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Cerração.
Animal dissimulado e silencioso à espreita da presa. Mesmo tendo morado a vida inteira na Skåne, onde a toda hora baixam cerrações tão densas que o mundo some de vista, nunca vou me acostumar com isso.
11 de outubro de 1993, nove da noite.
A cerração vinha chegando do mar. Ele voltava para casa, em Ystad, e tinha acabado de passar os Montes Brösarp quando a densa massa branca o pegou em cheio.
Na mesma hora, sentiu medo.
A cerração me apavora, pensou. Mas eu devia era ter medo do sujeito com quem me encontrei agora há pouco. Do homem afável cercado de empregados sinistros sempre rondando nos bastidores, os rostos na sombra, à espreita. Devia era estar preocupado com ele, e com o que agora eu sei que há por trás daquele sorriso simpático. Daquela posição impecável de cidadão de bem acima de toda e qualquer suspeita. Era dele que eu devia ter medo. Não da cerração entrando de manso pela baía Hanö. Sobretudo agora que descobri que ele não hesita em matar seja quem for que se intrometa em seu caminho.
Ligou o limpador de pára-brisa, na esperança de ter uma visão melhor da estrada. Não gostava de dirigir no escuro. Não gostava sobretudo quando os coelhos começavam a correr espavoridos na frente dos faróis.
Certa vez, fazia mais de trinta anos, havia atropelado uma lebre — na estrada de Tomelilla, no começo da primavera. Ainda se lembrava do momento em que metera o pé no freio, e daquele baque surdo na lataria, logo depois. Tinha parado e saltado do carro. A lebre estava estirada no asfalto, um pouco mais para trás, com as pernas traseiras se mexendo em espasmos. A parte de cima do corpo parecia paralisada, mas os olhos estavam pregados nele. Tivera de se obrigar a apanhar uma pedra pesada na beira da estrada, depois fechara os olhos e deixara a pedra cair na cabeça do animal. Em seguida voltara rápido para o carro, sem se virar.
Nunca mais se esquecera do olhar daquela lebre nem de suas pernas traseiras, chutando, desesperadas. Era uma lembrança que não conseguiria apagar da memória. E recorrente também, vivia voltando, em geral em momentos inesperados.
Tentou afastar a sensação incômoda. Uma lebre morta trinta anos antes até poderia continuar perseguindo a consciência de um homem, mas não poderia lhe causar nenhum mal, pensou. Afinal, já não bastavam as preocupações que tinha com quem ainda fazia parte deste mundo?
Reparou que estava olhando pelo espelho retrovisor mais vezes que o normal.
Estou com medo, pensou de novo. Acabei de me dar conta de que estou fugindo. Fugindo do que agora sei que se esconde atrás das muralhas do Castelo Farnholm. Sei também que eles sabem que eu sei. Eles só não sabem o quanto eu sei. O suficiente para despertar o temor de que eu quebre o juramento de silêncio feito quando ainda era um advogado recém-formado? Muito tempo atrás, quando o juramento ainda trazia em si um compromisso sacrossanto com o sigilo profissional? Porventura teriam receio da consciência de seu velho advogado?
Não havia nada no espelho retrovisor. Ele se achava sozinho em meio ao denso nevoeiro. Em menos de uma hora estaria de volta a sua casa em Ystad.
O pensamento o reanimou, mas apenas por alguns instantes. Quer dizer que não estava sendo seguido, no fim das contas. Sendo assim, decidiria o que fazer no dia seguinte. Conversaria com o filho, que era também seu colega e sócio no escritório de advocacia. Para tudo havia uma solução — isso era uma das coisas que a vida lhe ensinara. Dessa vez, tinha de haver uma saída também.
Tateou no escuro até encontrar o rádio. O carro se encheu com uma voz masculina falando a respeito das últimas descobertas genéticas. As palavras passavam por seu cérebro sem serem registradas. Conferiu o relógio: quase nove e meia da noite. A estrada atrás dele continuava vazia, mas o nevoeiro parecia estar ficando ainda mais denso. Pelo sim, pelo não, pisou um pouco mais fundo no acelerador. Quanto mais distante se via do Castelo Farnholm, mais calmo se sentia. Talvez não houvesse mesmo nada a temer.
Tentou obrigar-se a pensar com clareza.
Tudo tinha começado com um telefonema de rotina, na verdade um recado sobre a mesa pedindo que entrasse em contato com alguém que tinha urgência em examinar determinado assunto. Ele não reconhecera o nome da pessoa, mas tomara a iniciativa de fazer a ligação — um pequeno escritório de advocacia numa insignificante cidade sueca não podia se dar ao luxo de rejeitar clientes. Ainda se lembrava da voz ao telefone: era educada, com sotaque do norte, mas transmitia a impressão de que do outro lado havia alguém acostumado a medir a vida com os custos de cada minuto gasto. O homem lhe explicara o serviço, uma transação complicada envolvendo navios mercantes registrados na Córsega e uma série de carregamentos de cimento para a Arábia Saudita, onde uma de suas empresas operava como agente para a Skanska. De passagem, fizera referência a uma enorme mesquita que seria construída em Khamis Mushayt. Ou talvez fosse uma universidade em Jidá.
Encontraram-se alguns dias depois no Hotel Continental, em Ystad. Tinha chegado mais cedo e o restaurante ainda nem abrira para o almoço; sentado a uma me-sa de canto, acompanhara a chegada dele. Havia uma única outra pessoa presente, um garçom iugoslavo que fitava a janela com olhar sombrio. Estavam em meados de janeiro, soprava um vento forte do Báltico e logo mais iria nevar. Porém o homem que se aproximara dele tinha o rosto bronzeado. Vestia um terno azul-escuro e, com certeza, ainda não ultrapassara os cinqüenta. Por algum motivo, não se encaixava nem em Ystad nem no clima de janeiro. Era um forasteiro com um sorriso que não pertencia àquele rosto moreno de sol.
Fora seu primeiro encontro com o homem do Castelo Farnholm. Um homem sem bagagem, dentro de um universo próprio, distinto, vestido num terno azul feito sob medida, com tudo centrado num sorriso; e um par de satélites assustadores zumbindo atentos em volta.
Sim, já naquela época os sombras marcavam presença. Não se lembrava de ter sido apresentado aos dois. Sentaram-se a uma mesa nos fundos e se levantaram sem dizer palavra quando a reunião terminou.
Dias dourados aqueles, pensou amargurado, e eu tão burro que acreditei naquilo tudo. A visão de mundo de um advogado não deve jamais ser toldada pela ilusão de um paraíso futuro, pelo menos não aqui na Terra. Seis meses depois, e o homem bronzeado já respondia por cinqüenta por cento dos rendimentos do escritório; após um ano, o faturamento total havia dobrado. Os honorários eram pagos no vencimento e não havia necessidade de enviar aviso de cobrança. Foram até capazes de arcar com uma reforma nas salas. O homem do Castelo Farnholm parecia dirigir seus negócios de todos os cantos do planeta, de localidades que davam a impressão de ter sido escolhidas mais ou menos ao acaso. Mensagens via fax e telefonemas, sem falar nas ocasionais transmissões por rádio, pareciam vir de lugares os mais estranhos da face da Terra, lugares que ele mal conseguiria localizar no globo que ficava ao lado do sofá de couro na saleta da recepção. Mas era tudo feito às claras, ainda que as transações fossem meio difíceis de precisar e de entender.
A nova era está despontando, lembrava-se de ter pensado isso. Quer dizer que é assim que serão as coisas daqui para a frente. Como advogado, devo agradecer o fato de aquele homem em Farnholm ter escolhido meu nome na lista telefônica.
De repente, essa sua linha de pensamento foi interrompida. Por instantes, pensou estar imaginando coisas, mas depois reparou nos faróis que apareceram no espelho retrovisor.
Tinham se aproximado sem dar na vista e estavam bem atrás.
Foi tomado pelo medo na mesma hora. Quer dizer que, sim, eles o haviam seguido. Receavam que quebrasse seu voto de silêncio e começasse a falar.
A primeira reação foi acelerar e sumir na cerração. O suor escorreu-lhe pelo rosto. Os faróis continuavam grudados na sua traseira. Sombras que matam, pensou. Eu jamais vou conseguir escapar delas, assim como ninguém jamais conseguiu.
O outro carro o ultrapassou. Viu de relance um rosto indistinto, o rosto de um velho. Depois as lanternas traseiras vermelhas sumiram na cerração.
Ele pegou o lenço e enxugou face e pescoço.
Logo, logo estarei em casa, pensou. Não vai acontecer nada. A senhora Dunér anotou na minha agenda o compromisso que eu tinha em Farnholm hoje. Ninguém, nem mesmo ele, mandaria capangas para dar cabo de um velho advogado a caminho de casa. Seria arriscado demais.
* * *
Ele levara quase dois anos para começar a perceber que havia algo suspeito acontecendo. O serviço era insignificante, mera questão de conferir alguns contratos em que a Câmara de Comércio Sueca funcionava como avalista de uma soma considerável de dinheiro. Peças sobressalentes para turbinas na Polônia, colheitadeiras para a Checoslováquia. Fora um detalhe de pouca monta, alguns números que não bateram. Ele achou que provavelmente se tratava de um erro de impressão, quem sabe uma simples confusão de dígitos. Mas, ao repassar tudo de novo, percebera que nada ali era acidental, era tudo intencional. Não havia uma vírgula faltando, estava tudo correto, porém o resultado era assustador. Depois, afundado na poltrona — era tarde da noite, já, lembrava-se bem —, não tivera mais dúvidas de que acabara de descobrir um crime. De início, preferira não acreditar. Amanhecia quando resolveu sair para dar uma volta pelas ruas de Ystad e, até chegar à Stortorget, foi forçado a admitir que não havia nenhuma outra explicação possível: o homem do Castelo Farnholm cometera um delito. Uma grave quebra de confiança, no que dizia respeito à Câmara de Comércio, evasão fiscal em grande escala e toda uma série de falsificações.
Daquele momento em diante, passou a procurar os buracos negros que porventura houvesse nos documentos provenientes de Farnholm. E achou-os — não sempre, mas com muita freqüência. Aos poucos, foi se dando conta da extensão da ilegalidade. Bem que tentara não tomar conhecimento das evidências que estavam ali, bem diante de seus olhos, mas, no fim, fora obrigado a aceitar os fatos. Mesmo assim, no entanto, não tinha mexido uma palha a respeito. Não tinha sequer aberto o jogo para o próprio filho. Seria porque, lá no fundo, preferia acreditar que não era verdade? Afinal de contas ninguém, nem mesmo as autoridades fiscais, haviam notado qualquer irregularidade. Será que descobrira um segredo que no fundo não existia? Ou seria tarde demais, agora que o homem do Castelo Farnholm era a principal fonte de renda do escritório?
A cerração parecia estar ficando cada vez mais densa. Ele esperava que diminuísse na entrada de Ystad.
Era óbvio que não poderia continuar daquele jeito. Não agora que sabia que o homem de Farnholm tinha as mãos sujas de sangue.
Teria de conversar com o filho. Afinal de contas, ainda havia lei na Suécia, mesmo que a cada dia ela parecesse um pouco mais enxovalhada e enfraquecida. Seu próprio silêncio fora parte desse processo. Mas o fato de ter fechado os olhos para aquilo por tanto tempo não era desculpa para continuar calado.
E ele jamais conseguiria se suicidar.
De repente, freou o carro. Tinha visto algo sob os faróis. De início pensou tratar-se de uma lebre. Depois percebeu que havia algo parado na estrada.
Pôs farol alto.
Havia uma cadeira no meio da pista. Uma simples cadeira de cozinha. Sentada nela, uma efígie do tamanho de uma pessoa. De rosto muito branco.
Talvez fosse mesmo uma pessoa de verdade, com cara de manequim de alfaiate.
Sentiu o coração disparar. A névoa rodopiava sob a luz dos faróis.
Não havia como ignorar a cadeira e a efígie. Tampouco havia como ignorar seu medo crescente. Conferiu o espelhinho retrovisor. Nada a não ser escuridão. Aproximou-se devagar até que a cadeira e a efígie ficaram a não mais que dez metros do carro. Então parou outra vez.
O boneco era idêntico a um ser humano. Não se tratava de algum espantalho montado às pressas.
Isso é para mim, ele pensou.
Desligou o rádio, a mão trêmula, e apurou os ouvidos. Cerração e silêncio. Não sabia o que fazer.
O motivo da hesitação não era nem aquela cadeira ali no meio do nevoeiro, nem a efígie fantasmagórica. Havia algo mais, algo em volta, algo que ele não podia ver. Algo que provavelmente só existia dentro dele mesmo.
Estou com medo, pensou. O medo está prejudicando minha capacidade de pensar com clareza.
No fim, desafivelou o cinto de segurança e abriu a porta do carro. Surpreendeu-se com o frio e a umidade no lado de fora.
Saltou do carro, de olhos fixos na cadeira e no boneco delineado pelos faróis. Seu último pensamento foi que aquilo parecia um palco com um ator prestes a fazer sua entrada.
Depois escutou um ruído vindo de trás. Mas não se virou. O golpe o atingiu na nuca.
Estava morto antes mesmo de o corpo chegar ao chão.
A cerração engrossou ainda mais.
Eram 9h53 da noite.
2
O vento soprava direto do norte.
O homem andando na praia gelada sofria com as rajadas glaciais. A todo momento parava e dava as costas para o vento. Ficava ali imóvel, olhando fixo para a areia, as mãos enterradas no bolso; depois voltava a caminhar, pelo visto sem direção, até se tornar invisível sob a luz acinzentada.
Uma senhora que regularmente levava o cachorro pa-ra passear no mesmo local acabou se preocupando com a presença daquela criatura que parecia patrulhar a praia o dia todo, do amanhecer até o escurecer. Ele havia surgido do nada fazia já algumas semanas, uma espécie de carga humana alijada ao mar que acabara encalhada ali. As pessoas que ela encontrava pela praia em geral a cumprimentavam com um aceno ou um meneio de cabeça. Era final do outono — outubro estava terminando —, de modo que na verdade era muito raro ela topar com alguém. Mas o homem de sobretudo preto nunca esboçara a menor tentativa de lhe fazer um gesto. De início pensou que fosse tímido, depois o considerou grosseiro, ou quem sabe estrangeiro. Aos poucos, ficou com a impressão de que ele estava sufocado por algum terrível sofrimento, que seus passeios pela praia eram uma peregrinação que afastava temporariamente o motivo de sua dor. Seu andar era sem dúvida errático. Seguia lento, quase vadiando, e então, de repente, voltava à vida e desembestava pela areia, como se trotasse. Ocorreu à mulher que os movimentos dele não eram ditados pelas pernas, e sim pelos pensamentos conturbados. Imaginou as mãos do homem cerradas dentro do bolso. Não podia vê-las, mas convenceu-se de que era assim que estavam.
Depois de uma semana, pensou ter esclarecido a história toda. Aquele desconhecido tinha desembocado na praia, vindo de algum lugar, para solucionar uma séria crise pessoal — como se fosse uma embarcação sem as cartas náuticas adequadas, avançando pelas águas de um canal traiçoeiro. Devia ser essa a causa de tanta introspecção e das caminhadas incessantes. Durante várias noites, discutiu o caso do homem solitário com o marido, cujo reumatismo resultara em aposentadoria precoce. Um dia, ele foi com ela e o cachorro até a praia, apesar das fortes dores e de, na verdade, preferir ficar em casa. Concordou com as conclusões da mulher, mas achou o comportamento do homem tão anormal, tão surpreendente, que ligou para um amigo seu da polícia de Skagen e contou-lhe, em caráter confidencial, o que havia observado. E se o sujeito fosse um foragido da justiça e estivesse sendo procurado por algum crime? E se tivesse escapado de um dos poucos hospitais para doentes mentais que ainda funcionavam no país? O policial, no entanto, em seus muitos anos de serviço, já tinha visto um bocado de gente esquisita em peregrinação pelo extremo da Jutlândia, em busca de paz e quietude, e aconselhou o amigo a ser sensato. Que ele deixasse o sujeito sossegado. A faixa de areia entre as dunas e os dois mares que ali se encontravam era uma terra de ninguém — em mudança constante e servindo a quem dela precisasse.
Por uma semana mais, a mulher com o cachorro e o homem de sobretudo preto continuaram a passar um pelo outro, como dois navios na escuridão. E então um dia, 24 de outubro de 1993, para ser mais exato, houve algo que mais tarde ela relacionou com seu sumiço.
Foi um daqueles dias muito raros em que não há vento nenhum, em que nada se move e a cerração que encobre o mar e a terra permanece estagnada. Sirenes antinevoeiro soavam a distância, como bois perdidos, invisíveis. Todo o estranho cenário estava em suspense. E só então ela reparou no homem de sobretudo preto; estancou na hora.
Ele não estava sozinho. Havia um homem meio baixinho, vestido com um blusão claro e boné, junto com ele. Ela reparou que era o recém-chegado quem falava a maior parte do tempo, e que parecia estar tentando convencer o outro de algo. De vez em quando tirava as mãos dos bolsos e gesticulava para sublinhar o que dizia. Não deu para ouvir a conversa entre os dois, mas algo nos modos do recém-chegado indicava uma certa perturbação.
Passados alguns minutos, os dois estranhos retomaram a caminhada ao longo da praia e foram engolidos pela cerração.
No dia seguinte, o homem apareceu sozinho de novo. Cinco dias depois, desapareceu. Ela continuou levando o cachorro para passear na praia todas as manhãs, até meados de novembro, sempre esperando cruzar com o homem de preto; mas ele não voltou. Ela nunca mais o viu.
Havia mais de um ano que Kurt Wallander, inspetor-chefe da polícia de Ystad, estava de licença médica, incapacitado de exercer suas atividades. Durante esse período, sua vida e suas ações foram sendo gradualmente prejudicadas por uma crescente sensação de impotência. Sempre que sobrava um dinheiro, e quando se via tomado pela sensação de não agüentar ficar nem mais um minuto em Ystad, fazia algumas viagens inúteis na vã esperança de melhorar um pouco e até, quem sabe, recuperar parte do gosto pela vida com o simples fato de se ver em qualquer outro lugar que não fosse a Skåne. Tinha comprado um pacote para o Caribe, mas começara a encher a cara já no avião e não conseguira ficar sóbrio nem um único dia dos catorze passados em Barbados. Seu estado geral, do primeiro ao último dia, só poderia ser qualificado como de pânico crescente, dominado que estava por uma violenta sensação de total alienação. Havia perambulado por entre as palmeiras e houvera dias em que nem do quarto do hotel ele saíra, sentindo-se incapaz de lidar com aquela sua necessidade primitiva de evitar companhia. Havia entrado no mar uma única vez, quer dizer, a bem da verdade, tropeçara no molhe e caíra na água. Uma noite, já bem tarde, obrigara-se a sair e a entrar em contato com outras pessoas — o objetivo era repor o estoque de álcool —, ocasião em que acabara sendo abordado por uma prostituta. Tentando afastá-la e ao mesmo tempo encorajá-la, fora tomado pelo desespero e pela auto-repugnância. Havia passado três dias inteiros, dos quais não conseguia se lembrar com clareza, junto com a moça, dentro de um barraco que fedia a ácido sulfúrico, deitado numa cama imunda coberta por lençóis que cheiravam a mofo, com baratas lhe passando por cima do rosto suado. Não conseguia sequer se lembrar do nome dela, aliás não tinha certeza se chegara a descobrir qual era. Havia feito sexo com ela num surto de concupiscência desenfreada, só podia ser isso. Depois de ela ter-lhe arrancado até o último centavo, apareceram dois irmãos bem parrudos e o puseram para fora. Wallander voltara para o hotel, sobrevivera tentando engolir o máximo possível de tudo quanto era servido no café-da-manhã, incluído na diária, e no fim desembarcara no aeroporto de Sturup muito pior do que se encontrava ao partir. Seu clínico-geral, que o examinava periodicamente, proibiu-lhe outras viagens semelhantes, já que havia um perigo real de Wallander beber até cair morto. Dois meses depois, porém, no começo de dezembro, lá se fora ele de novo, depois de pedir ao pai um dinheiro emprestado, dizendo que era para comprar mobília nova e ver se, com isso, dava uma levantada. Desde o início dos sintomas, havia evitado o pai, que, aliás, acabara de se casar com sua faxineira, uma mulher trinta anos mais moça. Assim que se vira com dinheiro na mão, Wallander fora direto à agência de viagens de Ystad e comprara um pacote de três semanas na Tailândia. Repetira o padrão do Caribe, com a diferença de que a catástrofe total acabou sendo evitada graças a um farmacêutico aposentado que viajara a seu lado no avião e que, hospedado no mesmo hotel, apiedara-se de sua situação e passara a intervir quando ele se pusera a beber já no café-da-manhã e a agir de forma meio estranha. A intervenção do farmacêutico tivera como conseqüência a volta de Wallander para casa uma semana antes do prazo. Naquela ocasião, também se entregara à sensação de auto-repugnância e se atirara nos braços de várias prostitutas, cada uma mais nova que a outra, o que acarretara um inverno tenebroso para ele, tomado pelo constante receio de ter contraído a doença fatal. Lá pelo final de abril, quando já estava de licença havia quase um ano, ficou confirmado que na verdade não havia contraído nada; não que a boa notícia o tivesse deixado mais alegre. Foi por volta dessa época que o médico começou a desconfiar que os dias de Kurt Wallander como policial talvez estivessem contados. Na verdade, suspeitava que ele nunca mais poderia ser considerado apto para o trabalho e que o melhor seria pedir aposentadoria precoce por motivo de saúde.
Mais ou menos nesse período, Wallander partiu — talvez fosse mais acertado dizer “fugiu” — para Skagen pela primeira vez. Naquela altura já havia conseguido parar de beber, graças em parte à filha Linda, que viera da Itália para vê-lo e descobrira o estado lamentável em que estavam ele e a casa. Linda reagira exatamente da maneira como deveria reagir: despejando na pia o conteúdo de todas as garrafas espalhadas pela casa e lhe passando um belo sermão. Durante as duas semanas em que a filha havia ficado com ele, na Mariagatan, Wallander tivera finalmente alguém com quem conversar. Juntos, foram capazes de lancetar boa parte dos abcessos que lhe destruíam a alma; ao partir, Linda sentiu que poderia dar um certo crédito à promessa que o pai lhe fizera de ficar longe da bebida. De novo sozinho, e incapaz de enfrentar a perspectiva de uma casa vazia, um belo dia Wallander vira no jornal o anúncio de uma pensão barata em Skagen.
Muitos anos antes, pouco depois de Linda nascer, havia passado algumas semanas de verão em Skagen, junto com a mulher, Mona. Semanas que estavam entre as mais felizes de toda sua vida. Não tinham muito dinheiro e dormiam numa barraca com algumas goteiras, mas o universo inteiro parecia girar em torno deles.
No mesmo dia, tinha ligado e reservado um quarto para o começo de maio. A dona da pensão era uma viúva de origem polonesa que o deixara em paz. Ela lhe emprestara uma bicicleta e todas as manhãs Wallander saía para intermináveis passeios pelas areias. Levava o almoço num saco plástico e só voltava para o quarto no finalzinho da tarde. Os outros hóspedes eram todos idosos, viajando sozinhos ou em casais, e o lugar era tão tranqüilo quanto uma sala de leitura de biblioteca. Pela primeira vez, em mais de um ano, começava a dormir bem e tinha a sensação de que, por dentro, estava sarando.
Durante aquela primeira estada em Skagen, escrevera três cartas. A primeira para a irmã Kristina. Ela havia entrado em contato várias vezes, no ano anterior, para saber como ele andava. Embora comovido com o interesse demonstrado, Wallander não conseguia achar ânimo para lhe escrever, ou telefonar. As coisas pioraram ainda mais depois da viagem ao Caribe, por causa da vaga lembrança de ter mandado para a irmã um cartão-postal cheio de cretinices escritas quando estava muito bêbado. Kristina nunca fizera menção ao cartão, e ele nunca perguntara nada; a esperança era que, de tão bêbado que estava, tivesse errado o endereço, ou esquecido de colocar selo. Mas, naquele dia, havia sentado na beira da cama e escrevera para a irmã com o papel apoiado na pasta. Na carta, tentava descrever a sensação de vazio, de vergonha e de culpa que o perseguia desde o dia em que matara um homem, fazia um ano. Embora tivesse agido em legítima defesa, quanto a isso não restavam dúvidas, e mesmo sem ter sido crucificado pelos repórteres mais agressivos e avessos à ação da polícia, Wallander sentia que seria dificílimo se desvencilhar do fardo da culpa. Sua única esperança era de um dia acabar aprendendo a viver com aquele peso.
“Sinto-me como se parte de minha alma tivesse sido substituída por um membro artificial”, escrevera à irmã. “Que ainda não faz aquilo que eu quero que faça. Às vezes, nos meus momentos mais sombrios, tenho medo de que nunca mais volte a me obedecer. Mas ainda não desisti de todo.”
A segunda carta fora para seus colegas na delegacia de Ystad, e antes mesmo de colocá-la na caixa postal vermelha, em frente ao prédio dos correios de Skagen, já tinha percebido que boa parte do que escrevera ali não era verdade. Mas sentia que precisava mandá-la assim mesmo. Nela, agradecia aos colegas pelo equipamento de som que tinham lhe dado no verão anterior, depois de fazerem uma vaquinha, e pedia desculpas por não ter conseguido agradecer antes. A intenção era sincera, claro. Mas percebia, ao concluir a carta dizendo que estava melhorando e que esperava estar de volta em breve, que aquelas eram apenas palavras sem nenhum sentido: o exato oposto daquilo estava mais próximo de ser verdade.
A terceira carta escrita durante sua primeira estada na pensão de Skagen fora para Baiba Liepa. Durante todo o ano anterior, havia lhe mandado uma carta a cada dois meses, mais ou menos, e ela respondera a todas. Começava a pensar em Baiba como sua protetora particular, e o receio de contrariá-la, a ponto de fazer com que parasse de responder, o forçava a abafar os sentimentos. Ou pelo menos achava que abafava. O lento e incessante trabalho de solapamento realizado pela inércia o deixava incerto a respeito de tudo. Durante alguns breves períodos, era de uma lucidez absoluta, em geral quando estava na praia ou sentado entre as dunas, para se proteger das rajadas geladas de vento que vinham do mar; e, às vezes, lhe parecia que a coisa não fazia sentido. Conhecera Baiba por apenas uns poucos dias, em Riga. Ela fora apaixonada pelo marido assassinado, o capitão Karlis, da polícia da Letônia, e por que haveria ela de transferir de repente suas afeições para um policial sueco que não tinha feito mais do que aquilo que lhe exigira a profissão, ainda que de forma pouco ortodoxa? No entanto, Kurt Wallander não tinha muita dificuldade em descartar esses breves momentos de insight. Era como se não ousasse se arriscar a perder aquilo que, bem lá no fundo, sabia não possuir. Baiba, a Baiba com que sonhava, era sua última linha de defesa. E ele a protegeria até o fim, ainda que fosse apenas uma ilusão.
Ficara hospedado na pensão durante dez dias. Antes mesmo de pisar de novo em Ystad, já tinha resolvido retornar a Skagen assim que fosse possível. Lá por meados de julho, estava de volta a seu antigo quarto. Uma vez mais, a viúva lhe emprestara uma bicicleta e ele passara os dias à beira-mar. Ao contrário da primeira vez, a praia estava cheia de veranistas e ele tivera a impressão de vagar feito uma sombra invisível entre toda aquela gente que ria, brincava e entrava na água. Era como se Wallander houvesse tomado posse do pedaço de praia em que os dois mares se encontram, como se houvesse uma região sob seu controle pessoal, invisível a todos os demais, onde podia patrulhar a si mesmo, ficar de olho em si mesmo, enquanto tentava encontrar um caminho para sair daquele buraco. O médico julgara ter constatado uma pequena melhora em seu estado, depois da primeira visita a Skagen, mas os sinais ainda eram fracos demais para que pudesse assegurar que tinha havido de fato uma mudança para melhor. Wallander perguntara se poderia parar com o remédio que vinha tomando havia mais de um ano, uma vez que a droga o deixava cansado e lento; o médico porém lhe pedira que tivesse um pouquinho mais de paciência.
Todas as manhãs, quando acordava, perguntava-se se teria forças para sair da cama. Mas reparou que era mais fácil levantar quando estava na pensão em Skagen. Ali, havia momentos em que sentia que poderia esquecer os acontecimentos pavorosos do ano anterior, e surgiam lampejos de esperança de que talvez ainda houvesse um futuro para ele, no fim das contas.
Vagando pela praia, horas a fio, Wallander começara, aos poucos, a refazer todo o caminho que havia ficado para trás, em busca de uma forma de superar o trauma e de se livrar do fardo, quem sabe até de um jeito de encontrar forças para voltar a ser um policial — um policial e um ser humano.
Foi durante essa segunda visita que parou de escutar ópera. Muitas vezes, quando saía para suas caminhadas pela praia, levava o cassete junto, mas um dia foi tomado pela súbita sensação de que já tinha ouvido o suficiente. Ao voltar para a pensão, naquela noite, arrumou todas as fitas de ópera na mala e guardou-a dentro do armário. No dia seguinte, foi de bicicleta até Skagen e comprou algumas gravações de artistas pop dos quais mal tinha ouvido falar. O que mais o surpreendeu foi ver que não sentia falta da música que o acompanhara durante tantos anos.
Não tenho mais espaço sobrando, pensou. Algo aqui dentro de mim se encheu até a borda, e as paredes correm o risco de estourar em breve.
Voltou a visitar Skagen em meados de outubro. Junto, levou a firme resolução de que teria de decidir de uma vez por todas o que fazer com o resto de sua vida. O médico havia aconselhado o paciente a voltar àquela pensão na Dinamarca, que obviamente lhe fizera bem: havia sinais de um retorno gradual à boa saúde, e de uma tentativa de sair das profundezas da depressão. Sem trair seu juramento de médico, ele também insinuara a Björk, chefe de Wallander, que havia quem sabe uma chance de o doente voltar ao trabalho em algum momento.
E assim foi que Wallander regressou a Skagen e retomou suas caminhadas pela praia. Já era então outono e o litoral estava de novo deserto. Era muito raro cruzar com algum outro ser humano e os poucos que avistava eram todos de idade, a não ser por algum eventual esportista, de abrigo molhado de suor, correndo; sem contar uma mulher xereta que passeava com o cachorro. Reiniciou, portanto, sua ronda, patrulhando aquele território solitário e marchando com cada vez mais confiança na direção da linha quase invisível e em constante mudança onde o mar se encontrava com a areia.
Wallander era já um homem maduro e o marco dos cinqüenta se aproximava. Durante o último ano, perdera tanto peso que se via obrigado a revirar o armário atrás de roupas dentro das quais não entrava havia sete ou oito anos. Ocorreu-lhe que fazia muito tempo que sua forma física não era tão boa, sobretudo depois de parar de beber. E isso lhe parecia um ponto de partida razoável para seus planos futuros. Salvo algum acidente de percurso, tinha pelo menos mais vinte anos para viver. O mais preocupante era decidir se possuía condições de voltar ao serviço policial ou se não seria melhor encontrar outra coisa para fazer. Recusava-se até mesmo a considerar a possibilidade de aposentadoria precoce por motivos de saúde. Essa era uma hipótese com a qual não se achava apto a lidar. Passava o tempo todo na praia, em geral envolto por massas errantes de neblina, mas também havia um ou outro dia de céu muito límpido, ar fresco, com o mar cintilando ao longe e gaivotas planando no alto. Às vezes se sentia igualzinho a um boneco que tivesse perdido a chave enfiada nas costas: não tinham mais como lhe dar corda para renovar as energias. Pesou as opções que teria se fosse forçado a deixar a polícia. Poderia prestar serviços de segurança privada a uma empresa qualquer. Tinha uma certa dificuldade em enxergar para que tipo de serviço suas credenciais de policial o qualificavam, além de perseguir criminosos. As opções eram limitadas, a menos que decidisse romper com o passado e abandonar seus muitos anos de experiência policial. Mas quem se disporia a empregar um antigo policial, beirando os cinqüenta, cuja única especialidade era pôr em ordem casos mais ou menos confusos envolvendo algum crime?
Quando sentia fome, saía da praia e encontrava um local abrigado entre as dunas. Dedicava-se então a seu almoço frio e usava o saco plástico para sentar, protegendo-se da areia fria. Enquanto comia, tentava ao máximo — sem muito sucesso, porém — pensar em outras coisas que não fossem o futuro. Fazia um esforço para ser realista, mas, como sempre, tinha de espantar diversos sonhos fantasiosos que insistiam em se fazer presentes.
Como todo policial, às vezes se sentia tentado a trocar de lado e virar criminoso. Achava surpreendente o número de policiais que, tendo passado para o outro lado, não tiravam partido de seus conhecimentos a respeito dos procedimentos básicos da polícia, que os ajudariam a evitar a captura. Em geral brincava com a idéia de crimes que fariam dele um homem rico e independente de uma hora para outra, mas nunca levava muito tempo para recobrar o bom senso e expulsar tais projetos com um calafrio. O que Wallander menos desejava era seguir a trilha de seu colega Hanson, que lhe parecia obcecado em gastar boa parte do tempo apostando em cavalos que raramente venciam. Jamais conseguiu se imaginar desperdiçando tempo dessa maneira.
Depois retomava as caminhadas pela praia. A todo momento se pegava às voltas com a questão de ser ou não obrigação sua voltar à função de policial. Começar a trabalhar de novo, lutar contra as lembranças do que tinha ocorrido no ano anterior e, quem sabe, um dia aprender a conviver com elas. A única opção realista seria continuar fazendo o que sempre fizera. Era o mais próximo
que tinha chegado de encontrar uma faísca de significado para a vida: ajudar as pessoas a ter uma existência tão segura quanto possível, retirando os piores criminosos da rua. Abrir mão disso significaria dar as costas a um trabalho que ele sabia que fazia bem, talvez melhor que muitos colegas, mas, mais que isso, significaria também minar um sentimento arraigado dentro dele havia muito tempo: o de ser parte de algo maior que ele próprio, de algo que fazia a vida valer a pena.
Entretanto, finalmente, depois de uma semana em Skagen, quando o outono já começava a dar sinais de estar virando inverno, foi forçado a admitir que não estava apto a reassumir o cargo. Seus dias como policial tinham terminado, as feridas causadas pelo que acontecera no ano anterior o haviam transformado para sempre. Foi nu-ma tarde em que a praia inteira estava coberta pela cerração que ele chegou à conclusão de que se haviam esgotado os argumentos pró e contra. Conversaria com o médico e com Björk. Não voltaria mais à ativa.
Lá no fundo, experimentou uma vaga sensação de alívio. Percebeu então o que tinha ocorrido. O homem que ele havia matado fazia um ano, num descampado, no meio de um rebanho de ovelhas ocultas pelo nevoeiro, tinha se vingado.
À noite, foi de bicicleta até Skagen e se embebedou num barzinho enfumaçado onde os fregueses eram pouquíssimos e a música barulhenta demais. Sabia que, uma vez na vida, a esbórnia não continuaria no dia seguinte. Aquela era apenas uma forma de confirmar a conclusão definitiva a que havia chegado, a de que sua vida como oficial da polícia acabara. Ao voltar para a pensão, altas horas da noite, caiu da bicicleta e arranhou o rosto. A dona da pensão havia reparado em sua ausência e o esperava acordada. Apesar de seus protestos, insistiu em limpar-lhe o rosto e prometeu lavar as roupas imundas. Depois o ajudou a destrancar a porta do quarto.
— Hoje esteve aqui um homem perguntando pelo senhor — contou ela, devolvendo-lhe a chave.
Wallander olhou-a sem expressão no rosto.
— Ninguém pergunta por mim — disse ele. — Ninguém nem sabe que estou aqui.
— Pois esse homem sabia. E queria muito encontrá-lo.
— Ele deixou o nome?
— Não, mas é sueco.
Wallander sacudiu a cabeça e tentou esquecer do assunto. Não queria ver ninguém, e não havia ninguém querendo vê-lo, tinha certeza disso.
No dia seguinte, cheio de remorso, voltou à praia, sem pensar mais sobre o que a dona da pensão havia lhe dito na noite anterior. O nevoeiro estava denso, e ele, muito cansado. Pela primeira vez, perguntou-se por que cargas d’água estava ali, naquele local. Depois de caminhar apenas um quilômetro, não mais que isso, começou a duvidar das próprias forças e sentou-se no casco emborcado de um barco a remo, meio enterrado na areia.
Foi então que reparou num homem que se aproximava dele, surgindo por entre a cerração. Era como se alguém estivesse entrando sem ser convidado na privacidade daquele seu escritório em meio às areias intermináveis.
A primeira impressão que teve foi a de um estrangeiro de feições indistintas, borradas, vestido com um blusão corta-vento e um boné que parecia pequeno demais para a cabeça. Parecia vagamente familiar, mas só quando se aproximou o suficiente e ele se levantou é que deu para ver quem era. Trocaram um aperto de mão enquanto Wallander se perguntava como diabos seu refúgio fora descoberto. Tentou lembrar de quando teria sido seu último encontro com Sten Torstensson, e concluiu que devia ter sido durante alguma burocracia judicial naquela fatídica primavera, no ano anterior.
— Fui procurá-lo ontem à noite, na pensão — disse Torstensson. — Não é minha intenção incomodá-lo, claro, mas queria conversar um pouco com você.
Houve uma época, e já faz muito tempo isso, em que havia um policial e um advogado, pensou Wallander, mas é tudo. Costumávamos nos sentar em pólos opostos e, muito de vez em quando, discutíamos se essa ou aquela prisão se justificava. Acabamos nos conhecendo um pouquinho melhor durante aquele período difícil do divórcio com Mona, quando ele cuidou dos meus interesses. Um belo dia, percebemos que algo havia engatado, algo que poderia ser o começo de uma amizade. As amizades quase sempre surgem de algum encontro do qual ninguém espera milagres. No entanto, as amizades são um milagre — isso foi uma das coisas que a vida me ensinou. Ele me convidou para velejar um fim de semana, depois que Mona me deixou. Houve um vendaval, no dia, e eu jurei nunca mais pôr os pés num barco. Depois passamos a nos ver, não com muita freqüência, não em bases regulares. E agora ele descobriu meu paradeiro e quer conversar comigo.
— Pois é, eu soube que alguém me procurou ontem — disse Wallander. — Como é que você me descobriu?
Sabia que estava deixando claro que não havia gostado nem um pouco de ser perturbado em seu refúgio entre as dunas.
— Você me conhece — disse Torstensson —, não sou do tipo de bancar o chato. Minha secretária diz que eu às vezes tenho medo de bancar o chato para mim mesmo, seja lá o que isso signifique. Mas eu liguei para a sua irmã em Estocolmo. Ou, melhor, procurei seu pai e ele me deu o telefone dela. E ela sabia o nome da pensão e onde ficava. E cá estou. Passei a noite no hotel pegado ao Museu de Arte.
Tinham começado a caminhar pela praia, com o vento soprando por trás. A mulher que estava sempre passeando com o cachorro havia parado e olhava para os dois. Wallander tinha certeza de que estava surpresa por vê-lo com alguém. Caminharam ambos em silêncio, Wallander aguardando até que Torstensson falasse, e sentindo como era estranho ter alguém a seu lado.
— Preciso da sua ajuda — Torstensson disse, por fim. — Como amigo e como policial.
— Como amigo. Se eu puder. Coisa que eu duvido. Mas não como policial.
— Sei que você continua de licença.
— Não é só isso. Você será o primeiro a ficar sabendo que estou pedindo as contas e que vou sair da polícia.
Torstensson parou de andar.
— As coisas estão nesse pé — continuou Wallander. — Mas me conte por que veio me procurar.
— Meu pai está morto.
Wallander havia conhecido seu pai. Também era advogado, se bem que fosse muito raro vê-lo no tribunal. Até onde Wallander se lembrava, Torstensson pai passava a maior parte do tempo prestando consultoria em questões financeiras. Tentou fazer os cálculos para ver que idade teria. Beirando os setenta, supunha, uma idade que muita gente nem chegava a alcançar, pensou.
— Ele morreu num acidente na estrada, faz algumas semanas — disse Torstensson. — Logo ao sul dos Montes Brösarp.
— Sinto muito. O que aconteceu?
— Eis aí uma excelente pergunta. Foi por isso que vim até aqui.
Wallander o olhou sem entender.
— Está frio, aqui — disse Torstensson. — Eles servem café no Museu de Arte. E eu vim de carro.
Wallander concordou com um meneio da cabeça. Sua bicicleta foi posta no porta-malas, mas ficou com uma parte para fora. Não havia muita gente no café do Museu de Arte, àquela hora da manhã. A moça no caixa cantarolava uma música que, para sua surpresa, Wallander reconheceu como sendo uma das que havia em seus cassetes recém-adquiridos.
— Era de noite, já — começou Torstensson. — Dia 11 de outubro, para ser exato. Papai tinha ido ver um de seus clientes mais importantes. Segundo a polícia, ele estava indo depressa demais, o carro capotou e ele morreu.
— Acontece, e sempre numa fração de segundo — disse Wallander. — Você se desconcentra por um momento que seja e o resultado pode ser catastrófico.
— Havia muita cerração, aquela noite — disse Torstensson. — Papai nunca foi de correr. Por que iria mudar de comportamento justamente num dia de nevoeiro? Ele tinha um medo obsessivo de atropelar uma lebre.
Wallander o fitou pensativo.
— Onde você está querendo chegar? — perguntou.
— O encarregado do caso foi o Martinson — Torstensson respondeu.
— Ele é bom — disse Wallander. — Se o Martinson diz que foi isso que aconteceu, não há motivo para achar que foi diferente.
Torstensson o olhou com seriedade.
— Não tenho dúvida de que o Martinson é um bom policial. Também não resta dúvida de que meu pai foi encontrado morto dentro do carro, e que o carro estava de ponta-cabeça, todo batido, num pasto ao lado da estrada. Mas tem um monte de coisas que não se encaixam. Deve ter acontecido algo.
— O quê?
— Algo mais.
— O que, por exemplo?
— Eu não sei.
Wallander foi pegar mais café.
Por que eu não lhe digo a verdade, perguntou a si mesmo. Que o Martinson é muito criativo e tem muita energia, mas que às vezes age com descuido?
— Eu li o relatório da polícia — disse Torstensson, quando Wallander se sentou outra vez. — Levei comigo e li no local onde meu pai morreu. Li o laudo do exame cadavérico, falei com o Martinson, pensei muito a respeito, fiz perguntas. E agora vim procurá-lo.
— O que eu poderia fazer? — perguntou Wallander. — Você é advogado, e sabe que todo caso sempre deixa algumas pontas soltas, que ninguém consegue atar. Seu pai estava sozinho dentro do carro, quando aconteceu. Se entendi direito, não houve testemunhas. O que significa que a única pessoa que poderia nos fazer um relato completo e preciso do que ocorreu seria seu pai.
— Houve algo — Torstensson repetiu. — Tem qualquer coisa que não bate. E eu quero saber o que é.
— Não tenho como ajudá-lo — disse Wallander —, mesmo que eu quisesse.
Torstensson não deu mostras de ter ouvido Wallander.
— As chaves — ele disse. — Só para lhe dar um exemplo. As chaves não estavam no contato. Elas estavam no chão.
— Elas podem ter caído com o impacto. Num acidente de carro, acontece de tudo.
— A ignição não sofreu nenhum dano. Não havia uma única chave torta.
— Mesmo assim, pode haver outras explicações para esse fato — disse Wallander.
— Eu poderia lhe dar uma série de outros exemplos — insistiu Torstensson. — Sei que aconteceu algo, lá. Meu pai morreu num acidente de carro que na verdade foi outra coisa.
Wallander refletiu um pouco, antes de perguntar.
— Ele não pode ter cometido suicídio?
— Essa possibilidade chegou a me ocorrer — disse Torstensson —, mas tenho certeza de que pode ser descartada. Eu conhecia meu pai.
— A maioria dos suicídios é inesperada. Mas é claro que, melhor que ninguém, você é que sabe no que acreditar.
— Há um outro motivo que me impede de aceitar a teoria do suicídio.
Wallander lançou-lhe um olhar alerta.
— Meu pai era um homem alegre, extrovertido. Se eu não o conhecesse tão bem, talvez nem tivesse notado a mudança. Coisas pequenas, quase imperceptíveis, mas houve definitivamente uma mudança no humor dele nos últimos seis meses.
— Daria para ser mais exato?
Torstensson abanou a cabeça.
— Na verdade, não — disse. — Era apenas uma sensação que eu tinha. De que havia alguma coisa incomodando meu pai. Algo que ele não queria de jeito nenhum que eu notasse.
— Chegou a tocar nesse assunto com ele?
— Nunca.
Wallander pôs a xícara vazia sobre a mesa.
— Gostaria de ajudá-lo, mas não tenho condições. Como amigo, posso ouvir o que tem a dizer. Mas não existo mais como policial. Não me sinto nem mesmo lisonjeado pelo fato de você ter vindo até aqui me procurar. Sinto-me apenas entorpecido, cansado e deprimido.
Torstensson abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas pensou melhor e se calou.
Levantaram-se os dois e saíram do café.
— Tenho que respeitar sua decisão, claro — disse Torstensson, quando estavam diante do Museu de Arte.
Wallander foi até o carro e recuperou a bicicleta.
— A gente nunca sabe como lidar com a morte — falou Wallander, numa tentativa canhestra de se mostrar solidário.
— Eu não estou pedindo isso. Só quero saber o que houve. Aquilo não foi um simples acidente de carro.
— Converse de novo com o Martinson — disse Wallander. — Mas talvez seja melhor não mencionar que fui eu que sugeri isso.
Despediram-se e Wallander ficou vendo o carro desaparecer em meio às dunas.
Nesse momento, foi tomado pela sensação de que as coisas estavam se tornando urgentes. Não poderia continuar a arrastá-las daquela maneira. Na mesma tarde, ligou para o médico e para Björk e informou a ambos que havia decidido se demitir da polícia.
Ficou ainda mais cinco dias em Skagen. O sentimento de que sua alma era um terreno devastado por bombas continuava tão forte quanto antes. Mas, mesmo assim, sentia-se aliviado por ter tido a força de tomar uma decisão, apesar de todos os pesares.
Voltou para Ystad no domingo, 31 de outubro, com o propósito de assinar os diversos formulários que passariam um risco sobre toda a sua carreira policial.
Na manhã de segunda-feira, 1o de novembro, Wallander continuou na cama, de olhos bem abertos, depois de o alarme ter tocado, às seis horas. Além de rápidos cochilos desassossegados, passara a noite inteira acordado. Por diversas vezes tinha se levantado, ido até a janela e espiado a Mariagatan, preocupado com a possibilidade de ter, de novo, tomado a decisão errada. Será que não existia mesmo uma trilha óbvia para seguir pelo resto da vida? Sem encontrar uma resposta satisfatória para essa sua pergunta, acabou indo sentar-se no sofá da sala para ouvir rádio. Por fim, pouco antes de o alarme tocar, aceitara a idéia de que não havia escolha. Ele estava fugindo, quanto a isso não restava a menor dúvida; mas todo mundo foge, mais cedo ou mais tarde, dissera para si mesmo. No fim, forças invisíveis levam a melhor, e isso com todos nós. Ninguém escapa.
Quando se levantou, apanhou o jornal no hall de entrada, pôs a água para o café e foi tomar banho. Parecia estranho voltar à antiga rotina por um dia apenas. Enquanto se enxugava, tentou se lembrar de seu último dia de trabalho, fazia quase um ano e meio. Era verão, no dia em que limpara a escrivaninha e fora até o café do cais, para escrever uma carta sombria a Baiba. Estava dificílimo decidir se aquilo tudo tinha acontecido um século ou um dia antes.
Sentou-se à mesa da cozinha e mexeu seu café.
Aquele fora seu último dia de trabalho por um período de tempo ainda desconhecido. Este seria seu último dia de trabalho para sempre.
Fizera parte da polícia sueca por quase vinte e cinco anos. Mesmo que acontecessem mil coisas nos próximos anos, aqueles vinte e cinco constituiriam sempre a espinha dorsal de sua vida. Nada poderia alterar esse fato. Ninguém pode pedir que a vida seja declarada inválida e querer atirar os dados de novo. Não há volta. A questão era saber se havia algum caminho à frente.
Tentou esclarecer que tipo de emoções sentia nessa fria manhã, mas tudo o que percebeu foi um vazio. Era como se a cerração de outono se tivesse infiltrado em sua consciência.
Soltou um suspiro e concentrou-se no jornal. Ao folheá-lo, teve a nítida sensação de já ter visto todas as fotos e lido todos os artigos várias vezes.
Ia pondo o periódico de lado quando reparou num anúncio fúnebre.
Sten Torstensson, advogado, nascido a 3 de março de 1947, morto a 26 de outubro de 1993.
Wallander olhou fixo para a notícia.
Mas não era o pai, Gustaf Torstensson, quem tinha morrido? Eles se haviam encontrado fazia menos de uma semana, nas areias de Skagen.
Tentou entender o que significava aquilo. O anúncio devia se referir a uma outra pessoa. Ou então tinha havido alguma confusão a respeito dos nomes. Leu o anúncio fúnebre outra vez. Não havia erro nenhum. Sten Torstensson, o homem que fora falar com ele em Skagen, cinco dias antes, estava morto.
Wallander continuou ali sentado, imóvel.
Depois levantou-se, conferiu a lista telefônica e discou um número. Sabia que a pessoa para quem estava ligando se levantava cedo.
— Martinson falando.
Wallander resistiu ao impulso de desligar.
— Sou eu, o Kurt — ele disse. — Espero não tê-lo acordado.
Houve um longo silêncio antes de Martinson responder.
— É você mesmo? — perguntou por fim. — Ora, ora, mas que surpresa!
— Posso imaginar. Mas preciso lhe fazer uma pergunta.
— Não pode ser verdade que você vai embora — disse Martinson.
— É assim que são as coisas. Mas não foi por isso que liguei. Quero saber o que aconteceu com Sten Torstensson, o advogado.
— Então não soube de nada?
— Eu só voltei ontem para Ystad. E não sei de coisa nenhuma.
Houve uma pausa.
— Ele foi assassinado — Martinson disse por fim.
Wallander não ficou surpreso. Assim que leu a notícia no jornal, soube que não tinha sido morte por causas naturais.
— Ele foi baleado no escritório na última terça-feira, à noite — disse Martinson. — Não dá nem para acreditar. Uma coisa trágica. Fazia poucas semanas que o pai tinha morrido num acidente de carro. Mas vai ver que você também não estava sabendo disso.
— Não — mentiu Wallander.
— Você precisa voltar ao trabalho. Precisamos de você para resolver isso. E muitas outras coisas também.
— Não. Eu já resolvi. Vou explicar tudo quando nos encontrarmos. Ystad é uma cidade pequena. Você acaba cruzando com todo mundo, mais cedo ou mais tarde.
Depois se despediu e desligou.
Ao fazê-lo, percebeu que o que tinha acabado de dizer a Martinson não era mais verdade. Em poucos segundos, tudo mudara.
Ficou imóvel ao lado do telefone por mais de cinco minutos. Depois terminou de tomar seu café, vestiu-se e foi até o carro. Às sete e meia, atravessou a porta da delegacia pela primeira vez em dezoito meses. Fez um cumprimento de cabeça para o policial na recepção, foi direto para o escritório de Björk e bateu na porta. O chefe levantou-se e Wallander reparou que ele havia emagrecido. Também reparou que não sabia muito bem como lidar com a situação.
Vou facilitar as coisas para ele, pensou Wallander. De início, ele não vai entender nada, mas até aí eu também não estou entendendo.
— Nós estamos, é claro, muito contentes em saber que você está melhor — começou Björk, hesitante. — Mas, lógico, teríamos preferido que estivesse voltando para trabalhar, e não para nos deixar. Precisamos de você.
E fez um gesto para sua mesa, atulhada de papéis.
— Hoje tenho que verificar assuntos de suma importância, tais como uma proposta de novos modelos de uniforme, além de mais outra minuta incompreensível para mudanças no sistema que envolve as relações entre a guarda dos condados e os chefes de polícia. Sabe alguma coisa a respeito do assunto?
Wallander sacudiu a cabeça.
— Eu me pergunto para onde estamos indo — disse Björk, com ar sombrio. — Se o novo modelo de uniforme for aprovado, minha impressão é a de que vão todos ficar parecidos com uma mistura de carpinteiro e cobrador de ônibus.
Olhou para Wallander, instigando algum comentário, mas Wallander continuou calado.
— A polícia foi nacionalizada nos anos sessenta — continuou Björk. — Agora eles vão repetir tudo de novo. O parlamento quer abolir as guardas dos condados e criar algo completamente novo, chamado corporação nacional de polícia. Mas a polícia sempre foi uma corporação nacional. O que mais ela poderia ser? A independência dos condados foi perdida na Idade Média. Como é que eles acham que alguém pode dar conta das tarefas diárias se está todo mundo soterrado sob uma avalanche de memorandos pra lá de vagos? E, finalmente, vou ter que preparar uma palestra para uma conferência absolutamente desnecessária e discutir o que eles chamam de técnicas de recusa de entrada. O que querem dizer com isso é o que fazer, sem provocar grandes comoções nem resistência, quando é preciso enfiar estrangeiros que não conseguem visto de entrada dentro de ônibus e balsas para deportá-los.
— Percebo que você está ocupadíssimo — disse Wallander, pensando lá com seus botões que Björk não havia mudado nada. Ele nunca tinha conseguido controlar o cargo de chefe da polícia. O cargo o controlava.
— Estou com a papelada toda aqui — Björk continuou. — Só precisamos da sua assinatura. Depois disso, você será um ex-policial. Tenho que aceitar sua decisão, mesmo que não goste nem um pouco dela. Por falar nisso, espero que não se importe, mas convoquei uma coletiva à imprensa para as nove horas. Você se tornou um policial famoso, nos últimos anos, Kurt. Mesmo agindo de forma um tanto esquisita, de vez em quando, não há como negar que você fez um bocado pelo nosso bom nome e reputação. Dizem que há muitos cadetes da polícia que se inspiraram em você.
— Tenho certeza de que isso não é verdade — disse Wallander. — E pode ir cancelando a entrevista coletiva.
A contrariedade na fisionomia de Björk foi visível.
— Nem pensar nisso. É o mínimo que você pode fazer pelos seus colegas. Além do mais, a Revista da Polícia Sueca quer publicar um perfil seu.
Wallander aproximou-se da mesa de Björk.
— Eu não vou largar o emprego. Vim para retomar o trabalho.
Björk o fitou com um olhar espantado.
— Não vai haver entrevista coletiva nenhuma — disse Wallander. — Estou voltando ao trabalho a partir de agora. Vou pedir ao médico que assine um certificado dizendo que estou apto outra vez. Me sinto bem. Quero voltar a trabalhar.
— Espero que isso não seja uma brincadeira sua — disse Björk, sem saber ao certo como reagir.
— Não é. Aconteceu uma coisa que me fez mudar de idéia.
— Tudo isso é muito repentino.
— Para mim também foi. Para ser mais exato, faz pouco mais de uma hora que mudei de idéia. Mas eu volto com uma condição. Ou, melhor dizendo, um pedido.
Björk esperou.
— Quero ficar encarregado do caso Sten Torstensson. Quem é o encarregado no momento?
— Estão todos envolvidos — respondeu Björk. — O Svedberg e o Martinson integram a equipe principal, junto comigo. Per Åkeson foi o promotor indicado para o caso.
— Sten Torstensson era amigo meu — disse Wallander.
Björk assentiu com a cabeça e levantou-se.
— Então é verdade mesmo? Você mudou de idéia?
— Você me ouviu.
Björk deu a volta na mesa e parou diante de Wallander.
— Essa é a melhor notícia que recebo em muito tempo. Vamos rasgar esses documentos todos. Seus colegas vão ter uma surpresa e tanto.
— Quem está no meu antigo escritório?
— O Hanson.
— Eu gostaria de tê-lo de volta, se possível.
— Mas é claro. De todo modo, o Hanson está fazendo um curso em Halmstad esta semana. Pode se instalar lá agora mesmo.
Caminharam juntos pelo corredor até chegarem ao antigo escritório de Wallander. Seu nome fora removido da porta. Isso o deixou fora do prumo por alguns instantes.
— Preciso de uma hora a sós — disse ele.
— Temos uma reunião às oito e meia para discutir o caso de Sten Torstensson — informou Björk. — Na salinha de reunião. Tem certeza de que é sério, mesmo, o que você falou?
— Por que não seria?
Björk hesitou, antes de prosseguir.
— Houve momentos, no passado, em que você se comportou de forma um tanto caprichosa e insensata — falou. — Não há como fugir disso.
— Não se esqueça de cancelar aquela coletiva à imprensa — pediu Wallander.
Björk estendeu a mão.
— Seja bem-vindo de volta.
— Obrigado.
Wallander fechou a porta atrás de si e na mesma hora tirou o telefone do gancho. Olhou em volta da sala. A escrivaninha era nova. Hanson levara a dele para lá. Mas a cadeira era a mesma velha cadeira de sempre.
Pendurou o paletó no cabide e sentou-se.
O mesmo antigo cheiro, pensou. O mesmo lustra-móveis, o mesmo ar seco, o mesmo aroma vago deixado pelas intermináveis xícaras de café que eram ingeridas ali dentro.
Permaneceu um tempão sentado, sem se mexer.
Tinha se digladiado por mais de um ano, tinha buscado a verdade sobre si mesmo e seu futuro. Muito aos poucos, uma decisão havia se formado, vencendo a indecisão. Aí ele pegara um jornal e tudo mudara.
Pela primeira vez, em muito tempo, sentiu-se invadido por um calor de satisfação.
Tinha tomado uma decisão. Se certa ou não, isso ele não saberia dizer. Mas não importava mais.
Estendeu a mão, pegou um bloco de notas e escreveu nele duas palavras.
Sten Torstensson.
Estava de volta ao trabalho.
3
Às oito e meia, depois que Björk fechou a porta da sala de reuniões, foi como se Wallander nunca tivesse se ausentado dali. Os dezoito meses que separavam aquela da última reunião investigativa feita com os colegas tinham sido apagados. Era como acordar de um longo e profundo sono durante o qual o tempo tivesse cessado de existir.
Estavam todos sentados em volta da mesa oval, a exemplo de tantas outras ocasiões. Como Björk ainda não tinha aberto a boca, Wallander presumiu que os colegas estavam aguardando algumas palavras breves de agradecimento pela cooperação prestada ao longo dos anos. Depois disso, ele se retiraria da sala e todos voltariam a se concentrar nas respectivas anotações, prosseguindo na busca do desconhecido que matara Sten Torstensson.
Não lhe escapou o fato de ter assumido seu antigo lugar de forma automática, sentando-se à esquerda de Björk. A cadeira vizinha à sua estava vazia. Era como se os colegas não quisessem muita proximidade com alguém que já não pertencia a seu meio. Martinson sentou-se do lado oposto da mesa, fungando alto. Wallander se perguntou se alguma vez já teria visto o colega sem um resfriado. Ao lado dele, sentou-se Svedberg, balançando-se para frente e para trás na cadeira e, para não fugir ao costume, coçando a careca com um lápis.
Tudo estaria exatamente como sempre fora, aos olhos de Wallander, se não fosse pela mulher de calça jeans e blusa azul sentada sozinha no canto oposto da mesa. Nunca fora apresentado, mas sabia quem ela era e até o seu nome. Dois anos antes, haviam surgido conversas sobre um reforço para o contingente policial de Ystad e desde aquela época o nome de Ann-Britt Höglund entrara na pauta como possível candidata. Ela era jovem, ainda, tinha se formado na Faculdade de Polícia fazia apenas três anos, mas já angariara uma bela reputação. Recebera um dos dois únicos prêmios de final de curso baseados no aproveitamento geral e concedidos segundo avaliação dos próprios colegas. Era natural de Svarte, mas havia crescido na região de Estocolmo. Fora requisitada por delegacias de polícia do país todo, mas, como já tinha deixado bem claro que gostaria de voltar a seu condado natal, acabou assumindo um posto junto à corporação de Ystad.
Wallander cruzou o olhar com ela, que lhe deu um sorriso rápido.
Quer dizer então que nada jamais é como antes, pensou ele. Com uma mulher em nosso meio, nada poderia ser igual.
Mas não teve tempo de levar o pensamento adiante. Björk estava de pé e Wallander percebeu o próprio nervosismo. Talvez fosse tarde demais. Talvez seu contrato já tivesse sido revogado, sem que ele soubesse.
— Em geral, as segundas pela manhã são osso duro de roer — começou Björk. — Sobretudo quando temos que lidar com um homicídio especialmente desagradável e incompreensível como o do advogado Sten Torstensson. Mas hoje vou poder dar início a nossa reunião com uma boa notícia. O Kurt declarou ter recuperado a boa saúde e vai retomar as atividades a partir de agora. Sou o primeiro a querer lhe dar as boas-vindas, claro, mas sei que todos os meus colegas sentem o mesmo. Sobretudo Ann-Britt Höglund, que ele ainda não conhece.
O silêncio foi geral. Martinson fitava Björk com olhos incrédulos, enquanto Svedberg, com a cabeça inclinada de lado, olhava boquiaberto para Wallander, como se não estivesse acreditando nos próprios ouvidos. Ann-Britt Höglund dava a impressão de ainda não ter assimilado o que o chefe acabara de anunciar.
Wallander sentiu-se obrigado a dizer qualquer coisa.
— É verdade — disse ele. — Estou voltando ao trabalho hoje.
Svedberg parou de se balançar para frente e para trás e baixou as palmas da mão sobre o tampo da mesa com estrondo.
— Mas isso é magnífico, Kurt. Nós não iríamos conseguir dar conta do recado nem mais um dia sem você.
A espontaneidade do comentário de Svedberg provocou risadas em todo mundo na sala. Um atrás do outro, fizeram fila para apertar a mão de Wallander. Björk tentou organizar a vinda de alguns pães doces para acompanhar o café, e o próprio Wallander teve dificuldade em esconder a emoção.
Em poucos minutos, estava tudo encerrado. O tempo para os extravasamentos emotivos se esgotara e Wallander sentiu-se grato por isso. Abriu então o bloco que tinha levado consigo do escritório e onde não havia nada além de um nome: Sten Torstensson.
— O Kurt me perguntou se poderia integrar a equipe de investigação sem maiores formalidades — disse Björk. — E claro que pode. E eu presumo que o melhor jeito de colocá-lo a par do que apuramos até agora é fazer um resumo para vermos em que pé estão as coisas. Depois poderemos lhe dar um tempinho para se familiarizar com os detalhes.
E fez então um gesto de cabeça para Martinson, que, durante a ausência de Wallander, sem dúvida nenhuma tinha assumido o papel de porta-voz que o inspetor desempenhava.
— Eu continuo um tanto confuso — disse Martinson, enquanto folheava sua papelada —, mas basicamente as coisas aconteceram da seguinte maneira. Na manhã da quarta-feira, 27 de outubro, ou seja, cinco dias atrás, a senhora Berta Dunér, secretária do escritório de advocacia, chegou ao trabalho, como de costume, alguns minutos antes das oito. Encontrou Sten Torstensson no chão, baleado. Ele estava entre a escrivaninha e a porta. Fora atingido por três balas, sendo que qualquer uma teria sido suficiente para matá-lo. Como não mora ninguém no prédio, e é uma daquelas construções antigas, de pedra, com paredes muito grossas, e ainda por cima localizada numa rua movimentada, ninguém parece ter ouvido os tiros. Pelo menos ninguém se apresentou ainda. Os resultados preliminares do exame cadavérico indicam que ele foi atingido por volta das onze da noite. O que se encaixaria às declarações da senhora Dunér de que o advogado costumava trabalhar até tarde da noite, sobretudo depois que o pai faleceu em circunstâncias muito trágicas.
Nessa altura, Martinson fez uma pausa e virou-se para Wallander, com uma interrogação no olhar.
— Eu sei que o pai dele morreu num acidente de carro — disse Wallander.
Martinson meneou a cabeça para ele e continuou:
— Isso é mais ou menos tudo o que sabemos. Ou seja, não sabemos coisa alguma. Não temos um motivo, não temos a arma do crime e não temos testemunhas.
Wallander se questionava sobre a necessidade ou não de mencionar a visita de Torstensson a Skagen. Por diversas vezes, já, cometera um dos maiores pecados que um policial pode cometer, o de não passar informações para os demais colegas. Em cada uma dessas ocasiões, diga-se de passagem, julgara ter razões sólidas para se manter calado, mas era preciso admitir que seus motivos haviam sido quase sempre questionáveis.
Estou cometendo um erro, pensou. Vou começar uma segunda vida como policial negando tudo quanto a experiência anterior me ensinou. Ainda assim, algo lhe dizia que era importante manter silêncio, naquele caso em particular. Ele tratava o instinto com respeito. O instinto era, às vezes, seu conselheiro mais confiável; outras, seu pior inimigo. Dessa vez, Wallander tinha certeza de que estava agindo certo.
Algo que Martinson havia falado o colocara em estado de alerta. Ou talvez tivesse sido algo que Martinson deixara de falar.
Sua linha de pensamento foi interrompida quando Björk estapeou o tampo da mesa. Isso em geral significava que o chefe estava irritado ou impaciente.
— Eu pedi que nos trouxessem uns pães doces — ele disse —, mas nem sinal deles até agora. Sugiro interrompermos a reunião por aqui. Deixo com vocês a tarefa de pôr o Kurt a par dos detalhes todos. Voltamos a nos reunir esta tarde. Quem sabe até lá já haja alguma coisa para acompanhar o café.
Depois que Björk saiu da sala, todos se aglomeraram na ponta da mesa que ele deixara vazia. Wallander sentiu que tinha de dizer alguma coisa. Não tinha direito de voltar à equipe assim, sem mais nem menos, fingindo que nada acontecera.
— Vou tentar começar pelo começo — falou ele. — Foi um período duro. Eu achava que nunca mais iria conseguir voltar ao trabalho. Matar um homem, mesmo que tenha sido em defesa própria, me atingiu em cheio. Mas vou me esforçar ao máximo e dar o melhor de mim.
Ninguém abriu a boca.
— Não pense que nós não entendemos — disse Martinson, por fim. — Mesmo que o trabalho deixe a gente calejado para praticamente tudo, achando que não existe um fim para os horrores da vida, quando alguém que a gente conhece bem é atingido pela adversidade, todos nós ficamos abalados. Não sei se isso vai fazer você se sentir melhor ou não, mas quero que saiba que fez tanta falta aqui quanto o Rydberg fez, alguns anos atrás.
O velho inspetor-chefe Rydberg, que morrera na primavera de 1991, fora o santo padroeiro de todos eles. Dono de uma capacidade extraordinária como policial, e de uma enorme habilidade para tratar todo mundo de um jeito que era ao mesmo tempo direto e pessoal, Rydberg sempre estivera no centro de todas as investigações.
O inspetor entendeu o que Martinson quis dizer.
O único que conseguira se aproximar de Rydberg a ponto de se tornar um amigo tinha sido Wallander. E, por trás daquela fachada enfezada, havia uma pessoa cujos conhecimentos e capacidades iam muito além dos casos investigados.
Eu herdei a condição dele, pensou Wallander. O que Martinson disse, no fundo, é que eu deveria assumir o manto que Rydberg envergava, mas que jamais exibiu em público. Até mesmo mantos invisíveis existem.
Svedberg se levantou.
— Se ninguém se opõe, vou dar um pulo ao escritório de Torstensson — explicou. — O pessoal da Ordem dos Advogados quer dar uma examinada na papelada dele. E quer a polícia presente.
Martinson empurrou uma pilha de pastas para Wallander.
— É tudo que temos até agora — disse ele. — Presumo que você queira um pouco de paz e sossego enquanto examina isso tudo.
Wallander fez que sim com a cabeça.
— O acidente de carro — disse ele. — Gustaf Torstensson.
Martinson o olhou espantado.
— Mas isso já foi encerrado. O velho capotou e foi parar direto num pasto.
— Se você não se importa, eu gostaria de ver os relatórios todos, assim mesmo — solicitou Wallander, com uma certa hesitação na voz.
Martinson deu de ombros.
— Eu levo até a sala do Hanson.
— Não é mais dele — disse Wallander. — Eu recuperei minha antiga sala.
Martinson se pôs de pé.
— Você sumiu da noite para o dia e voltou de forma igualmente repentina. É fácil a gente dar uma mancada aqui e ali.
Martinson se retirou. Só restavam Wallander e Ann-Britt Höglund na sala.
— Ouvi muita coisa a seu respeito — ela disse.
— E tudo com certeza cem por cento verdadeiro, infelizmente.
— Acho que posso aprender muita coisa com você.
— Duvido muito.
Wallander se levantou às pressas, a fim de interromper a conversa, e juntou a papelada que Martinson havia lhe passado. Ann-Britt Höglund manteve a porta aberta para ele. Já em sua sala, de porta fechada, reparou que estava molhado de suor. Tirou o paletó e a camisa e começou a se enxugar numa das cortinas. Bem nesse momento, Martinson abriu a porta sem bater. Hesitou, ao ver Wallander seminu.
— Eu vim só trazer os relatórios sobre o acidente de carro em que Gustaf Torstensson morreu — disse ele. — Esqueci que esta não é mais a sala do Hanson.
— Pode ser que eu seja antiquado — disse Wallander —, mas, por favor, no futuro bata antes de entrar.
Martinson colocou uma pasta sobre a mesa de Wallander e bateu em retirada mais que depressa. Wallander terminou de se enxugar, pôs a camisa de novo, depois sentou-se e começou a ler.
Passava das dez e meia quando terminou de examinar os relatórios.
Nada lhe parecia familiar. Por onde começar? Lembrou-se de Sten Torstensson surgindo do meio da cerração, naquela praia da Jutlândia. Ele me pediu ajuda, pensou Wallander. Queria que eu descobrisse o que tinha acontecido com o pai. Um acidente de carro que na verdade foi uma outra coisa; e que não era suicídio. Ele me falou que o pai andava meio mudado. Alguns dias depois, o próprio Sten Torstensson é morto a tiros em seu escritório, durante a noite. Ele falou sobre o pai estar nervoso, mas ele mesmo não estava.
Mergulhado em reflexões, Wallander puxou para si o bloco onde já havia anotado o nome de Sten Torstensson. Acrescentou outro nome: Gustaf Torstensson. Depois escreveu os dois novamente, em ordem inversa.
Apanhou o fone e discou o número de Martinson. Não obteve resposta. Tentou mais uma vez, e de novo nada. Depois caiu em si: os números deviam ter mudado durante sua ausência. Saiu e foi até a sala de Martinson. A porta estava aberta.
— Terminei de ler os relatórios todos — disse ele, sentando-se na cadeira de visitas meio bamba de Martinson.
— Não temos muita coisa em que nos basear, como você deve ter reparado — observou Martinson. — Uma ou mais pessoas invadiram o escritório de Sten Torstensson durante a noite e o mataram a tiros. Nada parece ter sido roubado. Ele ainda estava com a carteira no bolso de dentro do paletó. A senhora Dunér trabalhou lá durante mais de trinta anos e insiste que não há nada faltando.
Wallander balançou a cabeça, pensativo. Ainda não atinara com o que Martinson tinha dito ou deixado de dizer que o fizera reagir.
— Você foi o primeiro a chegar ao local, imagino — disse ele.
— O Peters e o Norén foram os primeiros, na verdade. E eles mandaram me chamar.
— Em geral a gente sempre tem uma primeira impressão, em situações como essa — disse Wallander. — O que você achou?
— Assassinato com intenção de roubar — respondeu Martinson, sem hesitar.
— Quantas pessoas eram?
— Não encontramos indícios que digam se foi um ou se foram vários. Mas só foi usada uma arma, disso temos certeza absoluta, mesmo que ainda não tenham chegado todos os relatórios da perícia.
— Então foi um homem que invadiu o escritório?
Martinson fez que sim com a cabeça.
— Acho que foi. Mas isso não passa de uma impressão minha, sem nada que apóie ou rejeite a idéia.
— O Torstensson foi atingido por três projéteis — continuou Wallander. — Um no coração, um no estômago, logo abaixo do umbigo, e um na testa. Será que estou certo em pensar que os tiros partiram de um profissional que sabia o que estava fazendo?
— Foi o que eu achei, também. Mas é claro que pode ter sido mera coincidência. Dizem que o número de mortes provocadas por tiros disparados ao acaso é quase igual ao de óbitos provocados pela ação de um matador profissional. Lembro de ter lido isso em algum relatório norte-americano.
Wallander se pôs de pé.
— Por que alguém haveria de querer invadir o escritório de um advogado? — perguntou. — Presumivelmente porque os advogados têm fama de ganhar quantidades fantásticas de dinheiro. Mas será que alguém estava de fato esperando encontrar o dinheiro empilhado em cima da mesa?
— Só há uma pessoa, ou quem sabe duas, que poderiam responder a essa sua pergunta — disse Martinson.
— E nós vamos pegá-las. Acho que vou até lá dar uma olhada.
— A senhora Dunér está bastante abalada, é claro — disse Martinson. — Em menos de um mês, toda a existência dela ruiu por terra. Primeiro o velho Torstensson morre na estrada. Ela mal tem tempo de providenciar o enterro do pai quando o filho é assassinado. Está em estado de choque, como seria de imaginar, mas assim mesmo é espantosa a facilidade com que se pode falar com ela. O endereço está junto com a transcrição da conversa que o Svedberg teve com ela.
— Stickgatan, número 26 — leu Wallander. — Fica bem atrás do Hotel Continental. Eu às vezes estaciono ali.
— Mas não é proibido parar ali? — Martinson perguntou, mais para si mesmo.
Wallander pegou o paletó e saiu da delegacia. Era a primeira vez que via aquela moça na recepção. Ocorreu-lhe que talvez fosse uma boa idéia se apresentar. Entre outras coisas para descobrir se Ebba, que estava ali havia anos e anos, tinha parado de trabalhar à noite. Mas desistiu da idéia. Tudo somado, até ali o dia de trabalho não fora tão dramático assim, mas a tensão interior era grande. Sentiu necessidade de estar sozinho. Tinha passado um tempo razoável sem companhia nenhuma. Precisava de um pouco de espaço para operar a transformação. Desceu a colina que ia dar no hospital, e por um breve momento sentiu o vago desejo de regressar à solidão de Skagen, à sua ronda solitária pela praia, em patrulhas que ninguém jamais perturbava.
Mas tudo isso era passado. Agora ele estava de volta ao trabalho.
Não estou mais acostumado. Mas vai passar, mesmo que leve um tempo.
O escritório do advogado ficava num edifício de pedra, pintado de amarelo, na Sjömansgatan, não muito distante do velho teatro, que passava por uma reforma geral. Havia uma viatura parada na frente e, na calçada oposta, um punhado de pessoas discutindo o que poderia ter acontecido. O vento soprava forte do mar para a terra e Wallander estremeceu ao saltar do carro. Abriu a pesada porta da frente e quase deu um encontrão com Svedberg, que estava de saída.
— Estou saindo para comprar alguma coisa para comer —, disse ele.
— Vá em frente. Acho que vou ficar um pouco por aqui.
Havia uma jovem funcionária sentada no escritório da frente, sem nada para fazer. Parecia ansiosa. Wallander lembrava-se de ter visto nos relatórios que se chamava Sonia Lundin e que trabalhava ali havia poucos meses. Não fora capaz de fornecer à equipe de investigação nenhuma informação útil.
Wallander apertou a mão da moça, ao se apresentar.
— Vou só dar uma olhada em volta — disse ele. — A senhora Dunér não veio hoje, imagino.
— Ela está na casa dela, chorando — respondeu a jovem.
Wallander não soube o que dizer.
— Ela não vai conseguir sobreviver a isso — disse Sonia Lundin. — Ela também vai morrer.
— Ah, eu não acho, não — discordou Wallander, ciente de como soava oca a sua resposta.
O escritório de advocacia dos Torstensson fora um lugar de gente solitária, pensou. Gustaf Torstensson era viúvo havia mais de quinze anos, o que significava que Sten tinha passado sem mãe todo esse tempo, além de ser um solteirão convicto. A sra. Dunér era divorciada desde o começo dos anos setenta. Três pessoas solitárias em constante contato, dia após dia. De repente duas se vão, deixando a terceira mais sozinha que nunca.
Não foi difícil para Wallander compreender por que a sra. Dunér estava em casa, chorando.
A porta da sala de reuniões se achava fechada. Era possível ouvir alguns murmúrios vindos de lá. Havia placas de latão polido com os nomes dos dois advogados nas portas em frente à sala de reuniões, ambas gravadas com letras requintadas.
Num impulso, Wallander abriu primeiro a porta do escritório de Gustaf Torstensson. As cortinas estavam fechadas e a sala às escuras. Havia um odor muito vago de fumaça de charuto. Wallander olhou em volta e teve a sensação de ter voltado no tempo. Sofás pesados de couro, uma mesa com tampo de mármore, pinturas nas paredes. Ocorreu-lhe que talvez não tivesse levado em conta uma possibilidade: a pessoa que assassinara Sten Torstensson poderia estar atrás de obras de arte. Aproximou-se de uma das telas e tentou decifrar a assinatura, ao mesmo tempo em que se perguntava se seria uma cópia ou um original. Sem obter sucesso nem numa coisa nem noutra, seguiu com o exame. Havia um globo terrestre de tamanho razoável ao lado da escrivaninha, um móvel sólido e vazio, exceto por algumas canetas, um telefone e um ditafone. Sentou-se na confortável cadeira em frente à mesa e continuou olhando em volta da sala, enquanto pensava de novo no que Sten Torstensson havia lhe dito no café do Museu de Arte de Skagen.
Um acidente de carro que não era um acidente de carro. Um homem que passara os últimos meses de vida tentando esconder algo que o preocupava.
Wallander se perguntou quais eram as principais características da vida de um advogado. Defender quando um promotor acusava. Fornecer assistência jurídica. Os advogados viviam recebendo informações confidenciais e trabalhavam sob um rígido voto de sigilo profissional.
Algo despontou na mente de Wallander, algo em que não havia pensado antes: os advogados guardavam muitos segredos.
Levantou-se de novo depois de um tempo. Ainda era cedo para começar a tirar conclusões.
Ao sair da sala, viu que Sonia Lundin continuava imóvel na cadeira. Abriu a porta do gabinete de Sten Torstensson. Por uma fração de segundo, hesitou, como se de alguma forma esperasse ver o corpo do morto ainda no chão, como nas fotos anexadas ao inquérito. Mas tudo que restava era um pedaço de plástico. A polícia técnica levara o tapete verde-garrafa para exame.
A sala lembrava a outra da qual tinha acabado de sair. A única diferença era um par de poltronas para visitas, junto à escrivaninha.
Não havia papel nenhum sobre a mesa. Dessa vez, Wallander optou por não se sentar na cadeira em frente.
Eu ainda estou só arranhando a superfície, pensou. É como se, para entender o que houve aqui, eu estivesse tentando ouvir, tanto quanto ver o ambiente em volta.
Saiu da sala e tornou a fechar a porta. Svedberg estava de volta e tentava convencer Sonia Lundin a aceitar um dos sanduíches que tinha acabado de comprar. Wallander balançou a cabeça, recusando o que lhe fora oferecido. E apontou para a sala de reuniões.
— Estamos com dois digníssimos representantes da Ordem dos Advogados aí dentro — disse Svedberg. — Estão começando a examinar toda a papelada existente no escritório. Registram, lacram e decidem que providências tomar. Os clientes serão informados e outros advogados assumirão os casos. O Escritório Torstensson de Advocacia não existe mais, na prática.
— Nós teremos de obter acesso a todo esse material, claro — disse Wallander. — A verdade sobre o que houve aqui pode muito bem estar escondida nas ligações que os advogados mantinham com os clientes.
Svedberg arqueou uma sobrancelha e olhou para Wallander.
— Os advogados? — repetiu ele. — Imagino que você esteja falando dos clientes de Sten Torstensson, claro.
Wallander confirmou com um meneio de cabeça.
— Você tem razão, lógico. Claro que eu quis dizer os clientes de Sten Torstensson.
— No fundo, é uma pena que não seja o contrário — disse Svedberg.
Wallander chegou quase a ignorar o comentário do colega, mas de repente se deu conta de que era importante.
— Por que, o que você quer dizer com isso? — perguntou, surpreso.
— Pelo jeito, o velho Torstensson tinha muito poucos clientes. Já o filho, Sten Torstensson, estava envolvido numa série de processos.
Svedberg inclinou a cabeça para o lado da sala de reunião.
— Eles estão achando que vão precisar de mais de uma semana para examinar tudo.
— Então é melhor eu não interrompê-los — disse Wallander. — Acho que prefiro dar uma palavrinha com Berta Dunér.
— Quer que eu vá com você?
— Não precisa, obrigado. Eu sei onde ela mora.
Wallander voltou até o carro e deu a partida. Estava na dúvida. Depois se forçou a uma decisão. Começaria pela pista que ninguém tinha, a não ser ele. A pista que Sten Torstensson lhe dera ao ir visitá-lo em Skagen.
Elas têm de estar relacionadas, pensou ele, seguindo devagar na direção leste; logo depois de passar pelo tribunal, e de ultrapassar Sandskogen, estava fora da cidade. Essas duas mortes estão ligadas. Não há nenhuma outra explicação racional para elas.
Em seguida contemplou a paisagem cinzenta por on-de passava. Tinha começado a chuviscar. Ele aumentou o aquecimento.
Como é que alguém pode se apaixonar por essa terra toda enlameada?, perguntou-se ele. No entanto foi justamente o que eu fiz. Sou um policial cuja existência se vê o tempo todo rodeada de lama. E eu não mudaria esse ambiente por nada neste mundo.
Wallander gastou pouco mais de meia hora para chegar ao local onde Gustaf Torstensson tinha morrido, na noite de 11 de outubro. Estava com o relatório do acidente no bolso, ao saltar naquele trecho de estrada castigado pelo vento. Antes de sair para examinar o terreno, trocou seus sapatos por um par de botas impermeáveis que tirou do porta-malas. O vento estava apertando, assim como a chuva, e fazia muito frio. Havia um gavião pousado num mourão bambo de cerca, olhando para ele.
O local do acidente era de uma desolação ímpar, mesmo para a Skåne. Deserto, sem sinal de casas por perto, sem nada, a não ser por aquela ondulação amarronzada de terras até onde a vista alcançava. A estrada seguia em linha reta até certo ponto e depois, uns cem metros mais à frente, começava um aclive e, em seguida, vinha uma virada abrupta para a esquerda, Wallander desdobrou o croqui da cena do acidente e comparou o desenho com a realidade. O carro acidentado estava de cabeça para baixo, no pasto, à esquerda, a uns vinte metros da estrada. Não havia o menor rastro de derrapagem no asfalto. A cerração estava muito forte na hora em que o acidente ocorrera.
Wallander guardou o relatório no carro. Voltou até o meio da estrada e olhou ao redor. Não passara um único veículo desde sua chegada. O gavião continuava empoleirado no seu mourão. Wallander saltou a vala e saiu chapinhando pelo barro, que imediatamente começou a grudar nas solas das botas. Andou uns vinte metros e olhou de volta para a estrada. Passou uma caminhonete de algum açougue, seguida por dois carros particulares. A chuva estava aumentando. Ele tentou imaginar o que tinha ocorrido. Um carro dirigido por um motorista idoso segue em meio a uma densa manta de neblina. O motorista perde o controle, o carro sai da estrada, capota uma ou duas vezes e pára de cabeça para baixo. O motorista está morto, preso no banco pelo cinto. Além de alguns arranhões no rosto, ele esmagou a nuca em algum objeto pontudo e metálico. O mais provável é que a morte tenha sido instantânea. Ele só é descoberto na madrugada, quando um fazendeiro passando de trator avista o carro.
Não precisaria estar indo muito depressa, Wallander pensou. Pode ter perdido o controle e pisado no acelerador, no pânico do momento. O veículo saiu disparado rumo ao pasto. O que Martinson escrevera sobre o local do acidente era provavelmente abrangente, tanto quanto correto.
Estava prestes a ir embora quando reparou num objeto semi-enterrado na lama. Curvou-se e viu que era a perna de uma cadeira comum de cozinha, de madeira. Jogou-a longe e o gavião levantou vôo, batendo as asas pesadas e se afastando do mourão de cerca.
Resta o carro acidentado, raciocinou Wallander, mas eu acho que não vou descobrir nada que o Martinson já não tenha encontrado. Ao menos nada de surpreendente.
Voltou para o carro, raspou o máximo de lama da sola das botas e tornou a calçar os sapatos. No caminho para Ystad, chegou a pensar se não deveria aproveitar a oportunidade para fazer uma visita ao pai e a sua nova mulher em Löderup, mas resolveu que não. Queria conversar com a sra. Dunér e, se possível, dar também uma olhada na carroceria do carro acidentado, antes de voltar para a delegacia.
Parou no posto de gasolina na entrada de Ystad para comer um sanduíche e tomar um café. Olhou em volta. Não havia lugar melhor para a melancolia sorumbática dos suecos se fazer presente que as lanchonetes de postos de gasolina, foi a conclusão dele. Deixou o café quase intocado, na ânsia de escapar daquela atmosfera. Entrou na cidade debaixo de chuva, virou à direita no Hotel Continental e de novo à direita na estreita Stickgatan. Parou semi-ilegalmente na frente da casa rosada onde morava Berta Dunér, com as duas rodas da esquerda na calçada. Tocou a campainha e esperou. Levou quase um minuto para que a porta se abrisse. E tudo que ele pôde ver foi um rosto muito pálido pela fresta.
— Eu me chamo Kurt Wallander e sou da polícia — informou ele, procurando em vão pela identidade nos bolsos. — Gostaria de dar uma palavrinha com a senhora, se não se incomoda.
Berta Dunér abriu a porta para que Wallander entrasse. Estendeu-lhe um cabide e o inspetor pendurou seu paletó molhado. Depois ela o convidou a ir para a sala de estar, que tinha assoalho encerado e uma enorme janela até o chão, dando para um pequeno gramado. Olhou em volta e reparou que estava numa sala onde tudo tinha seu devido lugar: móveis e enfeites estavam dispostos de maneira ordenada, nos mínimos detalhes.
Não resta dúvida de que ela devia administrar o escritório dos dois advogados da mesma forma, pensou ele. Regar as plantas e garantir que as agendas de compromissos estejam organizadas de forma imaculada podem muito bem ser dois lados de uma mesma moeda. Uma vida onde não há espaço para o acaso.
— Por favor, sente-se — convidou ela, numa voz que surpreendeu pela rouquidão. Wallander esperava ouvir daquela mulher excepcionalmente magra, de cabelos grisalhos, uma voz suave e frágil. Sentou-se numa poltrona antiquada de vime, que rangeu quando se acomodou.
— Gostaria de uma xícara de café? — ela perguntou.
Wallander sacudiu a cabeça para dizer que não.
— Chá?
— Não, obrigado. Só queria lhe fazer algumas perguntas. Não vou demorar.
Ela sentou na pontinha do sofá florido, do outro la-do da mesinha de centro com tampo de vidro. Wallander se deu conta de que não tinha nem caneta nem bloco para anotar. Tampouco havia preparado ao menos as perguntas iniciais, coisa que sempre fizera, antes. Cedo aprendera que não existem entrevistas ou conversas insignificantes quando se trata de uma investigação criminal.
— Eu gostaria primeiro de dizer que lamento muitíssimo as duas tragédias ocorridas — começou Wallander, hesitante. — Encontrei-me com Gustaf Torstensson umas poucas vezes, apenas, mas conhecia Sten Torstensson muito bem.
— Ele cuidou da papelada do seu divórcio, faz nove anos — comentou Berta Dunér.
Enquanto ela falava, Wallander lembrou-se de que já conhecia a secretária. Era ela quem recebia Mona e ele próprio sempre que iam participar, com o advogado, de reuniões invariavelmente penosas e arrasadoras. O cabelo era menos grisalho, na época, e talvez ela não fosse tão magra. Mesmo assim, surpreendeu-se de não tê-la reconhecido na hora.
— A senhora tem uma boa memória — ele disse.
— Eu às vezes me esqueço de um nome, mas jamais de uma fisionomia.
— Sou assim também.
Houve um silêncio desconfortável. Passou um carro na rua. Ficou claro, para Wallander, que deveria ter esperado mais um pouco para ir falar com Berta Dunér. Não sabia o que perguntar, não sabia por onde começar. E não tinha a menor vontade de ser lembrado de seu longuíssimo e acrimonioso processo de divórcio.
— A senhora já conversou com meu colega Svedberg — disse ele, depois de um silêncio. — Infelizmente, muitas vezes é preciso continuar fazendo perguntas, quando existe um crime grave no meio, e nem sempre é o mesmo policial que aparece.
Gemeu por dentro ao perceber a forma desastrada com que estava se expressando. Por um triz não pediu desculpas e foi embora, mas forçou-se a assumir o controle da situação.
— Não preciso lhe perguntar sobre o que eu já sei — prosseguiu. — Não precisamos rever o que houve quando a senhora chegou para trabalhar, naquela manhã, e encontrou Sten Torstensson morto. A menos, claro, que tenha se lembrado de algo que não foi mencionado antes.
A resposta dela foi firme, sem vacilar.
— Nada, nada. Eu já dei ao policial Svedberg os detalhes de como tudo aconteceu.
— Mas e na noite anterior? — perguntou Wallander. — Na hora de ir embora?
