Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O HOMEM QUE ERA QUINTA FEIRA / G. K. Chesterton
O HOMEM QUE ERA QUINTA FEIRA / G. K. Chesterton

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

O bairro de Saffron Park ficava a poente nos arredores de Londres, tão vermelho e esfarrapado como uma nuvem do poente. Fora construído todo ele de um tijolo de cor viva, formando uma silhueta fantástica e um plano um tanto extravagante. Resultara do impulso de um especulador imobiliário, com vagas ambições artísticas, que chamava à sua obra arquitectónica, às vezes, «isabelina» e, às vezes, «Rainha Ana», aparentemente movido pela impressão de que as duas soberanas eram idênticas. O bairro era considerado com certa justiça uma colónia de artistas, embora nunca nele tivesse sido produzida arte em qualquer acepção habitual da palavra. No entanto, apesar de as suas pretensões a centro intelectual serem um tanto vagas, as suas pretensões a constituir um lugar agradável eram indiscutivelmente justificadas. O estranho que via pela primeira vez aquelas pitorescas casas vermelhas não podia deixar de pensar que teriam de ser habitadas por pessoas extremamente curiosas. E, nessa medida, não se sentiria decepcionado ao deparar com os seus moradores. O lugar era não só agradável, mas também perfeito, sobretudo para quem fosse capaz de o ter por um sonho, em vez de um logro. Ainda que os moradores não fossem «artistas», o bairro, no seu conjunto, era sem dúvida artístico. Este jovem com o seu ruivo cabelo comprido e o seu rosto descarado - este jovem não era realmente um poeta, mas era com certeza um poema. Este velho cavalheiro com a sua descuidada barba branca e o seu chapéu branco descuidado - este venerável charlatão não era realmente um filósofo, mas era pelo menos ocasião de filosofia para os outros. Este cavalheiro que parecia um cientista, com a sua cabeça calva em forma de ovo e o seu pescoço de pássaro, não tinha de facto o direito a fazer-se passar por cientista. Em biologia não descobrira nada de novo, mas que criatura biológica seria capaz de descobrir outro ser tão singular como ele próprio? Tal era a maneira, a única maneira, de conceber adequadamente o bairro no seu todo. Teria de ser considerado não tanto como uma oficina de artistas, mas antes como uma frágil, se bem que consumada obra de arte. Aquele que entrasse na atmosfera da sua sociedade sentir-se-ia como se tivesse entrado numa peça de teatro.

.
.
.

.
.
.

A força de atracção desta irrealidade era especialmente sensível ao anoitecer, quando os telhados extravagantes se recortavam obscuramente no fulgor do sol já posto e toda aquela espécie de aldeia insensata parecia tão isolada como uma nuvem errante. Era uma impressão que se tornava mais forte por altura das numerosas noites festivas locais, quando os pequenos jardins se iluminavam e grandes lanternas chinesas se acendiam nas árvores baixas como monstruosos frutos bravos. E tornou-se mais forte do que nunca numa certa noite em particular, ainda vagamente lembrada na localidade, que teve por herói o poeta de cabelo ruivo. Mas não foi ele o único herói da noite. Quem passasse durante o serão pelo seu jardim das traseiras podia ouvir amiúde a sua voz alta e didáctica ditar a lei aos homens e, em particular, às mulheres. A atitude das mulheres nessas ocasiões era um dos paradoxos do lugar. Aquelas pertenciam na sua maioria a essa espécie de mulheres vagamente ditas emancipadas e professavam o seu protesto contra a supremacia masculina. E contudo, essas mulheres modernas mostravam-se sempre dispostas a oferecer ao poeta essa insólita deferência de o escutar enquanto ele fala, que nenhuma mulher normal tem para com um homem. E Mr. Lucian Gregory, o poeta de cabelo avermelhado, era realmente (de certo modo) um homem que valia a pena escutar, por mais que no fim as suas palavras só pudessem dar vontade de rir. Entoava a velha canção da anarquia da arte e da arte da anarquia com certa frescura impudente, que era pelo menos causa de algum prazer momentâneo. Ajudava-o, em certa medida, a excentricidade impressionante da sua aparência, cujos recursos, como costuma dizer-se, ele cultivava e valorizava plenamente. O seu cabelo de um ruivo escuro, dividido por uma risca ao meio, era literalmente como o de uma mulher, ondulado pelos suaves anéis de uma virgem num quadro pré-rafaelita. Mas deste enquadramento oval quase sagrado, irrompia bruscamente um rosto largo e brutal, com o queixo espetado num trejeito de desdém plebeu. Esta combinação bastava para apavorar e excitar instantaneamente os nervos de uma população neurótica. Parecia uma blasfémia andante, uma mistura de anjo e de macaco.
Aquela noite particular, ainda que mais nada houvesse, seria localmente recordada pelo seu estranho pôr-do-sol. Dir-se-ia que se aproximava o fim do mundo. O céu inteiro parecia recoberto de uma plumagem rebrilhante e palpável; era como se se pudesse dizer que o céu se enchera de penas, e de penas que quase tocassem os rostos. Havia cinzentos percorrendo toda a abóbada celeste, cheios das mais estranhas tonalidades de violeta e malva, e também de um rosa de artifício ou verde pálido; mas, a oeste, o conjunto tomava-se indescritível, transparente e apaixonado, e as últimas plumas de um vermelho de fogo cobriam o sol como se este fosse demasiado belo para poder ser visto. Tudo isto, tão próximo da Terra que se diria exprimir um violento mistério. O próprio firmamento parecia um segredo. Exibia essa esplêndida pequena dimensão que é a alma do patriotismo local. O céu inteiro parecia pequeno.
Já disse que alguns dos habitantes nunca se esqueceriam dessa noite que mais não fosse pelo seu céu opressivo. Outros hão-de recordá-la, todavia, porque foi nela que pela primeira vez apareceu no bairro o segundo poeta de Saffron Park. Durante muito tempo o revolucionário de cabelo vermelho reinara sem rival. Foi à hora do poente que de súbito essa condição solitária se quebrou. O novo poeta, que se apresentou com o nome de Gabriel Syme, era um ente que aparentava extrema timidez, com a sua barba loura aparada em ponta e o seu fino cabelo amarelado. Mas tinha-se a impressão de que era menos manso do que parecia. Marcou a sua presença discordando do poeta estabelecido, Gregory, acerca da natureza da poesia. Disse que ele (Syme) era um poeta da lei, um poeta da ordem; disse, ainda mais, que era um poeta da respeitabilidade. Ao fazê-lo, todos os habitantes de Saffron Park o olharam como se tivesse acabado de cair do impossível céu que os cobria.
Com efeito, Mr. Lucian Gregory, o poeta anarquista, associou os dois acontecimentos.
- Podia muito bem ser - disse do modo súbito que lhe era próprio -, podia muito bem ser que, numa noite de nuvens e cores cruéis como esta, apareça na Terra um prodígio semelhante, fazendo-se passar por um poeta respeitável. Você diz que é um poeta da lei; eu digo que você incorre numa contradição nos termos. Só me pergunto como foi possível você aparecer neste jardim sem ser acompanhado por cometas e terramotos.
O homem de mansos olhos azuis e barba clara aparada em ponta suportou estes trovões com uma certa solenidade resignada. O terceiro membro do grupo, Rosamond, irmã de Gregory, cujas tranças embora com o mesmo tom ruivo que as do irmão, emolduravam um rosto mais suave, riu com a mesma mescla de admiração e reprovação que costumava manifestar perante o oráculo da família.
Gregory manteve com bom humor a elevação do seu tom oratório.  - Um artista é igual a um anarquista - exclamou. - Pode dispor os termos pela ordem que quiser. Um anarquista é um artista. O homem que atira uma bomba é um artista, uma vez que prefere um grande momento a tudo o mais. Entende que uma explosão de luz ofuscante, o estrondo de um trovão perfeito, vale muito mais do que os vulgares meros corpos de uns quantos polícias informes. Um artista despreza todos os governos, abole todas as convenções. O poeta não encontra prazer senão no caos. Se não fosse assim, a coisa mais poética do mundo seria a linha do metropolitano.
- E é - disse Mr. Syme.
- Disparates! - disse Gregory que se tornava muito racional quando alguém que não ele ensaiava o paradoxo. - Porque é que todos os empregados e os operários que vão nos comboios têm um ar tão triste e cansado? Eu digo-lhe: é porque sabem que o comboio vai na direcção certa; é porque sabem que há-de chegar ao sítio para onde compraram o bilhete; é porque, depois de terem passado Sloane Square, sabem que a próxima estação tem de ser Victoria, e nada mais do que Victoria. Oh, que êxtase entusiástico, oh que brilho de estrelas nos seus olhos, oh que regresso ao paraíso nas suas almas, se a estação seguinte inexplicavelmente viesse a ser Baker Street!
- Que falta de sentido poético, o seu! - replicou o poeta Syme. Se o que está a dizer dos empregados é verdade, eles só podem ser tão prosaicos como a poesia que você escreve. O que é raro e estranho, é acertar no alvo; o óbvio, o banal, é falhar. Sentimos qualquer coisa de épico quando um homem fere à distância uma ave por meio de uma flecha tosca. Mas não será também épico que alguém chegue a uma estação distante por meio de uma máquina tosca? O caos é muito aborrecido; porque no caos o comboio pode ir realmente seja para onde for, tanto para Victoria como para Bagdad. Mas o homem é um mago, e toda a sua magia é nisto que está: quando diz Victoria, vamos ver e é de facto Victoria! Não, fique você com os seus livros de prosa e poesia e deixe-me ler com lágrimas de orgulho um horário dos comboios. Leve o seu Byron, que comemora as derrotas do homem, e deixe-me um horário de comboios como o Bradshaw, que comemora as suas vitórias. Deixe-me o Bradshaw, é o que eu lhe digo!
- Tem de ir andando? - perguntou sarcasticamente Gregory.
- O que eu lhe digo - continuou Syme cheio de paixão - é que cada vez que um comboio chega a horas, sinto que conseguiu atravessar as linhas de fogo inimigas e que venceu uma batalha contra o caos. Você diz desdenhosamente que, depois de sairmos de Sloane Square, sabemos que a seguir vamos chegar a Victoria. E eu digo que em vez disso poderiam acontecer mil coisas diferentes, e por isso, quando realmente lá chego, tenho a impressão de ter escapado por um cabelo. E quando ouço o revisor gritar a palavra «Victoria», essa palavra não deixa de ter sentido. Para mim, representa o brado de um arauto que anuncia a conquista. Para mim, «Victoria» é realmente a vitória de Adão.
Gregory sacudiu a cabeça pesada e ruiva, esboçando um sorriso triste e suave.
- E mesmo então - disse ele -, nós, os poetas, fazemos sempre a mesma pergunta: o que é a Victoria depois de lá termos chegado? Você acredita que Victoria é a Nova Jerusalém. Sabemos que a Nova Jerusalém só poderá ser como Victoria. Sim, o poeta será um descontente até nas ruas do Céu. O poeta será sempre um rebelde.
- Outra vez - disse Syme com irritação. - O que é que a revolta tem de poético? Você podia igualmente dizer que é poético estar enjoado a bordo. O enjoo é uma rebelião do estômago, é uma revolta. Tanto uma coisa como outra, estar-se enjoado ou ser-se um rebelde, podem ser o que há de mais saudável em certas ocasiões desesperadas, mas que me enforquem se vejo nelas seja o que for de poético. A revolta em abstracto é revoltante. Não passa de um vómito.
A rapariga franziu por um instante a testa ao ouvir uma palavra tão desagradável, mas Syme estava demasiado exaltado para dar por isso.
- As coisas serem como devem ser - exclamou ele -, é isso que é poético! As nossas digestões, por exemplo, feitas silenciosa e religiosamente como deve ser, aí está o fundamento de toda a poesia. Sim, a coisa mais poética, mais poética do que as flores e do que as estrelas, a coisa mais poética do mundo é não estarmos doentes.
- Realmente - disse Gregory desdenhosamente -, os exemplos que você vai buscar...
- Desculpe - disse Syme sombriamente -, esqueci-me de que tínhamos abolido todas as convenções.
Pela primeira vez, uma mancha de rubor tingiu a fronte de Gregory.
- Não está à espera - disse ele - de me ver revolucionar a sociedade neste jardim?
Syme olhou-o fixamente nos olhos e sorriu com amenidade.
- Não, não estou à espera de uma coisa dessas - disse -, mas considero que se você levasse o seu anarquismo a sério, seria precisamente isso que faria.
Os grandes olhos de touro de Gregory pestanejaram subitamente como os de um leão enfurecido, e quase se poderia imaginar ver eriçar-se nele uma juba ruiva.
- Com que então pensa - disse ele em voz ameaçadora - que não levo a sério o meu anarquismo?
- Perdão? - disse Syme.
- Acha que não levo a sério o meu anarquismo? - gritou Gregory com os punhos cerrados.
- Oh, meu caro amigo! - disse Syme, e afastou-se com perfeita tranquilidade.
Para sua surpresa, mas também com um curioso prazer, notou que Rosamond Gregory continuava ao seu lado.
- Mr. Syme - disse ela - , as pessoas que falam como você e como o meu irmão acreditarão realmente no que dizem? Você acredita no que acaba de dizer?
Syme sorriu.
- E você, acredita? - perguntou-lhe.
- Que quer você dizer? - perguntou a rapariga com um olhar grave.
- Querida Miss Gregory - disse Syme delicadamente -, há muitas espécies de sinceridade e de insinceridade. Quando você diz «obrigada pelo sal», está a dizer o que pensa? Não. Quando diz «o mundo é redondo», está a dizer o que pensa? Não. É verdade, mas você di-lo sem pensar. Ora bem, de vez em quando um homem como o seu irmão, descobre alguma coisa que quer realmente dizer. Pode ser só uma meia-verdade, um quarto de verdade, um décimo de verdade; mas passa-se depois que ele diz mais do que quer, tanta vontade tem de o dizer.
Ela olhava-o debruçando um pouco a fronte e levantando os olhos; e sobre o seu rosto grave e aberto descera a sombra dessa responsabilidade impensada que há no fundo da mulher mais frívola: a da preocupação maternal, tão velha como o mundo.
- Então, ele é realmente um anarquista? - perguntou.
- Só no sentido em que eu o disse - respondeu Syme -, ou, se quiser, só nessa falta de sentido.
Ela franziu o sobrolho e disse abruptamente:
- Mas não se vai pôr realmente a atirar bombas ou a fazer outras coisas desse género?
Syme explodiu numa poderosa gargalhada que parecia contrastar demasiado com a sua figura esguia e um quanto de dandy.
- Não, valha-nos Deus! - disse ele. - Isso são coisas que se fazem anonimamente.
Um sorriso aflorou nos cantos dos lábios da rapariga, saboreando ao mesmo tempo os absurdos de Gregory e a sua segurança.
Syme acompanhou-a a caminho de um banco que ficava a um canto do jardim e continuou a explicar-lhe as suas opiniões. Porque era sincero e, no fundo, apesar dos seus modos superficiais e da sua elegância, um homem humilde. E é sempre o homem humilde que fala de mais; o homem arrogante, mantém-se a si próprio sob estreita vigilância a todo o momento. Syme defendia a respeitabilidade com violência e exagero. O seu tom tomou-se apaixonado ao proferir o elogio da propriedade e da ordem. Sentia a todo o momento um perceptível cheiro a lilases à sua volta. De súbito ouviu, vagamente, numa rua distante, a música de um realejo que começava a tocar, e pareceu-lhe dar-se conta nas suas palavras heróicas de um ténue acorde que chegava de uma região que ficava por baixo ou para além do mundo.
Continuou a falar e a olhar durante o que lhe pareceram uns minutos aquela rapariga de cabelo ruivo e com uma expressão divertida no rosto. A seguir, levantou-se, pois considerou que estava num lugar onde as pessoas deviam misturar-se entre os grupos presentes. Para seu espanto, verificou que o jardim estava completamente vazio. Todos se tinham ido embora havia já bastante tempo, e despediu-se ele próprio com uma desculpa apressada. Afastou-se com a impressão, que mais tarde não saberia explicar, de sentir a cabeça como se tivesse bebido champagne. A rapariga nada teve a ver com os acontecimentos agitados que se seguiram. Syme não a tomou a ver antes de toda a sua história terminar. E, todavia, de uma maneira que não se podia descrever, ela estava presente como o recorrente motivo de uma peça de música durante as loucas aventuras subsequentes, e o esplendor do seu cabelo invulgar atravessou como um fio as tapeçarias obscuras e incertamente tecidas da noite, porque o que aconteceu depois era tão improvável que bem poderia ter sido um sonho.
Quando Syme saiu para a rua iluminada pelas estrelas achou-a momentaneamente deserta. Apercebeu-se então (de modo estranho) de que o silêncio que o rodeava não era morto, mas vivo. Precisamente diante da porta havia um candeeiro de rua cuja luz doirava a folhagem de uma árvore que subia do outro lado da vedação nas suas costas. A cerca de um pé do candeeiro, estava uma figura quase tão rígida e imóvel como o próprio candeeiro. O chapéu alto e a casaca eram pretos; o rosto na penumbra, quase tão escuro como a noite. Só uma franja de cabelo bravio, que se recortava na luz, e qualquer coisa de agressivo na sua atitude, denunciavam ali a presença do poeta Gregory. Tinha a aparência de um emboscado mascarado e pronto a matar, de espada na mão, à espera do seu inimigo.
Fez uma espécie de saudação hesitante, que Syme lhe devolveu um pouco mais formalmente.
- Estava à sua espera - disse Gregory. - Podemos falar um momento?
- Claro que sim. Acerca de quê? - perguntou Syme em tom vagamente surpreendido.
Gregory bateu com a bengala no poste do candeeiro e a seguir na árvore.
- Sobre isto e aquilo - exclamou -, sobre a ordem e a anarquia. Aqui tem a sua preciosa ordem, este mesquinho candeeiro de ferro, feio e sem graça, e ali tem a anarquia, rica, viva, que se reproduz a si própria; a anarquia, aí a tem, no seu esplendor verde e doirado.
- Apesar de tudo - replicou Syme pacientemente -, você, neste momento, só pode ver a árvore porque o candeeiro a ilumina. Muito me admirava se pudesse ver o candeeiro à luz da árvore.
Fez uma pausa, e continuou:
- Mas posso perguntar-lhe se ficou aqui à minha espera, de pé e no escuro, só para recomeçarmos a nossa pequena discussão?
- Não! - gritou Gregory com uma voz que encheu toda a rua. Não fiquei aqui para recomeçar a nossa discussão, mas para acabar definitivamente com ela.
Fez-se de novo silêncio, e Syme, embora não compreendesse fosse o que fosse, ficou instintivamente à espera de ouvir qualquer coisa de sério. Gregory começou a falar com uma voz amena e um sorriso enigmático.
- Mr. Syme - disse ele -, o senhor esta noite foi bem sucedido e conseguiu fazer uma coisa notável. Conseguiu de mim qualquer coisa que nenhum homem filho de uma mulher até agora tinha conseguido.
- Sim?
- Mas agora que me lembro - disse Gregory pensativamente -, houve mais alguém que o conseguiu, o comandante de um pequeno navio de pequeno curso, se a minha memória não me engana, em Southend. Você conseguiu irritar-me.
- Lamento muito - respondeu Syme com gravidade.
- Receio que a minha fúria e a sua injúria sejam grandes de mais para se deixarem apagar por um pedido de desculpas - disse calmamente Gregory. - Também não as apagaria um duelo. Se o matasse, continuaria a não as apagar. Só há uma maneira de apagar uma injúria assim, e é por ela que opto. Vou demonstrar-lhe, possivelmente através do sacrifício da minha vida e da minha honra, que se enganou no que disse.
- E que foi que eu disse?
- Disse que eu não falava a sério quando dizia que era anarquista. - Há graus de seriedade - replicou Syme. - Nunca duvidei de que você fosse absolutamente sincero no sentido de pensar que aquilo que dizia merecia ser dito, de pensar que um paradoxo pode despertar a atenção dos homens para uma verdade descurada.
Gregory olhou-o firme e dolorosamente nos olhos.
- E não acredita que eu tenha falado a sério noutro sentido? perguntou ele. - Será possível que me tome por um flâneur que larga aqui e ali, de vez em quando, algumas verdades? Não acredita que eu seja sério num sentido mais profundo, mais mortal?
Syme bateu violentamente com a bengala nas pedras da rua.
- Sério? - gritou. - Meu Deus! Será séria esta rua? Serão sérias estas lanternas chinesas? Será sério tudo isto? Uma pessoa aparece por aqui, diz uns quantos disparates, e talvez uma ou outra palavra com sentido, mas eu teria muito má impressão de alguém que não tivesse algures na sua vida coisa mais séria do que toda essa conversa fiada, alguma coisa mais séria em matéria de religião ou simplesmente de bebida.
- Muito bem - disse Gregory com o rosto sombrio -, pois irá ver coisa muito mais séria do que a bebida ou a religião.
Syme aguardou, com o seu ar ameno habitual, que Gregory continuasse.
- Acabou de falar em religião. Tem realmente alguma?
- Oh! - disse Syme com um sorriso iluminado. - Agora todos somos católicos.
- Então, posso perguntar-lhe se está disposto a jurar por todos os deuses ou santos que há na sua religião que não revelará o que agora lhe vou dizer seja a que filho de Adão for, e em especial à polícia? Jura-o? Se estiver disposto a carregar com esta abnegação tremenda, se aceitar oprimir a sua alma através de um juramento solene que nunca deveria ter prestado e do conhecimento de qualquer coisa como nunca sonhou sequer, eu prometo-lhe pelo meu lado...
- Você promete-me pelo seu lado? - inquiriu Syme quando o outro fez uma pausa.
- Prometo-lhe uma noite muito animada.
Syme tirou bruscamente o chapéu.
- A sua oferta - disse ele - é demasiado estúpida para ser rejeitada. Você diz que um poeta é sempre um anarquista, eu não estou de acordo, mas espero que, pelo menos, seja sempre um cavalheiro. Permita-me, aqui e agora, jurar como cristão, e prometer como bom camarada e colega de grémio artístico, que nada direi à polícia do que seja lá o que for que veja e ouça. E agora, em nome da casa de doidos de Colney Hatch, diga-me lá o que é.
- Eu penso - disse Gregory com uma indiferença plácida - que o melhor será apanharmos um carro de praça.
Soltou dois longos assobios e, descendo a rua, apareceu um fi acre aos solavancos. Gregory indicou pelo postigo ao cocheiro o endereço de uma taberna obscura de Chiswick, junto ao rio. O carro pôs-se a caminho e dentro dele os dois fantásticos personagens abandonaram a sua fantástica cidade.
O Segredo de Gabriel Syme
O fiacre parou diante de uma cervejaria particularmente suja e deprimente, na qual Gregory fez rapidamente entrar o seu companheiro. Sentaram-se numa espécie de sala de bar, a uma mesa de madeira com uma perna partida. A sala era tão pequena e escura que mal os deixava distinguir fosse o que fosse no empregado de mesa que acabavam de chamar, para além da vaga impressão de uma massa volumosa e com barba.
- Não quer cear alguma coisa? - perguntou Gregory cortesmente. - O pâté de foie gras que aqui têm não é lá muito bom, mas posso recomendar-lhe a carne.
Syme acolheu a recomendação mantendo-se impassível, pois imaginou que se tratava de um gracejo. Aceitando entrar numa troca de réplicas humorística, disse com delicada indiferença:
- Ora bem, traga-me uma mayonnaise de lagosta.
E para seu indescritível espanto, o empregado limitou-se a dizer: - Com certeza, sir! - e deu meia-volta, aparentemente para ir buscar o que lhe pediam.
- Que vai você beber? - continuou Gregory no mesmo tom desprendido, mas atencioso. - Eu só vou querer um crepe de menta, porque já jantei. Mas o champagne é de confiança. Permite-me que lhe ofereça, pelo menos como aperitivo, uma meia-garrafa de Pommery?  - Obrigado - disse Syme estupefacto -, é muito generoso da sua parte.
As suas tentativas subsequentes, e já de si um tanto desorganizadas, de começar uma conversa foram subitamente interrompidas, com que por um relâmpago, quando a lagosta chegou à mesa. Syme provou-a e achou-a deliciosa. Depois, começou a comer muito depressa e com apetite.
- Perdoe-me se manifesto tão obviamente a minha satisfação disse ele, sorrindo a Gregory -, mas não tenho muitas vezes sonhos como este. É para mim uma novidade que um pesadelo me valha uma lagosta. Costuma acontecer-me o contrário.
- Não está a sonhar, garanto-lhe - disse Gregory. - Pelo contrário, está muito próximo do momento mais real e mais extraordinário da sua existência. Ah, aí vem o seu champagne! Admito que haja uma leve desproporção, digamos assim, entre o funcionamento interno desta excelente hospedaria e o seu exterior simples e despretensioso. Mas isso deve-se inteiramente à nossa modéstia. Somos os homens mais modestos que alguma vez habitaram a terra.
- E quem somos nós? - perguntou Syme, esvaziando o seu copo de champagne.
- A resposta é muito simples - replicou Gregory. - Somos os anarquistas a sério em cuja existência você não acredita.
- Oh! - disse Syme laconicamente. - Estou a ver que em matérias de bebida se tratam bem.
- Sim, fazemos a sério tudo o que fazemos - respondeu Gregory. Após uma pausa, acrescentou:
- Se dentro de instantes esta mesa começar a andar um tanto à roda, não pense que isso se deve às suas incursões no champagne. Não quero que seja injusto para consigo.
- Bom, se não estou bêbado, estou louco - replicou Syme com perfeita calma -; mas creio que em qualquer dos casos serei capaz de me portar como um cavalheiro. Dá-me licença que fume?
- Com certeza! - disse Gregory, apresentando-lhe uma charuteira. - Experimente um dos meus.
Syme aceitou o charuto, cortou-lhe a ponta com um corta-charutos que tirou do bolso do colete, pô-lo na boca, acendeu-o devagar, e soprou por fim uma longa baforada de fumo. Fala consideravelmente a seu favor o facto de ter executado estes gestos rituais com toda a compostura, uma vez que antes ainda de os começar a mesa à qual estava sentado começou a mover-se, primeiro lentamente, e depois mais depressa, como numa desvairada sessão mediúnica.
- Não se preocupe - disse Gregory -; é uma espécie de parafuso.
- Ora bem - disse placidamente Syme -, uma espécie de parafuso. Nada mais simples!
No instante seguinte o fumo do seu charuto, que até aí deambulava em volutas pela sala, subiu a prumo como se saísse da chaminé de uma fábrica, e os dois homens, com as suas cadeiras e a sua mesa, desceram atravessando o chão da sala, como se a Terra os tragasse. Foram mergulhando aos solavancos pelo interior de uma espécie de chaminé estrepitosa, com a rapidez de um elevador cujos cabos se tivessem quebrado, e pararam bruscamente ao atingirem o solo. Mas quando Gregory abriu duas portas através das quais entrou uma luz subterrânea avermelhada, Syme continuava a fumar de perna traçada e sem que um único dos seus alourados cabelos tivesse saído do seu lugar.
Gregory conduziu-o por um corredor abobadado e comprido, ao fundo do qual a luz vermelha brilhava. Esta era uma enorme lanterna carmesim, quase do tamanho de um fogão de sala, fixada por cima de uma pequena, mas pesada porta de ferro. A porta tinha uma espécie de pequeno postigo ou escotilha, sobre a qual Gregory bateu cinco vezes. Uma voz pesada com sotaque estrangeiro perguntou-lhe quem era. Ao que ele deu a mais ou menos inesperada resposta: - Mr. Joseph Chamberlain. - Os pesados gonzos começaram a mover-se; aquele nome era evidentemente uma espécie de senha.
Do lado de dentro da porta, o corredor brilhava como se estivesse revestido de aço. Um segundo relance deixou Syme ver que aquele efeito brilhante era produzido na realidade por filas e filas cerradas ou ensarilhadas de espingardas e revólveres.
- Tenho de lhe pedir que me desculpe todas estas formalidades disse Gregory. - Temos de usar aqui do máximo rigor.
- Oh, não se desculpe - disse Syme. - Eu não ignoro a sua paixão pela lei e a ordem - e avançou pelo corredor revestido pelo aço daquelas armas. Com o seu cabelo alourado e comprido e a sua casaca bastante convencional, era uma figura singularmente frágil e insólita enquanto percorria aquela avenida da morte.
Atravessaram vários corredores semelhantes, e chegaram por fim a uma estranha câmara de aço com as paredes curvas, de forma quase esférica, mas exibindo ao mesmo tempo, com os bancos alinhados que a enchiam, o aspecto de um anfiteatro científico. Não havia no aposento nem espingardas nem pistolas, mas viam-se pendurados a toda a volta nas paredes objectos cuja forma era ainda mais suspeita e aterradora, coisas que pareciam como que bolbos vegetais metálicos, ou ovos de aves em aço. Eram bombas, e dir-se-ia que a própria sala era como que o interior de uma bomba. Syme tocou a parede com a ponta do charuto fazendo cair a cinza, e entrou.
- E agora, meu caro Mr. Syme - disse Gregory, deixando-se cair com exuberância num banco precisamente por baixo da bomba maior -, agora que aqui estamos bem sossegados, podemos falar como deve ser. Pois bem, não há palavras humanas que possam dar-lhe uma ideia das razões por que eu aqui o trouxe. Foi um desses movimentos emocionais inteiramente arbitrários, como os que fazem com que alguém salte do alto de uma falésia ou caia apaixonado. Será suficiente dizer que você foi um tipo mais irritante do que se pode exprimir, e que, para lhe prestar justiça, continua a sê-lo. Eu era capaz de quebrar vinte juramentos de guardar segredo em troca do prazer de o envergonhar. Essa maneira que você tem de acender um charuto levaria um padre a quebrar o segredo da confissão. Bom, você disse que tinha a certeza absoluta de que eu não era um anarquista a sério. A seriedade deste lugar não o impressiona?
- Parece haver uma moral por detrás de toda esta brincadeira concordou Syme -; mas posso fazer-lhe duas perguntas? Não deve recear esclarecer-me, porque, como se lembra, arrancou-me muito avisadamente a promessa de nada contar à polícia, e eu cumprirei certamente essa promessa. Por isso é por simples curiosidade que o interrogo. Antes de mais nada, que vem a ser isto? Para que serve? Querem abolir o Governo?
- Abolir Deus! - disse Gregory, abrindo os olhos de um fanático. - Não queremos limitar-nos a derrubar umas quantas disposições despóticas e uns quantos regulamentos da polícia: essa espécie de anarquismo existe, mas não passa de uma ramificação dos não-conformistas. Nós cavamos mais fundo e visamos mais alto. Desejamos negar todas essas distinções arbitrárias entre o vício e a virtude, a honra e a traição, nas quais se baseavam os simples rebeldes. Os estúpidos sentimentalistas da Revolução Francesa falavam dos Direitos do Homem! Nós odiamos os Direitos como odiamos as injustiças. Abolimos o Direito e a Injustiça.
- E a direita e a esquerda - disse Syme simplesmente exasperado -, espero que acabem por aboli-las também. A mim, incomodam-me muito.
- Você falou de uma segunda pergunta - atalhou Gregory rapidamente.
- Faço-a com muito prazer - continuou Syme. - Em todo o seu comportamento presente e naquilo que o rodeia, há uma vontade científica de secretismo. Tenho uma tia que vivia por cima de uma loja, mas é a primeira vez que vejo quem tenha optado por viver por debaixo de uma taberna. Você tem aqui uma pesada porta de ferro. Não pode atravessá-la sem se sujeitar à humilhação de se intitular Mr. Chamberlain. Está cercado de instrumentos de aço que tomam este lugar, se posso falar assim, mais impressionante do que acolhedor. Posso perguntar-lhe por que razão, depois de se darem a todo este trabalho de se barricarem nas entranhas da Terra, revelam ostensivamente todo o vosso segredo falando de anarquismo a qualquer mulher tonta de Saffron Park?
Gregory sorriu.
- A resposta é simples - disse ele. - Eu disse-lhe que era um anarquista a sério, e você não acreditou em mim. Elas também não acreditam. Não acreditam, a menos que eu as traga também a esta câmara infernal.
Syme fumou pensativamente, e olhou-o com um ar interessado. Gregory continuou.
- Talvez ache divertido ouvir a história do que se passou - disse ele. - A princípio, depois de me ter tomado membro dos Novos Anarquistas, tentei servir-me de toda a espécie de disfarces respeitáveis. Vesti-me de bispo. Li tudo o que havia acerca dos bispos nos nossos panfletos anarquistas na Superstição, Esse Vampiro e nos Padres de Rapina. A verdade é que neles aprendi que os bispos são velhos estranhos e terríveis que dissimulam um cruel segredo à humanidade. Fui mal informado. Quando, por ocasião da minha primeira entrada em cena num salão em vestes episcopais, gritei numa voz de trovão: «Abaixo! Abaixo a presunçosa razão humana!», as pessoas tiveram facilmente maneira de descobrir que eu não era um bispo. Fui imediatamente detido. Depois, mascarei-me de milionário; mas defendia o capital com tanta inteligência que qualquer idiota descobria logo que eu não passava de um pobre. A seguir, tentei ser major. Por mim, sou humanitarista, mas espero ter suficiente fôlego intelectual para compreender a posição daqueles que, como Nietzsche, admiram a violência: a soberba e desvairada guerra da Natureza, e todas essas coisas mais, não sei se está a ver. Meti-me dentro da pele de um major. Desembainhava a espada e brandia-a constantemente. Gritava distraidamente: «Sangue!», como um homem que reclama mais vinho.
Repetia muitas vezes: «Que os fracos pereçam, é essa a Lei». Ora bem, ao que parece os majores não fazem assim as coisas. Fui outra vez preso. E acabei por procurar, desesperado, o Presidente do Conselho Central Anarquista, que é o maior homem da Europa.
- Como é que ele se chama? - perguntou Syme.
- Você não conhece o seu nome - respondeu Gregory. - É essa a sua grandeza. César e Napoleão puseram todo o seu génio em tornarem-se conhecidos, e foram conhecidos. Ele põe todo o seu génio em não ser conhecido, e não é conhecido. Mas você não pode passar cinco minutos numa sala com ele sem sentir que César e Napoleão seriam crianças nas suas mãos.
Ficou silencioso e chegou ao ponto de empalidecer por um momento, antes de continuar:
- Mas sempre que dá um conselho, é sempre tão surpreendente como um epigrama, e ao mesmo tempo tão prático como o Banco de Inglaterra. Eu perguntei-lhe: «Como hei-de fazer para me disfarçar aos olhos do mundo? Que poderei descobrir de mais respeitável do que os bispos e os majores?» Ele fitou-me com o seu rosto grande, mas indecifrável. «Quer um disfarce seguro, não é isso? Quer tomar um aspecto que o faça passar seguramente por inofensivo, o aspecto de alguém que não se pode conceber que faça explodir uma bomba?». Respondi-lhe que sim, meneando a cabeça. Então, subitamente, a sua voz de leão elevou-se. «Ora bem, então, disfarce-se de anarquista, seu imbecil!», disse-me ele num rugido que fez tremer a sala. «Assim, ninguém esperará vê-lo fazer seja o que for de perigoso». E virou-me as suas costas muito largas sem mais uma palavra. Segui o conselho dele, e nunca tive ocasião de me arrepender. Dia e noite não falo àquelas mulheres senão de sangue e assassínio, e sabe Deus que elas me confiariam os seus carrinhos de bebé!
Syme ficou a observá-lo com uma expressão de certo respeito nos seus grandes olhos azuis.
- Conseguiu enganar-me - disse por fim. - É realmente um truque inteligente.
Depois de uma pausa, acrescentou:
- Que nome dão vocês a esse vosso terrível Presidente?
- Geralmente, chamamos-lhe Domingo - replicou Gregory com simplicidade. - Ouça, o Conselho Central Anarquista tem sete membros, e cada um deles usa o nome de um dia da semana. A ele, chamamos-lhe Domingo, embora alguns admiradores lhe dêem o nome de Domingo Sangrento. É curioso que você tenha falado deste assunto, porque precisamente esta noite, em que você foi introduzido aqui (se assim posso dizer), é aquela em que a nossa secção de Londres, que se reúne nesta sala, terá de eleger o seu delegado para preencher uma vaga no Conselho. O cavalheiro que desde há já algum tempo desempenhava, com acerto e perante a aprovação geral, o difícil papel de Quinta-Feira, morreu subitamente. Por conseguinte, convocámos uma reunião para esta noite a fim de elegermos o seu sucessor.
Gregory levantou-se e pôs-se a passear pela sala com uma espécie de embaraço sorridente.
- Você dá-me a impressão de ser um pouco como que a minha mãe, Syme - continuou ele, falando com volubilidade. - Sinto que posso confiar-lhe seja o que for, depois de me ter prometido que o não contaria a ninguém. Na realidade, vou confessar-lhe uma coisa que não diria tão abertamente aos anarquistas que vão aparecer nesta sala daqui a dez minutos. É evidente que vamos proceder a uma espécie de eleição; mas não me coíbo de lhe dizer que o desfecho da votação é praticamente certo - baixou por um momento os olhos, cheio de modéstia. - Está quase decidido que serei eu Quinta-Feira.
- Meu caro amigo! - disse Syme calorosamente. - Os meus parabéns. Grande carreira, a sua!
Gregory sorriu com um ar contrito, enquanto andava de um lado para o outro da sala, falando muito depressa.
- A verdade é que tudo está preparado a meu favor nesta mesa disse ele -, e a cerimónia vai ser provavelmente o mais breve possível.
Syme aproximou-se também da mesa, e viu poisada em cima dela uma bengala, que a um exame mais atento descobriu ser uma bengala de estoque, um grande revólver Colt, uma caixa cheia de sanduíches e uma formidável garrafa de brandy. Em cima de uma cadeira, ao lado da mesa, alguém deixara uma espécie de capa ou de manto de aspecto pesado.
- Só vou ter de esperar que as formalidades eleitorais se concluam - continuou Gregory com animação -; depois, visto a capa, pego na bengala, enfio o resto dessas coisas no bolso, saio por essa porta que dá para o rio, e lá há-de estar à minha espera uma lancha, e depois, ah, depois, que rija alegria a de ser Quinta-Feira! - E bateu as palmas das mãos.
Syme, que tomara a sentar-se com a sua insolente indolência habitual, pôs-se de pé com uma inabitual hesitação.
- Porque será - perguntou ele vagamente - que eu acho que você é um tipo bastante decente? Porque será que decididamente gosto de si, Gregory? - Interrompeu-se um momento, e acrescentou depois com uma espécie de curiosidade renovada:
- Será por você ser tão burro?
Houve um silêncio pensativo, a seguir ao qual Syme exclamou:
- Bom, raios partam isto tudo! É a situação mais engraçada de toda a minha vida, e vou agir em conformidade. Gregory, prometi-lhe uma coisa antes de aqui entrar. E cumprirei o que prometi nem que me matem. Não estará você disposto a fazer-me, para minha segurança, uma pequena promessa do mesmo género?
- Uma promessa? - perguntou Gregory, desconcertado.
- Sim - disse Syme com extrema seriedade -, uma promessa.
Jurei perante Deus que não revelaria o seu segredo à polícia. Estará você disposto a jurar pela Humanidade, ou por seja lá que abominação for em que acredite, que não revelará o meu segredo aos anarquistas?
- O seu segredo? - perguntou um Gregory estupefacto. - Você tem um segredo?
- Sim - disse Syme -, tenho um segredo. - E depois de uma pausa: - Jura?
Gregory fitou-o gravemente por um momento, e disse a seguir com brusquidão:
- Você deve ter-me enfeitiçado, mas o certo é que sinto uma curiosidade danada a seu respeito. Sim, juro não dizer aos anarquistas o que me disser, seja lá o que for. Mas, cuidado: dentro de poucos minutos eles estarão aqui.
Syme pôs-se lentamente de pé, e enfiou as suas mãos compridas e brancas nos bolsos das suas calças compridas e cinzentas. Mal acabara de o fazer quando se ouviram cinco pancadas na porta exterior, anunciando a chegada do primeiro dos conspiradores.
- Bom - disse Syme, devagar -, não vejo maneira de lhe contar a verdade mais rapidamente do que dizer-lhe que o seu expediente de se disfarçar de poeta inofensivo não é um exclusivo seu ou do vosso Presidente. Na Scotland Yard, desde há já algum tempo, também nós conhecemos esse ardil.
Gregory tentou firmar-se decididamente nas pernas, mas vacilou três vezes.
- O que é que você está a dizer? - perguntou numa voz inumana.
- Sim - disse Syme simplesmente. - Sou um detective da polícia. Mas creio que estou a ouvir chegar os seus amigos.
Ouviu-se do outro lado da porta um murmúrio que dizia uma e outra vez: «Mr. Joseph Chamberlain». As palavras foram repetidas uma segunda, depois uma terceira e, por fim, uma quarta vez, e era audível a aproximação daquela massa de Joseph Chamberlains (ideia soIene) a avançar pelo corredor.
O Homem Que Era Quinta-Feira
A imobilidade estupefacta de Gregory dissipou-se antes de o primeiro rosto recém-chegado assomar à entrada da sala. Aproximara-se da mesa com um salto, e subia-lhe do fundo da garganta um rosnar abafado de fera. Pegou no Coit e apontou-o a Syme. Syme não recuou um passo, mas levantou cortesmente uma pálida mão.
- Não seja imbecil - disse ele, com a dignidade efeminada de um pároco. - Não vê que não há necessidade disso? Não vê que estamos os dois metidos no mesmo barco? Sim, e gravemente mareados.
Gregory não foi capaz de dizer fosse o que fosse, mas também não era capaz de disparar, e lançou-lhe um olhar interrogativo.
- Não vê que demos xeque-mate um ao outro? - exclamou Syme. - Eu não posso dizer à polícia que você é um anarquista. Você não pode dizer aos anarquistas que eu sou um polícia. Tudo o que eu posso fazer é observá-lo, sabendo o que você é; tudo o que você pode fazer é observar-me, sabendo o que eu sou. Em resumo, é um duelo intelectual dos dois a sós: a minha cabeça contra a sua. Sou um polícia desprovido do auxílio da polícia. Você, meu pobre amigo, é um anarquista desprovido dessa lei e dessa organização que são tão essenciais para a anarquia. Só há uma diferença, e essa é a seu favor. Você não está rodeado de polícias inquisitivos; mas eu estou rodeado de anarquistas inquisitivos. Não posso traí-lo a si, mas você pode trair-me a mim. Vamos, vamos lá! Espere e verá como eu próprio me traio. Verá que o faço magnificamente.
Gregory poisou lentamente o revólver, enquanto não deixava de olhar para Syme como se ele fosse um monstro marinho.
- Não acredito na imortalidade - disse ele por fim -, mas, se depois disto tudo, você quebrar a sua palavra, queira Deus fazer um inferno só para si, onde você fique a uivar para todo o sempre.
- Não quebrarei a minha palavra - disse Syme em tom cortante -, nem você a sua. Cá estão os nossos amigos.
A massa dos anarquistas entrou pesadamente na sala, arrastando os pés com um ar como que fatigado; mas um homem de pequena estatura, com a barba negra e de óculos - um homem que fazia lembrar um pouco Mr. Tim Healy - adiantou-se um passo e destacou-se do grupo com uns papéis na mão.
- Camarada Gregory - disse ele -, suponho que este homem seja um delegado, não é assim?
Gregory, apanhado de surpresa, baixou os olhos e mastigou o nome de Syme; mas Syme replicou raiando a insolência:
- Agrada-me ver que a vossa porta está tão bem guardada que torna difícil que aqui possa entrar alguém que não seja um delegado.
Mas a fronte do homenzinho de barba negra continuava franzida como que de suspeita.
- Que secção representa você? - perguntou ele secamente.
- Não sei se lhe chamaria uma secção - disse Syme, rindo.
Acho que lhe chamaria talvez uma raiz.
- O que é que quer dizer com isso?
- O certo, a verdade, é que sou um sabatário. Fui aqui enviado para verificar a vossa observância do Domingo.
O homenzinho deixou cair um dos seus papéis, e um assomo de medo perpassou pelos rostos do grupo. Era evidente que o temível Presidente, que usava o nome de Domingo, enviava de quando em quando os seus representantes especiais àquelas reuniões de secção.
- Muito bem, camarada - disse o homem dos papéis após uma pausa. - Suponho que o melhor será darmos-lhe um lugar na nossa mesa.
- Se me pede um conselho de amigo - disse Syme com severa benevolência -, acho que o melhor será fazerem isso mesmo.
Ao ouvir este diálogo perigoso concluir-se em termos que subitamente garantiam a segurança do seu rival, Gregory levantou-se com brusquidão e pôs-se a andar de um lado para o outro da sala, mergulhado numa reflexão dolorosa. A verdade era que estava num aperto diplomático atroz. O descaramento inspirado de Syme mostrava-se claramente capaz de vencer todos os ocasionais dilemas que aquela situação lhe apresentasse. Por esse lado, poucas esperanças restavam. Ao mesmo tempo, ele também não podia tomar a iniciativa de trair Syme, em parte por sentido da honra, mas em parte também porque, se o traísse sem poder, por qualquer razão, destruí-lo, o Syme que conseguisse escapar-se seria um Syme livre da obrigação de guardar segredo, um Syme que só teria de se dirigir à esquadra de polícia mais próxima. Bem vistas as coisas, a reunião daquela noite era só uma reunião, e só um detective tomaria conhecimento do que nela se iria passar. Revelaria na reunião daquela noite o mínimo possível dos planos que tinham, e deixaria que Syme continuasse o seu caminho, assumiria esse risco.
Aproximou-se calmamente da mesa e do grupo dos anarquistas, que começavam a distribuir-se pelos bancos à volta dela.
- Penso que vai sendo tempo de começarmos - disse ele -; a lancha já está à espera no rio. Proponho que o camarada Buttons presida à reunião.
Depois de as mãos dos presentes se erguerem para aprovar a proposta, o homenzinho com os seus papéis na mão ocupou o lugar da presidência.
