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Eaton abanou a cabeça.
- Não temo que o Presidente Dilman não se encolha e não se demita. Pode preferir que o exponham, que arrastem a família pela lama, a dobrar-se sob a nossa pressão. Consideraram isso?
Antes que Miller pudesse responder, o senador Hankins fungou e tremeu no sofá, enquanto levantava a mão.
- Consideramos isso, Sr. Ministro. Tanto Zeke como eu falámos acerca disso com os nossos amigos, antes de aqui termos vindo. Decidimos o seguinte: se aquele nigger não se puser a andar da Casa Branca para fora pelo seu próprio pé, então tirá-lo-emos nós de lá.
Eaton franziu as sobrancelhas.
Tira-lo de la?
Tirá-lo-emos de lá à força - disse o senador Hankins. - A sua Constituição, jovem... nunca se esqueça da sua Constituição. Artigo II, Secção 4. «O Presidente dos Estados Unidos será destituído do seu cargo por acusação comprovada de traição, suborno ou outros crimes capitais e delitos.» A lei dos Pais Fundadores, jovem.
Arthur Eaton tentou manter-se impassível, mas estava profundamente perturbado. Permaneceu imóvel, de olhos baixos, fixando o tapete. Nunca até então ouvira a monstruosa palavra acusação ser usada desse modo por homens eleitos para altos cargos de responsabilidade. Ouvira-ajá em mexericos, lera-a nas colunas da imprensa, mas nunca a ouvira na boca dos membros do Congresso dos Estados Unidos. Era uma palavra americana tão impossível para ele como secessão, revolução ou assassínio. Todo o seu passado e educação - a sua inteligência, a sua fé e a sua crença nos compromissos senhoriais - se sentiam ofendidos com tal palavra.
É verdade - ouviu Miller dizer -, se Dilman não sair, destituí-lo--emos, segundo um processo legal.
Senhores - disse Eaton -, acho que até mesmo o pensar tal solução é repugnante. Penso que tal solução poderia ser tão prejudicial ao país, nesta altura, como a própria acção de Dilman. Mesmo que eu venha a ganhar com o caso, temo não os poder apoiar em tão drástico acto.
Mas a Constituição - disse Miller.
Os Pais Fundadores, indo às suas reuniões em carruagens puxadas por cavalos, criando a Constituição com as suas penas de pato, não podiam prever o que cada artigo significaria numa era nuclear, com comunistas à nossa frente, com lutas raciais à nossa retaguarda - disse Eaton. - Não. Denúncia seria perigoso. Jefferson disse que ela era um mero «espantalho» na Constituição, provavelmente porque certamente nunca foi usada excepto como «espantalho». Mas pondo o Jefferson de parte e considerando que se pudessem realmente usar poderes de denúncia com causas reais, e mesmo que pudessem ser manejadas segura e rapidamente, não acredito que Dilman merecesse ser expulso, pelo menos com as provas que têm em vosso poder. O que possuem é uma crítica ao carácter de um homem num alto cargo, o que possuem é um escândalo, mas mesmo isso não constitui uma prova de traição, suborno ou crimes capitais contra o país.
Miller avançou, enfrentando Eaton.
Tudo somado leva à traição e incapacidade para o cargo -insistiu ele.
Tenho as minhas dúvidas - disse Eaton.
De qualquer modo, não teremos de provar tanto - disse Miller. -Voltou-se para Hankins. - Senador Bruce, tem aí isso...
-Tenho-o aqui mesmo à mão - disse Hankins, mostrando uma fotocópia de uma página de um livro. Ajustou as lunetas, estudou breve a fotocópia e depois levantou a cabeça para Eaton. - Não há uma definição exacta e precisa de crimes de denúncia, Sr. Secretário. O facto é que constitui uma sombrinha muito grande, e as nossas provas cabem muito bem debaixo dela. Por exemplo, esta pequena definição de denúncia que aqui tenho. George T Curtis, o advogado-historiador, fê-la em 1889. Diz ele - ... Hankins leu na fotocópia... -Pode existir uma causa para a destituição mesmo que nenhuma ofensa contra a lei positiva tenha sido feita, quando o indivíduo, por imoralidade, imbecilidade ou má administração se tenha tornado incompetente para exercer o cargo!
Vêem! - exclamou Zeke Miller triunfante. - Parece que foi mesmo talhado para o corpo de Dilman.
Contudo, continuo com as minhas dúvidas - disse Eaton.
Bem - disse Talley -, parece-me que estamos a ladrar na árvore errada e a gastarmos o nosso fôlego. Assim nunca chegaremos a nada de sério. Arthur, sinto-me inclinado a pôr-me do lado de Zeke e do senador acerca do que irá acontecer. Se souberem utilizar as autênticas descobertas que possuem já, e atingirem Dilman com força entre os olhos com elas, penso que ele terá de se pôr a andar.
Eaton mordeu os lábios.
- Desejaria estar tão confiante como vocês três. Não o posso estar. Acho que têm provas suficientes agora para com elas ameaçar o presidente e fazê-lo reconsiderar sobre qualquer outro acto precipitado e que sirva aos seus próprios interesses. Acho que o podem fazer abrandar e forçá-lo a escutar os nossos conselhos. Penso que conseguirão isso. Mas, repito, não acredito que tenham provas suficientes para o demitir e duvido até mesmo que as tenham para o afugentar do cargo. - Eaton encolheu os ombros. - Esta é a minha opinião. Vocês farão o que entenderem. Acho apenas justo dizer-Ihes que se tomarem medidas mais drásticas, baseadas no que já possuem, eu não os acompanharei. - Viu os rostos sérios deles e acrescentou, tão a brincar quanto possível: - Mas acompanhá-los-ei em mais uma bebida, antes...
Foi interrompido pela campainha da porta. Intrigado, olhou para o relógio sobre o fogão da sala. Eram dez para a meia noite. A campainha voltou a tocar, seguida do martelar metálico da argola de ferro da porta.
Quem poderá ser? - perguntou Talley.
Vou ver - disse Eaton. - Desculpem-me, meus senhores. O governador servir-lhes-á mais uma bebida para o caminho.
Saiu da sala de estar, atravessou o vestíbulo e abriu a porta.
Deparou com Sally Watson, de pé, apoiando-se ao umbral da porta. Eaton nunca a vira em tal estado e por um momento ficou petrificado de espanto.
É verdade - disse ela numa voz pastosa -, sou eu mesma, ou o que resta de mim, acredites ou não.
Meu Deus, Sally, entra.
Agarrou-a e puxou-a para dentro do vestíbulo, examinando-a como se não quisesse acreditar no que via. Ela tinha o cabelo todo desarranjado, com madeixas caídas sobre os olhos. A máscara dos olhos estava toda esborratada e as faces estavam cobertas de sulcos de lágrimas. O corpo do fato verde de cocktail estava metade por cima e metade por baixo com uma alça rebentada, a frente do fato rasgada, de tal modo que deixava ver uma parte do soutien.
Ela cobriu o peito com o casaco que tinha no braço e ergueu os olhos para ele.
Pára de olhar para mim dessa maneira, Arthur. A culpa não é minha. Culpa-o a ele. Foi ele quem me fez isto, o maldito, ele é que tem a culpa.
Quem?
Quem pensas tu que fosse? - disse ela zangada. Tirou os cartões da bolsa. - Eis o que querias. Tinha-te prometido que o obteria e aqui o tens. Fi-lo de qualquer modo. Deixa-me arranjar e depois con-tar-te-ei tudo, aquele porco sujo.
Começou a andar em direcção à sala de estar, perdeu o equilíbrio e Eaton segurou-a rapidamente pelo cotovelo. Então, pegando no casaco, conduziu-a até à sala de estar. Com o seu aparecimento, Zeke Miller, que acabara de se sentar, pôs-se de novo de pé de um salto e Bruce Hankins erguera-se emitindo um grunhido. Cumprimen-taram-na com um espanto cortês, mas Sally não respondeu, ficando apenas a olhar fixamente para eles.
- Aconteceu algo a Miss Watson - explicou Eaton. - Vou ver se ela se deita um pouco. Já volto.
Talley, junto ao bar, girava sobre si próprio e os seus olhos seguiram Sally com incredulidade.
Que diabo sucedeu? - quis ele saber.
O maldito bêbado do nosso presidente - disse ela raivosamente. - Foi ele - ele pensava que eu era como o resto das mulheres que conhece!
O rosto de Eaton mostrou uma expressão dolorosa.
Por favor, Sally. - Meteu os cartões na mão de Talley. - Tome. São as notas acerca do encontro de Dilman com o Scott. É melhor lê--las. - Empurrou Sally para fora da sala, mas antes ouviu Zeke Miller exclamar:
Hei! Espera aí - o que é que ela disse?
Com dificuldade, tentando mantê-la de pé, Eaton levou Sally apressadamente pelo corredor. Sabia que ela não conseguiria subir as escadas até aos quartos no andar superior. Em vez disso condu-ziu-a até à biblioteca, segurando-a com uma mão e fechando a porta com a outra.
Aqui tens a casa de banho - disse ele.
Já não a quero - disse ela.
Ele examinou-lhe o rosto e pôde ver que ela não só estava meio embriagada, como estava à beira da histeria. Obrigou-a a sentar-se num sofá.
- Descansa uns minutos.
Ela sentou-se no sofá e cobriu o rosto com as mãos.
Não preciso de descansar. O que quero é matar aquele patife.
Penso que precisas de tomar alguma coisa para te acalmares -disse Eaton ansiosamente. Foi apressadamente até à casa de banho, acendeu a luz e procurou os calmantes de Kay. Encontrou um frasco, tirou dois comprimidos, encheu um copo de água e regressou para junto de Sally.
Toma os dois. Ela obedeceu-lhe.
Isso - disse ele -, agora a água.
Ela bebeu um gole, fez uma careta e tornou a entregar-lhe o copo.
- Já bebi hoje o suficiente.
Eaton pousou o copo, ajoelhou-se junto dela e observou-a.
Queres que mande chamar um médico?
Para que é que eu preciso de médico? Está tudo cá dentro, o que ele me fez, humilhando-me como se eu fosse uma das pegas dele. Se alguém soubesse... - Bateu ímpotentemente com o punho na almofada do sofá.
Eaton levantou-se e sentou-se a um canto do sofá.
Quando... quando te sentires em condições de falar, Sally, gostaria de te ouvir.
Posso falar agora. Eu estava a tentar imaginar como te havia de ajudar - começou ela excitada - e então tive uma oportunidade, quando ele me tornou a convidar para ir ao seu quarto...
-Quem? O Dilman?
Não o Calvin Colidge, com certeza. Claro que o Dilman.
Que queres tu dizer com esse... tornou-me a convidar?
Deus do céu, Arthur, não te posso contar sempre tudo. Ele tem um fraquito por mim e já me convidou três vezes pelo menos para eu ir ao quarto dele, à noite, para discutirmos questões sociais, dizia ele... Oh!., questões sociais! Sempre me esquivei. Mas esta noite, quando me tornou a dizer para me encontrar com ele por causa de alguns planos, depois de os convidados se terem ido embora, eu vi uma oportunidade de te ajudar e concordei. Fui para o quarto dele antes de ele subir. A transcrição do seu encontro com Scott não estava fechada; portanto foi fácil lê-la. Tirei essas notas nos cartões. Tens sorte em as teres...
Ele apertou-lhe as mãos.
- Sally querida, agradeço-te muito, mas sinto-me preocupado... Ela retirou as mãos e afastou os cabelos dos olhos.
- Bem, por volta das 10 horas chegou ele... já todos se tinham ido embora... e vi que vinha bêbado que nem um cacho. Quis-me ir embora, mas ele insistiu em que eu ficasse, pois queria falar acerca de negócios, e que diabo, não se pode insultar um presidente. Insistiu e tornou a insistir para que bebesse com ele. Que podia eu fazer? Ele deve-me ter servido uma boa dose, pois fiquei realmente um pouco tonta, e ele então só visto.
Ela abanava a cabeça irada, e Eaton disse:
Que queres dizer com isso, Sally?
Não posso entrar em pormenores, é demasiado embaraçoso, considerando a sua posição. Mas acho que afinal estes políticos não passam de seres humanos, como o Harding e Nan Britton na casa de banho da Casa Branca, mas quem esperaria uma coisa destas de um nigger cantor de hinos que já se devia considerar com sorte por estar vivo, quanto mais por ser presidente? Ele perseguia-me, eu lutei contra ele, e ele quase que me deitou na cama, profanou aquela cama, e tentou arrancar-me o vestido... olha só para ele... mas eu consegui escapar... Oh, que cena!...
Sally... Sally... espera um segundo. Estás a dizer que Dilman te embriagou e depois...
É isso mesmo o que estou a dizer.
Mas... Sally... esta noite houve lá um jantar. Certamente que bebeste alguma coisa, por tua própria iniciativa, primeiro?
Ela ficou silenciosa durante um momento, fixando-o circunspectamente.
E se tivesse bebido? Quem é que não toma uma ou duas bebidas antes de jantar?
E tomaste alguma também depois de jantar?
Que queres dizer com isso, Arthur? - disse ela - Já te disse... tomei com ele... eleforçou-me...
Sim, é claro. Mas o que quero dizer é depois de te teres escapado dele. Se ele chegou ao quarto às 10... e, digamos, que o deixaste uma hora mais tarde... ainda fica mais uma hora e eu perguntava...
Ela tomara-se rígida.
Fui buscar o meu casaco ao escritório. Se aí tivesse uma arma, tê-lo-ia morto. Desci as escadas. Estava demasiado agitada para guiar o carro. Subi a Avenida da Pensilvânia. Então decidi telefonar-te para me ires buscar. Entrei no primeiro sítio que encontrei, um bar. Verifiquei que estava demasiado nervosa até para telefonar. Portanto decidi tomar uma ou duas bebidas para me acalmar. Depois tomei um táxi... - Parou abruptamente, com os lábios comprimidos. - A tua expressão não me agrada. Pensas que estou a mentir. Quem és tu, um promotor de justiça, ou algo?...
Por favor, Sally. Pergunto-te apenas porque isto é um caso sério, e...
- Julgas que estou a mentir. Mas eu não te admito isso... tu, entre todos... para o diabo com tudo isto. - Levantou-se de um salto, quase que caiu para a frente, agarrou-se à mesa e endireitou-se. – Se não me apoias, conheço alguém na sala ao lado que o fará!
Com a cabeça erguida, o resto do corpo cambaleante, ela diri-giu-se para a porta da biblioteca.
- Sally, vem cá, não sejas parva...
Sem se voltar, encolhendo apenas os ombros, ela abriu a porta e deixou-o.
Eaton pôs-se de pé, mas não a seguiu. A aventura que ela contara era tão bizarra... e improvável... que ele precisava de uns minutos de solidão para a reconsiderar.
Acendeu um cigarro e depois começou a andar pensativamente de um lado para o outro da sala. O que pesava contra a história era a própria Sally, pois ele conhecia-a muito bem. Ela bebia, drogava-se, era instável e dada a exageros e voos de imaginação. Esboçara uma imagem de Dilman que em nada se assemelhava com o medroso político negro que ele e todos conheciam. Contudo, para contrabalançar a balança da sua procura da verdade, que motivos poderia ter Sally para inventar uma tal história? Não conhecia nenhum, nada que lhe pudesse trazer qualquer vantagem, a não ser que houvesse quaisquer parcelas de verdade em tudo aquilo e ela quisesse que Dilman fosse punido. Para mais, ela era sexualmente atraente para qualquer homem, ele bem o sabia, e Dilman vivia sozinho, e havia ainda poucos minutos Miller falara acerca de provas em como Dilman bebia às escondidas.
Ainda assim, com os diabos, Eaton achava toda a história absolutamente inconcebível. Quaisquer que fossem os boatos idiotas de infidelidade, adultério e luxúria, espalhados por outros políticos ou pelo desejo instintivo de todos os comuns mortais de rebaixar os que se encontravam mais acima até ao seu próprio nível, quaisquer que fossem os boatos que rodeavam a presidência... e não havia presidente nenhum que escapasse a tal maledicência... não havia nenhuma prova concreta de um único chefe executivo, enquanto no cargo, se ter comportado como Sally acabara de acusar o Presidente Dilman de se comportar. Quaisquer que fossem os hábitos anteriores do seu inquilino, a Casa Branca não era um lupanar, nunca o fora, nunca o seria, porque tinha paredes de vidro. Ou, talvez, porque a sua grandeza parecia converter o seu morador de um simples mortal num símbolo abstracto. Isto era verdade, não só quanto ao presidente, mas quanto aos membros do seu Gabinete e... então, subitamente, com espanto, Eaton percebeu que a muralha de virtude invencível que estava a construir à volta do chefe Executivo e dos membros do seu Gabinete era feita de cartas e ruíra.
E que dizer dele próprio? Era o ministro de Estado dos Estados Unidos, o protector do destino internacional da América, o que estava em segundo lugar a seguir ao presidente... e contudo, sob o manto da noite, era um simples mortal. Quantas vezes não estivera já deitado, todo nu, ao lado daquela linda jovem, ela também nua, e sem ser sua esposa?
Tudo era possível.
Para os homens não havia símbolos, por muito augustos e expostos que os seus cargos fossem. Só havia os próprios homens.
Deitou uma vista de olhos ao relógio de pulso. Já tinham passado quase 10 minutos desde a partida irada de Sally. Era melhor ir ter com ela e com os outros... Deus meu, os outros!... e descobrir o resto da aventura e fazer o que pudesse para extrair os factos do que era invenção alcoólica e neurótica.
Saiu da biblioteca e, quando entrou na sala, deparou-se-lhe um quadro de certo modo já esperado.
Sally, de costas para ele, estava sentada no sofá mais próximo, com o senador Hankins sentado ao lado, no mesmo sofá, com Wayne Talley encarrapitado numa cadeira, escutando avidamente, e com Zeke Miller escarranchado num banquinho, mesmo em frente dela, de rosto vermelho e torcido de indignação.
Entrando na sala, Eaton ouviu Sally dizer:
E então eu empurrei-o e bati-lhe, comecei a gritar, até que ele recuou e me largou, e então eu safei-me... não, primeiro... lembro-me que, antes de me ter ido embora, lhe disse o que pensava dele...
Perdoe-me, Miss Watson, se a interrompo - disse Zeke Miller, mas quero esclarecer uma coisa... esclarecê-la bem... porque nunca na minha vida ouvi tanta degradação... mas compreendo bem quando disse que... que esse bode negro, esse Dilman, lhe fez... desculpe a minha linguagem, sendo a senhora uma jovem educada, filha de um colega que muito estimo... mas está a dizer que esse Dilman lhe fez propostas indecentes, esta noite, contra a sua vontade e desejo?
- Propostas indecentes? - exclamou ela. - Aquele animal tentou violentar-me... posso-o provar. Querem que o prove? - Nesse momento reparou em Eaton, de pé por detrás de Talley, e então gritou: - Podes ver com os teus próprios olhos, Arthur. Agora saberás que eu não inventei nem uma palavra.
De repente, ela baixou-se, agarrou na orla da saia e puxou-a até acima dos joelhos, e depois até mais acima, até pôr à mostra as coxas roliças, parte da cinta e os folhos das cuecas. Quase se deitou de lado para mostrar melhor a sua coxa direita, e passou o dedo pela carne.
- Olhem só. Eu não me envergonho. Vejam com os vossos próprios olhos, vejam o que ele fez.
Eaton teve vontade de fechar os olhos, mas não o fez. Viu as marcas fundas e vermelhas de unhadas e algumas crostas de sangue sulcando a carne branca e perfeita de Sally. Viu os olhos cinzentos de Miller esbugalharem-se com o espectáculo e os de Hankins semicerrarem-se.
- Já viram - disse Sally, endireitando-se e puxando as saias para baixo. - Vou-lhes mostrar ainda mais. Olhem.
Pôs a alça rasgada do fato para baixo e puxou uma parte do corpo também para baixo, até mostrar inteiramente um lado do soutien. Eaton quis detê-la, dizer-lhe que não eram necessárias mais exibições, mas antes de poder proferir uma palavra, ela já soltara a alça do soutien. Depois puxou-o rapidamente para baixo, pondo à vista a curva do peito até a uma polegada do bico. Não precisou chamar a atenção para o que podia ser visto por todos. As marcas de unhadas eram ainda mais fundas aí e o mesmo sucedia com as nódoas negras.
Eaton não se pôde conter mais.
-Já chega, Sally.
Ela olhou para ele, cobriu o peito e disse para Miller:
- Foi o que recebi pela minha resistência e não pensem que foi outro senão aquele nigger. Estive sozinha com ele, esta noite, no seu quarto, e o governador Talley tem a prova na mão, nesses cartões, umas coisas que copiei de Dilman, no seu quarto.
Da garganta do senador Hankins saiu um som cavo.
- Jovem senhora, durante tantos anos no serviço público, nunca ouvi tal ultraje cometido contra uma mulher indefesa. Prometo-lhe... deu uma palmada na coxa. - Prometo-lhe empregar os meus últimos recursos para expulsar o responsável para fora da nossa cidade...
Sally pareceu ficar momentaneamente hipnotizada com a galantaria de Hankins...
- Muito obrigada, senador. Só... só quero que se faça justiça. Zeke Miller estava furioso.
Justiça é bom de mais para aquele alarve bêbado, Miss Sally -gritou ele. - O que ele merecia era ser linchado. Assim, palavra, é o suficiente para nós...
Não sou só eu - disse Sally. - Não existe apenas um exemplo da imoralidade dele.
Que quer dizer com isso? - perguntou Miller. - Não faça cerimónia para nos contar tudo o que souber.
Sally passeou os olhos pelos homens à sua volta.
- Quer dizer que não sabe nada acerca da amante dele?
A exclamação de espanto e prazer de Miller transformou-se num assobio.
Tem a certeza do que diz? - disse ele.
Claro! - exclamou Sally com calor. - Quando o deixei esta noite, atirei-lhe à cara que eu não ia ser uma outra Wanda Gibson... mantida por ele numa rua qualquer das traseiras... Bem, se o vissem. Fê-lo logo parar. Ele não sabia que alguém estivesse a par do caso, com excepção dos Springer, mas eu sei e tenho a certeza de que Edna Foster também sabe.
O senador Hankins pôs-se muito direito no sofá, com uma expressão confusa estampada no rosto.
Como se chama essa senhora?
Wanda Gibson - disse Sally. - É uma jovem negra. Dilman tinha-a a viver no andar de cima da sua ex-casa quando era... antes de se tornar presidente. Ela ainda lá vive e ele foi vê-la na noite após ter mudado para a Casa Branca. Na verdade, ele até tentou trazê-la à Casa Branca, convidando-a para o jantar de estado dado em honra de Amboke... Sei-o porque fui eu quem lhe mandou o convite, mas acho que ela teve medo de se mostrar. De qualquer modo, essa tal Wanda Gibson foi quem lhe telefonou hoje... ela trabalha para os Exportadores Vaduz, num emprego altamente confidencial... e tele-fonou-lhe hoje para lhe dizer que tinham sido descobertos... querendo dizer que o F. B. I. descobrira que o patrão dela e a companhia eram uma frente comunista russa e para o avisar. Eaton deu um passo em frente.
Não há necessidade de entrar agora nisso, Miss Sally.
Hem, espere aí, Arthur, só um minuto. Diabos, isto soa a qualquer coisa de grande - disse Miller. Tocou no joelho de Sally. - Está a dizer que o Presidente dos Estados Unidos, negro ou não, o Presidente da América, tem estado a viver clandestinamente com uma negra que trabalha para os russos soviéticos?
Isso mesmo.
Miller transformara-se num cão de caça com o nariz bem aberto.
Heia! Se os factos fossem esses...
Os factos são estes - disse Sally com fervor. - Apontou para Talley. - Ele tem na mão uma prova, naqueles cartões copiados directamente das notas de um encontro que Dilman teve com o Sr. Scott, esta tarde. Está ali tudo...
Miller voltou-se para Talley com os olhos a brilharem.
- É verdade, governador?
Talley abanou nervosamente os cartões.
- Bem... hum... quanto aos Exportadores Vaduz serem uma frente comunista - sim, descobriu-se que eles enviam armas para... para países soviéticos, que dispõem delas principalmente na África. E é evidente que o presidente tem uma senhora amiga que trabalha nessa firma... sim... mas é claro que não tenho qualquer conhecimento das relações entre ambos.
Miller afastou as palmas das mãos uma da outra e depois ba-teu-as vigorosamente uma contra a outra.
- Aberta e fechada! - anunciou. - Queria traição, suborno e crimes capitais, Arthur? Pois aí os tem. O presidente deste país, dando-se com uma amiga que trabalha para os comunistas, falando intimamente, deixando escapar segredos propositada e inadvertidamente de propósito para ajudar os seus companheiros negros de África ou inadvertidamente porque troca segredos pelo amor. Se isso não é traição, o que é? O presidente, adiando a perseguição de extremistas negros como os Turnerites, para que eles não espalhem que o filho dele é um dos membros, do que resulta um juiz branco ser assassinado. Se isso não é suborno por chantagem, então o que é? Crimes capitais e delitos? Significando imoralidade, desregramentos e costumes depravados? Se a fornicação do presidente com uma amante, o tentar seduzir a sua indefesa secretária social branca, conjuntamente com o seu passado de ébrio, o não classificam, então o que é que o classifica? Arthur, está aberto e fechado. O negro sai e você entra.
Para Eaton, o caso estava-se a precipitar demasiado. Queria mais tempo para pensar.
- Veremos - disse calmamente -, teremos de ver. Talley levantou-se.
Temo que Dilman não nos conceda muito tempo, Arthur. - Indicou os cartões na sua mão. - Miss Watson registou a maior parte do encontro privado com Scott. Dilman sabe tudo... Sabe que escondemos dele o relatório da C. I. A. sobre Baraza. Sabe o que esse relatório continha, porque Scott lho disse. Aparentemente, Dilman ficou pior que uma barata com o caso e ordenou que se usassem mais agentes e fundos para investigar a situação em Baraza. Disse a Scott para daqui por diante se dirigir directamente a ele, sem se servir de nós. Disse que daqui por diante será ele quem governará e não nós por ele. - Talley esfregou o queixo com um ar preocupado.
Digo-lhe Arthur, vamos ter sarilho com aquele homem.
Que espécie de sarilho nos pode ele causar? - disse Eaton. -Seja realista. Que poder tem ele agora sobre nós... em comparação com o que temos sobre ele? Depois desta noite, deste incidente com a Sally, ele sabe no que está metido. Não levantará a voz contra nós. Não ousará dizer uma palavra.
Talvez tenha razão - disse Talley.
Sei que a tenho - replicou Eaton.
Reparou que Miller e Sally tinham estado a conversar em voz baixa e que agora Sally tentava levantar-se do sofá e que Miller a ajudava. Eaton apressou-se em direcção a eles e segurou Sally pelo outro braço.
Sentes-te melhor? - perguntou solícito.
Arthur! Arthur! - disse ela. - De repente fiquei com tanto sono! Deste-me alguma coisa? Esqueci-me. Deste-me algum comprimido?
- Dei, queria que descansasses. Levar-te-ei para a biblioteca. Zeke Miller cortou-lhes o caminho.
- Só uma coisa, Arthur. Eu pedi a Miss Sally e ela concordou, concordou plenamente. Vou notificar o Casper Wisse e os seus rapazes para cá virem. Quero ditar tudo o que Saily nos contou, precisamente como saiu da sua boca. Registá-lo-ei como declaração legal e depois Miss Sally disse-me que a poderíamos acordar e que ela a assinaria. Cooperará em tudo o que puder.
- Concordo com tudo o que ela desejar - disse Eaton.
Sally apoiava-se agora pesadamente no seu ombro e Eaton rode-ou-a com um braço quando começou a conduzi-la para fora da sala. Ouviu tocar o telefone - estranho, àquela hora tardia - e fez sinal a Talley para que o atendesse. Depois esperou, suportando o peso de Sally, observando Talley ao telefone, incapaz de o ouvir. A chamada não durou mais que vinte segundos, e lentamente Talley desligou.
O olhar de Eaton não largou Talley enquanto este se afastava do telefone e se aproximava deles. O rosto dele vinha sério e tenso, a pura imagem da apreensão.
Arthur - disse ele num murmúrio rouco -, era Edna Foster, da Casa Branca. Acaba de deixar o presidente. Este ordenou que lhe telefonasse e que o acordasse se necessário fosse. Dilman quere-o no escritório dele amanhã de manhã, às nove horas em ponto. Quer falar consigo acerca de um assunto importante e pessoal. Ela frisou com insistência o assunto pessoal.
Estou vendo.
Acho que chegou o momento, Arthur. A banha está ao lume. Ele pegou agora na espingarda.
Também nós... agora - disse Eaton, fazendo uma careta.
Só que o que nós possuímos não é uma espingarda, mas um obus. - Largou Sally Watson, que estava meio adormecida, e entre-gou-a a Talley. - Leve-a para a biblioteca, Wayne, e instale-a lá confortavelmente. Trate-a com cuidado. Ela poderá valer o seu peso em munições.
Permaneceu imóvel, submerso nos seus pensamentos, até Talley ter saído da sala com Sally. Então Eaton voltou-se e caminhou lentamente até ao sofá onde Zeke Miller e Bruce Hankins rabiscavam afanosamente umas notas, um numa agenda e o outro nas costas de um sobrescrito.
Eaton pôs-se de pé junto deles até que, primeiro Miller e depois o senador Hankins, levantaram interrogativamente a cabeça.
- Senhores - disse Eaton -, mudei de opinião. Acho que não posso permanecer neutro e ocioso de lado, por mais tempo, e deixar que vós e o partido lutem sozinhos contra este homem. A partir desta noite estou do vosso lado e podem contar comigo para tudo...
O rosto de Miller brilhou de contentamento e a sua mão agarrou no braço de Hankins, que sorria também de satisfação.
Meu Deus! - exclamou Miller. - Eu já sabia que você se decidiria um dia destes!
Contudo, há algo que quero que vocês compreendam - continuou Eaton. - Se luto contra Dilman, se me junto a vós para forçarmos a sua demissão, não é por ele ser negro, mas por ser um idiota.
Às nove horas e um minuto da manhã seguinte, o Presidente Douglass Dilman olhava fixamente através das janelas do Escritório Oval para as árvores despidas e espalhadas pelo relvado sul e para o nebuloso e sombrio céu de Novembro. Tentou comparar o seu mau humor interno com a turbulência ameaçadora do novo dia.
Por fim tornou a rodar a cadeira para os telefones, levantou-se e tocou a campainha.
- Miss Foster - disse ele -, pode mandá-lo entrar. Compôs a expressão e esperou.
A porta abriu-se, tornou a fechar-se e o ministro de Estado Arthur Eaton entrou, cumprimentou-o solenemente e pousou cuidadosamente o sobretudo e o chapéu nas costas de um sofá. Dilman, que ainda não proferira uma única palavra, sentiu-se satisfeito ao ver que as feições de Eaton se apresentavam tão vincadas como as suas. Mas suspeitaria ele que a semelhança de disposição, no que se reflectia nos modos e aspectos de ambos, ficava por aí? Se Eaton estava preocupado, então a sua emoção encontrava-se camuflada pela palidez seráfica da sua máscara de negociante aristocrata e pelo seu fato elegante e de bom corte de Saville Row. Dilman sentia que a sua própria emoção, a de profundo desagrado, estava à mostra nas rígidas linhas que lhe cercavam os olhos cansados e a boca amargurada. Dormira mal e pouco, depois do repulsivo comportamento de Sally Watson, na noite anterior, e depois de ter relido a entrevista com Scott e ter compreendido o que tinha a fazer.
- Faça o favor de se sentar - disse ele apontando para a cadeira Revels, a um canto da secretária. - Não o demorarei.
Eaton sentou-se, cruzou as pernas e tirou a cigarreira de prata da algibeira do casaco. Estendeu a Dilman a cigarreira aberta, mas este recusou. Então Eaton tirou um cigarro, meteu-o na boquilha de prata e acendeu-o. Depois de ter dado uma fumaça, disse calmamente:
- Visto que a sua mensagem afirmava categoricamente que desejava ver-me por causa de um assunto pessoal, não trouxe comigo nenhuns papéis.
Dilman aproximou-se da secretária e disse:
- Eaton, quero que peça a demissão do meu Gabinete e do Ministério do Estado.
Dilman observou que a expressão de Eaton não revelou qualquer surpresa ou emoção. Continuou a observar friamente o presidente, depois fixou os olhos no fumo do seu cigarro e por fim um leve sorriso na sua boca.
- Um começo bastante inóspito para uma hora tão matutina - disse ele. - Está a falar a sério?
- Quero a sua demissão ainda hoje - repetiu Dilman. Eaton permaneceu exteriormente impassível.
- Não acha que me deve pelo menos uma explicação de tão extraordinário pedido?
A insolência fleumática e altiva do outro inflamou a cólera de Dilman.
- Acho que não será necessária uma explicação - disse este. - Tenho a certeza de que a sua espia, e o que quer que ela seja mais, lhe forneceu razões de sobra, a noite passada, para saber o que eu pensava de si e do Talley. Não tolerarei a presença contínua de um ministro de Estado que tenta usurpar o meu cargo e as funções constitucionais que lhe são devidas. Nem tolerarei a companhia de qualquer homem que envia, ou permite, ou usa um membro do meu pessoal da Casa Branca para ir espiar os meus papéis confidenciais. Considero a deslealdade ambiciosa muito próxima da traição. Penso que só lucrarei e que a Nação só lucrará também se o afastar e ao seu antagonismo. Esta é a minha explicação, que eu achava absolutamente desnecessária.
Eaton não fizera qualquer esforço para interromper ou refutar o que o presidente dizia. A sua atitude não se alterara. Não deixou transparecer qualquer preocupação, além de o inspirar e de o expirar do fumo se tornar mais acelerado.
- Em qualquer assunto pode haver sempre duas versões da verdade - disse Eaton por fim. - Acho que o senhor quaisquer que fossem as suas razões, escolheu uma versão distorcida da verdadeira e não foi suficientemente judicioso para esperar pela minha. Ninguém o espiou, pelo menos a meu mando, a noite passada ou em qualquer outra altura. Se Miss Watson, de sua própria iniciativa, quis provar--me como uma velha amiga preocupada, embora com comportamento duvidoso, que o senhor era meu inimigo, o caso não me diz respeito, assim como não me diz respeito o seu comportamento particular com os membros femininos do seu pessoal ou quaisquer hábitos ou actividades menos próprias fora das horas de trabalho. Dilman retesou-se na cadeira.
Que diabo pretende dizer com isso?
Pretendo dizer, Sr. Presidente, que nos assuntos que não afectem o bem-estar do Estado não tenho o direito de interferir na sua vida pessoal. Contudo, nos assuntos relacionados com a vida e a morte do meu país, quando eu sinta que o senhor esteja a proceder ou possa proceder em detrimento nacional, acho que tenho o direito de o julgar e de interferir, patrioticamente, no sentido de o corrigir. Não negarei que o governador Talley e eu temporariamente subtraímos um documento da C. I. A. relativo a Baraza. Assim procedemos por conhecermos o seu temperamento - e digamo-lo - e o seu julgamento parcial. Avaliámos o boato acerca de uma organização comunista à volta de Baraza como estando mal informado e sem consequências. Todavia pressentimos que, devido à sua afeição por Amboko e à afinidade compreensível com aquele povo em luta, pudesse reagir erradamente e comprometer os Estados Unidos num caminho do qual já não se pudesse recuar.
«Mostrou o seu favoritismo, com resultados desastrosos, ao ignorar o nosso concelho para dissolver imediatamente o grupo dos Turnerites. Mostrou a sua arrogância e precipitação ao ignorar a vontade da maioria, os interesses globais do país e os empenhos do seu partido, quando lançou o veto ao Programa de Reabilitação das Minorias. Não pude impedir estes desastres que provocou nos negócios internos. Mas quando vi que podia proceder do mesmo modo nos negócios estrangeiros, os quais constituem a minha responsabilidade máxima, achei que o meu dever era guiá-lo, quer o senhor o desejasse ou não. O meu móbil não era usurpar-lhe os seus poderes, mas preservar a paz.
Dita a primeira parte do discurso, proferido num tom de mestre--escola a um pobre garoto de escola, a cólera de Douglass Dilman foi aplacada pelo espanto. Como era inacreditável, pensava finalmente, que aquele homem pudesse na verdade justificar as suas acções, aos seus próprios olhos, por meio daquele raciocínio distorcido de que ele era o único a saber o que era melhor para a América e o que não era. Seria possível que Eaton não visse que não estava a fazer mais do que a afirmar o seu complexo de superioridade, ou seja, que nenhum cidadão preto de segunda classe era capaz de possuir uma pequena parte da sapiência e objectividade em relação aos outros povos que um protestante branco bem educado, instruído à custa de muito dinheiro e nascido em berço de oiro possuía?
Não fora intenção de Dilman discutir com Eaton, mas apenas ver-se livre dele o mais depressa possível. Contudo, as últimas observações do ministro de Estado não podiam deixar de ser contrariadas antes do fim da entrevista.
- Sr. Eaton, a alguém mais ocorreu que o meu acto pudesse trazer grandes perigos para o país que diz querer proteger? E se eu, ou alguém do ramo executivo, não tivesse descoberto o que se estava a passar? E se se provasse que a organização soviética de comunistas nativos à volta de Baraza era verdadeira e continuasse, enquanto nós dormíamos, o que acha que sucederia? Os Russos tomariam subitamente o governo de Baraza nas suas mãos. Então seríamos forçados a cumprir o Pacto da União Africana nas piores circunstâncias, para tentar salvar um aliado, muitos aliados, até mesmo um continente, onde as circunstâncias nos poriam em desigualdade militar. Será possível que não veja que um tratamento preventivo é menos custoso do que a cirurgia desesperada?
Eaton abanou a cabeça, sorrindo de um modo desagradável.
- Sr. Presidente, desculpe-me, mas o senhor é ainda mais inocente, no que diz respeito aos negócios estrangeiros, do que eu suspeitava. Acredita que alguém mais, O. C, o Congresso, ou o Ministério de Estado, tencionasse desde o princípio cumprir o Pacto da União Africana à letra? Sim, nós renovámo-lo para verificar a força dos nossos amigos democratas na África - mas só no papel, para propaganda diplomática. Ninguém, nem nós, nem os Estados africanos, nem a Rússia Soviética, alguma vez acreditou que empregássemos as nossas forças armadas para manter o Pacto. - Abanou mais vigorosamente a cabeça. - Não, senhor, só um ultra-emocional afro-americano poderia distorcer, deste modo a intenção da nossa política externa. Acredita que qualquer de nós, os experientes nestes negócios, arriscaria uma guerra nuclear com a União Soviética por causa de Baraza? Desgosta-me que tenha de aprender estes factos da vida e da política já tão tardiamente. Mas mais vale tarde do que nunca. De qualquer modo, toda esta conversa não tem razão de ser, como em breve saberá. Na realidade, o seu desejo de me ver esta manhã, por causa de um assunto pessoal, coincidiu com o desejo do partido para que eu o visse acerca de um assunto não pessoal. Temo que a minha missão seja dolorosa. Se está preparado para escutar...
O nojo de Dilman, o seu desprezo pelas sofisticações do diplomata que se encontrava na sua frente, era agora completo.
Sr. Eaton, nada mais tenho a discutir consigo. Considere esta entrevista como o nosso último encontro e considere-a agora terminada. - Apoiou as palmas das mãos na beira da secretária, empurrou a cadeira para trás e depois, com as mãos sobre os joelhos, disse:
Aguardarei a sua demissão durante uma hora.
Para sua grande surpresa, Arthur Eaton nem se moveu, mas continuou, complacente, sentado na cadeira Revels. Sem se maçar a olhar para o presidente, Eaton disse:
- A sua fanfarronice é admirável, Dilman. Mas acha, na verdade, que está em posição, neste momento, para pedir a alguém do seu governo que se demita?
Dilman, prestes a levantar-se, ficou agarrado aos braços da cadeira.
- Se eu acho que estou numa posição para... - Fez uma pausa e depois disse lentamente: - Acho que estou em posição para fazer tudo aquilo que achar bem.
Examinando distraidamente a sua boquilha de prata, o ministro de Estado disse:
- Fui designado para lhe comunicar que o senhor é a pessoa que não é já desejada no nosso governo. Durante toda a noite que passou os chefes da Câmara dos Deputados, do Senado e do nosso partido reuniram-se para avaliar as provas que descobriram contra si. Concordaram unanimemente que é perigosamente incompetente para o alto cargo para o qual foi acidentalmente atirado e que os seus serviços são um prejuízo para o futuro dos Estados Unidos. - Eaton fixou os olhos em Dilman. - Desejam demiti-lo por crimes e delitos capitais praticados enquanto no cargo. Porque acho tal método de o desonrar publicamente e de o retirar da presidência simplesmente repugnante, convenci-os a aceitar o meio mais moderado de o depor. Eles prefeririam, e eu também, que o senhor apresentasse a sua demissão por razões de saúde. Contudo eu previ que tal solução o embaraçasse e o fizesse perder o prestígio perante o seu próprio povo. Assim, consegui convencê-los, ao Miller, ao Hankins, ao Sclander, ao Wickland, ao Noyes, a todos eles, que havia ainda um terceiro meio. A moderação de tal meio não lhes agrada, assim como a mim não me agrada o meio deles de demissão. Mas eles segui-lo--ão, se concordar. - Fez uma pausa, e depois prosseguiu. - O plano é que, nas próximas semanas, se faça doente, permaneça cada vez mais tempo no seu quarto da Casa Branca e, à medida que os meses vão passando, a sua doença se torne permanente. Enquanto se recompõe dessa doença, talvez um severo ataque de coração, para o qual se podem arranjar atestados de uma assembleia de médicos, nós, os seus assistentes, continuaremos os negócios do ramo executivo em seu nome. Ficará, é claro, presidente apenas de nome, como sucedeu a Woodrow Wilson e a Eisenhower quando ficaram... doentes. Poderá assinar os documentos que necessitem da sua assinatura, mas deixará a verdadeira actuação dos seus deveres aos seus sucessores de Gabinete. Acho esta solução a mais simples, a mais completamente razoável e... a de mais proveito para o país. Em troca, é claro, tem a nossa promessa de que os artigos de demissão em nosso poder nunca serão tornados públicos contra si. Pois bem, Dilman, aqui tem todo o caso.
Douglass Dilman escutava todo este plano como se tivesse sido irremediavelmente apanhado num louco pesadelo. E emergindo dele, encontrando-se cara a cara com o verdadeiro ser humano que proferira aquelas fantásticas palavras como se fossem palavras vulgares, por uns minutos ficou demasiado espantado com a realidade para poder falar.
Foi então que recebeu em cheio o impacte de tudo o que ocorrera, e sentiu o sangue correr-lhe nas veias e bater-lhe nas têmporas. A ofensa da proposta, o seu degradante insulto, fizeram por fim que o choque sofrido se transformasse em cólera.
Observou as suas mãos negras apoiadas na secretária Buchanan, observou fascinado o seu tremor. Nunca em toda a sua vida sofrera uma tão monstruosa tentativa de humilhação. Como negro, era um veterano das troças e do ridículo dos brancos, das suas blasfémias e difamações. Contudo, agora não se recordava de nenhum exemplo doloroso do seu passado, desde a infância até à idade adulta, nem mesmo naquela ocasião revoltante durante a sua lua-de-mel com Aldora, em que tivesse sido tratado tão desumanamente.
À medida que a sua fúria aumentava e a sua cabeça parecia que estoirava, teve vontade de agarrar no pesado tinteiro que se encontrava à sua frente, em cima da sua secretária, e atirá-lo à cara de Eaton. Ou então apertar-lhe o pescoço, apertá-lo até que ele admitisse a indecência da proposta e se confessasse envergonhado dela.
Mas então, procurando um aliado a quem justificar o seu direito à violência, lembrou-se de Nat Abrahams e soube que Nat Abrahams o teria retido, lhe teria recordado que esmurrar alguém não resolve nada, excepto a questão de quem é o mais musculoso, e não se faria justiça. Com quem o tinha ameaçado aquele monstro de Eaton? Sim, com demissão por ciúmes e delitos capitais, a não ser que ele se refugiasse numa cama de inválido, com uma doença fingida, até ao fim do mandato, e os deixasse governar o país a seu modo, como conspiradores de palácio. Queriam-no conservar ali como um animal maçador, metido na casota do cão, onde o seu ladrar não pudesse ser ouvido, enquanto homens de duas pernas mantinham a casa em ordem e asseada. Queriam Eaton, e Eaton queria Eaton, para governar um confortável país branco, para um privilegiado e superior povo branco, subornando cinicamente as minorias do país com caridades federais, atraiçoando cinicamente as pequenas e indefesas nações com mentiras e acordos de paz. O que o espantava e enfurecia era que eles achassem que podiam fazer isso, que acreditassem que ele aceitava pronta e abertamente a oferta deles. Tentou desesperadamente pensar com o cérebro de Nat. Obviamente, eles estavam confiantes porque julgavam ter na mão o meio de o subjugar. Se ele resistisse, empregariam a força legal. O cérebro de Nat inquiriu: «Que força legal possuem eles, Doug? Que podem eles ter contra ti? Ou têm alguma coisa ou não têm nada, e se souberes que eles não têm nada, então são bazófias deles, estão a tentar intimidar-te, a as-sustar-te, para que saias.» O cérebro de Nat aconselhou: «Provoca a bazófia deles, Doug, provoca-a e depois decide.»
Eram necessárias as suas últimas reservas de controlo para desempenhar isso. «Está bem, Nat, tentarei.»
Olhou para Eaton, que esperava placidamente pela sua resposta. Dilman disse:
Eaton, nunca, em lado nenhum, nem mesmo nas histórias sobre a política da América Central, tive conhecimento de uma proposta tão bizarra. Já têm tudo planeado, não têm? Eu sou posto de lado e você fica a fazer de presidente... Tenho de cooperar nesta... revolução de palácio, e, se recusar, vocês acusam-me de crimes e delitos capitais e depois demitem-me. Mas primeiro oferecem-me amavelmente a escolha da abdicação e exílio voluntário.
Se prefere pôr as coisas desse modo, é isso mesmo - disse Eaton cordatamente.
Pois bem, Eaton, vou dizer-lhe o que penso... Acho que tudo isso são bazófias. Penso que nem você nem toda a sua malta ambiciosa tem qualquer prova mínima contra mim, nada que se mantenha de pé e convença uma maioria de quatrocentos e quarenta e oito membros da Câmara dos Deputados a enviar os artigos de demissão para o Senado. A não ser que...
Um momento, Dilman. - Eaton descruzou as pernas e sen-tou-se muito direito. - Se isto é necessário para que compreenda quão seriamente falamos, que a sua situação é desesperada, então veja.
Tirou três folhas de papel amarelo do bolso interior do seu casaco, desdobrou-as cuidadosamente, semi-ergueu-se e deixou-as cair na secretária em frente de Dilman. Tornou a sentar-se na cadeira Revels e continuou a olhar para o presidente através dos olhos semicerrados.
Douglass Dilman olhou para a folha amarela cheia de parágrafos dactilografados, em cima da pasta da sua secretária. Finalmente pegou nas três folhas, girou a cadeira de modo a não estar de frente para o ministro de Estado e começou a ler. Leu:
PROCESSO INTRODUTÁRIO
DA CÂMARA DOS DEPUTADOS
PARA A DEMISSÁO DE DOUGLASS DILMAN
PRESIDENTE DOS ESTADOS UNIDOS
POR CRIMES E DELITOS CAPITAIS
«Segundo as provas coligidas pela Assembleia Judiciária aqui presentes, e em virtude dos poderes com que foram investidos pela Câmara dos Deputados, são de opinião que Douglass Dilman, Presidente dos Estados Unidos, deverá ser demitido por crimes e delitos capitais. Recomendam particularmente à Câmara a adopção da resolução que se segue.
Zeke Miller, presidente Hawey Wickland John Hightower
«Resolvido - Que Douglass Dilman, Presidente dos Estados Unidos, seja demitido por crimes e delitos capitais no exercício das suas funções.
«Artigos comprovativos para a Câmara dos Deputados nos Estados Unidos, contra Douglass Dilman, Presidente dos Estados Unidos, em defesa e apoio da resolução da sua demissão por crimes e delitos capitais no exercício das suas funções.
ARTIGO I
«O citado Douglass Dilman, Presidente dos Estados Unidos em Washington, Distrito de Columbia, descurando os altos deveres do seu cargo, o seu juramento e o requisito da Constituição em como devia preservar, proteger e defender a Constituição, cometeu ilegalmente, e violando o seu juramento, alta traição contra os Estados Unidos, transmitindo, com conhecimento prévio ou por grande indiscrição, segredos nacionais relacionados com a segurança internacional à União Soviética e aos seus aliados, através da sua até aqui secreta amizade com Wanda Gibson, secretária executiva dos Exploradores Vaduz, L.da, de Bethesda, Maryland, tendo sido a dita corpo ração acusada pelo Ministério da Justiça de ser organização da frente comunista, conspirando com a União Soviética com o fim de derrubar as instituições democráticas.
ARTIGO II
«O citado Douglass Dilman, Presidente dos Estados Unidos, descurando os altos deveres do seu cargo, o seu juramento e violando a Constituição e as leis dos Estados Unidos em Washington, Distrito de Colúmbia, impediu ilegalmente o Ministério da Justiça de perseguir o grupo dos Tumentes, uma organização subversiva, causando assim a perda de uma vida e um conflito interno, devido a conspirar ilegal e secretamente com o grupo dos Turnerites, num esforço para proteger do conhecimento público o facto de um seu filho, Julian Dilman, fazer parte dessa organização subversiva.
ARTIGO III
«O citado Douglass Dilman, Presidente dos Estados Unidos, descurando os altos deveres e as dignidades do seu cargo, desonrou o ramo executivo do governo dos Estados Unidos e mostrou ser incompetente para desempenhar os deveres do seu cargo, por meio de comportamento intemperado e escandaloso, envolvendo imoralidade, embriaguez e desregramento.
«1.a Especificação - Em Washington, Distrito de Colúmbia, num quarto particular da Mansão Executiva, o citado Douglass Dilman, Presidente dos Estados Unidos, sob a influência da bebida, faltou ao respeito a uma pessoa, membro do pessoal executivo, nomeadamente Sally Watson, secretária social da Casa Branca, tentando seduzir a supracitada Sally Watson e maltratando-a corporalmente quando a supracitada Sally Watson lhe opôs resistência.
«2.a Especificação - Em Washington, Distrito de Colúmbia, durante cinco anos, incluindo o período em que esteve na presidência, o citado Douglass Dilman, Presidente dos Estados Unidos, viúvo, manteve secretamente uma ligação extramarital com a já citada Wanda Gibson, solteira, numa casa de que o citado Douglass Dilman é proprietário, e em cujo primeiro andar vivia Wanda Gibson. Na mesma casa vivia também o reverendo Paul Spinger, director nacional da Sociedade Crispus, uma organização de negros americanos, e sua esposa, Rose Spinger, que foram tratados com certos favores especiais pelo citado Douglass Dilman, em troca de ajudarem e encobrirem a sua ligação com Wanda Gibson, e mantê-la secreta.
«3.a Especificação - Em Washington, Distrito de Colúmbia, o citado Douglass Dilman, Presidente dos Estados Unidos, tentou desprezar e repudiar o Congresso dos Estados Unidos e enfraquecer os poderes do Congresso, impedindo a sua actividade legislativa por meio do lançamento do veto ao Projecto do Programa de Reabilitação das Minorias, cansado por hábitos intemperados e ineficácia, prejudicando assim o bem-estar nacional. Sem estudar o citado projecto legislativo, enquanto sob a influência de tóxicos e extremistas negros o citado Douglass Dilman...
«4.a Especificação - Nas suas diversas residências em Washington, Distrito de Colúmbia, em Chicago, no Estado de Illinois, em Springfield, no Estado de Illinois, onde foi um doente registado num sanatório para alcoólicos, e nas suas residências nos Estados de Michigan, Ohio, Indiana, o citado Douglass Dilman, Presidente dos Estados Unidos, entregava-se habitualmente a...»
Dilman fez girar a sua cadeira e estendeu calmamente as folhas amarelas a Eaton, até este pegar nelas. Sentiu-se contente ao ver que as suas mãos já não tremiam, porque não existia qualquer medo dentro de si. Sentimos medo quando há algo real que nos ameaça, uma pessoa, uma acusação que nos possa injuriar física e moralmente. Aquele documento absurdo, com as suas grotescas meias-verdades e completas mentiras redigidas na falsa dignidade da linguagem legal do Congresso, era demasiado ridículo para ser encarado a sério.
Observou Eaton, possuído de uma nova confiança.
- É tudo o que tem como chantagem, Eaton?
Eaton dobrou cuidadosamente as três folhas de papel amarelo. Por fim levantou os olhos.
- Estes são, sem as declarações de apoio e o parecer das testemunhas, os artigos de demissão contra si, que serão enviados ao Senado depois de a Câmara dos Deputados o ter votado como culpado. Estas provas serão primeiro apresentadas à Câmara, não como artigos formais mas como uma série de acusações escritas numa linguagem semelhante, apoiando uma resolução de demissão. Este é o processo contra si que eu até aqui impedi de ser introduzido na Câmara.
- Estou vendo... Pois bem, tenho pena por si, Eaton. Se pretender tornar-se Presidente dos Estados Unidos, como pretende, vai ter de trabalhar e suar arduamente para o conseguir, para o ganhar, e não apenas tentando enxotar-me desta cadeira para fora com três páginas de patacoadas. É verdade, vou fazê-lo ter de trabalhar para obter o que deseja de uma maneira que revoltará o seu eu fastidioso, fazendo-o viver, dormir, apertar a mão e entregar o seu destino nas mãos daquele bando de touros desumanos, exaltados e ignorantes da Colina. É bem-vinda entre eles e para o seu monte de mentiras pomposas uma acusação nigger embrulhada num papel constitucional. Não conseguirá nada com isso.
Eaton pareceu incrédulo.
Está a dizer-me, perante estes factos irrefutáveis, que não se retira?
Estou a dizer-lhe ainda mais - disse Dilman, pondo-se de pé. -Estou a dizer-lhe que não lhe concedo o direito de ter o privilégio de se demitir, porque o não merece. De agora em diante, Sr. Eaton, pode considerar-se demitido.
Eaton levantou-se de um salto e deu uns passos até ficar junto à secretária do outro lado do presidente.
Dilman, sabe o que está a fazer?
Sei exactamente o que estou a fazer. Estou a demiti-lo do seu cargo e do meu Gabinete.
Não o deixarei cometer um suicídio, Dilman. Não está no seu juízo perfeito. Há uma lei - a Nova Lei da Sucessão - que o impede de demitir qualquer membro do Gabinete sem o consentimento do Senado. Esqueceu-se disso? Pode tanto demitir-me como o Presidente Andrew Johnson podia demitir o ministro da Guerra Stanton sem o consentimento do Senado, segundo o Acto de 1867.
Andrew Johnson fê-lo, e eu estou a fazê-lo.
Dilman, por amor de Deus, ele foi demitido precisamente por isso.
Dilman acenou com a cabeça.
- Sim, e não foi considerado culpado.
Eaton apoiou as mãos na secretária e inclinou-se para a frente.
- Escute-me, Dilman. Você não terá essa sorte. Se me demitir, não me terá entre si e os seus inimigos mais ferrenhos. Nada os deterá, e agora têm a mais forte arma contra si, um novo artigo de demissão e o mais poderoso: a acusação de que violou flagrantemente a Lei dos Estados Unidos, que ignorou os direitos do Senado. Cair-lhe-ão todos em cima como um bando de lobos esfaimados. Dilman, por uma vez, pela última vez, enquanto ainda pode, seja razoável. Retire-se, como lhe sugeri. Não nos force a exibir todos os seus amigos e o seu mau comportamento perante a Nação e o mundo. Não nos force a tirá-lo desta sala completamente desonrado.
Dilman esperara pacientemente que ele acabasse. Quando viu que Eaton chegara ao fim, sem fôlego, coradas as faces brancas de cal, soube que chegara o momento.
- Eaton, nada mais lhe tenho a dizer, excepto o que disse à sua amiga ontem à noite... Ponha-se desta sala para fora ou terei de chamar alguém para o fazer. E retire as suas coisas do seu escritório do Ministério de Estado, ou mandarei o chefe da Polícia dos Estados Unidos atirá-las todas para o meio da rua.
Durante um silencioso minuto, Eaton permaneceu suspenso diante de Dilman, petrificado de incredulidade. Por fim, abanou a cabeça, girou sobre os calcanhares e atravessou a sala em direcção ao seu sobretudo e ao chapéu. Ao pegar neles, abanou a cabeça mais uma vez.
- Dilman - disse ele, penosamente, como um carrasco -, na verdade lastimo-o muito, mas você não nos deu por onde escolher. - Fez uma pausa e depois concluiu: - Às doze horas de hoje, a resolução aconselhando a sua demissão será apresentada à Câmara dos Deputados. Gostaria de poder desejar-lhe boa sorte, mas não o merece, e além disso... isso não o ajudaria de qualquer modo.
Dito isto, Arthur Eaton, ex-ministro de Estado, saiu rapidamente do Escritório Oval.
Segurando no auscultador com uma mão enquanto esperava que Miss Foster lhe ligasse para o Hotel Mayflower, Douglass Dilman viu as horas no relógio. Tinham decorrido duas horas desde que demitira Eaton e desde que soubera que iriam fazer um esforço para o demitir.
Eram agora doze menos um quarto. Podia imaginar a cena na Colina. Nesse preciso momento, as campainhas tocavam pelos corredores do Capitólio, tocavam nos escritórios dos deputados e nas salas de reunião, anunciando que a sessão formal da Câmara estava prestes a começar.
Em breve os corredores e os elevadores se encheriam e em breve toda a Sala de Audiências estaria cheia. Às doze horas em ponto, o martelo seria colocado no seu pedestal de mármore e o presidente actuante anunciaria: «A sessão está aberta. Levantem-se, por favor, para a prece do capelão.»
Imediatamente a seguir, o presidente receberia a cópia da urgente resolução que o deputado Zeke Miller depositara na secretária do escrevente. Permitiria que Miller, como autor da medida de extrema importância, lesse alto, para os seus colegas reunidos e para a galeria: «Resolvido que Douglass Dilman, Presidente dos Estados Unidos, seja demitido por crimes e delitos capitais no exercício das suas funções.» Então haveria uma instantânea confusão na galeria da imprensa, entre os visitantes - na verdade, até entre a maior parte dos membros da Câmara - e depois, finalmente, toda a Nação e todo o mundo saberia o que se passava, tomaria conhecimento pela primeira vez da conduta escandalosa e delinquente do Presidente dos Estados Unidos.
Mas isso seria só daí a uma hora e quinze minutos. Naquele momento preciso, o caso só era conhecido de umas quantas pessoas. Na Colina, os chefes e os legisladores mais influentes de ambos os partidos e alguns dos seus jornalistas favoritos já sabiam. Na Casa Branca, só o governador Talley, ele próprio e, na passada hora, Edna Foster e Tim Flannery o sabiam. Sobre todas as restantes pessoas de Washington, dos Estados Unidos e do mundo o caso cairia como uma bomba.
Dilman estava contente por não estar presente na cidade durante o sórdido debate, para ouvir as reles mentiras, as vis calúnias, as acusações e contra-acusações. Lá fora, pousado no relvado sul da Casa Branca, estava o enorme helicóptero da Marinha, pronto para erguê-lo no ar e ir levá-lo para a base Andrew, da força aérea, de onde o avião a jacto vermelho e prateado, com o emblema presidencial ainda na porta, o conduziria, durante a sua inspecção de cinco dias, por todo o país.
Desejoso como estava de fugir ao escândalo pendente, fora obrigado a modificar o programa da sua viagem havia uma hora atrás. Tim Flannery, muito aflito, achara que abandonar a cena da luta da demissão, numa altura daquelas, podia ser um erro de táctica. Visto que o debate não seria um julgamento mas a exposição e consideração de uma acusação, Flannery achava que o presidente não teria nenhum outro modo de se defender das acusações que lhe eram feitas senão na imprensa. Do Escritório Oval ser-lhe-ia mais fácil e eficiente ridicularizar e refutar a resolução da demissão. De longe, era provável que a sua voz se ouvisse menos distintamente.
Dilman, porém, resolvera seguir o programa já estabelecido. Uma vez que o esforço de demissão fosse tornado oficial, ele faria apenas uma declaração, talvez de St. Louis ou de Cleveland, e depois disso não dignificar mais o esforço. Assegurara ao secretário da Imprensa que tinha a confiança em que mais nada fosse necessário da sua parte. As acusações eram tão sensacionais e tão falhas de provas sólidas que era provável que caíssem por terra, por falta de alicerces factuais.
Contudo havia algo que tinha de fazer antes de se ir embora: era falar com Nat Abrahams. Perguntou a si próprio por que não contara ainda a Nat o que se passara e por que não ia contar-lho agora. Então, percebeu porquê. As duas coisas que tinha a discutir com Nat não deviam ser discutidas na atmosfera emocional das suas necessidades pessoais. Não seria justo para Nat, que tinha a sua própria vida a viver.
De súbito, pelo auscultador do telefone, junto do seu ouvido, ouviu finalmente a voz do amigo.
Olá, Nat!
Doug, pensava que já estivesses no ar.
Daqui a dez minutos lá estarei. Estou à espera que a minha Dramanine comece a fazer efeito. Como vai a Sue e os miúdos?
A Sue está mesmo aqui ao meu lado. Chegou esta manhã. Já arranjou tudo lá em casa. Os miúdos ficaram com a família. Não quisemos tirá-los da escola até ao começo de Fevereiro, que é quando termina o semestre. Penso, porém, em irmos lá passar as férias do Natal.
E quanto ao teu contrato com as Indústrias Águias, Nat? Já o assinaste?
Assiná-lo-ei dentro de quatro ou cinco dias. É o tempo de regressares da tua viagem. Teremos de tomar uma bebida para festejarmos tal acontecimento, embora eu não tenha a certeza se deve ser champanhe ou cianeto. E tu, Doug? Algo de especial?
Nat, aqui, todos os dias são especiais, é uma crise contínua.
Hem! Isso faz-me lembrar algo, Doug. O que era aquilo do jornal da manhã, de o F. B. I. ter caído sobre os Exportadores Vaduz? Não era essa a firma em que Wanda Gibson trabalhava?
Era, sim. É por isso mesmo que estou a telefonar-te, Nat!
Ela está metida nalgum sarilho?
Não, não, não é nada disso. Ela é tão comunista como tu ou eu. Era apenas uma empregada entre muitas outras. Não fazia a mínima ideia que o patrão fosse um agente vermelho, ou que a companhia fosse uma frente comunista, até ontem de manhã. Quando ela mo comunicou eu disse-lhe que saísse imediatamente de lá. De qualquer modo, o que me preocupa é que ela seja intimidada ou qualquer coisa do género, enquanto eu cá não estiver...
Doug, eles nada têm contra ela, por que a haviam de maçar?
Bem, bem, pode ser que tenham. Tu bem conheces aqueles cães de caça ultrazelosos, da Colina do Capitólio. E... o caso pode ter outras ramificações... e é provável que existam muitas perguntas. Não gostaria que Wanda se sentisse abandonada e amedrontada e sem quaisquer conselhos legais. Sei que também andas atrapalhado com atua vida...
Doug, eu agora não faço nada, excepto esperar, para afixar o meu autógrafo no primeiro contrato. É claro que a ajudarei.
Ficar-te-ia muito grato. Seria um peso que me tirarias do coração. Se pudesses ir ter com ela, talvez... digamos, daqui a um ou dois dias.
Certamente, Doug. Na verdade, irei dar uma volta lá pela Colina, para ver o que se passa. Depois irei ver a Wanda.
Obrigado, Nat. És a única pessoa em quem posso confiar. É uma pena que te vá perder por causa do Avery Emmich. Talvez ainda não seja demasiado tarde. Já alguma vez pensaste em entrar para o governo? Pagam uma miséria, mas as pastas são de graça e passa-se a vida a aparecer nos jornais.
Eu no governo? Com certeza estás a brincar, Doug. Estás a ver-me transigir com o partido? E a transigir com o procurador-geral? Não ficaria mais do que oito horas num cargo federal. É claro que não posso dizer que fosse pior do que aquele onde me vou meter. Mas nas Águias, pelo menos, pagam bem os pecados. Sairei apenas levemente sujo e com dinheiro suficiente para me manter... Estavas a brincar, não estavas, Doug? Quero dizer...
- Claro que estava apenas a brincar. Pertences totalmente ao governo como eu, excepto que prestarias para alguma coisa nele... Bem, já estou a ouvir a hélice do helicóptero lá fora. Tenho de ir-me embora. Boa sorte com o teu contrato. Dá cumprimentos à Sue. E... e obrigado mais uma vez por tomares conta de Wanda.
Dilman tornou a poisar lentamente o auscultador no descanso.
Fizera bem em só falar em Wanda e em mais nada. Teria de ir para a frente sozinho, não que fosse diferente com Talley e Eaton fazendo parte da administração.
Olhou para os papéis da última hora à espera da sua assinatura. Pegou na caneta. Assinou a nota em que pedia ao almirante Oates que mandasse vir os melhores cirurgiões ortopédicos para que tentassem salvar a perna de Otto Beggs. Assinou o memorando para o procurador-geral Kemmler lembrando-lhe que o apelo de Leroy Poole, de clemência executiva, devia ser expedido, agora que a data da execução de Hurley se aproximava. Assinou a ordem para os chefes da Polícia Federal barricarem o escritório de Arthur Eaton, no Ministério de Estado, se fosse necessário para o pôr de lá para fora. Assinou a sua aceitação do pedido de demissão de Wayne Talley, assim como a do amigo de Talley e seu ajudante militar, general Robert Faber. E finalmente releu a declaração, preparada por Flannery, anunciando que demitira Arthur Eeaton do lugar de ministro de Estado por causa das diferenças irreconciliáveis que existiam entre ambos no campo da política externa, e depois assinou-a também...
Ligou para Miss Foster para lhe dizer que já assinara os papéis e que tomasse conta deles, especialmente a declaração.
Pôs-se em pé, juntou as cópias dos discursos que devia proferir, as notas acerca das instalações militares que devia visitar, o memorando que ele próprio escrevera do que se lembrava sobre as acusações de demissão da Câmara e meteu tudo na sua já superlotada pasta. Depois de ter fechado o fecho de segurança, pegou no chapéu e no pesado sobretudo.
Saiu então do escritório para o relvado do Jardim das Rosas, onde os agentes do Serviço Secreto e Tim Flannery o esperavam. Acompanhado destes, dirigiu-se para o barulhento e vibrante helicóptero.
Reparou que o tempo estava bom e o céu sobre o Potomac se apresentava limpo. Perguntou a si próprio por quanto tempo ficaria assim e se quando regressasse seria já debaixo de uma espessa nuvem.
Nat Abrahams carregou com o pé no travão e o Ford parou junto da luz vermelha da 16.a Rua. Tornou a olhar para o jornal meio desdobrado que comprara quando saíra do Hotel Mayflower e que ostentava um duplo cabeçalho:
Debate escandaloso iniciado na Câmara! Processo contra o Presidente Dilman!
Espantava-o que tivesse sido apenas ontem; havia pouco mais de vinte e quatro horas que Doug Dilman lhe telefonara, antes de sair da cidade, e lhe falara sem sequer referir, nem por alto, aquele monstruoso ataque à sua integridade. Dilman já devia saber, nessa altura, tudo acerca das acusações levantadas contra ele; contudo, com excepção da sua preocupação pelo futuro de Wanda Gibson, omitira discutir acerca delas. Fingira que a sua preocupação acerca de Wanda era apenas para que ela fosse protegida das perseguições dos do Congresso. Agora, era evidente que ele a queria protegida contra a acusação de ter colaborado com o presidente num acto de traição.
Quão típico de Doug Dilman - pensou Abrahams - era o não procurar conselho ou ajuda quanto às acusações! Dilman fora sempre muito fechado quanto às suas relações familiares. Mas aquele caso era diferente. No dia anterior, Dilman estivera no limiar de encarar a infâmia familiar e conservara-se calado. Quão difícil lhe deve ter sido encontrar-se sozinho para lutar contra os seus carrascos e recusar pedir a ajuda do seu mais íntimo amigo! O seu maldito orgulho - pensou Abrahams -, o orgulho definido uma vez por Defoc como o «primeiro lorde e presidente do Inferno». Contudo, conhecendo Doug Dilman como ele o conhecia, Abrahams podia ver que a relutância daquele em desabafar acerca das suas preocupações podia ter tido outro motivo. Podia ter sido a sua sensibilidade negra que assim o levara a agir. Por outro lado, talvez ele tivesse afinal procurado a assistência de Abrahams. Não dissera ele algo relacionado com o ter pena de perder Abrahams por causa da corporação de Avery Emmich, que talvez não fosse ainda demasiado tarde para o trazer para o governo? Teria querido Dilman sondar o amigo quanto à possibilidade de substituir Talley? Não era provável, decidiu Abrahams, pois se Dilman o tivesse desejado para um lugar de tanta responsabilidade ter-lho-ia dito imediatamente.
