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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O HOMEM QUE QUIS SER REI / Rudyard Kipling
O HOMEM QUE QUIS SER REI / Rudyard Kipling

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O HOMEM QUE QUIS SER REI

 

Tudo começou no comboio da linha de Ajmir a Mhow. Um défice orçamental, aparecido naquela época, impunha a viagem não em segunda, que custa apenas metade do preço das primeiras, mas em classe intermediária, o que é absolutamente odioso. Não há, nesta classe, bancos estofados e os passageiros que a utilizam são sempre eurasianos, quer sejam indígenas, bastante incomodativos para viagens longas, quer sejam da es pécie vagabunda, criaturas de espírito, sempre bêbedas. Os intermediários não auxiliam os restaurantes de caminho de ferro. Transportam os alimentos em embrulhos ou em marmitas, compram guloseimas ao vendedor indígena de bombons e bebem água ao longo da viagem. É por isso que no estio, muitas vezes, são arrancados já mortos dos seus compartimentos e que, com bastantes razões, nem um mínimo de consideração lhes é tributado, qualquer que seja a estação do ano.

O meu compartimento, por acaso, ficou vazio até à estação de Nazirabad, onde entrou um indivíduo dotado de certa apresentação e em mangas de camisa, que, de harmonia com os hábitos dos intermediários, imediatamente se pôs à vontade. Era um errante e um vagabundo, como eu próprio, e possuidor, ainda por cima, de grande admiração pelo uísque. Contava coisas vistas ou acontecidas em certas paragens perdidas do Império, em que tinha estado, episódios de vida posta à aventura para conseguir a subsistência de alguns dias. Se a Índia não albergasse senão pessoas como o senhor e eu, que não sabem mais do que os corvos onde se encontra o lugar da sua ração para o dia de amanhã, o país não daria setenta milhões de receitas, mas sim setecentos milhões" - dizia ele; e, ao olhar para a sua boca e para os seus queixos, sentia-me predisposto a compartilhar os seus pontos de vista. Falámos sobre política - esta política dos mendigos e da sua república que vê o reverso das coisas, o lado em que não se limaram as arestas - e conversámos a respeito da organização postal, porque o meu amigo desejava enviar um telegrama da próxima estação para Ajmir, onde bifurca para Mhow a linha de Bombaim, quando se vem do Este. Mas ele não tinha dinheiro, exceptuados os oito annas que reservava para o jantar, e eu estava sem nenhum devido às diFiculdades orçamentais a que já me referi. Além disso, ia embrenhar-me em solidões que, embora nelas voltasse a tomar contacto com o Tesouro, não possuíam posto telegráfico. Via-me, por consequência, perfeitamente impossibilitado de lhe prestar auxílio.

- Podia-se empurrar um chefe de estação e obrigá-lo a expedir um telegrama à vista - disse o meu amigo -, mas seguir-se-iam inquéritos a seu e a meu respeito, e eu estou, verdadeiramente, ocupado por agora. O senhor disse que, brevemente, voltaria pela mesma linha?

- Dentro de dez dias - respondi.

- Não poderá reduzir isso a oito? - retorquiu.

- O meu caso é mais urgente.

- Poderei, dentro de dez dias, o mais tardar, transmitir o seu telegrama, se assim o desejar - disse eu.

- Pensando bem, teria receio de não encontrar o meu homem se enviasse já o telegrama. As coisas são assim: ele sai de Delhi para Bombaim no dia 23, o que quer dizer que passará em Ajmir na noite do mesmo dia.

- Mas eu estarei, então, no fim do deserto... expliquei.

- Perfeitamente - disse ele. - O senhor fará transbordo em Màrwar para entrar no território de Jodhpore, o que é absolutamente necessário, e ele passará em Marwar no correio de Bombaim, no dia 24 pela manhã, muito cedo. O senhor pode encontrá-lo, então, na estação de Marwar. Isto pouco o incomodará, pois eu sei que não há grandes coisas a fazer nestes estados da Índia Central, mesmo que uma pessoa se resolva a passar por correspondente do Buckwoodsman.

- O senhor já se serviu deste expediente? perguntei.

- Uma porção de vezes, mas a gente faz-se apanhar pelos residentes e reconduzir à fronteira antes de se ter tido tempo de entrar em acção. Bem, quanto ao amigo de que lhe falo é absolutamente necessário que eu, de viva voz, lhe dê a conhecer o que se passa comigo, senão ele não saberá o que fazer. Seria imensamente gentil que o senhor pudesse deixar a Índia Central a tempo de o agarrar em Marwar e de lhe dizer: "Ele foi passar a semana no Sul. " Saberá o que isto significa. É um bom sujeito, com uma barba vermelha e distinto, pode crer. O senhor vai encontrá-lo a dormir como um cavalheiro, em segunda classe e com todas as suas bagagens à volta. Mas não tenha medo. Baixe a janela e diga-lhe: "Ele foi passar a semana no Sul". O homem dará sinal de si. Tudo isto encurta apenas em dois dias a sua estada na Índia Central. Peço-lho como a um estrangeiro na estrada do Oeste. - acrescentou enfaticamente.

- E o senhor, de onde vem o senhor? - perguntei.

- Do Este - disse ele -, e espero que cumprirá sem omissões o encargo, pelo amor das nossas mães.

O inglês, geralmente, não fica emocionado ao ouvir invocar a memória da sua mãe, mas, por determinadas razões que citarei depois, julguei dever comprometer-me.

- Trata-se de coisas sérias - continuou - e é por isso que eu lhe peço para me ajudar. Sei, entretanto, que posso contar com a sua ajuda. Um compartimento de segunda, na estação de Marwar, e um homem ruivo adormecido sobre o banco.

O senhor não o esquecerá. Eu desço na próxima estação e tenho de ficar lá até que ele venhaou me envie o que é necessário.

- Cumprirei o encargo, se o encontrar - disse eu - e, pelo amor da sua e da minha mãe, vou dar-lhe um conselho. Não tente explorar neste momento os estados da Índia Central como correspondente do Buckwoodsman. Passeia por lá um verdadeiro correspondente, e as coisas poderiam correr mal.

- Obrigado - respondeu com simplicidade.

- E quando é que o porco se vai embora? Não posso morrer à fome só porque lhe agrada estragar o meu trabalho. Eu pensava poder conversar com o rajá de Degumber, a respeito da viúva do seu pai, e pregar-lhe um susto.

- E o que fez ele à viúva do seu pai?

- Ela foi atulhada de pimenta vermelha, pendurada por um pé a uma trave e açoitada com uma chinela até morrer. Eu próprio descobri o negócio e só eu sou capaz de ousar passar as fronteiras de Degumber para ir estipular o preço da minha discrição. Tentarão envenenar-me, como em Chortumna, quando eu trabalhava por lá. Mas o senhor levará o meu recado ao homem da estação de Marwar?

Mais de uma vez ouvira falar destes homens que, assumindo a personalidade de correspondentes de jornais, sugam os pequenos Estados indígenas ameaçando-os com o escândalo, mas nunca tinha encontrado um membro da sua casta.

Levam uma vida difícil e morrem geralmente dE morte muito súbita. Os Estados indígenas manifestam um salutar horror pelos jornais ingleses, sempre prontos a porem à luz do dia os seus métodos originais de governo, e fazem quanto podem para enganar o jornalista de campanhas. Não compreendem que alguém se incomode mais com a sua administração interior do que com uma ginja, enquanto a opressão e a criminalidade se mantêm em limites razoáveis e enquanto o chefe não estiver sob a influência do ópio, do álcool ou da doença de uma ponta à outra do corpo. Os Estados indígenas foram criados pela Providência a fim de proverem o mundo de cenários pitorescos, de tigres e de reportagens. São cantos sombrios da terra, cheios de crueldades imagináveis, que estão em contacto, de um lado, com o caminho de ferro e com o telégrafo e, do outro, com os dias de Haroun-al-Raschid. Logo que desembarquei do comboio, tratei dos meus negócios com vários potentados e passei, durante oito dias, pelas mais variadas fases de vida. De fraque, via-me em companhia de príncipes e residentes, bebendo em cristais e comendo em baixelas de prata. Estendido sobre a terra nua, imensamente feliz ao devorar o primeiro alimento recebido, com um chapattil a servir de prato, bebia a água dos regatos e partilhava a manta do meu criado. Tudo isto fazia parte do quotidiano.

Depois, como tinha prometido, dirigi-me para

 

  1. Bolo indígena.

 

o Grande Deserto Indiano, na data combinada, e o comboio da noite deixou-me na estação de Marwar, de onde uma pequena carripana, de ca minho de ferro bifurca sobre Jodhpore. O comboio-correio, entre Delhi e Bombaim, faz uma curta paragem em Marwar. Chegou quando eu entrava na estação, motivo por que apenas tive tempo de correr para o cais e de examinar as carruagens. Não havia senão uma segunda classe. Baixei a janela e descobri uma barba de um vermelho rutilante meia escondida pela manta de viagem. Era o meu homem. Dormia pesadamente. Sacudi-o ao de leve. Acordou a resmungar - e então pude ver a sua cara à luz dos candeeiros. Era uma cara muito grande com uma pele que luzia.

- Outra vez os bilhetes? - disse ele.

- Não. Estou encarregado de lhe dizer que ele foi passar a semana no Sul.

O comboio partia. O homem ruivo esfregou os olhos e repetiu:

- Ele foi passar a semana no Sul? Isso corresponde bem à sua imprudência. Disse-lhe que eu lhe daria alguma coisa? É que não estou resolvido a obedecer-lhe.

- Ele não disse nada - respondi, enquanto saltava do estribo.

Os faróis vermelhos afundavam-se na noite. Estava um frio horrível, porque o vento soprava da região das areias. Subi para o meu comboio

- não em intermediária, desta vez - e adormeci. Se o homem barbudo me tivesse dado uma rupia, tê-la-ia guardado como recordação de um caso bastante curioso. Mas a consciência do dever cumprido foi a minha única recompensa.

Mais tarde, pensei que dois compadres da categoria dos meus amigos nada de bom poderiam fazer a desempenharem o papel de falsos jornalistas e que criariam para si próprios sérias dificuldades no caso de quererem actuar em qualquer destas ratoeiras que são os Estados indígenas da Índia Central ou do Rajpoutana. Tive, por isso, o cuidado de dar os seus sinais, tão mi nuciosos quanto o permitiam as minhas recordações, a pessoas a quèm pudesse interessar vê-los deportados, e, como vim a saber depois, consegui impedi-los de franquear as fronteiras do Degumber.

A seguir, voltei a ser uma pessoa respeitável e reocupei a minha redacção, na qual não se produziam reis e incidentes, salvo a quotidiana composição de um jornal.