— Eram umas seis horas da tarde. Quem sabe seis e cinco, mas não muito mais que isso. Eu tinha acabado de conferir algumas cartas que a senhorita Lundin havia batido. Depois liguei para a sala do doutor Torstensson para ver se ele ainda queria alguma coisa de mim. Ele disse que não e me deu boa-noite. Vesti o casaco e vim para casa.
— E trancou a porta quando saiu? Sten ficou sozinho, no escritório?
— Ficou.
— Sabe o que ele estava fazendo, naquela noite?
Ela o olhou espantada.
— Trabalhando, claro. Um advogado tão sobrecarregado quanto ele não pode simplesmente ir para casa quando bem entende.
Wallander meneou a cabeça.
— Entendo por que ele ficou fazendo serão. Mas o que eu gostaria de saber é se havia algo em especial para ser resolvido, algo urgente.
— Tudo era urgente — disse ela. — Como o pai dele tinha sido morto poucas semanas antes, o doutor Sten ficou com um volume de trabalho tremendo. Isso é mais ou menos óbvio.
Wallander arqueou as sobrancelhas diante da escolha de palavras de Berta Dunér.
— A senhora está se referindo ao acidente de carro, eu suponho.
— E a que mais eu poderia estar me referindo?
— A senhora disse que o pai de Sten foi morto. Não que ele morreu num acidente.
— A gente ou morre ou é morto. Quando morre na própria cama, em geral se diz que morremos de causas naturais; mas quando se morre num acidente de carro, não lhe parece óbvio que é preciso aceitar que fomos mortos?
Wallander meneou lentamente a cabeça, concordando com ela. Entendia o que Berta Dunér queria dizer. De qualquer modo, perguntou-se se ela não teria, sem querer, dito algo que talvez ecoasse a desconfiança que fizera Sten Torstensson procurá-lo em Skagen.
De repente, ocorreu-lhe uma idéia.
— Será que a senhora saberia me dizer, assim de cabeça, o que Sten Torstensson fez na semana anterior à morte dele? Na terça-feira, 24 de outubro, e na quarta, 25?
Berta Dunér respondeu sem pestanejar.
— Estava viajando.
Quer dizer então que Sten Torstensson não tinha feito nenhum segredo da visita que lhe fizera, pensou Wallander.
— Ele falou que precisava se ausentar por uns dois dias, para espantar um pouco a dor que estava sentindo depois da morte do pai — continuou. — Naturalmente, cancelei todos os compromissos dele nesses dois dias.
Nessa altura, sem nenhum aviso, a secretária caiu no choro. Wallander não fazia a mínima idéia de como reagir. A cadeira onde estava sentado rangeu quando ele se mexeu, constrangido.
Ela se levantou e correu para a cozinha. Wallander escutou-a assoar o nariz. Depois ela voltou para a sala.
— É duro — disse ela. — É muito, muito duro.
— Eu entendo — Wallander respondeu.
— Ele me mandou um cartão-postal — continuou ela, exibindo um sorrisinho no rosto. Wallander teve certeza de que ela iria começar a chorar de novo a qualquer momento, mas Berta Dunér tinha mais controle sobre si do que ele imaginava.
— Gostaria de dar uma olhada?
Wallander meneou a cabeça.
— Gostaria sim.
Ela foi até uma estante de livros, que ocupava uma das paredes da sala, pegou um postal de dentro de um prato de porcelana e entregou ao inspetor.
— A Finlândia deve ser um país muito lindo. Nunca estive lá. O senhor conhece?
Wallander fitou o cartão sem entender muita coisa. A foto mostrava o mar sob o sol do entardecer.
— Conheço sim — falou, devagar. — Já estive na Finlândia. E, como a senhora disse, é um país lindíssimo.
— Peço desculpas por ter perdido o controle agora há pouco — ela disse. — É que esse cartão chegou no dia em que eu o encontrei morto.
Wallander balançou a cabeça, distraído. Pelo visto, havia muito mais coisas que precisava perguntar a Berta Dunér do que imaginava. Ao mesmo tempo, sabia que aquele não era o momento oportuno. Quer dizer que Torstensson tinha dito a sua secretária que estava indo para a Finlândia. E um cartão-postal chegara de lá, para todos os efeitos como prova da viagem. Quem poderia tê-lo enviado? Porque Torstensson, afinal de contas, estava na Jutlândia.
— Vou precisar ficar com este cartão por alguns dias. É para a investigação — disse ele. — Dou-lhe minha palavra que a senhora o terá de volta.
— Entendo.
— Só mais uma perguntinha, antes de eu ir embora. A senhora notou qualquer coisa fora do normal, nos dias que antecederam a morte dele?
— O que o senhor quer dizer com isso?
— Por acaso ele se comportou de forma diferente do habitual?
— Ele estava naturalmente muito perturbado e triste com a morte do pai.
— E com mais nada?
Wallander sabia que a pergunta fora meio desajeitada, mas mesmo assim esperou pela resposta dela.
— Não. Ele estava como sempre.
Wallander se levantou.
— Tenho certeza de que vou precisar conversar com a senhora de novo — disse ele.
Ela não se levantou do sofá.
— Quem poderia ter feito uma coisa horrível dessas? — perguntou. — Entrar num escritório, atirar num homem e depois simplesmente sair para a rua de novo, como se nada tivesse acontecido.
— É isso que nós iremos descobrir — prometeu Wallander. — A senhora saberia me dizer se ele tinha algum inimigo?
— Inimigo? Como é que ele poderia ter inimigos?
Wallander calou-se por alguns instantes, depois fez uma última pergunta.
— O que a senhora acha que pode ter acontecido?
Ela se levantou, antes de responder.
— Houve um tempo em que era possível compreender as coisas, mesmo as que eram meio incompreensíveis — disse ela. — Mas agora não mais. Nem isso mais podemos fazer no país, hoje em dia.
Wallander vestiu o paletó, que continuava molhado e pesado. Saiu e deu uma parada na rua. Lembrou-se de um slogan em circulação na época em que se formara na faculdade de polícia; eram sentimentos que adotara para si. Há um tempo para se viver e um tempo para se morrer.
Também refletiu sobre o que Berta Dunér lhe havia dito, na saída. Ficara com a vaga impressão de que fora qualquer coisa de muito significativo a respeito da Suécia. Alguma coisa que seria preciso rever. Mas, por enquanto, varreu as palavras dela para o fundo da mente.
Tenho de tentar entender o pensamento dos mortos, disse consigo mesmo. Um cartão-postal da Finlândia, carimbado no dia em que Sten Torstensson tomava café comigo no Museu de Arte de Skagen, deixa claro que ele não estava dizendo a verdade. Não a verdade toda, ao menos. Ninguém mente sem ter consciência do fato de estar mentindo, é impossível.
Entrou no carro e procurou decidir o que fazer em seguida. Como indivíduo, o que mais queria naquele momento era voltar para seu apartamento na Mariagatan, esticar-se na cama e fechar as cortinas. Como policial, no entanto, tinha de pensar de modo diferente.
Deu uma olhada no relógio. Quinze para as duas. Teria de estar de volta à delegacia até as quatro da tarde, no máximo, para participar da reunião da equipe de investigação. Pensou uns instantes, antes de decidir. Deu a partida, avançou até a Hamngatan e manteve a esquerda para poder pegar a Österleden de novo. Seguiu na direção de Malmö até alcançar a saída para Bjäresjö. O chuvisco havia parado, e o vento ia e vinha em rajadas. Alguns quilômetros mais adiante, saiu da estrada principal e parou diante de uma cerca com uma placa enferrujada dizendo que ali dentro, no pátio, funcionava a Funilaria Niklasson. O portão estava aberto, de modo que Wallander entrou e estacionou no meio das carcaças de carro empilhadas umas sobre as outras. Quantas visitas já não fizera a oficinas como aquela, durante toda sua carreira?
O próprio Niklasson já estivera sob suspeita de interceptação em diversas ocasiões e também já fora processado pelo delito algumas vezes. Niklasson era uma lenda viva na polícia de Ystad — nunca, nem uma única vez, fora considerado culpado, apesar das provas indiscutíveis de seu envolvimento em muitos delitos. Mas sempre, no último momento, surgia o proverbial grão de areia que emperrava o bom funcionamento das engrenagens: Niklasson acabava sendo posto em liberdade e voltava aos dois trailers que unira com solda e que lhe serviam de casa e escritório.
Wallander desligou o motor e desceu do carro. Um gato meio encardido observava seus movimentos de cima do capô enferrujado de um velho Peugeot. Niklasson vinha saindo de trás de uma pilha de pneus. Estava com um casacão escuro e um chapéu ensebado enterrado por cima da cabeleira comprida. Wallander não se lembrava de algum dia tê-lo visto usando outra coisa.
— Kurt Wallander! — falou Niklasson com um sorriso largo. — Há quanto tempo. Veio me prender?
— Eu tenho algum motivo pra isso? — Wallander perguntou.
Niklasson deu risada.
— Isso é coisa que só você sabe.
— Você está com um carro aqui no pátio no qual eu gostaria de dar uma olhada — disse Wallander. — Um Opel azul-escuro que pertencia a Gustaf Torstensson, o advogado.
— Ah, esse. Ele está lá, ó — disse o mecânico, saindo na direção para onde apontava. — Por que você quer ver esse carro?
— Porque uma pessoa morreu dentro dele quando ocorreu o acidente.
— As pessoas dirigem feito uns cretinos — falou Niklasson. — A única coisa que me espanta é que não morra ainda mais gente. Aqui está. Ainda não comecei a desmontar. O Opel continua exatamente como estava quando o trouxeram para cá.
Wallander meneou a cabeça.
— Eu me viro sozinho, agora — disse.
— Não tenho a menor dúvida que sim. Aliás, aproveitando que está aqui, me diga: eu sempre quis saber qual é a sensação de matar uma pessoa.
Wallander foi pego de surpresa.
— É uma sensação pavorosa. Como é que você achava que ia ser?
Niklasson deu de ombros.
— Não é por nada, não. Eu só queria saber.
Depois de ter sido deixado sozinho, Wallander deu duas voltas em torno do carro. Ficou surpreso ao constatar que a lataria estava quase intacta, com apenas uns poucos danos superficiais. Afinal de contas, o veículo havia passado por uma cerca de pedra em volta do pasto para depois capotar duas vezes. Curvou-se para ver mais de perto o assento do motorista. Sua atenção foi atraída no mesmo instante para as chaves do carro, que estavam no chão, perto do pedal do acelerador. Teve uma certa dificuldade para abrir a porta amassada, apanhar as chaves e encaixar uma delas na ignição. Sten Torstensson tinha toda a razão. Nem a chaves nem a ignição tinham sido danificadas. Mergulhado em conjecturas, deu mais uma volta no carro. Em seguida tornou a sentar-se ao volante e tentou descobrir onde Gustaf Torstensson batera a cabeça. Procurou com todo o cuidado e não encontrou resposta. Embora houvesse manchas aqui e ali, que ele supunha fossem de sangue, não conseguiu ver um lugar sequer onde o morto poderia ter batido a nuca.
Saltou do veículo, com as chaves ainda na mão. Sem na verdade saber por quê, abriu o porta-malas. Lá dentro havia uns poucos jornais velhos e os restos de uma cadeira de cozinha quebrada. Lembrou-se da perna de cadeira que havia encontrado no pasto. Pegou um dos jornais e conferiu a data. Tinha mais de seis meses. Depois, tornou a fechar o porta-malas.
E foi então que atinou com o que vira e não registrara. Lembrava-se com clareza do que dizia o relatório de Martinson. E de uma parte muito explícita a respeito de uma questão. Todas as portas, exceto a do motorista, estavam trancadas, inclusive a do porta-malas.
Wallander permaneceu no mesmo lugar, sem mover um músculo.
Tem uma cadeira quebrada no porta-malas. Uma perna dessa mesma cadeira está semi-enterrada na lama do pasto. Há um homem morto dentro do carro.
Sua primeira reação foi de irritação com o exame descuidado que fora feito e com as conclusões burocráticas. Depois se lembrou que Sten Torstensson também não havia encontrado a perna da cadeira e que, portanto, não tinha notado nada de estranho no porta-malas.
Voltou devagar para o carro.
Quer dizer então que Sten Torstensson estava com a razão. O pai dele não perdera a vida num acidente de carro. Embora não conseguisse enxergar direito o que era, tinha certeza quase absoluta de que algo acontecera naquela noite, em meio à cerração, naquele trecho deserto de estrada. Tinha de haver mais alguém presente, na ocasião. Mas quem?
Niklasson saiu de seu trailer.
— Quer tomar um café, algo assim?
Wallander sacudiu a cabeça, indicando que não.
— Não mexa naquele carro. Vamos ter que dar mais uma examinada nele.
— É melhor tomar cuidado — falou Niklasson.
Wallander franziu o cenho.
— Por quê?
— Como é que é o nome do cara, mesmo? Do filho dele? Sten Torstensson? Ele esteve aqui dando uma olhada no carro. E agora está morto. Só isso que eu quis dizer. Mais nada.
Ocorreu então a Wallander fazer uma pergunta a ele.
— Veio mais alguém aqui dar uma olhada no carro?
Niklasson sacudiu a cabeça.
— Vivalma.
Wallander voltou para Ystad. Sentia-se cansado. Ainda não fora capaz de elucidar o significado do que tinha acabado de descobrir. Mas um fato era indiscutível: Sten Torstensson estava certo. O acidente de carro servira de fachada para outra coisa muito diferente.
Eram quatro e sete quando Björk fechou a porta da sala de reunião. Wallander sentiu no mesmo instante que a atmosfera era de desânimo e indiferença. Pressentiu logo que nenhum dos presentes tinha apurado algo capaz de influenciar de forma decisiva, para não dizer dramática, na investigação de homicídio. Se se tratasse de um filme, este seria um daqueles momentos do dia-a-dia do trabalho policial que o montador acabaria largando no chão da sala de edição, pensou Wallander. No entanto, são momentos como esse, quando não há nada acontecendo, quando estão todos cansados, quando talvez se sintam até um pouco hostis uns com os outros, que formam os alicerces sobre os quais o futuro da investigação será erguido. Temos de dizer um ao outro que não sabemos nada porque, assim, teremos ânimo de ir em frente.
E foi naquele momento que ele se decidiu. No entanto, jamais saberia ao certo se essa decisão fora uma tentativa vã de justificar o pedido do cargo de volta. O fato é que a atmosfera de desânimo lhe forneceu inspiração para interpretar de novo o seu papel; destacado por aquele pano de fundo, teria a oportunidade de mostrar que continuava sendo um policial, apesar de tudo, que não era um simples molambo esgotado que deveria ter tido a decência de sumir em silêncio.
Sua linha de pensamento foi interrompida por Björk, que o olhava com expectativa. Wallander sacudiu a cabeça num gesto quase imperceptível. Por enquanto ainda não tinha nada a dizer.
— O que vocês têm para me relatar? — perguntou o chefe. — Em que pé estamos?
— Eu andei batendo em portas e entrevistando gente — disse Svedberg. — Em todos os prédios vizinhos, de apartamento em apartamento. Mas ninguém escutou nada fora do normal, ninguém viu nada. É curioso, mas dessa vez não tivemos uma única informação do público. A investigação toda parece estar soterrada no limbo.
Björk virou-se para Martinson.
— Estive no apartamento dele na Regementsgatan. E acho que nunca senti tanta incerteza sobre o que, na verdade, estava procurando. A única coisa que posso afirmar com segurança é que Sten Torstensson tinha gosto apurado para bons conhaques e que possuía uma coleção de livros raros que, a meu ver, deve valer um bom dinheiro. Também fiz um pouco de pressão sobre o pessoal da perícia técnica de Linköping, em relação às balas, mas eles disseram que entrarão em contato amanhã.
Björk deu um suspiro e virou-se para Ann-Britt Höglund.
— Andei tentando reconstituir a vida particular dele. Família, amigos etc. Mas não descobri nada até agora que possa nos levar um passo adiante. Ele não era exatamente de sair muito e dá para dizer que vivia quase que apenas para seu trabalho. Costumava velejar bastante no verão, mas nos últimos tempos havia desistido da atividade, por motivos que não consegui descobrir. Não tinha muitos parentes. Algumas tias e dois primos, é tudo. Até onde pude ver, levava uma vida meio de ermitão.
Wallander não perdeu a policial de vista um só instante enquanto ela falava, sem deixar isso óbvio. Havia nela algo de ponderado e direto, quase que uma falta de imaginação. Mas resolveu que o melhor seria esperar um pouco antes de julgá-la. Não a conhecia de fato, como pessoa, só sabia de sua reputação como policial extremamente promissora.
A nova era, pensou ele. Talvez ela represente o novo tipo de policial, o tipo que tantas vezes me perguntei como seria.
— Em outras palavras, estamos fazendo o reconhecimento do terreno — disse Björk, numa tentativa desajeitada de resumir tudo. — Sabemos que Sten Torstensson foi baleado, sabemos onde e sabemos quando. Mas não sabemos por quê, muito menos por quem. Infelizmente temos de aceitar que esse vai ser um caso difícil. Demorado. E que vai exigir muito de todos nós.
Ninguém tinha nada a dizer contra a avaliação do chefe. Wallander viu pela janela que começara a chover de novo.
Reconheceu que chegara o momento.
— No que diz respeito a Sten Torstensson, não tenho nada a acrescentar — falou. — Sabemos ainda muito pouca coisa, no meu entender. Acho que deveríamos abordar esse crime de um outro ângulo. Temos de examinar o que houve com o pai dele.
Todos em volta da mesa estavam de repente atentos, prestando atenção.
— Gustaf Torstensson não morreu num acidente de carro. Ele foi assassinado, da mesma forma que o filho. Imagino que os dois casos estejam ligados. Não há nenhuma outra explicação satisfatória.
Olhou em volta, para todos os colegas, que o fitavam com expressão intensa.
De repente, aquela ilha do Caribe e as infinitas areias de Skagen ficaram muito, muito distantes. Estava consciente de ter-se desfeito de sua pele e de ter regressado à vida que pensava ter largado para sempre.
— Em suma, só tenho uma coisa para dizer a vocês — continuou ele, pensativo. — Posso provar que Gustaf foi assassinado.
Ninguém abriu a boca. No fim, o silêncio foi quebrado por Martinson.
— Por quem?
— Por alguém que cometeu um erro seriíssimo.
Wallander se levantou.
Pouco depois, estavam em três carros, a caminho do trecho fatal de estrada situado próximo aos Montes Brösarp.
Quando chegaram lá, a noite já vinha caindo.
4
No finzinho da tarde do dia 1o de novembro, o agricultor Olof Jönsson viu algo um tanto estranho. Ele percorria suas terras, planejando a semeadura de primavera, quando avistou um grupo de pessoas metidas até os tornozelos no barro, paradas num semicírculo, olhando como se para dentro de um túmulo. Olof Jönsson sempre levava consigo o binóculo, quando saía para inspecionar as terras — às vezes conseguia ver veados andando nos limites dos pequenos arvoredos que salpicavam suas glebas —, e por isso pôde enxergar muito bem a fisionomia de todos. Pensou ter reconhecido um deles. Havia algo de familiar naquele rosto, embora não estivesse conseguindo atinar com o que era. Em seguida percebeu que os quatro homens e a mulher estavam parados no local onde o velho morrera dentro do carro, semanas antes. Não queria se intrometer e baixou o binóculo. Deviam ser parentes que tinham ido fazer uma visita ao local onde o homem morrera. Virou-se e foi embora.
Chegando ao local do acidente, Wallander se questionou por um breve momento se não teria sido tudo fruto de sua imaginação. Talvez não fosse a perna de uma cadeira o objeto que havia achado e atirado de volta na lama. Quando entrou no pasto, os colegas ficaram na estrada, olhando. Escutou a voz deles, mas não o que diziam.
Eles acham que perdi o senso crítico, pensou, enquanto continuava procurando a perna da cadeira. Acham que, no final das contas, não estou em condições de voltar a exercer minhas antigas funções.
Mas lá estava a perna da cadeira, a seus pés. Fez um exame rápido para excluir qualquer possível engano. Virou-se e chamou os colegas. Momentos depois, estavam todos agrupados em torno da perna da cadeira largada no barro.
— Talvez você tenha razão — admitiu Martinson, com certa hesitação. — Lembro que havia uma cadeira quebrada no porta-malas. Isto pode ser parte dela.
— Continuo achando que isso é muito estranho — disse Björk. — Será que daria para repetir sua linha de raciocínio, Kurt?
— É muito simples — respondeu Wallander. — Eu li o relatório do Martinson, que dizia que o porta-malas estava trancado. Nada nos leva a supor que ele tenha aberto sozinho e, depois, tenha-se fechado e trancado sozinho, devido a algum choque. Nesse caso, haveria algum tipo de marca onde a traseira do carro tivesse batido no chão, mas não há marca nenhuma.
— Você foi ver o carro? — Martinson perguntou, espantado.
— Estou apenas tentando alcançar vocês — respondeu Wallander, com a sensação de estar dando desculpas, como se a visita feita à oficina de Niklasson insinuasse uma possível falta de confiança na capacidade de Martinson conduzir até mesmo uma investigação de rotina sobre um acidente de carro. O que aliás era verdade, mas irrelevante.
— O fato é que não me parece possível — continuou Wallander — que um homem que está completamente sozinho num carro, depois de capotar várias e várias vezes até parar no meio de um pasto, saia, abra o porta-malas, tire de lá um pedaço de uma cadeira quebrada, feche o porta-malas de novo, volte para o carro, afivele o cinto e então morra em conseqüência de um golpe na nuca.
Ninguém abriu a boca. Wallander já tinha visto essa cena várias vezes. O véu cai e revela algo que ninguém contava ver.
Svedberg tirou um saco plástico do bolso do sobretudo e, com cuidado, enfiou a perna da cadeira dentro dele.
— Eu achei isso a uns cinco metros daqui — disse Wallander, apontando. — Apanhei a perna e depois joguei-a aqui.
— Uma forma muito estranha de tratar uma prova — disse Björk.
— Eu ainda não sabia que ela tinha alguma relação com a morte de Sten Torstensson — defendeu-se Wallander. — Aliás, continuo sem saber o que significa, exatamente, esta perna de cadeira.
— Se entendi direito o que você quis dizer — continuou Björk, sem tomar conhecimento do comentário de Wallander —, havia mais alguém presente quando o acidente de Gustaf Torstensson aconteceu. Mas isso não significa, necessariamente, que ele tenha sido assassinado. Alguém pode ter topado com o carro acidentado e resolvido dar uma olhada para ver se havia alguma coisa no porta-malas que valesse a pena ser roubada. E nesse caso não é nem um pouco estranho que a pessoa tenha jogado fora a perna de uma cadeira quebrada e não tenha entrado em contato com a polícia. É muito raro que alguém que rouba cadáveres divulgue suas atividades.
— Isso é verdade, claro — disse Wallander.
— Mas você falou que pode provar que ele foi assassinado — disse Björk.
— Eu exagerei na afirmação — respondeu Wallander. — O que eu quis dizer é que o fato ajuda a ver a situação sob um outro prisma.
Todos voltaram para a estrada.
— Acho melhor darmos mais uma olhada no carro — falou Martinson. — O pessoal da perícia vai ficar meio surpreso quando receber uma cadeira de cozinha quebrada, mas não há como evitar.
Björk manifestou seu claro desejo de dar por encerradas as discussões na beira da estrada. Começara a chover e o vento estava mais forte.
— Amanhã nós decidimos o que fazer daqui para a frente — disse ele. — Precisamos investigar as várias pistas que temos, mas infelizmente não são tantas assim. Neste momento, não creio que possamos ir mais adiante.
Voltaram então para os respectivos carros.
Ann-Britt Höglund retardou o passo.
— Você se incomodaria se eu fosse no seu carro? — perguntou. — Eu moro em Ystad mesmo, o Martinson tem assento de criança espalhado por todos os cantos e o carro do Björk é um mar de varas de pescar.
Wallander meneou a cabeça, concordando. Eles foram os últimos a partir. Rodaram vários quilômetros em silêncio. Wallander pensou como era esquisito ter alguém sentado a seu lado. E se deu conta, então, de que não havia conversado direito com ninguém, exceto sua filha, desde aquele dia de verão, quase dois anos antes, quando mergulhara em seu longo silêncio.
Foi ela que acabou falando, no fim.
— Eu acho que você tem razão. Claro que deve haver um elo entre as duas mortes.
— Pelo menos é uma possibilidade que precisa ser investigada — Wallander respondeu.
Dava para ver um trecho de mar, à esquerda deles. Algumas ondas rolavam com uma crista branca no topo.
— Por que será que as pessoas escolhem trabalhar na polícia? — ele disse, mais para si mesmo.
— Não dá para responder pelas outras, mas sei por que me tornei policial. Lembro que na Faculdade de Polícia quase ninguém tinha os mesmos sonhos.
— Será que um policial tem sonhos? — Wallander parecia surpreso.
Ann-Britt virou-se para olhá-lo.
— Todo mundo tem sonhos. Mesmo os policiais. Vo-cê não tem?
Wallander não sabia o que responder, mas logo percebeu que a contra-argumentação dela era boa, claro. Onde foram parar os meus sonhos?, perguntou ele a seus botões. Quando somos jovens, temos sonhos que vão sumindo com o tempo ou se transformam numa força propulsora que nos impele adiante. O que terá sobrado de todas as minhas ambições?
— Eu me tornei policial para não entrar para o sacerdócio — disse ela, de repente. — Eu acreditei em Deus durante muito tempo. Meus pais são pentecostalistas. Mas um dia acordei e descobri que tinha ido tudo embora. Sofri um bom tempo, tentando decidir o que fazer, mas aí aconteceu algo que definiu as coisas na minha cabeça, e foi então que resolvi me tornar policial.
Wallander lhe deu uma olhada rápida.
— Me conte. Preciso saber por que ainda existe gente que quer ser policial.
— Uma outra hora — disse ela. — Agora não.
Estavam se aproximando de Ystad. Ela lhe explicou onde morava, na zona oeste da cidade, numa das novas casas de tijolos que tinham vista para o mar.
— Eu não sei nem se você tem família — disse Wallander, virando numa rua recém-aberta.
— Tenho dois filhos. Meu marido é especialista mecânico. Ele instala e conserta encanamentos no mundo todo e quase nunca está em casa. Mas ganhou o suficiente para comprarmos uma casa.
— Parece um emprego emocionante — disse Wallander.
— Vou convidá-lo para vir nos fazer uma visita quando ele estiver em casa. Assim ele mesmo lhe conta como é o serviço.
O inspetor parou na frente da casa dela.
— Eu acho que estão todos muito contentes de você ter voltado — disse ela, como forma de despedida.
Para ele, isso não era verdade, era apenas uma tentativa de animá-lo; mas resmungou um agradecimento, assim mesmo.
Depois voltou direto para a Mariagatan, largou o paletó molhado nas costas de uma cadeira e se deitou na cama, sem nem sequer tirar os sapatos sujos. Cochilou e sonhou que tinha adormecido entre as dunas de areia de Skagen.
Ao acordar, uma hora depois, de início não sabia onde estava. Depois tirou os sapatos e foi até a cozinha fazer um café. Pela janela, via as lâmpadas da rua oscilarem com as rajadas de vento.
O inverno já está quase aqui, pensou. Neve, caos e tempestades. E eu sou um policial outra vez. A vida nos joga a todos para cá e para lá. Será que existe mesmo algo que possamos decidir por nós mesmos?
Passou um bom tempo sentado, fitando a xícara. Até se levantar para pegar um bloco de notas e um lápis na gaveta da cozinha, o café já tinha esfriado.
Agora preciso me tornar um policial de novo, disse consigo mesmo. Eu sou pago para ter pensamentos construtivos, para investigar e resolver crimes, e não para me preocupar com meus próprios probleminhas.
Passava da meia-noite quando largou o lápis e esticou as costas. Depois releu o resumo que havia feito. O chão a sua volta estava todo coalhado de folhas amassadas de papel.
Não consigo ver um padrão nos dois casos, admitiu. Não existe ligação óbvia entre o acidente de carro que não foi um acidente e o fato de logo depois Sten Torstensson ter sido baleado e morto no próprio escritório. Não há sequer algo que indique que a morte de Sten Torstensson tenha sido uma conseqüência do que ocorreu com o pai dele. Pode muito bem ter sido o inverso.
Lembrou-se então de algo que Rydberg tinha lhe dito no seu último ano de vida, a respeito de uma investigação, para todos os efeitos insolúvel, envolvendo uma série de incêndios criminosos. “Às vezes o efeito pode vir antes da causa”, dissera Rydberg. “Como policial, você tem que estar sempre preparado para pensar de trás para a frente.”
Wallander deixou a mesa e foi se deitar no sofá da sala.
Um velho é encontrado morto dentro de seu carro, no meio de um pasto, numa manhã de outubro. Estava voltando para casa depois de uma reunião com um dos clientes. Após uma investigação rotineira, a polícia encerra o caso dizendo tratar-se de um acidente de carro. O filho do homem morto, no entanto, começa imediatamente a questionar a teoria do acidente. Seus dois motivos principais para fazer isso são, primeiro, o fato de seu pai jamais dirigir em alta velocidade sob neblina e, segundo, o fato de andar preocupado ou nervoso já fazia um certo tempo, sem querer, no entanto, dar na vista.
De repente, Wallander sentou-se bem reto no sofá. Seu instinto lhe disse que tinha topado com um padrão, ou, melhor dizendo, com um não-padrão, com um padrão falsificado, criado apenas para que os verdadeiros fatos não fossem descobertos.
Continuou nessa linha de pensamento. Sten Torstensson não conseguira provar, de forma conclusiva, que o ocorrido com o pai fora mais que um simples acidente. Ele não tinha visto a perna da cadeira jogada no pasto nem refletido sobre a cadeira quebrada no porta-malas do pai. Justamente por não ter conseguido encontrar uma prova conclusiva, havia recorrido a Wallander. Sten Torstensson se dera ao trabalho de localizá-lo e ir visitá-lo.
Ao mesmo tempo, deixara uma pista falsa. Um cartão-postal da Finlândia. Cinco dias depois, fora assassinado em seu escritório. Ninguém tinha dúvidas de que fora assassinato.
Wallander percebeu que perdera o fio da meada. O que ele pensava ter pressentido, um padrão criado para encobrir um outro, tinha se afastado e se perdido em terra de ninguém.
Estava cansado. Não conseguiria ir mais longe. Porém sabia, por experiência própria, que, se por acaso suas suspeitas tivessem algum fundamento, elas voltariam à tona.
Foi até a cozinha, lavou a louça e recolheu as anotações que descartara e jogara no chão. Tenho de começar tudo de novo, falou consigo mesmo. Mas qual é o começo? Gustaf ou Sten Torstensson?
Foi para a cama, mas não conseguiu dormir, apesar de estar cansadíssimo. Sentiu uma vaga curiosidade em saber o que tinha acontecido com Ann-Britt Höglund que a levara a se tornar uma policial.
A última vez que olhou o relógio, eram duas e meia da manhã.
Despertou logo depois das seis, ainda se sentindo cansado; mas levantou assim mesmo, com a sensação de que perdera a hora. Eram quase sete e meia quando cruzou a porta da delegacia e ficou feliz de ver Ebba em sua cadeira costumeira na recepção. Quando o viu, levantou-se para cumprimentá-lo. Wallander percebeu que ela estava emocionada e sentiu um nó na garganta.
— Eu não estava acreditando! — exclamou ela. — Você voltou mesmo, pra valer?
— Receio que sim.
— Acho que vou chorar.
— Não faça isso. Depois a gente conversa melhor. — Dizendo isso, afastou-se o mais rápido que pôde corredor adentro. Ao chegar a sua sala, reparou que havia sido limpa de fio a pavio. E também que havia um recado sobre a mesa, pedindo que ligasse para o pai. Pela caligrafia obscura, o autor da mensagem anotada no dia anterior era Svedberg. Ele chegou a estender a mão para o telefone, mas mudou de idéia. Pegou o resumo que havia escrito na noite anterior e releu tudo do começo ao fim. A sensação de ter conseguido detectar um padrão vago porém decisivo ligando os vários incidentes não quis dar o ar da graça. Empurrou o bloco de notas para um lado. Ainda é cedo demais, concluiu. Acabo de voltar depois de dezoito meses de afastamento e estou com menos paciência ainda que antes. Irritado, pegou o bloco de notas e encontrou uma página em branco.
Estava claro que teria de recomeçar do começo. Como ninguém soubesse dizer com algum grau de certeza onde ficava o começo, teriam de abordar o caso sem nenhum preconceito. Wallander gastou meia hora esboçando o que precisava ser feito, e durante esse tempo uma idéia lhe atazanou a cabeça, a de que era Martinson, na verdade, quem deveria estar conduzindo os trabalhos de investigação. Ele voltara ao serviço, sim, mas não queria assumir a responsabilidade toda de imediato.
O telefone tocou. Hesitou, antes de atender.
— Fiquei sabendo que temos ótimas notícias — disse Per Åkeson. — E saiba que fiquei muito contente. — Åkeson era o promotor público e Wallander e ele tinham estabelecido uma ótima relação de trabalho no decorrer dos anos. Haviam tido discussões acaloradas, diversas vezes, sobre a melhor forma de interpretar os dados de um caso, e era comum Wallander se zangar quando o promotor se recusava a aceitar um pedido seu como motivo suficiente para ordenar uma prisão. Mas, no geral, sempre viam as coisas mais ou menos sob o mesmo prisma. E ambos sentiam uma particular irritação diante de casos encaminhados com desleixo.
— E devo dizer que tudo me parece um tanto estranho — Wallander respondeu.
— Correram boatos de que você estava prestes a se aposentar por motivos de saúde — Åkeson falou. — Alguém deveria pedir ao Björk para pôr um fim nesses rumores todos circulando por aí.
— Não foram só boatos — esclareceu Wallander. — Eu tinha decidido pendurar as chuteiras.
— E será que é possível perguntar o que o fez mudar de idéia?
— Aconteceu uma coisa — foi a resposta evasiva de Wallander.
Sabia que Åkeson esperava uma explicação, mas continuou calado.
— Seja como for, fico muito satisfeito que esteja de volta — disse o promotor, após um silêncio apropriadamente longo. — E tenho certeza de que expresso o sentimento de todos os meus colegas, quando digo isso.
Wallander já estava se sentindo incomodado com todas essas manifestações de apreço que lhe faziam e nas quais tinha dificuldade em acreditar. A gente segue na vida com um pé num jardim de rosas e o outro em areia movediça, pensou ele.
— Presumo que você vai assumir o caso Torstensson — disse Åkeson. — Talvez fosse uma boa idéia nos reunirmos ainda esta tarde para ver em que pé estamos.
— Não sei se “assumir” é a palavra certa — disse Wallander. — Eu estarei envolvido, pedi para estar. Mas acho que as investigações serão conduzidas por um dos meus colegas.
— Hum... esse assunto não é da minha conta. Mas estou muito contente de você ter voltado. Já teve tempo de examinar os detalhes do caso?
— Não ainda.
— Pelo que eu soube até o momento, não parece ter havido nenhum desdobramento significativo.
— O Björk acha que esse caso vai se arrastar por um bom tempo ainda.
— E você, o que acha?
Wallander hesitou antes de responder.
— Por enquanto não acho nada.
— A insegurança parece estar aumentando a olhos vistos — disse Åkeson. — Ameaças diversas, muitas vezes feitas através de cartas anônimas, estão ficando mais comuns a cada dia que passa. Repartições que costumavam atender de portas abertas começaram a erguer barricadas em volta, como se fossem bunkers antiaéreos. Acho que você não tem saída, vai ter que passar um pente fino em todos os clientes dele. Talvez encontre alguma pista. Alguém pode ter ficado mais insatisfeito do que imaginamos.
— Já começamos essa parte — disse Wallander.
Combinaram então de se encontrar na promotoria, aquela tarde, e desligaram. Wallander se esforçou para retornar ao plano de investigação que começara a esboçar, mas estava desconcentrado. Largou a caneta, irritado, e foi buscar um café. Voltou rápido para sua sala, já que não queria encontrar ninguém. Eram oito e quinze da manhã. Tomou seu café e se perguntou quanto tempo ainda levaria para perder o medo de estar com mais gente. Às oito e meia, juntou sua papelada e foi para a sala de reunião. A caminho, se deu conta de que fazia já cinco ou seis dias que Sten Torstensson tinha sido assassinado e que muito pouca coisa fora apurada, o que não era comum. Cada investigação de homicídio é diferente da outra, mas em geral existe uma atmosfera de intensa urgência entre os policiais envolvidos. Alguma coisa mudara durante a ausência dele. O quê?
Dez minutos mais e estavam todos na sala. Björk deu uma pancadinha na mesa, indicando que a reunião iria começar. Virou-se direto para Wallander.
— Kurt — disse ele —, você acabou de entrar para este caso e, portanto, pode olhar para ele com novos olhos. O que acha que devemos fazer agora?
— Acho que a tarefa de decidir isso não cabe a mim. Ainda não tive tempo de me enfronhar direito no assunto.
— Por outro lado, você foi o único a apresentar algo de útil, até o momento — disse Martinson. — E, se eu o conheço bem, ficou acordado até tarde, ontem à noite, esboçando um plano de investigação. Estou certo?
Wallander meneou a cabeça, em sinal de assentimento. Percebeu que, na verdade, não tinha objeção nenhuma a assumir o caso.
— Tentei fazer um resumo — disse ele. — Mas, primeiro, eu gostaria de contar o que aconteceu há pouco mais de uma semana, quando eu estava na Dinamarca. Devia ter mencionado isso ontem, mas o dia foi meio agitado para mim, para dizer o mínimo.
Wallander contou então aos atônitos colegas sobre a viagem de Sten Torstensson a Skagen. Tentou ao máximo não pular ou excluir nenhum detalhe.
Depois que terminou, fez-se um silêncio geral. No fim, foi Björk quem falou primeiro, sem fazer a menor tentativa de disfarçar sua irritação.
— Muito esquisito, isso. Não sei por quê, mas vira e mexe você parece metido em situações que fogem aos procedimentos normais.
— Eu falei dele com você — objetou Wallander, sentindo a bolinha da raiva subir.
— Bem, mas não é hora de ficarmos alvoroçados por causa disso — continuou Björk, com voz impassível. — Mas que é meio estranho, é, você há de concordar comigo. Voltando ao nosso caso, o que ficou claro, agora, naturalmente, é que temos que reabrir as investigações sobre o acidente de carro de Gustaf Torstensson.
— Me parece que agora o mais natural e necessário é avançarmos em duas frentes — acrescentou Wallander. — A presunção por enquanto é que duas pessoas foram assassinadas, não apenas uma. Pai e filho, além de tudo. Temos que pensar duas coisas distintas ao mesmo tempo. Pode ser que a solução para o caso esteja na vida particular deles, mas pode ser também que os homicídios tenham a ver com trabalho; eram dois advogados trabalhando para o mesmo escritório. O fato de Sten Torstensson ter me procurado e me contado que o pai andava nervoso pode indicar que a chave do mistério tem a ver com Gustaf Torstensson. Mas não vamos tirar conclusões precipitadas — entre outras coisas, há aquele cartão-postal que Sten enviou para a senhora Dunér da Finlândia, quando na verdade estava na Dinamarca.
— E isso sugere uma outra coisa — falou Ann-Britt Höglund.
Wallander assentiu com um meneio de cabeça.
— Que Sten Torstensson também achava que estava ameaçado. Foi isso que você quis dizer?
— Foi. Por que outro motivo ele iria semear pistas falsas pelo caminho?
Martinson ergueu a mão, indicando que queria dizer algo.
— Seria mais simples se nós nos dividíssemos em dois grupos — falou. — Um concentrado no pai, o outro no filho. Vamos ver se conseguimos apurar qualquer coisa que aponte para a mesma direção.
— Eu concordo — disse Wallander. — Ao mesmo tempo, não consigo evitar de pensar que tem algo estranho nisso tudo. Algo que nós já deveríamos ter descoberto.
— Todo caso de homicídio é estranho, eu suponho — disse Svedberg.
— É, claro que é, mas tem algo mais neste aqui — insistiu Wallander. — Só não estou conseguindo atinar o que seja.
Björk fez sinal de que estava na hora de encerrar a reunião.
— Como já comecei a investigar a morte de Gustaf Torstensson, talvez seja melhor eu continuar com ele — propôs Wallander. — Se ninguém fizer objeção.
— E nós nos concentramos no homicídio de Sten Torstensson, então — disse Martinson. — Eu presumo que, como sempre, no início você vai querer trabalhar sozinho. É isso mesmo?
— Não necessariamente. Mas, se entendi direito, o caso de Sten Torstensson é muito mais complicado. O pai não tinha tantos clientes quanto o filho. A vida dele parece ter sido mais transparente.
— Então vamos fazer assim — concluiu Björk, fechando a agenda com estrondo. — Nós nos reuniremos todos os dias, às quatro da tarde, para ver até onde chegamos, como de costume. Ah, e vou precisar de ajuda numa entrevista coletiva hoje à tarde.
— Não eu — disse Wallander. — Não me sinto com forças suficientes.
— Pensei que talvez a Ann-Britt queira participar — disse Björk. — Acho até muito bom que as pessoas saibam que ela agora trabalha aqui conosco.
— Por mim, tudo bem — disse ela, para espanto de todos. — Preciso mesmo aprender essas coisas.
Depois da reunião, Wallander pediu que Martinson ficasse um pouco mais. Quando os outros saíram, ele fechou a porta.
— Precisamos conversar um pouco — começou. — Estou com a sensação de ter entrado de gaiato na festa e assumido as rédeas quando, na verdade, eu devia era ter confirmado meu pedido de aposentadoria.
— Estamos todos um tanto surpresos, claro — disse Martinson. — Você há de entender isso. E você não é o único a se sentir meio inseguro quanto ao que está havendo.
— Eu não quero pisar no calo de ninguém — afirmou Wallander.
Martinson caiu na gargalhada. Depois assoou o nariz.
— A polícia sueca está repleta de homens com problema nos pés. Quanto mais burocrática se torna a corporação, mais as pessoas ficam obcecadas com a carreira. Todos os regulamentos e diretrizes, mais a papelada que a gente tem que entregar, e que fica pior a cada dia que passa, resultam em mal-entendidos e falta de clareza; não é à toa que todo mundo vive pisando no calo dos outros e esperando na fila. Às vezes até acho que consigo entender por que o Björk se preocupa tanto com o rumo que as coisas estão tomando. O que mudou no trabalho da polícia?
— A polícia sempre refletiu o que se passa na sociedade como um todo — disse Wallander. — Mas entendo o que você diz. O Rydberg costumava falar a mesma coisa. E o que dirá Ann-Britt Höglund dessas mudanças todas?
— Ela é boa policial. Tanto o Hanson quanto o Svedberg têm medo dela. Por ela ser tão boa. Acho que o mais preocupado é o Hanson, ele tem medo de ser deixado para trás. É por isso que agora passa a maior parte do tempo fazendo cursos, juntando certificados.
— O policial da nova era — disse Wallander, levantando-se. — É isso que ela é.
Na porta, parou um instante.
— Você disse uma coisa ontem que ficou ressoando na minha cabeça. Alguma coisa a respeito de Sten Torstensson. Não sei direito o que foi, mas fiquei com a sensação de que era mais importante do que parecia.
— Eu estava lendo em voz alta as anotações que fiz — lembrou Martinson. — Posso lhe dar uma cópia.
— O mais provável é que eu esteja imaginando coisas.
Ao voltar para sua sala e fechar a porta, deu-se conta de haver passado por uma experiência que quase esquecera que existia. Era como se houvesse redescoberto que possuía, sim, uma vontade. Nem tudo se perdera durante o período em que tinha ficado fora, pelo visto.
Sentou-se à escrivaninha com a nítida impressão de que agora poderia se examinar com certa frieza: aquela criatura que cambaleara pelo Caribe, a inútil viagem à Tailândia, os dias e as noites em que tudo parecia ter parado, exceto suas funções físicas. Estava olhando para si mesmo, mas percebeu que aquele era alguém que ele não reconhecia mais. Ele tinha sido outra pessoa.
Estremeceu ao pensar nas conseqüências catastróficas que algumas de suas ações poderiam ter tido. Pensou muito na filha Linda. Só quando Martinson bateu na porta e lhe entregou uma fotocópia de suas anotações é que Wallander conseguiu banir as lembranças. A seu ver, todo mundo tinha dentro de si um quarto secreto onde ficavam amontoadas memórias e recordações. Wallander acabara de aferrolhar e passar um cadeado bem forte nesse quarto. Depois foi até o banheiro e jogou na privada o frasco inteiro de antidepressivos que carregava no bolso.
Ao voltar para sua sala, começou a trabalhar. Eram dez da manhã. Leu com todo o cuidado as anotações de Martinson, sem atinar com o que tinha lhe chamado a atenção.
Ainda é cedo demais, pensou. Rydberg teria me aconselhado paciência. Agora o negócio é tentar lembrar de me aconselhar a mim mesmo.
Hesitou durante alguns poucos momentos, sem saber por onde começar. Depois procurou o endereço residencial de Gustaf Torstensson na pasta do acidente.
Timmermansgatan, número 12.
A rua ficava numa das regiões mais antigas e nobres de Ystad, logo atrás das instalações militares, já perto de Sandskogen. Wallander ligou para o escritório de advocacia, falou com Sonia Lundin e ela lhe disse que as chaves da casa estavam no escritório. Ao sair da delegacia, reparou que as nuvens pesadas de chuva haviam se dispersado. O céu estava limpo e ele teve a sensação de estar respirando pela primeira vez o ar gelado do inverno que se aproximava. Assim que parou na frente do escritório, Sonia Lundin apareceu na porta e lhe entregou as chaves.
Ele entrou duas vezes na rua errada antes de chegar ao endereço. O casarão de madeira pintada de marrom ficava bem escondido atrás de um enorme jardim. O portão rangeu ao ser aberto e Wallander começou a atravessar a trilha de cascalho que levava até a porta. Estava tudo muito tranqüilo e a cidade parecia ter ficado lá longe. Um mundo dentro de um outro mundo, pensou ele. O escritório de advocacia Torstensson devia dar um belo lucro. Era de se duvidar que existisse uma casa mais imponente que aquela em toda Ystad. O jardim parecia bem-cuidado, mas estranhamente sem vida. Algumas árvores já sem folhas, alguns arbustos bem aparados, alguns canteiros de flores banais. Wallander supôs que um advogado entrado em anos talvez precisasse se ver rodeado pelas linhas retas de um jardim tradicional, sem surpresas ou improvisações. Lembrava de modo muito vago da reputação do dr. Gustaf Torstensson, o advogado que levara as audiências judiciais a novos patamares de chatice. Tinha escutado um adversário invejoso afirmar que Torstensson vencia a promotoria pelo cansaço e livrava seus clientes graças a suas longas e maçantes explanações. Resolveu perguntar a Per Åkeson o que ele achava de Gustaf Torstensson. Eles deviam ter se cruzado em tribunal muitas vezes, no decorrer dos anos.
Subiu os degraus até a frente da casa, encontrou a chave correta e destrancou a porta. Era uma fechadura Chubb especial, de um tipo que o inspetor ainda não conhecia. Lá dentro, havia um vasto hall de entrada, com uma larga escadaria ao fundo levando ao andar de cima. As janelas estavam todas com as pesadas cortinas fechadas. Ao puxar uma delas, reparou que a janela tinha grades. Um senhor idoso morando sozinho, sentindo o medo que inevitavelmente vem com a idade, pensou ele. Ou haveria algo mais, ali, que era preciso proteger, além dele mesmo? Seria o medo oriundo de algo que vinha de fora daquelas paredes? Wallander passeou por todo o casarão, começando pelo térreo, com uma biblioteca forrada de retratos sombrios de ancestrais da família e uma sala de estar em plano aberto, ligada à sala de jantar. Tudo ali naquela casa, da mobília ao papel de parede, era de tons escuros, o que lhe deu uma sensação de melancolia e silêncio. Não viu em parte alguma uma mancha, por pequena que fosse, de cores claras, traço nenhum de um toque mais leve, capaz de suscitar um sorriso.
Foi para o andar de cima. Quartos de hóspedes com camas bem-feitas, desertos como um hotel fechado no inverno. Ficou surpreso ao ver que a porta do quarto de Gustaf Torstensson tinha uma segunda porta gradeada, pelo lado de dentro. Tornou a descer, ciente de que a casa o deprimia. Sentou-se à mesa da cozinha e descansou o queixo nas mãos. Tudo que escutava era o tique-taque de um relógio.
Gustaf Torstensson estava com sessenta e nove anos ao morrer. Havia morado sozinho nos últimos quinze anos, desde a morte da mulher. Sten era filho único. Pelo que indicava uma das pinturas a óleo na biblioteca, a família descendia do general Lennart Torstensson, famoso por sua atuação na Guerra dos Trinta Anos. Pelo que ele se lembrava muito por alto das aulas de história, esse sujeito fora de uma brutalidade ímpar para com os camponeses em todos os lugares por onde seu exército havia passado.
Levantando-se, o inspetor desceu até o porão. Também ali tudo se encontrava numa ordem pedante. Bem no fundo, atrás da caldeira, Wallander descobriu uma porta de aço trancada. Tentou as diversas chaves até encontrar a certa. Não havia janelas no local e Wallander teve de tatear seu caminho até localizar o interruptor.
O aposento era surpreendentemente amplo. Nas paredes, prateleiras forradas de ícones do Leste Europeu. Sem tocar em nada, Wallander começou a olhar em volta, examinando tudo bem de perto. Não era nenhum especialista e nunca se interessara muito por antigüidades, mas desconfiava que aquela coleção de ícones fosse valiosíssima. E poderia servir de explicação para as grades nas janelas e para a fechadura de segurança, mas não, quem sabe, para a porta de ferro do quarto. A sensação de desconforto de Wallander aumentou. Sentiu que estava invadindo a privacidade de um senhor muito rico que fora abandonado pela felicidade, se entrincheirara na própria casa e vivia vigiado pela cobiça disfarçada em figuras de Madona.
De repente, apurou os ouvidos. Escutou barulho de gente andando lá em cima, depois o latido de um cachorro. Saiu rápido dali, subiu a escada e entrou na cozinha.
Ficou atônito ao se ver confrontado por um de seus colegas fardados, de arma em punho, apontada para ele. Atrás de Peters havia um vigia com um cachorro rosnando, preso numa coleira.
Peters baixou a arma. Wallander sentiu o coração disparar. Ver aquela pistola lhe trouxera momentaneamente de volta as lembranças que passara tanto tempo tentando expulsar.
Depois o inspetor ficou furioso.
— Afinal, o que está acontecendo aqui? — rosnou ele.
— O alarme tocou na sede da empresa de segurança e eles chamaram a polícia — disse Peters, com fisionomia preocupada. — E daí nós viemos correndo para cá. Eu não fazia idéia de que era você.
O parceiro de Peters, Norén, entrou em cena nesse exato instante, também empunhando uma pistola.
— Há uma investigação policial em andamento — disse Wallander, reparando que sua raiva havia sumido com a mesma rapidez com que aparecera. — Torstensson, o advogado que morreu num acidente de carro, morava aqui.
— Se o alarme toca, a gente atende — falou o sujeito da empresa de segurança, sem rodeios.
— Desliga essa coisa — Wallander pediu. — Daqui a pouco vocês podem ligar de novo. Mas antes vamos todos sair da casa.
— Este é Wallander, nosso inspetor-chefe — Peters explicou. — Você com certeza já o conhece.
O guarda de segurança era muito jovem. Tinha meneado a cabeça, indicando que sim, mas Wallander viu que não fora reconhecido.
— Tire esse cachorro daqui — ordenou. — E não precisamos mais de você.
O segurança recuou, levando consigo o pastor alsaciano que ainda rosnava. Wallander foi apertar a mão de Peters e Norén.
— Eu soube que você tinha voltado — disse Norén. — É muito bom vê-lo de novo.
— Obrigado.
— As coisas nunca mais foram as mesmas desde que você saiu de licença — declarou Peters.
— Bom, mas cá estou eu a postos de novo. — Wallander estava tentando conduzir a conversa de volta para a investigação.
— As informações que eles dão para nós nunca são lá muito confiáveis — revelou Norén. — Tinham dito que você ia se aposentar. Depois disso, não esperávamos en-contrar você numa casa com o alarme tocando.
— A vida é cheia de surpresas — constatou Wallander.
— De todo modo, seja bem-vindo — disse Peters, estendendo a mão.
Pela primeira vez, Wallander teve a sensação de que a cordialidade demonstrada era genuína. Não havia nada de artificial em Peters: suas palavras eram simples e claras.
— Foi um período difícil — disse Wallander. — Mas agora terminou. Pelo menos é o que eu acho.
Ele saiu da casa e acenou um adeus para os dois policiais fardados. Vagou pelo jardim, tentando pôr as idéias em ordem. Seus sentimentos pessoais estavam entrelaçados a reflexões sobre o que tinha acontecido com os dois advogados. No fim, resolveu voltar e falar com Berta Dunér. Achava que já tinha algumas perguntas a fazer a ela que precisavam de resposta.
Era quase meio-dia quando tocou a campainha e foi admitido na casa. Dessa vez, aceitou a oferta de chá.
— Desculpe vir incomodá-la de novo, assim tão em cima dos últimos acontecimentos — desculpou-se Wallan-der —, mas preciso de ajuda para poder construir uma imagem de ambos, pai e filho. Quem era Gustaf Torstensson? Quem era Sten Torstensson? A senhora trabalhou com o pai durante trinta anos.
— E dezenove anos com Sten Torstensson — ela acrescentou.
— Isso é muito tempo. A gente acaba conhecendo as pessoas, com o correr dos anos. Vamos começar com Gustaf Torstensson. Me diga como ele era.
O que ela disse surpreendeu o inspetor.
— Impossível.
— Por quê?
— Porque eu nunca o conheci de fato.
A resposta da secretária soou verdadeira. Wallander resolveu ir abrindo aos poucos o caminho e gastar o tempo que fosse preciso, o tempo que sua impaciência lhe dizia que não possuía.
— Imagino que a senhora tenha percebido que me deu uma resposta um tanto estranha — disse Wallander. — Quer dizer, a senhora trabalhou com ele durante trinta anos.
— Com ele não. Para ele. Há uma grande diferença aí.
Wallander meneou a cabeça, em sinal de assentimento.
— Mas mesmo que a senhora não conhecesse Gustaf Torstensson, devia saber um bocado a respeito dele. Por favor, me fale sobre ele. Se não me disser alguma coisa, jamais conseguiremos descobrir quem matou o filho.
Ela continuou a surpreendê-lo.
— O senhor não está sendo honesto comigo, inspetor Wallander. O que aconteceu de fato quando ele morreu naquele acidente de carro?
Wallander decidiu ali na hora que o melhor era ser sincero com ela.
— Ainda não sabemos. Mas há uma suspeita de que tenha sido mais do que apenas um acidente. Algo pode ter causado o desastre, ou então aconteceu alguma coisa depois do acidente.
— Ele já tinha passado por aquela estrada uma porção de vezes. Ele conhecia aquilo como a palma da mão. E nunca andava em alta velocidade.
— Se entendi direito, ele tinha ido visitar um cliente.
— O homem de Farnholm — ela disse.
Wallander esperou por uma continuação que não veio.
— O homem de Farnholm? — repetiu ele.
— Alfred Harderberg. O homem do Castelo Farnholm.
Wallander sabia que o Castelo Farnholm ficava numa região remota, ao sul da serra Linderöd. Passava com freqüência pela saída que levava a Farnholm, mas nunca tinha estado no castelo.
— Ele era nosso maior cliente — continuou Berta Dunér. — Na verdade, nesses últimos cinco anos foi o único cliente do doutor Gustaf Torstensson.
Wallander anotou o nome num papel que encontrou no bolso.
— Nunca ouvi falar nele — disse. — Ele faz o quê? Agricultor?
— Ele é o dono do castelo. Mas é homem de negócios. Grandes negócios, coisa internacional.
— Eu vou entrar em contato com ele, claro. Deve ter sido uma das últimas pessoas a ver Gustaf Torstensson vivo.
De repente, um material publicitário foi enfiado pela fenda postal, na porta da frente. Wallander reparou no sobressalto da senhora Dunér.
Três pessoas com medo, pensou. Com medo do quê?
— Gustaf Torstensson — disse ele de novo. — Vamos tentar mais uma vez. Me conte como ele era.
— Era a pessoa mais fechada que eu já conheci na vida. — Wallander percebeu um tom agressivo na voz da secretária. — Nunca permitiu que alguém se aproximasse dele. Era um pedante, jamais se desviava da rotina. Era uma dessas pessoas por cujos horários se podia acertar um relógio, como se diz por aí. No caso de Gustaf Torstensson, isso era sem dúvida verdade. Ele era uma espécie de silhueta gelada, sem sangue nas veias. Não era nem bom nem mau. Apenas chato.
— Segundo Sten Torstensson, ele também era uma pessoa alegre — interveio Wallander.
— Eis aí algo que jamais me passaria pela cabeça dizer dele.
— Como era o relacionamento dos dois?
Ela não hesitou em responder e foi direto ao ponto.
— O doutor Gustaf ficava bravo porque o filho tentava modernizar o negócio. E, claro, o doutor Sten achava o pai um grande empecilho. Mas nenhum dos dois dizia ao outro uma palavra sobre isso. Ambos tinham receio de entrar em confronto.
— Antes de morrer, Sten Torstensson disse que havia algo perturbando, preocupando o pai fazia já alguns meses — disse Wallander. — A senhora teria algo a acrescentar sobre isso?
Dessa vez ela pensou um pouco, antes de responder.
— É possível que sim — disse ela. — Agora que o senhor tocou no assunto. Ele parecia estar um tanto distante, nos últimos meses de vida.
— E a senhora teria alguma explicação para isso?
— Não.
— Não aconteceu nada fora do normal?
— Não, nada.
— Por favor, pense. Isso pode ser muito importante.
Ela serviu mais uma xícara de chá para si, enquanto pensava. Wallander aguardou. Depois ela ergueu os olhos para ele.
— Eu não saberia dizer. Não dá para explicar.
Assim que ouviu a resposta, Wallander percebeu que Berta Dunér não estava falando a verdade. Mas decidiu não pressionar mais. Continuava tudo muito vago e incerto. O momento não amadurecera ainda.
Empurrando a xícara para o lado, ele se levantou.
— Vou deixá-la sossegada, agora. Mas já deixo avisado que vou ter que voltar, infelizmente.
— Mas é claro — disse Berta Dunér.
— Se lhe ocorrer alguma coisa que queira me contar, basta telefonar — disse Wallander, saindo para a rua. — Não hesite. O menor detalhe pode ser significativo.
— Pode deixar que eu ligo se for o caso — prometeu ela, já fechando a porta.
Wallander sentou-se ao volante mas não deu a partida. Sentia um desconforto enorme. Sem ser capaz de dizer exatamente por quê, tinha a sensação de que havia algo muito sério e perturbador por trás das mortes dos dois advogados. Por enquanto, só arranhara a superfície.
Há qualquer coisa nos levando para a direção errada, pensou. Começo a desconfiar que o cartão-postal da Finlândia não é a pista falsa, e sim aquilo que nós deveríamos de fato estar investigando. Mas por quê?
Já ia dando a partida no carro quando reparou que havia alguém na calçada oposta, olhando para ele.
Era uma mulher ainda muito jovem, devia ter pouco mais de vinte anos, de origem asiática. Quando percebeu que Wallander havia reparado nela, afastou-se rápido. Pelo espelho retrovisor, ele a viu virar à direita na Hamngatan, sem voltar a cabeça.
O inspetor tinha certeza de que nunca vira aquela jovem antes.
O que não queria dizer que ela não o tivesse reconhecido. No decorrer dos anos, como policial, havia topado, em contextos diversos, com muitos refugiados e com muita gente procurando asilo.
Tomou o rumo da delegacia. O vento continuava soprando em rajadas fortes e as nuvens se acumulavam a leste. Tinha acabado de virar na Kristianstadvägen quando meteu o pé no breque. Um caminhão atrás dele buzinou, irritado.
Estou reagindo muito devagar, pensou. Não estou conseguindo discernir bem os fatos.
Fez uma conversão ilegal, estacionou o carro na frente do correio que havia na Hamngatan e foi a passos rápidos até a transversal que levava à Stickgatan pelo lado norte. Colocou-se de maneira a poder enxergar a casa rosada onde Berta Dunér morava.
Esfriara, e ele, sempre de olho na casa, andava de lá para cá, tentando se aquecer.
Uma hora depois, começou a se perguntar se não seria melhor desistir. Mas tinha certeza de que não se enganara. Continuou vigiando a casa. Àquela altura, Per Åkeson já devia estar esperando por ele, mas iria continuar esperando em vão.
Às 3h43 a porta da casa rosa se abriu de repente. Wallander se escondeu atrás de uma mureta.
Ele tinha razão. Viu a moça de fisionomia vagamente asiática sair da casa de Berta Dunér. Depois ela desapareceu numa esquina.
Começara a chover.
5
A reunião da equipe de investigação começou às quatro da tarde e terminou exatamente sete minutos depois. Wallander foi o último a chegar e desabou na cadeira. Estava ofegante e suado. Os colegas em volta da mesa o olharam espantados, mas ninguém disse nada.
Björk tinha levado alguns minutos para concluir que nenhum progresso significativo havia sido feito e que tampouco havia algo a relatar ou discutir. A equipe tinha atingido o ponto, nas investigações, em que todos viravam, no jargão da delegacia, “escavadores de túnel”, fase em que tentavam romper a crosta superficial para descobrir o que poderia haver escondido por baixo. Era uma etapa comum a toda investigação criminal e não havia necessidade de discutir o assunto. O único que apresentou uma pergunta, no fim da reunião, foi Wallander.
— Quem é Alfred Harderberg? — perguntou, depois de consultar um papel onde rabiscara esse nome.
— Sempre achei que isso fosse de conhecimento geral — disse Björk. — Ele é um dos empresários mais bem-sucedidos da Suécia, no momento. Mora aqui na Skåne. Quer dizer, quando não está correndo mundo no seu jato particular.
— É dono do Castelo Farnholm — informou Svedberg. — Dizem que tem um aquário com ouro de verdade, no fundo, em vez de areia.
— Ele era cliente de Gustaf Torstensson — disse Wallander. — O principal cliente dele, na verdade. E o último também. Torstensson tinha ido vê-lo na noite em que morreu na estrada.
— Ele organiza coletas para auxiliar os necessitados de certas regiões dos Bálcãs devastadas pela guerra — acrescentou Martinson. — Mas talvez isso não seja algo assim tão extraordinário, quando se tem as quantias ilimitadas de dinheiro que ele tem.
— Alfred Harderberg é um homem que merece todo nosso respeito — disse Björk.
Wallander percebeu que o comentário o deixara irritado.
— E quem não é? — deixou escapar em voz alta. — Mesmo assim, pretendo ir até lá para dar uma olhada.
— Telefone antes — disse Björk, levantando-se.
A reunião estava encerrada. Wallander foi pegar um café e voltou para sua sala. Precisava de um tempo a sós para pensar no significado de Berta Dunér ter recebido a visita de uma jovem asiática. Talvez não houvesse nenhum, mas o instinto de Wallander lhe dizia o contrário. Apoiou os pés sobre a mesa e afundou na cadeira, equilibrando o café nos joelhos.
O telefone tocou. Quando Wallander se esticou para atender, a xícara se desequilibrou e o café, depois de escaldar a perna do inspetor, esparramou-se pelo chão.
— Merda! — gritou ele, com o fone a meio caminho do ouvido.
— Não precisa ser rude — disse o pai. — Eu só queria perguntar por que você nunca me liga.
Na hora, Wallander sentiu dor na consciência, o que, por sua vez, o deixou ainda mais irritado. Será que um dia o relacionamento que tinha com o pai poderia se dar em bases menos tensas?
— Eu derramei uma xícara de café — disse ele — e queimei a perna.
O pai não parecia ter escutado o que ele dissera.
— Por que você está aí no escritório? — perguntou. — Você não estava em licença de saúde?
— Não estou mais. Voltei a trabalhar.
— Quando?
— Ontem.
— Ontem?
Wallander estava vendo que a conversa seria de fato muito longa, se não desse um jeito de encurtá-la, e rápido.
— Eu lhe devo uma explicação, eu sei, só que agora estou sem tempo. Amanhã à noite eu passo aí e conto o que houve.
— Faz um tempão que não vejo você — disse o pai, e desligou.
Wallander continuou sentado mais alguns momentos, com o fone na mão. O pai faria setenta e cinco anos no próximo ano e, como sempre, despertava nele uma série de emoções contraditórias. O relacionamento entre ambos sempre fora complicado. Sobretudo depois do dia em que comunicara ao pai sua intenção de entrar para a polícia. Mais de vinte e cinco anos haviam se passado, desde então, e o velho não perdia uma única oportunidade de criticar essa decisão. De todo modo, Wallander sentia um peso na consciência por não dedicar mais tempo a ele. No ano anterior, ao ficar sabendo da espantosa notícia do casamento do pai com uma mulher trinta anos mais jovem, a mesma que fazia faxina na casa dele três vezes por semana, tinha achado que o problema de falta de companhia acabara. Agora, sentado com o fone na mão, percebia que no fundo nada mudara.
Pôs o telefone no gancho, apanhou a xícara do chão e enxugou a calça com uma folha de papel arrancada do bloco. Depois se lembrou que deveria ter entrado em contato com Åkeson. A secretária do promotor o pôs imediatamente em contato com ele e Wallander explicou que não pudera ir ao encontro. Åkeson sugeriu uma hora no dia seguinte, pela manhã.
Wallander foi buscar outro café. No corredor, encontrou Höglund com uma pilha de pastas nos braços.
— E então, como vamos indo? — perguntou.
— Devagar — disse ela. — E não consigo me livrar da sensação de que tem alguma coisa suspeita com aqueles dois advogados mortos.
— É exatamente assim que eu me sinto. O que a faz pensar em algo suspeito?
— Não sei.
— Vamos falar sobre isso amanhã — propôs Wallander. — A experiência me diz que não se deve nunca subestimar aquilo que não se consegue pôr em palavras, que não se consegue determinar.
Dito isso, voltou para sua sala, tirou o fone do gancho e puxou o bloco para perto. Estava com a cabeça naquela praia gelada de Skagen, com Sten Torstensson caminhando na direção dele, saído do nevoeiro. Foi lá que este caso começou, pelo menos para mim, pensou. Começou quando Sten ainda estava vivo.
Ele reviu tudo que sabia a respeito dos dois advogados. Agiu como um soldado que recua cautelosamente, atento a tudo que se passa a sua direita e a sua esquerda. Levou uma hora para repassar cada um dos fatos que ele e seus colegas haviam apurado até o momento.
O que eu vejo, e no entanto não enxergo? Wallander se perguntou isso inúmeras vezes, enquanto folheava as anotações. Mas, quando largou a caneta, tudo que tinha de concreto no papel era um ponto de interrogação de desenho altamente rebuscado.
Dois advogados mortos, pensou ele. Um morreu num estranho acidente que, com toda a probabilidade, não foi acidente. A pessoa que matou Gustaf Torstensson, quem quer que fosse, era um assassino frio e calculista. Aquela perna de cadeira solitária, largada na lama, fora um erro muito pouco característico. Há um por que e um quem, mas é bem possível que haja mais coisas.
Ocorreu-lhe que havia algo que podia e devia fazer. Procurou o número do telefone de Berta Dunér em suas anotações.
— Desculpe incomodá-la — disse ele. — Inspetor Wallander falando. Tenho uma pergunta. E agradeceria se pudesse ter uma resposta imediata.
— Será um prazer ajudar, se eu puder.
São duas, na verdade, pensou Wallander, mas vou guardar a pergunta sobre a moça asiática para outra hora.
— Na noite em que Gustaf Torstensson morreu, ele tinha ido ao Castelo Farnholm. Quantas pessoas sabiam que ele iria visitar Alfred Harderberg aquela noite?
A secretária deu um tempo, antes de responder. Wallander se perguntou se a pausa fora para conseguir se lembrar ou para pensar numa resposta adequada.
— Eu sabia, claro. É possível que tenha mencionado a visita à senhorita Lundin, mas ninguém mais sabia.
— Quer dizer então que Sten Torstensson não sabia?
— Não creio. Eles tinham cada um a sua própria agenda de compromissos.
— Então a senhora era provavelmente a única pessoa que sabia.
— Exato.
— Muito obrigado. Peço desculpas de novo pelo incômodo — completou Wallander, desligando.
Voltou a suas anotações. Gustaf Torstensson sai para ver um cliente e é atacado na volta para casa — assassinato disfarçado de acidente de carro.
Refletiu sobre a resposta de Berta Dunér. Tenho certeza de que ela disse a verdade, pensou, mas o que me interessa é o que há por trás da verdade. O que Berta Dunér disse é que, tirando ela própria, a única pessoa que tinha conhecimento do que Gustaf Torstensson faria aquela noite era o homem do Castelo Farnholm.
Wallander seguiu com seu passeio pelo caso. A paisagem da investigação mudava a todo momento. A casa tristonha com seus sofisticados sistemas de segurança. A coleção de ícones escondida no porão. Quando achou que tinha ido até onde poderia ir, passou a se ocupar de Sten Torstensson. A paisagem tornou a mudar e se tornou quase impenetrável. A inesperada visita que Sten fizera ao paraíso tempestuoso de Wallander, tendo como pano de fundo uma melancólica sinfonia de sirenes antinevoeiro, depois o café deserto do Museu de Arte — aos olhos de Wallander, essas coisas pareciam fazer parte de uma opereta medíocre. Mas havia momentos, na trama, em que a vida era levada a sério. Sten tinha achado o pai inquieto e deprimido. E o postal da Finlândia, enviado por mão anônima, mas arranjado por Sten: obviamente havia uma ameaça e era preciso criar uma pista falsa. Sempre supondo que a pista falsa não fosse, na verdade, a pista certa.
Nada nos leva a uma próxima fase, pensou Wallander, mas esses são fatos possíveis de categorizar. Mais difícil é saber o que fazer com os componentes misteriosos, como a moça asiática, por exemplo, que não quer que ninguém a veja fazendo uma visita à casa cor-de-rosa de Berta Dunér. E a própria sra. Dunér, que é boa mentirosa, mas não tão boa a ponto de conseguir enganar um inspetor da polícia de Ystad — ou, pelo menos, de conseguir que ele não note que há algo suspeito, ali.
Wallander levantou-se, alongou as costas e foi até a janela. Eram seis da tarde e já tinha escurecido. Do corredor, chegavam alguns barulhos, passos se aproximando, depois se afastando. Ele se lembrou então de algo que Rydberg havia dito, no seu último ano de vida: “Na sua essência, uma delegacia de polícia é idêntica a uma prisão. Policiais e criminosos vivem como se fossem imagens espelhadas uns dos outros. Não dá para decidir, de fato, quem está encarcerado e quem não está”.
De repente, Wallander sentiu-se apático e solitário. Recorreu então a seu único consolo: uma conversa imaginária com Baiba Liepa, como se ela estivesse ali na frente dele e como se sua sala ficasse em Riga, num prédio cinzento de fachada dilapidada, num apartamento sempre na penumbra, com as pesadas cortinas cerradas o tempo todo. Mas a imagem perdeu nitidez e surgiu tão desmaiada quanto a do mais fraco de dois adversários durante uma briga. Wallander viu então a si próprio andando de gatinhas, mãos e joelhos metidos na lama, em meio ao nevoeiro da Skåne, segurando um rifle numa das mãos e uma pistola na outra, uma cópia patética de um improvável ídolo de cinema; e então, de repente, a ilusão se esgarçou, a realidade se impôs através dos rasgos, e tanto matar como morrer deixaram de ser coelhos tirados de uma cartola de mágico. Ele vê a si mesmo testemunhando a execução de um homem baleado na cabeça e, depois, ele próprio atirando; a única coisa da qual tem certeza é que está torcendo para que seu alvo morra na hora.
Sou um homem que não ri o suficiente, pensou. Quando dei por mim, a meia-idade já tinha me largado numa praia traiçoeira, forrada de perigosas pedras submersas.
Wallander deixou toda a papelada sobre a mesa. Na recepção, Ebba estava ocupada, falando ao telefone. Quando ela lhe fez sinal para que esperasse, ele sacudiu a cabeça e abanou a mão, para indicar que estava com pressa.
Foi direto para casa e preparou uma comida que, mais tarde, se lhe pedissem, teria sido incapaz de descrever. Colocou água nas cinco plantas que ficavam nos parapeitos das janelas, encheu a máquina de lavar com as roupas que estavam espalhadas pelo apartamento, descobriu que o sabão em pó tinha acabado, depois sentou no sofá e cortou as unhas do pé. De vez em quando, dava uma olhada em volta, como alguém esperando descobrir que não está sozinho, afinal. Pouco depois das dez da noite, foi para a cama e adormeceu quase imediatamente.
Lá fora, a chuva tinha amainado um pouco e se tornado uma garoa fina.
Quando acordou, na manhã seguinte, ainda estava escuro. O despertador com os ponteiros luminosos dizia que ainda não eram cinco horas. Wallander se virou na cama e tentou dormir de novo, mas viu que era impossível. O longo período que havia passado entregue à própria sorte ainda se fazia sentir. Seja lá o que for que mudou, seja lá o que for que continua igual, a verdade é que vou passar o resto da vida em duas escalas de tempo, o “antes” e o “depois”, pensou ele. Kurt Wallander existe e não existe.
Às cinco e meia pulou da cama, fez café, esperou o jornal chegar e viu, no termômetro da rua, que estava fazendo 4oC. Levado por uma sensação de inquietude que não tinha forças para analisar ou combater, saiu de casa às seis da manhã. Entrou no carro e deu a partida, pensando que poderia muito bem fazer uma visita ao Castelo Farnholm. Poderia parar em algum ponto, no caminho, tomar um café e telefonar, avisando que estava a caminho. Saiu de Ystad pela zona leste e desviou a vista ao passar pelo campo de treinos do exército, à direita, onde, dois anos antes, lutara a última batalha do velho Wallander. Lá, sozinho em meio ao denso nevoeiro, descobrira que existem pessoas que não recuam diante de nenhuma forma de violência, que não hesitam em matar a sangue-frio. Lá, naquele campo, de joelhos na lama, travara uma luta encarniçada pela própria vida e, sabe-se lá como, graças a um tiro inacreditavelmente certeiro, matara um homem. Daquele ponto não havia mais volta, aquilo fora ao mesmo tempo um nascimento e um funeral.
Dirigindo pela estrada de Kristianstad, diminuiu a marcha ao passar pelo lugar onde Gustaf Torstensson morrera. Na altura de Skåne-Tranås, parou num café e entrou. Estava começando a ventar: deveria ter posto uma jaqueta mais pesada. Na verdade, deveria ter pensado um pouco melhor em seus trajes, de modo geral: a surrada calça de Terylene e a jaqueta encardida de náilon que estava usando talvez não fossem a indumentária ideal para visitar um grão-senhor. Entrando no café, sentiu curiosidade em saber o que Björk teria usado para visitar um castelo, supondo-se que fosse uma visita oficial.
Era o único freguês. Pediu um café e um sanduíche. Eram 6h45 e ele folheou uma revista já bem manuseada que havia numa prateleira. Logo se cansou daquilo e tentou, então, pensar no que iria dizer a Alfred Harderberg, ou a quem quer que pudesse lhe fornecer informações sobre a última visita de Gustaf Torstensson a seu cliente. Esperou até dar sete e meia, pediu para usar o telefone que havia sobre o balcão, junto ao caixa antiquado, e ligou primeiro para a delegacia de Ystad. O único colega já a postos àquela hora era Martinson. Explicou onde estava e disse que previa que a visita durasse uma hora ou duas.
— Sabe qual foi a primeira coisa que me passou pela cabeça quando acordei, hoje de manhã? — Martinson perguntou.
— Não.
— Que foi Sten Torstensson quem matou o pai.
— E como é que você explica o que aconteceu depois com ele? — retrucou Wallander.
— Isso eu não sei — disse Martinson. — Mas o que me parece cada vez mais claro é que a explicação tem a ver com a vida profissional deles, muito mais que com a vida privada.
— Ou com uma combinação das duas coisas.
— Como assim?
— Nada, é só um sonho que eu tive ontem à noite — disse Wallander, desconversando. — De todo modo, estarei de volta à delegacia assim que der.
Desligou, ergueu o fone do gancho de novo e discou o número do Castelo Farnholm. Foi atendido no primeiro toque.
— Castelo Farnholm — disse uma voz feminina. Tinha um ligeiríssimo sotaque estrangeiro.
— Aqui é o inspetor-chefe detetive Wallander, da polícia de Ystad. Gostaria de falar com o senhor Harderberg.
— Ele está em Genebra — disse a voz.
Wallander deveria ter previsto a possibilidade de um empresário internacional estar fora do país.
— E volta quando?
— Ele não disse.
— Ele é esperado amanhã ou na próxima semana?
— Não posso lhe fornecer essa informação por telefone. A agenda dele é estritamente confidencial.
— Talvez seja, mas eu sou da polícia — disse Wallander, com uma raiva incipiente.
— E como é que eu posso ter certeza disso? — perguntou a mulher. — O senhor pode ser qualquer pessoa.
— Estarei no Castelo Farnholm em meia hora — disse Wallander. — A quem devo procurar?
— Essa é uma decisão que cabe aos guardas do portão principal — avisou a mulher. — Imagino que tenha alguma forma aceitável de identificação consigo.
— O que quer dizer com “aceitável”? — gritou Wallander, mas ela já tinha desligado.
Wallander bateu o telefone. A robustíssima garçonete que estava pondo pãezinhos num prato olhou para ele com um certo desprazer. Ele depositou algumas moedas no balcão e saiu sem dizer uma palavra.
Quinze quilômetros adiante, virou para oeste e logo foi engolido pela densa floresta que há ao sul da serra Linderöd. Brecou quando alcançou a saída para o Castelo Farnholm e uma placa de granito, com letras douradas, confirmou que estava no caminho certo. Para Wallander, aquela placa tinha cara de lápide de túmulo caro.
A estrada para o castelo era asfaltada e estava em boas condições. Enfiada discretamente entre as árvores, havia uma cerca alta. Parou e baixou o vidro da janela para ter uma visão melhor. Era uma cerca dupla com um vão no meio de cerca de um metro. Continuou avançando. Mais ou menos um quilômetro adiante, a estrada fazia uma curva fechada para a direita. Logo além da curva, ficavam os portões. Ao lado deles, havia uma construção cinzenta de telhado plano que mais parecia uma caixa de comprimidos que outra coisa qualquer. Avançou um pouco mais e esperou. Não aconteceu nada. Tocou a buzina. Nenhuma reação. Saiu do carro e a irritação aumentou. Tinha a vaga sensação de estar sendo humilhado por todas aquelas cercas e pelos portões fechados. Bem nesse instante, surgiu um homem na soleira das portas de aço da caixa de comprimidos. Usava um uniforme vermelho-escuro que Wallander nunca tinha visto na vida. Ainda não havia se familiarizado com essas novas empresas de segurança que pipocavam pelo país inteiro.
O sujeito de uniforme veio vindo em sua direção. Aparentava ser da mesma idade que Wallander.
De repente, ele foi reconhecido.
— Kurt Wallander — disse o guarda. — Há quanto tempo!
— De fato — Wallander retrucou. — Quanto tempo faz que nos vimos pela última vez? Quinze anos?
— Vinte. Talvez até mais.
Wallander fisgara o nome do sujeito lá do fundo da memória. Kurt Ström. Tinham sido colegas na polícia de Malmö. Na época, Wallander era jovem e inexperiente, e Ström devia ter um ano a mais que ele, no máximo. Nunca houve nada além de contato profissional entre ambos; Wallander fora transferido para Ystad e, muitos anos depois, viera a saber que Ström deixara a polícia. Lembrava-se muito vagamente de o colega ter sido despedido, de algum escândalo abafado, talvez uso excessivo de força contra um prisioneiro, ou então mercadorias roubadas que haviam sumido de um depósito da polícia. Não tinha bem certeza.
— Fui avisado de que você estava a caminho — disse Ström.
— Sorte a minha. Fui informado de que deveria apresentar uma “forma aceitável de identificação”. O que você considera aceitável?
— Temos normas muito rígidas de segurança aqui no Castelo Farnholm. Tomamos um cuidado danado com quem deixamos entrar.
— E qual é o tipo de tesouro escondido por aqui?
— Tesouro nenhum, só um empresário envolvido no alto mundo dos negócios.
— Harderberg?
— O próprio. Ele tem uma coisa da qual muita gente neste mundo gostaria de se apossar.
— Que é?
— Conhecimento, know-how. Isso vale mais do que ser dono de uma casa da moeda particular.
Wallander não estava com paciência para os modos servis que Ström adquirira para falar do grande homem.
— Era uma vez, muito tempo atrás, um policial chamado Kurt Ström — disse Wallander. — Eu continuo sendo policial. Talvez você saiba por que estou aqui.
— Eu leio jornal. Imagino que tenha algo a ver com aquele advogado.
— Dois advogados morreram, não foi só um. Mas, se não me engano, apenas o mais velho trabalhava para Harderberg.
— Ele vinha bastante aqui. Um sujeito simpático. Muito discreto.
— Ele esteve aqui no dia 11 de outubro, à noite — disse Wallander. — Você estava de serviço, nesse dia?
Ström assentiu com um gesto de cabeça.
— Presumo que vocês anotem todos os carros e pessoas que entram e saem da propriedade, certo?
Ström deu risada.
— Paramos com isso já faz muito tempo. Agora é tudo feito por computador.
— Gostaria de ter uma cópia impressa das movimentações na noite do dia 11 de outubro — disse Wallander.
— Terá de pedir lá no castelo. Eu não tenho permissão para fazer essas coisas.
— Mas imagino que tenha permissão de lembrar.
— Sei que ele esteve aqui aquela noite. Mas não me lembro de quando ele chegou nem de quando foi embora.
— Ele estava sozinho no carro?
— Não sei dizer.
— Porque não tem permissão de dizer?
De novo, Ström fez que sim com um gesto de cabeça.
— Já houve ocasiões em que pensei em procurar emprego numa empresa de segurança — disse Wallander —, mas acho que seria muito difícil me acostumar a não ter permissão de responder a perguntas.
— Tudo tem seu preço — foi a resposta de Ström.
Wallander pensou que poderia até ter dito “apoiado!”. Depois de observar o colega por alguns momentos, continuou:
— Esse Harderberg, que tipo de pessoa é ele?
A resposta o surpreendeu.
— Eu não sei.
— Mas não é possível que você não tenha ao menos uma opinião sobre ele. Ou será que também não tem permissão para comentar sobre isso?
— Eu nunca o vi — disse Ström.
— E trabalha para ele faz quanto tempo?
— Quase cinco anos.
— E nunca o viu, nem uma única vez?
— Nunca.
— Ele nunca passou por estes portões?
— O carro dele tem vidros escuros nas janelas.
— Suponho que isso faça parte do sistema de segurança. — Wallander refletiu durante um instante. — Em outras palavras, você nunca tem certeza absoluta se ele está aqui ou não. Você nunca sabe se ele está no carro quando ele entra ou sai por estes portões, é isso?
— Exato. É tudo parte do sistema — disse Ström.
Wallander voltou para o carro. Ström desapareceu atrás da porta de aço e, pouco depois, os portões se abriram sem um ruído. É como entrar num outro mundo, pensou Wallander.
Depois de cerca de um quilômetro, a mata se abriu. O castelo ficava sobre uma colina, rodeado por um vasto e bem cuidado jardim. A enorme construção principal, a exemplo de outras menores, em volta, era de tijolos vermelhos. O castelo possuía torre, torreão, terraços e parapeitos. A única coisa que destoava da atmosfera de um outro mundo, de uma outra era, era um helicóptero parado num círculo de concreto. Wallander teve a impressão de que se tratava de um imenso inseto com as asas meio dobradas, de um animal selvagem em repouso, mas pronto para voltar à vida com uma sacudida.
Seguiu em marcha lenta até a entrada principal. Pavões passeavam tranqüilos pela alameda, adiante de seu carro. O inspetor parou atrás de um BMW preto e saltou. Estava tudo muito quieto em volta. Aquela tranqüilidade o fez lembrar do dia anterior, subindo a alameda de cascalho da casa de Gustaf Torstensson. Talvez tranqüilidade seja o elemento típico do ambiente em que vivem os ricos, pensou. Não são as fanfarras todas, e sim a tranqüilidade.
Nesse momento, uma das portas duplas da entrada principal do castelo se abriu. Uma mulher de uns trinta anos, vestida com roupas muito bem cortadas e, Wallander supôs, muito caras, surgiu nos degraus de entrada.
— Por favor, vamos entrar — disse ela com um sorriso pronto, um sorriso que, aos olhos de Wallander, parecia tão frio e distante quanto correto.
— Não sei se tenho alguma identificação que a senhora considere aceitável, mas o guarda que responde pelo nome de Ström me reconheceu.
— Eu sei — disse a mulher.
Não era a mesma mulher que atendera o telefone quando ele ligara do café. Wallander subiu os degraus, estendeu a mão e se apresentou. Ela ignorou a mão estendida e se limitou a reproduzir o mesmo sorriso distante. Ele a seguiu até a casa. Cruzaram ambos um amplo hall de entrada. Esculturas modernistas, sobre pedestais de pedra, espalhavam-se em volta, iluminadas por spots invisíveis. Em segundo plano, perto da larga escadaria que levava ao andar superior, Wallander detectou dois homens nas sombras, à espreita. Sentiu a presença de ambos, mas não conseguiu vê-los. Tranqüilidade e sombras, pensou. O mundo de Harderberg, como eu o conheço até o momento. Entrou atrás da mulher por uma porta à esquerda, que levava a um grande salão oval, também decorado com esculturas. Mas, como lembrete de que estavam num castelo cuja história remontava aos tempos da Idade Média, havia também algumas armaduras vigilantes. No centro do assoalho de tacos de carvalho, impecavelmente encerado, via-se uma mesa e uma única cadeira de visita. Não havia nenhum papel sobre a mesa, apenas um computador e um avançado sistema de PABX pouca coisa maior que um telefone comum. A mulher o convidou a sentar, depois digitou um comando no computador. Entregou-lhe uma folha tirada de uma impressora escondida em algum lugar sob a mesa.
— Deduzo que o senhor gostaria de ter uma cópia impressa da movimentação registrada nos portões de en-trada, durante a noite do dia 11 — disse ela. — Pode confirmar, por aí, a hora em que o advogado Torstensson chegou e a hora em que saiu de Farnholm.
Wallander pegou a cópia e largou-a no chão, a seu lado.
— Não vim só por esse motivo. Tenho várias outras perguntas a fazer.
— Pode fazer.
A mulher havia sentado atrás da mesa. E apertado vários botões na central telefônica. Wallander presumiu que estivesse transferindo todas as ligações que chegassem para uma central em algum outro lugar daquela construção colossal.
— Pelas informações que tenho, Alfred Harderberg era o único cliente de Gustaf Torstensson — começou Wallander. — E, se entendi corretamente, ele está fora do país no momento.
— Está em Dubai — disse a mulher.
Wallander franziu o cenho.
— Uma hora atrás ele estava em Genebra.
— Isso mesmo — respondeu a mulher, sem titubear. — Mas já partiu para Dubai.
Wallander pegou o bloco e um lápis do bolso do paletó.
— Pode me dizer seu nome e qual seu cargo, aqui?
— Sou uma das secretárias de Alfred Harderberg. Meu nome é Anita Karlén.
— E o senhor Harderberg tem muitas secretárias? — Wallander quis saber.
— Depende de como se olha a questão — respondeu Anita Karlén. — Isso tem alguma importância?
De novo, Wallander começou a sentir uma certa irritação com a forma como estava sendo tratado. Resolveu que teria de mudar de abordagem, se não quisesse que aquela visita a Farnholm se transformasse em pura perda de tempo.
— Se tem importância ou não, quem vai decidir sou eu — falou. — O Castelo Farnholm é propriedade privada e vocês têm o direito legal de rodeá-lo com quantas cercas acharem necessário, tão altas quanto quiserem. Desde que tenham permissão para tanto e não estejam infringindo nenhuma lei ou regulamento. Vocês também têm o direito de negar a entrada de quem quer que seja. Com uma exceção: a polícia. Fui claro?
— Nós não lhe negamos o direito de entrar aqui, senhor Wallander — disse ela, ainda impassível.
— Permita que eu seja mais claro — continuou Wallander, reparando que a indiferença dela o estava deixando inseguro. Talvez também estivesse meio agitado pelo fato de ela ser fabulosamente bela.
Mas, assim que ele fez menção de prosseguir, uma porta se abriu e uma mulher entrou, com uma bandeja nas mãos. Para sua surpresa, Wallander viu que era negra. Sem dizer nada, ela pousou a bandeja sobre a mesa e desapareceu em seguida, tão silenciosamente quanto aparecera.
— Gostaria de tomar uma xícara de café, senhor Wallander?
Ele aceitou. Ela serviu e depois entregou-lhe a xícara. Wallander examinou a porcelana.
— Permita-me fazer uma pergunta importante — disse. — O que aconteceria se eu derrubasse esta xícara no chão? Quanto ficaria lhe devendo?
Pela primeira vez, o sorriso dela parecia ser genuíno.
— Está tudo no seguro, é claro — respondeu ela. — Mas esta é uma clássica porcelana Rörstrand, edição especial.
O inspetor depositou xícara e pires com o máximo de cuidado no chão, ao lado da cópia impressa, e começou outra vez.