Um carro businou atrás dele e Nat Abrahams reparou que a luz vermelha mudara para verde. Mudou o pé do travão para o acelerador e continuou pela 16.a Rua. Recordou a tarde do dia anterior, quando adormecera a ler uma história dos primeiros tempos do Congresso, e Sue acordara-o para lhe dizer a notícia da última hora que ouvira pela rádio. Depois disso, nem a telefonia nem a televisão se calaram mais no seu apartamento de Mayflower. Com o seu íntimo conhecimento de Dilman, as acusações de Zeke Miller eram absurdas. Todavia, havia validade suficiente em cada uma delas para fazer com que Sue e ele as tivessem discutido durante toda a tarde, ao jantar e parte da noite.
Enquanto guiava, conduzindo gradualmente o carro para a faixa da direita à espera de poder virar, o espírito de Abrahams ocupou-se particularmente dos capítulos que relacionavam Doug Dilman com Wanda Gibson. Abrahams não tinha uma imagem bem definida de Wanda Gibson. A Sue e ele tinham-na visto uma vez, havia mais ou menos ano e meio, e Doug mencionara-a várias vezes nas cartas que lhe escrevera. Nat lembrava-se apenas de que ela era uma mulher bastante sensata e interessante, bem educada e de finas maneiras e com uma linda compleição de pele que parecia mais clara em contraste com a de Dilman. Ela era, lembrava-se Nat, uma mulata.
Recordou também a franca discussão que tivera com Dilman, na primeira noite que este passara na Casa Branca. O amigo não escondera que tinha grande intimidade com Wanda, que estava apaixonado por ela e que tinha esperanças de vir um dia a casar com ela, se para tal tivesse coragem. Mas não houvera qualquer indicação de outra coisa mais. Era impossível ajustar o que ele sabia do amigo e de Wanda com o fantástico quadro deles pintado por Zeke Miller. Doug Dilman, aquele negro sedentário, introvertido, de meia idade e não muito corajoso, transformado subitamente num Casanova, com uma amante? A acusação de Miller seria cómica se não fosse tão séria. Doug Dilman, um ébrio inveterado num ninho de amor, deixando escapar segredos presidenciais aos ouvidos de uma Mata-Hari mulata, empregada da Rússia Soviética? Dilman seduzido a cometer uma traição? Era uma fantasia completamente louca.
O espírito legal de Abrahams, porém, revolveu as acusações da Câmara e examinou-lhes todas as facetas. Durante três décadas nunca vira Doug beber mais do que vinho de Bordéus uma vez ou outra, talvez um Cherry... Ainda assim, podia ter havido mais. Não conhecendo muito da vida familiar de Dilman, ficara confuso com a revelação de Miller, de que tanto Dilman como Aldora tinham estado algum tempo num sanatório para alcoólicos em Springfield. Se isso fosse verdade, se Miller e os seus apaniguados o pudessem provar, talvez existisse também qualquer prova em como Dilman era amante de Wanda e atraiçoara segredos do governo. Mas Abrahams tinha grandes dúvidas acerca disso, derivadas não só da sua lealdade para com o amigo, mas também de conhecer os acusadores. A acusação de traição destes, baseada em hábitos desregrados, escondia em parte o seu verdadeiro motivo de demissão: não suportariam por mais tempo um homem de cor como seu chefe. Recusavam perdoar-lhe não só o ele ser preto, como a afronta do seu veto ao Programa de Reabilitação das Minorias. Não permitiriam que um negro castigasse o ramo legislativo branco da maioria. Chegara a altura de darem uma lição a todos os negros que estivessem a sair dos eixos, e isto pô-los-ia de novo nos seus lugares.
Guiando devagar, Nat Abrahams viu a tabuleta «Van Buren N. W.». Fez sinal e virou para a direita.
Aproximando-se do seu destino, lembrou-se que acordara nessa manhã cheio de justa indignação e curiosidade legal. Telefonara a um dos assistentes do procurador-geral Kemmler, por causa de Wanda, e depois telefonara e visitara pessoalmente Robert Lombardi no Departamento Federal de Investigação, no edifício do Ministério da Justiça. Regressara depois ao hotel e telefonara à própria Wanda Gibson. Esta reconhecera-o pelo nome e mostrara-se formal, mas a insistência dele em tratá-la por Wanda e não por Miss Gibson força-ra-a finalmente a aceitá-lo como Nat... e como amigo. Primeiramente ela não o quisera ver, alegando vagamente outros compromissos. Parece mais tímida do que aflita. Depois, quando invocara Doug Dilman, o desejo deste em que Nat, como advogado, senão como amigo, olhasse pela sua situação, os vagos compromissos tinham--se evaporado e ela capitulara inteiramente. Abrahams dissera-lhe que iria ter com ela depois do almoço, por volta da uma e meia.
Indo lentamente pela Rua de Van Buren, Nat Abrahams procurou a casa com os olhos. A meio do quarteirão avistou-a e reconhe-ceu-a imediatamente. Encostou o carro, arrumou-o e meteu as chaves no bolso.
Antes do seu encontro com Wanda, decidiu rever mais uma vez as provas da resolução de demissão. Desdobrou o jornal, apoiou-o no volante e acendeu distraidamente o cachimbo. O artigo relatava a dramática introdução da resolução de demissão feita por Zeke Miller, depois continuava dizendo que quase todas as provas contra Dilman tinham sido colhidas de testemunhas e documentos e que portanto Miller prometia que a Assembleia, depois de se reunir pela noite tora, apresentaria a recomendação à Câmara dos Deputados, nesse dia, ao meio-dia. O chefe da maioria, Harvey Wickland, era citado como tendo afirmado que esperava que a Assembleia recomendasse unanimemente a demissão.
A atenção de Nat desviou-se desta história para o artigo com uma cercadura preta, no meio da primeira página, reproduzindo os quatro artigos da acusação, em letra grossa, por baixo de uma fotografia de Doug Dilman.
Franzindo o sobrolho, Abrahams começou a ler as acusações preparadas contra Dilman. Passou os olhos pelo conteúdo dos três primeiros artigos, mais notáveis pelo seu sensacionalismo duvidoso do que como provas de crimes e delitos capitais (embora a primeira acusação de traição, se comprovada, pudesse ser grave), até chegar ao último artigo. Era claro que este não podia ser contestado. Nat releu-o cuidadosamente:
ARTIGO IV
«O citado Douglass Dilman, Presidente dos Estados Unidos, Distrito de Colúmbia, descurando os altos deveres do seu cargo e o seu juramento, violando a Constituição dos Estados Unidos e contrariando o decreto intitulado 'Decreto da Nova Lei de Sucessão, Regulando a Linha de Sucessão à Presidência e à Posse de Outros Cargos Civis', sem o conselho e o consentimento do Senado dos Estados Unidos e sem a autoridade da Lei, com a intenção de violar a Constituição dos Estados Unidos e o decreto acima citado, demitiu do cargo de ministro de Estado o ilustríssimo Arthur Eaton. Pelo que o citado Douglass Dilman, Presidente dos Estados Unidos, cometeu um grave delito no exercício das suas funções, não só pelo seu desprezo pela Lei e pelo dito Senado, mas igualmente pelo seu perverso desejo de se manter no cargo por meio da demissão ilegal do membro a seguir na linha de sucessão cuja popularidade entre o eleitorado ele pressentia e temia.»
Nat Abrahams podia ver que esta acusação seria a mais difícil de refutar, a que seria mais ameaçadora e formidável de contestar. Embora Dilman pudesse lutar contra a acusação de traição, através de Wanda, com os Exportadores Vaduz e a Rússia Soviética, não podia negar, porém, o facto de ter quebrado uma lei (por muito anticonstitucional que ela pudesse ser) demitindo um membro do Gabinete sem o consentimento dos seus ex-colegas do Senado. É claro que se poderia fazer uma justa defesa a favor de Dilman no debate da Câmara, mas Nat não tinha a certeza de que houvesse alguém preparado para a fazer.
Os olhos de Abrahams deixaram os artigos e moveram-se até à coluna mais afastada da esquerda, datada de Cleveland. Doug falara perante uma assembleia de veteranos da guerra, dos quais ele fazia parte, e o seu discurso fora continuamente interrompido por assobios, berros, foras e repugnantes epítetos, e, embora a polícia tivesse expulso duas dúzias de perturbadores para fora do auditório, o tumulto não cessara. O discurso fora um desastre completo. O coração de Abrahams confrangeu-se pelo amigo. Sentiu-se tentado a telefonar--Ihe para lhe pedir que regressasse a Washington, mas isso não faria sentido. Quando já estava a dobrar o jornal, a atenção de Abrahams foi atraída por um outro artigo. O agente do Serviço Secreto que salvara a vida a Dilman, Otto Beggs, saíra-se bem da sua última operação, não perdera a perna, mas esta ficaria defeituosa. Até isto era relacionado com as acusações. Os investigadores de Miller, desejosos de interrogar o guarda-costas pessoal do presidente para saberem se alguma vez vira ou ouvira alguma coisa, por acaso, que lhes pudesse fornecer mais provas, tinham sido rudemente escorraçados pelo almirante Oates.
Agradou a Abrahams que, pelo menos, alguém tivesse mostrado alguma decência, mas constemou-o ver até onde os investigadores da Câmara iam para construir o seu caso contra o presidente.
Aparentemente achavam que, mesmo possuindo já suficientes provas para demitir o presidente, havia sempre necessidade de mais, no caso de ele ir a julgamento.
Abrahams viu no seu relógio que faltavam já vinte minutos para as duas. Ajeitou o retrovisor de maneira a poder ver se estava inteiramente apresentável para aparecer a Wanda Gibson. Um tufo de cabelo castanho permanecia em pé no alto da cabeça, e nenhuma quantidade de água conseguia pô-lo para baixo. Tudo que dormira e descansara em Washington, enquanto esperava pelo final do contrato e se ia casualmente familiarizando com os seus futuros deveres nas Indústrias Águias, não eliminara as linhas que lhe marcavam o rosto nem fizera com que os seus olhos parecessem menos cansados. Contudo, sentia-se enérgico e revigorado, com todos os sentidos alerta, como se o antagonismo contra os perseguidores de Dilman o tivesse despertado da letargia em que se encontrava.
Saiu do carro, atirou com a porta e dirigiu-se para a casa. Enquanto esvaziava o cachimbo, batendo com ele contra a palma da mão, disse a si próprio que, já que não podia ajudar o amigo na Câmara dos Deputados, pelo menos poderia ser de alguma utilidade a Wanda. Era pouco, mas, numa altura como aquela, poderia significar muito para Dougiass. E, de qualquer modo, era bom estar-se activo.
Subiu os degraus da casa a dois e dois. Quando chegou ao patamar superior sentiu-se contente por não estar sem fôlego, e sabia que o médico também se sentiria contente se o soubesse. Ao aproximar-se da porta, pôde ouvir o som da televisão através dela. Bateu com força à porta e esta abriu-se quase imediatamente, en-contrando-se cara a cara com Wanda Gibson.
Ficou contente por ver que ela era tão atraente quanto se lembrava dela. Tinha o cabelo preto, preso atrás com uma fita, e o seu rosto moreno e suave estava desprovido de qualquer pintura, com excepção dos lábios. Os seus olhos pretos tentaram sorrir, mas sem sucesso. Tinha vestida uma blusa de algodão cor-de-alperche, um cinto largo e azul e uma simples saia igualmente azul. A sua aparência e a sua figura eram clássicas, e Nat Abrahams congratulou-se interiormente pelo bom gosto de Dougiass Dilman.
Ajudando-o a despir o sobretudo, ela disse-lhe que se lembrava muito bem dele e da mulher, e perguntou-lhe por Sue e pelos filhos.
Enquanto se encaminhavam para o sofá, ela acenou desdenhosamente com a mão para o aparelho de televisão. O ecrã mostrou um panorama geral das galerias superlotadas da Câmara, e depois mo-veu-se para baixo, mostrando um grupo de deputados reunidos em frente da tribuna do presidente.
Olhe para isto - disse Wanda. - É como se estivéssemos a ver uma fita sobre um antigo espectáculo no Coliseu de Roma, com os leões passeando de um lado para o outro nas suas jaulas, à espera que os soltem para se atirarem e destroçarem um pobre mártir etíope. Tem estado a ver?
Não, não tive essa oportunidade... nem vontade disso.
«Um serviço público especial», anunciou o locutor - disse Wanda amargamente, pegando num cigarro e deixando que Nat lho acendesse. - Produzido pelo marquês de Sale. Digo-lhe que não sei onde chegaremos. Todos estes fingimentos e imposturas. Aquele monstrozinho do Miller, sentenciando e anunciando que a Assembleia da Câmara recomenda a demissão. Depois, toda a espécie de negócios parlamentares. Depois, mesmo agora, o Wieckland... Pensei que pelo menos o chefe da maioria prestasse para algo... Mas não, ali esteve ele despejando aquelas horríveis quatro acusações como provas de base para a sua resolução de demissão. Agora, a seguir, o Miller vai falar detalhadamente acerca das acusações, antes de começar o debate. - Ela parou, olhando dolorosamente para Abrahams. - É terrível. Pobre Douglass... E, como resultado, veja o que lhe fazem na viagem. Quem contestará estas vis mentiras?
Haverá alguém, quando o debate começar, Wanda. Uma dúzia de congressistas, pelo menos, brancos e pretos, são contra isto.
Onde estão eles?
Serão ouvidos, acredite-me.
Ela acenou duvidosamente com a cabeça.
Tenho café pronto...
Não é preciso.
Tenho-o pronto - disse ela. - Desculpe se o apartamento não está muito arrumado. Os Spinger estão em Nova Iorque por causa deste assunto. Foram-se encontrar com advogados da Crispus para discutirem as acusações feitas contra o reverendo, assim como as que foram feitas contra Douglass... Desculpe-me por um minuto.
Depois de ela se ter retirado, Nat Abrahams encheu o cachimbo, sentou-se na cadeira entre o sofá e o aparelho de televisão, e fumou enquanto observava o ecrã. Mostravam um grande plano do deputado Zeke Miller levantando-se do seu assento, com um maço de papéis na mão, arreganhando os dentes, acenando para alguém, depois dirigindo-se ao presidente e à Câmara.
- Muito ilustres colegas - dizia Miller. - Nós, os da Assembleia Judiciária, que recomendámos esta acção, temos perfeita consciência da nossa responsabilidade perante os nossos eleitores e perante a nossa tradição de justiça. Sabemos que esta é apenas a segunda vez, em dois séculos de história, que foi necessário proceder deste modo contra um chefe executivo dos Estados Unidos. É para nós um desagradável empreendimento. Contudo, temos de ter a coragem de enfrentar os nossos deveres e de sustentar as nossas convicções. Temos de aceitar os chocantes factos como eles se nos apresentam, e devemos elevar a nossa preocupação patriótica pelo futuro da nossa amada América acima de qualquer preocupação sentimental por um único indivíduo fraco e perigoso... Sim, indubitavelmente perigoso, pois a tirania do fraco é a pior de todas as tiranias. Conscientes de que teremos de enfrentar o opróbrio e os protestos dos comunistas, dos falsos liberais e dos amantes profissionais das minorias, devemos suportar as suas setas venenosas para cumprirmos o bem supremo. Pedimos a todos vós que não deixeis que a vossa inteligência seja ludibriada pelos propagandistas, mas que aceite e avalie os irrefutáveis factos deste caso.
A câmara revelou um grande plano de Zeke Miller, enxugando a testa com um lenço, bebendo um copo de água, depois consultando as notas que tinha na mão e erguendo finalmente a cabeça.
- Permiti-me agora falar acerca dos quatro principais pontos da nossa resolução de demissão, um por um, pela sua ordem, e dar-Ihes as provas de como o Presidente Douglass Dilman se desonrou a si próprio e ao nosso governo democrata. Comecemos pela nossa primeira acusação, a espantosa conduta deste acidental Presidente dos Estados Unidos, no que diz respeito às suas relações com a mulata conhecida como Miss Wanda Gibson, uma empregada da União Soviética, e as sérias consequências destas ilícitas relações. Em primeiro lugar...
De repente Nat Abrahams reparou na presença de Wanda por detrás dele. Estava de pé, como que petrificada, com o tabuleiro do café nas mãos, com os olhos magoados fixos no ecrã da televisão.
O instinto de decência de Nat Abrahams fê-lo levantar-se rapidamente e pôr-se entre Wanda e Miller. Depois foi até à televisão e des-ligou-a. A lenga lenga de Miller foi interrompida a meio de uma frase e a sua imagem desapareceu da vista.
Wanda fechou os olhos durante um segundo e depois disse:
- Obrigada, Nat.
Enquanto ela aproximava a sua cadeira da mesinha, perguntou:
Creme ou açúcar?
Açúcar, bem preciso dele.
Pousou o cachimbo no cinzeiro e começou a beber o café. Wanda Gibson deu a volta à mesinha.
O Douglass telefonou-me ontem à noite, de Cleveland, depois do discurso - disse ela. - Não quis, porém, falar acerca disso. Só queria saber se eu lera a coluna do Reb Blaser, no jornal do Miller. Ele lera-a. Aparentemente o jornal também circula em Cleveland. Leu-a?
Nunca leio a coluna de Blaser - disse Abrahams.
Devia ler, porque muitas pessoas a lêem e têm também a dizer como nós. - Pegou no jornal que estava dobrado em cima da mesa. -Quer ouvir? Bem, pelo menos o primeiro parágrafo. O título é «O Vermelho e o Preto». Depois diz o seguinte: «Ilustres cidadãos, se o nosso honrado presidente nada mais fez durante o seu curto mandato, pelo menos fez reviver o interesse pelos clássicos, especialmente no que respeita a O Vermelho e O Preto de Stendhal. A diferença consiste em que Douglass Dilman escreveu de novo o sórdido e imoral conto francês, dando-lhe uma volta moderna. O vermelho, na nova versão, é o infame agente soviético, Franz Gar, e o preto é a sua assistente executiva de escritório, Wanda Gibson, a bela amante negra do Presidente dos Estados Unidos.» - Ela levantou os olhos. - Já chega?
Até é demasiado, considerando a fonte - disse Abrahams. Hesitou, de testa franzida, e depois, porque achava que ela era uma pessoa a quem se podia dizer a verdade, disse: - Wanda, tem de preparar-se para mais coisas desse género. Pode ser que isso seja apenas o começo.
Oh, eu sei. - Ela sentou-se, esfregando uma mão na outra. - Já hoje tive de correr com duas dúzias de fotógrafos e repórteres.
Abrahams pousou a sua chávena de café e pegou no cachimbo.
Dá licença?
Por favor...
Ele passou um cigarro aceso por cima do tabaco.
Eu estou aqui para a ajudar, se precisar de ajuda, não apenas porque Douglass o quer, mas porque eu o quero.
É muito amável da sua parte, mas...
Wanda - prosseguiu ele -, não me interessam as porcarias que vêm nos jornais. Interesso-me apenas porque seja tratada com justiça, segundo a lei. Já estive no Ministério da Justiça. Assegura-ram-me que não existe qualquer prova que lhe permita acusá-la de comunista. Até hoje, a justiça não tem qualquer plano para a perseguir, seja de que maneira for. Contudo é inevitável que será interrogada, e queria vê-la antes de isso começar.
Demasiado tarde - disse ela calmamente. - Já começou.
Quem?
O advogado legal da Assembleia Judiciária da Câmara, um tal Sr. Wine. Veio cá hoje, ao romper da aurora, com os seus ajudantes, para me entregar uma intimação. Ou eu testemunhava perante ele e assinava a minha declaração ou teria de comparecer perante a subcomissão. Escolhi a primeira.
Que quis ele saber? - perguntou logo Abrahams.
-Tudo. Onde eu nascera, onde fora educada, como tinha vivido, os meus empregos, a minha família, tudo. A maior parte foi acerca de Douglass e de mim, onde e quando nos encontrávamos, quantas vezes nos costumávamos ver quando ele era senador, e depois de se ter tornado presidente quantas vezes falámos pelo telefone, como...
Quantas vezes viu Douglass, depois de este ter subido à presidência?
Só uma vez, infelizmente, só uma única vez. Ele veio aqui para me oferecer um emprego na Casa Branca. Recusei-o. É claro que falámos várias vezes pelo telefone.
Que mais lhe perguntaram?
Exactamente acerca do que falávamos. O tal Sr. Wine era tão óbvio e embaraçoso com todas aquelas suas perguntas sugestivas! O Douglass contava-me o que se passava no Escritório Oval, nas reuniões do Gabinete, nas Reuniões do Conselho de Segurança Nacional, etc, etc? Costumava eu discutir acerca de Douglass com o meu patrão?
Que lhe disse, Wanda?
A verdade. Que mais lhe havia de dizer? Não ouvira nenhuns segredos, portanto nada tinha para revelar. Duvido até que o Franz Gar soubesse que Douglass era um amigo meu. Depois... depois, toda a espécie de vilezas acerca de eu viver aqui, quando Douglass também vivia... ambos sob o mesmo tecto... a rotina do amor ilícito.
Espero que lhe tenha dito...
Que fosse pentear macacos? Não, não disse. Sou uma pessoa muito franca, é um dos meus defeitos, mas faz com que uma pessoa durma mais descansada. Disse-lhes que o presidente e eu nunca tínhamos sido amantes. Conhecemo-nos há quase cinco anos, e ele nunca fez mais do que beijar-me, abraçar-me, segurar-me nas mãos e sempre estivemos bem na companhia um do outro. Deus do céu, você conhece o Douglass tão bem como eu. Para ele, todas as mulheres são virgens vestais, a não ser que sejam autorizadas pela Igreja e pelo Estado para procriarem. Foi por isso que eu quase desatei a rir com a acusação deles de imoralidade... Douglass, o libertino, tentando violar essa tal filha do senador Watson! Pode imaginá-los a engolir essa? - Parou e olhou fixamente para Abrahams. - Ninguém acreditará nisso e nas outras coisas que dizem acerca de mim, pois não?
Abrahams sentiu-se pouco à vontade. Nunca poderia mentir àquela mulher.
- As pessoas acreditam no que querem, Wanda. Ela ficou imediatamente perturbada.
Então pensa que ele pode ser demitido? Ele não acha isso possível.
Tudo é possível, mas pode ser que ele tenha razão. Isto pode não passar de uns meios de censura pública. Esta manhã andei a meter o nariz no assunto. As demissões feitas pela Câmara dos Deputados são poucas e já se deram há muito. Desde 1797, a Câmara dos Deputados considerou já inumeráveis acusações de demissões, e todavia só votou doze vezes para enviar os artigos de demissão para o Senado.
Só doze vezes! - repetiu Wanda, espantada. - Eu pensava que isso só tinha acontecido uma vez... com Andrew Johnson.
Não. Ele foi o único presidente demitido. Mas a Câmara tem o direito de considerar também a demissão de outros membros do governo. Foram votadas demissões contra um juiz associado do Supremo, um ministro da Guerra, um senador e oito juízes federais.
Que sucedeu aos doze que foram demitidos? Foi o fim deles?
Deus do céu, não, Wanda. A demissão pela Câmara não é um julgamento. Se a maioria da Câmara vota contra as provas, todo o assunto vai logo por água abaixo. Se a maioria vota a favor da demissão, esse é apenas o primeiro passo. Significa que a pessoa em questão foi acusada de crimes capitais, e então, e só então, é que o seu caso comparece perante todo o Senado, que é convertido num tribunal, com o presidente do Supremo a presidir. Então a pessoa em questão pode ter a sua defesa, um grupo de advogados para combaterem as acusações dos advogados da Câmara. Dos doze homens que foram a julgamento perante o Senado, desde 1797, oito foram considerados inocentes e quatro culpados. Todos os culpados eram juízes, e em nenhum caso a sentença foi além da demissão do cargo.
É a desgraça eterna!
Sim, suponho que pode dizer isso.
Voltando um ponto atrás, Nat. Você disse que muitos foram os casos de demissão apresentados à Câmara, como o de Dou-glass, hoje. Só doze foram enviados para o Senado. Que sucedeu ao resto?
As acusações não tiveram o voto da maioria, portanto não passaram.
Nat - disse Wanda calmamente -, Douglass contou-me que lhe deram a oportunidade de pedir a demissão, anteontem de manhã.
Abrabams sentiu as suas mãos apertarem instintivamente o cachimbo.
Deram? Não sabia!
Arthur Eaton foi ter com ele em nome dos outros. Eaton disse--Ihe que se pusesse de lado ou se demitisse do cargo, sob qualquer pretexto de saúde, ou... ou que se preparasse para o que está a suceder hoje. - Wanda mexia distraidamente nos botões da sua blusa, com os olhos baixos. - Nat, você pode fazer algo por mim e pelo Douglass. Convença-o a pedir a demissão. Por favor, faça isso por nós dois.
Abrahams estudou o triste perfil dela.
- Porquê, Wanda? - perguntou ele.
Ela levantou a cabeça, e os seus olhos estavam marejados de lágrimas.
- Porque eu... eu amo-o... Amo-o demasiado para o ver esfarrapado, ultrajado e (inchado perante todo o mundo. Será a destruição dele e de qualquer felicidade que ele... que ambos pudéssemos ter. Por favor, convença-o a pedir a demissão.
Abrahams sentiu-se sem saber o que havia de fazer.
Se Eaton não conseguiu fazê-lo demitir-se, o que a faz pensar que eu consiga?
Conheço o Douglass, a sua sensibilidade. Vinda de Eaton, a proposta era um insulto, fê-lo ficar furibundo. Vinda de si, o seu melhor amigo, ele escutaria, sabendo que você só deseja o seu bem.
Abrahams soprou o cachimbo vazio e ponderou o caso. Por fim os seus olhos cruzaram-se com os olhos angustiados dela. Abanou lentamente a cabeça.
Wanda, para falar com toda a franqueza, eu não sei o que será melhor para ele. Se ele passar isto, terá boas oportunidades de sobreviver, ganhar, de provar que merece ser presidente. Se sair agora, perde, não poderá continuar a sua carreira ao serviço público, admite incompetência e ainda pior.
Mas ficará vivo! - exclamou ela veementemente. - Toda a gente à face da terra saberá que ele foi forçado por ser de cor; todos saberão isso. Até pode ser que ele se torne de novo popular, seja apoiado, possa regressar. E se não pudesse, poderia praticar a advocacia e nós poderíamos...
Wanda, você não pode decidir isso pelo Douglass e eu também não. Acredite-me, por favor. Mesmo que ele tenha sido incitado, ninguém pode tomar tal decisão por ele. Ele tem de a tomar sozinho. É tudo o que lhe posso dizer.
Sim - disse ela com um ar cansado.
Nat Abrahams desejaria poder consolá-la, mas mais palavras seriam vãs. Levantou-se e foi até ao bengaleiro. Enquanto vestia o seu sobretudo, disse:
- Tenho de ir. Estou no Mayflower. Quero que prometa que se mais algum dos investigadores da Câmara cá vier meter o nariz você pega no telefone e chama-me. Nada de mais perguntas sem conselho legal ao seu lado... Promete?
Ela nada respondeu.
Wanda, é tanto pelo Doug como por si mesma - disse ele gravemente.
Prometo - disse ela.
Óptimo. Agora, também nada de televisão. Manienha-se ocupada. Nem todos os congressistas são como Zeke Miller. Confiemos em que a maioria seja ainda do lado da sensibilidade e da decência. Se for, tudo isto será em breve esquecido como um pesadelo. Até breve, Wanda.
Obrigada por tudo.
Só depois de ter penetrado na tarde fria e de ter percorrido o caminho até ao carro é que ele se deu conta de quão aliviado se sentia de ter escapado aos problema de Wanda, aos problemas de Doug Dilman e a toda aquela impossível situação. Fechando-se no carro, sentiu-se momentaneamente isolado de todo o mal sufocante e constrangedor, e grato por ser a pessoa afortunada que estava livre da tortura e do castigo, livre para voltar para junto da sua amada companheira, para uma nova carreira que lhe prometia riqueza e segurança, para uma vida desprovida do selvagem escândalo ou da constante crueldade. Nunca se sentira tão grato por ser quem era, como naquele momento.
Então, quando ligou o motor do carro e ouviu o seu trepidar, a sua consciência despertou.
Perante o tribunal da sua consciência, o sangue subiu-lhe ao rosto e sentiu o calor da vergonha. Porque ele sabia que se deixara dominar pela vã corrupção da superioridade e da segurança e dentro do seu coração sabia que não possuía uma nem outra. Tanto ele como Douglass Dilman eram homens à face da terra, providos de espírito, coração e membros como qualquer homem. A sua própria posição na vida era alta, mas não mais alta que a de Douglass, e ele estava mais seguro que o amigo. Se Doug era vulnerável hoje e podia ser derrubado, o mesmo lhe podia suceder a ele. Não possuía nada que Douglass Dilman não possuísse. E a sua vergonha vinha--Ihe agora da vaidade do seu único bem seguro, que Douglass Dilman não possuía nem nunca poderia possuir - a leve camada protectora da sua epiderme branca.
Nat Abrahams carregou no acelerador e o carro arrancou com um salto. Sentiu-se satisfeito por saber finalmente o que pedia fervorosamente: que os honoríficos membros da Câmara dos Deputados viessem a saber na altura própria que a demissão de Douglass Dilman, por causa da sua diferença de cor, tornar-se-ia também numa acusação deles próprios e de todos os homens meio civilizados de todo o mundo, para toda a história.
No quarto dia depois da sua partida de Washington, o Presidente Douglass Dilman estava de pé, sem chapéu e sem sobretudo, exposto ao vento e ao sol em Cabo Kennedy, perto da praia de Cocoa, na costa este da Florida. Estava ladeado pelo presidente dos chefes do Estado-Maior, pelo astronauta mais famoso da Nação, por vários membros da Administração Aeronáutica e Espacial da Nação e posava para as fotografias que o enxame de fotógrafos da imprensa, à sua volta, lhe tiravam.
A seguir ao tempo invernoso suportado em toda a viagem, o sol da Florida na cabeça descoberta e a brisa do Atlântico acariciando-o suavemente representavam uma agradável mudança. Contudo, Douglass Dilman não se sentia à vontade.
Fixando os fotógrafos à sua frente, Dilman experimentou a desagradável sensação de alguém que subitamente repara que lhe estão a tirar uma fotografia para qualquer nefasto propósito. O lado mais negro do espírito de Diiman perguntou a si próprio qual seria a legenda de cada fotografia quando fosse transmitida para Nova Iorque e daí para todo o mundo. Então viu que não haveria apenas um título para cada fotografia, mas dois, e cinicamente divertido escreveu mentalmente as duas alternativas: (A) «O mal-humorado e azedo presidente, minutos antes de ter tomado conhecimento da sua demissão por crimes e delitos capitais, votada pela maioria da Câmara»; (B) «O resoluto e corajoso chefe do executivo, em Cabo Kennedy, minutos antes de ter ouvido a sua defesa pela maioria da Câmara, que não aprovou as acusações feitas contra ele.»
Num esforço para fornecer a fotografia apropriada para o segundo título, Dilman tentou dar ao rosto uma expressão resoluta e corajosa, mas sabia que o não estava a conseguir. O seu aspecto continuava a ser mal-humorado, porque no íntimo sentia-se envenenado e amargurado.
A volta pelo país fora um verdadeiro desastre. Em toda a parte fora perseguido pelas acusações irrefutáveis introduzidas na Câmara dos Deputados, as acusações da sua traição, da sua imoralidade, do seu desregramento, do seu desprezo pelo Congresso eleito pelo próprio povo, todas elas difundidas por toda a parte, em cada ouvido, através dos jornais, da rádio e da televisão. Por toda a parte tinham sido semeadas as sementes do ódio, e por toda a parte ele tinha conhecido a maldade e a malevolência.
Parecia não haver qualquer linha de cor a dividir a Nação na sua aversão contra a sua presença. Os brancos gritavam à sua vista, como se ele fosse um oragotango que tivesse fugido da jaula. Os de cor condenavam-no como se ele fosse um Quisling traidor que vendera o seu próprio povo como escravo. Se a demonstração contra ele em Cleveland fora um horror, a violenta recepção que recebera em Los Angeles (onde a sua vida fora posta momentaneamente em perigo, devido aos exaltados que tinham subido ao palco) fora ainda pior, só igualada pela sua recepção em Seattle, onde nem uma só palavra do seu discurso de quinze minutos tinha sido ouvida.
As apressadas visitas às instalações militares, sob a relutante direcção do general Pitt Fortney, não tinham sido menos angustiantes. No Forte Bragg, no norte da Carolina, nos quartéis-generais perto de Omaha, no Nebraska, na sede do I. O B. M. perto de Cheyenne, em Wyoming, no Forte Bliss, no Texas, Dilman fora recebido com uma espécie diferente de desprezo.
Nas instalações militares, o comandante-chefe não podia ser recebido com cartazes, punhos no ar e pragas. Em vez disso, o desdém e a baixa opinião eram subtilmente revelados através de uma formalidade trocista, de uma cortesia extravagante, de uma falta de calor social. Em todas as visitas de inspecção reparara que os que o recebiam, os seus guias, os seus companheiros, os seus criados, eram oficiais negros de baixa patente e negros incorporados. Onde quer que aparecesse, os aparelhos de televisão, as telefonias e os jornais tinham sido escondidos, e nunca ouvira qualquer menção, encorajante ou desencorajante, acerca do debate da sua demissão, que estava a decorrer na Câmara dos Deputados... e em toda a Nação. Da ira espumante e da confusão das grandes cidades, fora lançado do avião a jacto para a fria e silenciosa atmosfera do ostracismo pelo silêncio. Fora mantido à distância de um braço (e de uma saudação), como se fosse um leproso, que se metera à força no meio deles, um leproso que em breve seria levado para qualquer Molokai político.
Quando o avião aterrava, nessa manhã, na Base Patrick da Força Aérea, ao sul do Cabo Kennedy, ele já sabia o que o esperava. Esperava encontrar a censura, mais uma vez, dos cidadãos e a rejeição silenciosa dos militares, e em ambos os casos ficara surpreendido. Embora não tivesse havido ovações, também não se tinham ouvido, pela primeira vez, gritos de desaprovação e de ódio. Os espectadores olhavam-no, ao passar do carro, imóveis, reflectindo--se nos seus rostos queimados pelo sol nada mais do que interesse e curiosidade. Mas quando entrara no portão principal de Cabo Kennedy, achara a atmosfera mais cortês que hostil. O seu curto discurso proferido perante todo o pessoal reunido à imprensa, prometendo apoio total à administração do Programa Apolo, fora recebido sem risos de troça ou exclamações de protesto, mas com atenção e respeito. Contudo, naquele momento, enquanto posava para os fotógrafos, o sentimento de ansiedade em Dilman avivou-se novamente. A sessão de fotografias, a maior parte tirada por fotógrafos que o perseguiam desde a Casa Branca, recordara-lhe toda a sua desastrosa viagem e o que se estava a desenrolar naquele preciso momento na Câmara dos Deputados.
Ao deixarem o edifício central, Tim Flannery segredara-lhe que o debate dos membros da Câmara já terminara e que Dilman fora defendido calorosamente por vários deputados do Oeste, nomeadamente Collins de Montana, que avisara os seus colegas de que as provas de demissão eram «castelos de areia» e que, se culpavam um presidente por causa dos seus hábitos pessoais, os seus amigos e as suas opiniões, abriam o caminho para que futuros congressos controlassem completamente o ramo executivo e «punissem os presidentes pelo corte dos seus fatos, pelo comportamento das mulheres ou o grau dos seus coeficientes de inteligência».
Todavia, o saber que o debate terminara e que a votação final ia começar, enchera Dilman de uma opressiva preocupação. Se a Câmara, que mais intimamente reflectia os sentimentos dos votadores do que o Senado, sentia o mesmo ódio que observara recentemente por todo o país, então estava condenado.
Não podia acreditar, porém, que tal sucedesse. Acreditava firmemente que os membros da Câmara, tendo passado pela crise do vitupério, compreenderiam agora a gravidade histórica da decisão que estavam a enfrentar. Compreenderiam que uma demissão dessas, nos tempos modernos, era inimaginável, que o instrumento legal de reprovação e disciplina da Constituição se tornara obsoleto. Certamente que os mais sensatos membros da Câmara veriam isso, pensariam duas vezes antes de dizerem sim ou não. No fim, esses membros não dariam o seu voto a Zeke Miller, cujos motivos políticos eram mais duvidosos que os que ele atribuía a Dilman. Não podia haver dúvidas acerca disso.
Dilman ouviu a voz de forte acento texano do general Fortney:
- Muito bem, já tiraram fotografias suficientes por agora! – Fortney voltou-se para o general Leo Jaskowick. - Que se segue? Quer pôr-nos em órbita?
Jaskowick ofereceu ao presidente dos chefes do Estado-Maior um sorriso oficial forçado e depois disse a Dilman:
- Sr. Presidente, espero que me permita conduzi-lo até ao topo da plataforma. De lá desfruta-se uma vista maravilhosa.
- Certamente que gostaria de ver isso - disse Dilman. Dilman entrou no elevador, seguido de Fortney, Jaskowick e o director das operações. Lentamente subiram até à parte mais alta do foguetão Titã.
Saindo pela plataforma entre o nariz do foguetão e a torre de ferro, Dilman achou o ar mais frio e ventoso. Seguiu com os olhos o braço e a mão de Jaskowick, enquanto este lhe apontava os vários edifícios da base. Mas o seu espírito estava distante e frequentemente os seus olhos segulam-no até se fixarem no oceano, nesse oceano que conduzia a Washington.
Subitamente reparou que Jaskowick o observava e que se encontravam ambos sozinhos. Fortney e o director das operações tinham ido até ao outro lado da plataforma.
Jaskowick teve um sorriso compreensivo.
- Não posso censurá-lo se não me escuta, Sr. Presidente - disse. - Tenho a certeza de que hoje os seus pensamentos estão mais concentrados no que se passa na terra do que no que se passa no espaço.
A franqueza e a rápida percepção do astronauta atraiu o interesse de Dilman. Tentou retribuir o sorriso.
De facto, tem toda a razão, general.
Eu... enquanto lhe posso falar assim... há algo que gostaria de dizer-lhe, Sr. Presidente. Tenho lido nos jornais o relato da sua viagem pelos Estados Unidos. Tenho seguido o debate na Câmara dos Deputados, pela televisão. Nunca me senti tão envergonhado com os meus compatriotas americanos ou com os seus deputados, e queria que o senhor soubesse isso. Queria também que soubesse que há muitos entre nós que são de opinião que tudo isto é absurdo e despropositado, e que o senhor está apenas a ser julgado por causa dos preconceitos contra a sua cor. Talvez tenha sido inconveniente ao dizer isto, mas tinha de o fazer.
Havia muitos dias que Dilman não se sentia tão profundamente comovido com a simpatia de um outro ser humano. Sentiu os olhos humedecerem-se e desviou o rosto.
- Agradeço-lhe muito - conseguiu articular. - Agradeço-lhe sinceramente a sua compreensão. Eu... na verdade, logo no momento da minha chegada me impressionou a cortesia, o ar de decência que aqui encontrei, tão diferente do que vi nos últimos dias.
O rosto aberto e franco de Jaskowick tornara-se extremamente sério.
- Nós aqui, em Cabo Kennedy, somos de outra raça... Nem todos, mas certamente aqueles que subiram e a meia dúzia que lhes está intimamente relacionada. Somos treinados a estar mais perto do céu e dos seus planetas. E quando deixamos a terra para irmos em órbita para o espaço, o que já me aconteceu três vezes, podemos ver quão pequena é a nossa bola de lama no mundo, na sua verdadeira perspectiva. Quando nos encontramos sozinhos na cápsula Mercúrio, ou com outro na Gémeos, e giramos à volta da Terra durante vários dias, chegamos a ter um certo conhecimento espiritual do que o Criador pretendia quando fez este bolo e o povoou de seres vivos e lhe deu uma semelhança de ordem e ao homem uma parcela de inteligência. Acredite-me, Sr. Presidente, perdem-se todos os venenos que corrompem os homens e estragam a vida. Perde-se tudo isso no espaço. Chega-se a compreender quão afortunado o homem é, até mesmo por existir, por sobreviver, e começa-se a pensar porque não sabe ele apreciar o que tem e porque destrói o seu próprio prazer e a alegria dos outros à sua volta com incríveis insignificâncias de espírito e acção. É o que acontece, Sr. Presidente. Por muitas ou poucas que as nossas faltas sejam, quando se volta de lá para aqui nunca mais se é o mesmo. Deixámos lá os preconceitos, o ódio e a vontade de destruir. Olhamos para os nossos companheiros terrestrês com os olhos da fraternidade, como nossos iguais na terra, e queremos viver e deixar viver. É por isso que...
Parou a meio da frase. O general Fortney e o director das operações tinham regressado de novo para junto deles.
Fortney disse a Dilman:
- Não está farto disto? Dilman sorriu.
- Gostei muito de aqui ter vindo. Mas acho que já é altura de regressar à terra.
No elevador examinou o general Leo Jaskowick com um novo interesse. Numa era de contínuos feitos espaciais, Jaskowick era um herói espacial. Fora o único astronauta que estivera três vezes em órbita, uma vez sozinho e as duas outras na cápsula de duas pessoas, a Gémeos, durante seis dias. O seu aspecto físico era vulgar, nada em proporção com a lenda que o rodeava. Dilman pensou que o astronauta devia ter cinco pés e dez polegadas de altura e pesar umas cento e sessenta libras. Tinha o cabelo cortado rente, rosto queimado do sol, os olhos eram vivos e amáveis, o nariz era o que mais sobressaía no seu rosto de lituano. Dilman, desde que conhecera Nat Abrahams, e depois o juiz e Tim Flannery, nunca fora tão pronto a gostar de alguém.
Depois disso, enquanto davam uma volta pelo coração de Cabo Kennedy, Dilman deu toda a sua atenção a Leo Jaskowick, apreciando a sua eloquência e deixando-se empolgar pelo entusiasmo espontâneo do astronauta acerca da operação Apolo, que faria com que três homens fossem fazer uma exploração da superfície lunar.
A última etapa da sua volta foi o dormitório em forma de ferradura e de um único andar, onde dormiam os doze novos astronautas, que se treinavam agora para o próximo voo do Apolo.
Enquanto examinavam os quartos arrumados e bem apetrechados, Jaskcowick disse:
- Dez deles vivem aqui, enquanto as famílias vivem na praia de Cocoa.
Algo de estranho surgiu no espírito de Dilman:
- Vivem aqui dez? Pensei que me tivesse dito que estavam a treinar doze.
Antes que Jaskowick pudesse responder, o general Fortney interveio bruscamente.
- Os outros dois preferiram ficar nas velhas barracas. E a mesma coisa. Trabalham de noite até mais tarde. Agora, vamo-nos embora.
Quando este se afastou com os directores e os oficiais das relações públicas, Dilman deixou-se ficar para trás com Jaskowick.
Esses dois, quem são? Por que vivem separados? Pela primeira vez Jaskowick mostrou-se pouco à vontade.
São negros, Sr. Presidente - respondeu ele.
Mas pensei que aqui...
Eu sei, Sr. Presidente - disse Jaskowick com um ar desconsolado. - Quando falei de um nova raça de homens, quis-me referir aos que já experimentaram voos em órbita ou que foram totalmente instruídos para eles. Os novos são meros animais terrestres, e embora sejam superiores no que diz respeito a certos aspectos, possuem ainda o vírus da sua educação e preconceitos. Oficialmente, como todas as instalações militares desde 1951, esta base não é segregada. Mas se fazem com que dois recém-chegados se sintam... bem... diferentes, e se estes sabem que terão mais paz de espírito para se concentrarem no seu treino afastando-se da fricção social, assim fazem voluntariamente. Penso que os nossos dois astronautas de cor se não importam nada com isso. Estão demasiado empenhados no trabalho. Este é tudo o que conta para eles. Algum dia serão os outros que os convidarão a virem instalar-se aqui. - Hesitou, e depois acrescentou - Embora feita numa base tão voluntária, eu não concordei com esta segregação. Cheguei mesmo a escrever uma nota acerca disso para o Pentágono, para o Fortney. Não recebi qualquer resposta. Talvez o Fortney nunca a tivesse visto.
Talvez tivesse - disse Dilman. - Ele sabe tudo o que aqui se passa.
Desculpe, Sr. Presidente.
Você fez o melhor que podia. Agora fá-lo-ei eu. Faça com que eu tenha um memorando à minha espera na Casa Branca, lembran-do-me para eu dar ordens no sentido de que todos os astronautas em treino no Cabo, daqui em diante, qualquer que seja o seu desejo ou o de outras pessoas, vivam nos mesmos alojamentos, recebam a mesma comida e educação, sem discriminações ou favoritis-mos. Pode ter a certeza de que o farei.
Os olhos de Jaskowick brilhavam.
Lá terá esse memorando à sua espera. Muito obrigado, Sr. Presidente.
Para as outras pessoas posso ser um simples animal terrestre, mas você, general, e eu sabemos que estive lá em cima e voltei.
Dilman começou a andar, mas depois parou.
Diga-me, general Jaskowick, foi permanentemente designado para o Cabo Kennedy?
Sim, Sr. Presidente.
Que faz aqui?
Devo ensinar - disse ele, e depois sorriu. - Mas na realidade não o faço. Há, pelo menos, uns cem homens que poderiam fazer isso melhor do que eu. Não sou um professor. Sou do tipo dos que fazem. Devo dirigir a operação Apolo, mas isso é mera publicidade. Na verdade, estou instalado aqui para guiar os visitantes ilustres, como congressistas ou repórteres, que possam dar a nossa verdadeira imagem pública. Estou reduzido à profissão de ser um monumento animado, uma peça de exposição.
Vão enviá-lo de novo lá para cima?
Temo que não, Sr. Presidente. Já passei o meu trigésimo quarto aniversário, e o limite de idade para se ir para o espaço é agora de trinta e cinco anos.
Dilman tirou um charuto da algibeira do casaco, ficou algum tempo com ele na mão e depois lembrou-se de oferecer também um a Jaskowick.
É permitido fumar?
Certamente - disse Jaskowick. - Mas não, muito obrigado, esse charuto é demasiado forte para mim. Importa-se que fume um dos meus?
Faça favor.
Jaskowick tirou enfim um charuto e um isqueiro do seu casaco, acendeu apressadamente primeiro o do presidente e depois o seu.
Diga-me - disse Dilman -, gosta de Washington?
Gosto de qualquer lugar em que haja acção e luta e acho que isso descreve Washington.
Certamente que descreve - disse Dilman. Recomeçou a andar ao lado de Jaskowick, regulando o seu passo pelo dele. - Estava a pensar r continuou Dilman - como nos poderia ser útil... no Pentágono, até talvez mesmo na Casa Branca... a opinião de alguém que já esteve mais perto do céu do que qualquer de nós alguma vez poderá estar. - Lançou ao astronauta um olhar interrogativo. - Acha que isso lhe interessaria?
Sr. Presidente - disse Jaskowick com fervor -, faça o sinal de regressar... e Washington será onde aterrarei.
Muito bem - disse Dilman -, fique aqui e quando eu...
Dilman parou abruptamente, à espera, enquanto olhava directamente para a frente. Podia ver Tim Flannery correndo pelo corredor do dormitório ao seu encontro. Olhando para a expressão aflita do normalmente bem-humorado rosto do secretário da Imprensa, o coração de Dilman imediatamente se pôs a bater. Assim, alegrias e esperanças dos passados minutos desvaneciam-se no ar.
- Sr. Presidente, quis apanhá-lo antes de sair daqui – disse Flannery sem fôlego. - Os repórteres e os fotógrafos estão todos amontoados à porta, à sua espera. Fiz com que o Fortney ordenasse aos guardas que os segurassem. Acaba de suceder, Sr. Presidente... diabos. - O rosto sardento de ruivo contorceu-se e parecia que Flannery ia começar a chorar. - A votação da Câmara acabou... - disse com a voz entrecortada.
Era curioso, mas Dilman não sentiu qualquer dor ou medo. Disse calmamente, não como pergunta, mas como uma simples constatação de um facto:
- Votaram a favor da demissão.
- Sim... diabos, é terrível... não sei o que... Dilman tocou no ombro de Flannery com a mão.
- Calma Tim. Os detalhes não interessam, mas... qual foi o número de votos?
A votação foi de 287 votos a favor e 161 contra. Dilman acenou com a cabeça.
Estou vendo. A voz do povo.
- A voz da vilania! - exclamou Jaskowick violentamente. Dilman humedeceu os lábios e ficou embaraçado por não con seguir controlar a sua maçã-de-adão.
Bem - disse ele, encolhendo levemente os ombros. Os seus olhos foram de Jaskowick para Flannery. - E a seguir, Tim?
Segundo o que ouvi pela rádio, acabara de chegar uma declaração do senador Hankins, do edifício do Senado. Dizia que o Senado se reuniria como tribunal e que o julgaria daqui a uma semana Sr. Presidente, acerca daquela matilha lá fora, à porta...
Dilman levou uma mão à testa. Sentia-se tonto e deslocado.
Não, não os posso ver ainda, Tim.
Que posso eu fazer? - disse Flannery, desesperado. - É um monte lá fora, mesmo junto da porta. Não há...
Jaskowick segurou o braço de Dilman.
- Posso ajudá-lo. Há uma saída de emergência do outro lado deste edifício... Ninguém dará pela sua saída. Poderá safar-se por lá... dar-lhe-á um ou dois minutos de avanço.
Imediatamente se puseram os três a caminho, e cinco minutos depois, cheio de pó e sem fôlego, Dilman chegou ao carro, enquanto, espantados, os agentes do Serviço Secreto e os guardas de segurança do Cabo lhe abriam as portas.
Dilman despediu-se rapidamente de Jaskowick.
Obrigado por tudo, general. É pena, mas parece-me que dentro em breve já não terei autoridade para o mandar chamar. Teria gostado de Washington.
Agora já não gosto - disse Jaskowick, irado. - Mas o senhor ainda tem uma grande oportunidade.
Não sei - disse Dilman. - Na verdade não sei.
Enquanto Dilman e Flannery entravam para o carro e se sentavam, Dilman pôde ver, pelo vidro de trás, a multidão dos repórteres e fotógrafos correndo à distância, apressadamente, na sua direcção.
- Para a Base Patrick, da Força Aérea - ordenou Dilman ao motorista.
O carro pôs-se a andar, rodeado pelas motos de protecção.
- Sr. Presidente, estava a pensar - começou Flannery -, quando fizer o seu último discurso, amanhã em St. Louis, podemos rever...
Dilman estava mergulhado nos seus pensamentos. E só quando o carro passava pelo portão, deixando a base do Cabo Kennedy, disse:
- Tim, não iremos para St. Louis. Faça-me um favor, está bem? - Apontou com a mão para o radiotelefone junto de Flannery. - Telefone em meu nome para o aeroporto e diga à tripulação que mudámos o plano de voo. Que se aprontem para me levarem imediatamente para a cidade de Siour, em lowa. Depois fala para Washington e diz a Noyes que cancele o discurso e a visita a St. Louis. Diga-lhe que dê qualquer desculpa. Diga-lhe que estou doente. Eu estou doente. - Sorriu levemente para apagar a imediata expressão preocupada do secretário da Imprensa. - Mas não do modo que pensa, Tim.
Dilman apontou de novo para o radiotelefone.
- Marque-me quarto num hotel da cidade de Siour para esta noite. Nada de compromissos. Não sou agora mais do que um político sob a acusação de demissão.
Flannery escutara tudo isto visivelmente angustiado.
Sr. Presidente, por favor reconsidere acerca de St. Louis. Ainda tem...
Não, eu preciso de tempo para pensar e sei o que devo fazer em primeiro lugar. Depois de ter feito esses telefonemas, ligue-me para o Juiz. Vive algures, nos arredores da cidade de Siour.
Na Quinta de Fairwiew.
É isso. Diga-lhe que eu gostava de ir tomar amanhã de manhã o pequeno-almoço com ele, presunto e ovos, e conversar um pouco, só nós os dois, um ex-presidente e outro prestes a entrar para o seu clube. Diga-lhe que não lhe roubarei muito tempo, talvez uma hora, antes de regressar a Washington.
Durante uns segundos, Douglass Dilman observou silenciosamente o centro comercial da Praia Cocoa, os armazéns, os escritórios, os night-clubs. Depois, olhando ainda através da janela, disse:
- É engraçado, porque na verdade nunca conheci o meu pai, excepto em fotografias, e pelo que a minha mãe me contava. Ele morreu era eu ainda criança. Acho que o meu espírito voou para ele, porque me sentia como um miúdo perseguido e desejei alguém suficientemente idóneo e forte para me proteger. Mas então vi que já não tinha pai. Portanto tive de adoptar um, alguém que fosse rijo, seguro e corajoso, alguém que fosse suficientemente velho para eu o respeitar e lhe falar. Assim, automaticamente, neste momento como que adoptei o Juiz. É uma tontice, pois ele mal me conhece e eu mal o conheço a ele. Mas ele é irascível e teimoso como uma cabra da Assíria. Sabe, Tim, na minha primeira manhã como presidente ele telefonou-me da sua quinta, e, depois de me ter pregado um discurso, disse-me: «Rapaz, escute e não se esqueça: se alguma vez precisar do meu conselho ou ajuda, venha cá visitar-me e à minha cara-metade, e comeremos um bom pequeno-almoço da quinta e pô-lo-emos direito.» Foi o que ele me disse, Tim.
Dilman desviou os olhos da janela e olhou para Flannery.
- Nunca tive a oportunidade de saber, mas acho que seria assim que um pai falaria... Agora, Tim, pegue aí no telefone e comece a fazer essas chamadas a longa distância, à custa da Casa Branca, enquanto eu ainda posso gastar o dinheiro do governo.
Em lowa, a manhã surgira luminosa e pura, uma verdadeira manhã refrescante de Outono.
No céu, o disco do Sol era demasiado recente para ter aquecido já o ar ou a terra, pelo que o ar era ainda um tónico revivificando o corpo e penetrando fresco nos pulmões, e a relva e a terra debaixo dos pés estava húmida com o orvalho da noite. Pelo ar pairava um odor estranho, de vida palpitante, uma mistura de cheiro de gado e criação, de cereais e de cercas pintadas.
Regressavam do seu passeio, lado a lado, sem pressa, caminhando vagarosamente, o Presidente dos Estados Unidos e o ex-Presiden-te dos Estados Unidos, ambos entregues aos seus próprios pensamentos, enquanto se dirigiam para a casa cinzenta e vermelha.
O Juiz brandiu a bengala em direcção de um galo indignado.
Acho que já deve ter algum apetite, finalmente, hem, rapaz? -disse para Dilman.
Sim, Juiz, já estou pronto.
Dilman sentira-se demasiado impaciente para um passeio a pé, quando este lhe fora proposto, e só concordara por mera cortesia pelo dono da casa. Agora sentia-se grato pelo tónico do passeio, o que lhe fez aumentar o seu respeito pela sabedoria instintiva do ex-presidente.
Quando chegara à Quinta de Fairwiew, a dez milhas da cidade de Siour, Dilman ficara espantadíssimo com a sem-cerimónia do acolhimento do Juiz. Este fungara, cuspira e exclamara:
- Então aqueles fulanos lá da Colina sempre o crucificaram ontem, hem, meu amigo? Raios me partam, toda a minha vida soube que eles eram uns cabeças-de-mula de primeira qualidade, mas certamente que nunca esperei que perdessem completamente o tino, insultando o nosso cargo de presidente, transformando o partido numa demagogia branca, atirando com o voto negro à cara. Não teriam feito melhor se tivessem o capuz branco1 na cabeça quando votaram pela sua demissão, aqueles idiotas.
' Referência ao Ku Klux Klan. (N. do T.)
- Alegra-me que sejamos da mesma opinião - disse Dilman, a sua mão ainda presa na do Juiz, ambos à vista de Flannery, dos agentes do Serviço Secreto e da Polícia de Estado.
O Juiz largara-lhe finalmente a mão.
- Meu rapaz, eu tenho uma visão puramente zoológica do ramo legislativo. Tomado como um todo, o Congresso faz-me lembrar nada mais que um dinossauro... o Stegossauro, para me especificar... um corpo gigantesco com uma cabecinha minúscula e um cérebro colectivo do tamanho de uma noz. Tomados individualmente, os membros ou são galinhas ou dingos... Compreende?... A galinha, fingindo ser um pássaro, incapaz porém de voar, e prestes a extinguir-se pela sua pretensão, vaidade e inadaptabilidade... O cão dingo da Austrália, meio cão doméstico, fiel e serviçal, meio animal selvagem e feroz, vivendo em bandos e matando carneiros. Eis o Congresso!
- De repente desviara a cabeça. - Quem diabo vem interromper a nossa serenidade?
Três carros, cheios a abarrotar, tinham surgido na estrada.
A imprensa - dissera Dilman.
Deixe-os esturrar - resmungou o Juiz. Observara atentamente Dilman, semicerrando os olhos. - Meu rapaz, você ainda não está em condições de gozar o nosso pequeno-almoço. Venha daí, vamos os dois dar um pequeno passeio pela quinta... Vou mostrar-lhe como vive metade da América... Limpar-lhe-á o estômago antes do pequeno-almoço.
Tinham fugido à imprensa, entrando para o vestíbulo da casa e saindo pela porta das traseiras. O Juiz, pegando na bengala e num cachecol de malha, que enrolou ao pescoço, conduzira Dilman até ao celeiro, onde já estava armazenado o trigo e a forragem para o Inverno, até ao moinho de vento, através dos campos. Tinham parado junto das pocilgas, onde os porcos grunhiam e comiam; tinham entrado no grande estábulo para observar as máquinas do leite presas aos Liberes das vacas e as vasilhas a serem levadas para os separadores da nata; tinham descansado um pouco em frente de uma segunda casa de campo, mais pequena e mais nova que a do Juiz, onde vivia a sobrinha deste com os seus dois filhos pequenos.
- Os miúdos estão agora na escola, senão apresentar-lhos-ia - dissera o Juiz com satisfação. - São a coisa mais esperta que tenho visto. É bom tê-los aqui comigo, fazem-me sentir de novo jovem, mas é pena que assim tenha de ser. Ela casou com o filho do meu irmão mais novo e este foi morto há alguns anos no Vietnam. Portanto eu tomei conta deles. Ela escreve à máquina o que eu preciso, responde às minhas cartas, trata de editar os meus livros, tudo isto pela sua manutenção. - Emitiu um grunhido. - Se ela soubesse a verdade! Eu até pagaria para ter aqueles miúdos aqui.
Durante o regresso à casa principal o Juiz falou várias vezes acerca de livros que tinham lido. Como sucede com a maior parte das pessoas que se educaram por si próprias, ele tinha grande orgulho no seu profundo conhecimento de vários assuntos. A sua colecção de volumes sobre a história da América, uma das maiores colecções particulares do país, fazia agora parte da Biblioteca Presidencial que tinha o seu nome. Lera profundamente as obras dos filósofos e tanto recordava, de vez em quando, uma anedota sobre Diógenes, como uma passagem de Thoreau. A certa altura, abrangendo todo o seu domínio com um gesto da sua bengala, dissera:
- Gosto disto porque convida à meditação. A vida é um negócio instável e melindroso. Resolvi viver a reflectir sobre ela. Sabe quem disse isto? Arthur Schopenhauer. Não se deixe levar por algumas das suas ideias, mas saboreie esta: «O desagradável de se ser presidente é que se tem um cargo em que se deve pensar mais do que qualquer pessoa no mundo e contudo tem-se menos tempo para o fazer que um simples sapateiro.»
Por duas vezes, enquanto se iam aproximando de casa, Dilman teve a oportunidade de inspeccionar cuidadosamente o Juiz. Este era baixo, pesadão, aparentando bem os seus 80 anos. Tinha o rosto redondo como uma esfera, um nariz pequeno, triangular, e olhos de míope. Mas o que o caracterizava era a sua maneira de ser, simples, vulgar e colorida, e ele sabia isso e favorecia a imagem. Durante o passeio definira o deputado Zeke Miller como uma espécie de «adolescente que gosta de espezinhar flores» e o senador Bruce Hankins como «ineficaz porque a morte se instalou nele há duas décadas». Quanto a Arthur Eaton, notara que «ele quer ser presidente mais do que qualquer homem em todo o país, mas acha que não são boas maneiras admitir isso, mas, acredite-me, os seus partidários caberiam todos numa cabina telefónica».
Ao entrarem no vestíbulo da casa, Dilman notou quanto o passeio e o ar fresco o tinham fatigado. E pela primeira vez sentiu o estômago apertado com fome. Tencionava deixar-se cair no maior sofá da sala, quando entrou a dona da casa ralhando com o marido pelo atraso para o pequeno-almoço e apertando calorosamente a mão de Dilman.
Vendo-a assim vestida, com um fato barato de algodão e um avental branco, Dilman pensou como era impossível ele acreditar que ela fora já a primeira dama da Nação e a dona de casa na sala de jantar do estado. O seu cabelo azul-acinzentado estava ordenadamente penteado sobre um rosto gorducho e suave, guarnecido de uns óculos na ponta do nariz abatatado. Toda ela era gorducha e com um doce ar de avó e, embora ralhasse com o Juiz, ela adorava-o e preocupava-se com a gente de todo o mundo.
Dilman lembrava-se que ela fora, na sua juventude, bibliotecária de um conselho, e o seu vocabulário era mais correcto e refinado que o do marido.
- Quero pedir-lhe desculpa pelo comportamento do Juiz - disse ela a Dilman -, tratando-o como se fosse um delegado qualquer do clube 4-H em vez de presidente. - Ele e a sua quinta! E fazendo-o andar até quase o deixar morto. Por que teria eu casado com o caminhante número um de todo o mundo? Agora venha já daí, Sr. Presidente. Está com um ar esfomeado. E quanto a si, Juiz, tire esse abominável cachecol, vá lavar essas mãos e não nos faça esperar.
Depois de terem entrado na casa de jantar e se terem sentado à mesa, o Juiz prendeu o guardanapo à camisa, inclinou a cabeça, murmurou uma oração de graças e enterrou a colher nas papas de aveia fumegantes. Quando Dilman acabou as suas papas e consumiu o resto do farto pequeno-almoço - presunto frito, ovos estrelados, biscoitos aquecidos no forno, um copo de leite em creme, a sensação de bem-estar sentida ao princípio transformou-se numa vaga sensação de depressão.
Fizera aquela visita em busca de conselho, ou de uma confirmação, acerca de uma decisão política e pessoal que lhe ocupava todo o espírito desde o momento em que soubera da votação. Durante mais de meia hora o interlúdio exterior com o ex-presidente distraíra-o da infeliz realidade. Mas agora, já quase no fim do pequeno-almoço, a verdade da sua dolorosa situação voltou até ele. Nenhuma vista rural, nenhum regresso à natureza, nenhuma quantidade de ar fresco ou comida deliciosa o poderiam já anestesiar.
Estava quase a dizer o que lhe ia no espírito, quando a dona da casa se levantou da mesa.
- Agora deixá-los-ei para que possam faiar à vontade - disse ela. - Não posso ver aqueles homens e mulheres lá fora cheios de fome, enquanto nós aqui nos saciamos. Vou ver para que, pelo menos, bebam algum café e comam uns biscoitos.
O Juiz acendeu o seu cacbimbo e, enquanto Dilman tirava o celofane do seu charuto, disse:
Agora podemos falar em paz. - Deu várias fumaças com um ar deliciado. - Sei que tem lá muita coisa na cabeça, Douglass, ou não estaria agora aqui, neste lugar esquecido de Deus. Eu tinha perfeita consciência dos seus problemas quando o levei a passear por aí e lhe pespeguei com toda aquela palermice da conversa sobre colheitas e cavalos. Fi-lo de propósito, para tentar acalmá-lo.
Agradeço-lhe muito - disse Dilman. - De verdade, enquanto passeávamos, eu invejei-o... não só ao senhor, como também a um amigo meu, Nat Abrahams, o advogado...
-Aquele de Chicago? Um bom tipo, um bom tipo. Há anos que sigo a sua acção nos casos difíceis.
Invejei-os a ambos, porque quando terminaram o vosso trabalho tiveram para onde ir. O senhor fez o serviço, Juiz, e depois regressou para a sua quinta. Nat Abrahams fez todo o seu serviço e quando tiver ganho mais alguns dólares também ele terá a sua quinta perto de Wheaton à sua espera. Deve ser agradável saber-se que cumprimos as tarefas neste mundo para as quais nascemos, as terminámos o melhor que pudemos e que depois podemos gozar uma recompensa merecida.
Não há nenhuma razão para que o não faça também, algum dia.
Já não terei essa oportunidade - disse Dilman. - Não ganhei a minha paz. Não que seja minha a culpa, mas assim acontece. A votação foi a favor da minha demissão... o que é uma coisa tremenda... o segundo presidente a quem tal sucede. Já tenho aos ombros o peso de meia desgraça. Agora irei a julgamento na maior e mais pública sala de tribunal do mundo, onde ouvirei uma quantidade de mentiras acerca da minha suposta imoralidade, incompetência e não cumprimento da lei; terei de ver essas mentiras tomarem-se numa parte permanente do meu passado, da minha biografia e da história da América. Considerar-me-ão culpado, Juiz, qualquer que seja a minha defesa e a falta de provas, porque têm algo contra mim que eu não posso refutar: é o facto de eu ser preto. Serei demitido, o primeiro presidente a quem tal já sucedeu em toda a história, e a minha desgraça tomar-se-á numa desgraça completa. Suponho que passarei então o resto da minha vida como qualquer fanático perseguido, tentando convencer as pessoas de que estava inocente, para justificar os poucos meses do meu mandato. Não poderei arranjar uma quinta, uma recompensa, uma pensão por um trabalho bem feito, porque terei sido demitido. É por isso que me sinto tão desesperado, e é também por isso que tanto o invejo a si e ao meu amigo Nat.
Parece-me, meu rapaz, que está a começar a apiedar-se de si próprio e a tentar justificar-se um pouco cedo de mais - disse o Juiz, com uma expressão de coruja no rosto. - A votação foi contra si. Mas não foi ainda julgado. Já praticou como advogado. Alguma vez abandonou um cliente antes de este ter ido a tribunal?
Talvez o tivesse praticamente feito quando o meu cliente era preto e o júri era branco, e fora da sala de tribunal todos os jornais e o público clamavam contra ele.
O Juiz endireitou-se na cadeira.
Raios o partam, meu amigo, então procedeu erradamente. Isto ainda são os Estados Unidos da América e não apenas a branca América, e você é ainda considerado inocente até que provem que é culpado. Acha que é culpado de qualquer desses artigos de acusação que eles vão enviar para o Senado?
Não sou culpado de nenhum deles, nem mesmo do quarto, porque sustento que tinha o direito executivo de demitir um membro do Gabinete, visto haver precedência presidencial, e aquela lei que eles inventaram para me refrear era vingativa, prejudicial e anticonsti-tucional.
Portanto, está inocente. Vá lá e mostre-lhes isso mesmo.
Mostrar a quem? - disse Dilman com amargura. - Àqueles advogados da Câmara que me perseguem? Eles não são magistrados com experiência. São deputados eleitos pelo povo, a maior parte das vezes mais pela sua popularidade do que pelo seu bom senso, e portanto ao sabor da massa pública. Ouvem a voz do povo e transmitem essa voz. Se o não fizerem, apanharão um pontapé nas próximas eleições. Digo-lhe por fim que a coisa se resume ao público emocional e irracional. E lembre-se do que eu passei nestes últimos quatro dias em que viajei pelo país, quatro dias de ódio constante... cinco dias, contando com esta manhã quando o meu hotel da cidade de Siour foi ameaçado por ter dado abrigo a um traidor comunista... O Juiz emitiu um som nasal de desprezo.
