Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O HOMEM MUTANTE
Como será o homem de amanhã? Semelhante ao que somos hoje, ou um ser diferente, um mutante? Não há ninguém que não tenha feito a si próprio, pelo menos uma vez na vida, esta pergunta, que fez o êxito de inúmeros livros de ficção científica. Mas também é possível responder-lhe interrogando os homens de ciência. É o que faz este livro, que apresenta ao cidadão comum do final do século um panorama, tão claro e completo quanto possível, forjado com a ajuda de entrevistas e inquéritos, daquilo que é hoje razoável prever do futuro do homem.
De há mais de um milhão de anos a esta parte, o corpo humano não parou de evoluir, e continuará a fazê-lo. Os homens continuam a crescer, os desportistas a bater recordes. Onde é que se situa o limite dessas proezas? Há quem pense que nos aproximamos do topo da curva; outros consideram que ainda poderemos fazer mais e melhor.
Mas o essencial não está nesta questão. O homem é, antes de mais, um ser de inteligência e de cultura. Há muito que a sua evolução cultural se sobrepôs à sua evolução biológica. Os homens de amanhã possuirão sem dúvida um cérebro mais complexo do que o nosso, e saberão utilizá-lo mais eficazmente. Um conhecimento mais preciso do modo como a nossa inteligência funciona porá ao dispor dos biólogos meios de intervenção inéditos sobre o pensamento e a personalidade. Nascerão assim armas prodigiosamente eficazes, que poderão tornar-se aterradoras se caírem em mãos irresponsáveis.
É graças ao conhecimento, à ciência, que o homem já hoje muda o mundo, e que se tranformará a si próprio. No universo novo que a revolução científica nos prepara, o homem não será o mesmo. O que seremos amanhã, é hoje que o forjamos, por meio dos avanços da ciência e da técnica, avanços esses que possuem duas faces - uma certamente útil, a outra um tanto ou quanto inquietante.
Que acontecerá ao homem, posto perante as máquinas mais inteligentes do que ele com que sonham os informáticos? Que farão dele os biólogos, já hoje capazes de modificar a sua hereditariedade? Como serão as crianças de amanhã, nascidas sem pai, formadas fora do corpo da mãe?
Não podemos deixar de nos regozijar com os progressos da medicina, que ataca com êxito inúmeras doenças e começa a compreender porque é que envelhecemos - o que em breve nos permitirá viver, lúcidos e sãos, para além dos cem anos. Mas temos de pensar nas consequências destas vitórias, sobre um mundo cujo equilíbrio demográfico é precário.
Este livro não tem outra ambição senão a de propor - através de uma série de exemplos tirados das melhores fontes e recolhidos pelo mundo inteiro - algumas chaves para uma melhor compreensão do futuro que a ciência nos prepara. Não para a combatermos, nem para recusarmos o progresso. Mas estamos em crer que o mundo será amanhã mais harmonioso se, ante o poder quase sem limites dos homens de ciência, os cidadãos estiverem suficientemente informados para poderem tomar decisões, com pleno conhecimento de causa, sobre o modo como deveremos orientar hoje o mundo de amanhã, a fim de que o homem nunca venha a perder nada do que lhe é essencial.
OS LIMITES DESTRUÍDOS
«O que fiz, posso jurá-lo, jamais algum animal o teria feito.» Esta exclamação do piloto Henri Guillaumet dá a dimensão do homem e coloca a questão dos seus limites. Tinha sido obrigado a aterrar com graves problemas no seu avião, durante uma tempestade de neve, nesses cumes dos Andes que, no Inverno, nunca devolvem os corpos. A noite, lá no alto, quando passa pelo homem, transforma-o em gelo, diz Saint-Exupéry, que narrou o calvário do seu camarada.
Após ter esperado durante dois dias que a tempestade acalmasse, na carlinga do seu avião capotado, Guillaumet caminhou durante cinco dias e quatro noites, sem víveres, escalando desfiladeiros de 4500 metros de altitude, sangrando dos pés, dos joelhos, das mãos, lentamente esvaído do seu sangue, da sua força e da sua razão, sob um frio de 40 graus negativos. «A minha mulher, se acreditar que estou vivo, acredita que caminho. Sou um safado se não caminhar'''» Todas as manhãs cortava um pouco mais o enfranque dos sapatos, para aliviar os pés gelados. «O que salva, é dar um passo. Mais um passo. É sempre o mesmo passo que se recomeça'''»
É o que diz, quase nos mesmos termos, o alpinista Reinhold Messner, quando conta a sua subida solitária ao Evereste. A 8200 metros, morto de cansaço, recorre às suas últimas energias para montar a tenda, paralisado pelo frio. Deita-se vestido, não dorme, mas ao nascer do Sol arranja forças para partir de novo para o cume, aonde tem de chegar, custe o que custar, nesse mesmo dia, pois abandonou todo o seu equipamento. O coração bate-lhe a cem pulsações por minuto. «Acabaram-se as ideias, os raciocínios, agora só há ordens.» Fala com o seu bastão de alpinista, para se sentir menos só diante da montanha. De doze em doze passos, pára, mas arranca de novo, impelido por uma esperança, por «uma curiosidade para além do espaço e do tempo». Já não se trata de lutar para atingir um cume, mas de lutar contra os seus próprios limites. «Quero ter, diz ele, a sensação de ser mais forte do que a minha angústia; é por isso que me coloco em situações em que me encontro, para a vencer.» Descobre por fim o tripé colocado no Evereste por uma expedição chinesa. Está sozinho a 8848 metros de altitude. Agacha-se, pesado como uma pedra, interiormente vazio; «mas, precisamente neste vazio, condensa-se uma espécie de energia». Trepou até morrer. Agora experimenta como que um renascimento, a sensação de que estes instantes lhe trarão, só a ele, uma espécie de paz, de plenitude. Apenas cede ao reunir-se à sua companheira no acampamento da base. Vai-se abaixo e chora: «Os horizontes foram vencidos, os limites destruídos, são permitidas todas as emoções.» Mais tarde, dirá: «Dizem que possuo um irreprimível desejo de sucesso. Mas sigo o meu caminho, sem tentar calcular até onde conseguirei ir. A progressão tem a sua dinâmica própria. É o inexplicável que dá um sentido à vida.»
Estes homens puderam contar a sua viagem às fronteiras daquilo que o homem é capaz de realizar. Outros não puderam fazê-lo e, no entanto, também eles atingiram os limites do possível, que amanhã poderão estar mais longe ainda.
Os sobreviventes dos campos da morte nazis constituem a prova máxima de que a vontade de viver se sobrepõe aos mais terríveis meios de destruição do ser humano. Os evadidos ingleses ou americanos que atravessaram a selva para fugirem à prisão estiveram igualmente à beira do limite extremo. E há ainda esses heróis dos fait divers, que nos apaixonam durante alguns dias. É o caso de Jimmy que, tendo caído num lago de Chicago, permaneceu vinte minutos debaixo de água, de onde acabou por ser retirado um pequeno corpo gelado, com a pele azulada, as pupilas dilatadas e o coração parado. Depois de uma hora e trinta minutos de morte clínica, Jimmy volta a si. Os médicos explicam que, brutalmente mergulhado na água gelada, o seu organismo redescobriu o velho reflexo dos mamíferos em imersão: os batimentos cardíacos diminuíram e o sangue afluiu em maior quantidade ao seu cérebro, para o oxigenar melhor.
Ou de Armendo, também ele um fardo coberto de geada quando caiu como morto no cimento da pista de aterragem do aeroporto de Madrid. Transportado em coma, com o coração parado, para o hospital, pôde, algumas horas mais tarde, contar a sua aventura. Atravessara o Atlântico, desde Cuba, no porão do DC-8, a 9000 metros de altitude e 40 graus negativos apenas com uma blusa e umas calças de ganga sobre o corpo. Também ele foi salvo pelo frio, que o pôs rapidamente em estado de hibernação, com as funções vitais no mínimo.
O homem resiste a tantas coisas! Há pelo menos um que pode contar que impressão provoca permanecer dois minutos dentro do forno de uma padaria a mais de 100oC. Na sequência da destruição do seu bombardeiro, um artilheiro aterrou sem pára-quedas, a 200 quilómetros à hora, em cima de um abeto carregado de neve que o depositou no solo, todo moído, com os membros partidos, mas vivo. O marinheiro chinês Poon Lin andou à deriva no Pacífico, durante a última guerra, sem víveres, durante cento e trinta dias - o seu recorde ainda está por bater.
Durante alguns minutos, o leopardo atinge os 120 quilómetros por hora; o homem é menos rápido, mas bate em resistência todos os animais. Mensen Ernest, o mais fabuloso corredor de provas de marcha de todos os tempos, correu de Constantinopla a Calcutá e voltou em 59 dias; percorreu assim 8300 quilómetros - uma média de 150 quilómetros por dia -, alimentando-se apenas de pão, queijo e legumes.
Em Verkhöiansk, na Sibéria, um dos pontos mais frios do planeta, as crianças de nove anos vão todos os dias à escola com temperaturas de 57 graus negativos. Foram ejectados pára-quedistas de aviões voando a 1000 quilómetros à hora. Outros saltaram de altitude de 10'000 metros. Os astronautas resistem, na sua centrifugadora, a pressões que atingem quarenta vezes a da gravidade. Jacques Mayol, o modelo do herói do filme Vertigem Azul (1), desceu cem metros abaixo da superfície do mar, retendo a respiração durante mais de três minutos.
O impossível nunca deixará de obcecar o homem, que procurará sempre ultrapassar-se a si próprio e aos seus limites. É algo que faz parte da nossa natureza; se os nossos antepassados o não tivessem feito, não estaríamos aqui. Todos estes combates, que põem à prova o corpo e a vontade, são pois essenciais, mas nenhum deles determina verdadeiramente os limites da espécie humana, nem no seu organismo nem no seu espírito. O homem que lutou até ao esgotamento para sobreviver no deserto gelado que constituía a Europa há vinte mil anos é ainda o mesmo que hoje sofre para atingir o pólo sozinho ou para escalar o Evereste.
No entanto, o homem muda, transmuta-se. Desde o seu advento, há três milhões de anos, o seu corpo e o seu espírito modificaram-se. O seu cérebro triplicou de volume, o rosto tornou-se mais elegante, a maxila perdeu importância a favor da fronte. O seu organismo tornou-se menos compacto, mais solto,
(1) Le Grand Bleu, realizado pelo francês Luc Besson em 1988 e estreado em Portugal no mesmo ano (N' do T').
mais maleável. Ao longo dos milénios, o homem soube adaptar-se a meios diferentes: o esquimó do Árctico, o boliviano dos altos planaltos ou o pigmeu da floresta equatorial não têm exactamente o mesmo organismo - e, acima de tudo, não vivem da mesma maneira.
É sobretudo a cultura que faz com que o homem não seja o mesmo no tempo e no espaço - e que fará com que ele seja diferente, amanhã. Desde há quarenta mil anos, desdde que o aparecimento do Homo sapiens nos deu a nossa forma e o nosso cérebro, as modificações fisiológicas são difíceis de pôr em evidência, mas as transformações culturais saltam aos olhos. As civilizações que se sucederam talvez não tenham mudado o homem naquilo que ele tem de essencial, mas forneceram-lhe meios, sistematicamente mais eficazes, para agir sobre o seu ambiente, sobre as coisas e os seres.
Desde há alguns anos, esse poder assumiu um aspecto novo. Produziu-se uma mudança de tal envergadura que permite à ciência e à técnica aspirarem a modificar a própria natureza do homem. Temos hoje a possibilidade de tomar nas nossas mãos, não só o destino de tudo o que existe e de tudo o que vive no planeta, mas também o nosso próprio futuro. O saber acumulado ao longo dos séculos desencadeou um processo de tal ordem e tal rapidez que o conhecimento e a ciência avançam hoje em todas as direcções e, mais do que isso, estão em vias de se transformarem na sua própria essência.
Até aqui, o homem estudava e descrevia o que se encontrava à sua volta. Também experimentava, mas sem modificar fundamentalmente o que existia. Actualmente, as coisas já não se passam do mesmo modo, pois podemos intervir em todos os processos da natureza. Através da fissão do átomo, fazemos nascer energias enormes, próximas das dos fenómenos terrestres. Criamos corpos que não existiam, como o temível plutónio. Através da biologia, intervimos ao nível daquilo que parecia mais inacessível: a hereditariedade dos seres vivos - aquilo que faz com que o cão seja sempre um cão e um homem sempre um homem, tornando todavia cada indivíduo, em todas as espécies, diferente do outro ao lado. O homem pode hoje modificar este estado de coisas, intervindo num processo de três mil milhões de anos que, por uma via sinuosa, às apalpadelas, conduziu da amiba ao que somos. Do saber sobre a vida, passámos ao poder sobre a vida. Aprendemos a transformar os micróbios, os animais e, amanhã, poderá chegar a hora de intervirmos sobre os homens.
Pelo seu engenho, o homem aprendeu também a fabricar máquinas, que se esforça por tornar tão inteligentes quanto possível, na esperança masoquista de produzir robôs capazes de o igualarem. Isso só acontecerá por certo em relação a tarefas bem delimitadas, mas poderá colocar os nossos filhos numa situação de dependência perante as futuras supermáquinas, esses computadores de uma geração nova dotados de poderes inéditos.
A ciência prepara-nos, pois, um mundo onde nada será como antes, onde o próprio homem já não será o mesmo. Um mundo tão novo que nem sequer sabemos como nos preparar para ele. A cultura humana sofreu inúmeras mutações, desde que o primeiro homem descobriu a maneira de talhar o primeiro utensílio de pedra. Mas a que se desenvolve hoje não poderá comparar-se a nada do que a precedeu. O processo é um comboio que rola cada vez mais depressa, para um destino misterioso, comandado por mecanismos cuja manipulação nos escapa cada vez mais; arriscamo-nos pois a nunca mais conseguirmos controlá-lo.
Alguns avanços da ciência já hoje nos colocam em situações em que a nossa velha moral, individual e social, não sabe o que nos há-de aconselhar. Que fazer, por exemplo, com os milhares de embriões órfãos que esperam, em bancos de congelamentos, que decidamos da sua sorte? Que será da nossa liberdade no dia em que se puserem em fichas as características de todas as crianças por nascer, em que se conhecerem de antemão as doenças que as ameaçarão trinta anos mais tarde, as profissões que deverão evitar, os casamentos que não deverão fazer?
O futuro do homem é em parte o da ciência, ou melhor, depende da forma como ele decidir orientar a ciência. Os cientistas revoltam-se perante a possibilidade de que as suas investigações sejam controladas. Demonstram que a liberdade total é a única garantia de eficácia: só se pode descobrir explorando o desconhecido - e esse desconhecido é, por definição, incomensurável e incontrolável.
Mas não terminará a liberdade do cientista no ponto em que começa a ameaçar a do homem? Os biólogos podem, hoje mesmo, modificar a hereditariedade de um ser humano, embora afirmem não desejar fazê-lo. Mas o que é que aconteceria se um franco-atirador decidisse transgredir esse limite, que é apenas moral? A ciência já provou inúmeras vezes que não conhece a moral, ao passo que o homem não poderá sobreviver sem moral. A ciência, ao mudar de dimensão, modifica simultaneamente a sua natureza, desencadeando progressos tão rápidos e vastos que podem escapar a todo e qualquer controle. É possível que vivamos uma época sem precedentes na história do homem e na do mundo. Enquanto o futuro da ciência era imprevisível, não comprometia o nosso. Mas hoje abrem-se caminhos para a manipulação da hereditariedade, para a criação de inteligências artificiais, para a modificação dos climas e do meio, para o controle da concepção - e talvez fosse conveniente rever a nossa concepção da ciência e do progresso, na medida em que tanto uma como o outro põem em questão o próprio futuro do homem.
OS NOSSOS FILHOS DE TESTA LARGA
À escala da evolução animal, a nossa história biológica é curta, data de há três milhões de anos. Entre os animais, os insectos ou certos peixes remontam a centenas de milhões de anos. A nossa história cultural é ainda mais breve, começa com o homem pré-histórico, há cerca de um milhão de anos, quando este fabricou os seus primeiros utensílios.
Há povos que ainda vivem de caça e de recolecção, como o homem de antes da História. Chamamos-lhes «primitivos». Bebem água que consideraríamos poluída, comem de acordo com as possibilidades do meio, aceitam o medo, o frio e a fome. Não sabem ler nem escrever, nem possuem qualquer objecto manufacturado: fabricam os utensílios à medida das necessidades de cada momento, exactamente como o nosso antepasado directo, o homem de Cro-Magnon, que viveu há quarenta mil anos, e possuía o mesmo cérebro que nós.
Estes homens - a quem ainda há pouco chamávamos «selvagens» - são felizes, pois possuem tudo o que constitui a verdadeira riqueza da humanidade. Têm os seus mitos, os seus rituais, os seus deuses, as suas regras sociais e as suas lendas. A sua cultura, por muito diferente que possa parecer-nos da nossa, é estruturada e complexa, a tal ponto que, por vezes, temos dificuldade em compreendê-la.
Na realidade, o homem é inteiramente homem mesmo que viva nu, mesmo que não domine nenhuma das técnicas que nos são familiares, que não escreva, que apenas manipule o pensamento a que ainda chamamos «selvagem». É certo que mudámos desde os tempos do homem de Cro-Magnon, mas muito mais ao nível da cultura do que do corpo. A evolução cultural, pela sua magnitude, tomou o lugar da evolução biológica. Civilização após civilização, as culturas humanas sucederam-se, desaparecendo cada uma delas depois de ter dado o seu contributo para um movimento que, tal como a evolução biológica, parece caminhar no sentido de uma complexidade crescente, a que chamamos o progresso.
Mas não devemos esquecer-nos de que essa escalada das civilizações se fez com o mesmo organismo do homem das cavernas, do caçador de bisontes e renas na tundra gelada de há trinta mil anos, que possuía, tal como nós, um cérebro de mil e trezentos centímetros cúbicos. O nosso comportamento profundo manteve-se em parte o mesmo dessas épocas heróicas, em que o essencial da inteligência servia para garantir o alimento diário e a sobrevivência do grupo. Ainda possuímos reflexos que datam dessa época, como a faculdade de constituirmos reservas de energia para mobilizarmos rapidamente as nossas forças, a fim de fugirmos ou de combatermos melhor. Não perdemos esta faculdade, embora seja menos frequentemente seguida de efeitos - o que, segundo alguns médicos, propiciaria o stress, a ansiedade, a depressão.
É certo que o homem mudou, de há quarenta mil anos para cá. Substituímos a pedra lascada por uma impressionante panóplia científica e técnica. Inventámos leis para os fenómenos naturais que assustavam os homens da Pré-História. Mas terá isso alterado o fundamental da nossa natureza? Não se realizará o homem plenamente na sua sociabilidade, nas suas faculdades de criar uma arte, uma poesia, na consciência da sua originalidade face ao resto do mundo animal? Não residirá o mais importante no sentido da vida e da morte, na faculdade de manipular conceitos, no dom de sonhar, de conceber um futuro? A imaginação, dizia Einstein, é mais importante do que o conhecimento.
Poderia aliás defender-se que a própria noção de progresso é muito relativa. Será a reflexão dos filósofos modernos superior à de Confúcio ou de Platão? Os nossos poetas não parecem mais inspirados do que Homero ou Lucrécio. A arte dos homens que pintaram as paredes de Lascaux, há cerca de quinze mil anos, terá sido alguma vez igualada? As primeiras lendas da humanidade de que há memória, como a de Gilgamesh, na Suméria, são tão apaixonantes como os romances modernos.
«Quando o arco-íris das culturas humanas tiver acabado de se despenhar no vazio cavado pelo nosso furor», como diz Claude Lévi-Strauss no fim de Tristes Trópicos, ficará talvez a essência profunda da nossa espécie, «aquém do pensamento e além da sociedade: na contemplação de um mineral mais belo que todas as nossas obras; no perfume, mais sábio que os nossos livros, aspirado na corola de um lírio; ou na piscadela de olho carregado de paciência, de serenidade e de perdão recíproco que um entendimento involuntário permite por vezes trocar com um gato».
Até aos homens de cérebro grande
Há no entanto uma parte do homem que mudou de forma espectacular, ao longo da evolução, e que poderá, no futuro, continuar a modificar-se. É o nosso cérebro. O cérebro humano é um prodigioso conjunto de biliões de teias de aranha, formadas pelas células nervosas e pelas suas ligações, onde crepitam miríades de impulsos eléctricos retransmitidos por sinais químicos. É uma maquinaria que começamos a compreender. Alguns cientistas, como Jean-Pierre Changeux, consideram que esta química e esta electricidade explicam todo o funcionamento do cérebro, que o pensamento nada tem de abstracto, sendo apenas o resultado do trabalho de toda esta mecânica.
Contudo, o cérebro humano é incoparavelmente mais eficaz do que todas as máquinas que fomos capazes de construir até hoje. Possui duas vantagens. Em primeiro lugar, dispõe simultaneamente do suporte material do seu funcionamento e da regra do jogo, o programa que dá sentido ao conjunto da maquinaria. Em segundo lugar, constrói os seus próprios programas, auto-organiza-se. Está cooncebido para aprender a aprender, é em si mesmo que encontra meios para adquirir novos conhecimentos, aperfeiçoando as suas redes e as suas ligações nervosas. Constrói-se através de e para esta aprendizagem, que começa no nascimento e continua ao longo de toda a vida do homem.
Quando se disseca um cérebro humano, encontram-se os mesmos elementos fundamentais que no de qualquer outro mamífero. Não há nada que distinga, nos seus diferentes constituintes, o cérebro de um rato do de um homem. No entanto, o homem é um ser único e o seu cérebro é o resultado de uma evolução de uma rapidez surpreendente, sem qualquer equivalente em todo o mundo vivo. Um órgão animal transforma-se muito lentamente, por vezes, em dezenas de milhões de anos. O volume do cérebro do homem triplicou em três milhões de anos, passando dos quatrocentos centímetros cúbicos dos nossos antepassados australopitecos aos mil e trezentos, em média, dos homens modernos.
Além disso, o nosso cérebro transformou-se na sua anatomia. No centro encontram-se as partes mais antigas, a que por vezes se chama o cérebro «reptiliano», pois deriva dos nossos longínquos antepassados de há cem milhões de anos. Por cima, desenvolveram-se os hemisférios que partilhamos com os outros mamíferos, nossos primos, desde há algumas dezenas de milhões de anos.
A seguir apareceu, sob essa testa bem humana que não existe em nenhum outro primata, um elemento novo, original, que se desenvolveu no homem mais do que em qualquer outro mamífero. É o córtex, e sobretudo o seu lobo frontal, que se associa àquilo que constitui a originalidade do homem: a sua inteligência, a consciência de si mesmo, as suas capacidades de abstracção, de reflexão, de livre arbítrio. Chamou-se-lhe o órgão da civilização.
É impressionante o paralelismo entre o desenvolvimento do córtex - que, no homem, ocupa 30 por cento do cérebro - e o aparecimento da cultura humana: o talhe dos utensílios, a organização social, o desenvolvimento da linguagem articulada, a descoberta do fogo. É certo que o homem existe porque está de pé: a estação vertical foi, na nossa evolução, o acontecimento difícil, que exigiu uma reconstrução fundamental do nosso organismo. Essa reconstrução coincidiu com a nossa separação dos outros primatas nossos primos, há oito milhões de anos.
A estação vertical produziu duas consequências de importância muito semelhante. Por um lado, permitiu libertar a mão, que se tornou capaz de agarrar objectos, de fabricar utensílios. Por outro lado, permitiu o desenvolvimento do cérebro. Foi por se ter erguido sobre os membros posteriores, há cerca de oito milhões de anos, que o antepassado do homem inaugurou a evolução que devia inelutavelmente trazê-lo até nós. Foi por ter aprendido a viver de pé que o homem adquiriu a inteligência: os anatomistas demonstram que o crânio colocado no cimo de uma coluna vertebral vertical se desenvolve mais facilmente do que quando se encontra ligado à extremidade de uma coluna horizontal.
Os primeiros homens viveram intensamente esta interacção essencial entre o cérebro e a mão, entre aquilo que concebia os utensílios e aquilo que lhes dava a forma. Mas viveram também outras revoluções, que lhes permitiram adquirir as ligações sociais e familiares, cimento da formação animal social que fundamentalmente somos. O fabrico dos utensílios, que durante muito tempo foi considerado a característica primeira do homem, não passa de um elemento entre outros.
A linguagem deve ter sido um poderoso motor da socialização, ligada à caça em conjunto, à partilha dos alimentos, à instalação em abrigos familiares. Favoreceu sobretudo a aprendizagem dos jovens e a transmissão da cultura. Nenhum progresso teria sido possível sem esta faculdade de comunicação essencial, em que certos historiadores da Pré-História vêem o factor preponderante do desenvolvimento do cérebro.
A linguagem permitiu desenvolver aquilo a que chamamos o pensamento consciente. Foi o veículo das ideias, dos conceitos, das regras de vida em sociedade - e, mais tarde, da religião e da arte. Permitiu, antes do aparecimento tardio da escrita, que se transmitisse de geração em geração, esse imenso saber cultural sobre o qual se construiu o que constitui hoje o essencial do que somos.
Actualmente, todas as crianças nascem com uma predisposição natural para adquirirem uma liguagem; provavelmente, isso nem sempre se verificou, e esta evolução foi uma das mais importantes vividas pela nossa espécie. Os historiadores da Pré-História têm hoje tendência a fazer recuar até um passado longínquo esta aquisição essencial, que deu ao homem o acesso aos signos, aos símbolos, aos rituais, à reflexão abstracta. Foi, provavelmente, ela que permitiu imaginar o utensílio antes de o talhar. O animal vive o momento presente, tem pouco passado e imagina mal o futuro. O homem constrói a sua reflexão em função do tempo. A imagem do instrumento contém em si a da caça, a da refeição, a do ferimento ou da morte possíveis.
Por tudo isto, o homem especializou-se no cérebro desenvolvido, tal como outros animais se tornaram exímios na corrida rápida, na agilidade, na força muscular ou na natação poderosa. Será que esta especialização atingiu o cume, ou poderá ainda continuar? O futuro do homem talvez seja o do seu cérebro, e os homens de amanhã poderiam vir a possuir uma testa larga, invólucro de um supercórtex e de uma superinteligência, tão diferente da nossa como esta o é das dos australopitecos de há três milhões de anos. Talvez sejamos os aprendizes de uma revolução apenas esboçada.
O nascimento prematuro
Como é que poderá ter surgido esse homem de cérebro grande? Da mesma forma, sem dúvida, que apareceram os nossos antepassados cujo crânio se foi tornando pouco a pouco mais volumoso. O nascimento do homem é hoje um acto difícil, pois o crânio do recém-nascido passa à justa pela bacia da mulher. A extracção do feto põe, por vezes, problemas que exigem uma cesariana.
Existiu certamente uma época, na história da humanidade, em que se desenrolou um trágico conflito entre a evolução, que aumentava o volume do cérebro, e as possibilidades anatómicas da mulher. É possível que muitas mães e filhos tenham morrido, devido à impossibilidade de expulsar esses mutantes de cérebro grande que, no entanto, representavam a esperança da humanidade.
A única solução foi o nascimento prematuro, numa fase em que o tamanho do crânio ainda era compatível com a bacia da mãe. Existem vários argumentos a favor desta hipótese. Se compararmos o homem com os outros primatas, seus primos, verificaremos que a sua gestação deveria ser muito mais longa - vinte e um meses, foi o calculado. O recém-nascido humano está muito menos apto a sobreviver sozinho do que esses macacos. O seu organismo desenvolve-se, após o nascimento, ao mesmo ritmo que no ventre materno. Em contrapartida, após a trigésima semana de gestação, o crescimento do cérebro do feto abranda, como se fosse controlado por um sinal regulador. O volume do cérebro do recém-nascido humano é apenas um quarto do adulto, ao passo que nos macacos essa relação é de 60 por cento.
É possível que a estação vertical tenha favorecido esta prematuridade, uma vez que constitui um factor de aborto. Com efeito, o útero humano é uma bolsa aberta para baixo que não está preparada para resistir durante muito tempo a um feto cada vez mais pesado. Pode pois imaginar-se, como Philippe Lazar, que a estação vertical tenha favorecido a selecção progressiva das linhagens capazes de suportarem um nascimento prematuro e de lhe sobreviverem numa proporção compatível com o desenvolvimento do grupo. As longas caminhadas impostas pela perseguição da caça ou pela conquista de novos territórios puseram as mulheres pré-históricas em condições que favoreciam esse parto prematuro, que foi pois a consequência do aparecimento de homens de cérebro grande, mas que ao mesmo tempo o favoreceu.
Se vierem a aparecer homens de cérebro mais volumoso do que o nosso, terá de se desencadear o mesmo processo? Não se vêem outras soluções, ainda que já nasçam homens com cérebros maiores do que a média: os de Cromwell e Byron pesavam 2230 gramas, contra as 1000 gramas de Anatole France e Gambetta. É verdade que possuímos sobre os homens pré-históricos a vantagem de podermos proceder à operação da cesariana, e é provável que, na época necessariamente longínqua em que os homens de cérebro grande venham eventualmente a aparecer, a gravidez in vitro já se tenha generalizado.
Jean Rostand dizia, gracejando, que, se se conseguisse levar as células cerebrais a dividirem-se durante um pouco mais de tempo, se produziriam esses homens de cérebro grande. Este gracejo poderia inspirar os biólogos, pois, desde então, descobriram-se os genes do desenvolvimento. Estes genes fazem com que o embrião se divida em várias partes, que darão origem a diferentes partes do corpo. Esta descoberta levantará um véu sobre um dos maiores mistérios da biologia: o que é que permite que um só ovo, uma única célula, se divida, se diversifique e se organize para formar em poucas semanas o esboço de um organismo complexo, composto por elementos diferentes tanto pela sua natureza como pela sua função - como um dedo, uma glândula, um olho, um estômago. Estes genes do desenvolvimento parecem ser pouco numerosos e existirem em todas as espécies animais, e, portanto, também no homem. É provável que possam em breve ser estudados em pormenor, revelando-nos o seu funcionamento, o que permitirá mais tarde manipulá-los e modificar a sua acção.
Se vier a nascer um homem de cérebro grande, num futuro longínquo, ainda continuará a ser um homem? O aumento do volume do córtex poderia obrigar à repetição do que se passou há três milhões de anos, na época em que os nossos antepassados hominídeos, os australopitecos, com um cérebro de quatrocentos centímetros cúbicos, deram lugar a uma espécie nova, a espécie homo. Nada indica que esta evolução esteja em curso, mas também pode acontecer que não notemos um processo necessariamente muito lento, que só terminará dentro de centenas de milhares de anos.
O que é a inteligência?
Os homens de amanhã serão, pois, mais inteligentes? Para responder a esta pergunta seria necessário estabelecer que é a inteligência, cujas definições são imprecisas. «Faculdade de conhecer, de compreender», diz o dicionário, o que é vago. «Conjunto de funções mentais que têm por objecto o conhecimento conceptual e racional» - é mais preciso, mas pouco esclarecedor sobre a própria natureza da inteligência.
Esta incerteza provém do facto de não existir apenas uma forma de inteligência. A de Einstein é diferente da do pigmeu. Mas nada nos permite dizer que o intelecto de um é inferior ou superior ao do outro, pois cada um deles está adaptado a um determinado meio, à resolução de problemas diferentes. Provavelmente, Einstein teria feito um papel ridículo na floresta equatorial, o mesmo acontecendo com um pigmeu diante de um quadro cheio de equações. Com a diferença fundamental de que o africano não teria arriscado a vida na experiência, o que talvez tivesse acontecido com o físico.
Cada um de nós possui uma inteligência que se desenvolve em função do nosso próprio meio, para que a ele nos possamos adaptar nas melhores condições. Essa inteligência está intimamente ligada à cultura do grupo social a que pertencemos. Será que também é comandada pela hereditariedade? Eis que surge a grande questão, em torno da qual se debatem, há gerações, biólogos e filósofos. Será a inteligência inata ou adquirida? Escreveram-se livros inteiros em defesa do primeiro destes pontos de vista, e o mesmo aconteceu com o outro. A realidade é mais simples, pois tanto o inato como o adquirido intervêm na génese da inteligência humana, sem que ninguém possa alguma vez definir a parte de cada um destes factores. Com efeito, isto escapará sempre a toda a possibilidade de medida, uma vez que a inteligência não se liga a nenhum elemento conhecido da nossa hereditariedade, a nenhum gene particular. Pretender ter um filho inteligente fazendo-o conceber por um prémio Nobel é, portanto, um absurdo. «Façamos um filho juntos», disse um dia uma mulher deslumbrante ao dramaturgo inglês Bernard Shaw. «Terá a minha beleza e a sua inteligência.» «E se acontecesse ao contrário?», respondeu ele. A lotaria da hereditariedade é governada apenas pelo acaso, e dois pais inteligentes podem conceber um imbecil, sendo a inversa igualmente verdadeira.
Caberá sempre ao ser humano transformar a experiência, prolongar e mesmo modificar os elementos transmitidos pela hereditariedade, incluindo a inteligência. Começamos a compreender como é que a criança, desde muito cedo, adquire essa inteligência através das relações com os seres mais próximos, com o meio. Trata-se de investigações apaixonantes, pois poderiam permitir pôr de pé métodos susceptíveis de desenvolverem melhor o cérebro dos jovens. Entre os três e os onze anos, o sistema nervoso central das crianças consome duas vezes mais energia que um cérebro adulto, pois é nesse período que se estabelecem as ligações que vão permitir a aquisição de conhecimentos de todo o tipo. É nessa idade que a criança adquire a leitura e a escrita; e, sobretudo, que aprende a fazer os exercícios constantes que conduzirão às faculdades de análise e de síntese, de compreensão do mundo, de adaptação ao meio que virão a constituir a verdadeira inteligência.
Tudo funciona, portanto, desde muito cedo, por um vaivém permanente entre o que foi adquirido à nascença e o que se constrói em seguida através das relações com o meio. Tudo é importante. Ao contrário do que se pensava até há pouco, o recém-nascido vê, ouve e sente a partir do momento em que vem ao mundo. Os seus sentidos são ainda inábeis, é certo, mas o bebé percepciona o rosto da mãe, tal como o grande peixe vermelho de plástico que lhe passeiam diante dos olhos. Explora imediatamente o seu meio, mesmo na penumbra, manifestando uma curiosidade essencial ao desenvolvimento do espírito humano. Localiza bem os sons, é sensível à voz da mãe, detesta os barulhos violentos. Prefere o açucarado ao salgado ou ao ácido. Sossega no calor do seio materno, ouvindo bater o coração da mãe; reconhece-a pelo cheiro, associado à segurança da sua presença. Tudo isto contribui para o desenvolvimento do que virá a ser a sua inteligência. As crianças mal-amadas, abandonadas à nascença, aquelas a quem ninguém pega ao colo, que não são mimadas, a quem não se fala nem se canta, terão menos hipóteses do que as outras de virem a ser inteligentes.
Os meninos-prodígios e os calculadores excepcionais
Para alguns, os meninos-prodígios representariam uma das vias da evolução futura do homem. Existiram em todas as épocas e sempre representaram um mistério. Serão mutantes? Mozart tocava piano aos três anos, retinha na memória um concerto aos quatro, compunha aos cinco, publicou as primeiras sonatas aos oito, e a sua primeira ópera aos dez anos. Beethoven e Chopin também foram prodígios. As peças de Goethe foram representadas quando ele tinha seis anos, Nietzsche publicou uma recolha de poemas aos nove. Stuart Mill aprendeu o grego aos três anos, aos oito dava lições de latim, aos onze escreveu um livro sobre a história do governo de Roma; aos dezasseis anos, Pico della Mirandola sabia vinte e duas línguas.