— Vou me expressar de forma bem precisa. Naquela mesma noite do dia 11 de outubro, uma hora, nem isso, depois de Gustaf Torstensson ter estado aqui, ele morreu num acidente de carro.
— Nós enviamos flores ao funeral — disse ela. — Um colega nosso compareceu ao enterro.
— Mas não Alfred Harderberg, claro.
— Meu patrão evita aparecer em público, sempre que possível.
— Já percebi isso. Mas o fato é que temos motivos para crer que não foi, na verdade, um acidente de carro. Há vários fatos que sugerem que o advogado Torstensson foi assassinado. E, para piorar ainda mais as coisas, o filho dele foi baleado no próprio escritório, algumas semanas depois. Talvez vocês também tenham enviado flores para o enterro dele.
Ela o olhou com ar de quem não estava entendendo.
— Nós só lidávamos com Gustaf Torstensson.
Wallander balançou a cabeça, em sinal de assentimento, e continuou:
— Agora a senhora já sabe por que eu vim. E ainda não me disse quantas secretárias trabalham aqui.
— E o senhor não compreendeu que tudo depende da forma como se vê a questão, inspetor Wallander.
— Sou todo ouvidos.
— Aqui no Castelo Farnholm há três secretárias. Há mais duas que o acompanham nas viagens. Além disso, o doutor Harderberg tem secretárias a postos em vários lugares do mundo. O número varia, mas é raro que sejam menos que seis.
— O que dá onze no total — disse Wallander.
Ela concordou.
— A senhora se referiu a seu patrão como doutor Harderberg — comentou Wallander.
— Ele tem diversos doutorados honorários. Posso lhe dar uma lista deles, se estiver interessado.
— Por favor. E também gostaria de ter um panorama geral do império empresarial sob o comando do doutor Harderberg. Mas pode deixar isso para depois. O que eu quero, agora, é saber o que aconteceu na noite em que Gustaf Torstensson esteve aqui pela última vez. Qual das secretárias dele pode me informar a respeito?
— Eu estava de serviço naquela noite.
Wallander refletiu um pouco.
— Então é por isso que está aqui. É por isso que me recebeu. Mas o que teria acontecido se hoje fosse seu dia de folga? Não poderia saber que a polícia viria até aqui justamente hoje, certo?
— Claro que não.
No momento mesmo em que falava, Wallander se deu conta de que estava errado. E também se deu conta de como seria possível ao pessoal do Castelo Farnholm saber da visita. A constatação deixou-o preocupado. Teve de se esforçar para se concentrar e continuar.
— O que houve aquela noite?
— O advogado Torstensson chegou pouco depois das sete da noite. Manteve uma conversa particular com o doutor Harderberg e alguns de seus associados mais próximos que durou cerca de uma hora. Depois tomou uma xícara de chá. Saiu de Farnholm exatamente às oito e catorze.
— Sobre o que eles conversaram, aquela noite?
— Não posso responder a essa pergunta.
— Mas acabou de dizer que estava trabalhando nesse dia.
— Foi uma conversa particular, sem a presença de secretárias. Não foram feitas anotações de nenhuma espécie.
— Quem eram os associados?
— Como?
— Você disse que o advogado Torstensson teve uma conversa particular com o doutor Harderberg e alguns de seus associados mais próximos.
— Não posso responder a essa pergunta.
— Porque não tem permissão para tanto?
— Porque eu não sei.
— Não sabe o quê?
— Quem eram esses associados. Nunca tinha visto nenhum deles antes. Chegaram no dia 11 mesmo e partiram no dia seguinte.
Wallander não sabia que pergunta fazer a seguir. Era como se todas as respostas que estava obtendo fossem periféricas. Resolveu abordar a questão de outro ângulo.
— Você falou agora há pouco que o doutor Harderberg tem onze secretárias. Posso perguntar quantos advogados ele tem?
— Possivelmente um número quase igual.
— Mas não tem permissão de dizer quantos são, exatamente?
— Eu não sei quantos são.
Wallander balançou a cabeça. Dava para perceber que estava entrando em outro beco sem saída.
— Há quanto tempo o advogado Torstensson trabalhava para o doutor Harderberg?
— Desde que o doutor Harderberg comprou o Castelo Farnholm e o transformou em seu quartel-general. Há uns cinco anos mais ou menos.
— Gustaf Torstensson teve escritório de advocacia em Ystad a vida toda — disse Wallander. — De repente, é tido como profissional qualificado para assessorar questões comerciais em âmbito internacional. Isso não lhe parece um tanto extraordinário?
— Isso é algo que o senhor terá que perguntar ao doutor Harderberg.
Wallander fechou o bloco de notas.
— Tem toda razão. Eu gostaria que vocês lhe enviassem um recado, esteja ele em Genebra, Dubai ou outro lugar qualquer, informando que o inspetor Wallander deseja falar com ele tão logo seja possível. Assim que voltar para cá, em outras palavras.
Levantou-se e, com extremo cuidado, colocou a xícara e o pires sobre a mesa.
— A polícia de Ystad não possui onze secretárias — disse ele —, mas as nossas recepcionistas são bastante eficientes. Pode deixar um recado com elas, dizendo quando ele poderá me receber.
Wallander seguiu-a até o hall. Junto à porta da frente, sobre uma mesa de mármore, havia uma grossa pasta de couro.
— Aqui está o panorama geral dos negócios do doutor Harderberg, conforme havia pedido — disse Anita Karlén.
Alguém esteve escutando, pensou Wallander. Alguém ouviu tudo o que foi conversado naquela sala. Com certeza uma transcrição do que foi dito já está sendo enviada para Harderberg, onde quer que ele esteja. Caso haja interesse da parte dele. O que eu duvido.
— Não se esqueça de enfatizar que é uma questão urgente — disse Wallander. Dessa vez, Anita Karlén apertou sua mão.
Wallander deu uma olhada rápida para a grande escadaria envolta em sombras, mas os dois homens haviam sumido.
O céu havia limpado. Ele entrou no carro. Anita Karlén estava parada nos degraus da frente, com o cabelo balançando ao vento. Na saída, observou-a pelo espelho retrovisor, ainda parada na escada, olhando. Dessa vez, não precisou parar nos portões, que começaram a se abrir assim que se aproximou. Nem sinal de Kurt Ström. Os portões se fecharam automaticamente, depois que passou, e ele seguiu devagar até Ystad. Fazia apenas três dias que tinha decidido voltar ao trabalho, mas, mesmo assim, parecia uma eternidade. Mais ou menos como se estivesse indo numa direção e as lembranças tivessem disparado na direção oposta.
Logo depois de virar na estrada principal, viu uma lebre morta estirada no asfalto. Contornou o bicho e pensou em como ainda estava longe de descobrir o que tinha acontecido com Gustaf Torstensson ou com o filho. Parecia-lhe muitíssimo improvável que fosse encontrar alguma conexão entre a morte dos dois advogados e o pessoal daquele castelo protegido por uma cerca dupla. Ainda assim, daria uma boa espiada no conteúdo da pasta de couro e tentaria formar uma idéia clara do império de Alfred Harderberg.
O telefone do carro começou a tocar. Atendeu e ouviu a voz de Svedberg.
— Svedberg falando — gritou o colega. — Onde você está?
— A quarenta minutos de Ystad.
— O Martinson disse que você estava indo até o Castelo Farnholm.
— Já estive lá. E continuo na mesma.
A conversa foi interrompida por alguns segundos, devido a interferências. Depois a voz de Svedberg voltou.
— Berta Dunér ligou e pediu para falar com você. Es-tá ansiosa e pede para entrar em contato imediatamente.
— Por quê?
— Ela não falou.
— Se me passar o número, eu ligo agora para a casa dela.
— Seria melhor se você desse um pulo até lá. Ela insistiu muito.
Wallander olhou o relógio. Já eram quinze para as nove.
— E a reunião da manhã, como foi?
— Nada de especial.
— Então vou direto até a casa dela, quando chegar a Ystad.
— Certo.
Wallander se perguntou o que Berta Dunér poderia querer de tão urgente. Sentiu a tensão crescer e acelerou um pouco.
Às 9h25, estava parando de qualquer jeito do outro lado da rua, em frente à casa cor-de-rosa. Atravessou correndo e tocou a campainha. Assim que ela abriu a porta, ele pôde ver que havia algo errado. Ela parecia estar em estado de choque.
— A senhora pediu para falar comigo — disse.
Ela assentiu com um gesto de cabeça e o fez entrar. Ele estava prestes a tirar os sapatos quando ela o agarrou pelo braço e o arrastou para a sala de estar, que se abria para o pequeno gramado e o quintal. Depois apontou.
— Alguém esteve aqui durante a noite.
Ela parecia realmente assustada. Parte de sua ansiedade contagiou Wallander. Ele parou junto às janelas francesas e examinou o gramado: os canteiros, limpos e prontos para a chegada do inverno, as trepadeiras sobre o muro caiado que separava o quintal da sra. Dunér do quintal dos vizinhos.
— Não estou vendo nada.
Ela continuava atrás dele, agitada, andando de lá para cá, como se não ousasse ir até a janela. Wallander começou a se perguntar se ela não estaria sofrendo de alguma alteração mental passageira, como conseqüência dos violentos acontecimentos que haviam abalado os alicerces de sua vida.
Até que ela chegou perto dele e apontou.
— Ali — disse. — Bem ali. Alguém esteve aqui durante a noite, cavando.
— A senhora viu alguém?
— Não.
— Ouviu alguma coisa?
— Não. Mas eu sei que alguém esteve aqui durante a noite.
Wallander tentou localizar o lugar apontado. Tinha a vaga impressão de ver um minúsculo pedaço de grama pisoteado.
— Pode ter sido um gato — disse ele. — Ou uma toupeira. Até um rato.
Ela sacudiu a cabeça.
— Não. Alguém esteve aqui durante a noite.
Wallander abriu as janelas francesas e saiu para o jardim. Andou até o gramado. De perto, a impressão era a de que um quadrado de grama tinha sido retirado e depois reposto. Agachou-se e passou a mão sobre a relva. Seus dedos tocaram em algo rijo, algo feito de plástico ou ferro, um pequeno pino que saía do chão. Com todo o cuidado, ele afastou as lâminas de grama. Havia um objeto marrom-acinzentado enterrado logo abaixo da superfície.
Wallander enrijeceu. Tirou a mão e levantou-se com muito cuidado. Por alguns instantes, achou que tivesse enlouquecido — não havia a menor possibilidade de ser o que achava que era. Era improvável demais, totalmente implausível até mesmo de ser cogitado.
Andou de costas até as janelas francesas, tomando o cuidado de pisar onde já havia pisado antes. Quando alcançou a casa, virou-se. Continuava sem poder acreditar que fosse verdade.
— O que é? — perguntou ela.
— Por favor, vá pegar a lista telefônica — disse Wallander, ciente de que sua voz saíra muito tensa.
— Lista telefônica para quê?
— Faça como eu disse.
Ela foi até o hall de entrada e voltou com a lista telefônica de Ystad e arredores. Wallander pegou-a e sentiu o peso.
— Por favor, vá para a cozinha e fique lá.
Ela fez conforme ele disse.
Wallander tentou se convencer de que tudo não passava de imaginação. Se houvesse a menor possibilidade de o improvável ser de fato verdade, deveria ter tido uma reação completamente diferente. Entrou de novo na sala e se colocou o mais distante possível das janelas. Depois mirou no pino espetado na grama e atirou a lista telefônica.
A explosão o deixou surdo.
O que mais o espantou, na hora, foi descobrir que os vidros das janelas continuavam intactos.
Espiou a cratera aberta no gramado. Depois correu até a cozinha, onde escutara Berta Dunér gritar. Ela estava parada, como que petrificada, no meio do aposento, tampando os ouvidos com as mãos. Ele a pegou e a fez sentar numa das cadeiras.
— Não tem mais perigo nenhum — falou. — Volto em segundos. Só preciso dar um telefonema.
Discou o número da delegacia de polícia. Para alívio seu, foi Ebba quem atendeu.
— Aqui é o Kurt. Preciso falar com o Martinson ou com o Svedberg. Se eles não estiverem, qualquer um serve.
Martinson atendeu.
— Kurt falando. Em poucos minutos a polícia deve começar a receber chamados de emergência falando que houve uma violenta explosão atrás do Hotel Continental. Providencie para que não haja alerta geral. Não quero ver ambulâncias nem carros de bombeiro por aqui. Depois venha para cá o mais rápido que puder e traga alguém junto. Eu estou com a senhora Dunér, a secretária de Gustaf Torstensson. O endereço é Stickgatan, número 26. Uma casa cor-de-rosa.
— O que foi que houve? — Martinson perguntou.
— Você vai ver quando chegar aqui. Não acreditaria, se eu tentasse explicar.
— Experimente.
— Se eu lhe dissesse que alguém plantou uma mina terrestre no quintal da senhora Dunér, você acreditaria?
— Não.
— Foi o que eu imaginei.
Wallander desligou e voltou até as janelas francesas.
A cratera continuava ali.
6
Kurt se lembraria da quarta-feira, 3 de novembro, como o dia de cuja existência nunca se convenceu por completo. Jamais lhe teria passado pela cabeça a possibilidade de um dia topar com uma mina terrestre enterrada num quintal de uma casa no centro de Ystad.
Quando Martinson chegou à casa de Berta Dunér, acompanhado de Ann-Britt Höglund, Wallander ainda estava tendo certa dificuldade em acreditar que a explosão viera de uma mina. Martinson, no entanto, dera mais crédito às palavras que ouvira da boca do inspetor e, antes mesmo de deixar a delegacia, enviara um recado para Nyberg, da polícia técnica. Nyberg chegou à casa cor-de-rosa poucos minutos depois de Martinson e Höglund haverem parado, hipnotizados, diante da cratera no gramado. Como não podiam ter certeza de que não havia mais nenhuma mina escondida na grama, ficaram todos bem rentes à parede da casa. Por iniciativa própria, logo depois Höglund foi até a cozinha para interrogar Berta Dunér, que já estava um pouco mais calma.
— O que está havendo? — disse Martinson, indignado.
— Não me pergunte — Wallander retrucou. — Não faço a menor idéia.
Nada mais foi dito. Continuaram a contemplar o buraco no chão. Pouco depois, a equipe técnica chegou, chefiada pelo sempre habilidoso mas irritável Sven Nyberg. Assim que viu Wallander, o perito parou estatelado.
— O que é que você está fazendo aqui? — A pergunta fez Wallander sentir-se como alguém que houvesse cometido um ato indecente ao voltar ao trabalho.
— Trabalhando — disse, na defensiva.
— Pensei que fosse jogar tudo para o alto.
— Eu também. Mas depois percebi que vocês não conseguiriam se virar sem mim.
Nyberg estava prestes a acrescentar mais alguma coisa, mas Wallander ergueu a mão, para interrompê-lo.
— O mais importante é este buraco no gramado — disse, ao mesmo tempo em que lembrava que Nyberg já participara várias vezes de contingentes suecos que serviam nas forças da ONU. — Com todos os seus anos de serviço em Chipre e no Oriente Médio, acho que você vai poder descobrir se foi de fato uma mina. Mas, antes, será que poderia nos dizer se há mais alguma por aí?
— Eu não sou cachorro — disse Nyberg, agachando-se junto à parede da casa. Wallander contou-lhe sobre o pino que encontrara e da lista telefônica, que desencadeara a explosão.
Nyberg meneou a cabeça.
— Existem pouquíssimas substâncias explosivas ou compostos que podem ser detonados com impacto, fora as minas. É para isso que elas foram inventadas. Para fazer voar pelos ares pessoas ou veículos que ponham um pé ou uma roda em cima delas. Para minas terrestres antipessoais, a pressão de uns poucos quilos já é suficiente: o pé de uma criança ou uma lista telefônica bastam. Se o alvo é um veículo, a pressão exigida é de duzentos quilos. — Levantando-se, Nyberg lançou um olhar interrogativo para Wallander e Martinson. — Mas que raio de pessoa enterra uma mina no quintal de alguém? É bom que seja pega rapidinho.
— Você tem certeza absoluta de que foi uma mina? — perguntou Wallander.
— Eu nunca tenho certeza de nada, mas vou mandar buscar um detetor de minas no regimento. Até o aparelho chegar, não quero ninguém aqui fora.
Enquanto esperavam pelo detetor de minas, Martinson fez algumas chamadas. Wallander, sentado no sofá, tentava entender o que acontecera. Da cozinha, vinham as vozes de Höglund, que pacientemente fazia perguntas a Berta Dunér em ritmo lento, e de Berta Dunér, que respondia com mais lentidão ainda a tudo que lhe era perguntado.
Dois advogados mortos, pensou Wallander. Depois vem alguém e põe uma mina terrestre no quintal da secretária deles. Mesmo que todo o resto ainda continue envolto em trevas, de uma coisa podemos ter certeza: a resposta só pode estar nas atividades do próprio escritório de advocacia. Não dá mais para acreditar que a vida privada ou social desses três indivíduos seja relevante.
A linha de pensamento de Wallander foi interrompida por Martinson, que terminara suas ligações.
— Björk me perguntou se eu tinha enlouquecido — falou, fazendo uma careta. — Confesso que de início eu não sabia muito bem como responder. Ele diz que é inconcebível que possa ser uma mina terrestre. Mesmo assim, quer ser informado de tudo.
— Assim que tivermos o que dizer —, falou Wallander. — Onde foi que o Nyberg se meteu?
— Resolveu ir ele mesmo até o quartel, buscar o detetor de minas.
Wallander olhou as horas. Eram dez e quinze. Lembrou-se da visita que fizera ao Castelo Farnholm, pouco antes, mas não sabia que conclusão tirar disso.
Martinson estava parado na soleira, olhando o buraco no gramado.
— Houve um incidente, isso já deve fazer uns vinte anos, em Söderhamn — recordou ele. — No tribunal judiciário do município. Está lembrado?
— Vagamente — disse Wallander.
— Foi aquele caso do velho agricultor que tinha passado anos e anos movendo processo atrás de processo contra vizinhos, parentes, contra tudo e todos. No fim, virou uma obsessão doentia que ninguém diagnosticou a tempo. Ele achava que estava sendo hostilizado por todos os seus adversários imaginários, inclusive pelo próprio juiz e pelo advogado dele. O sujeito acabou surtando. Puxou um revólver no meio de uma audiência e baleou o juiz e o advogado. Depois, quando a polícia tentou entrar na casa dele, descobriram que havia armado bombas em todas as portas e janelas. Foi por pura sorte que ninguém saiu ferido quando elas começaram a estourar feito fogos de artifício.
Wallander se lembrou do incidente.
— A casa de um promotor de Estocolmo explodiu com uma bomba — continuou Martinson. — Advogados são ameaçados e atacados. Isso para não falar na polícia.
Wallander concordou com um aceno de cabeça, sem responder. Höglund surgiu da cozinha, bloco de notas na mão. Um tanto surpreso com a constatação, Wallander reparou que ela era uma mulher atraente. Até então não tinha notado. Ela sentou-se na frente dele.
— Nada — disse ela. — Ela não ouviu barulho nenhum, durante a noite, mas tem certeza de que, até escurecer, o gramado ainda não tinha sido mexido. Ela levanta cedo e, assim que clareou, percebeu que alguém tinha entrado no quintal. Diz que não tem idéia de por que alguém iria querer matá-la. Ou pelo menos lhe arrancar uma perna.
— E está dizendo a verdade? — Martinson perguntou.
— Não é muito fácil dizer se uma pessoa em estado de choque está dizendo a verdade ou não — Höglund respondeu —, mas tenho certeza de que ela acha que a mina foi colocada no quintal durante a noite. E de que ela não faz idéia do motivo.
— Tem alguma coisa nisso que me preocupa — disse Wallander. — E eu não sei se vou conseguir atinar o que seja.
— Tente — disse Martinson.
— Ela olha pela janela, logo cedo, e vê que alguém andou bulindo em seu gramado. E ela então faz o quê?
— O que ela não faz? — interveio Höglund.
— Justamente — disse Wallander. — O natural seria que ela tivesse aberto as janelas francesas e ido lá fora para investigar. Mas, em vez disso, o que ela fez?
— Ligou para a polícia — falou Martinson.
— Como se desconfiasse de alguma coisa perigosa lá fora — completou Höglund.
— Ou soubesse — acrescentou Wallander.
— Uma mina antipessoal, por exemplo — disse Martinson. — Ela estava muito aflita quando ligou para a delegacia.
— Ela continuava aflita quando cheguei aqui — disse Wallander. — Na verdade, tenho a impressão de que ela vive sempre nervosa, pelo menos nas vezes em que conversamos. Claro que esse nervosismo pode ser explicado por tudo o que aconteceu nas últimas semanas, mas não estou muito convencido disso.
A campainha da porta tocou e Nyberg foi entrando, na frente de dois homens fardados carregando um aparelho que, para Wallander, parecia um aspirador de pó. Os soldados levaram um quarto de hora para passar o detetor de minas em todo o quintal. Os policiais ficaram na janela, acompanhando atentamente o trabalho. No fim, os soldados anunciaram que o terreno estava limpo, que ali não tinha mais nada, e começaram a se preparar para sair. Wallander foi com eles até a rua, onde um carro os aguardava.
— O que vocês podem me dizer sobre a mina? — perguntou. — Tamanho, capacidade explosiva... Será que teriam um palpite de onde foi fabricada? Qualquer coisa que puderem acrescentar talvez seja útil para nós.
CAPITÃO LUNDQVIST, dizia o disco de identificação preso à túnica do mais velho dos dois militares. Foi ele quem respondeu à pergunta do inspetor.
— Não era uma mina especialmente potente, essa. No máximo umas poucas centenas de gramas de explosivo. Mas o suficiente para matar uma pessoa. Em geral nós chamamos esse tipo de mina de Quatro.
— E isso significa o quê? — perguntou Wallander.
— Um pisa na mina — explicou o capitão Lundqvist. — E você precisa de mais três homens para tirá-lo do campo de batalha. Quatro fora da ativa.
— E de onde ela veio?
— As minas não são fabricadas da mesma forma que os outros tipos de arma — disse Lundqvist. — A Bofors produz minas, assim como os demais grandes fabricantes de armamentos. Aliás, quase todo país industrializado tem uma fábrica de minas. Ou elas são produzidas abertamente, mediante licença oficial, ou são produzidas por baixo do pano. Os grupos terroristas têm modelos próprios. Antes de poder dizer qualquer coisa sobre a origem desta, preciso de um fragmento do explosivo e, de preferência, de um pedaço do material do invólucro. Que pode ser ferro ou plástico. Até mesmo madeira.
— Veremos o que será possível encontrar — disse Wallander. — E então voltaremos a entrar em contato.
— Não é das armas mais simpáticas, uma mina — comentou o capitão Lundqvist. — Dizem que são os soldados mais baratos e confiáveis do mundo. Você coloca um soldado desses num determinado lugar e ele nunca mais sai dali, nem depois de cem anos, se for esse o desejo. Não precisa de comida, nem de bebida, nem de salário. Ele apenas existe. E espera. Até vir alguém e pisar em cima. Então ele revida.
— Por quanto tempo uma mina pode permanecer ativa? — perguntou Wallander.
— Ninguém sabe. Minas terrestres colocadas durante a Primeira Guerra Mundial continuam explodindo até hoje.
Wallander entrou de novo na casa. Nyberg estava no quintal e já havia iniciado sua meticulosa investigação da cratera.
— O explosivo e, se possível, um pedaço do invólucro — pediu Wallander.
— E o que você acha que estamos procurando? — rosnou Nyberg. — Fragmentos de osso?
Wallander se perguntou se não seria preferível deixar a sra. Dunér se acalmar mais algumas horas, antes de conversar com ela, mas estava ficando impaciente. Impaciente por não ver nenhum sinal de avanço nas investigações, por não estar encontrando um claro ponto de partida.
— Acho melhor vocês dois voltarem para a delegacia e informarem o Björk de tudo — disse ele para Martinson e Höglund. — Esta tarde vamos repassar os pormenores do caso para ver quais foram os avanços.
— Será que houve avanços?
— A gente sempre avança — afirmou Wallander —, mas nem sempre dá para saber até onde. O Svedberg já conversou com os advogados que estão inventariando os arquivos dos Torstensson?
— Ele ficou por lá a manhã toda — disse Martinson. — Mas eu desconfio que para ele seria melhor estar fazendo alguma outra coisa. O Svedberg não é muito fã de leitura.
— Então vá dar uma ajuda para ele — propôs Wallander. — Estou com um palpite de que isso é urgente.
Entrou de novo na casa, pendurou a jaqueta e foi até o banheiro do hall. Levou um susto ao ver seu rosto no espelho. Não tinha feito a barba, os olhos estavam congestionados e o cabelo despenteado. Gostaria de saber que impressão teria causado no Castelo Farnholm, logo cedo. Passou uma água fria no rosto, perguntando-se por onde iria começar para conseguir deixar claro a Berta Dunér que sabia que ela estava ocultando informações — e que não entendia por quê. Tenho de ser simpático, resolveu. Caso contrário, ela se fecha em copas.
Foi até a cozinha, onde a sra. Dunér continuava largada numa cadeira. A equipe de peritos ainda estava ocupada no quintal. De vez em quando, Wallander escutava a voz nervosa de Nyberg. Teve a sensação de, alguns instantes antes, ter vivido exatamente o que sentia e via naquele momento, uma sensação curiosa de ter andado em círculos e voltado a um ponto muito distante no passado longínquo. Fechou os olhos e respirou fundo. Depois sentou-se à mesa da cozinha e olhou para a mulher a sua frente. Por um breve instante, achou que ela lembrava sua mãe, morta havia já muito tempo. O cabelo grisalho, o corpo magro que parecia ter sido comprimido dentro de uma fôrma minúscula. Porém não conseguiu reproduzir a imagem do rosto da mãe: a fisionomia dela havia sumido de sua memória.
— A senhora está muito nervosa, eu sei — começou ele —, mas nós temos que conversar.
Ela assentiu com um gesto de cabeça, sem abrir a boca.
— Então vejamos: esta manhã a senhora descobriu que alguém tinha estado em seu quintal durante a noite — disse Wallander.
— Deu para ver na hora.
— E o que foi que a senhora fez?
Ela o olhou espantada.
— Eu já contei isso. Será que preciso repetir tudo de novo?
— Não tudo. — O tom de Wallander era de paciência. — Só precisa responder às perguntas que eu fizer.
— Estava começando a clarear. Eu me levanto muito cedo. Dei uma olhada no quintal. Alguém tinha estado por ali. Liguei para a polícia.
— Por que a senhora ligou para a polícia? — Wallander a observava atentamente.
— E o que mais eu deveria ter feito?
— A senhora poderia ter saído para verificar os danos que tinham sido causados ao seu gramado, por exemplo.
— Não tive coragem.
— Por que não? Porque a senhora sabia que havia alguma outra coisa lá fora que poderia ser perigosa?
Ela não respondeu. Wallander aguardou. Nyberg deu um berro irritado lá fora.
— Acho que a senhora não foi cem por cento honesta comigo, senhora Dunér. Acho que há alguma coisa que a senhora deveria me contar.
Berta Dunér cobriu os olhos com a mão, como se a luz da cozinha a estivesse incomodando. Wallander aguardava. O relógio da cozinha dizia que eram onze da manhã.
— Faz tanto tempo que eu sinto medo — disse ela de repente, dando uma espiada em Wallander, como se fosse culpa do inspetor. Ele esperou que ela continuasse, mas em vão.
— As pessoas em geral não sentem medo, a menos que haja um motivo — disse Wallander. — Se quer que a polícia descubra o que houve com Gustaf e Sten Torstensson, terá que nos ajudar.
— Eu não posso ajudar vocês.
Wallander percebeu que ela não agüentaria muito mais tempo a pressão. Mas pressionou assim mesmo.
— Mas pode responder às minhas perguntas. Comece contando por que sente medo.
— O senhor sabe qual é a coisa mais assustadora que existe neste mundo? É o medo alheio. Eu trabalhei durante trinta anos para Gustaf Torstensson. Não tínhamos intimidade, mas não pude evitar de perceber a mudança. No fim, havia um cheiro estranho em volta dele. Cheiro de medo.
— Quando reparou nisso pela primeira vez?
— Três anos atrás.
— Houve algo específico?
— Estava tudo exatamente como sempre.
— Tente se lembrar, isso é muito importante.
— E o que o senhor acha que tenho tentado fazer esse tempo todo?
De sua parte, o inspetor procurava a melhor forma de fazer com que Berta Dunér continuasse falando — apesar dos pesares, ela parecia disposta a responder a suas perguntas.
— A senhora nunca tocou nesse assunto com o advogado Torstensson?
— Nunca.
— Nem com o filho dele?
— Acho que ele não tinha reparado em nada de diferente.
Ela poderia ter razão, pensou Wallander. Afinal, era a secretária dele.
— A senhora não tem mesmo uma explicação para o que ocorreu hoje aqui? A senhora percebe que poderia ter morrido, se tivesse ido até o quintal, certo? Na verdade, acho que já desconfiava dessa possibilidade e por isso ligou para a polícia. A senhora estava esperando algo acontecer. Mas não tem nenhuma explicação?
— Eu comecei a perceber que durante a noite ia gente ao escritório. Tanto eu quanto Gustaf reparamos nisso. Uma caneta pousada de modo diferente em cima da mesa, uma cadeira que, depois de usada, alguém havia reposto quase no lugar, mas não exatamente.
— A senhora deve ter comentado esse fato com ele.
— Eu não tinha permissão. Fui proibida.
— Quer dizer então que ele mencionou essas visitas noturnas para a senhora?
— Não, mas dá para perceber, só de olhar para uma pessoa, as coisas que não temos permissão de dizer.
A conversa foi interrompida por Nyberg, batendo na janela.
— Eu volto já, já — disse Wallander. Nyberg estava parado em frente à porta da cozinha, segurando algo na mão. Wallander viu que era um pedaço calcinado de alguma coisa, com pouco menos de meio centímetro.
— Mina terrestre de plástico — disse Nyberg. — Isso eu posso confirmar já. Talvez seja possível descobrir de que tipo era e até mesmo onde foi feita. Mas vai levar tempo.
— E pode me dizer alguma coisa sobre a identidade de quem plantou isso aqui?
— Eu poderia, talvez, se você não tivesse jogado uma lista telefônica em cima.
— A mina estava bem à vista — disse Wallander.
— Alguém que sabe o que está fazendo consegue plantar uma mina de forma que fique invisível — disse Nyberg. — Mas tanto você quanto a dona da casa perceberam que alguém tinha revirado a grama. Nós estamos lidando com amadores.
Ou com alguém que gostaria que pensássemos assim, refletiu Wallander. Mas não disse nada e voltou para a cozinha. Tinha só mais uma pergunta.
— Ontem à tarde, a senhora recebeu a visita de uma jovem asiática. Quem era ela?
Ela o olhou com espanto.
— Como é que o senhor sabe disso?
— O como não importa. Responda à minha pergunta, mais nada.
— Ela é faxineira, limpa o escritório dos Torstensson.
Quer dizer que era isso! Wallander estava decepcionado.
— Como ela se chama?
— Kim Sung-Lee.
— Onde é que ela mora?
— Tenho o endereço dela lá no escritório.
— O que ela queria?
— Estava querendo saber se continuava empregada.
— Eu agradeceria se a senhora pudesse me passar o endereço dela. — Dizendo isso, Wallander se levantou.
— E o que acontece agora?
— Não precisa mais ficar com medo — disse Wallander. — Vou providenciar para que haja um policial de guarda. Pelo tempo que for necessário.
Avisou Nyberg que estava indo embora e voltou para a delegacia. No caminho, parou no Café Fridolfs e comprou alguns sanduíches. Trancou-se na sala e se preparou para o encontro que teria com Björk. Mas, quando foi à sala dele, Björk não estava. A conversa teria de esperar.
Era uma hora da tarde quando Wallander bateu na porta do escritório de Åkeson, na outra ponta do prédio estreito e comprido da delegacia. Sempre que entrava ali, espantava-se com o caos que parecia dominar tudo. A mesa tinha pilhas enormes de papéis, havia pastas espalhadas pelo chão e sobre as cadeiras. Junto a uma das paredes, viu um haltere e um colchão que obviamente fora enrolado às pressas.
— Você agora resolveu malhar, é?
— Não apenas isso — respondeu Åkeson, com um sorriso de auto-satisfação —, também adquiri o excelente hábito de tirar um cochilo depois do almoço. Acabei de acordar.
— Não me diga que você dorme aqui mesmo, no chão?
— Uma soneca de trinta minutos — confirmou Åkeson. — Depois disso, retomo o trabalho cheio de energia.
— Eis aí algo que eu talvez devesse experimentar também — disse Wallander, com ar de dúvida.
Åkeson abriu espaço para o inspetor sentar inclinando uma das cadeiras para a frente e deixando cair no chão uma pilha de pastas. Em seguida sentou-se e colocou os pés sobre a mesa.
— Quase que dei você por perdido, Wallander — falou, com um sorriso —, mas lá bem no fundo sempre soube que voltaria.
— Não foi brincadeira o que eu passei — disse Wallander.
Åkeson ficou sério.
— De fato, eu nem imagino qual é a sensação de alguém que mata uma pessoa. Pouco importa que tenha sido em defesa própria. Esse deve ser o único ato humano do qual não há como voltar atrás. Não tenho imaginação suficiente para conceber qual seria a sensação, a não ser uma vaga noção do abismo.
— De fato, não há como escapar dele — concordou Wallander. — Mas talvez dê para aprender a viver com ele.
Passaram alguns instantes sem falar nada. Alguém no corredor reclamava, dizendo que a máquina de café havia quebrado.
— Temos a mesma idade, você e eu — disse Åkeson. — Seis meses atrás, acordei um dia de manhã e pensei: Santo Deus! Então quer dizer que era só isso? Será que não tem mais nada além disso? Entrei em pânico. Mas agora, olhando em retrospecto, devo admitir que foi útil. Me obrigou a fazer algo que eu já devia ter feito há um tempão.
Procurou em uma das muitas pilhas sobre sua mesa e estendeu uma folha de papel para Wallander. Era um anúncio de várias organizações da ONU oferecendo cargos no exterior, inclusive em campos de refugiados na África e na Ásia, a pessoas com qualificação.
— Eu mandei um currículo — continuou Åkeson. — E depois esqueci completamente do assunto. Mas um mês atrás fui chamado para uma entrevista em Copenhague. Há a chance de me oferecerem um contrato de dois anos para trabalhar num grande campo para refugiados ugandenses que serão repatriados.
— Se a oferta vier, não vacile, pegue. E o que diz sua mulher?
— Ela não sabe de nada. Sinceramente, não sei como ela vai reagir.
— Preciso de algumas informações suas — disse Wallander.
Åkeson tirou os pés da mesa e afastou uma parte da papelada da sua frente. Wallander contou-lhe sobre a explosão no quintal da secretária, Berta Dunér. Åkeson balançava a cabeça, incrédulo.
— Mas isso não é possível.
— O Nyberg tem certeza. E ele em geral acerta, como você bem sabe.
— E você, o que está achando dessa história toda? — perguntou Åkeson. — Falei com o Björk, e claro que concordo que devemos descartar a investigação anterior sobre o acidente de Gustaf Torstensson. Não temos mesmo nada, por enquanto?
Wallander refletiu um pouco, antes de responder.
— A única coisa da qual podemos ter certeza absoluta é de que não se trata de nenhuma curiosa coincidência o fato de haver dois advogados mortos e uma mina plantada no quintal da senhora Dunér. Foi tudo planejado. Só não sabemos como foi que começou nem como vai acabar.
— Então você acha que foi mais que uma tentativa de assustar a secretária?
— Quem quer que tenha posto aquela mina no quintal da senhora Dunér pretendia matá-la — disse Wallander. — Quero proteção para ela. Talvez ela devesse se mudar daquela casa.
— Vou providenciar — prometeu Åkeson. — E conversar com o Björk.
— A senhora Dunér está com medo — continuou o inspetor. — Mas agora, depois de ter falado com ela de novo, vejo que não sabe do que tem medo. Pensei que estivesse me escondendo alguma coisa, mas me dei conta de que sabe tanto quanto nós. Ou seja, quase nada. O que eu queria era que você me ajudasse contando o que sabe sobre Gustaf e Sten Torstensson. Deve ter cruzado várias vezes com eles, no decorrer dos anos.
— O Gustaf era um sujeito esquisito — disse Åkeson. — E o filho estava seguindo as pegadas do pai.
— Gustaf Torstensson. Eu acho que é ele o ponto de partida. Mas não me pergunte por quê.
— Nunca tive muito contato com ele. Eu ainda não estava na promotoria, quando ele atuava como advogado de defesa no tribunal. Nestes últimos anos, parece ter se dedicado exclusivamente à consultoria financeira.
— Para Alfred Harderberg. Do Castelo Farnholm. O que também me parece muito esquisito. Um advogadozinho qualquer de Ystad. E um empresário dono de um império global.
— Pelo que sei, esse é um dos principais atributos de Harderberg — disse Åkeson. — O dom de se cercar das pessoas certas. Talvez tenha notado algo a respeito de Gustaf que ninguém mais suspeitava.
— E quanto ao passado de Harderberg, existe algum esqueleto escondido no armário?
— Que eu saiba, não. O que em si mesmo talvez possa parecer estranho. Dizem que por trás de toda fortuna existe sempre algum crime. Harderberg, no entanto, parece ser um cidadão exemplar. E faz o seu tanto pela Suécia também.
— O quê, por exemplo?
— Não direciona todos os investimentos para o estrangeiro. Chegou inclusive a abrir empresas em outros países e trazer a fabricação para cá. Isso é muito incomum, nos dias de hoje.
— Quer dizer que não há esqueletos vagando pelos corredores do Castelo Farnholm — disse Wallander. — Quem sabe então algum borrão na contabilidade do advogado Torstensson?
— Absolutamente nenhum — respondeu Åkeson. — Ele era um sujeito honesto, pedante e chato. Com um senso de humor antiquado. Não era um gênio, mas também não era um idiota. Discreto. Jamais do tipo que acorda um belo dia de manhã e se pergunta que fim terá levado sua vida.
— E no entanto foi assassinado. Devia haver algum borrão, em alguma parte. Talvez não na contabilidade dele, mas na de uma outra pessoa qualquer.
— Acho que não estou entendendo aonde você quer chegar.
— Um advogado deve ser mais ou menos como um médico — disse Wallander. — Conhece um bocado de segredos dos clientes.
— Você sem dúvida tem toda razão — concordou Åkeson. — A solução deve estar relacionada de alguma forma com os clientes dele. Algo que envolve todos os que trabalham para o escritório. Inclusive a secretária, a senhora Dunér.
— Estamos investigando.
— Não tenho muita coisa a acrescentar quanto a Sten Torstensson — disse Åkeson. — Solteirão, e meio antiquado também. Escutei um ou outro boato de que teria mais interesse em pessoas do mesmo sexo, mas esse é o tipo de rumor que circula a respeito de todo homem solteiro já meio coroa. Trinta anos atrás, poderíamos ter suspeitado de chantagem.
— É uma hipótese que vale a pena ter em mente. Mais alguma coisa?
— Na verdade, não. Muito de vez em quando, ele fazia algum gracejo, alguma piada. Mas não era exatamente do tipo que você gostaria de convidar para jantar na sua casa. Dizem, no entanto, que era excelente navegador.
O telefone tocou. Åkeson atendeu, depois estendeu o fone para Wallander.
Wallander reconheceu a voz de Martinson, e percebeu na mesma hora que era importante. Martinson falava alto, com voz ardida.
— Estou no escritório dos advogados — falou. — Encontramos algo que pode ser o que estávamos procurando.
— O quê?
— Cartas de ameaça.
— Dirigidas a quem?
— Aos três.
— A senhora Dunér também?
— Ela também.
— Estou indo.
Wallander entregou o telefone para Åkeson e levantou da cadeira.
— Martinson encontrou algumas cartas contendo ameaças — disse ele. — Parece que pelo visto você tinha razão.
— Ligue para cá ou para a minha casa, assim que souber de alguma coisa — pediu Åkeson.
Wallander foi direto para o carro, sem voltar a sua sala para pegar a jaqueta. Excedeu o limite permitido de velocidade, a caminho do escritório dos advogados. Lundin estava na recepção quando atravessou às pressas a porta da frente.
— Onde eles estão? — perguntou.
Ela apontou para a sala de reunião. Wallander entrou sem bater e já era tarde quando lembrou que havia gente da Ordem dos Advogados lá dentro também. Três senhores solenes, todos eles na faixa dos sessenta anos, que sem a menor sombra de dúvida se ressentiram com a súbita invasão. O inspetor lembrou do rosto barbado que tinha visto no espelho, mais cedo — ele não estava exatamente apresentável.
Martinson e Svedberg estavam em volta da mesa, à sua espera.
— Este é o inspetor Wallander — apresentou Svedberg.
— Um policial famoso em todo o país — falou um dos senhores, com modos rígidos, estendendo a mão. Wallander apertou a mão dos três advogados, depois sentou-se.
— Me ponham a par de tudo — pediu ele, olhando para Martinson. Entretanto a resposta veio de um dos advogados de Estocolmo.
— Talvez eu devesse começar informando ao inspetor Wallander quais são os procedimentos de praxe quando há o fechamento de um escritório de advocacia — disse aquele que Wallander acreditava ser o dr. Wrede.
— Faremos isso uma outra hora — interveio Wallander. — Agora, vamos direto ao que interessa. Vocês encontraram algumas cartas contendo ameaças, pelo que entendi?
Wrede olhou-o com ar de reprovação, mas não disse mais nada. Martinson deslizou um envelope pardo pelo tampo da mesa, na direção de Wallander, e Svedberg entregou-lhe um par de luvas de plástico.
— Encontrei tudo no fundo de uma gaveta do arquivo — contou Martinson. — Não estavam registradas em nenhuma agenda ou livro diário. Estavam escondidas.
Wallander calçou as luvas e abriu o envelope pardo. Dentro do envelope grande havia dois outros menores. Tentou, sem sucesso, decifrar o carimbo postal. Num dos envelopes, havia uma mancha de tinta, sugerindo que parte do texto fora riscada. Tirou do envelope as duas cartas, escritas em papel branco, e colocou-as na mesa, a sua frente. Tinham sido escritas à mão e o texto era curto: A injustiça não foi esquecida, nenhum de vocês há de escapar sem punição, vocês vão morrer, Gustaf Torstensson, seu filho e também a Dunér.
A segunda carta era ainda mais curta, com a mesma letra: A injustiça logo será punida.
A primeira carta tinha data de 19 de junho de 1992, e a segunda, de 26 de agosto do mesmo ano. Ambas estavam assinadas com o nome Lars Borman.
Wallander empurrou-as cuidadosamente para o lado e tirou as luvas.
— Procuramos em todos os livros-caixas — explicou Martinson —, mas nem Gustaf nem Sten Torstensson tinham um cliente chamado Lars Borman.
— Precisamente — confirmou Wrede.
— O sujeito fala em injustiça — disse Martinson. — Deve ter acontecido algo muito sério, caso contrário ele não iria ameaçar três pessoas de morte.
— Você deve ter razão — concordou Wallander, cujos pensamentos estavam a muitos quilômetros dali.
Uma vez mais, fora tomado pela sensação de que havia algo que deveria ter entendido, mas não conseguia atinar com o que fosse.
— Me mostrem onde foi encontrado este envelope — disse, levantando-se.
Svedberg levou-o até um armário grande de arquivo, na sala onde trabalhava Berta Dunér, e apontou para uma das gavetas de baixo. Wallander abriu-a. Estava repleta de pastas suspensas, arquivadas em ordem alfabética.
— Chame a senhorita Lundin aqui — pediu ele.
Quando Svedberg voltou com ela, Wallander percebeu o nervosismo da moça. Apesar disso, e sem ser capaz de dizer por quê, estava convencido de que ela não tinha nada a ver com os misteriosos acontecimentos do escritório de advocacia.
— Quem possuía chave deste arquivo? — perguntou.
— A senhora Dunér. — A voz de Lundin foi quase inaudível.
— Por gentileza, fale um pouco mais alto — falou Wallander.
— A senhora Dunér — ela repetiu.
— Só ela?
— Os advogados tinham suas próprias chaves.
— E o arquivo era mantido trancado?
— A senhora Dunér costumava abri-lo pela manhã e trancava de novo quando ia para casa.
Wrede interrompeu a conversa.
— Nós pegamos autorização para usar uma chave com a senhora Dunér. A chave de Sten Torstensson. Abrimos o arquivo hoje.
Wallander meneou a cabeça para Wrede. Havia algo mais que deveria perguntar àquela moça, tinha certeza, só que não lhe ocorria o que pudesse ser. Em vez de falar com Lundin, virou-se então para Wrede.
— O que acha destas cartas de ameaça?
— O autor obviamente deve ser preso o quanto antes.
— Não foi o que perguntei. Quero saber sua opinião sobre elas.
— Nós, advogados, muitas vezes nos vemos em situações muito vulneráveis.
— Imagino então que, mais cedo ou mais tarde, todo advogado acaba recebendo esse tipo de carta.
— A Ordem talvez possa lhe fornecer as estatísticas.
Wallander fitou-o por alguns momentos, antes de fazer a última pergunta.
— O senhor já recebeu alguma carta ameaçadora?
— Já me aconteceu de receber.
— E por quê?
— Infelizmente, isso eu não posso revelar. Na condição de advogado, estaria violando meu juramento de confidencialidade.
Wallander entendeu os motivos de Wrede. Devolveu as cartas ao envelope pardo.
— Nós vamos levar isso conosco — disse aos três representantes da Ordem.
— As coisas não são assim tão simples. — Era Wrede de novo. Parecia ser sempre ele o que falava em nome dos outros.
Wallander se sentiu num tribunal, perante um juiz.
— É muito possível que no momento nossos interesses não sejam idênticos. — O inspetor estava irritado com a maneira de falar do advogado. — Os senhores estão aqui para resolver o que fazer com os bens do escritório, por assim dizer, ou seja lá que nome tenha isso. Nós estamos aqui para identificar um ou mais assassinos. O envelope pardo vai comigo.
— Não podemos permitir a saída de nenhum documento deste escritório até termos discutido a questão com o promotor encarregado da investigação — argumentou Wrede.
— Ligue para Per Åkeson — disse Wallander — e mande lembranças minhas a ele.
Em seguida apanhou o envelope e saiu da sala. Martinson e Svedberg saíram atrás dele.
— Agora vamos ter problemas — comentou Martinson, enquanto deixavam o prédio. Wallander reparou que o colega não estava de todo contrariado com essa perspectiva.
Wallander sentiu o frio. O vento soprava forte e parecia estar aumentando de intensidade.
— E agora o quê? — E logo em seguida: — No que a Höglund está trabalhando?
— Ela está tomando conta do filho doente — disse Svedberg. — O Hanson ficaria satisfeito de saber disso. Ele sempre disse que mulher policial não serve, quando o assunto é investigação.
— O Hanson vive dizendo tudo quanto é tipo de coisa — interveio Martinson. — Policiais que vivem fora da base, fazendo cursos de extensão, também não ajudam muito nas investigações.
— Essas cartas têm um ano, já — disse Wallander. — Ambas assinadas por alguém chamado Lars Borman. Essa pessoa ameaça matar Gustaf e Sten Torstensson. E a senhora Dunér. Escreve uma carta e, dois meses mais tarde, manda outra. Uma delas chegou dentro de algum tipo de envelope comercial. O Nyberg é bom nisso. Acho que será capaz de nos dizer o que está escrito no envelope, debaixo da tinta. E onde as cartas foram postadas, claro. Na verdade, não sei o que estamos esperando.
Voltaram à delegacia. Martinson foi ligar para Nyberg, que continuava na casa de Berta Dunér, e Wallander tentou desvendar o mistério do carimbo postal.
Svedberg tinha saído para procurar o nome de Lars Borman nos vários registros policiais. Quando Nyberg entrou na sala de Wallander, quinze minutos mais tarde, estava azulado de frio e com manchas escuras de grama no macacão, na altura dos joelhos.
— Como vão as coisas? — perguntou Wallander.
— Devagar. E não poderia ser diferente. Uma mina explode em milhões de fragmentos minúsculos.
Wallander apontou para as duas cartas e para o envelope pardo sobre a mesa a sua frente.
— Vão ter que passar por um exame detalhado — disse ele. — Em primeiro lugar, eu gostaria de saber de onde essas cartas foram enviadas. E o que está escrito sob o borrão de tinta num dos envelopes. Tudo o mais pode esperar.
Nyberg colocou os óculos, ligou a luminária de mesa de Wallander, achou um par novo de luvas de plástico e examinou as cartas.
— Podemos decifrar o carimbo postal usando um microscópio — falou. — Seja o que for que esteja escrito no envelope, foi riscado com nanquim. Posso tentar fazer uma leve raspagem. Acho que consigo fazer esse tipo de coisa sem ter que mandar o material para Linköping.
— É urgente.
Nyberg tirou os óculos, irritado.
— É sempre urgente — disse. — Preciso de uma hora. É demais?
— Demore o quanto for preciso. Eu sei que você trabalha o mais rápido possível.
Nyberg apanhou as cartas e saiu. Martinson e Svedberg apareceram quase que ao mesmo tempo.
— Não há nenhum Borman que tenha sido fichado — disse Svedberg. — Encontrei quatro Broman e um Borrman. Achei que talvez pudesse haver algum erro ortográfico. Evert Borrman andava pela região de Östersund, lá pelo final da década de sessenta, emitindo cheques falsos. Se ainda estiver vivo, deve estar com uns oitenta e cinco anos.
Wallander abanou a cabeça.
— É melhor aguardarmos para ver o que o Nyberg diz. Ao mesmo tempo, acho melhor não esperarmos grande coisa dessas cartas. A ameaça é brutal, não resta dúvida. Mas vaga. Eu chamo vocês assim que o Nyberg trouxer os resultados.
Quando voltou a ficar sozinho, Wallander abriu a pasta de couro que haviam lhe dado no Castelo Farnholm. Passou quase uma hora se familiarizando com a extensão do império empresarial de Harderberg. Ainda não tinha terminado quando Nyberg bateu e entrou. Wallander reparou, surpreso, que ele continuava com o macacão sujo que usava pela manhã.
— Aqui estão as respostas para suas perguntas — disse ele, desabando numa das cadeiras da sala de Wallander. — As cartas têm o carimbo postal de Helsingborg, e num dos envelopes está escrito “Hotel Tília”.
Wallander puxou um bloco e anotou.
— Hotel Tília — repetiu Nyberg. — Gjutargatan, 12. Tinha até o número do telefone.
— Onde?
— Pois eu já não falei? As cartas foram postadas em Helsingborg. E é lá que fica o Hotel Tília também.
— Bom trabalho.
— Em geral, faço o que me dizem para fazer. Mas, como esse foi tão rápido, fiz uma outra coisa também. Acho que você vai ter problemas.
Wallander olhou para ele sem entender.
— Liguei para o número do hotel, em Helsingborg. Veio o sinal de número inexistente. O telefone não existe mais. Pedi a Ebba que desse uma investigada. Ela levou dez minutos para descobrir que o Hotel Tília parou de funcionar um ano atrás.
Nyberg levantou e espanou o assento da cadeira.
— Agora eu vou almoçar — declarou.
— Vá. E obrigado pela ajuda.
Quando Nyberg se foi, Wallander refletiu sobre o que tinha acabado de saber. Depois chamou Svedberg e Martinson. Alguns minutos mais, já com um café nas mãos, estavam todos reunidos na sala do inspetor.
— Deve haver algum tipo de registro para atividades hoteleiras — conjecturou Wallander. — Quer dizer, um hotel é um empreendimento comercial. Tem dono. Não é possível que deixe de funcionar sem que isso fique registrado em algum lugar.
— O que acontece com os velhos livros de registro dos hotéis? — indagou Svedberg. — São jogados fora? Ou são guardados?
— Isso é o que nós vamos ter que descobrir — disse Wallander. — E já. O mais importante é conseguir saber quem era o dono do Hotel Tília. Se dividirmos as tarefas entre nós, não devemos demorar mais que uma hora ou duas. Voltamos a nos falar quando estivermos prontos.
* * *
Wallander ligou para Ebba e pediu-lhe que procurasse o nome Borman primeiro nas listas da Skåne e de Halland. Havia acabado de pôr o aparelho no gancho quando o telefone tocou de novo. Era seu pai.
— Não se esqueça de que ficou de vir me ver esta noite — disse ele.
— Eu vou, pode deixar — respondeu Wallander, pensando que, na verdade, estava cansado demais para dirigir até Löderup. Mas sabia que não podia dizer não, não podia mudar o combinado.
— Vou lá pelas sete da noite.
— Quero só ver — disse o pai.
— E o que quer dizer com isso, posso saber? — perguntou Wallander, escutando a irritação da própria voz.
— O que eu disse foi que eu quero só ver se você vem mesmo hoje — respondeu o pai.
Wallander se impôs não começar uma discussão.
— Estarei aí — disse, e desligou.
A sala de repente parecia abafada. Saiu para o corredor e seguiu em frente, até a recepção.
— Não tem ninguém na lista com o nome de Borman — disse Ebba. — Quer que eu continue procurando?
— Ainda não.
— Eu queria convidá-lo para um jantar — falou ela. — Precisa me contar como vão as coisas.
Wallander balançou a cabeça, mas não disse nem sim nem não.
Voltou para sua sala e abriu a janela. O vento estava ficando cada vez mais violento e o inspetor sentiu muito frio. Fechou a janela e sentou-se. A pasta que recebera no Castelo Farnholm estava aberta, sobre a mesa, mas foi empurrada para o lado. O inspetor pensava em Baiba Liepa, em Riga.
Vinte minutos depois, continuava na mesma posição, pensando, quando Svedberg bateu na porta e entrou.
— Agora já sei tudo que é preciso saber sobre os hotéis suecos — disse. — O Martinson está vindo para cá também.
Depois que Martinson fechou a porta atrás de si, Svedberg sentou numa quina da mesa e começou a ler as anotações que tinha feito.
— O dono e gerente do Hotel Tília era um homem chamado Bertil Forsdahl — começou ele. — Obtive essa informação nos registros do condado. Era um hotelzinho pequeno, familiar, que não teve mais condições de continuar funcionando. Além do fato de Bertil Forsdahl também já ter idade, está com setenta anos. Eu peguei o número do telefone. Ele mora em Helsingborg.
Wallander discou à medida que Svedberg lia os dígitos. O telefone tocou um par de vezes antes de ser atendido. Por uma mulher.
— Estou tentando falar com Bertil Forsdahl — disse Wallander.
— Ele saiu. Volta mais à noite. Quem fala, por favor?
Wallander parou uns instantes, antes de responder.
— Meu nome é Kurt Wallander. Estou ligando da delegacia de polícia de Ystad. Tenho algumas perguntas para o seu marido, sobre o hotel que ele tinha há coisa de um ano, mais ou menos. Nada que seja motivo de preocupação, são apenas perguntas de rotina.
— Meu marido é um homem honesto — declarou a mulher.
— Não tenho dúvida quanto a isso — disse Wallander. — É apenas questão de rotina. Quando, exatamente, ele estará de volta?
— Ele foi até Ven, numa excursão para a terceira idade. A programação inclui um jantar em Landskrona, mas lá pelas dez Bertil já deve ter voltado. Ele nunca vai dormir antes da meia-noite. Esse é um hábito que adquiriu administrando o hotel.
— Diga a ele que vou ligar de novo — falou Wallander. — E que não há motivo nenhum para ficar preocupado.
— Eu não estou preocupada. — E repetiu: — Meu marido é um homem honesto.
Wallander desligou.
— Eu vou até lá de carro hoje à noite fazer uma visita a ele — disse.
— Não dá para esperar até amanhã? — perguntou Martinson.
— Estou certo que sim. Mas não tenho mais nada programado.
Uma hora depois, reuniram-se para avaliar a situação. Björk deixara um recado dizendo que não poderia estar presente porque tinha sido convocado para uma reunião de urgência com o diretor da Polícia Distrital. Mas Höglund apareceu de repente. O marido havia chegado e estava cuidando do filho doente.
Todos concordaram que o melhor a fazer era se concentrar nas cartas de ameaça. Wallander não conseguia fugir de uma idéia que o incomodava o tempo todo, a de que havia algo estranho em torno dos advogados mortos, algo que ele deveria ter percebido. Lembrou-se de que Höglund tivera a mesma sensação, no dia anterior.
Depois da reunião, eles se cruzaram no corredor.
— Se for a Helsingborg esta noite, eu vou junto — disse ela. — Se você me permite.
— Não é preciso.
— Mesmo assim, eu gostaria de ir.
O inspetor concordou com um gesto de cabeça. Combinaram de se encontrar na delegacia às nove da noite.
Pouco depois das sete horas, Wallander foi até a casa do pai, em Löderup.
Parou no caminho e comprou alguns pãezinhos doces para acompanhar o café. Quando chegou, o pai estava em seu estúdio, pintando o mesmo velho quadro de sempre: uma paisagem outonal, com ou sem um galo selvagem em primeiro plano.
Meu pai é o que se costuma chamar de artista kitsch, pensou Wallander. Eu às vezes também me sinto como um policial meio kitsch.
A esposa do pai, que antes era sua faxineira, tinha ido visitar uns parentes. Wallander esperava ver o pai bravo ao saber que ele só poderia ficar uma hora, mas, para sua surpresa, o velho apenas concordou com a cabeça. Jogaram cartas durante um certo tempo e Wallander aproveitou para contar a ele, em detalhes, por que tinha voltado ao trabalho. O pai não parecia interessado em seus motivos. Foi uma das raras noites em que não discutiram. Na volta para Ystad, Wallander escarafunchou a memória, tentando se lembrar de quando isso acontecera pela última vez.
Às 8h55, estavam no carro de Wallander, indo na direção da estrada para Malmö. Continuava ventando bastante, e Wallander sentia o ar frio passando pela borracha mal ajustada do vidro da janela. Sentia também o leve aroma do perfume discreto de Höglund. Assim que pegaram a E65, ele pisou no acelerador.
— Você conhece bem Helsingborg? — perguntou ela.
— Não.
— Podíamos ligar para os colegas de lá e perguntar.
— Melhor deixar a turma de lá fora disso, por enquanto.
— E por quê?
— Quando policiais se intrometem em território uns dos outros, é problema na certa — disse Wallander. — Não vejo motivo para dificultar as coisas para nós sem necessidade.
Continuaram em silêncio pela estrada. Wallander pensava, ainda que com relutância, na conversa que teria de ter com Björk. Na altura da estrada para o aeroporto de Sturup, Wallander virou numa vicinal. Alguns quilômetros mais adiante, pegou a estrada de Lund.
— Me conte por que você decidiu se tornar policial — pediu o inspetor.
— Ainda não — disse ela. — Um outro dia.
Não havia muito trânsito. O vento parecia aumentar a cada minuto. Passaram pela giratória nos arredores de Staffanstorp e viram as luzes de Lund. Eram 9h25 da noite.
— Que estranho — comentou Höglund de repente.
Wallander reparou de pronto que a voz da policial estava um tanto diferente. Deu uma olhada rápida para o rosto dela, iluminado pelas luzes do painel do carro. E viu que Höglund estava com os olhos grudados no espelhinho lateral. Deu uma olhada pelo retrovisor. Havia faróis um pouco atrás.
— O que é estranho? — perguntou ele.
— Nunca tinha passado por isso.
— Isso o quê?
— Ser perseguida — disse ela. — Ou, pelo menos, ser seguida.
Wallander percebeu que não era nenhuma brincadeira dela. Olhou de novo pelo espelho retrovisor.
— Como pode ter tanta certeza assim de que o carro está nos seguindo? — perguntou.
— Muito fácil. Ele está atrás de nós desde que saímos.
Wallander olhou para ela com um certo ar de dúvida.
— Tenho certeza absoluta. Aquele carro está atrás da gente desde que saímos de Ystad.
7
O medo se parece com um animal predador.
Mais tarde, Wallander se lembraria dele como uma garra grudada em volta do pescoço — imagem que lhe parecia infantil e inadequada, mas foi essa a comparação que acabou fazendo. Para quem iria descrever o medo que havia sentido? Para a filha, Linda, e talvez também para Baiba, numa das cartas que mandava com regularidade para Riga. Mas dificilmente para mais alguém. Nunca conversou com Ann-Britt Höglund sobre o que tinha sentido dentro do carro, naquela noite; ela nunca perguntou, e ele nunca soube ao certo se sua colega havia percebido que ele estava com medo. De qualquer maneira, o terror tinha sido tão grande que Wallander começara a tremer e em dado momento tivera certeza de que iria perder o controle do carro e cair numa valeta em alta velocidade, talvez até morrer. Lembrava-se com clareza cristalina de ter desejado estar sozinho no carro. Estar só simplificaria muito as coisas, para ele. Uma grande parte do medo, o peso do animal monstruoso, era que pudesse acontecer alguma coisa com ela, com a mulher no banco ao lado. Na superfície, havia desempenhado o papel do policial experiente, dos que não se abalam com detalhes de pouca monta, como descobrir que fora seguido de Staffanstorp a Lund, mas, por dentro, tinha passado por maus bocados até atingirem os arredores da cidade. Pouco depois de cruzar os limites do município, quando ela anunciou que o carro continuava atrás, Wallander parou num daqueles postos grandes de gasolina, que funcionam vinte e quatro horas por dia. Viram o carro passar por eles, um Mercedes azul-escuro, mas não puderam ver o número das placas nem quantas pessoas havia dentro. Wallander estava parado ao lado de uma das bombas.
— Acho que você se enganou — disse.
Ela sacudiu a cabeça, discordando.
— Aquele carro estava seguindo a gente. Não vou jurar que estivesse esperando por nós na frente da delegacia, mas reparei nele logo depois. Estava atrás quando passamos pela rotatória para entrar na E65. Era apenas um carro, até então, um carro qualquer. Mas depois que entramos em duas outras vicinais, e ele continuou ali, atrás de nós, virou outra coisa.
Wallander saltou e desatarraxou a tampa do tanque de gasolina. Ela ficou do lado dele, observando-o. Ele se esforçava para entender.
— Quem haveria de querer nos seguir? — perguntou, enquanto devolvia a mangueira à bomba.
Höglund continuou parada ao lado do carro, enquanto Wallander foi pagar a conta. Não era possível que ela estivesse certa, pensou ele. O medo começou a ceder.
Avançaram em direção à cidade. As ruas estavam desertas e os semáforos pareciam relutar em mudar. Depois de deixarem Lund para trás, e de Wallander ter acelerado assim que voltaram a pegar a estrada que ia para o norte, começaram de novo a conferir o movimento atrás deles. O Mercedes, porém, se fora, e não voltou a aparecer. Na saída para Helsingborg Sul, o inspetor reduziu a velocidade. Um caminhão encardido ultrapassou o carro deles, depois um Volvo vermelho-escuro. Wallander parou no acostamento, desafivelou o cinto e saltou do carro. Deu a volta até a traseira e se agachou, como se estivesse examinando os pneus traseiros. Sabia que ela ficaria de olho em todos os carros que passassem. Contou quatro carros, depois um ônibus que estava com defeito no bloco do motor, a julgar pelo barulho que fazia. Entrou de novo no carro e virou-se para ela.
— Nenhum Mercedes?
— Um Audi branco — disse ela. — Dois homens na frente, talvez um terceiro atrás.
— Por que esse e não um outro qualquer?
— Foram os únicos que não olharam para nós. Até aceleraram.
Wallander apontou para o telefone do carro.
— Ligue para o Martinson. Imagino que você tenha anotado os números das placas. Não só do Audi, dos outros também. Dê os números para ele. Diga que é urgente.
Ele deu a ela o número do telefone da casa de Martinson e tocou em frente, de olho para ver se avistava alguma cabine telefônica, onde com sorte poderia encontrar uma lista com um mapa da região. Escutou Höglund falando com um dos filhos de Martinson, provavelmente com a menina. Depois de uns breves instantes, Martinson atendeu e ela lhe deu os números das placas. Depois passou o telefone para Wallander.
— Ele quer falar com você — disse ela.
Wallander brecou e parou no acostamento, antes de pegar o fone.
— O que está havendo? — perguntou Martinson. — Será que esses carros não podem esperar até amanhã?
— Se a Ann-Britt ligou dizendo que é urgente, então é porque é urgente, Martinson.
— O que foi que eles fizeram, esses carros?
— É meio longo para explicar agora. Eu lhe conto amanhã. Quando estiver com as informações, ligue aqui para o carro mesmo.
E encerrou a ligação, para não dar a Martinson mais nenhuma chance de fazer perguntas. Viu que Höglund se ofendera.
— Por que ele não confiou em mim? Por que teve que conferir tudo com você?
A voz dela tinha se tornado ardida. Wallander não sabia se ela não conseguia controlar a decepção ou não queria controlá-la.
— Não esquenta com isso, não. Leva tempo até a gente se acostumar com as mudanças. Você causou um abalo na delegacia de Ystad que há muitos anos não se via. E está rodeada por um bando de burros velhos que não têm a menor inclinação para aprender novos truques.
— E você se inclui nesse bando?
— Claro que sim.
Não encontraram uma única cabine telefônica até chegarem ao terminal da balsa. Não havia nem sinal do Audi branco. Wallander parou em frente à estação ferroviária e, lá dentro, viu um mapa encardido, numa parede, mostrando que a Gjutargatan ficava na margem norte da cidade. Memorizou a rota a tomar e voltou para o carro.
— Quem poderia ter algum interesse em nos seguir? — questionou ela, enquanto viravam à esquerda e passavam pela fachada branca do teatro.
— Não sei. Tem um bocado de coisas em torno de Gustaf e Sten Torstensson que são estranhas. Vivo com a sensação de que estamos sempre indo na direção errada.
— Para mim, a sensação é a de que não saímos do lugar.
— Ou que estamos girando em círculos — continuou Wallander. — E não enxergamos o fato de estarmos pisando nas nossas próprias pegadas.
Ainda nem sinal do Audi. Estavam chegando a um conjunto habitacional. Não havia ninguém na rua. Wallander estacionou diante da casa de número 12 e desceu. O vento ameaçava arrancar as portas do carro das dobradiças. A casa era uma construção térrea de tijolos vermelhos, com garagem e um jardinzinho modesto. O inspetor pensou ter divisado os contornos de um barco, debaixo de uma lona.
A porta se abriu antes que tivesse chance de tocar a campainha. Um senhor idoso, de cabelos brancos e abrigo de ginástica, olhou-os de cima a baixo com um sorriso de curiosidade.
Wallander apresentou sua identidade.
— Eu me chamo Wallander — disse. — Sou detetive-inspetor e essa é Ann-Britt Höglund, uma colega. Somos da delegacia de polícia de Ystad.
O homem pegou a identidade e examinou-a bem de perto — evidentemente era míope. Sua mulher apareceu no hall e lhes deu as boas-vindas. A impressão de Wallander foi a de estar na soleira de um lar feliz. O casal os convidou para ir até a sala de visita, onde havia café e fatias de bolo esperando. Wallander estava prestes a sentar-se quando reparou num quadro na parede. De início foi difícil acreditar no que viu — era uma das telas pintadas pelo pai, uma das que não mostravam o galo silvestre. Viu que Höglund havia reparado no fato porque ela lhe lançou um olhar de interrogação. Ele sacudiu a cabeça e sentou-se. Era a segunda vez que entrava na casa de pessoas estranhas e encontrava uma tela do pai pendurada na parede. Quatro anos antes, tinha visto um quadro dele num apartamento em Kristianstad, só que com um galo silvestre em primeiro plano.
— Peço desculpas por termos vindo assim tão tarde — começou Wallander —, mas é que temos algumas perguntas que simplesmente não podem esperar.
— Espero que tenham tempo para tomar uma xícara de café — disse a dona da casa.
Ambos responderam que era claro que sim. Já havia passado pela cabeça de Wallander que Höglund fizera questão de acompanhá-lo só para ver de que forma ele conduzia um interrogatório daquela natureza, e sentiu-se inseguro. Correu muita água debaixo desta ponte, pensou ele. Não é bem o caso de eu ensinar a ela, e sim de eu reaprender como é que se faz, de tentar me lembrar de tudo quanto, até poucos dias atrás, eu havia descartado, achando que pertencia a uma era da minha vida em vias de acabar.
Sua mente voltou às areias sem fim de Skagen. A seu território privado. Por alguns momentos, sentiu vontade de estar lá de novo. Mas aquilo tudo já era história. Mais água debaixo da ponte.
— Até um ano atrás, o senhor tinha um hotel, o Hotel Tília — começou ele.
— Foram quarenta anos. — Wallander percebeu, na voz de Bertil Forsdahl, seu orgulho com o que conseguira fazer da vida.
— É um bocado de tempo.
— Eu comprei o hotel em 1952 — continuou Forsdahl. — Na época, chamava-se Hotel Pelicano e era um tanto mambembe, não tinha uma reputação lá muito boa. Comprei de um sujeito chamado Markusson. Ele era alcoólatra e não queria mais saber de nada. Durante o último ano em que ficou com o hotel, os quartos eram usados quase que apenas por seus companheiros de bebedeira. Tenho de reconhecer que paguei barato. Markusson morreu um ano depois. O velório dele foi uma esbórnia em Elsinore, regado a muito álcool. Nós demos um novo nome ao hotel. Naquele tempo, havia uma tília bem na frente do prédio. Ficava perto do antigo teatro — que já foi demolido, claro, como tudo o mais. Os atores de vez em quando se hospedavam conosco. Ingla Tidblad foi nossa hóspede por uma noite, certa vez. Ela pediu uma xícara de chá de manhã bem cedo.
— Imagino que tenha guardado o livro em que ela se registrou — disse Wallander.
— Guardei os livros todos. Tenho quarenta anos de história escondidos lá embaixo no porão.
— Nós às vezes sentamos depois do jantar — contou a mulher de Forsdahl — e ficamos folheando os livros, lembrando dos bons tempos. A gente lê o nome e lembra da pessoa.
Wallander trocou um olhar com Höglund. Já tinha resposta para uma de suas perguntas principais.
Um cão começou a latir lá fora, na rua.
— É o cão de guarda do vizinho — Forsdahl explicou, em tom de desculpa. — Ele fica de olho na rua toda.
Wallander deu um gole no café e reparou que estava escrito Hotel Tília na xícara.
— Vou explicar por que estamos aqui — disse. — Vocês têm o nome do hotel de vocês nas xícaras de café, assim como também tinham papel de carta e envelopes timbrados. Em julho e agosto do ano passado, duas cartas foram postadas daqui de Helsingborg. Uma delas dentro de um envelope timbrado do hotel. Deve ter sido durante as últimas semanas em que vocês ficaram abertos.
— Nós fechamos no dia 15 de setembro — disse Forsdahl. — Não cobramos nada na última noite.
— Posso lhe perguntar por que resolveu fechar? — disse Höglund.
Wallander irritou-se com a intervenção dela, mas torceu para que a colega não reparasse naquela sua reação. Como se fosse natural que uma mulher respondesse a outra mulher, quem falou foi a esposa de Forsdahl.
— O que mais nós poderíamos ter feito? — disse ela. — O prédio estava condenado e o hotel não dava lucro. Sem dúvida que poderíamos ter seguido em frente mais um ano ou dois, se quiséssemos, e se tivéssemos permissão. Mas não foi isso que aconteceu.
— Tentamos manter os melhores padrões o máximo de tempo possível — interveio Forsdahl. — Mas, no fim, estava ficando muito caro para nós. Televisão em cores em todos os quartos e coisas do gênero. Era muita despesa.
— Foi um dia muito triste para nós, o dia 15 de setembro — disse sua mulher. — Ainda temos todas as chaves dos quartos. Nós ocupávamos o 17. O lugar agora virou um estacionamento. E eles cortaram a tília. Disseram que a árvore estava podre. O que eu me pergunto é se uma árvore pode morrer de dor no coração.
O cão continuava latindo. Wallander pensou na árvore que não existia mais.
— Lars Borman — disse por fim. — Esse nome significa alguma coisa para vocês?
A resposta foi uma surpresa total.
— Pobre homem — lamentou Forsdahl.
— Uma história muito triste mesmo — acrescentou a mulher. — E por que a polícia está interessada nele agora?
— Quer dizer então que vocês sabem quem ele é? — Ao dizer isso, Wallander reparou que Höglund havia tirado um bloco de notas da bolsa.
— Um homem tão gentil — disse Forsdahl. — Pacato, calmo. Sempre muito simpático, sempre educado. Não se fazem mais homens assim, hoje em dia.
— Nós gostaríamos muito de entrar em contato com ele — disse Wallander.
Forsdahl trocou um olhar com a mulher. Wallander teve a impressão de que estavam ambos muito pouco à vontade.
— Lars Borman está morto — disse Forsdahl. — Pensei que a polícia soubesse disso.
Wallander refletiu por alguns instantes, antes de responder.
— Nós não sabemos quase nada a respeito de Borman. Tudo que sabemos é que no ano passado ele escreveu duas cartas, e que uma delas foi enviada num envelope do hotel de vocês. Queríamos falar com ele. Obviamente, isso não é mais possível, agora. Mas gostaríamos de saber o que houve. E quem ele era.
— Um cliente regular — esclareceu Forsdahl. — Ele se hospedava conosco de quatro em quatro meses, isso durante anos a fio. Em geral por duas ou três noites.
— O que ele fazia da vida? De onde era?
— Trabalhava na administração do condado — respondeu a mulher de Forsdahl. — Algo a ver com finanças.
— Era contador — disse Forsdahl. — Um funcionário público muito consciencioso e honesto do Condado de Malmöhus.
— Morava em Klagshamn — acrescentou sua mulher. — Era casado, tinha filhos. Foi uma tragédia.
— O que houve? — Wallander quis saber.
— Ele se suicidou — disse Forsdahl. E, como o inspetor reparou, lhe doía reviver essa lembrança. — Se havia uma pessoa neste mundo que nós nunca esperávamos que fosse tirar a própria vida, essa pessoa era Lars Borman. Evidentemente, ele devia ter algum segredo que nós nem sequer imaginávamos.
— O que houve? — Wallander perguntou de novo.
— Ele esteve em Helsingborg — contou Forsdahl. — Poucos dias antes do nosso fechamento. Fazendo o que tinha de fazer durante o dia e passando a noite no quarto. Ele lia muito. Naquela última manhã, pagou a conta e foi embora. Prometeu manter contato, mesmo que o hotel fosse fechar. Pegou o carro e se foi. Algumas semanas depois, ficamos sabendo que havia se enforcado numa clareira, nos arredores de Klagshamn, a poucos quilômetros da casa dele. Não deixou explicação nenhuma, nem um bilhete para a mulher e os filhos. Foi um choque para todos nós.
Wallander balançava a cabeça, devagar, para cima e para baixo. Ele crescera em Klagshamn e se perguntou em qual clareira Borman teria se enforcado. Quem sabe em alguma onde ele havia brincado, quando criança?
— Que idade tinha?
— Já tinha passado dos cinqüenta, mas não devia ter muito mais que isso — falou a mulher de Forsdahl.
— Quer dizer então que ele morava em Klagshamn — disse Wallander — e trabalhava como contador para o condado. Me parece meio estranho ficar num hotel. Entre Malmö e Helsingborg a distância não é muito grande.
— Borman não gostava de dirigir — explicou Forsdahl. — Além disso, acho que se sentia bem aqui. Podia se fechar no quarto, à noite, e ler os livros dele. Costumávamos deixá-lo em paz e ele apreciava isso.
— O senhor há de ter o endereço dele em seus livros, claro — disse Wallander.
— Ouvimos dizer que a esposa vendeu a casa e se mudou — informou a mulher de Forsdahl. — Ela não agüentou ficar por lá, depois do que houve. E os filhos já são grandes.
— Vocês sabem para onde ela se mudou?
— Para a Espanha. Marbella, acho que é esse o nome do lugar.
Wallander olhou para Höglund, que estava anotando tudo tintim-por-tintim.
— O senhor se incomoda se agora eu lhe fizer uma pergunta? — disse Forsdahl. — Por que a polícia está interessada em Borman, tanto tempo depois da morte dele?
— Pura questão de rotina — respondeu Wallander. — Infelizmente, não posso lhe dizer nada além disso. Exceto que ele não é suspeito de nada, de nenhum delito.
— Ele era um homem direito — insistiu Forsdahl. — Achava que as pessoas tinham que levar uma vida simples e agir sempre da maneira mais correta. Costumávamos conversar bastante. Ele sempre ficava bravo, quando tocávamos no assunto da desonestidade, que hoje em dia parece ser coisa generalizada.
— Não há mesmo nenhuma explicação para ele ter se suicidado? — perguntou Wallander.
Tanto Forsdahl quanto sua mulher sacudiram a cabeça para dizer que não.
— Certo — falou Wallander. — Só mais uma coisa. Gostaríamos de dar uma olhada nos livros de registro do último ano de funcionamento do hotel, se vocês não se incomodam.
— Estão todos no porão — disse Forsdahl, levantando-se da poltrona.
— É possível que o Martinson ligue para nós — disse Höglund. — Acho melhor ir buscar o telefone.
Wallander lhe deu as chaves e a mulher de Forsdahl acompanhou-a até a rua. O inspetor ouviu quando ela bateu a porta do carro, sem que o cachorro do vizinho latisse. Quando ela voltou, desceram todos até o porão. Num aposento que era surpreendentemente amplo para um porão, havia uma longa fileira de livros numa prateleira que ocupava toda a extensão de uma parede. Havia também a velha placa do hotel e um quadro com dezessete chaves penduradas. Um museu, foi o que passou pela cabeça de Wallander, que comovente. É aqui que eles escondem as memórias de uma longa vida de trabalho. Lembranças de um pequeno hotel que deixou de ser viável.
Forsdahl tirou da prateleira o último dos livros de registro e colocou-o numa mesa. Procurou por agosto, depois pelo dia 26, e apontou para uma das colunas. Wallander e Höglund debruçaram-se para examinar o que estava escrito. Wallander reconheceu a letra. Também achava que a carta tinha sido escrita com aquela mesma caneta que Borman usara para assinar o registro. Tinha nascido em 12 de outubro de 1939 e se descrevia como contador do serviço público. Höglund anotou o endereço dele em Klagshamn: Mejramsvägen, 23. Wallander não reconheceu o nome da rua. Com toda certeza seria uma daquelas ruas abertas para abrigar os novos projetos residenciais do governo. Voltou até os registros do mês de junho e encontrou o nome de Borman de novo, no mesmo dia em que a primeira carta fora postada.
— Você está entendendo alguma coisa disso tudo? — disse Höglund, em voz baixa.
— Muito pouco — respondeu Wallander.
O celular tocou e Wallander indicou, com um gesto de cabeça, que ela devia atender. Höglund sentou-se num banquinho e começou a anotar o que Martinson tinha a dizer. Wallander fechou o livro de registros e observou Forsdahl colocá-lo de volta no lugar. Quando a ligação terminou, voltaram para o andar de cima e, no caminho, Wallander perguntou o que Martinson tinha dito.
— Era o Audi — disse ela. — Podemos conversar sobre isso depois.
Os dois policiais prepararam-se para partir.
— Eu peço desculpas pelo adiantado da hora — repetiu o inspetor. — Mas às vezes a polícia não pode esperar.
— Tomara que a gente tenha conseguido ajudar em alguma coisa — disse Forsdahl. — Ainda que seja penoso ter de lembrar do coitado do Lars Borman.
— Eu entendo como se sentem — respondeu Wallander. — E, por favor, se lembrarem de mais alguma coisa, liguem para a polícia de Ystad.
— O que mais haveria para lembrar? — Forsdahl perguntou, um tanto surpreso.
— Não sei ao certo — disse Wallander, apertando sua mão.
Saíram da casa e entraram no carro. Wallander acendeu a luz interna. Höglund estava com seu bloco de notas na mão.
— Eu tinha razão — disse ela, olhando para Wallander. — Era o Audi branco. As placas não pertenciam ao carro. Elas foram roubadas. Eram de um Nissan que nem foi vendido ainda. O carro está registrado no nome de um show-room de Malmö.
— E os outros carros?
— Todos em ordem.
Wallander deu a partida. Eram onze e meia da noite e nem sinal de que o vento iria amainar. Saíram da cidade. Não havia muito trânsito na estrada. E tampouco carros atrás deles.
— Está cansada? — Wallander perguntou.
— Não.
— Nesse caso, vamos parar um pouco. — E Wallander foi então até um posto 24 horas onde havia também um café, logo ao sul de Helsingborg. — Podemos fazer uma reunião noturna de trabalho, só você e eu, e ver se conseguimos enxergar até onde fomos, esta noite. Também poderemos ver os outros carros que pararem por aqui. O único com que não precisamos mais nos preocupar é com o Audi branco.
— E por quê?
— Porque, se eles voltarem, vão voltar em um outro carro. Seja quem for esse pessoal, eles sabem o que estão fazendo. Não vão aparecer duas vezes no mesmo carro.
Foram até o café. Wallander pediu um hambúrguer, mas Höglund não quis comer nada. Encontraram uma mesa com vista para a área de estacionamento. Havia dois caminhoneiros dinamarqueses tomando café, mas as outras mesas estavam vazias.
— E então, o que você acha dessa história toda? — perguntou Wallander. — De um funcionário público, contador, que escreve cartas ameaçando um par de advogados e que, depois, vai até a floresta e se enforca?
— É difícil saber o que dizer.
— Tente.
Por alguns momentos, ambos permaneceram em silêncio, pensando. Um caminhão de uma empresa de aluguel parou no estacionamento. O hambúrguer de Wallander ficou pronto; ele foi buscá-lo e voltou para a mesa.
— A acusação que Borman faz nas cartas é de injustiça — disse Höglund. — Mas ele não diz que injustiça é essa. Borman não era cliente deles. Não sabemos qual era o relacionamento entre eles. Na verdade, não sabemos coisa alguma.
Wallander largou o garfo e limpou a boca com um guardanapo de papel.
— Não tenho a menor dúvida de que você já ouviu falar de um colega nosso chamado Rydberg — disse ele. — Um velho inspetor da polícia que morreu faz alguns anos. Era um sujeito sábio. Uma vez ele falou que os policiais têm a tendência de dizer que não sabem nada, quando na verdade sabem muito mais do que imaginam.
— Isso está me soando como uma daquelas pérolas de sabedoria que eles despejavam em cima da gente, na faculdade. Todo mundo anotava tudo no caderno e depois esquecia o mais rápido possível.
Wallander não gostou do comentário. Não gostava que ninguém questionasse a competência de Rydberg.
— Não estou nem um pouco interessado no que vocês anotavam ou deixavam de anotar na Faculdade de Polícia. Mas pelo menos tome nota do que eu digo. Ou do que Rydberg disse.
— Eu deixei você bravo, por acaso? — perguntou Höglund, surpresa.
— Eu nunca fico bravo, mas acho que o resumo que você fez sobre o quanto sabemos de Lars Borman foi um tanto ralo.
— E você é capaz de fazer um melhor, então? — A voz dela estava ardida de novo.
Ela se melindra com muita facilidade, pensou o inspetor. Não resta dúvida de que deve ser muito mais difícil do que eu imagino ser a única mulher no meio de todos os detetives da polícia de Ystad.
— Na verdade não acho que seu resumo tenha sido assim tão ralo. Mas acredito que passou por cima de algumas coisas.
— Estou escutando — disse ela. — Sei que nisso eu sou boa.
Wallander afastou o prato para o lado e foi buscar um café. Os caminhoneiros dinamarqueses haviam ido embora, deixando os policiais como os dois únicos fregueses. Da cozinha, saía um vago rumor de rádio.
— Obviamente que por enquanto é impossível tirar qualquer conclusão confiável — começou Wallander —, mas podemos fazer algumas suposições. Podemos tentar encaixar algumas peças do quebra-cabeça e ver que cara tem o conjunto, ver se conseguimos enxergar pelo menos um motivo.
— Até agora, entendi tudo.
— Lars Borman era contador. Sabemos também que ele parecia ser um homem honesto, íntegro. Essa era a principal característica dele, segundo os Forsdahl. Tirando o fato de ser um homem pacato e gostar de ler. Pela experiência que tenho, é muito raro que alguém comece por aí a dar a descrição de alguém. O que sugere que ele de fato era dono de uma honestidade incontestável.
— Um contador honesto.
— E esse homem honesto um belo dia escreve duas cartas de ameaça para o escritório de advocacia dos Torstensson, em Ystad. Assina com o próprio nome, mas risca o nome do hotel, impresso num dos envelopes. O que nos dá a oportunidade de fazer algumas suposições.
— Que ele não quis ficar no anonimato — disse Höglund. — Mas preferiu não envolver o hotel na história. Um homem honesto incomodado por uma injustiça. A pergunta é: que injustiça?
— Altura em que podemos fazer a nossa penúltima suposição — disse Wallander. — Há um elo faltando aqui. Lars Borman não era cliente dos Torstensson, mas talvez houvesse alguém mais, alguém que estava em contato tanto com ele quanto com o escritório de advocacia.
— O que faz um contador, exatamente? Confere para ver se o dinheiro está sendo usado de forma correta. Revê recibos, notas fiscais e se certifica de que todas as transações tenham sido feitas segundo as práticas corretas do comércio — continuou Höglund. — É disso que você está falando?
— Gustaf Torstensson fornecia assessoria em questões financeiras. Um contador cuida para que todas as regras e regulamentos sejam seguidos. A ênfase é um pouco diferente, mas um contador e um advogado no fundo fazem coisas muito semelhantes. Ou deveriam.
— E a sua última suposição? — perguntou ela.
— Lars Borman escreve duas cartas de ameaça. Talvez tenha escrito outras, mas nós não sabemos. Tudo o que sabemos é que as cartas foram simplesmente guardadas dentro de um envelope.
— Mas agora os dois advogados estão mortos — disse Höglund — e alguém tentou matar a senhora Dunér.
— E Lars Borman se suicidou. Acho que é por aí que temos que começar. Com o suicídio dele. Temos que entrar em contato com nossos colegas em Malmö. Deve haver um documento em algum lugar que elimine a possibilidade de a morte dele ter sido assassinato. Tem que haver um laudo médico na certidão de óbito.
— O que há é uma viúva vivendo na Espanha.
— Mas os filhos provavelmente continuam no país. Temos que falar com eles também.
Levantaram-se e saíram do café.
— Devíamos fazer isso mais vezes — disse Wallander. — É divertido conversar com você.
— Mesmo que eu não entenda nada e faça resumos ralos?
Wallander deu de ombros.
— Eu falo demais.
Voltaram para o carro. Era quase uma hora da madrugada. Wallander sentiu um calafrio ao pensar no apartamento vazio que o aguardava em Ystad. A sensação era que alguma coisa na vida dele tinha chegado ao fim havia muito tempo, muito antes de ele ter se ajoelhado no chão, coberto pela cerração, num campo de treino militar nos arredores de Ystad. No entanto não tinha conseguido saber o que era. Lembrou do quadro do pai que vira na casa da Gjutargatan. Em outros tempos, suas pinturas lhe pareciam algo do qual deveria se envergonhar, era como se ele estivesse tirando partido do mau gosto das pessoas. Agora andava com a sensação de que havia uma outra maneira de olhar para aquelas telas. Talvez o pai pintasse quadros que davam às pessoas a sensação de equilíbrio e normalidade que elas buscavam por toda parte, mas que só encontravam naquela paisagem imutável.
— No que você tanto pensa? — perguntou Höglund.
— Não sei direito — respondeu, vago. — Acho que estou cansado, mais nada.
Wallander seguiu na direção de Malmö. Ainda que fosse um trajeto mais longo, queria permanecer nas estradas principais na volta para Ystad. Não havia muito trânsito, e tampouco indícios de que alguém os estivesse seguindo. O vento forte castigava o carro.
— Eu não sabia que esse tipo de coisa acontecia por aqui — disse ela, de repente. — Quer dizer, ser seguida por estranhos num carro.
— Eu também não fazia idéia de que era possível até poucos anos atrás — respondeu Wallander. — Mas as coisas mudaram. Dizem que a mudança, no país, foi lenta e imperceptível, mas a meu ver ela foi bastante aberta e óbvia. Era só uma questão de saber olhar.
— Então me conte como era antes. E o que houve.
— Não sei se eu teria essa capacidade — respondeu o inspetor. — Apenas vejo as coisas da perspectiva do homem comum. Mas no nosso dia-a-dia, trabalhando, e mesmo numa cidadezinha tão insignificante como Ystad, deu para ver que a Suécia mudou. O crime se tornou mais freqüente e mais sério: mais complicado, mais maldoso, diferente. E começamos a descobrir criminosos entre pessoas que, até pouco tempo antes, eram cidadãos irrepreensíveis. Mas o que desencadeou isso tudo, não faço idéia.
— A mudança também não explica por que temos um dos piores índices de resolução de crimes do mundo — disse ela.
— Converse sobre isso com o Björk. Eis aí algo que não o deixa dormir, à noite. Eu às vezes acho que a ambição dele é que a polícia de Ystad compense todas as deficiências do resto do país.
— Mas tem que haver uma explicação para esse índice tão baixo de crimes esclarecidos — insistiu ela. — Não pode ser só por uma questão de falta de quadros na corporação. Ou porque estamos carentes de recursos; aliás, todo mundo se pronuncia a respeito dos tais recursos, mas pelo visto ninguém parece capaz de dizer que recursos seriam esses.
