosa distância com o seu feixe de verdura, cujas folhas luzidias reflectiam o vermelho das bagas e cujas hastes Mrs. William ia silenciosamente despojando dos ramos mais pequenos, com a sua tesoura, para adornar a sala, operação esta que o seu venerável sogro parecia seguir com o maior interesse.
— Sou um humilde servo de vossa senhoria — respondeu o ancião — e já lhe teria apresentado os meus respeitos se não conhecesse os hábitos do senhor Redlaw; por isso esperei que me dirigisse a palavra. Desejo-lhe alegres festas, meu senhor, e que o novo ano lhe traga muitos outros igualmente ditosos. Eu já cá tenho uma boa contita — ajuntou ele sorrindo —, e é por isso que tomo a liberdade de desejar outro tanto aos mais. Tenho oitenta e sete anos!
— Todos igualmente alegres e felizes? — perguntou o Sr. Redlaw.
— Certamente — replicou o velho.
— A idade há-de ter-lhe enfraquecido a memória, não pode deixar de ser — disse o químico em voz mais baixa para o filho.
— Pelo contrário — respondeu William. — É exactamente o que eu digo de mim para mim, senhor. Nunca houve memória como a do meu pai. É o homem mais espantoso que eu tenho conhecido e ignora completamente o que significa a palavra esquecimento. É uma observação que faço frequentemente a Mistress William, acredite vossa senhoria. Num empenho muito polido de aceitar todas as opiniões, William Swidger retorquiu tão confiadamente como se na sua resposta não houvesse uma única palavra de contradição, sempre no firme propósito de comprazer o Sr. Redlaw.
Este último afastou o prato, levantou-se da mesa, atravessou o quarto e aproximou-se do velho, que parecia embevecido na contemplação do seu ramo de azevinho.
— Esse ramo traz-lhe então à memória os anos volvidos da infância à velhice, não é verdade — disse-lhe ele, mirando-o atentamente e pondo-lhe a mão no ombro.
— Certo que lembra! — respondeu Philippe, meio imerso ainda nas suas cogitações. — E tenho oitenta e sete anos!
— Oitenta e sete anos de alegria e de felicidade, é? — perguntou o químico em voz baixa. — De alegria e de felicidade, tio Philippe?
— Tinha eu talvez este tamanho, não tinha mais disse o velho porteiro levando a mão um pouco acima do nível do joelho —, por ocasião das primeiras festas do Natal de que me lembro. Era um dia muito frio, mas fazia um esplêndido sol de Inverno. Alguém, minha mãe, tão certo como estarmos agora aqui, embora eu ignore as feições do seu rosto amado, porque ela caiu doente e morreu pouco depois...
Minha mãe, vinha eu dizendo, disse-me que as bagas deste arbusto serviam de alimento aos passarinhos. E o que se me havia de meter na cabeça! Tontices de crianças!... Imaginei que os passarinhos deviam o brilho dos olhos às bagas vermelhas e luzidias de que se sustentavam durante o Inverno. Lembro-me disto e tenho oitenta e sete anos!
— Alegre e feliz! — murmurou o seu interlocutor, fixando os negros olhos no corpo dobrado do velhinho com um sorriso de compaixão. — Alegre e feliz...
Não obstante a sua boa memória.
— Excelente, senhor — corroborou o ancião com estranha viveza. — Lembro-me perfeitamente do tempo em que andava na escola; parece-me ver desfilar um a um esses anos de alegres folguedos. Eu era então um rapazola vigoroso, senhor Redlaw, e pode crer no que lhe digo: cinco léguas nas redondezas não tinha rival no jogo da barra. Onde está o meu Wil liam? Digo-te isto: não tinha quem me deitasse a barra adiante nas cinco léguas mais próximas.
— É o mesmo que eu sempre tenho dito — acudiu o filho com o máximo respeito. — O pai é um Swidger, como talvez nunca houvesse nenhum na família!
Querido William! — disse o ancião meneando a cabeça e fixando o olhar no ramo que tinha na mão.
— A mãe dele (o meu filho William é o mais moço) e eu sentámo-nos muitas vezes no meio de todos eles, rapazes e raparigas, grandes e pequenos, pelo Natal, e as bagas dos ramos de azevinho que adornavam as paredes talvez não tivessem o viço dos seus alegres rostos. Muitos deles partiram, a minha doce companheira partiu também para outros mundos; e meu filho George, o mais velho de todos, degradou-se muito, muito! Mas na minha memória, parece-me vê-los ainda, todos vivos e florescentes como naquele tempo; e, Deus louvado, vejo também o meu filho George na sua inocência de outrora. É uma bênção do céu para mim esta minha boa memória de oitenta e sete anos.
O olhar penetrante que o Sr. Redlaw fixara nele, por momentos, baixara gradualmente até ao chão.
— Quando a minha posição começou a deixar de ser tão boa como tinha sido noutras épocas, porque houve quem procedesse deslealmente para comigo e vim para aqui na qualidade de guarda do instituto continuou o velho —, isto é, há mais de cinquenta anos... Mas onde está o meu William? Sim, há mais de meio século, William!
— Tal qual eu digo — replicou o filho, que era sempre da opinião de toda a gente —, duas vezes cinco dezenas fazem uma centena, duas vezes nada coisa nenhuma.
— Quando vim para esta casa, como ia dizendo foi um grande prazer para mim saber que um dos nossos fundadores ou, para falar com mais exactidão — disse o velho muito ufano de entrar neste assunto e de mostrar que o sabia profundamente — um dos mais ilustres e esclarecidos varões que acudiram em socorro do nosso instituto no tempo de Isabel, porque a fundação desta casa é anterior ao reinado dela, tinha outros legados consignados no seu testamento, deixando uma pequena renda anual, cujo produto seria aplicado à compra de azevinho para enfeitar as paredes e as janelas pelo Natal. E era uma boa ideia meu senhor. Estranhos, ao tempo, nesta casa onde só vínhamos pelo Natal, afeiçoámo-nos todavia ao retrato do testador, colocado na sala que era antigamente o nosso refeitório, antes de os nossos pobres amos trocarem a sua residência por um salário anual. É um homem de idade madura, barba pontiaguda — com um cabeção de pregas ao pescoço. Por baixo do retrato lê-se uma inscrição em velhos caracteres ingleses: Senhor! Permiti que a minha memória me não abandone. Vossa senhoria conhece o retrato tão bem como eu.
— Sei que está ainda no mesmo sítio.
— Sim, é o segundo da direita, por cima do painel. Isto trazia eu para dizer que a esse retrato devo não me ter falecido a memória, pelo que lhe dou graças. Percorrendo todos os anos o edifício como agora vou fazer mais uma vez, e refrescando as salas desertas com estas bagas de azevinho, refresco ao mesmo tempo o meu pobre cérebro. Um outro ano que finda traz-me à lembrança que também findou o que o antecedeu, e assim sucessivamente. E o dia do Nasci mento do Redentor acaba por parecer-me o do nascimento de todos que amei, que chorei ou que me deram alegria, e que não foram poucos, porque eu tenho oitenta e sete anos!
— Risonhos e felizes! Todavia lembra-se... murmurou Redlaw.
A sala começava a escurecer de um modo estranho.
— Como vê, meu senhor — prosseguiu o velho Philippe, cujas faces pálidas e enrugadas se tinham tingido de uma cor mais viva e cujos olhos azuis brilhavam com mais fulgor depois que começara a falar —, com este já são um bom par de Natais que festejo; mas onde está a minha doce Milly? Tem o passo mais leve que um ratinho. Valha-me Deus! A tagarelice é o defeito dos que chegam à minha idade. Tenho ainda metade da casa para enfeitar e havemos de concluir a nossa tarefa, a não ser que o frio nos gele, que o vento nos leve ou que as trevas nos traguem.
A doce Milly aproximara-se do ancião e pegara-lhe silenciosamente no braço.
Vem, minha querida filha... — disse Philippe. — Se nos demorarmos mais, quando o senhor Redlaw se sentar à mesa, encontra o jantar mais frio que o Inverno. Permita-me vossa senhoria que prossiga a minha peregrinação através deste velho edifício.
Muito boa noite, meu senhor, e mais uma vez tomo a liberdade de lhe desejar uma feliz...
— Ainda não! — interrompeu o Sr. Redlaw abancando novamente, mais, a julgar pela maneira por que o fez, para que o velho não receasse pela sorte do jantar, do que porque o assaltasse a vontade de comer. — Conceda-me mais um instante, Philippe. O William ia dizer-me alguma coisa em honra da sua excelente companheira. O elogio na boca dele não pode deixar de ser-lhe agradável. Que ia dizer? — Ia dizer... Eu sei? — respondeu William Swidger olhando muito enleado para a sua metade. — Vossa senhoria não vê? Mistress William não tira os olhos de mim.
— Isso que faz? Parece-me que ela não tem mau olhado.
Certamente que não — replicou o Sr. Swidger.
É o que o digo aos meus botões. Os olhos da senhora não foram feitos para meter medo, porque então não seriam tão meigos. Mas eu não queria, Milly! Tu sabes... quero dizer, não sabes; trata-se daquela pessoa que vive para os lados de Jerusalem Buildings.
De pé junto da mesa e mexendo ao acaso nos objectos que sobre ela se achavam, o Sr. Swidger volvia olhares persuasivos a Mrs. William, e mercê de sinais com a cabeça e com o polegar, convidava-a a acercar-se do químico...
— Aquela pessoa que tu sabes, minha querida disse William. — Anda, diz tudo! Não é a palavra que te falta, tu és a obra de Shakespeare, comparada comigo. Sabes quem eu quero dizer... Em Jerusalem Buildings, o estudante.
— O estudante! — repetiu o Sr. Redlaw levantando a cabeça.
— Tal qual eu digo, meu senhor! — exclamou Wil liam cada vez mais pródigo no seu assentimento. — Se não fosse tratar-se do pobre estudante de Jerusalem Buildings, que interesse poderia haver para o senhor Redlaw na narrativa de Mistress William? Vamos, diz lá, o senhor Redlaw está ansioso por te ouvir.
— Eu não sabia — disse Milly com uma franqueza tão isenta de azedume como de enleio —, não sabia que William tinha falado nisto, porque senão não teria vindo. Tinha-lhe pedido que não dissesse nada. É um moço doente, senhor, e muito pobre, ao que parece, que não se achou em estado de ir passar as festas do Natal com a família. O dito moço vive em Jerusalem Buildings, ignorado de todos, numa casa demasiado triste para uma pessoa de bom nascimento. Ora aí está o que é.
— Como é que ninguém me falou ainda nele? disse o químico levantando-se abruptamente da mesa. — Porque não me revelou a sua posição? Doente!
Depressa, o meu chapéu e a minha capa! Que número é a casa?
Por quem é, meu senhor, não pense em visitá-lo! — exclamou Milly largando o braço do sogro e colocando-se diante do Sr. Redlaw muito séria, com as mãos cruzadas sobre o peito.
Que não pense em tal coisa? Como assim?
— Não, meu senhor, não pode ser — respondeu Milly em tom de profunda convicção.
— Mas porquê?
— Porquê — obtemperou William com ar persuasivo e confidencial —, é exactamente o que eu digo: porquê? Vai vossa senhoria sabê-lo. O tal moço pode o senhor Redlaw ficar certo, não confiaria o segredo da sua situação a uma pessoa do sexo masculino. Se Mistress William recebeu as suas confidências é porque não pertence ao nosso sexo. É muito diferente; todos eles depositam confiança nela. Um homem, senhor, não era capaz de arrancar do estudante nem uma sílaba; mas uma mulher, e, demais a mais, Mistress William...
— Há bom senso e delicadeza no que acaba de dizer, William — respondeu o Sr. Redlaw, que, fixando o olhar no casto e sereno rosto de Mistress William, e levando o dedo à boca, meteu uma bolsa na mão da porteira.
— Oh Meu senhor, isso de modo nenhum — exclamou Milly restituindo-lha com presteza. — Isso era ainda pior, Deus me livre!
Mistress William era tão cuidadosa, tão asseada e, no fim de contas, sentia-se tão pouco perturbada, a despeito da vivacidade da sua resposta, que se curvou e começou a apanhar algumas folhas que se Lhe tinham prendido entre a tesoura e o avental e tinham caído no chão no momento em que preparava os ramos de azevinho.
Vendo, quando ergueu o corpo, que o Sr. Redlaw a contemplava com ar de dúvida e de pasmo, repetiu de novo, procurando com os olhos se lhe tinha escapado alguma folha.
— Não! Isso não! Ele disse-me que era vossa senhoria a última pessoa neste mundo de quem quereria ser conhecido ou receber socorros, não obstante ser discípulo do senhor Redlaw. Disto não peço segredo, porque confio na discrição de vossa senhoria.
— Porque disse ele isso?
— Na verdade, não sei — respondeu Milly, volvido um momento de reflexão. — Eu não sou das mais sagazes, como vossa senhoria muito bem sabe; a minha única intenção foi cuidar-lhe do quarto, conservar-lho limpo e arrumado. Depois, pareceu-me que não tinham muito cuidado nele. Mas que escura que está a casa!
De facto assim era. As trevas pareciam juntar-se e tornarem-se mais espessas principalmente por detrás da poltrona do químico.
— Não sabe mais nada a respeito dele?... — perguntou o Sr. Redlaw.
Sei que tenciona casar-se — disse Milly — e que estuda para criar uma posição que lho permita.
Já há muito que ele trabalha demasiado e que passa muitas privações. Mas que escuridão!
— E que frio — acrescentou o ancião, esfregando as mãos —, esta sala tem o que quer que seja de lúgubre faz a gente sentir arrepios. Onde está o meu filho?
William, dá mais luz ao candeeiro e atiça o lume!
A voz de Milly fez-se ouvir novamente como uma doce música, no meio de uma escuridão cada vez maior.
— Ontem de tarde murmurou ele, durante o seu dormir agitado, umas palavras entrecortadas. Tinha-me falado e continuava a falar numa pessoa que tinha morrido, numa grande ofensa que não podia ser esquecida. Se foi a ele ou a outrem, não sei, mas do que estou convencida é que não foi ele que fez o mal.
— Numa palavra — interveio William aproximando-se do professor e falando-lhe ao ouvido —, serei eu a dizer o que Mistress William não seria capaz de dizer, ainda que estivesse aqui até ao outro Natal; Mistress William tem prestado mil e um serviços a esse pobre moço, mas cá em casa não se dá por semelhante coisa. O meu pai é tratado e amimado do mesmo modo. Dou um doce a quem encontrar cá em casa uma palha fora do seu lugar. Dir-se-ia que ela não arreda pé lá de baixo, anda sempre num vaivém contínuo. Entra e sai, sobe e desce; sempre num corropio, tudo para acudir ao pobre estudante. É uma mãe para ele.
A casa estava cada vez mais escura e o frio era cada vez maior; as trevas continuavam a condensar-se por detrás da poltrona de Redlaw.
— Não contente com isto, meu senhor — continuou William —, sai esta tarde e, na volta para casa, não há ainda duas horas, encontra um monstrozinho mais parecido com um animal bravio do que com uma criatura humana: um pequerrucho que tiritava de fome e frio, acocorado num portal. Que faz Mistress William? Agarra nele, trá-lo para aqui, mata-lhe a fome, aquece-o ao lume e lá o tem à espera da distribuição de roupa e alimentos, que costumam fazer todos os anos no dia de amanhã, no hábito da nossa fundação. Quer-me parecer que o rapazote nunca soube o que era o calor de um bom lume, porque está lá em baixo muito encolhido, a um canto da lareira, com os olhos muito esbugalhados como se fosse o nosso lume o primeiro que vê na sua vida. Está lá em baixo — disse o Sr. William corrigindo-se a si próprio—, se é que não voltou outra vez para o mato.
— O céu lho pague e a faça bem feliz — disse o químico erguendo a voz. — Outro tanto lhe desejo, Philippe, e a William também! Vou reflectir no que convém fazer a respeito desse moço. Talvez vá vê-lo mas não quero demorá-los mais. Boa noite!
Obrigado, senhor — disse o velho guarda — obrigado por Milly, por meu filho e por mim. Mas onde está o William? Pega no lampeão, meu rapaz, e alumia-nos por esses extensos e escuros corredores como tens feito os mais anos. Ah Ah Eu não estou esquecido... não obstante os meus oitenta e sete anos. Meu Deus! Permiti que me não faleça a memória. Excelente súplica, senhor Redlaw, a do douto varão de barba pontiaguda, que tem o cabeção ao pescoço e cujo retrato é o segundo da direita, na sala que foi outrora o nosso refeitório, antes de os nossos pobres senhores terem trocado esta residência por uma pensão. Meu Deus, permiti que me não faleça a memória. Bom e piedoso pensamento. Ámen!
Ámen!
Quando eles saíram, fechando com toda a precaução a pesada porta, que, ainda assim, fez ressoar uma prolongada série de ruídos sob as vetustas abóbadas, a casa escureceu ainda mais.
Enquanto o Sr. Redlaw se conservava imóvel na sua poltrona, imerso em meditação, o azevinho apanhado de fresco murchou subitamente; as verdes folhas e as bagas purpurinas penderam, estioladas sobre as hastes. À medida que se condensavam por detrás do professor, onde tão estranhamente se tinham amontoado, não obstante a dupla claridade do candeeiro e do braseiro, as trevas tomaram, demorada e gradualmente, ou, para melhor dizer, destacou -se delas por uma operação sobrenatural, inexplicável aos nossos limitados sentidos, uma forma humana, que era a lúgubre imagem do químico.
O rosto e as mãos tinham a fria e lívida palidez dos defuntos, mas eram exactamente as feições do Sr. Redlaw, os seus olhos brilhantes, os seus cabelos grisalhos, as vestes dele ou a sua sombra. Pavorosa visão, que tinha todas as aparências da realidade palpável, embora se conservasse imóvel e muda; enquanto o químico, com o cotovelo apoiado no braço da poltrona, ruminava tristemente junto do fogo, arrimava-se o seu outro eu ao espaldar da mesma poltrona, com a cabeça pendida sobre a dele, na mesma atitude cismadora, olhando para onde ele olhava e com a mesma expressão de olhos. Era o ente misterioso que atravessara a sala e desaparecera na ocasião em que entrava William para pôr a mesa. Era o temeroso companheiro do homem do espectro...
Durante alguns instantes nem o fantasma deu mostras de ocupar-se do químico, nem o químico de ocupar-se dele. Músicos do Natal tocavam a pouca distância e, no meio das suas cogitações, o Sr. Redlaw parecia prestar atenção à música. O outro parecia fazer outro tanto.
Foi o químico quem quebrou o silêncio mas sem sequer levantar os olhos.
— Ainda aqui? — disse ele.
— Ainda aqui... — replicou o espectro.
— Vejo-te no braseiro — disse o químico —, ouço-te na música, no murmúrio do vento, no meio do lúgubre silêncio da noite.
O espectro fez um sinal afirmativo com a cabeça.
— Porque é que assim me persegues?
— Eu venho quando me chamam — replicou o fantasma.
Não, tu vens sem ser invocado — exclamou o químico.
— Sem ser invocado, seja. Isso pouco importa. O facto é que estou aqui.
Até então a claridade do braseiro alumiara os dois semblantes, se é que se pode dar este nome às feições vaporosas da estranha entidade que se encostava ao espaldar da poltrona. O homem e o espectro continuavam a olhar para o lume, sem atentar um no outro. De súbito, o químico voltou-se e cravou os olhos no espectro, que, mais rápido ainda, passou para diante da poltrona e fitou por seu turno o professor.
Assim, poderia cada um contemplar em vida o seu próprio fantasma, se lhe fosse dado vê-lo antes de baixar à sepultura. Sinistra entrevista numa sala escura e isolada de um velho edifício! O sibilar do vento faz estremecer as vidraças durante a sua misteriosa viagem. Porque donde ele vem e para onde vai, homem nenhum conseguiu ainda sabê-lo, desde que o mundo é mundo! O que é certo é que o seu caminho é alumiado por miríades de estrelas que cintilam através do espaço eterno, onde o nosso globo não é mais que um grão de areia, e a sua velhice uma infância.
— Olha bem para mim — disse o espectro —, eu sou o mísero que, abandonado em verdes anos e submeti do às mais duras provações da pobreza, tive por condenação lutar e sofrer até desentranhar a ciência das profundezas que ma ocultavam para fazer dela a rude escada que os meus pés fatigados não haviam de poder galgar sem se ferir.
— Eu sou esse homem — replicou o químico.
— Para mim — prosseguiu o fantasma —, nem houve carinhos de mãe, nem pai que me guiasse com os seus conselhos! Um estranho veio tomar o lugar de meu pai, quando ainda era menino, e não tardou que me alienasse o coração de minha mãe. Os autores dos meus dias pertenciam quando muito a uma certa classe de pais que se julgam quites para com os filhos desde que acudiram às suas primeiras necessidades físicas, e que os deixam bater as asas o mais cedo possível, como fazem os pássaros. O que não impede que reclamem o mérito das obras deles, se procedem bem, e que se julguem, no caso contrário, com direitos à compaixão dos outros.
O espectro calou-se e deu mostras de querer animar, prender o químico com o seu olhar, a sua maneira de falar e o seu sorriso.
— Eu sou aquele — prosseguiu o espectro — que nessa luta para sair da miséria encontrou um amigo. Granjeei a sua estima, liguei-o a mim! Trabalhámos juntos; caminhámos lado a lado. Todo o afecto, toda a confiança que na minha primeira mocidade não tinham podido encontrar derivativo nem expressão para se expandirem, foram para ele.
— Não é tanto assim — obviou Redlaw com voz cava.
— Não é — confirmou o espectro —, eu tinha uma irmã!
— Sim, Tinha uma irmã — murmurou o químico amparando a cabeça entre as mãos.
O espectro afivelou um sorriso sardónico, reaproximou-se da poltrona de que momentaneamente se afastara, e apoiando por seu turno a barba nos punhos fechados e sobrepostos no espaldar da poltrona, cravou no professor os olhos penetrantes, continuando:
— Os únicos raios de felicidade íntima que alguma vez vi brilhar imanavam de minha irmã. Como ela era linda e como era boa! Ofereci-Lhe partilhar o abrigo do primeiro tecto a que pudesse chamar meu, e a partir desse dia a minha modesta vivenda ocultou o tesouro. Foi como que uma doce luz que veio dissipar as trevas da minha vida. Agora mesmo me parece tê-la diante de mim.
— Sim, acabo de vê-la neste momento, no lume que além arde; ouço-a na música, nos suspiros do vento, no lúgubre silêncio da noite — respondeu o químico.
— E ele amava minha irmã? — perguntou o espectro fazendo-se eco do som meditabundo da voz de Redlaw. — Creio que a amou a princípio, estou certo disso. Pelo que respeita a minha irmã, melhor fora que o não tivesse amado com tanto extremo, que esse amor não estivesse tão radicado nas profundezas da sua alma, que no seu coração houvesse lugar para outros afectos!
Não me avives semelhantes recordações — respondeu o químico com um gesto impaciente e irado —, deixa-me riscá-las da memória!
O espectro permanecia imóvel, com um olhar fixo e cruel cravado em Redlaw.
— Um sonho igual ao dela, sonho de felicidade — prosseguiu ele —, atravessou também a minha vida.
— É verdade — disse Redlaw, suspirando.
— Um amor, tão semelhante ao dela quanto o permitia a inferioridade do meu ser, nasceu no meu peito — prosseguiu o espectro. — A minha extrema pobreza nessa época não me permitia ligar ao meu destino, por quaisquer promessas ou compromissos a que era objecto do meu culto, e comecei, porém, a luta, com mais ardor do que nunca, para conseguir o que tanto ambicionava. Cada palmo que avançava no meu caminho era um novo incentivo para mim. A travessia era rude! Mas, nos intervalos do meu labor dessa época, tinha minha irmã, a doce companheira que não raro vinha sentar-se a meu lado junto das tépidas cinzas do fogo extinto. Ah! Quando o Sol se punha que risonhos quadros o futuro desenhava aos meus olhos!