- Camaradas - começou ele, tão contundente como um tiro de pistola -, a nossa reunião desta noite é importante, embora não haja necessidade de a prolongarmos. Esta secção sempre teve a honra de eleger os Quinta-Feiras para o Conselho Central Europeu. Elegemos muitos e esplêndidos Quinta-Feiras. Todos lamentamos o triste desaparecimento do heróico trabalhador que ocupou esse posto até à semana passada. Como sabem, os seus serviços à causa foram consideráveis. Organizou o grande atentado à dinamite de Brighton, que, se as circunstâncias tivessem sido mais felizes, teria matado todos os que estavam no molhe. Como sabem também, a sua morte foi tão abnegada como a sua vida, porque morreu devido à sua fé numa mistura higiénica de giz e água destinada a substituir o leite, bebida que considerava bárbara, pois implica o tratamento cruel das vacas. A crueldade e tudo o que evocasse a crueldade sempre o revoltaram. Mas não foi para aplaudirmos as suas virtudes que nos reunimos, e a tarefa que temos hoje é mais exigente. Se é realmente difícil louvarmos as suas qualidades, mais difícil ainda é substituí-las. Camaradas, compete-vos esta noite escolher de entre os que aqui estamos presentes o homem que vai ser Quinta-Feira. Se algum camarada sugerir um nome, eu pô-Io-ei à votação. Se nenhum camarada sugerir um nome, só poderei dizer para comigo que o grande dinamitador, que se foi de entre nós, levou consigo para os abismos desconhecidos o último segredo da sua virtude e da sua inocência.
Houve um frémito de aplausos quase inaudíveis, como por vezes acontece no interior de uma igreja. Depois um homem grande e velho, com uma longa e venerável barba branca, talvez o único verdadeiro trabalhador presente, levantou-se pesadamente e disse:
- Proponho que o Camarada Gregory seja eleito Quinta-Feira e voltou pesadamente a sentar-se.
- Alguém mais quer subscrever a proposta? - perguntou o presidente da sessão.
Um homenzinho de casaco de veludo e barba aparada em ponta fê-lo. - Antes de pormos a proposta à votação - disse o presidente -, vou pedir ao Camarada Gregory que faça uma declaração.
Gregory pôs-se de pé no meio de uma grande salva de aplausos. Tinha no rosto uma palidez mortal, que por contraste fazia com que o seu extravagante cabelo ruivo parecesse quase escarlate. Mas sorria e aparentava um à-vontade perfeito. Tomara a sua decisão, e via a estratégia que concebera como uma via clara e simples que lhe traçava o caminho. O melhor que tinha a fazer era apostar num discurso discreto e ambíguo, de maneira a dar ao detective a impressão de que a fratemidade anarquista era, afinal de contas, um caso absolutamente benigno. Acreditava nos seus próprios dotes literários, na sua capacidade de sugerir cambiantes hábeis e de descobrir palavras certeiras. Pensava que, usando de cautela, conseguiria, apesar daqueles que o rodeavam, transmitir uma impressão subtil e delicadamente falsa da organização. Anteriormente Syme pensara que os anarquistas, a despeito de todas as suas bravatas, se limitavam a desempenhar um papel de imbecis. Não estaria ao seu alcance agora, no momento do perigo, fazer com que Syme voltasse a pensar do mesmo modo?
- Camaradas - começou Gregory, numa voz baixa, mas penetrante -, não preciso de vos falar da orientação que sigo, porque essa orientação é também a vossa. A nossa fé tem sido deturpada, tem sido desfigurada, tem sido inteiramente falsificada e ocultada, mas nunca mudou. Os que falam do anarquismo e dos seus perigos vão procurar as suas informações junto de quem quer que seja e em qualquer lugar, excepto junto de nós, excepto dirigindo-se à nascente. Sabem dos anarquistas por intermédio de romances baratos; sabem dos anarquistas por intermédio dos negociantes de jornais; sabem dos anarquistas por intermédio do Ally Sloper 's Half Holiday e do Sporting Times. Mas nada sabem dos anarquistas por intermédio dos próprios anarquistas. Não temos qualquer oportunidade de negar a difamação colossal que se abate sobre as nossas cabeças de um extremo ao outro da Europa. Aqueles que ouvem dizer a todo o momento que somos uma praga, jamais podem ouvir a nossa réplica. Sei bem de mais que também não será esta noite que o vão ouvir, ainda que a minha paixão irrompa e faça ir pelos ares os telhados. Porque só no fundo, no mais fundo da Terra, é dado aos perseguidos reunirem-se, como os cristãos se reuniam nas catacumbas. Mas se, devido a algum acaso inconcebível, aqui estivesse esta noite um homem que fez uma falsa ideia de nós durante toda a sua vida, eu perguntar-Ihe-ia: «Quando esses cristãos se reuniam nessas catacumbas, que reputação moral tinham nas ruas que passavam lá em cima? Que histórias não contavam sobre eles, falando uns com os outros, os romanos instruídos? E se (dir-Ihe-ia eu), e se estivéssemos a assistir somente a uma repetição desse paradoxo da história, ainda hoje misterioso? E se parecêssemos tão escandalosos como os cristãos por sermos na realidade tão inofensivos como os cristãos? E se fôssemos tidos por tão loucos como os cristãos o foram por sermos na realidade tão mansos como eles?»
Os aplausos que tinham saudado as primeiras frases do discurso foram-se tornando pouco a pouco mais ténues, e interromperam-se bruscamente por completo a estas últimas palavras. No súbito silêncio da sala, o homem de casaco de veludo disse, levantando a voz estridente:
- Eu não sou manso!
- O Camarada Witherspoon - continuou Gregory - diz-nos que não é manso. Ah, como se conhece mal! As suas palavras são, sem dúvida, extravagantes; a sua aparência é feroz, e até (para o gosto comum) pouco atraente. Mas só os olhos de uma amizade tão profunda e delicada como a minha se podem dar conta da solidez dos alicerces da mansidão que sustentam o seu íntimo, pois esses alicerces são tão fundos que nem ele próprio os vê. Repito, somos nós os verdadeiros primeiros cristãos, acontece simplesmente que chegámos demasiado tarde. Somos simples, como eles o eram: senão olhem para o Camarada Witherspoon. Somos modestos, como eles o eram: senão olhem para mim. Somos misericordiosos...
- Não, não - bradou Mr. Witherspoon, com o seu casaco de veludo.
- Digo que somos misericordiosos - repetiu Gregory ardorosamente - como misericordiosos eram os primeiros cristãos. E contudo, isso não os impediu de serem acusados de comerem carne huma na. Nós não comemos carne humana...
- É uma vergonha! - gritou Witherspoon. - Porque não?
- O Camarada Witherspoon - disse Gregory, com uma animação febril - está ansioso por saber por que razão ninguém o come. - Risos. - Na nossa sociedade, em todo o caso, que lhe tem amor since ro, que é baseada no amor...
- Não, não! - disse Witherspoon. - Abaixo o amor.
- ... que é baseada no amor - repetiu Gregory, arreganhando os dentes -, não haverá dificuldades acerca dos fins que devemos visar enquanto corpo organizado, ou que eu deverei visar se for escolhido como representante da organização. Ignorando soberanamente os caluniadores que nos apresentam como assassinos e inimigos da sociedade humana, deveremos continuar a buscar com a nossa coragem moral e uma tranquila convicção intelectual, os ideais perenes da fraternidade e da simplicidade.
Gregory tomou a sentar-se e passou a mão pela testa. Havia um silêncio súbito e embaraçado, mas o presidente levantou-se como um  autómato, e disse numa voz sem cor:
- Alguém se opõe à eleição do Camarada Gregory?
A assembleia parecia vaga e subconscientemente desapontada, e o Camarada Witherspoon agitava-se sem descanso no seu lugar e resmungava para com a sua espessa barba. No entanto, pela força da rotina, deveria ter sido votada e aprovada, se, quando o moderador abriu a boca para propor a votação, Syme não se tivesse levantado e dito em voz baixa e tranquila:
- Sim, senhor presidente, eu oponho-me.
O recurso oratório mais eficaz é uma inesperada mudança de tom.
Mr. Gabriel Syme conhecia manifestamente a arte oratória. Depois de ter dito estas primeiras palavras formais num tom moderado e com uma simplicidade concisa, fez com que a sua palavra seguinte subisse e ressoasse no tecto como se uma das armas que enchiam a sala se tivesse disparado.
- Camaradas! - bradou, numa voz que fez estremecer todos os presentes. - Foi para isto que eu aqui vim? É para ouvir uma conversa destas que vivemos mergulhados no chão como ratos? Poderíamos ouvir esta mesma conversa a comer bolos numa festa da Escola Dominical. Forrámos estas paredes de armas e fechámos aquela porta como se fosse a da morte só para evitar que alguém pudesse entrar e ouvir o Camarada Gregory dizer-nos: «Sede bons, e sereis felizes», «A melhor orientação é a honestidade» e «A virtude é a nossa única recompensa»? Não houve uma só palavra no discurso do Camarada Gregory que um padre não tivesse podido ouvir cheio de prazer (Apoiado! Apoiado!). Mas eu não sou um padre (ruidosos aplausos) e não me dá prazer ouvir coisas assim (aplausos repetidos). Um homem talhado para ser um bom padre não é um homem talhado para ser um Quinta-Feira resoluto, enérgico e eficiente (Apoiado! Apoiado!). O Camarada Gregory disse, num tom de desculpa excessivo, que não somos inimigos da sociedade. Mas eu digo que sim, somos inimigos da sociedade, e tanto pior para ela. Somos inimigos da sociedade, porque a sociedade é inimiga da humanidade, é a sua mais antiga e mais implacável inimiga (Apoiado! Apoiado!). O Camarada Gregory disse-nos, uma vez mais no tom de quem pede desculpa, que não somos assassinos. E eu concordo com ele. Não somos assassinos, somos executores (Aplausos).
Desde o instante em que Syme se pusera de pé, Gregory ficara de olhos cravados nele, com uma expressão de imbecilidade atónita no rosto. Agora, que o discurso se interrompera, os seus lábios de gesso moveram-se, e ele disse, num tom como que puramente automático e sem vida:
- Maldito hipócrita!
Syme enfrentou aqueles olhos tremendos com os seus pálidos olhos azuis, e disse com dignidade:
- O Camarada Gregory acusa-me de hipocrisia. Ele sabe tão bem como eu que cumpro todos os meus compromissos e não faço outra coisa que não seja o meu dever. Não calculo as minhas palavras. Nem pretendo fazê-lo. Digo que o Camarada Gregory é incapaz de ser Quinta-Feira apesar de todas as suas estimáveis qualidades. É incapaz de ser Quinta-Feira devido às suas estimáveis qualidades. Não queremos ver o Conselho Supremo Anarquista infectado por uma compaixão sentimental (Apoiado! Apoiado!). Não temos tempo para afectações de cortesia, nem para afectações de modéstia. Estou contra o Camarada Gregory como estou contra todos os governos da Europa, porque o anarquista que se deu à causa do anarquismo esqueceu a modéstia, tal como esqueceu também o orgulho (Aplausos). A verdade é que não sou um homem. Sou uma causa (Repetidos aplausos).
Estou contra o Camarada Gregory tão impessoal e calmamente como escolheria uma destas pistolas penduradas na parede em vez de outra; e por isso declaro que para não passarmos a ter no Conselho Supremo o leite aguado dos métodos do Camarada Gregory, me proponho eu próprio como candidato...
Estas últimas palavras foram afogadas por uma torrente ensurdecedora de aplausos. Os rostos, cuja expressão se tornara cada vez mais feroz à medida que o discurso se tornava cada vez mais intransigente, contorciam-se agora em esgares de expectativa e deformavam-se soltando brados de regozijo. No momento em que Syme anunciou estar disposto a candidatar-se ao lugar de Quinta-Feira, irrompeu até se tornar descontrolado um rugido de exaltação e aclamação cada vez mais forte, e nesse mesmo momento Gregory levantou-se de um salto, com a boca a espumar, e gritou dirigindo-se aos que gritavam.
- Parem, seus loucos de um raio! - berrou ele, num brado que lhe rasgava a garganta. - Parem...
Mas sobrepondo-se à explosão de Gregory, e sobrepondo-se ao rugido da sala, fez-se ouvir a voz de Syme, ressoando como uma tempestade implacável:
- Não vou para o Conselho para rebater a acusação dos que nos chamam assassinos, mas para a merecer (Aplausos repetidos e sonoros). Ao padre que diz que somos inimigos da religião, ao juiz que diz que somos inimigos da lei, ao parlamentar presunçoso que diz que somos inimigos da ordem e da moralidade públicas, a todos eles eu replicarei: «Sois reis falsos, mas profetas verdadeiros. Estou aqui para vos destruir, e cumprir as vossas profecias.»
O grande clamor foi esmorecendo pouco a pouco, mas antes de ter deixado de se ouvir, Witherspoon pusera-se de pé e, com a barba e o cabelo descompostos, dissera:
- Proponho, como emenda à moção anterior, que elejamos para o lugar o Camarada Syme.
- Parem com isso, já vos disse! - gritou Gregory com o rosto frenético e agitando freneticamente as mãos. - Parem com isso, já basta!
A voz do presidente da sessão cortou-lhe friamente a palavra.
- Alguém mais quer subscrever esta emenda à proposta? - perguntou ele. Viu-se então um homem alto, cansado, com olhos melancólicos e pêra americana, que no último banco se punha lentamente de pé. Gregory, que continuara entretanto a gritar, fazia agora uma pausa para repetir num tom diferente e mais assustador do que todos os gritos:
- Acabem com isso! - disse ele, numa voz que pesava como a pedra.
- Este homem não pode ser eleito. É um...
- Sim - disse Syme, mantendo uma imobilidade perfeita -, é o quê, este homem? - A boca de Gregory abriu-se e tornou a fechar-se duas vezes, sem emitir um som; depois o sangue voltou a encher-lhe o rosto sem vida:
- É um homem sem qualquer experiência do nosso trabalho acabou por dizer, voltando a sentar-se bruscamente.
Antes ainda de o ter feito, o homem alto e magro de pêra americana no queixo tornara a levantar-se e repetia monotonamente com o seu sotaque americano:
- Peço para subscrever a proposta de elegermos o Camarada Syme.
- Como é costume, vamos começar por votar a emenda - disse Mr. Buttons, o presidente da sessão, falando com uma rapidez mecânica.
- A questão é que o Camarada Syme...
Gregory levantara-se de novo de um pulo, apaixonado e ofegante. - Camaradas - gritou ele -, eu não estou louco.
- Oh, oh! - disse Mr. Witherspoon.
- Não estou louco - reiterou Gregory, com uma sinceridade aterradora que por um momento deixou suspensa a sala -, mas vou dar-vos um conselho a que vocês poderão chamar louco, se quiserem. Não, não lhe chamarei um conselho, porque não vos posso dar qualquer razão que o explique. Chamo-lhe uma ordem. Chamem-lhe uma ordem louca, mas sigam-na. Indignem-se, mas ouçam-me! Matem-me, mas ouçam-me! Não elejam este homem. - A verdade, ainda que acorrentada, é tão terrível que por um momento o ardil de Syme e a sua vitória demencial vergou como um vime batido pelo vento. Mas ninguém o poderia ter adivinhado olhando os olhos frios e azuis de Syme, que disse simplesmente:
- O Camarada Gregory ordena...
O encanto quebrou-se, e um dos anarquistas interpelou Gregory: - Quem julga você que é? Você não é o Domingo -, e outro de entre eles acrescentou carregando o tom:
- Nem Quinta-Feira.
- Camaradas! - gritou Gregory, na voz de um mártir que num êxtase de dor passasse para lá da dor. - Pouco me importa que me detestem considerando-me um tirano, ou que me detestem considerando-me um escravo. Se não aceitam a minha ordem, aceitem a minha humilhação. Se quiserem, ponho-me de joelhos. Rojo-me por terra aos vossos pés. Mas suplico-vos: Não elejam este homem.
- Camarada Gregory - disse o presidente da sessão depois de uma pausa dolorosa -, a sua atitude não é propriamente digna.
Pela primeira vez desde o início dos trabalhos houve alguns segundos de efectivo silêncio. A seguir, Gregory tornou a sentar-se, como um pálido destroço humano, e o presidente repetiu como o mecanismo de um relógio que subitamente recomeçasse a funcionar:
- Temos de decidir agora da eleição do Camarada Syme para o lugar de Quinta-Feira no Conselho Geral.
Levantou-se um rugido como que do mar, levantaram-se mãos que eram como que as árvores de uma floresta, e três minutos depois Mr. Gabriel Syme, dos serviços secretos da polícia, era eleito para o lugar de Quinta-Feira do Conselho Geral dos Anarquistas da Europa.
Todos os presentes na sala pareceram dar-se então conta de que a lancha estava à espera no rio, e a bengala de estoque e o revólver à espera em cima da mesa. O momento eleitoral estava concluído e os seus termos eram irrevogáveis, Syme recebera o documento que certificava a sua eleição, e todos se puseram de pé, misturando-se uns com os outros na sala em pequenos grupos exaltados. Sem saber bem como, Syme viu-se subitamente cara a cara com Gregory, que continuava a olhá-lo fixamente com uma expressão de ódio cerrado nos  olhos. Durante alguns minutos, mantiveram-se os dois em silêncio.
- Você é um demónio! - disse por fim Gregory.
- E você um cavalheiro - disse Syme com gravidade.
- Foi você que me montou uma cilada - começou Gregory, tremendo da cabeça aos pés -, que me fez cair numa...
- Não diga disparates - disse Syme secamente. - Se quer discutir o assunto, pense na assembleia de demónios em que me meteu. Foi você quem começou por me obrigar a jurar. Talvez estejamos os dois a fazer o que cada um de nós acha que está certo. Mas o que cada um de nós acha que está certo são coisas tão desesperadamente contraditórias que nenhum de nós pode ceder seja no que for. Entre nós a honra e a morte são tudo o que resta, e nada mais - e, com estas palavras, pôs a grande capa por cima dos ombros e pegou na garrafa que estava em cima de mesa.
- A lancha está a postos - disse Mr. Buttons, apressando-se. Tenha a bondade de vir por aqui.
Com um gesto que denunciava o caixeiro de uma loja, o homem guiou Syme ao longo de um pequeno corredor com as paredes revestidas de ferro, com um Gregory ainda não resignado a seguir-lhe febrilmente cada passo. Ao fundo do corredor, havia uma porta, que Buttons abriu bruscamente, revelando no mesmo instante, como que num cenário de teatro, a imagem a azul e prata do rio iluminado pela lua. A dois passos da saída, estava uma lancha a vapor negra e às escuras, como uma cria de dragão, com o seu único olho vermelho.
Antes de entrar para bordo, Gabriel Syme virou-se para um Gregoryestupefacto.
- Manteve a sua palavra - disse ele com delicadeza, com o rosto escondido pela sombra. - É um homem honrado e eu devo-lhe a minha gratidão. Cumpriu a sua palavra até ao último pormenor. Prometeu-me de início qualquer coisa de muito especial e a verdade é que acabou por ma dar.
- O que é que está para aí a dizer? - gritou Gregory, transtornado. - O que é que eu lhe prometi?
- Uma noite muito animada - disse Syme, e executou com a bengala de estoque uma saudação militar enquanto a lancha partia.
A História de Um Detective
Gabriel Syme não era simplesmente um detective que se apresentava como poeta; era na realidade um poeta que se tomara detective. E o seu ódio à anarquia não era também hipócrita. Era uma dessas pessoas que desde muito cedo são levadas a adoptar uma atitude demasiado conservadora receando a loucura da maior parte dos revolucionários. Não era conservador por obediência a uma tradição conformista. A sua respeitabilidade era de origem espontânea e súbita, nascera de uma revolta contra a revolta. Vinha de uma família de fanáticos, cujos membros mais velhos alimentavam todas as ideias mais modernas. Um dos seus tios saía sempre sem chapéu, e tinha outro que tentara sem êxito sair só com um chapéu a cobri-lo. O seu pai cultivava a arte e a realização pessoal; a sua mãe era adepta da simplicidade e da higiene. O resultado fora que o seu filho crescera sem conhecer outra bebida entre os extremos do absinto e do cacau, detestando saudavelmente tanto o primeiro como o segundo. Quanto mais a sua mãe pregava uma abstinência ultra-puritana, mais o pai defendia uma licença ultra-pagã; e quando a primeira acabara por se tornar advogada de uma dieta vegetariana, o segundo quase se dispusera a defender o canibalismo.
Rodeado desde a infância por todas as variedades imagináveis de revolta, Gabriel tinha de arranjar maneira de se revoltar também, e acabara por se revoltar aderindo à única causa que lhe restava - a do bom senso. Mas herdara no sangue fanatismo suficiente para tomar a sua defesa da sensatez como que demasiado feroz para ser sensata. Um acidente tomara, entretanto, o seu ódio ao desregramento moderno no ainda mais exaltado. Uma vez, numa rua secundária, fora testemunha de um atentado por meio de uma explosão de dinamite. Por um momento ficara cego e surdo, e depois vira, enquanto o fumo se dissipava, as janelas rebentadas e os rostos ensanguentados. Daí em diante, continuou a comportar-se como de costume - com as suas maneiras discretas, corteses, extremamente atenciosas; mas uma parte do seu espírito deixara de funcionar com lucidez. Não considerava os anarquistas, como a maior parte das pessoas faz, um simples punhado de mentes doentias, sofrendo de um misto de ignorância e de intelectualismo. Considerava-os uma ameaça implacável e enorme, como uma espécie de invasão chinesa.
Inundava incessantemente os jornais e os cestos de papéis das redacções com torrentes de histórias, versos e artigos violentos, alertando a humanidade para aquele dilúvio de negações bárbaras. Mas parecia não conseguir assim nem aproximar-se dos seus inimigos, nem, o que era pior ainda, da sua própria vida. Quando percorria as margens do Tamisa, mordendo com amargura a ponta de um charuto barato e cismando nos progressos da anarquia, não havia anarquista que, com a sua bomba no bolso, fosse tão selvagem e solitário como ele. Na realidade, acreditava a todo o momento que o Governo estava isolado e desesperado, encostado à parede. Era demasiado quixotesco para poder ver as coisas noutros termos.
Pusera-se uma vez a passear pela margem sob o céu vermelho e sombrio do poente. O rio vermelho reflectia o céu vermelho, e ambos reflectiam a sua fúria. O céu, com efeito, estava tão escuro, e a luz sobre o rio era tão dúbia, que a água mais parecia uma labareda do que um espelho onde se espelhava o crepúsculo. Dir-se-ia uma corrente de fogo que atravessasse as grandes cavernas de um país subterrâneo.
Nessa altura, Syme tinha um aspecto lamentável. Trazia um chapéu alto preto e fora de moda; embrulhava-se num casacão preto e coçado, ainda mais fora de moda, e esta indumentária fazia-o parecer um velho patife saído das páginas de Dickens ou de Bulwer Lytton. A sua barba e o seu cabelo alourados eram também nesse tempo muito mais desleixados e leoninos do que pareceriam, cortados e penteados, na época bem mais tardia da sua visita ao jardim de Saffron Park. Entre os dentes cerrados apertava um charuto, negro e magro, comprado no Soho por dois pence, e exibia, no conjunto, o aspecto de um exemplar convincente desses anarquistas aos quais declarara guerra santa. Talvez tenha sido por isso que, no Embankemt, um polícia o interpelou, dizendo-lhe:
- Boa tarde.
Syme, num paroxismo dos seus receios pela sorte da humanidade, pareceu espicaçado pela simples solidez e automatismo de maneiras do agente, daquele vago vulto azul à luz do crepúsculo.
- Acha que é isto uma boa tarde? - respondeu ele com rispidez. - Vocês são uns tipos capazes de chamar boa tarde ao fim do mundo. Olhe para este sol vermelho de sangue e para este rio de sangue! O que lhe digo é que se aquilo fosse realmente sangue humano, jorros de sangue derramado, você continuaria aí onde está, tão firme como antes, à procura de um vadio inofensivo qualquer para o obrigar a pôr-se a andar. Vocês, os polícias, são cruéis para com os pobres, mas eu até isso vos perdoaria se não fosse a vossa calma.
- Se temos calma - replicou o polícia -, é a calma da resistência organizada.
- Como assim? - disse Syme, surpreendido.
- O soldado tem de se manter calmo em plena batalha - continuou o polícia. - A compostura do exército é a fúria da nação.
- Meu Deus, as escolas oficiais! - disse Syme. - É isso a educação laica?
- Não - disse tristemente o polícia -, nunca pude gozar desses benefícios. As escolas oficiais não existiam no meu tempo. Receio ter recebido uma educação muito sumária e antiquada.
- E onde foi que a recebeu? - perguntou Syme, surpreendido. - Oh, em Harrow - disse o polícia.
A simpatia de classe que, apesar da sua falsidade, são o que há de mais verdadeiro em muita gente, fizeram com que Syme explodisse antes de ter tempo para se controlar.
- Homem, valha-me Deus - disse ele -, mas você não devia ser polícia!
O polícia suspirou e sacudiu a cabeça.
- Eu sei - disse ele solenemente -, sei que não sou digno.
- Mas porque é que entrou para a polícia? - perguntou Syme com uma curiosidade brutal.
- Pois pela mesma razão que o leva a falar mal dela - replicou o outro. - Pensei que o serviço proporcionaria uma oportunidade especial para quem os receios que experimentam pela humanidade têm por origem mais as aberrações do espírito científico do que as explosões normais e desculpáveis, ainda que excessivas, da vontade humana. Espero estar a ser suficientemente claro.
- Se quer dizer que está a exprimir claramente a sua opinião disse Syme -, suponho que sim. Mas quanto à clareza de ideias, isso é coisa de que me parece completamente desprovido. Que faz um homem que fala de filosofia nesses termos com um capacete azul na cabeça, à beira do Tamisa?
- É evidente que você não está a par das evoluções mais recentes do nosso sistema policial - replicou o outro. - O que não me admira. Furtamo-lo o mais que podemos à atenção da classe mais instruída, porque é nessa classe que se encontra a maioria dos nossos inimigos. Mas você parece estar rigorosamente de acordo connosco. Acho que poderia quase juntar-se a nós.
- Juntar-me a vocês para fazer o quê? - perguntou Syme.
- Eu explico-lhe - disse vagarosamente o polícia. - A situação é a seguinte. O chefe de um dos nossos departamentos, um dos mais célebres detectives da Europa, é há muito tempo já da opinião de que uma conspiração puramente intelectual em breve ameaçará a existência da própria civilização. Tem a certeza de que os mundos científico e artístico estão empenhados numa cruzada silenciosa contra a Família e o Estado. Consequentemente, formou um corpo especial de polícias, polícias que são também filósofos. A sua tarefa é observar os primeiros passos dessa conspiração, não no plano simplesmente criminal, mas também no do debate de ideias. Sendo eu próprio um democrata, tenho plena consciência do que vale o homem comum no campo dos valores e da virtude comuns. Mas seria obviamente indesejável usar polícias comuns numa investigação que é ao mesmo tempo uma caçada à heresia.
Os olhos de Syme brilhavam de empática curiosidade.
- O que é que vocês fazem, então? - disse ele.
- O trabalho de um polícia filosófico - replicou o homem de azul - é ao mesmo tempo mais audacioso e mais subtil do que o de um detective comum. O detective comum vai às tabernas prender ladrões; nós vamos a chás artísticos para detectar pessimistas. O detective comum descobre por meio de um livro de contas ou de um diário que foi cometido um crime. Nós descobrimos por meio de um livro de sonetos que está em preparação um crime. Temos de reconstituir a origem desses pensamentos medonhos que acabam por impelir os homens ao fanatismo e ao crime intelectual. Só pudemos intervir a tempo de impedir o homicídio de Hartlepool graças ao facto de o nosso Mr. Wilks, um jovem extremamente perspicaz, ter conseguido interpretar acertadamente um rondó.
- Acha então - perguntou Syme - que há realmente uma relação causal tão forte entre o crime e o espírito moderno?
- Você não é suficientemente democrático - respondeu o polícia -, mas tinha razão quando disse há pouco que geralmente tratamos os crimes dos pobres de um modo bastante brutal. Digo-lhe que às vezes o meu ofício me dá vómitos por se parecer tantas vezes com uma guerra sem quartel movida contra os ignorantes e os desesperados. Mas esta nova orientação que adoptámos é completamente diferente. Opomo-nos à enfatuada ideia feita inglesa segundo a qual os criminosos mais perigosos são seres sem instrução. Lembramo-nos dos imperadores romanos. Lembramo-nos desses grandes envenenadores que foram os príncipes do Renascimento. Dizemos que o criminoso perigoso é o criminoso instruído. Dizemos que o criminoso mais perigoso dos dias de hoje é o moderno filósofo absolutamente contrário a qualquer lei. Por comparação com ele, os ladrões e os bígamos são homens essencialmente morais; o meu coração compreende-os bem. Aceitam o ideal essencial do homem; erram somente buscando-o como o fazem. Os ladrões respeitam a propriedade. Limitam-se a desejar que a propriedade seja deles para a respeitarem mais perfeitamente. Mas os filósofos detestam a propriedade enquanto propriedade; querem destruir a própria ideia de posse pessoal. Os bígamos respeitam o casamento; caso contrário, não aceitariam as formalidades altamente cerimoniais e até ritualistas da bigamia. Mas os filósofos desprezam o casamento enquanto casamento. Os homicidas respeitam a vida humana; limitam-se a desejar aceder a uma plenitude maior da sua vida humana através do sacrifício do que consideram vidas inferiores. Mas os filósofos odeiam a própria vida, e tanto a sua própria vida como a das outras pessoas.
Syme bateu as palmas das mãos.
- Isso é bem verdade - exclamou. - Foi isso que senti desde rapaz, mas nunca cheguei a conseguir formular essas antíteses. O criminoso comum é um homem mau, mas é pelo menos, por assim dizer, um homem condicionalmente bom. Afirma que basta que este ou aquele obstáculo, como, por exemplo, um tio rico, seja removido do seu caminho, para que ele se disponha a aceitar o universo e a entoar louvores a Deus. É um reformador, mas não um anarquista. Deseja limpar o edifício, mas não destruí-lo. Mas o filósofo maldoso não está a tentar transformar as coisas, está a tentar aniquilá-las. Sim, o mundo moderno manteve todos esses aspectos do trabalho da polícia que são realmente opressivos e infames, a perseguição dos pobres, a incriminação dos miseráveis. E abandonou a parte mais digna do nosso trabalho, a punição dos traidores poderosos na esfera do Estado e dos heresiarcas poderosos na esfera da Igreja. Os modernos dizem que não devemos punir os hereges. Mas a minha dúvida é se teremos o direito de punir alguém mais que não eles.
- Mas é absurdo! - gritou o polícia, batendo as mãos com uma exaltação pouco costumada em pessoas da sua conformação e uniforme. - É intolerável! Não sei o que faz você, mas sei que está a desperdiçar a sua vida. Você deve, você tem de se juntar ao nosso exército especial de combate à anarquia. As tropas dela invadem as nossas fronteiras. Os seus raios preparam-se para nos fulminar. Se perder um momento mais que seja, talvez perca a glória de trabalhar connosco, talvez perca a glória de morrer com os últimos heróis deste mundo.
- É uma ocasião a não perder, disso não duvido - concordou Syme. - Mas ainda não compreendi bem. Sei como toda a gente que o mundo moderno está cheio de pequenos homens sem lei e de pequenos movimentos desvairados. Mas, apesar da sua bestialidade, têm de um modo geral o mérito de se oporem uns aos outros. Como é que você pode falar deles como se dirigissem um exército ou brandissem um raio? Que anarquia é essa?
- Não a confunda - replicou o agente da lei - com essas explosões de dinamite que acontecem na Rússia ou na Irlanda, e que são de facto explosões cuja origem são homens oprimidos, embora enganados. Eu estou a falar-lhe de um amplo movimento filosófico, que comporta um círculo exterior e um círculo interior. Poderíamos chamar ao círculo exterior o dos leigos e ao círculo interior o dos sacerdotes. Por mim, prefiro chamar ao círculo exterior a secção inocente, e ao círculo interior a suprema secção culpada. O círculo exterior, ou grande massa dos adeptos, são simples anarquistas; quer dizer, de homens que acreditam que as regras e as fórmulas destruíram a felicidade humana. Acreditam que todos os resultados diabólicos do crime humano são resultados do sistema que o designou como crime. Não acreditam que tenha sido o crime a criar o castigo. Acreditam que foi o castigo a criar o crime. Acreditam que um homem, depois de ter seduzido sete mulheres, poderá seguir o seu caminho com toda a inocência natural, como a das flores da Primavera. Acreditam que um homem, depois de ter roubado uma carteira, poderá experimentar um delicioso bem-estar natural. É aos que pensam assim que chamo a secção inocente.
- Oh! - disse Syme.
- Logicamente, portanto, essas pessoas falam dos «felizes tempos por vir», do «paraíso do futuro», da «humanidade livre das cadeias do vício e das cadeias da virtude», e assim por diante. E é assim que falam também os membros do círculo interior, do sacerdócio sacrossanto. Esses falam nos mesmos termos às massas exaltadas da felicidade do futuro, de uma humanidade enfim liberta. Mas nas suas bocas - e o polícia baixou a voz -, nas suas bocas estas palavras animadoras adquirem um sentido horrível. Porque aqueles que então as dizem não têm ilusões; são demasiado intelectuais para acreditarem que o homem possa alguma vez neste mundo livrar-se de facto do pecado original e da guerra. E é a morte que visam. Quando dizem que a humanidade será finalmente livre, isso quer dizer o suicídio da humanidade. Quando falam de um paraíso sem justiça nem injustiça, isso quer dizer a sepultura. Não têm senão dois objectivos: o de destruírem primeiro a humanidade para se destruírem depois a si próprios. É por isso que usam bombas em vez de dispararem pistolas. Os ingénuos militantes comuns sentem-se desapontados pelo facto de a bomba não ter matado o rei; mas os sumos sacerdotes sentem-se felizes porque a bomba matou gente.
- Como posso juntar-me a vocês? - perguntou Syme, com uma espécie de paixão.
- Sei por acaso que neste momento há uma vaga - disse o polícia -, pois tenho a honra de gozar de certa confiança por parte do chefe de que lhe falei há pouco. A verdade é que você tem realmente de vir comigo e de o ver. Ou melhor, eu não devia ter dito vê-lo, porque nunca ninguém o vê; mas tem de vir e poderá falar com ele, se desejar.
- Pelo telefone? - inquiriu Syme, interessado.
- Não - disse placidamente o polícia -; ele tem por regra estar sempre fechado numa sala completamente às escuras. Diz que os seus pensamentos se tomam assim mais luminosos. Venha comigo.
Um tanto aturdido e consideravelmente excitado, Syme deixou-se conduzir até uma porta lateral de uma longa ala de edifícios da Scotland Yard. Quase antes de saber o que fazia, passou pelas mãos de quatro agentes intermédios, e viu-se depois bruscamente introduzido numa sala, cuja súbita treva o deslumbrou como um clarão fulgurante.
Não era a escuridão comum, em cujo interior se vislumbram tenuemente algumas formas; era como que uma cegueira repentina e absoluta.
- É você o novo recruta? - perguntou uma voz pesada.
E de uma maneira estranha, embora não se recortasse na treva a sombra de uma forma, Syme soube duas coisas: primeiro, que a voz vinha de um homem de enorme estatura; e segundo, que esse homem estava de costas voltadas para ele.
- É você o novo recruta? - disse o chefe invisível, que parecia estar completamente informado a seu respeito. - Muito bem. Está alistado.
Syme, tomado de uma vacilação profunda, debateu-se debilmente ao ouvir aquelas palavras irrevogáveis.
- A verdade é que não tenho experiência - começou ele.
- Ninguém tem experiência - disse o outro - da Batalha de Armagedão.
- Mas é que eu não estou realmente preparado...
- Mas tem o querer, e é quanto basta - disse o desconhecido. - Bom, mas o certo - disse Syme - é que não conheço outra profissão em que o simples querer seja o critério decisivo.
- Conheço eu - disse o outro -, a dos mártires. Estou a condená-lo à morte. Bom dia para si.
Foi assim que, ao sair de novo para a luz rubra do entardecer, Gabriel Syme, com o seu andrajoso chapéu preto e a sua andrajosa casaca de fora da lei, se tomara já membro do Novo Corpo de Detectives, encarregado de fazer gorar a grande conspiração. Agindo segundo o conselho do seu amigo polícia (profissionalmente apegado ao asseio), compôs a barba e o cabelo, comprou um bom chapéu, presenteou-se com um magnífico fato de Verão cinzento azulado e claro, pôs uma pálida flor amarela na botoeira, e, em suma, converteu-se nesse personagem elegante e notavelmente insuportável que Gregory viu pela primeira vez no pequeno jardim de Saffron Park. Por fim, antes de sair das instalações da polícia, o seu amigo forneceu-lhe um pequeno cartão azul, atestando oficialmente a sua autoridade, e no qual se podiam ler as palavras «A Última Cruzada», seguidas de um número. Guardou cuidadosamente o cartão no bolso de cima do casaco, acendeu um cigarro, e pôs-se a caminho a fim de detectar e combater o inimigo nos salões de Londres. Já vimos onde a aventura acabara por levá-lo. Por volta da uma e meia de uma noite de Fevereiro, deu por si a navegar a vapor a bordo de uma lancha pelas águas silenciosas do Tamisa, armado de uma bengala de estoque e de um revólver, depois de devidamente eleito para o lugar de Quinta-Feira no Conselho Central dos Anarquistas.
Quando subiu para bordo da lancha, Syme teve a impressão singular de ter entrado em qualquer coisa de inteiramente novo: não simplesmente na paisagem de uma nova terra, mas antes na paisagem de um novo planeta. Tal ficava principalmente a dever-se à sua insensata mas sólida decisão daquela noite, mas em parte também a uma mudança completa do tempo e do aspecto do céu desde o momento em que entrou na pequena taberna havia cerca de duas horas. Nada restava já da plumagem apaixonada do poente nublado de então, e uma lua exposta em toda a sua nudez brilhava na completa nudez do céu. O luar era tão intenso e luminoso que (por um efeito paradoxal frequentemente observado) parecia um céu enfraquecido. E dava a impressão não de um luar fulgurante, mas de uma luz solar morta.
Cobria toda a paisagem uma descoloração luminosa e artificial, como a desse crepúsculo de desastre que Milton descreveu por ocasião de um eclipse do Sol; e assim Syme tomou a ceder com facilidade à sua ideia anterior, de ter chegado a um planeta diferente e mais vazio, que girasse em tomo de uma estrela mais triste. Mas quanto mais experimentava a desolação cintilante da paisagem enluarada, mais fortemente ardia nele a sua loucura cavalheiresca como um grande fogo nocturno. Até as coisas banais que trazia consigo - a comida e a aguardente e a pistola carregada - adquiriam essa poesia concreta e material que uma criança sente quando pega numa arma e sai a passear com ela ou leva consigo um biscoito para a cama. A bengala de estoque e garrafa de brandy, embora por si sós não passassem de instrumentos de conspiradores mórbidos, tomavam-se expressões da sua aventura bem mais saudável. A bengala de estoque quase se transformara numa espada de cavaleiro, e o brandy no vinho do cálice do Graal. Porque até mesmo as modernas fantasias mais desumanizadas assentam em figuras mais antigas e mais simples: as aventuras podem ser dementes, mas o aventureiro tem de ser lúcido. O dragão sem São Jorge não chegaria a ser sequer grotesco. E do mesmo modo aquela paisagem inumana só apelava à imaginação graças à presença de um homem realmente humano. Para o espírito hiperbólico de Syme, as casas iluminadas e frias e os terraços junto ao Tamisa pareciam tão vazias como as montanhas da Lua. Mas a própria Lua só é poética porque há um homem na Lua.
A lancha era manobrada por dois homens, e avançava a custo e comparativamente devagar. A lua clara que brilhara sobre Chiswick escondera-se já quando passaram Battersea, e quando se aproximavam da enorme massa de Westminster o dia quase começara a romper. Rompeu como grandes barras de chumbo que se desfizessem, revelando no seu interior barras de prata; e a prata brilhava como um fogo branco quando a lancha, mudando de curso rio acima, chegou a um longo cais já para além de Charing Cross.
Quando Syme olhou para cima, as grandes pedras do cais pareceram-lhe sombrias e gigantescas. Recortavam-se enormes e negras contra a brancura imensa do amanhecer. Deram-lhe a impressão de estar a preparar-se para desembarcar diante da escadaria colossal de um palácio egípcio; e, com efeito, isso condizia com o seu humor, porque, em pensamento, Syme se dispunha a atacar os sólidos tronos de atrozes reis pagãos. Saltou do barco para uma base de pedra escorregadia, e ali ficou, recortando-se como uma figura obscura e esguia, no meio da mole enorme do cais. Os dois tripulantes da lancha afastaram-se subindo a corrente do rio. Não tinham dito uma palavra.
O Festim do Medo
A princípio os grandes degraus de pedra pareceram a Syme tão desertos como uma pirâmide; mas antes de acabar de os subir deu-se conta de que havia um homem encostado ao parapeito do cais virado para a outra margem. Era uma figura de aparência inteiramente convencional, com o seu chapéu de seda e a sua casaca de corte estritamente correcto; trazia uma flor vermelha na botoeira. Enquanto Syme subia aproximando-se dele degrau após degrau, manteve-se imóvel da cabeça aos pés; e Syme, agora mais perto do homem, pôde distinguir, apesar da pouca claridade e da fraca luz da manhã que o seu rosto era alongado, pálido e intelectual, rematado por um pequeno tufo triangular de barba negra precisamente na ponta do queixo, emoldurado pelas faces escanhoadas a rigor. O tufo de barba quase parecia efeito de uma distracção; todo o resto do rosto era do tipo que ganha em se apresentar bem barbeado: traços definidos, ascético, e de certo modo nobre. Syme continuou a aproximar-se, observando todos estes pormenores, e a figura mantinha-se imóvel.
O instinto dissera a Syme desde o primeiro momento que era com aquele homem que ali tinha encontro marcado. Depois, vendo que o homem não lhe dirigia o mínimo sinal, concluíra que se enganara. Agora voltava a ter a certeza de que aquele homem entrava de uma maneira ou de outra na sua louca aventura. Porque o homem se conservava mais inalterável do que aquilo que seria natural perante uma tão extrema proximidade de um estranho. Mantinha-se imóvel como uma figura de cera, a tal ponto que se tomava de certa maneira enervante. Syme olhou uma e outra vez aquele rosto digno, delicado e pálido, e o rosto continuou a olhar o rio com a mesma expressão ausente. Tirou então do bolso a nota redigida por Buttons que comprovava a sua eleição, e pô-lo diante dos olhos daquele rosto belo e triste. O homem sorriu por fim, e o seu sorriso foi um choque, porque cobria apenas uma parte das suas feições, subindo pela face direita e descendo pela esquerda.
Aquilo, racionalmente falando, nada tinha de assustador. Muitas pessoas têm esse trejeito nervoso que lhes distorce o sorriso, e isso nalguns casos é até um traço atraente. Mas nas circunstâncias de Syme, naquele amanhecer sombrio, com a sua missão mortal e a sua solidão no meio daquelas grandes pedras inclinadas, era qualquer coisa de inquietante.
Ali estava o rio silencioso e o homem silencioso, um homem cujas feições eram afinal clássicas. E por fim, o último retoque do pesadelo, o daquele sorriso bruscamente contorcido.
O espasmo sorridente não durou mais do que um instante, e o rosto do homem mergulhou de novo na sua melancolia harmoniosa. Começou a falar sem mais explicações ou perguntas, como alguém que falasse com um velho colega.
- Se formos andando até Leicester Square - disse ele -, ainda chegaremos a tempo para o pequeno-almoço. O Domingo faz sempre questão de que o pequeno-almoço seja cedo. Dormiu alguma coisa?
- Não - disse Syme.
- Nem eu - tornou o homem num tom banal. - Vou tentar deitar-me um bocado depois do pequeno-almoço.
Falava com uma civilidade despreocupada, mas numa voz caracteristicamente morta que contradizia o fanatismo do seu rosto. Era como se as suas palavras quase amistosas fossem para ele fórmulas de conveniência sem vida, e a sua única vida fosse o ódio. Depois de uma pausa, voltou a falar.
- É claro que o Secretário da secção lhe disse tudo o que pode ser dito. Mas a única coisa que nunca seja quem for pode dizer é a última ideia do Presidente, porque as ideias dele crescem com a profusão de uma floresta tropical. Assim, para o caso de não ter sido informado, o melhor é eu dizer-lhe que ele está agora a levar até extremos nunca antes vistos a sua ideia de que a maneira ideal de nos escondermos é não nos escondermos. A princípio, é claro, reuníamo-nos numa cela subterrânea, como faz a sua secção. A seguir, o Domingo passou a dizer-nos que reservássemos para as reuniões uma sala de restaurante como as outras. Dizia que se não déssemos a impressão de estarmos a esconder-nos ninguém nos perseguiria. Bom, bem sei que, na Terra, ele é um homem único; mas de vez em quando penso que na realidade o seu cérebro imenso começa a enlouquecer um pouco com a idade. Porque agora exibimo-nos abertamente diante dos olhos do público. Tomamos o pequeno-almoço numa varanda, sim, veja bem, numa varanda, que dá sobre Leicester Square.
- E o que é que as pessoas dizem? - perguntou Syme.
- Uma coisa extremamente simples - respondeu o seu guia.
Dizem que somos meia-dúzia de refinados cavalheiros que se declaram anarquistas.
- Uma ideia muito inteligente, acho eu - disse Syme.
- Inteligente! Deus há-de castigar o seu atrevimento! Inteligente!
- gritou o outro numa voz estridente, intempestiva, que era tão desconcertante e insólita como o seu sorriso torto. - Um segundo depois de ver o Domingo, não continuará a chamar-lhe inteligente.