— É mais ou menos como se dois mundos se vissem frente a frente — disse Wallander. — Há muitos policiais que pensam como eu, ou seja, que obtivemos experiência e treinamento numa época em que era tudo diferente, quando o crime era mais transparente, a moral era mais clara e a autoridade policial, inquestionável. Hoje em dia, precisamos de um tipo diferente de treinamento e também de experiências diferentes para podermos ser eficientes. Só que não possuímos isso. E os que vêm depois de nós, como você, por exemplo, ainda não têm muita chance de influir naquilo que nós fazemos, de decidir quais deveriam ser as prioridades. A impressão, quase sempre, é de que não há nada que possamos fazer para impedir que os criminosos passem ainda mais na nossa frente. A única providência que a sociedade toma, para responder a isso, é mascarar as estatísticas. Em vez de dar à polícia liberdade total para resolver os crimes cometidos, uma boa parcela deles é pura e simplesmente ignorada. O que costumava ser tido como crime há dez anos já não é mais considerado um ato criminoso. As coisas mudam a cada dia que passa. Aquilo que no passado poderia levar alguém a ser punido é algo que, hoje, as pessoas fazem sem nem pensar duas vezes. Na melhor das hipóteses, pode ocasionar um relatório que acaba sumindo em alguma máquina invisível de fragmentar papel. Tudo o que sobra é algo que nunca aconteceu.
— Isso não há de ser muito bom — disse ela, com voz hesitante.
Wallander deu uma olhada na colega.
— E quem falou que era?
Tinham cruzado a saída para Landskrona e estavam se aproximando de Malmö. Uma ambulância passou por eles em alta velocidade, com as luzes azuis piscando na capota. Wallander estava cansado. Sem saber bem por quê, por alguns momentos sentiu pena da mulher sentada a seu lado. Durante os anos vindouros, ela teria de reavaliar sem descanso seu trabalho como policial. A menos que fosse excepcional como pessoa, iria passar por uma seqüência ininterrupta de dissabores e experimentar pouquíssimas alegrias.
Disso o inspetor Wallander não tinha dúvida. Mas também achava que a reputação que a precedera parecia ser verdade. Ainda se lembrava do primeiro ano de Martinson na corporação, logo depois de ter terminado a Faculdade de Polícia e começado a trabalhar na delegacia de Ystad. Na época, não tinha servido para muita coisa, mas agora era um dos melhores detetives da casa.
— Amanhã vamos fazer uma avaliação completa de todo o material — disse ele, numa tentativa fazê-la sentir-se melhor. — Tem que haver uma chance de conseguirmos progredir.
— Tomara que você esteja certo. Mas qualquer dia destes as coisas podem chegar a um ponto tal que vamos nos ver obrigados a considerar certos tipos de assassinato como incidentes que seria melhor deixar de lado.
— Se por acaso isso acontecer, a polícia vai ter de fazer um motim.
— O Comissário de Polícia jamais concordaria com isso.
— Nós nos rebelaremos quando ele estiver fora do país, comendo todas aquelas comidas refinadas em nome das boas relações públicas — disse Wallander.
— Oportunidades é que não hão de faltar, então.
Depois disso, a conversa esmoreceu. Wallander continuou pela autovia, a leste de Malmö, concentrando-se na estrada e só muito de vez em quando pensando no que tinha ocorrido durante o dia.
Foi só depois que tinham deixado Malmö para trás, ainda na E65, a caminho de Ystad, que Wallander de repente teve a sensação de que havia algo errado. Ann-Britt Höglund tinha fechado os olhos e a cabeça afundara sobre um dos ombros. Não havia o menor sinal de faróis pelo espelhinho retrovisor.
Súbito, Wallander se sentiu acordadíssimo. Estou na pista errada. Em vez de ficar averiguando se não estamos sendo seguidos, eu deveria era me perguntar por que não estamos sendo seguidos. Se Ann-Britt estava certa, e não tenho motivos para duvidar que alguém nos seguiu desde o momento em que saímos da delegacia, então a ausência de um carro atrás de nós pode significar que eles não julgam mais necessário nos seguir.
Lembrou-se da mina terrestre no quintal de Berta Dunér.
Sem pensar duas vezes, pisou no freio, passou para a faixa do acostamento e ligou o pisca-alerta. Höglund acordou. Olhou para ele, sonolenta.
— Saia do carro — ordenou Wallander.
— Por quê?
— Faça como eu mandei — gritou ele.
Ela desafivelou o cinto com um gesto brusco e saiu do carro antes mesmo do inspetor.
— Proteja-se — disse ele.
— Qual o problema? — perguntou ela, parada, assim como Wallander, junto ao pisca-alerta. Fazia frio e o vento soprava sem dó.
— Não sei ao certo. Talvez não seja nada. Fiquei preocupado porque não há ninguém nos seguindo.
Wallander não precisou explicar mais nada. Ela entendeu na hora. Isso convenceu o inspetor, ali mesmo, de que ela já era uma boa policial. Inteligente, Ann-Britt Höglund sabia como reagir ao inesperado. Além disso, ele também sentiu, pela primeira vez depois de muito tempo, que tinha alguém com quem dividir seus medos. Naquela faixa de acostamento, pouco antes da saída para Svedala, Wallander teve a sensação de que todas aquelas intermináveis caminhadas de um lado para outro da praia de Skagen tinham chegado ao fim.
O inspetor tivera a precaução de sair do carro levando o telefone. Começou a discar o número de Martinson.
— Ele vai achar que eu fiquei louco — falou, enquanto esperava que respondessem na outra ponta da linha.
— O que você acha que vai acontecer?
— Eu não sei. Mas quem consegue enterrar uma mina terrestre num quintal da Suécia não teria o menor problema em fazer o mesmo com um carro.
— Se forem as mesmas pessoas.
— Exato. Se forem as mesmas pessoas.
Martinson atendeu. Deu para Wallander perceber no ato que o colega estava dormindo profundamente.
— Aqui é o Kurt. Estou na E65, nas imediações de Svedala. A Ann-Britt está aqui comigo. Quero que você ligue para o Nyberg e peça para ele vir até aqui.
— O que houve?
— Quero que ele dê uma olhada no meu carro.
— Se o seu motor pifou, seria melhor ligar para uma oficina mecânica — disse Martinson, sem entender direito a ordem.
— Não tenho tempo para explicar agora. — Wallander sentiu a irritação crescer. — Faça o que eu mandei. Diga ao Nyberg para trazer equipamento capaz de dizer se eu andei dirigindo sentado em cima de uma bomba.
— Uma bomba?
— Você escutou.
Wallander desligou e sacudiu a cabeça.
— Ele tem razão, claro. É uma coisa meio ridícula de se dizer. Estamos na rodovia E65, altas horas da noite, e acho que pode ter uma bomba no carro.
— E tem?
— Não sei. Não tenho certeza.
Nyberg levou uma hora para chegar até onde estavam os dois, que naquela altura já tinham gelado até os ossos. Wallander esperava que Nyberg surgisse irritado por ter sido acordado no meio da noite por motivos que, para dizer o mínimo, deveriam soar um tanto suspeitos, mas, para sua surpresa, o perito apareceu todo simpático e disposto a acreditar que algo muito sério acontecera. Apesar dos protestos dela, Wallander insistiu para que Ann-Britt entrasse no carro de Nyberg para se aquecer.
— Tem uma garrafa térmica no banco da frente — falou Nyberg. — Acho que o café ainda está quente.
Depois se virou para Wallander, e este viu que o colega ainda estava de pijama por baixo do sobretudo.
— Qual o problema com o carro? — perguntou Nyberg.
— Espero que você tenha a resposta. Há uma possibilidade muito real de que não haja problema nenhum, aliás.
— E pelo que devo procurar?
— Não sei. Tudo que posso fazer é uma suposição. O carro ficou fora da minha vista durante uma meia hora. E estava trancado.
— Você tem alarme? — Nyberg perguntou.
— Não tenho nada dessas coisas — respondeu o inspetor. — É um carro antigo. Uma lata-velha. Sempre achei que ninguém iria querer roubá-lo
— E o que mais?
— Meia hora — Wallander repetiu. — Quando dei a partida, não senti nada de diferente. Estava tudo normal. De Helsingborg até aqui, são mais ou menos cem quilômetros. Paramos no caminho e tomamos um café. Eu enchi o tanque em Helsingborg. Deve estar fazendo umas três horas que o carro ficou sem supervisão.
— Seria melhor eu não tocar em nada — disse Nyberg. — Se você desconfia que o carro pode ir pelos ares.
— Achei que isso acontecia só na hora de ligar o motor.
— Hoje em dia, você pode programar como quiser a hora da explosão de uma bomba — explicou Nyberg. — E elas podem ter desde mecanismos embutidos, que se autodetonam, até dispositivos controlados por rádio, que podem ser detonados a vários quilômetros de distância.
— Talvez seja melhor deixar como está, então — disse Wallander.
— Talvez. Mas gostaria de dar uma examinada nele, de todo modo. Digamos que estou fazendo isso de livre e espontânea vontade. Que você não esteja me mandando fazer.
Nyberg voltou até seu carro e reapareceu com uma lanterna poderosa. Wallander aceitou uma caneca de café das mãos de Höglund, que tornara a sair. Ficaram ambos observando o trabalho de Nyberg, que se deitara sob o chassis à procura de algo com a lanterna. Depois, lentamente, ele rodeou o carro.
— A impressão que eu tenho é que estou sonhando — murmurou Höglund.
Nyberg havia parado junto à porta aberta, do lado do motorista. Deu uma espiada lá dentro, iluminando o interior com a lanterna. Uma perua Volkswagen, superlotada, com placa polonesa, passou por eles, a caminho da balsa de Ystad. Nyberg desligou a lanterna e voltou até onde estavam Wallander e Höglund.
— Será que ouvi mal? — perguntou. — Você não me falou que tinha enchido o tanque a caminho de Helsingborg?
— Eu abasteci em Lund. Até a boca.
— E depois foi até Helsingborg? E de lá até aqui?
Wallander pensou por um instante.
— Não pode ter dado mais que uns cento e cinqüenta quilômetros — falou.
Nyberg franziu o cenho.
— Qual é o problema? — perguntou Wallander.
— Alguma vez já teve motivos para achar que seu indicador de combustível estava com algum problema?
— Nunca. Ele sempre funcionou muito bem.
— Qual é a capacidade do seu tanque?
— Sessenta litros.
— Então me explique por que o seu indicador sugere que só resta um quarto de tanque no seu carro.
De início foi difícil entender. Em seguida, Wallander percebeu o significado do que Nyberg havia dito.
— Alguém deve ter esvaziado o tanque. O carro consome menos de um litro a cada dez quilômetros.
— Vamos recuar um pouco — disse Nyberg. — Vou tirar meu carro daqui também.
Eles o viram dar ré. As luzes de alerta continuavam piscando no carro de Wallander. O vento continuava soprando forte. Um outro carro lotado de gente, com placa da Polônia, passou por eles, indo para leste. Nyberg voltou até onde estavam os colegas. Todos olharam para o carro de Wallander.
— Quando alguém esvazia um tanque de gasolina, a idéia é abrir espaço para uma outra coisa qualquer — disse Nyberg. — Alguém pode ter plantado explosivos com algum tipo de ignição retardada que é aos poucos consumida pela gasolina. No fim, acaba explodindo. O seu indicador de combustível em geral abaixa quando o motor está funcionando?
— Não.
— Então sugiro que a gente deixe o carro aqui até amanhã — disse Nyberg. — Na verdade, acho que deveríamos fechar a E65 completamente.
— O Björk jamais concordaria com uma coisa dessas — disse Wallander. — Além do que, não temos sequer certeza de que alguém tenha posto algo dentro do tanque.
— Continuo achando que deveríamos chamar alguém para isolar a área, de todo modo — insistiu Nyberg. — Este trecho aqui pertence ao distrito de Malmö, não é?
— Receio que sim. Mas vou ligar para eles assim mesmo.
— Minha bolsa ainda está no carro — disse Höglund. — Posso ir pegá-la?
— Não — disse Nyberg. — Sua bolsa vai ter que continuar lá. E o motor vai continuar ligado.
Ann-Britt Höglund voltou para o carro de Nyberg. Wallander ligou para a polícia de Malmö. Nyberg havia se afastado um pouco para fazer xixi. Wallander olhava para o céu e contemplava as estrelas, enquanto esperava para falar com alguém.
Eram três e quatro da madrugada.
Malmö atendeu. Wallander viu Nyberg puxando o zíper da calça.
E então a noite explodiu num clarão branco.
O telefone foi arrancado da mão do inspetor.
8
O silêncio penoso.
Mais tarde, Wallander se lembraria da explosão como um grande espaço do qual todo o oxigênio fora eliminado, como a chegada repentina de um curioso vácuo na E65 numa noite fria de novembro, como um buraco negro no qual até mesmo o barulho do vento silenciara. Aconteceu tudo muito rápido, mas a memória possui a capacidade de espichar as coisas, de prolongá-las, e, no fim, a explosão se tornou para ele uma série de acontecimentos que iam rapidamente tomando o lugar um do outro, mas, ainda assim, todos distintos.
O que mais o surpreendeu foi o fato de ver seu telefone largado no asfalto, a poucos metros de onde se encontrava. Esse era o pedaço mais incompreensível da história, não o fato de seu carro estar envolto em chamas tão intensas que pareciam derreter a carroceria.
Nyberg foi o mais rápido a reagir. Agarrou Wallander e o arrastou para longe, possivelmente por medo de que o carro em chamas explodisse uma segunda vez. Ann-Britt Höglund se jogara para fora do carro de Nyberg e correra até o outro lado da estrada. Talvez tivesse gritado, mas, para Wallander, o autor do grito fora ele mesmo, ou então Nyberg, ou quem sabe nenhum deles; talvez houvesse imaginado um grito.
Por outro lado, achava que talvez fosse bom gritar. Gritar, berrar e xingar pelo fato de ter voltado à ativa, de Sten Torstensson ter ido visitá-lo em Skagen e, com isso, tê-lo arrastado para uma investigação de homicídio na qual melhor seria nunca ter se metido. Jamais deveria ter voltado a trabalhar, deveria ter assinado os documentos que Björk preparara, ido à coletiva, deixado que o transformassem numa extensa reportagem da revista Polícia Sueca, de última página, sem dúvida, e dado o fora daquilo tudo.
Na confusão que se seguiu à explosão, houve um instante de silêncio penoso em que Wallander foi capaz de pensar com extrema clareza, enquanto olhava para o telefone caído na estrada e para seu velho Peugeot em chamas, no acostamento. Estava perfeitamente lúcido e pôde chegar a uma conclusão: havia indícios de que o assassinato dos advogados, a mina plantada no quintal da secretária deles e, agora, a tentativa de homicídio contra ele seguiam um mesmo padrão, se bem que ainda meio obscuro e cheio de portas trancadas, que teriam de ser arrombadas.
Mas, em meio ao caos, uma conclusão tinha sido possível, inevitável e aterradora: alguém achava que Wallander sabia algo que não conviria ser divulgado. Quem quer que fosse a pessoa responsável pela bomba no tanque de gasolina, ela não havia planejado matar Ann-Britt Höglund. Fato que só servia para acentuar um outro aspecto daquela gente que povoava as sombras: eles não davam o menor valor à vida humana.
Wallander teve de admitir, com um misto de medo e desespero, que as pessoas que se escondiam atrás de carros com placas roubadas estavam equivocadas. Ele poderia inclusive fazer uma declaração pública e franca, dizendo que tudo se baseara num erro e que não sabia coisa alguma do que porventura existia por trás dos assassinatos, ou da mina, ou mesmo do suicídio do contador Lars Borman, se é que fora suicídio, de fato.
Era verdade que Wallander de nada sabia. No entanto, enquanto seu carro continuava ardendo, e enquanto Nyberg e Höglund afastavam os motoristas mais curiosos do local e chamavam a polícia e o corpo de bombeiros, ele ficou parado no meio da estrada, refletindo, até tirar suas conclusões. Havia um único fato que explicava o terrível engano de pensarem que ele sabia de alguma coisa: a visita de Sten a Skagen. O cartão-postal enviado da Finlândia não fora suficiente. Eles haviam seguido Sten até a Jutlândia, tinham estado lá, entre as dunas, ocultos pelo nevoeiro. Tinham vigiado o Museu de Arte, onde Wallander havia tomado um café na companhia do advogado, porém não se aproximaram o suficiente para ouvir o que estava sendo dito, porque, caso contrário, saberiam que o inspetor não sabia de nada, uma vez que Sten também não sabia; tudo se resumia a meras suspeitas. Entretanto eles não tinham condições de se arriscar. Era por isso que seu velho Peugeot queimava ali no acostamento da estrada; e era por isso que o cachorro do vizinho latira, enquanto conversavam com os Forsdahl.
O silêncio penoso, foi a idéia que ocorreu de novo ao inspetor. É isso que me rodeia, e há mais uma conclusão a ser tirada, talvez a mais vital de todas. Porque isso significa que fizemos um avanço neste caso tenebroso, significa que encontramos um ponto em volta do qual podemos nos reunir e dizer: este é o nosso ponto de partida. Pode não nos levar direto ao Santo Graal, mas talvez nos conduza até algo que precisamos encontrar.
A cronologia estava correta, pensou ele. Começava com aquele prado enlameado onde Gustaf Torstensson havia morrido, quase um mês antes. Tudo o mais, inclusive a execução de seu filho, derivava do que tinha ocorrido na noite em que o velho advogado estava a caminho de casa, voltando do Castelo Farnholm. Sabemos disso agora, o que significa que agora sabemos o que temos de fazer.
Curvou-se para apanhar o telefone caído. Lá estava, diante dos olhos, o número para emergências da polícia de Malmö. Wallander desligou o celular e constatou que o aparelho não fora danificado pela explosão nem pela queda.
O carro de bombeiros havia chegado. O inspetor acompanhou os trabalhos, viu a hora em que as chamas foram apagadas e o carro coberto por uma espuma branca. Nyberg surgiu do lado dele. Wallander percebeu que o colega estava suando e com medo.
— Essa foi por muito pouco — disse ele.
— Pois é. Mas não tão pouco assim.
Nyberg o olhou espantado.
Nesse momento, um policial graduado de Malmö chegou perto de Wallander. Eles já tinham se visto antes, mas Wallander não conseguiu lembrar o seu nome.
— Imagino que o carro incendiado seja seu — disse ele. — Ouvi boatos de que tinha deixado a corporação. De repente você reaparece e seu carro pega fogo.
Wallander não estava muito certo se o colega fora irônico ou não, mas decidiu não fazer caso e concluiu que era uma reação natural. Ao mesmo tempo, quis se certificar de que não haveria nenhum mal-entendido.
— Eu estava voltando para casa com uma colega — falou.
— Ann-Britt Höglund — disse o policial de Malmö. — Acabei de falar com ela. Ela me mandou falar com você.
Sábia decisão, pensou Wallander. Quanto menos pessoas comentassem o assunto, mais fácil seria manter tudo sob controle. Ela aprende rápido.
— Eu tive a sensação de que nem tudo estava como deveria estar — explicou Wallander. — Nós paramos e saltamos. Liguei para o Nyberg aqui do meu lado. O carro explodiu logo depois de ele ter chegado.
O alta-patente de Malmö o olhou com ceticismo.
— Essa é a versão oficial, suponho.
— Bem, o carro terá de ser examinado — disse Wallander. — Mas ninguém ficou ferido. Por enquanto, pode fazer um relatório contendo apenas o que eu disse. Vou pedir ao Björk que entre em contato com vocês. Ele é o Chefe de Polícia de Ystad. Desculpe, mas não estou conseguindo me lembrar do seu nome.
— Roslund.
Wallander se lembrou.
— Nós vamos cercar a área com um cordão de isolamento — informou Roslund. — Vou deixar uma viatura aqui.
Wallander conferiu as horas no relógio. Eram quatro e quinze.
— Acho que está na hora de voltarmos para casa e dormir.
Entraram os três no carro de Nyberg. Ninguém tinha nada a dizer. Deixaram Höglund na porta de casa, depois Nyberg levou Wallander até a Mariagatan.
— Vamos ter de lidar com o assunto daqui a umas poucas horas — Wallander ainda comentou, antes de descer. — Não vai dar para adiar.
— Estarei na delegacia às sete horas — disse Nyberg.
— Oito está bom demais. Obrigado pela ajuda.
Wallander tomou um banho rápido e se enfiou entre os lençóis. Às seis horas continuava acordado. Levantou pouco antes das sete. Sabia que o dia seria longo. Perguntou-se se conseguiria dar conta dele.
O dia 4 de novembro, uma quinta-feira, começou com um escândalo.
Björk foi trabalhar com a barba por fazer. Isso nunca havia acontecido antes. Mas quando a porta da sala de reuniões se fechou, às oito e cinco, todos tiveram a oportunidade de ver que o chefe tinha mais barba do que imaginavam. Wallander sabia que não teria chance, ainda, de conversar com ele a respeito do que acontecera antes de sua visita ao Castelo Farnholm. Mas isso podia esperar: eles tinham coisas mais importantes a resolver.
Björk deu um tapa na mesa e olhou em volta da sala.
— O que está havendo, afinal? — quis saber. — Recebi um telefonema às cinco e meia da manhã, de um oficial de alta patente de Malmö, me perguntando se eu queria que ele mandasse a própria equipe de peritos para examinar o carro incendiado do inspetor Wallander, nas imediações de Svedala, na E65, ou se íamos enviar o Nyberg e sua equipe para lá. Lá estou eu, na cozinha, às cinco e meia da manhã, sem ter a menor idéia do que responder ou dizer porque não tenho a mais mínima idéia do que está acontecendo. Será que o Kurt se machucou, talvez tenha até morrido num acidente que terminou com o carro dele em chamas? Eu não sei coisa alguma. Mas o policial Roslund, de Malmö, é um homem sensato, que pôde me pôr a par dos acontecimentos. Até agradeci pelo fato de ter sido informado, ainda que por alto, do ocorrido. Mas a verdade é que sei muito pouco a respeito.
— Nós temos um homicídio duplo para resolver — disse Wallander. — Temos uma tentativa de homicídio contra a senhora Dunér para nos manter ocupados. Até ontem, não tínhamos quase nada em que nos basear. As investigações haviam topado com um muro de tijolos, todos nós concordamos com isso, acho. Depois soubemos das tais cartas de ameaça. Descobrimos um nome e uma ligação com um hotel em Helsingborg. Ann-Britt e eu fomos até lá para investigar. Isso poderia ter esperado até a manhã de hoje, reconheço. Fizemos uma visita a um casal que conhecia Borman. Eles puderam nos fornecer algumas informações interessantes. A caminho de Helsingborg, Ann-Britt reparou que estávamos sendo seguidos. Ao chegar a Helsingborg, paramos e conseguimos anotar o número de algumas placas. Martinson foi investigar as placas. Enquanto Ann-Britt e eu conversávamos com o senhor e a senhora Forsdahl, antigos donos do Hotel Tília, agora já fechado, alguém plantou explosivos no nosso tanque de gasolina. Por pura sorte, a caminho de casa, desconfiei de algo. Pedi a Martinson que chamasse o Ny-berg. Pouco depois de ele chegar, o carro explodiu. Ninguém se feriu. Isso ocorreu nos arredores de Svedala, no distrito policial de Malmö. Foi isso o que houve.
Ninguém disse nada depois que Wallander terminou de falar. Ele ficou com a impressão de que talvez fosse melhor continuar. Poderia descrever a cena com todos os detalhes, tudo o que havia pensado, ali parado na estrada, enquanto o carro queimava a sua frente.
O momento do silêncio penoso.
Também o momento da clareza.
Relatou então, minuciosamente, suas reflexões e percebeu de imediato que suas deduções tinham a concordância de todos. Seus colegas eram policiais experientes. Sabiam distinguir entre teorias sensatas e uma série fantástica, no entanto plausível, de ocorrências.
— Consigo ver três possíveis frentes de ataque — concluiu Wallander. — Podemos nos concentrar em Gustaf Torstensson e seus clientes. Temos de investigar a fundo, mas rápido, todos os negócios em que ele se meteu durante os últimos cinco anos enquanto se dedicava quase que exclusivamente à assessoria financeira e a assuntos afins. Mas, para economizar tempo, deveríamos começar pelos últimos três anos, durante os quais, segundo a senhora Dunér, ele começou a mudar. Também gostaria que alguém fosse conversar com a moça asiática que faz limpeza no escritório deles. A senhora Dunér tem o endereço. Ela talvez tenha visto ou ouvido algo.
— E ela fala sueco? — Svedberg perguntou.
— Se não falar, teremos de providenciar um intérprete — respondeu Wallander.
— Eu falo com ela — disse Höglund.
Wallander deu um gole em seu café frio, antes de prosseguir.
— A segunda frente de ataque é Lars Borman. Desconfio que ele ainda pode nos ajudar, mesmo morto.
— Vamos precisar do apoio dos colegas de Malmö — acrescentou Björk. — Klagshamn fica no território deles.
— Eu preferia que não houvesse interferência — disse Wallander. — Será muito mais rápido nós mesmos lidarmos com o assunto. Como você é o primeiro a salientar, sempre surge um monte de problemas administrativos quando policiais de diferentes distritos tentam se ajudar.
Enquanto Björk ponderava a resposta que daria, Wallander aproveitou para terminar o que tinha a dizer.
— A terceira frente é descobrir quem está nos seguindo. Talvez eu devesse perguntar se alguém mais aqui teve o carro seguido alguma vez.
Martinson e Svedberg sacudiram a cabeça, indicando que não.
— Temos todos os motivos para ficar de olho bem aberto — falou Wallander. — Eu posso estar enganado e talvez eles não estejam interessados só em mim.
— A senhora Dunér está sendo protegida — disse Martinson. — E na minha opinião você também deveria ser.
— Não — recusou Wallander. — Não há necessidade disso.
— Eu concordo com o Martinson — disse Björk, com firmeza. — Em primeiro lugar, você não deve nunca sair em diligência sozinho. E, mais ainda, deve ir armado.
— De jeito nenhum.
— Você fará como eu disser para fazer — disse Björk.
Wallander não se deu ao trabalho de discutir. Sabia o que iria fazer, de toda forma.
Dividiram as tarefas entre si. Martinson e Höglund iriam ao escritório dos advogados para começar as buscas nos arquivos de Gustaf Torstensson. Svedberg faria uma investigação minuciosa a respeito dos carros que tinham seguido Wallander e Ann-Britt até Helsingborg. Wallander se concentraria em Borman.
— Já faz alguns dias que estou com a impressão de que é tudo muito urgente — disse ele. — Não sei por quê. Mas, seja qual for o motivo, vamos lá, mãos à obra, todos nós.
A reunião terminou e cada um tomou seu rumo. Wallander sentiu um clima positivo entre os colegas e percebeu que Höglund estava se agüentando bem, apesar da exaustão.
Pegou mais uma xícara de café e voltou a sua sala para decidir o que fazer em seguida. Nyberg enfiou a cara no vão da porta e anunciou que estava saindo para ir ver o carro queimado em Svedala.
— Suponho que você gostaria que eu verificasse se houve alguma semelhança com a explosão no quintal da senhora Dunér.
— Isso mesmo.
— Acho que isso não vai dar para esclarecer, mas vou tentar.
Nyberg foi embora e Wallander ligou para a recepção.
— Que horror o que aconteceu — comentou Ebba.
— Ninguém ficou ferido — disse Wallander. — Isso é o principal.
E foi direto ao ponto.
— Pode me arrumar um carro, Ebba, por favor? Tenho que ir até Malmö daqui a pouco. Depois gostaria que ligasse para o Castelo Farnholm e pedisse para eles me mandarem um apanhado geral de tudo que integra o império de Alfred Harderberg. Eu tinha uma pasta, mas ela queimou junto com o carro.
— É melhor eu não contar isso a eles.
— Talvez não. Mas preciso da pasta o quanto antes, o mais rápido que eles puderem.
Desligou. Depois ocorreu-lhe algo. Atravessou o corredor, até a sala de Svedberg, e encontrou-o começando a ler as anotações feitas por Martinson na noite anterior, a respeito dos carros.
— Kurt Ström — disse ele. — Esse nome lhe diz alguma coisa?
Svedberg pensou por alguns instantes.
— Um policial de Malmö? Ou me enganei?
— Isso mesmo. Quero que me faça um favor, depois que tiver terminado com os carros. Ström deixou a polícia faz muitos anos. Houve rumores de que ele se desligou antes de ser despedido. Tente descobrir o que houve. Mas seja discreto.
Svedberg anotou o nome.
— Posso perguntar por quê? Isso tem algo a ver com os advogados? Com o carro que explodiu? Com a mina no quintal?
— Tudo tem a ver com tudo. O Ström agora trabalha como guarda de segurança máxima no Castelo Farnholm. E o advogado Gustaf Torstensson esteve lá, na noite em que morreu.
— Vou dar uma verificada nele — disse Svedberg.
Wallander voltou para sua sala e sentou-se à mesa. Estava bem cansado. Não tinha força nem para pensar o quão perto da morte tinham estado ele e Höglund. Mais tarde, decidiu. Agora não. No momento, Borman morto é muito mais importante que Wallander vivo.
Localizou na lista telefônica os números da administração do Condado de Malmöhus. Sabia, de experiências anteriores, que a sede ficava em Lund. Discou e foi atendido na hora. Pediu para falar com um dos responsáveis pela secretaria de finanças.
— Não tem ninguém disponível aqui hoje — disse a recepcionista.
— Não é possível que não haja ninguém com quem falar.
— Eles estão numa reunião orçamentária. Vai levar o dia todo — explicou a moça, com toda a paciência.
— Reunião onde?
— No centro de conferências em Höör. Mas não vai adiantar nada ligar para lá.
— Qual é o nome da pessoa encarregada das auditorias? Ele está participando da reunião também?
— O auditor é Thomas Rundstedt. E sim, ele também está em Höör. Por que não liga de novo amanhã?
— Muito obrigado pela ajuda — disse Wallander, desligando.
O inspetor não tinha a menor intenção de esperar até o dia seguinte. Foi buscar mais outra xícara de café e repassou de novo tudo o que sabia a respeito de Lars Borman. Foi interrompido por Ebba, que ligou avisando que já havia um carro à espera dele, na frente da delegacia.
Eram nove e quinze da manhã. Um dia claro de outono, de céu azul e, como Wallander reparou, quase sem vento. Percebeu que estava ansioso para pegar uma estrada.
Eram quase dez horas quando se aproximou do centro de conferências, nos arredores de Höör. Estacionou o carro e foi até a recepção. Havia um quadro-negro encaixado num cavalete avisando que no salão principal de conferências estava sendo realizada a Reunião da Secretaria de Finanças do Condado. Um sujeito ruivo, atrás de uma mesa, deu um sorriso amistoso para Wallander.
— Estou tentando falar com algumas pessoas que participam do debate orçamentário.
— Eles acabaram de voltar do café — respondeu o recepcionista. — Agora vão debater até a hora do almoço, ao meio-dia e meia. Desculpe, mas até lá não dá para interrompê-los.
Wallander mostrou sua identidade policial.
— Desculpe, mas às vezes é preciso interromper as pessoas. Vou escrever um bilhete para você levar lá dentro.
E o inspetor tirou um bloco de notas do bolso e começou a escrever.
— Aconteceu alguma coisa? — perguntou o recepcionista, com voz preocupada.
— Nada muito sério. Mas é um assunto que não pode esperar, infelizmente. — Arrancou a folha. — É para um senhor chamado Thomas Rundstedt, o auditor-chefe. Eu espero aqui.
O recepcionista saiu. Wallander bocejou. Estava com fome. Viu um salão de refeições pela fresta de uma porta. Foi até lá investigar. Havia uma bandeja de sanduíches de queijo sobre uma das mesas. Pegou um e comeu. Depois outro. E só então voltou para o sofá da recepção.
O recepcionista levou mais cinco minutos para reaparecer. Vinha acompanhado de um homem que Wallander deduziu ser a pessoa que estava procurando, Thomas Rundstedt.
O homem era alto e tinha ombros largos. Wallander achava que os contadores eram todos baixinhos e magros. Mas este a sua frente poderia ter sido um boxeador. Era também calvo e olhava o inspetor de cima a baixo com olhar desconfiado.
— Meu nome é Kurt Wallander e sou detetive-inspetor da polícia de Ystad — falou, estendendo a mão. — Imagino que o senhor seja Thomas Rundstedt, auditor-chefe da secretaria de finanças do Condado de Malmö.
O homem balançou a cabeça com um gesto brusco, para dizer que sim.
— De que se trata? Havíamos pedido especificamente para não sermos perturbados. Não dá para ficar brincando com as finanças do condado. Sobretudo no momento.
— Estou certo que não. Não vou tomar muito tempo seu. Por acaso o nome de Lars Borman significa alguma coisa para o senhor?
Rundstedt arqueou uma sobrancelha, surpreso.
— Ele é anterior a mim. Borman era contador da secretaria, mas já morreu. Eu comecei a trabalhar faz só seis meses.
Merda, disse Wallander com seus botões. Vim até aqui para nada.
— Mais alguma coisa? — disse Rundstedt.
— O senhor substituiu quem mesmo?
— Martin Oscarsson. Ele se aposentou.
— Ele foi chefe de Lars Borman?
— Exato.
— Onde posso encontrá-lo?
— Ele vive em Limhamn. À beira do Oresund. Na Möllevägen. Não me lembro do número. Creio que o nome dele consta da lista.
— Isso é tudo, e muito obrigado — disse Wallander. — Peço desculpas pela interrupção. O senhor por acaso sabe como Borman morreu?
— Dizem que foi suicídio.
— Boa sorte com o orçamento. Vocês vão aumentar os impostos municipais este ano?
— Sabe-se lá — respondeu Rundstedt, voltando para sua reunião.
Wallander acenou para o recepcionista e foi para o carro. Ligou para o Serviço de Informação e anotou o endereço de Martin Oscarsson: Möllevägen, 32.
Estava lá antes do meio-dia.
A casa era uma construção de pedra da virada do século — estava escrito 1912 na entrada principal. O inspetor passou pelo portão e tocou a campainha. A porta foi aberta por um senhor de idade vestido com abrigo de ginástica. Wallander explicou quem era, mostrou sua identidade e foi convidado a entrar. Ao contrário da fachada sisuda, por dentro a casa tinha móveis de madeira clara, belas cortinas em tons pastel e amplos espaços desatravancados. De outro aposento vinha um som de música. Wallander pensou ter reconhecido a voz de Ernst Rolf, um conhecido cantor de variedades. Oscarsson o levou até a sala de visitas e perguntou-lhe se gostaria de um café. Wallander recusou.
— Vim conversar sobre Lars Borman — começou ele. — Quem me deu o seu nome foi Thomas Rundstedt. Cerca de um ano atrás, pouco antes de o senhor se aposentar, Borman morreu. A explicação oficial foi a de que ele havia se suicidado.
— E por que o senhor quer conversar comigo a respeito de Lars Borman? — perguntou Oscarsson, com um tom no qual Wallander detectou uma certa aspereza.
— O nome dele surgiu numa investigação criminal que estamos realizando.
— Que tipo de investigação criminal?
Wallander achou melhor não rodear muito e ir direto ao ponto.
— O senhor deve ter visto nos jornais que um advogado de Ystad foi assassinado há poucos dias — explicou ele. — As perguntas que preciso fazer dizem respeito a Borman e à investigação desse homicídio.
Oscarsson fitou o inspetor durante um certo tempo, antes de responder.
— Sou um velho cansado, mas ainda não morri e confesso que estou curioso. Vou responder a suas perguntas, se puder.
— Borman era contador e trabalhava na administração do condado. Qual era exatamente a função dele? E há quanto tempo era funcionário?
— Um contador é um contador — retrucou Oscarsson. — O nome do cargo já diz tudo. Borman cuidava das contas, fazia a contabilidade do condado. Conferia para ver se todos os regulamentos estavam sendo observados, se os orçamentos propostos pelas autoridades competentes não estavam superando os limites estabelecidos. Também verificava se as pessoas estavam recebendo aquilo que deveriam receber. Não se esqueça de que a administração de um condado é parecida com a de uma grande empresa, ou, melhor dizendo, com a de um império industrial associado a um pequeno ducado. A principal despesa da administração é com gastos de saúde, mas há uma série de outras coisas a serem custeadas também. Educação, cultura e por aí afora. Borman não era nosso único contador, claro. Ele entrou para a administração do condado no início da década de 1980. Antes, era funcionário municipal.
— E ele era um bom contador?
— Foi o melhor contador que já conheci na vida.
— Por quê?
— Trabalhava rápido, sem perder a precisão. E se envolvia de corpo e alma no trabalho, estava sempre apresentando sugestões de como economizar dinheiro.
— Ouvi dizer que era um homem honestíssimo.
— Claro que era. Mas esse não é exatamente um traço que provoque grandes comoções; os contadores em sua grande maioria costumam ser honestos. Há exceções, claro, mas eles jamais sobreviveriam numa atmosfera como a de uma secretaria de finanças de condado.
Wallander refletiu por alguns momentos, antes de continuar.
— E de repente, um belo dia, ele se suicida. Não foi meio inesperado, isso?
— Sem a menor sombra de dúvida que foi.
Mais tarde, lembrando-se da cena, Wallander não seria capaz de dizer ao certo o que tinha acontecido no momento em que aquelas palavras foram ditas. Houve uma ligeira mudança de tom, na voz de Oscarsson, um vestígio tênue de dúvida, talvez até de relutância, que se fez sentir na maneira como a pergunta foi respondida. Para Wallander, a conversa mudou de figura naquele exato momento e a forma direta de perguntas e respostas foi substituída por um estado de atenção.
— Borman trabalhava subordinado ao senhor. Vocês deviam se conhecer bem. Como era ele, como pessoa?
— Nunca fomos amigos. Ele vivia para o trabalho e para a família. Era um homem íntegro e ninguém jamais questionou isso. E, se alguém se aproximasse demais, ele se recolhia de volta a sua concha.
— Acha possível que ele tivesse alguma doença grave?
— Eu não saberia dizer.
— Deve ter pensado um bocado sobre a morte dele.
— Foi uma época bastante desagradável. Entristeceu muito os meus últimos meses de trabalho, antes de me aposentar.
— O que pode me dizer sobre o último dia de trabalho dele?
— Ele morreu num domingo, de modo que a última vez que eu o vi foi na tarde da sexta-feira. Houve uma reunião dos diretores financeiros. Foi uma reunião bem animada, infelizmente.
— Em que sentido?
— Houve muita discussão a respeito de como um determinado problema deveria ser solucionado.
— Que problema foi esse?
Oscarsson olhou bem firme para Wallander.
— Não sei direito se devo responder a essa pergunta.
— E por que não?
— Em primeiro lugar, porque já me aposentei. E também porque existem leis, em relação a aspectos da administração pública, determinando a confidencialidade de certos assuntos.
— E quanto ao princípio de direito ao acesso que vigora no país?
— Ele não se aplica a assuntos específicos que, por vários motivos, são considerados inadequados para o conhecimento público.
— No último dia de trabalho de Borman, ele participou de uma reunião com os diretores financeiros do condado — repetiu o inspetor. — É isso?
Oscarsson balançou a cabeça, confirmando.
— E durante essa reunião discutiu-se um problema, de forma às vezes um tanto acalorada, o que mais tarde foi considerado inadequado et cetera e tal. Em outras palavras, a ata dessa reunião está trancada em algum arquivo. Correto?
— Não, não está correto. Não houve ata.
— Nesse caso não pode ter sido uma reunião oficial — disse o inspetor. — Senão, seria obrigatória a redação de uma ata que, em seu devido tempo, receberia a aprovação e assinatura de todos os presentes, antes de ser arquivada.
— O assunto discutido foi confidencial — disse Oscarsson. — Mas isso tudo é assunto encerrado, água debaixo da ponte, e acho que não vou responder a mais nenhuma pergunta sua, inspetor. Minha memória já não é mais a mesma. Esqueci o que houve.
O velho não tinha esquecido coisa alguma, Wallander pensou. O que teria sido discutido naquela sexta-feira?
— Não posso obrigá-lo a responder, claro. Mas um promotor público pode, e eu tenho como recorrer a ele. Ou posso falar com o Comitê Executivo da Administração do Condado. Posso fazer tudo quanto é tipo de coisa para descobrir que problema era esse, só que levaria um certo tempo e eu não posso me dar a esse luxo.
— Não vou responder a mais nada — disse Oscarsson, pondo-se de pé.
Wallander não se mexeu.
— Sente-se — falou com firmeza. — Tenho uma sugestão a fazer.
Oscarsson hesitou, mas acabou sentando-se de novo.
— Vamos repassar o que o senhor fez naquela sexta-feira à tarde — propôs Wallander. — Eu não vou anotar nada. Digamos que esta vá ser uma conversa confidencial. Não há testemunhas para provar que ela existiu um dia. Eu lhe dou minha palavra de honra que jamais tocarei no seu nome, independentemente do que vá me dizer.
Oscarsson ponderou o assunto.
— Rundstedt sabe que o senhor veio falar comigo.
— Mas não sabe sobre que assunto.
O inspetor aguardou, enquanto Oscarsson se debatia com sua consciência. Mas sabia qual seria o resultado. Oscarsson era macaco velho.
— Aceito sua sugestão — acabou dizendo —, mas não sei se terei condições de responder a todas as suas perguntas.
— Condição ou vontade de responder?
— Isso é assunto meu, e de mais ninguém.
Wallander balançou a cabeça. Eles tinham chegado a um acordo.
— O problema — disse Wallander. — Que problema era esse?
— Passaram a perna na Administração do Condado de Malmöhus. Na época, não sabíamos quanto dinheiro estava envolvido na trapaça, mas agora sabemos.
— Quanto?
— Quatro milhões de coroas. Dinheiro dos contribuintes.
— O que foi que houve?
— Para poder fazer sentido, vou começar fazendo um esboço de como funciona uma administração de condado — disse Oscarsson. — Nosso giro financeiro é da ordem de vários milhões, distribuídos entre diversas secretarias e atividades. A supervisão financeira é centralizada e computadorizada. Existem mecanismos de segurança em diversos níveis, a fim de proteger o dinheiro público de desfalques e outras práticas ilegais. Há inclusive medidas para averiguar o que os altos funcionários fazem, mas não preciso entrar em detalhes sobre elas, neste caso. O que é importante compreender, aqui, é que existe uma fiscalização constante e contínua de todos os pagamentos feitos. Qualquer um cuja intenção seja fraudar uma administração de condado precisará ter muita familiaridade com formas de escamotear grandes somas de dinheiro de uma conta para outra. Bom, eis aí uma pincelada muito rápida na questão.
— Acho que entendi — disse Wallander.
— O que ocorreu deixou muito claro que nossas precauções não eram suficientes. Elas foram radicalmente alteradas, de lá para cá. Uma fraude semelhante não seria mais possível, hoje.
— Não se apresse — interveio o inspetor. — Eu gostaria de ter o máximo de detalhes possível a respeito do que aconteceu.
— Existem coisas que até hoje nós ignoramos. Mas o que sabemos é o seguinte: como deve ser de seu conhecimento, todo o sistema de administração dos serviços públicos do país sofreu amplas mudanças, nos últimos anos. Sob muitos aspectos, seria possível dizer que a Suécia passou por uma cirurgia sem anestesia suficiente. Os servidores públicos das gerações mais velhas, como eu, tiveram uma certa dificuldade em enfrentar as mudanças radicais que foram implantadas. As reformas ainda não terminaram, e vai levar um bom tempo até podermos julgar as conseqüências das reviravoltas. O ponto crucial, no entanto, é que as entidades públicas devem ser administradas da mesma maneira como são geridas as empresas comerciais, levando em conta as forças de mercado e a competição. Alguns órgãos públicos foram transformados em companhias limitadas, e outros obrigados a contratar serviços terceirizados do setor privado. Todos têm tido de satisfazer demandas por eficiência cada vez maiores. Um dos resultados, no que nos diz respeito, é que passou a ser necessário haver uma empresa para lidar com todas as compras realizadas pelo condado. Ter um condado como cliente é uma das melhores coisas que podem acontecer a uma empresa privada, seja cortadores de grama, seja sabão em pó o que se fabrica ou se vende. Para operar junto a essa empresa, nós contratamos uma firma de consultoria, com amplos poderes, um deles o de avaliar os currículos dos candidatos aos altos cargos executivos que estávamos oferecendo para gerir essa empresa. E foi aí que a fraude aconteceu.
— Qual é o nome da firma de consultoria?
— Chama-se STRUFAB. Não me lembro o que significa a sigla.
— Quem estava por trás dessa empresa?
— Ela pertencia a uma subdivisão da Smeden, uma companhia de investimentos registrada em bolsa.
— Existe um dono principal dela?
— Até onde eu sei, tanto a Volvo como a Skanska eram grandes acionistas da Smeden, na época. No entanto agora isso pode ter mudado.
— Podemos voltar a esse assunto depois — disse Wallander. — Vamos nos ater por enquanto à fraude. O que aconteceu?
— Tivemos uma série de reuniões, no final do verão e começo do outono, para dar os retoques finais à formação da empresa. Os consultores foram muito eficientes e nossos advogados deram a eles nota dez, assim como os figurões da administração. Nós chegamos inclusive a propor que a STRUFAB assinasse um contrato de longo prazo conosco.
— Quem foram esses consultores?
— Egil Holmberg e Stefan Fjällsjö. Em algumas poucas ocasiões, houve um terceiro consultor também, mas infelizmente não me lembro o nome dele.
— E no fim vocês descobriram que eles eram todos corruptos, é isso?
A resposta de Oscarsson surpreendeu o inspetor.
— Se eram ou não, eu não sei. A fraude foi executada de tal forma que, no fim, não foi possível apontar nenhum culpado específico. Ninguém foi culpado. Mas o dinheiro desapareceu.
— Isso me parece estranhíssimo — disse Wallander. — O que aconteceu, afinal?
— Para responder a isso, temos de voltar à tarde de sexta-feira do dia 14 de agosto de 1992, data em que a falcatrua foi armada e executada em pouquíssimo tempo. Até onde conseguimos enxergar, olhando em retrospecto, foi tudo cuidadosamente planejado. Nós nos reunimos com os consultores numa sala da Unidade Financeira. Começamos à uma da tarde, com planos de terminar lá pelas cinco. Quando a reunião começou, Holmberg declarou que precisaria sair às quatro horas, mas que era para prosseguirmos normalmente até o fim. Às cinco para as duas, a secretária do Diretor Financeiro entrou para dizer que havia uma ligação importante para Fjällsjö. Se não me engano, disseram que era do Ministério da Tecnologia. Fjällsjö se desculpou e saiu, acompanhado da secretária, para atender a chamada na sala dela. Mais tarde, ela explicou que saiu da sala para deixar Fjällsjö à vontade e que ele lhe disse que a ligação duraria no mínimo dez minutos. O que houve em seguida, ninguém sabe ao certo, mas grosso modo dá para ter uma idéia. Fjällsjö largou o fone sobre a mesa — não sabemos de onde veio a chamada, tudo o que sabemos é que não era do Ministério da Tecnologia. Depois passou da sala da secretária para a sala do Diretor Financeiro, elas são contíguas, e lá autorizou a transferência de quatro milhões de coroas para uma conta empresarial do Handelsbanken, em Estocolmo. A justificativa para a transferência foi que os quatro milhões eram para pagar honorários de consultoria. Não havia necessidade de contra-assinatura, de modo que o dinheiro seria transferido sem maiores problemas. A autorização levava o número do contrato assinado com a tal empresa fantasma de consultoria, que, se não me falha a memória, se chamava Sisyphus. Fjällsjö confirmou a transferência por escrito usando o formulário correto e falsificando a assinatura do diretor financeiro. Deu entrada na autorização via internet, colocou os documentos físicos junto com a correspondência interna, voltou para a sala da secretária, continuou conversando com sabe-se lá quem ao telefone e desligou quando a secretária voltou. Esse foi o fim da primeira etapa da fraude. Fjällsjö retornou à sala de reunião. Isso tudo levou menos de quinze minutos.
Wallander escutava com toda atenção. Como não estava anotando nada, temia esquecer algum detalhe.
Oscarsson continuou:
— Pouco antes das quatro da tarde, Holmberg pediu licença e saiu. Só mais tarde é que fomos saber que ele não havia deixado o prédio. Ele desceu até o andar onde fica a sala do chefe de gabinete. Diga-se de passagem que a sala estava vazia porque o chefe de gabinete participava da nossa reunião. Em geral ele não ia a nossas reuniões, mas, nessa ocasião, os consultores haviam sido específicos em solicitar a presença dele no encontro. Em
outras palavras, a coisa foi preparada com todo o carinho. Holmberg invadiu o computador dele, digitou o número do contrato fictício, e inseriu uma autorização antedatada de uma semana para o pagamento dos quatro milhões de coroas. Ligou para a sede do Handelsbanken em Estocolmo e requisitou o pagamento. Depois esperou na maior calma pela resposta. Dez minutos mais tarde, o Handelsbanken ligou de volta para conferir. Ele atendeu a ligação e confirmou a transação. Só havia mais uma coisa precisando ser feita: ele ligou para o banco usado pelo próprio condado e autorizou o pagamento; feito isso, deixou o prédio. Na manhã da segunda-feira, logo cedo, alguém sacou o dinheiro do Handelsbanken em Estocolmo. A pessoa estava autorizada pela Sisyphus a assinar a retirada em nome da empresa, e disse chamar-se Rickard Edén. Temos motivos para acreditar que foi Fjällsjö quem sacou o dinheiro, usando esse nome. Levou mais ou menos uma semana para a fraude ser descoberta. A polícia foi chamada e não demorou muito para entender o que acontecera. Só que não havia uma única prova, claro. Desnecessário dizer que Fjällsjö e Holmberg foram veementes ao negar qualquer envolvimento ou conhecimento do assunto. Cortamos todas as ligações com a empresa de consultoria, mas não pudemos ir adiante. No fim, o promotor público deu o processo por encerrado e nós conseguimos abafar o escândalo. Todos concordaram que era o melhor a fazer. Exceto uma pessoa.
— Borman?
Oscarsson confirmou com um gesto lento de cabeça.
— Ele ficou muito indignado. Todos nós ficamos, claro, mas Borman sentiu mais. Ele levou para o lado pessoal, não se conformou com o fato de não estarmos dispostos a forçar o promotor público e a polícia a levar o caso adiante. Imagino que o maior sofrimento dele foi pensar que tínhamos falhado.
— E esse sofrimento teria sido grande o bastante para levá-lo ao suicídio?
— É provável.
Já é um avanço, pensou Wallander. Mas onde é que o escritório de advocacia de Ystad se encaixaria nessa história? Os dois advogados tinham de estar envolvidos, a julgar pelas cartas de Borman.
— Por acaso sabe o que Holmberg e Fjällsjö estão fazendo agora?
— A firma de consultoria deles mudou de nome. É só o que sei. Nós advertimos os condados do país inteiro a respeito deles, ainda que muito discretamente, é verdade.
— O senhor disse que a firma de consultoria fazia parte de uma empresa bem maior, uma companhia de investimentos. E que não sabia quem era o dono. Quem era o presidente da Smeden?
— Pelo que andei lendo nos jornais, a Smeden passou por transformações, nos últimos tempos. Ela foi dividida, vários setores foram vendidos e outros adquiridos. Talvez não seja exagero dizer que a Smeden não tem lá muito boa reputação. A Volvo vendeu as ações que tinha dela. Não me recordo quem foi que comprou. Mas alguém da Bolsa de Valores com certeza será capaz de lhe dizer.
— O senhor foi de grande ajuda — disse Wallander.
— E o senhor não vai se esquecer do nosso acordo, certo?
— Eu nunca esqueço de nada. Mas me diga uma coisa. Alguma vez chegou a lhe passar pela cabeça que Borman pode ter sido assassinado?
Oscarsson fitou o inspetor com um evidente mal-estar.
— Não. Nunca. Por que eu haveria de pensar uma coisa dessa?
— Só lhe fiz uma pergunta. Muito obrigado por sua ajuda. Talvez eu precise entrar em contato de novo.
Oscarsson parou nos degraus da entrada para ver o inspetor sair. A essa altura, Wallander estava tão exausto que tudo que desejava na vida era deitar no banco do carro e dormir, mas se forçou a seguir em frente. O mais natural teria sido voltar a Höör, tirar Thomas Rundstedt de sua reunião orçamentária e fazer a ele algumas perguntas bem diferentes.
Tomou a direção de Malmö, enquanto amadurecia a decisão na cabeça, depois parou no acostamento e ligou para a polícia de lá. Pediu para falar com Roslund, deu o nome e disse que tinha um assunto urgente a tratar com o policial. A telefonista levou menos de um minuto para localizar Roslund.
— Aqui é Wallander, da delegacia de Ystad. Nós nos vimos ontem à noite.
— Não me esqueci — respondeu o colega. — Me disseram que você tem um assunto urgente.
— Eu estou aqui em Malmö. E gostaria de lhe pedir um favor.
— Pode falar.
— Cerca de um ano atrás, no começo de setembro, no primeiro ou segundo domingo daquele mês, um homem chamado Lars Borman se enforcou numa clareira nos bosques de Klagshamn. Deve ter havido um relatório da ocorrência, algumas observações a respeito do tipo de morte e um laudo com os resultados da autópsia. Eu ficaria muito grato se você pudesse desenterrar essa papelada para mim. E, se for possível, também gostaria de conversar com um dos policiais que atenderam ao chamado e tiraram o corpo de lá. Acha que isso é possível?
— Qual é o nome mesmo?
Wallander soletrou.
— Eu não saberia dizer quantos suicídios nós temos por ano, aqui — disse Roslund. — Não me lembro desse. Mas vou dar uma olhada nos documentos e ver se algum dos policiais que atenderam a ocorrência está de serviço hoje.
Wallander lhe deu o número do celular.
— Nesse meio-tempo, vou dar um pulo até Klagshamn — falou.
Eram duas horas da tarde. O inspetor tentou desconsiderar sua exaustão, mas no fim foi forçado a ceder e virou numa estrada que ele sabia levar a uma antiga pedreira. Desligou o motor e fechou bem o casaco em volta do corpo. Um minuto depois, estava dormindo.
Acordou assustado e gelado, sem saber onde estava, de início. Algo tinha penetrado em sua consciência, algo com que havia sonhado, mas não conseguia se lembrar do que era. Uma sensação de depressão tomou conta dele ao olhar para a paisagem cinzenta que o rodeava. Eram 2h35, de modo que dormira meia hora. Sentia-se como se tivesse sido despertado de um longo período de inconsciência.
Isto é mais ou menos o mais perto que se pode chegar da maior solidão de todas, pensou ele. Estar sozinho no mundo. O último ser humano, esquecido, largado.
Foi despertado de seus pensamentos pelo toque do telefone. Era Roslund.
— Você está com voz de sono — disse o colega. — Andou tirando uma soneca no carro?
— De jeito nenhum. É que estou meio resfriado.
— Encontrei o que você me pediu. Estou com a papelada aqui na mesa. Também peguei o nome do policial que atendeu a ocorrência: Magnus Staffansson. Ele estava na viatura que foi chamada quando alguém que fazia cooper encontrou um corpo pendurado no galho de uma bétula. Sem dúvida ele poderá explicar como é que um homem consegue se enforcar num galho de bétula. Onde gostaria de encontrá-lo?
Wallander sentiu o cansaço indo embora rápido.
— Na alça de acesso para Klagshamn.
— Ele estará lá em quinze minutos. Falando nisso, conversei com o Sven Nyberg faz alguns minutos. Ele não encontrou nada no seu carro.
— Isso não me surpreende.
— Mas não vai mais ter que olhar para o que sobrou dele, quando estiver indo para casa. Nós providenciamos a remoção do veículo.
— Obrigado pela ajuda.
Wallander foi direto para Klagshamn, onde parou no local combinado. Poucos minutos depois, a viatura apareceu. O inspetor tinha saído do carro e estava andando para baixo e para cima; Magnus Staffansson, de farda, lhe fez continência. Ele respondeu com um aceno desajeitado de mão. Sentaram-se no carro de Wallander. Staffansson entregou uma pasta de plástico, contendo fotocópias dentro.
— Enquanto eu dou uma olhada nisto — disse Wallander —, veja se consegue se lembrar do que houve aquele dia.
— Suicídio é uma coisa que é preferível esquecer — respondeu Staffansson, num pronunciado sotaque de Malmö. Wallander sorriu ao ouvir a maneira como ele próprio costumava falar, antes que a mudança para Ystad mudasse seu dialeto.
Depois, leu rapidamente os relatórios concisos, o laudo da autópsia e o registro da decisão de dar por encerrada a investigação. Não havia circunstâncias suspeitas.
Será mesmo?, pensou Wallander. Em seguida colocou a pasta sobre o painel do carro e virou-se para Staffansson.
— Acho que seria uma boa idéia darmos uma olhada no local onde aconteceu. Será que se lembra como chegar lá?
— Lembro. Fica a alguns quilômetros daqui. Eu vou na frente.
Saíram de Klagshamn e rumaram para o sul, ao longo do litoral. Um navio-contêiner estava passando pelo Oresund. Uma grande massa de nuvens pairava sobre Copenhague. Os conjuntos habitacionais foram rareando e em pouco tempo estavam rodeados de prados. Um trator avançava lentamente por um deles.
Chegaram antes que o inspetor se desse conta do fato. Havia um trecho de mata à esquerda da estrada; as árvores já estavam sem folhas. Wallander parou atrás da viatura de Staffansson e saltou. A trilha estava molhada e o inspetor até pensou em calçar as galochas, mas a caminho do porta-malas, para pegá-las, lembrou-se que tinham ficado no seu carro.
Staffansson apontou para uma bétula, maior que as demais.
— Ele estava pendurado ali.
— Me conte como foi.
— Está quase tudo no relatório.
— É sempre melhor ouvir de viva voz.
— Era um domingo de manhã. Lá pelas oito horas. Tínhamos sido chamados para acalmar um passageiro raivoso que viajava na balsa matinal de Dragør; ele cismou que tinha sofrido intoxicação alimentar por causa do café-da-manhã servido durante a travessia. Foi nessa hora que recebemos o chamado de emergência: um homem pendurado numa árvore. Pegamos a localização e viemos para cá. Duas pessoas que praticavam cooper haviam passado por ele. Estavam em estado de choque, claro, mas uma delas tinha corrido até aquela casa ali no morro e ligado para a polícia. Fizemos o que fomos treinados para fazer e descemos o homem, já que às vezes o suicida ainda está vivo. Depois chegou a ambulância, o DIC assumiu e o caso acabou sendo arquivado como suicídio. Não me lembro de mais nada. Ah, sim, esqueci de contar que ele tinha chegado até aqui de bicicleta. Ela estava lá, entre as moitas.
Wallander examinou a árvore, enquanto ouvia o que Staffansson tinha a dizer.
— Que tipo de corda era?
— Parecia um cabo de embarcação, mais ou menos da grossura do meu polegar.
— Lembra do nó, por acaso?
— Era um nó comum de correr.
— Como foi que ele fez?
Staffansson olhou o inspetor, sem entender.
— Não é das coisas mais fáceis de fazer, se enforcar — explicou ele. — Ele subiu em alguma coisa? Trepou na árvore?
Staffansson apontou para o tronco.
— Provavelmente ele pulou daquela saliência ali, no tronco da árvore. Isso foi o que nós achamos. Não havia nada onde ele pudesse ter se apoiado para saltar.
Wallander balançou a cabeça. O laudo da autópsia dizia claramente que Borman tinha morrido sufocado. O pescoço não estava quebrado. Estava morto havia uma hora, no máximo, quando a polícia chegou.
— Seria capaz de se lembrar de alguma outra coisa, qualquer coisa?
— Como o quê, por exemplo?
— Só você pode responder a isso.
— A gente faz o que é preciso fazer — disse o policial. — Preenche o relatório e depois tenta esquecer tudo o mais rápido possível.
Wallander sabia bem como era. Há uma atmosfera que não se parece com nada em torno de um suicídio, um ar carregado de depressão. Lembrou-se de todas as ocasiões em que ele próprio tivera de lidar com suicídios.
Repassou o que Staffansson havia dito. As palavras do policial pousavam como uma espécie de filtro sobre o que já tinha lido no relatório. Mas ele sabia que havia qualquer coisa que não estava batendo, ali.
Refletiu sobre tudo o que ouvira a respeito de Borman: ainda que as descrições fossem incompletas, ainda que houvesse algumas áreas nebulosas, parecia muito claro que Borman fora, sob todos os aspectos, uma pessoa muitíssimo bem organizada. No entanto, na hora em que decidiu acabar com a própria vida, havia pegado sua bicicleta, rodado até um bosque e escolhido uma árvore muito pouco adequada para fazer o que planejava. Só isso já dizia ao inspetor que havia algo suspeito em torno da morte de Borman. Mas não era só isso. Wallander de início não conseguia precisar o que fosse, até olhar para baixo, para o chão a poucos metros da árvore.
A bicicleta. A bicicleta conta uma história muito diferente, pensou ele.
Staffansson acendera um cigarro e passeava de um lado a outro, para se manter aquecido.
— A bicicleta — disse Wallander. — Não há nenhum detalhe sobre ela em seu relatório.
— Era uma ótima bicicleta. De dez marchas, em bom estado. Azul-escura, se não me engano.
— Me mostre onde ela estava, exatamente.
Staffansson apontou direto para o local.
— De que jeito você encontrou a bicicleta? — Wallander perguntou.
— Bom, como posso responder? Ela estava largada no chão, mais nada.
— Ela não caiu no chão?
— Ela tinha um apoio, mas não foi aberto.
— Tem certeza?
O rapaz pensou um pouco.
— Tenho — disse —, tenho certeza que não.
— Quer dizer então que ele simplesmente deixou a bicicleta cair no chão, assim, de qualquer jeito? Mais ou menos como faz um garoto quando está com pressa?
— Exato — disse Staffansson. — A bicicleta estava jogada no chão. Como se ele estivesse com pressa de acabar logo com aquilo.
Wallander balançou a cabeça, pensativo.
— Só mais uma coisinha. Pergunte ao seu parceiro se ele pode confirmar que o apoio não estava aberto.
— Isso é assim tão importante?
— É. Muito mais importante do que você imagina. Me dê uma ligada, se o seu parceiro discordar de você.
— O apoio não estava aberto — Staffansson insistiu. — Eu tenho certeza absoluta.
— De qualquer forma, me dê uma ligada. Agora vamos dar o fora daqui. Muito obrigado por sua ajuda.
Wallander tomou o caminho de Ystad pensando em Borman. Um contador trabalhando para o condado. Um homem que jamais teria jogado sua bicicleta no chão, nem mesmo in extremis.
Esse foi mais um passo, pensou Wallander. Encontrei uma pista, mas não sei bem do quê. Entre Borman e o escritório de advocacia dos Torstensson existe uma ligação qualquer. Que eu preciso encontrar.
Nem se deu conta quando passou pelo local onde seu carro explodira. Entrou em Rydsgård e almoçou numa taverna, ainda que já tivesse passado da hora do almoço. Não havia mais ninguém no restaurante, a não ser ele. Tinha de telefonar para Linda, à noite, mesmo cansado como estava. Depois escreveria uma carta para Baiba.
Às cinco da tarde, estava de volta à delegacia de Ystad. Ebba informou-o de que não haveria reunião — todo mundo estava ocupado e sem tempo para dizer aos colegas que não havia nada de significativo para relatar. Teriam uma reunião de trabalho no dia seguinte, às oito da manhã.
— Você está com uma cara péssima — disse ela.
— Obrigado. Vou ver se durmo um pouco, esta noite.
Foi até sua sala e fechou a porta. Havia vários recados sobre a mesa, mas nada que não pudesse esperar até o dia seguinte.
Pendurou o paletó e gastou meia hora redigindo um resumo do que tinha feito durante o dia. Depois largou a caneta e recostou-se na cadeira.
Agora sim, nós vamos chegar a alguma coisa. Só precisamos encontrar o elo perdido.
Tinha acabado de pôr o paletó quando bateram na porta e Svedberg entrou. Wallander percebeu na hora que tinha acontecido alguma coisa. Svedberg parecia preocupado.
— Você tem um momento?
— O que foi que houve?
Svedberg não parecia muito à vontade e Wallander sentiu o pouco que lhe sobrava de paciência ir se esgotando rápido.
— Parece que há algo que você quer me dizer, uma vez que veio até minha sala — disse. — Eu estava de saída, indo para casa.
— Infelizmente eu acho que você vai ter que ir até Simrishamn — disse Svedberg.
— E por que eu tenho que ir lá?
— Eles ligaram.
— Eles quem?
— Nossos colegas.
— A polícia de Simrishamn? O que eles queriam?
Svedberg deu a impressão de querer se certificar de que estava com os dois pés firmemente plantados no chão, antes de responder.
— Eles tiveram de prender o seu pai.
— A polícia de Simrishamn prendeu meu pai? O que ele fez?
— Pelo visto se envolveu numa briga violenta.
Wallander fitou o colega durante algum tempo, calado, sem dizer nada. Depois sentou-se de novo.
— Me conte tudo de novo. Devagar.
— Eles ligaram faz uma hora, mais ou menos. Como você não estava, falaram comigo. Faz algumas horas, prenderam seu pai. Ele provocou uma briga numa loja de bebidas de Simrishamn. Tudo indica que foi uma briga bem violenta. Depois descobriram que ele era seu pai. E então ligaram para cá.
Wallander suspirou, mas não disse nada. Devagar, levantou-se da cadeira.
— Vou até lá, então.
— Quer que eu vá junto?
— Não, obrigado.
Wallander saiu da delegacia. Estava completamente zonzo.
Uma hora depois, entrava na delegacia de polícia de Simrishamn.
9
A caminho de Simrishamn, Wallander se lembrou dos Cavaleiros das Sedas. Fazia muitos anos que não pensava neles, mas, num determinado momento da vida, eles tinham sido reais.
Na última vez em que seu pai fora para a cadeia, ele estava com onze anos. Lembrava-se de tudo com a maior nitidez. Ainda moravam em Malmö e ele sentira uma mistura de orgulho e vergonha ao vê-lo detido.
Só que naquela ocasião não havia sido numa loja de bebidas, e sim num parque público, no centro da cidade. Era um sábado, no começo do verão de 1956, e ele tivera permissão de acompanhar os adultos no passeio.
Os amigos do pai, que apareciam a intervalos irregulares e sempre de forma inesperada na casa deles, eram grandes aventureiros, aos olhos do jovem Wallander. Dirigiam carros americanos lustrosos, estavam sempre com ternos de seda, muitas vezes usavam chapéu de abas largas e levavam pesados anéis de ouro nos dedos. Faziam visitas ao pequeno estúdio cheirando a terebintina e tinta a óleo para ver e quem sabe comprar algumas telas do pai. Uma vez ou outra, ele se aventurava a entrar no estúdio e se escondia atrás de uma montoeira de trastes no canto mais escuro, velhas telas roídas pelos ratos, e sempre estremecia ao ouvir as barganhas que, invariavelmente, terminavam com alguns goles numa garrafa de conhaque. Ele havia percebido que era graças àqueles grandes aventureiros — os Cavaleiros das Sedas,
como se habituara a chamá-los, em seus diários secretos — que os Wallander tinham comida na mesa. Foi um dos momentos inesquecíveis de sua vida o dia em que viu uma transação ser concluída: os desconhecidos com seus dedos repletos de anéis puxando notas de maços folhudos e entregando rolinhos bem mais modestos ao pai, que recheara os vários bolsos com dinheiro antes de se curvar, agradecendo.
Ainda se lembrava das conversas, dos diálogos tensos, quase gaguejados, em geral seguidos de protestos pouco convincentes por parte do pai e de risadas por parte das visitas.
— Sete paisagens sem o galo e duas com — dizia um deles. O pai remexia entre as pilhas de telas terminadas, entregava a eles para serem aprovadas e então o dinheiro aterrissava na mesa com um baque delicado. Wallander, com onze anos de idade, escondido em seu canto escuro, quase sufocado pelos vapores de terebintina, achava que estava observando a vida adulta que o aguardava mais adiante, assim que atravessasse o rio formado pela Sétima Série — ou seria Nona Série, naqueles tempos? Espantou-se ao perceber que já não conseguia mais se lembrar. Ele só saía das sombras quando chegava a hora de levar as telas até os carros lustrosos, onde eram postas no porta-malas ou no banco traseiro. Esse era um momento de imenso significado, porque, muito de vez em quando, um dos Cavaleiros reparava no garoto ajudando a fazer o carregamento e, disfarçadamente, lhe entregava uma nota de cinco coroas. Depois disso, ele e o pai paravam perto do portão e ficavam vendo o carro se afastar, e, assim que o carro sumia, o pai passava por uma metamorfose: a maneira obsequiosa desaparecia num piscar de olhos, ele cuspia no lugar por onde havia passado o homem que tinha acabado de sair e dizia, com desprezo na voz, que, uma vez mais, fora enganado.
Esse tinha sido um dos grandes mistérios da infância de Kurt Wallander. Como é que seu pai poderia pensar que tinha sido enganado, quando, todas as vezes, arrecadava uma bolada de dinheiro em troca daquelas telas chatas, todas idênticas, com uma paisagem iluminada por um sol que nunca se punha?
Uma única vez presenciara uma visita que havia terminado de modo diferente. Vieram dois homens, aquela vez; ele não conhecia nenhum dos dois — enquanto se esgueirava nas sombras, atrás dos restos de uma velha calandra, deduziu, pelo teor da conversa, que eles eram novos contatos de negócio. Aquele sempre era um momento importante, porque nunca se sabia se os quadros seriam ou não aprovados. Ele havia ajudado a levar as telas até o carro, daquela vez um Dodge (ele aprendera a abrir a tampa do porta-malas de todas as diferentes marcas de carro). Então os dois homens sugeriram que saíssem todos para comer algo. Lembrava-se de que um deles se chamava Anton, o outro tinha nome estrangeiro, possivelmente polonês. Ele e o pai se espremeram entre as telas que iam no banco traseiro; aqueles sujeitos fantásticos tinham até um gramofone no carro, e ouviram Johnny Bohde a caminho do parque. Os três, o pai e os dois negociantes, foram para o restaurante do parque, e ele recebeu um punhado de moedas de uma coroa para ir andar nos carrosséis. Era um dia quente, no começo do verão, com uma brisa delicada soprando do Oresund, e ele já havia planejado em detalhes o que faria com o dinheiro. Não teria sido justo economizá-lo, pois lhe fora dado para gastar, para aproveitar aquele fim de tarde no parque. O jovem Wallander deu uma volta no carrossel e duas na roda-gigante, que ia tão alto que dava para ver até Copenhague. De vez em quando, espiava e conferia se o pai, Anton e o polaco continuavam no restaurante. E dava para ver, mesmo daquela distância, que estavam levando uma grande quantidade da garrafas e copos até a mesa deles, mais pratos de comida e guardanapos brancos, que os homens enfiaram no colarinho das camisas. Lembrava-se de ter pensado que, assim que tivesse cruzado aquele rio depois da Sétima Série, ou Nona, ou o que fosse, ele seria igualzinho àqueles homens que dirigiam carros lustrosos e recompensavam os artistas tirando gordos maços de dinheiro do bolso e colocando notas sobre a mesa de um estúdio encardido.
A tarde já tinha virado noite e ameaçava chover. Ele decidira dar mais uma volta na roda-gigante, mas não houve tempo. Havia acontecido algo. A roda-gigante, os carrosséis e a barraca de tiro ao alvo de repente perderam seus atrativos e as pessoas começaram a se amontoar em volta do restaurante. Ele tinha ido com o fluxo, aberto caminho até a primeira fila e visto algo que nunca mais seria capaz de esquecer. Aquilo havia sido um rito de passagem, algo que até então ele não sabia que existia, mas que lhe ensinou que a vida é feita de uma série de ritos de passagem de cuja existência não temos conhecimento até nos pegarmos bem no meio de um.
Depois de ter aberto caminho à força até a frente, encontrou seu próprio pai envolvido numa violenta briga com um dos Cavaleiros das Sedas e com vários guardas de segurança, garçons e outros estranhos completos. A mesa tinha sido derrubada, havia copos e garrafas estilhaçados, um filé gotejando molho e anéis castanhos de cebola frita pendurados no braço do pai, que estava com o nariz sangrando e desfechava murros para todos os lados. Tudo acontecera rápido demais. Wallander berrou o nome do pai, num misto de medo e pânico — mas, de repente, estava tudo terminado. Leões-de-chácara corpulentos, de rosto avermelhado, intervieram; a polícia surgiu do nada e o pai foi arrastado para fora de lá, junto com Anton e o polaco. Tudo que restou foi um chapéu de abas largas todo pisoteado. Ele tentou correr e agarrar o pai, mas foi puxado para trás. Aos trambolhões, conseguiu chegar até o portão do parque a tempo de ver o pai sendo levado na viatura da polícia.
Ele voltou a pé e a chuva começou antes que tivesse chegado em casa. Havia um turbilhão dentro dele, seu universo ruíra por terra e tudo o que desejava era poder apagar o que acontecera. Mas não se pode apagar a realidade. Disparou pela rua, debaixo da chuvarada, perguntando-se se algum dia veria o pai de novo. Passou a noite inteira sentado no estúdio, à espera. O cheiro de terebintina quase o sufocou, e toda vez que escutava barulho de carro corria até o portão de casa. No fim acabou pegando no sono, enroscado no chão.
Acordou com o pai curvado sobre ele. Estava com um pedaço de algodão numa das narinas, e o olho esquerdo inchado e roxo. Fedia a bebida, uma espécie de cheiro rançoso de óleo, mas o menino se ergueu na hora e abraçou o pai.
— Eles não quiseram me ouvir — disse o pai. — Não quiseram me ouvir. Eu disse a eles que meu filho estava conosco, mas eles não me ouviram. Como foi que você voltou?
Wallander lhe contou que tinha voltado a pé, debaixo de chuva.
— Sinto muito que tenha acabado dessa forma. Mas eles me deixaram muito bravo. Disseram uma coisa que não é verdade.
O pai apanhou uma de suas telas e estudou-a com o olho bom. Era uma das que tinham o galo silvestre em primeiro plano.
— Eles me deixaram muito bravo — repetiu. — Aqueles filhos da mãe insistiram que era uma perdiz. Disseram que eu tinha pintado a ave tão mal que não dava para saber se era galo silvestre ou perdiz. O que mais há para fazer senão ficar bravo? Não vou deixar que ponham minha honra e minha competência em dúvida.
— Claro que é um galo silvestre — Wallander tinha dito. — Qualquer um pode ver que não é uma perdiz.
O pai o olhou com um sorriso nos lábios. Dois dentes da frente estavam faltando. O sorriso dele quebrou, pensou Wallander. O sorriso do meu pai quebrou.
Depois tomaram uma xícara de café. Continuava chovendo e o pai havia se acalmado aos poucos.
— Imagine não saber diferenciar um galo silvestre de uma perdiz — continuou insistindo, num misto de protesto, fórmula ritual e prece. — Dizer que não sei pintar uma ave do jeito como ela é.
Tudo isso passava pela cabeça de Wallander, a caminho de Simrishamn. Ele também lembrou que os dois homens, o que se chamava Anton e o polaco, continuaram voltando todos os anos, para comprar as telas do pai. A briga, a raiva repentina, os goles a mais de conhaque, tudo havia se transformado num episódio hilário do qual podiam se lembrar e rir. Anton até pagou a conta do dentista. Isso é que era amizade, pensou. Atrás da briga havia algo muito mais importante: a amizade entre os marchands e o homem que pintava sempre as mesmas telas e os mantinha abastecidos com o que vender.
Lembrou-se então da casa do hoteleiro, em Helsingborg, e de todas as outras em que não estivera, mas onde, ainda assim, havia um quadro na parede com um galo silvestre numa paisagem em que o sol não se punha jamais.
Pela primeira vez, achou que talvez pudesse ter entendido algo. Durante a vida toda, o pai havia evitado que o sol se pusesse. Esse havia sido seu ganha-pão, sua mensagem. Havia pintado aqueles quadros para que as pessoas que os compravam para pendurá-los na parede vissem que era possível manter o sol cativo.
Chegando a Simrishamn, parou diante da delegacia de polícia e entrou. Torsten Lundström se encontrava na recepção. Estava para se aposentar e Wallander sabia que era um bom homem, um policial da velha escola que não desejava nada além do bem para seus semelhantes. Meneando a cabeça, o policial largou o jornal que estava lendo. Wallander sentou-se na cadeira e olhou-o de frente.
— Pode me dizer o que aconteceu? Sei que meu pai se envolveu numa briga na loja de bebidas, mas é basicamente o que eu sei.
— Bom, foi o seguinte — disse Lundström, com um sorriso afável. — Seu pai chegou de táxi à loja de bebidas lá pelas quatro da tarde, entrou, pegou a senha da máquina para ser atendido na ordem e sentou-se para esperar. Parece que ele não reparou quando o número dele foi chamado. Depois de um certo tempo, foi até o balcão e exigiu ser atendido, mesmo que tivesse perdido a vez. O balconista lidou com a situação muito mal, e pelo visto insistiu para seu pai pegar um novo número e voltar para o fim da fila. Seu pai se recusou, um outro cliente cujo número tinha sido chamado o empurrou de lado e o mandou pentear macaco. Para surpresa de todos na loja, seu pai ficou tão irritado que virou e bateu no sujeito. O balconista interveio e seu pai começou a brigar com ele também. O resto é fácil imaginar. Mas pelo menos ninguém se machucou. Seu pai talvez sinta um pouco de dor na mão direita. Parece estar bem em forma, ainda, apesar da idade.
— Cadê ele?
Lundström apontou para uma porta aos fundos.
— E agora, o que acontece?
— Pode levá-lo para casa. Mas infelizmente ele será indiciado por perturbação da ordem pública. A menos que você consiga resolver tudo com o sujeito em quem ele deu um murro e com o balconista. Da minha parte, vou conversar com o promotor e ver o que pode ser feito.
O policial entregou uma folha de papel a Wallander, com dois nomes e endereços.
— Acho que o balconista da loja não vai causar nenhuma dificuldade. Eu conheço o cara. Já o outro, o Sten Wickberg, pode ser meio chato. Ele é dono de uma empresa que faz carreto, mora em Kivik. Parece que resolveu pegar firme no pé do coitado do seu pai. Você podia tentar dar uma ligada para ele. O número do telefone está aí anotado. E a empresa de táxis de Simrishamn tem duzentas e trinta coroas em haver. Naquela confusão toda, seu pai não pagou a corrida. O nome do motorista é Waldemar Kåge. Já falei com ele. Ele sabe que vai receber.
Wallander pegou o papel e colocou no bolso. Depois, antes de ir até a porta nos fundos, perguntou:
— Como é que ele está?
— Acho que agora já se acalmou um pouco. Mas continua insistindo que tinha todo o direito de se defender.
— Se defender? — estranhou Wallander. — Mas se foi ele quem começou tudo.
— Bom, na opinião do seu pai, ele tinha o direito de defender seu lugar na fila.
— Tenha a santa paciência!
Lundström se levantou.
— Pode levá-lo para casa, agora. E me diga uma coisa, que história é essa do seu carro ter pegado fogo?
— Pode ter sido algum defeito na parte elétrica — Wallander respondeu. — De qualquer maneira, era uma lata-velha.
— Eu vou sumir por alguns momentos — Lundström acrescentou. — A porta tranca sozinha, depois que você fecha.
— Obrigado pela ajuda.
— Que ajuda? — Lundström pôs o quepe e saiu.
Wallander bateu e abriu a porta. O pai estava sentado no banco de uma saleta nua, limpando as unhas com um prego. Quando viu quem era, levantou-se visivelmente irritado.
— Puxa, como você demorou. Quanto tempo tinha a intenção de me deixar esperando?
— Vim o mais rápido que pude. Agora vamos embora para casa.
— Não até eu acertar as contas com o motorista de táxi. Quero deixar tudo certo.
— A gente providencia isso depois.
Saíram da delegacia e rodaram em silêncio. Wallander percebeu que o pai já tinha esquecido o ocorrido. Foi só quando chegaram na altura da saída para Glimmingehus que Wallander se virou e perguntou:
— Que fim levaram o Anton e aquele polonês?
— Você se lembra deles? — O pai parecia surpreso.
— Houve uma briga naquele dia também — disse Wallander, com um suspiro.
— Achei que você já teria esquecido isso, nessa altura dos acontecimentos. Não sei que fim levou o polonês. Deve estar fazendo uns vinte anos que não tenho notícia nenhuma. Ele resolveu trabalhar com coisas que achou que seriam mais lucrativas. Revistas pornográficas. Não sei como se saiu nesse novo ramo. Mas o Anton morreu. Bebeu até morrer. Já deve estar fazendo uns vinte e cinco anos.
— O que você estava fazendo naquela loja?
— Aquilo que em geral as pessoas fazem numa loja de bebidas. Eu queria comprar um conhaque.
— Pensei que você não gostasse de conhaque.
— Minha mulher gosta de tomar um copinho, à noite.
— A Gertrud toma conhaque?
— E por que não tomaria? Nem pense em dizer para ela o que ela pode ou deixa de poder, como você tenta fazer comigo.
Wallander não acreditou no que ouviu.
— Eu nunca tentei lhe dizer o que fazer — falou, bravo. — Se existe alguém aqui que sempre tenta ditar regras, esse alguém é você.
— Se você tivesse me escutado, nunca teria entrado para a polícia — disse o pai. — E, tendo em vista tudo o que aconteceu nos últimos anos, teria sido a melhor coisa que poderia ter feito da vida, claro.
Wallander percebeu que o mais prático seria mudar de assunto.
— Ainda bem que você não se machucou.
— Temos que preservar nossa dignidade. E nosso lugar na fila. Caso contrário, todo mundo pisa em cima.
— Mas infelizmente você será indiciado por isso.
— Vou negar tudo.
— Negar o quê? Todo mundo sabe quem começou a briga. Não tem como negar.
— Tudo que eu fiz foi preservar minha dignidade — insistiu o pai. — Eles põem você na cadeia por isso, hoje em dia?
— Você não vai para a cadeia. Mas talvez tenha que pagar pelos danos causados.
— Pois vou me recusar.
— Pode deixar que eu pago — disse Wallander. — Você deu um soco no nariz de um outro cliente da loja. Existe punição para esse tipo de coisa.
— A pessoa tem que preservar a dignidade.
Wallander desistiu. Pouco depois, estavam embicando na entrada para carros da casa do pai.
— Não conte nada para a Gertrud — pediu ele, saltando do carro.
Wallander se surpreendeu com a veemência em seu tom de voz.
— Pode deixar que eu não falo nada.
Eles tinham se casado um ano antes. Ela havia começado a trabalhar para seu pai depois que surgiram os primeiros sinais de senilidade nele. Gertrud trouxera uma nova dimensão àquela vida solitária — ia três vezes por semana dar um jeito na casa — e houve uma mudança significativa, ele não parecia mais um velho senil. Ela era trinta anos mais nova, mas isso pelo visto não os incomodava nem um pouco. De início, Wallander não aprovara a idéia de os dois se casarem, mas acabou descobrindo que Gertrud era uma boa mulher e que estava resolvida a levar o casamento adiante. Não sabia muita coisa sobre ela, além do fato de que era da região, tinha dois filhos crescidos e estava divorciada havia muitos anos. Eles pareciam ter encontrado a felicidade, na companhia um do outro, e Wallander de vez em quando sentia uma ponta de ciúmes de ambos. Sua vida andava tão tristonha, e parecia estar piorando ainda mais, que pelo visto quem precisava de uma pessoa para ajudá-lo em casa era ele.
Gertrud estava cozinhando, quando entraram. Como de hábito, ficou encantada ao ver o inspetor. Wallander pediu desculpas por não poder ficar para o jantar, alegando pressões no trabalho. Mas deu um pulo até o estúdio do pai, onde os dois tomaram um café, preparado numa chapa elétrica imunda.
— Vi uma tela sua na parede de uma casa em Helsingborg, outro dia — contou Wallander.
— Houve um bocado delas, no correr dos anos — disse o pai.
— Quantas você pintou?
— Daria até para fazer um cálculo, se eu quisesse. Mas não quero.
— Devem ter sido milhares.
— Prefiro não pensar a respeito. Seria o mesmo que convidar o Ceifeiro a entrar na sala.
Esse comentário deixou Wallander surpreso. Nunca tinha ouvido o pai referir-se à idade, quanto mais à morte. Percebeu então que não fazia a mínima idéia de quão receoso ele poderia estar de morrer. Depois desses anos todos, não sei coisa nenhuma sobre meu pai, pensou ele. E ele provavelmente também não sabe coisa alguma sobre mim.
O pai o olhava com seus olhos míopes.
— Quer dizer então que você agora está bom de novo, é? Voltou a trabalhar. Da última vez que esteve aqui, antes de ir para aquela pensão em Skagen, você tinha dito que iria largar a polícia. Mudou de idéia, é?
— Aconteceu uma coisa. — Wallander preferia não entrar em detalhes a respeito do seu trabalho. Os dois sempre acabavam discutindo, quando o assunto era esse.
— Ouvi dizer que você é um policial muito bom — disse o pai, de repente.
— Quem lhe disse isso?
— A Gertrud. Andam falando de você, nos jornais. Eu não leio jornal, mas, segundo ela, nos jornais dizem que você é muito bom policial.
— Os jornais dizem tudo quanto é tipo de coisa.
— Estou só repetindo o que a Gertrud me disse.
— E o que é que você diz?
— Que eu tentei dissuadir você dessa idéia, e que continuo achando que você deveria estar fazendo outra coisa qualquer.
— Acho que agora vai ser difícil parar — disse Wallander. — Estou beirando os cinqüenta. Serei um policial enquanto trabalhar.
Escutaram Gertrud gritando que a comida estava na mesa.
— Eu jamais imaginaria que você ainda se lembrasse do Anton e do polaco — disse o pai, enquanto voltavam para a casa.
— É uma das lembranças mais nítidas que eu guardo da infância. Você sabe como eu costumava chamar toda aquela gente que vinha comprar suas telas?
— Eles eram marchands — disse o pai.
— Eu sei que eram. Mas, para mim, eles eram os Cavaleiros das Sedas.
O pai parou de andar e encarou o filho. Depois caiu na risada.
— Esse é um nome excelente. É exatamente o que eles eram. Cavaleiros em ternos de seda.
Despediram-se ao pé da escada.
— Tem certeza que não quer ficar para o jantar? — Gertrud perguntou. — Tem bastante comida.
— Tenho que trabalhar.
Voltou para Ystad pela paisagem escura de outono. Tentou saber o que o pai tinha que o fazia lembrar-se de si mesmo.
Mas não encontrou a resposta.
Na sexta-feira, 5 de novembro, Wallander chegou à delegacia pouco depois das sete da manhã, sentindo-se como alguém que recuperara as horas de sono e estava pronto para agir. Fez seu próprio café, depois gastou a hora seguinte se preparando para a reunião da equipe de investigação, programada para começar às oito. Rascunhou uma apresentação esquemática e cronológica de todos os fatos e tentou ver para onde iriam, dali em diante. Tinha em mente que um ou mais colegas poderiam ter descoberto algo no dia anterior que lançaria uma nova luz nos dados existentes.
Continuava com a sensação de que não havia tempo a perder, que as sombras por trás dos dois advogados mortos se avolumavam e se tornavam mais aterradoras.
Largou a caneta, recostou-se na cadeira e fechou os olhos. Voltou no mesmo instante para Skagen, para a praia que se estendia a sua frente, envolta pela cerração. Sten Torstensson estava presente, em algum lugar. Wallander tentou enxergar o que havia ali, além dele, tentou vislumbrar de relance aqueles que tinham seguido o advogado e observavam seu encontro com o policial em licença médica. Deviam se achar bem perto, por mais invisíveis e ocultos que estivessem entre as dunas.
Lembrou-se da mulher passeando com o cachorro. Teria sido ela? Ou a moça que trabalhava no café do Museu de Arte? Impossível, tanto uma como a outra. Tinha de haver alguém mais ali, em meio à cerração, alguém que nem Sten nem ele tinham visto.
Olhou para o relógio. Estava na hora da reunião. Juntou a papelada.
A reunião durou mais de quatro horas, mas, ao final, Wallander sentiu que haviam dado um passo adiante, que começavam a aparecer os contornos de um desenho, embora muita coisa ainda continuasse obscura e as evidências do envolvimento desse ou daquele indivíduo
ainda fossem inconclusivas. De todo modo, tinham concordado que era bastante provável que estivessem diante de uma série de eventos ligados entre si, que havia uma cadeia de ações deliberadas, ainda que, nessa fase, não pudessem ter certeza a respeito dos elos. Na hora em que Wallander pôde começar a resumir as conclusões tiradas durante o encontro, a atmosfera já estava abafada, Svedberg começava a se queixar de dor de cabeça e todos se sentiam exaustos.
— É possível, e muito provável, que esta investigação leve um tempão para ser concluída, mas mais cedo ou mais tarde vamos poder juntar todas as peças do quebra-cabeça. E isso levará a uma solução. Temos de tomar o máximo de cuidado: já nos deparamos com uma armadilha, uma mina. Pode haver outras, metaforicamente falando. Mas agora chegou a hora de começar a escarafunchar.
Haviam gastado a manhã a repassar, discutir e avaliar tudo o que tinham — ponto por ponto. Examinaram cada detalhe de todas as perspectivas possíveis, testaram diversas interpretações e, por fim, chegaram a um acordo sobre como seguir adiante. Haviam atingido um momento crucial nas investigações, uma das fases mais críticas, e que poderia facilmente dar errado se algum deles tivesse um lapso de concentração. Todas as evidências contraditórias tiveram de ser abordadas como possíveis pontos de partida para um reexame positivo e construtivo, e não como pretextos para simplificações automáticas ou julgamentos apressados. É mais ou menos como estar na fase exploratória da planta de uma casa, pensou Wallander. Estamos construindo vários modelos diferentes, e não podemos ter pressa na hora de desmontar. Todos foram construídos sobre os mesmos alicerces.