— Apenas um instante, que eles se me mostraram mais uma vez nas cinzas do braseiro — murmurou o químico. — E agora mesmo se me afigura vê-los deslizar por entre os acordes da música, ao sopro da brisa, no lúgubre silêncio da noite, à aproximação do novo ano. Quadros da minha própria felicidade doméstica, com que inspirava os meus labores! Quadros da felicidade da minha irmã, quando ela era a mulher do meu melhor amigo, sem ter que sofrer na sua delicadeza, porque ele possuía alguns bens de fortuna, e nós ao tempo nada tínhamos! Quadros da nossa idade mais madura, da nossa felicidade comum temperada pela sua própria duração, mas mais doce ainda!
— Quadros das cadeias douradas que haviam de unir-nos a todos e unir também os nossos filhos, anjos queridos que formariam connosco um sonho de venturas! — disse o espectro com um sorriso sardónico.
— Todos esses quadros — interrompeu Redlaw eram outras tantas ilusões. Porque seria eu condenado a tê-los sempre presentes?
— Ilusões, sim — repetiu o espectro com a mesma impassibilidade na voz e no olhar —, porque o amigo a quem me confiei abertamente, insinuando-se entre mim e o objecto de todas as minhas esperanças, de todos os meus esforços, obteve-o para si destruindo para sempre o meu frágil universo. Minha irmã, duplamente querida, duplamente dedicada, e o verdadeiro encanto da casa, viveu o bastante para me ver famoso e satisfeita enfim a minha ambição, cuja motivação já então desaparecera, e em seguida...
— Em seguida finou-se... — interrompeu Redlaw.
— Finou-se mais meiga, mais amorável que nunca, quase satisfeita se não fora a lembrança de deixar o irmão. Basta, basta de recordações!
O espectro olhou para ele em silêncio.
— Se me lembro! — continuou Redlaw. — Lembro-me, sim, lembro-me tão bem dela — já não se referia à irmã — que ainda hoje, volvidos tantos anos, e se bem que nada me pareça mais frívolo, mais quimérico, mais pueril do que esses amores de novela a que sobrevivi, não posso pensar neles sem sentir uma simpatia como a que nos inspiraria se fossem de um irmão mais novo ou um filho. E chego às vezes a perguntar a mim mesmo como poderia nascer uma nova inclinação em favor do meu amigo, convertido em meu rival, nesse coração ligado ao meu por laços sérios, creio eu; mas que importa isso presentemente?
Um infortúnio precoce, um golpe vibrado por mão amiga, uma perda que nada pode substituir, deixam pouca margem na minha memória para estas fúteis cogitações.
— Assim — disse o espectro — abrigo no peito a dor e o ressentimento; é assim que me flagela o meu próprio pensamento; é assim que para esquecer a minha dor e o meu ressentimento consentiria de bom grado em perder a memória.
— Espírito mordaz! — bradou abruptamente o químico erguendo-se com um gesto ameaçador.
Estou farto de ouvir ecoar os teus sarcasmos nos meus ouvidos.
— Guarda-te de levantar as mãos contra mim replicou o espectro. — Morrerias no mesmo instante Redlaw deteve-se e recaiu na sua poltrona, como um homem subitamente acometido de paralisia.
O espectro desviara-se um pouco, alçando por seu turno o braço com ar imperioso. Pelas suas faces lívidas deslizou um sorriso de triunfo.
— Para esquecer a minha dor e o meu ressentimento — repetiu ele perfeitamente erecto — consentiria de bom grado em perder a memória.
— Tu és o meu espírito mau — disse Redlaw, em voz baixa e trémula —; a minha existência é atormentada pelo murmúrio incessante da tua voz.
— A minha voz não é mais do que um eco do teu pensamento — retorquiu o espectro.
— Se não é mais do que o eco do meu pensamento, como agora sucede, por que razão sou assim atormentado? O meu pensamento não é egoísta, não se restringe ao limitado círculo da minha personalidade. Todos os homens, todas as mulheres têm as suas mágoas, a maior parte tem os seus ressentimentos. A ingratidão, a sórdida inveja, o interesse egoísta assaltam-nos em todas as épocas da vida. Quem não quereria esquecer os pesares e as injúrias?
Quem não ficaria mais feliz? Quem, na realidade, não deixaria de ganhar com isso?
— Estas revoluções de anos que festejamos — prosseguiu Redlaw —, que lembram? Que espírito há aí a que não acuda uma dor, uma saudade? As próprias memórias do velho que há pouco aqui estava não são, por mais que ele diga, senão um amontoado de desgostos e de dificuldades.
— As inteligências vulgares — disse o espectro com o seu diabólico sorriso —, os espíritos incultos não compreendem nem discorrem a semelhante respeito, como os homens de um critério superior, de um saber profundo.
— Tentador — interrompeu Redlaw —, que queres tu de mim? Os teus olhos vidrados, a tua soturna voz apavoram-me de um modo indizível, e nesta mesma ocasião em que estou a falar não sei que pressentimento de maiores desventuras me inspiras. Ouço novamente o eco do meu próprio pensamento.
— Considera-o como uma prova do meu poder — respondeu o espectro. — Agora escuta o que te vou propor: queres esquecer todas as tuas mágoas, todos os agravos de que tens sido vítima, todos os maus dias que tens passado?
— Esquecê-los? — repetiu Redlaw.
— Eu posso apagá-los da tua reminiscência, posso deixar apenas no teu espírito vestígios vagos, confusos, que desaparecerão em breve. Fala! Está combinado?
— Suspende — exclamou Redlaw, detendo com um gesto de terror a mão do espectro, erguida como que para um esconjuro. — Desconfio, duvido de ti; o vago terror que pões no meu peito converte-se de súbito num horror sem nome que mal posso suportar.
Eu não queria despojar-me de reflexão alguma salutar e benévola para os meus semelhantes, de nenhuma simpatia útil para mim ou para os outros. Que propões? Que mais coisas se apagarão da minha memória?
Não se apagará a ciência, nem nenhum dos resultados do estudo, mas tão-somente a emaranhada cadeia de sentimentos e associações que dependiam até aqui, cada uma por sua ordem, das recordações doravante banidas e de que também se alimentava. Eis o que perderás.
— Essas recordações são assim tão numerosas? perguntou Redlaw, sobressaltado perante as suas reflexões.
— Pois não se te mostravam elas no braseiro, na música, no murmúrio do vento, no lúgubre silêncio da noite, nas revoluções do ano? — respondeu o espectro com desdém.
E só perderei isso?
O espectro não respondeu.
Mas depois de se conservar por momentos imóvel e silencioso diante dele, aproximou-se do fogo, parou novamente e disse:
— Decide-te enquanto é tempo!
— Um instante! — exclamou Redlaw —, tomo o céu por testemunha de que nunca fui misantropo, nem rude nem indiferente para os outros. Se vivendo aqui no isolamento fiz demasiado caso, talvez, de tudo quanto foi, ou podia ser, e muito pouco do que é o mal, creio, o mal foi para mim e não para os outros. Mas se me sentisse envenenado e possuísse antídotos seguros cuja virtude conhecesse, não faria uso deles? Se o veneno está no meu espírito e este espectro temeroso tem o poder de o debelar, porque hei-de repelir o que me propõe?
— Responde — disse o espectro —, está combinado?
— Mais um instante! — respondeu Redlaw violentamente agitado. — Sim, muitas vezes tenho dito e repetido: queria esquecer o passado, se fosse possível! Serei eu porventura o único homem que pensou assim, não terá sucedido outro tanto a milhares de seres semelhantes a mim, de geração em geração? Que homem haverá cuja memória não esteja sobrecarregada de dores e de saudades? A minha é como a dos demais, mas aos demais não se ofereceu o que a mim se me oferece. Consinto, pois quero esquecer as minhas dores, as minhas injúrias, as minhas saudades.
— Responde — disse o espectro —, está acordado?
— Está acordado.
Perfeitamente, escuta agora o que vou ainda dizer antes de te deixar para sempre: o dom que te concedo, hás-de comunicá-lo a todos com quem te achares em contacto, sem que tu próprio possas recuperar jamais a faculdade da reminiscência de que voluntariamente acabas de despojar-te. A tua ciência levou-te à convicção de que a reminiscência das penas, das injúrias, dos infortúnios é herança do género humano, e de que tu serias mais feliz se as outras recordações não fossem empeçonhadas por aquela.
Segue pois o teu caminho! Sê o benfeitor da humanidade! Livra-te de semelhante memória; espalha embora involuntariamente, em volta de ti, o benefício do esquecimento. A sua propagação será doravante uma virtude inseparável, inalienável da tua natureza. Vai, goza e sê feliz do bem que alcançares para ti próprio e que fizeres aos outros.
O espectro, que conservava a mão lívida estendida sobre a cabeça de Redlaw, enquanto falava, como se se tratasse de uma esconjuração mágica ou de um exorcismo, e que gradualmente aproximara por tal forma os olhos dos do químico que este pôde ver que a sua expressão nada tinha de comum com o medo! o espectro, vínhamos dizendo, desapareceu.
Redlaw parecia ter criado raízes no lugar onde se achava, parecia-lhe ouvir ao longe as palavras do espectro: O dom que te concedo, hás-de comunicá-lo a todos com quem te achares em contacto.
De súbito, ecoou-lhe aos ouvidos um grito dilacerante; esse grito não vinha dos sombrios corredores para onde abria a porta, mas de outra parte do velho edifício, e parecia ser o de uma pessoa perdida na escuridão.
Redlaw olhou rapidamente para si próprio, mirou os pés e as mãos como que para se certificar da sua própria identidade, e soltou também um grito penetrante e quase selvático, porque se apoderou dele um grande pavor; é que também se via perdido no seu caminho neste mundo.
Como o primeiro grito se fizesse ouvir novamente e mais perto, o químico pegou no candeeiro e levantou um espesso reposteiro que ocultava uma porta por onde costumava passar ao anfiteatro onde fazia as suas prelecções e que ficava contíguo ao seu quarto. Cheio de mocidade e de animação às horas em que as bancadas povoadas de ouvintes ofereciam o espectáculo, por assim dizer, de uma escadaria de cabeças a que ascendia a palavra e o espírito do sábio professor, o mesmo anfiteatro tinha agora o aspecto de uma vasta catacumba.
— bradou ele. — Por aqui Guie-se pela luz Enquanto o químico levantava com uma das mãos o reposteiro e erguia na outra o candeeiro, diligenciando enxergar nas trevas que envolviam o anfi- teatro, passou rapidamente junto dele um pequeno vulto que, irrompendo no quarto, foi enroscar-se no recanto mais escuro.
— Que é aquilo? — exclamou Redlaw estupefacto. A mesma pergunta podia ele repetir depois de atentar no objecto da sua surpresa, do qual aproximou logo a luz e que se conservava muito encolhido no seu canto.
Viu então um rolo de trapos seguro por mão do feitio e dimensões da de uma criança, mas cujos tendões muito pronunciados e cujos dedos enclavinha dos se assemelhavam aos de um velho avarento ou às garras de uma ave de rapina. O rosto redondo e suavemente contornado do rapazito, porque era um rapaz, indicava cerca de seis anos, mas a experiência antecipada da vida tinha-lhe retesado e por assim dizer contorcido o semblante. Os seus pés descalços, mas formosos, sob o ponto de vista da sua delicadeza infantil, estavam cheios de gretas, sujos de lama e de sangue! Era um selvagenzinho da civilização, um pequenino monstro na ordem social, uma criança que nunca tivera infância, uma criança repelida de todos, que poderia viver o bastante para atingir a forma exterior de um homem, mas que interiormente havia de viver e morrer como vivem e morrem os brutos.
Acostumado já a ser maltratado e acossado como uma fera, o pequenito conservava-se agachado, muito encolhido ao canto da casa, enquanto Redlaw o observava em todos os sentidos, e tinha já o bracito levantado para aparar o pontapé ou o murro esperados.
— Se me bate, mordo-lhe! — exclamou ele.
Pouco tempo antes, tempo que expirara havia apenas alguns minutos, semelhante espectáculo não deixaria de confranger o coração do químico. Mas agora contemplava-o impassível; após um penoso esforço para se lembrar do que quer que fosse, não sabia de quê, perguntou ao pequeno o que fazia ali e de onde vinha.
— Onde está a mulher? — respondeu o rapaz. Quero ir para a mulher.
Qual mulher?
— A mulher que me trouxe para esta casa e me fez sentar perto de uma grande lareira. Como saiu e se demorava muito, fui à procura dela e perdi-me. Não é você que eu quero, é a mulher.
E deu um salto tão súbito e inesperado para fugir que, quando Redlaw o pôde segurar pelos andrajos, já ele estava ao pé da porta.
— Largue-me — disse o rapaz, debatendo-se e rangendo os dentes —; largue-me; eu não lhe fiz nada, deixe-me ir à procura da outra.
— Não é por aí o caminho. Há outro mais curto — disse Redlaw segurando-o sempre e diligenciando debalde evocar memórias do passado que tivessem uma relação qualquer com aquele monstruoso objecto. — Como é o teu nome?
— Eu não tenho nome.
— Onde moras?
Morar!? Que vem a ser isso?
O pequeno afastou os cabelos que lhe caíam para a cara, ergueu um rápido olhar para o químico, e agarrando-se-lhe às pernas e sacudindo-o como se tivesse esperanças de o derrubar, bradou novamente:
— Largue-me, ande, quero ir ter com a mulher.
O químico conduziu-o à porta.
— É por aqui — disse-Lhe ele com o mesmo ar de pasmo, mas com fria repugnância. — Vou levar-te à mulher.
Os olhos penetrantes, engastados como carbúnculos na cara do pequeno, continuavam a perscrutar toda a casa. De súbito fixaram-se na mesa e nos restos do jantar.
— Deixa-me levar aquilo? — perguntou ele com violenta sofreguidão.
— Ela não te deu de comer?
— Deu. Mas amanhã? Eu tenho fome todos os dias.
Apenas se viu solto, o pequeno correu à mesa e, com a agilidade de um carnívoro, agarrou os restos do pão e da carne e, estreitando-os ao peito por de baixo dos andrajos, ajuntou:
— Agora leve-me à mulher!
Quando o químico, repugnando-lhe já pegar na mão do pequeno, lhe fazia, com ar severo, sinal para que o acompanhasse, e ia cruzar o limiar da porta, foi acometido de um estremecimento repentino e de teve-se:
O dom que te conferi acompanhar-te-á para onde quer que vás, e comunicar-se-á a todos aqueles com quem te achares em contacto. O vento murmurava-lhe ao ouvido as palavras do espectro e o seu sopro gelava-o.
Não irei lá esta noite — disse ele em voz baixa consigo mesmo. — Não irei a parte alguma, e, voltando-se para o pequeno, disse:
— Vais sempre a direito por este corredor fora e quando chegares ao portão que dá para o pátio logo verás através dos vidros o clarão.
— Do braseiro da mulher? — perguntou o rapazinho.
O químico fez um sinal afirmativo. Não foi preciso mais: o pequeno deitou a correr e desapareceu em breve no extenso corredor de abóbada em cujo lajedo mal parecia pôr os pezitos.
Voltando para o seu quarto com a luz, o Sr. Redlaw fechou a porta de chofre, deixou-se cair na sua poltrona e escondeu a cara entre as mãos, como um homem horrorizado de si próprio.
Agora é que ele estava verdadeiramente só, sozinho no mundo.
COMO O DOM SE PROPAGA
Era Jerusalem Buildings.
Num compartimento separado de uma lojita por um pequeno biombo, à guisa de tabique, forrado de jornais, estava sentado um homúnculo, em volta do qual se agitavam tantos rapazes quantos o leitor quiser imaginar, e não é muito que assim o digamos, tal era o efeito do seu número naquela limitada esfera de acção.
De todo este bando, já dois, mercê de alguma estranha decisão, se achavam deitados a um canto, onde poderiam dormir muito a seu modo o sono da inocência, se não fora uma propensão inata para se conservarem a pé e para se mostrarem tão turbulentos na cama como fora dela. O objectivo imediato das excursões destes últimos ao campo dos que estavam a pé era uma muralha de cascas de ostras ergui da a outro canto, por dois rapazes quase da mesma idade. Esta fortificação era sem cessar insultada por eles como o fora a famosa Muralha de Adriano pelos Pictos e Escandinavos, bárbaros que a maior parte dos moços bretões, no começo dos seus estudos históricos, não amaldiçoam menos do que os amaldiçoaram os seus antepassados. O inimigo retirava-se em seguida para o seu território.
À parte o tumulto resultante destas incursões e do retorno ofensivo dos construtores da muralha de cascas de ostras, que repeliam com o maior denodo os invasores e lhes vibravam frequentes golpes através dos cobertores sob os quais eles se refugiavam, paga va outro garoto o seu tributo à desordem geral, arremessando para o meio dos combatentes os sapatos e outros objectos inofensivos em sua essência, mas de uma substância cuja dureza não deixava de ser percuciente para os perturbadores do seu descanso, os quais, varejados por esta novíssima artilharia, tratavam logo de seguida de retribuir o cumprimento. Outro rapazinho, o mais velho dos que naquela ocasião se reuniam sob o tecto paterno, passeava de cá para lá, todo inclinado, tropeçando a cada passo e sentindo vergarem-se-lhe as pernas sob o peso de um robusto bebé que lhe deslocava o centro de gravidade. Por um hábito em voga nas famílias que enchem os filhos de mimo, era caso assente que o pequeno havia de adormecer o bebé passeando-o; mas as regiões ilimitadas da contemplação sonolenta mal se abriam aos olhos escancarados do pimpolho, que espreitava por cima do ombro do seu condutor sem que este desse por isso.
O referido pimpolho era um verdadeiro Moloch, em cujo altar desumano era diariamente sacrificada a existência do irmão. As duas personalidades fundiam-se numa só, visto que a de Johnny Tetterby, nome do carregador, se achava absorvida pela do outro. Em consequência, não podia nunca estar à sua maneira, nem conservar-se cinco minutos no mesmo sítio, e muito menos dormir às horas costumadas, isto é, quando mais carecia de repouso.
O pimpolho confiado aos cuidados de Tetterby era tão conhecido na vizinhança como o carteiro ou como o homem da cerveja. Andava de porta em porta nos braços de Johnny, que tinha de sentar-se a cada instante nos degraus; formava na cauda dos bandos de gaiatos que seguiam pelotiqueiros e os macacos dos homens de realejo; o desditoso Johnny chegava, porém, sempre derreado e quando já tinha acabado o espectáculo, isto desde segunda-feira pela manhã até sábado à noite.
Em todos os sítios onde os rapazes se reuniam para brincar lá aparecia Moloch nos braços da sua vítima. Quando Johnny queria demorar-se nalguma parte, começava Moloch a chorar para o levarem dali. Quando Johnny queria sair, adormecia Moloch e era preciso ficar a guardá-lo. Acontecia, pelo contrário, que Johnny queria estar em casa, despertava Moloch e lá tinha Johnny que ir passeá-lo. A despeito de tudo isto o pobre Johnny tinha Moloch na conta de uma criança modelo, sem segunda no reino de Inglaterra; e dava-se por muito satisfeito de ver tudo furtivamente, por cima ou por baixo do seu fardo, das roupas e da enorme touca do pimpolho, e de andar, aqui caio, além me levanto, num passo arrastado, como um mocito a quem se confiasse um fardo extremamente pesado para as suas forças e que, por falta de endereço, não pudesse descarregá-lo em par te alguma.
O homenzinho que estava sentado na saleta e envidava inúteis esforços para ler o seu jornal no meio daquele motim era o pai desta interessante família e o dono do estabelecimento, designado na tabuleta que se via por cima da porta da loja pela razão social Tetterby & C. a, vendedores de jornais. Rigorosa mente falando ele era a única personagem em que se consubstanciava aquela designação: Companhia. não passava de uma pura abstracção poética, impessoal, intangível.
O Sr. Tetterby tinha tentado fortuna em outros ramos de comércio e vendera brinquedos para crianças, porque num frasco via-se um grupo de peque ninas bonecas de cera, pegadas umas às outras, numa confusão deplorável, com os pés para cima e a cabeça para baixo, e no fundo do recipiente jazia, para nos servirmos de uma expressão química, um precipitado de braços partidos e de pernas quebradas. Um dia lembrou-se também o Sr. Tetterby de fazer concorrência às modistas do sítio, mas alguns chapéus de há muito fanados e de formas insólitas guardados a um canto do balcão atestavam que mal sucedido fora neste negócio. O Sr. Tetterby quisera vender tabaco, e para atrair os fregueses pusera um cartaz da parte de fora da loja representando um indígena de cada um dos três reinos, como se estivessem a consumir a odorífera planta. Uma legenda poética inteirava os transeuntes de que aqueles três súbditos do Império Britânico, tendo-se reunido para passar agradavelmente um bocado de tempo, acabaram um por fumar, outro por mascar e o terceiro por tomar rapé; mas todas estas alegorias só serviram de chamariz às moscas. Numa certa época Tetterby pôs uma esperança suprema na bijuteria de imitação, e era assim que ainda se viam num armário dois cartões cobertos de lapiseiras e de pequenos sinetes, com um misterioso amuleto preto, pelo ínfimo preço de nove pences. Infelizmente, até àquela data, as gentes de Jerusalem Buildings tinham resistido heroicamente a semelhantes tentações e, em resumo, o Sr. Tetterby, que tanto labutara e diligenciara estabelecer-se solidamente no sítio, via tão mal compensados os seus esforços que a melhor posição na sociedade comercial representada pela firma Tetterby & C. era, evidentemente, a de Companhia, criação incorpórea, não sujeita aos vulgares inconvenientes da fome e da sede; Companhia não tinha que pagar décimas nem licenças; Companhia não tinha um bando de filhos a sustentar.
Voltemos, porém, junto de Tetterby, que deixámos sentado à mesa no seu gabinete, e que fazia por se abstrair da sua prole, cuja presença real se manifestava de um modo tão ruidoso que não lhe permitia ler o jornal. Obrigado a renunciar à leitura, Tetterby depôs o papel com ar pensativo e distraído e começou a andar em volta da casa como um pombo-correio indeciso quanto à direcção que há-de tomar.
Depois de tentar debalde sacudir um ou dois dos traquinas que andavam às carreiras por detrás dele, em fralda de camisa, e que se lhe esgueiravam como ratos, voltou-se contra o único membro inofensivo da família e aqueceu as orelhas do pobre Johnny.
— Filho ingrato — disse ele —, é esta a contemplação que tens pelo pai, extenuado pelas fadigas e pelas intempéries de um rigoroso dia de Inverno. Desde as cinco horas da manhã que ele está a pé! Não tens vergonha de lhe perturbar os únicos momentos de descanso e de lhe empeçonhar a leitura das últimas notícias com as tuas execrandas maldades! Não basta que o teu irmão ande todo o dia lá por fora ao frio e à chuva, para o senhor ficar aqui nesta moleza, tendo por único cuidado tomar conta dessa criança — prosseguiu Tetterby, que via na missão confiada a Johnny um paraíso na terra. — Queres fazer um inferno desta casa? Queres enlouquecer os teus pais? Diz.
A cada uma destas perguntas, o Sr. Tetterby fazia menção de puxar as orelhas a Johnny, que ficava quite com o susto: uma inspiração melhor detinha a mão paterna.
— Eu não estava a fazer nada, pai — respondeu o arre-burrinho de Moloch com lágrimas na voz. Andava a ver se adormecia a Sally!
— A minha mulherzinha demora-se! — murmurou Tetterby no seu tom habitual, arrependido daquele primeiro ímpeto. — Tomara já vê-la em casa! Não me entendo com estes rapazes, fazem-me andar a cabeça à roda, não sei o que digo nem o que faço. Oh! Johnny, estarás ainda descontente com a tua irmãzinha, com essa jóia confiada à tua guarda e aos teus cuidados? Vocês eram sete, Johnny, sete rapazinhos e nem uma só menina. Outros pais talvez tivessem parado no sétimo ou talvez antes, mas a vossa mãe quis arrostar mais uma vez com as dores da maternidade para nos dar a todos em geral e a ti, Johnny, em particular, essa irmãzinha, esse lindo amor, e é assim que nos pagam, fazendo um motim destes desde a manhã até à noite?
