Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O HOMEM ILUSTRADO
Na dualidade que se pode atribuir ao significado secreto do título desta obra, oculta-se todo o seu profundo significado — O Homem Ilustrado — ilustrado porque contém no microcosmos do seu corpo toda a sabedoria do Universo, o segredo dessas fontes perdidas, desses mares azuis, dos terríveis sois rubros, dos cometas e das constelações, das galáxias, que se alongam até ao Infinito, dos homens perante o futuro è as incógnitas traçadas pela cibernética. Ilustrado, porque numa tinta mágica, indelével, o seu corpo foi marcado por sortílega operação. As dezoito histórias que se interligam nesta obra são condicionadas pelo espaço material dum livro; tal como o Universo, poderiam expandir-se pelo Infinito, desenvolverem-se sobre si próprias... mas, deixemos isso ao cuidado da imaginação do leitor, depois de ler...
Foi por uma tarde quente de princípios de Setembro que encontrei, pela primeira vez, o Homem Ilustrado. Percorria a última etapa de uma viagem a pé, de quinze dias, pelo Wisconsin. Ao cair da noite parei para comer alguma carne de porco com feijões e um biscoito. Preparava-me para me estender a ler quando o Homem Ilustrado surgiu no alto da colina e ficou um momento imóvel, a silhueta recortada contra o céu.
Ignorava, nesse momento, que ele estava Ilustrado. Reparei, unicamente, que era alto, que outrora fora bem musculado mas, agora, por qualquer razão, tinha tendência para engordar. Lembro-me que possuía uns braços longos e umas mãos grossas, mas o rosto, no alto do corpo maciço, era como o de uma criança.
Pareceu pressentir a minha presença, pois não me olhou quando pronunciou as primeiras palavras:
— Sabe onde poderei encontrar trabalho?
— Lamento, mas não sei — respondi.
— Ainda não consegui um emprego durável nestes últimos quarenta anos.
Fazia calor. No entanto, o colarinho da sua camisa de lã estava abotoado e as mangas fechadas em redor dos grossos punhos. O suor corria-lhe pelo rosto, mas não abria a camisa.
— Bem — disse ele, finalmente —, este sítio é tão bom como qualquer outro para passar a noite. Importa-se que lhe faça companhia?
— Tenho ainda alguma comida que gostaria de repartir consigo — ofereci eu.
Sentou-se pesadamente, resmungando.
— Vai arrepender-se de me pedir para ficar. Toda a gente se arrepende. É por causa disso que não paro. Estamos em princípios de Setembro, a melhor época para divertimentos. Ganharia montões de ouro numa feira de qualquer pequena cidade. Mas estou aqui, sem qualquer contrato.
Descalçou um enorme sapato e examinou-o de perto.
— Geralmente, agüento-me num emprego dez dias. Depois, acontece sempre a mesma coisa e despedem-me. Nesta altura, em nenhuma feira da América me quereriam tocar, nem sequer com a ponta de uma vara.
— Mas o que é que se passa consigo?
Como resposta, desabotoou lentamente o apertado colarinho. Com os olhos fechados, abriu a camisa e, com a ponta dos dedos, tacteou o peito.
— É curioso — observou ele —. Não se podem sentir, mas a verdade é que estão cá. Tenho sempre a esperança de que um dia desaparecerão. Durante horas seguidas caminho ao Sol, sob o mais escaldante calor, queimo-me, na esperança que o suor as faça desaparecer, que o Sol as derreta; mas a noite ainda cá estão.
Voltando ligeiramente a cabeça na minha direcção, mostrou-me o peito.
— Ainda cá estão. As Ilustrações.
— Uma outra razão por que conservo o colarinho abotoado são as crianças — disse ele, abrindo os olhos —. Perseguem-me pelos caminhos, pelos campos. Querem ver as imagens e, todavia, ninguém, a não ser elas, tem curiosidade nisso.
Despiu a camisa e torceu-a. Estava coberto de imagens, desde o anel tatuado, à volta do pescoço, até à cintura.
— E isto continua — prosseguiu ele, adivinhando o meu pensamento. — Sou inteiramente ilustrado. Veja!
Abriu a mão. Na palma havia uma rosa — tinha acabado de ser colhida e nas delicadas pétalas via-se ainda orvalho cristalino. Estendi o dedo para a tocar, mas era uma imagem!
Quanto ao resto do seu corpo... Não poderei explicar como fiquei ali com os olhos esgazeados. Era um turbilhão de astronaves, fontes e gentes, com tão entrelaçados pormenores e cores que se podiam ouvir os murmúrios e as vozes abafadas das multidões que habitavam aquele corpo. Quando estremecia, as pequenas bocas animavam-se, os minúsculos olhos verdes ou doirados moviam-se, as pequenas e rosadas mãos agitavam-se. Havia prados amarelos, rios azuis, montanhas, estrelas, sóis e planetas, dispersos numa Via-Láctea que lhe descia pelo peito. As figuras estavam dispersas, em grupos de vinte ou trinta, nos braços, nas espáduas, no dorso, nos flancos, nos punhos, no plexo solar. Havia-as, também, numa floresta de pêlos, escondidas entre uma constelação de sardas, espiando do fundo das cavernosas axilas, os olhos faiscando como diamantes. Cada grupo parecia ter uma actividade própria; cada um era constituído por uma galeria diferente de figuras.
— São belas! — exclamei.
Como descrevê-las? Se Greco, no auge do talento, tivesse pintado miniaturas não maiores que a mão, com as suas cores sulfurosas, com a sua morfologia especial, a anatomia alongada, talvez tivesse aproveitado o corpo deste homem para a sua obra. As cores brilhavam em três dimensões. Dir-se-iam janelas abertas sobre uma realidade exuberante. Aí, reunidas como numa parede, recortavam-se as cenas mais extraordinárias do Universo. Este homem era um museu ambulante. Não era o trabalho tricromado de um tatuador de feira, de hálito avinhado; era a obra-prima inspirada, vibrante, límpida e bela de um gênio.
— Oh, sim! — disse o Homem Ilustrado. — Sou tão orgulhoso das minhas ilustrações que até gostaria de lhes lançar fogo. Já tentei o esmeril, o ácido, a navalha...
O Sol escondia-se. A Lua, a Oriente, estava já alta.
— Porque, veja — continuou o Homem Ilustrado —, estas ilustrações predizem o futuro.
Olhei-o em silêncio.
— Durante o dia, ainda vá — prosseguiu ele —, posso arranjar trabalho por umas horas. Mas à noite, elas movem-se. As imagens ganham vida própria.
Creio que sorri.
— Desde quando está ilustrado?
— Em 1900, tinha eu vinte anos, trabalhava numa feira e parti uma perna. O acidente imobilizou-me. Tinha de arranjar trabalho para me manter. Então decidi fazer-me tatuar.
— Mas quem o tatuou? O que aconteceu ao artista?
— Ela voltou para o futuro... É exactamente isso que quero dizer. Uma velha mulher, numa casinha algures no Wisconsin, em algum sítio não longe daqui. Uma velha e pequena feiticeira que tinha o ar de ter mil anos em certos momentos e vinte no instante imediato. Mas afirmou-me que se podia deslocar no tempo. Ri-me. Mas já não o faço agora!
— Como a encontrou?
Relatou-me, então, a história. Tinha visto na berma de uma estrada uma tabuleta pintada: «Ilustrações sobre a pele!» Ilustrações e não tatuagens! Foi no decorrer de uma noite que as agulhas mágicas da mulher o morderam como vespas, o picaram como abelhas, o sugaram como sanguessugas. Chegada a manhã, tinha o aspecto de um homem que tivesse passado sob uma prensa polícroma, muito liso, multicolor, cintilante.
— Procurei-a todos os Verões, durante cinqüenta anos — terminou ele, estendendo os braços. — Quando encontrar a feiticeira, matá-la-ei!
O Sol desaparecera. As primeiras estrelas brilhavam no firmamento e a Lua iluminava os campos de trigo e os prados. As imagens do Homem Ilustrado brilhavam como carvões, na penumbra, como rubis e esmeraldas, com as cores das telas de Van Gogh, de Klee e os corpos alongados de Greco.
— Quando as imagens se movem, as pessoas mandam-me embora. Ninguém gosta de as ver, tanto mais que nas minhas ilustrações se passam coisas espantosas. Cada uma delas é uma historiazinha. Se as observar, elas contar-lhe-ão, em poucos minutos, uma história. Em três horas verá desenrolar-se uma vintena de histórias sobre o meu corpo. Poderá ouvir vozes, aperceber pensamentos. Tudo aí está, basta que olhe. Mas há, sobretudo, um certo local...
Mostrou-me o dorso.
— Está a ver? Não há um único desenho regular na espádua direita. Está tudo misturado. — Realmente, assim é!...
— Sempre que estou muito tempo com alguém, esta zona cobre-se de sombras, depois aparece isso. Se estou com uma mulher, a sua imagem surge ao fim de uma hora no meu dorso, e ela vê aí retratada toda a sua vida: como vai viver, como morrerá, como terá o rosto aos sessenta anos. E se é um homem, a imagem surge no meu dorso ao fim do mesmo tempo. Pode ver-se caído de uma falésia ou esmagado por um comboio. Então, mandam-me de novo embora.
Enquanto falava percorria as mãos pelas ilustrações, como para ajeitar as molduras, limpar-lhes o pó, num gesto de conhecedor, de amador de arte. Estava agora estendido ao comprido, sob o luar. A noite estava quente, sufocante até, sem uma aragem. Tínhamos despido a camisa.
— E nunca mais encontrou essa mulher?
— Nunca mais!
— Acredita que ela veio do futuro?
— Se assim não fosse, como poderia conhecer as histórias que pintou no meu corpo?
Cerrou os olhos, fatigado. A sua voz tornou-se menos distinta.
— Por vezes, durante a noite, sinto-as moverem-se como formigas sobre o corpo. Sei, então, que fazem o que têm a fazer. Nunca as olho. Tento, somente, ter algum repouso, porque durmo pouco. Não as olhe também, previno-o. Volte-se para o outro lado para dormir.
Deitei-me a alguma distância. O homem não me parecia capaz de violência e as imagens eram muito belas. Se não fosse isso ter-me-ia retirado, acabando com a conversa. Mas as ilustrações...
Deixei os olhos percorrê-las. Quem quer que fosse ficaria meio doido se tivesse isto sobre o corpo.
A noite estava serena. Podia ouvir o Homem Ilustrado respirar, banhado pelo luar. Ao longe, os grilos trilavam suavemente nas ravinas. Deitei-me de lado para observar as imagens. Decorreu talvez uma meia hora. Não poderia dizer se o Homem Ilustrado dormia, mas, de repente, ouvi-o dizer num murmúrio:
— Estão a mover-se, não é verdade?
Esperei um momento. Depois respondi: — Sim, agitam-se.
As imagens animavam-se, cada uma por sua vez, durante um ou dois minutos. Ali, sob a Lua, com breves pensamentos, que vibravam, e vozes distantes como as do mar, vi desenrolar-se cada um daqueles pequenos dramas. Uma hora, duas horas, até quando? Será difícil dizê-lo. Sei somente que fiquei ali, fascinado, sem me mexer, sob as estrelas que brilhavam no Céu.
Dezoito ilustrações. Dezoito histórias. Contei-as uma a uma.
Fixei os olhos numa cena: uma grande casa com duas figuras no interior. Vi o vôo de abutres num céu tórrido e leões. E ouvi vozes.
A primeira imagem estremeceu e animou-se.
— George, gostaria que desses uma vista de olhos pelo quarto dos miúdos.
— Que há?
— Não sei bem.
— E então?
— Gostaria, simplesmente, que lá desses uma espreitadela ou que chamasses um psico-pedagogo.
— Que relação há entre o psico-pedagogo e a «nursery»?
— Sabes muito bem.
A mulher, no meio da cozinha, olhava o fogão que, crepitando, preparava, por si, uma refeição para quatro pessoas.
— Dá-se o caso — disse ela — que a «nursery» está diferente.
— Bem, vamos lá ver.
Penetraram no corredor insonorizado do seu lar da Vida Feliz, que lhes custara trinta mil dólares: esta casa que os vestia, alimentava, embalava para dormir, que os divertia e era amável para eles. À sua aproximação um interruptor foi sensibilizado e o quarto das crianças iluminou-se quando estavam ainda a alguns passos.. Entretanto, à retaguarda, no corredor, as luzes extinguiam-se automaticamente, uma após outra, com suavidade.
— Então ? — interrogou George Hadley.
Estavam sobre o chão coberto de palha da «nursery». A divisão tinha quarenta pés de largura, e trinta de altura. Custara o dobro do preço total da casa. «Mas tudo é pouco para os nossos filhos», dissera George.
O quarto estava silencioso. Vazio como uma clareira na selva ao meio-dia. As paredes, a duas dimensões, estavam nuas. Quando se encontravam a meio da divisão, precisamente no centro, as paredes começaram a cintilar docemente e a afastarem-se para uma distância cristalina; a selva africana surgiu, de todos os lados, em três dimensões, a cores, nos mínimos detalhes, até à mais pequena erva. O tecto, por cima das suas cabeças, transformou-se num céu intenso com um Sol amarelo, escaldante.
George Hadley sentiu o suor correr-lhe no rosto.
— Vamos para a sombra — disse ele —. Isto é quase real. E não vejo nada de anormal.
— Espera um momento — disse a sua mulher —. Vais ver. Os odorófonos dissimulados começaram a soprar sobre as duas pessoas que estavam no meio da selva sufocante: o odor quente da erva-leão — o fresco e verde odor dos poços escondidos, o cheiro activo dos grandes animais, o odor da poeira e da paprika verde, no ar tropical. Depois, os ruídos, o trotar distante de um antílope sobre a erva, o adejar seco de asas de abutres. Uma sombra passou pelo Céu. Agitou-se por cima do rosto erguido de George Hadley, que transpirava.
— Que animais antipáticos! — exclamou ela.
— Abutres!
— Repara, os leões estão lá em baixo, ao longe, destelado. Agora dirigem-se para um bebedouro. Acabaram de comer alguma coisa — disse Lydia. — Não faço idéia do que tenha sido.
George ergueu a mão para se proteger contra a luz que lhe feria os olhos semicerrados.
— Talvez uma zebra, ou o filhote de uma girafa.
— Parece-te? — A voz de sua mulher soou particularmente tensa.
— Não, já é demasiado tarde para o saber — disse ele com um sorriso. — Em frente, só vejo ossos brancos e os abutres a descer sobre o que ainda possa haver de carne.
— Ouviste este grito? — perguntou ela. — Não.
— Precisamente há um instante?
— Lamento, mas não ouvi.
Os leões aproximavam-se. George Hadley admirou-se mais uma vez do génio mecânico que tinha concebido este quarto: um milagre de técnica vendido por um preço irrisório. Todas as casas deviam ter um. Oh, às vezes ficava-se aterrorizado com esta precisão clínica! «Estas divisões provocavam-nos um calafrio, mas, na maior parte das ocasiões, que prazer para todos! Não só para os filhos, mas também para nós, quando se desejava fazer uma pequena excursão por terras desconhecidas, ter uma rápida mudança de cenário»
Agora, estavam ali os leões, a alguns metros, de uma realidade tão surpreendente, tão alucinante, que quase se poderia sentir a aspereza do pêlo sob a mão e a boca enchia-se com o odor empoeirado das suas jubas quentes; o tom amarelo das feras impressionava a vista como a esquisita cor de uma tapeçaria francesa: — o amarelo dos leões e o da erva canicular; e o sopro dos pulmões que respiravam, o cheiro a carne que as bocarras hiantes e babadas exalavam...
As feras fixaram George e Lydia com uns aterrorizantes olhos verde-amarelos.
— Toma cautela! — gritou Lydia.Os leões saltaram na direcção deles.
Lydia fugiu e, instintivamente, George precipitou-se atrás dela. Uma vez cá fora, no corredor, a porta fechada à chave, ele pôs-se a rir e ela desfez-se em lágrimas; tanto um como outro consternados pela sua própria reacção.
— George!
— Lydia! Meu pobre amor!
— Quase que nos apanhavam.
— Paredes de vidro, Lydia, reflexos e nada mais. Admito que tinham um ar verdadeiro. A África em casa: — mas é somente um filme colorido, sobreactivado, supra-sensível e uma película ideográfica por trás destes «ecrans» de vidro. Odorófonos e difusores, Lydia, nada mais. Toma o meu lenço.
— Tenho medo. — Agarrou-se a ele e gritou insistentemente: — Viste ? Sentiste? É demasiado real.
— Ouve, Lydia...
— Tens de dizer a Wendy e Peter que não leiam mais livros sobre África.
— Pois, pois. — e acariciou-lhe a mão.
— Prometes ?
— Prometo.
— E fechar o quarto das crianças enquanto eu não estiver refeita?...
— Sabes muito bem as dificuldades que Peter levantará. Quando há um mês o castiguei, fechando a «nursery» durante algumas horas somente, fez uma cena. E Wendy também. Esta divisão é a sua própria vida.
— O que é preciso é fechá-la.
— Bem, bem. — deu a volta à chave sem entusiasmo.
— Tens trabalhado muito, ultimamente. Necessitas de repouso.
— Não sei, não sei — disse ela assoando-se. Sentou-se numa cadeira que logo começou a embalá-la e a afagá-la.
— Talvez não tenha bastante que fazer. Talvez tenha muito tempo livre para magicar. Porque não fechamos a casa para uns dias de férias?
— Queres dizer que pretendes estrelar os meus ovos? — Sim — assentiu ela com a cabeça.
— E.coser as minhas meias?
— Sim, sim — afirmou ela precipitadamente, com lágrimas nos olhos.
— E varrer?
— Sim, sim!
— Mas eu julgava que tínhamos precisamente comprado esta casa para não fazeres nada!
— Precisamente. Não me sinto em minha casa. Agora a casa é a esposa, a mãe, a governanta... Posso por acaso rivalizar com uma selva africana ? Posso eu dar banho e esfregar as crianças com tanta eficiência e rapidez como o banheiro automático? Não posso! E além disso, não se trata só de mim, mas também de ti. Nestes últimos dias tens andado terrivelmente nervoso.
— Fumo muito, sem dúvida.
— Tens o ar de quem não sabe o que há-de fazer às mãos. Todas as manhãs fumas um pouco mais e todas as noites bebes um pouco mais; e todas as noites precisas de mais um pouco de sedativo. Também tu começas a sentir que não és indispensável.
— Parece-te? — calou-se e perguntou a si próprio o que é que, em realidade, se passava com ele.
— Oh, George! — ela olhava por cima do seu ombro a porta da «nursery». — Aqueles leões não podem sair, pois não?
— Pois claro que não! — confirmou ele.
Jantaram sozinhos porque Wendy e Peter que tinham ido à «Festa do Plástico», no outro extremo da cidade, televisaram para dizer que chegariam tarde e que comessem, sem eles. George Hadley, meditativo, ficou sentado na cadeira a contemplar a mesa da sala de jantar, que extraía comidas quentes das entranhas mecânicas.
— Esquecemos o molho de tomate — disse ele.
— Perdão! — exclamou uma voz de dentro da mesa e o molho de tomate surgiu.
No que diz respeito à «nursery», pensava George, não fará mal às crianças que dela se vejam privadas durante algum tempo. O excesso de qualquer coisa não é bom para ninguém. Era evidente que os meninos consagravam demasiado tempo à África. Aquele Sol! Sentia-o ainda na nuca, tal como uma garra escaldante. E os leões! E o cheiro a sangue. Era notável o processo como a «nursery» captava as emanações telepáticas das crianças e criava a vida para satisfazer o mínimo desejo dos seus espíritos. Os pequenos pensavam em leões e apareciam leões. As crianças pensavam em zebras e as zebras surgiam; pensavam em girafas, havia girafas; e na morte, a morte.
Esta, no fim de contas, mastigava a carne, que a mesa cortara em sua intenção, sem a saborear. Idéias de morte. Wendy e Peter eram muito novos para ter tais pensamentos. Mas, afinal, nunca se é demasiado novo para isso. Muito antes de se conhecer o significado da morte, já a desejamos a alguém. Com a tenra idade de dois anos já se faz fogo sobre as pessoas com uma espingarda de rolha.
Mas aquilo, a selva africana, interminável e tórrida, era a terrível morte nas fauces de um leão... e repetida, incessantemente.
— Onde vais?
Não respondeu. Preocupado, deixou as luzes acenderem-se à sua frente e apagarem-se atrás, enquanto caminhava lentamente até à porta da «nursery». Pôs-se à escuta. Um leão rugia ao longe.
Deu a volta à chave na fechadura e abriu a porta. Um instante antes de entrar ouviu um grito muito distante. Depois um rugido, que também logo cessou. Penetrou em África. Quantas vezes, durante este ano, tinha ele aberto a porta e encontrado o País das Maravilhas, Alice e a Rainha de Copas, Aladino e a sua lâmpada, o Feiticeiro de Oz, ou a Vaca saltando por cima da Lua? Todas essas maravilhosas fantasias de um mundo mágico ? Algumas vezes vira Pégaso cruzar o céu do tecto e fogos de artifício rebentar em cascata; ouvira vozes de anjos cantar. E, agora, esta África amarela e escaldante, este forno de matança! Talvez Lydia tivesse razão. Talvez tivessem necessidade de férias, de esquecer este fantasia, que se tornara demasiado viva para crianças de dez anos. Era muito bom que se ginasticasse o seu espírito através de um exercício de imaginação, mas quando a mentalidade viva de uma criança se fixa sobre certo tema... Recordava-se que já, desde há um mês, ouvia rugir os leões ao longe e, até mesmo, o seu acre cheiro se infiltrara pela porta do seu gabinete. Mas como andava muito ocupado não tinha prestado atenção.
George Hadley estava em pé sobre a erva africana. Os leões, debruçados sobre a presa, ergueram a cabeça, para o observar. A única quebra na ilusão era a porta aberta, através da qual podia ver Lydia, ao fundo do corredor, como que num quadro, a jantar distraidamente.
— Vão-se embora! — gritou ele aos leões. Os animais permaneceram extáticos.
Conhecia perfeitamente o princípio que regia a divisão. Emitia-se um pensamento e, fosse ele qual fosse, surgia.
— Venha Aladino e a sua lâmpada! — gritou. A selva continuou e também os leões.
— Vamos, quarto! Exijo Aladino.
Nada mudou. Os leões rugiram sob as jubas.
— Aladino!
Voltou à sala de jantar.
— Este quarto idiota está avariado — disse ele. — Já não responde.
— Ou então... — Ou então o quê?
— Não pode responder — disse Lydia — porque as crianças pensaram tantos dias na África, nos leões e em matar que o quarto viciou-se.
— Sim, pode ser isso.
— A não ser que Peter o tenha regulado para que fique sempre assim.
— Regulado ?
— Pode ter-se introduzido no mecanismo e fixado qualquer peça.
— Peter não sabe nada de mecânica.
— Tem inteligência para dar e vender. Lembra-te daquele teste que fez...
— Mesmo assim...
— Boa noite, mamã... Viva, papá!
Os Hadley voltaram a cabeça. Wendy e Peter tinham chegado: o rosto corado como uma cereja, os olhos como berlindes de ágata, um cheiro a ozone nas roupas devido à viagem em helicóptero.
— Vieram mesmo a horas de jantar — disseram os pais ao mesmo tempo.
— Estamos a abarrotar de morangos e sandwiches — disseram as crianças, dando a mão uma à outra. — Mas vamos vê-los comer.
— Sim, e falem-nos da «nursery» — disse George Hadley. O irmão e a irmã baixaram as pálpebras, depois olharam-se.
— A «nursery»?
— Sim, a África e o resto — prosseguiu o pai, com falsa despreocupação.
— Não percebo — disse Peter.
— A vossa mãe e eu fizemos ainda agora uma viagem por África, com uma cana de pesca: Tom Swift e o seu leão eléctrico — disse George Hadley.
— Não há África na «nursery» — disse Peter com simplicidade. — Vá lá, Peter! Nós sabemos o que estamos a dizer.
— Não me recordo de nenhuma África — disse Peter a Wendy.— E tu?
— Não.
— Vamos ver!
A irmã obedeceu.
— Wendy, venha cá! — gritou George Hadley. Mas ela já partira. As luzes da casa seguiram-na como uma nuvem de mariposas. Apercebeu-se demasiado tarde que se esquecera de fechar à chave a porta da «nursery».
— Wendy, vem dizer-nos... — disse Peter.
— Não precisa de mo vir dizer. Eu vi.
— Tenho a certeza de que te enganaste, pai.
— Talvez não, Peter. Vem comigo! Mas Wendy estava de volta.
— Não é a África — disse ela com a respiração entrecortada.
— Vamos ver o que é — disse George Hadley. Dirigiram-se até ao fundo do corredor e abriram a porta.
Havia uma bela e verdejante floresta, um encantador ribeiro, montanhas cor de violeta, cânticos e Rima, a fada, adorável e misteriosa, ocultando-se nas árvores, por entre os vôos coloridos de borboletas, descuidadas, de longos cabelos pendentes. A selva africana desaparecera. Dos leões nem sombra. Só havia Rima, cujo cântico era tão belo que até provocava lágrimas.
George Hadley observou a mudança.
— Vão-se deitar — disse às crianças.
Elas abriram a boca para falar.
— Não ouviram?
Dirigiram-se para a caixa pneumática onde o ar os aspirou até aos quartos de dormir.
George Hadley caminhou sob a deliciosa sombra das árvores e apanhou qualquer coisa no canto onde tinham estado os leões, voltando lentamente para junto da mulher.
— O que é isso? — perguntou ela. — Uma velha carteira minha — respondeu George. Mostrou-lha. O objecto exalava ainda um cheiro a erva quente e a animal. Estava ensalivada e tinha sido mordida. Nos dois lados viam-se manchas de sangue.
George fechou à chave a porta do quarto dos filhos.
De madrugada ainda estava acordado e percebeu que sua mulher também não dormia.
— Crês que Wendy tivesse feito a mudança ? — perguntou ela, finalmente, na obscuridade do quarto.
— Evidentemente.
— Trocou a selva por uma floresta e substituiu os leões por Rima?
— Sim, decerto.
— Porquê?
— Não sei. Mas vai ficar fechada até que eu saiba.
— Como é que a tua carteira foi lá parar?
— Não sei nada, a não ser que começo a lamentar ter comprado aquele quarto para as crianças. Se elas adquirirem uma nevrose, um quarto como aquele...
— Diz-se que os ajuda a libertarem-se de maneira sã dos seus complexos.
— Começo a duvidar. — Fixou os olhos no tecto.
— Demos aos nossos filhos tudo o que quiseram. E é esta a nossa recompensa: coisas misteriosas, desobediência?
— Quem foi que disse: «As crianças são como tapetes; às vezes é preciso andar em cima delas»? Nunca levantamos a mão para elas, e são insuportáveis, é preciso confessá-lo. Vão e voltam a seu bel-prazer, tratam-nos como se nós é que fôssemos miúdos. Estão estragadas, e nós também.
— Tornaram-se estranhas desde que há alguns meses, as proibiste de tomarem o foguetão para Nova York.
— São muito novos para viajar sozinhos, foi o que lhes expliquei. Reparei, todavia, que se tornaram frios para mim. — Desde essa altura só falta que nos batam. Notei-o muito bem.
— Parece-me que vou pedir a David McClean para vir cá amanhã de manhã dar uma vista de olhos à África.
— Mas agora já não é África, é o País Verdejante e Rima.
— Tenho a impressão que, de um momento para o outro, voltará a ser África.
Logo após ouviram gritos.
Dois gritos. Duas pessoas que, lá ao longe, gritavam. Depois, um rugido de leão.
— Wendy e Peter não estão deitados — disse Lydia. George continuou estendido, o coração a bater com força.
— Não — disse ele —. Forçaram a porta.
— Estes gritos. Parece-me que os reconheço.
— Ah, sim?
— Sim, são-me terrivelmente familiares!
E, apesar das camas mecânicas tentarem adormecê-los, os dois adultos só puderam dormir decorrida uma hora. Um cheiro felino espalhava-se pela noite.
— Pai? — perguntou Peter. — Que é?
Peter fixou os sapatos. Nunca olhava o pai e a mãe de frente,
— Não vais fechar a «nursery» para sempre, pois não?
— Depende.
— De quê?
— De ti e de tua irmã. Se variarem um bocado essa coisa de África... Talvez com um pouco de Suécia, Dinamarca ou China...
— Julguei que pudéssemos brincar da maneira que quiséssemos. ..
— Sim. Podem. Mas com a condição de serem razoáveis.
— O que é que te não agrada em África ? — Então agora admites que a fazes aparecer, não é verdade?
— Gostaria que a «nursery» nunca fosse fechada — disse Peter friamente.
— A propósito, tencionamos fechar a casa, separarmo-nos dela durante três semanas, ou um mês, fazermos, todos, uma vida despreocupada.
— Mas isso ao horrível ar livre ? Tenho de calçar os meus sapatos em vez de deixar que a calçadeira o faça? E lavar eu os dentes, pentear-me, tomar banho?
— Para variar será divertido, não te parece?
— Não, será horroroso. E eu não gostei nada que, no mês passado, me tivesses tirado a máquina de pintar.
— É porque quero que aprendas por ti próprio a pintar, meu filho.
— Não quero fazer nada. Só quero ver, ouvir e sentir. Que melhor poderá haver?
— Está bem, vai brincar para África.
— Vais desligar em breve a casa?
— Não penses nisso.
— Parece-me que seria melhor que não pensasses nisso, pai!
— Não admito que o meu filho me ameace!
— Muito bem! — e Peter dirigiu-se para a «nursery».
— Não cheguei atrasado? — perguntou David McClean.
— Toma alguma coisa — propôs George.
— Obrigado, já tomei o pequeno almoço. O que há?
— David, você é um psicólogo — disse George Hadley.
— Creio que sim...
— Muito bem. Dê uma vista de olhos pela nossa «nursery». Você observou-a há cerca de um ano, quando nos visitou. Notou, nessa altura, alguma coisa de especial ?
— Não sei ao certo. Somente as violências habituais: uma ligeira tendência paranóica, aqui e acolá, habitual nas crianças, devido ao facto de se sentirem perseguidas pelos seus pais de maneira constante. Mas, na realidade, nada de particular.
Caminhavam pelo corredor.
— Fechei à chave a «nursery» — explicou o pai —. Mas, mesmo assim, as crianças conseguiram lá penetrar durante a noite. Deixei-as lá para que pudessem formar os seus temas à vontade.
De «nursery» saíam gritos terríveis.
— Aqui estamos — disse George Hadley. — O que pensa disto ?
Sem bater à porta, surpreenderam as crianças. Os gritos tinham cessado. Os leões comiam.
— Saiam por um bocado, meninos — disse George. — Não, não mudem a combinação mental. Deixem as paredes tal qual estão. Vamos, saiam!
Uma vez as crianças fora da sala, os dois homens observaram os leões que, juntos, a alguma distância, se preparavam para devorar, com visível satisfação, a presa que tinham conseguido.
— Bem gostaria de saber o que é — disse George —. Por vezes quase que consigo distinguir. Parece-lhe que com um potente binóculo...
David McClean teve um leve riso:
— Não!
Pôs-se a examinar as quatro paredes.
— Desde quando isto se verifica?
— Há cerca de um mês.
— Na verdade, a impressão é má.
— Tenho necessidade de factos, não de impressões.
— Meu caro George, um psicólogo nunca viu um facto na sua vida. Ouve falar simplesmente de sentimentos, de coisas vagas. E, aqui, não gosto disto. Tenho confiança no meu instinto, na minha intuição. Sei «cheirar» as coisas. E isto não me agrada, O conselho que lhe dou é que mande demolir este maldito quarto e durante um ano, me leve os seus filhos, a fim de os tratar.
— Chegamos a isso?
— Receio que sim. Um dos principais fins destas «nurserys» é permitir-nos estudar os temas deixados nas paredes pelo espírito das crianças, analisá-los com vagar e ajudar a criança. Todavia, no caso presente, o quarto tornou-se um veículo de pensamentos destrutivos, em vez de os libertar.
— Já o tinha sentido antes?
— Sim. Vi, somente, que vocês amimavam as crianças mais do que seria razoável. E, agora, abandonam-nas, por assim dizer. Mas porquê?
— Não as deixei ir a Nova York.
— E depois ?
— Retirei dois ou três aparelhos da casa e. há um mês ameacei-os de fechar a «nursery» se não cumprissem as suas obrigações. Durante alguns dias encerrei-a para lhes provar que falava verdade.
— Hum, hum!
— Pareceu-lhe que isto possa ter algum significado?
— É revelador. As crianças tinham um Pai Natal e agora têm um papão. As crianças preferem os Pais Natal. Vocês deixaram que este quarto tomasse o vosso lugar na afeição das crianças. Ele é o seu pai e mãe, desempenha nas suas vidas um papel muito maior do que os vossos. E, agora, vocês interferem para o fechar. Não é de admirar que o ódio cresça. Vocês sentem-no surgir. Observe este sol, George. É necessário mudar a vossa vida. Como tantos outros, vocês construíram-na tendo por base o conforto mecânico. Mas amanhã morrereis de fome, se qualquer máquina da vossa cozinha se desarranjar. Nem sequer sabereis estrelar um ovo. Assim, é necessário fechá-la. Começar de novo. Isso levará tempo, mas num ano curaremos estas crianças, vocês verão!
— Não será um choque muito forte, se fecharmos de repente o quarto para sempre?
— Não quero que elas continuem por este caminho, e é tudo!
Os leões tinham terminado o repasto.
Estavam à entrada da clareira e observavam os dois homens.
—Agora sou eu que estou com o sentimento da perseguição—disse McClean. — Saímos ? Nunca gostei muito destes quartos. Deixam-me nervoso.
— Os leões parecem verdadeiros, não é? — disse George Hadley. — É impossível supor que pudesse haver um processo de...
— Heim?
— ...de se tornarem reais?
—Não sei.
— Um defeito no mecanismo, ou qualquer coisa que o tivesse provocado, ou... não sei...
— Não!
Dirigiram-se para a porta.
— O quarto não gostará decerto que o fechem... — disse o pai.
— Ninguém gosta de morrer, mesmo um quarto...
— Pergunto a mim mesmo se ele me odiará pelo facto de o ir fechar...
— Há uma intensa paranóia no ar—disse McClean. — Pode seguir-se o seu rasto. Olá!
Abaixou-se para apanhar uma «echarpe» ensangüentada.
— É sua?
—Não. —O rosto de George Hadley era de pedra. — É de Lydia.
Foram os dois ao quadro de fusíveis e desligaram o disjuntor que matou a «nursery».
***
As duas crianças tiveram uma crise. Gritaram, espernearam, partiram objectos, urraram, soluçaram, praguejaram e agarraram-se aos móveis.
— Não podes fazer isso ao nosso quarto, não podes! — Vá lá, meninos!
As crianças, a chorar lançaram-se sobre um sofá.
— George — disse Lydia. — Liga o quarto por alguns minutos. Não deves ser tão brusco!
— Não!
— Não há necessidade de se ser cruel.
— Lydia, o quarto foi fechado e assim ficará. E desde agora toda a imundície desta casa também vai parar. Quanto mais vejo os erros que cometemos, mais doente me sinto. Durante largo tempo contemplámos o nosso umbigo mecânico, electrónico! Meu Deus, como temos necessidade de uma lufada de ar fresco!
E percorreu a casa desligando os relógios falantes, os fornos, os climatizadores, os enceradores, os limpadores, os massagistas e todos os aparelhos que estavam à sua disposição.
Parecia que a casa estava cheia de corpos mortos. Um cemitério mecânico. Silenciosa. Quieta...
— Não os deixem fazer! — gemia Peter como se falasse à casa, à «nursery». — Que o pai não possa matar tudo! — voltou-se para o pai. — Detesto-te!
— As tuas grosserias de nada servirão!
— Queria que estivesses morto!
— Estive-o durante muito tempo. E agora vamos viver a sério. Em vez de sermos manipulados e manejados, vamos viver!
Wendy continuava a chorar e Peter recomeçou.
— Só um bocadinho, um instante, um minuto de «nursery» — choramingaram eles.
— Oh, George! — disse-lhe a mulher. — Isso não fará mal algum!
— Está bem, com a condição de que se calem! Um minuto, ouviram, e, nem mais! E depois, acabou-se definitivamente !
— Papá, papá! — gritaram as crianças sorrindo através das lágrimas.
— E vamos para férias. David McClean está de volta dentro de meia hora para nos ajudar a fazer as malas e acompanhar-nos ao aeroporto. Vou vestir-me. Põe a «nursery» a funcionar, Lydia, mas sòmente um minuto!
Saíram todos juntos. George fez-se aspirar para o outro andar a fim de se vestir. Lydia chegou um momento depois.
— Sentir-me-ei feliz quando partir! — suspirou ela.
— Deixaste-os na «nursery»?
— Também queria vestir-me. Oh, aquela horrível África. O que é que nela os pode seduzir?
— Deixa lá que dentro de cinco minutos estaremos a caminho de Iowa. Meu Deus, porque é que viemos para esta casa? O que é que nos levaria a comprar este pesadelo?
— A vaidade, o dinheiro, a estupidez!
— Creio que será melhor descermos antes que os miúdos sejam de novo dominados por esses malditos bichos.
Foi nesse momento que ouviram as crianças chamar:
— Papá, mamã, venham depressa, depressa! Lançaram-se no condutor pneumático e correram ao longo do corredor. Não viram as crianças.
— Wendy! Peter!
Precipitaram-se para a «nursery». A selva estava vazia e só havia os leões que aguardavam encarando-os. A porta fechou-se com ruído.
— Wendy! Peter!
George Hadley e a mulher voltaram-se, lançando-se contra a porta.
— Abram! — gritou George Hadley batendo com o punho.
— Fecharam-nos! Peter! Abram!
Ouviu a voz de Peter do outro lado.
— Não os deixeis acabar com a «nursery» nem com a casa — diziam eles.
Mr. e Mrs. Hadley bateram com os punhos na porta.
— Vamos, não sejam ridículos! Está na hora de partirmos. McClean chegará dentro de um minuto e...
Foi então que ouviram os ruídos.
Os leões, vindos de três lados, como que deslizavam sobre a erva amarela da selva, com rugidos que lhes vinham do fundo das goelas.
— Os leões!
Mr. Hadley olhou para a mulher. Depois voltou a cabeça e olhou as feras que corriam para eles, as mandíbulas a rasar o solo, a cauda tensa.
Mr. e Mrs. Hadley puseram-se a gritar.
E logo compreenderam por que lhes pareceram tão familiares os gritos que tinham ouvido.
— Pois bem, cá estou! — disse David McClean, parando à entrada da «nursery». — Olá!
Olhou para as duas crianças, sentadas na clareira, que se preparavam para comer uma refeição fria. Atrás delas, a selva amarelada, por cima, o Sol escaldante. Transpirava.
— Onde estão os vossos pais?
As crianças levantaram os olhos e sorriram.
— Oh, não se devem demorar!
— Muito bem, temos de partir. O dr. McGlean avistou, ao longe, os leões, que disputavam a presa, depois baixarem-se para a devorar em silêncio, sob as árvores.
Franziu as pálpebras e levantou a mão para se proteger do Sol.
Os leões tinham agora terminado o repasto. Dirigiam-se para o bebedouro.
Uma sombra passou sobre o rosto suado de McClean. Outras sombras bateram as asas. Os abutres desciam do céu tropical.
— Uma chávena de chá? — propôs Wendy, no meio do silêncio.
O Homem Ilustrado agitava-se no seu sono, voltava-se e, de cada vez, apresentava nova imagem. Deixou cair uma das mãos sobre a erva seca. Os dedos abriram-se e na palma uma outra ilustração ganhava vida. Voltou-se sobre o dorso. Um espaço vazio no seu peito, negro e constelado, profundo, enorme; qualquer coisa se agitava na noite, qualquer coisa caía nas trevas, caía, caía; eu observava...
O primeiro choque partiu o flanco da astronave como um gigantesco abre-latas. Os homens foram lançados no espaço como se uma dúzia de peixes vivos fosse espalhada no oceano das trevas. E o aparelho, feito em mil pedaços, continuou a sua rota: uma nuvem de meteoros procurando um sol perdido.
— Barkley! Barkley! Onde estás? Outras vozes chamavam na noite fria. — Woode! Woode!
— Capitão!
— Hollis! Hollis! Aqui Stone! Onde estás?
— Não sei. Como o poderei saber? Onde é o cimo e onde é o baixo? Caio! Meu Deus, estou a cair!
Todos caíam. Caíam como areia num poço, dispersos como gotas de água. Não mais eram homens. Só havia vozes trêmulas e roucas, com sons de terror ou resignação!
— Afastamo-nos uns dos outros!
Assim era. Hollis sabia-o e aceitava-o vagamente. Tinham vestidos os seus fatos espaciais, com as viseiras e os tubos respiratórios sob os rostos pálidos. Não tiveram tempo de afixar, sequer, as unidades de força que lhes permitiria deslocarem-se no espaço sideral. Com elas teriam podido salvar-se uns aos outros, reunirem-se, formarem uma pequena ilha de homens capazes de estabelecer um plano. Sem as células de energia instaladas no dorso, não eram mais do que pequenos meteoros, cada um deles lançado para um destino irrevogável e isolado.
Decorreram dez minutos antes de que o terror se extinguisse e uma calma metálica o substituísse. Estranhas vozes começaram a tecer fios no espaço, como uma imensa lançadeira que ia e vinha de um para o outro para formar uma teiazinha.
Stone a Hollis:
— Quanto tempo poderemos falar pelo telefone? — Depende da sua e da minha velocidade.
— Cerca de uma hora, calculo!
— Sim, deve ser isso— disse Hollis com uma voz calma e abstracta.
— O que foi que aconteceu ? — perguntou o outro passado um momento.
— O foguete explodiu, e é tudo. Isto acontece.
— Em que direcção vai?
— Creio que para a Lua.
— E eu para a Terra! O regresso à nossa mãe, a Terra, a dez mil milhas por hora. Arderei como um fósforo quando entrar na atmosfera.
Hollis pensava nisso com um curioso desprendimento. Parecia-lhe estar separado do seu corpo, vendo-o precipitar-se no espaço, tão objectivamente, como tinha visto cair os flocos de neve, há muito tempo, num Inverno.
Agora todos guardavam silêncio. Reflectiam sobre o destino que os conduzia a esta queda — queda que não podiam deter. Até o capitão estava silencioso, porque não dispunha de nenhum plano para restabelecer a ordem, nem de nenhuma autoridade.
— Oh, como esta queda é longa! É longa, longa! — disse uma voz. — Não quero morrer! Não quero morrer!
— Quem é? Stimson? É você, Stimson?
— É longa, é longa, não gosto disto.
— Stimson, aqui Hollis. Stimson, está a ouvir-me? Uma pausa, enquanto que, caindo, se afastavam uns dos outros.
— Stimson!
— Sim — acabara por responder.
— Agüente-se, Stimson! Estamos todos nas mesmas circunstâncias !
— Mas eu não quero estar aqui. Quero estar em qualquer outra parte.
— Ainda temos uma possibilidade de sermos encontrados.
— É preciso que me encontrem, é preciso — respondeu Stimson —. Não acredito no que me está a acontecer, não acredito.
— É um mau sonho — disse alguém.
— Cala-te! — exclamou Hollis.
— Anda cá para me calares— disse a voz. Era Applegate. Riu-se por sua vez. — Anda cá calar-nos.
Pela primeira vez Hollis deu-se conta do que a situação tinha de impossível. Uma grande cólera cresceu dentro dele porque, mais do que qualquer outra coisa, desejava nesse momento avistar-se com Applegate. Mas ele não era mais que uma simples voz ao telefone.
Prestes a cair... a cair...
Então, como tivessem descoberto o horror da situação, dois homens puseram-se a gritar. Como num pesadelo, Hollis ouviu um dos que flutuava perto dele gritar:
— Basta!
O homem tocava-lhe quase com os dedos, gritava como um demente. Continuaria a gritar durante milhões de milhas, enquanto estivesse ao alcance da rádio, a impedir que os outros falassem.
Hollis estendeu a mão. Era preferível assim. Com mais um esforço agarrou-o. O homem gritava e gesticulava com frenesi, como um nadador a afogar-se. O seu grito enchia o Universo.
De uma maneira ou de outra, pensou Hollis. A Lua, a Terra, um asteróide... Porque não já?
Com um soco violento quebrou a viseira do homem. Os gritos cessaram. Afastou-se do corpo deixando cair.
Caindo através do espaço. Hollis e os outros continuavam a descer, envolvidos no silêncio interminável.
— Hollis, você ainda está aí?
Não respondeu, mas sentiu uma onda de calor. — Aqui, Applegate.
— Estou, Applegate.
— Falemos, não temos mais nada a fazer. O capitão interveio.
— Basta. É preciso encontrar maneira de nos safarmos.
— Capitão — disse Applegate —, porque não fecha essa boca?
— O quê?
— O capitão já me ouviu. Não imponha a sua autoridade. Esqueça os galões, está agora, a milhares de milhas de mim, e não vale a pena estar a contar-lhe histórias. Como disse o Stimson, a queda leva o seu tempo, até lá baixo.
— Mas diga, Applegate!
— É a sedição de um só. Não tenho nada a perder. O seu foguete era uma má nave e você era um mau capitão e espero que você esmague esses ossos quando cair na Lua.
— Ordeno-lhe que se cale!
— Pois ordene!
Applegate riu-se a milhares de milhas de distância. O capitão calou-se. Applegate prosseguiu.
— Onde estamos Hollis? Ah, sim estou a lembrar-me. Também não o posso ver. Mas você já o sabia; sim, já o sabia há bastante tempo.
Impotente, Hollis cerrou os punhos.
— Quero dizer-lhe uma coisa — disse Applegate. — Quero torná-lo feliz. Fui eu quem votou contra si, há cinco anos, na Rocket Company.
Os outros conversavam. Um homem, Lespére, não deixava de falar da mulher que tinha em Marte, da que tinha em Júpiter, do seu dinheiro, do bom tempo que tinha feito, das suas asneiras, da sorte que tinha ao jogo, da sua felicidade. Sem paragem, Lespére lembrava-se do seu passado feliz enquanto deslizava para a morte.
Era estranho: o espaço, os milhões de milhas do espaço, e estas vozes que vibravam no meio! Ninguém se via, só as ondas de rádio fremiam e tratavam de comover os outros homens.
— Você está zangado, Hollis?
— Não!
E não o estava. O desinteresse tinha-se apoderado dele e era, agora, uma coisa insensível que caía sempre, indiferentemente, para qualquer parte.
— Toda a sua vida quis atingir o cume, Hollis. Você passou a vida a interrogar-se sobre o que se passava. Fi-lo incluir na lista negra, um pouco antes de também ser exilado.
— Isso não tem importância — respondeu Hollis.
E, efectivamente, tudo passara. Quando a vida termina, ela não é mais que uma breve cintilação num «écran», um relâmpago de filme com todos os seus esforços e as suas paixões concentradas e iluminadas durante um segundo no espaço; e antes que se tenha tempo de gritar: «Aqui está um dia feliz! Olha uma cara horrorosa! Olha uma boa!», o filme já só é cinzas e o «écran» apagou-se.
Desta última margem da sua vida, deitava um olhar para trás e apenas entrevia uma queixa: queria viver. Seria que todos os moribundos experimentariam esta angústia, como se nunca tivessem vivido? A vida pareceria sempre isto, curta, desenrolada e acabada, antes que se, tivesse tempo de tomar fôlego ? Pareceria sempre abrupta e impossível a toda a gente, ou seria só a ele, aqui e agora, com algumas horas na sua frente para poder pensar e deliberar consigo próprio? Um dos outros homens, ainda Lespére, falava:
— Bem, tive bons tempos! Tinha uma mulher em Marte, outra em Vênus e outra em Júpiter. Todas tinham dinheiro e tratavam-me principescamente. Bebia bem. Uma vez ganhei vinte mil dólares ao jogo.
E estamos agora aqui, pensou Hollis. E eu nunca tive disso. Quando vivia, tinha ciúmes de ti, Lespére. Quando tinha um dia livre, tinha inveja das tuas mulheres e da vida que fazias. As mulheres inquietavam-me e partia para o espaço, desejando-as sempre, e ciumento de ti, que as tinhas, assim como o dinheiro e toda a alegria que podias colher com o teu feitio de maluco. Mas agora caímos e tudo está acabado. Não tenho ciúmes de ti, porque não terás mais nada e eu também não. Agora é como se nada tivesse havido. Hollis inclinou a cabeça para a frente e gritou no telefone:
— Tudo acabou, Lespére!
Silêncio.
— É como se nunca tivesse havido nada, Lespére!
— Quem é?— perguntou a angustiada voz de Lespére. — Aqui, Hollis.
Era mordaz. Reparava-se na sua mordacidade, devido ao medo que tinha de morrer. Applegate tinha-lhe feito mal e queria, por seu turno, fazer mal a alguém. Applegate e o espaço tinham-no ferido.
— Estás aqui, Lespére. Tudo acabou. É como se as coisas nunca tivessem acontecido, não é?
— Não!
— Quando qualquer coisa acaba é como se nunca tivesse existido. Em que é que a tua vida é, agora, melhor do que a minha? É o presente que conta. E o teu é melhor? Hem?
— Sim, é melhor.
— Em quê?
— Porque penso, tenho memória, recordo-me! — gritou, indignado, Lespére de muito longe, agarrando com as duas mãos às suas recordações.
E tinha razão. Com uma sensação de água fria que se derramasse sobre a sua cabeça ou sobre o seu corpo, Hollis sabia que o outro tinha razão. Havia uma diferença entre sonhos e recordações. E não havia senão sonhos a tocar as coisas que tinha querido fazer e Lespére tinha a recordação das coisas que fizera. E esta certeza começou a desfazer Hollis com uma vibração precisa e lenta.
— Então já te calaste? O que é que tu ganhas?— gritou a Lespére. — Agora? Quando uma coisa acabou, perdeu o seu valor. Não tens nada que eu não tenha.
— Estou satisfeito — disse Lespére. — Fiz a minha obrigação. Não me vou agora transformar num malvado como tu.
— Mau?
Hollis remoeu a palavra. Nunca o tinha sido, tanto quanto se podia lembrar. Nunca o tinha ousado. Tinha-se poupado durante os anos passados para um momento como esse. «Mau!» Esqueceu a palavra. Sentia as lágrimas saltar-lhe dos olhos e rolar-lhe pela face. Alguém devia ter ouvido a conversa.
— Calma, Hollis.
Era evidentemente ridículo. Um momento antes tinha, dado conselhos a outros, a Stimson. Tinha sentido uma coragem que lhe tinha parecido autêntica, e não compreendia que isso não tinha passado de um choque nervoso, de uma objectividade tornada possível pelo choque. Tentava, agora, em breves minutos, encher toda uma vida com emoções.
— Eu compreendo o que você sente, Hollis — disse Lespére, agora a vinte mil milhas. A sua voz tinha menos força. — Não tomo isso por ofensa.
Mas não somos iguais? Lespére e eu? Agora, aqui? Uma vez acontecida uma coisa, ela acabou, e o que fica dela? Todos morrem, de qualquer maneira. Mas ele bem sabia que isto era um pensamento sofistico; como se tentasse estabelecer a diferença entre um homem vivo è um cadáver. Havia uma luz naquele — não neste —, uma aura, um elemento misterioso.
Era o que acontecia entre ele e Lespére. Lespére tinha tido uma vida cheia e tinha-se tornado um homem diferente dele, Hollis., que tinha sido como um morto durante todos os anos atrás. Iam para a morte por caminhos diferentes e tinha a impressão de que, havendo destinos desiguais para os mortos, o seu seria diferente do de Lespére como o dia da noite. A qualidade da morte, como a da vida, devia ser de uma variedade infinita. E se já se tinha morrido uma vez, que restava para procurar quando se morria outra vez, como lhe estava a acontecer?
Voltou-se e continuou a cair, porque não tinha outra coisa a fazer.
— Hollis?
Hollis ergueu a cabeça adormecida, cansada de esperar a morte.
— É outra vez Applegate.
— O que é?
— Estive a reflectir enquanto o ouvia. Isto não vai bem assim porque nos torna maus, duros. É uma feia maneira de morrer. Toda a bílis extravasa. Está a ouvir, Hollis?
— Estou.
— Menti-lhe. Há um minuto, menti-lhe. Não votei contra si. Nem sei porque lhe contei isso. Suponho que queria fazer--lhe mal. Você parecia a vítima indicada. Lutamos sempre um contra o outro. Presumo que estou a envelhecer e que me arrependo com rapidez. Creio que, ouvindo-o, mau como estava, tive vergonha. Qualquer que seja a razão, quero que saiba que fui estúpido. Não há um milímetro de verdade no que lhe disse. Vá para o diabo!
Hollis sentiu o coração abrir-se-lhe. Parecia-lhe que o coração não funcionava há mais de cinco minutos, mas, agora, os seus membros ganhavam cores e aqueciam.
O choque tinha passado, e o desfazer da cólera, do pânico e da solidão davam-lhe tranqüilidade. Sentia-se como um homem que sai de um duche frio, de manhã, pronto para o pequeno almoço e para um novo dia.
— Obrigado, Applegate.
— Isto vai indo. — Ai! — gritou Stone.
— O que é que aconteceu ? — perguntou Hollis. — Stone, entre todos, era o seu melhor amigo.
— Caí num monte de asteroides!
— Meteoros ?
— Creio que é a multidão dos Myrmifons que passa perto de Marte, em direcção à Terra, todos os cinco anos. Estou mesmo no meio. É como um enorme caleidoscópio. Há-os de todas as cores, de todas as formas, de todos os feitios. Grande Deus, como é belo todo este metal!
Silêncio.
— Vou com eles— disse Stone. — Arrastam-me! Apre! e riu.
Hollis levantou a cabeça para ver mas não viu nada. Não havia senão os grandes diamantes, as safiras, as esmeraldas brumosas e as tintas aveludadas do espaço, com a voz de Deus misturada aos fogos de cristal. A imaginação era, de qualquer maneira, atingida pela idéia de Stone, arrastado por uma multidão de meteoros, que vinha de além de Marte e se dirigia para a Terra todos os cinco anos, passando e voltando a passar no campo do planeta durante o milhão de séculos mais próximos; Stone e o conjunto dos Myrmidons, eterno e sem fim, mudando e transformando-se como as cores do caleidoscópio que reflectiam o Sol quando eram crianças e o faziam girar.