Fazia quase um mês que Gustaf Torstensson tinha morrido naquele pasto enlameado perto dos Montes Brösarp. Fazia dez dias que seu filho estivera em Skagen para logo depois ser assassinado no escritório. Tudo os levava de volta a esses dois pontos de partida.
O primeiro a fazer o relatório, naquela manhã, foi Martinson, apoiado por Nyberg.
— Recebemos o laudo da perícia sobre a arma e a munição usadas para matar Sten Torstensson — disse Martinson, exibindo o documento. — E há pelo menos um ponto em que devemos prestar atenção.
Nyberg assumiu, dali para a frente.
— Sten Torstensson foi atingido por três disparos de uma arma calibre nove milímetros. Munição padrão. Porém o mais interessante nisso é que os peritos acreditam que a arma usada foi uma pistola italiana chamada Bernadelli. Não vou entrar nos detalhes técnicos que levaram a perícia a pensar isso. Poderia ter sido uma Smith & Wesson 3914, ou uma 5904, mas é mais provável que tenha sido uma Bernadelli. Essa é uma arma bastante rara na Suécia. Não existem mais que umas cinqüenta registradas. Claro que ninguém sabe quantas estão por aí, circulando de forma ilegal, mas eu diria que trinta é um palpite razoável.
— E quem iria querer usar essa pistola italiana? — perguntou Wallander.
— Alguém que conhece um bocado sobre armas — falou Nyberg. — Alguém que escolheu essa pistola por motivos específicos.
— Está dizendo que pode ter sido trabalho de um assassino profissional vindo de fora do país?
— Não podemos descartar essa possibilidade — disse Nyberg.
— Vamos rever a lista de pessoas que têm uma Bernadelli registrada — disse Martinson. — Até a primeira checagem, ninguém tinha dado queixa do desaparecimento da sua Bernadelli.
Passaram ao ponto seguinte.
— A placa de um dos carros que seguiram vocês foi roubada — disse Svedberg. — De um Nissan em Malmö. A polícia de lá está cuidando do assunto. Encontraram um bocado de impressões digitais, mas não devemos esperar grande coisa daí.
Wallander concordou.
— Algo mais?
— Você me pediu para dar uma examinada no histórico de Kurt Ström — disse Svedberg.
Antes que Svedberg começasse, Wallander fez um breve relato de sua visita ao Castelo Farnholm e de seu encontro com o antigo policial nos portões do castelo.
— Kurt Ström não era uma boa publicidade para a corporação — prosseguiu Svedberg. — Ele tinha contato com diversos atravessadores. O que eles nunca conseguiram provar, mas que com quase toda a certeza é verdade, é que ele avisava os cupinchas quando ia haver uma batida policial. Ele foi expulso, mas não houve divulgação disso.
Björk falou pela primeira vez.
— Esse tipo de coisa é deplorável. Não podemos deixar que pessoas como Ström entrem para a polícia. E o que preocupa é que eles consigam emprego numa empresa de segurança sem o menor problema, quando saem. As investigações sobre os antecedentes desse pessoal obviamente são feitas sem o menor rigor.
Wallander se conteve para não fazer nenhum comentário sobre o desabafo de Björk. Sabia, por experiência própria, do risco que havia de entrarem numa discussão que não tinha relação direta nenhuma com o caso em questão.
— Quanto à explosão no seu carro — disse Nyberg —, temos certeza de que o dispositivo foi plantado no tanque de gasolina. Pelo que sei, esse método de usar a gasolina para corroer um fusível e adiar uma explosão é comum na Ásia.
— Uma pistola italiana — disse Wallander — e uma bomba asiática. Para onde é que isso nos leva?
— Para uma conclusão falsa, se não tomarmos cuidado — disse Björk, com firmeza. — Não precisa ser necessariamente gente do outro lado do mundo que está por trás de tudo isso. Hoje em dia a Suécia é encruzilhada e ponto de encontro de tudo quanto se possa imaginar.
— O que você encontrou no escritório dos Torstensson, Ann-Britt?
— Nada que por enquanto possa ser considerado significativo. Nós vamos levar um tempão para fazer o levantamento de tudo que tem lá. A única coisa definitiva é que o número de clientes de Gustaf Torstensson diminuiu de forma drástica, nos últimos anos. E que ele parecia passar o tempo todo abrindo empresas, dando assessoria financeira e redigindo contratos. Talvez fosse uma boa idéia pedir ajuda do DIC nacional, de algum especialista em crimes financeiros. Mesmo que nenhum crime tenha sido cometido, é muito provável que esteja além das nossas capacidades descobrir o que há por trás das várias transações.
— Use o Åkeson — disse Björk. — Ele sabe um bocado a respeito de questões financeiras e crime. E poderá decidir se tem capacidade suficiente para deslindar isso tudo ele mesmo ou se vamos precisar de reforço de fora.
Wallander concordou e voltou a sua lista.
— E quanto à faxineira?
— Vou vê-la hoje — disse Höglund. — Falei com ela por telefone. Fala sueco bem o bastante para não ser preciso chamar um intérprete.
E então foi a vez de Wallander. Contou aos colegas presentes na reunião como fora sua visita a Martin Oscarsson e a ida até o bosque de bétulas em Klagshamn, onde Borman supostamente teria se enforcado. Como tantas outras vezes antes disso, sentiu ter descoberto novos detalhes ao fazer o relato aos colegas. Recontar uma história aguçava sua concentração.
Quando terminou, a atmosfera na sala de reuniões estava tensa. Estamos perto de fazer progressos significativos, pensou Wallander.
— Precisamos encontrar o elo de ligação entre Borman e o escritório de advocacia dos Torstensson — disse. — O que teria aborrecido Borman a ponto de ele enviar cartas de ameaça aos Torstensson e até mesmo de
envolver a senhora Dunér na questão? Ele os acusou do que chamou de uma séria injustiça. Por enquanto não podemos ter certeza de que isso esteja relacionado com o golpe aplicado contra a administração do condado, mas acho que não seria um erro supor, por enquanto, que há uma relação entre essas coisas. De toda maneira, esse é o buraco negro de nossas investigações, e precisamos remexer lá no fundo dele com toda a energia que conseguirmos colocar nessa tarefa.
A discussão começou hesitante. Todos precisaram de um certo tempo para absorver o que Wallander tinha acabado de contar.
— Estou pensando naquelas cartas de ameaça — começou Martinson, hesitante. — Não consigo parar de pensar em como são ingênuas. São cartas infantis, quase inocentes. Não dá para ter uma idéia clara da natureza de Borman.
— Vamos ter que descobrir mais coisas — disse Wallander. — Que tal começar procurando o paradeiro dos filhos dele? Também devemos ligar para a viúva, em Marbella.
— Eu posso me encarregar disso — propôs Martinson. — Borman me interessa.
— A questão toda daquela firma de investimentos, a Smeden, terá que ser minuciosamente investigada — disse Björk. — Sugiro que entremos em contato com a divisão de fraudes de Estocolmo. Ou talvez fosse melhor deixar essa parte com o Åkeson. Tem gente lá que conhece tanto sobre o mundo dos negócios quanto os mais habilidosos analistas de investimentos.
— Eu falo com o Per — disse Wallander.
Eles remoeram todos os detalhes obtidos sobre o caso durante a manhã inteira. Por fim, chegou um ponto em que começaram a ficar meio embotados e ninguém parecia ter mais nada a dizer. Björk já saíra da sala para comparecer a uma de suas incontáveis reuniões com o Chefe Distrital de Polícia. Wallander resolveu que era hora de encerrar.
— Dois advogados mortos — disse. — Mais o suicídio de Lars Borman, se é que foi isso mesmo. Temos a mina no quintal da senhora Dunér, e o meu carro. Que ninguém se esqueça de que estamos lidando com gente extremamente perigosa, gente que está vigiando de perto tudo o que fazemos. O que significa que teremos que permanecer o tempo todo atentos a nossa própria segurança.
Os policiais juntaram seus papéis e saíram da sala.
Wallander foi de carro até um restaurante nas proximidades, para almoçar. Precisava ficar sozinho. Estava de volta à delegacia pouco depois da uma da tarde e passou um bom tempo falando com os especialistas em fraude do DIC nacional. Às quatro horas foi até o gabinete da promotoria e conversou longamente com Åkeson. Em seguida voltou para sua sala e trabalhou quase até as dez da noite.
Ao sair, sentiu necessidade de um pouco de ar fresco. Estava com saudade das longas caminhadas pelas praias de Skagen, de modo que deixou o carro na delegacia e foi a pé para casa, na Mariagatan. Fazia uma temperatura amena e, de vez em quando, ele parava para olhar as vitrinas. Chegou em casa por volta das onze horas.
Meia hora depois, espantou-se com o toque do telefone. Tinha acabado de servir uma dose de uísque e havia se instalado na poltrona, para assistir a um filme na televisão. Foi até o hall de entrada e atendeu. Era Ann-Britt Höglund.
— Incomodo? — ela perguntou.
— Nem um pouco.
— Estou na delegacia. Acho que descobri algo.
Wallander não pestanejou. Ela não teria ligado se não fosse algo importante.
— Estarei aí em dez minutos.
Ela estava no corredor, a sua espera.
— Preciso de um café — disse ela. — Não tem ninguém na cantina, agora. Peters e Norén saíram faz alguns minutos. Houve um acidente no cruzamento de Bjäresjö.
Sentaram-se a uma mesa, com as respectivas canecas de café.
— Eu tive um colega, na faculdade, que pagou os estudos negociando na Bolsa de Valores — falou ela.
Wallander olhou-a surpreso.
— Liguei para ele. — Ann-Britt disse isso quase em tom de quem pede desculpas. — Às vezes é mais rápido fazer as coisas por intermédio de contatos pessoais, quando se tem algum. Seja como for, contei a ele sobre a STRU-FAB, a Sisyphus e a Smeden. Mencionei os nomes de Fjällsjö e Holmberg. Ele ligou para minha casa faz uma hora. Vim direto para cá.
Wallander mal podia esperar para ouvir o que viria a seguir.
— Anotei tudo o que ele me disse. A Smeden passou por uma série de reestruturações nos últimos anos. Várias diretorias assumiram e foram destituídas, na empresa de investimentos, e em diversas ocasiões suas ações ficaram suspensas devido a suspeitas de uso em benefício próprio de informações privilegiadas, o chamado insider trading, e outras infrações dos regulamentos da Bolsa de Valores. Volumes consideráveis de ações têm mudado de mãos com uma freqüência espantosa e é difícil acompanhar o curso delas. A Smeden parecia ser um exemplo típico da irresponsabilidade que impera no mundo das finanças. Isso até alguns anos atrás. De repente, uma série de corretoras estrangeiras, inclusive empresas da Grã-Bretanha, Bélgica e Espanha, começaram a comprar ações, muito discretamente. De início não havia motivos para desconfiar que o mesmo comprador estivesse agindo por intermédio das várias corretoras. Foi tudo muito dissimulado e as corretoras não chamaram atenção sobre si mesmas. Naquela altura, todo mundo estava tão cheio das manobras da Smeden que ninguém mais levava a empresa a sério, muito menos os meios de comunicação. Toda vez que o secretário-geral da Bolsa de Valores de Estocolmo se via diante dos repórteres, a primeira coisa que ele dizia era para por favor ninguém lhe fazer perguntas sobre a Smeden, porque qualquer coisa relacionada com aquela empresa o deixava irritado. Até o dia em que um volume tão grande de ações foi comprado pelo mesmo grupo de corretores que não deu mais para evitar a pergunta: quem estaria tão interessado numa empresa tão instável e com uma reputação tão ruim? E veio então à tona que a Smeden caíra nas mãos do famigerado inglês Robert Maxwell.
— Esse nome não significa nada para mim — disse Wallander. — Quem é?
— Era. Maxwell morreu. Caiu do barco, quer dizer, do seu iate de luxo, no litoral espanhol, faz alguns anos. Circularam boatos de que teria sido assassinato. Algo a ver com o Mossad, o serviço secreto israelense, e negociações obscuras em grande escala envolvendo armamentos. Ele era dono de jornais e editoras, todas registradas em Liechtenstein, mas, depois que morreu, seu império veio abaixo feito um castelo de cartas. Fora tudo construído com base em empréstimos, empréstimos e desfalques em fundos de pensão. A falência foi instantânea e desencadeou uma crise tremenda no mercado.
— Um inglês? — Wallander estava espantado. — E o que isso nos diz?
— Que a coisa não terminou por aí. As ações foram transferidas para uma outra pessoa.
— Para quem?
— Havia alguma coisa correndo nos bastidores — continuou Ann-Britt Höglund. — Maxwell vinha agindo em nome de alguém que preferia permanecer invisível. E esse alguém era um sueco. Um círculo misterioso tinha acabado de se fechar. — Calando-se, Ann-Britt fitou o inspetor atentamente. — Será que consegue adivinhar quem era esse sueco?
— Não.
— Chute.
Até que caiu a ficha.
— Alfred Harderberg.
Ann-Britt Höglund balançou a cabeça, confirmando.
— O homem do Castelo Farnholm — disse Wallander, devagar.
Permaneceram em silêncio por alguns momentos.
— Em outras palavras, ele também controlava a STRU-FAB, por intermédio da Smeden — concluiu ela.
Wallander olhou firme para ela.
— Bom trabalho — falou. — Excelente trabalho.
— Agradeça ao meu colega de faculdade. Ele trabalha na polícia de Eskilstuna. Mas tem mais uma coisa. Não sei se é importante ou não, mas, enquanto esperava você chegar, acabei tendo uma idéia. Torstensson pai morreu voltando para casa, depois de uma visita ao Castelo Farnholm. Borman se enforcou. Mas é possível que ambos, de maneiras diferentes, tenham descoberto a mesma coisa. O que pode ter sido?
— Talvez você esteja certa. Mas acho que podemos tirar outra conclusão ainda. Por enquanto, vamos considerá-la uma conclusão sem provas, mas assim mesmo definitiva. Borman não se suicidou. Assim como Torstensson não morreu num acidente de carro.
De novo, permaneceram algum tempo em silêncio.
— Alfred Harderberg — disse ela por fim. — Será que pode ser ele o homem por trás de tudo que aconteceu?
Wallander fitava sua caneca de café. Nunca se fizera essa pergunta, mas havia algum tempo que suspeitava de algo do tipo. Sim, agora ele enxergava.
Olhou para ela.
— Claro que pode ser Harderberg.
10
Wallander sempre se lembraria da semana seguinte como o período em que a polícia ergueu barricadas invisíveis em torno daquela complicada investigação. Foi co-mo fazer os preparativos para uma campanha militar muito complexa em prazo curtíssimo e sob grande pressão. Não era um paralelo assim tão absurdo, esse, uma vez que Harderberg já fora tachado de inimigo — um homem que, além de ser uma lenda viva, tinha poderes bastante parecidos aos de um príncipe medieval, e isso antes mesmo de ter completado os cinqüenta anos.
Tudo havia começado na sexta-feira à noite, quando Ann-Britt Höglund, além de desvendar a ligação de Harderberg com o inglês Robert Maxwell e suas movimentações acionárias fraudulentas, também descobrira que o do-no da empresa de investimentos Smeden era o próprio homem do Castelo Farnholm — o que significava um grande passo para tirá-lo das sombras do anonimato e levá-lo direto ao palco iluminado das investigações. Wallander mais tarde iria se torturar por não ter suspeitado de Harderberg bem antes. Jamais encontraria uma resposta satisfatória para explicar essa sua relutância inicial. Todas as que lhe ocorreram não passavam de desculpas esfarrapadas para o descuido e a negligência com que isentara o magnata de toda e qualquer suspeita, nos estágios iniciais da investigação, como se o Castelo Farnholm fosse um território soberano, com algum tipo de imunidade diplomática.
A semana que se seguiu mudou tudo isso. Mas eles foram forçados a avançar com cautela, não só porque Björk insistiu para que fosse assim, apoiado em parte por Åkeson, mas sobretudo porque eram muito poucos os fatos que tinham em mãos para provar o caso. Eles sabiam que Gustaf Torstensson trabalhara como assessor financeiro de Harderberg, mas não tinham como saber o que exatamente ele fazia, qual era de fato sua incumbência. De todo modo, não havia nenhuma prova de que Harderberg e seu império estivessem envolvidos em atividades ilegais. Por outro lado, surgira um novo elo: Borman e a fraude sofrida pela Administração do Condado de Malmöhus, um desfalque que fora abafado na surdina. Na noite do dia 5 de novembro, uma sexta-feira, Wallander e Ann-Britt Höglund haviam discutido a situação até altas horas, ainda que quase tudo o que conversaram não passasse de especulação. Mesmo assim, tinham começado a desenvolver um plano para definir como as investigações deveriam prosseguir, e ficou claro para Wallander, desde o princípio, que teriam de ser extremamente discretos. Se Harderberg estivesse de fato envolvido, e Wallander não parou de repetir o se durante toda a semana seguinte, precisariam ser cautelosos, porque, para onde quer que se virassem, onde quer que estivessem, lá estariam, atentos vinte e quatro horas por dia, os muitos olhos e ouvidos do homem de Farnholm. Além disso, tinham de ter em mente, o tempo todo, o fato de que um elo entre Borman, Harderberg e um dos advogados assassinados não significava, necessariamente, o começo da solução do caso.
Sem contar que Wallander também se sentia meio incerto por motivos muito diversos. Até então, sempre tivera a inabalável convicção de que as práticas empresariais seguidas na Suécia eram irrepreensíveis. Os homens e as mulheres à frente das grandes empresas suecas representavam os alicerces do Estado do bem-estar social. As exportações do país eram o cerne da prosperidade geral e, como tal, estavam simplesmente acima de qualquer suspeita. Sobretudo agora que todo o edifício do Estado do bem-estar social mostrava sinais de estar desmoronando, agora que o assoalho fora todo comido pelos cupins. A base na qual se sustentavam os bons serviços públicos precisava ser protegida de interferências irresponsáveis, de onde quer que elas viessem. No entanto, apesar das incertezas que o acometiam, Wallander continuava acreditando que podiam estar na pista certa para solucionar o caso, por mais improvável que pudesse parecer à primeira vista.
— Não temos nada muito substancial — tinha dito para Höglund, naquela sexta à noite, na delegacia. — O que temos é um elo, uma ligação. Vamos investigar. E, para investigar a fundo, precisamos empregar todos os recursos. Só não podemos é tomar como certeza absoluta que nossas investigações vão nos levar até a pessoa responsável pelas três mortes.
Estavam recolhidos na sala de Wallander. O inspetor se surpreendeu com o fato de Ann-Britt não querer voltar para casa tão logo foi possível: estava tarde, já, e, ao contrário dele, ela tinha uma família para quem voltar. Eles não iriam resolver nada, ali, e teria sido muito melhor dormir bem aquela noite e começar descansado na manhã seguinte. Mas ela havia insistido em continuar com a conversa e Wallander então se lembrou de como ele próprio era, na idade dela. O trabalho policial é, em sua maior parte, rotineiro e chato, mas muito de vez em quando surgem momentos de inspiração e emoção, um encantamento quase infantil em brincar com alternativas viáveis.
— Pode ser que não signifique absolutamente nada — disse ela. — Mas lembre-se de que um mestre do crime como Al Capone foi pego por um contador.
— A sua comparação não é das melhores. Você está falando de um gângster conhecido por Deus e o mundo por ter conseguido fazer fortuna com roubos, contrabando, chantagem, suborno e assassinato. No nosso caso, tu-do o que sabemos é que um empresário sueco bem-sucedido detém a maioria das ações de uma empresa de investimentos, ao que tudo indica fraudulenta, com diversas atividades, sendo que apenas uma delas é a de controlar uma firma de consultoria para a qual trabalham certos indivíduos que fraudaram uma administração de condado. Não sabemos nada além disso.
— Antigamente se dizia que por trás de toda fortuna se esconde um crime — ponderou ela. — E por que só antigamente? Toda vez que a gente abre um jornal, hoje em dia, isso parece ser mais a regra que a exceção.
— Querendo, você encontra um ditado para cada situação. Os japoneses dizem que os negócios são uma forma de guerra. Mas isso não justifica que alguém na Suécia saia por aí matando gente para salvar a pele de um punhado de contadores. Se é que era isso que estavam tentando fazer.
— Além do mais, ainda tem muita vaca sagrada por aqui — continuou Höglund. — Uma delas é essa noção de que não precisamos sair atrás de criminosos integrantes de famílias ilustres, descendentes de nobres e antigas linhagens da Skåne, morando em belos castelos. Preferimos não arrastar essa gente para o tribunal quando são pegos com a boca na botija.
— Eu nunca pensei dessa forma — disse Wallander, percebendo de imediato que não estava dizendo a verdade. O que estava tentando defender, afinal? Ou seria apenas uma questão de não conseguir admitir que Höglund estava com a razão, ela que era muito mais nova que ele e ainda por cima mulher?
— Pois eu acho que é assim que todo mundo pensa — insistiu Ann-Britt Höglund. — Os policiais também. E os promotores. Todos acham que as vacas sagradas devem continuar pastando em paz.
Eles navegavam contornando rochedos ocultos, incapazes de encontrar uma passagem desobstruída. Wallander tinha a impressão de que as opiniões divergentes entre ambos apontavam para algo que ele já vinha ruminando fazia um bom tempo, ou seja, que a polícia estava rachada ao meio pelo fosso entre as gerações. Não era tanto pelo fato de Höglund ser mulher, e sim por ela trazer consigo experiências muito diferentes. Somos ambos policiais, mas não temos a mesma visão de mundo, pensou ele. Podemos viver no mesmo mundo, mas o vemos de maneiras diferentes.
Um outro pensamento passou pela cabeça do inspetor, e não o agradou nem um pouco. Tudo o que tinha dito a Ann-Britt poderia ter sido dito por Martinson. Ou Svedberg. Até mesmo por Hanson, apesar de seus intermináveis cursos de extensão curricular. Ali sentado, naquela sexta-feira à noite, Wallander falava tanto com sua própria voz como com voz alheia. Ele falava por toda uma geração. A lembrança o irritou, e ele pôs a culpa em Höglund, toda ela uma autoconfiança só, muito segura a respeito de suas opiniões. Não gostou de ser lembrado da própria preguiça, das próprias opiniões nebulosas sobre o mundo e a época que estavam vivendo.
Era como se ela estivesse descrevendo uma paisagem desconhecida para ele. Uma Suécia que infelizmente não fora inventada por ela, que existia de fato, logo além dos limites da delegacia de polícia, povoada por gente de verdade.
A discussão, no entanto, foi perdendo o ímpeto depois que Wallander despejou bastante água fria na fogueira. Eles saíram para buscar mais café e um policial fardado, que parecia exausto ou então entediado a mais não poder, sentado na cantina, fitando o nada, lhes ofereceu um sanduíche. Depois, voltaram para a sala de Wallander e, para evitar mais polêmicas a respeito das vacas sagradas, o inspetror tomou as rédeas e propôs que fizessem uma sessão só com idéias construtivas.
— Eu estava com uma pasta de couro muito elegante dentro do carro quando ele foi pelos ares. Que me deram quando visitei o Castelo Farnholm. Tinha começado a ler. Era um apanhado geral do império de Harderberg e dele próprio, de seus vários doutorados honorários, de suas boas obras: Harderberg, o patrono das artes; Harderberg, o humanista; Harderberg, o amigo dos jovens; Harderberg, o fã de esportes; Harderberg, o defensor de nosso patrimônio cultural, o restaurador entusiasta dos velhos barcos de pesca da ilha de Öland; Harderberg, o doutor honoris causa de arqueologia, doador de quantias generosas para os trabalhos de escavação que podem trazer à tona casas da Idade do Ferro em Medelpad; Harderberg, patrono de dois violinistas e de um fagotista da Orquestra Sinfônica de Göteborg. Criador do Prêmio Harderberg para o mais bem-dotado cantor ou cantora de ópera do país. Contribuinte generoso para as pesquisas em prol da paz na Escandinávia. E mais outras coisas das quais já não me lembro. Mais ou menos como se ele fosse, sozinho, uma espécie de Academia Sueca. Sem uma gota de sangue nas mãos.
E Wallander continuou:
— Pedi para a Ebba arrumar outra cópia daquela pasta. Tudo ali precisa ser estudado e investigado. O mais discretamente possível, temos de conseguir acesso aos relatórios e balanços de todas as empresas dele. Precisamos descobrir quantas ele possui de fato. Onde estão localizadas. O que fazem. O que vendem. O que compram. Temos de verificar o informe de rendimentos dele, e sua situação fiscal. Sob esse aspecto, aceito o que você disse do Al Capone. Temos de descobrir onde foi que Gustaf Torstensson andou enfiando o nariz. Temos de nos perguntar: por que ele, entre tantos outros advogados? Precisamos dar uma olhada em todos os aposentos secretos que conseguirmos achar. Temos de nos insinuar e penetrar na mente de Harderberg, não só em suas contas bancárias. Temos de falar com onze secretárias sem que ele perceba. Porque, se ele perceber, um tremor sacudirá todos os seus empreendimentos. Um tremor que terá como resultado o fechamento simultâneo de todas as portas. Não podemos nos esquecer de que, não obstante a quantidade de recursos que a polícia empregue, ele tem como enviar um número ainda maior de soldados para essa batalha. É sempre mais fácil fechar uma porta que abri-la de novo. É sempre mais fácil manter uma mentira construída de forma inteligente que deslindar uma verdade obscura.
Ann-Britt Höglund escutava o que ele tinha a dizer com o que parecia ser um interesse genuíno. Wallander tinha esmiuçado o assunto mais em benefício próprio, queria esclarecer as coisas para si mesmo, mas não podia negar que fizera um certo esforço para colocá-la no seu devido lugar. Afinal, ele continuava sendo o policial mais experimentado, e ela ainda era uma simples criança, embora talentosa.
— Temos que fazer tudo isso — continuou. — Pode ser que uma vez mais a gente acabe ganhando a magnífica recompensa de não ter descoberto absolutamente nada. Mas, o mais importante, por enquanto, e o mais difícil, também, é como fazer isso sem chamar a atenção. Se as nossas suspeitas estiverem corretas, se é por ordem de Harderberg que estamos sendo vigiados e que estão tentando nos fazer voar pelos ares, e se foi uma extensão da mão desse homem que plantou a mina no quintal da senhora Dunér, então não podemos esquecer nem por um segundo que ele vê e ouve tudo. E ele não pode perceber que estamos reposicionando nossas forças. Precisamos camuflar tudo o que fizermos debaixo de um nevoeiro bem espesso. E, nesse nevoeiro, é preciso ter certeza de que somos nós que estamos no caminho certo e ele na estrada errada. Para onde está indo a investigação? Essa é a pergunta que temos que continuar nos fazendo, e para ela temos que encontrar uma excelente resposta.
— Mas só se fizermos o oposto do que estamos fazendo agora — disse Ann-Britt.
— Justamente. Temos que enviar sinais dizendo: “Não estamos nem um pouco interessados nas atividades de Alfred Harderberg”.
— E o que acontece, se isso ficar muito óbvio?
— Não podemos fazer nada que seja óbvio. Teremos que enviar um outro sinal. Teremos que dizer ao mundo que sim, claro, o doutor Harderberg é alvo de investigações de rotina. Ele inclusive atrai nosso interesse especial em determinadas questões.
— E como vamos ter certeza de que ele vai morder a isca?
— A gente nunca vai saber. Mas podemos enviar um terceiro sinal. Podemos dizer que temos uma boa pista. Que ela aponta numa determinada direção. E que parece confiável. Tão confiável que Harderberg pode se convencer de que estamos na verdade seguindo uma pista falsa.
— Mas sem sombra de dúvida ele vai se cercar de salvaguardas por todos os lados, de qualquer maneira.
— Vai. E nós vamos ter que descobrir que salvaguardas serão essas. E não podemos deixar que ele saiba que descobrimos quais são. Também não podemos dar a impressão de que somos uns idiotas, um punhado de baratas tontas seguindo em direções contraditórias. Precisamos identificar as táticas dele, mas dar a impressão de que as interpretamos mal. Temos que colocar um espelho diante da nossa própria estratégia, depois interpretar o reflexo.
Ela o olhou pensativa.
— Será mesmo que vamos conseguir fazer isso? E o Björk, será que vai concordar? E o promotor, o que vai achar?
— Esse vai ser nossa primeira grande dor de cabeça. Convencer a nós mesmos que estamos com a estratégia correta. Nosso chefe de polícia tem uma qualidade que compensa várias fraquezas: ele enxerga, quando não acreditamos no que dizemos ou sugerimos como ponto de partida para uma investigação. Quando isso acontece, ele faz pé firme, e com razão.
— E depois que estivermos convencidos? Por onde começamos?
— Temos que dar um jeito de não falhar demais naquilo que nos propusermos fazer. Temos que nos perder no caminho de forma a levar Harderberg a acreditar que estamos perdidos no nevoeiro. Temos que nos perder e ao mesmo tempo seguir pelo caminho certo.
Ela foi até sua sala buscar um bloco de notas. Nesse intervalo, Wallander ficou ouvindo um cachorro latir em algum lugar, dentro da delegacia. Quando Ann-Britt voltou, notou de novo, com certa surpresa, que era uma mulher atraente, apesar de estar muito branca, com a pele meio manchada e olheiras fundas sob os olhos.
Repassaram uma vez mais os pronunciamentos do inspetor. E, mais uma vez, Höglund interveio com comentários pertinentes, encontrando falhas no raciocínio de Wallander, procurando as contradições. Ele então reparou, ainda que com relutância, que a colega o inspirava e que era dona de uma clareza mental extraordinária. Ocorreu-lhe então — às duas da madrugada — que não tinha uma conversa como aquela desde que Rydberg morrera. Imaginou o antigo colega voltando à vida e colocando sua vasta experiência à disposição dessa jovem tão pálida.
Saíram juntos da delegacia. Fazia frio, o céu estava forrado de estrelas e o chão, coberto de gelo.
— Vamos ter uma longa reunião amanhã — disse Wallander. — Serão levantadas inúmeras objeções, mas vou conversar com o Björk e o Åkeson antes de começarmos. Vou pedir ao promotor que participe. Se não conseguirmos fazer com que eles fiquem do nosso lado, e logo, vamos perder um tempão tentando obter novos elementos para poder convencê-los.
Ela pareceu ter ficado surpresa.
— Mas será que eles não vão ver que estamos certos?
— Pode ser, mas isso nós não sabemos ainda.
— Às vezes tenho a impressão de que a polícia sueca é muito lenta para captar as coisas.
— Você não precisa ter acabado de sair da Faculdade de Polícia para chegar a essa conclusão. O Björk já fez os cálculos e concluiu que, tendo em vista o atual aumento no número de postos administrativos e de policiais que não trabalham mais em campo, como investigadores ou policiais de trânsito, todas as funções rotineiras da polícia vão sofrer uma parada por volta de 2010. Todo policial em serviço terá que passar o dia entregando papéis a outros policias em serviço.
Ela riu.
— Pode ser que a gente esteja no trabalho errado — falou.
— No trabalho errado, não — disse Wallander —, mas talvez na época errada.
Despediram-se e foram para casa, cada qual em seu carro. Wallander ficou de olho no espelhinho retrovisor, mas não viu ninguém atrás. Estava muito cansado, mas ao mesmo tempo inspirado pelo fato de ver que uma porta se abrira para eles, na atual investigação. Os dias seguintes seriam bastante agitados.
Na manhã do sábado, 6 de novembro, Wallander ligou para Björk às sete horas. A mulher dele atendeu e pediu que ligasse dali a alguns minutos, já que o marido estava no banho. Wallander usou esse tempo para ligar para Per Åkeson que, como ele sabia, era um madrugador e em geral às cinco horas já estava de pé. O promotor atendeu ao primeiro toque. Wallander lhe fez um breve resumo de tudo o que ocorrera e da razão por que Harderberg tinha-se tornado relevante para as investigações sob uma ótica totalmente nova. Åkeson ouviu sem interromper. Depois que o inspetor terminou, fez apenas um comentário.
— Você acha que pode mesmo provar alguma coisa contra ele?
Wallander respondeu sem um instante de hesitação.
— Acho. Acho que podemos resolver o caso.
— Se é assim, claro, não tenho nenhuma objeção. Podem se concentrar em cavoucar mais fundo. Mas assegurem-se de que será tudo feito com a maior discrição. Não troquem uma palavra com os meios de comunicação sem antes falar comigo. Tudo o que não queremos é repetir uma situação como a de Palme aqui em Ystad.
Wallander entendeu perfeitamente o que Åkeson quis dizer. O assassinato não resolvido do primeiro-ministro sueco Olof Palme, um mistério que completava dez anos, havia não só deixado a polícia boquiaberta como chocara quase toda a população. Um bocado de gente, tanto dentro como fora da polícia, tinha plena consciência de que com quase toda a certeza o homicídio não fora solucionado porque, numa fase inicial, as investigações haviam sido conduzidas — e mutiladas de forma escandalosa — por um chefe distrital de polícia que se incumbira da tarefa apesar de sua incompetência para conduzir investigações criminais. Em todas as delegacias do país, os policiais tinham pisado e repisado o assunto, às vezes com raiva e às vezes com desprezo: como fora possível o assassinato, o assassino e o motivo terem sido varridos para debaixo do tapete com tamanha indiferença? Um dos erros mais catastróficos naquela desastrosa investigação fora a insistência dos policiais encarregados do caso em seguir determinadas pistas sem antes estabelecer prioridades. Wallander concordava com Åkeson: uma investigação tinha de estar mais ou menos concluída antes que a polícia obtivesse sinal verde para colocar todos os seus ovos num único cesto.
— Gostaria que você participasse da reunião de hoje, porque nós vamos discutir a questão — disse Wallander. — Temos que ter uma visão muito nítida do que estamos fazendo. Não quero que a equipe rache ao meio. Isso prejudicaria, e muito, a nossa capacidade de reagir com presteza a qualquer desdobramento.
— Estarei lá — confirmou o promotor. — Eu deveria jogar golfe, esta manhã. Mas, pelo que estou vendo do tempo, é até melhor não ir.
— Provavelmente deve estar fazendo um calorão em Uganda — disse Wallander. — Ou era Sudão?
— Eu ainda nem sequer toquei nesse assunto com a minha mulher — disse Åkeson num sussurro.
Depois dessa conversa, Wallander tomou mais uma xícara de café e em seguida ligou de novo para Björk. Dessa vez, foi ele em pessoa quem atendeu. Wallander tinha resolvido não dizer nada sobre o que acontecera durante sua visita ao Castelo Farnholm. Preferia não tocar no assunto por telefone, precisava estar cara a cara com Björk. Foi breve e não fez rodeios.
— Precisamos nos reunir e conversar sobre tudo o que aconteceu. Quer dizer, sobre algo que vai mudar o rumo do caso.
— O que foi que houve?
— Prefiro não falar sobre isso por telefone.
— Você não está sugerindo que nossos telefones estão grampeados, está? Isso seria um absurdo, não vamos exagerar.
— Não se trata disso — disse Wallander, enquanto pensava que, de fato, tal hipótese nunca lhe passara pela cabeça. E era tarde para tomar qualquer providência a respeito: ele já tinha dito a Åkeson que rumo iriam tomar as investigações dali em diante.
— Preciso vê-lo rapidamente antes da reunião de hoje — disse.
— Está bem, daqui a meia hora. Mas não entendo o porquê de tanto mistério.
— Não tem mistério nenhum. Mas às vezes, quando se trata de algo crucial, é melhor discutir cara a cara.
— Isso tudo está me parecendo dramático demais. Será que não seria melhor entrarmos em contato com o Åkeson?
— Eu já fiz isso. Estarei em sua sala daqui a meia hora.
Antes de ir ver Björk, Wallander ficou sentado no carro, diante da delegacia, por alguns minutos, pondo ordem nas idéias. Chegou a pensar em cancelar o encontro, talvez houvesse coisas mais importantes a fazer; mas depois reconheceu que tinha de deixar claro para o chefe que Harderberg precisava ser tratado como qualquer outro cidadão sueco. Não chegar a esse entendimento levaria, inevitavelmente, a uma crise de confiança que terminaria com seu pedido de demissão. Pensou na rapidez com que as coisas haviam avançado. Fazia pouco mais de uma semana, ele estava lá naquela praia de Skagen, andando para baixo e para cima, se preparando para dar adeus à vida de policial. Agora a sensação era a de que precisava defender sua posição e sua integridade como policial. Tinha de escrever a respeito disso tudo para Baiba assim que possível.
Será que ela seria capaz de entender por que tudo mudara tão rápido? Será que ele entendia por quê?
Foi até a sala de Björk e sentou no sofá das visitas.
— Afinal o que aconteceu de tão importante? — perguntou o chefe.
— Tem uma coisa que eu preciso lhe dizer, antes de irmos para a reunião — falou Wallander, reparando que sua voz estava hesitante.
— Não vai me dizer que você resolveu pedir demissão outra vez — disse Björk, com ar preocupado.
— Não. Eu preciso saber por que você ligou e avisou o pessoal do Castelo Farnholm que a polícia de Ystad iria entrar em contato com eles, em relação a uma investigação de homicídio. Preciso saber por que você não me disse, nem disse aos nossos colegas, que tinha telefonado para lá.
Wallander percebeu que Björk ficara desconcertado e irritado.
— Alfred Harderberg é um homem importante. Não pesa sobre ele nenhuma suspeita de atividades criminosas. Foi pura educação da minha parte. Posso lhe perguntar como ficou sabendo desse telefonema?
— Eles estavam muito bem preparados, quando cheguei lá.
— Não vejo isso como um ponto negativo. Tendo em vista as circunstâncias.
— Mas foi inapropriado, de qualquer maneira. Inapropriado sob vários aspectos. Além do mais, é o tipo da coisa que pode causar inquietação numa equipe de investigação. Temos que ser absolutamente francos uns com os outros.
— Logo quem vem me passar um sermão sobre franqueza. Você — disse Björk, sem ocultar mais que estava furioso.
— Meus defeitos não servem de desculpa para que outras pessoas se comportem da mesma forma. Pelo menos não o meu superior.
Björk se pôs de pé.
— Não vou permitir que você me fale dessa forma — disse, com o rosto já vermelho de raiva. — Foi por pura educação que liguei, mais nada. Nas circunstâncias, foi uma conversa de rotina. Que não há de ter tido nenhum efeito adverso.
— Essas circunstâncias não se aplicam mais ao caso — disse Wallander, percebendo que não conseguiria ir mais longe com aquele assunto. O importante, no momento, era colocá-lo a par, o mais rápido possível, das novidades surgidas no caso.
Björk o olhava fixo, ainda de pé.
— Seja um pouco mais claro. Não estou entendendo aonde você quer chegar.
— Algumas informações que vieram à luz sugerem que Alfred Harderberg pode estar por trás de tudo o que aconteceu. O que sem dúvida nenhuma implica numa mudança dramática nas circunstâncias.
Björk tornou a sentar, incrédulo.
— Como assim?
— O que estou dizendo é que há motivos para acreditar que Harderberg está direta ou indiretamente envolvido no assassinato dos dois advogados. E na tentativa de assassinato da senhora Dunér. E na explosão do meu carro.
O chefe o olhava sem poder acreditar numa só palavra do que fora dito.
— E você espera mesmo que eu leve essa história a sério?
— Espero, claro — disse Wallander. — O Åkeson levou.
Wallander fez um breve resumo para seu chefe do que tinha acontecido. Quando terminou, Björk fitou as mãos por alguns instantes, antes de reagir.
— Seria muito desagradável, claro, se isso viesse a ser verdade — disse por fim.
— Homicídios e explosões são sem dúvida coisas muito desagradáveis.
— Precisamos ser muito, muito cautelosos. — Pelo visto, Björk não prestara atenção no comentário do inspetor. — Não podemos aceitar nada menos que provas conclusivas para começar a pensar em tomar uma atitude.
— Em geral não é assim que agimos. Por que teria que ser diferente neste caso?
— Eu não tenho a menor dúvida de que isso vai acabar num beco sem saída — disse Björk, levantando-se para indicar que a conversa havia terminado.
— É uma possibilidade — Wallander respondeu. — Assim como o oposto também é.
Eram oito e dez quando o inspetor saiu da sala de Björk. Foi buscar um café e passou pela sala de Ann-Britt Höglund, mas ela ainda não tinha chegado. Foi até sua sala para ligar para Waldemar Kåge, o motorista de táxi de Simrishamn. Conseguiu falar com ele pelo celular e explicou-lhe do que se tratava. Anotou num papel o lembrete de que deveria mandar um cheque no valor de duzentos e trinta coroas para o taxista. Hesitou alguns momentos, querendo ligar ao dono da empresa de carreto que o pai esmurrara para tentar persuadi-lo a não entrar com processo, mas acabou adiando. A reunião começaria às oito e meia. Precisava se concentrar.
Parou diante da janela. Fazia um dia cinza, muito frio e úmido. Final de outono, já, com o inverno dobrando a esquina. Eu estou aqui, pensou o inspetor. Mas onde estará Harderberg neste momento? No Castelo Farnholm? Ou a mais de nove mil metros de altura, em seu Gulfstream particular, a caminho ou voltando de alguma negociação intrincada? O que Gustaf Torstensson e Borman teriam descoberto? O que teria acontecido de fato? E se por acaso Höglund e eu estivermos certos, e se dois policiais de gerações diferentes, cada um com sua própria visão do que é o mundo, tiverem chegado à mesma conclusão? Uma conclusão que até pode levar à verdade?
Wallander entrou na sala de reunião às oito e meia em ponto. Björk já estava acomodado numa das pontas da mesa, Åkeson continuava de pé, junto à janela, olhando para fora, e Martinson e Svedberg conversavam animadamente sobre algo que parecia girar em torno de salários. Ann-Britt Höglund se encontrava em seu lugar de costume, na outra ponta da mesa. Nem Martinson nem Svedberg pareciam preocupados com o fato de o promotor estar presente.
Wallander deu bom-dia a Höglund.
— Como é que você acha que as coisas vão caminhar, daqui para a frente? — perguntou, em voz baixa.
— Acordei achando que tinha sonhado tudo. Você já falou com o Björk e com o Åkeson?
— Åkeson sabe tudo o que houve. Mas só tive tempo de fazer um breve resumo para Björk.
— O que foi que o promotor disse?
— Ele nos dará apoio.
Björk bateu com um lápis sobre a mesa e aqueles que ainda estavam de pé se sentaram.
— Só o que tenho a dizer hoje é que o Kurt é quem vai falar. A menos que eu esteja muito enganado, tudo indica que houve um desdobramento dramático no caso.
Wallander hesitou, sem saber o que dizer; de repente, dera um branco total. Depois encontrou o fio da meada e começou. Repassou com detalhes tudo quanto o colega de Höglund, da polícia de Eskilstuna, tinha esclarecido a respeito do assunto, expôs as idéias que haviam surgido aos poucos durante a madrugada e falou sobre formas de prosseguir com as investigações sem acordar nem irritar o urso. Quando terminou — e sua explanação durou vinte e cinco minutos —, perguntou a Höglund se ela tinha algo a acrescentar, mas a colega abanou a cabeça: Wallander tinha dito tudo o que havia para dizer.
— Portanto, estamos nesse pé — concluiu ele. — E o Per está aqui, acompanhando esta nossa reunião, porque essas últimas revelações significam que teremos necessariamente de reavaliar nossas prioridades em relação às investigações. Outro fator a considerar é a necessidade ou não de ajuda externa nesta fase. Não vai ser brincadeira entrar no mundo de Harderberg, na verdade vai ser muito trabalhoso, sobretudo porque não podemos deixar que ele note o quanto estamos interessados nele.
Wallander sentiu-se um tanto incerto, não sabia se havia conseguido transmitir tudo aquilo que queria para os colegas. Höglund sorriu e meneou a cabeça para ele, mas as outras fisionomias em volta da mesa estavam mais difíceis de decifrar.
— Esse é um assunto para todos nós atacarmos com garra — disse Åkeson, quando o silêncio já se prolongava um pouco além da conta. — Temos de ter bem claro, em todos os momentos, o fato de que Alfred Harderberg tem uma reputação impecável entre a comunidade empresarial do país. Não podemos esperar nada além de muita hostilidade se começarmos a questionar essa reputação. Por outro lado, devo dizer que temos motivos suficientes para começar a nos interessar um pouco mais por ele. É claro que acho difícil acreditar que Harderberg esteja pessoalmente envolvido nos homicídios, ou nos outros acontecimentos, e é claro que pode muito bem ser o caso de terem acontecido coisas no território dele sobre as quais ele não possui nenhum controle.
— Sempre sonhei em botar um desses cavalheiros em cana — disse Svedberg, de repente.
— Uma atitude extremamente lamentável num integrante da polícia — reprovou Björk, incapaz de refrear a contrariedade. — Não há necessidade, a esta altura, de lembrar a todos vocês da nossa condição de neutralidade enquanto funcionários públicos...
— Vamos nos concentrar no assunto em questão — interrompeu Åkeson. — Talvez também fosse conveniente não esquecer que, em nosso papel como funcionários da lei, somos pagos para desconfiar de situações que não despertam necessariamente desconfiança.
— Quer dizer então que temos sinal verde para concentrar nossas atenções em Harderberg? — indagou Wallander.
— Mas com algumas condições — disse Björk. — Concordo com o Per que temos que ser muito cuidadosos e prudentes, mas gostaria de deixar bem claro também, para todos aqui, que será considerado como falta grave, no exercício das funções, qualquer vazamento de informação. Não haverá nenhuma declaração à imprensa sem que antes seu conteúdo tenha sido autorizado por mim.
— Isso já tinha dado para deduzir — disse Martinson, falando pela primeira vez. — Estou mais preocupado é em saber como é que vamos conseguir passar um pente fino em todo o império de Harderberg com tão pouca gente. Como é que vamos coordenar nossa investigação com as divisões de fraudes de Estocolmo e Malmö? Como vamos cooperar com as autoridades fiscais? Eu me pergunto se não deveríamos abordar a questão de forma diferente.
— E como é que faríamos isso? — Wallander quis saber.
— Entregando a coisa toda para a divisão nacional do Departamento de Investigação Criminal — disse Martinson. — E aí então eles que resolvam como vai ser feita a cooperação com as diversas equipes e autoridades. Acho que temos que admitir que somos muito pequenos para lidar com um assunto desses.
— Isso já tinha me passado pela cabeça — disse Åkeson. — Mas assim tão no início como nós estamos, antes mesmo de termos feito uma investigação inicial, é muito provável que as divisões de fraudes de Estocolmo e de Malmö não aceitem se incumbir do caso. Não sei se vocês se dão conta, mas eles devem estar mais sobrecarregados ainda que nós. Não somos muitos, mas no caso deles a falta de pessoal é tanta que estão à beira de um colapso. Temos que nos ocupar nós mesmos deste caso, pelo menos por enquanto. Fazer o melhor que pudermos. De todo modo, vou ver se consigo interessar as divisões em nos dar uma mãozinha. Nunca se sabe.
Olhando em retrospecto, Wallander não tinha dúvida de que as palavras de Åkeson a respeito da situação infernal vivida pela divisão nacional do DIC haviam servido para alicerçar a investigação. Os trabalhos se concentrariam em Harderberg e também nas ligações dele com Lars Borman e com os advogados mortos. Wallander e sua equipe trabalhariam sozinhos. Verdade que a polícia de Ystad estava sempre às voltas com casos de fraudes de tipos variados, mas aquilo era muito maior que qualquer coisa com que tivessem lidado até então.
Em resumo, os policiais de Ystad teriam de começar a procurar uma resposta para a seguinte pergunta: o que estamos de fato procurando?
Algumas noites depois, ao escrever a Baiba, em Riga, e lhe contar sobre a caça secreta, nome que tinha começado a dar à investigação, achou melhor explicar a ela, já que se comunicavam em inglês, que a caça, na Suécia, era diferente da caça à raposa praticada na Inglaterra. Existe um caçador dentro de todo policial, ele tinha escrito. É muito raro, raríssimo, que soem as cornetas quando um policial sueco sai atrás da presa. Mas mesmo assim nós encontramos o rastro das raposas. Sem nós, o galinheiro sueco já estaria vazio há muito tempo: só restariam algumas penas ensangüentadas espalhadas por aí, flutuando ao sabor das ventanias de outono.
A equipe toda abordou a tarefa com entusiasmo. Björk destampou o baú onde em geral mantinha trancado o pagamento das horas extras. Ele incentivou toda a turma, sem deixar de lembrá-los, de novo, que não poderia haver o menor vazamento do que viesse a ser apurado nas investigações. Åkeson tirara o paletó, afrouxara a gravata sempre de laço impecável e se tornara um integrante da equipe, ainda que sem nunca deixar de fazer valer sua autoridade como líder máximo da operação que fora deslanchada.
Era Wallander, no entanto, quem dava as cartas; sentia-se no comando e isso lhe proporcionava momentos freqüentes de profunda satisfação. Graças a circunstâncias inesperadas e à boa vontade dos colegas, coisa que ele realmente não merecia, existia uma chance de compensar parte da culpa que sentia por ter rejeitado a confiança que Sten Torstensson depositara nele no dia em que fora até Skagen pedir-lhe ajuda. Conduzir as buscas que levariam ao assassino de Sten e ao assassino de seu pai permitia que Wallander se redimisse. Na época, andava tão preocupado com suas próprias desgraças particulares que não conseguira escutar o apelo por socorro, não deixara que o grito de Sten perfurasse o cerco que tinha erguido em volta de uma depressão absolutamente destrutiva.
Nessa época, escreveu outra carta para Baiba que nunca pôs no correio. Tentava explicar a ela, e portanto também a si mesmo, o que significava, exatamente, ter matado um homem, no ano anterior, e depois, para piorar ainda mais sua culpa, ter rejeitado o apelo de Sten Torstensson. A conclusão a que parecia ter chegado, ainda que lá no fundo duvidasse um pouco dela, era que a morte de Sten começava a perturbá-lo mais que o ocorrido um ano antes, naquela área de treino encoberta pela cerração e cercada de ovelhas invisíveis.
Mas nada disso ficava à mostra para os que o cercavam. Na cantina, os colegas comentavam entre si que a volta de Wallander à ativa era uma surpresa quase tão grande quanto teria sido se ele tivesse se aprumado e saído do fundo do poço, quando estava no auge da depressão. Martinson, que vez por outra era incapaz de reprimir o cinismo, fez um comentário:
— Era justamente do que o Kurt precisava, de um caso desafiador de homicídio. Nada desses assassinatos descuidados, cometidos no calor do momento. Dois advogados mortos, uma mina terrestre num quintal e algum tipo de mistura explosiva do Extremo Oriente no tanque de gasolina dele... Era disso que ele precisava para voltar ao convívio dos bons.
Os outros admitiram que havia um certo fundo de verdade no que Martinson dissera.
Levaram uma semana para concluir o trabalhoso exame do império controlado por Harderberg e que serviria de plataforma para o resto da investigação. Durante essa semana, nem Wallander nem nenhum de seus colegas dormiram mais que cinco horas por noite. Mais tarde, ao lembrar esse período, chegariam à conclusão de que um camundongo consegue, de fato, rugir, se for preciso. Até Åkeson, que raras vezes se deixava impressionar, teve de tirar seu metafórico chapéu para a façanha da equipe.
— Nem uma palavra disso a ninguém — disse ele a Wallander numa noite em que haviam saído para respirar um pouco do ar fresco de outono, na tentativa de espantar o cansaço. De início, Wallander não entendeu o que o promotor quis dizer.
— Se isso transpirar, a Agência Central de Polícia e o Ministério da Justiça vão fazer um estudo que acabará levando a apresentação de algo chamado “Modelo Ystad” para a população sueca: como conseguir resultados máximos com o mínimo de recursos. Seremos a prova viva de que a polícia sueca não está com falta de pessoal, não senhor. Seremos usados para provar que, na verdade, há policiais demais na corporação. Tantos que eles acabam atrapalhando uns aos outros e isso dá origem a um enorme desperdício de dinheiro e índices cada vez piores de resultados.
— Mas nós ainda não obtivemos nenhum resultado — argumentou Wallander.
— Eu estou falando sobre a Agência Central de Polícia. Estou falando sobre o misterioso mundo da política. Um mundo onde montanhas de palavras são usadas para camuflar a realidade, e a realidade é que eles só fazem coar mosquitos e engolir camelos. Um mundo onde eles vão para a cama toda noite rezando para acordar no dia seguinte com o dom de transformar água em vinho. Não estou falando do fato de ainda não termos descoberto quem matou os dois advogados. Estou falando que agora já sabemos que Alfred Harderberg não é o cidadão modelo, superior a todos os demais, que achávamos que fosse.
Essa era a mais pura verdade. Durante aquela agitada semana, eles tinham conseguido construir uma visão geral do império de Harderberg que, naturalmente, estava longe de ser uma visão cabal, mas, pelas brechas encontradas — na verdade buracos negros —, foi possível perceber que não deveriam perder de vista nem por um minuto o homem que vivia no Castelo Farnholm.
Quando Åkeson e Wallander pararam na frente da delegacia, na noite do dia 14 de novembro, a polícia de Ystad havia progredido o suficiente para que se pudesse tirar algumas conclusões. A primeira fase se encerrara, o trabalho dos batedores estava concluído e os caçadores deviam se preparar para entrar em ação. Não houve vazamento nenhum de informações e já era possível vislumbrar o formato e a natureza do leviatã no qual Lars Borman e mais especificamente Gustaf Torstensson deviam ter descoberto coisas que melhor seria, para eles, não haver desenterrado.
O problema era: o quê?
O período fora de atividade incessante, mas Wallander havia organizado bem seu batalhão e não hesitara em assumir ele mesmo as tarefas mais enfadonhas — que por sinal eram as que geralmente forneciam as informações mais interessantes. Tinham investigado a história de vida de Harderberg desde o dia em que ele nascera, filho de um comerciante de madeira de Vimmerby, um alcoólatra — época em que era conhecido pelo nome de Hansson —, até o presente, quando se tornara a força propulsora de um empreendimento que movimentava bilhões na Suécia e no exterior. A certa altura do cansativo exercício, abrindo caminho por entre relatórios e balanços, informes fiscais e brochuras que promoviam a venda de ações, Svedberg havia dito: — É simplesmente impossível para alguém dono de tanta coisa ser honesto. — No fim, quem forneceu a informação de que precisavam foi Sven Nyberg, o enfezado e macambúzio perito da polícia técnica. Como é comum acontecer, foi por puro acaso que ele topou com a minúscula fenda existente naquela impecável muralha de solidez, com a falha quase imperceptível com que todos sonhavam. E, se acaso Wallander, apesar do cansaço, não tivesse prestado atenção num comentário feito por Nyberg, na saída da sala do inspetor, já tarde da noite, a oportunidade poderia ter se perdido.
Era quase meia-noite da quarta-feira e Wallander estava imerso num resumo que Höglund havia feito dos bens materiais de Harderberg quando Nyberg socou a porta. Ele não era uma pessoa discreta: quando visitava a delegacia, pisava duro pelos corredores e esmurrava as portas dos colegas, como se estivesse prestes a efetuar uma prisão. Naquela noite, tinha terminado o relatório pericial preliminar sobre a mina no quintal de Berta Dunér e sobre a explosão do carro de Wallander.
— Achei que você gostaria de ter os resultados o quanto antes — disse, despencando na cadeira das visitas da sala de Wallander.
— E o que você conseguiu apurar? — perguntou Wallander, olhando para Nyberg com olhos vermelhos.
— Nada.
— Nada?
— Você ouviu. — Nyberg estava irritado. — Esse também é um resultado. Não é possível afirmar com certeza onde a mina foi fabricada. Achamos que talvez tenha vindo de uma fábrica na Bélgica, de uma empresa chamada Poudreris Réunie de Belgique, ou seja lá como for que se pronuncie isso. O explosivo usado sugere que veio de lá. E não encontramos nenhuma lasca, o que significa que a força da mina foi dirigida para cima. O que também sugere que a origem dela seja a Bélgica. Mas também pode ter vindo de outro lugar totalmente diferente. Quanto ao seu carro, não dá para dizer com certeza absoluta que havia material explosivo no tanque de gasolina. Ou seja, não podemos afirmar nem que sim nem que não. De modo que o resultado da perícia é nada.
— Entendi — disse Wallander, procurando em meio às pilhas sobre a mesa uma folha de papel em que havia anotado algo para perguntar a Nyberg.
— E sobre aquela pistola italiana, a Bernadelli, também não conseguimos apurar mais nada a respeito — completou Nyberg, enquanto Wallander anotava. — Não há registro de roubo de nenhuma arma desse tipo. Todas as pessoas que têm porte legal de uma Bernadelli e que foram cadastradas comprovaram a posse e mostraram a arma. Agora cabe a você e ao Per Åkeson decidir se devemos convocar todas elas e testar se foram usadas.
— Você acha que valeria a pena?
— Sim e não. A meu ver, o melhor seria conferir todas as Smith & Wesson roubadas, primeiro. Isso deve levar só mais alguns dias.
— Vamos fazer como você sugeriu, então — disse Wallander, anotando. E continuaram repassando o trabalho de Nyberg.
— Não encontramos nenhuma impressão digital no escritório dos advogados — disse o perito. — O autor dos disparos contra Sten Torstensson, seja quem for, resolveu não contribuir com o nosso trabalho e não enfiou o dedão nas vidraças. Um exame das cartas de ameaça escritas por Lars Borman também não forneceu nenhum resultado. Conseguimos apenas determinar que a letra é mesmo dele. Svedberg pegou amostras com os dois filhos.
— O que foi que eles disseram a respeito da linguagem usada? — perguntou Wallander. — Esqueci de perguntar ao Svedberg.
— Como assim, a linguagem usada?
— As cartas têm um fraseado meio esquisito.
— Eu tenho uma vaga lembrança do Svedberg dizendo, em uma de nossas reuniões, que Borman era aléxico.
— Aléxico? — Wallander franziu o cenho. — Não me lembro de ter ouvido ele dizer isso.
— Talvez tenha sido num momento em que você saiu para pegar um café.
— Pode ser. Vou falar com o Svedberg. Algo mais?
— Fui dar uma última olhada no carro de Gustaf Torstensson. Nenhuma impressão digital ali, tampouco. Examinei a ignição e o porta-malas e falei com o legista de Malmö. Temos certeza quase absoluta de que o golpe fatal na nuca não foi provocado por uma batida no teto do carro. Não há nada em lugar nenhum ali que se encaixe no ferimento da cabeça. De modo que o mais provável é que tenha sido golpeado por alguém. Gustaf Torstensson devia estar fora do carro quando levou a pancada. A menos que houvesse alguém no banco de trás.
— Já pensei nisso. E acho que o mais provável é que ele tenha parado na estrada e saltado do carro. Alguém veio por trás e deu o golpe. Depois forjaram o acidente. Mas por que ele parou no meio de uma cerração? Por que ele saiu do carro?
— Eu sei lá.
Wallander largou a caneta e recostou-se na cadeira. As costas doíam e ele precisava ir para casa, dormir um pouco.
— A única coisa digna de nota que encontramos no carro foi um recipiente de plástico fabricado na França — disse Nyberg.
— E tinha o que dentro?
— Nada.
— E por que você achou isso interessante?
Nyberg deu de ombros e se levantou para sair.
— Já vi um igual, antes. Quatro anos atrás. Quando fiz uma viagem de estudos ao hospital de Lund.
— Hospital?
— Tenho boa memória. Era um recipiente idêntico.
— E para que era usado?
Nyberg já estava na porta.
— E eu lá sei? Mas o que nós achamos dentro do carro do advogado estava quimicamente limpo. Só um recipiente que nunca recebeu nada dentro pode ser tão limpo como aquele.
O perito se foi. Wallander escutou seus passos pesados ecoando pelo corredor.
Depois empurrou a papelada para um lado e se levantou para ir embora. Vestiu o paletó e parou. Nyberg tinha dito algo. Pouco antes de sair da sala. Algo a respeito do recipiente de plástico.
De repente, o inspetor tornou a sentar-se.
Havia qualquer coisa esquisita naquilo. Por que Torstensson estaria com um recipiente de plástico novo em folha dentro do carro? Um recipiente vazio, mas evidentemente um recipiente muito especial? Só havia uma resposta possível.
Quando Torstensson saiu do Castelo Farnholm, o recipiente não estava vazio. Havia algo dentro dele. O que significava que o recipiente encontrado por Nyberg não era o mesmo. Eles tinham sido trocados. Na estrada, em meio à cerração. Quando Torstensson parara e saltara do carro. E fora morto.
Wallander olhou o relógio. Passava da meia-noite. Esperou um quarto de hora e depois ligou para a casa de Nyberg.
— O que é que você quer agora? — disse Nyberg, assim que reconheceu a voz do inspetor.
— Vem para cá já. Agora, imediatamente.
Esperava que Nyberg explodisse num ataque de fúria.
Mas o perito não disse nada, apenas desligou.
Às vinte para a uma, Nyberg estava de volta à sala de Wallander.
11
Aquela conversa com Nyberg no meio da noite foi crucial. Ficou claro para o inspetor, mais uma vez, que os eventuais progressos de uma investigação criminal sempre acontecem quando menos se espera. Para muitos de seus colegas, no entanto, isso provava que até mesmo a polícia precisa de um pouco de sorte, de vez em quando, para encontrar o fio da meada. Wallander não refutava, mas, lá no fundo, achava que o que essa pretensa sorte provava era que Rydberg tinha razão em dizer que um bom policial deve sempre escutar o que lhe diz a intuição — sem descartar suas faculdades críticas, é claro. E Wallander soube de imediato — sem saber por que sabia — que aquele recipiente de plástico encontrado no carro de Torstensson era importante. Embora estivesse exausto, também sabia que não poderia esperar até o dia seguinte para confirmar as suspeitas. Por esse motivo tinha ligado para Nyberg, que acabara de entrar em sua sala. Havia antecipado uma explosão de mau-humor por parte do temperamental colega, mas não foi o que aconteceu. Nyberg simplesmente se sentou na cadeira das visitas. E, para sua surpresa, Wallander reparou que, por baixo do sobretudo, Nyberg já estava de pijama. E calçava galochas de borracha.
— Você deve ter ido direto para a cama assim que chegou em casa — disse Wallander. — Se eu soubesse, não teria ligado.
— Por acaso está querendo dizer que me chamou até aqui para nada?
Wallander abanou a cabeça para dizer que não.
— É sobre aquele recipiente de plástico. Me conte mais a respeito.
— Eu já disse tudo o que tinha para dizer.
Wallander sentou-se de novo e olhou firme para Ny-berg. Sabia que, além de ser um excelente perito, Nyberg também tinha imaginação e fora abençoado com uma memória fora do comum.
— Você falou que já tinha visto um recipiente parecido antes.
— Parecido não. Idêntico.
— O que significa que não é um recipiente qualquer. Daria para descrevê-lo?
— Não seria melhor eu ir buscá-lo?
— Vamos dar uma olhada nele nós dois — disse Wallander, levantando-se.
A delegacia estava deserta, àquela hora. Andando pelo corredor, eles ouviram um rádio à distância. Nyberg destrancou a sala onde a polícia mantinha os objetos pertencentes a casos ainda sob investigação. O recipiente estava numa prateleira. Nyberg o pegou e entregou a Wallander. Era retangular e lembrava um pouco o formato de uma geladeirinha portátil, pensou o inspetor. Ele o colocou sobre a mesa e tentou abrir a tampa.
— Está atarraxada — disse Nyberg. — Repare também que é um recipiente perfeitamente hermético. Tem uma janelinha deste lado. Não sei para que serve, mas imagino que deveria haver um termômetro montado aí dentro.
— Você viu um semelhante no hospital de Lund — disse Wallander, examinando o vasilhame. — Lembra onde? Em que parte do hospital?
— Eu estava andando por lá. Foi num corredor em frente às salas de cirurgia. Estava na mão de uma enfermeira. Acho que ela estava com pressa.
— Algo mais?
— Não, nada.
— Isso me faz pensar numa geladeira portátil — disse Wallander.
— Acho que é justamente isso. Para transporte de sangue, talvez.
— Preciso que você descubra o que é. Também quero saber o que fazia esse recipiente no carro de Torstensson na noite em que ele morreu.
Ao voltarem para a sala dele, Wallander se lembrou de algo que Nyberg tinha dito mais cedo, naquela mesma noite.
— Você falou que achava que era de fabricação francesa.
— Estava escrito “Made in France” na alça.
— Não reparei nisso.
— As letras no que eu vi no hospital de Lund estavam mais nítidas. A falha não é sua, acho.
— Posso estar enganado — disse Wallander —, mas desconfio que o fato de esse recipiente estar no carro de Torstensson é extraordinário. O que estaria fazendo lá? Você tem certeza de que nunca foi usado?
— Quando eu desatarraxei a tampa, deu para ver que era a primeira vez que estava sendo aberto, desde que saíra da fábrica. Quer que explique como sei?
— Basta saber que você tem certeza. Eu não iria entender, de qualquer maneira.
— Estou vendo que você acha que esse recipiente é importante, mas é mais ou menos comum encontrar itens inesperados em acidentes de carro.
— Neste caso, não podemos deixar escapar um único detalhe.
— Só que nunca conseguimos fazer isso.
Wallander levantou-se.
— Obrigado por ter voltado até aqui, hoje. Gostaria de ter a resposta sobre a utilização do recipiente de plástico amanhã mesmo.
Despediram-se na frente da delegacia. Wallander foi direto para casa e comeu dois sanduíches, antes de deitar. Não conseguiu dormir, revirou-se na cama por algum tempo e levantou de novo. Foi para a cozinha e sentou-se à mesa, sem acender a luz. Sentia-se inquieto e impaciente. A investigação tinha muitas pontas soltas. Ainda que tivessem decidido seguir um determinado caminho, ele continuava não tendo certeza se era o caminho certo. Teriam deixado passar algo vital? Voltou ao dia em que Sten Torstensson fora vê-lo, na costa da Jutlândia. Era capaz de relembrar a conversa que tinham tido palavra por palavra. Ainda assim, perguntava-se se teria deixado de entender o recado verdadeiro, se teria havido algum outro significado por trás das palavras de Sten.
Eram quatro da manhã quando voltou para a cama. O vento começara a soprar com força e a temperatura caíra bastante. Ele tremeu ao entrar debaixo do lençol. Não achava que tivesse chegado a parte alguma. Tampouco conseguia se convencer de que teria forçosamente de ter paciência. O que ele pedia aos colegas era algo impossível para ele, no momento.
Quando Wallander chegou à delegacia, pouco antes das oito da manhã, havia um vendaval soprando. Disseram-lhe na recepção que a meteorologia previa ventos com força de furacão antes do meio-dia. Enquanto ia para sua sala, perguntou-se se a casa do pai, em Löderup, resistiria ao impacto do vento. Estava com dor na consciência já fazia algum tempo, por não ter ainda providenciado o conserto do telhado da casa, e havia um risco real de que fosse arrancado por um temporal mais violento. Sentado à escrivaninha, pensou que talvez fosse melhor ligar para o pai — não falara mais com ele desde o dia da briga na loja de bebidas. Estava prestes a erguer o fone do gancho quando o aparelho tocou.
— Ligação para você — disse Ebba. — E já reparou como o vento está forte?
— Não sei se serve de consolo, mas saiba que vai piorar mais ainda. Quem é?
— Castelo Farnholm.
Wallander esticou-se na cadeira.
— Ponha a pessoa na linha.
— É uma senhora com um nome extraordinário — disse Ebba. — Ela disse que se chama Jenny Lind.
— A mim, me parece um nome bem normal.
— Eu não disse que era anormal, eu disse que era extraordinário. Você já deve ter ouvido falar na Rouxinol Sueca, a grande cantora Jenny Lind, não?
— Ponha essa senhora na linha.
A voz que ele ouviu era de alguém bem jovem. Mais uma daquelas secretárias, pensou Wallander.
— Inspetor Wallander?
— Ele.
— O senhor esteve aqui outro dia e manifestou interesse numa audiência com o doutor Harderberg.
— Eu não sou de fazer audiências. — Wallander estava irritado. — Preciso falar com ele sobre assuntos que dizem respeito a uma investigação de homicídio.
— Entendo. Recebemos um telex esta manhã informando que o doutor Harderberg estará de volta esta tarde e poderá recebê-lo amanhã.
— Telex de onde?
— Isso importa?
— Eu não teria feito a pergunta, se não importasse — mentiu Wallander.
— O doutor Harderberg se encontra no momento em Barcelona.
— Não quero esperar até amanhã. Preciso falar com ele o quanto antes. Se vai estar de volta esta tarde, deve dar para me receber à noite.
— Ele não tem nada na agenda para esta noite — disse Lind. — Mas vou ter de falar com ele em Barcelona antes de lhe dar uma resposta.
— Faça isso, se quiser. E diga a ele que irá receber uma visita da polícia de Ystad hoje às sete da noite.
— Receio não poder concordar com isso. O doutor Harderberg sempre decide ele mesmo a hora em que vai receber visitas.
— Não neste caso. Estaremos aí às sete da noite.
— O senhor virá acompanhado de mais alguém?
— Sim.
— Posso lhe pedir o nome dessa pessoa?
— Pedir pode, mas não significa que vai obter resposta. Será um outro policial da delegacia de Ystad.
— Vou entrar em contato com o doutor Harderberg. Lembre-se de que ele às vezes muda de planos de uma hora para outra. Pode se ver forçado a ir a algum outro lugar, antes de voltar.
— Não posso permitir isso. — Wallander receava estar excedendo, e muito, a própria autoridade, o que não o impediu de dizer o que disse.
— Devo admitir que o senhor me surpreende. Será que um policial pode de fato decidir o que o doutor Harderberg faz ou deixa de fazer?
Wallander continuou a exceder sua autoridade.
— Só preciso dar uma palavrinha com um promotor para obter as autorizações devidas.
Mas, enquanto falava, o inspetor se deu conta do erro cometido. Eles tinham decidido ir com cautela. A idéia era fazer algumas perguntas a Harderberg, mas, por mais importantes que fossem as respostas, o principal era convencê-lo de que o interesse da polícia era apenas uma questão de rotina. O inspetor tentou então amenizar o que tinha dito.
— O doutor Harderberg não está sob suspeita de nenhuma ilegalidade, quero deixar isso bem claro desde já. Mas é que precisamos falar com ele o mais rápido possível, por motivos relacionados com nossas investigações. Sem dúvida, um cidadão da proeminência do doutor Harderberg deve estar ansioso para ajudar a polícia a resolver um crime violento.
— Vou entrar em contato com ele — repetiu Lind.
— Obrigado por ter ligado — disse Wallander, pondo o telefone no gancho.
Logo depois, o inspetor teve uma idéia. Com a ajuda de Ebba, localizou Martinson e pediu a ele que fosse até sua sala.
— Harderberg entrou em contato — falou. — Ele está em Barcelona, mas deve voltar hoje mesmo para cá. Pensei em levar Ann-Britt comigo, hoje, para vê-lo.
— Ela não veio trabalhar. O filho não está bem. Acabou de ligar.
— Então você vai no lugar dela.
— Por mim, ótimo. Quero muito ver aquele aquário com ouro em pó no fundo, em vez de areia.
— Tem mais uma coisinha. O que você sabe sobre aviões?
— Não muito.
— Eu tive uma idéia. Harderberg tem um jato particular, um Gulfstream, ou coisa que o valha. O avião deve estar matriculado em algum lugar. E tem que haver registros, nas cadernetas de vôo, que mostrem quando é que ele sai em viagem e para onde vai.
— No mínimo ele deve ter alguns pilotos — disse Martinson. — Vou ver o que dá para descobrir.
— Passe essa tarefa para alguém. Você tem coisas mais importantes a fazer.
— Talvez dê para a Ann-Britt fazer isso do telefone da casa dela — sugeriu Martinson. — Acho que ela vai gostar de poder contribuir.
— Ela ainda pode dar uma boa policial.
— Vamos torcer para isso — disse Martinson. — Mas, para falar a verdade, não temos como saber. Tudo o que sabemos é que ela foi bem na faculdade.
— Você tem razão — concordou Wallander. — E é dificílimo imitar a realidade numa escola.
Depois que Martinson saiu, Wallander sentou-se para se preparar para a reunião das nove. Quando acordou, naquela manhã, todas as reflexões que fizera durante a noite, a respeito das pontas soltas da investigação, continuavam presentes em sua mente. Ele havia decidido que teriam de descartar qualquer coisa que não fosse considerada de importância imediata. Se num determinado momento chegassem à conclusão de que o caminho seguido era um beco sem saída, sempre poderiam voltar e recorrer às pontas soltas. Mas só então poderiam se dar ao luxo de ocupar a mente com elas.
Wallander empurrou para um lado a pilha de papéis que havia sobre sua mesa e puxou uma folha limpa. Muitos anos antes, Rydberg havia lhe ensinado uma forma de abordar uma investigação sob uma luz nova. Temos que ficar em movimento constante, indo de uma torre de observação à outra. Se não fizermos isso, nossa visão geral perde o sentido. Por mais complicada que seja uma investigação, é preciso que dê para explicá-la a uma criança. Temos que ver as coisas de forma simples, mas sem simplificação.
Wallander escreveu: “Era uma vez um velho advogado que foi visitar um homem rico em seu castelo. No caminho de volta, alguém o matou e tentou fazer a polícia acreditar que tinha sido um acidente de carro. Logo depois disso, o filho desse advogado foi morto em seu escritório. Ele tinha começado a desconfiar que o pai não morrera de acidente de carro coisa nenhuma, e por isso foi me ver, para pedir ajuda. Ele fez uma viagem secreta à Dinamarca, embora a secretária tivesse sido informada de que ele fora à Finlândia. Ela até recebeu um postal de lá. Alguns dias depois, alguém plantou uma mina no quintal dessa secretária. Uma policial muito atenta da delegacia de Ystad reparou que eu estava sendo seguido por um carro, a caminho de Helsingborg. Os advogados haviam recebido cartas contendo ameaças de um funcionário público do condado, um contador. Esse contador mais tarde se suicidou, enforcou-se numa árvore perto de Malmö, embora a probabilidade seja de que também ele tenha sido assassinado. Assim como o acidente de carro, o suicídio foi forjado. Todos esses incidentes estão ligados, mas não há um fio condutor óbvio que una todos eles. Nada foi roubado e não há sinais de paixões desenfreadas, do tipo ódio ou ciúme. Tudo o que restou do acidente foi um estranho recipiente de plástico. E agora nós começamos de novo. Era uma vez um velho advogado que fez uma visita a um homem rico num castelo”.
Wallander largou a caneta.
Alfred Harderberg, pensou ele. Um Cavaleiro das Sedas dos tempos modernos. De tocaia nos bastidores, nos bastidores de todos. Voando pelo mundo afora, fazendo negócios muito difíceis de entender, como se fosse tudo uma espécie de ritual cujas regras apenas os iniciados conhecem.
Releu o que tinha escrito. As palavras eram transparentes, mas não havia nada nelas que pudesse colocar as investigações sob uma luz nova. E menos ainda que pudesse indicar que Harderberg estava envolvido.
Isso deve ser coisa muito graúda mesmo, refletiu ele. Se minhas suspeitas estiverem corretas e se Harderberg estiver mesmo por trás de tudo, então Gustaf Torstensson — e Lars Borman também — devem ter descoberto algo que ameaçava todo o império dele. Presumivelmente, Sten não sabia do que se tratava, caso contrário teria me dito. Mas foi me ver desconfiado de que estava sendo vigiado, e isso acabou sendo verdade. Eles não podiam correr o risco de que Sten transmitisse o que sabia. Tampouco podiam correr o risco de que a sra. Dunér soubesse de algo.
Isso deve ser coisa muito graúda, pensou de novo. Algo muito graúdo, mas assim mesmo capaz de caber num recipiente de plástico que lembra uma geladeira portátil de isopor.
Wallander foi buscar outro café. Depois ligou para o pai.
— Está vindo um vendaval — falou. — Pode ser que seu telhado não agüente.
— Estou louco para ver isso — respondeu o pai.
— Louco para ver o quê?
— Meu telhado sair voando por aí, feito um pássaro. Nunca vi nada parecido antes.
— Eu devia ter mandado consertar há muito tempo, já, mas pode deixar que vou providenciar isso antes que chegue o inverno.
— Só acredito vendo. Para fazer isso, você teria que vir aqui.
— Eu arranjo tempo. Já parou para pensar um pouco sobre o que aconteceu em Simrishamn?
— Pensar o quê? Eu fiz o que era certo e pronto.
— Mas você não pode atacar as pessoas assim sem mais nem menos.
— Não vou pagar multa nenhuma. E também não vou preso.
— Não tenho a menor dúvida. Eu ligo hoje à noite para saber como o telhado se comportou. O vento pode atingir força de furacão.
— Quem sabe eu não devia subir na chaminé?
— E para que, santo Deus?
— Para sair voando também.
— Você vai se matar. A Gertrud não está por aí?
— Eu levo ela comigo — disse o pai, desligando.
Wallander ficou ali sentado, com o fone na mão. Björk entrou bem nesse instante.
— Eu espero, se você for fazer uma ligação.
Wallander pôs o fone no gancho.
— Soube pelo Martinson que o doutor Harderberg deu sinal de vida.
— Isso foi uma pergunta? Se foi, posso confirmar que o Martinson falou a verdade. Exceto que não foi ele o autor da chamada. Harderberg está em Barcelona e é esperado para esta tarde. Pedi para ser recebido ainda hoje.
Wallander percebeu que Björk estava contrariado.
— O Martinson me disse que ele vai com você. Eu me pergunto se isso é o mais apropriado.
— E por que não seria? — Wallander estava espantado.
— Não estou dizendo que o Martinson não sirva. Mas é que pensei que talvez eu devesse ir junto.
— E por quê?
— Porque, afinal de contas, Harderberg não é uma pessoa qualquer.
— Você não está tão familiarizado com o caso quanto o Martinson. E não estamos indo fazer uma visitinha social.
— Se eu fosse com você, isso talvez pudesse ter um efeito calmante sobre a coisa toda. Nós concordamos em ser cautelosos; e não podemos deixar o doutor Harderberg irritado.
Embora o inspetor não estivesse gostando nada da atitude de Björk — afinal, ele só queria ir junto para impedir que Wallander se comportasse de forma tida como inadequada, que fizesse algo capaz de danificar a reputação da corporação —, ainda assim tinha de dar razão ao chefe: era fundamental que Harderberg não se preocupasse com o interesse que a polícia estava demonstrando nele.
— Entendo o seu argumento — disse —, mas isso também pode surtir o resultado oposto. Pode causar um certo sobressalto o fato de o chefe da polícia estar presente para o que supostamente é apenas um questionamento de rotina.
— Estava apenas sugerindo — disse Björk.
— É melhor que vá o Martinson — disse Wallander, levantando-se. — Acho que nossa reunião está para começar.
A caminho da sala de reunião, Wallander resmungou consigo mesmo que qualquer dia desses teria de começar a aprender a ser honesto. Deveria ter dito a verdade a Björk, deveria ter falado que não queria que ele fosse junto porque não aceitava sua atitude subserviente em relação a Harderberg. Havia algo na atitude de Björk típica da reverência exibida pelos campônios quando se viam diante de algum poderoso. Nunca havia pensado muito nisso, antes, mesmo sabendo que era uma verdade, em termos gerais. Havia sempre alguém no topo, que ditava as regras de forma específica ou por inferência, e todos aqueles embaixo, que tinham de aceitar. Quando menino, lembrava-se de ter visto trabalhadores tirando o boné sempre que um dos que decidiam o destino deles passava por perto. Lembrou de como o pai costumava fazer uma mesura para os Cavaleiros das Sedas. Os bonés continuavam sendo tirados, mesmo hoje em dia, ainda que fossem bonés metafóricos.
Também estou de boné na mão, pensou ele. Só que às vezes não noto.
Reuniram-se todos em volta da mesa da sala de reunião. Svedberg, com voz soturna, apresentou a proposta de novo uniforme que fora enviada para todas as delegacias.
— Quer ver que cara nós vamos ter no futuro? — disse ele.
— Nunca vestimos farda — disse Wallander, sentando-se.
— A Ann-Britt não é tão negativa quanto nós — continuou Svedberg. — Ela acha que até pode ficar bem elegante.
Björk havia se sentado e colocado as mãos sobre a mesa, um sinal para que a reunião começasse.
— O promotor não vai participar da reunião, hoje — disse. — Ele vai tentar garantir que aqueles gêmeos que roubaram o banco no ano passado sejam condenados.
— Que gêmeos? — perguntou Wallander.
— Será possível que alguém não saiba que o Handelsbanken foi assaltado por um par de gêmeos?
— Eu não estava aqui o ano passado — disse Wallander. — Não ouvi nada a respeito.
— Nós os pegamos, no fim — contou Martinson. — Eles tinham feito o curso básico de Economia, na faculdade, e precisavam de um capital para colocar suas idéias em prática. Tinham em mente um palácio flutuante de prazeres chamado Eterno Verão Tropical que iria ficar navegando para cima e para baixo, ao longo do litoral sul.
— Até que não seria má idéia — disse Svedberg, coçando pensativo a cabeça.
Wallander olhou em volta.
— Alfred Harderberg ligou para cá — disse ele. — Vou ao Castelo Farnholm esta noite e vou levar o Martinson comigo. Há uma ligeira possibilidade de que seus planos de viagem mudem antes disso, mas deixei claro que não deve contar com a paciência ilimitada da polícia.
— E isso não vai deixá-lo meio desconfiado? — perguntou Svedberg.
— Enfatizei que serão perguntas de rotina — disse o inspetor. — Foi ele que Gustaf Torstensson foi visitar, na noite em que morreu.
— Já não era sem tempo — interveio Martinson. — Mas acho melhor pensarmos com todo o cuidado no que vamos dizer a ele.
— Temos o dia todo para isso.
— Onde é que ele andava, dessa vez? — perguntou Svedberg.
— Barcelona.
— Ele tem um bocado de propriedades em Barcelona — disse Svedberg. — Também tem investimentos numa aldeia de veraneio que está sendo construída perto de Marbella. Tudo por intermédio de uma empresa chamada Casaco. Eu vi a brochura promovendo ações dessa empresa não sei onde. Se não me engano, a coisa toda é gerida por um banco em Macao. Seja lá onde for isso.
— Também não sei onde fica — comentou Wallander —, mas o importante agora não é isso.
— Macao fica ao sul de Hong Kong — disse Martinson. — Ninguém aqui estudou geografia na escola?
Wallander se serviu de água e a reunião seguiu seu curso normal. Os policiais se revezaram para apresentar o relato do que haviam feito desde o último encontro, cada qual se concentrando na tarefa que lhe fora designada. Martinson transmitiu alguns recados que recebera de Ann-Britt Höglund — o mais importante deles era que iria se encontrar no dia seguinte com os filhos de Borman, e também com a viúva, que viera da Espanha fazer uma visita aos parentes. Wallander começou falando sobre o recipiente de plástico. E não demorou para perceber que os colegas não estavam conseguindo entender por que aquele detalhe específico poderia ser tão significativo. Talvez isso não seja de todo mau, pensou ele. Talvez me ajude a reduzir as expectativas.
Depois de mais ou menos meia hora, a discussão se tornou mais generalizada. Todos concordaram com o inspetor Wallander que, até segunda ordem, seria melhor deixar de lado as pontas soltas que não estivessem diretamente ligadas ao Castelo Farnholm.
— Continuamos aguardando para saber o que as divisões de fraudes de Estocolmo e Malmö têm para nós — informou Wallander, encerrando a reunião. — O que podemos dizer, por enquanto, é que Gustaf e Sten Torstensson foram mortos por motivos que ainda não conseguimos identificar. Estou mais inclinado a pensar em roubo que em vingança. É claro que temos que estar preparados para continuar investigando todos os clientes do escritório, se por acaso a pista de Farnholm esfriar; mas, por enquanto, precisamos nos concentrar em Harderberg e em Borman. Vamos torcer para que Ann-Britt consiga espremer alguma coisa da viúva e dos filhos dele.
— Você acha que ela vai saber lidar com a situação? — Svedberg perguntou.
— E por que não saberia?
— Convenhamos que ela não tem muita experiência. E eu só perguntei.
— Não tenho a menor dúvida de que ela vai lidar com a situação de forma exemplar — disse Wallander. — Se ninguém tiver mais nada, a reunião está encerrada.
Wallander voltou para sua sala. Parou por alguns momentos diante da janela, com a mente vazia. Depois sentou-se à escrivaninha de novo e repassou todo o material que tinha sobre Harderberg e seu império empresarial. Já havia lido boa parte do material, mas reviu tudo, passando um pente fino. Havia um bocado de coisas que não entendia. As transações comerciais mais complicadas — a forma como uma empresa derretia, por assim dizer, e se tornava algo diferente, e as operações complexas envolvendo ações e títulos — deixavam nele a impressão de estar entrando num mundo muito além de sua compreensão. De vez em quando, interrompia a leitura para tentar falar com Nyberg, mas estava sem sorte. Trabalhou durante a hora do almoço e só saiu da delegacia às três e meia da tarde. Nyberg ainda não tinha dado notícias, e isso era estranho. Wallander começou a aceitar o fato de que só saberia para que aquele recipiente de plástico fora usado depois de ter ido visitar o Castelo Farnholm. Enfrentou o vendaval fortíssimo até a Stortorget e pediu um kebab. Durante o tempo todo, só pensava em Harderberg.
Ao voltar para a delegacia, havia um recado em sua mesa dizendo que alguém do escritório do Castelo Farnholm tinha telefonado e que o dr. Harderberg o esperava às sete e meia da noite. Wallander saiu atrás de Martinson. Eles precisavam se preparar, repassar as perguntas que iriam fazer e quais as que guardariam para uma outra ocasião. No corredor, cruzou com Svedberg, que estava de saída.
— O Martinson pediu para você ligar para a casa dele — disse Svedberg. — Ele saiu já faz um tempinho. Não sei por que razão.
Wallander voltou a sua sala e discou o número de Martinson.
— Vou ser obrigado a dar para trás — disse o colega. — Minha mulher está doente e não consegui arrumar uma babá. Será que você pode levar o Svedberg?
— Ele acabou de sair. Não faço idéia para onde foi.
— Desculpe o contratempo — disse Martinson.
— Não se preocupe, claro que você tem que ficar em casa. Pode deixar que eu me arranjo.
— Por que você não vai com o Björk? — Martinson perguntou, irônico.
— Você tem razão, talvez vá com ele — respondeu Wallander, sério. — Vou pensar nisso.
Mas, quando pôs o fone no gancho, já havia resolvido ir sozinho ao Castelo Farnholm. Percebeu que era justamente isso que tivera vontade de fazer, desde o começo. Minha maior fraqueza, como policial, pensou. Sempre prefiro ir só. Com o passar dos anos, tinha começado a se perguntar se seria mesmo uma fraqueza.
Para poder se concentrar com paz e sossego, deixou a delegacia sem mais delongas, entrou no carro e saiu de Ystad. A ventania estava de fato atingindo força de furacão. O carro oscilava e chacoalhava. Fiapos de nuvem corriam em disparada pelo céu. Como estaria o telhado de seu pai, em Löderup? Sentiu uma necessidade súbita de ouvir um pouco de ópera, parou no acostamento e acendeu a luz interna do carro. Mas não conseguiu encontrar nenhum dos seus cassetes — e então se deu conta de que não estava no seu carro. Seguiu em frente, até Kristianstad. Tentou repassar o que iria perguntar a Harderberg, mas descobriu que o que queria mesmo era se ver frente a frente com ele. Não existia uma única fotografia do homem do Castelo Farnholm, mesmo nos relatórios da imprensa que Wallander tinha lido, e Höglund dissera que ele detestava ser fotografado. Nas poucas ocasiões em que aparecia em público, seus empregados providenciavam para que não houvesse fotógrafos por perto. Uma pesquisa feita nos arquivos da televisão sueca revelou que não havia um único clipe de Harderberg.
Wallander lembrou-se de sua primeira visita ao castelo. Naquela ocasião, concluíra que os muito ricos em geral se caracterizam pelo silêncio que os rodeia, pelo distanciamento que mantêm. Agora podia acrescentar outra característica: os muito ricos também são invisíveis. Gente sem rosto num ambiente bonito.
Pouco antes de entrar em Tomelilla, o inspetor atropelou uma lebre que parecia hipnotizada por seus faróis. Parou e desceu do carro, sob uma ventania que ameaçava jogá-lo no chão. A lebre estava deitada no asfalto, sacudindo as pernas traseiras. Ele olhou em volta, à procura de uma pedra grande o suficiente, mas até encontrá-la o animal já estava morto. Empurrou a lebre com a ponta do pé até a vala do acostamento e voltou para o carro com um gosto ruim na boca. As rajadas de vento estavam tão fortes que quase arrancaram a porta do carro.
Foi até Tomelilla, onde parou numa lanchonete e pediu um sanduíche e um café. Eram 5h45 da tarde. Pegou o bloco e anotou algumas perguntas que poderiam ser usadas como arcabouço durante a conversa que teria com Harderberg. Wallander estava tenso. O que só poderia significar que esperava ficar frente a frente com o assassino.