Serenando gradualmente ao mesmo tempo que a reflexão actuava nos seus bons sentimentos naturais, e compreendendo como fora injusto para Johnny, o Sr. Tetterby acabou por lhe dar um beijo e pôs-se à espreita dos verdadeiros culpados. Não tardou que surgisse nova escaramuça, e que, em seguida a uma breve mas rápida perseguição, depois de rebuscar as camas e o terreno, o Sr. Tetterby conseguisse agarrar, no meio dos desfiladeiros formados pelas cadeiras e pelos bancos, um dos diabretes mais turbulentos, que fez recolher à cama depois de lhe aplicar uma boa correcção.
Este exemplo exerceu a influência desejada e por assim dizer magnética no traquinas que atirava com os sapatos à cabeça dos perturbadores do seu descanso, e que era ao mesmo tempo o mais assanhado da refrega. E não foi também inútil para os dois arquitectos da muralha, que se refugiaram num cubículo contíguo, onde dormiam. O companheiro daquele cuja retirada fora cortada voltou também discretamente para a cama, e o Sr. Tetterby, que retomava alento e se preparava para recomeçar a perseguição? viu-se, com grande surpresa sua, no meio de uma cena de silêncio e de paz.
A minha Sophie, se estivesse em casa, não procederia melhor — disse ele enxugando as camarinhas de suor que lhe afloravam a testa. — Em todo o caso, preferia que fosse ela quem se tivesse encarregado desta tarefa!
Não se iludindo com os resultados da sua vitória momentânea, e sabendo perfeitamente que os filhos só tinham um olho fechado, o Sr. Tetterby procurou entre os papéis pendentes do biombo algum fragmento de jornal apropriado ao caso e que pudesse calar no ânimo dos seus ouvintes. E leu o seguinte:
É facto incontestável que todos os homens ilustres têm tido mães ilustres, as quais reverenciaram sempre como as suas melhores conselheiras.
— Lembrem-se pois, também, meus filhos, da vossa digna mãe — ajuntou o senhor Tetterby —, e considerem devidamente as suas virtudes enquanto a tendes convosco.
Após a leitura deste trecho tão felizmente comentado, sentou-se outra vez junto do fogo, cruzou as pernas e pegou no jornal. Antes porém de começar a leitura das últimas notícias, julgou conveniente fazer uma espécie de proclamação:
— A bom entendedor meia palavra basta. Se algum sair da cama terá de se haver comigo, e não será pequena a surpresa que eu reservo a este respeitável contemporâneo — o jornal que ia ler, expressão visivelmente pedida ao jornalismo inglês e respigada, sem dúvida, como muitas outras, da tapeçaria do biombo! — Johnny, tem muito cuidado com a tua irmã, porque na verdade te digo que é a jóia mais brilhante que tem resplendido na tua fronte juvenil, é o mais belo florão da tua coroa.
O pobre Johnny, sentado num escabelo, vergava denodadamente ao peso de Moloch.
— Que tesouro tens aí, Johnny, e muito grato te cumpre ser àqueles de quem o recebeste! A maior parte das pessoas, Johnny — era uma nova citação recolhida no repositório do biombo —, ignora, embora não deixe de ser um facto averiguado e rigorosa mente estabelecido nos boletins de mortalidade, que de cem crianças uma grande parte não chegam aos dois anos, isto é...
— Por quem é, meu pai, não diga isso! — exclamou Johnny em tom suplicante. — Não posso suportar tal ideia quando penso na nossa querida Sally.
O Sr. Tetterby renunciou a concluir a oração e Johnny enxugou os olhos e continuou a embalar Moloch nos joelhos, com um sentimento mais profundo da sua missão.
— O teu irmão Dolphus — prosseguiu o pai atiçando o lume — demora-se. Provavelmente vem enregelado. E tua mãe?
Parece que vêm aí a mamã e o Dolphus! — exclamou Johnny.
— Não te enganas! — respondeu o Sr. Tetterby pondo-se à escuta. — Efectivamente, são passos da minha mulherzinha.
O modo de indução, em virtude do qual o digno comerciante de jornais chegara a adoptar aquele diminutivo, é um segredo que ele infelizmente nunca revelou. A verdade é que Mrs. Tetterby dava bem duas edições do marido. Considerada em absoluto, tornava-se já notável pela sua robustez e corpulência; mas, em comparação com o marido, as suas dimensões tornavam-se estupendas, e não perdiam um ápice dessa majestosa proporção no meio dos sete rapazes, todos eles de estatura liliputiana. Sally era a única excepção à regra. Mrs. Tetterby reproduzira-se enfim, completamente na filha, à qual só faltava o desenvolvimento dos anos; e ninguém melhor sabia quanto esse desenvolvimento era mais rápido do que o pobre Johnny, condenado a toda a hora a tomar o peso ao ídolo.
Mrs. Tetterby vinha da praça trazendo enfiado no braço um enorme cabaz de cujo peso se aliviou logo à entrada, contentando-se, quanto ao xaile e ao chapéu, em deitá-los para trás. Em seguida sentou-se e, como viesse muito fatigada, ordenou a Johnny que lhe trouxesse o seu anjinho, que estava ansiosa por abraçar e beijar. Johnny prontificou-se com a presteza possível a satisfazer este desejo, depois do que voltou resignadamente para o seu poiso com Moloch nos braços. Mas o menino Adolphus Tetterby, que conseguira por fim libertar-se de um interminável cachecol de algodão coberto de pequenos prismas de neve, pediu igual favor.
O pobre Johnny acabava de sentar-se pela segunda vez quando o Sr. Tetterby, subitamente iluminado, reclamou por seu turno o mesmo privilégio, fazendo valer o seu título de pai.
A satisfação deste terceiro pedido extenuou o pobre Johnny, que mal teve forças para voltar para o seu banquinho, onde se deixou cair volvendo súplicas de olhos aos seus estimáveis progenitores.
— Vê lá, Johnny — disse Mrs. Tetterby meneando a cabeça —, haja o que houver tem sempre o maior cuidado com a tua irmã, senão nunca mais olhes para mim!
— Nem para mim — corroborou Adolphus.
— Nem para o teu pai — ajuntou o Sr. Tetterby. Muito receoso de assim se ver renegado por toda a família, Johnny examinou os olhos de Moloch a ver se tudo ia bem até àquele momento; restabeleceu artisticamente, com leves palmadas entremeadas de carícias, a posição normal de Sally, que tinha as costas mais altas que a cabeça, e continuou a embalar a irmã nos joelhos.
— Estás molhado, Dolphus? — perguntou o chefe da família. — Senta-te na minha cadeira e enxuga-te ao braseiro.
Muito obrigado, pai, eu não estou molhado — respondeu Adolphus, sacudindo a neve do fato. — E a cara, não está muito branca?
— Pareces uma figura de cera — respondeu o Sr. Tetterby.
Que quer, é do tempo — disse Adolphus esfregando as faces com a manga luzidia da jaqueta. — A chuva, a geada, o vento, a neve é que fazem isto!
O primogénito do Sr. Tetterby estava também no jornalismo mas estipendiado por uma casa mais próspera que a de Tetterby & C. a A sua ocupação consistia em vender jornais numa estação de caminho de ferro, onde com as suas formas roliças e as suas faces rubicundas fazia lembrar um cupido disfarçado em boémio de Londres e onde a sua vozinha penetrante (ele não tinha mais de dez anos) era tão conhecida como o silvo roufenho das locomotivas. A sua alegria juvenil dificilmente podia encontrar por onde expandir-se nesta precoce aplicação ao comércio, mas o nosso Adolphus descobrira felizmente um meio de se divertir e de repartir o dia em períodos de igual interesse sem descurar a sua tarefa. Esta engenhosa invenção, notável como muitas grandes descobertas pela sua extrema simplicidade, consistia em variar a primeira vogal da palavra jornal substituindo, nas diferentes fases do dia, todas as restantes pela sua ordem gramatical. Era assim que, antes de romper o dia, no Inverno, ele passeava de cá para lá com o seu chapéu e a sua capa de oleado, envolto no enorme cachecol, atroando os ares com este primeiro grito: Mor-ning paper!, que mudava, uma hora antes do meio-dia, para o de Mor-ning pep-per!, o qual se convertia cerca das duas horas, em Morning piip-per! Este novo pregão metamorfoseava-se, duas horas depois, no de Mor-ning pop-per, para declinar depois com o sol acabar por uma múltipla substituição de letras em: Eve-ning pup-per!, com grande alívio e não menos conforto do intelecto do infantil vendedor.
Havia já alguns instantes que Mrs. Tetterby, que, como dissemos, se sentara contentando-se com deitar para trás o xaile e o chapéu; fazia girar com ar pensativo o anel nupcial que tinha no dedo. De súbito, levantou-se, tirou o chapéu e o xaile e, depois de os guardar, começou a pôr a mesa.
"Jornal da manhã. Jornal da tarde".
— Ah Meu Deus, meu Deus — disse ela. — Assim vai o mundo!
— Como é então que vai, minha querida?
— Ah!, não é nada — respondeu Mrs. Tetterby. O marido carregou o sobrolho, voltou a folha do jornal e relanceou os olhos pelas colunas da nova página, mas a sua atenção não se fixava em parte alguma, o seu espírito vagueava por outras regiões. O Sr. Tetterby não lia.
Entretanto Mrs. Tetterby punha a mesa com uns modos tão insólitos que mais parecia ter em vista exercer uma vingança contra o desventurado móvel: espicaçava-o com os garfos e com as facas, esbofeteava-o com os pratos, entornava o sal por cima da toalha, como o inimigo fazia outrora nas cidades condenadas a não mais surgirem dos seus escombros; atirava, enfim, com o pão como quem atira com uma bomba.
— Meu Deus Meu Deus — repetia ela. — Assim vai o mundo!
Parece-me — observou o marido, olhando nova mente em redor — que já tinhas dito isso. Como vai então o mundo?...
Não é nada! — retorquiu Mrs. Tetterby.
— Sophia! — replicou o marido em tom de respeitosa admoestação. — Isso também já tu disseste.
— Pois torno a dizer, embora Lhe desagrade. Não é nada, e não é nada! Fica inteirado?
O Sr. Tetterby ergueu os olhos para a sua cara-metade e, com ingénuo pasmo, perguntou-lhe carinhosamente:
— Que é isso, Sophia, quem te pôs nessa exaltação?
— Não sei, não mo perguntes. Quem te disse que estou exaltada? Eu não fui, com certeza.
Tetterby & C. a convenceu-se de que não era ocasião propícia para ler o jornal, e começou a passear à roda da casa, com as mãos nas costas e a cabeça enterrada nos ombros; o seu procedimento estava perfeitamente de acordo com a resignação expressa na seguinte comovedora alocução: A tua ceia está pronta, Dolphus; foi tua mãe quem saiu a comprá-la, apesar do mau tempo; não há como ter uma mãe, não é verdade? Tu também hás-de ter o teu quinhão, Johnny. Estou muito contente contigo, quero recompensar os cuidados que tens com o tesouro confiado à tua guarda. Sem nova exclamação, mas com uma animosidade visivelmente menor contra a mesa, Mrs. Tetterby terminou os seus preparativos e tirou do vasto cabaz um grande pedaço de bolo ainda quente e uma terrina com a respectiva tampa, após o que se espalhou na casa um cheiro tão agradável que os três pares de olhos que brilhavam nas duas camas abriram-se às escâncaras e cravaram-se no repasto.
O Sr. Tetterby parecia não fazer caso daquele tácito convite para se sentar à mesa, e repetia lenta e solenemente:
— Sim, sim, a tua ceia está pronta, está aqui, está pronta, Dolphus. Foi tua mãe quem saiu a comprá-la apesar do mau tempo. Não há como ter uma mãe, não é verdade?
Mrs. Tetterby, que já tinha dado vários indícios de contrição, lançou os braços em volta do pescoço do marido e desatou a chorar.
— Meu querido esposo, a tua mulherzinha afligiu-te, fez com que já não tenhas vontade de comer.
Esta reconciliação dos autores dos seus dias comoveu por tal forma o menino Adolphus e seu irmão John que ambos, como se estivessem combinados, soltaram um grito de alegria tão atroador que o seu efeito imediato foi fecharem-se os três pares de olhos que brilhavam nas duas camas, e fugirem em debandada os outros dois garotos, que saíam nesse momento da sua alcova à espreita de festim em perspectiva.
Em verdade, Dolphus — suspirou Mrs. Tetterby —, quando entrei sentia a mente como a de uma criança que ainda não viu a luz do dia.
Esta comparação parece que não agradou ao Sr. Tetterby, que emendou:
— Diz antes que estavas tão longe como a nossa querida Sally...
— Seja. Estava tão longe, como esse anjinho, de querer magoar-te — respondeu Sophia Tetterby. Johnny, não olhes para mim, olha para a menina, se não cai e mata-se. Tu morrerias também de remorsos, e era justo. Pois como te ia dizendo, estava tão longe de querer afligir-te, como a nossa querida Sally.
E, sem dizer mais, Mrs. Tetterby começou outra vez a dar voltas ao anel nupcial.
— Vejo o que foi — exclamou o Sr. Tetterby. Compreendo! A minha mulherzinha teve alguma contrariedade e, sem querer, saiu fora de si. Os tempos são duros, o Inverno castiga e o trabalho também! Depois, a paciência tem limites. Compreendo perfeitamente, minha querida Sophia, não falemos mais nisso! Dolphus — prosseguiu o Sr. Tetterby explorando a terrina com um garfo —, a tua mãe não saiu debalde; e fora o bolo, trouxe um pernil de porco, que não me parece muito descarnado, e o competente conduto, molho e mostarda à discrição! Chega o teu prato, e come enquanto está quente.
O interpelado, que não carecia de segundo convite, recebeu o seu quinhão com os olhos rutilantes de apetite e, retirando-se com o prato para o seu lugar, atirou-se à ceia com unhas e dentes. Johnny não foi esquecido, mas recebeu a sua ração numa fatia de pão, com medo que salpicasse Moloch, se lhe confiassem um prato cheio de molho. Foi-lhe igualmente recomendado pela mesma razão que embrulhasse o seu bolo num bocado de papel e que o guardasse na algibeira enquanto comia o primeiro prato.
O pernil podia estar mais revestido de carne, sendo mais que certo que o caixeiro a não poupara no serviço de outros fregueses. Mas o adubo era ilimitado e, à falta do principal acessório, iludia agradavelmente o quarto sentido fazendo lembrar até as delícias da carne. O bolo, o molho e a mostarda tinham o mesmo privilégio. Eu não sou a rosa mas tenho vivido junto dela, diz o rouxinol do conto oriental.
Em resumo, no festim, em geral, imperava o gosto da carne de porco, com o seu aroma, aroma tão irresistível que os Tetterby, que fingiam de adormecidos nas suas camas, arrastaram-se às escondidas dos pais até onde estavam Johnny e Adolphus e fizeram um apelo à sua simpatia fraternal e gastronómica. Os dois mais velhos tinham um coração em que não cabia a avareza. Resultou daí acudirem os outros irmãos em fralda de camisa e recomeçar a refrega com tal ardor que o Sr. Tetterby se viu por umas duas vezes na necessidade de dar uma carga a fundo, carga a que eles não puderam fazer frente e que os obrigou a abandonar o campo em debandada. Mrs. Tetterby não estava em maré de cear sossegadamente; no seu espírito agitava-se o quer que fosse de grave. Ora ria sem motivo, ora chorava sem razão, isto quando não ria e chorava ao mesmo tempo, de um modo tão estranho que o marido não sabia que pensar.
— Minha querida — disse ele —, se é assim que vai o mundo parece-me que vai muito mal: se continuas a rir, a chorar e a comer, tudo ao mesmo tempo, arriscas-te muito a engasgar-te.
— Dá-me uma gota de água — respondeu Mrs. Tetterby lutando contra si própria — e não me fales agora, faz de conta que eu não estou aqui. É o melhor.
Oferecido o copo de água, o Sr. Tetterby voltou-se subitamente para o pobre Johnny, a quem o estado da mãe inspirava o maior cuidado, e perguntou -Lhe porque é que se deixara ficar refestelado na voracidade e na indolência em vez de trazer a Mrs. Tetterby a pequenina, cuja presença não deixaria de acalmar-lhe os nervos. Johnny aproximou-se imediatamente, com a irmã nos braços, mas Mrs. Tetterby estendeu a mão para significar que não estava em estado de suportar aquele apelo aos seus sentimentos, nem o peso de semelhante provação. Johnny foi, pois, convidado a não avançar nem mais um passo, sob pena de incorrer no ódio eterno dos seus mais queridos e próximos parentes, e voltou para o seu banquito, onde se deixou cair quase sem forças.
Volvido um momento de silêncio, Mrs. Tetterby disse que se sentia melhor e recomeçou a rir.
— Minha querida — respondeu-Lhe o marido com ar de dúvida —, tens bem a certeza de estares melhor? Não virá segundo acesso?
— Não vem, meu Dolphus. Sinto-me outra. — E, compondo o cabelo, passou as mãos pelos olhos e continuou a rir. — Sempre há coisas! — disse ela. — Eu própria não sei como pude pensar em tal. Bem sei que já lá vai, mas em todo o caso confesso a minha culpa. Chega-te mais para aqui, Dolphus, e deixa-me aliviar o meu espírito contando-te tudo.
O Sr. Tetterby aproximou a sua cadeira, e Sophia que não cessara de rir, abraçou e beijou o marido; enxugando os olhos.
— Sabes, meu querido Dolphus — disse-lhe ela —, que quando cheguei à idade de casar a única dificuldade que se me deparava era a escolha. Quatro pretendentes pediam ao mesmo tempo a minha mão. Dois eram filhos de Marte, militares, graduados; ambos sargentos.
— Ena! — exclamou o Sr. Tetterby assumindo ares de seriedade.
— Não vás imaginar que me lembro disto com saudade. Tenho a certeza de ter um excelente marido, e estou pronta a fazer tudo quanto esteja ao meu alcance para lhe provar que o amo tanto.
Quanto uma mulher virtuosa e boa pode amar o marido — interrompeu Tetterby. — Muito bem, muito bem!
Se tivesse três côvados e a sua cara-metade a estatura de uma fada, o Sr. Tetterby não se teria expressado em tom mais protector; pela sua parte, Mrs. Tetterby aceitava de bom grado aquela protecção como se fora a mais débil e vaporosa das mulheres.
— Como sabes, Dolphus, estamos em pleno Natal, uma época que cada um festeja como os seus meios lho permitem, uma época em que quem tem dinheiro não o poupa. Era exactamente isto que eu pensava enquanto andei lá por fora, e que por momentos me deu volta ao juízo. As confeitarias, as mercearias e os talhos estavam tão lindos, havia uma tal profusão de coisas apetitosas e tentadoras — e eu tinha de deitar tantas contas antes de me aventurar a trocar uma moeda de seis pence para comprar o necessário ou o mais trivial! E, depois, o meu cabaz era tão grande, tinha tanta vontade de o encher e o dinheiro era tão pouco! Estás muito zangado comigo, não estás, meu Dolphus?
— Zangado, não, não estou — respondeu o Sr. Tetterby. — Por enquanto não vejo motivo para isso.
— Pois bem! Vou dizer-te toda a verdade — prosseguiu ela em tom de arrependimento —, ainda que te pese. Enquanto andava lá por fora a pisar lama e a tiritar de frio, fazendo comigo mesma estas reflexões, e vendo passar ao meu lado outras criaturas que faziam os mesmos cálculos, mas com os cabazes já bem recheados, comecei a perguntar a mim mesma se não teria sido mais feliz...
Mrs. Tetterby não rematou o seu pensamento, mas meneou a cabeça e começou outra vez a dar voltas ao anel nupcial.
— Compreendo — disse o Sr. Tetterby com toda a candura —, perguntavas certamente a ti mesma se não terias feito melhor em ficar solteira ou em casar com outro homem.
— Sim — suspirou a mãe de Sally —, foi exactamente o que eu pensei. E, agora, não ficarás mal comigo, meu Dolphus?
— Não, não vejo ainda porquê. Continua.
Mrs. Tetterby deu um beijo no marido com ar pensativo e continuou:
— Começo a ter esperanças de que me perdoes, Dolphus, conquanto ainda te não tenha dito o pior.
Não sei o que se passou em mim; não sei se era ataque ou loucura, o que sei é que não me lembrava de nada que pudesse prender-nos um ao outro e reconciliar-me com a minha sorte. Todos os prazeres, todos os júbilos que temos compartilhado pareciam-me tão mesquinhos, tão insignificantes que os renegava, que me sentia capaz de os calcar aos pés! O que se me não tirava do pensamento era a nossa pobreza, o grande número de bocas que temos de sustentar.
— Ai de nós, minha querida companheira — interrompeu Tetterby sacudindo a mão da esposa como que para a animar. — No fim de contas, é a verdade: somos muito pobres e temos muitas bocas a pedirem-nos pão.
Sim, meu querido Dolphus — exclamou Mrs. Tetterby, passando os braços em volta do pescoço do marido —, sim, meu bom, meu carinhoso, meu paciente companheiro, instantes depois de entrar em casa já não pensava do mesmo modo. Foi como se todas as minhas recordações voltassem a um tempo e me enchessem o coração enternecido a mais não poder ser. Todos os nossos labores para ganhar a vida, todos os nossos desgostos e todas as nossas necessidades desde que estamos casados, todas as nossas doenças, todas as nossas vigílias um junto do outro ou junto dos nossos filhos se representaram subitamente ao meu espírito. E todas estas recordações me diziam que doravante seríamos como uma só alma em dois corpos; que nunca poderia nem quereria ser senão a mulher e a mãe de família que sou. Oh!
Então, os humildes gozos que tão mesquinhos se me afiguravam momentos antes pareceram-me outra vez tão preciosos, tão preciosos e tão queridos que não podia perdoar a mim mesma o tê-los desprezado, e dizia, e digo ainda e direi mil vezes: como pude eu pensar semelhante coisa? Como é que tive ânimo de te afligir?
Havia instantes em que a digna e sensível Mrs. Tetterby, cedendo a este acesso de arrependimento chorava desabaladamente, quando de súbito deu um salto da cadeira, soltou um grito e foi refugiar-se atrás do marido. Esse grito foi de tal modo aguçado pelo terror que as crianças, despertadas em sobressalto, fugiram da cama e vieram agarrar-se às saias da mãe. A expressão de olhos de Mrs. Tetterby não desmentia a sua voz; a sua mão trémula indicava o objecto do seu terror. Era um homem pálido e vestido de preto, que acabava de entrar.
— Olha, não vês aquele homem? Que quer ele? que procura?
— Minha querida — respondeu o marido sem compreender semelhante pavor, e vendo apenas no adventício um possível freguês —, perguntar-lhe-ei o que quer quando me deixares passar. Mas que é isso! porque tremes dessa maneira?
— É que encontrei há pouco aquele mesmo homem na rua. Olhou para mim e foi um pouco de tempo ao meu lado. Tenho medo dele.
— Medo dele! Mas porquê?
— Não sei... Em nome do céu, Adolf, não saias daqui!
Tetterby, que dera um passo para o recém-chegado, recuou três.
Mrs. Tetterby apertava com uma das mãos a testa e com a outra o coração: sentia uma perturbação, uma agitação singular, e circunvagava os olhos por todos os lados como se procurasse alguma coisa.
— Sentes-te doente, Sophia? — perguntou-lhe o marido.
— Que se passa em mim? — murmurou ela. — Que é que me foge? — e, respondendo subitamente ao marido, ajuntou, olhando a esgares e com ar distraído para todos os lados: — Doente, não, estou de perfeita saúde.
O Sr. Tetterby não era inacessível ao contágio do medo, nem a estranha mudança que acabava de manifestar-se no modo de ser de sua mulher era amoldada a inspirar-Lhe confiança. Todavia, não pôde deixar de dirigir a palavra ao pálido visitante, que se conservava imóvel no mesmo lugar, com os olhos no chão.
— Que manda, meu senhor? — perguntou-lhe ele.
— Receio que a minha súbita entrada os assustasse; como estavam a falar, não me ouviram.
— Realmente, a minha companheira estava a dizer-me, talvez a ouvisse, que era já a segunda vez hoje que vossa senhoria lhe metia medo.