Entraram deste modo numa rua estreita, e viram como a luz matinal do sol enchia Leicester Square. Nunca se saberá, ao que suponho, por que razão esta praça se mostra, pelo seu lado, tão estranha e tem de certa maneira um ar tão continental. Nunca se saberá se foi a sua aparência estrangeira que a ela atraiu os estrangeiros, ou se foram os estrangeiros que lhe deram o que há de estrangeiro na sua aparência. Mas naquela precisa manhã, essa sugestão de estranheza parecia singularmente luminosa e clara. Entre a praça aberta, o brilho das folhas e as linhas sarracenas do Alhambra, dir-se-ia a réplica de uma praça pública francesa senão mesmo espanhola. E essa sugestão tinha por efeito reforçar em Syme a impressão, que sob múltiplas formas já antes experimentara ao longo da sua aventura, essa impressão misteriosa de ter sido introduzido num novo mundo. A verdade era que comprara maus charutos em Leicester Square desde os seus tempos de rapaz. Mas quando, ao dobrar da esquina, viu as árvores e as cúpulas mouriscas, poderia jurar que estava a entrar nalguma place de..., ou noutra praça igualmente desconhecida de uma cidade estrangeira.
A um dos cantos da praça projectava-se como uma espécie de esquina um hotel caro mas tranquilo, cuja massa principal se situava numa rua traseira. Na parede havia uma grande janela à francesa, provavelmente a vidraça de um café do hotel; e do lado de fora da janela, sobrepujando quase literalmente a praça, uma formidável varanda com a sua balaustrada, tão grande que nela poderia instalar-se à vontade uma mesa de jantar. E, com efeito, uma mesa de jantar fora posta na varanda - ou, mais propriamente, uma mesa de pequeno-almoço; e à roda da mesa de pequeno-almoço, brilhando à luz do sol e evidente aos olhos de quem passasse na rua, via-se um grupo de homens ruidosos e loquazes, todos eles insolentemente vestidos ao gosto da moda mais recente, com casacas brancas e luxuosas flores nas botoeiras. Alguns dos seus gracejos quase podiam ser ouvidos na praça inteira. Depois, o grave Secretário exibiu o seu sorriso artificial, e Syme soube que aquele clamoroso pequeno-almoço era o conclave secreto dos Dinamitadores da Europa.
Enquanto continuava a olhar para eles, Syme viu então alguma coisa que até esse momento ainda não vira. Não a vira porque era literalmente demasiado grande para que se visse. Ao canto mais próximo da varanda, bloqueando uma boa parte da perspectiva, encontravam-se as costas de uma enorme montanha que era um homem. Ao vê-lo, o primeiro pensamento de Syme foi que o seu peso derrubaria a varanda de pedra. A sua vastidão não residia apenas no facto de o homem ser anormalmente alto e absolutamente inacreditável de tão gordo. Era um homem cuja imensidão correspondia aos planos das suas proporções originais, como uma estátua deliberadamente colossal. A cabeça, coroada pelo cabelo branco, parecia vista de baixo para cima maior do que deve ser uma cabeça. As orelhas que dela sobressaíam pareciam maiores do que quaisquer orelhas humanas. A sua envergadura era terrivelmente desmedida; e a impressão que as suas dimensões causavam, tão assombrosa, que, ao vê-lo, todos os restantes personagens pareceram a Syme minguar subitamente, transformando-se em figuras anãs. Os outros continuavam sentados onde estavam, como havia pouco, com as suas flores e as suas casacas, mas dir-se-ia agora que aquele homem enorme convidara para um chá cinco crianças.
Quando Syme e o guia se aproximavam da porta lateral, apareceu ao seu encontro um empregado do hotel, exibindo quantos dentes tinha no sorriso.
- Os cavalheiros estão lá em cima, meus senhores - disse ele. Estão a conversar e riem com as coisas que dizem. Dizem que vão atirar uma bomba ao rei.
E o empregado afastou-se à pressa com um guardanapo dobrado por cima do braço, extremamente divertido com a frivolidade singular dos cavalheiros lá de cima.
Os dois homens subiram as escadas em silêncio.
A nenhum momento passara pela cabeça a Syme perguntar se o homem monstruoso que quase enchia e fazia ceder a varanda sob o seu peso era de facto o grande Presidente que tanto temor causava a todos os outros. Sabia que era ele - soubera-o com uma certeza inexplicável, mas instantânea. Na realidade, Syme era um desses seres que, num grau com o seu quê de perigoso para a saúde do espírito, apreendem no ar toda a espécie de influências psicológicas mais ou menos inomináveis. Invulgarmente livre de medos perante o risco físico, era sem dúvida demasiado sensível ao cheiro do mal espiritual. Já por duas vezes durante a noite duas pequenas coisas insignificantes o tinham quase sensualmente alertado, dando-lhe a impressão de que estava a aproximar-se cada vez mais do quartel-general do inferno. E esta sensação tomava-se agora de uma evidência arrasadora àmedida que se ia aproximando do grande Presidente.
Experimentava-a sob a forma de uma fantasia infantil, mas ao mesmo tempo medonha. Enquanto atravessava o interior da sala a caminho da varanda, o grande rosto de Domingo tomava-se cada vez maior; e Syme sentia-se presa do medo de ver aquele rosto tomar-se, quando se aproximasse dele, demasiado grande para lhe ser possível suportá-lo, e de começar a gritar. Lembrava-se de em criança não ser capaz de olhar para a máscara de Memnon no Museu Britânico, por a máscara representar um rosto e ser tão grande.
Com um esforço, que reclamava mais bravura do que saltar do alto de uma falésia, encaminhou-se para um lugar por ocupar da mesa do pequeno-almoço e sentou-se. Os outros saudaram-no com ditos jovialmente trocistas, como se o conhecessem desde sempre. Syme tranquilizou-se um tanto observando os seus trajes convencionais e a cafeteira sólida e rebrilhante; depois, olhou de novo para Domingo. O seu rosto era muito grande, mas não fora do alcance da humanidade.
Na presença do Presidente a restante companhia parecia bastante comezinha; eram pessoas sem fosse o que fosse que atraísse as atenções, se exceptuarmos o facto de, obedecendo ao capricho do Presidente, estarem vestidas como que para uma festa respeitável, o que fazia com que aquela mesa lembrasse a de um pequeno-almoço em dia de boda. Ou antes, sim, um dos homens sobressaía talvez a um relance superficial. Tinha pelo menos o aspecto do bombista comum ou tarimbeiro. É certo que trajava o colarinho alto e branco e a gravata de seda que eram o uniforme de todos naquela ocasião; mas do colacrinho crinho emergia uma cabeça absolutamente intratável e absolutamente inconfundível, uma sarça bravia de cabelo e barba castanhos que quase lhe escondiam os olhos de terrier da Escócia. Mas esses olhos que assomavam do emaranhado hirsuto eram os olhos tristes de um servo russo. O efeito produzido pela sua figura não era terrível como o do Presidente, mas possuía toda a carga demoníaca que pode ser consequência do absolutamente grotesco. Se daquela gravata e dos colarinhos hirtos irrompesse de súbito a cabeça de um gato ou de um cão, o contraste não seria mais absurdo.
O seu nome, ao que parecia, era Gogol; era polaco, e naquela roda de dias da semana recebera o título de Terça-Feira. Tinha uma alma e um discurso incuravelmente trágicos; não era capaz de se obrigar a representar o frívolo papel de privilegiado que dele reclamara o Presidente Domingo. E, na realidade, quando Syme chegara à varanda, o Presidente, com o desprezo pela desconfiança do público que orientava a sua conduta, estava a ridicularizar a incapacidade que Gogol demonstrava de afectar uma elegância convencional.
- O nosso amigo Terça-Feira - disse o Presidente com uma voz profunda tanto pela serenidade como pelo volume -, o nosso amigo Terça-Feira parece não ter entendido bem a ideia. Está vestido como um cavalheiro, mas dir-se-ia que tem uma alma demasiado grande para se comportar como tal. Insiste nas suas maneiras de conspirador de teatro. Ora bem, se um cavalheiro se passear por Londres com o seu chapéu alto e a sua casaca, ninguém terá por que saber que se trata de um anarquista. Mas se um cavalheiro, depois de pôr o chapéu alto e a casaca, começar a andar de gatas nas ruas... bom, acabará por chamar as atenções. E é isso que faz o nosso irmão Gogol. Anda de gatas com uma diplomacia tão inesgotável que hoje começa a achar extremamente difícil andar em cima das pernas.
- Não tenho queda para disfarces - disse Gogol sombriamente, com o seu forte sotaque estrangeiro. - Não tenho vergonha de servir a causa.
- Tem, sim, meu rapaz, e por isso a causa tem vergonha de si disse o Presidente cheio de bonomia. - Você esconde-se como todos os outros; mas não é capaz de o fazer bem feito, e é por isso que devo dizer-lhe que não passa de um burro! Anda a tentar combinar dois métodos inconsistentes. Quando o morador de uma casa descobre um homem debaixo da sua cama, é provável que se interrompa para registar essa circunstância. Mas se descobrir debaixo da cama um homem de chapéu alto, você reconhecerá, meu caro Terça-Feira, que é pouco verosímil que venha a esquecer esse encontro. Ora, quando o encontraram a si debaixo da cama do Almirante Biffin...
- Não sou lá muito bom em disfarces - disse pesarosamente Terça-Feira, corando.
- Sim, meu rapaz, muito bem - disse o Presidente com uma nota de calorosa aprovação na voz -, mas a verdade é que você não élá muito bom em nada.
Enquanto esta conversa seguia o seu curso, Syme observava com mais atenção os homens que o rodeavam. Enquanto o fazia, sentiu de novo crescer nele pouco a pouco a impressão de estar como anteriormente diante de qualquer coisa de espiritualmente desconcertante.
Pensara a princípio que todos eles eram da mesma estatura e se vestiam da mesma maneira, à evidente excepção do hirsuto Gogol. Mas olhando-os melhor, começou a descobrir em cada um deles exactamente aquilo que vira no homem à beira do rio, um pormenor demoníaco que o marcava de uma maneira ou de outra. Aquela maneira de rir contorcendo um lado do rosto, que subitamente desfigurava o delicado rosto do seu primeiro guia, era um traço típico de todos aqueles elementos. Havia em cada um dos homens ali reunidos isto ou aquilo, perceptível talvez a um décimo ou vigésimo relance, que não era normal, e dificilmente se poderia considerar humano. A única metáfora que lhe ocorria na circunstância era a seguinte: todos eles aparentavam ser homens elegantes e de boa presença, aos quais tivesse vindo acrescentar-se a deformação causada por um espelho curvo e falso.
Só os exemplos individuais podiam exprimir aquela excentricidade semidissimulada. O cicerone inicial de Syme usava o título de Segunda-Feira; era ele o Secretário do Conselho, e o seu sorriso contorcido causava um terror maior do que tudo o mais, à excepção da risada jovial e horrível do Presidente. Mas agora que Syme dispunha de mais espaço e de mais luz para o observar, havia nele outros sinais ainda. O seu rosto delicado era tão magro, que fazia Syme pensar estar diante de um homem minado pela doença; e contudo a própria aflição dos seus olhos escuros desmentia de certa maneira que assim fosse. Não era uma enfermidade física que o perturbava. Era uma tortura intelectual a que animava os seus olhos, como se o puro e simples pensamento fosse nele uma dor.
Era uma amostra típica daquela tribo, na qual cada um dos seus membros exibia uma distorção diferente e subtil. Junto dele estava sentado Terça-Feira, a cabeça desgrenhada de Gogol, que era manifestamente um louco. A seguir, havia Quarta-Feira, ou um tal Marquis de St. Eustache, personagem extremamente característica. Durante os primeiros momentos, nada parecia poder detectar-se nele de invulgar, salvo o facto de ser ele o único homem sentado à roda da mesa que usava as roupas requintadas que trazia vestidas como se fossem de facto suas. Tinha uma discreta barba, aparada em ângulos rectos, à francesa, e uma casaca inglesa preta ainda mais severamente cortada. Mas Syme, com a sua sensibilidade para esse género de coisas, intuía de algum modo que aquele homem trazia consigo uma atmosfera densa, uma densa atmosfera sufocante. Era qualquer coisa que irracionalmente evocava os aromas entontecedores e as velas moribundas dos poemas mais sombrios de Byron e de Poe. Dava assim a impressão de estar vestido, não de cores mais claras, mas de tecidos mais delicados do que os restantes; o preto que trajava parecia mais complexo e mais quente do que as sombras negras que o rodeavam, como se fosse composto de uma cor profunda. A sua casaca preta aparentava ser preta devido somente a um tom púrpura demasiado carregado. A sua barba negra aparentava ser negra devido somente a um excesso de azul escuro. E por entre a espessura melancólica dessa barba desenhava-se o vermelho de uma boca sensual e desdenhosa. Fosse lá o que fosse, não podia ser francês; talvez fosse judeu; talvez fosse uma outra coisa ainda mais profunda nascida no coração obscuro do Oriente. Nas cores vivas dos azulejos e pinturas persas, que representam tiranos em cenários de caça, podem ver-se esses mesmos olhos amendoados, essas mesmas barbas a azul escuro, esses mesmos lábios escarlates e cruéis.
Seguiam-se Syme e, depois dele, um homem de idade muito avançada, o Professor De Worms, que continuava a ocupar o lugar de Sexta-Feira, embora fosse de esperar que a qualquer momento a sua morte deixasse essa cadeira vazia. Deixando de parte a sua inteligência, atingira o ponto de dissolução extremo da decadência senil. O seu rosto era tão cinzento como a sua longa barba cinzenta, e ostentava na fronte despida as derradeiras rugas de um ténue desespero. Em nenhum outro caso, nem mesmo no de Gogol, o brilho da indumentária nupcial daquela manhã contrastava mais dolorosamente com a figura do seu portador. Porque a flor vermelha que trazia na botoeira acentuava a ausência de cor num rosto em tons de chumbo; o efeito de conjunto era pavoroso, como o de um cadáver que um grupo de requintados cavalheiros bêbados tivesse vestido com as suas peças de roupa. Quando se levantava ou sentava, e fazia-o sempre com prolongado esforço e risco, transmitia a impressão de qualquer coisa de pior do que a simples fraqueza, qualquer coisa de indefinivelmente associado ao horror de toda a cena. Comunicava não a simples decrepitude, mas a corrupção. Uma nova fantasia abominável surgiu no espírito arrepiado de Syme. Não podia deixar de pensar que sempre que aquele homem movia uma perna ou um braço, esse membro se soltaria do seu corpo.
Vinha por fim o homem a quem os outros chamavam Sábado, o mais simples e desconcertante de todos eles. Era um homem baixo e quadrado, com o rosto quadrado e escuro bem escanhoado, um médico de profissão que dava pelo nome de Bull. Tinha essa combinação de habilidade prática e de uma espécie de brutalidade temperada pelas boas maneiras que não é rara nos jovens clínicos. Usava as suas belas roupas com mais segurança do que à-vontade, e mantinha quase constantemente um sorriso fixo. Na sua figura nada havia de insólito, excepto o facto de exibir um par de óculos escuros quase opacos. Talvez essa impressão se devesse apenas a uma intensificação das fantasias nervosas anteriores, mas o certo é que aqueles dois discos negros pareciam a Syme assustadores; faziam-no pensar em medonhas histórias de terror vagamente recordadas, em qualquer coisa que ouvira a propósito do costume de se porem moedas nos olhos dos mortos. Syme mantinha a todo o momento um olhar vigilante sobre aquelas lentes negras e aquele sorriso cego. Se estes fossem exibidos pelo Professor moribundo, ou até mesmo pelo pálido Secretário, estariam no lugar adequado. Mas naquele corpo jovem e volumoso pareciam um enigma absoluto. Escondiam a chave do rosto. Tomavam impossível dizer o que significavam o sorriso ou a gravidade do homem. Em parte por isso, e em parte por aparentar uma virilidade comum que se diria ausente na maior parte dos restantes, deu a Syme a impressão de que talvez fosse ele o mais perverso de todos aqueles homens perversos. E Syme fora ao ponto de pensar que talvez o homem escondesse os olhos por ser demasiado terrível olhá-los.
A Revelação
Tais eram os seis homens que tinham jurado a destruição do mundo. Syme esforçava-se uma e outra vez por manter o senso comum na presença deles. Por vezes via por um instante que os seus pensamentos eram subjectivos, que estava a olhar simplesmente para homens comuns, um dos quais era velho, outro nervoso, outro ainda míope. Mas a impressão de um simbolismo contra-natura que experimentava voltava sempre a tomá-lo. Cada uma daquelas figuras parecia estar, de certo modo, na fronteira das coisas, tal como a sua teoria estava nas fronteiras do pensamento. Ele sabia que cada um daqueles homens se colocava no extremo, por assim dizer, de uma via de raciocínio selvagem. Tudo o que podia era imaginar, como numa fábula antiga, que se um homem caminhasse para ocidente até ao fim do mundo acabaria por encontrar qualquer coisa - por exemplo, uma árvore - que seria mais ou menos do que uma árvore, uma árvore possuída por um espírito; e que se caminhasse para oriente até ao fim do mundo encontraria uma outra coisa que não seria propriamente o que era - uma torre, talvez, cuja própria forma fosse perversa. Era assim que aquelas figuras pareciam erguer-se diante dele, violentas e inconcebíveis, contra o fundo de um horizonte derradeiro, numa visão de fronteira. Os extremos da terra tocavam-se.
A conversa continuara sem quebras enquanto ele observava a cena; e não era o menor de entre os contrastes que aquela assombrosa mesa de pequeno-almoço proporcionava, o que se manifestava entre o tom desenvolto e negligente da conversa e os seus terríveis propósitos. Tinham mergulhado a fundo na discussão de uma acção concreta e imediata. O empregado lá em baixo falara com acerto quando dissera que estavam a falar de bombas e reis. Dentro de não mais do que três dias, o Czar encontrar-se-ia com o Presidente da República Francesa em Paris, e diante dos seus pratos de ovos com bacon na varanda batida pelo sol, aqueles cavalheiros joviais tinham decidido de que modo os dois deveriam morrer. O próprio instrumento da execução fora escolhido: seria o marquês de barba negra, ao que parecia, o portador da bomba.
Em condições normais, a proximidade deste crime real e objectivo teria feito Syme voltar a si, sanando todos os seus tremores puramente místicos. Não teria pensado noutra coisa que não fosse a necessidade de salvar pelo menos dois corpos humanos de se verem feitos em pedaços por efeito de uma ensurdecedora explosão de ferro e fogo. Mas a verdade é que começava agora a experimentar uma terceira variedade de receio, mais premente e prático do que a sua repugnância moral e do que a sua responsabilidade enquanto membro da sociedade. Muito simplesmente, não lhe sobrava medo para recear pelo Presidente francês ou pelo Czar, pois começara a recear por si próprio. A maior parte dos interlocutores prestavam-lhe pouca atenção, e discutiam aproximando uns dos outros os seus rostos, uniformemente graves, interrompidos, de vez em quando, por um instante, pelo sorriso que sulcava o rosto do Secretário como um relâmpago riscado no céu. Mas persistia uma coisa que começara por perturbar Syme e acabara agora por aterrorizá-lo. O Presidente não deixava de olhar para ele, observando-o, com um interesse evidente e desconcertante. Aquele homem enorme mantinha-se rigorosamente silencioso, mas os olhos azuis pareciam saltar-lhe do rosto. E ele continuava a fixá-los em Syme.
Syme sentia-se tentado a levantar-se e a saltar por cima da balaustrada da varanda. Quando os olhos do Presidente o fitavam, tinha como que a impressão de ser de vidro. Quase não duvidava de que de algum modo silencioso e extraordinário Domingo descobrira que ele era um espião. Olhou por cima da balaustrada da varanda, e viu parado um polícia lá em baixo, contemplando os gradeamentos brilhantes e as árvores cheias de sol.
Foi então que se abateu sobre ele a grande tentação que o atormentaria ao longo de muitos dias por vir. Na presença daqueles homens repugnantes e poderosos, que eram os príncipes da anarquia, quase esquecera a frágil e extravagante figura do poeta Gregory, o simples esteta do anarquismo. Chegava a quase pensar nele agora experimentando um afecto antigo, como se os dois tivessem brincado juntos na infância. Mas lembrava-se de continuar ligado a Gregory por uma grande promessa. Prometera-lhe que nunca faria precisamente aquilo que se sentia quase prestes a fazer. Prometera-lhe que não saltaria por cima daquela balaustrada para se dirigir àquele polícia. Retirou a mão fria da pedra fria da balaustrada. A sua alma soçobrou numa vertigem de indecisão moral. Bastava-lhe desfazer o nóde uma promessa precipitada que fizera a uma sociedade de patifes, e a sua vida tornar-se-ia tão livre e cheia de sol como a praça que tinha debaixo dos olhos. Em contrapartida, manteria a promessa movido por um sentido da honra antiquado, entregando-se pouco a pouco ao poder daqueles grandes inimigos da humanidade, cujo espírito era já uma câmara de tortura. Quando olhava lá para baixo, via aquele polícia consolador, um pilar do senso comum e da ordem pública. Quando olhava para a roda sentada à mesa do pequeno-almoço, via o Presidente silencioso, que o estudava com os seus grandes olhos insuportáveis.
 Na torrente de todos os seus pensamentos, houve dois que nunca lhe ocorreram ao espírito. Em primeiro lugar, nunca lhe passou pela cabeça pôr em dúvida que o Presidente e o seu Conselho poderiam eliminá-lo caso continuasse solitário naquela situação. Aquele lugar bem podia ser público, um tal propósito bem podia parecer impossível. Domingo não era homem que se envolvesse num projecto assim sem ter uma cilada mortal a postos para o que desse e viesse. Por meio de um veneno ou a coberto de um acidente de rua inesperado, recorrendo a poderes hipnóticos ou ao fogo do inferno, era evidente que Domingo não deixaria de o atingir. Se o desafiasse, seria um homem morto - ou instantaneamente, na cadeira onde estava agora sentado, ou talvez mais tarde, na sequência de uma indisposição aparentemente inocente. Se chamasse de surpresa a polícia, fizesse com que todos fossem detidos, revelasse tudo o que sabia e mobilizasse contra eles todas as energias de Inglaterra, era provável que escapasse - mas de outro modo, com certeza que não. Ali estava uma varanda cheia de cavalheiros dando sobre uma praça movimentada e clara; mas Syme não se sentia mais seguro na sua companhia do que na de um bando de piratas armados no meio de um mar deserto.
Também não lhe ocorreu um segundo pensamento. Nunca lhe veio a ideia de que era espiritualmente superior ao inimigo. Muitos espíritos modernos, acostumados a um culto fraco da inteligência e da força, teriam vacilado na sua lealdade sob a opressão de uma grande personalidade. Talvez tivessem declarado que Domingo era o Super-Homem. Se tal criatura é concebível, a verdade é que Domingo, de certo modo, se lhe assemelhava, na força devastadora da sua abstracção, como uma estátua de pedra dotada de movimento. Talvez o declarassem uma coisa sobre-humana, com os seus planos imensos, demasiado óbvios para ser possível detectá-los, com o seu grande rosto, demasiado franco para ser possível compreendê-lo. Mas nem sequer nas condições mórbidas mais extremas Syme seria capaz de sucumbir perante essa espécie de mesquinhez moderna. Como qualquer homem, era suficientemente cobarde para recear uma grande força; mas não tão cobarde que se dispusesse a admirá-la.
Os homens comiam enquanto falavam, e até nisso cada um deles se revelava. O Df. Bull e o Marquês comiam despreocupada e convencionalmente as melhores coisas que havia na mesa - faisão frio ou pudim de Estrasburgo. Mas o Secretário era vegetariano, e falava com entusiasmo do projecto de atentado tendo à sua frente metade de um tomate cru e um copo cheio a três quartos de água morna. O velho Professor ocupava-se de uma espécie de papa que evocava uma segunda infância enfermiça. Ao mesmo tempo que, também à mesa, o Presidente Domingo preservava a sua curiosa precedência sobre a simples massa. Porque comia como vinte homens; comia incrivelmente, com um apetite de uma frescura assustadora, e vê-lo comer era como observar a laboração de uma fábrica de salsichas. E no entanto, a todo o momento, enquanto acabava de engolir uma dúzia de bolos ou de beber um quartilho de café, era visível a sua grande cabeça que, de lado, mantinha os olhos fixos em Syme.
- Já me perguntei muitas vezes - disse o Marquês trincando uma grande fatia de pão barrada de compota - se não seria melhor para mim fazer a coisa com uma faca. A maior parte das melhores coisas foi sempre feita com uma faca. E seria uma emoção nova cravar uma faca num presidente francês e revolver-lhe a lâmina no interior do corpo.
- Engana-se - disse o Secretário, carregando o sobrolho. - A faca não era mais do que a expressão de uma querela pessoal com a pessoa do tirano. A dinamite não é só a nossa melhor ferramenta, mas também o nosso melhor símbolo. É para nós um símbolo tão perfeito como o incenso para as orações dos cristãos. Expande-se; só destrói porque se expande; assim é também o próprio pensamento, que só destrói porque se expande. Um cérebro humano é uma bomba - exclamou ele, deixando irromper de súbito a sua estranha paixão e batendo violentamente com o punho na cabeça. - O meu cérebro sente noite e dia que é como uma bomba. Tem de expandir! Tem de se expandir! O cérebro humano tem de se expandir, se quiser destruir o UnIverso.
- Não quero destruir o universo por enquanto - observou indolentemente o Marquês. - Há ainda algumas ferocidades que gostaria de deixar feitas antes de morrer. Ontem à noite, na cama, estive a pensar numa delas.
- Não, se o único fim que espera as coisas é o nada - disse o Dr. Bull com o seu sorriso esfíngico -, é difícil que haja alguma que valha a pena fazer.
O velho Professor olhava para o tecto com um olhar apagado.
- Todos os homens sabem no fundo do seu coração - disse ele - que não há nada que valha a pena fazer.
Houve um silêncio singular, e o Secretário disse depois:
- Seja como for, estamos a divagar, e a perder de vista o principal. A única questão é sabermos como o Quarta-Feira há-de atacar. Considero que todos aprovamos a ideia inicial, a ideia da bomba. No que toca aos preparativos, gostaria de sugerir que amanhã de manhã ele vá antes de mais nada a...
As palavras foram interrompidas bruscamente por uma sombra enorme. O Presidente Domingo pusera-se de pé, parecendo cobrir todo o céu que os cobria.
- Antes de discutirmos isso - disse ele em voz baixa e tranquila -, vamos para uma sala reservada. Tenho qualquer coisa de muito especial a dizer.
Syme levantou-se antes de qualquer dos outros. Chegara enfim o momento de escolher; tinha a pistola apontada à cabeça. Podia ouvir, na calçada, lá em baixo, o polícia que batia os pés movendo-se de um lado para o outro, porque, apesar de cheia de sol, a manhã estava fria.
De repente, começou a ouvir-se na rua um realejo que tocava num tom alegre. Syme continuou de pé, como se fosse um clarim antes da batalha. Descobriu-se animado de uma coragem sobrenatural que não se sabia de onde vinha. Aquela música sonora parecia-lhe cheia da vida, da simplicidade comum e do valor irracional dos pobres, que por todas aquelas ruas sujas da cidade se apegavam à decência e à caridade cristãs. A fantasia infantil de vir a ser polícia desvanecera-se do seu espírito; não se imaginava como representante de um corpo de cavalheiros transformados em agentes da ordem de fantasia, nem como um velho excêntrico a viver fechado nos seus aposentos escuros. Mas sentia-se embaixador de todas essas pessoas comuns e amáveis que enchiam as ruas, que todos os dias partiam para a sua batalha ao som da música do realejo. E esse alto orgulho que punha em ser humano elevara-o a uma grande altura, deixando-o desmedidamente acima daqueles homens monstruosos que o rodeavam. Por um instante, pelo menos, pôde assim observar, do alto do pináculo estrelado do lugar-comum, as suas extravagâncias sem nexo. Sentiu perante eles toda essa superioridade inconsciente e elementar que um homem destemido sente sobre as feras mais poderosas, ou um homem lúcido sobre a força do erro. Sabia que não tinha a pujança nem física nem intelectual do Presidente Domingo; mas isso nesse momento incomodava-o tanto como o facto de não ter os músculos de um tigre ou o corno nasal do rinoceronte. Tudo isso nada contava perante a certeza última com que sabia que o Presidente estava errado e o realejo certo. Ressoou no seu espírito esse truísmo terrível e sem réplica da Canção de Rolando:
Païens ont tort et Chrétiens ont droit
cujas palavras, no seu francês antigo e nasalado, têm a sonoridade e o estrondear do ferro mais duro. Esta libertação do seu espírito vencendo o peso da fraqueza que sentia foi acompanhada por uma decisão absolutamente clara de aceitação da morte. Se a gente para quem tocava o realejo era capaz de cumprir as suas obrigações tão velhas como o mundo, também ele o seria. O orgulho que punha em cumprir a sua palavra era precisamente o que o distinguia dos descrentes. O seu último triunfo sobre aqueles lunáticos seria entrar no quarto escuro deles e morrer por qualquer coisa que eles nem sequer seriam capazes de compreender. O realejo parecia dar ao seu toque de marcha a energia e toda a profusão de sons de uma orquestra inteira, e ele podia ouvir agora, ressoantes e profundos, por sob todas as trombetas que proclamavam o orgulho da vida, o rufo dos tambores do orgulho' da morte.
Os conspiradores tinham começado a entrar pela porta-janela aberta para as salas de dentro. Syme foi o último a fazê-lo, aparentando acalma, embora experimentando no seu cérebro e no seu corpo o frémito de um ritmo romântico. O Presidente fê-los descer uma escada lateral irregular, que talvez fosse usada pelos empregados de serviço, e entrar a seguir numa divisão escura, fria e vazia, com uma mesa e alguns bancos, como uma sala de reuniões ao abandono. Depois de todos terem entrado, fechou a porta e fez correr o ferrolho.
O primeiro a falar foi Gogol, o irreconciliável, que parecia prestes a explodir de um ressentimento inarticulado.
- Pois é! Pois é! - gritou, estranhamente exaltado, enquanto o seu sotaque polaco se tornava quase impenetrável. - Dizem para não nos escondermos. Dizem que nos devemos mostrar. Disparates, só disparates. Porque querem falar de coisas importantes, fecham-se num quarto escuro!
O Presidente pareceu aceitar com todo o bom humor possível o sarcasmo incoerente do estrangeiro.
- Você ainda não foi capaz de perceber, Gogol - disse ele num tom paternal. - Depois de nos terem ouvido dizer asneiras naquela varanda, os outros não estarão interessados em saber onde nos reuniremos a seguir. Se tivéssemos começado por vir para aqui, teríamos todo o pessoal a espreitar pela fechadura. Dir-se-ia que você não conhece minimamente a humanidade.
- Morrerei por ela - gritou o polaco, cada vez mais transtornado - e darei cabo dos czares opressores. Não me interessam estes jogos das escondidas. Quero matar o tirano no meio da rua.
- Estou a ver, estou a ver - disse o Presidente, meneando amenamente a cabeça enquanto se sentava à cabeceira de uma mesa comprida. - Primeiro, morre pela humanidade, e depois levanta-se e massacra os seus opressores. Assim, tudo se fará da melhor maneira. Mas agora vou ter de lhe pedir que controle os seus belos sentimentos e se sente a esta mesa ao lado dos restantes cavalheiros. Há pela primeira vez nesta manhã qualquer coisa de inteligente a dizer.
Syme, com a prontidão perturbada que mostrara desde o primeiro momento da convocação para a sessão à porta fechada, fora o primeiro a sentar-se. Gogol foi o último, enquanto resmungava para com a sua barba o desagrado que lhe causavam os compromissos. À excepção de Syme, ninguém parecia antever o golpe em preparação. E ele, pelo seu lado, tinha simplesmente a impressão de um homem que, ao subir ao cadafalso, mantém a intenção de, seja como for, pronunciar um belo discurso.
- Camaradas - disse o Presidente, pondo-se bruscamente de pé -, a farsa já se prolongou mais do que o suficiente. Fiz-vos descer para esta sala para vos dizer uma coisa tão simples e tão chocante que até os empregados lá em cima, de há muito habituados às nossas frivolidades, talvez se dêem conta de um tom de seriedade novo na minha voz. Camaradas, estamos a discutir planos de acção e a falar de lugares precisos. Proponho, antes de acrescentar seja o que for, que os nossos planos e teatros de acção não sejam votados nesta reunião, mas delegados por completo num membro de confiança. Sugiro que este seja o Camarada Sábado, o Dr. BulI.
Todos olharam para ele fixamente; depois, sobressaltaram-se nos seus lugares, porque as palavras seguintes, ainda que ditas numa voz que não subira de tom, brotaram carregadas de uma intensidade viva e sensacional. Domingo bateu na mesa.
- Não deve ser dita nem mais uma palavra sobre planos ou lugares nesta reunião. Nem a mais pequena observação acerca do que tencionamos fazer deve ser referida nesta assembleia.
Domingo passara a vida a surpreender os seus sequazes; mas dir-se-ia agora que, até ao momento presente, nunca os surpreendera de facto. Todos se agitaram febrilmente nos seus bancos - à excepção de Syme. Este mantinha-se hirto, sentado no seu lugar, com a mão no bolso e no punho do seu revólver carregado. Quando o atacassem, venderia caro a sua vida. Saberia então se o Presidente era ou não mortal.
Domingo continuou com brandura:
- Como terão provavelmente compreendido, não há mais do que um motivo possível para a proibição da liberdade de palavra na nossa festiva celebração da liberdade. Os estranhos que nos poderiam ouvir não têm importância. Considerariam que estamos a brincar. Mas o que importaria, o que importaria mortalmente, seria a presença neste momento entre nós de alguém que não fosse um de nós, que conhecesse o nosso grave propósito, mas não o adoptasse, que...
O Secretário irrompeu subitamente em pranto como uma mulher. - Não pode ser! - gritou ele, levantando-se de um salto. - Não pode haver...
O Presidente poisou em cima da mesa a sua grande mão espalmada, que parecia o dorso de um peixe enorme.
- Sim - disse ele devagar -, há um espião nesta sala. Há um traidor a esta mesa. Não desperdiçarei mais palavras. O nome dele...
Syme soergueu-se um pouco na cadeira, com o dedo no gatilho. - O nome dele é Gogol - disse o Presidente. - E ele é este impostor hirsuto que finge ser polaco.
Gogol estava de pé, com uma pistola em cada mão. Como um só raio três dos outros homens saltaram-lhe à garganta. O próprio Professor fez um esforço tentando levantar-se. Mas Syme pouco viu da cena, pois interveio uma escuridão benéfica que o cegou; deixara-se afundar no lugar onde estava sentado, trémulo, tolhido por um alívio apaixonado.
O Inexplicável Comportamento do Professor De Worms
- Sentem-se! - gritou Domingo num tom de voz que só raramente usava, uma voz que fazia com que os homens baixassem as espadas desembainhadas.
Os três membros que tinham caído em cima de Gogol voltaram a sentar-se, e o mesmo fez esse equívoco personagem.
- Muito bem, meu caro - disse o Presidente rispidamente, dirigindo-se-Ihe como a um perfeito estranho -, quer ter a gentileza de levar a mão ao bolso de cima do seu casaco e de me mostrar o que há lá dentro?
O rosto do pretenso polaco empalidecera um tanto sob a barba emaranhada, mas meteu dois dedos no bolso com aparente frieza e extraiu de dentro dele um cartão azul. Ao ver o cartão em cima da mesa, Syme despertou de novo para o mundo exterior. Porque embora estivesse no outro extremo da mesa, e ele não pudesse ler fosse o que fosse do que tinha escrito, aquele cartão assemelhava-se prodigiosamente ao que ele próprio tinha no seu bolso, a esse cartão que lhe tinham dado por altura da sua entrada na brigada anti-anarquista.
- Eslavo patético - disse o Presidente -, trágico filho da Polónia, será capaz de negar diante desse cartão que a sua presença, neste grupo, é, por assim dizer, dispensável?
- Oh, creio que sim - disse o ex-Gogol. E fez com que todos os restantes se sobressaltassem ao fazer ouvir uma voz clara, comercial e com um leve sotaque cockney, que irrompia por entre a espessura da sua barba estrangeira. Era irracional, como se um chinês falasse de repente com sotaque escocês.
- Presumo que compreenderá plenamente a situação em que se encontra - disse Domingo.
- Pode apostar que acerta - respondeu o polaco. Foi um belo golpe. Tudo o que tenho a dizer é que não acredito que algum polaco fosse capaz de imitar o seu sotaque tão bem como eu.
- Concedo-lhe esse ponto - disse Domingo. - Acredito que o seu sotaque seja inimitável, embora eu próprio tencione passar a praticá-lo no banho. Importa-se de deixar aqui a barba, juntamente com o cartão?
- Nada mesmo - respondeu Gogol; e com um dedo arrancou toda a hirsuta pelagem que lhe escondia a cabeça, o seu próprio ralo cabelo ruivo, e um rosto pálido e atrevido. - Fazia-me muito calor acrescentou.
- Quero fazer-lhe a justiça de dizer - disse Domingo, não sem uma espécie de admiração brutal - que você conseguiu, apesar de tudo, manter-se bastante frio. Agora ouça. Gosto de si. Por consequência sentir-me-ia contristado, durante, digamos, dois minutos e meio, se soubesse que você tinha morrido atormentado. Pois bem, se alguma vez falar à polícia ou a alguma alma humana a nosso respeito, terei de padecer esses dois minutos e meio de desconsolo. Do desconsolo que seria o seu, não vou ocupar-me agora. Bom dia. Atenção ao degrau.
O detective de cabelo ruivo que se disfarçara de Gogollevantou-se sem uma palavra, e saiu da sala aparentando o mais perfeito à-vontade. Todavia, Syme, atónito, deu-se conta de que aquela indiferença era uma pose, porque se ouviu um tropeção do outro lado da porta, quando ele a transpôs, prova de que o homem não prestara atenção ao degrau.
- O tempo voa - disse jovialmente o Presidente, depois de consultar o relógio que, como tudo o que dizia respeito à sua pessoa, parecia maior do que o devido. - Tenho de ir andando imediatamente; esperam-me para presidir a uma reunião humanitária.
O Secretário olhou para ele alçando as sobrancelhas.
- Não seria melhor - disse a seguir, um tanto exasperado - que discutíssemos melhor os pormenores do nosso projecto, agora que o espião já não está entre nós?
- Não, penso que não - disse o Presidente com um bocejo que se assemelhava a um ligeiro tremor de terra. - Deixemos as coisas como estão. Deixemos Sábado tratar do assunto. Tenho de ir. Voltamos a tomar aqui o pequeno-almoço domingo que vem.
Mas os movimentados episódios recentes tinham fustigado os nervos à flor da pele do Secretário. Este era um desses homens que até no crime permanecem conscienciosos.
- Tenho de protestar, Presidente, estamos perante uma irregularidade - disse ele. - Uma regra fundamental da nossa sociedade é que todos os planos sejam debatidos em sessão plenária do conselho. É evidente que apreciei sem reservas a sua prudência na presença de um traidor...
- Secretário - disse o Presidente pondo um ar sério -, se levar a sua cabeça para casa e a cozer como um nabo, talvez assim faça alguma coisa de útil. Não sei ao certo. Mas talvez sim.
O Secretário empinou-se numa espécie de furor equino.
- A verdade é que não posso entender... - começou ele num tom de extrema indignação.
- É isso, é isso - disse o Presidente, meneando aprovadoramente a cabeça uma e outra vez. - Aí está, você não entende bem. Não é capaz de entender. Pois bem, seu burro dançante - rugiu ele, pondo-se de pé -, não quer com certeza ser ouvido por um espião, ou quer? Como sabe você que não estaria a ser ouvido?
E com estas palavras saiu da sala fremente, abalado por um desprezo indescritível.
Quatro dos homens dos quais assim se despediu ficaram de boca aberta sem fazerem a mínima ideia do que poderia querer aquilo dizer. Só Syme entrevia uma pista, cuja intuição o gelou até ao osso. Se as derradeiras palavras do Presidente significavam alguma coisa, significavam que, afinal de contas, a sua presença não deixara de causar-lhe suspeitas. Significavam que, embora Domingo não o pudesse denunciar como denunciara Gogol, ainda não confiava nele como nos outros membros.
Esses quatro membros levantaram-se, por entre resmungos maiores e menores, e saíram preparando-se para o almoço, uma vez que já passava bastante do meio-dia. O Professor foi o último a sair, com um andar extremamente lento e doloroso. Syme ficou, demorando-se ali depois de os outros terem partido, a cogitar na sua estranha situação. Escapara ao raio, mas a nuvem continuava por cima dele. Por fim levantou-se e saiu do hotel para a Leicester Square. O dia luminoso e frio tomara-se pouco a pouco mais frio ainda, e ao chegar à rua ele viu-se surpreendido por uns leves flocos de neve. Embora continuasse na posse da bengala de estoque e a restante bagagem de mão de Gregory, deixara, depois de a ter despido, a capa não sabia bem onde, talvez a bordo da lancha, talvez na varanda. Por isso, esperando que não nevasse muito, trocou por um momento a rua pelo abrigo do portal de uma pequena barbearia suja, cuja montra quase vazia ostentava apenas uma repelente dama de cera com um vestido de noite.
A neve, todavia, começava a cair mais densa e mais rápida; e Syme, depois de confirmar por meio de um relance a natureza extremamente deprimente da dama de cera, deixou-se ali ficar a olhar a rua branca e vazia. Sentiu-se então surpreendido ao descobrir que, diante da barbearia, estava um homem completamente imóvel, com os olhos fixos na montra. Tinha o chapéu alto a transbordar de neve como o gorro do Pai Natal, e a neve batida pelo vento acumulava-se subindo-lhe à volta das botas e dos tornozelos, mas dir-se-ia que nada poderia arrancá-lo à contemplação da boneca de cera sem cor no seu vestido de noite sujo. Que qualquer ser humano pudesse, por um tempo daqueles, ficar de pé a olhar para a montra de uma loja era já suficiente matéria de espanto para Syme; mas a sua perplexidade ociosa deu bruscamente lugar a um choque pessoal quando se deu conta de que o homem especado era o velho e paralítico Professor De Worms. Era difícil admitir que aquele lugar conviesse a uma pessoa tão carregada de anos e enfermidades.
Syme estava disposto a acreditar fosse no que fosse que se referisse às perversões daquela confraria desumanizada; mas não podia, apesar de tudo, acreditar que o Professor se tivesse enamorado daquela dama de cera em concreto. Tudo o que podia supor era que a doença daquele homem (qualquer que pudesse ser) lhe causava certos acessos momentâneos de rigidez ou transe. Mas não se inclinava a sentir perante este caso vertente uma preocupação demasiado compassiva. Pelo contrário, congratulou-se pelo facto de a afecção mórbida do Professor e a sua dificuldade de movimentos lhe tomarem mais fácil escapar dele e deixá-lo a milhas de distância. Porque Syme desejava acima de tudo ver-se livre de toda aquela atmosfera envenenada, por uma hora que fosse. A seguir poderia pôr ordem nos seus pensamentos, formular o procedimento a seguir, e decidir por fim se manteria ou não a palavra que dera a Gregory.
Avançou com esforço por entre o carros sei da neve, dobrou duas ou três esquinas de rua, percorreu outras duas ou três, e entrou para almoçar num pequeno restaurante do Soho. Comeu pensativamente quatro pratos pequenos e estranhamente saborosos, bebeu meia garrafa de vinho tinto, e terminou a refeição com um café simples e um charuto negro, sempre mergulhado nos seus pensamentos. Instalara-se na sala de cima do restaurante, cheio do ressoar dos talheres e das conversas dos comensais estrangeiros. Lembrou-se de que outrora imaginara que todos aqueles inofensivos e simpáticos viajantes eram anarquistas. Estremeceu depois, ao lembrar-se da realidade. Mas até mesmo esse frémito trazia consigo a deliciosa vergonha da fuga. O vinho, a banalidade dos pratos, o aspecto familiar do estabelecimento, os rostos naturais e faladores dos circunstantes, quase o faziam sentir que o Conselho dos Sete Dias fora um sonho mau; e embora soubesse que se tratava de uma realidade objectiva, essa realidade tornara-se pelo menos distante. Separavam-no casas altas e ruas cheias de gente do espectáculo ainda recente dos ignominiosos Sete; era um ser livre numa Londres livre, e bebia vinho entre outros seres livres. Num gesto já mais ágil, pegou no chapéu e na bengala e desceu as escadas que davam para a sala de baixo.
Quando entrou na sala do piso inferior, foi como que atingido por um golpe em cheio que o imobilizou. A uma pequena mesa, junto a uma janela abrindo sobre a rua embranquecida pela neve, estava, com o seu rosto lívido e as suas pálpebras quase fechadas, sentado o velho Professor anarquista diante de um copo de leite. Por um instante Syme ficou quase tão hirto como a bengala em que se apoiou. Depois num impulso de precipitação cega, passou pela mesa do Professor, saiu batendo com a porta atrás de si, e encontrou-se lá fora no meio da neve.
- Será possível que este velho cadáver esteja a seguir-me? - perguntou de si para si, mordendo o bigode alourado. - Demorei-me tempo de mais na sala, lá em cima, o que explica me tenha deixado apanhar por um pés de chumbo assim. É um reconforto saber que estugando um pouco mais o passo o poderei deixar para trás a uma distância como a que vai daqui a Tombuctu. Ou estarei a deixar-me levar pela imaginação? O tipo estará de facto a seguir-me? O Domingo não pode ser tão estúpido que tenha mandado aquele paralítico atrás de mim.
Tomou na direcção de Covent Garden, num passo vivo e volteando a bengala na mão. Quando atravessava a grande praça do mercado começou a nevar com mais força, cegando-o e dificultando-lhe o andar cada vez mais ao mesmo tempo que começava a escurecer. Os flocos de neve atacavam-no como um enxame de abelhas de prata.
Colando-se-Ihe aos olhos e à barba, agravando com a sua futilidade exasperante os seus nervos já irritados; foi assim que, quando chegou no seu passo incerto ao começo de Fleet Street, sem paciência para mais, acabou por entrar em busca de refúgio numa casa de chá que estava aberta aos domingos. Pediu mais um café como pretexto. Mal acabara de o fazer, quando o Professor De Worms, coxeando penosamente, entrou no estabelecimento, sentando-se com dificuldade e pedindo um copo de leite.
