Biblio "SEBO"
E, nesses dias relembrando a vida, me veio à memória um acontecido de muitos anos atrás. Acontecido de quando eu tinha lá meus vinte e poucos anos, era menino jovem, confiante na vida, e com a vitalidade de uma formiga no verão. Hoje me encontro quase na casa dos oitenta, com a melancolia de um bicho preguiça e a desilusão de um cão abandonado. É triste a vida, mas é vida. Vou andando pro acontecido, antes que me esqueça, e enfim, não acaba acontecendo nada. Naquele tempo eu já pensava ser homem do saber. Estudava filosofia já há uns dois anos, e acreditava que conseguiria colocar em prática meus pensamentos e sonhos de vida. Apesar da consciência de ser um ser de sabedoria, um homo sabius, eu agia em demasiadas vezes como se não o fosse. E por isso, nesta certa ocasião da minha vida eu trabalhava em um asilo. Há alguns anos atrás cometi um pequeno delito para com a sociedade. E minha punição foi prestar trabalhos comunitários a alguma entidade filantrópica, como forma de quitar minha divida com o sistema social. Meu trabalho no asilo, consistia na manutenção básica do ambiente. Meus afazeres variavam em varrer a área de lazer dos moradores e molhar as plantas dos jardins, essas únicas atividades eram repetidas todos os sábados em que eu comparecia na instituição. Quando não tinha nada o que fazer, o que acontecia com regularidade, eu me prostrava a ouvir os velhos conversando. Eles conversavam de tudo. Alguns mais sábios, apenas ouviam, outros ainda por aprender tal sabedoria, disseminavam a todos suas verdades incontestáveis. Em um sábado qualquer, me encontro a conversar com os meus botões, quando ouço um dos velhos rogar em altos brados: — É indiscutível que andar de costas é o melhor ponto de vista existente! Como num estalo, minha mente demonstrou um insonte interesse. Pus-me na direção de onde havia partido a objeção. E me deparei com três pessoas. Dois estavam sentados em uma muretinha de concreto. E o outro permanecia de pé mastigando algum alimento imaginário, que creio eu, só os velhos tateiam com o paladar, assim como no episódio do chaves, só os inteligentes viam a roupa do rei. Entre os dois sentados, se sentia facilmente uma áurea competitiva. E até o exato momento, não sabia qual dos dois havia pronunciado o curioso achado. Até, que em um determinado instante, o da direita com um semblante de quem estava com uma bomba atômica guardada dentro de si, vocifera mais uma vez: —Eu também não esperava que você entendesse, pois uma idéia como essa, só uma mente de verdade consegue entender. O que não é o seu caso evidentemente. Pela voz pude perceber que era o mesmo que havia bradado anteriormente. O velho da esquerda permaneceu com o rosto pouco satisfeito. Com aquele ar de vontade de revide. Mas, por não sei qual motivo decidiu permanecer quieto. Sem me agüentar de curiosidade, perguntei ao que estava em pé, qual era a história anterior dos dois sentados na muretinha. E com os olhos calmos e fitos nos meus de uma maneira doce e acolhedora, respondeu calmamente: — Não sou muito de falar, mas vou ensinar o sinhô menino, pois parece ser de espiritualidade. Fiz um aceno com a cabeça, e dei um leve sorriso. Meio pasmo, e achando aquilo tudo muito engraçado. E assim ele começou: — O moço da direita, chama-se Jonas Sartin. Sua vida antes de vir pra cá era só trabalhar. Era vendedor, e por isso tinha de se ausentar longas semanas em busca de clientes para os seus produtos. Tinha dois filhos que amava de paixão, e que eram o combustível de sua vida. Trabalhava de forma árdua para dar conforto e formação adequada aos filhos. E assim foi, educaram-se nos melhores colégios da metrópole, e por fim formaram-se em cursos de grande respeito social: medicina e direito. Ao acabar os estudos, permaneceram já, nas cidades metropolitanas onde haviam se formado. Garantindo melhor remuneração e qualidade de vida. Jonas, permaneceu morando com sua esposa após se aposentar. Dois anos depois de sua aposentadoria, sua