Esqueça esses camponeses de província. Qualquer estranho que por aqui apareça, que tenha estado duas vezes em Paris e uma em Moscovo, é considerado um patife internacional e um espião soviético. Bem conheço os meus irmãos do Middle West. Com excepção de alguns movimentos progressistas, são tradicionais, conservadores, fechados de espírito, agarrados sempre às mesmas ideias. Não são maus, são apenas lentos. Dê-!hes tempo, uma lareira junto da qual se sentem, uma oportunidade de raciocinarem numa linguagem que só eles compreendem e lá chegarão. Ainda há esperança.
Muito poucas esperanças e demasiado tarde, Juiz - teimou Dilman. - Deixe-me terminar. O meu destino está neste momento nas mãos do público e nestes quatro dias eu vi esse público bem de perto e não sei se algum presidente alguma vez suportou um tal ódio e tão unânime. A voz do povo quer-me fora e essa voz pronunciará «Culpado» no Senado.
O Juiz tornou a chegar um fósforo ao cachimbo e disse:
Declaro, Douglass, e eu não esperava isso de si, que se está a tornar no que os livros chamam um paranóico, querendo eu dizer que você está amargurado porque forjou um caso acreditando que todo o mundo está contra si e não permite que nada o levante.
Encaro os duros factos, Juiz... o que eu vi com os meus próprios olhos.
Bah - disse o juiz. - Está de tal modo lá por dentro que nem vê os factos como eles na verdade são. Eis alguns factos reais como eu os vejo. Li o que escreveu acerca dos seus discursos em Cleveland, Los Angeles, Seatle. Não foi muito bem tratado, mas houve uma quantidade imensa de pessoas que não gritaram nem bateram com os pés. Li que algumas até o aplaudiram, não muitas, mas algumas, e houve muitas que ficaram caladas, escutando, dando-lhe uma oportunidade, não o julgando imediatamente. Você não pode ignorar essa parte do público. Depois houve essa votação, ontem, na Câmara. É certo que a maioria votou contra si. Mas houve muitos que o defenderam, e de quatrocentos e quarenta e oito membros, cento e dezasseis - não são poucos - votaram a seu favor. Também estes representam a voz do povo. Agora, temos o Senado para a próxima semana. O que eram os senadores antes de serem eleitos? Na sua maioria eram procuradores. Isso significa que terá homens mais educados que na Câmara a assistir ao seu julgamento. Depois há também a considerar o facto de na Câmara, de dois em dois anos, muitos membros novos serem eleitos, o que faz com que os membros tenham de papaguear os eleitores palavra por palavra, se querem evitar ser substituídos nas próximas eleições. Os senadores, porém, estão lá por seis anos e não têm de papaguear, pois sabem que dentro de seis anos os seus eleitores já não se lembrarão muito do que eles fizeram. Portanto, têm lá um grupo de juízes aptos a serem mais independentes da histeria pública. Meu rapaz, não se esqueça disto: o velho Andrew Johnson foi acusado pela Câmara, mas só dois terços do Senado votaram contra ele, e, contradizendo aquela Câmara asinina, o Senado considerou-o inocente. Dilman abanou a cabeça.
- Não há comparação possível, Juiz. Porque, pondo todas as cartas na mesa, o Presidente Andrew Johnson não era preto e eu sou. O eleitorado e o Congresso não permitirão que um negro lhes governe os seus assuntos em Washington. Nunca o permitiram e não o permitirão agora.
-Qual nunca o permitiram, Douglass. Não queira competir comigo em questões de história, meu amigo. Houve catorze congressistas de cor na Câmara dos Deputados, entre 1869 e 1876, e há onze na Câmara, este ano. Houve dois negros no Senado, entre 1870 e 1881, e hoje há três. Talvez o público vá a passo de caracol pelo caminho, mas cada década que passa aproxima-se um pouco da Casa do Estado de Filadélfia, onde a Constituição foi forjada, assinada e selada. Os Americanos deixaram os negros governar os seus assuntos desde os anos de 1870 e...
E o que sucedeu precisamente depois? - disse Dilman. - Só está a contar metade da história. Contar-lhe-ei eu o resto. Os democratas sulistas puseram Hayes na presidência e este pagou-lhes mandando sair as tropas federais do Sul, tropas que protegiam os eleitores negros, e depois surgiu o Kian e a segregação e os negros voltaram outra vez a ser niggers.
Hoje é diferente - teimou o Juiz - porque hoje os negros estão a obter os seus direitos usando a esfera dos votos e não apoiando-se nas tropas federais. Não estou a dizer que estejamos a andar muito depressa. Mas o público está agora mais preparado do que nunca para permitir que um negro governe. Talvez não esta manhã, porque o puseram contra si. Mas talvez daqui a umas duas semanas, quando a sua versão do caso for dada a conhecer pela primeira vez, talvez então o seu humor mude e a sua inteligência seja restaurada. Tem ainda uma probabilidade muito grande.
Dilman escutara com uma expressão pensativa no rosto, e então afastou a cadeira para trás, distraidamente, levantou-se e foi até à janela.
- Muito bem, Juiz - disse ele. - Vou dizer-lhe francamente o que me fez vir aqui. Mas primeiro será melhor que eu lhe conte como estas acusações surgiram.
Calmamente, com o rosto meio voltado para o ex-presidente, Dilman contou-lhe toda a história, desde o caso do relatório da C. I. A. sobre Baraza, incluindo o episódio com Miss Watson, até àquela manhã em que demitira Eaton - e em que este exigira que Dilman se demitisse da presidência, ou que se pusesse de lado, alegando uma doença imaginária e entregando as rédeas do governo ao grupo de O. C, ou então que se preparasse para enfrentar as acusações e o julgamento.
Dilman deu uns passos na direcção do Juiz.
- Ao princípio não acreditei que a Câmara considerasse até aquele absurdo caso deles. Agora vejo como estava enganado. Não compreendi a necessidade deles de acreditarem nas suas acusações contra mim, não calculei bem o grau do seu ódio e do ódio do público por mim. Estava idiotamente optimista, e a votação de ontem provou que eu era um tolo chapado. Desde ontem encaro apenas uma decisão...
O Juiz rodou a sua cadeira de maneira a ficar de frente para Dilman. Os seus olhos eram duros.
Que decisão? - perguntou ele.
Se havia ou não de me submeter à agonia deste julgamento perante o Senado e o mundo, de permitir a exposição, perante todos, da miserável história do alcoolismo da minha pobre mulher já morta, de permitir que o meu filho único seja torturado por causa da sua filiação imaginária num grupo de terroristas antibrancos, de deixar que a única mulher que amo no mundo, uma mulher decente e inocente, fique marcada para toda a vida como não sendo melhor que uma prostituta - de decidir se é justo e humano eu ter de passar por tudo isto, deixar que tudo isto caia sobre os que me são queridos, sem qualquer cólera ou vaidade egoísta, sabendo que inevitavelmente serei agarrado pelo pescoço e atirado da Casa Branca para fora. Tenho de decidir entre fazer isto ou aceitar a outra alternativa que me foi oferecida por Eaton, Miller e o seu bando, isto é, render--me, deixar o meu lugar, pedir a demissão, salvar-me da ignomínia da derrota, poupar do escândalo aqueles que amo, proteger o meu país de um julgamento que poderá apenas e em último caso intensificar o ódio racial. Deverei devolver a presidência à maioria branca que a quer para seu exclusivo uso? É esta a decisão que tenho de tomar hoje.
O Juiz tornou a encher o cachimbo de tabaco. Os seus olhos fixaram-se em Dilman.
Muito bem. E o que diz?
Juiz - disse Dilman -, tenciono pedir a demissão da presidência. O cachimbo do Juiz parou a meio caminho da boca.
Pedir a demissão? - disse ele.
Não tenho outra solução.
Não tem agora! - rugiu o velho. O seu cachimbo bateu na mesa, e ele tão depressa se pôs de pé que Dilman recuou até à parede. O Juiz chegou-se a ele como um galo irado que o quisesse picar, acenando com o dedo mesmo sobre o nariz de Dilman. - Você demi-te-se, foge do maior cargo do mundo, deita fora a melhor oportunidade que um presidente e a minoria dos cidadãos já teve de melhorar este país, e eu juro-lhe, Dilman, juro-lhe pela minha mulher, pela minha sobrinha e pelos miúdos, que nunca mais porá os pés na minha casa. Aceito e respeito qualquer raça humana da terra - preta, branca, amarela, vermelha - mas nunca aceitarei e respeitarei um cobarde.
Espere lá...
Cale-se! - gritou o Juiz, vibrando dos pés até à cabeça. Fulminou Dilman com o olhar, com as mãos nas ancas. - Veio aqui em busca de conselhos e diabos me levem se os não vai ouvir, quer goste ou não. Estou farto de o ouvir apiedar-se de si próprio. Estou farto de trocar estatísticas intelectuais consigo. O que você precisa é de um bom pontapé no traseiro, e eu, tendo já estado sentado muito antes de você no Escritório Oval, acho que tenho o direito de lho dar. Meu rapaz, escute-me bem. Nunca nenhum presidente dos Estados Unidos, quer tenha sido eleito por votante popular ou por acidente, se demitiu sob pressão. Você não vai degradar o cargo, virar as costas ao seu dever e sujar a Constituição, querendo ser o primeiro a fazê--lo. Não senhor, meu rapaz, não senhor! O verdadeiro crime capital é pedir a demissão da presidência e não ser julgado por um chorrilho de mentiras de partidários. Desaproveitar a sua oportunidade de mostrar que um negro sabe governar seria o verdadeiro crime, e não o ser considerado culpado de adultério e de incompetência. Se você se demitir por ser um presidente negro morto de medo, se se deixar ir abaixo desse modo, não é só a sua raça que perde, mas também eu, a minha mulher e todos os brancos decentes desta democracia, porque nos mostra e ao mundo que temos um país em que um negro tem medo de agir como um homem, de cumprir como um homem, de viver como um homem, porque tem medo que nós o não deixemos fazer isso. Diabos, Dilman, não sei se você o sabe ou não; mas, aos olhos do Salvador e da Constituição, você é um homem e não um negro, um Baptista ou um veterano da guerra, mas apenas um mamífero humano. Pode ser um homem careca, um homem narigudo, um homem aleijado, um .homem de cor, mas em primeiro e último lugar, e sempre, você é um homem com uma cabeça e duas pernas, cuja pele acidentalmente é preta e cuja ficha da Segurança Social diz ser o Presidente dos Estados Unidos.
O Juiz estava lívido, sem fôlego, fazendo gestos frenéticos no ar com a mão direita. Assustado, Dilman encostou-se à parede, obser-vando-o enquanto avançava, com as narinas dilatadas e o nariz trémulo de indignação.
- Durante meio minuto, enquanto você trabalhava na Casa Branca - continuou o ex-presidente -, eu ainda pensei: «Talvez aquele tipo vá achar o que ele verdadeiramente é.» Isso foi quando você teve a coragem de lançar o veto àquele nojento Projecto do Programa de Reabilitação das Minorias. Pensei que você estivesse a defender os seus princípios como um homem igual a qualquer outro homem, e ainda mais, como um chefe que quer o bem do seu povo. Agora vejo que me enganei. Você procedeu assim por um simples acto de vaidade, para mostrar aos que o escoiceiam que deviam de vez em quando deixá-lo agir. Mas foi tudo, pois agora tem tanto medo que o escoiceiem mais, que o ponham de lá para fora, que está pronto a pôr-se de gatas e a fugir de lá voluntariamente. Que diabo, rapaz, deixe de andar de gatas. Ponha-se de pé como um homem, e quando alguém o escoicear, pregue-lhe um pontapé no traseiro. Você acredita na República. Tem ideias que são de aproveitar para o país. Tem a secretária mais importante de toda a Nação, uma secretária cheia de casos para serem resolvidos. Não deixe que nenhum homem o force a sair de lá, apenas porque você o considera como um homem e sabe que ele não o considera como tal. Tem demasiado à sua frente que precisa de ser feito. Não me venha cá dizer que o não deixarão, que não lhe darão essa oportunidade. Se lhe quiserem obstruir o caminho, atire com eles e derrube-os. Se o acusarem de crimes e delitos, responda-lhes e acuse-os de ignorância e medievalismo, e combata-os como iguais, sabendo que é um ser humano e que lhes é superior, sabendo que possui ainda o cargo mais alto do país. Você veio cá para ouvir o meu conselho, e... O juiz parou de repente, inclinou a cabeça, à escuta. A campainha da porta da frente tocava com insistência. O Juiz praguejou, fulminou Dilman mais uma vez com os olhos, e disse apenas:
- Um homem adulto tem de decidir por si mesmo.
Saiu a passos largos da casa de jantar e entrou no vestíbulo e Dilman seguiu-o lentamente. O Juiz abriu a porta e apareceu a mulher deste.
- Fechaste-me lá fora-disse esta zangada, e depois espreitou para Dilman, por cima do ombro do marido. - Sr. Presidente, está ali alguém importante para o ver e o Sr. Flannery disse-me que lho dissesse.
Dilman adiantou-se.
Quem é?
Não sei... é alguém que acaba de chegar de Washiniton. - Ela voltara-se para fazer sinal a esse alguém. - Faça favor de entrar, o presidente vê-lo-á agora.
Apareceu à porta um senhor com um ar distinto e embaraçado, os dedos movendo-se nervosamente na aba do chapéu que segurava na mão.
- Sr. ... Sr. Presidente - disse ele -, não sei se se lembra de mim... sou Harold L. Greene de...
Naquele momento Dilman reconheceu-o.
- É claro, Sr. Greene, de repente nem o reconhecia... tão longe da Colina.
- E verdade, senhor. - O homem torceu-se dentro do sobretudo mal talhado. - Fui enviado aqui em assunto oficial do Senado. Mandaram-me entregar-lhe - meteu a mão no interior do sobretudo e tirou um documento - esta intimação. É uma ordem para que vá a julgamento daqui a uma semana perante o Senado reunido como tribunal de acusação. Está tudo aí, Sr. Presidente. Tenho pena de ter sido encarregado disto, mas - encolheu tristemente os ombros e estendeu o documento.
Dilman deu um passo em frente e pegou no papel.
- Muito obrigado, Sr. Greene, por se ter incomodado. Suponho que o não devo mandar de regresso a Washington com as mãos a abanar.
O oficial pareceu ficar tão espantado quanto o Juiz ao seu lado.
- Pode levar esta mensagem consigo - disse Dilman. Embora estivesse de frente para o oficial, o seu olhar desviara-se para o Juiz. - Diga ao Senado dos Estados Unidos que o Presidente dos Estados Unidos espera... espera o momento de se encontrar com ele no tribunal!
Assim que o oficial deixou a sala, o Juiz deixou escapar uma exclamação de regozijo. Com o rosto a brilhar de alegria, chegou-se ao pé de Dilman e deu-lhe um abraço.
- Sr. Presidente, falou como um homem! - disse ele na sua voz roufenha. - Eu sabia que não se demitiria, sabia que ia lutar, sentia isso cá dentro.
Sorrindo, Dilman meteu o documento na algibeira.
- Suponho que vim aqui, Juiz, sabendo também isso. Só que precisava de alguém mais esperto e mais duro que eu para me dar um pontapé no traseiro de modo que eu me enfurecesse o suficiente para me lembrar que tinha razão e dar eu próprio uns tantos pontapés.
O Juiz bateu amigavelmente nas costas de Dilman.
- Sr. Presidente, suceda o que suceder agora, quando chegar à minha idade e olhar para trás, não lamentará nem por um minuto o que fez.
Dilman acenou gravemente com a cabeça.
Assim o espero - disse -, porque vou apanhar uma boa sova.
Não importa - disse o Juiz. - Já alguma vez ouviu falar de um antigo filósofo romano chamado Séneca? Alguma vez leu o que ele escreveu acerca de uma legião de romanos que foi apanhada e dizimada numa emboscada? Escreveu ele: «Os trezentos Fabie não foram vencidos, mas somente mortos.» Lembre-se disso quando as coisas apertarem. Agora vá-se embora e que Deus o abençoe.
Dilman apertou calorosamente a mão do Juiz e ficou surpreendido ao ver a mulher deste à porta, com o seu sobretudo no braço e segurando o seu chapéu. Dilman deixou que ela o ajudasse a vestir o sobretudo. Quando pegou no chapéu e começou a agradecer o pe-queno-almoço, reparou que os seus olhos estavam brilhantes. Impulsivamente, ela pôs-se em bicos dos pés e beijou-o na face.
- Coragem, Douglass - disse ela. - Há muita gente que precisa de si.
Demasiado comovido para lhe poder responder, Dilman abriu a porta. Imediatamente chegou até ele o coro dos gritos dos fotógrafos para lá do pórtico, mas mais forte que tudo o resto soou o último conselho do Juiz.
- A coragem é uma coisa indispensável - exclamou o Juiz nas suas costas - mas um advogado esperto é ainda melhor. Arranje um e depressa, o melhor que conhecer, Sr. Presidente!
Por sobre o ombro, Dilman teve um sorriso forçado na direcção do Juiz.
- Vou tentar - disse ele. - Conheço o melhor advogado que existe... mas ele quer ser lavrador como o senhor e portanto não sei se terá tempo. Vou tentar. É tudo o que um homem pode fazer.
No seu quarto do Hotel Mayflower, Nat Abrahams desligou o telefone e ficou de pé, junto dele, perdido nos seus pensamentos.
Por fim foi, como um autómato, até à janela, e ficou a olhar lá para baixo, para a Avenida de Connecticut, pensando ainda no telefonema que acabara de receber e nem vendo os peões e veículos que passavam na rua. De repente lembrou-se que Gorden Oliver e Sue estavam à sua espera na saleta da suite, e foi imediatamente assaltado pelo que estava a fazer quando a campainha do telefone o interrompera.
Gorden Oliver, com um ar todo profissional, a bengala numa mão e um grande sobrescrito na outra, chegara à hora combinada. Como se fosse um César colocando uma coroa de louros na cabeça de outro César, entregou o esquema final do contrato de Abrahams com as Indústrias Águias. Enquanto Sue, excitada e bonita no seu vestido cor-de-rosa, preparava as bebidas, Abrahams deixara-se cair num sofá, para rever pela última vez a linguagem legal de um contrato que ele já quase sabia de cor.
Enquanto lia, Nat Abrahams tentara fechar os ouvidos à alegre conversa entre Sue e Oliver. Só levantara os olhos uma vez quando passou pelos parágrafos relativos aos seus astronómicos honorários. Oliver ajeitava o seu fato com um ar importante e dizia a Sue que nada era demasiado bom para a esposa do futuro advogado número um das Indústrias Águias, e portanto era mais que justo que fossem celebrar o acontecimento com um belo jantar no restaurante de Billy Martin em Georgetown, tão famoso pela sua cozinha. Sue Abrahams rira, deliciada, e Nat sentira-se feliz por a ver tão contente e regressara à leitura do seu contrato.
Fora a sua única distração até acabar de ler o contrato e levantar a cabeça na direcção de Gorden Oliver.
Muito bem - dissera ao intermediário. - E agora? Quer a minha assinatura?
Certamente! - exclamou Oliver, tirando a tampa à sua caneta de tinta permanente de ouro e entregando-a a Abrahams. - Uma ocasião histórica. Assine todas as cópias no sítio marcado com um x e rubrique os selos.
Quando Abrahams estava a espalhar as numerosas cópias sobre a mesa à sua frente e se preparava para assinar o original, o telefone começara a tocar.
Sue pusera-se logo de pé.
- Eu vou atender - disse ela ao marido. - Acaba tu com isso. Contudo Abrahams deixara-se ficar com a caneta no ar, à espera de ver quem telefonava.
Sue tapara o bocal com a mão.
- Nat - dissera ela -, é da Casa Branca, para ti.
Abrahams pousara a caneta sobre a mesa e levantara-se imediatamente.
- Atendo-a no quarto - dissera ele.
O telefonema não demorara mais de três ou quatro minutos e Abrahams quase que nem falara, escutando apenas, mas a sua boa disposição foi desaparecendo a pouco e pouco, para ser substituída por um aspecto preocupado.
Agora, de pé, junto da janela do quarto do hotel, o telefonema tornara-se o centro dominante de todo o seu pensamento e tornava-se-lhe difícil ignorá-lo e voltar para a tarefa que o esperava na saleta. Todavia a sua mulher encontrava-se aí, assim como o seu colega de trabalho e o seu futuro. Relutantemente, deixou a solidão do quarto.
Viu os olhos interrogadores de Sue seguirem-no até ao sofá, a sua seriedade contradizendo o sorriso dos seus lábios.
Sentou-se no sofá, as mãos cruzadas entre os joelhos, mordendo o canto de um lábio.
- Bem, Nat - disse Gorden Oliver jovialmente -, acabemos com as formalidades... e permita-me a honra de levar a jantar um dos advogados mais ricos da América.
Abrahams nem o ouviu. Os seus olhos tinham-se pousado em Sue e permaneciam fixos nela. Finalmente disse:
Foi o presidente quem me telefonou.
Doug Dilman? - disse ela surpreendida. - Pensei que ele ainda estivesse fora, em...
Acaba de chegar - disse Abrahams. - Decidiu lutar contra eles. Decidiu ir a tribunal perante o Senado e defender-se.
Oh, não - disse Sue com um gemido. - Depois do que sucedeu na Câmara? Não tem nenhuma probabilidade, Nat. Espero que não o tenhas encorajado. Não compreendo. Dizem por toda a cidade que o mais provável é que ele peça a demissão...
Os olhos de Abrahams continuaram fixos na mulher.
Não vai demitir-se, vai lutar. - Hesitou, inspirou e depois disse: - Sue, ele pediu-me que o defendesse legalmente perante o Senado dos Estados Unidos.
Tu? - Ela levou a mão à boca. - Mas Nat, como? O que lhe respondeste?
Ele não me deixou dizer sim ou não já. Conheces o Doug. Conheces a sua sensibilidade, a sua relutância em pedir qualquer coisa ou impor-se a alguém. Disse-me que precisava desesperadamente do melhor advogado do país... de preferência eu próprio, mas se não pudesse ser eu, então alguém que eu sugerisse. Não me deixou dar-Ihe imediatamente uma resposta. Pediu-me que pensasse no caso e lhe telefonasse assim que pudesse e que, se a minha resposta fosse não, ele compreenderia perfeitamente, pois sabia que ocupado vou estar. Portanto, eu disse-lhe que lhe telefonaria mais tarde, ainda esta noite. E é tudo, Sue.
Nessa altura Abrahams tomou consciência da terceira pessoa que se encontrava na saleta. A expressão do rosto do intermediário perdera toda a jovialidade e tornara-se extremamente atenta.
Abrahams decidiu incluir Oliver no caso.
É claro, Gorden, que, se eu aceitar, precisarei de uma pequena licença de ausência para...
Se aceitar - interrompeu Oliver, transformando-se na viva imagem da incredulidade. - Está a brincar comigo, Nat, não está?
Não estou a brincar consigo nem com ninguém - disse Abrahams. - Estou apenas a pensar em voz alta. Disse que se representasse o presidente neste julgamento...
Eh lá, Nat, espere um minuto. - Gcrden Oliver inclinou-se para a frente na sua cadeira. - Não me diga que está a pensar a sério nessa proposta do Dilman! - Observou interrogadoramente o rosto de Abrahams e depois disse: - Porque... se está... deve compreender que só há uma resposta a dar-lhe, seja ele quem for, e o que quer que seja que o liga a ele. Só há uma resposta, e é não... não... não o poderá fazer. Desejaria poder fazê-lo por ser amigo dele, mas há coisas que estão primeiro, portanto é não, velho amigo, não.
Abrahams procurou controlar-se.
Tenho a impressão de que está a exceder-se um pouco, Gorden. Eu não disse se ia ou não defender o presidente. Na verdade, eu próprio não me decidi. Mas francamente, Gorden, acho que ninguém tem o direito de decidir por mim.
Em vista das circunstâncias, talvez eu possa exigir esse direito - disse Oliver. - Considerando a sua situação, as suas obrigações, acho que nem devia sequer admitir a ideia de ir perante o Senado e perante toda a Nação a favor de um político cujo comportamento deixa muito a desejar. Por Deus, Nat... eu não queria discutir consigo... nem com ninguém das Águias... para mais temo-nos dado tão bem até aqui. Escute, eu compreendo como tudo isto o pode preocupar... o ele ser seu amigo, entregando-se à sua mercê, o ser um negro inferior... Mas você tem de pensar primeiro em si próprio, e a sua responsabilidade é para connosco... para com as Águias.
Abrahams apertou as mãos com mais força uma de encontro à outra. Mediu cuidadosamente cada palavra sua.
Talvez eu não conheça ainda todas as facetas da minha posição na vossa corporação. Talvez haja mais que eu deva saber, e agora mesmo. A minha responsabilidade para convosco neste assunto... qual é ela, Gorden? Será melhor que...
Por favor, Nat - exclamou Sue aflita -, não te...
Vá, Gorden - insistiu Abrahams -, ponha as cartas na mesa. Diga-me as cláusulas que não estão escritas no contrato.
O rosto de Oliver tomou então uma expressão que Abrahams nunca lhe vira até então. O encanto, a jovialidade superficial desapareceram completamente, deixando à mostra o rosto rochoso e duro escondido por debaixo.
Não temos quaisquer segredos para si, Nat. Nesta altura já devia saber tudo o que Avery Emmich espera de si. Se não o sabe, ficarei contente por o elucidar.
Faça-o - disse Abrahams. - Explique-me por que não me querem deixar defender Doug Dilman se eu assim o entender.
Muito bem, se assim o quer. - Oliver olhou para Sue sem sorrir e depois tornou a fixar os olhos em Abrahams. - Nat - disse ele -, quando eu digo eu ou nós, refiro-me a Emmich e às Águias, compreende? Muito bem. Nós contribuímos grandemente para a campanha e para a eleição de O. C, porque sabíamos que ele era nosso amigo. Pagámos-lhe quatro anos da sua amizade e só recebemos dois terços de indemnização. Embora desanimados com a sucessão de Dilman a presidente, o governador Talley assegurou-nos que ele era razoável, tratável e que não sairia da ordem. Mas enganou-nos. Talley disse-nos que tal não voltaria a acontecer, mas aconteceu. Nós queríamos o Programa de Reabilitação das Minorias aprovado como lei. Era o favorito de Emmich, o mais importante para as Águias. Em vez disso, o seu Dilman estragou tudo. Soubemos então que tínhamos alguém em quem não podíamos confiar ou de quem depender. Vou dizer-lhe uma coisa, Nat, não há ninguém nos Estados Unidos suficientemente grande e poderoso para se opor a Avery Emmich e aos interesses deste país que ele ama. Emmich jurou que, mesmo que fosse o seu último acto de cidadão patriota, haveria de se descartar de Dilman e tornar a colocar o país no caminho da paz e da prosperidade. Pois bem, acho que outros cidadãos igualmente patriotas pensaram o mesmo, pois Emmich não teve de mexer sequer um dedo. Os nossos amigos do Congresso tomaram o caso nas suas próprias mãos. A Câmara votou a favor da demissão e o Senado demiti-lo-á. E ficaremos livres dele.
Abrahams escutara, esfregando o peito com a mão, como se quisesse impedir que as pancadas do seu coração chegassem até aos ouvidos da mulher.
- Parece muito seguro de que Emmich consiga o que pretende - disse Abrahams.
O sorriso de Gorden Oliver era gelado.
- Tenho a certeza absoluta de que Emmich conseguirá o que pretende.
A coisa era agora bem clara para Abrahams. Seria clara até para uma criança. O poderoso chefe de uma das maiores corporações americanas opunha-se a um fraco chefe de Estado. O presidente das Águias tinha mais aliados no Senado do que o Presidente dos Estados Unidos. O presidente das Águias podia dar mais protecção do que o Presidente dos Estados Unidos. O presidente das Águias possuía armas secretas e o Presidente dos Estados Unidos não possuía nenhuma. Para Nat Abrahams havia porém um mistério: como é que a coisa era feita? Que máscaras usaria o suborno? O disfarce seria uma contribuição numa futura campanha? Uma prenda de acções a um neto? Um ano de prostitutas pagas? Uma sociedade secreta numa companhia? As quotas pagas para toda a vida num clube especial de golfe? Ou simplesmente um pedido em troca de um cheque?
Contudo - pensou Abrahams - quando se tem cem homens podemos contar que a maior parte deles sejam homens decentes. Portanto, o Senado não podia ser comprado. Só alguns senadores. E Oliver não tinha razão. Emmich era grande e as Águias eram grandes, mas nenhum era maior que a presidência e os próprios Estados Unidos. Todavia os exércitos das Águias tinham-se posto em movimento e Dilman constituía o objecto do assalto, e então Abrahams compreendeu a aflição de Oliver. Abrahams tinha prometido a sua aliança aos exércitos das Águias e contudo ousara pedir uma licença de ausência para ajudar a construir as defesas do inimigo. Mas então ele ainda não compreendia até que ponto as Águias estavam empenhadas em liquidar Dilman. Agora já sabia.
- Não sabia - ouviu-se ele dizer a Oliver - até que ponto vocês estavam empenhados contra Dilman.
Agora já sabe - disse Oliver sem mais comentários. - Agora já pode compreender porque fiquei tão espantado por você considerar até pôr-se do lado desse homem. - Oliver tomou-se de novo mais brando. - Escute, Nat, não lhe estamos a pedir que se junte a nós na nossa actividade activa contra Dilman, durante o julgamento. Que diabo, você sempre é amigo dele. Tudo o que lhe pedimos é que não se oponha a nós, que não aceite o nosso dinheiro com uma mão e espere que o deixemos socar-nos com a outra. Queremo-lo apenas neutro no que se relaciona com este assunto.
A posição neutra não existe aqui, Gorden. Ou eu ajudo o presidente ou não o ajudo. Se o fizer, opor-me-ei a vocês com toda a minha força. Se o não fizer, privarei o presidente do conselho que ele precisa para se salvar e desse modo estarei a ajudar-vos a ajudar-vos activamente.
Nat, por amor de Deus, ele pode arranjar uma centena de outros conselheiros, pretos ou brancos. Todos eles agradecerão a oportunidade de aparecerem nos jornais. Não estou a dizer que você não seja melhor que os outros. Se o não fosse não o quereríamos para nós. Estou é a dizer que num julgamento especial como este ele pode obter toda a ajuda que quiser.
É verdade, excepto numa coisa - disse Abrahams. - Ele quer--me a mim. - Pensou durante um momento e depois acrescentou: -Não penso que seja por ele me julgar mais talentoso do que qualquer outro. Penso que é porque eu sou uma das poucas pessoas neste mundo em quem ele pode confiar completamente.
A testa de Oliver franziu-se agoirentamente e ele disse:
Quer dizer que, depois do que eu lhe contei, considera ainda seriamente a ideia de defender esse homem?
Considero.
Oliver levantou-se, começou a falar, e depois deu nervosamente uma volta à sala. Parou junto de Sue.
- Muito bem, Nat, considere - disse ele. - Mas penso que lhe devo dizer, detesto ter de dizer-lho, mas estou a falar pela companhia e não por mim, que se se puser do lado de Dilman pode considerar-se fora do campo de Emmich, agora e para sempre. Se concordar em defender o presidente, não vejo outra solução senão retirarmos-lhe a nossa oferta. - Esperou um momento. - Isto ajuda-o a decidir?
Decidirei quando estiver pronto para o fazer, Gorden, e nem um minuto antes.
Muito bem - disse Oiiver -, não me dá outra alternativa senão pegar nas minhas coisas e ir para casa e esperar para ver se está pronto a jogar segundo as regras.
Foi até à mesa, juntou as cópias do contrato, pegou nelas e na caneta e tornou a metê-las no sobrescrito. Olhou para Sue.
- Parece-me que nenhum de nós está com muito apetite. Talvez seja melhor guardarmos a celebração para amanhã.
Pegou no sobrescrito e no chapéu e dirigiu-se para a porta, seguido de Sue. Já com a porta aberta, inclinou-se levemente perante Sue.
- Obrigado, Sue. Até à próxima. - Olhou para Abrahams. - Ficarei à espera do seu telefonema, Nat. Espero que pense bem no caso. Neste momento da sua vida você não deve nada a ninguém, com excepção de você próprio e da sua família. - Levantou no ar o envelope. - Não seria ajuizado deitar isto fora, seria como deitar fora dez anos de vida. Boa noite.
Abrahams não se mexeu no sofá. Observou a mulher fechar a porta e depois viu-a encostar-se a ela, com a face comprimida de encontro ao painel.
Quando ela se dirigiu para ele, o seu rosto estava pálido e tenso, e ele sabia o esforço que ela estava a fazer para não chorar.
Ele desviou os olhos quando ela se aproximou e parou na sua frente. Finalmente, disse-lhe:
Bem, Sue, ouviste o Oiiver e ouviste-me a mim. Qual é a tua opinião?
Qual é a minha opinião? Porventura te importas com a minha opinião? - disse ela erguendo a voz. - Gorden Oiiver já disse tudo o que eu poderia dizer.
Até mesmo depois de teres ouvido tudo o que ele disse acerca do Emmich e das Águias?
Não terias de meter-te nisso. Ele prometeu-to. Eu ouvi.
Queres que eu me sente lá em cima na galeria do Senado, como um simples empregado das Águias, vendo o meu amigo a ser maltratado, e me diga a mim mesmo que não sou cúmplice deles, que sou apenas um inocente espectador? Isso nem parece teu, Sue.
E o que é que parece meu? Porventura o sabes? Alguma vez te importou sabê-lo? Gastaste a tua vida e a tua saúde em salas de audiências pobres e sujas, dando tudo o que tinhas a pessoas que nada tinham para te dar - a ti ou a nós. Durante todos estes anos colocaste sempre qualquer cão que ganisse por socorro acima do Roger, do David, da Deborah e de mim - sim, de mim. Nunca me queixei! Nunca me meti no teu caminho. Na verdade, até te encorajei porque me orgulhava do teu amor pelos outros e porque te amava por isso e por ti. Mas fiquei contente quando surgiu essa oferta das Águias. Nunca te forcei a tomares qualquer decisão, mas fiquei contente porque achei que finalmente ias receber o que merecias, que recuperarias a tua saúde, que teríamos uma vida melhor juntos ainda durante muitos anos e que a viveríamos como as outras pessoas. E agora, de repente, quando temos tudo isso, voltas as costas a tudo - queres pensar -, agora, de repente, as Águias são sujas - que negócio, que profissão não tem a sua parte suja e a sua parte limpa? -e agora, de repente, Doug Dilman está perdido sem ti e tu pões tudo de lado, o teu futuro, a tua mulher, os teus filhos, para o ajudares -para ajudares uma causa perdida quando tu sabes, tão bem como eu, que ele não tem qualquer possibilidade de escapar, e mesmo que tivesse, como Gorden disse, haveria dúzias de advogados que o saberiam defender tão bem como tu. Querias saber qual a minha opinião? Pois aí a tens!
Ele esperou que ela se acalmasse e depois disse:
Sue, eu sei quais são as minhas virtudes e a minha capacidade. Sinto que posso fazer por Doug mais do que qualquer outro advogado neste mundo. Talvez tenhas razão e ninguém o possa salvar, mas se há alguém que possa, sinto que sou eu. Ele é meu amigo...
E eu sou a tua mulher e a mãe dos teus filhos! E nós? Teremos também nós de pintar a cara de preto para conseguir a tua ajuda?
-Sue!
Oh, diabos levem tudo isto! - Ela corria os olhos com as mãos.
Acalma-te - disse ele gravemente. - Na verdade eu ainda nem tomei uma decisão. Sinto apenas que todo o significado das nossas vidas está finalmente a ser examinado - o nosso liberalismo escrito, nosso liberalismo falado, a nossa verdadeira fibra como duas pessoas decentes -, está a ser posto em causa, pela primeira vez. Não se trata agora de contribuições para a Crispus ou C. O. R. E. Não se trata agora de termos um amigo negro para jantar connosco, sabendo que depois ele se irá embora para casa. Agora é como - é como se uma família negra se tivesse mudado para a vizinhança e tudo o que tivéssemos em casa e no mundo estivesse ameaçado! Como agiremos nós? Voltamos as costas e vamos-nos embora?
- Isso não é a mesma coisa! - exclamou Sue, indignada. – Não torças as coisas com a tua retórica de advogado. Nat, como podes fazer uma coisa dessas? Tu conheces-me, sabes que eu gosto tanto do Doug como tu, mas não o amo tanto como a ti ou aos nossos filhos. - A sua voz tornou-se suplicante. - Não vês isso? Não pensas primeiro em nós? O Doug sobreviverá ou afundar-se-á sem ti. Mas nós não podemos sobreviver sem ti.
Abrahams abanou a cabeça.
Querida, a coisa não é bem assim, não é isto ou aquilo. Se eu trocar o Emmich pelo Dilman, o mundo não se acabará. Lembra-te disso.
É tudo o que tens a dizer?
Estou apenas a tentar...
Pois então faz o que te der na real gana e o que queiras. Já disse tudo o que tinha para te dizer.
Ele ficou espantado ao vê-la dar uma reviravolta e precipitar-se para dentro do quarto, batendo a porta com força atrás de si. Pensou ainda em segui-la, mas, em vez disso, foi até ao tabuleiro das bebidas e começou a preparar um whisky com água. Estava a mexê-lo, pensando, quando a viu surgir ruidosamente do quarto.
Voltou-se quando ela passou apressadamente junto dele. Ela trocara o seu fato de jantar e os sapatos de salto alto por uma camisola e uma saia e uns sapatos rasos e agora tirava o casaco comprido do bengaleiro.
Sue, para onde diabo vais tu?
Não sei nem me importa. Talvez vá à procura de um camião para me lançar para debaixo dele. Que diferença é que isso te faz? Quero apenas estar sozinho, não é que o não tenha estado desde que Oliver se foi embora!
Ela foi-se, batendo com a porta, e ele ficou sozinho com a bebida na mão.
Então pôs-se a andar de um lado para o outro na saleta, pesando o seu futuro tão bem planeado contra a sua necessidade de defender Doug Dilman e o que isto representava.
Sem saber porquê, o seu espírito foi até àquela ocasião, nos fins do século passado, em que o padre Damien, o belga que trabalhara entre os leprosos numa ilha solitária do Pacífico, fora maldosamente atacado pelo reverendo Hyde por ser «rude, sujo e teimoso». Fora Robert Louis Stevenson, arriscando tudo o que possuía naquele libelo, quem defendera o padre Damien, contra-atacando o reverendo por sentir que sofria remorsos na consciência pela sua própria inércia. «Mas, senhor - escrevera Stevenson ao reverendo Hyde e a todo o mundo -, quando nós falhámos e outrem conseguiu; quando nós nos pusemos de lado e outrem se lançou para a frente; quando permanecemos sentados, engordando nas nossas encantadoras mansões, e um simples e rude camponês se lança na batalha, sob os olhos de Deus, e morre no campo da honra - a batalha não pode ser recuperada... Não se pode esperar que todos nós sejamos Damiens; um homem pode conceber o seu dever sob um ponto de vista mais estreito, pode gostar mais do seu conforto; e ninguém lhe atirará com uma pedra por isso. Mas... »
Mas.
Abrahams reflectiu, meditou e finalmente viu que tinha de chegar a uma solução nessa mesma noite. Então assim faria. Pensaria muito e beberia um pouco, ou, melhor ainda, beberia muito e pensaria pouco, e, quando visse o caso mais claramente, quando tivesse a certeza, telefonaria para a Casa Branca.
E assim ele começou a pensar muito e a beber muito...
Sentiu uma leve pressão no seu ombro direito, leve, mas real, e então abriu os olhos.
Com grande espanto seu viu que estava sentado junto da mesinha de toilette do seu quarto, com a cabeça deitada sobre os braços cruzados. Olhando para o relógio por detrás do telefone, compreendeu que adormecera e que dormia havia já mais de duas horas.
Tornou a sentir uma pressão no seu ombro direito e então viu a mão de Sue e a própria Sue inclinada sobre ele. Com excepção dos seus olhos vermelhos de chorar e dos sulcos das lágrimas nas suas faces, a sua expressão era mais suave do que nunca.
- Nat, sentes-te bem?
Ele endireitou-se, abanou a cabeça como um cão que acaba de sair da água, esfregou os olhos e passou os dedos pelos cabelos emaranhados.
- Acho que sou um homem de uma só bebida - disse ele. – Esta noite bebi três. - Depois recordou-se novamente de tudo e acordou completamente. - Onde estiveste durante todo este tempo, Sue?
-Andei - disse ela-, andei sem parar, pela cidade. A noite estava bonita e fria e... e o passeio fez-me bem. Sabes onde fui parar? Fui andando, andando, até que me encontrei na Avenida da Pensilvânia, e ali fiquei de pé, em frente da cerca de ferro preto, olhando para a Casa Branca, como se nunca ali tivesse estado. Parecia tão diferente esta noite, Nat, parecia um forte abandonado numa ilha deserta, e eu a imaginá-lo lá dentro, sozinho naquelas salas vazias, perdido, apanhado, sem ninguém a quem recorrer. Então, caminhando pelo passeio, apareceu um jovem par de recém-casados, não eram da cidade, talvez fossem do Midwest, bem dispostos depois do jantar, e ela disse que ouvira dizer que havia uma excursão todos os dias à Casa Branca e que gostaria de ir nela. Ele respondeu-lhe que certamente, mas não dessa vez, para a próxima, porque então já teriam posto o inquilino na rua e desinfectado a casa. E sabes uma coisa, Nat, ela riu-se, achou a observação dele muito inteligente, inteligente e justa, e ambos riram e depois afastaram-se e eu fiquei ali sozinha a olhar através da cerca de ferro e a pensar no Doug metido lá^dentro, e em ti, e nas crianças, e em todos nós. E voltei para o pé de ti o mais depressa que pude.
Ele pegara-lhe nas mãos.
-Sue...
- Nat, perdoa-me tudo o que te disse há bocado. Não sei o que me passou pela cabeça. Na verdade não quero que trabalhes nas Águias. Eu não poderia viver desse dinheiro e criar as crianças com ele. E se eu soubesse que tu poderias... poderias ter ajudado o Doug... e não o tivesses feito... nunca mais poderia olhar para mim ou para ti. Não estou preocupada por nossa causa, na verdade não estou. Tens a tua advocacia. Podemos economizar. Mostrar-te-ei do que sou capaz. E estaremos juntos, que é o que interessa. E se economizarmos bastante, talvez um dia possamos comprar uma quinta, não aquela, mas outra, mesmo que seja mais pequena. - Ele tentou puxá-la para si, mas ela resistiu. - Nat, telefona para a Casa Branca e diz-lhe que sim.
Ele pôs-se de pé com um sorriso nos lábios.
- Já o fiz, Sue. Telefonei-lhe há uma hora e disse-lhe que tinha o seu advogado. Disse-lhe que estávamos juntos nisto, para nos ajudarmos a nadar, desta noite em diante. Pensei que ele fosse... que ele fosse chorar. - Envolveu-a com um braço. - Bem, está feito. Não sei se o poderei ajudar, mas uma coisa sei eu. Não fiz isto apenas por ele, Sue, fi-lo também por nós. Ela beijou-o e segredou-lhe:
- Amo-te tanto. - E quando ele a largou, viu que o seu rosto tinha uma expressão de viva excitação como nunca lhe vira. - Nat, telefonemos às crianças e depois vamos jantar aqui para celebrar e depois... depois amemo-nos esta noite e sempre, sem parar.
Ele tentou agarrá-la de novo, mas ela fugiu, rindo-se, e dirigiu-se para o quarto para mudar de roupa. Mas quando chegou à porta hesitou e voltou-se para ele com uma expressão grave e perturbada no seu suave rosto.
- Nat, achas que o podes salvar? Tens de o fazer. Quero que este seja a espécie de país em que gostaríamos de deixar os nossos filhos crescer, num país em que todos possam viver sem medo, um país de que eles se possam orgulhar. Isso será a melhor coisa que lhes poderemos deixar... não uma quinta, cem quintas, ou um milhão de dólares... mas um país assim.
À medida que a abertura do combate se aproximava, Douglass Dilman habituara-se a levantar-se mais cedo cada manhã que passava. Descobriu que estava a viver duas vidas completamente separadas: numa, continuava a cumprir os seus intermináveis deveres de presidente; na outra, preparava-se corajosamente para o julgamento que determinaria se ele era ou não apto para cumprir tais deveres.
Procurou e encontrou horas extras de cuja existência nunca suspeitara anteriormente. Às vezes espantava-o a quantidade de tais horas, horas roubadas ao sono, à meditação diurna, a entrevistas sem importância. Surpreendentemente, essas horas, que ele subtraíra a si próprio, para si próprio, pareciam-lhe causar pequena perda de energia ou esperança. Era como se tivesse descoberto e aprendido a utilizar um novo reservatório de força vital. A sua resolução de lutar dava-lhe um vigor que nunca tivera antes. A sua contínua actividade não lhe deixava tempo para meditar no ataque que o esperava nem nos seus possíveis resultados.
Nessa manhã - porque a manhã de um dos dias mais cruciais de toda a sua vida - levantara-se ainda mais cedo.
Beecher entrara no seu quarto às seis e meia, acordara-o, abrira as cortinas e preparara-lhe o banho. Depois deste, vestido com o roupão que Wanda lhe oferecera num Natal, Dilman encaminhara-se pachorrentamente para a sala dos apartamentos privados, para tomar o seu pequeno-almoço.
Ao lado do seu prato estava uma pilha de oito jornais e ele orgu-Ihava-se do facto de um deles ser o infame Citizen-Amerícam de Zeke Miller e que o seu ego estivesse suficientemente reforçado pelo conhecimento da injustiça praticada contra ele para que o lesse. No fim da pilha, como se fosse um relatório de informações do campo inimigo, estava o Congressional Record.
Nessa manhã estivera demasiado preocupado por causa da última reunião com o pessoal encarregado da sua defesa legal, e depois demasiado embrenhado na leitura do relatório intitulado «Petição da Clemência Executiva para Jefferson Hurley, Requerida pela Sr.a Glady Hurley (Mãe) e pelo Sr. Leroy Poole (Amigo), para abrir um jornal.
Depois do pequeno-almoço, pegou nos jornais debaixo do braço, lendo ainda a petição para que reduzissem a sentença de Hurley de pena de morte para a prisão perpétua, saíra para o corredor com a intenção de se ir vestir. Mas ao passar pela Sala Monroe, pousara os seus jornais numa mesa e sentara-se numa cadeira para acabar de ler o relatório.
Foi aí que Nat Abrahams e os seus associados foram encontrar Douglass Dilman, às sete e quarenta e cinco, o relatório posto de lado, os jornais espalhados à sua volta no chão, ainda em roupão e absorvido nas fantasias do Congressional Record.
Dilman acabara de ler que a Câmara dos Deputados designara cinco dos seus mais hábeis advogados forenses para o julgar, com o deputado Zeke Miller como chefe promotor, quando Nat Abrahams entrara na sala, acompanhado do seu inseparável cachimbo e seguido por Félix Hart, Walter T. Tuttle e Joel Booker Priest.
Dilman indicou com a mão as cadeiras à volta da mesa e pediu desculpa por se encontrar ainda em roupão. Então, enquanto eles abriam as respectivas pastas, Dilman reparou na sala em que se encontravam.
Pergunto a mim próprio - disse ele - o que me terá feito vir para esta sala: a Sala Monroe ou do Tratado, como lhe chamam. Nunca a utilizei para uma reunião. Não é estranho?
Que tem isso de estranho? - perguntou Félix Hart.
Leia a inscrição que se encontra por cima do fogão de sala -disse Dilman.
Félix Hart foi até ao fogão e, inclinando levemente o corpo, leu alto a inscrição: «Esta sala foi a primeira utilizada para as reuniões do Gabinete durante a administração do Presidente Johnson.» Hart levantou a cabeça, espantado.
Presumo que se refere a Andrew Johnson e não a Lyndon.
Exactamente - disse Dilman. - Talvez seja um bom presságio. Espero ter tanta sorte como ele, no julgamento.
Sem levantar os olhos dos papéis, Nat Abrahams disse:
- Ele teve uma absolvição de um voto, Sr. Presidente. – Dilman ficou mais uma vez desconcertado com a formalidade do amigo. Em frente dos seus associados legais, Abrahams passara a tratá-lo por Sr. Presidente em vez de Doug. Depois Abrahams acrescentou: - Temos de fazer melhor do que isso... Estão prontos, meus senhores? Não temos muito tempo. Vamos rever novamente todo o caso, antes de irmos para a Colina.
Prontamente mergulharam no relatório da defesa de Dilman. Este achava a discussão confortante. Eles eram advogados, ele também era um advogado, e a sua linguagem tinha a precisão matemática da Faculdade de Direito e da sua prática de advocacia de havia uns anos, recordações essas que tão gratas eram à sua memória.
Dilman concentrou toda a sua atenção nos quatro advogados, seguindo a sua conversa à medida que eles examinavam os artigos de acusação ponto por ponto, frase por frase, e até mesmo palavra por palavra. Eles tentavam antecipar o rumo que a acusação de Zeke Miller devia tomar e prever as provas que as testemunhas da Câmara pudessem apresentar.
Depois revira, mais uma vez, qual a melhor maneira de refutar o caso da Câmara.
Como respostas ao Artigo I, pareciam confiantes em como podiam provar que Wanda Gibson nunca estivera de posse de quaisquer segredos do governo que pudessem ter sido transmitidos aos seus patrões comunistas. Tinham o testemunho de outros ex-empregados da Vaduz para apurarem em como as relações de Miss Gibson com Franz Gar nunca tinham passado das normais entre uma secretária e o seu patrão e em como nunca tinham ouvido falar com ele sobre assuntos estranhos ao seu trabalho imediato.
Quanto ao Artigo II, os advogados de Dilman mostravam-se pouco preocupados. O interrogatório que tinham feito a Julian Dilman con-vencera-os de que ele nunca fora um membro do grupo Turnerite, e que, mesmo que alguma vez o tivesse sido, não podia haver qualquer prova em como o presidente tivesse conspirado com o filho e a organização negra subversiva com o fim de dificultar a acção do Ministério da Justiça.
Contudo, Dilman ficara surpreendido com o volumoso dossier que os seus advogados tinham conseguido arranjar num esforço para deitar por terra as insinuações do Artigo III, que constituía um comboio de escandalosas acusações. Tinham dado uma importância extra à refutação desta acusação, não por acharem que esta tinha substância legal, mas porque viam que ela poderia ter um valor de propaganda eficaz da parte da acusação. Em primeiro lugar, tinham investigado toda a história da vida de Sally Watson, mas aparentemente o braço comprido e influente do senador Hoyt Watson tinha-lhes obstruído o caminho a cada passo que davam.
Quanto a responder à alegação de Miller acerca das relações extramatrimoniais do presidente com Miss Gibson, o sucesso ou o fracasso da defesa dependiam inteiramente da maneira como aquela se comportasse no banco das testemunhas.
Era o Artigo IV, notava Dilman, aquele que mais afligia os seus advogados. Tal artigo levaria a uma batalha sobre a constitucionalidade do Projecto da Nova Lei de Sucessão e até que ponto o Congresso podia limitar os poderes do ramo executivo. Para reforçar a refutação do Artigo IV, Nat Abrahams insistira, na manhã após ter aceite a defesa de Dilman, em que o presidente nomeasse alguém para o cargo de ministro de Estado, substituindo assim Eaton. Depois de horas de indecisão, Dilman decidira-se finalmente por Jed Stover, o secretário dos Negócios Africanos, como sendo o diplomata melhor qualificado para suceder a Eaton. Felizmente, Stover mostrara-se entusiasmado em permitir que o seu nome fosse usado naquele gesto simbólico. Como era já de esperar, o Senado rejeitara a substituição e tornara a declarar que a demissão de Arthur Eaton por Dilman era ilegal, e sustentara Eaton como ministro de Estado (e o próximo na linha de sucessão à presidência) até que o desacordo pudesse ser resolvido durante o julgamento. Como mero gesto, Abrahams submetera ao Supremo Tribunal a questão da não constitucionalidade do Projecto da Nova Lei de Sucessão, consciente de que não seria considerada antes do fim do julgamento.
Durante quarenta minutos Dilman ouviu a discussão de todos estes pontos entre os seus advogados, ocasionalmente fazendo ele próprio algum comentário. Quando a reunião se aproximava do seu termo, Dilman examinou os homens cujos inteligentes cérebros, a vasta experiência legal e o honesto interesse pela justiça o representariam perante o Senado.
Dominando os quatro sobressaía o próprio Nat Abrahams, o seu cabelo castanho e rebelde, o seu perfil aquilino, a grande estatura enterrada numa cadeira estilo Vitória, enquanto mastigava a extremidade do seu cachimbo e escutava. O seu jovem colega de confiança, um brilhante licenciado da Faculdade de Direito da Universidade de Chicago, falava animadamente. Félix Hart tinha uma aparência enganadoramente ingénua, alegre e imitadora da maneira despreocupada de vestir de Nat - enganosamente porque o seu descuidado aspecto exterior escondia um cérebro pertinaz, investigador, semelhante a uma garra. Fora ele quem superintendera e dirigira a investigação da vida anterior de Dilman no Midwest, numa tentativa para descobrir o que poderia ser prejudicial para o caso e o que poderia ser útil.
Escutando também, encontrava-se o advogado mais velho do quarteto, o célebre Walter T. Tuttle, um ex-procurador-geral durante a administração do Juiz, que este tirara da sua recente reforma para se juntar ao grupo da defesa. Tuttle era um gentlemam, da velha escola, já na casa dos setenta e com um aspecto tipicamente americano. Os seus olhos opacos denunciavam uma mentalidade lenta, mas directa. O tom das suas frases era seco, e por vezes irónico. A afectação de Tuttle não era por ser fidalgo, o que ele era na verdade, mas por ser um camponês vestido à moda da cidade, o que ele não era.
Nesse momento falava o quarto advogado de Dilman, um homem pensativo e pequeno, ainda na casa dos trinta, e chamado Joel Booker Priest. Conservador e imaculado, Priest assitira a todas as reuniões com o seu cabelo brilhante perfeitamente em ordem, desprendendo-se da sua pessoa um leve aroma a água-de-colónia e vestido com um fato caro. Joel Booker Priest era um negro, de pele escura, que de vez em quando tratava vários casos especiais para o Spinger e para a Sociedade Crispus. Tinha o escritório em Washington, e calmamente, mas com a persistência de um perdigueiro, investigara a vida de Dilman na cidade e tentara descobrir o que Miller, Wickland e os outros advogados da acusação planeavam apresentar ao Senado.
Observando Joel Priest naquele momento, Dilman espantou-se por quanto ele próprio mudara naqueles dias. Ainda há pouco tempo, só o pensamento de um negro a defendê-lo em qualquer acção tê-lo-ia assustado. Fora Spinger quem sugerira os serviços de Priest a Abrahams e este examinara a carreira de advogado do negro e encontrara-se com ele. E quando Abrahams o recomendara, surpreendentemente Dilman só fizera uma pergunta: «Por que o queres, Nat, é porque achas que parecerá bem ter alguém da minha cor no grupo?» Nat fungara e dissera: «Quero-o porque ele é um bom advogado.» E Dilman respondera então, sem hesitar: «Está contratado». De repente Dilman reparou que os outros empurravam as suas cadeiras e se levantavam.
Pois bem, isto é tudo, meus senhores - disse Nat Abrnhams. -Estamos prontos a entrar na liça. Lembrem-se de que nos designaram o escritório do vice-presidente, junto da Sala de Recepções do Senado, para nosso quartel general privado. Podem levar para lá as vossas coisas. Lá irei ter convosco por volta das onze horas e poderemos almoçar calmamente juntos para estarmos prontos para entrar em combate à uma hora. Oh, ainda há outra coisa, Sr. Tuttle... -Abrahams voltou-se para Dilman.
Sr. Presidente, vou acompanhá-los até ao elevador. Depois gostaria de trocar umas palavras a sós consigo. Pode ceder-me dez minutos?
Dilman acenou com a cabeça.
- Certamente, Nat. Será melhor que eu me vista primeiro. Não me demoro. Venho depois aqui ter consigo.
Saiu com os advogados para o vestíbulo, despediu-se deles desejando-lhes boa sorte e dirigiu-se para o quarto de Lincoln.
Enquanto se vestia, o seu espírito continuou concentrado no julgamento e depois pôs-se a rever a semana que decorrera desde o seu regresso da quinta de lowa e da sua resolução de lutar em vez de se demitir, até àquela manhã na Sala do Gabinete de Andrew Johnson da Casa Branca, onde tivera a última reunião antes do começo do julgamento.
A maior parte da semana fora gasta na preparação da sua defesa contra a acusação, nos intermináveis encontros com Nat Abrahams e os outros advogados; contudo outras pessoas tinham povoado o seu mundo durante os últimos sete dias.
Sob muitos aspectos, visto que o julgamento do Senado punha uma sombra sobre todas as outras actividades, fora uma dura e trabalhosa semana. A linguagem de leis usada na passada hora pene-trou-lhe no pensamento e, quando recordou a semana que acabara de viver, fê-lo em termos legais e concisos.
Especificação n.° 1 - O citado Douglass Dilman e Wanda Gibson. Ele telefonara-lhe para a casa dos Springs na noite em que regressara do Midwest. Comunicara-lhe a sua decisão de lutar e ela desatara a chorar, depois contivera-se e ficara levemente mais esperançada quando ele lhe disse que Nat Abrahams considerara suficientes as suas possibilidades para tomar conta da sua defesa. Ela temia o seu calvário, a maledicência a que ele teria de sujeitar-se, a desgraça a que provavelmente ia submeter-se, mas no fim aceitara fatalistica-mente a sua decisão. Telefonara-lhe ainda mais duas vezes, uma ao saber que a Câmara lhe enviara uma intimação para comparecer como testemunha (isto fizera com que ele se censurasse por ser o causador do sofrimento dela e se sentisse desgraçado), a segunda ao saber que ela, depois de muito pensar no caso, chegara à conclusão de que se sentia orgulhosa por ele fazer frente aos seus inimigos. A devoção de Wanda para com ele fora sem limites; todavia ela não tinha bem a certeza se tal devoção fora fruto do seu amor por ele ou por pena.
Especificação n.° 2 - O citado Douglass Dilman e Julian Dilman, seu parente. Na segunda noite, mandara vir o filho a Washington para terem uma última conversa antes do julgamento. Julian jurara a Joel Priest que não tinha qualquer relação com o grupo dos Tumentes. Depois Dilman e Julian tinham tido um simples jantar entre pai e filho. Julian contara então ao pai que, por causa da acusação, alguns alunos da Universidade de Trafford tinham voltado a pôr-se do seu lado, embora a grande maioria ainda estivesse ressentida com ele por causa do descrédito que a sua conduta acarretara para cima da população negra. Seriamente, para que não se levantassem dúvidas no espírito do filho, Dilman explicara a Julian as respostas que os seus advogados estavam a preparar para refutar as acusações. Só uma vez o nome de Mindy fora mencionado e pelo próprio Dilman. Este perguntara a si próprio o que ela, sendo livre no seu mundo branco, pensaria de tudo aquilo. Julian não fizera qualquer comentário. Ti-nham-se despedido pouco à vontade e só na manhã seguinte é que Dilman soubera que Julian recebera uma intimação da Câmara, precisamente na altura em que ia apanhar o comboio que o levaria a Nova Iorque e depois a Trafford.
Especificação n.° 3 - O citado Douglass Dilman e Sally Watson. Ele não tornara a ver a sua secretária social desde aquela noite em que a despedira. Não fora capaz, porém, de evitar a sua maldosa sede de vingança. Três entrevistas, pelo menos, que ela dera à imprensa tinham surgido com grandes cabeçalhos nos jornais, a mais sensacional das quais aparecera no meio da semana, assinada por Reb Blaser e George Murdock. Atribuíam-lhe as seguintes palavras: «O Presidente Dilman gosta de fingir que é um diácono celibatário, mas posso garantir-lhes, e os seus acusadores têm fotografias das minhas nódoas negras para o provarem, que ele não é melhor que qualquer negro iletrado e sensual, que se cansou já das suas negras e que quer agora divertir-se com as brancas.» A história terminava com a notícia de que Miss Watson colocara a sua intimação para aparecer como testemunha de acusação numa moldura dourada por cima do seu fogão de sala.
Especificação n.° 4 - O citado Douglass Dilman e Edna Foster. Depois do seu regresso do Midwest, ficara surpreendido ao encontrar a sua secretária do Senado, Diane Fuller, no escritório de Miss Foster. Parecia que Miss Foster estava doente e que durante algumas semanas não apareceria na Casa Branca, precisamente na altura em que ele mais precisava dela. Então, havia dois dias, ele recebera uma luz vinda da parte de Tim Flannery acerca da verdadeira natureza de Miss Foster. Recebera uma intimação para ser uma testemunha de acusação contra o presidente. Dilman ficara perturbado e confuso com a informação de que a sua secretária confidencial apareceria como testemunha de acusação. Até então ele considera-ra-a uma assistente leal. A não ser que estivesse a colaborar com o inimigo contra a sua própria vontade, a deserção era inexplicável. Além disso, perguntara Dilman a si próprio, que valor poderia ter Edna Foster para a oposição?
Especificação n.° 5 - O citado Douglass Dilman e Montgomery Scott, da C. I. A. Tinha falado com Scott por três vezes, durante os últimos dias. Scott comunicara que a C. I. A. pusera toda uma rede de agentes nativos a trabalhar juntamente com a força de segurança de Kwame Amboko, pelas montanhas e fronteiras de Baraza. Scott esperava receber muito em breve informações definitivas sobre a organização russa. Depois, na noite anterior, ele solicitara uma entrevista com o presidente para essa tarde, e sugerira que talvez fosse conveniente que o presidente tivesse uma conferência com os seus conselheiros militares logo a seguir. Dilman aceitara a sugestão. Depois de receber Scott nessa tarde, teria uma reunião com o ministro da Defesa, Steinbrenner, e o general Fortney. Normalmente, tal conferência com aqueles formidáveis chefes do Pentágono não seria de molde a agradar-lhe. Suspeitava que todos eles o olhavam com desprezo e tinham esperanças que o Senado o considerasse culpado. Um novo factor, porém, tornava essa sua confrontação com os conselheiros do Pentágono menos desagradável. É que seria a primeira reunião a que o general Leo Jaskowick assistiria como assistente militar do presidente. Quando Dilman regressara a Washington, vira que não só precisava de um substituto para o seu ex-assis-tente militar, mas precisava também de um para o governador Talley. Pensara imediatamente em Jaskowick e na conversa que tinham tido na plataforma do Cabo Kennedy. Então Dilman compreendera que precisava desesperadamente não só de um conselheiro, mas também de um outro ser humano no seu grupo em que ele pudesse confiar inteiramente. Telefonara para a Florida, para Jaskowick, oferecera-lhe o lugar e lembrara-lhe logo que poderia ser não só de curta duração como prejudicial para a sua carreira. Se ele fosse considerado culpado, o que provavelmente aconteceria, dissera Dilman, o cargo de Jaskowick em Washington terminaria dentro de poucas semanas. Dilman avisara-o de que havia também o perigo de o acusarem de conspiração. Jaskowick era um autêntico herói americano. Se usasse a sua armadura sem mácula a defender uma causa errada, a causa de alguém que poderia ser em breve demitido por crimes e delitos capitais, a imagem do astronauta poderia ficar irreparavelmente manchada. Compreenderia perfeitamente e não consideraria menos Jaskowick, dissera Dilman, se o astronauta recusasse a posição que lhe era oferecida. Jaskowick replicara simplesmente: «Tenho uma armadura, portanto viajarei. Vê-lo-ei daqui a vinte e quatro horas.»
Subitamente a meditação de Dilman foi interrompida pelas badaladas melodiosas do relógio Império. Eram oito e meia. Por uns segundos, Dilman escutou o cair torrencial da chuva lá fora. Muitas vezes no passado descobrira que um dia de chuva tinha um efeito calmante sobre ele. Limitava as actividades de cada um. Fazia com que uma pessoa se sentisse, se estava em casa, abrigada da natureza incontrolada do Universo, salva e longe dela, em repouso. Nessa manhã, porém, a chuva desapontava Dilman. Parecia-lhe a chuva do inimigo, aprisionando-o, desafiando-o, aumentando a sua necessidade premente de sobreviver.
Dilman fez rapidamente o ná da gravata, abotoou o casaco, meteu vários charutos numa algibeira e regressou rapidamente à Sala Monroe.
Nat Abrahams já lá se encontrava, mexendo nos jornais que Dilman abandonara.
- Estás a fazer sensação, Doug - disse ele, mostrando a primeira página do jornal que tinha na mão. O cabeçalho anunciava: COMEÇA HOJE O JULGAMENTO MAIS DRAMÁTICO DE TODA A HISTÓRIA. Por debaixo do cabeçalho, lado a lado, vinham duas fotografias. Uma era de Dilman na plataforma da Universidade de Trafford, com ovos voando à sua volta. A outra era uma fotografia dos membros do Senado nas suas secretárias da Câmara. A legenda dizia:
DESTE LADO O PRESIDENTE... DESTE LADO O SENADO... UM HOMEM CONTRA CEM...
Abrahams amachucou o jornal e atirou com ele.
Droga! - disse ele. - Graças a Deus que as pessoas poderão ver o julgamento com os seus próprios olhos, na televisão. Acho que isso é uma vantagem, não te parece, Doug?
Nem sei - disse Dilman.
Eu acho. Se não houvesse a televisão, teríamos na realidade uma espécie de julgamento à porta fechada, em que os senadores seriam menos responsáveis quanto aos desejos dos seus eleitores. Agora, pela primeira vez na história, um julgamento de demissão será julgado não só pelos senadores e pela imprensa, mas também pelos eleitores. Terás duzentos e trinta milhões de juizes, Doug, e não apenas cem.
Será isso realmente bom?
É provável. As massas impacientam-se muito mais depressa com o absurdo do que um pequeno grupo de legisladores fechados. Sempre pensei que se a televisão já existisse em 1686 o julgamento do Presidente Andrew Johnson não teria durado três meses, mas três semanas, se tanto. As pessoas teriam visto os manejos políticos e os preconceito dos juízes falsamente imparciais, ter-se-iam levantado e exigido imediatamente a absolvição de Johnson. Não, Doug, eu tenho as minhas esperanças no olho electrónico.
Dilman desembrulhara o primeiro charuto daquela manhã. Acen-deu-o, aspirou deliciado o fumo e depois sentou-se numa cadeira em frente de Abrahams.
Bem, Nat - disse ele -, agora que estamos sozinhos, só os dois, diz-me lá que possibilidades achas que tenho?
Para te falar com toda a franqueza, não sei, Doug. Normalmente, quando vou para um julgamento, tenho um palpite do que vai suceder. Mas o caso deste julgamento é tão invulgar... o procedimento tão diabolicamente irregular... que por muito que se tenha estudado a questão não se pode predizer o que se passa hoje nas cabeças daqueles cem senadores ou o que nelas se passará daqui a duas semanas. Afinal, possuímos um único precedente para nos guiarmos. Sempre nos dá alguns indícios. - Parou e olhou pensativamente para Dilman. - Conheces bem o julgamento de Andrew Johnson?
Não muito detalhadamente - confessou Dilman. - Lembro-me alguma coisa dele na faculdade e de leituras à margem, é claro. E ultimamente tem andado bastante na baila, tanto nos jornais como na rádio e na televisão, mas, de qualquer modo, tenho-o evitado conscientemente. Não sei. Tenho a impressão de que o Presidente Andrew Johnson passou então um mau bocado e o meu instinto de sobrevivência diz-me para não reviver o seu inferno agora que estou prestes a viver o meu.
Abrahams escutara-o com uma expressão de total compreensão no rosto.
Compreendo - disse ele. - Apesar de tudo, se o conseguires, acho que devias tentar conhecer um pouco mais a fundo esse outro julgamento.
Fá-lo-ei, se assim o entenderes, Nat. Mas porquê?
Porque, longe de ser um caso morto, os seus factos tornar-se--ão uma parte viva do teu próprio julgamento. Repito-te, é o único precedente a que ambos os lados terão de recorrer. Podes ter a certeza que tanto os advogados da Câmara como nós os quatro citá-lo--emos sempre que virmos vantagem nisso. Além disso, a acusação do Presidente Andrew Johnson tem muitos pontos de contacto com a tua, o que não é de espantar. Recomendo-te que estudes os seus factos mais salientes, Doug.
Muito bem, assim farei.
Não estou a dizer para ires à Biblioteca do Congresso buscar um calhamaço acerca disso. Sei que não tens tempo para tal coisa. Mas... - inclinou-se para o lado e procurou algo entre os papéis dentro da sua pasta. - Tenho aqui uma coisa, se a conseguir encontrar... Ah, cá está ela. - Tirou umas folhas dactilografadas. - Todos nós lemos o que pudemos sobre o julgamento de Andrew Johnson. Depois Tuttle condensou os trâmites do julgamento em oito páginas, para que mais facilmente pudéssemos recorrer a ele. - Entregou as folhas a Dilman. - Deita-lhe uma vista de olhos, quando puderes. É claro que muita coisa não vem aí...