— Sinto-o deveras. Efectivamente lembro-me de ter visto há pouco a sua esposa na rua. Não era, porém, intenção minha assustá-la.
No instante que o visitante levantava os olhos, fazia Mrs. Tetterby outro tanto, e os olhares cruzaram-se. Era verdadeiramente extraordinário como ela o temia e com que susto ele próprio parecia olhar para ela como quem procura avivar recordações.
— Chamo-me Redlaw — disse o visitante — e sou professor de Química no colégio velho que fica aqui ao pé. Um dos nossos estudantes está hospedado nesta casa, não é verdade?
— Refere-se, decerto, ao senhor Denham!
— Exactamente.
Era uma acção muito natural e também digna de menção; mas, antes de prosseguir, o Sr. Tetterby passou a mão pela testa e olhou com vivacidade em volta da casa, como se sentisse alguma súbita mudança na atmosfera. O químico, que não cessava de contemplar Mrs. Tetterby, levantou imediatamente os olhos para o comerciante, e, recuando três passos, fez-se ainda mais pálido.
— O quarto do senhor Denham — disse Tetterby — é lá em cima, senhor. Há uma serventia particular mais cómoda, mas, visto que entrou, escusa de expor-se outra vez ao frio.
E, indicando-lhe uma pequena escada interior que conduzia ao quarto do estudante, acrescentou:
— Se deseja vê-lo, suba esta escada.
— Queria vê-lo, sim — disse o químico. — Pode dispensar-me uma luz?
O olhar espavorido mas perscrutador do visitante, a inexplicável desconfiança que lhe ensombrava o semblante, perturbavam profundamente o Sr. Tetrerby. Foi assim que, em vez de responder, fitou por seu turno o professor e ficou por espaço de um ou dois minutos imóvel, como um homem estupefacto ou fascinado.
— É melhor que eu vá adiante para o alumiar disse ele por fim.
— Não é preciso — replicou o químico —, não desejo que me acompanhem nem me anunciem. Ele não me espera; prefiro subir sozinho. Se pode dispensar-me a luz por um instante, faz-me um grande favor.
Não me há-de ser difícil atinar com o caminho.
A vivacidade com que lançou mão do castiçal fez com que tocasse no peito de Tetterby. Fugindo logo com a mão, como se o tivesse ferido casualmente, porque não sabia em que parte de si próprio residia o seu novo poder nem como ele se comunicava, nem a que ponto variava o seu modo de transmissão, voltou as costas e subiu as escadas.
Mas quando chegou ao primeiro patamar e parou e olhou para baixo, A dona da casa sentara-se no mesmo sítio, fazendo girar sem descanso o anel nupcial em volta do seu dedo. O marido, pendida a fronte sobre o peito, parecia entregue a tristes reflexões.
As crianças, agrupadas à roda da mãe, acompanhavam timidamente com o olhar o forasteiro, e quando o viram olhar para baixo coseram-se uns com os outros.
— Vamos — disse o Sr. Tetterby com à vontade — ainda não acham horas de se deitarem?
— Bem pequena e bem incómoda é já a casa sem vocês — ajuntou a mãe. — Vá, toca para a cama.
A ninhada espavorida afastou-se tristemente.
Johnny fechava a marcha levando a irmã. A mãe circunvagava um olhar desdenhoso pela sórdida morada e, levantando os restos da ceia, parou a meio da sua tarefa, deixou ficar a toalha e sentou-se junto da mesa, entregue, ao que parecia, às mais vãs, às mais desoladoras reflexões. O pai acercou-se da chaminé, espertou impacientemente o mísero lume, e debruçou-se sobre ele como se o quisesse monopolizar.
Ambos guardavam absoluto silêncio.
O químico, cada vez mais pálido, continuou a subir a escada pé ante pé, como um malfeitor. Testemunha ocular da mudança que vinha a operar-se na loja, tanto se receava de subir como de voltar para trás.
— Que fiz eu — perguntava ele — e que vou fazer ainda?
Palavras não eram ditas pareceu-lhe ouvir responder uma voz irónica:
Vai, sê o benfeitor da humanidade. Olhou em roda mas não viu nada. Ao tempo achava-se num corredor de onde já não podia ver a loja do vendedor de jornais. Prosseguiu, pois, no seu caminho.
— Foi ontem à noite que comecei a isolar-me, e já tudo me causa estranheza. Não me reconheço a mim próprio; parece que estou a sonhar. Quem pode já agora trazer-me aqui ou a outra parte? Não é certo que perdi de todo a memória?
Encontrando uma porta deteve-se e bateu.
— Tenha a bondade de entrar — disse uma voz do lado de dentro.
Entrou.
— É a minha boa enfermeira? — ajuntou a voz. Escusado é perguntar. Quem pode vir ver-me, a não ser ela?
Aquela voz afável e quase jovial, se bem que falasse num tom lânguido, chamou a atenção do Sr. Redlaw para um rapaz deitado numa cama colocada diante da chaminé, com a cabeceira para a porta. Ao centro de uma lareira que dificilmente podia aquecer, porque, achando-se perto do tecto, todo o calor se escoava pela chaminé, via-se um mísero fornilho de folha de ferro guarnecido de massame, cheio de amolgadelas, de rugas e de corcovas, e por cujas grelhas desmanteladas caíam sem cadência as brasas, as quais se apagavam logo nos tijolos da lareira.
— Têm um som metálico, as cinzas quando caem — disse o estudante sorrindo. — Portanto, se é verdade o que dizem as mulheres lá na minha terra, é sinal não de enterro, nas de dinheiro. Com a ajuda de Deus ainda hei-de dar a alguém o nome de Milly, em memória da criatura mais carinhosa e de melhor coração que até hoje tenho conhecido.
Dizendo isto, estendeu a mão fora da cama na suposição de que Milly lha viesse apertar. O pobre moço, cuja extrema fraqueza lhe tornava penoso o mais pequeno movimento, amparava com a outra mão a cara voltada para o lume.
O químico relanceava os olhos pela mais que modesta alcova; os livros e os papéis do estudante, empilhados em cima de uma mesa, a um canto; o candeeiro de trabalho, igualmente inactivo, denunciavam as horas de estudo assíduo que tinham precedido a sua doença, e que talvez a tivessem motivado.
A sua roupa, o seu fato domingueiro, testemunhas da sua boa saúde e da sua liberdade passadas, pendiam tristemente na parede. Várias miniaturas, recordações de cenas mais risonhas, de tempos em que não se via condenado ao isolamento, e uma vista da aldeia, adornavam a chaminé; mas o que principalmente deu nas vistas do Sr. Redlaw foi o seu próprio retrato em gravura, cuidadosamente emoldurado, que o estudante comprara sem dúvida para excitar a sua emulação, ou por afeição pessoal ao ilustre professor. Noutros tempos, quiçá na véspera, a presença de qualquer daqueles objectos não deixaria de despertar a simpatia do químico pelo doente; agora, porém nada falava à sua alma; e se esses objectos nele acordavam alguma antiga associação de ideias, não passava isso de um pálido reflexo que lhe deixava igualmente frio o coração, e que, longe de esclarecer-lhe o espírito, aumentava ainda mais a sua perplexidade.
O estudante retirou a sua mão descarnada que nenhuma outra mão apertava e sentando-se na cama, muito admirado, voltou a cabeça.
— Oh, senhor Redlaw! — exclamou ele fazendo menção de se levantar.
Redlaw estendeu o braço para lhe indicar que tal não fizesse.
— Eu sento-me aqui — disse ele —, deixe-se estar onde está! Não temos necessidade de estar tão perto.
O químico sentou-se junto da porta ergueu os olhos para o estudante que se arrimara ao travesseiro e, baixando-os logo de seguida, cravando-os no chão, rompeu o silêncio nos seguintes termos:
— Soube por acaso, pouco importa como, que um estudante do meu curso estava doente e isolado. A única informação que me deram a esse respeito era que morava nesta rua. Comecei as minhas pesquisas na primeira casa e encontrei-o.
— É certo que estive doente — respondeu o estudante com modesta hesitação não isenta de temor — mas agora acho-me melhor. Um acesso de febre cerebral, segundo creio, debilitou-me muito; mas espero em Deus que não há-de ser nada. Quanto a dizer que me vi só durante a minha doença seria esquecer a mãe vigilante que me rodeou de cuidados.
— Refere-se à mulher do guarda — disse Redlaw.
— Certamente.
O estudante curvou a cabeça como quem prestava uma silenciosa homenagem a Milly.
O químico, que uma gélida e monótona apatia tornava já agora mais semelhante a uma estátua de mármore erguida sobre o seu túmulo do que a ele próprio tal como se levantara da mesa na véspera à noite cheio de sensibilidade pelos sofrimentos do próximo — o químico, vínhamos dizendo, volveu novamente um rápido olhar ao estudante, que se conservava na mesma posição. Depois olhou para o chão e para o ar, como se buscasse um lampejo, um fio que pudesse guiar o seu espírito obcecado.
— Lembrei-me do seu nome — disse ele — quando há pouco o ouvi pronunciar lá em baixo; e lembro-me também da sua fisionomia, se bem que entre nós tem havido poucas relações, não é verdade?
— Muito poucas.
— O senhor conservou-se sempre mais afastado de mim que qualquer outro estudante, quer-me parecer?
O doente fez um sinal afirmativo.
— Mas porquê? — perguntou o químico, aliás sem interesse algum a não ser o de uma curiosidade súbita e menos cortês. — Como é que principalmente não quis que eu soubesse da sua permanência aqui, por motivo de doença, quando os seus companheiros foram passar as férias do Natal a suas casas? Explique-me isso!
Denham, que o escutava com uma agitação cada vez maior, levantou os olhos que respeitosamente tivera cravados no chão até àquele momento e exclamou, muito trémulo, com súbita energia.
— O senhor Redlaw descobriu quem eu era, sabe o meu segredo!
— O seu segredo? — disse o químico com dureza. Saber o seu segredo, eu?
— Sem dúvida! As suas maneiras tão benevolentes e a simpatia que o tornam tão querido, o som da sua voz, o constrangimento que se manifesta em tudo quanto diz e nos seus olhares — respondeu o estudante —, provam-me de sobra que me conhece. Querer ocultar-mo agora é dar-me mais uma prova (e Deus sabe que eu não carecia dela) da sua natural bondade e da barreira que existe entre nós.
Um sorriso de vago desdém foi a única resposta do químico.
— Mas, senhor Redlaw — prosseguiu o estudante —, um homem justo e bom como vossa senhoria não pode deixar de compreender quanto eu sou inocente, pondo de parte o meu nome e o meu nascimento, de toda a participação nas injúrias que lhe fizeram, nas mágoas que tem sofrido.
— Mágoas! — murmurou Redlaw com um riso irónico. — Injúrias! Não o compreendo!
— Em nome do céu, senhor Redlaw — prosseguiu o enfermo com voz débil e suplicante —, que algumas palavras trocadas comigo não alterem assim a sua habitual candura! Risque-me o senhor Redlaw da sua memória. Não faça caso de mim. Permita que me esconda da sua vista entre a multidão dos seus discípulos mais humildes. Não me conheça senão pelo nome que eu tomei quando vim para aqui, esqueça o Longford.
— Longford! — exclamou o químico. — Longford!
— Depois de permanecer por instantes com a cabeça entre as mãos, ergueu a fronte inteligente e pensadora e olhou para o estudante. Mas foi apenas um clarão passageiro, um raio de sol projectado do seio de espessas nuvens que logo se desfizeram.
— Longford é o nome de minha mãe — balbuciou o estudante —, o nome que ela aceitou quando podia tomar outro mais célebre e mais venerado. Eu creio ter perfeito conhecimento dessa história, senhor Redlaw. Onde me faltam informações, posso fazer conjecturas muito próximas da verdade. Sou filho de uma aliança mal fadada e que de modo nenhum podia ser feliz. Desde pequeno que ouvi falar do senhor Redlaw com honra e respeito, com um sentimento que era quase veneração. Contaram-me a sua dedicação, a sua abnegação, a sua luta enérgica e vitoriosa contra obstáculos que fazem sucumbir a maior parte dos homens. A minha imaginação, mal aprendi a soletrar o nome de minha mãe, envolveu numa verdadeira auréola o nome do senhor Redlaw. Pobre estudante eu próprio, que melhor guia podia seguir?
Frio, impassível, o químico não Lhe respondia com uma única palavra, com um único gesto.
— Não posso — prosseguiu o estudante —, não saberia dizer, por mais que fizesse, o que sentia ao reencontrar os preciosos vestígios do passado nesse dom de cativar os ânimos, de os acorrentar mercê da gratidão, dom que todos nós outros, estudantes, reconhecemos, principalmente os mais humildes, no nosso generoso mestre. A nossa posição e a nossa idade são tão díspares, meu senhor, e estou tão habituado a reverenciar de longe o meu ilustre professor que me admiro da presunção com que entro em semelhante assunto; mas para um homem a quem, seja-me lícito dizê-lo, minha mãe não foi outrora indiferente, não deixaria talvez de ser agradável saber presentemente, quando já tudo isso passou, quanta estima e veneração eu lhe tenho consagrado na minha obscuridade; quanto me tem custado conservar-me afastado dele, dos seus incentivos, quando é certo que uma palavra vinda da sua boca seria para mim uma riqueza! Quanto eu compreendia também que o melhor caminho a seguir era conservar-me ignorado e contentar-me em conhecê-lo! Senhor Redlaw ajuntou o estudante cada vez mais comovido —, não disse devidamente o que queria dizer, porque estou ainda fraco e doente; mas se por acaso incorri no seu desagrado, perdoe-me, e para tudo o mais esqueça-se de mim!
A fronte vincada do Sr. Redlaw traduzia a mesma desdenhosa estranheza. De resto, no seu semblante não se manifestou a mais pequena comoção até ao momento em que o estudante, depois de proferir aquelas últimas palavras, deu mostras de querer acercar-se dele e pegar-lhe na mão.
— Para trás — exclamou então o químico —, para trás!
E, dizendo, recuou ele próprio uns poucos de passos. Detido por esta brutal apóstrofe como por uma força sobrenatural, o enfermo passou melancolicamente a mão pela testa.
— O passado é irrevogável — prosseguiu o químico —, o passado morre em corpo e alma. Quem me vem dizer do rasto que ele pode ter deixado na minha vida, ou troça ou mente. Que tenho eu que ver com os seus sonhos enfermiços? Se precisa de dinheiro, está aqui. Foi para isto que o procurei e para nada mais. Que outro motivo podia trazer-me a esta casa — murmurou ele; levando mais uma vez a mão à cabeça. — Nenhum decerto, e todavia...
O químico tinha atirado com a bolsa para cima da mesa; mas no momento de cair nesta vaga meditação, o estudante pegou nela com altivez, mas sem rancor:
— Guarde-a, senhor! Oxalá pudesse guardar do mesmo modo a recordação que as suas palavras e o seu oferecimento vão deixar no meu coração.
— Queria isso? — replicou o Sr. Redlaw, cujos olhos se iluminaram de um brilho selvático. — Veja lá o que diz?
— Queria, sim!
O químico acercou-se pela primeira vez do estudante, pegou na bolsa e segurando-Lhe no braço cravou os olhos nos dele.
— Não será porventura a doença um manancial de dores e de sofrimento? — perguntou Redlaw com um riso estranho. — Será necessário recapitular as suas insónias, as suas dores, as suas angústias, as suas misérias físicas e morais? — ajuntou o químico com uma expressão mordaz. — Não será mil vezes preferível esquecer tudo isso?
Em vez de responder, o estudante passou novamente a mão pela testa. Redlaw ainda lhe segurava o braço quando se ouviu na escada a voz de Mill.
— Agora vejo perfeitamente — dizia ela. – Muito obrigada, Dolf. Não chores, meu filho. O pai e a mãe hão-de estar amanhã de melhor catadura e verás que tudo há-de correr bem lá por casa. Dizes então que está lá um sujeito?
Redlaw largou o braço do estudante apenas ouviu as últimas palavras.
— Desde a primeira hora — murmurou ele baixinho —, que receio encontrar-me com ela. Milly é dotada de uma bondade perseverante de que por modo nenhum quisera vê-la esbulhada. Não quero apagar da sua alma os mais ternos e melhores sentimentos.
Milly batia á porta.
— Darei a mão a este escrúpulo pueril ou evitarei o encontro? — disse ele ainda, olhando com inquietação em derredor.
Milly continuava a bater.
— De todas as pessoas que podiam vir aqui — disse o Sr. Redlaw para o estudante com voz surda e modos de assustado — é Milly a que menos desejava encontrar. Esconda-me.
O estudante abriu uma frágil porta mascarada na parede e que dava para um esconso. Redlaw entrou apressadamente e puxou a porta para si.
O estudante voltou para a cama e disse a Milly que entrasse.
— Ora esta — exclamou Milly olhando por todo o quarto. — Disseram-me que estava aqui um sujeito.
— Nada... estou eu só.
— Mas esteve alguém?
— Esteve alguém, esteve.
Milly pousou em cima da mesa o cesto da costura, aproximou-se da cabeceira do doente em busca da mão que ele habitualmente lhe estendia, mas não a encontrou. Um tanto surpreendida, sem todavia perder a habitual serenidade, a caritativa Mrs. Milly debruçou-se sobre o leito para ver o estudante e tactear-lhe meigamente a testa.
Como está esta noite, senhor Denham? A cabeça tem muito mais calor do que esta tarde.
— Que quer que lhe faça? — respondeu o estudante com azedume. — Qualquer coisa me indispõe.
Um pouco mais admirada, mas sem o mínimo vislumbre de ressentimento, Mrs. William acercou-se da mesa e tirou a costura do cesto. Mas logo em seguida pô-la novamente de parte e começou a arrumar a casa, sem ruído, principiando por aconchegar as almofadas ao enfermo. Esta operação foi feita com tal delicadeza que o estudante nem sequer levantou os olhos do lume. Feito isto, Milly varreu a cinza da chaminé, e, sem tirar o chapéu, sentou-se e começou a coser com presteza.
— É a cortina para a janela, senhor Denham — disse ela, cosendo sempre. — Fica bonita, há-de dar outro aspecto ao quarto. E depois importa numa bagatela, pois é também um benefício para os seus olhos.
Diz o meu marido que a muita claridade é prejudicial aos convalescentes: causa-lhes deslumbramentos.
O estudante não respondeu; mas a frequência com que mudava de posição indicava tal impaciência e incomodidade que os dedos ágeis de Milly ficaram suspensos, e a extremosa enfermeira olhou com inquietação para o doente.
— Não estão bem as almofadas — disse ela largando a costura e levantando-se. — Já has ponho melhor.
— Perdão, estão perfeitamente — respondeu ele — tenha a bondade de as deixar estar. Não há necessidade de fazer um negócio de Estado das coisas mais insignificantes.
O estudante levantou a cabeça para dizer isto e olhou para Milly de um modo tão frio, tão duro, que, quando tornou a reclinar a cabeça nas almofadas, Mrs. William ficou timidamente de pé durante alguns minutos; mas logo em seguida voltou para o seu lugar e recomeçou a coser com igual presteza.
— Mais de uma vez tenho pensado, senhor, vendo-me sentada neste mesmo lugar, que, durante a sua doença, há-de ter tido ocasião de reconhecer a verdade do provérbio: A experiência é a grande mestra da vida. Agora há-de ter em mais apreço a saúde; e por muitos anos, quando chegar o Natal e que se lembre do tempo em que estava doente, isolado neste quartozinho, para não afligir aqueles que mais estima, há-de dar dobrado valor e bendizer duplamente o seu lar doméstico. Não será isto verdade, e não terão ao menos isso de bom a doença e o isolamento?
Milly estava tão embevecida na sua tarefa, tão atenta ao que dizia, e era tão confiada, tão simples, que não pensou em perscrutar a expressão fisionómica do estudante, quando este lhe respondeu. Foi assim que o dardo vibrado pelo seu olhar ingrato não logrou feri-la e se perdeu por completo.
— Ah! — disse Milly, inclinando para o ombro a fronte gentil para melhor acompanhar com a vista os seus dedos ágeis —, eu própria, e é muito diferente, senhor Dènham, porque eu sou uma pobre mulher sem instrução, que mal sei discorrer! Estas mesmas coisas acudiram-me ao pensamento e impressionaram-me deveras depois da sua doença. Ao vê-lo tão rendido aos cuidados e à boa vontade desta pobre gente cá de baixo pareceu-me que isso lhe compensava em muito a perda momentânea da saúde, e li-lhe no semblante, como num livro aberto, que, se não fossem as adversidades e os sofrimentos, nunca saberíamos metade do bem que nos rodeia.
Milly ia continuar quando o enfermo se levantou abruptamente a despeito da sua fraqueza e a interrompeu.
— Não exageremos o mérito das melhores acções, Mistress William, essa pobre gente cá de baixo, como lhe chamou, há-de ser remunerada a seu tempo, tenho fé, de quaisquer serviços que me tenham prestado; e provavelmente, já contava com isso. A Mistress William também eu estou reconhecido.
Desta vez Milly ficou com a mão da agulha no ar e olhou para ele.
— Estou-lhe grato — repetiu o estudante —, e não o estaria mais se me exagerassem o perigo que corri.
Mistress William interessou-se por mim, rodeou-me de cuidados que de bom grado sou o primeiro a confessar. Que mais quer, diga?
A costura que Milly com tanto afã diligenciava acabar rolou-lhe das mãos para o regaço ao ouvir aquelas palavras proferidas num tom de desapego quase mordaz, pelo estudante, que passeava de cá para lá parando a espaços. — Estou-lhe muito agradecido, repito; mas, obrigando-me a ouvir semelhantes homilias, não faria mais do que amesquinhar o sentimento que lhe devo.
Fala-me de pesares, de provações, de sofrimentos, de lições dadas pela adversidade e pela doença. Quem a estivesse a ouvir havia de imaginar que eu sofri mil mortes!
— O senhor decerto — disse Milly levantando-se e aproximando-se dele — imagina que se eu falei nesta pobre gente de cá de baixo foi para aludir à minha pessoa? Valha-me Deus! — ajuntou ela, e pôs a mão no peito sorrindo com ingénua admiração.
Milly contemplou-o por instantes até se esvair o próprio sorriso e, voltando ao lugar onde tinha deixado o cesto, acrescentou com meiguice:
— O senhor Denham prefere estar só?
— Não vejo motivo para a deter.
Ah! A cortina! — exclamou ele com ar desdenhoso.
— Não me parece que valha a pena ficar por causa disso.
Mrs. William tornou a enrolar a costura, meteu-a no cestinho e colocou-se diante do moço convalescente com ademanes de resignada súplica:
— Se precisar de mim — disse —, voltarei da melhor vontade. Quando podia ser-lhe útil era-me grato estar aqui: não havia merecimento nisso. Agora, porém, que vai melhor, receio tornar-me importuna; não o seria, esteja certo; as minhas visitas haviam de durar o tempo que durasse a sua fraqueza e o seu isolamento: não me deve nada, senhor, o que deve a si próprio é ter tanta consideração por mim como pela mulher mais altamente colocada, como por aquela que ama; e se desconfia que eu exagere vilmente a importância dos pequenos serviços que me foi dado prestar-lhe, não é a mim que ofende, é a si próprio.
Eis o que me entristece e me punge deveras!
Se ela se tivesse mostrado tão apaixonada quanto de seu era meiga, tão indignada quanto fora prudente, se o seu olhar tivesse sido tão irado quanto era meigo, a sua voz tão altissonante quanto fora serena e melodiosa, o vácuo que deixou na casa quando saiu nada seria, em comparação com o sentimento pungitivo que oprimiu o estudante apenas a dedicada santa criatura se afastou.
Enquanto ele olhava com ar taciturno para o lugar que ela ocupara, Redlaw, que saíra do seu esconderijo, aproximou-se da porta e disse-lhe;
— Quando a doença o apalpar outra vez com a sua mão de ferro, e faço votos por que seja breve, oxalá que aquele catre se converta no seu leito de agonia e que ninguém pense sequer em dar-lhe sepultura, coração ingrato e covarde!
— Mas que é isto, que fez o senhor? — replicou o estudante, segurando o químico pela capa. Que transformação operou em mim? Que maldição fez cair sobre a minha cabeça? Vamos, restitua-me ao meu ser!