Uma redacção parece ter o privilégio de atrair uma inconcebível variedade de pessoas, com o máximo prejuízo para a disciplina. Senhoras missionárias entram e intimam o director a abandonar imediatamente todas as suas obrigações para descrever uma distribuição de prémios da escola cristã de um afastado bairro de uma aldeia, além do mais perfeitamente inacessível; coronéis, esquecidos no quadro das promoções, instalam-se e expõem as linhas gerais de uma série de dez, doze ou vinte e quatro artigos de fundo, a propósito de antiguidades e de escolhas; missionários querem saber a razão por que não lhes é concedido o direito de poderem mudar de uma vez para sempre a natureza das suas la mentações e de injuriarem um colega especialmente colocado sob o patrocínio directorial; grupos de comediantes naufragados invadem as redacções com o fim de declararem que não podem pagar a sua publicidade, mas que ao regressarem do Taiti ou da Nova Zelândia satisfarão com juros os seus compromissos; inventores de motores para pankahs patenteados, de tarrachas de atrelagem para vagões, de sabres ou de ferros de cama inquebráveis, entram de visita, com os bolsos cheios de certificados e desejosos de verem concedidas algumas horas de conversa; empresas para a venda de chá aparecem, sentam-se e redigem os seus prospectos com as canetas da redacção; secretários de comissões organizadoras de bailes insistem brilhantemente com o redactor da secção de mundanismo para dele obterem uma mais extensa descrição das glórias das suas últimas festas; senhoras desconhecidas irrompem, num fru-fru de saias, e dizem: "Preciso imediatamente de um cento de cartões de visita, se faz o favor", o que está manifestamente incluído nas atribuições de um director; e o mais dissoluto dos rufias que haja vadiado ao longo da grande estrada toma como um dever pedir um lugar de revisor E, a todo o momento, a campainha do telefone tilinta freneticamente, matam-se reis no continente e impérios dizem uns aos outros: "As coisas agora mudaram" - e o senhor Gladstone pede ao céu para que atire o seus raios sobre o Império Britânico, enquanto os pequenos tipógrafos negros gemem: kaapi chay ha-yeh" (pede-se original), como abelha cansadas, e três quartas partes do jornal estão ainda tão brancas como o escudo de Modred.

Tudo isto, porém, só acontece na parte diverti da do ano. Há seis outros meses durante os quais ninguém aparece, o termómetro, polegada a po legada, atinge o extremo da escala, a sombra mantida na redacção mal permite ler, as impressoras queimam ao tocar se-lhes e apenas se es crevem relatos de festas nas estâncias de altitud, ou notícias necrológicas. É então que o telefon se transforma em terror tilintante, sempre pron to a anunciar vos mortes súbitas de homens ou de mulheres que vós conheceis intimamente. O prickly heatl cobre-vos como se fosse um vesti do e a gente senta-se para escrever: "Anuncia-se uma pequena subida na mortalidade do distrito de Khuda-Janta-Khan. A epidemia, de natureza puramente esporádica, graças aos enérgicos es forços das autoridades locais, está, entretanto

quase vencida. É, porém, com profundo pesar que registamos o falecimento, etc. , etc. , Depois a epidemia explode a valer, e quant menos se regista ou menos se escreve a esse respeito mais se beneficia o repouso dos assinantes. Mas impérios e reis continuam a enganar-se contanto egoísmo como antes, o chefe tipógrafo

 

  1. Doença de pele vulgar nos países tropicais.

 

acha, justificadamente, que um jornal quotidiano devia aparecer apenas uma vez em cada vinte e quatro horas, e o público das estâncias de Verão interrompe os seus prazeres para dizer: Meu Deus, o que é que impede este jornal de ser brilhante? Se por aqui se passam tantas coisas

Eis o estado sombrio da situação. Como se afirma nos anúncios, é preciso experimentar para julgar.

Foi nesta estação - pior, do que nunca, naquele ano - que o jornal inaugurou o sistema de imprimir a última tiragem da semana na noite de sábado, isto é, no domingo de madrugada, como fazem os jornais de Londres. Preciosa melhoria que permitia ao redactor fatigado, uma vez colocada a composição na máquina de impressão, iniciar, com a frescura da manhã, um sono que podia durar até que o calor o acordasse. A alvorada faz baixar o termómetro dos 54o para os 42oe não se imagina quanto está frio a 42o à sombra quando nunca se suplicou esta temperatura.

Num sábado à tarde, ficou-me a amável tarefa de terminar sozinho o jornal. Um rei, um cortesão, uma cortesã ou uma comunidade ia morrer, ou obter uma nova constituição, ou fazer qualquer coisa de importante para o outro mundo, e o jornal devia esperar o imprimatur até ao último minuto possível, a fim de apanhar o telegrama. A noite estava negra como breu, abafada, uma verdadeira noite de Junho, e o Loo, o vento tórrido que sopra do oeste, bramava no afago dos ramos, dando a parecer que trazia a chuva nos calcanhares. Uma vez por outra, uma gota de água quase fervente manchava a poeira com um ruído de salto de rã, mas, na sua lassidão, o nosso universo sabia bem que tudo isto não era nada mais do que fingimento. Havia uma impressão de existência de menos calor na oficina do que na redacção, e, por isso, fui sentar-me ali, entre o barulho das máquinas, a algazarra das aves noctívagas junto das janelas, os tipógrafos, seminus, que limpavam o suor das frontes e pediam de beber. A coisa que nos fazia velar, qualquer que ela fosse, custava a chegar, embora o loo tivesse abrandado, o último carácter estivesse no seu lugar e toda a terra continuasse suspensa no calor sufocante, com um dedo sobre os lábios, esperando o acontecimento. Adormeci, perguntando a mim mesmo se a invenção do telégrafo constituía, em suma, um bem e se este moribundo ou este povo revoltado tinha consciência do incómodo produzido pelo seu atraso. Salvo o calor e a preocupação, nenhuma razão particular de enervamento existia, e, contudo, agora que os ponteiros do relógio tinham rastejado até às três horas, eu poderia gritar bem alto a minha fadiga.

De súbito, o estrondo e o matraquear das máquinas quebraram o silêncio em pequenos estilhaços. Levantava-me para sair, quando dois homens, vestidos de branco, pararam à minha frente. O primeiro disse: "É ele". O segundo disse: "Sim, palavra de honra"! E ambos se puseram a rir até suplantarem o ruído das máquinas, ao mesmo tempo que limpavam a testa.

- Vimos uma luz, do outro lado da rua, porque dormíamos, para termos ar fresco, no fosso. E eu disse ao meu sócio que vê aqui: Vamos falar àquele que fez pôr nos fora do estado de Degumber, - declarou o mais pequeno.

Era o homem que eu tinha encontrado no comboio de Mhow; e o seu camarada o homem de pêlo ruivo da estação de Marwar. Não enganavam, de maneira alguma, as sobrancelhas de um, nem a barba do outro.

Não me sentia contente, pois tinha mais desejo de dormir do que de altercar com vagabundos.

- O que querem os senhores? - perguntei.

- Conversar durante meia hora, à fresca, e à vontade! - disse o homem de barba vermelha.

- Não recusaremos o que nos oferecerem para beber. O contrato não entrou ainda em vigor, Peachey, e não se trata de fazer uma tolice, mas do que mais precisamos é de conselhos. Não temos necessidade de dinheiro. É um favor que nós lhe pedimos em compensação da peça sem graça nenhuma que nos pregou a respeito de Degumber.

Indiquei o caminho que ia da casa das máquinas à redacção sufocante, onde alguns mapas estavam pendurados nas paredes. O homem ruivo esfregou as mãos.

- Há aqui coisas boas! - disse ele. - Batemos a boa porta. Entretanto, senhor, permita que lhe apresente o irmão... Peachey Carnehan, isto é: ele, e o irmão... Daniel Dravot, que sou eu. Quanto às nossas profissões, mais vale não falarmos de tal; temos utilizado todos os ofícios do nosso tempo. Soldados, marinheiros, tipógrafos, fotógrafos, revisores, pregadores cheios de vento e correspondentes do Buckwoodsman sempre que o jornal deles precisava. Carnehan está em jejum, e eu também. Olhe-nos bem, antes de mais, para ficar bem certo disso. Isso evitará que me contradiga. Vamos pegar, cada um, num cigarro e o senhor segurará o fósforo.

Tentei a prova. Os dois homens não tinham bebido e eu mandei servir lhes dois begsl quentes.

- Vamos a isto! - disse Carnehan, o homem das sobrancelhas, enquanto secava o bigode.

- Deixa-me agora falar, Dan. Nós percorremos já quase toda a Índia, geralmente a pé. Fomos ajustadores de caldeiras, condutores de locomotivas, pequenos empreiteiros e o resto, e, entretanto, concluímos que a Índia não é suficientemente grande para criaturas do nosso estofo.

Eram, evidentemente, demasiado grandes para a redacção. A barba de Dravot parecia encher metade da sala e as espáduas de Carnehan a outra metade, assim como estavam ambos sentados na mesa grande. Carnehan continuou:

- O país não rende metade do que devia render porque o Governo não quer que se lhe toque. Gastam todo o seu sagrado tempo a governar e nós não podemos erguer uma enxada, fazer saltar um pedaço de pedra ou abrir furos à procura de petróleo sem que o Governo grite: "Mãos no ar e deixem-nos governar" Eis o motivo por que,

  1. Uísque e soda

 

tal qual, nós vamos deixá-lo em paz e partir para um outro país onde a gente possa servir se dos cotovelos para abrir caminho. Não somos pobres diabos e não temos medo de nada, a não ser das bebidas, e por isso assinámos um contrato a este respeito. Portanto, nós vamos ser reis.

- Reis de pleno direito - murmurou Dravot.

- Sim, está visto! - disse eu. - Os senhores arrastaram ao sol as polainas, a noite está cada vez mais quente, e os senhores fariam melhor, talvez, se fossem dormir sobre a ideia que tiveram. Voltem amanhã.

- Nem raios de sol, nem copos a mais - disse Dravót. - Há um ano que dormimos sobre a nossa ideia, sentimos a necessidade de ver livros e atlas e concluímos que no mundo há somente um país onde dois homens de pulso possam fazer o seu pequeno Sarawakl. Esse país chama-se Kafiristan. Segundo creio, fica no fim do Afeganistão, ao alto e à direita, a menos de 300 milhas de Peshawer. Os pagãos do país têm trinta e dois ídolos, e nós faremos trinta e três. É uma região montanhosa e as mulheres daqueles sítios são muito lindas.

- Mas isso está proibido pelo contrato - disse Carnehan. - Nem mulheres, nem bebidas, Daniel!

- Eis tudo o que nós sabemos, a não ser ainda que ninguém ali foi e que ali se luta. Ora, em toda

 

  1. Refere-se ao explorador Brooke, que, em Bornéo, foi eleito rei de Sarawak.

 

a parte onde se luta, um homem que sabe dirigir homens pode sempre ser rei. Nós iremos a esse país e diremos ao primeiro rei que encontrarmos: "Quereis vencer os vossos inimigos"? Depois apresentar-nos-emos para instrutores de recrutas, porque é o que melhor sabemos fazer. A seguir deporemos este rei, tomaremos conta do reino e fundaremos uma dinastia.