O quê, por exemplo? - perguntou Dilman, folheando as páginas dactilografadas.
Bem, quando Lincoln foi assassinado, o vice-presidente Andrew Johnson tornou-se presidente. Dá-me vontade de rir, Doug, quando leio nos jornais que tu não estavas preparado para assumir a presidência. Estavas dez vezes melhor preparado para isso que metade dos nossos ex-chefes de Estado, e cem vezes melhor preparado que Andrew Johnson. Este fora alfaiate no norte e no sul da Carolina e possuíra uma alfaiataria em Tenessee. Nunca recebera uma educação formal. Entrou para a política e depois para o Senado. Agradou a Lincoln porque, embora fosse um democrata sulista, lutava contra a secessão. Bem, de qualquer modo, quando Andrew Johnson se tornou presidente, o número dos seus amigos era muito reduzido. Os democratas sulistas consideravam-no um traidor. Os republicanos do Norte consideravam-no um revolucionário nada digno de confiança. Vivia só que nem um diabo na Casa Branca.
Dilman acenou com a cabeça. O seu coração compadecia-se daquele presidente difamado, que fora tratado como uma espécie de nigger branco.
Não sabia nada disso - disse ele.
Oh, ainda há mais - disse Abrahams -, mas vejamos o ponto culminante. Por que foi ele acusado e demitido? Em princípio porque os republicanos do Norte não tinham então o controlo do Congresso, queriam tratar os Estados vencidos como se fossem um país conquistado e ocupado. O Presidente Andrew Johnson, pelo seu lado, seguindo a política de Lincoln, queria sarar as feridas da guerra, conciliar os Estados sulistas e fazê-los regressar à União. Sempre que o Congresso aprovava qualquer projecto de represália para manter o Sul sob o calcanhar militar, Andrew Johnson lançava-lhe o veto. No fim o caso resumia-se a uma luta pelo poder entre o ramo executivo e o ramo legislativo do Governo. O Congresso achava que o papel da reconstrução do Sul lhe pertencia, e o presidente achava que tal tarefa lhe competia a ele, presidente. Havia ainda inúmeros factores secundário contra Andrew Johnson. Ele era odiado por ser um homem que não era carne nem peixe, nem um verdadeiro sulista nem um republicano do Noite. Portanto a Câmara decidiu livrar-se dele.
Foram onze os artigos de acusação contra ele, não foram? -perguntou Dilman.
Foram - disse Abraharos. - A maior parte deles, assim como as acusações contra ti, eram coisas sem nexo e absurdas. Andrew Johnson foi acusado de falar mal, de beber, de ridicularizar o Congresso nos seus discursos públicos. Mas os três artigos mais importantes eram os que o relacionavam com o decreto de posse do cargo, acusando Johnson de não ter cumprido a lei. Tal decreto era o avô do Decreto da Nova lei da Sucessão que tu desafiaste ao demitir Eaton. O que se passou contigo e com este passou-se mais ou menos como Andrew Johnson e o seu ministro da Guerra, Edwin M. Stanton.
-Temo que sim.
Foi um sujo julgamento de onze semanas e meia. A maioria do Senado estava resolvida a demitir Andrew Johnson, quer as acusações contra ele fossem ou não comprovadas. Fizeram com que testemunhas que lhe eram favoráveis não comparecessem no tribunal. Houve subornos. E quanto a constituírem um corpo imparcial de jurados... escuta só isto, Doug: o presidente interino daquele Senado era Benjamim Wade, que odiava Johnson e que estava no lugar a seguir na linha para se tornar presidente se Andrew Johnson fosse considerado culpado. Contudo permitiram que ele votasse no julgamento de Andrew Johnson! Na verdade, Wade estava tão certo de que ele e os seus amigos se veriam livres de Johnson e que ele próprio subiria à presidência que escolheu o seu Gabinete antes de o julgamento ter terminado e antes de ter votado!
É incrível - disse Dilman.
Pois é. É claro que tu não terás um presidente interino do Senado a julgar-te, mas terás alguns senadores - nomeadamente Hoyt Watson, por causa do seu caso pessoal, Bruce Hankins, pelos seus preconceitos, John Selander, pela sua afeição por O. C. - que estão empenhados contra ti. Mas regressemos ao julgamento de Andrew Johnson. Para o condenarem, dois terços do Senado tinha de votar contra ele, isto é, trinta e seis senadores, pelo menos contra dezoito. Bem, Já sabes o resultado, Um senador, Edmund Ross, de Nebraska, embora pessoalmente não gostasse de Andrew Jonhson, gostaria ainda menos do que vira e ouvira aos seus colegas congressistas durante o julgamento. Resolveu que o cargo de presidente não devia ser desonrado por uma acusação baseada em partidos. E assim, no último minuto, depois de muitas noites de insónia, votou a favor de Andrew Johnson. Esse seu voto, que lhe custou o seu futuro político, foi a bóia de salvação do presidente. A votação final foi de trinta e cinco contra dezanove a favor. Por um voto, Andrew Johnson continuou na presidência dos Estados Unidos.
O charuto na mão de Dilman já se apagara havia muito. Este sacudiu a cinza num cinzeiro e tornou a acendê-lo. Esperou que a primeira nuvem de fumo saísse do charuto e depois disse:
Nat, penso que tenho muito menos probabilidades de permanecer na presidência que Andrew Johnson.
Menos probabilidades? Não, não há nenhuma razão para...
Nat, nas nossas carreiras como advogados, ambos julgámos toda a espécie de casos perante centenas de jurados. Sabes tão bem como eu que estes votam frequentemente «culpado» ou «inocente» pelas suas emoções e preconceitos. Ignoram a lógica do caso e votam simplesmente a favor ou contra o réu conforme gostem ou não do seu aspecto, da sua personalidade, dos seus hábitos, da sua maneira de ser. Já nos tem acontecido isso nos tribunais e o mesmo poderá acontecer aqui, apesar dos prévios antecedentes jurídicos de tantos senadores, pois agora eles são políticos e não juristas. Não podes negar isso.
É verdade - admitiu Abrahams - que ocasionalmente isso tem sucedido, e pode ser que suceda agora.
Muito bem. Tenho a certeza de que Andrew Johnson perdeu tantos votos mais por causa da sua rudeza, mau feitio e discursos imoderados que pela questão legal contra ele. Já disse isto antes, e digo-o agora pela última vez. Suspeito que no meu caso ainda será pior. No meu julgamento, o réu será um preto, quaisquer que sejam as acusações contra ele, e não é difícil de imaginar as emoções e os preconceitos que isso acarretará entre os jurados, e não só entre os sulistas. - Dilman abanou tristemente a cabeça. - Por que diabo terá isto de ser assim? Por que me terão de julgar, e não só a mim, mas a todos os homens como eu, pela minha cor? Por que não somos considerados e julgados apenas como pessoas? Por que teremos de viver isolados à força nos nossos ghettos esquálidos, nas nossas niggertowns, desde o Buttermilk Bottom, em Atlanta, passando pelo lado sul de Chicago, até à Avenida Central de Los Angeles? Porquê todos esses maus tratos como se não fôssemos humanos? É... é incompreensível, Nat. - Um sorriso embaraçado surgiu então nos lábios de Dilman. - É estupidez da minha parte, nesta altura, falar outra vez nisto. É como tentar obter uma resposta imediata para uma velha e complicada pergunta. Como é que a igualdade pode ser ainda uma questão num país livre, e contudo não posso deixar de perguntar a mim próprio... como será isso possível? Porquê? É ridículo. Esqueçamos isso e...
Abrahams estivera pensativo, mas nessa altura disse: - Não, Doug, levantaste uma questão justa, por muito familiar que ela seja a ambos. Todos nós conhecemos as infinitas razões por que os americanos brancos têm preconceitos contra os negros. Ouvimo-las da boca de antropologistas, psiquiatras, intelectuais e segregacionistas. Sabemos também que há um preconceito básico em todos os seres humanos que provém da xenofobia: a repulsa dos estrangeiros, o temor das pessoas que têm um aspecto diferente e que parecem agir diferentemente. No caso dos negros, essa fobia é em alto grau. Sabemos que há uma antipatia psicológica e estética contra as pessoas de pele negra. Sabemos que há a crença, escondida ou pública, que os negros têm uma mentalidade inferior. Os segregacionistas não mencionam sempre Arnold Tynbee para citarem que das vinte e uma grandes civilizações da história a África Negra não produziu nenhuma? Sabemos que existe um temor profundo e ilógico, entre os brancos, de que os negros estão mais perto da selvajaria do que da civilização e que portanto não são de confiar e são ameaçadores. Há umas noites atrás estive precisamente a pensar nesse assunto. Temos mantido o negro numa posição inferior, e há tanto tempo, negando-lhe igualdade de alojamento, de emprego, de educação, de transporte, de acomodações públicas, de justiça na votação e nos tribunais, que, apesar de o Supremo Tribunal nos exigir que o assimilemos rápida e deliberadamente, nos sentimos relutantes em o fazer, em abrir as paliçadas das niggertowns e em o deixar sair. É que agora, Doug, temos simplesmente medo de o soltarmos. Compreendes?
Não sei bem - disse Dilman com um ar de dúvida.
Bem, deixa-me expor-te isto de outra maneira - prosseguiu Abrahams. - Agora, suspeitamos que o mais dócil e submisso criado negro na nossa cozinha tem um forte ressentimento contra nós. E sabemos que, fora da cozinha, nas ruas da cidade, há homens de cor que vivem há tanto tempo privados de tudo, cujas vidas são tão desesperadas, que já nada têm a perder se empregarem a força e a violência contra nós. Tememos que, se lhe dermos meia oportunidade, eles possam invadir os nossos domínios para confiscar o que de direito lhes pertence; mais, que nos roubem as nossas mulheres, que firam e matem, pois não conhecem as leis segundo as quais nós há tanto tempo os proibimos de viver. Isto é uma parte do que ambos conhecemos, Doug, mas no teu caso há ainda algo mais, acho eu.
Dilman esperou e depois perguntou:
Que mais pode haver?
Isto. Todos aqueles que te perseguem, tanto os do governo como o público lá fora, fazem-no por muitas destas razões que acabei de enunciar. Mas a qualidade do seu antagonismo contra ti é diferente da que sentem contra o negro da rua. Tal antagonismo não deriva de qualquer temor perante ti, visto que sabem que és educado, orientado segundo as regras do mundo branco, rodeado por brancos fortes e importantes, e sabem que és incapaz de praticar qualquer violência, sempre sujeito às suas leis e tomando em conta as suas decisões. Se te odeiam, se se querem ver livres de ti, se te vão levar a julgamento, suspeito que é por outro motivo psicológico que não é o temor.
Hesitou, e então Dilman disse:
Então por que é, Nat? Por que querem eles ver-se livres de mim?
Não é porque te temam, mas porque... porque têm vergonha de ti. Os homens vivem por orgulho e a população preduminantemente branca deste país sente-se mortificada pelo facto de o seu precioso país e de as suas preciosas vidas estarem a ser governadas por alguém que é - assim foram educados a crer - tão chocantemente seu inferior, por alguém a quem todos se acham superiores, e consequentemente de quem não podem suspeitar e de quem não podem orgulhar-se perante eles próprios e todo o mundo. Existe uma espécie de desejo nacional para acabar, por meio de um processo civilizado, com a única mancha da sua paisagem puramente branca, e também um desejo de, simultaneamente, passarem a dormir e a gozar a vida com um menor sentimento de culpa por não terem de olhar constantemente para ti, um negro, erguendo-se como censura ruidosa perante a consciência nacional. Assim, por meio de um processo legal, querem lavar essa maldita mancha. E é essa a razão, suponho eu, pela qual vais a julgamento daqui a quatro horas.
Dilman encostou-se na cadeira e os seus olhos não largavam os do amigo.
Nat, gostaria de te ajudar, não por mim próprio, mas pelo que significa para todos, tanto para os atormentadores como para os atormentados. Como te poderei ajudar eu?
Permanecendo no Escritório Oval. Cumprindo o teu cargo de presidente o melhor que possas. Deixando-nos lutar para lá te conservarmos.
Nat, isso é muito pouco. Quero enfrentar o Senado e o país. Quero que eles me vejam e me oiçam no julgamento. Quero que eles vejam o homem de que se envergonham. Quero ser a última testemunha da defesa.
Não.
Por que não?
Andrew Johnson nunca apareceu no Senado durante o seu julgamento. Os seus advogados nunca lho permitiriam. Achavam que ele poderia ser levado a perder a cabeça e a dizer coisas que pudessem ser prejudiciais. Achavam que a sua presença poderia prejudicar a sua causa. Johnson queixou-se e protestou, mas desistiu de tal ideia.
Nat... por que não?
Escuta, Doug, não me causes mais sarilhos. Já tenho suficientes dores de cabeça - disse ele meio a brincar, pondo-se de pé. Depois, olhando para Dilman, ficou sério. - Por que não, Doug? Porque eu nunca atiraria uma ovelha, mesmo que fosse uma ovelha preta, a um bando de chacais. Posso ser o teu advogado, mas sou também teu amigo... Agora deseja-nos sorte a ambos e, se acreditas em S. Cristóvão, não seria mau pedires-lhe que nos desse uma ajudazinha.
As cinco para a uma da tarde, Nat Abrahams deixava impacientemente os seus três colegas no escritório do Senado do vice-presi-dente, à espera da convocação oficial, atravessou o vestíbulo quase vazio do Senado e chegou a uma das portas que dava para a Sala do Senado. A entrada estava cheia de polícias curiosos com o uniforme azul do Capitólio e moços do Senado.
Um polícia reconheceu Abrahams e fez menção de lhe arranjar um lugar dentro da sala, mas Abrahams declinou a oferta. Não queria que os congressistas e os ocupantes da galeria da imprensa o vissem já. Portanto ficou onde estava, escondido dos olhos do público, mas, devido à sua grande estatura, observando tudo o que se passava no interior.
Espreitando para cima, por sobre as cabeças dos moços, os olhos de Abrahams percorreram os três lados da galeria que lhe eram visíveis. A Câmara tinha ordenado que a admissão pública ao julgamento fosse apenas por bilhetes, os quais teriam cor diferente para cada dia. Dois mil duzentos e cinquenta bilhetes impressos diariamente, cinquenta eram dados ao Presidente Dilman, sessenta distribuídos pelo corpo diplomático, cada senador recebia dois, cada deputado um, e só poucas centenas eram destinadas ao público.
Com excepção do espaço ocupado pelas câmaras da televisão e seus respectivos técnicos, as galerias públicas estavam pejadas de gente havia já uma hora. Fixando a vista, Abrahams avistou várias caras suas conhecidas - a de Hugo Gaynor, a de Lou Agajanian, a da opulenta governanta de Dilman, Crystal, a do intermediário Gorden Oliver, a de Allan Noyes, e finalmente, elegantemente vestida de vermelho como se fosse para alguma festa, surgiu Sally Watson. Em vão Abrahams tentou localizar a mulher, mas depois desistiu.
Voltando-se ligeiramente, Abrahams podia ver as secretárias da galeria da imprensa, mesmo por cima da tribuna do presidente interino. Nelas comprimiam-se, ombro com ombro, os repórteres, os jornalistas e os escritores, os seus compridos blocos de notas pendentes das secretárias. Lado a lado, rindo e conversando, estava Reb Blaser e um homem ainda novo, que Abrahams supôs ser George Murdock.
Depois o seu olhar baixou-se para o centro da Sala do Senado, que em breve seria a arena de uma luta sem tréguas. Nele estavam alinhadas, num semicírculo apertado, as secretárias dos senadores. Em cada secretária havia um tinteiro, uma ampulheta, blocos de notas e uma cópia dos artigos de acusação. Aos pés de cada senador encontrava-se um escarrador que já deixara de servir. Aqui e ali, Abrahams podia identificar um jurado, que em breve enfrentaria, o rosto sorridente do chefe da maioria, senador John Selander, o pince-nez do senador Bruce Hankins, as feições vagamente negróides do senador Roy Sampson, o rosto permanentemente irónico do senador Kirk Bollinger, o perfil inesperadamente feminino do senador Maxime Schultz, a cabeça leonina do senador Hoyt Watson.
Aglomerados por detrás dos jurados, em pé, sentados e mergulhados em conversação, comprimidos que nem sardinhas em lata, encontravam-se os menos honoríficos membros da Câmara dos Deputados.
Subitamente Abrahams ouviu um polícia anunciar à sua esquerda:
- Hem, rapazes, lá vão eles.
Abrahams olhou directamente à sua frente. Todos os que se encontravam de pé no centro da sala começaram a sentar-se. O presidente actuante interino do Senado, John Selander, e os seus colegas Hankins e Watson encaminharam-se em fila para a tribuna e depois desapareceram através das duas portas que se abriam para os deixar passar. As portas permaneceram abertas.
Toda a sala se calou. Os senadores e os deputados inclinaram--se atentamente para a frente. Os ocupantes da galeria aquietaram--se, esticando o pescoço para ver o que se seguiria. Os repórteres semiergueram-se nos bancos e espreitaram para baixo.
Enquadrada nas portas escancaradas surgiu, solitária, a figura erecta de um patriarca, imponente e distante como uma estátua austera da justiça eterna. Abrahams reconheceu-o logo como sendo Noah F. Johnstone, o presidente do Supremo Tribunal, resplandecente na sua toga negra. Durante uma fracção de segundo, os seus olhos espertos e encovados observaram a cena à sua frente, e depois, como sua escolta, Selander, Hankins e Watson rodearam-no e o presidente do Supremo entrou na sala do Senado.
Imediatamente, como uma vaga humana que rebentasse da frente para trás do auditório, os senadores e os deputados puseram-se respeitosamente de pé. Nas galerias, os espectadores e os jornalistas levantaram-se também.
Segurando na saia da toga, o juiz Johnstone subiu os degraus da tribuna, colocou-se de pé entre a sua cadeira de espaldar e a secretária e esperou. A sua escolta dirigia-se apressadamente outra vez para a porta, onde estava à espera uma segunda figura de toga, o juiz associado do Supremo Tribunal, Irwin Gray, um juiz mais novo e mais baixo que o presidente. Rapidamente foi escoltado até ao topo da tribuna.
Depois os dois juízes do Supremo Tribunal ficaram sozinhos, com todos os olhos fixos neles. O juiz Gray estendeu uma Bíblia e o presidente Johnstone colocou a sua mão direita sobre ela e ergueu a esquerda no ar. A seguir entoou, na sua voz de baixo:
- Juro solenemente que agirei com justiça imparcial, segundo a Constituição e a lei, em tudo o que se relacionar com o julgamento de Douglass Dilman, Presidente dos Estados Unidos: assim Deus me ajude!
Seguidamente o juiz Johnstone, despedindo o seu colega com um gesto de cabeça, instalou-se na cadeira de espaldar e manteve--se calado enquanto os congressistas, a imprensa e o público se sentavam também.
O presidente ergueu um pesado martelo e deu uma pancada na secretária, que ressoou por toda a sala.
- A sessão está aberta - anunciou. - Visto que os senadores aqui presentes prestaram ontem o juramento exigido pela Constituição, o Senado está agora pronto para a abertura do julgamento da demissão de Douglass Dilman, Presidente dos Estados Unidos.
Logo a seguir, o senador Selander levantou-se e disse:
- Proponho que o secretário do Senado notifique os advogados da Câmara dos Deputados que o Senado está agora pronto para a abertura do julgamento da demissão de Douglass Dilman.
O juiz supremo aquiesceu com um aceno de cabeça e logo o secretário do Senado, com um ar extremamente oficiai, se apressou na direcção do vestíbulo privado.
Então Nat Abrahams tocou no ombro de um moço de olhos esbugalhados e elegantemente fardado e disse-lhe:
- Rapaz, eu sou um dos advogados de defesa. És capaz de ir ao escritório do vice-presidente e dizeres isto a três colegas meus que lá estão à espera: «Nat Abrahams diz que são horas», e acompanhá-los até aqui? Sabes o caminho?
-Sim, senhor!
0 moço desapareceu a correr.
Quando Abrahams tornou a dar atenção à sala, viu os cinco advogados da Câmara alinhados em fila junto da barra. Observou detalhadamente os seus oponentes naquele combate de morte. O mais fácil de identificar era o seu chefe, o deputado Zeke Miller, por causa da sua cabeça meio careca, a sua posição de pernas abertas, os seus dedos perpetuamente em movimento e o seu fato extravagante, nessa tarde num impropriado escocês azul e verde. À sua direita, vestido de uma maneira mais conservadora, muito discreta, estava o veterano chefe da maioria da Câmara, o deputado Havery Wickland. Aseu lado, coçando uma perna, encontrava-se o desajeitado e tímido chefe da minoria da Câmara, o deputado John T. Hightower. A seguir estava o anafado deputado Seymour Stockton, famoso pela sua oratória inflamada e arrastada. Por fim vinha o sulista arrapazado e intelectual, o deputado Reverdy Adams, com o seu tufo bicudo de cabelo e os seus óculos de aros de chifre.
Enquanto os observava, Abrahams previa que podia haver um problema; visto que o Senado não era um tribunal vulgar, deixar-se-ia influenciar mais por argumentos emocionais. Os advogados da Câmara tinham sido treinados, por meio de inúmeras campanhas, a falar a língua do Senado, que era também a língua do povo. Os advogados de Dilman não possuíam qualquer experiência eleitoral, e os seus argumentos poderiam ter um efeito consideravelmente menor. Nat Abrahams prometeu a si próprio lembrar isso a Hart, Tuttle e Priest.
Reparou, nesse momento, que o juiz supremo Johnstone dizia qualquer coisa.
- Os advogados da Câmara dos Deputados podem sentar-se nos lugares que lhes são destinados.
Conduzidos por Zeke Miller, os cinco advogados da oposição dirigiram-se para as cadeiras por detrás da mesa à direita da tribuna. Quando estes se sentaram, Johnstone percorreu com os olhos as filas dos senadores.
- Fui informado de que o Presidente dos Estados Unidos contratou um conselho competente, e que tal conselho prestou juramento hoje, ao meio-dia. Soube que o conselho do presidente espera a notificação de comparência no escritório do vice-presidente. Quererá o secretário do Senado fazer o favor de os trazer para a sala?
Vendo o secretário do Senado encaminhar-se rapidamente para a porta em que ele estava, Nat Abrahams virou-se nervosamente à procura dos seus associados. Quase que chocou com Félix Hart que acabava de chegar seguido de Priest e Tuttle.
Muito bem, meus senhores - disse Abrahams -, qual deve ser a expressão dos advogados de defesa? De jovial confiança? De concentração sem remorsos? De benigna superioridade?
De profundo terror - disse Hart, fazendo uma careta.
Bem, espero que não se ponha a tremer de medo, Félix. Pronto, Walter? Pronto, Joel? Vamos a isto...
Abrahams voltou-se precisamente na altura em que os polícias e os moços faziam alas para abrir caminho para o apressado secretário do Senado. Este parou de chofre ao dar de cara com Abrahams.
- Não podíamos esperar- disse este com um sorriso. – Estamos impacientes por entrar.
O secretário não sorriu. Fez-lhes um sinal com a mão.
- Por aqui, senhores.
Nat Abrahams entrou no Senado seguido de perto por Tuttle, Priest e por fim Hart. Fixou o olhar nas costas do secretário, tentando assim evitar os dois mil pares de olhos que o seguiam. Depois parou, os braços rigidamente caídos ao longo do corpo, enquanto os seus colegas o rodeavam.
O secretário do Senado anunciou a comparência dos advogados da defesa e ídentificou-os a cada um pelos respectivos nomes. Quando terminou e voltou para o seu lugar, o juiz supremo piscou os olhos na direcção de Abrahams.
Sois o conselho contratado pelo presidente?
Somos, sim, Sr. Juiz! - replicou Abrahams. Extraiu um documento da algibeira do casaco e desdobrou-o. - Tenho aqui, Sr. Juiz, um documento passado pelo Presidente Dilman para comparecermos em seu lugar neste julgamento. Procederei à sua leitura se assim mo permitir.
Abrahams leu alto o texto, depois dobrou o documento e entre-gou-o ao secretário do Senado, que por sua vez o entregou ao juiz supremo Johnstone.
- O tribunal fica assim elucidado - disse o juiz. Depois indicou com a mão as cadeiras vazias e a mesa à sua esquerda. - Os advogados do Presidente dos Estados Unidos fazem o favor de tomar os lugares que lhes estão destinados.
Quando Abrahams e os outros três se sentaram prontamente nas suas cadeiras, a quinta cadeira foi rapidamente ocupada por Leach, o estenógrafo da Casa Branca, que colocou uma pesada pasta em cima da mesa, a abriu e depois a empurrou na direcção de Félix Hart. Enquanto este começava a distribuir documentos legais, blocos e lápis, Leach tirou um envelope do bolso interior do casaco e passou-o a Tuttle que, por sua vez, o entregou a Abrahams. Este abriu-o.
No topo da folha estava a inscrição A Casa Branca. Por baixo, escrito à pressa, vinha o seguinte:
«Querido Nat: Antes de ter começado o meu trabalho, ajoelhei--me junto da cama de Lincoln e pedi ao Todo-Poderoso que ajudasse a julgar a nossa causa e o nosso valor. Não sei se Ele terá ouvido, mas eu fiz os possíveis por falar alto, portanto talvez me tenha ouvido, ou então o S. Cristóvão por Ele. De qualquer modo, faz com que sejas ouvido para fora da Sala do Senado, no caso de Ele estar lá em cima à escuta. Quer ganhes quer percas, põe os olhos no Céu. Mas manda-os todos para o Inferno. O teu amigo eternamente grato, Doug Dilman.»
Ternamente, Nat Abrahams tornou a dobrar a folha e meteu-a na algibeira. Far-se-ia ouvir bem alto e claro, mas primeiro teriam de ser ouvidos os inimigos.
A voz do juiz Johnstone ressoava na sala.
- O Senado está agora pronto para apreciar os artigos de acusação. A Câmara dos Deputados e o Presidente dos Estados Unidos comparecem por conselho. O tribunal vai agora ouvir os argumentos de abertura. - Olhou para baixo, para a direita. - Senhores advogados da Câmara dos Deputados, procedereis agora à exposição dos artigos de acusação... Os senadores prestarão a máxima atenção... Sr. Deputado Miller.
Zeke Miller levantou-se com um ar empertigado e heróico, destilando humilde popularidade, e dirigiu-se para o centro do palco em passos curtos e irregulares, os polegares enfiados nas casas dos botões da lapela. Os seus lábios finos vinham repuxados numa tentativa de sorriso suplicante, enquanto examinava as caras dos senadores.
- Sr. Juiz e Senhores do Senado - começou ele. - Foi num dia como este que, em 1868, um outro chefe executivo dos Estados Unidos, que tentara tornar ineficazes as prerrogaticas constitucionais do ramo legislativo do Governo e que se mostrara, além disso, inapto para o seu cargo e um prejuízo para o bem-estar nacional e para o nosso amado país, aqui foi julgado.
«Reunimo-nos hoje aqui em proveito de duzentos e trinta milhões de americanos, mais uma vez, como seus guardiões, protegendo-lhes a vida, a liberdade e a felicidade. A nossa responsabilidade, porém, é bem maior que a dos nossos antecessores de 1868. Nessa ocasião o réu governava uma União que podia prejudicar mas não liquidar. O mundo era então pequeno e lenta a sua marcha, e a União constituía uma fortaleza em si própria, que não permitia que apenas um único incompetente, um único traidor, a levasse ao desastre.
«Nós, hoje, vivemos uma outra era, mais terrível, a era nuclear, uma época de sombras, em que o jacto, os foguetões, as bombas de hidrogénio, poderão liquidar, em poucos minutos, a vida neste maravilhoso planeta concebido pelo Criador. Podemos dizer que vivemos na única grande república livre desse planeta, onde homens inteligentes e conscientes construíram laboriosamente, durante dois séculos, uma utopia da paz, onde os cidadãos vivem livres e independentes, em prosperidade e igualdade. Nós somos os afortunados herdeiros de uma sociedade decente e pura, legal e justa, uma sociedade cristã tão brilhantemente construída que no nosso governo, no nosso governo do povo, pelo povo e para o povo, há três ramos do governo, munidos das suas balanças afinadas, assegurando a preservação da nossa democracia.
«Um mundo como o que descrevi, uma democracia como a que descrevi, numa época como a nossa, não podem permitir uma chefia executiva que, devido à ignorância, à malvadez ou ao egoísmo, nos possa destruir a todos. Porque somos os guardiões eleitos da vida deste nosso orgulhoso país e dos seus cidadãos, reunimo-nos hoje aqui para tirarmos do seu alto assento um falso usurpador, que se colocou acima da lei, acima de qualquer norma da vulgar decência, acima e fora dos limites do respeito, conduzindo, voluntária ou involuntariamente, os Estados Unidos e o mundo para uma inevitável extinção.
«Quem é esse malfeitor? Eu sei, e vós sabeis, mas anunciá-lo--ei claramente para que todo o mundo o saiba, e para que compreenda que somos homens de boa fé. Aquele a quem me refiro não é um homem vulgar como nós. Não possui as nossas boas intenções. Hesito em o identificar pelo que ele verdadeiramente é, pois nós conhecemo-lo e este julgamento provará o que ele é. Citarei as palavras de alguém bem maior do que eu, um imortal liberal americano que amava os americanos negros com o mesmo fervor com que amava os americanos brancos, mas que contudo amava ainda mais a América, e que não a podia ver estragada pelo único outro Presidente da nossa história cuja desgraçada conduta o levou a um julgamento semelhante. Estas palavras foram ditas na Câmara dos Deputados por Thaddeus Stevens, acerca do Presidente Andrew Johnson: 'Se não matarem a fera, esta martar-vos-á a vós!'
«A fera. Sim, a fera, assim designara ele aquele presidente perigoso e delinquente - e tal designação, digo-vos eu, é bem mais apropriada para aquele que hoje se senta na Casa Branca. Para o bem de todo o país, repito hoje aqui o aviso de um grande estadista, repito-o e imploro-vos: se não afastarem a fera, ela matar-nos-á a todos... E a fera que deveis expulsar do Governo, da sociedade dos homens civilizados, é aquele que vai hoje a julgamento, aquele que já entrou na lista negra dos vilões da história. Ele é a fera que ousa usar um nome de homem - refiro-me a Douglass Dilman - conhecido, para minha vergonha, como o Presidente dos Estados Unidos!»
A violência viciosa do ataque de abertura de Zeke Miller não provocou na audiência o que Abrahams esperava - choque e repulsa -mas uma reacção de compreensão e aceitação. Aos olhos de Abrahams era como se Miller tivesse atirado com uma lança para junto de uma enorme serpente adormecida, não para a ferir, mas para a acordar. E nesse momento a serpente erguia-se acordada, ondulante, torcendo-se e assobiando.
Os senadores, os membros da Câmara, os espectadores nas galerias, tinham-se transformado momentaneamente nessa serpente maligna e estavam vigilantes.
Abrahams viu Miller dar alguns passos para um lado e para outro, contente, tomando fôlego enquanto esperava que a audiência tornasse a acalmar-se. Abrahams nem se deu ao trabalho de olhar para os seus associados. Sabia que eles deviam sentir o mesmo que ele e concentrou o seu desprezo no advogado da Câmara. O ódio era uma emoção quase desconhecida para Abrahams. Contudo, pela primeira vez na sua vida, sentiu o nascer de um ódio cego contra Miller e os seus colegas, e contra toda a ignorância e maldade do mundo representada por eles.
Miller, nesse momento, recomeçou:
- Reunimo-nos hoje aqui como guerreiros empenhados na santa causa da Constituição dos Estados Unidos. O despotismo lançou a sua negra sombra sobre o nosso país. Como guerreiros da justiça, ouvimos a ordem imperativa, e agora, a todo o custo, obedecer-lhe--emos.
«Honoráveis senhores e imparciais juízes, companheiros nesta cruzada, quais são as acusações levantadas contra o déspota que reina na Casa Branca? Constituem estes quatro artigos de acusação, aprovados pelos vossos colegas da Câmara, meras acusações vingativas, nascidas da inveja e do rancor, e baseadas em conjecturas e boatos? Não! Mil vezes não, e outra vez não! O caso do povo contra Douglass Dilman, presidente, é motivado pelo patriotismo americano e nada mais, e está firmemente baseado no sólido terreno da verdade e dos factos!
Examinemos agora os artigos de demissão um por um, e permi-tí-me elucidar acerca de todo o seu significado, de todo o seu conteúdo e das provas que temos para cada um.»
Miller meteu a mão no bolso e tirou para fora um rolo de papéis de notas preso por um elástico. Lenta e deliberadamente tirou o elástico e endireitou as notas.
Nat Abrahams encostou-se na cadeira, cruzou os braços e pre-parou-se para escutar o esboço da acção. Não havia necessidade de tirar notas. Tuttle, Priest e Hart encarregar-se-iam disso, e Leach também não estaria parado. Para Abrahams era suficiente escutar e avaliar a direcção do discurso, para que pudesse fazer um julgamento final acerca das suas próprias notas de abertura.
Escutou atentamente.
Fazendo rolar as palavras, Miller leu rapidamente o Artigo I. Depois, mais devagar e mais cuidadosamente, leu e definiu a acusação - traição. O Presidente Dilman estava de posse dos mais importantes segredos de Estado. Possuía também a afeição de uma senhora, essa senhora, Miss Wanda Gibson, que outrora fora protegida de um professor de tendências esquerdistas, passara depois, naturalmente, para outros patrões também esquerdistas. Durante cinco anos trabalhara como secretária confidencial para um espião russo, que depois fugira do país, e aceitara um alto salário, o dinheiro de Judas, dele e dos Exportadores Vaduz, uma organização secreta da Frente Comunista. Subsequentemente, Miss Gibson recebera preciosos segredos militares do Presidente dos Estados Unidos, que talvez tivesse sido seduzido pela sua beleza e pelo seu amor, que inocentemente confiara nela ou que deliberadamente procurara ajudá-la a melhorar a sua posição, ou cuja língua se soltara com a bebida. Depois, aquela, ou pelo desejo de impressionar o patrão ou por causa das suas crenças socialistas, passara as confidências do presidente americano a Franz Gar, que por sua vez as passara ao primeiro-ministro russo. Munida assim dos segredos da nossa política e força, a Rússia ficara numa posição capaz de se nos antecipar e superar em Berlim, na índia, no Brasil e em toda a parte.
Nos dias imediatos, continuou a explicar Miller, os advogados da Câmara trariam ao tribunal testemunhas que provariam sem qualquer sombra de dúvida tudo o que acabara de dizer.
Depois Miller leu o Artigo II e alargou-se pouco na sua explicação. O presidente colocara um parentesco de sangue acima do seu juramento de cargo e estivera secretamente em contacto com o infame grupo dos Turnerites, com o seu chefe, condenado e em breve executado, Jefferson Hurley. Haveria muitas provas para convencer os eminentes membros do Senado da culpabilidade do presidente.
Com o prazer malicioso de um garoto folheando um jornal nudis-ta, o deputado Zeke Miller seguiu para as acusações do Artigo III.
«Somos todos homens adultos, homens do mundo, e sabemos que os fracos homens são fracos na carne» - disse Miller. - Sabemos que existe a sedução dos fracos e dos inocentes, a devassidão imposta à força às filhas, às mulheres e às viúvas de outros homens. Contudo - e a sua voz aguda tornou-se estridente, como se quisesse cortar o ar do auditório -, quando o chefe da nossa renascença democrática e espiritual, pelo seu comportamento pecaminoso, profana o santuário sagrado onde outrora dormiu o ilustre Abe Lincoln, profana a casa onde viveram Jefferson, Jackson, Wilson e ambos os Roosevelt, chegou a altura não da repugnância, mas da retaliação.
«O presidente - disse Miller -, tendo-se tomado rude e imoderado durante os longos anos da sua solitária viuvez, frequentemente inflamado pela bebida, tornara-se desrespeitador em relação ao sexo oposto. As suas relações extraconjugais com alguém da sua própria raça não eram suficientes para o saciar. Contratara a doce e inocente filha de um dos legisladores mais respeitados e queridos da Nação. Trouxera essa jovem senhora para junto dele, por muito pouco qualificada que ela fosse para a posição que ele lhe impusera, apenas como propósito de satisfazer os seus desejos carnais. Sim, depois degradara o seu cargo, a sua virilidade e a sua raça tentando seduzir Miss Sally Watson, num momento em que se encontrava embriagado, e fora só por uma intervenção divina que esta escapara à sorte que ele lhe reservara. Na devida altura, a própria vítima, embora o recordar tal experiência lhe fosse penoso, contaria os detalhes de tão terrível episódio. Os advogados da Câmara mostrariam ainda várias fotografias de injúrias físicas que ela recebera então, fotografias essas tiradas imediatamente após a terrível experiência.»
Miller continuou a falar rapidamente sobre as outras especificações do Artigo III e, da sua mesa, Abrahams teve que concordar com a eficácia da sua táctica. Miller sentia que causara impressão com os detalhes da acusação de Sally Watson. O seu efeito podia ser visto nas caras dos senadores e Miller era demasiado esperto para o deixar apagar.
A seguir passou a glosar o caso de Wanda Gibson. Deu principalmente ênfase ao facto de o presidente ter vivido debaixo do mesmo tecto, durante cinco anos, juntamente com aquela mulher solteira, encorajado pelo reverendo Spinger, porque este a oferecera como suborno para obter um certo tratamento de preferência para a Sociedade Crispus. Bastava saber-se que o presidente, depois de ter deixado a sua casa da Rua de Van Buren para se mudar para a Casa Branca, voltara nessa mesma noite, contra todos os conselhos de segurança, para o lado da sua amante.
Quanto à história do alcoolismo do presidente, apresentariam declarações irrefutáveis coligidas em todo o Midwest, em Washington e seus arredores.
Nesse momento a voz de Zeke Miller enrouqueceu e este fez uma pausa para engolir várias vezes. Pôs de lado os papéis das suas notas e, postado de pernas abertas e mãos nas ancas, percorreu com a vista a multidão apinhada na Sala do Senado.
- Chegámos por fim - disse ele - ao Artigo IV, o crime mais grave de que acusamos o presidente, ao lado do qual os outros não passam de delitos. Porque com este simples crime, o chefe executivo, qual louco Sansão, tentou deitar abaixo os pilares das nossas instituições e fazer ruir o nosso orgulhoso templo da democracia. Foi principalmente por este crime capital que Andrew Johnson teve de comparecer perante o tribunal, e é por causa do mesmo acto de arrogante ilegalidade, mais do que por nenhum outro, que nos encontramos aqui reunidos esta tarde.»
Miller parou, empertigou a sua pequena estatura e examinou as filas de senadores directamente à sua frente.
«Honoríficos senhores, será necessário dizer mais alguma coisa? Terá porventura existido neste século, nestes Estados Unidos, um acto mais pura e nuamente tirânico? Não, nunca, nunca, em nenhum século. A ofensa pode ser lida sobre as vossas secretárias. O crime não admite discussão. Tudo o que resta é a punição do crime.
«Honoríficos senhores, os membros da Câmara acusam agora, e aqui, o Presidente dos Estados Unidos de ter desdenhosamente quebrado uma lei vital do país, uma lei aprovada quase unanimemente pelo Congresso, uma lei a que ele não lançou o veto. Os membros da Câmara acusam aqui e agora o Presidente dos Estados Unidos de ter demitido do seu cargo o ministro de Estado dos Estados Unidos sem o consentimento legal do Senado, e de o ter feito não porque o primeiro membro do seu Gabinete provasse ser incompetente, mas por este defender uma política que era e é desejada pela maioria do povo americano. Pela sua aderência à democracia, o nosso ministro de Estado era tão querido do povo americano como o era pelo nosso último presidente. E porque o nosso ministro de Estado era alvo de tal popularidade, porque era o próximo na linha de sucessão à presidência, porque a sua popularidade constituía uma ameaça para o detentor de tal cargo, foi ilegalmente demitido por um presidente loucamente ciumento e rancoroso. Por este violento acto, honoríficos senhores, os membros da Câmara acusam aqui e agora o Presidente dos Estados Unidos de violar a Constituição do nosso país.»
Zeke Miller fez uma pausa, respirou fundo, endireitou as costas e ergueu os braços no ar, acima da cabeça, numa postura evangélica de prece dirigida ao Senhor, lá em cima, e ao Senado, mais abaixo.
«Compatriotas americanos! - bradou ele. - Encerro o nosso argumento implorando que, desde este memorável dia de um empreendimento de justiça até ao dia final do julgamento nesta sala, tenhais sempre presente perante os vossos espíritos o aviso histórico. Compatriotas americanos, matai a fera antes que a fera vos mate a vós!»
As galerias rebentaram numa irreprimível salva de palmas, e aqui e ali alguns senadores, e a maioria dos membros da Câmara, por detrás destes, puseram-se de pé, batendo igualmente palmas. Zeke Miller fez uma pequena vénia, girou sobre os calcanhares e dírigiu-se rapidamente para a sua mesa, onde os seus colegas o esperavam, todos de pé, arvorando sorrisos de congratulações e de triunfo.
Vindo de cima, soou o bater do martelo do juiz Johnstone, prontamente abafado pelo tumulto e pelo clamor.
Nat Abrahams, de braços ainda cruzados no peito, observava mal-humorado o espectáculo à sua frente, os animados congressistas e espectadores, as câmaras móveis da televisão. Sabia que Miller alcançara muitos pontos a seu favor.
A oposição, calculou ele, tinha-se adiantado muito. Tinha de a apanhar. Não seria fácil ultrapassá-la. A hora e vinte minutos da oratória de Miller tinha cansado os senadores e sem dúvida deixara exaustos os milhões de espectadores da televisão. Como poderia agora a razão agarrá-los? Quando se está saciado com um lauto banquete regado de vinho, quem saboreará alimentos saudáveis e o leite da bondade?
Por detrás de Abrahams o martelo do juiz supremo dava monótonas marteladas, e gradualmente o barulho foi cessando.
Notando uma agitação à sua esquerda, Nat Abrahams olhou para a outra extremidade da mesa. Félix Hart passara um papel a Priest, que o leu, acenou com a cabeça, e passou-o por sua vez a Tuttle. Este leu-o sem se manifestar e depois entregou-o a Abrahams.
Abrahams olhou para a mensagem.
«Nat - leu ele -, a coisa está dura. Temo-los perdidos, a não ser que você os consiga espevitar. É necessário algo que atraia imediatamente a atenção, o que os escritores designam de gancho narrativo. Sugiro que ponha de lado a proposição combinada e que comece logo com a terceira possibilidade sobre a qual tínhamos discutido. O que diz?»
A mensagem vinha assinada «Félix».
Abrahams já se decidira. Pegando num lápis, escreveu no topo do papel: «CONCORDO!»
Devolveu a mensagem, observando cada um dos seus associados, enquanto a liam. Félix Hartfoi o primeiro a responder, acenando vigorosamente com a cabeça numa muda aprovação. Depois Joel Priest inclinou a cabeça afirmativamente. Abrahams esperou então pela resposta de Tuttle, que pensava com o queixo apoiado na mão. Por fim, este virou a cabeça.
- Detesto lutar à moda deles - disse ele, roufenho - mas, quando se é atacado por rufiões numa rua escura, não se pode escolher o modo como se luta. Não há outro caminho, Nat. Será melhor espevitar rapidamente essa audiência, ou ninguém saberá sequer que temos um caso ou um presidente.
Abrahams sentiu-se aliviado, desejoso de entrar em acção no contra-ataque.
O juiz supremo deu uma última martelada. A sala mergulhou finalmente em silêncio. O olhar de Abrahams foi até aos senadores sentados às suas secretárias. Embora respeitadores e meio atentos, a maior parte deles evidenciava atitude de descanso, como se já tivessem ouvido tudo o que havia a dizer, como se não houvesse mais nada, como se o espectáculo tivesse já terminado e agora só restassem as aborrecidas formalidade? do primeiro dia.
O juiz Johnstone inclinara a cadeira para a frente e debruçara-se para um lado da tribuna.
- Srs. Advogados do Presidente - disse ele -, estão prontos para prosseguir com a vossa declaração de abertura?
Ajustando o nó da gravata, Nat Abrahams pôs-se rapidamente de pé, sentindo estalar as articulações dos joelhos. Encarando o juiz supremo, replicou:
Sim, Sr. Juiz.
Muito bem, Sr. Advogado, pode iniciar o seu depoimento. Abrahams ergueu um documento que estava em cima da mesa.
Sr. Juiz, antes de iniciar a defesa, gostaria de entregar primeiro uma cópia do juramento do Presidente dos Estados Unidos, cujo texto lerei em seguida. - Abrahams leu o documento e depois entre-gou-o ao juiz, anunciando, numa voz suficientemente penetrante para ser ouvida tanto por este como pelos jurados legislativos: - Este é o nosso principal documento comprovativo e a nossa pedra de fecho -como prova de que, primeiro, Douglass Dilman é o Presidente legal dos Estados Unidos, e como prova de que, segundo, eie sempre cumpriu e continua a cumprir o seu juramento de cargo, o que sustentaremos por meio de testemunhas e provas. Agora, Excelência, iniciarei a minha declaração preliminar.»
Nat Abrahams dirigiu-se lentamente para o local entre a tribuna e os bancos do Senado, tendo deixado sobre a mesa todas as suas notas. Não precisava de quaisquer referências escritas. Estava com todos os sentidos alerta, a cólera controlada, pronto para começar. Se fosse possível, fá-lo-ia. Tentaria.
- Sr. Juiz, Membros do Senado dos Estados Unidos, Compatriotas - ouviu-se dizer, surpreendendo-o a firmeza da sua voz. - Como confirma o documento que entreguei ao juiz supremo dos Estados Unidos, temos como Presidente dos Estados Unidos um homem, um homem que prestou juramento, perante o magistrado supremo aqui sentado, em como preservaria, protegeria e defenderia a nossa Constituição e o nosso país. Nós temos, repito, um homem como Presidente dos Estados Unidos.
«Mas talvez, visto que os advogados da Câmara levantaram a questão, seja necessário um esclarecimento. O que é um homem? Será uma «impossibilidade dourada», como queria Emmerson? Ou será, como definiu Noah Webster, simplesmente 'um ser humano masculino'? Será, considerando a sua visão antropológica, 'um indivíduo' (género Homo) pertencente ao mais alto tipo de animal que existe ou que se sabe ter existido, diferente de todos os outros altos tipos de animais, especialmente no que respeita ao seu extraordinário desenvolvimento mental? Será 'uma sombra e um sonho', como queria Píndaro? Ou será ainda mais? Será, como define o Génese, o ser que Deus criou à sua imagem, aquele ser especial e sagrado, criado por Deus a partir do pó da terra, e em cujas narinas Deus soprou o «sopro da vida» de modo que tornasse 'uma alma viva'? Ou será ele, como dizem os Salmos, uma criatura 'delicada e maravilhosamente feita' e feita apenas 'um pouco abaixo dos anjos'?
«Vêem, portanto, que há muitas definições de homens, mas de uma coisa tenho eu a certeza absoluta, e tenho-a com base na certeza das mais altas autoridades: É que um homem não é igual a uma fera.
«Uma fera, citando de novo Noah Webster, é simples e precisamente 'qualquer animal de quatro pernas', e emprega-se animal para se distinguir de planta, e emprega-se frequentemente 'fera para se distinguir de homem'. Há muitas feras sobre a terra, todas elas quadrúpedes. Um leão é uma fera, uma pantera é uma fera, um rinoceronte, um chacal, um lobo, todos são autênticas feras. Mas só entre os estúpidos e os ignorantes, ou entre os mal-intencionados e os desequilibrados, é que um homem é confundido com umafera. Algumas vezes, no norte do país, ouvi chamar a renegados psicopatas feras, embora fossem na verdade homens. Algumas vezes, no sul dos Estados Unidos, não no sul da África, mas no sul dos Estados Unidos, e ocasionalmente no norte, ouvi chamar feras aos nossos cidadãos de pele escura. Mas sempre atribuí tal confusão de identidade à ignorância ou à malvadez, e sempre acreditei que a única maneira de a corrigir seria a educação.
«Peço perdão deste discurso biológico, honoráveis senadores, mas visto que o meu digno oponente se enganou quanto à natureza do cidadão em julgamento, achei verdadeiramente indispensável corrigi-lo. Que deste momento em diante não haja mais confusão. Em 1868, o Presidente dos Estados Unidos era um homem, um homem feito à imagem de Deus, não obstante Thaddeus Stevens. Hoje, o Presidente dos Estados Unidos é outro homem, um homem feito à imagem de Deus, não obstante Zeke Miller. O presidente não é um animal de quatro pernas, mas um homem, como todos vós, nem mais nem menos.
«Estou decidido a manter as definições neste julgamento precisas. Estão aqui para julgar o futuro de um ser humano, que é o Presidente dos Estados Unidos. Os advogados da Câmara estão aqui para condenar um ser humano e para o tentar demitir do cargo que lhe é justamente devido. Os meus colegas e eu estamos aqui para defender um ser humano e para tentar mantê-lo no mais alto cargo do país. Compreendido e aprovado isto, estou preparado para iniciar o nosso argumento contra os artigos de acusação votados pela Câmara dos Deputados.»
Era a altura de respirar. Nat Abrahams fez uma pausa e estudou as caras e os perfis dos senadores alinhados à sua frente. Viu que conseguira ganhar e prender a atenção destes, envergonhando alguns, aborrecendo outros, mas abrira o caminho para o que agora devia necessariamente seguir-se. Esse caminho era perigoso, mas não havia outro por onde escolher.
Inclinando a cabeça para coordenar os seus pensamentos, deu vários passos para a sua direita. Quando ergueu a cabeça, os seus olhos encontraram-se com os de Zeke Miller, e sentiu-se contente ao ver a sua meia careca molhada de transpiração, os seus olhos fais-cando e os seus finos lábios iradamente comprimidos.
Abruptamente, Nat Abrahams deu uma reviravolta e enfrentou a audiência.
- Membros do Senado, iniciarei agora o meu argumento contra os cinco artigos de acusação - esperai, não foi um engano, eu repito, contra os cinco artigos de acusação pronunciados esta tarde contra o presidente.
Pôde ver a surpresa estampada em muitos rostos e ouviram-se murmúrios e sussurros de espanto por detrás de algumas secretárias. Nat Abrahams continuou rapidamente. Quase que os tinha nas mãos; agora devia agarrá-los com força e bater-lhes com a cabeça de encontro à verdade.
- Não é o Artigo IV, como o meu distinto oponente declarou, aquele que representa a mais grave acusação e o que mais crucial é para o bem-estar do nosso governo e da nossa democracia. Não, meus senhores, é o quinto artigo de acusação contra o presidente, o artigo não enunciado, não escrito, não mencionado ainda neste tribunal, que domina este julgamento e que existe tão real como se tivesse sido tornado público logo desde o princípio - é este artigo, afirmo eu, que é e será a cabeça e o coração do caso da Câmara contra o presidente, e a disposição do qual afectará seriamente toda a existência da nossa democracia.
«Esse invisível Artigo V, se a oposição tivesse tido a coragem de o ter escrito contra o Presidente Dilman, seria assim: 'O citado Douglass Dilman, Presidente dos Estados Unidos, em Washington, Distrito de Colúmbia, descuidando os altos deveres do seu cargo e do seu juramento do cargo e violando a Constituição, aceitou irresponsavelmente, e sem consideração pela vontade da maioria do público e seus legisladores, o alto cargo da presidência, apesar da sua origem de cor. E o citado Douglass Dilman, Presidente dos Estados Unidos, cometeu então um crime de delito capital, ousando cumprir o seu dever como chefe executivo e agir como presidente, embora sabendo que aos olhos dos fanáticos e dos intolerantes não era qualificado e apto para a chefia, pois era da raça negra, e consequentemente não um cidadão completo, mas um cidadão de segunda classe, e portanto semi-iletrado, não digno de confiança, não desenvolvido mentalmente, socialmente inferior, dado à bebida e ao comportamento violento, possuído de desejos não naturais, desdenhoso e intratável na sua resolução de não conhecer o seu devido lugar e na sua recusa em não servir os seus superiores raciais.'»
Nat Abrahams podia ouvir a tempestade de vozes subindo à sua frente, os legisladores bradando a sua indignação ou batendo nas secretárias, aplausos espalhados aqui e ali nas galerias, os protestos raivosos provenientes da mesa dos advogados da Câmara.
Tentou prosseguir:
- Senhores! - gritou por cima do tumulto. - Este artigo não mencionado, afirmo eu, é o que está por detrás dos outros quatro artigos e os escurece, e enquanto essa quinta acusação contra o Presidente Dilman não for trazida para o ar livre, arejada e considerada por homens honestos e corajosos, não poderá fazer-se ou haver justiça no julgamento de Douglass Dilman.
Quis continuar, mas mal podia ouvir a sua própria voz no meio do barulho, e portanto parou e aguardou.
O martelo do juiz Johnstone deu três fortes pancadas na mesa semelhantes a tantos outros tiros de canhão, e imediatamente o tumulto se foi acalmando.
Então Abrahams reparou que o senador Hoyt Watson estava de pé, o cabelo cinzento todo desgrenhado, a gravata de lado, segurando na cadeira com um braço.
Sr. Juiz! Sr. Juiz! - rugiu ele. - Objecção! Por fim a sala ficou mergulhada em silêncio.
O tribunal reconhece a objecção - anunciou o juiz Johnstone.
- Sr. Juiz, fomos sujeitos à maior insolência que já alguma vez testemunhei nesta sala. O Sr. Advogado Abrahams, em nome do presidente, ousou insultar a nossa inteligência e atacar a nossa integridade, insinuando que combatemos sob cores falsas, que os quatro artigos em consideração são mentiras criadas para esconder um terrível complot racial. O facto de ele ousar atacar a honestidade e a decência humana do Senado dos Estados Unidos, assim como as da Câmara, cusando-nos de querermos demitir Dilman por ele ser preto e não por ser incompetente, ofende-me e ofende cada um de nós para além de tudo o que se possa dizer... Sr. Juiz, peço que a tirada ofensiva e pomposa do advogado seja retirada. Peço que não lhe seja permitido tornar a mencionar esse burlesco quinto artigo, fruto da sua imaginação, sob pena de ser mandado retirar deste caso e desta sala durante o resto do julgamento!
O corado senador sentou-se e os seus colegas e os membros da Câmara coroaram-no com uma salva de palmas.
Nat Abrahams voltou-se para o juiz.
- Sr. Juiz...
O juiz Johnstone acenou com a cabeça.
Que tem a dizer à objecção, Sr. Advogado Abrahams?
Não foi minha intenção incitar ou inflamar por meio de demagogia, ou imitar o método da oposição - disse Abrahams calmamente. -Sustento, Excelência, que foi a cor do Presidente Dilman a causa do antagonismo da oposição e o que a levou a forjar os artigos de acusação. Sustento que a cor do presidente afectará por sua vez o espírito dos jurados, e com grande prejuízo para o meu cliente. Sustento que esta é a questão primordial, e não um mero fruto da minha imaginação. Estou preparado para dar provas concretas e provar que a cor do presidente é a questão central deste julgamento. Estou preparado para atacar os quatro artigos como votados, para lutar contra eles com toda a minha alma e coração, mas, na minha opinião, estes não passam de moinhos de vento, Excelência, e o verdadeiro dragão a ser morto é o preconceito racial. Peço licença para continuar a falar, tão sucintamente quanto possível e quando for apropriado, acerca deste invisível artigo de acusação.
O juiz Johnstone tossiu e olhou para o senador Hoyt Watson.
- A objecção é sustentada - anunciou ele. Piscou os olhos na direcção de Abrahams. - O conselho não tornará a aludir a um quinto artigo neste tribunal, mas ocupar-se-á só e inteiramente dos quatro artigos mencionados. Prossiga de acordo com isto, Sr. Advogado!
Abrahams tentou aceitar graciosamente a repreensão. Voltando a cabeça, pôde ver os seus três associados observando-o e, embora os seus rostos permanecessem fleumáticos, havia aplauso nos seus olhos.
Abrahams deu lentamente mais uns passos até ficar mais uma vez cara a cara com o Senado. Legalmente a sua acusação fora retirada, mas de facto toda a Nação a ouvira, e seria agora uma questão viva que estaria pendente sobre a consciência de cada homem nos dias vindouros.
Por aquele impetuoso ataque no alto campo da verdade, pensou Abrahams, perdera alguns votos a favor de Doug Dilman como presidente no seu julgamento, mas talvez tivesse ganho algo mais importante para Doug Dilman como homem. Tinha esperança que aquela escolha de táctica tivesse sido acertada e que Doug a compreendesse.
Abrahams suspirou interiormente. Bem, disse a si próprio pela última vez, a verdade estava agora à vista. Fizera o que devia ter feito de um modo que não lhe agradava, mas não houvera outra alternativa para alguém que considerava a sua causa justa. E podia ver agora que conseguira também algo mais. Ganhara os olhos e os ouvidos do Senado, da Câmara, das galerias e de toda a Nação. Tinha-os na mão, mesmo que Zeke Miller os não tivesse.
Satisfeito com essa vitória, Nat Abrahams, sentindo-se aliviado por poder agir agora como mero advogado, começou de novo calmamente a falar.
Por volta das três menos um quarto da tarde, Edna Foster apagou subitamente a televisão, vestiu impulsivamente um severo fato saia-casaco, vestiu a gabardina, telefonou para mandar vir um táxi, pegou no guarda-chuva e desceu as escadas.
Às três e um quarto caminhava em direcção ao vestíbulo da ala oeste da Casa Branca. O que começara a recordar no táxi continuou a ocupar completamente o seu espírito.
Fora uma horrível semana de mentiras, de mentiras e indecisões, e sentia-se agora contente por ter chegado finalmente a uma conclusão.
Vira George Murdock uma única vez depois do seu regresso de Paris, e do retardado regresso dele da sua longa visita a Nova Iorque.
Tinham-se encontrado ao fim da tarde do dia em que os artigos de acusação contra o presidente tinham sido introduzidos na Câmara dos Deputados. Não fora uma noite feliz. Ela estivera toda a noite calada e infeliz por causa do fantástico ataque contra Dilman. George estivera vivo e alegre por causa do seu bem remunerado emprego na cadeia de jornais de Zeke Miller. Não lhe agradara que ele tivesse aceite tal emprego, e nem mesmo o facto de George ter proposto combinarem a data do casamento lhe tinha melhorado a disposição. Tentara desesperadamente fingir um contentamento que não sentia, mas não conseguira. Esperava que um longo serão na companhia de George - encontrava-se então relativamente livre, pois o presidente andava na sua volta pelos vários Estados - realizasse o milagre, restaurasse a sua alegria por saber que em breve seria a Sr§ Murdock, mas George só tivera tempo para um pequeno serão. Trabalhava agora de dia e de noite, desculpara-se ele, para causar boa impressão aos seus novos patrões e ansioso para começar com o pé direito.
Os acontecimentos daquela inesquecível noite possuíam-na e obcecavam-na ainda como uma terrível alucinação. Estivera demasiado ocupada com o seu trabalho durante as horas antes de se encontrar com George para averiguar os detalhes das acusações contra o presidente. Ouvira apenas algo acerca de este ter violado a lei por ter demitido Eaton. Algo ridículo acerca de ele se entregar frequentemente à bebida. Algo absolutamente absurdo acerca de ter faltado ao respeito àquela estúpida e destravada da Sally Watson. Mas fora só quando George a deixara no seu apartamento e ficara sozinha com os jornais do dia que pudera ler completamente os quatro artigos de acusação.
Então, antes que eles tivessem penetrado bem nela, o seu apartamento fora invadido e posto de pernas para o ar por homens oficiosos e ameaçadores. Achara-se subitamente entre a espada e a parede, com ordens e intimações em frente do nariz. Achara-se bombardeada de perguntas pelo gago Casper Wine e por dois outros advogados ou investigadores enviados pela Assembleia Judiciária da Câmara.
E quando os inquisidores se tinham ido embora, à meia-noite, tinham-na deixado com uma cópia da chocante confissão ou declaração, ou como quer que se chamasse àquilo, que a tinham forçado a assinar. Tinham-na deixado com uma intimação para comparecer (se necessário fosse) no tribunal em nome da acusação. Tinham-na deixado sem o seu precioso diário (localizado, confiscado, levado por eles apesar dos seus chorosos protestos). Pior do que tudo, tinham-na deixado com os destroços de si própria, com os restos despedaçados de si própria e com a primeira compreensão absoluta da sua involuntária perfídia e deslealdade para com o homem que era o seu patrão antes de ser o seu presidente.
Fora uma noite de horror, seguida de uma semana ainda mais pavorosa, pois seguira-se-lhe o interrogatório feito por si própria, e durante muito tempo ela recusara-se a encarar a única resposta aceitável. Como tinham eles sabido que ela escutara inadvertidamente um telefonema particular do presidente para o filho? Como tinham sabido que só ela sabia que o presidente tinha uma filha que passava por branca? Como tinham sabido que a mulher do presidente estivera internada num sanatório para alcoólicas? Como tinham sabido - ninguém, ninguém o sabia no mundo senão ela - que ela possuía um diário secreto, onde registara todos os acontecimentos?
Todas estas informações lhe pertenciam apenas a ela, nunca as compartilhara com ninguém, e contudo eram conhecidas por alguém, e agora seriam conhecidas por todo o mundo. Depois, procurando, procurando, sondando a memória, ela descobrira o traidor, não acreditando primeiro, depois não querendo acreditar, não querendo culpá-lo totalmente.
O terrível pecado que cometera roera-a de vergonha, até quase à loucura. Porque, e não podia continuar a negá-lo, cometera a única verdadeira falta que uma secretária confidencial podia cometer. Cometera o delito da indiscrição.
E assim se exilara no seu solitário apartamento. Pois, por muito difícil que lhe fosse encarar-se a si própria, teria sido completamente impossível encarar qualquer outra pessoa, quer aquele que ela traíra, quer o que a traíra a ela. Vivera a sua semana de mentiras, e enviara uma mensagem para a Casa Branca dizendo que não se encontrava bem e que teria de ficar de cama durante algum tempo. Deixara também uma mensagem para George, dizendo-lhe que não lhe telefonasse, pois a mãe estava doente em Wisconsin e ela tivera de lá ir, mas que depois lhe escreveria.
Um único ser humano tivera acidentalmente entrada no seu inferno. Ao fim da tarde do quinto dia da sua ausência do trabalho, ouvira bater à porta. Estava à espera do merceeiro que ficara de levar-lhe umas coisas, mas ao abrir a porta, para sua aflição, dera de cara com o solícito Tim Flannery. Este pedira-lhe desculpa por lhe ter aparecido assim sem avisar, mas estava preocupado, assim como o presidente, dissera ele, por causa da sua saúde. Surpreendeu-a que ainda houvesse alguém decente que se importasse com ela, agora que se sabia da sua deslealdade para com o patrão.
Pensara em fazer com que Tim Flannery se fosse embora para poder continuar a alimentar a piedade e o ódio por si própria, quando subitamente compreendera que desejava alguém bom e compreensivo junto de si, e Tim Flannery possuía ambas as qualidades. Convidara-o a entrar, mal o ouvindo enquanto ele lhe falava da árdua viagem pelo país. Assim que ele se calou, ela pusera-lhe anua sua alma, resolvida a expiar a sua culpa. Hesitante primeiro e depois numa torrente de palavras, contara-lhe tudo, inclusive o suspeito papel de George, como se ele fosse um confessor.
Eu não queria prejudicar o presidente, juro-o pela minha mãe e pelo meu pai - disse ela, por fim, a Flannery. - Mas sei que fui uma das pessoas que o magoou. Que farei agora, Tim? Não posso regressar ao meu escritório, encará-lo, e, mesmo que pudesse, provavelmente ele por-me-ía na rua e teria todo o direito de o fazer.
Bem, Edna, esta é uma das ocasiões em que não posso falar por ele - respondera Flannery - e realmente bem... acho que não estou numa posição indicada para lhe dizer o que deve fazer agora. Depende do que pensa e sente a respeito do presidente e... bem... do que sente pelo Murdock. Afinal, George é o homem com quem você pensa casar. Desejaria poder ajudá-la mas não posso. Acredito porém sinceramente que você não quis prejudicar ninguém.
Depois de ele se ter ido embora, ela sentira-se melhor, mas não ficara menos confusa. Flannery lembrara-lhe, assim como o simples anel de diamantes no seu dedo, que estava noiva, prestes a casar. A quem, então, devia uma rapariga a sua lealdade - ao patrão que ela traíra (não que aquelas verdades não pudessem ter sido descobertas algures, de qualquer modo), ou ao noivo que a traíra a ela (se é que a traíra, o que provavelmente fizera, mas então talvez achasse que era para bem de ambos e porque a amava tanto)?
Adormecera a pensar nesse insolúvel dilema e acordara a pensar nele.
Acordara tarde nessa manhã, fortificada pela decisão de pôr termo à sua decepção daquela semana de mentiras. George Murdock, quase se convencera a si própria, não podia ter agido mal, e mesmo que tivesse podia ter sido um deslize como sucedera com ela, e mesmo que assim não fosse, que tivesse sido intencionalmente, George não podia ter fornecido nada às forças inimigas que tivesse prejudicado mais o presidente do que já tinha sido prejudicado. Portanto estava decidido.
Mas depois, precisamente à uma hora, ela ligara a televisão, como todos os Americanos, com a intenção de ver, apenas um pouco por curiosidade, esperando não ouvir mais que uma quantidade de discursos maçadores, como aqueles que vinham todas as manhãs no Congressional Record. Em vez disso, porém, achara-se absorvida na grandeza de um drama que a atraía tanto como qualquer drama histórico de Shakespeare. E depois ouvira aquele horroroso Zeke Miller vomitando todas aquelas cobardes calúnias, e a sua absorção inflamara-se ao ponto de se transformar em raiva surda. E depois ouvira Nat Abrahams, tornando público aquele invisível quinto artigo de acusação, e a sua raiva fundira-se em pura vergonha.
Ela reviveu toda essa semana anterior durante o trajecto até ao vestíbulo oeste da Casa Branca.
Fechando a sombrinha, dirigiu-se para a sala da imprensa. Um letreiro pregado a uma coluna, dizia: CORRESPONDENTES DA CASA BRANCA. À sua esquerda e à sua direita abriam-se duas alas, e no centro da sala encontravam-se as duas filas de cubículos dos repórteres, costas com costas, separados por divisórias à prova de som. Hesitou, perguntando a si própria qual seria o cubículo que pretendia.
Depois, resolutamente, começou a percorrer a fila à sua direita. Quando chegou ao sexto cubículo, espreitando para dentro dele, como já fizera com todos os outros, a sua atenção foi atraída por um letreiro dactilografado pregado na parede. Dizia: «Propriedade Privada da Associação Jornalística de Miller. R. Blaser. G. Murdock.»
Entrou no cubículo, procurou algo com que escrever; encontrou um bloco de notas, rasgou uma folha deste e escreveu com um lápis que encontrou: «George: Desculpa mas não serve. Edna.» Depois tirou o anel de noivado do dedo, colocou-o em cima da nota que escrevera e apressou-se a sair dos aposentos da imprensa.
Aproximando-se da Sala de Leitura, tencionava virar à esquerda e seguir pelo corredor que passava pelo escritório de Flannery e que ia dar ao seu próprio escritório. Mas a entrada para o corredor do secretário da Imprensa encontrava-se bloqueada por uma massa compacta, esbracejante e barulhenta, de repórteres, e no meio destes estava Tim Flannery, aflito, o cabelo ruivo desordenado, a gravata pendente do colarinho aberto e em mangas de camisa, sendo bombardeado com perguntas.
Edna Foster percebeu que tinha de tomar outro caminho até ao seu escritório, ou de quem quer que fosse agora. Começou a atravessar o vestíbulo e, ao passar ao pé da mesa que se encontrava no centro deste, ouviu alguém chamá-la.
Parou, voltou-se e viu George Murdock, vestido com um fato caro cinzento-fumo, que ela não lhe conhecia, apressando-se na sua direcção.
- Querida - disse ele, segurando-a pelos cotovelos -, bons olhos te vejam. Por que não me telefonaste? Quando é que chegaste?
