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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O HOMEM GELO / Josiane da Veiga
O HOMEM GELO / Josiane da Veiga

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Ela buscava VINGANÇA.
Bianca Bannon viu seu próprio irmão ser morto por proclamar a verdade.
Estuprada e deixada para morrer, ela sobrevive com um único propósito – vingança. É assim que parte em busca de um nome, cuja alcunha conhecida era a de “T. Clark”.
Ao chegar as terras mais frias de Bran conhece Thomas Clark, o senhor daquelas terras geladas, que parecia não reconhecê-la, mas que ela sabia ser o algoz de seus pesadelos.
E agora quem viveria um pesadelo vivo seria o maldito.

 

 


Capítulo 01

O P R O F E T A

— Puto! Puto! Saía de minha casa, puto!

Mesclado às palavras grosseiras, ouvia-se o uivo de frio que cortava o ar. Lá fora, a natureza agonizava diante do inverno que parecia sem fim.

Já se fazia muitos anos...

A bisavó de Elliot Bannon lhe contara que houvera um tempo em que havia calor e frio, em determinadas épocas certas do ano. Mas, então, um dia o tempo de calor começou a diminuir.

Não foi de supetão. Como uma borboleta que cortava o ar, aquela época foi chegando de mansinho, tomando conta de tudo, e quando se deram por conta só lhes restava o agoniante inverno.

Os Bannon eram uma tradicional família do sul de Bran. Ali, o frio não era tão intenso e as pessoas costumavam usar menos agasalhos do que ao norte, mas Elliot, o mais velho daquela Casa, sentiu o sangue gelar quando fora pego em flagrante com o filho da empregada.

Era uma vergonha imperdoável. Um desrespeito tremendo a todas as tradições.

Com um tabefe forte, o pai o jogou no chão da sala.

Logo, sentiu mãos carinhosas a segurá-lo. Mãos que sempre estiveram ali para ele e nunca se desviaram de protegê-lo.

Bianca...

Sua irmã amada, a única que sempre o aceitou por quem era, a única que nunca lhe recriminou pelos modos afeminados.

— Um puto! — O grito da vergonha tomou o ambiente. — Você é a vergonha para nosso Deus Bran.

Bianca o prensou nos braços, como se sua figura frágil pudesse resguardá-lo de todo mal. E Elliot chorou porque nunca quis desonrar Bran com os sentimentos pecaminosos que brotavam em seu íntimo e se recusavam a ir embora.


— Me deixei ir contigo — ela implorou.

Elliot sentiu as lágrimas a tomá-lo por ter que deixá-la. A única que sua vida, seu maior amor, sua irmã.

— Eu voltarei, Bianca — ele prometeu. — Após cumprir o tempo de penitência, eu voltarei para ti.

Beijou as mãos suaves da irmã.

— Papai disse que me casará com um homem da regência — contou. — Um homem que não me agrada. Estou tão desesperada.

Duas vítimas, a irmã e ele. Dois seres obrigados a cumprirem ordens e regras que em não opinavam. Apenas peças de um tabuleiro, onde a família os usava para quaisquer propósito.

Por isso, talvez, sempre foram cúmplices. Amigos. Almas gêmeas.

— Nós iremos fugir, eu lhe prometo — jurou. — Quando me deixarem sair do templo, voltarei e partiremos para o norte. Eu juro, Bianca... Confie em mim.

Elliot nunca deixaria de cumprir seus juramentos, especialmente a irmã tão querida.


— E a ti, Bran — disse, as costas marcadas pelas chicotadas —, eu me penitencio pelos meus pecados cruéis, a sujeira em minha alma.

O sacerdote jogou o chicote no chão e se afastou, satisfeito. No mesmo chão, Elliot permaneceu sentindo as dores, incapaz de ter força para conseguir se erguer.

Resvalado em seu próprio sangue, ele chorou. As chicotadas diárias unidas à reza tinham por objetivo curá-lo do mal que era encravado em sua alma: o de amar outros homens.

As lágrimas despencaram na madeira do assoalho e Elliot sentiu a face mortificada no chão gelado. Seus pensamentos fixaram-se em Bianca e no tanto que precisava sobreviver por conta dela. Se ele não voltasse, o pai, já velho, a casaria com aquele que ofertasse melhor valor.

— Há outros em situação pior. — Um homem encapuzado surgiu, como se do nada, sentado em um banco próximo de sua agonia.

Entre as vistas embaralhadas pela dor, Elliot ergueu o torso para ele. O tom daquele homem parecia ter o intuito de consolá-lo.

— É mesmo? — Elliot sentia vontade de rir.

Seu corpo tremia de frio, estava sendo surrado, nu, com suas vergonhas sendo mostradas a todos que cruzavam pela porta do templo.

— Quem?

— Aqueles a quem chamam de imundos.

Mas, os imundos não eram humanos...

— São uma anomalia — Elliot murmurou.

— Como você? — o homem retrucou.

Subitamente, aproximou-se de Elliot. Pousou sua mão sobre as feridas sangrentas. Logo, a dor desapareceu.

— O quê...? — Elliot começou, mas logo sentiu-se sendo erguido. O homem não o tocava, mas sua ajuda parecia sobrenatural. — Quem é você?

O homem voltou ao banco. Sentou-se. Por baixo do capuz era-se capaz de visualizar sua face perfeita e bela.

— Há muitos anos, todas as raças viviam juntas. Foi o clero que os dividiu...

— Dividiu?

— Divide-se para conquistar — o outro retrucou, explicando. — Coloca-se um ser humano contra o outro, tornando-os inimigos. Fazem com que achem que o outro é inferior, quando são todos a mesma coisa, em cascas diferentes.

Sua voz era potente e forte. Nele, havia uma sabedoria tal que Elliot logo percebeu saber de quem se tratava.

O homem pousou a mão no banco, convidando-o a sentar ao seu lado.

— Não sou digno — Elliot explicou.

Houve um riso baixo nos lábios do encapuzado.

— Isso sou eu quem decide.

Diante disso, pela primeira vez em sua vida, aquele rapaz jovem de cabelos negros aproximou-se do outro. Quando sentiu sua energia, ao sentar-se com ele, foi inundado de uma sensação tão poderosa quanto intensa. Um êxtase incrível, nada semelhante a qualquer sensação que já vivenciara.

— Eu preciso de você — o homem explicou.

— Para quê?

— Para falar a verdade aos povos.

— Que verdade?

A mão do outro segurou a sua. O encapuzado a beijou, gentil.

Paternal...

— Não existem imundos, nem você por amar outros homens, nem os de sangue mesclado. É uma verdade tão clara, mas precisarei que alguém a diga.

As lágrimas agora já despejavam dos olhos negros daquele braiano triste. Ele sabia o que o ser celeste propunha. Muitos antes dele já haviam declarado aquilo. Todos haviam sido mortos por blasfêmia.

— Você me aceita? — Elliot indagou, porque aquilo era de uma importância suprema.

— Desde o dia em que nasceu, eu sempre te aceitei.

Elliot assentiu.

— Que honra, meu Bran... Que honra... — chorou. — Mas quem ouviria um puto?

— Não se despreze com palavras grosseiras. Você é minha última esperança.

— E se eu falhar?

— Então não mais impedirei Masha de seguir com seus planos. Assim, haverá uma guerra de mil dias e mil noites. E muitos morrerão. Será nesse momento que passaremos a outra estratégia para vencer o Maligno.

— Como assim?

— O resultado final dessa guerra será uma pedra. Uma pedra de cor verde.

— Uma esmeralda?

Houve um sorriso nos lábios gentis de Bran.

— Sim, uma Esmeralda.


— Bianca...

Um leve chacoalhar na cama fê-la abrir os olhos. Na semiescuridão, visualizou o irmão.

— Elliot... O que faz aqui?

— Eu tenho que partir para o norte, minha irmã — ele contou. — Isso está acima de minhas forças ou de minha vontade. Não tenho nada para te oferecer, sequer um teto ou segurança, mas te ofereço meu amor. Sei que viver aqui te agonia, então eu te dou a alternativa de vir comigo.

— Fugir? — ela pareceu pensar brevemente. — Sim.

A resposta era clara. Bianca seguiria com o irmão até o fim.

— Estou indo para uma missão que pode me matar, Bianca. Você tem que estar ciente.

— Te seguirei na vida ou na morte.

Diante disso, eles deram as mãos. Um amor tão forte que apenas Masha e Cashel – irmãos que se amavam na mesma medida – poderiam explicar.


— Não há imundos na criação!

O homem diante de um barranco gritava para as pessoas daquele vilarejo. Olhares revoltados cruzavam por ele.

Houve um ovo que cortou o ar e quebrou-se contra a face do homem. Elliot lambuzou os dedos na gema e a lambeu. Não comia há dois dias.

— Por favor — ouviu a fala feminina abaixo. — O Deus Bran surgiu ao meu irmão. Escutem-no.

Bianca tentava parar as pessoas. Ninguém parecia lhe dar ouvidos.

— Os mashianos e os casheanos são nossos irmãos de alma — ela gritou. — Não há imundície quando nós nos relacionamentos com eles. Precisamos libertar os imundos de suas correntes. Eles não podem pagar...

Repentinamente, a voz feminina foi cortada por uma bofetada. Elliot correu em sua direção, e postou-se em cima dela, para protegê-la dos chutes.

— Blasfemos!

— Tão imundos quanto os escravos!

Logo, as pessoas os deixaram. Bianca tremia, não apenas pelas agressões, mas também pelo frio. O irmão a cobriu com sua própria capa.

— Eu não devia tê-la trazido comigo.

— No instante que me contou sua história, eu sabia que não haveria felicidade em nosso caminho — ela retrucou. — Ninguém que professou o que professamos sobreviveu muito tempo.

— O clero vai nos matar. Ou algum estancieiro. Precisam dos imundos para mão-de-obra.

Bianca acariciou a face de Elliot.

— Disse-me que era a última tentativa de Bran antes de Masha provocar uma guerra — murmurou. — Então, vamos tentar... Vamos tentar.

Trocaram um beijo casto. Logo, erguiam-se. Suas vozes voltaram a ecoar, não importando o quanto eram odiados por elas.

 

 


Capítulo 02

 


T . C L A R K

 


O que mais doía eram os ossos. O frio intenso daquela cidadela ao leste de Bran tinha uma leve neblina gelada que parecia congelar cada pedaço do corpo de Tan Clark.

— Ei, T. — uma voz masculina o chamou.

Encarou um dos servos. Todos o conheciam por T. O apelido surgiu na infância, porque ele odiava a palavra Tan. O que diabos a mãe planejava ao lhe dar um nome que significava “aquele que dá amor”?

— Trouxe a puta?

Uma jovem de uns quinze anos foi atirada aos seus pés. Tinha cabelos negros e pele claríssima. Tudo nela aparentava uma braiana legítima, alguém para ser respeitada.

Baixou a parte superior do vestido e viu os peitos de aréolas negras. Enojou-se.

— Imunda. — murmurou.

A garota protegeu os seios. Suas lágrimas caíam com tanta intensidade que chegaram a molhar o chão.

— Paguei barato. O antigo senhor quis se desfazer porque a esposa tinha ciúmes. Vamos levá-la a Castelo Negro?

— Para quê? Para Thomas ficar protegendo-a como faz a todos os outros? Dei-a aos homens para que se divirtam. Tem poucas prostitutas na cidade.

Depois, foi à taverna beber um pouco de hidromel para se aquecer.

Os dias estavam mais curtos. A iluminação solar havia desaparecido, mas ainda não eram cinco horas da tarde.