Que o restitua ao seu ser! — repetiu Redlaw. Este, espalho-a por onde passo!
Eu trago comigo a pessonha que o meu espírito está cheio de uma peste que transborda e se infiltra no espírito dos outros. O que dantes me inspirava simpatia, compaixão, misericórdia, deixa-me agora frio como a pedra. O egoísmo e a ingratidão caminham a meu lado e tudo emurchece à minha passagem. Numa só coisa sou talvez menos vil que os miseráveis que faço; mal eles se transformam à minha imagem, odeio-os!
E como quer que o estudante o não largasse, o químico repeliu-o com violência e saiu desabrida mente como se lhe tardasse ver-se na rua.
Era uma noite escura, o vento sibilava de modo lúgubre, a neve caía em abundância. A Lua era a envolvida em vulcões de negras nuvens, parecia-lhe ver e ele julgava ouvir o sibilar do vento. O dom que te concedo comunicá-lo-ás a quantos de ti se aproximarem!
Redlaw não tinha destino, pouco lhe importava o caminho a seguir, contando que fosse só. A mudança que se operava no seu espírito convertia-lhe num deserto as ruas mais populosas; ele próprio era um deserto, e a multidão que se agitava a seu lado nos diversos caminhos, sob os diversos fardos da vida afigurava-se-lhe um oceano de areia que os ventos varriam e amontoavam sob as formas mais fantásticas e mais ininteligíveis, formas em breve confundidas no chão. Aqueles vestígios do passado, que, segundo a predição do espectro, tinham em breve de extinguir-se no seu peito, não estavam ainda tão apagados que se não lembrasse do que se operava nele e nos que de si se aproximavam, e essa ideia levava-o a procurar a solidão.
Vagueando assim ao acaso, lembrou-se de súbito do pequeno que lhe entrara tão abruptamente no quarto, como um animal bravio, e observou que de todas as criaturas com quem tinha comunicado depois da desaparição do espectro era aquela criança a única que em nada parecia ter mudado. Conquanto lhe fosse muito odioso aquele monstrozinho, quis tornar a vê-lo para se certificar de que realmente assim era. Outra intenção o levava também a procurá-lo com rapidez.
Conseguindo, não sem custo, orientar-se para o velho colégio, entrou no vasto pátio, cujas lajes se achavam gastas pelos pés dos estudantes.
A casa do porteiro ficava exactamente do lado de dentro do gradeamento e fazia parte do principal rectângulo do edifício. Havia também um pequeno claustro exterior, e Redlaw sabia que daquele abrigo poderia lobrigar pela janela o que se passava lá dentro. A cancela estava fechada, mas isso era o menos: o químico sabia a maneira de a abrir. Foi assim que meteu a mão por entre as frinchas, levantou a aldraba, tornou a fechar a cancela de mansinho e avançou com toda a cautela, pisando a frágil crosta de neve endurecida pela geada.
O lume, que ele indicara na noite antecedente ao pequeno, projectava o seu clarão nas vidraças e iluminavam um certo espaço no pátio por onde o químico teve o cuidado de não passar, e que rodeou a fim de se aproximar da loja. A princípio não viu ninguém; o clarão do braseiro parecia iluminar apenas as traves do tecto e as vetustas paredes; mas olhando mais atentamente e de mais perto, descobriu o objecto das suas pesquisas enroscado e adormecido junto da lareira. Correu para a porta, abriu-a e entrou.
O pequeno, verdadeiro bicho-de-mato, estava tão chegado à lareira e o calor era tão intenso que o químico, quando se baixou para o sacudir, sentiu crestarem-se-lhe as faces. Despertado em sobressalto, o rapazito apanhou os seus andrajos com o instinto da fuga e foi refugiar-se de um salto num dos ângulos mais remotos da casa onde, enroscado como um ouriço, em vez de espinhos apresentou os pés erguidos ao inimigo.
— Levanta-te — disse o químico. — Ainda te lembras de mim?
— Deixe-me! — replicou o pequeno. — Esta casa é da mulher, não é sua.
O olhar firme e fixo do químico impôs-lhe um certo respeito ou inspirou-lhe pelo menos a submissão bastante para o obrigar a pôr-se de pé e levantar os olhos para quem lhe dirigia a palavra.
— Quem te lavou os pés? Quem te pensou as feridas?
— Foi a mulher.
— E a cara também foi ela?
— Foi, sim, foi a mulher!
Redlaw fazia estas perguntas para que o rapaz olhasse para ele. Foi na mesma intenção que lhe pegou no queixo inferior e lhe afastou da cara as compridas melenas, se bem que lhe repugnasse tocar-lhe. O pequeno, pelo seu lado, espreitava o olhar do químico, como se isso fosse necessário à sua segurança pessoal e para adivinhar o que ele ia fazer. Redlaw pôde convencer-se de que não havia a mais pequena mudança no selvagenzinho.
— Onde estão eles então? — perguntou o professor.
— A mulher saiu.
— Bem sei. Mas onde estão o homem de cabelos brancos e o filho?
— É o marido da mulher que quer dizer?
— É, sim. Onde estão os dois?
— Saíram. Houve o quer que fosse, não sei onde. Vieram chamá-los a toda a pressa, e lá foram. Disseram-me que ficasse aqui.
— Vem comigo — disse o químico — e dar-te-ei dinheiro.
— Aonde é que vamos? E quanto me dá?
— Dar-te-ei mais xelins do que. tu tens visto na tua vida e não nos demoraremos. Atinarás com o caminho que vai dar aos sítios donde vieste?
— Largue-me — respondeu o pequeno, fugindo-lhe subitamente da mão. — Não quero! Largue-me ou atiro-lhe com um bocado de lume.
Antes de fazer a ameaça, o rapazito baixara-se como quem queria pegar nas brasas.
Tudo quanto o químico sentira, ao observar os efeitos da sua fatal influência naqueles de quem se aproximava, nada era em comparação do frio e vago terror com que via aquele diabólico rapaz desafiar, por assim dizer, o seu poder. Gelava-se-lhe o sangue perante aquela criatura abortada, mas imutável, impenetrável, que o fitava com o seu olhar astuto e mau, e cuja mão infantil se aparelhava para pôr em prática a sua ameaça.
— Ouve lá, pequeno — disse-lhe ele —, leva-me aonde quiseres, contanto que me leves onde haja gente perdida de miséria e de vícios. É para lhes fazer bem, descansa. Dar-te-ei dinheiro, conforme te prometi, e voltarás outra vez para a mulher. Vamos, levanta-te!
E, dizendo isto, correu para a porta com medo de que Mrs. William voltasse.
— Promete — respondeu o pequeno — deixar-me ir sozinho, não me segurar nem me tocar com um dedo?
E, fazendo estas aberturas de paz, recolhia a mão ameaçadora que conservava ao alcance das brasas e levantava-se vagarosamente.
— Prometo — disse o químico.
— Deixa-me ir adiante ou atrás, como eu quiser?
— Deixo.
— Então, dê-me já o dinheiro.
O químico meteu um por um uns poucos de xelins na mãozita que se lhe estendia. Contá-los era operação superior à ciência do pequeno, que dizia, um, a cada nova moeda que recebia, remirando-as umas após outras avaramente e olhando em seguida para Redlaw. Depois de bem considerar os xelins, não encontrou outra parte onde os meter a não ser a boca, e foi efectivamente esta que serviu de esconderijo provisório ao seu tesouro.
Redlaw escreveu então a lápis, numa folha que rasgou da carteira, que levava o pequeno na sua companhia; e deixando o papel em cima da mesa fez sinal ao rapazinho para que o seguisse. Como de costume, o rapaz aconchegou os trapos ao corpo e acompanhou o químico, por aquela noite de Inverno, descalço, sem nada na cabeça.
Não querendo sair pelo portão de ferro com medo de encontrar aquela cuja presença com tanto cuidado evitava, Redlaw tomou pelos escuros corredores onde o rapazito se perdera na véspera, na parte do edifício onde tinha os seus aposentos: esses corredores conduziram-no em breve a uma pequena porta de que tinha a chave. Apenas se acharam na rua, parou para perguntar ao seu guia se sabia onde estavam.
O pequenino selvagem recuou alguns passos, esteve muito tempo a olhar para um lado e para o outro e, fazendo enfim um sinal afirmativo com a cabeça, indicou a direcção que queria seguir. Redlaw não hesitou em tomá-la, e o pequeno seguiu-o com menos apreensão. Os seus xelins andavam numa roda viva da boca para a mão e da mão para a boca, quando os não esfregava nos andrajos para lhes dar brilho, mas sempre atrás de Redlaw. Três vezes durante o caminho se acharam ao lado um do outro; três vezes o químico baixou os olhos para ver a cara do seu companheiro e três vezes essa cara o fez estremecer inspirando-lhe a mesma reflexão sinistra.
Da primeira vez, atravessavam um velho cemitério, no meio de cujas sepulturas Redlaw parou, buscando debalde uma saudade, uma consolação, uma esperança que ali o prendesse. Da segunda vez, a súbita aparição da Lua irrompendo no meio das nuvens fê-lo maquinalmente erguer os olhos ao céu, onde a viu na sua glória, rodeada de falanges de estrelas, cujos nomes e história sabia, tanto quanto a ciência humana lhas podia ensinar, mas não via mais que o que estava habituado a ver; nada mais sentia já do que estava acostumado a sentir, quando contemplava o deslumbrante panorama do céu:
Da terceira vez parou a ouvir uma música triste, mas essa música não era já agora para ele mais do que uma série de sons artificiais, resultantes da acção mecânica dos instrumentos e das vibrações do ar. A música já não acordava na sua alma nenhum eco misterioso, nenhuma visão do passado nem do porvir; impressionava-o tanto como o murmúrio das águas correntes ou como o sibilar do vento em anos passados.
De todas as três vezes viu com horror que, a despeito da imensa distância intelectual que os separava e da sua completa disparidade debaixo de todos os aspectos físicos, a expressão fisionómica do selvagenzinho era tal qual a sua própria expressão.
Caminharam durante algum tempo, ora por sítios tão cheios de gente que o químico olhava a medo por cima do ombro para ver se não tinha perdido o seu guia — o qual geralmente se lhe deparava do lado oposto, na sua própria sombra —, ora através de sítios tão desertos, tão remansosos, que lhe seria fácil contar os breves passos açodados do pequeno que o seguia de pé descalço. Chegaram enfim a um grupo de casas em ruínas, junto do qual o seu guia parou e lhe puxou pela capa.
— É acolá — disse-lhe ele, mostrando-lhe um pardieiro com muitas janelas, no qual se via luz e um lampião por cima da porta com o seguinte letreiro: Casa para pernoitar.
Redlaw olhava em redor, examinando as casas e o vago terreno em que elas se erguiam. Essas casas ou, para melhor dizer, esses pardieiros, oscilantes e prestes a desmantelar-se, sórdidos, escuros, erguiam-se à beira de uma vala lodacenta. Mais além, uma arcada meio desmoronada e que fazia parte de algum antigo aqueduto ou de alguma velha ponte, declinava gradualmente para o lado deles. O penúltimo arco teria as dimensões de um canil; o último era um montículo de tijolos esboroados.
O pequeno, sempre a alguns passos de distância do químico, tiritava de frio, firmado num só pé, aconchegando o outro na outra perna, na esperança de o aquecer. E contemplava também tudo aquilo com a aterradora semelhança de expressão já notada pelo professor, e que então o horrorizou ainda mais.
— Acolá! — repetiu ele mostrando uma das casas.
— Entre; eu espero-o cá fora!
— Deixar-me-ão entrar? — perguntou Redlaw.
— Diga que é médico. Lá dentro não faltam doentes.
Voltando os olhos para trás quando se aproximava da casa, Redlaw viu o seu guia buscar de gatas o abrigo do arco mais pequeno, por onde se esgueirou como um rato. Longe de compadecer-se do pequeno o químico tinha medo dele, e quando viu que o fitava do recôndito do seu antro correu para a porta do casebre como se este lhe fosse abrigo contra o mau olhado.
Nesta lúgubre morada há-de haver penas, sofri mentos, misérias de toda a espécie — disse Redlaw de si para si. — Quem aqui trouxer ajuda não pode deixar de ser bem-vindo.
E, sem mais reflexão, impeliu a porta, que cedeu ao impulso.
Na escada estava sentada uma mulher, que parecia dormir ou meditar profundamente, com os cotovelos fincados nos joelhos e a cabeça entre as mãos. Era impossível passar sem a pisar, e como ela não desse por ele, o químico parou e bateu-lhe no ombro. Erguendo então a cabeça, a pobre mostrou-Lhe um rosto ainda juvenil, mas cuja beleza se fanara em flor, como se o impiedoso Inverno, contra as leis da natureza, tivesse galgado duas estações para matar a Primavera.
Quando Redlaw a despertou do marasmo em que parecia imersa, a infeliz não deu mostras de preocupar-se com a sua presença e chegou-se para a parede para lhe dar passagem.
Quem é vossemecê, criatura? — perguntou-Lhe o químico parando e encostando-se ao escalavrado corrimão.
— Quem quer o senhor que eu seja? — respondeu ela, mostrando-lhe novamente a cara.
O químico olhou para aquele templo de Deus em ruínas, tão recentemente criado e tão breve desfigurado: e um sentimento que não era compaixão, por que as fibras que nele podiam vibrar de verdadeira condolência para com semelhantes misérias estavam já paralisadas no seu peito, mas um sentimento muito mais afim que nenhum dos que até àquele momento tinham buscado fazer luz na noite, cada vez mais escura, da sua alma; um sentimento de vaga solidariedade no sofrimento adoçou o tom das suas palavras.
— Vim aqui — disse Redlaw — para prestar o meu auxílio a quem dele carecer. Tem algum motivo de queixa contra alguém?
A desconhecida carregou primeiro o sobrolho e desatou depois a rir, riso estranho que por fim se converteu numa espécie de soluço; em seguida pen deu a fronte; ocultando os magros dedos entre o cabelo.
— Que mal lhe fizeram? Em que pensa? — perguntou-lhe Redlaw pela segunda vez.
— Penso na vida que levo — respondeu a pobre erguendo os olhos para ele.
Redlaw compreendeu que era uma infeliz como há tantas, e não Lhe foi difícil reconhecer naquela criatura vergada ao peso da miséria e da vergonha o tipo de milhares de ovelhas transviadas do bom pastor.
— Em que se ocupam os seus pais? — volveu Redlaw.
— Sim, eu tive família outrora; meu pai era um honrado jardineiro, longe, muito longe daqui, lá na terra.
— Morreu?
— Para mim, morreu ou, para melhor dizer, eu é que morri para ele, e oxalá que fosse verdade! O senhor é um gentleman e pergunta-me isso?
A mísera levantou outra vez os olhos para Redlaw e riu-se sardonicamente.
— Mulher! — disse-lhe o químico, em tom solene.
— Antes dessa morte antecipada, antes dessa queda horrível não te fizeram nenhuma injúria? A despeito dos teus erros, sejam eles quais forem, não tens por ventura a memória de uma injustiça e não te causa ela muitas vezes um vivo pesar?
Restava exteriormente daquela infeliz tão pouco do que constitui a mulher que Redlaw ficou muito surpreendido ao vê-la subitamente lavada em lágrimas; mas a sua surpresa subiu de ponto e a sua perturbação ainda foi maior quando observou que com a recordação da injúria se patenteara o primeiro indício da sua índole primitiva e da sua sensibilidade desde há muito paralisada.
Ia a afastar-se quando reparou que a infeliz tinha os braços, a cara e o peito cheio de nódoas roxas.
Que mão brutal lhe infligiu esses tratos? — perguntou-lhe.
— As minhas próprias e de mais alguém.
— Isso é impossível!
— Juro que é verdade! Ele não me tocou. Fui eu que satisfiz em mim mesma a minha cólera. Atirei-me ao chão e contundi-me toda. Ele nem sequer estava em casa. Nunca me pôs a mão!
Na resolução do seu pálido semblante, na maneira determinada como sustentava aquela mentira, descobriu Redlaw sobejos vestígios de bons senti mentos pervertidos e adulterados e não quis incorrer no mesmo remorso de os apagar acercando-se dela.
— Os pesares, as injúrias, os sofrimentos — murmurou o químico, desviando os olhos daquela infeliz —, todas as recordações que a prendem à condição primitiva donde baqueou, têm ainda nela tão profundas raízes! Fujamos, meu Deus, fujamos!
Com medo de olhar para ela, de lhe tocar, horrorizado com a lembrança de que talvez tivesse quebrado o último fio que ainda a prendia à misericórdia divina, sobraçou a capa e subiu rapidamente a escada. Chegando ao patamar encontrou entreaberta uma porta, donde saiu um homem com uma luz na mão. Ao vê-lo, o desconhecido, que ia para fechar a porta, estremeceu, recuou visivelmente comovido e, como se obedecesse a um impulso mecânico e súbito, pronunciou em voz alta o nome do químico.
Surpreendido de que o conhecessem em semelhante lugar, Redlaw parou e diligenciou lembrar-se do pálido semblante que acabava de ver e que tão surpreendido se mostrara.
A sua cogitação não durou muito tempo porque quase em seguida, aparecia o velho Philippe, e, pegando-lhe pela mão, levava-o para dentro de casa.
— Ah! Senhor Redlaw — exclamou o velho. — É mais uma prova da sua infinita bondade. Contaram-lhe a nossa desgraça e correu a socorrer-nos. Infelizmente é muito tarde, meu senhor!
Redlaw deixou-se conduzir maquinalmente e ambos entraram num quarto onde o químico deparou com um homem estendido num catre, a cuja cabeceira velava de pé William Swidger.
— É muito tarde! — murmurava novamente o ancião dando livre curso às lágrimas.
— É o que eu digo, pai — interrompeu William Swidger em voz baixa. — As coisas são o que são; não há remédio e o melhor que temos a fazer é deixá-lo em sossego, agora que ele parece um pouco amodorrado.
Redlaw aproximou-se do leito e contemplou o enfermo. Era um homem no vigor da idade, mas para quem o Sol provavelmente não mais se ergueria. Os vícios dos seus quarenta ou cinquenta anos de vida desregrada tinham-no acabado por tal forma que comparado aos vestígios que tinham deixado no seu rosto, dir-se-ia que a pesada mão do tempo, na sua misericórdia, embelezara o semblante do seu velho pai.
— Quem é este homem? — perguntou o químico aos que o rodeavam.
— É meu filho George, senhor Redlaw — disse o ancião contorcendo as mãos desesperadamente —, é o mais velho, de quem a mãe tanto se orgulhava!
O químico ora contemplava alva fronte do ancião, inclinada para o leito, ora volvia olhares perscrutadores para o indivíduo que o reconhecera na escada e que, desde então, se conservava escondido no ângulo mais escuro da alcova. O desconhecido parecia ser pouco mais ou menos da idade dele, e conquanto Redlaw não conhecesse homem nenhum tão quebrado, tão arruinado como aquele parecia estar, havia o que quer que fosse em todo ele, quando se voltou e se encaminhou para a porta a tomar ar, que fez com que Redlaw passasse a mão pela testa com ar taciturno.
— William — perguntou ele em voz baixa —, quem é aquele homem?
— Ora aí tem o senhor Redlaw, veja se é ou não verdade o que eu digo: porque é que um homem há-de ter a paixão do jogo e se há-de deixar dominar por ela e por outras mais? E como é que se pode descer todos os dias até cair na última degradação?
— Ele fez isso que diz? — perguntou Redlaw com o mesmo gesto indagador.
— Tal qual, meu senhor — respondeu William Swidger. — Pelo menos é o que dizem. Parece que sabe alguma coisa de medicina e que veio até Londres com o meu pobre irmão. — O marido de Milly fez uma breve pausa para limpar os olhos com a manga do casaco e prosseguiu: — Ficando também por uma noite nesta casa, onde não raro se encontram estranhos companheiros, veio ver o doente e encarregou-se de nos avisar. Que triste espectáculo para nós, senhor Redlaw! Mas é o que eu digo a mim mesmo, as coisas são o que são. Isto, asseguro-lhe, é o bastante para dar com o meu pobre pai na sepultura!
Redlaw levantou a cabeça ao ouvir estas palavras; lembrou-se onde e com quem estava, lembrou-se do misterioso poder de que se achara revestido, poder que, na sua primeira surpresa, momentaneamente esquecera, e, desviando-se de súbito do leito, deliberou consigo mesmo se havia de fugir daquela triste morada ou ficar.
Obedecendo a uma certa tendência atrabiliária com que na sua condição actual parecia ver-se obrigado a lutar, concluiu que cumpria ficar.
É só desde ontem — murmurou — que eu observo que a memória deste velho deve ser um amontoado de desgostos e de misérias? Porque havia de ter escrúpulos em a abalar? As recordações que me é dado dissipar serão também tão gratas a este moribundo? Não, ficarei.
A despeito da sua enérgica resolução nem por isso se mostrava menos trémulo e inquieto. Embuçado na negra capa, voltando a cara, escutava à distância o que se dizia, como se se julgasse um demónio no meio daquela gente.
— Meu pai! — murmurou o doente despertando um pouco do seu marasmo.
— Meu filho! Meu George — respondeu o ancião.
— Há pouco falou na minha mãe, disse que eu era o predilecto dela. A recordação de tempos tão longínquos, de um passado irrevogável, não será horrorosa num momento destes?
— Não, não, meu filho! — respondeu o velhinho.
— Não te arrependas de a evocar, não digas que é horrorosa, não o é para teu pai!
— Mas dilacera-lhe o coração... — respondeu o moribundo, que sentira caírem-lhe nas mãos duas grossas lágrimas.
— Sim, sim — respondeu Philippe —, o meu coração verte sangue, mas isso alivia-me. É uma grande dor pensar nesse tempo, mas é uma dor salutar. Oh! George, lembra-te também dos anos que passaram, e o teu coração abrir-se-á cada vez mais ao arrependimento! Onde está o meu William? William, meu filho, a tua mãe nunca deixou de pensar extremosamente no teu irmão até à última, e, com a sua voz de muribunda, dizia ainda: Diz-Lhe que lhe perdoo, abençoa-o, pede a Deus que ele se corrija! Foram as suas últimas palavras. Ficaram-me gravadas na memória, e tenho oitenta e sete anos!
— Meu pai — disse o enfermo —, sinto-me morrer. Estou tão fraco, tão esvaído que mal posso dizer do que mais se ocupa o meu espírito. Meu pai, restar-me-á alguma esperança além deste leito de morte?
— Há sempre uma esperança, meu filho — respondeu o ancião —, quando o arrependimento é sincero.
A misericórdia divina é grande e a conversão do pecador é objecto de júbilo celestial.
Oh! — reclamou ele, pondo as mãos e erguendo os olhos ao céu. — Se ontem à noite me sentia feliz por recordar o tempo em que o meu desventurado filho era ainda inocente, qual será o meu júbilo ao pensar que também Deus se lembra dele!
Redlaw escondeu a cara entre as mãos e teve tanto horror de si próprio como se fora um assassino.
— Ah — murmurou debilmente o mísero —, que tempo perdido de então para cá, que anos esbanjados!
— Oh Meu Deus! Estende sobre ele a Tua misericórdia! — prosseguiu o ancião. — Lembra-Te de que era um daqueles pequeninos que o Teu filho chamava para junto de Si. Nesse tempo, antes de adormecer no sono da inocência, nem uma só noite deixava de fazer as orações nos joelhos da mãe. Quantas vezes eu lhas ouvi dizer! E no fim a mãe estreitava-lhe ao peito a loura cabeça e beijava-o. Sem dúvida que é triste lembrarmo-nos de tudo isto, quando ele seguiu um caminho tão errado e que deitou por terra as nossas esperanças, todos os nossos planos, mas essa recordação nem por isso deixava de dar-lhe sobre nós como que um direito indiscutível. Oh!, Pai que estais nos céus, Pai cuja bondade excede a de todos os pais e que mais do que todos eles Vos afligis com os erros dos Vossos filhos, não deixeis de abrir os braços a mais este filho pródigo; vede-o, não como ele é, mas como foi; deixai-o rogar a Vós, Senhor, como tantas vezes na sua infância a nós rogava!