— Adeus Hollis!— Era a voz de Stone, agora muito fraca. — Boa sorte! — gritou Hollis para trinta mil milhas distantes.
— Não faças espírito — disse Stone e desapareceu.
As estrelas aproximavam-se.
As vozes extinguiam-se. Entretanto, cada uma tinha a sua própria trajectória, umas para Marte, outras para o fundo do espaço. E Hollis, ele... Olhou para «baixo». Voltava sòzinho para a Terra.
— Adeus.
— Coragem!
— Adeus Hollis! — Era Applegate.
Numerosos adeus! Breves adeus! Agora o grande cérebro, desfeito, desintegrava-se. Os elementos que constituiam o cérebro que tinha funcionado com tanta perfeição e eficácia no crânio da astronave lançada para o céu, morriam um a um; decompondo-se o sentido da sua vida comum. Da mesma forma que o corpo morre quando o cérebro deixa de funcionar, assim o espírito do corpo, o longo lapso de tempo passado em comum e o que eles significavam uns para os outros, ia desaparecer. Applegate era, apenas, um dedo arrancado ao corpo. Não tinha que desprezá-lo, nem trabalhar contra ele. O cérebro tinha explodido e os seus fragmentos insignificantes e inúteis dispersavam-se ao longe. As vozes tinham-se calado e o espaço estava silencioso. Hollis estava só na queda livre.
Cada um deles estava só. As suas vozes estavam abismadas, como o eco das palavras de Deus, que vibravam no firmamento. O capitão caminhava para a Lua; Stone mergulhara numa poeira de estrelas; Stimson, algures lá longe, no espaço; Applegate para os lados de Plutão; e Smith e Turner e Underwood e os outros; fragmentos de um caleidoscópio, conjunto de pensamentos comuns que desde há muito se desconjuntava.
E eu? — pensava Hollis. — Que posso eu fazer? Há alguma coisa que eu possa fazer, agora, para compensar a minha vida terrivelmente vazia ? Se ao menos pudesse fazer uma boa acção para contrabalançar toda a porcaria com que me cobri durante todos estes anos e de que ignorava a existência sobre mim? Mas não há ninguém, além de eu mesmo. Ninguém fora de mim, e como posso fazer algo de bom, sòzinho? Isto é impossível. Amanhã à noite chegarei à atmosfera terrestre.
Inflamar-me-ei — sonhava — e as minhas cinzas espalhar-se-ão pelos continentes. Servirei para alguma coisa. Para uma coisa pequena, mas as cinzas, são cinzas, são um adubo para a terra.
Caía ràpidamente, como um bala, uma pedra, um peso de ferro fundido, objectivo, sempre objectivo, nem triste, nem feliz, nem nada; nada mais que o desejo de fazer uma boa acção, agora que o fim tinha chegado, uma boa acção que seria o único a conhecer.
Quando atingir a atmosfera, consumir-me-ei como um meteoro.
Pergunto a mim próprio se alguém me verá.
O rapazinho, no caminho vicinal, olhou o céu e gritou:
— Olha, mãe, olha! Uma estrela cadente!
— Pede uma coisa, meu filho. Pede uma coisa! — disse a mãe.
O Homem Ilustrado voltou-se, sob o luar, voltou-se e tornou a voltar-se... uma vez... outra vez...
Quando souberam da notícia, saíram dos restaurantes, dos cafés e dos hotéis e olharam para o céu. Levantaram as negras mãos para proteger os olhos da luz. Em todas as cidades, que se estendiam por milhares de milhas, uma multidão de gente de cor perscrutava o espaço.
Na cozinha, Hattie Johnson tapou a panela da sopa que fervia, limpou os dedos num esfregão e saiu, vagarosamente, para o pátio, nas traseiras da casa.
— Anda, mamã! Anda ver! anda depressa!
— Éh, mamã!
Três negrinhos saltavam no parque empoeirado, gritando. De segundo a segundo, voltavam-se para a casa muito excitados.
— Já vou — disse Hattie abrindo a porta. — Onde é que ouviram esse ruído?
— É na casa do Jones, mamã. Dizem que vai chegar um foguetão, o primeiro depois de vinte anos, com um homem branco lá dentro!
— O que é um branco? Nunca vi.
— Vê-lo-ás — disse Hattie. — Sim, vê-lo-ás.
— Conta-nos, mamã. Conta, como só tu sabes. Hattie franziu as sobrancelhas.
— Éh, já foi há muito tempo. Eu era menina. Foi em 1965. — Fala-nos do homem branco, mamã!
Veio até ao parque, os olhos erguidos para o céu azul-claro de Marte onde corriam as tênues nuvens do planeta; ao longe, as colinas marcianas tremiam sob o efeito do calor. Finalmente, disse:
— Para começar, têm as mãos brancas.
— Mãos brancas! Os miúdos riam, batendo nas costas uns dos outros.
— E os braços são brancos!
— Braços brancos!
— E rostos brancos.
— Rostos brancos? Não!?
— Brancos como isto, mãe? — O mais pequeno deitou poeira no rosto, numa momice: — Assim?
— Ainda mais branco — afirmou ela gravemente. Havia inquietação nos seus olhos como se, preocupada, procurasse aperceber uma tempestade no céu.
— Talvez seja melhor irmos para dentro!
— Oh, mamã! — Os miúdos protestaram. — Temos de o ver, temos, temos. Não vai chegar ninguém, pois não?
— Não sei. Tenho um pressentimento... — Nós queremos ver o aparelho, queremos ver o homem branco. Como é que ele é? Diz, mamã...
— Não sei. Não sei — disse ela com ar distante e abanando a cabeça.
— Conta-nos mais coisas!
— Pois bem. Os homens brancos vivem na Terra de onde todos nós viemos há vinte anos. De lá saímos e chegámos a Marte. Instalámo-nos, construímos cidades e aqui estamos. Agora somos Marcianos e não gente da Terra. Durante todo este tempo, nenhum homem branco veio cá. E isto é a nossa história.
— Porque é que não vieram?
— Porque não. Pouco antes de chegarmos aqui começou uma guerra atômica na Terra. Os brancos andaram a matar-se uns aos outros. Esqueceram-nos. E, passados anos, quando acabaram com a guerra, não tinham nenhum navio do espaço. Levou-lhes todo este tempo a construí-los. E agora, passados vinte anos, aqui estão para nos visitar.
Olhou vagamente para as crianças e dirigiu-se para fora.
— Esperem aqui. Vou a casa de Elisabeth Brown. Prometem não sair daqui?
Chegou a casa dos Brown no momento em que todos se metiam no carro.
— Éh, Hattie! Anda connosco!
— Onde é que vão ? — perguntou, correndo para eles, sem fôlego.
— Vamos ver o homem branco.
— Exacto! — disse Mr. Brown, que indicou o automóvel cheio.
— Os miúdos nunca o viram e até eu já quase me esqueci deles.
— O que é que vocês vão fazer ao branco? — perguntou Hattie.
— O que vamos fazer? — gritaram todos. — Vamos só vê-lo!
— Só isso ?
— Que mais é que poderíamos fazer?
— Não sei — murmurou Hattie. — Pensei que poderia haver qualquer sarilho.
— Que gênero de sarilho?
— Vocês sabem muito bem — disse Hattie hesitante —. Vocês vão linchá-lo!?...
— Linchá-lo? — riram-se, e Mr. Brown deu uma palmada na coxa. — Certamente que não, minha filha! Vamos apertar-lhe a mão. Não é verdade, minha gente ?
— Pois claro, pois claro!
Uma viatura chegou de outra direcção e Hattie deu um grito: — Willie!
— Que estás aí a fazer? Onde estão os miúdos? — gritou o seu marido exaltado. Voltou-se furibundo para os outros. — Vocês vão ao aeroporto como idiotas para ver aquele homem aterrar?
— É exactamente isso — disse Mr. Brown num sorriso.
— Bem, então tragam as vossas espingardas! — disse Willie. — Eu vou buscar a minha!
— Willie!
— Sobe para o carro Hattie. — Abriu a porta seguindo-a com o olhar, até que ela tivesse obedecido. Sem uma palavra para os outros, lançou o carro a grande velocidade.
— Mais devagar, Willie!
— Mais devagar, hem ? Já se vai ver! — fixou os olhos na estrada que desaparecia sob o motor. — Com que direito é que eles vêm depois destes anos todos? Porque não nos deixam em paz? Porque é que não se mataram todos, no velho Mundo? Porque é que não nos deixam tranqüilos?
— A maneira como tu falas não é cristã, Willie!
— Não me sinto cristão — disse ele raivosamente, apertando o volante. — Sinto-me mau. Depois de todos estes anos, depois de tudo o que eles nos fizeram e ao meu pai e à minha mãe e aos teus... Lembras-te quando enforcaram o pai em Knochwood Hill e quando mataram a mãe? Recordas-te? Ou a tua memória será tão pequena como a dos outros?
— Recordo-me — disse ela.
— Recordas-te do dr. Phillips e de Mr. Burton, das suas grandes casas, da cabana de minha mãe e quando o meu pai trabalhava, já bastante velho, e o dr. Phillips e Mr. Burton lhes agradeceram enforcando-os. Pois muito bem — desabafou Willie — agora é a nossa vez. Vamos ver quem é que faz leis contra os outros, quem é que vai ser linchado, quem vai viajar no compartimento reservado dos carros, quem é que nos espectáculos vai ser posto de lado. Vamos ver tudo isso!
— Oh, Willie! Vai haver sarilho se falas assim! — Toda a gente fala assim. Todos acreditaram até hoje que ele viria. Sempre se perguntou: no dia em que o homem branco chegar a Marte o que é que acontecerá? Esse dia chegou e nós não podemos recuar.
— Não vais deixar os brancos viver aqui?
— Pois claro — sorriu, mas era um largo sorriso maldoso e os olhos pareciam de louco. — Claro que podem vir, viver e trabalhar aqui. Tudo o que deverão fazer para o merecer será viver nos seus próprios bairros da cidade, nos tugúrios, engraxar-nos os sapatos, recolher o nosso lixo, sentarem-se nas últimas filas dos cinemas. É só isto que pedimos. E uma vez por semana daremos caça a um ou dois deles. É muito simples!
— Nem pareces um homem e eu não gosto disso.
— Tens de te habituar — disse ele. Parou o carro diante da casa e saiu.
— Vou procurar as espingardas e uma corda. Isto vai ser feito com todas as regras.
— Oh Willie! — gemeu ela, que ficou sentada no automóvel enquanto ele subia as escadas de um salto, batendo com a porta.
Ela seguiu-o de má vontade; no quarto de arrumação ele fazia uma enorme barulheira, praguejando como um possesso, até ter encontrado quatro espingardas. Ela viu o aço brilhar, mas, na obscuridade, não podia distinguir Willie: só ouvia as suas pragas. Quando saiu pôs-se a juntar pilhas de cartuchos que arrumava numa caixa. Tinha o rosto endurecido e ensombrado, como que fechado sobre a sua amargura interior.
— Que nos deixem tranqüilos — murmurava ele, sem cessar, com as mãos a fazerem gestos incontrolados. — Deixem-nos tranqüilos... Porque não nos deixam?
— Willie, Willie!
— Também tu... também tu... — e lançou-lhe um olhar de ódio cuja intensidade chocou Hattie.
Debaixo da janela os miúdos pairavam:
— Branco como leite, disse a mamã. Branco como leite.
— Branco como esta flor, estás a ver?
— Branco como a pedra mármore, como o jiz com que escrevemos.
Willie saiu de casa:
— Vá meninos, entrem. Vou fechar-vos em casa. Vocês não verão nenhum homem branco, nem lhe falarão, nem nada. Venham cá imediatamente.
— Mas... papá!
Empurrou-os para dentro e foi procurar uma lata de tinta e um pincel; tirou da garagem um grande rolo de corda grossa e resistente; fez um nó corredio, observando cuidadosamente o céu, enquanto as mãos executavam a tarefa.
Depois partiram os dois, deixando atrás de si nuvens de poeira.
— De vagar, Willie!
— Não é ocasião para vagares! — respondeu ele. — É a altura de nos apressarmos e eu apresso-me!
Ao longo de toda a estrada, pessoas olhavam o céu, subiam para os automóveis ou já estavam a caminho. As espingardas apontavam como telescópios na direcção de um mundo prestes a acabar,
Ela reparou nas espingardas:
— Tu já lhes falastes! — acusou Hattie.
— Exacto! — resmungou ele. Fixava ferozmente os olhos na estrada. — Parei em cada casa e disse-lhes o que deveria dizer: que trouxessem espingardas, tinta, uma corda e que se despachassem. E aqui estamos todos, a comissão de recepção, para lhes dar as chaves da cidade. Exactamente!
Ela apertou as mãos finas e negras para dominar o terror que dela se apoderava. O carro serpenteava entre os outros automóveis. Ouviu vozes gritar:
— É Willie, olha! — e mãos estendiam espingardas e cordas, as bocas abriam-se num sorriso.
— Chegámos! — disse Willie. Parou no meio da poeira e do silêncio. Abriu a porta com um pontapé e, carregado de armas, seguiu através do aeródromo.
— Reflectiste, Willie?
— Foi o que fiz durante vinte anos. Tinha dezasseis anos quando deixei a Terra e senti-me feliz por partir. Não tinha lá nada a fazer, nem tu, nem nenhum dos outros. Nunca lamentei ter partido. Pela primeira vez sentimo-nos em paz, aqui, pela primeira vez, pudemos respirar. Anda daí!
Abriu caminho através da multidão que já se reunira. — Willie, Willie, que vão fazer?
— Olha uma espingarda — disse ele — ; mais uma, mais uma outra, ali! — Apontava-as com um gesto feroz. — Olha um revólver, uma carabina!
A multidão era tão compacta que dir-se-ia um enorme e sombrio corpo de braços que se estendiam empunhando armas.
— Willie, Willie.
A mulher mantinha-se a seu lado, altiva e silenciosa, lábios cerrados, os grandes olhos humedecidos e trágicos.
— Traz a tinta — pediu ele.
Ela pegou numa lata de tinta amarela e levou-a para o local do campo onde tinha parado um autocarro, com um letreiro. «Pista de aterragem do homem branco», colado de fresco, à frente. Vinha repleto de gente alegre que saiu e se pôs a olhar para o céu. Mulheres com cestos de piquenique, homens com chapéu de palha e em mangas de camisa.
Willie subiu para o autocarro abriu as latas mexeu a tinta com um pincel e subiu para um assento.
— Éh! — O condutor acorria, com o dinheiro a tilintar na bolsa.
— O que é que você faz aí ? Desça!
— Já vais ver o que faço, não te aflijas!
E Willie aplicou a tinta na carroçaria. Pintou «Brancos» com enorme satisfação. Quando terminou, o condutor piscou os olhos e leu: «Brancos : Divisão da Retaguarda». Voltou-se para Willie com um sorriso.
— Agrada-te? — perguntou Willie descendo.
— Perfeitamente, cavalheiro! — exclamou o condutor. Hattie olhava os dizeres apertando as mãos contra o peito.
Willie dirigiu-se, novamente, para o meio da multidão que aumentava com cada viatura e autocarro que chegavam da cidade próxima.
Subiu para uma caixa e gritou:
— Fornecemos equipas para pintar imediatamente todos os autocarros. Voluntários!
Ergueram-se mãos.
— Despachem-se! Eles correram.
— Equipas para estender cordas nos cinemas! As duas últimas filas para os brancos!
Outras mãos erguidas.
— A caminho! Partiram a correr.
Willie percorreu a multidão cora o olhar, o suor escorrendo-lhe pelo corpo, arfando do esforço, orgulhoso da sua energia, a mão apoiada no ombro de sua mulher, que conservava os olhos baixos.
— Recapitulemos! — disse ele. — Ah, sim! É preciso fazer uma lei interditando os casamentos de raças diferentes.
— Muito bem! — exclamaram diversas vozes.
— Todos os engraxadores abandonam hoje os seus lugares. — Imediatamente!
— É preciso uma lei sobre o salário mínimo, não é verdade?
— Pois claro!
— Pagar-lhes-emos, pelo menos, dez cêntimos à hora.
— É justo!
O presidente do Município interveio:
— Um momento, Willie Johnson. Desce dessa caixa.
— Senhor presidente, ninguém me fará descer!
— Estás a perturbar a ordem, Willie.
— Exactamente.
— Sempre o detestaste fazer quando eras rapaz. E agora não vales mais que alguns desses homens brancos contra os quais vituperas.
— Isto agora é outra história — disse Willie sem sequer olhar o presidente, mas fitando os rostos sorridentes, hesitantes ou receosos que estavam na sua frente.
— Arrepender-te-ás! — concluiu o presidente.
— Vamos proceder a novas eleições e teremos um novo presidente — afirmou Willie. Voltou-se para os lados da cidade. Em todas as ruas surgiam letreiros pintados de fresco: Admissão reservada. «Direito revogável de servir a todo o momento».
Chegavam autocarros com cartazes nos lugares da retaguarda em intenção dos futuros ocupantes. Os cinemas foram invadidos, as cordas estendidas por homens nervosos, cujas mulheres se conservavam com ar dubitativo nos passeios, dando safanões às crianças que eram mandadas para casa, a fim de não se misturarem na confusão destas horas sombrias.
— Todos prontos? — gritou Willie com a corda na mão, o nó bem ajustado.
— Prontos! — berrou metade da multidão. A outra metade murmurava e agitava-se como personagens lançadas para um pesadelo, no qual não querem participar.
— Aí está ele! — gritou um rapazinho.
Como puxadas por um cordel, as cabeças levantaram-se.
No céu, muito alto, um foguete magnífico brilhava, deixando um rasto cor de laranja. Descreveu um círculo e pousou. Durante esses instantes não houve nenhum movimento; depois, sob o silêncio da multidão atenta, uma porta correu e ouviu-se um sopro de oxigênio. Um homem idoso saiu.
— Um branco! Um branco... Um branco... As palavras corriam entre a multidão, as crianças cochichavam, empurrando-se; as palavras estenderam-se, qual uma onda, até ao parque dos autocarros que cheiravam a tinta fresca.
O murmúrio atenuou e extinguiu-se.
Ninguém se mexia.
O homem branco era alto, mantínha-se direito. Mas no seu rosto reflectia-se uma grande fadiga. Não se barbeara nesse dia e os olhos eram tão velhos, como podem ser os de um homem que ainda vive. Eram descoloridos, quase brancos, fitando o vazio, como que cansados das coisas que viram, no decorrer dos anos. Também era franzino como as árvores no Inverno. As mãos tremiam. Teve de apoiar-se à escotilha enquanto olhava para a multidão.
Levantou uma das mãos com um pálido sorriso, depois deixou-a cair.
Ninguém se mexeu.
Fitou os rostos e talvez olhasse, sem ver, as espingardas e as cordas, talvez sentisse o cheiro a tinta. Começou a falar. Começou lenta e docemente, como se não esperasse nenhuma interrupção. Não houve nenhuma. Tinha a voz fatigada, envelhecida e apagada.
— Pouco importa quem sou. De qualquer forma só seria para vós um nome. Também não conheço os vossos. Ficará para mais tarde.
Deteve-se fechando os olhos.
— Há vinte anos — disse ele. — Vocês deixaram a Terra. Já foi há muito, muito tempo. Seria melhor dizer vinte séculos, tantas foram as coisas que aconteceram. Quando vocês partiram rebentou a guerra. — Abanou lentamente a cabeça. — Sim, a grande guerra. A terceira. E durou muito tempo; até ao ano passado. Bombardeámos todas as cidades da Terra. Destruímos Nova York, Londres, Moscovo, Paris, Xangai, Bombaim, Alexandria. Transformámos tudo em ruínas. E quando acabámos com as grandes cidades lançámos bombas atômicas sobre as mais pequenas, queimámo-las!
Começou a enumerar as cidades, os locais, as ruas. À medida que o fazia erguia-se do meio do seu auditório um murmúrio.
— Destruímos Natchez... Um murmúrio.
— Queimámos Nova-Orleães... Um suspiro.
— E Atlanta... Um sussurro.
— Nada ficou de Greenwater, no Alabama.
Willie Johnson voltou a cabeça, a boca entreaberta. Hattie reparou no gesto, nas recordações que os seus olhos sombrios reviam.
— Nada ficou — disse o homem idoso lentamente. — Os campos de algodão foram incendiados.
— Oh! — exclamaram. — As fábricas destruídas.
— Oh!
— As oficinas radioactivadas; tudo ficou radioactivo. As estradas, as propriedades, os alimentos. Tudo.
Citou, novamente, nomes de cidades e vilas.
— Tampa.
— É a minha terra — murmurou alguém.
— Fulton.
— A minha!
— Menphis.
— Menphis! Queimaram Menphis? — interrogou uma voz indignada.
— Arrasada.
— E a Rua 4, em Menphis?
— Toda a cidade — afirmou o homem.
Agora aquilo perturbava-os. Vinte anos passados, o que ouviam era como uma grande vaga. As cidades e os lugares, as árvores e as casas, em estilhas: os sítios, as igrejas e a farmácia da esquina, tudo isso desaparecera da superfície da Terra. Cada nome evocava uma recordação, e nenhum, entre eles, deixava de pensar no passado. Eram suficientemente idosos para isso, excepto as crianças.
— Laredo!
— Recordo-me de Laredo.
— Nova York.
— Eu tinha uma loja em Harlem.
— Harlem? Arrasada pelas bombas.
Palavras sinistras. Os locais familiares. A dificuldade de os imaginar a todos em ruínas. Willie Johnson murmurou:
— Greenwater, no Alabama? Foi onde eu nasci. Recordo-me muito bem.
— Tudo destruído — dissera o homem. E prosseguiu:
— Foi assim que destruímos e arrasámos tudo, como seres estúpidos que éramos e somos ainda. Matámos milhões de pessoas. Creio que não existem mais de quinhentos mil habitantes no Mundo, entre todas as raças e todos os gêneros. E entre os destroços conseguimos recolher o metal suficiente para construir esta nave e, agora, viemos a Marte para pedir a vossa ajuda.
Hesitou, perscrutando os rostos para ver o que neles podia encontrar.
Hattie Johnson sentiu o braço do marido contrair-se, viu os dedos apertarem a corda.
— Fomos insensatos — disse o velho homem calmamente. — Fizemos desabar a Terra e a Civilização nas nossas cabeças. Não vale a pena reconstruir as cidades, pois elas estarão radioactivas durante cem anos. A Terra acabou!
A sua história findou. Vocês têm aqui naves especiais das quais não se serviram para voltar à Terra, nestes vinte anos. E eu vim agora pedir-lhes para que nos deixem utilizá-las. Voltar com elas à Terra, recolher os sobreviventes, transportá-los para Marte. Pedir-lhes para, desta vez, nos ajudarem. Fomos estúpidos. Perante Deus, admitimos a nossa insensatez, a nossa perversidade. Todos, Chineses ou Hindus, Russos, Ingleses ou Americanos. Pedimo-vos que nos escutem. O vosso solo marciano não é cultivado desde há um número incalculável de séculos. Há lugar para todos, aqui. É um bom solo. Vi os vossos campos lá do alto. Viremos e cultivá-los-emos para vocês. Sim, até isso faremos. Merecemos tudo o que vocês nos queiram fazer, mas não nos mandem embora. Agora não estamos em condições de vos forçar e, se o desejarem, entrarei de novo no meu foguete, regressarei e lá ficaremos. Não queremos incomodar-vos. Mas se viermos, trabalharemos para vocês e faremos tudo o que vocês fizeram para nós: limparemos as casas, cozinharemos, engraxaremos os vossos sapatos e, perante a face de Deus, humilhar-nos-emos pelas coisas que durante séculos fizemos, a nós, aos outros e a vocês.
Terminara.
O silêncio dos silêncios. Um silêncio que se poderia guardar no côncavo das mãos e que descia sobre a multidão como a pressão de uma tempestade distante. Os longos braços balançavam como negros pêndulos, ao sol. Os olhos estavam fixos no velho homem que se calara, aguardando.
Willie Johnson segurava a corda nas mãos. Os que o rodeavam, observavam-no para ver o que ele ia fazer. A sua mulher, Hattie, aguardava, suspensa no seu braço.
Desejava que o seu ódio se comunicasse a todos, dominá-lo e trabalhá-lo até ao instante em que encontrasse uma falha; então, ela poderia retirar uma pedra ou um tijolo, fazer uma brecha; e todo o edifício desmoronar-se-ia. Estava prestes a abalar-se a base. Mas onde estava a pedra angular e como encontrá-la ?
Olhou para Willie, que se conservava num silêncio duro, e a única coisa que percebia, na situação, era ele e a sua vida e o que lhe acontecera; e era ele a pedra angular.
Sabia que se conseguisse tudo o que os mantinha unidos perderia a sua coerência e desfazer-se-ia.
— Senhor... — Ela adiantou-se. Não sabia quais iam ser as suas primeiras palavras. A multidão fixava os olhos nas suas costas. Sentiu os olhares. — Senhor...
O homem dirigiu-lhe um sorriso fatigado.
— Senhor — disse ela — conhece Knockwood Hill, em Greenwater, no Alabama?
O velho homem falou para alguém, no interior do foguete, por cima do ombro. Um momento depois, deram-lhe uma carta fotográfica e o velho homem segurou-a, esperando.
— Conhece o grande carvalho no cimo da colina?
O grande carvalho. O sítio onde o pai de Willie fora morto com uma bala e enforcado — encontraram-no, de manhã, balançando ao vento.
— Sim.
— Ainda existe, senhor?
— Não — disse o velho homem. — Desapareceu. Toda a colina foi arrasada, e também a árvore. Que quer? — e apontou o mapa.
— Mostre-me — disse Willie, que se precipitara para ver a carta fotográfica.
Hattie bateu as pálpebras diante do homem branco, o coração a palpitar.
— Fale-me de Greenwater — disse, precipitadamente.
— Que quer saber?
— O dr. Philips ainda é vivo?
Decorreu um momento durante o qual a informação foi procurada numa máquina barulhenta...
— Morto na guerra. — E o filho?
— Morto.
— E a casa?
— Queimada, como todas as outras.
— E aquela outra grande árvore na colina de Knockwood ?
— Todas as árvores desapareceram, queimadas.
— Tem a certeza que essa árvore já não existe? — perguntou Willie.
— Tenho a certeza!
O corpo de Willie pareceu distender-se.
— E a casa de Mr. Burton, e ele próprio?
— Não há casas, nem pessoas nenhumas.
— Conhece a cabana de Mrs. Johnson, a minha mãe? Onde ela foi morta com uma bala?
— Também desapareceu. Tudo desapareceu. Aqui estão as fotografias. Vejam-nas.
As fotografias ali estavam para ser vistas e para dar que reflectir. A astronave estava cheia de respostas e perguntas. Não importa a que pergunta, sobre que cidade ou casa.
Willie ali ficou com a corda na mão.
Recordava-se da Terra, da Terra verde e da verde cidade onde nascera e onde crescera. Pensava nessa cidade, agora demolida, destruída, desfeita em pedaços; e, também em todos os pontos de referência, todo o mal certo ou possível, todos os homens corajosos desaparecidos, os estábulos, a forja, a farmácia, os cafés, as tabernas, as fontes, as árvores das linchagens, as colinas cheias de chumbo de caça, as estradas, as vacas, as mimosas, a sua própria casa e também as moradias com grandes colunas, ao longo do rio; as morgues onde franzinas mulheres adejavam como insectos à luz do Outono, distantes, longínquas; as casas onde homens endurecidos se balouçavam nas cadeiras, um copo na mão e uma espingarda encostada à balaustrada, aspirando o ar da noite e pensando na morte. E, neste momento, a certeza de toda esta civilização reduzida a nada, prostrada a seus pés. Nada, nada que ficasse para ser odiado; nem um cartucho vazio, nem um pedaço de corda, nem uma árvore; nem sequer uma colina para detestar. Nada, a não ser alguns estranhos num foguete, gente que poderia engraxar-lhes os sapatos e viajar nos compartimentos reservados.
— Não precisam de fazer isso — disse Willie Johnson em voz alta.
A mulher olhou-lhe para as grossas mãos.
Os dedos abriram-se.
A corda escorregou e caiu por terra. Foi o sinal.
Todos correram para as ruas da cidade e arrancaram os cartazes que tão ràpidamente tinham sido pintados; apagaram as inscrições amarelas nos autocarros, retiraram as divisões nas filas dos cinemas, descarregaram as espingardas e arrumaram as cordas.
— Uma nova oportunidade para todos — disse Hattie quando entraram em casa.
— Sim — disse, finalmente, Willie. — E o que vai acontecer agora depende de todos nós. A era da estupidez acabou. Devemos ser mais alguma coisa que seres estúpidos. Compreendi isto enquanto ele falava. Compreendi também que o branco agora está tão só, como nós sempre estivemos. Presentemente não tem um lar, tal como nos aconteceu durante muito tempo. Agora estamos em pé de igualdade. E podemos recomeçar sobre as mesmas bases.
Parou o carro e ficou no assento, sem se mover, enquanto que Hattie abria a porta às crianças, que correram para o pai. — Viste o homem branco? Viste?
— Perfeitamente. Vi-o — murmurou Willie, passando lentamente a mão pelo rosto.
— Sim, parece-me que pela primeira vez vi verdadeiramente o homem branco, vi-o muito bem, na verdade.
Parou o carro e ficou no assento, sem se mover, enquanto que Hattie abria a porta às crianças, que correram para o pai. — Viste o homem branco? Viste?
— Perfeitamente. Vi-o — murmurou Willie, passando lentamente a mão pelo rosto.
— Sim, parece-me que pela primeira vez vi verdadeiramente o homem branco, vi-o muito bem, na verdade.
A refrescante chuva da tarde cobrira o vale e regara o trigo nos campos da montanha tamborilando na palha que formava o telhado da cabana. Na obscuridade húmida a mulher esmagava grãos entre duas pedras de lava com movimentos regulares. Longe, uma criança chorava.
Hernando esperava que a chuva parasse para recomeçar a trabalhar com a charrua de madeira. Lá em baixo, turvo e cheio, o ribeiro corria impetuoso. A estrada de cimento — um outro ribeiro — não corria. Coleava, brilhante e vazia. Há uma hora que não passava nenhuma viatura. Isto, em si, era um caso invulgar. Durante muitos anos, não decorria uma única hora sem que um automóvel tivesse parado e que alguém gritasse: «Éh, você! Podemos tirar-lhe uma fotografia?» Se Hernando caminhava lentamente através dos campos sem o chapéu eles gritavam-lhe: «Éh, queremos tirar-lhe a fotografia com o chapéu!» E agitavam as mãos ricas de coisas em ouro que diziam as horas, que os identificavam ou que não serviam para nada senão para brilhar ao sol como os olhos das libélulas. Então, ia procurar o chapéu.
A mulher perguntou-lhe: — Há alguma novidade, Hernando? — Si. A estrada. Um grande acontecimento. Muito grande para a estrada ficar assim vazia.
Afastou-se da casa, lentamente. A chuva lavava-lhe os sapatos feitos de fibras entrançadas e de um grosso bocado de pneu. Recordava-se muito bem da história deste par de sapatos. O pneu tinha chegado bruscamente à cabana, certa noite, espantando as galinhas que fizeram cair os potes. Chegara, rolando velozmente. O automóvel tinha seguido o caminho até à curva, ficara um momento suspenso antes de cair ao ribeiro. Ainda lá estava. Podia ser visto em certos dias, quando o ribeiro corria lento e o lodo clareava. Lá no fundo, com os seus cromados brilhantes, comprido, aerodinâmico, jazia o automóvel. Depois o lodo levantava-se e nada se descortinava.
No dia seguinte cortara umas solas do pneu.
Agora, chegara à estrada, onde ficou a ouvir os ligeiros ruídos emitidos pela chuva.
E então, como que obedecendo a um sinal, os automóveis chegaram, às centenas, estendendo-se por quilômetros, desfilando perante ele. Enormes, esguios e negros em direcção ao Norte, para os Estados Unidos, rugindo, dobrando velozmente as curvas. Havia alguma coisa de estranho nas expressões dos ocupantes amontoados no interior, qualquer coisa que o fez mergulhar num profundo silêncio. Recuou para melhor deixar passar os carros. Contou-os até se sentir fatigado. Quinhentos, mil, e havia alguma coisa de estranho nas expressões dos condutores. Mas iam tão depressa que não pôde determinar o que era.
Finalmente o silêncio e a solidão voltaram. Os compridos e baixos automóveis tinham passado. Ouviu a derradeira buzina extinguir-se ao longe.
De novo a estrada estava deserta.
Fora como que um cortejo fúnebre. Mas um cortejo louco, impetuoso, de cabelos revoltos, lançado como um grito, para uma cerimónia, lá para o Norte. Porquê ? Só soube abanar a cabeça e esfregar docemente os dedos nas ancas.
Mas agora, isolada, chegava a última viatura. Tinha qualquer coisa de muito definitivo. Descendo a estrada da montanha sob a chuva miudinha e fresca, vinha um velho Ford, tão ràpidamente quanto podia. Esperou vê-lo desmantelar-se a todo o momento. Quando o velho Ford viu Hernando, parou, coberto de pó e de ferrugem, o radiador a trepidar furiosamente.
— Por favor pode-nos arranjar água, señor?
Um homem novo, talvez com vinte e um anos, estava ao volante. Vestia uma camisola amarela, uma camisa aberta e umas calças cinzentas. O carro era descoberto, e a chuva caía sobre ele e sobre cinco jovens raparigas, tão apertadas umas contra as outras que não se podiam mover. Todas elas eram muito bonitas e protegiam-se da chuva com velhos jornais. Mas, apesar disso, a água ensopava os seus vestidos multicolores, molhando o rapaz. Os cabelos escorriam água. Mas parecia que nem reparavam nisso. Não se queixavam, o que não era habitual. Noutras alturas lamentavam-se sempre: a chuva, o calor, o tempo, o frio, a distância...
Hernando meneou a cabeça.
— Vou trazer-lhe água.
— Oh, por favor, despache-se! — gritou uma das raparigas.
Parecia estar fora de si e apavorada. Aquilo não era impaciência, mas sim um pedido originado pelo medo. Pela primeira vez na sua vida, Hernando corria para satisfazer o pedido de um turista. Noutra ocasião, num caso semelhante, teria ido de vagar.
Voltou com um tampão de automóvel cheio de água. Fora também um presente da estrada. Encontrara-o certa tarde, no seu campo, redondo e brilhante como se fosse uma enorme moeda... O automóvel ao qual pertencia tinha continuado a sua marcha, sem saber que perdera aquela peça prateada.
Até agora, ele e a mulher tinham-se servido do tampão para lavar a roupa e cozinhar; era um recipiente esplêndido. Enquanto deitava a água no radiador, Hernando olhou aqueles rostos atormentados.
— Oh, muito obrigada, obrigada! — disse uma das raparigas.— Não calcula como é urgente!
Hernando sorriu.
— Tem havido grande movimento. E na mesma direcção. Para o Norte.
Não pretendera dizer qualquer coisa que os perturbasse. No entanto, quando levantou os olhos elas choravam, ali, sob a chuva. Grossas lágrimas. E o rapaz esforçava-se por as acalmar acariciando-lhes os ombros, confortando-as com ternura uma após outra; elas conservavam os jornais na cabeça, as bocas tremiam, os olhos estavam fechados, os rostos mudavam de cor; e choravam, umas violentamente, outras quase sem ruído...
Hernando ficou com o tampão semivazio entre as mãos.
— Eu não queria dizer nada de mal, señor — desculpou-se ele.
— Não tem importância — disse o rapaz.
— O que é que aconteceu, señor?
— Não sabe? — respondeu o outro, voltando-se e agarrando o volante. Inclinou-se. — Aconteceu!...
Era qualquer coisa de mau. As raparigas começaram de novo a soluçar, agarradas umas às outras, esquecendo-se dos jornais, deixando que a chuva lhes corresse pelo rosto, misturando-se com as lágrimas.
Hernando endireitou-se. Pôs o resto da água no radiador. Olhou o céu negro de tempestade. Olhou o ribeiro tumultuoso. Sentia o asfalto sob os pés.
Veio até à porta do carro. O rapaz estendia-lhe um peso.
— Não! — Hernando recusou-o. — Ofereço-lhes a água com prazer — disse ele.
— Obrigada. Você é tão bondoso — disse uma das raparigas entre soluços.— Oh, mamã, papá! Quero voltar para casa! Quero voltar para casa. Mamã, papá! As outras seguraram-na.
— Não sei o que se passa, señor — disse calmamente Hernando.
— A guerra! — gritou o rapaz com toda a força, como se tivesse medo que não o ouvissem. — Aconteceu! A guerra atômica, o fim do Mundo!
— Señor! Señor! — exclamou Hernando.
— Muito obrigado pela sua ajuda. Até depois! — disse o rapaz.
— Até depois! — exclamaram as raparigas, sem o olhar, sob a chuva.
Ali ficou até o automóvel começar a trabalhar, partindo com um ruído de ferragens. O último carro lançou-se para o vale e desapareceu com as raparigas.
Durante uns instantes não se mexeu. Muito fria, a chuva corria-lhe pelo rosto e pelas mãos, embebendo a serapilheira que lhe cobria as pernas. Conteve a respiração, que a espera prolongara.
Observava a estrada, mas nada acontecia. E ele duvidava muito que doravante houvesse mais trânsito.
A chuva parou. As nuvens abriam-se. Em dez minutos a tempestade passara. Uma aragem suave trouxe-lhe os olores da mata. Ouvia o ribeiro que murmurava no seu leito. A mata estava verdejante, tudo era frescura. Caminhou pelo campo, até à cabana e retomou a charrua. Com a mão numa anca olhou para o céu que o Sol tornava de novo escaldante.
A mulher chamou-o, sem parar de trabalhar.
— O que foi, Hernando?
— Nada — respondeu ele.
Enterrou a relha do arado num sulco. «Burrrr-o!», gritou para a mula. E puseram-se a caminhar, sob o céu límpido, curvados pelo esforço, ao longo do profundo ribeiro.
O que é que eles queriam dizer com: o Mundo? — perguntou a si próprio.
O capitão Hart estava à porta da astronave.
— Porque é que não vêm? — perguntou.
— Quem sabe? — respondeu Martin, o imediato. — Acaso o saberei, capitão?
— No final de contas, que espécie de lugar é este?
O capitão acendeu um cigarro. Lançou o fósforo para o prado ressequido. A erva começou a arder.
Martins fez menção de apagar o fogo com a bota.
— Não — ordenou o capitão Hart — deixe-a arder. Talvez que esses burros venham ver o que se passa!
Martin encolheu os ombros e tirou o pé do fogo, que se propagava.
O capitão olhou para o relógio.
— Já aterrámos há uma hora. a comissão de recepção veio porventura ao nosso encontro, com uma banda de música, para nos cumprimentar? Não! Percorremos milhões de milhas através do espaço, e os honestos cidadãos de uma idiota cidade de um planeta desconhecido desdenham-nos!
Rugiu, apontando para o relógio de pulso.
— Dou-lhes mais cinco minutos e então...
— E então o quê? — perguntou Martin muito delicadamente, vendo tremer as bochechas do capitão.
— Passaremos por cima da cidade e pregamos-lhes um destes sustos!... — A sua voz tornou-se mais calma. — Você acha que eles talvez não nos tivessem visto descer?
— Viram-nos. Olharam para o ar quando os sobrevoámos.
— Então porque não vêm? Escondem-se? Têm medo?
Martin meneou a cabeça.
— Não. Pegue no binóculo, capitão, e veja pelos seus olhos.
Eles entregam-se às suas ocupações. Não têm medo. Eles... eles têm o ar de quem não nos dá importância.
Hart colocou o binóculo nos olhos fatigados. Martin pôde observar-lhe os traços de cansaço e esgotamento. Hart parecia ter mil anos. Nunca dormia, comia pouco, jamais parava. Sob o binóculo, os seus lábios moveram-se, envelhecidos e tristes, mas duros.
— Na verdade, Martin, não compreendo porque é que temos todo este trabalho. Construímos foguetes, esforçamo-nos para atravessar o espaço à sua procura, e veja o que obtemos em troca. Indiferença! Repare naqueles imbecis que passeiam. Será que não compreendem a grandeza disto? A primeira expedição interplanetária a visitar estas paragens perdidas. Quantas vezes é que isto lhes aconteceu? Serão insensíveis ?
Martin também não sabia.
O capitão Hart estendeu-lhe o binóculo com um gesto cansado.
— Porque é que fazemos isto, Martin? Quero dizer, todas estas viagens. Sempre a caminho, sempre procurando, sem repouso para o corpo.
— Procuramos talvez a tranqüilidade e a paz? De qualquer forma não as há na Terra.
— Pois não, isso é verdade! — Hart ficou pensativo, a violência extinguira-se. — Desde Darwin, não é? Desde que tudo o que era as nossas crenças foi deitado pela borda fora, não é ? A força divina e tudo o mais. E parece-lhe, Martin, que será por causa de tudo isso que partimos para o espaço ? À procura das nossas almas perdidas... É isso? Esforçando-nos para deixar o nosso velho planeta em troca de una melhor?
— Talvez, capitão. Indubitavelmente que procuramos qualquer coisa.
O capitão Hart aclarou a voz e tornou-se incisivo:
— Bem! Para já, procuremos o governador desta cidade. Vá-lhe dizer quem somos: a primeira expedição, em foguete, ao Planeta 43 do Sistema Estelar 3. O capitão Hart envia as suas saudações e deseja avistar-se com o governador. Vá depressa.
— Sim, capitão.
Martin afastou-se lentamente.
— Rápido! — ordenou o capitão.
— Sim, capitão!
Martin pôs-se a correr. Depois começou a caminhar pela planície, com um sorriso nos lábios.
O capitão fumou dois cigarros antes que Martin regressasse.
Martin parou e pôs-se a olhar, hesitante, pela porta do foguete. Parecia nada ver, nem pensar.
— Então? — gritou o capitão. — Vêm dar-nos as boas-vindas ?
— Não.
Martin, atordoado, encostou-se à nave.
— Mas porquê?
— Isso não tem importância — disse Martin. — Não se importa de me dar um cigarro, capitão?
Os dedos tactearam o maço que lhe era estendido, pois olhava para a cidade cintilante, piscando os olhos. Acendeu o cigarro e pôs-se a fumar em silêncio.
— Diga qualquer coisa! — gritou o capitão. — Então o nosso foguete não lhes interessa?
— O quê? — exclamou Martin. — Ah, o foguete? — Mirou o cigarro. — Não, não os interessa. Parece-me que não chegámos no momento mais oportuno.
— No momento mais oportuno! Martin foi paciente.
— Oiça, capitão. Qualquer coisa de muito importante aconteceu ontem nesta cidade. De tal importância que a nossa chegada é uma coisa secundária, um pormenor. Preciso de me sentar.
Perdeu o equilíbrio e sentou-se pesadamente. O capitão deitou com violência, o cigarro fora.
— O que é que se passou?
Martin levantou a cabeça. O vento levava o fumo do seu cigarro.
— Capitão, ontem, nesta cidade apareceu um homem notável, inteligente, compassivo e infinitamente sábio.
O capitão gritou:
— Que é que temos a ver com isso?
— É difícil de explicar. Mas é um homem que eles esperavam desde há muito tempo, há talvez um milhão de anos. E ontem ele entrou na cidade. É por isso capitão, que a nossa chegada, hoje, não significa nada.
O capitão sentou-se bruscamente.
— Que é ele? Ashley? Será que chegou antes de nós para roubar o meu triunfo? Agarrou pálido e aterrado, no braço de Martin.
— Não é Ashley, capitão.
— Então é Burton! Já o sabia. Burton escapou-se à nossa frente e sabotou a minha chegada! Já não se pode ter confiança em ninguém.
— Também não é Burton, capitão — afirmou Martin calmamente.
O capitão continuava incrédulo:
— Só havia três naves, e nós viemos à frente. Quem foi que chegou antes de nós? Como é que se chama?
— Não tem nome. Não tem necessidade de um nome. Seria diferente em cada planeta.
O capitão fitou o imediato com um olhar duro e cínico.
— O que é que ele fez então de tão maravilhoso para ninguém vir mesmo dar uma vista de olhos ao nosso foguete ?
— Entre outras coisas — disse Martin pacientemente — curou os doentes e protegeu os pobres. Combateu a hipocrisia e a corrupção; e durante todo o dia esteve entre o povo a falar-lhe.
— E é isso o maravilhoso?
— Sim, capitão.
— Não percebo. — O capitão pôs-se em frente de Martin observando-lhe o rosto. — Você bebeu, hem? — Estava desconfiado. Recuou. — Não percebo nada.
Martin olhou para a cidade.
— Se não compreendeu capitão, não se lhe pode explicar. O capitão seguiu o seu olhar. A cidade estava calma, era bela; uma grande paz descera sobre ela. Hart avançou um passo, tirou o cigarro dos lábios. Olhou para Martin e depois para as cúpulas da cidade.
— Você disse... não quer dizer que... Esse homem de quem você me fala não pode ser...
Martin acenou a cabeça.
— É precisamente ele, capitão. Hart ficou imóvel. Ergueu-se.
— Não acredito — disse ele por fim.
Ao meio-dia, o capitão Hart acompanhado do imediato Martin e de um ajudante que levava alguns aparelhos eléctricos, entrou a passos rápidos na cidade. De vez em quando ria-se muito alto, punha as mãos nas ancas e abanava a cabeça.
O governador estava diante do capitão. Martin montou um tripé, onde colocou uma caixa e fez a ligação.
— O senhor é o governador? — O capitão apontava-o com o dedo.
— Sim — respondeu o governador.
O delicado aparelho, colocado entre os dois, era manobrado por Martin e pelo assistente. Fazia uma tradução instantânea de toda e qualquer língua. As palavras ecoavam no ar calmo da cidade.
— Acerca do acontecimento de ontem... — disse o capitão. — Ele verificou-se?
— Sim.
— Tem testemunhas?
— Sim.
— Podemos falar-lhes?
— Podem falar a quem quer que seja — disse o governador —. Todos nós somos testemunhas.
Num aparte o capitão murmurou para Martin: «Alucinações colectivas». E dirigindo-se ao governador:
— Como era esse homem, esse estrangeiro?
— Será difícil dizer-lho — disse o governador, sorrindo.
— Porquê ?
— As opiniões podem divergir ligeiramente.
— De qualquer maneira gostaria de conhecer a sua... Registe! — ordenou o capitão a Martin, por cima do ombro. O imediato ligou o registador.
— Pois bem — disse o governador da cidade —. Era um homem muito afável, muito bom, e de uma grande inteligência, extremamente culto.
— Sim, sim, já sabemos! — O capitão esboçou um gesto.
— Generalidades. Nada de preciso. Pode fazer-me uma descrição dele?
— Não me parece que isso tenha importância — respondeu o governador.
— É muito importante — respondeu gravemente o capitão.
— Preciso de uma descrição exacta dessa pessoa. Se não a obtiver de si outros a darão. — Voltando-se para Martin:
— Tenho a certeza que é Burton a pregar-nos uma das suas partidas.
Martin não olhava. Estava mudo e frio. O capitão fez estalar os dedos.
— Deu-se alguma coisa... uma cura?...
— Muitas — disse o governador.
— Posso observar um desses casos?
— Pode — disse o governador —. O do meu próprio filho.
— Voltou-se para um rapazinho, que avançou: — Tinha um braço atrofiado. Veja, agora.
O capitão teve um sorriso tolerante.
— Sim, sim. Sabe que isto nem sequer é uma prova indirecta? Não vi o braço atrofiado. Agora vejo um braço são. Não é uma demonstração. Como é que me prova que ontem este braço estava atrofiado?
— A minha palavra é a prova — disse o governador com simplicidade.
— Meu caro senhor! Não vai esperar que me satisfaça com um «diz-se». Não!...
— Lamento — murmurou o governador olhando para o capitão com uma espécie de curiosa piedade.
— Tem algum retrato do rapaz anterior a essa tal cura?
Ao fim de alguns instantes trouxeram um grande retrato pintado a óleo, representando o filho do governador com um braço atrofiado.
— Meu caro senhor! — O capitão afastou-o com um gesto.
— Um quadro pode ser pintado por alguém. Os quadros mentem. Eu quero uma fotografia do rapaz.
Não havia nenhuma. A fotografia era uma arte desconhecida naquela sociedade.
— Enfim! — suspirou o capitão com o rosto contraído por um rictos. — Permita-me que fale com outros cidadãos. Não chegamos a nenhuma conclusão. — Apontou com um dedo para uma mulher. — Você! — Ela hesitou. — Sim você! Venha aqui — ordenou o capitão. — Fale-me desse homem admirável que vocês viram ontem.
A mulher encarou o capitão com firmeza.
— Esteve entre nós e era belo e bondoso.
— De que cor eram os olhos?
— Da cor do sol, do mar, da cor de uma flor, das montanhas, da noite.
— Essa é boa! — o capitão ergueu os braços para o ar.
— Está a ouvir Martin? Absolutamente nada. Um charlatão qualquer murmurou-lhes idiotices açucaradas aos ouvidos e...
— Basta, por favor — exclamou Martin. O capitão deu um passo para trás. — O quê?
— Ouviu muito bem o que eu disse. Gosto desta gente e acredito no que ela diz. O senhor é livre para ter uma opinião, mas peço-lhe que a guarde para si.
— Você não tem o direito de me falar assim! — gritou o capitão.
— Já estou farto dos seus ares superiores — desabafou Martin. — Deixe esta gente tranquila. Têm uma coisa boa e que lhes agrada e o senhor vem profaná-la e torná-la ridícula! Pois bem, também eu lhes falei. Vim à cidade e olhando para os rostos vi que possuíam qualquer coisa que o senhor nunca terá: um pouco de fé, simplesmente; e com isso eles poderão remover montanhas. O senhor está furioso porque alguém lhe cortou as vazas, chegou antes de si, tornando-o insignificante!
— Dou-lhe cinco segundos para se calar! — vociferou o capitão. — Já percebo, você está extenuado, Martin. Uns meses de viagem no espaço, a nostalgia, a solidão. E agora que isto aconteceu, eu compreendo-o, Martin. Ignoro a sua insubordinação.
— Mas não ignoro eu a sua mesquinha tirania — replicou Martin. — Deserto. Fico aqui.
— Você não pode fazer isso!
— Experimente impedir-me! Foi isto o que eu vim procurar. Não o sabia, mas é precisamente isto. E aqui fico. Leve para outro sítio a baixeza das suas idéias e profane outros lugares com a sua dúvida e os seus... métodos! — lançou um rápido olhar à sua volta. — Esta gente teve uma experiência única e o senhor parece não dar conta de que é real e de que nós tivemos a sorte de chegar quase a tempo para a ela assistirmos.
Na Terra, os homens falaram deste homem durante vinte séculos depois dele ter passado pelo mundo da antigüidade.
Todos nós o desejaríamos ver e ouvir e nunca o conseguimos. E agora perdemos a oportunidade por algumas horas. O capitão Hart olhou para o rosto de Martin.
— Você está prestes a chorar como uma criança. Basta!
— Que me importa!
— Importo-me eu. Perante estes bárbaros devemos estar unidos. Você está extenuado. Eu já lhe disse, perdoo-lhe.
— Não preciso do seu perdão.
— Seu cretino! Você não está a ver que é um truque de Burton? Ele deitou-lhes poeira nos olhos, aldrabou-os, para desenvolver aqui uma exploração petrolífera e mineira sob uma camuflagem religiosa. Você é um imbecil, Martin! Um burro! Você já devia conhecer os Terrestres. Eles fazem seja o que for — mentir, enganar, roubar, ou matar, para conseguir os seus fins —. Tudo serve desde que seja eficaz. Um verdadeiro pragmático, esse Burton: você conhece-o muito bem!
O capitão escarneceu:
— Vá lá, Martin, desista, admita-o. Este é o género de truque mirambolante que Burton é capaz de engendrar para explorar estes cidadãos e os depenar no momento preciso.
Martin reflectiu.
— Não! — disse por fim. O capitão ergueu a mão.
— É Burton! Burton, inteirinho! Os seus métodos sujos e criminosos. Sou forçado a admirar esse velho dragão. Chegar desta maneira, a deitar fogo, rodeado de uma auréola, com ar meigo e palavras caridosas, um unguento aqui, um clarão acolá. Só podia ser Burton. Não há dúvida!
— Não! — a voz de Martin estava velada. Pôs as mãos nos olhos. — Não! Não acredito.
— Você não quer acreditar — prosseguiu o capitão —. Admita-o. Renda-se à evidência. É precisamente o que Burton faria. Basta de sonho, Martin. Acorde. O dia nasceu. O mundo é real, nós somos seres reais e não muito decentes. E Burton é o pior!
Martin voltou-se.
— Vá lá, Martin, vá lá — disse Hart dando-lhe mecânicamente uma palmada no ombro —. Eu compreendo. É um grande choque. Eu sei. É aborrecido, etc. Burton é um canalha. Não se importe. Deixe-me tratar do caso.
Martin afastou-se lentamente em direcção ao foguete.
Durante uns instantes o capitão Hart seguiu-o com os olhos. Depois, com um suspiro, voltou-se para a mulher que interrogara.
— Bem. Fale-me então desse homem. A senhora dizia?...
Mais tarde, os oficiais de bordo jantavam ao ar livre sobre pequenas mesas. O capitão repetiu as informações que recolhera em intenção de um Martin silencioso, que estava sentado diante do prato com os olhos vermelhos.
— Ouvi cerca de trinta pessoas que repetiam todas as mesmas futilidades — disse o capitão. — Tenho a certeza que isto é obra de Burton. Ele vai surgir por aí amanhã ou na próxima semana para consolidar os seus milagres e ultrapassar-nos velozmente com os seus contratos. Vou ver-me atrapalhado para lhe estragar o arranjinho.
Martin ergueu um olhar sombrio.
— Matá-lo-ei — murmurou ele.
— Vá lá, Martin, vá lá! Tenha calma.
— Matá-lo-ei, juro-o.
— Vamos pregar-lhe umas rasteiras. É preciso confessar que ele não é estúpido. É imoral mas é inteligente.
— É ignóbil!
— Você tem de prometer que não praticará nenhuma violência. — O capitão Hart consultou os seus apontamentos. — Segundo os meus apontamentos, houve trinta curas miraculosas, um cego que recuperou a vista, um leproso que ficou são. Não se pode negar que Burton não seja eficiente.
Uma campainha tocou. Um minuto depois, um homem surgia a correr.
— Capitão! Uma informação! A nave de Burton vai chegar e a de Ashley também!