— Complicado o que esses religiosos querem — ouviu um murmuro.

Deu atenção. Voltou o olhar aos homens que lá estavam.

— E o que querem? — indagou, intrometendo-se.

— Um casal de irmãos está na cidade. Aquela besteira de que imundos são como nós.

— Quanta estupidez — T. murmurou.

— O problema é que eles incentivam os imundos, sabe? Começam a dizer que eles são pessoas e merecem respeito. Soube que numa cidade próxima conseguiram provocar uma revolta em uma fazenda, que só foi controlada após a execução de uns três imundos.

— Pense no prejuízo para os estancieiros — um dos outros homens murmurou. — Um imundo morto é um imundo sem trabalhar.

Todos assentiram.

— E esses religiosos estão na cidade? — Tan indagou.

— Estão dormindo num celeiro na saída da cidade. Alguns lhes dão alimento. Por mim deviam morrer de fome.

Repentinamente uma ideia interessante surgiu no pensamento de Tan.

 

A menina imunda gemia diante da dor de receber tantos homens ao mesmo tempo. Não que não fosse acostumada ao estupro, seu antigo senhor sempre a usava. Contudo, agora, com as costas no chão gelado e uma fila de homens para submetê-la, ela sentiu que iria morrer.

Ela implorou a morte...

Contudo, a figura do senhor das terras do norte aproximou-se do casebre e observou a cena pronta para pará-la.

— Depois vocês continuam — ele aliviou.

Os homens imediatamente deixaram a menina agonizando no chão e volveram-se para o líder.

— Estou pensando seriamente em dar uma lição em duas pessoas que a merecem.

Houve uma troca de sorrisos. O Maligno tinha muitas armas. A maior delas era a completa falta de empatia pelo próximo.


Estava tão frio...

Bianca orou baixinho agradecendo a Bran por ao menos terem recebido um caldo quente de uma sacerdotisa que morava próximo. A mulher também havia oferecido seu celeiro para que pudessem passar a noite.

O feno ajudava a aliviar o frio, e a barriga cheia parecia aquecer mais que muitas cobertas.

E pensar que em poucos anos ambos tinham uma vida agradável e rica. Ele, herdeiro dos Bannon. Ela, prestes a se tornar senhora de algum feudo poderoso.

Mas, trocaram tudo pelas palavras de Bran. E não se arrependiam. Fazer o certo trazia uma paz que nem a mais farta mesa ou a mais bela roupa poderia ocasionar.

Os braços de Elliot trouxeram o corpo da irmã para si. Ele parecia querer ajudar a aquecê-la e ela afundou-se em seu calor.

Estava tudo bem, enquanto estivessem juntos. Sempre foi assim. Sempre seria assim.

Como se as palavras fossem cortadas de sua mente, um chute na porta do celeiro sobressaltou a ambos. Observaram a entrada de outros homens e Elliot ergueu-se, postando-se a frente, na defesa da irmã.

— Não há nada aqui para vocês — ele disse.

— Claro que há — um dos homens, aquele que aparentava riqueza e poder, retrucou. — Soube que você anda espalhando mentiras sobre os imundos.

— Não são mentiras — Elliot devolveu. — Peço que se retirem. Esse celeiro tem dono. A proprietária nos deixou ficar.

— Então ela também devia ser punida por dar abrigo a dois demônios! — o homem gritou. — Como ousa falar contra as Sagradas Escrituras?

De olhos arregalados, Bianca viu o homem avançando, e depois desferindo um golpe na face de Elliot.

Tentou se erguer e ir até o irmão, mas outro homem a interceptou, segurando-a num abraço desengonçado. Logo, sentia os lábios gosmentos grudados em seu pescoço.

Repentinamente, o olhar do homem agressivo volveu a ela. Instantaneamente, houve uma atração nele.

— Como é bonita...

O murmuro causou arrepios em Bianca, que começou a chorar.

— Deem cabo do blasfemador que eu me encarregarei da irmã.

Enquanto o irmão recebia chutes e socos de uns cinco homens diversos, o homenzarrão aproximou-se dela.

Tinha olhos e cabelos escuros, e a pele tão pálida que indicava seu sangue puro braiano. Era bonito também, mas ela era incapaz de entender aquilo. Tudo que ouvia eram os gemidos do irmão, e as súplicas para que não se aproximassem de Bianca.

— Minha irmã é uma braiana legítima. Não ouse tocá-la.

— Ela traiu aos deuses — o homem retrucou. — Quem fica ao lado de imundos, é tão sujo quanto eles.

— Não! — o grito de Elliot o impulsionou em sua direção.

Bianca viu, então, o irmão recebendo uma pancada na cabeça. Houve um estalo seco, e ele caiu no chão. O sangue manchou o feno, e ela percebeu que havia perdido seu único amor.


— T. — um dos homens chamou o líder. — Acho que está morto.

“T.”

Uma única letra, um significado enorme. O olhar frio, de quem pouco se importava pela vida daquele humano.

— Seu maldito! — ela gritou. — Desgraçado!

Saltou até ele, na ânsia de lhe bater. Mas, o homem era mais forte, mais alto e mais preparado para uma batalha. Logo, uma bofetada lhe fez cair no chão.

Ela ouviu os risos. Era uma diversão verem-lhe tão a mercê da vontade daquele homem. Tentou rastejar para longe, mas ele segurou seus cabelos e a puxou para trás.

Gritou de dor.

— Cadela! — ele disse, em seus ouvidos. — Hoje você será a minha putinha.

Suas saias começaram a subir. Sua parte mais íntima e que jamais esteve exposta a qualquer olhar, ficou ali, sujeitada a todos. Tentou se cobrir, mas o “T.” lhe deu mais dois socos fortes na face.

Sentiu o sangue nas vistas e na boca. Zonza, ainda tentou erguer o braço quando algo cravou em seu íntimo.

Uma dor lancinante a tomou. Algo entrava nela sem preparação ou jeito, apenas se impunha, cravando-se como uma espada afiada, lhe cortando as entranhas.

— Apertada! — o “T.” gritou. — Que puta apertada.

Bianca choramingou, a face caindo de lado. Enquanto sentia aquela dor terrível e o homem saía e entrava, ela observou o corpo inerte do irmão.

Elliot estava morto. Eles a estavam matando.

A verdade tinha um preço caro demais.


— O que faremos a essa cadela? — um dos homens indagou.

Todos haviam-na usado após o tal “T.”. Agora, era só um corpo que respirava com irregularidade. Parecia prestes a se consumir.

— Deixe-a aí — o líder mandou. — Não passará dessa noite.

Tan Clark pouco conhecia das mulheres e em nada imaginava suas forças.

 


Capítulo 03

 


S E M P E R D Ã O

 

O sangue escorria pelas pernas, gélido, não a deixando descansar.

Sentia a vida se esvaindo, mas, ao mesmo tempo, queria chegar perto de Elliot para poder morrer com ele.

Desde pequenos, eles se amavam.

O irmão nasceu primeiro. Ela veio um ano depois. A mãe se foi para a terra dos mortos quando eram bem jovenzinhos, e o pai casou novamente. Talvez por não conseguir conceber, a madrasta nunca os quis bem.

Assim, refugiaram-se na presença um do outro. Eram cúmplices e parceiros, e sempre souberam que suas vidas estavam entrelaçadas.

Quando Elliot tinha catorze anos, a irmã o flagrou beijando outro menino. Nunca contou a ninguém. O aceitava da maneira que ele era. Elliot também nunca disse aos outros que Bianca tinha por sonho a emancipação, o não casamento. Viver sob a pena de um homem lhe assustava muito.

Até porque o pai deles não era bom. Surras eram frequentes. Palavras desconcertantes também. Nunca foram bem vindos naquela família, e quando a oportunidade de fugirem juntos surgiu, Bianca nem pensou: aceitou-a de bom grado.

E ela não se arrependia. Nem mesmo agora em que rastejava de encontro ao irmão. Puxando-o para seu colo, percebeu o corpo morto, já gelado, e choramingou beijando seus cabelos negros.

Um dia ao lado dele valiam mais que uma vida inteira longe.

— Por Bran!

A exclamação surgiu da porta. Na abertura, a sacerdotisa que lhes deu pouso no celeiro correu até os irmãos.

— Minha querida — ela foi solidária, ajudando Bianca a se afastar do corpo falecido.

Bianca soube naquele momento que não morreria em consequência do estupro. A sacerdotisa a salvaria.

Em seu íntimo, foi tomada pela decepção. Não queria viver para relembrar cada detalhe da cena mórbida daquela noite. Ao mesmo tempo, implorou força aos deuses para vingar-se pela maldade cometida contra eles.


Tan puxou uma pequena garrafa do alforje e bebeu um gole de água. Quanto mais ao norte eles iam, mais gelado e frio se tornava o tempo.

Ali, por exemplo, tudo era branco. Um infinito de única cor onde havia apenas o uivo dos lobos ao longe e uma ou outra vegetação solitária que estava suportando as duras temperaturas.

— Quanto tempo até Castelo Negro? — indagou Tan.

— Dois dias. Thomas ficará zangado por conta da imunda morta — o homem comentou.

— Ele não precisa saber.

O irmão gêmeo, Thomas, não era adepto a ter imundos em suas terras. O mais velho era o senhor de Castelo Negro por conta de meio minuto de nascimento antecipado.

Desde que assumira o posto de senhor do feudo, passou a dar casa e vida digna aos imundos. Aquilo muito corroía Tan, que era muito ligado à religião.

No fundo, apesar de não dizer, considerava o irmão um pecador. Não ia ao templo, não rezava frequentemente a Bran, não fazia o que era devido. Até mesmo lhe desferira um soco, certa vez, quando lhe pegou tentando estuprar uma imunda.

A garota jovenzinha que pegaram na cidade do leste onde foram comprar mantimentos havia morrido na segunda noite de abusos. Isso porque Tan era altruísta e não se aproveitava sozinho da situação, dividindo-a com seus companheiros de jornada.

Até mesmo a braiana pecadora que haviam pegado no celeiro, ele deu a seus homens depois de tê-la usado.

Os Deuses deviam se orgulhar dele. O sacerdote de Castelo Negro, Marlon, ao menos se orgulhava.

— Alto lá! — ouviu um dos seus cavalariços gritando, tirando-o da letargia.

Adiante, a figura de um monge. Encapuzado de negro, parado no meio da estrada em curva, parecia morto congelado, pois sequer se mexia.

— Saía do caminho — ordenou Tan.

Repentinamente, o monge se moveu. Seu capuz caiu para trás e ele viu o brilho de cabelos vermelhos surgirem diante de seus olhos.

Era uma mulher... Uma mulher linda.

— O que uma mashiana faz aqui? — questionou, descendo do cavalo e indo até seu encontro.

Repentinamente, as mãos femininas se ergueram, imponentes. As palmas abertas, pareciam adorar aos céus. Contudo, em seguida, seus punhos fecharam. Nesse momento, tanto Tan quanto seus homens sentiram-se sufocar.

— Por favor... — ele murmurou diante da figura diante dele.

— Não tenho piedade — a mulher retrucou.

E ela só parou de apertar quando as cabeças rolaram para longe dos corpos.


Bran observou os corpos decapitados naquele rio de sangue vermelho que manchava a terra branca pela neve.

— Masha... — ele murmurou.

Sentada em uma rocha, ela parecia lhe aguardar.

— Você tem que parar — implorou.

— Vai defender estupradores?

— Uma vez me disse que os ruivos eram seu problema. Então, que os de cabelos negros sejam meus! — ralhou, cada vez mais irritado.