Mas os que mais nos espantam talvez sejam ainda os temáticos. Aos onze anos, Pascal descobriu a geometria de Euclides, e aos dezoito inventou a sua célebre máquina de calcular. Gauss sabia contar antes de ser capaz de ler; aos três anos, corrigiu um engano do pai nas contas das horas que estava a pagar aos seus operários. Tinha dez anos quando o seu professor pediu à turma que escrevesse os números de 1 a 100 e que os somasse. Gauss respondeu imediatamente: «Já está.» Tinha calculado mentalmente que 100+1=101; 99+2=101; 98+3=101 - e que 50x101=5050.
Mas nem todos os grandes homens foram pequenos génios. Einstein só falou aos quatro anos e nunca foi bom aluno; a família temia que ele viesse a ser um atrasado. «Não sei que fazer com o Albert, na verdade não aprende grande coisa», escrevia a mãe a uma amiga. O mesmo aconteceu com Thomas Edison.
Os casos mais estranhos são os dos calculadores mentais. Surpreendentemente ágeis na manipulação dos números, não demonstram o mesmo desenvolvimento noutras actividades. Por vezes, chegam até a parecer idiotas. É o caso de dois gémeos americanos, George e Charles, recentemente estudado por um psiquiatra que continua a esforçar-se por compreender como é que funciona o seu cérebro. Retirados aos vinte e seis anos de um instituto para atrasados mentais, são maníacos do calendário e só conhecem datas. São capazes de dizer instantaneamente que o dia 15 de Fevereiro de 2002 será uma sexta-feira, que o dia 28 de Agosto de 1691 era uma quarta-feira, que o dia 1 de Julho de 42'930 será uma segunda-feira. Mas não conseguem dizer qual é o troco de uma compra de 75 escudos paga com uma nota de 100.
Provavelmente, estes jovens apenas representam uma aberração do funcionamento cerebral, um caso patológico de uma memória hipertrofiada e focalizada num único assunto: as datas. Durante quinze anos só viveram para isso, para adquirir essa destreza inútil e que preenche completamente a sua existência.
Em contrapartida, os calculadores prodígios, como o célebre Inaudi, são seres normais que desenvolveram uma familiaridade excepcional com os números. Estes são, para eles, os elementos de uma linguagem; vêem-nos, ouvem-nos, reconhecem-nos, fixam-nos tão facilmente como nós fazemos com as palavras, mesmo que se trate de um número de dezenas de algarismos. Adquiriram uma ginástica dos números, tal como nós possuímos a das palavras. Para eles, 1961 surge imediatamente como 37«53, como a soma dos quadrados de 44 e de 5, ou de 40 e de 19. Estabelecem entre os números ligações semelhantes às da gramática, que nos permite juntar as palavras. Nós falamos e escrevemos sem nos preocuparmos com a gramática, armazenada num recanto da nossa memória e aparentemente esquecida; eles fazem o mesmo, o que poderá explicar a sua rigidez - quase instantânea - de cálculo.
Porque é que esta interessante faculdade será tão rara? Poderíamos desenvolvê-la? Alguns matemáticos - tal como certos amadores - aprenderam a calcular mentalmente muito depressa. É preciso tempo. Inaudi e Monteux eram pastores cuja única ocupação consistia em brincar com as pedras, e depois com os algarismos, seus únicos companheiros. Mas nem todos os pastores que se aborreciam na montanha se tornaram calculadores prodígios. Inaudi e os seus companheiros possuíam uma grande curiosidade natural pelo cálculo e uma memória excepcional - sobretudo a curto prazo -, e reactivavam-na continuamente falando com os números, praticando o cálculo incessantemente, resolvendo problemas que inventavam para si próprios.
Os sobredotados
Sem que se possa tomar estes prodígios como modelos, os neurologistas modernos pensam que uma das esperanças de melhorar as capacidades intelectuais dos homens de amanhã passa pela aprendizagem. O homem possui já, desde que nasce, todas as células do seu cérebro que, em seguida, irão diminuindo com a idade. Mas o cérebro do recém-nascido é apenas um quarto do do adulto; vai-se construindo durante a infância, estabelecendo progressivamente as ligações essenciais, os circuitos que darão sentido à mecânica cerebral e lhe permitirão funcionar em rede. É a própria criança que efectua esta construção, através das suas reacções face ao mundo exterior, dos seus pedidos de informação, das suas interrogações, enfim, da sua aprendizagem da vida. Foi esta faculdade sui generis, que o cérebro humano possui de organizar uma rede de ligações tão completa que permitiu ao homem tornar-se um ser de inteligência e de cultura.
Seria possível estimular, através de uma educação especial da criança, uma aprendizagem acelerada que aumentasse a agilidade intelectual do adulto? Muitos neurologistas são desta opinião. No entanto, as tentativas feitas até aqui nos jovens não produziram resultados convincentes. As Olimpíadas do Cálculo, que reúnem centenas de milhares de alunos dos liceus soviéticos, seleccionados em todo o país, não forneceram matemáticos excepcionais. Nem se resolveu de forma satisfatória a educação daqueles a que se chama por vezes «sobredotados», essas crianças de espírito precoce que obtêm resultados brilhantes nos testes clássicos de medida da inteligência. Estes «sobredotados» constituem cerca de cinco por cento dos efectivos escolares, e alguns pedagogos afirmam que aprendem com dificuldade nas turmas normais, porque se aborrecem, uma vez que o seu ritmo de aprendizagem é mais rápido que o dos seus colegas.
Mas as tentativas de educação especial para «sobredotados» não forneceram resultados realmente convincentes. Alguns deles, que aprenderam precocemente a ler, têm depois dificuldades para escrever, por suportarem mal a falta de destreza da mão. Muitos deles são afectados pela sua separação das outras crianças, pois são tratados como pequenos génios, quando têm as mesmas necessidades afectivas de todos os outros garotos. Alguns refugiam-se na neurose, pois suportam mal o desequilíbrio entre o seu desenvolvimento intelectual e a sua maneira de viver. O que não impede que, nos Estados Unidos, os pais se acotovelem para fazerem entrar os seus pimpolhos de três anos em escolas onde, por cerca de 650 contos anuais, poderão sentar-se diante de um computador. Alguns eminentes especialistas da infância, como Bruno Bettelheim ou o célebre Dr' Spock, chamam a atenção para os riscos dessa «sobreintelectualização», que pode alterar o seu equilíbrio psíquico e afectivo. Mas a proporção de crianças com menos de três anos postas nessas escolas passou, em dez anos, de 13 para 27 por cento.
O estudo mais importante levado a cabo sobre os «sobredotados», o do Dr' Terman, nos Estados Unidos, incide em mil e quinhentos indivíduos, seguidos desde 1921. Este trabalho mostra que, no conjunto, foram bem sucedidos nas suas carreiras, sem todavia terem dado origem a muitos adultos excepcionais. Pelo contrário, a percentagem de problemas pessoais - ligados ao amor, ao álcool e à droga - é mais elevada no seu grupo.
É evidente que a segregação dos «sobredotados» põe o problema, mal resolvido, de se se deve ou não privilegiar os já privilegiados. Não se pode deixar de pensar na experiência levada a cabo a partir de 1934 pelos Alemães, que colocaram crianças cuidadosamente escolhidas em escolas especiais onde eram educadas em função dos ideais do nacional-socialismo, para fazerem delas «homens de elite». O sistema jogava com os desejos de elevação social dos adolescentes, confiando-lhes responsabilidades em troca de uma obediência cega. Em França, muitos propagandistas de uma educação especial para os «sobredotados» não escondem o seu desejo de os verem dar origem a uma elite de superpensadores, de seres superiores aos outros. Ao que outros respondem que o papel da escola não consiste em favorecer os que já são dotados, à partida, mas sim em fornecer possibilidades iguais a todos, dando prioridade ao desabrochar da personalidade, e não ao êxito intelectual.
A AVENTURA DO CORPO
O nosso corpo é o resultado de uma evolução que separou, há oito milhões de anos, a espécie humana da dos outros primatas nossos primos. A partir de então erguemo-nos, o nosso cérebro aumentou de volume, perdemos a nossa pelagem ancestral. O organismo que hoje é o nosso não evoluiu praticamente nada desde há quarenta mil anos. Qual será a sua evolução futura?
É provável que a transformação do nosso rosto prossiga: a importância das maxilas reduzir-se-á ainda mais, enquanto a testa, que lhe alberga o pensamento, continuará a aumentar de tamanho. Os dentes do siso - os terceiros molares que nascem tarde e nem sempre encontram espaço para se alojarem, ficando então encavalitados na mandíbula - já hoje têm tendência a desaparecer; dentro de algumas centenas de gerações, deixarão de existir. À medida que os alimentos se tornarem ainda mais fáceis de mastigar, as maxilas reduzir-se-ão progressivamente.
Alguns outros elementos do organismo desaparecerão igualmente. O apêndice corresponde a uma parte do intestino essencial nos mamíferos herbívoros, mas que já não tem razão de ser no omnívoro que é o homem. Os pêlos continuarão a rarear até ao seu desaparecimento total; que interesse têm eles nos braços, nas pernas ou no peito? Será desejável que os do púbis se mantenham, por razões de pudor? Os carecas serão mutantes precursores do futuro do homem, ou deverão os cabelos subsistir, para protegerem o crânio? A barba e o bigode serão vantajosos para o futuro da espécie? Serão as sobrancelhas realmente necessárias, para impedirem que o suor caia da testa para os olhos?
As estatísticas mostram que a percentagem de homens e mulheres de olhos escuros e pele mate tende a aumentar em todo o planeta, em detrimento do número de indivíduos de pele muito branca e olhos azuis. As misturas incessantes, que conduzem a uma mestiçagem fundamental para a multiplicação dos genes, provocam ao mesmo tempo uma mutação tendente ao escurecimento da pele e dos olhos.
A nossa coluna vertebral ainda não se adaptou perfeitamente à estação vertical, o que está na origem das «dores de costas» que nos afligem a quase todos. As nossas vértebras poderiam pois evoluir, reforçando-se. O cóccix, vestígio da cauda dos nossos antepassados - e que existe ainda sob esta forma no embrião - deverá desaparecer igualmente. As varizes, os órgãos descaídos e as hérnias não existem nos outros animais, são outras tantas consequências da aquisição recente da estação vertical, por parte de um organismo que se encontrava previsto para viver na horizontal. Não é pois de excluir uma futura reorganização dos nossos órgãos internos, cuja sobreposição está longe de ser o ideal.
Alguns médicos não hesitam em apontar outras anomalias, que poderiam ser remediadas através de mutações. Teríamos cerca de um metro de intestino delgado a mais, e as nossas amígdalas não servem para grande coisa, a não ser para se infectarem em caso de anginas. Possuímos dois rins, dois pulmões, um coração com duas partes, dois testículos - porquê então apenas um estômago, uma tiroide e um baço?
Até onde irá o nosso crescimento?
Até onde crescerá o homem? De há alguns séculos para cá, o nosso crescimento é impressionante. Em França, a estatura dos recrutas era de 1,66 m, em média, em 1900; de 1,70 m em 1960; de 1,72 m em 1970; no ano 2000 atingirá 1,79 m. Este crescimento continuará? É pouco provável, pois existe certamente um limite fisiológico, hereditário, para o tamanho dos homens, tal como para a duração da sua vida. O género humano não enveredará pelo gigantismo; este crescimento estacará assim que se tiver atingido um máximo, que deve ser inferior a dois metros. A tendência vai no sentido de um tipo mais longilíneo do que outrora, visto que o peso aumenta menos do que a estatura.
Não deve excluir-se a possibilidade de uma preferência estética pelos altos que, a longo prazo, favoreceria o aumento da estatura. As mulheres preferem os homens altos, considerados sexualmente atraentes. Este aumento da estatura é mais nítido nos homens; as mulheres, encarregadas da protecção do feto e da transmissão do património da espécie, parecem hesitar mais em aumentarem o seu tamanho. O modo de vida tem igualmente um papel determinante neste aumento em centímetros, pois os indivíduos das camadas mais favorecidas são os que mais dele beneficiam. Os japoneses emigrados nos Estados Unidos são mais altos do que os que permanecem no Japão. Cresce-se também mais depressa; actualmente, a estatura máxima é atingida aos dezassete, dezoito anos, em vez dos vinte, vinte e um de outrora. As potencialidades da espécie exprimem-se provavelmente melhor hoje, pois conhecem-se povos que sempre tiveram um tamanho elevado, como os Dankalis da África Oriental, que medem cerca de dois metros. Sempre houve, em todas as épocas, mutantes gigantes: o alsaciano Jean Kraw media 2,80 m, o turco Enzkhan 2,83 m, o russo Machnow 2,87 m. O recorde pertence provavelmente ao iraniano Sia Khad, que media 3,27 m, mas que não era capaz de andar nem de se manter de pé, pois a sua cabeça era tão pesada que lhe caía sobre o peito.
Bater os recordes
A evolução do desenvolvimento físico do homem também se traduz através dos recordes desportivos, batidos regularmente, sem que possamos ainda determinar os seus limites. As performances progridem devido à intensificação da preparação física, ao aperfeiçoamento das técnicas de treino e à utilização de materiais tecnicamente mais evoluídos.
Os atletas de alto nível não são pois super-homens, não constituem uma raça de homens especializada nas proezas físicas, mas a genética também intervém nos seus êxitos. Para ganhar, o peão tem de possuir certas qualidades, umas adquiridas através do treino, outras inatas. Alguns nascem dotados para a velocidade, como os negros, que possuem frequentemente um fémur mais comprido; além disso, sabem naturalmente relaxar e distender os músculos num curto espaço de tempo, o que é muito útil para as corridas de velocidade e para os desportos que exigem reflexos rápidos, como o boxe.
Outros têm um coração que bate lentamente, o que os predispõe para os esforços de longa duração. Um músculo cardíaco que bate a 50 pulsações por minuto passará sem problemas para 150 pulsações durante uma corrida de ciclismo ou uma prova de 5000 metros, ao passo que aquele que bate naturalmente a 80 pulsações atingirá as 240 - o que impede a irrigação normal dos tecidos em oxigénio. Os grandes campeões têm geralmente uma tensão arterial baixa e vasos sanguíneos muito elásticos; em desporto, as performances de um atleta são as suas artérias.
Mas, sem treino, é ilusório adquirir a resistência indispensável a todos os desportos de competição. Só o treino regular permite utilizar bem o oxigénio ao nível dos tecidos e dos músculos. Mais personalizado, melhor vigiado, auxiliado por uma alimentação equilibrada e com apoio psicológico, o treino faz progredir todos os atletas, a todos os níveis.
Haverá limites para os resultados desportivos, que parecem progredir regularmente? Os peritos dividem-se. A mecânica da perna humana parece impedir a redução do recorde dos 100 metros para menos de nove segundos. A resistência do ar também bloqueia as proezas nos desportos de velocidade; um ciclista que corre a 60 quilómetros à hora despende uma energia de 600 watts, 550 dos quais se destinam a vencer precisamente a resistência do ar, na qual tropeçam todos os aerodinamismos.
No entanto, durante muito tempo julgou-se que a barreira dos 10 segundos aos 100 metros nunca seria ultrapassada. Em 1936, Jesse Owens foi considerado um fenómeno ao atingir a marca de 10,2 s. Foi preciso esperar até 1960 para que o alemão Armin Hary bloqueasse o cronómetro precisamente nos 10 s, e até 1968 para que dois negros americanos, Jim Hines e Charles Greene, obtivessem 9,9 s no cronómetro manual - tendo a cronometragem electrónica consagrado o verdadeiro campeão, Jim Hines, com 9,95 s nos Jogos Olímpicos do México. Foi preciso esperar então quinze anos para se ganhar dois centésimos de segundo; em 1983, Calvin Smith, outro americano, foi cronometrado em 9,93 s. O canadiano Ben Johnson fez 9,83 s nos Campeonatos do Mundo de 1987, em Roma, vindo a ganhar de forma inicialmente espectacular, e depois vergonhosa, os 100 metros dos Jogos Olímpicos de Seul, em 1988, com a marca de 9,79 s, tendo sido desqualificado por doping.
Estes jogos de Seul marcaram claramente a vontade dos dirigentes desportivos internacionais de darem publicamente um duro golpe na prática do doping, que assumiu proporções perigosas em todos os desportos, amadores e profissionais. O treinador de Ben Johnson, ao falar sob juramento perante a comissão judicial sobre o doping instituída no Canadá, contou que, em 1981, propusera ao seu pupilo - que, nessa época, corria os 100 metros em 10,25 s - que tomasse substâncias dopantes, para vir a ser campeão do mundo. Três anos mais tarde, Ben Johnson, sob o efeito de esteróides, era medalha de bronze nos jogos de Los Angeles. Este treinador afirma que oito em cada dez atletas que concorrem aos Jogos Olímpicos se dopam durante a preparação, e acusa o Comité Olímpico americano de organizar os testes para que os próprios corredores possam controlar a presença ou o desaparecimento das substâncias dopantes que utilizam - permitindo-lhes assim decidirem-se ou recusarem-se a participar em provas com controle de doping. Antes dos Jogos de Seul, Ben Johnson tinha conseguido escapar aos controles durante as competições pré-olímpicas no Canadá, e só aceitara participar em encontros na Europa na condição de não ser submetido a esses controles. Os seus rendimentos estavam, nessa altura, avaliados em vários milhões de dólares por ano.
A lista das substâncias dopantes, proibidas, cresce de dia para dia. Os anabolizantes são utilizados para fazerem crescer os músculos. As hormonas, como a testoterona, permitem acrescer a combatividade sem aumento de peso. Tudo isto tem por vezes consequências dramáticas. Em 1987, Brigit Dressel, uma atleta alemã especialista no lançamento do peso, sentiu uma dor lancinante nos rins; transportada de urgência para o hospital de Mainz, fizeram-lhe inúmeras transfusões de sangue, que não conseguiram salvá-la. Morreu em poucas horas, aos vinte e seis anos, vítima de uma intoxicação grave. Há dois anos que ingeria uma centena de produtos dopantes, na esperança de obter uma medalha nos Jogos Olímpicos.
O doping é um expediente eficaz, mas perigoso. Os esteróides incham os músculos, mas os tendões, menos resistentes, cedem; nas mulheres, provocam uma masculinização que se traduz no desaparecimento da menstruação e da fecundidade. Algumas nadadoras tornaram-se hermafroditas. Nos homens, as hormonas conduzem à impotência e ao aparecimento de cancros da próstata. A longo prazo, os rins e o fígado não conseguem suportar a intoxicação. O Dr' Prokop, do Instituto Austríaco de Medicina Desportiva, calcula que, desde 1945, tenham morrido setenta atletas ocidentais de sequelas de doping.
Há substâncias dopantes mais difícieis de detectar, tais como as hormonas naturais, que existem já no nosso organismo. É com elas que são tratadas as ginastas dotadas, em certos países de Leste; impedem-nas de crescer, desenvolvendo-lhes simultaneamente a musculatura, por meio de hormonas masculinas que soldam prematuramente as suas cartilagens, ou injectando-lhes substâncias que bloqueiam o efeito da hormona do crescimento.
Outros processos de doping escapam a toda e qualquer análise, como aquele que consiste em enviar o desportista para locais de grande altitude, para aumentar a taxa de hemoglobina, encarregada de transportar o oxigénio para os músculos. Ou a transfusão no atleta do seu próprio sangue, oxigenado ao máximo, antes da prova. Os Soviéticos utilizam também a estimulação eléctrica dos músculos, que aumenta a força dos lutadores ou dos lançadores de peso.
Existirão outros métodos para produzir supercampeões? Imaginou-se cruzar entre si atletas masculinos e femininos de alto nível. Teoricamente, isso aproxima-se do que se faz, com Êxito, em matéria de criação animal. Mas o resultado é tão pouco seguro que nunca nenhum treinador tentou a experiência. Os cavalos de corrida não constituem um bom exemplo, pois há um século que se cruzam entre si sem que os resultados nos campos de corridas tenham melhorado consideravelmente.
O doping já entrou a tal ponto nos hábitos do desporto de competição, que alguns perguntam se não seria conveniente legalizá-lo, admitir a sua necessidade. Alguns médicos afirmam que as substâncias dopantes não são perigosas, se forem administradas em casos bem definidos e sob uma vigilância médica atenta. Para estes clínicos, só deveria falar-se no doping se o produto utilizado fosse realmente nocivo para a saúde do atleta. Os competidores de alto nível, dizem eles, são profissionais cuja função é bater recordes, logo, é preciso dar-lhes meios para isso.
Claro que esta posição é defendida pelos desportistas, pois quase todos eles se dopam, numa altura ou noutra. Mas é combatida pela maior parte do corpo médico, que receia que isto encorage todos os atletas a entregarem-se a um doping «selvagem», mal controlado, que produziria resultados catastróficos. Esta prática contribui, além disso, para reforçar a imagem do desporto como representando a glória de uma nação, e as derrotas como catástrofes nacionais. Fazer dos desportistas heróis apresentados à admiração chauvinista das multidões não corresponde ao espírito do desporto, em que o vencido nunca deve ser desprezado. Paralelamente, as competições desportivas tornaram-se um gigantesco negócio financeiro, no qual os atletas representam simultaneamente o papel de vedetas e de atracções; pedem cachets cada vez mais elevados e, em contrapartida, pedem-lhes que batam constantemente mais recordes. Trata-se de uma espiral que poderá produzir resultados catastróficos, e não uma transformação benéfica para a espécie humana.
MANIPULAR O ESPÍRITO
Todo o médico dispõe de medicamentos capazes de modificar a personalidade de qualquer um de nós. Serve-se deles para corrigir perturbações e para tratar doenças mentais. Poderiam estas drogas ser utilizadas para mudar radicalmente a forma de agir e de pensar de populações inteiras? Trata-se de um tema habitual nos romances de ficção científica, baseado numa realidade inegável, pois as armas da psiquiatria são muitas e temíveis, e nunca deveremos esquecer os casos de desvio do seu uso.
O governo soviético acaba de anunciar a sua intenção de pôr fim a uma prática que dura há dezenas de anos: o internamento dos opositores ao regime em asilos psiquiátricos. Este escândalo médico desenvolveu-se perante a indiferença da comunidade internacional. No entanto, alguns médicos tomaram consciência dele e, em 1983, a União Soviética preferiu abandonar a Associação Mundial de Psiquiatria, antes de vir a ser publicamente excluída dela. Mas ninguém sabe quantos dissidentes foram internados nesses hospitais, que dependiam unicamente do Ministério do Interior soviético. Ninguém sabe se ainda lá continuam encerrados alguns.
Vários exemplos mostraram, aliás, que ninguém está livre da utilização escandalosa de uma prática médica. Nos anos 60, um cirurgião espanhol, José Delgado, tornou-se mundialmente célebre por experiências tão espectaculares quanto preocupantes. Delgado modificava, à distância, o comportamento de animais e de homens, actuando via rádio sobre eléctrodos previamente implantados no seu cérebro. Difundiu em todo o mundo um filme espectacular que o mostrava imóvel no meio de uma arena, arremetido por um touro furioso. Com um simples gesto, dava então uma ordem via rádio que neutralizava instantaneamente a agressividade no cérebro do animal.
Incitado pelos seus êxitos, José Delgado não hesitou em aplicar a mesma técnica a pacientes humanos, apesar dos protestos veementes de alguns dos seus confrades. «A inviolabilidade do cérebro humano não passa de um conceito social», dizia ele. Alguns indivíduos conservaram estes eléctrodos durante dezoito meses; as mulheres escondiam por baixo dos chapéus as monstruosas bobinas que lhes saíam do crânio. Delgado e os seus alunos tentaram acalmar assim doentes violentos ou perigosos. Implantando um pouco ao acaso os seus eléctrodos, atingiram aquilo a que chamaram centros do prazer. Os ratos e os macacos sentiram um prazer tal que os fazia carregar até ao esgotamento na alavanca que comandava os estímulos. Alguns cirurgiões americanos aplicaram essa técnica em homens, suscitando neles prazeres próximos do orgasmo.
Hoje estes métodos preocupantes deixam-nos perplexos, mas foram de facto postos em prática, não há assim tanto tempo, por médicos e cirurgiões. O que é que teria acontecido se um deles se tivesse deixado embalar e os tivesse aplicado a algumas dezenas de crianças, dirigindo-as em seguida a seu bel-prazer?
Outros cirurgiões procuraram modificar o comportamento de seres humanos cortando-lhes partes do cérebro. Esta técnica de psicocirurgia valeu o Prémio Nobel da Medicina ao seu inventor, Egas Moniz. Hoje está praticamente abandonada, mas calcula-se em cerca de cinquenta mil o número de indivíduos que foram assim mutilados para acalmar a sua neurose ou agitação. A intervenção, ainda hoje chamada lobotomia, consiste em seccionar certas fibras nervosas na zona onde se situariam as tensões eventualmente causadoras de perturbações mentais, mas onde se situam, também as funções superiores do homem, a consciência e as decisões que relevam do livre arbítrio.
Foram precisas dezenas de anos, e dezenas de milhares de vítimas, para que se concluísse que esta prática não possuía qualquer fundamento científico, nem eficácia real. Os lobotomizados eram acalmados, é um facto, mas tornavam-se sub-homens, sem capacidade de julgar, sem emoções, reduzidos a um estado puramente vegetativo. Foram assim tratados alguns soldados americanos, durante a última guerra, para apaziguar as suas angústias e traumatismos psicológicos. Uma variante desta operação consiste em cortar uma outra parte do cérebro, a amígdala, que estaria ligada à agressividade. Especialista da agressividade, o neurologista francês Pierre Karli denuncia esta prática e demonstra a sua inutilidade. Conta ter ouvido o cirurgião japonês Narabayashi apresentar os resultados da sua aplicação, em crianças agitadas, que se tornaram obedientes; foi interrompido por um colega que lhe perguntou se, para a criança, o importante seria tornar-se obediente. O cirurgião japonês respondeu que os seus clientes, os pais, estavam satisfeitos com os resultados. Depois, após ter reflectido, acrescentou que as mães dos seus jovens operados vinham ter com ele às escondidas, para lhe dizerem: «Ah, senhor doutor, se pudesse voltar a pô-lo como era dantes!» Estas mães sofriam com a indiferença afectiva que a criança operada lhes manifestava.
Por fim reconheceu-se que estas intervenções provocavam efeitos secundários graves, sem produzirem resultados satisfatórios. Compreendeu-se sobretudo que se baseavam numa ideia falsa, a de que existem, no cérebro, centros que correspondem a comportamentos determinados. Além disso apareceram drogas que produzem resultados mais eficazes contra a agressividade e a violência de certos indivíduos psiquicamente perturbados.
No entanto, esta prática ainda não foi completamente abandonada. Ainda não há muitos anos, alguns cirurgiões americanos tentaram aplicá-la a doentes epilépticos. No Peru, foi defendida para tentar curar toxicómanos. Na Universidade de Göttingen, mutilaram-se dessa forma alguns alcoólicos. Certos indivíduos considerados sexualmente perversos foram ameaçados com a sua aplicação, e alguns médicos recomendaram-na para tornar mais sociáveis os jovens que participavam em manifestações violentas.
A pílula da felicidade
Em 1930, um jovem psiquiatra austríaco, Manfred Sakel, deu por engano doses excessivas de insulina a um diabético, além disso drogado e sujeito a perturbações mentais. Verificou, com espanto, que essas perturbações melhoravam rapidamente. Repetiu então a experiência com outros doentes, com o mesmo resultado; pela primeira vez, um remédio biológico parecia ser útil para tratar uma perturbação mental.
Foi assim que nasceu a psicofarmacologia, que tenta tratar as desordens psíquicas através de substâncias químicas, os psicotrópicos. Existem hoje centenas deles, comsumidos aos milhares de toneladas. A sua difusão tem enchido os cofres dos laboratórios farmacêuticos, mas transformou a vida dos doentes mentais.
Estas substâncias poderiam conhecer uma nova revolução, com os progressos feitos actualmente na compreensão da forma como se operam as alterações químicas que estão na base do funcionamento do cérebro. Estas modificações químicas efectuam-se por acção de produtos a que se dá o nome de neurotransmissores. Segundo se conta, o primeiro foi sonhado pelo biólogo austríaco Otto Loewy, quando dormia em Graz. Saltou da cama, com medo de se esquecer, e correu para o seu laboratório, onde pôs a bater um coração de rã isolado numa solução nutritiva, que escorria para outro coração isolado. Quando estimulou o nervo vago, fazendo diminuir o ritmo do primeiro coração, verificou que os batimentos do segundo também diminuíam. A sua ideia era boa: uma substância produzida por acção do nervo era transportada pelo fluido, de um coração para o outro. Em 1930 isolou-se essa substância, a acetilcolina. Desde então, foram descobertos mais de cinquenta neurotransmissores: serotonina, histamina, dopamina, encefalinas. Sintetizadas naturalmente nas células nervosas, estas substâncias são produzidas assim que o nervo entra em actividade, actuando então sobre os receptores das células nervosas que se encontram em relação com o nervo, como uma chave que activa uma fechadura.
Quando se conhecer melhor a forma como estas substâncias agem e a sua relação com as grandes funções do cérebro, talvez se torne possível utilizá-las para activar ou enfraquecer essas funções. Poderia assim intensificar-se a memória, a concentração e a imaginação, não sendo de excluir o aparecimento de uma forma de doping cerebral que exigiria que os jogadores de xadrez ou os laureados de prémios científicos fossem submetidos a análises - tal como acontece hoje com os desportistas. Este doping poderia generalizar-se e ser aplicado a toda a gente, a menos que fosse reservado para aqueles que dele tivessem absoluta necessidade, como os astronautas, os pilotos de avião, os mergulhadores submarinos e os decisores políticos em épocas de crise. Mas ainda não se chegou a esse ponto; a indústria farmacêutica segue atentamente os trabalhos de investigação sobre os neurotransmissores e os receptores, mas, até agora, não existe qualquer projecto para a sua utilização terapêutica.
Será desejável que apareça uma pílula da felicidade, do equilíbrio perfeito, por muitos exigida como a solução para os problemas psicológicos dos homens? É cada vez maior a pressão exercida sobre os biólogos para que descubram uma droga que provoque a euforia ou a calma, a fim de apaziguar essa doença do século que é a angústia, cada vez mais insuportável. O sofrimento psíquico existiu provavelmente desde sempre, desde os alvores da humanidade, quando o homem tinha medo que o Sol não nascesse no dia seguinte e se assustava com tudo o que não compreendia - as trovoadas, os rugidos da terra, as chamas do céu. Mas o homem moderno deu a esta angústia arcaica uma coloração médica, racional, que nos leva a exigir a sua supressão por meio de fármacos.
Infelizmente, o remédio ideal contra a ansiedade não existe. Todos os que nos propõem têm efeitos secundários incómodos, e nenhum é cem por cento eficaz. E mais vale que assim seja, pois a ansiedade é necessária à vida. Foi ela que permitiu a sobrevivência da espécie humana, assegurando um limiar de vigilância que evitou que o homem pré-histórico se deixasse surpreender pelos seus inimigos. A ansiedade é essencial para a criação, para a invenção, para a imaginação; todos os inovadores são ansiosos, qualquer que seja o seu domínio de actividade, das artes às ciências. A ansiedade ajuda-nos, hoje ainda, a ultrapassar muitos dos problemas da vida quotidiana, preparando-nos instintivamente para responder a toda e qualquer eventualidade. Ao nível das células, a ansiedade corresponde provavelmente a um estado de excitação indissociável de um funcionamento normal, de uma disponibilidade indispensável. Face a esta angústia, subitamente transformada num sinal de alarme ou de defesa, talvez fosse a sociedade, mais do que o homem, que deveria ser submetida a tratamento, para que se tornasse mais harmoniosa, mais colorida, mais acolhedora para aqueles que sofrem, e mais excitante para viver.
A lavagem ao cérebro
Será possível transformar o cérebro de um homem, modificar a sua maneira de pensar, alterar totalmente a sua personalidade? Hoje sabe-se que sim. Os polícias e os agentes secretos conhecem bem as técnicas de lavagem ao cérebro, que destroem psicologicamente um indivíduo - suprimindo as suas capacidades de discernimento e de espírito crítico - e o levam a confessar tudo e mais alguma coisa, renegando a palavra dada, as suas crenças, as suas ideias, denunciando os próprios amigos.
Outrora, esta destruição da personalidade fazia-se com a ajuda do álcool ou do ópio. Hoje existem drogas mais poderosas, como os barbitúricos de pentotal, mas nem sempre se recorre a elas. Ao interrogatório policial, fatigante e repetitivo - efectuado sob uma luz muito intensa e durante o qual a vítima é impedida de dormir -, veio acrescentar-se um conjunto de métodos mais sofisticados, que os grandes processos comunistas do pós-guerra tornaram públicos. O Ocidente, espantado, ouviu homens conhecidos pela sua fé e pela sua coragem renegarem as suas convicções e declararem-se publicamente culpados. Mais tarde, durante as guerras da Indochina e da Coreia, assistiu-se a confissões públicas do mesmo tipo por parte de soldados americanos.
Há testemunhos precisos que nos permitem saber como é que se desenrolava essa lavagem ao cérebro. O suspeito começava por ser confrontado com um auto de acusação vago, no qual a evidência da sua culpabilidade não era claramente indicada. A seguir era encerrado, sozinho e mal alimentado, até atingir um estado de ansiedade e de cansaço tais que o deixavam desnorteado e vulnerável. Passava-se então à segunda fase: a sua cela era bruscamente iluminada, a qualquer hora do dia ou da noite. Era despertado por intermináveis interrogatórios desprovidos de sentido, humilhado, por vezes, insultado. Tinha de permanecer de pé horas a fio, submetido a temperaturas extremas de frio e de calor. O inquiridor ora se mostrava afável, ora cruel. Alguns meses deste tratamento põem de rastos mesmo os mais resistentes.
Estes métodos são facilmente aplicáveis, em qualquer país. Floresceram na União Soviética de Estaline, na China de Mao e noutros países. Actualmente, há pais que acusam certas seitas de recorrerem a eles para endoutrinarem os seus filhos.
Entre 1950 e 1955, a CIA gastou dezenas de milhões de dólares para tentar compreender cientificamente a lavagem ao cérebro, a fim de a aperfeiçoar. Foram assim drogadas à força dezenas de cobaias humanas, sobre as quais foram ensaiados todos os produtos conhecidos pela sua acção sobre o cérebro. Algumas destas experiências eram a tal ponto contrárias às regras mais elementares da ética médica que os serviços secretos americanos as levaram a cabo na América do Sul, com a cumplicidade de especialistas muito singulares.
Um dos mais sinistros psiquiatras implicados nestas experiências foi o Dr' Awin Cameron, que trabalhou no âmbito de uma «Sociedade para Investigação em Ecologia Humana» fundada especialmente pela CIA e instalada na Universidade Cornell. Estas revelações foram feitas num livro que provocou escândalos nos Estados Unidos, da autoria de John Marks. Este programa chegou a envolver cento e oitenta e cinco investigadores, em oitenta instituições dos Estados Unidos e do Canadá. A maior parte dos documentos relativos a estas experiências foram destruídos por ordem pessoal de Richard Helms, director da CIA, mas ficaram os suficientes para alimentarem vários inquéritos; um deles permitiu, ao fim de um processo de oito anos, que nove canadianos que tinham servido de cobaias recebessem do governo americano seis milhões de dólares de indemnizações.