— Está a ver! — Hart deu um soco na mesa. — Aí estão os chacais! Terão de retardar o banquete! Vou fazer-lhes frente e acredite que terei a parte de leão! — Martin tinha um aspecto doentio. Olhou para o capitão.
— Negócios são negócios, meu caro! — exclamou Hart. Todos levantaram a cabeça. Duas naves espaciais desciam do céu.
Aterraram, quase se espatifando.
— O que é que terão aqueles idiotas? — gritou o capitão Hart, dando um salto. Correram para as naves fumegantes. A porta do foguete de Burton abriu-se.
Um homem caiu-lhe nos braços.
— O que é que se passa? — gritou Hart.
O homem estava caído por terra. Debruçaram-se sobre ele. Estava gravemente queimado. Tinha o corpo coberto de ferimentos e de equimoses, a epiderrne empolada fumegava nalguns sítios. Tinha as pálpebras inchadas e a língua, entre os lábios descarnados, aparecia entumescida.
— O que é que aconteceu? — perguntou o capitão, ajoelhando e abanando o braço do homem.
— Capitão, capitão! — murmurou o agonizante. — Há quarenta e oito horas, no Sector 79 D. F. S., na órbita do Planeta I, deste sistema, a nossa nave e a do Adhley caíram no centro de uma tempestade cósmica.
Um líquido acinzentado saía-lhe das narinas. O sangue corria-lhe da boca.
— Toda a equipagem pereceu. Burton morreu. Ashley também, há cerca de uma hora. Sòmente três sobreviventes.
— Ouça! — gritou Hart debruçado sobre o homem, que sangrava —. Vocês não aterraram neste planeta antes disso ?
Silêncio.
— Responda!
O moribundo murmurou:
— Não. Tempestade. Burton morto há dois dias. Primeira aterragem desde há seis meses.
— Tem a certeza? — gritou Hart abanando violentamente o homem com os dedos crispados. — Tem a certeza?
— Sim — balbuciou o outro.
— Burton morreu há dois dias? Tem a certeza?
— Sim... Sim... — ciciou o homem. A cabeça descaíu. Estava morto.
O capitão ficou ajoelhado junto do cadáver. Tinha o rosto agitado por tremuras, os músculos descontrolados. Os membros da equipagem, atrás dele, olhavam. Martin aguardava. O capitão pediu que o ajudassem a levantar-se Ficaram em pé com os olhos fixos na cidade.
— Isso quer dizer...
— Isso quer dizer? — interrogou Martin.
— Fomos os primeiros — murmurou o capitão. — E aquele homem...
— E aquele homem, capitão?... — interrogou Martin. Tiques nervosos agitavam o rosto do capitão. Tinha um ar verdadeiramente envelhecido, os cabelos grisalhos, os olhos embaciados. Deu um passo sobre a erva seca.
— Venha Martin, venha. Segure-me. Ajude-me. Tenho medo de cair. Vamos depressa. Não podemos perder tempo...
Partiram, cambaleando, para a cidade, por entre a erva alta e seca, por entre o vento.
Decorreram muitas horas. Estavam sentados na grande sala do palácio do governador. Um milhar de pessoas tinha vindo falar e partira de novo. O capitão estava afundado numa cadeira, espantado, ouvindo, ouvindo intensamente. Havia tanta luz nos rostos dos que vinham testemunhar e falar que já não os conseguiu fitar. E durante todo esse tempo agitava e torcia as mãos.
Quando tudo acabou, o capitão Hart, dirigindo-se ao governador, com um olhar estranho:
— Mas sabe para onde é que ele foi?
— Ele não o disse — respondeu o governador.
— Para algum dos mundos vizinhos?
— Não sei.
— O senhor deve saber!
— Vê-o? — perguntou o governador apontando para a multidão.
O capitão olhou, -Não!
— Então, provavelmente, é porque partiu — disse o governador.
— Provavelmente, provavelmente! — gritou o capitão; a voz era fraca. — Cometi um erro terrível. Quero vê-lo imediatamente. Acabo de perceber que isto é um extraordinário acontecimento na história. Participar numa coisa como esta! Só há uma probabilidade em mil de chegar a um determinado planeta, entre milhões de outros, no dia seguinte ao da chegada dele! O senhor deve saber para onde ele foi!
— Cada um encontra-o à sua maneira — respondeu com doçura o governador.
— Escondeu-o! — a expressão do capitão alterou-se progressivamente. A dureza voltava. Pôs-se em pé.
— Não — exclamou o governador.
— Então sabe onde ele está?
A mão do capitão apalpava o coldre pendurado no cinto.
— Não lhe posso dizer exactamente onde ele esteja — respondeu o governador.
— Aconselho-o a que fale. O capitão puxou por uma pequena arma de aço.
— Não há nenhuma possibilidade de lhe dizer seja o que for.
— Mente!
Os olhos do governador estavam cheios de piedade quando os fixou no rosto de Hart.
— O senhor está muito fatigado — disse ele —. Fez uma longa viagem. Pertence a um povo fatigado que durante largo tempo não teve fé. E agora deseja de tal forma crer que se tornou um obstáculo para si próprio. Tornará as coisas ainda mais difíceis se matar. Dessa maneira nunca mais o encontrará.
— Para onde foi? Ele disse-lhe, o senhor sabe. Vamos, diga! O capitão apontou a arma.
O governador abanou a cabeça.
— Diga! Diga!
Fez fogo uma vez, duas vezes. O governador caiu, ferido num braço.
Martin interpôs-se.
— Capitão!
Voltou a arma para Martin.
— Não se meta nisto.
Segurando o braço ferido, o governador, por terra, levantou a cabeça.
— Largue a arma. Prejudica-se a si próprio. Nunca quis crer e agora, que pensa em fazê-lo, prejudica-se a si próprio por causa disso.
— Não preciso de si — gritou Hart, sobranceiramente. Perdi-o por um dia, mas irei para um outro planeta. E daí para outro e assim por diante. No próximo planeta perdê-lo-ei, por um meio-dia, por um quarto de dia talvez, num outro; no seguinte por algumas horas; no seguinte por meia hora; depois por um minuto. E um dia chegarei a tempo!
Gritava, debruçado sobre o homem estendido. Arfava de cansaço.
— Venha, Martin! — A arma pendia na extremidade do braço.
— Não — murmurou Martin. — Eu fico aqui.
— Você é um imbecil. Fique se quiser. Mas eu prossigo, com os outros, até onde puder ir.
O governador olhou para Martin.
— Não se importe comigo. Alguém tratará dos meus ferimentos.
— Voltarei — disse Martin —. Só vou até ao foguete. Atravessaram, nervosamente a cidade. Era bem visível o esforço do capitão para caminhar de cabeça erguida. Quando chegaram ao foguete, deu uma palmada no flanco metálico, com a mão trémula. Meteu a arma no coldre e olhou para Martin.
— Então, Martin? Martin fitou-o.
— Então, capitão?
Os olhos deste erravam pelo céu.
— Tem a certeza que não quer vir com... comigo, hem?
— Não, capitão.
— Será uma grande aventura, meu Deus! Sei que o encontrarei.
— Presentemente está convencido disso, não é verdade? — perguntou Martin.
O rosto do capitão tremia, os olhos fecharam-se-lhe.
— Sim.
— Há uma coisa que gostaria de saber... — O que é?
— Quando o encontrar, capitão — se o encontrar —, o que lhe vai pedir?
— Bem... — O capitão hesitou e abriu os olhos. Os dedos crisparam-se e depois abriram-se. Num sorriso estranho: — Bem, pedir-lhe-ei um pouco... de paz e calma. — Apoiou-se no foguete. — Há muito tempo que não descanso.
— Já tentou fazê-lo, capitão?
— Não compreendo — disse Hart.
— Não faz mal. Até à vista, capitão. — Até à vista, imediato Martin.
A equipagem estava à entrada do foguete. Somente três partiam com Hart. Sete outros declararam que desejavam ficar com Martin.
O capitão Hart lançou-lhes um olhar, murmurando:
— Pobres loucos!
O último saiu, rindo-se secamente. A porta foi fechada. A nave elevou-se numa pilha de fogo. Martin viu-a afastar-se, desaparecer.
Junto ao prado, o governador chamava-o, sustentado por vários homens.
— Partiu — disse Martin, aproximando-se.
— Sim, o pobre homem partiu — confirmou o governador. — E prosseguirá a sua busca de planeta em planeta, e terá sempre uma hora, meia hora, dez minutos ou um minuto, de atraso. E, finalmente, só terá alguns segundos. E quando tiver visitado trezentos mundos, quando tiver setenta ou oitenta anos, só terá de atraso umas fracções de segundo. E continuará a sua viagem, à procura da própria coisa que aqui deixou, aqui, neste planeta, nesta cidade...
Martin olhou fixamente para o governador.
Este estendeu-lhe a mão.
— Alguma vez duvidou?
Fez um sinal para os outros e voltou-se.
— Vamos! Não o façamos esperar.
A chuva continuava. Era uma chuva grossa, perpétua, quente e vaporosa e também uma catarata, cordas, chicotadas no rosto; uma chuva que apagava todas as outras chuvas e a sua recordação. Caía copiosamente, às toneladas, inundava a selva, quebrava as árvores, afogava a erva, apagava o Sol. Contraía as mãos dos homens reduzindo-as às dimensões de uma mão encarquilhada de macaco. Sólida e viscosa, não se detinha.
— Que distância ainda falta, meu tenente?
— Não sei. Uma milha, duas milhas, quinhentas...
— Não pode calcular?
— De que maneira?
— Não gosto desta chuva. Se ao menos soubéssemos a que distância estamos da Cúpula Solar, sentir-me-ia melhor.
— Mais uma ou duas horas...
— Parece-lhe que sim, meu tenente?
— De certeza.
— Ou diz isso para animar?...
— Minto para lhe dar coragem. Apare lá isso!
Os dois homens estavam sentados à chuva. Atrás deles havia outros dois, molhados, fatigados, abatidos, como se fossem pedaços de argila.
O tenente levantou a cabeça. O rosto fora outrora moreno e, agora, a chuva tornara-o pálido! Descorara os olhos, que se tornaram brancos, bem como os dentes e os cabelos. Era todo branco. Até o uniforme perdia a cor, tendo umas pequenas manchas verdes, de bolor.
— Há quantos milhões de anos não chovia em Vênus?
— Está doido? — exclamou um dos outros. — A chuva nunca pára em Vênus. Chove continuamente. Já passei aqui dez anos e não houve um minuto, nem sequer um segundo, que não chovesse torrencialmente.
— É como viver dentro de água — disse o tenente levantando-se e reajustando o talabarte. — Bom, é melhor pormo-nos a caminho.
— Vamos já encontrar a Cúpula.
— A não ser que a não encontremos — insinuou o cínico. — Ainda temos mais uma hora.
— O meu tenente pretende agora enganar-me?
— Não, a mim próprio. Há ocasiões em que precisamos de mentir a nós próprios. Mas já não aguentarei muito tempo.
Embrenharam-se pela vereda olhando, de vez em quando, a bússola. Não havia nenhum ponto de referência a não ser a bússola. Nada havia, a não ser o céu escuro, de onde caía a chuva, e a vereda através da selva; e, algures muito para trás, uma nave que os transportara e que se esmagara contra o solo. Uma nave onde jaziam, sob a chuva, mortos, dois dos seus companheiros.
Caminhavam em fila indiana, sem falar. Chegaram às margens de um rio, largo e escuro, que corria para o Mar Único. A superfície era agitada por milhares de bátegas de chuva.
— Vamos lá com isso, Simmons!
Simmons tirou um embrulho que trazia às costas, o qual, sob a acção de uma substância química, se encheu, transformando-se numa canoa. O tenente ordenou o corte de alguns ramos de arbustos e a confecção rápida de pás de remar. Abandonaram a margem remando enèrgicamente, sob a chuva.
O tenente sentia a água fria no rosto, no pescoço, ao longo dos braços em movimento. O frio começava a penetrar-lhe nos pulmões. Sentia a chuva nas orelhas, nos olhos, nas pernas.
— A noite passada não dormi — disse ele.
— Quem é que dormiu? Quando? Quantas noites sem sono? Trinta noites, trinta dias! Quem é que pode dormir com esta chuva a tamborilar no crânio?... Daria tudo por um simples chapéu. Não me importaria, desde que ela não me batesse mais na cabeça. Tenho dores.
— Lamento ter vindo à China — exclamou um outro.
— E a primeira vez que ouço chamar China a Vênus.
— Mas é a China. A terapêutica chinesa pela água. Não te recordas? Amarram-te a uma parede e de meia em meia hora deixam-te cair uma gota de água na cabeça. Enlouqueces à espera da próxima gota. Pois bem: isto é a China, mas em grande escala. Não fomos feitos para a água. Não podemos dormir, não podemos respirar suficientemente e ficamos doidos à força de sermos ensopados em água. Se pudéssemos prever o acidente teríamos trazido impermeáveis e suestes. É, sobretudo, a chuva na cabeça que nos prostra. É tão pesada que dir-se-ia chumbo de caça de grosso calibre. Não sei até quando poderei aguentar.
— Meu amigo, eu cá sou pela Cúpula Solar! O sujeito que a construiu fez uma grande invenção.
Atravessaram o rio e pensavam na Cúpula que estava algures à sua frente, radiosa, entre a selva alagada. Um edifício, amarelo, redondo e tão brilhante como o Sol. Uma construção de quatro metros e meio de altura por mais de trinta de diâmetro, com calor, sossego, alimentos quentes, um abrigo contra a chuva. E no centro da Cúpula Solar havia, evidentemente, um sol. Um globo de fogo amarelo, suspenso no cimo da construção; podia-se vê-lo de qualquer lugar, fumando ou lendo um livro, bebendo chocolate quente com creme. E o sol amarelo lá estaria, com as dimensões do Sol terrestre, quente e contínuo; o mundo fantástico de Vénus seria esquecido durante todo o tempo que lá estivessem.
O tenente voltou a cabeça para os três homens que remavam cerrando os dentes. Estavam brancos como cogumelos — a mesma cor que a deles. Vénus descoloria fosse o que fosse, em poucos meses. Até a selva era um produto de pesadelo, sem verde, devido à chuva e ao cinzento permanente do céu. A selva branca, com as suas folhas cor de queijo, a terra modelada com pasta branca, os troncos e as árvores como enormes cogumelos venenosos, tudo em negro e branco.
— Cá estamos!
Saltaram para a outra margem, atropelando-se. A canoa foi esvaziada e dobrada. Tentaram acender cigarros. Ficaram durante cinco minutos, à chuva, protegendo a chama dos isqueiros com as mãos, antes que conseguissem tirar algumas fumaças de um cigarro que, imediatamente, amolecia e se desfazia, sob as bátegas de água.
Prosseguiram na marcha.
— Um momento! — gritou o tenente. — Creio avistar qualquer coisa lá à frente.
— A Cúpula?
— Não tenho a certeza. A chuva é muito cerrada. Simmons pôs-se a correr. — A Cúpula Solar!
— Simmons, pare! — A Cúpula!
Simmons desaparecia entre as torrentes de água que caíam. Os outros foram na sua peugada.
Alcançaram-no numa pequena clareira e detiveram-se a observá-lo, para ver para onde ele olhava.
A nave!
Ali estava ela, onde a tinham deixado. Tinham voltado ao ponto de partida. Entre os destroços do aparelho, uma espécie de algas verdes saíam da boca dos homens mortos. Enquanto olhavam, uma alga floriu, a chuva fez cair as pétalas e a planta morreu.
— Como foi isto?
— Deve haver uma tempestade eléctrica nas proximidades, o que alterou a bússola. Isso explica tudo.
— Deve ser isso.
— Que vamos fazer agora?
— Partir de novo.
— Meu Deus. Já não estamos próximo de nenhum sítio!
— Calma, Simmons!
— Calma! Calma! Esta chuva deixa-me louco!
— Se formos prudentes, ainda teremos comida para dois dias.
A chuva dançava-lhes na pele, nos uniformes; escorria-lhes copiosamente do nariz, das orelhas, dos dedos e dos joelhos. Tinham um ar de fontes petrificadas e murmurantes, no meio da selva.
E nesse momento ouviram ao longe, um rugido.
O monstro emergiu da chuva.
O monstro tinha mil pés eléctricos, azuis. Caminhava, rápido e medonho. A cada avanço, uma árvore era abatida, fulminada.
Grandes baforadas de ozone encheram o ar húmido, erguiam-se nuvens de fumo, logo submergidas pela chuva. O monstro tinha meia milha de largura e uma milha de altura. Tacteava o solo como um gigante cego. Os pés logo desapareceram. No instante seguinte, mil raios saíram do seu ventre, brancos, azuis, mordendo a selva.
— A tempestade eléctrica! A que alterou a bússola!
— Dirige-se para aqui!
— Deitem-se no chão! — gritou o tenente.
— Fujam! — gritou Simmons.
— Não seja parvo, deite-se! Ela atinge os pontos elevados. Talvez escapemos. Deitem-se no chão a quinze metros do foguete. Talvez ele sirva de pára-raios e nos salvemos. Por terra!
Os homens deitaram-se.
— Já vem? — perguntavam de segundo em segundo.
— Já.
— Aproxima-se?
— Está a pouco mais de cem metros.
— Aí está!
O monstro veio e envolveu-os. Descarregou dez raios contra o foguete, que brilhou e ecoou como um «gong». O monstro descarregou-lhe mais vinte raios. Os seus tentáculos dançavam uma pantomima grotesca, tacteando a selva e o chão lodoso.
— Não! Não!
Um dos homens ergueu-se.
— Por terra, idiota! — gritou o tenente.
— Não.
A tempestade atingiu novamente o foguete. O tenente ergueu a cabeça e viu os deslumbrantes coriscos, as árvores abaterem e encarquilhar-se. Viu uma monstruosa nuvem rodopiar como um disco negro por cima dele e lançar cem pilões eléctricos.
O homem que se levantara corria como numa sala de altos pilares.
Corria em ziguezague para os evitar e, por fim, umas dezenas de colunas abateram-se sobre ele. Ouviu-se o ruído semelhante a uma mosca queimada por um filamento eléctrico. O tenente recordava-se do cheiro desde a sua infância passada numa quinta. Sentiu-se o arder de um homem carbonizado.
O tenente escondeu a cabeça.
— Não olhem — gritou ele.
Tinha receio de também começar a correr de um momento para o outro.
A tempestade descarregou por cima deles uma nova série de relâmpagos e depois afastou-se.
Só havia de novo a chuva que, ràpidamente, lavou o ar do cheiro a carne queimada. Ao cabo de algum tempo os três homens que sobreviveram sentaram-se, aguardando que as palpitações dos seus corações acalmassem.
Dirigiram-se para o corpo pensando que talvez ainda pudessem salvar uma vida. É o gesto natural dos homens que só aceitam a morte quando a tocam, quando a consideram e resolvem enterrar o cadáver ou deixar que a terra o trague.
O homem estava como se fosse ferro retorcido ou couro queimado. Uma múmia de cera retirada de um forno crematório, reduzida a um esqueleto carbonizado. Somente os dentes eram brancos, brilhando como um bracelete bizarro num pulso fechado e enegrecido.
— Ele não devia ter corrido — disseram todos quase ao mesmo tempo.
No próprio momento em que o olhavam, começou a desaparecer: a vegetação crescia nele, com ramos, caules e até flores — flores para o morto.
Ao longe, a tempestade desaparecia sobre as suas colunas azuis.
Atravessaram um ribeiro, um rio, uma torrente c uma dúzia de outros cursos de água. Diante dos seus olhos apareciam ribeiros, rápidos, depois novos rios, ribeiros, enquanto que os precedentes, mudavam o curso; ribeiros cor de mercúrio, cor de prata ou de leite.
Chegaram ao mar.
O Mar Único! Só havia um continente em Vénus. Esta terra tinha três mil milhas de comprimento por mil de largura e à volta desta ilha estendia-se o Mar Único que cobria todo o pluvioso planeta.
— Por ali! — o tenente indicou o sul —. Tenho a certeza que há duas Cúpulas Solares nesta direcção.
— Enquanto aqui estiveram, porque é que não construíram mais uma centena?
— Actualmente há cento e vinte, não é verdade?
— Cento e vinte e seis, desde o mês passado. Já tentaram, há cerca de um ano, que o Congresso emitisse uma lei para assegurar a construção de vinte novas cúpulas. Mas vocês já conhecem a cantiga. Não se importam nada que alguns homens apodreçam à chuva.
Partiram em direcção ao sul.
O tenente, Simmons e Pickard caminhavam sob a chuva, que caía pesada e docemente. A chuva que se derramava e que tamborilava, não interrompia nem por um minuto a sua queda sobre a terra, o mar, sobre os homens que caminhavam.
Simmons foi o primeiro a vê-la.
— Ei-la!
— O quê?
— A Cúpula Solar!
O tenente limpou a água dos olhos e ergueu a mão para se proteger das bátegas da chuva.
Ao longe via-se um clarão amarelo, na orla da selva, junto ao mar. Era com certeza a Cúpula Solar.
Os homens riam.
— Tinha razão, meu tenente! — Agora, coragem!
— Só de a ver já tenho forças! Vamos! O último a chegar é um burro!
Simmons partiu a correr. Os outros seguiram-no mecanicamente, sem fôlego, esgotados, mas com compostura.
— Uma grande chávena de café para mim — arfou Simmons, radiante. — E uma fornada de pãezinhos com canela! Ah, uma pessoa deitar-se e deixar que o Sol a asse! O parceiro que inventou isto devia receber uma medalha!
Correram mais ràpidamente. O clarão amarelo tornou-se mais vivo.
— Calculo que muitos já ficaram doidos antes de descobrirem isto. É que dá cabo do juízo. — Simmons arfava as palavras à cadência da corrida. — A chuva! A chuva! Há alguns anos. Encontrei um dos meus companheiros. Na selva. Errando ao acaso. À chuva. — Repetia sem cessar: — Não sei o que fazer para sair da chuva... Não sei... — Sem parar. — Assim. Pobre rapaz.
— Poupe o fôlego! Corriam.
Riam-se. Atingiram a porta da Cúpula, rindo.
Simmons abriu a porta com um empurrão.
— Êh, gente! — gritou ele. — Tragam café e pãezinhos!
Não houve resposta.
Entraram. A Cúpula Solar estava vazia e sombria. Não havia o sol artificial a flutuar no gás sob pressão, no centro do tecto azul. Não havia comida. Fazia frio com» numa cripta. E através de buracos recentemente feitos no tecto a água corria, a chuva penetrava, embebendo os espessos tapetes, escorrendo pelas mesas de vidro. A selva irrompia como espuma por toda a parte, pelas estantes dos livros, nos divãs. A chuva passava pelos buracos e caía sobre o rosto dos três homens.
Pickard começou a rir baixinho.
— Cale-se, Pickard!
— Olhem o que há aqui para nós... nada para comer, nem sol, nem nada! Foram os Venusianos, está-se a ver!
Simmons abanou a cabeça que pingava. A água que escorria dos seus cabelos prateados, das sobrancelhas brancas.
— De vez em quando os Venusianos saem do mar e atacam uma Cúpula Solar. Sabem que destruindo as cúpulas podem destruir-nos.
— As cúpulas não são defendidas?
— Decerto. — Simmons dirigiu-se para um local menos molhado que os outros. — Mas desde há cinco anos que os Venusianos nada tinham tentado. A defesa foi descurada. Devem tê-los apanhado de surpresa.
— Onde estão os corpos?
— Certamente os Venusianos levaram-nos com eles para o mar. Ouvi dizer que têm uma técnica engraçada para afogar as pessoas. A coisa demora cerca de oito horas.
— Já vi que aqui não há comida — disse Pickard, rindo-se.
O tenente franziu o sobrolho e fez um gesto a Simmons indicando o outro. Simmons abanou a cabeça e entrou numa grande divisão contígua à sala central. Na cozinha estavam espalhados pães que se desfaziam e pedaços de carne cobertos com uma película esverdeada. A chuva caía do tecto, por uma imensidade de buracos.
— Isto está lindo! — O tenente olhou para os buracos. — Creio que não os poderemos tapar e instalarmo-nos confortavelmente.
— Sem nada que comer, meu tenente? — Simmons cuspiu para o lado.
— O aparelho solar está partido. O melhor será procurarmos outra cúpula. A que distância está a mais próxima?
— Não muito longe. Se bem me recordo, construíram duas para estes lados e bastante perto uma da outra. Talvez que uma coluna de socorro da outra cúpula pudesse...
— Sem dúvida que já aqui veio há alguns dias e voltou a partir. Dentro de seis meses enviarão uma equipa para reparar a instalação, mas só depois do Congresso autorizar a verba. Não me parece que seja de esperar.
— De acordo. Vamos comer o que resta das nossas rações e iremos à procura da outra cúpula.
Pickard exclamou:
— Se ao menos a chuva não me batesse na cabeça durante alguns minutos... Se ao menos eu me pudesse lembrar o que é não estar chateado... — Apertou as mãos na cabeça. — Lembro-me que, quando andava na escola, um estafermo que estava atrás de mim mordiscava-me de cinco em cinco minutos. E fê-lo durante semanas e meses. Tinha os braços permanentemente cobertos de nódoas negras. Julguei que ia ficar doido. Um dia perdi a cabeça por ser torturado dessa forma e voltando-me para trás quase que matei aquele animal com um esquadro de desenho. Estive prestes a cortar-lhe a cabeça. E quase lhe furei os olhos antes que me levassem para fora da aula. E não parava de gritar: «Porque é que ele não me deixa em paz? Porque é que ele não me deixa em paz?» — Apertava a cabeça com as mãos trêmulas e contraídas. — Mas que fazer agora? A quem é que eu posso bater na cara? A quem é que hei-de gritar para estar quieto? Este estafermo desta chuva, sem parar, como os beliscões, é a única coisa que ouvimos, tudo o que sentimos!
— Chegaremos à outra cúpula lá para as quatro da tarde. — Cúpula? Olhem para esta! E se todas as cúpulas de
Vénus foram arrasadas ? E se em todos os tectos houver buracos que deixem passar a chuva?
— É necessário correr o risco.
— Já não posso correr mais riscos. Tudo o que desejo é um tecto e paz. Quero que me deixem tranqüilo.
— São somente oito horas de marcha, se aguentar. — Não se preocupe que aguentarei... — E Pickard riu-se, sem os fitar.
— Vamos comer — disse Simmons com os olhos fixos em Pickard.
Puseram-se em marcha, ao longo da costa, sempre em direcção ao Sul. Ao fim de quatro horas tiveram de cortar para o interior a fim de contornar um rio de uma milha de largura e tão rápido que não era navegável. Percorreram seis milhas até um local onde o rio nascia do solo como de uma ferida, borbulhando. Dirigiram-se de novo para o mar.
— Tenho de dormir — exclamou Pickard a certa altura, vacilando. — Há quatro semanas que não durmo. Já tentei mas não consegui. Vou dormir aqui!
O céu tornara-se mais escuro. A noite venusiana tombava. Era tão negra que seria perigoso andar. Simmons e o tenente deitaram-se também.
— Bem — disse o tenente — vamos lá ver se conseguimos. Já o tentámos muitas vezes, mas nunca se sabe... O sono é uma coisa que não se obtém neste clima.
Estenderam-se ao comprido tapando a cabeça para que a água não lhes penetrasse na boca. Fecharam os olhos.
O tenente estremeceu. Não dormia.
Havia coisas a agitarem-se sobre a sua pele. Caíam gotas que juntando-se a outras formavam fios de água que lhe corriam pelo corpo. Entretanto, as plântulas da selva ganhavam raízes no seu uniforme. Sentia a hera agarrar-se a ele e cobri-lo como uma segunda vestimenta. Sentia as pequenas flores abrirem-se e, depois, murcharem. Isto enquanto que a chuva continuava a tamborilar-lhe no corpo e na cabeça. Na noite luminosa, pois a vegetação fosforecia, podia distinguir agora os contornos dos dois outros homens, quais troncos de árvores abatidos cobertos de uma camada de relva e flores. A chuva batia-lhe no rosto. Cobriu-o com as mãos. A chuva batia-lhe no pescoço. Voltou-se sobre o ventre, na lama, no meio daquela fibrosa vegetação. A chuva batia-lhe nas costas e nas pernas.
Levantou-se bruscamente e começou a sacudir-se e a enxugar-se. Mil mãos apalpavam-no e ele não desejava que lhe tocassem. Não podia suportar estes contactos. Tropeçou e embateu num outro corpo. Reconheceu Simmons de pé sob a chuva cuspindo cogumelos, tossindo, sufocado. Depois Pickard levantou-se, gritou e começou a correr.
— Calma, Pickard, espere um minuto!
— Basta! Basta! — gritava o outro.
Fez fogo seis vezes contra o céu negro. O clarão de cada tiro deixou-lhes ver a acumulação de gotas, suspensas num universo ambriado e imóvel como que surpreendidas pela explosão; milhares de gotinhas, de lágrimas, de gemas, num painel branco. Extinto o clarão, as gotas, que se haviam detido, como que para ser fotografadas, caíram e morderam-nos, qual nuvem, de insectos gélidos e vorazes.
— Basta! Basta! — Pickard!
Mas Pickard, em pé, não se mexia. Quando o tenente voltou a luz da sua lanterna para o rosto molhado de Pickard, viu uns olhos dilatados, uma boca aberta, voltada para cima, de tal forma que a água salpicava a língua, cobria os olhos, espumava nas narinas.
— Pickard!
O outro não respondeu. Continuava na mesma posição, com bolhas de chuva entre os cabelos embranquecidos, com fios de água correndo pelos braços e pelo pescoço.
— Pickard, vamos partir! Siga-nos!
A chuva corria pelas orelhas de Pickard. — Está a ouvir-me? Pickard!
— Deixe-o! — disse Simmons.
— Não podemos partir sem ele.
— E como é que o levamos? — Simmons cuspiu. — Já não pode ser útil, nem a nós nem a ele próprio. Sabe o que ele vai fazer? Vai ficar assim e deixar-se afogar.
— O quê?
— É preciso que o saiba agora. Não conhece o método? Ele ficará ali, com a cabeça levantada e a água entrar-lhe-á pelas narinas e pela boca. Vai respirar a água.
— Não!
— Foi assim que encontraram o general Mendt. Sentado num rochedo, a cabeça para trás, aspirando a chuva. Tinha os pulmões cheios de água.
O tenente voltou de novo a luz para o rosto de Pickard. As narinas emitiam uma espécie de borbulhar aquoso.
— Pickard! — O tenente esbofeteou-o.
— Já nem sente — exclamou Simmons —. Alguns dias sob esta chuva é quanto basta para deixar de se sentir o rosto, as pernas ou as mãos.
O tenente olhou as dele com horror. Já não as sentia.
— Não podemos abandonar Pickard.
— Vai ver qual é a única coisa que podemos fazer.
Simmons disparou.
Pickard caiu no chão molhado.
— Não se mova, tenente! — exclamou Simmons. — Tenho a arma pronta. De pé ou sentado ele ficaria aqui até se afogar. Foi mais rápido assim.
O tenente olhou para o corpo.
— Mas você matou-o!
— Sim, porque ele, tornando-se para nós um empecilho, matar-nos-ia. Já estava louco.
Ao fim de alguns instantes o tenente murmurou:
— Está bem.
Retomaram a marcha sob a chuva.
Estava escuro e o facho das lâmpadas só penetrava alguns metros na água que caía. Uma meia hora depois fizeram alto, esfomeados, esperando pela alvorada; quando ela se ergueu, era cinzenta e a chuva continuava. Retomaram a marcha.
— Enganámo-nos — disse Simmons.
— Não. Ainda falta uma hora...
— Fale mais alto. Não o ouço! — Simmons deteve-se e sorriu. — Meu Deus! — Apalpou o rosto. — As minhas orelhas! Já não as tenho! A chuva entorpeceu-me, finalmente, até aos ossos!
— Não ouve nada? — perguntou o tenente.
— Hem ? — Os olhos de Simmons estavam desmesuradamente abertos.
— Nada. Partamos.
— Parece-me que vou esperar aqui. Vá-se embora.
— Não pode fazer isso!
— Não ouço nada. Vamos, continue o caminho. Estou fatigado. Não me parece que a cúpula esteja nesta direcção. E se está, provavelmente tem buracos no tecto, como a outra. Parece-me que me vou sentar aqui.
— Em pé!
— Até depois, meu tenente.
— Não pode desistir, agora.
— Tenho aqui uma arma que me diz para ficar. Estou-me completamente nas tintas. Ainda não endoideci, mas não tarda que isso aconteça. Assim, não posso partir. Quando deixar de o ver, vou-me servir desta arma.
— Simmons!
— Pronunciou o meu nome. Li nos seus lábios.
— Simmons!
— Ouça, isto é uma questão de tempo. Ou bem que morro já ou daqui a algumas horas. Espere até chegar à próxima cúpula e ver a chuva que cai do tecto... Será agradável, não?
O tenente hesitou um instante, depois afastou-se sob a chuva. Voltou-se e chamou uma vez, mas Simmons não se moveu. Segurava a arma na mão e esperava somente que o tenente desaparecesse. Sacudiu a cabeça e fez um gesto como que indicando que prosseguisse.
O tenente nem sequer ouviu a detonação.
Pôs-se a mastigar flores enquanto caminhava. Não eram venenosas, mas também não alimentavam. Um ou dois minutos depois vomitava-as.
Tentou fazer um chapéu com folhas. Já o tinha tentado. A chuva dissolvia as folhas na cabeça. Desde que eram colhidas apodreciam e desfaziam-se nos dedos, numa pasta acinzentada.
Mais cinco minutos — dizia para si —. Mais cinco minutos e depois continuo a caminhar penetrando no mar. Não fomos feitos para isto. Nenhum terrestre foi ou será capaz de o suportar. Os teus nervos, os teus nervos!
Continuou a avançar tropeçando na lama e no amálgama vegetal. Chegou a uma pequena colina.
Viu ao longe uma ténue mancha amarela entre a paisagem esverdeada.
A outra cúpula!
Entre as árvores, a grande distância, uma construção arredondada. Ficou durante alguns instantes a olhá-la, cambaleando.
Começou a correr e, depois, foi abrandando. Tinha medo. E se fosse a mesma? A cúpula extinta, sem sol?
Deixou-se cair. Fica aqui! — pensou. Não é a outra. Fica aqui! Não vale a pena! Conforma-te!
Apesar disso, conseguiu erguer-se e atravessar vários cursos de água. A mancha amarela tornou-se brilhante e ele correu de novo. Os pés partiam espelhos, os braços faziam voar milhares de pedras preciosas. j
Deteve-se diante da porta amarela, sobre a qual estava escrito «Cúpula Solar». Levantou a mão entumecida para a tocar. Depois voltou a maçaneta e quase que caiu na sala.
Olhou. Atrás dele, a chuva batia contra a porta. Diante dele, numa mesa baixa, havia um recipiente prateado onde fumegava chocolate e uma toalha repleta de doces. Ao lado, fartas sanduíches de frango, tomates frescos e vegetais. E precisamente à sua frente estava uma felpuda toalha de banho e um recipiente para colocar as roupas molhadas; e do lado direito uma cabina onde raios de calor o podiam secar instantâneamente. E, numa cadeira, um uniforme preparado para o recém-chegado, ele ou qualquer outro. Mais longe, havia café quente em recipientes de cobre, um «pick-up» que tocava uma melodia e livros forrados de couro vermelho ou castanho. Próximo dos livros, um canapé — um canapé fundo e fofo no qual se poderia estender, seco, sem roupas, para se impregnar dos raios do pequeno sol que dominava a sala.
Tapou os olhos com as mãos. Vira alguns homens dirigirem-se para ele, mas nada lhes disse. Esperava, abriu os olhos e olhou. A água de que a sua roupa estava embebida, formava uma poça a seus pés; sentia secar os cabelos, o rosto, o peito, os braços e as pernas.
Fitou o Sol.
Estava suspenso no centro da abóbada um sol amarelo e quente. Não fazia ruído e a divisão estava silenciosa. A porta, fechada. A chuva, uma recordação do seu corpo ofegante. O sol estava lá em cima, no céu azul da sala, quente, escaldante, amarelo, reconfortante.
O tenente começou a caminhar arrancando as roupas.
As lucíolas eléctricas voltejaram em torno da cabeça de minha mãe, iluminando-lhe o caminho. Parou à entrada do seu quarto de dormir, quando eu passava no vestíbulo silencioso.
— Vais ajudar-me a mantê-lo em casa, desta vez?
— Tentarei.
— Peço-to! — As lucíolas iluminavam-lhe o rosto pálido e cansado. — Desta vez ele não se deve ir embora.
— Está bem— disse eu. — Mas isso não servirá de nada.
Saiu e as luzinhas, nos seus circuitos eléctricos, seguiram-na como uma constelação errante que lhe permitia caminhar na obscuridade. Ouvi-a murmurar.
— Devemos, apesar de tudo, experimentar. Outras luzes seguiram-me para o quarto.
Quando o peso do meu corpo sobre a cama cortou o circuito, as luzes desapareceram. Era meia-noite e, tanto eu como minha mãe. esperávamos.
A cama começou a cantar e a embalar-me. Carreguei um botão e aquilo parou. Não queria dormir, naquela noite que, afinal, não era diferente de milhares de outras noites.
Acordei e senti o ar fresco tornar-se quente, senti o fogo trazido no vento e vi as paredes iluminarem-se de súbito com uma cor viva e intensa. Sabia que o foguete estava em cima da casa. O «seu» foguete. Fazia tremer as árvores. Continuei deitado, com os olhos abertos, ofegando. A voz de minha mãe chegou-me através do rádio interior.
— Sentiste ?
— É ele — respondi.
Era a astronave de meu pai que passava sobre a cidade, uma cidadezinha do interior onde os foguetes interplanetários nunca passavam. Ficámos acordados uma hora ou duas, entregues aos nossos pensamentos. «Agora o papá aterrou em Springfield, desceu na pista e assinou os papéis, entrou no helicóptero, atravessou o ribeiro, passou sobre as colinas, pousou o helicóptero, agora, no aeródromo de Green Vilage, aqui»... A noite corria enquanto eu e minha mãe escutávamos... «Agora desce a Rua Bell. Vem sempre a pé... Nunca toma um taxi... Está quase a atravessar o parque, dobra a esquina e...»
Voltei-me na cama. No fundo da rua soaram passos decididos, apressados. Eis que sobe a escada exterior! E sabíamos ambos que, quando na obscuridade fresca, ouvíssemos a porta abrir-se e fechar-se...
Três horas depois girei de mansinho a maçaneta da porta do quarto de meus pais, contendo a respiração, com a mão estendida para agarrar a maleta de couro que devia estar aos pés da cama comum. Depois regressei ao meu quarto na ponta dos pés. Ele não queria contar-me nada, não queria que eu soubesse...
Da maleta que abrira, tirei o uniforme preto com estrelas espalhadas como num céu nocturno. Apalpei o tecido, que cheirava a Marte, um cheiro pesado de ferro; o planeta Vénus, um verde perfume de hera; o planeta Mercúrio, com um perfume de enxofre em fogo. Senti a Lua leitosa, as estrelas duras. Meti o uniforme numa centrifugadora que tinha construído no meu laboratório do nono ano, na escola, e liguei-a. ràpidamente se acumulou um pó fino num copo. Pu-lo num microscópio. E, enquanto os meus pais dormiam e a casa estava em silêncio, com todos os autômatos e «robots» mergulhados no seu sono eléctrico, enchi os olhos de partículas brilhantes de meteoros, de caudas de cometas, de fragmentos impalpáveis do longínquo Júpiter, brilhando como mundos e que me arrastavam no espaço com acelerações espantosas.
De madrugada, esgotado pela minha viagem e temendo ser descoberto, repus a maleta com o uniforme no quarto de dormir de meus pais.
Depois adormeci. O «claxon» do carro da lavandaria acordou-me. Vinha buscar o uniforme. Tinha feito bem não esperar. Porque o trariam limpo de todos os vestígios de viagens.
Readormeci, com o frasquito do pó mágico no bolso do pijama, sobre um coração que batia fortemente.
Quando desci, o pai já estava instalado à mesa de jantar e mordiscava uma torrada.
— Dormiste bem, Doug? — perguntou como se não tivesse estado ausente três meses.
— Muito bem — respondi.
— Uma torrada?
Premiu um botão e a mesa fez-me quatro torradas douradinhas.
Lembro-me de meu pai, nessa tarde, cavando e mondando o jardim, como um animal que procurasse qualquer coisa. Lá estava com os longos braços queimados, gestos rápidos, prestes a plantar, a atar, a cortar, a mondar, com o rosto voltado obcessantemente para a terra, com os olhos fixos no trabalho, sem um olhar para o céu, nem para mim, nem mesmo para a mãe; excepto quando nos ajoelhávamos a seu lado e sentíamos a terra húmida impregnar-nos os joelhos; mergulhávamos as mãos no humos e não olhávamos o céu alacre e doido. Então concedia-nos um olhar, para a direita ou para a esquerda, a minha mãe ou a mim, piscava, muito gentilmente, um olho e retomava o trabalho, curvado, dobrado, com o céu sobre o dorso.
Nessa noite, ficámos sentados na cadeira de balanço automática do terraço, que oscilando, nos acariciava e cantava. Havia um belo luar estival, bebíamos a limonada com os copos frescos na mão. O papá lia os rádio-jornais metidos no chapéu especial que se punha na cabeça e que voltava as páginas quando se batiam três vezes seguidas as pálpebras. Fumava cigarros e contava-me a sua infância, era 1997. Depois de um certo, tempo, como sempre, perguntava-me:
— Doug, porque não vais lá para fora brincar? Eu não dizia nada, mas a mamã respondia:
— Ele brinca todas as tardes, quando não estás.
O pai olhava-me e depois, pela primeira vez, olhava para o céu. A mãe observava-o sempre quando ele olhava para as estrelas. Não fazia quase nada nas primeiras vinte e quatro horas depois da chegada. Trabalhava furiosamente no jardim, dobrado para o chão. Na segunda noite, olhava um pouco mais as estrelas. A mãe não tinha tanto medo do céu diurno, as estrelas é que ela desejaria apagar. Às vezes sentia-a procurar um botão no cérebro, sem nunca o encontrar. Na terceira noite, o pai ficava no terraço, junto de nós e ouvia a mãe chamá-lo tal como costumava fazer para que eu voltasse para casa.
Então sentia o pai fechar o olho electrónico da porta com um suspiro. Na manhã seguinte, ao pequeno almoço, via a maleta negra perto da sua cadeira, enquanto deitava manteiga na torrada. A mamã levantava-se tarde.
— Pois bem, adeus Doug! — dizia ele e apertávamo-nos a mão.
— Até daqui a três meses?
— Sim, mais ou menos.
E ia a pé, não tomava o autocarro nem o helicóptero, com a maleta sob o braço. Não queria que pensassem que se envaidecia com a sua condição de Homem do Espaço.
A mãe descia uma hora depois, para tomar o pequeno almoço: uma torrada, apenas.
Mas, agora, era a primeira noite, a boa, e ele não mirava as estrelas.
— E se fôssemos ao espectáculo televisado?
— Boa idéia — disse o pai. A mãe sorriu-me.
E corremos para a cidade no helicóptero e levamos o pai a cem lugares diferentes para que os seus olhos ficassem connosco e não vissem mais que as cenas divertidas que nos faziam rir e as cenas sérias que nos tornavam graves. Meu pai, pensava eu, vai tantas vezes a Saturno e a Neptuno e a Plutão e nunca me trouxe uma lembrança. Outros rapazes, filhos de Homens do Espaço, recebem minerais de Callisto e fragmentos de meteoros, ou areia azul. Mas eu tinha de fazer a minha colecção trocando, para possuir um bocado de rocha marciana ou areia de Mercúrio, coisas que enchiam o meu quarto e de que meu pai nunca falava.
Um dia, recordo-me, trouxe um presente para a mãe, girassóis de Marte, que plantou no nosso jardim. Mas, um mês depois da sua partida, a mãe cortou-os todos.
Como, apesar de o não querer, e durante um espectáculo tridimensional ao qual assistíamos, fizesse a pergunta q[ue sempre fazia:
— Pai, como é isso no espaço?
A mãe olhou-me, inquieta, mas já era tarde. O pai meditou durante um minuto bem medido, experimentando encontrar uma resposta. Depois encolheu os ombros.
— É a melhor coisa que há entre as boas coisas — depois calou-se —. No fundo, sabes, não é nada. Uma rotina. Não gostarias disso. — E olhou-me com certa apreensão.
— Mas tu voltas sempre?
— É um hábito.
— E onde irás na próxima viagem? — Ainda não o decidi. Vou pensar.
Fazia-o sempre. Nesse tempo os pilotos eram raros. Podia obter a missão que quisesse. Na terceira noite, pressentimos que fazia a sua escolha... entre as estrelas.
— Vamos para dentro — disse a mãe.
Era ainda cedo quando chegamos a casa. Eu queria que o pai vestisse o uniforme. Não devia ter-lho pedido, porque isso punha sempre a mãe muito triste. Mas não podia deixar de o fazer. Insisti, se bem que ele o recusasse. Nunca o tinha visto com o uniforme vestido. Por fim ele disse:
— Bem, vou vesti-lo.
Esperámo-lo no salão, enquanto ele subia no ascensor pneumático. A mãe media-me com um olhar vago, como se não pudesse acreditar que o seu próprio filho fizesse uma coisa semelhante.
— Perdoe-me — disse-lhe.
— Tu não me ajudas nada — respondeu a mãe —. Mesmo nada.
Ouviu-se um silvo no ascensor pneumático.
— Pronto — disse o pai. Olhámo-lo com a sua farda.
Era negra e brilhante, com botões de prata e a guarnição das botas também de prata. Dir-se-ia um corpo recortado numa sombra nebulosa, com pequenas e pálidas estrelas no estofo. O uniforme era muito justo, e sentia o ar fresco, o metal, o espaço. Sentia o tempo e o fogo.
O pai estava, com um sorriso embaraçado, de pé no meio do compartimento.
— Volta-te — disse a mãe.
Olhava-o como se estivesse muito longe.
Quando ele partia a mãe não falava mais dele. Não falava em mais nada que não fosse o tempo, ou do estado da minha garganta ou de que passava as noites em claro, dominada pela insónia. Uma vez ela disse-me que havia muita luz à noite.
— Mas não há luar esta semana — observei eu.
— Há as estrelas — respondeu.
Fui ao armazém comprar estores mais espessos. Ouvi-a descer os estores até baixo — o que fazia um barulho danado. Um dia quis cortar a erva do jardim.
— Não — disse a mãe —. Deixa ficar a máquina no sítio. E a erva cresceu durante mais um mês. Quando o pai chegou cortou-a.
Ela nunca me deixava fazer nada, reparar o aparelho da cozinha, por exemplo, ou o leitor mecânico. Guardava tudo como se estivesse à espera do Natal. E então via o pai deitado ao trabalho, com pinças e alicates, sorrindo divertido e a mãe que sorria vendo-o trabalhar.
Não, ela não falava nunca dele quando partia. Quanto ao pai, ele não fazia nada para entrar em contacto connosco a milhões de milhas de distância. Ele disse um dia:
— Se eu vos chamasse teria desejo de estar aqui convosco e seria infeliz.
De outra vez disse-me:
— A tua mãe trata-me algumas vezes como se eu não estivesse, como se eu fosse invisível.
Tinha-o fixado. Ela olhava para além dele, por cima da sua espádua, ou o seu queixo ou as suas mãos, mas nunca os olhos. E se ela o olhava nos olhos, os seus cobriam-se com um véu, como os de um animal que tem sono. Ela entrava nas conversas com oportunidade, sorria, mas só meio segundo depois do que seria de esperar.
— Para ela eu não estou aqui — disse o pai.
Mas, noutros dias, ela estava em casa e para ele; agarravam-se as mãos, iam passear a pé ou de carro, os cabelos da mãe voavam ondulando como os de uma jovem. Mexia em todos os aparelhos da cozinha e fazia pastéis e doces inesquecíveis, olhava-o fundamente nos olhos e o seu sorriso era um verdadeiro sorriso. Mas quando os dias em que «ela estava» terminavam, chorava sempre. E o pai, de pé, impotente, media o compartimento com os olhos como que procurando uma resposta que nunca encontrava.
— Volta-te outra vez — pediu-lhe a mãe.
No dia seguinte, de manhã, o pai apareceu, apressado, com bilhetes de foguete a encher-lhe as mãos. Eram para a Califórnia, para o México.
— Vamos — disse ele —. Primeiro vamos comprar os equipamentos que dão por incapazes quando estão manchados. Vamos apanhar o foguete do meio-dia para Santa Bárbara, o helicóptero das nove para Ensenada e passar lá a noite!
E partimos para a Califórnia, percorrendo toda a costa do Pacífico durante dia e meio. Instalamo-nos, por fim, na praia de Malibu para assar crustáceos à noite. O pai ouvia, observava tudo o que se encontrava à sua volta e cantarolava por vezes; apegava-se às coisas como se o Mundo fosse uma máquina centrifugadora girando tão velozmente que o pudesse arrancar a qualquer instante do nosso convívio.
Na última tarde que passámos em Malibu, a mãe estava no quarto do hotel e o pai deitado na areia, ao sol.
— Ah — suspirou ele — isto é a vida! — Tinha os olhos fechados e absorvia o sol por todos os poros. — É isto que falta.
Queria dizer: «no foguete». Mas nunca falava do foguete, nem das coisas que lhe faltavam. Não se podia levar o vento carregado de sal e iodo, nem o céu azul, nem o sol quente, nem a cozinha da mãe. Também se não podia falar no foguete ao filho de catorze anos.
— Fala, sou todo ouvidos! — disse ele por fim.
Eu sabia que, entretanto, podíamos falar, como sempre o fazíamos, três horas seguidas. Era todas as tardes, um colóquio de perguntas e respostas, preguiçosamente, ao sol, a propósito das minhas notas escolares, da minha última marca no salto em altura, sobre a velocidade do meu crawl.
O pai levantava a cabeça cada vez que eu falava, sorria e dava-me uma pequena palmada nas costas. Falávamos. Não de foguetes, nem do espaço, mas do México, onde tínhamos ido uma vez numa velha carripana, e das borboletas que tínhamos apanhado nas florestas do Sul, onde chovia, ou dos insectos que se agarravam ao radiador, às centenas, batendo as asas vermelhas e azuis, pretas e amarelas, agonizando belos e tristes. Falávamos de tudo isto e não das coisas em que eu gostaria de falar. E ele ouvia-me. E fazia-o como se tentasse encher-se com os sons que lhe chegavam de toda a parte. Escutava o vento, as ondas que se desfaziam e a minha voz com uma apaixonada atenção, uma concentração que excluía os corpos físicos para reter apenas os sons. Fechava os olhos para ouvir. E via-o quase a ouvir o barulho da máquina de cortar erva que conduzia à mão, dispensando o dispositivo de controle a distância, quase aspirando o perfume da erva cortada que subia para ele do aparelho, como de uma fonte de verdura.
— Doug! — disse ele por volta das cinco da tarde; tínhamos pegado nas pastas e voltávamos para o hotel seguindo o caminho ao longo da falésia —. Quero que me prometas uma coisa.
— Que é, pai?
— Que nunca serás um Homem do Espaço. Parei.
— E digo isto muito a sério. Porque, quando se está lá em cima, temos desejos de estar aqui; e quando estamos aqui temos vontade de andar por lá. Não te deixes afagar por desejos...
— Mas...
— Não sabes o que isso é. Cada vez que ando por lá, digo-me: se alguma vez voltar à Terra vou ficar lá; nunca mais partirei. Mas volto sempre... e suponho que o continuarei a fazer enquanto tiver um sopro de vida.
— Penso, desde há muito, em vir a ser um homem do espaço — disse-lhe eu.
Não me ouviu.
— Tento ficar. No último sábado, quando voltei a casa, tentei firmemente não voltar...
Lembrei-me dele no jardim, transpirando, e de todas as nossas viagens, de como se extenuava e da maneira como escutava; compreendi, então, que o fazia para se convencer que o mar, as cidades e a terra e a sua família eram as únicas coisas reais e boas. Mas sabia também o que faria nessa noite: os olhos pregados no brilho da constelação de Orion, visível do nosso terraço.
— Promete-me que não serás como eu? — disse ele. Hesitei e disse, depois:
— De acordo. Apertou-me a mão.
— És um bom rapazinho.
O jantar foi suculento, nessa noite. A mãe tinha-se afadigado na cozinha com a farinha e a canela, potes e caçarolas. Um magnífico perú fumegava na mesa com recheio, molho e empada.
— Já? No meio de Outubro? — gritou o pai, surpreendido.
— Tu não estás cá no Natal — respondeu a mãe. — Não, realmente.
Aspirou o ar com violência e levantou todas as tampas para deixar o vapor entrar nas narinas dilatadas. E dizia «Ah!» a cada baforada. Contemplou a sala de jantar e as mãos.
Mediu os quadros pendurados nas paredes, a mesa. Pigarreou. — Lilly?
— Que é? — A mãe estava no outro extremo da mesa que tinha ornamentado como uma maravilhosa ratoeira de prata, uma saborosa armadilha onde o seu marido ficaria preso, para todo o sempre. Os seus olhos brilhavam.
— Lilly — repetiu o pai.
Vamos — pensava eu com violência — di-lo depressa; diz que ficarás em casa, sossegado, e que nunca mais partirás; vamos, di-lo!
Mas nesse momento um helicóptero passou e fez brilhar os vidros das janelas. O pai virou a cabeça....
As estrelas azuis brilhavam na noite, Marte, o vermelho, levantava-se no Oriente.
O pai olhou para Marte durante um longo minuto. Depois, como um cego, estendeu a mão para mim.
— Dá-me os rabanetes — pediu ele.
— Desculpem-me — disse a mãe —, vou buscar pão à cozinha.
— Mas há ainda pão na mesa — observei eu. O pai não me olhou e começou a comer.
Não pude dormir nessa noite. Era uma hora, mais minuto, menos minuto, quando vim para baixo. O luar era como uma camada de gelo sobre o telhado, o orvalho brilhava no relvado como se fosse um campo de neve. Fiquei à porta do jardim, em pijama, no ar quente da noite, e distingui o pai no canapé mecânico do terraço. Via-lhe o perfil enérgico. Ele seguia o deslizar das estrelas no céu. Os seus olhos eram como dois cristais cinzentos, reflectindo cada um uma lua.
Desci e instalei-me a seu lado.
Balançámo-nos durante algum tempo.
Por fim perguntei-lhe:
— De quantas formas se pode morrer no espaço?
— De um milhão.
— Por exemplo?