- Os senhores far-se-ão cortar em postas, cinquenta milhas depois da fronteira - disse eu.

- É preciso que atravessem o Afeganistão para chegarem àquele país, que não é mais do que uma confusão de montanhas, picos e glaciares que nunca foram atravessados por ingleses. Os habitantes são perfeitos brutos e, mesmo admitindo que cheguem até eles, nada terão a fazer ali.

- Prefiro isso - disse Carnehan. - Se nos encontrar ainda mais malucos, dar-nos-á ainda mais prazer Viemos aqui para nos informarmos acerca do país, para ler livros que falem dele e para consultar os seus mapas. Estamos desejosos de nos ver tratados de loucos e de ler os seus livros.

Voltou-se para a biblioteca.

- Fala seriamente, a valer? - perguntei.

- Um pouco - disse Dravot, com unção. - Desejamos o mapa maior que tiver, mesmo que o lugar do Kafiristan esteja em branco, e todos os livros que possua. A gente sabe ler, posto que não tenhamos recebido muita educação.

Desenrolei a grande carta da Índia com escala de trinta e duas milhas por polegada, dois mapas de fronteira mais pequenos, desci com dificuldade o tomo INF-KAN da Enciclopédia Britânica, e os meus homens puseram-se a consultá-los.

- Atenção! - disse Dravot, com um dedo espetado no mapa. - Até Jagdallak, Peachey e eu conhecemos o caminho. Estivemos lá com o exérci to de Roberts. Em Jagdallak ser nos-á necessário tomar a direita através do território de Laghmann. Depois entramos nas montanhas. Catorze mil, quinze mil pés, deve ser fresco lá em cima. Mas no mapa não parece ficar muito longe.

Passei-lhe as Nascentes do Oxus, de rVood. Carnehan tinha mergulhado na leitura da Enciclopédia.

- São uma caterva - disse Dravot, com uma expressão meditativa -, e isto não nos servirá de nada para sabermos os nomes das suas tribos. Quantas mais tribos e mais batalhas houver, melhor para nós. De Jagdallak para Ashang...

- Mas todas as informações acerca da região são tão superficiais e tão vagas quanto possível - retorqui. - Está aqui a colecção do United Services Institute. Leia o que diz Bellen.

- Raios levem Bellen! - disse Carnehan. - Dan aquilo é um montão terrível de pagãos, mas aqui este livro diz que eles são aparentados connosco, com os ingleses.

Continuei a fumar, enquanto os dois homens se enterravam em Raverty, Wood, os mapas e a Enciclopédia.

- Não vale a pena esperar-nos - disse Dravot delicadamente.

- São quase quatro horas, neste momento. Partiremos antes das seis horas. Se quer dormir, não roubaremos papéis. Não esteja acordado por

nossa causa. Somos dois maníacos nada perigosos. Se passar pelo Serai, amanhã à tarde, dir-lhe-emos adeus.

- Certamente estão ambos loucos - respondi, - Hão- de obrigá-los a retroceder para a fronteira ou hão-de cortar-lhes o pescoço no instante em que puserem os pés no Afeganistão. Têm necessidade de dinheiro ou de uma recomendação para as províncias do Sul? Posso fazer com que na próxima semana encontrem trabalho.

- Na prôxima semana nós trabalharemos com certeza, e com vontade. Muito obrigado - disse Dravot. - Não é tão fácil como parece ser se rei. Quando tivermos o nosso reino e que tudo funcione, comunicar-lho-emos e o senhor virá para nos ajudar a governar.

- Só dois maníacos é que fariam um contrato como este - disse Carnehan, com um ar de dis creto orgulho, mostrando- me uma meia folha de papel de carta, gordurento, onde se lia o que segue. Tirei imediatamente uma cópia a título dE curiosidade:

O presente contrato tem forÇa entre tu e eu, tomando como testemunho o nome de Deus. Amen, etc. , etc.

(Um). Que eu e tu decidiremos juntos este negócio, a saber de sermos reis de Kafiristan.

(Dois). Que tu e eu não deveremos nunca, enquanto não resolvermos este negócio, olhar qualquer bebida, nem qualquer mulher preta, branca ou morena, de maneira a não nos embrulharmos por causa de uma ou de outra nem que mal resulte.

(Três). Que nós deveremos conduzir nos com prudência e dignidade e que se um se encontrar em embaraços o outro fique com ele.

Assinado por ti e por mim neste dia

PEACHEY TALIAFERRO CARNEHAN, DANIEL DRAVOT

Ambos cavalheiros sem profissão.

 

- Não havia necessidade do último artigo - disse Carnehan, corando modestamente. - Sabe o que são vadios - é o que nós somos ainda, Dan, enquanto não tivermos abandonado a Índia. Pois bem! crê que teríamos assinado um contrato como este se porventura não tomássemos as coisas a sério? Nós privamo-nos de duas coisas que fazem com que valha a pena viver se.

- Depressa sentirão as aflições se persistirem em tentar esta idiota aventura. Não lancem o fogo à redacção - acrescentei - e, partam daqui antes das nove horas.

Deixei-os, sempre absorvidos no exame dos mapas e tomando notas nas costas do Contrato.

- Não deixe de aparecer amanhã no Serai - disseram ao verem-me sair.

O Serai de Kumharsen é o maior esgoto humano que existe, com as suas quatro paredes em quadrado, um lugar onde vão tomar ou deixar as suas cargas as filas de camelos e de cavalos quE chegam do Norte. Encontram-se ali todas as nacionalidades da Ásia Central e indivíduos da maior parte dos povos da própria Índia. Balkh E Bokhara acham, ali, Bengala e Bombaim, e esforçam-se mutuamente por se arrancar os den tes. Podem-se comprar cavalos, turquesas" gato: persas, carneiros de cauda carnosa ou almísca neste Serai de Kumharsen; conseguem-se mesmo muitas coisas bizarras cedidas gratuitamente.

À tarde, apareci a fim de verificar se os meus amigos tinham palavra ou se os iria encontrar caídos em qualquer canto, completamente bê bedos.

Um mullah vestido com pedaços de fitas e d farrapos avançou deliberadamente para mim. Erguia numa das mãos um pequeno moinho de criança feito de papel. O seu criado, atrás dele curvava-se sob o peso de um cesto cheio de brin quedos de barro. Estavam ocupados a carregar dois camelos e os hóspedes do Serai observavam-nos no seu trabalho e torciam-se de riso.

- O mullah enlouqueceu - disse-me um mercador de cavalos. - Vai a Kabul vender brinquE dos ao Amir. Fará com que o homenageiem ou com que lhe cortem a cabeça. Chegou aqui esta manhã e, desde então, nada mais tem feito do que agir como um louco.

- Os simples estão sob a protecção de Deus - gaguejou, em mau indu, um Uzbeg de cara espalmada. Eles predizem os acontecimentos do futuro.

- Deveria ter-me predito que a minha kafiZa iria ser retalhada pelos Shinwaris, ao tocar a sombra da Passe - resmungou um homem de Jusufzai, agente de uma casa de comércio do Rajpoutana, cujas mercadorias caíram, por felonia, nas mãos de outros ladrões, a curta distância da fronteira, e cujos infortúnios se transformavam em alvo das zombarias do bazar: "Olá, mullah, de onde vens e para onde vais"?

- De Rouml sou chegado - gritou o mullah agitando o seu moinho de papel -, de Roum perseguido pelo sopro de cem mil diabos, desde o outro lado do mar! Oh! ladrões, bandidos, mentirosos, que a bênção de Pir Khan desça sobre os porcos, os cães e os perjuros. Quem quer conduzir o protegido de Deus para o Norte, a fim de vender ao Amir encantos que nunca envelhecem? Os seus camelos não sofrerão, os seus filhos não cairão doentes, as suas mulheres serão fiéis, durante as suas ausências, àqueles que me derem um lugar na sua kafiZa. Quem me ajudará a calçar o rei dos'Roosl com uma pantufa de ouro e de salto de prata? A protecção de Pir Khan repouse sobre as suas fadigas!

Atirou para trás as abas da sua capa e fez piruetas entre as filas de cavalos que o estorvavam.

- Vai partir uma kafila de Peshawer para Kabul dentro de vinte dias, Huzrut - disse o mercador de Jusufzai. - Os meus camelos acompanham-na.

 

  1. Constantinopla ou Istambul.
  2. Russos.

 

Vem, pois, connosco, e traz-nos felicidade.

- Partirei imediatamente - gritou o mulah partirei sobre os meus camelos alados e irei a Peshawer num dia! EliHazar Mir Khan - berrou para o criado -, faz sair os camelos, mas deixa que primeiro eu monte no meu.

Saltou para o dorso do animal ajoelhado e gritou ainda, voltando-se para mim:

- Vem também, Sahib, segue- nos um pouco ao longo da estrada e eu te darei um feitiço - um amuleto que te fará rei de Kafiristan.

Neste instante fez-se luz no meu espírito. Segui os dois camelos, à saída do Serai, até à grande estrada, na qual o mullah fez uma paragem.

Que pensa de tudo isto? - disse ele em inglês. - Carnehan não conhece a linguagem desta gente, razão por que fiz dele meu criado. É um criado admirável. Não foi para nada que bati o país durante catorze anos. Estava bem feito este pedaço de cavaco de há pouco? Vamos juntar-nos a uma kafila, entre Peshawer e Jàgdallak, depois nos veremos a trocar os nossos camelos por burricos e a fazer a nossa entrada em Kafristan. Moinhozinhos para o Amir... Ah! vint deuses! Passe a sua mão pelos sacos e diga-me que sente.

Tacteei a coronha de uma Martini, de uma outra, depois de uma outra ainda.

- Existem vinte - disse Dravot, com placidez

- Vinte e as munições correspondentes sob o moinhozinhos e os bonecos de terra.

- O céu os ajude, pois que se forem descobertos com esses brinquedos. - disse eu. - Uma Martini, no país dos Pathans, vale o seu peso em dinheiro.

- Mil e quinhentas rupias de capital, tudo o que se pode mendigar ou roubar, postas sobre estes dois camelos - disse Dravot. - Não nos deixaremos apanhar. Passamos o Khyber com uma kafila verdadeira. Quem tocaria num pobre louco de mullah?

- Tem tudo o que precisa? - perguntei, vencido pela surpresa.

- Ainda não, mas tudo há-de vir depressa. Dê-me uma recordação da sua amizade, irmão. Ontem prestou-me um bom serviço, e o mesmo aconteceu da outra vez em Marwar. A metade do meu reino será para si, como diz a canção.

Tirei da minha corrente do relógio uma bússola-amuleto e estendi-a ao mullah.