Enquanto o ancião erguia para os céus as mãos trémulas, o filho, em favor do qual implorava a Deus, encostava-lhe a fronte ao peito, como se ainda fosse a criancinha de outrora.
Durante os silenciosos momentos que se seguiram, o químico tremia como homem nenhum tremeu ainda. Redlaw sabia que o dom fatal do espectro se havia de propagar, que a obra misteriosa se consumava.
— As minhas horas estão contadas, a respiração é cada vez mais difícil — murmurou o enfermo diligenciando suster-se num braço, ao passo que com o outro parecia querer agarrar um objecto no ar. — Lembro-me de que tinha o que quer que fosse na mente com respeito ao homem que há pouco aí estava. Meu pai, William, aproximem-se e digam se ainda tenho a vista clara. Está realmente um vulto preto àquele canto?
— Está sim, filho, não te enganas — confirmou Philippe. — É um homem, não é?
— Era o que eu ia para dizer, George — acrescentou o irmão inclinando-se afectuosamente para ele. — É um homem; é o senhor Redlaw.
— Parecia-me que tinha sonhado com ele. Peçam-Lhe que se aproxime.
Mais pálido que o moribundo, o químico aproximou-se a um sinal que ele lhe fez e sentou-se na borda da cama.
— Tenho-me sentido tão mal esta noite, meu senhor — disse-lhe George levando a mão ao coração com um olhar em que se concentravam as mudas e suplicantes angústias da sua situação —, tem-se-me confrangido de tal forma o coração ao ver o meu pobre pai e ao lembrar-me dos desgostos que lhe tenho dado, de todas as minhas culpas para com ele e dos seus irreparáveis erros, que.
Seria o extremo a que se achava reduzido ou alguma súbita mudança operada em seu espírito que interrompeu a sua queixa?
— Diligenciarei ao menos — prosseguiu ele — fazer o bem que me é possível no estado de perplexidade e de perturbação em que me encontro. Aqui estava outro homem, não o viram?
Redlaw não pôde responder uma única palavra, porque, ao ver o sintoma fatal tão seu conhecido — o moribundo perpassando a mão pela testa —, a voz expirou-lhe nos lábios e apenas pôde fazer um gesto de assentimento.
— Esse homem tem fome, e não tem um soldo de seu; esgotou os últimos recursos. Procurem-no sem perda de um segundo. Sei que se quer matar.
O dom do espectro propagava-se; operava visivelmente. O moribundo mudava de expressão, o seu parecer era agora mais duro. A lembrança das penas passadas apagava-se-lhe ao mesmo tempo do semblante e do espírito.
— Não se lembra dele? — perguntou a Redlaw. Não o conhece?
E, dizendo, encobriu a cara pela mão que antes passava pela testa. Em seguida, essa mão calosa caiu rudemente, brutalmente, sobre Redlaw.
— Malditos sejam! — exclamou ele volvendo em torno um olhar de sombria cólera. — Que é que me querem todos com as suas lamúrias? Eu tenho vivido sem medo e assim quero morrer. Vão para o inferno!
Proferidas estas maldições recaiu sobre o leito e tapou os ouvidos com as mãos, como se resolvido a tornar-se de todo inacessível aos bons conselhos e a morrer na sua impenitência.
Um raio não teria arremessado Redlaw mais violentamente de ao pé do leito. O ancião, que se afastara momentaneamente para o deixar falar com o filho, pareceu acometido de igual horror.
— William! Onde está o meu William? — dizia ele. — Fujamos depressa daqui. Voltemos para casa.
— Para casa, meu pai! — respondeu William. Que lembrança! Queria então abandonar o seu filho numa ocasião destas?
Que filho! — exclamou o velho. — Onde é que tu o vês?
— Ora essa! Ali, naquele leito de morte, meu pai — acrescentou em voz mais baixa.
— Esse homem não é meu filho! — contrariou Philippe trémulo de cólera. — Semelhante miserável não me é nada. Não o conheço. Os meus filhos têm um semblante agradável, cuidam de mim, preparam-me as minhas refeições, são-me úteis. De resto, eu tenho direito a que eles me sirvam, tenho oitenta e sete anos.
— Pois podia ficar por aí — murmurou William, em que se manifestavam os efeitos do contágio, olhando para o ancião com modo carrancudo; e enterrando as mãos nas algibeiras: — Ainda estou para saber para que serve um homem na sua idade. Parece-me que havíamos de viver muito mais descansados sem a sua pessoa.
— Ouve, senhor Redlaw? — disse o ancião. — Querem que este libertino seja meu filho. Sempre gostava de saber quais são os gostos que ele me tem dado?
Igual pergunta podia eu fazer — interrompeu brutalmente William. — Já me deu alguma hora de satisfação? E não obstante é meu pai...
— Ora, deixem-me ver — disse Philippe. — Quantos Natais tenho eu passado no aconchego do meu quarto, sem me expor ao gélido ar das noites de Inverno, comendo bem sem perturbar a minha digestão com um espectáculo tão lúgubre e tão miserável! Há pelo menos vinte Natais, não há, William?
— Diga antes quarenta, que eu saiba — murmurou William. — Na verdade, quando olho para o meu pai é que começo a pensar nisto... — acrescentou ele voltando-se para Redlaw com uma impaciência e uma irritação absolutamente insólitas. — Açoitado seja eu se posso ver neste venerável autor dos meus dias mais que um calendário de anos passados a comer, a beber e a regalar-se de todos os modos!
— Tenho oitenta e sete anos — tartamudeou Philippe inconscientemente, como se tivesse caído de súbito em demência — e parece-me que nunca houve nada que me fizesse perder as estribeiras. Havia de perdê-las agora, nesta idade, só porque lhes apraz dizer que este traste é meu filho? Meu filho, isto!
Ora adeus! Eu tenho passado muito bons tempos na minha vida. Lembro-me que um dia... pois não me lembro. Falece-me a memória, a mim que a tinha excelente! Tratava-se de uma partida de jogo de funda e de um amigo meu, mas a minha memória não me ajuda. O espelho dos tempos passados quebrou-se. Presentemente, pergunto quem podia ser. Parece-me que lhe queria muito. Que foi feito dele? Morreu sem dúvida. Deve ter morrido. Mas para que estou eu a pensar nisto? Que me importa a mim que morresse? Nada, absolutamente nada.
E fazendo ouvir um riso sonolento e encolhendo os ombros pôs-se a rebuscar as algibeiras, onde encontrou umas bagas de azevinho, que lá deixara provavelmente na véspera à noite e que começou a examinar.
— Bagas de azevinho! — disse ele. — É pena que só os pássaros o comam. Lembro-me de um tempo, era eu deste tamanho. Saí a passeio com... com quem saí eu?... Nada, não me lembro já do que foi. Porventura passeei eu com alguém? Interessei-me por alguém ou alguém se interessou por mim? Quando há bagas de azevinho é bom sinal; é tempo de bons pitéus. Quero, pois, o meu quinhão, quero ser tratado com todo o carinho, quero que me adivinhem os pensamentos; sim, tenho oitenta e sete anos, sou um pobre velho. Oitenta e sete anos!
E, dizendo isto, trincou e desfribou com ademanes de idiota as folhas do azevinho, cujos pedaços cuspiu em seguida. Mas o olhar frio, indiferente, que o filho mais novo, tão subitamente mudado, nele fixava, a persistente apatia do mais velho, que se finava incontrito, não actuaram por mais tempo no ânimo de Redlaw que, fazendo um violento esforço para se arrancar do lugar onde parecia ter criado raízes, saiu arrebatadamente.
Quando se aproximava dos arcos do aqueduto o seu guia saiu do esconderijo e perguntou-lhe:
— Vamos outra vez para casa da mulher?
— Vamos, sim, e quanto mais depressa melhor. Não te detenhas no caminho.
Durante algum tempo o rapazinho foi adiante, mas aquele regresso parecia mais uma fuga do que um passeio, de modo que o pequeno teve de deitar a correr para não deixar distanciar o químico, que estugava o passo com insólita rapidez. Afastando-se de todos os transeuntes, embuçado na vasta capa, que aconchegava ao corpo como se bastasse o contacto das suas pregas flutuantes para semear a peste, só parou junto da escura porta por onde tinham saído, abriu-a com a chave que trazia consigo, entrou segui do pelo pequeno e encaminhou-se para o quarto através dos escuros corredores. O pequeno ergueu os olhos para o seu misterioso companheiro quando este fechou a porta do quarto e, vendo-o olhar em volta, retirou-se para trás da mesa.
— Vá! Não me toque! Trouxe-me aqui para me tirar o dinheiro? Por única resposta o químico atirou-lhe com mais alguns xelins. O rapaz deitou-se imediatamente sobre eles, com medo de que Redlaw se tentasse e lhos tirasse outra vez, e só depois de ver o químico sentado à mesa com a cabeça entre as mãos se decidiu a apanhá-los furtivamente. Em seguida arrastou-se até junto do fogo e, sentando-se numa grande poltrona, tirou do seio umas poucas de côdeas que devorou olhando ora para o lume ora para os xelins que tinham ficado fechados na mão.
— Eis aí — disse Redlaw ainda com mais repugnância e temor. — Eis aí o único companheiro que me resta nesta terra...
Quanto tempo decorreu antes que pudesse eximir-se à contemplação da estranha criatura? Seria apenas meia hora ou metade da noite? Não podia dizê-lo, mas o lúgubre silêncio em que jazia o quarto foi subitamente quebrado pelo rapazinho, que já estava há pedaço de ouvido à escuta e que correu à porta.
— Vem aí a mulher! — exclamou ele.
O químico deteve-o no momento em que ele, ouvindo bater, se preparava para abrir a porta.
— Deixe-me ir com ela — exclamou o pequeno.
Logo irás — respondeu o químico. — Agora deixa-te estar. Não quero que ninguém entre nem saia: Quem está aí?
— Sou eu, senhor — exclamou Milly. — Queira ter a bondade de abrir.
— Não. Não abro por coisa alguma deste mundo.
— Senhor Redlaw, por quem é, deixe-me entrar.
— Que é que quer? — disse ele sem largar o rapazinho. — Que há de novo?
— O infeliz que vossa senhoria viu está muito mal; por mais que lhe diga persiste no seu endurecimento. O pai de William caiu subitamente em demência. O próprio William está mudado. Como foi isto não sei, o facto é que não é o mesmo homem: Oh! Senhor Redlaw, aconselhe-me, valha-me, por quem é!
— Não, não e não! — respondeu o químico.
— Senhor Redlaw, então! O George, na espécie de delírio sonolento em que caiu, falou no homem que vossa senhoria viu. Receia que ele atente contra a existência.
— Mais vale que se mate do que se aproxime de mim.
— O George diz que o senhor Redlaw o conhece — que foram amigos noutros tempos; que está arruinado; que é pai de um dos seus discípulos; se o coração me não mente, do que acaba de entrar em convalescença. Que se há-de fazer? Como se há-de encontrá-lo? Como se há-de salvá-lo? Por quem é, senhor Redlaw, aconselhe-me, valha-me nesta aflição!
Entretanto, o químico segurava o rapaz, que fazia esforços em vão para passar e abrir a porta.
— Fantasmas que punis os pensamentos ímpios — exclamou Redlaw volvendo em redor olhares repassados de angústia. — Atentai em mim Do meio da escuridão da minha alma, fazei brilhar o clarão do arrependimento que lá deve ocultar-se, estou certo, a fim de que a minha miséria se manifeste em toda a sua plenitude! Há muito que eu ensinava que no mundo material nada pode ser suprimido, ainda que seja um átomo, sem deixar uma lacuna na maravilhosa estrutura deste vasto universo. Reconheço agora que se dá outro tanto com o bem e o mal, com a ventura e com a desdita no coração dos homens. Tende compaixão de mim! Vinde em meu auxílio!
Por única resposta, ouviu a senhora William que continuava a bradar do lado de fora: Abra, senhor Redlaw, acuda-me! E o pequeno forçando sempre por ir ter com ela.
— Sombra de mim próprio, espírito das minhas mais tristes horas — exclamou Redlaw, cuja mente se exaltava cada vez mais —, volve a atormentar-me dia e noite, mas guarda este condão fatal, ou se é certo que dele me não posso libertar faz com que perca o poder terrível de o comunicar aos outros. Desfaz o que eu fiz. Deixa-me nas trevas, mas restitui a luz àqueles de quem fui a maldição. Tenho consegui do poupar esta mulher e, para que ela nunca venha a ser vítima do fatal contágio, estou resolvido a não mais sair deste quarto e a deixar-me morrer aqui, já que tenho por único companheiro da minha solidão esta criatura à prova do meu sinistro poder. Atendei-me!
A única resposta foi ainda o ranger dos dentes do rapazito que segurava à força e o clamor da pobre senhora William aumentando de energia:
— Acuda-me! Abra! Ele era seu amigo. Como se há-de encontrá-lo? Como se há-de salvá-lo? As únicas esperanças eram o senhor Redlaw. Por quem é; abra!
COMO O DOM É ANULADO
A noite envolvia ainda o céu nos seus espessos véus. Nas vastas planícies, do alto das colinas, da tolda dos navios singrando, avistava-se no horizonte escuro uma faixa menos turva que prometia tornar-se em breve luminosa, promessa vaga e ainda distante. Entretanto a Lua esforçava-se por se libertar das nuvens.
O mesmo turbilhão de sombras enchia o espírito de Redlaw e mascarava também a sua luz natural, como as nuvens errantes entre a Terra e a Lua. As revelações imperfeitas, os eclipses daquele espírito não eram menos estranhos e efémeros que as sombras espalhadas pelas nuvens, e se a luz as atravessa vaporizantes, não tardava que de novo a encobrissem, condensando-se ainda mais as trevas.
Lá fora, um silêncio profundo e solene envolvia o velho edifício, cujos contrafortes e ângulos projectavam sombras movediças, que ora parecia enterrarem-se na neve, ora surgir dela. Lá dentro, o quarto do químico jazia imerso numa escuridão contra a qual lutava debalde a luz da lâmpada prestes a extinguir-se. Um lúgubre silêncio sucedera às súplicas de Milly batendo à porta. Nada mais se ouvia, a não ser de tempos a tempos um surdo murmúrio no meio das brancas cinzas do braseiro, que exalava o seu último suspiro. No chão, diante da chaminé, jazia o pequeno profundamente adormecido. O químico conservava-se sentado na sua poltrona, desde que Mrs. William deixara de bater; dir-se-ia um homem convertido em pedra.
De súbito, recomeçou a música do Natal que já tinha ouvido. Escutou-a a princípio conforme a escutara no cemitério, sem comoção de espécie alguma mas, como se as brisas da noite lhe acariciassem o ouvido, com os seus acordes tão suaves, tão melodiosos, tão melancólicos, levantou-se e estendeu as mãos em redor, como se alguma pessoa amiga se aproximasse e que o seu contacto lhe não pudesse causar dano. Ao mesmo tempo a sua fisionomia assumiu uma certa fixidez e exprimiu admiração. Redlaw estremeceu, os olhos inundaram-se-lhe de lágrimas; ele comprimiu-os com ambas as mãos e deixou pender a fronte.
A memória dos pesares, dos agravos, das provações passadas não voltara; bem o sabia e nem tinha já esperanças de a recuperar. Mas no seu peito passava-se o que quer que fosse de vago, que o tornava susceptível de comover-se com o que poderíamos chamar a alma da música. E conquanto só pudesse relembrar o valor do que perdera, nem por isso deixava de dar graças ao céu com grato fervor.
No momento em que os últimos sons lhe chegaram aos ouvidos, levantou a cabeça para melhor apreender as suas vibrações moribundas. Do lado de lá do rapazinho que dormia com a cara quase arrumada aos seus pés, erguia-se o espectro, móvel e silencioso, com os olhos cravados em Redlaw.
O seu aspecto era mais lúgubre que nunca, nada tinha de menos cruel, de menos implacável. Pelo menos foi o que se afigurou ao químico, que olhava para ele tremendo. O espectro não estava sozinho, a sua mão vaporosa segurava outra mão.
A quem pertencia essa mão?
A mulher que se conservava ao lado do fantasma era a meiga Milly ou a sua sombra? Como Milly, inclinava um pouco a fronte sobre o ombro e os seus olhos contemplavam com ar de piedade a criança adormecida. Um raio de pura luz iluminava-lhe o semblante, mas sem se reflectir no fantasma, sempre lívido e sombrio.
— Espectro! — exclamou o químico, cada vez mais perturbado perante aquele espectáculo. — Eu nunca me mostrei duro nem orgulhoso para com ela. Oh! Não a tragas aqui. Poupa-me essa dor!
— Aqui só está uma sombra — respondeu o fantasma. — Quando romper a manhã busca a realidade cuja imagem te apresento.
— É então esse o meu destino inexorável? — exclamou o químico.
— É, sim — replicou o espectro.
— Estarei condenado a destruir a paz, a bondade dessa alma santa — a fazer dela o que fiz de mim e que tenho feito dos outros.
— Disse-te que a buscasses logo que rompesse a manhã, nada mais.
— Oh! Diz-me — exclamou Redlaw abraçando a esperança que entrevia nestas palavras —, poderei porventura desfazer o que fiz.
— Não — respondeu o espectro.
— Eu não peço que me restituas a mim próprio — prosseguiu o químico. — É justo que perdesse o bem de que livremente me desfiz; se te imploro, é por aqueles a quem transmiti o fatal condão, que nunca desejaram, e sobre os quais caiu inesperadamente uma maldição a que não podem eximir-se. Nem por esses poderei obter mercê...
— Não — respondeu o espectro.
Mas, se eu não posso, não poderá outrem?
Imóvel como uma estátua, o espectro, que de há muito tinha os olhos cravados em Redlaw, voltou subitamente a cabeça e olhou para a sombra que tinha a seu lado.
— Ah! — exclamou Redlaw. — Será possível que ela tenha esse poder...
O fantasma largou a mão que segurava na sua e acenou brandamente à sombra que se afastasse. Sem mudar de posição, a imagem de Milly começou a esvair-se lentamente.
— Suspende — exclamou Redlaw, com um sentimento de ansiedade que não podia exprimir por palavras —, detém-te um instante, espectro misterioso. É um acto de misericórdia que te imploro! Sei que se operou uma mudança em mim quando há pouco escutava os sons que vibravam no ar. Dizes-me se perdi o condão de ser nocivo? Se posso sem medo acercar-me dela? Permite-me ter um sinal de esperança.
O espectro olhou para a sombra de Milly que se afastava, mas não olhou para Redlaw nem lhe respondeu.
— Diz-me ao menos se ela já tem a consciência do poder que me atribuiste?
— Procura-a assim que romper o dia — respondeu o fantasma.
A sombra de Milly continuava a sumir-se. Homem e espectro acharam-se outra vez face a face, e olharam um para o outro tão fixamente, tão lugubremente como por ocasião da outorga do dom. O rapazinho jazia entre ambos, aos pés do espectro.
— Terrível conselheiro — disse-Lhe o químico, ajoelhado diante dele com gesto suplicante —, tu que me renegaste, mas que te dignas visitar-me ainda, diz-me que o teu aspecto mais brando me deixa entrever um raio de esperança. Obedecerei â tua vontade sem procurar perscrutá-la, e dar-me-ei por satisfeito se o brado que na angústia da minha alma fiz ecoar nos teus ouvidos tiver sido atendido ou o for em breve a favor daqueles a quem fiz mal humanamente reparável. Há porém, uma coisa...
— Referes-te a esse infeliz que aí jaz estendido? interrompeu o espectro apontando para o rapazito.
— Refiro, sim — confirmou o químico. — Sabes que eu quero perguntar. Por que razão é este pequeno a única criatura à prova da minha influência? Porque é que descobri nos seus pensamentos uma tão medonha semelhança com os meus?
— Essa criança — disse o espectro — é o tipo mais completo de uma criatura privada de todas as reminiscências a que renunciaste. Nenhuma memória dos pesares ou dos ultrajes que infligiu, das injúrias que recebeu, das provações por que passou, ilumina o seu espírito nem fala ao seu coração. Logo à nascença esse infeliz foi votado a uma condição pior que a do brutos. Tudo nele é um deserto árido. Tudo, no homem privado das recordações de que tu voluntariamente te desfizeste, é por igual estéril e desolador:
Desgraçado de semelhante homem! E uma e mil vezes desgraçada a nação em cujo seio semelhantes monstros da ordem moral se contem aos centos e aos milhares!
Redlaw estremeceu.
— Não há — prosseguiu o espectro — um só destes entes desgraçados, um só, que não semeie uma seara que o género humano enceleirará a seu tempo. Cada semente do mal lançada à terra por essa criança será o bastante para cobrir todo um campo de desgraças e de ruínas, cujas messes não deixarão de ter ceifeiros que as aproveitem para novas sementeiras, e vastas regiões serão, enfim, cobertas de tantas iniquidades que, para as varrer, seriam necessárias as águas de um novo dilúvio. Menor crime que semelhante espectáculo seria tolerar o assassínio em pleno dia nas ruas de uma grande cidade! — E, enquanto dizia isto, olhava para o pequeno que Redlaw contemplava com estranha comoção. — Não há — disse o espectro — um sópai que a toda a hora do dia e da noite não encontre semelhantes criaturas no seu caminho, não há uma única mãe entre as mães mais extremosas de todas as classes da sociedade nem há um único homem na idade em que o homem tem a consciência de si próprio que não sejam de certa maneira responsáveis por estas monstruosidades. Não há um país no mundo que não concite, tolerando-a, a maldição do céu, não há uma religião de que ela não seja a negação, nem há um povo que dela não se envergonhe!
O químico juntou as mãos e, com redobrado terror e compaixão, deixou de contemplar o pequeno e levantou os olhos para o espectro que se conservava de pé apontando para ele com o dedo.
— Vê — prosseguiu o fantasma — o tipo perfeito do que tu quiseste ser. A tua influência nada pode contra ele, porque do seio dessa criança debalde procurarias banir alguma coisa. Os seus pensamentos são doravante os pavorosos companheiros dos teus, porque desceste de súbito ao seu nível. Esta criança é o produto da indiferença do homem; a tua situação é fruto da presunção deles. Os benéficos desígnios da Providência foram invertidos em ambos os casos cada um partiu do seu pólo do mundo material, e nem por isso deixaram de se encontrar.
O químico inclinou-se para a criança e com o mesmo sentimento de compaixão que professava por si próprio cobriu-a com a capa, sem manifestar horror nem indiferença.
Não tardou que a faixa longínqua do horizonte aclarasse, que as sombras se dissipassem e o Sol se erguesse na sua púrpura e no seu esplendor; as chaminés e os telhados do velho edifício desenharam-se; no ar luminoso que transformava o fumo e as vaporações da cidade numa nuvem de ouro. O próprio relógio de sol, no seu canto sombrio, onde o vento redemoinhava e zumbia com tanta constância, parecia sacudir os mais belos flocos, acumulados na sua triste e velha face durante a noite, e mirar entre sorrisos as pequeninas grinaldas brancas que dançavam em volta dele. Um raio matutino penetrara também, como que às apalpadelas, na velha cripta esquecida, cujas arcadas normandas jaziam meio enterradas no solo. O dia a alvorecer despertava também a seiva adormecida na vegetação preguiçosa que atapetava o sopé dos muros; e activava igualmente, por um secreto aviso do Sol nascente, o lento princípio da vida no pequeno mundo da delicada e maravilhosa criação perdida no fundo daquela espécie de poço.