O Dr' Cameron empenhou-se pessoalmente em «destruturar» - como ele próprio dizia - o cérebro de dezenas de doentes enviados pelas famílias para estabelecimentos psiquiátricos, para tratamento de perturbações menores. Levava-os a esquecerem o passado, por meio de sessões de electrochoques e de tratamentos químicos, para tentar impor-lhes novos esquemas de comportamento e de pensamento. Fazia-os ouvir quotidianamente uma gravação, durante dezasseis horas a fio; os altifalantes estavam colocados por baixo das almofadas dos infelizes, mergulhados num sono hipnótico ou medicamentoso. No fim de cada mensagem aplicavam-lhes uma descarga eléctrica nas pernas e, com o intuito de bloquear as suas percepções, administravam-lhes drogas. Este regime prolongava-se por várias semanas. Os colegas do Dr' Cameron acabaram por achar estes tratamentos muito estranhos, mas o médico gozava de poderosos apoios políticos e de importantes dotações financeiras, que lhe permitiram passar à fase seguinte, àquilo a que ele chamava as suas «experiências-limite». Estas consistiam em submeter as suas cobaias a um isolamento sensorial total, com os olhos vendados e os ouvidos tapados, num cubículo minúsculo, durante trinta e cinco dias.
Conhece-se pelo menos uma vítima destes tratamentos. Frank Olson, um funcionário administrativo do Exército americano, atirou-se da janela do seu hotel após lhe terem administrado, sem o seu cnhecimento, fortes doses de LSD.
Ignora-se se outros trabalhos semelhantes foram levados a cabo, nessa época, pela CIA. A destruição dos arquivos e as reticências dos sobreviventes impedem os investigadores de irem mais longe. O que é evidente é que isso não serviu para nada. As técnicas de lavagem ao cérebro são hoje bem conhecidas, bem como os seus limites; nenhuma delas é cem por cento eficaz, e não é possível esvaziar completamente o cérebro de um homem para colocar nele novas formas de pensar e de agir.
Pode-se, quando muito, em certos casos, reforçar ou diminuir tendências anormais, defeitos de comportamento. Nos anos 70, o psicólogo americano B' F' Skinner conheceu a sua hora de glória ao aplicar aquilo a que chamava a «psicologia comportamental». Utilizando o princípio do reflexo condicionado - um procedimento inaugurado por Pavlov para fazer salivar um cão ao som de uma campainha, prévia e frequentemente associado à chegada da comida -, Skinner tentou reeducar alcoólicos e drogados, recompensando os indivíduos que se esforçavam por agir contra os seus hábitos. Sonhava ir mais longe, conseguir suprimir a agressividade e as guerras, esquecendo-se que os conflitos raramente são provocados apenas pela vontade agressiva dos homens.
Os discípulos de Skinner ainda hoje continuam a utilizar os seus métodos, associando por vezes - o que ele reprovava - o pau à cenoura, castigando com choques eléctricos os sujeitos que se recusam a agir de acordo com os seus desejos. Os resultados destes métodos são bastante discutíveis, e alguns psicólogos consideram-nos de um simplismo confrangedor, quando comparados com os comportamentos complexos que pretendem corrigir. A terapêutica comportalista assemelha-se ao adestramento dos animais de circo, recompensados em público quando conseguem fazer o que o domador lhes pede, e castigados nos bastidores. Aplicar este método aos homens, é considerar que eles não passam de animais.
A inquietante demonstração do professor Milgram
Algumas observações e experiências levadas a cabo por diversos psicólogos demonstram que existem métodos ainda mais simples de indução do comportamento. O americano Stanley Milgram apresentou uma inquietante prova disso, que repetiu centenas de vezes. Consiste em recrutar, através de pequenos anúncios, voluntários que aceitem participar em experiências de psicologia pretensamente destinadas a estudar a memória e a aquisição de conhecimentos. Cada indivíduo é recebido por um homem que se apresenta como um importante professor, encarregado de um programa universitário, e que explica que a experiência consiste em verificar como é que um estudante fixa certo número de palavras. Cada erro, diz ele, deve ser sancionado por uma descarga eléctrica.
É aqui que começa a excepcional observação de Milgram. Os estudantes eram, de facto, actores que simulavam as dores provocadas pelas descargas eléctricas. A observação destinava-se a avaliar até onde é que os indivíduos podiam ir, encorajados por um «professor» a aplicar o teste até ao fim. Aos cento e cinquenta volts, o estudante-actor suplicava que parassem a experiência, mas viu-se que eram muito poucos os indivíduos que obedeciam ao seu pedido, pondo fim ao sofrimento do estudante. Entre empregados, quadros e desempregados, 85 por cento dos indivíduos, em centenas, eram capazes de levar o castigo até à descarga máxima de quatrocentos e cinquenta volts, todavia claramente indicada como apresentando riscos graves!
Que explicação encontrar para este comportamento? Tratar-se-á da libertação de instintos sádicos? Stanley Milgram considera que os indivíduos que observou agiram mais por obediência à vontade daquele que consideravam como uma autoridade, que de certa forma os livrava das suas responsabilidades. Demonstravam uma total submissão à sua autoridade. Trata-se de algo semelhante, diz o psicólogo americano, à atitude dos soldados em tempo de guerra, dos carrascos, dos torcionários nazis. Seria Eichmann, que administrou o programa de deportação dos judeus, algo mais do que um burocrata zeloso, que obedecia sem complexos à autoridade a que tinha jurado total submissão?
É uma questão grave, pois isso significaria que não é necessário ser corrupto para servir um sistema pernicioso. O piloto de um bombardeiro não tem a impressão de ser um assassino ao deixar cair os seus engenhos de morte sobre crianças que não vê, que não conhece, pois obedece a ordens, cumpre o seu dever, tal como o carrasco que abate o machado sobre o condenado, ou o soldado que elimina o adversário que lhe apontam.
A obediência à autoridade é pois um terrível meio de manipular os homens. Isso é bem visível no fanatismo religioso ou no comportamento por vezes discutível dos polícias zelosos. O exemplo nazi é atroz pelas suas dimensões, mas não é único na história da humanidade, e nada nos garante que não possa vir a repetir-se, pois os Alemães que, a partir de 1933, aceitaram a violação colectiva das consciências a que Hitler os submeteu, não eram diferentes, nem na natureza nem na psicologia, dos Alemães de hoje ou de qualquer outro grupo, europeu ou não. Possuíam os mesmos genes, os mesmos hábitos de pensamento e de vida, a mesma cultura e, no entanto, aceitaram a ditadura e todos os seus excessos. Claro que isso é mais fácil de realizar num regime autoritário, onde o livre arbítrio é severamente reprimido e o pensamento estritatamente regulamentado. Mas as formas aparentemente anódinas de acção sobre o nosso comportamento, como os slogans políticos ou a publicidade, serão de facto tão inocentes como geralmente se pensa?
Ioga de ondas alfa
Algumas lendas ou textos religiosos transmitem-nos do fundo dos tempos histórias espantosas de homens e mulheres que souberam comandar o seu corpo apenas através da vontade, que adquiriram o poder fascinante de vencer o medo, a dor física, o cansaço, apenas através da força do espírito.
Alguns sábios orientais são capazes, graças a técnicas de ioga, de controlar alguns órgãos internos. O hatha-ioga permite dominar o fôlego por meio de uma respiração capaz de regular o ritmo do coração; é possível abrandá-lo, e até mesmo pará-lo, durante períodos curtos, mas de forma espectacular. Há indivíduos que conseguem reduzir de tal modo o seu consumo de oxigénio, que permanecem durante horas numa jaula de vidro hermeticamente fechada; provavelmente resistem à asfixia graças a esse controle da respiração e a uma relaxação notável da musculatura.
Verificou-se que, quando se encontram mergulhados em meditação profunda, os yogis se alheiam do mundo exterior, tornando-se insensíveis ao ruído, aos golpes e às queimaduras. O seu cérebro parece desinteressar-se do que acontece ao seu corpo. Os electroencefalogramas mostram que não estão adormecidos, encontram-se num estado especial, difícil de definir pelas leis fisiológicas clássicas, um estado que só se adquire à custa de longos e pacientes treinos, que começam muitas vezes na infância.
Poderiam estas técnicas do ioga oriental permitir-nos utilizar faculdades mentais que possuímos em estado latente, mas que somos incapazes de desenvolver naturalmente? Alguns psicólogos vêem nelas uma possibilidade de exploração dessa parte escondida do nosso psiquismo, um meio promissor para adqurir novos poderes. Infelizmente, até agora, existem muito poucos trabalhos científícos sérios que se tenham esforçado por compreender a que é que corresponde realmente o inegável poder de certos yogis.
O que não impede que floresçam inúmeros sucedâneos dos métodos religiosos orientais. Alguns pseudo-especialistas propõem técnicas duvidosas que poriam ao nosso dispor sensações originais, meios seguros de escapar, através de uma meditação fácil de adquirir, ao stress da vida quotidiana. A maior parte dos psicólogos mostram-se reservados em relação a estes métodos, que, tal como as práticas religiosas orientais, que pretendem imitar, não podem ser aplicadas com a mesma felicidade a toda a gente. Embora alguns encontrem nelas o estado de graça, outros podem entrar em desequilíbrio, viver sucessivos estados de exaltação de depressão, e conhecer graves perturbações psíquicas.
Algumas destas práticas relevam mesmo da mais pura fantasia. O neurologista Gastaud denuncia o culto das ondas «alfa» e os processos destinados a suscitar no cérebro essas ondas supostamente benéficas. Este ritmo alfa existe de facto nas ondas eléctricas do cérebro, mas não corresponde a qualquer fenómeno específico de concentração mental; por conseguinte, tentar aumentar a sua frequência não pode ter qualquer utilidade. É absurdo acreditar que algumas horas de actividade assim dirigida poderiam permitir adquirir aquilo que os sábios orientais levam dezenas de anos a aprender.
O mesmo acontece com a hipnose, por vezes apresentada como um meio de penetrar numa modalidade do psiquismo que não é possível ser vivida normalmente. Vêem-se periodicamente indivíduos tentarem adquirir assim qualidades mentais especiais. A equipa britânica de remo que concorreu aos Jogos Olímpicos de Seul, em 1988, foi submetida a estágios de hipnose, durante os quais se tentou sugerir aos remadores que fossem mais combativos, imprimindo no seu cérebro imagens de feras aos saltos. Mas algo falhou, pois nenhuma medalha veio recompensar esse treino original. Com efeito não se sabe o que é a hipnose, estado intermédio entre a vigília e o sono, durante o qual é de facto possível sugerir mentalmente certas coisas a indivíduos receptivos. É utilizada para o tratamento de certas perturbações em que o psíquico tem tanta importância como o orgânico. Mas os trabalhos científicos sobre a hipnose, apesar de insuficientes, não permitem que se continue a encará-la como um método capaz de fazer funcionar o espírito do homem de forma diferente, nem de pôr ao seu dispor poderes inéditos.
Deveríamos aprender a planear os sonhos
O sono é outro mundo misterioso, onde alguns vêem a possibilidade de uma nova forma de nos comportarmos. Seria possível reduzir a duração do sono, para que viéssemos a dispor, a curto prazo, de horas suplementares de lazer? Poderia o homem aventurar-se à conquista do estado de vigília?, perguntou o neurologista Michel Jouvet, especialista mundialmente conhecido do sono. De momento, é necessário utilizar drogas para reduzir a duração do sono até quatro horas por noite, sem o aparecimento de perturbações e sem afectar a vigilância necessária no dia seguinte pela manhã. Os britânicos experimentaram essas drogas durante a Guerra das Malvinas, onde a actividade dos soldados tinha de durar imperativamente cerca de vinte horas. O exército francês possui uma substância experimentada com resultados notáveis em corpos de comandos, mas os responsáveis pelos serviços de investigação militar recusam-se a desvendar a sua composição e não encaram a possibilidade de a comercializarem, para evitar os riscos de sua utilização abusiva, por exemplo por parte de condutores de camiões.
Michel Jouvet considera que o homem de amanhã poderia viver normalmente dormindo apenas dois ciclos de noventa minutos cada um, isto é, três horas. No entanto, actualmente são raros os indivíduos capazes de se contentarem com tão pouco. Salvador Dali dizia que descansava o suficiente durante o curto instante em que adormecia e largava a colher que tinha na mão, antes de ela o acordar ao cair sobre um prato de estanho! Conhece-se o caso, raríssimo, de uma enfermeira britânica de setenta anos que só dorme uma hora e passa noites felizes a escrever e a pintar. Mas uma sondagem feita a um milhão de americanos mostra que só um em cada mil dorme quatro horas por noite, e que a maioria tem necessidade de oito a nove horas de sono.
Contudo, alguns homens aprendem a regular o sono. Os navagadores solitários só dormem quinze minutos de quatro em quatro horas, tal como os alpinistas por ocasião de raids que têm de realizar rapidamente. Poderia conseguir-se o mesmo com treino? Muitos especialistas acreditam que sim, mas duvidam de que toda a gente fosse capaz de resistir, de se adaptar a este regime.
Quanto tempo é que se pode aguentar sem dormir? Geralmente considera-se que é muito difícil ultrapassar o cabo de seis dias. Mas um dos maiores especialistas mundiais do sono, o Dr' Dement, seguiu pessoalmente a proeza de um jovem americano de dezassete anos, Randy Gardner, que resistiu a onze noites sem dormir. Trata-se de uma ordália difícil de imitar, pois à quarta noite surgem inevitavelmente curtos períodos de microssono, seguidos de perturbações dos sentidos, de alucinações, de delírios, de dores nos membros que geralmente levam a abandonar a experiencia.
Durante muito tempo acreditou-se que o essencial, no sono, era o período durante o qual se sonha. Pensava-se mesmo que os sonhos eram mais importantes do que o sono, que era mais difícil passar sem eles. Acreditava-se também que os sonhos só ocorriam durante um período bem específico do sono a que se chama a fase «paradoxal», pois a actividade eléctrica do cérebro é então próxima da do estado de vigília, ainda que o sono seja profundo. Esta fase paradoxal constitui 20 por cento do tempo do sono, em quatro ou cinco períodos de cerca de quinze a vinte minutos cada um.
Desde então, verificou-se que se pode sonhar fora destes períodos. A que é que corresponde então esse sono paradoxal? É o sono do embrião, do recém-nascido e da criança pequena - corresponde, portanto, à maturação rápida do cérebro. Depois, ignora-se para que serve realmente o sono. É certo que o organismo descansa durante a noite, mas muitas das nossas funções continuam, tais como a circulação, a respiração e a digestão; a vida dos tecidos e das células também pouco ou nada diminui. Os nossos músculos estão parcialmente em repouso, pelo menos aqueles que agem sob o efeito da vontade. Mas o cérebro prossegue uma parte da sua actividade, o que é testemunhado pelos registos eléctricos durante o sono - diferentes, é certo, dos do estado de vigília, mas que traduzem inegavelmente a vida do cérebro.
Não há dúvida de que o sono representa uma função importante para todos os seres vivos, senão como é que se explicaria que se tenha mantido durante a evolução de todas as espécies, apesar de oferecer os animais, indefesos aos seus inimigos? Qual é pois a sua função? Para alguns, o sono representa uma possibilidade de fuga, de esquecermos os perigos e os conflitos da vida acordada. Para outros, o sono e os sonhos fornecem-nos pelo contrário um meio de nos prepararmos para o indispensável acordar, para o confronto inevitável com a realidade.
Alguns biólogos vão mais longe e sugerem que o sono e os sonhos seriam uma forma de estabelecermos ligações com o nosso passado biológico mais antigo, com a memória da espécie, com a hereditariedade profunda. Freud teria pretendido reconstituir, através do estudo dos sonhos, as etapas pré-históricas do homem, a herança arcaica da humanidade.
Michel Jouvet pensa que o sono, e nomeadamente a sua fase paradoxal, nos fornece a oportunidade de ligarmos as informações adquiridas durante o dia com as que recebemos da nossa hereditariedade, e que se encontram profundamente inscritas no nosso património. Considera que o sono serve para programar os processos indispensáveis à manutenção dessas funções hereditárias, como por exemplo os comportamentos ditados pelo instinto. Mas nenhuma experiência permite verificar esta hipótese, e o mesmo se passa de resto com as outras.
Outros acreditam que o sono nos serve para classificarmos as nossas recordações, para pormos quotidianamente em ordem a nossa memória, e daí a ideia de se utilizar o sono para aprender. Continuam a vender-se aparelhos que debitam lições sob a almofada enquanto dormimos, ainda que os especialistas sejam unânimes em afirmar que nada se aprende assim. Pelo contrário, dormir depois de termos aprendido ajuda-nos a recordar-nos melhor, e as lições da noite são mais facilmente fixadas. O sono facilita também a aprendizagem, como se pode verificar nos animais.
Será verdade que o sono facilita a criatividade e o espírito de invenção? Em todas as obras especializadas se repetem os mesmos exemplos, impossíveis de verificar: o químico alemão August Kekulé von Stradonitz teria descoberto em sonhos a estrutura química do benzeno, ao ver seis serpentes a morderem a própria cauda; do mesmo modo Giuseppe Tartini teria ouvido os seus célebres «trinados do diabo» (1) enquanto dormia. O escritor R' L' Stevenson gabava-se de ter encontrado os temas de todos os seus romances na cama; contava que seguia, noite após noite, os mesmos temas nos seus sonhos, vivendo assim duas vidas, uma diurna e a outra nocturna de que tentou libertar-se escrevendo O Médico e o Monstro (Doctor Jekyll and Mister Hyde), que conta a história de um homem com dupla personalidade.
Na realidade, o espaço do sonho ainda está por conquistar, e essa conquista, é um dos desafios que se apresentam ao homem de amanhã. Torna-se urgente aprender a sonhar, diz a psiquiatra Jean Picat, que vê nisso a possibilidade de fazer trabalhar mais harmoniosamente o cérebro humano. Deveríamos aprender a planear os nossos sonhos, antes de adormecermos; para que nos ajudassem a integrar melhor as situações de conflito que nos agridem durante o dia. Sonhar com a solução de um problema talvez não nos permita resolvê-lo completamente, mas poderia ajudar-nos a tomar consciência, ao acordarmos, da existência de uma solução.
Os Tensiares, um povo da Malásia, ensinam as crianças a contarem sistematicamente os seus sonhos todas as manhãs, mostrando-lhes como controlar os seus elementos assustadores. Organizar os nossos sonhos poderia ser, da mesma maneira, um processo de tornarmos menos assustadores os problemas psicológicos e materiais da nossa vida diurna.
Os relógios internos
O sono é um dos ritmos essenciais do homem, mas existem muitos outros, cuja importância e complexidade foi recentemente demonstrada pela cronobiologia. Todos os animais estão sujeitos a estes ritmos: a aranha tece a sua teia da meia-noite às quatro da manhã; os mexilhões deitam os «corninhos» de fora, na cozinha, à hora da maré; as flores abrem e fecham a horas certas.
Todos os organismos possuem vários relógios internos, que desencadeiam ritmos tão diferentes quanto as vibrações ao centésimo de segundo das células nervosas ou o ciclo mentrual da mulher. O homem vive a um ritmo de vinte e quatro ou vinte e cinco horas, decalcado da rotação da Terra em torno do Sol, dividindo o seu tempo entre a vigília e o sono. O tempo dos astros transforma-se assim num «tempo vivo». Todos nós nos
(1) Il Trillo del diavolo é a obra mais famosa deste violinista e compositor italiano do século XVIII. - (N' do T')
adaptamos a esta partilha do tempo em função da nossa personalidade. A actividade dos «diurnos» atinge o máximo do seu rendimento por volta das 15 horas, enquanto os «nocturnos» só chegam à plena forma cerca das 19 horas, o que põe por vezes problemas práticos, uma vez que os horários sociais nem sempre coincidem com os horários biológicos. A cronobiologia permite compreender porque é que alguns são inaptos para o trabalho nocturno, e porque é que o trabalho por turnos que obriga outros a trabalhar ora de dia, ora de noite, suscita por vezes casos dramáticos.
Os peritos em cronobiologia gostariam que o homem aprendesse a conhecer melhor os seus ritmos e a adaptar-se a eles, para viver de forma mais harmoniosa. Os médicos sabem hoje que alguns medicamentos são mais ou menos activos segundo a hora a que são absorvidos; os remédios contra a asma devem ser tomados durante o dia, na altura em que as glândulas supra-renais - que segregam a cortisona que fará abrandar a crise - estão no domínio da sua actividade. Alain Reinberg, o pioneiro francês da cronofarmacologia, luta para que os automobilistas deixem de se pôr a caminho, nos dias de partida para férias, às três horas da manhã, pois é nessa altura que as nossas capacidades físicas e intelectuais atingem o seu nível mais baixo. É a hora propícia aos acidentes, às falhas, aos erros de cálculo. Reinberg gostaria além disso que o homem adaptasse melhor a sua actividade aos ritmos sazonais. Desde há dez mil anos - desde que inventou a agricultura - que o homem trabalha no tempo bom e descansa no Inverno, ao passo que nós fazemos ao contrário. O Inverno, que é quando somos mais vulneráveis à doença e à morte, deveria ser a estação do repouso.
OS ROBÔS PENSANTES
Ver-se-á o homem, um dia, reduzido ao estado de infra-homem, devido ao aparecimento de máquinas mais inteligentes do que ele? Sempre tivemos sonhos de demiurgo: depois de termos imaginado deuses, queremos criar robôs cada vez mais perfeitos, com a secreta esperança, nem sempre formulada, de que possam vir a concorrer connosco. Há quem pense que essas máquinas inteligentes poderiam nascer em breve, enquanto outros negam categoricamente a possibilidade do seu advento.
De que lado estará a razão? O debate é importante, pois envolve a questão de saber o que se passará após o nascimento da primeira geração de máquinas inteligentes, que poderão cair na mesma tentação que nós - a de pretenderem por seu turno criar máquinas mais inteligentes ainda. Num mundo em que isso acontecesse, o homem perderia o seu poder e tornar-se-ia joguete dos robôs pensantes. Um informático sonhou que tinha ligado todos os computadores do planeta uns aos outros e lhes tinha feito a pergunta mais difícil que lhe viera à cabeça:
- Deus existe?
- Agora, existe - respondeu a rede.
Quais seriam, ou serão, as características desta inteligência artificial? A resposta é difícil, pois não sabemos - como se viu - o que é, nem como funciona, a inteligência do homem. Sabemos todavia que, se nos comportamos de maneira inteligente, isso se deve à acumulação dos conhecimentos de todo o tipo que vamos adquirindo desde que nascemos. Ninguém é capaz de quantificar este acervo de conhecimentos, que inclui tudo aquilo que aprendemos conscientemente, mas também tudo o que impressionou inconscientemente o nosso espírito: o perfume de uma flor, a beleza de uma noite de Verão, a visão fugidia de uma cor associada a um sentimento, a sensação de uma carícia, a emoção de uma voz - mil e um elementos que nos marcaram em cada dia que passou, diferentemente interpretados consoante o temperamento de cada um de nós e envolvendo, portanto, tantos matizes quantos os seres humanos. Será possível meter tudo isto nas engrenagens e nos programas de uma máquina?
Seria preciso que essa máquina dispusesse da mesma capacidade que o nosso cérebro tem de adquirir, pela experiência e pela aprendizagem, uma personalidade feita tanto daquilo que esquecemos como do que retemos na memória. Uma personalidade que se modifica em função do que vivemos, do que sentimos, do que nos rodeia - e isto desde o nosso primeiro dia de vida. Poderá vir a existir uma máquina assim?
O homem possui, além disso, um espírito capaz de recorrer àquilo que escapa à lógica, à razão, capaz de utilizar o que pertence ao domínio do sonho, da imaginação, da loucura - ou do génio. O que excede todas as normas e escapa a toda a possibilidade de medida. A ciência descreve com precisão a luz proveniente das estrelas, mas não a que brota de um olhar, como diz Pierre Lévy.
Não existe nenhuma máquina imaginável capaz de aliar todas estas características. Mas porque é que a inteligência artificial haveria de ser uma cópia fiel da nossa? Os aviões não voam como os pássaros, e são maiores e mais velozes. Pode imaginar-se uma inteligência artificial que, funcionando de maneira diferente, seja capaz de rivalizar com a do homem em domínios precisos - como os da memória, das faculdades de raciocínio lógico ou dos processos de tomada de decisões complexas.
Já hoje existem máquinas que jogam excelentemente ao xadrez, e há quem pense que um computador pode em breve vir a ser campeão do mundo. Estas máquinas não jogam de modo nenhum como um grande mestre. O programa Belle, por exemplo, examina 160'000 posições por segundo, ou seja, 29 milhões durante os três minutos de reflexão permitidos entre cada jogada. O jogador humano calcula quando muito uma centena de posições, antes de esccolher a sua jogada. O programa Belle classifica-se, todavia, na primeira série, e são muito poucos os jogadores humanos capazes de o bater. Será o Belle inteligente? Tão inteligente quanto aqueles sistemas de tradução, baseados na comparação de dicionários, que, nos anos 50, davam da frase francesa: «L'esprit est fort, mais la chair est faible» (1) o equivalente russo: «A vodca é forte, mas a carne está podre.»
Os sistemas peritos
A inteligência artificial também não reside naquilo a que os informáticos chamam «sistemas peritos». Trata-se de computadores cuja memória constitui um banco de conhecimentos exemplares, alimentado pelo saber dos melhores peritos mundiais num dado domínio - os acidentes que podem sobreviver durante um furacão, a reparação de um motor, a utilização de químicos contra o cancro, por exemplo. O computador é dotado de um sistema de tratamento destes dados que lhe permite utilizá-los segundo uma lógica próxima da do cérebro do engenheiro no terreno ou do médico frente ao doente: a verificação, passo a passo, de hipóteses a níveis de complexidade crescente.
Estes sistemas peritos prestam serviços precisos em domínios muito variados, e a sua utilização aumenta de dia para dia. Os esforços para os aperfeiçoar vão no sentido de os dotar da capacidade de alargarem os seus conhecimentos, determinando as suas lacunas e levando-os a constituírem eles próprios as suas memórias, a partir de dados brutos armazenados nos grandes bancos automatizados de dados técnicos e científicos. Um processo que se aproxima pois do da aprendizagem humana, mas que fica ainda muito aquém dela.
O homem, com efeito, está preparado para resolver todos os problemas, reúne as possibilidades de todos os sistemas peritos imagináveis. Poderíamos nós inventar uma máquina que reagisse como o homem ao imprevisto, ao aleatório? Como conceber um autómato que respondesse a uma solicitação de modo totalmente original, em nada semelhante àquilo para que tivesse sido programado - como nós fazemos várias vezes ao longo da nossa vida? O ser vivo é uma perpétua invenção, nenhum ser se assemelha ao seu vizinho no comportamento. Como criar essa diversidade, própria do ser vivo, em máquinas inertes?
O computador de quinta geração
Os actuais computadores são sistemas dotados de uma impressionante capacidade de cálculo; alguns deles chegam a efectuar um bilião de operações por segundo. Mas isso parece insuficiente aos engenheiros, que pedem aos informáticos máquinas ainda mais rápidas. Para detectar a tempo um míssil inimigo, para compreender a evolução meteorológica, para calcular o deslizar do ar sobre a fuselagem de um avião, é preciso efectuar muito depressa biliões e biliões de operações. O mais eficaz dos computadores actuais leva demasiado tempo a tratar estes problemas, que têm de ser resolvidos em escassos segundos - por vezes, menos ainda.
(1) «O espírito é forte, mas a carne é fraca.» A tradução russa cometia além disso o contra-senso de confundir chair com viande''' - (N' do T').
Os computadores do ano 2000 serão, sem dúvida, um milhão de vezes mais rápidos do que os de hoje. Utilizarão provavelmente feixes luminosos em vez de corrente eléctrica, mas não deixarão de ser meras extrapolações da primeira máquina de calcular, pois limitar-se-ão a alinhar, a velocidades cada vez maiores, operações elementares do tipo «0/1».
O verdadeiro passo está ainda por dar, mas encontra-se actualmente em gestação. Consistirá em criar um computador, a que se chama de «quinta geração», que não se limite a calcular, mas que raciocine. Uma máquina capaz de tratar dados, símbolos, imagens, conceitos. Uma máquina cujo funcionamento estará infinitamente mais próximo do do cérebro humano, pois basear-se-á no raciocínio analógico. Estes computadores analógicos começam hoje a sair dos laboratórios, mas farão certamente progressos muito rápidos.
Poderão eles vir a competir em pé de igualdade com a nossa inteligência? Não é líquido. Disporão de meios infinitamente superiores aos dos actuais computadores, que lhes permitirão resolver mais depressa problemas mais difíceis. Mas não deixarão de ser prisioneiros da lógica que o homem puser nos seus circuitos, ao passo que nós somos capazes de utilizar outros recursos, de fazer apelo a noções que escapam a toda a lógica, de queimar etapas, de pôr em jogo a intuição, a iluminação, de deixar que se produza a chispa do génio criador. É assim que se fazem as grandes descobertas. François Jacob, que, em 1968, partilhou o Nobel de Medicina com André Lwoff e Jacques Monod, conta como teve a intuição da descoberta que lhe valeu o prémio - o deslumbramento súbito, evidente, da maneira como um gene comanda a formação de um repressor que bloqueia a expressão de outros genes - durante uma sessão de cinema. «Senti-me invadido por uma alegria intensa, um prazer selvagem, diz ele. Como se tivesse atingido um cume de onde se descobria ao longe uma imensa paisagem.» Como traduzir isto em linguagem de máquina?
Portanto, a inteligência artificial só existirá no dia em que consigamos construir máquinas capazes de raciocinar como o homem, e que saibam além disso auto-organizar-se; que possuam sistemas que lhes permitam aprender, aperfeiçoarem-se, adquirir informações variadas e numerosas - uma tarefa extremamente difícil. Mas quem poderá afirmar que isso será impossível? Algumas tentativas mostram já que se está no bom caminho, pois já existem máquinas capazes de aprender. Na Universidade de Stanford, na Califórnia, o programa Meta-Dentral descobre as regras gerais de uma técnica de análise, a espectrometria de massa, passando em revista toda uma série de resultados; está preparado para passar do particular ao geral, para extrair a lógica de um conjunto de pormenores. De modo análogo, outros computadores são capazes de redescobrir as leis da física ou da química a partir de um acervo de factos relativos à aplicação dessas leis. Para alguns informáticos, isto significa que, um dia, existirão máquinas capazes de descobrir novas leis científicas.
O computador neuronal
Um dos meios mais promissores de avançar para a inteligência artificial é o fabrico de circuitos electrónicos dispostos - tanto quanto se sabe - à maneira das células cerebrais, os neurónios. O computador neuronal - essa máquina de uma raça nova - ainda só existe em teoria, pois o seu funcionamento é simulado por outros aparelhos; mas a sua construção poderá tornar-se uma realidade dentro de poucos anos. Os seus componentes electrónicos - por analogia com os neurónios do nosso cérebro - poderão estabelecer ligações entre si, de modo a constituírem uma rede de armazenamento da informação. Os computadores actuais não procedem assim, limitam-se a armazenar os seus dados em simples memórias. Outra das suas originaliddes essenciais consiste em atingirem progressivamente a configuração de funcionamento da sua rede por meio de uma espécie de aprendizagem, modificando as suas ligações a fim de estabelecerem circuitos simultaneamente estáveis e eficazes, relacionados com aquilo que a máquina aprende e memoriza.
O computador neuronal será por conseguinte um sistema inteiramente novo, capaz de associar uma forma aprendida a outra forma não idêntica, mas dotada de características que a situam dentro da mesma família - é o que nós fazemos quando reconhecemos uma cadeira ou uma mesa, independentemente da sua forma. Por outras palavras, o computador neuronal será capaz de raciocinar por analogia.
Há já alguns exemplos que mostram que estas máquinas poderão resolver problemas que não estão ao alcance dos actuais computadores. O mais célebre é o do caixeiro-viajante: qual o trajecto mais curto para o seu giro comercial? Se tiver de visitar dez cidades, existem menos de duzentas mil possibilidades, e um computador actual pode fornecer a solução. Mas, para trinta cidades, o número de soluções possíveis é da ordem dos biliões de biliões de biliões, o que escapa à capacidade dos mais poderosos supercomputadores de hoje. Ora a simulação mostra que o computador neuronal preparado por John Hopfield, da Universidade da Califórnia, fornece a resposta - com uma margem de erro de 1 por cento - em escassas fracções de segundo.
Solução miraculosa ou suicídio?
Alguns informáticos consideram que a inteligência artificial constituirá para o homem a única hipótese razoável de sobrevivência, num mundo tecnicizado ao máximo, em que os problemas se tornarão ingeríveis pelas simples capacidades humanas. Em muitos domínios, aproximamo-nos de um estádio em que nenhum homem poderá rivalizar com as memórias dos grandes computadores, com a sua capacidade de reagirem instantaneamente em circunstâncias complexas - tais como a direcção de uma central nuclear.
Talvez não venha longe o tempo em que o homem fará figura de um ser limitado, pouco eficaz, ao lado das máquinas sofisticadas nas quais terá forçosamente de delegar uma parte do seu poder - talvez mesmo algumas tomadas de decisão capitais, como a determinação dos elementos considerados ofensivos no caso de uma crise política importante. Para alguns informáticos, como Laurent Siklossy, os computadores «inteligentes» de amanhã poderão tornar-se os verdadeiros receptáculos da cultura, libertando-nos das tarefas rotineiras e permitindo-nos desenvolver melhor as nossas capacidades intelectuais e artísticas.
A comunicação entre os homens aperfeiçoar-se-ia e talvez viesse mesmo a ser possível um diálogo proveitoso com «modelos informáticos» das grandes inteligências que existiram até hoje na Terra. Discutir, graças às futuras máquinas, com os fantasmas informáticos de Einstein, Newton, Galileu, Bach, que sonho fantástico!'''
Mas nem todos os especialistas se mostram assim tão optimistas. Outros, pelo contrário, imaginam o cenário que evocámos no princípio deste capítulo: o do aparecimento de máquinas autoprogramáveis, dotadas de certo poder de raciocínio, capazes de fabricarem por seu turno outras máquinas, mais inteligentes ainda, que ameaçariam directamente o homem, na sua integridade, na sua identidade, no seu poder. Para estes informáticos, caímos já na cilada que armámos a nós próprios quando construímos o primeiro computador - a máquina inteligente está inscrita com todas as letras na linha do progresso técnico.
Se assim for, teremos de actuar desde já, pois é muito possível que mais tarde, depois de construído o computador inteligente, não nos seja possível desligá-lo, dado que a máquina poderia considerar inadmissível ter de obedecer à vontade dos homens. A revolta dos robôs é um mito clássico das narrativas de ficção científica, mas os avanços da informática poderão perfeitamente vir a transformá-la numa realidade. Isaac Asimov bem o compreendeu, quando apontou a regra a inscrever imperativamente na programação de todo o robô aperfeiçoado - a de que ele nunca deverá prejudicar um humano. É aquilo a que os informáticos chamam a «defesa contra o efeito Hal», nome derivado do robô de 2001 - Odisseia no Espaço, que toma o poder na nave espacial e se opõe à vontade dos astronautas, incapazes de o desligarem.
Mesmo que as máquinas inteligentes de amanhã não venham a revoltar-se contra os homens, a sua simples existência transformará o destino da humanidade. A rapidez e a precisão das suas decisões poderiam entrar em conflito com as escolhas dos políticos ou dos militares. Ainda que estas máquinas nunca cheguem a possuir a inteligência humana, as suas qualidades levá-las-ão fatalmente a pisar o terreno das prerrogativas humanas. Como é que se fará a divisão das tarefas e das responsabilidades? Em caso de rivalidade, quem é que arbitrará os conflitos entre o homem e a máquina? Há quem considere estas questões como meramente teóricas, mas o certo é que nem todas elas se projectam num futuro longínquo, pois já hoje existem casos em que não é fácil a coabitação entre o homem e os robôs.
O homem e os autómatos
Os aviões modernos constituem um bom exemplo de como a cooperação entre o homem e as máquinas - cada vez mais inteligentes - pode não nos ser favorável. Tal como acontece com o nuclear, também a aviação não tolera o risco não previsto, não calculado, não dominável. Perante as prestações incessantemente melhoradas dos autómatos, o homem tem de procurar reagir melhor e mais depressa. Será capaz de o fazer, em todas as situações?