- Adeus - disse Dravot, ao passo que me estendia solenemente a mão. - É o nosso último aperto de mão dado a um inglês durante uma porção de dias. Aperta-lhe a mão, Carnehan! - gritou, quando o segundo camelo passava por mim.

Carnehan curvou-se e apertou a minha mão. Depois, os camelos esconderam- se na poeira e eu fiquei só, maravilhado. O meu olhar não teria podido descobrir a menor falha nos disfarces. A cena do Serai confirmava a sua perfeição para o discernimento indígena. Uma probabilidade, portanto, se apresentava para Carnehan e Dravot: a de caminharem através do Afeganistão sem se traírem. Mas para além eles encontrariam a morte, uma morte terrível e certa.

Dez dias mais tarde, um indígena meu amigo que me enviava notícias de Peshawer, concluía sua carta nestes termos: Temo-nos rido muito por aqui por causa de um certo mullah que está louco e vai, segundo diz, vender bugigangas brinquedos, que ele classifica de poderosos en cantos, a S. M. o Amir de Bokhara. Atravessou Peshawer e juntou-se à segunda kafila de Verão que vai a Kabul. Os mercadores estão contentes pois crêem, supersticiosamente, que os loucos desta espécie dão boa sorte.

Os dois tinham, portanto, passado a fronteira. Eu teria rezado por eles, mas naquela noite morreu, na Europa, um rei verdadeiro, que exigiu um artigo necrológico.

 

A roda do tempo faz com que jamais deixem de voltar os aspectos da vida que transita. Passo o Verão, seguido pelo Inverno, para regressar e tornar a passar mais uma vez. O jornal continuava a existir, eu também, e, no decorrer do terceiro Verão, apareceram uma noite cálida, uma edição tardia e uma espera enervante por causa de qualquer coisa que deviam telegrafar da outra face do mundo, exactamente a mesma coisa que já acontecera outrora. Alguns grandes homens tinham morrido no decorrer dos dois anos que acabavam de passar, os ferros das máquinas moviam-se com maior ruído e algumas árvores, no jardim, tinham crescido. Só isto era diferente.

Dirigi-me para a casa das máquinas. Reproduziu-se a cena que já descrevi. A tensão nervosa, contudo, era mais forte do que há dois anos atrás e o calor acabrunhava-me mais ainda. Às três horas, ordenei: "Imprimam!" E preparava-me para retirar quando se arrastou na direcção da minha cadeira o que restava de um homem. Curvava-se em círculo, a sua cabeça mergulhava nos ombros; - os seus pés cruzavam-se como os de um urso. Mal distingui se marchava ou rastejava ;  esse estropiado andrajoso e lamuriento que me chamava pelo meu nome e dizia a chorar que estava de regresso.

- Pode dar me de beber? - choramingava.

- Pelo amor de Deus, dê-me de beber!

Voltei para a redacção, à frente do homem e dos seus gemidos dolorosos. E ergui o candeeiro.

- Não me reconhece? - murmurou, enquanto se deixava cair numa cadeira, e voltava a cara escalavrada e coberta de uma barba grisalha para a luz.

Fixei-o com persistência. Já uma vez tinha visto estas sobrancelhas, que se juntavam no começo do nariz e faziam uma faixa negra com uma polegada de largura, mas o diabo me levasse se eu tivesse podido dizer onde.

- Não o conheço - disse ao entregar-lhe uísque. - Em que posso ser lhe útil?

Engoliu um gole de álcool puro e tremeu, não obstante o calor sufocante que se sentia.

- Regressei - repetia aquele ser estranho - e eu fui rei de Kafiristan, eu e Dravot, ambos reis coroados!

Foi nesta redacção que tudo decidimos. O senhor estava sentado ali e deu-nos livros. Eu sou Peachey - Peachey Taliaferro Carnehan, e o senhor ficou aqui durante todo este tempo... Ó Deus todo-poderoso!

Sentia-me alguma coisa mais do que mediocremente surpreendido e demonstrava-o ao falar:

- É verdade - disse Carnehan, com uma risada seca, ao mesmo tempo que fazia oscilar os seus pés embrulhados em farrapos. - É verdadeiro como o Evangelho. Éramos reis com coroas na cabeça, eu e Dravot, pobre Dan! Oh!, pobre Dan, que nada queria escutar, nem sequer as preces!

- Tome uísque e recorde o passado. Diga-me tudo o que puder lembrar desde o princípio até ao fim. Os senhores passaram a fronteirasobre os seus camelos. Recorda-se disto?

- Eu não estou louco, ainda não, embora tal venha a acontecer me em breve. Com certeza que me recordo. Continue a olharme, pois tenho medo que as minhas palavras se percam. Continue a olhar me nos olhos e não me interrompa.

Inclinei-me para a frente e fixei-o em pleno rosto o mais insistentemente que me era possível. Deixou cair uma das mãos sobre a mesa e eu segurei-a pelo pulso. Estava enrugada como uma pata de pássaro e mostrava nas costas uma cicatriz de contornos retalhados, muito vermelha e com o feitio de um ás de ouros.

- Não, não olhe para aí. Olhe para mim - disse Carnehan. - Falarei disso depois, mas, pelo amor de Deus, não me perturbe. Partimos com a caravana, eu e Dravot, fazendo todas as farsas que pudessem divertir as pessoas que acompanhávamos. Dravot fazia-nos rir, à tarde, à hora em que toda a gente preparava o seu jantar. . preparava o seu jantar, e... Que é que eles faziam depois disso? Acendiam pequenas fogueiras e as chispas voavam para a barba de Dravot e a gente ria-se até morrer de riso. Então apareciam brasas vermelhas que também voavam para as grandes barbas de Dravot, tão engraçadas.

Os olhos de Carnehan deixaram os meus. E ele pôs-se a sorrir com um ar simples.

- Foram até Jagdallak com esta caravana?perguntei ao acaso. - Depois de terem acendido essas fogueiras? Em Jagdallak dissuadiram-nos de entrar em Kafiristan?

- Não, nem a um, nem a outro. O que é que o senhor julga? Tínhamos bifurcado antes de Jagdallak, porque ouvimos dizer que os caminhos eram bons. Não muito bons para os nossos dois camelos, o meu e o de Dravot. Ao deixarmos a caravana, Dravot arrancou todas as suas roupas, e as minhas também, e disse que era necessário que fingíssemos de pagãos, porque os Kafires não toleravam que os maometanos lhes dirigissem a palavra. Então disfarçámo-nos, um bocado um e um bocado outro, e eu nunca vi nem voltarei a ver uma cabeça como a de Daniel Dravot. Ele queimou metade da sua barba, pendurou no ombro uma pele de carneiro e tosquiou a cabeça de maneira a fazer com o cabelo pequenos desenhos.

Tosquiou também a minha cabeça e mascarou-me para me dar o aspecto de um pagão.

Tudo se passou numa região excessivamente montanhosa e os nossos camelos já não podiam avançar mais por causa das montanhas. São montanhas muito altas e todas negras, e, no regresso, eu via-as moverem-se como cabras selvagens - há pilhas de cabras em Kafiristan. E estas montanhas nunca estão sossegadas, tal como as cabras. Sempre a moverem-se e a impedir nos de dormir durante a noite... .

- Beba outro uísque - disse-lhe, muito vagarosamente. - Que fizeram, Daniel Dravot e o senhor, quando os camelos não puderam avançar mais por causa dos maus caminhos que vão para Kafiristan?

- O que fizemos? O que havia de ser? Havia junto de Dravot, uma criatura chamada Peachey

     Taliaferro Carnehan. É preciso falar lhe a seu respeito? Ele morreu naquelas paragens, na neve.

Eis tudo! Do alto da ponte caiu o velho Peachey, que rolou e se torceu no ar com um moinho de um penny para vender ao Amir Ou antes: custavam um penny e meio cada três moinhos, ou eu me engano muito, o que me desgosta deveras.

E então os camelos já não prestavam para nada e      Peachey disse a Dravot: Pelo amor de Deus, afastemo-nos daqui antes que nos cortem a cabeça!". E, naqueles sítios, eles mataram os camelos, pois, que eu saiba, não tinham nada para comer. Mas, antes de o fazerem, tiraram de cima dos camelos as espingardas e os cartuchos. Depois surgem dois homens que conduzem quatro      mulas. Dravot põe-se de pé e começa a dançar à sua frente e a cantar: Vende-me as tuas quatro  mulas:" O primeiro homem diz: Se tu és suficientemente rico para pagar, tu és suficientemente rico para que te roubem!, Mas, antes que tenha tempo de pôr a mão no punhal, Dravot esmaga-lhe o pescoço entre os joelhos e o outro foge. De maneira que Carnehan carrega as mulas com as espingardas que tinham sido tiradas de cima dos camelos, e ambos picamos em frente neste país de um frio de cão, onde nunca se encontra um caminho mais largo do que as costas das mãos.

Calou-se por momentos, enquanto eu lhe perguntava se porventura possuía uma lembrança do país que tinha trilhado.      

- Digo-lhe tudo, o melhor que posso, mas a cabeça não é lá grande coisa. Eles meteram-lhe pregos dentro para que eu compreenda melhor como Dravot morreu. A região era montanhosa, as mulas eram manhosas e os habitantes viviam dispersos e solitários. Ia-se subindo, descendo, e o outro indivíduo, Carnehan, pedia a Dravot para não cantar nem assobiar com tanta força, temeroso de ver desprenderem-se as terríveis avalanches. Mas Dravot dizia que se um rei não podia cantar não valia a pena ser rei, e não fez caso de nada durante dez dias de gelo. Chegámos a um grande e liso vale, no meio das montanhas, e as mulas estavam semimortas e nós matámo-las porque, que eu saiba, não tínhamos nada para lhes dar, nem para nós comermos. Depois sentámo-nos sobre as caixas e jogámos o par ou ímpar com os cartuchos que tinham caído ao chão.