Pelo seu lado, os Tetterbys estavam já a pé e em acção. Tetterby pai tirava os taipais das portas e patenteava sucessivamente todos os tesouros do estabelecimento aos olhos da população de Jerusalem Buildings, população até então refractária a semelhantes seduções. Adolf já tinha saído há tanto tempo que devia achar-se no meio do período consagrado ao jornal da manhã. Cinco Tetterbyzinhos, cujos dez olhos redondos se mostravam momentaneamente avermelhados pelo sabão e por enérgicas fricções, sofriam os tratos de uma ablução fria na antessala da loja; Mrs. Tetterby presidia à operação, Johnny, que era obrigado a vestir-se com a maior presteza quando Moloch amanhecia de má catadura, o que era muito frequente, passeava de cá para lá, vergado ao peso do seu fardo, defronte da loja. O peso de Moloch aumentara muito nesse dia com uma complicada série de abafos de malha de lã e constituindo uma armadura completa: cota de malha, braçais, coxotes, celada e grevas azuis. Moloch — por outra, a menina Sally tinha a particularidade de todos os dias lhe estarem a romper dentes. Se realmente eles rompiam, ou se se sumiam depois do romper, eis o que nós nunca pudemos averiguar, mas, a dar crédito a Mrs. Tetterby e a ajuizar pelo número de dentes por ela denunciados, era mais que certo que a pequena viria a ter uma dentadura capaz de guarnecer as queixadas de meia dúzia de crocodilos. Não havia nada que não fosse requisitado para alívio de Moloch e das suas gengiva sem contar que trazia sempre à cinta, isto é, imediatamente por debaixo da cabeça, uma enfiada de objectos de osso das dimensões de um rosário estavam-lhe alternadamente a morder cabos de facas; cabos de guarda-chuvas, ponteiras de bengalas, os dedos da família em geral e os do Johnny em particular, quebra-nozes, côdeas de pão duro, as argolas das portas e até o álgido ferro com que atiçavam o lume. A porção de electricidade que Moloch não podia deixar de desenvolver por atrito nestes corpos, no espaço de uma semana, ninguém seria capaz de a calcular. Mrs. Tetterby repetia sem cessar que o dente estava a romper, que era ter mais um pouco de paciência, porque a menina não tardaria em recuperar a sua natural mansidão, mas o facto é que o dente não rompia e que a menina cada vez parecia mais brava. A índole turbulenta dos Tetterbyzinhos não sofrera modificação para melhor nas últimas horas e outro tanto sucedia com os seus progenitores. Naturalmente bons, acomodatícios, conformando-se com as vicissitudes do tempo, aceitando de boa sombra o estritamente necessário, quando assim era preciso, o que sucedia quase todos os dias, suprindo a abundância com a alegria, os Tetterbyzinhos digladiavam-se agora com todo o rancor, não só por causa do sabão e da água, senão e principalmente por causa do almoço em perspectiva. Cada um deles levantava a mão contra os outros, e até o próprio Johnny, o paciente, o sofredor, o dedicado Johnny, se insurgiu contra a irmã que trazia nos braços! Sim, Mrs. Tetterby, aproximando-se casualmente da porta, viu o pequenino traidor aplicar ao ídolo uma correcção fraterna.
Perante este espectáculo inesperado, Mrs. Tetterby perdeu a cabeça, agarrou Johnny pela gola da japona e, veloz como um raio, arrastou-o para dentro de casa, onde lhe retribuiu com usura a correcção dada.
— Bruto, criminoso — disse Mrs. Tetterby —, como tiveste coragem para fazer uma coisa dessas?
— E porque é que os dentes lhe não acabam de romper? — replicou Johnny com ar rebelde. — Se estivesse no meu caso também se havia de divertir muito...
— Divertir-me muito, serpentão! – exclamou Mrs. Tetterby aliviando-o provisoriamente do fardo — que tinha em tão pouco apreço.
— Sim, queria vê-la no meu lugar — prosseguiu Johnny. — Fartava-se logo, largava o nené e a assentar praça. Também eu quero ser soldado; mais vale andar com a arma ao ombro... ao menos no exército não há dessa fazenda!.
O Sr. Tetterby chegava nesse momento ao teatro da guerra, mas em vez de castigar o rebelde afagou a barba em silêncio, como quem se impressionara com aquele último ponto de vista da vida militar.
— Se lhe dás razão — disse Mrs. Tetterby olhando de soslaio para ele — eu é que lamento não ter seguido a carreira das armas, porque nesta casa não há um momento de paz. Sou uma escrava, uma escrava da Virgínia. Alguma vaga reminiscência da infrutuosa excursão dos dois cônjuges no comércio do tabaco surgiu sem dúvida esta última comparação Mrs. Tetterby. É como digo, entra e sai o ano sem que eu tenha um único dia de folga, de distracção. Deus nos proteja e se apiede desta criança — acrescentou ela sacudindo Moloch com uma irritabilidade menos concorde com tão piedosa aspiração. — Que tem ela agora?
Não podendo atinar com o que tinha Moloch, e vendo que era debalde que a agitava nos braços, Mrs. Tetterby deitou com mau modo a pequena no berço e começou a embalá-la com um pé colérico, cruzando os braços.
— Porque ficas aí pregado como uma pedra, Adolph? — perguntou Mrs. Tetterby ao marido. Porque não vais fazer alguma coisa?
— Porque não me importa coisa alguma, ao que parece — replicou o interpelado.
Pois também eu posso dizer o mesmo asseguro-te, vou até jurá-lo.
Uma diversão operada por Johnny e pelos cinco irmãos veio interromper este diálogo. No afã de porem a mesa de colaboração para o almoço da família; os seis diabretes travaram uma rixa por causa do pão e desandaram ao tabefe. O mais pequeno, com uma inteligência precoce, saíra do círculo dos com batentes, e incomodava-os beliscando-lhes as pernas. De súbito, os dois cônjuges caíram a um tempo no meio da refrega, como se estes casos fossem os únicos em que se pudesse proceder de acordo e, como neles não restava vestígio visível da sua natural bondade, multiplicaram à porfia os actos da sua justiça distributiva. Em seguida, postos os combatentes em debandada, os dois retomaram as primitivas posições.
— Em vez de estares para aí sem fazer nada — insinuou Mrs. Tetterby — porque não vais ler o jornal?
— O jornal! De que me serve ler um jornal? Que é que se fica a saber?
— Ora essa! — exclamou Mrs. Tetterby. — Isso não me parece teu. Lê a secção dos tribunais.
— Para quê? — inquiriu o marido. — Tanto me importa o mal que fazem os homens como aquele que lhes é feito!
— Lê os suicídios — acrescentou a esposa.
— Não tenho que ver com isso — replicou o marido.
— E os nascimentos, os óbitos, os casamentos, também não tens que ver com eles? Diz!
— Se os nascimentos acabassem um belo dia, a datar de hoje, por exemplo, e os óbitos se sucedessem sem interrupção, a datar de amanhã, suponhamos. .
era-me igualmente indiferente, a não ser que me tocasse a vez a mim — resmungou o Sr. Tetterby. – Pelo que respeita aos casamentos, estou suficientemente inteirado...
A julgar pela sua expressão carrancuda e pelos seus ademanes Mrs. Tetterby parecia não fugir naquele tópico, às ideias do marido; isso, porém, não obstou a que o contradissesse pelo prazer de dar azo a uma discussão.
— Oh! És um homem muito de acordo contigo mesmo, em verdade — disse ela. — Desdenhas dos jornais! Tu, que forraste este biombo de pedaços de periódicos, que lês aos pequenos durante horas sem fim!
— Emenda-lá que lia", fazes o favor — replicou o marido. — Isso acabou. Agora tenho mais juízo.
— Sim? Tens mais juízo, julgas isso? — interrompeu Mrs. Tetterby. — Sentes-te melhor?
Esta pergunta soou como uma nota discordante aos ouvidos do Sr. Tetterby.
Que eu saiba nenhum de nós se pode considerar melhor nem mais feliz — disse ele. — Sentes-te tu melhor?
E, voltando-se para o biombo, percorreu-o com o dedo até encontrar um certo paragrafo.
— Nenhuma das passagens predilectas da família, lembro-me bem — disse ele com ar desolado e estupefacto —, arrancava mais lágrimas a todos os pequenos e lhes fazia melhor, quando havia entre eles discórdia ou descontentamento. Era a história do pintarroxo na floresta que os comovia mais. Leiamos:
Lamentável Cena de Perjúrio. Ontem um homem que seguia o caminho da ronda com uma criança nos braços, rodeado de mais meia dúzia de rapazinhos, de idades entre os dois e os dez anos, e todos, evidentemente, a morrerem de fome, foi conduzido à presença do nosso digno magistrado, onde fez a seguinte narração:
— Na verdade — observou Tetterby —, acham que isto nos pode interessar?
— Como ele está velho e acabado! — murmurou Mrs. Tetterby mirando-o às furtadelas. — Nunca vi num homem uma mudança tão completa. Oh! Meu Deus! Meu Deus! Que sacrifício!
De que sacrifício falas tu? — perguntou-lhe ele com azedume.
Mrs. Tetterby meneou a cabeça e, sem lhe dar resposta, agitou o berço com a mesma violência com que o vendaval sacode um navio.
— Queres dizer que o nosso casamento foi um sacrifício?
— Tal qual, adivinhaste.
— Muito bem — prosseguiu o Sr. Tetterby, em tom cada vez mais áspero —, mas há duas maneiras de encarar a questão e, se alguém foi sacrificado, parece-me que fui eu. Porque não recusaste o meu sacrifício?
— Efectivamente, porque o não recusei, senhor Tetterby? De todo o meu coração e de toda a minha alma o lamento.
É impossível que o lamentes mais que eu.
— Na verdade — murmurou o vendedor de jornais —, não sei onde tinha eu os olhos; se é certo que ela tinha um não sei quê, esse não sei quê já lá vai há muito; era o que eu pensava ontem à noite depois da ceia, quando me sentei à lareira. Engordou demais, fez-se velha, não tem comparação com a maior parte das mulheres.
— Que cara tão ordinária! — refilava pelo seu lado Mrs. Tetterby. Não tem nada que componha; é baixo, começa a curvar-se, e até se vai fazendo calvo.
— Na verdade, eu não tinha o juízo todo quando caí em semelhante ratoeira — continuou o marido.
— Não há que ver — prosseguia a consorte —, tinha perdido o uso dos sentidos. Não posso explicar de outro modo a minha asneira.
Foi nesta disposição que os dois cônjuges abancaram à mesa do almoço. Os Tetterbyzinhos não estavam habituados a considerar esta refeição como uma ocupação sedentária; desempenhavam-na bailando e saltando; era assim que o almoço deles mais parecia a selvática cerimónia de uma dança de guerrandia;
Os seis traquinas soltavam gritos agudos, brandiam as suas fatias, saíam para a rua e tornavam a entrar, descrevendo as curvas mais complicadas, saltando os degraus da porta. Ao tempo, a luta que tinham travado para se apoderar da caneca comum de leite que estava sobre a mesa oferecia um tão deplorável exemplo de más paixões levadas ao paroxismo, que era um verdadeiro ultraje à memória do doutor Watts.
O Sr. Tetterby viu-se na necessidade de expulsar todo o bando a fim de obter uma pequena trégua, trégua interrompida ainda pelo regresso de Johnny, que na sua indecente e sôfrega precipitação queria sorver tudo de um trago e sufocava com a cara dentro da caneca, de onde a sua voz saía fazendo lembrar a de um ventríloquo.
— Estes rapazes hão-de dar comigo na sepultura disse Mrs. Tetterby depois de banir o culpado da sua presença. — E oxalá seja quanto antes!
— Os pobres — acrescentou o senhor Tetterby — não deviam ter filhos. Que gostos nos dão eles?
O vendedor de jornais decidiu-se a pegar na chávena que a mulher arremessara para diante dele, e Mrs. Tetterby ia levar a sua à boca quando ambos se detiveram, como se se sentissem subitamente petrificados pela varinha mágica de alguma fada. — Meu pai! Minha mãe! — bradava Johnny, o mais desembaraçado da família, quando se via livre de Moloch, agora no berço. — Vem aí Mrs. William pela rua abaixo!
E se desde que o mundo é mundo sucedeu alguma vez um mocinho levantar do seu berço uma criança com todo o cuidado de uma velha ama, balouçá-lo com carinho e levá-lo alegremente nos braços, foi Johnny esse mocinho e Moloch essa criança.
Tetterby pai pousou a chávena, Mrs. Tetterby fez outro tanto. O semblante do vendedor de jornais desanuviou-se e iluminou-se como por encanto; no de Mrs. Tetterby operou-se igual mudança.
Deus me perdoe — disse o Sr. Tetterby de si para consigo —, mas deixei-me arrastar pelo meu mau humor. Que serias to sem mim?
Como foi que pude tratá-lo tão mal depois de tudo o que disse e pensei ontem à noite!, — suspirou Mrs. Tetterby levando o avental aos olhos.
— Sou um bruto — exclamou o Sr. Tetterby —, não me resta um único sentimento humano! Sophia! Minha querida mulherzinha!
— Meu querido Dolphus!
— Não imaginas a má disposição de espírito em que me achava — disse o Sr. Tetterby. — Até eu próprio me horrorizo!
— Por mais que digas, não será nada em comparação do que se passava em mim, meu Dolf — exclamou a esposa dando livre curso à sua dor.
— Minha Sophia — acudiu Tetterby —, sossega.
Crê que nunca perdoarei a mim mesmo. Por pouco não te despedacei o coração, estou certo.
— Não, meu Dolf; eu é que sou a culpada! — exclamou Mrs. Tetterby.
— Minha querida mulherzinha, então, sossega! A tua grandeza de alma torna ainda mais terríveis as acusações que faço a mim próprio. Sophia, minha querida Sophia, tu estás longe de imaginar o que eu pensei. Procedi mal, não há dúvida, mas o que eu pensei foi mil vezes pior.
— Oh Dolf, não mo digas. Não me digas nada.
— Sophia, é necessário que me confesse totalmente para que possa voltar-me a paz à consciência.
— Mistress William não tarda aí — bradou Johnny, sem se tirar da porta.
— Acreditas, minha querida mulherzinha — volveu o Sr. Tetterby tão violentamente comovido que se via na necessidade de se encostar à cadeira —, acreditas que cheguei a perguntar à mim mesmo como foi que pude admirar-te. Não me lembrava dos preciosos filhos que me tens dado, não te achava tão atraente como dantes. Não me passaram sequer pela mente — acrescentou ele continuando o seu rigoroso exame de consciência — os dissabores por que tens passado depois de casada, os desgostos que eu e os meus te temos dado, desgostos que poderias evitar casando com um homem em melhor situação, o que te não era difícil. E buscava um motivo para te fazer zangar. E não te podia perdoar o teres envelhecido um pouco ao cabo de tantos anos de labor que em tanta maneira me aligeiraste! Poderás acreditar em tão negra ingratidão, minha Sophia!
Rindo e chorando ao mesmo tempo, Mrs. Tetterby tomou sofregamente a cabeça do marido entre as mãos, e exclamou:
— Ah Dolphus, quanto sou feliz em saber que pensaste o que dizes! Quanto te sou grata, porque isso alivia-me um pouco a consciência. Imagina que também eu te achava uma cara ordinária, quero dizer que, habituada a ver-te todos os dias, não tinhas já para mim o encanto da novidade. Ai de mim! Permita Deus que os meus olhos não vejam outro bem, até que tu mos feches. Depois, pensei que começavas a curvar-te, e isso é verdade, mas aconchegar-te-ás ao meu braço, eu farei por te amparar e guiar. Achava, enfim que não tinhas boa presença, nem bom ar; mas tu tens a melhor presença possível, tens o ar de um bom homem, de um bom chefe de família, o ar de lar doméstico, o ar melhor, o mais puro, e Deus abençoe mais uma vez a nossa casa e tudo quanto lhe pertence, meu querido Dolf!...
— Hurrah... Chegou Mistress William... — exclamou Johnny.
Efectivamente era a boa Milly rodeada pelos Tetterbyzinhos. Os pequenos não se fartavam de a abraçar e beijar e se se desprendiam dela era para se abraçarem e se beijarem uns aos outros, à irmã pequenina e aos pais.
Depois começavam às correrias; dançavam, pulavam, escoltavam-na em triunfo.
Os pais não lhe fizeram uma recepção menos cordeal. A atracção era a mesma; correram ao seu encontro, abraçaram-na, beijaram-lhe as mãos, desentranharam-se enfim em extremos de entusiástico afecto para com a santa criatura que Lhes entrava em casa como um génio bom, com um espírito de bondade, de doçura, de amor, de paz doméstica.
— Festas felizes! Festas felizes! — exclamou Mrs. William. — Mas que contentamento, que alegria é esta, só de me verem Como sou feliz, meu Deus!
E eram tantos os gritos infantis, tantos os beijos e os abraços, era tal o afã, a satisfação, a estima, a alegria, a veneração de que se via alvo que a pobre Milly sufocava!
— Oh! Meus queridos amiguinhos — disse ela. Que deliciosas lágrimas me fazem chorar! Em que mereci eu isto? Que fiz para ser tão querida?
— O que fez? — exclamou Mrs. Tetterby.
— O que fez? — exclamou o Sr. Tetterby.
— O que fez? — repetiram os pequenos em coro. E agruparam-se novamente em volta dela, dançando, saltando, pendurando-se-lhe às saias, colando-lhe as faces rosadas ao vestido, beijando-a, acariciando-a numa efusão de ternura sem fim.
— Nunca me senti tão comovida como hoje — disse Milly enxugando os olhos. — Eu já lhes digo quando puder falar. O senhor Redlaw foi procurar-me logo ao romper do sol, e com tanto extremo como se eu fosse uma filha predilecta em vez de ser simples mente o que sou, pediu-me para o acompanhar à casa onde ficou George, o irmão de William. Fomos, e durante todo o caminho mostrou-se tão bondoso, tão sincero, parecia ter tanta confiança, tanta esperança em mim, que até chorei de contentamento: Chegados à tal casa, encontramos à porta uma mulher que parecia ter sido objecto de muito maus tratos, a julgar pelas contusões que lhe viam pela cara e pelos braços. Essa mulher, quando eu ia a passar, agarrou-me na mão e beijou-ma.
— Fez o que devia — disse o Sr. Tetterby, confirmou a mãe e repetiram os filhos em coro.
— Mas não pára aí — volveu Milly. — Quando entrámos no quarto, o doente, que jazera durante muitas horas num estado de prostração de que não havia despertado, sentou-se na cama e, desatando a chorar, estendeu-me os braços, disse-me que tinha levado uma vida de perdição, de que se arrependia sincera mente; que o passado era para ele como que uma vasta perspectiva largo tempo envolta em negras nuvens e cujo véu acabava de dissipar-se; pedia-me que implorasse de seu velho pai o seu perdão e a sua bênção e que eu própria rezasse uma oração junto do seu leito. Quando rezava, o senhor Redlaw aproximou-se e orou também fervorosamente; e tantas vezes e com tal veemência se congratulou comigo que o coração parecia saltar-me do peito. Ainda agora estaria a chorar e a soluçar se o doente me não tem pedi do que me sentasse a seu lado. Fiz-lhe a vontade, ele pegou-me na mão e assim ficou até cair outra vez em modorra; mas, quando eu me levantei para me vir embora, deu logo pela falta, a sua mão procurou a minha, e foi necessário que outra pessoa tomasse o meu lugar para lhe fazer crer que eu estava ali. Oh! Meu Deus! Meu Deus! — disse Milly com os olhos rasos de água. — Dai-me palavras com que vos possa manifestar condignamente o júbilo da minha alma!
Redlaw acabava de entrar, e depois de os seus olhos fixarem por momentos aquele grupo, subiu silenciosamente a escada. Não tardou que o vissem aparecer no patamar, onde parou, ao mesmo tempo que o estudante passava a seu lado e descia rapidamente.
— Oh! Minha boa enfermeira! A mais afectuosa e melhor das criaturas — disse ele ajoelhando aos pés de Milly e pegando-lhe na mão —, perdoe-me a minha cruel ingratidão!
— Deus de bondade — exclamou inocentemente Milly. — Mais outro que me quer bem! Que faria eu para merecer tanta ventura?
O modo com que proferiu estas palavras e com que levou as mãos aos olhos para ocultar as lágrimas tinha tanto de ingénuo como de enternecedor.
— Não estava em mim — disse o estudante —, foi decerto uma das consequências da doença. Estava doido, mas já o não estou. Recuperei a saúde e a razão. Ouvi os pequenitos a aclamá-la e não foi preciso mais para que se dissipassem as trevas que envolviam o meu espírito. Por quem é, Milly, não chore! Se pudesse ler no meu coração, se soubesse a estima e a gratidão que nele lhe consagro não havia de querer condenar-me a vê-la chorar. Bem amargas são as recriminações que a mim mesmo tenho feito!
— Não, não — disse Milly —, não é isso, creia; se choro, é de contentamento; não tinha que pedir-me perdão por tão pouco; todavia dá-me prazer com isso.
— E continuará a vir ver o seu doente? Acabará a cortina?
— Não — disse Milly, enxugando os olhos e fazendo um gesto negativo. — Agora já não precisa do trabalho da minha agulha.
— E diz que me perdoa?
Mrs. William chamou-o de parte e disse-lhe ao ouvido:
— Há notícias da sua casa, senhor Denham.
— Notícias? Como?
— O seu mutismo quando estava mais doente, ou a mudança da letra, quando começou a melhorar fizeram com que se suspeitasse a verdade. É certo que... em todo o caso o senhor Denham não há-de desgostar de ter notícias, contanto que não sejam más, não é verdade?
— Certamente.
E além disso está cá uma pessoa — disse Milly.
— A minha mãe? — perguntou o estudante, olhando involuntariamente para Redlaw, que acabava de descer a escada.
— Silêncio! Não, não é a sua mãe — disse Milly.
— Não pode ser outra pessoa.
— Está bem certo disso?
— Só se fosse... — não pôde completar o pensamento, porque Milly pôs-lhe a mão na boca.
— Sim, é ela mesma! A tal menina que se parece muito com a miniatura que está no quarto, mas que é ainda melhor; estava ansiosa por esclarecer as suas dúvidas. Foi por isso que chegou ontem, em companhia de uma criada. Como o senhor Denham datava sempre as suas cartas do colégio, foi lá que se dirigiu.
Antes de estar esta manhã com o senhor Redlaw, estive com ela. Também ficou sendo muito minha amiga — ajuntou Milly. — É mais uma!
— Esta manhã! — repetiu o estudante. — E onde está agora?
— Agora — segredou Milly — está lá em casa, à sua espera...
O estudante apertou-lhe a mão e correu para a porta, mas ela deteve-o, ajuntando:
— O senhor Redlaw está muito mudado; disse-me esta manhã que tinha perdido a memória. Tenha toda a contemplação com ele, senhor Denham; precisa dela, e todos nós lha devemos.
O estudante significou-lhe com o gesto que podia ficar descansada e, ao passar por diante do químico inclinou-se com respeito e com visível interesse.
Redlaw retribuiu-lhe cortêsmente o cumprimento, seguiu-o com os olhos até ele desaparecer, e passou depois a mão pela testa como se quisesse evocar alguma reminiscência perdida. Foi debalde.
A mudança que nele se operara mercê da música e depois da desaparição do espectro permitia-lhe saudade do que perdera. Podia já agora lastimar a sua condição, compará-la com a condição natural dos que o rodeavam. Foi assim que nele acordou um certo interesse pelos outros homens, um sentimento humilde e resignado do seu infortúnio, sentimento análogo ao que se manifesta não raro na velhice, quando as faculdades mentais começam a enfraquecer, sem que a insensibilidade e a misantropia venham aumentar o rol das enfermidades.
Redlaw tinha a consciência de que, à medida que reparava por intermédio de Milly o mal que tinha feito, e quanto mais se achava em contacto com ela, mais essa mudança se aproximava do seu final. Era por isso que, sem nutrir outra esperança, compreendia estar na completa dependência dela, e que a boa Mrs. William era, por assim dizer, o bordão da sua velhice moral e da sua aflição.
Quando ela lhe perguntou se queria voltar para casa, onde o ancião e William os esperavam, respondeu pressurosamente que sim, deu-Lhe o braço e saiu humildemente com ela, não como se fora o sábio para quem os mistérios da Natureza eram um livro aberto e Mrs. William o espírito simples e inculto, mas como se ele não soubesse nada e ela soubesse tudo.