A cena inevitável, disse ela para consigo mesma. Não valia a pena tentar fugir-lhe. Uma frase do julgamento atravessou-lhe o espírito e ela adaptou-a a George e a si própria: mata a fera antes que -mesmo que isso signifique o fim da tua própria vida.
Edna, quando regressaste? - repetiu ele.
Eu nunca saí daqui, George.
Nunca saíste daqui? - observou ele, espantado, largando-lhe lentamente os braços.
É verdade. Tenho estado sempre aqui. Não quis que tu o soubesses porque não te queria ver.
Edna, que diabo queres dizer com esse não te queria ver?
Quero dizer que não quero nada com alguém em quem não posso confiar. Pegaste no que eu te contei confidencialmente, ven-deste-o a Zeke Miller a troco de um nojento emprego, e és em grande parte responsável por o presidente ir a julgamento. Isso mete-me nojo - e tu metes-me nojo.
Ao princípio, pelo rubor magoado que lhe invadiu o rosto, ela pensou que ele iria negar tudo. Para surpresa sua, não o fez. E disse:
- Escuta, é verdade, mas não é um caso de faltar à confiança, nunca enganei ninguém em toda a minha vida e muito menos a ti. - Subitamente reparou que o grupo à volta de Tim Flannery se dispersava e que os seus colegas se espalhavam pela sala. Edna – disse ele -, não podemos falar aqui. Vamos até lá fora tomar qualquer coisa e eu explicar-te-ei.
- Não vou a lado nenhum contigo, nem agora nem nunca. Aflito, ele baixou a voz.
- Escuta, querida, tu prometeste ajudar-me a segurar o antigo emprego ou a arranjar um novo, passando-me algumas notícias antes que fossem tornadas públicas, e eu pensei, talvez me tivesse enganado, mas pensei que o que me contaste naquela noite fosse para eu usar, para nos ajudar a ambos. Pois bem, eu fiz um pouco uso dessa informação, mas o pessoal do Miller e do Reb juntaram dois e dois e aumentaram-na. O meu papel foi nulo. Ela não recuou.
Se o teu papel foi nulo, como explicas que o Zeke Miller te tenha pago como te pagou?
Querida - suspirou ele -, o que eles obtiveram de mim é um zero comparado com o que eles tinham já. O Miller quis apenas mos-trar-se grato por... por eu estar do lado dos que querem ver este país no bom caminho, e foi tudo. Tu não o conheces, Edna. O Miller é na realidade um homem generoso por debaixo daquela sua bombástica política. De qualquer modo, acerca daquilo sobre o presidente, eu acredito que fiz algo de bom para o meu país. O Dilman não é suficientemente competente para ser o nosso chefe de estado. Sabes isso tão bem como eu. Portanto sê razoável.
Ser razoável? Para quê? Para que possamos casar, e que tu tenhas uma fonte barata de informações para...
Pára com isso, Edna. Daqui a duas semanas o Dilman irá para o meio da rua, e tu ficarás sem emprego, portanto que espécie de fonte de informações poderás tu ser? Quero casar contigo porque assim o desejo, e é tudo. Posso fazê-lo agora e...
- Mas não o posso fazer eu. Tu custaste-me demasiado. Viu-o olhar nervosamente de um lado para o outro, e então reparou que Reb Blaser passeava por ali, fingindo-se desinteressado. Sentiu-se maldosamente satisfeita pelo embaraço de George. Colocou o guarda--chuva debaixo do braço e fez menção de continuar no seu caminho.
Espera um minuto - disse ele, tentando detê-la -, ainda não acabámos.
Oh, sim, já acabámos.
Queres dizer que entre esse Sambo Negro e eu o preferes a ele? - disse ele secamente.
Prefiro voltar a trabalhar para um homem que está a tentar o melhor que pode, se ele me aceitar, do que ir viver com um que tão baixo desceu e em tão nojento se transformou. Adeus, George. Continua a escrever as tuas histórias com o Blaser. Lê-las-ei nos jornais. E não te maces a telefonar-me outra vez.
Edna, pelo amor de Deus.
Ela não ouviu mais. Correu para fora do vestíbulo. No corredor sentiu-se contente com uma coisa apenas: por não ter chorado.
Ao entrar no seu escritório, viu que nada mudara, excepto que a sua secretária estava agora ocupada por Diane Fuller falando ao telefone. Enquanto pousava a bolsa, encostava a sombrinha a um canto e tirava o impermeável, notou que Diane a olhava como se tivesse visto surgir uma alma do outro mundo.
Diane Fuller disse: «Sim, Sr. Presidente», para o bocal do telefone. Depois desligou, levantou-se, pegou no seu bloco de estenografia e no lápis e disse nervosamente: «Olá, Miss Foster. Não a esperava.»
Edna aproximou-se da secretária.
Onde é que vai?
Lá para dentro. Vai começar uma reunião dentro de poucos minutos e o presidente quer que eu tome nota dela.
Bem, não faz mal. - Estendeu as mãos para pegar no bloco e no lápis. - Estou pronta a regressar ao trabalho.
Diane Fuller agarrou-se com força às coisas que tinha na mão.
Não, não sei se...
Também não sei, Diane - concordou Edna -, mas tenciono saber isso agora.
Tirou-lhe decidida o bloco e os lápis das mãos.
- Fique aqui ainda por algum tempo e atenda as chamadas telefónicas. Se daqui a cinco minutos eu ainda não tiver regressado, pode voltar para o seu escritório na Ala Este. Se daqui a segundos eu tornar a sair por aquela porta, já sabe que o lugar será seu.
Sem sequer se dar ao trabalho de se ver ao espelho, Edna Foster abriu a pesada porta que dava para o Escritório Oval e entrou. A princípio, o Presidente Dilman não deu pela sua entrada. Encontra-va-se sentado à secretária, toda a sua atenção concentrava-se no ecrã da televisão.
Ao chegar ao pé da secretária, Edna tossiu discretamente. Imediatamente a cabeça do presidente se voltou para ela. Viu-o contrair levemente as sobrancelhas, mas não evidenciou qualquer reacção de espanto. Apagou a televisão.
Boa tarde, Miss Foster - disse ele. - Já se encontra completamente restabelecida?
Tenho estado doente, Sr. Presidente, mas agora já me encontro bem. Se estou ou não suficientemente boa para trabalhar, isso depende inteiramente de si. Acho... acho que lhe devo uma franca explicação.
Dilman mexeu os papéis à sua frente.
- Não é necessária qualquer explicação. Tim Flannery contou-me hoje tudo ao almoço. Confessou-me ter ido vê-la, e tomou a responsabilidade de me pôr a par do que se passava.
Sentiu-se grata por Tim lhe ter facilitado a tarefa. Achava porém que ainda devia falar por si própria.
Então, tudo o que posso acrescentar, quer signifique alguma coisa ou não, mas tenho de o dizer por mim própria, é isto: tive de tomar uma importante decisão pessoal e já a tomei. Mais cedo ou mais tarde acho que todos nós temos de escolher um caminho entre dois a tomar. Não se pode evitar isso. Bem, não é que tal facto conte para o Sr. Presidente, mas quero dizer-lhe que estou do seu lado, aconteça o que acontecer, e não tolerarei nem quererei nada a ver com alguém que o não esteja também. Gostaria de continuar a trabalhar para si, não por ser o emprego de secretária mais bem pago do mundo, mas porque, como o Sr. Abrahams, também quero ajudar. Sei que o Sr. Presidente tem toda a razão se me quiser despedir. Se o fizer não o censurarei nem um pouco. Sei que no seu lugar...
Miss Foster - disse o presidente, levemente impaciente -, hoje é um dia muito ocupado. Por favor sente-se e vamos ao trabalho.
O seu coração, que lhe parecera por uns momentos ter deixado de bater, recomeçou a sua actividade. Teve vontade de o abraçar. Murmurou apenas: «Muito obrigada, Sr. Presidente», e sentou-se rapidamente no seu lugar habitual. O presidente carregou num botão do sistema telefónico e comunicou algo ao secretário dos compromissos.
Quase imediatamente, abriu-se a porta que dava para o escritório de Shelby Lucas e entrou o director da C. I. A., Montgomery Scott, seguido pelo general Jaskowick. Ambos cumprimentaram o presidente, e depois Scott saudou Edna e Jaskowick apresentou-se-lhe calorosamente.
Onde nos devemos sentar, Sr. Presidente? - perguntou Scott.
O Sr. sente-se aí, junto de Miss Foster - disse Dilman. - General Jaskowick, puxe uma cadeira aqui para o pé de mim, de modo que fiquemos de frente para eles.
Tenho estado a ver televisão- disse Jaskowick pegando numa cadeira e levando-a para o lugar indicado. - Se alguma vez pus os olhos num escarrador vivo, foi hoje, enquanto observava aquele Zeke Miller. Mas para falar francamente, penso que o Sr. Abrahams lhe está a cuspir bem nos olhos a ele também.
Acha isso? - perguntou Dilman. - É-me difícil julgar.
Pode perder o primeiro round no Senado - disse Jaskowick -mas pode ter ganho uma milha em todo o país.
Dilman acenou pensativamente com a cabeça, depois fez girar repentinamente a cadeira e tornou a carregar no botão para o secretário dos compromissos. Observou Jaskowick e Scott, e disse:
- Vão entrar agora... Quando penso no que se vai decidir neste momento, o que se viu na televisão parece tão importante como um desenho animado para crianças.
A porta abriu-se e tornou-se a fechar e, com a entrada do ministro da Defesa e do presidente dos chefes do Estado-Maior, a atmosfera do Escritório Oval pareceu ficar imediatamente carregada. O Ministro Cari Steinbrenner, encarnando em cada movimento a irrepreensível solidez do bem sucedido industrial da aviação, que se fez por suas próprias mãos, cumprimentou cortesmente os outros, enquanto o general Pitt Fortney, depois de ter atirado com o boné para cima de um sofá, se aproximava com uma saudação mais agressiva.
- Bem, e agora, Sr. Presidente - disse ele sentando-se ao lado do ministro da Defesa -, que há de tão importante para que o Cari e eu tivéssemos de vir aqui mesmo a meio da tarde? Tanto quanto sei, tudo o que recebemos esta tarde pelas nossas comunicações podia ter sido trazido por pombas. O mundo encontra-se em paz, nada de lutas, com excepção talvez daquela pequena escaramuça lá no Senado. - Riu-se. - Mas parece-me que isso não nos diz respeito.
Dilman engoliu isto calmamente e depois, ignorando o general Fortney, dirigiu-se apenas a Steinbrenner.
Senhores, convoqueí-vos porque há uma verdadeira e grave crise desenvolvendo-se fora do país. Até ontem, o Scott e eu temo--nos mantido absolutamente ao corrente da situação em e à volta de Baraza, e...
Oh, isso - interrompeu o general Fortney, emitindo um sopro pelo nariz.
Dilman fixou o presidente dos chefes do Estado-Maior.
- Sim, isso - disse ele. - Enquanto houver um lugar na terra em que a União Soviética, secreta ou abertamente, se prepare para pôr em risco a independência de um governo democrático, quer seja grande ou pequeno, ao qual prometemos o nosso apoio, esse é o lugar com que nos devemos preocupar. E isso passa-se com Baraza. Persuadimos Baraza a relaxar a guarda contra o comunismo, em troca da boa vontade e da promessa de paz da Rússia. Agora há provas concretas de que está prestes a quebrar a sua promessa, ajudando a deitar abaixo o Presidente Amboko.
Sr. Presidente - disse o ministro Steinbrenner -, baseado nas informações que vi ontem, parece ser extremamente duvidoso que o primeiro-ministro Kasatkin tenha qualquer verdadeira intenção de fomentar a revolta na África.
Isso era ontem - disse Dilman. - Hoje é um outro dia, e a informação adicional que esperávamos chegou esta manhã... Sr. Scott, faça o favor de repetir aqui e agora o que me disse há uma hora atrás, a última informação que acaba de chegar à C. I. A.
Montgomery Scott despejou a pasta e, pegando nos papéis, olhou mal-humorado para Steinbrenner e para o general Fortney.
Infelizmente, senhores, as esperanças de manter a paz em Baraza são cada vez menores com cada relatório que recebemos. A nossa última informação dos agentes em Baraza foi escalonada entre os números quatro e três, significando bastante certo. Era o suficiente para ficarmos preocupados, e para sugerir que se investigasse mais a situação. Assim se fez. O relatório que recebemos hoje custou-nos a vida de um agente da C. I. A. e este relatório foi cotado com dois, uma graduação apenas abaixo de positivamente certo, o que faz com que a situação seja suficientemente séria para se considerarem medidas militares.
Monty - disse o ministro da defesa -, o que diz esse último relatório?
Encontrará uma cópia completa dele em cima da sua secretária quando voltar para o Pentágono - disse Scott. - O que diz? Informa que há oficiais russos mesmo junto à fronteira de Baraza, reunindo e preparando um pequeno exército de nativos comunistas. Talvez uns treze mil homens, equipados com algumas armas americanas. Contudo, a maior parte deste exército comunista foi equipado também com tanques, morteiros, jeeps e artilharia média soviética. Até construíram apressadamente alguns campos de aterragem secretos e enviaram para lá alguns caças a jacto MIG-17 e alguns bombardeiros. Sabemos que a preparação desta força comunista nativa está quase completa, e tudo o que resta é descobrir precisamente quando, em que data, os rebeldes tencionam atacar. Esperamos descobrir isso entre amanhã e o fim da semana. Vários agentes de segurança de Kwame Amboko conseguiram infiltrar-se no campo inimigo e, se algum deles conseguir sair de lá com vida, Amboko tem esperança de nos poder enviar essa informação nessa altura. A atenção de Steinbrenner dirigiu-se para Dilman.
Confia em Kwame Amboko, Sr. Presidente?
Completamente - disse Dilman.
Eu não - disse o general Fortney com uma voz cortante. -Certamente que ele está a inventar uma coisa muito alarmante apenas para nos arrastar até àquele seu pântano e nos utilizar para liquidar os seus inimigos políticos. Sr. Presidente...
General - interrompeu Dilman -, eu confio nele... Continue, Sr. Scott.
O director da C. I. A. passou a mão pela barba.
- É claro que a C. I. A. avaliará também as descobertas de Amboko, assim como avaliamos as dos nossos próprios agentes. Se as descobertas de Amboko estiverem de acordo com as nossas em graduação, se forem quase positivamente certas, temo que tenhamos de agir rapidamente.
O general Fortney explodiu:
- Hem, espere lá um minuto, não vá tão depressa, Scott! Está a tentar meter-nos numa guerra a sério, baseado apenas em qualquer literatura de incitação que lá os seus fulanos da C. I. A. estão a produzir? Nem pense nisso!
Inclinou-se sobre a secretária, em direcção a Dilman.
- Sr. Presidente, há muita coisa em jogo para se pôr o futuro do nosso país completamente nas mãos da C. I. A. Há muitos entre nós que temos mantido o Palácio Investigador do Sr. Scott, em Landley, debaixo de olho. Que vemos? Um magote de colegiais amadores. Por que não nos disse a C. I. A. que a China Comunista ia entrar na Guerra da Coreia? Onde estava a C. I. A. quando fomos apanhados na baía dos Porcos, em Cuba? Como é que deixaram que os aviões nossos U-2 sobrevoassem a Rússia, quando estava pendente uma grande conferência da máxima importância? É essa a malta que quer que escutemos... que escutemos e que nos mande depois carregar para Baraza?
- Permita-me, Sr. Presidente, que responda - disse Montgomery Scott, mantendo dificilmente o sangue-frio. - General Fortney, eu diria que a C. I. A. tem feito tanto, se não mais, que o Pentágono para salvaguardar a Nação e os seus interesses. Fomos nós que vos demos informações prévias acerca do bando de Arbenz na Guatemala, fomos nós que vos informámos acerca do Sputnick antes de este ser posto em órbita, predissemos e avisámo-vos acerca da subida de Khrushchev e depois de Kasatkin, fomos nós que demos a informação sobre Baraza, embora o não aconselhe a agir até que o nosso relatório seja confirmado pela declaração de Amboko acerca da data do ataque comunista.
O general Fortney encolheu os ombros, resmungando entre dentes, enquanto passava os dedos pelas quatro estrelas no seu ombro direito.
Temos dois caminhos a seguir - disse Dilman. - Ou esperamos que os comunistas ataquem, ou nos antecipamos e nos preparamos, tendo uma força móvel completamente pronta para entrar em combate e fazendo com que a Rússia o saiba. A primeira alternativa não me agrada, porque se esperamos e depois tivermos de agir poderá já ser demasiado tarde e podêr-nos-á custar demasiadas vidas americanas para reconquistar terreno africano perdido. Prefiro a segunda alternativa. Quero uma divisão alerta e pronta a partir em cinco minutos, se for necessário. Tem alguma força assim, Ministro Steinbrenner?
Tenho - disse Steinbrenner, mexendo-se na cadeira. - Há uma única força modernizada recomendável que poderia veloz, economicamente e com sucesso levar a cabo uma tal operação. Este grupo foi especialmente treinado para ser rápido e flexível. Parte, chega, dispara e desaparece antes que o inimigo compreenda o que está a acontecer. É a nossa divisão de elite, Sr. Presidente - os Dragon Flies.
Os Dragon Flies - repetiu pensativamente Dilman. - Óptimo! Quero-os em permanente alerta.
Sr. Presidente! - Era de novo o general Fortney. Levantou-se e perguntou irado: - Será que ninguém neste escritório vai escutar a voz da razão? Quer dizer que vale a pena arriscar uma guerra nuclear com a União Soviética, que vale a pena enviar soldados americanos para um buraco negro qualquer que nem sequer vem na maior parte dos mapas, apenas para apoiar um papel que diz que eles são uma democracia, quando todos sabem que são apenas umas tribos primitivas, que nem sequer ainda aprenderam a ler? Baraza não vale nem uma vida americana, nem uma sequer, quanto mais milhares, ou até milhões se tal guerra se espalhar. Ainda ontem, ao falar com o ministro de Estado...
- General Fortney - disse Dilman -, deve estar enganado. Não há ministro de Estado.
Por um momento Fortney ficou desconcertado, mas logo recuperou o equilíbrio.
Está bem - disse ele -, deixemos o Senado decidir isso. Não estou interessado em políticas. De qualquer modo, não posso aprovar qualquer decisão precipitada que comprometa a minha melhor força e o grupo militar melhor equipado dos Estados Unidos, o mais tecnicamente avançado, num buraco qualquer da selva. Se quer que eu prepare um par de divisões normais de infantaria, como um gesto simbólico para a AUP...
General Fortney - disse Dilman com firmeza -, eu quero que se preparem os Dragon Flies.
Sr. Presidente, não pode fazer uma coisa dessas - insistiu o general Fortney enfaticamente. - Terei eu que lhe explicar porquê? -Olhou desdenhosamente para os outros que se encontravam na sala. - Porque aqui mais ninguém parece ter a coragem para o fazer?
Voltou a fixar os olhos em Dilman.
- Muito bem, eu fá-lo-ei.
Os frios olhos do general Fortney pareceram fixar-se com mais força em Dilman. Os seus lábios finos estavam exangues. Disse:
- O que quer que tenha ouvido, sabe porventura o que os Dragon Flies são, o que realmente são? São uma força de combate cem por cento branca. É uma divisão composta de uma ponta à outra de veteranos militarmente educados, habituados ao combate, e todos brancos. E no caso de isso estar a incomodar alguém aqui, saiba-se que tal facto não sucedeu por motivos discriminatórios, pois, se tivéssemos podido incluir nela rapazes de cor, teriam sido bem-vindos. Este grupo é o que é porque, quando foi criado e desenvolvido, requeria homens de combate com avançados conhecimentos técnicos, boa educação e habilidade para manejar todo aquele maquinismo sério, e só encontrámos tais homens entre os brancos. Foi assim que a coisa surgiu como é agora.
A expressão de Dilman permaneceu inalterável. Nem um só músculo se moveu no seu rosto negro. Esperou apenas.
Agora já está a par dos factos militares da situação - continuou o general Fortney - e conhecendo-os talvez reconsidere duas vezes antes de fazer o que se propõe. Porque digo-lhe uma coisa, Sr. Presidente, é meu dever dizer-lha: mandar essa nossa elite cem por cento branca para um buraco cem por cento preto, mandar os nossos rapazes brancos lutar e morrer por um bando de selvagens ignorantes, Sr. Presidente, e rebentar-lhe-á nas mãos uma revolta nacional aqui mesmo. Pensa que o Congresso deste país ou o povo lá fora permitiria tal coisa? Pode ter a certeza que não. Não julgue que não estou também a pensar em si. Já tem bastantes problemas com todo esse julgamento. Para quê ir à procura de mais? Por que tentar suicidar--se? Uma mera insinuação pública de que vai enviar os Dragon Flies para a África e o Sr. Presidente está politicamente morto e enterrado. Só parecerá uma coisa: parecerá que está absolutamente resolvido a sacrificar apenas americanos brancos a pretos africanos, enquanto mantém os seus irmãos negros que usam uniforme sãos e salvos cá no país.
General Fortney, se me permite interrompê-lo. - Era a primeira vez que o general Jaskowick falava. - Se estamos a ser absolutamente francos, por que não iremos um pouco mais longe? Penso que é sabido em todos os círculos militares que os Dragon Flies são hoje uma força exclusivamente branca porque foi essa a sua vontade e a do Pentágono há dez anos atrás. Se tivesse permitido que os jovens recrutas negros tivessem tido a mesma educação avançada, o mesmo treino técnico, a mesma oportunidade militar que os brancos, aventuro-me a dizer que trinta por cento dessa força seria hoje de cor. Penso que a culpa recai não só em cima dos seus ombros, Sr. General, mas em todo o país. Agora temos nós todos de encarar as consequências.
O general Fortney abanou um dedo irado na direcção de Jaskowick.
- Meu rapaz, não me venha para cá dizer o que se passa na terra firme, pois eu sou o que tem mais experiência para o saber. Deixe-se ficar lá em cima no espaço cósmico, que é onde você pertence, e deixe os verdadeiros problemas cá de baixo serem resolvidos por pessoas que os conheçam. - Voltou-se para Dilman. - Sr. Presidente, escute-me por favor, se não pelo país, ao menos por si. Deixe-me pôr em estado de alerta um par de divisões essencialmente negras, ou até mesmo mistas. Eles conseguirão sair-se suficientemente bem, e então poderemos esperar até ver o que o futuro nos traz...
Para Edna Foster, absorvida na troca de palavras e nos rabiscos no bloco de notas, a total resistência de Fortney começou gradualmente a tornar-se clara. Este estava a tentar ganhar tempo até o julgamento acabar. Nessa altura Dilman sairia e Eaton entraria. E Eaton nunca permitiria que qualquer divisão americana racialmente mista, muito menos uma toda branca, fosse enviada para combater na longínqua Baraza. Perguntou a si própria se o presidente estaria a perceber isso também. Teve a sua resposta quase instantaneamente.
O Presidente Dilman pôs-se de pé.
- General, se espera que o futuro próximo traga para este escritório um presidente branco mais razoável, é possível que veja realizar-se o seu desejo, mas eu não posso permitir que fique à espera dele e das suas ordens. Nem arriscarei a nossa integridade permitindo que o país espere. Neste preciso momento são as minhas ordens que contam. Quero que mande preparar os Dragon Flies.
Steinbrenner pôs-se igualmente de pé.
Certamente, Sr. Presidente...
Se insiste - disse amargamente o general Fortney. - Mas...
Não insisto apenas - disse Dilman -, assim o ordeno, e orde-no-o imediatamente.
Depois de Fortney, Steinbrenner e Scott se terem ido embora, Jaskowick disse:
- Que pretensioso descarado!
- Não lhe ligue - disse Dilman. - Que se segue, Miss Foster? Edna levantou-se e percorreu com os olhos a lista dos compromissos.
- Às cinco horas tem uma entrevista com o Sr. Poole e a Sr.a Hurley, e às - oh! é verdade, antes disso, a qualquer hora, está apontado aqui para ir ao Hospital de Walter Reed...
Dilman bateu com a mão na mesa.
- É verdade... General Jaskowick, gostaria que me envia-se uma curta mensagem ao embaixador Rudenko. Informe-o de que estamos a par do que se passa em Baraza e do papel que o seu país está a desempenhar, e que estamos a tomar medidas para impedir qualquer invasão comunista... Muito bem, Miss Foster, será melhor mandar vir o carro para o Pórtico Sul. Irei agora mesmo ao Hospital Walter Reed. Isso é algo que quero fazer - enquanto sou ainda Presidente dos Estados Unidos.
Era o primeiro dia em que Otto Beggs não sentia o corpo dilacerado por excessivos espasmos pós-operatórios e em que o seu cérebro não se encontrava envolto na névoa provocada pelos remédios contra as dores. Era um dia em que podia pensar claramente. Ao princípio aceitara essa lucidez como uma bênção, mas agora via que ela o estava a levar para a morbidez e para o desânimo.
Havia uma hora, uma enfermeira viera e levantara-lhe a cabeceira da cama, para que ele pudesse ver, para lá da sua perna direita ligada e pendurada do tecto, o ecrã da televisão.
Todos os programas da televisão emitiam a mesma imagem: Nat Abrahams, no Senado, tentando refutar as torpes acusações feitas por Zeke Miller ao Presidente Dilman. Para um espectador que achava a sua própria condição e situação mais digna de dó que a do presidente, o julgamento não constituía qualquer diversão para o desânimo que sentia.
Otto Beggs apertou automaticamente o botão do som do controlo à distância que se encontrava junto da sua cama até a voz de Nat Abrahams se deixar completamente de ouvir e só permanecer a sua imagem no ecrã.
Enfastiado, Otto Beggs voltou a cabeça na almofada e olhou através da janela salpicada pela chuva, enquanto a sua atenção se desviava inteiramente para longe do ecrã e se voltava para dentro de si próprio e do seu próprio julgamento.
Não se podia queixar do tratamento no Hospital do General Walter Reed. Sabia que as suas portas estavam abertas para os soldados de carreira, desde generais até soldados rasos. Sabia que presidentes como Eisenhower e O. O, e até mesmo Dilman, tinham sido ali tratados, assim como vários membros do Gabinete. Não sabia o que lhe dava direito a todo aquele tratamento e cuidado gratuito. A não ser que tivesse sido o seu serviço, ou a Medalha de Honra, ou então por ter salvo a vida do presidente. Sabia - ouvira-o dizer ao falador anestesista - que os operadores ortopédicos tinham sido mandados chamar pelo próprio presidente Dilman. Beggs tomara conhecimento deste tratamento especial com sentimentos variados. Instintivamente sentira-se grato pela assistência do presidente. Ao mesmo tempo, porém, não lhe agradara a ideia de ficar a dever algo a alguém, e muito menos a Dilman, especialmente naquele período de desesperança. Contudo, quando a sua cabeça se encontrava mais limpa, como sucedia naquele dia, ele compreendia que Dilman era quem realmente tentava pagar uma dívida.
Deixando a janela, os seus olhos percorreram o quarto do hospital. Entre os inúmeros ramos de flores enviados por toda a gente, pelos Schearers, pelo cunhado Austin e sua família, pelo dono da Estalagem do Caminho, por correspondentes da Casa Branca, por Miss Foster e por dúzias de outros, o menos ostensivo era um modesto vaso de violetas colocado sobre a pequena mesa junto da sua cama. Gertrude, no outro dia, examinando os cartões dos vários remetentes, não achara nenhum entre as violetas.
- Quem mandou este vasinho, Otto? - perguntara ela. Ele respondera:
- Não sei, Gertie. Parece estúpido, mas não veio acompanhado de nenhum cartão.
É claro que viera acompanhado de um cartão dirigido ao Sr. Otter Beggs e não ao Sr. Otto Beggs, como correctamente devia ser. No cartão vinha escrito:
«Você é o homem mais valente do mundo. Poderá alguma vez perdoar-me? Ruby.»
Entre as névoas das fantasias causadas pelas drogas nos primeiros dias, ele sonhara que procurara Ruby e a punira, ou tencionara punir, pois as fantasias tinham terminado sempre com ele abra-çando-lhe o corpo nu e perfeito. Nos momentos de lucidez perguntara a si próprio se alguma vez a tornaria a ver e, se os seus caminhos se cruzassem, como se comportariam.
Depois, lentamente, durante a sua recuperação, Ruby recuara para o fundo do seu espírito como qualquer sonho distante, e o seu mundo real tinha sido tomado e dominado por Gertrude, menos pesada, menos gorda, de melhor humor e mais amável do que em qualquer altura desde os seus primeiros tempos de casados, e por Ogden e por Otis, com tanta admiração pelo pai como quando eram mais novos. Tinham-no visitado todos os dias, ao fim da tarde, e de vez em quando os rapazes ofereciam-lhe orgulhosamente uma caixa de cartão cheia de recortes de jornais que proclamavam o heroísmo de Otto Beggs. As sete caixas dos recortes permaneciam empilhadas de encontro à parede. Com excepção da primeira, que ele abrira para ver o que estava lá dentro, todas as outras estavam por abrir. Agradava-lhe recebê-las dos filhos, mas o seu conteúdo já não o interessava como o poderia ter interessado outrora.
Porque para Otto Beggs cada artigo daqueles não era uma proclamação da sua coragem, mas um obituário. Para ele, a bala do assassínio tinha posto termo à sua vida útil. Embora o almirante Oates tivesse considerado a operação um grande sucesso - porque a sua perna fora reparada e não amputada -, Otto Beggs considerava-a uma falsa vitória médica. Era verdade que lhe tinham salvo a perna; mas para um homem de acção, para um agente do Serviço Secreto, não passava já de um apêndice paralisado, que serviria apenas para lhe dar a aparência de um homem, quando ele, de facto, não passava de um aleijado. O almirante Oates assegurara-lhe que poderia andar sozinho, com a ajuda de uma bengala, e que seria capaz de guiar um carro especialmente modificado. Mas nunca mais poderia correr, saltar, agachar-se, ser o Otto Beggs dos campos de futebol da Costa Oeste e dos combates da Coreia. Ou até mesmo o Otto Beggs que correra para o presidente, o atirara ao chão de um golpe, recebendo a bala do assassino e ripostando-lhe com uma bala fatal. Fora-se para sempre todo o Beggs. Só ficara meio Beggs.
- Hem - ouviu dizer-lhe uma enfermeira de cor que entrara no quarto. - Porquê essa cara tão feia? Está com dores?
Ela estendia-lhe os seus comprimidos e um copo de água.
Não, estou bem - disse ele.
Bem, tome isso, mesmo assim. Faz bem à digestão. Hem, que moda é essa, ter televisão sem o som? Devia ligá-lo. Todo o hospital está a ver e a escutar. Aquele advogado esperto do presidente está a dar-lhes que é uma maravilha. Está agora a acabar o seu discurso.
Beggs engoliu os comprimidos, e depois de a enfermeira se ter retirado tornou a ligar o som.
No ecrã, o advogado do presidente, Abrahams, fizera uma pausa e depois, calmamente, recomeçou a falar. Beggs escutou atentamente.
- Honoráveis membros do Senado, permiti que eu conclua a minha introdução, citando umas palavras pronunciadas há um século atrás por um lendário membro do Congresso pelo qual o meu oponente parece ter tanta afeição - disse Abrahams. Refiro-me a Thaddeus Stevens e à sua última e angustiante tirada perante o Senado, depois de este ter absolvido o Presidente Andrew Johnson.
«Senhores, foram estas as amargas palavras de Thaddeus Stevens no final daquele outro julgamento: Depois de uma madura reflexão e de um profundo exame da história antiga e moderna cheguei à conclusão de que nem na Europa nem na América tornará um chefe executivo a ser demitido por meios pacíficos. Se ele retém o dinheiro e tem o poder de conceder a protecção do governo, ele é mais forte que a lei e é impenetrável à espada da justiça. Se a sua tirania se torna intolerável, o único recurso é o punhal de Brutus. Que Deus permita que ele nunca venha a ser usado...»
Abrahams pareceu avaliar o que acabara de dizer e depois diri-giu-se à objectiva da câmara e à invisível audiência.
«Senhores, estas são palavras dignas de serem ponderadas esta noite. Porque hoje, na barra dos réus, está um chefe excutivo dos Estados Unidos, desarmado de dinheiro ou do poder de conceder a protecção do governo, enfraquecido por leis anticonstitucionais inventadas para o prejudicarem - hoje, ele permanece sozinho para se opor à intolerável tirania dos seus acusadores, que tentaram literalmente roubar-lhe o controlo do seu cargo e desafiaram a sua resistência, brandindo figurativamente o punhal de Brutus.
«Sim, honoráveis membros do Senado, este julgamento, instigado pelos membros da Câmara como um meio vingativo para matar um chefe legal, para que este possa ser substituído por alguém escolhido por eles, este julgamento, repito, é o verdadeiro punhal de Brutus. A lâmina foi retirada hoje da bainha pela oposição e mostrada a todo o mundo. Representando um desafio à razão, à lei, à ordem e à própria democracia, o punhal nu de Brutus está suspenso no ar, pronto a ser novamente enterrado. Eu suplico-vos, imploro-vos que escutem a prece de Thaddeus Stevens: 'Deus permita que ele nunca venha a ser usado.' ...Muito obrigado pela amabilidade da atenção que me dispensaram.»
Otto Beggs carregou no botão de controlo à distância e o ecrã da televisão ficou escuro.
Perturbado - pois tinha a curiosa sensação que um segundo assassino, de arma em riste, se aproximava do presidente e que ele, desta vez, estava impossibilitado de intervir -, Beggs estendeu o braço para o maço de cigarros em cima da mesinha à cabeceira da sua cama. Ao pegar-lhe, ficou surpreendido ao ver Gertrude ladeada por Ogden e Otis no limiar da porta. Vinha com o seu melhor fato, os rapazes ataviados nos seus fatos domingueiros, e o aparecimento deles àquela hora do dia, antes das horas de visita, não fazia qualquer sentido.
Que fazem aqui? - perguntou ele, tentando sentar-se, mas não o conseguindo por causa da perna suspensa. - Que se passa? Aconteceu alguma coisa?
Otto - chamou Gertrude -, estás completamente acordado?
Que queres dizer com «se estou completamente acordado»? Claro que estou.
Ela acenou misteriosamente para alguém no corredor do hospital e depois entrou na sala, empurrando os rapazes à sua frente.
- Otto, esta é uma ocasião especial.
Intrigado, observou a súbita parada de uma quantidade de pessoas muito importantes que entravam no seu quarto. Primeiro entrou o ministro das Finanças, Moody, depois o chefe Hugo Gaynor e Lou Agajanian, e depois o almirante Oates, Tim Flannery e Edna Foster, e finalmente, sem se importar com o protocolo, precedido e seguido de mais agentes do Serviço Secreto, entrou o Presidente Douglass Dilman.
O quarto ficou cheio de rostos sorridentes, e a cabeça de Otto Beggs começou a andar à roda.
- O que se passa aqui? Mas o que se passa? - perguntou ele aflito.
O Presidente Dilman deu a volta à cama, e até ele sorria, o que era incrível para Beggs, considerando o julgamento a que acabara de assistir na televisão.
Como tem passado, Sr. Beggs? - perguntou o presidente.
Estou bem, acho eu - Beggs fez um gesto de espanto, abrangendo o quarto cheio de gente. - Não compreendo o que se passa.
O Presidente Dilman acenou com a cabeça, meteu ambas as mãos nas algibeiras e extraiu de uma, uma caixa preta e da outra uma pequena folha de papel.
- Sr. Beggs, espero que possa suportar esta breve e atrasada cerimónia, bem merecida por si. - O presidente desdobrou a folha de papel. - Permita-me que lhe leia a citação: «Ao Sr. Otto Beggs, agente veterano do Departamento do Serviço Secreto da Casa Branca: Por ordem do Presidente dos Estados Unidos e do ministro das Finanças, aqui lhe confiro o mais alto prémio concedido pelo governo a um civil, a Medalha da Honra Excepcional do Serviço Civil, que é reservada para os que mostram excepcional coragem e risco pessoal voluntário, em face do perigo, quando em cumprimento do dever e cuja acção resulta em benefício directo para outros empregados do Departamento ou do governo. Otto Beggs, pela sua excepcional bravura ao defender a pessoa do presidente contra um assassino armado, aqui e agora lhe confio esta medalha de ouro.»
Os olhos de Beggs encheram-se de lágrimas e a comoção não o deixou articular uma palavra. Pegou na medalha de ouro, e depois na mão do presidente, e tentou sorrir para os fotógrafos que invadiram o quarto para fotografar a cerimónia,
Depois de ter posado com o presidente, e depois com Gertrude e os rapazes, e depois com o ministro das Finanças e com o chefe, Beggs deixou-se cair extenuado na cama. Então o presidente ergueu a mão.
- Sr. Beggs - disse ele -, o senhor é um herói americano, o único cidadão no nosso país que possui tanto a mais alta honra militar como a nossa mais alta honra civil. Poder-se-á imaginar que não há nenhum lugar mais alto que possa atingir. Contudo, cremos que merece muito mais e que poderá atingir mais na carreira que escolheu. O Serviço Secreto espera o seu regresso, Sr. Beggs, embora não para a sua antiga posição. Sinto-me contente por lhe poder anunciar a sua promoção, efectiva a partir de hoje, à posição de chefe do Departamento da Casa Branca. O nosso bom amigo Lou Agajanian vai ser transferido para Nova Iorque e o Sr. Beggs terá o posto dele. Precisamos de si. Volta para junto de nós o mais breve possível!
Beggs, as lágrimas correndo-lhe pelas faces, murmurou:
- Pode ter a certeza que em breve lá estarei. Muito obrigado, Sr. Presidente.
O quarto começou-se a esvaziar, e no momento em que o presidente ia também a sair juntamente com Tim Flannery Beggs recordou que havia algo que lhe queria dizer.
Sr. Presidente - chamou ele. - Posso falar consigo apenas por um minuto?
Mas certamente...
Dilman fez sinal a Flannery para o esperar lá fora e depois regressou para junto da cama.
- Sr. Presidente, tenho de lhe contar um incidente que não contei a ninguém - disse Beggs em voz baixa. - Zeke Miller e um fulano qualquer chamado Wine estiveram aqui ontem à noite. Parece que entraram sem ninguém dar por eles. Tentaram azedar-me dizendo-me que eu estava aleijado para o resto da vida e tentaram pôr-me contra si - mas o que eles realmente pretendiam era uma declaração assinada para o julgamento confessando que eu vira o Sr. Presidente com Miss Gibson, comportando-se como eles queriam, e afirmando que o vira beber de vez em quando e que o tinha visto e ouvido na Universidade de Trafford a falar com o seu filho acerca dos Turnerites. Sabe o que lhes respondi?
O Presidente Dilman esperou em silêncio. Beggs disse:
- Respondi-lhes que o melhor que tinham a fazer era porem-se a andar daqui para fora, antes que eu lhes esmurrasse os focinhos a ambos e os atirasse pela janela fora.
Solenemente olhou para a perna suspensa do tecto.
- Sabe, Sr. Presidente, homens como aqueles não entendem nada do Serviço Secreto. Se entendessem saberiam que o meu primeiro dever é proteger o Presidente dos Estados Unidos contra qualquer perigo, incluindo o assassínio, mesmo que seja um assassínio do carácter. Acho que eles não sabiam que eu estava ainda de serviço - e que sempre o estarei. Era isto o que lhe queria dizer, Sr. Presidente.
Beggs pôde ver que chegara a vez de o presidente ficar comovido, embora Dilman o tentasse esconder.
Muito obrigado, Sr. Beggs.
Não tem nada que me agredecer. Como já lhe disse, estava a cumprir o meu dever.
Depois de o presidente se ter ido embora, Beggs desejou poder estar sozinho, mas Gertrude, Otis e Ogden caíram em cima dele, bei-jando-o e abraçando-o. Tudo o que Beggs conseguiu encontrar para dizer a Gertrude foi que agora, com o seu aumento de salário, ela poderia começar a procurar seriamente uma casa, nos subúrbios, que lhe agradasse. E ela repetiu várias vezes que não era uma vizinhança snob o que ela queria, mas que procuraria apenas uma casa maior, com sol, um sítio melhor para os rapazes.
Quando a enfermeira os separou e conduziu Gertrudé e os rapazes para fora do quarto, Otto Beggs sentiu-se contente por estar de novo só. Tinha muito em que pensar, a medalha de ouro, o novo emprego com o seu aumento de salário e uma casa nova numa melhor vizinhança e a família com o seu antigo respeito por ele. Contudo o seu espírito demorou-se brevemente em cada uma destas maravilhas, deixando-as impacientemente para trás.
Voltou os olhos para as modestas violetas em cima da mesinha junto da cabeceira da cama.
O seu pensamento fixou-se nelas e demorou-se no que elas lhe evocavam: «Otter».
Perguntou a si próprio como poderia ter sido quando ele era ainda um homem de acção*..
- Pergunto a mim mesmo - disse Leroy Poole - por que será que o presidente se está a demorar tanto. Já estamos à espera há vinte minutos. Já estou enjoado de olhar para este estúpido peixe.
Poole fez uma careta na direcção do peixe pendurado por cima do fogão da sala de recepção da Casa Branca e depois olhou para a Sr.a Gladys Hurley. Esta, sentada muito direita na cadeira, a boca fortemente apertada, continuou com os olhos fixos na carpete e não disse nada.
Irritado, Poole pegou numa cadeira, colocou-a perto da mesa no centro da sala e sentou-se, martelando com os dedos gordos na mesa.
Tentou não pensar no que Jeff Hurley poderia estar a sentir nesse fim de tarde, na sua cela da Penitenciária do Estado. Poole sentia--se tremer só a idealizar o que Jeff Hurley poderia estar a pensar nesse preciso minuto: daí a seis dias, por essa hora, seria amarrado à sua cadeira de morte, sem poder fazer nada enquanto as cápsulas de cíaneto eram lançadas, e morreria asfixiado pelo gás, por rapto e assassínio. Morreria por um crime que não era seu, mas de toda a América, um santo inocente roubado à terra, porque os culpados que lá permaneceriam não queriam ouvir as suas acusações. Nesses momentos, esse Guliver aprisionado por pigmeus encontrava-se completamente desamparado, mudo e impotente. Nobre Jeff, grande Jeff, pobre Jeff, perdido para a vida e para o futuro, a não ser que os dois que se encontravam naquela sala o pudessem salvar.
O único pedido que Hurley fizera a Poole fora que desse alguns dólares à mãe, em Louisville, para que esta pudesse fazer a viagem até Washington e aí ajudá-lo a fazer o pedido de clemência - clemência desejada não pelo medo da morte, mas pelo medo de deixar as suas forças sem chefia.
Tinham sido poucos os fundos dos Turnerites para conseguir isso. Apenas recentemente Poole soubera, contristado, que Frank Valetti não entregara ao advogado encarregado da defesa de Hurley mais que metade dos fundos existentes e que se escapara com o resto para os seus amigos comunistas, para lá da cortina de ferro.
Os fundos do próprio Poole eram igualmente escassos. Ele gas-tara-os cuidadosamente, juntamente com o dinheiro Turnerite, como se cada conta pudesse contribuir com mais um ano de vida para o seu querido Jeff Hurley. Poole entregara algum desse dinheiro ao advogado de defesa e outro empregara-o em viagens e gorjetas para obter e compilar as provas necessárias para o pedido. Depois, quando o tempo se esgotara e o mesmo sucedera ao dinheiro, Leroy Poole comprara o bilhete de ida e volta para a Sr.a Gladys Hurley, enviara--Iho pelo correio para Louisville, trouxera-a no dia anterior para Washington, instalara-a no seu hotel, para a ter à mão naquele último e dramático acto.
De repente Leroy Poole deixou de tamborilar com os dedos em cima da mesa. Tornou a observar mais uma vez a mãe do seu ídolo e mais uma vez se sentiu vagamente perturbado e desapontado. Poole observava que a maior parte das vezes as mães das celebridades eram desconcertantes. Podia-se considerar um novelista, um cientista, um filósofo ou um herói militar tão grande, tão invencível, tão perfeito, até se acreditar que ele surgira já assim na terra, sem o usual processo do nascimento humano e sem qualquer habitat prévio com excepção do Olimpo. E então, frequentemente, sabe-se que ele tem uma mãe, um farrapo vivo e ossudo, e era um objecto de espanto que o ventre de alguém tão feio, mesquinho, estúpido ou meramente medíocre pudesse ter produzido algo de grande.
Desde o momento em que a mandara vir até à altura da sua chegada, Leroy Poole esperava que Gladys Hurley fosse uma mãe dessas, a antítese completa do seu sublime filho. E o que mais confundira Poole na noite anterior, quando pusera os olhos pela primeira vez na mãe do seu ídolo, fora que Gladys Hurley parecia ser a própria encarnação da mãe Olímpia. Nada nela, nem o seu aspecto nem os seus modos, tinha contradito as heróicas proporções do filho.
Secreta e emocionalmente, agradara a Poole que Gladys Hurley fosse digna do seu grande filho; secreta e intelectualmente, Poole ficara perturbado. Desejara, quando fosse falar com o Presidente Dilman, levar uma mãe que fosse a dolorosa e patética mãe universal, talvez a mãe da infância do próprio Dilman, que o comovesse e abrandasse até ao mais íntimo do seu ser. Em vez disso, Gladys Hurley estragara-lhe o toque final deste seu grande desígnio.
Tornou a examiná-la. Era alta e magra, asseada e respeitável no seu fato preto dos domingos. O seu cabelo era cinzento e o rosto quadrado e digno mantinha-se tão impassível e rígido como o de uma squax. Levava o silêncio como se fosse uma espada. Com excepção de uma falta de educação formal, que se notava nas suas poucas palavras, com excepção das suas mãos estragadas pelo trabalho, com excepção do estoicismo do seu comportamento, nada havia nela que deixasse entrever a oprimida e azeda mãe negra. Era bem digna de Jefferson Hurley, isso era, mas não era indicada para um idiota sentimental como o Dilman. Contudo, entre ambos, teriam de conseguir o que pretendiam, decidiu Poole.
Leroy Poole perguntou a si próprio quão cuidadosamente Dilman, com o seu próprio problema e as distrações ocasionadas pelo julgamento, teria estudado o pedido de clemência. Da última vez em que falara com Dilman - isso parecia-lhe pertencer já a uma outra era -comportara-se de uma maneira ameaçadora, e até mesmo insultante, para com o presidente. Tal atitude teria agora influência na decisão deste? Poole temeu que assim fosse, mas depois deixou de o temer. Porque quando estivera da última vez no escritório de Miss Foster, esta informara-o da parte de Dilman que o presidente prometera fazer com que o processo de apelação da clemência presidencial fosse expedido. Se Dilman tivesse ainda algum ressentimento contra ele, não teria feito a concessão.
Subitamente a atenção de Poole foi atraída por um movimento de Gladys Hurley. Esta abrira a sua bolsa de imitação de cabedal, tirara a caixa de pó-de-arroz e observava-se fleumaticamente ao espelho.
Quando ela tornou a meter a caixa na bolsa, Leroy Poole disse-lhe:
- Estava precisamente a rever o nosso caso, Sr.a Hurley. Penso que temos tudo do nosso lado.
Ela respondeu:
- Espero que assim seja, Sr. Poole.
Nesse momento abriu-se a porta do corredor e um polícia da Casa Branca disse:
- O presidente já regressou. Recebê-los-á agora. Por aqui, por favor.
Apressadamente a Sr.a Hurley e Leroy Poole seguiram o polícia até ao escritório de Shelby Lucas. O secretário dos compromissos levantou-se quando eles entraram e disse:
- Srã Gladys Hurley? Sr. Poole? Desculpem tê-los teito esperar. O presidente teve de assistir a uma cerimónia e só agora regressou. Temo que ele esteja atrasado, mas conceder-lhes-á dez minutos.
Lucas abriu a porta junto à sua secretária, fez um sinal aos visitantes e estes seguiram-no obedientemente através de um pequeno corredor. Lucas bateu e abriu a porta a seguir e anunciou:
- Sr. Presidente, a Sr.? Gladys Hurley e o Sr. Leroy Poole.
Entraram e Douglass Dilman, de pé junto da sua secretária, apertou a mão da Sr.- Hurley, murmurando uma amabilidade qualquer, e depois apertou a mão gorda de Poole.
- Olá, Leroy. Há muito que não nos víamos. Sentemo-nos ali ao pé do fogão. É mais confortável.
Poole conduziu a mãe de Hurley até a um sofá, ajudou-a a sentar e depois enterrou-se ao seu lado. Dilman, o dossier da apelação na mão, sentou-se na cadeira Revels. Abriu o dossier no colo, passou a língua pelos lábios grossos e olhou para a primeira página.
- Srã Hurley, Leroy - disse Dilman, olhando para o dossier-, li já várias vezes o vosso pedido de clemência. Está bem concebido e bem ordenado. Recebi também o relatório da vossa apelação da parte do procurador-geral Kemmler. Desejo que saibam que estou perfeitamente a par de todos os aspectos do caso, desde a actividade pública de protesto dos Turnerites que fez com que o juiz tratasse rudemente os participantes, sentenciando-os a dez anos de prisão, até aos detalhes da acção vingativa de Hurley e dos seus cúmplices. Estudei os relatórios do F. B. I. sobre o rapto e o assassínio no Texas, bem como as cópias dos interrogatórios feitos ao Sr. Hurley pelos oficiais da polícia local e pelos agentes locais.
«Portanto podem ambos ver que, por muito ocupado que tenha estado, dei a este caso muito estudo e reflexão. Agora, além da vossa eloquente apelação, tenho aqui também as observações e recomendação do procurador-geral, como já disse.
Dilman levantou a cabeça e olhou para a Srã Hurley.
- O procurador-geral recomenda, sem reservas, que o pedido de clemência seja recusado e que a sentença de morte seja cumprida como foi ordenado.
A Sr.ã Hurley não se moveu nem disse uma palavra, mas Leroy Poole, a testa coberta de suor, deu um salto de indignação.
- Esse Kemmler, esse racista piolhento...
Dilman ignorou o escritor e continuou, dirigindo-se à Srã Hurley.
É claro que, como presidente, tenho o direito de desaprovar a recomendação do procurador-geral e de devolver os papéis com instruções para serem revistos de acordo com os meus desejos. Tal rejeição de uma recomendação do ministro da Justiça é uma excepção à regra. Já foi exercida anteriormente por outros presidentes, mas muito, muito raramente.
Graças a Deus, graças a Deus que tem esse direito de fazer justiça - exclamou Poole tornando a sentar-se, os olhos ansiosos e esbugalhados fixos na boca do presidente.
Dilman tornou a falar:
- Sr§ Hurley, devo-lhe dizer honestamente que não posso... não posso contrariar a recomendação do procurador-geral. Não há nada aqui neste relatório que me convença de que a decisão do tribunal federal foi errada, que o ministro da Justiça tenha agido erradamente e que o seu filho não deva ser punido, como foi condenado, de acordo com as leis da Nação, por rapto e crime, Sr? Hurley, tenho muita pena, mas tenho de rejeitar esta apelação e confirmar a sentença de morte. Desejaria poder fazê-lo, mas não posso. Espero que algum dia, quando não agora, o compreendam.
Leroy Poole encostou-se no sofá, cobrindo a cara com as mãos. A sua angústia era demasiado forte para lhe permitir um protesto imediato. Com grande surpresa sua, ouviu a voz baixa e controlada de Gladys Hurley.
- Sr. Presidente - disse ela -, quando meterem o meu rapaz naquela câmara de gás estarão a fazer o que fizeram outrora os nazis aos judeus, estarão a puni-lo e a matá-lo pelo que ele é, e não pelo que ele fez.
Sr? Hurley, acredite-me - disse Dilman com força. - Se eu pudesse provar isso - mas provar - alteraria imediatamente a sentença. Mas não o posso provar. Jefferson Hurley é um raptor e um assassino confesso, tomou a lei nas suas próprias mãos e o governo não pode permitir tal facto. Não tenho quaisquer bases em que assentar a concessão da vida de Jefferson Hurley, excepto por ele ser preto como eu. Se eu lhe alterasse a sentença, ele estaria a obter um tratamento e uma consideração especiais, que um raptor ou assassino branco não obteriam. Não vê isso, Sr§ Hurley?
Não - disse ela. - Só vejo uma coisa, é que ele vai morrer por causa da sua pele. Os federais e os sulistas condenam-no à morte por ele ser um preto que não lhes lambe as botas, assim como o Senado o quer condenar a si por ser um preto que deixou de lhe lamber as botas.
Poole recuperou o espírito.
- É a inevitável lei dos preconceitos! - exclamou ele. - Passa-se com ele o que se está a passar com o invisível Artigo V de acusação contra si!
Dilman disse gravemente:
- Sr§ Hurley, Leroy, o que quer que sintamos acerca dos preconceitos que sabemos existirem, existe ainda a lei do país em que vivemos, a nossa lei, a lei que faz de nós uma comunidade civilizada e não um bando de bárbaros. Neste caso eu represento o símbolo último dessa lei. Ouviram também hoje que esse invisível artigo foi retirado do tribunal. Não faz nem fará parte do meu julgamento, a não ser que se possa legalmente provar que me querem condenar por eu ser negro e não um criminoso. Há muito poucas probabilidades que tal seja provado. E vós também não tendes qualquer possibilidade de provar que Jefferson Hurley vai para a câmara de gás apenas porque é negro. Jefferson Hurley vai para a câmara de gás porque, como homem, cometeu um crime contra os homens e contra a sua lei. Se eu for condenado e demitido pelo Senado, não será por eu ter sido julgado como negro, mas como um membro do governo que cometeu crimes capitais. Eu poderei sentir ou ver as coisas de outro modo, mas no tribunal há a lei, e em breve terei de a cumprir, assim como vós a tendes de cumprir agora.
A compostura inflexível da Sr- Hurley vacilou um pouco.
- Há mais, há mais algo do que a lei, Sr. Presidente. Há a compaixão de um ser humano por outro, que muitas vezes deve estar acima da lei.
Dilman disse suavemente:
- Srã Hurley, eu não sou desumano. Também tenho um filho e sei o que deve sentir neste momento.
A menção de Dilman acerca do filho ergueu a última âncora de esperança dentro de Leroy Poole, que de repente se tornou a pôr de pé.
Sr. Presidente, Sr. Presidente! - exclamou Poole, numa voz estridente. - Escute-me, escute-me! O Sr. está a lutar pelos seus direitos e pela sua vida no Senado. O caso não se lhe apresenta muito favorável, mas ainda tem uma probabilidade se as coisas não piorarem. Muito bem. Aquele Artigo II do Zeke Miller, que representa um quarto do caso contra si, acusa-o de conspirar e proteger os Turnerites pelo facto de saber que o seu filho era um membro, não é verdade? Mas que possuem os seus inimigos para apoiar tão grave acusação? Nada de sólido, pois não há qualquer prova de que ele alguma vez tenha pertencido ao grupo. Não é verdade, Sr. Presidente?
E daí? - perguntou Dilman desconfiado.
E daí? Escute-me de homem para homem. O que sucederia se esse Artigo II de acusação aparecesse agora subitamente apoiado por verdadeiras provas comprovativas, hem? Bem, já uma vez lhe disse que o Juiian era um membro dos Turnerites. O Sr. Presidente não me acreditou. Pois bem. Nós os dois, a Sr? Hurley e eu, possuímos uma prova viva de que o seu Juiian era um Tumerite extremista - um membro de uma organização subversiva. Temos essa prova. Depois de o senhor ter banido os Turnerites, o Jeff, antes de ter sido apanhado, entregou a relação de todos os membros, assinada pelos próprios, à única pessoa em quem tinha confiança, à sua mãe, à Srã Gladys Hurley, aqui presente. Essa relação está em seu poder e há nela um juramento de trabalhar secretamente para a causa e em morrer pela causa, que é assinado nem mais nem menos que pelo seu filho, nomeadamente Juiian Dilman, escrito pelo seu próprio punho, com a sua letra, que certamente o senhor reconhecerá e um perito poderá provar.
Poole teve a satisfação de ver que o golpe atingira o alvo. A segurança de Dilman pareceu vacilar, ceder, e os seus olhos perturbados foram de Poole a Gladys Hurley. Esta fez um pequeno aceno de cabeça como confirmação.
Para Poole, chegara o momento esperado. Do seu sucesso dependia a vida de Jeff Hurley. Com todo o poder que tinha ao seu alcance, Leroy Poole fez um último esforço.
- Há essa prova que Zeke Miller desejaria possuir mas que não possui, nem sabe sequer que existe. Pois bem, dentro das quatro paredes desta sala cheguemos a um acordo. Proponho-lhe, aqui e agora, um negócio, Sr. Presidente. O senhor faz o que de qualquer modo de justiça devia ser feito, altera a sentença de morte de Jeff Hurley e a Sr§ Hurley enviar-lhe-á a relação dos membros em vez de a enviar ao deputado Zeke Miller.
Esperou com a respiração suspensa, agora que tinha posto as últimas cartas na mesa. Esperou pela capitulação.
Curiosamente Dilman pareceu retomar o domínio de si próprio. Contemplou serenamente o autor negro. Quando se lhe dirigiu, a sua voz era quase doce.
Leroy, isso não é um acordo; a isso chama-se chantagem.
Olho por olho, dente por dente, como Jeff costumava dizer -respondeu Poole. - O senhor poupa Jefferson Hurley e nós poupamos Julian Dilman e a si. É pegar ou largar, porque...
A campainha começou a tocar na secretária do presidente. Dilman levantou-se, foi rapidamente até ao telefone e levantou o auscultador.
- Sim?... Como? Não, mande-os entrar agora imediatamente, Miss Foster!
Confuso, Poole viu Dilman pôr-se atrás da secretária, subitamente tão agitado, tão nervoso, que pareceu completamente esquecido da presença dos outros no seu escritório.
A porta abriu-se de repelão e por ela entrara um africano alto e de turbante, o general Leo Jaskowick e por último uma agitada Edna Foster, com um lápis e um bloco na mão.
Foram os três até à secretária. Não houve cumprimentos ou formalidades, apenas um ar de emergência.
- Embaixador Wamba - disse Dilman ao africano -, Miss Foster disse-me que chegou a informação. Qual é?
Wamba falou num inglês com um acento levemente melodioso.
- Recebi um telefonema directamente do Presidente Amboko. Os nossos melhores agentes descobriram que os revoltosos comunistas iniciarão o ataque ao romper da aurora, daqui a dez dias a contar de amanhã de manhã.
As feições de Dilman distorceram-se de ansiedade.
Não pode haver engano? É positivo?
Absolutamente positivo - disse Wamba, com firmeza.
Jaskowick deu um passo em frente.
Não há qualquer dúvida, Sr. Presidente. Scott disse que era certo irem subir de dois para um na escala de segurança, com as informações que possuem.
Então é certo - disse Dilman. - Temos de impedir esta primeira ofensiva, e só o conseguiremos fazendo com que os Russos saibam que estamos inteirados do que se passa e preparados para o impedir. Muito bem, embaixador Wamba, comunique imediatamente com o Presidente Amboko. Diga-lhe que reúna os ministros dos Estrangeiros das nações do Pacto da União Africana na cidade de Baraza, que lhes peça que mobilizem as suas forças e que os informe de que os Estados Unidos estão prontos a cumprir o tratado de defesa mútua. A não ser que o primeiro-ministro Kasatkin me dê a certeza absoluta de que a acção não irá avante, enviarei daqui a dez dias, por ar e por mar, as nossas melhores forças, para lutarem lado a lado com os exércitos das democracias africanas... General Jaskowick, notifique o ministro Steingrenner acerca do que se passa. Diga-lhe que quero a batalhão dos Dragon Flies pronto para combate e em permanente alerta. Quando tiver falado com ele, escreveremos a mensagem de protesto e aviso para o embaixador Rudenko, para que ele a transmita imediatamente ao primeiro-ministro Kasatkin. Compreendeu?
Sim, Sr. Presidente - disse Jaskowick.
Jaskowick e o embaixador Wamba saíram apressadamente do escritório.
O Presidente Dilman fez menção de se sentar, quando reparou em Edna Foster ainda de pé junto da secretária.
Ele olhou-a com curiosidade.
- Que se passa, Miss Foster?
Não, não faça isso! - disse ela. Ele pareceu ficar confuso.
Não faço o quê?
- O caso não é comigo, excepto que eu não quero que o conde nem, Sr. Presidente. Eu odeio o general Fortney, não o posso ver à minha frente, mas o que ele lhe disse no outro dia, acerca de mandar uma força militar inteiramente branca para a África para morrer por esse povo subdesenvolvido, é verdade, arruiná-lo-á no Senado, levantará uma tempestade dentro de si. Não vê isso? Parecerá que está pronto a sacrificar as nossas melhores forças militares brancas para favorecer os negros. Não estou a dizer que não defenda Baraza. Tem de o fazer - concordo -, mas não pode enviar uns batalhões mistos brancos e negros para lá combaterem? Não pode?
- Não, Miss Foster, não posso. Como Steinbrenner disse, só há uma força de ataque que poderá agir eficazmente, que está equipada para o fazer com uma perca mínima de vidas, e é os Dragon Flies.
Edna Foster continuou a insistir:
- Não o faça, Sr. Presidente. Por favor não o faça. Isso arruiná-lo-á. Isso será o seu fim.
Dilman não discordou.
- Talvez - disse ele. - Mas o que me possa acontecer agora não interessa. O que interessa é o que possa acontecer a um bom vizinho nosso, branco ou preto, alguém que depositou toda a sua fé na nossa decência, toda a sua confiança no nosso modo de vida. Não posso deixar comprometer o meu país. Agradeço-lhe muito a sua intenção, Miss Foster, mas na verdade não há outra alternativa. Agora, por favor, diga a Tim Flannery para notificar a televisão de que amanhã, às seis horas, preciso de fazer uma breve comunicação de extrema importância, uns quinze minutos, digamos, sobre um assunto de nacional emergência. Muito obrigado, Miss Foster.
Ela abanou tristemente a cabeça e saiu a correr do escritório.
Do sofá em que se encontrava Leroy Poole assistira fascinado à cena que se desenrolara perante os seus olhos. Depois continuou a observar o presidente, enquanto este, completamente esquecido de que não se encontrava só, se dirigia de novo para o telefone. Então, com grande espanto de Poole, Gladys Hurley pôs-se de pé e avançou para a secretária. Poole levantou-se de um salto e foi atrás dela.
A mão de Dilman estava já pousada no auscultador, quando viu a Sr.a Hurley. Pestanejou, perplexo, depois pareceu lembrar-se e levantou-se.
- Sr.a Hurley - murmurou -, desculpe-me mas...
Ela mantinha-se direita, a cabeça erguida, os dedos gastos nervosamente agarrados à bolsa.
- Desculpe-me o senhor, Sr. Presidente - disse ela. - Tenho pena que não possa salvar o meu rapaz, mas pelo que os meus olhos viram, vi a sua bondade. Se o senhor não pode ajudar o meu filho, eu posso ajudar o seu, assim como ao senhor, porque o Sr. Presidente merece a ajuda de cada americano. Quando chegar a casa vou queimar as relações do Jeff, porque mesmo que o seu filho pertencesse ao grupo, como o Jeff, ele nada fez contra as leis do povo, como sucedeu com o Jeff, e se agora eu apelar para alguém será para Jesus Cristo, para que Este se apiede da alma do Jeff e o aceite entre os seus anjos lá no céu.
Depois a sua voz tornou-se trémula, à medida que continuava.
- Sr. Presidente, apesar do que aconteceu, o meu Jeff foi sempre um bom rapaz, frequentando a igreja, estudando as Escrituras, sempre asseado, nunca andando a monte perdido por essas ruas, lendo e cuidando dos seus livros. E, quando cresceu, foi sempre respeitador para com o pai, enquanto este foi vivo, e obedecia-lhe em tudo, e tomou sempre conta de mim, de mim e dos seus irmãos e irmãs mais novos e dos parentes mais necessitados, com dinheiro e cartas. Era bom rapaz, Sr. Presidente, e só queria o bem, mas ninguém compreendeu isso... Vamo-nos embora, Sr. Poole, deixemos o Sr. Presidente. Ele tem o seu trabalho a fazer para todos nós.
Às nove e meia da noite, a Ala Oeste da Casa Branca estava ainda toda iluminada.
Na Sala do Gabinete, perante uma audiência de três pessoas, Douglass Dilman concluía a leitura do rascunho do crucial discurso que pronunciaria a toda a Nação na tarde seguinte.
Nat Abrahams, recomposto já do seu debate no tribunal, fumava o seu eterno cachimbo e escutava. O general Leo Jaskowick mastigava um charuto dos seus, já meio consumido, e escutava. O secretário dos Negócios Africanos, Jed Stover, seguia com os olhos a agulha do relógio na sua mão e escutava.
Do outro lado da mesa do Gabinete, sentado na cadeira de espaldar alto em que se via gravada uma placa com a inscrição O PRESIDENTE, Douglass Dilman chegava ao fim da declaração que os quatro tinham redigido antes do jantar.
Dilman virou a página e continuou:
- É o meu mais profundo desejo que estes poderosos batalhões da nossa democracia nunca ultrapassem as nossas fronteiras. É o meu mais profundo desejo que, mesmo que nos tenhamos de empenhar num conflito limitado, ele não se espalhe e se transforme num holocausto mundial, e que os nossos bombardeiros a jacto continuem apenas nas suas missões de rotina, e que os nossos submarinos Polaris cruzem os mares desarmados e em segurança.
Fez uma pausa e depois retomou:
«Este é o meu mais profundo desejo e sei que todos vós o compartilhais comigo. Mas não deixemos os inimigos da liberdade confundir este desejo de paz como uma prova de fraqueza. Há muitos além-fronteiras que poderão pensar que os Estados Unidos têm várias vozes e que poderão escolher para ouvir e acreditar aquela que mais lhes agradar. Poderão preferir a voz americana que reflecte a nossa normal discórdia de dois partidos políticos, para que possam suspeitar que nos encontramos desunidos. Poderão preferir a voz americana que reflecte a nossa ideologia isolacionista de outrora, que promete que não arriscaremos uma única vida americana para preservar a independência de uma democracia africana cuja população total cabe numa única das nossas grandes cidades, para que possam suspeitar que nos encontramos desunidos. Poderão preferir a voz americana que reflecte a nossa própria luta racial interna, a que diz que não protegerá os nossos irmãos de cor de outros países, do mesmo modo que não os integrará no nosso próprio país, por serem inferiores, para que possam suspeitar que nos encontramos desunidos.
«Aos esperançosos cínicos de além-fronteiras só posso dizer: não vos deixeis levar pelos sons discordantes de opinião e desacordo tão típicos nos nossos sistemas democráticos, pois, nas ocasiões de perigo, a América falou e falará sempre uma única voz em uníssono, a voz da maioria dos seus cidadãos livres.
«Esta noite, compatriotas americanos, as palavras que devem ser pronunciadas pela nossa voz unida, a voz que queremos que os nossos amigos e os nossos inimigos em todo o mundo escutem poderão ser tiradas da boca do nosso querido ex-presidente John F. Kennedy, que disse: 'Que cada nação saiba, quer nos deseje bem ou mal, que pagaremos qualquer preço, suportaremos qualquer fardo, venceremos qualquer dificuldade, apoiaremos qualquer amigo e opor-nos-emos a qualquer inimigo, com o fim de assegurarmos a sobrevivência e o triunfo da liberdade.'
«Muito obrigado e boa noite.»
Dilman respirou fundo, atirou com as folhas para cima da mesa e ergueu os olhos.
- Bem, que tal vos soou? - perguntou ele. - Há ainda algumas passagens que precisam de ser arranjadas, mas faremos isso amanhã de manhã. Por outro lado acho que diz o que devia ser dito.
Jed Stover era todo entusiasmo:
Acho que está óptimo! - Depois acrescentou: - Isto agradará muito a Amboko e ao Pacto da União Africana.
Não tenho a certeza se assustará o primeiro-ministro Kasatkin - disse Jaskowick - mas vai certamente aterrar todo o Senado!
Fazendo girar a colher dentro da chávena vazia, Nat Abrahams não disse nada. Viu a atenção de Dilman concentrar-se nele.
- E tu, Nat? - perguntou Dilman. - Já te dei uma tarefa suficientemente dura pedindo-te que tomasses conta daquele julgamento e não quero tornar-te as coisas ainda mais duras. Há alguma coisa que queiras que eu elimine?
Nat Abrahams tirou o cachimbo da boca.
Não, não há nada - disse ele. - Para o diabo com o Senado. Claro que eles não vão gostar disto, mas provavelmente não influenciará nem um voto de um único senador, pelo menos por enquanto.
Então pensas que deve ficar como está? - perguntou Dilman.