— Os meteoros. O ar que se escapa do foguete. Os cometas que se arrastam. A comoção. A compressão. A explosão. A força centrífuga. O excesso de aceleração. A diminuição. O calor ou o frio, o sol, a lua, as estrelas, os planetas. Os asteróides, os planetóides, as radiações...
— E vocês são enterrados?
— Nunca mais nos encontram.
— Para onde é que se vai?
— A milhões de milhas. Chamam-nos os caixões volantes. Transformamo-nos em asteróides, lançados para sempre no espaço.
Não respondi nada.
— Uma coisa, entretanto — acrescentou ele um pouco mais tarde —. Isto é rápido no espaço. A morte chega bruscamente, não a esperamos. Na maior parte dos casos, ninguém se apercebe. Morre-se... e isso é tudo.
Subimos a fim de irmos para a cama.
Era já manhã.
De pé, na soleira, o pai ouvia o canário cantar na sua gaiola dourada.
— Pois bem, tomei uma decisão — disse. — Depois desta viagem vou ficar em casa.
— Pai! — gritei.
— Di-lo à mãe quando se levantar.
— Mas é mesmo verdade? Levantou gravemente a cabeça. — Adeus! Até daqui a três meses.
E partiu, com o uniforme dobrado na maleta, assobiando uma modinha, olhando as árvores, colhendo amoras de passagem para as atirar ao ar luminoso da manhã.
Fiz algumas perguntas à mãe, duas ou três horas depois da partida do pai.
— O pai disse-me que algumas vezes lhe parece que o não vês e o não ouves.
Então ela explicou-me tudo minuciosamente.
— Quando ele partiu da primeira vez, há dez anos, eu disse a mim própria: morreu. Ou coisa semelhante. E sempre penso nele como se estivesse morto. E quando ele volta, três ou quatro vezes por ano, não é ele, nunca é bem ele, é apenas uma recordação agradável, ou um sonho. Se uma recordação ou um sonho são interrompidos, isso ano faz assim muito mal. Porque, durante quase todo o tempo, penso nele como pensaria num morto,..
— Mas noutros momentos...
— Noutros momentos é mais forte do que eu. Faço-lhe os pratos de que gosta e trato-o como se estivesse vivo e então sinto-me mal. Não, é melhor pensar que não esteve aqui nestes últimos dez anos e que o não verei mais. É menos doloroso.
— Não nos disse ele que da próxima vez não partiria?
— Não — disse a mãe sacudindo a cabeça — Ele está morto. Estou certa disso.
— Mas ele voltará vivo.
— Há dez anos pensei: E se ele morre em Vénus? Não poderemos mais olhar para Vénus. E se é em Marte? Não poderemos voltar a ver Marte, muito vermelho no céu, sem sentir um desejo fundo de voltar para casa e fechar a porta à chave. E se ele morrer em Júpiter ou em Saturno ou em Neptuno? De noite nunca mais teremos vontade de olhar para as estrelas.
— É muito possível — respondi.
A mensagem chegou-nos no dia seguinte.
Foi eu que a recebi e a li no terraço. O sol morria. A mãe, atrás da porta de vidro, olhou-me enquanto eu dobrava o papel para o meter na algibeira.
— Mãe! — disse eu.
— Não me digas nada do que já sei.
Ela não chorava.
Pois bem, não tinha sido em Marte, nem em Vénus, nem em Saturno, nem em Júpiter. Não tínhamos que pensar nele de cada vez que um destes planetas se nos mostrasse no céu nocturno.
Tinha sido outra coisa.
A sua astronave tinha caído no Sol.
E o Sol era grande e ardente e sem piedade. E estava sempre no céu e não poderíamos fugir-lhe.
Foi por isso que a mãe, durante muito tempo, dormiu de dia e nunca mais saiu. Tomávamos o pequeno almoço à meia-noite; almoçávamos às três da manhã; íamos a espectáculos nocturnos contínuos e deitávamo-nos de madrugada.
Durante muito tempo, os únicos dias em que saímos de dia para passear foram os dias de chuva, sem sol.
O fogo de artifício iluminava a relva.
O rosto das pessoas de família brilhava subitamente. As lâmpadas romanas reflectiam-se nos olhos dos meninos instalados no terraço e as canas dos foguetes caíam ao longe nos prados.
O reverendo padre José Daniel Peregrino acordou.
Que sonho! Os seus primos e ele a divertirem-se com fogos de artifício na velha casa do avô, no Óhio!
Escutou a solidão da igreja, o silêncio das celas onde repousavam os outros frades. Também eles, na véspera da partida do grande foguete «Crucifixo», tinham sonhado com a festa da Independência? Sem dúvida. Era tal qual como nessas manhãs de 4 de Julho, em que se aguarda o primeiro foguete para se sair para a rua, com as mãos cheias de combustíveis maravilhosos.
E ali estavam os Irmãos da Igreja Episcopal, perante a madrugada, prestes a lançarem-se para Marte e a lançar a quietude do incenso na catedral aveludada do espaço.
— É preciso irmos lá? — murmurou o Padre Peregrino. — Não deveríamos antes tratar dos nossos pecados sobre a Terra? Não estaremos nós a fugir à nossa própria vida?
Levantou-se. Os movimentos do seu corpo volumoso, rosado e leitoso eram pesados.
— Será preguiça? — interrogou-se ele. — Terei medo da viagem ?
Meteu-se sob as agulhas geladas do chuveiro.
— Eu te levarei a Marte, carne. Deixemos aqui os velhos pecados. E, em Marte, iremos encontrá-los de novo?
Teve um pensamento quase delicioso. Pecados que ninguém imaginava. Oh! ele próprio havia escrito um livro: O Problema do Pecado em Outros Mundos — uma obra sem pretensões, como qualquer coisa que não fosse muito a sério, para os seus irmãos episcopais!
Sobre este assunto, tinha falado na noite anterior com o padre Stone enquanto saboreavam um charuto.
— Em Marte, talvez o pecado tenha a aparência da virtude. E nós devemos evitar acções boas que, afinal, poderão tornar-se pecados! — disse o padre Peregrino, com uma risada. — Não é emocionante? Há alguns séculos, as perspectivas de um missionário não englobavam tantas aventuras!
— Eu identificarei o pecado mesmo em Marte — disse o padre Stone.
— Oh! nós, os padres, temos a pretensão de ser uma espécie de papel de tornesol e de mudar de cor em presença do pecado — replicou o padre Peregrino —. Mas supunhamos que a química marciana seja tão diversa que nós não nos possamos tingir de qualquer cor!... Se existirem em Marte sentidos novos, tereis de admitir a possibilidade de existirem pecados desconhecidos.
— Se não houver má intenção, não há pecados, nem castigo. O Senhor o disse — respondeu o padre Stone.
— Na Terra, está certo. Mas talvez o pecado marciano possa informar o subconsciente, telefònicamente, do mal que ele importa, deixando a consciência humana livre para agir aparentemente sem pecado! E então?
— Que espécie de pecados novos poderão existir? O padre Peregrino inclinou-se pesadamente.
— Adão não pecou sòzinho. Juntai Eva e tereis a tentação. Juntai um segundo homem e podereis tornar possível o adultério. Com a junção da tentação sexual e a multiplicação dos seres humanos tereis a acumulação do pecado. Se os homens não tivessem mãos não poderiam estrangular. Não haveria esta forma particular de assassínio. Juntai braços e mãos e tereis a possibilidade de um novo acto de violência. As amebas não podem pecar porque se reproduzem por ciciparidade. Não desejam a mulher do próximo nem se tornam culpadas de assassínio. Dai sexo às amebas, dai-lhes braços e tereis o crime e o adultério. Dai um braço ou uma perna mais a um indivíduo, ou sumprimi-lhos, e juntareis ou subtraireis um mal. Em Marte, se existirem cinco sentidos que desconheçamos, órgãos, membros invisíveis que não imaginemos, não haverá ali pecados novos?
O padre Stone tinha aberto os olhos.
— Dir-se-ia que vos comprazeis com essas coisas!
— Eu tenho o meu espírito alerta, simplesmente alerta.
— O vosso espírito está sempre pronto a fazer malabarismos com espelhos, archotes e pratos, não é verdade?
— Sim. Porque a Igreja, algumas vezes, assemelha-se a estes quadros vivos do Circo, quando homens embranquecidos com óxido de zinco, transformados em estátuas pelo pó de talco, assumem poses que se crê representarem a beleza abstracta, é admirável! Mas espero ter sempre a liberdade dê andar por entre as estátuas. O outro estava alheado.
— E vós, padre Stone?
— Eu creio que seja melhor irmo-nos deitar. Dentro de algumas horas, daremos o grande salto para ver os vossos novos pecados, padre Peregrino.
O foguete estava pronto para a partida.
Os religiosos tinham deixado as suas devoções matinais. Fazia frio. Havia-os de vários sítios: Nova York, Chicago ou Los Angeles. A Igreja enviava os melhores, os quais atravessavam a cidade a pé dirigindo-se para ò campo coberto de geada. O padre Peregrino recordava-se das palavras do bispo:
— Padre Peregrino, vós sereis o chefe dos missionários, tendo o Padre Stone por adjunto. Tendo-vos designado para esta grave tarefa, compreendo que as minhas razões são pouco claras. Mas o seu estudo sobre o pecado planetário não ficou sem leitores. Sois um homem hábil. E Marte é como este sótão, que nós temos abandonado há milênios: o pecado acumulou-se como num bricabraque. Marte é duas vezes mais velho do que a Terra e, portanto, tem duas vezes mais festins, consumo de bebidas, mulheres para cobiçar, nuas como animais. Quando abrirmos a porta desse sótão abarrotado, as coisas vão cair-nos em cima.
Precisamos de um homem eficiente e hábil com um espírito elástico que possa esquivar-se. Um outro, mais rígido e dogmático, poderia perder tudo. Creio que vós sois elástico. Padre, o assunto está nas vossas mãos.
O bispo e os padres ajoelharam.
A bênção foi dada e o foguete aspergido. O bispo dirigiu-se aos missionários:
— Sei que ides na companhia de Deus preparar os marcianos para receber a Verdade. Desejo-vos a todos uma viagem reflectida, meditada.
Desfilaram vinte ao todo, perante o bispo, num roçagar de sotainas e apertaram-lhe a mão, antes de subir para o projéctil purificado.
— Pergunto-me — disse o padre Peregrino, no último momento, — se Marte não será o Inferno? Quem espera a nossa chegada para se abrasar?
— Que o Senhor seja connosco — murmurou o padre Stone. O foguete decolou.
Deixar o espaço foi para eles como sair da mais bela catedral que jamais tivessem conhecido. Aterrar em Marte, era como estar no templo, depois de aí terem realmente sentido o amor de Deus.
Os padres desceram, com cautela, da sua nave fumegante e ajoelharam sobre a areia de Marte. O padre Peregrino pronunciou uma oração de acção de graças:
«Senhor, nós Te agradecemos esta viagem através dos Teus domínios. E, Senhor, atingimos uma nova terra e devemos ter novos olhos. Ouviremos novos sons e temos necessidade de novos ouvidos. Aqui, haverá novos pecados, para os quais nós pedimos a graça de um coração melhor, mais firme e mais puro. Amen!»
Levantaram-se.
Marte era um mar sob o qual eles iam afundar-se como biólogos submarinos à procura da vida. Era a terra do pecado secreto. Oh! com que cuidado deveriam pesar todas as coisas, neste elemento novo, temendo que o próprio caminhar fosse uma culpa, assim como o respirar, o jejuar!...
Mas eis que chegava o presidente de Primeville, de mão estendida para os acolher.
— Em que lhe posso ser útil, padre Peregrino?
— Gostaríamos de obter informações sobre os marcianos. Estar bem informado é condição necessária para traçarmos planos racionais para a nossa Igreja. Se têm três metros de altura abriremos grandes portas. Têm o corpo azul, vermelho ou verde? Precisamos sabê-lo para empregar a cor adequada nos vitrais. São gordos? Faremos cadeiras sólidas.
— Meu reverendo — interrompeu o presidente —. Eu creio que se não deve preocupar com os marcianos. Há duas raças: uma está quase extinta, à excepção de alguns indivíduos que vivem escondidos. Quanto à outra raça... Bem, não verdadeiramente humana.
— Oh?! — O coração do padre bateu mais depressa.
— São esferas luminosas que vivem nas grandes colinas, lá ao longe. Homens ou animais, quem o pode dizer? Mas parece que são dotados de inteligência — o presidente encolheu os ombros —. Evidentemente, que, se não são homens, não vos interessarão, penso eu.
— Pelo contrário! — exclamou o padre Peregrino. — Diz que são inteligentes?
— Conta-se que um prospector tinha partido uma perna nestas solitárias colinas e morreria abandonado no deserto. Viu aproximarem-se dele umas esferas azuis. Quando recuperou os sentidos, encontrou-se na estrada principal, sem saber como.
— Bêbedo... — insinuou o padre Peregrino.
— Isto é o que se conta. Sabendo-se que a maior parte dos marcianos estão mortos e que não há mais do que bolas azuis, eu creio que, francamente, terieis muito mais trabalho em Primeville, que está em pleno desenvolvimento. Os homens chegam continuamente. Há quase dois mil mecânicos irlandeses, mineiros e operários, que precisam de ser salvos porque há muitas mulheres que vieram com eles e muito vinho de Marte, velho de dois séculos...
O olhar do Padre Peregrino estava perdido nas lindas colinas azuis.
O padre Stone aclarou a voz:
— Então, padre Peregrino? O outro não o ouviu.
— Globos de fogo?
— Sim, reverendo.
— Ah!— suspirou o Padre Peregrino.
— Balões azuis? — O Padre Stone sacudiu a cabeça. — Um circo!
O padre Peregrino sentia o sangue bater nas artérias. Olhava a cidadezinha próxima, com os seus pecados frescos e crus, e olhava as colinas, velhas de pecado mais antigo, e, no entanto, desconhecido até agora (dele próprio).
— Sr. presidente, esse vossos operários irlandeses podem ainda esperar mais um dia no Inferno?
— Eu vou prepará-los para a vossa chegada, reverendo.
— Então, é para ali que nós iremos. — E o padre Peregrino indicou as colinas em frente.
Houve um murmúrio geral.
— Seria muito mais simples dirigirmo-nos à cidade. Em creio bem que se o Senhor aqui viesse e se as pessoas Lhe dissessem: «Aqui está o atalho feito». Ele responderia: «Mostrai-me o joio, e Eu farei um canteiro».
— Mas...
— Padre Stone, pensai no fardo que carregaríamos, se passássemos diante destes pecadores e não lhes estendêssemos a mão.
— Mas, as bolas de fogo?
— Suponho que o Homem tinha um ar bastante estranho, quando apareceu aos outros animais. E, no entanto, tinha uma alma, apesar da sua aparência estranha. Até prova em contrário, suponhamos que essas bolas têm alma.
— Perfeitamente — disse o presidente. — Mas depois voltareis à cidade?
— Veremos. Primeiro, um almocinho. Depois, vós e eu, Padre Stone, iremos às colinas. Não quero assustar os marcianos ígneos com aparelhos ou muita gente.
Os padres comeram em silêncio.
Ao cair da noite, os padres Peregrino e Stone estavam nas colinas. Pararam e sentaram-se num rochedo, para descansar e esperar. Os marcianos não tinham aparecido ainda e ambos estavam vagamente despeitados.
— Pergunto a mim próprio... — disse o padre Peregrino, limpando o rosto com um lenço —. Se nós chamarmos que pensais que nos responderão?
— Padre Peregrino, quando falareis vós «a sério»?
— Não o farei, enquanto o Senhor o não faça. Oh! não tomeis esse ar profundamente chocado, peço-vos. De facto, é bastante difícil saber o que Ele é além de amor. E o amor anda ligado ao humor, não é verdade? Não se pode amar alguém sem o aturarmos. E vós não podeis aturar alguém sem dele vos poderdes rir. Não é? Na realidade, nós devemos ser uns ridículos animaizinhos que se agitam na grande saladeira. E Deus nem por isso nos ama menos, visto que nós provocamos o seu sentido de humor.
— Eu nunca tinha imaginado um Deus irônico — disse o padre Stone.
— O Criador do platipus, do camelo e da avestruz e do Homem? É bem evidente —, e o padre Peregrino pôs-se a rir.
Neste momento, do fundo das colinas crepusculares, como uma fila de lâmpadas azuis iluminando um caminho, chegaram os marcianos. O Padre Stone foi o primeiro a vê-los.
— Olhai!
O padre Peregrino voltou-se e o riso extinguiu-se-lhe na garganta.
O globos de fogo azulado estavam suspensos entre a cintilação das estrelas a palpitarem, ao longe.
— Os monstros!
O padre Stone deu um pulo, mas o padre Peregrino segurou-lhe o braço. — Esperai!
— Nós deveríamos ter ido à cidade!
— Não. Escutai e olhai! — suplicou o padre Peregrino.
— Tenho medo!
— De quê? É uma obra de Deus!
— Do Diabo!
— Não! Calma!
O padre Peregrino conseguiu acalmá-lo, e ambos, esperaram humildemente que as esferas ígneas se aproximassem, iluminando-os de uma luz azul, como a de um fogo de artifício.
O padre Peregrino lembrou-se dos tios, das tias e dos primos, gritando:
— Ah!
No terraço, os olhos encandeados pelos foguetes. As lágrimas vieram-lhe aos olhos. Por cima dele, os Balões de Fogo, um milhar de balões, murmuravam, balouçando-se. Imaginou-se junto do seu querido avô, há tanto tempo morto, olhando juntos aquele espectáculo de beleza.
Mas o padre Stone interrompia:
— Vamo-nos embora, peço-vos.
— Eu tenho de lhes falar.
E o padre Peregrino avançou sem saber o que dizer, pois não poderia dizer outra coisa senão o que já dissera: «Sois belos, sois belos!», e isso de nada serviria agora. E não pôde nada mais do que levantar os grandes braços e gritar para os céus: «Olá!»
Mas os globos nada mais fizeram do que brilhar como imagens num espelho sombrio, suspenso no ar, gasosos, mais maravilhosos que nunca.
— Nós vimos com Deus — disse o padre Peregrino para o céu.
— Isso é estúpido, estúpido! — dizia o padre Stone mordendo os dedos.
— Em nome de Deus, basta!
Mas os globos fosforescentes afastaram-se para as colinas e, um instante depois, tinham desaparecido.
O padre Peregrino chamou de novo e o eco dos seus gritos fez estremecer o cimo das colinas. E viu, então, uma avalanche de pedras levantar uma nuvem de poeira, hesitar um momento e depois precipitar-se para eles com um ruído de trovão.
— Vede o que fizesteis! — gritou o Padre Stone.
O padre Peregrino olhou, primeiro, fascinado e, depois, horrorizado. Voltou-se, sabendo que só poderiam dar alguns passos antes que as pedras os atingissem e os esmagassem. Ainda teve tempo de murmurar: «Oh, Senhor!» e as rochas desabaram.
— Meu Deus!
Sentiram-se como que separados imperiosamente, tal como o farelo do grão. Houve um clarão azul, um deslizar de estrelas, um zumbido e os padres encontraram-se sobre uma crista rochosa, a duzentos passos de distância, com os olhos fixos no sítio onde os seus corpos deveriam estar sepultados sob toneladas de pedras.
As luzes azuis desapareceram. Os dois padres agarraram-se um ao outro: «O que se passou?»
— As luzes azuis arrebataram-nos!
— Fugimos, foi o que foi!
— Não. As esferas salvaram-nos!
— Elas não o poderiam ter feito. — E, no entanto, fizeram-no!
O céu estava deserto. Tinham ambos a impressão de que um sino enorme tinha bruscamente deixado de vibrar. Sentiam a sua reverberação nos dentes e na medula dos ossos.
— Vamo-nos embora! Vós fazeis com que nos matem.
— Eu já não tenho medo da morte há muitos anos, padre Stone.
— Afinal não conseguimos demonstrar nada. As luzes azuis desapareceram ao primeiro apelo. Isto não serve para nada.
— Serve, sim!
O padre Peregrino sentia-se penetrado de um assombro obstinado.
— De qualquer maneira, elas salvaram-nos. Isto prova que têm alma.
— Isso prova, apenas, que lhes foi possível salvarem-nos.
Foi tudo mais confuso. Escapamos, por nós próprios, à avalanche.
— Eles não são animais, Padre Stone. Os animais não salvam a vida a ninguém. Houve da parte delas compaixão e piedade. Amanhã, talvez, possamos descobrir ainda mais coisas.
— O quê? E como?
O padre Stone sentia agora uma intensa fadiga. A prova por que tinha passado ficara marcada na sua dura fisionomia.
— Segui-las de helicóptero e ler-lhes versículos da Bíblia? Não são seres humanos, nem têm olhos, nem orelhas, nem corpos como os nossos.
— Mas eu pressinto qualquer coisa — disse o padre Peregrino—. Sei que uma grande revelação está próxima. Salvaram-nos, logo pensam. Podem escolher: matar-nos ou deixar-nos viver. Isto prova um livre arbítrio!
O padre Stone entretinha-se a juntar lenha para acender uma fogueira.
— Vou erguer um convento para patos, fundar um mosteiro para porcos e construirei uma capela microscópica que permita aos infusórios assistirem à missa e instruir os seus flageladozinhos!
— Oh, padre Stone!
— Peço desculpa — respondeu este, tossindo devido ao fumo —, mas o que dizeis é como se quisésseis dar a bênção a um crocodilo, antes de ele nos engolir. Vós arriscais a nossa missão. O nosso dever está em Primeville, onde lavaremos do álcool as bocas dos homens e das suas mãos os perfumes.
— Não podeis ver o humano no sobre-humano?
— Prefiro reconhecer o sobre-humano no humano.
— E se eu vos provar que «estas coisas» conhecem o pecado, que têm uma moral, que são dotados de inteligência e de vontade ?
— Serão necessários muitos argumentos.
A noite, fria, caía ràpidamente. Os dois olhavam as chamas, onde dançavam pensamentos loucos. Comeram biscoitos e deitaram-se cedo, enrolados nos cobertores, no chão. Antes de adormecer, o padre Stone, que meditava a forma de argumentar, embaraçando o seu companheiro, contemplou as brasas vermelhas, dizendo:
— Não tendo havido em Marte nem Adão, nem Eva, também não houve pecado original. Talvez os marcianos vivam em estado de graça. E, então, nós poderemos ir trabalhar para a cidade junto dos terrenos.
O padre Peregrino pensou que deveria orar em intenção do padre Stone, que estava furioso e se tornaria agressivo.
— Sim, padre Stone, mas os marcianos mataram alguns dos nossos colonos. É um pecado. Deve, portanto, haver um pecado original, sem um Adão e uma Eva em Marte. Encontrá-los-emos. Os homens são homens, seja qual for a sua forma e, desgraçadamente, inclinados a pecar.
Mas o padre Stone estava quase a dormir.
O padre Peregrino, porém, não conseguia conciliar o sono.
Não podiam deixar os marcianos cair no Inferno. Mas também não podiam abandonar as novas colônias, essas cidades cheias de perdição, de pecadoras de olhos brilhantes e corpos brancos, rolando nos leitos com operários que se sintam sós, nostálgicos? Não seria ali o campo de acção dos padres? Esta excursão às colinas não seria um capricho pessoal? Cumpriria ele a incumbência da Igreja, ou saciaria a sua sede de curiosidade, que era como uma esponja? Estes globos de fogo de Santelmo, como ardiam no seu pensamento! Que desafio à sua ambição, esse desejo de descobrir o humano por detrás da estranha máscara! Como ficaria ele orgulhoso ao poder dizer — mesmo no seu foro íntimo — que tinha convertido todo um enorme cabaz de bolas de fogo! Ai, o pecado do orgulho! Mas, por amor, faziam-se coisas bem orgulhosas, e ele amava tanto o Senhor e era por isso tão feliz que desejaria que toda a gente também assim o fosse.
...A última coisa que viu antes de adormecer foram bolas de fogo que vieram embalá-lo, como um voo de anjos...
Quando se levantou, à madrugada, ainda permaneciam deitados no mesmo sítio.
O padre Stone dormia como um cepo.
O padre Peregrino olhou para os marcianos que flutuavam no ar e que o observavam. Eram humanos, sabia-o. Mas era preciso prová-lo, ou comparecer perante um bispo de olhos frios e lábios cerrados que lhe aconselharia a demissão.
Mas como demonstrar a humanidade dos globos, se eles se escondiam nas altas abóbadas celestes? Como poderia aproximá-los e dar resposta às suas humildes perguntas?
O padre Peregrino levantou-se e começou a trepar a colina mais próxima. Chegou a uma falésia que caía a pique sobre uma plataforma rochosa, duzentos pés abaixo. Arquejava no fim da escalada, no ar glacial.
— Se eu caio daqui, decerto que morrerei.
Deitou uma pedra no abismo. Segundos depois ouviu-a ressoar em baixo nos rochedos.
— Deus nunca me perdoaria... — E lançou outra pedra.
— E seria um suicídio se eu o fizesse por amor? Levantou os olhos para as esferas azuis.
— Uma última tentativa: Olá! Olá!
O eco repercutiu-se, mas as esferas não tremeram, nem se moveram.
Falou durante cinco minutos. Quando terminou, olhou para baixo e viu o padre Stone dormindo ainda, com os punhos cerrados.
— Tenho de provar tudo.
E avançou para o bordo da falésia.
— Sou velho. Não tenho medo. O Senhor compreenderá que o faço por Ele.
Respirou fundo. Toda a sua vida passou pela sua mente e pensou: «Dentro de momentos, estarei morto. Receio amar demasiado a vida. Mas há coisas que eu amo mais ainda». E, com este pensamento, deu um passo em frente e caiu.
— Imbecil! — gritou ele, redopiando no espaço. As rochas saltaram ao seu encontro, via-se despedaçado, mas lançado na bem-aventurança —. Porque é que fiz isto?
Mas soube responder a si próprio e ficou calmo até cair. O vento soprava-lhe nas orelhas e os rochedos subiam para ele...
Então, houve um deslizar de estrelas, um deslumbramento azul, sentiu-se envolto e suspenso em claridade azulínea. E foi deposto com um leve choque sobre a plataforma rochosa, onde ficou um bom bocado, vivo, palpando os membros e contemplando as luzes azuis que, instantâneamente, se tinham distanciado.
— Vós salvastes-me! Não me deixastes morrer. Vós sabieis que isso seria mau.
Precipitou-se para o Padre Stone, que dormia ainda, num indigno sono:
— Irmão, irmão, acordai. Sacudiu-o e voltou para si: — Eles salvaram-me!
— Quem? Quem vos salvou?
Padre Stone esfregou os olhos e sentou-se. O padre Peregrino contou a sua experiência. — Um sonho, um pesadelo! Vamos, tornai a dormir — disse o padre Stone irritado —. Vós e os vossos balões...
— Mas eu estava acordado! — Vamos, padre, calma, calma.
— Não me acreditais? O vosso revólver? Dai-mo!
— O que ides fazer? — Padre Stone estendeu-lhe o pequeno revólver automático que haviam trazido para se defenderem das serpentes ou de outros animais imprevisíveis.
O padre Peregrino pegou na arma.
— Prová-lo-ei.
Voltou o cano para a outra mão e disparou.
— Éh, parai.
Houve um clarão e, diante dos seus olhos, a bala parou no ar a um dedo da mão aberta. Ficou um segundo suspensa numa fosforescência azul e caiu no chão.
Padre Peregrino fez fogo, por três vezes, para a mão, para a perna, mas as três balas pairaram, luzindo e, como insectos mortos, caíram-lhes aos pés.
— Vedes? — perguntou o padre Peregrino, deixando descair o braço, caindo-lhe a arma por terra.
— Eles sabem. Eles compreendem. Não são animais. Raciocinam, julgam e têm o seu clima moral. Que animal me salvaria de mim próprio ? Não existe nenhum. Só um homem o poderia fazer. E agora acreditais?
O padre Stone olhou o céu e as luzes azuis, depois baixou-se para apanhar as balas ainda quentes e pô-las na palma da mão. Cerrou os dedos. O sol levantava-se.
— É melhor descermos e irmos contar isto aos outros. Depois havemos de os trazer aqui. Quando o sol subiu ao zénite, já tinham percorrido uma boa parte da distância que os separava do foguete.
O padre Peregrino traçou um círculo no quadro de ardósia.
— Isto, é o Cristo, o Filho de Deus — fingiu que não ouviu certos murmúrios dos eclesiásticos que formavam a assembléia.
— Eis o Cristo na sua glória— continuou ele.
— Isso parece um problema de geometria — observou o padre Stone.
— Uma feliz comparação. Pois o que nós temos é uma questão de símbolos. Cristo não deixará de ser Cristo, se O representarmos por um círculo, ou um quadrado. Durante séculos, a cruz simbolizou o Seu amor e a Sua agonia. Da mesma forma, este círculo será o Cristo dos Marcianos. É assim que nós o traremos a Marte.
Os padres entreolharam-se fazendo vários movimentos.
— Vós, irmão Matias, ides construir, em vidro, urna réplica deste círculo: um globo onde metereis uma luz viva, que será deposto no altar.
— Magia negra — murmurou o padre Stone.
O padre Peregrino continuou pacientemente:
— Pelo contrário. Nós trazemos-lhes Deus, sob uma forma inteligível. Se o Cristo tivesse vindo à Terra com forma de pólipo, tê-lo-iamos aceitado de boa vontade? — E estendeu o braço. — Seria uma prática de magia negra da parte de Deus, trazer-nos Cristo, como Homem e como Deus ? Quando tivermos dedicado a igreja que vamos construir aqui, quando tivermos consagrado o Seu altar a este símbolo, crereis vós que Cristo se recusará a habitar esta forma? Vós sabeis, em vossos corações, que ele não se recusará a tal.
— Mas o corpo de um animal desprovido de alma!... — exclamou o Irmão Matias.
— Já temos falado muito disto, desde a manhã. Estas criaturas salvaram-nos da avalanche. Compreenderam que a destruição do próprio indivíduo é um pecado, e impediram-no por várias vezes. Por consequência, devemos construir uma igreja nas colinas, viver com eles, a fim de descobrir as suas formas de pecado e ajudá-los a encontrar Deus.
Os padres mostravam-se entusiasmados por esta perspectiva.
— Só porque têm um aspecto estranho? — perguntou o padre Peregrino. — Mas o que é uma forma? Nada mais que um envólucro da alma ardente que Deus nos deu a todos. Se amanhã se descobrir que as morsas possuem uma vontade livre, uma inteligência, que eles sabem abster-se de pecar, que mediram a justiça pela misericórdia e adoçam a vida com o amor, eu construirei uma catedral submarina. E se os pardais, pela vontade divina, adquirirem amanhã uma alma imortal, eu encherei uma igreja de hélio e segui-los-ei no espaço, porque toda a alma, qualquer que seja a sua forma, se ele é livre e consciente dos seus pecados, arderá no Inferno a menos que se lhe leve a Boa Nova. Eu não deixarei que um globo marciano arda no Inferno, só porque em meu juízo, ele é apenas um globo. Quando fecho os olhos ele está diante de mim, como uma razão, um amor, uma alma e eu não devo voltar-lhe as costas.
— Mas esta bola de vidro que vós quereis pôr sobre o altar?... — protestou o padre Stone.
— Olhai os chineses — disse o padre Peregrino sem se perturbar—. Que espécie de Cristo é que eles adoram? Um Cristo oriental, naturalmente. Vós todos tendes visto cenas do Natal, à maneira oriental. Como está vestido Cristo? À maneira oriental. Em que ambiente se encontra? Numa paisagem chinesa de bambus, com montanhas nebulosas e árvores retorcidas. Os olhos, oblíquos, os malares salientes. Cada país, cada raça, acrescenta qualquer coisa a Nosso Senhor. Lembro-me da Virgem de Guadalupe que todo o México venera. Como é a sua pele ? Uma pele escura, como a dos seus adoradores. É uma blasfêmia? Não. Não é lógico que os homens aceitem um Deus, sob qualquer realidade, de pele diferente da sua. Muitas vezes me pergunto como é que os nossos missionários conseguem qualquer coisa em África, com um Cristo branco de neve? É, talvez, por o branco ser uma cor sagrada, para as tribos africanas. Com o tempo não se tornará Cristo mais escuro em África? A forma nada significa. Tudo está no conteúdo. Nós não podemos esperar que os Marcianos aceitem uma forma que lhes é estranha. Trazemos-lhes Cristo à sua própria imagem.
— Há uma falha no vosso raciocínio, meu padre — disse o padre Stone —. Não irão os Marcianos suspeitar-nos de hipocrisia? Eles compreenderão que nós não adoramos um Cristo esférico, mas um homem com cabeça, tronco e membros? Como lhes explicaremos a diferença?
— Mostrando-lhes que a diferença não existe! Cristo enche todo o recipiente que se lhe oferecer: corpos ou esferas. Ele está presente, e cada um venera o mesmo Deus, sob diferentes aspectos. Mais ainda: nós devemos crer neste globo que damos aos Marcianos. Nós devemos crer numa forma que, para nós, nada mais é que uma forma. Este objecto esférico será Cristo. E devemos lembrar-nos que nós próprios e o aspecto do nosso Cristo da Terra seremos apenas ridículos, absurdos, um desperdício de matéria para os Marcianos.
O padre Peregrino atirou fora a ponta do giz.
— Agora, subamos as colinas e construamos a Igreja. E os padres começaram a fazer as suas bagagens.
Para falar verdade, não era pròpriamente uma igreja. Era uma plataforma, desembaraçada de rochedos, um pequeno planalto sobre uma das montanhas baixas, com o chão batido e varrido. Tinha um altar sobre o qual o Irmão Matias tinha colocado o globo luminoso que construira.
Ao fim de seis dias de trabalho, a igreja estava concluída.
— Que vamos agora fazer? — perguntou o padre Stone, batendo com os dedos num sino de bronze que tinham trazido. — Que significação pode ter para eles um sino?
— Trouxe-o para nosso próprio conforto — admitiu o padre Peregrino. — Temos necessidade de possuir alguns objectos familiares. Esta igreja parece-se muito pouco com uma igreja. E nós estamos pouco à vontade aqui, eu próprio o sinto. É qualquer coisa de novo: a conversão de seres de um outro mundo. Tenho muitas vezes a impressão de ser um comediante ridículo. E, então, peço ao Senhor que me dê forças.
— Alguns padres não se sentem à vontade; outros gostam, padre Peregrino.
— Bem sei. Vamos pôr este sino num pequeno campanário para, ao menos, os animar.
— E o órgão?
— Acompanhará a primeira missa, amanhã.
— Mas os Marcianos...
— Eu sei. Mas, mais uma vez, suponho que isto nos reconfortará; ouviremos a nossa própria música. Mais tarde descobriremos a deles.
Levantaram-se muito cedo no dia seguinte, domingo, e encaminharam-se para a igreja, como pálidos fantasmas de sotainas molhadas de orvalho, de que sacudiam as gotas argênteas, como campainhas de prata.
— Pergunto-me se será domingo, em Marte? — disse o padre Peregrino, mas, apercebendo-se da careta do padre Stone, apressou-se a acrescentar: — É talvez quarta ou quinta-feira. Sabe-se lá! Mas pouco importa. Dou rédea solta à minha imaginação: é domingo para nós! Vinde.
Os padres chegaram ao planalto e ajoelharam-se, roxos de frio.
O padre Peregrino fez uma pequena oração e pôs os dedos gordos nas teclas do órgão. A música elevou-se como um voo de pássaros. O padre correu os dedos sobre o teclado como um homem que passasse as mãos pelas ervas crescidas de um jardim abandonado, lançando acordes para as colinas.
A música dulcificou a atmosfera como um perfume fresco, matinal, percorreu as montanhas e fez levantar uma poeira mineral.
Os padres esperaram...
— E, então, padre Peregrino? — O padre Stone contemplou o céu deserto, onde o Sol se levantava, vermelho, ardente.
— Não vejo os nossos amigos.
— Deixai-me tentar novamente — o padre Peregrino suava.
Arrancou do órgão uma construção de Bach, pedra após pedra, uma construção tão grande, que o transepto começara em Babilônia e a flecha estava à esquerda de S. Pedro, em Roma. A harmonia não terminou quando o instrumento emudeceu: integrou-se num grupo de nuvens brancas e foi levada para outros lugares.
Mas o céu permanecia deserto.
— Eles virão!
Mas o padre Peregrino sentia-se invadido pelo pânico.
— Oremos! Roguemos-lhes que venham. Eles lêm o pensamento alheio, eles sabem!
Caíram todos de joelhos murmurando a sua oração.
Do lado de Leste, das montanhas geladas, nesta manhã de domingo — ou talvez quinta ou segunda-feira — as bolas chegaram!
Flutuaram, docemente e desceram, trepidando, em roda dos padres.
— Obrigado, obrigado, meu Deus!!
O padre Peregrino fechou os olhos e continuou a tocar. Quando acabou, olhou a espantosa assembléia. Uma voz chegou ao seu espírito e disse: — Nós viemos, apenas, por alguns momentos.
— Podeis ficar — disse o padre Peregrino.
— Alguns instantes apenas — disse «a voz» serenamente. Viemos dizer alguma coisa. Deveríamos ter vindo mais cedo, mas julgamos que vós seguísseis o vosso caminho e nos houvésseis deixado tranquilos...
O padre Peregrino quis falar, mas «a voz» fê-lo calar.
— Nós somos os antigos — disse a voz, que os penetrava como uma vibração de gaz azul que lhe ardia no cérebro — somos os antigos Marcianos, que trocámos as cidades de mármore pelas colinas, abandonando toda a vida material que levávamos. Há muito, muito tempo, tornámo-nos nisto que hoje somos.
Antigamente éramos como vós, homens, com corpo, braços, pernas, como os vossos. A lenda diz que um de nós, um homem bom, descobriu o meio de libertar a alma e a razão humanas, livrando-as do mal das doenças, da morte, das transformações, das paixões e da velhice. Tomamos o aspecto da luz azul e vivemos, ao vento, nos céus, desprovidos de orgulhos e de vaidade, nem ricos nem pobres, nem ardentes nem frios. Separámo-nos dos homens deste mundo. Esquecemos como nos transformámos no que somos. Mas nunca morreremos, nunca faremos mal. Repudiámos os pecados da carne e vivemos na graça de Deus. Não desejamos bens do próximo, porque nada possuímos. Não roubamos, nem matamos, ignoramos a concupiscência e o ódio. Vivemos felizes. Não podemos reproduzir-nos, não comemos nem bebemos. Não fazemos a guerra. De tudo o que é inerente ao corpo, sensualidade e fraquezas, nos desligámos quando à forma corpórea renunciámos. Libertámo-nos do pecado, padre Peregrino. Ele desapareceu como as folhas secas, no Outono, como a neve suja de um Inverno agreste, como as flores de uma Primavera rósea, como as noites arquejantes de um ser ardente. A nossa única estação é temperada, o nosso clima é feito de pensamentos.
O padre Peregrino estava agora, de pé, porque o tom da voz era tal que o arrebatava para fora dos seus próprios sentidos. Era um êxtase e um fogo que o penetrava.
— Ainda queremos dizer que muito apreciamos isto que vós construistes para nós. Mas não necessitamos disso, pois cada um de nós é, em si próprio, um templo e não precisará de um sítio onde se purifique. Perdoai-nos de não termos vindo mais cedo, mas vivemos separados e longe uns dos outros e há dez mil anos que não falamos a ninguém, nem interferimos na vida deste planeta.
Pensais talvez que somos como os lírios dos campos, que não trabalham nem lutam. E tendes razão. Por isso, propomos que pegueis no vosso templo e o transporteis a novas cidades, e, lá, ide purificar outros homens. Podereis crer: nós somos felizes, nós conhecemos a Paz.
Os padres tinham ajoelhado, com o padre Peregrino, sob a imensa luz azul, e choravam. Não se importavam nada de ter perdido o seu tempo.
As esferas luminosas murmuraram e começaram a elevar-se, num sopro de vento fresco.
— Poderei... — gritou o padre Peregrino, hesitando em formular a sua pergunta, de olhos fechados —. Poderei, eu, voltar um dia, para aprender convosco?
Os fogos azuis tiveram um frêmito e o ar tremeu.
— Sim. Um dia, pode ser. Um dia.
Depois as bolas de fogo evolaram-se, desapareceram.
O padre sentiu-se como uma criança abandonada, com o rosto banhado em lágrimas.
— Vinde, vinde!
E seu avô poderia vir, de repente, e levá-lo nos braços para o seu quarto no primeiro andar, da velha casa do Ohio...
Desceram a colina, ao sol-posto.
O padre Peregrino voltou-se e viu as luzes no cimo. Não — pensou ele —. Nós não poderemos construir uma igreja para vós. Vós sois a própria Beleza. Que edifício pode concorrer com as luzes de uma alma pura!
O padre Stone ia a seu lado, silencioso e, depois, disse: — Agora vejo que há uma Verdade em cada planeta e cada um é uma parte da Grande Verdade.
Um dia tudo se juntará como as diferentes partes de um «puzzle». Isto foi uma experiência perturbadora. Nunca mais duvidarei, padre Peregrino. Esta Verdade de Marte é tão verdadeira como a da Terra e elas justapõem-se. Iremos a outros mundos, unindo umas às outras as partes da Verdade, até que o total se coloque perante nós como a luz de um Novo Dia.
— Isso, de vós, é muito, padre Stone!
— Lastimo termos de descer à cidade para nos ocuparmos da espécie humana. Aquelas luzes azuis e aquela voz!... — e o padre Stone teve um calafrio.
O padre Peregrino tomou-lhe o braço e caminharam juntos.
— E, sabeis?— O padre Stone fixava o Irmão Matias que caminhava adiante segurando nos braços a bola de vidro dentro da qual brilhava para sempre uma luz fosforescente.
— Sabeis, padre Peregrino, que aquela bola...
— O quê, padre Stone?
— É Ele. É Ele, apesar de tudo!
Padre Peregrino sorriu. Desceram a colina para a nova cidade.
— Que farias tu se soubesses que era a última noite do Mundo ?
— Que faria? Falas a sério? Não sei, nem pensei nisso. Serviu-se de café. A seu lado, as duas filhas brincavam sobre o tapete da sala.
— Seria bom que pensasses nisso — disse ele.
— Estás a falar a sério? Ele acenou a cabeça. — A guerra?
Ele voltou a acenar a cabeça.
— Não. A bomba atómica ou a bomba de hidrogénio? — Não!
— A guerra bacteriológica?
— Nada disso — insistiu ele mexendo pausadamente o seu café.
— Não compreendo muito bem.
— Nem eu, tão-pouco. É um sentimento que tenho. Por vezes isso mete-me medo e, noutras ocasiões, não sinto terror, mas sim uma grande calma. Olhou para as filhas.
— Nunca te disse nada, mas isto aconteceu-me há quatro ou cinco dias.
— O quê?
— Um sonho que tive. Sonhei que tudo ia acabar e uma voz confirmou-mo. Não uma voz da qual me possa recordar, mas uma voz, apesar de tudo, que dizia que as coisas iam cessar sobre a Terra. Não pensei muito no caso, no dia seguinte. Mas, no escritório, dei conta de que o Stan Willis olhava pela janela, à tarde. Perguntei-lhe em que pensava. Disse-me que tinha tido um sonho na noite passada e, antes que mo contasse, eu já sabia o que era. Mas deixei-o contar.
— Era o mesmo sonho?
— Exactamente! E eu disse-lho. Não pareceu surpreendido. Então, percorremos o escritório. Partimos um para cada lado e, em todos os cantos, vimos pessoas que olhavam para o chão ou pela janela. Falei a alguns e Stan também.
— Todos tinham tido o mesmo sonho?
— Todos. — Acreditas?
— Sim. Nunca estive tão certo de qualquer coisa.
— E quando vai ele parar? O Mundo, quero dizer...
— Em certo momento da noite, para nós. E à medida que a noite se estenda pela Terra, o fim chegará. Demorará, ao todo, vinte e quatro horas.
Ficaram diante das chávenas de café, sem nelas tocar, durante muito tempo. Depois beberam olhando-se nos olhos.
— Será que nós o merecemos ? — perguntou ela.
— Não se trata de o merecer. Mas noto que nem sequer discutes. Porquê ?
— Tenho, sem dúvida, uma razão.
— A mesma que os meus colegas do escritório?
Ela fez que sim com a cabeça: — Eu não queria dizer-te. Aconteceu a noite passada. Todas as mulheres falavam disso, hoje, no bairro. Elas também sonharam. Acreditei numa coincidência.
Ele apoiou-se no braço da cadeira, observando-a:
— Não tens medo?
— Não. Sempre acreditei que tivesse, mas agora não tenho.
— Onde está esse famoso instinto de conservação de que tanto se falou?
— Não sei. Não ficamos espantados quando as coisas são lógicas. E isto é lógico. Nada a não ser isso podia acontecer, dada a maneira como vivemos.
— Não fomos assim tão maus! Que pensas?
— Não. Nem muito bons. Não fizemos grande coisa enquanto a maior parte do Mundo estava ocupada a praticar coisas abomináveis.
As crianças riram-se, na sala.
— Sempre pensei que numa ocasião destas as pessoas se pusessem a gritar no meio da rua.
— Não, nunca se grita por causa da coisa verdadeira.
— Sabes, nada receio, a não ser por ti e pelos filhos. Nunca gostei da cidade, nem do trabalho, de nada, a não ser de vós. Penso que deve ser a primeira vez na história do nosso globo que toda a gente sabe o que vai acontecer durante a noite.
— Penso no que irão fazer durante as horas que se vão seguir.
— Ir ao cinema, ouvir a telefonia, olhar a televisão, jogar às cartas, deitar as crianças, tal como todos os dias.
Assim ficaram mais algum tempo e, depois, ele disse:
— Porque crês que será esta noite?
— Porque sim.
— Porque não em outra noite do último século, ou há quinhentos ou mil anos?
— Talvez porque nunca foi o dia 19 de Outubro de 1969, que é a data de hoje. Porque esta data tem um significado maior que qualquer outra na história; porque é o dia em que as coisas são o que são, no mundo inteiro e eis porque é o fim.
— Há bombardeiros prestes a fazer o seu voo regular sob o Oceano, nos dois sentidos e que nunca mais aterrarão.
— Isso faz parte do porquê.
Às oito e meia, as crianças foram deitadas, aconchegadas e beijadas.
— Pergunto a mim próprio... — disse ele voltando do quarto de dormir.
— O quê?...
— Se será necessário fechar a porta ou deixá-la aberta para que entre um pouco de luz.
Instalaram-se próximo do fogão, leram os jornais, ouviram a rádio e ficaram a olhar o fogo. O relógio deu dez horas, depois as onze, a seguir as onze e meia. Eles pensavam em todas as outras pessoas do Mundo.
— Pois bem! — disse ele, abraçando a mulher.
— De qualquer maneira fomos bons um para o outro. Apetece-te chorar ?
— Creio que não!
Apagaram as luzes, entraram no quarto de dormir, despiram-se.
— Estou cansada.
— Estamos cansados.
— Espera um momento — disse ela. Ouvia-a dirigir-se à cozinha.
— Esqueci-me de fechar bem uma torneira.
Havia nisso algo de ridículo e ele desatou a rir. Ela riu com ele., compreendendo o ridículo do que havia feito. Pararam enfim de rir e ficaram estendidos sobre o leito fresco, lado a lado, mão com mão.
— Boa noite — disse ele um momento depois.
— Boa noite — respondeu ela.
Os olhos chamejavam e as feiticeiras, respirando o fogo, inclinaram-se sobre o caldeirão para remexer o licor com uma vara engordurada, onde os ossudos dedos se crispavam.
Quando iremos à reunião
Sob o raio e o trovão?
Dançavam, esbracejando, na praia de um mar vazio, fazendo silvar o ar com as línguas, o ar que crepitava diante dos seus olhos de gato.
Dançamos em volta do caldeirão
Nele lançamos as tripas envenenadas!
Grande trabalho! Grande trabalhão!
Ferve caldeira, nas chamas encarnadas!
Pararam, olhando à volta.
— Onde está o cristal? Onde estão as agulhas?
— Aqui estão.
— A cera amarela já coalhou? — Já!
— Lançai-a na forma de ferro!
— O modelo de porcelana está pronto?
As feiticeiras verteram a cera esverdeada deixando-a gotejar das mãos aduncas.
— Espetai a agulha no coração!
— O vidro, o vidro! Tirem-no do saco das cartas do «tarot». Limpem-no! Olhem!
As faces lívidas inclinaram-se sobre a bola de cristal. Uma astronave atravessava o espaço da Terra para Marte. No interior havia homens moribundos.
O capitão levantou o rosto fatigado:
— É preciso empregar morfina.
— Mas, capitão...
— Veja o estado em que ele se encontra. O capitão ergueu o cobertor e o homem deitado teve um movimento convulsivo.
— Eu vi-o... Eu vi-o... — O homem abriu os olhos e espreitou pela vigia para além da qual só havia o espaço negro e estrelas que rodavam na sua órbita. A Terra já estava muito longe e o planeta Marte aparecia enorme e vermelho. — Eu vi-o... um enorme morcego, um morcego com rosto de homem espreitando por aquela vigia.
— Qual é a pulsação? — perguntou o capitão. O enfermeiro verificou-a.
— Cento e trinta.
— Ele não pode continuar assim. Dê-lhe uma injecção de morfina.
— Venha comigo, Smith!
Afastaram-se. De repente o chão cobriu-se de ossadas e caveiras, que lançavam gritos. O capitão não ousava olhá-las e, elevando a voz acima dos gritos, disse:
— É ali que está Pers? — e indicou um beliche.
Um cirurgião vestido de branco levantou-se à sua aproximação :
— Confesso que não compreendo nada!
— De que é que Pers morreu?
— Não sabemos, capitão. Não foi do coração nem do cérebro, nem devido a um estado de choque. Morreu, é quanto sabemos.
O capitão apalpou o pulso do médico. O pulso transformou-se numa serpente que, assobiando, lhe mordeu a mão. O capitão nem pestanejou:
— Cuide de si! Também tem grande pulsação. O médico abanou a cabeça:
— Pers queixava-se de dores semelhantes a picadelas de agulhas, dizia ele, nos braços e nas pernas. Sentia-se como se fosse cera prestes a derreter. Desfalecia e eu ajudei-o a erguer-se. Chorava como uma criança dizendo que tinha uma agulha no coração. Agora morreu. Se o desejar, podemos fazer uma autópsia. Do ponto de vista físico tudo é normal.
— É impossível! Ele morreu de qualquer coisa!
O capitão debruçou-se sobre uma vigia. Tinha as mãos cuidadosamente tratadas, cheirava a iodo, mentol e sabão anti-séptico. Os dentes tinham sido cuidadosamente escovados e as orelhas e as faces estavam rosadas pela fricção da lavagem. O uniforme tinha a cor do sal quimicamente puro e as botas altas reluziam como espelhos. Tinha o cabelo cortado rente, cheirando a loção capilar. Até o seu hálito era agradável e profilático. Não tinha uma única nódoa. Era um instrumento novo em folha, bem cuidado, ainda quente do autoclave. Os componentes da sua equipagem eram do mesmo gênero. Poder-se-ia imaginar terem uma chave de dar corda nas costas. Eram aparelhos muito caros, bem lubrificados, polivalentes, obedientes e rápidos.
O capitão observou o planeta Marte que, no espaço, crescia.
— Dentro de uma hora aterraremos neste maldito planeta. Viu morcegos ou coisas semelhantes, Smith?
— Sim, capitão. Um mês antes da nossa decolagem de Nova York. Ratos brancos que me mordiam no pescoço, sugando-me o sangue. Não disse nada com receio de que não me deixassem partir.
— Isso não tem importância — suspirou o capitão —. Também eu tive sonhos. Durante cinqüenta anos nunca sonhei a não ser na semana que precedeu a nossa partida. Então, todas as noites, sonhei que era um lobo branco, cercado no alto de uma colina coberta de neve, morto por uma bala de prata e, depois, enterrado com uma vara atravessada no coração —. Apontou com o rosto para Marte — : Parece-lhe que eles sabem que nós estamos prestes a chegar?
— Não se sabe se há Marcianos, capitão.
— Não ?! Mas há oito semanas, antes de termos partido, eles começaram a aterrorizar-nos. Mataram Pers e Reynolds. Ontem cegaram Grenville. Com que meios? Não sei. Morcegos, agulhas, pesadelos, homens que morrem sem razão aparente... Se estivéssemos numa outra época, diria que isto é magia. Mas estamos em 2120, Smith! Somos seres racionais. Tudo aquilo não pode existir. Mas existe! Quem quer que seja, vai tentar exterminar-nos com as agulhas e os morcegos.
O capitão voltou-se bruscamente para Smith: — Vá buscar aqueles livros que estão na minha estante. Quero tê-los comigo quando aterrarmos.
Duzentos livros foram empilhados no chão da cabina.
— Obrigado, Smith. Viu do que se tratava? De certo julga que sou louco. Talvez... Foi um pressentimento que tive. Precisamente antes de partir pedi estes livros ao Museu Histórico, por causa dos meus sonhos. Durante vinte noites sonhei que me davam facadas e que era um animal amarrado numa mesa de operações. Uma coisa que apodrecia numa caixa negra... Todos os homens da equipagem sonharam com feitiçarias, vampiros, fantasmas, coisas das quais eles nada sabiam. Isto porque todas as obras que versavam esses horríveis temas foram destruídas acerca de cem anos, de acordo com a lei. É proibido, seja a quem for, possuí-las. Estes que aqui vê são os derradeiros exemplares guardados, com fim histórico, na casa-forte do museu.
Smith inclinou-se para poder ler os títulos empoeirados: Contos de Mistério e Imaginação, de Edgar Allan Poe. Drácula, de Bram Stoker. Frankenstein, de Mary Shelley. Calafrio, de Henry James. A Lenda do Vale Adormecido, de Washington Irving. A Filha de Rappacini, de Nathaniel Hawthorne. O Incidente da ponte de Owl Creek, de Ambrose Bierce. Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll. Os Salgueiros, de Algernon Blackwood. O Feiticeiro de Oz, de Frank Baum. A Estranha Sombra sobre Innsmouth, de H. P. Lovecraft. E ainda outros livros de Walter de la Mare. Wakefield, Harvev Wells, Asquith, Huxley, todos eles interditos. Queimados no mesmo ano em que foi proibido o Carnaval e o Natal.
— Mas, capitão, para que nos servem estas obras a bordo do foguete?
— Ainda não sei — suspirou o capitão.