— Cashel e você falam demais. Falam muito — reforçou. — E não fazem nada.

Bran respirou fundo, buscando calma.

— Seu último profeta morreu — ela avisou. — A irmã dele foi abusada tantas vezes que não pude contar. E não pude impedir. Você e Cashel tentaram anular minhas forças.

— Por tudo que fez em sua terra, tornando-a árida — justificou. — E por tudo que fez aqui. O que aconteceu ao sul refletiu ao norte. Esse lugar já foi campo verde, e hoje está tudo congelado.

— Tentaram me anular... — Era como se Masha não o ouvisse. Nela, só restava ódio. — Mas, eu lutei e escapei de suas amarras. Porque eu sou Masha. Cashel e você me temem porque eu sou mais poderosa.

— Está louca — ele tentou se aproximar, mas recebeu um safanão. — Eu a amo — relembrou-a.

Houve um misto de lucidez nos olhos verdes.

— Se ouvissem minha voz desde o princípio, o profeta estaria vivo. Mas, agora terão, pela honra, de seguir com o que quero. Pelo bem ou pelo mal. É meu plano que colocaremos em ação!

— Eu jurei que, caso Elliot falhasse, Cashel e eu aceitaríamos a guerra.

Ela sorriu, vitoriosa.

— Eu quis poupar a vida de muitos — Bran parecia mitigado.

— O tempo de Cashel e você terem opinião acabou — decretou. — Estarei indo até as terras de meu irmão preparar a mulher de Lugus.

— Do Rei? Você fará com que uma Rainha traía...

— Para o plano dar certo, a mulher precisa ter o sangue de Lugus.

— Pensei que escolheria uma de suas muitas filhas.

— Nenhuma mulher naquela terra deixaria de abortar se um homem ordenasse. Há apenas uma exceção. Uma jovem aldeã que farei com que Lugus observe com atenção.

— O quão baixo estamos caindo, Masha? — ele murmurou. — Adultério?

— Brione não trairá o marido. Ela será forçada por Iran, o Príncipe.

— Iran não dorme com mulheres.

— Com essa, dormirá.

— Vai forçar um estupro? Masha...

— O fim justifica o meio. Vou erguer duas almas gêmeas ao trono de Bran. E uma delas será imunda.

— E se não der certo?

— Tenho outro plano. Para outro ruivo.

— E se não der certo? — insistiu. — Quantos estupros, mortes e maldades você fará até atingir seu objetivo?

Houve um silêncio que durou alguns segundos.

— Se nada der certo, então será a hora de nós nos sacrificarmos.

Bran queria ter dito que era o que eles deviam fazer desde o início. Mas, como a própria Masha disse, ele não tinha mais voz.


— Tome, filha.

A anciã entregou a Bianca um líquido quente, uma espécie de chá amargo que logo a jovem entendeu que era para evitar uma gravidez.

As lágrimas ainda estavam engasgadas em sua garganta, e a falta do irmão lhe corroía. Fora isso, eles a haviam machucado tanto que ela mal conseguia se sentar.

— Quem eram aqueles homens? — indagou, a ninguém em especial.

— T. Clark — a mulher contou. — Vieram comprar mantimentos. Compraram algumas imundas, e todas morreram estupradas.

“T. Clark”. Aquela alcunha marcou firme na alma de Bianca.

— De onde eles são, minha senhora?

— Do norte. Quase a beira do final do mundo. No lugar mais frio que existe. Dizem que moram num castelo que é chamado de negro porque vive repleto pela fumaça do carvão.

Bianca assentiu. Uma raiva intensa sobressaia-se ao luto.

— A senhora acha que poderei partir em quantos dias?

— Não sei dizer, menina. Ainda está muito ferida.

— E poderia me arrumar uma bolsinha de ervas venenosas para que eu levasse junto?

Assim que pudesse andar, ela abandonaria o sacerdócio que passou a desempenhar com o irmão, e buscaria pelo tal Clark.

E então ela se vingaria.

Por Elliot e por si mesma. Ela o faria amaldiçoar o dia em que nasceu.

 

Capítulo 04

 


T H O M A S C L A R K

 

Aquela situação não era anormal em terras tão geladas quanto as do Clark.

Mesmo assim, Thomas, o mais velho daquela família, e único vivo – mesmo que ainda não soubesse disso – sentia lágrimas nos olhos sempre que ocorria semelhante situação.

A égua havia quebrado a perna. Afundara-se em um buraco e, ao tentar escapar, moera os ossos.

Agonizava, agora, na mais brutal das leis: a da natureza.

O aglomerado de cidadãos em torno do animal deixava claro que ninguém tinha coragem de pôr fim àquele sofrimento. Thomas, como senhor do lugar, sabia que era seu dever.

Aproximou-se da égua e acariciou sua face cansada. Já se fazia horas que estava ali, pelo que lhe disseram. De início, as pessoas tentaram ajudá-la a se erguer, mas quando menos esperavam, ela tombava para o lado, em puro desgosto.

— Tragam-me uma marreta — ordenou a um dos homens.

Dar fim a dor era uma forma de piedade. Isso aprendeu com o pai, um homem justo que sempre tratou a todos como semelhantes.

Incluindo os animais...

Assim, tomou coragem de fazer o que mais ninguém ali queria. Ergueu a marreta acima da cabeça e a baixou com força, num golpe violento, quebrando o crânio da égua e encerrando aquela cena agoniante.

Depois, jogou a marreta para o lado e saiu em passos trôpegos pela neve. As lágrimas que brotavam de seu coração e escorriam por sua face congelavam conforme o vento as tocava.


Thomas e Tan eram gêmeos idênticos, separados por uma personalidade oposta.

Thomas nasceu antes. Como se numa luta desleal pela chegava à terra; Tan veio em seguida, segundos depois, num choro afligido pela derrota.

Quando os pais morreram, já eram quase adultos. O mais jovem foi consolado pelo sacerdote que tinha um templo a Bran próximo da aldeia. O mais velho, consolado pelos imundos que o pai mantinha com dignidade naquela terra esquecida.

Tan acreditava na religião. Orava a Bran todos os dias. Desprezava os imundos. Cria-se superior.

Thomas acreditava que Bran sequer existia, porque se existisse como situações tão tristes quanto a dos imundos era decorrente?

A mãe fora criada por uma imunda braiana chamada Zilda, a quem o pai acolheu quando se casou com a mulher. Zilda também o criou. Ele a amava, e por ela precisava sempre conter os ímpetos do irmão.

No fundo, sabia que Marlon armava sua derrubada por blasfêmia. Sua sorte era a lealdade de seu povo. Mesmo os puros, o queriam muito bem. Avalon, seu administrador, sempre indicava quando algo não estava bem. Salvou sua vida muitas vezes.

A religião dizia que gente como ele, que não recriminava aos pecadores, merecia o mesmo fim dos sujos.

Mas Thomas lutaria por si e pelos seus enquanto vivesse.

A religião não era tão importante para ele. Se Bran existisse, que viesse confrontá-lo pessoalmente, pois haviam muitas questões no coração daquele homem que nenhuma palavra das escrituras fora capaz de responder.


As juntas nas mãos sangravam, mas Avalon e ele precisavam consertar aquela cerca antes que a nevasca piorasse e alguma das ovelhas acabasse perdida.

— Notícias de Tan? — o homem indagou, esfregando uma mão na outra, tentando afugentar o frio.

— Nenhuma missiva desde que se foi. Talvez não volte — apontou,

— Por que diz isso?

— Tem dinheiro e não concorda com os rumos que estou dando a nossa propriedade. Talvez vá até o Rei Atho e lhe diga que eu sou um homem benevolente com imundos. Seria lesa-majestade.

Avalon não disse, mas amaldiçoou o clero.

— Não sei lhe dizer. Falam bem do Rei.

— Vou tentar não pensar nisso. Sempre poderei me justificar dizendo que Tan sente ciúmes por eu ser o mais velho e quer me derrubar. Além disso, tenho testemunhas puras, como você.

— O problema é o sacerdote Marlon.

— Penso em mandá-lo embora — cochichou.

— Se me permite o conselho, senhor, é o que devia fazer.

Thomas assentiu. Por fim, o último arame fora posto.

— Quer ir até o Castelo comer o caldo quente de Zilda? — indagou a Avalon.

O outro assentiu.

Aquele pedaço do mundo era o único lugar existente onde imundos e puros viviam em harmonia. Só não se sabiam por quanto tempo.

 

A sacerdotisa que havia lhe salvado a vida lhe dera roupas quentes e uma sacolinha de ervas para levar consigo. Tentou dissuadi-la de ir atrás de T. Clark, mas Bianca estava resoluta em encontrar aquele desgraçado e o fazer pagar.

Antes de ir, ajudou a enterrar o irmão. Dele, pegou um pequeno lenço e o guardou na bolsinha, sua única recordação além daquelas cravadas na alma.

Depois, partiu na direção do norte, com uma valentia digna e assustadora.

Que outra mulher se atreveria a entrar numa floresta gelada e deserta, completamente sozinha e desarmada? Bianca, contudo, cria que nada mais do que lhe fizessem poderia machucá-la. Ela já havia chegado ao fundo do poço.

Na vida ao lado do irmão e longe do conforto de casa, aprendeu a fazer fogueira e a comer o que a natureza lhe dava.

Ali, naquele canto, ela ainda conseguia se aquecer pelo fogo, mas a natureza não lhe fornecia nenhum fruto. O pão que a sacerdotisa lhe dera já estava acabando e, com ele, ia-se indo suas poucas forças.

Numa noite, ao fazer a fogueira e cobrir-se com mantos, colocou gelo dentro de uma caneca e a pôs em cima do fogo. Quando a água ferveu, ela o tomou, fingindo ser uma sopa. O gosto sem sal lhe trouxe lágrimas aos olhos, mas precisava ser forte.

E ela foi.

Rumou em direção ao norte por dias e noites que pareciam sem fim. Os pés já estavam cheios de bolhas dentro das botas, e a pele havia rachado pela nevasca que não passava.

Só vacilou quando a garganta começou a arder e viu-se em febre, depois de cruzar uma montanha.

Havia uma caverna ali. Um lago ao fundo. Ela refugiou-se no abrigo e deitou-se.

De súbito, um sono profundo a tomou. O frio passou. Estava morrendo, mas não sentia dor nem medo. Só tranquilidade.

Não conseguiria se vingar, mas ao menos morrera tentando... Elliot devia lhe perdoar essa falha.

 

— Quando busquei seu irmão, ele me falou de ti. Aliás, era sua única preocupação.

Mãos quentes descongelaram sua pele, e ela sentiu-se completamente aquecida.

— Eu também tenho uma irmãzinha impulsiva que faria qualquer coisa por mim — ele beijou de leve sua bochecha.

Bianca abriu os olhos. Um homem negro de aparência belíssima a erguia nos braços.

— Eu sinto muito, pequena Bianca — ele murmurou. — Eu sei que não foi fácil, mas nós tínhamos que tentar uma última vez.

Depois disso, desapareceram no tempo. Não houve mais medo ou dor. Apenas a tranquilidade de estar em segurança naquela força sobrenatural.

 

Capítulo 05

 

O Ó D I O

Q U E C E G A

 

A porta do casebre bateu.

Zilda não era acostumada a visitas naquele horário, mas a velha braiana imunda não se preocupou porque todos em Castelo Negro protegiam um ao outro. A mão forte do Senhor Thomas cuidava de todos.