esposa veio a falecer, deixando-o completamente solitário. As visitas dos seus filhos eram raras, pois moravam longe, e por fim, já haviam se acostumado à ausência do pai, que para eles existiu desde sempre. Para que não definhasse o resto da vida a conversar com as cadeiras, veio deliberadamente para o asilo. Tudo o que ele tem é lembranças, e foi nesse mesmo lugar que ele fortificou a sensatez. Pensei o quão impressionante foi à análise daquele velho, não que tenha sido complexa. Parecia complexa sim, mas para a figura que ele apresentava. E sem hesitar, pedi então que me descrevesse a história do outro. — O que tá sentado do lado esquerdo, com aquela cara de quem lambeu limão é o Érico Candesco, a história dele é mais bonita, todavia, bastante curta de se contar. E dizem mesmo: que “o que é bom dura pouco”. Será que dura pouco ou percebemos pouco? Tá, tá, vamos lá. Ele se apaixonou pela sua futura esposa desde os oito anos de idade, quando sua família mudou para uma outra localidade, e por malabarismo a vida apresentou-lhe sua mulher. Passaram a infância sempre juntos. E o que na infância era amizade, na adolescência virou amor. Os dois casaram-se muito novos. Érico tinha por volta de vinte e dois anos e ela um ano mais nova, tinha vinte e um anos. Os dias foram sempre felizes. Aquela estória verdadeiramente de cinema, com carteirinha e tudo mais. O problema é que a vida é um malabarismo constante. Mesmo que por vezes a vida pare por algum tempo em uma determinada condição, não tarda uma revolução inevitável no destino. E sendo assim, sua mulher veio a falecer. Ele se abateu, mas rapidamente se recompôs. E chegou a conclusão da simples lógica da vida: Que deveria dar continuidade a sua jornada, ao seu futuro e a sua existência. Mesmo que tivesse perdido o que para ele era o bem mais precioso. Procurou em si mesmo e no mundo uma mudança. Viu que uma mudança no que aconteceu era improvável e surreal. Logicamente se deu conta de que só tinha o futuro e nada mais. Pensei comigo mesmo: esse cara com esse mascar frenético, qual seja sua história, deve ser extraordinária. E logo dei-me a pensar sobre este pequeno fato miúdo. De não dar valor às vivencias de cada pessoa. E observar que no fim das coisas da vida, somos o que o mar faz com os rochedos, quando os deforma depois de décadas de contato ininterrupto. A vida passa por nós, e no mesmo momento nos molda a sua força e intensidade. Porque somos diferentes? Porque os mares são vencidos com os remos da subjetividade, cada pessoa controla o mar que existe em si. Fiquei feliz com a descoberta. E ao buscar mais coisas no pensamento, tudo se interrompe por mais uma objeção de Jonas: — Você deve ter vivido a vida em vão, perambulando pelas ruas, sempre ocioso. Sem se prestar ao aprendizado que é a família e o trabalho. Sem hesitar sequer um segundo, Érico, levanta com os olhos em chamas. Aponta o dedo no rosto de Jonas, e diz que ele não o conhece pra opinar sobre a sua vida. E completa falando, que só um doido não poderia ver que a melhor forma de andar é de frente. Antes que os ânimos se exaltassem ainda mais, interrompi-os e fiz uma singela proposta, para que se pudesse encerrar o assunto: Faríamos um pequeno debate onde, cada um apresentaria um ponto que considera positivo na tese defendida. E o juiz seria o velho em pé, que pra mim já demonstrou bagagem pra decidir quem sai vitorioso da retórica. Os dois se entreolharam, e no mesmo momento, e quase como em um coral, concordaram dizendo: — Pois Bem. Comuniquei-lhes que a primeira etapa do debate seria estabelecer quem iria começar impondo sua objeção, e o segundo entraria com a defesa. De uma maneira ou de outra, todos iriam expor o que pensavam. Peguei uma moeda no bolso, e cada participante escolheu seu lado. Moeda pro alto e... O ganhador foi o Jonas. Fiz um gesto com a mão, concedendo-lhe a vez e a palavra, e respondendo o aceno disse: — Logo se vê que a razão me pertence. Pois até a sorte ao meu lado fica. Digo a você