A bengala soltou-se da mão de Syme e caiu ruidosamente, com um ressoar que denunciava o metal da lâmina escondida. Mas o Professor não levantou sequer os olhos. Syme, que habitualmente mantinha a cabeça fria, sentiu-se varado de assombro como um homem do campo perante um acto de magia. Não vira qualquer carro que o tivesse seguido; não ouvira lá fora qualquer som de rodas na calçada; tanto quanto qualquer mortal poderia concluir aquele homem chegara ali pelo seu pé. E no entanto, era um velho incapaz de se arrastar mais depressa do que uma cobra, ao passo que Syme se deslocara com a rapidez do vento. Levantou-se e apanhou a bengala, semienlouquecido por aquele desmentido infligido à aritmética mais simples, e saiu pela porta de tambor, sem ter provado o café. Viu que estava a passar um carro de passageiros para o Bank, avançando e arfando com uma velocidade invulgar. Correu com um esforço brutal cerca de cem jardas no seu encalço, mas conseguiu apanhá-lo, pondo o pé na plataforma e subindo, depois de uma pausa para recuperar o fôlego, para o piso superior. Estava sentado haveria meio minuto, quando ouviu nas suas costas uma espécie de pesado sopro asmático.
Virando-se bruscamente, viu subindo pouco a pouco pelos degraus do veículo um chapéu alto sujo e cheio de neve, e à sombra da aba do chapéu, o rosto míope e os ombros trémulos do Professor De Worms. Este sentou-se com a sua precaução costumada e embrulhou-se até ao queixo na sua gabardina.
Cada movimento da figura cambaleante e das mãos incertas do velho, cada um dos seus gestos inseguros e cada uma das suas pausas como que de pânico faziam-no parecer incontestavelmente indefeso e no estado da mais extrema degradação senil. Avançara não mais do que uma polegada a cada passo, e sentara-se soltando ténues suspiros de cautela. E contudo, a menos que as categorias filosóficas do tempo e do espaço não tivessem afinal nem rasto de existência prática, dir-se-ia fora de toda a dúvida que correra atrás do transporte.
Syme pôs-se de pé de um salto no veículo oscilante, e depois de olhar ferozmente o céu de Inverno, que se tomava cada vez mais sombrio, desceu as escadas. Reprimira um impulso elementar de saltar lá de cima para a rua.
Demasiado transtornado para olhar para trás ou reflectir, entrou precipitadamente numa das ruelas laterais de Fleet Street, como um coelho que corre para a toca. Tinha a vaga ideia de que aquele incompreensível fantoche que saía da caixa como que impelido por uma mola estava de facto a persegui-lo, e pensava que naquele labirinto de ruas estreitas conseguiria despistá-lo sem perder mais tempo. Andou em todos os sentidos por entre aquelas travessas tortuosas que mais pareciam frestas entre muros do que ruas, e depois de ter dobrado em sentidos divergentes cerca de vinte esquinas, como se desenhasse um polígono impensável, parou tentando detectar um som que fosse sinal de que alguém o perseguia. Não o ouviu; de resto, um eventual perseguidor não poderia causar grande ruído, uma vez que as ruas estavam cobertas de uma neve espessa que abafava os sons. Todavia, algures por detrás de Red Lion Court, descobriu um trecho de rua que algum cidadão enérgico limpara de neve ao longo de umas vinte jardas, deixando a descoberto o empedrado húmido e reluzente. Não deu importância ao assunto ao passar pelo local, limitando-se a penetrar numa outra travessa do labirinto. Mas quando, cerca de quatrocentas jardas mais adiante, parou de novo e se pôs à escuta, sentiu que lhe parava também o coração, porque ouviu ressoar nas pedras do trecho de calçada sem neve a bengala vacilante e o passo esforçado daquele inválido demoníaco.
Lá em cima, o céu estava pesado de nuvens de neve, deixando Londres numa escuridão e numa opressão prematuras para aquelas horas da tarde. As paredes, de um lado e de outro de Syme, daquele armamento eram cegas e uniformes; não tinham uma janela, nem qualquer outro vestígio de abertura. Sentiu o impulso novo de sair daquela colmeia de casas e de regressar a uma rua aberta e mais iluminada. Mas vagueou e hesitou por bastante tempo ainda antes de desembocar numa encruzilhada mais aberta. Aí teve a impressão de que saíra muito mais longe do que supusera que aconteceria do lugar onde entrara naquela rede de ruelas. Chegara ao que lhe pareceu ser o espaço amplo e vazio de Ludgate Circus, e viu a Catedral de S. Paulo recortada no céu.
De início surpreendeu-o ver aquelas grandes ruas tão vazias, como se uma epidemia alastrasse na cidade. Disse depois para consigo que aquele aspecto ermo era de certo modo natural, primeiro porque á tempestade de neve continuava com força e, em segundo lugar, porque era domingo. Mas ao pensar na palavra «domingo» mordeu os lábios; era uma palavra que soava agora aos seus ouvidos como um trocadilho obsceno. Sob a branca névoa da neve que caía do céu, incessante, a atmosfera da cidade adquiria uma insólita tonalidade de sombra verde, como que de figuras humanas no fundo do mar. O crepúsculo denso e sombrio por detrás da cúpula negra de S. Paulo exibia uma mistura de cores fumarentas e sinistras - um verde doentio, um vermelho mortiço ou um tom de bronze decrépito, cores que sobressaíam apenas o suficiente para tornar mais perceptível a brancura sólida da neve. Mas contra essas cores inquietantes erguia-se a massa negra da catedral, e no topo da catedral, o acaso fizera que caísse o clarão de uma grande mancha de neve, que se mantinha agarrada lá no alto parecendo um pico alpino. Caíra ali acidentalmente, mas de tal maneira que cobria toda a metade superior da cúpula, como se quisesse pôr em evidência, revestindo-os de prata perfeita, o grande globo e a cruz. Ao olhar na sua direcção, Syme endireitou bruscamente o corpo e fez com a sua bengala de estoque uma saudação involuntária.
Sabia que aquela figura maligna, que era como que a sua sombra, coxeava lenta ou velozmente no seu encalço, mas não se importou com isso.
O facto de enquanto o céu escurecia a elevação da cúpula sobre a Terra brilhar daquela maneira parecia-lhe um símbolo da fé e do valor humanos. Os demónios podiam ter conquistado o céu, mas não tinham ainda conquistado a cruz. Um impulso novo levava-o a querer desvendar o segredo daquele paralítico que dançava saltitante em sua perseguição; e à esquina da travessa, no lugar onde ela desembocava no Circus, virou-se para trás, empunhando a bengala, para enfrentar o seu perseguidor.
O Professor De Worms aproximou-se lentamente, no seu encalço, da esquina da tortuosa ruela, com a sua silhueta contrária à natureza recortando-se à luz de um bico de gás solitário, e evocando irresistivelmente essa figura imaginária extremamente viva das lenga-Iengas infantis que é «o homem torto que andou uma milha torta». Era realmente como se a sua forma tivesse sido distorcida pelas ruas tortuosas que acabava de percorrer. Aproximou-se cada vez mais, com a luz do candeeiro a iluminar-lhe os óculos levantados, e o rosto levantado e paciente. Syme esperou-o como São Jorge esperara o Dragão - como um homem espera uma explicação decisiva ou a morte. E o velho Professor continuou direito a ele, acabando por passar à sua frente como por um perfeito estranho, sem que o vislumbre sequer do mais pequeno frémito lhe animasse as pálpebras melancólicas.
Havia nesta inocência silenciosa e inesperada qualquer coisa que despertou em Syme um furor supremo. O rosto e os modos incolores daquele homem pareciam declarar que toda a recente perseguição fora afinal um acaso. Syme sentia-se galvanizado por uma energia que se situava algures entre a amargura e uma explosão de troça pueril. Fez um gesto agressivo como se quisesse arrancar o chapéu da cabeça do homem, exclamou qualquer coisa como: «Apanhe-me se for capaz!», e espreitando para trás por cima do ombro, pôde ver a figura negra do velho cavalheiro que o seguia com grandes e ágeis passadas como alguém apostado em sair vencedor de uma prova de velocidade. Mas a cabeça que coroava aquele corpo expedito continuava pálida, grave e profissional, como a cabeça de um conferencista coroando o corpo de um arlequim.
Esta perseguição ofensiva atravessando Ludgate Circus e Ludgate Hill, continuando à volta da Catedral de São Paulo e ao longo de Cheapside, lembrou a Syme todos os pesadelos da sua vida. Syme afastou-se então na direcção do rio, avançando quase até às docas. Viu as janelas amarelas de um bar com as luzes acesas, entrou rapidamente e pediu uma cerveja. Era uma taberna suja, cheia de marinheiros estrangeiros, um lugar onde talvez se fumasse ópio e travassem duelos à navalha.
Um momento mais tarde o Professor De Worms entrava por sua vez no estabelecimento, sentava-se cautelosamente e pedia um copo deleite.
O Professor Explica
Quando Gabriel Syme se viu enfim instalado numa cadeira, e à sua frente, enfim também, fixando-o, as sobrancelhas levantadas e as pálpebras de chumbo do Professor, os seus medos regressaram em força. Afinal de contas, a verdade era que aquele incompreensível membro daquele feroz conselho o perseguira. A comprovar-se o facto de o homem ter uma personalidade como paralítico e outra como perseguidor, talvez a antítese o tornasse mais interessante, mas nem por isso o tornaria muito mais inofensivo. Muito pouca consolação lhe restaria, caso o Professor o desmascarasse, devido a algum acidente sério, sem que ele tivesse podido desmascarar o Professor. Esvaziou uma caneca inteira de cerveja antes de o Professor ter tocado no leite.
Havia, no entanto, uma possibilidade que o mantinha esperançado apesar de indefeso. Era de facto possível que toda esta desfilada significasse outra coisa que não suspeitas do Professor a seu respeito. Talvez se tratasse de uma prática estabelecida ou de um sinal. Talvez aquela corrida desvairada fosse uma espécie de sinal amistoso que lhe competia compreender. Talvez fosse um ritual. Talvez o Quinta-Feira estreante fosse sempre perseguido ao longo de Cheapside, do mesmo modo que ali é escoltado um novo Lord Mayor da cidade. Estava precisamente a tentar improvisar um expediente que lhe permitisse tirá-lo a limpo quando, de súbito, o velho Professor que tinha diante de si pura e simplesmente se lhe antecipou. Antes que Syme pudesse fazer a sua primeira pergunta diplomática, o velho anarquista interrogara-o bruscamente, sem quaisquer rodeios:
- Você é polícia?
Estivesse à espera do que estivesse, Syme nunca esperara uma pergunta tão brutal e factual como aquela. Apesar de toda a sua forte presença de espírito, tudo o que pôde foi recorrer a uma réplica extremamente desajeitada, sob a forma de gracejo.
- Polícia? - disse ele, soltando uma vaga risada. - O que é que o leva a pensar em polícias a meu respeito?
- Foi um processo muito simples - respondeu pacientemente o Professor. - Pensei que tinha ar de polícia. E continuo a pensar.
- Terei pegado por engano num boné de polícia à saída do restaurante? - perguntou Syme, com um sorriso transtornado. - Trarei por acaso algum número marcado em cima do corpo? Terão as minhas botas um aspecto vigilante? Porque havia eu de ser um polícia? Olhe, deixe-me antes ser um carteiro.
O velho Professor sacudiu a cabeça com uma expressão grave que excluía qualquer esperança, mas Syme prosseguiu com uma ironia febril.
- Também é possível que eu tenha interpretado mal as subtilezas da sua filosofia alemã. Talvez o polícia seja um termo relativo. Num sentido evolutivo, sir, o macaco transforma-se tão gradualmente em polícia, que eu, pelo meu lado, nunca dei pela diferença. O macaco é simplesmente o polícia que pode vir a ser. Talvez uma jovem donzela de Clapham Common seja simplesmente o polícia que poderia ter sido. Não me importo de ser o polícia que poderia ter sido. Não me importo de ser seja o que for no pensamento alemão.
- É membro da polícia? - disse o velho, ignorando o sarcasmo improvisado e desesperado de Syme. - É um detective? ,
O coração de Syme fez-se de pedra, mas o seu rosto manteve-se tão igual como sempre.
- A sua sugestão é ridícula - começou ele. - Por que raio de razão...
O velho bateu apaixonadamente com a sua mão tolhida em cima da mesa vacilante, que por pouco não se partiu ao meio.
- Não ouve a pergunta extremamente simples que lhe estou a fazer, maldito espião? - explodiu em voz alta e furiosa. - É, ou não é, um detective da polícia?
- Não! - respondeu Syme, como se o carrasco lhe passasse acorda pelo pescoço.
- Jura? - disse o velho inclinando-se para ele, enquanto o seu rosto morto se animava repulsivamente. - É capaz de o jurar? Capaz de o jurar? Não sabe que se jurar falso será condenado? Quer ter a certeza de ver o demónio dançar no seu funeral? Quer ter um pesadelo sentado em cima da sua sepultura? Tem a certeza de não se ter enganado? É realmente um anarquista? Um bombista? Tem a certeza de não ser, seja lá como for, um detective? Não é um membro da polícia britânica?
Assentou o cotovelo anguloso em cima da mesa e levou a mão comprida ao ouvido como se quisesse ouvir melhor.
- Não sou da polícia britânica - disse Syme com uma serenida de insensata.
O Professor De Worms deixou-se cair para trás contra as costas da cadeira aparentando uma curiosa espécie de suave colapso.
- É uma pena - disse ele -, porque eu sou.
Syme pôs-se de pé de um pulo, derrubando o banco com estrépito. - Porque você é o quê? - disse ele, sufocado. - Você é o quê?
- Sou polícia - disse o Professor com o seu primeiro sorriso rasgado e com os olhos brilhando por detrás das lentes dos óculos.
Mas como você pensa que polícia não passa de um termo relativo, é claro que nada tenho a ver consigo. Pertenço à força de polícia britânica; mas como você me diz que não faz parte da força de polícia britânica, tudo o que posso dizer é que o encontrei num clube de bombis tas. Suponho que vou ter de o prender. - E com estas palavras poisou em cima da mesa à vista de Syme um fac-símile exacto do cartão azul que Syme trazia no bolso do seu próprio casaco, o símbolo da autoridade que recebera da polícia.
Por um instante Syme teve a impressão de que o mundo se pusera nada menos do que de pernas para o ar, de que todas as árvores cresciam para baixo e todas as estrelas se encontravam sob os seus pés. Depois irrompeu lentamente nele a convicção oposta. Durante as últimas vinte e quatro horas, o mundo estivera realmente de pernas para o ar, mas agora o universo voltara a ter, como devia, a cabeça para cima. Aquele demónio do qual andara a fugir o dia todo era apenas um irmão mais velho da sua própria família, que, do outro lado da mesa, se recostava na cadeira enquanto se ria para ele. Não tinha de momento perguntas a fazer sobre este ou aquele pormenor; limitava-se a tomar consciência do facto estúpido e feliz de aquela sombra, que o perseguira e o oprimira com a sua ameaça intolerável, era simplesmente a sombra de um amigo que tentava alcançá-lo. Soube ao mesmo tempo que era um idiota e um homem livre. Porque qualquer recuperação de um estado mórbido é necessariamente acompanhada por um certo sentimento de humilhação saudável. Em situações assim, chega um momento em que só três coisas são possíveis: a primeira, a perpetuação de um orgulho satânico; a segunda, as lágrimas, e a terceira, o riso. O egoísmo de Syme começou por se apegar com força à primeira, durante alguns segundos; a seguir, adoptou bruscamente a terceira. Tirando o seu próprio cartão azul da polícia do bolso do casaco, exibiu-o em cima da mesa; depois, atirou a cabeça para trás com a ponta da sua barba alourada apontando o tecto quase na vertical, e explodiu numa gargalhada selvagem.
Até mesmo naquele covil escuso, naquele palco permanentemente ressoante do som das navalhas, dos pratos, das canecas, das vozes clamorosas, de brigas repentinas e de tropéis, a alegria de Syme era de tal modo homérica que fez voltarem-se numerosas cabeças semiembriagadas em redor.
- De que é que você se está a rir, chefe?
- De mim mesmo - respondeu Syme, antes de recair na agonia da sua reacção exaltada.
- Controle-se - disse o Professor -, ou ainda tem um ataque de histeria. Beba mais um bocado de cerveja. Eu faço-lhe companhia.
- Não bebeu o seu leite - disse Syme.
- O meu leite! - disse o outro, num tom de contundente desprezo insondável. - O meu leite! Acha que tenho o ar de beber essa mistela repugnante quando não estou debaixo do olho daqueles malditos anarquistas? Nesta sala, somos todos cristãos, embora talvez não  acrescentou, relanceando a massa cambaleante dos circunstantes demasiado rigorosos. Acabar o meu leite? Raios o partam! Sim, acho que vou acabar com ele!
E atirou para o chão o copo que se partiu e entornou num clarão de prata líquida.
Syme não tirava os olhos dele, cheio de uma alegre curiosidade.
- Agora, sim, já estou a ver - exclamou. - Você não é o velho que pareCIa.
- Não posso tirar esta cara aqui - replicou o Professor De Worms. - É uma caracterização refinadíssima. Quanto a ser ou não um velho, não me compete a mim dizê-lo. Da última vez que fiz anos, foram trinta e oito.
- Sim, mas o que eu queria dizer - disse Syme com impaciência - era que você está em forma.
- Enfim - respondeu desapaixonadamente o outro. - Constipo-me com facilidade.
O riso que a descoberta da sua verdadeira situação provocara em Syme como que o fazia soçobrar de alívio. E a verdade era que continuava a sentir vontade de rir ao pensar naquele professor paralítico cuja personagem coubera a um actor ainda jovem interpretar como se estivesse na ribalta. Mas ver cair o frasco de pimenta de cima da mesa tê-Io-ia feito rir do mesmo modo.
O falso Professor bebeu e limpou a barba falsa.
- Sabia - perguntou ele - que aquele Gogol era um dos nossos? - Eu? Não. Não sabia - respondeu Syme um tanto surpreendido.
- Mas você sabia?
- Nem por sombras - replicou o homem que se apresentava sob o nome de De Worms. - Pensei que o Presidente se estava a referir a mim, e tinha as pernas a tremer.
- E eu pensei que estava a falar de mim - disse Syme, com o seu riso desmesurado. - Passei o tempo todo com a mão no revólver.
- Também eu - disse o Professor sombriamente. - E o Gogol, a mesma coisa, evidentemente.
Syme bateu com o punho na mesa, gritando.
- Então, três de nós estávamos lá! - exclamou ele. - Três em sete era uma boa proporção para nos batermos. Se tivéssemos sabido que éramos três!
O rosto do Professor De Worms toldou-se, e os seus olhos não se levantaram do tampo da mesa.
- Éramos três - disse por fim. - Mas se fôssemos trezentos, também não poderíamos fazer nada.
- Não podíamos fazer nada, se fôssemos trezentos contra quatro? - perguntou Syme, rindo clamorosamente ao ouvi-lo.
- Não - disse o Professor com sobriedade. - Não, se fôssemos trezentos contra o Domingo.
Este simples nome bastou para que Syme se tornasse bruscamente frio e sério; o riso morrera-lhe no coração antes ainda de lhe morrer nos lábios. O rosto do inesquecível Presidente veio-lhe ao espírito tão vivamente como se o visse fotografado a cores, e deu por essa diferença que distinguia Domingo de todos os seus satélites: os rostos dos segundos, por mais ferozes e sinistros que fossem, esbatiam-se pouco a pouco da memória como os outros rostos humanos, ao passo que o de Domingo quase parecia tomar-se mais real na sua ausência, como se o retrato de um homem pouco a pouco se tornasse vivo.
Ficaram os dois silenciosos por um momento, e a seguir as palavras de Syme irromperam precipitadamente, como a espuma súbita que jorra de uma garrafa de champagne.
- Professor - gritou ele -, isso é insuportável. Você tem medo daquele homem?
O Professor ergueu as pálpebras pesadas e fitou Syme com os seus grandes olhos azuis bem abertos, de uma franqueza quase sobrenatural.
- Sim, tenho - disse ele em voz baixa. - E você também.
Syme ficou aturdido por um instante. Depois pôs-se de pé, muito direito, como um homem que acaba de ser insultado, afastando a cadeira para um lado da mesa.
- Sim - disse ele numa voz indescritível -, você tem razão. Tenho medo dele. Por isso juro por Deus que procurarei esse homem que me mete medo até o encontrar, e o atingir a murro na boca. Nem que o céu seja o seu trono e a Terra o degrau onde tem poisados os pés, juro que o derrubarei.
- Como? - perguntou o Professor, sem deixar de o fitar nos olhos. - Porquê?
- Porque tenho medo dele - disse Syme -, e nenhum homem deve consentir no universo a presença seja do que for de que tenha medo.
De Worms pestanejou olhando-o com uma espécie de estupefacção cega. Fez um esforço por falar, mas Syme continuou em voz baixa, mas subterraneamente atravessada por exaltação inumana:
- Quem condescenderia em fazer cair só as coisas de que não tem medo? Quem se rebaixaria ao ponto de só mostrar bravura por dinheiro como um pugilista vulgar? Quem poderia limitar-se a não ter medo, à maneira de uma árvore? Temos de combater contra aquilo que tememos. Lembre-se da velha história do padre inglês que deu a extrema-unção ao bandido da Sicília, e de como o grande capitão de bandidos lhe disse: «Não posso dar-lhe dinheiro, mas posso dar-lhe um conselho para toda a vida: polegar firme ao segurar a lâmina, e força para cima». Eu digo-lhe a mesma coisa: força para cima, se quiser atingir as estrelas.
O outro olhou para o tecto, recorrendo a um truque que completava o seu disfarce.
- O Domingo é uma estrela fixa - disse ele.
- Tem de o ver como uma estrela cadente - disse Syme, e pôs o chapéu na cabeça.
A decisão do seu gesto fez com que também o Professor se pusesse de pé, hesitante.
- Faz alguma ideia - perguntou ele a Syme com uma perplexidade benevolente - do sítio preciso para onde vai?
- Sim - replicou concisamente Syme. - Vou impedir o lançamento daquela bomba em Paris.
- E faz alguma ideia de como vai fazer isso? - interrogou-o o outro.
- Não - disse Syme com a mesma decisão.
- Deve lembrar-se com certeza - continuou o pseudo-De Worms, passando a mão pela barba e olhando pela janela - de que, quando saímos depois do fim tão brusco da reunião, todos os preparativos da atrocidade foram postos exclusivamente nas mãos do Marquês e do Df. Bull. O Marquês deve estar a estas horas a atravessar o Canal. Mas para onde irá a seguir e o que fará então é duvidoso que o próprio Presidente o saiba; e nós também não sabemos. O único homem que o sabe é o Dr. Bull.
- Com mil raios! - exclamou Syme. - E nós não sabemos onde ele está.
- Sim - disse o outro num tom de voz curiosamente despreocupado -, eu sei onde ele está.
- E não mo quer dizer? - perguntou Syme com um olhar ansioso.
- Levo-o lá - disse o Professor, e tirou o chapéu que deixara num cabide.
Syme olhava-o fixamente, tomado de uma excitação que o inteiriçava.
- O que é que me está a querer dizer? - perguntou com secura.
- Quer juntar-se a mim? Correr esse risco?
- Meu rapaz - disse amavelmente o Professor -, diverte-me notar que você julga que eu sou um cobarde. A esse respeito só tenho uma palavra a dizer, e vou dizê-la nos termos precisos da sua própria retórica filosófica. Você pensa que é possível vencer o Presidente. Eu sei que isso é impossível, e vou tentar fazê-lo -, e abrindo a porta da taberna, por onde entrou uma rajada de frio cortante, saíram para as ruas sombrias que davam para as docas.
A maior parte da neve fundira-se ou transformara-se em lama pisada, mas aqui e ali havia ainda alguns amontoados mais cinzentos do que brancos brilhando entre as sombras. As ruas estreitas estavam molhadas e cheias de poças, reflectindo irregular e ocasionalmente a luz incerta dos candeeiros, como destroços de um outro mundo em ruínas. Syme sentia-se quase atordoado enquanto atravessava aquela confusão crescente de luzes e sombras; mas o seu companheiro dirigiu-se com desenvoltura em direcção ao fundo da rua, onde uma nesga do rio surgia e brilhava como uma barreira de fogo.
- Para onde é que está a ir? - quis saber Syme.
- Neste momento - respondeu o Professor -, vou dobrar a esquina para ver se o Dr. Bull se foi deitar. Tem hábitos higiénicos, e recolhe-se cedo.
- O Dr. Bull! - exclamou Syme. - Mora ali à esquina?
- Não - respondeu-lhe o seu amigo. - A verdade é que mora um bocado longe daqui, do outro lado do rio, mas daqui podemos ver se já terá ido para a cama.
Dobrando a esquina enquanto falava, e virando-se para o rio sombrio, salpicado de manchas de lume, apontou a outra margem com a bengala. Na direcção de Surrey e junto ao rio, via-se uma grande mole de moradias, com as janelas esparsamente iluminadas, subindo como chaminés de fábrica a uma altura incrível, e parecendo debruçar-se sobre a água. Um daqueles blocos de casas em particular dir-se-ia uma Torre de BabeI dotada de mil olhos. Syme nunca vira os arranha-céus da América, e por isso os edifícios que tinham diante dos olhos pareciam-lhe um sonho.
Enquanto os fitava assim, a luz mais alta daquela torre com inumeráveis luzes apagou-se de súbito, como se aquele Argos negro fechasse um dos seus olhos sem conto.
O Professor De Worms rodou sobre os calcanhares e bateu com a bengala na bota.
- Tarde de mais - disse ele -, o nosso higiénico doutor já se deitou.
- O que é que você quer dizer? - disse Syme. - É ali em cima que ele vive?
- Sim - disse De Worms -, por detrás dessa precisa janela que você não pode ver. Venha, vamos ver se jantamos. Visitamo-lo amanhã.
Sem mais palavras, abriram caminho, cortando por várias ruelas, até à brilhante e animada East India Dock Road. O Professor, que parecia conhecer bem o bairro, aproximou-se de um ponto onde a linha dos estabelecimentos iluminados terminava bruscamente numa zona silenciosa e sombria, onde se via uma velha estalagem branca, muito degradada, a cerca de vinte pés da rua.
- Podem encontrar-se boas estalagens inglesas esquecidas ao acaso um pouco por toda a parte, como fósseis - explicou o Professor. - Uma vez, descobri um lugar decente no West End.
- Suponho - disse Syme, sorrindo - que este será o lugar decente simétrico do East End.
- E é - disse o Professor com reverência, enquanto entravam.
Ali jantaram e dormiram, perfeitamente satisfeitos. Os feijões com bacon que aquela gente indescritível sabia cozinhar, a assombrosa ascensão de um Borgonha do fundo das caves da adega, completaram a impressão que Syme experimentava de uma camaradagem e de um reconforto novos. Ao longo de toda aquela provação o seu horror mais profundo fora o isolamento, e não há palavras que exprimam o abismo entre estar-se isolado e poder-se contar com um aliado. Podemos conceder aos matemáticos que quatro são dois vezes dois. Mas dois não são duas vezes um: dois são duas mil vezes um. É por isso que, a despeito de centenas de inconvenientes, o mundo acabará por voltar sempre à monogamia.
Syme sentiu-se pela primeira vez em condições de contar pela primeira vez toda a sua tremenda história, a partir do momento em que Gregory o conduzira àquele pequeno bar junto ao rio. Contou-a longa e largamente, num monólogo luxuriante, como um homem que fala com velhos amigos. Pelo seu lado, o homem que personificara o Professor De Worms não foi também menos eloquente. A sua história era quase tão estúpida como a de Syme.
- O seu disfarce parece-me bom - disse Syme, acabando um copo de Mâcon -; bastante melhor do que o do velho Gogol. Desde o primeiro momento, achei tanta barba e cabelo um pouco excessivos.
- Era uma teoria artística diferente - replicou pensativamente o Professor. - O Gogol era um idealista. Disfarçou-se de acordo com o ideal platónico ou abstracto do anarquista. Mas eu sou um realista. Sou um retratista. Enfim, na realidade, dizer que sou um retratista é uma maneira imprópria de falar. Sou um retrato.
- Não estou a entendê-lo - disse Syme.
- Sou um retrato - repetiu o Professor. - Sou um retrato do célebre Professor De Worms, que está, creio eu, em Nápoles.
- Quer dizer que se disfarçou da pessoa dele? - disse Syme.
Mas ele sabe que você lhe está a usar o nariz em vão?
- Sabe muito bem, sim - replicou o seu amigo animadamente.
- Então, porque é que ele não o denuncia?
- Denunciei-o eu - respondeu o Professor.
- Explique-se lá - disse Syme.
- Com prazer, se não se importar de ouvir a minha história - replicou o eminente filósofo estrangeiro. - Sou actor profissional, e o meu nome é Wilks. Quando trabalhava no teatro, convivi de perto com toda a espécie de boémios e malandros. Às vezes eram gente que apostava nas corridas de cavalos, às vezes pertenciam à ralé dos artistas, e nalguns casos eram refugiados políticos. Numa reunião de sonhadores exilados deste último grupo, fui apresentado ao grande filósofo niilista alemão, o Professor De Worms. Não pude conhecer grande coisa a seu respeito, para além da sua aparência, que era extremamente desagradável, e que estudei com todo o cuidado. Compreendi que ele demonstrara que o princípio destrutivo do universo era Deus; insistia, por isso, na necessidade de uma energia furiosa e sem tréguas, que fizesse em pedaços todas as coisas. A energia, dizia ele, era o Todo. Era um homem coxo, míope e sofria de uma paralisia parcial. Quando o conheci, estava de humor frívolo, e achei-o tão desagradável que decidi imitá-lo. Se fosse caricaturista, tinha-lhe feito o retrato. Mas como era simplesmente um actor, restava-me interpretar uma caricatura. Disfarcei-me do que quis que fosse um exagero brutal da repulsiva pessoa do velho Professor. E quando entrei numa sala cheia de adeptos seus, estava à espera de ser recebido com um rugido de riso, ou, no caso de a consideração que lhe votavam ser um pouco mais forte, com um rugido de indignação diante da minha injúria. Não sou capaz de descrever a surpresa que senti ao ver que a minha entrada em cena era acolhida com um silêncio cheio de respeito, seguido (assim que abri a boca) por um murmúrio de admiração. Tinha sido vítima da maldição do artista perfeito. Tinha sido demasiado subtil, demasiado verdadeiro. Todos pensaram que eu era realmente o grande professor niilista. Nessa altura, eu era um jovem são de espírito, e confesso que aquilo foi um choque. Mas, antes de conseguir recompor-me por completo, dois ou três dos admiradores presentes caíram-me em cima, ardentemente indignados, dizendo-me que na sala ao lado alguém tinha querido ofender-me em público. Interroguei-os sobre a natureza dessa ofensa. Ao que parecia, um impertinente qualquer tinha-se mascarado imitando-me e exibindo uma paródia absurda da minha pessoa. Como tinha bebido mais champagne do que o aconselhável, decidi num relâmpago de loucura levar a situação até ao fim. O resultado foi que, quando o verdadeiro Professor apareceu, deparou com o olhar furioso dos presentes, bem como com o meu sobrolho alçado e o meu olhar glacial.
«Não é preciso dizer que houve um embate. Os pessimistas que me rodeavam olhavam ansiosamente ora para um Professor, ora para o outro, tentando ver qual era realmente o mais fraco. Mas ganhei eu. Um homem velho e de pouca saúde, como o meu rival, não podia esperar mostrar-se tão impressionantemente fraco como um jovem actor na flor da vida. Bem vê, ele sofre de facto de paralisia, e uma vez que essa limitação rigorosa afecta o seu funcionamento, não pode ser um paralítico tão convincente como eu fui. Tentou portanto refutar-me intelectualmente. Eu fiz-lhe frente por meio de um expediente muito simples. Sempre que ele dizia qualquer coisa que ninguém excepto ele era capaz de compreender, eu respondia-lhe dizendo outra que nem eu próprio podia compreender.
«- Não concebo - disse ele - como você pôde formular o princípio de que a evolução é exclusivamente negação, uma vez que lhe é inerente a introdução da lacuna, como aspecto essencial da diferenciação.
«- Você leu tudo isso em Pinckwerts - retorqui-lhe eu com o maior desprezo -; e a ideia de que a involução funcionou eugenicamente foi sustentada há muito tempo por Glumpe. - Não preciso de lhe dizer que nunca tinha ouvido falar fosse do que fosse que se parecesse com Pinckwerts e Glumpe. Mas aqueles que nos rodeavam (para minha grande surpresa) pareciam lembrar-se muito bem dos seus nomes, e o Professor, dando-se conta de que o método erudito e misterioso o deixava por completo à mercê de um inimigo não excessivamente escrupuloso, recuou recorrendo a uma forma de espírito mais popular.
«- Estou a ver - ironizou ele - que você é tão convincente como o falso porco de Esopo.
«- E você tão pouco - respondi eu com um sorriso - como o porco-espinho em Montaigne.
«Não vou ter de lhe dizer que não há rasto de porco-espinho em Montaigne, pois não?
«- Todos os seus truques são tão postiços - disse ele - como a sua barba.
«A verdade é que para aquilo, que era verdade, além de hábil, eu não tinha qualquer resposta inteligente. Mas ri com gosto, e respondi ao acaso:
«Como as botas do panteísta - e virei-lhe as costas, portador de todas as honras da vitória.
«E o certo é que o Professor foi expulso, mas sem violência, apesar de um dos presentes ter pacientemente tentado arrancar-lhe o nariz. Julgo saber que actualmente é recebido em todos os países da Europa como um impostor ardiloso. A sua seriedade e a sua irritação aparentes são a delícia de todos.»
- Bem - disse Syme -, compreendo que tenha posto essa barba suja e velha para uma brincadeira nocturna, o que não consigo compreender é porque não a voltou a tirar.
- Isso tem a ver com o resto da história - disse o actor. - Depois de deixar a assembleia ali reunida, seguido por reverentes aplausos, saí a coxear para o escuro da rua, esperando ver-me em breve suficientemente longe para poder voltar a andar como um ser humano. Para minha estupefacção, ao dobrar a esquina, senti que me tocavam no ombro, e ao virar-me descobri-me coberto pela sombra de um polícia descomunal. O polícia disse-me que eu era procurado. Adoptei uma espécie de atitude paralítica, e exclamei com um sotaque alemão carregado:
«- Sim, sou procurado... pelos oprimidos do mundo. Você prende-me acusando-me de ser o Professor De Worms, o grande anarquista. - O polícia consultou impassivelmente um papel que tinha na mão:
«- Não, sir - disse depois cortesmente. - Não exactamente por isso, sir. Prendo-o sob a acusação de não ser o célebre anarquista, o Professor De Worms.
«Esta acusação, se por acaso me incriminasse de alguma coisa, era claramente a mais leve das duas, e eu segui o polícia, desconfiado, mas sem desânimo de maior. Fizeram-me atravessar uma série de salas da esquadra, e por fim fui conduzido à presença de um oficial da polícia, que me disse que tinham começado uma campanha séria contra os centros anarquistas, e que por isso o meu bem sucedido disfarce poderia ser de grande valor ao serviço da segurança pública. Ofereceu-me um bom ordenado e deu-me este cartãozinho azul. Embora a nossa conversa tenha sido breve, impressionou-me e pareceu-me um homem dotado de um senso comum extremamente robusto e de sentido do humor; mas não posso dizer-lhe muito mais sobre a sua pessoa, porque...»
Syme poisou o garfo e a faca.
- Eu sei - disse ele -, porque falou com ele numa sala às escuras. O Professor De Worms meneou afirmativamente a cabeça e esvaziou o seu copo.
O Homem dos Óculos
- O Borgonha é excelente - disse o Professor com tristeza, ao poisar o copo em cima da mesa.
- Você parece achar que não - disse Syme -, porque o bebe como se fosse um medicamento.
- Tem de me desculpar as minhas maneiras - disse desanimadamente o Professor. - Estou numa situação curiosa. Por dentro, sinto-me a rebentar de entusiasmo juvenil; mas desempenho tão bem o meu papel de Professor paralítico, que não consigo desfazer-me dele'. Por isso, até mesmo quando estou com amigos e não preciso de representar, não consigo impedir-me de falar muito devagar e de franzir a testa, como se se tratasse de facto da minha testa. Posso sentir-me extremamente feliz, se é que me entende, mas só à maneira de um paralítico. Irrompem-me do coração as exclamações mais joviais, mas as que me saem da boca são muito diferentes. Se você me ouvisse dizer: «Força, rapaz, anima-te!», ficava de lágrimas nos olhos.
- E fico - disse Syme -; mas não posso deixar de pensar que, independentemente de tudo isso, você está um pouco preocupado.
O Professor sobressaltou-se ligeiramente e olhou-o bem nos olhos.
- E você é um tipo muito esperto - disse ele -, é um prazer trabalhar consigo. Sim, tenho uma nuvem pesada a toldar-me o espírito. Um grande problema pela frente - e mergulhou a fronte calva entre as mãos.
Depois disse em voz baixa: - Sabe tocar piano?
- Sim - disse Syme bastante surpreendido -, dizem que tenho dedo.
E, enquanto o outro continuava sem dizer palavra, acrescentou a seguir:
- Espero que a grande nuvem se tenha dissipado.
Ao fim de um longo silêncio, da sombra cavernosa das mãos do Professor, rompeu a sua voz:
- Serviria igualmente bem se soubesse escrever à máquina.
- Obrigado - disse Syme -, você lisonjeia-me.
- Ouça-me - disse o outro - e lembre-se de quem vamos ter de ver amanhã. Você e eu vamos amanhã tentar fazer uma coisa muito mais perigosa do que tentar roubar as Jóias da Coroa da Torre de Londres. Vamos tentar roubar um segredo a um homem inteligentíssimo, fortíssimo e cheio de maldade. Excepto o Presidente, é claro, creio que não haja outro homem tão seriamente assustador e tão terrível como esse tipo com o seu sorriso e os seus óculos. Talvez não tenha o entusiasmo ardente que desafia a morte, a vontade demente de martírio pela anarquia, que são a marca do Secretário. Embora neste último, o fanatismo assuma uma qualidade humana, que quase o resgata. Mas o nosso pequeno Doutor tem uma lucidez de espírito brutal, que é mais chocante do que a doença do Secretário. Não reparou naquela virilidade e naquela vitalidade odiosas? Salta como uma bola de borracha. Foi por isso que o Domingo não estava a dormir (se é que alguma vez dorme) quando decidiu guardar bem guardados todos os planos do atentado na cabeça negra e redonda do Dr. Bull.
- E você acha que esse monstro único no seu género ficará domado se eu tocar piano para ele?
- Não seja estúpido - disse o seu mentor. - Falei do piano porque é um exercício que torna os dedos ágeis e hábeis. Syme, se vamos encontrar-nos com quem sabe e quisermos voltar de espírito são ou vivos, temos de poder trocar entre nós sinais de código sem que a fera dê por isso. Fiz uma espécie de numeração alfabética grosseira que corresponde aos cinco dedos da mão: é assim, está a ver? - e bateu ligeiramente com os dedos na mesa de madeira. - MAU, mau, uma palavra que talvez tenhamos de usar muitas vezes.
Syme serviu-se de novo copo de vinho, e começou a estudar o esquema. Tinha um cérebro invulgarmente rápido na resolução de quebra-cabeças, e mãos que manobravam com a mesma rapidez, e não precisou de muito tempo para aprender a transmitir mensagens simples através do que parecia ser um ocioso bater com os dedos em cima da mesa ou de um joelho. Mas o vinho e a camaradagem tinham sempre por efeito alimentar nele um veio de imaginação jovial, e o Professor em breve se viu em apertos perante a avassaladora energia daquela nova linguagem, nos termos em que se propunha adaptá-la o pensamento febril de Syme.
- Temos de ter sinais para certas palavras - disse Syme com seriedade -, palavras das quais provavelmente vamos precisar, transmitindo subtis cambiantes de sentido. A minha palavra favorita é «coetâneo». Qual é a sua?
- Deixe-se de palhaçadas - disse o Professor num tom de queixume. - O caso é mais sério do que você parece julgar.
- «Viço» - disse Syme, com um meneio de cabeça perspicaz -, temos de ter «viço», essa palavra que se usa para falar da relva, não está a ver?
- E você imagina - perguntou o Professor, furioso - que vamos falar de relva com o Dr. Bull?
- Há várias maneiras de abordar o assunto - disse Syme pensativamente -, e a palavra tem de ser introduzida sem parecer forçada. Podemos dizer, por exemplo: «Dr. Buli, como revolucionário, você deve estar lembrado de que houve outrora um tirano que nos aconselhou a comer relva; e a verdade é que muitos de nós, ao vermos a relva nova e cheia de viço do Verão...
- Mas não compreende - disse o outro - que isto é uma tragédia?
- Perfeitamente - replicou Syme -, mas numa tragédia devemos ser cómicos. Que raio de outra coisa podemos fazer? Gostava de conferir maior alcance à língua que você inventou. Não poderíamos alargar o seu uso aos dedos dos pés? O que implica que teríamos de descalçar os sapatos e as meias durante a conversa, e por muito discretamente que o fizéssemos...
- Syme - disse-lhe o seu amigo severa, mas simplesmente -, vá para a cama.
No entanto, Syme ficaria durante muito tempo sentado na cama a exercitar-se no novo código. Foi acordado na manhã seguinte antes de o sol começar a romper as trevas a oriente, e descobriu o seu aliado, com a sua barba cinzenta, de pé ao lado da cama, como se fosse um fantasma.
Syme sentou-se na cama, pestanejando. Pouco a pouco foi pondo ordem nos seus pensamentos, afastou o cobertor e levantou-se. Teve a impressão de que toda a segurança e toda a sociabilidade se tinham dissipado ao sair de entre os lençóis, enquanto se punha de pé experimentando um perigo frio na atmosfera. Continuava a sentir plena confiança e lealdade ao lado do seu companheiro; mas era a confiança entre dois homens que sobem ao cadafalso.
- Bom - disse Syme com uma animação forçada, ao mesmo tempo que enfiava as calças -, sonhei com o alfabeto que você inventou. Levou muito tempo a concebê-lo?
O Professor não respondeu, olhava em frente com olhos da cor de um mar de Inverno. Syme repetiu a pergunta.
- Quer dizer, levou muito tempo a inventar isso tudo? Costumam considerar-me bom em coisas dessas, mas precisei bem de uma hora para o aprender. Você aprendeu-o logo que o fez?
O Professor mantinha-se silencioso; tinha os olhos muito abertos, e sorria com um sorriso fixo, mas quase imperceptível.
- Quanto tempo, então?
O Professor não se moveu.
- Raios o partam, não é capaz de responder? - gritou Syme, numa fúria súbita que parecia esconder qualquer coisa como medo. Fosse ou não capaz de responder, o Professor não o fazia.
Syme fitou atentamente aquele rosto de pergaminho e os seus olhos azuis e vazios. O seu primeiro pensamento foi que o Professor enlouquecera, mas o seu segundo pensamento foi ainda mais aterrador. Bem vistas as coisas, que sabia ele daquela estranha criatura que adoptara irreflectidamente como amigo? Que sabia daquele homem, a não ser que participara num pequeno-almoço de anarquistas e lhe contara depois uma história ridícula? Era extremamente improvável que na reunião estivesse mais alguém do seu lado, além de Gogo!! Seria o silêncio do outro uma forma sensacional de declaração de guerra? Seria aquela dureza de diamante no olhar a medonha expressão de sarcasmo de um triplo traidor, que muda uma vez mais de campo? Endireitou-se e apurou o ouvido no meio do silêncio implacável.
Quase imaginou ouvir os bombistas que viriam prendê-lo avançando lentamente lá fora, no corredor.
Depois baixou os olhos e soltou uma gargalhada explosiva. Embora o Professor se mantivesse tão mudo como uma estátua, os seus cinco dedos dançavam batendo levemente e sem ruído o tampo inerte da mesa. Syme observou os velozes movimentos dos dedos falantes, e leu claramente a sua mensagem:
- «Não quero falar senão assim. Temos de nos preparar». Syme dedilhou a resposta com a impaciência de quem tirou um peso de cima de si:
- «Muito bem. Vamos tomar o pequeno-almoço».
Pegaram nos chapéus e nas bengalas em silêncio, mas ao pegar no seu estoque escondido na bengala, Syme fê-lo com a mão firme.
Não pararam mais do que alguns minutos ao balcão de um bar montado na rua, onde beberam um café e comeram umas sandes grossas e mal cortadas, atravessando depois o rio que, sob o alastrar da luz cinzenta do amanhecer, parecia tão desolado como o Aqueronte. Chegaram enfim diante da enorme mole de casas que tinham visto da outra margem, e começaram a subir um sem fim de degraus de pedra nua, sem se deterem por mais do que um momento de vez em quando para trocarem impressões batendo com os dedos no corrimão. Cada patamar a que chegavam tinha uma janela, e cada uma dessas janelas dava sobre uma aurora lívida e trágica que a custo ia subindo também no céu de Londres. Cada um dos inumeráveis telhados de lousa que dali viam parecia ser uma onda de chumbo num mar cinzento e revolto depois da chuva. Syme dava-se pouco a pouco conta de que a sua nova aventura tinha qualquer coisa de friamente lúcido, bem pior do que a loucura das aventuras já passadas. Na véspera à noite, por exemplo, as casas muito altas tinham-lhe dado a impressão de uma torre vista em sonhos. Mas, agora, enquanto subia os degraus intermináveis e esgotantes, descobria-se assustado e surpreendido por lhe parecerem infinitos. Não se tratava, entretanto, do ardente horror de um pesadelo ou de qualquer coisa que pudesse ser um exagero ou uma simples ilusão. O infinito dos degraus era antes como o infinito vazio das matemáticas, qualquer coisa de impensável e que é, contudo, necessário ao pensamento. Ou talvez como as espantosas afirmações dos astrónomos acerca da distância que separa as estrelas. Syme subia os degraus da escada da razão, mais aterradora do que a própria desrazão.