Não exactamente - disse Abrahams. - Eu seria mais explícito, pelo menos numa das passagens. Refiro-me à altura em que se refere aos nossos recursos militares e em que descreve o poder potencial dos Dragon Flies. Penso que deveria então explicar abertamente por que o Sr. Presidente e o Steinbrenner escolheram esta força inteiramente branca para esta missão em África.
As feições de Dilman mostraram a sua preocupação.
Não sei, Nat.
Por que não, Sr. Presidente? - perguntou Abrahams. - De qualquer maneira o caso já foi arejado.
Certamente que foi - disse Jaskowick. - Sr. Presidente, estou inclinado em concordar com o Sr. Abrahams. O senhor ouviu o noticiário da tarde e leu os jornais da noite. «Uma segura e importante fonte do Pentágono admitiu hoje que os chefes militares estão a fazer o possível para dissuadir o Presidente Dilman para não enviar apenas tropas brancas para o inferno africano!» - Jaskowick soprou pelo nariz. - «Uma segura fonte do Pentágono.» Foi o Pitt Fortney, quase que punha as mãos no fogo. Como não o pode atingir directamente, Sr. Presidente, ele está a tentar levantar um tornado contra si entre o público em geral. E, Sr. Presidente, a informação de Fortney já foi divulgada há várias horas e agora deve lavrar pelo país qual fogo numa campina, levantando mais preconceitos em pessoas mal informadas contra si. O Sr. Abrahams tem razão. Apague o fogo quanto antes.
- Talvez tenham razão - acedeu Dilman. Abrahams inclinou-se para a frente.
- Seriam só precisas uma ou duas linhas no discurso. Assim como: «Compatriotas americanos, quanto aos Dragon Flies, é provável que tenham ouvido boatos irresponsáveis dizendo que esta força inteiramente branca será empenhada na defesa de Baraza, se tal for necessário, porque o vosso comandante-chefe deseja proteger os da sua própria raça. Nada poderia estar mais longe da verdade. O ministro da Defesa recomendou os Dragon Flies porque é a única unidade equipada e treinada para o tipo de defesa indicada. Infelizmente não há soldados de cor nos Dragon Flies, porque a nenhum foi concedido o longo e necessário treino para o manejo de tão complexas armas» - Abrahams encolheu os ombros. - Qualquer coisa deste género, e será o suficiente. Poderá erguer uma boa onda de crítica por todo o país e mostrará certamente a Fortney que o Sr. Presidente não está disposto a suportar as suas mentiras.
Dilman bateu com o punha na mesa.
- Assim seja. Vamos introduzir isso aqui. - Fixou os olhos em Abrahams. - Achas que tudo isto será uma questão para o julgamento, Nat?
Abrahams esvaziou o seu cachimbo.
Sr. Presidente, tudo o que disser ou fizer será uma questão para o julgamento. Mas o senhor não estaria sequer a fazer este discurso se não acreditasse que há coisas mais importantes ainda que o julgamento.
Isso é verdade, Nat.
Portanto.
Ouviu-se uma forte pancada na porta do corredor e Nat Abrahams parou e olhou para ela enquanto esta se abria para deixar entrar precipitadamente um aflito Tim Flannery. O seu rosto vinha tão afogueado como o cabelo, e só quando chegou a meio da sala é que notou que Dilman estava acompanhado.
Desculpem esta intromissão. - Hesitou como se desejasse falar com o presidente, mas não tendo a certeza de o poder fazer em frente de Abrahams, Jaskowick e Stover.
Que se passa, Tim? - perguntou Dilman.
Tenho muita pena de lho dizer, Sr. Presidente - disse Flannery -, mas o seu filho está lá fora, no vestíbulo da imprensa.
O meu filho? O Julian está ca?
Apareceu de repente, não se sabe de onde, e antes de eu o poder fazer parar já ele reunira à sua volta os repórteres e começara a fazer uma declaração. Quando lá cheguei, já era demasiado tarde, diabos me levem. Agora está a responder às perguntas deles e não me quer ouvir. Portanto pensei que o melhor seria vir-lho dizer.
Dilman pusera-se de pé.
- Que espécie de declaração? O que é que o Julian está a dizer? Flannery hesitou e depois despejou:
- Acaba de confessar que foi durante muito tempo um membro secreto dos Turnerites. Disse que os jovens negros vam já fartos de ver como os pais eram comprados com as mentiras dos brancos, fartos de ver como os velhos continuavam pacientemente à espera dos seus papéis de cidadãos e que ele fora um dos que decidira fazer algo por isso. Assim entrara para o grupo dos Turnerites como um membro secreto.
- Ele confessou tudo isso? - perguntou Dilman calmamente. Flanery fez um sinal afirmativo.
- Tudo. Depois disse aos repórteres que, se acreditavam no que ele lhes acabara de dizer, tinham de acreditar em algo mais: tinham de acreditar que ele nunca cometera qualquer acto violento ou subversivo para os Turnerites, que só fizera trabalho clerical para eles, e pouco tempo depois de os Turnerites terem sido banidos telefonara a Frank Valetti e demitira-se. Depois disse que só tinha pena de uma coisa: era de lhe ter mentido desde o princípio. Disse aos repórteres que o Sr. Presidente nunca soube realmente que ele era um membro e que aquele artigo de acusação do Zeke Miller contra ele era absolutamente idiota, porque não só o senhor não sabia de nada, como se tivesse sabido, nunca teria impedido o ministério da Justiça de agir, nem nunca teria negociado com o Hurley, porque o senhor não gostava dos Turnerites, nem da política, nem dos métodos destes. - Flannery fez uma pausa e encolheu desconsoladamente os ombros. - Foi o que ouvi. Tive medo de o fazer calar e de o trazer para aqui. Mas se quiser que vá lá fora e...
Flannery parou, notando de repente que ninguém na sala o escutava. A atenção dos presentes tinha sido atraída por alguém atrás de si. Intrigado, Flannery voltou-se e então viu Julian Dilman especado no limiar da porta.
Pela primeira vez o cabelo de Julian não tinha brilhantina e o seu fato estava todo amarrotado. Os Seus olhos esbugalhados iam de Abrahams para Dilman, para Flannery e depois outra vez para o pai. Com esforço pareceu tomar coragem e entrou na sala.
Já sabe o que eu fiz? - perguntou Julian ao pai. Fez um sinal com a cabeça na direcção de Flannery. - Ele já lhe disse?
Sim - disse Dilman.
Sei, sei que o vai prejudicar no... no julgamento, mas eu tinha de o fazer.
Porquê? - perguntou Dilman.
Porquê? - repetiu Julian. - Porque quando o condenaram na Câmara sempre julguei que se demitisse, e não o fez. E depois, pelo que ouvi hoje na telefonia, vi que não tinha medo de punir o Hurley porque acreditava que ele devia ser realmente punido e depois, pelo que deduzi daquela «fonte segura» do Pentágono contra si, que não tinha medo dos grandes Charlies de uniforme de latão, porque acreditava que as nossas melhores tropas, fossem de que cor fossem, deviam ser enviadas para a África. Então, então a minha mentira meteu-me nojo, quando tudo o que eu quisera fazer fora lutar abertamente como o pai, por isso tomei o avião para aqui e imaginei que a melhor maneira de começar seria erguer-me e contar a verdade. -Fez uma pausa. - Espero... espero que me perdoe pelo que fiz no passado e pelo que acabo de fazer lá fora.
Dilman considerou imparcialmente o filho.
- Eu já sabia o que tinhas feito no passado, Julian. Descobri-o esta tarde - disse ele. - Quanto ao que acabas de fazer no vestíbulo da imprensa, acho que fizeste bem, que fizeste o que tinha de ser feito. Agora será melhor subires e ires procurar algo que se coma na copa. Daqui a pouco irei ter contigo.
Rápida e desajeitadamente, Julian saiu da sala e, depois de ele ter desaparecido, Dilman voltou-se lentamente para Abrahams, fixou-o pensativamente durante uns segundos e depois disse:
- Sim, eu sei, Nat, isto pode-me ajudar a perder o julgamento no Senado. Bem, suponho que isto também foi uma espécie de julgamento, de certo modo... só que este eu não o podia perder.
Tentou sorrir, mas sem sucesso, e depois disse:
- Já é alguma coisa. Pelo menos para mim.
Pela primeira vez, nos nove dias desde que começara o julgamento no Senado dos Estados Unidos, a primeira página da tiragem da manhã do Citizen-American não fazia qualquer menção directa aos processos legais contra o presidente.
Nessa manhã, o cabeçalho, em letras maiores e mais carregadas do que nunca, dizia:
ESCÂNDALO! EXCLUSIVO! DILMAN TEM UMA FILHA QUE PASSA POR BRANCA!
O segundo cabeçalho, apenas ligeiramente menor, igualmente carregado, dizia:
O rebento escondido do presidente envergonhado
da sua própria raça - e o Presidente
estava a par do caso!
Douglass Dilman dobrou lentamente o jornal e depois deixou-o cair no cesto dos papéis, junto da secretária Buchanan. Recostou--se por um momento na cadeira, sentindo-se velho e fraco até à medula dos ossos, mas depois fez um esforço e ergueu a cabeça na direcção do olhar irado de Tim Flannery e do olhar preocupado de Nat Abrahams.
Porquê? - perguntou Dilman desesperado. - Não terá esse Zeke Miller o suficiente sem isso?
Não - disse Tim Flannery. - Ele quer ter a certeza de que o Sr. é um cavalo morto, realmente bem morto, antes de o largar.
- Mas ele não vê que neste caso não sou eu a vitima? – disse Dilman. - É a pobre Mindy, aquela pobre rapariga. da? Porquê arruinar-lhe a vida? Isso não lhe dará mais votos no Senado... Nat explica-mo... isto não é apenas revoltante, é uma coisa de loucos, sem sentido.
Nat Abrahams suspirou.
- Eu sei, Doug.
Levantou-se da cadeira, atravessou o Escritório Oval até às portas de vidro e fixou os olhos na manhã cinzenta. Depois disse:
Quando estás empenhado numa luta de morte com um inimigo fanático, Doug, não esperes motivos racionais para as suas acções. Se existe alguma razão para esta exposição nos jornais, cha-memos-lhe assim, bem, tentando imaginar um espírito como o de Zeke Miller, suponho que seria esta. - Voltou-se e dirigiu-se directamente a Dilman: - O Miller está-se nas tintas para a tua filha. Para ele é como se ela não existisse. O verdadeiro alvo és tu, e tudo o que lhe interessa é atingir-te de qualquer modo e em qualquer parte. Ele está a julgar-te perante duas categorias de jurados, e portanto precisa de todas as munições que encontre ao seu alcance.
Que queres dizer, Nat, com duas categorias de jurados?
Os teus primeiros jurados, os verdadeiros, são o grande público exterior, e os membros do Senado são realmente apenas um segundo júri. Se o Miller conseguir manter os eleitores contra ti, ele sabe que eles exercerão pressão sobre o Senado e encorajarão o seu antagonismo. Esta história do Reb Blaser acerca da Mindy, por exemplo. Tenta ver o seu valor através da visão distorcida do Miller. Apesar de teres recusado a apelação do Hurley e da execução deste há uns dias atrás, tu tens estado a captar cada vez mais a simpatia dos negros e dos liberais brancos, pela tua vontade em lutar contra os teus inimigos. O discurso na televisão sobre Baraza e a nossa tarefa tiveram também a sua influência. Miller compreendeu o que se estava a passar e não quer que essas pessoas se ponham ao teu lado. Como pô-las de novo contra ti?
«Bem, não sei como, mas ele descobriu que tinhas uma filha chamada Mindy, que tem vergonha de ser negra e que passa por branca e descobriu que tu sabias isso e não a tinhas impedido de o fazer. Muito bem. Assim, ele hoje grita-o a todo o mundo: hem, negros americanos, olhem para o vosso presidente negro que tem uma filha que se envergonha de ser da vossa cor, e o pai aprova. Estás a ver, Doug? Ele está desesperadamente a tentar virar aqueles que estão do teu lado contra ti, tentando dizer a toda a gente que Dilman tem vergonha da sua pele. Depois está a tentar dizer aos liberais e aos membros do Senado: olhem, olhem só para a espécie de homem que estão a julgar, um homem capaz de mentir perfidamente, dizendo constantemente que só tem um filho, quando tem dois, escondendo uma filha já crescida, protegendo a sua mescarada. Será um homem destes próprio para continuar como presidente? Ele não é só indigno de confiança, é positivamente anti-americano.
«Acho que é isto, Doug. É este o nível da mentalidade do Miller e dos advogados seus colegas. Estão a tentar pôr o público tão contra ti que, se o Senado ousar absolver-te, haverá marchas de todos os pontos do país em direcção a Washington para queimarem o Capitólio. Não, Doug, não se trata da Mindy, mas de ti - e é a ti que eles querem, de qualquer maneira. Foi pouca sorte que a tua rapariga tenha sido apanhada no meio disto tudo. Esta notícia é um nojo. Tudo isto é um nojo.
Dilman levantou-se e foi pesadamente até junto de Abrahams. Durante um tempo olhou pensativamente para o Jardim das Rosas, através das portas de vidro. Depois, como se se dirigisse mais a si próprio do que a Abrahams e a Flannery, disse:
- Tenho tanta pena da Mindy, tanta pena. Ela era como a mãe. Queria tanto ser branca e gozar o que isso lhe podia proporcionar. Não sei o que isto lhe fará. Daria tudo para poder estar com ela, neste momento, só para a confortar e tentar explicar-lhe e acalmá-la. Mas nem sei onde ela está. Edna disse-me que o telefone em nome de Linda Dawson já não existe. Agora a Mindy já leu os jornais, já sabe que a verdade foi revelada, o facto de ela ser negra, e agora todos os seus amigos sabem, e o patrão sabe, e a sua vida - o que será dela, agora? E eu nem sequer posso falar com ela.
Olhou para Abrahams.
- Nat, a culpa foi minha, por não me ter demitido quando podia, por ter sido uma mula egoísta e orgulhosa, e tudo o que obterei no fim terá sido magoar todos: a Wanda, o Julian, os Spinger, e agora, pior do que tudo, a minha Mindy. Eu sabia que me teria de haver com lançadores de lama, mas pensei que seria eu quem apanharia com a maior parte dela. Nunca pensei que ela se espalharia tanto, até tão longe e tão destrutivamente. Bem, acho que agora já não posso voltar atrás.
Fechando e abrindo distraidamente as mãos, foi ate ao meio do escritório e disse:
- Que poderei eu fazer pela minha filha? Não sei. Flannery disse:
Deve lutar contra esses lamacentos na imprensa, do mesmo modo que está a lutar contra eles no Senado, Sr. Presidente. Quererá fazer alguma declaração acerca disto, não digo só por si, mas também por ela?
Não. Que poderei eu dizer que não vá ainda tornar piores as coisas? Obrigado, Tim. Será melhor que regresse ao seu trabalho.
Depois, enquanto Flannery encolhia os ombros e se preparava para sair do escritório, Dilman disse.
- Se ao menos as pessoas compreendessem o que faz com que um negro queira passar por branco!
Subitamente exclamou:
- Espere aí, por que não lhes dizer? Por que não lhes dizer como é?
Viu Flannery hesitar no limiar da porta.
- Tim, se a Mindy não pode falar por ela própria, talvez o pai devesse falar por ela. Penso que farei uma declaração.
Dilman olhou para Abrahams.
- Algum comentário antes de a fazer, Nat? Abrahams disse:
Não te preocupes com os meus problemas. Isto é uma coisa inteiramente tua. É uma coisa pessoal. Age como sei que queres agir - como um pai e não como o presidente.
Sim -disse Dilman.
Deseja ditar agora essa declaração? - perguntou Flannery.
Ditá-la? Não. Quero apenas ir até ao vestíbulo da imprensa... Sim, é o que farei, e dizer o que penso. Vá você à frente, Tim, e diga aos correspondentes que desejo fazer apenas uma breve declaração e mais nada.
Flannery saiu apressadamente. Dilman permaneceu durante alguns segundos perdido nos seus pensamentos, depois foi até ao cesto dos papéis, retirou dele o Citizen-American, desdobrou-o, estudou os cabeçalhos e passou os olhos pelo artigo.
- Pobre criança - disse ele, e depois saiu do escritório, seguido de Abrahams.
Ao aproximar-se da porta do vestíbulo da imprensa, bloqueada agora por Tim Flannery e por Edna Foster, acompanhada do seu bloco de estenografia e do lápis, Dilman viu Flannery de braços levantados para sossegar os repórteres. Dilman parou e esperou que Flannery acabasse de falar.
- ...Repito, senhores, são estas as regras. Ele decidiu fazer uma declaração improvisada acerca da infeliz história que apareceu como exclusivo do Citizen-American do Zeke Miller, esta manhã. Quando ele acabar, nada de perguntas acerca do assunto. Nem uma, rapazes. Se recusarem a obedecer às nossas estipulações temo que...
Vária vozes gritaram:
- Está bem, Tim... Trá-lo lá!... Vamos a isto! Onde está o presidente?
Tim Flannery voltou-se e fez sinal a Dilman, que avançou até ficar rodeado por uma massa densa de correspondentes ávidos e impacientes. Por um momento, Dilman observou os rostos familiares que esperavam. Atrás de si, atrás dos agentes do Serviço Secreto, Flannery, Miss Foster, Nat Abrahams e muitos membros do pessoal da Casa Branca esperavam igualmente.
Dilman sentia os lábios secos, a garganta apertada e os pulmões comprimidos. Pelo espaço de um segundo, perguntou a si próprio se o que ia fazer não seria errado, se não iria alimentar a grosseira história de Blaser, mas nessa altura os seus olhos pousaram no rosto de sapo deste, todo inchado e importante. Soube imediatamente que tinha de dizer o que estava no seu coração, pois algures, em Nova Iorque, a sua pobre filha podia estar também à espera, à escuta.
Dilman abriu o jornal que tinha na mão, examinou-o e pô-lo de lado.
- Tenho a certeza de que todos vós lestes esta... esta notícia - disse ele, deitando o jornal para o chão. - Tudo o que vem nela é verdade. Apesar do tom ou interpretação, estes são os factos e os factos estão correctos. Tenho um filho, com vinte e um anos, chamado Julian, que regressou aos seus estudos na Universidade de Trafford. É verdade que tenho também uma filha, mais velha que o meu filho, tem vinte e quatro anos, e o seu nome legal é Mindy Dilman. Não a vejo desde um pouco antes da morte da minha mulher, quando a minha filha tinha mais ou menos dezoito anos. Com a ajuda e apoio da minha mulher, Mindy trocou o Midwest pelo Este, à procura de uma carreira. Como a minha mulher, mais do que ela, a Mindy era de pele ciara e possuía umas feições delicadas. Do lado da minha mulher, talvez umas três ou quatro gerações atrás, e menos do meu lado, houvera antepassados brancos e castanhos, caucásicos e indianos.»
Dilman estudou as cabeças inclinadas dos repórteres à sua volta, e depois prosseguiu.
«Na nossa família de quatro, duas pessoas eram de pele escura, como eu, e as outras duas eram de pele clara. A minha mulher Aldora era de pele clara, o que é chamado em certas regiões do país 'amarelo de abóbora-menina'. Eu, como podem ver, sou indubitavelmente preto. Mas a minha filha Mindy, desde o berço até à maturidade, era tão clara como a mãe. A compleição da sua pele, e sem dúvida é-o ainda agora, mais clara que a de muitas brancas mediterrânicas.
«É um facto deplorável, pelo menos eu assim o julgo, que entre os próprios negros americanos os de pele mais clara sentem-se frequentemente superiores e são invejados e respeitados pelos seus irmãos. Qual a razão disto? As razões saltam à vista. Assim como os brancos consideram a pele branca mais esteticamente satisfatória que a pele escura, assim como na índia e no Brasil os nativos consideram os de pele mais clara mais atraentes, também esta mesma escala de cor invadiu e infectou a comunidade negra americana. Mas para além de uma razão puramente estética há uma razão mais forte pela qual os negros americanos se sentem felizes por terem uma pele clara, quase ou totalmente branca. É que desse modo aproxi-mam-se mais da maioria da população branca, são melhor aceites por ela, mais aptos para escapar à discriminação e à perseguição. E frequentemente esses negros quase brancos, vendo a vida melhor e mais fácil que poderiam ter quando são tomados por brancos em vez de negros, são assaltados pela tentação de atravessar a fronteira da cor, para poderem viver permanentemente no mundo dos brancos, como brancos, para poderem gozar um lugar entre a aristocrática maioria com as suas vantagens e privilégios.
«Sim, todos os negros como eu, especialmente um que teve uma mulher e uma filha quase brancas, sabem o que isto é. Posso--Ihes dizer, baseado em inúmeras autoridades, que pelo menos três mil negros americanos de pele clara, pelo menos três mil por ano, se aproveitam do seu aspecto físico, fogem das suas casas, das suas comunidades, da sua família e dos seus amigos negros, para se juntarem à raça branca. Posso-lhes dizer também que, do milhão de casamentos mistos ou inter-racionais existentes actualmente nos Estados Unidos, pelo menos novecentos mil são casamentos em que o cônjuge branco desconhece que o outro cônjuge é negro, ou de qualquer outra cor, porque ele ou ela passa por branco.
«A maioria dos pais negros não gostam que os seus filhos de pele clara abandonem a sua raça e se juntem secretamente à classificação branca, ao mundo branco, fingindo serem brancos quando o não são. Contudo, embora os negros ressintam a passagem permanente dos outros, só muito raramente os denunciam aos brancos. Guardarão segredo porque, como negros americanos, sofrendo como um grupo da minoria, podem compreender o que leva um da sua raça a arriscar esta espécie de fuga para a igualdade.»
Dilman fez uma pausa. As cabeças ergueram-se. Examinou os rostos voltados para si, depois continuou a falar e as cabeças torna-ram-se a baixar.
- Possuem agora os antecedentes que explicam a deserção da minha filha. Ela foi criada como uma negra, e à sua volta pôde ver as terríveis injustiças e desigualdades que teria de suportar. Quando reparou que ela era a única de nós os quatro que não precisava de suportar esse sofrimento, essa praga às suas costas para o resto da sua vida, fugiu, transpôs a fronteira e perdeu-se no grande mundo de Nova Iorque, onde não havia qualquer razão para que alguém suspeitasse que não era branca. Não estou a dizer que aprovei a acção de Mindy Dilman. Direi simplesmente que não tentei fazê-la parar ou dissuadi-la nessa altura, porque a compreendo, assim como aos outros três mil rapazes e raparigas que anualmente passam a fronteira da cor.
«E compreendo ainda mais. Compreendo a raiva surda que existe no peito de alguns negros, uma raiva profunda e desesperada, que desafia a razão e o bom senso, uma raiva não só contra as suas vidas presentes, mas também contra as vidas dos seus antepassados, raiva contra os casos da hereditariedade e contra as condições que fizeram deles o que eles são e os puseram no lugar errado, na altura errada. Fareis a mínima ideia do que na verdade faz com que um ser humano seja preto e um outro branco? O factor decisivo é apenas uma partícula microscópica chamada genes. Quando se pensa em quão violentamente a vida de uma pessoa é afectada, desde que nasce até que morre, consoante nasceu preto ou branco, é quase impossível acreditar-se que uma tão ligeira modificação no corpo humano possa criar uma tão vasta e traumática diferença.
«Portanto, o que um negro é provém apenas de uma leve combinação de genes, e uma pessoa surge no mundo como um indivíduo de pele escura ou de pele branca, ou num tom entre ambas, e assim fica para toda a vida. E por causa dessa combinação de genes, um homem ou uma mulher nasce negro, e por causa dessa mesma combinação um ser humano é rotulado para o resto da vida, em certos lugares, como um ser inferior. Não é de espantar que o negro se enfureça tanto contra esse acidente do seu passado, como contra as condições do presente que insensivelmente o punem pelos seus antepassados. E não é de espantar que alguém como a Mindy, de cor clara devido a um acaso dos genes, utilize esse caminho para a fuga.
«A minha filha Mindy não cometeu nenhum crime, por muito maldoso que o tom da condenação do jornal do deputado Zeke Miller seja. É verdade que cometeu uma fraude, mas essa é uma pequena fraqueza humana e não uma característica exclusivamente negra. Quem, de entre nós, uma vez ou outra, não disse uma mentira. Os maridos mentem às mulheres, as mulheres aos maridos e as crianças aos pais, para facilitar a vida. Também não estou a defender isto. Digo simplesmente que tal coisa existe, que faz parte da vida. Os negociantes exageram e alardeiam coisas que não são verdade, para fazer progredir os seus negócios. Alguns judeus fingem não ser judeus, num esforço para obter uma posição desejada, uma casa de que gostam numa vizinhança anti-semítica, ou para escapar à condição de serem diferentes. Alguns católicos fingem não ser católicos por causa de sentimentos contra o Mar Santo, apenas para que a vida lhes seja mais fácil. Deploro esta espécie de mentiras, na nossa cultura, mas deploro ainda muito mais as condições que parecem torná-las necessárias.
«A mentira de Mindy terá feito mal a alguém, excepto a ela própria? O facto de ela ser negra e ter passado por branca terá pegado alguma doença fatal aos seus amigos? Tê-los-á infectado com más ideias ou noções? Tê-la-á feito trabalhar pior ou contaminado os lugares onde viveu? Não, não fez mal a ninguém, pelo menos até agora, excepto à própria Mindy. Poderão imaginar a vida da minha filha durante todos estes anos, desde que fugiu de casa, aos dezoito anos? Para penetrar no vasto mundo branco de Nova Iorque, Mindy privou--se da mãe, do pai, do irmão e de todos os seus parentes. Pôs de lado todos os amigos que possuía. Surgiu literalmente naquela terra completamente despida, sem passado nem antecedentes. Como isso nos parece impossível no nosso mundo feito de curiosidade e de comunicações rápidas! A Mindy teve de contrair novas amizades. E o que se diz aos novos amigos ou às perguntas do patrão? A Mindy terá de inventar uma família branca, perdida algures, numa comunidade branca, algures, entre a qual cresceu e escolas que por qualquer razão convincente não possam ser contactadas. E à medida que se vai formando um círculo de amigos à sua volta, ela terá de fabricar um passado vivo: encontrar fotografias de uma mãe e de um pai brancos para colocar em molduras, comprar presentes e enviá--los a si própria da parte dos seus inexistentes pais brancos, para que não fique sozinha e sem presentes no Natal ou esquecida nos dias dos seus anos. Terá de escrever e enviar a si própria algumas cartas, de vez em quando, de lugares distantes e fingir que são de parentes e amigos brancos.
«Mas não é o suficiente. Uma vez esta ficção completada e aceite, ela não poderá descuidar-se. Será que algum dia, enquanto embriagada, sob a acção de alguma anestesia ou apenas por descuido, revelará que na verdade é de cor? Será que alguém especialmente astuto e que tenha recentemente entrado para o grupo dos seus amigos vai estranhar qualquer expressão sua do rosto ou da linguagem? Será que algum dia, na companhia dos seus amigos brancos, irá subitamente dar de cara com alguém do Midwest, seu antigo conhecido, algum negro que a reconheça, que se lhe dirija e que inadvertidamente a denuncie? Será que, apaixonando-se por um jovem branco, casando com ele, incapaz de lhe confessar a verdade e de o perder, acordará um dia na cama de um hospital para descobrir que deu à luz uma criança mais negra do que branca?
«Em todos estes anos não vi a minha filha, não porque o não desejasse ardentemente, pois amo-a muito, mas porque ela assim o quis, e portanto assim teve de ser.
«É claro que a Mindy tem passado por branca! É claro que eu o sabia! Não interferi, nem nunca interferiria, porque não quis tirar-lhe as vantagens que ela merece e que de outro modo lhe seriam negadas. Mas, repito, qual foi o crime de Mindy? Terá ela culpa de ter nascido negra, num país em que tal coisa é considerada como um pecado? Se há algum crime nisso, o crime não será da Mindy, mas vosso e meu, será do governo e do povo americano, que a deixou crescer e desenvolver em dignidade e graça.
«Agora, esta manhã, para aumentar a circulação de um jornal, por causa dos preconceitos de um político, o segredo de Mindy foi posto à vista diante de todos. Agora, por motivos de sensação e de ódio, a camuflagem desta jovem e inofensiva rapariga foi-lhe arrancada, deixando-a completamente despida, sozinha e negra, embora seja exactamente a mesma de ontem e dos dias anteriores. E por isto o meu coração está pesado. Tenho pena pela minha filha e pelo que ela vai sofrer, mas, senhores, lamento ainda mais a natureza daqueles que neste país levaram a Mindy a passar por branca e lamento que tais espíritos existam, no governo, na imprensa, e que achem a sua mascarada um vício e uma transgressão tão monstruosa que tiveram de a brandir publicamente para a destruir, na esperança de me danificar como seu pai e como presidente da Nação, para preservar a pureza racial da república em que vivemos.
«Agradeço-lhes a atenção que me prestaram, senhores. Muito obrigado e bom dia.»
O Senado, reunido como tribunal fazia já onze dias, para o julgamento do Presidente Dilman, fora convocado para a uma hora da tarde.
A sessão dessa tarde principiara com a convocação de Julian Dilman da parte dos advogados da Câmara como testemunha. O interrogatório de Zeke Miller começara brandamente, com perguntas acerca da infância do rapaz, traçando o seu crescimento até à entrada para a Universidade de Trafford. Embora o interrogatório não fosse de molde a meter medo, Julian parecia amedrontado, torcen-do-se constantemente na cadeira, respondendo umas vezes muito alto e outras que mal se ouvia.
Quando, depois de vinte minutos de audiência, um senador levantara uma objecção e o juiz Johnstone fizera um intervalo de quinze minutos para consultar os seus associados e para rever os precedentes, Nat Abrahams deixara os seus colegas discutindo qualquer estratégia legal e saíra da sala para ir fumar o seu cachimbo e avaliar a posição da defesa.
Agora, isolado na Sala de Mármore, encostado a uma das suas colunas, fumando o seu cachimbo, ele podia perceber qual a estratégia dos advogados da Câmara, uma estratégia dominada por um conceito de relações públicas e com a intenção de dominar o público (e, através deste, os jurados do Senado) com uma carga emocional de acusação. Depois da frenética declaração de abertura de Miller, a oposição construíra o caso dos seus artigos de acusação lenta e não muito poderosa. Com excepção da apresentação de várias testemunhas dos Exportadores Vaduz, para despejarem as suas acusações relacionadas com o Artigo II e com as ilícitas relações do presidente com Wanda Gibson, com excepção do interrogatório feito ao reverendo Spinger e à mulher, para solidificação dos Artigos I e III, com excepção da parada dos peritos de Washington para provarem que o Acto da Nova Lei de Sucessão era constitucional e uma lei do país, e do interrogatório feito ao governador Talley para provar que tal acto fora violado pelo presidente quanto ao Artigo IV, os advogados da Câmara tinham apresentado apenas uma série de frouxas testemunhas sem qualquer importância.
Abrahams calculava que nesse dia Zeke Miller concentraria a sua artilharia pesada num esforço supremo para derrotar a defesa. Nesse dia, não havia dúvida de que Miller apresentaria as testemunhas que ainda faltavam: Wanda Gibson, para construir o Artigo I, Sally Watson, para salvar o Artigo III, o ministro de Estado, Arthur Eaton, para firmar o Artigo IV, assim como agora tinha Julian Dilman para provar o Artigo II. Miller tentaria colocar o seu caso no auge numa só tarde, para que nada que Abrahams ou os advogados da defesa fizessem depois disso pudesse fazer recuar o assalto.
Por que razão, perguntou Abrahams a si próprio, tinham os advogados concentrado o melhor do seu caso numa só tarde? Porque, concluiu ele, eles sentiam que era a altura apropriada, que o clima não podia ser melhor.
A onda de simpatia e apoio em relação ao Presidente Dilman, entre o público, tinha baixado nos últimos nove dias. O Miller era uma raposa manhosa. A atitude do presidente, no que dizia respeito aos Dragon Flies, a confissão de Julian e a revelação de Zeke Miller acerca da filha do presidente tinham feito ferver a grande maioria da população americana.
Abrahams tornou a passar um fósforo pelo tabacado no cachimbo e considerou a situação. Sim, para Zeke Miller o clima emocional era o apropriado para trazer à luz as principais testemunhas e as últimas provas contra Dilman. Existia agora um ímpeto no sentimento contra o presidente, e tudo o que Miller pudesse apresentar nesse dia erguer-se-ia com esse ímpeto, desde que as acusações fossem demasiadas e demasiado poderosas para o poderem fazer parar.
A posição da defesa não estava a agradar a Abrahams, se a acusação concluísse, nesse dia, a apresentação das testemunhas. A seguir seria a vez da defesa de convocar as suas. Possuía boas testemunhas, mas não pitorescas nem de nomes conhecidos, e receberiam pouca atenção. Abrahams precisava o que Miller possuía - um conjunto de estrelas - e não tinha nem uma sequer.
Só lhe restava uma única e leve esperança, concluiu Abrahams: era fazer suas as estrelas do Miller. Não seria fácil, até talvez fosse impossível, mas era o único caminho que tinha a seguir. Subitamente ouviu uma voz agitada chamar:
- Congressista... Congressista Miller...
Espreitando, ficou espantado ao ver George Murdock apressar--se na sua direcção. Murdock passou por ele e parou abruptamente, Abrahams espreitou detrás da coluna e avistou então Zeke Miller, de perfil, olhando aborrecido para o repórter.
Que está aqui a fazer? - perguntou Miller. - Você devia estar lá em cima. Para que lhe pagam?
Congressista, preciso de falar consigo - insistiu Murdock, passando uma mão pelo seu rosto serrabulhento. - Essa história que o senhor e o Reb publicaram esta manhã... acerca da Mindy.
Não me mace agora. Não vê que não tenho tempo? Tenho um julgamento a conduzir.
Escute - disse -, eu assinei um papel para aquela rapariga prometendo que, se ela me desse aquela carta escrita pelo Julian, eu nunca revelaria a ninguém quem ela era. Disse-lhe a si confidencialmente, lembra-se? Fazia parte do nosso contrato: podia usar tudo o que eu descobrisse, excepto isso. Deu-me a sua palavra de honra.
Miller arreganhou os lábios deixando ver os dentes amarelos:
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- Meu rapaz, eu não me lembro de ter feito tal promessa. Quando o Zeke Miller faz uma promessa, cumpre-a, percebeu? Não está a pôr em dúvida a minha honestidade, pois não? Isso não seria muito inteligente, pois não pode um repórter duvidar da palavra do proprietário do jornal a que pertence. Já vi o meu pai, no seu tempo, pôr os seus empregados na rua por muito menos.
Murdock encolheu-se.
Estava... estava só a tentar dizer...
Rapaz, mas que lhe sucedeu? Não me diga que uma pessoa como você se preocupa com uma intrujona qualquer, uma escarumba que se pintou de branco para se imiscuir na nossa classe. Que se passa consigo, meu rapaz? Continue assim e eu ver-me-ei obrigado a mandá-lo como correspondente para Harlém. Percebe o que quero dizer? Não gostaria que isso acontecesse, pois não?
Não... não gostaria.
Então volte outra vez para a sua galeria e faça o que lhe mandarem e não venha cá maçar mais o Zeke Miller.
Miller acenou para alguém.
- Hem, senador Watson. Parece-me que são horas de regressar ao campo de batalha.
Abrahams observou o Miller ir-se embora na companhia do senador Hoyt Watson. Depois tornou a olhar para Murdock. O rosto deste estava branco como a cal. Deixou escapar uma exclamação, mais semelhante a um gemido que a um suspiro, e regressou de cabeça baixa para a galeria.
Então Abrahams, vendo que a Sala de Mármore se estava rapidamente a esvaziar, esvaziou o cachimbo, meteu-no na algibeira e regressou à Sala Magna.
Quando retomou o seu lugar na mesa dos advogados da defesa, já o juiz supremo estava na sua cadeira lá em cima, e Julian Dilman se encontrava timidamente sentado na cadeira das testemunhas.
O juiz Johnstone fez ouvir o seu martelo. Depois de ter anunciado a sua decisão quanto à objecção, ordenou:
- Roga-se aos senadores o favor de dar toda a sua atenção. O conselho da Câmara dos Deputados prosseguirá com o interrogatório.
Zeke Miller pôs-se rapidamente de pé e plantou-se diante de Julian Dilman.
Bem, Sr, Julian Dilman, eis-nos agora chegados ao coração das acusações do Artigo II. Numa declaração pública, o senhor confessou que foi um membro secreto do grupo dos Turnerites. Nada tem a dizer contra isto, pois não? Podemos aceitar totalmente a sua confissão, não podemos? Ou deseja retirá-la?
É verdade que fui um membro - disse Julian -, exactamente como o anunciei na semana passada.
- Muito me agrada que o senhor mantenha a confissão. Miller esperou que as gargalhadas da galeria se calassem, e
depois perguntou:
Antes dessa confissão pública, o presidente, o seu pai, já sabia que o senhor era um membro do grupo dos Turnerites?
Não senhor.
Diz «Não Senhor»? Ora exploremos isso melhor. Alguma vez o presidente, o seu pai, lhe mencionou os Turnerites, oralmente ou por escrito?
Bem, sim, mas...
Oh, ele discutiu acerca do grupo dos Turnerites consigo? Per-guntou-lhe se era um membro?
Perguntou sim, mas...
Por que lhe faria ele tal pergunta? Tratava-se de mera curiosidade paternal ou de alguma suspeita?
Ele ouvira dizer que eu era um membro do grupo. Alguém lho disse.
Ah, «alguém» lho disse - observou Miller. - Por outras palavras, ele estava em contacto com alguém que o sabia. Estava em contacto com outros Turnerites?
Não, não exactamente...
Não faz mal. O que interessa é que o presidente fora informado de que o senhor era um turnerite, e foi ter consigo para lho perguntar, não é verdade?
Ele não sabia que eu era um deles, mas ouvira qualquer coisa acerca disso e ficou preocupado. Perguntou-me e eu neguei tudo. Menti-lhe porque... porque tive medo.
Medo de quem? Do seu chefe, do assassino Jefferson Hurley... ou da cólera do seu pai?
De ambas as coisas.
Mentiu portanto ao seu pai. Costuma mentir frequentemente, Sr. Dilman?
Não. Mas a situação fez com qué fosse necessário fazê-lo dessa vez.
Se pôde mentir ao seu pai, se pôde mentir ao Presidente dos Estados Unidos, não seria igualmente capaz de mentir neste tribunal?
Abrahams pôs-se de pé de um salto.
- Objecção, Sr. Juiz. O Sr. Advogado Miller está a atormentar e a conduzir a testemunha.
Miller levantou os olhos para o juiz Johnstone com uma expressão de pura inocência no rosto.
- Sr. Juiz, estou apenas a tentar estabelecer o carácter da... O Juiz fez soar o martelo.
- Objecção apoiada. A testemunha está sob juramento solene, Sr. Advogado Miller. Evite novas especulações acerca da sua veracidade.
Miller encolheu os ombros bem-humorado e olhou de novo para a sua testemunha.
- Ora vejamos, Sr. Julian Diiman, a que conclusões chegámos até agora. Que o senhor era um membro secreto de uma organização subversiva. Que o seu pai o ouviu dizer, perguntou-lho e o senhor negou, mentindo-lhe. Agora, pelas suas acções posteriores, é lícito interrogarmo-nos se o seu pai, o Presidente dos Estados Unidos, teria acreditado na sua resposta, ou se saberia mais acerca da sua filiação do que disse. Ora vejamos. Os Turnerites, no seu esforço para deitar por terra o governo dos Estados Unidos, cometeram o rapto de um oficial municipal. Apesar disso, como declarou o Procurador-Geral, o presidente recusou banir a sociedade responsável por tal acto. Em vez disso, nomeou um amigo e inquilino seu, um intermediário negro, para falar em particular e chegar a um acordo com os Turnerites. Depois, quando a sua organização cometeu um cobarde crime, mais uma vez recusou condenar os seus amigos, até que se viu forçado pelo Ministério da Justiça a ceder e a banir a sua organização. Não indicará isso claramente que o Hurley o ameaçara de o expor a si, a não ser que o seu pai encobrisse os Turnerites? Não indicará isso claramente que o seu pai, o presidente, sabia que o filho era membro de uma sociedade subversiva e que, para o proteger, negociou com os Turnerites, até que se perdeu uma vida? Não indicará isso que o seu pai, o presidente, pondo os seus próprios interesses e os da família à frente dos interesses do seu cargo, cometeu um crime capital e...
Isso é mentira! - protestou Julian. - Ele não acreditou que eu estivesse envolvido, e não negociou com eles.
Como é que sabe, Sr. Julian Dilman? O senhor não estava presente quando o emissário do presidente falou com os Turnerites.
Nem o senhor!
O rosto de Miller ensombrou-se.
- Está a ser insolente, jovem. Quem lhe ensinou a falar assim? Os terroristas comunistas ou os negros extremistas do seu grupo? Ou o próprio presidente?
- Objecção! - exclamou Abrahams. Miller ergueu a mão.
- Não faz mal, Sr. Juiz. Eu retiro o que disse. Temo que os jovens sejam frequentemente insolentes, hoje em dia... Muito bem, Sr. Julian Dilman, o seu pai ouvira dizer que o senhor era um membro...
Escutando com um ouvido só a continuação do interrogatório de Miller, Nat Abrahams escrevia algumas notas no bloco à sua frente. Miller, reparou ele, estava a tirar o melhor partido de um mau caso. Miller não conseguira provar que o presidente sabia que o filho fosse um membro dos Turnerites e que, consequentemente, tivesse feito um acordo com eles. Todavia, tendo-o ou não provado, Miller estava a conseguir, usando a táctica da repetição, obter uma certa credulidade para as acusações do Artigo II. Não tinha o presidente «ouvido dizer» que o filho era um membro do grupo e não o acusara? Portanto era possível que o «soubesse». Não tinha o presidente nomeado um «amigo», em vez de um oficial do governo, para chegar a um acordo com o Hurley através do Valetti? Portanto, era possível que ele tivesse chegado secretamente a um acordo.
Finalmente Miller terminou o seu interrogatório e Nat Abrahams encontrou-se perante o perturbado jovem negro.
Num tom tão amável quanto possível, Abrahams disse a Julian:
- Visto que os advogados da Câmara não possuem quaisquer provas em como o presidente acreditasse que o senhor era um turnerite, ou que o presidente negociasse com os Turnerites para o proteger, a acusação incorporada no Artigo II manter-se-á de pé ou será lançada por terra consoante o que disser. Julian Dilman, o senhor fez um juramento solene perante o corpo do Senado. Tem absoluta consciência disso?
Sim, senhor.
Não é verdade que numa sala privada da Universidade de Trafford o presidente lhe perguntou se pertencia ao grupo dos Turnerites?
-É, sim.
E o senhor respondeu-lhe que não, que não pertencia ao grupo?
Respondi-lhe que não era membro dos Turnerites.
E ele acreditou em si? -Acreditou.
E tornou a falar no assunto?
Não senhor. Acreditou plenamente no que eu lhe dissera.
Em resumo, Julian Dilman, tanto quanto o senhor sabe, o presidente ficou convencido de que o senhor não era um membro dos Turnerites?
Ficou sim.
Portanto ele não tinha qualquer razão para se comprometer com os Turnerites com o fim de o proteger?
Não tinha qualquer razão.
Disse ao advogado da Câmara que o presidente, em várias ocasiões, discutiu acerca do movimento Turnerite consigo, além da sua possível filiação. Não foi assim?
Foi. Falámos várias vezes acerca deles. Quero dizer, ele não discutiu acerca dos Turnerites comigo. Eu é que discuti acerca deles com ele. Eu trazia-os sempre para a conversa.
Por que razão os trazia sempre para a conversa?
Sentia-me preocupado por ser um membro secreto, sem ele o saber, e queria convencê-lo de que os ideais do grupo eram bons. Nessa altura eu acreditava na sociedade e ele não, e costumávamos discutir por causa disso.
Quais eram os sentimentos do presidente acerca dos Turnerites?
Pensava que eles não tinham razão. Detestava-os. Detestava todas as organizações extremistas e a favor da violência, fossem pretas ou brancas, das esquerdas ou das direitas. Era por isso que discutíamos. Mas agora vejo que era o meu pai quem tinha razão.
Julian Dilman, há algo que não compreendo. O senhor era um membro, e contudo nunca o revelou ao seu pai. Porquê? Porque mentiu acerca disso? Disse ao Sr. Advogado Miller que tinha medo de revelar a verdade ao presidente. De que tinha medo?
Bem...
Tinha medo de quebrar a sua promessa ao Hurley?
Só um pouco. Isso era o menos.
Então porquê? Tinha medo da desaprovação do seu pai?
Eu... eu sabia que ele era contra esses extremistas. Sabia o que ele desejava de mim e o que de mim esperava. Sabia que, se lho dissesse, ele... ele ficaria horrorizado e desapontado comigo e teria menos consideração por mim. Sabia que ele me amava e... e eu não queria perder o seu amor.
Estou a ver.
Era uma boa altura para mandar embora a testemunha, mas Abrahams sabia que era necessário fazer mais uma pergunta.
Foi essa a razão por que finalmente confessou o seu segredo? Afinal era um segredo seu e podia nunca o ter revelado. Contudo, na semana passada, deu-o a conhecer à imprensa e ao mundo. O que o levou a fazer isso? Por que razão, quando já não era necessário, pôs em dúvida a sua veracidade e forneceu elementos à parte mais pequena e fraca das acusações dos advogados da Câmara?
Porquê? - Julian fez uma pausa. - Porque... acho que foi porque me senti tão orgulhoso da integridade do meu pai... e... e tão envergonhado da minha falta dela... E então a minha ambição foi tornar-me num homem como ele... e pensei que a minha maneira de começar seria ser honesto como ele.
Muito obrigado, Sr. Julian Dilman.
Depois de Julian se ter retirado do banco das testemunhas, Abrahams regressou à sua mesa. Não podia calcular, pela reacção dos seus associados ou pela dos senadores, até que ponto o seu interrogatório tinha sido eficiente. Pensava que, pelo menos, tinha mostrado aos legisladores que o filho do presidente era sincero e digno de confiança, e que, embora tivesse mentido uma vez, não era provável que estivesse a mentir, sob juramento, nesse dia. Se conseguira criar tal imagem, concluiu Abrahams, já tinha sido alguma coisa, não muito grande, mas alguma coisa, uma pequena vitória.
De repente Abrahams reparou que Miss Wanda Gibson tinha sido convocada e estava já a prestar juramento depois do que se sentou no banco das testemunhas.
Agradou a Abrahams vê-la ali, tão composta, tão atraente no seu fato azul de jersey e casaco a condizer. Os olhos luminosos de Wanda, brilhando no seu rosto trigueiro e solene, encontraram-se por um breve momento com os de Abrahams e abriram-se e fecha-ram-se como para o tranquilizar, e ele sentiu-se grato pela sua picante maturidade. Tinha esperanças em que Doug Dilman a estivesse a observar pela televisão. Talvez ficasse menos preocupado por causa da prova a que a submetera.
Mas quando Zeke Miller se levantou, a confiança de Abrahams baixou um pouco. Ela teria de ser tão forte por dentro como o parecia ser por fora, para poder sobreviver.
Miss Wanda Gibson - disse Miller fazendo rolar as sílabas do seu nome. - De acordo com os Artigos I e III de acusação e de acordo com as testemunhas já apresentadas, a Srã é a grande amiga do Presidente dos Estados Unidos. Há quanto tempo o conhece?
Há cinco anos.
Durante quanto tempo viveram sob o mesmo tecto?
Há seis anos que aluguei um quarto em casa do reverendo Spinger e da Srã Spinger, os inquilinos do primeiro andar. O presidente comprou o edifício, foi viver para o rés-do-chão e tornou-se senhorio dos Spinger, e portanto também meu, há cinco anos.
Paga renda pelo seu quarto?
É claro que pago renda pelo meu quarto.
Pagou sempre renda? Pagou renda enquanto o presidente viveu no mesmo edifício juntamente consigo?
Se está a tentar saber, Sr. Congressista, se aceitei favores especiais da parte do meu senhorio em troca de outros favores especiais... a resposta é não recebi.
Ouviu-se um riso abafado vindo das galerias e Wanda olhou para cima espantada e depois de novo para Miller. Disse:
- Não houve nem um único mês em que não tivesse pago renda.
Miller fungou.
Miss Gibson, esteve alguma vez, durante estes cinco anos, sozinha com o presidente, no apartamento dele no rés-do-chão ou no seu?
Nunca no apartamento dele. Ocasionalmente na sala dos Spinger. A maior parte das vezes encontrámo-nos sozinhos fora de casa, quando íamos jantar fora ou ao teatro, isto é, quando o presidente era ainda senador.
Mais Gibson, nesse edifício da Rua de Van Buren em que vive, e que pertence ao presidente, há alguma via particular de acesso que possa ser usada para se ir do andar de baixo para o de cima ou vice-versa?
Pretende saber se há alguma espécie de escada particular ou passagem secreta que pudesse ser utilizada por mim e pelo presidente para nos vermos um ao outro, sem que mais ninguém nos visse?
Peço-lhe que se abstenha de repetir por outras palavras ou de definir as minhas perguntas, Miss Gibson. Eu pretendo saber exactamente o que lhe perguntei. Há alguma via de acesso particular pela qual o presidente pudesse ir ter consigo ou a senhora com ele?
Não. A não ser que ele usasse uma escada de mão... ou a vinha que cobre as paredes das traseiras... mas duvido que o presidente pertença, ou jamais pertencesse, a esse tipo atlético ou teme-rariamente romântico.
Ouviu-se um estrépito de gargalhadas vindas das galerias, e alguns espectadores bateram com os pés e assobiaram. O juiz Johnstone fez soar o martelo com força.
- O juiz supremo previne os estranhos e cidadãos das galerias da necessidade de observarem uma perfeita ordem e um profundo silêncio... com risco de serem evacuados.
Zeke Miller olhava fixamente para a testemunha.
Miss Gibson, várias testemunhas que a conheciam a si, assim como ao presidente quando este era ainda senador, concordaram em que a senhora tinha relações muito íntimas com ele. Até que ponto eram elas íntimas?
A maior parte das vezes tão chegadas como o senhor comigo neste momento.
As testemunhas não disseram isso.
Que disseram as testemunhas, congressista?
Que a senhora, Miss Gibson, e o homem que está agora no lugar de presidente tinham o que poderá ser considerado por algumas classes como uma união ilícita.
Poderá porventura provar tão escandalosa afirmação? Que provas possui, além do desejo de difamar o presidente, para a apoiar?
Miss Gibson, são suficientes as provas circunstanciais que possuímos. São suficientes as provas das vossas entrevistas e das vossas conversas telefónicas. O caso salta aos olhos. E o suficiente.
O suficiente para mexericos de senhoras vizinhas e para perseguidores vingativos...
Tenha cuidado com a língua, Miss Gibson. Prestou juramento...
Tenha-o também o senhor. O senhor não possui qualquer prova. Só tem esperanças, boatos e indícios. E sobre isso está a tentar construir um Romeu e uma Julieta de palha. O que está a construir é um caso inexistente (está a imaginar algo que não existe) e eu sou a única nesta sala que conhece a verdade e estou a dizer-lha.
Miss Gibson, não insulte a inteligência deste tribunal. Está-me a querer dizer que entre a senhora, uma mulher solteira e em plena maturidade, e um homem viúvo houve uma mera amizade durante estes cinco anos, sem existir qualquer intimidade entre os dois?
Intimidade?
Sabe muito bem o que quero dizer, Miss Gibson.
Parece-me que sim, e estou espantada. Congressista Miller, a amizade existente entre mim e o presidente era baseada no respeito mútuo, em simples interesses intelectuais e no mero prazer de estarmos juntos. Tínhamos muita afeição um pelo outro. Estivemos de mãos dadas. Abraçámo-nos. Beijámo-nos. Mas, por muito que sinta desapontá-lo, nada mais aconteceu.
Não estou a duvidar da sua sinceridade, Miss Gibson, mas quer-me dizer que alguém como o presidente... os seus hábitos desregrados já aqui foram...
Que hábitos desregrados?
A bebida, a bebida em excesso, por exemplo.
A bebida? O presidente? Com certeza que está a brincar. Nunca o vi beber nada além de água mineral ou, ocasionalmente, ao jantar. Dois copos de vinho e ficava a dormir. Com certeza está a brincar.
E a senhora está a ser excessivamente atrevida, em detrimento da pessoa que, compreensivelmente, está a tentar proteger.
Se estou a ser atrevida é porque as suas perguntas só me causam desprezo, e contudo penso que elas nem isso merecem da parte de uma senhora e num tribunal.
Será melhor deixar os membros do Senado julgar a sua atitude. Contudo, antes de entrarmos nas perguntas relacionadas com a história em como conseguiu obter do presidente informações privilegiadas do estado para as passar depois aos seus patrões comunistas, gostaria que me respondesse apenas a mais uma pergunta acerca da sua amizade com o presidente. Será que o presidente achou a sua companhia tão recompensadora, tão completa em todos os aspectos, durante estes cinco anos, que não pensou ser necessário pedi-la em casamento?
Congressista, considero a insinuação existente por detrás da sua pergunta como um insulto.
Não pretendi ofendê-la.
Está a insinuar, apesar da minha negação jurada, que o presidente e eu tínhamos relações íntimas, e que tal situação o satisfazia o suficiente para não se ver obrigado a pedir-me em casamento.
Miss Gibson, foi a senhora, e não eu, quem disse isso.
Congressista, quando uma cobra assobia, sabe-se que é apenas um assobio e não uma mordedura, mas sabe-se também o que tal som significa e o que precede.
Miss Gibson, não nos desviemos do nosso caminho com discursos de zoologia. O que eu pretendo são os factos das suas relações com o presidente expostos perante o tribunal. Miss Gibson, no fim destes cinco anos, por que razão não legalizaram as relações entre ambos?
Por que não legalizámos as nossas relações?
Sim, por que não casaram, Miss Gibson?
Porque ele nunca mo pediu. Acho que o desejava, mas penso que teve medo.
Medo?
Das pessoas como o senhor, Sr. Advogado, das pessoas que o pudessem achar demasiado preto para mim ou eu demasiado branca para ele, e que pudessem gritar que a nossa união estava a amulatar o Congresso, a que ele outrora pertencia, ou a Casa Branca, onde se encontra agora como presidente. Se já acabou com o episódio da Madame du Barry da minha vida, Sr. Advogado, poderemos prosseguir agora com o da Mata-Hari? Estou ansiosa por o conhecer.
Passados dez minutos, quando Zeke Miller terminou o episódio da Mata-Hari e regressou para o seu lugar, mal-humorado e limpando o suor da testa, chegou a vez de Nat Abrahams.
Este levantou-se:
- Sr. Juiz, os advogados do presidente dispensam o interrogatório. A testemunha pode retirar.
Sorriu para Wanda Gibson, enquanto esta se erguia do banco das testemunhas. Talvez o Senado fosse de outra opinião, mas para Abrahams ela não precisava de qualquer defesa além da que ela própria já tinha fornecido.
Olhando para lá da tribuna, Abrahams viu a expressão do rosto de Zeke Miller mudar. Pareceu iluminar-se. Então Abrahams observou a testemunha que se aproximava, a testemunha cujo rosto falsamente inocente trazia uma expressão de fria determinação.
Sally Watson, o cabelo loiro artisticamente penteado para a ocasião, o fato acentuando os contornos insinuantes do seu corpo, uma estola de peles no braço, sentara-se na cadeira das testemunhas.
Tuttle inclinou-se para Abrahams.
Ela está com cara de quem nos vai fazer rabiar - segredou ele.
E vai - respondeu Abrabams.
Zeke Miller, esfregando as mãos, aparentemente aliviado, diri-giu-se à testemunha com especial deferência.
Miss Watson, considerando o facto de o seu pai ser um membro deste augusto corpo e considerando a provação por que recentemente passou, é um acto de invulgar coragem e patriotismo o ter--se oferecido voluntariamente para comparecer aqui, em público, esta tarde. Todos nós apreciamos o facto de se prontificar a colaborar connosco nesta procura da verdade e no nosso desejo de purificar e fortalecer o ramo executivo do nosso nobre governo. Pela minha parte tentarei demorá-la o menos possível.
Muito obrigada, deputado Miller.
Bem, por que razão se ofereceu a senhora para o lugar de secretária social do Presidente Douglass Dilman, uma semana após este ter subido à presidência?
Eu ouvira dizer, por meio dos inúmeros conhecimentos que possuo em Washington, que muitos membros do pessoal da Casa Branca se estavam a demitir. Ouvira também que a Miss Laurel, a secretária social da primeira dama, acompanharia esta quando ela saísse da Casa Branca. Lera e ouvira que o novo presidente não tinha mulher que o pudesse ajudar nas usuais festas e deveres sociais. É claro que nessa altura eu não sabia que ele tinha uma filha que passava por branca.
Não, ninguém sabia isso, Miss Watson.
Eu sabia também que seria difícil para o Presidente Dilman encontrar alguém para ocupar uma posição tão especial como a de secretária social. E os seus..., os seus antecedentes, o seu desconhecimento das formalidades sociais - faziam com que a posição fosse duplamente árdua. Poucas senhoras competentes tomariam tal responsabilidade por tão magra recompensa.
Portanto ofereceu-se para esse lugar por achar que esse era o seu dever?
Se quer ver as coisas por esse prisma, sim, foi isso mesmo. Quis ser de alguma utilidade, fazer qualquer coisa para manter a continuidade da vida social na Casa Branca.
E achava que possuía as qualidades requeridas?
Achei. Frequentara Radcliffe. Trabalhara numa agência de publicidade em Nova Iorque. Estava habituada a receber os convidados do meu pai. Achei portanto que era competente para o lugar, e aparentemente era-o, pois o presidente contratou-me logo na primeira entrevista que tive com ele, e frequentemente me elogiava a habilidade com que eu desempenhava as minhas funções.
E a posição agradou-lhe, Miss Watson?
Sob todos os aspectos, excepto um.
Excepto um? Posso perguntar-lhe qual?
Não me importo. Chegou a altura de se conhecer a verdade. Alguns amigos meus pediram-me que não aceitasse a posição. Dis-seram-me que o presidente, bem, tinha relações com uma mulher branca solteira, é claro, mais tarde vim a saber que afinal era mulata, e que a sua moral era de certo modo duvidosa. Não liguei ao facto, julgando que fossem meros boatos que precedem qualquer novo presidente.
Foi muito generosa, Miss Watson.
Não gosto de dar crédito a boatos. E ao princípio, durante as primeiras semanas, pensei que tivesse tido razão. Mas depois...
Continue, por favor, Miss Watson. O que aconteceu então?
Não sei. O presidente pareceu ganhar mais confiança no novo cargo, sentiu-se o verdadeiro dono da Casa Branca e o seu comportamento mudou. Ao princípio a mudança foi muito subtil, mas depois tomou-se mais visível.
Poder-nos-á exemplificar isso?
Oh, sim. A sua maneira de falar tornou-se mais imperiosa, mais rude, e ele tornou-se mais exigente. Como tínhamos diariamente assuntos a tratar, ele insistia frequentemente para que eu fosse ter com ele ao seu quarto, de manhã ou à noite, e às vezes bebia na minha presença e tornava-se arrebatado.
Arrebatado, Miss Watson?
Embriagado. Talvez Miss Gibson tivesse razão. Ele não aguenta álcool. Apesar disso, a verdade é que bebia. Quando estava sob a influência da bebida e nos encontrávamos sozinhos - nunca permitiu que eu me fizesse acompanhar de qualquer outra pessoa do meu pessoal - tornava-se excessivamente atrevido. Quer dizer, costumava pôr-se a fazer-me lisonjeios acerca da minha figura, do meu aspecto ou dos meus fatos. Isso punha-me muito pouco à vontade. Eu não sou nenhuma criança, mas havia algo nele, no modo de ele me fitar, que me metia medo.
Estou a ver. Até àquela terrível noite sobre a qual discutiremos dentro de um momento, o Presidente Dilman nunca teve qualquer gesto impróprio para consigo?
Não. Se tivesse tido, eu ter-me-ia despedido logo e contado tudo ao meu pai.
Miss Watson, chegámos agora à triste cena que levou a Câmara dos Deputados a condenar a moralidade do presidente no Artigo III.
Foi uma terrível experiência.
O Senado e o público julgarão justamente o grau da degradação do presidente, Miss Watson. Sei que a decisão deles nunca a poderá libertar do pesadelo que lhe foi infligido, mas saberá que a justiça foi feita. Recapitulemos então, rápida e sumariamente, os acontecimentos dessa noite. Foi a noite do jantar dos chefes do Estado-Maior. Depois do jantar, passou-se um filme a que a senhora não assistiu. Posso perguntar-lhe porquê?
Quando íamos a sair da sala para irmos ver o filme, o presidente chamou-me à parte e teve uma conversa em particular comigo.
Sim, o general Fortney confirmou isso. Qual foi o conteúdo dessa conversa?
O presidente disse-me que desejava ver uns registos de uns jantares de O. C. para os rever juntamente comigo, nessa mesma noite. Pediu-me que os fosse buscar e fosse ter com ele, daí a uma hora, ao Quarto de Lincoln. A proposta não me agradou, pois o seu hálito cheirava a vinho, mas não tinha por onde escolher. Portanto lá estava, quando ele chegou.
O que sucedeu a seguir, Miss Watson? Sei que isso lhe é penoso, mas desejava que o Senado o ouvisse dos seus próprios lábios.
Bem, o presidente entrou, murmurou algo acerca do filme, e quis que eu bebesse um whisky com ele. Eu não queria, mas ele fez--mo aceitar à força. Ele próprio deve ter bebido uns três nos quinze ou vinte minutos a seguir. Eu sentei-me numa cadeira junto da cama e ele sentou-se na cama e começou a falar desarticuladamente acerca da sua vida, o que era a vida de um negro, como ia provar que ele e outros negros que ele iria introduzir no gabinete podiam governar melhor o país que os políticos brancos... Depois, subitamente, per-guntou-me se eu tinha alguma coisa contra ele por causa da sua cor. Eu disse-lhe que não. Depois, pediu-me que lhe mostrasse os papéis. Eu assim o fiz e fui até junto dele.
E depois, Miss Watson?
Ele pegou nos papéis, atirou com eles para o lado e agarrou--me. Tentou beijar-me. Eu não deixei e então ele enfureceu-se. Tentei soltar-me, mas ele não me largava. Rasgou-me o vestido e então tor-nou-se brutal. Eu bati-lhe e ele puxou-me para a cama. Mas eu consegui fugir e ele correu atrás de mim, magoou-me e arranhou-me. O senhor tem as fotografias que o médico me tirou nessa mesma noite. Mas eu consegui alcançar a porta, abri-la e escapar-me. Nunca mais tornei a pôr os pés na Casa Branca.
Que sucedeu imediatamente depois, Miss Watson?
Eu... eu contei o sucedido a umas pessoas do governo, pois tinha medo de contar ao meu pai, pelo que ele pudesse fazer, e então os meus amigos decidiram agir contra o presidente, contaram ao meu pai e ele concordou.
Desde então tem estado sob a constante vigilância do seu médico?
Fiquei em estado de choque. O médico não me tem deixado sair de casa, mas vai lá todos os dias.
Miss Watson, a senhora prestou um serviço ao seu país. Muito lhe agradecemos o seu testemunho.
Zeke Miller inclinou a cabeça e regressou ao seu lugar, de cabeça baixa e abanando-a pesarosamente.
Sally Watson levantou-se da cadeira para se ir embora, mas a voz potente do juiz Johnstone deteve-a.
- A testemunha permanecerá no seu lugar para o interrogatório dos advogados do presidente.
Surpreendida, Sally Watson tornou-se a sentar. O juiz supremo disse:
- Srs. Advogados de Defesa, se desejarem interrogar a testemunha, podem prosseguir.
Abrahams enfrentou Sally Watson.
- Miss Watson - disse ele, o tom da sua voz mais leve que severo -, como o honorífico advogado que me precedeu, avalio o quanto lhe deve custar a sua comparência hoje aqui. Farei o que puder para lha tornar o mais suportável e mais breve possível.
Sally Watson olhava desconfiada para Abrahams.
Muito obrigada.
Peço-lhe desculpa de me ver obrigado a tocar em certos pontos já passados em revista pelo honorífico advogado da Câmara. Ora, quando a senhora se ofereceu pessoalmente ao presidente para o cargo de secretária social, suponho que o terá visto no Escritório Oval da Casa Branca, ele aceitou-a imediatamente, ou é certo que ele teve algumas dúvidas quanto às suas qualificações, até a senhora lhe indicar alguém altamente colocado no governo que a recomendaria? Não é isto verdade?
-É... é sim.
Quem foi essa pessoa do governo que a recomendou?
Foi o ministro de Estado.
O ministro de Estado Eaton? Recomendou-a para esse lugar? Ele conhecia-a pessoalmente e disse que a senhora era competente?
Sim, foi isso mesmo.
-Como resultado da recomendação favorável do ministro Eaton, a senhora foi contratada para secretária social da Casa Branca!
Bem, havia ainda as minhas outras qualificações.
É claro, Miss Watson, as suas outras qualificações. Ora deixe--me ver. -Abrahams abriu o dossier que tinha na mão e examinou as fotocópias dos documentos que já tinham sido introduzidos como elementos comprovativos no tribunal. - Miss Watson, a senhora falou em ter frequentado Radcliffe. O relatório indica que frequentou esse colégio apenas durante dez meses e que depois foi expulsa, sem explicar qual o motivo. Poder-nos-á explicar isso?
Estava impaciente com o colégio. As alunas eram demasiado acriançadas. O que eu queria era ter um emprego, sair de lá e arranjar um emprego. Portanto fui para Nova Iorque.
Teve aí o emprego numa agência de publicidade, dirigida por um ex-colega de leis do senador Hoyt Watson. Recebia um elevado salário para uma jovem que não possuía qualquer experiência de publicidade. Era, na verdade, um bom emprego. É de espantar que tivesse durado apenas seis meses. Qual foi a razão, Miss Watson?
Era um meio não muito recomendável. Não o podia suportar. Além disso, queria ter lições de canto. Tinham-me dito que eu cantava excepcionalmente bem e que poderia fazer carreira nesse campo.
Sim, temos provas que a senhora possuía uma devoção pela música popular. Vejo aqui igualmente que a senhora esteve casada com um jovem da orquestra de Greenwich Village. O casamento foi anulado duas semanas mais tarde. O jovem com quem fugiu foi deportado para Porto Rico, sua terra natal.
Quando eu soube dos seus maus hábitos, pois tomava estupefacientes, pedi a anulação do casamento e revelei o seu vício a certas pessoas. Penso que foi essa a razão por que foi deportado. Acho que fizeram bem.
Sem dúvida... Agora, Miss Watson, temos aqui em nosso poder provas de que nos anos a seguir foi tratada por três médicos psiquiatras e durante um curto período de tempo esteve internada num clínica para doenças mentais. O caso não tem nada de mal e o tratamento não é invulgar. Na verdade até mostra bom senso no facto de procurar tratar-se quando se sentia emocionalmente doente. Como é natural, e do seu dever, os seus médicos e a clínica não nos revelaram o carácter da sua doença. Possuímos apenas a informação de que a senhora foi internada nessa clínica por se ter tentado suicidar.
A voz aguda de Zeke Miller guinchou:
- Objecção, Sr. Juiz! O testemunho que o advogado está a tentar provocar é irrelevante e imaterial para o caso em julgamento e constitui um esforço óbvio para prejudicar o carácter da testemunha.
Abrahams apelou para o juiz supremo:
- Excelência, sou de opinião que esta linha de perguntas é altamente relevante. Não estou interessado em prejudicar o carácter da testemunha para além de mostrar factualmente a sua consistente instabilidade e consequentemente a sua falta de capacidade para a posição para a qual o presidente a contratara.
Mas o presidente contratou-a - gritou Miller.
Porque foi enganado quanto às suas qualidades pelo ministro de Estado Eaton e por motivos intimamente relacionados com este caso - disse Abrahams.
Objecção mantida - declarou o juiz supremo. - Sr. Advogado Abrahams, daqui em diante limite-se estritamente a perguntas relacionadas apenas com as acusações do Artigo III.
Aborrecido, Abrahams fechou o dossier, foi até à sua mesa, en-tregou-o a Tuttle e voltou para junto de Sally Watson.
Miss Watson, visto que Arthur Eaton foi parcialmente responsável em a ajudar a obter o cargo de secretária social do presidente, gostaria de saber há quanto tempo o conhece e qual o grau de intimidade que existia entre ambos.