que andar de costas, é um ponto de vista totalmente diferente. Na contemporaneidade todas as pessoas vêem sempre da mesma maneira, sem se dar o luxo e a sabedoria de buscar novos horizontes para a visão. Você só vai ser diferente se realmente enxergar o mundo de maneira diferente. Posso dizer que sou superior a você, pois conheço a vida por um ângulo que você mal sabe dizer como é. Agora o Érico, tem a vez: — Meu caro amigo. O que acabastes de dizer é desconcertante, para não dizer sem fundo algum. É um saco de tomates furado. Basta levantar o saco por um momento, e todo conteúdo se esvai. Pontos de vista podem ser diferentes, mas jamais superiores uns aos outros. Podes ver o mundo na direção que desejar, mas jamais pode dizer que a sua direção é a certa. Honestamente, o seu ponto de vista é diferente, e isto lhe dá algum crédito. Mas, superior não. Ao fim os dois olharam com os olhos fixos no velho em pé, esperando o veredito. — A fala dos dois tem sentido, por enquanto fica empatado. Érico se exalta no presente instante, alegando que o velho em pé se decida logo, que em casos extremos e de vida ou morte como este não tem empate. Concordando com ele, se levanta também Jonas, esperando impaciente uma resposta. Intervenho — pedindo calma a todos, e que não exerçam pressão sob a decisão. Percebo, que ambos ficam insatisfeitos, mas concordam aos cochichos consigo mesmo. Controlada a situação, liberei mais uma vez o Jonas para a próxima indagação. — Empate não é derrota, tampouco vitória. Nessa você pode ter escapado. Mas agora me diga se andar de costas não faz todo o sentido, quando digo que quem anda de costas não vê as realidades se aproximarem levemente, por isso não premedita, não espera e não sofre com o não acontecido. A pessoa que anda de costas vê o mundo entrar a sua visão abruptamente, no exato momento que se passa por ele, evitando assim a ansiedade do que está por vir. E essa é uma das doenças da contemporaneidade, não é? Pessoas vivem angustiadas em sua existência, pensando sempre no porvir e esquecendo-se do que se passa no presente momento. Tem a palavra o Érico. — Preciso nem pensar direito pra responder-lhe a altura. Digo que melhor mesmo é ver as coisas levemente vindo em sua direção, e com sabedoria não temê-las, mas sim planejá-las. Por isso andamos de frente, temos de ver o mundo antes que ele aconteça. O melhor jeito de viver o presente é almejando o futuro. Porque mais viveríamos o presente, senão para o futuro? O que mais somos senão sempre o nosso próprio futuro? Mais uma vez ao terminar a resposta do Érico, olharam para o velho em pé esperando uma resposta, e eis o que esse diz após uma pausa: — Concordo com perspectivas de ambas as partes, e em nome da verdade digo que mais uma vez estão empatados. Inconformado Jonas retruca: — Deixe de besteira homem. Você está empatando a nossa vida, isso sim. Ou tem certo ou tem errado. Decida-se. Érico, complementa: — Dê um veredito pra que isso se encerre logo de uma vez. Vá! Que tipo de juiz é você, se não sabes opinar? Os juízes não foram feitos para serem deuses na terra? Interrompendo as reclamações, digo que para que o velho em pé possa ser o juiz, há de existir a condição de que não sofra nenhuma pressão quanto a sua resposta. Um juiz sem liberdade, não pode fazer exercer a liberdade. —Todos de acordo? Quando assim for, reiniciaremos o debate. Após alguns instantes e resmungos, dou-me por satisfeito com o silêncio, e o interpreto como um acordo ao prosseguir do debate. Jonas, pode recomeçar. — É sempre ele que vai começar? — Ah, meu filho, esse daí sabe que está perdendo, mesmo o juiz dando o empate. — Falou certo, quem sabe aqui sou eu. Você não. — Jovem, de a palavra pra ele, antes que ele sofra de incontinência urinária. — Ahhhh, seu osteoporótico filho da p... — Interrompendo, — então Érico começa, e assim fica tudo acabado. De acordo? E nesse mesmo momento que interrompo os dois, os barulhos e resmungos continuam. Quando olho pros lados, vejo