As três feiticeiras ergueram a bola de cristal onde a imagem do capitão se agitava. Uma vozita repetia: «Ainda não sei».
As três feiticeiras fitaram-se nos olhos vermelhos.
— Já não temos muito tempo — disse uma delas.
— É melhor prevenir os da cidade — alvitrou outra.
— Eles quererão saber o que se passa com os livros. É um caso grave. Esse imbecil do capitão!
— O foguete vai aterrar dentro de uma hora.
As três feiticeiras estremeceram, fixando os olhos ardentes sobre a Cidade de Esmeralda, situada na margem do oceano seco de Marte. Na mais alta janela da cidade um homenzinho afastou um reposteiro vermelho. Observou o deserto onde as três feiticeiras ferviam o caldeirão e modelavam a cera. Mais longe, dez mil outros fogos azuis — incenso de loureiro, negro fumo de tabaco, de joio e de pó de ossadas — palpitavam como insectos na noite marciana. O homem contou as fogueiras mágicas e crepitantes. Depois deixou cair o reposteiro e a janela piscou o seu olho amarelo.
O sr. Edgar Allan Poe assomou à janela da torre envolto num tênue e vaporoso véu.
— As amigas de Hécate estão esta noite muito atarefadas — comentou ele, observando as feiticeiras na planície.
Uma voz atrás dele disse-lhe:
— Vi William Shakespeare no areal. Ao longo de todo o mar, a corte de Shakespeare é esta noite constituída por milhares de personagens: as três feiticeiras, Oberon, o pai de Hamlet, Puck e todos os outros, milhares deles. Um mar de gente!
— Grande William!
Poe voltou-se deixando cair o reposteiro encarnado. Durante um instante observou a pedra nua das paredes, a mesa de castanho enegrecido, os candelabros e o outro homem, o sr. Ambrose Bierce, confortàvelmente instalado, acendendo fósforos que se consumiam. Assobiava e, de vez em quando, dava uma risadinha.
— Agora temos de ir falar ao sr. Dickens — disse o sr. Poe. — Não podemos demorar-nos. É uma questão de horas. Pode acompanhar-me, Bierce?
— Estava precisamente a perguntar a mim próprio — exclamou Bierce quase alegremente — o que nos vai acontecer...
— Se não conseguirmos matar os homens do foguete ou atemorizá-los a ponto de os fazer retroceder, teremos de nos ir embora. Partiremos para Júpiter e quando eles aí chegarem, partiremos para Saturno; e quando eles chegarem a Saturno iremos para Urano ou Neptuno e depois para Plutão...
— E depois?...
O rosto do sr. Poe tinha sinais de cansaço; nos seus olhos agitavam-se clarões esbraseantes; falava com uma espécie de triste raiva; nas suas mãos havia inutilidade, bem como na mecha de cabelos que lhe caía sobre a fronte extraordinariamente branca. Era como se fosse um demónio de uma grande causa tenebrosa e perdida, um general sobrevivendo a uma derrota. O negro bigode bem tratado encimava os seus meditativos lábios. Era de tão pequena estatura que a sua fronte parecia flutuar, vasta e fosforescente, no quarto obscurecido.
— Nós temos a vantagem dos meios de deslocação superiores — disse ele —. Ainda podemos ter a esperança de uma dessas guerras atómicas, o desbarato, um regresso à idade primitiva, à superstição. Poderemos então regressar à Terra, todos nós, numa só noite. — Os olhos negros do sr. Poe estavam voltados para o teclo. — Eles vêm para destruir também este mundo. Levam a devastação a toda a parte, não é verdade? Porventura uma alcateia de lobos se detém antes de abater a presa e devorar-lhe as entranhas ? Isto vai ser uma verdadeira guerra. Ficarei de lado para contar as vitórias... Terrestres cozidos em azeite a ferver, traspassados por agulhas. Mortes Vermelhas a debandarem perante uma bateria de seringas hipodérmicas... Ah, ah, ah!
Poe teve um gesto encolerizado. O vinho que bebera subia-lhe ligeiramente à cabeça.
— Que mal é que fizemos? Por amor de Deus, Bierce, seja dos nossos. Fomos, porventura, objecto de um julgamento equitativo ou comparecemos perante um areópago de críticos literários? Não! Desfolharam os nossos livros com pinças cirúrgicas esterilizadas, lançaram-nos em cubas onde arderam para que todos os germes de morte perecessem. Malditos sejam!
— Eu acho a nossa situação bastante divertida — respondeu Bierce.
Foram interrompidos por um chamamento histérico que vinha da escada da torre.
— Sr. Poe, sr. Bierce! — Já vamos, já vamos!
Desceram os dois e no corredor encontraram um homem que tentava normalizar a respiração.
— Já sabem a novidade? — gritou ele imediatamente, agarrando-se a ambos como se fosse cair de uma falésia.
— Dentro de uma hora eles vão aterrar! Trazem livros, velhos livros! Disseram as feiticeiras. O que estão os senhores a fazer na torre numa altura destas? Porque não agem?
— Fazemos o que podemos, Blackwood — respondeu Poe.
— A sua atitude não é nada simpática. Venha connosco. Vamos a casa do sr. Charles Dickens...
— ...para contemplar a nossa perdição, a nossa derrota — completou o sr. Bierce, piscando o olho.
Desceram ao longo dos estreitos corredores do castelo, pelos vários andares, entre a humidade das ruínas, as aranhas e as criaturas da noite.
— Não se inquietem — disse Poe —. A sua fronte, qual uma lanterna opalescente, precedia-os penetrando nas profundezas —. Chamei esta noite todos os outros que vivem ao longo do Mar Morto, os vossos amigos e os meus. Todos aguardam: os animais, os velhos e os homens esqueléticos de aguçados dentes. Os alçapões, os poços e os pêndulos estão prontos. E também a Morte Vermelha. — Riu-se suavemente. — Sim, também a Morte Vermelha. Nunca pensei, não. nunca pensei que tempos viriam em que uma coisa como a Morte Vermelha pudesse, na realidade, existir. Mas eles assim o quiseram, assim o terão!
— Mas seremos nós suficientemente fortes ? — perguntou Blackwood.
— Qual é a força do forte ? Pelo menos, não podem competir connosco. Não têm a imaginação necessária. Esses homens jovens e higiênicos, nas suas naves, de cuecas antissépticas e os seus capacetes em forma de tigela, com a sua nova religião! À volta do pescoço, suspensos de cadeias de oiro, trazem escalpos. Na cabeça, um diadema de microscópios. Nos seus intocáveis dedos, fumegantes urnas de incenso que, na realidade, são autoclaves para esterilizar a superstição. Nos seus puros lábios os nomes de Poe, Bierce, Hawthorne, de Blackwood são blasfêmias.
Tinham saído do castelo e caminhavam sob uma espécie de pântano de onde se exalavam vapores que eram como que uma substância de pesadelo. Ouvia-se um frêmito de asas, o uivar do vento, tudo era trevas... Vozes murmuravam, silhuetas recortavam-se diante das fogueiras. O sr. Poe reparou nas agulhas que, maldosamente, executavam a sua tarefa à luz do braseiro; agulhas que entrançavam dores e penas, males e sofrimentos, em bonecos de cera ou de argila. Os caldeirões, silvando, exalavam odores de alho bravio, de pimenta e açafrão, enchendo a noite de maus cheiros.
— Continuem! Eu voltarei — disse Poe.
Ao longo de toda a margem do Mar Morto, circulavam formas negras, que logo desapareciam, aumentavam ou se desvaneciam no céu, em fumo negro. Nas torres das montanhas os sinos dobravam a finados e os corvos, afugentados com os sons do bronze, dispersavam-se em cinzas.
Depois de terem atravessado um terreno desvastado, Poe e Bierce entraram num pequeno vale, onde imediatamente se encontraram numa rua pavimentada. Fazia um frio mordente e os transeuntes batiam os pés para se aquecer. Havia nevoeiro. Nas janelas das casas e dos estabelecimentos onde se viam pendurados os perus do Natal, cintilavam velas. Perto, um grupo de crianças, bem agasalhadas, com nuvens de vapor diante das bocas abertas cantava: Deus está na Terra ?, no momento em que num relógio enorme soavam as doze badaladas da meia-noite. Um outro grupo de crianças saiu, a correr, de uma pastelaria transportando ceias fumegantes em travessas de prata.
Numa porta encimada por uma tabuleta onde se podiam ler os nomes de Scrooge, Marley e Dickens, Poe levantou o batente, que representava Marley, e bateu. A porta abriu-se e uma onda musical, que quase os lançou numa dança, envolveu-os. E lá dentro, viu, por cima dos ombros de um homem que apontava para eles uma barbicha e uns bigodes, o sr. Fezziwig, que dava palmas e a sr.ª Fezziwig, com um largo e permanente sorriso nos lábios, que dançava e saltava com outros alegres companheiros, ao ritmo de um alegre violino; entretanto, à volta de uma mesa, onde se acumulavam perus e patos, empadas, entre ramos de azevinho, brotavam alegres risadas; havia também leitões, coroas de salsichas, laranjas e maçãs. E à volta da mesa estavam sentados Bob Cratchit e Little Dorrit, Tiny Tin e até o sr. Gagin; e também um homem que tinha o ar de um bife não digerido, de um pouco de mostarda, de uma fatia de queijo, de um bocado de batata mal cozida, e que era, nem mais nem menos que o sr. Marley, de casaca e com as cadeias. O vinho corria a jorros e as vitualhas fumegavam apetitosamente.
— Que desejam? — perguntou o sr. Charles Dickens.
— Vimos suplicar-lhe mais uma vez, Charles. Precisamos da sua ajuda — afirmou Poe.
— Da minha ajuda? Crêem, porventura, que vou ajudá-los a combater esses valentes que vão chegar na astronave? De qualquer maneira eu não sou destes sítios. Foi por engano que queimaram os meus livros. Não sou um supernaturalista. Não descrevi horrores, como você, Poe, ou você, Bierce. Não tenho nada a ver com vocês, homens terríveis!
— O senhor consegue persuadir quando fala. Poderia ir ao encontro desses homens do espaço, acarinhá-los, adormecer as suas suspeitas... e depois... nós nos encarregaríamos do resto.
O sr. Dickens observava as dobras de capa negra que dissimulava as mãos de Poe. Sorrindo, Poe fez aparecer um gato negro.
— Para um dos nossos visitantes — disse ele.
— E para os outros?
Poe sorriu novamente, com um ar satisfeito.
— A Inumação Prematura — murmurou. — Você é um homem sinistro, Poe.
— Sou um homem assustado e colérico. Sou um deus, sr. Dickens, da mesma forma que o senhor ou qualquer um de nós; e as nossas invenções, as nossas criaturas, se assim quiser, não foram sòmente ameaçadas, como banidas e queimadas. Laceradas e censuradas, destruídas e lançadas ao lixo. Os mundos que criamos caem em ruína. Mas mesmo os deuses devem combater!
— Pois claro! — O sr. Dickens inclinou a cabeça, impaciente por voltar para a festa, para a música e as vitualhas. — Talvez me possa explicar porque estamos aqui? E como é que cá chegámos?
A guerra engendra a guerra. E a destruição, a destruição. Na Terra, há um século, no ano 2020, os nossos livros foram proibidos. Que abominável coisa destruírem assim as nossas criações literárias! Isso fez-nos sair de quê? Da morte? Do Além? Não gosto das coisas abstractas. Não sei. Sei sòmente que os nossos mundos e as nossas criações lançaram-nos um apelo e que nós tentamos salvá-los; e que a única coisa que conseguimos fazer foi esperar que decorresse um século em Marte, na esperança de que a Terra sufocasse sob o peso dos sábios e das suas dúvidas; mas, agora, eis que chegam para nos pôr em debandada, a nós e às nossas tenebrosas coisas, e todos os alquimistas, as feiticeiras, os vampiros e os espectros que, um a um, recuaram no espaço à medida que a Ciência, infiltrando-se em todas as regiões da Terra, não lhes deixou, por fim, outra alternativa a não ser o êxodo. Deveria ajudar-nos! Sabe discursar e nós precisamos de si!
— Repito-lhe que não sou um dos vossos. Não aprovo nada do que faz, nem do que fazem os outros — gritou Dickens, encolerizado. — Nunca me diverti com feiticeiras, vampiros ou coisas que aparecem à meia-noite.
— E a sua Balada de Natal?
— Ridículo! Uma única história... Sim, talvez tivesse escrito mais algumas outras sobre fantasmas. E depois? As minhas principais obras nada tinham a ver com esses disparates.
— A justo título ou por lapso, meteram-nos no mesmo saco... Eles também destruíram os seus livros e as suas criaturas. Deveria odiá-los, sr. Dickens!
— Admito que eles sejam estúpidos e ignorantes. Mas é tudo. Muito boa noite!
— Deixe-nos ao menos o sr. Marley! — Não!
A porta bateu. Quando Poe já estava na rua viu chegar, deslizando pela geada, um grande coche, cujo condutor buzinava acompanhando uma ária; e os membros do Pickwick Club apearam-se, entre risadas e canções, bateram à porta e desejaram um «Feliz Natal», bem sonoro, ao anafado «groom».
O sr. Poe apressou-se sobre o areal do mar seco. Deteve-se um momento junto dos braseiros fumegantes para dar algumas ordens, observar o efervescente conteúdo dos caldeirões, a destilação dos venenos, a inscrição dos pentagramas.
— Muito bem! Perfeitamente! — disse, retomando o caminho.
Pessoas houve que começaram a correr a seu lado, como o sr. Coppard e o sr. Machen. E havia serpentes que silvavam, furiosos demónios, dragões exalando chamas, feiticeiras agitando-se em convulsões, toda uma série de seres peludos e eriçados de picos, providos de garras, espumando e rangendo, despojos do mar da imaginação deixados na praia.
O sr. Machen parou. Como se fosse uma criança sentou-se, a soluçar, na areia fria. Tentaram acalmá-lo, mas em vão.
— Estive a pensar — gemia ele — o que será de nós quando os derradeiros exemplares dos nossos livros forem destruídos?
— Não fale disso!
— É preciso falar! Agora, agora que o foguete se aproxima, os senhores, Poe, Coppard e o senhor, Bierce, todos vocês se esfumam. O vento vos leva. Os vossos rostos dissolvem-se...
— A morte, a verdadeira morte para todos nós!
— Só existimos para sofrimento da Terra. Se uma lei definitiva destrói os últimos exemplares das nossas obras seremos como a luz de uma candeia que se apaga.
— Pergunto a mim próprio quem sou — murmurou Coppard —. Em que espírito da Terra viverei esta noite? Talvez num africano. Num eremita debruçado sobre os meus contos ? É ele o solitário facho no vento do tempo e do conhecimento? É ele o astro cintilante que apazigua o meu revoltado exílio? É ele? Oh! na noite passada estive doente, doente até à medula dos ossos, porque tal como há um corpo do corpo, também há um corpo da alma; e este corpo da alma doía-me e a noite passada senti-me como o pavio bruxuleante de uma vela que se apaga. Mas, de repente, ergui-me com uma nova luz! Como se uma criança a quem a poeira faz espirrar tivesse encontrado, num sótão abandonado, um dos meus livros arruinado e amarelecido pelo tempo. Uma curta treva foi-me concedida!
Uma porta bateu numa cabana próxima da margem. Um homenzinho macilento, de carnes flácidas e enrugadas, surgiu, e, sem dar atenção ao grupo, sentou-se com os olhos fixos nos punhos fechados.
— Ali está um de quem eu tenho pena — murmurou Blackwood. — Reparem, está prestes a morrer. Ele foi mais real que qualquer de nós, que fomos homens. Pegaram nele, como uma idéia vã, revestiram-no de séculos de rosada carne, deram-lhe uma barba de neve, uma vestimenta de veludo encarnado, umas botas negras e entregaram-lhe renas, ouropéis e um cabaz. E depois de séculos de trabalho lançaram-no numa cuba de desinfecção.
Ficaram silenciosos.
O que será a Terra, pensou Poe, sem o Natal ? Sem castanhas quentes, pinheirinhos, sem enfeites, estrelinhas ou velas?... Nada... nada a não ser neve, o vento, os homens solitários agarrados aos factos...
Contemplaram o velhinho encolhido, de barba escorrida, as roupas a desfazerem-se.
— Conhece a sua história?
— Posso imaginá-la. O psiquiatra de olhos brilhantes, o lúcido sociólogo, o pedagogo cheio de ressentimentos, salivando abundantemente, os pais profiláticos...
— Uma situação deplorável — disse Bierce sorrindo — para os comerciantes que, tanto quanto me lembro, punham, nesta época, nas vitrinas, o azevinho, louvando o Natal desde a véspera de Todos-os-Santos.
Interrompeu-se e caiu para a frente com um suspiro. Só teve tempo para dizer: «Como é curioso!». Horrorizados, os outros viram o seu corpo consumir-se, transformando-se numa poeira azulada, em ossos calcinados; as cinzas dispersaram-se ao vento em flocos negros.
— Bierce! Bierce!
— Acabou-se!
— O seu último livro! Alguém acabou de o queimar na Terra!
— Que descanse em paz! Agora já nada resta dele. Que somos nós a não ser livros? Quando estes desaparecerem, nada mais existirá.
Um rugido encheu o céu.
Todos gritaram aterrorizados. Por cima deles, entre incandescentes nuvens que os ofuscavam, surgiu a astronave! Nas margens agitaram-se lâmpadas, ouviram-se coisas a gemer, a gorgolejar e o odor dos filtros espalhou-se. Máscaras iluminadas no interior elevaram-se no ar glacial. Dedos aduncos apontaram, uma feiticeira ululou:
Cai nave, cai e rebenta,
Maldita, arde no ar
Espalha as entranhas queimadas,
Fel de múmia! Ressalgar!
— É a altura de partirmos — segredou Blackwood — para Júpiter, Saturno ou Plutão.
— Fugir? — gritou Poe —. Nunca!
— Estou velho, tenho medo.
Poe fitou-o e verificou que era verdade. Escalou um montículo e encarou as dez mil sombras cinzentas, os vapores esverdeados, os olhos amarelos.
— Os pós! — gritou.
Sentiu-se um cheiro a amêndoas amargas, a civeta, a cominhos, quenopódia a íris fétida.
O foguete descia implacavelmente, rugindo como um possesso. Os morcegos avançaram, e corações em chamas, sangrentos projécteis, deflagraram no ar queimado. A nave descia, incessante como um pêndulo, devorando o espaço, enquanto Poe gesticulava, com fúria, soltando imprecacões. O Mar Morto assemelhava-se a um poço onde, apanhados de surpresa, eles aguardavam a queda da terrível máquina, da faiscante arma, a avalanche que sobre eles desabava.
— As serpentes! — gritou Poe.
Esverdeadas contorções lançaram-se em direcção ao foguete. Mas este descia em voo morto, chamejando e com uma exalação vermelha, imobilizou-se no areal, a uma milha de distância.
— Ao ataque! — berrou Poe. — É a nossa última esperança! Para a frente! Assaltemo-los! Massacremo-los!
Qual mar em fúria a que tivesse sido ordenado mudar de leito, deslocar-se do seu primitivo lugar, turbilhões e vórtices de fogo precipitaram-se pelo areal, rápidos como o vento, a chuva e o relâmpago, ao longo dos desfiladeiros e dos desertos, dos meandros, trovejando e silvando, bramindo e espumando, em direcção ao foguete agora silencioso que jazia numa cratera. Um imenso caudal de lava incandescente corria como um rio ígneo lançando sulfurosos vapores e precipitava-se nos desérticos abismos.
Os homens saltaram do foguete com armas na mão, cautelosamente, perscrutando à sua volta. Nada viram. Ficaram calmos.
O capitão foi o último a sair. Deu ordens rápidas. Juntaram lenha, acenderam uma fogueira. O capitão reuniu a equipagem à sua volta, em semicírculo.
— Eis um mundo novo — disse ele esforçando-se por falar com à-vontade, apesar dos olhares que lançava por cima do ombro para o mar vazio —. Deixamos atrás de nós o velho Mundo. Recomeçaremos. Nada será mais simbólico do que nos consagrarmos, aqui, com uma nova resolução, à ciência e ao progresso.
Fez um sinal com a cabeça ao imediato.
— Os livros!
As chamas iluminaram os títulos doirados: Os Salgueiros... O Homem de parte nenhuma... O Sonhador... O Dr. Jekill e Mr. Hyde... O Feiticeiro de Oz... Pellucidar... A Terra que o Tempo esqueceu... Sonho de uma noite de Verão... e os monstruosos nomes de Machen, Poe, Cabell, Blackwood, Dunsanny, Lewis Carroll, os velhos, os malditos nomes...
— Um mundo novo. Com um gesto queimamos os restos do antigo.
O capitão rasgou as páginas e, folha a folha, lançou-as nas chamas.
Um grito!
Os homens deram um salto para trás, perscrutando, para além da fogueira as margens do mar deserto que os rodeavam.
Um outro grito! Um som traspassante e lamentoso como a agonia de um dragão, o espasmo de um cetáceo, espadejando nas areias de um oceano evaporado.
Era uma corrente de ar aspirado por um imenso vácuo, onde, no instante anterior, tivesse existido qualquer coisa.
O capitão entretinha-se a despachar o último livro, lançando-o ao fogo.
O ar deixou de vibrar.
Silêncio!
Os homens da astronave inclinaram-se, para escutar.
— Ouviu, capitão ? — Não.
— Parecia uma vaga, capitão, uma vaga que viesse do fundo do mar. Pareceu-me ver qualquer coisa. Além! Uma vaga negra, enorme, dirigindo-se para nós!
— Vocês enganaram-se.
— Acolá, capitão!
— O que é?
— Não vê? Acolá! A cidade, lá ao longe. Uma cidade verde, junto ao lago! Está a partir-se em duas! Ruiu!
Os homens perscrutaram intensamente as trevas.
Smith ainda estremecia. Levou a mão à cabeça, como para se lembrar de qualquer coisa.
— Já me recordo. Sim, é isso. Já foi há muito tempo, quando eu ainda era criança. Um livro que li... uma lenda: Oz, sim, creio que era Oz. Sim, a Cidade de Oz...
— Oz? Nunca ouvi falar.
— Sim, Oz, é precisamente isso. Vi-a agora, como na história. Vi-a ruir.
— Smith!
— Capitão ?
— Amanhã apresente-se para um exame psicanalítico.
— Sim, capitão! Smith fez a continência.
— Estejam alerta!
Os homens avançaram na ponta dos pés, a arma erguida, dirigindo-se para lá da luz antisséptica da nave, para inspeccionar o mar e as colinas baixas.
— Ora! — murmurou Smith, desiludido. — Afinal não está cá ninguém. Absolutamente ninguém!
O vento fez deslizar a areia sob as suas botas altas.
Tinha fumado um maço de cigarros em duas horas.
— Qual é a distância que já percorremos? — Um milhão de milhas.
— Um milhão de milhas desde onde? — perguntou Hitchcock.
— Depende — reflectiu Clement, que não fumava —. Pode ser a partir da nossa terra.
— Está bem.
— Da nossa terra. Da Terra. Nova York. Chicago. De onde partimos.
— Não me recordo — disse Hitchcock. — Agora já não sei se existe a Terra. E tu?
— Sim — respondeu Clemens. — Esta manhã tive um sonho. — No espaço não há manhã.
— Então foi à noite.
— É sempre noite — murmurou Hitchcock. — A que noite te referes?
— Cala-te — retorquiu Clemens, irritado. — Deixa-me falar.
Hitchcock acendeu mais um cigarro. A mão não tremia, mas dir-se-ia que sob a pele bronzeada havia uma trepidação estranha, pequena, em cada mão, mas enorme em todo o corpo. Os dois homens estavam sentados no pavimento da galeria de observação, frente às estrelas. Os olhos de Clemens brilhavam, os de Hitchcock não assentavam em nada, estavam inquietos e imprecisos.
Levantei-me às 05:00 horas — disse ele, como se falasse com a sua mão direita —. E ouvi-me a gritar para mim próprio: Onde estou ? Onde estou ? E a resposta foi: em nenhum sítio! Então perguntei: Onde estive? E ouvi-me a dizer: na Terra. O que é a Terra? — interroguei-me —. Foi onde nasci, respondi-me. E isto não significava nada, era pior do que nada. Não acredito em nada que não possa ver, ouvir ou tocar. Se eu não posso ver a Terra porque carga de água devo acreditar que existe? É muito mais seguro não acreditar.
— Está além, a Terra — disse-lhe Clemens, apontando-a com um leve sorriso —. É aquele ponto de luz, acolá.
— Não é a Terra, é o nosso Sol. Daqui não podemos ver a Terra.
— Pois eu posso vê-la. Tenho uma boa memória.
Não é a mesma coisa, seu parvo! — exclamou Hitchcock, bruscamente. Havia laivos de cólera na sua voz. — Eu quero dizer: ver. Sempre fui assim. Quando estava em Boston, Nova York não existia para mim. Quando, durante o dia, não via determinado indivíduo, era como se ele tivesse morrido. E se o encontrava na rua era como se ele ressuscitasse. Poderia dar pulos de alegria, vendo-o de novo. Pelo menos eu era assim, antigamente. Mas agora já não salto de alegria. Observo. E quando o tal indivíduo se afasta, morreu de novo.
Clemens riu-se.
— Isso quer dizer apenas que o trabalho do teu espírito está situado a um nível primitivo. Não podes ficar preso aos objectos. Não tens imaginação, meu velho. É necessário que aprendas a agarrar-te às coisas.
— Que lucro eu agarrando-me a coisas que não posso utilizar? — perguntou Hitchcock, com os olhos abismados —. Sou um homem prático. Se a Terra não está aqui para que eu possa dar uma volta em qualquer povoação, queres que dê um passeio pela memória que recorda? Isso faz mal. As recordações, já o dizia meu pai, são como o porco-espinho. Que vão para o diabo! Fora com elas! Fazem-nos infelizes. Impedem-nos de trabalhar. Fazem chorar.
— Neste momento estou quase a passear na Terra — disse Clemens com um olhar vago, distante.
— Tu domesticas porcos-espinhos. Mais tarde não poderás jantar e perguntarás porquê. Porque um punhado de espinhos te fez mal. Pro diabo! Se há qualquer coisa que não posso beber, tocar, bater, sentir, afirmo que é preciso ignorá-la. Para a Terra, morri. E a Terra morreu para mim. Não há uma única pessoa que esta noite, em Nova York, chore por mim. Aqui já não há estações: o Inverno e o Verão desapareceram, bem como a Primavera e o Outono. Não há uma alvorada, nem uma noite; só o espaço, sempre o espaço. As únicas coisas que existem agora somos nós: eu e tu e este foguete. É a única coisa de que tenho a certeza ser de mim.
Clemens não reagiu.
— Nesta altura estou a meter uma moeda no telefone — disse sorrindo e fazendo o gesto. — E marco o número da minha amiguinha de Evanston. Estás lá Bárbara?
O foguete continuava a sua rota pelo espaço. Uma campainha retiniu às 13:05 para o jantar. Os homens apressaram-se tomando lugar à volta das mesas. Clemens não tinha fome.
— O que é que te disse?! — exclamou Hitchcock. — Tu e os teus porcos-espinhos! Deixa-os em paz! Repara em mim, a comer.
O tom de voz era mecânico e não era o de quem brinca.
— Repara! — Colocou um grande pedaço de pastel na boca e triturou-o. Fitou o resto do pastel no prato como que examinando a sua estrutura. Voltou-o com o garfo. Sopesou o cabo do garfo. Esmagou o doce de limão e observou a massa comprimida entre os dentes do garfo. Depois pousou a mão numa garrafa de leite e encheu um copo, escutando o ruído do líquido a cair. Olhou o leite como que para o tornar mais branco. Bebeu-o tão ràpidamente que nem lhe tomou o gosto. Tinha engolido o jantar em alguns minutos. Febrilmente; procurou outros pratos com os olhos, mas não havia mais. Espreitou pela vigia com um olhar vazio.
— Estas estrelas já não têm nada de real.
— Porquê ? — perguntou Clemens.
— Quem é que alguma vez já tocou numa estrela? De acordo, posso vê-las. Mas que interesse há em ver uma coisa que está a milhares de milhas? Uma coisa que está a tal distância não merece que dela nos ocupemos.
— Porque é que te alistaste para esta expedição ? — perguntou de repente Clemens.
Hitchcock fitou o copo vazio, apertou-o na mão, depois afrouxou a pressão.
— Não sei — passou a língua pelo bordo do copo —. Tinha de o fazer, e é tudo. Alguma vez se sabe porque é que se faz seja o que for?
— Foste seduzido pela idéia de fazer viagens interplanetárias? Visitar novas paragens?
— Não sei. Talvez sim, talvez não. Não é visitar novas paragens. É estar entre elas.
Pela primeira vez, Hitchcock tentou fixar os olhos sobre algo de preciso, mas isso estava tão nubuloso e tão distante que a acomodação não era conseguida, apesar do esforço que ele fazia com o rosto e com as mãos. Era sobretudo por causa do espaço. «Tanto espaço! Fui seduzido pela idéia de não ter nada por baixo nem por cima, o nada entre os dois e eu no meio de todo este nada».
— Nunca ouvi uma explicação semelhante!
— Eu explico-o deste modo. Espero que tivesses ouvido. Hitchcock puxou de um maço e acendeu um cigarro.
Começou a tirar fumaças precipitadas.
— Como foi a tua infância, Hitchcock? — perguntou Clemens.
— Nunca fui jovem. Tudo o que fui está morto. Cá está outra vez o teu porco-espinho. Sempre pensei que morremos todos os dias. Cada dia é uma pequena caixa muito bem etiquetada, mas devemos retroceder e levantar a tampa porque já morremos milhares de vezes, o que acumula cadáveres sobre cadáveres; todas as mortes foram diferentes e cada uma delas com uma expressão pior. Cada um destes dias é um eu diferente, alguém que não conhecemos, que não compreendemos ou que não queremos compreender.
— Mas assim cortas todas as saídas!
— Mas porque hei-de eu ter alguma relação com esse Hitchcock mais jovem ? Era um imbecil empurrado de todos os lados — empurrado e explorado. O pai não era boa rês e ficou satisfeito quando a mãe morreu, porque ela não era melhor. Deveria eu retroceder e observar a sua expressão nesse dia e arrepender-me? Era um imbecil.
— Somos sempre imbecis — disse Clemens —. Simplesmente, todos os dias o somos de uma maneira diferente. Pensamos: hoje, não fui idiota, não caí nos mesmos erros. Ontem fui idiota, mas esta manhã não. Então no dia seguinte descobrimos que na véspera também fomos idiotas. Creio que a única forma que temos de nos desenvolver e de poder viver no mundo, é aceitar que não somos perfeitos e viver segundo este postulado.
— Não quero lembrar-me das coisas imperfeitas. Não posso apertar a mão deste jovem Hitchcock, não é? Onde está ele? Podes encontrar-mo? Está morto, então que vá para o diabo! Não posso prever o que farei amanhã partindo de qualquer imbecilidade que fiz hoje.
— Mas não é bem isso!
— Então pior! — Hitchcock olhou pelo visor. Os outros olharam-no de relance.
— É verdade existirem os meteoros? — perguntou.
— Sabes bem que sim.
— Nos aparelhos de radar, sim, são traços luminosos. Não, não acredito em nada que não exista e que não veja sob os meus olhos. Por vezes — e com um movimento de cabeça indicou os homens que acabavam de comer —, por vezes não acredito em ninguém que não seja eu — levantou-se —. É verdade que há um pavimento superior nesta astronave?
— É.
— Vou verificá-lo imediatamente. — Calma!
— Espera-me aqui, venho já.
Hitchcock saiu precipitadamente. Os outros comiam. Passaram um ou dois minutos. Um homem levantou a cabeça.
— Desde há quanto tempo dura isto? Falo de Hitchcock...
— Começou hoje.
— Já outro dia ele andava esquisito.
— Mas hoje está pior. — Avisaram o psiquiatra?
— Pensámos que talvez vencesse a crise. Toda a gente tem o mal do espaço na primeira vez. Eu também o tive.
Começa-se a filosofar, a querer ver o fundo das coisas e depois perde-se a cabeça. Têm-se suores frios, nào se sabe de quem se é filho, não se acredita mais na Terra e acorda-se com a garganta seca como um pau; e depois acabou-se.
— Mas Hitchcock não bebe — disse alguém —. E talvez seja melhor.
— E como passou ele no «test»?
— E como é que nós passámos? Eles têm necessidade de homens. O espaço mete um medo diabólico a quase toda a gente. E nessa altura o júri deixa passar uma data de casos bern frágeis.
— Este não é um caso frágil — disse alguém —. Caiu num poço que não tem fundo.
Esperaram cinco minutos. Hitchcock não voltava.
Clemens acabou por subir a escada de caracol que levava ao pavimento superior. Hitchcock estava lá. Acariciava ternamente a parede.
— Ela está aqui — balbuciou.
— Pois claro.
— Eu tinha medo... E tu estás vivo.
— Desde há muito tempo que o estou.
— Não — disse Hitchcock —. Não, agora que estás aqui comigo estás vivo. Há um momento, tu não eras nada.
— Existia para mim mesmo — disse Clemens.
— Isso não me interessa. Tu não estavas comigo. E é só isto que me importa. A equipagem está lá em baixo? Está?
— Está.
— Podes prová-lo?
— Ouve, Hitchcock, seria melhor procurares o dr. Edwards. Precisas de um ligeiro tratamento.
— Oh, não! Isto... E a propósito, o que é o doutor? Podes provar que ele está a bordo?
— Com certeza. Basta-me chamá-lo.
— Não. Quero dizer se neste momento, de onde estás, tu não podes provar que ele existe, hem?
— Não, com certeza, não o posso provar.
— Já vês! Tu não tens nenhuma prova mental. É disso que tenho necessidade: de uma prova mental que eu possa sentir. Não quero provas físicas, uma destas provas que preciso ir procurar lá fora. Quero uma prova que se possa trazer na cabeça e poder tocar sempre, pressentir, sentir. Mas ainda não descobri uma maneira de o conseguir. Para acreditar numa coisa, é preciso trazê-la connosco. E não se pode trazer a Terra ou um homem no bolso. Tenho necessidade disto, de ter as coisas ao meu alcance, a fim de acreditar nelas. Como é pesado, e estranho, ter necessidade de sair para procurar a cotejar qualquer coisa de terrivelmente físico para provar seja o que for. Detesto as coisas físicas, porque as podemos deixar cair; e então é impossível acreditar que elas existem.
— São as leis do jogo.
— Quero mudá-las. Não seria maravilhoso podermos provar as coisas com a mente e saber muito bem que elas estão sempre nos seus lugares? Gostaria de saber o aspecto de um lugar qualquer quando lá não estou. Gostaria de o saber exactamente.
— Não é possível isso.
— Sabes, pensei partir para o espaço, há uns cinco anos, pouco depois de ter perdido o emprego. Sabes que queria ser escritor? Oh, sim, fui um desses tipos que andam sempre a falar em escrever e nunca escrevem, apesar de tudo. E assim perdi o lugar que tinha num jornal e que era bem bom. Não encontrei outro trabalho, e começou o declive. Depois a minha mulher morreu. Estás a ver, não ficou nada em seu lugar, no lugar onde foi posta... Não se pode continuar a acreditar nas coisas materiais. Tive de entregar o meu filho a uma tia. E a situação piorou. E depois, um dia, uma novela foi publicada, assinada com o meu nome; mas não era realmente eu.
— Não compreendo.
Hitchcock empalidecera e transpirava.
— Só te posso dizer que olhava a página, com o meu nome sob o título: Por Joseph Hitchcock. Mas era qualquer outro. Não havia nenhum meio de provar que esse homem era eu. A história era-me familiar, sabia que a tinha escrito; mas aquele nome, no papel, não era, apesar de tudo, eu próprio. Era um símbolo, um nome estranho. Compreendi então que mesmo que triunfasse como escritor, isso nunca significaria nada para mim, porque não poderia identificar-me com esse nome. Isso não era mais que fuligem e cinzas. Não escrevi mais nada. Não tinha a certeza, apesar de tudo, que as novelas que tinha na minha secretária fossem mesmo as minhas, passados dias, se bem que me lembrasse de as ter criado. Faltava-me sempre uma prova: Esta solução de continuidade entre o fazer e o ter feito. O que se fez está morto, não é uma prova, porque já não é um acto. E só os actos são importantes. E as páginas escritas eram vestígios de acçoes completas, terminadas e, agora, invisíveis. A prova do fazer tinha acabado. Não me ficava senão uma recordação, e não tinha confiança na minha memória. Podia provar que tinha escrito aquelas páginas? Não. Há algum autor que o possa fazer? Quero uma prova, um acto que seja uma prova. Não, in actu. Não é possível, a menos que haja alguém a assistir enquanto a escrevemos à máquina... e mesmo assim é possível que nesse momento a memória nos atraiçoe. Depois de uma coisa feita não há mais prova, nada mais que uma recordação. Então comecei a descobrir falhas entre as coisas. Comecei a duvidar de ter sido casado, de ter um filho, de ter trabalhado. A duvidar de ter nascido no Illinois, de um pai bêbedo e de uma mãe desmazelada. Não podia provar nada. E verdade que as pessoas podiam dizer: você está aqui ou acolá; mas isto não significava nada.
— Devias afastar-te de tais pensamentos — disse Clemens.
— Não posso. Há todas estas brechas, todo este espaço...
Foi assim que comecei a sonhar com as estrelas. Como gostaria de estar num foguete, no espaço, no nada, apenas uma coisa pequena e ignorada, numa frágil concha de metal que me retém e me afasta de todas as coisas com falhas, impossíveis de provar! Compreendi que a única felicidade que poderia ter era o espaço. Quando chegar a Aldébaran II, assinarei um contrato para voltar à Terra dentro de cinco anos e tornar-me-ei uma espécie de lançadeira durante o resto da minha vida.
— Chegaste a falar com o psiquiatra?
— Para que ele experimente encher as minhas falhas, encher os buracos com barulhos e água quente, com palavras e mãos que apalpam e todas essas bugigangas? Não, muito obrigado!
Hitchcock calou-se.
— Isto vai de mal a pior, hem ? Era bem o que eu pensava. Esta manhã quando acordei, pensei que isto estava pior. Ou talvez melhor?
Calou-se de novo e olhou de relance para Clemens.
— Estás aí? Estás aí verdadeiramente? Então prova-o! Clemens deu-lhe uma pancada no braço, muito forte.
— Sim — disse Hitchcock, esfregando o braço e examinando-o de perto com uma expressão curiosa. Sim, estás aí... se é que ainda estás aí agora.
— Até já — disse Clemens, que foi procurar o doutor.
Uma campainha tocou. Duas, três campainhas de alarme. O foguete estremeceu como se uma mão o tivesse esbofeteado. Houve um ruído de sucção, lembrando vagamente um aspirador. Clemens ouviu os gritos e sentiu o ar rarificar-se, o ar em fuga assobiar-lhe nos ouvidos. E, depois, o nariz e os pulmões ficaram vazios. Estrebuchou. O assobio parou.
Alguém gritou: «Um meteoro». E um outro: «Está tapado!» Era verdade. O revestimento de socorro, no exterior da carena, tinha soldado a brecha.
Alguém falava com volubilidade; depois começou a gritar. Clemens correu no corredor. O ar tornava-se mais denso. Saltou para a almofada e viu o buraco na parede interior, tapado de fresco; e os fragmentos do meteoro espalhados pelo chão como brinquedos. Estava lá o capitão, homens da tripulação e uma forma estendida. Era Hitchcock. Tinha os olhos fechados e gritava:
— Tentou matar-me! Ele tentou matar-me! — repetia sem cessar. Levantaram-no —. Não devia tê-lo feito! — dizia Hitchcock —. Isto não devia ser possível. Coisas como esta não deviam acontecer, não é? Voou contra mim. Porque o fez ele?
— Vamos, calma, Hitchcock! — disse o capitão.
O doutor punha um penso num golpe que Hitchcock tinha no braço. Este levantou os olhos, a face muito pálida e viu Clemens que o observava:
— Tentou matar-me! — disse.
— Eu sei — retorquiu Clemens.
Passaram dezassete horas. A astronave continuava o seu caminho.
Clemens entrou e esperou. Estavam lá o capitão e o psiquiatra. Hitchcock estava sentado no chão, com o queixo nos joelhos, os braços apertando as pernas.
— Hitchcock! — chamou o capitão.
Não obteve resposta.
— Hitchcock, ouça-me! — pediu o psiquiatra.
Voltaram-se para Clemens.
— Você é amigo dele?
— Sou.
— Quer ajudar-nos?
— Se puder.
— Foi o diabo daquele meteoro — disse o capitão. — Isto não teria acontecido noutras circunstâncias.
— Isto aconteceria mais tarde ou mais cedo — disse o médico. E para Clemens: — Experimente falar-lhe.
Clemans aproximou-se suavemente de Hitchcock e ajoelhou-se a seu lado. Sacudiu-lhe ligeiramente o braço e disse em voz baixa:
— Éh, fala, Hitchcock!
Nenhuma resposta.
— Éh, sou eu! Eu, Clemens! Olha, estou aqui. — Deu-lhe uma palmada nas costas. Apertou-lhe o pescoço encortiçado, a nuca inclinada. Olhou para o psiquiatra, que suspirou. O capitão encolheu os ombros.
— Tratamento de choque, doutor? O psiquiatra confirmou.
— Vamos começá-lo agora mesmo.
Sim, pensou Clemens, tratamento de choque: tocam-nos discos de jazz, agitam-nos uma garrafa de clorofila debaixo do nariz, põem-nos ervas debaixo dos pés, um vaporizador atira-nos perfume Chanel, cortam-nos o cabelo e arranjam-nos as unhas, chamam uma mulher, dão berros nos ouvidos, sacodem-nos como a uma macieira, assam-nos com a electricidade, enchem os buracos e as falhas... mas a prova? Não se podem fornecer indefinidamente provas. Não se pode divertir um bebê com os mesmos bonecos durante trinta anos. É preciso, em certo dia, acabar com isso. Nessa altura tudo se perde de novo. A menos que se consiga desviar a sua atenção para outra coisa.
— Hitchcock! — berrou, quase frenèticamente, como se tivesse acabado de cair dentro de uma fossa. — Sou eu, o teu camarada! Olá!
Voltou-se e saiu do compartimento silencioso. Doze horas mais tarde, o alarme soou de novo. Depois que houve silêncio, o capitão explicou:
— Hitchcock conseguiu, durante um ou dois minutos, enganar a nossa vigilância. Estava só. Vestiu um escafandro. Abriu a comporta de saída. E, depois, lançou-se no espaço.
Clemens observou pelo imenso visor. Viu uma massa de estrelas e de trevas.
— Está. agora, para ai, em qualquer parte?
— Sim. Talvez a um milhão de milhas à nossa retaguarda. Nunca mais o encontraremos. Eu soube que ele se tinha escapado porque as emissões do seu capacete foram captadas pela cabine de controle. Ouvi-o falar consigo mesmo.
— O que é que ele dizia?
— Qualquer coisa como: «Agora não há mais astronave. E nunca houve. Não existe ninguém. Não há uma pessoa em todo o Universo. Nunca existiu. Não há planetas. Não há estrelas». Era o que ele dizia. E depois falou das mãos, dos pés e das pernas. «Não tenho mãos, dizia ele. Já não tenho mãos. Nunca as tive. Não tenho pés. Nunca os tive. Não o posso provar. Não tenho corpo. Nunca o tive. Não tenho lábios. Não tenho rosto. Não tenho cabeça. Nada. Nada mais que o espaço. Que o espaço. O vazio».
Os homens voltaram-se lentamente para o vidro que se abria sobre as estrelas longínquas e frias.
O espaço, pensou Clemens. O espaço que Hitchcock tanto amava. O espaço, sem nada por baixo, sem nada por cima, uma imensidão de nadas vazios no meio de tudo isto, e Hitchcock que cai neste nada, caminhando, sem tempo, no espaço...
O fogo de artifício resplandecia desde a primeira noite. Talvez assustasse as pessoas a quem fazia recordar terríveis acontecimentos. Mas este era lindo: com morteiros que se elevavam e explodiam no calmo e antigo ar do México. Estrelas azuis e brancas que choviam de todos os lados. Tudo era agradável e dava prazer: o ar cheirava a uma mistura de mortos e vivos, a chuva e poeiras, a incenso litúrgico e a odor de metais que executavam os amplos ritmos de La Paloma. As portas da igreja estavam abertas de par em par. Dir-se-ia que uma constelação doirada descera do céu outonal para cintilar nas paredes; um milhão de velas tremeluzia, largando um fiozinho de fumo. Uma outra peça de fogo de artifício, ainda mais bela, explodiu e uma nuvem de cometas assobiou por cima da praça, pavimentada de refrescantes pedras; embateu nas paredes dos cafés, desfez-se numa incandescente nuvem contra os sinos da torre, entre os quais se viam os pés descalços das crianças. Saltando, faziam soar os sonoros sinos, numa música majestosa. Um touro, expelindo fogo, perseguia, na praça iluminada, os espectadores, que riam à gargalhada, e as crianças, que gritavam de medo.
— É o ano de 1938 — disse William Travis, em pé, junto de sua mulher, próximo à multidão em delírio —. Um ano agradável.
O touro precipitou-se para eles. Desviaram-se e correram por entre a multidão, o fogo de artifício, a música e a agitação sob as estrelas, dando-se as mãos, parando em frente à igreja e à banda de música. O touro ultrapassou-os com o seu esqueleto de cana, cheirando a pólvora e a enxofre, sustentado aos ombros de um mexicano irrequieto.
— Nunca me diverti tanto!
Susan Travis deteve-se para tomar fôlego.
— Isto é maravilhoso! — exclamou William. — A festa vai continuar, não é verdade?
— Toda a noite.
— Não. Quero dizer, a nossa viagem? Ele franziu o sobrolho e apalpou o bolso.
— Tenho cheques de viagem que chegam para toda a vida. Diverte-te! Esquece tudo. Eles nunca mais nos encontrarão.
— Nunca mais?
— Nunca!
Alguém lançava petardos gigantes do alto da torre do sino. A multidão afastava-se para evitar a fumarada e as incandescentes estrelas que caíam entre os dançarinos. Um maravilhoso cheiro a pastéis fritos espalhava-se por toda a parte. No terraço havia homens sentados às mesas, segurando canecas de cerveja nas mãos morenas. O touro morrera e as canas partiram-se. As crianças acorreram para tocar a linda cabeça de papel grosso e as hastes verdadeiras, os destroços que o animador tirara dos ombros.
— Anda ver o touro — propôs William.
Quando passavam à porta do café, Susan reparou no homem que os fitava. Estava vestido espalhafatosamente, com uma camisa e gravata berrantes; cabelos loiros e escorridos, olhos azuis. Observava-os.
Ela não teria reparado se não fossem as garrafas que estavam sobre a mesa: creme de mentol, vermute, conhaque, diversos licores; ao alcance da mão, uma dúzia de copos vazios, semicheios, dos quais bebia de vez em quando um gole, fazendo por vezes uma careta ou dando estalinhos com os lábios, sem tirar os olhos da rua. Na mão livre tinha um «havano» e numa cadeira, a seu lado, amontoavam-se caixas de cigarros turcos, charutos e frascos de perfume.
— Bill! — exclamou Susan.
— Não te importes — disse William. — Não é nada. — Já o vi hoje de manhã na praça.
— Não te voltes, continua a andar. Olha a cabeça do touro. Isso... fala.
— Crês que ele seja da polícia?
— Não nos poderiam ter seguido.
— Talvez sim...
— Que lindo touro! — exclamou William, dirigindo-se ao proprietário.
— Não nos poderiam ter seguido duzentos anos no passado, não é verdade?
— Tem cuidado, por tudo te peço!
Ela cambaleou. Ele segurou-a pelo braço, conduzíndo-a através da multidão.
— Não te deixes desfalecer! Sorri, para disfarçar. Agora já estás melhor. Iremos para o café, sentar-nos-emos em frente dele; e se ele for quem nós julgamos, não suspeitará de nós.
— Não! Nunca conseguiria fazer isso!
— Vamos, é necessário. Anda!... E então afirmei ao David que aquilo era ridículo — disse em alta voz, quando já subiam as escadas do terraço.
«Aqui estamos, pensava Susan. Quem somos? Para onde vamos? Que receamos? Recomeçar a partir do princípio», afirmou a si própria, valendo-se do seu bom senso. Sentia os mosaicos sob os pés.
«Chamo-me Ann Kristen e o meu marido Roger. Nascemos em 2115, depois de Cristo, e vivemos num mundo perverso. Um mundo que é como que um grande navio negro a afastar-se das margens da razão e da civilização, com a sirene a silvar na noite, transportando a bem ou a mal dois biliões de seres humanos para a morte, para os confins da terra e do mar, para o incêndio radioactivo, para a loucura».
Entraram no café. O homem fixou-os demoradamente.
A campainha de um telefone tocou.
Susan sobressaltou-se. Recordou-se do telefone que tinha retinido há duzentos anos no futuro, numa linda manhã de Abril de 2155. Levantara o auscultador.
— Ann? É Roger! Já sabes? Ouviste falar da Companhia de Viagens no Tempo? Estadias em Roma no ano 21 a. C.; excursão a Waterloo no tempo de Napoleão! Não importa aonde ou a que época!
— Estás a brincar, Roger!
— Não estou! Clinton Smith partiu hoje de manhã para a Filadélfia de 1776. As Viagens no Tempo encarregam-se de tudo. É caro! Mas pensa um pouco o que será ver, realmente, o incêndio de Roma, Gengis Khan ou Moisés e o Mar Vermelho. Hoje, de manhã, deves ter recebido pelo teu pneumático uma brochura publicitária.
Susan foi abrir o tubo. Na realidade lá estava uma delgada folha de metal onde se lia:
«Roma e os Bórgias! Os irmãos Wright e o primeiro voo de aeroplano!»
«A Sociedade Anônima de Viagens no Tempo veste-vos a rigor e coloca-vos entre a multidão, no decorrer do assassínio do Lincoln ou de César. Garantimos a aprendizagem de todas as línguas, das quais podereis necessitar para vos sentirdes à-vontade, não importa em que civilização ou em que ano, sem a mínima dificuldade. Ide passar as férias no Tempo e no Espaço!»
A voz de Roger, ao telefone, estava excitada.
— Eu e Tom partimos amanhã para o ano 1492. Eles já trataram de tudo a fim de Tom fazer a travessia com Colombo. Não é formidável?
— Sim — respondeu Ann, estupefacta. — O que é que o governo diz desta máquina de viajar no tempo?
— Ah, sim, a polícia está a fiscalizar. Teme que as pessoas fujam refugiando-se no Passado. Todo o viajante, ao partir, tem que deixar uma garantia que pode ser a sua casa ou os seus bens. Além disso há a guerra.
— Sim, a guerra — murmurou Ann. — A guerra!
E ali, ainda com o telefone na mão, tinha pensado que, finalmente, lhes era oferecido, a ela e a seu marido, a oportunidade da qual há tantos anos falavam. «Não gostamos deste mundo de 2155. Queremos libertar-nos: Roger do trabalho na fábrica de munições e eu do meu emprego no Instituto de Culturas Patogênicas. Talvez que tenhamos a sorte de nos evadir-mos, correr através dos séculos para um país inexplorado de anos onde eles nunca mais nos encontrarão, de onde não nos poderão fazer regressar para queimar os nossos livros, censurar os nossos pensamentos, aterrorizar as nossas almas, fazer-nos marchar em fila, atordoar-nos com a rádio...».
Estavam no México no ano de 1938.
Ela observou a parede manchada da taberna.
Os bons trabalhadores da Nova Ordem estavam autorizados a gozar as férias no passado para evitar o esgotamento. Assim, ela e o seu marido, tinham viajado até 1938, para viver num quarto de hotel de Nova York, ir ao cinema, admirar a estátua da Liberdade que existia nessa época, na baía. E ao terceiro dia tinham trocado as roupas, mudado de identidade e tomado o avião para o México.
— Deve ser ele — sussurrou Susan, fixando o estrangeiro sentado à mesa. — Aqueles cigarros, os cigarros, os licores, traiem-no. Lembra-te da nossa primeira noite no passado.
A sua primeira noite em Nova York, antes da fuga, há já um mês... Quando tinham ingerido aquelas estranhas bebidas, saboreado os esquisitos alimentos... Quando tinham armazenado perfumes e cigarros, coisas raras no Futuro, onde por toda a parte havia guerra. Tinham sido ridículos, a correr para os estabelecimentos, para os bares, para as tabacarias, regressarem carregados ao quarto e sentirem-se deliciosamente indispostos...
E, agora, este estrangeiro fazia o mesmo. Fazia uma coisa que só um homem do Futuro podia fazer, privado como estava, há tantos anos, de bebidas e cigarros.
Susan e William sentaram-se e pediram refrescos.
O estrangeiro examinava-lhes as roupas, o penteado, as jóias, e até a forma como caminharam e se sentaram.
— Põe-te à-vontade — segredou William — como se toda a vida tivesses andado com essas roupas.
— Nunca deveríamos ter tentado fugir!
— Meu Deus! — exclamou William. — Dirige-se para nós. Deixa-me eu falar.
O estrangeiro inclinou-se. Bateu ligeiramente os tacões. Susan estremeceu. Aquele gesto militar! Tão significativo como as pancadas na porta, ao meio da noite.
— Mr. Roger Kristen — disse o estrangeiro — o senhor não puxou as calças quando se sentou.
William sentiu-se gelar. Olhou inocentemente para as mãos, pousadas nos joelhos. Ouvia-se bater o coração de Susan.
— O senhor está enganado — disse ràpidamente William. — O meu nome não é Krisler.
Kristen — corrigiu o desconhecido.
— Eu sou William Travis e não vejo em que as minhas calças o possam interessar.
— Com licença! — O desconhecido puxou uma cadeira e sentou-se. — Digamos que o reconheci porque o senhor não puxou as calças ao sentar-se. Toda a gente o faz, senão as calças deformam-se. Estou longe de minha casa, mr.... Travis e preciso de companhia. Chamo-me Simms.
— Mr. Simms, lamentamos muito que se sinta só, mas estamos fatigados. E amanhã partimos para Acapulco.
— Um sítio encantador! Estive lá há alguns dias, precisamente, à procura de uns amigos meus. Devem andar por aí. Acabarei por os descobrir. Oh! mrs. Travis, está a sentir-se mal?
— Boa noite, mr. Simms.
William dirigiu-se para a porta amparando Susan. Não se voltaram quando mr. Simms lhes gritou muito claramente:
— 2155 depois de Cristo!