Chegaram finalmente ao piso onde morava o Dr. Bull. Uma última janela mostrou-lhes um amanhecer severo e branco, percorrido por laivos de um vermelho cru, que se parecia mais com o do barro do que com a cor das nuvens do crepúsculo. E a seguir entraram nas águas-furtadas do Df. Bull, despidas e cheias de luz.
Syme sentira-se obcecado tentando identificar uma certa recordação histórica que associava àqueles aposentos nus e àquele austero nascer do dia. No momento em que viu as águas-furtadas e o Df. Bull sentado diante de uma mesa a escrever, identificou a recordação, que dizia respeito à Revolução Francesa. Faltava a silhueta negra da guilhotina recortada sobre o pesado fundo vermelho e branco da manhã. O Dr. Bull estava vestido apenas com uma camisa branca e um par de calças pretas. Dir-se-ia que acabara de tirar da cabeça uma peruca deixando à vista o seu cabelo curto e negro. Tinha qualquer coisa que lembrava um Marat ou um Robespierre menos composto.
Mas a fantasia francesa desfazia-se a um olhar mais atento. Os jacobinos eram idealistas, e naquele homem havia um materialismo assassino. O lugar onde o viam agora conferia-lhe até certo ponto uma nova aparência. A luz forte e branca da manhã, que entrava por uma janela lateral, projectando sombras cortantes, fazia-o parecer mais pálido e anguloso do que durante o pequeno-almoço na varanda. Por outro lado, os óculos escuros ajustados no nariz poderiam ser duas cavidades negras num crânio, e davam-lhe o ar de uma caveira. E a verdade era que se a morte porventura se sentasse a escrever a uma mesa de madeira, bem poderia ser ele a morte.
Levantou os olhos, sorriu com amabilidade à entrada dos dois homens e pôs-se de pé com a agilidade flexível que o Professor mencionara. Ofereceu cadeiras a ambos, e foi a um cabide por detrás da porta, tratando de vestir um colete e um casaco de tweed grosso e escuro; abotoou-o rapidamente, e voltou a sentar-se diante da sua mesa.
O bom humor tranquilo dos seus modos deixou os seus dois adversários desamparados. Foi com certa dificuldade momentânea que o Professor quebrou o silêncio e começou:
- Desculpe se o vimos incomodar tão cedo, camarada - disse ele, reassumindo escrupulosamente os vagares de De Worms. - Já tratou com certeza de todos os preparativos para aquele assunto de Paris, não é verdade? - E acrescentou depois com uma lentidão infinita: - Temos uma informação que toma inadmissível qualquer coisa que se pareça com perder um momento que seja.
O Dr. Bull sorriu de novo, mas continuou a fitá-los sem uma palavra. O Professor continuou a falar, marcando uma pausa antes do esforço da cada palavra.
- Por favor, não me julgue demasiado precipitado; mas aconselho-o a alterar os planos, ou se for demasiado tarde para isso, siga o seu agente e dê-lhe todo o apoio que conseguir obter. O Camarada Syme e eu passámos por uma experiência que exigiria para lha contarmos mais tempo do que podemos permitir-nos utilizar, se quisermos agir. No entanto, estou disposto a relatar o sucedido com todos os pormenores, ainda que correndo o risco da perda de tempo, se você achar que isso é realmente essencial para o esclarecimento do problema que temos de discutir.
Encadeava as frases umas nas outras, tomando-as insuportavelmente longas e tortuosas, na esperança de fazer com que aquele pequeno Doutor de espírito prático perdesse a cabeça numa explosão de impaciência e acabasse assim por revelar o seu jogo. Mas o pequeno Doutor continuava a olhar e a sorrir, e o monólogo tomava-se cada vez mais pesado. Syme começava a sentir o mal-estar de um novo desespero. O silêncio e o sorriso do Doutor em nada se assemelhavam ao olhar cataléptico e ao horrível silêncio que o Professor o fizera enfrentar meia hora antes. No disfarce e maneiras do Professor havia sempre qualquer coisa de simplesmente grotesco, como num fantoche articulado. Syme recordou as suas atribulações da véspera como se recordasse o medo que tivera do Papão na sua infância. Mas ali fazia dia claro; ali estava um homem saudável, de ombros robustos, com o seu fato de fazenda, sem nada de estranho exceptuada a nota dos seus óculos atrozes, que não dava nas vistas nem fazia esgares, mas sorria invariavelmente e se mantinha em silêncio. Tudo transmitia uma terrível impressão de realidade. À medida que a luz do sol se tomava mais forte, as cores da tez do Doutor e o padrão da roupa que vestia tomavam-se insolentemente mais vivas e mais nítidas, do mesmo modo que num romance realista, que insistisse na importância desses aspectos. Mas o seu sorriso mantinha-se extremamente delicado, a sua cabeça adoptara a posição de quem ouve amavelmente; só o seu silêncio era misterioso.
- Como eu ia dizendo - continuou o Professor, fazendo pensar num homem que se arrastasse pesadamente na areia -, o incidente que nos sucedeu e que nos fez vir aqui para nos informarmos do Marquês é de tamanha importância que talvez você considere que o melhor será contar-lho, mas como a verdade é que foi com o Camarada Syme que se passou e não comigo...
As suas palavras pareciam desfiar-se como numa ladainha, mas Syme, que o observava, viu que os seus longos dedos tamborilavam rapidamente na borda da mesa. Leu a mensagem:
- «Continue você. Este demónio secou-me as palavras».
Syme entrou em liça com o alarde improvisado de entusiasmo a que cedia sempre que a situação o alarmava.
- Sim, a coisa passou-se de facto comigo - disse ele precipitadamente. - Tive a sorte de entabular conversa com um detective que, graças ao meu chapéu, me tomou por uma pessoa respeitável. Movido pelo desejo de consolidar a minha reputação de respeitabilidade, levei-o ao Savoy e embebedei-o mortalmente. Sob a influência do álcool, o homem tomou-se bastante amistoso e confiou-me que estavam à espera, dentro de um ou dois dias, de prender o Marquês em França. Por isso, a menos que você ou eu corramos atrás dele...
O Doutor continuava a sorrir da maneira mais amigável, enquanto os seus olhos resguardados pelos óculos se mantinham impenetráveis. O Professor fez sinal a Syme de que queria continuar ele próprio a explicar o problema, e retomou a palavra com a mesma calma estudada.
- O Syme transmitiu-me imediatamente essa informação, e viemos os dois aqui para vermos o que poderia você sentir-se inclinado a fazer ao tomar conhecimento dela. Parece-me incontestavelmente urgente que...
Syme passara o tempo todo olhando o Doutor quase tão fixamente como este olhava nos olhos o Professor, mas sem a sombra de um sorriso. Os nervos dos dois camaradas de armas estavam prestes a ceder perante a imobilidade cortês do Doutor, mas foi então que, de súbito, Syme se inclinou para diante e bateu ociosamente com os dedos na  borda da mesa. A mensagem que enviara ao seu aliado dizia:
- «Tenho uma intuição.»
O Professor, introduzindo uma pausa discreta no seu monólogo, respondeu-lhe:
- «Então, guarde-a para si.»
Syme telegrafou:
- «É absolutamente extraordinária.»
O outro respondeu:
- «Extraordinariamente estúpida!»
Syme disse:
- «Eu sou um poeta.»
O outro retorquiu:
- «Você é um homem morto.»
Syme corou violentamente do cabelo claro para baixo, e os olhos ardiam-lhe de febre. Como dissera, tivera uma intuição, e esta ascendera agora à qualidade de uma espécie de certeza iluminada. Retomando o seu dedilhar sinalizador, dirigiu-se ao amigo:
- «Você nem pode imaginar como é poética a minha intuição. Causa-me a mesma impressão que às vezes sentimos quando a Primavera chega.»
Estudou depois a resposta dos dedos do seu amigo. Resposta que foi: - «Vá para o inferno!»
E o Professor retomou o seu monólogo simplesmente verbal endereçado ao Doutor.
- «Talvez eu devesse antes dizer - disse Syme servindo-se dos dedos - que parece o cheiro repentino do mar que às vezes nos surpreende no coração cheio de viço dos bosques.»
O seu companheiro não se deu ao trabalho de lhe responder.
- «Ou ainda, outra vez - tamborilou Syme -, é qualquer coisa de positivo, como o apaixonado cabelo vermelho de uma mulher bela.»
O Professor continuava a proferir o seu discurso, mas Syme decidira-se a agir, enquanto o outro falava. Debruçando-se por cima da mesa, disse numa voz que não podia ser desprezada:
- Dr. Bull!
O rosto sorridente e iluminado do Doutor não se moveu, mas os dois homens poderiam jurar que, por detrás dos óculos, os seus olhos dardejaram na direcção de Syme.
- Dr. Bull - disse Syme, num tom de peculiares precisão e cortesia -, faz-me um pequeno favor? Terá a grande amabilidade de tirar os óculos?
O Professor virou-se na cadeira e olhou para Syme com uma espécie de fúria gelada e atónita. Syme, como um homem que pôs em cima da mesa de jogo vida e fortuna, inclinou-se para diante com uma expressão feroz no rosto. O Doutor não se mexeu.
Durante alguns segundos houve um silêncio no qual se teria podido ouvir cair um alfinete, entrecortado apenas pela buzina isolada de um vapor no Tamisa. Depois, o Dr. Bulllevantou-se lentamente, sempre a sorrir, e tirou os óculos.
Syme levantou-se de um pulo, recuando ligeiramente, como um professor de química que acaba de provocar uma explosão bem sucedida. Os olhos que via eram como estrelas, e por um instante tudo o que pôde foi apontar para eles, sem dizer palavra.
O Professor também se pusera de pé, esquecido da sua paralisia de rigor. Debruçou-se sobre o espaldar da cadeira e olhou fixamente, com uma expressão de dúvida, o Df. Bull, como se este tivesse acabado de se transformar num sapo diante dos seus olhos. E, com efeito, a metamorfose era tão grande como se fosse isso mesmo que tivesse acontecido.
Os dois detectives viram, sentado na cadeira diante deles, um homem novo, com um ar agarotado, olhos cor de avelã alegres e cheios de franqueza, uma expressão de sinceridade no rosto, vestido com a simplicidade do dia a dia, como o empregado de um banco de Londres, e com toda a aparência de ser uma excelente pessoa comum. O sorriso continuava no seu lugar, mas poderia ser o primeiro sorriso de um bebé.
- Eu bem sabia que sou um poeta - exclamou Syme tomado de uma espécie de êxtase. - Sabia que a minha intuição era tão infalível como o Papa. Eram os óculos que faziam tudo! Estava tudo nos óculos. Aqueles olhos negros de fera, contrastando com o resto saudável e sólido da sua pessoa, é que o transformavam num demónio vivo no meio dos mortos.
- Sim, há uma diferença espantosa - disse o Professor, hesitando. - Mas quanto ao projecto do Df. Bull...
- O projecto que vá para o inferno! - rugiu Syme, fora de si. Olhe para ele! Olhe para esta cara, olhe para este colarinho, olhe para estas botas de um raio! Não me vai dizer que estamos diante de um anarquista!
- Syme! - gritou o outro com uma apreensão aflita.
- Valha-me Deus! - disse Syme. - Eu assumo o risco! Dr. Bull, sou um funcionário da polícia. Aqui tem o meu cartão.
E poisou o cartão em cima da mesa.
O Professor receou que tudo estivesse perdido, mas agiu com lealdade. Tirou do bolso o seu próprio cartão da polícia e pô-lo ao lado do amigo. Então, o terceiro homem começou a rir e, pela primeira vez naquela manhã, ouviram a sua voz.
- Meus amigos, é uma sorte dos diabos ter-vos aqui tão cedo
disse ele, com uma petulância de adolescente. - Assim, podemos seguir todos juntos para França. Sim, eu também sou membro da força pública - e deixou cair em cima da mesa, pondo-o bem à vista dos outros, um cartão azul, à laia de prova formal.
Cobrindo-se vivamente com um chapéu de coco e voltando a pôr os terríveis óculos, o Doutor avançou direito à porta com tal decisão, que os outros dois só puderam segui-lo como que por instinto. Syme parecia um tanto distraído, e ao passar a porta bateu bruscamente com a bengala no chão de pedra fazendo o golpe ressoar no corredor.
- Meu Deus Todo-Poderoso - exclamou -, se as coisas são assim, havia no raio do Conselho mais detectives de um raio do que bombistas de um raio!
- Podíamos ter lutado sem problemas - disse Buli -, éramos quatro contra três.
O Professor estava já a descer as escadas, mas a sua voz subiu até aos ouvidos dos dois homens.
- Não - dizia essa voz -, não éramos quatro contra três, não tínhamos essa sorte. Éramos quatro contra Um.
Os outros continuaram a descer os degraus em silêncio.
O jovem chamado Buli, com a cortesia ingénua que o caracterizava, insistiu em que os outros fossem à sua frente até saírem para a rua; mas, uma vez lá fora, o vigor da sua agilidade pareceu afirmar-se sem que ele disso se apercebesse, fazendo-o avançar velozmente à cabeça do grupo até a um balcão de informações dos caminhos-de-ferro, enquanto falava com os outros, virando por cima do ombro a cabeça para trás.
- É bom ter companhia - disse ele -; sozinho, sentia-me meio morto de tão nervoso que estava. Na altura, quase não resisti a abraçar o Gogol, o que teria sido uma imprudência. Espero que não me desprezem por ter tido medo.
- Todos os demónios daquele inferno - disse Syme - me fizeram tremer! Mas o pior de todos era você, com esses óculos infernais.
O jovem riu com gosto.
- Não acham que foi um bom truque? - perguntou ele. - Uma ideia tão simples, mas não fui eu que a tive. Não tenho cabeça para tanto. Ouçam, eu estava cheio de vontade de entrar para o serviço de detectives, sobretudo porque queria estar na campanha anti-bombista. Ora, eles queriam para o efeito alguém que pudesse mascarar-se de bombista; e todos os outros juravam solenemente que eu nunca havia de conseguir parecer um bombista. Diziam que a minha maneira de andar era demasiado respeitável, e que, visto de costas, eu tinha o ar de ser a Constituição Britânica em pessoa. Diziam que a minha aparência era demasiado saudável e demasiado optimista, e também demasiado tranquilizadora e demasiado benevolente; na Scotland Yard chamaram-me toda a espécie de coisas que se possam imaginar. Diziam que se fosse um criminoso, seria um sucesso perfeito por ter um ar tão sério; mas tinha o azar de ser um homem sério, e não havia a mais remota probabilidade de alguma vez poder vir a parecer um criminoso a fim de lhes prestar o meu contributo. Depois, lá acabaram por me levar à presença de um velho, uma pessoa altamente colocada na polícia, com uma enorme cabeça em cima dos ombros. E na presença dele todos repetiram que eu era um caso perdido. Um perguntava-se se uma barba desgrenhada poderia esconder o meu sorriso simpático; outro disse que se me pintassem a cara de preto, eu talvez ficasse com o ar de um anarquista negro; mas o velho chefe interveio com uma sugestão absolutamente extraordinária: «Um par de óculos escuros é quanto basta», disse ele, seguro de si. «Olhem bem para ele; tem o ar de um jovem empregado de escritório angelical. Mas ponham-lhe um par de óculos escuros, e verão que as criancinhas desatam a berrar quando o virem». E assim foi, valha-me S. Jorge! Uma vez escondidos os meus olhos, todo o resto da minha pessoa, o sorriso, os ombros largos e o cabelo curto, contribuía para me fazer parecer um pequeno demónio perfeito. É o que vos digo: depois de feita, a coisa parecia da maior simplicidade, como um milagre. Mas o verdadeiro milagre do caso foi outro. Porque a verdade é que nesta história houve qualquer coisa de espantoso, de tal maneira que ainda sinto a cabeça a andar à roda quando penso nisso.
- E o que foi? - perguntou Syme.
- Já lhe digo - respondeu o jovem dos óculos. - Esse grande patrão da polícia, que percebeu logo o efeito que teria a combinação dos meus óculos com o meu cabelo e as minhas meias, esse homem, Deus sabe que ele nunca me viu.
Os olhos de Syme iluminaram-se bruscamente, olhando-o.
- Mas como é possível? - perguntou. - Pensei que tinha falado com ele.
- Falei - disse Bull com vivacidade -; mas falámos numa sala tão escura como um depósito de carvão. Uma coisa como você nunca teria imaginado.
- Sim, aí está uma coisa que eu nunca teria sido capaz de conceber - disse gravemente Syme.
- Uma ideia nova, com efeito - disse o Professor.
O novo aliado era rápido como o vento perante questões de ordem prática. No posto de informações perguntou com a celeridade de um homem de negócios que comboios havia para Dover. Obtida a informação, embarcou com os seus companheiros num carro de praça e instalou-os a seguir no interior de uma carruagem ferroviária, sem lhes dar tempo de se darem conta do que assim se passava a um ritmo fora do alcance do seu fôlego. Só depois de instalados a bordo no barco que tomaram para Calais puderam voltar a conversar livremente.
- Já tinha tratado das coisas - explicou o jovem - prevendo estar em França para o almoço; mas é um grande prazer ter mais alguém que almoce comigo. Olhem, tive de despachar primeiro essa besta do Marquês mais a sua bomba, porque o Presidente me trazia debaixo de olho, embora só Deus possa saber como. Um dia conto-vos a história toda. Uma história realmente tremenda. Sempre que tentava escapar-me, via o Presidente aqui ou ali, ora sorrindo da janela rasgada de um clube, ora tirando o chapéu para me cumprimentar do alto de um transporte público. Podem dizer o que quiserem, mas o que eu vos digo é que aquele tipo tem um pacto com o demónio; é capaz de estar em meia-dúzia de sítios ao mesmo tempo.
- Portanto, se bem entendo, você fez o Marquês seguir viagem disse o Professor. - Há quanto tempo? Estaremos ainda a tempo de o apanhar?
 - Sim - respondeu o novo guia. - Fiz uma previsão horária completa. Ele ainda há-de estar em Calais quando nós chegarmos.
- Mas quando o descobrirmos em Calais - continuou o Professor -, que vamos fazer?
A esta pergunta, a decisão do Dr. Bull pareceu sofrer a primeira quebra. Reflectiu um momento, e disse a seguir:
- Teoricamente, suponho que devíamos chamar a polícia.
- Eu não posso - disse Syme. - Teoricamente, teria de me atirar ao mar antes de o fazer. É que prometi a um pobre tipo, que é realmente um pessimista moderno, que não avisaria a polícia, e dei-lhe a minha palavra nesse sentido. Não sou entendido em casuística, mas sei que não posso quebrar a palavra que dei a um pessimista moderno. Seria o mesmo que faltar com a palavra dada a uma criança.
- Eu estou na mesma situação - disse o professor. - Também tentei avisar a polícia, mas não fui capaz, por causa de um juramento imbecil. Nos meus tempos de actor, fui um perfeito animal. Apesar de tudo, o perjúrio e a traição foram os únicos crimes que até hoje não cometi. Se não fosse assim, deixava de saber que diferença há entre a verdade e o erro.
- Também eu sei o que isso é - disse o Dr. Bull. - Fiz uma promessa ao Secretário, que vocês já conhecem, aquele tipo do sorriso torto. Meus amigos, esse homem é o mais infeliz de todos os seres humanos que alguma vez existiram. Talvez seja por causa da sua digestão, ou da sua consciência, ou dos seus nervos, ou da sua filosofia do universo, mas a verdade é que vive como um condenado, vive no inferno! Ora bem, eu não sou capaz de agredir nem derrubar um homem assim. Seria como açoitar um leproso. Talvez esteja louco, mas é o que sinto, e ponto final no assunto.
- Não me parece que você esteja louco - disse Syme. - Sabia que agiria desse modo desde o momento...
- Desde qual momento? - perguntou o Dr. Bull.
- Desde o momento em que tirou os óculos.
O Dr. Bull teve um leve sorriso, e atravessou o convés para observar o mar banhado de sol. Depois voltou atrás, num passo despreocupado, e fez-se um silêncio cordial entre os três homens.
- Bem - disse Syme -, estou a ver que temos todos a mesma espécie de moralidade ou de imoralidade, e por isso seria bom ver que consequências daí decorrem.
- Sim - concordou o Professor -, tem toda a razão; e temos de nos apressar, porque já estou a começar a ver o cabo do Nariz Cinzento em terras de França.
- As consequências que daí decorrem - disse Syme pondo-se sério - são que só podemos contar connosco os três em todo o planeta. O Gogol desapareceu, e sabe Deus onde estará; talvez o Professor o tenha esmagado como uma mosca. No Conselho somos três contra três, como os romanos que defendiam a sua ponte. Mas a nossa situação é pior do que parece, em primeiro lugar porque eles podem chamar a sua organização em seu auxílio, e nós não podemos chamar a nossa, e em segundo lugar porque...
- Porque um dos outros três homens - disse o Professor - não é um homem.
Syme meneou a cabeça e manteve-se silencioso por um ou dois segundos; depois disse:
- A minha ideia é a seguinte. Temos de fazer qualquer coisa que obrigue o Marquês a ficar em Calais até ao meio-dia de amanhã. Tenho andado a dar voltas na cabeça a mais de vinte planos diferentes. Não podemos denunciá-lo como bombista; sobre isso estamos de acordo. Não podemos fazer com que o prendam acusando-o de uma banalidade qualquer, pois nesse caso teríamos de entrar em cena, ele conhece-nos e desconfiaria de uma ratoeira. Não podemos retê-lo a pretexto desta ou daquela tarefa anarquista; ele estaria disposto a ouvir-nos a esse respeito, mas não a ponto de ficar em Calais enquanto o Czar visitasse Paris em segurança. Podemos tentar sequestrá-lo, e mantê-lo preso por nossas mãos, mas aqui ele é um homem conhecido. Tem uma quantidade de amigos que lhe servem de guardas de corpo; além disso é um homem extremamente forte e corajoso, e o sucesso de uma iniciativa do género parece-me duvidoso. Na minha opinião, tudo o que podemos fazer é tentarmos usar tudo o que parece estar precisamente a favor do Marquês. Vou aproveitar-me do facto de ele ser um aristocrata altamente respeitado. Vou aproveitar-me do facto de ter muitos amigos e de se mover nos meios da melhor sociedade.
- Que diabo de coisa está você a querer dizer? - perguntou o Professor.
- Os Syme são mencionados pela primeira vez no século XIV disse Syme; mas há uma tradição que diz que um deles seguiu Bruce, montado no seu cavalo, em Bannockburn. A partir de 1350, em todo o caso, a árvore genealógica é precisa.
- Enlouqueceu - disse o Doutor, olhando-o com atenção.
- As nossas armas - continuou Syme calmamente - são três cruzes vermelhas sobre um campo de prata. A divisa varia.
O Professor deitou rudemente a mão à lapela do casaco de Syme. - Estamos a dar à costa - disse ele. - Ainda está transtornado pelo balanço do barco ou quer continuar a brincar a despropósito?
- As minhas observações são de ordem extremamente prática  respondeu Syme, cheio de calma. - A casa de Saint-Eustache é muito antiga. O marquês não pode negar que é um cavalheiro. E também não pode negar que eu o seja. Para pormos completamente fora de dúvida a minha posição social, proponho que lhe arranquemos o chapéu da cabeça na primeira ocasião que se apresente. Mas já chegámos ao Cais.
Desembarcaram sob um sol forte, numa espécie de aturdimento. Syme, que assumira agora a direcção das operações, do mesmo modo que Bull o fizera em Londres, conduziu-os ao longo de uma marginal até chegarem perto de um conjunto de cafés, protegidos por sebes e com vista para o mar. Avançava à frente dos outros dois e, enquanto o fazia, alardeava a sua pessoa e manejava a bengala como se fosse uma espada. Aparentemente preparava-se para percorrer até ao fim a linha dos cafés, mas eis que bruscamente se deteve. Com um gesto ríspido indicou aos outros que se mantivessem silenciosos, e apontou com o dedo enluvado uma mesa de café à sombra de uma pérgola florida à qual estava sentado o Marquês de Saint-Eustache, com os dentes despontando brilhantes por entre a farta barba negra, com o rosto destemido e moreno resguardado por um chapéu de palha amarelo e claro, e cuja figura se recortava sobre o fundo violeta do mar.
O Duelo
Syme sentou-se com os seus companheiros a uma mesa de café, com os seus olhos azuis cintilando como o mar que brilhava ao fundo, e pediu uma garrafa de Saumur com jovial impaciência. Estava, sem que se soubesse bem porquê, curiosamente eufórico. A sua animação já invulgarmente viva ia aumentando à medida que o Saumur diminuía, e ao fim de meia-hora as suas palavras eram uma torrente sem sentido. Declarou que estava a planear a conversa que dentro em breve teria com o terrível Marquês. Tomava febrilmente notas com um lápis. E recitava qualquer coisa que era como um desses catecismos impressos, com perguntas e respostas, a uma velocidade extraordinária.
- Aproximo-me dele. Antes de lhe tirar o chapéu da cabeça, tiro o meu. Digo-lhe: «O Marquês de Saint-Eustache, suponho». Ele diz: «O famoso Mr. Syme, presumo». E com o seu francês mais requintado pergunta-me como estou. Eu respondo-lhe no mais requintado cockney: «Oh, como o Syme de sempre...»
- Oh, cale-se - disse o homem dos óculos. - Controle-se, e deite fora esse papel. O que é que pensa realmente fazer?
- Mas é um catecismo maravilhoso - disse Syme num tom patético. - Deixe-me ler-lho. Não tem mais de quarenta e três perguntas e respostas, e algumas das respostas do Marquês são admiravelmente espirituosas. Quero ser justo para com o meu inimigo.
- Mas para que é que tudo isso serve? - perguntou o Dr. Bull, exasperado.
- Serve para eu lhe lançar o desafio, não vê? - disse Syme com um sorriso. - Depois de o Marquês me dar a sua trigésima nona resposta, que diz...
- Por acaso não lhe ocorreu - perguntou o Professor com uma simplicidade pensativa - que o Marquês poderá não dizer todas essas quarenta e três coisas que você lhe atribuiu de antemão? Nesse caso, creio que os epigramas que você preparou para si próprio parecerão um tanto forçados.
Syme bateu na mesa com uma expressão radiante no rosto.
- Sim, isso é bem verdade - disse ele -, e até aqui eu nunca tinha pensado no assunto. A sua inteligência, sir, é fora do comum. Há-de vir a ser célebre.
- Oh, você está bêbado que nem um cacho! - disse o Doutor. - Só me resta então - continuou Syme imperturbável - adoptar um método diferente de quebrar o gelo (se assim posso dizer) entre a minha própria pessoa e o homem que desejo matar. E embora o curso de um diálogo não possa ser predito por uma das suas partes isoladamente (como você fez notar com tão rara penetração), a única coisa a fazer, suponho eu, é que essa parte isolada, desenrole, na medida do possível, todo o diálogo por sua conta. E é o que eu vou fazer, por S. Jorge! - E levantou-se subitamente, com o cabelo alourado agitado pela brisa marítima.
Ouvia-se tocar uma banda num café chantant escondido algures entre as árvores, e uma mulher acabara de cantar havia um instante. Na cabeça em fogo de Syme o som dos instrumentos da banda evocava a música estridente e alta desse realejo de Leicester Square ao som do qual uma vez ele se pusera de pé para enfrentar a morte. Olhou na direcção da mesinha diante da qual o Marquês estava sentado. Tinham-se-lhe reunido entretanto dois companheiros, dois franceses solenes, com as suas casacas e chapéus altos, ostentando um deles a roseta vermelha da Legião de Honra, e que eram evidentemente homens que gozavam de uma posição social sólida. Ao lado daquelas peças de indumentária negras e cilíndricas, o chapéu de palha e a roupa leve do Marquês pareciam o trajo de um boémio, senão de um bárbaro - embora a sua aparência continuasse a ser a de um marquês. Talvez se pudesse dizer até que parecia um rei, com a sua elegância animal, os seus olhos desdenhosos e a sua cabeça altiva levantada diante do mar azul. Mas, em todo o caso, nada tinha de um rei cristão; dir-se-ia antes um déspota bronzeado, semigrego e semiasiático, que, nos dias em que a escravatura era tida por natural, se ocupasse de olhar o Mediterrâneo, a sua galera e os seus infelizes escravos. Tal deveria precisamente ser, pensou Syme, o rosto moreno e dourado de um tirano semelhante, desenhando-se entre o verde escuro das oliveiras e o azul ardente.
- Vai dirigir-se à reunião? - perguntou o Professor com acrimónia, ao ver que Syme continuava de pé sem se mexer.
Syme esvaziou uma última taça transbordante de espuma.
- Vou - disse ele indicando o Marquês e os seus companheiros. - Aquela reunião é uma reunião que não me agrada. Vou puxar o nariz, o grande nariz feio e cor de mogno, à reunião.
Avançou rapidamente, embora com um passo não excessivamente firme. O Marquês, ao vê-lo, alçou as sobrancelhas assírias sob o efeito da surpresa, mas sorriu cortesmente.
- Mr. Syme, suponho? - disse.
Syme inclinou-se.
- E o senhor é o Marquês de Saint-Eustache - disse ele, com elegância. - Permite-me que lhe puxe o nariz?
Syme inclinou-se para o fazer, mas o marquês retrocedeu, afastando a cadeira, e os dois homens de chapéu alto agarravam Syme pelos ombros.
- Este homem insultou-me! - disse Syme, gesticulando ao explicar-se.
- Insultou-o? - exclamou o cavalheiro com a roseta vermelha.
- Quando?
- Oh, agora mesmo - disse Syme, sem reflectir. - Insultou a minha mãe.
- A sua mãe? - exclamou o cavalheiro, incrédulo.
- Ou, em todo o caso - respondeu Syme cedendo um ponto -, a minha tia.
- Mas como é que o Marquês pode ter insultado a sua tia agora mesmo? - disse o segundo cavalheiro com uma perplexidade bastante compreensível. - Tem estado aqui sentado o tempo todo.
- Ah, isso é o que ele diz! - disse Syme numa voz sombria.
- Eu não disse fosse o que fosse - disse o Marquês -, excepto qualquer coisa a respeito da banda. Tudo o que disse foi que gostava de ouvir Wagner bem tocado.
- Era uma alusão à minha família - disse Syme com firmeza. A minha tia tocava mal Wagner. O ponto é doloroso. Estamos sempre a ser insultados por causa disso.
- Nunca vi nada tão extraordinário - disse o cavalheiro condecorado, olhando com hesitação para o Marquês.
- Oh, garanto-lhe - disse Syme, muito sério -, toda a vossa conversa estava pura e simplesmente cheia de alusões sinistras à fraqueza da minha tia.
- Isso é um disparate! - disse o segundo cavalheiro. - No que me toca, estive aqui meia-hora sem dizer nada, excepto que gostava da maneira de cantar daquela rapariga de cabelo preto.
- Pois bem, lá está você outra vez! - disse Syme com indignação. - A minha tia tinha o cabelo ruivo.
- Quer-me parecer - disse o que falara em primeiro lugar - que o senhor não está senão à procura de um pretexto para ofender o Marquês.
- Por S. Jorge! - disse Syme lançando um olhar em redor.
Que inteligente me saiu você!
O Marquês pôs-se de pé com os olhos chamejantes como os de um tigre.
- Está a querer provocar-me! - gritou ele. - Está a querer bater-se comigo! Por Deus! Por Deus, nunca deixei muito tempo à espera quem assim entendeu fazer! Talvez estes cavalheiros queiram ser minhas testemunhas. Temos ainda quatro horas de luz do dia. Podemos bater-nos já esta tarde.
Syme inclinou-se com uma vénia cheia de distinção.
- Marquês - disse ele -, a sua acção é digna da sua fama e do seu sangue. Permita-me que conferencie por um momento com os cavalheiros nas mãos dos quais porei a minha honra.
Em três grandes passadas voltou para junto dos seus companheiros, e estes, que haviam assistido à sua ofensiva inspirada pelo champagne e escutado as suas estúpidas explicações, receberam-no com estupefacção. Porque a verdade era que, de regresso, se mostrava perfeitamente sóbrio, um pouco pálido, e falou em voz baixa dando provas de um apaixonado sentido prático.
- Está feito - disse ele com aspereza. - Marquei um duelo com a fera. Mas ouçam, e prestem bem atenção. Não temos tempo a perder com as palavras. Vocês vão ser minhas testemunhas, e terão de ser vocês a tratar de tudo. Por isso, deverão insistir, e insistir absolutamente, em que o duelo tenha lugar amanhã de manhã, depois das sete, o que me permitirá impedi-lo de apanhar o comboio das 7 e 45 para Paris. Se ele perder o comboio, perderá a oportunidade de cometer o crime. Não poderá recusar-se a aceitar a vossa exigência a respeito da hora e do lugar do combate. Mas vai tentar fazer as coisas da seguinte maneira: escolherá um lugar próximo da estação, onde tenciona apanhar o comboio. É um excelente esgrimista e acredita que será capaz de me matar a tempo de não perder o comboio. Mas eu também não me bato mal, e penso que poderei demorá-lo até à hora da partida. Depois, talvez ele consiga matar-me para se consolar da pouca sorte. Estão a entender? Muito bem, então. Deixem-me agora apresentar-vos a uns encantadores amigos meus -, e tomando a dianteira, cruzando rapidamente a marginal, apresentou os dois homens às testemunhas do Marquês, dando-lhes dois nomes extremamente aristocráticos que os outros nunca tinham ouvido antes.
Syme sofria de acessos espasmódicos de um singular bom senso, embora este último não fosse um traço distintivo da sua personalidade. Eram (como ele dissera a propósito do impulso que sentira diante dos óculos do Df. Bull) intuições poéticas, que por vezes ascendiam ao nível superior da profecia.
Assim calculara correctamente, na circunstância, as medidas que o seu adversário adoptaria. Quando o Marquês foi informado pelas suas testemunhas de que Syme só poderia bater-se na manhã seguinte, compreendeu perfeitamente que um obstáculo súbito se interpusera entre ele e o atentado à bomba que se preparava para levar a cabo na capital. Como naturalmente não podia explicar uma tal dificuldade aos seus amigos, optou pela via que Syme predissera. Fez com que as suas testemunhas escolhessem como ponto de encontro um pequeno prado não muito distante da linha de comboio, e confiou na possibilidade de impor um desfecho fatal ao primeiro embate.
Perante o sangue frio que exibia ao campo de honra, ninguém poderia adivinhar que estava ansioso por partir em viagem; tinha as mãos nos bolsos, o chapéu de palha puxado para trás, deixando ver bem o rosto bronzeado pelo sol. No entanto, qualquer pessoa que observasse a cena, acharia estranho vê-lo aparecer acompanhado, não sópelos seus padrinhos, mas também por dois criados, que transportavam uma grande mala de viagem e um cesto de provisões.
À hora aprazada, o sol espalhava já no ar um calor agradável. Syme sentiu-se surpreendido ao ver tantas flores primaveris brilhando em tons de ouro e prata por entre a erva alta, que praticamente subia à altura dos joelhos dos circunstantes.
À excepção do Marquês, todos os outros participantes tinham vestido naquela manhã indumentárias escuras e solenes, com chapéus altos que faziam pensar em chaminés de fábrica; o pequeno Doutor, em particular, mediante o contributo dos seus óculos escuros, parecia um gato-pingado de comédia. Syme não pôde deixar de ter a impressão de um contraste cómico entre aquele aparato de enterro religioso e a relva abundante e esplendorosa do prado, que transbordava de flores por toda a parte. Mas a verdade era que esse contraste cómico entre as flores amarelas e os chapéus negros era apenas um símbolo do contraste trágico entre as flores amarelas e aquele caso negro. À sua direita, havia um pequeno bosque; um pouco mais longe, do lado esquerdo, via-se a curva alongada da linha de comboio, que, por assim dizer, Syme defendia do Marquês, que nela tinha, pelo contrário, a sua meta e meio de se escapar. À sua frente, por detrás do grupo negro dos seus contrários, Syme podia ver, como uma pequena nuvem colorida, uma pequena amendoeira em flor recortando-se sobre o fundo esbatido do mar.
O membro da Legião de Honra, que parecia ser Coronel Ducroix, aproximou-se do Professor e do Dr. Bull com extrema cortesia, e sugeriu que o desafio terminasse depois de produzido o primeiro ferimento digno desse nome.
O Dr. Bull, no entanto, e depois de cuidadosamente instruído por Syme acerca da questão em apreço, insistiu, com grande dignidade e em péssimo francês, que o duelo deveria continuar até um dos adversários se achar incapaz de o prosseguir. Syme decidira para consigo que seria capaz de não pôr o Marquês fora de combate, não deixando também que o outro lhe fizesse o mesmo, durante pelo menos uns vinte minutos. Passados esses vinte minutos, o comboio para Paris teria já partido.
- Para um homem com as bem conhecidas destreza e coragem de Monsieur de Saint-Eustache - disse o Professor solenemente -, o método adoptado só poderá ser indiferente, e o nosso mandatário tem fortes razões para reclamar um combate prolongado, razões que a delicadeza me impede de tomar explícitas, mas por cuja natureza honrada e justa eu próprio posso...
- Demónios! - interrompeu-os do seu posto lá atrás o Marquês, cujo rosto subitamente se toldara. - Deixemo-nos de palavreado e comecemos - e decepou a cabeça de um pé de flor com a bengala.
Syme deu-se conta da sua brutal impaciência e instintivamente espreitou para trás, movendo a cabeça por cima do ombro, para ver se o comboio se aproximava. Mas não havia sinais de fumo no horizonte.
O Coronel Ducroix ajoelhou e abriu o estojo, tirando do seu interior um par de espadas gémeas, que reflectiam o sol, cintilando como dois relâmpagos de fogo branco. Ofereceu uma delas ao Marquês que a aceitou sem cerimónias, e a outra a Syme, que a tomou nas mãos, a dobrou e sopesou com todo o vagar compatível com uma atitude de dignidade.
Depois o Coronel tomou um outro par de espadas, e reservando para si uma delas enquanto dava a outra ao Df. Bull, colocou os dois adversários nas suas respectivas posições.
Ambos os contendores tinham despido os casacos e coletes, e estavam frente a frente com as espadas na mão. As testemunhas postaram-se uma de cada lado da linha de combate, com as suas espadas também desembainhadas, mas continuando a envergar as suas casacas e chapéus. Os contendores saudaram-se. O Coronel disse tranquilamente:
- Começar! -, e as duas lâminas tocaram-se, tilintando.
Quando o choque dos ferros cruzados se transmitiu ao braço de Syme, todos os terrores fantásticos que sofrera ao longo desta história se dissiparam do seu espírito como os sonhos de um homem se desfazem quando se levanta da cama. Recordava-os com nitidez e ordenadamente como simples ilusões nervosas: o medo do Professor fora o medo dos acidentes tirânicos que há num pesadelo, e o medo do Doutor fora o medo do vazio sufocante da ciência. O primeiro era o velho medo perante a possibilidade de um milagre, e o segundo o medo moderno e mais desesperado da impossibilidade definitiva de qualquer milagre. Mas sabia que esses medos eram fantasias, uma vez que se encontrava agora frente ao facto sólido do medo da morte, ditado por um senso comum cru e sem piedade. Sentia-se como um homem que tivesse sonhado a noite inteira estar a cair em precipícios, e acordasse na manhã em que iria ser enforcado. Porque assim que viu a luz do sol refractar-se no aço da lâmina do seu inimigo que se aproximava, e sentiu que as duas línguas de aço se cruzavam, vibrantes como dois seres vivos, soube que aquele adversário era um combatente terrível e que a sua última hora provavelmente chegara.
Sentiu que todas as coisas que o rodeavam assumiam um valor intenso e estranho, e assim era também com a relva que pisava; sentiu o amor da vida em todas as coisas vivas. Quase imaginou que ouvia a erva crescer; quase imaginou sentir que naquele preciso lugar onde estava rompiam novas flores desabrochando na relva do prado - flores de um vermelho de sangue, e flores douradas e azuis, que consumavam toda a promessa da Primavera. E sempre que os seus olhos se afastavam, de relance, dos olhos fixos, calmos e hipnóticos do Marquês, descobriam a copa da pequena amendoeira recortada no céu do horizonte. Tinha a impressão de que se, por milagre, escapasse, não quereria outra coisa que não fosse ficar para sempre diante daquela amendoeira, sem nada mais desejar neste mundo.
Mas enquanto a Terra e o céu e todas as coisas tinham a beleza viva de tudo o que se perdeu, uma outra metade do seu espírito tinha a transparência do vidro, e ele esquivava-se da ponta da espada do adversário com uma espécie de habilidade maquinal da qual dificilmente se teria suposto capaz. A certa altura a ponta da espada do adversário correra-lhe ao longo do pulso, deixando-o traçado de um leve rasto de sangue, mas ele não deu por isso ou decidiu tacitamente ignorá-lo. Ripostava a cada golpe uma e outra vez, e uma ou duas vezes quase acreditou ter tocado o seu alvo, mas como não vira sangue nem na lâmina nem na camisa do outro supôs que se enganara. Foi então que uma interrupção e uma mudança intervieram.
Correndo o risco de deitar tudo a perder, o Marquês, quebrando a fixidez do seu olhar tranquilo, espreitou de relance por cima do ombro e para trás, na direcção da linha de caminho-de- ferro que tinha àsua direita. Depois virou de novo para Syme um rosto transfigurado no de um demónio, e começou a bater-se como se manejasse vinte espadas ao mesmo tempo. O ataque foi tão rápido e tão furioso, que a sua espada, sendo embora só uma, se assemelhava a um dilúvio de flechas cintilantes. Syme não teve a menor oportunidade de olhar para a linha de comboio; mas não precisava de o fazer. Podia adivinhar a razão da repentina loucura que o Marquês punha na batalha: era o comboio de Paris que aparecia.
Mas a energia mórbida do Marquês revelava-se excessiva. Por duas vezes, Syme, aparando os seus golpes, fizera já com que a ponta da espada inimiga saísse claramente do círculo do combate; e à terceira vez, a resposta foi tão rápida que tornava indubitável que o golpe fora em cheio. A verdade é que a espada de Syme vergara sob o peso do corpo do Marquês, que penetrara.
Syme estava tão certo de ter cravado a espada no corpo do inimigo como um jardineiro podia estar certo de ter feito a enxada entrar na terra. E no entanto o Marquês recuou desprendendo-se da lâmina sem dificuldade, e Syme observou como um imbecil a ponta da sua espada. Não havia rasto de sangue nela.
Houve um instante de silêncio crispado, e Syme lançou-se em seguida, furioso também, por seu turno, contra aquele outro homem, movido por uma incandescente curiosidade. O Marquês era provavelmente, no conjunto, melhor esgrimista do que Syme, conforme este no início pressentira, mas agora mostrava-se desorientado e perdia terreno. Batia-se num desvario e sem acerto, olhando constantemente para o lado da linha de caminho-de-ferro, quase como se tivesse mais medo do comboio do que da lâmina acerada. Syme, por outro lado, combatia ferozmente, mas com prudência, animado de um furor intelectual, ansioso por desvendar o enigma da ausência de manchas de sangue na sua espada. Assim, preocupava-se menos em atingir o corpo do Marquês do que a sua garganta e a sua cabeça. Após um minuto e meio mais de combate, sentiu que a ponta da sua espada entrava no pescoço do homem, por debaixo do maxilar. Mas ao voltar a sair, a lâmina continuava sem sinais de sangue. Semi-Iouco, carregou de novo, e traçou no rosto do Marquês o que deveria ser uma ferida sangrenta. Mas não havia ferida.
Por um momento o céu de Syme tomou a toldar-se de terrores sobrenaturais. Aquele homem parecia-lhe ter de estar animado de uma vida mágica. Mas esta nova ameaça espiritual era muito mais atroz do que a simples confusão de espírito simbolizada por um paralítico que o perseguia. O Professor fora não mais do que um duende; este homem era um demónio - talvez o próprio Demónio! Fosse como fosse, o certo era que por três vezes fora penetrado por uma espada humana sem que esta o marcasse. Esta ideia fê-lo reagir, e tudo o que nele havia de bom subiu no ar transformando-se em canção, como o vento alto canta nas árvores. Pensou em todas as coisas humanas que encontrara na sua aventura: as lanternas chinesas de Saffron Park, o cabelo ruivo da rapariga no jardim, os honestos marinheiros que bebiam cerveja nas docas, os seus leais companheiros que ali estavam com ele. Talvez tivesse sido escolhido como campeão de todas estas amoráveis coisas cheias de frescura para terçar armas com o inimigo de toda a criação. «Bem vistas as coisas», disse de si para si, «sou mais do que um demónio: sou um homem. Posso fazer uma coisa que o próprio Satanás não pode: posso morrer», e enquanto estas palavras lhe atravessavam o espírito, ouviu um ténue apitar ao longe, que em breve se transformaria no rugido do comboio para Paris.
Voltou ao combate com uma leveza sobrenatural, como um muçulmano ofegando por alcançar o Paraíso. À medida que o comboio se aproximava cada vez mais, imaginou estar a ver gente que montava arcos de flores em Paris; ei-Io que se juntava ao ruído crescente e à glória da grande República cujas portas estava a defender do Inferno. Os seus pensamentos foram subindo cada vez mais alto à medida que aumentava o rugido do comboio, finalmente rematado, como que numa manifestação de orgulho, por um longo silvo estridente. O comboio parara.
De repente, para estupefacção de todos os presentes, o Marquês recuou pondo-se fora do alcance da espada do seu adversário e atirando a sua para longe. O seu salto de recuo fora extraordinário, e não menos extraordinário pelo facto de Syme ter acabado, no momento anterior, de mergulhar a ponta da sua lâmina na coxa do Marquês.
- Alto! - disse o Marquês numa voz que impunha obediência imediata. - Tenho uma coisa a dizer.
- De que se trata? - perguntou o Coronel Ducroix, fitando-o.
Houve alguma quebra das regras?
- Houve com certeza quebra das regras - disse o Dr. Bull, que empalidecera um pouco. - O nosso constituinte feriu pelo menos quatro vezes o Marquês, e ele nem por isso ficou pior do que estava.