praticamente o asilo inteiro bradando em torno dos dois e da discussão. Pra uma tarde ensolarada, dessas de amolecer até animo de cachorro, e na falta de tudo o mais o que fazer, o debate chamou a atenção e a satisfação dos membros dessa comunidade. Perpassei o olhar pela platéia à volta e percebi que eles estavam muito mais instigados por uma resposta do que propriamente eu e os participantes primeiros da estória. — Pessoal afastem-se um pouco para que possa dar espaço aos pensamentos do Jonas, de Érico, e do velho em pé que é o juiz. Vi, que poderia ser até advertido por aquela explosão que causei promovendo tal debate. As pessoas se afastavam o mínimo possível, e alguns com a audição já um pouco avariada, queriam ficar o mais próximo possível para que não pudessem perder um detalhe. Preferi de uma forma ou de outra terminar o acontecido, para que todos pudessem voltar aos seus marasmos cotidianos. — Irá ser feita a última rodada de um argumento e um contra-argumento. Quem for escolhido pelo juiz ganhará o debate, e, por conseguinte a razão. Pode ser? E ao finalizar a pergunta, ouço gritos, e dentre os velhos até assobios quase juvenis de toda a platéia ferrenha. Tenho de começar logo, se quero um fim. — Tem o primeiro argumento então Érico, e em seguida Jonas apresenta seu contra argumento e finalizamos. Dê inicio... — Essa é pra realmente finalizar: As coisas que passam pela pessoa que anda de frente, ficam todas para trás na vida. Como realmente deve ser. Ou o senhor afirma que devemos viver o passado, que é algo que já não existe mais? Exatamente por isso ando de frente. Pois o que está à frente pode ser, o que já passou não será jamais. O que você me diz disso? (Os gritos aumentam cada vez mais... a platéia espera uma resposta) — Eu já penso exatamente da forma contrária. Ando de costas, pois tudo que por mim passa, pode sempre ficar a minha visão, posso vê-la muitas vezes mais antes que suma por completo, diferente de quando ando da maneira habitual, quando passo pelas coisas, no exato momento elas ficam pra trás. Tenho assim o poder de relembrar e reviver com facilidade o que por mim passou. Fitei o velho em pé, e vi em seu olhar uma primeira expressão de insegurança. (A movimentação dos pés e as mãos da platéia já fazia um enorme burburinho. Com gritos perdidos no meio pedindo uma resposta. Alguns com frontes impacientes, outros sarcásticos... Mas todos decididos a obter uma resposta.) Sem muita graça, o velho em pé da inicio: — Não sei quanto isso tudo é dramático na vida de cada um de vocês. Mas, como na vida, sendo ruim ou não a resposta que tenho, pretendo sempre aceita-la. Não tem outra saída nesta vida. Nunca conseguiria dormir uma noite sequer, se pensasse por um momento que não fui honesto com ambos os discursos. Temo, e podem acreditar que temo mesmo dizer, que aos meus olhos não tem como não ser outra coisa a não ser empate. Jonas, e Érico se levantam, e perguntam de uma só vez: — Empate de novo? Os velhos ao redor gritam roucamente junto com eles, “empate de novo?” Mais ou menos em vão peço para que se acalmem e façam silencio. Que a culpa não é do juiz. Só realmente aconteceu um empate. As coisas como que de repente saíram totalmente do controle. Os idosos enfurecidos empurram uns aos outros com uma insatisfação que beira a tragédia. Um dos idosos toma a iniciativa e começa a espancar o velho em pé dizendo a todos que a culpa é dele. Que ele quer mesmo é empatar a vida de todos. Os gritos não param.... — Safado, sem vergonha! — Empatão da vida alheia! Vendo a agressão ao velho em pé, sem que esse não tente qualquer reciprocidade, tento dispersa-la, quando de repente algo bate-me na cabeça, sinto tudo rodando e sem forças pra reagir. Levanto, e vejo que o pior aconteceu... Ele já estava morto igual a Jesus Cristo, sem reclamar a morte, bem consigo mesmo, e mal com os homens. Nem sempre o mutismo do sábio vence a ação do ignorante.
Higor Camargo Silva
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