Continuou ali por mais uma hora, reabastecendo sua xícara de café e deixando vagar as idéias. De repente, estava pensando em Rydberg. Por alguns momentos, teve dificuldade em se lembrar do rosto do colega, e isso o preocupou. Se eu perder Rydberg, pensou, perco o único amigo que já tive na vida. Morto ou vivo.
Pagou e saiu. Uma placa na frente do café tinha sido derrubada pelo vento. Os carros passavam rápido, mas ele não via ninguém. Uma verdadeira tempestade de novembro, pensou o inspetor, dando a partida. É o inverno empurrando os portões para entrar.
Às 7h25, Wallander estava parando diante dos portões do castelo. Esperava ver Ström aparecer para cumprimentá-lo, mas não apareceu ninguém. A casamata parecia estar deserta. Os portões se abriram sem fazer ruído. Ele seguiu na direção do castelo. Holofotes potentes iluminavam a fachada e o gramado em volta. Era iluminação de cenário — uma imagem da realidade, não a realidade em si.
Parou na altura da escadaria e desligou o motor. A porta do castelo se abriu assim que ele saltou do carro. Quando estava na metade da escada, uma violenta rajada de vento o fez tropeçar e deixar cair o bloco de notas. Que foi levado pelo vento. Wallander abanou a cabeça e continuou subindo. Uma jovem de cabelo bem curto o aguardava na entrada.
— Era algo importante? — perguntou ela.
Wallander reconheceu a voz.
— Apenas um bloco de notas.
— Vamos mandar alguém buscá-lo para o senhor — disse Jenny Lind.
O inspetor contemplou os brincos pesados e as fitinhas azuis no cabelo escuro da jovem.
— Não tinha nada nele.
Ela lhe fez um gesto para que entrasse e a porta se fechou atrás deles.
— O senhor havia dito que traria alguém — disse ela.
— Eles não puderam vir.
Wallander notou que havia dois homens rondando as sombras, perto da escadaria principal. Lembrou-se das sombras que havia visto em sua primeira visita. Não conseguiu ver a fisionomia deles e se perguntou, muito rapidamente, se estariam mesmo vivos ou se não eram apenas duas armaduras.
— O doutor Harderberg estará aqui num instante — disse a jovem. — O senhor pode aguardar na biblioteca.
Ela o levou por uma porta para a ala à esquerda do vestíbulo. Wallander estava escutando o eco de seus próprios passos no chão de pedra. Como é que aquela moça na frente dele conseguia se mover com tanto silêncio, era o que ele gostaria de saber, até reparar, com uma certa surpresa, que ela estava descalça.
— Não está com frio? — ele perguntou, apontando os pés da jovem.
— O piso do castelo é aquecido — respondeu ela, impassível, indicando a porta da biblioteca.
— Vamos procurar suas anotações. — Dizendo isso, ela o deixou e fechou a porta.
Wallander se viu num amplo aposento de formato oval, forrado de estantes de livros. No meio, havia um grupo de poltronas de couro e uma mesinha de centro. A iluminação era branda e, ao contrário do vestíbulo de entrada, a biblioteca tinha tapetes orientais no chão. Wallander parou muito quieto e escutou. Surpreendeu-se de não conseguir ouvir nem sinal da tempestade que rugia do lado de fora. Depois se deu conta de que a sala era à prova de som. Tinha sido ali que Gustaf Torstensson passara a última noite de sua vida, ali ele se encontrara com seu patrão e diversos outros desconhecidos.
O inspetor olhou em volta. Atrás de uma coluna, descobriu um enorme aquário com peixes de formas estranhas nadando devagar. Chegou mais perto para ver se havia ouro em pó no fundo: com certeza a areia cintilava. Continuou a explorar a sala. Não há a menor dúvida de que estou sendo observado, pensou. Não estou vendo nenhuma câmara, mas elas estão por aí, escondidas entre os livros, e devem ser sensíveis o suficiente para transmitir imagens precisas, apesar da pouca luz. E claro que também deve haver alguns gravadores de som espalhados por aí. Eles esperavam que eu viesse acompanhado. E hão de ter planejado nos deixar a sós por algum tempo, para poder escutar nossa conversa.
Wallander não ouviu Harderberg entrar na sala, mas num determinado momento percebeu que não estava mais sozinho. Virou-se e viu um homem parado ao lado de uma das suntuosas poltronas de couro.
— Inspetor Wallander — disse o homem, e sorriu. O que Wallander lembraria, depois, era que aquele sorriso parecia não desgrudar nunca do rosto bronzeado do magnata. Jamais poderia esquecer aquele sorriso.
— Alfred Harderberg — disse Wallander. — Agradeço muitíssimo por poder me receber.
— Todos nós precisamos fazer a nossa parte, quando a polícia aparece.
A voz era inusitadamente agradável. Eles trocaram um aperto de mão. Harderberg usava um imaculado e sem dúvida nenhuma caríssimo terno de listras. A primeira impressão do inspetor foi a de que tudo em relação a ele era perfeito — as roupas, a forma de se mover, o jeito de falar. E aquele sorriso em nenhum momento deixou de estar estampado em seu rosto.
Sentaram-se.
— Pedi para nos trazerem um chá — disse Harderberg, em tom amistoso. — O senhor gosta de chá, eu espero?
— Gosto sim, obrigado. Sobretudo com um tempo destes. As paredes aqui de Farnholm devem ser bem grossas.
— Está-se referindo ao fato de não escutarmos o vento, imagino. O senhor tem razão. As paredes são de fato muito grossas. Foram construídas para resistir tanto aos soldados inimigos, como às ventanias e vendavais.
— Deve ter sido bem difícil aterrissar, hoje — comentou Wallander. — O senhor chegou por onde, Everöd ou Sturup?
— Eu uso Sturup. Dá para sair direto de lá, nas rotas internacionais. Mas a aterrissagem foi excelente. Meus pilotos são todos ótimos profissionais.
A africana que Wallander tinha conhecido durante a primeira visita surgiu das sombras. Eles permaneceram em silêncio enquanto ela servia o chá.
— Este é um chá muito especial — disse Harderberg.
Wallander lembrou-se de algo que tinha lido naquela tarde mesmo.
— Imagino que deva ser de uma das suas plantações — falou.
O sorriso constante de Harderberg encobria suas reações: impossível dizer se havia ficado surpreso com o fato de Wallander saber que tinha plantações de chá.
— Vejo que está bem informado, inspetor Wallander. É verdade que somos donos de uma parte das plantações de chá da Lonrho em Moçambique.
— Isso é muito bom. Para mim, é muito difícil imaginar o que significa fazer negócios nos quatro cantos do mundo. A vida de um policial é bem diferente. Mas por outro lado imagino que o senhor também deve ter achado bem difícil, no início: de Vimmerby para as plantações de chá na África.
— Foram de fato passos enormes.
Wallander sentiu que Harderberg encerrara as amabilidades de abertura com um ponto final invisível. Largou a xícara, sentindo-se bastante inseguro. O homem a sua frente irradiava uma autoridade controlada porém, pelo visto, ilimitada.
— Creio que podemos concluir isto de forma muito rápida — disse Wallander, depois de uma pausa momentânea, durante a qual não escutou nem um sussurro da tempestade que rugia lá fora. — O advogado Gustaf Torstensson, que morreu num acidente de carro, depois de visitar seu castelo, foi na verdade assassinado. O acidente foi forjado para ocultar o crime. Seja lá quem for que o matou, o senhor foi a última pessoa a vê-lo com vida.
— Devo admitir que acho essa história toda inconcebível — disse Harderberg. — Quem é que teria interesse em matar o coitado do velho Gustaf Torstensson?
— É essa a pergunta que nos fazemos. E quem poderia ser suficientemente frio para disfarçar o homicídio em acidente de carro?
— Mas o senhor deve ter alguma idéia, não?
— Tenho, mas infelizmente não posso dizer mais nada a respeito.
— Entendo, inspetor. O senhor há de imaginar como ficamos chocados com tudo o que aconteceu. O velho Torstensson era um bom colega nosso, de confiança.
— As coisas ficaram ainda mais complicadas quando o filho dele também foi assassinado — continuou Wallander. — O senhor o conhecia?
— Nunca me encontrei com ele. Mas soube do que aconteceu, claro.
Wallander estava se sentindo cada vez mais inseguro. Harderberg parecia a personificação da serenidade. Em geral, o inspetor não demorava muito para determinar se uma pessoa estava dizendo a verdade ou não, mas esse homem, o homem sentado do outro lado, era diferente.
— O senhor tem interesses comerciais espalhados pelo mundo todo — disse Wallander. — Preside um império que movimenta bilhões. Se entendi direito, o seu empreendimento está próximo de ser um dos maiores do mundo.
— Haveremos de passar na frente da Kankaku Securities e da Pechiney International no próximo ano. E quando conseguirmos isso, sim, estaremos entre as mil maiores empresas do mundo.
— Nunca ouvi falar nessas duas empresas.
— A Kankaku é japonesa e a Pechiney é francesa — disse Harderberg.
— Esse não é exatamente um mundo com o qual eu tenha muita familiaridade. E devia ser um universo estranho também para Gustaf Torstensson. Durante boa parte da vida, ele foi apenas um simples advogado provinciano. Mas ainda assim o senhor encontrou lugar para ele em sua organização.
— Admito francamente que também fiquei surpreso. Mas, quando resolvemos mudar nossa base sueca para o Castelo Farnholm, eu precisava de um advogado com algum know-how local. Torstensson me foi recomendado.
— Por quem?
— Receio já não me lembrar mais.
É isso, pensou Wallander. Ele sabe muito bem quem foi, mas prefere não dizer nada. O inspetor não deixara de registrar uma mudança quase imperceptível na fisionomia impassível de Alfred Harderberg.
— Até onde sei, ele lidava exclusivamente com consultoria financeira.
— Ele verificava se as transações que tínhamos com o resto do mundo estavam de acordo com a lei sueca. Era uma pessoa muito meticulosa. Eu tinha imensa confiança nele.
— Naquela última noite — prosseguiu Wallander —, quando vocês estiveram juntos, imagino que nesta mesma sala, sobre o que foi a reunião?
— Havíamos feito uma oferta para comprar algumas propriedades na Alemanha que, na época, eram da Horsham Holdings do Canadá. Eu deveria me encontrar com Peter Munk alguns dias depois para fechar de vez o negócio. Discutimos se haveria algum obstáculo formal no caminho. Nossa proposta era pagar parte em dinheiro e parte em ações.
— Peter Munk? Quem é ele?
— O principal acionista da Horsham Holdings — disse Harderberg. — É ele quem dirige os negócios.
— A conversa que vocês tiveram aquela noite foi de rotina?
— Até onde eu me lembro, foi.
— Parece-me que havia outras pessoas presentes.
— Havia dois diretores do Banca Commerciale Italiana. Pretendíamos pagar pelas propriedades alemãs com algumas ações da Montedison. A transação seria coordenada pelo banco italiano.
— Eu agradeceria se pudesse me fornecer os nomes dessas duas pessoas — disse Wallander. — Só para o caso de haver alguma necessidade de falarmos também com elas.
— Mas é claro.
— Gustaf Torstensson deixou o Castelo Farnholm logo depois da reunião, eu imagino. Por acaso notou algo fora do comum, nele, naquela noite?
— Absolutamente nada.
— E tampouco faz idéia de por que ele foi assassinado?
— Para mim, é algo absolutamente incompreensível. Um homem de idade que levava uma vida solitária. Quem haveria de querer matá-lo?
— Justamente — disse Wallander. — Quem haveria de querer matá-lo? E quem haveria de querer dar um tiro no filho dele também, umas duas semanas depois?
— Pensei que o senhor tivesse dado a entender que a polícia tinha uma pista.
— De fato temos uma pista. Mas não temos um motivo.
— Bem que eu gostaria de ajudá-lo, inspetor Wallander. Em todo caso, gostaria que a polícia me mantivesse informado sobre os desdobramentos do caso.
— É muito possível que eu tenha que voltar a falar com o senhor, fazer algumas outras perguntas — disse Wallander, levantando-se.
— Responderei a tudo da melhor maneira que puder.
Cumprimentaram-se de novo com um aperto de mão. Wallander tentou enxergar para além do sorriso, para além dos olhos azuis muito pálidos. Mas, em algum ponto, topou com uma muralha invisível.
— O senhor comprou aqueles prédios? — Wallander perguntou.
— Que prédios?
— Na Alemanha.
O sorriso tornou-se ainda mais rasgado.
— É claro. Era um negócio excelente. Para nós.
Na porta, separaram-se. A srta. Lind estava ali parada, descalça, esperando para escoltá-lo.
— Encontramos seu bloco de notas — disse ela, enquanto atravessavam o enorme vestíbulo, entregando-lhe um envelope.
Wallander notou que as sombras não estavam mais por lá.
— E com os nomes dos dois diretores do banco italiano — disse o inspetor.
Ela sorriu.
Todo mundo sorri por aqui, pensou ele. Será que isso também inclui os sujeitos nas sombras?
Jenny Lind fechou a porta depois que ele saiu. Os portões se abriram em silêncio e Wallander sentiu alívio assim que passou por eles. O vendaval o atingiu em cheio.
Foi por aqui que Gustaf Torstensson veio aquela noite, pensou ele. Mais ou menos no mesmo horário.
Sentiu medo. Olhou por cima do ombro para se certificar de que não havia ninguém no banco de trás.
Mas ele estava sozinho.
Uma corrente de ar gelado tentava se infiltrar pelas janelas.
Pensou em Alfred Harderberg, o homem que sorria.
Ele é o tal, pensou Wallander. Sem dúvida é ele quem sabe o que aconteceu.
E é o sorriso dele que preciso decifrar.
12
Os ventos de forte intensidade que atingiram a Skåne foram amainando aos poucos.
Kurt Wallander tinha passado mais uma noite insone em seu apartamento. Ao amanhecer, a tempestade dava sinais de estar chegando ao fim. Durante a noite, o inspetor fora diversas vezes até a janela, de onde observava a lâmpada pendurada na rua se contorcer feito uma serpente.
Ele voltara do estranho mundo de cenário do Castelo Farnholm com a sensação de ter sido humilhado. O sorridente dr. Harderberg o fizera desempenhar o mesmo papel submisso que o pai interpretara diante dos Cavaleiros das Sedas no passado. Enquanto observava a tempestade lá fora, chegou à conclusão de que o castelo nada mais era que uma variação dos elegantes carros americanos de molejo macio que freavam com um bamboleio da carroceria na frente da casa onde ele crescera, em Malmö. O polaco de vozeirão grosso, com seu terno de seda, era parente distante do dono do castelo com biblioteca à prova de som. Wallander sentara-se na poltrona de couro de Harderberg, boné invisível na mão, e saíra com a sensação de ter sido vencido.
Certo, havia aí algum exagero da parte dele. Afinal, havia feito o que tinha se proposto, perguntara o que tinha para perguntar, conhecera o homem superpoderoso que pouquíssima gente conhecia e conseguira aplacar todos os receios dele, disso Wallander estava certo. Não lhe dera nenhum motivo para achar que não fosse considerado um eminente cidadão de reputação ilibada.
Ao mesmo tempo, Wallander estava convicto de que estavam na pista certa, que haviam removido a pedra que ocultava o segredo do assassinato dos dois advogados e que, debaixo daquela pedra, era possível enxergar a imagem de Alfred Harderberg. O que ele teria de fazer, dali para a frente, era não só apagar aquele sorriso do rosto do homem, como também abater um gigante.
Durante uma noite insone, Wallander repassara inúmeras vezes a conversa que havia tido com Harderberg. Reconstituíra sua fisionomia e tentara interpretar as mais diminutas nuanças e mudanças do sorriso silencioso, da mesma forma como alguém tenta desvendar um código secreto. Pelo menos uma vez, havia chegado muito próximo, tinha certeza disso. Fora quando perguntara a Harderberg quem lhe recomendara Gustaf Torstensson. Ainda que por um segundo apenas, o sorriso exibira uma fenda, minúscula, mas exibira. O que significava que em determinados momentos Harderberg não podia evitar de se sentir humano, vulnerável, exposto. Por outro lado, isso não significava grande coisa. Poderia ter sido apenas a fadiga momentânea e irreprimível de um ocupado empresário, em constantes viagens pelo mundo, a fraqueza apenas entrevista de um homem que não tem mais forças para exibir uma fachada polida enquanto se deixa interrogar por um insignificante policial de Ystad.
Wallander acreditava que era por ali que deveria fazer a primeira investida, se quisesse de fato abater o gigante, apagar aquele sorriso e descobrir a verdade por trás da morte dos dois advogados. Ele não tinha a menor dúvida de que os habilidosos e persistentes integrantes da divisão de fraudes topariam com informações muito úteis às investigações. Mas, à medida que a noite avançava, Wallander foi se convencendo de que seria o próprio Harderberg quem os poria na pista certa. Em algum lugar, em algum momento, o dono daquele sorriso deixaria um rastro que lhes permitiria caçá-lo e usar o que tivessem encontrado para liquidá-lo.
Wallander sabia que não tinha sido Harderberg em pessoa o autor dos crimes. Tampouco fora ele quem plantara a mina terrestre no quintal de Berta Dunér. Ele não estava dentro dos carros que o seguiram e a Höglund até Helsingborg. E não pusera explosivos no seu tanque de gasolina. Já havia notado que Harderberg gostava muito de usar o plural majestático e dizer nós. Como um rei, ou um príncipe herdeiro. Mas também como um homem que conhecia a importância de se cercar de colegas leais que jamais questionavam as instruções recebidas.
Tudo indicava que esses traços se aplicavam também a Gustaf Torstensson, e não era difícil entender por que Harderberg o havia escolhido para fazer parte de sua equipe. Ele poderia esperar lealdade total por parte do advogado, que sempre saberia qual era seu lugar. Harderberg lhe oferecera uma oportunidade que ele jamais teria imaginado, nem mesmo em seus sonhos mais delirantes.
Talvez seja assim simples, pensou o inspetor, olhando o balanço da luminária pública. Talvez Gustaf Torstensson tenha desvendado algo que não quis ou não pôde aceitar. Talvez ele também tenha descoberto uma fenda naquele sorriso. Talvez uma fenda que o tenha deixado cara a cara com o desagradável papel que vinha desempenhando.
De vez em quando, Wallander saía da frente da janela e sentava-se à mesa da cozinha. Para anotar seus pensamentos num bloco e tentar tirar algum sentido deles.
Às cinco horas, tinha feito um café. Depois voltara para a cama e cochilara até as seis e meia. De novo de pé, tomara uma chuveirada e mais uma xícara de café. Às sete e meia, rumara para a delegacia. A tempestade cedera lugar a um céu azul muito limpo e a temperatura baixara sensivelmente. Embora não tivesse dormido quase nada, sentia-se cheio de energia ao entrar em sua sala. Estamos com o fôlego renovado, havia pensado no caminho. Não estamos mais tateando no escuro, estamos no auge das investigações. Largando o paletó nas costas da cadeira para visitas, foi buscar um café e, depois, ligou para Ebba, na recepção, e pediu-lhe o favor de localizar Nyberg. Enquanto esperava, releu o resumo que havia feito da conversa com Harderberg. Svedberg enfiou a cabeça na porta e perguntou como tinha sido a visita.
— Você vai saber de tudo daqui a pouco — disse Wallander. — Mas, na minha opinião, os assassinatos e tudo o mais tiveram origem no Castelo Farnholm.
— A Ann-Britt ligou dizendo que vai direto para Ängelholm. Para se encontrar com a viúva e os filhos de Lars Borman.
— E como ela está se saindo com o jato de Harderberg?
— Ela não mencionou nada a respeito. Imagino que vá demorar um pouco.
— Estou me sentindo tão impaciente! Por que será?
— Você sempre está. E é a única pessoa que parece não se dar conta da própria impaciência — Svedberg respondeu, ao sair.
Assim que Nyberg entrou, Wallander percebeu que havia novidades. Pediu ao colega que fechasse a porta da sala.
— Você tinha razão — disse Nyberg. — O recipiente de plástico que nós examinamos na outra noite não é bem o tipo de coisa que se costuma encontrar no carro de um advogado.
Wallander estava ansioso para ouvir mais.
— Também tinha razão ao achar que era uma espécie de caixa para transportar sangue. Mas não é para transportar sangue ou remédio. É para órgãos que vão ser transplantados. Um rim, por exemplo.
Wallander olhou pensativo para Nyberg.
— Tem certeza?
— Quando não tenho certeza, eu lhe digo.
— Eu sei — disse Wallander, sem levar em conta a irritação do perito.
— O recipiente que encontramos no carro do advogado é de um tipo muito avançado. Não existem muitos desses por aí, de modo que não há de ser muito difícil rastreá-lo. Se o que consegui descobrir até agora estiver correto, os únicos importadores na Suécia são uma empresa sediada em Södertälje chamada Avanca. Vou investigar mais essa parte.
— Ótimo. Mais uma coisinha só: não se esqueça de descobrir quem é o dono da empresa.
— Suponho que você esteja querendo saber se a Avanca faz parte do império de Harderberg.
— Seria um bom começo.
Nyberg parou na soleira da porta.
— O que você sabe a respeito de transplante de órgãos?
— Muito pouco — disse Wallander. — Sei que são feitos, que estão ficando cada vez mais comuns e que há mais órgãos sendo transplantados. De minha parte, espero nunca precisar de um. Deve ser estranhíssimo ter o coração de outra pessoa dentro de você.
— Falei com um certo doutor Strömberg, em Lund. Ele me deu um bom panorama da coisa. Diz que há um lado, nas cirurgias de transplante, que é um tanto suspeito, para dizer o mínimo. E não só porque os pobres do Terceiro Mundo vendem os próprios órgãos no afã de sobreviver — claro que esse é um negócio com diversas áreas cinzentas, pelo menos da perspectiva moral. Ele também deu a entender que existem coisas ainda piores.
Wallander fitou Nyberg com olhos curiosos.
— Continue — falou. — Estou com tempo.
— Achei um absurdo, mas o doutor Strömberg me convenceu de que não há limite para o que as pessoas se dispõem a fazer por dinheiro.
— Até aí, nenhuma novidade, concorda?
Nyberg sentou-se na cadeira das visitas de Wallander.
— Como tantas outras coisas, não há provas — continuou ele —, mas o doutor Strömberg garante que existem quadrilhas, na América do Sul e na Ásia, que recebem pedidos de determinados órgãos e matam para obtê-los.
Wallander não disse nada.
— Ele falou que essa prática é mais comum do que se imagina. Existem inclusive rumores de que é comum também na Europa do Leste e nos Estados Unidos. Um rim não tem cara, não tem uma identidade individual. Alguém mata uma criança na América do Sul e prolonga a vida de alguém no Ocidente cujos pais têm como pagar e não querem entrar na fila. Os assassinos ganham dinheiro grosso.
— Não deve ser fácil extrair um órgão — disse Wallander. — Significa que deve haver médicos envolvidos.
— E quem é que disse que os médicos são diferentes do resto de nós, quando o assunto é a moral?
— Acho difícil de acreditar.
— Imagino que todo mundo ache a mesma coisa. Justamente por isso é que as quadrilhas conseguem continuar operando na maior tranqüilidade.
Nyberg tirou então um bloco do bolso e folheou algumas páginas.
— O médico me deu o nome de uma jornalista que está atrás do assunto. O nome dela é Lisbeth Norin. Mora em Gothenburg e escreve para diversas revistas científicas voltadas para o público leigo.
Wallander anotou.
— Vamos pensar numa hipótese chocante — falou ele, olhando Nyberg bem no olho. — Vamos supor que Alfred Harderberg saia por aí matando gente e vendendo rins, ou seja lá que órgão for, no mercado negro que, pelo que tudo indica, existe mesmo. E vamos supor que Gustaf Torstensson descobriu, de um jeito ou de outro, essa atividade. E levou a geladeirinha com ele para servir de prova. Vamos pensar nessa hipótese chocante.
Nyberg fitou Wallander de sobrancelha arqueada.
— Está falando sério?
— Claro que não. Só estou propondo uma hipótese chocante.
Nyberg levantou-se para sair.
— Vou ver se consigo saber de onde veio aquele recipiente. Será minha prioridade.
Depois que o perito saiu, Wallander foi até a janela e pensou no que ele havia lhe contado. Disse a si mesmo que era de fato uma hipótese chocante. Harderberg era um homem que contribuía com doações para pesquisas médicas. Sobretudo de doenças que afetavam crianças. Wallander também se lembrava de que ele doara dinheiro para serviços de saúde de vários países africanos e sul-americanos.
A geladeirinha de plástico no carro de Torstensson devia ter um outro significado qualquer, concluiu ele. Ou significado nenhum.
Mesmo assim, não conseguiu resistir e pediu ao Serviço de Informações o número do telefone de Lisbeth Norin. Quando ligou, foi atendido por uma secretária eletrônica. Deixou seu nome e número de telefone.
Wallander gastou o resto do tempo esperando. De tudo o que fez durante o dia, aquilo pelo que esperava — os relatórios de Höglund e de Nyberg — era de longe o mais importante. Ligou para o pai e ficou sabendo que o estúdio tinha sobrevivido ao vendaval. Depois voltou a atenção instável para tudo quanto pudesse descobrir a respeito de Harderberg. Não havia como não ficar fascinado com a brilhante carreira que começara de maneira tão pouco promissora em Vimmerby. Wallander reconhecia que o gênio empreendedor de Harderberg se fizera sentir muito cedo na vida. Aos nove anos, tinha começado a vender cartões de Natal. Também aprendera a usar suas economias para comprar as sobras de anos anteriores. Arrematava os cartões por uma ninharia. O garoto vendeu cartões de Natal por vários anos, ajustando os preços segundo aquilo que o mercado suportava pagar. Obviamente, era um empreendedor nato. Harderberg comprava e vendia o que as outras pessoas produziam. Ele mesmo não criava nada, mas comprava barato e vendia um pouco menos barato. Descobria valor nas coisas pelas quais ninguém dava nada. Aos catorze anos, percebera haver uma demanda por carros velhos. Montara na bicicleta, rodara por Vimmerby inteira, xeretando nos barracões e quintais, e comprara todas as charangas que achava que conseguiria passar adiante. Muitas vezes, os calhambeques eram dados a ele, já que as pessoas em geral eram generosas demais para pensar em explorar um rapazinho inexperiente que rodava pelos distritos do condado, em cima de sua bicicleta, procurando carros velhos. Nesse meio-tempo, ele ia pondo todo o dinheiro economizado de volta no negócio. Para comemorar seu décimo sétimo aniversário, fez uma viagem a Estocolmo. Foi acompanhado por um amigo mais velho, de uma aldeia próxima de Vimmerby, um fantástico ventríloquo. Harderberg arcou com as despesas de ambos e se autonomeou empresário do ventríloquo. Tudo indica que, àquela altura, Harderberg já tivesse se firmado como um sujeito eficiente, de sorriso infatigável, capaz de promover a carreira dos talentos mais promissores. Wallander leu vários artigos sobre Harderberg e o ventríloquo. Ambos tinham aparecido diversas vezes na Bildjournalen, uma revista da qual Wallander achava que se lembrava; e os artigos não se cansavam de repetir como era bem-educado e como se vestia bem aquele jovem, e com que facilidade dispensava sorrisos simpáticos. Havia fotos do ventríloquo, mas não — já naquela época — fotos de seu empresário. Pelo visto, a certa altura resolveu abandonar o dialeto regional da Småland em favor do sotaque usado na capital. Para tanto, contratou um especialista. Depois de uns tempos, o ventríloquo foi mandado de volta para Vimmerby e para o anonimato, e Harderberg se voltou para novos projetos comerciais. Até o final da década de 1960, sua declaração de renda já mostrava que era milionário, mas a grande virada veio em meados da década de 1970. Ele havia passado um tempo no Zimbábue, ou Rodésia do Sul, como era chamado na época o país, e feito alguns investimentos lucrativos em minas de cobre e ouro, junto com um empresário chamado Tiny Rowland. Wallander presumia que a aquisição da plantação de chá se dera nessa época.
No início da década de 1980, Harderberg se casara com uma brasileira chamada Carmen Dulce da Silva, mas o casal havia se divorciado sem ter tido filhos. Durante esse tempo todo, Harderberg permanecera tão invisível quanto possível. Nunca aparecia quando os hospitais que ajudava a construir eram inaugurados, e tampouco enviava alguém para representá-lo. Mas escrevia cartas e mensagens de telex nas quais era a personificação da modéstia, manifestando sua gratidão por toda a bondade que lhe era dirigida. Nunca compareceu a nenhuma das cerimônias em que lhe foi concedido o título de doutor honoris causa.
A vida toda desse homem era uma longa ausência, refletiu Wallander. Até ele surgir do nada na Skåne e se instalar atrás das muralhas do Castelo Farnholm, ninguém tinha a menor idéia de onde ele estava. Vivia em constante movimento, mudando de uma casa para outra, viajando em carros fechados por cortinas e, a partir da década de 1980, em seu jato particular.
No entanto havia algumas poucas exceções. Uma delas parecia ser mais surpreendente e estranha que as demais. Segundo o que Berta Dunér havia dito a Höglund, Harderberg e Gustaf Torstensson haviam se encontrado pela primeira vez durante um almoço no Hotel Continental de Ystad. E Gustaf Torstensson havia dito a ela, depois, que Harderberg era um homem simpático, bronzeado e muito bem-vestido.
Por que ele teria optado por se encontrar abertamente com Torstensson, num restaurante? Wallander não atinava com o motivo. Jornalistas conhecidos, especializados em comércio internacional, tinham de esperar anos a fio para dar uma espiada no homem. Será que isso tinha algum significado? Será que às vezes ele mudava de curso só para criar ainda mais confusão? A incerteza às vezes fornece um ótimo esconderijo, pensou o inspetor. O mundo pode saber que ele existe, mas jamais onde está.
Por volta do meio-dia, Wallander foi para casa almoçar. Estava de volta à uma e meia da tarde. Tinha acabado de se acomodar com suas pastas quando Höglund bateu e entrou.
— Já de volta? — perguntou Wallander, surpreso. — Pensei que estivesse em Ängelholm.
— Não foi preciso muito tempo para conversar com a família de Borman. Infelizmente.
Wallander percebeu, pela voz, que Ann-Britt estava descontente com o resultado da viagem e isso o contagiou na hora. Quer dizer então que não adiantou nada, pensou, sorumbático. Não surgiu nada ali capaz de nos ajudar a derrubar as muralhas do Castelo Farnholm.
Ann-Britt havia se sentado na cadeira das visitas e folheava seu bloco de notas.
— Como vai o doente? — perguntou Wallander.
— As crianças não ficam doentes muito tempo, hoje em dia — disse ela. — Descobri um bocado de coisas sobre o jato de Harderberg, por falar nisso. Ainda bem que o Svedberg me ligou passando isso para eu fazer. A mulher sempre se sente culpada quando não pode comparecer ao trabalho.
— Primeiro os Borman — pediu Wallander. — Vamos começar com eles.
— Na verdade não tem muita coisa para dizer. Não há dúvida de que eles acreditam que foi suicídio. Acho que a viúva ainda não superou o trauma, nem os filhos. Pela primeira vez me dei conta do que significa, para a família, ver um ente querido tirar a própria vida, e sem motivo nenhum.
— Ele não deixou mesmo nada? Nenhuma carta?
— Nada, nada.
— Isso não se encaixa na imagem que temos de Borman. Ele não iria simplesmente largar a bicicleta de qualquer jeito no chão, e não teria se matado sem deixar algum tipo de explicação, um pedido de desculpas.
— Repassei tudo que achei importante. Ele não estava endividado, não jogava e não estava envolvido em nenhum tipo de fraude.
— Quer dizer que você perguntou a respeito disso? — indagou Wallander, atônito.
— Perguntas indiretas podem produzir respostas diretas.
Wallander achou que havia entendido.
— Gente que sabe que a polícia está vindo faz alguns preparativos — disse ele. — É isso?
— Todos eles haviam decidido defender a reputação do pai e marido. Enumeraram todas as boas qualidades dele, sem que eu precisasse perguntar se ele tinha alguma fraqueza.
— A questão agora é saber se disseram a verdade.
— A família não mentiu. Não sei o que Borman fazia ou deixava de fazer na vida íntima, mas não me pareceu o tipo de homem que leva uma vida dupla.
— Continue.
— Foi um tremendo choque para todos eles. E nenhum dos três se acostumou com a idéia, ainda. Minha impressão é que eles passam noite e dia preocupados com o que teria levado o pai e o marido a cometer suicídio. E não são capazes de encontrar uma resposta.
— Você deu alguma indicação de que talvez não tenha sido suicídio?
— Não.
— Ótimo. Continue.
— A única coisa de interesse, para nós, é que Borman tinha contato com Gustaf Torstensson. A família pô-de me confirmar isso. Eles também me disseram por quê. Torstensson e Borman eram membros de uma sociedade voltada ao estudo de ícones. Gustaf Torstensson de vez em quando visitava os Borman. E Lars Borman vinha visitar Torstensson aqui em Ystad, de vez em quando.
— Quer dizer que eram amigos?
— Eu não diria amigos. Acho que não eram tão próximos assim. E isso é que é o interessante, a meu ver.
— Não entendi.
— O que quero dizer é o seguinte. Torstensson e Borman eram dois solitários. Um se casou, o outro era viúvo, mas eram dois solitários, de qualquer modo. Não se encontravam com muita freqüência, e quando se viam era para falar sobre ícones. Agora, você não acha que esses dois homens solitários, apanhados numa situação difícil, poderiam trocar idéias? Eles não tinham nenhum amigo de verdade, mas tinham um ao outro.
— É concebível. Mas não explica as cartas de ameaça que Borman mandou para todo o escritório de advocacia.
— A arquivista, Sonia Lundin, não foi ameaçada — objetou Ann-Britt. — E isso pode ser mais significativo do que imaginamos.
Wallander recostou-se na cadeira e olhou atentamente para a colega.
— Pelo visto você acha que descobriu alguma coisa.
— É só especulação. E provavelmente fantasiosa.
— Ninguém perde nada pensando. Sou todo ouvidos.
— Vamos supor que Borman tenha contado a Torstensson o que aconteceu nas contas do condado. Sobre a fraude. Quer dizer, acho que eles não iriam conversar a respeito de ícones o tempo todo, sem tocar em nenhum outro assunto. Sabemos que Borman estava decepcionado e ofendido por não ter havido uma investigação policial em regra em torno do ocorrido. Vamos supor que Torstensson tivesse mencionado que trabalhava para Harderberg. E também que estivesse a par de uma ligação entre Harderberg e aquela firma fajuta, a STRUFAB. Vamos dar um passo à frente e supor também que Borman via em Torstensson um advogado com as mesmas idéias que ele a respeito de justiça, uma espécie de anjo guardião. Ele pediu ajuda. Torstensson, no entanto, não fez nada. Há diferentes maneiras de interpretar uma carta de ameaça.
— Será mesmo? — indagou Wallander. — Cartas de ameaça são cartas de ameaça.
— Algumas mais sérias que outras. Talvez não devêssemos ter passado por cima do fato de Torstensson não haver levado aquelas cartas a sério. Ele não registrou nada em livro nenhum, não apelou para a polícia nem para a Ordem. Apenas escondeu as cartas. O achado mais dramático às vezes é descobrir que um incidente não foi na verdade nem um pouco dramático. Talvez Lundin não tenha sido mencionada porque Borman não sabia da existência dela.
— Bem pensado. Suas especulações não são piores que as outras. Ao contrário. Mas tem uma coisa que você não explicou. O detalhe mais importante de todos. O assassinato de Borman. Uma cópia carbono da morte de Gustaf Torstensson. Duas execuções disfarçadas.
— Acho que você mesmo pode ter dado a resposta. A morte deles foi semelhante.
Wallander refletiu por alguns momentos.
— Talvez você esteja certa. Supondo que Gustaf Torstensson já houvesse se tornado suspeito aos olhos de Alfred Harderberg. Supondo que estivesse sendo vigiado. Então o que ocorreu com Lars Borman poderia ser idêntico ao que quase ocorreu com a senhora Dunér.
— Exatamente o que eu estava pensando.
Wallander levantou-se.
— Não temos como provar nada disso.
— Não ainda — disse ela.
— Também não temos muito tempo. Desconfio que Per Åkeson vai dar sinal vermelho logo mais e exigir que a gente amplie as investigações se não acontecer algo, e rápido. Digamos que temos um mês para nos concentrar no nosso assim chamado suspeito principal, Alfred Harderberg.
— Talvez seja tempo mais que suficiente.
— Estou tendo um péssimo dia, hoje — disse Wallander. — Minha impressão é de que a investigação toda descarrilou. Por isso estou achando tão bom ouvir você. Detetives cuja determinação começa a falhar não têm mais o que fazer na polícia.
Saíram para buscar um café, mas pararam no corredor.
— O jato particular — disse Wallander. — O que sabemos sobre isso?
— Não muita coisa. O avião é um Grumman Gulf-stream, fabricado em 1974. A base sueca que ele usa é o aeroporto de Sturup. O avião faz suas revisões na Alemanha, em Bremen. Harderberg emprega dois pilotos. Um é austríaco, chama-se Karl Heider. Trabalha para Harderberg já faz um bom tempo e mora em Svedala. O outro piloto ocupa o posto há alguns anos, apenas. Seu nome é Luiz Manshino, nascido em Maurício. Ele tem um apartamento em Malmö.
— De onde é que você tirou todas essas informações?
— Fingi que era repórter de jornal atrás de material para uma grande reportagem sobre os jatos particulares dos altos executivos do país. Falei com alguém da assessoria de imprensa do aeroporto. Acho que o Harderberg não vai suspeitar de nada, mesmo que fique sabendo. Mas é claro que não podia começar a fazer perguntas sobre cadernetas de vôo e registros de partida.
— Os pilotos me interessam — disse Wallander. — Pessoas que viajam tanto e passam tanto tempo juntas devem ter um relacionamento especial. Sabem um bocado umas sobre as outras. Eles não precisam ter alguma espécie de comissário de bordo? Por razões de segurança?
— Evidentemente, não.
— Temos que tentar entrar em contato com os pilotos. Encontrar alguma forma de obter a documentação de vôo.
— Posso continuar investigando isso. Prometo ser discreta.
— Vá em frente. Mas ande rápido. Nosso tempo é precioso.
Naquela mesma tarde, Wallander convocou uma reunião da equipe de investigação, sem a presença de Björk. Todos eles se espremeram na sala do inspetor, já que a de reunião estava ocupada por um encontro de chefes de polícia de todos os distritos, presidida por Björk. Depois de ouvirem o que Ann-Britt Höglund tinha a dizer a respeito da entrevista com a família de Borman, Wallander relatou sua conversa com Harderberg no Castelo Farnholm. Todos ouviram atentamente, tentando encontrar uma pista, alguma coisa que o próprio inspetor tivesse deixado passar.
— Minha impressão de que os dois homicídios, e os outros incidentes todos também, estão ligados a Harderberg está mais forte que nunca — concluiu Wallander. — Se vocês concordarem, continuaremos seguindo essa linha. Mas não podemos ficar dependentes só das minhas impressões. Temos que admitir que ainda não solucionamos nada. Podemos estar errados.
— Mas não temos alternativa — disse Svedberg.
— Sempre existe a possibilidade de sairmos atrás de um louco varrido — disse Martinson. — Um louco que não existe.
— A coisa toda foi executada com muito sangue-frio — disse Höglund. — Tudo muito bem planejado. Nada sugere que tenha sido obra de um louco.
— Temos que continuar tomando todas as precauções possíveis — disse Wallander. — Alguém está de olho em nós, seja Harderberg ou não.
— É uma pena que não dê para a gente contar com o Kurt Ström — disse Svedberg. — Precisávamos de um contato dentro do castelo. Alguém que pudesse se movimentar entre todas aquelas secretárias sem chamar a atenção.
— Sem dúvida — concordou Wallander. — Melhor ainda seria encontrarmos alguém que trabalhou para Harderberg até recentemente. Sobretudo se for alguém ressentido.
— O pessoal da divisão de fraudes insiste que só umas poucas pessoas têm acesso direto a Harderberg — interveio Martinson. — E todas estão com ele há muitos anos. As secretárias não são nada importantes. Não acredito que saibam muito do que se passa lá dentro.
— Ainda assim, deveríamos ter alguém infiltrado lá — insistiu Svedberg. — Alguém que pudesse nos contar sobre a rotina diária.
A reunião começava a empacar.
— Tenho uma proposta a fazer — disse Wallander. — Vamos nos reunir em algum lugar diferente, amanhã. Precisamos de paz e sossego para examinar o material todo que temos. Precisamos estabelecer em que pé estamos, uma vez mais. Precisamos usar nosso tempo com eficiência.
— Nesta época do ano, o Hotel Continental vive praticamente às moscas — sugeriu Martinson. — Imagino que tenham uma sala de reunião para alugar por uma ninharia.
— Gostei da idéia — disse Wallander. — O simbolismo me atrai. Foi ali que Gustaf Torstensson se encontrou com Harderberg pela primeira vez.
Eles se reuniram no térreo do Hotel Continental. As discussões prosseguiram durante o almoço e em cada um dos intervalos de café. À noite, concordaram em repetir a dose no dia seguinte. Alguém ligou para Björk e o chefe deu permissão. A equipe se isolou do mundo exterior e, uma vez mais, examinou todo o material que tinha. Estavam todos conscientes de que o tempo ia se esgotando rápido. Estavam no dia 19 de novembro, uma sexta-feira.
Era final de tarde, já, quando finalmente encerraram os trabalhos. No entender de Wallander, Ann-Britt Höglund tinha sido a que melhor resumira o estado das investigações.
— Pelo visto temos todos os dados na mão — disse ela —, mas não estamos conseguindo ver como eles se encaixam. Se a pessoa que está por trás disso, controlando tudo, for Harderberg, ele está operando com muita habilidade. Seja para que lado for que a gente se vire, ele muda a posição das traves e temos que começar do princípio de novo.
A exaustão era geral quando deixaram o hotel. Mas aquele não era um exército vencido batendo em retirada. Wallander sabia que algo de muito importante acontecera. Todos tinham dividido o quanto sabiam com todos os demais. Ninguém precisava se sentir incerto a respeito das idéias ou dúvidas dos colegas.
— Vamos fazer uma pausa no fim de semana — propôs Wallander. — Precisamos de um descanso. Temos que estar em forma para começar tudo de novo na segunda.
Wallander passou o sábado com o pai, em Löderup. Conseguiu consertar o telhado, depois passou horas sentado na cozinha com ele, jogando baralho. Durante o jantar, ficou muito claro que Gertrud estava de fato gostando de sua vida de casada. Antes de ir embora, o inspetor perguntou a ela se conhecia o Castelo Farnholm.
— Antigamente, diziam que era assombrado. Mas vai ver as pessoas falam isso de qualquer castelo.
Era meia-noite quando o inspetor entrou em casa. A temperatura estava abaixo de zero e ele não gostava da idéia de o inverno estar chegando.
Dormiu até tarde, no domingo de manhã. Depois saiu para fazer uma caminhada e inspecionou os barcos no porto. Passou a tarde limpando o apartamento. Mais outro domingo desperdiçado com questões improdutivas.
Ao acordar, na manhã da segunda-feira, 22 de novembro, Wallander estava com dor de cabeça. Ficou surpreso, já que não tomara uma gota de álcool na noite anterior. Depois se deu conta de que não dormira direito. Tivera um pesadelo atrás do outro. O pai havia morrido de repente, mas quando foi vê-lo, no caixão, não ousou olhar, porque sabia que, na verdade, quem estava ali dentro era sua filha Linda.
Levantou com uma certa relutância e dissolveu dois analgésicos em meio copo de água. A temperatura continuava abaixo de zero. Enquanto esperava a água do café ferver, refletiu que os pesadelos eram um prólogo para a reunião que ele e Björk teriam com Åkeson, naquela manhã mesmo. Wallander sabia que seria uma conversa delicada. Claro que o promotor iria continuar dando luz verde para que prosseguissem se concentrando em Harderberg, mas a verdade é que os resultados obtidos até o momento tinham sido pífios. Eles não haviam conseguido fazer com que o material apontasse numa direção específica. A investigação estava à deriva. Åkeson iria querer saber, e com toda a razão, até quando os investigadores conseguiriam se suster numa perna só, por assim dizer.
De caneca na mão, Wallander examinou o calendário na parede. Pouco mais de um mês, até o Natal. Diria que precisavam desse tanto de tempo. Se até lá não tivessem chegado um pouco mais perto da solução do caso, teria de aceitar que era preciso começar a investigar outras pistas no começo do ano.
Um mês, pensou. Algo tem de acontecer, e rápido.
Foi interrompido pelo toque do telefone.
— Você não estava dormindo, espero? — Era Höglund.
— Estou tomando café.
— Você assina o Ystad Allehanda?
— Claro.
— E já deu uma olhada nele, hoje?
— Ainda nem fui pegar.
— Então vá — disse ela. — E veja a página de anúncios de emprego.
Curioso para saber o que estava acontecendo, Wallander foi até o hall e pegou o jornal. De telefone na mão, começou a virar as páginas.
— O que é que eu devo procurar?
— Você vai ver. Até mais.
Ann-Britt desligou. E Wallander viu na hora. O anúncio de uma vaga para moça interessada em trabalhar co-mo cavalariça no Castelo Farnholm. Para início imediato. Por isso é que ela tinha sido meio enigmática ao telefone. Não queria mencionar o nome do castelo.
Essa poderia ser a chance deles. Assim que terminasse a reunião com Åkeson, daria uma ligada para seu amigo Sten Widén.
Depois que Björk e Wallander se instalaram na sala de Åkeson, o promotor avisou a recepção que não queria ser incomodado por nenhum telefonema. Estava resfriado e assoava o nariz com freqüência.
— Na verdade eu deveria estar em casa, de cama — disse —, mas vamos fazer esta reunião conforme o combinado. — Antes de continuar, apontou para uma pilha de pastas. — Vocês não vão ficar surpresos de me ouvir dizer que, mesmo com a maior boa vontade deste mundo, não dá para classificar os resultados obtidos até agora de satisfatórios. Um punhado de dicas extremamente vagas apontando na direção de Alfred Harderberg é tudo o que temos.
— Precisamos de mais tempo — disse Wallander. — Esta é uma investigação complicadíssima. Nós sabíamos que seria, desde o começo. E ele é a melhor pista que temos.
— Se é que podemos chamar de pista — interrompeu Åkeson. — Você defendeu a idéia de que deveríamos nos concentrar em Harderberg, mas até agora não fizemos o menor avanço. Depois de examinar todo o material coligido, me vejo forçado a concluir que estamos apenas marcando passo. A divisão de fraudes também não foi capaz de descobrir nenhuma irregularidade financeira. Harderberg parece ser um cidadão de honradez inquestionável. Não temos um único elemento que estabeleça uma ligação dele, ou dos negócios dele, de forma direta ou indireta, com o assassinato de Gustaf Torstensson e de seu filho.
— Tempo — pediu Wallander, de novo. — É disso que precisamos. Também podemos virar a coisa toda de cabeça para baixo e dizer que, assim que pudermos excluir Harderberg de modo definitivo, teremos muito melhores condições de abordar o caso de um ângulo diferente.
Björk não abriu a boca. Åkeson olhou firme para Wallander.
— Na verdade, o que eu deveria fazer era suspender isso tudo agora mesmo. E você sabe disso. Portanto, me convença de que devemos continuar concentrando todos os nossos recursos em Harderberg por um pouco mais de tempo.
— Os argumentos estão nessa papelada — disse Wallander. — Continuo tendo certeza absoluta de que estamos na trilha certa. A equipe toda concorda comigo, aliás.
— E eu continuou achando que deveríamos pensar em dividir a equipe e designar alguns policiais para trabalhar sob um outro ângulo — disse Åkeson.
— Não temos outro ângulo — retrucou Wallander. — Quem é que forja um acidente para encobrir um homicídio e por quê? Que motivos levam alguém a matar a tiros um advogado em seu próprio escritório? Quem é que planta uma mina no quintal de uma senhora de idade? Quem tem interesse em explodir o meu carro? Vai me dizer que agora devemos passar a supor que foi um louco que, sem motivo nenhum, resolveu que seria divertido matar todo mundo que trabalha num escritório de advocacia de Ystad e, de quebra, enquanto está com a mão na massa, um ou dois policiais?
— Vocês ainda não examinaram todas as pastas dos clientes dos dois advogados — disse Åkeson. — Tem um bocado de coisas que nós ainda não sabemos.
— Continuo achando que precisamos de mais tempo — repetiu Wallander. — Não de tempo ilimitado. Mas de mais tempo.
— Dou mais duas semanas. Se até lá vocês não aparecerem com algo um pouco mais convincente, adotaremos uma nova abordagem.
— Duas semanas não bastam — disse Wallander.
— Posso esticar para três — aceitou o promotor, com um suspiro.
— Vamos pegar o Natal como data limite — sugeriu Wallander. — Se surgir algo, antes disso, que indique que devemos mudar de rumo, podemos fazer isso na hora. Mas vamos continuar na trilha que estamos seguindo até o Natal.
Åkeson olhou para Björk.
— O que você acha?
— Estou preocupado — disse Björk. — Também acho que não estamos indo a parte alguma. E não é segredo para ninguém que nunca achei possível que o doutor Harderberg pudesse ter algo a ver com isso tudo.
Wallander sentiu ímpetos de protestar, mas resistiu à tentação. Se não houvesse outro jeito, teria de aceitar as três semanas.
O promotor virou-se para a pilha de papéis sobre sua mesa.
— Que história é essa de transporte de órgãos? Li aqui que vocês encontraram um recipiente para transporte de órgãos humanos dentro do carro de Gustaf Torstensson. É verdade?
Wallander contou o que Nyberg tinha descoberto e o que eles haviam conseguido saber depois.
— Avanca — disse Åkeson. — Será que é uma empresa com ações em bolsa? Nunca ouvi falar dela.
— É uma empresa pequena — explicou Wallander. — De uma família chamada Roman. Eles começaram por volta de 1930, importando cadeiras de rodas.
— Em outras palavras, a empresa não é de Harderberg — disse Åkeson.
— Ainda não sabemos se é ou não.
Åkeson olhou o inspetor de alto a baixo.
— Como é que uma empresa que pertence a uma família chamada Roman pode ser de Harderberg também? Você vai ter que me explicar isso.
— Explico quando puder — disse Wallander. — Mas o que sei por enquanto, com base no que apurei neste último mês, é que o verdadeiro dono de uma empresa pode ser alguém muito diferente daquilo que está escrito no logo da companhia.
Åkeson sacudiu a cabeça.
— Você é osso duro, mesmo. — Depois de consultar sua agenda de mesa, acrescentou: — Digamos então que o prazo fica sendo segunda-feira, 20 de dezembro. A menos que haja algum desdobramento importante antes disso. Mas não vou lhe dar nem mais um dia, se a investigação não tiver produzido resultados significativos até lá.
— Vamos aproveitar o tempo ao máximo — disse Wallander. — Espero que você tenha percebido que estamos nos arrebentando de tanto trabalhar.
— Eu sei. Mas o promotor sou eu, e tenho deveres a cumprir.
A reunião estava terminada. Björk e Wallander voltaram para as respectivas salas.
— Foi bondade dele ter dado o tempo que ele deu a você — disse Björk ao se separarem, no corredor.
— Dado tempo para mim? Você quis dizer para nós, certo?
— Você sabe perfeitamente bem o que eu quis dizer. Não vamos perder tempo discutindo esse assunto.
— Concordo.
Ao entrar em sua sala e fechar a porta, o inspetor se sentia perdido. Alguém havia posto uma foto do jato de Harderberg, parado num hangar do aeroporto de Sturup, sobre sua mesa. Wallander deu uma espiada na foto, depois empurrou-a para o lado.
Perdi o tino, pensou ele. A investigação toda emperrou. Eu devia passar este caso para outro colega. Não tenho capacidade para lidar com a situação.
Sentou-se e permaneceu imóvel. Suas lembranças voltaram para Riga e para Baiba. Quando não agüentou mais ficar sem fazer nada, escreveu uma carta convidando-a para passar o Natal e o Ano Novo em Ystad. Para garantir que a carta não ficaria ali largada nem seria rasgada em pedacinhos, colocou-a dentro de um envelope e, sem mais delongas, entregou-a para Ebba, na recepção.
— Será que dá para você pôr isso no correio para mim ainda hoje? É urgente urgentíssimo.
— Pode deixar que cuido disso eu mesma — disse ela, com um sorriso. — Por falar nisso, você parece esgotado. Tem dormido o suficiente?
— Não tanto quanto eu precisaria.
— Quem vai lhe agradecer se você se matar de tanto trabalhar? Eu é que não vou ser.
Wallander voltou para sua sala.
Um mês, pensou ele. Um mês para apagar o sorriso da cara de Harderberg. Duvidava que fosse possível.
Forçou-se a trabalhar, apesar dos pesares.
Depois ligou para Widén.
Também resolveu sair para comprar algumas fitas de ópera. Sentia falta de sua música.
13
Por volta do meio-dia da segunda-feira, 22 de novembro, Kurt Wallander entrou no carro reserva da polícia, que continuava usando para substituir o seu, do qual só restavam destroços carbonizados, e deixou Ystad pela zona oeste. Estava indo para os estábulos que Sten Widén administrava, nas proximidades das ruínas do Castelo Stjärnsund. Assim que chegou ao topo do morro, ainda nas imediações da cidade, encostou, desligou o motor e contemplou o mar. Lá bem ao longe, divisou os vagos contornos de um cargueiro singrando o Báltico. De repente, sem mais nem menos, foi acometido por uma espécie de tontura. Ficou apavorado, achando que estivesse tendo um ataque cardíaco, mas logo percebeu que não, que a sensação era de quase desmaio. Fechou os olhos, recostou a cabeça no banco e tentou não pensar. Depois de um minuto, um minuto e meio, abriu os olhos. O mar continuava lá e o cargueiro também, rumando para o leste.
Estou cansado, pensou. Apesar de ter descansado o fim de semana todo. A sensação é de exaustão profunda, muito profunda, e eu não conheço nem a metade das causas desse estado; aliás, é muito provável que não haja nada que eu possa fazer a respeito. Não agora que resolvi voltar ao trabalho. Aquela praia na Jutlândia não existe mais, não para mim. Eu renunciei a ela de livre e espontânea vontade.
Difícil dizer quanto tempo passou lá no alto, mas, quando começou a sentir frio, deu a partida e saiu. Teria preferido ir para casa, para a segurança de seu apartamento, mas se forçou a ir adiante. Virou na direção de Stjärnsund. Cerca de um quilômetro depois, a estrada piorava sensivelmente. Como todas as outras vezes em que havia visitado Widén, o inspetor se perguntou como é que os reboques usados no transporte de cavalos conseguiam passar por aquele trecho tão mal conservado de estrada.
Uma subida muito íngreme levava até o extenso haras, com fileiras e mais fileiras de estábulos. Ele entrou no pátio e desligou o motor. Um bando de corvos crocitava numa árvore ali perto.
Saltou e se dirigiu para a construção de tijolinho aparente que Widén usava como casa e escritório. A porta estava entreaberta e ele escutou Widén falando ao telefone. Bateu e entrou. Como de hábito, o lugar estava uma bagunça, e tudo exalava um forte cheiro de cavalo. Dois gatos dormiam na cama desarrumada. Wallander não entendia como seu amigo podia continuar vivendo daquele jeito, ano após ano.
O homem que balançou a cabeça para ele, sem interromper a ligação, era magro, descabelado, com uma mancha vermelha de eczema no queixo. Não havia mudado quase nada, em quinze anos. Naqueles tempos, os dois se viam bastante. Widén sonhava em se tornar cantor de ópera. Tinha uma excelente voz de tenor e eles haviam planejado um futuro no qual Wallander agiria co-mo empresário de Widén. No entanto, o sonho ruíra por terra, ou melhor, fora perdendo as cores; Wallander se tornara policial e Widén herdara o negócio do pai, treinamento de cavalos. Os dois amigos foram se separando, sem que soubessem direito por que, e só no início da década de 1990, devido a um complicado e longo caso de homicídio, retomaram o contato.
Houve uma época, lembrou-se Wallander, em que ele era meu melhor amigo. Nunca mais tive outro. Talvez ele acabe sendo o melhor amigo que já tive na vida.
Widén terminou sua ligação e bateu o fone no gancho.
— Que filho da mãe! — resmungou, bravo.
— Dono de algum cavalo?
— Um vigarista. Comprei um cavalo dele, faz um mês. Ele tem uma estrebaria em Höör. Eu ia buscar o animal, mas ele mudou de idéia. O filho da mãe.
— Se você já pagou pelo cavalo, não há muito que ele possa fazer para anular a venda — disse Wallander.
— Só deixei um depósito. Mas vou buscar aquele cavalo de qualquer jeito, não quero nem saber.
Widén desapareceu na cozinha. Quando tornou a aparecer, Wallander sentiu cheiro de álcool no hálito dele.
— Você sempre aparece quando não estou esperando. Quer um café?
Wallander aceitou a oferta e foram os dois para a cozinha. Widén empurrou para o lado uma montanha de velhos programas de corrida, deixando livre um pequeno quadrado da toalha de plástico que cobria a mesa.
— E que tal um gole de algo um pouco mais forte? — perguntou, enquanto fazia o café.
— Estou dirigindo — respondeu Wallander. — E como é que vão as coisas com os cavalos?
— O ano não foi lá grande coisa. E o ano que vem não vai ser melhor que este. Não tem dinheiro na praça. E há menos cavalos para negociar. Vivo tendo que aumentar as taxas de treinamento para equilibrar as contas. O que eu realmente gostaria de fazer era encerrar o negócio e vender a fazenda, mas os preços estão baixos demais. Em outras palavras, estou encalacrado até o pescoço na lama da Skåne.
Depois de servir o café, Widén sentou-se. Wallander reparou que a mão do amigo tremia ao pegar a xícara. Ele está a caminho de se matar de tanto beber, pensou. Nunca tinha visto a mão dele tremer daquele jeito em pleno dia.
— E você, como andam as coisas para o seu lado? O que anda fazendo? Ainda está de licença médica?
— Não, voltei a trabalhar. Um policial outra vez.
Widén parecia surpreso.
— Eu não imaginava.
— Não imaginava o quê?
— Que você fosse voltar.
— O que mais eu poderia fazer da vida?
— Você andava falando em arrumar emprego numa empresa de segurança. Ou se tornar chefe de segurança de alguma firma.
— Nunca vou ser outra coisa, a não ser um policial.
— Não — concordou Widén. — E desconfio que nunca vou me livrar das estrebarias. Aquele cavalo que comprei em Höör é um ótimo animal, falando nisso. Filho da Queen Blue. Uma linhagem perfeita.
Uma jovem passou diante da janela, a cavalo.
— Quantos empregados você tem?
— Três. Mas não tenho condições para bancar mais que dois. E na verdade precisaria de quatro.
— É por esse motivo que estou aqui.
— Não vai me dizer que está querendo emprego de cavalariço. Acho que você não possui as qualificações necessárias.
— Tenho certeza que não. Mas me deixe explicar.
Wallander não via motivo para não revelar suas suspeitas em relação a Alfred Harderberg; sabia que Widén jamais diria uma palavra a ninguém.
— A idéia não é minha — disse Wallander. — Nós agora temos uma mulher na equipe da delegacia de Ystad. Ela é boa. Foi ela quem viu o anúncio e me falou a respeito.
— Está sugerindo que eu mande uma das minhas garotas para o Castelo Farnholm, é isso? — indagou Widén. — Como uma espécie de espiã? Você enlouqueceu de vez.
— Assassinato é assassinato. O castelo é impenetrável. Esse anúncio nos dá uma oportunidade de espiar o que se passa lá dentro. Você mesmo disse que tem uma funcionária a mais do que devia.
— O que eu disse foi que tenho uma a menos.
— Ela não pode ser burra — continuou Wallander. — Tem que estar de olhos bem abertos e reparar nas coisas.
— Tenho a garota ideal para isso — disse Widén. — Ela é esperta e não se assusta com nada. Mas tem um problema.
— Qual é?
— Ela não gosta da polícia.
— E por que não?
— Você sabe que em geral contrato moças que saíram meio fora dos trilhos. Com o tempo, fui percebendo que elas são de fato muito boas no que fazem. E agora coopero com uma agência de empregos de Malmö que cuida só de jovens. Estou com uma moça de lá, no momento, de dezenove anos. O nome dela é Sofia. Foi ela que passou agora há pouco aqui em frente, cavalgando.
— Não precisamos mencionar a polícia — disse Wallander. — Podemos inventar um motivo qualquer para você querer ficar de olho no que se passa lá no castelo. E aí você me transmite o que ela lhe contar.
— Só se não houver outra saída. Eu preferia não me envolver. De resto, tudo bem, não precisamos dizer a ela que você é da polícia. Você pode ser apenas alguém que quer saber o que está rolando por lá. Se eu disser que você é legal, ela vai acreditar.
— Podemos tentar — disse Wallander.
— Ela não conseguiu o emprego ainda — disse Widén. — Imagino que deve haver filas de cavalariças interessadas em trabalhar no castelo.
— Então vá buscar a garota. E não diga a ela o meu nome.
— E eu chamo você do quê, então?
Wallander pensou um pouco.
— Roger Lundin.
— Quem é esse?
— De agora em diante, eu.
Widén abanou a cabeça.
— Tomara que dê certo. Vou buscá-la.
Sofia era uma jovem magra, de pernas compridas, com uma cabeleira rebelde. Entrou na cozinha, fez um gesto casual de cabeça na direção de Wallander, depois sentou-se e tomou o café que havia sobrado na xícara de Widén. Devia ser uma das freqüentadoras da cama do amigo, calculou o inspetor. Na verdade, ele já tinha conhecimento, fazia um bom tempo, de que Widén costumava ter casos com as garotas que trabalhavam para ele.
— Você sabe que estou tendo que cortar gastos por aqui — disse Widén para a jovem. — Mas fiquei sabendo de uma vaga que talvez lhe agrade, num castelo nas proximidades de Österlen. Se ficar nesse emprego, ou, melhor dizendo, se conseguir esse emprego, quando as coisas melhorarem por aqui, mais tarde, eu prometo trazer você de volta.
— Que tipo de cavalo eles têm lá?
Widén olhou para Wallander, que encolheu os ombros, sem saber o que responder.
— Não imagino que sejam da raça Ardennes, mas que importância tem que tipo de cavalo eles possuem por lá? Vai ser só um negócio temporário. Além do mais, estaria dando uma mãozinha aqui para o Roger, que é amigo meu. Ele gostaria que você ficasse de olho no que anda rolando lá pelo castelo. Nada de muito especial, é só ficar atenta.
— E o salário, é bom?
— Não faço idéia — admitiu Wallander.
— É um castelo, tenha a santa paciência — disse Widén. — Vê se pára de encrencar.
Widén foi até a sala e voltou com o jornal. Wallander encontrou o anúncio.
— Tem entrevista — disse. — Os candidatos devem ligar primeiro.
— A gente arranja isso — disse Widén. — Eu levo você de carro até lá, hoje à noite.
De repente, a moça ergueu a vista da toalha de mesa de plástico e fitou Wallander bem no olho.
— Que tipo de cavalo eles têm lá? — perguntou ela de novo.
— Desculpe, mas não faço a menor idéia — respondeu Wallander.
Ela inclinou a cabeça para um lado.
— Eu acho que você é da polícia.
— E por que você pensaria uma coisa dessas? — indagou Wallander, surpreso.
— Dá para sentir.
Widén interrompeu-a.
— O nome dele é Roger. É tudo o que você precisa saber. Agora chega de perguntas cretinas. E tente se fazer passar por uma pessoa relativamente decente, quando a gente for lá hoje. Lave a cabeça, por exemplo. E não se esqueça que a Winter Moon precisa de uma atadura na perna esquerda traseira.
A jovem saiu da cozinha sem dizer mais nada.
— Você viu com seus próprios olhos — disse Widén. — Ela não é nenhuma boba.
— Obrigado pela ajuda. Vamos torcer para que consiga o emprego.
— Eu vou levá-la de carro até lá. É o que posso fazer.
— Ligue para minha casa assim que tiver alguma notícia — pediu Wallander. — Preciso saber se ela conseguiu o emprego.
Foram juntos até o carro do inspetor.
— Eu às vezes me sinto de saco tão cheio disto tudo — disse Widén.
— Seria bacana se a gente pudesse voltar no tempo outra vez — falou Wallander.
— Às vezes me pergunto, então quer dizer que era só isso? A vida, quero dizer. Um punhado de árias, um monte de cavalos de terceira categoria e problemas constantes de dinheiro.
— Pára com isso. Afinal, não é tão ruim assim.
— Me convença que não.
— Já temos uma razão para nos encontrar mais vezes. Podemos conversar a respeito.
— Ela ainda não conseguiu o emprego.
— Eu sei. Me ligue hoje à noite.
Wallander entrou no carro, cumprimentou Widén com um meneio de cabeça e partiu. Ainda era cedo. Resolveu fazer uma outra visita.
Meia hora mais tarde, estacionou o carro numa zona proibida, na ruazinha estreita que havia atrás do Hotel Continental, e andou até a casa cor-de-rosa de Berta Dunér. Ficou surpreso ao ver que não havia nem sinal de viatura nas proximidades. O que teria acontecido com a proteção que ela deveria receber? Wallander se irritou e ficou preocupado ao mesmo tempo. Tocou a campainha. Iria falar com Björk assim que voltasse para a delegacia.
A porta abriu só uma frestinha, mas, quando Berta Dunér viu quem era, sua felicidade parecia genuína.
— Desculpe não ter ligado antes de vir — disse ele.
— É sempre um prazer receber o senhor, inspetor Wallander.
Ele aceitou a oferta que ela lhe fez de uma xícara de café, embora soubesse que já tinha tomado café demais para um único dia. Enquanto ela se ocupava na cozinha, o inspetor deu mais uma olhada no quintal. O gramado fora refeito. Ele se perguntou se por acaso ela estaria esperando que a polícia lhe fornecesse uma nova lista telefônica.
Nessa investigação, tudo parece ter acontecido há um tempão, refletiu ele, no entanto faz só alguns dias que eu joguei aquela lista na direção do gramado e vi o quintal explodir.
Ela trouxe o café e ele se sentou no sofá florido.
— Não vi nenhum carro da polícia quando cheguei — disse o inspetor.
— Às vezes eles aparecem, às vezes somem.
— Vou ver o que está acontecendo — Wallander prometeu.
— Será que é necessário isso? O senhor acha mesmo que tem alguém querendo me fazer mal?
— A senhora sabe muito bem o que aconteceu com seus patrões. Não acredito que vá acontecer mais nada, mas temos que tomar todas as precauções possíveis.
— O que eu gostaria mesmo é de entender.
— É por esse motivo que estou aqui. A senhora já teve um tempinho para refletir melhor. Muitas vezes a pessoa precisa deixar passar um tempo até que as coisas se esclareçam, deixar que a memória esquente, por assim dizer.
— Tenho tentado. Dia e noite.
— Vamos recuar alguns anos. Até a época em que Gustaf Torstensson começou a trabalhar para Alfred Harderberg. A senhora alguma vez o viu?
— Não, nunca.
— Falou com ele por telefone?
— Nem mesmo isso. Era sempre uma das secretárias que ligava para nós.
— Deve ter sido sensacional para o escritório conseguir um cliente tão importante como ele.
— Claro que foi. Começamos a ganhar muito mais dinheiro que antes. Deu para reformar o prédio inteiro.
— Mesmo que a senhora nunca tenha visto ou falado com Harderberg, deve ter formado uma idéia de como ele era. Sei que tem uma excelente memória.
Ela pensou, antes de responder. Wallander ficou vendo uma pega saltitar pelo quintal, enquanto esperava.
— Era tudo sempre muito urgente — disse ela por fim. — Toda vez que ele ligava para o doutor Torstensson, todos os outros assuntos tinham que ser postos de lado.
— O doutor Torstensson nunca comentou nada a respeito dele? Nunca lhe contou nada sobre suas visitas ao castelo?
— Eu acho que ele ficou muito impressionado. E também com muito receio de cometer algum erro. Isso era de extrema importância. Lembro-me dele dizendo várias vezes que os erros eram proibidos.
— O que a senhora acha que ele queria dizer com isso?
— Que, se houvesse algum erro, Harderberg iria procurar um outro escritório de advocacia.
— A senhora não sentia curiosidade de saber um pouco mais sobre Harderberg e sobre o castelo?
— Eu me perguntava como seriam um e outro, claro. Mas ele nunca me disse muita coisa. Ficou impressionado com aquilo tudo, mas sempre foi muito reticente. Uma vez falou que a Suécia deveria agradecer por tudo que o doutor Harderberg estava fazendo.
— Ele nunca fez nenhum comentário negativo a respeito de Harderberg?
— Na verdade, fez sim. Lembro-me bem porque foi só essa vez.
— O que foi que Torstensson disse?
— Eu me lembro de cada palavra, exatamente. Ele me disse: “O doutor Harderberg tem um senso de humor macabro”.
— O que acha que ele quis dizer com isso?
— Não sei. Não perguntei e ele não explicou.
— Quando foi isso?
— Cerca de um ano atrás.
— Em que contexto ele disse isso?
— Tinha acabado de voltar do Castelo Farnholm. De uma das reuniões regulares que mantinham. Não havia nada de extraordinário, que eu me lembre.
Wallander percebeu que não iria muito longe seguindo aquela trilha.
— Então vamos falar de um assunto bem diferente. Quando um advogado trabalha, tem sempre muito papel envolvido. Mas, pelo que disseram os representantes da Ordem, há pouquíssima coisa no arquivo relacionada com o trabalho que Gustaf Torstensson realizava para Harderberg.
— Eu já esperava por essa pergunta. Havia uma série de procedimentos muito especiais a serem seguidos em tudo que dissesse respeito ao doutor Harderberg. Os únicos documentos que guardávamos eram aqueles que um advogado considera essenciais. Tínhamos instruções rígidas para não tirar cópia nem guardar nada que não fosse absolutamente necessário. O doutor Torstensson levava todos os documentos com os quais trabalhava de volta para o Castelo Farnholm. É por isso que há tão pouca coisa nos nossos arquivos.
— E isso não lhe parecia um tanto estranho?
— Meu chefe dizia que era porque os assuntos do doutor Harderberg eram confidenciais ao extremo. E eu não tinha motivos para não aceitar essa explicação, desde que nenhuma regra fosse violada.
— Pelo que sei, o doutor Torstensson fornecia consultoria financeira — disse Wallander. — Lembra-se de algum detalhe a respeito?
— Infelizmente, não. Havia acordos complicados entre bancos e empresas nos quatro cantos do mundo. Em geral era uma das secretárias do doutor Harderberg quem batia os documentos. Era muito raro que me pedissem para bater alguma coisa que o doutor Torstensson fosse levar para o doutor Harderberg. Ele próprio costumava bater uma porção de coisas.
— Mas para os outros clientes ele não fazia o mesmo?
— Nunca.
— Como a senhora explica isso?
— Eu deduzi que eram coisas tão confidenciais que nem mesmo eu tinha permissão de ver — disse ela, com franqueza.
Wallander recusou mais café.
— Será que se lembra, por acaso, de ter visto qualquer menção a uma empresa chamada Avanca, em algum documento que passou pelas suas mãos?
Dava para notar que ela estava se esforçando para lembrar.
— Não. É possível que eu até tenha visto, mas não me lembro.
— Só mais uma pergunta. A senhora sabia sobre as cartas de ameaça que o escritório recebeu?
— Gustaf Torstensson me mostrou. Mas disse que não havia o menor motivo para preocupação. Foi por isso que elas não foram arquivadas. Pensei que ele tivesse jogado as cartas fora.
— A senhora sabia que o homem que mandou as cartas, Lars Borman, era amigo de Gustaf Torstensson?
— Não, e me surpreende muito saber disso.
— Eles se conheceram através de um clube ou sociedade de colecionadores de ícones.
— Sei que clube é esse, mas não sabia que o autor daquelas cartas também era membro.
Wallander largou sua xícara de café.
— Não vou incomodá-la mais, por hoje — disse, pondo-se de pé.
Ela continuou sentada, olhando para ele.
— O senhor não tem mesmo nenhuma novidade para me contar? — perguntou.
— Ainda não sabemos quem cometeu os crimes. Assim como também não sabemos por quê. Quando soubermos isso, saberemos por que alguém resolveu plantar uma mina no seu quintal.
Berta Dunér levantou-se e pôs a mão no braço do inspetor.
— O senhor tem que pegá-los — falou.
— É verdade. Mas talvez leve um tempo.
— Preciso saber o que houve, antes de morrer.
— Assim que houver alguma coisa para lhe dizer, entro em contato na hora — disse ele, ciente de que isso não devia ter soado muito satisfatório aos ouvidos dela.
Wallander voltou para a delegacia e foi informado de que Björk estava em Malmö. De modo que foi até a sala de Svedberg e pediu a ele para descobrir por que a casa da sra. Dunér não estava recebendo a devida proteção.
— Você acha mesmo que ela corre algum risco? — perguntou Svedberg.
— Eu não acho nada. Mas já aconteceram coisas demais neste caso.
Svedberg entregou então um recado ao inspetor.
— Uma mulher chamada Lisbeth Norin ligou para você. Pode ligar para ela nesse número. Até as cinco da tarde.
Era um número de Malmö, não de Gothenburg. Wallander foi até sua sala e discou. Atendeu um senhor de idade. Depois de alguns momentos, Lisbeth Norin pegou o telefone e Wallander se apresentou.
— Eu vim passar alguns dias em Malmö — disse ela. — Vim visitar meu pai, que fraturou o fêmur. Fui conferir os recados que havia na minha secretária eletrônica e recebi o seu, me procurando.
— Eu agradeceria muito se pudéssemos conversar um pouco. De preferência pessoalmente, não por telefone.
— Do que se trata?
— Tenho algumas perguntas para lhe fazer relacionadas com um caso que estamos investigando no momento. Quem me deu seu nome foi o doutor Strömberg, de Lund.
— Tenho um tempo livre amanhã. Mas vamos ter que nos ver aqui em Malmö.
— Eu vou até aí. Tudo bem eu chegar lá pelas dez horas?
— Para mim está ótimo.
Ela lhe deu um endereço na região central da cidade.
Wallander se perguntou como é que um senhor de idade com o fêmur quebrado poderia atender o telefone. Depois se deu conta de que estava morto de fome. Já era quase final de tarde. Resolveu trabalhar em casa. Havia um monte de material a respeito dos negócios de Harderberg que ainda não tinha lido. Encontrou um saco plástico numa gaveta e encheu-o de pastas. Avisou Ebba que iria trabalhar em casa o resto do dia.
Parou numa mercearia para comprar comida e depois foi até uma tabacaria comprar cinco cartões de raspadinha. Ao chegar em casa, esquentou um pouco de chouriço e comeu acompanhado de uma cerveja. Procurou em vão pelo pote de geléia de mirtilo que achava que tinha em casa. Depois lavou os pratos e conferiu os cartões. Nada. Resolveu que já tinha tomado café suficiente por um dia e deitou-se na cama desarrumada para tirar uma soneca antes de começar a rever as pastas.
Foi acordado pelo toque do telefone. Olhou para o relógio ao lado da cama. Eram nove e dez da noite.
Apanhou o telefone e reconheceu a voz de Widén.
— Estou ligando de um telefone público. Achei que você gostaria de saber que a Sofia conseguiu o emprego. Ela começa amanhã.
Wallander acordou totalmente no mesmo instante.
— Ótimo — falou. — Quem foi que a contratou?
— Uma mulher chamada Karlén.
Wallander lembrou-se de sua primeira visita ao Castelo Farnholm.
— Anita Karlén.
— Dois belos cavalos de corrida — continuou Widén. — Muito valiosos. É deles que ela vai cuidar. E o salário também não é nada mau. Os estábulos são pequenos, mas vêm com um apartamento de quarto e sala. Acho que você subiu muito no conceito dela depois dessa oportunidade.
— Isso é muito bom — disse Wallander.
— Ela vai me ligar daqui a alguns dias. Só tem um problema: não consigo me lembrar do seu nome.
Wallander também teve de pensar um pouco, até lembrar.
— Roger Lundin.
— Vou anotar.
— Acho bom eu fazer o mesmo. Por falar nisso, seria melhor se ela não fizesse nenhuma ligação do castelo. Diga para ela usar o telefone público, como você está fazendo.
— O apartamento dela tem telefone. Por que ela não pode usar o aparelho de lá?
— Pode estar grampeado.
Wallander escutou Widén respirar bem fundo, do outro lado da linha, antes de continuar.
— Eu acho que você enlouqueceu de vez.
— Na verdade, eu devia é tomar cuidado com o meu próprio telefone — disse o inspetor. — Mas nós fazemos uma revisão em todas as linhas da polícia com regularidade.
— Quem é esse Harderberg? Algum monstro?
— É um homem simpático, bronzeado, sempre sorridente. E também muitíssimo bem-vestido. Como se vê, um monstro pode ter diversas caras.
Algo apitava do outro lado da linha.
— Eu ligo para você — Widén ainda teve tempo de dizer, antes que a ligação fosse cortada.
Wallander quis ligar para Höglund e contar a ela a novidade, mas acabou achando melhor esperar até o dia seguinte. Já estava meio tarde. Passou as horas seguintes concentrado no conteúdo do saco plástico. À meia-noite, pegou seu velho atlas de escola para localizar alguns dos lugares exóticos por onde se espalhavam os tentáculos do império de Harderberg. Era óbvio que se tratava de uma operação colossal. Wallander também tinha a sensação incômoda de estar dirigindo as investigações e os colegas para a direção errada. Talvez houvesse uma outra explicação para as mortes dos dois advogados, no fim das contas.
Era uma da madrugada quando foi finalmente para a cama. Ocorreu-lhe então que fazia muito tempo que sua filha Linda não entrava em contato. Por outro lado, ele é que deveria ter ligado para ela há muito tempo.
Terça-feira, 23 de novembro, um belo dia de outono.
O inspetor tomara a liberdade de dormir até mais tarde, nessa manhã. Havia ligado para a delegacia, um pouco antes das oito, e avisado que iria até Malmö. Fizera um café e continuara na cama por mais uma hora. Depois tinha tomado um chuveiro rápido e partido. O endereço que Lisbeth Norin lhe dera ficava perto do Triângulo, bem no centro da cidade. Deixou o carro no estacionamento coberto, atrás do Sheraton, e às dez em ponto estava tocando a campainha da casa. Uma mulher mais ou menos de sua idade atendeu. Ela usava um abrigo de malha de cores fortes e por alguns momentos o inspetor pensou ter se enganado. Aquela mulher não se encaixava com a imagem que fizera dela, depois de ouvir sua voz ao telefone, nem correspondia à idéia geral e sem dúvida preconceituosa que tinha dos jornalistas.
— Quer dizer então que o senhor é o policial — disse ela, em tom alegre. — Eu esperava alguém de farda.
— Desculpe desapontá-la.
Ela o convidou para entrar. Era uma construção antiga, de pé-direito muito alto. O inspetor foi apresentado ao pai, sentado numa poltrona, com a perna engessada. Wallander reparou no telefone sem fio sobre o joelho dele.
— Estou reconhecendo o senhor — disse o homem. — Saiu um bocado de coisa a seu respeito nos jornais, cerca de um ano atrás. Ou será que estou confundindo com outra pessoa?
— Não, provavelmente era eu mesmo.
— E alguma coisa a ver com um carro que pegou fogo em cima da ponte Öland. Lembro-me disso porque já fui marinheiro, isso antes da construção da ponte, que atrapalhou a passagem dos barcos.
— Os jornais exageram as coisas — disse Wallander.
— Lembro-me que o senhor foi classificado como um policial de muito sucesso.
— Isso mesmo — interveio a filha. — Agora que você mencionou, estou reconhecendo o inspetor Wallander das fotos nos jornais. Não participou de um programa de debates na televisão, também?
— Deve estar me confundindo com outra pessoa.
— Vamos sentar na cozinha — disse ela.
O sol de outono entrava pela janela ampla, iluminando tudo. Havia um gato enroscado entre os vasos de plantas, dormindo. Wallander aceitou um café e sentou.
— Minhas perguntas não vão ser muito precisas — começou. — E é muito provável que as suas respostas sejam bem mais interessantes. Digamos apenas que a polícia de Ystad se encontra, no momento, investigando um caso de homicídio, possivelmente dois homicídios, e há indicações que sugerem, quem sabe, o envolvimento de transporte e venda ilegal de órgãos humanos. Não posso afirmar com certeza que seja esse o caso e infelizmente não posso também lhe dar mais detalhes por razões técnicas relacionadas com o caso.
Por que será que não consigo me expressar com mais simplicidade?, perguntou-se, com raiva. Estou falando como se fosse uma paródia de um policial. Pareço uma máquina.
— Entendo por que Lasse Strömberg lhe deu o meu nome — disse ela, e Wallander percebeu que havia despertado o interesse da jornalista.
— Se entendi direito, está pesquisando sobre esse tráfico horrendo. E seria de grande ajuda, para mim, se pudesse me dar um panorama geral da situação.
— Eu levaria o dia todo para fazer isso. É bem provável que a coisa se estendesse noite adentro também. Além do mais, não vai demorar para o senhor começar a ver pontos de interrogação invisíveis por trás de cada palavra que eu disser. Trata-se de uma atividade horripilante que praticamente ninguém ainda ousou enfrentar, a não ser um punhado de jornalistas norte-americanos. Eu sou talvez a única jornalista de toda a Escandinávia que está investigando esse assunto.
— Imagino que seja um trabalho bastante arriscado.
— Aqui nem tanto, talvez, e quem sabe não para mim — respondeu ela. — Mas conheço pessoalmente um dos jornalistas americanos envolvidos nesse trabalho, chama-se Gary Becker, de Minneapolis. Ele foi ao Brasil investigar rumores sobre uma quadrilha que operava em São Paulo. Ele não foi só ameaçado. Uma noite, quando o táxi em que ele estava parou na frente do hotel, alguém disparou um pente inteiro de balas contra ele. Claro que reservou passagem para o dia seguinte e deu o fora de lá o mais rápido que pôde.
— Alguma vez encontrou algo que sugerisse a possibilidade de envolvimento de suecos no tráfico?
— Não. Por quê? Eu deveria ter encontrado?
— Eu apenas perguntei.
Ela o examinou, sem dizer nada, depois debruçou-se sobre a mesa, na direção do inspetor.
— Se é para nós termos uma boa conversa, o senhor vai ter que ser honesto comigo, inspetor. Não se esqueça de que sou jornalista. O senhor não precisa pagar pela visita porque é da polícia, mas o mínimo que eu tenho o direito de pedir é que me diga a verdade.
— Tem razão. Existe uma possibilidade muito remota de que haja um elo sueco nessa história. Isso é o mais próximo que posso chegar de lhe contar a verdade.
— Certo. Agora estamos nos entendendo. Mas vou pedir mais uma coisa. Se por acaso houver de fato uma ligação, quero ser a primeira jornalista a saber da história.
— Não posso lhe prometer uma coisa assim. É contra nosso regulamento.
— Sem dúvida que é. Mas matar gente para tirar pedaços do corpo e vender vai contra algo que é muito mais importante que os regulamentos.
Wallander refletiu sobre as palavras de Lisbeth Norin. Ele estava citando regras que ele próprio não obedecia mais, ao menos não sem aplicar um certo senso crítico. Nos últimos anos, suas experiências como policial tinham ocorrido numa terra de ninguém, onde o pouco de bem que tinha condições de fazer envolvia, infalivelmente, ter de decidir quais regras cumprir e quais não. Por que mudar agora?
— Vou dar um jeito para que seja a primeira a saber — disse. — Mas é melhor não mencionar meu nome. Tenho de permanecer anônimo.
— Por mim, tudo bem. Agora estamos nos entendendo ainda melhor.
Ao relembrar quantas horas havia passado naquela cozinha silenciosa, com o gato dormindo entre os vasos de plantas e os raios de sol se movendo lentamente por cima da toalha de plástico sobre a mesa, até desaparecer por completo, Wallander se espantou com a rapidez com que o tempo passara. Eles tinham começado a conversar às dez da manhã e já escurecera quando terminaram. Houve algumas pausas, Lisbeth Norin lhe preparara um almoço e o pai dela lhe contara histórias divertidas dos tempos em que fora capitão de vários navios de cabotagem, com viagens ocasionais à Polônia e aos estados bálticos. Fora esses momentos, haviam ficado sozinhos na cozinha, e ela discorrera sobre suas pesquisas. Wallander invejou-a. Ambos faziam trabalho de investigação, ambos viviam o tempo inteiro em contato com o crime e o sofrimento humano. A diferença era que ela tentava expor o crime para evitar que ele ocorresse, ao passo que Wallander estava sempre empenhado em esclarecer os que já tinham sido cometidos.
O que lhe ficou gravado na lembrança, de todo o tempo passado naquela cozinha, foi a viagem feita a um mundo inimaginável, onde seres humanos e partes do corpo eram reduzidos a meras commodities de mercado, sem a menor consideração moral. Se Lisbeth Norin estivesse correta em suas suposições, o comércio de órgãos era tão vasto que desafiava a compreensão humana. O que mais o abalou, no entanto, foi ela ter dito que entendia por que as pessoas matavam seres humanos saudáveis para vender pedaços de seus corpos.
— É um reflexo do mundo atual — disse ela. — É nesse pé que estão as coisas, quer a gente goste, quer não. Quando a pessoa é suficientemente pobre, ela faz qualquer coisa para sobreviver, mesmo nas condições mais miseráveis possíveis. Que direito temos de sair por aí fazendo julgamentos morais e criticando o que elas fazem? Quando a situação delas está muito além da nossa compreensão? Nas favelas e subúrbios de cidades como Rio de Janeiro, Lagos, Calcutá ou Madras, nada mais simples que tirar trinta dólares do bolso e anunciar que se está procurando alguém disposto a matar um outro ser humano. Em menos de um minuto você vai ter uma fila de candidatos a assassino. E não pense que eles perguntam quem é que terão de matar, muito menos por quê. Na verdade, se dispõem a fazer isso até por vinte dólares. Quem sabe dez. Tenho plena consciência da espécie de abismo no meio do qual estou trabalhando. Fico chocada, sinto desespero, mas, enquanto o mundo continuar sendo como é, reconheço que o que faço pode ser considerado sem sentido.
Wallander escutara tudo num silêncio absoluto, raras vezes quebrado. De vez em quando fazia uma pergunta para entender melhor o que ela dizia. Mas pôde perceber que de fato Lisbeth Norin estava tentando lhe comunicar tudo o que sabia — ou suspeitava, porque era muito pouco aquilo sobre o que se podia ter cem por cento de certeza.
E então, horas depois, haviam terminado.
— Isso é tudo que sei — declarou ela. — Mas, se o que lhe contei puder ser de alguma ajuda, fico contente com isso.
— Eu não sei nem mesmo se estou no caminho certo — disse Wallander. — Mas, se estiver, então significa que identificamos um elo de ligação entre alguém da Suécia e esse tráfico abominável. E, se conseguirmos pôr um ponto final nisso, sem sombra de dúvida teremos feito uma boa coisa.
— Claro que sim. Um espoliado a menos atirado nas valas da América do Sul... já vale a pena.
Eram quase sete da noite quando Wallander saiu de Malmö. Sabia que deveria ter ligado para Ystad e dito aos colegas o que estava fazendo, mas acabara se envolvendo totalmente na conversa com Lisbeth Norin.
Ela o acompanhara até o estacionamento, onde se despediram.
— Vou ter um bocado em que pensar — disse Wallander. — Nem sei como agradecer.
— Quem sabe — disse ela — um dia desses eu receba meu pagamento na mesma moeda.
— Eu volto a entrar em contato.
— Estou contando com isso. Em geral, fico em Gothenburg. A menos que esteja viajando.
Wallander parou num grillroom perto de Jägersro para jantar. O tempo todo pensou no que a jornalista lhe havia contado e em como encaixar Harderberg naquele cenário. Não conseguiu.
Chegou a duvidar de que algum dia conseguiriam encontrar uma resposta para o assassinato dos dois advogados. Até aquele momento, durante todo seu trabalho na polícia, fora poupado da experiência de se ver envolvido num caso não solucionado de homicídio. Estaria ele agora parado diante de uma porta que não se abriria jamais?
Voltou para Ystad sentindo a exaustão invadir-lhe o corpo. A única coisa boa que o esperava em casa era o telefonema que daria para Linda, quando chegasse.
No entanto, assim que botou os pés no apartamento, Wallander percebeu que havia algo de diferente — alguma coisa mudara desde a hora em que saíra, pela manhã. Parou no vestíbulo e escutou, preocupado. Talvez fosse só imaginação sua. Ainda assim a sensação continuou forte. Ligou a luz da sala, sentou-se numa poltrona e olhou em volta. Não estava faltando nada, nada parecia ter sido mexido. Foi até o quarto. A cama desarrumada estava exatamente como ele havia deixado. A xícara de café pela metade continuava na mesinha-de-cabeceira, ao lado do despertador. Foi até a cozinha.
Só quando abriu a geladeira para pegar a margarina e um pedaço de queijo é que teve certeza de que tinha razão. Olhou com atenção o pacote aberto do chouriço. Wallander tinha uma memória quase fotográfica e sabia que tinha posto o chouriço na terceira das quatro prateleiras. Agora ele estava na segunda.
O pacote de chouriço tinha ficado bem na beiradinha, num lugar de onde seria muito fácil cair no chão — isso já lhe acontecera antes. E aí alguém o colocara de volta, só que na prateleira errada.