O Marquês levantou a mão, com um estranho ar de paciência espectral.
- Por favor, deixem-me falar - disse ele. - Isto é extremamente importante, Mr. Syme - continuou, virando-se para o seu adversário -, estamos aqui a bater-nos, se bem me lembro, porque o senhor exprimiu um desejo (que eu considerei irracional) de me puxar o nariz. Quer fazer-me a gentileza de me puxar o nariz o mais depressa que possa? Tenho de apanhar um comboio.
- Protesto, tudo isto é absolutamente irregular - disse o Dr. Bull, indignado.
- É com certeza um tanto contrário aos precedentes - disse o Coronel Ducroix, olhando hesitantemente para o seu constituinte.
Penso que se registou um caso (com o Capitão Bellegarde e o Barão Zumpt) no qual as armas foram substituídas a meio do duelo a pedido de um dos contendores. Mas só dificilmente poderíamos dizer que o nariz é uma arma.
- Quer ou não puxar-me o nariz? - tomou o Marquês, exasperado. - Vamos, vamos, Mr. Syme! Queria fazê-lo, pois faça-o! Não pode imaginar como isto é importante para mim. Não seja tão egoísta! Puxe-me o nariz imediatamente, sou eu quem lho está a pedir! -, e executou uma ligeira vénia com um sorriso sedutor. O comboio para Paris, ofegando e soprando, entrara numa pequena gare por detrás da colina vizinha.
Syme sentiu a mesma impressão que sentira já mais do que uma vez no decorrer das suas aventuras - a impressão de uma vaga horrível e sublime, subindo à altura do céu, estava prestes a abater-se sobre ele. Avançando num mundo que só compreendia pela metade, deu dois passos em frente e deitou a mão ao nariz romano daquele distinto aristocrata. Puxou-o com força e ficou com ele na mão.
Manteve-se por alguns segundos solenemente desconcertado, segurando entre os dedos o apêndice nasal de papelão e examinando-o, enquanto o sol e as nuvens e os bosques das encostas assistiam àquela cena imbecil.
O Marquês quebrou o silêncio fazendo ouvir uma voz alta e jovial. - Se alguém quiser a minha sobrancelha esquerda para alguma coisa - disse ele -, pode ficar com ela. Coronel Ducroix, aceita ficar com a minha sobrancelha esquerda? É o género de coisa que um dia ainda pode vir a ser útil - e arrancou gravemente uma das suas negras sobrancelhas assírias, arrastando com ela cerca de metade da sua fronte bronzeada, antes de a oferecer educadamente ao Coronel, que ficou vermelho e mudo de raiva.
- Se eu tivesse sabido - indignou-se ele - que estava a servir de testemunha a um cobarde que se acolchoa para lutar...
- Oh, eu sei, eu sei! - disse o Marquês, arrancando despreocupadamente, e atirando para a direita e para esquerda, vários pedaços de si próprio. - Estão enganados: mas neste momento não posso explicar-vos o que se passa. Estou a dizer-vos que o comboio já chegou à estação!
- Sim - disse com ferocidade o Df. BulI -, o comboio chegou e vai partir da estação. Vai partir sem si. Sabemos perfeitamente para que trabalho diabólico...
O misterioso Marquês levantou as mãos num gesto desesperado. Dir-se-ia um extravagante espantalho, ali ao sol, com metade da cara arrancada, e a outra metade encoberta, mas assomando entre esgares. - Quer pôr-me louco? - gritou ele. - O comboio...
- Você não irá naquele comboio - disse Syme firmemente, e fechou a mão sobre o punho da espada.
Então, aquele personagem desvairado voltou-se para Syme, e pareceu fazer um esforço enorme antes de começar a falar:
- Seu grande imbecil, seu incapaz, seu tapado, seu lorpa, seu desgraçado, seu cretino de um raio, seu pobre sandeu! - disse sem parar para retomar o fôlego. - Miserável, energúmeno, dupla cara de asno! Você...
- Não irá naquele comboio - repetiu Syme.
- E por que diabos - rugiu o outro - havia eu de querer ir naquele comboio?
- Todos sabemos - disse o Professor com dureza - que você quer ir largar uma bomba em Paris.
- Quero é ir a Jericó largar lá um fala-barato! - gritou o Marquês, puxando com a mão o cabelo, que se lhe soltou da cabeça sem a menor dificuldade. - Pelo seu cérebro obtuso não terá passado a mínima ideia acerca de quem eu sou? Julga então que quero apanhar aquele  comboio? Há mais de vinte comboios que eu podia apanhar para Paris!
- Então, o que é que o preocupa tanto? - perguntou o Professor. - O que é que me preocupa? O que me preocupa não é apanhar aquele comboio; o que me preocupava era que aquele comboio me apanhasse, e agora, valha-me Deus, sei que me apanhou.
- Lamento informá-lo - disse Syme, comedido - de que a sua observação não me impressiona pouco nem muito. Talvez, se você pudesse arrancar os restos da sua testa original e mais alguns pedaços do que foi o seu queixo, aquilo que diz se tomasse mais claro. São muitos os caminhos que conduzem à lucidez de espírito. Que quer você dizer com isso de o comboio o ter apanhado? Pode ser só a minha fantasia literária, mas pressinto que essas palavras talvez queiram dizer alguma coisa.
- Querem dizer tudo - respondeu o outro - e também o fim de tudo. O Domingo tem-nos agora, a nós, na mão.
- A nós? - repetiu o Professor, como que estupefacto. - Que quer dizer você com esse «nós»?
- A polícia, como é evidente! - disse o Marquês, arrancando a cabeleira e metade do rosto.
A cabeça que então se mostrou era loura, com o seu cabelo macio e bem cortado, como é frequente acontecer na polícia inglesa; mas cobria o rosto uma palidez terrível.
- Sou o inspector Ratcliffe - disse o homem, num tom precipitado e próximo da rispidez. - Um nome bem conhecido na polícia, a que já compreendi que vocês pertencem também. Mas, para o caso de haver alguma dúvida quanto à minha pessoa, aqui têm este cartão -, e preparou-se para tirar do bolso o cartão azul da polícia.
O Professor teve um gesto cansado.
- Oh, não nos mostre isso - disse ele, com uma voz abatida -, já temos cartões que cheguem para fazermos um jogo de pista.
O pequeno Dr. Bull, como acontece em muitos homens que parecem não ter mais do que uma vitalidade de temperamento vulgar, interveio numa mostra de bom gosto. Foi ele sem dúvida quem compôs as coisas. A meio de toda aquela cena de metamorfose, avançou com a atitude grave e responsável de uma testemunha e dirigiu-se às testemunhas do Marquês.
- Cavalheiros - disse ele -, todos nÓS vos devemos um pedido de desculpas, mas garanto-vos que não foram vítimas de uma partida de mau gosto, como talvez imaginem, ou de qualquer outra coisa indigna aos olhos de um homem honrado. Não perderam o vosso tempo. Ajudaram a salvar o mundo. Nós não somos palhaços, mas homens que lutam no extremo do desespero, tentando vencer uma enorme conspiração. Há uma sociedade secreta de anarquistas que nos persegue como se fôssemos lebres. Não estou a falar de um grupo de pobres loucos capazes de atirar aqui ou ali uma bomba, impelidos pela fome ou pela filosofia alemã, mas de uma igreja rica, poderosa e fanática, uma igreja de pessimistas orientais, que considera ter por dever sagrado destruir o género humano como quem destrói um verme. Podem deduzir a dureza com que nOS assediam do facto de sermos levados a disfarçar-nos desta maneira, pelo que peço desculpa, do mesmo modo que pelo incómodo que vos causámos.
A testemunha mais jovem do Marquês, um homem baixo e que usava um bigode preto, inclinou-se cortesmente e disse:
- Claro que aceito o pedido de desculpas. Mas espero que me desculpem em contrapartida entender que devo renunciar a continuar a acompanhar-vos nas vossas dificuldades, e que me permitam desejar-vos um bom dia. O espectáculo de um distinto concidadão, que era alguém das minhas relações e se desfaz aos bocados em pleno campo, é uma cena insólita e que por hoje me basta. Coronel Ducroix, sem pretender influenciar os seus actos, mas, caso considere como eu que a nossa presença aqui tem qualquer coisa de anormal, devo informá-lo de que vou regressar à cidade.
O Coronel Ducroix deu um passo mecânico, mas no instante seguinte torceu bruscamente o bigode branco e disse:
- Não, por S. Jorge! Eu não vou. Se estes cavalheiros estão realmente em dificuldades contra um bando de reles canalhas desses, ponho-me ao lado deles. Bati-me pela França, e seria difícil não me bater pela civilização.
O Dr. Buli tirou o chapéu e agitou-o no ar, aplaudindo como se estivesse num comício.
- Não façam muito barulho - disse o inspector Ratcliffe.
O Domingo pode ouvir.
- O Domingo! - gritou Buli, e deixou cair o chapéu.
- Sim - retorquiu Ratcliffe -, pode estar com os outros.
- Com quem? - perguntou Syme.
- Com os que estão a descer do comboio.
- O que você diz parece-me muito estranho - disse Syme.
Porque, na realidade... Mas, meu Deus - exclamou ele de súbito, como um homem que vê uma explosão ao longe -, Deus me valha, se tudo isto é verdade, a grande maioria dos que estávamos no Conselho Anarquista éramos adversários da anarquia! Éramos todos detectives, exceptuados o Presidente e o seu secretário pessoal. Que quer isto dizer?
- O que quer dizer? - disse o mais recente polícia com uma violência indescritível. - Quer dizer que somos homens mortos! Não conhecem o Domingo? Não sabem que as suas brincadeiras são sempre tão grandes e tão simples que nem sequer pensamos nelas? Não estão a ver que o Domingo colocou os seus inimigos mais poderosos no Conselho Supremo, tendo o cuidado de fazer a seguir com que o Conselho não fosse supremo? Digo-vos que comprou todas as empresas, controlou todos os cabos telegráficos, pôs todas as linhas de caminho-de-ferro, e esta especialmente, sob vigilância - explicou indicando com o dedo trémulo a pequena estação vizinha.
Apossou-se de todo o movimento; tinha metade do mundo pronta a segui-lo. Mas havia somente cinco pessoas, talvez, que estariam dispostas a resistir-lhe... e o velho demónio pô-las no Conselho Supremo, para que perdessem o seu tempo a observar-se umas às outras. Fomos uns imbecis, e foi ele quem planeou todas as nossas imbecilidades! O Domingo sabia que o Professor começaria a seguir Syme pelas ruas de Londres, e que Syme se bateria comigo em França. E tratava de reunir grandes capitais, de tomar conta das grandes linhas telegráficas, enquanto nós, os cinco imbecis, corríamos atrás uns dos outros como se fôssemos criancinhas a jogar à cabra-cega.
- E agora? - perguntou Syme, tomado de uma espécie de energia.
- Agora - replicou o outro com uma serenidade repentina -, descobriu-nos hoje a jogarmos à cabra-cega num campo de grande beleza bucólica e extrema solidão. É provável que tenha conquistado o mundo; só lhe falta conquistar este campo e os idiotas que aqui estão. E se querem realmente saber qual era a minha preocupação com a chegada daquele comboio, eu explico. A minha preocupação era que o Domingo ou o seu secretário acabam há um momento de se apear dele.
Syme soltou um grito involuntário, e todos se viraram para olhar para o lado da estação. Era bem verdade que um grupo considerável de pessoas parecia vir na sua direcção. Mas estavam demasiado longe para que fosse possível distingui-las.
- O falecido Marquês de Saint-Eustache tinha por hábito - disse o último polícia a revelar-se, mostrando um estojo de pele - trazer sempre consigo um binóculo de ópera. Ali vem, atrás daquela massa de gente, ou o Presidente, ou o Secretário. Apanharam-nos num belo lugar sossegado onde nenhum de nós sofrerá a tentação de quebrar o seu juramento chamando a polícia. Ouça, Dr. Bull, desconfio que verá melhor com estas lentes do que com esses seus óculos tão eminentemente decorativos.
Estendeu os binóculos ao Doutor, que tirou imediatamente os seus óculos, e aproximou o aparelho dos olhos.
- As coisas não podem ser tão más como você diz - disse o Professor, um tanto agitado. - São bastante numerosos, é verdade, mas é bem possível que não passem de turistas comuns.
- Os turistas comuns - perguntou Bull, com as lentes diante dos olhos - usam máscaras negras a tapar-lhes metade da cara?
Syme quase lhe arrancou o binóculo das mãos, e olhou através dele. A maior parte dos homens do grupo que avançava tinham um aspecto bastante comum; mas era bem verdade que dois ou três dos que vinham à frente usavam máscaras negras que lhes desciam até à boca. Tratava-se de um disfarce muito completo, sobretudo àquela distância, e Syme achou impossível concluir fosse o que fosse dos queixos e faces escanhoadas dos homens que conversavam à cabeça do grupo. Mas agora, enquanto continuavam a conversar, todos eles sorriam, e um deles sorria só com metade do rosto.
Os Criminosos Perseguem a Polícia
Syme tirou o binóculo dos olhos com um alívio quase espectraI.
- Em todo o caso, não vem com eles o Presidente - disse ele e passou a mão pela testa.
- Mas o certo é que ainda mal se vêem no horizonte - disse o Coronel, surpreendido e mal recomposto ainda da precipitada mas cortês explicação do Df. Bull. - Como é que pode reconhecer o seu Presidente no meio dos outros todos?
- Da mesma maneira que reconheceria um elefante branco no meio deles! - respondeu Syme com uma ponta de irritação. - Ainda mal se vêem no horizonte, é verdade, como você disse e muito bem; mas se ele viesse no meio dos outros... meu Deus, creio que sentiríamos tremer o chão.
Após um instante de pausa, o recém-descoberto que dava pelo nome de Ratcliffe disse com uma decisão sombria:
- É claro que o Presidente não vem com eles. Oxalá viesse. Mas é muito mais provável que o Presidente percorra agora Paris em triunfo, ou esteja sentado nas ruínas da Catedral de S. Paulo.
- Isso é absurdo! - disse Syme. - Pode ter acontecido alguma coisa durante a nossa ausência; mas ele não pode ter destruído o mundo em tão pouco tempo. É realmente verdade - acrescentou, franzindo o sobrolho na direcção dos campos que ao longe se estendiam diante da pequena estação -, é realmente certo que parece haver uma multidão de gente a encaminhar-se para aqui; mas não se trata do exército em que você está a pensar.
- Oh, esses que aí vêm - disse o novo detective com desdém -, não, não são uma força muito importante. Mas deixe-me dizer-lhe com toda a franqueza que foram exactamente calculados tendo em conta a nossa própria força: não somos grande coisa, meu rapaz, no universo do Domingo. Ele apoderou-se do controle de todos os cabos e telégrafos. Mas considera matar o Conselho Supremo uma acção tão insignificante como um bilhete postal, e da qual o seu secretário particular pode tratar perfeitamente -, e cuspiu na relva ao calar-se.
Depois virou-se para os outros e disse em tom mais austero:
- Pode-se dizer muita coisa a favor da morte; mas se alguém aqui tiver preferência pela outra alternativa, aconselho-o firmemente a seguir-me.
Com estas palavras, virou as costas robustas aos seus companheiros e começou a andar com uma energia silenciosa na direcção do bosque. Os outros olharam de relance por cima do ombro para o outro lado, e viram que aquela nuvem negra de homens se afastara já da estação e atravessava o campo plano, progredindo com misteriosa disciplina. Podiam ver agora nitidamente, por meio do binóculo, as sombras negras das mascarilhas que lhes escondiam os rostos. Mas deram então meia-volta e seguiram o seu guia que penetrara já no bosque e desaparecera por entre a sua espessura reluzente.
O sol aquecia e secava a erva. Quando entraram no bosque sentiram uma baforada de ar frio, como mergulhadores que descessem por entre águas turvas. O interior do bosque estava cheio de sombras trémulas e brilhos intermitentes, que formavam uma espécie de véu oscilante, evocando quase a vertigem de um cinematógrafo. Até mesmo as formas sólidas dos que o acompanhavam, Syme só a custo as distinguia sob a dança dos efeitos de luz e cor produzidos pelo sol e pela sombra. Por um instante a cabeça de um homem aparecia iluminada como que pela luz de um Rembrandt, obliterando tudo o mais; no instante seguinte, o mesmo homem exibia mãos fortes e de um branco intenso contrastando com um rosto de negro. O Marquês puxara para os olhos o chapéu de palha, e a sombra negra da aba descida dividia-lhe tão rigorosamente o rosto em duas partes, que ele parecia usar uma máscara semelhante às dos seus perseguidores. A fantasia de Syme intensificava o avassalador sentido do maravilhoso de Syme. Teria também ele uma máscara? Haveria alguém que usasse máscara? Seria alguém alguma coisa? Aquele bosque embruxado, onde os rostos dos homens se tomavam, alternadamente, negros ou brancos, onde as suas figuras eram banhadas pela luz do solou mergulhavam na noite, aquele caos claro-obscuro (depois do claro dia matinal que fazia fora do bosque), parecia a Syme um símbolo perfeito do mundo dentro do qual evoluía havia três dias, esse mundo em que os homens tiravam as barbas e os óculos e os narizes, e se transformavam noutras pessoas. A trágica confiança em si próprio que experimentara ao crer que o Marquês era um demónio desaparecera estranhamente agora que sabia que o marquês era um amigo. Sentia-se quase inclinado a perguntar, depois de tantas situações desconcertantes, o que seria um amigo e o que seria um inimigo. Haveria alguma coisa que se distinguisse da sua aparência? O Marquês tirara o nariz e transformara-se num detective. Não se passaria com ele qualquer coisa de semelhante? Se tirasse a cabeça não se veria transformado num elfo? Não seria tudo de certo modo como aquele bosque confuso, como aquela dança de luz e sombra? Tudo era um clarão fugaz, um clarão sempre imprevisto, e depois sempre esquecido. Gabriel Syme encontrara no coração daquele bosque salpicado pela luz do sol a mesma coisa que muitos pintores modernos tinham também encontrado. Encontrara aquilo a que as pessoas modernas chamam impressionismo, o que vem a ser simplesmente um outro nome desse cepticismo definitivo, que exclui a possibilidade de encontrarmos qualquer fundamento no universo.
Como um homem que no fundo do pesadelo tenta gritar e despertar, Syme esforçou-se por afastar a última e mais terrível das suas fantasias. Com duas passadas impacientes alcançou o homem que levava na cabeça o chapéu de palha do Marquês, o homem que agora tratavam por Ratcliffe. Numa voz exageradamente sonora e animada, quebrou o silêncio sem fundo e entabulou uma conversa.
- Posso perguntar-lhe - disse ele - para que raio de sítio estamos a ir?
As dúvidas da sua alma tinham sido tão autênticas, que o alegrou vivamente ouvir o seu companheiro responder-lhe num tom simples e humano.
- Temos de chegar ao mar depois de atravessarmos Lancy - disse aquele. - Penso que é menos provável que essa parte do país caia nas mãos deles.
- Que quer você dizer com isso? - protestou Syme. - Eles não podem apoderar-se do mundo real dessa maneira. A verdade é que muitos trabalhadores não são anarquistas, e, se o fossem, a verdade é que as simples massas não seriam capazes de vencer a polícia e os exércitos modernos.
- As simples massas! - repetiu o seu novo amigo com um rosnido de desprezo. - Você fala das massas e das classes trabalhadoras como se fossem elas o problema. Deixou-se apanhar por essa eterna ideia imbecil de que a anarquia, se vier a instaurar-se, será instaurada pelos pobres. Porque seria assim? Os pobres foram rebeldes, mas nunca foram anarquistas; têm mais interesse do que quaisquer outros na existência de um governo decente. Um homem pobre está realmente apostado no seu país. O rico, não: pode meter-se num iate e partir para a Nova Guiné. Os pobres recusaram-se por vezes a deixar que os governassem mal; os ricos recusaram-se sempre a ser governados. Os aristocratas foram sempre anarquistas, como pode ver se pensar nas guerras dos barões.
- Tudo isso é muito bonito como uma lição de história de Inglaterra para os mais pequeninos - disse Syme -; mas ainda não entendi que consequências devemos tirar daí.
- As consequências são - disse o seu preceptor - que a maior parte dos colaboradores mais próximos do velho Domingo são milionários sul-africanos e americanos. Foi por isso que ele conseguiu controlar toda a rede de comunicações, e é por isso que os quatro últimos campeões da força antianarquista da polícia estão no meio de um bosque a fugir como coelhos.
- Quanto aos milionários, posso entender - disse Syme, pensativo. - São quase todos loucos. Mas ter na mão meia-dúzia de velhos cavalheiros maníacos é uma coisa; ter na mão nações cristãs inteiras, é outra, muito diferente. Apostaria o meu nariz (desculpe a alusão) em como Domingo se revelaria perfeitamente inapto para a tarefa de converter qualquer pessoa comum e sã de espírito fosse em que terra fosse.
- Bem - disse o outro -, isso depende muito do tipo de pessoa em que você esteja a pensar.
- Bem, por exemplo - disse Syme -, sei que ele nunca conseguiria converter uma pessoa assim - e apontou qualquer coisa à sua frente.
Tinham chegado a um espaço aberto banhado pelo sol, que parecia significar para Syme um regresso definitivo ao seu próprio bom senso; e no meio desta clareira da floresta via-se uma figura que bem poderia figurar o senso comum sob a forma mais efectiva e quase assustadora da sua realidade. Tisnado pelo sol, inundado de suor, grave com essa gravidade insondável que têm os pequenos instrumentos da necessidade, um robusto camponês francês estava a cortar lenha com um machado. Tinha a carroça poucas jardas mais longe, já cheia pela metade da madeira cortada; e o seu cavalo, que pastava junto à carroça, era como o dono - corajoso, mas não desesperado; e como o dono, uma vez mais, podia até ser considerado próspero, mas quase triste, apesar da sua prosperidade. O homem era um normando, mais alto do que a média dos franceses, muito anguloso, e a sua figura sombria recortava-se a negro num rectângulo iluminado pelo sol, quase como se fosse uma representação alegórica do trabalho pintada a fresco sobre um campo de ouro.
- Mr. Syme está a dizer - fez notar Ratcliffe ao Coronel Ducroix - que este homem, pelo menos ele, nunca será um anarquista!
- E Mr. Syme nisso acerta em cheio - respondeu o Coronel Ducroix, a rir -, uma vez que esse homem tem, que mais não será, bastante de seu a defender. Mas esquecia-me de que no vosso país, as pessoas não estão habituadas a ver camponeses ricos.
- Eu diria que ele tem ar de ser pobre - observou o Dr. Bull, dubitativo.
- Claro que tem - disse o Coronel -, e é por isso que é rico.
- Tive uma ideia - ouviu-se exclamar de repente o Dr. Bull.
Quanto é que este homem nos cobraria para nos levar um pedaço de caminho na carroça dele? Aqueles cães vêm todos a pé, e seria uma maneira de os deixarmos rapidamente para trás.
- Oh, damos-lhe o que ele quiser! - disse Syme com ansiedade.
- Tenho montes de dinheiro nos bolsos.
- Assim, não resultará - disse o Coronel. - Ele não terá a mais pequena consideração por nós se não negociarmos a coisa com ele.
- Oh, mas para que há-de ele querer negociar? - interrompeu-o Bull, impaciente.
- Quer negociar porque é um homem livre - respondeu o Coronel. - Você não está a perceber. A nossa generosidade parecer-lhe-ia sem sentido. Ele não está a pedir esmola.
E embora tivessem a impressão de sentir já nos calcanhares os pesados pés dos seus estranhos perseguidores, viram-se obrigados a ficar ali à espera, imóveis, enquanto o Coronel falava com o homem que apanhava lenha, trocando com ele todas as palavras ociosas que acompanham o regatear em dias de mercado. No entanto, ao cabo de quatro minutos, viram que o Coronel tivera razão, porque o lenhador estava agora disposto a participar nos seus planos, não movido pelo vago servilismo de um pau mandado bem pago, mas com toda a seriedade de um representante legal que recebeu os honorários adequados. O homem disse-lhes que o melhor que tinham a fazer seria descerem até uma pequena estalagem que ficava nas colinas por cima de Lancy, cujo estalajadeiro, um velho soldado que com o avançar dos anos se tomara devoto, simpatizaria sem dúvida com a causa que defendiam, e não hesitaria em correr o risco de os ajudar. Todos os elementos do grupo treparam, portanto, para cima da lenha empilhada na carroça, que partiu, por entre abalos violentos, na direcção do outro lado do bosque. O veículo, apesar de pesado e desengonçado, deslocava-se com grande rapidez, e em breve os seus tripulantes experimentaram a sensação exaltante de ganharem distância sobre aqueles, fossem eles quem fossem, que lhes vinham no encalço. Porque, bem vistas as coisas, o enigma acerca de como teriam os anarquistas obtido todos aqueles sequazes continuava por resolver. Bastara-lhes identificar a presença naquela massa de gente de um só homem: tinham-se posto em fuga sem precisarem de ver mais do que o sorriso torto do Secretário. Syme espreitava para trás, virando a cabeça por cima do ombro, na direcção em que era de supor que estivesse aquele estranho exército.
À medida que o bosque se ia tomando menos espesso e depois, à distância, enquanto o seu volume parecia diminuir, Syme podia ver as encostas que se desenhavam para além e acima dele; e nessas encostas continuava a mover-se aquela escura massa em quadrado, semelhante a um escaravelho monstruoso. À luz do sol e graças à sua robusta vista, quase telescópica, Syme podia distinguir com precisão aquele conjunto humano. Conseguia distinguir as diferentes formas humanas que o compunham; mas o que o surpreendia cada vez mais fortemente era o facto de se moverem como se fossem um só homem. Dir-se-ia que os seus efectivos vestiam roupas escuras e usavam chapéus vulgares, como a massa de gente habitual que se vê nas ruas; mas não se espalhavam nem dividiam no terreno, e também não desenhavam várias linhas de ofensiva, como seria de esperar no caso de um motim tradicional. Avançavam com uma espécie de rigidez medonha e maléfica, como um exército de autómatos.
Syme chamou a atenção de Ratcliffe para o facto.
- Sim - retorquiu o polícia -, a disciplina é assim. O Domingo é assim. Talvez esteja a quinhentas milhas de distância daqui, mas o medo que inspira continua a agir no interior de todos os outros, como O dedo de Deus. Sim, avançam regularmente, e você pode apostar o que quiser que falam regularmente, e, sim, que pensam regularmente, também. Mas o mais importante do nosso ponto de vista é que estamos a deixá-los regularmente para trás.
Syme concordou. Era verdade que a mancha escura dos perseguidores se tomava cada vez mais pequena à medida que o camponês continuava a incitar o cavalo.
O terreno da paisagem iluminada pelo sol, embora quase sempre plano, acabava por descer do lado mais afastado do bosque na direcção do mar, em vertentes ondulantes e marcadas, que não eram muito diferentes dos declives que se encontram na orla das terras baixas do Sussex. A única diferença era que, no Sussex, aquele caminho seria sinuoso e quebrado como o curso de um ribeiro, ao passo que o caminho francês que seguiam surgia diante deles quase na perpendicular como uma cascata. A carroça desceu entre solavancos o ângulo considerável da encosta íngreme, e poucos minutos mais tarde, depois de o caminho tomar a subir um tanto, avistaram lá em baixo o pequeno porto de Lancy e o arco azul do mar. A nuvem itinerante dos seus inimigos desaparecera por completo do horizonte.
O cavalo e a carroça mudaram bruscamente de direcção junto a um maciço de ulmeiros, e o focinho do cavalo deteve-se quase a tocar o rosto de um velho cavalheiro que estava sentado na esplanada exterior do pequeno café Le Solei! d'Or. O camponês mastigou uma desculpa, e apeou-se da carroça. Os outros foram também descendo, um a um, e saudaram, dirigindo-se-lhe em termos corteses, o velho cavalheiro, pois era evidente pelos seus modos que era ele o proprietário da pequena estalagem.
Era um homem encanecido, com a cara cor de maçã, os olhos sonolentos e um bigode cinzento. Tenaz, sedentário e extremamente ingénuo, era um tipo humano que se pode encontrar com frequência em França, mas é ainda mais comum nas regiões católicas da Alemanha. Tudo o que completava a sua pessoa, o seu cachimbo, o seu jarro de cerveja, as suas flores e a sua colmeia, evocavam uma paz ancestral; só quando levantaram os olhos, ao entrarem na sala da estalagem, os visitantes viram a espada exposta na parede.
O Coronel, que cumprimentou o estalajadeiro como se este fosse um seu velho amigo, entrou rapidamente para a sala de dentro, e sentou-se pedindo o seu refresco ritual. A decisão militar da sua acçcão interessava Syme, que se sentou ao seu lado e aproveitou a ocasião, que lhe proporcionou o facto de o estalajadeiro ter voltado a sair, para satisfazer a sua curiosidade.
- Coronel, permita-me que lhe pergunte - disse ele em voz baixa -, por que razão viemos para aqui?
O Coronel Ducroix sorriu por detrás do seu rijo bigode branco.
- Por duas razões, meu caro - disse ele -; e vou dizer-lhe primeiro, não a mais importante, mas a mais utilitária. Viemos para aqui porque é este o único sítio em vinte milhas em redor onde poderemos arranjar cavalos.
- Cavalos? - repetiu Syme, olhando para cima rapidamente.
- Sim - replicou o outro -, se vocês querem realmente ganhar avanço sobre os vossos inimigos, têm de escolher entre cavalos e coisa nenhuma, a menos, é claro, que tenham bicicletas ou automóveis no fundo dos bolsos.
- E que nos aconselha que façamos? - perguntou dubitativamente Syme.
- O melhor seria, sem dúvida - respondeu o Coronel -, dirigirem-se à esquadra da polícia que fica a pouca distância da aldeia. Eu creio, meu amigo, que aquele de quem fui testemunha em circunstâncias um tanto enganadoras, exagera muito as possibilidades de um levantamento geral; mas ele próprio dificilmente poderá sustentar que as condições já não vos permitem confiar nos gendarmes.
Syme meneou gravemente o seu acordo; depois disse de súbito:
- E qual foi a outra razão para termos vindo para aqui?
- A minha outra razão para isso - disse Ducroix sobriamente  foi que não é mau querermos ver um ou dois homens bons quando pensamos estar à beira da morte.
Syme olhou para a parede e viu um quadro religioso, comovente e toscamente pintado. E disse a seguir:
- Tem razão -, acrescentando quase no mesmo instante:
- Alguém foi já ver dos cavalos?
- Sim - respondeu Ducroix -, pode ter a certeza de que dei ordens nesse sentido assim que aqui cheguei. Esses vossos inimigos dão a impressão de não terem muita pressa, mas a verdade é que continuam a avançar com uma rapidez espantosa, como um exército bem treinado. Não tinha nem por sombras a ideia de que os anarquistas fossem tão disciplinados. Vocês não têm um momento a perder.
Mal acabara ainda de falar, quando o velho estalajadeiro de olhos azuis e cabelo branco entrou tranquilamente na sala, anunciando que os seis cavalos estavam já selados à porta.
Seguindo o conselho de Ducroix, os cinco outros homens abasteceram-se de vinho e alimentos e, conservando por únicas armas as espadas do duelo, partiram pelo caminho íngreme e branco. Os dois criados, que tinham carregado a bagagem do Marquês quando este o era, foram autorizados por comum acordo a ficarem no café com as suas bebidas, o que não pareceu contrariar as suas preferências.
Quando partiram, o sol da tarde começava a pôr-se, e Syme pôde ver, à luz dos seus raios, como a figura vigorosa do velho estalajadeiro se ia tornando cada vez mais pequena, mas sem se mover do seu lugar, continuando a olhá-los em silêncio, com reflexos de sol no cabelo de prata. Syme sentiu surgir nele uma fantasia tenaz e supersticiosa, sugerida acidentalmente pelas palavras do Coronel, e que lhe dizia que aquele talvez fosse o último estranho honesto que veria neste mundo.
Continuara a olhar aquela figura que se ia apagando na distância, e era agora uma espécie de mancha cinzenta tocada por uma chama branca, sobre a grande muralha verde da vertente nas suas costas. E quando olhou para o alto dessa vertente, por detrás da estalagem, viu surgir lá em cima o exército escuro que não interrompia a sua marcha. Parecia suspenso por cima daquele homem bom e da sua casa como uma nuvem negra de gafanhotos. Os cavalos não tinham sido selados antes de tempo.
A Anarquia sobre a Terra
Pondo os cavalos a galope, sem atender ao terreno íngreme da estrada na encosta, os cavaleiros recobraram em breve o seu avanço sobre os seus perseguidores em marcha, e estes desapareceram do alcance da sua vista por detrás da massa dos primeiros edifícios de Lancy. No entanto, a cavalgada fora longa, e quando chegaram à povoação, o céu adquirira já as tonalidades do crepúsculo. O Coronel sugeria, entretanto, que antes de continuarem até à esquadra da polícia, deveriam tentar, ali na aldeia, obter o auxílio de mais um elemento que lhes poderia ser muito útil.
- Quatro dos cinco homens ricos desta terra são vigaristas vulgares - disse ele. - E suponho que esta proporção é mais ou menos constante em todo o mundo. O quinto é um amigo meu, e um tipo muito decente; e, mais importante ainda, do nosso ponto de vista, é proprietário de um automóvel.
- Receio - disse o Professor com a sua cómica entoação, olhando para trás na direcção da estrada branca sobre a qual, a todo o momento, poderia aparecer a negra mancha rastejante -, receio que tenhamos muito pouco tempo para visitas vesperais.
- A casa do Dr. Renard não fica a mais de três minutos daqui  disse o Coronel.
- E o nosso perigo - disse o Df. Bull - não está a mais de dois minutos.
- Sim - disse Syme -, se continuarmos a andar depressa com os cavalos, podemos deixá-los para trás, porque eles vêm a pé.
- Ele tem um automóvel - disse o Coronel.
- Mas podemos não o conseguir - disse Bull.
- Conseguem, sim, ele não se recusará a ajudar-vos.
- Mas pode ter saído.
- Calem a boca - disse Syme de súbito. - Que barulho vem a ser este?
Por um segundo, todos ficaram tão silenciosos como estátuas equestres, e por um segundo - por dois, ou três, ou quatro segundos - o céu e a Terra pareceram observar um silêncio igual. A seguir, os seus ouvidos, ansiosamente atentos, escutaram aproximando-se estrada fora esse indescritível som que vibrava e estremecia e que só podia significar uma coisa: cavalos!
O rosto do Coronel sofreu uma transformação instantânea, como se o tivesse atingido um raio, deixando-o todavia ileso.
- Apanharam-nos - disse ele, com uma ironia militar concisa.
Preparar armas contra a cavalaria!
- Onde terão eles conseguido os cavalos? - perguntou Syme, enquanto incitava mecanicamente o seu.
O Coronel manteve-se calado por um momento, e disse depois com a voz tensa:
- Falei rigorosamente verdade quando disse que o Soleil d'Or era o único lugar num raio de vinte milhas onde seria possível arranjar cavalos.
- Não! - disse Syme violentamente. - Não acredito que ele fizesse uma coisa dessas. Com aqueles cabelos tão brancos.
- Pode ter sido forçado - disse o Coronel com brandura. - Eles não podem ser menos de cem homens, e é por isso que vamos fazer uma visita ao meu amigo Renard, proprietário de um automóvel.
Com estas palavras, fez bruscamente o cavalo mudar de direcção dobrando uma esquina, e largou pela rua num galope tão estonteante que os outros tiveram dificuldade em segui-lo sem perderem de vista a cauda voadora da sua montada.
O Dr. Renard morava numa casa alta e confortável ao cimo de uma rua íngreme, e assim, quando chegaram diante dela, os cavaleiros puderam observar, uma vez mais, por cima dos telhados da aldeia, o sólido flanco verde da colina, e o caminho branco e sinuoso que a traçava. Respiraram de novo ao verem que o caminho continuava deserto e bateram à porta.
O Dr. Renard, com a sua barba castanha, era um homem transbordante de alegre energia, e um bom exemplo dessa classe profissional silenciosa mas extremamente activa que a França soube preservar muito melhor do que a Inglaterra. Depois de lhe explicarem o que se passava, riu-se abertamente do alarme do ex-Marquês; declarou, com o seu sólido cepticismo francês, que lhe parecia inconcebível a probabilidade de um levantamento anarquista generalizado.
 - A anarquia - disse ele, encolhendo os ombros - é uma infantilidade.
- Et ça? - exclamou de repente o Coronel, apontando qualquer coisa nas costas do outro. - Acha, com certeza, que aquilo é também uma infantilidade?
Todos olharam na direcção indicada e viram uma longa fileira de cavalaria negra que descia a colina com toda a energia de um Átila. Apesar da rapidez da cavalgada dos seus perseguidores, podiam distinguir bem os mascarados da linha da frente, e ver que toda aquela tropa se mantinha bem alinhada, como se se exibisse num desfile. Mas embora aquele contingente negro fosse o mesmo, apesar da maior rapidez da sua progressão, havia uma espécie de novidade sensacional, perfeitamente perceptível agora que, do alto da colina, podiam ver a cena como num mapa desdobrado. Os homens a cavalo formavam uma massa única; mas um dos cavaleiros avançava claramente destacado da coluna, e com movimentos frenéticos da mão e dos calcanhares incitava o cavalo a correr cada vez mais depressa, a tal ponto que se poderia pensar ao vê-lo que, mais do que um perseguidor, parecia um perseguido. Fosse como fosse, apesar da grande distância, distinguia-se na sua figura qualquer coisa de tão fanático e de tão decidido que aquele homem só podia ser o Secretário em pessoa.
- Peço desculpa de interromper uma discussão tão elevada - disse o Coronel -, mas pode emprestar-me o seu carro agora, nos próximos dois minutos?
- Desconfio que vocês estão todos loucos - disse o Df. Renard, sorrindo educadamente -; mas não queira Deus que alguma vez a loucura quebre uma amizade. Vamos já direitos à garagem.
O Df. Renard era um homem ameno, senhor de uma riqueza monstruosa; as divisões da sua casa eram como o Musée de Cluny, e ele era dono de três automóveis. Contudo, dir-se-ia que os utilizava muito pouco, uma vez que os seus gostos eram os da classe média francesa, e examinando os automóveis, os seus impacientes amigos não queriam de início crer que o seu proprietário os tivesse posto alguma vez a funcionar. Acabaram por levar um deles, não sem dificuldade, para diante da casa do médico. Quando saíram do escuro da garagem para a rua, surpreendeu-os descobrirem que a última luz do crepúsculo desaparecera por completo e que a noite caíra tão bruscamente como nos trópicos. Deviam ter estado ali mais tempo do que tinham imaginado, ou talvez se tivesse formado entretanto uma abóbada de nuvens, toldando o céu. Lá em baixo, ao fundo das ruas íngremes, tinham a impressão de ver uma bruma subir do mar.
- Agora ou nunca - disse o Dr. Bull. - Estou a ouvir os cavalos. - Os cavalos, não - corrigiu-o o Professor. - Um cavalo.
Escutando melhor, era evidente para todos que o ruído, que velozmente se aproximava fazendo ressoar as calçadas, não era obra de toda aquela força de cavalaria reunida, mas de um cavaleiro isolado, que a deixara muito para trás - ou seja, do Secretário enlouquecido.
A família de Syme, como a maior parte das que acabam por perder os seus bens, possuíra em tempos um automóvel, e ele conhecia bem esse tipo de veículo. Saltara imediatamente para o lugar do motorista, e com o rosto inflamado ocupava-se de experimentar e manobrar os mecanismos emperrados. Tentou com todas as suas forças mover uma manivela, e acabou por dizer tranquilamente:
- Receio que não funcione.
Enquanto o dizia, um homem dobrou a esquina, galopando a toda a velocidade e extremamente firme em cima do seu cavalo, tão firme e veloz como uma flecha. Tinha um sorriso que lhe torcia o queixo, como se o tivesse deslocado. Parou junto ao automóvel e do grupo reunido à volta dele e poisou a mão na parte da frente do carro. Era o Secretário, e a solenidade do triunfo endireitara-lhe completamente a boca.
Syme continuava esforçadamente debruçado sobre o volante, e nada se ouvia agora excepto o ruído dos restantes perseguidores que entravam já na povoação. Foi então que se ouviu um estalido repentino, como o de uma peça de ferro que se parte, e o automóvel começou a andar. O que teve por efeito que o Secretário fosse projectado da sela, como uma lâmina que sai rapidamente da bainha, e depois arrastado por terra, ao longo de cerca de vinte jardas, esperneando freneticamente, antes de ficar estendido na rua, a uma boa distância do cavalo espantado. Enquanto o automóvel dobrava a esquina descrevendo uma curva admirável, os seus tripulantes tiveram ainda tempo de entrever a chegada dos outros anarquistas que desembocavam na rua e corriam a prestar auxílio ao seu guia prostrado.
- Não entendo porque se pôs tão escuro - disse por fim o Professor em voz baixa.
- Penso que vem aí uma trovoada - disse o Dr. Bull. - Acho que é uma pena não termos luz neste carro, pelo menos para vermos para onde estamos a ir.
- Mas temos - disse o Coronel, e pescou do fundo do carro uma pesada e antiquada lanterna de ferro com uma luz no seu interior. Era claramente uma relíquia, e dir-se-ia que tivera originalmente uma utilidade semi-religiosa, pois mostrava, de um dos lados, uma cruz toscamente desenhada.
- Onde é que você foi arranjar uma coisa dessas? - disse o Professor.
- Arranjei-a no mesmo sítio em que arranjei o automóvel - disse o Coronel, rindo. - É do meu melhor amigo. Enquanto este outro nosso amigo travava a sua batalha com o volante, subi as escadas e falei com o Renard, que, como se devem lembrar, estava à porta de casa. «Suponho», disse-lhe eu, «que não temos tempo para arranjar uma luz». Ele levantou os olhos, pestanejando afavelmente, indicando-me o esplêndido tecto abobadado da sala de entrada. Lá estava pendurado de uma corrente de ferro artisticamente trabalhada esta lanterna, que é um dos muitos tesouros que esta casa contém. Ele serviu-se de toda a sua força para arrancar a lanterna do tecto, sujando os quadros e partindo os jarrões azuis. No fim, deu-me a lanterna e eu trouxe-a para o automóvel. Não tinha razão quando vos disse que valia a pena conhecer o Dr. Renard?
- Claro que sim - disse Syme, muito sério, e fixou a lanterna na parte da frente do carro. O contraste entre o automóvel moderno e aquela estranha lanterna eclesiástica resumia de certo modo, em termos alegóricos, a situação em que se encontravam. Tinham atravessado até ali a zona mais tranquila da povoação, sem verem mais do que um ou dois peões, que não os podiam informar sobre a natureza pacífica ou hostil do lugar. Todavia, as janelas das casas começavam a acender-se, fazendo-os sentir mais vivamente que estavam em paragens habitadas e humanas. O Dr. Bull voltou-se para o tardiamente sobrevindo detective que organizara a retirada e endereçou-lhe um dos seus sorrisos mais naturais e amigáveis.
- Estas luzes sempre nos fazem sentir um bocado mais animados. O inspector Ratcliffe franziu o sobrollho.
- Só há umas luzes capazes de me animar - disse ele -, e essas são as luzes da esquadra da polícia, que já consigo ver para lá do fim da aldeia.
Então todo o senso comum e todo o optimismo de Bull irromperam com violência do seu íntimo.
- Oh, tudo isso é de um absurdo devastador! - exclamou ele.
Se você realmente acha que estas pessoas comuns nas suas casas comuns são anarquistas, deve ser mais louco do que um anarquista. Se voltássemos atrás e fizéssemos frente a esses tipos, toda a terra se bateria ao nosso lado.
- Não - disse o outro com uma simplicidade inabalável -, toda a aldeia se bateria ao lado deles. Você vai ver.
Enquanto falavam, o Professor debruçou-se para diante, presa de uma agitação repentina.
- Que barulho é este? - perguntou.
- Devem ser os cavalos atrás de nós, suponho eu - disse o Coronel. - Julgava que nos tínhamos livrado deles.
- Os cavalos atrás de nós? Não - disse o Professor. - Não são cavalos nem vêm atrás de nós.
Mal acabara ainda de o dizer, ao fundo da rua que se cruzava com a deles, duas formas brilhantes e estrepitosas passaram disparadas. Tinham desaparecido quase no mesmo instante, mas todos puderam ver que eram dois automóveis, e o Professor endireitando-se, muito pálido, jurou que eram os dois automóveis que tinham ficado na garagem do Dr. Renard.
- Digo-vos que são os mesmos carros - repetiu ele com um olhar desvairado. - E iam cheios de homens mascarados.
- Absurdo! - disse o Coronel, irritado. - O Dr. Renard nunca lhes daria esses automóveis.
- Podem-no ter forçado - disse Ratcliffe calmamente. - Têm a aldeia toda do lado deles.
- Você continua a acreditar nisso? - perguntou o Coronel, desconcertado.
- Dentro em breve, todos vocês hão-de acreditar também - replicou o outro com uma tranquilidade desesperada.
Seguiu-se uma pausa confusa durante alguns minutos, e o Coronel depois disse de novo:
- Não, não posso acreditar nisso. É absurdo. As pessoas comuns de uma pacífica aldeia francesa...
Foi interrompido por uma explosão e um clarão luminoso, que pareciam ter-se produzido muito perto dos seus olhos. Acelerando, o automóvel deixou a flutuar no ar atrás de si uma pequena nuvem de fu mo branco, e Syme ouviu uma bala assobiar-lhe rente ao ouvido.
- Meu Deus! - disse o Coronel. - Estão a disparar contra nós. - Não vamos interromper a nossa conversa por tão pouco - disse um Ratcliffe sombrio. - Voltemos ao seu assunto, Coronel. Você estava a falar das pessoas comuns de uma pacífica aldeia de França.
O Coronel perplexo estava longe de querer preocupar-se com aquele sarcasmo. Os seus olhos percorreram a rua.
- É extraordinário - disse ele -, absolutamente extraordinário.