Há quanto tempo? Desde sempre, acho eu. Ele é amigo de meu pai e eu costumava encontrá-lo nas reuniões sociais.
E isso era o suficiente para que ele conhecesse bem as suas qualidades para a posição da Casa Branca?
Bem, nós falávamos frequentemente um com o outro. Penso que ele me achava inteligente e com a necessária experiência social.
Depois da catástrofe de Francoforte sabia que o ministro Eaton era o próximo na linha de sucessão para a presidência, não sabia?
Devo-o ter lido algures. Mas nunca pensei no caso.
Quer dizer que nunca discutiu acerca disso com o ministro Eaton, nem mesmo quando estavam sozinhos?
Nós nunca estivemos sozinhos! Quer dizer...
Miss Watson, visto que prestou juramento e antes de completar a sua declaração, apresso-me a refrescar-lhe a memória. Temos provas em como foi vista a jantar sozinha com o ministro de Estado fora de Washington e em como, mais tarde, era visita constante da sua casa de Georgetown, depois de escurecer. É capaz de o negar?
Já lhe disse que ele era um velho amigo de família. Encon-trava-me às vezes com ele porque ele atendia-me sempre bem e aconselhava-me quando o meu pai se encontrava ocupado. Quando tinha algum problema pessoal, ia sempre ter com o Sr. Eaton. Isso nada tem de invulgar.
Sabia que o ministro de Estado era casado?
Claro que sim.
E a mulher assistia sempre a esses... a esses encontros paternais que tinha com ele?
Não. Ela andava em viagem.
Então talvez eu seja antiquado ao sugerir que a sua conduta era invulgar.
Está apenas a deturpar as coisas, é tudo. Era raro encontrarmo--nos sozinhos. Quando eu ia a sua casa, o normal era que lá estivessem também outros convidados, e, bem, os criados estavam sempre presentes.
Bem, Miss Watson, acerca da noite em discussão, a senhora afirmou que o presidente estava embriagado. E a senhora também estava?
Não, não estava!
Todavia foi vista no jantar dos chefes do Estado-Maior a beber champanhe antes e depois da refeição e vinho durante esta.
O vinho não me faz qualquer efeito. Faz parte da refeição.
E depois, de acordo com o seu testemunho, bebeu no quarto do presidente?
Ele obrigou-me.
Obrigou-a? Como foi isso possível? Ofereceu-lhe uma bebida, se o fez, e a senhora aceitou. É isso que quer dizer?
Tive de a tomar.
Miss Watson, a senhora afirmou que esteve à espera no quarto dele até ele chegar. Quanto tempo?
Não sei bem. Dez ou quinze minutos.
Que fez enquanto esperava?
Que fiz? Eu... eu fumei, reli os papéis que ele me mandara ir buscar e pensei todo o tempo em como desejava não estar ali.
O presidente deixara a sua pasta aberta no quarto. Esta continha documentos ultra-secretos de natureza a serem úteis ao seu amigo Arthur Eaton. Leu por acaso algum desses documentos?
Claro que não! Por quem me toma?
Depois o presidente entrou, concentrou as suas atenções em si e, por lhe ter resistido, ele magoou-a. É esta ainda a sua história?
Não é a minha história, foi o que se passou.
Miss Watson, eu mostrei as fotografias dos arranhões e nódoas negras no seu peito e pernas a três médicos altamente competentes. Foram os três da opinião que, embora as feridas pudessem, na realidade, ter sido feitas por uma outra pessoa, podiam ter sido igualmente feitas, como a cicatriz que tem no pulso, pela senhora. Agora...
Isso é uma suja mentira!
Limitei-me a repetir a opinião...
É mentira!
Desculpe-me se a incomodei, Miss Watson. Deve lembrar-se de que havia duas pessoas nesse quarto e não apenas uma.
Disso lembro-me até bem de mais!
E a senhora deu ao tribunal uma versão do que sucedeu, mas há uma outra completamente diferente da outra pessoa que se encontrava no quarto. De qualquer modo, deixemos para trás a cena sobre a qual discordamos. A seguir a senhora fugiu, como já nos contou. Para onde foi? Que aconteceu a seguir?
Corri ao meu escritório da Ala Este, à casa de banho, para estancar o sangue e me limpar. Depois fui para casa.
Foi para casa. Há pouco, ao advogado da Câmara, disse que contou imediatamente o ocorrido a alguns amigos seus influentes no governo. Contou-lhes pelo telefone ou pessoalmente?
Pe... pessoalmente. Não podia ir directamente para casa no estado em que me encontrava. Lembro-me agora. Tinha necessidade de falar com alguém. Portanto fui ter com os meus amigos.
Terá sido, por acaso, o honorífico ministro de Estado Arthur Eaton um desses amigos?
Sim. Pensei nele em primeiro lugar.
- Foi ter com ele à sua casa de Georgetown? - Fui.
Mas esse é apenas um amigo e a senhora falou em vários amigos. Talvez que quando a senhora foi ter com o ministro Eaton este tivesse reunido em sua casa outras pessoas para a receberem. Quem se encontrava lá quando chegou?
O Sr. Eaton e... e o governador Talley e o senador Hankins estavam lá, assim como o deputado Miller. Ficaram horrorizados com o meu estado.
Contou-lhes a todos o que acontecera?
Não imediatamente. Contei primeiro ao Sr. Eaton. Tive medo de contar ao senador Hankins e ao deputado Miller, sabendo quão indignados ficariam por um negro se ter comportado daquela maneira para comigo.
Quer dizer que tinha medo que eles ficassem mais indignados com tal procedimento vindo da parte de um negro do que se tivesse vindo da parte de um branco?
Não quis dizer exactamente isso.
Que quis então dizer, Miss Watson?
Quis dizer que eles já não tinham muita confiança em Dilman... no presidente Dilman... e eu temi que o comportamento dele... eles ressentem facilmente que os ne... que alguém se comporte desse modo para com as senhoras, lá donde viemos... eu temi que isto os excitasse.
- E assim sucedeu quando lhes contou? - Sim.
- Depois disso foi mencionado o julgamento do presidente na sua presença?
-Foi.
Por causa do que lhes contou?
Por causa de outras coisas. Isto constituía apenas para eles mais uma ofensa.
E o ministro de Estado Eaton, como considerou o ocorrido?
Como é natural, ficou revoltado com o procedimento do presidente. Mas não o mostrou tanto, pois isso faz parte dos seus antecedentes e educação.
Mas o ministro de Estado ficou contente?
O quê?
Ficou contente quando a senhora lhe entregou uma porção de fichas com notas tiradas por si no quarto do presidente, notas copiadas de uma transcrição de um encontro altamente secreto entre o director da C. 1. A. e o presidente, notas que mostravam ao ministro Eaton que o presidente estava a par dos seus esforços para usurpar as prerrogativas presidenciais do cargo?
«O nosso relativo juízo não está agora aqui em causa, Miss Watson. Já lhe disse que só duas pessoas sabem o que se passou no Quarto de Lincoln. Uma é a senhora, e já nos deu a sua versão do ocorrido. A outra é o presidente, e na sua devida altura introduzirei uma declaração assinada por este, provando que toda a sua história não passa de uma pura invenção e que o seu verdadeiro motivo para se introduzir naquele quarto...
- Ele é um mentiroso como o senhor. É um porco e negro mentiroso e...
Ela parou abruptamente, arfando, os olhos abertos e fixos em Abrahams e depois percorreu toda a sala com os olhos.
Sente-se bem? - perguntou Abrahams.
Não lhe permito que me insulte!
Penso que não está em condições de prosseguirmos e por meu lado acho que já ouvi tudo o que queria. Muito obrigado, Miss Watson. No que diz respeito à defesa, pode-se retirar.
Voltou-lhe as costas e regressou ao seu lugar. Quando se sentou, viu-a com um lenço em frente dos olhos, levantar-se cambaleante ajudada por um oficial do tribunal e depois sair quase a correr da sala.
Na terceira fila das secretárias do Senado, Abrahams viu também o senador Hoyt Watson lívido, o cabelo branco desgrenhado, enquanto os colegas o rodeavam.
Reparou então que Zeke Miller se pusera de pé e se dirigia ao juiz Johnstone.
- Sr. Juiz, os advogados da Câmara apresentam a sua última testemunha neste julgamento de acusação contra o presidente. Interrogarei agora o honorífico ministro de Estado dos Estados Unidos, Arthur Eaton.
Os olhos de Abrahams seguiram o alto, esbelto e imaculado ministro de Estado, enquanto este subia à tribuna para prestar juramento. Abrahams tocou no braço de Walter Tuttle.
- Walter - disse ele em voz baixa -, sei manejar pessoas vulgares, bem ou mal, mas não tenho a certeza de me sair lá muito bem a interrogar alguém que julga ter escrito a Constituição. Acha que o poderá subjugar, quando chegar a nossa vez?
Tuttle olhou para a testemunha e disse azedamente:
Não estou muito certo que alguém o possa subjugar, Nat.
Suspeito que o Miller irá agora invocar O. C, a dignidade do Congresso e a lei do país, e afirmará que Eaton era o símbolo dessas três coisas, e que, ao demiti-lo, o nosso cliente manchou o túmulo de O. C. cuspiu no rosto do Senado e quebrou a lei federal - disse Abrahams.
A coisa vai ser dura - respondeu Tuttle num sussurro. - Legalmente, o artigo que apoia o Eaton é o mais importante. Popularmente, porém, serão os outros artigos que determinarão a condenação ou a absolvição.
Abrahams disse:
Acho que isto é a sua chávena de chá. Quer pegar-lhe?
Com prazer, mesmo que o chá no fim seja óleo de fígado de bacalhau.
Sorrindo um para o outro, Nat Abrahams e Walter Tuttle concen-traram-se em escutar o começo do respeitoso interrogatório feito por Zeke Miller à sua última testemunha, ao homem do qual estava a tentar fazer o novo Presidente dos Estados Unidos.
Havia quase meia hora que Douglass Dilman estava taciturnamente sentado à sua secretária do Escritório Oval com os olhos fixos no ecrã da televisão, observando e escutando Arthur Eaton oferecendo-se grandiosamente aos Estados Unidos e ao Senado como se fosse o espírito e a consciência de O. C. Por um momento, Dilman olhou através das janelas de vidro para o relvado da Casa Branca, invadido já pelas sombras do fim da tarde. Sentia-se vagamente deprimido. A atitude e a sofisticação de Eaton, a sua eloquência, a facilidade com que respondia às perguntas, a sua impecável indumentária e, acima de tudo, a sua brancura superior - tudo isto, e não as suas verdadeiras respostas ao interrogatório, deprimia Dilman. O ministro de Estado parecia ser o perfeito arquétipo de um chefe nacional, o que não sucedia nem nunca sucederia consigo próprio.
Uma voz familiar fê-lo desviar os olhos para o ecrã da televisão. O colega de Abrahams, o amigo do Juiz, o temível Walter Tuttle, tinha começado o seu interrogatório.
A estatura de Tuttle na história política igualava a de Eaton. Os seus sarcasmos azedos, as suas perguntas perspicazes, atiradas de catapultas formadas pelo seu vasto conhecimento do passado do país, pareceram desconcentrar a testemunha. De vez em quando, a invencível e arrogante confiança de Eaton dava lugar à incerteza humana, e entrevia-se então um homem igual a Dilman e a qualquer outro. Veriam os outros também isso, ou seria Dilman o único a vê-lo? Imper-ceptivelmente a sua depressão desapareceu.
Encontrava-se completamente absorvido pela cena à sua frente, quando o telefone tocou. Distraidamente, os olhos fixos no ecrã, a sua mão pegou no auscultador.
Ouviu a voz de Edna Foster.
Sr. Presidente, é o seu filho Julian a telefonar de Nova Iorque. Diz que é muito urgente.
Ligue-o para cá, Miss Foster.
Estendeu o braço, desligou a televisão e esperou preocupado.
É o pai?
Sim, Julian, que sucedeu? Disseste...
Não se alarme, está tudo bem - disse Julian nervosamente -, mas achei melhor telefonar-lhe. Trata-se da Mindy, estou neste momento no seu apartamento. Pai, ela tentou suicidar-se, tentou, mas já está livre de perigo.
Suicidar-se? - Dilman sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. - Tens a certeza de que ela está livre de perigo? Está aí algum médico? Como é que ela está, Julian? Que aconteceu?
Depois de ter lido nos jornais aquilo acerca de ela passar por branca, e de ter ouvido o mesmo na telefonia, resolveu tomar uma data de hipnóticos. Meus Deus, se visse a quantidade de comprimidos que ela tomou! Depois, quando se convenceu de que já nada a salvaria, telefonou-me para Trafford. Acho que queria limpar a sua consciência antes de morrer. De qualquer modo eu mal pude perceber o que ela me dizia. Balbuciava qualquer coisa acerca de um repórter que a tinha descoberto e que, para se salvar a si própria, ela o colocara na minha pista como membro dos Turnerites, e que agora tinha pena de o ter feito e me queria pedir desculpa. Tentei fazê-la falar mais, porque percebi que havia algo de errado com ela. Finalmente ela desligou, mas felizmente a telefonista deu-me o número do telefone de Mindy. Então eu fiz com que a telefonista chamasse a polícia e médicos da polícia. Foi por um triz, pai. Encontraram--na estiraçada no chão, e o que lhe valeu foi a lavagem ao estômago que lhe fizeram. Mais uns minutos e ela ia-se. Mas agora já está bem. Quando aqui cheguei já ela estava meio sentada na cama com o seu próprio médico ao lado. Ele ainda cá está. Ela agora já está bem.
Dilman sentia-se incapaz de vencer a sua angústia.
Julian, dá-me a morada dela. Vou tomar já um avião para aí. Quero vê-la.
Não, pai, por favor. Foi a primeira coisa que ela disse, quando soube que eu lhe vinha telefonar; não quero ver ninguém por enquanto. O médico concorda. Ela está muito fraca. O médico diz que isso só a poderia prejudicar. Ela precisa de descansar e de tempo para pensar por si só.
Ela tentou mesmo suicidar-se - tornou a repetir Dilman ainda incrédulo.
Bem... é que foi horrível para ela, pai. Despirem-na deste modo em público, e... espere só um segundo, ela está a tentar dizer-me algo... o quê, Mindy... Pois claro, está bem... Pai, eu... eu mostrei-lhe os jornais com a sua declaração à imprensa. Ela repetiu apenas algo do que o pai disse acerca de o crime de passar por branco não ser dela, mas de todos os Americanos, por não a terem deixado crescer em dignidade. Custa-me a percebê-la, fala tão indistintamente.
Dilman compreendia-a, embora o filho a não compreendesse. Depois disse:
Julian, quero que fiques aí no apartamento dela esta noite pelo menos. A Mindy poderá precisar de alguém íntimo com quem falar, quando acordar completamente.
Cá ficarei, pai.
E mantém-te em contacto comigo. Percebeste?
Absolutamente. Voltarei a telefonar-lhe esta noite.
Dilman abanou a cabeça, embora não estivesse ali ninguém para testemunhado seu desespero.
- Pobre criança. Só desejava que ela me deixasse vê-la. Tenho tanto para lhe dizer.
- Ela está viva, pai. É tudo o que interessa agora. Talvez algum dia. -Talvezalgum dial...
Lentamente, Dilman desligou.
Com o coração dilacerado pela dor, Dilman levantou-se da secretária, deu uma volta à sala, por fim abriu a porta que dava para o escritório de Miss Foster e entrou. Não tinha qualquer assunto específico para tratar com a sua secretária. Queria apenas o conforto de uma companhia.
Edna Foster, a atenção dividida entre a carta que estava a escrever à máquina e o ecrã da televisão, parou de escrever e saudou-o com um gesto de culpa.
- Não consigo tirar os olhos da televisão, Sr. Presidente – disse ela.
No pequeno ecrã via-se um aspecto geral de toda a Sala Magna do Senado.
Que aconteceu? - perguntou a Miss Foster.
O Sr. Tuttle acabou agora de interrogar Eaton. Não me parece que tenham feito um bom caso. Quero dizer, não têm factos concretos - disse Miss Foster.
Dilman respondeu:
Infelizmente, Miss Foster, poucas pessoas que observam o julgamento neste momento, incluindo os senadores, pensam assim. Eles disseram o que vem a seguir?
Anunciaram que o Sr. Abrahams poderia começar a examinar as testemunhas da defesa às cinco e meia desta tarde. Depois, às sete horas, o tribunal fará uma pausa para o jantar e tornar-se-á a reunir esta noite, às oito e meia, para uma sessão nocturna, até que as testemunhas da defesa sejam ouvidas. Amanhã, o Senado reunir--se-á às dez horas da manhã para os discursos de encerramento. Será concedida uma hora aos advogados da Câmara, e depois uma hora ao Sr. Abrahams. Depois haverá uma pausa para o almoço, e Johnstone disse que se não houvesse quaisquer atrasos, mais nenhuns assuntos de lei a serem discutidos, a votação seria iniciada às duas horas de amanhã.
Dilman sentiu um pequeno choque ao saber que o julgamento estava quase no fim. Não estava ainda preparado para enfrentar o dia do julgamento final, mas supunha que tal sucedia a toda a gente.
- Muito obrigado, Miss Foster, desculpe ter-lhe vindo interromper o seu trabalho.
Regressou à solidão do Escritório Oval, fechou a porta atrás de si e pôs-se a passear de um lado para o outro com as mãos atrás das costas.
Recordou o que Nat Abrahams lhe dissera havia dez dias - que, embora fosse legalmente permitido ao presidente servir como testemunha em sua própria defesa, este não o devia fazer. Como ele próprio, o presidente Andrew Johnson quisera ser ouvido, mas os seus advogados não o tinham deixado. No fim, talvez os advogados de Johnson tivessem tido razão. Mas de qualquer modo, este segundo julgamento presidencial na história da América era diferente, basicamente diferente, em relação ao primeiro, e vastamente mais crucial para os Estados Unidos. A questão básica não era as diferenças entre dois poderosos ramos do governo, como sucedera com o primeiro julgamento. A questão básica era o não mencionado e invisível
Artigo V de acusação. Dilman sabia que Abrahams tinha razão. Como presidente, ele não estava a ser julgado por ser um político obstrutivo, como sucedera com Johnson. Estava a ser julgado por ser negro.
Contudo, a verdadeira razão desse seu julgamento histórico não tornaria a ser ouvida na Sala do Senado. Dentro em breve os sons da batalha deixar-se-iam de ouvir. Dilman seria banido, condenado como a Mindy a vaguear pelo país e pelo mundo, em desgraça. E mais do que a Mindy - teve plena consciência disso de repente - teria sido sua a culpa, por não ter ajudado a dar ênfase à verdadeira acusação que lhe era dirigida, por não ter ajudado a mostrá-la a todo o mundo. O fracasso seria seu por não ter obrigado o público a ver por si próprio, em primeiro lugar, sobre o que ia votar, e depois por não ter deixado o povo decidir se poderia viver, depois de votar, a pesar com os seus espíritos, os seus olhos e ouvidos satisfeitos, ou se precisaria também de viver com as suas consciências.
Desta vez, disse consigo próprio, não aconteceria como no primeiro julgamento. Desta vez a América não teria apenas uma meia peça adocicada, mas deveria sofrer, juntamente com ele, a crua peça em toda a sua extensão. Desta vez tinha de se mostrar que a razão do julgamento era fundamental para o bem-estar da Nação, e isso só poderia ser mostrado de uma maneira.
Dirigiu-se para a secretária, levantou o auscultador do telefone e deu instruções a Edna Foster para localizar Nat Abrahams, onde quer que ele se encontrasse.
Enquanto esperava pensou que Nat Abrahams não ficaria contente com este despir do seu último manto de cobardia. E talvez nem compreendesse. Havia uma única pessoa que talvez compreendesse inteiramente o seu acto. Mindy seria capaz de compreender, por fim.
Ouviu a voz de Feliz Hart ao telefone, e Dilman disse-lhe que precisava de falar urgentemente com Nat Abrahams. Em menos de meio minuto, tinha-o do outro lado do fio.
Nat, é verdade que as testemunhas da defesa serão ouvidas das cinco e meia até às sete e as restantes à noite?
É verdade, é.
Nat, tenho estado a pensar. Quero que o nosso invisível Artigo V seja de novo posto à mostra, quero que todos o vejam e ouçam.
Mas Doug, lembra-te da lei. Não podemos...
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Há uma maneira pela qual podemos. - Susteve a respiração e depois disse: - Nat, vou imediatamente para aí, para o Senado. Resolvi testemunhar. Serei atua primeira e principal testemunha.
Doug, tu és o Presidente dos Estados Unidos.
Eu sou o Presidente preto dos Estados Unidos. Não me interessa o que me possam perguntar ou o que responderei. Quero apenas ir lá, para que possa ser visto e ouvido pelos meus juízes. Sei que a minha presença pode deitar tudo a perder. Mas sei algo mais: sei que poderá também fazer-nos ganhar algo muito importante.
Pelas seis horas menos vinte da tarde, a Sala Magna do Senado estava cheia a abarrotar. Não só não havia um único lugar sentado desocupado, como não havia livre nem um palmo de chão em que se pudesse estar de pé.
Douglass Dilman, depois de ter prestado juramento, encontra-va-se sentado na cadeira das testemunhas, as mãos fincadas nos braços da cadeira e os olhos fixos nas filas de homens à sua frente, os seus juízes, os seus acusadores, aqueles que iam decidir, ou que talvez já tivessem decidido, o seu destino. Os seus rostos formavam um disco branco, curiosamente salpicado por pares de olhos de todas as cores, os olhos à volta do aquário dos seus antigos pesadelos. Não interessava. O que importava era ele estar ali, para eles o poderem ver, para poderem ver a sua consciência preta.
Depois ficou apenas um à sua frente, aquele em quem podia confiar. Concedera a Nat Abrahams uma só promessa. Responderia concisa e directamente. Sentia-se pronto para começar.
Nat Abrahams falou:
Sr. Presidente, passemos em revista as acusações de que é alvo, uma a uma, para ouvirmos, dos seus próprios lábios, até que ponto representam a verdade ou são mera falsidade... Sr. Presidente, sabia, antes da confissão do facto, que o seu filho Julian Dilman era um membro do grupo dos Turnerites?
Não senhor, não sabia.
Pediu ao reverendo Paul Spinger que servisse de intermediário entre o governo e os chefes Turnerites, porque queria chegar a qualquer espécie de acordo pessoal com eles, ou porque queria que eles comparecessem e confessassem ou negassem o crime de Hattiesburg, e mostrassem os seus registos ao governo?
Não, não pretendi qualquer acordo pessoal. Dei as minhas instruções ao reverendo Spinger na presença do procurador-geral.
Nega então a afirmação do Artigo II em como ilegalmente impediu o Ministério da Justiça de perseguir os Turnerites, porque tinha entendimentos com eles?
Nego-o sem qualquer equívoco.
Por que razão atrasou então a banição dos Turnerites?
Porque eram necessários muitos factos para se ter a certeza, sem quaisquer sombras de dúvida, que tal sociedade extremista pudesse ser legalmente perseguida com base no Acto de Controlo das Actividades Subversivas. Na nossa sociedade, qualquer cidadão, seja de que religião ou de que crença política for, é considerado inocente até que se prove que é culpado. Uma vez os factos verificados, e uma vez provada a culpabilidade do grupo, ordenei imediatamente a sua banição.
Examinemos agora os Artigos I e III - ...Sr. Presidente, de acordo com testemunhos anteriores, é amigo de Miss Wanda Gibson há cinco anos?
É certo.
Teve alguma vez algumas relações ilícitas com essa senhora, em qualquer altura, como o acusam?
Nunca. A acusação é falsa. As nossas relações foram sempre baseadas no respeito mútuo e na decência.
Esteve frequentemente na companhia de Miss Wanda, enquanto senador?
Estive.
Quantas vezes a visitou pessoalmente, desde a noite em que subiu à presidência até ao começo do processo de acusação?
Uma única vez, Sr. Advogado. Fui vê-la na própria noite em que mudei para a Casa Branca. O encontro foi breve e teve lugar no apartamento dos Spinger e quando estes lá se encontravam.
Depois de se ter tornado presidente, comunicou com Miss Gibson por qualquer outro meio? Escreveu-lhe?
Não, nunca lhe escrevi.
Telefonou-lhe?
Telefonava-lhe à noite, mas nunca mais de duas vezes por semana.
Alguma vez, em qualquer ocasião, por qualquer meio, desde que subiu à Presidência, lhe transmitiu informações relacionadas com assuntos de estado?
Não, Sr. Advogado.
Tem a certeza, Sr. Presidente?
A certeza absoluta.
Discutiu quaisquer outros aspectos do seu novo cargo com ela?
Discuti. Falei-lhe acerca das minhas preocupações em ter sido elevado a tão alto cargo. Temia que os conselheiros de O. C, os legisladores, o partido e a maioria do público não estivessem preparados para aceitar um negro como presidente e que se ressentissem do facto e me causassem dificuldades. Perguntava a mim próprio, como acontece com todos os homens que acidentalmente se vêem a braços com uma grande responsabilidade, se conseguiria cumprir adequadamente o meu cargo e contentar os eleitores. Mas acima de tudo costumava falar com Miss Gibson acerca do meu temor de que os preconceitos raciais não me deixassem servir o meu país como presidente de todos os seus cidadãos.
E era tudo? Nunca lhe deixou escapar qualquer informação do governo, de natureza confidencial?
Nunca, Sr. Advogado. Tive sempre consciência da responsabilidade do meu cargo.
Sr. Presidente, soube alguma vez, durante os dois anos em que Miss Gibson trabalhou para os Exportadores Vaduz, que ela estava empregada numa organização da frente comunista?
Não, nunca o soube. Miss Gibson atestou igualmente que o não sabia. E o F. B. I. também não. A primeira vez em que ouvi falar nisso foi no próprio dia em que Miss Gibson suspeitou do que se passava e depois o F. B. I informou-me acerca disso, no dia em que o director da organização Vaduz fugiu do país. A companhia foi encerrada na manhã seguinte.
Nega então todo o conteúdo do Artigo I, aquele que o acusa de, com conhecimento de causa ou por involuntária indiscrição, ter transmitido segredos nacionais a uma organização soviética através de Miss Gibson?
Nego-o totalmente, Sr. Advogado. A acusação da Câmara é pura ficção.
Passemos agora ao resto do Artigo III. Alguma vez, em toda a sua vida, se entregou a bebidas alcoólicas?
Não, Sr. Advogado.
Alguma vez, na sua vida, foi tratado por alcoolismo por qualquer membro da profissão médica?
Não, senhor.
Esteve alguma vez internado numa instituição para alcoólicos por causa de tal vício?
Não, senhor.
Está a par da acusação da Câmara acerca de Miss Sally Watson?
Estou. Li a acusação e vi o testemunho de Miss Watson na televisão.
Na noite em questão, ordenou a Miss Watson para ir ter consigo ao seu quarto para conferir consigo certos compromissos sociais pendentes?
Não, senhor.
Mas ela foi ao seu quarto?
Foi. Depois do jantar dado em honra dos chefes do Estado--Maior fomos ver um documentário cinematográfico. Miss Watson chamou-me de parte para me dizer que estava um pouco embriagada e se eu a dispensava de ir ver o filme. Aconselhei-a a regressar a casa. Respondeu-me que estava demasiado embriagada para isso e que preferia deitar-se um pouco primeiro. Disse-lhe para fazer o que achasse melhor. Quando regressei do filme, descobri Miss Watson deitada na minha cama em terrível estado de embriaguez. Acordei-a e disse-lhe que ia mandar que a levassem a casa. Quando ela tentou levantar-se da cama, a sua bolsa caiu e todo o seu conteúdo se espalhou peio chão. Eu apanhei as coisas, e entre elas vi numerosos cartões de notas. Os cartões estavam cheios de notas copiosas de um documento da C. I. A. que se encontrava na minha pasta, junto da cama.
Esse documento da C. I. A. era confidencial, Sr. Presidente?
Tinha gravado na capa «Extremamente secreto». Tal facto não pode ter passado despercebido a Miss Watson.
Que sucedeu a seguir? Discutiram acerca da razão que a teria levado a tentar apoderar-se de tal informação?
Discutimos.
Poder-nos-á repetir o que disseram nessa altura?
Preferia não o fazer.
E depois?
Ordenei a Miss Watson que se retirasse. Disse-lhe que se considerasse despedida, depois de ela ter proferido alguns vitupérios.
Poderia ser mais explícito?
Foi o costume, referências à minha raça e algumas ameaças. Depois foi-se embora.
Não tentou então seduzir Miss Watson, nem detê-la à força, nem a magoou fisicamente?
Não, senhor.
Tem algo mais a dizer acerca desta acusação, Sr. Presidente?
É falsa. Não passa de pura fantasia concebida por um espírito extravagante e alimentada propositadamente por outros espíritos vingativos.
Finalmente, o Artigo IV de Acusação. É verdade que demitiu Arthur Eaton do seu Gabinete e do cargo de ministro de Estado?
Demiti.
Tentou substituí-lo por alguém igualmente qualificado, não é verdade.
É sim.
Demitiu o ministro de Estado sem a aprovação dos dois terços do Senado?
Demiti.
Sabia que existia uma lei especial, o Decreto da Nova Lei de Sucessão, passada pelo Senado depois de ter subido à presidência, proibindo-o de demitir qualquer membro do Gabinete sem o consentimento do Senado?
Sabia. Tinha a certeza de que, apoiado por algumas das melhores autoridades nesse campo, essa lei era anticonstitucional e que tal seria provado quando fosse julgada pelo Supremo Tribunal. Pelo meu conhecimento dos precedentes, tinha a certeza de que os juízes do Supremo Tribunal diriam que o Decreto da Nova lei de Sucessão era e é uma medida política completamente em contradição com a Constituição. Era uma medida feita à pressa apenas para proteger uma antiga administração contra possíveis demissões e nomeações de um novo presidente negro. Demiti Eaton porque achei necessário fazê-lo, porque acreditei que possuía o direito iegal de o fazer, porque achei que o Congresso não tinha o direito de ditar ordens ao ramo executivo ou de congelar nos seus cargos do Gabinete os membros escolhidos por um presidente morto, e porque queria que tal desgraçada e ilegítima obra de legislação fosse examinada constitucionalmente.
E portanto achou necessário demitir Arthur Eaton? Porquê, Sr. Presidente? Por que razão específica o demitiu?
Porque soubera e tinha provas de que o ministro de Estado, com o apoio do ramo legislativo do nosso governo, estava a tentar usurpar os poderes da presidência e a conduzir os assuntos da Casa Branca desde o seu Ministério de Estado. Para salvar a presidência, eu não tinha outra alternativa senão livrar-me dele. Portanto demiti-o. Como vingança, suponho eu, ele e os seus associados instauraram--me este processo.
Sr. Presidente, desde o momento em que prestou o seu juramento de cargo acha que cumpriu sempre os seus deveres diligente e honestamente, sem quaisquer preconceitos, considerando os direitos de todos os homens e preocupando-se sinceramente com o bem--estar dos Estados Unidos, e tentou preservar, proteger e defender a Constituição e a democracia do nosso país?
Acho que sim; tenho-o tentado. Tanto quanto mo têm permitido as minhas capacidades, tenho-o tentado, Sr. Advogado.
Muito obrigado, Sr. Presidente.
As mãos de Douglass Dilman afrouxaram o aperto nos braços da cadeira. De muda e alerta, a Sala do Senado pareceu tornar-se viva. Então fez-se ouvir o martelo do juiz Johnstone.
- Requer-se a atenção dos senadores. Os advogados da Câmara dos deputados prosseguirão com o seu interrogatório.
Pela primeira vez desde que assumira a presidência, Douglass Dilman encontrou-se frente a frente com o representante de todo o ódio que lhe tinha sido dirigido.
Os olhos cinzentos e trocistas de Zeke Miller fixaram-se nos seus. Miller postou-se na sua posição favorita: os polegares metidos nas casas dos botões das lapelas do casaco e as pernas abertas. Parecia examinar o seu inimigo com um prazer semelhante ao de um caçador perante a sua presa.
Dilman contraiu involuntariamente os músculos do tronco, como se se preparasse para receber o golpe. Esperou.
Muito bem, Sr. Presidente dos Estados Unidos da América, não esperava ter o prazer de o ver entre nós. Constitui para nós uma surpresa e um privilégio, uma ocasião histórica, e é do fundo do coração que lhe damos as boas-vindas.
Muito obrigado, Sr. Advogado.
Todavia, temo que me veja obrigado a pôr-lhe algumas perguntas que lhe sejam desagradáveis, perguntas que o seu amigo e advogado não achou necessário fazer na sua cega busca da verdade do seu comportamento e competência. Tenho esperança que seja tão tolerante com as perguntas de Zeke Miller, com as perguntas que a Câmara me pediu que lhe fizesse, como foi com as do seu amigo Natham Abrahams.
Farei o possível por ser tolerante com as suas perguntas, Sr. Advogado.
Bem, agora acho que seria conveniente rever os assuntos pela mesma ordem em que o seu amigo e advogado os colocou. Con-vém-lhe que assim seja, Sr. Presidente dos Estados Unidos?
Como desejar, Sr. Advogado.
Bem, quanto a esse seu rapaz, o Julian, que se comprometeu sob juramento num programa terrorista de violência contra o governo, e que se comprometeu a agir olho por olho e dente por dente em relação a nós, brancos, já alguma vez se tinha empenhado anteriormente em alguma violência semelhante?
Não, nem anteriormente nem sequer agora.
Bem, não estou a dizer que ele tivesse cometido qualquer violência grave como o seu chefe Hurley. Estou apenas a dizer que ele se comprometeu a praticá-la, mas não teve tempo para isso, porque o competente procurador-geral deste país acabou, apesar da sua interferência, com esses extremistas, antes que o seu rapaz pudesse alinhar com eles. Sabia, desde o princípio, que o seu filho Julian era membro desse grupo subversivo, não sabia, Sr. Presidente?
Já neguei, sob juramento, que soubesse que ele era membro.
Desculpe-me. Eu não queria dizer que o Sr. Presidente «soubesse» mas que «ouvira dizer» que ele era membro - queria dizer que sabia porque o ouvira dizer. Da boca de quem o ouvira? De um turnerite?
Sim. De alguém que mais tarde vim a saber que era um turnerite.
Querer-nos-á dizer quem foi esse informador, Sr. Presidente?
Não vejo que importância possa ter isso agora. Os Turnerites foram banidos e o seu chefe executado.
Devo por isso compreender que não nos revelará esse seu informador e amigo tumerite que lhe revelou isso acerca do Julian?
Não teria qualquer objectivo útil.
Muito bem. Pode guardar os seus segredinhos. Não tem importância. Bem, então ouviu dizer que Julian era um turnerite e con-frontou-o como facto?
- Sim.
- Depois, da primeira vez em que o procurador-geral Kemmler lhe pediu que banisse esse violento grupo, o senhor recusou, não é verdade?
- É.
- Depois, contra o conselho do procurador-geral, o senhor no meou o seu inquilino negro e intermediário, o reverendo Paul Spinger, para falar em particular com esses raptores assassinos, não foi?
- Foi.
- E não tinha em mente qualquer acordo pessoal para proteger a família, pois não? Agiu apenas para o bem do país, hem?
-Sim.
Então, Sr. Presidente, o que temos é o seguinte. Ouviu dizer que o seu filho era um turnerite, não é verdade? Ouviu dizer que os Turnerites eram uma sociedade violenta comunista e anticrista, não é verdade? Tentou atrasar a sua banição, não é verdade? Enviou um amigo pessoal negro para entrar em contacto e negociar com eles em particular, não é verdade? Tudo o que acabo de dizer é verdade?
É, é verdade.
Então eu digo-lhe, Sr. Presidente dos Estados Unidos, que o Artigo III de Acusação que o acusa do crime capital de violar as leis do país, retardando a justiça contra uma sociedade subversiva - digo--Ihe que o Artigo II é verdadeiro.
Eu digo-lhe que não o é, Sr. Advogado.
Deixemos então que o augusto Senado, em toda a sua sabedoria, cá na terra, e o Senhor de todos nós lá no Céu julguem qual de nós fala verdade e qual de nós está a falsear. Prossigamos agora com os Artigos I e III. Que temos nós? Ah, Miss Wanda Gibson. É verdade, ouvimos hoje a sua história aqui nesta Sala. Tem nela uma grande amiga, Sr. Presidente. Não é fácil encontrar muitas muIheres tão lealmente prontas a fazer tudo e a correr todos os riscos para proteger alguém que não é legalmente o seu companheiro. Bem, portanto conhece intimamente Miss Gibson há cinco anos?
Conheço Miss Gibson há cinco anos.
Esteve de mão dada com ela? -Sim.
Abraçou-a? -Sim.
Beijou-a? -Sim.
- Fez tudo isso durante cinco anos, sessenta meses, mais do que duzentas e quarenta semanas, mas nunca a tocou ilicitamente? Não é verdade, Sr. Presidente?
-É.
- Sabemos que não podia estar muito tempo afastado dela. No primeiro dia em que deixou a casa, sob cujo telhado viviam, regressou lá nessa mesma noite, julgando que ninguém se aperceberia disso, não é verdade?
-É.
-Tentou também introduzi-la na Casa Branca, não tentou? Con-vidou-a para o jantar de Estado em honra do Presidente Amboko de Baraza, não a convidou?
Convidei.
Soa-me como se estivessem bastante intimamente ligados um ao outro. E, quando estavam juntos, tinham longas conversas, não tinham?
É claro.
Vendo-a, depois de ter subido à presidência, falando-lhe pelo telefone, contou-lhe mais as suas impressões de ser presidente, não é verdade?
-É.
E ela, trabalhando para os Exportadores Vaduz, que eram uma frente comunista, falava também às vezes acerca do patrão, do trabalho que lá fazia, não falava?
Falava.
E contudo, quando falavam, o senhor manteve sempre os lábios cerrados no que dizia respeito aos segredos da presidência. Não é isto verdade?
E, é verdade.
E eu digo, e a Câmara diz, mentira - mentira! Nenhum ser humano é capaz de estar durante tanto tempo e tão intimamente com uma senhora solteira, sendo-o ele também, perto do seu corpo, com todas as emoções que isso comporta, e contudo controlar e calar certas coisas, embora dizendo outras. Não estou a dizer que voluntariamente tivesse cometido traição. Digo apenas que o senhor é um fraco ser humano, e como tal, quer seja negro ou branco, sofre por a sua carne ser fraca, e digo que, pelas provas que possuímos, o senhor cometeu uma traição involuntária, mas que mesmo assim não deixa de ser uma séria e real traição contra a bandeira e o pais. Mas o senhor não quer admitir que a sua carne é fraca, não quer admitir o mal que fez.
Nada há a admitir, Sr. Advogado. A acusação é baseada em boatos, deduções, suposições, desejos, num esforço para que dois e dois façam cinco, mas é insustentável por provas factuais. Porque tais provas não existem.
Há provas suficientes. Há provas tanto para o Artigo I, como para o Artigo III. Passemos agora à acusação comprovada do seu habitual estado de embriaguez. O senhor nega tal acusação. A senhora sua amiga nega-a igualmente. Mas os documentos, Sr. Presidente, os documentos que possuímos atestam e afirmam que é verdade. É verdade ou não que esteve em Springfield, Illinois, como ocupante registado num sanatório para alcoólicos?
É verdade.
Juntamente com a sua falecida esposa? -Sim.
Era um doente do sanatório?
Não, não era. A minha mulher é que era. Eu estava lá como hóspede. Fui para lá para poder viver com ela, estar ao seu lado e ajudá-la, mas não passava de um hóspede residente.
As provas que possuímos mostram clara e irrefutavelmente que o senhor estava registado como um «doente» nesse sanatório.
Não me interessa como estava registado. Eu sei por que lá estava.
Sr. Presidente, asseguro-lhe que o público se interessa e que o Senado se interessa como o senhor estava registado. Mas já chega! Chegou agora a altura de discutirmos uma acusação que não é meIhor e que é bem mais chocante... Sr. Presidente, a Câmara dos Deputados acusou-o de assalto impróprio à pessoa da sua jovem secretária social, Miss Watson. Esta senhora, filha do grande senador Watson e por ele educada, confirmou, sob juramento, o seu escandaloso procedimento. O senhor nega-o. Em qual dos dois devemos acreditar? Em quem devemos acreditar? Sr. Presidente, podemos acreditar que o senhor e Miss Watson estiveram sozinhos os dois no Quarto de Lincoln da Casa Branca, na noite em questão? O facto é verídico? -É.
- Podemos acreditar que o senhor e ela estiveram sempre sozinho durante todo esse tempo?
-Sim.
Não chamou o criado de quarto, nem a governanta? Esteve sempre sozinho com Miss Watson?
Estive. Devido ao estado em que se encontrava Miss Watson, não chamei ninguém. Tinha ainda esperanças de proteger o seu bom nome, tanto pelo pai como por ela própria.
Afirma que ela lhe invadiu o quarto, e contudo não chamou ninguém. Considero isso muito pouco natural e normal. Por outro lado, se o senhor a tivesse levado para o seu quarto, e a tivesse mantido lá à força, a sua relutância em chamar alguém seria muito mais compreensível. De qualquer modo não houve uma terceira pessoa, só os dois por detrás de portas fechadas e quatro paredes. Não é verdade?
Já concordei que era verdade... o facto em si, não a insinuação.
Então, Sr. Presidente, o que se seguiu, o que realmente se seguiu, depende apenas em nós acreditarmos na palavra de Miss Watson ou na sua. Em qual delas devemos acreditar? Devemos acreditar na palavra de uma jovem senhora inocente, educada, de imaculada reputação, filha única e criada até à maturidade pela mão do senador mais respeitado do nosso país, que nada tem a ganhar com o seu testemunho neste desagradável caso? Ou devemos acreditar na palavra de uma testemunha que, de acordo com as sérias acusações da Câmara dos Deputados, tinha acordos secretos com um bando de negros que pretendiam enfraquecer a Nação, que gozou da companhia íntima de uma amiga solteira durante meia década, que estava frequentemente sob a influência do álcool? Sr. Presidente, em quem devemos acreditar? A isto, nem o senhor nem eu podemos responder. Teremos de deixar a decisão aos homens dedicados e objectivos que são os que neste momento nos escutam. E pelo nosso lado dedicar-nos-emos a discutir o último Artigo de acusação... Sr. Presidente, na manhã a seguir à trágica morte do nosso bem-amado O. C, depois de ter assumido a presidência, recebeu os membro do Gabinete, não recebeu?
Recebi.
O Sr. Ministro de Estado, Arthur Eaton, era, pela sua posição, o primeiro membro desse Gabinete, não era?
-Era.
- Nessa reunião pediu aos vários membros do Gabinete que permanecessem nos seus cargos e que o servissem como tinham servido O.C., não é verdade?
-É.
E o ministro de Estado e os outros membros concordaram em permanecer nos seus lugares?
Concordaram.
Por que desejou que o ministro de Estado Eaton continuasse como chefe do Ministério de Estado e como primeiro membro do seu Gabinete?
Nessa altura pensei que ele fosse competente para o seu cargo e útil para o governo. Não havia qualquer razão para substituir Eaton ou qualquer outro membro, nessas circunstâncias.
Mas passados vários meses já tinha razão para demiti-lo, mesmo contra a lei do país?
-Tinha.
À medida que o tempo ia passando podia o senhor ver que Arthur Eaton, pela integridade do seu comportamento e por causa da sua aderência à política de O. C., ia crescendo em popularidade como figura nacional?
Não tinha qualquer meio para avaliar isso.
Na realidade, a popularidade de Arthur Eaton crescia, enquanto, pelo contrário, a sua popularidade, Sr. Presidente, diminuía drasticamente?
Talvez. Repito, não tinha qualquer meio de saber a verdade.
Não tinha qualquer meio de saber que se estava a tornar o presidente menos popular de toda a história? E não só entre os bran- cos como entre os da sua própria raça? Não me diga que não sabia que o eleitorado não o aprovava em si, mas que aprovava o ministro Eaton? Não o mandaram calar os da sua própria raça, na Universidade de Trafford? Não tentou um seu companheiro negro matá-lo? Res-ponda-me lá. -Sim.
- Na sua recente viagem pelo país, não o receberam mal em público, não o ameaçaram?
-Sim.
- E isso não o fez temer que, enquanto Arthur Eaton estivesse no seu cargo, o senhor pudesse ser demitido e substituído por ele, e consequentemente...
«- Isso é pura mentira, Sr. Advogado. É uma viciosa acusação.
Será mesmo? Talvez os competentes senadores não sejam dessa opinião. Contrariamente à sua declaração, o ministro de Estado estava a tentar mantê-lo no seu cargo. Se o senhor não tinha consciência da sua ineficácia no que dizia respeito aos negócios internos e externos e da hostilidade nacional que isso suscitava, Arthur Eaton tinha, e, como patriota dedicado que era, dedicou-se a protegê-lo contra si próprio, nem que fosse apenas para preservar a paz e a continuidade do nosso governo. Se lhe escondeu certo documento da C. I. A. foi porque sabia quão perigoso ele poderia ser nas suas mãos devido aos seus sentimentos parciais em relação à sua raça. A recompensa que o secretário de Estado recebeu por este acto de patriotismo foi o ter sido ilegalmente demitido por si. E pelos vistos aquele tinha razão, pois o senhor depois de o ter demitido, está a agir tão perigosa e injustamente como ele temia. Está resolvido a enviar tropas americanas para a África, não está?
Estou. Já informei o público americano de tal possibilidade.
Sabe que Baraza tem uma população cem por cento preta?
Sei isso perfeitamente.
Admite que está pronto a lançar em defesa desse palmo de terra africana primitiva e negra o mais alto produto da população americana, a sacrificar batalhões que, por coincidência, são cem por cento brancos?
-Admito.
-Sr. Presidente, está pronto a arriscar as consequências de uma guerra mundial nuclear para proteger algo chamado Baraza?
Cada cidadão deste país terá de arriscar, daqui em diante, a possibilidade de uma guerra mundial nuclear para proteger a liberdade e a democracia da América em toda a parte.
Ou, como neste caso, para proteger um pedaço de floresta estrangeira porque os seus habitantes são pretos, como o senhor?
Não me rebaixarei a responder a tal pergunta.
Muito bem, Sr. Presidente. Só mais uma pergunta. O senhor acha que durante o tempo da sua presidência agiu sempre em consideração com os melhores interesses dos Estados Unidos, sem se deixar desviar por quaisquer pressões externas, sem se deixar influenciar por nenhuns preconceitos de qualquer espécie?
Sr. Advogado, nenhum homem à face da terra lhe poderá dizer em franca honestidade que chegou a uma decisão ou que fez um julgamento inteiramente desprovido de preconceitos. Todos os homens possuem certos preconceitos, certos sentimentos, certas emoções em relação a qualquer problema que se lhes depare. Tais preconceitos não são necessariamente maus. A maior parte das vezes são bons e colaboram com a inteligência e o bom senso. Também eu tenho preconceitos, fortes preconceitos contra a tirania, a escravatura, a arrogância, a vingança, a pobreza, a ignorância. Posso apenas dizer que agi sempre considerando os interesses de todos os homens, brancos ou de cor, que acreditem no direito de um ser humano possuir dignidade, independência e igualdade entre os seus compatriotas. Tenho feito o melhor que podia, o que julguei ser o melhor...
Sr. Presidente, desculpe-me interromper-lhe este seu discurso político, mas há apenas uma coisa a dizer-lhe. O senhor conduziu--nos até à beira da destruição. Mas, felizmente, retomámos consciência a tempo. Não deixaremos que o senhor nos continue a conduzir... E é tudo, Sr. Presidente... Sr. Juiz, no que diz respeito aos advogados da Câmara, a testemunha pode-se retirar.
Douglass Dilman levantou-se.
Sabia que não se saíra muito bem. Sentia-se porém curiosamente aliviado. Fizera o que desde o princípio soubera que devia ser feito: fizera com que o invisível Artigo V tomasse parte na consciência do tribunal e no dia seguinte seria julgado por ele e por mais nada.
Nesse momento, às oito e quarenta e cinco da noite, e pela primeira vez desde que Dilman subira à presidência, Arthur Eaton sentia-se verdadeiramente bem. Com a boquilha vazia entalada entre os dentes, Eaton seguira Nat Abrahams no seu interrogatório à última testemunha, através da televisão.
Para Eaton o julgamento estava acabado. Com excepção dos maus momentos, durante a tarde, em que o seu próprio nome fora pronunciado na vulgar troca de palavras entre Abrahams e Sally Watson, fora um glorioso e triunfante dia. Mesmo a presença do Presidente Dilman não o desanimara, pois Zeke Miller conseguira demolir completamente o presidente.
Eaton pensou que, não só para ele, mas possivelmente também para os milhões de espectadores da televisão, o clímax dramático de todo o julgamento tinha sido aquela idiota exibição do Presidente Dilman na cadeira das testemunhas. Por que fizera ele tal coisa? Teria esperado arrastar para o seu lado o Senado e o público com a sua atitude de mártir perseguido? Se assim fora, falhara redondamente. Zeke Miller mostrara-o tal como ele era, mostrara-o a toda a Nação, não um mártir, mas um sátiro, não um oficial público, mas um pobre idiota. Fora o ponto culminante: a queda de Dilman.
Sim, na realidade, o julgamento estava praticamente acabado. A única coisa de interesse, de histórico interesse que restava, era a resposta final. Quando deveriam os jurados votar? Lembrou-se então. Votariam no dia seguinte, às duas horas da tarde.
Arthur Eaton perguntou a si próprio que fato poria para a tarde do dia seguinte.
De repente ouviu-se a campainha da porta, imediatamente seguida pelo pesado bater da argola de ferro.
Eaton levantou-se perplexo. Não esperava ninguém nessa noite. E ainda não podia ser a Kay. Mandara o carro buscá-la ao aero: porto havia apenas vinte minutos e, além disso, o mais provável era que o seu avião ainda não tivesse chegado.
Eaton foi abrir a porta e, com grande espanto seu, encontrou-se cara a cara com Sally Watson.
Bem, Sr. Presidente eleito pelo Senado, não me convida para entrar? - perguntou ela.
Desculpa, Sally. Entra, por favor. Não te esperava aqui. Pensei que tivesses que fazer, e... estava à espera de outra pessoa. Ela entrou para a sala. Eaton fechou a porta e seguiu-a apressadamente. Dando uma reviravolta sobre si própria para ficar de frente para ele, ela apontou com um dedo para o aparelho de televisão.
A lamber os ossos, Arthur?
Que queres dizer com isso?
Não te faças de parvo, Arthur. - Examinou-o pensativamente. -Parece-me que não sou muito bem-vinda.
Contra vontade ele foi até junto dela e beijou-a ao de leve nos lábios. O hálito dela cheirava a whisky e ele recuou rapidamente, tentando esconder a sua repulsa.
- Não me digas, Arthur. Deixa-me adivinhar. Escolha múltipla. Está ela embriagada, um pouco embriagada ou muito embriagada?
Ela tentou dar um estalo com os dedos mas não conseguiu. -Muito embriagada. Certo!
- Sally, que se passa com...?
Ela ergueu uma mão a pedir silêncio.
Escolha múltipla número dois. Está ela embriagada porque nada sabe dele há oito dias ou porque ele faltou a três encontros ou porque ele não atendeu nenhum dos seis telefonemas que ela lhe fez em quarenta e oito horas? Resposta... por tudo isso, certo!
Sally, sê razoável. Com este julgamento a correr, cada passo que dou é vigiado. Além disso tenho estado ocupado...
Eu se^, querido, ocupado e doente... como se chama essa doença?... Oh, sim, febre presidencial. É tudo o que te aflige, meu herói.
Bem, que diabo te aflige a ti?
Dir-to-ei com todo o prazer. Dás-me licença que tire o casaco?
Sally, desejaria que o pudesses fazer, mas estou à espera de alguém daqui a muito pouco tempo.
Está bem. Uma bebida então.
Sally, não achas que já bebeste o suficiente?
Claro que já bebi o suficiente... já tive o suficiente de tudo... portanto mais um pouco de qualquer coisa não me fará mal.
Enquanto ele se dirigia relutantemente para o bar, ela acrescentou:
- E fecha-me essa maldita televisão.
Eaton apressou-se a desligar a televisão e a servir-lhe um whisky com gelo.
Ela sorveu um grande golo e depois disse:
- Muito bem, ponhamos as cartas na mesa, Arthur. Estás a tentar pôr-me com dono ou quê?
- Que estupidez a tua. Claro que nao, Sally. Sabes muito bem quais os meus sentimentos em relação a ti.
Ela levou os dedos aos lábios carmins, numa fingida pose de profunda reflexão.
- Vou ver se me lembro o que sentes por mim, é claro. Ah, sim, da última vez na cama... quando foi isso? Há doze noites atrás, não foi? Foi uma bela sessão, não foi?
Eaton desejou fugir. Havia algo nela, o cabelo demasiado loiro, os olhos demasiado pintados, o rosto demasiado empoado, os lábios vermelhos de mais, algo na sua linguagem provocante e rude e algo que lhe ficara ainda do modo como se comportara na cadeira das testemunhas; tudo isso parecia torná-la barata e menos atraente do que nunca.
E agora a sua ordinária referência à última vez em que tinham estado juntos. Desejava apenas ver-se definitivamente livre dela, arrumá-la como um negócio concluído e continuar sozinho com a sua vida. Mas ali estava ela com a ordinária pergunta pendente entre ambos.
Sim - disse ele -, nunca... nunca esquecerei essa noite.
Como poderias esquecê-la? Eu sabia que isso não aconteceria. E sabia também que não te esquecerias do que me prometeras. Não te esqueceste, pois não?
Ele esquecera-se. Deus o livrasse das mulheres. Elas lembra-vam-se sempre de tudo. Como poderiam esperar que um homem se lembrasse do que dissera em tais circunstâncias? Que diabo teria ele dito? Aguardou que ela lho dissesse.
- Tenho estado todo o tempo à espera do telefonema, Arthur. Não tenho feito outra coisa. Que sucedeu quando lho perguntaste? Ela concede-te o divórcio ou terás de ir ao Reno para o conseguires?
Divórcio, pensou ele. Então era isso. Não devia estar bom da cabeça, nessa altura. Que diabo poderia dizer agora para se ver livre dela? A diplomática verdade era o melhor; era esse o seu estilo, e ninguém o conseguia suplantar nele.
- Sim, é claro, Sally, eu também tenho pensado nisso, mas bem sabes que um divórcio não é assim uma coisa tão fácil - disse ele com um ar pedante. - Conheces os meus sentimentos em relação a Kay e conheces igualmente os meus sentimentos em relação a ti, Sally. Sabes bem que desejo esse divórcio. Contudo, deparei subitamente com uma dura realidade da vida. E que são precisos dois para se conseguir um divórcio e não um. Fiz a pergunta no outro dia a Kay e ela não quer o divórcio. Recusa-se a conceder-mo. Portanto, tudo o que me resta fazer é esperar e confiar... O rosto de Sally estava pálido e frio.
Ela não te quer conceder o divórcio? Ou foste tu que decidiste não lho pedir?
Sally, eu pedi-lho. Ela está-se nas tintas para mim, mas agra-da-lhe a ideia de ser casada...
Também a mim, Arthur.
E agora agrada-lhe mais do que nunca, desde que tudo parece estar a mudar na minha vida. Já se vê na Casa Branca, no papel de primeira dama. Não vale a pena tentar agora convencê-la quanto ao divórcio, enquanto o resultado do julgamento estiver ainda pendente. Na verdade, bem, quero ser completamente franco contigo, Sally... o facto é que Kay decidiu regressar a Washington. Vem precisamente agora a caminho... é ela a pessoa de quem estou à espera. Ela quer cá estar para a matança de amanhã.
Sally começou a rir e depois, deitando a cabeça para trás, riu, riu histericamente, e Eaton sentiu-se pouco à vontade, a observá-la. Depois o seu riso transformou-se num soluço e, ao tentar controlá-lo, engasgou-se.
É de mais - exclamou ela - a ironia da coisa, pensar que a culpa é minha... eu... tendo feito o que fiz... atraiçoando, espiando, vivendo num inferno, sofrendo naquela insuitante posição, hoje, no Senado... todas aquelas perguntas, só queria morrer... morrer... etudo para quê? Por ti, para que pudesses vir a ser presidente, e agora continuas agarrado a esse estafermo que quer ser a primeira dama.
Sally, escuta...
Ela respirava agora como um animal ferido, com os olhos muito abertos fixos nele.
- Mas sabes o que é o pior de tudo, Arthur? É que me estás a mentir, a mentir. Serviste-te de mim como te serves de toda a gente, e eu não o vi porque não me importava que me usasses, porque pensei que haveria algo para mim também. Devia ter previsto isto. Para mim não há nada. É tudo, tudo para ti.
- Isso não é verdade, Sally. Se te acalmares por um minuto... Ela estava demasiado furiosa para o escutar.
Sei muito bem o que é verdade ou não! Nunca pediste o divórcio ao estafermo da tua mulher. Ela não vem cá esperando vir a ser a primeira dama. És tu. Desejas tanto ser presidente que cheira a uma milha de distância. Portanto acabou-se a ginástica na cama e acaba-ram-se os riscos. Queres aparecer branco e puro como um lírio, aristocrata, com a tua única esposa pelo braço, os dois juntos, à espera do chamamento do país, assim que puserem aquele nigger intruso para fora da Casa Branca! Agora tudo deverá ser perfeito, puro e americano! Agora tens de esconder depressa toda a sujidade debaixo do tapete, depressa, depressa, toda a porcaria e talvez o escândalo, e lá vou eu também para debaixo do tapete...
Pára com isso, Sally! Pareces louca...
Não me chames louca, porco, canalha! - gritou ela, e depois, antes que ele a pudesse deter, atirou-lhe com o resto do seu whisky em cheio à cara.
Enquanto ele tirava um lenço da algibeira e limpava os olhos e a camisa, ela berrou-íhe:
- Só desejo é que todo o mundo descubra o que tu és, patife! Ela correu para fora da sala e para fora da casa; e Arthur Eaton, observando-a enquanto continuava a limpar-se com o lenço, deixou de se sentir preocupado. Na verdade até se sentia contente. Fora mais fácil do que supusera. Pelo preço de um lenço molhado, de uma troca de fato e de uma pequena cena, estava definitivamente livre dela.
Sally Watson não sabia há quanto tempo estava à espera.
Depois de ter deixado Arthur, começara a caminhar pela rua deserta sem saber para onde havia de ir pois não existia nenhum lugar onde pudesse encontrar paz, onde pudesse acalmar a sua raiva e a sua vergonha. Depois de ter passado duas casas parara, encostara-se à cerca de ferro, fora da luz dos candeeiros, escondida na sombra, e esperara, tremendo de frio e de ódio.
Quanto tempo esperara? Quinze minutos? Vinte?
Chegara um carro, mas não fora Kay Varney Eaton quem saíra dele, mas cinco repórteres, conversando e rindo, que ficaram à espera no passeio em frente da casa de Eaton.
Finalmente chegou um outro carro, e o motorista apressou-se a sair e a ir abrir a porta de trás. E ela surgiu, aquela velha, Kay Varney Eaton, alta e imperial, com um casaco e um chapéu de vison, dando a sua mão carregada de diamantes e um sorriso frio e condescendente aos repórteres. Ouviram-se perguntas e pedidos para posar desta ou daquela maneira, e depois ela subiu as escadas. E no topo destas, o horrível rosto de traidor arrepanhado num sorriso, estava Arthur dando-lhe as boas-vindas, abraçando-a e beijando-a no rosto diante das máquinas fotográficas e depois, passando-lhe um braço pelas costas, levara-a para dentro de casa.
Quando viu a porta fechar-se, Sally desatou a correr. Correu cega e loucamente pela rua fora até achar um táxi. Entrou neste toda desalinhada, a pintura do rosto esborratada, demasiado perturbada para conseguir dizer ao motorista que a conduzisse onde quer que fosse. Este observava-a com curiosidade e então ela disse-lhe num impulso súbito:
- Para a Casa Branca.
Tentou olhar para os edifícios da cidade, mas não os viu. Tentou fumar, mas deixou cair o cigarro. Sentia-se sufocar. As lágrimas não brotavam dos seus olhos secos. Sentia-se sufocar. Ao passar pelo Parque de Lafayette mandou parar o táxi, meteu uma nota na mão do motorista, abriu a porta e precipitou-se para fora. Entrou no parque, passou pela estátua de Stenben, pelos bancos vazios e molhados, embrenhando-se cada vez mais entre as árvores, mais e mais sem saber para onde ia.
O seu espírito doente não a deixava em paz, mas castigava-a e perseguia-a sem dó nem piedade. Através dos fumos do álcool o seu espírito castigador mostrava-lhe o que ela era: a medonha cena no Quarto de Lincoln, a mulher excessivamente pintada do banco das testemunhas, cuspindo um chorrilho de mentiras na cara de Abrahams, o som degradado do seu nome pronunciado num tom de pena por aquele presidente preto.
Chegou ao fim do Parque de Lafayette, saiu para a Avenida da Pensilvânia e ficou paralisada de espanto perante o que os seus olhos viam.
No relvado da Casa Branca, para lá da cerca e em frente do Pórtico Norte, brilhando na noite, ardia uma cruz de fogo.
Mas ela podia ver que havia algo mais que o gigantesco clarão no relvado da Casa Branca. Havia homens à volta da cruz, jovens brancos fanáticos com tochas incandescentes, correndo pelo relvado, depois rolando pelo chão, quando agarrados pelos polícias e pelos agentes do Serviço Secreto da Casa Branca.
O auge da batalha travava-se junto ao portão de ferro da entrada. Os sons dos cassetetes batendo nos ossos e na carne, os sons dos gemidos humanos e de pragas, de tiros e de apitos, fizeram recuar Sally.
E de repente ouviu-se o ranger furioso de travões e o guinchar de pneus e surgiram dúzias de carros na Avenida da Pensilvânia, donde saíram montes de homens gritando, na sua maioria jovens pretos, frenéticos e armados.
Imediatamente os brancos que assaltavam a casa do presidente e os azedos produtos das esquálidas barracas pretas da cidade, que já estavam fartos e que tinham decidido proteger aquele da sua própria raça, agora tão perseguido como eles próprios, se lançaram uns contra os outros numa furiosa batalha.
Desde a orla escura do parque, ainda afastado, Sally Watson observava como que hipnotizada aquela cena. Depois começou lentamente a relacionar-se com ela. Sabia que aquilo não era apenas um produto da sua vilania e da sua loucura. As causas eram maiores, mais profundas e mais velhas que o que a sua maldade provocara. E contudo ela era mais responsável por toda aquela selvajaria que tinha diante dos olhos do que qualquer outra pessoa presente.
Quis-lhes dizer isso, dizer-lho a todos, dizer-lhes que parassem com aquilo e que se virassem antes contra ela.
Aquilo tinha de acabar.
Ela é que devia ser castigada.
Com passo incerto, tropeçando aqui e acolá, ela deixou a orla do parque e abriu caminho até ao coração da luta.
Confusamente notou os rostos negros, inflamados e cheios de sangue à sua volta. Confusamente notou os rostos brancos, gritando, os narizes esborrachados, à sua volta. Confusamente notou os polícias e os soldados, martelando à esquerda e à direita com os cassetetes e as coronhas das espingardas.
Os cacos de uma garrafa rasgaram-lhe o casaco. Uma pedra bateu-lhe no ombro e fê-la cair de joelhos no chão. Uma pesada bota veio esmagar-lhe a boca.
Engatinhou por entre as pernas, depois conseguiu pôr-se de pé, pediu-lhes que parassem, mas ninguém ouviu, e bateram-lhe até ela sentir o rosto coberto de sangue. Depois ela pediu-lhes que não a matassem até ela ter feito o que devia fazer. Puxando, rasgando, lutando, batendo com os punhos, tentou libertar-se dos lutadores.
E depois, subitamente, achou-se fora daquele tumulto. Tentou alcançar a guarita do guarda, mas só conseguiu chegar até à grade de ferro. Segurou-se aos varões para não cair, mas as suas pernas cederam e ela escorregou até ao chão.
Ouviu o som de passos que se aproximavam e depois ouviu pronunciarem o seu nome e abriu os olhos.
Ergueu os olhos para a expressão preocupada do rosto de uma mulata, sem reconhecer quem era.
Miss Watson... Sally... está ferida?
Não sei... não... quem é...
Depois reconheceu-a. Já vira aquele rosto antes, sim, todos os dias, nos jornais, na televisão, no Senado, sim, WandaGibson, Wanda Gibson, a amiga do presidente.
- É melhor que eu vá chamar alguém para a ajudar - disse Wanda Gibson.
Sally fechou os olhos escutando as sereias dos carros da polícia e depois gemeu:
- Não, Wanda, não... leve-me para casa... por favor, por favor, leve-me até ao meu pai... leve-me... eu... eu tenho algo a dizer-lhe, é muito importante... ajude-me... é importante para ambas.
Era quase meia-noite e estavam ainda no Escritório Oval. Do sofá em que se encontrava sentado, Nat Abrahams fumava o seu cachimbo, escutava e observava calmamente, maravilhando-se de novo com a energia de Douglass Dilman.
O presidente ergueu os olhos para Tim Flannery e para o general Leo Jaskowick que se encontrava junto da sua secretária e entregou a folha de papel ao secretário da Imprensa.
A notícia está bem assim, Tim - disse ele. - Penso que é uma declaração suficientemente justa acerca da revolta para contentar ambos os lados, ou nenhum. Não chegou mais nenhuma informação da polícia?
Não - disse Flannery. - Felizmente não houve mortes nem ninguém em estado grave. Houve cento e oitenta e sete feridos, algumas contusões, golpes, costelas partidas, um par de braços partidos. Foi mau, mas podia ter sido muito pior. Penso que o que aqui nos salvou foi uma intervenção rápida. Foi tudo abafado em dez ou quinze minutos.
- Graças a Deus - disse Dilman. - Muito bem, Tim, você pode ir agora entregar essa declaração aos correspondentes e mandá-los para casa. E será melhor que vá também dormir um bocado.
Depois de Flannery se ter retirado, Dilman olhou para Abrahams.
- Continua a intrigar-me, Nat, o que Wanda estaria a fazer em casa do senador Watson e o que é que o senador me quererá a esta hora. Bem, conquanto que Wanda esteja sã e salva.
Antes da cruz de fogo e da resultante luta, Abrahams sabia que Dilman estava à espera de Wanda Gibson para jantar na Casa Branca. O distúrbio fizera com que Dilman não se lembrasse dela durante uma hora, mas uma vez acabado e Wanda sem chegar, Dilman começara a ficar preocupado que ela tivesse sido apanhada no meio da luta e que a tivessem magoado.
Depois recebera o seu telefonema, desculpando-se de não ter aparecido. Acontecera algo, explicara ela, e encontrava-se agora em casa do senador Hoyt Watson, e não, não lhe acontecera nada de mal, mais tarde lhe explicaria, mas entretanto o senador Watson pedira para ver o presidente nessa noite.
- Esta noite? - protestara Dilman, mas Wanda dissera-lhe que o devia receber, que se tratava de algo muito importante, e então Dilman respondera:
- Muito bem, Wanda, se assim pensas. Diz-lhe que venha. Isso sucedera havia uma hora.
Como Dilman, Abrahams perguntava a si próprio o que estaria Wanda a fazer no covil do inimigo e o que quereria o senador Watson àquela hora tardia. Era tudo muito estranho. Dilman rodara a sua cadeira na direcção de Jaskowick.
- Então general, veio mais alguma informação lá de baixo?
Tudo na mesma. Nem uma palavra do Kasatkin ou da Embaixada Soviética. E nada de novo na cidade de Baraza. Continua tudo na mesma: sinais de crescente actividade na fronteira. Os batalhões dos Dragon Flies levantarão voo e dirigir-se-ão para África dentro de... vejamos... dentro de duas horas, mais ou menos.
Cheira mesmo a luta, não cheira?
Temo que sim, Sr. Presidente.
Já reparou, general, que, por um golpe do destino, a coisa pode não acontecer? Não está a perceber, pois não? Vou-lhe dizer. Suponha que os comunistas se lançam amanhã ao ataque, como está planeado, e suponha que nós lá estamos para os receber. Amanhã, às duas horas, o Senado iniciará a sua votação. Se eu for demitido... amanhã ao fim da tarde poderá haver um novo presidente dos Estados Unidos... e, com o Eaton nesta cadeira, já o estou a ver, com o Fortney, a mandar recuar as nossas tropas, a mandá-las regressar e a assinar um armistício. Daqui a uma semana Amboko poderá estar no fundo de uma masmorra, e a sua democracia, a nossa democracia, juntamente com ele. E os Russos terão um país satélite na África. Tudo o que nós estamos a tentar fazer, tudo o que fizemos, poderá ser deitado por terra, se amanhã dois terços do Senado disserem que sou um negro pronto a negociar rapazes brancos para salvar africanos.