Os acidentes aéreos ainda se devem muitas vezes a erros humanos. Outras vezes são ocasionados pelos conflitos que se produzem entre os pilotos e os automatismos instalados a boordo para os ajudar a levar o avião a bom porto. O homem já se rebela contra o robô, recusando-se a ceder-lhe o poder de conduzir o aparelho. Ao aproximar-se das pistas de Istres (1) um piloto militar esqueceu-se de abrir o trem de aterragem do seu Fouga Magister e, consequentemente, o alarme sonoro foi accionado. Simultaneamente, no aeroporto, o controlador de serviço tentou avisar o piloto via rádio. «Fale mais alto, não consigo ouvi-lo: tenho uma buzina a bordo que faz uma barulheira dos diabos», respondeu o piloto. O do Airbus que se esmagou perto de Mulhouse aquando de um voo de demonstração, em Junho de 1988, tinha desligado os sistemas de segurança para efectuar uma manobra perigosa que os autómatos não teriam permitido. A equipagem do Boeing das Korean Airlines abatido pelos Soviéticos em Agosto de 1983 cometera uma série de erros, afastando-se quinhentos quilómetros da rota prevista, embora afirmasse pela rádio encontrar-se dentro das coordenadas correctas; aparentemente, fiava-se no tempo escoado e no plano de voo, alheada da deriva e das informações do quadro de bordo.
Os aviões de amanhã poderão vir a ser cada vez mais pilotados por robôs, e menos por homens. É o que já hoje acontece com o metro de Paris e de Lille, e com as naves espaciais; os vaivéns americanos abandonam a sua órbita e aterram automaticamente. O metro é também pilotado automaticamente, graças a sinais transmitidos por um cabo instalado ao longo da via, o que permite reduzir os intervalos de circulação entre as composições. O maquinista, quando se encontra presente, limita-se a abrir e fechar as portas, por razões de segurança.
A pilotagem por computadores será indispensável para o «avião
(1) Provença, Sul de França, (N' do T')
instável» que os Americanos preparam actualmente. Nenhum piloto será capaz de domar essa máquina, cuja manipulação foi comparada à de um camião lançado a toda a velocidade por uma ponte gelada. O aparelho terá o seu centro de gravidade descentrado, o que o colocará em permanente desequilíbrio, mas permitirá a realização de manobras brutais, como curvas muito fechadas. Só poderá ser pilotado por três computadores, que adaptarão constantemente as suas superfícies de deslocação, num tempo muito inferior ao dos reflexos humanos, à razão de quarenta ordens por segundo.
Nem todos os aviões de amanhã serão instáveis, mas a todos eles se porá o problema da rivalidade entre o homem e o robô. Os caças modernos têm já hoje performances de tal ordem que o piloto surge como um elemento que restringe as possibilidades da máquina. O seu corpo suporta mal as acelerações brutais, as curvas demasiado bruscas. Apesar das combinações especiais «anti-G», corre o risco de perder a consciência. Todos os pilotos conhecem o «véu negro» sobre os olhos, essa dilaceração brutal, aquando de fortes acelerações, que os impede de reagir - e isto a 2000 quilómetros por hora.
O piloto tem cada vez mais dificuldade para integrar em tempo real as informações que chegam aos instrumentos de bordo. Já não consegue dominá-las, hierarquizá-las numa visão coerente da realidade, tal é o seu número e a sua complexidade.
Tornou-se pois necessário ajudar os pilotos, instalando nos aviões computadores cada vez mais «inteligentes», capazes de gerir esses dados.
O piloto conservará pelo menos a parte essencial, a da decisão? Nalguns aparelhos de combate, as decisões têm de ser tomadas tão rapidamente que mais vale deixá-las para a máquina, mais rápida - se se quiser salvar a vida do homem. O piloto decide se quer travar combate quando o seu radar-robô lhe assinala um inimigo que é incapaz de ver; o tiro será então comandado pelo computador-robô.
Como virá a evoluir esta rivalidade entre o homem e a máquina «inteligente»? Que parte conservará o cérebro humano, confrontado com a rápida progressão da inteligência artificial? Os autómatos possuem vantagens evidentes: vêem de noite, com os seus olhos infravermelhos; descobrem o avião inimigo a centenas de quilómetros de distância, graças ao seu radar; funcionam vinte e quatro horas por dia, com qualquer aceleração, sem variações humorais, sem fadiga, sem complexos.
Todos os exércitos do mundo trabalham hoje em projectos baptizados «super-cockpits», que fornecerão ao piloto humano informações previamente seleccionadas por computador, o qual reterá apenas o essencial, concentrando as suas indicações sobre aquilo que é vital, como por exemplo as características do aparelho inimigo.
Os estados-maiores preparam além disso um copiloto electrónico que, num segundo tempo, efectuará, com base nas indicações do homem, tarefas complexas, definidas de acordo com os seus objectivos - tais como, por exemplo, seguir uma direcção dada, num tempo dado, evitando os radares inimigos. Este copiloto automático deverá raciocinar como o piloto humano e possuir uma memória complexa que integre todos os elementos da missão e todos os componentes do aparelho, mecânicos e electrónicos.
A dificuldade é evidente: quanto mais eficaz for esse autómato - ou seja, quanto mais «inteligente» -, maior será o risco de ele entrar em conflito com a inteligência do homem. De momento, os responsáveis militares afirmam que está fora de questão abdicar, delegar num robô a condução de um caça. Será pois necessário transigir, decidir sobre a melhor maneira de deixar para o homem as tarefas consideradas mais nobres, como as da estratégia, enquanto a máquina se encarregará da resolução dos problemas de tácticas. O cérebro humano é provavelmente aquilo que existe de mais fiável para fazer face ao imprevisto, e a máquina o que existe de mais eficaz para gerir o previsível.
Mas não tenhamos ilusões: o futuro trará consigo um certo apagamento do homem face aos autómatos, que se tornarão cada vez mais inteligentes. Como vimos, isto verifica-se já hoje no caso dos veículos espaciais. E é também a regra nas centrais nucleares, com todos os inconvenientes derivados de uma harmonização ainda imperfeita do par homem-máquina. O acidente de Tchernobyl, a 26 de Abril de 1986, é típico de um erro humano resultante desta cooperação defeituosa: os responsáveis deixaram embalar o reactor soviético por terem descurado a aplicação de regras de segurança que consideraram demasiado rígidas. Os automatismos levaram-nos a esquecer o risco.
As máquinas já transformaram o homem. Alguns filósofos, como Umberto Eco, consideram que o homem funciona com um «pensamento fraco» - um raciocínio do vago, do mais-ou-menos, da ambiguidade. O computador, o robô, esses, actuam no quadro de um «pensamento forte» - que não se limita a copiar o real, mas inventa novas maneiras de o recriar, acrescendo incessantemente o seu poder por meio de avanços que lhe permitem calcular melhor, modelizar melhor uma realidade nova.
Encontramo-nos cada vez mais desarmados face às máquinas, cada vez mais inteligentes. A confrontação é recente de mais para que possamos analisá-la convenientemente, para que sejamos capazes de decidir o que convirá fazer para dominar as máquinas. Os nossos avós não precisavam de as imaginar, pois trabalhavam com máquinas mecânicas - por vezes, construídas por si próprios, à sua escala - e conheciam pelo menos as suas engrenagens, sabiam explicar o seu funcionamento. Quem é que hoje sabe como é que funcionam os microcircuitos de um computador, à parte uns poucos de especialistas? Os robôs electrónicos são misteriosos, incompreensíveis, inquietantes, tão poderosos que parece pertencerem a outro mundo, que escapa à medida do homem. Nós conhecemos o nosso quadro de referências: a família, a sociedade, a civilização - em extremo, o Universo. O computador, esse, é alheio a tudo isso, existe apenas para sua função - e, contudo, interfere constantemente na nossa vida pessoal e profissional. Deveremos integrá-lo no nosso mundo, ou criar-lhe o seu próprio «mundo»?
Encontramo-nos embrenhados numa aventura cultural nova que nos tornará diferentes do que éramos e do que somos, da mesma maneira que as anteriores grandes invenções da humanidade transformaram os nossos antepassados. O aparecimento da agricultura fez passar os caçadores nómadas à sedentarização. A metalurgia, a escrita, a industrialização modificaram a maneira de viver e de pensar dos nossos avós - e verificar-se-á o mesmo com a revolução devida ao advento de computadores e autómatos inteligentes. A nossa linguagem adaptar-se-á à que lhes tivermos oferecido, tal como a nossa lógica. Gradualmente, aprenderemos a falar «máquina», em função da lógica redutora dos sistemas de tratamento de texto, por exemplo.
Há já quem se interrogue sobre qual dos dois - o homem ou a máquina - utiliza o outro. Bruno Bettelheim, o psiquiatra recentemente falecido, especialista do tratamento de crianças com fortes perturbações mentais, contava a história de Joey, a «criança mecânica», que se concebia a si próprio como uma máquina dirigida por outras máquinas. Algumas crianças normais, face aos computadores, parece comportarem-se como Joey. A psicóloga americana Shirley Turckle conta como algumas das crianças que acompanhou anos a fio delegaram no computador a sua identidade, atribuindo-lhe as suas reacções emocionais e intelectuais, o seu carácter de seres vivos. O facto de se viver com um computador desde a infância poderá vir a criar um modelo de homem novo, culturalmente diferente dos outros homens, mais próximo das máquinas - sem dúvida dotado de outra personalidade.
AS TRANSPLANTAÇÕES DE CÉREBRO
Substituir o cérebro - este velho sonho inspirou inúmeras histórias. Como seria útil - à criança atrasada, ao velho senil, ao poeta que sonha com outras vidas - mudar de cabeça! No estado actual da técnica, parece impossível efectuar uma transplantação total do cérebro, pois as terminações nervosas que dele partem e a ele afluem são demasiado numerosas para permitirem o restabelecimento de todas as ligações em tempo útil. Há alguns anos, Robert White, um cirurgião americano, sonhou com essa transplantação. Em 1964, para a preparar, realizou com êxito uma proeza monstruosa e inútil: durante algumas horas, manteve em vida o cérebro de um macaco, cortado do seu corpo e ligado a uma máquina que o abastecia de oxigénio e de sangue. O cérebro parecia vivo. Era alucinante, contam as testemunhas da experiência. Emitia ondas eléctricas, reagia aos ruídos. Pensaria? Quem poderá afirmá-lo?'''
Alguns anos antes, no seu romance O Cérebro de Donovan, o escritor Curt Siodmak imaginara a história de um cirurgião que, depois de ter realizado a mesma façanha, mantivera em vida o cérebro de um homem de negócios sinistrado. O cérebro in vitro dava provas de uma actividade diabólica: servia-se do cirurgião para agir, por telepatia, de modo cada vez mais duvidoso. Até ao dia em que, incitado ao assassínio pelo cérebro desviante, o cirurgião não teve outro remédio senão destruí-lo.
O Dr' White não teve em conta esta advertência. «Não sei, dizia ele, se um cérebro humano precisa de um corpo. Quando isolar um cérebro, a sua inteligência, a personalidade do ser permanecerão inteiras, intactas.» Mas não estava isento de dúvidas: «Poderá chamar-se vida, perguntava ele à jornalista italiana Orianna Fallaci, à que existir apenas numa cabeça?» «Suponhamos, dizia ainda White, que efectuo esta operação em Einstein, para manter o seu cérebro em vida, imediatamente antes da sua morte. Bastaria o seu acordo? Poderia a sociedade opor-se-lhe, objectando que se trataria de um atentado à lei universal que determina que o ser humano desapareça quando chega a sua hora?»
A experiência macabra do Dr' White não seria hoje viável, pois a paragem da actividade cerebral é agora precisamente aquilo que marca a morte do indivíduo. Mas nem por isso este sonho de transplantação foi abandonado. Alguns neurologistas americanos pediram ao Prof' Barnard - o pioneiro das transplantações cardíacas, então no auge da sua fama - que se tornasse seu conselheiro para um projecto de transplantação de cabeças humanas, embora a ideia não tenha vingado. Na União Soviética, um outro cirurgião, o Prof' Demikhov, conheceu também a sua hora de celebridade ao transplantar uma cabeça de cão no corpo de outro cão. Mas a sua experiência também não produziu consequências.
Estas experiências bárbaras pertencem já ao passado. O presente e o futuro reservam-nos outras promessas: as de transplantação de tecidos embrionários no cérebro. Com efeito, os biólogos aperceberam-se de que era possível implantar no cérebro células ainda indiferenciadas. Esta via dá ainda os seus primeiros passos, mas parece promissora e apaixonante. O Prof' Jean Bernard imagina a possibilidade de se vir a constituir, desde o dealbar da vida de cada um de nós, uma reserva das células ainda indiferenciadas do nosso cérebro, bem como das substâncias que comandam a sua organização. Mais tarde, em caso de necessidade, esses tecidos seriam tirados do banco e injectados no cérebro doente, a fim de lhe devolverem a sua juventude e vitalidade. De momento, isto é ainda um simples sonho de cientistas, desligado de qualquer experiência real. Mas o simples facto de que esta eventualidade seja evocada pelo presidente do Comité Nacional de Ética, traduz bem a considerável revolução em esboço.
Se este método se generalizar, levantará tremendos problemas éticos. Com efeito, as células nervosas deterioram-se muito rapidamente após a morte do indívíduo, o que torna muito difícil a colheita de tecidos em nado-mortos. Seria preciso efectuá-la enquanto o cérebro se encontra ainda em actividade - mas isso parece indefensável. Será possível que venhamos um dia a possuir reservas de tecidos embrionários? Deverá encarar-se a hipótese de efectuar de modo sistemático a sua cultura?
Outro problema, não menos grave: não correremos o risco de modificar a personalidade, o psiquismo daqueles que vierem a ser objecto destas transplantações? É um risco real, pois os especialistas sabem que a alteração de uma pequena zona do cérebro é suficiente para provocar perturbações importantes - como, por exemplo, no caso da doença de Parkinson. Além disso, alguns dos pacientes que foram alvo destas transplantações parece terem sentido alucinações e demonstrado alterações de comportamento.
Trata-se de questões que exigirão solução rápida, caso este tipo de transplantações de neurónios embrionários venha a desenvolver-se, como esperam alguns cientistas. Experiências feitas com animais mostram que poderiam vir a ser utilizadas para tratar certas doenças mentais, como a demência senil ou a esquizofrenia. Num rato, substitui-se um nervo óptico destruído pelas células embrionárias que servem de suporte à sua regeneração. Há dois anos, o fisiologista britânico Ray Lund, da Universidade americana de Pittsburg, provocou uma viva emoção ao mostrar um rato sobre o qual efectuara, na parte posterior do cérebro, a transplantação de uma retina que funcionava reagindo à luz. Era a primeira vez que se conseguia transplantar um órgão dos sentidos num animal. Será uma via aberta para a reparação destes órgãos no homem? É demasiado cedo para o afirmar, mas trata-se certamente de uma apaixonante e promissora via de investgação.
Espera-se vir a utilizar a mesma técnica para restaurar outras ligações nervosas essenciais, como aquelas que, na espinal medula, comandam os movimentos dos membros. Os sinistrados condenados à cadeira de rodas na sequência de uma fractura de coluna vertebral não têm hoje qualquer hipótese de ver a sua espinal medula recuperar as suas funções normais. Nestes casos, as transplantações embrionárias poderiam vir a constituir uma esperança de restauração. Depois de se ter cortado a espinal medula de um gato, conta o Dr' Alan Fine, injectaram-se no animal substâncias excitantes das células nervosas que comandam a locomoção; posto sobre um tapete rolante, o gato paralisado recuperou a marcha.
Outros propõem que uma reactivação de cérebro por meio de enxertos embrionários possa vir a remediar certas perturbações devidas à degradação dos sistemas que comandam a produção hormonal. A implantação de tecidos embrionários de pâncreas ou de supra-renais no cérebro de alguns animais possibilitou o desenvolvimento destes tecidos e a correcção, durante vários meses, de um défice hormonal causador de diabetes. Trata-se de uma técnica ainda não experimentada no homem, mas que poderá vir a ser utilizada em breve.
Os biólogos têm outros sonhos: utilizar os tecidos embrionários para refazer um órgão ou um membro. No adulto, a auto-regeneração existe nalgumas espécies animais. A hidra só precisa de dois cêntimos do seu corpo para se reproduzir; as partes cortadas de uma minhoca refazem um animal inteiro; os membros amputados dos crustáceos e das aranhas tornam a crescer, bem como a cauda das salamandras e dos tritões. No homem, certos elementos também se reconstituem. É o caso dos glóbulos vermelhos do sangue e das células da boca, que se renovam, respectivamente, à razão de três milhões por segundo e de cem mil por minuto. Somos igualmente capazes de refazer os nossos músculos e de reparar os nossos ossos. Também o fígado, o baço e os ovários, quando lesados, empreendem um processo de reconstituição. Seria possível fazer o mesmo com outras partes do nosso organismo?
Uma das soluções consistiria em fazer voltar as nossas células e os nossos tecidos ao estado de indiferenciação embrionária. O Prof' Jean Hamburger evoca as fantásticas possibilidades que se abrirão à medicina no dia em que formos capazes de actuar sobre as moléculas naturais que dão ordens às células indiferenciadas e as transformam em células especializadas. Estas moléculas desempenham provavelmente um papel importante no fenómeno ainda misterioso que preside à criação dos diferentes tecidos e órgãos a partir de uma célula única, o ovo fecundado. Nada nos impede de pensar, como Jean Hamburger, que em vez de substituir um órgão destruído por um enxerto ou uma prótese, o médico possa vir a dispor de meios para dar ao organismo a ordem de refabricar um órgão novo, por intermédio dessas moléculas que comandam a diferenciação celular.
Noutro campo, alguns investigadores trabalham no sentido de tornar possível a substituição dos elementos claudicantes dos nossos órgãos por aparelhagens electrónicas miniaturizadas. Testaram-se sistemas que transformam os sinais luminosos em mensagens tácteis, a fim de dotar os invisuais de um arremedo de visão do mundo exterior. Nos Estados Unidos criou-se um protótipo composto por sessenta e quatro microeléctrodos, implantados no cérebro dos cegos e ligados a um computador que transforma as imagens de uma câmara de vídeo em impulsos, permitindo ao invisual ver pontos luminosos semelhantes aos que temos a impressão de ver quando pressionamos os nossos olhos com o punho fechado. Basta criar uma espécie de alfabeto para fazer corresponder esses pontos a imagens do mundo exterior, ou até aos carcteres de um livro impresso.
Desenvolvem-se igualmente esforços para construir um ouvido electrónico que, implantado no canal auditivo, estimule o nervo auditivo, no ouvido interno, restabelecendo assim a audição.
A HEREDITARIEDADE MODIFICADA
O nosso futuro está cada vez menos entregue ao acaso, na medida em que o homem aumenta incessantemente o seu poder sobre a globalidade do mundo vivo. Este poder tornou-se quase absoluto desde a revolução que permitiu aos biólogos conhecerem, isolarem e manipularem os genes, os fragmentos da hereditariedade que correspondem a cada traço distintivo de um ser. Estes genes existem em todas as células e, em particular nas células germinais, através das quais transmitimos a nossa hereditariedade aos nossos filhos.
Ao dar-nos a possibilidade de agir sobre os genes, a biologia proporciona-nos um controle quase total sobre os seres vivos. Isto permite-nos entrar na era da reprogramação do ser vivo - aquilo que se chama engenharia genética. Para uns, será a idade de ouro que permitirá lutar melhor contra a doença e a morte. Para outros trata-se, pelo contrário, do princípio de uma era diabólica, em que o homem assina a sua própria destruição ao adquirir este poder inédito e absoluto.
A engenharia genética transforma completamente as relações entre a ciência, o homem e a natureza. Rompe com três milhões de anos de uma aventura da vida, até agora baseada exclusivamente no acaso. Atingira-se um equilíbrio, por vezes, frágil, mas que se manteve ao longo dos milénios. É o acaso que determina a parte da hereditariedade que a criança recebe do pai e da mãe; cada um de nós joga assim os seus talentos e caracteres na lotaria da hereditariedade. É ainda o acaso que produz as mutações. Estas pequenas modificações da hereditariedade são definitivamente integradas no património de uma espécie, quando contribuem para melhorar a sua adaptação ao meio em que vive. É deste modo que funciona a evolução, segundo os mecanismos explicados por Charles Darwin há mais de um século, e que nas suas linhas gerais se mantêm válidos.
A intervenção deste antiacaso que é o homem suscita problemas cujas soluções continuam por encontrar. Quem pode prever o que será, amanhã, o meio ambiente dos seres vivos que povoam o planeta? Quem pode ter a pretensão de saber o que convirá fazer para assegurar a sua sobrevivência? É impossível saber se a acção do homem sobre a natureza é positiva ou negativa - mas é indiscutível que ela se reveste de uma importância excepcional para a história da vida e para o futuro do homem. Portanto, é essencial saber como é que essa acção se desenvolve e quais sãos as suas perspectivas.
Onde começa a anormalidade?
Existem mutantes em todos os seres vivos. De um ano para o outro, o vírus da gripe nunca é o mesmo. Quando chega o Outono, é preciso identificá-lo rapidamente, de modo a preparar a tempo uma vacina activa. Os insecticidas já não possuem a mesma eficácia de outrora, porque muitas das espécies sofrem mutações; basta que um pequeno número de mutantes adquira uma resistência ao insecticida para que nasça rapidamente uma nova população, sobre a qual o produto já não fará efeito. Apesar das enormes quantidades de insecticidas espalhadas pelo mundo inteiro, não desapareceu uma única espécie de insectos; algumas delas adaptaram-se tão bem que até proliferaram.
O mesmo se passa com os micróbios, que se tornaram resistentes aos antibióticos, devido às mutações que atingem alguns deles ao acaso. Sempre que aparece um novo medicamento, basta que um só micróbio, num bilião, lhe resista, para que, em poucas gerações, se reconstitua uma população imune ao antibiótico.
Foram provavelmente as mutações que, ao tornar os micróbrios mais perigosos, estiveram na origem das mortíferas epidemias do passado. A grande peste negra que dizimou mais de um quarto da população europeia no século XIV deveu-se - segundo Roland Rosquist e outros investigadores suecos - a duas mutações do bacilo, que teriam reforçado o seu poder infeccioso. Duas mutações, para cinquenta milhões de mortos! Provou-se que o bacilo da peste conseguiu transformar-se ao passar para diversos animais, ratazanas ou moscas, ao longo de dezenas de anos, durante os quais a doença parecia adormecida, para surgir de repente e de forma aterradora através de um mutante com um enorme poder, que desencadeava de forma brutal uma nova epidemia.
Inversamente, é possível que, na sequência destas grandes epidemias de peste ou de cólera, os sobreviventes tenham sido mulheres ou homens com predisposição para resistirem à doença, os quais, por sua vez, deram origem a indivíduos mais bem armados para lutar contra o regresso da epidemia. Este facto poderia explicar igualmente os longos períodos de latência que separaram as devastações provocadas pela peste e pela cólera.
Actualmente põe-se a questão de saber se o aparecimento da sida não será igualmente devido a uma mutação de um vírus. Conhecem-se várias formas do vírus da sida, e algumas delas podem ter evoluído a partir de formas inofensivas para o homem.
Quatro mil genes mutantes
Desde o seu aparecimento que o homem, como os outros seres vivos, foi objecto de mutações. Foi graças a elas que se foi adaptando aos diferentes ambientes e que resistiu às modificações do clima do planeta. Não existe nenhuma razão para acreditar que estas mutações tenham deixado de ocorrer; a utilização de radiações e de produtos químicos deveria até torná-las mais frequentes. O que acontece é que é difícil detectá-las. Por um lado, existe um mecanismo natural que elimina os fetos portadores de alterações que os tornariam anormais ou gravemente doentes. Por outro lado, o nosso estilo de vida, a nossa cultura e as facilidades da civilização moderna ocultam as pequenas modificações do nosso organismo resultantes de mutações. Em média, calcula-se que existam quatro mutações por cada nascimento de um ser humano. Por se encontrarem normalmente em lugares que não afectam o bom funcionamento do organismo, estas mutações não atraem a nossa atenção.
Mas os mutantes no homem são hoje cuidadosamente estudados. Nenhuma outra espécie é objecto de tantas e tão aturadas observações. Os médicos e os biólogos examinam todos os dias milhões de doentes, e cada elemento da nossa hereditariedade pode, de agora em diante, ser estudado em pormenor, descobrindo-se assim os mutantes ao nível dos genes humanos. O seu recenseamento já começou: o Instituto Americano de Ciências Médicas possui hoje quatro mil amostras de genes mutantes, e todos os anos são colocadas em cultura trezentas delas. Este trabalho tem como objectivo compreender como é que aparecem as doenças hereditárias, que fazem milhões de vítimas.
Os mutantes que se observam são pois sobretudo doentes, ou seja, infelizes que vêm ao mundo com uma deficiência que lhes provoca sofrimentos físicos ou espirituais, acabando muitas vezes por morrer ainda jovens.
Um em cada vinte recém-nascidos é portador de anomalias. Quando se trata de uma malformação, por vezes a cirurgia pode fornecer a solução. O caso é mais difícil quando se trata de disfunções do organismo; encontram-se recenseadas mais de três mil, sendo as mais conhecidas a hemofilia, que impede a coagulação do sangue; a miopatia, que atinge os músculos; e certas leucemias, ou cancros do sangue.
É hoje possível identificar estas anomalias antes do nascimento, pela análise das células do embrião recolhidas do meio uterino. Estes diagnósticos pré-natais são cada vez mais precoces e já podem ser feitos a partir das onze semanas de gestação, o que torna mais suportável o veredicto do aborto, que infelizmente continua a ser a única solução ao nosso dispor para uma malformação genética grave - enquanto não for possível outro tipo de intervenções actualmente em estudo.
O diagnóstico pré-natal dá já ao homem um novo poder sobre a futura criança. Antigamente era necessário aceitá-la tal qual como nascia, normal ou anormal. Hoje o embrião perde o seu mistério, revelando-nos os seus segredos e, do mesmo passo, a sua anormalidade. De agora em diante, e mesmo antes de a criança abrir os olhos, os pais podem optar por pôr fim à vida de um ser destinado ao sofrimento - uma sobrecarga para a família e para uma sociedade cada vez menos tolerante face às doenças.
É fácil ceder à tentação de alargar o campo destas doenças. Onde começam? Como defini-las? Todos nós conhecemos deficientes congénitos que são felizes. Um psicólogo israelita conseguiu que mongolóides terminassem os estudos secundários. Uma mulher portadora de mucoviscidose - uma doença letal na infância - deu à luz duas crianças normais, que são a alegria da sua vida. Stephen Hawking, atingido por gravíssimas deficiências motoras que o imobilizam, desarticulado, na sua cadeira de rodas e o impedem de falar, é um dos mais célebres astrofísicos do mundo, um dos mais geniais teóricos do universo. Num corpo deformado, só o seu cérebro se mantém intacto, comunicando com o mundo apenas através de um sintetizador. Mas todos os que com ele convivem realçam a sua alegria de viver e de criar. A mulher e os três filhos vivem com ele como qualquer família normal. Uma jovem britânica, nascida com a terrível malformação da espinal medula que se designa por espinha bífida, apesar de paralisada dos membros inferiores e condenada à cadeira de rodas, afirma-se feliz: «Os meus pais, diz ela, poderiam ter-se decidido pelo aborto e concebido uma nova criança. Mas quem é que pode garantir que essa criança teria uma vida tão gratificante como a minha?»
Onde começa a anormalidade? Qual o peso real da hereditariedade? Existe a propósito uma anedota célebre: o pai é sifilítico, a mãe tuberculosa; dos quatro filhos, o primeiro é cego, o segundo é nado-morto, o terceiro é surdo-mudo, o quarto tuberculoso. Aconselha a interrupção da gravidez no quinto? Nesse caso, você teria suprimido Ludwig Van Beethoven''' Deveria ter-se negado a vida a um Dostoievski epiléptico, a um Toulouse Lautrec disforme, a um Van Gogh manifestamente perturbado mental?
O problema da anormalidade é muitas vezes observado do ponto de vista daqueles que o vêem, e não daqueles que o vivem. Terá um mongolóide a noção de ser diferente? Será infeliz por ter um cérebro menos desenvolto que o das outras crianças? Noutros tempos, o idiota da aldeia vivia feliz, bem integrado numa sociedade menos exigente.
Temos boas razões para crer que o futuro será ainda mais difícil, que a sociedade aceitará cada vez menos aqueles que não se adaptarem às suas normas. Não é absurdo imaginar que no futuro, por razões financeiras, éticas ou eugénicas, a sociedade possa vir a decidir-se pelo não nascimento de míopes, diabéticos, cegos ou surdos. Ainda não há muito tempo, Francis Crick - Prémio Nobel da Medicina pela descoberta da hélice do ácido nucleico, um dos pais da biologia moderna - pronunciava esta frase terrível: nenhum recém-nascido deveria ser reconhecido como ser humano antes de ser aprovado em testes de dotação genética; os reprovados deveriam perder o direito à vida. Outro Prémio Nobel, Linus Pauling, sugere a tatuagem, na face de cada recém-nascido, de um símbolo indicativo da sua hereditariedade'''
Cirurgia genética
Em matéria de diagnóstico pré-natal, encontramo-nos hoje num ponto de viragem. Por um lado, este diagnóstico tornar-se-á mais simples e mais utilizado - o que nos colocará mais frequentemente perante uma difícil decisão: deveremos ou não deixar viver um embrião portador de uma malformação, ou que corra o risco de vir a contrair uma doença? Por outro lado, a engenharia genética poderá em breve vir a oferecer-nos meios de correcção destes defeitos. Mas esta última possibilidade já hoje divide biólogos e médicos: uns pensam que isso vai no sentido do que a medicina sempre fez, isto é, prevenir e curar; outros lembram-nos que não devemos ocupar-nos destes erros da natureza. A maioria dos abortos espontâneos devem-se a malfromações. Os embriões portadores de malformações que conseguem chegar ao termo do processo de gestação constituem uma ínfima minoria, que escapa a este mecanismo de selecção natural. Deveremos tentar a todo o custo tornar normal um ser condenado pela natureza? Segundo alguns especialistas, trata-se de uma tentativa perigosa, difícil e traumatizante, tanto para a mãe como para a criança; nesses casos, estes cientistas aconselham o abandono do infeliz à sua sorte e a concepção de uma outra criança, tomando-se todas as precauções necessárias para que venha a ser normal.
Entretanto, orientamo-nos para a possibilidade de tratamento dos embriões anormais. Não se tentou ainda a substituição de um gene anormal por outro são, a fim de corrigir o defeito, mas isso não tardará a verificar-se. Não será de resto uma proeza excepcional. Com efeito, desde há vinte anos, os geneticistas possuem «tesouras biológicas» com as quais cortam as cadeias de ácidos nucleicos portadores da hereditariedade, a fim de isolar os genes. Isto permite compreender melhor o seu funcionamento e, simultaneamente, agir sobre a hereditariedade, substituindo certos genes por outros ou modificando-os.
Ao nível animal, alguns investigadores americanos conseguiram já corrigir a mutação que altera por vezes a cor dos olhos da mosca drosófila, fazendo-a passar de escura a rosa-pálido. Quando se injecta no embrião da mosca mutante o gene que comanda a cor normal, o animal adulto readquire os olhos escuros.
Das moscas passou-se aos ratos. Neste caso, conseguiu-se fabricar animais «transgénicos», isto é, que possuem um património hereditário modificado pela adição de um gene inédito. Começou-se por injectar, no ovo fecundado de um rato, o gene que comanda a síntese de uma proteína que entra na composição do pigmento dos glóbulos vermelhos do coelho. O rato nasceu com a proteína do coelho no sangue, que foi posteriormente transmitida à descendência. Toda uma linhagem foi assim modificada artificialmente, por vontade de um biólogo.
Mas não se ficou por aqui. Dois americanos, Ralph Brinster e Richard Palmiter, merecem que os seus nomes passem à posteridade, pois conseguiram produzir, em 1982, os primeiros ratos gigantes da história: animais nascidos a partir de ovos fecundados nos quais injectaram o gene que comanda a produção da hormona do crescimento no homem. O resultado foram ratos duas vezes mais pesados do que o normal. A experiência foi repetida um pouco por todo o lado, como por exemplo no Instituto Pasteur de Paris.
Esta acrobacia genética é difícil: é preciso fazer a transplantação do gene estranho no ovo fecundado. A percentagem de êxito é ainda muito baixa - menos de um por cento. É apenas um princípio. Já se tentou produzir por este processo porcos, vacas e carneiros gigantes; o gene funcionou bem, mas os animais não atingiram um tamanho excepcional, não se sabe porquê. Os genes assim transplantados parecem exprimir-se de um modo anárquico, ainda não compreendido, mas os biólogos acreditam que não vem longe o dia em que um gene será inserido no lugar exacto e no momento desejado, de modo a agir correctamente.
Nos Estados Unidos foram já registadas patentes destes ratos geneticamente transformados. A primeira foi concedida à Sociedade Du Pont, para um rato transgénico destinado a ajudar os investigadores do cancro da mama; enxertou-se no animal um gene humano que provoca este tumor, o que permitirá dispor de uma linhagem de ratos cancerosos, nos quais poderão ser testados novos medicamentos.
Esta questão colocou um problema aos moralistas e aos juristas: teremos o direito de registar a patente de um ser vivo? Pasteur registou a patente da levedura da cerveja, mas poderemos fazer hoje o mesmo com um rato, amanhã com uma vaca ou qualquer outro mamífero? Em França, o artigo 7'o da lei sobre as patentes de 1988 proíbe o registo de raças animais ou de processos biológicos de obtenção de vegetais e animais. O Gabinete Europeu de Patentes não tomou ainda nenhuma decisão sobre o assunto, mas não é de excluir uma posição favorável, uma vez que o conceito de raça é discutível. Donald Quigg, director do Departamento Americano de Patentes, achou conveniente realçar que nenhum pedido de registo de patente relacionado com o homem será objecto de exame - um esclarecimento tranquilizador. Significará isto que o senhor Quigg teme que frutifiquem investigações conducentes à produção de novas raças humanas, através da engenharia genética?
De qualquer modo, existem já milhares de ratos com gene estranho no seu organismo. Experimentam-se actualmente todos os tipos de genes, para poderem ser introduzidos nos ovos fecundados de diferentes espécies. Espera-se obter assim carneiros que dêem mais lã, coelhos isentos de doenças infecciosas, vacas que forneçam mais leite ou que produzam, nesse leite, substâncias de difícil fabrico, actualmente utilizadas no tratamento de determinados cancros, como a interleuquina ou o interfirão. Estas vacas tornar-se-iam fábricas naturais de produção destas substâncias, actualmente a preços incomportáveis.
Mas é possível fazer ainda melhor. O biólogo americano Malcolm Martin prepara-se para colocar o gene humano do vírus da sida num rato, a fim de produzir um modelo animal desta doença. A experiência deverá ser realizada num bunker fortemente vigiado, tendo em conta a enorme proliferação dos ratos. Se resultar, constituirá um elemento importante na luta contra a sida, uma vez que nenhum animal apresenta espontaneamente os mesmos sintomas dos doentes humanos. É pois do maior interesse dispor destes ratos modificados, sobre os quais se poderão estudar medicamentos e vacinas.
Para Ronald Evans, que cooperou com os criadores dos primeiros ratos transgénicos, isso representa a ténica do futuro no que diz respeito às espécies domésticas, pois permitiria aumentar a produção de leite, manipulando o gene da hormona prolactina; a quantidade de gordura dos animais, controlando o gene da hormona do crescimento; a não agressividade, actuando sobre o gene - se é que existe, o que não é evidente - responsável pela docilidade dos animais. Outros investigadores defendem que o importante, para os criadores de gado, não é tanto o facto de poderem dispor de animais de abate mais gordos - que correriam o risco de verem partir-se os ossos das suas pernas -, mas sim de animais que atingissem rapidamente o estado adulto. Isso exigiria um conhecimento mais aprofundado do modo de funcionamento do gene que regula a hormona do crescimento. Preparamo-nos pois para produzir animais por medida, mais bem adaptados às necessidades humanas.
Noutra escala de vida animal, ao nível dos microrganismos, uma equipa americana, dirigida pelo Dr' Barry Bloom, da Escola de Medicina Albert Einstein de Nova Iorque, construiu um sistema que permite inserir genes na vacina B'C'G' utilizada contra a tuberculose, geralmente considerada inofensiva. Esta experiência destina-se a dotar o B'C'G' de genes que nos protegessem contra as doenças actualmente mais devastadoras para o homem - a lepra, o paludismo, a difteria, o tétano, a bilharziose -, pois vitimam anualmente vinte milhões de pessoas. Este B'C'G' geneticamente modificado tornar-se-ia uma vacina universal, inofensiva e barata; uma única injecção à nascença bastaria para assegurar uma boa protecção durante toda a vida. Espera-se vir a dispor desta vacina - que poderia igualmente ser utilizada contra o vírus da sida - num prazo de cinco a dez anos.
Se este método fracassar, experimentar-se-á com outras vacinas, o vírus da vacina, por exemplo.
A oposição
Mas nem toda a gente adere a estas tentativas. Nos Estados Unidos organizou-se uma forte oposição, em torno de um ex-advogado, Jeremy Rifkin - um homem baixo e quase calvo, apaixonado e volúvel - que tem accionado processo sobre processo contra os biólogos e as organizações que não respeitam as regras draconianas de segurança. Apoiado por centenas de milhares de adeptos das suas teses, Rifkin bate-se sob slogans sensacionalistas, como aquele em que afirma que uma vaca tem o direito de continuar a ser uma vaca. Nos últimos tempos, a sua campanha tem sobretudo tentado impedir o registo de patentes de animais transgénicos. Na Alemanha Federal, os ecologistas travam uma batalha semelhante, que inquieta as empresas farmacêuticas e até os dirigentes políticos, preocupados por verem partir do país alguns biólogos, impedidos de trabalhar nestas experiências de ponta.
Será necessário efectuar mais experiências com animais, antes de tentar modificar a hereditariedade do homem por meio desta cirurgia genética. Não existe nenhum obstáculo técnico intransponível, a única barreira é de ordem moral. Louis-Marie Houdebine, responsável pelo programa de modificação genética do I'N'R'A', o Instituto Nacional de Investigação Agronómica, de França, pensa que será preciso fazer ainda muitos progressos nos métodos de transferência de genes e no conhecimento das suas relações entre si, antes de aplicar este método ao homem. Pierre Chambon, director do Laboratório de Genética da Universidade de Estrasburgo, opõe-se a esta eventualidade, mesmo que seja para prevenir uma deficiência grave. Segundo este cientista, essa manipulação transformaria o património hereditário do ser em que fosse efectuada, o que é inadmissível. Chambon manifesta ainda o desejo da criação de uma moratória sobre estas investigações, enquanto não estiverem claramente estabelecidos os limites do que é lícito modificar no homem. Philippe Kourilsky, que dirige uma importante unidade de genética no Instituto Pasteur, pensa que, quando se encontrarem reunidos os conhecimentos necessários e em condições rigorosamente controladas, se poderá tentar corrigir taras hereditárias graves pela introdução de genes no embrião humano. Na sua opinião, estas manipulações não se farão em larga escala num futuro previsível. O Professor Yves Dumez, da clínica universitária de Port-Royal, considera a «genoterapia» interessante no caso das doenças que se exprimem muito cedo no embrião e que conduzem a uma alteração rápida e grave do estado da criança, após o nascimento. Esta investigação, segundo Dumez, tem por objectivo curar, estando assim fora de questão impedi-la.
Para o Professor Pierre Royer, presidente do Centro Internacional da Infância, a substituição de um gene anormal por um gene corrector será possível muito em breve, no caso de doenças hereditárias bem definidas. «Parece-me evidente, diz o Professor Royer, que a terapêutica genética se irá impor num futuro próximo, tal como acontece com as transplantações de órgãos, de que constitui apenas uma modalidade mais elitista, mais subtil e minuciosa.» Mas também ele considera excluída a possibilidade de intervir por este processo nas células germinais, que transmitiriam a modificação às gerações seguintes.
Uma etapa revolucionária
Estas afirmações e reservas não conseguem dissipar um certo mal-estar, visível na Europa e, sobretudo, nos Estados Unidos. Tudo indica que os investigadores continuam empenhados em avançar. Não irão depressa de mais? Não irão longe de mais? Quem poderá impedi-los de cederem à tentação de intervir sobre as células reprodutivas do homem, sobre um ovo fecundado, sobre um embrião, para modificarem a sua hereditariedade?
Uma vez mais, é verdade que negam possuir um tal desejo, mas já se começou a modificar o organismo de alguns homens. A primeira transplantação de genes modificados no organismo humano foi feita em 1989, nos Estados Unidos, e representa uma etapa revolucionária na história da medicina, pois trata-se da primeira vez que os biólogos transformaram um homem. Os Drs' Steven Rosenberg e French Anderson efectuaram essa experiência num canceroso vítima de um tumor da pele e considerado um caso perdido. Consistiu na extracção de alguns dos seus glóbulos brancos, recolocando-os no seu organismo depois de modificados, com a adição de um gene estranho. Esta operação não se destinou a tentar curar o paciente, que parecia encontrar-se além de todas as possibilidades de cura, mas sim a estudar a reacção do seu organismo. O gene introduzido confere a certos glóbulos brancos uma resistência particular face a um antibiótico, o que os «marca», distinguindo-os nitidamente dos restantes, e, portanto, permite segui-los. Os médicos procuram compreender a razão pela qual só tinham obtido 50 por cento de sucessos no tratamento prescrito a certos cancerosos, e que consistia em estimular a actividade dos seus glóbulos brancos por meio de uma substância, a interleuquina, que aumenta as defesas naturais do organismo contra o cancro.
A possibilidade de seguir os glóbulos geneticamente modificados deveria permitir resolver esta questão e, por conseguinte, aperfeiçoar este tratamento do cancro.
No momento em que escrevemos, os resultados desta experiência não foram ainda publicados, mas encontram-se já outras em preparação. Se tudo correr bem, a etapa seguinte já não consistirá apenas em marcar os glóbulos brancos, mas na implantação do gene que produz a interleuquina, a tal substância que estimula as defesas do organismo contra o cancro. Tornar-se-ia assim possível tratar também outras doenças, tais como a anomalia hereditária que vitima as crianças imunodepressivas, que é preciso manter num recinto esterelizado ao abrigo dos micróbios, visto que não possuem qualquer sistema de defesa natural.
Alguns trabalhos realizados com animais apontam algumas vias de intervenção possíveis no homem, em matéria de tratamento genético. Corrigiu-se uma deficiência no rato que provocava o envenenamento do sangue. Substituiu-se, ainda no rato, o gene que comanda a produção dos componentes essenciais do sangue - uma via aberta para um possível tratamento das leucemias. Em ratazanas, inseriu-se um gene normal nas células de um fígado portador de uma deficiência hereditária que provoca uma sobreprodução de colesterol; isto permitiria, no homem, o tratamento dos problemas cardiovasculares ligados ao excesso de colesterol.
Os êxitos desta cirurgia genética no animal vão continuar a multiplicar-se nos próximos anos. As experiências de injecção de genes estranhos prosseguirão também no homem, o que deverá conduzir a um melhor tratamento de curtas doenças. Os médicos mostram-se optimistas perante este panorama; mas, uma vez mais, é necessário não ir demasiado longe, nem ceder à tentação de intervir sobre as células reprodutoras. Como afirma o Professor Jean Dausset, se tal acontecesse teríamos mais hipóteses de deteriorar do que melhorar a espécie. Dausset apela à comunidade científica para que se oponha a essa tentação, pois ela conduziria a uma forma de eugenismo que abriria as portas a todo o tipo de abusos. Que uma voz tão autorizada se levante com o objectivo de chamar a atenção para isto, mostra bem que esta aterradora possibilidade de agir sobre a hereditariedade humana existe realmente.
Isto não impede os biólogos de evocarem possibilidades que parecem directamente extraídas de romances de ficção científica, como a que consistiria em criar mutantes capazes de ver em comprimentos de onda diferentes dos da luz visível. A nossa visão das cores resulta de uma série de mutações que afectaram genes ao longo da evolução animal. Estes genes mutaram diferentemente segundo as espécies: alguns peixes vêem as radiações ultravioletas, algumas aves e certos roedores nocturnos as infravermelhas. Alguns homens nascem daltónicos, vêem apenas o amarelo e o azul - é o resultado de uma mutação que afecta ainda estes genes da visão. Daí a ideia de os modificar, alargando as nossas possibilidades. Não serão alguns dos grandes pintores mundiais mutantes da cor? Que sorte não seria, para um exército, possuir soldados capazes de conduzir de noite sem faróis, vendo as radiações infravermelhas!
O investigador francês Claude Nicolau sugeriu a inserção no fígado do adulto de uma enzima que destrói o álcool circulante no sangue, o que permitiria consumir mais álcool sem perigo. Por seu lado, o biólogo americano Chakrabarty projectou dotar o homem, através da engenharia genética, de uma melhor absorção dos vegetais, semelhante à dos ruminantes. Modificando as bactérias do nosso tubo digestivo, permitiria assim às populações subnutridas alimentarem-se de ervas. O projecto foi abandonado logo que os riscos de cancro, suscitados pela presença de bactérias capazes de degradar a celulose no nosso intestino, foram demonstrados.
Há alguns anos, um autor americano provocou o riso ao pôr em cena um geneticista que sonhava associar no mesmo homem os genes de um camionista com os de um polícia - na esperança de que ele se multasse a si próprio sempre que ultrapassasse o limite de velocidade autorizado. Como diz Pierre Thuillier, que cita esta anedota, os desejos eugénicos de certos biólogos nem todos são assim tão cómicos.
FABRICAR HOMENS
Produzir homens como hoje se produzem vitelos ou frangos; fabricar crianças - são termos chocantes, mas que traduzem a realidade. Os médicos e os biólogos dominam hoje as técnicas da concepção e da fertilização, tanto no homem como nos animais, o que suscita um enorme interesse, mas também um certo receio. Começou por fazer-se habilidades com as hormonas que comandam a fecundidade, o que permite regular a data da concepção e a do nascimento - por conveniência dos veterinários e dos médicos, tanto os animais como as crianças nascem cada vez menos ao domingo. Mas isso permite dominar igualmente a concepção, graças à produção de substâncias que a controlam, como a pílula - o que modifica consideralvelmente o estatuto da mulher, dissociando o acto do amor do da reprodução.
Os biólogos não se ficaram todavia por aqui, não tardaram a obter novos êxitos. Por exemplo, substituíram o corpo da mulher por um tubo de vidro, de modo a provocarem o encontro entre os espermatozóides masculinos e o óvolulo feminino. É a fecundação in vitro, preciosa quando os órgãos da mulher não se adequam ao encontro natural do sémen masculino com o óvulo feminino.
Aprendeu-se também a conservar no frio intenso, durante longos períodos, espermatozóides e embriões com algumas horas ou alguns dias - à espera de fazer o mesmo com os óvulos femininos, o que parece mais difícil.
Estas técnicas foram desenvolvidas para permitirem aos homens e mulheres com malformações no seu sistema de procriação natural - ou seja, estéreis - a possibilidade de terem a criança que tão intensamente desejam. São, portanto, úteis e já tornaram felizes inúmeros casais, mas podem também ser utilizadas para além destes casos de esterilidade, para possibilitarem a procriação fora das normas tradicionais, entrando assim, por vezes, em conflito com a moral e as instituições da sociedade. Por exemplo, ao permitirem a um casal de mulheres homossexuais ter uma criança sem relações sexuais com um homem - por inseminação artificial do esperma de um dador anónimo.
Estes processos permitem além disso a manipulação e a observação dos elementos da procriação - espermatozóides, óvulos e embriões -, o que até agora era impossível. Isto coloca igualmente problemas morais e de sociedade. Para alguns investigadores, este tipo de manipulações não se reveste de uma gravidade por aí além, desde que se mantenham no âmbito de um processo médico controlado. Para outros trata-se de um desvio insensato, que conduz à desumanização dos comportamentos, num domínio em que a natureza não deveria nunca perder os seus direitos.
Ainda estaremos a tempo de reflectir, para decidir quem tem razão? Estas técnicas de procriação assistida vão inevitavelmente ser desenvolvidas. Por outro lado, sob pressão dos casais com problemas de esterilidade; por outro, e com igual força, a pedido dos que desejam trazer ao mundo uma criança sem se importarem com as convenções sociais. É forçoso reconhecer que os progressos são rápidos, o controle difícil e que os pontos de vista divergem. Tomemos o exemplo, agora banal, da inseminação artificial com o esperma de um dador anónimo, utilizada quando o marido é estéril. Oficialmente, esta fecundação da mulher faz-se num centro de colheita, onde são tomadas todas as precauções para que seja mantido o segredo quanto à identidade do dador, e onde esta prática é reservada aos casais legais. Mas a sua técnica é tão simples que pode ser aplicada em qualquer consultório médico. Quem poderá pois impedir a inseminação de uma mulher celibatária que deseja ter uma criança sem recorrer a relações heterossexuais? Ou a introdução de uma criança num casal de lésbicas? Quem se irá opor a que uma mulher reclame do médico uma criança com origem num dador perfeitamente definido, tanto física como intelectualmente - ou mesmo identificado?
Assistiu-se, nos Estados Unidos, à criação daquilo a que se chamou «bancos de esperma dos Prémios Nobel», locais de compra, a preços extravagantes, do sémen de homens reputados muito inteligentes. Prática que revela uma preocupação evidente de eugenismo, muito discutível, e que constitui além disso uma fraude, porque está demonstrado que as hipóteses de a criança herdar as qualidades do pai dependem inteiramemnte do acaso: podem aproximar-se dos 100 por cento, mas também do zero.
A inseminação artificial não resolve o problema mais importante que é o do futuro das crianças que produz. Qual será o estado psicológico de uma criança sem pai, nascida no seio de um casal de mulheres homossexuais? Ou daquela que for concebida por uma mãe tão egoísta que, logo à partida, se recusa partilhar o seu filho com um homem? Lembram-se daquela jovem que queria ter um filho do marido falecido com um cancro, após ter depositado o seu esperma num «banco»? Seria possível que esta criança, caso tivesse nascido, não viesse a ser psicologicamente afectada por dever a vida a um morto e ter nascido, órfã por exclusiva vontade da mãe?
Os responsáveis políticos hesitam perante os desenvolvimentos da técnica, como se pode verificar facilmente pela diversidade das legislações existentes. Na Suécia, o anonimato dos dadores já não é obrigatório desde 1985; a criança pode pois conhecer o seu pai biológico. Em França, pelo contrário, desenvolveram-se todos os esforços para que o dador de esperma se mantenha anónimo para sempre. Quem é que tem razão? Qual será a situação mais favorável ao desenvolvimento harmonioso da criança? Em França, ela crescerá na mentira medicalizada, socializada, numa conivência cuidadosamente elaborada, mas frágil. Será o segredo sempre bem guardado entre o marido estéril, que se culpabiliza, e a mulher, que fantasia à volta de um adultério médico a que se prestou? Bastará uma degradação da harmonia do casal para que voe em estilhaços, para que a verdade irrompa brutalmente. A criança arrisca-se então a perder tudo: o pai social que, de um momento para outro, lhe poderá surgir como um estranho, e o pai biológico, que não tem hipótese nenhuma de descobrir, perdido num anonimato cuidadosamente preservado.
Levantar o anonimato coloca outros problemas. Todo o dador sueco deve saber que, um dia, um adolescente pode dizer-lhe: «Eu sou teu filho.» A situação é de tal maneira nova que ninguém pode garantir se isso será ou não benéfico para o único ser interessado nesta montagem biológica, isto é, a criança. A lei sueca tem em todo o caso o mérito da franqueza; baseia-se na evidência de que toda a criança tem direito à verdade sobre as suas origens. Isto sem perturbar necessariamente a ordem social, visto que a revelação não é obrigatória; ela só se fará no caso de a criança a reclamar na idade adulta. Esta disparidade de regras traduz, uma vez mais, o facto de a biologia avançar mais depressa do que a legislação e a moral, tanto a individual como a social.
O destino dos embriões órfãos
A situação é mais preocupante ainda com a técnica da fecundação in vitro, imaginada para remediar a infertilidade de mulheres cujos órgãos não se prestam à fecundação natural. O médico provoca o encontro, dentro de um tubo de vidro, do óvulo feminino com os espermatozóides masculinos. Vários milhares de bebés-provetas vieram assim ao mundo depois de Louise Brown, que nasceu em Inglaterra em Julho de 1978, graças à determinação dos Drs' Edwards e Streptoe.
Na prática, deixa-se o ovo fecundado durante alguns dias num tubo de vidro, a uma temperatura conveniente, para que comece a dividir-se. Depois de se terem formado já algumas células, o embrião é então colocado no útero da futura mãe, onde virá a desenvolver-se naturalmente.
Esta técnica, hoje bastante bem dominada, permite obter resultados aceitáveis, embora ainda inferiores aos da fecundação natural - mas a situação poderá vir a inverter-se em breve.
Quem impedirá então os casais atormentados pelo desejo - imperativo e urgente, os ginecologistas bem o sabem - de terem uma criança de assediarem os médicos para utilizarem esta prática?
A questão é importante, porque o método apresenta particularidades que colocam consideráveis problemas morais. Para que a operação tenha mais possibilidades de resultar, o médico retira e fertiliza vários óvulos femininos, a partir dos quais se obtêm, consequentemente, vários embrões. Geralmente, são implantados três no útero da futura mãe, para que pelo menos um deles se desenvolva convenientemente. É este facto que, por vezes, provoca nascimentos de gémeos ou triplos, geralmente bem aceites pelo casal ameaçado de esterilidade.
Quando a primeira tentativa fracassa, repete-se a operação recorrendo aos embriões de reserva congelados, que serão implantados no útero da paciente. Mas qual será o destino destes embriões se o primeiro ensaio resultar? Esta questão suscita, desde há alguns anos, apaixonados debates. Alguns médicos, como o Dr' Edwards, o promotor deste método, desejariam manter estes embriões vivos, congelados, para virem a ser utilizados em experiências científicas. Ou então que se empreenda o seu desenvolvimento artificial até atingirem várias semanas, podendo deste modo constituir-se um stock de tecidos prontos a serem utilizados pelo seu gémeo, em caso de necessidade. Esta utilização dos embriões supranumerários como reserva de peças sobresselentes para organismos humanos choca profundamente outros biólogos, que defendem a sua destruição, para que não se ceda a esta tentação.
Que experiências é que poderiam ser tentadas nestes embriões? Há já quinze anos que os biólogos sabem manipular os embriões dos ratos. Podem separar as células, explica Jean-Louis Guénet, do Instituto Pasteur, misturá-las com outras, fazê-las crescer em proveta e depois reimplantá-las num outro ovo. Sabem também fabricar dois embriões gémeos a partir de um só ovo, cortando-o ao meio, ou reduzir dois embriões a um só, fundindo-os. Injectam num ovo de rato fecundado elementos da hereditariedade de outros ratos, e até de outras espécies animais, produzindo aquilo a que se chama «quimeras».
O que é realizável no rato também o é noutros mamíferos, ainda que nem todos os problemas técnicos se encontrem convenientemente resolvidos. Escapará o homem a estas tentativas? Só os escrúpulos morais é que as impedem. Os cientistas do I'N'R'A' (Instituto Nacional de Investigação Agronómica) produzem gémeos perfeitos cortando um embrião de vitelo e colocando cada uma das suas metades no útero de uma vaca. Até agora, ninguém ousou tentar fazer isto com um embrião humano, mas os especialistas afirmam que não seria uma façanha excepcional.
O Comité Nacional da Ética opõe-se moralmente, porque não tem outro poder, a estas manipulações no embrião humano. Contudo, aceita provisoriamente as investigações susceptíveis de aplicação médica imediata, nomeadamente no domínio da fecundação in vitro, até aos primeiros sete dias de vida embrionária. Mas não existe nenhuma unanimidade quanto ao limite deste período. Noutros países podem ser efectuadas até aos quinze dias, data em que aparece o esboço do sistema nervoso que conduzirá à formação do cérebro. Marie-Ange d'Adler, na sua admirável série televisiva «Os Feiticeiros da Vida», entrevistou o americano Gary Hodgen, que dirige um laboratório financiado pela indústria farmaceêutica, na Virgínia. Hodgen deseja produzir embriões humanos destinados à investigação médica, sem ter de se preocupar com a sua idade. Admite apenas a necessidade de se respeitar um embrião a partir do quadragésimo dia, que é quando se formam os órgãos, o esqueleto e o cérebro. Antes disso, afirma ele, nada indica que seja um ser humano.
Recentemente, assistiu-se ao aparecimento, entre os biólogos anglo-saxónicos, da curiosa noção de «pré-embrião». Segundo eles, só se deveria falar de embrião a partir do décimo quarto dia; antes disso, trata-se apenas de um conjunto de células indiferenciadas ou mal diferenciadas. Isto permite aliviar a consciência daqueles que pretendem utilizar embriões com menos de quatorze dias para experiências científicas. A Europa continental mostra-se reservada. Os Franceses são influenciados pela moral cristã, que afirma que o ser humano existe dsde o momento da concepção. O Conselho da Europa tomou claramente posição contra qualquer investigação ou experimentação no embrião humano, excepto se corresponder a uma necessidade médica evidente, e neste caso só com autorização expressa dos pais. O Parlamento Europeu deseja que um texto internacional defina rapidamemde o que se pode fazer e o que não se deve fazer nos embriões humanos, de modo a nunca se atentar contra a dignidade e a integridade humanas.
Para os católicos, o embrião é, evidentemente, um esboço de uma vida humana, e o seu único lugar é no ventre materno. Mas então, que fazer com estes embriões órfãos que esperam congelados num tubo de vidro - aqueles que já não são desejados pela mãe, ou cujos progenitores já morreram. A Igreja recusa a possibilidade de os dar a outros casais, pois as crianças a que dariam origem escapariam à regra que pretende que ela, seja fruto do amor entre o homem e a mulher. Com grande mágoa, o jesuíta Patrick Verspieren, especialista em ética médica, tenta sair do impasse propondo uma solução que não é admitida pela hierarquia católica. Vale mais deixá-los morrer, afirma ele, tendo em conta a situação ilógica em que nos coloca este avanço extremamente rápido da biologia. Não é uma boa solução, admite, mas todas as outras seriam piores.
Jacques Testart é um dos biólogos que põem em causa este tipo de intervenções. Este cientista - um dos «pais» do primeiro bebé-proveta francês, Amandine, graças aos seus trabalhos sobre os ciclos hormonais - interpela publicamente os seus pares e afirma recusar-se a satisfazer os pedidos que assolam actualmente os biólogos para procederem a fecundações in vitro apenas para se poder observar os embriões, verificar o seu sexo ou a sua normalidade e até, eventualmente, intervir sobre eles.
Todos os especialistas destas novas técnicas de procriação assistida receberam já semelhantes pedidos, afirmando todavia tê-los recusado. Até quando? - pergunta Jacques Testart. Até ao momento, não recebeu resposta de nenhum dos seus colegas. Isto inquieta juristas e moralistas, que colocam a questão do futuro do embrião, até aqui escondido, invisível, fora do alcance dos homens - e que subitamente se torna objecto de conhecimento de acção. Será em breve instrumentalizado, comercializado - pergunta Catherine Labrusse-Riou -, programado e normalizado? Em nome de quê: da ciência, de uma reprodução humana industrializada?
Também os psicólogos e os psiquiatras advertem os biólogos contra os excessos de poder sobre o embrião. Devemos pensar, diz Hubert Montagner, se esta manipulação não se repercutirá sobre as capacidades de percepção e aprendizagem do futuro bebé. A manipulação daquilo que nos parece um simples amontoado de células poderia modificar a sua excitabilidade, o modo como essas células comunicam entre si para assegurarem o coerente desenvolvimento do organismo. Depois da descoberta das admiráveis capacidades do recém-nascido, os especialistas acumulam provas da precocidade e complexidade das aptidões do embrião, o que os leva a alertarem aqueles que pretendem intervir sobre ele. Seria preciso inventar um novo direito para esse ser inacabado, tão mal definido e protegido, que é o embrião humano.
As dadoras de óvulos
As mulheres poderão em breve dar os seus óvulos, tal como o homem oferece hoje os seus espermatozóides. As mulheres inférteis devido à inacessibilidade ou inexistência dos ovários poderão obter óvulos de uma irmã ou de uma amiga, ou até de uma dadora anónima. Para esta doação, a mulher encontra-se desfavorecida em relação ao homem, pois só a pode fazer à custa de uma intervenção cirúrgica, benigna, é certo, mas não desprovida de riscos.
Neste momento, a doação de óvulos é moderada, pois ainda não é possível conservar estes óvulos no frio, como já se faz com os espermatozóides; é preciso por isso utilizá-los imediatamente, o que, além do problema de intervenção cirúrgica, reduz as possibilidades de transferência. Mas este obstáculo técnico será ultrapassado; a condição feminina será profundamente transformada. Hoje as mulheres estão condenadas a darem à luz antes dos quarenta anos, pois, daí para a frente, os riscos de insucesso e de malformações aumentam rapidamente; é que os óvulos, cujo stock é adquirido à nascença, não podem escapar ao envelhecimento.
Com a conservação dos óvulos, tudo mudará, pois a mulher poderá, aos vinte anos, colocar os seus óvulos de reserva num «banco», onde esperarão, congelados, que ela faça a sua carreira, que esgote os prazeres da vida sexual. Poderá então utilizá-los a seu bel-prazer, mesmo depois aos quarenta anos, com as mesmas hipóteses de dar à luz crianças sãs que teria vinte anos antes. Poderá finalmente ter o domínio completo da sua vida de mulher profissional e de mãe.
A dádiva de óvulos, caso venha a tornar-se mais fácil e generalizada, colocará problemas éticos mais importantes que os da dádiva de esperma. É claro que, até aqui, se a paternidade era sempre uma incógnita, a mãe constituía um elemento de certeza. Com a doação de óvulos, esta certeza será posta em causa, pois uma mulher poderá dar vida a uma criança que, biologicamente, não gerou. Será isto verdadeiramente importante? Não será a verdadeira mãe aquela que traz a criança no ventre, que a alimenta com o seu leite e lhe dá o seu carinho?
Esta técnica colocará também problemas pelo facto das habilidades que permitirá fazer, como, por exemplo, retirar um óvulo de uma homossexual, fecundá-lo com os espermatozóides de um dador anónimo e transferir em seguida o embrião para o útero da sua companheira; cada uma das duas mulheres terá assim percorrido parte do caminho que leva à maternidade. Não seria impossível, sustentam alguns, provocar artificialmente a fusão de dois óvulos maduros, provenientes de duas mulheres, para obter, sem intervenção masculina, um embrião que poderia ser implantado no útero de uma ou outra das duas lésbicas. O resultado à nascença seria inevitavelmente uma rapariga, pois a masculinidade só pode ser fornecida pelos espermatozóides. Esta experiência tem sido tentada desde 1977, no rato, sem contudo produzir resultados. Nunca foi tentada no homem.
Uma técnica americana, que permite a dádiva do óvulo sem recurso a uma intervenção cirúrgica, consiste em lavar o útero para obter o óvulo. O seu «perfume veterinário» - trata-se de uma prática utilizada com as vacas - desagrada os ginecologistas franceses. Este processo pode favorecer uma gravidez extra-uterina, e não está isento de perigos de infecção, mas permite, em contrapartida, evitar a inseminação artificial. O esperma do homem cuja mulher é estéril é utilizado para fecundar um óvulo no ventre da dadora; o embrião de cinco dias é em seguida «lavado», antes de ser implantado no útero da futura mãe.
As mães-hospedeiras
Estamos próximos, com esta técnica, do empréstimo do útero por «mães-hospedeiras» que aceitam ser fecundadas pelo esperma do marido de uma mulher estéril e conservar a criança no ventre até ao seu nascimento. Condenada pelos Comités de Ética, esta prática é contrária à lei francesa, e só é efectuada clandestinamente; não se conhece, portanto, nenhuma estatística referente à sua frequência, que é provavelmente reduzida, falando-se em algumas dezenas de casos por ano. Nos Estados Unidos, o «aluguer de ventres» é uma actividade intensa e lucrativa; uma vintena de escritórios de advogados especializados dispõem de uma rede de dadoras recrutadas por anúncios, e o preço desta «operação» é de pelo menos 400 contos.
Qual será o futuro desta forma desesperada de possuir uma criança, que já provocou uma série de dramas? Algumas mães-hospedeiras recusaram-se a dar à luz a criança, outras pariram «órfãos» que ninguém deseja, portadores de malformações inesperadas. Esta técnica antinatural provoca perturbações psicológicas, tanto no casal estéril como na mãe-hospedeira. Não se alimenta um ser durante nove meses para o abandonar à nascença sem que isto traga problemas, mesmo que as regras do jogo tenham sido bem estabelecidas.
Na realidade, é a criança quem mais arrisca nesta aventura. Esta «criança-prótese», como lhe chama o teólogo católico Oliver de Dinechin, parece ter como única função preencher o vazio num casal estéril. É objecto de um contrato ilícito, nulo, pois uma pessoa não é um bem e, portanto, não pode - tanto pelo direito como pela moral - ser vendida ou alugada.
A gravidez «in vitro»
Em França, o Comité Nacional de Ética pediu a interdição das tentativas de transplantação de embriões entre o homem e os animais - serão, portanto, possíveis? -, bem como as investigações que visam o desenvolvimento do embrião in vitro até ao nascimento.
Tornar-se-á isto possível? Virão a caminho os «filhos do Pyrex»? Já hoje se desenvolvem ratos em proveta durante os primeiros dois terços da sua vida embrionária, o que equivaleria a cultivar embriões humanos durante seis meses. Nós não somos ratos, mas somos mamíferos como eles, e muitos exemplos mostram as profundas semelhanças no comportamento dos organismos de ambos. Os biólogos consideram que a gestação completa de um rato ou de uma ratazana em proveta será conseguida dentro de alguns anos. No caso dos embrões assim desenvolvidos, já se pode ver o coração bater; morrem antes do termo da gestação porque lhes faltam certas substâncias que ainda não somos capazes de lhes fornecer artificialmente, mas isso não virá longe.
Nada impedirá então as tentativas de produção de um ser humano através de uma gravidez in vitro. Já se encontram em estudo úteros artificiais. A principal dificuldade não reside na criação deste ninho, mas sim na substituição da placenta, que permite as trocas nutritivas entre a mãe e o feto, e que é muito difícil de imitar. Contudo, conhece-se bastante bem o seu funcionamento, o que permite pensar que a sua réplica artificial não está fora do nosso alcance. Quanto ao líquido nutritivo, será constituído simplesmente por sangue, enriquecido, se necessário, pela adição de algumas outras substâncias.
O verdadeiro problema situa-se uma vez mais fora do âmbito da técnica. Compreende-se cada vez melhor os laços misteriosos, mas profundos, que se tecem entre a mãe e a criança por ela gerada. Como será uma criança produzida fora desses laços, fora do corpo da mulher? Será capaz, mais tarde, de dispor de todos os meios para se desenvolver normalmente, sem ter participado nesse subtil complot, nessas trocas em que o orgânico e o afectivo se interligam? Ninguém pode hoje responder a estas questões fundamentais, mas será necessário resolvê-las antes de prosseguir as investigações sobre a gravidez in vitro.
Uma vez tornada realidade, representará esta possibilidade uma nova libertação da mulher? Algumas feministas colocam a questão. Com alguma razão, temem que se passe demasiado depressa de uma maternidade escrava à atrofia das funções de reprodução que constituem uma parte essencial da nobreza da mulher - sem, entretanto, terem realmente sido objecto de reconhecimento social e cultural.
Se esta técnica vier a estar ao alcance de toda a gente, quantas mulheres quererão utilizá-la? Será reservada pelos médicos para casos bem precisos ou, pelo contrário, acessível a todos? Se este método vier a tornar-se um modo de procriação habitual, a humanidade inaugurará uma nova etapa da sua evolução, em que as crianças, já concebidas fora do corpo do homem e da mulher, ficarão a cargo de máquinas até ao nascimento. Uma vez dado esse passo, continuará a humanidade a ser a mesma?
Da gravidez masculina
Os ginecologistas recebem periodicamente cartas, por vezes dolorosas, de homossexuais e transexuais pedindo que lhes seja inplantado um embrião na parede do intestino, de modo a poderem ter uma criança. Afirmações imprudentes terão feito supor que um ovo fecundado poderia desenvolver-se no intestino do mesmo modo que no útero. Nenhum destes pedidos foi aceite, e têm poucas hipóteses de vir a sê-lo alguma vez, pois a intervenção necessária implicaria um risco mortal para o paciente.
O mito da gravidez masculina reveste-se todavia de aspectos pitorescos, e encontra-se presente em muitas populações. Este mito baseia-se, provavelmente, no facto de existirem casos de gravidez extra-uterina, medicamente controlados, em que a gestação se efectua na parede do abdómen materno. A literatura médica regista um destes casos, o de uma mulher sem útero que deu à luz uma criança - em 1979 na Nova Zelândia - cuja gestação se efectura no seu abdómen.
Porquê recusar isto aos homens? Conta-se que, em 1759, um produtor de cerveja de Dordrecht, Isach Slek, de trinta e dois anos - que se queixava de dores na barriga havia já algumas semanas - foi operado e, perante a estupefacção dos cirurgiões, verificou-se que uma criança do sexo masculino se tinha desenvolvido entre o diafragma e o intestino do paciente. Não está provada a autenticidade desta história, veiculada pelas crónicas médicas. Geralmente, os homens vivem o fantasma da gravidez de outros modos: desenvolvem terçolhos, sofrem dos rins ou da barriga, têm dores de dentes ou hemorragias insólitas. O Dr' René Frydman cita o caso de um homem que fez uma apendicite aguda dois dias antes do parto da mulher.
Na verdade, os homens não possuem o mecanismo hormonal que permite à mulher engravidar. Será isso um verdadeiro obstáculo? Algumas mulheres sem ovários e, portanto, sem hormonas femininas, tornaram-se mães graças à injecção controlada dessas hormonas. Existem provavelmente outros obstáculos fisiológicos que impedem a gravidez masculina - que, de qualquer modo, não apresentaria qualquer interesse, nem científico nem prático, não sendo, portanto, objecto de nenhuma investigação conhecida.
''' às crianças sem pai
Em contrapartida, seria possível permitir às mulheres terem crianças sem a participação do homem? Não é tecnicamente impossível, através da fusão de dois óvulos maduros, produzir um ovo fecundado - que apenas poderia dar origem a uma rapariga. Por outro lado, a natureza fornece-nos exemplos daquilo a que os biólogos chamam partenogénese, que constitui o processo de reprodução habitual dos pulgões e das abelhas e, de um modo menos sistemático, dos peixes e de alguns batráquios. Segundo Remy de Gourmont, o macho é um acidente, a fêmea teria sido suficiente. Esta opinião está longe de ser partilhada por todos os cientistas, uma vez que se criaria um mundo sem pontos de referência, em que os seres com reprodução sexuada só dariam à luz fêmeas.
Sabe-se hoje provocar a partenogénese nalgumas espécies, recorrendo a certos artifícios. Provoca-se o nascimento de ouriços-do-mar ou de rãs picando os seus ovos, excitando-os através de uma corrente eléctrica ou mesmo submetendo-os bruscamente ao calor ou ao frio. O americano Pincus, o pai da pílula, conseguiu produzir um láparo excitando um ovo de coelho, mas essa experiência não foi validada, pois mais ninguém conseguiu reproduzi-la.
Em 1956, uma médica britânica, Helen Spurway, intrigada com os boatos que corriam de vez em quando a propósito de nascimentos de crianças sem pai, resolveu investigar. Pôs um anúncio nos jornais pedidndo às mulheres que tinham vivido essa experiência que a contactassem. Recebeu assim dezanove respostas válidas, uma das quais era particularmente intrigante. Fizeram-se enxertos de pele entre a mãe e a filha supostamente nascida sem pai, mas nenhum desses enxertos resultou. A hereditariedade da mãe e da filha não era, portanto, a mesma - ao contrário do que deveria ter-se verificado se nenhum homem tivesse participado na concepção da criança.
Os biólogos mostram-se pois prudentes e não possuem nenhuma prova de que os nascimentos sem pai sejam possíveis na espécie humana. Mas também não excluem essa possibilidade. O Professor Charles Thibault, um dos franceses pioneiros da fertilidade, não vê nela nada de chocante; no dia em que essa possibilidade se tornasse realidade num mamífero, não se oporia a que se tentasse o seu estudo na mulher. «Seria menos aborrecido, comenta, do que a inseminação artificial com os espermatozóides de um dador, pois pelo menos não envolveria a introdução de nada estranho ao casal.» Dito isto, a eventual generalização da partenogénese colocaria múltiplos problemas. Por um lado, nasceriam apenas raparigas e, por outro, empobrecer-se-ia o património genético do grupo, pela exclusão da hereditariedade masculina, o que poderia favorecer o desenvolvimento de todo o tipo de deficiências.
Menino ou menina, por encomenda
Seja como for, é provável que em breve possamos escolher, de um modo seguro, o sexo dos nossos filhos - o que poderia modificar a condição do homem. Nascem naturalmente mais rapazes do que raparigas - cento e cinco contra cem. A desproporção é ainda maior na altura da concepção, pois o número de embriões masculinos precocemente expulsos é superior ao das raparigas. Pretendeu assim a natureza, na sua infinita previdência, assegurar a descendência humana, sabendo que morrem mais homens na guerra e que vivem menos tempo do que as mulheres?
Pondo de parte estas razões fantasistas, os biólogos pensam que esta superprodução de machos se deveria ao facto de o cromossoma Y, situado nos espermatozóides e que determina o sexo masculino, ser mais leve e mais ágil que os cromossomas X, femininos. O homem distancia-se da mulher, mesmo antes da concepção, na corrida ao óvulo. Esta explicação não é aceite por todos, continuando portanto o mistério por desvendar. Tanto mais que se verificam casos surpreendentes. Uma família de Nancy tornou-se célebre na literatura médica, pois há três gerações que só dá origem a rapazes. Um outro casal teve seis filhas, que pariram vinte e quatro raparigas, sucedendo o mesmo na geração seguinte. Neste caso, os óvulos femininos apenas se deixariam fecundar pelos espermatozóides possuidores do cromossoma X?
Caso admitamos estes casos raros, só o acaso parece poder decidir o sexo da futura criança. No Ocidente, a maior parte dos casais aceitam isso bastante bem. Alguns, contudo, desejariam poder escolher o sexo do primeiro filho. Não é raro aparecerem receitas apresentadas como infalíveis, mas nenhum biólogo sério lhes dá crédito. Por curiosidade, passemos em revista algumas das mais frequentes.
Algumas delas baseiam-se num facto cientificamente provado: só os espermatozóides determinam o sexo. Formar-se-á uma rapariga se os espermatozóides possuírem o cromossoma X, e um rapaz se possuírem o cromossoma Y. Para se obter um herdeiro masculino, bastaria pois dar preferência a este último. Mas como detectar, entre centenas de milhões de espermatozóides, o vencedor da corrida ao óvulo, e fazer com que ele seja portador do cromossoma Y? Até hoje, nenhum biólogo conseguiu resolver este problema.
Todavia, já há algum tempo que se sabe observar e manipular os espermatozóides. E o que se faz, por exemplo, quando se procede a uma inseminação artificial, nos casos de um marido estéril, em que se utiliza o esperma de um dador para fecundar a mulher. Observou-se que os espermatozóides portadores do cromossoma X são maiores e mais pesados, o que poderia permitir separá-los daqueles que são portadores do cromossoma Y, masculino, mais rápidos e mais ágeis. Mas as corridas de obstáculos por alguns imaginadas não deram os resultados esperados e teme-se que estas manipulações possam lesar os espermatozóides.
Outros métodos baseiam-se na alimentação das futuras mães; um excesso de potássio favoreceria o nascimento de rapazes, um excesso de produtos alcalinos o de raparigas. Mas nada foi cientificamente provado. Procuraram-se, sem sucesso, substâncias que destruíssem selectivamente os cromossomas X e Y.
Seria assim tão importante possuir uma receita infalível? Uma sondagem do I'F'O'P' mostra que 48 por cento dos pais prefeririam um rapaz, contra 40 por cento. Mas a preferência quanto ao sexo do primeiro filho não é muito evidente: 49 por cento preferiria um rapaz, 45 por cento uma rapariga. A maioria afirma que a possibilidade de escolha segura poderia constituir um factor de desentendimento e desequilíbrio no seio do casal. No Extremo Oriente, influenciado pelo confucionismo, é nítida a preferência pelos rapazes. Os abortos de raparigas sempre foram correntes na China e tornaram-se ainda mais numerosos desde que o governo limitou severamente o número de filhos. Na Coreia do Sul multiplicaram-se os exames, como a ecografia, que permitem conhecer o sexo da criança antes do nascimento; o número de abortos aumentou de tal maneira que os médicos foram proibidos de revelar os resultados. Por prudência, os médicos japoneses também não informam os pais. Na Índia, as associações femininas conseguiram obter uma regulamentação mais severa dos exames, como a amniocentese, que permitem conhecer o sexo do feto examinando as células que o rodeiam.
Contudo, os progressos da biologia levam-nos a pensar que se poderá dispor em breve de meios que permitam determinar de maneira segura o sexo da futura criança. Uma equipa francesa preparou um teste de fácil aplicação, rapidamente difundido no mundo inteiro, para conhecer o sexo dos bovinos. Baseia-se numa «sonda» genética, específica do cromossoma Y, masculino, e que é aplicada a algumas células do embrião.
Existem sondas semelhantes para a espécie humana, que por enquanto não são utilizadas, pois isso implicaria a recolha de algumas células do embrião, o que é simultânea e tecnicamente delicado e moralmente inadmissível. A experiência animal mostra que esta técnica parece não afectar o comportamento dos vitelos - mas ninguém pode afirmar que o mesmo se passará com o homem.
Uma outra aquisição recente da biologia poderia ter importantes consequências na escolha do sexo da criança. Uma equipa de investigadores americanos do célebre M'I'T', o Massachusetts Institute of Tecnology, batendo aos pontos uma equipa do Instituto Pasteur, mostrava, em fins de 1987, que o sexo masculino era determinado, no homem como nos outros mamíferos, por um gene localizado no cromossoma Y. Este gene, baptizado TDF (Testis Determining Factor), foi isolado. Poderia ser injectado em embriões de vitelos, ou enxertado no seu património genético, permitindo assim produzir machos por pedido, criar raças bovinas que apenas dessem touros. Poderia isto ser aplicável ao homem? O problema é o mesmo: seria necessária a manipulação do embrião e, por enquanto, os médicos recusam-se a praticá-la.
Mil exemplares de Einstein: a clonagem
Um jornalista americano, David Rorvik, provocou grande emoção no mundo científico e obteve um enorme sucesso de vendas com a publicação, em 1978, de um livro intitulado À Sua Imagem, que contava a história de uma reportagem, pretensamente vivida, sobre o fabrico do primeiro clone humano, do primeiro sósia perfeito realizado em laboratório.
A aventura, na realidade imaginária, era a de um rico homem de negócios que teria convencido um biólogo a fabricar esse clone a partir das suas próprias células, com vista a obter um duplo perfeito. Uma experiência que os biólogos sabem levar a cabo em certos animais, como a rã, mas que consideram ainda impossível no homem.
Prudente, o editor americano fez preceder o livro de uma nota em que explicava que era impossível autenticar a história, devido à promessa feita pelo autor de jamais revelar a identidade dos seus heróis. «O autor afirma serem verdadeiras as extraordinárias proezas que conta. Não nos é possível corroborar esta afirmação. Acreditamos simplesmente que ele escreveu uma obra com o fito de suscitar o interesse e favorecer o debate em torno de questões da maior importância para o nosso futuro imediato», dizia o editor, Lippincot.
O herói desta história, que sonhava ter um filho que fosse o seu duplo perfeito, estava disposto a investir um milhão de dólares para o conseguir. Encontrou um biólogo que aceitou o desafio. Maliciosamente, Rorvik dá-lhe o nome de Darwin. O cientista implantou o núcleo de uma célula do homem de negócios no lugar do núcleo do óvulo de uma jovem, óvulo esse que em seguida fertilizou artificialmnte. É o princípio da clonagem: o ovo assim modificado não contém, ao contrário dos ovos fecundados naturalmente, metade dos caracteres hereditários da mãe e metade dos do pai, mas unicamente os do pai, visto que é fruto de um só núcleo, o masculino.
Este ovo foi em seguida implantado, conta Rorvik, no útero de uma jovem, onde se desenvolveu normalmente para dar um clone. O autor denuncia-se voluntariamente no fim do livro, ao escrever: «Espero ter conseguido persuadir muitos leitores de que o que escrevi é possível, e mesmo provável, e que saibam tirar partido desta antestreia de um acontecimento fantástico, mas um pouco prematuro'''»
Até ao momento, os únicos casos de clonagem descritos foram conseguidos em rãs ou outros animais, retirando-se o núcleo não de uma célula adulta, mas de uma célula embrionária. É mesmo preciso que o embrião seja muito jovem, de apenas alguns dias, para que as cé-lulas estejam ainda indiferenciadas. Em 1986 conseguiu-se a clonagem com embriões de carneiro, e tenta-se fazer o mesmo com as vacas.
Está pois fora de questão, por enquanto, realizar a clonagem no homem, pelo menos a partir de um adulto. Contudo, o romance de Rorvik baseia-se nos trabalhos de um biólogo americano, frequentemente contestado pelos seus colegas, que afirma ter conseguido realizar a clonagem humana. Landrum B' Shettles, que nos anos 70 trabalhava na Universidade da Colúmbia, assegura ter retirado dos testículos de um homem o núcleo de uma célula germinal, «antepassada» dos espermatozóides, contendo os quarenta e seis cromossomas da espécie humana, e tê-lo transferido para o lugar ocupado pelo núcleo de um óvulo feminino. Este último ter-se-ia desenvolvido como se tivesse sido fecundado e Shettles teria observado o desenvolvimento de um clone humano, em laboratório, durante uma semana - ao fim da qual o teria destruído. Mas não existe nenhuma publicação sobre este trabalho, posto em dúvida por muitos biólogos.
Apesar da impossibilidade de se conseguir esta proeza, a enxertia humana suscita reflexões que nem sempre são favoráveis. A reprodução do homem por clonagem não oferece perspectivas animadoras, salienta o biólogo americano Lewis Thomas, pois suprime as relações sexuais. Estes clones seriam órfãos absolutos, afirma ainda, pois não teriam pais, no sentido comum da palavra. O geneticista Théodosius Dobzansky põe em dúvida que um mundo constituído por milhões de espíritos eminentes fosse necessariamente o melhor dos mundos. É verdade que teríamos naturalmente tendência para fazer clones dos seres mais inteligentes e mais criativos. George Wald, laureado com o Prémio Nobel da Medicina, conta um pesadelo que o atormenta: vê, numa grande estação de comboios de Nova Iorque, oito Einsteins comprando oito New York Times.
Outros vêem na clonagem uma possibilidade de manipular melhor o futuro da espécie humana, escolhendo, para reprodução em milhões de exemplares, os seres com características mais originais e raras. Como, por exemplo, os indivíduos que resistem bem às radiações - o que seria precioso no caso de um conflito nuclear -, aqueles que vêem particularmente bem na obscuridade, que resistem muito tempo debaixo de água sem respirar ou que são imunes à dor. Ou ainda, anões muito inteligentes que pudéssemos enviar em veículos cósmicos de pequenas dimensões para longas viagens através do espaço.
Os especialistas em transplantes lembram que os clones, gémeos perfeitos, aceitariam sem problemas os tecidos e órgãos dos seus congéneres, o que poderia resolver o problema da generalização de um sistema de peças sobresselentes para o organismo humano.
O biólogo britânico John Haldane imaginou a organização dessa enxertia humana. Seria preferível, afirma ele, não retirar os enxertos dos intelectuais antes dos cinquenta anos, para que a sua originalidade e personalidade pudesse ser verificada. Nos desportistas, pelo contrário, deveria proceder-se mais cedo.
Neste momento, esta técnica é ainda inaplicável ao homem. Virá ela alguma vez a dar os frutos desejados? A genética não é tudo no destino de um indivíduo, e, em dez sósias perfeitos de Einstein, poderiam aparecer alguns imbecis e nenhum físico com o mesmo génio. O ambiente que nos rodeia desde a infância, a educação que recebemos, o meio em que vivemos condicionam a nossa personalidade tanto - ou talvez mais - como os nossos genes. Para obter clones perfeitos, seria preciso criá-los em condições estritamente idênticas, o que parece difícil.
O nosso clone, afirma, por outro lado, o Professor Marc Maillet, será necessariamente mais novo que nós. Vivendo connosco, ele verá, ao olhar para nós, o que será o seu futuro; lê-lo-á na nossa vida. Conhecerá o dia da sua morte e ver-se-á morrer assistindo à nossa agonia. Será predestinado, o que poderia suscitar nele uma enorme angústia, uma ansiedade insuportável que nenhum medicamento poderia alguma vez atenuar.
Por último, nem será preciso dizê-lo, uma clonagem generalizada seria uma catástrofe para o futuro da espécie humana. Significaria o fim da diversidade genética que constitui a sua riqueza e garante o seu futuro. A igualdade, sonho insensato de alguns, conduziria ao nivelamento genético, à limitação das nossas possibilidades de adaptação, à condenação à morte do género humano.
Virá a clonagem a tornar-se possível no homem? Existe uma forma de clonagem, já eficaz na vaca, que poderia vir a ser aplicada ao homem. Consistiria em retirar o núcleo de uma célula de um embrião - no caso da produção de um bebé-proveta, por exemplo - e transferi-lo para um ovo, que seria em seguida colocado no útero de uma mãe-hospedeira. Ninguém tentou ainda esta experiência. Paul Segall, da Universidade de Berkeley, imagina que esta clonagem poderia permitir a criação de embriões que, conservados no frio, formariam uma espécie de banco de cálulas e tecidos utilizáveis na pessoa que tivesse fornecido a célula inicial. Se achamos escandaloso utilizar o ventre de uma mulher para produzir estes embriões dadores, afirma ele, numa entrevista publicada na revista americana Omni, poderia recorrer-se a chimpanzés fêmeas, enquanto não somos capazes de cultivar in vitro um embrião humano durante algumas semanas. Ou então recorrer a um útero humano extraído cirurgicamente e mantido em estado de funcionamento; já se consegue fazê-lo durante algumas horas, bastaria prolongar a operação durante algumas semanas.
Os biólogos do I'N'R'A' sabem retirar os núcleos de células embrionárias e implantá-los em ovos fecundados de vacas, dando assim origem a vacas clonadas, exactamente iguais umas às outras, o que permite produzir dezenas de exemplares de um animal excepcional. Ainda não se consegue utilizar, para esta clonagem, as células de um animal adulto premiado num concurso agrícola. Mas, em compensação, sabe dividir-se um embrião em dois de modo a produzir dois vitelos idênticos; bastaria então congelar um desses dois embriões para o utilizar mais tarde na produção de dezenas de clones, caso o seu embrião gémeo desse origem a uma vaca de qualidades excepcionais.
Qual a distância entre a vaca e o homem? Tudo depende do ponto de vista em que nos colocamos. Tecnicamente, o que é possível fazer num caso sê-lo-á também no outro. Mas, moralmente, isso parece difícil de imaginar. No entanto, o biólogo Willadsen, o autor da clonagem de carneiros, ao falar recentemente num congresso internacional, iniciou a sua exposição dizendo: «Verifico que alguns médicos europeus tomam posição contra as manipulações de embrões e condenam a clonagem humana - nesse caso, porque é que me pediram para vos vir falar hoje aqui?»
Mas existe outra via que poderá vir a favorecer a clonagem. Avança-se hoje no conhecimento do processo que leva as células indiferenciadas do embrião a especializarem-se na construção das diversas partes de um organismo. Isto significa que poderá vir a ser possível, em sentido inverso, levar as células de um indivíduo a regressarem ao seu estado de indiferenciação inicial, o que permitiria utilizá-las para efectuar clonagens.
Actualmente, a clonagem possui já duas aplicações diferentes, ambas fascinantes. Uma consiste na obtenção de uma imagem biológica de seres extintos. Utilizou-se assim a clonagem de genes e reconstituiu-se uma parte da hereditariedade do quagga, um parente do cavalo e da zebra desaparecido há um século, a partir de um fragmento de pele seca conservado num museu alemão. Espera-se vir a fazer o mesmo com os restos de mamutes com milhares de anos que foram encontrados congelados na Sibéria.
Caso se implante este ácido nucleico clonado no núcleo de um embrião de elefante, conseguiria reconstituir-se assim um mamute? Até agora, ainda ninguém foi capaz de realizar esta experiência, de resultado aliás bastante duvidoso.
A outra aplicação consiste na clonagem de microrganismos ou de anticorpos. O facto de se conseguir produzir milhões de exemplares de determinado micróbio reveste-se de extrema importância, pois esses minúsculos organismos podem fabricar substâncias úteis para a indústria farmacêutica. A produção de anticorpos monoclonais constitui um progresso enorme na imunologia; dispôs-se assim pela primeira vez de um reagente perfeitamente identificado, que permite compreender as reacções de defesa do organismo e reforçá-las. Isto torna possível classificar os tecidos susceptíveis de serem afectados em enxertos, produzir anticorpos para vacinação, associar a estes anticorpos monoclonais medicamentos dirigidos a alvos precisos. Esta mesma técnica de clonagem, utilizada na indústria hortícola, permitiu recentemente a produção de milhões de roseiras ou de orquídeas semelhantes, pela multiplicação in vitro das células ainda indiferenciadas da parte superior do caule, equivalentes na planta às células embrionárias do animal. Podemos dispor assim de plantas com as mesmas características - perfume, cor e, sobretudo, resistência às doenças e aos insectos.
OS CLIMAS DE AMANHÃ
O futuro do homem poderá vir a ser perturbado por fenómenos naturais contra os quais talvez não estejamos tão bem armados como os nossos antepassados. Que faríamos nós face a uma alteração importante do clima do planeta? A civilização dotou-nos de meios eficazes para resistirmos ao frio e ao calor, mas ao mesmo tempo amoleceu os nossos reflexos naturais e reduziu as nossas possibilidades de adaptação. Os homens da Pré-História sobreviveram aos frios intensos que reinavam na Europa há vinte mil anos, protegendo-se apenas com peles de animais. Os gelos cobriam então todo o Norte da Europa e da América; o território francês a norte de Poitiers era um deserto gelado, uma tundra siberiana no Inverno. Nesta era glaciária, a temperatura média do globo era 6 a 9o C inferior à de hoje, e o nível dos mares desceu uma centena de metros; por sua vez, a massa de gelo armazenado nos pólos era três vezes superior à actual.
O fim desta era glaciária, há dez mil anos, provocou grandes transformações na Terra. Os gelos, ao fundirem-se, elevaram o nível dos oceanos em cerca de cem metros, até se atingir o recorte de costas que hoje conhecemos. Este aquecimento veio alterar profundamente a vida dos homens, possibilitando o aparecimento da agricultura, no Médio Oriente, e das primeiras aldeias. O homem, que desde há mais de um milhão de anos tirava a sua subsistência da caça e da recolecção, correndo de um lado para o outro à procura de regiões mais favoráveis e de melhores terrenos de caça, fixar-se-á gradualmente e nas terras de cultivo, passando a viver em casas de barro. A sua vida começa a obedecer a uma nova organização, que está na origem da nossa actual civilização. É aquilo a que se chama a revolução neolítica, sem dúvida a mais importante alguma vez vivida pela espécie humana. O homem perde então a sua liberdade de errante, mas torna-se capaz de construir uma cultura inteiramente nova, a cultura dos camponeses e, seguidamente, dos citadinos. Deixa de viver ao deus-dará; começa a armazenar as suas colheitas, e não tardará a cumular riquezas. O caçador-recolector não possuía nada; talhava as suas armas à medida das suas necessidades, e toda a riqueza constituía para ele um estorvo, pois tinha de se deslocar incessantemente.
Esta revolução marcou profundamente o homem, pois o caçador que se transforma em camponês vê o mundo com outros olhos. Não deixa por certo de ser um exímio conhecedor da natureza, mas precisa de dar mais atenção a certas coisas - o solo das suas terras, a maneira como o céu anuncia a chuva, a data em que mudam as estações - que condicionam as colheitas e, consequentemente, a sua subsistência. Ao tornar-se camponês, vê do mesmo passo abrir-se-lhe a possibilidade de vir a aceder àquilo a que hoje chamamos o «espírito científico», que lhe permitirá, um pouco mais tarde, inventar a metalurgia e criar as primeiras civilizações urbanas, na Suméria.
Estas mudanças capitais - que lançaram a humanidade na via que hoje trilhamos - deveram-se, provavelmente, a uma ínfima alteração da trajectória da Terra em torno do Sol. Com efeito, calculou-se que uma variação da distância Terra-Sol da ordem dos 0,7 por cento provocaria um aumento ou uma diminuição de 20 por cento da quantidade de energia recebida pelo planeta - o bastante para tornar o clima do globo tórrido ou glacial.
Uma variação mínima, desde que suficientemente duradora, é pois capaz de provocar gigantescas alterações climáticas - o que pode levar-nos a recear o pior, visto que o homem possui, desde há algum tempo, o poder de produzir estas variações. De há um século a esta parte, a actividade industrial e o aquecimento doméstico lançam para a atmosfera quantidades crescentes de dióxido de carbono. A determinada altitude, este gás forma uma camada que bloqueia as irradiações que se escapam da Terra, provocando assim um efeito de estufa que aquece inevitavelmente o clima do planeta. Ao ritmo actual, a quantidade de dióxido de carbono assim libertada duplicará no decurso do próximo século, podendo originar uma elevação de 2 ou 3o C na temperatura do globo. Este aquecimento seria suficiente para fazer subir os ciclones tropicais - duas vezes mais numerosos e mortíferos - para as regiões temperadas. No Inverno cairiam chuvas torrenciais, enquanto os Verões se tornariam secos. O nível dos mares subiria vários metros, na sequência da fusão dos gelos polares, e todas as grandes cidades portuárias seriam inundadas. A agricultura e a vegetação seriam totalmente devastadas.
Esta hipótese é previsível à escala do século, se nada se fizer, de imediato, para diminuir a expulsão de dióxido de carbono para a atmosfera. Mas há ainda outro cenário possível: o de um conflito generalizado, que mergulharia o mundo naquilo a que já hoje se chama o «Inverno nuclear». Uma guerra atómica que fizesse explodir dez mil megatoneladas de bombas H, não só provocaria trezentos milhões de mortos como lançaria para a atmosfera um bilião de toneladas de poeiras. O céu escureceria, a luz do Sol deixaria de chegar até nós; a temperatura desceria até aos 15 graus negativos, reinstalando na Terra as piores condições glaciárias. O clima da França tornar-se-ia análogo ao da Gronelândia, a luminosidade em pleno dia seria de um luar de intensidade média. Observações efectuadas sobre as poeiras projectadas por grandes erupções de vulcões e os fumos de incêndio de florestas confirmaram as previsões mais pessimistas. Para os biólogos, não é possível duvidar: esse Inverno nuclear significaria o desaparecimento da maior parte das espécies vivas, e a sobrevivência do homem seria improvável.
A temperatura da inteligência
Mesmo sem imaginar que venham a produzir-se estas catástrofes extremas, não será por certo inútil tentar prever se o homem poderia resistir a uma redução mais modesta, mas significativa, da temperatura do globo. O animal de savana quente que fomos nos primórdios da espécie, há três milhões de anos, fez notáveis esforços para se adaptar a condições muito diferentes das que foram inicialmente as suas, mas não é seguro que sejamos hoje capazes de repetir essa proeza.
Perdemos as capacidades naturais de adaptação que ainda hoje possuem muitos animais, que é possível, sem danos de maior, fazer passar do calor ao frio. A temperatura do nosso corpo - 37o C - é, provavelmente, a da inteligência, pois somos os únicos, juntamente com os outros primatas nossos primos, a manter essa temperatura interna, quer faça calor ou frio no exterior. Os gatos e os cães vivem a 38o C, os elefantes a 36o C. O tamanho também tem a sua influência nesta matéria, pois os homens pequenos tendem a possuir uma temperatura interna ligeiramente mais elevada do que os grandes.
O cérebro é o órgão que pior suporta as diferenças de temperatura - e é precisamente isso que nos leva a pensar na ligação desta constante de 37o C à inteligência. É, aliás, no cérebro que se encontra situado o nosso termóstato natural, responsável pela intensificação da actividade interna do organismo - que utiliza então as suas gorduras para a produção de calor - quando faz frio. Este órgão põe além disso os músculos a funcionar - quando tiritamos com frio, fazemo-lo para nos aquecermos - e comanda a contracção dos vasos sanguíneos da pele, a fim de diminuir as perdas de calor, reduzindo a temperatura do nosso invólucro externo.
Os Índios akalalufs - habitantes dos últimos arquipélagos desolados, batidos pelos ventos, que formam em torno do cabo Horn a extremidade sul da América - adaptaram-se notavelmente bem ao clima duríssimo da sua região. Vivem nus durante todo o ano, mesmo quando a temperatura desce até aos 0o C. Caminham sem dificuldade sobre a neve e dormem tranquilamente, mesmo quando gela. As mulheres mergulham na água gelada, à procura dos grandes moluscos que constituem o essencial da sua alimentação. Qual é o seu segredo? Verificou-se que o seu metabolismo - as suas trocas orgânicas essenciais - é cerca de 30 por cento mais elevado que o da generalidade dos outros homens. Acontece o mesmo com alguns esquimós, que também deixam a sua temperatura interna descer até aos 35o C, sem tiritarem de frio nem parecerem incomodados. Durante uma noite, o fisiologista Anderson fechou um grupo de lapões e europeus numa sala a 0o C, todos eles nus, apenas cobertos com mantas leves; os europeus passaram uma noite horrorosa, cheios de frio, a tiritar e sem pregar olho, enquanto os lapões dormiram tranquilamente, sem qualquer problema.
Outra população extremamente bem adaptada ao frio é a dos aborígenes australianos, que vivem nus no deserto, onde as noites são muito frias, dormem perfeitamente a temperaturas da ordem dos 4o C, ao ar livre, rodeados pelas brasas das suas pequenas fogueiras.
Diz-se que os indivíduos gordos resistem melhor ao frio do que os magros, e é verdade. A contracção dos vasos sanguíneos à superfície do corpo é mais acentuada neles, o que torna a sua pele mais isolante. A gordura protege-os do frio, sobretudo a «gordura preta» que possuem os recém-nascidos - sem dúvida uma reminiscência dos tempos longínquos em que o organismo das crianças que nasciam ao ar livre tinha de resistir ao frio. Esta gordura preta existe também nos Esquimós e noutros povos do Norte, bem como na maior parte dos animais das regiões muito frias.
Até que ponto é que é possível resistir ao frio, quando não se está adaptado naturalmente? Até aos 35o C de temperatura interna, apenas se sente um desconforto mais ou menos forte, variável de indivíduo para indivíduo. A partir dos 33o C, não tardam a surgir problemas graves: começa a perder-se a lucidez, bem como a vontade de sobreviver. O cérebro parece abandonar a luta, o seu termóstato sente-se ultrapassado. Entre os 31 e os 29o C, instala-se a inconsciência. Aos 30o C, as pulsações são já imperceptíveis, e aos 25o C desaparecem. Mas isso não significa necessariamente a morte, pois conhecem-se casos surpreendentes de sobrevivência, como os de jovens que voaram durante várias horas nos porões de aviões transatlânticos, a 40 graus negativos. Ou os de crianças salvas após terem permanecido mais de vinte minutos na água gelada de um lago. A baixa temperatura, o cérebro pode continuar a funcionar sem ser irrigado de sangue; a paragem cardíaca não é pois sinónimo de morte sob frio intenso, a não ser que seja prolongado, o que leva os médicos a tentarem sempre a reanimação - mesmo nos casos mais absurdos - e muitas vezes com êxito.
A morte é mais rápida na água, pois o seu poder de arrefecimento é maior que o do ar. Em águas calmas a 15o C, um náufrago perde a consciência ao fim de quatro horas, e morre ao cabo de oito; se tiver a sorte de ser envolvido por uma camada de gordura, pode sobreviver cerca de doze horas. Com água a 10o C, a sobrevivência não vai além de uma hora, mas é possível prolongá-la mantendo a nuca fora de água, pois é aí que se encontram situados os centros nervosos da respiração e da regulação térmica. Durante a última guerra, alguns aviadores conseguiram salvar-se graças ao dispositivo especial que lhes mantinha a cabeça fora de água, quando caíam no mar.
Será possível habituarmo-nos ao frio? Alguns grupos humanos demonstram que sim. As mergulhadoras coreanas permanecem várias horas, nuas, em águas a 10o C. A sua temperatura interna desce sem problemas até aos 33o C. Mas isto resulta de um treino intenso, que praticam desde a infância e que provoca a aceleração do seu metabolismo interno, como acontece com os Esquimós. Também os alpinistas e os exploradores polares se treinam intensamente para o frio, tomando longos banhos com água a 15o C e dormindo na varanda, com pouca roupa, seja qual for a temperatura exterior. É assim que conseguem retardar o aparecimento dos arrepios de frio e suportar melhor as baixas temperaturas.
Os pescadores das zonas frias do Norte da Europa adquiriram uma resistência excepcional ao frio, que lhes permite mergulhar as mãos na água gelada sem sentirem dores nem sofrerem queimaduras de gelo. Adquiriram aquilo a que se chama o «reflexo do caçador»: as pequenas artérias que irrigam a pele contraem-se e dilatam-se sucessivamente, facilitando assim o aquecimento das extremidades e a sua reoxigenação. Esta adaptação é hereditária, pois aqueles que vivem hoje em casas aquecidas não a perderam, mas deve ter custado a vida a muitos indivíduos, e até a grupos inteiros, que desapareceram certamente ao longo dos tempos precisamente por não possuírem esta característica indispensável à sobrevivência dos pescadores do frio. Os povos do Extremo Norte alimentam-se em função da temperatura, consumindo muitas gorduras, o que permite ao seu organismo desenvolver uma actividade interna mais intensa. São geralmente pequenos e robustos, com uma boa camada de gordura protectora, o que diminui a perda de calor através da pele.
Os Europeus que tentam viver nestas regiões do grande frio sem recorrerem a abrigos bem aquecidos, passam todos eles por momentos bastante difíceis, pois o seu organismo não tem tempo de se adaptar. O Dr' Jean-Louise Étienne, que esquiou sozinho cerca de mil e cem quilómetros em direcção ao pólo Norte, entre 7 de Março e 11 de Maio de 1986, puxando o seu trenó, não foi poupado pelo frio. A partir do segundo dia do seu raid, teve de arrostar uma temperatura de 52 graus negativos, agravada por um violento blizzard (1). Precisou de uma moral de ferro, pois o seu físico apenas arcou - diz ele - com um terço dos problemas; a vontade fez o resto. E contudo, antes de partir, submetera-se a um treino intenso e rigoroso, sob o controle de médicos militares do hospital Desgenette, em Lião, permanecendo várias horas em câmaras climáticas a 1o C. Após a sua proeza, regressou ao hospital, onde repetiu os mesmos testes; a sua temperatura interna era agora mais baixa - 35,5o C, em vez de 36,9o C anteriores -, o que prova que a viagem desencadeara a adaptação do seu organismo ao frio. Para o fim do seu raid, Étienne já tinha notado que conseguia trabalhar com as mãos nuas sem que o frio o incomodasse. Mas esta adaptação não se inscreve nos hábitos do organismo; se os treinos para o frio não forem retomados, não tarda a desaparecer.
O homem e o calor
De igual modo, o homem só consegue adaptar-se ao calor em condições bem precisas. O limite extremo da sobrevivência é atingido aos 41o C de temperatura interna. Certos grupos humanos vivem, contudo, em desertos onde se verificam temperaturas extremas, como na África Oriental, onde chegam a ultrapassar os 60o C. Conhecem-se mal os mecanismos que lhes permitem resistir, mas sabe-se que o calor excedentário é evacuado por diversos sistemas. A transpiração provoca a evaporação do suor, fonte de frescura, e o aumento do débito sanguíneo ao nível da pele produz um rubor e evacua as calorias excedentárias, o que refresca o sangue, o radiador natural do organismo.
Mas o suor é quase exclusivamente composto por água, o que
(1) Vento do Extremo Norte, muito rápido (200 a 250 km/h) e frio, carregado de neve. (N' do T.)
obriga à absorção de grandes quantidades de líquidos, para compensar a sua perda. Com efeito, assim que as perdas líquidas atingem 10 por cento do peso do corpo, começam a surgir perturbações que evoluem rapidamente para o delírio e o coma.
Os Africanos que vivem nos trópicos sofrem quase tanto com o calor como os Europeus. Pelo treino, é possível resistir-se melhor. O ciclista Jean Naud atravessou o Sara com cem quilos de bagagem, suportando durante cinquenta dias condições que teriam sido fatais a muitos outros homens. Mas tinha-se treinado para beber pouco e urinar menos, e só um novo período de treino lhe permitiria acometer a repetição da sua façanha.
É possível que a morfologia das populações que vivem nas regiões quentes do globo traduza uma certa adaptação ao calor. Mas, mesmo assim, as formas do corpo destes povos são muito variáveis. Os Pigmeus da floresta equatorial são pequenos - da mesma maneira que os elefantes e os búfalos da floresta são mais pequenos que os das savanas -, mas os homens das regiões quentes e secas da África Oriental são, contrariamente, altos e magros, o que dá ao seu corpo uma maior superfície de evacuação do calor.
Seríamos nós capazes de nos adaptarmos melhor ao calor, com uma pele mais escura? Será possível que os primeiros humanos, aparecidos em África, tivessem a epiderme escura, e que as peles claras só tenham aparecido aquando das migrações para as regiões frias e menos soalheiras. A cor da pele poderia ser um elemento relativamente recente da evolução da espécie, ligado às condições de vida. Os Peles-Vermelhas americanos são os descendentes das populações brancas que, desde há quarenta mil anos, foram progressivamente povoando o continente americano, depois de terem atravessado o estreito de Behring, que então se passava a seco. A modificação da cor da pele poderia explicar-se pelo facto de os indivíduos de pele escura que vivem nas zonas temperadas serem mais atreitos a contraírem certas doenças graves, como o raquitismo, pois a sua pele detém os raios solares que favorecem a síntese da vitamina D, anti-raquítica. Os mutantes de pele clara foram pois favorecidos, ao longo dos milénios, acabando por ocupar o lugar dos homens de pele escura.
Já há um século atrás, Darwin sugeria que a característica da pele escura poderia ter-se transmitido de modo preferencial nalgumas populações não africanas - como os Melanésios ou os Índios -, por agradar aos parceiros sexuais. Será a prática do bronzeamento uma sobrevivência dessa atracção? Se assim for, não é de excluir a hipótese de a humanidade - cuja parte de pele clara represente já uma minoria - regressar, num futuro mais ou menos longínquo, à pele escura.
Sobreviver em altitudes
Em 1978, Reinhold Messner e Peter Habeler venceram o Evereste - 8848 metros - sem utilizarem garrafas de oxigénio. Uma proeza durante muito tempo tida por impossível. Será este o limite da sobrevivência humana, em altitude? De acordo com os dados clássicos, teria sido impossível que os alpinistas realizassem os esforços físicos exigidos por essa difícil ascenção, devido à fraca proporção de oxigénio do ar a essa altura. Todavia, todos os cumes de mais de 8000 metros foram vencidos da mesma maneira, por vezes por um homem só, muitas vezes em condições extremamente penosas.
Recuperará o alpinista os recursos que o seu organismo possuía quando não passava de um simples feto na barriga da mãe? Nessa altura, o ser em gestação sobrevivia graças a um mecanismo que, de certo modo, o fazia existir entre os 7000 e os 8000 metros de altitude, se tivermos em conta o oxigénio de que dispunha e a pressão do gás no seu sangue, dez vezes inferior à que se verifica no adulto.
Os alpinistas de altitude treinam-se para aprenderem a utilizar mais eficazmente menores quantidades de oxigénio, tanto ao nível dos pulmões como dos tecidos do seu corpo. Um aeronauta que subisse rapidamente em balão até aos 7000 metros, não conseguiria sobreviver; antes de tentarem subir mais alto, os grandes trepadores aprendem a viver regularmente a essa altitude. Conseguirão desse modo levar o seu organismo a produzir uma hemoglobina de tipo especial, análoga à que possuem as populações que vivem há várias gerações em altitude? A hemoglobina é a substância que transporta o oxigénio do sangue para os tecidos; se conseguíssemos facilitar-lhe essa tarefa, poderíamos vir a facilitar também a vida a alguns homens - como os astronautas ou os mergulhadores -, destinados a acometerem façanhas que se situam no limite das possibilidades do organismo humano. Alguns animais aplicam já esta estratégia; é o caso dos gansos selvagens do Himalaia e dos lamas dos Andes, que vivem durante muito tempo a elevadas altitudes, sem qualquer dificuldade.
Tal como acontece com o frio e o calor, o cérebro é o órgão mais sensível à diminuição de oxigénio que se verifica a grande altitude. Os médicos advertem os candidatos ao Evereste que pretendem subir sem oxigénio de que vão colocar o cérebro em condições que rondam o limite do tolerável. Até agora, estes alpinistas não deram provas aparentes de qualquer perturbação grave, mas sentiram alguns sinais de alarme. Alguns deles viram-se dominados por uma euforia estranha, como se estivessem sob o efeito de uma droga. Peter Habeler conta que, no cimo do Evereste, pensava sem lógica, sem ansiedade, avassalado pela certeza de que não poderia acontecer-lhe nada de grave - uma situação psicológica que poderia explicar certos desaparecimentos surpreendentes em alta montanha.
Paga, sem dúvida, à custa de numerosas vidas humanas, uma mutuação, feita ao longo de milénios, permite a certos grupos humanos viverem hoje acima dos 4000 metros de altitude. Os primeiros descendentes dos Espanhóis transplantados para os Andes precisaram de mais de meio século para conseguirem sobriviver, pois a taxa de natalidade desceu consideravelmente e, durante os primeiros decénios, a taxa de nados-mortos foi catastrófica.
Esta mutação traduz-se por uma respiração mais adequada à altitude, por uma hemoglobina capaz de transportar mais oxigénio para os tecidos e pelo aumento do número dos glóbulos vermelhos. Nos Bolivianos dos altos planaltos, o débito sanguíneo do coração é mais reduzido e a circulação cerebral menos intensa do que a nossa. O músculo cardíaco funciona com menos oxigénio e consome menos energia, o que evita os problemas cardiovasculares. Há quem pense que estes povos poderiam possuir receptores especiais nas paredes das artérias, sensíveis à escassez de oxigénio, e que controlariam o débito sanguíneo melhor do que o nosso organismo. Seja como for, a adaptação destas populações dos altos planaltos da América Latina é, sem dúvida, excelente; não é raro ver-se, a 5000 metros de altitude, jovens a jogarem à bola depois de oito horas e meia de trabalho nas minas.
Homo delphinus
Poderia o homem adaptar-se a viver prolongadamente debaixo de água, ou mesmo a respirar na água? É um velho sonho que ressurge periodicamente e que traduz a nossa inveja dos nossos primos longínquos, os golfinhos, que admiramos pela sua elegância e naturalidade dentro de água, pela sua força e inteligência. Os amantes do mar afirmam que não seria muito difícil ao homem reaprender a viver nesse elemento, que foi o dos antepassados remotos da espécie humana.
É certo que a vida apareceu, provavelmente, numa poça de água morna, há cerca de quatro milhões de anos. A água constitui grande parte do nosso organismo; se nos espremessem como a um limão, daríamos uma bela poça de água. O plasma do nosso sangue - tal como o líquido das nossas células - é semelhante à água do mar.
É igualmente certo que, antes de nascermos, vivemos num universo líquido, no ventre da nossa mãe. O feto não utiliza os seus pulmões; recebe o oxigénio pelo cordão umbilical, através da placenta. Mas não conservamos grandes recordações dessa vida aquática anterior ao nosso nascimento; assim que vimos ao mundo, o ar torna-se o nosso meio natural. A água não possui o oxigénio suficiente para satisfazer as necessidades do nosso organismo - não é o nosso elemento.
Parece pois difícil que possamos um dia vir a imitar os mamíferos que conservaram as suas notáveis aptidões para viverem na água, como os golfinhos e os cachalotes. É também o caso dos castores, que podem permanecer imersos durante vinte minutos, tanto como um golfinho; a baleia, essa, aguenta uma hora. É que o organismo destes animais utiliza o oxigénio de maneira diferente, pois os seus pulmões possuem maior número de alvéolos do que os nossos. O seu sangue, por seu turno, tem mais glóbulos vermelhos - que, como vimos, são os transportadores do oxigénio. O seu ritmo metabólico é mais lento, a sua temperatura mais baixa durante o mergulho. Tudo neles se encontra concebido para facilitar as imersões prolongadas.
Apesar de tudo, o homem conserva uma parte destes reflexos dos bons mergulhadores, e aqueles que se treinam para permanecerem muito tempo debaixo de água aprenderam a utilizá-los eficazmente. Um desses reflexos é aquilo a que se chama a «bradicardia», ou abrandamento do ritmo cardíaco. Jacques Mayol, o francês que detém o recorde do mundo - 500 metros, em Outubro de 1983 - de descida em apneia (ou seja, retendo a respiração), treinou-se com exercícios de ioga para diminuir o seu ritmo cardíaco, que desce para cinquenta pulsações por minuto quando o mergulhador está debaixo de água, e para trinta e quatro quando chega aos setenta metros de profundidade. Esta proeza, mesmo assim, fica muito aquém do comportamento da foca que, em mergulho, passa das oitenta para as cinco pulsações por minuto.
O segundo reflexo que os mergulhadores conseguem desenvolver pelo treino consiste em transferirem o sangue da periferia do corpo e dos membros para os órgãos importantes - o cérebro, o coração e os pulmões -, assim melhor irrigados. É aquilo a que se chama o blood shift, o mesmo reflexo que permite os longos mergulhos dos mamíferos marinhos.
Jacques Mayol é um dos que acreditam que seria possível ir mais longe, que o homem poderia ensinar os seus tecidos a funcionarem com menos oxigénio. Garante que um treino mais intenso multiplicaria por três ou quatro o nosso tempo de mergulho em apneia. Mayol permanece quase quatro minutos debaixo de água sem respirar, o que constitui uma proeza muito difícil de imitar. As mergulhadoras coreanas - que chegam a fazer cem mergulhos por dia, a trinta metros de profundidade - atingem os dois minutos. Os Maoris da Polinésia, que mergulham até aos quarenta metros para pescarem ostras perlíferas, hiperventilam previamente os pulmões, respirando fundo, e conseguem assim manter-se dois minutos e meio em apneia. A hiperventilação não fornece apenas um suplemento de oxigénio nos tecidos, elimina também o dióxido de carbono, cuja presença desencadeia o reflexo respiratório.
Todos os amantes do oceano sonharam algum dia com este futuro Homo delphinus, capaz de rivalizar com os golfinhos e os cachalotes. Jacques Mayol sugere a sua criação fazendo nascer as crianças na água e ensinando-lhes desde muito cedo as técnicas do ioga e do mergulho em apneia. O comandante Cousteau imagina a possibilidade de substituir os pulmões por um sistema com um líquido que forneceria o oxigénio ao sangue. Outros sonham com a transplantação de brânquias artificiais no homem.
Alguns cientistas puseram hamsters a viver na água, envolvendo-os numa membrana de silicone que deixa entrar o ar em solução e impede a passagem do líquido. Outros, mais ousados, fizeram viver cães completamente imersos durante três quartos de hora, dando-lhes a respirar água sobreoxigenada. O responsável por esta última proeza, o fisiologista holandês Johannes Kylstra, que trabalha actualmente nos Estados Unidos da América, injectou na água em que mergulhou os cãezinhos oxigénio sob pressão, até a saturar por completo. Mesmo assim, os animais não conseguiram eliminar o dióxido de carbono, e viram-se obrigados a enormes esforços para obterem oxigénio suficiente. Um mergulhador aceitou tentar a mesma experiência; na realidade submeteu-se-lhe apenas a meias, pois só um dos seus pulmões é que foi submerso na água do mar sobreoxigenada, enquanto ele respirava normalmente pelo outro. A imersão de um pulmão, com efeito, não comporta riscos de maior; é uma técnica que se utiliza por vezes para o tratamento de certas afecções. Mas estas investigações foram postas de parte; o Homo delphinus continua pois a não passar de um simples projecto.
HOMO INGRAVITUS
Depois de ter permanecido trezentos e vinte e seis dias no espaço, a bordo da estação Mir, o cosmonauta soviético Yuri Romanenko declarou: «No espaço, não senti saudades da Terra. Os especialistas vão ter de estudar cuidadosamente este fenómeno. Se as saudades existem, são as que sentimos do espaço, depois de regressarmos.»
A maior parte dos cerca de duzentos e dez homens e mulheres que voaram no cosmos são da mesma opinião, e sonham regressar ao espaço. Prefigurarão eles uma nova raça de homens, que se sentirão melhor no espaço do que na Terra, a ponto de preferirem viver nele? A questão não é apenas teórica. Entrevistado em Moscovo, no Instituto de Biologia Espacial por si dirigido, o Professor Oleg Gazenko evoca-a claramente. A evolução fez-se sempre em luta contra a gravidade, diz ele. Foi em função da gravidade que se desenvolveram as estruturas e as funções dos organismos. Depois de se adaptar ao estado de não-gravidade, o homem deixará de poder viver nas condições da Terra. Quanto melhor se fizer essa adaptação, mais problemas terá de enfrentar após o regresso.
Isto significa que será, provavelmente, necessário seleccionar voluntários susceptíveis de se adaptarem bem durante longas estadas sem gravidade, caso se pretendam efectuar viagens de longo curso no espaço - até ao planeta Marte, por exemplo, em que uma ida e volta demorará entre dois e três anos. Após o regresso, esses astronautas sentirão imensas dificuldades para se readaptarem à vida na Terra - e nem sequer existe a certeza de que consigam fazê-lo. Não se deve pois pôr de parte a hipótese de que certos homens e mulheres venham a decidir viver para sempre em naves espaciais ou em estações orbitais, sem esperança de regressarem à Terra.
«Esses cosmonautas, diz o Professor Gazenko, ficarão com os músculos atrofiados, os esqueletos fragilizados, um sangue diferente. Não conseguirão suportar a gravidade.»
A decisão desses especialistas das longas missões espaciais será irreversível. O seu regresso à Terra exigirá penosos sacrifícios físicos. No espaço, serão heróis; no nosso planeta, deficientes.
Os homens que passaram vários meses no espaço já hoje enfrentam problemas de adaptação após o regresso. São rapidamente levados para um centro especializado, pois aguentam-se mal nas pernas, têm os músculos debilitados e o coração exausto. Após o seu primeiro voo, de apenas uma semana de duração, o astronauta francês Jean-Loup Chrétien inclinava-se para a frente, a 15 graus em relação à vertical, convencido de que andava erecto. Endireitou-se ao fim de alguns dias, mas levou muito tempo a recuperar a destreza no órgão ou no ténis; nos primeiros tempos, a sua raqueta não acertava na bola.
Com efeito, a ausência de gravidade provoca alterações importantes no funcionamento do organismo. Em primeiro lugar, na circulação: sem gravidade, o sangue não se reparte da mesma maneira, permanece na parte superior do corpo, congestionando o rosto, enquanto as pernas são menos irrigadas. Não sentindo dificuldade em distribuir o sangue por todo o corpo, o coração bate menos depressa, e o volume de sangue por ele bombeado diminui. Além disso, a sua composição modifica-se: passa a conter menos glóbulos vermelhos, e os glóbulos brancos alteram-se.
Estas perturbações provocaram já pelo menos um regresso precipitado. Com efeito, após uma permanência de cinco meses na estação espacial Mir, o cosmonauta soviético Alexandre Laveikhine apresentou sinais de perturbações importantes do ritmo cardíaco e teve de ser evacuado de urgência para a Terra; a arritmia cessou assim que o astronauta voltou à gravidade terrestre. Também um dos americanos que foram à Lua, dois anos depois da sua viagem, sofreu um enfarte.
As perturbações do equilíbrio
A ausência de gravidade perturba o delicado sistema que assegura automaticamente o nosso equilíbrio, determinando a orientação do corpo em relação à vertical. É ele que nos permite subir escadas, andar de bicicleta ou apanhar um alfinete sem nos desequilibrarmos.
Só tomamos consciência da sua existência quando ele falha. Um dos casos em que é frequente isso acontecer é no mar, quando enjoamos e sentimos vertigens e náuseas desagradáveis. Para além de receptores situados ao nível da pele, nos músculos e nos olhos, este sistema de equilíbrio compreende uma central no ouvido interno, cujos componentes, muito sensíveis à gravidade - um elemento essencial de referência -, são perturbados durante os voos espaciais. É uma das razões do «enjoo espacial» que atinge todos os astronautas, sobretudo no princípio das suas viagens.
Um esqueleto fragilizado
A terceira perturbação causada pela ausência de gravidade poderá originar problemas muito graves, em voos muito longos. No espaço, com efeito, a distribuição do cálcio no organismo deixa de se efectuar como habitualmente. Por um mecanismo complexo - que só começamos a compreender - em vez de reconstituir permanentemente o tecido ósseo, o cálcio desloca-se para outros componentes do nosso corpo, como a urina. Verificam-se perdas de cem gramas de cálcio por dia, enquanto a nossa reserva total é de apenas um quilo. O astronauta perde mensalmente um por cento da sua substância óssea, que deixa de ser normalmente renovada - ao passo que, na Terra, segundo indicações do Dr' Alexandre, do Laboratório de Biologia Óssea de Saint-Étienne, essa perda é da ordem de um por cento em cada dez anos. Ao cabo de um ano no espaço, o esqueleto de um astronauta transformar-se-ia no de um homem de oitenta anos.
Esta fragilização óssea não tem grande importância no espaço, visto que, dada a ausência de gravidade, os ossos não precisam de resistir a esforços importantes. Já não acontece o mesmo após o regresso à Terra, onde correriam o risco de se partirem. É aliás por isso que os cosmonautas soviéticos, quando terminam as suas longas missões no espaço, são cuidadosamente sentados ou deitados. O restabelecimento do ciclo normal do cálcio pode demorar vários meses, segundo o Dr' Planel, director do Laboratório de Biologia Espacial de Toulouse. Outro problema, até agora não verificado, mas que poderá ser difícil de resolver, é o que deriva da passagem do cálcio para a urina, dando origem à formação de cálculos cuja operação, no espaço, não se vê muito bem como é que poderia ser feita.
A isto acrescenta-se ainda a diminuição do tónus muscular, uma vez que, dada a ausência de gravidade, o corpo deixa praticamente de ter peso e, consequentemente, os músculos não precisam de efectuar esta redução por meio de exercícios físicos prolongados e compulsivos, que constituem a parte mais penosa do quotidiano dos astronautas. É o preço que têm de pagar, em cada dia que passam no espaço, pela possibilidade de voltarem a andar, após o regresso à Terra.
O organismo humano parece adaptar-se bastante bem a certos efeitos da ausência de gravidade. O nosso cérebro, os nossos órgãos dos sentidos e mesmo as glândulas hormonais compensam essa situação excepcional alterando o seu comportamento. Mas há outros incovenientes que nunca poderão ser perfeitamente compensados, tais como a anemia dos músculos - apesar da ginástica intensiva a que os astronautas se vêem obrigados - ou a degradação dos ossos.
Todas as declarações dos astronautas - apesar de provavelmente autocensuradas, devido ao seu desejo de se apresentarem como heróis - mostram que eles sofrem também pressões psicológicas importantes. A ausência de gravidade começa por provocar uma euforia, uma espécie de júbilo inédito, que pode comportar certos riscos. O soviético Romanenko esqueceu-se de apertar o cinto ao abrir uma vigia do seu veículo Saliut 6, e por pouco não foi arrastado para o vazio espacial. Durante o voo comum americano-soviético, os ocupantes americanos da cabina Apollo, Thomas Stafford, Vance Brand e Donald Slayton, esqueceram-se de fechar uma válvula, na viagem de regresso, e quase se viram sufocados pelos gases dos motores de orientação; precisaram de vários minutos, à beira da agonia, para conseguirem finalmente pôr as máscaras. Outros aterraram longe do sítio em que eram esperados, por terem utilizado incorrectamente os foguetes de estabilização e orientação.
À euforia dos primeiros dias sucede o tédio das tarefas rotineiras e monótonas, repetidamente efectuadas num meio que nunca muda. Nem sequer o fascinante espectáculo da Terra, belo e cambiante, consegue fazer esquecer o peso desse cansaço.
Todos os astronautas ingerem quantidades de drogas, apesar dos desmentidos das entidades oficiais, por vezes embaraçadas perante certas perguntas precisas. A princípio precisam de lutar contra o «enjoo espacial», que atinge quase todos os ocupantes dos veículos espaciais. Em segundo lugar precisam de dormir, o que se torna mais difícil no espaço, pois aí não existe o ritmo normal dia-noite que conhecemos na Terra; a bordo da nave espacial, o Sol nasce de noventa em noventa minutos, que é o tempo que o veículo leva a dar uma volta à Terra, a 28'000 quilómetros por hora. Têm de se manter vigilantes, para não cometerem erros de manobra. Por fim, precisam de anular o stress, a angústia, a tensão nervosa, sobretudo em momentos tão difícieis como os de uma saída para o vazio do espaço.
Ninguém pode prever as condições psicológicas que os astronautas que partirão em breve para voos de vários anos - por exemplo, para Marte - terão de enfrentar. Alguns psicólogos pensam que eles poderão ver-se afectados, num ambiente tão monótono, por uma deterioração da qualidade e da quantidade das imagens mentais que contribuem para o funcionamento do nosso cérebro, e que são alimentadas por tudo aquilo que vemos quotidianamente à nossa volta. Com efeito, já se verificou que os astronautas não sonham da mesma maneira no espaço e na Terra.
Todas as observações feitas sobre grupos de homens isolados do mundo, confinados num espaço exíguo, num ambiente monótono, mostram que eles não conseguem eximir-se a certas perturbações psicológicas. A equipagem do submarino nuclear americano Triton, que deu a volta ao mundo em oitenta e três dias sem vir à superfície, tornou-se irritadiça e deixou-se abater pelo tédio, apesar da multiplicação das tarefas e das distracções, de que os homens acabaram por se desinteressar. No fim da viagem, sentiam-se cortados daquilo que consideravam importante, tinham perdido a sensação de viver uma vida que valesse a pena. Sofreram além disso de falta de privacidade, por não poderem isolar-se realmente uns dos outros. É uma situação que se verifica também nos voos espaciais, e que se agravará certamente quando as viagens se tornarem mais prolongadas. Será preciso encontrar soluções através de condicionamentos psicológicos ou medicamentosos, para evitar que venham a produzir-se situações dramáticas. Não se sabe ao certo se alguma vez se verificou algum conflito sério no seio de uma equipagem espacial, pois tanto os Americanos como os Soviéticos se mantêm mudos a esse respeito. Mas temos outros exemplos: verificou-se um assassínio numa estação americana isolada do Antárctico, e numerosas desordens noutras estações do mesmo tipo, devido ao stress gerado por uma hibernação demasiado prolongada, numa situação de promiscuidade difícil de suportar.
Este stress e esta monotonia fatigante, gerados por uma longa permanência num meio fechado, podem conduzir a perdas de vigilância familiares a todos aqueles que desempenham tarefas de rotina. Nos voos transcontinentais de avião, verificaram-se numerosos casos de adormecimento de toda a equipagem, com o piloto automático ligado. Os Soviéticos constituíram um grupo de avaliação psicológica que estuda sistematicamente os cosmonautas, antes e durante o voo, apreciando constantemente, por meio de testes, o seu estado psicológico. Infelizmente, pouco ou nada se consegue saber dos resultados do seu trabalho, que seria apaixonante estudar.
Este grupo esforça-se sobretudo por descobrir homens e mulheres com boas aptidões para viverem isolados do mundo durante longos períodos, o que revela bem a importância do problema. Apesar de os Soviéticos serem de extrema discrição nesta matéria, o facto de alguns voos terem sido abreviados e de alguns cosmonautas se terem visto forçados a regressar à Terra mais cedo do que o inicialmente previsto, constitui uma prova da existência real destas perturbações psicológicas. A duração possível das futuras missões espaciais prolongadas dependerá da estabilidade emocional da equipagem, da compatibilidade psicológica entre os seus membros e do seu nível de motivação.
Estranhos à Terra
Os astronautas têm a sensação de viverem uma experiência única, mas sentem dificuldade em comunicá-la. Os seus relatos são decepcionantes, e não permitem compreender bem a excepcional aventura de um voo espacial, nem até que ponto ele renova a experiência humana. São acima de tudo relatórios de técnicos ou de militares, desprovidos dos voos do poeta, das reflexões do filósofo, dos clamores do profeta. A saga da conquista espacial, a epopeia do cosmos estão por escrever. «Meditava diante do meu gravador: vais explicar aquilo que sentes, com palavras que não sejam «espantoso« ou «soberbo«, conta o astronauta Wubo Ockels. O resultado nunca me satisfez. Era como se tivesse de falar de uma paisagem a pessoas que nunca tivessem saído da sua cidade. Como encontrar as palavras?»
Os astronautas são muitas vezes descritos como homens à parte, com o «estofo dos heróis», como diz um célebre filme americano. São vistos como a semente de uma humanidade por vir, aquela que poderia transportar um dia a esperança de toda a espécie, se fosse preciso abandonar o planeta, devastado por um cataclismo mundial, para procurar refúgio noutro lado, junto de outra estrela, noutro planeta ou numa imensa plataforma espacial.
Vivendo em condições excepcionais, têm a impressão de escapar à condição humana. Quando andam à volta da Terra, na sua cabina cósmica, esquecem-se de que existe um dia e uma noite, um Verão e um Inverno. Sentem-se noutro universo. Tornam-se estranhos à Terra. Influenciados, por vezes inconscientemente, pelos mitos da conquista espacial, pelos relatos de ficção científica, julgam-se muito longe de nós - não só no espaço, também no tempo. Julgam-se à nossa frente, em vias de darem esse segundo passo da humanidade por que o homem espera, no fundo do seu subconsciente, desde o primeiro passo dado pelos nossos antepassados de há oito milhões de anos, quando adquiriram o hábito de se erguerem sobre duas patas e caminharem.
Já se arranjou um nome de baptismo para aquele que, num dia longínquo, esquecerá assim a Terra, para não mais regressar e ficar a viver no espaço. Será o «spatiopiteco», ou Homo ingravitus. Será ele que preparará essa espécie nova com que sonham os escritores de ficção científica, se não os biólogos. Será uma espécie mais bem adaptada à vida no espaço; não precisará de pernas nem de vértebras, criadas para a gravidade. O bipedismo, primeiro traço distintivo do homem, deixará de fazer sentido num meio em que o peso não existe e em que basta apoiar um dedo na parede da cabina espacial para nos deslocarmos flutuando, voando.
Se este ser do espaço existir um dia, poderá muito bem já não precisar de saber onde fica o «em cima» e o «em baixo», a «esquerda» e a «direita». A simetria do seu corpo perderia a razão de ser. Poederia vir a ser uma estrutura mole, análoga, com os seus múltiplos apêndices, à dos nossos longínquos antepassados de há quinhentos milhões de anos, as estrelas-do-mar ou as medusas. Singular perspectiva para a humanidade'''
Nascimentos no espaço
Enquanto não se verifica o hipotético advento destes homens do espaço, poderia conceber-se um ser humano num veículo espacial? Nada a isso se opõe, e a experiência, apaixonante, não envolveria qualquer risco. Segundo informações provenientes da Alemanha, mas nunca confirmadas, teria sido tentada a bordo da miniestação espacial soviética Saliut, durante uma permanência da cosmonauta Svetlana Savitzkaïa. Se tal aconteceu, não produziu consequências, pois nada indica que a cosmonauta tenha regressado à Terra grávida.
Do lado americano, Yvonne Clearwater, uma psicóloga da NASA, indica que esta agência espacial não ficaria chocada com a ideia de relações sexuais no espaço. Os projectistas da futura grande estação orbital, destinada a ser habitada em permanência, prevê a instalação de compartimentos isolados e insonorizados próprios para os jogos sexuais dos seus ocupantes. Para os voos de longa duração em direcção a outros planetas, a formação de equipagens mistas poderia constituir um recurso contra a monotonia da existência no espaço.
Ninguém pode dizer, em contrapartida, se seria ou não possível a realização de um parto num veículo espacial. Na ausência de gravidade, uma intervenção cirúrgica envolve dificuldades tremendas, pois os elementos extraídos do corpo - tanto o sangue como os tecidos ou os órgãos - correriam o risco de flutuar em todas as direcções, numa situação surrealista, dificilmente dominável pelo cirurgião.
Supondo que este problema possa vir a ser resolvido, uma criança nascida nestas condições não estará de modo nenhum adaptada, como é evidente, à ausência de gravidade. Ignora-se pois quais poderão vir a ser as reacções do seu organismo. Entre outros riscos, essa criança correrá o de ser sufocada pelos líquidos. É difícil imaginar quando é que se ousará tentar um parto no espaço. É óbvio que, antes disso, será necessário efectuar numerosas experiências com animais, provavelmente numa das estações espaciais em órbita à volta da Terra após o ano 2000. Ainda nem sequer se testou o comportamento, na ausência de gravidade, de um embrião animal com algumas horas ou alguns dias, o que não ofereceria aliás grande dificuldade. A observação seria interessante, pois a gravidade parece desempenhar um papel importante na organização do embrião - que alterações provocaria nele a ausência de gravidade?
FAZER RECAUR A VELHICE
Se tivéssemos de votar, a mutação que recolheria mais sufrágios seria provavelmente aquela que faria recuar a velhice. A medicina poderá em breve fornecer-nos armas inéditas para envelhecermos menos depressa - visto que não podemos escapar à sorte comum que determina que todos os seres vivos cresçam e declinem, antes de morrerem.
Será desejável que vivamos mais tempo do que actualmente? Depende de como - quem é que gostaria de ser velho durante mais tempo? A única vantagem interessante consistiria em conseguir prolongar a idade da flor da vida, aquela que vai da adolescência à idade madura. Mas isso não passa de um sonho, pois a flecha do tempo jamais se detém.
A única esperança razoável reside pois em que a medicina nos proporcione receitas eficazes para tornar a velhice mais viva e lúcida, para fazer abrandar o inelutável processo que nos empurra para o fim da vida. Esta esperança baseia-se na compreensão do fenómeno da senescência, marcado por sinais de desgaste a todos os níveis, das células aos órgãos. A longevidade de cada componente do nosso organismo encontra-se programada geneticamente. As células da pele e do intestino vivem apenas uns poucos de dias, renovando-se incessantemente; os glóbulos vermelhos duram três meses; as células do fígado, quatrocentos e oitenta dias; as células nervosas, as dos músculos e as do cristalino podem viver cem anos.
Existem duas grandes teorias acerca do envelhecimento, explicam os Drs' Jacques Tréton e Yves Courtois, do Centro de Gerontologia da Associação Claude-Bernard, em Paris. A primeira faz intervir uma série de processos - que se exprimem com maior ou menor intensidade consoante os indivíduos e as circunstâncias -, tais como o efeito daquilo a que se chama os «radicais livres», compostos instáveis que reagem com diversas moléculas, libetando elementos que favorecem o envelhecimento. Este último poderia dever-se às radiações que danificam irreversivelmente os constituintes essenciais das céluas, sobretudo ao nível dos ácidos nucleicos. Para outros cientistas, uma alimentação demasiado rica aceleraria a senescência. O americano Leslie Orgel sugere que as proteínas, os constituintes de base das células, acumulariam os erros à medida que vão envelhecendo, acelerando assim o processo. Não existe nenhuma prova decisiva a favor de uma ou outra destas hipóteses, ambas apaixonadamente defendidas pelos seus proponentes - que por vezes deduzem delas, de modo um tanto prematuro, elixires de juventude de eficácia não comprovada.
A outra grande teoria, mais recente e mais solidamente apoiada, é sedutora. Sugere a existência de um relógio interno que controlaria a senescência, a qual derivaria, portanto, de um processo activo, comandado por certos genes. De acordo com este esquema, todos nós possuiríamos, desde que nascemos, sistemas encarregados de organizar, a dada altura, o envelhecimento, prelúdio natural da morte. A existência destes genes - que desencadeia o envelhecimento dos frutos, ou seja, a sua maturação - pôde ser demonstrada nalguns vegetais, como o tomate, que foi estudado deste ponto de vista por equipas de cientistas franceses. Foram seguidos em particular três mutantes, que não amadurecem, mantendo-se sempre rijos e pouco apetitosos, mas que vivem três vezes mais do que os frutos comestíveis. Isto constitui a prova, válida pelo menos para estes tomates, da existência de genes específicos que controlam o envelhecimento. Segundo os biólogos, esses genes existiriam em todos os seres vivos.
Já se identificou, entretanto, o mensageiro do envelhecimento, a substância que se transmite de célula para célula impedindo a sua multiplicação normal, e que seria uma forma de ácido nucleico. Mas estão por determinar os sinais que desencadeariam a expressão destes genes, bem como em que momento é que o processo se tornaria irreversível. É possível que se venha a iso-lar em breve estes genes do envelhecimento, o que permitiria estudá-los e abriria o caminho para agir sobre eles. É uma via recém-esboçada, mas rica de promessas.
Com efeito, as actuais receitas de juventude não possuem qualquer fundamento científico, são todas elas falaciosas. Algumas pessoas crédulas ainda hoje dão bom dinheiro por injecções de tecidos fetais de origem animal, ineficazes mas não isentos de riscos. O mesmo se passa com os tratamentos de procaína, lançados pelo Dr' Aslan na Roménia, ou com as terapias baseadas no ginseng chinês, na geleia real e noutros produtos pretensamente miraculosos.
Infelizmente, as histórias, repetidas à saciedade, que correm acerca de certas regiões supostamente privilegiadas em que os centenários proliferariam, não merecem mais crédito. É o caso de Vilacamba, no Equador; do vale do Hunza, no Paquistão; ou das montanhas do Cáucaso, onde os Soviéticos falam da existência de cinco mil centenários - o que representaria uma percentagem mais de vinte vezes superior à americana. A acreditar em Jaurès Medvedev, um biólogo soviético exilado em Londres, tratar-se-ia de uma mistificação cuidadosamente orquestrada para agradar ao georgeano Estaline, e até agora não desmentida. Um estudo recente, feito em Vilacamba por dois médicos americanos da Universidade do Wisconsin, mostra que, ao longo dos últimos setenta anos, ninguém aí ultrapassou os oitenta e sete anos de idade, e que a duração média da vida dos habitantes da zona é 15 a 30 por cento inferior à dos Estados Unidos. Só a inexistência de documentos de identidade permitiu que se desse fé a estas lendas, mas o progresso não tardará a destruir paulatinamente esta poesia dos centenários folgazões, bons bebedores e, sobretudo, fanfarrões.
Qual é pois o limite da vida humana? Os biólogos afirmam que ele se situa à volta dos cento e quinze anos. Não faltam exemplos de anciãos felizes, que demonstram que é possível chegar em relativo bom estado a uma idade avançada. «Fisicamente, estou a declinar - dizia o dramaturgo Bernard Shaw, aos oitenta e nove anos -, mas creio que o meu espírito ainda pode fazer progressos, pois a minha curiosidade está mais viva do que nunca.» Quando Bernard de Fontenelle foi a enterrar, com cem anos de idade, alguém observou: «Será a primeira noite em que não janta fora.» Pouco antes, dissera-lhe uma velha amiga sua, de cento e três anos de idade: «A morte esqueceu-se de nós.» Ele pôs-lhe um dedo nos lábios, murmurando: «Chiu'''» Quando lhe pergutaram se os anos o faziam sofrer, respondeu: «Apenas sinto uma dificuldade de ser.»
As estatísticas mostram que os casais vivem mais tempo do que os celibatários ou os viúvos. Até os animais de companhia parecem constituir uma arma eficaz contra o terrível tédio dos velhos isolados. O nosso estilo de vida expulsou os velhos da família e do lar, e isso não favorece a sua sobrevivência. São raros, hoje em dia, aqueles que têm a sorte de saborear os seus últimos momentos em casa, pois morre-se cada vez mais no hospital ou no hospício.
O exercício de uma actividade, bem como as relações familiares e sociais, são outros tantos meios seguros de manter em forma o mais precioso dos nossos órgãos - o cérebro. Discute-se hoje se a senilidade cerebral - que atinge já um americano em cada seis, após os sessenta e cinco anos - tem origem genética. A sua forma grave, denominada doença de Alzheimer, transforma o indivíduo num vegetal sem memória, inteiramente dependente dos outros. Se se confirmasse a sua origem genética, os progressos da biologia poderiam permitir descobrir as causas do mal e fornecer meios para o atalhar.
Entretanto, será possível treinar o cérebro, tal como se faz com os músculos, por meio de uma ginástica destinada a mantê-lo em forma? Há quem pense que sim, em França e noutros países, preconizando a prática de uma «ginástica cerebral» às pessoas de idade, que estimularia a actividade mental por meio de jogos e testes feitos em sessões colectivas. Outrora pensava-se que o envelhecimento do cérebro era inelutável, por estarmos condenados a perder progressivamente a nossa reserva de células cerebrais, adquirida à nascença, e que é nessa altura da ordem dos dez biliões de neurónios. Hoje põe-se em dúvida essa inevitabilidade. É certo que certas funções, como a memória, se vão atenuando com os anos, mas é possível conservar durante muito tempo o funcionamento normal do nosso intelecto, desde que tenhamos certos cuidados com ele. Ao envelhecer, não devemos deixar-nos resvalar pelo caminho mais fácil; pelo contrário, devemos procurar ler textos reputados difíceis, não nos esquivarmos aos contactos sociais, permanecer o mais possível abertos a todos os estímulos vindos do exterior.