De repente, dez homens, com arcos e flechas, descem o vale - a correr e fazendo de caça para vinte homens, armados da mesma maneira - e o barulho era enorme. Eram loiros, mais loiros do que o senhor e do que eu, tinham os cabelos amarelos e eram muito bem constituídos. Dravot disse, ao passo que tirava as espingardas do fardo: Eis o princípio da tarefa. Tomamos partido pelos dez. Depois disto ele dispara dois tiros sobre os vinte homens e faz um cair de duzentos metros do alto do rochedo em que se encontrava. Os outros começaram a retirar, mas Carnehan e Dravot sentam-se sobre as caixas e põem-se a atirar lhes pimenta, a todas as distâncias, de alto a baixo do vale. A seguir, dirigimo-nos para os dez homens, que também tinham atravessado a neve em correria, e eles desfecham- nos a velhaca de uma pequena flecha. Dravot atira para o ar e eles caem, todos, de bruços. Então ele marcha por cima dos inimigos, batendo-lhes com os saltos das botas, e, depois, levanta-os e distribui apertos de mão à volta para criar amigos. Quando acaba este trabalho, chama-os e, com grandes gestos, como se já fosse rei, manda-os carregar com as caixas. Conduzem-no com as suas caixas para a outra encosta do vale, no alto de uma colina com um pinhal no cume, onde existia uma meia dúzia de grandes ídolos de pedra. Dravot dirige-se ao maior - um rapaz a que eles chamam Imbra -, coloca uma espingarda e cartuchos junto dos seus pés, esfrega respeitosamente o seu nariz contra o do ídolo, passa-lhe a mão pela cabeça e faz-lhe salamaleques. Volta-se para os homens, abana a cabeça e diz: Isto vai bem. Eu também pertenço ao grupo, e todos estes velhos quebra-nozes são meus sócios. Dito isto, abre a boca, apontando a goela com o dedo, e quando o primeiro homem lhe leva de comer, ele diz: Não. E quando o segundo homem lhe leva de comer, ele diz: Não. Mas quando um dos velhos sacerdotes e o chefe da aldeia lhe levam de comer, ele diz: Sim, muito arrogante, e come devagar. Foi assim que chegámos à nossa primeira aldeia, sem dificuldades, como se caíssemos do céu. É verdade, mas nós caímos de uma destas malditas pontes de corda e não se pode esperar ver um homem viver muito depois de tal coisa lhe acontecer.

- Beba outro uísque e continue - disse eu.      

- Aquela, era a sua primeira aldeia. Como foi que o senhor ficou rei?   

- Eu? Eu não fui rei. Dravot é que era rei, o que fazia dele um belo rapaz, com coroa de ouro na cabeça e o resto. Ele e o outro indivíduo ficaram a viver nesta aldeia e, todas as manhãs, Dravot sentava-se ao lado do velho Imbra para que as gentes viessem fazer-lhe poojah. Dravot assim tinha ordenado. Depois um tropel de homens entra no vale e Carnehan com Dravot afastam-nos a

 

  1. Homenágem

 

grande chefe do trovão de Deus, através da neve, com tambores e chifres que faziam barulho, e declara que tinha ouvido falar de um novo Deus que andava em passeio por aquelas paragens. Carnehan aponta para a caterva, que estava a meia milha de distância, e dá cabo de um. Então manda dizer ao chefe que, se não quer suicidar-se, é necessário que apareça a dar me um aperto de mão e que deixe as armas atrás. O chefe é o primeiro a chegar, sozinho. Carnehan aperta-lhe a mão e faz o moinho, movendo os seus braços, como Dravot, e o chefe não estava pouco admirado e apalpava-me as sobrancelhas. A seguir, Carnehan avança, absolutamente só, para o chefe e pergunta-lhe por sinais se tem um inimigo que o odeie. Tenho um, - diz o chefe. Ouvindo isto, Carnehan arrebata- lhe a melhor parte dos seus homens e manda os dois do exército ensinar lhes a manobra, e, ao fim de duas semanas, os homens desembaraçam-se quase como volu nteers. E então ele marcha com o chefe para um grande planalto, nas alturas de uma montanha, e os homens do chefe dão o assalto a uma aldeia e conquistam-na com a ajuda das nossas três Martinis, que acertavam no bando. Tudo isto faz com que tomemos mais esta aldeia, e eu dou ao chefe um bocado de pano da minha véstia, dizendo: Ocupa-a até ao meu regresso! à moda bíblica. Com o intuito de o levar a pensar, quando o exército e eu nos tínhamos afastado já cerca de mil e oitocentos metros, enterro, a dois passos dele, uma bala na neve, e toda aquela gente cai de bruços. Depois enviei uma carta a Dravot. Diabos     me levem se eu sabia onde o apanhar, se sobre a     terra ou sobre o mar.

Com risco de partir o fio das ideias do farrapo humano que tinha à minha frente, perguntei:

- Como era possível escrever se uma carta lá em cima, tão longe?

- A carta?... Oh a carta! Continue a olhar-me entre os olhos, se faz favor! Era uma carta em nós de cordel. Noutros tempos, em Pendjab, um mendigo cego ensinou-nos esta habilidade.

Recordo-me de que, uma vez, esteve na redacção um cego portador de uma vara nodosa e de um cordel que enrolava na vara, conforme qualquer cifra de sua invenção. Após um espaço de várias horas ou de vários dias, ele podia repetir a frase assim enroscada. Reduzira o alfabeto a onze sons elementares. Tentou ensinar me o seu método, mas sem êxito.

- Enviei a carta a Dravot - disse Carnehan - para lhe pedir que voltasse, pois o reino estava a ser demasiado grande para que eu sozinho pudesse dirigi-lo. Depois marchei em direcção ao primeiro vale, a fim de ver como os padres desempenhavam as suas funções. A aldeia que acabávamos de tomar, de acordo com o chefe, chamava-se Bashkai, e a primeira que tínhamos tomado Er Heb. Os padres de Er Heb saíam-se bem, mas tinham a submeter ao meu julgamento um monte de disputas a respeito das terras, e os homens de uma outra aldeia tinham atirado flechas sobre a deles durante a noite. Saí à procura desta aldeia e, a mil metros de distância, enviei-lhe cinco balas. Era a conta de cartuchos que, com cuidado para não desperdiçar, me propus queimar A seguir. pus-me à espera de Dravot, ausente havia dois ou três meses, e fiz com que o meu povo se conservasse sossegado.

Certa manhã, ouço um estrondo de tambores e de chifres, a ponto de julgar que era o diabo em pessoa que se aproximava, e Daniel Dravot desce a colina com o seu exército, centenas de homens que marchavam atrás, e, o que era mais espantoso, com uma grande coroa de ouro na cabeça.

- Vinte deuses! Carnehan - disse Daniel -, isto transforma-se numa aventura enorme. Eis que, agora, possuímos todo o país, pelo menos tudo o que nele vale a pena possuir. Eu sou o filho de Alexandre e da rainha Semiramis; tu, tu és o meu irmão mais novo e deus ainda por cima! É o maior evento de que reza a história. Há seis semanas que se marcha, o exército e eu, e, até à mais pequenina aldeia, em cinquenta léguas à volta, tudo se rendeu com prazer. O mais interessante é que eu tenho a chave de toda a comédia, como tu vais ver, e uma coroa para ti. Mandei fazer duas num lugar chamado Shu, onde se encontra ouro na rocha como o sebo na carne. Eu vi o ouro; com a ponta do pé fazem-se, também, saltar das rochas as turquesas; está cheio de granates o leito da ribeira; e eis um bloco de âmbar que um homem me trouxe. Chama todos os sacerdotes e, olha, toma a tua coroa.

Um dos homens abre um saco de crina preta e eu ponho a coroa na cabeça. Era pequena e muito pesada, mas eu levei-a para a cerimónia. Era de ouro martelado e pesava cinco libras - um verdadeiro arco de barril.

- Peachey - diz Dravot -, temos de lutar bastante. A Maçonaria foi o pretexto que me ajudou às mil maravilhas. E ele manda avançar um chefe, o mesmo que eu tinha deixado em Bashkai, Billy Fish, como lhe chamávamos mais tarde por se parecer muito com o Billy Fish que condúzia a grande locomotiva-reservatório em Mach, sobre a Bolan, noutros tempos.

- Dá-lhe um aperto de mão - disse Dravot. Estendo- lhe a mão e julgo morrer de pasmo qúando Billy Fish me dá o toque maçónico. Não digo nada e experimento o toque dos companheiros: Responde como deve ser e eu experimento o toque dos mestres, mas, neste ponto, nada.

- É um companheiro - disse eu a Dan. - Sabe, porventura, a senha?

- Sabe - disse Dan -, e todos os sacerdotes a sabem. É um milagre! Os chefes e os sacerdotes sabem maquinar uma loja quase à nossa maneira e gravaram as insígnias na rocha, mas não conhecem ainda o terceiro grau - e é isso que eles vêm aprender. É bem certo que existe um Deus! Há muito tempo que eu sabia que os afegãos conheciam a iniciação dos companheiros, mas isto é bem um milagre. E eis que sou Deus e grão-mestre da Ordem e vou abrir uma loja do terceiro grau. Iniciaremos os grandes-sacerdotes e os chefes das aldeias.

- É contra todas as leis da Ordem – retorqui - abrir uma loja sem autorização de ninguém e, além do mais, nós nunca tivemos graus em qualquer loja.

- É, pelo contrário, um formidável lance político - respondeu Dravot. - Ajuda a dirigir-se mais facilmente o país do que um carro de quatro rodas na descida de uma encosta. De resto, não há tempo a perder com discussões, para que eles não se virem contra nós. Tenho quarenta chefes sob os meus calcanhares; serão iniciados e promovidos de harmonia com os seus méritos. Dá quartel nas aldeias a estes homens e trata de organizar uma loja o melhor que puderes. O templo de Imbra servirá de sala. É preciso que as mulheres façam aventais. Ensina-as. Eu reúno à tarde o meu levantamento de chefes e amanhã trato da loja.

Eu não mudei de parecer, mas não era tão imbecil que não visse o auxílio que esta aventura da Maçonaria vinha trazer-nos. Ensinei as famílias dos sacerdotes a confeccionar aventais para os vários graus. Para o avental de Dravot, a cercadura azul e as insígnias foram bordadas com turquesas sobre couro branco, em vez de pano. Colocámos uma grande pedra no templo, para servir de assento ao mestre; e pedras mais pequenas para os oficiais. Mandei pintar de quadrados brancos o pavimento negro e preocupei-me bas tante para que tudo ficasse o melhor possível.

Naquela tarde, durante a reunião do levantamento, no flanco da colina, entre grandes fogueiras, Dravot declarou que ele e eu éramos deuses, filhos de Alexandre, ex-grão-mestres da Ordem, e que viéramos fazer do Kafiristan um país em que todos deviam poder comer em paz, beber com sossego e, sobretudo, obedecer nos. Então os chefes avançam, para nos apertarem a mão, e, ao vê-los tão barbudos, tão brancos e tão loiros, tínhamos a impressão de que se apertavam as mãos a velhos camaradas. Dávamos-lhes nomes, segundo as suas semelhanças com homens que conhecêramos na Índia: Billy Fish, Holly Dilworth, Pikky Kergan - era comissário do Bazar na época em que vivi em Mhow - e assim por diante.

As coisas mais surpreendentes, apesar de tudo, passaram-se na loja, na noite seguinte. Havia um velho sacerdote que não tirava os olhos de cima de nós e não me sentia à vontade por saber que era necessário realizarmos as cerimónias sem embustes e por não saber o que os outros poderiam saber. O velho sacerdote era um estranho vindo de regiões que ficavam para além da aldeia de Bashkai. No momento em que Dravot pôs o avental do mestre bordado pelas raparigas, o sacerdote começou a gritar e a uivar, enquanto tentava voltar a pedra, em que Dravot estava sen tado. Está tudo a correr muito mal - disse eu.