Abriu a porta. Ninguém. Baixou a face, e logo percebeu um amontoado de roupas jogado no chão. Tocou-o e o corpo de uma moça surgiu entre as cobertas.

— Por Bran — murmurou.

Uma semicongelada mulher estava ali. E precisava de ajuda rápido.

 


Assim que a mente passou a ter consciência de que não estava morta, ela sentiu a fofura das mantas dos pelegos de ovelhas a tocar-lhe a face.

Encolheu-se, deixando o corpo a receber aquele calor.

Céus, havia sobrevivido mais uma vez. Que força auspiciosa havia em seu íntimo que a tornou tão forte ao ponto de suportar estupros, surras, e até mesmo o congelamento?

— Que bom que acordou.

Seus olhos acostumaram-se a iluminação precária. Estava em uma casa de madeira aquecida por uma lareira. Aos pés de sua cama improvisada, uma mulher de formas generosas mexia em um fogão.

Logo, aproximou-se de si, ajudou-a a sentar e lhe deu um líquido para beber.

Uma sopa quente. O sabor delicioso trouxe lágrimas em seus olhos. Só quem havia passado pela dor da fome reconhecia o valor de um alimento como aquele.

— Como se chama? — a mulher indagou.

— Bianca — respondeu. — Onde estou?

— Na terra dos Clark. Castelo Negro fica há poucos metros daqui.

A constatação trouxe lágrimas aos olhos negros de Bianca. Ela havia chegado? Conseguira?

— Procura trabalho por aqui? — a mulher indagou. — Há muito — explicou. — Apesar do frio, os deuses são bons com essa terra, e sempre houve prosperidade e fartura.

Imerecidos , pensou Bianca.

— Sou Zilda — a mulher se apresentou. — Levar-lhe-ei até Thomas.

— Thomas?

— Thomas Clark, o senhor de Castelo Negro.

T. Clark...

Então o T. significava Thomas? Mal podia acreditar, ela havia conseguido. Apertou a própria roupa e segurou sua sacolinha de ervas.

Por Elliot, chegara a hora de Thomas Clark pagar por todos os seus pecados.


Haviam tantos imundos de cabelos negros e olhos verdes trabalhando por ali que Bianca começou a duvidar que o senhor de Castelo Negro fosse o mesmo homem que a havia submetido dias antes.

Como alguém podia ter duas faces? Alimentar e tratar seus servos com misericórdia (sim, eles estavam bem vestidos e sorriam, felizes), enquanto submetia e matava aqueles que tentavam proteger as mesmas pessoas?

Ele era um poço de falsidade, percebeu.

— Fique aqui — a mulher pediu. — Irei falar com Thomas.

Ela permaneceu parada em um hall enorme e escuro. As pessoas que passavam por ela acenavam com a fronte, mas não paravam para conversar, pois todas estavam ocupadas.

O lugar estava quente. Diversas lareiras exalavam uma fumaça escurecida que subia até o teto. O feno no chão permitia que o gelo não se fixasse no assoalho de madeira.

Ela tremeu. Não de frio, subitamente de medo. Logo, seu algoz a veria. Logo, saberia que ela estava ali para desmanchar sua imagem e destruir sua vida. Talvez devesse se esconder e agir à surdina. Mas, algo lhe impunha que aparecesse diante dele, porque perante os servos ele nada faria.

— Essa é Bianca — ouviu a voz de Zilda as suas costas.

E então volveu-se. Diante dela, estava o maldito que a havia violado, matado seu irmão... o desgraçado... Exatamente como em seus pesadelos, usando roupas negras e o olhar assustadoramente escuro.

— Seja bem vinda, Bianca — ele estendeu a mão.

Fingiu não conhecê-la! Ou talvez não a reconhecesse realmente. Homens como ele deviam submeter mulheres às pencas. Então soube que a voz que exigia em sua consciência que aparecesse para ele lhe antecipou boas novas.

Bianca conseguiria se vingar sem que ele soubesse que era ela a destruí-lo?

— Você procura emprego? — ele perguntou, a mão ainda estendida.

Ela elevou a própria, e a apertou com força.

— Sim, procuro trabalho — mentiu.

O sorriso dele era caloroso. Ela o odiou tremendamente.

— Sempre precisamos de ajuda. No momento, uma das servas da cozinha está prestes a dar à luz. Se quiser, pode ficar no lugar dela.

— Muito grata.

O homem então curvou-se respeitosamente e se afastou.

As suas costas, o olhar de ódio cravou-se nele como espinhos.

Bianca mal podia esperar para matá-lo.

 

Capítulo 06

 


V E N E N O

 

Até próximo da idade adulta, Bianca nunca havia entrado em uma cozinha. A família era abastada e ela tinha servos para lhe servir.

Mas, quando Elliot e ela fugiram do jugo do pai, ela passou a cuidar da alimentação da dupla. Soube que era boa em fazer caldos e limpar as coisas. Compreendeu que a vida sempre podia ensinar quando você está proposto a aprender.

Portanto, no final daquela noite, quando as portas e janelas começaram a fechar e muitos servos foram embora, ela preparou um caldo quente e aguardou pelo senhor.

Ele veio logo, um tanto suado pela lida. As mãos eram calejadas, como se ele estivesse todo o dia em afazeres, junto aos servos.

Estranhou aquilo, mas não teceu comentário. O povo do norte podia ser diferente nesse aspecto, mas a face monstruosa que Thomas mostrara a ela na noite em que a conhecera não lhe deixava margens para dúvidas sobre seu caráter.

Ele limpou as mãos em uma bacia com água e sabão e então se sentou à mesa da cozinha. Logo, ela o serviu.

O homem mergulhou o pão no caldo e gemeu, diante do gosto bom. Aquele mesmo som que fez quando a penetrou.

Ela fechou os olhos com força, sentindo-se mal.

— Ainda não tive a chance de conversar com Zilda, mas como veio parar aqui?

O olhar escuro estava sobre ela. Um olhar quente e gentil. Ela odiou ainda mais aquela falsidade.

— Meu irmão e eu buscávamos por trabalho no norte.

— É mesmo? E onde ele está?

— Está morto.

A implicação de que só a mulher havia sobrevivido ao gelo foi nítida.

— Eu sinto muito — ele murmurou.

E parecia tão sincero...

Bianca precisou se afastar para esconder as lágrimas.

Maldito, infeliz! Havia sido ele mesmo que havia matado Elliot e agora dizia isso?

Depois disso, ele comeu em silêncio. Ela passou a limpar as louças com água quente, mas não deixou de notar que o olhar dele a seguia de tempos em tempos.

O que planejava? O que queria?

Antes de ir dormir, naquela noite, ela levaria consigo uma faca. Se ele viesse, ela cortaria sua garganta.

 


— Estou pensando em me casar.

O olhar de Avalon volveu-se para Thomas, surpreso. Logo, contudo, suavizou, e o homem riu.

— A moça nova?

— Bianca, seu nome. Parece ser boa gente.

— O que ela pensa dos imundos? — indagou o administrador. — Seria um problema se encontrasse uma esposa com o temperamento de seu irmão.

— Zilda a cuidou e ela não pareceu preconceituosa.

— Não acho que Zilda tenha lhe mostrado as tetas — Avalon contrapôs. — Mas, se gosta dela...

— Estou na idade, entende? — o interrompeu. — Quero uma mulher, alguns moleques para correr pelas terras, aquietar a minha mente. Antes de morrer, meu pai queria ir fazer algum acordo no Sul para que eu tivesse uma esposa, mas então a febre o levou...

— E ela te agrada?

Era exatamente essa a questão. Ela o agradava muito. Até a mulher surgir em Castelo Negro, alguns dias antes, um casamento estava fora de cogitação.

Mas, agora... Agora pensava nela dia e noite. A queria, verdadeiramente. Estava ansioso para tê-la para si.

E acreditava que não teria problemas numa aceitação. Afinal, era uma chance única para uma empregada ser pedida em casamento pelo patrão.

Normalmente, homens com sobrenomes de peso como o seu pegavam servas para amantes, e buscavam por esposas em casas mais ao sul. Mas Thomas era um homem correto. O tanto que a queria jamais a colocaria numa posição de amante. Além disso, Bianca parecia ser uma jovem de valor.

— Quando falará com ela?

— Assim que possível — antecipou. — Gostaria de me casar antes do inverno piorar. Se não cair nevasca, poderíamos dar uma festa.

Avalon riu. Como sempre, Thomas era prático e sem grande envolvimento romântico. Não sabia se Bianca tinha sorte ou azar de cruzar pelo seu caminho.

 


O chá de ervas fervia quando ela colocou um pequeno graveto diferente dentro da panela.

Sorriu, diabólica.

Depois, serviu um caneco e jogou o resto fora. Seguiu em direção ao quarto do Senhor. Bateu na porta.

A imagem do homem surgiu diante dela. Estava limpo, havia acabado de se lavar. E era difícil vê-lo assim porque o rosto sempre estava enegrecido pelo carvão.

— Eu trouxe um chá para que durma melhor — ela murmurou, doce.

Thomas sorriu.

— É muito generosa — murmurou, aceitando a xícara. — Muito obrigado.

Ela então o deixou. No seu âmago havia a felicidade plena por sua destruição.

Que bebesse! Que sofresse! Que morresse!

Desceu pelas escadarias e foi até seu dormitório. Sentou-se em sua cama, e só então notou que as mãos tremiam.

— Elliot — murmurou, em uma prece baixa. — Faça com que ele beba até a última gota...

 

 


Capítulo 07


A V I N G A N Ç A

 

 

Thomas não bebeu até a última gota. Na verdade, bebeu dois goles do chá, e depois o deixou de lado. Havia sentido o gosto da camomila, e não quis dizer a jovem serva de que não gostava do sabor. Assim, por cortesia, apenas bebericou um pouco e depois voltou-se para os livros de números sobre as finanças de Castelo Negro.

Mesmo tão longe da regência, ele estava conseguindo manter o castelo. Talvez, num futuro próximo, poderia construir outro, mais ao sul, onde o inverno não fosse tão gelado, e manter Castelo Negro apenas como um ponto para escoar a produção para as terras dos negros.

Horas depois, apagou a lamparina e foi se deitar. Embaixo das cobertas ele sentiu o agradável calor das mantas.

Apesar de que o frio em si nunca o incomodava, era bom dormir aquecido.

Quando pequeno, o irmão gêmeo se recusava em sair do casulo protetor do castelo aquecido. Mas, Thomas não temia a neve.

Conforme ia crescendo, começaram a chama-lo de “O homem de gelo”. Riu da alcunha, em seu íntimo.

Na verdade, ele não era frio, de forma alguma. Ao contrário, ela compassivo e bom da melhor forma que pudesse. Não que fizesse alguma diferença na sua vida espiritual, pois Marlon, o sacerdote, jurava que ele iria perecer em infernos ardentes por sua falta de devoção a Bran.

Subitamente, um amargor intenso na boca, como se houvesse comido sal puro. Caiu de lado e cuspiu no chão aquela saliva salgada. Voltou à posição inicial, quando percebeu o vômito subindo pela garganta.

Ergueu-se de súbito e correu até a bacia.

Thomas não acreditava em deuses, mas foi Bran que permitiu que ele respirasse na manhã seguinte de seu envenenamento.

 


Ela mal acreditou quando o homem surgiu na cozinha, o rosto um pouco pálido, mas o aspecto forte.

Ele caminhou reto até a mesa e sentou-se. Aguardou pelo pão quente que Zilda logo levou até si.

Bianca tentava controlar as lágrimas a custo de sua própria sanidade.

— Vou arrumar o quarto — indicou, afastando-se.

Subiu as escadas que davam ao piso superior em passos leves, como se estivesse em nuvens. Ela havia colocado veneno suficiente no chá para matar um búfalo. Como aquele filho da puta sobreviveu?

Entrou no quarto e aproximou-se da xícara parada em um pequeno balcão ao lado da cama. Se ele bebeu, fora no máximo uns três pequenos goles. Ali, percebeu o porquê do veneno não funcionar.

Segurou com força a xícara, contendo a ânsia de jogá-la na parede e extravasar sua raiva.

— Bianca?

O som as suas costas a gelou.

Enfim, ele percebera seu plano? Recordara-se dela?

— Sim, meu senhor?

— Desculpe a bagunça, não tive uma noite muito boa. Meu estômago não esteve bem — ele pediu, apontando a bacia.

Ela ignorou-a, volvendo-se para ele e o encarando com seriedade.

— Eu quero falar contigo — ele avisou. — Não sei se é o momento certo, mas...

Silêncio. Apenas lá fora o vento fez um uivo fantasmagórico, quebrando a ausência de som.

— Eu sou um homem com quase trinta primaveras de vida. Estou ficando velho, e quero deixar um legado. Não tenho tempo de ir à procura de uma moça no Sul, e as que até então vivem aqui nunca me atraíram... Mas, você...

Bianca arregalou os olhos. Mal conseguia acreditar.

— Eu posso te oferecer conforto e um bom nome. Então, quero saber se aceitar ser minha senhora?

A xícara caiu de suas mãos, e quebrou-se no chão. Ela sequer se moveu na intenção de ir até ela.

Não era possível! Como ele tinha a coragem? Como ainda não reconhecera seus traços?

— Não sou mais virgem — ela despejou, com a intenção de que qualquer fagulha de memória brotasse no homem.

— Não me importo com seu passado — ele deu os ombros. — É uma boa moça, sabe cuidar de um castelo, os criados gostam de você. Zilda te aprova — destacou. — E eu acho que poderíamos nos dar bem,

— Eu fui estuprada — ela prosseguiu, como se as palavras dele não tivessem efeito. — Fui estuprada e perdi minha inocência.

“Olhe para mim! Veja o que me tornou”.

Aquele grito mudo parecia não causar nada nele.

— Sabe quem é o infeliz? — Só então a voz dele pareceu revoltada.

— Sei. Ele também ordenou matar meu irmão.

Thomas assentiu. Ela viu o misto de ódio sobressaindo-se a razão.

— Dei-me o nome. Encarregar-me-ei de limpar sua honra.

Era inacreditável.

— Eu mesma farei isso, meu senhor — retrucou. — Eu mesma o matarei.

Ele parecia querer contradizê-la, mas, por fim, se calou.

— Tudo que fizer será pouco. Estupradores não merecem nada — devolveu.

Bianca sentiu-se mal. Quase caiu, tamanho o horror em sua mente. Nunca havia conhecido alguém tão falso, tão miserável, em toda a sua existência.

— Eu me casarei com o senhor, se ainda me desejar — ela respondeu, por fim.

— Sim, eu a desejo muito.

Ela o faria o homem mais infeliz sobre a terra.

 


Capítulo 08

 


P R O M E S S A

 

— Ah, você tem muita sorte menina — Zilda comentou, alegre, enquanto despejava os restos da cozinha no coxo dos porcos.

Bianca a encarava com intenso torpor.

— Você acha?

— Ah, meu Thomas é o melhor homem que uma mulher poderia ter. Ele sempre foi tão responsável, tão gentil. Sei que a fará muito feliz.

Ah, se Zilda soubesse a verdade. Seu querido Thomas não passava de um carniceiro. Bianca apertou as mãos a se lembrar da maneira como ele a violou.

Céus, que dor agoniante! E ela estava tão fraca por causa da falta de comida. Não conseguiu espernear o suficiente.

E depois de usá-la ele a entregou aos seus homens. Só então se deu conta de que não viu os demais ali, com Thomas. Provavelmente moravam afastados do castelo. Afinal, eram os únicos que sabiam que aquela faceta de bom senhor era apenas uma encenação.

Repentinamente, o som de algo se chocando no chão fê-la volver-se para a serva. Largou a cesta de mantimentos e correu até Zilda, que havia escorregado no gelo.

— Está machucada? — indagou.

— Esse monte de roupas impediu que eu me machucasse — a mulher riu.

De súbito, um homem estranho surgiu num dos cantos do chiqueiro. Era alto, de cabelos longos, pele clara e vestimentas negras. Um monge, um religioso, Bianca logo percebeu.

— Você é uma pura — ele constatou, observando Bianca. — Não se encoste a essa imunda.

Ali estava, a religião. A mesma fonte de problemas que havia tirado Elliot e ela de seu lar e os levados à miséria por proclamar a verdade.

Entretanto, se estava em seus planos destruir Thomas, ela não podia começar a falar como o irmão para o religioso de Castelo Negro. Portanto, manteve silêncio, baixando a face, submissa, e afastando as mãos de Zilda.

Todavia, Thomas apareceu no mesmo instante. O susto foi em ambos.

— Venha Zilda — ele disse, erguendo a velha nos braços e preparando-se para levá-la até o Castelo a fim de aquecê-la.

— Você nunca será como T. — Marlon declarou, quando os viu se afastando.

Bianca abriu a boca, confusa. Em passos trôpegos, ela seguiu o homem.

“ Você nunca será como T.”

O que o sacerdote quis dizer?

O que aquilo significava?

E se... E se o tal T. não fosse Thomas? Talvez um parente?

Não! Era ele. O mesmo cheiro, a voz... Até a maneira como gemeu quando bebeu a sopa. Ela jamais esqueceria aquela face.

Voltou o olhar para trás. Marlon os encarava com nítido ódio.

— Minha noiva — Thomas chamou sua atenção.

— Sim?

— É fiel aos deuses?

Bianca tentou raciocinar rápido.

— O tanto que posso.

— Não quero problemas depois de nos casarmos. Não sou leal aos deuses referente aos imundos.

Tudo ficou esquecido diante dessa frase.

Mentiroso! Desgraçado!

— Eu compreendo.

— Espero que viver próximo de Zilda não seja um incômodo para você — ele comentou, e ela sentiu o olhar da velha cravado em si.

— Não é — afirmou convicta.

— Bom, fico contente por isso.

Depois, voltou a rumar em direção à Castelo Negro.

 

Capítulo 09

 


O C A S A M E N T O

 


Não houve muitos dias a se passarem desde que Thomas a pediu por esposa e o tempo em que ela agora entrava no templo para unir seu sangue ao dele.

Na verdade, tudo era de uma praticidade impressionante. Sem qualquer romantismo ou beleza, como em sonhos pueris das jovens donzelas.

Não que isso importasse a Bianca. Mas, não pôde deixar de perceber como Thomas Clark era um homem prático que queria apenas uma companheira que lhe desse filhos e com quem pudesse dividir o feudo.

Mas ela não faria nada disso. Ela o mataria antes que pudesse perceber a armadilha em que se enredara.

E então Bianca, como viúva, ficaria com tudo que era dele. E baniria seu sobrenome da face da terra.

Marlon, o sacerdote, rasgou sua carne. Ela sequer deu um leve gemido de dor. Usando um vestido claro muito simples, ela voltou-se para o noivo e o viu sendo ferido também. Aquele vermelho vivo lembrou-a do crânio esmagado do irmão.

O sacerdote uniu suas mãos. Agora era dele. Não havia pior destino para um homem.


Bianca não planejava uma noite de núpcias, mas não a recusou quando o homem lhe estendeu a mão no final daquele dia e a levou até o quarto.

Ela não recusaria nada se chegasse ao seu propósito.

Padrões morais e éticos estavam esquecidos quando a porta se fechou. Em sua mente o pensamento firme de que queria que ele confiasse cegamente nela para beber ou comer o que ela lhe desse, sem pestanejar, tomou-a em absoluto.

Thomas jamais devia desconfiar ser a esposa a causa de sua própria desgraça.

Então, percebeu que não precisava de veneno. Poderia provocar um acidente. Algo que ele não esperasse. Fazer a cabeça de Thomas esmagar da mesma forma como a de Elliot.

— Se não quiser, podemos apenas descansar nessa noite — ele pareceu gentil e afetuoso.

Ah, se ela não o conhecesse...

— Eu não me importo — objetou.

— Tem certeza?

— Você me quer?

— Não nego, Bianca. Desde o dia em que eu a vi pela primeira vez, meus olhos fixaram-se em você de uma forma que não mais me permitiram te abandonar.

— Então me foda — devolveu.

Se ele ficou chocado pelo seu palavreado, não demonstrou. Simplesmente, aproximou-se do corpo generoso e a apertou num abraço carinhoso.

Bianca assustou-se pelo ato.

— Está tudo bem — ele a consolou.

As palavras não o chocaram. As palavras o emocionaram. Céus, os próprios olhos negros de Bianca estavam ao ponto de derrubarem lágrimas.

— Você é tão bela e delicada — ele murmurou contra suas orelhas, de uma forma tão gentil que ela apertou os olhos, contendo-se para não segurar-se nele e desabar.

Os dedos de Thomas ergueram-se, então, abrindo os botões do vestido de lã. A boca deslizou para o pescoço em pequenos beijos confortadores. Subitamente, Bianca sentiu-se aquecida e protegida. Renegou aquele sentimento.

Diante dela estava o homem que a havia estuprado, e matado seu irmão! Como se atrevia a permitir-se afundar-se em seu calor?

Aos poucos ele a conduziu a cama. O leito estava preparado para receber aquele novo casal. Lençóis brancos de linho, cobertas perfumadas e travesseiros de penas novas. Zilda, provavelmente, os queria confortável naquele início de vida conjugal.

A parte superior do vestido de Bianca desceu, deixando seus seios branquíssimos as vistas do homem.

Thomas baixou-se e os tomou na boca. Suas mãos forçavam as saias para baixo.

Ele tentava ser carinhoso, ela percebeu. Aquilo não importava. O ódio a dominava e ela simplesmente aceitava aqueles beijos e gentilezas com resignação.

Logo sentiu a maciez da cama contra suas costas. O homem em cima dela, seu peso a prensando, enquanto sua boca fazia um caminho de beijos que ansiavam por deixá-la à vontade.

Ela queria que aquela tortura acabasse logo, então deu um leve gemido fingido e abriu as pernas. Logo, Thomas se posicionava contra ela.

Não foi como na primeira vez. Não foi doentio e forçado. Ele era tão delicado no ato de envolvê-la que ela quase sentiu prazer.

O movimento dos corpos passou a dança frenética do sexo. Não tardou muito e ela sentiu-se molhada.

Aqueles breves momentos quase a fizeram vomitar.


Thomas dormia profundamente ao seu lado. Bianca observou suas costas nuas, pensando na diferença de atitude. Pareciam dois homens diferentes. O marido carinhoso e o estuprador cruel.

Todavia, aquela faceta não a enganava.

 


Capítulo 10

 


A E M B O S C A D A


Quando acordara naquela manhã, tentou se inteirar dos planos do marido para o dia que transcorreria.

Durante o dejejum, soube por Zilda que Thomas iria ver cercas num dos povoados que circundavam Castelo Negro. O lugar um tanto afastado não poderia ser visitado a pé, então o homem pedira a um dos servos para lhe preparar o cavalo.

Com a desculpa de ser uma boa e gentil esposa ainda suspirante pela noite que passara, ela fora até o celeiro e aproximou-se do cavalo, alisando gentil seu pelo confortável.

— O lugar aonde meu marido irá é longe?

O homem chamado Avalon lhe sorriu. Ele estava preparando a viagem para o Senhor de Castelo Negro.

— Não se preocupe, senhora, pois o Senhor Clark conhece essas terras como a palma da mão.

Ela sorriu, parecendo aliviada. Quando o homem se voltou para mexer nas mantas que cobririam o animal, ela pôs rapidamente três pedras pontiagudas embaixo da sela.

Depois, Avalon voltou-se novamente para ela, sorriu e se afastou.

Bianca foi até a fronte do animal e lhe acariciou o focinho.

— Desculpe — murmurou ao equino . — Quando o peso dele afundar as pedras, você vai sentir dor, mas é necessário — ela parecia verdadeiramente aflita pela dor do cavalo.

O som de pisadas fê-la afastar-se do animal. Enfim, o marido chegara. Ele estava especialmente animado naquela manhã. Claro, havia tido uma noite perfeita, onde uma esposa submissa e meiga o havia satisfeito.

Aproximou-se dela e lhe deu um leve beijo na têmpora. Fora do quarto, parecia mais contido.

— Trarei alguns chás que crescem por lá — avisou. — Para a noite bebermos antes de dormirmos. Faz bem, acalma...

O fato de ele remeter a noite e o quanto ansiava por estar novamente com ela lhe deu náuseas. Mesmo assim, Bianca apenas assentiu, animada.

— Que Bran o proteja — disse, falsamente.

O homem assentiu e puxou o cavalo.

Ela sequer imaginava, mas era exatamente isso que Bran faria.


Conforme Nevasca, seu cavalo de cor embranquecida e extremamente manso, avançava e subia pelas montanhas que separavam Castelo Negro do povoado próximo, Thomas sentiu que algo estava errado.

O animal parecia ansioso e nervoso. Seria alguma fera a espreitá-los?

Repentinamente, o animal ficou em duas patas. Queria derrubá-lo. Thomas tentou se segurar, mas houve alguns chutes no ar, e por fim ele caiu.

O impacto sobre as rochas foi automático. Achou que fosse ser pisoteado, mas Nevasca logo se afastou e correu em direção ao lar, como era treinado para fazer.

Com o frio, Thomas não sentiu dor, mas quando tentou se levantar, caiu novamente.

— Merda! — ralhou.

Havia machucado a perna. Esperava que logo alguém viesse ajudá-lo antes que se congelasse naquele tempo cruel.


O cavalo corria de forma desenfreada. Quando chegou ao celeiro, Bianca, que o aguardava, o acalmou com carinho, mal contendo o sorriso.

Foi até a sela, e tirou as pedras. Logo que sentiu o alívio da dor, ele pareceu fungar para ela como se agradecendo.

— Bom menino. — Beijou seu focinho.

Então vieram os homens, e ela fez uma encenação assustada.

— O cavalo voltou sozinho — disse a um deles. — O que aconteceu com meu marido? — fez menção de preocupação.

Que o desgraçado tivesse morrido!


Thomas soube que não iria chegar muito longe conforme sentia o corpo entorpecer pelo frio.

Sentou-se próximo de uma rocha e tentou se animar com a esperança de que logo veriam Nevasca e então viriam atrás dele.

Era até cômico que algo do tipo ocorresse logo após um momento de estrema felicidade. Mas, a vida dele sempre fora assim. Como se houvesse uma muralha que sempre o impedia de cruzar pelos dias estafantes e adentrar num mar de tranquilidade.

Com a morte dos pais, ficou T. e ele a cuidar de Castelo Negro. O irmão era um fanfarrão miserável, e Thomas ficou aliviado quando ele resolveu viajar para comprar mantimentos e não mais voltara. Contudo, tão logo T. sumiu, Marlon, o sacerdote, passou a lhe incomodar por conta dos imundos que abrigara.

Então surgiu Bianca. Parecia uma deusa, tão bela e doce. Ele se apaixonou tão logo a viu. E, tão logo a teve, acidentou-se.

Afundou-se nesses pensamentos, e não viu as horas passarem. A neve começou a cair, e ele cobriu-se com o capuz, tentando não deixar que o gelo entrasse em contato com o corpo.

Fechou os olhos. Começou a se sentir cansado. Sabia que se dormisse, iria morrer, mas o sono parecia irresistível.

Foi então que um solavanco o fez sobressair-se. Abriu os olhos. Era Avalon.

— Meu senhor, fique comigo — o homem gritou.

Foi colocado em uma charrete. Muitas mantas sobre seu corpo. Logo, sentiu que estava sendo transportado novamente para Castelo Negro.

Nunca soube precisar quanto tempo demorou em chegar, mas quando percebeu Bianca ao seu lado sorriu.

Viu as lágrimas femininas. Quis elevar as mãos e dizê-la que tudo ficaria bem, que ele estava bem, que ele não a deixaria, mas por fim o sono o tomou.

No quarto aquecido, ele sobreviveu.


Ele sobreviveu!

Desgraçado, filho da puta!

Bianca conteve as lágrimas, aceitando um pano de linho que Zilda lhe estendia.

— Fique tranquila, senhora. Thomas é forte e já está aquecido. Nada acontecerá a seu marido.

Como havia sobrevivido a uma queda de cavalo? E a nevasca intensa da manhã? O que precisaria fazer para matá-lo?

O som de passos fê-la erguer a face. Estava na cozinha, bebendo chá calmante, e recebendo o conforto dos servos.

Então, a face do monge de Bran surgiu e ela se arrepiou.

— Bran pune aqueles que o provocam. Thomas Clark protege imundos.

Bianca estava nervosa. Seus planos estavam falhando miseravelmente e, ainda por cima, tinha que aguentar um ditador de regras despejando suas baboseiras na cozinha que agora era dela.

— Saía daqui — ordenou.

— Como se atreve...?

— Saía daqui! — gritou, atirando a xícara nele e avançando.

Todos que estavam ali, puros ou imundos, ficaram pasmos com a atitude.

O que para Bianca era uma guerra contra a antiga religião, aos olhos do servo era a prova mais verídica de amor de uma esposa para com seu marido.

 


Capítulo 11

 

D E S T R U I Ç Ã O


Bianca observou o homem suado no leito. Assim que conseguiram aquecê-lo, ele passou a ter febre. Agora, ela, como uma esposa devotada, permanecia ao seu lado, a molhar um pano com água e colocá-lo em sua testa.

— Eu trouxe um caldo — disse Zilda, entrando no quarto.

O olhar abatido e preocupado tocou Bianca. Por que aquela mulher boa e generosa gostava tanto do maldito?

— Não se preocupe, Zilda, tudo ficará bem — foi otimista.

Sim, porque quando ela fosse Senhora do Castelo, os imundos teriam um tratamento digno real. Não aquela exibição feita por aquele homem odioso.

A mulher assentiu e depois a deixou. Precisava voltar aos seus afazeres.

Assim que se viu sozinha, Bianca tirou do corpete um extrato de ervas e derramou dentro do caldo. Aquele tipo de medicação não matava alguém com boa saúde, mas um homem já com um pé no submundo... Talvez...

— Beba, Thomas — ela murmurou.

Ele abriu os olhos. Subitamente, ela recuou.

— Não sinto fome, meu amor...

Meu amor...

Era a primeira vez que ele a chamava assim. E nem tinha realmente um motivo. Para ele, haviam se conhecido há poucos meses, ela trabalhara na cozinha enquanto ele só vinha à noite para o Castelo. Depois, ele a pediu em casamento. Sequer tiveram uma conversa mais profunda após isso. E então houve a noite de núpcias e o acidente.

Não havia tempo cabível para que um amor surgisse no coração do homem. Então, por que falava de tais sentimentos?

Bianca temia muitas respostas. Mas, de uma coisa ela estava certa: seu rosto aflito da noite em que ele a violou, Thomas Clark não se recordava.

Talvez estivesse bêbado. Ou talvez fosse tão comum para ele se impor a mulheres que ela era apenas mais uma na multidão.

— Eu havia prometido de dar noites felizes, e na primeira após nosso casamento, você já precisa cuidar de um convalescente — ele murmurou.

E sorriu.

E era um sorriso tão pueril que Bianca viu-se arqueando as sobrancelhas e lutando para ignorá-lo.

— É dever de uma esposa cuidar do marido — ela murmurou.

— Não quero que faça nada por dever, Bianca. Quero que me ame.

Nunca!

— Fala muito de sentimentos, meu esposo — ela murmurou.

Ele pareceu avaliá-la. Por fim, um gemido doloroso escapou dos lábios e apenas murmurou:

— Tem razão, Bianca. Esperarei pacientemente para que um dia tenha por mim os sentimentos preciosos de uma mulher para com um homem. Farei o possível para ser digno deles.


Com certeza aquele vilão poderia enganar até mesmo a mais incrédula das criaturas. Thomas Clark tinha uma maneira única de sorrir e de encarar as pessoas que você poderia ter convicção de que era um bom homem e de que uma mulher era a mais felizarda das criaturas em desposá-lo.

Mas, Bianca ainda sentia o gosto amargo de sua boca pegajosa nos lábios. Ainda sentia a dor da sua investida obtusa. Ainda ecoava em sua mente o som do crânio do irmão sendo quebrado.

Então, aquela faceta não a enganava. Mesmo diante de uma multidão de pessoas que pareciam preocupadas e nervosas pelo senhor, ela não nutria por ele um mísero sentimento.

Pensou na maneira como ele beijou delicadamente seu ombro na noite de núpcias...

A forma como ele a tratava mesmo sabendo-a não mais virgem.

A maneira como a chamou de amor...

Apertou as mãos com tanta força que quase sangrou. Diante dela, um dos membros da corte andava de um lugar para o outro. Zilda choramingou. Só então a atenção de Bianca foi total.

— Pode ser que tenhamos que cortar a perna.

— A perna gangrenou? — Zilda indagou.

Avalon pareceu em dúvida. Bianca ouviu o choramingar baixo das demais pessoas no Salão.

— Um senhor tão bom... — Zilda murmurou. — Nosso amado Clark...

Bianca se ergueu e se afastou. Não que ouvir as novas lhe incomodasse, mas porque a vida tinha uma maneira estranha de recompensar.

Precisava rir.

Andou pelo corredor até sentir-se segura. Então, agachou-se, cobrindo a boca, enquanto tentava conter uma sonora gargalhada.

Thomas Clark, a conta dos seus atos chegara. Enfim, sua dívida estava para ser paga.

 


Capítulo 12

 


R E D E N Ç Ã O

 

Zilda observou a senhora saindo do Salão. Pobre Bianca, mal havia se casado e já estava à beira de um tormento tal.

Resolveu segui-la, porque antecipou que a pobre merecia amparo. Silenciosamente e respeitosamente, ficou atrás dela até vê-la agachar-se no chão. Esperava ouvir as lágrimas, mas então o som inconfundível de uma risada cortou o ar.

Ficou em choque. Retrocedeu. Quando estava suficientemente longe da senhora, correu até o quarto de Thomas.

O homem estava acordado e a encarou com seriedade quando a viu entrando no quarto.

— Avalon tem medo que a perna esteja podre — ele contou a Zilda, antecipando-se. — Mas, eu acho que não está. Apenas sofreu demais. Pedi a algumas servas para limpar com água e sabão até eu ter uma visão normalizada da situação. Não os deixarei cortar sem ter certeza — tagarelou. — Mas, se for meu destino ser aleijado, que o seja. Não serei menos homem por causa de uma perna.

Zilda sabia que ele ainda estava febril e doente. Mesmo assim, aproximou-se e despejou.

— Ouvi sua esposa rindo quando falaram sobre sua situação.

Thomas não pareceu surpreso.

— Você sabe... Às vezes acontece. Cada pessoa reage de uma forma. Por favor, cuide dela, não quero que fique histérica.

Era verdade. Zilda já havia visto mães terem surtos de loucura diante da morte dos filhos. Saber seu jovem marido tornar-se inválido devia ser de uma dor assombrosa para a mulher.

— Gosto dela, Zilda — ele contou.

A velha sorriu.

— De verdade?

— Céus, nunca senti isso antes — assumiu. — Foi automático, desde a primeira vez que a vi. Sei que teve problemas no passado, e ainda tem dificuldades de se abrir comigo, mas pretendo conquistar sua confiança e seu respeito.

— E amor?

— Não sei se me amará um dia, mas estou satisfeito com o que vier dela. Já será muito. Num mundo como o nosso, é até ridículo ansiar por amor.

Zilda entendia aquilo.

 

A perna não estava necrosada. Bianca soube disso conforme os dias foram se passando, e o pus amarelado foi dando espaço para um vermelho carne saudável.

— Bianca...

Ela ergueu os olhos para o marido. Estava na parte inferior do leito, a limpar-lhe o ferimento. Sempre séria, ela manteve a faceta enquanto via um sorriso resplandecer na face masculina.

— Em Bran, nomes têm significados poderosos — ele murmurou.

— Eu sei disso.

Estava irritada. O filho da puta não morria pelo veneno, pela queda de um cavalo, nem mesmo a bosta da perna ele perdeu! Todos os seus esforços estavam se reduzindo a fracassos.

— Bianca... Branca... Alva. — ele murmurou o significado. — Pura como leite.

Se ele a visse além da pele clara, saberia ser sua alma escura como demônios. Mas, nem sempre fora assim. Foi ele, o culpado. Ele!

Repentinamente, uma mão gentil acariciou seu braço. Ela petrificou.

— Você é linda — ele elogiou.

E de que isso importava? O que significava a beleza naquele mundo podre?

O Clark pareceu perceber seu incômodo pelo toque, e logo se afastou. Permaneceu imóvel enquanto ela molhava seu ferimento com um pano umedecido.

— Seu nome é muito belo e traz muito de ti — ele repetiu. — Já o meu...

Parecia desprezá-lo.

— O que significa?

Ele emudeceu.

— Não gosto de falar sobre isso. Minha mãe claramente amava o segundo. Deu-lhe um nome carregado de amor. O meu era apenas uma demonstração de que eu não vinha sozinho.

Aquela frase estranha fê-la abrir os lábios para indagar mais coisas. Todavia, a entrada de Avalon impediu que a conversa esclarecesse suas dúvidas.

 


Capítulo 13

 


V E R D A D E


A neve se tornou mais intensa conforme os dias passavam. Não tardou para Bianca perceber que o trabalho era pior no inverno. Os dias cada vez mais curtos lhe consumiam. Ela ajudava como podia as servas, enquanto também tentava cuidar do marido.

Contudo, conforme a perna ia melhorando, ele também não mais a ocupava. Suas dúvidas e anseios que guardou tão calorosamente tiveram que esperar.

Numa manhã, acordou cedo, mas Thomas não estava na cama. Desceu para o andar térreo e logo Zilda lhe contou que o Senhor se sentia melhor e queria voltar ao trabalho.

— Mas, será aos poucos. Hoje apenas irá olhar as ovelhas.

Bianca sentou-se à mesa, não porque esperava ser servida, mas porque queria resolver por tudo uma questão.

— Qual o significado do nome “Thomas”? — ela indagou.

— A menina não sabe? — a velha braiana riu. — Ora, é gêmeo.

Gêmeo...

Não! Não era possível que houvesse se enganado tanto.

— T. é exatamente uma cópia do irmão.

— T.?

— Tan — explicou. — Mas, a cópia ruim. Graças a Deus, foi viajar e não voltou mais. Espero que nunca volte.

Bianca começou a se sentir mal. Segurou-se na mesa para não cair. Sua tontura logo foi má interpretada pela outra.

— Está grávida, menina?

Sabia que não. Seu sangue havia descido na semana anterior. Então apenas negou e se afastou.

Precisava respirar... Precisava...

— Esposa! — o som cortou o ar e ela observou o homem que se aproximava tranquilamente. — Eu lhe trouxe um presente.

Um filhote de gato foi colocado em seus braços. Miou, tão inseguro quanto carente. Bianca sentiu os olhos transbordando de lágrimas conforme ia compreendendo que estivera, até então, atrás do homem errado.

Aquele Clark era doce e gentil. Decente o suficiente para respeitá-la e nunca tocá-la até o casamento. Generoso para tratar bem os imundos. Carinhoso por trazer-lhe o afeto de um gatinho.

— Me fale de seu irmão — ela pediu.

Ele pareceu estranhar a pergunta.


— Minha mãe o amava no tanto que me detestava — Thomas apontou. — Não sei por que exatamente, éramos iguais fisicamente. E quando digo iguais, não quero dizer parecidos, e sim absolutamente idênticos. A mesma voz, a mesma face, até mesmo o jeito de andar. O que sempre nos diferenciou foi o temperamento.

Estavam no quarto. O filhote negro do gato andava pela cama.

— Mas, minha mãe o amava — repetiu lacônico . — Provavelmente, era mais parecido com ela no modo de pensar. Sempre foi meu pai que deu abrigo aos imundos.

Bianca mal conseguia se mover. Sentada na cama, ela estava completamente afogada num mar revolto de emoções.

Aquele homem... Aquele homem era inocente. Cega pela raiva e pela vingança, só então ela conseguia ver isso.

— Você disse que seu irmão partiu em viagem... — murmurou.

— Chamou alguns amigos e foi buscar mantimentos que aqui faltavam. Levou ouro e recursos consigo; sinceramente não sei se voltará. Talvez, apenas depois que terminar de gastar tudo.

— E você? Não viaja?

— Não tenho o costume. Preciso cuidar de Castelo Negro.

Bianca parecia encarar o vazio. Sua mente fervilhava com lembranças dolorosas. Mas, lembranças não causadas por Thomas.

Como pudera ser tão cruel? Assassina?

— Me fale de seu irmão — a voz masculina a sobressaltou. Logo Thomas sentava-se ao seu lado.

Sentiu o toque dos dedos masculinos na mão. Um carinho respeitoso. Ele sempre agia assim. Apenas embaixo dos lençóis havia demonstrado seu fogo de homem.

— Ele era um bom homem — disse, e foi tudo.

Porque não havia mais nada que pudesse definir Elliot.

O irmão era a pessoa mais generosa, doce e gentil que já havia pisado na terra. E cada vez que Bianca exalava, estava insultando a memória pueril de Elliot.

— Minha amada, está tudo bem?

A pergunta fê-la erguer-se e afastar-se.

Era evidente que, para o marido, suas questões remetiam ao próprio irmão, e a saudade que nutria.

Mas, a verdade era pior. Saiu pela porta fugindo dos demônios que cruelmente lhe acusavam.

Sua consciência não a deixaria em paz.

 

 


Capítulo 14

 


O F U T U R O

 

Thomas visualizou a esposa fria e sem expressão ser tomada por um semblante angustiante e desesperado. Por fim, ela ergueu-se e correu.

Ele ficou estranhamente inquieto diante do fato. Em nada do que dissera, poderia ofendê-la. Então, o porquê da ação?

Ergueu-se e a seguiu. Percebeu o vestido deslizando pela escadaria e, depois, raspando na neve externa do Castelo.

Ela correu em direção à mata fechada, como se não se importasse com os perigos que o lugar podia representar num tempo tão gelado quanto aquele.

Correu atrás dela. Chamou seu nome. Ouviu o choro desesperado escapando da garganta feminina.

Ficou preocupado e apressou o passo. Por fim, conseguiu interceptá-la. Ambos quase caíram na neve assim que ele a tomou. Mas, Thomas era forte e manteve o equilibro.

— O que houve, Bianca? — exigiu.

Sabia que havia algo por trás do ato. Queria entender os motivos.

Sentiu um abraço desengonçado afundando-se nele. Ergueu-a no colo, percebendo que nenhum deles estava preparado para ficar naquela nevasca.

Ele sabia amá-la. Entenderia seus motivos, quaisquer que fossem.


O pequeno felino dormia no acolchoado de lã. Bianca sorriu diante da visão.

— Meu irmão, Elliot, gostava de homens — ela contou.

Thomas, sentado aos pés da cama, não pareceu estranhar aquela colocação.

— Alguns homens gostam.

— Não te choca?

— Eu só posso falar sobre mim. Eu gosto de mulheres, não me importa se são magras ou gordas, altas ou baixas. Sei sobre mim e sobre meu corpo. As preferências de outros homens cabem a eles. — Depois, pareceu se lembrar de algo. — Aliás, ouviu os boatos?

— Que boatos?

— Príncipe Iran de Masha gosta de homens.

— É mesmo?

Só então deu-se conta de que pareciam duas senhoras velhas a fuxicar a vida dos outros. Ela sorriu diante dos pensamentos.

— Bom, nem todas as pessoas conseguiam aceitar meu irmão. Na verdade, apenas eu o aceitava...

— O que aconteceu com ele?

— Foi enviado a um templo de Bran para ser punido e pagar penitência.

Thomas se apiedou pelo jovem que não conhecia.

— Ele morreu lá?

— Não, ele escapou. Numa noite em que estava completamente destruído pelas surras impostas, um homem veio vê-lo. A princípio, não o reconheceu. Mas, conforme iam conversando, soube se tratar do próprio Bran.

O silêncio de Thomas fê-la prosseguir.

— Sei que é difícil acreditar em tal coisa, mas se conhecesse Elliot, jamais duvidaria. Ele era um homem muito honrado e bom.

— Eu acredito — ele afirmou. — Como poderia duvidar da palavra de minha esposa?

Bianca sentiu lágrimas nos olhos.

— Se soubesse toda a verdade, duvidaria.

— E qual é toda a verdade?

— Bem, Bran o incumbiu de uma missão cruel.

— Qual?

— Proclamar a todo Reino que os imundos são como nós. Que eles não devem ser escravizados. Que a lei do sacerdócio devia mudar, pois as escrituras foram adulteradas.

Thomas respirou fundo. Definitivamente, não era fácil. Todos que tentaram aquilo acabaram mortos.

— Quando meu irmão abandonou nossa Casa e partiu para cumprir o ordenado, segui com ele. E também me esforcei para passar a mensagem, apesar de não ser a escolhida.

— Algum motivo especial?

— Além do enorme amor por Elliot, Bran antecipou que sua falha ocasionaria em uma Guerra entre os três reinos que traria muita morte.

— E ele falhou — Thomas constatou, já que a vida dos imundos permanecia igual.

— Sim, mas não por sua culpa. Em uma noite, um homem com alguns comparsas invadiram o celeiro em que nós dormíamos. Eles o mataram.

Ficou muito claro a Thomas que o homem que havia destruído o irmão de Bianca era o mesmo que a estuprara.

— Aquilo que me contou quando a pedi em casamento...?

— Sim. Foi um estupro coletivo. Todos os homens abusaram de mim diante do corpo sem vida de Elliot.

Thomas tentou conter a revolta. Queria esmagar a cabeça do desgraçado com suas próprias mãos.

— Eu te pedi um nome — ele murmurou. — Ainda o peço. Deixe-me agir como esposo. Te imploro que...

— Até poucas horas, eu acreditava que você era esse homem.

A frase caiu como uma bomba entre ambos.

— Avisei que a vingança era minha. Por isso, estava me vingando.

Estava? Mas, desde que a conheceu, ela só o fez feliz.

— Eu te envenenei durante todos esses meses. Eu pus pedras na sela de Nevasca para que ele o derrubasse. Eu tentei matá-lo de diversas formas, e falhei em todas.

— Mas... Por quê? — balbuciou.

Então, veio à razão. Tan. O irmão gêmeo. Bianca havia confundido os homens.

— Do meu algoz eu sabia o rosto, a Casa a qual pertencia, e a primeira letra do nome.

Ele mal conseguia acreditar.

— Eu...

— Eu compreendo se me expulsar ou me matar — ela afirmou, e pelo tom da voz, ele soube que Bianca não se importava com o destino.

— Só há dor em você? — indagou, repentino. — Não há mais nada? Nenhum traço de amor?

Aquela pergunta a surpreendeu.

— Como eu poderia amar o homem que me estuprou e matou meu irmão?

— Não sou esse homem.

— Eu não sabia disso.

— E agora?

— Não sei — sentiu lágrimas nos olhos. — Ainda sinto a dor. Ainda sinto a raiva. Quando olho para você quero morrer.

As palavras foram esmagadas por um abraço gentil. Thomas viu, anos após anos, a dor estampada nos imundos. Aquela mesma dor estava ali, presente, na esposa dele.

— Eu me casei contigo — murmurou. — E eu vou te proteger...

Aquela frase tinha uma implicação fortíssima.

— O que fará quando seu irmão voltar?

— Eu o matarei.

— E eu serei para sempre a responsável por tal coisa. Um irmão matando o outro?

— Ele não é meu irmão! — Conteve a vontade de berrar aquilo. — Não aceito por irmão um homem que caía tão baixo, que se aproveite de uma dama.

Bianca apertou-se naquela força. Pela primeira vez na vida, descansou.

— Jure que não o matará — pediu. — Essa vingança é minha.

— Não conseguirá derrotar Tan na espada.

— Então que ele viva. Ou que os deuses decidam seu destino. Porque para mim já basta.

Encararam-se.

— Diga-me, esposa: o que fará agora?

— Serei sua — jurou. — Me esforçarei para ser digna de você como você sempre se mostrou digno de mim.


Quando Thomas terminou o banho, encontrou a esposa deitada no leito, aguardando-o.

A luz fraca de uma vela reluzia, mostrando-lhe uma beldade que o havia cativado desde o primeiro olhar.

Mesmo assim, depois da difícil conversa, não sabia o que esperar. Devia construir uma relação sólida com ela antes de se impor como marido? A desejava muito, mas se essa fosse à vontade de Bianca, ele respeitaria.

Puxou as mantas e deitou-se. Cada qual em seu lado da cama, como se aguardasse uma reação do outro.

— Nunca irei exigir nada de ti — ele murmurou, tão baixo que ela quase não ouviu. — Se um dia me quiser, estarei aqui...

— Como pode suportar ter uma esposa dessa forma?

— Você não entende? Eu fiquei encantado desde o primeiro instante. Depois, quando me disse que não era mais virgem, eu soube que isso não iria implicar num distanciamento. Seu passado não me importava, se eu fosse seu futuro. Então veio a verdade sobre meu irmão e meus acidentes... Mesmo assim, meu coração bate forte no peito quando eu te vejo. Sou capaz de uma vida solitária se for esse seu desejo. Aceito não ter o amor de uma esposa, ou a alegria de ter filhos. Aceito qualquer coisa, se permanecer ao meu lado.

Bianca sentiu as lágrimas derramando-se sobre seu rosto. Resvalou a mão por debaixo da coberta e segurou a dele. Apertou.

Foi então que tudo se explodiu em coragem. Uma força e uma garra feminina que a fez sentar-se entre as pernas musculosas, deixando com que seus seios descansassem no peito peludo.

Estava assim... deitada em cima dele. Não parecia desejosa de mais nada que não fosse aquele momento ingênuo. E Thomas a respeitou.

Sentiu o beijo delicado no topo de sua cabeça. Quão respeitador e maravilhoso era aquele homem?

Foi à constatação dessa verdade que a fez abraçar seu quadril com as pernas, esfregando-se nele, tocando seu pescoço com a língua, correndo até o lóbulo de sua orelha e dando uma mordida. Ele ofegou, desavisado.

— Bianca...

— Sim?

— Não conseguirei resistir, meu amor...

As mãos de ambos passaram a trabalhar na ânsia de libertarem-se das roupas. Havia uma necessidade latente de sentir a pele macia, nua, uma contra a outra.

Aquele homem formado no gelo pareceu derreter diante do seu calor de mulher.

Thomas gemeu mais alto, enquanto se sentia endurecer.

— Pare, Bianca... — ele pediu, tentando se afastar. — Não quero que faça algo que vá se arrepender.

— Não irei — ela afirmou.

— Até à tarde, você me odiava.

— Até a tarde eu ainda não sabia quem era você.

— E agora sabe?

— Estava ali, Thomas, diante de mim, mas eu não conseguia ver. Você é meu marido, meu presente de Bran... Tenho ciência que tudo irá desabar diante de nós. De que haverá uma guerra em breve, de que haverá dor e tormentos. Mas, apesar de tudo, eu recebi você. Você é tudo que tenho, e quero que saiba que me tem também.

— O seu amor, esposa, eu terei?

— Não sei responder... — admitiu. — Tem meu arrependimento, minha culpa, minha dor... E minha paixão. Se te amarei, só o tempo dirá. Mas, estou grata por não ser ele... Não ser o algoz de meus pesadelos. Então, apenas transforme meus sonhos ruins em sonhos bons — pediu. — Seja meu, não me negue isso.

Ele voou para cima dela.

— Bianca... — Sua boca desceu pelo pescoço, seu desejo se esfregando de uma forma prazerosa. – Eu não sei por que os deuses me trouxeram você, nem o que fez para que eu me apaixonasse tanto. Mas, eu me esforçarei todos os dias de minha vida para ser o marido que merece.

— Então não fuja de mim.

— Apenas quero que saiba que posso esperar o tempo que for preciso.

— Mas você não precisa esperar! – retrucou.

Os olhos negros de Thomas pareciam duvidosos.

— Você é tão linda. É impossível resistir.

Ele não conseguia mais falar. Mesmo que lutasse pela honra de aguardar o momento certo de tê-la, seu corpo estava completamente afoito pela esposa. Seus olhos se focavam totalmente naquele corpo delicioso, seu rosto ficava vermelho e, em pouco tempo, pequenas gotas de suor começavam a brotar em sua testa e acima do lábio superior. O corpo se arqueava para frente, num movimento sedutor, chamando-a pela dança animalesca do sexo.

— Bianca, por favor... – ele murmurou, já inconsciente do que fazia, mas ainda numa última tentativa.

Contudo, já tinha mergulhado novamente no torpor do desejo e, segurando as ancas femininas contra si, os olhos penetrando-a da mesma maneira que o pênis, ereto, parecia apenas estar se deslocando para o lugar certo.

O seu lugar...

Bianca o sentiu. Foi diferente da primeira vez. Tanto com Tan, quando só havia dor, quanto da noite de núpcias, onde estava mergulhada em apatia. Agora, ela o sentia, quente, lambuzado, deslizando para dentro dela, adentrando-a com tesão e paixão.

O homem postou-se sobre ela. Sentiu o corpo dele batendo contra ela. Vagarosamente, a princípio. Depois com rapidez. Entrava e saía com tanto furor que ela logo chegou ao ápice da paixão.

— Eu te amo — ouviu-o murmurar contra seus ouvidos.

Que Bran a ajudasse. Estava apaixonada por ele também.

 

Capítulo 1 5

 


M I L D I A S

E

M I L N O I T E S

 

O pequeno Elliot corria pela neve divertindo-se com o gato de estimação da família. Naquele dia, quatro anos após o nascimento do pequeno herdeiro de Castelo Negro, a mulher achegara-se com carinho ao marido, enquanto observava ao filho.

Era verão. Não que fizesse muita diferença naquele frio destrutivo, mas ainda assim era uma benção ter um pouco mais de sol durante o dia.

— Eu te amo — ela murmurou, fazendo com que a cabeça de Thomas volvesse para ela.

Não era a primeira vez que ela confessava aquilo, mas foi um momento especial. Em muito porque estavam em paz, com seu pequeno filho à suas vistas e seu feudo prosperando como nunca.

— Penso em construir outra morada — contou a ela, num sorriso animador.

— Castelo Negro é um lugar muito bom.

— Sim, mas mais ao sul do nosso feudo não é tão frio. Claro, ainda é frio, mas não como aqui. Penso em manter Castelo Negro como escoamento da produção. O novo lugar será Castelo Branco.

Ela sorriu. Gostou do nome.

Repentinamente, o som de cavalos. O homem volveu os olhos à estrada enquanto os aldeões se aglomeravam ao redor dos que chegavam. Eram homens do Rei.

— Thomas... — ela murmurou, insegura.

— Nós já sabíamos que isso aconteceria — ele disse, firme.

Depois, seguiu até os homens.

— Encontramos vosso irmão — o homem disse, sem se anunciar. Na sua armadura, o nome de Bran havia sido esculpido em ouro. — E os homens que seguiram com ele — completou.

— E onde está?

— Morto. Congelado próximo das montanhas ao sul. Pelo visto há muito tempo. Todos eles tiveram as cabeças decepadas.

Houve um silêncio significativo, mas nenhum choque. De alguma maneira, tanto Thomas quanto Bianca ficaram aliviados por aquilo.

— Veio a Castelo Negro para me contar isso? — indagou. — Um caminho um tanto longo para algo que poderia ser dito por uma carta.

Quando pediu ajuda do Rei para encontrar Tan, não sabia exatamente o que queria fazer ao irmão. Mas, iria puni-lo. Os deuses interferiram, soube disso, e ficou grato por tal coisa.

— Claro que não — o homem lhe estendeu um comunicado. — Rei Lugus de Cashel tentou invadir Masha para roubar Esmeraldas.

A pedra verde...

— Como sabe, o Príncipe Iran é extremamente próximo de nosso Rei, Atho. Iremos à guerra.

E ali estava, o cumprimento da profecia.

— Podem descansar os cavalos e se alimentar no castelo — Thomas avisou, seguindo em direção ao filho.

Os homens assim o fizeram.

Quando o Senhor de Castelo Negro pegou Elliot no colo, Bianca já estava ao seu lado.

— Mil dias e mil noites — ela murmurou, lágrimas brotaram em seus olhos. — E tudo porque falhei...

— Era para ser — a consolou.

— Voltará para mim, não é?

— Eu voltarei — prometeu. — Nem a morte me impediria de voltar para ti, Bianca. E depois que vencermos a guerra, irei construir o castelo que te prometi.

A neve prosseguiu a cair.

O vento gelado balançou as madeixas dos dois braianos.

Naquele mesmo instante, em algum lugar Lugus escolhia uma jovem como esposa. Seria Brione, a mãe da futura Rainha que derrubaria para sempre a lei contra os imundos.

Não que aquilo tivesse muita importância. A Guerra real, travada entre os deuses contra o Maligno só teria fim em eras. E a vitória final não era nada certa. amor.

 

 

                                                                  Josiane Biancon da Veiga

 

 

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