- Uma pessoa enfadonha - disse Syme - poderia até dizer que é muito desagradável. Mas aquelas luzes, ali no campo, depois do fim da rua, são, suponho eu, as da Gendarmerie. Estamos a chegar lá.
- Não - disse o Inspector Ratcliffe -, nunca lá chegaremos.
Levantara-se e olhava atentamente para diante. Depois sentou-se e alisou o cabelo lustroso com um gesto de fadiga.
- Que quer você dizer com isso? - perguntou Bull com dureza.
- Quero dizer que nunca lá chegaremos - disse tranquilamente o pessimista. - Eles puseram duas filas de homens armados na estrada, podem ver-se daqui. A povoação está em armas, como eu disse. Bem posso saborear o delicioso reconforto de ter previsto tudo com toda a precisão.
E Ratcliffe recostou-se comodamente no seu lugar no automóvel e acendeu um cigarro, enquanto os seus companheiros se levantaram precipitadamente e observaram o troço de estrada à sua frente. Syme abrandara quando lhe pareceu que os seus planos talvez estivessem comprometidos, e acabou por estacionar à esquina de uma rua lateral muito íngreme, que descia a direito para o mar.
A maior parte da aldeia estava mergulhada na sombra, mas o sol ainda não se pusera completamente; e nos trechos que os seus raios na horizontal logravam alcançar ainda, tingia todas as coisas de um ouro ardente. Por cima daquela rua lateral, os últimos raios do crepúsculo irrompiam tão esguios e penetrantes como as luzes artificiais que iluminam um palco de teatro. Atingiram o automóvel que levava a bordo os cinco amigos, e dir-se-ia que o transformavam num carro de fogo. Mas todo o resto da rua, sobretudo os seus dois extremos, estavam cobertos por uma penumbra densa, que os impediu, durante alguns segundos, de verem fosse o que fosse. Depois, Syme, cujos olhos pareciam ver melhor do que os dos outros, soltou um pequeno assobio amargo, e disse:
- É realmente verdade. Há uma multidão, ou um exército, ou qualquer coisa do género, que corta a saída ao fundo da rua.
- Bem, isso que lá está - disse Buli com impaciência - pode ser muita coisa: um combate fingido, a celebração do aniversário do regedor, ou sei eu lá que mais. Não posso acreditar que as pessoas comuns e honradas de uma terra como esta andem por aí com os bolsos cheios de dinamite. Avance um pouco mais, Syme, para vermos melhor que gente é esta.
O automóvel avançou cerca de cem jardas mais, até que uma sonora gargalhada de Buli apanhou de surpresa todos os seus companheiros.
- Olhem e vejam, suas cabeças tontas! - gritou ele. - O que é que eu vos dizia? As pessoas que ali estão reunidas são tão pacíficas como uma vaca, e, se não fosse assim, estariam do nosso lado.
- Como é que sabe? - perguntou o Professor, arregalando os olhos.
- Só quem for cego como um morcego não o vê logo! - exclamou BulI. - Não está a ver quem vem à frente deles?
Todos olharam de novo, e então o Coronel, com a garganta embargada, bradou:
- Oh, mas é o Renard!
Havia, com efeito, uma ala de figuras sombrias que cortavam a estrada, embora não se distinguissem bem umas das outras; mas, destacando-se e adiantando-se a elas, banhado por um resto de luz do poente, via-se a inconfundível pessoa do Dr. Renard, que andava de um lado para o outro, com um chapéu branco na cabeça, acariciando a sua longa barba castanha, e tendo um revólver na mão esquerda.
- Como pude eu ser tão imbecil? - exclamou o Coronel. - É evidente, o meu velho amigo quis vir em nosso auxílio.
O Dr. Buli torcia-se de riso, fazendo voltear a espada que tinha na mão, tão despreocupadamente como se manejasse uma bengala. Saiu do carro de um pulo e correu pela calçada gritando:
- Dr. Renard! Dr. Renard!
No instante seguinte, Syme pensou que os seus olhos tinham enlouquecido e que a sua cabeça perdera a razão. Porque o filantrópico Dr. Renard levantara deliberadamente o revólver e disparara duas vezes sobre Bull, enquanto na rua se ouviam os tiros ressoar.
Quase no mesmo segundo em que viram diante dos seus olhos alastrar a nuvem branca do fumo daquela explosão atroz, outra grande nuvem branca brotou do cigarro do cínico Ratcliffe. Como os restantes, também ele empalidecera um tanto, mas continuava a sorrir. O Df. Bull, que fora o alvo das duas balas que lhe tinham passado rente à cabeça, ficou inteiriçado no meio da rua com um esgar de medo no rosto; depois, fez muito devagar meia-volta e regressou na direcção do automóvel arrastando-se como uma tartaruga, e entrou para  dentro dele com dois orifícios esburacados no chapéu.
- Ora bem - disse lentamente o fumador -, que me diz agora? - Penso que estou deitado numa cama no número 217 dos hospícios para indigentes do Peabody, e que dentro em breve hei-de acordar num sobressalto, ou então, penso que estou metido numa cela estreita e acolchoada do asilo no Hanwell, e que o médico não pode fazer grande coisa por mim. Mas se quer saber o que não penso, também lhe digo: não penso o mesmo que você pensa. Não penso, e nunca pensarei, que a massa dos seres humanos comuns seja um bando de repugnantes pensadores modernos. Não, sir, sou um democrata, e continuo sem acreditar que o Domingo seja capaz de converter um servente ou um caixeiro. Não, eu posso ter enlouquecido, mas a humanidade não enlouqueceu.
Syme fitou Bull com os seus olhos azuis e claros cheios que exprimiam uma gravidade que era inabitual na sua pessoa.
- Você é um tipo muito decente - disse ele. - Consegue acreditar numa saúde de espírito para além da sua saúde de espírito pessoal. E tem muita razão no que diz respeito à humanidade, aos camponeses e às pessoas do género daquele excelente velho estalajadeiro. Mas não tem razão no que diz respeito ao Renard. Desconfiei dele desde o princípio. É um racionalista, e, pior ainda, é rico. Se a religião e o sentido do dever forem um dia destruídos, isso será obra dos ricos.
- A realidade é que já foram destruídos - disse o homem do cigarro, pondo-se de pé com as mãos nos bolsos. - Vêm aí os demónios!
Os tripulantes do automóvel olharam ansiosamente na direcção indicada por aquele olhar sonhador, e viram que todo o regimento avançava do fundo da rua, marchando sobre eles. À frente, vinha o Dr. Renard, com a barba desfraldada na brisa.
O Coronel saltou para fora do automóvel gritando a sua indignação.
- Meus senhores - exclamou -, isto é inacreditável. Deve ser um espectáculo cómico. Se se lembram do Renard que eu conheço, isto é como imaginarmos bombista a Rainha Vitória. Se tiverem na cabeça o carácter do homem...
- O chapéu do Dr. Bull - disse Syme sardonicamente - compreendeu perfeitamente o carácter dele.
- Repito-vos que não pode ser! - gritou o Coronel, batendo com os pés. - O Renard vai explicar o que se passou. Vai explicar-mo, a mim - e avançou rua fora.
- Não tenha tanta pressa - disse lentamente o fumador. - Dentro em breve, ele há-de explicar-nos tudo a todos.
Mas o Coronel, impaciente, já estava fora do alcance da sua voz, carregando a direito sobre o inimigo que avançava. O Dr. Renard voltara a levantar freneticamente a pistola, mas ao ver quem era o seu alvo hesitou, e o Coronel aproximou-se enfrentando-o com gestos de protesto arrebatados.
- É inútil - disse Syme. - Ele não vai conseguir seja o que for daquela velha besta. Proponho que tentemos atravessar aquela multidão tão rápidos como as balas que atravessaram o chapéu do Bull. Podem matar-nos a todos, mas antes disso teremos matado um bom número deles.
- Nada disso - disse o Dr. Bull, que a sinceridade da sua virtude tornava mais vulgar. - Aquela pobre gente pode estar enganada.  Dêem uma oportunidade ao Coronel.
- Então, recuamos? - perguntou o Professor.
- Não - disse Ratcliffe com uma voz fria -, nas nossas costas, a rua está também cortada. Na realidade, julgo que estou a ver ali um amigo seu, Syme.
Syme virou-se muito depressa para trás e olhou para o lado da rua por onde tinham vindo. Viu um corpo irregular de cavaleiros que se concentravam e galopavam sobre eles no escuro. Viu por cima da sela do homem que vinha à cabeça o clarão prateado de uma espada, e à medida que o homem se aproximava, distinguiu também o clarão prateado dos cabelos brancos do velho estalajadeiro. No instante seguinte, Syme pôs o carro em andamento, deu uma violenta guinada súbita e lançou-se ladeira abaixo na direcção do mar, como alguém que já não quer senão morrer.
- Que diabo vem a ser isto? - gritou o Professor, agarrando-lhe o braço.
- Caiu a estrela da manhã! - disse Syme, enquanto também o automóvel se precipitava nas trevas como uma estrela cadente.
Os outros não ouviram o que ele dizia, mas quando olharam para a parte de cima da rua, viram a cavalaria inimiga que dobrava a esquina e descia a encosta carregando sobre eles; e à cabeça das tropas cavalgava o bom estalajadeiro, que a feroz inocência da luz do crepúsculo tingia de vermelho.
- O mundo enlouqueceu - disse o Professor, e enterrou o rosto entre as mãos.
- Não - disse o Dr. Bull com uma humildade cristalina -, o louco sou eu.
- Que vamos fazer? - perguntou o Professor.
- Neste momento - disse Syme com um desprendimento científico -, penso que vamos chocar contra o poste de um candeeiro.
No instante seguinte o automóvel embateu com um choque catastrófico num objecto de ferro. Logo a seguir quatro homens rastejaram saindo de um caos de metal, enquanto cá fora um poste de iluminação da marginal ficava torcido e pendente como o ramo de uma árvore atingido por um raio.
- Bem, sempre conseguimos esmagar alguma coisa - disse o Professor esboçando um leve sorriso -, é uma consolação.
- Você está a tomar-se anarquista - disse Syme, limpando a roupa com o seu apurado instinto de delicadeza.
- Toda a gente o é - disse Ratcliffe.
Enquanto falavam, o cavaleiro de cabelos brancos e os seus seguidores avançavam como um relâmpago no céu, e quase no mesmo momento um escuro bando de homens correu aos gritos ao longo da costa. Syme desembainhou a espada e prendeu-a entre os dentes, entalou outras duas por debaixo das axilas, e pegou na quarta com a mão esquerda. Agarrou a lanterna com a direita. Depois, saltou da marginal para baixo, para a praia.
Os restantes saltaram atrás dele, aprovando tacitamente aquela acção extrema, e deixando para trás os destroços do automóvel e a massa de gente que se atropelava lá em cima.
- Só nos resta uma possibilidade - disse Syme, tirando a espada da boca. - Seja o que for que signifique este pandemónio, suponho que os polícias da esquadra nos quererão ajudar. Não podemos passar pela estrada, porque temos o caminho cortado. Mas há ali um paredão que entra pelo mar dentro e onde poderemos resistir mais tempo do que em qualquer outro sítio, como Horácio defendeu a sua ponte. E é assim que vamos ter de nos defender até que a polícia chegue. Venham atrás de mim.
Seguiram-no enquanto ele avançava a custo pela areia, até que poucos segundos mais tarde começaram a sentir que as solas pisavam uma superfície de pedra, larga e plana. Continuaram a percorrer o molhe comprido e baixo, que entrava no mar sombrio e revolto, e ao alcançarem o seu extremo sentiram que a sua história chegava ao fim. Viraram-se para trás e olharam para a aldeia.
Era uma aldeia transfigurada pelo tumulto. Ao longo da marginal por onde tinham chegado à praia via-se agora um fluxo escuro e atroador de gente que, com os seus rostos ferozes e os seus braços frenéticos, avançava sobre eles, sem os perder de vista. A longa coluna escura equipara-se de archotes e lanternas; mas até mesmo quando não havia chama que iluminasse um rosto furioso, era perceptível um ódio organizado em cada vulto ainda distante, em cada gesto nas trevas. Era evidente que caíra sobre eles a maldição de todos aqueles homens, sem que soubessem porquê.
Dois ou três homens, escuros e de pequena estatura como macacos, saltaram da marginal, imitando-os, e alcançaram a praia. Correram enterrando-se na areia, soltando gritos horríveis e entrando ao acaso na água do mar. Os restantes seguiram-lhes o exemplo, e toda aquela negra massa humana se espalhou e alastrou pela praia como um melaço negro.
Destacando-se entre os que davam assalto à praia, Syme viu o camponês que os conduzira na sua carroça. Entrara na linha de rebentação montando um enorme cavalo de tiro e agitava o machado, ameaçando-os.
- O camponês! - gritou Syme. - E desde a Idade Média que os camponeses não se revoltam!
- Nem a polícia, se chegasse agora - disse melancolicamente o Professor -, poderia fazer alguma coisa contra esta multidão.
- Disparates! - disse Bull, desesperado. - Tem de haver alguns seres humanos na aldeia.
- Não - disse resignadamente o Inspector -, os seres humanos em breve se extinguirão. Somos nós os últimos membros da humanidade.
- Talvez - disse o Professor com ar ausente. E acrescentou depois na sua voz sonhadora: - Como é que dizia o final da sátira de Pope?
Já não brilha luz pública nem particular;
Nem chama humana ou sol divino ousa brilhar!
O teu temido Império, Caos, ei-lo vingado,
E morta a luz, p'la tua palavra devastada:
Da tua mão, ó Grande Anarca, o pano tomba
E a treva universal tudo soterra e esconde...
- Cale-se! - gritou subitamente Bull. - Vêm aí os gendarmes! As luzes baixas do posto da polícia estavam de facto acesas, e eram intermitentemente entrecortadas por vultos rápidos, ao mesmo tempo que se ouvia na escuridão da noite o ressoar e o tropel de uma força de cavalaria regular.
- Estão a carregar sobre a multidão! - gritou Bull, entre o êxtase e o alarme.
- Não - disse Syme -, formaram ao longo da marginal.
- Têm as carabinas prontas a disparar! - exclamou Bull, transtornado pela ansiedade.
- Sim - disse Ratcliffe -, e vão atirar contra nós.
Mal acabara de falar, ouviu-se o estrépito da descarga e as balas pareciam ricochetear como uma chuva de pedra nas rochas diante deles.
- Os gendarmes juntaram-se a eles! - gritou o Professor, batendo com a mão na fronte.
- Estou na cela acolchoada - disse Bull com firmeza.
Houve um longo silêncio, e a seguir Ratcliffe disse, olhando o mar agitado, que o anoitecer cobrira de um tom de púrpura acinzentado:
- Que importa saber quem está louco ou são de espírito? Dentro em pouco, estaremos todos mortos.
Syme virou-se para ele, e disse:
- Você perdeu, então, toda a esperança?
Mr. Ratcliffe manteve um silêncio de pedra; mas passado um momento disse tranquilamente:
- Não; é muito estranho, mas não perdi toda a esperança. Há um resto de esperança louca que não consigo tirar da cabeça. O poder de todo o planeta está contra nós, mas eu não consigo deixar de me perguntar se, apesar de tudo, não deveria ter esperança neste meu estúpido resto de esperança.
- E em quê ou quem tem você esperança? - perguntou Syme com curiosidade.
- Num homem que nunca vi - disse o outro, olhando para o mar de chumbo.
- Eu sei em quem está você a pensar - disse Syme em voz baixa. - No homem da sala às escuras. Mas a estas horas o Domingo jáo deve ter matado.
- Talvez - disse o outro, imperturbável. - Mas se assim for, deve ter sido o único que o Domingo não matou facilmente.
- Ouvi o que têm estado a dizer - interveio o Professor, que estava de costas para eles -, e também eu ponho a minha esperança naquilo que nunca vi.
De repente, Syme, que parecia estar cego de tão imerso nos seus próprios pensamentos, olhou em redor e gritou, como um homem que acaba de despertar do sono:
- Onde é que está o Coronel? Pensei que estava connosco!
- O Coronel! Sim - exclamou Bull -, em que raio de sítio se terá metido o Coronel?
- Foi falar com o Renard - disse o Professor.
- Não o podemos deixar nas mãos daquelas feras - gritou Syme.
- Vamos morrer como cavalheiros, se...
- Não tenha pena do Coronel - disse Ratcliffe, com um matiz de desprezo na voz. - Está numa situação muito confortável. Está...
- Não! Não! Não! - gritou Syme tomado de uma espécie de frenesim. - O Coronel, também! Não pode ser! Não acredito!
- E acredita nos seus olhos? - perguntou o outro, e apontou na direcção da praia.
Muitos dos perseguidores tinham entrado na água levantando os punhos, mas o mar estava bravo, e não os deixava alcançarem o paredão. No entanto, duas ou três figuras tinham chegado ao extremo oposto do molhe e dir-se-ia que avançavam, na direcção deles, a passo cauteloso. O clarão de uma lanterna iluminou o rosto dos dois dianteiros. Um dos rostos exibia uma mascarilha negra, e a boca, a descoberto, torcia-se sob o efeito de um nervosismo demente, e a tal ponto que o tufo negro da pêra que lhe cobria o queixo se agitava sem parar como uma coisa viva. O segundo era o rosto vermelho e com um bigode branco do Coronel Ducroix. Os dois deliberavam gravemente.
- Sim, juntou-se a eles também - disse o Professor, enquanto se sentava em cima de uma pedra. - Toda a gente está com eles. Até eu estou com eles. Já não me posso fiar na máquina do meu corpo. Sinto que a minha própria mão pode querer levantar-se contra mim.
- Quando a minha mão se levantar - disse Syme - há-de ser contra outra pessoa - e carregou ao longo do molhe na direcção do Coronel, com a espada numa das mãos e a lanterna na outra.
Como se quisesse destruir a última esperança ou a última dúvida, o Coronel ao vê-lo aproximar-se, apontou o revólver e disparou. O tiro falhou Syme, mas atingiu-lhe a espada, quebrando-a junto ao punho. Syme continuou a correr sobre os dois homens, brandindo a lanterna acima da altura da cabeça.
- Judas primeiro, Herodes depois! - disse ele, e atacou o Coronel fazendo-o cair no meio das pedras. Enfrentou a seguir o Secretário, cuja boca assustada parecia prestes a babar-se de espuma, e levantou a lanterna com um gesto tão decidido e imperioso que o outro ficou por um momento como que gelado, e foi forçado a ouvi-lo.
- Está a ver esta lanterna? - gritou Syme numa voz terrível.
Está a ver a cruz que tem gravada, e a chama que tem dentro? Não foi você quem a fez, nem você quem a acendeu. Foram homens muito melhores do que você, capazes de acreditar e de obedecer, que trabalharam as entranhas do ferro e preservaram a lenda do fogo. Não há rua por onde você ande, não há fio de roupa que você vista, que não tenham sido feitos como esta lanterna, contra o lixo da sua filosofia para ratazanas. Você não é capaz de fazer nada. Tudo o que pode, é destruir. Destruirá a humanidade; destruirá o mundo. Contente-se com isso. Porque não destruirá esta velha lanterna cristã. O seu império de macacos nunca terá maneira de a encontrar no lugar para onde vai.
Desferiu um golpe com a lanterna atingindo o secretário, fazendo-o cambalear; depois, fazendo-a revolutear duas vezes por cima da sua própria cabeça, atirou-a para o mar, onde caiu com um estrondo de foguete e se afundou.
- Espadas! - berrou Syme, virando o rosto incandescente para os três companheiros que tinha atrás de si. - Ao ataque contra estes cães, porque chegou o momento de morrermos!
Os seus três companheiros seguiram-no de espada na mão. A espada de Syme estava partida, mas ele arrancou uma moca da mão de um pescador, depois de o derrubar de um só golpe. Dentro de poucos segundos, estariam no meio da multidão e morreriam - mas foram interrompidos, antes disso. O Secretário, depois de ter ouvido o discurso de Syme, ficara sentado onde estava, esfregando a cabeça com a mão. Mas agora, decidira-se subitamente, e arrancou a máscara.
O rosto lívido que então descobriu, à luz da lanterna, revelava menos furor do que estupefacção. Levantou a mão num gesto de autoridade ansioso.
- Há aqui um engano! - disse ele. - Mr. Syme, creio que você ainda não compreendeu a sua situação. Prendo-o em nome da lei.
- Da lei? - disse Syme, e arremessou para o lado o punho da espada.
- Nem mais nem menos! - disse o Secretário. - Sou um detective da Scotland Yard.
E tirou do bolso um cartão azul.
- E o que é que você acha que nós somos? - perguntou o Professor pondo os braços no ar.
- Vocês - disse o secretário severamente -, tanto quanto sei, são membros do Conselho Supremo Anarquista. Disfarçado de anarquista, eu...
O Dr. Bull atirou a sua espada ao mar.
- Nunca existiu um Conselho Supremo Anarquista - disse ele.
- Todos nós não passamos de meia-dúzia de polícias estúpidos que se trouxeram debaixo de olho uns aos outros. E toda esta simpática gente que tem estado a atirar contra nós, fê-lo por pensar que éramos bombistas. Eu sabia que não podia estar enganado a respeito da multidão - acrescentou, sorrindo e olhando para a grande massa de gente que alastrara de um lado e de outro da praia. - As pessoas comuns nunca são loucas. Eu próprio sou uma pessoa comum, e sei que é assim. E agora vou até terra firme para convidar para uma rodada todos os que aqui estão.
A Perseguição do Presidente
Na manhã seguinte, cinco pessoas perplexas, mas contentes, tomavam o navio para Dover. O pobre velho Coronel poderia alegar alguns motivos de desagrado, depois de ter sido, primeiro, forçado a bater-se por duas facções inexistentes, e derrubado, depois, por uma lanterna de ferro. Mas era um velho senhor magnânimo, e profundamente aliviado pelo facto de nenhum dos dois partidos ter fosse o que fosse a ver com a dinamite, viera muito cordialmente ao cais despedir-se deles.
Os cinco detectives reconciliados tinham uma centena de explicações a apresentar uns aos outros. Mas acima de todas essas questões de pormenor para as quais a explicação era possível, erguia-se a montanha central da questão cuja explicação não alcançavam. Que significava toda aquela história? Se todos eles eram inofensivos membros da polícia, o que era Domingo? Se não se apoderara deste mundo, que andara ele a fazer, então? O Inspector Ratcliffe continuava a ver o caso com humor sombrio.
- Tal como vocês, não vejo pés nem cabeça nesta brincadeira do Domingo - dizia ele. - Mas sei que o Domingo pode ser tudo menos um cidadão inofensivo. Com mil raios! Não se lembram da cara dele?  - Posso garantir-lhe - respondeu Syme - que nunca mais poderei esquecê-la.
- Bem - disse o Secretário -, suponho que em breve descobriremos tudo, uma vez que a nossa assembleia-geral é amanhã. Peço
desculpa - continuou ele, com um sorriso notavelmente espectral por levar tão a peito as minhas funções de Secretário.
- Creio que tem razão - disse o Professor, pensativo. - Creio que ele nos fará descobrir tudo; mas confesso que me sinto um tanto  receoso à ideia de perguntar a Domingo quem é ele realmente.
- Porquê? - disse o Secretário. - Tem medo das bombas?
- Não - disse o Professor -, tenho medo do que ele possa dizer-me. - Vamos beber qualquer coisa - disse o Df. Bull, após um momento de silêncio.
Durante toda a viagem, a bordo do navio e a seguir no comboio, confraternizaram animadamente, mas também movidos pelo instinto de não se separarem. O Dr. Bull, que fora sempre o optimista da companhia, tentou convencer os outros quatro membros do grupo a enfiarem-se todos no mesmo pequeno cabriolé para continuarem juntos até Victoria; mas a proposta foi derrotada, e acabaram por chamar uma carruagem maior, em cuja boleia o Dr. Bull se instalou, cantando. Acabaram o dia num hotel de Piccadilly Circus, onde ficariam perto de Leicester Square tendo em vista o pequeno-almoço da manhã seguinte. Mas as aventuras desta última jornada ainda não tinham chegado ao fim. O Dr. Bull, desagradado com a decisão de se irem todos deitar, aprovada pela generalidade dos outros membros do grupo, resolvera sair do hotel por volta das onze da noite a fim de ver e gozar um pouco as belezas de Londres. No entanto, passados vinte minutos, estava de regresso e causava grande alvoroço no hall. Syme, depois de ter começado por tentar calá-lo, acabou por se sentir obrigado'a ouvi-lo com a maior atenção.
- Estou a dizer-lhe que o vi! - disse o Dr. Bull, sublinhando cada palavra.
- Viu, quem? - perguntou precipitadamente Syme. - O Presidente?
- Não, menos mau do que isso - disse o Dr. Bull entre risos supérfluos -, menos mau do que isso. Trouxe-o para aqui comigo.
- Trouxe para aqui, quem? - perguntou Syme com impaciência.
- Um tipo cabeludo e barbudo - foi a resposta razoável do outro -, aquele tipo que parecia cabeludo e barbudo, o Gogo!. Aqui está ele -, e agarrando-o por um cotovelo relutante, pôs-lhe diante dos olhos o mesmo homem novo, com o seu semblante pálido e os seus cabelos ruivos, que cinco dias antes fora expulso do Conselho - o primeiro dos pseudo-anarquistas a deixar cair a máscara.
- Que querem vocês de mim? - exclamou ele. - Já me expulsaram por ser um espião.
- Somos todos espiões! - murmurou Syme.
- Somos todos espiões! - bradou o Dr. Bull. - Venha, vamos tomar um copo juntos.
Na manhã seguinte, um batalhão, que reunia os seis homens, punha-se decididamente em marcha na direcção do hotel de Leicester Square.
- Acho isto espantoso - disse o Dr. Bull. - Seis homens que vão perguntar a outro o que quer ele fazer.
- Eu penso que é ainda um bocado mais estranho - disse Syme. - Acho que são seis homens que vão perguntar a outro o que querem fazer eles próprios.
Entraram em silêncio no Square, e embora o hotel ficasse do outro lado da praça, viram imediatamente a pequena varanda e um homem cuja figura parecia grande de mais para ela. O homem estava só, sentado e com a cabeça inclinada, mergulhado na leitura de um jornal. Mas todos aqueles membros do seu Conselho, que se dirigiam ali para o derrubar, tinham a impressão, enquanto atravessavam a praça, de que havia no céu centenas de olhos a observá-los.
Tinham discutido muito sobre a melhor maneira de agir, e também sobre se deveriam começar por aparecer sem o desmascarado Gogol, ou se seria preferível terem-no ao seu lado e desencadearem a explosão desde o primeiro momento. Sob a influência de Syme e de Bull, fora adoptada a segunda alternativa, embora o Secretário até ao fim lhes perguntasse por que razão queriam atacar Domingo tão de improviso.
- A minha razão é muito simples - disse Syme. - Quero atacá-lo de improviso porque tenho medo dele.
Tendo seguido Syme em silêncio enquanto este subia as escadas, mostraram-se todos em simultâneo à grande luz brilhante do sol da manhã e à grande luz brilhante do sorriso de Domingo.
- Magnífico! - disse este. - É uma verdadeira alegria ver-vos.
E que dia delicioso está hoje! O Czar está morto?
O Secretário, que o acaso pusera na dianteira dos outros, esforçou-se por encontrar uma resposta digna.
- Não, sir - disse ele com aspereza. - Não houve massacre.
Não tenho notícias de horror a comunicar-lhe.
- Horror? - repetiu o Presidente com um sorriso ofuscante e interrogativo. - Refere-se ao horror dos óculos do Dr. BulI?
O Secretário ficou por um instante desorientado, e o Presidente continuou num tom de branda repreensão.
- É evidente que todos temos a nossa opinião e vemos as coisas com olhos que são diferentes uns dos outros, mas dizer diante de uma pessoa que os seus óculos são um horror...
O Dr. Bull arrancou os óculos do nariz e partiu-os em cima da mesa.
- Os meus óculos são uma impostura - disse ele -, mas eu não sou. Olhe para a minha cara.
- Atrevo-me a dizer que é o tipo de cara que se forma à imagem de quem a tem - disse o Presidente -; e, na realidade, é formada à sua imagem; mas quem sou eu para discutir os frutos da Árvore da Vida? Atrevo-me a dizer que um dia se há-de formar em mim.
- Não temos tempo para disparates - disse o Secretário, intervindo brutalmente. - Viemos aqui para saber o que significa toda esta história. Quem é você? O que é você? Porque nos juntou todos aqui? Não sabe quem somos e o que somos? Pergunto-lhe se é um tonto que brinca aos conspiradores, ou se é um homem inteligente que se faz de parvo? Responda-me, já lhe disse.
- Os candidatos - murmurou Domingo - só são obrigados a responder a oito das dezassete perguntas que vêm no papel. Tanto quanto entendi, vocês querem que eu vos diga o que sou, e o que vocês são, e o que é esta mesa, e o que é este Conselho, e o que é o mundo, tão longe quanto o meu conhecimento pode alcançar. Bem, irei suficientemente longe para vos revelar um dos mistérios. Se vocês querem saber o que são, pois bem, são um grupo de jovens imbecis cheios das melhores intenções.
- E você - disse Syme, inclinando-se para a frente -, você o que é?
- Eu? O que sou eu? - rugiu o Presidente, e levantou-se lentamente até alcançar uma altura incrível, como uma enorme vaga prestes a abater-se sobre eles e a esmagá-los. - Querem saber o que eu sou, não é isso que querem? Bull, você é um homem de ciência. Escave nas raízes destas árvores e descubra a verdade a respeito delas. Syme, você é um poeta. Olhe para estas nuvens matinais. Mas o que vos digo é o seguinte: mais depressa descobrirão a verdade acerca da última árvore e da nuvem mais alta destas nuvens do que a verdade a meu respeito. Hão-de explicar o mar, e eu continuarei a ser um enigma; hão-de saber o que são as estrelas, mas não o que sou eu. Desde o princípio do mundo que todos os homens me têm perseguido como se caçassem um lobo: os reis e os sábios, os poetas e os legisladores, todas as igrejas, e todas as filosofias. Mas nunca me apanharam ainda, e os céus hão-de cair sem que eu tenha sido encurralado. Dei-lhes em compensação alguma coisa que valeu a pena, e é o que vou fazer também agora.
Antes que algum deles pudesse mover-se, aquele homem monstruoso galgara já a balaustrada da varanda como um enorme orangotango. Antes de saltar para a calçada, todavia, elevou-se agarrado à balaustrada como se esta fosse uma barra de exercícios, e com o queixo assomando para dentro da varanda, disse solenemente:
- Acerca do que sou, há uma coisa que quero dizer-vos. Sou o homem da sala às escuras, que fez de todos vocês polícias.
E com isto deixou-se cair da varanda, ressaltou ao tocar a calçada como uma grande bola de borracha, e correu até à esquina do Alhambra, onde mandou parar um cabriolé, subindo de um pulo para dentro dele. Os seis detectives tinham ficado petrificados e lívidos depois de ouvirem as suas últimas palavras, como que assombrados por um relâmpago; mas, quando o viu desaparecer depois de entrar no cabriolé, o sentido prático de Syme voltou a fazer-se sentir, levando-o a saltar por cima da balaustrada da varanda tão precipitadamente que correu o risco de partir as pernas, apressando-se a apanhar outro carro.
Ele e Bull subiram juntos para o cabriolé, o Professor e o Inspector enfiaram-se dentro de outro, enquanto o Secretário e o ex-Gogol treparam para o interior de um terceiro justamente a tempo de perseguirem um Syme fugitivo, que perseguia o fugitivo Presidente. Domingo arrastou-os numa feroz desfilada em direcção a noroeste, enquanto o seu cocheiro, manifestamente sob a influência de incentivos mais fortes do que os costumados, incitava o cavalo a avançar a toda a brida. Mas Syme não estava com disposição para moderar as suas maneiras e, pondo-se de pé, gritou de dentro do carro: «Agarra que é ladrão!», o que fez com que uma multidão largasse a correr ao lado do seu cabriolé, enquanto os polícias intervinham, interrompendo a circulação e fazendo perguntas. Tudo isto influenciou o cocheiro do Presidente, que começou a hesitar, passando ao trote. Abriu a portinhola do carro para tentar entender-se razoavelmente com o seu passageiro, e deixou, ao fazê-lo, que o seu chicote comprido pendesse para diante. Domingo então debruçou-se, apoderou-se do chicote e desferiu com ele um golpe violento na mão do homem. Depois, instalando-se em pessoa no lugar do cocheiro, chicoteou o cavalo sem parar de soltar rugidos atroadores, como uma tempestade que varresse tudo à sua passagem. Rua após rua, e praça após praça, via-se avançar o vendaval daquele carro insensato, com o seu passageiro que fustigava o cavalo enquanto o cocheiro tentava desesperadamente fazê-lo parar. Os outros três cabriolés perseguiam o primeiro como, se assim se pode falar de carros puxados por cavalos, outros tantos mastins arquejantes, deixando, como setas que assobiam, as lojas e as ruas para trás.
No auge daquele êxtase de velocidade, Domingo, que continuava de pé contra o guarda-lama da frente do carro, virou-se para trás, e pondo a cabeça de fora, com o seu cabelo branco revolto pelo vento, endereçou aos seus perseguidores uma careta horrível, como a de um colossal garoto mal comportado. A seguir, servindo-se da mão direita, atirou uma bola de papel que acertou em cheio no rosto de Syme, posto o que voltou a desaparecer. Syme apanhou a bola de papel instintivamente e desenrolou-a, verificando que era feita de dois papéis amachucados. Um era-lhe pessoalmente dirigido, e o outro, ao Df. BulI, exibindo a seguir ao nome deste uma longa sequência de iniciais, que era de temer terem sido acrescentadas por uma inspiração irónica. O endereço do papel do Dr. BulI era, em todo o caso, consideravelmente mais extenso do que o conteúdo da mensagem, pois este consistia simplesmente nas seguintes palavras:
Que me diz do Martin Tupper, agora?
- O que será que o velho louco quer dizer com isto? - perguntou BulI, olhando para o papel. - E a sua mensagem, Syme, o que é que diz?
A mensagem recebida por Syme era, pelo menos, mais longa, e rezava como se segue:
Ninguém mais do que eu lamentaria qualquer coisa que se pareça com uma intervenção do Arquidiácono. Acredito que as coisas não hão-de chegar tão longe. Mas, pela última vez, que é feito das suas galochas? A coisa está a correr muito mal, sobretudo depois do que disse o tio.
O cocheiro do Presidente pareceu retomar certo controle sobre o seu cavalo, e os perseguidores ganharam um pouco mais de terreno à entrada de Edgware Road. E teve então lugar o que os aliados acreditaram ser uma interrupção providencial. Todo o variado tráfego daquela zona inflectia nuns casos à direita, noutros à esquerda, ou, noutros ainda, parava, porque se ouvia avançar naquela direcção o som inconfundível de um carro de bombeiros, que pouco depois passou por eles como um relâmpago de bronze. Mas tanta rapidez não impediu que Domingo saltasse do cabriolé direito ao carro de bombeiros e, agarrando-se, trepasse para cima dele, deixando os outros a vê-lo desaparecer na distância ruidosa e a justificar-se, por meio de palavras e gestos, perante os bombeiros atónitos.
- Atrás dele! - uivou Syme. - Desta vez, não o podemos perder. Um carro de bombeiros é inconfundível.
Os três cocheiros, que, perplexos, tinham parado um momento, chicotearam os cavalos e conseguiram reduzir ligeiramente a distância da sua esquiva presa. O Presidente, dando-se conta dessa nova aproximação, dirigiu-se à parte de trás do carro, inclinou-se repetidamente e beijou a sua própria mão, antes de por fim atirar nova folha de papel amachucada numa bola, que acabou por cair nos joelhos do Inspector Ratcliffe. Quando este último cavalheiro a desenrolou, não sem impaciência, viu que continha as seguintes palavras:
Fuja imediatamente. Sabe-se a verdade acerca dos seus suspensórios.
UM AMIGO
O carro de bombeiros avançara muito para norte, entrando numa zona que os seis amigos não reconheceram, e quando virou por uma rua que passava entre gradeamentos altos e sombreada de árvores, tiveram a surpresa, que de certo modo foi também um alívio, de ver que o Presidente saltava do carro de bombeiros, embora não soubessem se o fazia devido a algum novo capricho, se impelido por crescentes protestos dos outros tripulantes. Contudo, antes que os três carros pudessem alcançá-lo, trepara pelos gradeamentos altos como um enorme gato cinzento, descera do outro lado e sumira-se na obscuridade da massa vegetal.
Syme fez parar o cabriolé com um gesto furioso, apeou-se de um pulo, e começou a escalar as grades. Já com uma das pernas do lado de dentro da vedação e enquanto os seus amigos o seguiam, virou lá de cima para eles um rosto que parecia brilhar palidamente na sombra.
- Que lugar poderá ser este? - perguntou. - Não será por acaso a velha casa do diabo? Ouvi dizer que ele tinha uma casa no Norte de Londres.
- Tanto melhor - disse o Secretário num tom sombrio, pondo um pé no gradeamento -, assim vamos encontrá-lo em casa.
- Não, não é isso - disse Syme, franzindo o sobrolho. - Estou a ouvir uns sons pavorosos, parecem diabos a rir e a espirrar e a assoar os seus diabólicos narizes!
- É evidente que devem ser os cães dele a ladrar - disse o Secretário.
- Porque é que você não diz que são os escaravelhos dele a ladrar? - replicou ferozmente Syme. - Ou os caracóis dele a ladrar! Os geránios dele a ladrar! Já alguma vez ouviu um cão que ladrasse assim?
Levantou a mão, e da espessura da folhagem e dos ramos chegou um rugido arrastado que parecia entranhar-se por debaixo da pele e gelar a carne - um rugido sufocado e arrepiante que vibrava no ar que os envolvia.
- Os cães do Domingo não devem ser cães como os outros - disse Gogol, e estremeceu.
Syme saltara já para o lado de dentro, mas continuava parado e à escuta, cheio de impaciência.
- Bem, ouçam lá isto - disse ele. - Acham que pode ser um cão, um cão seja de quem for?
Então ressoou-lhes nos ouvidos um grito áspero e como que de protesto e lamento perante uma dor súbita; e a seguir, como um eco longínquo, qualquer coisa que lembrava um som prolongado e nasalado de trombeta.
- Está bem, a casa dele deve ser o inferno! - disse o Secretário. - E se é o inferno, vou lá dentro ver como é! -, e transpôs a vedação quase de um só salto.
Os outros seguiram-no. Abriram caminho por entre uma espessa muralha de plantas e arbustos, desembocando num caminho desimpedido. Nada se via, mas o Dr. Bull bateu bruscamente as palmas.
- Ora, vejam como foram estúpidos - gritou ele. - É o Jardim Zoológico!
Enquanto procuravam ferozmente em redor algum rasto da sua feroz presa, viram aparecer um guarda fardado na companhia de um homem em trajo civil.
- Veio por este lado? - perguntou o guarda.
- Por este lado, o quê? - perguntou Syme.
- O elefante! - gritou o guarda. - Foi um elefante que se enfureceu e fugiu!
- Fugiu com um cavalheiro de idade em cima - disse o segundo homem quase sem fôlego -, um pobre cavalheiro de idade com os cabelos brancos!
- Que espécie de cavalheiro era esse? - perguntou Syme, animado de extrema curiosidade.
- Um cavalheiro muito alto e encorpado, com um fato cinzento claro - explicou o guarda, aflito.
- Pois bem - disse Syme -, se foi um cavalheiro de idade como esse em particular, se têm a certeza de que foi um cavalheiro de idade, alto e encorpado e vestido de cinzento, dou-vos a minha palavra de honra e digo-vos que não foi o elefante que fugiu com ele. Foi ele que fugiu com o elefante. Deus ainda não criou um elefante que pudesse fugir levando-o, sem que ele consentisse no rapto. E, diabos me levem, lá está ele!
Desta vez, não havia dúvidas. Atravessando um espaço relvado a cerca de cem jardas dali, com uma multidão que gritava e corria inutilmente no seu encalço, via-se um grande elefante cinzento avançando a uma velocidade desvairada, com a tromba erguida, hirta como a proa de um navio, e cujos bramidos ressoavam como a trombeta da perdição. No dorso do estrepitoso e tresloucado animal, via-se o Presidente Domingo, com toda a placidez de um sultão, mas que nem por isso deixava de espicaçar o elefante já a passo de carga com um objecto acerado que tinha na mão.
- Parem-no! - gritava aquela massa de gente. - Vai atravessar o portão!
- Não se pode parar uma avalanche! - disse o guarda. - Já passou o portão!
E enquanto o guarda dizia estas palavras, um último estrondo e rugido de terror anunciou que o grande elefante cinzento arrombara os portões do Jardim Zoológico, e corria pela Albany Street como uma nova e rapidíssima espécie de meio de transporte público.
- Meu Deus! - gritou Bull. - Nunca pensei que um elefante pudesse andar tão depressa. Bem, temos de nos meter outra vez nos cabriolés se não queremos perdê-lo de vista.
Enquanto se precipitavam na direcção das portas através das quais o elefante desaparecera, Syme captou uma imagem impressionante dos exóticos animais enjaulados pelos quais passavam. Mais tarde pensou que era estranho tê-los visto tão nitidamente naquelas circunstâncias. Lembrava-se sobretudo de ver os pelicanos, com os seus ridículos papos pendentes. Perguntou-se porque seria o pelicano o símbolo da caridade, a não ser que tal se devesse ao facto de ser necessária uma boa dose de caridade para se admirar um pelicano. Lembrava-se também de um tucano, que não era mais do que um enorme bico amarelo ao qual estava presa uma pequena ave. O conjunto dessas imagens transmitia-lhe a sensação intensa, e que ele não sabia explicar, de que a Natureza não parava de multiplicar os seus misteriosos gracejos. Domingo dissera-lhes que o entenderiam depois de terem entendido as estrelas. Syme perguntava-se se os próprios arcanjos seriam capazes de entender o tucano.
Os seis pobres detectives correram para os seus carros e seguiram o elefante, comungando na impressão de terror que aquele espalhava de rua em rua. Agora Domingo não se virava para trás, mas limitava-se a oferecer-lhes o espectáculo das suas enormes costas que os ignoravam e, se possível, os enfureciam ainda mais do que os seus anteriores gestos de escárnio. No entanto, pouco antes de chegarem a Baker Street, viram-no atirar qualquer coisa para o ar, como um rapaz atira uma bola com o propósito de a agarrar de novo. Dada a velocidade da corrida, aquilo acabara por cair um tanto para trás, ao lado do cabriolé onde estava Gogol; e com a ténue esperança de assim obter uma pista ou movido por não sabia que inexplicável impulso, Gogol fez parar o carro para apanhar o objecto. Este era-lhe destinado e consistia num pacote bastante volumoso. Quando o examinou, descobriu todavia que aquele pacote se compunha simplesmente de trinta e três bocados de papel sem o menor valor, amachucados e enrolados. O último pedaço que desenrolou não passava de uma pequena tira, trazendo escritas as seguintes palavras:
Imagino que a palavra devia ser rosa.
O homem que dava pelo nome de Gogol não disse fosse o que fosse, mas os movimentos das suas mãos e dos seus pés eram como os de alguém que incita um cavalo a esforçar-se ainda mais na sua carga.
O prodígio do elefante em fuga atravessava ruas e bairros atraindo multidões às janelas e fazendo com que o tráfego se desviasse do seu caminho à esquerda e à direita. Mas apesar de todo este tumulto público, os três carros mantinham-se atrás dele, acabando por sugerir a ideia de que formavam com o elefante em fuga um só e mesmo cortejo, anunciando talvez uma sessão de circo. Avançavam a tal velocidade que todas as distâncias se encurtavam para além do que parecia concebível, e Syme viu o Albert Hall, em Kensington, quando julgava não ter passado ainda de Paddington. O passo do animal tornou-se ainda mais rápido e fácil nas ruas vazias e aristocráticas de South Kensington, depois do que tomou a direcção assinalada no horizonte pela enorme roda de Earl Court recortada no céu. A roda parecia tornar-se cada vez maior, acabando por se substituir ao céu diante dos seus olhos, como se fosse a roda das estrelas.
A fera ganhou terreno sobre os cavalos dos carros. Perderam-no de vista ao dobrar de sucessivas esquinas, até ao momento em que se viram bloqueados diante de uma das portas da Exposição de Earl Court. Cortava-lhes o caminho uma grande multidão. Rodeado por ela, estava o elefante sacudindo-se e estremecendo como é próprio dessa espécie de criaturas informes. Mas o Presidente desaparecera.
- Para onde terá ele ido? - perguntou Syme, apeando-se do carro.
- O cavalheiro tinha muita pressa de entrar para a Exposição, sir! - disse um guarda, visivelmente desconcertado. Depois acrescentou com uma voz ofendida:
- Um estranho cavalheiro, sir. Pediu-me que lhe tomasse conta do cavalo, e deu-me isto.
Pegou com relutância num pedaço de papel amarrotado e endereçado como se segue: Ao Secretário do Concelho Central Anarquista.
O Secretário desdobrou raivosamente o papel e descobriu o que nele estava escrito:
Ver o arenque fugir
Faz o Secretário sorrir;
Ver o arenque voar
Faz o Secretário expirar.
Provérbio rústico.
- Pelo fogo eterno - começou o Secretário -, porque é que o deixaram entrar? As pessoas costumam chegar a esta Exposição a cavalo em elefantes enfurecidos? Costumam...
- Olhem! - exclamou de repente Syme. - Olhem ali para cima! - Olhem, o quê? - perguntou ferozmente o Secretário.
- Olhem para o balão cativo! - disse Syme, apontando para o ar com um gesto frenético.
- Por que raios quer você que eu olhe para um balão cativo? perguntou o Secretário. - O que é que tem de tão estranho um balão cativo?
- Nada - disse Syme -, só que este deixou de ser cativo!
Todo o grupo olhou para o lugar onde o balão dançava por cima da
Exposição, preso por uma corda, como um balão para crianças. Quase no mesmo instante, a corda partiu-se em duas rente à gaiola, e o balão, soltando-se, flutuou no ar com a liberdade de uma bola de sabão.