Não tinha a menor dúvida de que sua lembrança estava correta. Alguém estivera em sua casa durante o dia. E, fosse quem fosse, a pessoa tinha aberto sua geladeira, para procurar ou esconder algo.
A primeira reação de Wallander foi dar risada. Depois fechou a geladeira e saiu rápido do apartamento. Estava com medo. Teve de se obrigar a pensar com clareza. Eles não estão muito longe daqui, pensou. Vou deixar que pensem que ainda estou lá dentro.
Desceu a escada até o porão. Havia uma porta, nos fundos, que levava ao depósito do lixo. Ele destrancou e abriu a porta. Olhou para as vagas do estacionamento, alinhadas nos fundos do prédio. Não havia ninguém por ali. Fechou a porta e avançou pelas sombras, colado ao muro. Quando chegou ao ponto em que aquele corredor se abria para a Mariagatan, ajoelhou-se e espiou a rua escondido atrás de uma calha.
O carro estava parado cerca de dez metros atrás do seu. Com o motor desligado e os faróis apagados. Dava para ver que havia um homem ao volante, mas não podia ter certeza se havia mais alguém ou não.
Recolheu a cabeça e levantou-se do chão. De algum lugar, vinha o som de uma televisão ligada. Hesitou por alguns momentos, nervoso, sem saber o que fazer. Depois tomou uma decisão.
Atravessou correndo o estacionamento vazio, virou à esquerda na primeira esquina e sumiu.
14
O fôlego já tinha acabado antes mesmo de Wallander alcançar a Blekegatan. Uma vez mais, achou que estava à beira da morte. Da Mariagatan, havia entrado na Oskarsgatan, a uma pequena distância, e nem correra tão rápido assim. O fato, porém, é que o ar gelado de outono lhe arranhava os pulmões e os batimentos estavam muito acelerados. Obrigou-se a ir mais devagar, receando que o coração parasse. A sensação de ficar sem forças o preocupava mais que a descoberta de que havia alguém vigiando seus movimentos e que essa mesma pessoa invadira sua casa. Lutou para suprimir o pensamento, mas, no fundo, o que mais o perturbava era o medo, um medo que reconhecia com toda a clareza, o mesmo medo do último ano e que ele não queria sentir de novo. Levara quase doze meses para se livrar dele, e achava que havia conseguido enterrá-lo de uma vez por todas nas praias de Skagen — mas lá estava ele de volta, para assombrá-lo.
Recomeçou a corrida. A Lilla Norregatan, onde Svedberg morava, não ficava muito longe. O hospital estava à direita e Wallander virou na direção da ladeira que descia até o centro da cidade. Um cartaz rasgado, na frente de um quiosque na Stora Norregatan, distraiu sua atenção até dobrar à direita, quase em seguida à esquerda, e lá estava — o prédio de Svedberg, com as luzes acesas no último andar.
Wallander sabia que as luzes permaneciam acesas a noite toda. Svedberg tinha medo do escuro; na verdade, talvez essa tivesse sido a razão de ele ter se tornado policial, para tentar curar esse receio. Como continuava deixando as luzes do apartamento acesas durante a noite, a carreira na polícia não devia ter ajudado muito, nesse particular.
Todo mundo tem medo de algo, pensou Wallander, policial ou não. Tropeçou no degrau da porta da frente, subiu correndo a escada e parou no último andar, para recobrar o fôlego. Tocou a campainha de Svedberg. A porta foi aberta quase imediatamente. Svedberg estava com os óculos de leitura suspensos na testa, segurando o jornal. Wallander sabia que o colega se espantaria ao vê-lo ali. Conheciam-se havia muitos anos, já, mas nesse tempo todo ele só tinha estado no apartamento de Svedberg umas duas ou três vezes, e nunca sem avisar.
— Preciso da sua ajuda — disse, depois de Svedberg, atônito, convidá-lo a entrar e fechar a porta.
— Você parece exausto. O que houve?
— Tive que correr. Quero que venha comigo. Não vai demorar muito tempo. Onde você parou o carro?
— Bem na frente do prédio.
— Me leve de volta até a Mariagatan. Quer dizer, você vai até lá e eu salto um pouco antes. Sabe o carro que estou usando agora, um Volvo da polícia?
— O azul-escuro ou o vermelho?
— O azul-escuro. Depois que eu descer, você vira na Mariagatan. Tem um outro carro estacionado lá, atrás do Volvo, não tem como não ver. Quero que passe por ele e olhe para ver se há mais alguém no carro, além do motorista. Depois você retorna ao lugar onde me deixou. Só isso. E aí pode continuar lendo o seu jornal em paz.
— Você não quer fazer nenhuma prisão?
— É justamente a última coisa que eu quero fazer. Só quero saber quantos são, no carro.
Svedberg havia tirado os óculos e largado o jornal.
— O que está havendo?
— Acho que tem alguém vigiando o apartamento. Só quero saber quantos são. Mais nada. Mas, seja lá quem for que está naquele carro, quero que pense que eu continuo em casa. Saí pelos fundos.
— Não tenho bem certeza de ter entendido essa história toda. Não seria melhor efetuar uma prisão? Nós podemos pedir ajuda.
— Você sabe muito bem o que foi que nós decidimos. Quando for alguma coisa relacionada com Harderberg, devemos fingir que não estamos cem por cento acordados.
Svedberg sacudiu a cabeça.
— Não estou gostando dessa história — falou.
— Você só tem que me levar até a Mariagatan e dar uma olhada no carro. Depois eu volto para casa. E ligo se precisar de ajuda.
— Imagino que saiba o que está fazendo — disse Svedberg, sentando-se numa banqueta para amarrar os sapatos.
Foram para a rua, entraram no Audi de Svedberg, cruzaram a Stortorget, desceram a Hamngatan e entraram à esquerda na Österleden. Quando chegaram à Borgmästaregatan, viraram à esquerda de novo. Wallander pediu a Svedberg que parasse na Tobaksgatan.
— Eu espero aqui. O carro está uns dez metros mais para trás.
Minutos depois, Svedberg estava de volta. Wallander entrou de novo.
— Só tinha o motorista.
— Obrigado pela ajuda. Agora pode ir para casa. Eu vou a pé daqui.
Svedberg lançou um olhar preocupado para o inspetor.
— Por que é tão importante assim saber quantas pessoas estão dentro do carro?
Wallander havia se esquecido de se preparar para essa pergunta. Estava tão concentrado no que decidira fazer que não levara em conta a curiosidade natural de Svedberg.
— Já vi aquele carro antes — mentiu. — E eram dois homens dentro. Se só tem o motorista, lá, agora, há uma boa chance de que o outro não esteja muito longe.
A explicação foi mais que mambembe, mas Svedberg não protestou.
— FHC 803 — disse ele. — Mas, a esta altura, você já deve ter anotado o número da placa.
— Já. Vou dar uma olhada nos registros para ver o que descubro. Não precisa se preocupar a respeito, por enquanto. Vá para casa descansar. A gente se vê amanhã. E obrigado pela ajuda.
Saltou do carro e esperou até que Svedberg desaparecesse na Österleden, antes de voltar para a Mariagatan. Ao se ver sozinho de novo, sentiu-se agitado outra vez, tomado por aquela preocupação incômoda de que o medo o estivesse enfraquecendo.
Usou a porta dos fundos e não acendeu as luzes da escada ao entrar em casa. Ficando na ponta dos pés sobre o tampo da privada e olhando pela janelinha do banheiro, dava para ver a rua lá embaixo. O carro continuava no mesmo lugar. Wallander foi até a cozinha. Se a intenção fosse me mandar pelos ares, eles já teriam explodido a bomba, pensou. Devem estar esperando que eu vá para a cama e que as luzes se apaguem.
Esperou até quase meia-noite, voltou até o banheiro e conferiu para ver se o carro continuava na rua. Em seguida apagou a luz da cozinha e acendeu a do banheiro. Dez minutos depois, apagou a luz do banheiro e acendeu a do quarto. Aguardou outros dez minutos e apagou a luz do quarto também. Depois desceu rapidamente a escada, saiu do prédio pela porta dos fundos, agachou-se, protegido pela calha, e ficou no canto do estacionamento, esperando. Só lá fora percebeu que deveria ter posto uma malha mais grossa. O vento estava esfriando e aumentava de intensidade. Com todo o cuidado, Wallander começou a mexer os pés, na tentativa de se manter aquecido. Até uma da manhã, o único incidente de monta foi ter precisado urinar junto ao muro. Exceto por um ou outro carro passando, estava tudo calmo.
Por volta da uma e quarenta, escutou um barulho na rua. Espiou por trás da calha. A porta do motorista se abriu, embora a luz interna do carro continuasse apagada. Depois de alguns segundos de imobilidade, o motorista saiu e fechou a porta sem fazer barulho. O tempo todo, olhava para as janelas de Wallander, lá em cima. Usava roupas escuras e estava longe demais para que o inspetor distinguisse suas feições. Mesmo assim, tinha certeza de já tê-lo visto. Tentou se lembrar onde. O homem atravessou a rua com passos apressados e desapareceu dentro do prédio.
E então Wallander se lembrou de onde o conhecia. Era um dos integrantes da dupla que rondava as sombras, junto à escadaria central, nas duas vezes em que visitara o castelo. Era um dos homens de Harderberg. E agora estava subindo as escadas até seu apartamento com o objetivo, talvez, de matá-lo. O inspetor se sentiu quase como se estivesse deitado em sua cama, apesar de estar onde estava, do lado de fora, na rua e no frio.
Estou testemunhando minha própria morte, pensou.
Encostou-se bem rente à calha e esperou. Às duas e três, a porta do prédio abriu-se sem ruído e o homem surgiu de novo na rua. Olhou em volta e Wallander recuou. Depois ouviu o carro partir guinchando pneus.
Ele vai fazer o relatório para Harderberg, pensou Wallander. Mas não vai contar a verdade porque não tem condições de explicar como alguém que estava dentro de casa, que havia desligado a luz e ido para a cama consegue sumir de lá de dentro sem deixar rastro.
O inspetor não podia descartar a possibilidade de o sujeito ter plantado algum dispositivo em seu apartamento, de modo que entrou no carro e foi para a delegacia. Os policiais de serviço o cumprimentaram surpresos, quando ele surgiu na recepção. Wallander pegou um colchão que sabia ficar guardado no porão, levou para sua sala e deitou-se no chão. Passava das três da manhã e ele estava esgotado. Precisava dormir um pouco, se quisesse estar em forma para poder pensar com clareza, mas o homem de roupa escura o seguiu em sonhos.
O inspetor acordou empapado de suor depois de uma série de pesadelos caóticos. Eram pouco mais de cinco horas. Passou um tempo pensando em tudo quanto Lisbeth Norin havia dito, depois se levantou e foi buscar um café. A bebida estava amarga, depois de uma noite inteira dentro do bule. Por enquanto, ele não queria voltar para casa. Tomou banho no vestiário do subsolo. Às sete, estava de volta a sua mesa. Era quarta-feira, dia 24 de novembro. Lembrou-se do que Höglund havia dito alguns dias antes: “Pelo visto temos todos os dados na mão, mas não estamos conseguindo ver como eles se encaixam”.
E é isso que precisamos começar a fazer agora, pensou ele. Encaixar as peças do quebra-cabeça. Ligou para a casa de Nyberg.
— Precisamos nos reunir.
— Tentei localizá-lo, ontem — disse Nyberg. — Ninguém sabia onde você estava. Temos novidades.
— Nós? Nós quem?
— Ann-Britt Höglund e eu.
— Sobre a Avanca?
— Eu pedi ajuda para ela. Sou um técnico, não um detetive.
— Venha até minha sala assim que chegar aqui. Vou ligar para a Höglund.
Meia hora depois, Nyberg e Höglund estavam sentados na sala de Wallander. Svedberg enfiou a cabeça no vão da porta.
— Precisa de mim?
— Placa FHC 803. Não tive tempo de investigar de quem é. Pode se encarregar disso, por favor?
Svedberg fez que sim com a cabeça e fechou a porta.
— Agora a Avanca — disse Wallander.
— Não espere coisas demais — disse Höglund. — Nós tivemos só um dia para examinar a empresa e ver de quem é, mas já conseguimos apurar que não é mais um negócio administrado pelos Roman. A família permite que a empresa use o seu nome e a sua boa reputação, e tem participação acionária, possivelmente uma bela fatia das ações. Mas já faz vários anos que a Avanca é parte de um consórcio composto de diversas firmas diferentes, associadas de uma maneira ou de outra com a indústria farmacêutica, planos de saúde e equipamento hospitalar. É tudo tremendamente complicado e as empresas parecem todas interligadas. O guarda-chuva para o consórcio é uma holding com sede em Liechtenstein chamada Medicom. Que por sua vez se subdivide em diversos grupos proprietários. Entre eles, há até uma empresa brasileira envolvida sobretudo com produção e exportação de café. Mas o mais interessante de tudo, nisso, é que a Medicom tem ligações financeiras com o Banco Bayerische Hypotheken-und-Wechsel.
— E por que isso é o mais interessante de tudo? — indagou Wallander, que já tinha perdido a pista da Avanca.
— Porque Harderberg é dono de uma fábrica de objetos de plástico em Gênova. Eles fabricam lanchas.
— Estou perdido — disse Wallander.
— Espere, porque ainda não terminei — continuou ela. — A fábrica genovesa se chama CFP, seja lá o que signifique essa sigla, e ajuda seus clientes a obter financiamento através de uma espécie de contrato de arrendamento.
— Vamos nos concentrar na Avanca, por favor — disse Wallander. — No momento não estou nem um pouco interessado em lanchas italianas de plástico.
— Mas deveria estar — insistiu Höglund. — Os contratos de arrendamento da CFP são feitos em conjunto com o Bayerische Hypotheken-und-Wechsel. Em outras palavras, há uma ligação com o império de Harderberg. A primeira que nós descobrimos desde que as investigações começaram.
— Pois eu não entendi patavina do que você disse — retrucou o inspetor.
— Pode inclusive haver ligações ainda mais próximas — disse ela. — Teremos que pedir à divisão de fraudes que nos ajude nessa parte. Eu própria mal sei o que estou fazendo.
— Isso é importante. — Até aquele momento, Nyberg não abrira a boca. — Talvez seja uma boa idéia investigar e ver se a fábrica de artefatos de plástico de Gênova produz outras coisas além de lanchas de corrida.
— Tais como recipientes para transporte de órgãos destinados a transplante? — indagou Wallander.
— Por exemplo.
— Se isso for verdade — disse o inspetor —, significa então que Harderberg está, até certo ponto, envolvido na fabricação e importação desses recipientes plásticos. Ele pode até ter o controle da empresa, ainda que à primeira vista pareça ser um labirinto de empresas diferentes mas interligadas. Será mesmo possível que um produtor de café brasileiro tenha ligações com uma minúscula empresa em Södertälje?
— Não seria nem mais nem menos esquisito que o fato de um fabricante de carros norte-americanos fabricar também cadeiras de roda — prosseguiu Höglund. — Os carros causam acidentes que, por sua vez, criam uma demanda por cadeiras de roda.
Wallander bateu palmas e levantou-se.
— Muito bem, vamos aumentar a pressão sobre as investigações. Ann-Britt, por favor, peça aos especialistas em finanças que façam algum tipo de mapa em grande escala, um mapa de parede, mostrando um panorama dos empreendimentos de Harderberg. Quero que conste tudo desse mapa: as lanchas em Gênova, os puros-sangues no Castelo Farnholm, tudo o que descobrimos até o momento. E, Nyberg, será que você pode se dedicar a esse recipiente de plástico? Onde foi feito, como foi parar no carro de Gustaf Torstensson e por aí afora.
— Mas isso significa jogar para os ares o plano que vínhamos seguindo até agora — Höglund objetou. — Lógico que Harderberg vai descobrir que estamos fuçando nas empresas dele.
— De jeito nenhum — respondeu Wallander. — É só uma questão de rotina. Nada de lances dramáticos. Além do mais, vou conversar com o Björk e com o Åkeson e sugerir a eles que já está mais que na hora de darmos uma entrevista à imprensa. Vai ser a primeira vez na vida que tomo essa iniciativa, mas acho até uma boa idéia dar um empurrãozinho no outono e espalhar um pouco mais de cerração e garoa por aí.
— Soube que o Åkeson continua de cama, gripado — informou Höglund.
— Então eu ligo para a casa dele — disse Wallander. — Estamos aumentando a pressão, de modo que ele vai ter que vir, com ou sem resfriado. Diga ao Martinson e ao Svedberg que vamos nos reunir hoje às duas da tarde.
Wallander tinha decidido esperar até estarem todos reunidos, antes de contar o que havia acontecido na noite anterior.
— Muito bem, então mãos à obra — disse.
Nyberg saiu, mas Wallander pediu a Ann-Britt Höglund que ficasse um pouco mais. Contou então a ela que Widén e ele tinham conseguido colocar uma cavalariça no Castelo Farnholm.
— Sua idéia foi excelente. Vamos ver se dá resultados.
— Só espero que não aconteça nada a ela.
— Ela vai apenas cuidar de alguns cavalos — disse Wallander. — E ficar de olhos bem abertos. Não vamos extrapolar. Afinal, Harderberg não vai achar que todo mundo em volta dele é policial disfarçado.
— Espero que tenha razão.
— E os registros de vôo, como vão indo?
— Estou trabalhando neles, mas ontem a Avanca me tomou todo o tempo.
— E você fez um ótimo trabalho.
Ann-Britt ficou feliz de ouvir o elogio, Wallander bem que reparou. Relutamos demais em elogiar os colegas, pensou. Agora, críticas e mexericos, isso a gente distribui à vontade.
— Isso é tudo — disse.
Ela saiu e Wallander foi até a janela, perguntando-se o que Rydberg teria feito, se estivesse na mesma situação. Mas, pela primeira vez, sentiu que não tinha tempo para esperar pela resposta do velho amigo. Seria preciso se contentar em acreditar que sua maneira de conduzir as investigações estava correta.
Durante o resto da manhã, manteve-se em atividade constante. Convenceu Björk da importância de conceder uma entrevista coletiva no dia seguinte e prometeu que ele mesmo cuidaria dos jornalistas assim que tivesse combinado com Åkeson o que iriam dizer.
— Nunca vi você convocar os meios de comunicação por iniciativa própria — disse Björk.
— Quem sabe estou me tornando uma pessoa melhor. Dizem que nunca é tarde demais.
Depois de conversar com o chefe, Wallander ligou para a casa do promotor. Quem atendeu foi a mulher, e não parecia muito disposta a chamar o marido, que estava de cama.
— Ele está com febre? — Wallander perguntou.
— Quando a pessoa está doente, está doente e ponto final.
— A senhora me desculpe, mas eu preciso falar com ele.
Depois de um intervalo considerável de tempo, Åkeson veio ao telefone. A voz era de quem não estava nada bem.
— Estou doente. É gripe. Passei a noite inteira no banheiro.
— Eu não iria incomodá-lo se não fosse importante. Infelizmente vou precisar de você por alguns minutos, esta tarde. Podemos mandar um carro buscá-lo.
— Estarei aí. Mas pode deixar que eu pego um táxi.
— Quer que lhe explique por que é importante?
— Você já sabe quem são os assassinos?
— Não.
— Quer que eu aprove um mandado de prisão para Alfred Harderberg?
— Não.
— Então deixa para me explicar quando eu estiver aí, esta tarde.
Em seguida, Wallander ligou para o Castelo Farnholm. Não reconheceu a voz da mulher que atendeu. Apresentou-se e pediu para falar com Kurt Ström.
— Ele só entra em serviço no final da tarde. Mas claro que pode localizá-lo em casa.
— Imagino que não esteja preparada para me dar o número do telefone da casa dele — disse Wallander.
— E por que não?
— Pensei que pudesse ser contra os regulamentos, questão de segurança, coisa e tal.
— Não, não, de jeito nenhum — disse ela, dando-lhe em seguida o número do telefone.
— Por favor, transmita meus cumprimentos ao doutor Harderberg e agradeça a ele mais uma vez a hospitalidade que me dispensou — disse Wallander.
— O doutor Harderberg está em Nova York.
— Bem, quando voltar, então. Ele vai ficar fora muito tempo?
— É esperado para depois de amanhã.
Algo tinha mudado. Talvez Harderberg tivesse deixado ordens para que todos reagissem de forma positiva às perguntas da polícia de Ystad.
Wallander discou o número da casa de Ström. Deixou tocar por um tempo razoável, mas ninguém atendeu. Ligou para a recepção e pediu a Ebba para descobrir onde Ström morava. Enquanto aguardava, foi buscar um café. Lembrou-se de que ainda não entrara em contato com Linda, como havia prometido a si mesmo. Mas resolveu esperar até a noite.
* * *
Por volta das nove e meia da manhã, Wallander saiu da delegacia e pegou a Österlen. Kurt Ström pelo visto morava numa pequena casa na zona rural, não muito longe de Glimmingehus. Ebba conhecia a área como ninguém e improvisou um mapinha para ele. Ström não atendera o telefone, mas Wallander tinha um palpite de que iria encontrá-lo em casa. Enquanto atravessava Sandskogen, tentou se lembrar do que Svedberg havia dito a respeito das circunstâncias em que o policial fora exonerado. Tentou também antecipar como seria recebido. Já tinha tido algumas oportunidades de se ver frente a frente com policiais envolvidos em corrupção, e lembrava-se dessas ocasiões com repulsa. Mas não poderia se esquivar da conversa que o aguardava.
Não teve a menor dificuldade em seguir o mapa de Ebba e deu direto numa pequena casa pintada de branco, típica da região, a leste de Glimmingehus. A casa ficava em meio a um jardim que sem dúvida devia ser muito lindo na primavera e no verão. Assim que desceu do carro, dois pastores presos numa casinha de aço começaram a latir. Havia um carro na garagem e Wallander concluiu que tinha acertado: Ström estava em casa. Não precisou esperar muito tempo. O ex-policial apareceu, vindo da parte de trás do imóvel, de macacão e com uma colher de pedreiro na mão. Parou onde estava quando viu quem era a visita.
— Espero não estar incomodando — disse Wallander. — Eu liguei, mas ninguém atendeu.
— Eu estava ocupado, enchendo algumas frestas nos alicerces da casa. O que você quer?
Ström estava de sobreaviso, e isso era evidente.
— Tenho uma pergunta para lhe fazer — disse Wallander. — Quem sabe você poderia mandar os cachorros calarem a boca?
Ström gritou com eles e, na hora, os cães ficaram quietos.
— Vamos entrar — convidou ele.
— Não há necessidade. Podemos ficar aqui fora mesmo. Não vai levar mais que um minuto. — Wallander olhou em volta do pequeno jardim. — Uma bela propriedade, você tem aqui. Um tanto ou quanto diferente de um apartamento no centro de Malmö.
— Ali também era muito bom, mas aqui estou mais perto do trabalho.
— Pelo visto você está vivendo sozinho. Pensei que fosse casado.
Ström fuzilou o inspetor com seus olhos de aço.
— O que você tem a ver com minha vida particular?
Wallander abriu os braços, como quem pede desculpas.
— Absolutamente nada. Mas você sabe como é, entre ex-colegas. A gente sempre pergunta da família.
— Eu não sou seu colega.
— Mas já foi, não é verdade?
Wallander tinha mudado de tom. Estava buscando entrar em atrito com Ström. Sabia que valentia era a única coisa que inspirava respeito ao outro.
— Só que você não veio até aqui para discutir minha família.
Wallander sorriu.
— Tem toda razão. Não mesmo. Só lembrei o fato de já termos sido colegas por uma questão de boa educação.
Ström ficou lívido. Por alguns instantes, Wallander receou ter ido longe demais e pensou que iria levar um soco.
— Vamos esquecer esse assunto — disse. — Vamos falar de uma outra coisa. Do dia 11 de outubro. Uma segunda-feira à noite. Seis semanas atrás. Sabe do que estou falando?
Ström fez que sim com a cabeça, mas não disse nada.
— Na verdade tenho apenas uma pergunta para lhe fazer. Mas primeiro gostaria de esclarecer bem uma coisa muito importante. Não vou permitir que não me responda alegando que seria uma violação das regras de segurança do Castelo Farnholm. Se tentar fazer algo do gênero, eu transformo a sua vida num inferno que você nem imagina.
— Você não pode fazer nada contra mim — disse Ström.
— Não esteja tão certo assim disso. Eu posso detê-lo e levar você comigo de volta para Ystad, ou posso ligar para o castelo dez vezes por dia pedindo para falar com Kurt Ström. Eles não iriam demorar para começar a achar excessivo o interesse da polícia pelo chefe da segurança deles. Será que eles sabem do seu passado? Isso poderia ser um fator de constrangimento para eles. Duvido que o doutor Harderberg vá ficar satisfeito, se por acaso a paz e a tranqüilidade do Castelo Farnholm vierem a ser perturbadas.
— Vá para o diabo que o carregue! — disse Ström. — Saia da minha casa antes que eu o ponha para fora na marra.
— Só quero a resposta para a única pergunta que tenho, sobre a noite do dia 11 de outubro — repetiu Wallander, sem se abalar. — E eu lhe asseguro que é uma pergunta só. Será que vale mesmo a pena arriscar essa sua nova vida por tão pouco? Se bem me lembro, quando nos encontramos, nos portões do castelo, você disse que estava muito feliz com ela.
Wallander percebeu que Ström vacilava. Os olhos continuavam cheios de ódio, mas o inspetor sabia que teria uma resposta.
— Uma pergunta — repetiu. — E uma resposta. Mas uma resposta verdadeira. Depois eu largo do seu pé. Você pode continuar fazendo seus consertos e esquecer que um dia estive aqui. E também pode continuar guardando os portões do Castelo Farnholm até o dia de sua morte. Apenas uma pergunta e uma resposta.
Um avião passou voando alto, sobre a cabeça de ambos. Wallander se perguntou se não seria o Gulfstream de Alfred Harderberg, voltando de Nova York.
— O que você quer saber?
— Naquela noite de 11 de outubro, Gustaf Torstensson saiu às oito e catorze da noite, segundo a cópia impressa do controle feito nos portões do castelo. Essa cópia que me forneceram pode ter sido forjada, claro, mas vamos supor que esteja correta. Afinal de contas, todos sabemos que o advogado deixou o Castelo Farnholm. Minha pergunta a você, Kurt Ström, é muito simples. Algum carro saiu do Castelo Farnholm depois que o doutor Torstensson chegou, mas antes de ele ir embora?
Ström permaneceu algum tempo em silêncio, mas acabou balançando a cabeça lentamente, em sinal afirmativo.
— Essa foi a primeira parte da minha pergunta — disse Wallander. — Agora vem a segunda parte da mesma pergunta. Quem foi que saiu do castelo?
— Eu não sei.
— Mas você viu o carro?
— Já respondi a mais de uma pergunta.
— Não enche o saco, Ström. A pergunta é a mesma. De que marca era o carro? E quem estava dentro dele?
— Era um dos carros que pertencem ao castelo. Um BMW.
— E quem estava dentro dele?
— Eu não sei.
— Sua vida vai ficar desagradável ao extremo, se não responder!
Wallander descobriu então que não precisava fingir que estava bravo. Ele já estava bravo.
— Sinceramente não sei quem era.
Ström dizia a verdade, dava para ver que sim. E ele devia ter percebido logo.
— Porque as janelas do carro têm vidros escuros — falou. — Não dá para ver quem está dentro. É isso?
Mais uma vez, Ström balançou a cabeça, em sinal de assentimento.
— Já tem a sua resposta. Agora dá o fora daqui.
— É sempre muito bom cruzar com os ex-colegas — disse Wallander. — E tem toda a razão, está na hora de eu ir embora. Foi um prazer conversar com você.
Os cães começaram a latir assim que o inspetor virou as costas. Ao se afastar, Wallander ainda viu Ström parado na soleira da porta, olhando para ele, e sentiu o suor escorrer por baixo da camisa. Tinha se lembrado que Ström era uma pessoa muito violenta.
No entanto, obtivera uma resposta plausível para uma pergunta que o incomodava: o ponto de partida para o que ocorrera naquela noite de outubro em que Gustaf Torstensson morrera sozinho no carro. Agora já dava para ter uma boa idéia. Enquanto Torstensson conversava com Harderberg e os banqueiros italianos, refestelado naquela suntuosa poltrona de couro, um carro partira do Castelo Farnholm para esperar pelo velho advogado mais adiante, quando estivesse voltando para casa. De um jeito ou de outro, demonstrando força, esperteza ou simpatia convincente, haviam conseguido fazer com que o advogado parasse o carro naquele trecho remoto e cuidadosamente escolhido da estrada. Wallander não tinha a menor idéia se a decisão de impedir que Torstensson chegasse em casa havia sido tomada naquela mesma noite, ou antes; mas pelo menos conseguia divisar os contornos de uma possível explicação.
Lembrou-se dos dois homens semi-ocultos pelas sombras, no hall de entrada. E estremeceu ao pensar no que tinha ocorrido na noite anterior.
Sem se dar conta, pisou mais fundo no acelerador. Até chegar a Sandskogen, já quase em Ystad, estava indo tão rápido que, se tivesse sido parado por excesso de velocidade, sua carteira de habilitação seria apreendida na hora. Desacelerou um pouco. Em Ystad, parou no Fridolfs e tomou um café. Sabia qual o conselho que Rydberg teria lhe dado.
Paciência, o velho amigo lhe diria. Quando as pedras começam a rolar morro abaixo, é importante não sair correndo atrás delas. Fique onde está e observe, veja onde é que elas acabam parando. É o que ele teria dito.
E estaria com a razão, refletiu Wallander.
E é assim que nós vamos agir.
Durante os dias seguintes, Wallander teve novas provas de estar cercado de colegas que não poupavam esforços quando realmente era preciso. Eles já vinham trabalhando como verdadeiros burros de carga, mas ninguém protestou quando o inspetor anunciou que teriam de trabalhar ainda mais. Tudo começou na quarta-feira à tarde, quando Wallander convocou a equipe para uma reunião, e Åkeson compareceu, apesar da diarréia e da febre. Todos concordaram que o império empresarial de Harderberg deveria ser esmiuçado e mapeado o quanto antes. Durante a reunião, Åkeson ligou para as divisões de fraudes de Malmö e Estocolmo. Todos os policiais presentes escutaram, impressionados, o promotor explicar que era necessário um empenho ainda maior da parte deles e que dar prioridade àquela investigação era mais ou menos fundamental para a sobrevivência do próprio país. Quando Åkeson desligou, a sala de reuniões inteira explodiu em aplausos espontâneos.
A conselho do promotor, decidiram continuar eles mesmos com as investigações em torno das atividades da Avanca, sem se preocupar com a possibilidade de isso acarretar conflitos com os trabalhos realizados pelas divisões de fraudes. Wallander achava que a pessoa mais bem qualificada para fazer isso era Ann-Britt Höglund. Ninguém protestou e, daquele momento em diante, ela deixou de ser uma iniciante chucra para se transformar em membro plenamente habilitado da equipe de investigação. Svedberg assumiu parte do trabalho que ela vinha fazendo, inclusive as tentativas de obter os planos de vôo da aeronave de Harderberg. Antes, houve um pouco de discussão entre Wallander e Åkeson sobre se aquela seria de fato uma fonte de informação valiosa o bastante para justificar o esforço. Wallander argumentou que, mais cedo ou mais tarde, eles teriam de verificar os movimentos de Harderberg, sobretudo os do dia em que Sten Torstensson morrera. Åkeson insistiu que, ainda que estivesse por trás de tudo, como agora parecia ser o caso, Harderberg teria, além de acesso a recursos sofisticadíssimos, todas as condições de manter contato com o Castelo Farnholm mesmo que estivesse cruzando o Atlântico no seu Gulfstream, ou viajando pelo sertão australiano, onde, de acordo com os peritos em finanças, ele possuía participações substanciais nas atividades de mineração. Wallander entendeu o ponto de vista do promotor e estava prestes a ceder quando Åkeson atirou as mãos para o alto e disse que estava apenas apresentando uma opinião pessoal e que não queria pôr obstáculos no trabalho em curso.
Na hora de falar sobre o recrutamento da cavalariça Sofia, Wallander apresentou a questão de um jeito que Ann-Britt Höglund não pôde deixar de admirar e elogiar, mais tarde e em particular. Wallander sabia que a contratação da moça poderia provocar objeções da parte de Björk e de Åkeson; além disso, Martinson e Svedberg talvez também não aprovassem a idéia de envolver uma completa estranha nas investigações. Sem chegar a mentir, mas talvez economizando um pouco na verdade, explicou que, por puro acaso, tinham conseguido uma fonte de informações no Castelo Farnholm, alguém que calhava de ele conhecer e que estava cuidando dos cavalos da propriedade. Wallander forneceu essa informação assim como quem não quer nada, na hora em que estava sendo passada uma bandeja com sanduíches e ninguém escutava com a devida atenção o que ele dizia. Trocando um olhar com Höglund, viu que ela tinha entendido a tática.
Um pouco mais tarde, depois que terminaram de comer e arejar a sala, Wallander contou que sua casa tinha sido vigiada, na noite anterior. Não mencionou, contudo, que o homem chegara a entrar. Receava que a informação levasse Björk a pôr o pé no freio e impor restrições ao que eles poderiam ou não fazer, por questões de segurança. Svedberg forneceu a espantosa informação de que o carro estava registrado em nome de uma pessoa que morava em Östersund e era gerente de um acampamento de férias nas montanhas Jämtland. Wallander insistiu para que o sujeito fosse investigado, bem como o acampamento. Se Harderberg tinha participação em minas da Austrália, não havia motivo para não estar envolvido num empreendimento de esportes de inverno no norte da Suécia. A reunião terminou com Wallander contando aos colegas sobre seu encontro com Ström. Ao ouvir seu relato, a sala calou-se.
— Esse era o detalhe de que eu precisava — disse Wallander mais tarde, para Höglund. — Os policiais são pessoas práticas. O simples fato de um carro ter saído do Castelo Farnholm antes que o velho Torstensson desse início a sua última viagem significa que todos os aspectos vagos e obscuros da seqüência de acontecimentos têm, finalmente, um pequeno detalhe em que se apoiar. Se foi isso de fato o que aconteceu, e pode muito bem ter sido, também temos a confirmação de que Torstensson foi assassinado a sangue-frio, numa operação muito bem planejada. Portanto, já sabemos que estamos procurando a solução de algo em que nada é coincidência. Podemos deixar de lado os acidentes e as paixões dramáticas. Agora sabemos onde não precisamos mais procurar.
A reunião terminara numa atmosfera que Wallander interpretou como de ânimo resoluto. Era isso que ele torcia para que acontecesse. Antes de voltar para sua cama, o promotor participara de uma conversa com Björk e Wallander. Falaram sobre a entrevista coletiva que dariam aos meios de comunicação no dia seguinte. Wallander defendia que, sem contar nenhuma mentira, eles dissessem que tinham uma boa pista, mas que não poderiam fornecer mais detalhes por motivos relacionados com as investigações.
— Mas — Åkeson perguntou — como é que você vai falar sobre essa pista sem que Harderberg perceba que ela aponta para o Castelo Farnholm?
— Uma tragédia na vida privada de alguém — disse Wallander.
— Quem é que vai acreditar nisso? — objetou o promotor. — Sem contar que é uma alegação tênue demais para motivar a convocação de uma coletiva. Tenha cuidado e esteja totalmente preparado. Você vai precisar de respostas detalhadas e definitivas para todas as possíveis perguntas.
Wallander foi para casa, depois da reunião.
Examinou o telefone, para ver se havia sinais de grampo. Não encontrou nada, mas assim mesmo decidiu que dali em diante não discutiria nada relacionado com Harderberg do telefone de casa.
Depois tomou um banho e se trocou.
Jantou numa pizzaria da Hamngatan. Voltou para casa e passou algumas horas se preparando para a entrevista coletiva do dia seguinte. De vez em quando, ia até a janela da cozinha e dava uma olhada na rua lá embaixo, mas o único carro estacionado ali era o seu.
A entrevista coletiva à imprensa foi melhor do que Wallander esperava. O assassinato de dois advogados pelo visto não era tido, pela mídia, como assunto de grande interesse para o público, de modo que não havia muitos jornais presentes, nenhum canal de televisão e a estação de rádio local transmitiu apenas uma notícia curta.
— Isso vai manter Harderberg calmo — Wallander comentou com Björk, depois que os repórteres saíram da delegacia.
— A menos que consiga ler o que se passa na nossa cabeça — disse Björk.
— Ele pode especular a respeito, claro, mas certeza absoluta não vai poder ter.
Ao voltar para sua sala, encontrou um recado sobre a escrivaninha para ligar para o sr. Widén. Discou o número e, depois de muitos toques, ele atendeu.
— Você me deixou um recado — disse Wallander.
— E então, Roger, como vai a vida? Nossa amiga me ligou faz alguns minutos. De Simrishamn. Ela tem novidades que talvez interessem a você.
— Quais?
— Primeiro, que o emprego dela pelo visto vai ter vida curta.
— O que ela quer dizer com isso?
— Que tudo indica que o patrão está se preparando para deixar o castelo.
Wallander emudeceu.
— Alô, você continua na linha? — Widén acabou perguntando.
— Continuo. Estou aqui ainda.
— Ela não falou mais nada.
A sensação de que algo estava para acontecer era muito forte.
15
Ove Hanson retornou à delegacia de Ystad na tarde do dia 25 de novembro, depois de passar mais de um mês fora da ativa. Havia gastado esse mês e pouco em Halm-stad, fazendo um curso de criminalística e informática, patrocinado pelo Conselho Nacional de Polícia. Após o assassinato de Sten Torstensson, ligara perguntando se deveria voltar ao serviço, mas Björk lhe dissera que não precisava, que podia continuar estudando. Foi nesse telefonema que ficara sabendo da volta de Wallander ao trabalho. Na mesma noite, ao chegar ao hotel onde se hospedava, tinha ligado para Martinson para conferir se era mesmo verdade. Martinson confirmara e acrescentara que, a seu ver, o inspetor estava mais animado que nunca.
Mesmo assim, Hanson não estava preparado para o que o esperava quando parou por um momento diante da porta da sala que fora temporariamente sua. Bateu e, sem esperar ser convidado, entrou, mas quase caiu de costas com a cena que viu; assustado, fez menção de sair de novo. Wallander estava parado no meio da sala, segurando uma cadeira sobre a cabeça e olhando para Hanson com uma expressão no rosto que só podia ser qualificada de ensandecida. Tudo aconteceu muito rápido, Wallander pôs a cadeira de volta no chão e sua expressão voltou ao normal. Aquela imagem, no entanto, marcou a memória de Hanson a ferro e fogo. Durante muito tempo, depois daquilo, guardou o incidente consigo, perguntando-se quanto estaria faltando para Wallander acabar de perder o controle e enlouquecer de vez.
— Vejo que cheguei num mau momento — disse. — Só passei para dar um alô e dizer que estou de volta ao trabalho.
— Assustei você, é? Não foi por querer. Acabei de receber um telefonema que me deixou furioso. Ainda bem que você entrou na hora, senão eu teria arrebentado a cadeira na parede.
Sentaram-se ambos, Wallander atrás de sua mesa e Hanson na cadeira que, sem querer, tinha salvado da destruição. Hanson era um dos detetives que Wallander menos conhecia, embora estivessem juntos havia muitos anos. Eram o oposto um do outro, tanto na personalidade quanto na forma de abordar os casos, e muitas vezes embarcavam em discussões complicadas que sempre acabavam em altercações ruidosas. Mesmo assim, Wallander respeitava a habilidade de Hanson. Como colega de trabalho, podia ser talvez um tanto rude, teimoso e difícil, mas era minucioso, persistente e, de vez em quando, surpreendia os colegas com análises muito bem formuladas e inteligentes que acarretavam avanços significativos em casos aparentemente insolúveis. Wallander sentira falta de Hanson, em algumas ocasiões, durante o último mês. Chegara a pensar em pedir a Björk para chamá-lo de volta, mas no fim não tomara nenhuma providência a respeito.
O inspetor sabia também que Hanson era provavelmente o colega que menos teria lamentado se ele não houvesse voltado ao trabalho. Era uma pessoa ambiciosa, o que em si mesmo não chegava a ser mau, para um integrante da polícia, mas nunca fora capaz de aceitar o fato de Wallander ter vestido o manto invisível de Ryd-berg. Hanson achava que era ele quem deveria ter assumido o posto. Mas não era isso que estava escrito nas estrelas e, por esse motivo, ele nunca conseguira superar o antagonismo.
Do lado de Wallander, havia outros fatores, como a irritação diante do tempo que Hanson gastava apostando em cavalos. A mesa dele vivia cheia de pules e de pilhas de esquemas de aposta. Na verdade, Wallander tinha certeza absoluta de que Hanson às vezes gastava metade de suas horas de trabalho tentando descobrir como centenas de cavalos correndo em hipódromos do país inteiro estavam se saindo nos respectivos páreos. Para completar, sabia que Hanson não suportava ópera.
Mas naquele momento estavam frente a frente, um de cada lado da mesa, e Hanson voltara à ativa. Ele reforçaria a equipe, ampliaria o escopo das investigações. Era tudo o que importava.
— Quer dizer então que você voltou — disse Hanson. — Da última vez que ouvi falar no assunto, você estava prestes a pedir demissão.
— O assassinato de Sten me fez mudar de idéia.
— E aí você descobriu que o pai dele também tinha sido assassinado. Para nós, aquilo tinha sido acidente.
— Muito bem camuflado. Foi pura sorte eu ter encontrado a perna da cadeira na lama.
— Que perna da cadeira? — Hanson parecia surpreso.
— Você vai ter que reservar um tempo para se familiarizar o quanto antes com o caso — disse Wallander. — E vai ser crucial a sua participação, quanto a isso pode ter certeza. Sobretudo depois do telefonema que recebi agora há pouco.
— Sobre o que era?
— Pelo visto o sujeito que queremos enquadrar, em quem estamos colocando todos os nossos recursos, pretende se mudar. O que só nos traria ainda mais dor de cabeça.
— Acho melhor eu começar a ler os relatórios.
— Bem que eu gostaria de lhe dar eu mesmo um panorama geral da coisa — disse Wallander —, mas não tenho esse tempo todo. Converse com a Ann-Britt. Ela é muito competente na hora de resumir o que interessa e deixar de fora o que não presta.
— É fato mesmo? — Hanson perguntou.
Wallander o fitou bem nos olhos.
— É fato mesmo o quê?
— Que ela é competente. A Höglund é competente mesmo?
Wallander lembrou-se de algo que Martinson tinha dito, logo depois de sua volta ao trabalho, qualquer coisa sobre Hanson estar se sentindo ameaçado no cargo com a chegada de Ann-Britt Höglund.
— É. Ela já é uma excelente policial e vai ficar melhor ainda.
— Acho difícil acreditar nisso — disse Hanson, levantando-se.
— Você vai ver com seus próprios olhos. Vamos resumir da seguinte forma: Ann-Britt chegou para ficar.
— Acho que prefiro conversar com o Martinson.
— Faça como achar melhor.
Hanson já estava cruzando a soleira quando Wallander lhe dirigiu outra pergunta.
— O que foi que você fez em Halmstad?
— Graças ao Conselho Nacional de Polícia, tive a oportunidade de olhar o futuro. Para a época em que a polícia do mundo inteiro estará sentada diante de seus computadores, perseguindo os criminosos. Seremos parte de uma rede de comunicações que vai cobrir o planeta inteiro e todas as informações obtidas pelas polícias de diferentes países estarão disponíveis universalmente em bancos de dados muito bem formulados.
— Soa assustador — disse Wallander. — Além de chato.
— Mas provavelmente muito eficaz também. Agora tem uma coisa. Imagino que até lá, nós dois já estaremos aposentados.
— Ann-Britt verá isso tudo — disse Wallander. — Por falar nisso, tinha trote, em Halmstad?
— Só uma noite por semana.
— E como é que você se saiu?
Hanson deu de ombros.
— Não cheirou nem fedeu. O de sempre. Alguns animais correram como deviam. Outros não.
Por fim, ele se foi, fechando a porta ao sair. Wallander refletiu sobre a fúria que o acometera ao saber que Harderberg estava fazendo preparativos para ir embora do castelo. Era muito raro perder as estribeiras por completo, e não se lembrava de nenhuma outra ocasião em que tivesse se descontrolado tanto, a ponto de começar a atirar coisas no chão.
Estava tentando pensar com calma. O fato de Harderberg pretender deixar o Castelo Farnholm, se fosse verdade, não significava necessariamente nada além de uma decisão de fazer o que já havia feito tantas outras vezes: mudar para novas paragens. Não havia motivo algum para imaginar que estivesse fugindo. Do que ele poderia estar fugindo, afinal? E para onde iria? Na pior das hipóteses, tornaria a investigação um pouco mais complicada. Outros distritos policiais teriam de se envolver na questão, dependendo de onde o magnata resolvesse se instalar.
Essa era uma possibilidade que Wallander precisava explorar o quanto antes. Ligou para Widén. Uma das moças atendeu. Tinha voz de alguém muito jovem.
— O Sten está nos estábulos. O ferreiro está aqui.
— Ele tem telefone lá. Transfira a ligação.
— O telefone dos estábulos está com defeito.
— Então você vai ter que ir até lá buscá-lo. Diga que Roger Lundin quer falar com ele.
Levou quase cinco minutos até Widén pegar o fone.
— O que foi agora? — perguntou, sem disfarçar a irritação por ter sido incomodado no trabalho.
— Por acaso a Sofia falou para onde Harderberg está se mudando?
— Como é que ela vai saber uma coisa dessas?
— Estou só perguntando. Ela não mencionou nada a respeito de alguma intenção dele de sair do país?
— Ela só disse o que eu lhe contei. Mais nada.
— Preciso vê-la. O quanto antes.
— Sem essa, ela precisa trabalhar.
— Você vai ter que arrumar alguma desculpa. Ela costumava trabalhar aí, lidando com seus cavalos. Você está com alguns formulários que ela precisa preencher. Você tem que me arranjar esse encontro com ela.
— Estou sem tempo. O ferreiro está aqui. O veterinário está a caminho. Tenho encontro com vários proprietários. Não vai dar.
— Isto é muito importante. Acredite.
— Vou ver o que dá para fazer. Ligo de volta.
Wallander desligou. Já eram três e meia da tarde. Ele esperou. Depois de uns quinze minutos, foi buscar um café. Cinco minutos depois, Svedberg bateu na porta e entrou.
— Podemos esquecer do sujeito de Östersund — disse. — O carro com as placas FHC 803 foi roubado quando ele estava em Estocolmo, faz uma semana. Não há motivos para não acreditar. Além disso, é vereador.
— E por que você acha que um vereador é mais confiável que uma outra pessoa qualquer? — objetou Wallander. — Onde é que o carro foi roubado? E quando? Não se esqueça de obter uma cópia do boletim de ocorrência.
— Isso é mesmo tão importante assim?
— Pode ser que seja. E, de qualquer maneira, isso não levará muito tempo. Já falou com o Hanson?
— Só muito rapidamente. Ele está com o Martinson, agora, repassando o material da investigação.
— Passe essa tarefa para ele. É um bom começo para quem está se enfronhando no caso.
Svedberg se foi. Eram quatro horas e Widén ainda não tinha ligado. Wallander foi até o banheiro, depois de pedir à recepção para anotar qualquer recado. Encontrou um jornal vespertino e folheou-o distraído, com o pensamento bem longe. De volta a sua mesa, já tinha partido doze clipes de papel quando Widén chamou.
— Inventei um monte de mentiras, mas podem se encontrar em Simrishamn daqui a uma hora. Disse a ela para pegar um táxi, que você pagaria. Tem um café na ladeira que desce até o porto. Sabe qual?
Wallander sabia.
— Ela não tem muito tempo — continuou Widén. — Leve alguns formulários com você, assim ela pode fingir que está preenchendo os papéis.
— Acha que ela está sob suspeita?
— Eu não acho nada.
— Obrigado pela ajuda.
— Você vai ter que lhe dar dinheiro para o táxi de volta também.
— Estou indo já para lá.
— O que foi que houve? — perguntou Widén.
— Eu lhe conto quando souber. Ligo para você.
Wallander saiu da delegacia exatamente às cinco horas. Ao chegar em Simrishamn, estacionou no porto e subiu a ladeira até o café. Como esperava, a moça ainda não tinha chegado. Atravessou a rua e continuou andando um pouco mais. Depois parou e fingiu olhar uma vitrina, enquanto se mantinha de olho no café. Nem cinco minutos depois, viu Sofia subindo a ladeira, vindo da direção do porto, onde devia ter deixado o táxi. Ela entrou no café. Wallander examinou as pessoas que passavam e, quando teve tanta certeza quanto possível de que ela não estava sendo seguida, entrou também. Deveria ter levado alguém junto, para ficar vigiando. Sofia se sentara a uma mesa de canto e acompanhou a entrada do inspetor sem cumprimentá-lo.
— Desculpe o atraso — disse ele.
— Eu também me atrasei. E aí, o que você quer saber? Tenho de voltar para o castelo o quanto antes. Não vai pagar o táxi?
Wallander puxou a carteira e deu a ela uma nota de quinhentas coroas.
— Isso dá?
Ela sacudiu a cabeça.
— Preciso de mil.
— O quê? Custa mil coroas para vir até Simrishamn e voltar?
Apesar de achar que provavelmente estava sendo enganado, deu a ela mais uma nota de quinhentos. Ficou irritado, mas não havia tempo para isso.
— O que você quer? — disse ele. — Ou já pediu alguma coisa?
— Eu gostaria de um café. E um pão doce.
Wallander foi até o balcão e pediu. Depois de pagar, pediu recibo. Voltou para a mesa levando a bandeja.
Sofia olhava para ele com uma expressão que Wallander reconheceu como sendo de desprezo total.
— Roger Lundin. Eu não sei qual é o seu nome verdadeiro e também pouco me importa. Mas não é Roger Lundin. E você é da polícia.
Wallander achou que já podia lhe contar a verdade.
— Acertou, meu nome não é Roger Lundin. E eu sou policial. Mas você não precisa saber meu nome verdadeiro.
— Por que não?
— Porque estou dizendo que não — disse Wallander, deixando bem claro que não admitiria discussões a respeito. Reparando que a atitude do inspetor mudara, Sofia olhou para ele com algo que poderia até beirar o interesse.
— Escute com muita atenção — continuou ele. — Um dia explico para você por que é preciso manter esse sigilo todo. Por enquanto, tudo que posso dizer é que estamos investigando um assassinato sangrento. Só para que você entenda que isto não é nenhuma brincadeira, certo?
— Talvez.
— Agora o que quero é que você responda a algumas perguntas. E depois pode voltar para o castelo.
Só então Wallander lembrou-se dos formulários que levava no bolso. Pôs os papéis na mesa e entregou uma caneta para ela.
— Pode ser que alguém tenha te seguido. É por isso que agora você vai preencher esses formulários. Finja que nosso encontro foi para isso. Escreva seu nome no topo.
— Quem está me seguindo? — perguntou ela, olhando em volta.
— Olhe para mim — disse Wallander irritado. — Não olhe para lado nenhum. Se houver alguém seguindo você, pode ter certeza de que ele vê tudo. Mas você não vê nada.
— Como é que você sabe que é um homem?
— Eu não sei.
— Isso é ridículo.
— Tome o seu café, coma o seu pãozinho, preencha o formulário e olhe para mim. Se não fizer como eu disse, pode ter certeza que dou um jeito de providenciar para que nunca mais volte a trabalhar com o Widén.
Pelo visto ela acreditou. E obedeceu sem reclamar mais.
— Por que você acha que eles têm planos de sair do castelo? — perguntou Wallander.
— Porque me disseram que eu só trabalharia lá por um mês, não mais que isso. Disseram que estão saindo do castelo.
— Quem disse isso?
— Um homem foi até o estábulo dizer isso.
— Como é que ele era?
— Meio escuro.
— Era um negro?
— Não, mas usava roupas escuras e tinha cabelo preto.
— Estrangeiro?
— Falava sueco.
— Com sotaque estrangeiro?
— Pode ser.
— Sabe o nome dele?
— Não.
— Sabe o que ele faz?
— Não.
— Mas ele trabalha no castelo?
— Imagino que sim.
— O que mais ele disse?
— Não gostei dele. Na verdade, ele era um horror.
— Em que sentido?
— Ficou zanzando lá pelo estábulo, me vendo tratar um dos cavalos. Perguntou de onde eu tinha vindo.
— O que foi que você disse?
— Falei que tinha me candidatado ao emprego porque não podia mais ficar com o Sten.
— Ele perguntou mais alguma coisa?
— Não.
— Por que ele era um horror?
Sofia pensou, antes de responder.
— Ele me fez perguntas de um jeito que parecia que não queria que eu reparasse que estava fazendo perguntas.
— Você conheceu mais alguém lá?
— Só a mulher que me contratou.
— Anita Karlén.
— Acho que era esse o nome, sim.
— Ninguém mais?
— Não.
— Tem mais alguém para cuidar dos cavalos?
— Não, só eu. Dois cavalos não dão muito trabalho.
— Quem cuidava deles antes?
— Não sei.
— Por acaso eles disseram por que de repente passaram a precisar de uma nova cavalariça?
— Aquela mulher, a Anita, disse alguma coisa a respeito de alguém ter ficado doente.
— Mas você não sabe quem?
— Não.
— O que mais você viu?
— Como assim?
— Você deve ter visto outras pessoas. Carros entrando e saindo.
— Os estábulos ficam separados, longe do castelo. Só consigo enxergar uma das cumeeiras. O paddock fica ainda mais longe, na direção contrária ao castelo. E de qualquer modo eu não tenho permissão de ir lá.
— Quem foi que disse isso?
— Anita Karlén. Eu serei despedida no ato, se violar qualquer regra. E tenho que ligar e pedir permissão, se quiser sair do castelo.
— Onde foi que o táxi apanhou você?
— Nos portões.
— Mais alguma coisa que você ache que pode ser interessante para mim?
— Como é que eu vou saber o que você acha interessante?
Wallander pressentiu que havia mais alguma coisa, mas que ela não tinha certeza se deveria mencionar ou não. Ele fez um silêncio, antes de prosseguir, cautelosamente, como alguém tateando no escuro.
— Vamos voltar só um pouquinho. Para aquele homem que foi ver você lá no estábulo. Ele disse alguma outra coisa?
— Não.
— Ele não falou nada a respeito de estarem deixando o Castelo Farnholm para irem morar no exterior?
— Não.
Tudo verdade, pensou Wallander. Ela está dizendo a verdade. E eu também não preciso me preocupar com a possibilidade de ela ter se equivocado. Mas tem mais coisa, aí, sem sombra de dúvida.
— Me fale a respeito dos cavalos.
— São duas éguas, lindas, lindas. Uma, chamada Afrodite, tem nove anos de idade. E pêlo castanho-claro. A outra, Juno, tem sete anos e pelagem negra. Fazia séculos que ninguém andava nelas, isso é certo.
— Como é que você sabe disso? Eu não entendo quase nada de cavalos.
— Eu deduzi.
Wallander sorriu com o comentário dela. Mas não disse nada, apenas esperou que ela continuasse.
— Elas ficaram muito agitadas quando cheguei com as selas. Deu para ver que estavam morrendo de vontade de dar um galope.
— E você deu rédeas largas para elas?
— Dei.
— Você cavalgou dentro do limite das terras do castelo, imagino?
— Eles me disseram por onde eu posso passar.
Uma ligeira mudança de tom, quase imperceptível, uma leve sugestão de ansiedade fez com que Wallander apurasse os ouvidos. Estava chegando perto daquilo que Sofia não sabia se devia ou não mencionar.
— E aí então você saiu cavalgando.
— Eu comecei com a Afrodite. Enquanto isso, a Juno ficou correndo em volta do paddock.
— Quanto tempo você ficou com a Afrodite?
— Uma meia hora. A propriedade é enorme.
— E aí você voltou?
— Eu soltei a Afrodite e selei a Juno. Meia hora depois, eu estava de volta.
Wallander percebeu de imediato. Foi enquanto ela estava cavalgando o segundo cavalo que aconteceu alguma coisa. A resposta dela veio rápida demais, como se estivesse se revestindo de coragem para ultrapassar um obstáculo assustador. O inspetor resolveu que a única coisa a fazer era ir direto ao ponto.
— Eu sei que tudo que você está me contando é verdade — falou, com a voz mais amistosa possível.
— Não tenho mais nada para dizer. Agora preciso ir andando. Se eu me atrasar, eles me despedem.
— Daqui a dois minutinhos você está livre para ir embora. Só mais algumas perguntas. Vamos voltar ao estábulo e àquele homem que foi vê-la. Acho que você não me contou tudo o que ele falou. Estou certo ou errado? Será que ele também não lhe disse que havia certos lugares de onde você não podia nem chegar perto?
— Foi a senhorita Karlén quem disse isso.
— Talvez ela também tenha dito. Mas o homem que foi até o estábulo disse isso de uma forma que deixou você assustada. Acertei ou não?
Sofia desviou o olhar e balançou a cabeça devagar, em sinal afirmativo.
— Mas quando você saiu com a Juno, entrou num atalho errado. Ou talvez, de pura curiosidade, resolveu pegar uma outra trilha. Já deu para reparar que você é uma moça que gosta de fazer o que quer. Foi isso que aconteceu?
— Eu me enganei de trilha. — Ela falava tão baixinho que Wallander teve de se debruçar sobre a mesa para escutar o que ela dizia.
— Acredito em você. Me conte o que aconteceu nessa trilha.
— O cavalo de repente empinou e me derrubou. Foi só quando eu já estava no chão que vi o que tinha assustado a Juno. Parecia que havia alguém caído na trilha. Pensei que fosse um morto. Mas, quando fui olhar mais de perto, vi que era um boneco do tamanho de uma pessoa.
Wallander viu que a moça continuava assustada. Lembrou-se do que Gustaf Torstensson tinha dito à sra. Dunér: que Harderberg tinha um senso de humor macabro.
— Eu também teria levado o maior susto. Mas não vai acontecer nada de ruim com você. Não se mantiver contato comigo.
— Eu gosto dos cavalos — disse Sofia. — Mas do resto não.
— Então cuide dos cavalos. E fique atenta para não andar onde não deve.
Ele percebeu que Sofia se sentiu aliviada, depois de lhe contar o que tinha acontecido.
— Agora volte para lá — disse ele, juntando a papelada espalhada sobre a mesa. — Eu vou ficar mais um tempo por aqui. Você tem razão, não convém se atrasar.
Sofia levantou-se e partiu. Meio minuto depois, Wallander saiu atrás dela. Imaginava que a garota desceria até o porto para pegar o táxi lá, mas, da porta, ainda teve tempo de vê-la entrar num táxi parado ao lado da banca de jornais. Depois que eles se foram, esperou mais um pouco para ter certeza de que não estava sendo seguido. Voltou para Ystad, pensando no que Sofia dissera. Claro que não dava para ter certeza absoluta das intenções de Harderberg baseado só no testemunho dela.
Os pilotos, pensou. E os planos de vôo. Temos de nos manter um passo à frente, se a intenção dele for mesmo se mudar para o exterior.
Era hora de fazer outra visita ao Castelo Farnholm. Ele queria ter mais uma conversa cara a cara com Harderberg.
Por volta das quinze para as oito da noite, estava de volta à delegacia. Cruzou com Höglund no corredor. Ela o cumprimentou com um gesto ríspido de cabeça e foi para sua sala. Wallander parou no meio do caminho, atônito. Por que Ann-Britt tinha sido tão rude com ele? Retrocedeu e bateu na porta dela. Quando a colega respondeu, Wallander abriu a porta, mas não entrou.
— A gente costuma dizer “alô” um para o outro, nesta delegacia — disse ele.
Ann-Britt Höglund continuou examinando o conteúdo de uma pasta.
— O que houve?
Ela olhou para ele.
— Acho que você nem precisa me perguntar.
Wallander deu um passo para dentro da sala.
— Não entendi. O que foi que eu fiz?
— Pensei que você fosse diferente, mas agora vejo que é igualzinho a todos eles.
— Continuo não entendendo. Será que você podia fazer o favor de me explicar?
— Não tenho mais nada a dizer. E prefiro que você saia.
— Não até ouvir uma explicação.
Wallander não tinha certeza se Ann-Britt estava prestes a ter uma explosão de raiva ou se iria cair no choro.
— Eu pensei que estávamos nos tornando bons amigos — disse ele. — E não apenas colegas.
— Eu também pensava assim. Mas agora não mais.
— Explique!
— Vou ser sincera com você, mesmo que seja o exato oposto do que você tem sido comigo. Achava que você era alguém em quem eu poderia confiar, mas não é. E talvez leve um certo tempo até me acostumar com isso.
Wallander atirou os braços para o lado, num gesto amplo.
— Por favor, explique o que houve.
— O Hanson voltou hoje ao trabalho. Mas isso você já está cansado de saber, porque tinham acabado de conversar quando ele veio aqui me contar sobre o papo de vocês.
— O que foi que ele disse?
— Que você ficou feliz com a volta dele.
— E fiquei mesmo. Precisamos de todos os policiais que pudermos ter, neste caso.
— Ainda mais agora, que você se decepcionou comigo.
Wallander não podia acreditar no que tinha ouvido.
— Ele falou isso? Que eu estava decepcionado com você? Ele disse que eu disse isso?
— Eu só queria que você tivesse dito antes para mim.
— Mas não é verdade. Eu disse exatamente o contrário. Disse a ele que você já mostrou que é uma ótima policial.
— Pois saiba que ele foi muito convincente.
Wallander sentiu-se furioso.
— Mas que filho da mãe! — ele quase gritou. — Se quiser, ligo para ele agora mesmo e peço para ele se explicar. Não acredito que você esteja achando que ele disse a verdade!
— Mas então por que ele falou aquilo?
— Porque ele está com medo.
— De mim?
— Por que acha que ele vive fazendo esses cursos complementares? Porque tem medo de você passar na frente dele. O Hanson odeia a idéia de que você possa provar que é um policial melhor do que ele.
Wallander percebeu que Ann-Britt começava a acreditar nele.
— É verdade — ele insistiu. — Amanhã você e eu vamos ter uma conversinha com o senhor Hanson. E não vai ser um papo muito agradável, no que me diz respeito, isso eu lhe garanto.
Ela ergueu os olhos para o inspetor.
— Nesse caso, peço desculpas.
— Quem tem que pedir desculpas é ele. Não você.
Entretanto, no dia seguinte, sexta-feira, 26 de novembro, com a geada branqueando as árvores em frente à delegacia, Höglund pediu a Wallander para não tocar no assunto com Hanson. Depois de uma boa noite de sono, havia chegado à conclusão de que preferia falar com ele sozinha, em algum momento futuro, depois que tivesse tido a chance de se distanciar do incidente. Wallander se convenceu de que ela acreditara nele, de modo que não levantou objeções. O que não significava que iria esquecer o que o colega tinha feito. Um pouco mais tarde, naquela manhã, com todos meio enregelados e irritadiços, à exceção de Åkeson, que estava em plena forma de novo, Wallander convocou uma reunião. Contou à equipe sobre seu encontro com Sofia, em Simrishamn, mas o fato não melhorou grande coisa o humor dos colegas. Por outro lado, Svedberg apareceu com um mapa do Castelo Farnholm. A propriedade era enorme. Svedberg contou que o grosso das terras tinha sido adquirido no final do século XIX, quando o castelo pertencia a uma família de sobrenome surpreendentemente plebeu — a família Mårtensson. O pai fizera fortuna levantando casas em Estocolmo e, depois, construíra o que muitos chamariam de uma “extravagância” arquitetônica sob a forma de castelo medieval. Pelo visto, além de obcecado pela grandeza, talvez o sujeito estivesse muito próximo da loucura total. Depois que Svedberg esgotou o assunto e contou tudo o que descobrira sobre Farnholm, eles passaram a eliminar de suas listas todos os aspectos da investigação que até aquele momento haviam se mostrado insignificantes, ou que poderiam ser deixados de lado ao menos por uns tempos, por serem de pouca monta. Höglund conseguira enfim ter uma conversa com Kim Sung-Lee, a faxineira do escritório dos Torstensson. Como se previa, ela não tinha nada de muito significativo a dizer e todos os seus documentos estavam em ordem — a presença da moça na Suécia era absolutamente legal. Höglund também conversara, por iniciativa própria, com a funcionária do escritório, Sonia Lundin. Wallander não conseguiu disfarçar sua satisfação ao constatar o quanto essa iniciativa de Ann-Britt desagradara o colega Hanson. Infelizmente, Sonia Lundin também não tinha nada a dizer que pudesse ser de alguma utilidade. Mais outra possível pista a ser eliminada da lista. Por fim, quando todos davam a impressão de estar ainda mais irritadiços e apáticos, e uma névoa cinzenta parecia pairar sobre a mesa de reunião, Wallander tentou animar os colegas pedindo que se concentrassem nos planos de vôo do Gulfstream de Harderberg. Também sugeriu que Hanson fizesse perguntas discretas a respeito dos dois pilotos. Mas não conseguiu diluir aquela cerração, aquela apatia que começava a preocupá-lo; tudo levava a crer que a única esperança, agora, era que os peritos em finanças, com todo o conhecimento que tinham de informática, pudessem conferir às investigações um sopro de vida nova. Eles estavam empenhados em fazer uma apuração detalhada do império de Harderberg, mas haviam sido forçados a pedir mais tempo, e a planejada reunião fora adiada para a segunda-feira, 29 de novembro.
Wallander já tinha resolvido declarar encerrada a reunião quando Åkeson levantou a mão.
— Temos que conversar um pouco para ver em que pé estão as investigações no momento — disse. — Permiti que vocês se concentrassem em Alfred Harderberg por mais um mês, mas, ao mesmo tempo, não posso passar por cima do fato de que temos apenas evidências muito tênues para justificar essa ação. É como se, a cada dia que passa, estivéssemos nos afastando um pouco mais de algo que é crucial. Acho que todos nós lucraríamos fazendo um resumo claro e simples para ver até onde chegamos, baseados exclusivamente em fatos. E mais nada.
Todos olharam para Wallander. A objeção de Åkeson não tinha sido nenhuma surpresa para o inspetor, ainda que tivesse preferido não enfrentá-la.
— Você tem razão — disse ele. — Precisamos ver em que pé estamos. Mesmo sem nenhum resultado ainda das análises que as divisões de fraudes estão fazendo.
— Deslindar os mistérios que envolvem um império financeiro não identifica necessariamente um assassino, que dirá vários — falou Åkeson.
— Eu sei disso, mas de todo modo o quadro não estará completo sem as informações deles.
— Não há quadro completo nenhum — disse Martinson, com voz soturna. — Não há sequer um quadro.
O inspetor percebeu que teria de tomar as rédeas da situação, antes que ela fugisse ao controle. Para dar a si mesmo tempo de organizar as idéias, sugeriu que fizessem um pequeno intervalo e saíssem um pouco da sala. Quando tornaram a se reunir, ele foi firme e decidido.
— Eu consigo ver os possíveis contornos de um quadro — começou —, e vocês também, que eu sei. Mas vamos abordar o assunto de um ângulo diferente e começar dando uma olhada no que este caso não é. Não há nada que indique estarmos lidando com um louco. Claro que não podemos esquecer que um psicopata inteligente o bastante não teria tido dificuldade em planejar um homicídio disfarçado de acidente de carro, mas não há motivos aparentes e o que aconteceu com Sten Torstensson não parece combinar com o que aconteceu ao pai dele, de uma perspectiva psicopática. Assim como as tentativas de explodir a senhora Dunér e eu. Digo eu, e não incluo o nome de Höglund, porque acho que aquela bomba era só para mim. O que me leva de volta ao Castelo Farnholm e a Alfred Harderberg. Vamos retroceder no tempo. Vamos começar pelo dia em que, cinco anos atrás, Gustaf Torstensson foi procurado pela primeira vez por Alfred Harderberg.
Nesse exato momento, Björk entrou na sala e sentou-se. Wallander desconfiava que o promotor tivesse falado com ele durante o curto intervalo e lhe pedido que comparecesse à reunião.
— Gustaf Torstensson começa a trabalhar para Harderberg — repetiu Wallander. — O arranjo é bastante inusitado e a pergunta que fazemos é: que utilidade um advogado provinciano poderia ter para um magnata internacional? É possível supor que Harderberg pretendia usar as deficiências de Torstensson em proveito próprio, que ele esperava conseguir manipular o advogado, caso fosse necessário. Não sabemos se foi assim, é apenas suposição de minha parte. Mas em algum momento, ao longo desse trabalho, acontece algo inesperado. Torstensson parece um tanto inquieto ou, talvez fosse melhor dizer, deprimido. O filho dele nota isso, assim como sua secretária. Ela falou até em receio por parte dele, disse que ele parecia estar com medo. Algo mais acontece mais ou menos na mesma época. Torstensson e Lars Borman já se conheciam através de uma sociedade voltada para o estudo de ícones. O relacionamento deles de repente passa por um desentendimento qualquer, e podemos supor que tivesse relação com Harderberg, porque, de alguma forma, é Harderberg quem está por trás da fraude cometida contra a Administração do Condado de Malmöhus. Mas a pergunta-chave é a seguinte: por que o velho Torstensson começou a se comportar de uma forma inesperada?
E Wallander continuou:
— Desconfio que ele descobriu, no trabalho que fazia para Harderberg, algo que o abalou. Talvez a mesma coisa que abalou Borman. Não sabemos o que é. Um pouco depois, o advogado Torstensson é morto por assassinos que forjam um acidente. Pelo que disse Kurt Ström, podemos imaginar, por alto, o que houve. Logo em seguida, Sten Torstensson vai me procurar em Skagen. Alguns dias depois, também morre assassinado. Ele, sem dúvida nenhuma, se sentia em perigo, tanto assim que tentou lançar uma pista falsa, fingindo ter ido à Finlândia, quando, na verdade, tinha ido para a Dinamarca. Estou convencido de que alguém o seguiu até a Dinamarca. Alguém viu nosso encontro na praia. As mesmas pessoas que mataram Gustaf Torstensson estavam na cola de Sten Torstensson. Eles não tinham como saber se o pai discutira ou não suas descobertas com o filho. Assim como também não tinham como saber o que Sten havia me dito. Ou o que a senhora Dunér sabia. Foi por esse motivo que Sten morreu, foi por esse motivo que eles tentaram matar a senhora Dunér e por esse motivo meu carro foi queimado. É também o motivo de só eu estar sendo vigiado, e vocês não. Mas tudo isso nos leva de volta à pergunta: o que o velho Torstensson teria descoberto? Estamos tentando descobrir se tem algo a ver com o recipiente de plástico que encontramos no banco traseiro do carro do advogado. Também pode ser que seja uma outra coisa qualquer, que os peritos em finanças poderão nos dizer. Seja o que for que aconteça, existe um esboço de quadro, aqui, que começa com o homicídio a sangue-frio de Gustaf Torstensson. Sten Torstensson selou a sorte dele quando foi me ver em Skagen. E, no pano de fundo desse esboço, tudo que temos é Alfred Harderberg e seu império. Nada mais, pelo menos nada que a gente consiga enxergar.
Depois que Wallander acabou da falar, ninguém tinha nenhuma pergunta.
— Você pinta um quadro muito plausível — falou Åkeson quando o silêncio começou a ficar opressivo. — Talvez até esteja certíssimo. O único problema é que não temos uma única prova que nos aponte esse caminho.
— Justamente por isso é que temos de acelerar a investigação que estamos fazendo do recipiente de plástico — disse Wallander. — Temos que tirar a tampa que cobre a Avanca e ver o que há por baixo. Talvez haja um fio lá dentro que a gente possa começar a puxar.
— Eu me pergunto se não seria uma boa idéia ter uma conversa séria com Kurt Ström — sugeriu Åkeson. — Esses homens que vivem em volta de Harderberg o tempo todo, quem são eles?
— Essa idéia já me ocorreu também — disse Wallander. — Ström talvez possa esclarecer uma parte dessa questão. Mas assim que chegarmos ao Castelo Farnholm, pedindo para falar com Ström, Harderberg vai perceber que suspeitamos de um envolvimento direto seu. E, se isso acontecer, duvido que algum dia esse caso seja resolvido. Com os recursos que ele tem à disposição, pode limpar o terreno todo e não deixar rastro nenhum. Por outro lado, acho que vou lhe fazer uma visitinha para armar a nossa própria pista falsa.
— Você vai ter que ser muito convincente — disse Åkeson —, senão ele vai perceber tudo na hora. — O promotor colocou a pasta sobre a mesa e começou a guardar a papelada. — O Kurt deu uma boa idéia do pé em que estamos. É plausível, mas muito vago. No entanto, vamos ver o que as divisões de fraudes têm para nos dizer na segunda-feira.
A reunião terminou. Wallander estava preocupado. As palavras pronunciadas havia pouco continuavam ecoando dentro dele. Talvez Åkeson tivesse razão. O resumo tinha parecido plausível, mas será que, apesar disso, o curso que estavam seguindo acabaria por deixá-los incapazes de provar fosse o que fosse?
Algo tem de acontecer, pensou ele. Algo tem de acontecer, e rápido.
Sempre que Wallander pensava nas semanas que se sucederam a essa reunião, a impressão era de que tinham sido algumas das piores de toda a sua carreira na polícia. E, ao contrário do que esperava, nada aconteceu. Os peritos em finanças examinaram tudo o que havia para examinar várias e várias vezes, não encontraram nada e disseram que precisavam de mais tempo ainda. Wallander conseguiu refrear a impaciência — ou, na verdade, o que aconteceu foi que ele conseguiu reprimir sua decepção, já que era óbvio que as divisões de fraudes estavam trabalhando com o máximo afinco. Quando tentou entrar em contato com Ström de novo, descobriu que o segurança havia ido para Västerås, para enterrar a mãe. Em vez de segui-lo até lá, Wallander preferiu esperar. Tampouco conseguiu falar com os dois pilotos do Gulfstream, que estavam sempre voando de lá para cá, levando Harderberg para baixo e para cima. A única coisa que a equipe conseguiu, durante esse período desalentador, foi obter acesso aos planos de vôo do jatinho particular. O itinerário de Alfred Harderberg era espantoso. Svedberg calculou que só de combustível ele devia gastar muitos milhões de coroas por ano. Os analistas financeiros copiaram os planos de vôo e tentaram encaixá-los no alucinado programa de negociações empresariais do magnata.
Wallander se encontrou outras duas vezes com Sofia, ambas no mesmo café de Simrishamn; mas ela não tinha mais nada a relatar.
Dezembro havia chegado e parecia que a investigação estava prestes a entrar num beco sem saída. Talvez até já tivesse entrado.
Nada que pudesse ser útil à polícia de Ystad aconteceu. Absolutamente nada.
No sábado, 4 de dezembro, Ann-Britt Höglund o convidou para jantar. O marido dela estava em casa, num dos breves intervalos entre suas infindáveis viagens pelo globo, à procura de canalizações defeituosas. Wallander bebeu muito além do que deveria ter bebido. Em nenhum momento, durante aquela noite, houve menção às investigações. Já era muito tarde quando o inspetor se deu conta de que deveria ir para casa. E resolveu ir andando. Quando estava na altura do prédio do correio, na Kyrkogårdsgatan, teve de se apoiar numa parede para vomitar. Ao chegar finalmente em casa, na Mariagatan, sentou-se com a mão no telefone, com a intenção de ligar para Baiba, em Riga. Mas venceu o bom senso e ele acabou ligando para Linda, em Estocolmo. Quando entendeu quem era, ela ficou irritada e lhe disse para ligar de novo no dia seguinte. Só depois desse rápido diálogo é que Wallander se deu conta de que Linda não devia estar sozinha em casa. Essa idéia o deixou preocupado e, como resultado, sentiu-se culpado, mas quando ligou para ela, no dia seguinte, não fez menção ao assunto. Ela lhe contou do trabalho que estava fazendo como aprendiz, numa fábrica de estofados, e ele percebeu que a filha estava contente com o que fazia. Mas ficou desapontado quando ela não disse nada sobre visitá-lo durante o Natal. Linda e os amigos haviam alugado uma casinha nas montanhas Västerbotten para passar o fim de ano. Por fim, ela lhe perguntou o que andava fazendo.
— Estou atrás de um Cavaleiro das Sedas.
— Um Cavaleiro das Sedas?
— Qualquer dia desses eu explico para você o que é um Cavaleiro das Sedas.
— O cara parece legal.
— Mas não é. Eu sou da polícia, Linda. É muito raro que a gente saia atrás de alguém legal.
E as coisas continuaram paradas. Na quinta-feira, 9 de dezembro, Wallander estava prestes a desistir. No dia seguinte, iria sugerir a Åkeson que começassem a investigar outras pistas.
No entanto, na sexta, 10 de dezembro, aconteceu algo. Naquele momento, ele ainda não sabia disso, mas os dias de inércia haviam terminado. Ao entrar em sua sala, viu um recado sobre a mesa, pedindo para que ligasse o quanto antes para Kurt Ström. Ele pendurou o paletó, sentou-se e discou o número. Ström atendeu na hora.
— Quero vê-lo — disse ele.
— Aqui ou na sua casa? — perguntou Wallander.
— Nem num nem noutro. Tenho uma casinha na Svartavägen, em Sandskogen. Número 12. Você consegue estar lá em uma hora?
— Estarei lá.
Wallander desligou e olhou pela janela.
Depois levantou-se, vestiu o paletó e saiu às pressas da delegacia.
16
Nuvens de chuva corriam velozes pelo céu.
Wallander estava inquieto. Saindo da delegacia, seguiu na direção leste, virou à direita na Jaktpaviljongsvägen e parou assim que avistou o albergue da juventude. Apesar do frio e do vento, desceu para caminhar um pouco pela praia deserta. A sensação era a de que tinha recuado no tempo, retrocedido alguns meses. A praia era aquela de Skagen, na Jutlândia, e de novo ele parecia estar em patrulha, marchando para cima e para baixo.
No entanto essa sensação passou tão depressa quanto surgira. Não tinha tempo para delírios desnecessários. Tentou entender por que Ström entrara em contato com ele. Sua inquietude vinha da esperança de que o ex-colega pudesse oferecer algum elemento que daria à polícia de Ystad a brecha que faltava para concluir a investigação com sucesso. Tinha plena consciência, porém, de que estava misturando desejo e realidade. Kurt Ström não só odiava o inspetor, como também não tinha o menor afeto pela corporação que o expulsara. Não podiam contar com a ajuda dele. Wallander não fazia a menor idéia do que o homem queria.
Começou a chover. O vento enfurecido o obrigou a voltar para o carro. Ligou o motor e aumentou o aquecimento. Uma mulher e um cachorro passaram, indo em direção à praia. Wallander lembrou-se da mulher que via toda hora na praia de Skagen. Tinha ainda uns trinta minutos, antes do encontro que havia marcado com Ström, na Svartavägen. Voltou para o carro e seguiu devagar até
o centro de Sandskogen, examinando as casas de veraneio espalhadas por lá. Não teve a menor dificuldade em identificar a construção vermelha descrita por Kurt Ström. Parou o carro e aproximou-se do jardinzinho. Parecia uma casa de boneca em tamanho grande. Estava mal conservada. Como não havia carro parado do lado de fora, Wallander pensou que tivesse chegado primeiro. Mas a porta da frente se abriu e lá estava Ström, parado na soleira.
— Não vi carro nenhum — disse Wallander. — Pensei que ainda não tivesse chegado.
— Mas cheguei. Não se incomode com o meu carro.
Wallander entrou, a convite do outro. Lá dentro, havia um cheiro vago de maçãs. As cortinas estavam fechadas e a mobília coberta por lençóis brancos.
— Bela casa você tem aqui — disse Wallander.
— Quem falou que a casa é minha? — retrucou Ström, tirando os lençóis de cima de duas poltronas. — Não tem café. Vai ter que passar sem.
Wallander sentou-se numa das poltronas. A sala tinha uma atmosfera de coisa desabitada, parecia úmida. Ström sentou-se na frente dele. Usava um terno amarrotado e um sobretudo comprido, pesado.
— Você queria me ver — disse Wallander. — Pois então. Cá estou eu.
— Andei pensando que talvez a gente pudesse fazer um acordo. Digamos que tenho algo que você quer.
— Não faço acordos.
— A chance é boa, não descarte tão rápido. Se eu fosse você, ao menos escutaria o que tenho a dizer.
Wallander reconheceu que errara. Devia esperar, antes de recusar a oferta. Fez um gesto para que Kurt Ström continuasse.
— Estive fora alguns dias, para enterrar minha mãe — começou ele. — O que me deu um bocado de tempo para pensar. Sobretudo no porquê de a polícia estar tão interessada no Castelo Farnholm. Depois que você esteve em casa, claro que percebi que desconfia que o homicídio daqueles dois advogados está relacionado com o castelo. O problema é que eu simplesmente não consigo entender por quê. Quer dizer, o filho nunca pôs os pés lá. Era o velho que lidava com Harderberg. O que a gente achou que tinha morrido num acidente de carro.
Ström fez uma pausa para olhar o inspetor, ver se havia alguma reação.
— Continue.
— Na volta, quando retomei o trabalho, acho que já tinha me esquecido completamente da sua visita. Mas aí aconteceu uma coisa que iluminou a questão sob novas luzes.
Ele tirou um maço de cigarros e um isqueiro do bolso do sobretudo. Ofereceu o maço ao inspetor, que sacudiu a cabeça.
— Se há uma coisa que aprendi nesta vida — disse Ström — é que a gente deve manter os amigos a uma boa distância. Mas pode deixar que os inimigos se aproximem o quanto puderem.
— Deduzo que seja esse o motivo de eu me encontrar aqui.
— Talvez. Imagino que saiba que não gosto de você, Wallander. No que me diz respeito, você representa o pior tipo daquela integridade burguesa que lota os quadros da polícia sueca. Mas dá para fazer acordos com os inimigos, ou com gente de quem não gostamos. E acordos muito bons, aliás.
Kurt Ström foi até a cozinha e voltou com um pires, para servir de cinzeiro. Wallander aguardou.
— Novas luzes — Ström repetiu. — Quando voltei, descobri que não vou ter mais emprego a partir do Natal. Eu não esperava nada parecido. Mas está óbvio que Harderberg resolveu sair de Farnholm.
Costumava ser dr. Harderberg, reparou Wallander. Agora era só Harderberg, e mesmo assim Ström estava encontrando dificuldade em pronunciar aquele nome.
— Nem é preciso dizer que fiquei arrasado. Quando aceitei o cargo de chefe da segurança, me garantiram que era um trabalho permanente. Ninguém mencionou a possibilidade de Harderberg sair de lá. O salário era bom e eu tinha comprado uma casa. E agora vou ficar desempregado de novo. Não gostei nem um pouco da história.
Wallander estava enganado. Era até possível que Ström tivesse algo importante para dizer.
— Ninguém gosta de perder o emprego — disse o inspetor.
— E você lá sabe o que isso significa?
— Não tanto quanto você, obviamente.
Ström apagou o cigarro.
— Então vamos pôr as cartas na mesa. Você precisa saber o que se passa lá dentro do castelo. Informações que você não pode obter sem divulgar aos quatro ventos o fato de estar interessado. E isso você não quer fazer. Do contrário, teria simplesmente chegado lá e exigido falar com Harderberg. Da minha parte, estou pouco me lixando para os motivos de você querer informações assim na moita. O que me importa, no entanto, é que sou a única pessoa capaz de fornecer isso a vocês. Em troca, quero algo de vocês.
Wallander não sabia ao certo se aquela história era uma armadilha ou não. Talvez Harderberg estivesse por trás, puxando as cordinhas de Ström. Mas resolveu acreditar no ex-colega. Seria arriscado demais tentar aquele golpe, e muito fácil de Wallander perceber.
— Você tem razão. Há coisas que eu quero saber, e sem que ninguém repare. O que você quer em troca?
— Pouca coisa. Um papel.
— Um papel?
— Tenho que pensar no meu futuro. Quer dizer, isso se eu tiver um, no setor privado dos serviços de segurança. Quando consegui o emprego, no Castelo Farnholm, achei que fosse uma vantagem não ter relações lá muito boas com a polícia sueca. Mas, desgraçadamente, isso pode vir a ser uma desvantagem em situações diferentes.
— E o que vai estar escrito nesse papel que você quer?
— Uma referência positiva aos meus serviços. Em papel timbrado da polícia. Assinado pelo Björk. E certificada.
— Nem pensar numa coisa dessas. A falsificação seria óbvia demais. Você nunca trabalhou em Ystad. Uma simples checagem na central nacional da polícia e qualquer um poderia descobrir que você foi expulso da corporação.
— Querendo, é perfeitamente possível forjar uma referência. E eu mesmo cuido de seja lá o que for que conste dos arquivos centrais, de um jeito ou de outro.
— Como?
— Isso é problema meu. E não preciso de sua ajuda.
— E como é que você acha que vou conseguir obter uma assinatura do Björk numa carta falsa de referência?
— Aí o problema é seu. Além do mais, nunca ninguém vai saber de onde ela saiu, você está limpo. O mundo está cheio de documentos falsificados.
— Se é esse o caso, então você mesmo pode arranjar o papel, sem a minha interferência. A assinatura do Björk pode ser falsificada.
— Claro que pode. Mas a carta de referência precisa constar do sistema, para ter algum valor. Dos arquivos computadorizados. E é aí que você entra.
Wallander sabia que Ström estava certo. Ele mesmo já falsificara um passaporte, uma vez. O que não o impedia de continuar achando condenável a idéia.
— Digamos que vou pensar no assunto — disse Wallander. — Mas me deixe fazer mais algumas perguntas. Podemos tomar as suas respostas como amostras grátis. E, depois de ouvir quais são, eu digo se topo ou não.
— Quem decide quantas perguntas vão ser feitas sou eu. E nós vamos resolver essa parada aqui e agora. Antes de você ir embora.
— Eu topo.
Ström acendeu outro cigarro, depois encarou Wallander.
— Por que motivo Harderberg está se mudando?
— Eu não sei.
— Para onde ele vai?
— Também não sei. Muito provavelmente para fora do país.
— O que o leva a pensar assim?
— Tem havido um bocado de visitas, nos últimos tempos, de corretores do exterior.
— Como assim, você quer dizer de estrangeiros?
— Da América do Sul. Ucrânia. Birmânia.
— E o castelo foi posto à venda?
— Harderberg em geral não se desfaz das propriedades que adquire. Ele não vai vender. Só porque deixou de morar no Castelo Farnholm não significa que alguém mais vai poder morar lá. Ele fecha aquilo e enche de naftalina.
— Quando é que ele se muda?
— Pode ser até amanhã. Ninguém sabe. Mas meu palpite é que vai ser logo. Talvez antes do Natal.
Wallander tinha muito o que perguntar, perguntas demais. Não conseguia decidir quais seriam as mais importantes.
— Os sujeitos que vivem nas sombras — acabou dizendo. — Quem são eles?
Ström meneou a cabeça como alguém que estivesse de acordo.
— Esse é um ótimo jeito de descrever aqueles caras.
— Eu vi dois homens no hall de entrada — disse Wallander. — Na noite em que fui visitar o Harderberg. Mas também vi a mesma dupla na primeira vez em que fui ao castelo e falei com a Anita Karlén. Quem são eles?
Ström contemplou a fumaça que subia do seu cigarro.
— Eu vou lhe dizer. Mas essa é a última amostra grátis que eu dou.
— Se der a resposta certa. Quem são eles?
— Um deles é Richard Tolpin. Nascido na África do Sul. Um soldado, mercenário. Acho que não houve conflito ou guerra na África nas últimas duas décadas de que ele não tenha participado.
— De que lado?
— Do lado que paga mais. Mas no começo quase que ele se deu mal. Quando Angola expulsou os portugueses, em 1975, eles capturaram cerca de vinte mercenários que foram levados a julgamento. Quinze foram condenados à morte, Tolpin entre eles. Catorze foram fuzilados. Não faço a menor idéia de por que o pouparam. Presumivelmente porque poderia ser útil ao novo regime.
— Quantos anos ele tem?
— Pouco mais de quarenta. Muito em forma. Especialista em caratê. Excelente pontaria.
— E o outro?
— Belga. Maurice Obadia. Mercenário também. Mais novo que o Tolpin. Talvez uns trinta e quatro, quem sabe trinta e cinco. É só o que sei sobre ele.
— O que eles fazem no Castelo Farnholm?
— São os chamados “assessores especiais”. Mas não passam de guarda-costas de Harderberg. Difícil achar gente mais habilidosa, ou mais perigosa. Harderberg parece gostar da companhia deles.
— Como é que sabe disso?
— Às vezes eles praticam tiro ao alvo nos terrenos do castelo. E os alvos que usam são muito especiais.
— Me conte mais.
— Manequins, bonecos enormes que parecem gente. Eles miram na cabeça. E em geral acertam.
— Harderberg também participa?
— Participa. Às vezes eles praticam a noite inteira.
— Sabe se algum dos dois, Tolpin ou Obadia, possui uma pistola Bernadelli?
— Eu me mantenho o mais longe possível das armas daqueles dois — disse Ström. — Tem certas pessoas das quais é sempre melhor manter uma boa distância.
— Mas, para portar armas, eles precisam ter licença.
Ström sorriu.
— Só se eles forem residentes na Suécia.
— E isso significa o quê? Por acaso o Castelo Farnholm não fica na Suécia?
— Há algo de especial nos “assessores especiais”. Eles nunca puseram os pés na Suécia. De modo que não se pode dizer que estejam no país.
Antes de continuar, apagou cuidadosamente o cigarro.