Susan fechou os olhos. O chão fugia-lhe debaixo dos pés. Continuou a caminhar pela praça iluminada, sem nada ver.
Fecharam à chave a porta do quarto do hotel. Então, ela rompeu em soluços e ficaram os dois, de pé, na obscuridade, abraçados, o quarto rodando à sua volta. Ao longe rebentavam foguetes e ouviam-se risos.
— Que grande estafermo! — desabafou William. — Estava ali a examinar-nos como se fôssemos animais, a fumar os seus nojentos cigarros, a beber todos aqueles licores. Deveria tê-lo morto! Tinha uma. voz quase histérica. Até teve a ousadia de usar o verdadeiro nome! O chefe dos agentes! E aquele truque a respeito das minhas calças. Ao sentar-me deveria tê-las puxado. É um gesto automático na época em que estamos. Não o tendo feito, distingui-me dos outros e isso atraiu-lhe a atenção: aqui está um sujeito que nunca usou calças estilo 1938, um sujeito acostumado à vestimenta do Futuro. Deveria dar cabeçadas nas paredes por me ter traído!
— Não, não! Foi a minha maneira de andar, com estes tacões altos! E o recente corte dos nossos cabelos. Temos um ar diferente, desajeitado.
Acendeu a luz.
— Ele observa-nos; ainda não tem a certeza. Por conseqüência, não devemos fugir para que ele não suspeite da nossa identidade. Iremos para Acapulco como se nada se tivesse passado.
— E talvez que ele saiba perfeitamente quem nós somos e se divirta connosco...
— É muito capaz... Tem o tempo por sua conta. Pode demorar as coisas e levar-nos para o futuro sessenta segundos depois de o termos deixado. Pode manter-nos na ignorância durante dias e dias, divertindo-se.
Susan, sentada no leito, enxugava as lágrimas. Sentia ainda o cheiro a pólvora e a incenso.
— Será que eles vão fazer um escândalo?
— Não ousariam. Deverão agarrar-nos quando estivermos sós, para nos reenviarem através do aparelho.
— Então, há uma solução. Nunca estaremos sós, ficaremos sempre entre a multidão. Faremos milhares de amigos, passearemos na rua, passearemos à noite nos locais públicos, pagaremos ao chefe da polícia para que nos proteja até conseguirmos matar Simms e fugirmos disfarçados de mexicanos, por exemplo.
Ouviram passos junto à porta.
Apagaram a luz e despiram-se sem dizer uma palavra. Os passos afastaram-se. Uma porta foi fechada.
Susan estava em pé, junto à janela. Olhava para a praça. — Aquele edifício, acolá, é uma igreja?
— Sim.
— Muitas vezes perguntei a mim própria qual seria o aspecto de uma igreja. Amanhã poderemos ir visitá-la?
— Certamente. Anda deitar-te. Estenderam-se na cama.
Uma meia hora mais tarde o telefone tocou. Susan atendeu.
— Alô?
— Os coelhos podem esconder-se na floresta — disse uma voz —, mas a raposa sabe sempre encontrá-los.
Ela desligou e ficou deitada de costas, trêmula e fria. Lá fora, em 1938, um homem dedilhava uma guitarra.
Durante a noite ela estendeu a mão e quase que tocou no ano 2155. Sentia os dedos deslizar sobre as frias superfícies do tempo, como numa chapa ondulada; ouvia o insistente ruído de botas, mil bandas militares executando mil marchas; viu milhões de tubos assépticos contendo culturas patogênicas, que tinha de manipular naquela imensa fábrica do futuro; tubos de lepra, peste bubônica, tifo, tuberculose; depois, a grande explosão. Viu a sua mão queimada como um fósforo, sentiu uma tão grande deflagração que o próprio mundo estremeceu, desviando-se do seu curso; todas as casas ruíram, houve uma imensa hemorragia e, depois, o silêncio. Vulcões, máquinas, ventos e avalanches perturbaram a acalmia; acordou banhada em lágrimas, no seu leito, dois séculos antes, no México...
De manhã cedo, atordoados por só terem conseguido dormir uma hora, foram despertados pelo ruído de viaturas e claxons. Susan espreitou pela janela e viu um grupo de oito pessoas que falavam e gritavam ao mesmo tempo. Tinham saído de automóveis e camiões pintados de vermelho, onde havia dísticos. Rodeava-os uma multidão de mexicanos.
— Qué pasa? — perguntou Susan a um rapazito, que lhe respondeu.
Voltou-se para o marido:
— Uma equipa cinematográfica americana que vem filmar aqui.
— Isso pode ser interessante! — William estava no chuveiro. — Vamos ver. Parece-me que é melhor não partir hoje. Vamos tentar despistar Simms. Iremos ver os cineastas trabalhar. Diz-se que as primitivas produções eram uma coisa espantosa. Distrair-nos-emos, para esquecer as nossas preocupações.
«Esquecermo-nos de nós próprios», pensou Susan. Durante um instante não se recordou, quando estava à janela ensoalhada, que algures, neste mesmo hotel, havia um homem que esperava, fumando centenas de cigarros. Viu os oito americanos, felizes e ruidosos, e apeteceu-lhe gritar-lhes: «Salvem-me! Escondam-me! Ajudem-me! Pintai os meus cabelos, colori os meus olhos! Dai-me outras roupas! Preciso do vosso auxílio! Eu vim de 2155!»
Mas as palavras ficaram-lhe na garganta. Os funcionários da Sociedade Anônima de Viagens no Tempo não eram estúpidos. Antes das pessoas partirem para a viagem infiltravam-lhes no cérebro um «bloco» psicológico. Elas não poderiam dizer a ninguém o verdadeiro ano ou a data de nascimento; nem revelar o Futuro aos do Passado. O Passado e o Futuro deveriam ser protegidos um contra o outro. E só autorizavam as viagens através das idades com este bloco psicológico. Mesmo quando o desejassem com todas as suas forças, nunca poderiam dizer a qualquer destas pessoas, ali na praça, satisfeitas de viver, quais foram e quais seriam as suas provações.
— E se fôssemos tomar o pequeno almoço? — propôs William.
O pequeno almoço era servido na vasta sala de jantar. Dois ovos com presunto para toda a gente. A sala estava cheia de turistas. Os cineastas entraram, seis homens e duas mulheres rindo alto, arrastando cadeiras. Susan sentou-se perto deles, consciente do calor e da protecção que deles emanava, mesmo quando mr. Simmons apareceu, fumando desesperadamente os seus cigarros orientais. Inclinou de longe a cabeça e Susan retribuiu o cumprimento, sorrindo porque sabia que ele nada podia fazer na presença dos cineastas e de uns outros vinte turistas.
— Talvez que eu possa pagar a dois destes actores e dizendo-lhes que se trata de uma partida, vestir-lhes as nossas roupas e pô-los a andar no nosso automóvel, numa ocasião em que Simms não lhes possa ver os rostos. Se eles conseguirem afastá-lo daqui durante algumas horas, teremos tempo para fugirmos do México. E serão precisos muitos anos para nos descobrirem.
— Éh!
Um homem avantajado, cheirando a álcool, apoiou-se na mesa que ocupavam.
— Turistas americanos! — berrou ele. — Já estou tão farto de ver mexicanos que até tenho vontade de vos abraçar! — apertou-lhes as mãos. — Venham para a nossa mesa. O desânimo gosta de companhia. Eu sou o Desânimo, esta é miss Tristeza e aqueles são mr. e mrs. Como-detestamos-o-México! Todos nós o detestamos. Mas estamos cá para filmar as primeiras cenas de um abominável filme. Os outros chegam amanhã. Chamo-me Joe Melton e sou o realizador. E isto aqui é uma terra!... Funerais nas ruas, pessoas a morrer! Vamos, animem-se, juntem-se à banda! Levantem o moral!
Susan e William riam-se.
— Sou engraçado? — perguntou mr. Melton dirigindo-se a todos.
— Muito!
Sentaram-se à mesa. Mr. Simms fixava neles olhares furibundos, do outro lado da sala. Susan fez-lhe uma careta. Ele levantou-se dirigindo-se para eles.
— Mr. e mrs. Travis — murmurou — parece-me que seria melhor tomarem o vosso pequeno almoço sozinhos.
— Não, muito obrigado.
— Sente-se, meu velho — exclamou mr. Melton. — Os amigos dos meus amigos, meus amigos são.
Mr. Simms sentou-se. Os cineastas falavam em voz alta. Mr. Simms murmurou:
— Espero que tivessem dormido bem.
— E o senhor?
— Não gosto de colchão de molas. Mas tive compensações. Estive a pé até de madrugada a provar novos cigarros e comidas. Curioso, fascinante! Todo um novo espectro de sensações, estes antigos vícios!
— Não percebo o que quer dizer — replicou Susan.
— Continuam no mesmo jogo? — interrogou Simms. — Isso não lhes serve de nada. Nem tão-pouco o estratagema das multidões. Ter-vos-ei sós e bem sós dentro de pouco tempo. Sou terrivelmente paciente.
— Ouçam lá! Este tipo está a chateá-los? — bramiu Melton, com o rosto congestionado.
— Não tem importância.
— Se quiserem, ponho-o a andar!
Melton voltou aos seus ruidosos companheiros. Entre os risos e a barulheira, Simms prosseguiu:
— Falemos sem rodeios. Gastei um mês para vos encontrar e todo o dia de ontem para ter a certeza que eram vocês. Se me seguirem a bem talvez consiga que não sofram nenhumas sanções; mas com a condição de voltarem a trabalhar na fábrica de desintegração atômica.
— Mas então este tipo está a falar de ciência ao pequeno almoço!? — vociferou mr. Melton; voltou-se, de novo, para os seus companheiros.
Simms prosseguiu, imperturbável:
— Reflitam. Não podem escapar. Se vocês me matarem outros seguir-vos-ão.
— Não percebemos de que é que está a falar.
— Basta! Sejam razoáveis! Vocês sabem muito bem que não os podemos deixar escapar. Quaisquer outros do ano 2155 poderiam ter a mesma idéia e fazer o que vocês fizeram. E nós precisamos de homens.
— Para fazer as vossas guerras! — Bill!
— Está bem, Susan! Nós, agora, vamos empregar a mesma linguagem. Não podemos escapar.
— Perfeitamente! — disse Simms. — Na verdade, vocês foram muito românticos, tentando fugir às vossas responsabilidades.
— Fugindo do horror!
— Nada disso! De uma guerra, sò mente.
— Que conversa é essa? — interrompeu Melton. Susan quis dizer-lhe. Mas o bloco psicológico só permitia
generalidades. Generalidades como aquelas que Simms e William discutiam.
— Somente a guerra? — exclamou William. — Metade da população do globo destruída por bombas leprógenas!
— Mas os habitantes do Futuro não gostarão que haja pessoas, como vocês, que se escondem numa espécie de ilha tropical enquanto que eles vão para o inferno. A morte ama a morte e não a vida. Os moribundos gostam de saber que outros também morrerão com eles. É uma consolação saber-se que não se vai sòzinho para a cova. Sou o representante do ressentimento colectivo contra vocês.
— Oram vejam este tutor do ressentimento colectivo! — escarneceu mr. Melton.
— Quanto mais me fizerem esperar, pior será para vocês. Precisamos de si, mr. Travis, para o Plano Bomba. Venha agora, que não haverá torturas. Se for mais tarde, forçá-lo-emos a trabalhar; e quando acabar os trabalhos da bomba, meu caro senhor, experimentaremos em si uma série de novos aparelhos.
— Tenho uma proposta a fazer-lhe — disse William. — Regressarei se minha mulher ficar aqui, viva, ao abrigo da guerra.
Mr. Simms reflectiu.
— Muito bem. Esteja na praça dentro de dez minutos. Levar-me-á no seu automóvel até um local deserto. O Aparelho de Viajar no Tempo encarregar-se-á do regresso.
— Bill! — gritou Susan, abraçando-o.
— Não discutamos! — Ele olhou-a nos olhos. — Está decidido. — E para Simms. — Uma coisa, ainda. Na noite passada o senhor poderia ter-se introduzido no nosso quarto e raptar-nos. Porque não o fez?
— Acreditarão se lhes disser que me divertia? — respondeu mr. Simms lânguidamente, chupando num novo cigarro. — Estou aborrecido por ter de abandonar este admirável ambiente, este sol, estas férias. Lamento abandonar os cigarros e os vinhos. Oh, terei tantas saudades! Bem, então, na praça, dentro de dez minutos. A sua mulher será protegida e poderá ficar aqui o tempo que quiser. Despeça-se dela.
Mr. Simms ergueu-se e partiu.
— Partida do sr. Falador! — escarneceu mr. Melton. Voltou-se para Susan. — Oh, esta vai chorar! Ao pequeno almoço não se chora, pois não?...
Às nove e quinze Susan estava debruçada à janela do seu quarto, olhando para a praça. Mr. Simms estava sentado num lindo banco público, de bronze, com as pernas elegantemente cruzadas. Acendeu um cigarro, com ternura.
Susan ouviu o ruído de um motor. Ao cimo da rua, o automóvel de Willie começou a descer.
A viatura ganhou velocidade. Trinta, cinqüenta, setenta à hora.
Mr. Simms tirou o seu panamá e enxugou a testa suada, voltou a pôr o chapéu e reparou no automóvel. O carro vinha na sua direcção a cem à hora.
— William! — gritou Susan.
O automóvel galgou o passeio, roncando, e lançou-se contra o banco. Mr. Simms deixou cair o cigarro, gritou, agitando os braços. O seu corpo foi lançado ao ar e caiu. O automóvel parou no outro extremo da praça com uma roda avariada. Acorriam pessoas.
Susan fechou a janela.
Ao meio-dia, os dois desciam a escadaria do palácio da Justiça, de braço dado, extremamente pálidos.
Atravessaram a praça onde a multidão apontava para o sangue espalhado.
— Seremos outra vez convocados? — perguntou Susan.
— Não. Todos os pormenores foram analisados várias vezes. Foi um acidente. Perdi a direcção do carro. Chorei para os persuadir. De uma maneira ou de outra teria, de dar escape à tensão em que estava. Chorei com sinceridade. Repugnou-me matá-lo. Nunca pensei fazer semelhante coisa, em toda a minha vida!
— Seremos seguidos? Simms operava sòzinho?
— Ele disse que sim. E, aqui, acreditaram no que eu disse. Foi um acidente. Acabou-se.
— Para onde iremos? Para a cidade do México? Para Urupuan ?
— O carro está a ser reparado. Estará pronto às quatro da tarde. Partiremos a toda a velocidade.
Os cineastas saíam do hotel. Mr. Melton dirigiu-se imediatamente para eles.
— Já soube o que se passou? Foi medonho. E como vai isso, agora? Querem distrair-se? Vamos rodar algumas cenas no fundo da rua. Venham assistir. Venham! Far-vos-á bem.
Seguiram-no.
A câmara foi instalada, enquanto Susan olhava a rua asfaltada que conduzia a Acapulco e ao mar, passando pelas pirâmides, pelas ruínas, por pequenas casas de barro, com muros amarelos, azuis, cor de malva, com buganvíleas incandescentes; pensava: viajaremos na estrada, em grupo, entre a multidão, permaneceremos nos mercados, nos lugares públicos, pagaremos à polícia para que nos vele durante o sono, trancaremos as portas; e nunca ficaremos sós porque teremos sempre medo que haja um outro mr. Simms. Nunca saberemos se conseguimos ludibriar os agentes. E, algures, no Futuro eles esperarão que regressemos para nos queimarem com as suas bombas, destruirem-nos com a sua guerra bacteriológica, com os agentes à nossa espera para nos ordenarem que nos deitemos, que marchemos, que saltemos! E, assim, nunca mais deixaremos de correr através da floresta, nunca mais teremos sossego na nossa vida.
Uma pequena multidão agrupara-se para ver as filmagens. Susan observava as pessoas e a rua.
— Notaste alguém suspeito?
— Não. Que horas são?
— Três horas. O automóvel deve estar quase pronto.
O ensaio das filmagens terminou às três e quarenta e cinco. Dirigiram-se para o hotel conversando. Willi passou pela garage.
— O carro só está pronto às seis horas — disse ele, com ar preocupado, quando voltou.
No hall do hotel asseguraram-se que não havia turistas isolados que se assemelhassem a mr. Simms — cabelo cortado recentemente, fumando muitos cigarros e cheirando a água de colônia. O hall estava vazio. Quando subiam a escada, mr. Melton disse:
— Uff! Foi um dia de trabalho. Querem vir molhar as goelas? Com martini ou cerveja?
— Oh... um copo! — E todo o grupo se precipitou para o quarto de mr. Melton começando a beber. — Vê lá as horas... — murmurou William.
As horas — pensou Susan. — Se ao menos dispusessem do tempo! — Tudo o que ele desejava era ficar sentada durante todo um longo dia de Outono, sem inquietações nem cuidados o sol a aquecer-lhe a cara e as mãos, sorrindo, na modorra imóvel. Dormir ao sol do México, molemente, preguiçosamente, até se fartar, dias e dias seguidos, com lentidão e comodidade...
Mr. Melton abriu uma garrafa de champanhe.
— A uma linda mulher, tão bela que poderia figurar num filme — disse ele levantando o seu copo em honra de Susan.
— E até talvez a submeta a um ensaio.
Susan sorriu.
— Falo a sério! — afirmou Melton. — A senhora é encantadora. Poderei fazer de si uma vedeta.
— E levar-me para Hollywood? — gritou Susan.
— E abandonar este maldito país, com certeza!
Susan lançou um olhar a William, que ergueu o sobrolho e aquiesceu. Aquilo representaria uma mudança de local, de nome, de roupas; viajariam com outras oito pessoas; uma boa protecção contra toda e qualquer ingerência do Futuro.
— Isso parece-me estupendo — respondeu Susan. O champanhe começava a subir-lhe à cabeça.
A tarde corria e a pequena festa estava no auge. Ela sentiu-se em segurança, salva, feliz pela primeira vez há muitos anos.
— Que gênero de filme convirá para minha mulher ? — perguntou William enchendo de novo o copo.
Melton apreciou Susan com um olhar. O grupo deixou de rir e silenciou.
— Bem, imagino-a num filme de angústia — disse Melton. — A história de um casal, como vocês.
— Continue.
— Talvez uma história de guerra — disse o realizador observando o seu copo à luz.
Susan e Wilíiam aguardavam.
— A história de um homem e de uma mulher que vivem numa pequena casa de uma pequena rua, talvez no ano de 2155. Isto é um exemplo, percebem? Mas este homem e esta mulher estão perante uma terrível guerra de super-bombas de hidrogênio, perante a censura e a morte; e — isto é o nó da intriga — fogem para o passado. São perseguidos por um homem que julgam demoníaco, enquanto que ele apenas tenta mostrar-lhes qual é o seu dever.
William deixou cair o copo no chão.
Mr. Milton prosseguiu:
— Então o casal refugia-se no passado, entre um grupo de cineastas em que têm confiança. Isto, porque o casal julga encontrar a segurança entre a multidão.
Susan deslizou no maple. Todos os presentes tinham os olhos fixos no realizador. Ele bebeu um trago.
— Este vinho é verdadeiramente delicioso. Pois bem! Este homem e esta mulher parecem não compreender quão importantes são no Futuro. Sobretudo o homem, que tem nas suas mãos o segredo de uma nova bomba. Então os Agentes, chamemos-lhe assim, nem olham a despesas nem o tempo para descobrir e localizar esse casal, a fim de o reconduzir para a origem; o difícil é apanhá-los sòzinhos num quarto de hotel onde ninguém os possa ver. Uma questão "de estratégia. Os agentes trabalham isolados ou em grupos de oito. E conseguem o seu fim servindo-se de qualquer meio. Susan, e você William: não lhes parece que isto daria um filme formidável ?
Esvaziou o copo.
Susan continuou sentada, com os olhos fixos.
— Deseja beber ? — perguntou mr. Melton.
William fez fogo três vezes. Um homem caiu, os outros afastaram-se. Susan gritou. Uma mão tapou-lhe a boca. Agora, a pistola estava no chão e William debatia-se.
Mr. Melton disse:
— Por favor. Não se mexa. — O sangue cobria-lhe uma das mãos. — Não tornemos a situação pior.
Bateram à porta.
— Abram! — ordenou alguém.
— O gerente! — disse Melton secamente, fazendo um sinal com a cabeça. — Vamos lá.
— Abram! Vou chamar a Polícia.
Susan e William fitaram-se ràpidamente e depois olharam para a porta.
— O gerente quer entrar. Depressa! — exclamou Melton. Uma câmara foi colocada em frente do casal. Dela saiu uma luz azulada que, instantaneamente, envolveu todo o quarto. Os membros do grupo desapareceram uns após outros.
— Rápido!
Através da janela, no momento em que desaparecia, Susan viu a erva, os muros cor de malva, amarelos ou azuis, as estradas que corriam como a água de um rio, um camponês que subia uma colina montado num burrico, um rapazito a beber uma limonada (ela sentiu o sabor do líquido na garganta) um homem sob uma palmeira, tocando guitarra (ela sentiu as cordas nos dedos) e, ao longe, o mar calmo e azul; sentia-se desvanecer, sentia que era arrebatada.
Desapareceu... e William também.
A porta foi arrombada. O gerente e os criados entraram de roldão.
O quarto estava vazio.
— Mas eles estavam aqui! Há um instante! Vi-os entrar. E, agora, não está cá ninguém! — gritou o gerente. — As janelas estão fechadas. Não poderiam ter saído!
Mais tarde, lá para a noite, mandaram chamar um padre. Abriram o quarto, arejaram-no; o padre aspergiu os cantos com água benta.
— Que vamos fazer de tudo isto? — perguntou a criada do quarto.
Apontava para um armário onde estavam sessenta e sete garrafas de licor, de conhaque, de creme, de cacau, de absinto, vermute, téquilla; cento e seis maços de cigarros orientais, cento e noventa e oito caixas de havanos...
Saúl Williams acordou, na manhã calma. Espreitou pela porta da barraca e pensou que a Terra estava muito longe. A milhões de milhas... Mas que podia ele fazer? Tinha os pulmões cheios da «ferrugem do sangue». Tossia continuamente.
Saúl levantou-se, nessa manhã, às sete horas. Era um homem alto, delgado, emagrecido pela doença. A manhã, em Marte, era calma. O leito do mar morto era plano e silencioso, o vento não soprava. O Sol era claro e fresco, no céu vazio.
Lavou o rosto e, depois, tomou o pequeno almoço.
Sentiu então um violento desejo de estar na Terra. Durante o dia tentava por todos os meios possíveis sentir-se em Nova York. Às vezes, sentado de certa maneira e com as mãos em determinada posição, conseguia-o. Quase podia sentir os perfumes de Nova York. Mas, na maior parte das vezes, o método não dava resultado.
Durante a manhã, um pouco mais tarde, tentou deixar-se morrer. Estendeu-se na areia e ordenou ao coração que deixasse de bater. O coração continuou a pulsar. Imaginou-se a saltar do alto de uma falésia, a cortar as veias. Mas riu-se de si mesmo, sabia que não teria coragem para fazer qualquer coisa desse género.
«Talvez que se conseguir concentrar-me bem, adormeça» — imaginava. Uma hora depois acordou com a boca cheia de sangue. Levantou-se suspirando e sentiu uma grande pena de si. Este sangue, que obstrói a boca e o nariz, salta dos ouvidos... Um ano decorria antes que a morte chegasse. O único tratamento consistia em meter o doente numa astronave e exilá-lo para Marte. Na Terra não havia tratamento conhecido. A doença era contagiosa. Assim estava ali sangrando e sentindo-se irremediavelmente só.
Saúl semicerrou as pálpebras. Lá ao longe, perto das ruínas de uma antiga cidade, avistou um outro homem estendido, enrolado num cobertor.
Quando se aproximou, o homem moveu-se dificilmente.
— Olá, Saúl! — cumprimentou.
— Mais uma manhã! — disse Saúl. — Ando com uma neurastenia...
— É o mal de todos os doentes — respondeu o outro, imóvel no cobertor e tão pálido que parecia ir desfalecer ao mínimo gesto.
— Se ao menos você pudesse falar, santo Deus! Se ao menos cá estivesse um intelectual para conversar...
— É uma conspiração contra si... — disse o outro homem, fechando os olhos de cansaço. — Outrora diziam que eu era um intelectual. Agora, o mais ligeiro acto que me leve a pensar dá-me um trabalhão, esgota-me.
— Se ao menos pudéssemos conversar — disse Saúl Williams.
O outro esboçou um gesto de indiferença que não conseguiu completar.
— Volte amanhã. Talvez me sinta com forças que cheguem para falar de Aristóteles. Tentá-lo-ei sèriamente,
Saúl sentou-se, encostando-se a uma árvore seca. Depois abriu um dos olhos.
— Recorda-se que falámos de Aristóteles há uns bons seis meses, num dia que me senti bem?
— Sim, recordo-me — murmurou Saúl sem o ouvir. Fitando o mar seco: — Gostaria de estar tão doente como você. Nesse estado ser-me-ia indiferente ser ou não um intelectual. Talvez conseguisse ficar em paz.
— Você estará neste estado dentro de seis meses — afirmou o moribundo. — Então tudo lhe será completamente indiferente, salvo o dormir, dormir sempre. O sono será para si como os braços da mulher para que se voltava sempre, porque era boa, fiel, agradável, porque o tratava com ternura, etc. Só acordará o tempo suficiente para pensar no próximo sono.
A sua voz era um murmúrio. Depois calou-se, respirando dèbilmente.
Saúl afastou-se.
Na margem do mar morto, como se fossem garrafas vazias lançadas à praia com mensagens já inúteis, jaziam os corpos dobrados dos adormecidos. Saúl distinguiu-os ao longo de toda a curva que a margem desenhava, isolados, a maior parte mais doente do que ele, cada um com a sua pequena reserva de víveres, dobrados sobre si próprios, porque as relações sociais cansavam e o sono era o único bálsamo.
No princípio tinham passado umas noites agrupados à volta de uma fogueira. Falavam da Terra, tema único de todas as conversas. A Terra, os rios que corriam perto das cidades, a torta de morangos feita em casa, o aspecto de Nova York à noite com os anúncios luminosos, ou de manhã cedo, quando se chegava de Jersey no «ferry-boat», o ar saturado do sal da brisa marítima.
Amo a Terra — pensava Saúl. — Quero-lhe tanto que até me sinto doente! Desejo uma coisa onde nunca mais poderei pôr os pés. Todos estes a desejam. E sentem-se piores por a não possuir. Mais do que ter uma mulher ou alimentos, preciso da Terra; mais nada! Esta doença afasta-nos das mulheres, torna-as desnecessárias. A atracção é a Terra. É uma coisa que pede a alma e não este corpo mesquinho,
Um brilho metálico atravessou o espaço.
Saúl ergueu a cabeça.
O metal brilhou de novo.
Momentos depois uma astronave descia no leito do mar. Uma porta abriu-se e um homem, segurando a bagagem, desceu. Dois outros homens, envergando fatos de protecção acompanhavam-no. Traziam caixas de víveres e levantaram uma tenda.
Uns minutos depois a astronave desaparecia no céu. O exilado ficou só.
Saúl começou a correr. Já não corria há muitas semanas. Era extremamente fatigante, mas apesar disso corria, gritava.
— Olá! Olá!
O jovem recém-chegado mediu-o dos pés à cabeça, quando Saúl estacou na sua frente.
— Viva! Pois é verdade! Cá estamos em Marte. Chamo-me Leonard Mark.
— Eu sou Saúl Williams.
Apertaram-se as mãos. Leonard Mark era muito novo, aparentava uns dezoito anos. Loiro, rosado, uns olhos grandes e de um azul forte e uma pele fresca, apesar da doença.
— Como vão as coisas em Nova York? — Assim, assim — respondeu o outro. Fitou Saúl.
Nova York ergueu-se no deserto, de pedra e cimento, varrida pelos ventos de Abril. Letreiros de néon brilhavam nas ruas. Taxis amarelos deslizavam na noite. Surgiram pontes e os rebocadores mugiram ao longo dos cais escuros. O pano de boca ergueu-se nos feéricos teatros de variedades.
Saúl levou alucinadamente as mãos à cabeça.
— Eh! Eh lá! — gritou. — O que é que tenho? Que se passa? Estou doido!
Verdes e sussurrantes, as folhas do Central Park brotaram nas árvores. Saúl caminhou por uma álea, aspirando o ar matutino.
— Pára, pára, idiota! — Saúl dirigia-se a ele próprio. Apertou a cabeça com as mãos: — Isto não pode ser!
— Sim, pode! — contrapôs Leonard Mark.
A visão de Nova York desvaneceu-se. Marte apareceu de novo. Saúl em pé, no fundo do mar morto, piscou os olhos.
— Foi você! — disse com o dedo apontado para Leonard Mark. — Foi você que fez aquilo. Fê-lo com a sua vontade.
— Sim, fui eu — assentiu calmamente Leonard Mark. Olharam-se em silêncio. Por fim, Saúl agarrou a mão do outro exilado e apertou-lha repetidas vezes.
— Oh! como me sinto feliz por estar cá! Não pode imaginar como me sinto feliz.
Bebiam silenciosamente o café.
Era meio-dia. Tinham conversado durante toda a manhã.
— E essa capacidade que você tem?... — perguntou Saúl, fixando os olhos em Mark.
— Já nasci com ela — disse o outro, contemplando o café. — A minha mãe estava em Londres quando a cidade foi bombardeada em 57. Nasci dez meses mais tarde. Não sei que nome dar a esta capacidade. Suponho que a telepatia, ajudada por uma concentração da vontade, ocasiona transmissão de pensamentos. Fui artista. Percorri o Mundo inteiro. Leonard Mark, o prodígio mental, lia-se nos cartazes. Juntei, o mais honestamente possível, uns patacos. A maior parte das pessoas julgavam que eu era um charlatão. E você sabe o que sempre se disse da gente do teatro. Mas eu sabia que a minha capacidade era verdadeira e grande. Mas nunca me cansei a dizê-lo. É mais seguro, para não despertar as atenções. Evidentemente que alguns dos meus amigos íntimos conheciam as minhas reais qualidades. E estas, agora que estou em Marte, vêm mesmo a calhar.
— Você pregou-me um susto dos diabos! — disse Saúl, com a chávena imóvel junto da boca. — Quando Nova York apareceu daquela forma, no deserto, julguei que tinha enlouquecido.
— É uma espécie de hipnotismo, que afecta todos os sentidos e todos os órgãos. O que é que você mais desejaria neste momento?
Saúl pousou a chávena. Esforçava-se por não deixar a mão tremer. Humedeceu os lábios.
— Gostaria de estar num ribeirito, em Mellin Town, Illinois, onde me banhava quando era criança. Gostaria de estar nu e nadar.
— Bem — disse Mark, fazendo um ligeiro movimento com a cabeça.
Saúl caiu na areia, com os olhos fechados.
Mark ficou sentado a olhá-lo.
Saúl estava estendido sobre a areia. Por vezes as suas mãos agitavam-se, ritmiticamente. A boca entreabriu-se, como que para golfar um líquido. A garganta, contraída, emitia pequenos roncos.
Os seus braços começaram a executar movimentos lentos, braçadas; continuamente, voltava a cabeça de lado para poder respirar e agitava-se na areia amarela enquanto o corpo se torcia lentamente.
Leonard Mark acabou de beber o líquido, muito tranqüilo. Conservava os olhos fixos em Saúl que se agitava e murmurava no leito do mar seco.
— Acabou! — disse Mark.
Saúl sentou-se, esfregando o rosto.
Passados uns momentos exlamou, ofegante, com um sorriso incrédulo:
— Vi o ribeiro, corri ao longo da margem, despi-me! E depois mergulhei e nadei!
— Sinto-me satisfeito — disse Leonard Mark.
— Pegue! — Saúl tirou do bolso a última pasta de chocolate. — Tome lá isto.
— O que é? Chocolate? Não, obrigado. Não lhe fiz isso para que me pagasse. Fi-lo para lhe dar prazer. Meta o chocolate no bolso antes que se transforme numa serpente que o morda.
— Obrigado, muito obrigado! — Saúl guardou o chocolate.
— Nem calcula como a água estava boa —. Pegou na cafeteira:
— Mais café?
Bebendo o líquido, Saúl fechou os olhos por um momento.
Tenho aqui Sócrates à mão — pensou. — Sócrates, Platão, Nietzsche e Schopenhauer. Este homem, pela maneira como fala, é um gênio. Pelo seu talento, é invulgar! Que longos e deliciosos dias, que agradáveis serões teremos, a conversar! Afinal, o ano não será assim tão mau!...
Entornou o café.
— Que foi?
— Nada. Saúl estava perturbado.
«Estaremos na Grécia. Em Atenas. Estaremos em Roma, se quisermos, a estudar os autores latinos. Subiremos ao Parthenon, à Acrópole. Não será uma simples conversa... Mais que isso: estaremos in loco. Este homem pode consegui-lo. Tem poder para isso. Quando falarmos de Racine, poderá fazer surgir, para mim, o palco e os actores... Bom Deus! É o melhor que a vida me poderia dar! Como é preferível estar aqui, e doente, do que são e na Terra, sem estes dons! Onde é que, jamais, poderia ver uma tragédia grega representada num anfiteatro, no ano 31 antes de Cristo?
«E se eu instantâneamente e calmamente lhe pedisse, este homem poderia adquirir as feições de Schopenhauer, de Darwin ou de Bergson ou de qualquer outro pensador de épocas distantes?... Sim, porque não? Falar com Nietzsche em pessoa ou com o próprio Platão!...
Só havia uma coisa que não estava bem. E Saúl sentiu-se angustiado.
Os outros! Os outros doentes que viviam ao longo da margem do mar morto.
Ao longe havia homens que se moviam, avançando para eles. Tinham visto a astronave cruzar o céu, pousar, e um passageiro descendo dela. E agora chegavam, lenta e penosamente, para saudar o recém-chegado.
Saúl estremeceu.
— Olha lá, Mark! Parece-me que será melhor dirigirmo-nos para as montanhas.
— Porquê ?
— Vê esses sujeitos que se dirigem para nós? Entre eles há alguns que são doidos.
— A sério?
— Sim.
— Devido à solidão e a todas as outras coisas, não?
— Exactamente. É melhor partirmos.
— Não têm ar de serem perigosos. Caminham lentamente.
— Não se fie. Mark fitou Saúl:
— Você está a tremer. Que tem?
— Não temos tempo para conversas — disse Saúl, mudando de lugar. — Venha! Não compreende o que se vai passar quando eles descobrirem as suas faculdades? Vão lutar, matar-se, matá-lo a si, para o disputarem.
— Oh! mas eu não pertenço a ninguém! — exclamou Leo-nard Mark —. Não, nem a si!
Saúl fez um movimento brusco com a cabeça.
— Nem tinha pensado nisso. — Ah não? — Mark sorriu.
— Não temos tempo para discutir — replicou Saúl, batendo as pálpebras e corando. — Vamos embora.
— Não. Vou ficar aqui, sem me mexer, até que aqueles homens cheguem. Você tem um desenvolvido instinto de posse. A minha vida pertence-me.
Saúl sentiu crescer nele qualquer coisa de infame.
— Ouviu o que eu lhe disse?!
— Com que rapidez você passou de amigo para inimigo! Saúl dirigiu-lhe um soco, rápido e em cheio, de cima para baixo.
Mark esquivou-se rindo. — Isso não!
Estavam agora no centro de Times Square. As viaturas rodavam, buzinavam, lançavam-se sobre eles. Os imensos edifícios mergulhavam no céu azul.
— É falso! — gritou Saúl, cambaleando sob o choque visual... — Por amor de Deus pare, Mark. Olhe que eles aproximam-se, vão matá-lo.
Mark sentou-se no chão, rindo da partida.
— Que venham! Posso dominá-los a todos!
Nova York atraiu a atenção de Saúl, como Mark previra, absorvendo-o pela sua estranha beleza. Em vez de se lançar sobre Mark, Saúl não pôde deixar de ficar ali, de pé, impregnando-se daquela visão tão longínqua mas tão familiar.
Fechou os olhos.
— Não! — e caiu para a frente, arrastando Mark. As buzinas apitaram. Os travões chiaram. Bateu violentamente no queixo de Mark.
Silêncio.
Mark jazia no leito de mar seco.
Erguendo-o nos braços Saúl começou a correr pesadamente.
Os outros estavam agora muito próximo. Dirigiu-se para as colinas com o seu precioso fardo — com Nova York, os campos verdes, os murmurantes ribeiros, os velhos amigos, com tudo isso apertado nos braços. Caiu e ergueu-se penosamente. Não interrompeu a corrida.
A noite enchia a caverna. O vento entrava e saía, soprava o fogo, dispersava as cinzas.
Mark abriu os olhos. Estava amarrado, sentado, com as costas apoiadas na parede de pedra, voltado para o fogo.
Saúl lançava lenha na fogueira. De vez em quando deitava olhares nervosos para a entrada da gruta...
— Você é um idiota!
Saúl sobressaltou-se.
— Sim — disse Mark — você é um idiota! Eles encontrar-nos-ão. Mesmo se nos procurarem durante seis meses. Eles viram Nova York, ao longe, como uma miragem. E nós no centro. Foi o suficiente para ficarem intrigados e, portanto, para nos procurarem.
— Se assim for levá-lo-ei ainda para mais longe — disse Saúl, os olhos fixos nas chamas.
— E eles seguir-nos-ão. Mark sorriu.
— Sim senhor, um lindo conjunto: a sua avidez e as minhas possibilidades mentais. Que deseja ver agora? Umas outras cenas da infância?
Saúl sentiu o suor correr-lhe pelo rosto. Seria que o outro se divertia?
— Muito bem! — exclamou Mark. — Veja!
Brotaram chamas dos rochedos. Vapores sulfurosos penetraram-lhe na garganta. Um bloco de enxofre bruto estava prestes a cair. As explosões sacudiram a caverna. Quase a vomitar, Saúl tossia, asfixiava, chamuscado por este inferno.
O inferno desapareceu. A caverna surgiu de novo.
Mark ria.
Saúl inclinou-se sobre o outro.
— Patife! — exclamou, com um olhar frio.
— O que é que você quer? — gritou Mark. — Acha que é muito agradável ser amarrado, transportado como um fardo e ser forçado a transformar-me na esposa intelectual de um indivíduo louco de solidão?
— Desligá-lo-ei se me prometer que não foge.
— Não posso prometer. Sou livre. Não pertenço a ninguém. Saúl pôs-se de joelhos.
— Mas tem que ser, ouve-me? Tem que ser! Não posso deixá-lo partir.
— Meu pobre amigo: quanto mais me fala desse modo, mais me afasta. Se tivesse agido com mais bom senso e discernimento, teríamos sido amigos. Sentir-me-ia feliz por lhe fazer uns pequenos favores hipnóticos. De resto isso não me obriga a nenhum esforço. É um verdadeiro prazer. Mas você cometeu um erro. Queria-me inteiro para si. Teve receio que os outros me levassem. Que erro! Os meus poderes são suficientemente grandes para os tornar a todos felizes. Ter-me-ia sentido como um deus entre as crianças, espalhando bondade, distribuindo favores em troca de pequenas ofertas, de alguns presentes.
— Lamento o que aconteceu, sentia-me receoso. Mas conheço muito bem estes homens e sei como eles são.
— E você é diferente?... Ninguém diria. Vá lá ver se eles vêm. Parece-me ter ouvido um ruído.
Saúl correu a ver. À entrada da gruta colocou as mãos em pala, tentando descortinar na obscuridade. Vagas sombras agitavam-se no exterior. Seriam tufos de arbustos batidos pelo vento? Começou a ser sacudido por tremuras, tremuras dolorosas.
— Não vejo nada. — Entrou na caverna mas esta estava vazia.
Tresloucado, fitou o fogo. — Mark!
Mark tinha desaparecido.
Só havia as rochas, pedras, seixos, centelhas das chamas, o suspiro do vento. E Saúl, incrédulo.
— Mark! Mark! Volte!
Tinha-se decerto libertado das cordas, docemente, cuidadosamente; tinha afastado Saúl e, depois, escapara-se. Para onde?
A caverna era profunda mas terminava numa parede. E Mark não podia ter-se escapulido pela entrada, a seu lado.
Saúl rodeou a fogueira. Puxou pela navalha e aproximou-se de um rochedo próximo à parede. Sorrindo, apoiou a ponta contra a rocha. Sorrindo, apalpou-o. Depois, ergueu o braço preparando-se para mergulhar a lâmina na pedra.
— Pare! — gritou Mark.
Era Mark. Saúl suspendeu o gesto. Os reflexos das chamas brincavam-lhe no rosto. Os olhos faíscavam.
— Isso não pegou — murmurou ele. Colocou as mãos à volta do pescoço do outro e cerrou os dedos. Mark nada disse mas agitou-se desajeitadamente sob a pressão fazendo compreender a Saúl, com um olhar irônico, coisas que o outro sabia. Se me matares, onde estarão os teus sonhos? Se tu me matares onde estarão os rios e os ribeiros ? Mata-me e matarás Platão, Aristóteles, Einstein; sim, mata-os a todos! Anda, desafio-te a estrangulá-los!
Os dedos de Saúl descontraíram-se.
Sombras encobriram a entrada da caverna.
Os dois homens voltaram a cabeça.
Os outros tinham chegado. Eram cinco, arfando, abatidos pela fadiga, e eles estavam, em pé, semi-iluminados pela luz do fogo.
— Boa noite! — exclamou Mark sorrindo. — Entrem, entrem, senhores!
Ao despontar do dia a feroz discussão ainda continuava. Mark, com os olhos fixos, estava sentado no meio do grupo. Esfregava os pulsos há pouco libertos das cordas. Tinha feito aparecer uma sala de conferências, com lambris de acajú e uma mesa à volta da qual os outros estavam sentados, suados e ávidos, inclinados sobre o seu tesouro.
— A solução — disse Mark, por fim — consiste em se marcar entrevistas comigo, a determinadas horas de certos dias. Tratar-vos-ei equitativamente. Serei propriedade municipal, mas poderei circular livremente. O que é justo. Quanto a Saúl, será vigiado. Quando provar que terá maneiras, conceder-lhe-ei uma ou duas sessões. Até essa altura, nada quero com ele.
Os outros exilados fitaram Saúl sorrindo.
— Lamento — disse Saúl — , mas não sabia o que fazia. Agora, já aprendi.
— Veremos — disse Mark. — Concedemos-lhe um mês. Estão todos de acordo?
O grupo fitou Saúl, sorrindo.
Saúl nada disse. Tinha os olhos fixos no solo da caverna. — Vejamos — disse Mark. — Segunda-feira será o seu dia, Smith.
Smith aquiesceu com a cabeça.
— Terça-feira estarei com Peter uma ou duas horas. Peter aquiesceu.
— Quarta-feira tomarei conta de Peter por uma hora ou duas.
Peter acedeu.
— Na quinta-feira ficarei com Johnson, Holtzman e Jim. Os três homens entreolharam-se.
— Nos outros dias da semana, deixar-me-eis só, entendido? — disse Mark. — Um bocado vale mais do que nada. Se vocês não obedecerem, não farei mais nenhuma sessão.
— Talvez não estejamos de acordo, meu caro amigo. — Viu o olhar dos outros. — Vejamos, somos cinco contra um. Podemos obrigá-lo a fazer tudo o que quisermos. Se colaborarmos teremos qualquer coisa de espantoso.
— Não sejam idiotas — disse Mark.
— Deixem-me falar — disse Johnson. — Mark disse-nos o que queria fazer. E porque não lhe diremos nós o que queremos que ele faça? Somos ou não mais fortes do que ele? Ameaça-nos de não fazer o seu número! Deixem-me meter-lhe uma farpa de madeira sob as unhas e aquecer-lhe a ponta dos dedos cora uma lima, e veremos o que acontece! Porque não teremos sessões todas as tardes e durante todos os dias da semana?
Os homens bateram as pálpebras, olhando umas vezes Mark, outras vezes Johnson.
— Entretanto — observou Mark — nenhum de nós pode ter confiança no próximo. É uma conferência de crédulos. No momento em que qualquer de vós voltar as costas, haverá alguém disposto a assassiná-lo. Lá para o fim da semana, eu vo-lo digo, estareis todos mortos ou agonizantes.
Um vento frio percorreu a sala de acaju, quê começou a desaparecer; a caverna reapareceu. Mark achava que o seu divertimento bastava. A mesa de mármore liquefez-se e evaporou-se.
Os homens entreolhavam-se com olhares vivos e desconfiados, como bestas. Era verdade. Viram-se nos próximos dias, lançando-se de imprevisto sobre os outros, entre uns matando-se, até que o derradeiro felizardo ficasse para gozar o tesouro mental que ali estava.
Saúl observando-os, sentia-se só e desorientado. Uma vez que se comete um erro, como é difícil admitir que as conclusões são falsas, e voltar ao zero inicial. Estavam todos errados. Estavam perdidos desde há muito. Entretanto era bem pior que estar perdido.
— E, o que não melhora a situação, é que um de vós tem uma pistola. Os outros não têm senão punhais. Mas um de vós, sei-o, possui uma pistola.
Levantaram-se todos, de um salto.
— Revistai-vos! — disse Mark. — Encontrai o que tem a arma, ou não ficará nenhum vivo.
Foi a confusão. Lançaram-se uns sobre os outros, não sabendo por quem começar. As mãos agitavam-se, as gargantas ululavam. Mark observava-os com desprezo.
Johnson recuava, com as mãos nos bolsos do blusão.
— Bem! — disse. — É melhor acabar com isto. Esta é para ti, Smith!
Meteu-lhe uma bala no meio do peito. Smith tombou. Os outros hesitaram, afastaram-se. Johnson apontou e fez fogo duas vezes.
— Pára! — gritou Mark.
Nova York ergueu-se à volta dos combatentes, saiu da terra e dos rochedos. O Sol luzia sobre os altos edifícios. O metrô aéreo trepidou, os rebocadores mugiram. A grande dama verde contemplava a baía, com o facho na mão.
— Reparai, loucos! — disse Mark. — Central Park era uma constelação de flores. O vento trouxe-lhes o odor da erva recentemente cortada.
No meio de Nova York, perturbados, os homens cambaleavam. Johnson atirou ainda três vezes. Saúl lançou-se contra Johnson, caiu sobre ele, arrancou-lhe a arma. Um tiro soou.
Os homens deixaram de se agitar. Olharam, imóveis. Saúl estava deitado sobre Johnson. Deixaram de lutar.
Houve um silêncio terrível. Os homens olhavam. Nova York era engolida pelo mar. Silvando e estremecendo, com um gemido de metal cansado e de decadência, as grandes construções dobraram-se, torceram-se, desabaram.
Mark estava de pé no meio das casas. Depois, seguindo-as, com um belo furo vermelho no peito, sem dizer uma palavra, tombou.
Saúl, estendido no solo, contemplava os homens, o corpo.
Levantou-se, com a pistola na mão.
Johnson não se mexeu, não o ousava.
Fecharam os olhos e reabriram-nos, pensando que podiam reanimar assim aquele que estava estendido a seus pés.
Estava frio na gruta.
Saúl levantou-se e olhou para a arma que tinha na mão. Foi lançá-la longe, para a lama, mas o seu olhar não lhe seguiu a queda.
Estavam petrificados perante o cadáver. Saúl baixou-se e tomou a mão inerte.
— Leonardo — pediu em voz baixa. — Leonardo. — Sacudiu a mão. — Leonardo!
Leonardo Mark não se mexeu. Tinha os olhos fechados, o seu peito deixara de ter movimento. Esfriava. Saúl levantou-se.
— Matámo-lo — disse, sem olhar os outros. Tinha a boca cheia de um licor ácido. — O único que não queríamos matar foi o que matámos.
Pôs sobre os olhos uma mão que tremia. Os outros esperavam.
— Ide procurar uma pá — disse Saúl — enterrai-o! — Voltou-se. — Não quero mais ver-vos.
Um deles foi procurar uma pá.
Saúl sentia-se tão fraco que não podia mexer-se. Tinha as pernas enraizadas na terra, a solidão, o receio e o frio da noite subiam dentro dele vindas de rios subterrâneos. O lume estava quase apagado e não havia senão a claridade das duas luas que flutuavam longe, para lá dos montes azuis.
Sentiu que alguém cavava a terra.
— Agora, já não queremos nada dele — disse uma voz, muito alto.
O barulho da pá continuava. Saúl afastou-se lentamente e deixou-se escorregar sobre um longo tronco negro. Sentou-se sobre a areia, com as mãos, moles, sobre os joelhos.
Dormir, pensou ele. Vamos todos dormir, entretanto. Temos pelo menos isso. Dormir e tentar sonhar com Nova York e tudo o mais.
Fechou os olhos, cansadamente, enquanto o sangue se lhe acumulava na boca, no nariz e sob as pálpebras trêmulas.
«Como conseguiu ele aquilo ? — perguntou a si próprio, com uma voz extenuada —. Como nos deu ele Nova York, tão nitidamente, para que pudéssemos passear? Experimentemos! Não deve ser difícil. Pensa! Pensa em Nova York e em Central Park, e depois no Illinois na Primavera, nas macieiras em flor e na erva verde».
Mas não conseguia nada. Nova York tinha desaparecido e nada do que Saúl pudesse fazer lha traria. Levantar-se-ia todas as manhãs e caminharia sobre o fundo seco do mar, procurando; deambularia sempre sobre Marte, procurando Nova York para nunca a encontrar. Enfim, um dia estender-se-ia, demasiado fatigado para caminhar, esforçando-se por recriar Nova York no cérebro sem jamais o conseguir.
A última coisa que ouviu antes de se embrulhar no sono foi o ruído da pá que abria uma cova onde, com um grande estalar de metais, numa nuvem de ouro, de cheiros, de cores e de sons, Nova York se afundava. Foi enterrada.
Chorou toda a noite durante o sono.
Atento, escutava o fremir das ervas secas afagadas pelas vozes das velhas bruxas sob a janela aberta:
— Ettil, o covarde! Ettil, o criador de obstáculos! Ettil, que não quer fazer a gloriosa guerra de Marte contra a Terra! Bem vos ouço, bruxas! — gritou.
As vozes transformaram-se num murmúrio, como o da água que corre nos longos canais sobre o céu marciano.
— Ettil, o pai de um filho que deve crescer sob a sombra deste horrendo pensamento! — As velhas aproximaram as cabeças, de olhos sorrateiros. — Vergonha! Vergonha!
A sua mulher chorava no outro extremo do quarto. As suas lágrimas eram como a chuva, numerosas e frescas sobre as telhas do telhado.
— Oh, Ettil! Como podes ter tu semelhantes idéias?
Ettil fechou o livro metálico que lhe tinha contado toda a manhã uma história, com o seu quadro filetado a ouro.
— Já tentei explicar-te. É uma loucura Marte invadir a Terra! Vamos ser aniquilados.
Fora, uma algazarra, gritos, metais, tambores, o marchar das botas, estandartes, cantos. Ao longo das ruas, o exército desfilava, armado. Velhas mulheres agitavam bandeirinhas sujas.
— Vou ficar em Marte, lendo — disse Ettil.
Bateram à porta, imperiosamente. Tylla foi abrir. O seu pai irrompeu no compartimento.
— Que é que ouço dizer do meu genro? Um traidor?
— Sim, pai.
— Tu não vais bater-te nas fileiras do exército marciano?
— Não, pai.
— Valham-me os deuses! — o velho estava esmagado, aterrado. — O teu nome será uma vergonha! Serás fuzilado!
— Está bem, fuzilem-me e acabou-se.
— Já ouviste falar de um Marciano que não participasse de uma invasão?
— Não, nunca. Admito, mesmo, que é incrível um facto destes.
— Incrível! — repetiram as bruxas sob a janela.
— Pai, não poderás convencê-lo? — perguntou Tylla.
— Convencê-lo o diabo que o carregue! — praguejou o pai, com os olhos enfurecidos. Pôs-se diante de Ettil. — A banda militar toca, está um belo dia, as mulheres choram, as crianças saltam de alegria, os homens desfilam como bravos, tudo está pronto e tu ficas na tua cadeira! Vergonha sobre ti!
— Vergonha! — lamentaram-se as vozes escondidas na sebe.
— Desaparece imediatamente, com o teu palavreado imbecil! — explodiu Ettil. — Leva as tuas medalhas e os teus tambores e desaparece!
Pôs o sogro na rua, sob os olhos da esposa chorosa. À porta havia um grupo de homens em cotas de bronze. Uma voz gritou:
— Ettil Vrye?
— Sou eu.
— Temos um mandado de captura contra si!
— Adeus, minha querida. Vou para a guerra com estes loucos! — gritou Ettil arrastado.
— Adeus, adeus! — gritaram as bruxas da cidade, ao longe...
A cela estava cuidadosamente limpa. Sem livros, Ettil estava nervoso. Através das barras olhou os foguetes que brilhavam no céu nocturno. As estrelas eram frias e inumeráveis, pareciam dispersar-se cada vez que um foguete caminhava para elas.
— Loucos — murmurou Ettil — loucos!
A porta abriu-se. Um homem entrou com um esquisito veículo que continha livros, uma grande quantidade de livros. Atrás caminhava o acusador militar.
— Ettil Vrye, queremos saber porque tem em seu poder, ilegalmente, estes livros da Terra. Temos aqui exemplares de Histórias Extraordinárias, de Narrações Científicas, de Contos Fantásticos. Faça o favor de se explicar.
Agarrou o pulso de Ettil.
Este libertou-se com um gesto brusco.
— Se quereis fuzilar-me, fazei-o. Esta literatura da Terra é precisamente a razão pela qual não vou tentar invadi-la. É a razão que transformará a invasão numa derrota. E como é isso ?
O acusador sorriu e voltou-se para os jornais.
Pegue num exemplar — disse Ettil. — Não importa qual. Em nove sobre dez das novelas publicadas entre os anos 30 e 50, seguindo o calendário da Terra, cada invasão das tropas marcianas é um êxito.
— Ah! — disse o acusador levantando a cabeça com satisfação.
— E depois dessa data malogra-se. — Possuir tais escritos é uma traição.
— Como queira. Mas deixe-me tirar algumas conclusões. Invariavelmente cada invasão malogra-se devido a um jovem, geralmente frágil, geralmente de origem irlandesa, geralmente só, chamado Mick ou Dick ou Jick ou Bannon, que aniquila os Marcianos.
— Você não pode acreditar em tal!
— Não, eu não acredito que os terrestres sejam efectivamente capazes disso, não. Mas eles têm toda uma tradição, compreenda, acusador, gerações de crianças que lêm estas histórias e acreditam nelas e as assimilam. As crianças não lêem senão histórias de invasões repelidas. Pode dizer-se o mesmo da literatura marciana?
— Quer dizer que...
— Não.
— Talvez você tenha razão.
— Você sabe que eu tenho razão. Nunca escrevemos histórias de um carácter tão fantástico. E, entretanto, temos um exército, vamos atacar e perecer.
— Não estou a seguir o seu pensamento. Que ligação tem com as histórias dos magazines?
— A moral. É enorme. Os Terrestres sabem que não podem ser vencidos. Isto está neles como o sangue nas veias. Qualquer que seja a invasão, mesmo a melhor organizada, aniquilá-la-ão. Lendo uma tal literatura os jovens ganharam uma fé que não podemos igualar. E nós, Marcianos? Duvidamos, sabemos que a derrota é possível. O nosso moral é baixo, apesar das trombetas e dos tambores.
— Não quero ouvir mais essas razões subversivas — gritou o acusador. — Esta literatura será queimada, assim como você, dentro de dez minutos. Você pode escolher, Ettil Vrye: alistar-se na Legião da Guerra ou ser queimado.
— Morrer por morrer, prefiro ser queimado.
— Guardas!
Arrastaram-no para o pátio. Viu arder os jornais e os livros que tinha coleccionado com carinho. Foi preparado um poço com dois metros de petróleo no fundo. Lançaram-lhe fogo que estalou com um barulho de trovoada. Estaria ali dentro, em menos de um minuto.
No outro lado do pátio, na sombra, descobriu o filho, de pé, só e solene, com os grandes olhos amarelos cheios de desgosto e de medo. Não estendeu os braços, nem falou, mas olhava o pai como a uma besta na agonia.
Ettil olhou o poço em fogo. Sentiu rudes mãos agarrá-lo, arrancar-lhe a roupa, arrastá-lo para a frente, para o círculo ardente da morte. Então, Ettil gritou:
— Parai!
A face do acusador, iluminada pelas chamas alaranjadas, avançou no ar que tremia.
— Que há?
— Alisto-me na Legião!
— Está bem! Larguem-no!
Ettil deixou de sentir as mãos sobre ele.
Voltando-se viu o filho, do outro lado do pátio, que o esperava. O seu filho não sorria, esperava. No céu, um foguete incandescente explodiu entre as estrelas...
— E agora digamos adeus a estes valentes guerreiros — disse o acusador.
A música tocou as marchas e o vento lançou sobre o exército suado uma doce vaga de choros. As crianças saltavam e batiam as mãos. No cais, Ettil viu a mulher chorando orgulhosamente e a seu lado o filho, grave e silencioso.
Marcharam em cadência para a nave e entraram, corajosos e sorridentes. Prenderam-se aos leitos de tela elástica. Bocejaram e esperaram preguiçosamente. Fechou-se uma grande tampa. Um filtro silvou.
— Para a Terra e para a destruição! Em frente! — murmurou Ettil.
— Hem ? — interrogou alguém.
— Em frente para a glória! — disse Ettil, com uma careta. O foguete partiu.
O espaço, pensava Ettil. Eis-nos prontos a precipitar-nos através dos oceanos de tinta e das luzes rosadas do espaço numa caçarola, num foguete de gala lançado contra os Terrestres, para encher os seus olhos com as chamas do medo, quando olharem para o céu. Que impressão se tem quando se está longe, muito longe da nossa casa, da mulher, do filho, desde agora?
Experimentou analisar os seus tremores. «É como órgãos mais íntimos estivessem agarrados a Marte, enquanto se salta para percorrer um milhão de milhas. O coração está ainda em Marte, aí pulsa. O cérebro está ainda em Marte, aí pensa e fumega como um archote abandonado. O estômago está ainda em Marte, cheio, tentando digerir o seu último repasto. Os pulmões, estão ainda no ar azul de Marte, ventilado, enebriante. Tudo isto pede dolorosamente um relaxamento e uma parte de nós próprios chora».
«E agora eis-te aqui, autômato sem comandos, corpo onde os médicos praticarão a autópsia. E do teu ser, tudo o que importa ficou no fundo seco dos mares, tudo está disperso sobre as colinas invadidas pela sombra. E aqui estás, vazio como um frasco, sem calor nem frio, nada senão as mãos, para levar a morte aos Terrestres. Não sou mais que um par de mãos», sonhou ele no seu gelado isolamento.
«Eis-te preso nesta teia enorme. Outros estão à tua volta, mas estão inteiros, corpos e almas completos. Enquanto a parte viva de ti próprio ficou em Marte a caminhar ao longo da praia arenosa e desolada na brisa da tarde. Esta coisa que está aqui, este objecto de argila frágil, está já morto.
— Ordem de combate! Aos seus lugares!
— Pronto! Pronto! Pronto! — Aos postos de combate!
Ettil moveu-se. Algures na sua frente, duas mãos frias, as suas, tremeram.
Como tudo isto foi rápido, pensou. Um ano antes, um foguete da Terra atingiu Marte. Os nossos sábios, com os seus incríveis dons telepáticos, copiaram-no; os nossos engenheiros, como as suas maravilhosas fábricas, fizeram uma centena de cópias. Nenhum outro navio aéreo da Terra tinha alcançado Marte desde então e, todavia, conhecemos perfeitamente a sua língua. Conhecemos a sua cultura, a sua lógica. E vamos pagar o preço dos nossos brilhantes talentos...
— Apontem os canhões!
— Pronto!
— Distância ?
— Em milhas?
— Dez mil.
— Ao assalto!
Um silêncio frio e angustioso. Um silêncio de insectos pulsando nos flancos do foguete. Uma trepidação de peças mecânicas, de chumaceiras e de rolamentos. O silêncio dos homens atentos, das glândulas que produziam lentas gotas de suor sob as axilas, sobre a fronte, sob os olhos pálidos e fixos.
— Atenção! Pronto!
Ettil que se chamou à razão beliscando-se, envolveu-se numa longa e dura espera. O silêncio e a espera. Tititi... tiii!...
— O que é isto?
A rádio da Terra.
— Capte!
— Estão a experimentar transmitir! Estabeleça o contacto! ...iiii... ti... ti...
— Pronto! Cá estão! Escute!
— Aqui Terra! Chamamos a esquadra marciana de invasão!
A trepidação das máquinas baixou para permitir aos homens silenciosos ouvir a voz da Terra ressoar nos difusores.
— Aqui Terra! William Sommers, presidente da Associação dos Produtores Americanos, fala-vos!
Ettil inclinou-se para a frente, olhos fechados.
— Desejamos que sejais benvindos sobre a Terra!
— O quê ? — exclamaram os homens no foguete, — O que é que ele disse?
— Sim, benvindos sobre a Terra!
— É uma armadilha!
Ettil espreguiçou-se e fixou os olhos encarquilhados no alto-falante do fundo.
— Desejo que sejais benvindos sobre a Terra, a Terra verde e industrial! — declarou a voz invisível e amistosa. — Sereis acolhidos de braços abertos e queremos transformar uma invasão sangrenta numa era de amizade que durará até ao fim dos tempos.
— É uma armadilha!
— Calem-se! Ouçam!
— Há muitos anos, nós os terrestres, renunciamos à guerra, destruímos as bombas atômicas. Desarmados como estamos, não temos mais a fazer que receber-vos de braços abertos. O nosso planeta está à vossa disposição. Não esperamos senão a bondade dos nossos invasores.
— Isto não pode ser verdade! — sussurrou alguém.
— É uma manobra para nos tornar inofensivos! — Aterrai e sede benvindos, todos vós — disse mr. William
Sommers, da Terra. — Aterrai onde quiserdes. A Terra está à vossa disposição, somos todos irmãos!
Ettil começou a rir. Todos os ocupantes do compartimento se voltaram para ele. Fizeram uma careta.
— Está louco!
Continuou a rir até que o esbofetearam.
O homenzinho barrigudo que estava no meio da pista de aterragem de foguetes em Green Town, Califórnia, tirou um lenço branco da algibeira e enxugou a fronte. Ofuscado pelo sol, lançou um olhar vago pelas quase cinqüenta mil pessoas que um cordão de polícia continha. Todas olhavam para o céu.
— Ei-los!
— Ah! — exclamou a multidão.
— Não, são gaivotas!
A multidão murmurou um enorme «oh!» de desapontamento.
— Começo a acreditar que seria melhor ter dec larado a guerra, apesar de tudo — reflectiu o governador. — Dessa forma teríamos todos ido para casa.
— Ch... cht... — disse-lhe a mulher.
— Ei-los! — A multidão começou a gritar.
Os foguetes marcianos chegavam do lado do sol.
— Está tudo pronto? Toda a gente a postos?
O governador lançou um olhar inquieto à sua volta.
— Sim, senhor — afirmou miss Califórnia 1965.
— Sim — disse miss América 1964 que tinha vindo substituir, à última hora, miss América 1966, doente.
— Sim, meu velho — disse o Sr.-Produtor-das-Maiores-Laranjas-do-Vale-de-S.-Fernando-de-1956, com os olhos brilhantes.
— A orquestra está pronta?
A orquestra apontou os metais como se fossem canhões. — Pronta! Os foguetes aterravam.
— Vamos!
A orquestra tocou: Eis que cheguei à Califórnia!, dez vezes seguidas.
Do meio-dia às treze horas, o governador fez um discurso, com grandes gestos na direcção dos foguetes, silenciosos e desconfiados.
Às treze e quinze, as portas dos foguetes entreabriram-se.
A orquestra atacou: Oh, meu belo país!, três vezes,
Ettil e cinqüenta outros Marcianos saltaram para o chão, com o dedo no gatilho.
O governador correu para eles, agitando as chaves da Terra.
A orquestra tocou: Chegou o Pai Natal! O coro, que tinha vindo de Long Beach, cantou novas letras, no gênero de E eis que chegam os Marcianos!
Não vendo armas, os marcianos distenderam-se um pouco, mas continuaram desconfiados.
Das treze e trinta às catorze e quinze, o governador reiniciou o discurso de boas-vindas.
Às catorze e trinta, miss América 1964 prontificou-se a abraçar todos os Marcianos, desde que se pusessem em fila indiana.
As catorze e trinta e dez segundos, a orquestra executou Como vai isso, gentes?, para vencer a confusão criada pela proposta de miss América.
Às catorze e trinta e cinco, o Sr.-Produtor-das-Laranjas ofereceu aos Marcianos um camião com duas toneladas de laranjas.
Às catorze e trinta e sete, o governador distribuiu-lhes bilhetes gratuitos para os cinemas «Elite» e «Majestic», e fez um novo discurso que durou até pouco depois das quinze horas.
A orquestra tocou e as cinqüenta mil pessoas cantaram: Porque estes são uns sujeitos encantadores!
Isto acabou às dezasseis horas.
Ettil sentou-se à sombra de um foguete, com dois companheiros.
— Ora, então, estamos na Terra!
— Por mim, parece-me que devemos matar todos estes porcos — disse um dos marcianos. — Não tenho confiança. São sonsos. Por que razões é que nos tratam assim?
Levantou uma caixa onde qualquer coisa fazia um barulhão.
— O que é que me deram? Uma amostra — disseram. — Leu a etiqueta: Blix, a nova lexívia miraculosa.
A multidão andava à deriva, tinha-se misturado aos Marcianos, como se estivesse no Carnaval. Sentia-se por toda a parte a multidão que, zumbindo, apalpava os foguetes, fazia perguntas.
E Ettil sentiu um arrepio. Tremia mesmo.
— Não o sentis? — sussurrava ele. — A tensão, o mal no ar? Vai acontecer-nos qualquer coisa. Eles têm um plano. Qualquer coisa de subtil e de hediondo. Vão fazer-nos qualquer coisa, sabes?
— Pela minha parte, abatê-los-ei a todos.
— Como podes tu abater pessoas que te chamam «meu velho» e «meu caro amigo» ? — perguntou um outro marciano.
Ettil sacudiu a cabeça.
— Eles são sinceros. E, todavia, dir-se-ia que estamos mergulhados num vasto banho ácido, que ameaça dissolver-nos. Tenho medo. — Enviou o pensamento sondar a multidão. — Sim, estão plenos de cordialidade, dão-nos pequenas pancadas no ventre (uma das suas expressões). Uma grande massa de gente comum, que gostam de gatos e de cães e de marcianos da mesma maneira. E, todavia... todavia...
A música tocava canções que convidavam a beber. Procedia-se a uma distribuição gratuita da parte das Cervejarias Hagenback, Fresno, Califórnia.
Começaram a vomitar.
As suas bocas eram verdadeiras fontes. Os gemidos enchiam os ares.
Sufocado, Ettil estirou-se sob um sicômoro.
Uma armadilha, uma terrível armadilha, pensou, com as mãos agarrando o ventre.
— Que diabo comeu você? — perguntou-lhe o acusador. — Qualquer coisa que eles chamam amendoim — gemeu
Ettil.
— E que mais?
— Uma espécie de bocado de carne estendido sobre um pequeno pão, a um líquido amarelo num copo gelado e uma espécie de peixe com uma coisa parecida com grude... — suspirou Ettil batendo as pálpebras.
Havia por toda a parte marcianos agarrados ao ventre.
— Matam-nos todos, estes malvados! — gritou alguém, sem forças.
— Haja calma — disse o acusador. — Exageraram simplesmente a sua hospitalidade. A pé, por agora. Objectivo, a cidade! É preciso colocar guarnições para estarmos seguros de que tudo corre bem. Outros foguetes estão em véspera de aterrar. É preciso que cumpramos as instruções que nos deram.
Penosamente, os homens puseram-se a pé, com olhos semicerrados, como corujas.
— Ordinário, marche!
— Um, dois! Um, dois! Um, dois!
As lojas brancas da cidade assavam sob a intensa luz do sol. Tudo respirava calor. Os candeeiros, o cimento, os metais, os estores, os telhados, tudo.
As botas dos marcianos estalavam no asfalto.
— É preciso ter muito cuidado! — disse o acusador em voz baixa.
Passavam em frente de um instituto de beleza.
Do interior veio um pequeno e furtivo riso.
— Olha de lado!
Uma cabeça metida em aparelhos emergiu e desapareceu ràpidamente, como uma marionete, à janela. Um olho azul brilhou e escondeu-se.
— É uma armadilha — sussurrou Ettil —uma armadilha, é o que vos digo.
Perfumes eram lançados pelos ventiladores que perfumavam a atmosfera das grutas onde as mulheres se escondiam como criaturas submarinas, sob os seus capacetes eléctricos, com cabelos ondulados e frisados em rolos e em pequenos caracóis, de olhos malignos e brilhantes como vidros, com bocas vermelhas como o néon. As pás giravam, enviando perfumes para o exterior, para as árvores verdes para os marcianos petrificados.
— Em nome do céu — gritou Ettil, perdendo o controle dos nervos. — Voltemos aos foguetes, voltemos para casa. Dominar-nos-ão. Vocês viram estas horríveis criaturas, lá dentro? Estas más sereias, estas mulheres animais nas suas frescas e pequenas cavernas de rochedos artificiais?
Olhai-as, pensava ele, fazendo flutuar os vestidos como brancas ondas cm volta das colunas das pernas. Começou a gritar.
— Silêncio, aí!
— Vão precipitar-se sobre nós, agitando caixas de bombons e números de «Nós dois» e de «Encantos de Hollywood», lançando gritos agudos, com as largas bocas engorduradas. Vão inundar-nos de banalidades, destruir a nossa sensibilidade! Reparai nelas, electrocutadas pelos engenhos, as vozes como serenatas de banalidades e de murmúrios! Ousarieis penetrar lá dentro?
— Porque não ? — perguntaram os outros marcianos.
— Porque elas far-vos-iam fritar, cozer, assar, mudar do princípio a fim. Fustigar-vos-iam, moer-vos-iam até que qualquer de vós não fosse senão um marido, um homem que dá lástima, aquele que paga para que elas possam vir instalar-se ali e devorar os seus bombons! Vocês pensam em dominá-las ?
— Sim, pelos deuses!
De longe chegou-lhes uma voz aguda, caprichosa, uma voz de mulher que dizia:
— Não é engraçado aquele, o do meio?
— Os marcianos não são assim tão maus, apesar de tudo. Éh, não são mais do que homens — disse uma outra, mais afastada.
— Éh, ó vocês, éh! You-hou! Ó marcianos! Ettil começou a correr...
Estava sobre um banco, num parque e tremia. Rememorava o que tinha visto. Levantou os olhos para o céu nocturno e sentiu-se longe de casa, muito só. Sentados longe, via entre as árvores os soldados marcianos passear nas ruas com mulheres da Terra, desaparecer engolidos pela sombra fantasmagórica de pequenos palácios de emoção para ouvir os sons ignóbeis emitidos por coisas brancas deambulando num écran cinzento, tendo a seu lado mulherzinhas de cabelos frisados, mastigando pedaços de goma gelatinosa, com outros bocados colocados sob as cadeiras, a endurecer e com marcas dos seus pequenos dentes de gato.
— Hello!
Aterrado, voltou a cabeça.
Uma mulher sentou-se no seu banco, a seu lado, mastigando preguiçosamente um bocado de borracha.
— Não é preciso fugir, eu não mordo — disse ela.
— Oh! — disse ele.
— E se fôssemos ao cinema? — perguntou ela.
— Não.
— Vamos, venha daí. Está lá toda a gente.
— Não — disse ele. — É só isso que você faz no mundo?
— Tudo? E não chega? — Os seus grandes olhos azuis abriram-se de pasmo. — O que é que você queria que eu fizesse? Que ficasse em casa agarrada a um alfarrábio? Ah, ah! Essa é muito boa!
Etíil olhou-a um momento, antes de fazer outra pergunta.
— O que é que você faz além disso?
— Passeio de automóvel. Você tem um carro? Devia ter um grande Podler Six, o novo modelo descapotável. São bestiais! Não importa quem seja o fulano que tenha um Podler Six. Basta tê-lo e sairá com não importa qual garota, sou eu que lho digo. Aposto que você está cheio de massa, que chega de Marte e tudo o mais. Aposto também que se você o quiser pode comprar um Podler Six e andar por aí.
— Para ir ao espectáculo, talvez?
— Faz objecções ?
— Não, não... nenhuma.
— Você não sabe com quem se parece, meu caro senhor? Com um comunista! Perfeitamente, cavalheiro! E o segredo da aldrabice em que ninguém já acredita, seja quem for. Não tem nada de mau, o nosso velho sistema. Fomos suficientemente bons para vos deixar à-vontade, marcianos; deixámos que a invasão se fizesse, sem levantar um dedo, não?
— É exactamente o que eu procuro compreender — disse Ettil. — Porque o fizeram vocês?
— Ora porque havia de ser? Porque temos o coração nas mãos, só por isso! Meta isto na cabeça: o coração nas mãos.
E foi-se para procurar outro.
Fazendo apelo a toda a sua coragem, Ettil começou a escrever a sua mulher. Esforçava-se e o papel estalava sobre os joelhos.
«Querida Tylla...»
Mas foi de novo interrompido. Uma mulher bastante velha, mas que parecia uma rapariga, com uma face pequena, redonda e pálida, sacudiu um tamborito sob o seu nariz, forçando-o a levantar a cabeça.
— Irmão— perorou. Os seus olhos lançavam chamas. — Você foi baptizado? Está salvo?
— Estou em perigo?
Ettil deixou cair a cabeça e levantou-se.
— Você corre um perigo terrível! — lamentou-se ela, batendo no tamborito, com os olhos no céu. — Você tem uma necessidade terrível de ser salvo, irmão!
— Estou inclinado a acreditá-lo — disse Ettil com emoção.
— Hoje já salvámos montões. Eu, à minha conta, salvei três marcianos. Não é bem bom ? — Sorriu-lhe.
— Penso que sim.
Inclinou-se para ele, cheia de uma dúvida intensa e perguntou, baixo e misteriosamente:
— Irmão, você foi baptizado?
— Não sei — respondeu num suspiro.
— O quê? Não sabe? — exclamou, atirando com os braços e o tamborito ao ar.
— É assim como ser fuzilado, o baptismo, não?
— Irmão, você está num terrível estado de pecado mortal. Isso deriva de ter sido educado na ignorância. Suponho que as escolas de Marte são horríveis, não se ensina lá toda a verdade. Ensinam um monte de mentiras. Irmão, você deve baptizar-se imediatamente, se quer ser feliz!
— Será que isso me tornará feliz, mesmo neste mundo? — perguntou Ettil.
— Não peça para si toda a felicidade. Fique satisfeito em ser qualquer coisa que todos pisam, pois há um outro mundo para onde iremos todos e é melhor do que este.
— Conheço esse mundo. — Lá há paz — disse ela.
— Sim.
— E serenidade.
— Sim.
— O leite e o mel correm livremente.
— Eu sei.
— E toda a gente é feliz.
— Sinto-o agora — disse ele. — Um mundo melhor — afirmou ela.
— Bem melhor. Sim, Marte é um belo planeta.
— Ora diga lá meu caro senhor: está a divertir-se comigo ?
Quase lhe atirou com o tamborito à cabeça.
— Mas não. — Ettil estava confundido e estupefacto. — Eu julgava que estava a falar de...
— Nem uma palavra a respeito dessa porcaria de Marte! Acredite, meu pobre amigo! São as pessoas como você que vão assar durante anos, cozer e cobrir-se de pústulas negras e ser torturadas...
— Devo dizer que a Terra não é muito simpática. A senhora descreveu-a admiràvelmente.
— Diga lá, você ainda está a divertir-se comigo? — gritou encolerizada.
— Esteja certa que não. Sou um pobre ignorante.
— Está bem. O que você é, é um pagão, e os pagãos não são gente recomendável. Tome lá este cartão. Amanhã à tarde vá a esse endereço, baptize-se e seja feliz. Gritamos, inquietamo-nos, fazemos preces, mas, se quiser ouvir a nossa banda de música, apareça. Não se esqueça, apareça por lá.
— Experimentarei — disse, hesitante.
Foi-se embora e ao longo da rua, agitando o tamborito, cantava alegremente e com uma voz de falsete: «Feliz, como eu sou feliz, sempre, sempre...»
Aterrado, Ettil recomeçou a carta.
Querida Tylla:
Quando penso que na minha ingenuidade pensava que os Terrestres contra-atacariam com canhões e bombas! Não, não, estava amargamente enganado. Não há Dick, nem Mick, nem Jick, nem Bannon, estes perfeitos e bravos rapazes que salvam os mundos. Não.
Há autômatos loiros com corpos de borracha rosada, reais e ao mesmo tempo passam toda a sua vida em cavernas. As suas ancas são de dimensões consideráveis. Têm os olhos imobilizados à força de fixarem continuamente telas de cinema. Os únicos músculos que têm são os das maxilas, largamente desenvolvidas, porque mascam sem paragem uma espécie de goma.
E não há mais nada, minha querida Tylla, há toda uma civilização na qual fomos lançados como uma pazada de sementes dentro de uma enorme betoneira. Não se salvará nada de nós. Não seremos mortos pelas armas. Será o aperto de mão que nos acabará. Seremos destruídos não pelas bombas, mas sim pelo automóvel...
Um grito. Um grande barulho de chapas esmagadas. Um outro. O silêncio.
Ettil precipitou-se. Na rua, duas viaturas acabavam de colidir, uma cheia de Marcianos; a outra de Terrestres. Ettil continuou a carta:
Querida, querida Tylla, permite que te forneça alguns dados estatísticos. Quarenta e cinco mil pessoas mortas no continente americano cada ano; transformadas em marmelada dentro da caixa, embaladas, por assim dizer, nos seus automóveis. Uma geléia vermelha com os ossos brancos aparecendo aqui e além, como pesadelos, pensamentos grotescos e horríveis, presos para sempre na geléia. As viaturas transformam-se em caixas de sardinhas bem fechadas, cheias de sumo e de silêncio.
Pasta de sangue para as moscas verdes do Verão, derramada sobre todas as estradas. Rostos que o choque transformou em máscaras de Carnaval. O Carnaval é uma das suas festas. Acredito que adoram o automóvel nessa noite — em todo o caso, em relação à morte...
Olha-se pela janela e vemos duas pessoas deitadas uma sobre a outra, carinhosamente, e que se não tinham visto até então. Mortas. Prevejo que o nosso exército vai ser feito em picadinho, contaminado, lançado no torvelinho dos cinemas pelas bruxas e pelo «chewing-gum». Um qualquer destes dias vou tentar safar-me, a ver se consigo chegar a Marte antes que seja tarde.
Em qualquer parte, na Terra, há um homem com uma túnica que salva o Mundo, quando a despe. Deve estar desempregado. A sua túnica está coberta de pó. O pobre deve jogar aos dados, também.
As mulheres deste mau planeta afogam-nos num mar de sentimentalismo vulgar, de romantismo deslocado; uma retardatária passa antes que os fabricantes de glicerina a metam na cuba de recuperação. Boa noite, Tylla. Deseja-me boa sorte porque serei naturalmente morto quando tentar fugir. Beija o nosso filho.
Com lágrimas silenciosas, colou o sobrescrito.
Saiu do jardim público. Que fazer? Fugir? Mas como? Voltar ao campo, alta noite, roubar um foguete e tentar alcançar Marte? Poderia fazê-lo? Sacudiu a cabeça. Tinha as idéias muito embrulhadas.
Do que estava certo era que, se ficasse, seria envolvido por um acervo de coisas detestáveis, que roncavam e assobiavam, cheias de fumo e de mau cheiro. Dentro de seis meses teria uma úlcera, rosada e sensível, uma pressão arterial de dimensões algébricas, uma miopia vizinha da cegueira; e pesadelos profundos como oceanos, povoados de intestinos infindáveis e convulsionados onde teria todas as noites de procurar uma saída. Não!
Reparou nos rostos dos terrestres que desfilavam na sua frente, alucinados, nas suas caixas de morte mecânica. Qualquer dia, bem próximo, inventariam uma viatura com quatro pegas de prata...
— Éh, oh tu!
Um claxon. Uma enorme viatura, tipo carro funerário, parou perto do passeio. Um homem debruçava-se na porta — Você é marciano?
— Sou.
— O homem que eu procuro! Salte cá para dentro! Uma ocasião única! Levo-o para um «dancing» de verdadeira categoria, para podermos falar. Vamos, entre, não fique para aí especado!
Como se estivesse hipnotizado, Ettil abriu a porta do carro e entrou. Sentou-se. Partiram.
O que é que vai E. V.? Um «manhatann», não? Rapaz, dois «manhatanns». O. K., E. V. Sou eu que ofereço e os Grandes Estúdios! Deixe a carteira em paz! Estou encantado por tê-lo conhecido, E. V. Eu chamo-me R. R. Van Plank. Talvez já tenha ouvido falar de mim? Não? Não faz mal, cumprimento-o da mesma forma.
Ettil sentiu que o outro lhe amassava a mão e lha deixava cair. Estava numa «boite» nocturna, tenebrosa, com música e criados que flutuavam. Dois copos foram colocados na sua frente. Tudo fora tão rápido... Presentemente Van Plank, de braços cruzados, contemplava a sua descoberta marciana.
— E. V., vou dizer-lhe porque tenho necessidade de si. É a idéia mais bestial que tenho tido desde que me conheço. Não sei como me apareceu, parece-me ter havido um relâmpago. Estava esta tarde em minha casa, e senti-me dizer: em nome de Deus, que filme se pode fazer! A invasão da Terra por Marte! Então o que devia fazer? Procurar um conselheiro técnico para o filme. Bom, salto da banheira, encontro-o e cá estamos. Que tal? Beba! À sua saúde e ao nosso futuro. Skôl!
— Mas — murmurou Ettil.
— Já sei, você tem necessidade daquilo com que se compra melões. Não é isso o que falta. Arranjaremos tudo.
— A coisa é que não gosto muito dos frutos da Terra.
— Você é um tipo muito divertido! Mas vejamos como imagino o filme, oiça lá... Teremos, primeiro, uma cena rápida dos marcianos, com tantãs, no deserto tórrido. Ao fundo, grandes cidades de prata...
— Mas, não são assim as cidades de Marte...
— Faz-nos falta o pitoresco, meu caro, e cor, muita cor. Deixe-me dizer. Bem! Há uma data de marcianos que dançam em volta de uma grande fogueira...
— Nós não dançamos em volta do fogo...
— Neste filme há uma fogueira e dança-se — declarou Van Plank, de olhos fechados, firme na sua atitude. Levantou a cabeça, aprovador. — Então, surgirá uma Marciana, magnífica, de elevada estatura, cabelos louros...
— As marcianas têm os cabelos castanhos...
— Oiça lá, E. V., não gosto de pessoas que me contrariem. A propósito, meu velho, você deve mudar de nome. Como é que você se chama?
— Ettil.
— É nome de mulher. Vou dar-lhe um melhor que esse. Vou chamar-lhe Joe. Okay, Joe, como ia dizendo, as nossas mulheres de Marte, serão loiras, porque, eh!, porque será assim. Senão o velhote não ficará contente. Você tem qualquer coisa a sugerir?
— Eu penso que...
— E outra coisa que é necessário haver é uma cena, com muita lágrima, quando a Marciana salva toda a equipagem de um foguete, depois de um meteoro, ou qualquer coisa no gênero, ter escavacado um navio aéreo. Isto vai dar uma cena do comando! Sabe, Joe, estou muito contente por tê-lo encontrado. Há-de fazer um belo negócio connosco, sou eu quem lho diz.
Ettil agarrou o pulso de Van Plank.
— Há uma coisa que quero perguntar-lhe.
— Diga lá, Joe!
— Porque são vocês tão gentis para connosco? Invadimos o vosso planeta e somos acolhidos de braços abertos, como filhos pródigos. Porquê?
— Não são lá muito espertos em Marte, pois não? Você é um tipo ingênuo, vê-se logo. Reflita um pouco, Mac! Nós somos para aqui umas coisitas, não é verdade ?
Fez um largo gesto com a mão repleta de esmeraldas.
— Somos vulgares, hem? Pois bem, aqui, na Terra, confiamos em todos. É o século do Homem da Rua, e estamos certos de sermos pequenos, Bill. Você vê um planeta cheio de compinchas, sim meu velho, uma enorme família de camaradas, e toda a gente se ama. Compreendemos os marcianos, Joe, e sabemos porque invadiram a Terra. Sabemos perfeitamente a vossa solidão nesse velho planeta Marte, como vocês invejam as nossas cidades...
— A nossa civilização é bem mais velha que a vossa...
— Oiça lá, Joe, você chateia-me quando me contraria e interrompe! Deixe-me dizer a minha teoriazinha e depois fale até quando quiser. Dizia eu que vocês se sentiam sós e vieram até cá para verem as nossas cidades, as nossas mulheres e tudo o mais, e nós fizemos a recepção de mais categoria, porque vocês são nossos irmãos, homens como toda a gente. E mais: há um pequeno lucro a tirar desta invasão. Quero dizer, por exemplo, este filme que vou fazer e que nos dará perto de um milhão de dólares líquidos. Na semana que vem começaremos a fabricar uma boneca marciana, especial, a trinta dólares. Tenho também um contrato para fazer um jogo marciano, que se venderá muito bem por cinco dólares. Há um mundo de possibilidades.
— Estou a ver — disse Ettil encostando-se.
— E depois, bem entendido, há um novo mercado. Veja todos esses depilatórios, os espelhos e as pomadas para calçado que poderemos vender aos marcianos.
— Espere, aí, tenho uma outra pergunta.
— Venha ela!
— Como é o seu nome? R. R. o que significa?
— Richard Robert. Ettil olhou para o tecto.
— Aconteceu já alguma vez, em qualquer ocasião, chamarem-lhe... Rick?
— Como diabo o adivinhou você, meu velho? Pois claro, Rick!
Ettil suspirou e começou a rir, a rir. Apontava um dedo para o interlocutor.
— Então você é o Rick? Rick! É realmente você o Rick?
— Qual é a piada disso? Cá o velhote quer saber onde está a piada.
— Você não compreenderá. É uma anedota lá de Marte. Ah, ah!
As lágrimas corriam-lhe pela cara abaixo. Deu uma punhada na mesa.
— Ora então você é Rick! Como é divertido! E não é nada do que diziam! Nenhum músculo proeminente, nada de maxilar decidido, nem sombras de pistolas. Apenas uma carteira bem recheada, anéis nos dedos e uma grande barriga.
— Éh, mais devagar! Não sou propriamente um Adónis, mas...
— Aperte-me a mão, Rick. Andava a desejar encontrá-lo. Você é o homem que vai conquistar Marte com bebidas, calçadeiras, dados do poker, botas de borracha, chapéus de tela e cremes gelados.
— Sou apenas um modesto homem de negócios — disse Van Plank baixando os olhos de furão. — Faço o meu bolo e quero uma pequena parte do doce. Mas, como ia dizendo, Sam, reflecti sobre o mercado marciano de brinquedos de corda e de desenhos animados. Novidade, hem? Um imenso mercado em que nunca se tinha falado. Não é verdade? Vamos mandar um grosso carregamento de mercadorias. Lutarão para as possuir. E o que não farão pelos perfumes, pelos vestidos de Paris, pelas salsichas tipo Francfort, etc. E pelos belos sapatos novos...
— Não calçamos sapatos...
— Que diabo de país é esse? — perguntou R. R. ao tecto. — Um planeta de camponeses ? Oiça, Joe, vamos tratar disso. Criar-se-á uma tal situação psicológica que terão vergonha de não trazer sapatos. Então vender-lhe-emos a graxa.
— Oh!
Deu uma palmada nas costas de Ettil.
— Negócio fechado? Você será o director técnico do meu filme? Dar-lhe-ei duzentos dólares por semana para começar, quinhentos para acabar. O que diz você a isto?
— Não me sinto lá muito bem — disse Ettil.
Tinha bebido o «manhatann» e estava muito pálido.
— Que chatice! Não sabia que lhe fazia tanto mal. Vamos até lá fora tomar ar.
O ar fresco fez bem a Ettil. Cambaleava.
— Então foi por isso que a Terra nos acolheu?
— Pois claro meu velho. Se o terrestre vê uma qualquer possibilidade honesta de ganhar uns dólares, começa logo a funcionar. O cliente tem sempre razão. Sem rancor. Aqui tem o meu cartão. Esteja no estúdio em Hollywood amanhã às nove horas — é uma regra que deve observar.
— Porquê ?
— Gallagher, você é um pássaro bem engraçado, mas gosto de si. Boa noite e boa invasão!
Partiu.
Ettil seguiu o automóvel com os olhos, incrédulo. Depois, passando a mão pela fronte, dirigiu-se lentamente para o aeroporto.
Bem, e agora o que vais tu fazer ? — perguntou a si próprio, em voz alta.
Os foguetes ali estavam luzentes e silenciosos sob a Lua. Chegava-lhe da cidade longínqua barulho de festa. No posto de socorros ocupavam-se de um caso grave de depressão nervosa: um jovem marciano que, a julgar pelos seus gritos, tinha bebido e visto coisas em excesso, tinha ouvido muitas canções berradas pelas caixas vermelhas e amarelas dos bares e tinha sido perseguido ao longo de inumeráveis mesas por uma mulher grande como um elefante. Repetia sem cessar: «Não posso respirar... esmagado... agarrado...»
Os soluços acalmaram. Ettil saiu da sombra e caminhou por uma larga avenida que conduzia aos foguetes. Longe, distinguia as sentinelas, aqui e além, completamente embriagadas, estendidas no solo. Escutou. Da grande cidade, chegavam os ruídos atenuados dos carros, das músicas, das sirenes. Imaginou outros sons; o barulho insidioso de máquinas misturando o malte para embriagar os guerreiros, torná-los amorfos e fàzê-los esquecer; as vozes narcotizantes das cavernas do cinema embalando os marcianos até que adormecessem completamente e marchassem durante todo o resto da vida como sonâmbulos.
Dentro de um ano, quantos marcianos não morreriam de cirrose do fígado, de colites intestinais, de arteriosclerose, quantos se suicidariam?
Estava no meio da avenida vazia. Longe uma viatura caminhava para ele.
Podia escolher: ou ficar sobre a Terra, aceitar o lugar no estúdio, apresentar-se todas as manhãs no trabalho de conselheiro e, ao fim de algum tempo, concordar com o produtor: que sim, que apesar de tudo havia massacres em Marte; que sim, que as mulheres eram de grande corpulência e louras; que sim, havia danças tribais e sacrifícios rituais; que sim, que sim, que sim. Ou meter-se num foguete e ir sòzinho para Marte.
E anos depois?
O Clube do Canal Azul instalado em Marte. O Casino da Cidade Antiga, construído no interior, no interior mesmo de uma velha cidade de Marte. O néon, os papéis engordurados sob os pórticos, os piqueniques nos cemitérios ancestrais, e tudo, mas tudo o mais.
Ainda não, todavia. Dentro de dias estaria em casa. Tylla esperá-lo-ia com o filho e então, durante os últimos anos de vida tranquila, estaria com a mulher, sentado na margem de um canal, na brisa, a ler os seus belos livros, apreciando um vinho leve e raro, a viver o tempo que lhe seria sempre devolvido até que a loucura do néon tombasse do céu.
E então talvez pudesse retirar-se para as montanhas azuis e esconder-se um ou dois anos antes que os turistas viessem com as máquinas fotográficas e proclamar como tudo era pitoresco.
Sabia o que diria a Tylla: «A guerra é uma coisa má, mas esta paz pode ser um permanente horror».
Estava no meio da longa avenida.
Voltando a cabeça, não se espantou ao ver uma viatura que se precipitava sobre ele, cheia de gente nova gritando. Estes rapazes e estas raparigas, de dezasseis anos, apenas, faziam com o carro grandes curvas. Viu-os apontá-lo com o dedo e gritarem. Sentiu o motor roncar mais forte. O carro voou para ele a cem à hora.
Começou a correr.
Sim, pensava com lassitude, no momento em que o carro quase o atingia, como isto é bizarro e triste. Parece-me tanto, tudo isto, com uma... betoneira.
Caminhavam lentamente pelo passeio, pelas dez horas da noite, conversando tranqüilamente. Tinham ambos uns trinta e cinco anos e eram muito sóbrios.
— Mas porquê tão cedo? — perguntou Smith.
— Porque tem de ser — respondeu Braling.
— É a primeira noite que tens livre desde há anos e vais para casa às dez horas!
— É nervosismo, talvez.
— A pergunta que me faço é como o conseguis-te. Há dez anos que me esforço por sair, para beber um copo em paz. E, entretanto, à noite, insistes em ir para casa cedo.
— É preciso que não force a minha sorte — disse Braling.
— O que é que fizeste? Puseste um soporífero no café da tua mulher?
— Não, isso não seria honesto. Mas tu vais ver. Dobraram uma esquina.
— Francamente, Braling, é duro dizer-te isto, mas tu foste muito paciente com ela. Talvez não mo digas, mas o casamento foi terrível para ti, hem?
— Não direi tal.
— Mas transpirou, em todo o caso, como ela te obrigou a desistir da viagem ao Rio, em 1979...
— Querido Rio! Nunca lá pus os pés, apesar de todos os meus planos.
— E como ela rasgou os vestidos, puxou os cabelos e ameaçou chamar a polícia se tu não casasses com ela.
— Foi sempre muito nervosa, Smith. É preciso que tu o compreendas.
— Foi uma injustiça atroz. Tu não a amavas. Disseste-lho, não foi?
— Lembro-me de ter sido muito preciso acerca desse ponto.
— Mas, apesar de tudo, casaste com ela.
— Tive de pensar nos meus negócios e também nos meus pais. Semelhante história acabaria com eles.
— E já se foram dez anos.
— Sim — confirmou Braling; os seus olhos cinzentos estavam calmos —. Mas penso que agora tudo pode mudar. Creio que aquilo que eu esperava aconteceu. Olha para isto.
Na mão tinha um comprido bilhete azul.
— Mas é um bilhete para o Rio, para o foguete de quinta-f eira!
— Sim, finalmente vou partir.
— É maravilhoso! Realmente tu merece-lo. Mas ela não vai criar obstáculos? Não vai dar-te cabo da cabeça?
Braling sorriu nervosamente.
— Ela não saberá que parti. Voltarei dentro de um mês e ninguém saberá nada, excepto tu.
Smith suspirou.
— Gostaria muito de te acompanhar.
— Pobre velho, o teu casamento não foi lá grande coisa, hem?
— Não, não é isso. Estou casado com uma mulher que exagera! Depois de tudo, quando se está casado há dez anos, não esperas que a tua mulher se sente nos teus joelhos todas as noites, durante duas horas, nem esperas que te telefone para o escritório dez vezes por dia para te dizer gentilezas, coisas ternas. E parece-me que desde há um mês a esta parte as coisas estão piores. Interrogo-me, às vezes, se ela não será de espírito um pouco simples.
— Ah, Smith, sempre razoável. E estamos em minha casa. Queres saber o meu segredo? Como me arranjei para esta noite ?
— Vais dizer-mo, de facto?
— Olha lá para cima! — disse Braling. Levantaram a cabeça.
O estore da janela do segundo piso abriu-se. Um homem debruçou-se: tinha à volta dos trinta e cinco anos, as têmporas grisalhas, os olhos cinzentos um pouco tristes, um bigode fininho.
— Mas, mas... és tu! — gritou Smith.
— Calma, fala baixo! — Braling agitou os braços. O homem da janela fez um sinal de compreensão e desapareceu.
— Estou louco, pela certa — disse Smith.
— Espera um pouco. Esperaram.
A porta da rua abriu-se e o senhor do bigode e dos olhos tristes apareceu diante deles.
— Olá Braling! — saudou.
— Olá Braling — disse Braling. Eram iguais.
Smith arregalou os olhos.
— É teu irmão gêmeo? Eu nunca soube...
— Oh, não! — disse tranqüilamente Braling. — Baixa-te e põe o ouvido no seu peito.
Smith hesitou, depois decidiu-se. Dobrou-se e colocou a cabeça contra o peito de Braling Dois.
Tic-tic-tic-tic-tic-tic-tic.
— Oh não! Isto não pode ser verdade!
— E no entanto é-o.
— Deixa-me ouvir outra vez.
Tic-tic-tic-tic-tic-tic.
Smith endireitou-se estupefacto. As suas pálpebras bateram. Estendeu a mão e apalpou a face quente da coisa.
— Onde o encontraste?
— Não está admiràvelmente fabricado?
— Incrível. Mas onde o conseguiste ? Braling Dois ofereceu-lhe um cartão:
Autómatos, Sociedade Anónima
Duplicados dos seus amigos ou de si próprio. Novos modelos 1990 humanoides em plástico. Garantidos para qualquer aplicação. De $ 7.600 a $ 15.000, modelo de luxo.
— Não! — espantou-se Smith.
— Sim! — opôs Braling.
— Certamente — confirmou Braling Segundo.
— Desde há quanto tempo o possuis?
— Há para aí um mês. Guardo-o na cave, numa caixa de ferramentas. Minha mulher nunca vai à cave e sou o único que tem uma chave. Esta noite disse-lhe que queria comprar uns cigarros. Desci, tirei Braling Segundo da caixa das ferramentas e mandei-o fazer companhia a minha mulher enquanto fui procurar-te, meu caro.
— Extraordinário! Tem exactamente o teu perfume, água de colônia e tabaco!
— Talvez esteja a diminuir-me, mas acho isto perfeitamente normal e moral. Bem vistas as coisas, o que a minha mulher quer é a minha presença. Este autômato sou eu, até ao mais ínfimo cabelo. Fiquei em minha casa toda a noite. E ficarei em minha casa durante todo o mês que vem. Entretanto, um outro indivíduo está no Rio, depois de uma espera de dez anos. Quando regressar do Rio, Braling Segundo voltará para a caixa.
Smith reflectiu um minuto ou dois.
— E ele funcionará sem interrupção durante um mês? — perguntou por fim.
— Seis meses, se for necessário. E foi construído para fazer tudo: comer, dormir, transpirar, tudo perfeitamente como nós. Você vai tomar bem conta da minha mulher, não é, Braling Segundo?
— A sua mulher é realmente encantadora — respondeu Braling Segundo. Sabe que me apaixonei por ela?
Smith sentia-se esvair.
— Desde há quanto tempo é que a firma Autômatos está aberta ?
— Secretamente, desde há uns dois anos atrás.
— Poderia eu... enfim, seria possível... — Smith agarrou o pulso do amigo. — Podes dizer-me onde poderei encontrar um, um «robot», um autômato? Vais dar-me o endereço, claro.
— Toma-o lá.
Smith pegou no cartão e torceu-o entre os dedos.
— Obrigado — disse. — Não calculas o que isto significa para mim. Uma trégua, por fim. Uma noite ou duas, ou só uma vez por mês. Minha mulher ama-me de tal forma que não permite que me ausente um minuto. Amo-a muito, é claro. Mas recorda o velho poema: «O amor fugirá se o abandonarmos, o amor morrerá se o atarmos». Eu gostaria, muito simplesmente, que afrouxasse um tudo nada as rédeas.
— Tu, ao menos, tens a sorte de a tua mulher te amar. O meu problema é o ódio. O que não é tão simples.
— Oh, Nettie adora-me. O meu objectivo é tornar a sua adoração confortável.
— Boa sorte, Smith. Passa por cá uma outra vez, enquanto estiver no Rio. Minha mulher achará esquisito que tu deixes bruscamente de me visitar. E trata o Braling Segundo como se fosse eu.
— De acordo. Adeus e obrigado.
Smith desapareceu, sorrindo. Braling e Braling Segundo entraram em casa.
No autocarro, Smith assobiava uma canção em voga lendo o cartão da Sociedade Anónima Autómatos:
Os nossos clientes são convidados a guardar o maior sigilo; um decreto-lei foi submetido à apreciação do Congresso para tornar legal a utilização das nossas criações, mas, de momento, se fosse tornado público, estaria sob a alçada da lei, capítulo que se refere aos duplos e uso dos duplos.
Não terei muito tempo de espera. Dentro de dois meses, as minhas costelas poderão restabelecer-se dos muitos apertões a que foram submetidas nos últimos tempos. Dentro de dois meses a minha mão terá esquecido as infindáveis pressões que tem sofrido. E o meu lábio inferior, quase morto, tomará a forma primitiva. Não quero tornar-me culpado de ingratidão, mas... E começou a ler o verso do cartão:
A Sociedade Anónima Autómatos existe há cerca de dois anos e há já uma longa lista de clientes satisfeitos. A nossa divisa é: viva a liberdade! Endereço: 43 South Wesley Drive.
A paragem do autocarro era em frente da sua casa. Desceu e, cantando, subiu a escada. «Nettie e eu, sonhava ele, temos quinze mil dólares no banco. Vou levantar oito mil, e dir-lhe-ei que vou tentar uma negociata. O autómato reembolsar-me-á com usura. Nettie não tem necessidade de saber». Abriu a porta e um minuto depois entrou no quarto de dormir. Nettie estava lá, pálida, gorda, dormindo tranqüilamente.
«Querida Nettie». Os remorsos quase o submergiram à vista do rosto inocente submerso no claro escuro do aposento. Se estivesses acordada, cobrir-me-ias de beijos e sussurrarias docemente no meu ouvido. Verdadeiramente sinto-me um criminoso diante de ti. Tens sido uma mulher tão carinhosa, tão boa! Às vezes quase não acredito que tu tivesses casado comigo, em lugar desse Bud Chapman por quem estavas apaixonada. Quer-me parecer que neste último mês me amas-te com mais força do que nunca.
Encheram-se-lhe os olhos de lágrimas. Por um momento desejou abraçá-la, dizer-lhe o seu amor, rasgar o cartão dobrado na sua carteira, esquecer tudo aquilo. Mas, enquanto caminhava para o fazer, doeu-lhe uma das mãos e as costelas estalaram. Parou, com o olhar desolado, e saiu do quarto. Atravessando os compartimentos às escuras, foi à biblioteca e consultou o livro de cheques. «Não levantarei mais de oito mil dólares», repetiu. Nem mais um centavo. Interrompeu-se. Eh lá!
Febrilmente começou a verificar. Eh lá! Faltam dez mil dólares! Fez um pequeno balanço. Ficaram só cinco mil dólares! O que fez ela? Em que empregou Nettie este dinheiro? Mais chapéus, mais vestidos, mais perfumes? Ah, já sei? Naturalmente comprou aquela vivenda sobre o Hudson de que falou durante meses, sem me consultar, sem me avisar!
Alucinado precipitou-se para o quarto de dormir. O que significava isto, dispor assim do seu dinheiro? Debruçou-se sobre ela. «Nettie! gritou —. «Nettie, acorda!»
Não se mexeu. «Nettie, que fizeste do meu dinheiro?»
Ela mexeu-se sob os cobertores. Vinda da rua, a luz de um candeeiro de iluminação pública iluminou-lhe a face.
Havia qualquer coisa de estranho. O coração bateu-lhe violentamente no peito. A língua secou-lhe na boca. Começou a tremer. Sentiu os joelhos liquefazerem-se. Sentiu-se desabar. «Nettie! Que fizeste tu do meu dinheiro?»
Foi então que uma idéia angustiosa o traspassou. O terror e a solidão abateram-se sobre ele. E, quase inconscientemente, dobrou-se para o leito, cada vez mais baixo, até que o seu ouvido febril ficou encostado firmemente contra o seio rosado e cheio. Nettie! — gritou com uma voz estrangulada.
Tic-tic-tic-tic-tic-tic-tic...
Enquanto Smith descia a avenida para apanhar o autocarro, Braling e Braling Segundo meteram por um corredor. — Estou contente por ele ganhar com isto — disse Braling. — Sim — respondeu distraidamente Braling Segundo.
— Vamos, para si, por agora, é a caixa das ferramentas. Braling agarrou o outro pelo pulso e arrastou-o para a cave.
— Era justamente disso que queria falar-lhe— disse Braling Segundo, já sobre o pavimento cimentado da cave. — A cave. Não gosto disto. E detesto esta caixa.
— Tratarei de lhe arranjar qualquer coisa mais confortável.
— Os autômatos são feitos para trabalhar e não para ficar imóveis. Você gostaria de estar fechado numa caixa a maior parte do tempo?
— Quer dizer que...
— Você não gostaria disso. Continuo a funcionar. Não há nenhum meio de me travar. Estou perfeitamente vivo e penso.
— Bem, mas são só mais uns dias. Vou partir para o Rio e você não ficará na caixa. Vai viver lá para cima.
Braling Segundo fez um gesto irritado.
— E depois, quando você voltar, farto de se divertir, voltarei para a caixa.
— Não me disseram, no armazém dos autómatos, que teria de me entender com um exemplar difícil.
— Há uma data de coisas que eles ignoram a nosso respeito — retorquiu Braling Segundo. — Somos uma coisa nova. E somos sensíveis. Repugna-me pensar que você vai partir, divertir-se e aquecer-se no belo sol do Rio, enquanto nós ficaremos aqui, neste clima frio.
— Mas toda a minha vida sonhei com esta viagem — disse tranquilamente Braling.
Fechou as pálpebras e viu o mar, as montanhas, a areia dourada. O barulho das vagas encheu os seus ouvidos. O sol acariciava-lhe as espáduas nuas. O vinho era excelente.
— E eu nunca poderei ir ao Rio — disse o outro —. Aposto que nunca pensou nisso.
— Não, eu...
— E depois há uma outra coisa. A sua mulher.
— E depois? — perguntou Braling, aproximando-se da porta da cave.
— Amo-a muito.
— Pois bem, fico satisfeito por ver que está contente com o seu emprego — disse Braling passando a língua pelos lábios.
— Estou a ver que você não me compreendeu. Creio... que estou apaixonado por ela.
Braling deu mais um passo e estacou.
— Você está o quê?
— Apaixonado. E pensei como seria agradável ir ao Rio e que nunca lá porei os pés. Pensei também na sua mulher, e creio que poderemos ser muito felizes.
— É en... encantadora. — Braling, com todo o sangue frio de que podia dispor, dirigiu-se para a saída. — Não se importa de esperar um momento? Tenho um telefonema a fazer.
— A quem? — Braling Segundo franziu o sobrolho.
— Oh, nada de importante.
— Para a Sociedade dos Autómatos? Para lhes dizer que venham domar-me?
— Não, não, não é nada disso — e tentou alcançar a porta. Uma mão de ferro agarrou-o pelos pulsos.
— Fique quieto!
— Deixe-me! — Não!
— É uma obra da minha mulher?
— Não.
— Ela adivinhou? Falou consigo? O que é que ela sabe? — Começou a gritar. Uma mão tapou-lhe a boca.
— Nunca mais o poderá saber, não é verdade? — disse Braling Segundo sorrindo delicadamente. Nunca mais o saberá.
Braling debatia-se.
— Adivinhou, está visto; deu-lhe volta à cabeça!
Braling Segundo declarou:
— Vou pô-lo na caixa e fechá-lo; depois vou perder a chave. E comprarei um outro bilhete para o Rio.
— Éh lá, éh, espere um pouco. Reflita! Podemos entender-nos!
— Adeus, Braling. Braling enteiriçou-se.
— O que quer dizer?
Dez minutos mais tarde, mrs. Braling acordou. Beliscou-se. Alguém acabava de a abraçar. Esfregou e abriu os olhos.
— Mas... há anos que não fazias isto! — murmurou ela.
— E veremos ainda mais algumas coisas — disse alguém.
A cidade esperava há mais de vinte mil anos.
O planeta continuava a sua rota no espaço, as flores dos campos cresciam e fanavam-se, mas a cidade esperava. As ribeiras dos planetas encheram-se de água, tinham definhado, não eram mais do que poeira. A cidade esperava sempre. Os ventos que tinham sido jovens e violentos, tinham-se tornado velhos e serenos, e as nuvens, que tinham corrido sem peias no céu, flutuavam, agora, com uma brancura preguiçosa. E a cidade esperava.
Com as suas janelas, as paredes sonolentas, as torres e as torrinhas sem pendões, as suas ruas de asfalto virgem, os puxadores das portas sem a menor impressão digital, os passeios sem um papel. A cidade esperava, enquanto o planeta continuava a marcha no espaço, seguindo a sua órbita em volta de um sol azul-branco, e as estações passavam do gelo ao fogo para voltar ao gelo, depois aos campos verdes e aos prados amarelos do Estio.
Foi numa tarde de Verão, a meio do ano vinte mil, que a cidade deixou de esperar.
No céu apareceu uma nave.
Atravessou em todos os sentidos o céu da cidade e aterrou a cinquenta metros dos muros.
Botas cardadas pisaram a erva fina, do interior do foguete vozes falaram aos homens que estavam fora.
— Prontos ?
— Muito bem! Prudência! Entrem na cidade. Jensen, você e Hutchinson, à frente! Abram os olhos!
A cidade abriu as narinas secretas nas paredes negras e o ar regularmente aspirado formou uma tromba nas profundezas das condutas, através dos filtros e dos desempoeiradores até um conjunto de membranas e de telas delicadas e prateadas. A aspiração contínua trouxe os perfumes do prado.
Odor de fogo, de meteoro, de metal quente. Um foguete chegou de um outro mundo. Cheiro de cobre, perfume empoeirado da pólvora queimada, do enxofre, do gás dos escapes.
Este esclarecimento impressionou uma placa que deslizou numa fenda, ao longo de um tubo e de finas roldanas até outros mecanismos.
Um calculador começou a bater como um metrónomo. Cinco, seis, sete, oito e nove. Nove indivíduos. A mensagem foi instantaneamente impressa numa placa que se meteu entre duas esferas e desapareceu.
As narinas da cidade dilataram-se de novo.
O cheiro da manteiga. Vinha dos homens que avançavam cautelosamente. Os eflúvios decompuseram-se no interior do nariz, recordando matérias gordas, queijo, creme gelado, perfumes de uma economia láctea.
Clic-clic, fizeram as máquinas.
— Atenção, rapazes!
— Jones apronta, a arma! Não armes em idiota!
— É uma cidade morta. Para quê tanta cautela? — Nunca se sabe!
Ouvindo estas palavras sobressaltadas, as Orelhas acordaram. Depois de séculos de brisas ligeiras, de folhas tombando e planando docemente até ao solo, de erva crescendo lentamente quando a neve fundia, as Orelhas lubrificaram-se, estenderam-se; estalaram as vastas membranas que o batimento do coração dos invasores sensibilizava como o sopro das asas de um morcego. As Orelhas escutaram e o Nariz aspirou.
A transpiração dos homens sobressaltados cresceu. As mãos que empunhavam as armas suavam.
O nariz agitou a analisou este ar, como um conhecedor que se concentra sobre um bocado indigesto.
Os dados inscreveram-se, em fichas paralelas. O suor: cloratos, tanto por cento; sulfatos, tanto; ácido úrico, azoto, nitratos amoniacais, tanto; açúcar, ácido láctico...
As teclas crepitaram. As parcelas apareceram.
O Nariz soprou o ar assim decomposto. As Orelhas escutaram:
— Por mim, acho que devíamos voltar ao foguete, capitão!
— Sou eu quem dá as ordens, mr. Smith!
— Sim, capitão.
— Éh, ó patrulha. Vocês vêem alguma coisa?
— Nada, capitão! A cidade parece que está abandonada há muitos anos.
— Está a ouvir, Smith? Não há nada a temer.
— Não gosto disto! Não sei porquê. Você nunca teve a impressão de já ter estado num sítio qualquer onde vai pela primeira vez? Pois bem, esta cidade é-me familiar, muito mesmo.
— É absurdo! Este sistema planetário está a milhões de milhas da Terra. É impossível que já se tenha chegado cá. O nosso foguetão é a única nave «ano-luz» que existe.
— É a impressão que tenho, capitão. Acho que devíamos retirar.
Os passos pararam. Não se ouviu mais que a respiração dos invasores no ar imóvel.
As Orelhas perceberam-no, a máquina acelerou. Os eixos giraram, os líquidos brilharam nas retortas e nos destiladores. Uma fórmula conduziu a um composto. Alguns instantes mais tarde, respondendo à solicitação do Nariz e das Orelhas, pelos enormes orifícios praticados nas paredes da cidade, um vapor fresco soprou sobre os invasores.
— Você está a sentir, Smith? Ah! erva verde. Como isto é bom! Como isto é muito agradável!
Os perfumes da clorofila alastraram sobre os homens parados.
— Ah!
Os passos recomeçaram.
— Isto é reconfortante, não é, Smith ? Vamos para a frente!
O Nariz e as Orelhas distenderam-se durante um milésimo de segundo. A manobra tinha dado resultado. Os peões tinham recomeçado a marcha para a frente.
Entretanto os Olhos da cidade libertaram-se das suas brumas.
— Capitão, as janelas!
— O quê?
— As janelas, além! Vi-as mexer! — Não vi nada. Mas nada!
— Mudaram. Não têm já a mesma cor. De escuro transformaram-se em claras.
— Parecem-me umas simples janelas de guilhotina.
Os objectos imprecisos ganharam nitidez. Nas entranhas metálicas da cidade, os eixos estremeceram, os eixos mergulharam no óleo verde. Os quadros das janelas ajustaram-se. Os painéis brilharam.
À frente, na rua, os dois homens da patrulha de exploração avançavam, seguidos a distância pelos outros. Os seus uniformes eram brancos, os rostos tão rosados como se tivessem sido esbofeteados; tinham os olhos azuis. Marchavam direito, sobre os membros posteriores; traziam armas de metal. Os pés tinham botas. Eram do sexo masculino, com olhos, orelhas, bocas, nariz.
As janelas vibraram, dilataram-se imperceptivelmente, como se fossem as íris de inumeráveis olhos.
— É o que lhe digo, capitão, são as janelas!
— Vamos para a frente!
— Eu vou-me embora, capitão. — Smith!
— Não quero cair na armadilha.
— Você tem medo de uma cidade vazia? Os outros riam, comprimindo-se.
— Riam-se à-vontade!
A rua era lajeada, cada laje media três polegadas de largura por seis de comprimento. Com um movimento insensível, a rua oscilou. Pesava os invasores.
Numa cave, uma agulha vermelha atingia um número: cento e setenta e oito libras, duzentas e dez, cento e cinquenta e quatro, duzentas e uma, cento e noventa e oito libras; cada homem foi pesado, registado e o reconhecimento comunicado a outras profundidades.
Presentemente, a cidade estava completamente acordada.
Os ventiladores aspiravam e expiravam o ar, com o olor do tabaco exalado pela boca dos homens, o perfume do sabão das suas mãos. Mesmo os seus glóbulos oculares tinham um odor particular. A cidade captava-o, e esta notação formava uma parcela que ia juntar-se a outras parcelas. As janelas de cristal concentravam-se, as Orelhas esticavam cada vez mais as membranas dos seus tímpanos; todos os sentidos da cidade estavam excitados e imbricados como as telhas num telhado, contando as respirações, o bater surdo dos corações, observando, vigiando, pesando, provando.
Porque as ruas eram como línguas; nos sítios onde os homens tinham passado, o sabor dos seus tacões penetrava os poros da pedra para ser calculado com reagentes. Este resultado químico, subtilmente encontrado, juntou-se às parcelas que acorriam e que esperavam os dados finais entre as molas em movimento e os pistões lubrificados.
Passos precipitados.
— Smith, venha aqui!
— Não, vá para o diabo! — Apanhem-no, rapazes!
Uma corrida sobre o pavimento.
Uma última análise e a cidade, depois de ter observado, escutado, provado, sentido, pesado, devia completar a sua missão.
Abriu-se um buraco na calçada. O capitão desapareceu; os outros, que corriam, não se aperceberam.
Pendurado pelos pés, uma lâmina abria-lhe a garganta, uma outra o tórax e o abdômen, a sua carcaça foi libertada instantaneamente das entranhas, estendida sobre uma mesa, numa sala secreta sob a rua. O capitão morreu. Grandes microscópios de cristal analisaram as fibras musculares; os dedos mecânicos sondaram o coração que batia ainda. Os pedaços da pele foram pregados na mesa, enquanto mãos articuladas dissecaram as diferentes partes do corpo, como um jogador de xadrez rápido e curioso que desloca os peões e as outras peças.
Em cima, os homens corriam, perseguindo Smith, gritando. Smith gritava também e sob os seus passos, nesta estranha sala de operações, o sangue corria nas ampolas, para ser agitado, centrifugado, posto em lamelas, analisado noutros microscópios; as numerações faziam-se, as temperaturas eram medidas, o coração cortado em secções, e os rins abertos com muita habilidade. O crânio foi trepanado, o encéfalo desembaraçado, os nervos retirados, os músculos estendidos até ao extremo da sua elasticidade, enquanto na grande central subterrânea da cidade, o Cérebro estabelecia o grande total e todo o mecanismo parou, monstruosamente.
O Total.
Eram homens. Provinham de um mundo distante, de um certo planeta. E têm tais olhos, tais orelhas; marcham sobre as pernas de uma determinada maneira, trazem armas; pensam; combatem; têm certos corações e certos órgãos, tal como tinham sido registados desde há muito.
Na rua, os homens corriam para o foguetão.
O Total.
Eis os nossos inimigos. Os que esperamos desde há vinte mil anos. São os homens que esperamos para exercer a nossa vingança. A soma está completa. São os homens do planeta Terra, que declararam guerra a Taollan vinte mil anos antes, que nos venceram e nos dominaram, arruinados e destruídos por uma grande doença. Depois partiram para uma outra galáxia, a fim de escaparem à doença que espalharam entre nós, depois de terem feito a pilhagem. Esqueceram esta guerra e mesmo essa época, e esqueceram-nos de todo. Mas nós, não. Estes são os nossos inimigos. O facto está certo. A nossa espera terminou.
Rápido! Sobre a mesa vermelha, com o corpo do capitão aberto e vazio, outras mãos puseram-se a trabalhar. No seu interior húmido foram instalados órgãos de cobre, de latão, de prata, de alumínio, de borracha e de seda; uma tela fina foi tecida sob a epiderme; introduziram um coração no tronco, fixaram um cérebro de platina no crânio, estalando e emitindo pequenas faíscas azuladas. Comunicações foram estabelecidas até aos braços e às pernas. Depois de um momento, o corpo foi fechado, as incisões ligadas e as cicatrizes do pescoço, do peito e do couro cabeludo tapadas. Estava perfeito, tudo, novo, fresco.
O capitão sentou-se e mexeu os membros.
— Parai!
O capitão reapareceu sobre a calçada, levantou a arma e fez fogo.
Smith tombou com uma bala no coração.
Os outros voltaram-se. O capitão correu para eles.
— Este imbecil! Medo de uma cidade!
Levantaram os olhos para o capitão e as suas pálpebras bateram.
— Oiçam-me! — disse o capitão. — Tenho uma coisa importante para vos dizer.
Entretanto a cidade que os tinha pesado e analisado, que tinha utilizado todos os seus poderes excepto um, aprestava-se para utilizar esta última faculdade. Mas não falou com o furor das torres maciças, nem com o peso dos seus pavimentos e das suas máquinas. Falou com a calma voz de um homem.
— Já não sou o vosso capitão — disse. — Nem mesmo um homem.
Os homens recuaram.
— Sou a cidade — disse, e sorriu. — Esperei duzentos séculos. Esperei a volta dos filhos dos filhos dos filhos.
— Capitão!
— Deixem-me falar! Quem me construiu? A cidade. Os homens que estão mortos construiram-me. A velha raça que viveu aqui, outrora. O povo que os Terrestres deixaram morrer com uma doença terrível, uma espécie de lepra que não tinha cura. E os homens desta velha raça, sonhando com os dias em que os terrenos poderiam voltar, construíram esta cidade. E o nome desta cidade era e ainda é Vingança, no planeta das Trevas, na margem do Mar dos Séculos, junto do Monte dos Mortos; tudo isto é muito poético. Esta cidade foi construída para ser uma balança, um cadinho, uma antena, para analisar todos os futuros viajantes do espaço. Em vinte mil anos, dois outros foguetes, apenas, pousaram nesta terra. Um vinha de uma galáxia longínqua chamada Ennt, e os tripulantes do aparelho foram provados, pesados, sondados; como não eram Terrestres, foram expulsos, sãos e salvos. O mesmo aconteceu aos tripulantes do outro foguete. Mas hoje! Enfim, finalmente, chegaram! A vingança será executada nos seus mais ínfimos detalhes. Estes homens estão mortos desde há duzentos séculos, mas deixaram uma cidade para vos acolher.
— Capitão, o senhor não deve estar bem. Seria preferível voltar para o aparelho, capitão.
A cidade tremeu.
O pavimento abriu-se e os homens tombaram, gritando. Na queda aperceberam-se do brilho dos bisturis que marchavam ao seu encontro.
Passou-se um grande lapso de tempo. Mas ouviu-se a chamada:
— Smith?
— Pronto! — Jensen ?
— Pronto?
— Jones, Hutchison, Springer? — Pronto, pronto, pronto... Estavam alinhados à entrada do aparelho. — Voltamos imediatamente para a Terra.
— Muito bem, capitão!
As incisões nos seus pescoços eram invisíveis, assim como os corações metálicos, os órgãos de prata e os fios de ouro dos seus nervos. As cabeças emitiam uma ligeira trepidação eléctrica.
— Depressa!
Os homens meteram as bombas com os germes da doença no foguete.
— Vamos lançá-las sobre a Terra.
— Muito bem, capitão!
O painel de entrada foi ajustado. O foguete subiu para o céu.
Enquanto o barulho dos motores se afastava, a cidade jazia na planície verde. Os seus olhos de vidro apagaram-se.
As orelhas afrouxaram, os grandes ventiladores das narinas pararam, as rodas imobilizaram-se e o óleo deixou de correr nas tubagens.
No céu o foguete desapareceu.
Progressivamente, a cidade começou a gozar o luxo de se deixar morrer.
Oh, era espantoso! Que maravilhoso jogo! Nunca tinham conhecido uma semelhante excitação. As crianças corriam aqui e além no gramado, gritando, agarrando-se pelas mãos, indo e vindo, formando rodas, rindo em altas gargalhadas. Foguetes passavam no espaço, automóveis miniaturas rolavam pelas ruas, mas as crianças continuavam o seu jogo. Era tão divertido, a alegria era tão grande, faziam belas cabriolas e gritava-se a plenos pulmões.
Mink correu para casa, coberta de lama e de suor. Com sete anos, era forte, alegre, muito decidida. A sua mãe, mrs. Morris, podia apenas seguir os seus gestos, enquanto a criança abria os armários e atirava caçarolas e garfos e facas e colheres para um grande saco.
— Em nome de Deus, Mink, o que é que acontece?
— É a mais divertida de todas as brincadeiras! — retorquiu Mink, muito corada.
— Pára um pouco e descansa!
— Não, estou muito bem! Posso levar estas coisas todas, mamã ?
— Não as estragues — recomendou mrs. Morris. — Não, obrigada, obrigada! — gritou Mink.
E zás! Desapareceu rápida como um raio.
— Como se chama o vosso jogo? — A Invasão — respondeu Mink. A porta bateu.
De todas as casas da rua as crianças saíam com facas, garfos, tesouras, pedaços de canos, abre-latas.
Era curioso notar que esta euforia atingia apenas os mais novos. Os mais velhinhos, de dez anos e mais, não se importavam com o jogo, caminhavam desdenhosamente sobre as andas com que jogavam uma versão mais digna do jogo das escondidas.
Entretanto, os pais continuavam a rolar nos seus carros! Os operários vinham reparar os ascensores de vácuo, consertar os postos de televisão ou martelar uns recalcitrantes tubos de alimentação. A civilização dos adultos passava e voltava a passar diante dos miúdos atarefados, com ciúmes da sua energia enorme, divertida condescendentemente com as suas gargalhadas e com um secreto desejo de os acompanhar.
— Olha e mais e mais! — dizia Mink, dando as suas instruções e distribuindo pelos companheiros as colheres e as tenazes. — Faz isto e leva aquilo para ali. Não! Aqui! Cabeça de burro! Bem! Agora desaparecei enquanto eu arranjo isto!
Mordia a língua e enrugava a testa com o esforço. — Lá para longe, sabeis?
— Siiiim! — gritaram as crianças. Joseph Connors, de doze anos, apareceu.
— Vai-te embora! — disse-lhe Mink, olhando-o firmemente.
— Eu quero brincar — disse Joseph. — Não podes!
— E porque não posso? — Vais-te rir de nós.
— Não, não o farei, juro.
— Não? Bem te conheço! Vai-te embora ou levas uma data de pontapés!
Um outro rapazito apareceu rolando sobre os patins.
— Eh, joe! Anda! Deixa brincar as raparigas! Joseph hesitou, sonhador.
— Eu quero brincar — teimou.
— Tu já és grande — insistiu Mink.
— Não sou assim tão grande como isso — replicou Joe, com alguma razão.
— Vais fazer troça e estragar a Invasão.
O rapaz, sobre os patins automóveis, escorregou para o chão.
— Anda daí Joe! Deixa lá as raparigas com os contos de fadas! São parvas.
Joseph afastou-se a passos lentos. Continuou a olhar por cima do ombro até que dobrou o canto da rua.
Mink deitou outra vez mãos à obra. Fabricou com o bricabraque de que dispunha um pequeno aparelho. Tinha dado a outra rapariguinha o cargo de secretária, e esta tomava laboriosamente notas com um lápis num caderno de apontamentos. As vozes subiam e desciam no ar quente da manhã.
Em volta, a cidade zumbia. As ruas eram ladeadas de belas árvores, verdes e pacíficas. Só o vento punha uma nota discordante através da cidade, do país, do continente. Em mil outras cidades havia também árvores e crianças, ruas populosas e homens de negócios nos seus escritórios registando o correio em chapas magnéticas ou observando o televisor. As astronaves giravam no espaço. Havia por toda a parte o calmo orgulho e a tranqüilidade de homens habituados à paz, certos de que não haveria nenhuma desordem. De mãos dadas os homens formavam à volta do mundo uma frente unida. Todos confiavam nas armas aperfeiçoadas. Tinha-se estabelecido uma maravilhosa confiança entre as nações. Não havia traidores entre os homens, nem havia infelizes ou descontentes. Consequentemente o mundo repousava sobre uma base estável. O Sol iluminava metade da Terra e as árvores cabeceavam no sopro do ar quente.
A mãe de Mink observava as crianças da janela do primeiro pavimento.
As crianças! Sacudiu a cabeça. Comiam bem, dormiam bem, na segunda-feira voltariam para a escola. Os pequenos vigorosos corpos portavam-se bem. Escutou.
Mink falava calorosamente a alguém, perto de um roseiral, se bem que não se visse ninguém.
As crianças são muito esquisitas. E a rapariguinha, como é que ela se chamava ? Ana ? Ana tomava notas no seu caderno. Mink fazia uma pergunta e depois ditava a resposta a Ana.
— Triângulo! — dizia Mink.
— O que é isso— perguntou Ana silabando. Um tri... ângulo ?
— E como é que se escreve?
— T-r-i...— soletrou Mink, lentamente. — E depois, nicles! Lembra-te tu — e saltou para outras palavras: — Facho — disse ela.
— Ainda não escrevi tri... ângulo — disse Ana.
— Pois despacha-te!
A mãe de Mink debruçou-se na janela. — Ân-gu-lo— soletrou ela para Ana.
— Oh, muito obigada, mrs. Morris! — disse Ana.
Mrs. Morris deixou-as, sorrindo, para limpar a entrada com o aspirador magnético. Umas vozitas subiam de fora.
— Facho — dizia Ana.
— 497... A, e B, e X — disse Mink, ao longe, muito seriamente. — E um garfo, cordel, e um hex... hex... ágono!
Ao almoço Mink bebeu o leite de um trago e precipitou-se para a porta. A mãe deu uma pequena pancada na mesa.
— Faça favor de vir sentar-se! E vais comer a sopa. Carregou num botão vermelho e a criada automática, dez segundos mais tarde, aterrou com um choque no tabuleiro receptor. Mrs. Morris abriu-a, tirando uma caixa com um cabo, destapou-a e deitou o líquido numa taça.
— Depressa, mamã! É uma questão de vida ou de morte! Durante estas operações, Mink agitava-se na cadeira.
— Eu era como tu quando tinha a tua idade. É sempre uma questão de vida ou de morte. Eu sei.
Mink devorou a sopa.
— Mais devagar — pediu a mãe.
— Não posso — disse Mink. — O comando espera-me.
— Quem é o comando? Que nome tão divertido! — Tu não o conheces — disse Mink.
— Um novo vizinho pequeno? — perguntou a mãe. Mink começou a devorar o seu segundo bolo.
— E onde está o comando? — perguntou a mãe.
— Oh, está para lá — respondeu Mink evasivamente. — Vais fazer troça. Toda a gente faz troça, oh céus!
— O comando é tímido?
— Sim. Não. Enfim, de uma certa maneira... Mamã preciso correr para que a Invasão resulte!
— Quem é que invade e quem é invadido?
— Os Marcianos invadem a Terra. Não são exactamente os Marcianos, não sei bem. Vêm do ar.
E indicava o tecto com a colher.
— E daqui de dentro — disse a mãe, afagando a testa febril de Mink.
Mink revoltou-se.
— Tu troças! Vais matar o comando e todos os outros!
— Não tenho essa intenção. Comando é um Marciano?
— Não. Ele é... bem... talvez ele venha de Júpiter ou de Saturno, ou de Vénus. De qualquer maneira isto foi muito duro para ele.
— Estou a ver — disse mrs. Morris disfarçando um sorriso. — Ainda não encontraram maneira de atacar a Terra. — Nós somos inexpugnáveis — afirmou a mãe com muita seriedade.
— Foi a expressão que o comando empregou! Ine... náveis! É a sua expressão!
— Pois bem, é porque Comando é um rapazinho inteligente. Palavras que se decoram!
— Ainda não sabem como vão atacar, mãe. Comando disse que para se poder combater é preciso encontrar maneira de surpreender o adversário. Então ganharemos. E diz ainda que é preciso ser ajudado pelo adversário.
— A quinta coluna — disse a mãe.
— É isso! Foi o que disse o comando. E ainda não puderam encontrar nenhuma maneira de surpreender a Terra ou de ser ajudados.
— Não me admira. Somos muito fortes.
A mãe ria, levantando os guardanapos. Mink ficou sentada com os olhos fixos, possuída pela visão do que contava.
— E depois, um dia — sussurrou ela, misteriosamente — eles pensaram nas crianças.
— E então ?
— E então eles pensaram que as pessoas crescidas estão sempre tão ocupadas que nunca olham para os roseirais nem para os relvados.
— Sim, só para caçar caracóis ou para apanhar cogumelos.
— E depois há também as «dims-dims»?
— E o que é isso? — As dimensões.
— As dimensões?
— Há quatro! E depois há qualquer coisa que se refere às crianças com menos de nove anos e à imaginação. É muito divertido ouvir falar o comando!
Mrs. Morris estava fatigada.
— Bom, vai-te divertir. Estás a fazer esperar o comando. Já é tarde, e se queres acabar a Invasão antes do teu banho da tarde, é melhor despachares-te.
— Tenho de tomar o banho? — protestou Mink.
— Sim, minha querida. Porque é que as crianças não querem lavar-se ? Qualquer que seja a época em que vivamos, as crianças detestam sempre a água e o sabão.
— Comando disse que não terei necessidade de tomar o banho.
— Ah, ele disse isso?
— Disse-o a todas as crianças. Não haverá mais banhos. E podemos ficar até às dez horas da noite na rua e ir a dois espectáculos ao sábado em vez de ir só a um.
— Pois bem, o sr. comando faria melhor se tratasse de si. Hei-de ir visitar a mãe dele e... Mink dirigiu-se para a porta.
— Temos aborrecimentos com sujeitos como Pete Britz e Dale Jerrick. Estão a fazer-se grandes. Fazem troça. São piores que os pais. Não querem acreditar no comando. Fazem de maus porque estão a crescer. Podiam ser mais inteligentes. Ainda há menos de dois anos eram pequenos. Não os posso ver. São os primeiros que vamos matar.
— E o teu pai e eu seremos os últimos?
— Comando diz que vocês são perigosos. Sabes porquê ? Porque vocês não acreditam nos Marcianos. É a nós que eles darão o governo do mundo. Não é só a nós. Os meninos das ruas vizinhas também governarão. Posso vir a ser rainha.
Abriu a porta.
— Mãe? — O que é?
— O que vem a ser a lógica?
— A lógica? Olha é uma coisa que serve para ver se um acontecimento é verdadeiro ou se o não é.
— E ele falou... E o que vem a ser im-pre-ssio-ná-vel?
— Bem, isso quer dizer... — mrs. Morris baixou os olhos rindo docemente. — Isso quer dizer... ser uma criança, minha querida.
— Obrigada pelo almoço!
Mink saiu a correr e depois meteu a cabeça pela frincha da porta.
— Mãe tenho a certeza de que te não farão muito mal.
A porta fechou-se.
Pelas quatro horas o audiovisor deu sinal. Mrs. Morris accionou a alavanca.
— Olá, Helen! — saudou.
— Olá, Mary! Gomo vai isso aí em Nova York?
— Muito bem. E tudo vai bem em Scranton? Tens um ar cansado.
— E tu também. São as crianças! Esgotam-me — disse Helen. Mrs. Morris suspirou:
— Mink também. A Super-Invasão! Helen riu:
— As crianças brincam à mesma coisa para esses lados?
— Oh, sim! Mas depressa voltarão ao berlinde electrónico ou ao pilha motorizado. Nós fomos assim, quando éramos crianças, em 48 ?
— Pior! Brincávamos aos Japoneses e aos Nazis. Não posso supor como é que os meus pais me aturavam. Era uma criança endiabrada.
— Os pais aprendem a fazer ouvidos de mercador. Um silêncio.
— Parece que não estás bem — observou Mary.
Mrs. Morris tinha semicerrado os olhos e passava a língua pelo lábio inferior.
— Hem? — sobressaitou-se. — Oh, nada. Estava simplesmente a pensar nisso, nos ouvidos de mercador, etc. Não tem importância. Que é que estávamos a dizer?
— O meu Tinzinho não fala senão num certo comando, parece-me.
— É, sem dúvida, uma nova senha. Mink também está completamente louca.
— Não sabia que isto já tinha chegado a Nova York. Da boca ao ouvido, sabes como é... Uma nova invenção. Falei com a Josefina e ela disse-me que os seus filhos (e ela está em Boston) só brincam a este jogo. Invadiu o país.
Neste instante Mink entrou na cozinha para beber um copo de água. Mrs. Morris voltou-se para ela.
— Então, onde estão vocês?
— Está quase acabado — respondeu Mink.
— Perfeito — disse mrs. Morris. — E o que é isso?
— Um yo-yo — disse Mink. — Olhe.
Deixou cair o yo-yo, desenrolando a guita. Quando chegou à ponta... Desapareceu.
— Reparaste ? — disse Mink.
Hop! Balançou a mão vazia para cima e para baixo, o yo-yo reapareceu e enrolou-se instantaneamente.
— Faz outra vez — pediu Mrs. Morris.
— Não posso. A hora H é às cinco horas. Até já!
Mink partiu velozmente, jogando com o yo-yo.
No audiovisor, Helen riu.
— Tim trouxe um desses yo-yos esta manhã, mas quando eu quis experimentar, disse-me que mo emprestava; e quando experimentei fazê-lo andar não consegui nada.
— Tu não és impressionável. — Eu não sou o quê?
— Não tem importância. Estava a pensar em qualquer coisa. Posso servir-te em alguma coisa, Helen?
— Queria que me desses aquela receita do moka...
As horas passaram. O dia passou. O Sol descia no ar tranquilo. As sombras estenderam-se sobre o gramado. Os risos e a actividade febril prosseguiram. Uma rapariguinha fugiu a chorar. Mrs. Morris apareceu à varanda.
— Mink, era Peggy Anna que estava a chorar?
Mink estava debruçada para o chão, perto do roseiral.
— Olá! É uma poltronazinha. Não brincará mais connosco. Está a tornar-se velha. Deve ter crescido muito ràpidamente.
— E era por isso que ela chorava? Isso não é razão. Faça o favor de me dar uma resposta honesta, meninas, ou marchas já para o quarto!
Mink endireitou-se, consternada, mas não sem irritação.
— Agora não posso ir. Está quase na hora. Vou-me emendar, peço perdão.
— Bateste-lhe?
— Não, não foi bem isso. Pergunta-lhe. Era qualquer coisa... oh, e depois ela é uma grande medrosa.
As crianças rodearam Mink, que se afadigava com colheres e punha em ordem, uma ordem especial, em quadrado, martelos e tubos.
— Ora cá está — murmurava Mink.
— O que é que se passa ? — perguntou mrs. Morris.
— É o comando que está entalado. Está a meio caminho. Se nós o pudéssemos ajudar, seria mais fácil. Todos os outros o poderiam seguir.
— Posso ajudar-te?
— Não obrigado. Hei-de encontrar uma maneira.
— Muito bem. Vou chamar-te para o banho daqui a meia hora. Cansa-me ver-te mexer assim.
Mrs. Morris voltou para casa e sentou-se no «maple» eléctrico de relaxamento, bebendo alguns goles do copo semivazio. O «maple» acariciava-lhe o dorso.
— Ah! As crianças. As crianças. O amor e o ódio, lado a lado. Algumas vezes as crianças amam-nos, e não nos podem ver um momento depois. Estranhas crianças, poderão esquecer ou perdoar os castigos e as repreensões? Como, pergunta-se, podereis esquecer as pessoas grandes que vos dominam, estes tiranos de elevada estatura e estúpidos?
Os minutos passaram. Estabeleceu-se um curioso silêncio na rua, um relógio cantou com uma doce voz musical: «cinco horas, cinco horas! O tempo passa. Cinco horas!» E calou-se resfolegando.
A hora H.
Sorridente, Mrs. Morris abanou a cabeça.
Uma viatura zumbiu na vereda. Era Mr. Morris. Mrs. Morris sorriu ainda. Mr. Morris saiu da pequena viatura, fechou-a à chave, gritou uma saudação a Mink, sempre atarefada. Mink não lhe ligou importância. Ele riu e observou durante uns instantes o jogo das crianças. Depois subiu os degraus da escada.
— Olá, querida! — Olá, Henry!
Ela dobrou-se para a frente, apurando o ouvido. As crianças estavam muito caladas.
Ele esvaziou o cachimbo, encheu-o de novo.
— Belo dia! É uma felicidade viver.
Bzzzz!
— O que é isto? — perguntou Henry. — Não sei.
Levantou-se ràpidamente, os olhos esgasearam-se. Ia dizer qualquer coisa. Mas calou-se. Era ridículo. Os nervos estremeceram.
— Essas crianças não têm nada perigoso no gramado? — perguntou ela.
— Não. Só têm pedaços de tubos e martelos.
— Nada eléctrico?
— Suponho que não. Verifiquei.
Ela foi para a cozinha. O zumbido continuava.
— Mesmo assim devias ir dizer-lhe que já chega. São mais de cinco horas. Diz-lhe... — bateu as pálpebras. — Diz-lhe para adiar a invasão para amanhã. — riu-se nervosamente.
O zumbido cresceu.
— Mas o que é que eles estão a fazer ? É melhor eu ir ver. A explosão.
A casa foi abalada. Novas explosões nas outras ruas.
Involuntariamente Mrs. Morris gritou.
— Anda depressa! — gritou sem razão. Talvez tivesse visto qualquer coisa de relance, talvez sentisse um perfume estranho ou ouvido um novo ruído. Não tinha tempo de esclarecer Henry. Que pensasse que estava louca, sim louca. Precipitou-se para a escada. Ele correu atrás dela, intrigado.
— É no sótão, é no sótão! — gritou. Era uma má desculpa para o fazer subir a tempo. Ah, Senhor, mesmo a tempo! Uma outra explosão. As crianças gritaram alegremente, como se fosse fogo de artifício.
— Mas não é no sótão! — gritou Henry. — É lá fora.
— Não! Não! — Fora de si, despenteada, ela agitava a chave. — Vou-te mostrar. Depressa! Vou-te mostrar.
Entraram no armazém. Ela empurrou a porta, girou a chave e atirou-a para um canto sombrio.
Balbuciava palavras sem sentido, entretanto, como num sonho. Todas as suspeitas inconscientes, o medo que tinha acumulado durante a tarde toda, fermentavam. Todas as pequenas revelações, as sugestões que a tinham incomodado desde manhã e que cuidadosamente, lógica e razoavelmente, tinha recusado e censurado. Tudo isso explodia presentemente e dominava-a.
— Ali, ali! — disse ela encostada à porta, soluçando. — Aqui estamos em segurança até à noite. Talvez consigamos fugir lá para fora. Talvez possamos escapar!
Henry estava nervoso, mas por outras razões.
— Estás louca ? Porque deitaste fora a chave ? Que diabo, é demais!
— Está bem, estou louca, se quiseres, mas deixa-te estar. — E como diabo vou sair, se me apetecer?
— Cala-te que podem ouvir-nos! Oh, meu Deus, vão encontrar-nos mais cedo ou mais tarde...
Em baixo, a voz de Mink. O marido calou-se. Havia um barulho ensurdecedor, explosões, silvos, gritos de crianças, risos sufocados. No salão o audiovisor tocava, tocava com insistência, com inquietação. Será Helen, pensou Mrs. Morris. Chamar-me-á ela pela razão que penso?
Passos na casa. Passos pesados.
— Quem é que entrou na minha casa? — perguntou Henry encolerizado. — Quem é que faz este barulho lá em baixo?
Pés pesados. Vinte, trinta, cinquenta. Cinquenta pessoas que invadiam a casa. O ronco. As gargalhadas das crianças.
— Por aqui! — gritou Mink.
— Mas o que é que se passa lá em baixo? — berrou Henry. — Quem está aí?
— Chut! Não-não-não-não! — segredou a mulher, encostada a ele. — Em nome de Deus, cala-te. Talvez eles se afastem.
— Mamã? — chamou Mink. Papá? — Um silêncio. — Onde é que estão?
Passos pesados, pesados, muito pesados, subiam a escada. Mink dirigia-os.
— Mamã? — Uma hesitação. — Papá? — Uma espera silenciosa.
O ronco. E os passos que se dirigiam para o sótão, com os de Mink à frente.
Tremiam encostados um ao outro, no sótão, Mr. e Mrs. Morris. Por qualquer razão o zumbido eléctrico, a estranha luz fria, que entrava sob a porta, o estranho perfume, o ardor da voz de Mink tinham acabado por atingir também Henry Morris. Estava de pé, na obscuridade, junto de sua mulher.
— Mamã! Papá!
Passos. Um pequeno ruído. A fechadura fundiu-se. A porta abriu-se. Mink passou a cabeça pela frincha. Atrás dela havia umas altas sombras azuladas.
— Uuuu! — disse Mink.
Frequentemente, à noite, Fiorello Bodoni acordava e ouvia os foguetes passar pausadamente no espaço. Levantava-se, certo de que a sua boa esposa estava mergulhada no sonho, e saía, na ponta dos pés, para a rua, a olhar as estrelas. Por alguns momentos, libertava-se, assim, dos cheiros rançosos da cozinha que empestavam a casa à beira do ribeiro. E nestes momentos de silêncio, deixava-se ir pelo espaço, seguindo os foguetes.
Naquela noite, estava nu, rodeado de escuridão, e observava as fontes de fogo que segredavam no firmamento, as astronaves arrastadas violentamente nas suas trajectórias para Marte, Saturno ou Vénus.
— Está bem, está bem, Bodoni. Bodoni estremeceu.
Sentado numa caixa, perto da tranquila ribeira, um homem velho olhava também os foguetes no ar calmo. — Ah, é você, Bramante! — Tu sais todas as noites, Bodoni?
— Oh, é para tomar um pouco de ar.
— Ah sim ? Eu prefiro observar os foguetes. Era eu criança quando começaram a voar. Há mais de oitenta anos e nunca entrei em nenhum.
— Um dia hei-de ir até lá acima.
— Tu estás louco! — gritou Bramante. — Tu nunca irás. O mundo é dos ricos — abanou a cabeça acinzentada, entregue às suas recordações. — Quando eu era novo, escreveram com letras de fogo: 0 Mundo do Futuro! A Ciência, o Conforto e Coisas novas para todos! Ah sim! Oitenta anos! E agora é o futuro. E podemos viajar num foguete? Não. Continuamos a viver no mesmo chiqueiro, como os nossos antepassados.
— Os meus filhos talvez... — disse Bodoni.
— Não, nem os filhos dos teus filhos! — gritou o velhote. — É o rico que pode ter esses sonhos e viajar em foguetes.
Bodoni hesitou.
— Velho Bramante, pus de lado três mil dólares. Precisei de seis anos para o conseguir. Poupei-os para o meu projecto, e vou gastá-los em material. Mas todas as noites, há mais de um mês, não consigo dormir. Eu sei de foguetes. Reflecti. E esta noite, tomei uma decisão. Um de nós irá a Marte!
Tinha os olhos sombrios e brilhantes.
— Burro! — cortou. Bramante. — Como vais tu escolher o que vai partir ? E qual irá ? Se és tu, a tua mulher vai odiar-te, porque estarás um pouco mais perto de Deus no espaço. Quando lhe contares a tua viagem extraordinária, nos anos que se seguirem, não ficará ela devorada pelos ciúmes?
— Não, não.
— Mas sim! E os teus filhos? Isso encherá a sua vida saber que o paizinho foi de foguete a Marte e os deixou ficar ? Vais dar-lhes um destes quebra-cabeças! Sonharão toda a vida com o foguete. Deixarão de dormir. Ficarão doentes. Como tu, agora. Perderão o gosto pela vida, se não forem. Não lhe imponhas esse fardo, aviso-te! Que se contentem em ser pobres! Habitua-os a olhar para as mãos e para a caixa das ferramentas e não para as estrelas.
— Mas...
— E supõe que a tua mulher vai lá. O que pensarás tu sabendo que ela viu e tu não? Nunca mais a poderás ver. Terás vontade de a atirar à água. Não, Bodoni, compra a nova frisadeira que precisas e mete lá dentro os teus sonhos.
O velho homem calou-se, com os olhos fixos na ribeira onde as imagens desfeitas dos foguetões ondulavam.
— Boa noite — disse Bodoni.
— Dorme bem — disse o outro.
Quando o pão saltou das grelhas, Bodoni quase gritou. Tinha tido uma insónia. Entre as crianças nervosas, ao lado da sua enorme mulher, Bodoni tinha-se virado e voltado a virar com os olhos perdidos no vago. Mais valia empregar o dinheiro. Para que havia de continuar a juntá-lo se só um membro da família podia viajar de foguete, enquanto os outros ficariam a atormentar-se?
— Fiorello, come o teu pão — ordenou-lhe Maria, a mulher.
— Tenho a garganta seca — disse Bodoni.
As crianças entraram no compartimento, os três rapazes disputando um brinquedo que semelhava um foguete; as duas raparigas traziam bonecas que imitavam os habitantes de Vénus ou de Neptuno, com três olhos amarelos e doze dedos.
— Vi o foguete de Vénus! — gritou Paolo. — Arrancou com um destes barulhos, ouiiish! — disse
Antonello.
— Calem-se para aí, meninos! — gritou Bodoni, tapando os ouvidos.
Olharam-no surpreendidos. Raramente elevava a voz. Bodoni levantou-se.
— Oiçam todos! Tenho o dinheiro suficiente para que um de nós vá a Marte.
Começaram a gritar.
— Vocês perceberam? — perguntou. — Um apenas. Quem?
— Eu, eu, eu! — gritaram as crianças.
— Tu — disse Maria. — Tu — disse Bodoni. E calaram-se.
As crianças reflectiam.
— É Lorenzo que deve ir... é o mais velho. — Não, Miriamne... é uma rapariga.
— Pensa no que podes ver — disse Maria ao marido. Mas a expressão dos seus olhos era esquisita. Tremia-lhe a voz. — Os meteoros, como peixes. O universo. A Lua. Aquele que for deve saber contar. E tu sabes falar.
— Tu também — objectou ele. Todos tremiam.
— Oiçam — decidiu Bodoni, sem entusiasmo. Arrancou algumas palhas a uma vassoura. — Vamos ver quem tira a palha mais pequena.
E estendeu a mão cheia de pontas.
— Escolham.
Cada um tirou a sua palha, solenemente.
— Comprida.
— Comprida.
Um outro.
— Comprida.
Todas as crianças tinham tirado. Tudo era silêncio. Só havia duas palhas. Bodoni sentia o coração tremer. — Agora és tu — sussurrou Maria. Ela tirou.
— É a pequena — disse ela.
— Ah! — suspirou Lorenzo, meio triste, meio alegre — Irá a mamã.
Bodoni tentou sorrir.
— Felicito-te! Vou hoje mesmo comprar o bilhete! — Espera, Fiorello...
— Poderás partir para a semana.
Viu os olhos tristes das crianças fixos nela, sorrindo sob os grandes narizes aquilinos. Devolveu lentamente a palha ao marido.
— Não posso partir para Marte.
— Mas porque não? — Vou ter mais um filho.
— O quê?
Ela virou o rosto.
— Não devo viajar neste estado. Agarrou-a pelo pulso.
— Isso é verdade?
— Larga-me.
— Porque não mo tinhas dito? — insistiu ele.
— Esqueci-me.
— Maria, Maria! — afagou-lhe o rosto. Voltou-se para as crianças. — Vamos recomeçar.
Paolo tirou logo a palha mais pequena.
— Vou a Marte! — Dava grandes saltos. — Oh, muito obrigado, pai!
As outras crianças recuaram.
— É formidável, Paolo!
Paolo deixou de rir olhando os pais, os irmãos e as irmãs.
— Posso partir, não é verdade?— perguntou hesitante. — Sim.
— E vocês vão gostar de mim quando eu chegar?
— Certamente,
Paolo olhou para o pequeno pedaço de palha que tremia com a mão. Sacudiu a cabeça.
— Tinha-me esquecido. Há a escola. Não posso partir. É preciso tirar de novo.
Mas ninguém queria. Sentiam-se cansados e tristes.
— Não irá ninguém — disse Lorenzo.
— É melhor assim — disse Maria.
— Bramante tinha razão — disse Fiorello.
O pequeno almoço era uma grande pedra no estômago de Bodoni, enquanto trabalhava na pequena oficina de desmontagem, cortando o metal, fundindo-o, limando os lingotes. A sua profissão não dava lucros que se vissem. A concorrência mantinha-o às portas da miséria desde há mais de vinte anos. A manhã era um pesadelo.
De tarde um homem entrou na oficina.
— Éh, Bodoni, tenho metal para você.
— O que é, Mr. Mathews?
— Um foguete. Não lhe serve? Você não o quer?
— Sim! Sim! — Bodoni agarrou-lhe o braço e calou-se, interdito.
— Evidentemente que é uma miniatura. Você bem sabe que, quando planeiam um novo modelo de foguete, constroem um modelo em escala reduzida, de alumínio. Poderá tirar umas croas se o fundir. Deixo-lho por dois mil...
Bodoni retirou a mão.
— Não tenho o dinheiro.
— Tanto pior. Pensei que podia ajudá-lo. Da última vez que estivemos a falar você disse-me que toda a gente o batia nos concursos. Pensei que lhe dava um bocado de mel. Bem...
— Tenho necessidade de material novo. Economizei dinheiro para ele.
— Oh, compreendo.
— Se comprar o seu foguete, não o posso fundir. O meu forno do alumínio rachou na semana passada.
— Evidentemente.
— Se comprar o seu foguete não posso fazer nada dele.
— Eu sei.
Bodoni piscou os olhos, fechou-os, reabriu-os e olhou para Mr. Mathews:
— Mas eu sou um parvo. Vou buscar dinheiro ao banco para lhe pagar.
— Mas se você não o pode fundir...
— Entregue-mo — disse Bodoni.
— Bem, bem. Esta tarde?
— Esta tarde — disse Bodoni — está bem. Gostaria de ter o foguete esta tarde.
A Lua já ia alta. O foguete, grande e prateado, estava no meio do estaleiro. Reflectia a brancura da Lua, o azul das estrelas. Bodoni contemplava-o e amava-o. Sentia desejos de o acariciar, de se deitar junto dele, de encostar a face ao seu flanco, de murmurar-lhe todos os secretos desejos do seu coração.
Mediu-o com os olhos. «És bem meu, disse. Mesmo que nunca mais te mexas, mesmo que nunca mais deites chamas e fiques aí cinquenta anos a enferrujar, és meu». Entrou no foguete.
O foguete media o tempo e a distância. Era como se tivesse penetrado num complexo mecanismo de precisão. O foguete tinha um óptimo relógio suíço. Tinha vontade de o meter no bolso. «Posso, mesmo, dormir aqui esta noite».
Sentou-se no banco do piloto.
Tocou um botão.
Começou a fazer uma imitação do roncar dos foguetes, com a boca fechada, com os olhos cerrados.
O roncar tornou-se mais forte, cada vez mais forte, decolou, cada vez mais alto, mais estranho, mais excitante; fazia-o estremecer e atirava-o para a frente e para trás, assim como a todo o aparelho, numa espécie de silêncio rugidor, num desfazer de metal; enquanto os seus dedos voavam na mesa de comando; o barulho amplificou-se, até se transformar em fogo, numa força, num arrebatamento, numa energia que ameaçava cortá-lo de meio a meio. Suava. Continuou, porque não podia parar, as pálpebras coladas uma à outra, o coração correndo loucamente. Partida! — gritou. Uma explosão sacudiu-o, um trovão. A Lua! — gritou doido de alegria. Os meteoros! Um poço de silêncio dentro do barulho de uma explosão. Marte! Oh, Senhor, Marte! Marte!
Atirou-se sobre a cadeira, esgotado, arquejando. As mãos trementes abandonaram as alavancas. A cabeça caiu-lhe para trás com violência. Ficou sentado, caído, durante muito tempo, respirando a grandes haustos; as pulsações abrandavam.
Muito devagar, abriu os olhos.
O estaleiro de demolição continuava ali.
Ficou sentado, sem fôlego. Ficou durante uns longos minutos a medir o amontoado das ferramentas. Depois saltou para terra e desatou aos pontapés ao foguete. Decola, pelo inferno!
A nave continuava silenciosa.
Tu vais ver!
Estremecendo, saltou para terra, precipitou-se para o corta-chapas, ligou o motor, irritado, e manobrando a lâmina de corte caminhou para o foguete. Aprontou-se para, com as mãos que tremiam, soltar os martelos para lacerar, esmagar, este sonho falso e indolente, esta coisa estúpida que tinha pago com o seu dinheiro, que não se mexia, que não queria obedecer-lhe.
Tu vais ver!
Mas a sua mão deteve-se. O foguete prateado luzia sob a Lua. Longe, via as luzes de sua casa, acolhedoras. Ouviu o rádio cantar uma canção. Ficou sentado uma boa meia hora a contemplar o foguete e as luzes da casa; fechava e abria os olhos. Desceu da máquina de demolição e começou a caminhar; caminhando, começou a rir; quando chegou à porta de casa encheu o peito de ar e chamou:
— Maria, Maria! Faz as malas. Vamos partir para Marte!
— Oh!
— Ah!
— Não acredito!
— Mas é verdade, é verdade!
As crianças dançavam a pé-coxinho diante do foguete, não ousavam ainda tocar-lhe. Começaram a chorar. Maria olhou para o marido.
— O que é que fizeste? Gastaste o nosso dinheiro nisto? Isto nunca mais voará.
— Sim — disse ele, com os olhos colados ao foguete.
— Os foguetes custam milhões. Onde tens tu os milhões?
— Ele vai voar — repetiu. — Entrem todos, enquanto faço uns telefonemas. Tenho ainda trabalho a fazer. Partimos amanhã. E nada de falar a ninguém, entendido? É um segredo.
As crianças afastaram-se tremendo. Viu os seus rostitos febris colados aos vidros das janelas.
Maria não tinha falado.
— Arruinaste-nos — disse ela. — O nosso dinheiro empregado nesta... nesta coisa. E agora, quando era preciso comprar material.
— Tu vais ver — disse ele.
Sem uma palavra mais, ela virou-lhe as costas.
— Que Deus me ajude — murmurou ele, e começou a trabalhar.
Lá para o meio da noite, chegaram camiões, descarregaram fardos; Bodoni, sorridente, esgotava o saldo da conta bancária. Com um maçarico e peças de metal, atacou o foguete: soldou, suprimiu, juntou-lhe artifícios mágicos e infligiu-lhe secretos insultos. Colocou nove velhos motores de automóveis no compartimento das máquinas. Depois correu hermèticamente o painel de entrada para que ninguém pudesse ver a sua obra.
De madrugada entrou na cozinha.
— Maria, quero tomar o pequeno almoço. Ela não disse uma palavra.
Ao nascer do Sol, chamou os filhos.
— Está pronto! Vamos.
A casa ficou em silêncio.
— Fui eu que os fechei — disse Maria.
— O que é que queres dizer?
— Que te vais matar, a ti e a eles, nesse foguete. Que espécie de foguete se pode comprar por dois mil dólares? Só se for muito mau.
— Ouve lá, Maria.
— Ele vai explodir. De qualquer maneira tu não és piloto.
— E, todavia, hei-de fazê-lo voar. Já o arranjei.
— Tu estás louco — disse ela.
— Onde está a chave?
— Está comigo.
Ele estendeu a mão.
— Dá-ma. Ela deu-lha.
— Vais matá-los.
— Tu não vens?
— Vou ficar aqui — disse ela.
— Hás-de compreender e então verás — disse ele, sorrindo. Abriu a porta do segredo. — Vamos lá, meninos. Venham com o pai.
— Adeus, adeus, mamã!
À porta do foguete, Bodoni disse:
— Meninos vamos partir por uma semana. Vocês têm de voltar à escola, e eu ao meu trabalho.
Agarrou-os um de cada vez.
— Ouvi. Isto é um foguete muito velho. Só poderá fazer uma viagem. Nunca mais voará. É a viagem da nossa vida. Abri bem os olhos.
— Sim, papá.
— Abram bem os ouvidos. Aspirem o cheiro de um foguete. Recordai-vos. E quando voltarmos, tereis de contar para o resto da vida.
— Sim, papá.
A nave estava silenciosa como um relógio parado. A entrada fechou-se silvando, atrás deles. Ele meteu-os, como a pequenas múmias, dentro das camas de borracha.
— Prontos!
— Prontos! — responderam todos.
— Partida!
Premiu dez botões. O foguete roncou e partiu. As crianças oscilaram nos sacos e gritaram:
— Olha a Lua!
A Lua passou como num sonho. Os meteoros estalaram como fogo de artifício. O tempo escoava-se, serpentina de gás em ignição. As crianças trepidavam. Livres dos sacos, horas mais tarde, colaram o rosto aos visores.
— Olha a Terra... e olha Marte!
O foguetão deixava cair pétalas de fogo rosado, enquanto as agulhas giravam nos quadrantes. Os olhos das crianças fechavam-se. Enfim, elas adormeceram, como o bicho da seda no seu casulo.
— Bem — murmurou Bodoni, para si.
Saiu na ponta dos pés da câmara de controle e hesitou durante um longo momento, inquieto, diante do painel de saída.
Carregou um botão. A porta saltou. Ele saiu.
Para o espaço? Nas ilhas de tinta dos meteoros? Na distância que corre e nas dimensões infinitas?
Bodoni sorriu. Em volta do foguete trepidante era o estaleiro.
Enferrujada, lá estava a grade do pátio, a casinha silenciosa, a janela da cozinha iluminada e o ribeiro sempre caminhando para o mesmo mar. E, no meio de tudo isto, o foguete, roncando, agitava as crianças nos seus leitos.
Maria estava à janela da cozinha.
Acenou-lhe com a mão e sorriu.
Ele não podia distinguir se ela agitava a mão. Um pequeno gesto, talvez. E um leve sorriso.
O Sol nascia.
Bodoni entrou ràpidamente no foguete. Silêncio. As crianças dormiam. Meteu-se num saco-cama e fechou os olhos. Fez uma oração a ele próprio. Que nada aconteça a esta ilusão durante estes seis dias mais próximos. Que o espaço venha e passe, que Marte, vermelho, gire sob o foguetão com os seus satélites; que não haja cortes nos filmes coloridos. Que as três dimensões se mantenham, que nada altere os espelhos e os «écrans» escondidos que fabricam o sonho. Que o tempo passe sem obstáculos.
Acordou.
Marte flutuava perto do foguetão.
— Papá!
As crianças agitavam-se como loucas dentro das camas-sacos para que as fosse libertar.
Marte era vermelho, tudo ia bem e Bodoni estava feliz. Na noite do sétimo dia, o foguete deixou de vibrar.
— Chegámos — disse Fiorello Bodoni.
Saíram do foguete e atravessaram o estaleiro, o sangue cantava nas suas veias e os olhos brilhavam-lhes.
— Tenho ovos com presunto para todos — disse Maria da porta da cozinha.
— Mamã, mamã, devias ter vindo, devias ter visto Marte, mamã e os meteoros e tudo, tudo!
— Sim — disse ela.
À hora de ir para a cama as crianças apinharam-se em volta de Bodoni.
— Queremos agradecer-te, papá.
— Ora, não foi nada.
— Havemos de lembrar-nos sempre, papá. Nunca mais o esqueceremos.
Muito tarde, noite alta, Bodoni abriu os olhos. Sentiu que a mulher, estendida a seu lado, o observava. Ela não fez o mais pequeno movimento durante muito tempo e depois beijou-o nas faces.
— Tu és o melhor pai que há no mundo — sussurrou ela.
— E porquê ?
— Agora eu compreendo e vejo.
Ela agarrou-lhe a mão, os olhos fechados.
— É verdade que é uma viagem muito bela? — É.
— Uma noite destas serás capaz de me levar a dar uma volta, uma volta pequena? És?
— Uma volta pequena, sem dúvida.
— Obrigada — disse ela. — Boa noite.
— Boa noite — disse Fiorello Bodoni.
Era quase meia-noite. A Lua estava alta no céu. O Homem Ilustrado estava deitado de lado. Não se mexia. Tinha visto tudo que se podia ver. As histórias tinham sido contadas. Tinham terminado.
Só havia este espaço vazio, nas costas do Homem Ilustrado, esta zona de cores e de formas indistintas.
Como observei, esta região começou a definir-se. Apareciam linhas que logo se deformavam para se fundir num grande poço.
E, finalmente, desenhou-se um rosto que me olhou, nesta superfície de carne colorida: o nariz, a boca, os olhos eram-me muito familiares.
Era enevoado. Mas vi o suficiente para me pôr em pé de um salto. Fiquei imóvel sob a luz da Lua, desejando que o vento ou as estrelas não falassem para não acordar esta monstruosa galeria de quadros que estava a meus pés. Mas o homem continuava a dormir.
A imagem do dorso retratava o Homem Ilustrado, com as mãos enclavinhadas no meu pescoço, tentando estrangular-me. Não esperei que a imagem se tornasse clara e precisa.
Comecei a correr pela estrada fora, sem me voltar. Sabia que muito antes da madrugada chegaria à cidadezinha adormecida perto dali.
Ray Bradbury
O melhor da literatura para todos os gostos e idades