Seja como for, os números provam que, de futuro, viveremos mais. A esperança de vida aumenta de ano para ano, em toda a parte do planeta embora, infelizmente, a um ritmo mais lento nos países menos desenvolvidos, pois as desigualdades não desaparecem de um dia para o outro. Em França, e para as mulheres, a esperança de vida à nascença era de vinte e cinco anos, em 1750; de quarenta, em 1850; de setenta, em 1950; e de oitenta anos actualmente, contra setenta e dois para os homens. O desvio entre os sexos, longe de diminuir em função da convergência das actividades femininas e masculinas, aumenta. Em 1918 era, em média, de 3,7 anos; a seguir à Segunda Guerra Mundial, de 5,5; hoje ultrapassou já os oito anos. Jacques Vallin, do Instituto Nacional de Estudos Demográficos, fornece várias razões para isso. Os homens morrem bastante mais do que as mulheres entre os cinquenta e os setenta e cinco anos, porque fumam mais, conduzem mais, exercem mais actividades de risco. As mulheres mantêm com o seu corpo uma relação que as leva a cuidarem mais de si, a comerem menos, a consultarem mais frequentemente o médico, a terem uma melhor higiene de vida. A mulher procura conservar, até tão tarde quanto possível, um corpo jovem e são; o homem submete-o desde muito cedo à prova e ao risco.
Dito isto, e independentemente dos progressos médicos actuais e futuros, o crescimento da esperança de vida atingirá o máximo dentro de algumas dezenas de anos. Nalguns países industrializados a progressão já hoje tende a desacelerar-se, e o limite será atingido quando a esperança de vida se aproximar dos cem anos. Nessa altura, isso porá graves problemas à sociedade. Há vinte anos, em França, trabalhava-se quarenta e cinco anos, para a seguir se viver quinze anos de reforma; hoje trabalha-se quarenta anos e vive-se vinte anos de reforma. Até ao ano 2040, prevê um relatório da O'C'D'E', o envelhecimento provocará, na Europa, um aumento da ordem dos 40 por cento com as despesas de saúde, e de 80 por cento com a protecção à velhice. A população francesa conta hoje mais de 10 milhões de pessoas com mais de sessenta anos, ou seja, 19 por cento; em 2020 serão 15 milhões, isto é, 28 por cento. Em 2040, um francês em cada três terá mais de sessenta anos - a sociedade corre o risco de se vergar, senão de quebrar, sob o peso dos seus velhos. A procura de soluções biológicas e médicas para a senescência terá pois, até lá, de se transformar numa prioridade nacional.
Os Americanos já hoje questionam a prática de continuar a tratar as pessoas de idade. Em 1984, Richard Lamm, governador do Colorado, declarou friamente que aqueles que se encontravam afectados por doenças mortais tinham o dever de desaparecer, para darem lugar aos jovens. Em 1987, Daniel Callaghan, director do CEntro Hastings de Nova Iorque, propunha que se deixasse de conceder tratamento de sobrevivência às pessoas com mais de setenta e cinco anos de idade. Não temos o direito de oferecer uma imortalidade progressiva à terceira idade americana, dizia ele, à custa da sociedade.
O relacionamento dos cuidados aos mais idosos é uma ideia que abre caminho nos Estados Unidos, e que suscita um debate nacional. A idade é já hoje um dos critérios para a recusa de uma transplantação. Os economistas calculam que as pessoas com mais de sessenta e cinco anos absorvem cerca de 30 por cento do orçamento do Estado. Dentro de quarenta anos, essa percentagem elevar-se-á para 65 por cento, e deixará de ser possível financiar os programas a seu favor, pois o custeamento dos seus cuidados médicos e hospitalares representaria cerca de metade da massa salarial de todo o país.
O FUTURO DA HUMANIDADE
O futuro da humanidade passa também pelo número e pela distribuição dos homens no planeta. A partir do próximo século, dizer um homem é dizer antes de mais um muçulmano, um africano, um asiático - em qualquer dos casos, um citadino. O equilíbrio do mundo está em vias de se alterar, talvez de maneira irremediável. Os países velhos, orgulhosos da sua cultura, da sua civilização industrial, apresentam todos eles uma demografia doente. A sua população está a envelhecer a olhos vistos, a definhar, parece incapaz de se renovar. A sua época áurea não tardará a pertencer ao passado.
Em compensação, emergem novas potências que vão renovar o rosto da Terra. Ascendem rapidamente, em torno do Mediterrâneo, em África, na Ásia, na América do Sul, com uma população jovem e empreendedora. Esta redistribuição das cartas marcará profundamente o terceiro milénio e constituirá o problema maior a que os nossos filhos terão de fazer face.
Quem é que se preocupa com isto? À parte os demógrafos, ninguém. Os políticos, esses, só se interessam pelo que vai acontecer nos anos mais próximos. A realidade é contudo presente e iniludível: os homens que vão mudar a face do mundo dentro de meio século nascem hoje, à razão de dois por segundo, mais de 7000 por hora, 300'000 por dia, dois milhões por semana.
Durante muito tempo, pensou-se que o mundo corria para a catástrofe, devido à desproporção entre a população, demasiado numerosa, e os recursos disponíveis, demasiado escassos. Mas essa perspectiva tem hoje de ser matizada, pois os progressos da técnica fazem aumentar o rendimento da agricultura, enquanto a subida dos rendimentos individuais faz diminuir o número de crianças. A curva estabilizar-se-á pois antes da catástrofe. Em 1987 festejou-se a chegada aos cinco mil milhões de homens. Para o demógrafo Jean Bourgeois-Pichat, seria melhor dizer que, desde que o homem existe, a espécie produziu 80 mil milhões de indivíduos, 75 milhões dos quais morreram. Foi preciso um milhão de anos para atingir mil milhões de indivíduos. Os dois mil milhões exigiram apenas cento e vinte anos, o terceiro trinta e dois, o quarto quinze. No ano 2000 seremos certamente seis mil milhões, 10 a 11 milhões no próximo século - um número que poderá vir a coincidir com a estabilização da espécie humana.
Mas o mais importante está na distribuição desses homens. Dos seis mil milhões que viverão após o ano 2000, 75 por cento pertencerão ao Terceiro Mundo, e apenas 15 por cento aos países desenvolvidos. O equilíbrio demográfico inclina-se para o campo dos países que procuram conquistar uma economia viável. A exploração mais espectacular será a da região mais pobre. A África ao sul do Sara. A sua população cresce 3,2 por cento ao ano, duplicando de vinte e dois em vinte e dois anos. De 450 milhões em 1985, passará para 1,5 mil milhões em 2020, dois mil milhões em 2100, enquanto o rendimento médio dos seus habitantes desce dois por cento ao ano, e a sua esperança de vida é de apenas cinquenta anos - cerca de metade da das mulheres americanas.
Como é que esses homens e mulheres sobreviverão, se nada mudar na redistribuição da riqueza? Habitam uma região em que a desertificação avança de ano para ano, em que a floresta de que tiram a madeira e a caça recua sem cessar, em que se prevêem mais de 600 milhões de subnutridos para o ano 2000. A situação alimentar será preocupante também na Índia, que assistirá à duplicação do numero dos seus habitantes após o ano 2000, mas não dos seus recursos. A do Bangladesh triplicará - 270 milhões de indivíduos terão de sobreviver num território do tamanho de um estado americano, por entre inundações e secas. No ano 2075, a Ásia contará 3,3 mil milhões de homens e mulheres, contra 2,6 mil milhões em África. Nessa altura, os países industrializados representarão apenas um sexto da humanidade, contra o quarto de hoje. Qual será o seu peso político, nesse contexto?
Esta situação explosiva poderá vir a ser modificada por vários cenários. Se a luta contra o envelhecimento se tornasse mais eficaz, se os homens vivessem mais de cem anos, a explosão de algumas populações ver-se-ia ainda mais agravada. No ano 2125, o Islão pussuiria seis mil milhões de indivíduos, contra dois mil milhões para os cristãos. Em três séculos, comenta Jean Bourgeois-Pichat, a situação ter-se-ia invertido. Com efeito, em 1800 havia 20 muçulmanos para 80 cristãos; após 2125, existiriam 84 muçulmanos para 30 cristãos.
Se a medicina conseguisse fazer recuar ou desaparecer a menopausa - segunda hipótese -, as mulheres teriam a possibilidade de dar à luz mais filhos, e os países industrializados poderiam recuperar o seu vigor demográfico e retardar o seu declínio, face ao avanço do Terceiro Mundo.
Uma última possibilidade, a mais pessimista, seria a de uma descida geral da fecundidade. Se a esperança de vida não aumentar, se o estrangulamento da menopausa não for eliminado, a humanidade conhecerá dias sombrios. Após ter atingido o seu apogeu com dez mil milhões de indivíduos, correrá o risco de desaparecer por volta de 2050.
Seja para que lado for que nos voltemos, o nosso futuro demográfico parece sombrio. A evolução mais provável é a de um conflito inevitável entre os jovens de um Terceiro Mundo incapaz de saciar a sua fome e de encontrar trabalho em quantidade suficiente, e a população envelhecida dos países industrializados, cujo futuro parece indissociável do contributo de mão-de-obra imigrada. Em meados do próximo milénio, todas as grandes aglomerações terão passado para o campo dos países em vias de desenvolvimento. No ano 2000, a Cidade do México terá 30 milhões de habitantes, Buenos Aires 26 milhões, Xangai 23 milhões, Lagos, na Nigéria, 20 milhões. No ano 2025, cinco homens em cada oito viverão nas cidades, muitos deles em condições miseráveis.
Estes problemas, muitas vezes deixados na sombra, afectam-nos a todos. Os países abastados não podem deixar agravar este desequilíbrio, que acabará inevitavelmente por atingi-los. Infelizmente, as soluções não são fáceis nem instantâneas. Fazer aumentar o número de nascimentos nos países de demografia estagnante é tão complicado como reduzir os dos países de demografia galopante. Em ambos os casos, é preciso simultaneamente intervir sobre a psicologia dos casais e ir ao encontro dos seus hábitos sociais; seria necessário modificar o estatuto das mulheres e redistribuir os rendimentos - o que releva de uma política de longo prazo, por certo impopular, que os decisores não gostam muito de pôr em prática. Mas o que está em jogo é o futuro dos nossos filhos e dos nossos netos, que poderão vir a connhecer, por razões demográficas, a crise mais grave alguma vez vivida pela humanidade.
A Europa exangue
O exemplo da Europa é o significativo. Quando era ainda a dos dez, contava 273 milhões de habitantes, seis por cento da população mundial. O seu crescimento, nulo, não tardará a tornar-se negativo, se nada vier contrariar o movimento actual. No ano 2020, a Europa terá 260 milhões de habitantes, e não representará mais do que três por cento da população mundial. A sua importância ver-se-á exactamente dividida por dois; demograficamente, equivelerá à do Brasil ou da Nigéria.
Os países que se encontram em pior situação são seis. Em primeiro lugar a Alemanha Ocidental, onde cada mulher, em média, apenas dá origem a 1,3 crianças - e, mesmo assim, graças às imigrantes turcas. Seriam precisas 2,1 para assegurar a renovação das gerações. Até ao ano 2005, a Alemanha perderá 40 milhões de habitantes; prevê-se que, em 2050, venha a ter 27 milhões, contra os actuais 61. A situação não é muito mais animadora nos outros países. A taxa de natalidade é de 1,4 na Dinamarca; 1,5 nos Países Baixos; 1,6 na Bélgica, Itália, Suíça e Áustria; 1,8 em França. A Grécia e a Irlanda ocupam o topo da escala, com uma média de 2,1 crianças por cada mulher.
Esta acentuda diminuição da fecundidade deve-se sobretudo à subida do nível de vida, às melhores condições sanitárias - que fizeram diminuir a taxa de mortalidade infantil mas, em compensação, e por isso mesmo, levaram os casais a terem menos filhos -, à transformação do estatuto da mulher - que passou a trabalhar cada vez mais fora de casa e a dispor de meios de contracepção mais eficazes. Os casamentos tornaram-se menos numeros e mais tardios; o desejo de ter filhos cede terreno perante os desejos de liberdade, de férias, de tempos livres. Deve acrescentar-se ainda a isto a inexistência de grandes objectivos norteadores, de projectos estimulantes para o futuro das sociedades europeias, estandardizadas e «civilizadas», onde reina cada vez mais o tédio.
A Europa será pois atingida em cheio pelo inevitável assalto dos seus vizinhos da bacia mediterrânica. Por volta do ano 2025, o Magrebe terá 150 milhões de habitantes, o Egipto 90 milhões, a Turquia outros tantos. Na África do Norte e no Próximo Oriente viverão 600 milhões de indivíduos, 200 milhões dos quais com menos de quinze anos. Dezenas de milhões deles não terão outra alternativa senão alugarem a sua vitalidade a uma Europa envelhecida.
Face à perspectiva desse êxodo maciço, os actuais receios suscitados pela chegada de trabalhadores de pele escura parecem bastante fúteis. Temos de nos preparar, desde já, para uma migração de uma envergadura muitíssimo superior. Que fazer? A assimilação total será muito difícil. O confronto de culturas - a mesquita ao lado da igreja - provocaria conflitos. Resta a aceitação da diversidade ou o advento de uma cultura nova, nascida da mistura dos sangues e dos hábitos, que seria preciso começar a preparar já hoje, psicológica e sociologicamente. Para o Velho Mundo, talvez seja esse o verdadeiro desafio do próximo século.
E a França?
Embora, do ponto de vista demográfico, não ocupe a cauda dos países europeus, a sua população está condenada à estagnação. São hoje 56 milhões, mas nunca chegaram aos 60 milhões. Se nada se alterar, por volta do ano 2000 estagnará nos 58 milhões de habitantes e encetará a curva descendente.
Actualmente, nascem no país cerca de 780'000 crianças por ano, uma média de 1,84 por cada mulher - menos do que seria necessário para substituir uma geração pela seguinte. Para que a população continue a aumentar, é preciso que 100 mulheres dêem origem a 100 filhas, ou seja que tenham 205 filhos, visto que, à nascença, as raparigas são menos numerosas do que os rapazes. Entrando em linha de conta com a mortalidade infantil, isto conduz ao número médio de 2,1 crianças por cada mulher.
Embora o primeiro filho continue a ser desejado - mais tardiamente, é certo -, o segundo torna-se cada vez mais raro, e o terceiro quase inexistente. Na geração dos anos 30, quatro francesas em cada dez tinham pelo menos três filhos. Na dos anos 50, as mulheres com três filhos já eram apenas duas.
Os demógrafos propõem soluções para atalhar este estado de coisas. Premiar as mães de família com uma licença paga de um ano, a partir do segundo filho. Foi o que se fez na Alemanha Oriental, onde a taxa de natalidade subiu para 1,9. Devolver à criança o seu lugar na sociedade, deixar de a encarar como um estorvo, concebê-la como um prazer partilhado. De outro modo caminharemos para uma França de «velhinhos», como prevê Gérard Calot, director do Instituto Nacional de Estudos Demográficos. Um país virado para o passado, abúlico, mais preocupado em conservar do que em inovar, vulnerável, mal armado contra os assaltos dos países jovens.
DAQUI A BILIÕES DE ANOS'''
Poderá o homem vir a desaparecer? Porque não? Todos os seres vivos estão submetidos à mesma lei. O grande movimento da vida contém em si a necessidade da morte tanto para os indivíduos como para as espécies. Todos nós teremos de desaparecer, a dado momento, para dar lugar a outros. Uma criatura imortal é inimaginável; imutável, estática, já não seria um ser vivo. A vida inscreve-se necessariamente no tempo. Tudo tem um princípio e, portanto, um fim - é uma lei válida para tudo o que existe. As estrelas e as galáxias não fogem a esta regra, também elas nascem, vivem e morrem. O universo, aparecido há quinze mil milhões de anos, não durará eternamente.
Quando uma estrela morre, a matéria que a compõe dispersa-se; servirá para a formação de outras estrelas, de outros planetas. Acontecerá o mesmo com os seres vivos? A morte segrega sempre a vida. Todos nós somos filhos das estrelas, bem como de todos os seres vivos que, desde há três milhões de anos, nos precederam na Terra. A cadeia só chegará ao fim quando o mundo chegar ao fim; os seus elos reconstituem-se perpetuamente, sempre diferentes e, todavia, sempre ligados uns aos outros.
Se um dia viermos a de-saparecer, seremos substituídos por outras espécies, por via da lei que podemos verificar de cada vez que apanahamos um fóssil, que descobrimos o vestígio de animais desaparecidos. Que espécies é que virão render o homem? As respostas são difíceis, porque gratuitas. Há quem aposte nos insectos, que desde há centenas de milhões de anos parecem resistir a tudo e a todos. Outros imaginam seres inéditos, como Douglas Dixon, um paleontólogo escocês que descreve um planeta espantoso habitado por coelhos gigantes e por canirratos, um cruzamento de cães com ratos. Outros prognosticam a nossa substituição por golfinhos que viveriam num mundo líquido.
Trata-se de um divertimento de cientistas, pois ninguém pode saber de antemão o que é que poderá provocar o desaparecimento da espécie humana. Seria difícil escolher entre o holocausto colectivo de uma guerra nuclear, a invasão de epidemias gigantes, o desvio da órbita da Terra em torno do Sol, a degradação do clima, a destruição da camada de ozono, o envenenamento progressivo do ar e da água pelos vários tipos de poluição - a lista é longa e inesgotável.
A história da vida mostra que algumas catástrofes provocaram já extinções em massa. Há duzentos e vinte e cinco milhões de anos - quando os continentes se soldavam uns aos outros e o nível dos mares descia -, desapareceu metade das espécies, sobretudo marinhas, que eram as que formavam então o grosso do contingente da vida. Calcula-se que este fenómeno tenha conduzido ao aniquilamento de 95 por cento de certas espécies; mas bastou que alguns milhares tivessem subsistido, para que se recriasse o extraordinário formigueiro de vida que hoje conhecemos.
Há sessenta e cinco milhões de anos produziu-se outro cataclismo que destruiu também grande número de espécies, incluindo os grandes dinossauros e outros diplodocos que reinavam na Terra há uma centena de milhões de anos. Esta catástrofe pode ter-se devido à queda de um enorme meteorito, que terá levantado uma imensa nuvem de poeiras; a luz do Sol deixou de chegar à Terra, o clima alterou-se, e muitos animais não conseguiram sobreviver.
É provável que devamos a nossa existência a esse cataclismo, que poupou os pequenos mamíferos que então corriam, quase invisíveis, por entre as patas dos dinossauros. Eram os nossos antepassados longínquos, que puderam desenvolver-se graças ao desaparecimento dos grandes répteis. Não é impossível que, também hoje, corram por entre as nossas pernas animaizinhos a que não ligamos importância, e que poderão vir a tomar o nosso lugar quando nós desaparecermos da face da Terra.
O aparecimento do homem estaria previsto?
A menos que o homem seja um elemento essencial ao equilíbrio do mundo, a ponto de o seu desaparecimento ser inimaginável. É uma tese que parece insustentável, mas que tem os seus defensores. Alguns biólogos e filósofos sustentam que o aparecimento da vida era necessário, pois subentendia o advento do homem. Já Charles Darwin, há um século, pensava assim, pois colocou o homem no topo da sua teoria da evolução. Foi o que pretenderam provar aqueles que, após ele, tentaram demonstrar que a evolução tem um sentido, e que só pode prosseguir se vier a surgir um ser ainda mais inteligente do que o homem, um super-homem mais determinado pelo seu espírito do que pela sua biolo gia. Foi a tese desenvolvida, antes da última guerra, pelo pa leontólogo Teilhard de Chardin, um jesuíta que teve a sua hierarquia à perna por defender que a consciência humana criara já, acima da biosfera da vida, uma espécie de película pensante, a «noosfera». Teillard via o espírito do homem tender para aquilo a que ele chamava um «ponto Ómega», coroamento da evolução e fusão com o divino. Sem fazer seu todo este raciocínio, o biólogo Pierre-Paul Grassé defendia igulmente que o universo não faz sentido sem a consciência humana, que traduz a sua realidade e permite a sua compreensão.
Hoje em dia, a esmagadora maioria dos biólogos considera estas ideias como a expresso de um antropocentrismo sem qualquer base científica. A paleontologia, a ciência dos fósseis, não distingue qualquer orientação no sentido de uma cerebralidade crescente, de um hipotético domínio do espírito. O homem não passa de um minúsculo raminho, numa árvore que conta milhares deles, diz o paleontólogo americano Stephen Jay Gould. A vida não é uma epopeia do progresso, mas antes uma história complicada, cheia de bifurcações e meandros que os sobreviventes que somos não sabem explicar e cujos ramos estão todos eles, mais tarde ou mais cedo, condenados à extinção.
Por seu turno, François Jacob explica que o mundo vivo que hoje vemos é tudo menos o único possível. Tudo aquilo que vive - incluindo o homem - poderia ser totalmente diferente do que é. Poderíamos perfeitamente nem sequer existir. Não há na evolução nenhuma necessidade de se desembocar no homem, pois devemos a nossa existência a simples conjunturas climáticas, ecológicas, genéticas, ditadas exclusivamente pelo acaso, e que poderiam ter conduzido numa direcção completamente diversa.
Se olharmos para o mundo vivo, vericaremos que os seres dotados de um sistema nervoso complexo, de um cérebro desenvolvido, constituem uma ínfima minoria - o que não teria acontecido se a natureza dispusesse de uma vontade de caminhar em direcção ao espiritual. A maior parte dos animais são robôs rudimentares, submetidos unicamente aos seus instintos. O estudo dos fósseis, diz ainda François Jacob, mostra que a evolução se fez na realidade atabalhoadamente, utilizando o que existia para inovar, por combinações de formas, mais como se derivasse da actividade de um bricoleur do que da de um engenheiro, norteado por um plano e com um objectivo definido de antemão.
Para os biólogos, somos como jogadores que a sorte nunca tivesse abandonado, que nunca tivessem deixado de ganhar na lotaria da hereditariedade - nada mais. Mas isso não nos impede de fazer perguntas: porque é que o primo do macaco foi o único beneficiário do espantoso empurrão do acaso que o dotou de uma ampla testa e de um cérebro pensante? Porquê ele e não um golfinho? Porque é que a consciência e a inteligência emergiram numa única espécie - e uma única vez na história da vida? Talvez isso signifique que, se o homem desaparecer da superfície do planeta, essa inteligência e essa consciência poderão eclipsar-se com ele para sempre. A história da vida mostra que a evolução faz a sua caminhada sem olhar para trás, pois nunca recorre duas vezes às mesmas soluções.
A morte do Sol
Mas pode ser que existam outras soluções. A imortalidade daquilo que constitui o essencial do homem está presente em certas proposições dos astrofísicos que reflectem sobre o futuro do Universo. Daqui a cerca de cinco mil milhões de anos, o Sol iniciará a sua agonia. Quando a imensa bola de gás estiver prestes a esgotar o seu combustível - o Sol queima hidrogénio, tal como as futuras centrais termonucleares que o homem tenta construir -, transformar-se-á naquilo a que os astrónomos chamam uma «gigante vermelha». Inchará e libertará um calor intenso; os gelos polares fundir-se-ão, diz Hubert Reeves, fazendo elevar-se progressivamente o nível dos oceanos e exalando espessas nuvens que esconderão as estrelas. Em seguida, a atmosfera evaporar-se-á; mas sob o efeito do calor solar, a vegetação arderá espontaneamente. A paisagem da Terra regressará ao mineral, como nos primeiros tempos do nosso planeta. A própria pedra entrará então em fusão e as lavas descerão das montanhas. Lenta mas inexoravelmente, a Terra vaporizar-se-á sob o calor do Sol, tal como os outros planetas seus vizinhos, Vénus, Marte, Mercúrio.
O Sol extinguir-se-á então progressivamente. A humanidade terá tempo de se preparar para esses acontecimentos, que serão anunciados por sinais que os astrónomos saberão decifrar, dado que já hoje sabem prevê-los. Dentro de milhares de milhões de anos, será pois necessário utilizar os recursos de uma civilização tecnicamente muito avançada para levar os homens para junto de outra estrela, ou para outro planeta. A menos que a humanidade decida instalar-se em planetas artificiais, visto que a estrela mais próxima, a Alfa do Centauro, está a 4,3 anos-luz da Terra. Continuará por certo a brilhar após a morte do Sol, mas será preciso percorrer 40'000 mil milhões de quilómetros para chegar à sua vizinhança - uma viagem imensa, que exigirá uma enorme quantidade de energia.
O físico americano Gerard O'Neil, da Universidade de Princeton, tornou-se o campeão desse êxodo espacial. De acordo com os seus cálculos, a construção de grandes estações espaciais poderia vir a permitir alojar uma humanidade vinte mil vezes mais numerosa do que a que vive actualmente na Terra. Tomando em linha de conta as possibilidades técnicas de hoje, O'Neil pensa que, em vinte anos, seria possível instalar no espaço uma colónia para dez mil habitantes, com um custo financeiro idêntico ao do programa Apollo de conquista da Lua. Para isso, propõe que se utilizem materiais extraídos do solo lunar e a energia solar. Nessa primeira estação, com um quilómetro de comprimento, construir-se-ia a segunda, três vezes maior, capaz de acolher duzentos mil terráqueos, e assim sucessivamente, até às estações com capacidade para vinte milhões de homens, sempre utilizando os materiais encontrados no espaço, quer na Lua quer nos asteróides, esses pequenos planetas que gravitam em torno do Sol.
Hubert Reeves sugere outras soluções para sobrevivermos à agonia do Sol. Por exemplo, deslocar a Terra inteira, amontoando no equador um número de foguetes capaz de contrabalançar a força de gravitação do Sol - não seriam poucos! Imagina ainda que se abanasse o Sol, para que ele queimasse melhor o seu hidrogénio e vivesse assim dez vezes mais tempo, por meio de cachos de bombas termonucleares. Mais uma vez, o êxito é incerto'''
Se olharmos mais para a frente no tempo, os problemas para a sobrevivência da futura humanidade tornar-se-ão ainda maiores. Os astrofísicos discutem se o universo é aberto ou fechado - do que dependerá o seu futuro. Um universo aberto continuará indefinidamente a sua expansão, durante um tempo quase infinito. Um universo fechado, pelo contrário, acabará por deter o seu crescimento e por se contrair sobre si próprio, tornando-se cada vez mais denso e quente. Para decidir do futuro do universo, seria preciso conhecer a sua massa e a sua densidade. Ora os astrónomos não são capazes de calcular essa massa, pois só conseguem medir a matéria que vêem; o problema está em que existe uma importante quantidade de matéria escura e, portanto, invisível. Também algumas partículas, como os neutrinos, lhes põem problemas. Aparentemente, estes neutrinos - que existem em quantidades fabulosas - não possuem massa; mas será que não possuirão de facto uma massa tão insignificante, aos nossos olhos, que não sejamos capazes de a detectar? Dado o seu número, essa massa de partículas poderia fazer pender a balança no sentido de um universo denso.
Os astrónomos pensam que o universo deve ser aberto, embora não possuam provas experimentais disso. Se assim for, qual poderá vir a ser o futuro da vida? Se o universo prosseguir a sua expansão, tornar-se-á cada vez mais frio, à medida que as estrelas se forem apagando, umas a seguir às outras, por falta de combustível. Não serão substituídas, pois os gases e as poeiras em que nascem tornar-se-ão demasiado frios para que seja possível acender-se qualquer nova estrela.
Quando as estrelas se extinguirem, algumas transformar-se-ão em corpos escuros; outras, as maiores, em buracos negros. Buraco negro é uma fabulosa invenção dos astrónomos, que demonstram a sua existência pelo cálculo, de modo irrefutável, embora nenhum deles tenha alguma vez conseguido ver um. Coqueluche da astronomia, o buraco negro é, todavia, uma realidade matemática que ninguém põe em dúvida. Os astrofísicos ocupam congresos inteiros a discutir as propriedades desses corpos míticos, para sempre invisíveis. Com efeito, o buraco negro representa a derradeira etapa da agonia de uma estrela gigante, que implode, contraindo-se sobre si própria, até a sua matéria atingir a desorganização total. Em vez de ser feita de moléculas e átomos, a matéria tor-na-se, no buraco negro, um agregado de partículas apertadas umas contra as outras, de uma densidade fantástica. Um buraco negro que se equilibrasse na ponta de uma agulha poderia possuir uma massa de centenas de sóis. Esta matéria hiperdensa possui uma força de gravitação fabulosa; atrai inexoravelmente tudo o que passa perto dela, não deixando escapar absolutamente nada, nem sequer os raios luminosos, pois o buraco negro é, por definição, rigorosamente invisível.
Daqui a cem mil mil milhões de anos, portanto, o universo poderá vir a ser uniformemente escuro, feito de estrelas mortas e de buracos negros. A seguir, os planetas abandonarão as suas estrelas, arrancados pela força de atracção de outras estrelas errantes ou de buracos negros. Por seu turno, as estrelas desgarrar-se-ão das suas galáxias e dispersar-se-ão no espaço, cada vez mais frio. As que ficarem concentrar-se-ão num gigantesco buraco negro galáctico, do tamanho de mil milhões de sóis. Isso acontecerá num tempo muito longínquo que os astrónomos calculam sem problemas - cerca de mil milhões de mil milhões de anos. Por seu turno, também estes buracos negros acabarão por se fundir, dando origem a buracos negros supergalácticos, com um peso de milhares de mil milhões de sóis e de mil milhares de milhões de quilómetros de diâmetro.
A desagregação atingirá por fim os núcleos dos átomos, o que passará a certidão de óbito a toda a organização da matéria - e, portanto da vida, tal como a conhecemos -, anunciando do mesmo passo a morte do universo, que ocorrerá daqui a dez mil milhões de mil milhões de mil milhões de mil milhões de anos.
Que terá acontecido, entretanto, à vida? Pode imaginar-se que, no princípio desse processo de arrefecimento, os homens sobrevivam em imensas estações espaciais, deslocando-se de buraco negro para buraco negro, à procura da energia indispensável à vida. A fantástica energia de rotação desses buracos negros poderia efectivamente ser explorada durante biliões e bilões de anos, até à morte dos buracos negros galácticos ou supergalácticos.
E a seguir? Alguns astrofísicos mantêm-se optimistas. É o caso de Freeman Dyson, que acredita que, nesses tempos longínquos, poderão existir métodos que possibilitem a sobrevivência da vida e da consciência, sob formas muito diversas das que hoje conhecemos. Este cientista pensa que a consciência e a inteligência - o essencial da vida - se caracterizam mais pela complexidade da sua estrutura do que pelas formas que podem assumir numa matéria dada. Sem descrever o que poderão vir a ser a inteligência e a consciência daqui a biliões e biliões de anos, no seio de um universo frio e escuro, Dyson não rejeita nenhuma hipótese. Poderiam refugiar-se no dinamismo de uma partícula, numa nuvem pensante, num componente de computador. O equivalente do que é hoje o nosso cérebro poderia, nessa altura, ser constituído por materiais mais resistentes do que os nossos fragilíssimos tecidos e células orgânicas. Essa forma de vida poderia adaptar-se para subsistir com pequenas quantidades de energia, refugiando-se em longos períodos de hibernação, a fim de acompanhar a viagem do universo até ao fim.
«Se a minha análise estiver correcta, diz Dyson, o mundo da física é inesgotável. Descobri um universo que cresce sem limites, um universo de vida que persiste ad eternum.»
O princípio antrópico
Sejam quais forem as soluções que os nossos descendentes longínquos vierem a encontrar para assegurar a sobrevivência da consciência num universo em agonia, elas só poderão ser imaginadas se a sua inteligência se tiver conservado e desenvolvido - em organismos que poderão não ter nada em comum com aquilo que conhecemos. A criação e a sobrevivência de seres inteligentes seria pois o processo pelo qual a natureza asseguraria a conservação da vida, independentemente do destino do universo.
Isto não passa evidentemente de uma hipótese, actualmente defendida por uns e escarnecida por outros. Mas constitui uma afirmação carregada de sentido, fascinante para os astrofísicos, que lhe dão o nome de «princípio antrópico». Este princípio liga a existência da vida, do homem, da sua consciência e da sua inteligência à própria existência do universo, e declina-se de diversas maneiras.
Sob a sua forma mais anódina - a que suscita menos controvérsias -, este princípio antrópico limita-se a sublinhar que a vida e o homem só podem aparecer a partir do momento em que se encontram presentes os seus elementos constituintes: os átomos e as moléculas. Ora estes elementos nascem nas estrelas e, por sua vez, estas só surgem quando o universo já atingiu uma certa idade. Nem a vida nem o homem seriam imagináveis num universo com alguns milhares, ou mesmo alguns milhões de anos. São precisos dez mil milhões de anos para que apareça o carbono, um elemento indissociável da vida. A vida só pode pois nascer num universo com um mínimo de dez mil milhões de anos, e pelo menos do tamanho de dez mil milhões de anos-luz. E isto mesmo que tenha nascido num único planeta, mesmo que nós sejamos os únicos seres conscientes e inteligentes do nosso vastíssimo universo. É aquilo a que se chama o princípio antrópico «fraco», que apenas verifica a ligação necessária entre a idade e o tamanho do universo, por um lado, e a existência do homem, por outro.
Aquilo a que os astrónomos dão o nome de princípio antrópico «forte» vai muito mais longe e, por isso mesmo, suscita discussões apaixonadas. Diz que as forças que ligam entre si os elementos do universo favorecem, do mesmo passo, o aparecimento da vida - como se essas condições essenciais da existência do universo estivessem intimamente ligadas às que determinam a existência do homem.
Não se destinará o universo, perguntam alguns cientistas, a ser apreendido pela consciência do homem? Não é essa consciência que lhe dá a sua razão de ser? De entre os diversos modelos de universo possíveis, dizem outros, porque é que existe precisamente aquele que permitiu a emergência da vida e do homem?
O universo contém, em média, menos de um átomo por metro cúbico de espaço, isto é, 10í27 (10, seguido de 27 zeros) vezes menos do que o ar que respiramos. Para que a vida tivesse podido nascer nele, tinha de ser rarefeito a esse ponto. Mais denso, a sua expansão ter-se-ia detido demasiado cedo, ter-se-ia desmoronado antes do aparecimento da vida. Mas o seu advento exige igualmente que o universo tenha exactamente a velocidade de expansão que possui. Se essa velocidade fosse um milionésimo superior, as galáxias não poderiam ter-se formado, diz o físico americano Richard Morris; se fosse um milionésimo inferior, a sua expansão teria cessado ao cabo de trinta mil anos. E o mesmo acontece com todas as outras forças que governam o mundo. O mínimo desvio em relação ao que existe teria impedido a existência de qualquer elemento mais pesado do que o hidrogénio e, portanto, não se poderia ter formado a matéria tal como a conhecemos - tanto a inerte como a viva.
Este finalismo está longe de ser partilhado por todos os astrofísicos. Muitos deles encontram no princípio antrópico uma marca de antropocentrismo que lhes parece inaceitável. Ao defender que a vida e a inteligência são indispensáveis à própria existência do universo, sugere-se que ele só pode ter nascido de um projecto, a que poderia chamar-se Deus. O que é perfeitamente inadmissível para muitos astrónomos, que pensam, e com razão, que a ciência e a religião não se devem misturar.
Mas estas reflexões não deixam de perturbar alguns cientistas, que aproximam o princípio antrópico da verificação experimental, indiscutível, de que o universo partiu de um estado de caos e se foi organizando até chegar a estádios progressivamente mais complexos, mais subtis. E o mesmo se verifica no que se refere à vida, que parte igualmente do simples para o complexo. Não é fácil ver nisto um mero efeito de um acaso cego. É certo que defender a existência de um projecto não é lá muito científico. Mas será mais científico negar a possibilidade da sua existência? Além disso, é fácil demonstrar que a natureza desse projecto não tem nada a ver com a existência de qualquer deus que deve muito à imaginação e à vontade dos homens.
Entre outras consequências, o princípio antrópico vem ao encontro das teses daqueles que não conseguem de modo nenhum admitir que a consciência e a inteligência possam estar à mercê de uma modificação, ainda que profunda, do meio em que evoluem. Se a vida e o universo estiverem ligados, é possível que o elo que os une não possa ser destruído. Se assim for, a consciência, seja qual for a sua forma, poderá subsistir para sempre, enquanto existir algo que ainda se assemelhe a um universo.
Robert Clarke
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