Tenho esperanças de que isso não aconteça, Sr. Presidente -disse Jaskowick, fervorosamente.
É muito provável - disse Dilman. - É provável que este tenha sido o seu último dia como adido militar. Agora será melhor que vá também dormir um bocado.
Então muito boa noite, Sr. Presidente. Boa noite, Sr. Abrahams.
Quando Jaskowick se foi embora, os dois amigos ficaram sozinhos pela primeira vez nesse dia. Não tinham conversado mais do que durante cinco minutos, quando alguém bateu à porta.
- Pode entrar - gritou Dilman.
Edna Foster surgiu no limiar da porta e comunicou:
Está aqui o senador Hoyt Watson.
Oh! Muito bem, mande-o entrar.
Dilman e Abrahams puseram-se de pé, cheios de curiosidade, enquanto Miss Foster segurava a porta para o senador Hoyt Watson passar. Quando a porta se fechou, este avançou lentamente para o presidente.
Abrahams nunca vira o senador Watson tão perto e ficou espantado com o seu aspecto envelhecido enquanto este atravessava o Escritório Oval, arrastando os pés. Sem chapéu, o cabelo branco caindo-lhe para a testa, o seu rosto alongado de cavalo parecia ainda mais comprido que o costume.
- Muito boa noite, Sr. Presidente - disse ele a Dilman, confundido com a cortesia de Watson.
Tenha a bondade de se sentar. - Indicou Abrahams. - Tem algo que me deseja contar em particular?
Não - disse o senador Watson, sentando-se na borda de uma cadeira -, não, prefiro falar em frente do seu advogado. Serei breve. Venho aqui com um coração ferido e com pouco para dizer. O que tenho a dizer, porém, deve ser dito esta noite, pois é importante para vós ambos ouvi-lo agora. A minha filha Sally foi apanhada no meio da luta que houve esta noite, lá fora. Sofreu algumas contusões, mas além disso não se encontra ferida. Mas o que lhe aconteceu, aparentemente, fê-la recuperar a razão. Foi Miss Gibson quem a encontrou caída junto à cerca de ferro, num estado de semi-inconsciência, e a levou directamente para casa e para mim.
O senador Watson calou-se e Dilman, sem saber o que havia de dizer, proferiu:
- Alegra-me que ela se encontre bem, senhor.
O legislador ergueu a cabeça e abanou-a dolorosamente.
- Ela não está bem, Sr. Presidente. Nunca o esteve, mas eu recusava-me a encarar a verdade, ou a aceitá-la. Fechei os olhos ao seu comportamento e instabilidade, mas a partir de hoje não os fecharei mais. Esta noite vi a Sally tal qual o que ela é e o que tem sido. É uma doente, uma doente mental, e é preciso encarar tal realidade de... O Sr. Advogado Abrahams insinuou-o no seu interrogatório. Desprezei-o por o ter feito, porque suspeitava a verdade mas não a podia aceitar. Mas o senhor tinha razão e eu devo aprender a viver com ela.
O senador Watson fitou Dilman nos olhos.
- Sr. Presidente, a minha filha confessou o que realmente aconteceu consigo naquela noite. Confessou-o perante Miss Gibson, perante mim e um advogado meu amigo, que eu fui buscar para testemunhar e registar a confissão. Sally admitiu ter-se... ter-se envolvid com o ministro Eaton... depois ter ido ao seu quarto para tirar umas notas do relatório da C. I. A., depois ter sido descoberta por si e ter inventado toda uma mentira para agradar ao Eaton, ao Miller e ao Hankins. Ela fez-lhe muito mal, Sr. Presidente, e difamou-o a si próprio perante o Senado, e eu não posso permitir que as coisas fiquem assim nem por mais um minuto, ou nem ela nem eu teremos mais paz na vida.
Meteu a mão na algibeira interna do casaco e tirou um documento enrolado.
- Trouxe-lhe a declaração completa feita por Sally, assinada por sua mão perante testemunhas e com a sua assinatura reconhecida pelo notário. Sugiro que o seu advogado a utilize amanhã no seu discurso de encerramento perante o Senado, para que se saiba a verdade e se destrua aquela cláusula de acusação da Câmara. Desejaria poder reparar mais o ocorrido. O senhor merece-o. Tudo o que lhe posso oferecer é este documento, o desejo de perdão de Sally e o meu profundo pedido de desculpa.
Abrahams observou, com o espírito em turbilhão, o senador Watson inclinar-se para a frente e estender o documento para que Douglass Dilman o aceitasse.
Dilman olhou para o papel. As suas mãos permaneceram imóveis pousadas sobre a secretária. Os seus olhos moveram-se da confissão assinada para o legislador.
Dilman abanou lentamente a cabeça:
- Não, senador, não o quero. Rasgue-o e deite-o fora.
O documento tremeu na mão de Watson, mas este continuou com ele estendido.
Por favor, Sr. Presidente, precisará dele, amanhã precisará de toda a verdade do seu lado para conseguir obter...
Não - repetiu Dilman. - Como o senhor disse, ela está doente e os doentes podem ser curados e salvos. Esta confissão pública de Sally destrui-la-ia para sempre. E como alguém que tem também uma filha que está doente e ainda não destruída, não tomarei parte nisso. Agradeço-lhe muito, senador, mas não aceito. A minha absolvição ou condenação não será decidida por isso, pelo Artigo que contém esta mentira nem por nenhum dos outros Artigos.
Relutantemente o senador Watson encolheu a mão, virou o documento várias vezes entre os dedos, os olhos fixos nele, e depois ergueu a cabeça.
É muito generoso, senhor, e um perfeito cavalheiro - disse ele a Dilman. - Deverá compreender, porém, que esta sua decisão não poderá influir no meu voto amanhã. Nunca votaria contra si apenas pelo seu comportamento perante a minha filha, como foi primeiro acusado por ela e pela Câmara, e não poderei votar agora a seu favor simplesmente por saber que a minha filha mentiu e a Câmara se enganou. Compreende isso, Sr. Presidente?
Compreendo.
O senador Watson rasgou o documento em várias partes e meteu os bocados na algibeira do casaco. Tornou a olhar para Dilman.
Amanhã deverei julgá-lo pelos seus méritos como Presidente dos Estados Unidos, se agiu bem ou mal como presidente e se agiu como um presidente americano ou como um presidente negro. A minha decisão final será baseada na consideração dos seus méritos como um homem que é presidente.
Nada mais peço - disse Dilman calmamente.
O senador Hoyt Watson levantou-se com um ar cansado.
- Muito obrigado, Sr. Presidente - disse ele, e depois saiu da sala.
Não havia sol naquele dia de fins de Novembro. As nuvens sombrias amontoavam-se no céu como exércitos inimigos prontos para o combate. O ar estava frio, a temperatura a 200 abaixo de zero e o vento soprava asperamente sobre a cidade.
Os cabeçalhos dos jornais que se encontravam sobre a mesa junto da secretária de Douglass Dilman eram tão frios e agoirentos como o tempo: HOJE, CRUCIAL VOTAÇÃO NO SENADO; PALPITE PRÉVIO PREVÊ «CONDENAÇÃO»... A TENSÃO SOBRE A ÁFRICA! EXTREMO SIGILO ENVOLVE OS MOVIMENTOS DAS TROPAS AMERICANAS; A UNIÃO SOVIÉTICA MANTÉM-SE SILENCIOSA... CRUZ DE FOGO ARDENDO NO RELVADO DA CASA BRANCA; SELVAGEM LUTA RACIAL CONTROLADA EM FRENTE DA CASA BRANCA; BRANCOS E NEGROS, UNS CONTRA OS OUTROS EM DEZENAS DE CIDADES.
Douglass Dilman tentou não olhar para os cabeçalhos quando se levantou da secretária.
- Muito bem, Tim - disse ele. - Vamos a isso.
Faltava um minuto para as dez horas da manhã quando Dilman saiu do seu escritório em direcção à Sala do Gabinete, onde faria a sua breve declaração de notícias aos vinte e cinco repórteres regulares da Casa Branca.
Ao sentar-se no seu lugar, percorreu com os olhos os rostos familiares dos correspondentes à sua frente, tentando discernir neles até que ponto lhe eram hostis ou não. Alguns ostentavam uma expressão amigável e interessada, mas a maioria das expressões relevava desconfiança, dúvida, até mesmo antipatia.
- Muito bom dia, meus senhores. Tenho uma breve mas importante notícia para vos dar - disse Dilman. Desdobrou uma folha de papel e começou a ler. - Há precisamente uma hora, fui informado pelo ministro da Defesa, que os batalhões de uma divisão do Exército dos Estados Unidos aterraram sãos e salvos nos campos estratégicos de Baraza e em lugares semelhantes em países africanos aliados das vizinhanças. Por motivos de segurança não posso ser explícito acerca das suas localizações exactas. Posso revelar apenas que estão lá quinze mil soldados nossos. Estes homens, corajosos e bem treinados, representam uma elite das nossas forças, popularmente conhecidas por Dragon Flies. Estão sob o comando do general C. Jarrett Rice.
«Quero sublinhar o carácter não agressivo da nossa intervenção. Os Estados Unidos fazem parte da AUP e juraram ajudar qualquer nação democrática africana ameaçada de ser atacada por um inimigo exterior. Sabemos de fonte segura que nativos africanos comunistas, treinados, armados e chefiados por oficiais russos se preparam para derrubar o governo democrático de Baraza. Os Estados Unidos informaram o primeiro-ministro russo de que estávamos a par do que se passava e avisámos explicitamente a União Soviética que cumpriremos o nosso tratado com Baraza e a AUP, e que interviremos para proteger os nossos vizinhos democráticos sempre que se encontrarem ameaçados. Não recebemos qualquer resposta de Moscovo. Visto isto e visto as actividades militares inimigas terem aumentado nas últimas vinte e quatro horas, ordenei que as nossas forças fossem, com toda a segurança, transportadas para a África. Estamos lá agora e estamos prontos.
«Quero esclarecer que nem as tropas dos Estados Unidos nem as dos países da AUP tomarão a iniciativa de qualquer medida agressiva. Estão alerta para defender Baraza, se esta for atacada. Só con-tra-atacarão se as fronteiras de Baraza forem invadidas. Se obrigadas a lutar, as forças dos Estados Unidos lutarão sempre sem empregar quaisquer armas nucleares.
«Repito, os Estados Unidos estão prontos para qualquer eventualidade. Tal facto é uma necessidade histórica. Como constatou o primeiro Presidente dos Estados Unidos, George Washington: 'Es-tar-se preparado para a guerra é um dos meios mais eficazes para preservar a paz'. E como depois escreveu: 'Se somos espertos, preparemo-nos para o pior.'»
Dilman dobrou a folha de papel, entregou-a a Flannery e disse:
- Fim da declaração. É tudo por hoje, senhores.
Saiu rapidamente da Sala do Gabinete, separou-se de Flannery no escritório de Miss Foster e regressou à solidão do Escritório Oval.
Ligou o aparelho da televisão e deixou-se cair pesadamente na sua cadeira. Quando a imagem apareceu no ecrã mostrou Nat Abrahams terminando o discurso final do julgamento e dirigindo-se gravemente aos senadores.
- É absurdo até mesmo pensar que o presidente violou a Constituição, desrespeitou a lei e desdenhou o nobre corpo do Senado, ao demitir, por necessidades, o ministro de Estado Eaton – dizia Abrahams. - Honrados juízes e senadores, assim como tentámos mostrar que os outros três artigos não passavam de uma maldosa teia de falsidades, lembro-vos também que as mais graves acusações do Artigo IV representam apenas a autocrítica e desregrada vingança de um pequeno grupo de legisladores. Recordemos, mais uma vez, o julgamento do Presidente Johnson e a sábia observação do juiz supremo Chase a respeito do Decreto de Posse do Cargo, antepassado da Nova Lei de Sucessão: Leis de Congresso não certificadas pela Constituição não são leis. No caso de uma lei, que o presidente julgue não certificada pela Constituição, ser aprovada pelo Congresso, parece-me que aquele tem o dever de agir como se ela fosse constitucional, excepto no caso de atacar directamente o poder executivo que lhe foi confiado. Nesse caso, parece-me que o dever do presidente será não fazer caso da lei.
«Assim falou um juiz, no outro julgamento de um presidente americano. Assim falo eu hoje, a favor do nosso presidente. A questão é simples. O Presidente Dilman assumiu o seu cargo jurando preservar, proteger e defender a Constituição. Como o poderia fazer se um outro ramo do governo, por meio de uma lei duvidosa e por motivos que não é necessário repetir, lhe tirou o poder de preservar, proteger e defender a Constituição? Se o presidente...
O telefone ao seu lado começou a tocar e Dilman baixou o som da televisão e levantou o auscultador.
Está?
Ouviu a voz de Miss Foster.
Sr. Presidente, desculpe incomodá-lo, mas o polícia do portão norte insiste em falar directamente consigo. Diz que está alguém ao portão que afirma ser da sua família e que o quer ver. Não me disse mais nada.
Da minha família?
Eu disse que o senhor não podia.
Um momento, Miss Foster. - Impulsivamente disse: - Ligue--me para o portão.
Esperou, intrigado.
Uma perturbada voz masculina chegou até ele:
-Sr. Presidente? -Sim.
Sei que não o devia incomodar, mas a pessoa insistiu para que eu falasse directamente consigo. Sei que todos os dias aparecem por aqui pelo menos uma dúzia de impostores, mas esta, ela mos-trou-me uma velha fotografia do Sr. Presidente, assinada por si eela...
Ela? - disse lentamente Dilman.
É uma jovem, Sr. Presidente. Diz que é sua filha. Eu não lhe ligaria porque ela parece-me branca, mas os jornais diziam que o senhor tinha uma filha assim. Contudo, o bilhete de identidade atri-bui-lhe o nome de Dawson, Linda Dawson, o que não faz sentido, mas ela diz que o Sr. Presidente a reconheceria por esse nome, apesar de não ser o seu verdadeiro nome, mas...
Qual é o nome que ela dá como sendo o verdadeiro?
Diz chamar-se Mindy... sim, é isso mesmo... Mindy Dilman, e disse-me para dizer ao presidente que ela agora está melhor e que já esteve longe tempo de mais.
Pela primeira vez, nas últimas semanas, Dilman sentiu vontade de sorrir.
- Sr. Guarda - interrompeu Dilman -, tenho a impressão de que essa jovem não é nenhuma impostora. Mande-a já entrar. Diga à Mindy que o pai está à espera dela. Agora despache-se! Não a demore mais!
Arthur Eaton e Kay Varney Eaton estavam sentados lado a lado no sofá da biblioteca da sua casa de Georgetown, os olhos fixos em Zeke Miller, que gesticulava no ecrã da televisão. Este estava já no fim do seu discurso de encerramento perante o Senado dos Estados Unidos quando de repente a porta da biblioteca se abriu e o governador Talley meteu a cabeça dentro da sala.
Arthur, a imprensa está pronta e reunida.
Wayne - disse Kayne Eaton -, importa-se de desligar a televisão? - Enquanto Talley se apressava a obedecer-lhe, ela voltou-se para o marido. - Aquele patife do Miller é esperto. Se algumas dúvidas me restavam, já se foram. Que fato deverei pôr quando fores eleito, Arthur?
Eaton franziu a testa.
- Não fales assim, Kay. Não deixes que ninguém te oiça a dizeres coisas dessas... Pronto, Wayne? Vamos então, Kay, levemos as coisas de uma maneira simples e cortês, e depois vamos às sanduíches e às bebidas.
Eaton saiu da biblioteca a passos largos e entrou na sala de estar apinhada. Havia mais de cem correspondentes à sua espera e muitos aplaudiram-no quando ele os saudou jovialmente e se colocou em frente do bar, com a mulher de um lado e Talley do outro.
- Mantenham-se assim para umas fotografias! - gritou um fotógrafo.
Enquanto as máquinas disparavam, Talley exclamou:
- Não se esqueçam da legenda: «A equipa de O. C. de novo reunida!» - Esta exclamação foi coroada com outra salva de palmas.
Então Arthur Eaton ergueu a mão no ar.
- Em primeiro lugar - disse ele - peço desculpa pela falta de espaço, mas visto que não me permitem entrar no Ministério de Estado, isto é o melhor que lhes posso oferecer!
Eaton regozijou-se com as gargalhadas e as ovações e depois acalmou os repórteres e o seu rosto tomou uma expressão grave.
Tenho tentado evitar qualquer comunicação aos meus amigos da imprensa - disse ele - mas tantos de vós me têm tão insistentemente pedido tal comunicação que, embora relutantemente, acedi! Afinal, talvez algumas observações não sejam deslocadas.
Deixem ouvir! - gritou alguém.
Eaton tornou a erguer a mão pedindo silêncio.
- Sei que, segundo a lei do país, sou, como ministro de Estado, o próximo na linha de sucessão à presidência. Embora aquele que se encontra agora na presidência não me desejasse em tal lugar, e tivesse tentado colocar-se acima da lei no sentido de me demitir, não conseguiu o seu intento, pois o povo e o Congresso americano não o consentiram.
«Contrariamente à propaganda espalhada pe!a Casa Branca, não desejei, nem nunca procurei de qualquer modo, alcançar a presidência. Bastou-me, nestes últimos anos, ser o ministro de Estado e conselheiro do nosso bem amado O. C. Desejaria que tal fosse ainda hoje o meu lugar. Mas o destino não quis que assim fosse. Quando o senador Dilman subiu à presidência e me pediu que o ajudasse a continuar a política de O. C. no país e no estrangeiro, eu concordei em permanecer no meu cargo. Embora esmagado pela dor, como todos nós, cedo compreendi que o governo e o bem-estar do povo estavam em primeiro lugar e que a dor se devia submeter ao dever.
«Não discutirei os acontecimentos que ocorreram após a morte de O. C. Digo-vos porém, com toda a honestidade, que, embora preocupado com o desvio do novo presidente em relação à política de O. C. e com certas deficiências do seu carácter e competência, foi com relutância que aprovei a sua acusação e julgamento. Só quando vi que não havia outra alternativa, quando compreendi que o meu dever era estar do lado do povo contra aquele que estava a pôr em perigo a vida da república, só então me submeti ao inevitável e dei todo o meu apoio à Câmara dos Deputados.
«Não sei qual será o resultado da votação do Senado esta tarde, nem tenho uma opinião formada sobre ele. Se os membros do Senado escolherem absolver e conservar o presidente, é claro que pedirei a demissão do meu cargo. Se os membros do Senado escolherem condenar e demitir o presidente, posso apenas dizer que cumprirei o meu dever, segundo a Constituição e com a ajuda de Deus, para vos servir como vosso presidente e como presidente de O. C, com toda a minha energia, todo o meu coração e com todas as fibras do meu ser.
«Repito, meus amigos, se tal for o meu destino, servirei como presidente, como presidente de todos, não como presidente de uma ou de umas facções, mas como Presidente dos Estados Unidos da América.
«Além disto, pouco mais há que eu possa dizer. Agradeço-lhes a vossa atenção.»
Eaton foi aclamado com uma salva de palmas e sorriu.
Sr. Ministro - gritou o correspondente do Constitution de Atlan-ta -, importa-se de responder a algumas perguntas?
Senhores, conhecem a minha posição - disse Eaton. - Ser-me--ia difícil comentar um assunto que ainda não foi resolvido no Senado.
Além disso, cada pergunta que fizessem manter-vos-ia mais tempo afastados dos acepipes que a Sr5 Eaton lhes preparou.
Ouviram-se risos de contentamento, e então Talley adiantou-se e disse:
- Deixem-me dizer-lhes apenas isto, amigos. O ministro de Estado tem razão em não querer entrar em especulações. Mas o partido fez a sua própria relação informal dos senadores que votarão. Posso-Ihes dizer, francamente, que não haverá qualquer problema em obter dois terços do Senado para anunciar que o presidente é culpado de crimes e delitos capitais. Rapazes, amanhã tereis de novo um governo do povo e pelo povo e de todo o povo!
Fez-se ouvir uma tremenda salva de palmas e Eaton agradeceu com uma inclinação de cabeça. Dando o braço à mulher, anunciou:
- Senhores, termina aqui a conferência à imprensa... e começa a corrida para a comida e para as bebidas. De novo lhes agradeço a vossa atenção, e agora sigam-me!
E então Reb Blaser gritou:
- Muito obrigado, Sr. Presidente!
Imediatamente a sala se encheu de gargalhadas, palmas, gritos e assobios de alegria, e Arthur Eaton, sentindo-se como achava que O. C. se devia ter sentido naqueles grandes dias antes da eleição, conduziu os repórteres para a celebração.
Às doze horas e vinte minutos da tarde, no Escritório Oval da Casa Branca, Douglass Dilman esperava por Nat Abrahams para almoçar. Passados poucos segundos entrou este, atirando com o chapéu e o sobretudo para cima de uma cadeira e massajando as faces vermelhas e enregeladas.
- Brrr, que dia! - exclamou ele.
-Tens razão, mas que dia! - disse Dilman observando Abrahams enquanto este se sentava na sua frente. - Nat, não ouvi todo o teu discurso de encerramento, mas o que ouvi foi óptimo.
Temo que o de Miller tenha sido igualmente bom - disse Abrahams.
De qualquer maneira, obrigado.
Abrahams pareceu nem o ouvir nem sequer reparar no almoço à sua frente.
Dilman perguntou:
Que se passa, Nat? Vejo bem que tens algo que te preocupa. Abrahams mordeu pensativamente o lábio inferior.
Para falar com franqueza, tenho mesmo.
Deita isso cá para fora. Ele olhou Dilman de frente.
Fizeram-nos uma oferta, Doug.
Sobre quê?
Sobre os votos do Senado, daqui a uma hora e meia.
De quem?
Do chefe do partido, Allan Noyes. Disse-me que há nove senadores do partido que estão preocupados com o que a tua condenação poderá fazer ao partido. Acham que se tu continuares na presidência isso será menos prejudicial para o partido, pois fá-los-á perder menos votos nas próximas eleições do que se fores publicamente deitado abaixo e posto na rua.
Perder menos votos? Que votos?
Bem, o partido tem andado a apalpar o terreno por todo o país. Tu recuperaste a simpatia da maior parte da população negra e de outras minorias. O bloco dos liberais brancos que estão do teu lado aumentou. Alguns independentes também passaram para o teu lado. Noyes disse que neste momento isto não representa uma grande reviravolta, mas que a tua condenação pelo Senado te poderá fazer ganhar mais simpatia que nunca e fará com que Eaton perca um grande número de votos na altura das eleições.
A eleição de Eaton. É com isso que o partido se preocupa?
Francamente, é. E a proposta deles é esta: Esses nove senadores concordaram em votar a teu favor sob certas condições.
Muito bem, Nat, qual é o preço?
Se conseguirem a tua absolvição, querem que tu amanhã faças uma declaração pública que não procurarás ser reeleito e que apoiarás totalmente Arthur Eaton ou qualquer outro candidato escolhido pelo partido que a presidência, no próximo Verão. E é tudo. Concorda com isto e terás nove poderosos votos a teu favor, que de outro modo poderás não ter.
Dilman olhou fixamente para Abrahams.
E eu preciso desses nove votos?
Não são para desperdiçar - disse Abrahams.
E querem a minha resposta antes das duas horas?
Antes das duas menos um quarto.
Nat, a minha resposta é não. Diz-lhes que não. Abrahams não pareceu ficar surpreendido. Começou a comer.
Nada tenho de lhes dizer - respondeu ele entre duas garfadas. -Já lhes disse.
-Já lhes disseste que não? - Dilman encostou-se para trás, rindo e abanando a cabeça. - Estavas assim tão certo? O que és tu, a minha consciência?
Não se esqueça que sou o seu advogado, Sr. Presidente.
O meu ajudante para cavarmos a minha cova, queres tu dizer.
- Ora, não pensemos mais nos nossos senadores e nos seus votos - disse Abrahams. - Hem, Edna Foster disse-me que a Mindy está cá. É verdade?
Dilman sorriu.
Absolutamente verdade. Vem magoada, não está muito bem, precisa que a ajudem, mas a verdade é que voltou. E está bonita que nem podes crer. Está agora a dormir lá em cima. - Abanou a cabeça. - Só desejava ter tido juízo há mais tempo e ter forçado a Mindy a vir aqui e tê-lo permitido a Wanda, enquanto era ainda o inquilino da Casa Branca.
Ainda não deixaste de o ser.
Nesse momento o telefone começou a tocar. Dilman limpou a boca ao guardanapo e depois levantou-se e dirigiu-se rapidamente até à secretária.
- É do Pentágono - o ministro da Defesa Steinbrenner. - O que será agora?
Esperou e depois ouviu a voz do ministro da Defesa.
- Está... Sr. Presidente? Daqui Steinbrenner. Acabo de receber notícias do general Rice da cidade de Baraza. O seu reconhecimento aéreo observou grande actividade comunista na fronteira de Baraza. Parece não haver dúvida de que eles decidiram avançar. O general Rice acha que é uma necessidade estratégica que as nossas unidades avancem e ataquem primeiro. Pensa que teremos toda a vantagem em agirmos assim. Ele está à espera de uma resposta na cidade de Baraza. Eu não me sinto com o poder de a dar, nem de tomar uma decisão. Passo-lha a si, Sr. Presidente. Ordeno-lhe que avance?
Dilman lembrou-se de Harry Truman: o comboio pára aqui, no Escritório Oval, e não no escritório do ministro da Defesa.
Era uma difícil decisão a tomar. Se ele assim o ordenasse, os Dragon Flies atacariam, talvez vencessem o inimigo de um só golpe, talvez obtivessem uma grande vantagem, talvez salvassem inúmeras vidas. Contudo ele teria comprometido os Estados Unidos numa acção de ataque e não de defesa. Teria traído toda a filosofia histórica de paz da América por causa de uma possível vantagem militar.
- Não quero que sejamos nós o agressor, qualquer que seja a situação - disse Dilman. - Diga ao general que continue a vigiar atentamente os movimentos das forças inimigas, mas que só dispare quando dispararem contra ele.
Steinbrenner respondeu:
- Se assim é, vou-lho transmitir. Mas, se o que nos interessa é a defesa temos de aguardar o pior, temos de contar que o conflito alastra com a possibilidade de um ataque por parte da Rússia. Acho que é importante pormos todas as nossas forças em estado de alerta. - Fez-se uma pausa e depois Steinbrenner disse: - Quer que o ordene, Sr. Presidente?
Dilman tornou a hesitar. O valor defensivo de tal medida era destruído pelo horrível perigo que parecia causar - o de apressar o primeiro tiro contra os próprios Estados Unidos.
Depois Dilman tomou uma decisão.
- Não - disse ele -, é ainda demasiado cedo.
O ministro da Defesa pareceu ficar preocupado.
- Eles estão a avançar lá na África, Sr. Presidente. Tem a certeza de que se quer manter onde estamos?
Ele tinha a certeza.
- Pelo menos ainda por uma hora, ministro Steinbrenner. Continue em contacto comigo.
Depois de ter desligado, Dilman continuou de pé junto da secretária. Começara a contar a Nat Abrahams o que se passava quando foi interrompido por uma forte pancada na porta que dava para o escritório do secretário Lucas, e, sem esperar por uma resposta, o general Leo Jaskowick entrou precipitadamente na sala.
O seu rosto, normalmente sereno, tinha uma expressão de ansiedade.
- Desculpe vir interrompê-lo desta maneira, Sr. Presidente, mas o caso é para isso - disse Jaskowick atropeladamente. - Acabo de receber um telefonema da Embaixada Soviética. Pediram uma entrevista imediata para o embaixador Leonid Rudenko, e antes que eu tivesse tido tempo de desligar e de ligar para o Sr. Presidente recebi um telefonema do portão do sudeste a informar que o carro de Rudenko acabara de passar. Vem já aí. Não sei o que...
-Para o diabo o protocolo-disse Dilman. -Vamos a isso. Vá ter com ele, general, e traga-o directamente para aqui. Jaskowick atravessou o escritório quase a correr e precipitou-se para o Jardim das Rosas.
Dilman continuou de pé junto da secretária. Sentia-se estranhamente calmo, quase fantasticamente calmo. Viu Abrahams pôr-se de pé.
Será talvez melhor que eu saia - disse Abrahams.
Fica onde estás - disse Dilman, olhando através das portas de vidro.
Viu Jaskowick conduzindo rapidamente o embaixador russo ao longo da colunata, seguido por dois agentes do Serviço Secreto.
Jaskowick abriu a porta e o embaixador Leonid Rudenko entrou no Escritório Oval. O embaixador Rudenko era um pequeno e musculoso russo de meia idade, com um rosto redondo, luzidio e trombudo. Nesse momento a expressão do seu rosto era gravemente sombria. Tirou o seu gorro ao aproximar-se da secretária do presidente.
Sr. Presidente Dilman - disse ele, sem estender a mão. - Mandei a minha embaixada telefonar-lhe, mas num caso desta urgência...
Não faz mal - disse Dilman. - Faça o favor de se sentar.
Dilman sentou-se na sua cadeira de espaldar, mas o embaixador Rudenko, ou por não ter ouvido ou por estar demasiado preocupado para aceitar qualquer hospitalidade, permaneceu de pé diante da secretária, abrindo o fecho éclair da pasta que trouxera consigo. Tirou dela três folhas de papel azul, pousou a pasta na secretária, atirando com várias pequenas estatuetas de porcelana, e depois fixou os olhos em Dilman.
Sr. Presidente, recebi precisamente há vinte minutos um urgente comunicado de Moscovo, directamente do primeiro-ministro Nicolai Kasatkin. Este mandou-me que lho lesse pessoalmente.
Leia-o então - disse Dilman. O seu rosto mantinha-se impassível, enquanto esperava ansiosamente.
O embaixador Rudenko aclarou a garganta e começou a ler alto a mensagem diplomática.
«Ao Presidente dos Estados Unidos, Douglass Dilman.
«Caro Sr. Presidente. Recebi já há alguns dias a sua mensagem respeitante à necessidade da sua intervenção em Baraza. Não lhe respondi até ter investigado o problema de Baraza e a situação geral da África, através dos meus conselheiros no Kremlin e no estrangeiro e até ter pensado profunda e maduramente no caso.
«Sr. Presidente, agora que os factos se me tornaram claros, não tenho dúvidas de que o senhor foi mal aconselhado pela sua facção militarista, peões de um sistema que deseja apenas apoderar-se do controlo dos pretos analfabetos da África e explorá-los para o capitalismo. Os pseudofactos de que me informou sobre a comunicação comunista africana nas fronteiras de Baraza e sobre o equipamento e chefia concedidos pela Rússia, que recebeu das suas fontes de informação, são falsos e largamente exagerados. Foram-lhe astutamente fornecidos pela sua elite de militaristas e capitalistas para o lançar num acto de agressão e para nos assustar. Penaliza-me que tenha dado ouvidos a conselheiros que querem que o colonialismo continue, mesmo com o risco de uma catástrofe mundial.
«Sr. Presidente, já nos encontrámos pessoalmente, e o senhor sabe que não sou uma pessoa que me assuste facilmente. Conhece também o poder da União Soviética e da nossa força defensiva, a nossa unidade e o nosso desejo de paz. Só procuramos a paz, a prosperidade e a igualdade para nós próprios e para todas as nações. Sabe também que eu acredito que a arma secreta mais poderosa que possuímos não é a bomba de hidrogénio, mas o nosso ideal de libertar o mundo dos grilhões da escravatura e do servilismo, assim como libertámos o nosso próprio povo em pouco mais de meio século. Para que o nosso ideal triunfe é preciso que haja um mundo civilizado e povoado para salvar. Se só restarem ruínas e os cadáveres de uma civilização, só haverá para salvar um cemitério.
«Tudo isto tive de considerar e avaliar quando o Sr. Presidente precipitadamente enviou uma divisão das suas forças para a África. Por causa de um local e pacífico incidente na África, o senhor - um homem de boa fé, mas à mercê de maus conselheiros - desafiou a Rússia e colocou o mundo naquele minuto que precede o eterno sono da morte.
«Enquanto procurava alcançar uma decisão final, vieram-me à lembrança as duas velhinhas de Versalhes , que, segundo o que me contou, possuíam o dom de ver no passado. E depois lembrei-me dos dois chefes das duas maiores potências mundiais, que passearam também em Versalhes. Ocorreu-me então que talvez eles possuíssem o dom de ver no futuro. Veriam eles uma árida terra chegar ao fim, devido ao orgulho e à loucura? Ou veriam, como um deles viu, como eu vi nessa clara visão há umas horas atrás, um mundo vivendo imortal, povoado por nações independentes coexistindo em paz, harmonia e prosperidade, como bons vizinhos?
«Este, Sr. Presidente, foi o mundo que eu entrevi, e ao dar o primeiro passo para o alcançar, espero que o veja também.
«Consequentemente, enviei o marechal Borov e o seu pessoal militar para a África, com instruções para proceder ao imediato dispersar da milícia comunista africana, que segue os nossos ideais e que estava reunida junto à fronteira de Baraza. Ordenei que todas as armas encontradas nas suas mãos fossem reenviadas às fontes de onde tinham vindo. Ordenei que os nossos técnicos e educadores soviéticos, que estavam a trabalhar com tais grupos, regressassem imediatamente à União Soviética. Toda esta actividade, no interesse da paz, se está a desenvolver neste preciso momento em que esta mensagem lhe está a ser lida.
«Em resposta ao nosso acto de desejo de manter a paz, peço--Ihe apenas o imediato dispersar das forças do Pacto da União Africana reunidas em e à volta de Baraza e o imediato retirar de todas as forças e equipamento militar dos Estados Unidos de Baraza.
«Sr. Presidente, continuemos os dois homens que éramos em Versalhes. Olhemos para o futuro, para o futuro deste dia e de todos os dias que se lhe seguirão, e vejamos só paz.
«Com os melhores cumprimentos, Nikolai Kasatkin, primeiro--ministro da União Soviética.»
O embaixador Rudenko terminou a sua leitura e as suas palavras ficaram a pairar no ar como se tivessem asas. Depois colocou a mensagem em cima da secretária do presidente e tornou a pegar na pasta.
Dilman permanecia sentado, mudo, com as mãos fortemente agarradas aos braços da cadeira, tentando absorver o que acabara de ouvir.
O telefone começou a tocar ao seu lado. Viu que era a linha directa do Pentágono. Levantou o auscultador, escutou as excitadas exclamações de Steinbrenner, depois proferiu meia dúzia de palavras e desligou.
Dilman pôs-se de pé.
Era o meu ministro da Defesa. A notificação do primeiro-minis-tro Kasatkin do retirar total das forças comunistas da fronteira de Baraza acaba de ser confirmada pelo Presidente Amboko e pelo nosso embaixador nas Nações Unidas. As Nações Unidas vão enviar esta tarde um grupo de pessoas competentes para fiscalizar o retirar comunista. Demos instruções ao nosso embaixador Slater para informar o Conselho de Segurança de que retiraríamos as nossas forças vinte e quatro horas após a retirada das vossas. A sua delegação concordou.
Muito bem.
Sr. Embaixador Rudenko, este é o primeiro dia feliz para o mundo. Peço-lhe o favor de informar o primeiro-ministro Kasatkin de que tomei conhecimento da sua mensagem e que, em nome dos meus compatriotas e de todos os que acreditam na paz, me sinto extremamente aliviado e feliz. Diga-lhe também... diga-lhe que a minha esperança e a minha fé é também que a paz seja duradoiramente possível e que entremos de braço dado num futuro e num mundo que permanecerá imortal.
Assim farei, Sr. Presidente. Muito obrigado.
Muito obrigado eu, Sr. Embaixador.
Dilman observou Rudenko enquanto este seguia pela colunata, acompanhado por um agora jovial general Jaskowick, e depois vol-tou-se de novo para o Escritório Oval.
Nat Abrahams tinha o rosto brilhando de contentamento, assim como Dilman. Abraçaram-se os dois, batendo nas costas um do outro com excitação.
- Ganhámos! Ganhámos a grande partida! - exclamou Dilman entusiasmado. - Temos de mandar o Tim Flannery, temos de dar a notícia ao mundo inteiro!
Afastou-se para chamar o Flannery, mas depois estacou e vol-tou-se lentamente para encarar de novo Abrahams.
- A grande partida - murmurou ele pensativo. Depois acrescentou: - E a pequena, Nat? Terá isto alguma importância no... no Senado?
- Não te posso prometer que terá grande importância e que vire as coisas a nosso favor - disse Abrahams, subitamente solene. – Só te posso prometer uma coisa: é que provocará uma disputa, uma verdadeira disputa, pela primeira vez.
Eram duas horas e um quarto da tarde e embora o martelo do juiz Johnstone tivesse já soado várias vezes, o Senado não se reunira ainda como tribunal de acusação.
Em todos os dias do julgamento, Nat Abrahams nunca observara no Senado uma cena semelhante à que se desenrolava agora perante os nossos olhos.
Se as galerias tinham estado sempre cheias todos os dias, e superlotadas na ocasião em que o presidente comparecera como testemunha, nessa tarde pareciam estar a rebentar com uma multidão vociferante.
No próprio centro da Sala Magna, poucos eram os senadores que estavam junto das suas secretárias. A maior parte apinhava-se nas estreitas coxias, formando grupos, lendo os enormes cabeçalhos das edições especiais dos jornais de Washington ou escutando os seus transístores e depois discutindo a sensacional notícia da vitória do Presidente Dilman, da retirada da Rússia e da paz que regressara à terra.
Os olhos de Abrahams tentaram seguir a actividade de ambos os campos: o dos senadores conhecidos por serem contra o presidente, chefiados pelo senador Bruce Hankins, e o dos senadores conhecidos por serem a favor do presidente, chefiados por Chris Van Horne, senador do próprio Estado de Dilman.
Teria porventura algum voto mudado de «culpado» para «não culpado»? Abrahams não podia dizer. Era fácil de ler nos rostos dos partidários. Mas os independentes mantinham uma expressão indecifrável. Apenas uma emoção comum se podia ler em todos os rostos, em todas as atitudes, em todos os movimentos: uma intensa excitação.
O juiz Johnstone fez soar de novo o martelo, uma, duas, três vezes, e o som ribombou por toda a sala, acalmando-a e, a pouco e pouco, os membros do Senado foram-se dispersando e sentando nos seus respectivos lugares.
- Pede-se aos senadores que se sentem e prestem atenção - disse o juiz supremo. Esperou que a sua ordem fosse cumprida e depois anunciou em voz alta: - O Senado encontra-se agora reunido para prosseguimento do julgamento de Douglass Dilman, Presidente dos Estados Unidos... As pessoas das galerias são avisadas de que se deverão manter em absoluto silêncio e ordem a partir deste momento. Os responsáveis de qualquer distúrbio serão imediatamente evacuados da sala...Senadores, em conformidade com a ordem do Senado, prosseguiremos agora com a votação final dos Artigos de Acusação. O escrivão-mor lerá agora os quatro artigos.
Do seu lugar, Nat Abrahams começou a escutar as palavras que havia tanto tempo tinha gravadas na memória, mas depois a sua atenção desviou-se do escrivão-mor para os rostos dos cinco advogados da Câmara, todos eles de expressão atenta e solene, com excepção de Zeke Miller, que estava-descuidadamente recostado na cadeira, os lábios arrepanhados num sorriso satisfeito, como se saboreasse cada palavra da acusação.
Do rosto de Miller, a atenção de Abrahams desviou-se para os rostos dos senadores, alguns directamente voltados para o escrivão, outros voltados para baixo, fixos nos tampos das secretárias como se aí quisessem ler que julgamento deveriam pronunciar daí a minutos.
De repente o silêncio em que a sala mergulhou despertou Abrahams. Reparou que a leitura dos artigos terminara já e que toda a gente olhava para cima, para a tribuna.
O juiz Johnstone levantara-se da cadeira, fazendo flutuar a toga preta. Majestosamente passeou os olhos pelas filas que se encontravam perante ele. Depois, numa voz roufenha, anunciou:
- Vai proceder-se à votação!
Chegara o momento, o momento da esperança e do temor, e Abrahams teve a impressão de que o seu coração deixara temporariamente de bater. Chegara o momento e não se podia evitá-lo, desviá--lo ou fazê-lo parar.
A Sala Magna do Senado estava mergulhada num silêncio de morte.
Todos os olhos se desviaram do juiz supremo, que permaneceu de pé, para o escrivão-mor, imediatamente abaixo daquele e que se erguera com a lista dos nomes dos cem senadores que votariam por ordem alfabética.
- Sr. Alexander - chamou o escrivão-mor.
Um homem idoso e de rosto enrugado levantou-se lá atrás.
- Sr. Senador Alexander, que diz? - perguntou gravemente o juiz Johnstone. - Douglass Dilman, Presidente dos Estados Unidos, é ou não culpado de crimes capitais, como acusado pelos artigos?
O senador Alexander gritou:
«Culpado!» - sentou-se com um ar satisfeito consigo próprio.
Sr. Austin - chamou o escrivão-mor.
Um jovem político levantou-se na segunda fila.
- Sr. Senador Austin, que diz? - perguntou o juiz supremo. - Douglass Dilman, Presidente dos Estados Unidos, é ou não culpado de crimes capitais, como acusado pelos artigos?
O senador Austin hesitou e depois respondeu:
«Culpado.»
Sr. Bennatt - chamou o escrivão-mor.
Um homem grande e forte levantou-se de um salto da sua secretária na fila do centro.
Sr. Senador Bennatt, que diz? - perguntou o juiz supremo. -Douglass Dilman...
«Não culpado!» - interrompeu Bennatt.
Ouviu-se na galeria um riso nervoso e o juiz Johnstone disfarçou o seu próprio sorriso.
Sr. Bollinger - chamou o escrivão-mor.
Sr. Senador Bollinger, que diz - Douglass Dilman, Presidente dos Estados Unidos, é ou não culpado de crimes capitais como acusado pelos artigos?
«Culpado.»
Abrahams sentia agora o coração bater desenfreadamente no peito. Olhou preocupado para as suas mãos. Dos cem, quatro tinham já votado, três dos quais tinham votado «culpado». Não era muito prometedor. Quando ia concentrar de novo a sua atenção no erguer e baixar dos senadores, Nat Abrahams ouviu um murmúrio vindo de algures, ao lado ou de trás. Espreitou para Tuttle e depois para Priest e Hart, mas todos eles se mantinham silenciosos, hipnotizados pelo drama da votação.
Perplexo por continuar a ouvir o mesmo sussurro, Abrahams voltou-se lentamente na cadeira e então deparou com a origem do som que o distraía. Mesmo por detrás dele estava instalada uma câmara de televisão, na qual ele não reparara antes, e junto dela estavam agachados dois homens, um assentando os resultados da votação num bloco de notas, enquanto o outro os ia segredando para um pequeno microfone que segurava na mão.
Abrahams inclinou-se para trás na cadeira, procurando escutar o que dizia o locutor.
«A votação vai de vento em popa, como podem observar nos vossos ecrãs - segredava o locutor ao microfone. - Temos - ora deixem-me ver - dos cem senadores já se pronunciaram trinta e cinco. Destes trinta e cinco, vinte e seis votaram contra o Presidente Dilman e nove a favor do Presidente Dilman. É muito cedo ainda para emitir uma opinião, mas o presidente está a ficar para trás, e se o ritmo continuar assim será demitido. Será a primeira vez na história da América que um Presidente dos Estados Unidos será demitido do seu cargo por crimes e delitos capitais. Lembramos a todos vós que é necessário dois terços dos cem senadores, ou seja sessenta e sete senadores votarem 'culpado' para se obter a condenação. Um momento - o que é, Kent? - sim, óptimo. Senhoras e senhores, enquanto vos falava, a votação continuou inexoravelmente, apressando-se em direcção ao seu clímax, e agora o meu colega informa-me... informa-me que metade dos senadores já votaram - tenho aqui o total - neste momento a votação encontra-se com trinta e quatro votos de culpado e dezasseis de não culpado, dos cinquenta que já se pronunciaram. Parece que, embora o presidente esteja ainda bastante atrasado, os seus partidários conseguiram adiantar-se bastante, e agora a votação tornou-se uma luta de vida ou de morte - vejamos agora quem se levanta para votar.»
Abrahams endireitou-se na cadeira, procurando fechar os ouvidos àquele sussurro que o começava já a irritar. Ali, perante eles, não se julgava apenas o futuro de um ser humano, mas todo o sistema do governo americano, assim como a integridade do público americano que passava a vida a apregoar a igualdade e a liberdade. E contudo, um locutor, um representante do melhor e do pior, agora do pior, da cultura de competição e relações públicas americanas, estava a relatar aquele crítico acontecimento histórico como se fosse um jogo de baseball ou uma corrida de cavalos.
O pensamento de Abrahams dirigiu-se para o resultado final do que se passava perante os seus próprios olhos.
Que aconteceria ao país se Douglass Dilman fosse condenado e demitido nos próximos minutos? Que se passaria na consciência nacional quando o país acordasse, na manhã seguinte, sabendo que crucificara um presidente não porque era um chefe incompetente - o triunfo de Dilman quanto a Baraza seria então já conhecido por todos - mas porque era preto e eles brancos? Com que olhos se olhariam os vizinhos uns aos outros, e como poderiam viver com a vergonha do seu acto? E Doug, que seria de Doug? Para onde iria? Que faria? Como poderia viver? E, por outro lado, se ele fosse absolvido, qual seria o estado da União? E qual seria o futuro de Doug?
la ouvindo as vozes dos senadores respondendo ao juiz supremo... «Culpado»... «Culpado»... «Não culpado». Viu as horas no relógio: tinham passado vinte e três minutos desde que a votação começara. Sentiu alguém tocar-lhe no braço.
Ergueu os olhos. Tuttle pôs-lhe um papel com uma mensagem diante dele. A mensagem era de Hart e dizia:
«Eles têm sessenta votos e nós vinte e quatro: faltam ainda catorze votos. Eles precisam de sete e nós de oito. Sinto que vou morrer. Que pensas, Nat?»
«Acho que também vou morrer, mas ainda não estamos mortos. Pára de usar os dedos para escrever e mantém-nos cruzados!»
Passou o papel e deu toda a sua atenção aos catorze votos finais. Mas, com surpresa sua, no tempo que gastara com a mensagem, mais dez votos tinham sido anunciados e o décimo primeiro estava a ser anunciado nesse momento, e soube isso por ouvir aquele maldito locutor a segredar ao microfone atrás de si.
«Stonehill acabou de votar 'não culpado', como era de esperar - anunciou a voz tensa do locutor. - Dos cem senadores, noventa e sete já votaram. Desses noventa e sete, sessenta e cinco votaram 'culpado' e trinta e dois 'não culpado'. A acusação precisa de dois dos restantes três votos para condenar o presidente. A defesa precisa igualmente de dois dos restantes três votos para salvar o Presidente dos Estados Unidos... O juiz supremo está a falar com o escrivão--mor... Faltam três votos e os acusadores precisam de dois e parece que os vão obter. Só faltam ser chamados os senadores Thomas, Van Horn e Watson. Thomas é conhecido pela sua crítica contra o presidente. Van Horn é um partidário do Presidente Dilman. O terceiro e último votante, o temível senador Hoyt Watson, cuja filha foi envolvida nas acusações contra Dilman, é um sulista - e portanto tudo leva a crer que dois dos restantes três votos serão de 'culpado' dando aos inimigos do presidente os sessenta e sete votos de que precisam, os seus dois terços, terminando assim uma das mais memoráveis ocasiões da história, a demissão do membro mais elevado.
- O martelo do juiz Johnstone ressoou na sala.
Nat Abrahams fechou os ouvidos ao falatório do locutor, rangeu os dentes, fechou os punhos e esperou.
Sr. Thomas.
Sr. Thomas, que diz? - Douglass Dilman, Presidente dos Estados Unidos, é ou não culpado de crimes capitais, como acusado pelos artigos?
Culpado!
Sr. Van Horn, que diz? - Douglass Dilman, Presidente dos Estados Unidos, é ou não culpado de...
Não culpado.
O espírito de Abrahams registou: sessenta e seis «culpado» e trinta e três «não culpado». Era preciso um voto para coordenar Dilman e era preciso um voto para o absolver. E só restava um voto e um votante.
- Sr. Watson - chamou o escrivão-mor.
Abrahams observou o velho levantar-se lentamente, com a bengala na mão, observou a sua cabeça branca e o seu rosto enrugado e fleumático.
O juiz Johnstone hesitou, avaliando talvez o peso que a sua pergunta colocaria sobre os ombros curvados do velho senado.
- Sr. Senador Watson, que diz? - Douglass Dilman, Presidente dos Estados Unidos, é ou não culpado de crimes capitais, como acusado pelos artigos?
O senador Hoyt Watson não respondeu. Pareceu decorrer uma eternidade enquanto ele permanecia de pé, a bengala na mão, os olhos fixos na secretária.
Abrahams tornou a ouvir a voz sombria de Watson na noite anterior, no Escritório Oval, dizendo a Dilman:
«Não posso julgar agora a seu favor apenas por saber que a minha filha se rebaixou e que a Câmara se enganou... Amanhã deverei julgá-lo pelos seus próprios méritos... se agiu como um presidente americano ou como um presidente negro.»
Abrahams tornou a ouvir tudo isso. Depois perguntou a si próprio o que ouviria o senador Watson nesse momento. Ouviria ele os milhares de pessoas de Baraza e de todas as cidades democráticas da África, dando vivas à bandeira americana? Ouviria ele os seus queridos antepassados, bons coronéis com bons escravos, e os milhares de habitantes do seu estado, que o mantinham no Senado havia vinte e quatro anos, que tinham feito dele o branco e claro escudo da sua pureza e segurança contra os ignorantes niggers que tentavam amea-çar-lhes as acomodações, a educação e a prosperidade?
Que ouviria o senador Hoyt Watson durante esses longos segundos, enquanto o Senado, a Câmara, a Casa Branca, o Sul, os Estados Unidos, todo o mundo, esperavam?
O juiz Johnstone, de pé em frente da sua cadeira de espaldar, inclinou-se para a frente, como se quisesse acordar um velho da sua meditação, e repetiu:
Sr. Watson, que diz? - O Presidente é ou não culpado, como acusado pelos artigos?
Sr. Juiz, voto que o Presidente não é culpado de qualquer crime ou delito capital.
Nat Abrahams deixou-se cair para trás na cadeira, petrificado.
As galerias, os senadores, os deputados, permaneceram sentados, mudos, como se um maço gigante tivesse caído ao mesmo tempo em cima de todas as suas cabeças.
Uma meia dúzia, depois uma dúzia de senadores, à frente dos quais Hankins, deixaram os seus lugares e rodearam Hoyt Watson, agitando iradamente as cabeças e os braços, enquanto Watson permanecia de pé no meio deles, como uma estátua de pedra, apertando a bengala na mão e escutando.
Vinda de cima, quase indistinta, Nat Abrahams ouviu a voz do juiz Johnstone entoar:
- Sessenta e seis senadores votaram «culpado» e trinta e quatro senadores votaram «não culpado». Como dois terços não votaram «culpado», o presidente é consequentemente considerado absolvido».
Depois gritou:
- O Senado, reunido como tribunal de acusação, para o julgamento de Douglass Dilman, segundo os artigos de acusação apresentados pela Câmara dos Deputados, fica adiado sine diel O presidente fica absolvido dos quatro artigos!
Ninguém, com excepção de Abrahams, ouvia o juiz supremo, e mesmo Abrahams foi com dificuldade que ouviu as últimas frases, pois Tuttle, Hart e Priest tinham-se precipitado sobre ele, abraçando-o, dando-lhe palmadas, sufocando-o, e viu-se rodeado por senadores e correspondentes da imprensa que lhe apertavam a mão.
Toda a Sala do Senado se tinha transformado numa confusão ruidosa, num carnaval de gritos, de vivas, de risos de celebração que abafavam os poucos gritos de protesto.
Abrahams tentou desesperadamente alcançar o senador Watson para lhe agradecer, mas foi-lhe impossível. Watson fora cercado por uma muralha intransponível de repórteres. Abrahams ouviu alguém gritar:
- Senador Watson, o que o levou a votar «não culpado»? Watson, surpreendido por toda aquela atenção, replicou firme mente:
- Duas razões: duas. Em primeiro lugar porque, como Edmundo Ross, o senador que lançou o voto decisivo no julgamento de Johnson, cheguei à conclusão de que o ramo executivo do governo estava em julgamento e que, se o seu ocupante fosse demitido por tão débeis provas políticas, a nossa Nação não seria mais uma democracia, mas o que Ross chamou «uma autocracia de partidos congressistas». Em segundo lugar porque cheguei à conclusão, mesmo antes de o Presidente Dilman ter provado o seu patriotismo e inteligência ao salvar-nos Baraza e a África, que, se eu pudesse deixar de o julgar como um negro e o julgasse apenas como um ser humano meu compatriota, poderia então julgar os seus verdadeiros méritos como presidente. Julguei Douglass Dilman como homem, e achei-o digno da presidência. Vindo aqui, levantando-me para votar, compreendi perfeitamente que a única coisa de que verdadeiramente o culpavam era da sua pele ser acidentalmente preta. Portanto votei «não culpado» e sinto-me orgulhoso de o ter feito, e tenho esperanças que cada um de vós se sinta igualmente orgulhoso de si próprio. Porque o Presidente Dilman mostrou-nos que era um homem – e talvez agora a Nação lhe tenha mostrado, a ele e a todo o mundo, que também ela alcançou a maturidade.
Nat Abrahams sentiu uns braços macios rodearem-lhe o pescoço, e ali estava Sue, rindo por entre as lágrimas, abraçando-o e bei-jando-o vezes sem conta.
Então ele segurou-a bem contra si e conduziu-a por entre a ruidosa multidão em direcção à saída.
Vamos, Sue, quero ir já à Casa Branca e dizer-lhe...
Oh, querido, mas ele sabe, ele sabe... Abrahams sorriu.
- Ele sabe que foi absolvido dos quatro artigos, mas o que eu lhe quero dizer é que ele foi absolvido dos cinco.
A neve começara a cair na véspera de Ano Novo e caíra durante toda a noite, e agora, naquela límpida e fresca manhã, a cidade estava toda coberta com um lençol branco.
Da janela do centro da Sala Oval Amarela, no segundo andar da Casa Branca, o Presidente Dilman observava o relvado sul e a varanda de Truman, ambos envoltos numa espessa camada branca.
Depois a sua atenção foi de novo atraída pela actividade festiva na Sala. A dúzia de amigos que Dilman particularmente convidara para virem ver, nessa manhã, a parada das Rosas de Pasadena, na Califórnia, e depois os jogos de baseball em Bocol, enchiam os sofás e as cadeiras colocadas em frente da gigantesca televisão, instalada em frente do fogão de sala.
Sentindo uma onda de ternura invadir-lhe o coração, Dilman observou os filhos indo de umas pessoas para as outras através da sala. Julian segurava nas taças em que Beecher deitava as bebidas e ia-as servindo às várias pessoas. A Mindy estava atarefadamente ocupada a ajudar Crystal a transferir sanduíches de um tabuleiro para um prato.
Dilman sentia-se feliz ao pensar que o filho, recentemente menos antagónico em relação à Universidade de Trafford e ao mundo em geral, melhorara nos estudos e tomara mais interesse neles, como se finalmente tivesse chegado à conclusão de que a educação podia ser a melhor arma contra a discriminação racial.
Dilman sentia-se igualmente feliz a observar o delicado perfil e figura da filha e a seguir os seus graciosos e leves movimentos. Nessa manhã ela apresentava-se alegre e despreocupada, mas ele não se deixava iludir por isso. Já sabia que a Mindy não estava sempre assim, pois o seu temperamento era de extremos e dado à apatia, à confusão de espírito e à melancolia. O eminente psiquiatra que ela consultara prometera a Dilman que um dia ela ficaria melhor, mas tal optimismo não o convencera totalmente. Perguntara então a si próprio - e tornava-o agora a perguntar: Uma vez que se foi já branco, como se pode voltar a ser preto? A Mindy não era apenas a sua filha. Era também a filha de Aldora.
Estes pensamentos eram demasiado perturbadores para o primeiro dia do Novo Ano, e Dilman voltou a sua atenção para os outros ocupantes da Sala Oval Amarela. Lá estava Otto Beggs, capaz de cruzar a sua perna sã sobre a outra, mas incapaz de esconder por completo a dor que isso lhe causava, juntamente com a mulher e os dois filhos. Junto dele estava Ted Stover, com a mulher e a filha já crescida, o espírito obviamente ocupado por coisas bem diferentes da parada de Pasadena. Havia dez dias, o Senado tinha aprovado relutantemente a nomeação de Stover como ministro de Estado. Depois, confortavelmente recostado num sofá, encontrava-se o general Leo Jaskowick, substituto de Talley como assistente especial do presidente, fumando um charuto e divertindo-se a fazer anéis com o fumo. Finalmente lá estava Wanda, tão deliciosamente calma, com os olhos atentos fixos no ecrã enquanto ia bebendo o seu sumo de frutas.
Dilman não dera ainda a Wanda o seu presente de Natal, pois este só chegara no dia anterior. Tinha-o guardado para lho entregar nessa noite, durante o pequeno jantar íntimo. - Supunha que ela não ficaria espantada com ele. Embora Sue Abrahams - que o ajudara na escolha final - tivesse insistido em disfarçar o anel de noivado meten-do-o numa caixa gigantesca, Wanda não ficaria espantada. Mas ficaria contente, esperava ele, tão contente como ele próprio, e por mais que uma razão.
Ele aguardara impacientemente o jantar familiar dessa noite. Nessa altura já teriam acabado todas as festividades, os jogos, as resoluções. Havia apenas a calma e franca camaradagem, com Wanda e ele próprio a presidirem, na companhia do juiz e da esposa, do almirante Oates e da irmã, dos Stover, dos Tuttle e - quase que se esquecera já - de Edna Foster e de Tim Flannery, se estes conseguissem acabar o trabalho a tempo.
Depois os olhos de Dilman pousaram em Sue e Nat Abrahams, sentados lado a lado no sofá, com os três miúdos aos pés, e a única pena era que eles não pudessem ficar para o jantar dessa noite. Mas Dilman sabia que, por sua culpa, Nat já se demorara de mais. Nas semanas a seguir ao julgamento, e depois durante o Natal, Nat continuara em Washington e oferecera-se para ajudar Dilman a compor a versão radicalmente revista do Programa de Reabilitação das Minorias, uma versão que não só dava a igualdade aos negros e outras minorias no campo económico, mas também no da educação, acomodações e votação. Essa versão revista estava preparada e pronta para ser introduzida pelos seus partidários no Congresso. E agora, finalmente, Nat Abrahams estava livre para regressar a casa, a Chicago, e passar o fim-de-semana com os parentes de Sue e regressar ao escritório que o seu sócio, Félix Hart, estivera a dirigir sozinho.
Ao reparar no espesso jornal da manhã em cima de um sofá, Dilman lembrou-se de outras pessoas que não se encontravam ali mas que tinham feito igualmente parte da sua vida nos últimos meses. Arthur Eaton estava a ser lançado como o candidato do partido para as próximas eleições presidenciais. Para surpresa de muitos, o governador Talley estava também como candidato dessas eleições, e, para surpresa de um número mais restrito, o mesmo sucedia com o senador Hoyt Watson. No Sul, o deputado Zeke Miller, aproveitan-do-se da fama que ganhara no julgamento, tentava arranjar apoio para a sua ideia de um terceiro partido político. Lera também nos jornais que Miss Sally Watson estava a passar umas férias na Suíça, mas Dilman sabia que tais férias seriam uma longa estada numa famosa clínica de doenças mentais em Zurique. Na secção bibliográfica, vira anunciado que a biografia do presidente, da autoria de Leroy Poole, estava pronta e que seria publicada na Primavera. Mas Dilman sabia que Poole terminara rapidamente o livro para arranjar dinheiro para, com a ajuda da Sr§ Gladys Hurley, começar a trabalhar numa bibliografia de protesto de Jefferson Hurley.
Subitamente, olhando para o relógio que estava em cima do fogão de sala, Dilman viu que era muito tarde. Feriado ou não, metade do pessoal estava sentado às secretárias do andar de baixo, e Dilman sabia que tinha também à sua frente pelo menos umas quatro ou cinco horas de trabalho.
Foi até ao sofá em que Nat Abrahams estava sentado e tocou--Ihe no ombro. Abrahams levantou-se imediatamente.
- Bem, Nat - disse Dilman -, tenho de ir lá para baixo, para as galés e começar a remar. Temo que seja adeus até qualquer altura do próximo ano...
- Importas-te que te acompanhe até ao teu escritório, Doug? Vestiram ambos os seus respectivos sobretudos, saíram para o Vestíbulo Oeste e dirigiram-se para o elevador.
Nat - disse Dilman -, somos velhos amigos e sabes quão mau sou em exprimir os meus sentimentos mais profundos. Já te tentei dizer, à minha maneira, quanto te agradeço o que fizeste por mim. Não sei o que teria acontecido sem ti.
Não teria acontecido nada de diferente.
Acho que não é assim. Nenhum outro advogado no mundo me teria compreendido tão bem, ao ponto de perceber a verdadeira e real acusação e de ser capaz de inventar e de lhes lançar aquele Artigo V De qualquer modo, Nat, o que deves saber, antes de te ires embora, é que eu tenho bem consciência do sacrifício que fizeste...
Oh, já chega, Doug! As auréolas não me ficam bem. Que sacrifício, pergunto-te eu? Três anos infelizes, cheios de remorsos, naquela desumana corporação? Graças a Deus, Doug, que me salvaste desses anos perdidos. Doug, tu devolveste-mos. Eu é que te devo estar agradecido pelo que me deste.
Chegaram ao elevador e esperaram.
- Sabes bem o que eu quero dizer, Nat - disse Dilman. – Talvez não tenhas perdido esses três anos, mas perdeste a quinta, a segurança adicional, o apoio financeiro, e tudo isso por causa de mim.
Entraram no elevador e foram para baixo.
- Escuta o que te digo - disse Abrahams. - Eu não perdi nada, mesmo nada. Quintas? Há centenas delas, espalhadas por toda a parte, e sempre as haverá, e até talvez melhores. Em vez de ter a minha daqui a três anos, tê-la-ei daqui a cinco ou seis anos. Doug, nem imaginas a quantidade de telefonemas que já recebi desde o julgamento. Não só de corporações, mas também de sindicatos de trabalho e de firmas de leis de Manhattan. Algumas delas até parecem melhores e menos corruptas que as Águias. Algum dia talvez aceite alguma delas, se conseguir achar uma que seja tão suficientemente limpa como lucrativa. Desta vez não há pressa. Podes ver por tanto, Doug, que o que pensas que fiz por ti beneficiou-me igualmente a mim. E ainda fez algo mais, além disso.
Sorriu envergonhado antes de sair do elevador.
- Pôs-me nos livros de história, como apêndice ao teu mandato. Os filhos dos meus filhos lá lerão o meu nome. Ora diz-me lá a que outro judeu já sucedeu uma coisa destas? Não me agradeças, Doug. Deixa-me agradecer a ti.
Uma vez no corredor do rés-do-chão, com dois agentes do Serviço Secreto a alguns passos atrás deles, Nat Abrahams tornou a falar.
E acerca do teu futuro, Doug?
Não me permito pensar nele - disse Dilman. - Acordo, trabalho e vou-me deitar. Estou a tentar viver o dia-a-dia. É uma grande tarefa, uma grande, estranha e nova tarefa para alguém que só recentemente descobriu que tem o direito de agir como um homem e não apenas como um homem de cor. É como se voltasse a nascer, com um novo espírito, umas novas pernas, um novo sistema nervoso, um novo aspecto. Temos de nos habituar a isso tudo antes de podermos usar toda essa saúde e energia.
Compreendo - disse Abrahams.
À saída do rés-do-chão Abrahams parou.
- Aconteça o que acontecer, Doug, penso que daqui em diante será melhor para ti.
Meteu a mão na algibeira e tirou dela um recorte de um jornal.
Leste isto no jornal da manhã?
O que é isso?
A última lista de votantes da opinião pública acerca de ti. Escuta.
Consultou o artigo.
- Quando entraste para o cargo, vinte e quatro por cento das pessoas eram a teu favor, sessenta e um por cento contra ti, e quinze por cento indecisas. Hoje, passados quatro meses - cá está -, trinta e três por cento das pessoas são a teu favor, vinte e oito por cento contra ti, e trinta e novo por cento indecisas.
Tornou a meter o papel na algibeira.
- O importante, agora, Doug, é que em vez da grande percentagem das pessoas estar contra ti, está na categoria dos indecisos; deixaram para trás as atitudes de fortes ressentimentos para se aproximarem de ti, dizendo: «Está bem - talvez - esperemos e vejamos - mostrem-nos.» Compreendes o que isso significa, Doug?
Dilman não respondeu. Tinham-lhes aberto a porta que dava para o jardim, e Dilman saiu, seguido de Abrahams, para o ar frio e picante da manhã.
Dilman continuou a caminhar em silêncio, mergulhado nos seus pensamentos, e por fim olhou para o amigo.
- É estranho, Nat, que, sempre que nos sentimos seguros acerca do futuro, nos refugiamos no passado. Lembrei-me agora de uma estrofe que costumávamos cantar quando eu tinha uns sete ou oito anos. Queres ouvi-la?
Abrahams fez que sim com a cabeça.
Dilman hesitou e depois recitou:
Ef I wuz de President Of dese United States l'd live onlasses candy An' swing on ali de gates!'
Abanou a cabeça.
- O nosso sonho do Paraíso. E nem percebíamos que não existem bombons nem portões para nos baloiçarmos.
Ou não percebíamos que afinal não era um sonho. Dilman fixou os olhos no amigo.
Não era um sonho?... Estou a ver. É verdade, não é?
«Se eu fosse presidente.» Tu és o Presidente. Penso que é alguma coisa.
Sim, suponho que sim.
Tu cresceste, Doug, e todos à tua volta cresceram também, todo o país atingiu a maioridade - disse Abrahams. - O povo americano aprendeu finalmente o que um grande editor do Kansas lhe tentou ensinar há muitos anos atrás: «A liberdade é a única coisa que se não pode ter, a não ser que se esteja pronto a dá-la aos outros.»
Achas que aprendeu mesmo, Nat?
Parece-me que sim - disse Abrahams.
1 Se eu fosse o Presidente
Destes Estados Unidos
Só comeria bombons
E baloiçar-me-ia em todos os portões!
Tinham chegado às portas de vidro do Escritório Oval. Pararam frente a frente. Abrahams tornou a falar.
- O país talvez não se sinta hoje à vontade, mas já não se sente envergonhado ou com medo de ti - ou dele próprio. O país aprendeu a viver contigo, Doug, portanto agora, finalmente, pode viver consigo próprio. Possui hoje uma melhor consciência. Sente que agiu justamente. E isso é um sentimento extremamente agradável, Doug... E foi um grande passo, o maior que este país deu desde a proclamação da emancipação. O Sr. Lincoln tinha umas pernas bem compridas, mas agora, pela primeira vez, houve inúmeros homens, com pernas igualmente compridas, que deram o passo seguinte, um passo gigante. Como resultado, o país está mais perto de se transformar numa nação do que nunca... e quando chegar essa altura, quando se transformar numa nação, talvez esteja pronto para ajudar o nosso mundo a transformar-se num único mundo... Nenhum de nós tornará a ser outra vez o que era - nem tu - nem eu - nem ninguém. Graças a Deus.
Abriu-se uma das portas de vidro e surgiu Edna Foster. Quando os viu, a expressão preocupada do seu rosto deu lugar a uma expressão de alívio.
-Ah, até que enfim, Sr. Presidente. Tenho-o procurado por todo o lado - disse ela. - Há várias mensagens... emergências... que...
- Vou imediatamente, Miss Foster - disse Dilman e depois tornou a voltar-se para o amigo.
Nat Abrahams sorria.
Penso que pertences lá dentro. Estendeu-lhe a mão.
Boa sorte e um Feliz Ano Novo, Sr. Presidente. Douglass Dilman apertou a mão de Abrahams com força.
Boa sorte e um Feliz Ano Novo para ti, Nat.
Dilman aguardou uns segundos à porta, observando Abrahams a afastar-se, e depois, sentindo-se confiante e resoluto, sentindo-se bem, entrou no Escritório Oval para começar o trabalho desse dia.
Irving Wallace
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