— Há um heliponto, no castelo. É sempre durante a noite, as luzes de aterrissagem se acendem, um helicóptero baixa, às vezes até dois. E partem de novo antes de amanhecer. Voam baixo, de modo que não são rastreados pelos radares. Sempre que Harderberg vai viajar no Gulfstream, Tolpin e Obadia somem uma noite antes, de helicóptero. E se encontram de novo em algum lugar. Talvez em Berlim. É lá que os helicópteros estão registrados. Quando voltam, o procedimento é igual. Ou seja, eles não passam pela alfândega, como todo mundo.
Wallander balançou a cabeça, pensativo.
— Só mais uma pergunta. Como é que você sabe disso tudo? Você passa o tempo todo fechado dentro da sua casamata, grudado nos portões de entrada. E não acredito em hipótese alguma que você tenha permissão para perambular por lá à vontade.
— Essa é uma pergunta para a qual você nunca vai obter resposta. Digamos que seja um segredo profissional que não desejo transmitir a ninguém.
— Vou providenciar aquela sua referência — disse Wallander.
— E não é que saiu? — disse Ström, com um sorriso. — Eu sabia que acabaríamos fechando negócio.
— Sabia coisa nenhuma. Quando é seu próximo turno?
— Eu trabalho três noites seguidas. Começo hoje às sete.
— Eu volto às três da tarde. Tenho uma coisa para lhe mostrar. E uma coisa para pedir.
Ström levantou-se e espiou por uma fresta das cortinas.
— Tem alguém seguindo você? — perguntou Wallander.
— Cuidado nunca é demais. Pensei que você já soubesse disso.
Wallander voltou para o carro e para a delegacia. Parou na recepção e pediu a Ebba que convocasse uma reunião imediata da equipe de investigação.
— Você parece bem estressado — disse Ebba. — Aconteceu alguma coisa?
— Aconteceu. Finalmente aconteceu algo. Não se esqueça do Nyberg. Preciso dele aqui.
Vinte minutos depois, estavam prontos para começar, embora Ebba não tivesse conseguido localizar Hanson, que deixara a delegacia pela manhã, sem dizer a ninguém aonde estava indo. Åkeson e Björk entraram na sala de reunião bem na hora em que Wallander havia decidido que não poderia mais esperar por eles. Sem mencionar o fato de ter feito um acordo com Kurt Ström, ele contou toda a conversa que tiveram na casa da Svartavägen. A apatia que caracterizara as últimas reuniões tinha diminuído visivelmente, embora Wallander ainda enxergasse muita dúvida na expressão dos colegas. Sentiu-se mais ou menos como um treinador de futebol tentando convencer seus jogadores de que eles estão prestes a entrar numa fase áurea, apesar de terem perdido todos os jogos nos seis meses anteriores.
— Eu acredito na proposta — falou, concluindo. — Kurt Ström pode ser muito útil para nós.
Åkeson abanou a cabeça.
— Não estou gostando nem um pouco disso. O sucesso dessa investigação parece agora depender de um guarda de segurança que foi expulso da polícia, mas que, ainda assim, é alçado à condição de nosso salvador.
— E nós temos alguma escolha, por acaso? — disse Wallander. — Além do mais, não vejo nada de ilegal aí. Foi ele que nos procurou, e não o contrário.
Björk foi ainda mais contundente.
— Nem pensar numa coisa dessas. Não podemos usar um policial que foi expulso da corporação por corrupção como nosso informante. Haveria um escândalo enorme se desse errado e isso chegasse ao conhecimento dos meios de comunicação. O Comissário Nacional da Polícia faria picadinho do meu fígado, se eu desse o sinal verde a você.
— Deixa ele fazer picadinho de mim, então — disse Wallander. — Ström está falando sério. Ele quer ajudar. Contanto que a gente não faça nada ilegal, não existe o menor risco de escândalo.
— Já estou até vendo as manchetes — falou Björk. — E elas não são bonitas.
— Pois eu vejo manchetes com um teor diferente — contrapôs Wallander. — Que falam de mais dois homicídios que a polícia não foi capaz de solucionar.
Martinson percebeu que a discussão estava fugindo ao controle e interveio.
— Me parece um tanto estranho que ele não tenha pedido nada em troca dessa mãozinha que se dispôs a dar para a gente. Será que podemos de fato acreditar que a irritação por ter perdido o emprego é motivo suficiente para começar a ajudar uma polícia que ele odeia?
— Ele odeia a polícia sim, quanto a isso não resta dúvida — disse Wallander. — Mas ainda assim acho que podemos confiar nele.
Teria dado para escutar um alfinete caindo no chão, tamanho o silêncio. Åkeson cutucava o lábio superior, se perguntando o que pensar daquilo.
— A pergunta do Martinson... você ainda não respondeu.
— Ele não pediu nada em troca — mentiu Wallander com a maior desfaçatez.
— O que, exatamente, você quer que a gente faça?
Wallander meneou a cabeça na direção de Nyberg, que estava sentado ao lado de Höglund.
— Sten Torstensson foi morto por balas que saíram, é muito provável, de uma pistola Bernadelli. Que é uma arma rara no país, segundo Nyberg. Quero que Ström descubra se um daqueles guarda-costas possui uma Bernadelli. Só assim poderemos entrar no castelo e efetuar uma prisão.
— Podemos fazer isso de qualquer maneira — disse Åkeson. — Portadores de armas, pouco importa de que fabricação, residindo de forma ilegal no país, isso basta para mim.
— Mas e depois, como ficamos? — argumentou Wallander. — Nós prendemos a dupla. Aí deportamos os dois. Ou seja, colocamos todos os nossos ovos num único cesto e depois derrubamos tudo no chão. Antes de apontarmos para eles como possíveis assassinos, temos de saber se um ou outro é dono de uma arma que pode ser a arma do crime.
— Impressões digitais — disse Nyberg. — Seria muito bom se conseguíssemos alguma. Aí poderíamos cruzar os dados com a Interpol e a Europol.
Wallander concordou. Havia se esquecido das impressões digitais.
Åkeson continuava cutucando o lábio superior.
— Você tem mais alguma coisa em mente? — perguntou.
— Não — disse Wallander. — Não no momento.
Ele sabia que estava andando numa corda bamba e que poderia despencar lá do alto a qualquer momento. Se passasse dos limites, Åkeson poria um ponto final em quaisquer novos contatos com Ström ou, no mínimo, puxaria o freio dos trabalhos. De modo que não mencionou tudo o que pretendia fazer.
Enquanto o promotor continuava pesando os prós e os contras, Wallander olhou para Nyberg e Höglund. Ela sorriu. Nyberg meneou a cabeça de forma quase imperceptível. Eles tinham entendido, pensou o inspetor. Eles sabem o que estou pensando. E estão comigo.
Por fim, Åkeson parou de brigar consigo mesmo.
— Só esta vez — disse ele. — Só esta vez mesmo. Não quero que haja nenhum outro contato com Kurt Ström no futuro, sem que antes eu seja informado. Vou querer saber o que você pretende pedir a ele antes de poder aprovar qualquer nova contribuição por parte daquele cidadão. E também pode contar com uma grande probabilidade de eu dizer não.
— Mas é claro — disse Wallander. — Nem tenho certeza se haverá novas ocasiões.
Depois que a reunião terminou, Wallander levou Nyberg e Höglund para sua sala.
— Acho que vocês entenderam o que estou pretendendo fazer — disse, depois de fechar a porta. — Como não disseram nada, creio que também concordam que precisamos ir um pouco mais longe do que dei a entender ao promotor.
— O recipiente de plástico — disse Nyberg. — Se o Ström conseguir encontrar um outro semelhante, no castelo, eu ficaria muito grato.
— Justamente — disse Wallander. — Aquele recipiente é a coisa mais importante que temos. Ou a única coisa que temos, dependendo de como se olhe a questão.
— Mas como é que ele vai tirar o vasilhame de lá, se encontrar um? — Ann-Britt quis saber.
Wallander e Nyberg se entreolharam.
— Se o que estamos pensando for verdade, o que encontramos no carro de Gustaf Torstensson era um recipiente substituto — explicou Wallander. — Minha idéia é trocar um pelo outro.
— Eu devia ter pensado nisso — disse ela. — Não raciocinei rápido o bastante.
— Eu às vezes acho que é o Wallander que pensa rápido demais — comentou Nyberg baixinho.
— Preciso dele para daqui a umas duas horas — pediu Wallander. — Vou me encontrar com o Ström de novo às três da tarde.
Nyberg saiu, mas Ann-Britt Höglund ficou um pouco mais.
— O que foi que ele pediu em troca?
— Não tenho bem certeza. Quer uma carta de recomendação dizendo que não foi um mau policial, mas acho que tem mais coisa, além disso.
— O quê?
— Ainda não sei, mas desconfio.
— E não vai me contar o que é?
— Prefiro esperar um pouco. Até saber de fato.
Pouco depois das duas da tarde, Nyberg entrou na sala de Wallander com o recipiente de plástico. Acondicionado dentro de dois sacos pretos de lixo.
— Não se esqueça das impressões digitais. Qualquer coisa serve... copo, xícara, jornal.
Meia hora depois, Wallander pôs o recipiente no banco traseiro do carro e partiu para Sandskogen. A chuva vinha chegando do mar, acompanhada de fortes rajadas de vento. Quando desceu do carro, Ström estava na porta, já de uniforme. Wallander levou o saco preto de lixo para dentro da casinha vermelha.
— Que uniforme é esse? — perguntou.
— O do Castelo Farnholm. Não tenho idéia de quem foi que inventou o modelo.
Wallander tirou o recipiente de dentro dos sacos de lixo.
— Já viu um destes antes?
Ström abanou a cabeça.
— Em algum lugar do castelo tem um idêntico a este — afirmou Wallander. — Talvez até mais de um. Quero que faça uma troca e me traga o que está lá. Tem como entrar no castelo propriamente?
— Faço minhas rondas toda noite.
— Tem certeza mesmo de que nunca viu um destes antes?
— Nunca. Eu não saberia nem por onde começar a procurar.
Wallander refletiu por alguns instantes.
— Tem alguma despensa refrigerada no castelo?
— No porão.
— Procure lá. E não se esqueça da Bernadelli.
— Isso vai ser mais difícil. Eles não largam as armas nunca, devem até dormir com elas.
— Precisamos das impressões digitais de Tolpin e Obadia. Mais nada. E, depois, você terá sua carta de referência certificada. Se é que é isso mesmo que você quer.
— E o que mais eu haveria de querer?
— Acho que o que você quer mesmo é mostrar que não foi tão mau policial quanto muita gente pensa.
— Pois se enganou. Tenho que pensar no meu futuro.
— Foi só uma idéia.
— À mesma hora amanhã — disse Ström. — Aqui.
— Só mais uma coisa. Se algo der errado, eu nunca soube de nada — avisou Wallander.
— Conheço as regras. Se não tem mais nada para mim, acho melhor ir andando.
Wallander correu, debaixo da chuva, até o carro. Na volta para a delegacia, parou no Fridolfs para tomar um café e comer alguns sanduíches. Não ter contado toda a verdade durante a reunião da manhã era sem dúvida fator de preocupação, mas sabia que não hesitaria em forjar uma carta certificada para Kurt Ström, se fosse preciso. Mentalmente, voltou ao pedido de ajuda que Sten Torstensson lhe fizera. E que ele negara. O mínimo que poderia fazer agora era descobrir quem tinha sido seu assassino.
Sentado no carro, sem dar a partida, ficou vendo as pessoas apressadas que passavam na chuva. Lembrou-se da ocasião, alguns anos antes, em que, voltando de Malmö, muito bêbado, fora parado por dois colegas. Eles o haviam protegido e nunca ninguém soubera de nada. Naquela noite, deixara de ser um cidadão comum para se tornar um membro da corporação, e a corporação tomara conta dele, em vez de puni-lo, suspendê-lo ou até mesmo expulsá-lo. Peters e Norén, os policiais que o viram ziguezaguear pelo asfalto e que o pararam, tinham toda sua lealdade. E então? E se por acaso um deles tentasse obter de volta o favor prestado?
Lá bem no fundo, o desejo de Kurt Ström era voltar a fazer parte da corporação policial. Wallander tinha certeza. O antagonismo e o ódio demonstrados eram apenas uma fachada superficial. Não havia dúvida de que ele sonhava em um dia voltar a ser da polícia.
Já na delegacia, Wallander foi até a sala de Martinson, que estava ao telefone. Quando terminou, Martinson perguntou como fora o encontro.
— Ele vai procurar a pistola italiana e tentar tirar algumas digitais — disse Wallander.
— Acho difícil acreditar que ele esteja fazendo isso sem pedir nada em troca.
— Eu também. Mas imagino que mesmo alguém co-mo Kurt Ström tem seu lado bom.
— Ele cometeu o erro de ser pego — disse Martinson. — E depois cometeu um outro erro quando fez tudo parecer tão enorme e significativo. Você sabia que ele tem uma filha com problemas seriíssimos de saúde, falando nisso?
Wallander balançou a cabeça, para indicar que não.
— A mulher largou dele quando a menina ainda era bem pequena. Ele cuidou da filha durante muitos anos. Ela sofre de algum tipo de atrofia muscular. Mas depois ficou tão mal que não deu mais para mantê-la em casa e ele foi obrigado a interná-la numa clínica especial. Ele ainda visita a filha sempre que pode.
— Como você soube disso tudo?
— Liguei para o Roslund, em Malmö, e perguntei. Disse que tinha cruzado com o Ström, um dia. Acho que o Roslund não sabe que ele agora trabalha no Castelo Farnholm, e eu não toquei no assunto, claro.
Wallander continuava parado diante da janela.
— Não podemos fazer mais nada, a não ser esperar.
— Pois é — disse Wallander. — E, neste exato momento, não há nada que eu ache mais difícil de fazer do que isso.
O inspetor voltou para sua sala, sentou-se e contemplou o império internacional de Alfred Harderberg — um panorama geral que a divisão de fraudes de Estocolmo fizera para eles. Havia pregado o mapa na parede.
Na verdade estou olhando para um atlas mundial, pensou. As fronteiras nacionais foram substituídas por linhas sempre fluidas de demarcação, separando ou juntando empresas cuja movimentação financeira e influência são maiores que o orçamento de muitos países inteiros. Remexeu a papelada sobre sua mesa até encontrar um relatório que a divisão de fraudes havia mandado como uma espécie de apêndice, resumindo as atividades das dez maiores empresas do mundo — eles deviam ter sofrido um acesso de hiperatividade. Seis das maiores companhias eram japonesas e três eram norte-americanas. A décima era a Royal Dutch/Shell, de propriedade conjunta da Grã-Bretanha e da Holanda. Das dez maiores, quatro bancos, duas empresas de telefonia, uma fábrica de automóveis e uma empresa petrolífera encabeçavam a lista. As outras duas gigantes mundiais eram a General Electric e a Exxon. Wallander tentou imaginar o poder desses conglomerados, mas era impossível, para ele, captar de fato o significado dessa concentração. Na verdade não se sentia capacitado nem mesmo para absorver o significado do império controlado por Harderberg, ainda que isso fosse mais ou menos como o camundongo na sombra da pata do elefante quando comparado com o Grupo dos Dez.
Houve uma época em que Alfred Harderberg se chamava Alfred Hansson. De um começo insignificante em Vimmerby, ele havia se transformado num dos Cavaleiros das Sedas que regiam o mundo, sempre engajado em novas cruzadas, na batalha para se sobrepor ou esmagar a competição. Na superfície, cumpria à risca leis e regulamentos, era um cidadão respeitado a quem tinham sido conferidos vários doutorados honorários, mostrava-se pessoa generosa e as doações fluíam de seus recursos pelo visto inesgotáveis.
Ao qualificá-lo de homem honrado e benfeitor da Suécia, Björk apenas dera voz a uma opinião aceita pela maioria.
O que estou querendo dizer é que existe uma mancha, em algum lugar, pensou Wallander, e que aquele sorriso precisa ser apagado da cara dele, se quisermos pegar o criminoso. Estou tentando identificar algo que é basicamente impensável. Harderberg não tem máculas. Seu rosto bronzeado e seu sorriso são elementos dos quais nós, todos nós, os suecos, devemos nos orgulhar, e ponto final.
Wallander saiu da delegacia às seis da tarde. Tinha parado de chover e de ventar. Ao chegar em casa, encontrou uma carta, em meio a todo aquele lixo postal empilhado no hall, com selo de Riga. Colocou o envelope sobre a mesa da cozinha e olhou fixo para ele, mas não o abriu até terminar com uma garrafa de cerveja. Leu a carta e, para se certificar de que não havia se enganado em nenhum detalhe, leu tudo de novo. Ele não tinha se enganado, ela lhe dera uma resposta. Pôs a carta sobre a mesa e beliscou-se. Virou a cabeça para o calendário de parede e contou os dias. Não se lembrava de ter sentido alguma vez emoção tão grande. Tomou um banho de banheira, depois foi até a pizzaria da Hamngatan. Bebeu uma garrafa de vinho, junto com o jantar, e só quando começou a se sentir meio zonzo é que percebeu que não havia se lembrado de Alfred Harderberg ou Kurt Ström nem por um segundo durante a noite toda. Saiu do restaurante cantarolando uma melodia improvisada e vagou pelas ruas de Ystad até quase meia-noite. Voltou para casa e leu a carta de Baiba mais uma vez, só para o caso de haver algo, no inglês dela, que tivesse deixado de compreender.
Foi mais ou menos quando estava prestes a pegar no sono que começou a pensar em Kurt Ström de novo, e no mesmo instante despertou por completo. Esperar, isso é o que Martinson dissera. Isso era a única coisa que eles podiam fazer. Wallander levantou da cama e foi sentar-se no sofá da sala. O que vamos fazer se Ström não encontrar uma pistola italiana lá?, pensou. O que acontece com a investigação se o recipiente de plástico acabar sendo um beco sem saída? Talvez dê para deportar uma dupla de guarda-costas estrangeiros, que entraram de forma ilegal no país, mas é só. Harderberg, no seu terno de corte impecável, com aquele sorriso constante no rosto, vai se mudar do Castelo Farnholm e nós ficaremos com os destroços de uma investigação de homicídio fracassada. Teremos de começar tudo de novo e isso será muito duro. Teremos de examinar cada detalhe de tudo o que aconteceu como se estivéssemos vendo o material pela primeira vez.
Decidiu, então, que renunciaria à responsabilidade pelo caso se isso acontecesse. Martinson poderia assumir as investigações. Isso não só era o mais razoável, como também o que precisava ser feito. Ele é que havia insistido para que a estratégia se concentrasse em Harderberg. Afundaria com os destroços e, quando subisse à tona, Martinson seria o encarregado.
Quando finalmente voltou para a cama, dormiu mal. Os sonhos desmoronavam e se fundiam com o sonho seguinte, e ele enxergava o rosto sorridente de Alfred Harderberg ao mesmo tempo em que divisava a expressão sempre séria de Baiba.
Acordou às sete da manhã. Fez um bule de café, pensou na carta que havia recebido de Baiba, depois sentou à mesa da cozinha, pegou o jornal e leu os anúncios de carro. Ainda não tinha obtido resposta da companhia de seguro, mas Björk lhe garantira que poderia continuar usando o carro da polícia pelo tempo que fosse necessário. Saiu de casa pouco depois das nove. A temperatura estava acima de zero e não havia uma nuvem no céu. Passou algumas horas indo de uma revendedora à outra, e gastou um bom tempo examinando um Nissan que bem que gostaria de ter condições de comprar. Na volta, parou o carro na Stortorget e foi até a loja de discos da Stora Östergatan. Não havia muita coisa de ópera e, com certa relutância, teve de se contentar com uma gravação de árias variadas. Depois comprou comida e voltou para casa. Faltavam ainda várias horas para o próximo encontro com Kurt Ström na Svartavägen.
Eram 2h55 da tarde quando parou diante da casinha vermelha que parecia de boneca, em Sandskogen. Bateu na porta, mas não obteve resposta. Perambulou um pouco pelo jardim e, depois de meia hora, começou a ficar preocupado. O instinto lhe dizia que alguma coisa ocorrera. Esperou até as quatro e quinze, depois rabiscou um recado para Ström no verso de um envelope que havia encontrado no carro, com o número de sua casa e o da delegacia, e enfiou por baixo da porta. Voltou para o centro da cidade, perguntando-se o que fazer. Kurt Ström estava agindo sozinho e sabia disso, ele sabia que estava por conta própria. Além do mais, era homem perfeitamente capaz de se safar de situações incômodas sem precisar de ajuda, Wallander não tinha dúvida disso, mas, mesmo assim, a preocupação aumentava. Ao ver que não havia mais ninguém da equipe no prédio da delegacia, foi até sua sala e ligou para a casa de Martinson. Quem atendeu foi a mulher dele, que disse que o marido tinha ido levar a filha até a piscina pública. Estava quase ligando para Svedberg, mas mudou de idéia e ligou para Ann-Britt Höglund. Atendeu o marido. Quando ela pegou o telefone, Wallander lhe disse que Ström não aparecera no local do encontro.
— E isso significa o quê? — perguntou ela.
— Não sei. Provavelmente nada, mas estou preocupado.
— Onde você está?
— Na minha sala, na delegacia.
— Quer que eu vá até aí?
— Não, não precisa. Eu ligo se acontecer algo.
Desligou e continuou esperando. Às cinco e meia da tarde, voltou até a Svartavägen e iluminou a porta com a lanterna. Uma ponta do envelope continuava aparecendo no vão, debaixo da porta, o que significava que ele não voltara para casa. Wallander estava com o celular e ligou para o número de Kurt Ström em Glimmingehus. Deixou que tocasse durante cerca de um minuto, mas ninguém atendeu. No fundo, já estava convencido de que havia acontecido algo; decidiu voltar à delegacia e entrar em contato com Åkeson.
Tinha acabado de parar num semáforo vermelho, na Österleden, quando seu celular tocou.
— Tem um tal de Sten Widén tentando entrar em contato — disse a recepcionista da delegacia. — O senhor tem o número dele?
— Tenho sim, obrigado. Vou ligar agora mesmo.
O farol tinha aberto e o motorista do carro que estava atrás buzinou, impaciente. Wallander encostou o carro e discou o número de Widén. Uma das cavalariças atendeu.
— É o Roger Lundin quem está falando? — perguntou a moça.
— É — respondeu Wallander, espantado. — Ele mesmo.
— O Sten me mandou dizer que está indo para seu apartamento em Ystad.
— Quando foi que ele saiu daí?
— Faz uns quinze minutos.
Wallander apressou-se para passar antes de o sinal fechar de novo. Agora tinha certeza de que algo havia acontecido. Kurt Ström não voltara para casa e Sofia devia ter comunicado algum fato tão importante a Widén que ele achara necessário ir até sua casa. Quando virou na Mariagatan, não havia nem sinal do surrado Volvo Duett de Widén. Esperou na rua mesmo, perguntando-se desesperadamente o que teria acontecido com Ström.
Quando o Volvo de Widén apareceu, Wallander abriu a porta antes mesmo que o amigo tivesse tempo de desligar o motor.
— O que foi que houve? — perguntou, enquanto Widén tentava se safar do cinto de segurança esfrangalhado.
— A Sofia ligou. Parecia em pânico.
— Com o quê?
— Nós temos mesmo que conversar aqui no meio da rua? — perguntou Widén.
— É que estou muito preocupado.
— Com a Sofia?
— Não, com Kurt Ström.
— E quem é esse?
— Acho melhor nós entrarmos. Você tem razão, não podemos ficar aqui fora no frio.
Enquanto subiam a escada, Wallander reparou que Widén exalava um cheiro forte de bebida. Seria bom ter uma conversa séria com ele sobre esse assunto — qualquer dia desses, depois que tivessem descoberto quem era o assassino dos dois advogados.
Sentaram-se à mesa da cozinha, com a carta de Baiba ainda em cima, entre os dois.
— Quem é esse tal de Ström? — Widén perguntou de novo.
— Depois. Você primeiro. O que tem a Sofia?
— Ela ligou faz uma hora, mais ou menos — disse Widén, fazendo uma careta. — No começo nem entendi o que estava falando. A garota estava completamente fora de si.
— De onde ela ligou?
— Do apartamento nos estábulos.
— Ô merda!
— Acho que ela não tinha muita escolha — disse Widén, coçando a barba crescida. — Se entendi direito, foi quando saiu para exercitar os cavalos. De repente, topou com um manequim largado na trilha, na frente dela. Você sabe do lance desses manequins? Em tamanho natural?
— Ela me contou. Continue.
— O cavalo empacou e se recusou a passar pelo boneco. Sofia desmontou para tirar aquela coisa do caminho. Só que não era um boneco.
— Ai, ai, ai! — exclamou Wallander devagar.
— Até parece que você já sabia.
— Eu explico depois. Continue.
— Era um homem ali no chão. Coberto de sangue.
— Morto?
— Não me ocorreu perguntar. Eu presumi que sim.
— E aí?
— Ela se mandou de lá e me ligou.
— O que você disse para ela fazer?
— Não sei se foi o melhor conselho, mas falei para ela não fazer nada e ficar na dela.
— Ótimo. Você fez exatamente o que deveria ter feito.
Widén pediu licença e foi até o banheiro. Wallander escutou um leve tilintar de garrafa. Quando voltou, Wallander lhe contou sobre Ström.
— Quer dizer então que você acha que era ele, ali na trilha?
— Receio que sim.
De repente, Widén explodiu e sentou o punho na mesa. A carta de Baiba Liepa voou e foi parar no chão.
— Acho bom a polícia se mexer logo e ir para lá o quanto antes! Afinal, o que está havendo naquele castelo? Não vou deixar que a Sofia fique ali nem mais um segundo.
— É exatamente o que vamos fazer — disse Wallander, levantando-se.
— E eu vou para casa. Me ligue assim que vocês tirarem a Sofia de lá.
— Não — disse Wallander. — Você fica aqui. Você já tomou umas e outras. Não pode dirigir nesse estado. E vai dormir aqui.
Widén olhou fixo para Wallander, como se não soubesse do que o amigo estava falando.
— Por acaso está sugerindo que estou bêbado?
— Bêbado não, mas bem além dos limites. E não quero que você se meta numa encrenca.
Widén tinha deixado as chaves do carro sobre a me-sa. Wallander enfiou-as no bolso.
— Só por garantia. Vai que você resolve mudar de idéia enquanto estou fora.
— Você só pode estar louco. Eu não estou bêbado.
— A gente discute a respeito disso quando eu voltar. Agora preciso ir.
— Estou cagando e andando para esse seu Kurt Ström, mas não quero que nada aconteça com ela.
— Imagino que Sofia seja mais que uma cavalariça, para você.
— E é mesmo. Mas não é só por isso que não quero que nada aconteça com ela.
— Isso não me diz respeito.
— Verdade. Não diz mesmo.
Wallander pegou de dentro do armário uma calça de abrigo ainda nova em folha. Já tinha prometido a si mesmo começar a correr um sem-número de vezes, mas nunca criava coragem suficiente. Vestiu também uma malha grossa, pôs um gorro de lã na cabeça, e estava pronto para ir.
— Sinta-se em casa — disse a Widén, que, abertamente, plantara sua garrafa de uísque sobre a mesa da cozinha.
— Você se preocupe com a Sofia, não comigo.
Wallander fechou a porta, depois parou alguns momentos na escada às escuras, se perguntando o que fazer. Se Ström estivesse morto, a coisa toda fora por água abaixo. Sentiu-se de volta ao mesmo lugar em que estivera um ano antes, quando a morte espreitava em meio ao nevoeiro. Os homens do Castelo Farnholm eram perigosos, quer fossem tão sorridentes quanto Harderberg, quer rondassem pelas sombras, como Tolpin e Obadia.
Eu tenho que tirar Sofia de lá de dentro, pensou. Tenho que ligar para Björk e organizar uma operação de emergência. Precisamos das polícias de todos os distritos da Skåne de prontidão, se for preciso.
Acendeu a luz e desceu correndo a escada. Ligou para Björk do carro, mas, assim que o chefe atendeu, desligou.
Tenho que resolver isso sozinho, pensou. Não quero mais nenhum morto.
Chegando à delegacia, pegou a arma e uma lanterna. Depois foi até a sala deserta de Svedberg, acendeu a luz e fuçou a papelada toda do colega, até encontrar um mapa completo do Castelo Farnholm. Dobrou-o e guardou no bolso. Ao sair da delegacia, eram sete e quarenta e cinco da noite. Passou pela Malmövägen e parou na frente da casa de Ann-Britt Höglund. Tocou a campainha e o marido dela atendeu. Recusou o convite para entrar e falou que só queria deixar um recado para ela. Quando Ann-Britt se aproximou, ele viu que ela estava de penhoar.
— Preste atenção — disse —, eu vou entrar no Castelo Farnholm.
— Algo a ver com o Ström?
— Acho que ele está morto.
Ann-Britt empalideceu e Wallander receou que fosse desmaiar.
— Você não pode ir sozinho até lá — disse ela, depois de recobrar o sangue-frio.
— Mas tenho que ir.
— Por que você tem que ir?
— Preciso resolver esse assunto sozinho — disse, já irritado. — Por favor, pare de me fazer perguntas. Apenas ouça.
— Eu vou com você. Você não pode ir lá sozinho.
Ela estava decidida. Não adiantaria argumentar ou discutir.
— Certo, então você vem. Mas vai ficar esperando do lado de fora. Até que é bom ter alguém com quem eu possa manter contato por rádio.
Ela subiu a escada correndo. O marido fez Wallander entrar e fechou a porta.
— Bem que ela tinha me avisado que era isso que iria acontecer — disse ele, com um sorriso. — Assim que eu estivesse em casa, seria a vez dela ter que sair em serviço.
— Isso provavelmente não vai levar muito tempo — disse Wallander, sabendo que não convenceria ninguém com aquela resposta esfarrapada.
Poucos minutos depois, Ann-Britt Höglund apareceu, vestida com um abrigo de ginástica.
— Não precisa me esperar — disse ela ao marido.
E eu, que não tenho ninguém que me espere?, pensou Wallander. Ninguém. Nem mesmo um gato sonolento entre os vasos de planta no parapeito da janela.
Deram uma passada pela delegacia para pegar dois radiocomunicadores.
— Talvez fosse bom eu pegar uma arma — sugeriu Höglund.
— Não. Você vai me esperar fora do perímetro do castelo. E ai de você se não fizer exatamente o que eu mandar. É bilhete azul na certa.
Deixaram Ystad para trás. Fazia uma noite fria de céu muito limpo. Wallander dirigia em alta velocidade.
— O que é que você vai fazer? — ela perguntou.
— Vou descobrir o que houve.
Ela já percebeu tudo, pensou ele. Sabe que não tenho a menor idéia do que vou fazer.
Prosseguiram calados e chegaram à saída que levava ao Castelo Farnholm por volta das nove e meia. Wallander entrou num estacionamento destinado a tratores, desligou o carro e também os faróis. A escuridão era total.
— Eu entro em contato a cada sessenta minutos — disse ele. — Se não tiver notícias minhas por mais de duas horas, ligue para o Björk e diga a ele para organizar uma operação de emergência com todo o contingente.
— Você não devia fazer isso, sabia?
— A vida toda eu fiz coisas que não deveria fazer. Por que parar agora?
Os dois policiais sintonizaram seus radiocomunicadores.
— Por que você resolveu ser policial em vez de entrar para a carreira religiosa? — perguntou Wallander fitando os olhos de Ann-Britt iluminados pela luz tênue dos radiocomunicadores.
— Eu fui estuprada. Isso mudou toda a minha vida. Tudo o que eu queria fazer, depois disso, era entrar para a polícia.
Wallander permaneceu calado por alguns momentos. Depois abriu a porta, saltou e fechou-a de mansinho. Era como entrar num outro mundo. Ann-Britt Höglund não estava mais ao alcance dele.
Fazia uma noite muito serena. Por algum motivo, ocorreu-lhe que dali a dois dias seria a festa de Lúcia, e a Suécia inteira se veria ocupada por moças loiríssimas usando uma coroa de velas acesas na cabeça, cantando “Santa Lúcia” e celebrando o que costumava ser tido como o solstício de inverno. Colocou-se atrás de uma árvore e desdobrou o mapa. Sob a luz da lanterna, tentou memorizar os pontos-chave do terreno adjacente ao castelo. Depois desligou a lanterna, guardou o mapa no bolso e desceu correndo a estrada que levava aos portões. Seria impossível pular a cerca dupla de arame farpado. Só havia uma maneira de entrar, e era pelos portões.
Dez minutos depois, parou para recuperar o fôlego. Em seguida continuou pela estrada, cautelosamente, até ver as luzes fortes que iluminavam o portão e a casamata onde ficavam os guardas de segurança.
Tenho que fazer aquilo que eles menos esperam, pensou. A última coisa que vai lhes passar pela cabeça é que um homem armado tente entrar no terreno do castelo sozinho.
Wallander fechou os olhos e respirou fundo. Tirou a pistola do bolso.
Atrás da casamata havia uma pequena mancha de sombra. Seu relógio marcava 9h57.
E então ele avançou.
17
A primeira chamada veio meia hora depois. Ann-Britt ouviu a voz do inspetor com toda a clareza, sem interferência nenhuma, como se ele continuasse ali por perto, a poucos metros do carro, entre as sombras.
— Onde você está? — perguntou ela.
— Já entrei. Aguarde a próxima chamada para daqui a uma hora.
— O que aconteceu?
Mas não houve resposta nenhuma. Ann-Britt pensou que tivessem perdido temporariamente o contato e aguardou uma nova chamada, mas acabou percebendo que Wallander havia desligado sem responder. O rádio estava mudo.
Para Wallander, a impressão é que tinha começado a caminhar pelo vale da sombra da morte. De toda forma, penetrar na propriedade havia sido muito mais fácil do que ousara esperar. Esgueirando-se rápido na direção daquele estreito trecho de sombra, atrás da casamata, surpreendera-se ao descobrir uma pequena janela. Pondo-se na ponta dos pés, espiara lá para dentro. Havia uma única pessoa, sentada na frente de uma bancada de computadores e telefones. Apenas uma pessoa, e mulher, ainda por cima. Parecia estar tricotando uma malha de criança. Wallander mal podia acreditar nos próprios olhos. Era óbvio que ela jamais desconfiaria que pudesse haver um homem armado do lado de fora, de modo que resolvera agir com simplicidade — com toda a calma, fora até a casamata e batera na porta, tentando imprimir às pancadas um som tão amigável quanto possível. Como havia previsto, ela abrira a porta de par em par, sem nem sequer imaginar a possibilidade de uma ameaça. Estava com o tricô na mão e olhara espantada para Wallander, a quem não ocorrera empunhar a pistola. Ele explicara quem era, inspetor Wallander, da polícia de Ystad, e chegara até mesmo a se desculpar pelo incômodo. Com um gesto delicado, antes de fechar a porta havia pedido que ela entrasse de novo na casamata. Depois inspecionara tudo, à procura de alguma câmara de segurança que pudesse haver ali dentro, mas, não vendo nada, convidara a mulher a sentar-se. A essa altura ela tinha se dado conta do que estava acontecendo e começara a gritar. Wallander apontara a pistola. Segurar uma arma na mão o deixava tão nervoso que chegara a sentir náuseas. Evitando fazer mira, havia dito para a vigia ficar calada. Ela parecia morta de medo e Wallander bem que gostaria de tê-la acalmado, de ter-lhe dito para continuar tricotando a malha que sem dúvida se destinava a um dos netos. Mas lhe vieram à mente Ström, Sofia, Sten Torstensson e a mina no quintal de Berta Dunér. Perguntara então se uma das funções dela era transmitir relatórios a intervalos regulares para o castelo e ela tinha dito que não.
A pergunta seguinte fora crucial.
— Quem devia estar dando plantão hoje, na verdade, era o Kurt Ström, não é mesmo?
— Eles ligaram do castelo e disseram que eu tinha que vir porque ele ficou doente.
— Quem ligou?
— Uma das secretárias.
— Me diga exatamente o que ela falou, palavra por palavra.
— “Kurt Ström ficou doente.” Mais nada.
Para Wallander, essa era a confirmação de que tinha dado tudo errado. Ström fora desmascarado. E o inspetor não duvidava da capacidade dos homens que rodeavam Harderberg de arrancar a verdade de quem quer que fosse.
Olhara então para a mulher aterrorizada. Estava grudada em seu tricô.
— Tem outro homem aí fora — tinha dito, apontando para a janela. — Ele também está armado, como eu. Se resolver dar o alarme, depois que eu tiver saído, pode dar adeus a esse seu tricô, porque ele nunca será terminado.
Dera para perceber que ela havia acreditado nele.
— Sempre que os portões são abertos, isso fica registrado lá no castelo, correto?
Ela meneara a cabeça, em sinal afirmativo.
— O que ocorre quando falta luz?
— Um grande gerador é acionado na hora.
— É possível abrir os portões manualmente? Sem que o fato seja registrado pelos computadores?
Ela tinha meneado a cabeça de novo, indicando que sim.
— Certo. Desligue a eletricidade dos portões. Abra os portões para mim e, assim que eu passar, feche de novo. Depois ligue a eletricidade outra vez.
Wallander tinha certeza de que ela obedeceria. Abrindo a porta da casamata, gritara para o sujeito que não existia que estava saindo, que os portões iriam ser abertos e fechados, e que estava tudo sob controle. Ela destrancara uma caixa ao lado do portão, dentro da qual havia uma roldana. Assim que o grau de abertura permitira, Wallander entrara.
— Faça exatamente o que eu mandar. Se obedecer direitinho, não vai lhe acontecer nada.
Em seguida saíra correndo na direção dos estábulos, rememorando a rota estudada no mapa da propriedade. Estava tudo muito quieto e, já próximo o bastante para ver luzes nos estábulos, havia parado e feito a primeira chamada para Höglund. Na hora em que ela começou a fazer perguntas, desligou. E continuou caminhando com toda a cautela na direção dos estábulos. O apartamento onde Sofia morava ficava num anexo pegado à construção principal. Wallander permaneceu um tempo considerável protegido pelas sombras de um pequeno arvoredo, observando os estábulos e a área em volta. Vez por outra, escutava pancadas e sons arranhados vindos das baias. A luz estava acesa no anexo. Wallander forçou-se a raciocinar com muita calma. O fato de Ström ter sido morto não significava, necessariamente, que o pessoal do castelo desconfiava de alguma ligação entre o chefe da segurança e a cavalariça recém-contratada. Assim como também não se podia saber ao certo se o telefonema dela para Widén tinha sido interceptado. Essa incerteza era o melhor com que poderia contar. Outra preocupação era saber se haveria algum plano de contingência para lidar com possíveis invasores.
Continuou sob a proteção das sombras debaixo das árvores por vários minutos, depois se agachou e avançou o mais rápido que pôde até a porta do anexo. Esperava ser atingido por uma bala a qualquer momento. Bateu na porta e ao mesmo tempo experimentou a maçaneta. Estava trancada. Escutou a voz de Sofia, lá dentro, e a garota parecia bastante assustada. Disse quem era: Roger, o amigo de Sten. Não conseguiu se lembrar do sobrenome que inventara. Mas ela abriu a porta e Wallander viu a expressão de surpresa misturada a alívio em seu rosto. O apartamento tinha uma pequena cozinha, uma sala e uma alcova onde se encaixava a cama. Com o indicador sobre os lábios, o inspetor pediu silêncio. Foram sentar-se junto à mesa da cozinha, de frente um para o outro. Dali, dava para ouvir com muita clareza os barulhos vindos das baias.
Wallander então disse:
— Não tenho muito tempo e não posso explicar por que estou aqui. De modo que apenas responda às perguntas que eu fizer, por favor, e mais nada.
Ele desdobrou o mapa sobre a mesa.
— Havia um homem caído numa trilha. Pode me apontar onde fica?
Ela se debruçou sobre o mapa e fez um pequeno círculo com o indicador numa trilha que existia ao sul dos estábulos.
— Por aqui — disse ela.
— Preciso lhe perguntar se já tinha visto o homem alguma vez.
— Não.
— O que ele estava usando?
— Não me lembro.
— Estava de uniforme?
Ela sacudiu a cabeça.
— Eu não sei. Não lembro de nada.
Não havia motivo para pressioná-la mais. O terror havia afetado a memória de Sofia.
— Aconteceu mais alguma coisa hoje? Algo fora do comum?
— Não.
— Ninguém esteve aqui para falar com você?
— Não.
Wallander tentou decifrar o significado disso. Mas a imagem de Kurt Ström caído no chão, no escuro total, expulsou todos os outros pensamentos de sua cabeça.
— Eu vou sair agora. Se aparecer alguém, não diga que estive aqui.
— E você volta?
— Eu não sei. Mas não precisa ficar preocupada, não vai lhe acontecer nada.
Espiou então por uma pequena abertura nas cortinas, torcendo para que as garantias que tinha acabado de dar fossem de fato verdade. Depois abriu a porta e, mais que depressa, correu para a parte de trás da construção. Não parou até se ver sob a proteção das sombras de novo. Começara a soprar uma leve brisa. Atrás das árvores, viu alguns feixes potentes de luz iluminando a fachada vermelho-escura do castelo. Também viu luz em diversas janelas de todos os andares.
O corpo todo de Wallander tremia.
Depois de fazer um esforço de concentração para lembrar os detalhes do mapa que havia armazenado na memória, partiu de novo, de lanterna na mão. Passou pelo local onde existira um lago artificial, agora drenado. Depois virou à esquerda e começou a procurar a trilha. Deu uma olhada no relógio e viu que ainda tinha quarenta minutos antes de estabelecer contato com Höglund de novo.
Bem quando começava a desconfiar que se perdera, achou a trilha. Uma trilha com cerca de um metro de largura e pegadas visíveis de cascos de cavalo. Wallander estancou, imóvel e de orelha em pé. O silêncio, no entanto, dominava tudo, embora o vento pelo visto estivesse mais forte. Ele avançou mais um pouco, esperando ser agarrado a qualquer momento.
Cerca de cinco minutos depois, parou. Se o ponto que Sofia indicara no mapa estivesse correto, Wallander já tinha andado demais. Teria entrado na trilha errada, por acaso? Continuou mais um pouco, devagar. Cerca de cem metros adiante, convenceu-se de que já passara o ponto marcado.
Parou de novo, dominado pela inquietude.
Não havia nem sinal de Ström. O corpo já devia ter sido removido. Virou-se e voltou pelo mesmo caminho, se perguntando o que fazer em seguida. Parou de novo, dessa vez porque precisava urinar. Adentrou um pouco o mato, na lateral da trilha. Quando terminou, tornou a tirar o mapa do bolso para ver se não tinha cometido algum engano sobre o local ou entrado na trilha errada.
Assim que acendeu a lanterna, reparou num pé descalço. Levou um susto; a lanterna caiu e apagou ao bater no chão. Devia ter sido imaginação sua. Abaixou-se para apanhá-la. Acendeu-a de novo e se viu diante do rosto de Kurt Ström. Um rosto lívido, de lábios cerrados. O sangue escorrera e coagulara sobre as bochechas. Tinha um buraco de bala no meio da testa. Wallander lembrou-se do que tinha acontecido com Sten Torstensson. Levantou-se e afastou-se rápido. Encostado a uma árvore, vomitou. Depois correu até o lago drenado, onde caiu de joelhos na margem. Em algum lugar, à distância, uma ave levantou vôo, com estardalhaço, do topo de uma árvore. Ele saltou para o leito do lago e esgueirou-se até um canto mais protegido. Era como estar numa câmara mortuária. Pensou ter escutado passos se aproximando e empunhou a pistola, mas não apareceu ninguém. Respirou fundo algumas vezes e obrigou-se a pensar. Estava muito próximo de entrar em pânico e temia perder o autocontrole. Mais catorze minutos e teria de chamar Ann-Britt. Por outro lado, não precisava esperar, podia chamá-la naquele mesmo instante e mandar avisar Björk. Ström estava morto, com um tiro na testa, e nada o traria de volta à vida. Pediriam todo o reforço possível, Wallander estaria esperando nos portões e o que iria ocorrer depois, bem, isso o inspetor não sabia.
Mas não fez a chamada. Esperou os catorze minutos inteiros e só então pegou o radiocomunicador. Ela atendeu na hora.
— O que está acontecendo? — perguntou.
— Nada, ainda. Eu chamo de novo em uma hora.
— Você achou o Ström?
Wallander desligou. Voltou a ficar sozinho na escuridão. Havia se comprometido a fazer algo, mas não sabia o quê. Tinha mais uma hora para preencher, mas não sabia como. Devagar, levantou-se. Estava enregelado. Saltou para fora do leito seco do lago e caminhou na direção da luz que bruxuleava por entre as árvores. Parou onde o arvoredo terminava e se viu na beira do imenso gramado que levava ao castelo, no alto de um outeiro.
Aquilo era uma fortaleza impenetrável, mas Wallander teria de achar um jeito de entrar nela. Ström estava morto, mas não podia se sentir culpado por isso. Assim como também não fora culpado pela morte de Sten Torstensson. A culpa de Wallander era de um outro naipe, era uma sensação de que, de novo, iria deixar os colegas na mão, e bem no momento em que parecia prestes a solucionar o caso.
Tinha de haver um limite para o que aquela gente era capaz de fazer, apesar dos pesares. Eles não poderiam simplesmente meter uma bala na sua testa, num detetive da polícia de Ystad, no cumprimento do dever. Por outro lado, talvez para eles não houvesse limites. Tentou resolver essa charada, mas não conseguiu. Começou então a contornar e subir o gramado na direção da parte traseira do castelo, lado que nunca tinha visto. Levou dez minutos para fazer o percurso, apesar de estar andando depressa — não só porque estava com medo, mas também porque sentia muito frio. Não conseguia parar de tremer. Nos fundos do castelo havia um terraço em forma de meia-lua. O lado esquerdo do terraço estava às escuras: alguns dos spots escondidos deviam estar queimados. Havia degraus de pedra que levavam do gramado até o terraço. Wallander correu o mais rápido que pôde até se ver protegido pelas sombras de novo. Subiu pé ante pé os degraus, a lanterna numa das mãos e o radiocomunicador na outra. A pistola estava no bolso da calça.
De repente, estancou, achando ter ouvido algo. O quê? Um de seus alarmes internos havia disparado. Tem algo errado, aqui, pensou. Mas o quê? Apurou os ouvidos, mas não escutou nada além do vento soprando. Tem alguma coisa a ver com a luz, concluiu. Estou sendo atraído para as sombras e elas estão esperando por mim.
Quando se deu conta e percebeu que fora enganado, era tarde demais. Virou-se para descer de novo os degraus, mas foi cegado por uma luminosidade branca radiante voltada direto para ele. Fora atraído para a arapuca das sombras e a armadilha funcionara. Ergueu a mão que segurava o radiocomunicador sobre os olhos, para se proteger da luz, mas ao mesmo tempo sentiu-se agarrado por trás. Tentou se libertar, mas era tarde demais. A cabeça explodiu e tudo escureceu.
Uma parte dele esteve o tempo todo consciente do que ocorria. Braços o ergueram e o carregaram, escutou uma voz falando, alguém dando risada. Uma porta se abriu e o ruído de passos no terraço de pedra cessou. Ele estava num interior, quem sabe sendo carregado numa escada, depois foi largado sobre alguma coisa macia. Se por causa da dor que sentia na nuca, se devido à sensação de estar num aposento com as luzes apagadas, ou na penumbra, Wallander não saberia dizer, mas o fato é que recobrou os sentidos, abriu os olhos e viu que estava deitado num sofá numa sala enorme. O piso era frio, possivelmente de mármore. Havia uma mesa oval sobre a qual piscavam várias telas de computador. Ouviu o ruído dos motores do sistema de ar-condicionado e, em algum lugar, fora do seu campo de visão, uma máquina de telex matraqueando. Tentou não mexer a cabeça, a dor atrás da orelha direita era muito forte. E então alguém começou a falar com ele, uma voz conhecida, bem pertinho.
— Um momento de loucura — disse Harderberg. — Quando um homem faz algo que só pode acabar em ferimento ou morte.
Wallander virou-se com todo o cuidado e olhou para ele. Harderberg sorria. Mais para trás, onde a luz mal penetrava, divisou vagamente os contornos de dois homens, imóveis.
Harderberg foi até o sofá e entregou-lhe o rádio. O terno era imaculado, os sapatos lustrosos.
— Agora são meia-noite e três — disse Harderberg. — Alguns minutos atrás, alguém tentou se comunicar com você. Não faço idéia de quem seja, claro, e pouco me importa. Mas suponho que haja alguém à espera de que você entre em contato. Acho melhor fazer isso. Tenho certeza de que não preciso dizer que é melhor não tentar dar alarme. Já tivemos loucuras que bastem por um dia.
Wallander chamou Ann-Britt e ela atendeu imediatamente.
— Está tudo certo — disse ele. — Eu entro em contato daqui a uma hora.
— Você encontrou o Ström? — perguntou ela.
Ele hesitou, sem saber o que responder. Depois viu que Harderberg o incentivava a dizer que sim, com a cabeça.
— Encontrei sim. Chamo de novo à uma.
Wallander largou o rádio sobre o sofá, a seu lado.
— Quer dizer que veio com a policial — disse Harderberg. — Imagino que ela esteja nas redondezas. Se quiséssemos, poderíamos descobrir muito rápido onde, mas não queremos fazer isso, claro.
Wallander cerrou os dentes e levantou-se.
— Vim para informá-lo que o senhor está sob suspeita de ser cúmplice numa série de crimes graves.
Pensativo, Harderberg observava o inspetor.
— Abro mão do meu direito de ter um advogado presente. Por favor, continue, inspetor Wallander.
— O senhor é suspeito de ser cúmplice nas mortes de Gustaf Torstensson e do filho dele, Sten Torstensson. Além disso, agora se tornou suspeito de estar envolvido na morte de seu próprio chefe de segurança, Kurt Ström. E temos também uma tentativa de homicídio contra a secretária dos dois advogados, Berta Dunér, e outra contra mim e a policial Ann-Britt Höglund. Existem várias outras acusações possíveis, inclusive a que se refere à sorte do contador Lars Borman. O promotor público terá que examinar os detalhes.
Harderberg sentou-se devagar numa poltrona.
— Está me dizendo que estou sendo preso, inspetor Wallander?
Wallander sentiu que estava à beira de um desmaio e sentou-se de novo no sofá.
— Não tenho os papéis necessários comigo. O que não afeta as circunstâncias básicas.
Harderberg inclinou-se para a frente, na poltrona, com o queixo apoiado numa das mãos. Depois recostou-se de novo e meneou a cabeça.
— Vou tornar as coisas mais simples para o seu lado — disse ele. — Eu confesso.
Wallander olhou-o atentamente, incapaz de acreditar nos seus ouvidos.
— Você tem toda a razão — continuou Harderberg. — Admito ser culpado de todas as acusações.
— Inclusive Borman?
— Borman inclusive, claro.
O medo de Wallander voltou a vir à tona, só que mais frio e mais ameaçador que antes. A situação toda estava fora de esquadro. Precisava dar um jeito de sair dali.
Harderberg o observava com toda a atenção, como se estivesse tentando ler seus pensamentos. Com a intenção de ganhar tempo para ver se conseguia imaginar uma forma de enviar um pedido de socorro a Ann-Britt sem que Harderberg percebesse, Wallander começou a lhe fazer perguntas, como se estivessem numa sala de interrogatório. Mas nem assim conseguia decifrar o que o outro tinha em mente. Será que sabia da presença do inspetor nos terrenos do castelo desde o momento em que ele cruzara o portão de entrada? O que Ström teria sido forçado a dizer, antes de morrer?
— A verdade — falou Harderberg, interrompendo sua linha de pensamento. — Por acaso ela existe para um policial sueco?
— Estabelecer os limites entre a mentira e o fato, para chegar à verdade, é a base de todo o trabalho policial — respondeu Wallander.
— Resposta correta — disse Harderberg, em tom de aprovação. — Mas ainda assim errada. Porque não existe verdade absoluta nem mentira absoluta. O que existem são acordos, apenas isso. Acordos que podem ser feitos, mantidos ou rompidos.
— Se alguém utiliza uma arma para matar um outro ser humano, isso só pode ser uma ocorrência factual — retrucou o inspetor, detectando uma ligeira nota de irritação na voz de Harderberg, quando este lhe respondeu.
— Não precisamos discutir o que é evidente por si só. Estou em busca de uma verdade que penetre mais fundo que isso.
— Para mim, a morte já é profunda o suficiente. Gustaf Torstensson era seu advogado. O senhor mandou matá-lo. A tentativa de disfarçar o homicídio em acidente falhou.
— Eu adoraria saber como foi que chegou a essa conclusão.
— Sobrou uma perna de cadeira, jogada na lama. O resto estava no porta-malas do carro. E o porta-malas estava trancado.
— Tão simples! Pura falta de cuidado.
Harderberg não fez a menor tentativa de disfarçar a olhada que lançou aos dois homens que rondavam as sombras.
— O que houve? — Wallander perguntou.
— A lealdade de Gustaf Torstensson começou a fraquejar. Ele viu coisas que não deveria ter visto. Fomos forçados a garantir sua lealdade de uma vez por todas. Ocasionalmente, nós nos distraímos aqui no castelo praticando tiro ao alvo. Usamos bonecos, manequins de alfaiate, como alvos. Colocamos um boneco na estrada. Ele parou. E morreu.
— O que garantiu a lealdade dele.
Harderberg meneou a cabeça, em sinal afirmativo, mas na verdade parecia estar a muitos quilômetros daquela sala. De repente, levantou-se rápido da poltrona e foi olhar as fileiras de números que tinham aparecido numa das telas de computador. Wallander imaginou que deviam ser preços de ações de alguma parte do mundo onde já era dia. Mas, por outro lado, será que as bolsas de valores abriam aos domingos? Talvez os números que ele conferia estivessem relacionados com atividades financeiras de outra ordem.
Harderberg voltou para sua poltrona.
— Não havia como ter certeza de quanto o filho sabia — prosseguiu ele, como se não tivesse havido nenhuma interrupção na conversa. — Nós o mantivemos sob observação. E então ele foi visitar o senhor na Jutlândia. Tampouco podíamos ter certeza de quanto ele havia contado ao senhor. Ou à senhora Dunér, na verdade. Na minha opinião, o senhor analisou as circunstâncias com muita perícia, inspetor Wallander. Mas claro que percebemos na hora que sua intenção era nos fazer acreditar que havia uma outra pista sendo seguida. Confesso que me magoa pensar que nos subestimou.
Wallander começava a se sentir nauseado. A indiferença e o sangue-frio destilados por aquele homem sentado na poltrona eram algo com o qual nunca se deparara antes. Mesmo assim, a curiosidade o levou a fazer mais perguntas.
— Encontramos um recipiente de plástico dentro do carro de Gustaf Torstensson. E desconfio que o recipiente foi substituído por um outro, quando vocês o mataram.
— E por que haveríamos de querer substituir um pelo outro?
— Segundo nossa perícia, o recipiente nunca conteve nenhuma substância. Deduzimos então que ele em si não tinha muito significado. O importante era para que fins ele seria usado.
— E quais seriam esses fins, me diga?
— Agora é o senhor que está fazendo perguntas. E eu que devo respondê-las.
— Está ficando meio tarde, já — disse Harderberg. — Por que não dar um tom mais brincalhão a esta nossa conversa? Afinal de contas, ela não significa nada mesmo.
— Estamos falando de homicídio. Meu palpite é que o recipiente seria usado para preservar e transportar órgãos para transplante tirados de pessoas assassinadas.
Por alguns breves momentos, Harderberg ficou rígido. Foi tudo muito rápido, mas Wallander não deixou de notar. Era a comprovação. Ele estava certo.
— Eu vivo atrás de oportunidades de negócio, estejam onde estiverem — disse Harderberg. — Se houver um mercado para rins, eu compro e vendo rins, só para lhe dar um exemplo.
— E de onde vêm esses rins?
— De pessoas mortas.
— Pessoas que você matou.
— Tudo que eu faço é comprar e vender — disse Harderberg, em tom paciente. — O que ocorre antes que a mercadoria chegue às minhas mãos não é problema meu. Não tomo conhecimento.
Wallander estava atônito.
— Eu não sabia que pessoas como você existiam na vida real — acabou dizendo.
Num gesto rápido, Harderberg inclinou-se para a frente, na poltrona.
— Mentira sua. Está cansado de saber que pessoas assim existem. E eu iria ainda mais longe e diria que, lá bem no fundo, o senhor me inveja.
— O senhor é louco — disse Wallander, sem fazer a menor tentativa de esconder o asco.
— Louco de felicidade, louco de raiva, sim, eu aceito. Mas pura e simplesmente louco, isso não, inspetor. O senhor precisa entender que sou um ser humano apaixonado. Amo negociar, vencer a competição, aumentar minha fortuna e detesto ter que me privar de seja o que for. É possível que eu seja uma espécie de holandês voador irrequieto, sempre buscando algo novo com meu Navio Fantasma. Porém, acima de qualquer outra coisa, sou um pagão no sentido correto da palavra. Talvez o inspetor esteja familiarizado com as obras de Maquiavel?
Wallander sacudiu a cabeça.
— Os cristãos, segundo o pensador italiano, dizem que o mais alto grau de felicidade se atinge com a humildade, a autonegação e o desprezo por tudo quanto é humano. Para os pagãos, por outro lado, o mais alto nível de excelência está na grandeza mental, na força física e em todas as qualidades que tornam os humanos seres temíveis. Sábias palavras às quais me esforço para fazer jus.
O inspetor continuou calado. Harderberg olhou para o radiocomunicador e em seguida para o relógio. Era uma hora. Wallander chamou Höglund pensando que havia chegado de fato o momento de transmitir a ela um SOS, de um jeito ou de outro. No entanto, uma vez mais, disse apenas que estava tudo sob controle. E que faria um novo contato às duas da manhã.
Fez ligações para Ann-Britt de hora em hora, durante a noite toda, mas não conseguiu fazê-la entender que o que ele queria de fato era que ela soasse o alarme e enviasse o maior número possível de policiais ao Castelo Farnholm. Já percebera que não havia mais ninguém ali, e que Harderberg estava só esperando amanhecer para deixar tanto o castelo quanto o país, junto com as sombras silenciosas que circulavam ao fundo, os homens que cumpriam ordens e matavam todo aquele para quem o dedo do milionário apontasse. Os únicos empregados que tinham ficado para trás eram Sofia e a mulher no portão de entrada. As secretárias que Wallander nunca vira tinham sumido. Talvez já estivessem num outro castelo qualquer, à espera de Harderberg, quem sabe?
A dor de cabeça diminuíra bastante, mas o inspetor estava muito cansado. Avançara um bocado e já sabia a verdade, mas sentia que não era suficiente. Eles o largariam trancado no castelo, muito possivelmente amarrado, e quando fosse finalmente descoberto, ou conseguisse se soltar, já estariam longe, voando para um outro país qualquer. Tudo quanto fora dito durante a noite seria negado pelos advogados que Harderberg contrataria para defendê-lo. Os homens que haviam de fato apontado e disparado as armas, aqueles que nunca tinham passado pelas fronteiras suecas, não seriam nada além de sombras que promotor nenhum poderia acusar. A polícia não conseguiria provar nada, as investigações escorreriam por entre os dedos de Wallander, e Harderberg continuaria sendo, aos olhos do mundo, um cidadão de bem.
O inspetor fora posto a par de toda a verdade, inclusive que Borman havia morrido porque descobrira a ligação entre Harderberg e a fraude ocorrida na administração do condado. Que, depois disso, não quiseram correr o risco de Gustaf Torstensson começar a ver coisas que não deveria ver. Apesar dos esforços para impedi-lo, o advogado tinha aberto os olhos; por outro lado, isso era de somenos importância. A verdade acabaria por se autoconsumir, já que as autoridades nunca teriam como prender os envolvidos nos crimes.
Aquilo de que Wallander mais se lembraria, no futuro, o que permaneceria em sua mente durante um bom tempo ainda, como um lembrete horrendo de quem, de fato, era Harderberg, foi algo que ele falou pouco antes das cinco da manhã, quando, por um motivo ou outro, haviam retomado a conversa sobre o recipiente de plástico e sobre as pessoas que eram mortas para que partes de seus corpos pudessem ser vendidas.
— O senhor precisa entender que isso é apenas uma fração diminuta das minhas atividades. É ínfima, marginal. Mas é isso que faço, inspetor Wallander. Eu compro e eu vendo. Sou um ator num palco governado pelas forças do mercado. Nunca perco uma oportunidade, não importa o quão pequena ou insignificante ela seja.
Quer dizer então que para ele a vida humana é insignificante, foi o que passou pela cabeça de Wallander, ao ouvir aquilo. Essa é a premissa na qual se baseia toda a existência de Harderberg.
De repente, a discussão se encerrou. Harderberg havia desligado os computadores e passado alguns documentos pela fragmentadora. Wallander pensou na possibilidade de fugir, no entanto as sombras que vigiavam imóveis em segundo plano continuavam no mesmo lugar. Foi obrigado a admitir a derrota.
Com a ponta dos dedos, Harderberg tocou os lábios, como se para se certificar de que o sorriso continuava intacto. Depois olhou uma última vez para Wallander.
— Todos temos que morrer um dia — disse, mas de tal forma que parecia haver uma exceção ali: ele próprio. — Até mesmo o tempo de um detetive inspetor tem limite. E, no caso, a meu arbítrio. — Antes de prosseguir, conferiu as horas no relógio. — Logo mais vai amanhecer, embora ainda esteja escuro lá fora. Quando começar a clarear, haverá um helicóptero chegando. Meus dois assistentes vão embarcar, bem como o senhor. Mas a sua viagem será bem mais curta e lhe dará inclusive a oportunidade de ver se consegue voar sem ajuda mecânica.
Falou sem tirar os olhos de Wallander. Ele quer que eu implore pela minha vida, pensou o inspetor. Pois muito bem, Harderberg vai sofrer uma decepção. Quando o medo atinge um certo nível, transforma-se em seu oposto. Isso foi uma das coisas que aprendi na vida.
— Investigar a habilidade inata dos seres humanos para voar foi um dos assuntos mais pesquisados durante a desafortunada guerra do Vietnã — continuou Harderberg. — Os prisioneiros eram jogados de uma altura enorme e, por uns poucos instantes, recuperavam a liberdade de se mover, até que se espatifavam no chão e se tornavam parte da maior liberdade de todas. — Levantando-se, abotoou o paletó. — Meus pilotos de helicóptero são muito habilidosos. Creio que darão um jeito de deixá-lo na altura da Stortorget, em Ystad. Será um acontecimento para ficar registrado nos anais da cidade.
Ele enlouqueceu de vez, pensou Wallander.
— Agora precisamos seguir cada qual o seu caminho — acrescentou Harderberg. — Nós nos encontramos duas vezes. Creio que vou me lembrar do senhor. Houve momentos em que esteve muito próximo de demonstrar perspicácia. Em outras circunstâncias, eu poderia ter lhe arrumado uma colocação.
— O cartão-postal — interveio Wallander. — O cartão-postal que Sten Torstensson de alguma maneira deu um jeito de mandar da Finlândia, quando na verdade estava comigo na Dinamarca.
— É uma das minhas distrações, copiar a letra alheia. Pode-se dizer que sou muito bom nisso. Passei algumas horas em Helsinque, no dia que o jovem Torstensson estava com o senhor na Jutlândia. Tive uma reunião, não muito bem-sucedida, infelizmente, com altos executivos da Nokia. Foi mais uma brincadeira, mais ou menos como enfiar um graveto num formigueiro. Uma brincadeira em que o objetivo era criar confusão. Só isso.
Harderberg estendeu a mão e Wallander, de tão espantado que estava, pegou-a e apertou-a.
Em seguida ele girou nos calcanhares e desapareceu.
A presença de Harderberg sempre dominava um ambiente. Depois que a porta se fechou atrás dele, não sobrou nada. Para o inspetor, era como se ele tivesse deixado uma espécie de vácuo atrás de si.
Tolpin, encostado num pilar, observava Wallander. Obadia estava sentado, olhando fixo para a frente.
Wallander se recusava a acreditar que Harderberg tivesse dado ordens para que ele fosse jogado de um helicóptero sobre o centro de Ystad. Mas sabia que teria de tomar alguma providência.
Os minutos passavam rápido. Nenhum dos dois homens se mexeu.
Quer dizer então que ele seria jogado vivo, lá de cima, para despencar sobre telhados ou, era o mais provável, sobre o calçamento da Stortorget. Pensar nisso causou-lhe um pânico imediato. Pânico que o deixou paralisado e se espalhou pelo corpo todo, como veneno. Mal conseguia respirar. Tentava desesperadamente pensar.
Devagar, Obadia ergueu a cabeça. Wallander escutou o vago ruído de um motor se aproximando. O helicóptero estava a caminho. Tolpin indicou com um gesto que era hora de irem embora.
Quando saíram das dependências do castelo, ainda não havia nem sinal da alvorada, mas o helicóptero se achava parado no heliponto, com os rotores girando sem pressa. O piloto estava pronto para decolar, assim que subissem a bordo. Wallander continuava buscando feito um alucinado alguma forma de escapar. Tolpin caminhava na frente dele, Obadia ia alguns passos atrás, com uma pistola na mão. Estavam já se aproximando do helicóptero. As pás do helicóptero continuavam cortando o ar gelado da noite. Num canto por onde teriam de passar para chegar ao heliponto, Wallander viu uma pilha de pedaços de concreto: alguém tinha consertado algumas rachaduras, mas ainda não limpara o entulho. Ele diminuiu o passo de tal forma que Obadia ficou momentaneamente entre ele e Tolpin. Curvando-se, o inspetor recolheu com as mãos o máximo possível de pedaços de concreto e jogou-os na direção dos rotores. Escutou estrépitos e altos estalos, à medida que os fragmentos de concreto voavam em volta. Por um breve instante, Tolpin e Obadia acharam que havia alguém estava atirando neles e não atentaram para o que acontecia atrás. Wallander partiu com toda a força para cima de Obadia e conseguiu arrancar a pistola da mão dele. Recuou alguns passos, tropeçou e caiu. Tolpin, de olhos arregalados, sem entender direito o que estava acontecendo, demorou alguns segundos para enfiar a mão no paletó e pegar a arma. Wallander atirou e atingiu-o no quadril. Obadia arremessou-se contra Wallander, que disparou outra vez. Não viu onde a bala entrou, mas Obadia caiu no chão, gritando de dor.
O inspetor levantou-se do chão. Os pilotos talvez também estivessem armados. Mas, quando apontou a pistola para a porta aberta do helicóptero, viu apenas um jovem ali dentro, e ele estava com as mãos na cabeça. Wallander examinou então os homens que havia baleado. Estavam ambos vivos, mas era muito improvável que conseguissem se mover. Pôs a pistola de Tolpin no bolso, depois foi até o helicóptero. O piloto continuava com as mãos para cima. Wallander gritou para que decolasse. Deu alguns passos para trás e ficou vendo o helicóptero subir e sumir por cima do telhado do castelo, os faróis vasculhando o céu escuro.
Parecia que ele estava vendo tudo através da cerração. Ao passar a mão no rosto, viu que estava coberto de sangue. Fora atingido por uma lasca de concreto e nem percebera.
Correu então para os estábulos. Sofia gritou ao vê-lo. Wallander tentou sorrir, mas a face estava rígida por causa da ferida.
— Está tudo em ordem, agora — disse ele, tentando recuperar o fôlego. — Mas preciso que me faça um último favor. Ligue para uma ambulância. Tem dois homens feridos à bala perto do heliponto. Depois que tiver feito isso, não vou lhe pedir mais nada. Pode voltar para o Sten e cobrar a promessa que ele lhe fez. Por aqui, assunto encerrado.
Lembrou-se então de Harderberg de novo. O tempo era curto.
Ao sair correndo dos estábulos, escorregou no barro amolecido pelos cascos dos cavalos e caiu. Levantou-se a custo e correu na direção dos portões. Não sabia se chegaria a tempo.
Ela havia saído do carro para esticar as pernas e, ao erguer a cabeça, viu o inspetor se aproximando. Ele por sua vez viu a expressão horrorizada no rosto dela e percebeu que devia estar com um aspecto alarmante. Estava coberto de sangue e de lama, com as roupas rasgadas. No entanto não havia tempo para explicar. Apenas uma coisa importava, naquele momento: impedir que Harderberg deixasse o aeroporto. Wallander gritou para Ann-Britt Höglund entrar no carro. Antes mesmo que ela tivesse fechado a porta, já tinha dado a ré e pego a estrada de novo. Forçou as marchas, pisou fundo no acelerador e ignorou o sinal vermelho ao entrar na estrada principal.
— Qual é o caminho mais rápido para Sturup? — perguntou.
Ela achou um mapa no porta-luvas e viu a melhor a rota. Não vai dar tempo, pensou ele. Fica muito longe, não temos tempo suficiente.
— Ligue para o Björk — falou, apontando para o telefone do carro.
— Não sei o número da casa dele.
— Então ligue para a delegacia e descubra, cacete! — gritou ele. — Use a cabeça!
Ann-Britt Höglund fez o que ele mandou. Quando o policial de plantão perguntou se o assunto não poderia esperar até Björk chegar, foi sua vez de começar a gritar. Assim que conseguiu saber qual era o número, discou.
— O que vamos dizer a ele?
— Diga que Harderberg está prestes a entrar no avião particular dele e deixar o país. Para sempre. Diga que ele precisa dar um jeito de impedi-lo. E que tem no máximo meia hora para isso.
Quando Björk atendeu, Ann-Britt repetiu tintim por tintim o que Wallander lhe dissera. Ela ouviu a resposta do chefe em silêncio, depois passou o telefone.
— Ele quer falar com você.
Wallander pegou o telefone com a mão direita e desacelerou um pouco.
— O que você quis dizer quando falou que preciso impedir o jato de Harderberg de decolar? — estrilou a voz de Björk.
— Ele mandou matar Gustaf e Sten Torstensson. Ström também foi baleado e morto.
— Você tem certeza absoluta do que está dizendo? Onde você está agora? Por que a ligação está tão ruim?
— Estou saindo do Castelo Farnholm. Não tenho tempo de explicar. Harderberg está a caminho do aeroporto, agora. Precisamos pará-lo imediatamente. Se aquele avião decolar e ele sair do espaço aéreo sueco, nós o perdemos.
— Eu estou achando isso tudo muito estranho — disse Björk. — O que você andou fazendo no Castelo Farnholm até esta hora?
Wallander se deu conta de que as perguntas de Björk eram perfeitamente razoáveis, da perspectiva dele. Era muito possível que tivesse reagido da mesma forma, se estivesse no lugar do chefe.
— Sei que pode soar um tanto bizarro — falou —, mas desta vez você tem que se arriscar a acreditar em mim.
— Preciso consultar o Åkeson.
Wallander gemeu.
— Só que nós não temos tempo para isso. Você não ouviu o que eu disse? Há policiais no aeroporto de Sturup. Eles podem impedir Harderberg de decolar, é só você mandar.
— Me ligue daqui a quinze minutos. Vou entrar em contato com o Åkeson agora mesmo.
Wallander estava tão furioso que quase perdeu o controle do carro.
— Abaixe essa merda desse vidro! — disse ele.
Ann-Britt Höglund fez conforme ele mandou. Wallander jogou o telefone fora.
— Agora pode fechar de novo. Vamos ter que resolver isso sozinhos.
— Tem certeza de que foi o Harderberg? O que foi que aconteceu lá? Você está ferido?
Wallander ignorou as duas últimas perguntas.
— Certeza absoluta. Também sei que nunca mais vamos conseguir pegá-lo, se ele sair do país.
— E o que você vai fazer?
Ele sacudiu a cabeça.
— Não sei. Para falar a verdade, não faço a mínima idéia. Mas vou ter que pensar em algo.
No entanto, quarenta minutos depois, quando se aproximavam de Sturup, ele continuava sem a menor noção do que iria fazer. Com os pneus guinchando, parou nos portões à direita do prédio do aeroporto. Para enxergar melhor, subiu na capota do carro. À volta toda, passageiros chegando para os primeiros vôos pararam para espiar o que estava havendo. Um caminhão de catering, do lado de dentro dos portões, bloqueava a visão do inspetor. Wallander agitava os braços e xingava, numa tentativa de atrair a atenção do motorista e fazê-lo tirar o veículo de lá. No entanto o sujeito atrás do volante estava com a cabeça enterrada num jornal e não tinha se dado conta de que alguém na capota de um carro espumava de raiva. Até que Wallander resolveu puxar a arma e atirar para o alto. Houve pânico imediato por parte das pessoas em volta, que fugiram espavoridas para todos os lados, largando as malas para trás. O motorista do caminhão reagiu ao tiro e entendeu que Wallander queria que ele saísse do caminho.
O Grumman Gulfstream de Harderberg continuava na pista. A pálida luz amarelada dos holofotes refletia-se na carroceria do avião.
Os dois pilotos, a caminho da aeronave, ouviram o tiro e pararam. Wallander saltou do carro, para não ser visto. Ao fazer isso, caiu e bateu o ombro com força no chão. A dor o deixou ainda mais enfurecido. Sabia que Harderberg estava em algum lugar, dentro do aeroporto amarelo, e não tinha a menor intenção de deixá-lo escapar. Correu para a entrada, tropeçando em malas e carrinhos, com Höglund seguindo logo atrás. Ele continuava com a arma na mão, enquanto atravessava portas de vidro, a caminho da sala de polícia do aeroporto. Como era muito cedo e domingo, não havia muita gente no terminal. Apenas uma fila se formara no balcão do check-in para um vôo fretado com destino à Espanha. Quando Wallander apareceu, coberto de lama e ensangüentado, foi um pandemônio. Ann-Britt tentou sossegar as pessoas, mas sua voz foi abafada pelo berreiro. Um dos policiais de serviço tinha saído para comprar um jornal e viu Wallander se aproximando. A pistola na mão do inspetor foi a primeira coisa em que ele reparou. O policial deixou cair o jornal e, desesperado, começou a digitar o código de abertura da porta, mas Wallander agarrou-o pelo braço, antes que tivesse tempo de terminar.
— Inspetor Wallander, da polícia de Ystad — gritou. — Tem um avião que precisamos impedir de decolar. O Gulfstream do doutor Alfred Harderberg. Não temos um segundo a perder!
— Não atire — foi tudo o que o policial aterrorizado conseguiu balbuciar.
— Tenha a santa paciência, homem! Sou da polícia também. Não ouviu o que eu disse?
— Não atire — repetiu o policial, antes de desmaiar.
Wallander olhou exasperado para o pobre infeliz largado a sua frente, no chão. Depois começou a esmurrar a porta da sala da polícia. Ann-Britt o alcançou.
— Deixa eu tentar — disse ela.
Wallander olhou em volta, como se esperasse ver Harderberg aparecer a qualquer momento. Em seguida correu até a vidraça de onde se viam as pistas de pouso e decolagem.
Harderberg subia a escada para entrar no avião. Abaixou-se muito de leve e desapareceu no interior da aeronave. A porta se fechou imediatamente.
— Nós não vamos conseguir! — gritou então para Höglund.
Saiu correndo de novo para fora do terminal. Höglund continuou ao seu lado por todo o caminho. Wallander viu um veículo do aeroporto cruzando os portões. Fez um esforço final e conseguiu se espremer e passar pela fresta, antes que os portões se fechassem de novo. Deu um murro na carroceria do carro e gritou para que parasse, mas o motorista, obviamente apavorado, acelerou e se foi. Höglund ainda estava do lado de fora dos portões, não tinha conseguido passar a tempo. Wallander jogou os braços para os lados, num gesto de resignação. O Gulfstream taxiava em direção à cabeceira da pista. Restavam apenas cem metros para o avião virar, acelerar e decolar.
Bem ao lado de Wallander, havia um daqueles tratores que puxam os carrinhos de bagagem até os aviões. Ele não tinha escolha. Subiu no trator, ligou o motor e manobrou-o na direção da pista. Via, no espelhinho lateral, uma longa fila de carrinhos serpenteando atrás do veículo. Não havia reparado que estavam presos ao trator, mas era tarde demais para parar e desprendê-los. O Gulfstream acabava de chegar à cabeceira da pista e seus motores urravam. Os carrinhos de bagagem começaram a tombar, assim que Wallander cortou caminho atravessando o gramado que separava o pátio de manobra da pista.
Já estava na pista, onde as marcas negras deixadas pelos pneus dos aviões ao frear pareciam rachaduras no asfalto. O trator apontava direto para o Gulfstream, cujo nariz estava virado para ele. A uns duzentos metros de distância da cabeceira, Wallander viu que o avião começara a avançar em sua direção. Mas àquela altura já percebera que tinha conseguido. O jato não teria tempo de ganhar velocidade suficiente para a decolagem, os pilotos seriam obrigados a parar se não quisessem se arrebentar de encontro ao trator.
Wallander pisou no freio, mas pelo visto o trator estava com defeito. Ele apertou, puxou e enfiou o pé no breque, mas não aconteceu nada. A velocidade não era grande, mas a roda dianteira do avião se espatifaria assim que batesse no trator. Wallander saltou fora enquanto os últimos carrinhos se desprendiam e batiam uns nos outros.
Os pilotos tinham desligado os motores para evitar um inferno de chamas. Wallander levou uma pancada na cabeça de um dos carrinhos de bagagem e levantou-se do chão meio zonzo. Mal conseguia enxergar, devido ao sangue que escorria para dentro dos olhos. Estranhamente, continuava empunhando a pistola.
Enquanto a porta do avião se abria e a escada baixava, escutou um exército de sirenes se aproximando.
Wallander aguardou.
E então Harderberg surgiu de dentro do avião e desceu até a pista. Wallander teve a impressão de que ele estava diferente. Depois viu o que era. O sorriso havia sumido.
Ann-Britt Höglund saltou da primeira viatura que chegou até a escada do avião. Wallander estava ocupado limpando o sangue dos olhos com a fralda da camisa rasgada.
— Foi atingido? — perguntou ela.
Wallander sacudiu a cabeça para indicar que não. Havia mordido a língua e estava tendo dificuldade em falar.
— Acho melhor você ligar para o Björk — acrescentou ela.
Wallander olhou fixo para Ann-Britt.
— Não. Ligue você. E cuide do doutor Harderberg.
E começou a se afastar. Ela correu atrás.
— Aonde você vai?
— Para casa e para a cama. Estou meio cansado. E um tanto triste. Mesmo que tenha dado tudo certo no fim.
Algo na voz do inspetor não a incentivou a dizer mais nada.
Wallander continuou em frente.
Por algum motivo, ninguém tentou impedi-lo.
18
Na manhã da quinta-feira, 23 de dezembro, Wallander foi com grande relutância até a Österportstorg, em Ystad, e comprou uma árvore de Natal. O tempo estava nitidamente enevoado — não haveria um Natal branquinho de neve na Skåne, no ano de 1993. Gastou um tempo considerável examinando as árvores, sem saber ao certo o que queria, de fato, mas no fim acabou optando por uma pequena o bastante para ficar em cima da mesa. Levou a árvore para casa e passou horas procurando, em vão, por um suporte que ele tinha absoluta certeza de ter comprado: o mais provável é que tivesse sumido quando ele e Mona dividiram as posses, depois do divórcio. Em seguida fez uma lista das coisas que precisava comprar para o Natal. Era óbvio que, durante os últimos anos, Wallander vivera num estado de crescente penúria. Todos os armários estavam vazios. A lista que preparou encheu uma folha inteira tamanho A4. Ao virá-la, para continuar no verso, descobriu que já havia algo escrito ali. Sten Torstensson.
Lembrou-se então de que essa fora a primeira anotação feita sobre o caso, naquela manhã no início de novembro, quase dois meses antes, quando decidira voltar a trabalhar. Lembrava-se de ter sentado à mesa da cozinha e de ter ficado intrigado com as notícias de óbito do Ystad Allehanda. Tudo mudara, desde então. Aquela manhã de novembro parecia ter ficado lá atrás.
Alfred Harderberg e suas duas sombras haviam sido presos. Assim que o feriado de Natal terminasse, Wallander iria se dedicar a uma investigação que tinha todo o jeito de ser muito longa.
O que será feito do Castelo Farnholm?, ele se perguntou.
Também se lembrou de que deveria ligar para Widén e saber como andava Sofia, depois de tudo por que havia passado.
Levantou-se, foi até o banheiro e examinou-se no espelho. O rosto parecia mais magro. E mais velho também. Ninguém mais deixaria de ver que ele estava beirando os cinqüenta. Abriu bem a boca e espiou os dentes com fisionomia soturna. Desanimado ou irritado — não conseguia se decidir nem por um nem por outro sentimento —, resolveu marcar hora com o dentista logo no começo do ano. Depois voltou para sua lista na cozinha, riscou o nome de Sten Torstensson e anotou que precisava comprar uma escova de dentes nova.
Levou três horas, sob uma chuva torrencial, para comprar tudo o que constava da lista. Teve de recorrer aos caixas automáticos por duas vezes, para tirar mais dinheiro, e ficou indignado com o preço de tudo. Chegou exausto em casa antes da uma da tarde, com todos os seus sacos de compra, e sentou-se na cozinha para conferir a lista. Desnecessário dizer que havia esquecido uma coisa: o suporte para sua árvore de Natal.
O telefone tocou. Ele estava de folga, nos feriados do Natal, de modo que não esperava nenhuma ligação da delegacia. Mas quando pôs o fone no ouvido, foi a voz de Ann-Britt Höglund que ouviu.
— Eu sei que você está de folga. Eu não teria ligado se não fosse importante.
— Quando entrei para a corporação, isso há muitos e muitos anos, uma das primeiras coisas que aprendi foi que um policial nunca está de folga. O que eles têm a dizer sobre isso, agora, na Faculdade de Polícia?
— O professor Persson tocou nesse assunto uma vez. Mas, para ser bem sincera com você, não faço a menor idéia do que ele falou.
— O que foi que houve?
— Estou ligando da sala do Svedberg. A senhora Dunér está na minha sala, agora. E quer muito falar com você.
— Sobre o quê?
— Ela não quis me dizer. Não quer falar com ninguém, a não ser com você.
Wallander não titubeou.
— Diga a ela que estou indo para a delegacia. Ela pode esperar na minha sala.
— Fora isso, não tem muita coisa acontecendo por aqui no momento. Só estamos o Martinson e eu, de serviço. Os rapazes do trânsito estão se preparando para o Natal. A população da Skåne vai passar o Natal soprando bafômetro.
— Ótimo. Tem muito bêbado solto por aí. Temos que acabar com isso.
— Você às vezes soa igualzinho ao Björk — disse ela, rindo.
— Isso nunca — disse Wallander, horrorizado.
— Por acaso existe algum crime cujas estatísticas tenham melhorado?
Wallander pensou por alguns momentos.
— Furto de aparelhos de televisão em branco e preto. Mas acho que só.
Desligou, perguntando-se o que Berta Dunér poderia querer com ele. Não fazia a menor idéia do que fosse.
Era uma e quinze da tarde quando Wallander parou na frente da delegacia. A árvore de Natal cintilava na recepção, e lembrou-se então de que ainda não havia comprado o tradicional buquê de flores para Ebba. A caminho de sua sala, passou pela cantina e desejou a todos um feliz Natal. Bateu na porta de Ann-Britt Höglund, mas não houve resposta.
Berta Dunér estava sentada na cadeira das visitas, à espera dele. O braço esquerdo da cadeira parecia prestes a despencar a qualquer momento. Ela se levantou quando ele entrou, os dois se cumprimentaram com um aperto de mão e ele pendurou o paletó, antes de sentar-se. Wallander achou-a com uma fisionomia cansada.
— A senhora queria falar comigo — disse, tentando fazer uma voz amistosa.
— Desculpe incomodá-lo. É fácil esquecermos de como a polícia é ocupada.
— Eu tenho tempo para a senhora. O que foi?
Ela tirou um pacote de dentro de uma sacola plástica, que estava ao lado da cadeira, e colocou-o sobre a mesa do inspetor.
— É um presente para o senhor. Pode abri-lo agora ou esperar até amanhã.
— E por que cargas d’água a senhora iria querer me dar um presente de Natal? — Wallander estava surpreso.
— Porque agora eu sei o que aconteceu com os meus patrões. Foi graças ao senhor que os criminosos foram pegos.
Wallander abanou a cabeça e estendeu os braços, num protesto.
— Não é verdade. Foi um trabalho de equipe, com muita gente envolvida. Não deveria agradecer só a mim.
A resposta dela o surpreendeu.
— Este não é bem o momento para falsas modéstias, inspetor. Todo mundo sabe que é ao senhor que temos que agradecer.
Sem saber o que dizer, Wallander começou a abrir o embrulho. Continha um dos ícones que encontrara no porão de Gustaf Torstensson.
— Não posso em hipótese alguma aceitar isto. Ou muito me engano, ou isto pertence à coleção de Torstensson.
— Pertenciam. Não pertencem mais — foi a resposta dela. — O doutor Torstensson deixou todos eles para mim, no testamento. E me agrada muito presentear o senhor com um deles.
— Deve valer muito dinheiro. Sou um policial, não posso aceitar presentes assim. No mínimo, eu teria de falar com o meu chefe, antes.
Ela o surpreendeu mais uma vez.
— Eu já fiz isso. Ele disse que tudo bem.
— A senhora já falou com o Björk? — Wallander estava atônito.
— Achei melhor.
Wallander olhou para o ícone. Ele o fazia lembrar-se de Riga, da Letônia. E sobretudo de Baiba Liepa.
— Não é tão valioso quanto o senhor imagina. Mas é lindo.
— É. É lindíssimo. Mas eu não mereço.
— Este não foi o único motivo que me trouxe até aqui — acrescentou Berta Dunér.
Wallander olhou para ela, à espera do que viria a seguir.
— Tenho uma pergunta para lhe fazer. Será que não há limite para a maldade humana?
— Não sou a pessoa mais indicada para lhe responder isso.
— Mas então quem pode me responder, se a polícia não sabe?
Cuidadosamente, Wallander pôs o ícone sobre a mesa.
— Imagino que a senhora esteja se perguntando como é que alguém consegue matar outro ser humano com a finalidade de arrancar partes do seu corpo para obter lucro, é isso? Não sei como responder. É tão incompreensível para mim quanto para a senhora.
— O que está havendo com este nosso mundo? Alfred Harderberg era um homem que todos admirávamos. Como é que alguém pode doar para obras de caridade com uma das mãos e matar com a outra?
— Temos que combater isso tudo da melhor forma possível, e pronto — disse Wallander.
— Como combater uma coisa que não conseguimos entender?
— Na verdade eu não sei. Mas precisamos fazer o possível.
A breve conversa morreu. A risada contente de Martinson ecoou no corredor.
Berta Dunér se levantou.
— Não vou incomodá-lo mais.
— Desculpe não ter conseguido lhe dar uma resposta melhor — disse ele, abrindo a porta.
— Ao menos o senhor foi honesto.
Foi só então que Wallander lembrou-se que tinha algo para dar a ela. Foi até a mesa e tirou da gaveta o cartão-postal com uma paisagem finlandesa.
— Eu prometi lhe devolver isto. Não precisamos mais dele.
— Já tinha esquecido por completo desse cartão — disse ela, pondo na bolsa.
Ele a acompanhou até a porta da delegacia.
— Tenha um feliz Natal, inspetor.
— Muito obrigado. A senhora também. Vou cuidar muito bem do ícone, pode ter certeza.
Wallander voltou até sua sala. A visita de Berta Dunér deixara nele uma sensação de desconforto. Fora obrigado a se lembrar da melancolia com a qual tinha convivido durante tanto tempo. Mas, jogando a tristeza de lado, pegou o paletó e saiu da delegacia. Estava de folga. Não apenas do trabalho, mas de qualquer pensamento que pudesse deprimi-lo.
Posso não merecer este ícone, pensou, mas mereço alguns dias de férias.
Foi para casa em meio à cerração.
Limpou o apartamento inteiro. Antes de ir dormir, improvisou um suporte para a árvore de Natal e pendurou os enfeites. Tinha pregado o ícone no quarto. Examinou-o alguns momentos, antes de apagar a luz.
Será que aquela imagem poderia protegê-lo?
* * *
O dia seguinte era véspera de Natal, o grande dia na Suécia. O tempo continuava enevoado e cinzento. No entanto, nesse dia Wallander sentiu que poderia se alçar acima de todo o cinza.
Foi para o aeroporto de Sturup às duas da tarde, embora o avião só fosse pousar às três e meia. Sentiu-se tremendamente desconfortável ao estacionar o carro e se aproximar do prédio amarelo do aeroporto. Tinha a sensação de que todos olhavam para ele.
Ainda assim, não foi capaz de resistir e caminhou até os portões à direita do terminal.
O Gulfstream não estava mais lá. Não havia nem sinal do avião.
Acabou tudo, pensou. E eu vou pôr um ponto final nisto aqui e agora.
O alívio foi imediato.
A imagem do homem sorridente sumiu de sua mente.
Foi até o saguão de embarque, saiu de novo, sentindo-se mais nervoso que em qualquer outra ocasião desde que era um adolescente. Contou as pedras do calçamento na entrada, ensaiou seu parco inglês e tentou em vão pensar em alguma outra coisa que não fosse o que estava prestes a acontecer.
Quando o avião aterrissou, ele ainda estava parado do lado de fora do terminal. Entrou mais que depressa e postou-se ao lado da banca de jornal, à espera.
Ela foi uma das últimas a sair.
Mas lá estava ela. Baiba Liepa.
E era exatamente como ele se lembrava que fosse.
Henning Mankell
O melhor da literatura para todos os gostos e idades