As crianças rodearam Mrs. William e cobriram-na de carícias quando ela saiu pelo braço do químico. Redlaw ouviu o coro alegre dos seus clamores e dos seus risos, viu-lhes os frescos rostos rosados. O químico tivera também ocasião de observar o contentamento dos pais, a boa harmonia em que ficavam, e acabava de respirar o doce remanso daquela humilde habitação onde momentaneamente espalhara um mau ar, que, se não fosse Milly, continuaria a murchar todos os sãos pensamentos daquela boa gente. Não era, pois, para admirar que, reflectindo em tudo isto, caminhasse ao lado dela, com ar submisso, e se achegasse, como a um santo abrigo, do peito que nutria tão castos e tão afectuosos sentimentos.
Chegados à loja do porteiro, encontraram o ancião sentado na sua poltrona, a um canto da lareira com os olhos cravados no chão. William, encostado ao outro canto, contemplava tristemente o pai.
— Oh! Meu Deus, meu Deus — exclamou Milly — parece que também tiveram alegria em me ver. Mais dois que me querem bem!
Alegria ainda não era a palavra bastante.
A boa Milly correu para o marido que lhe abria os braços e assim poderia ficar todo o dia, com a cabeça no ombro dele, que o Sr. William havia de achar o dia muito pequeno; mas o velhinho não prescindia, também de a abraçar, de a estreitar ao coração.
— Onde esteve a minha boa Milly que se demorou tanto tempo? — perguntou ele. — Eu não posso passar sem ela... Mas onde está o meu William? William parece que estive a sonhar.
— Era o que eu dizia a mim mesmo, pai — respondeu William. — Parece que tive um pesadelo; como se acha o pai esta manhã? Bem?
— Nunca me senti melhor — replicou o ancião. Era um encanto ver William apertar nas suas as mãos do seu velho pai, dar-lhe pequenas palmadas nas costas, sacudir-lhe cuidadosamente o pó do casaco, manifestar-Lhe enfim, por mil modos, o seu interesse e o seu amor filial.
— O pai é um homem admirável! Com que então, acha-se mesmo bem? Está hoje mais bem disposto? disse William recomeçando a sua pantomima.
— Nunca me senti tão rijo nem tão fresco, meu rapaz.
— Na verdade, é um homem espantoso! Rejuvenesce todos os dias; mas as coisas são o que são; é exactamente o que eu digo — prosseguiu William com entusiasmo. — Quando penso tudo quanto meu pai tem sofrido, nas vicissitudes, nos desgostos, nos trabalhos por que tem passado no decurso da sua longa vida, e que lhe têm embranquecido a cabeça, vergada ao peso dos anos, parecem-me poucos todos os cuidados, todos os carinhos, todos os extremos de que se rodeia a sua velhice. Diga, sente-se realmente bom, rijo?
William não acabaria decerto de repetir estas perguntas, nem de apertar a mão do pai, nem de lhe dar pequenas palmadas nas costas, nem de lhe sacudir o pó do casaco se o ancião não tem dado pela presença do químico.
— Queira perdoar, senhor Redlaw — disse Philip —, mas não sabia que estava aqui, pois de contrário não teria procedido com tanta sem-cerimónia.
Vendo-o esta manhã de Natal nesta sua casa, lembro-me do tempo em que ainda era estudante, e tão aplicado, que mesmo durante as férias andava sempre no caminho da nossa biblioteca. Ah! Eu sou muito velho, mas lembro-me ainda destas coisas; não obstante os meus oitenta e sete anos! Foi depois de o senhor Redlaw se ir embora que a minha pobre mulher morreu. Lembra-se dela, meu senhor?
— Lembro — respondeu o químico.
— Era uma excelente criatura — prosseguiu o ancião. — Lembro-me que vossa senhoria veio aqui uma manhã de Natal com uma senhora ainda nova – peço perdão, mas parece-me que era uma irmã a quem muito queria.
O químico olhou para ele e fez um gesto afirmativo:
— Sim, eu tive uma irmã — disse ele distraidamente. Não sabia mais.
— Uma manhã de Natal — prosseguiu o ancião —, tinha vindo aqui com ela quando começou a nevar. Minha mulher disse-lhe que subisse e levou-a para junto do lume que sempre se acende neste dia na sala onde era antigamente o nosso refeitório, antes da comutação feita aos nossos pobres dez amos e senhores. Eu estava presente e lembro-me que, ao atiçar o lume para que a senhora pudesse aquecer os pés, a ouvi ler em voz alta a inscrição que está por baixo do retrato. Meu Deus, meu Deus, permiti que me não faleça a memória! Depois começou a conversar com minha mulher àquele respeito; e, coisa singular, ambas, ao tempo tão cheias de vida, disseram que era uma excelente prece e que não deixariam de a fazer, caso tivessem de morrer novas, lembrando-se dos entes que lhes eram mais queridos. Meu irmão disse a donzela. — Meu marido — disse a minha pobre companheira. — Senhor, permiti que a minha memória se não extinga no seu coração, fazei com que ele me não esqueça."
Pelas faces de Redlaw deslizaram as lágrimas mais pungentes, mais amargas que na sua vida tinha chorado. Atento à sua história, Philippe não dera ainda pelo efeito que as suas palavras tinham produzi do no químico, nem pelos sinais que Milly lhe fazia para que não continuasse.
— Philippe — disse Redlaw pegando no braço do ancião —, eu sou um homem assinalado pela adversidade e sobre cuja cabeça pesa uma condenação terrível, mas merecida. O meu amigo fala-me de um passado através do qual me é impossível acompanhá-lo: perdi a memória.
— Deus de misericórdia! — exclamou o ancião.
— Perdi a memória dos pesares, dos reveses, das provações da vida — disse o químico —, e com ela perdi tudo, tudo o que constitui o homem.
Quem visse o ar compadecido do velho Philippe, o desvelo com que ele chegou a sua vasta poltrona para que o químico se sentasse nela, quem atentasse na maneira por que ele o contemplava com um senti mento solene do seu isolamento neste mundo poderia fazer uma ideia de como são preciosas à velhice as lembranças do passado.
O rapazinho sem nome entrou na loja e correu para Milly.
— O homem está lá na outra casa — disse o pequeno. — Não quero estar com ele.
— Caluda! — disse Milly.
Obedecendo a um sinal de Mrs. William, o ancião e o filho retiraram-se cautelosamente a ocultas de Redlaw, que fez sinal ao pequeno para que se aproximasse.
Quero ficar antes com esta — respondeu o rapazito agarrando-se ao vestido de Milly.
— Tens razão — disse Redlaw, com um pálido sorriso —, mas não tenhas medo de te chegar a mim. Eu sou melhor que era e principalmente para ti, pobre criança!
O pequeno conservava-se à distância mas, cedendo pouco a pouco às instigações de Mrs. William, consentiu em aproximar-se e até sentar-se aos pés do químico. Redlaw pôs-lhe a mão no ombro, contemplou-o com ar de compaixão e de simpatia e estendeu a outra mão a Milly. Mistress William inclinou-se de molde que pudesse sondar-lhe o semblante.
— Pode dar-me atenção? — disse ela volvido um momento de silêncio.
— Porque não? — respondeu o químico, levantando os olhos. — A sua voz é para mim uma doce música.
— Permite-me que lhe faça um pedido?
— Fale. Que deseja?
— Lembra-se, senhor Redlaw, do que eu ontem lhe dizia quando fui bater-lhe à porta, de um homem que foi seu amigo e que pensava em atentar contra a existência?
— Sim, lembro-me — disse ele com uma certa hesitação.
— E compreendeu a minha súplica?
Redlaw afagou os cabelos do pequeno e meneou a cabeça.
— Instantes depois — disse Milly com a sua voz límpida e carinhosa, a que ainda dava maior realce o meigo olhar que nele fitava — voltei lá e, com a ajuda de Deus, encontrei o tal homem. Era tempo; se chego um instante mais tarde estava tudo acabado.
O químico retirou a mão com que afagava a criança e pousando-a sobre a de Milly, cujo gesto tímido e aflito e cujo meigo olhar reforçava a sua súplica, contemplou-a mais ternamente ainda.
— Fiquei sabendo — prosseguiu ela — que era o pai do senhor Denham, do estudante que vimos há pouco. O seu verdadeiro nome é Longford. Lembra-se deste nome?
— Lembro-me.
— E lembra-se da pessoa?
— Não, da pessoa não me lembro; fez-me bem ou mal?
— Mal.
— Ah! E Milly diz então que ele está numa situação desesperada?
O químico meneou a cabeça e bateu brandamente na mão de Milly como que a implorar a sua comiseração.
— Não procurei ontem à noite o senhor Denham
— disse Milly. — O senhor Redlaw há-de ouvir-me como se estivesse relembrando a si próprio o passado, sim — Escutá-la-ei com toda a atenção.
— Dizia eu que não fui ter com o senhor Denham ontem à noite porque não sabia que o tal sujeito fosse realmente o pai dele; receava também que uma notícia destas pudesse abalá-lo gravemente, depois da sua doença; quando soube melhor o que havia, também não quis ir, mas por outra razão: ele separou-se há muito tempo da mulher e do filho; quase desde o nascimento deste último passou a ser como um estranho em casa, segundo ele próprio me disse. Desamparou o que mais devia amar no mundo; deixou-se resvalar de abismo em abismo até que...
Milly ergueu-se de súbito e, ausentando-se momentaneamente, voltou em companhia do infeliz que Redlaw vira na véspera.
— Conhece-me? — perguntou o químico.
— Dar-me-ia por feliz — replicou o outro —, e é uma palavra que os meus lábios não estão habituados a pronunciar, dar-me-ia por feliz se pudesse responder que não.
O químico olhou para aquele homem que via ali curvado ao peso do vício e da degradação e continuaria decerto a contemplá-lo em silêncio, diligenciando debalde esclarecer o seu espírito, se Milly não tem voltado para junto dele e atraído o seu olhar pensativo.
— Veja em que miséria ele caiu! É um homem perdido! — murmurou-lhe ela ao ouvido, apontando para Longford, sem desviar os olhos do químico. — Se pudesse recriar as suas reminiscências através de mim, não deixaria decerto de compadecer-se, reflectindo que um homem a quem consagrou a sua estima se vê reduzido a semelhante desgraça. Não pense no tempo volvido de então para cá, nem na sua confiança traída por mão de um amigo.
— Penso como a senhora — disse Redlaw. — Sim, se pudesse lembrar-me... mas todo esse tempo se acha varrido da minha memória...
O químico olhou para o homem que se conservava de pé junto da porta, olhou depois para Mrs. Wil liam e contemplou-a com a ansiedade de quem procurava algum ensinamento nas modulações da sua voz ou no brilho dos seus olhos.
— Não sei nada e o senhor Redlaw sabe muito: Não estou habituada a pensar e o senhor é um pensa dor profundo. Mas permita-me que lhe diga porque me parece bom recordar as injúrias que nos fizeram.
— Certamente.
— Para que possamos perdoá-las.
— Perdoa-me, meu Deus! — exclamou Redlaw erguendo os olhos ao céu. — Perdoa ter podido repudiar o Teu mais divino atributo.
— E se um dia recuperar a memória, como todos esperamos e não cessaremos de pedir nas nossas orações, não será uma ventura para o senhor Redlaw recordar a injúria a par do perdão?
Redlaw olhou para o homem que se conservava no limiar da porta e olhou em seguida para Milly; um raio de luz mais pura parecia penetrar no seu espírito e esse raio emanava dela.
— Ele não pode voltar — prosseguiu Milly — ao lar que abandonou. Sabe que era levar ali a vergonha e o desassossego e que a melhor reparação que pode dar àqueles de quem fez a desgraça é fugir-lhes. Pouco dinheiro dado com inteligência bastaria para ele se transformar e viver longe daqui e para que pudesse resgatar as culpas do passado mercê de um melhor comportamento. Para a desditosa senhora que tem o seu nome ligado ao dele e para o filho, é o maior obséquio que lhe pode prestar o seu melhor amigo; e, se quiser, nunca saberão quem lho prestou. Para ele próprio, arruinado como está, de corpo, de espírito, de reputação, conceder-lhe semelhante socorro é salvá-lo do suicídio!
Redlaw tomou entre as mãos a cabeça de Milly; beijou-a na testa e disse-lhe:
— Serão cumpridos os seus votos. Conto com a minha boa Milly para provermediata e secretamente a isso. Diga-lhe também que de bom grado lhe perdoaria, se fosse tão feliz que pudesse lembrar-me dos motivos de queixa que posso ter contra ele.
Quando Milly, voltando a cara radiante de alegria para aquele homem tão aviltado, que lhe fez compreender que a sua mediação fora eficaz, Longford avançou um passo e, sem levantar os olhos, disse:
— O senhor Redlaw é e tem sido sempre tão gene roso que procura banir o sentimento de uma justa retribuição no espectáculo que se lhe oferece. Pela minha parte, reconheço que é chegado o dia da justiça, Redlaw; creia nas minhas palavras, se é que elas ainda lhe podem merecer algum crédito.
O químico fez um gesto a Milly a pedir-Lhe que se aproximasse mais, e sem deixar de prestar atenção a Longford contemplava a boa Mrs. William como se buscasse no seu semblante a compreensão, a chave do que ouvia.
— Caí tão baixo — prosseguiu o mísero — que não me é dado fazer profissão de fé; o meu triste passado, que tenho bem presente, não me permite esse orgulho. Tudo o que posso dizer é que, a partir do dia em que dei o primeiro passo na senda do vício, traindo a sua amizade, nunca mais deixei de caminhar rapidamente e de um modo inevitável para o abismo.
Segurando sempre a mão de Milly, Redlaw voltou a cabeça para o homem que assim lhe falava; a sua fisionomia revelava um grande e, ao mesmo tempo, um confuso esforço para relembrar o passado.
— Podia ser outro homem, a minha vida podia ser muito diferente se tivesse evitado esse primeiro passo fatal — prosseguiu Langford. — Não digo que assim tivesse acontecido. Não procuro uma desculpa para mim. A sua irmã dorme o sono dos justos, mais ditosa do que o teria sido comigo se eu viesse a ser o que o senhor Redlaw e eu próprio pensávamos.
O químico fez um gesto de impaciência como se quisesse desviar semelhante assunto.
— Falo — prosseguiu Langford — como um homem enviado da campa. Se não é este anjo bendito, cavava ontem a minha própria sepultura.
— Também me quer bem! — murmurou Milly. Mais outro ainda!
— Ontem à noite nem sequer me teria atrevido a estender-Lhe a mão do mendigo, mas hoje a recordação do que existiu entre nós acordou por tal modo no meu espírito, não sei como, que não hesitei em apresentar-me aqui, em aceitar o seu generoso óbolo e agradecer-lho. Praza a Deus, Redlaw, que na hora da sua morte seja tão misericordioso nos seus pensamentos quanto o é nas suas acções!
E detendo-se, quando já ia a caminho da porta acrescentou:
— Espero que se interesse por meu filho em memória de sua mãe: ele não deixará de mostrar-se digno disso, estou certo. Pela minha parte, a não ser que a minha vida se prolongue muito e que eu tenha a consciência de não ter feito mau uso do seu socorro, nunca mais o tornarei a ver.
No momento de sair levantou pela primeira vez os olhos para Redlaw, que, não tendo deixado de olhar para ele, lhe estendeu a mão com ar meditabundo. Longford voltou atrás, tomou-lha a medo e apertou-a depois com efusão, e saiu cabisbaixo, sem acrescentar uma única palavra.
Durante os breves instantes que decorreram, enquanto Milly conduzia Longford até ao portão, o químico pendeu a fronte entre as mãos. Vendo-o nesta posição quando voltou com o marido e com Philippe, ambos muito ansiosos por saberem notícias dele, não quis perturbá-lo nem consentiu tão-pouco; que o distraíssem da sua meditação, mas ajoelhou junto da poltrona a aquecer uma pouca de roupa que trazia para o pequeno.
— As coisas são o que são: é o que eu não me canso de dizer, meu pai! — exclamou o entusiástico William. — Há no coração da minha Milly um sentimento maternal a que ela não pode deixar de dar expansão.
— Tens razão — disse o velhinho —, tem razão o meu William.
— É um bem para todos, minha querida Milly, que nós não tenhamos filhos; mas isso não obsta a que eu às vezes deseje ter um. Tu havias de saber cuidá-lo e amimá-lo tão bem! Não me pode esquecer o filhinho que nos morreu antes de ver a luz do dia. De então para cá, perdeste muito da tua risonha alegria!
— Em vez de querer abandonar uma recordação, meu querido William — respondeu ela —, penso todos os dias nessa criancinha.
— Medo tenho que penses demais.
— Medo! Que feia palavra proferiste! É uma consolação para mim, William; esta lembrança fala de tantos momentos ao meu coração! O inocentinho que não chegou a viver no mundo, é um anjo da guarda para mim.
— Tu é que és um anjo para o meu velho pai e para mim — interrompeu William com íntima comoção. -Isso é que eu sei.
Que esperanças eu fundava nesse filho que tinha de finar-se antes de nascer! Quantas vezes fantasiei o primeiro sorriso dessa boquinha que nunca havia de sorrir, o primeiro olhar desses olhos que nunca haviam de ver a luz do dia! Quantas vezes embalei em sonhos ou em esperanças no meu seio o pobre que havia de ter por berço um caixão! Quando penso em tudo isto — disse Milly —, parece-me sentir ainda maior simpatia por aqueles cujas inocentes esperanças foram frustradas. Quando vejo uma bonita criança nos braços carinhosos da sua mãe, gosto ainda mais dela pensando que o meu filho também podia ser assim e fazer como ele a minha ventura e o meu orgulho.
Redlaw levantou a cabeça e olhou para ela.
— Sim — disse Milly —, não há um só dia em que não me afigure tê-lo comigo. Intercede pelas criancinhas abandonadas como se fosse vivo. Tem uma voz que eu conheço. Quando ouço falar em criaturas caídas na miséria ou na ignomínia, lembro-me que lhe podia acontecer outro tanto e que foi Deus em sua infinita misericórdia que mo levou. E até quando contemplo a velhice e que atento em frontes encanecidas como a do nosso querido pai, digo de mim para comigo que também ele podia viver o bastante para vergar ao peso dos anos, para nos sobreviver a ambos e para vir a carecer do respeito, da estima e do amparo dos moços e dos de maior idade.
A meiga voz de Milly parecia mais meiga ainda. Pegou no braço do marido e encostou a cabeça ao ombro dele.
— As crianças são tão minhas amigas que chego às vezes a imaginar tontices, não é verdade, William? Que nutrem um sentimento de afeição pelo meu filho e por mim, de que não sei explicar a origem, e que compreendem a razão por que eu tanto prezo o bem que me querem. Se não sou tão jovial de então para cá, sou mais feliz, e de mil modos. A minha menor ventura não foi a que te vou dizer: poucos dias de pois do nascimento e da morte do meu pobre filho, sentia-me muito fraca e bastante acabada; a religião não podia enxugar completamente as minhas lágrimas, mas lembrei-me então que se levasse uma vida de acordo com os preceitos divinos encontraria no céu um anjo que me chamaria sua mãe!
Redlaw caiu de joelhos soltando um grito.
— Oh! Tu! — disse ele —, que, mediante as edições de um puro amor Te dignaste restituir-me a memória, a memória do Cristo morrendo na cruz para remir os pecados dos homens, a memória que fez correr tantos pecadores arrependidos ao martírio, recebe as minhas acções de graças, ó Pai omnipotente, e abençoa a boa Milly!
E, erguendo-se, estreitou nos braços Mrs. William que, soluçando, rindo e chorando, exclamou:
— Ei-lo restituído a si próprio, tal qual era! Mais outro que fica sendo meu amigo! Bendito seja Deus!
Quando ela acabava entrou o estudante dando a mão a uma encantadora menina, a quem um leve rubor acarminava as faces. Muito diversamente disposto a seu respeito, Redlaw só viu nele e na sua noiva o esposo e esposa do Cântico dos Cânticos, dois arbustos em flor à sombra dos quais o seu espírito, pomba fugida da arca solidária onde por tanto tempo jazera cativa, poderia encontrar o sossego e a paz.
Redlaw abraçou-os a ambos e pediu-lhes que o considerassem daí em diante como um pai.
E como o Natal é de todas as épocas do ano aquela em que a memória de todos os pesares, de todos os males susceptíveis de um remédio, mais devia actuar em nós, bem como a nossa própria experiência, para nos induzir à prática de todo o bem possível, estendeu a mão sobre a cabeça do rapazinho e tomou silenciosamente por testemunha Àquele que impunha também a Sua mão na fronte das criancinhas e que, na majestade da Sua previsão, repreendia os que não deixavam que os pequeninos de Si se aproximassem; tomou-o por testemunha do juramento que prestava de proteger, de instruir, de reconquistar à humanidade aquela pobre criatura.
Em seguida estendeu alegremente a mão direita a Philippe e disse-Lhe que queria solenizar o Natal com um lauto jantar, o qual seria servido na sala onde era o refeitório antes de os dez pobres donatários terem cedido aquela casa por uma tença anual. Disse-lhe também que era sua intenção convidar todos os Swidgers que se pudessem avisar a tempo, todos os membros dessa família que, a dar crédito a William, podiam, dando as mãos, formar uma roda dentro da qual coubesse a Inglaterra.
E assim foi. Assistiram ao jantar tantos Swidgers, tantos Swidgers de todas as idades, que se fôssemos a dar a conta redonda de todos eles correríamos o risco de fazer nascer dúvidas nos espíritos cépticos com respeito à veracidade desta história. É, porém, certo que havia dúzias deles e que havia também boas esperanças para todos, boas notícias de George, que o pai, o irmão e Milly tinham ido visitar outra vez e que ficara a dormir um sono tranquilo e reparador.
Os Tetterbyzinhos também foram ao festim, sem excepção de Adolphus, que, quando se servia rosbife, se apresentou munido do seu interminável cachecol. Escusado é dizer que Johnny entrou na sala completamente ajoujado, esbaforido, extenuado; mas os bons pitéus que comeu indemnizaram-no nesse dia de todas as suas atribulações. A Sally parece que tinha dois queixais a romper; mas como isto nela já fosse habitual, não havia motivo para sustos.
Era triste ver o rapazinho sem nome e sem família espreitar os brinquedos dos outros, não sabendo nem como falar-lhes, nem como brincar com eles, e mais desorientado nas veredas infantis que um cão sem faro na caça. Não era menos triste, por outra forma, ver como os mais pequenos, ali reunidos, conheciam instintivamente quanto o pobre pária diferia deles todos e como se acercavam timidamente dele, ao ver a sua desgraça, a dizer-lhe palavras carinhosas, a animá-lo com os seus gestos e com os acepipes que lhe ofereciam. O pobre não se desapegava de Milly e começava a afeiçoar-se-lhe.
— É mais um! — dizia ela. E como os Tetterbyzinhos e as outras crianças eram muito amigas de Mrs. William, regozijavam-se e riam de ver o pequenino selvagem estender a cabeça por detrás da cadeira.
O químico, que ficara ao pé do estudante e da sua noiva, Philip e as pessoas que os acompanhavam também observavam tudo isto.
Algumas pessoas disseram depois que o Sr. Redlaw sonhara o que vimos a referir. Segundo outros, lera esta história nas brasas da lareira, por uma noite de inverno, à hora do crepúsculo. Segundo outros; ainda, o espectro era a personificação das suas ideias negras e Milly a encarnação dos seus bons pensamentos. Eu só digo o seguinte: enquanto eles se achavam reunidos na grande sala, sem mais luz que a de um grande braseiro — jantara-se cedo —, as sombras saíram mais uma vez dos seus esconderijos e começaram a bailar, mostrando às crianças formas e figuras maravilhosas nas paredes e transformando gradualmente os objectos estranhos e fantásticos. Havia, porém, um objecto na sala para o qual os olhos de Redlaw, de Milly e do marido, do ancião, do estudante e da sua noiva, se voltavam amiudadas vezes e que as sombras não escureciam nem transformavam. Assumindo um aspecto ainda mais grave ao clarão da lareira e olhando do meio das sombrias esculturas como pode olhar uma criatura viva, a serena figura do painel com a sua barba pontiaguda, o seu colar e a sua coroa de azevinho fitava-os quando a fitavam, e tão claras e tão inteligíveis como se uma voz humana as estivesse proferindo, reluziam as palavras da sua inscrição: Meu Deus, meu Deus, permiti que nunca me faleça a memória!
Charles Dickens
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