- Eis o resultado de se entremeter, sem licença, a Franco-Maçonaria no caso. "Dravot não pestaneja, nem quando os dez sacerdotes agarram e vi ram o assento do grão-mestre: a pedra de Imbra. O sacerdote põe-se a esfregar a base para lhe tirar a terra negra - e ei-lo que mostra aos outros sacerdotes a insígnia do mestre, igual à que estava no avental de Dravot, gravada na pedra. Nem os sacerdotes do templo de Imbra sabiam que ela existia naquele sítio. O velho atira-se ao chão junto dos pés de Dravot e beija-os.

- Que sorte! - grita Dravot de canto a canto da loja. - Eles dizem que é o sinal perdido, perdido sem que ninguém conhecesse a causa. Agora estamos mais do que salvos!

Em conformidade, deixa cair a coronha da sua espingarda, à laia de alabarda, e diz:

- Em virtude da autoridade que me é conferida pelo meu direito, aqui afirmado, e com o concurso de Peachey, declaro-me grão-mestre de toda a franco-maçonaria do Kafiristan nesta loja-mãe do país, e, em igualdade de circunstâncias com Peachey, rei do Kafiristan!

Era um milagre fantástico. Os sacerdotes acabam os dois primeiros graus sem quase proferirem uma palavra, como se lhes tivesse voltado a memória. A seguir, Peachey e Dravot subiram a graduação aos mais dignos - grandes-sacerdotes ou chefes de aldeias afastadas. Billy Fish foi o primeiro, e pode acreditar que ele tremia com medo. As coisas não decorriam, de maneira alguma, no estilo ordinário, mas convinha-nos assim. Naquele dia, não promovemos mais de dez entre as pessoas importantes, pois não queríamos generalizar o grau.

- Dentro de seis meses - diz Dravot -, teremos outra reunião e veremos como é que vocês trabalham.

Depois interroga-os acerca das suas aldeias e eles dizem-lhe que passavam a vida a lutar uns com os outros e que estavam fartos de pancadaria. Quando isto não acontecia, era com os muçulmanos que lutavam.

- Podeis batervos com os muçulmanos, se eles entrarem no nosso país - disse Dravot. - Designai um homem por dez de cada tribo para guarda de fronteira e enviai para este vale, a fim de serem exercitados, duzentos de cada vez. De futuro não se fuzilará nem se degolará mais ninguém, se se comportarem como deve ser, e estou certo de que não serei trapaceado, porque sois brancos, filhos de Alexandre, e não vis muçulmanos de pele negra. Sois o meu povo! - disse ele, e concluiu em inglês: - Diabos me levem se eu não conseguir fazer com vocês uma espécie de nação, nem que rebente com o trabalho!

Não posso dizer lhe tudo quanto fizemos nos seis meses seguintes, pois Dravot tratava de um chorrilho de coisas sem que eu descobrisse a razão por que o fazia. Aprendeu a gíria daquela gente com uma facilidade que eú nunca atingi.

A minha tarefa consistia em vigiar a lavoura, em visitar com o exército, uma vez por outra, as restantes aldèias, para ver o que por lá faziam, e em ensinar os homens a lançarem pontes de corda sobre as amaldiçoadas ravinas que retalham o país. Dravot era muito amável para mim, mas; quando ele caminhava em todos os sentidos do pinhal, puxando com as duas mãos as suas barbas vermelhas como sangue, eu sabia suficientemente que ele pensava em projectos a respeito dos quais eu não poderia aconselhá-lo, e sentia-me satisfeito à espera das suas ordens.

Dravot, porém, nunca me faltou ao respeito diante do povo. Tinham medo de mim e do exército, mas amavam o Dan. Ele tinha verdadeiros laços de amizade com os sacerdotes e com os chefes. Logo que alguém chegava, vindo do outro lado da montanha, com uma reclamação para julgamento, Dravot escutava até ao fim o reclamante, reunia quatro sacerdotes e expunha o que era necessário fazer se: Mandava procurar Billy Fish em Bashkai, Pikky Kergan em Shu, e um velho chefe a que dávamos o nome de Kafuzelum - que era bastante parecido com o seu verdadeiro nome -, e reunia com eles em conselho em caso de batalhas entre as aldeias. Era o seu conselho de guerra, e os quatro sacerdotes de Bashkai, Shu, Khawak e Madora constituíam o seu conselho privado. Um dia, mandaram-me ao país de Ghorband, com quarenta homens e vinte espingardas, mais sessenta carregadores de turquesas, comprar espingardas Martini, feitas à mão, nos arsenais do Amir, em Kabul, para um dos regimentos do Amir, formado por criaturas que são capazes de trocar por turquesas os dentes das suas mandíbulas. Estive um mês em Ghorband. Deixei ao governador o melhor do que levava, para que ele se calasse, e untei as mãos ao coronel do regimento. No fim de contas, carregámos com mais de cem Martinis feitas à mão, cem bons JezaiZs' de Kohat, que atiram

 

  1. Espingardas de pederneira.

 

a seiscentos metros, e quarenta cargas de más munições para as espingardas. Regressei com tudo e fiz uma distribuição entre os homens que os chefes me enviavam para exercitar. Dravot estava demasiado ocupado para dar atenção a estas coisas, mas o antigo exército que tínhamos criado ajudou-me e eu pus em pé de guerra quinhentos homens, bons manobristas, e duzentos quase em condições de utilizarem as armas. Até os bacamartes fabricados à mão e a saca-rolhas lhes pareciam milagres! Dravot, nos momentos em que, ao aproximar-se o Inverno, caminhava em todos os sentidos ao longo do pinhal, falava muito das fábricas de pólvora e de arsenais.

- O que eu quero fazer não é uma nação - dizia -, é um império! Estes homens não são negros, mas sim ingleses. Olha para os olhos e para as bocas deles. Repara na maneira de andar. Nas suas casas utilizam cadeiras. São as Tribos Perdidas, ou qualquer coisa semelhante, e tornaram-se ingleses. Na próxima Primavera vou fazer um recenseamento, se os padres não se assustarem. Devem existir dois bons milhões de habitantes nestas montanhas. As aldeias estão cheias de crianças. Dois milhões - duzentos e cinquenta mil combatentes - e todos ingleses! Precisam, apenas, de espingardas e de um pouco de exercício. Duzentos e cinquenta mil homens

prontos a atacarem os russos, de flanco, no dia em que eles se pegarem com a Índia! Peachey,

  1. Tribos de Israel.

 

meu velho - dizia ele, enquanto trincava grossos feixes da sua barba -, nós seremos imperadores, imperadores da terra. O rajá Brooke, ao nosso lado, não será mais do que um garoto. Tratarei como igual o vice-rei. Pedir-lhe-ei para me enviar doze ingleses escolhidos - doze meus co nhecidos - para nos ajudarem um bocadinho no governo. Temos Mackray, o sargento reformado de Segowli - devo-lhe mais de úm bom jantar e um par de calças à sua mulher. Temos Donkin, o carcereiro da cadeia de Tounghoo, centenas dé outros, dos quais me apoderaria imediatamente se estivéssemos na Índia. O vice-rei tudo fará por mim. Quando a Primavera chegar, mandarei alguém à procura destes homens e pedirei por escrito à Grande Loja a aprovação do que tenho feito como grão-mestre. Preciso deladela e das Sniders para a reforma, quando se derem as Martinis às tropas negras das Índias. Devem estar usadas, mas farão um bom serviço na guerra por estes sítios. Doze ingleses, cem mil Sniders, passadas, em pequenos comboios, através do país do Amir - vinte mil por ano serão suficientes - e nós seremos um império! Uma vez tudo em realização, entregarei a minha coroa - a mesma que trago hoje -, eu a entregarei, com um joelho em terra, à rainha Vitória, e ela dirá: Levante-se, Sir Daniel Dravot. " Oh! Digo-te que é formidável. Mas tudo está ainda por fazer, em toda a parte - em Bashkai, Khawak, Shu, etc.

- Para quê? - respondi. - Neste Outono já não virão mais homens para a instrução: Olha para estas nuvens negras. Elas trazem a neve.    

- Não é assim - disse Daniel, pondo pesadamente a mão sobre o meu ombro. - Eu não queria dizer uma única palavra contra ti, porque     nenhum homem na vida me teria seguido, nem feito o que eu sou, tão bem como tu. Tu és um general em chefe de primeira ordem, e o povo sabe-o, mas... isto é um grande país, e, em conclusão, tu não podes ajudar-me, Peachey, da maneira conveniente.

- Nesse caso, vai procurar os teus malditos padres! - disse eu, e imediatamente lamentei ter dito isto, mas magoava-me muito ver Dan portar-se tão altaneiro para comigo, eu que tinha instruído todos os homens e feito tudo quanto ele

me havia indicado.

- Não disputemos, Peachey - disse Daniel sem blasfemar - Tu também és rei e é tua a metade deste reino; mas tu não vês, Peachey, que presentemente são precisas pessoas mais fortes do que nós - três ou quatro, que se poderiam colocar, aqui e ali, no país, com atribuições de representantes? Isto é um diabo de grande Estado, eu nem sempre sei o que é mais útil e oportuno fazer se, não tenho tempo para tudo, eis o Inverno que aparece e o resto...

Meteu na boca metade da sua barba, e ela parecia tão vermelha como o ouro da sua coroa. Eu disse:     

- Sinto-me pesaroso, Daniel. Fiz o que pude; instruí os homens e ensinei o povo a pôr a aveia nas mós; trouxe também esta porcaria de espingardas do Ghorband; mas eu sei onde tu queres chegar. Os reis são sempre assaltados por ideias desta espécie.

- Há ainda outra coisa - disse Dravot, marchando a torto e a direito. - O Inverno chega, o povo não nos trará agora aborrecimentos - e mesmo que os trouxesse nós não poderíamos abalar. Eu preciso de uma mulher.

- Pelo amor de Deus, deixa as mulheres em sossego. Ambos temos as mãos atulhadas de trabalhos, posto que pela minha parte eu não seja mais que um imbecil. Lembra-te do contrato e não te enredes com saias.

- O contrato só era válido até ao momento em que começássemos a reinar; e, reis, nós já temos reinado durante vários meses - disse Dravot, ao mesmo tempo que tomava o peso da sua coroa. - Vai procurar ema mulher, tu também, Peachey, uma rapariga bonita, desempenada, rica de carnes, que te aqueça no Inverno. Elas são mais lindas do que as raparigas de Inglaterra e nós podemos escolher.

- Não me tenta! - disse-lhe eu. - Não quero ter negócios com uma mulher enquanto não tivermos um maldito bocadinho de linha a mais e que nos falta por agora. Trabalhei como dois e tu como quatro Repousemos um pouco, tratemos de arranjar um fornecimento do melhor tabaco que houver em terras afegãs e de qualquer coisa para se beber. Mas, nada de mulheres!

- Quem fala de mulheres? - Disse Dravot. - Eu apenas preciso de uma - uma rainha que engendre para o rei um filho de rei. Uma rainha saída da tribo mais forte e que gere fortes os teus irmãos de sangue, que durma a teu lado e te repita tudo o que o povo pensa, quer do rei, quer dos seus negócios particulares. Eis do que eu preciso.

- Lembras-te daquela bengali que eu mantinha em Mogul-Serai, quando eu era assentador? Ela prestou-me serviços, não há dúvida. Ensinou-me a língua e uma ou duas outras coisas. Mas o que foi que aconteceu? Fugiu com khidmatgar do chefe da estação e meio mês do meu salário. Depois, num belo dia, ei-la que conduz a reboque, em plena estação de Dadur, um mestiço, e tem o descaramento de me chamar seu marido à frente de todos os mecânicos, no alpendre das locomotivas!

- Cala-te com isso! - disse Dravot. - As mulheres daqui são mais brancas do que tu e do que eu - e eu terei uma rainha para os meses de Inverno.

- Peço-te pela última vez, Dan: não faças tal coisa! Daí só poderá vir mal. A Bíblia proíbe que os reis percam as suas forças com as mulheres, em especial quando têm de se desembaraçar com um reino acabado de nascer.

- Respondo pela última vez: será como quero - disse Dravot, que parecia, a caminhar entre os pinheiros, um grande diabo vermelho. O Sol poente batia de lado na coroa e na barba, e ambas resplandeciam como brasas.

Não era tão fácil como Dan julgava, arranjar-se mulher. Expôs o caso no conselho e ninguém respondeu até ao momento em que Billy Fish disse que seria melhor dirigir-se às raparigas.

Dravot pôs-se a soltar pragas para todos os lados.

- O que há contra mim? - gritou, de pé, junto do ídolo Imbra. - Sou porventura um cão ou não sou suficientemente um homem para as vossas raparigas? Por acaso, não estendi a sombra da minha mão sobre esta terra? Quem repeliu o último assalto afegão?

Tinha sido eu, em boa verdade, mas Daniel estava demasiado colérico para se recordar de certas coisas.

- Quem comprou as vossas espingardas? Quem reparou as pontes? Quem é o grão-mestre do sinal gravado na pedra?

E ele martelou com o ponho fechado sobre a pedra em que de ordinário se sentava - em reuniões da loja ou do conselho, realizádas sempre de maneira idêntica. Billy Fish não disse nada, e os outros muito menos.

- Não te aflijas, Dan - disse eu -, e fala às raparigas. É assim que se faz na nossa terra e estes bons rapazes são completamente ingleses.

- O casamento do rei é um negócio de Estado!

- respondeu Dan.

Na sua inocente cólera, Dravot reparava, quero acreditar, que estava a remar contra a melhor forma de solução do seu desejo. Saiu, com grandes passadas, da sala do conselho - e os assistentes ficaram imóveis, com os olhos fixos no chão.

- Billy Fish - perguntei ao chefe de Bashkai -, afinal qual é a dificuldade que se apresenta? Responde francamente como a um leal amigo.

- Vós a conheceis - disse Billy Fish. - Que poderia ensinar-vos um homem, a vós que sabeis tudo? Como poderiam unir-se as filhas dos homens a deuses ou a diabos? Não é decente.

Recordava-me de qualquer coisa semelhante contada na Bíblia; mas uma vez que, desde que nos conheceram, nos tomavam por deuses, não era a mim que competia desenganá- los.

- Um deus pode tudo - respondi. - Se o rei ama uma mulher, nunca permitirá que ela morra.

- Seria bom que assim fosse! - continuou Billy Fish. - Nestas montanhas há todas as categorias de deuses e de diabos e de tempos a tempos uma rapariga desposa um - e nunca mais a vêem. Por outro lado, ambos conheceis o sinal gravado na pedra. Só os deuses o conhecem. Nós julgávamos que éreis homens até ao momento em que mostrastes o sinal do mestre.

Em toda aquela noite ouviu-se soprar nos chifres e uma voz de mulher que chorava como se estivesse a morrer. Aquilo vinha de um pequeno templo negro erguido a meio caminho da colina. Um sacerdote disse-nos que se estava a preparar aquela que deveria ser a mulher do rei.

- Não quero brincadeiras no caso - disse Dan. - Não quero misturar-me com os vossos costumes. Eu é que escolherei a minha mulher.

- Ela tem um pouco de medo - disse o sacerdote. - Julga que vai morrer e estão a dar-lhe coragem, no templo.

- Então dai-lhe coragem com carinho - disse Dan -, senão dar-vos-ei coronhadas de maneira a tirar-vos o desejo de que eu vos dê mais algumas.

Passou a língua pelos lábios e, durante metade da noite, andou a passear, para um lado e para outro, pensando na mulher que pela manhã iria ter. Eu não me sentia muito à vontade, porque sabia que histórias de mulheres num país estranho, mesmo que se seja vinte vezes rei, são sempre arriscadas. No dia seguinte, levantei-me muito cedo - Dravot dormia ainda - e vi que os sacerdotes se segredavam, que também os chefes falavam baixo e que todos me observavam com os cantos dos olhos.

- O que há de novo, Fish? - perguntei ao chefe de Bashkai, digno de ser admirado, com o seu vestuário de peles.

- Não sei bem ao certo - disse ele -, mas se podeis convencer o rei a renunciar ao casamento, está nas vossas mãos uma oportunidade para prestardes um grande serviço a ele e a mim, tanto como a vós.

- Acredito - respondi. - Mas, pelo certo, Billy, tu sabes tão bem como eu, tu que te bateste contra nós e ao nosso lado, que o rei e eu não somos nada mais do que dois dos mais toscos homens que o Senhor fez em todos os tempos. Nada mais, garanto-te.

- É possível - disse Billy Fish. - Mesmo assim eu ficaria desgostoso.

Deixou cair a cabeça, durante um minuto, sobre a sua grande capa forrada e pensou.

- Rei! - disse ele. - Homem, deus ou diabo, conta desde hoje comigo. Tenho vinte homens que me seguirão. Iremos para Bashkai até a trovoada passar.

Naquela noite caíra neve e tudo estava branco, excepto as grandes nuvens oleosas que marchavam, a seguir umas às outras, com o vento do Norte. Dravot apareceu, com a coroa na cabeça, a mover os braços e a bater com os pés, mais contente do que um deus.

- Peço-te pela última vez, Dan: abandona a tua ideia! - disse-lhe muito baixo. - Ouve Billy Fish, que diz que vai haver sarilho.

- Entre o meu povo? - disse Dravot. - Eu quereria ver isso! Peachey, tu és louco por não arranjares também uma mulher. Onde está ela? - disse com uma voz que parecia a de um burro a zurrar Assembleia para os chefes e sacerdotes, e que o imperador veja se a sua esposa lhe agrada!

Não havia necessidade de reunir ninguém. Estavam todos ali, apoiados nas espingardas e nas lanças, à volta da clareira, no meio do pinhal. Uma deputação de sacerdotes foi buscar a rapariga ao pequeno templo e os chifres começaram a tocar para acordarem os mortos. Billy Fish, sem se fazer notado, aproximou-se de Daniel, conservando atrás de si os seus vinte homens armados de espingardas de caçoleta. Nenhum tinha menos de seis pés de altura. Eu estava ao lado de Dravot e atrás de mim perfilavam-se vinte homens do exército regular. Chega a pequena, um belo pedaço de rapariga, coberta de prata e de turquesas, mas pálida como a morte e voltando-se, a cada passo que dava, para os sacerdotes...

- Serve para o que é preciso! - disse Dan; a olhá-la da cabeça aos pés: - Que há de extraordinário, pequena, para teres medo? Anda, vem beijar-me.

Ele passa-lhe o braço à volta da cintura. Ela fecha os olhos, solta um gritinho - e eis que a sua cara cai, de lado, na barba cor de fogo de Dravot.

- Mordeu-me! - foi o que disse Daniel enquanto passava a mão pelo pescoço e, tenho bem a certeza disto, retirava-a vermelha de sangue.

Billy Fish e dois dos seus fuzileiros seguram Dan pelos ombros e atiram-no para o meio dos homens de Bashkai, ao mesmo tempo que os sacerdotes começam a berrar na sua linguagem de trapos: "Nem deus, nem diabo - é um homem!"

Sentia-me atordoado. Um sacerdote espetou-me a ponta de um pique. E, atrás, o exército pôs-se a fazer fogo sobre os homens de Bashkai.

- Deus, ó Deus todo-poderoso! - dizia Dan.

- O que quer isto dizer?

- Fujamos! Vamo-nos embora! - grita Billy Fish. - Ruína e revolta, eis o que isto é. Alcancemos Bashkai, se pudermos.

Ainda tentei dar ordens aos meus homens - os do exército regular - mas nada pude conseguir, pelo que fiz fogo para o ajuntamento, com uma Martini de fabricação inglesa e, de enfiada, matei três malandros. O vale estava cheio de tipos que gritavam e uivavam, e todas as bocas clamavam: Nem deus, nem diabo, nada mais do que um homem! " As tropas de Bashkai obedeceram a Billy Fish tanto quanto puderam, mas as suas espingardas de caçoleta não valiam muito mais do que as outras, as de Kabul, de carregamento pela culatra, e quatro homens caíram. Dan bramia como um touro, cheio de raiva, e Billy Fish ocupava-se a impedir que ele se atirasse contra a multidão.

- Não há meio de nos aguentarmos - disse Billy Fish. - Salve-se quem puder, pelo vale! Estão todos contra nós!

Os homens correm e nós descemos o vale, não obstante os protestos de Dravot. Blasfemava terrivelmente, gritando que era rei. Os sacerdotes fizeram rolar grandes pedras para cima de nós, o exército regular atirava com vontade, e apenas seis homens, sem contar Dan, Billy Fish e eu, chegaram ao fundo do vale ainda vivos.

Depois acabou o tiroteio e os chifres começaram a soar no templo.

- Depressa! Pelo amor de Deus, depressa!disse Billy Fish. Eles não deixarão de enviar correios a todas as aldeias, antes mesmo que nós cheguemos a Bashkai. Lá poderei responder por vós, mas agora nada posso fazer.

Ninguém me tirará da cabeça a ideia de que Dan começou, naquele momento, a ficar louco. Olhava para cima, para baixo, com os olhos arregalados como os de um porco empalhado. A seguir quis voltar atrás para matar todos os sacerdotes, com as suas mãos vazias - e seria capaz de o fazer!

- Sou um imperador - dizia Daniel - e no próximo ano serei cavaleiro da rainha!

- Está bem, Daniel - disse eu -, mas, nesse caso, vem-te embora enquanto é tempo.

- Tudo por tua causa - disse ele. - Era necessário que vigiasses melhor o teu exército. Sem que nada soubesses, a revolta estava a chocar!Mecânico duma figa; reles assentador de chapas, miserável mensageiro de mau agoiro.

Sentou-se numa pedra e chamou-me todos os nomes feios que lhe passavam pela cabeça, mas o meu coração era demasiadamente grande para que eles me ferissem. Entretanto pensava que só a loucura de Dan tinha produzido a derrocada.

- Estou aborrecido, Dan - disse eu -, mas não se pode contar com indígenas. Isto é o nosso 57. Mas, que importa?, talvez ainda salvemos tudo, uma vez chegados a Bashkai.

- Vamos então para Bashkai - disse Dan -, e, com mil diabos, quando eu voltar aqui hei-de limpar tão bem o vale que não ficará um piolho para amostra!

Marchámos durante todo o dia e toda a noite, e o Dan batia com os pés na neve, mascava pedaços da barba e resmungava.

- Não há probabilidades de nos sairmos bem - dizia Billy Fish. - Certamente, os sacerdotes mandaram correios a todas as aldeias para proclamarem que vós sois apenas homens. Porque não continuastes a fingir de deuses até que as coisas estivessem mais direitas? Eu sou um homem morto.

E, mal acaba de dizer estas palavras, deita-se a todo o comprimento na neve e põe-se a rezar aos seus deuses.

No dia seguinte de manhã estávamos numa amaldiçoada região, toda aos altos e baixos, sem nada para se comer. Os seis homens de Bashkai olhavam Billy Fish com olhos de esfomeados, mas não disseram uma única palavra. Ao meio- dia, chegámos ao cume de uma montanha, plano e todo coberto de neve, e logo que trepámos ao planalto - o que é que nós vemos? Um exército alinhado em batalha!

- Os correios andaram depressa - disse Billy com uma gargalhada forçada. - Esperam-nos.

Três ou quatro dos inimigos começaram a disparar e, por acaso, uma bala atingiu a barriga da perna de Dan. Em consequência - volta-lhe o sangue-frio. E quando olha, ao longo da neve, para o exército, reconhece as espingardas que tínhamos introduzido no país.

- Estamos perdidos - disseram. - São ingleses; estes sujeitos - e foram as minhas malditas imbecilidades que criaram esta situação. Volta para trás, Billy Fish, e leva os teus homens. Carnehan - disse ele a seguir -, aperta a minha mão e vai embora com Billy. Talvez não te matem. Eu irei sozinho enfrentá-los. Fui eu quem tudo fez: Eu, o rei.

- Sozinho? - respondi eu. - Vai para o diabo, Dan. Aqui somos dois. Billy Fish, raspa-te, que nós iremos, lado a lado, à presença daquela gente.

- Eu sou um chefe! - disse Billy Fish, absolutamente tranquilo. - Fico convosco. Os meus homens podem partir.

Os rapazes de Bashkai não o obrigaram a repetir a frase e desataram a correr. Dan, eu e Billy Fish dirigimo- nos para o lugar onnde os tambores rufavam e tocavam os chifres. Estava frio - terrivelmente frio. Ainda neste momento sinto na nuca aquele frio. Existe sempre, ali, um bocado de frio.

Os coolies do pankah tinham adormecido. Na redacção rutilavam dois candeeiros de petróleo e o suor escorria pela minha cara e diluía-se, em grossas manchas, sobre o mata- borrão sempre que eu me inclinava para a frente. Enxuguei a testa, apertei outra vez as suas mãos miseráveis e mutiladas, e disse:

- Que aconteceu depois de tudo isso?

Os meus olhos tinham-se desviado um instante, o que foi suficiente para interromper a corrente lúcida.

- Se faz favor! - gemeu Carnehan. - Agarraram-nos sem ruído. Nem um pequeno murmúrio se ouvia na imensa extensão da neve, nem um só, embora o rei tivesse atirado ao ar o primeiro que lhe pôs a mão em cima, e apesar de o velho Peachey ter feito fogo, com o seu último cartucho, sobre a malta. Nem o menor ruído. Os porcos! Tornaram a fechar o círculo à nossa volta, nada mais, mas unidos, e eu peço-lhe para acreditar que as suas mantas de peles cheiravam mal. Havia um homem chamado Billy Fish - um bom amigo de todos nós - e eles degolaram-no, senhor, à nossa frente, como se ele fosse um porco. E o rei, com o pé; fazia voar a neve vermelha e dizia: Tivemo-la pelo nosso dinheiro, ao menos. A quem pertence a vez? Mas Peachey, Peachey Taliaferro - digo- lhe, senhor, entre nós, confidencialmente - perdeu a cabeça, senhor. Não, o rei perdeu a cabeça. Sim, a todo o comprimento de uma destas miseráveis pontes de corda. Tenha a bondade de me dar o corta-papel, senhor. Ele caiu, da ponte, assim. Fizeram com que marchassem uma longa milha sobre a neve, até à ponte de corda que atravessa uma ravina que tem uma ribeira no fundo. O senhor tem visto muitas semelhantes. E picavam-nos por trás, como se eles fossem bois.

- Malditos brutos - disse o rei -, pensais que não saberei morrer como um gentleman?

Depois voltou-se para Peachey, Peachey que chorava como uma criança:

- Fui eu quem te conduziu a isto, Peachey - disse ele. - Arranquei-te à tua doce vida para vires morrer em Kafiristan, onde eras, ainda há bem pouco tempo, general em chefe dos exércitos do imperador. Diz-me que me perdoas, Peachey!

- Certamente que te perdoo, e de todo o coração, Dan.

- A tua mão, Peachey - disse ele. - Eu vou lá. E ele avança, sem olhar para a direita, nem para a esquerda, e, uma vez chegado mesmo ao meio daquelas miseráveis cordas que dançam de vertigem, grita: Cortai, cães! - e eles cortam e o meu velho Dan caiu, rolando sobre si mesmo, durante vinte mil léguas, porque levou meia hora a cair antes de tocar na água - e eu via o seu corpo espalmado sobre uma pedra e a coroa de rei ao lado.

Mas sabe o que eles fizeram a Peachey entre dois troncos de pinheiro? Crucificaram-no, senhor, como se vê quando se olham as suas mãos. Enterraram-lhe cavilhas de madeira nas mãos e nos pés - e ele não está morto. Ficou ali pendurado, e ele berrava. Desceram-no no dia seguinte e toda a gente disse que era um milagre que não estivesse morto. Desceram-no - pobre velho Peachey, que não lhes tinha feito nenhum mal, que não lhes tinha...

Pôs-se a tremer, chorando amargamente e enxugando os olhos com as costas das suas mãos sacrificadas. Soluçou, durante dez minutos, como uma criança.

- Foram demasiado cruéis para ainda o levarem ao templo e lhe darem de comer, porque diziam que ele era mais deus do que o velho Daniel, que era homem. Depois atiraram-no para a neve e disseram-lhe que regressasse à sua terra; e Peachey voltou - e gastou a andar quase um ano -, a mendigar ao longo dos caminhos. Não tinha medo, porque Daniel Dravot caminhava à sua frente e dizia: Vem, Peachey, são coisas admiráveis as que nós fazemos. À noite, as montanhas dançavam e esforçavam-se por cair em cima da cabeça de Peachey mas Dan levantava a mão e Peachey continuava, sempre em frente e dobrado em dois. Nunca largou a mão de Dan e nunca largou a cabeça de Dan. Deram- lha no templo, para que ele não se esqueça de nunca mais voltar, e embora a coroa seja de ouro puro e Peachey tenha fomejamais Peachey a quererá vender. O senhor conheceu Dravot, não é verdade? O senhor conheceu o muito venerável irmão... Dravot. Veja-o agora!

Remexeu no monte de farrapos que rodeavam o seu torcido corpo, retirou de lá um saco de crina negra bordada a fio de prata e despejou em cima da mesa a cabeça mirrada e mortificada de Daniel Dravot! O sol matinal, porque havia já muito tempo que os candeeiros tinham empalidecido, incidiu na barba vermelha, nos olhos cegos em órbitas profundas, ao mesmo tempo que no pesado círculo de ouro incrustado de turquesas virgens que Carnehan colocou; com ternura, sobre as fontes desmaiadas.

- O senhor, agora, está a contemplar o imperador na sua pompa quotidiana, quando vivia - o rei do Kafiristan com a coroa na cabeça. Querido velho Daniel, que foi monarca uma vez!

Estremeci: reconhecia naquela cabeça desfigurada por vinte ferimentos a cabeça do homem que encontrara outrora na estação de Marwar. Carnehan levantou-se para partir. Tentei retê-lo, porque ele não se encontrava em estado de poder enfrentar a temperatura exterior.

- Deixe-me levar o uísque e dê-me algum dinheiro - murmurou. - Eu fui rei, outrora. Vou procurar o deputy- commissioner e pedir lhe um lugar no asilo até que a minha saúde volte. Não, muito obrigado, mas não tenho tempo para esperar que chegue o gharri que quer mandar chamar. Tenho de tratar assuntos particulares urgentes, no Sul, em Marwar.

Saiu com muito custo da redacção e caminhou em direcção aos escritórios do deputy-commissioner.

Ao meio-dia tive de descer, sob um sol deslumbrante, o Mail. Num dado momento encontrei um estropiado que se arrastava na poeira das bermas da estrada branca, com o chapéu na mão, a cantar dolorosamente, à maneira dos cantores de rua na Europa. Ninguém o podia ver e a sua voz não podia chegar às casas das proximidades. Grande parte dos sons saíam-lhe pelo nariz, e a sua cabeça, como se acompanhasse a canção, movia-se ora para um lado, ora para o outro:

O filho do homem vai para a guerra, Ganhar uma coroa de ouro;

Seu pendão verrnelho flutua ao longe. Quem o segue no seu caminho... 2

Não quis ouvir mais. Coloquei o desgraçado

 

  1. Carro de praça.
  2. The son ofman goes forth to war A golden crown to gain; His blood-red banner streams afar. . Who follows in his train

 

no meu carro e levei-o ao mais próximo missionário, para a eventualidade da sua entrada no asilo. Nem sequer me reconhecia e, durante o tempo em que esteve ao meu lado, cantou duas vezes o seu hino estranho. Quando o deixei, cantava- o novamente em frente do missionário.

Dois dias mais tarde, informei-me a seu respeito junto do director do asilo.

- Quando o recebemos - disse o director - vinha atacado de insolação. Morreu ontem, pela manhã; muito cedo. É verdade que esteve meia hora ao sol do meio-dia, com a cabeça descoberta?

- É verdade - respondi.

A seguir perguntei:

- Sabe, por acaso, se ele guardava junto de si

qualquer coisa... quando morreu?

- Nada, que eu saiba - respondeu o director.

E ficou por aqui a aventura.

 

                                                                                Rudyard Kipling  

 

                      

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