- Dez mil demónios! - berrou o Secretário. - É ele quem vai lá dentro! - e ameaçou os céus com o punho fechado.
O balão, impelido pelo acaso de um sopro de vento, pairava agora precisamente por cima das suas cabeças, e eles podiam ver a grande cabeça branca do Presidente, espreitando de bordo e observando-os com benevolência.
- Deus abençoe a minha alma! - disse o Professor com essa maneira de falar antiquada que não era capaz de desligar da sua barba encanecida e do seu rosto encarquilhado. - Deus abençoe a minha alma! Tenho a impressão de que me caiu alguma coisa em cima do chapéu!
Tirou o chapéu com a mão trémula e pegou num papel dobrado que abriu com uma expressão ausente, encontrando nele desenhado um laço que simbolizava o amor sincero, acompanhado pelas palavras:
A sua beleza não me deixou indiferente.
De: PEQUENO FLOCO DE NEVE
Fez-se um breve silêncio, e Syme disse a seguir, mordendo a barba: - Ainda não me dou por vencido. Aquela coisa maldita tem de descer nalgum lado. Vamos segui-lo!
Os Seis Filósofos
A cerca de umas cinco milhas de Londres, seis detectives exaustos atravessavam prados verdes e abriam caminho por entre sebes floridas. O optimista da companhia propusera de início que seguissem o balão pelo Sul de Inglaterra com os seus cabriolés e cavalos. Mas acabara por se convencer da recusa obstinada que o balão opunha a flutuar por cima dos caminhos e da mais obstinada ainda recusa dos cocheiros à ideia de continuarem a perseguir o balão. Por conseguinte, os infatigáveis se bem que exasperados viajantes tiveram de continuar por entre moitas cerradas e campos semeados, enquanto o aspecto que adquiriam se tomara demasiado degradante para que alguém pudesse tomá-los por simples vagabundos. Aquelas verdes colinas do Surrey assistiram à ruína e tragédia finais do admirável fato cinzento claro que Syme envergava desde Saffron Park. O seu chapéu de seda rasgado por um ramo de árvore caía-lhe para o nariz, o casaco ostentava à altura as marcas de espinhos acerados, a argila do solo de Inglaterra sujava-lhe os colarinhos da camisa; mas a sua barba alourada continuava erguida e a proclamar avante, com uma determinação feroz e silenciosa, e os seus olhos mantinham-se pregados naquele balão de gás flutuante, que no vermelho que alastrava com o crepúsculo se assemelhava a uma nuvem que esse vermelho tingisse.
- Apesar de tudo - disse ele -, é uma coisa lindíssima.
- Sim, de uma beleza estranha e única! - disse o Professor.
Gostava que aquela maldita bolsa de gás rebentasse!
- Não - disse o Dr. Bull -, espero que não. O velho podia magoar-se.
- Magoar-se? - exclamou o Professor, vingativo. - Magoar-se? Eu logo lhe digo o que é magoar-se se conseguirmos deitar-lhe a mão. Pequeno Floco de Neve!
- Não sei bem porquê, mas não queria que ele se magoasse - disse o Dr. Bull.
- Como? - gritou asperamente o Secretário. - Você acredita naquela história de ser ele o homem com quem falámos na sala às escuras? O Domingo é capaz de dizer que é qualquer pessoa.
- Não sei se acredito ou não - disse o Dr. Bull. - Mas não é isso. Não sou capaz de desejar que o balão do Domingo rebente porque...
- Sim - disse Syme, impaciente -, mas porquê?
- Bem, porque ele é fantástico, tão fantástico como este balão  disse o Dr. Bull, no seu desespero. - Não entendi uma palavra dessa história de ter sido ele próprio a dar-nos os cartões azuis. É uma ideia que toma tudo isto absurdo. Mas não se me dá que fiquem a sabê-lo, sempre simpatizei com a .pessoa do velho Domingo, patife como era. Como se fosse um grande bebé irrequieto. Como vos hei-de explicar esta minha extravagante simpatia? Não me impediu de lutar contra ele como um demónio! Será mais inteligível se vos disser que gostei dele por ele ser tão gordo?
- Não me parece - disse o Secretário.
- Já sei! - exclamou Bull. - Foi por ele ser tão gordo e tão ágil.
Precisamente como um balão. Pensamos sempre que as pessoas gordas são também pesadas, mas ele seria bem capaz de dançar mais ligeiro do que uma sílfide. Era isso que eu queria dizer. A força mediana manifesta-se como violência, a força superior manifesta-se como agilidade. É como essas velhas especulações que perguntam o que aconteceria se um elefante pudesse saltar no ar como um gafanhoto? - O nosso elefante - disse Syme, olhando para cima - saltou no ar como um gafanhoto.
- E de certo modo - concluiu Bull - é por isso que não posso deixar de gostar do velho Domingo. Não, não é admiração pela força, nem qualquer outra imbecilidade do mesmo género. Há nele uma espécie de alegria, como se estivesse a transbordar de boas notícias. Nunca sentiram uma coisa parecida num dia de Primavera? Como vocês sabem, a Natureza prega as suas partidas, mas um dia descobre-se que essas partidas eram afinal de bom gosto. Nunca li a Bíblia, mas essa parte que faz rir toda a gente, fala de uma verdade verdadeira.
«Porque saltais, ó altos montes?». Sim, os montes saltam, ou pelo menos tentam fazê-lo... Porque é que eu gosto do Domingo?... Como hei-de explicar-vos?.. É por ele ser um Saltador tão grande.
Fez-se um silêncio prolongado, e por fim o Secretário disse, com uma voz curiosamente embaraçada.
- Você não conhece bem o Domingo. Talvez seja por ser melhor do que eu e por isso não conhecer o inferno. Eu era um tipo selvagem, e fui sempre um tanto mórbido, desde o início. O homem sentado no escuro, e que nos escolheu a todos, escolheu-me porque eu tinha o perfeito ar transtornado de um conspirador: com o meu sorriso contorcido e os meus olhos turvos, até quando sorria. Mas devia haver em mim qualquer coisa que mexia com os nervos de todos aqueles anarquistas. Porque pela primeira vez que vi o Domingo, ele revelou-me, não a sua agilidade aérea, mas qualquer coisa que era ao mesmo tempo imensa e triste na Natureza das Coisas. Encontrei-o a fumar numa sala escura, uma divisão com os estores completamente descidos, infinitamente mais deprimente do que a obscuridade afável em que vive o nosso chefe. Sentado na sua cadeira, era uma montanha humana, sombria e informe. Ouviu tudo o que eu lhe disse sem dizer uma palavra e sem o mais pequeno movimento sequer. Dei voz às invocações mais apaixonadas e fiz-lhe as perguntas mais eloquentes. Quando acabei de falar, a Coisa começou a agitar-se, o que eu pensei que se devesse a alguma doença secreta. Agitava-se como uma geleia viva e repugnante. Trouxe-me à memória tudo o que eu tinha lido sobre os corpos ínfimos que são a origem da vida: corpúsculos das profundidades do mar e protoplasmas. Aquilo parecia a forma final da matéria, a mais informe e mais indigna. Tudo o que era capaz de me dizer, ao ver aquela agitação, foi que já era alguma coisa poder considerar-se que um monstro assim não passava de um desgraçado. E a seguir dei-me bruscamente conta de que aquela montanha animalesca se agitava porque se estava a rir, e estava a rir-se de mim. Querem que eu lho perdoe? Não é coisa que se esqueça facilmente que houve qualquer coisa, ao mesmo tempo inferior e mais forte, que se riu de nós.
- Meus amigos - interveio a voz clara do Inspector Ratcliffe -, vocês exageram muito as coisas. O Presidente Domingo é um adversário terrível para a nossa inteligência, mas não é fisicamente o prodígio de circo de Barnum que vocês querem fazer dele. Recebeu-me num gabinete como os outros, com um casaco cinzento aos quadrados, e bem à luz do dia. Falou-me numa linguagem corrente. Mas já vos digo o que há de inquietante no Domingo. Os seus aposentos estão limpos, as roupas que veste lavadas, tudo parece estar perfeitamente em ordem, mas ele está sempre ausente. Os seus olhos grandes e brilhantes chegam, às vezes, a parecer cegos. É capaz de se esquecer durante horas que está ali mais alguém. Ora esta distracção é tremenda num patife. Pensamos que um patife deve ser uma pessoa vigilante. Não podemos pensar num patife que seja honesta e sinceramente sonhador, porque não nos atrevemos a pensar num patife a sós consigo. Um homem distraído pressupõe uma boa natureza. É um homem que, se acabar por dar por nós, nos pedirá desculpa. Mas já ouviram falar de algum homem distraído que, se acabar por dar por nós, nos matará? Éisso que exaspera os nossos nervos, esta distracção combinada com a crueldade. Há homens que sentiram qualquer coisa assim em certas ocasiões, quando percorriam florestas selvagens: sentiam que os animais que ali viviam eram ao mesmo tempo inocentes e implacáveis. Que tanto os podiam ignorar como matar. Quem poderia gostar de passar dez horas mortais numa sala, acompanhado por um tigre distraído?
- E que pensa você do Domingo, Gogol? - perguntou Syme. - Eu, por princípio, não penso no Domingo - respondeu Gogol com simplicidade -, tal como não olho para o sol ao meio-dia.
- Bem, é um ponto de vista - disse Syme, pensativo. - Que diz você, Professor?
O Professor andava de um lado para o outro, baixando a cabeça e fazendo balouçar a bengala, nada respondeu.
- Acorde, Professor! - disse Syme, em tom cordial. - Diga-nos o que pensa do Domingo.
O Professor começou enfim a responder, falando muito devagar.
- Penso qualquer coisa - disse ele - que não sei dizer claramente. Ou melhor, penso qualquer coisa que não sou sequer capaz de pensar claramente. Mas é qualquer coisa como isto. A minha vida anterior, como sabem, foi um tanto à grande e desordenada.
«Ora bem, quando vi o rosto do Domingo, pensei que era um rosto grande de mais; toda a gente pensa o mesmo, mas eu pensei que era também um rosto desordenado. Era um rosto tão grande que uma pessoa não o podia focar ou fazer dele uma cara propriamente dita. Os olhos estavam tão longe do nariz que deixavam de ser olhos. A boca era já tanta coisa por si só, que uma pessoa tinha de pensar nela como uma coisa distinta. O efeito de conjunto é muito difícil de explicar.»
Fez um momento de pausa, continuando a balouçar a bengala, e continuou a seguir:
- Mas deixem-me dizer as coisas nestes termos. Uma noite, enquanto seguia o meu caminho, vi um candeeiro, uma janela iluminada e uma nuvem que juntos formavam um rosto completo e inconfundível. Se no céu houver alguém com esse rosto, serei capaz de o reconhecer no mesmo instante. Mas, depois de ter dado alguns passos mais, descobri que o rosto não existia, que a janela estava a dez jardas dali, a lâmpada a cem, e a nuvem para além deste mundo. Bem, o rosto do Domingo fugia-me; desfazia-se para a direita e para a esquerda, como se desfazem as imagens formadas ao acaso do tipo que vos descrevi. E por isso o rosto dele fez-me de certo duvidar da existência de rostos. Não sei se o seu rosto, Buli, é um rosto ou um efeito de perspectiva. Talvez o disco de uma das lentes escuras desses seus óculos atrozes esteja muito perto, e o outro a cinquenta milhas daqui. Oh, as dúvidas de um materialista não valem nada que se veja. O Domingo ensinou-me a dúvida última, que é a pior das dúvidas, a dúvida de um espiritualista. Suponho que devo ser budista, porque o budismo não é um credo, mas uma dúvida. Meu pobre e caro Buli, não acredito que você tenha realmente um rosto. Não tenho fé suficiente para acreditar na matéria.
Os olhos de Syme continuavam postos no globo errante, que, avermelhado pela luz do entardecer, parecia um outro mundo mais cor de rosa e inocente.
- Não deram por uma coisa estranha - disse ele - que resulta do conjunto das vossas descrições? Cada um de vocês descobre um Domingo muito diferente, cada um de vocês não é capaz de encontrar senão uma coisa com que pode compará-lo, e essa coisa é o próprio universo. O Buli acha que ele é como a Terra na Primavera. O Gogol, como o sol ao meio-dia. O Secretário lembra-se dos protoplasmas informes, e o Inspector da inconsciência das florestas virgens. O Professor diz que ele é como uma paisagem que se transforma. Tudo isto é desconcertante, e mais desconcertante ainda porque também eu formo uma ideia insólita acerca do Presidente, e também eu descubro que penso no Domingo como penso no mundo inteiro.
- Continue um bocadinho mais depressa, Syme - disse Buli. Deixe lá o balão.
- Quando vi o Domingo pela primeira vez - disse Syme lentamente -, só lhe vi as costas; e quando vi as costas dele, soube que ele era o pior homem do mundo. O pescoço e os ombros eram brutais, como os de um deus simiesco. A sua cabeça tinha um porte que não chegava a ser humano, como a cabeça de um boi. A verdade é que me passou no mesmo instante pela cabeça uma fantasia medonha: ele não era um homem, mas uma fera vestida de roupas humanas.
- Continue - disse o Dr. Bull.
- E foi então que o mais estranho de tudo aconteceu. Eu tinha-lhe visto as costas quando passava na rua, enquanto ele estava sentado na varanda. Depois entrei no hotel e quando cheguei e me voltei para ele, vi-lhe o rosto à luz do sol. O rosto dele assustou-me, como vos assustou a todos; mas não por ser brutal, não por ser maléfico. Pelo contrário, assustou-me por ser tão cheio de beleza, por ser tão cheio de bondade.
- Syme - exclamou o Secretário -, você está doente?
- Era como o rosto de um antigo arcanjo, pronunciando o seu juízo justo depois de guerras heróicas. Havia riso nos olhos dele, e na sua boca honra e dó. Eram os mesmos cabelos brancos, os mesmos ombros grandes dentro do mesmo fato cinzento que eu tinha visto ao olhá-lo pelas costas. Mas quando o vi de costas tive a certeza de que ele era um animal, e quando o vi pela frente soube que era um deus.
- Pã - disse sonhadoramente o Professor - era um deus e um animal.
- Portanto, dessa vez e sempre - continuou Syme como se falasse de si para si -, foi este para mim o mistério do Domingo, e éeste também o mistério do mundo. Quando vejo as costas medonhas, tenho a certeza de que o nobre rosto é uma máscara. Quando vejo o rosto por um breve instante, sei que as costas não passam de uma brincadeira. O mal é tão mau, que só podemos pensar no bem como num acidente; o bem é tão bom, que temos a certeza de que o mal pode ser explicado. Mas tudo isto teve o seu ponto culminante ontem, quando corri atrás de Domingo antes de apanhar o carro, com os olhos nas costas dele o tempo todo.
- E teve tempo para pensar nesse momento? - perguntou Ratcliffe.
- Tempo - replicou Syme -, sim, para um pensamento horrível. De repente fui tomado pela ideia de que aquela parte de trás opaca e cega da cabeça dele era na realidade o seu rosto: um medonho rosto sem olhos que me fitava! E imaginei que aquela figura que corria à minha frente era na realidade uma figura que corria para trás, e que dançava enquanto corria.
- Pavoroso! - disse o Dr. Bull, e estremeceu.
- Pavoroso é dizer pouco - disse Syme. - Foi exactamente o pior instante da minha vida. E apesar disso, dez minutos depois, quando ele pôs a cabeça de fora do carro e fez uma careta de gárgula, eu soube que ele era simplesmente um pai que joga às escondidas com os filhos.
- Um jogo muito comprido - disse o Secretário, e olhou franzindo o sobrolho para as suas botas em tiras.
- Ouçam-me - gritou Syme com extraordinária veemência.
Terei de vos explicar o segredo do mundo inteiro? O problema é que só conhecemos ainda as costas do mundo. Vemos tudo pela parte de trás, e parece-nos brutal. Não vemos uma árvore, mas as costas de uma árvore. Não uma nuvem, mas as costas de uma nuvem. Não percebem que tudo se curva e esconde um rosto? Se ao menos pudéssemos ver as coisas de frente...
- Olhem! - gritou Bull numa voz clamorosa. - O balão está a descer!
Syme não precisara de ouvir aquele grito, pois nem por um momento tirara os olhos do balão. Viu o grande globo luminoso que oscilava subitamente no céu, se endireitava na vertical e depois mergulhava lentamente por detrás de uma cortina de árvores como um sol a pôr-se.
O homem conhecido por Gogol, que pouco falara durante todas as extenuantes deambulações do grupo, ergueu bruscamente as mãos ao céu como um tresloucado.
- Morreu! - gritou ele. - E eu sei agora que era meu amigo... meu amigo no escuro!
- Morto? - riu o Secretário, desdenhoso. - Não o hão-de ver morto com tanta facilidade. Se tiver caído da barcarola, vamos descobri-lo às voltas pelo prado como um potro, sacudindo as pernas por puro divertimento.
- A bater com os cascos uns nos outros - disse o Professor -, como os potros fazem, e Pã também fazia.
- Lá está você com o Pã outra vez - disse com irritação o Df. Bull. - Dá a ideia de pensar que Pã é tudo.
- Não se esqueça - disse o Secretário, pondo os olhos no chão - que Pã também pode querer dizer pânico.
Syme parara sem ouvir as exclamações dos outros.
- Ele caiu para aquele lado - disse ele, lacónico. - Vamos procurá-lo!
Depois acrescentou com um gesto indescritível:
- Oh, e se ele nos tiver levado a todos, matando-se? Seria mais uma das suas partidas...
Avançou na direcção das árvores distantes com uma energia renovada, com os trapos da sua roupa rasgada batidos pelo vento. Os outros seguiram-no mais lentos e hesitantes. E quase no mesmo momento todos aqueles seis homens descobriram que não estavam sós naquele canto de prado.
Atravessando o trecho de relva, um homem alto avançava direito a eles, apoiando-se num bordão comprido e estranho que se assemelhava a um ceptro. Vestia um belo mas antiquado trajo de calção e meia, e cuja cor era a dessa sombra entre o azul, o violeta e o cinzento que se pode ver em certos recantos de um bosque. Tinha o cabelo de um grisalho próximo do branco, e à primeira vista, com as suas meias até ao calção, dir-se-ia que o empoara. O seu passo era perfeitamente tranquilo, e se não fosse a cabeça prateada, poderia haver quem o tomasse por uma sombra da floresta.
- Cavalheiros - disse ele -, o meu amo tem uma carruagem à vossa espera na estrada vizinha.
- Quem é o seu amo? - perguntou Syme, mantendo uma atitude imperturbável.
- Disseram-me que o seu nome era do vosso conhecimento  disse o homem num tom respeitoso.
Houve um silêncio, e o Secretário disse depois:
- Onde está essa carruagem?
- Está à espera desde há uns instantes - disse o desconhecido. O meu amo acaba de chegar a casa.
Syme olhou para o lado esquerdo e para o lado direito do pequeno prado onde estava. As sebes eram sebes como as outras, as árvores pareciam ser como as outras também; e todavia ele sentia-se como um homem prisioneiro de um mundo encantado.
Olhou da cabeça aos pés o misterioso embaixador, mas nada descobriu a não ser que o casaco daquele homem era exactamente da mesma cor que as sombras púrpura, e que o seu rosto tinha exactamente a mesma cor do céu vermelho, castanho e dourado.
- Mostre-nos o caminho - disse Syme concisamente, e sem uma palavra o homem com o seu casaco cor de violeta deu meia-volta e atravessou a abertura que havia numa sebe, do outro lado da qual surgiu subitamente a claridade de uma estrada branca.
Depois de transporem a passagem aberta na sebe, os seis viandantes viram que a estrada branca estava bloqueada pelo que parecia ser uma longa fila de carruagens, como a fila de carruagens que por vezes corta o acesso a esta ou àquela casa de Park Lane. Ao lado das carruagens, mantinham-se de pé numerosos magníficos servidores, vestindo todos um uniforme azul acinzentado, e exibindo todos uma certa atitude de dignidade e de liberdade inusitada nos servidores de um simples amo, mas habitual nos funcionários e embaixadores de um grande rei. Havia pelo menos seis carruagens à espera deles, uma para cada um dos elementos daquele bando esfarrapado e miserável. Todos os que os esperavam (como que em trajo de corte) eram portadores de uma espada que desembainhavam, enquanto cada um dos detectives entrava a custo na carruagem, assim saudado pela fugaz cintilação do aço.
- Que quererá dizer tudo isto? - perguntou Bull a Syme antes de se separarem. - Será mais uma brincadeira do Domingo?
- Não sei - disse Syme enquanto se instalava pesadamente entre as almofadas da sua carruagem -; mas se o for, será uma dessas brincadeiras que você dizia. Uma brincadeira bem intencionada.
Os seis aventureiros tinha passado por muitas aventuras, mas nenhuma lhes parecera tão desconcertante como esta última aventura tão cómoda. Tinham-se habituado a contar com as condições mais ingratas, e eis que as coisas se tomavam subitamente agora tão confortáveis que os faziam sentir-se confusos. Nem remotamente eram capazes de imaginar o que significavam aquelas carruagens; bastava-lhes saber que eram carruagens, e carruagens com almofadas no interior. Não faziam a mínima ideia acerca de quem seria o velho que ali os conduzira; era mais do que suficiente saberem que os conduzira indubitavelmente às carruagens.
Syme atravessava uma zona completamente desolada do bosque. De acordo com o seu carácter, manteve a barba e o queixo levantados e altivos enquanto lhe pareceu que poderia ter de fazer alguma coisa, mas vendo que nada o solicitava, recostou-se, extenuado, nas almofadas.
Muito gradual e vagamente notou que a carruagem o levava por caminhos magnificamente cuidados. Viu que tinham transposto os portões de pedra do que bem podia ser um parque, e que começavam a subir uma colina na qual, embora cheia de árvores de um lado e de outro, as árvores se dispunham mais ordenadamente do que numa floresta. Depois brotou nele, como num homem que desperta lentamente de um sono saudável, um sentimento de prazer perante todas as coisas. Sentia que as sebes eram o que as sebes devem ser, paredes vivas; que uma sebe é como um exército humano, disciplinado, mas acima de tudo vivo. Via grandes olmos para além das sebes, e pensou vagamente na alegria com que os rapazes poderiam trepar por eles. Depois a sua carruagem, mudou de direcção e ele descobriu súbita e tranquilamente, como uma nuvem do poente alongada e baixa, uma casa alongada e baixa, amena na luz suave do poente. Mais tarde, os seis amigos compararam as suas observações e discordaram quanto aos motivos por que tal acontecera, mas todos admitiram que de uma maneira inexplicável aquele lugar lhes recordara a sua infância. Através da alta copa de um olmo ou devido a um trilho sinuoso, graças a um trecho de pomar ou talvez à forma de uma janela, o certo era que cada um deles afirmava que a recordação que nele despertava aquele lugar precedia a da sua mãe.
Depois de as carruagens chegarem a um grande portal baixo, que era como a boca de uma caverna, apareceu um outro homem a recebê-los, usando o mesmo uniforme, mas exibindo uma estrela de prata no peito do casaco cinzento. Esta figura impressionante dirigiu-se a um Syme estupefacto:
- Tem um serviço de refrescos no quarto à sua espera.
Syme, sob a influência da espécie de sono hipnótico que o tomara, subiu os grandes degraus de carvalho das escadas, seguindo o respeitoso emissário. Entrou no esplêndido conjunto dos aposentos que parecia ter-lhe sido especialmente reservado. Movido pelo costumado instinto próprio da sua classe, aproximou-se de um grande espelho para compor a gravata ou alisar o cabelo; e viu então a figura assustadora em que estava: do sítio onde um ramo de árvore o ferira escorria-lhe sangue pelo rosto, o cabelo espetava-se-lhe na cabeça em tufos de ervas bravas amareladas, tinha o fato em farrapos. Deu-se bruscamente conta do novo enigma com que se confrontava: o de saber como chegara ali e como dali acabaria por sair. Nesse preciso momento um homem de azul, que fora designado para o servir, disse-lhe com solenidade:
- Já lhe trouxe a sua roupa, sir.
- Roupa! - repetiu Syme, sarcástico. - Não tenho outra roupa que não seja esta - e tomou nas mãos, levantando-as, duas fascinantes e longas tiras pendentes da casaca, num ademane de bailarina.
- O meu amo pede-me que lhe diga - respondeu o criado - que há aqui esta noite um baile de fantasia e que ele desejaria vê-lo pôr as roupas que eu lhe preparei. Entretanto, sir, trouxe-lhe também uma garrafa de Borgonha e um pouco de faisão frio, que espero que sejam a seu gosto, uma vez que faltam ainda algumas horas para a ceia.
- O faisão frio é uma excelente notícia - disse pensativamente Syme - e o Borgonha, uma notícia ainda mais excelente. Mas a verdade é que nem um nem outro me agradam tanto como agradaria saber que diabo significa tudo isto e que espécie de roupa tenho à minha espera. Onde está a roupa?
O criado tirou de cima de uma espécie de otomana, onde estava poisado, uma comprida túnica azul pavão, semelhante a um dominó, que tinha bordado na parte da frente um grande sol dourado, rodeado de esparsas estrelas e crescentes cintilantes.
- É um trajo de Quinta-Feira, sir - explicou-lhe o criado com a mais delicada cortesia.
- Vestir-me de Quinta-Feira! - disse Syme como que meditando.
- Não me parece um preparo lá muito quente.
- Oh, não, sir! - disse o outro, pressuroso. - As roupas de Quinta-Feira são perfeitamente quentes, sir. Abotoadas até à altura do queixo.
- Bem, não entendo nada - disse Syme com um suspiro.
Habituei-me tanto a aventuras tão desconfortáveis que as aventuras confortáveis me desorientam. Apesar de tudo, ser-me-á permitido perguntar por que razão ficarei mais parecido com Quinta-Feira enfiado numa túnica verde bordada de sóis e luas. Esses astros, tanto quanto sei, também brilham nos outros dias. Creio lembrar-me de uma vez ter visto a lua numa terça-feira.
- Peço desculpa, sir - disse o criado. - Trouxe-lhe também uma Bíblia -, e com um dedo firme e respeitoso indicou a Syme uma passagem do primeiro capítulo do Génesis. Ele leu, assombrado. Era a passagem que refere ao quarto dia a criação do sol e da lua. Mas o quarto dia fora contado a partir de um Domingo cristão.
- Está tudo cada vez mais confuso - disse Syme enquanto se sentava numa cadeira. - Quem é esta gente que cuida que haja faisão frio e Borgonha, e roupas verdes e bíblias? Será possível que cuide de tudo o que for preciso?
- Sim, sir, de tudo o que for preciso - disse o criado gravemente. - Quer que o ajude a vestir-se?
- Oh, ponha-me lá em cima este raio de coisa! - disse Syme com impaciência.
Mas embora afectasse desprezar aquela comédia, sentia enquanto punha a túnica azul e dourada uma curiosa liberdade e naturalidade de movimentos; e quando descobriu que tinha de levar também uma espada à cinta, isso despertou nele um sonho de garoto. Ao sair do quarto, passou com desenvoltura uma ponta da capa por cima do ombro, corrigiu o ângulo da espada pendente, e exibiu a atitude altiva de um trovador. Porque aquelas roupas de máscara não eram um disfarce, mas uma revelação.
O Acusador
Enquanto avançava pelo corredor, viu o Secretário no alto dos degraus de uma grande escada. Nunca ele lhe parecera tão nobre. Trazia vestida uma longa capa inteiramente negra, com uma larga faixa, muito branca, presa à cintura. O conjunto produzia a impressão de um trajo eclesiástico extremamente severo. Syme não precisou de revolver a memória nem de folhear a Bíblia para se lembrar que o primeiro dia da Criação fora o do nascimento da luz e da treva. Aquelas roupas simbolizavam-no com toda a clareza, e Syme pensou que aqueles panos de um branco e de um negro tão puros exprimiam perfeitamente também a alma do pálido e austero Secretário, com o seu apego inumano à verdade e a sua frieza, que o predispunham tão favoravelmente a lutar contra os anarquistas e tão facilmente o faziam passar por um deles. Syme mal chegou a surpreender-se ao notar que, apesar de todo o conforto e atmosfera hospitaleira que os rodeavam, os olhos do outro mantinham a sua dureza. Nem o aroma das orquídeas nem o da cerveja faziam com que o Secretário deixasse de pôr as suas questões razoáveis.
Se Syme tivesse podido ver-se, teria considerado que, também ele, parecia pela primeira vez ser só ele próprio e ninguém mais. Porque se o Secretário representava esse filósofo que ama a luz original e informe, Syme era esse tipo de poeta que procura sempre iluminar formas determinadas a fim de as transformar num solou numa estrela. O filósofo pode por vezes amar o infinito; o poeta ama sempre o finito. Para ele o grande momento não é a criação da luz, mas a criação do sol e da lua.
Enquanto desciam juntos aqueles amplos degraus, encontraram Ratcliffe, cujas roupas eram de um verde primaveril, como as de um caçador. O desenho que enfeitava a sua capa era um grupo de árvores entrelaçadas, uma vez que simbolizava o terceiro dia, o da criação da terra e das plantas - e o trajo parecia condizer na perfeição com o seu rosto rectangular e inteligente, e com a sua expressão de afável cinismo.
Através de uma nova arcada larga e baixa, conduziram-nos a um velho jardim inglês de grandes dimensões, cheio de archotes e fogueiras, à luz dos quais dançava uma multidão variegada, trajando as indumentárias mais diversas. Syme julgou reconhecer em cada um de todos aqueles loucos disfarces a réplica deste ou daquele aspecto da Natureza. Havia um homem vestido de moinho de vento com velas enormes, um homem vestido de elefante, um homem vestido de balão; estes dois últimos pareciam referir-se às extravagantes aventuras que ele próprio vivera. Syme acabaria até por ver alguém que dançava sob o disfarce de um tucano enorme, com o seu bico duas vezes maior do que o corpo - sob a forma dessa estranha ave que se imprimira na sua memória como uma interrogação viva durante a sua passagem pelo Jardim Zoológico. Mas havia igualmente centenas de outros objectos. Havia um candeeiro de rua dançante, uma macieira dançante, um navio dançante. Dir-se-ia que a melodia indómita de um músico louco arrastara todos os objectos que correntemente se podem ver nos campos e nas ruas para a dança de uma giga eterna. E muito mais tarde, depois de ter passado já para além da meia-idade e de se ter tomado mais sereno, Syme continuaria a não poder ver um desses objectos particulares - um candeeiro de rua, uma maçã ou um moinho de vento - sem imaginar que estava a ver um dos festivos bailadores daquele carnaval.
Num dos extremos do relvado, cheio de gente que dançava, havia uma espécie de estrado verde, como um desses terraços habituais nos jardins de outrora, ao longo do qual se dispunham em meia-lua sete grandes cadeiras, que eram os tronos correspondentes aos sete dias. Gogol e o Dr. Bull tinham já ocupado os seus lugares. O Professor preparava-se naquele momento para o fazer. A simplicidade de Gogol, ou Terça-Feira, fora muito bem simbolizada por um trajo que representava a separação das águas - trajo cinzento e prata, abrindo-se como uma cortina de chuva à medida que descia até aos pés. O Professor, ao qual coubera o dia da criação dos peixes e das aves, essas formas mais rudes da vida, trazia uma capa de um púrpura opaco, da qual sobressaíam peixes de olhos arregalados e inverosímeis aves das regiões tropicais, que eram nele a união da fantasia insondável e da dúvida. O Dr. Bull, representando o último dia da Criação, envergava uma casaca coberta de animais heráldicos a vermelho e ouro, encimados por um homem rompante. Estava recostado na sua cadeira com um sorriso rasgado, e era a imagem de um optimista no seu elemento.
Um a um, os viandantes subiram ao estrado e sentaram-se nos seus insólitos lugares. Sempre que um deles se sentava, um rugido de entusiasmo subia do meio dos mascarados, numa aclamação semelhante à das multidões que saúdam os seus reis. Os copos entrechocavam-se e os archotes agitavam-se, ao mesmo tempo que chapéus emplumados voavam lançados ao ar. Os homens aos quais aqueles tronos tinham sido reservados eram homens coroados com louros invulgares. Mas a cadeira do meio continuava vazia.
Syme ocupava o lugar à esquerda dessa cadeira, e o Secretário o lugar à sua direita. Por cima do trono vazio, o segundo olhou para o primeiro e disse, por entre os lábios cerrados:
- Ainda não sabemos se ele não morreu naquele campo.
Quase no mesmo instante em que estas palavras chegavam aos ouvidos de Syme, ele viu, como se o céu se abrisse sobre a sua cabeça, uma alteração inquietante e cheia de beleza que se operava no mar de rostos humanos que tinha à sua frente. Mas Domingo não fizera mais do que passar simplesmente como uma sombra silenciosa diante de toda aquela assembleia, tomando depois o seu lugar no trono central. Vestia uma túnica lisa, de uma brancura perfeita e terrível, e o seu cabelo parecia, por cima da fronte, uma chama de prata.
Durante muito tempo - dir-se-ia que horas a fio - aquela imensa mascarada humana agitou-se e dançou diante deles ao som de uma música heróica e exultante. Cada par que dançava parecia traduzir um romance à parte - uma fada que dançava com uma caixa de correio, ou uma jovem camponesa que dançava com a lua -; mas cada uma dessas combinações era sempre, de certo modo, tão absurda como Alice no País das Maravilhas, e cheia ao mesmo tempo da gravidade e doçura do amor. Por fim, a multidão começou a dispersar. Os pares passeavam pelas áleas do jardim, ou afastavam-se em direcção ao seu outro extremo, junto à casa, onde estavam a ser servidas, em grandes caldeirões, misturas quentes e aromáticas preparadas com cerveja velha ou com vinho. Por cima de todo este cenário, numa espécie de armação negra montada sobre o telhado da casa, ardia num cesto de ferro uma fogueira gigantesca, cuja luz se espalhava por milhas em redor. Difundia o efeito acolhedor do fogo sobre os grandes bosques cinzentos e castanhos, e parecia encher de calor até o vazio da noite. Mas ao fim de algum tempo a fogueira começou a apagar-se. Os grupos reuniam-se à volta dos caldeirões de bebida ou, rindo e falando com animação, voltavam para dentro, entrando nos corredores da velha casa. Um pouco mais tarde, restavam no jardim não mais do que dez retardatários, que em breve se reduziriam a quatro. E por fim o último membro da festa correu também para dentro de casa, gritando alegremente atrás dos seus companheiros. O lume esmorecera, e as estrelas cintilavam no céu, agora com mais força. E os sete estranhos homens ficaram sós, como sete estátuas de pedra nas suas cadeiras de pedra. Nenhum deles dissera, entretanto, uma só palavra.
Dir-se-ia que não tinham pressa em fazê-lo, e escutavam em silêncio o zumbir dos insectos e o canto distante de uma ave. Depois, Domingo falou, mas numa voz tão sonhadora como a de quem, não começa, mas continua uma conversa anteriormente iniciada.
- Comeremos e beberemos mais tarde - disse ele. - Continuemos juntos um pouco mais, nós que nos amámos uns aos outros tão tristemente, e combatemos durante tanto tempo. Tenho a impressão de não me lembrar de outra coisa que não sejam séculos de uma luta heróica, cujos heróis foram sempre vocês: epopeia atrás de epopeia, ilíada atrás de ilíada, e vocês sempre os mesmos irmãos de armas. Quer recentemente (o tempo não é nada), quer no princípio do mundo, enviei-vos para a guerra. Eu estava no escuro, onde não há criatura que seja, e não era mais do que uma voz que exigia valor e virtude sobrenatural. Vocês ouviram a voz no escuro, e nunca mais voltaram a ouvi-la. O Sol no firmamento negava-a, a Terra e o céu negavam-na, toda a sabedoria humana a negava. E quando me encontrei convosco à luz do dia também eu próprio me neguei.
Syme agitou-se vivamente na sua cadeira, mas nada mais aconteceu que quebrasse o silêncio, e o incompreensível continuou.
- Mas vocês são homens. Não esqueceram a vossa honra secreta, embora o mundo inteiro se transformasse num aparelho de tortura para vos supliciar. Sei a que ponto vocês estiveram perto do inferno. Sei como você, Quinta-feira, cruzou a espada com o Rei Satanás, e como você, Quarta-feira, invocou o meu nome na hora do desespero.
Fez-se um silêncio absoluto no jardim estrelado, e o Secretário, com as suas sobrancelhas negras, implacável, virou-se na cadeira para Domingo e disse num tom áspero:
- Quem é e o que é você?
- Eu sou o Sabath - disse o outro sem se mexer. - Sou a paz de Deus.
O Secretário sobressaltou-se e pôs-se de pé, amarrotando a sua esplêndida capa.
- Eu sei o que você quer dizer - gritou ele -, e é exactamente isso que não lhe posso perdoar. Sei que você é a alegria, o optimismo, ou, se assim se pode dizer, uma reconciliação final. Pois bem, eu não estou reconciliado. Se você era o homem da sala às escuras, porque era também o Domingo, uma injúria à luz do sol? Se era desde o princípio nosso pai e nosso amigo, porque era também o nosso maior inimigo? Nós chorámos, fugimos cheios de terror; o ferro penetrou nas nossas almas, e você é a paz de Deus! Oh, eu posso perdoar a Deus a Sua cólera, ainda que ela destrua nações; mas não posso perdoar-Lhe a Sua paz.
Domingo não respondeu uma palavra que fosse, mas muito lentamente virou o seu rosto de pedra para Syme como se lhe perguntasse alguma coisa.
- Não - disse Syme -, não estou furioso da mesma maneira. Estou-lhe grato, não só pelo vinho e pela hospitalidade que aqui recebi, mas também pelas belas aventuras e pela liberdade do combate. Mas gostaria de saber. A minha alma e o meu coração estão felizes e serenos como este velho jardim, mas a minha razão continua a reclamar. Gostaria de saber.
Domingo olhou para Ratcliffe, cuja voz clara disse:
- Parece uma coisa tão estúpida que você tenha estado dos dois lados e combatido contra si próprio.
Bull disse:
- Não entendo nada, mas estou feliz. Para dizer a verdade, acho que estou a adormecer.
- Eu não estou feliz - disse o Professor com a cabeça entre as mãos -, porque não entendo. Você deixou-me chegar demasiado perto do inferno.
E depois Gogol disse, com a simplicidade absoluta de uma criança:
- Tenho vontade de saber porque foi que sofri tanto.
Domingo continuou sem nada dizer, limitando-se a ficar sentado onde estava com o poderoso queixo entre as mãos, com os olhos postos na distância. Por fim, falou:
- Ouvi por ordem as vossas queixas. E agora, penso que vem mais alguém queixar-se, alguém que também vamos ouvir.
O fogo que se extinguia no grande cesto de ferro soltou um último clarão que, como uma barra de ouro incandescente, percorreu a relva escura. Esse raio luminoso fez sobressair da sombra as pernas de uma figura vestida de negro que se aproximava. Parecia trazer um casaco e calças de bom pano, como usavam igualmente os servidores daquela casa, com a diferença de, no seu caso, essa indumentária não ser azul, mas completamente negra. Uma vez mais, como os servidores daquela casa, trazia uma espada presa na cintura. Só muito perto já da meia-lua formada pelos sete, levantou a cabeça, fitando-os. Syme pôde então ver, sem margem para dúvidas, que tinha diante dos olhos o rosto largo e um tanto simiesco do seu velho amigo Gregory, com os seus cabelos ruivos e o seu sorriso agressivo.
- Gregory! - exclamou Syme num sopro, levantando-se da cadeira. - Mas este é um verdadeiro anarquista.
- Sim - disse Gregory, numa voz comedida e ameaçadora.
Sou um verdadeiro anarquista.
- Ora sucedeu um dia - murmurou Bull, que parecia ter de facto adormecido - que os filhos de Deus se apresentaram diante do Senhor e que também Satanás vinha entre eles.
- Você tem razão - disse Gregory, e olhou para todos os mais ali reunidos. - Sou um destruidor. Se pudesse, destruiria o mundo.
Um sentimento perturbado que parecia irromper do fundo da Terra fez com que Syme estremecesse, antes de falar atropeladamente e sem sequência:
- Ó mais infeliz dos homens entre os homens! - gritou ele.
Tente ser feliz! Com esse cabelo ruivo como o da sua irmã.
- O meu cabelo ruivo, como chamas vermelhas, incendiará o mundo - disse Gregory. - Creio que odiei todas as coisas mais do que um homem comum pode odiar seja o que for; mas penso que nem tudo isso odiei tanto como o odeio a si!
- Eu nunca o odiei - disse Syme, no extremo da tristeza. Então, aquela criatura ininteligível explodiu numa, tormenta suprema.
- Você! - gritou ele. - Nunca odiou porque nunca viveu. Sei bem quem vocês todos são, do primeiro ao último. Vocês são os que estão no poder! São o polícia, esse grande homem gordo e sorridente, fardado de azul e cheio de botões. São a Lei, e nunca foram derrotados. Mas não haverá uma alma viva que anseie por derrotar-vos, pelo simples facto de vocês nunca terem sido derrotados? Os que nos revoltamos dizemos sem dúvida muitas coisas disparatadas sobre este ou aquele crime do Governo. É uma estupidez rematada! O único crime do Governo é governar. O pecado imperdoável do poder supremo é ser supremo. Não é por serem cruéis que eu vos amaldiçoo. Não vos amaldiçoo, embora pudesse fazê-lo, por vocês serem amáveis. Amaldiçoo-vos pela vossa segurança! Vocês estão sentados nos vossos tronos de pedra e nunca saíram deles. Vocês são os sete anjos do céu, e nunca tiveram qualquer problema. Oh, eu seria capaz de perdoar-vos tudo, a vocês que governam a humanidade, se pudesse sentir que alguma vez tinham sofrido por uma hora um verdadeiro  tormento como eu...
Syme levantou-se, estremecendo da cabeça aos pés.
- Vejo tudo - proclamou ele -, tudo o que existe. Porque é que todas as coisas da Terra fazem guerra umas às outras? Porque é que a coisa mais pequena do mundo tem de lutar contra o mundo todo? Porque é que uma mosca tem de lutar contra o universo inteiro? Porque é que um dente-de-leão tem de lutar contra o universo inteiro? Pela mesma razão que eu tive de enfrentar sozinho o pavoroso Conselho dos Dias. Por isso todo aquele que obedece à lei pode ter a mesma glória e a mesma solidão que o anarquista. Por isso cada homem que se bate em defesa da ordem pode ser tão valente e tão bom como o portador da dinamite de uma bomba. Por isso a real mentira de Satanás pode ser atirada à cara deste blasfemo, e nós podemos assim conquistar o direito de dizer a este homem: «Você mente!» Não há tortura que seja de mais se nos valer o direito de respondermos a este acusador: «Nós também sofremos.»
«Não é verdade que nunca tenhamos sido derrotados. Sofremos o suplício da roda. Não é verdade que nunca tenhamos descido destes tronos. Descemos ao fundo do inferno. Estávamos a lamentar-nos dos nossos sofrimentos inesquecíveis no preciso momento em que este homem chegou para nos acusar insolentemente da nossa felicidade. Rejeito a calúnia: não fomos felizes. Posso responder por cada um dos grandes guardiões da Lei que ele acusou. Pelo menos...»
Virara a cabeça e dera de súbito com o grande rosto de Domingo, que mostrava um estranho sorriso.
- Mas você - gritou Syme numa voz apavorada -, você alguma vez sofreu?
Enquanto o fitava, o grande rosto alastrou até ganhar uma dimensão assustadora, tornou-se maior do que a colossal máscara de Mémnon que o fizera chorar de medo na infância. Cresceu sem parar, acabando por cobrir o céu inteiro, e então tudo se tornou treva. Mas, no meio das trevas, antes que estas destruíssem completamente o seu cérebro, pareceu-lhe ouvir uma voz distante que recitava um texto que lhe era familiar e que ele ouvira algures: «Podeis beber o cálice que eu bebo?»
Nos livros, quando os homens despertam de uma visão, encontram-se em geral no mesmo lugar em que tinham adormecido; bocejam sentados numa cadeira, ou levantam-se com os membros entorpecidos do chão de um campo. A experiência de Syme foi psicologicamente muito mais estranha, como se de facto houvesse qualquer coisa de irreal, no sentido terreno, nas coisas que vivera. Pois embora, mais tarde, nunca tivesse deixado de ser capaz de se lembrar de que perdera os sentidos diante do rosto de Domingo, continuaria a não se lembrar de que modo voltara a si. Tudo o que podia recordar era que se fora dando pouco a pouco e naturalmente conta de ter estado e estar a fazer um passeio por um atalho rústico, conversando com um amável companheiro. Esse companheiro fora parte do seu drama recente, e era Gregory, o poeta ruivo. Passeavam juntos como velhos amigos, e estavam a meio de uma conversa banal. Mas Syme não podia deixar de sentir um bem-estar que não era natural no seu corpo e uma simplicidade límpida no seu espírito, muito para além e acima de quanto dissera e fizera. Sentiu que era portador de não sabia que boas notícias impossíveis, que faziam com que tudo o mais fosse trivial, mas um trivial adorável.
A manhã rompia derramando sobre todas as coisas as suas cores ao mesmo tempo claras e discretas - como se a Natureza ensaiasse pela primeira vez o amarelo e pela primeira vez também o rosa. Soprou uma brisa tão límpida e tão doce, que não se podia crer que viesse do céu, e dir-se-ia ser antes um sopro que atravessasse uma fenda aberta no céu. Syme sentiu-se ligeiramente surpreendido quando viu à sua volta, erguendo-se dos dois lados do caminho, as construções vermelhas e irregulares de Saffron Park. Não fazia ideia de estar tão perto de Londres. Seguindo o seu instinto tomou por um atalho branco, onde se ouviam os pássaros que saltitavam e cantavam, e deu por si diante da vedação de um jardim. E dentro do jardim viu a irmã de Gregory, a jovem de ruivos cabelos dourados, que apanhava lilases antes do pequeno-almoço, com toda a sua inconsciente gravidade de rapanga.

 

 

                                                                  G. K. Chesterton

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades