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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O HOMEM QUE VEIO DO MAR / Jan Maclean
O HOMEM QUE VEIO DO MAR / Jan Maclean

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O HOMEM QUE VEIO DO MAR

 

Aquela pequena ilha no litoral oeste do Canadá era o paraíso de Kristin. Lá ela vivia, em companhia do pai apenas, inocente e feliz. Até que um dia, no meio de uma tempestade, um estranho naufragou na costa da ilha. Um homem ferido e sem memória, cujo olhar calou fundo no coração de Kristin. Ele sabia que se chamava Nathan, mais nada. Com ele Kristin aprendeu o companheirismo, a sensualidade e o amor. Deslumbrada, confiou nele, entregou-se a ele. Então alguém chegou com notícias. Notícias terríveis! Mas era tarde demais. Kristin já estava irremediavelmente apaixonada...

 

Menos de meia hora depois de seu pai ter saído, Kristin MacKenzie ouviu um ronco de motor de barco. Tinha bom ouvido e reconheceu, pelo ruído, que não era o barco de seu pai voltando, nem o ruído mais profundo do pesqueiro de Luther. Quem mais poderia estar vindo visitá-la?

Estava cuidando do jardim e pos-se de pé, tirando as luvas de jardinagem, sujas de lama. Atravessou o gramado, passando pelo depósito de ferramentas e pela cabine de rádio, para chegar até a plataforma. Era ali que ficava o farol, alto, sólido, pintado em listras vermelhas e brancas, com seu grosso olho de vidro encarando eternamente a vastidão do oceano Pacífico. Debruçou-se na cerca e deu uma olhada no ancoradouro. Um veleiro pequeno vinha entrando por entre as rochas pontudas que protegiam o ancoradouro. Era azul brilhante, com um homem ruivo no leme: Del Clarke.

Ele veio depressa, pensou Kristin, apertando os lábios, certa de que aquela visita na ausência de seu pai não era mera coincidência. Alguém devia ter contado a ele que Dugald MacKenzie tinha saído para a visita que fazia duas vezes ao ano a Port Alberni. Del não teria vindo se soubesse que o velho estava ali. Dugald podia ter quase sessenta anos, mas seu corpo sólido ainda era muito ágil e seus olhos suficientemente ferozes para manterem afastados os pretendentes. Só que no caso de Del Clarke, Kristin achava até bom que o velho fosse tão bravo.

Viu que Del amarrava o veleiro e começava a subir lentamente os degraus íngremes de madeira da encosta. Aparentemente ainda não tinha percebido que ela o observava.

Kristin se escondeu atrás do farol. Desde criança, quando ela e o pai tinham vindo morar ali na ilha Sitka, o farol tinha sido sempre um símbolo de segurança e abrigo, o grande facho de luz brilhando como a própria alma da ilha. Apoiou-se à parede e mordeu o lábio indecisa. Podia se esconder no bosque até que Del fosse embora. Ou então chamar Alice pelo rádio e pedir que ela mandasse Luther em seu socorro. Porém, corajosa como era, empinou a cabeça e deixou que um brilho agressivo tomasse conta de seus olhos cinzentos. Afinal, era a sua ilha. Por que deveria esconder-se de Del Clarke? Podia enfrentá-lo sem a ajuda de ninguém!

Seu pai ia ficar fora duas semanas e ela não poderia passar esse tempo todo fugindo do pescador de cabelos de fogo. Endireitou os ombros, respirou fundo e saiu de trás do farol.

— Procura alguém, Del?

Ele se virou bruscamente e Kristin percebeu que tinha conseguido assustá-lo. Já era uma vantagem.

— Dugald não está aqui — disse. — Portanto, perdeu sua viagem.

— Você sabe muito bem que não vim aqui para ver o seu pai, Kristin MacKenzie. É você que eu quero ver — ele disse, rindo.

— Para quê? — Ela fingiu surpresa.

Os olhos azuis, claros e aguados, a encararam, perplexos. Ele nunca sabia o que responder à ironia dela. Era um homem sólido e rústico, de seus trinta anos, cabelos ruivos encaracolados e tinha a reputação de ser o mais valente brigão de todo o estreito. Estava vestindo o avental e as botas de borracha sobre o macacão de jeans

e a camisa de lã xadrez, o que queria dizer que devia ter vindo procurá-la diretamente da pesca.

— Então, não vai me convidar para entrar? — ele perguntou finalmente. Ela hesitou. Não tinha a mínima vontade de estar com ele, mas havia regras tácitas de hospitalidade no litoral rústico e isolado da costa oeste do Canadá e nunca se mandava embora um visitante.

— Está bem — disse, relutante.

Atravessaram o gramado e entraram na cozinha. Ela colocou a chaleira de água no fogo.

— Já almoçou?

— Não comi nada desde as cinco horas da manhã — Del respondeu. Kristin também não tinha almoçado, então podia aproveitar e comer com ele. com gestos bruscos, que demonstravam a sua irritação, começou a preparar uma omelete. Del sentou-se à mesa da cozinha, acendendo um cigarro, sem nem ao menos perguntar se a fumaça não a incomodaria.

— Dugald vai demorar?

— Não sei — respondeu, dura. É claro que ele acabaria descobrindo, mas ela não estava disposta a facilitar nada.

— Não entendo por que você não fica na costa enquanto ele está fora.

— Alguém tem de cuidar dos animais e dar uma olhada no equipamento de vez em quando.

— Ele podia contratar uma pessoa para isso.

— Por que, se eu estou aqui? — disse ela, quebrando um ovo contra a beirada da tijela. — Não sou inútil só por ser mulher, sabia?

— Pensei que você nem soubesse que era mulher — disse Del com voz arrastada.

O tom de voz a fez voltar-se para olhá-lo. A maneira como ele examinava seu corpo irritou Kristin. Felizmente estava vestindo suas roupas mais velhas e deselegantes.

— O que quer na omelete? Queijo, cogumelos ou os dois? — ela disse, prosaica, tentando desviar a atenção dele.

— Os dois. Seu pai a mantém tão presa aqui que pensei que você nem tivesse percebido ainda que era uma mulher. Isso não é vida para uma jovem, isolada de tudo. Na sua idade, você devia estar se divertindo.

— Estou muito feliz com a minha vida.

— Como pode saber? Não tem com o que comparar. Não se sente falta daquilo que não se conhece.

O rosto dela estava muito vermelho ao colocar o prato diante dele, servindo-lhe uma caneca de café. A omelete estava com um cheiro delicioso, mas Kristin nem prestava

atenção ao que estava comendo. Quanto mais depressa terminassem, mais depressa ele iria embora.

— Algum dia você será uma boa esposa, Kristin — disse Del, afastando o prato já vazio e acendendo outro cigarro.

— Muito obrigada — ela respondeu, sarcástica.

— Não vai perguntar por que vim até aqui?

— vou. Porque veio?

— Vão passar filmes lá na costa hoje.

Os olhos dela brilharam, pois cinema era uma diversão rara e muito querida.

— Se voltar comigo agora, podemos ir juntos.

— E depois, Del Clarke? — ela disse, rude.

— bom, você podia ficar na casa de Alice, não? — disse ele, um tanto atrapalhado.

Por um momento Kristin sentiu-se tentada a aceitar. Tinha quase certeza de que Del ia se comportar direitinho e, afinal, ele tinha razão, ela podia ficar com Alice e visitar todos os seus amigos na costa. Além de tudo isso, havia o fascínio dos filmes: a emoção dê ver outros países e cidades, de admirar as mulheres glamourosas

e os homens sofisticados que pareciam quase falar outra língua, tão estranhos eram ao modo de vida de Kristin. Certamente não haveria nenhum mal em aceitar o convite...

— E, de qualquer forma — disse Del, parecendo ler os pensamentos dela -, seria mais seguro ir para a costa. Vem vindo uma tempestade

muito forte. Você ouviu a meteorologia? Deram um boletim especial, faz uma hora.

Kristin estava quase cedendo. Se viesse uma tempestade, o melhor seria mesmo passar algum tempo com Alice e Luther em vez de ficar sozinha ali.

Mas então um instinto de precaução veio em seu auxílio e ela se lembrou de algo que o pai tinha mencionado casualmente no dia anterior: o avião de suprimentos que vinha de Tofino ia se atrasar pelo menos dois dias por causa de um problema mecânico. Portanto, se o avião não tinha vindo, como poderia haver cinema? Olhou para

Del e percebeu o ar de segurança dele.

— Quando foi que o avião chegou? — perguntou, controlada.

— Ontem, no fim da tarde.

— Engraçado, papai disse que não ia chegar ontem...

— Seu pai nem sempre sabe de tudo — ele respondeu desconcertado.

— Não vai ter cinema nenhum hoje, não é, Del?

— Não. Não vai. Mas assim mesmo podíamos sair à noite. Tem sempre jogo de cartas em algum lugar.

— Não, obrigada — ela disse, com raiva de si mesma por quase ter concordado em ir com ele.

— Ora, vamos, Kristin. Quando é que você vai resolver começar a viver?

— Viver, para mim, não tem nada a ver com um jogo de cartas com você e seus amigos bêbados — ela respondeu, irritada.

Del se levantou, furioso, o rosto vermelho. Ele podia ser muito violento às vezes. Ela tinha percebido isso nas poucas vezes em que esteve com ele, sempre em companhia de outras pessoas. Mas nunca o tinha enfrentado sozinha, como agora.

— Sua esnobe! — Del rugiu. — Seu paizinho querido enfiou belas idéias nessa cabecinha. Você acha que é superior a tipos como eu, não é?

Ela tentou protestar, mas ele a agarrou pelo pulso e fez com que ficasse de pé.

— Sabe o que vai acontecer com você? Vai terminar solteirona, sem ninguém no mundo além de um velho para cuidar. E tudo por ser tão exigente.

— Eu não sou exigente! — ela gritou, apesar de saber que havia alguma verdade nas palavras dele.

Mais de uma vez seu pai tinha lhe dito: "Não vou deixar que se case com ninguém daqui, minha querida. Alguém há de chegar de longe para você. Sinto isso. E, até então, é melhor que fique sozinha".

— vou lhe mostrar como sou bom, Kristin — disse Del, parecendo ler novamente os pensamentos dela. Puxou-a contra si e, com brutalidade, colou os lábios aos dela.

As roupas dele cheiravam a peixe, seu hálito a cerveja. Seu queixo mal barbeado raspou a pele dela.

Sentindo o pânico crescer, Kristin percebeu que ele tentava acariciar seu seio. Tentou libertar-se, o coração aos pulos, mas Del a prendia. Sem ar, dominada pela repulsão física, começou a ficar tonta. Desesperada, fez a única coisa que estava a seu alcance: deixou os joelhos dobrarem e o corpo pender, inerte, dos braços dele.

Del se descontrolou por um momento, pensando que ela tivesse desmaiado, e afrouxou os braços. Era a oportunidade que Kristin esperava. Respirou bem fundo e, com toda a sua força, deu um murro no estômago dele, afastando-se depressa.

— Você vai me pagar!-ele disse, gemendo de dor.

— Fique longe de mim!

Os olhos de Del brilhavam com um desejo animal, violento. Kristin tremia dos pés à cabeça.

— É melhor ir embora, agora. E não volte.

— Eu vou quando quiser.

— Talvez não saiba da combinação que tenho com Alice quando papai está fora. — Fez uma pausa e continuou, controlando-se ao máximo: — Se eu não entrar em contato com ela pelo rádio a determinadas horas do dia, ela e Luther pegam o barco e vêm para cá na mesma hora. Já estou dez minutos atrasada. Gostaria que eles chegassem

e o encontrassem aqui?

— Você sempre pensa em tudo, não é? — No rosto de Del misturavam-se raiva e frustração. — Acha que é muito esperta... Muito bem. vou embora. Mas pode esperar que eu volto, Kristin.

Ela empalideceu diante da ameaça que havia na voz dele, sem saber por quanto tempo mais conseguiria manter o controle. Del saiu da cozinha, batendo a porta atrás de si. Da janela Kristin ficou olhando ele se afastar e só quando sumiu entre as rochas foi que soltou o ar, num trémulo suspiro. Graças a Deus ele tinha acreditado na história da comunicação pelo rádio. A mentira, inventada na hora, tinha sido a sua salvação.

Ao sair da casa, ouviu o ronco do motor do barco dele se afastando. Foi até a cerca e ainda teve tempo de ver o pequeno veleiro saindo do ancoradouro. Del acelerou mais e o barco cruzou as águas agitadas do estreito. Em questão de minutos, tinha desaparecido.

Kristin deixou-se cair na grama. O vento tinha refrescado. Soprando sem barreiras sobre a vastidão do Pacífico, ele colava ã blusa ao corpo dela, fazendo voar seus sedosos cabelos castanhos. Seu rosto tinha forma de coração, as feições delicadas. As sobrancelhas, escuras, arqueadas, realçavam a beleza dos olhos cinzentos, que podiam ser tão turbulentos quanto um céu de temporal, ou tão serenos como a superfície prateada de um lago. Agora estavam apenas neutros. De medo. Apesar de aliviada com a partida de Del, Kristin sentiu-se subitamente consciente de seu isolamento. Era o único ser humano na ilha. E mais de dez quilómetros de oceano turbulento a separavam da pequena vila de Sitka, na costa.

Olhou em torno como se nunca tivesse visto tudo aquilo, como se aquele não fosse o cenário de toda a sua vida. À frente, o Pacífico, estendendo-se até o horizonte, cinzento e agitado pelo vento. Havia crescido naquelas praias, dormido quase todas as noites de sua vida ao ritmo do bater das ondas nas pedras. Conhecia e tinha aprendido com seu pai a amar e respeitar todos os aspectos daquele mar.

Bem perto ficava um grupo desigual de pequenas ilhas, uma ou duas delas com baixa e rara vegetação, a maior parte apenas pequenas aglomerações de rochas, semi-encobertas pela espuma das ondas. Era justamente para avisar os navios do perigo dessas rochas submersas que existia o farol.

Sobre o extenso gramado ficava a casa, pintada de branco, com telhado vermelho. À esquerda, o pasto. Como adorasse flores, Kristin tinha plantado roseiras do lado da casa que dava para o mar, e do outro flores aromáticas e coloridas que já começavam a florar. À medida que o verão esquentasse outras mais desabrochariam, enchendo o ar com seu perfume. Além da clareira onde estava a parte de habitação da ilha ficava a floresta de carvalhos e de sitkas, que davam nome à ilha.

Uma trilha ondulava por entre os troncos, até o outro lado da ilha, que era a parte de que Kristin mais gostava. Pois era onde se estendiam vastos campos salpicados de flores silvestres. Havia uma velha casa de fazenda abandonada e, em vez das escarpas, via-se a grande curva de areia branca da praia, com suas ondas suaves. Nos dias claros, da praia dava para se ver as montanhas com seus picos nevados na ilha de Vancouver e a colina arborizada da costa ocidental, cortada pelo fiorde, em cujas margens ficava a vila de pesca, Sitka.

Para Kristin aquele era seu mundo, no qual tinha crescido. Nunca vivera numa cidade, nunca tinha andado de carro, nem frequentado nenhuma escola ou universidade.

E, no entanto, sua casa abrigava uma biblioteca que muitos habitantes de cidades grandes teriam invejado e uma coleção de discos cobrindo pelo menos cinco séculos de história da música. Nos livros e nos discos, Kristin havia aprendido tudo o que sabia. E essa formação nada convencional lhe dava uma curiosa mistura de conhecimento e ignorância, de sabedoria e inocência.

Apesar de seus amigos na vila serem poucos, de às vezes semanas inteiras se passarem sem que os visse, ela gostava muito deles, pois tinham também a honestidade, o humor e a mútua independência indispensáveis para a vida numa comunidade isolada.

Del Clarke, ela pensou, amarga, é a única exceção.

Não saberia dizer se se sentia sozinha. Tinha certeza de que o pai a amava, apesar de ele nunca dizer isso diretamente. A morte de sua esposa, alguns anos antes, tinha levado Dugald MacKenzie a se recolher numa concha de auto-suficiência, na qual sua filha nunca tinha conseguido realmente penetrar, por mais que tentasse.

Sem nenhuma sistematização, ele havia ensinado a Krístin tudo o que sabia sobre o comportamento do mar, sobre a natureza selvagem. Nunca havia censurado suas leituras, nem controlado seus passeios pela ilha. Mas ela nunca podia compartilhar com o pai a emoção que sentia ao ver um belo nascer do sol ou a tristeza de ver morrer um filhote de gaivota. Tinha atravessado sozinha todas as comoções emocionais típicas da adolescência.

Por isso, inconscientemente, Kristin tinha aquele ar de independência, de alguém que crescera aprendendo a ouvir a própria razão antes de tudo. A presença do pai, a visita ocasional aos amigos, a liberdade de vagar pela ilha que adorava, isso lhe bastava em sua solidão.

Mas ultimamente, embora sem saber definir bem de que maneira, Kristin sentia que isso vinha mudando. Nos últimos meses, depois de ter completado vinte anos, sentira, mais de uma vez, uma aguda necessidade de ter alguém de sua idade por perto, para explorar as rochas quando a maré baixava, para nadar na praia no verão... Alguém com quem pudesse partilhar suas fantasias, suas alegrias e mesmo suas lágrimas ocasionais... Alguém que... que a amasse? Mas, nesse ponto, seus sonhos nascentes pareciam deparar com uma muralha e ela afastava os pensamentos, como se fossem meras tolices.

Kristin estremeceu, sentindo que o vento esfriava. O barco de Del Clarke já tinha desaparecido há muito tempo. Agora, quase desejava ter aceitado o convite, apesar do comportamento dele, pois sentia, de repente, enorme necessidade de ouvir o som de outra voz humana, sentir o conforto da presença de uma outra pessoa. com esforço sacudiu da mente esses pensamentos. O melhor remédio era retornar ao trabalho.

A aproximação do temporal foi logo confirmada por um boletim meteorológico no rádio. Kristin tentou ignorar a pontinha de medo que esfriou seu estômago e resolveu trabalhar. Recolheu os ovos, prendeu as galinhas no cercado e verificou a ração delas. Depois ordenhou a vaca e colocou palha nova no estábulo, travando firmemente

a porta. Quando terminou tudo isso já começava a escurecer. Pesadas nuvens, arroxeadas, haviam surgido do horizonte e cobriam a ilha, gordas de chuva. O vento agitava as árvores. Era uma noite muito própria para fechar as cortinas e ficar trancada em casa, com um bom jantar e uma fatia de torta de maçã quente.

Mas algo dentro dela a fez decidir-se a dar uma última olhada do penhasco, uma última vista do mar antes de se trancar em casa. Ali ficou, o corpo esguio batido pelo vento que precedia, com fúria crescente, o temporal. O horizonte tinha desaparecido atrás de cortinas de chuva pesada. Vagalhões gigantescos batiam nas pequenas ilhas rochosas, espirrando espuma branca que o vento colhia para atirar nas encostas da ilha. Nos canais entre os recifes a água rolava e revirava em redemoinhos. Kristin sentia os borrifos do mar umedecendo seu rosto, salgados em sua boca, os ouvidos quase surdos com a fúria do vento e das ondas.

Ia ter de entrar. Mas, ao se voltar, quase inconscientemente, notou algo estranho. Apenas um pedaço de madeira boiando. Seus olhos deslizaram pelas ilhotas rochosas até a mais alta de todas, que ela e o pai tinham apelidado de "ilha da Baleia" por causa da forma da pedra. Lá, detrás de um pontão, parecia haver a proa de um barco!

O coração de Kristin começou a bater acelerado, sentiu a boca seca. Correu para casa e retornou com o binóculo. Deus! Era verdade. Um barco!

Desceu correndo os degraus da escarpa de onde podia ver melhor. Era um pequeno iate encalhado no recife. O mastro tinha partido e a vela, estraçalhada batia ao vento. Um lado da embarcação estava totalmente avariado. Uma onda mais forte o encobriu momentaneamente e o barco oscilou perigosamente. Mais uma onda daquelas e o barco se libertaria das pedras e afundaria como uma pedra!

Prendeu a respiração, horrorizada. Havia mesmo uma sombra na cabine de comando? com dedos trémulos limpou as lentes do binóculo e olhou de novo. Roupas... formas que pareciam botas. Havia alguém no barco!

Não podia entrar em pânico, apesar de perceber a gravidade da situação. Estava totalmente sozinha na ilha, e com um tempo tão terrível ninguém conseguiria chegar até ali para ajudar. Somente ela poderia salvar a pessoa que estava no barco.

com enorme esforço conseguiu controlar o terror que sentia. Lembrou-se de tudo o que tinha aprendido com o pai sobre emergências. Correu para a casa, enfiou botas de borracha, um agasalho pesado e a capa à prova d água. Prendeu a sacola de emergência às costas, uma lanterna e uma machadinha no cinto. Enfrentou o vento, inclinando o corpo para a frente, descendo os degraus depressa, saltando os cinco últimos, direto para o chão. Ainda bem que tinha deixado aberta a porta da casa de barcos.

Isso economizava alguns segundos preciosos.

Lá dentro o ruído do vento e da água eram mais baixos e os dois veleiros, Seawind e Ellen, oscilavam suavemente na água.

O menor, Seawind, seria mais fácil de controlar sozinha. Automaticamente revisou na mente o que devia haver dentro dele: salva-vidas, cinto flutuador, remos, caixa de provisões. O motor pegou imediatamente e Kristin tentou não notar a tremenda agitação do mar, mesmo no ancoradouro protegido. Agradeceu interiormente a constante vigilância do pai sobre o equipamento, sentou-se ao leme e dirigiu o barco para fora do abrigo.

Conhecia aquelas águas como a palma da mão e já tinha navegado nelas em todas as épocas do ano. Mas nunca se aventurara sozinha num tempo daqueles. Concentrou todas as suas energias, atenta àquele mundo estreito de rochas e água turbulenta. Assim que deixasse o estreito do ancoradouro teria de navegar ainda uns duzentos metros para chegar à ilhota. Agarrou o leme com força.

Por um momento de terror, ao entrar no mar aberto, Kristin pensou perder o controle do barco. O leme foi arrancado de suas mãos e a embarcação inclinou-se perigosamente para um lado. Uma onda fortíssima quebrou contra a proa, encharcando-a de espuma. Conseguiu respirar e instintivamente agarrou o leme de novo, dirigindo o barco a favor do vento, ciente de que sua vida dependia inteiramente da batida regular do motor. O barco montou a crista de uma onda enorme e despencou para a água outra vez. Para cima e para baixo e mais um jato d água salgada a ensopou, colando seus cabelos ao rosto.

Kristin não ousava pensar em nada, nem largar o leme. Piscava os olhos constantemente, tentando enxergar. Só mais alguns metros e estaria em segurança, pelo menos momentaneamente.

Mas, mesmo abrigada pelas rochas, ela não ousava diminuir a marcha, pensando o tempo todo no iate precariamente equilibrado sobre o recife, naquela sombra misteriosa delineada na cabine. Dirigiu o Seawind pelo canal, planejando mentalmente seu curso. Não ousava enfrentar o mar aberto para ir direto ao iate. Ia ter de passar ao longo das rochas Gaivotas, atracar no lado oeste da ilha da Baleia e atravessá-la a pé, até o barco naufragado. Tinha de se apressar.

com os braços já doloridos, ela atravessou as correntes traiçoeiras. Para piorar ainda mais as coisas, escurecia rapidamente. Kristin nunca mais haveria de esquecer aquela imagem monocromática de rochas negras, água cinzenta e espuma branca. Ao circundar a última das rochas Gaivotas, enxergou o vulto da ilha à sua frente. Além dela, o mar aberto com ondas gigantescas que enchiam de horror o seu coração.

Fazei com que o barco ainda esteja lá, ela rezou mentalmente. Eu suplico, meu Deus, que não seja tarde demais!

Desesperada, embicou o Seawind para o minúsculo ancoradouro da ilhota. O veleiro oscilava muito, cheio de água, e Kristin precisava de toda a sua força para fazê-lo enfrentar o vento.

Seu pai havia colocado um longo ferro na borda da rocha acima da água e Kristin amarrou o barco, feliz porque os lados dele eram protegidos com velhos pneus dependurados, pois de outra forma se arrebentaria contra as rochas. Saltou para a terra com sua sacola de emergência e o pacote de rações e subiu depressa os degraus. Escorregou na pedra molhada e caiu, arranhando a mão nas conchas, mas nem sentiu dor e continuou a subida.

Quando terminou a escalada, as primeiras gotas de chuva bateram em seu rosto com a força de balas de revólver, fazendo diminuir ainda mais a visibilidade.

Curvada contra o vento, Kristin avançou pelo mato, que chegava até seu peito, bem no centro da ilha. Finalmente atingiu o outro lado. Marcou cuidadosamente sua posição, e deixou no chão os pacotes e a sacola. Arrancou a capa que, dali em diante, só podia atrapalhar. com a lanterna numa mão e um rolo de corda no ombro começou a difícil descida pela encosta da ilha.

O iate ainda estava ali, inclinado num ângulo perigoso, oscilando fortemente a cada movimento da água. O tempo corria. com extremo cuidado ela descia pelas pedras; não podia cair.

Atingiu o nível do iate e apertou os olhos. A cabine estava vazia! A figura havia desaparecido. Será que tinha sido arrastada por uma onda mais forte? Teria afundado nos redemoinhos que se formavam em torno da embarcação?

Então, debaixo do rugir do vento e do mar, Kristin ouviu um gemido. Virou a lanterna. O homem, pois era um homem, tinha se arrastado para a proa. No facho de luz amarela da lanterna, viu que ele tentava se proteger, encolhendo-se.

Uma onda quebrou contra o barco, que oscilou, atirando o homem contra a amurada de metal. Ele tornou a gemer.

Por um momento Kristin hesitou, mas não havia outra escolha. Ia ter de subir para o iate e rezar para que seu peso não o virasse. Não tinha um segundo a perder.

Saltou para o convés molhado e escorregadio, agarrada à amurada. Ajoelhou-se ao lado do homem imóvel. Ele era grande demais para poder levá-lo sozinha. Que faria?

Os cabelos pretos dele estavam ensopados, o rosto pálido como papel, os olhos cerrados.

— Vai ter de me ajudar — ela gritou, sacudindo-o pelo ombro. Temos de deixar o barco antes que afunde!

Por um momento pensou que ele não tinha ouvido, mas então, com grande esforço, ele abriu os olhos. Eram de um azul brilhante e, mesmo enevoados de dor, demonstravam formidável inteligência e autoridade inata. Involuntariamente Kristin deu um suspiro de alívio, pois sentiu imediatamente que não estava mais sozinha em sua luta contra a tempestade. Tinha um aliado.

— Tenho uma corda — ela gritou. — vou passá-la por seus ombros. Vamos ter de saltar para as rochas e escalar o penhasco. Está ferido?

— Bati a cabeça. E perco os sentidos toda hora — ele disse, mostrando uma pasta de sangue nos cabelos. — Acho que quebrei umas costelas também. Ajude-me a levantar.

Ela o agarrou pelas axilas e colocou-o sentado. O rosto do homem contraiu-se de dor.

— Desculpe — disse, preocupada.

— Tudo bem. Vamos sair daqui.

com dedos gelados passou a corda em torno dos ombros dele, depois pelo peito e pelas costas, amarrando com os nós que o pai a havia ensinado a fazer. E começou a amarrar a outra ponta na própria cintura.

— Não faça isso! — ele disse.

— Tenho de fazer. Senão não conseguiremos...

— Isso quer dizer que se eu escorregar você cai comigo na água.

— Então, não escorregue — ela disse, sem acreditar que estava sorrindo.

— Escute aqui, isso não é nenhuma piada — ele disse, os olhos brilhando de raiva. — Tenho uma faca no bolso. Se eu escorregar, corto a corda.

— Nem pense nisso!

— E o que quer que eu faça?

— Não vim até aqui, me arriscando tanto, para terminar assim!

— Em vez de discutir, vamos ver se a gente consegue sair do barco de uma vez.

— O melhor lugar para saltar é perto da cabine — ela disse.

— Então, vamos!

Começaram a engatinhar pelo convés, perigosamente inclinado. Avançavam devagar até chegarem finalmente ao ponto em que o convés quase tocava a encosta.

— Vai ter de saltar a amurada — ela disse.

— Vá primeiro.

Parecia natural que ele assumisse o comando, e ela obedeceu. com o rabo do olho Kristin viu uma monstruosa onda rolando no escuro, inexoravelmente, em direção ao iate.

— Depressa! — ela gritou. — Salte!

Com grande esforço ele se colocou de joelhos. Ela agarrou a corda e puxou com toda a força, sem nem pensar se ia machucá-lo ou não, bem no momento que ele passava uma perna sobre a amurada. A onda quebrou contra o casco. Ouviu-se um ruído agonizante de madeira raspando a pedra e o iate foi carregado pelas águas. O homem saltou e Kristin tentou agarrá-lo, desvairada. Ele caiu sobre ela, atirando-a para trás, e Kristin gritou ao chocar-se contra a encosta.

 

Por um longo momento ficaram ali, caídos, banhados pela chuva, até que ele se moveu.

— Tudo bem?

— Conseguimos — ele respondeu.

— Por um triz.

— E agora? — ele perguntou, com riso na voz.

— Tenho um veleiro ancorado do outro lado da ilha. Mas é impossível fazer a travessia no escuro. Vamos ter de passar a noite aqui, acampados. Trouxe comida também.

— Você é uma maravilha! — Havia ainda riso na voz dele. — Vamos logo.

Subiram penosamente a encosta escorregadia. Uma onda gigantesca abateu-se sobre o iate, afundando-o ainda mais. Era apenas uma questão de tempo agora até que submergisse.

Então um jato de água atingiu os dois com toda a força e Kristin, instintivamente, afundou o rosto no peito dele, sentindo que ele se curvava para protegê-la. Por uma fração de segundo sentiu aquelas sensações marcantes que nunca se apagam da memória: estava absolutamente segura e protegida.

— Tudo bem? — ele perguntou, os lábios muito próximos do rosto dela. — Então, vamos seguir.

E novamente ela sentiu que a liderança tinha passado para ele, aliviando-a da carga. Pela primeira vez, desde que avistara o iate, ousava esperar que escapassem com vida.

A subida era extremamente penosa pelas rochas molhadas, íngremes, varridas pela fúria do vento. Ele gemia a cada passo, respirando com muita dor por causa das costelas fraturadas. Mas demonstrava uma coragem férrea e continuava abraçado a Kristin.

Ao chegarem ao topo, caíram exaustos ao pé de um arbusto.

— Vou ter de levar a lanterna para pegar o equipamento — ela explicou, antes de afastar-se.

O arbusto o protegeria da chuva, mas ela ia ter de trabalhar depressa. Lembrava-se das lições de emergência que Dugald lhe havia ensinado e sabia que o homem precisava de alimento, calor e roupas secas.

Ao retornar, viu que ele estava de olhos fechados, parecendo absolutamente esgotado. Kristin começou a trabalhar o mais depressa que podia e conseguiu improvisar uma espécie de barraca com os grandes pedaços de plástico da sacola de emergência. O estranho parecia ter mergulhado numa espécie de torpor e ela não conseguiu arrastá-lo para o abrigo sozinha.

— Acorde, por favor, e saia da chuva.

— Desculpe — ele murmurou enquanto se arrastava.

Kristin ficou alarmada com a fraqueza da voz dele. Tinha de esquentar depressa a comida. Num nicho entre as pedras, conseguiu acender o pequeno fogão de parafina.

A chama azulada lançava uma luz estranha em toda aquela natureza agitada pela tempestade. O vento fazia gemerem os galhos e ela sentiu um arrepio.

— Não vá me dizer que tem medo de escuro? — ele perguntou.

— Tenho pavor — ela admitiu, contente por ouvir a voz dele a seu lado.

— O que você fez hoje foi a coisa mais corajosa que já vi. Eu teria morrido afogado se não fosse você.

— Obrigada — ela disse baixinho -, mas não foi coragem de verdade. Eu nem pensei, apenas... fiz.

— Essa é que é a verdadeira coragem.

Kristin sentiu o rosto queimar. Devia estar muito vermelha. Baixou os olhos, embaraçada diante do olhar firme dele. Aquelas palavras elogiosas haviam esquentado o seu coração.

A água fervia. Rapidamente ela preparou duas canecas de sopa e passou uma para ele. Percebeu então que ele tremia incontrolavelmente.

— Você está gelado! — disse, tocando o rosto dele com a mão. Sentou-se perto e fez com que ele bebesse a sopa até a última gota.

Acendeu então o lampião de querosene e tomou sua sopa.

— vou descer até o veleiro — disse, resoluta. — Há cobertores lá dentro e talvez um casaco do meu pai. Não devo demorar mais de quinze minutos. Você fica bem sozinho?

Kristin tentava esconder seu medo de escuro, mas, pelo riso dele, entendeu que percebia claramente o estado em que ela estava.

— Tenho de ir — ela insistiu. — Não temos outra escolha, temos? Você está ensopado e eu também.

— Tem razão. — Era evidente que ele não era o tipo de homem que gostasse de depender dos outros. — Tome cuidado — ele disse, agarrando o pulso dela.

— Claro! — Sorriu, comovida com a atenção dele.

— É muito bonita — ele disse de repente. — Mas é claro que deve saber disso.

— Não — ela respondeu com total sinceridade. — Minha mãe é que era bonita. Eu não lembro dela, mas vi fotos. E não pareço nada com ela. Meu pai é quem diz.

— Talvez não pareça com ela, mas por que deveria? Você é você. E é muito bonita.

Uma parte da mente de Kristin estava alerta ao absurdo daquela conversa numa situação tão desesperada. Mas lá no fundo uma outra parte sentia enorme alívio. Sempre achara que nunca estaria à altura das lembranças que o pai guardava da mulher maravilhosa que tinha sido sua esposa. E agora, um estranho lhe dizia que isso não importava. Ela, Kristin, era uma mulher. Uma mulher bonita, com todo o direito à própria identidade.

— Obrigada — murmurou, corando.

— Vá o mais depressa que puder, mas não se arrisque.

Aquilo soou como mais uma ordem, mas Kristin obedeceu, sem pensar. Saiu do abrigo e correu pelo mato. A idéia de que ele estava à espera de sua volta tornava a jornada mais fácil.

O veleiro ainda estava no mesmo lugar. Ela desceu depressa até ele e abriu o armário da proa. Estava com sorte, pelo menos ali a água não tinha penetrado. Havia quatro cobertores, mas não conseguiu encontrar o casaco. Embrulhou tudo num impermeável e correu de volta para o abrigo. Devia ter demorado no máximo cinco minutos.

Ao chegar, o estranho levantou a cabeça e sorriu penosamente. Tremia ainda, incontrolavelmente, e as histórias que Kristin tinha ouvido de morte por hipotermia cruzaram sua mente. Tomou a acender o fogão e esquentou uma lata de guisado que ele comeu inteira, parecendo sentir-se melhor.

— Parece que vamos passar a noite juntos e eu nem sei o seu nome ele disse.

— Kristin. Kristin MacKenzie.

— Já é hora de eu fazer algumas perguntas. Não vão dar por sua falta esta noite? Onde é que mora?

— Na ilha Sitka, oitocentos metros para o oeste. Meu pai é zelador do farol. Estou sozinha, pois ele partiu hoje de manhã. Vai ficar fora duas semanas.

— E não há mais ninguém na ilha?

— Não.

— Quer dizer que ele a deixou sozinha? Você é jovem demais para isso.

— Tenho vinte anos — disse com dignidade. — E não tem nada de

mais ficar sozinha. Alguém tem de cuidar dos animais e do equipamento. E eu falo com meus amigos da costa pelo rádio pelo menos a cada dois dias.

— Sei. — Ele parecia de repente muito sério.

— E você, como chama?

— Não sei.

— Como?

— Isso mesmo. Eu não sei. — Seu rosto estava tenso. — Não consigo me lembrar do meu nome, nem de onde venho, nem para onde estava indo. Não sei o que estava fazendo num iate sozinho, nem como bati a cabeça. Onde estamos?

— Na costa ocidental da ilha de Vancouver. Setenta e cinco quilómetros ao norte de Tofíno — ela informou simplesmente. — Será que você está com amnésia?

— Acho que é isso — ele disse, tocando os cabelos. — Não sei como, mas levei uma grande pancada na cabeça. E devo ter ficado desacordado bastante tempo, para acabar batendo nas rochas daquele jeito.

— Não tem carteira no bolso? — Ela tentava ser prática. — Alguma identificação?

Os olhos dele brilharam, esperançosos. Procurou nos bolsos da calça e da camisa.

— Não. Nada.

— bom, escute. Não vamos nos preocupar com isso agora. Quando formos para minha casa, poderemos ouvir a rádio da marinha. Eles sempre dão uma lista de pessoas desaparecidas e talvez você reconheça o seu nome.

— Você não notou o nome do iate?

— Não... Desculpe — ela disse baixinho.

— Pelo amor de Deus, não se desculpe. Você já tinha muita coisa em que pensar.

— Vai dar tudo certo — ela garantiu. — Agora é melhor tirar essa roupa molhada. Eu trouxe os cobertores.

— E você?

— Eu estou bem.

— Nada disso — disse ele, tocando o corpo dela. — Está tão molhada como eu. Vai ter de usar os cobertores também.

— Não crie problemas — ela disse, muito vermelha, pensando que nunca se despiria na frente dele, apesar de sua roupa estar ensopada.

— Não é hora para ter vergonha, Kristin.

— Não é isso...

— É isso, sim. Vamos repartir os cobertores. Está resolvido. Não tem com que se preocupar... Eu estou tão fraco que não conseguiria nada, nem que tentasse.

Ela baixou os olhos, sentindo o rosto ainda mais vermelho, mas ele a pegou pelo queixo e fez com que o encarasse.

— Confie em mim, Kristin — ele sussurrou.

— Nunca... dormi com um homem — ela gaguejou.

— Eu sei — ele disse suavemente. — Olhe, arrume os cobertores, depois apague a luz e tire a roupa no escuro.

Ela obedeceu, agradecida por ele não ter caçoado de seus temores. A calcinha e o sutiã pouco escondiam de seu corpo.

— Vai ter de me ajudar a tirar a camisa — ele disse no escuro.

Ela obedeceu, com o máximo de cuidado para não tocá-lo. Mas, ao deitar-se entre as cobertas, tocou sem querer a pele dele e recuou, envergonhada.

— Calma, Kristin — ele disse, firme. — Já disse que não precisa se preocupar.

Ela se acomodou o mais longe possível, virando-se de costas para ele e se encolhendo para esquentar, pois os cobertores eram parca proteção contra o frio.

— Boa noite, Kristin, durma bem. E muito obrigado.

— Boa noite.

Ela ficou imóvel. Estava molhada, gelada e absolutamente desperta. Dez minutos se passaram e ela ainda encarava as trevas, os olhos arregalados, ouvindo o vento agitar a vegetação, fazendo tremular os plásticos do abrigo, a chuva cabido forte e regular. O homem sem nome parecia estar adormecido. Sua respiração era curta

e irregular e ele murmurou algo ininteligível, mexendo-se bruscamente e soltando um gemido de dor.

Kristin compreendeu de repente que durante a última meia hora tinha sido tola e ingénua. Já não era criança, mas estava agindo como se fosse. Aquele homem não era como Del Clarke. Apesar de ter naufragado, de estar ferido e de ter perdido a memória, nem por um momento perdera o controle. Pelo contrário, havia tratado com leveza uma experiência terrível.

Aquele gemido de dor despertou sua compaixão de mulher e ela superou seus tolos temores. com toda segurança e calma, virou-se de frente para ele e tocou-lhe o ombro.

Ele estava tremendo de frio. Sem nem pensar no que estava fazendo, colou o corpo ao longo do corpo dele, repousando o braço em seu peito.

— Devia ter dito que estava com frio — censurou-o.

— Você está quentinha — ele disse, passando o braço por debaixo da cabeça dela e puxando-a para si.

— Não vou machucá-lo? — Ela sentia o lado do peito dele contra os seios.

— É do outro lado — ele murmurou.

Kristin ficou imóvel. Aos poucos os tremores foram diminuindo e ela percebeu que a respiração dele ficava mais regular e profunda.

Lentamente tomou consciência de um mundo de sensações inteiramente novas: seu rosto repousava no ombro nu dele, a pele lisa, cheirando a sabonete, um odor indefinidamente másculo.

Que estranho estar deitada ao lado de um homem absolutamente desconhecido e não sentir nenhum medo! Mas é mais que isso, ela pensou. Confiava nele. Por isso se sentia tão diferente?

Não, havia algo mais. Kristin era suficientemente sincera para admitir para si mesma que aquelas sensações agradáveis brotavam de seu corpo e não de suas emoções.

Sua mão desejava acariciar os pêlos do peito dele, o pescoço musculoso. Seus lábios desejavam colar-se à curva do ombro dele. Fechou os olhos, horrorizada com o próprio desejo.

Como tinha lido muito, possuía pelo menos uma noção teórica da força do desejo. Em termos de experiência, no entanto, nunca passara de alguns beijos inocentes com os rapazes da costa e do rude abraço de Del Clarke. Como podia sentir-se tão atraída por um homem absolutamente desconhecido que o mar lançara em sua vida? Arrepiou-se.

— Está com frio? — ele perguntou.

— Não... — ela gaguejou, depois de uma pausa.

— O que foi?

— Nada.

— Kristin — ele disse baixinho -, posso não saber quem sou, nem de onde venho, mas sei que não gosto de abusos. Vamos, diga em que está pensando para eu poder dormir de novo.

— Você acredita... — ela disse, nervosa, incapaz de revelar o que sentia — acredita que nunca fiz isso antes? Que nunca dormi com homem nenhum?

Ele começou a rir, mas deu um grito de dor.

— Droga! Não posso nem rir.

— Não é nada engraçado.

— Claro que acredito — ele disse, ainda rindo. E completou, sério: Kristin, você gosta de ficar aqui deitada, assim?

— Gosto — ela respondeu com a sinceridade que o escuro lhe permitia, sentindo que ele a puxava para mais perto.

— Ótimo. Eu também gosto. E não tem nada de errado nisso, nada de que se envergonhar. É apenas natural. Por que não pára de se preocupar e dorme de uma vez?

— Você compreende, não é?

— Acho que sim. Você fala como se ninguém se desse ao trabalho de tentar compreendê-la.

— Mas é isso mesmo.

— E seu pai? E os namorados?

— Meu pai nunca fala comigo de coisas emocionais. E não tenho nenhum namorado.

— Os homens daqui devem ser todos cegos!

Por alguns minutos ficaram em silêncio e Kristin sentiu um delicioso relaxamento dominar seu corpo.

— Boa noite, Kristin.

— Boa noite.

Ele se mexeu no escuro e ela percebeu que queria beijá-la. Aproximou o rosto e os lábios dele roçaram por sua face primeiro, depois procuraram sua boca. Aquele primeiro beijo começou suavemente, tão suavemente que ela se abandonou ao prazer desconhecido. Um tremor a percorreu quando a pressão dos lábios dele se tronou mais insistente. Abriu os lábios, soltando um gemido de prazer. Sentiu que ele deslizava a mão por seu corpo em busca de seu seio. O prazer daquele toque foi tão intenso que por um momento ela se enrijeceu, surpresa.

Ele entendeu o sinal e virou o rosto, procurando controlar-se. Seu peito arfava na respiração pesada e o coração batia forte contra os seios dela.

— Que foi? — ela sussurrou.

— Era isso justamente que eu queria evitar.

— Mas...

— Kristin, você é muito jovem, muito inocente. E também desejável. Eu não devia ter beijado você. Foi culpa minha.

— Mas você queria me beijar, não queria?

— Eu sou humano.

Ela se deitou novamente, corpo e mente num turbilhão. Teria agido mal? Talvez não devesse ter correspondido. Mas como poderia ter evitado? As sensações que ele despertara nela tinham sido tão violentas quanto as ondas do mar.

— Agora durma — ele ordenou secamente. — Não vai acontecer de novo.

Kristin sentiu-se ferida. Então ele não queria que tornasse a acontecer! Era assim tão repugnante aos olhos dele? Refugiou-se na raiva, certa de que ficaria acordada a noite inteira. Quase sem querer começou a chorar. Toda a tensão acumulada nas últimas horas explodiu numa tempestade de lágrimas. Delicadamente ele a abraçou, murmurando palavras consoladoras em seu ouvido. Gradualmente, ela foi se acalmando.

— Desculpe — ela murmurou finalmente.

— Não se desculpe — ele disse.

Inadvertidamente ela tocou o pescoço dele e percebeu pela primeira vez uma correntinha com um amuleto.

— O que é isso? — perguntou baixinho.

— Não sei — ele respondeu.

Rapidamente, esquecendo as próprias emoções, ela procurou a lanterna para examinar o que poderia ser uma pista.

— É um peixe. De prata. Parece muito caro.

— Eu devia me lembrar o que é. Mas não lembro.

— Tem uma inscrição atrás. "Nathan". Apenas isso: Nathan. Deve ser o seu nome!

— É. Deve ser. — Seus olhos não refletiam o mesmo entusiasmo dos dela. — Nathan... Mas Nathan de quê? Meu Deus! Por que é que eu não lembro?

— Um primeiro nome é melhor do que nada — disse ela tentando consolá-lo ao ver que ele estava a ponto de perder o controle.

— Tenho certeza de que é apenas questão de tempo até você recobrar a memória.

— Espero que sim. — Ele esfregou a testa.

— Está com dor de cabeça?

— Estou. Muito forte.

Kristin apagou a lanterna e se abrigaram mais uma vez na escuridão. Ela ficou absolutamente imóvel até ter certeza de que ele dormia. Só então cedeu ao cansaço.

Quando tomou a abrir os olhos, uma ténue luz cinzenta filtrava-se pelos galhos do arbusto. A chuva caía ainda, regular, e o vento soprava. Kristin ajeitou os cobertores, feliz de sentir o calor de Nathan junto dela. Mas subitamente percebeu que era mais que o mero calor do corpo: ele estava ardendo em febre, o sono agitado. Sua testa banhada em suor, o rosto com manchas vermelhas na pele bronzeada. Era evidentemente um homem de vida ao ar livre. Quem seria? De onde será que vinha? E o que o teria levado a navegar sozinho nas águas traiçoeiras do Pacífico?

Ficou olhando aquele rosto forte, ligeiramente marcado. Devia ter uns trinta anos, os cabelos eram negros, o queixo firme, a boca sensual. Uma onda de calor a percorreu ao se lembrar da paixão daquele beijo.

Mas essas lembranças perturbadoras logo submergiram numa outra onda. De preocupação. Se ele estivesse doente, muito doente, o que poderia fazer? A tempestade continuava e a travessia no veleiro seria apavorante. Mas não podiam ficar ali, sem abrigo, sem roupas quentes e secas, sem comida.

— Kristin...

— Está acordado!

— Kristin, temos de sair daqui. — Sua voz estava muito fraca. Essa tempestade pode durar dias e dias.

— Mas você está muito doente...

— Se estou, o melhor é ir agora. Antes que eu piore.

Kristin sabia que ele tinha razão, mas estava com medo de levá-lo para o barco.

— Será que não seria melhor eu voltar sozinha e pedir auxílio pelo rádio?

— Sabe muito bem que ninguém conseguiria chegar até aqui com esse tempo. Vá ver se está tudo em ordem com o barco e volte o mais depressa possível — disse ele, fechando os olhos e encerrando a discussão.

Rapidamente ela vestiu as roupas ainda molhadas e saiu do abrigo. As ondas batiam nas rochas com toda a força, o vento espalhando no ar a espuma branco-acinzentada.

Todo o canal parecia ferver em redemoinhos. Kristin começou a correr pelo mato. Sentia a boca seca. E se o barco tivesse se soltado? Daí, sim, estariam realmente perdidos...

Mas o pequeno veleiro estava lá, oscilando fortemente na água agitada. Kristin voltou correndo.

— O barco está lá! — disse, ofegante.

— bom — disse ele, terminando de se vestir. — Vamos juntar as coisas e sair daqui.

— Eu levo o equipamento primeiro, depois volto para ajudá-lo.

Fez isso e, ao retornar, encontrou-o já de pé, pesadamente apoiado contra o arbusto, num visível esforço contra a dor. Sem nada dizer, Kristin passou o braço pelas costas dele, fazendo com que se apoiasse em seu ombro, e assim abraçados começaram a atravessar o matagal. Ela tentava suportar o máximo possível de peso dele e não pararam nem uma vez até chegarem às rochas. Estavam ensopados e exaustos debaixo da chuva incessante. Kristin olhou os degraus de pedra molhados e escorregadios que desciam até o barco.

— Melhor eu descer primeiro — ela disse.

— Não! Eu vou...

Ignorando o protesto dele, Kristin deu um passo para o primeiro degrau, mas na precipitação seu pé escorregou e ela perdeu o equilíbrio. Deu um grito ao bater o quadril nas pedras, e tentou desesperadamente se agarrar em alguma saliência da rocha. Fechou os olhos com força enquanto rolava dolorosamente os degraus duros, esperando que as águas agitadas e frias a engolissem.

Mas uma mão a agarrou pelo pulso, detendo a queda. Tremendo de medo ela bateu na parede de pedra.

— Kristin!

Ela abriu os olhos devagar e olhou para cima. O rosto dele, muito próximo, estava contraído de dor. Nathan a sustentava, solta no ar, dependurada sobre o mar com o braço esquerdo, justamente o lado onde ele tinha as costelas fraturadas.

— Apoie o pé naquela saliência — ele ordenou, quase sem ar. — Isso.

Agora mais um passo. Vai ter de saltar agora, díreto para o convés do barco. Tenha cuidado.

Precariamente apoiada nas saliências da rocha, Kristin olhou por cima do ombro e calculou a distância até o barco. Não podia pensar, tinha que saltar de uma vez.

com um ruído seco tocou o convés, que oscilou sob seu peso. Quase imediatamente Nathan aterrissou ao lado dela. Kristin levantou a cabeça e ficou surpresa de ver a raiva brilhando nos olhos azuis.

— Sua idiota! Podia ter morrido afogada! Não ouviu eu mandar que esperasse?

Perplexa, ela nada conseguiu responder. Ele disse um palavrão baixinho e se afastou. Parecia dominar a doença com uma intensa força de vontade. com a eficiência e rapidez de um navegador experiente, ele soltou a corda e ligou o motor. Kristin sentou-se, abraçando os joelhos para ver se paravam de tremer, e olhou o mar. Ao longe, por entre o nevoeiro, desenhavam-se os penhascos da ilha Sitka: seu lar.

O veleiro começou a cortar as águas e, com uma estranha sensação do inevitável, ela percebeu que depositava total confiança na habilidade de Nathan para conduzir o barco por águas desconhecidas para ele. Observando sua habilidade em evitar as rochas semi-submersas, compensando a força do vento e a agitação das águas com a direção do leme, Kristin estranhou que Nathan tivesse naufragado com seu iate. Mesmo doente, era evidente que ele conhecia bem o mar e seus segredos.

Finalmente atingiram o estreito ancoradouro, o abrigo seguro de que tanto precisavam, e ela sentiu por Nathan enorme respeito ao entrarem na casa de barcos, não muito sãos, mas salvos.

 

O motor silenciou e Kristin amarrou a corda. Desceram para terra sem nada dizer. Em silêncio cruzaram o gramado e ela abriu a porta dos fundos. Ao entrar na cozinha, viu tudo o que era seu com outros olhos: os detalhes caseiros da toalha de mesa xadrez, as cortinas floridas, a trepadeira enrolada à grade da janela. Sentiu um nó na garganta.

Nathan fechou a porta. Dominada por uma força estranha, Kristin se voltou para olhar aquele desconhecido arrogante, alto, que o mar tinha trazido até ela. Seus olhos eram cavernas azuis num rosto forte, do qual toda a vitalidade havia desaparecido. Ele oscilava, incapaz de ficar em pé. Mas estava salvo. Kristin começou a tremer.

Era uma reação retardada e ela apertou a boca com a mão, tentando conter os soluços que lhe enchiam a garganta. Mas não conseguiu e começou a chorar, indefesa. Ele chegou até ela, abraçou-a, amparando-a em seu corpo forte. Ela afundou o rosto em seu peito e chorou, enquanto ele a acariciava suavemente, murmurando palavras de consolo. Era um abraço sem desejo, que oferecia apenas segurança, conforto. Como se ele fosse um irmão.

— Parece que estou me acostumando a chorar — ela disse, conseguindo finalmente controlar as lágrimas. — Você não vai acreditar, mas eu quase nunca choro.

— Não acredito mesmo. — Ele sorriu, atenuando as linhas de dor e de cansaço em seu rosto.

Ela o abraçou de novo, forte.

— Oh, Nathan! Estamos salvos! Eu tive tanto medo.

— Eu sei. Mas assim mesmo fez tudo o que tinha de ser feito. Como eu já disse antes, isso é coragem, da mais genuína.

Kristin corou. Aqueles elogios despertavam-lhe um novo orgulho. Seu pai, fechado em si mesmo, nunca a elogiava. Além disso, Nathan falava com ela de igual para igual, sem paternalismo e ela o encarava, ereta, um brilho de satisfação nos olhos.

— Obrigada — disse séria, sabendo que ele estava sendo sincero.

— De nada. Será que você tem uma caixa de primeiros socorros?

— Claro...

— Há um arranhão feio em seu rosto.

Kristin tinha mesmo sentido um ardor numa das faces e foi ao espelho olhar. Os cabelos longos estavam emaranhados, os olhos circundados por olheiras profundas, e no rosto um arranhão coberto por sangue seco e sujeira.

— Estou horrível! — disse.

— Se já está pensando em seu aspecto é porque está tudo bem com você! — Nathan disse, rindo.

— Mas não posso dizer o mesmo de você, Nathan. Parece muito doente. Tem de ir para a cama.

— Depois de curar esse seu machucado.

com dedos seguros e delicados ele limpou o ferimento, removendo o sangue e as partículas de areia da pele. Seu rosto pairava a alguns centímetros do dela, os olhos muito azuis, os cílios longos, como de mulher.

Mas ele não tem nada de feminino, ela pensou. Muito pelo contrário. A atração da intensa virilidade dele funcionava como um imã. Kristin ansiava por se inclinar e tocar sua boca com os lábios. E percebeu, satisfeita, que ele sentia a mesma coisa. Baixou os olhos.

— Quer que eu a beije, não é?

— Quero. — Kristin não sabia mentir.

— Eu também quero.

O rosto dele aproximou-se ainda mais. Ela sentiu-se mergulhar no azul daqueles olhos e os lábios de Nathan tocaram os seus com infinita suavidade. Decididamente sensual, ele tomou o lábio inferior dela entre os dentes, mordendo-o suavemente. Incapaz de pensar, Kristin pegou o rosto dele com ambas as mãos, acariciou o pescoço forte, enfiou os dedos pelos cabelos negros. O beijo tornou-se mais intenso, os lábios mais exigentes e eles colaram os corpos um no outro.

Na sala soou um gongo e Nathan se afastou imediatamente dela, assustado, como se tivesse levado um tiro.

— Que foi isso?

— O relógio da sala.

— Eu lembro disso... — ele disse, fechando os olhos em profunda

concentração. — O carrilhão. Devo ter um relógio igual a esse. Por um momento cheguei a sentir que estava em casa. Mas não adianta. A sensação fugiu. Meu Deus, por que não consigo lembrar?

— com o tempo você acaba lembrando de tudo — disse ela com confiança, preocupada com a palidez dele. — Tenho certeza. Mas agora está esgotado. Tem de descansar, Nathan. O banheiro fica ali. Eu vou arrumar a cama.

Ele não procurou detê-la. Ela lhe deu toalhas limpas e um roupão azul-marinho que tinha acabado de fazer para o pai. Enquanto arrumava a cama, ouvia o ruído do chuveiro.

Apesar de preocupada com o estado de Nathan, tinha consciência de uma profunda felicidade em seu coração. Era bom ter alguém. Fechou as cortinas e acendeu a lâmpada ao lado da cama, ajeitando os lençóis.

Nathan entrou no quarto e ela sorriu. O roupão estava um pouco pequeno para ele. Kristin sentiu um arrepio ao pensar que estava nu debaixo do roupão. Pela abertura podia ver os pêlos do peito e a correntinha com o amuleto.

— vou buscar alguma coisa para você comer — ela disse, agitada, procurando evitá-lo.

Ele fez que sim e sentou-se na cama.

Ao retornar pouco depois, com uma tigela de sopa quente, Nathan já estava dormindo, deitado de costas, o perfil recortado pela luz da lâmpada de cabeceira. Kristin encostou-se ao batente da porta, olhando. O que havia naquele homem que mexia tanto com ela? Era bonito, forte, arrogante, masculino. Será que era isso que a atraía?

Ou a segurança, o autodomínio? Não sabia responder.

Já estava escurecendo quando Kristin terminou suas tarefas domésticas. Tomou um delicioso banho quente que aliviou a tensão de seus músculos. Tinha marcas roxas e arranhões pelo corpo todo. Deu mais uma olhada em Nathan, que dormia tranquilo, e foi para seu quarto. Caiu num sono profundo assim que tocou o travesseiro.

Quando despertou, ainda estava muito escuro. O vento zunia lá fora e a chuva caía, forte e regular. Mas ela sabia que nada disso a teria despertado. Sentou-se e ficou atenta: ouviu a voz de Nathan resmungar alguma coisa no escuro. Saltou da cama e correu para o quarto dele.

Colocou a lâmpada no chão para não perturbá-lo e sentou-se à beira da cama. Ele se virava, agitado, as cobertas afastadas, um grande ferimento atravessando seu peito.

Ela tocou seu rosto; estava ardendo em febre. Ele resmungou algo confuso e afastou a mão dela bruscamente.

Kristin pegou uma toalha de rosto no banheiro, molhou bem com água fria e voltou para o quarto. Umedeceu com ela o rosto, o pescoço e o peito dele. Nathan não reagiu de início, mas de repente afastou-a.

— Não, não — ele gritou. — vou cortar a corda.

— Acorde, Nathan, acorde! — ela gritou, sacudindo-o pelos ombros. Ele abriu os olhos, encarando Kristin, sem reconhecê-la. .— vou cortar a corda, já disse!

— Nathan, está sonhando... — Tornou a sacudi-lo. — Nathan, não me reconhece?

— É um anjo...

— Sou eu, Kristin.

— Kristin? — Ele repetiu o nome como se nunca o tivesse ouvido antes.

— Tirei você do iate, não se lembra?

— Linda...

Antes que ela pudesse evitar, ele a puxou sobre si e beijou-a desesperadamente. Os lábios de Nathan pareciam devorá-la, as mãos grandes a acariciavam com a urgência de um homem esfaimado. A alça da camisola caiu e ele colheu na mão o seio dela, acariciando o bico, já rijo, entre os dedos. Esse toque despertou em Kristin um desejo tão grande quanto o dele. Todo seu corpo doía e latejava numa sensação que ela não sabia existir. O calor de febre da pele de Nathan parecia atravessar a sua enquanto aquelas mãos exploravam ainda mais seu corpo excitado. Seus seios, nus, colavam-se àquele peito duro e musculoso, lançando-a num turbilhão mais forte que a tempestade que rugia lá fora.

Ele deslizou os lábios sedentos pelo pescoço dela, pelo peito, até encontrarem o seio. E então todo seu corpo se imobilizou.

— Carla, é você? — ele perguntou, fixando nela os olhos azuis, lustrosos de febre. — Meu Deus, onde é que estou? Você não é Carla. Ela não tem cabelo comprido, sei que não tem...

Kristin congelou, como uma estátua. Horrorizada, sentiu-se arrebatada por uma onda de ciúme. Carla... quem seria Carla? Fosse quem fosse, era evidente que já partilhara a cama de Nathan.

Apesar de todo o seu corpo tremer de desejo e frustração, conseguiu pôr-se de pé. Arranjou a camisola com dedos trémulos e fugiu para o banheiro.

Olhou a própria imagem no espelho, os olhos perturbados. Ele a tinha beijado sem nem saber quem era. Tratava-se apenas de puro desejo animal. Podia ter sido qualquer uma. Ou, pior ainda, talvez ele tivesse pensado que era Carla. Ela não tinha passado de uma substituta. Kristin sentiu-se vulgar, fácil e ficou envergonhada, o estômago enjoado.

Lavou o rosto com água fria e retornou ao quarto. A febre de Nathan havia aumentado, ele estava banhado em suor, agitado, agarrando os lençóis. Rezando para que ele não tornasse a tocá-la, Krístin arrumou os lençóis e começou a umedecer

com uma esponja e água fria o rosto e o pescoço dele. Nathan às vezes a afastava rudemente, dizendo frases sem nexo, revivendo em sonho o tormento do naufrágio.

O tempo se escoava lentamente. Uma hora, duas, três... Kristin já ia desistir quando achou que finalmente a febre começava a ceder. Seus nervos estavam tensos. Foi até o banheiro descansar um instante.

— Kristin...

Ela correu para o quarto. Dois olhos azuis límpidos e lúcidos a encararam. Ela se sentou na beirada da cama.

— Graças a Deus... — disse, trémula.

— O que foi?

— Você esteve doente a noite inteira. Estava tão preocupada!

— Faz tempo que está acordada?

— Desde a meia-noite — ela disse, olhando o relógio que marcava dez para as três.

— Nossa! Desculpe... Deve estar exausta.

— Estou, sim. Tive muito medo. Você teve pesadelos horríveis, achando que ainda estava no iate. Depois acordou e não me reconheceu.

— Ela não conseguiria nunca contar do contato amoroso que tiveram. Será que ele se lembrava?

— Não me lembro de nada — ele disse, -tomando as mãos dela. Agora é melhor ir para a cama, Kristin. Eu estou bem. Acho que a febre passou.

Suavemente ele a puxou para si e deu-lhe um beijo nos lábios. Talvez fosse mera gratidão, mas Krístin ficou dura, lutando contra o desejo de abandonar-se àqueles braços.

— Vá para a cama, Kristin — ele disse de repente, empurrando-a para longe, os olhos brilhando de raiva.

— Mas...

— Nunca forcei ninguém a me beijar e não é agora que vou começar.

— Mas, Nathan...

— Você correspondeu ontem à noite e na ilhota também. Que foi que aconteceu?

— Nada — ela disse, perturbada, incapaz de revelar o que acontecera poucas horas antes naquela mesma cama. — Você está doente e tem de dormir.

— Se isso é mais importante para você, então vá para a cama... a sua cama.

Ela murmurou um boa-noite e saiu depressa, para que ele não

percebesse as lágrimas que brilhavam em seus olhos. Apesar de esgotada física e emocionalmente, não conseguiu dormir. Quando já clareava o dia, cochilou a intervalos irregulares, confundindo sonhos terríveis. Finalmente, às nove e meia, desistiu e levantou-se. O que precisava era de uma boa xícara de café. Vestiu uma roupa confortável e foi para a cozinha. No caminho, passou pelo quarto de Nathan e parou na porta. Felizmente ele dormia, tranquilo.

Como era bonito aquele estranho trazido pelo mar, com seus ombros largos e fortes. E como tinha conseguido perturbar depressa e profundamente a vida dela, calma e organizada. Kristin compreendeu de repente que o aparecimento daquele homem marcava o fim de uma parte de sua vida e o começo de um capítulo inteiramente novo.

Como iria acabar? Suspirou, invadida por um estranho temor, e afastou o pensamento. Foi para a cozinha.

Minutos depois o aroma delicioso do café flutuava no ar. Kristin vasculhava a geladeira em busca do creme quando ouviu ranger a porta da cozinha. Olhou, assustada.

Era Del.

— Del! — gritou, batendo a porta do refrigerador. — Você me assustou! Não ouvi você chegar. Feche a porta. Está ventando.

— Não parece muito contente em me ver — ele disse, passeando o olhar pelo corpo dela, mal coberto pela roupa folgada, de andar em casa.

— É meio cedo para uma visita, não acha? Acabei de levantar.

— É, dá para notar. — Ele olhava o corpo dela com olhos brilhantes, maliciosos.

— Pare com isso, Del!

— com o quê? Não estou fazendo nada.

— Sabe muito bem que está, sim — ela disse, seca. — Já que está aqui, sente-se. Tome um café.

Ele obedeceu. Ela sentou-se do lado oposto da mesa, tomando café também.

— Está ótimo — ele disse. — Você parece cansada.

— Estou, sim. — Ela estava surpresa, pois Del não era de reparar nos outros. Talvez fosse o momento de contar tudo o que tinha acontecido na noite anterior e revelar

a presença de Nathan na casa, mas por alguma razão ela nada disse.

— Fiquei preocupado com você durante a tempestade — Del disse, sem jeito. — Achei melhor dar uma passada aqui, para ver como estava.

— Bondade sua, Del. Obrigada. — Sabia que ele estava sendo sincero e sentiu-se tocada. Abriu a boca para contar que não estava sozinha, mas tornou a calar. Por alguma razão relutava em revelar a presença de Nathan.

— Você não devia ficar sozinha assim.

— Já falamos disso antes, Del.

— Você é tão teimosa quanto o seu pai!

— Como está o tempo? — ela perguntou, para mudar de assunto. Ainda não saí de casa.

— O mar ainda está agitado, mas o vento melhorou.

— Tenho de soltar as galinhas e a vaca. Elas detestam ficar presas muito tempo. — Foi até a janela e abriu a cortina. — O céu já está ficando azul.

— Pode me dar mais café?

Ela se virou, sentindo que Del estava bem atrás. Apoiando ambas as mãos à parede ele a encurralara entre os braços.

— Del...

— Fiquei preocupado mesmo, Kristin.

Kristin sentiu a sinceridade que havia naquela voz rude e pensou que ele tinha cruzado pelo menos quinze quilómetros de mar aberto, com mau tempo, para saber dela.

Sentiu-se grata.

— Eu acredito — disse, tocando de leve o rosto dele. — E foi bondade sua vir até aqui para saber se eu estava bem.

Os olhos de Del se incendiaram e ele a enlaçou pela cintura, colando os lábios aos dela. Instantaneamente, com todos os seus sentidos, Kristin se afastou dele, mas por um breve instante esteve presa naquele abraço.

— Desculpe interromper... — soou a voz de Nathan.

Kristin sentiu, um choque abalar todo o corpo de Del, que se afastou dela imediatamente.

— Quem é você? — perguntou assustadíssimo. — Quem é esse cara, Kristin? Ah, então é assim. E eu que pensei que você era tão bobinha! Não demorou para arrumar um homem assim que seu pai viajou, hein?

— Não seja ridículo. Não é nada disso — ela disse, muito nervosa e perturbada.

— Ah, não? — Del olhou as calças amarrotadas de Nathan, o peito nu.

— Ele parece bem à vontade. Não é de admirar que esteja cansada. Kristin. Não deve ter dormido muito, hein?

— Escute aqui, Del Clarke! — ela gritou, vermelha de raiva e confusão. — Eu não o conhecia até ontem, no temporal...

— Ele trabalha depressinha, hein?

— Cale a boca! Cale a boca e ouça — ela gritou, firme. — O iate dele bateu na ilha da Baleia e eu tive de ir até lá no veleiro para salvá-lo. Ele está doente e foi por isso que passei a noite acordada.

— Exato — disse Nathan com voz gelada. — Por que não me

apresenta o seu amigo, Kristin?

— Nathan, este é... Del Clarke — ela gaguejou. — Pescador da vila de Sitka.

— Então o seu iate afundou? — Del disse, devagar. — Estava sozinho?

— Estava.

— Deve ter perdido o rumo na tempestade.

— Por que diz isso?

— Para onde estava indo?

— Tofino — disse Nathan, depois de hesitar um instante, procurando lembrar algum nome.

— Sua carga deve ter afundado com o barco. Que pena! — disse Del, insinuando coisas.

— O que é que está tentando dizer, sr. Clarke? — O perigo brilhava em seus olhos, mas sua voz estava perfeitamente controlada. — Por que não fala diretamente?

— O nome é Del. Não usamos esses formalismos nestas ilhas.

— Muito bem, Del. — Nathan estava impaciente.

— Pensei que era bem óbvio o que você fazia... Ou está tentando esconder de Kristin as suas... atividades?

Kristin mordeu o lábio, sentindo a tensão que havia no ar. Os dois homens pareciam ignorar a presença dela. Mas ela sabia quanto devia estar custando a Nathan ficar

em pé tanto tempo, pois ele estava muito pálido.

— Vamos direto ao ponto, Del. Pode me dar um café, Kristin, por favor?

— É, vamos direto ao ponto — disse Del, evidentemente furioso com a calma de Nathan. — Contrabando, chapa... Drogas.

É disso que estou falando.

— Você está louco, Del! — disse Kristin, sem conseguir controlar-se.

— Ah, não, não estou, não. Você sabe tão bem quanto eu do tráfico de drogas que existe de Vancouver para a costa oeste aqui. É um negócio muito rendoso, não é, Nathan? Por que é que não diz o seu sobrenome?

— Nathan basta.

— Claro, entendo que queira ficar incógnito. — Del riu. — Mas não precisa se preocupar. Eu não vou trazer os tiras. Eu mesmo não tenho as mãos lá muito limpas nesse negócio. Quanto foi que perdeu com o naufrágio do iate?

— Perdi o iate. Só isso. Está enganado, sr. Clarke.

— Vai ter de se esforçar mais para me convencer. Mas vamos dizer

que fosse verdade... O que é que estava fazendo, navegando sozinho por estas águas?

— Talvez eu goste de velejar — ele disse, calmo.

Kristin, porém, percebeu que ele apertava mais o batente da porta.

— Não me faça rir, cara. Ninguém navega só por gosto nestas águas. Na costa leste, talvez, mas não aqui.

Sem pensar, Nathan passou a mão pelos cabelos e não conseguiu reprimir um gemido de dor quando seus dedos tocaram o ferimento.

— Ah, então levou um golpe na cabeça? — Del arreganhou um sorriso. — Quem será que fez isso? Então talvez a carga não tenha afundado com o iate, afinal. Talvez já tivessem aliviado a muamba. Melhor tomar mais cuidado daqui para a frente. As drogas são negócio perigoso e os homens jogam duro.

Por um momento Kristin ficou alarmada com a clareza dos fatos arranjados naquela ordem por Del. Era mesmo estranho que Nathan estivesse navegando ali sozinho. E mais estranho ainda que um marujo experiente — como ele de fato era — batesse a cabeça e acabasse naufragando. Será que a perda de memória era apenas um estratagema para evitar que ela fizesse perguntas demais? Perturbada, registrou novamente a firmeza, o ar de comando, a auto-suficiência dele. Será que tinha colocado todas essas qualidades a serviço do comércio mais desprezível do mundo, o tráfico de entorpecentes?

Nathan a encarou e Kristin sentiu que ele lia seus pensamentos. Por um momento julgou ver uma sombra de dor cruzar aqueles traços, mas talvez fosse imaginação sua.

— Em quem acredita, Kristin? Em Del ou em mim? — ele perguntou, absolutamente controlado.

— Em você, Nathan — disse sem hesitar, obedecendo a uma súbita intuição.

— Aí está, Del. — Ele sorriu levemente. — Dois contra um.

— Não sei quem é esse cara — disse Del, agarrando o braço dela -, mas ele a enrolou direitinho. Pense bem. O melhor é mandá-lo para a costa comigo.

— Não posso fazer isso, Del. Ele não está bem.

— O que quer dizer é que duas noites só foi muito pouco... — Del riu, debochado.

— Agora chega, Clarke! — A voz de Nathan cortava como um chicote. — Mais uma bobagem dessas e vai voar por aquela porta sem nem saber como.

— isso eu queria ver!

— Melhor ir agora, Del... — disse Kristin, quase sufocada de medo.

— Querem ficar a sós, não é? Kristininha... se se meter numa fria, não vá dizer que não avisei. Se Dugald MacKenzie já vira o nariz para mim, porque sou pescador, imagine o que ele não faria se soubesse que você dormiu com um traficante de drogas...

— Fora! — ela disse, o queixo tremendo de indignação.

— Eu vou. Mas volto. — Seus olhos, ameaçadores, foram dela para Nathan. — É. Eu volto, sim.

Assim que ele saiu, Kristin trancou a porta e encostou-se nela para se recobrar da raiva.

— Você mentiu para mim — disse Nathan, calmo.

— Como?

— Na noite que passamos na ilha você me disse que não tinha namorado. Mas Del Clarke pareceu bem à vontade em sua casa. Ou será que você beija todo mundo que chega?

— Ele não é meu namorado! — ela gritou, deixando explodir a tensão das últimas horas. — E não me importa a mínima se você acredita ou não! O que é que você tem a ver com isso, afinal?

— Então estava sendo beijada à força? — ele perguntou, cínico.

— Ah, eu tenho uma dúzia de namorados. Assim posso trocar todo mês, sabe? — Ela tinha consciência de que estava sendo infantil, mesmo assim deu as costas a ele.

Porém, antes que Nathan pudesse responder, o rádio começou a dar sinal de chamada.

— com licença — ela murmurou automaticamente. Na cabine, Kristin ligou o aparelho.

— Kristin? — soou a voz de Alice. — Eu estava preocupada com você. Como foi de tempestade?

— Tudo bem. E vocês?

— Luther perdeu uma rede, mas nada de mais grave. Gostaria de receber uma visita hoje à tarde? Vai ter de ser por pouco tempo, mas estamos com vontade de dar uma chegada aí.

— Eu adoraria! — Kristin respondeu com mais calor do que pretendia.

— Tem certeza de que está bem?

— Estou, sim. vou botar a água no fogo para o chá. Vem com Luther?

— Sim. O mar ainda está agitado demais para pescar, mas faz dois dias que ele está trancado em casa e não aguenta mais. Precisa sair um pouco. Parece um urso enjaulado.

— Então nos vemos logo — ela disse, rindo. E desligou.

— Era minha amiga Alice Mathews, da costa — disse retornando à cozinha, novamente bem-humorada. — Ela e o filho, Luther, vão vir para uma visita dentro de umas horas. Tenho de me vestir. E talvez seja melhor eu esclarecer uma coisa desde já: Luther nunca foi, não é e nunca será meu namorado.

— É? — Nathan sorriu, um tanto relutante.

— Alice é como uma mãe para mim, desde que viemos morar aqui na ilha. Eu gosto muito dela. E Luther é como um irmão. Você vai gostar dele, tenho certeza.

— Como é que vai explicar a minha presença .

— Bem... eu vou dizer a verdade.

Nathan estava sentado numa cadeira, o corpo curvado de cansaço. Olhava as mãos, sério.

— Kristin, não vou pedir que engane os seus amigos, mas não acha que seria melhor manter em segredo a minha perda de memória?

— Podemos, se você preferir. Mas por quê, Nathan?

— Talvez Del Clarke tenha razão, Kristin. Talvez eu seja um traficante.

Kristin viu que aqueles olhos azuis estavam atormentados por dúvidas. Dúvidas que Nathan não tinha revelado a Del Clarke.

— Mas é claro que não!

— Você tem de admitir que os fatos se encaixam direitinho. Por que mais estaria eu pilotando um iate nesta costa tão agitada? E como é que bati a cabeça?

— Nathan, escute aqui... — Ela se sentou ao lado dele. Era particularmente importante dar apoio a Nathan, pois ela própria tinha tido essas dúvidas, minutos atrás.

— Não sei lhe dar uma explicação racional de por que sinto assim, mas tenho certeza de que você não tem nada a ver com o tráfico de drogas. É um negócio sujo e você não tem cara disso.

— Não está sendo confiante demais? — Ele pegou a mão dela.

— Talvez. Mas prefiro confiar no meu instinto.

— bom, então vamos esperar que seus instintos estejam corretos ele disse, rindo. — Que tal me dar um café agora?

— É melhor lhe dar alguma coisa para comer também. Que tal ovos mexidos com torrada?

— Ótimo.

— Não podemos guardar segredo para sempre, Nathan — ela disse, enquanto trabalhava. — Talvez fosse melhor entrar em contato com a polícia. Eles devem ser capazes de descobrir quem é você, não?

— Já pensei nisso tudo, Kristin. Mas por enquanto acho melhor não fazer nada. Vamos esperar a lista de pessoas desaparecidas no rádio, como você sugeriu. Acho que eu reconheceria o meu nome...

— Se você prefere assim... — Ela terminou de preparar a refeição e colocou o prato diante dele.

— O cheiro está ótimo. Olhe, depois de comer vou para a cama. Ele sorriu. — Um pouco porque estou me sentindo mal, mas principalmente para evitar que seus amigos façam muitas perguntas.

Quando o barco de Luther entrou no ancoradouro, Kristin já tinha trocado de roupa, lavado os pratos e cuidado dos animais. Debruçada no muro, abanou a mão para eles

enquanto subiam os degraus de madeira. Alice era baixa, gordinha, de cabelos brancos e seus olhinhos castanhos brilhavam com um invencível entusiasmo pela vida.

O filho, apesar dos cabelos castanhos, grande altura e traços decididamente masculinos, parecia com ela.

— Estou ficando velha — disse Alice, terminando a subida, ofegante, e abraçando Kristin afetuosamente. — Como vai, minha querida?

— Estou bem. Vamos entrar. Tenho uma porção de coisas para contar.

— Del apareceu aqui hoje? — perguntou Luther, enquanto atravessavam o gramado.

— Esteve, sim — ela respondeu com uma careta. — Ele tem me incomodado um pouco desde que papai viajou.

— Tudo bem. Pode deixar que eu cuido disso — Luther disse com firmeza.

E Kristin sabia que podia confiar nele.

— E então? Quais são as novidades? — Alice perguntou quando já estavam à mesa, tomando chá.

— Tenho um hóspede.

— Quem é? — a velha perguntou, curiosa.

— O nome dele é Nathan e estava indo para Tofino quando seu iate bateu nos recifes... — Kristin falava depressa, tentando com isso encobrir o problema sobre a identidade dele. — Foi na terça-feira. No dia em que papai viajou.

Em seguida descreveu tudo o que tinha acontecido, com uma viva narrativa do salvamento.

— Ele está deitado agora — concluiu. — A febre o deixou muito fraco e ainda está meio tonto por causa da pancada na cabeça. Fica meio confuso às vezes, mas deve sarar dentro de uns dias.

— Não era bom chamar um médico? — Luther perguntou.

— Ele acha que não precisa.

— Meu Deus, deve ter sido dificílimo conseguir salvá-lo — comentou Alice animada, conhecedora como era dos perigos do oceano Pacífico. Você merece uma medalha, Kristin!

— Que nada — ela respondeu, envergonhada. — Você teria feito a

mesma coisa. Olhe, vou ver se está acordado. Se estiver, você pode ir até o quarto para dizer alo.

Ela saiu da cozinha e foi até o quarto de Nathan. Abriu a porta com cuidado.

— Oi — ele disse, sorrindo, sonolento. — Seus amigos chegaram?

— Chegaram, sim. Alice quer conhecê-lo.

Trouxe Alice até o quarto e voltou para a cozinha, para conversar com Luther. Alice retomou à cozinha com um sorriso satisfeito.

— Sabe, Kristin, para dizer a verdade, estou contente que ele esteja aqui. Acho que Dugald faz muito mal em deixá-la sozinha. Imagine tudo o que poderia acontecer! Nathan parece uma ótima pessoa e tenho certeza de que vai ser boa companhia para você até a hora de continuar com a viagem. Talvez Dugald chegue antes, não é?

— Papai vai ficar fora duas semanas desta vez — ela respondeu, pensando pela primeira vez que Nathan ia ter de partir, mais cedo ou mais tarde.

— Foi bom mesmo Dugald não ter me contado antes — disse Alice, severa. — Senão ia ter de ouvir umas verdades de mim. Duas semanas!

— Se já acabou o chá, acho melhor a gente ir andando, mãe — disse Luther, piscando para Kristin: a eterna briga de Alice com Dugald era motivo de constantes brincadeiras para eles.

— Deve estar querendo ir embora antes que escureça — disse Alice para não perder o encontro com Jane.

— Já está saindo com ela faz mais de três meses, Luther — disse Kristin, brincando. — Cuidado, hein? Vai acabar amarrado.

— Há coisas piores. E, por falar nisso, comporte-se direitinho, menina. Não sei o que vão dizer na costa quando souberem que está sozinha na ilha com esse Nathan. Não vá abusar dele, hein?

— Não julgue os outros por si mesmo — disse Kristin, corando um pouco e dando um murro de brincadeira no amigo.

— Cuide-se, Kristin — ele respondeu rindo, dando um beijo no rosto dela. — E venha visitar a gente assim que puder.

— Isso mesmo — insistiu Alice. — E trate de descansar também. Não vá pajear esse Nathan tanto quanto pajeia seu pai.

Kristin riu da animosidade camarada que havia entre os velhos e acompanhou os amigos até o ancoradouro.

 

Durante os três ou quatro dias seguintes, Kristin se lembrou das palavras de Alice mais de uma vez. Nathan estava mais abalado do que demonstrava e chegou a ter

febre novamente, de forma que Kristin passou um bom tempo cuidando dele. Ele pouco falava e nunca a tocava. Mesmo assim uma espécie de corrente de entendimento fluía

entre os dois e, para Kristin, foram dias de profundo contentamento.

com a melhora dele, começaram a passar mais tempo no estúdio, cujas paredes eram cobertas pelas estantes cheias de livros. Ela descobriu que ele também era um leitor

voraz. Tímida no começo, mas ganhando mais coragem ao perceber que ele a levava a sério, Kristin comentou e criticou alguns dos livros que tinha lido. Logo descobriram

que tinham muito em comum quanto aos livros favoritos e tornou-se um hábito acenderem a lareira depois do jantar e passarem parte da noite lendo e conversando.

Isso abriu um mundo inteiramente novo para ela, um mundo de companheirismo que nunca havia experimentado antes. As discussões geraram nela um profundo respeito por Nathan.

Outra descoberta de Kristin foi o seu súbito desejo de ser mais bonita. Acostumada a vagar pela ilha vestindo jeans e camisetas simples, começou a achar seu guarda-roupa muito pobre. Era boa costureira e fez roupas novas com os tecidos que tinha guardados no alto do armário.

O conhecimento que ele tinha de música a estimulava também e Nathan nunca deixava que ela dissesse apenas "gosto" ou "não gosto", fazendo-a sempre justificar suas opiniões musicais. Isso solicitava sua atividade intelectual, como nunca ocorrera antes. Sentia-se viva em companhia dele e tentava não pensar que um dia ele teria dê partir, pois sua vida ia ficar muito vazia.

Uma noite, vestindo roupa nova, os cabelos presos no alto da cabeça e levemente maquílada, mas absolutamente inconsciente da mudança de sua postura, Kristin ajoelhou-se

ao lado da estante de discos, escolhendo um para tocar. Nathan estava sentado numa das poltronas confortáveis perto da lareira, onde as chamas brincavam.

— Que tal um concerto barroco? — ela perguntou, voltando-se para ele.

Nathan tinha os olhos fixos nela, um ar enigmático, a boca tensa. Em dois passos ela chegou até ele e ajoelhou-se ao lado da poltrona.

— O que foi? As costelas estão doendo?

— Não. Tudo bem.

Uma força maior que Nathan pareceu guiar sua mão e ele acariciou os cabelos dela.

— Está muito bonita hoje.

Kristin sorriu, os olhos expressivos brilhando de prazer. Nathan não a tinha tocado desde a noite em que estivera doente e agora ela esperava, trémula, pelo que podia acontecer. Com o dedo ele traçou o contorno dos lábios dela, como se quisesse memorizá-los. Ela fechou os olhos, começando a tremer. E então foram os lábios de Nathan que tocaram os seus, eclodindo entre eles a chama que estivera contida desde o primeiro encontro.

Subitamente, porém, ele a afastou.

— Por que fez isso? — perguntou, dolorida.

— Eu a beijei porque é muito atraente... e parei porque é muito inocente.

— Isso pode ser mudado — as palavras pareciam fluir do mais fundo de si, independentes de sua vontade.

— Claro que sim. Mas não por mim.

— Por que não? — Era seu coração que falava sozinho.

— Kristin, você viveu até hoje uma vida excepcionalmente protegida e isolada para os dias atuais. É muito jovem. Eu sou mais velho e devo ser mais experiente, apesar da amnésia. Como o seu pai está viajando, ficamos aqui só nós dois, juntos o tempo todo. Involuntariamente nos vimos numa situação de grande intimidade. Não posso me aproveitar disso, Kristin, você me entende? Como é que eu poderia encarar o seu pai quando ele chegar?

Ela baixou os olhos, fixando as mãos cruzadas no colo, como uma criança que está sendo repreendida. Tudo o que ele dizia era lógico e razoável. Tinha razão. Mas, quando se beijavam, toda razão, toda lógica desapareciam. Seria assim tão errado querer a realização daquele desejo que só ele podia preencher?

— Não fique tão triste...

— Não estou. É que...

— E não pense nem por um momento — ele prosseguiu — que exista algum problema com você só porque deseja mais que um beijo e uns carinhos. O que eu mais queria agora era carregá-la em meus braços até o quarto e fazer amor com você. Prometa que nunca vai se esquecer disso.

— Prometo — ela disse, quase sem entender.

— vou botar mais lenha no fogo — ele se levantou. — Por que não põe o concerto barroco para tocar?

Kristin obedeceu e acomodou-se no tapete de pele de urso diante da lareira para ouvir a música, que enchia a sala.

— Eu ouvi esse concerto uma vez — disse Nathan, distraído. — É um dos que eu mais gosto.

— Onde foi? — ela perguntou com cuidado.

— Em Vancouver. — Ele ficou tenso, percebendo as implicações do que dizia. — Kristin, eu me lembro desse concerto! Posso ver diante de mim o teatro, o maestro, o solista... como se ainda estivesse lá.

— com quem é que estava?

— Eu... não sei. Não sei se estava acompanhado ou sozinho. Não sei também quando foi... Droga! Por que é que consigo lembrar de algumas coisas e de outras não?

— Parece que quando está relaxado, falando de outras coisas, consegue se lembrar do passado.

— Tem razão. Quer dizer que tem de ser assim: não se preocupe quando perder a memória, que daí ela volta. Parece uma boa teoria, não é?

— E o que mais se poderia fazer? — Ela desejava ardentemente poder ajudá-lo. — Não, não é verdade. Podemos fazer outra coisa, também. Olhe, amanhã, se o tempo estiver bom, podemos ir para a vila na costa. O avião de suprimentos deve ter chegado ontem e Luther sempre recebe todos os jornais de Vancouver e Vitória. Você pode ser de Vancouver e, nesse caso, certamente haverá alguma menção ao seu desaparecimento.

— Ótima idéia. Você é maravilhosa!

Contente por ter ajudado, Kristin reclinou-se no tapete, ouvindo a música e olhando as chamas na lareira. Até que foram perdendo os contornos e ela adormeceu.

— Kristin... Acorde.

Ela despertou assustada, o pescoço dolorido por causa da posição incómoda.

— Que horas são?

— Mais de meia-noite.

— Oh, Nathan, por que me deixou dormir? Estou toda dolorida.

— Minha companhia deve ser muito maçante — ele disse, rindo.

— Bem, pelo menos você tem consciência disso — ela brincou.

— vou ensiná-la a dormir. — Ele riu, fazendo cócegas nela.

— Não! Não é justo — ela gritou, rindo e se contorcendo. — Sabe que eu não posso fazer a mesma coisa em você.

Estavam rindo e brincando, os rostos muito próximos, e parecia a coisa mais natural do mundo que se beijassem. Mas ele apertou o ombro dela.

— Meu Deus, Kristin. Não consigo ficar longe de você.

— Eu também não.

Por um momento se olharam profundamente nos olhos, mas Nathan se pôs de pé, puxando-a pela mão.

— Hora de dormir. Até amanhã.

— Boa noite.

Apesar de nada ter acontecido, ela sentia um calor no coração ao se preparar para dormir. Ficou longo tempo diante do espelho, examinando com novos olhos os seios firmes, a curva dos quadris, as pernas esguias.

Ele gosta de mim, pensou. Ele me deseja...

Estava orgulhosa da própria feminilidade e, quando dormiu, sonhou com Nathan.

— Chegamos na hora certa — disse Kristin, abrindo a porta da cozinha de Alice. — Os pãezinhos estão com um cheiro ótimo!

— Kristin! Que surpresa! — exclamou Alice. — E Nathan! Bem-vindo à vila de Sitka.

Alice não era a melhor das donas-de-casa, mas para Kristin aquela cozinha era o lugar mais acolhedor que conhecia.

O sol iluminava os gerânios do lado de fora da janela e as fileiras de pãezinhos esfriando no balcão. O café estava no fogo, e na gaiola, no canto, um canário cantava. Kristin tirou uma pilha de revistas de cima de uma cadeira e sentou-se.

— Ponha mais água na sopa que nós viemos almoçar — disse, risonha.

— Os jovens de hoje não sabem se comportar, não é mesmo? — Alice disse a Nathan. — Mas vocês estão com sorte: estou fazendo salmão ensopado.

— Vai ser a primeira refeição decente da semana — disse Nathan, entrando no tom da brincadeira.

— Ah, é? Pois então vai ter de fazer o seu jantar sozinho hoje Kristin ralhou.

— Tem correspondência para você, em cima da mesa — disse Alice, rindo satisfeita.

— Que bom. Deve ter carta de papai. — Kristin olhou todos os envelopes, mas havia apenas duas cartas de negócios para Dugald e algumas circulares de publicidade.

Ela voltou para a cozinha um tanto preocupada.

— Estranho que meu pai não tenha mandado notícias ainda — disse. .— Espero que esteja tudo bem...

— Claro que está, filha — Alice garantiu. — Ele deve estar com a carta no bolso e esqueceu de pôr no correio.

— Deve ser isso — concordou Kristin, lembrando que já tinha acontecido outras vezes. — Alice, podemos dar uma olhada nos jornais de Luther?

— Perguntem a ele. Está chegando.

A porta se abriu e Luther entrou, sorridente e vital.

— Perguntar o quê? Oi, Kristin. Tudo bem, Nathan? Não vão me dizer que sentiram o cheiro dos pãezinhos da mamãe lá da ilha?

— Podemos dar uma olhada nos jornais? — Kristin perguntou.

— Claro. O que é que estão procurando?

Kristin olhou para Nathan. Fez-se um silêncio e ela percebeu que ele olhava a cozinha, sentindo o calor humano daquela casa.

— Tenho de me desculpar por não terem sabido toda a verdade naquele dia em que foram à ilha — ele disse, direto. — A pancada que levei na cabeça no acidente com o iate me fez perder a memória. Não sei o meu sobrenome, nem de onde sou, nem para onde estava indo.

Luther e Alice o olhavam, atentos.

— Eu achei mesmo que Kristin tinha falado muito pouco sobre você

— Alice comentou. — Agora entendo.

— Tenho motivos para crer que sou de Vancouver e por isso pensamos em procurar nos jornais, para ver se há alguma notícia sobre pessoas desaparecidas.

Durante a próxima meia hora os quatro examinaram detalhadamente a pilha de jornais atrasados trazidos no dia anterior, mas nada encontraram. Nathan procurava não demonstrar nada, mas Kristin podia ver que estava muito decepcionado.

— Devo ter uma casa, um emprego — ele disse devagar. — Ninguém desaparece sem ninguém perceber. Vamos esperar mais uns dias, Kristin, e se não surgir nenhuma novidade acho que o melhor é ir à polícia.

— Enquanto isso — sugeriu Alice, maternal -, vamos almoçar. Depois do almoço Luther foi mostrar a Nathan o equipamento de pesca.

Os dois pareciam ter simpatizado imediatamente um com o outro. Kristin ajudou Alice a lavar os pratos, depois foi ao armazém geral da vila para fazer algumas compras. Estava esperando no balcão para pagar quando Del surgiu a seu lado.

— Eu sabia que ia encontrá-la aqui — disse.

— Como vai? — Kristin respondeu.

— Acabei de ver Luther com aquele tal de Nathan lá no porto. Ele está aqui na vila, agora?

— Não.

— Quer dizer que vai voltar para a ilha com você?

— Vai.

— Que brincadeira é essa? — Del puxou-a pela manga.

— Não é nenhuma brincadeira, Del.

— Por que é que ele está lá com você?

— O barco de Nathan afundou perto da ilha e ele está hospedado na minha casa. Só isso.

— Acho que ele devia ficar aqui na vila, Kristin, para o bem dele. Se voltar para a ilha com você, eu chamo a polícia. Eles estão sempre interessados em pistas de traficantes.

— Não perca seu tempo. Nathan vai voltar para a ilha, sim. E já resolveu que vai à polícia, não precisa de você para isso.

Surpreso com a irritação dela, Del ficou em silêncio um momento.

— Eu não presto para você, não é, Kristin? Mas um cara vem, afunda nos recifes, faz você ficar com peninha dele e você se derrete toda.

— Não é nada disso!

— Não? Vai me dizer que ele não lhe deu uns beijos ainda?

Ela ficou vermelha até a raiz dos cabelos e mordeu o lábio, atrapalhada.

— Você não está pensando que um cara desses vai se contentar em passar o resto da vida num buraco destes, não é? Ele é gente de cidade, Kristin, basta olhar para ele. Mais dia menos dia vai embora e deixa você sozinha. É bobagem se apaixonar por ele, Kristin.

Ela ficou abalada com aquelas palavras. Del tinha razão: Nathan era da cidade e para a cidade voltaria. Mas por que é que isso a deixava tão aflita? "Não se apaixone por ele"... Era verdade. Estava apaixonada!

— Lembre-se do que eu disse quando ele for embora — disse Del, percebendo que tinha conseguido abalá-la. — Eu vou estar por aqui, se precisar.

Del se afastou e ela saiu da loja, mergulhada em pensamentos. Levou um susto quando alguém a tocou no braço.

— Tudo bem? — Nathan perguntou. — Você parece muito perturbada. O que foi que ele lhe disse?

— Nada — respondeu, incapaz de revelar a verdade.

— Como, nada?! Não vai querer que eu acredite, não é?

— Ah, não me amole! — disse, irritada.

— Está apaixonada por ele? — Nathan perguntou. Kristin deu uma risada nervosa pela ironia da pergunta.

— Você merece coisa melhor — Nathan continuou.

— Olhe, eu já estou cheia de ouvir conselhos de todo mundo, está bem?

— Então é melhor a gente voltar — ele disse, aparentemente calmo, mas Kristin sabia que estava furioso.

— Tenho de me despedir de Alice, primeiro.

— Está bem. Eu espero no barco.

Kristin conseguiu engolir a própria perturbação e despedir-se de Alice com um sorriso nos lábios. Ela insistiu para que levasse alguns pãezinhos e pediu que voltassem breve.

A viagem de volta à ilha foi feita em silêncio, pois as palavras de Del ainda ressoavam na cabeça de Kristin.

Ela e Nathan jantaram juntos e passaram algum tempo no estúdio, mas aquela calma intimidade havia desaparecido e a atmosfera estava um tanto carregada. Kristin foi para a cama cedo. Pela primeira vez, desde que ele chegara, queria ficar sozinha.

Foi a primeira a se levantar. O dia estava lindo e ela se lançou às suas tarefas diárias, saboreando o calor do sol, o perfume das flores que começavam a desabrochar, o canto dos pássaros que enchia a manhã.

— Precisa de ajuda?

Ela sorriu para Nathan, esquecendo a tensão da noite anterior.

— O dia está lindo, não está?

— Sabe o que a gente devia fazer? Vamos preparar um lanche e fazer um piquenique para eu conhecer o outro lado da ilha.

— Boa idéia!

O sol já estava alto no céu quando saíram, balançando a cesta entre eles.

— Isto aqui parece um outro mundo, não? — disse Kristin, enquanto seguiam pela trilha na floresta.

O sol quente recortava retalhos na sombra fresca e perfumada das árvores. Eles continuaram em silêncio, satisfeitos.

A trilha terminava abruptamente num campo aberto que descia até o mar, um tapete verde tocando o azul-turquesa do canal que os separava do continente.

— A cada ano papai e eu arrancamos todos os arbustos que começam a nascer para deixar o campo sempre aberto. E no verão ceifamos feno para a vaca.

— Quase todo o trabalho aqui na ilha tem a ver com a sobrevivência, o dia-a-dia, não é? Ordenhar a vaca, pegar os ovos, cuidar da horta. O farol não dá trabalho

nenhum?

— O equipamento é todo automático e precisa de muito pouca atenção. Por causa disso eles estão dispensando a maioria dos zeladores de faróis por aqui. E isso me

preocupa. Se dispensarem meu pai antes de ele se aposentar, acho que acaba morrendo. Esta ilha é a vida dele. Não consigo imaginá-lo vivendo em outro lugar.

Chegaram à casa de fazenda abandonada e depositaram a cesta no chão.

— Que beleza! — Nathan murmurou, olhando o campo de mato alto, pontilhado de margaridas e papoulas. — Não pode haver lugar mais lindo para uma casa.

— É. Este é o ponto de que eu mais gosto na ilha.

As paredes de madeira, há muito sem pintura, estavam acinzentadas pela exposição ao sol e à chuva e a porta rangeu quando eles entraram. Imediatamente Nathan pareceu esquecer a presença de Kristin, examinando tudo detalhadamente: janelas, vigas de sustentação e até o porão raso debaixo da sala.

— Sabe de uma coisa? Estruturalmente a casa está perfeita, sólida. É muito mais bem feita do que as casas modernas.

Kristin, que tinha ficado calada, observando a atividade dele, sorriu.

— Você parece que já fez carpintaria — ela disse.

— É, devo ter feito, não é? Parece que entendo disso — ele concordou pensativo.

Estavam saindo pela porta da frente quando Nathan se deteve subitamente, apoiando-se ao batente da porta, muito pálido.

— Nathan, o que foi? — ela perguntou, alarmada.

— Eu... eu não sei. Uma sensação estranha... De repente compreendi que estive fugindo a minha vida toda... Não sei do quê, mas estive fugindo. Uma espécie de vazio, de falta de sentido para as coisas. E, agora, foi como se este lugar fosse aquilo que eu sempre procurei. — Ele olhou em torno e de repente se sacudiu, sorrindo

de si mesmo. — Que loucura, não é? Vamos para a praia.

Evidentemente não queria falar sobre a experiência que tinha acabado de ter e Kristin respeitou o seu desejo.

Comeram na praia e o calor do sol, mais o vinho branco que haviam levado, os deixou sonolentos. Deitaram-se à sombra da velha casa de madeira e Nathan dormiu.

Cheia de contentamento, Kristin o observou. Parecia mais jovem quando dormia, o rosto repousado, mas ainda assim forte, o amuleto no pescoço. Nathan... Quando será que iria saber mais sobre ele? Será que queria saber? Pois, assim que ele conseguisse se lembrar quem era, haveria de ir embora; pertencia a outro mundo.

Mas, e se não fosse? Ela se lembrou do que ele tinha dito na porta da casa de fazenda. Poderia ousar esperar que a ilha o envolvesse com seu encantamento? A possibilidade, por mais remota que fosse, a enchia de incrível felicidade...

Levantou-se e caminhou lentamente pelo campo até a borda da floresta. Recostou-se a um tronco, sem pensar em nada, permitindo-se apenas sentir aquela plenitude que nunca antes experimentara.

— Parece uma ninfa.

Ela se voltou para ele, sorrindo estranhamente. Estavam sozinhos naquela ilha, naquele paraíso. Ela e aquele homem que avançava em sua direção, sem camisa, os músculos fortes esticando a pele bronzeada, o azul profundo dos olhos refletindo o céu claro. Foi ao encontro dele.

Debaixo do sol forte se olharam um instante, imóveis, e ele segurou o rosto dela com os dedos longos. Kristin sentiu o sangue ferver imediatamente. Enlaçou-o pela cintura e Nathan a beijou com lábios sequiosos, que pediam entrega. E ela estava pronta a ceder. Seus corpos se colaram e com uma sensualidade ao mesmo tempo tímida e ousada, Kristin deslizou os lábios pelo pescoço dele, pelos ombros, lambendo a pele quente de sol.

— Sabe o que está fazendo comigo? — ele perguntou baixinho, o rosto afundado nos cabelos dela. — Você me enfeitiçou. Você e a sua ilha.

— Feitiços existem para ser quebrados — ela disse, subitamente dominada por um medo supersticioso.

— Todo o meu mundo agora se resume a você, Kristin — disse ele, como se não tivesse ouvido.

E de novo se beijaram e ele a apertava com tanta força que seus corações pareciam bater juntos. com dedos hábeis, Nathan desamarrou o bustiê dela e jogou-o no chão, afastando-se um pouco para olhar.

Kristin sentiu o rosto queimar, vermelho, enquanto Nathan parecia devorar com os olhos os seios firmes. Tentou cobrir-se com as mãos, mas ele a deteve e, com incrível lentidão, deslizou as mãos fortes pelo corpo dela, acariciando aquelas formas redondas, túrgidas, excitadas.

O tempo pareceu parar e, sem saber como, estavam deitados no chão, as pernas entrelaçadas, as mãos de Nathan moldando os quadris dela aos dele. Kristin gemeu de prazer, sentindo latejar contra seu corpo a força do homem que amava.

Confusamente percebeu que Nathan se afastara um pouco dela, mexendo no cinto da calça de jeans. Todo o seu corpo tremia de paixão e, incapaz de tolerar a distância entre eles, colou o corpo ao dele, ardendo de desejo.

— Quero que você me ame, Nathan — ela sussurrou. — Eu quero ser sua.

Imediatamente sentiu o corpo dele se enrijecer, imóvel. Kristin arregalou os olhos, assustada.

— Nathan...

Ele se sacudiu para afastá-la e enfiou a cabeça entre os joelhos dobrados, respirando fundo, fechando e abrindo os punhos.

Ela estremeceu. Seu coração batia como um pássaro preso na armadilha de seu peito. Era uma armadilha. Ela amava Nathan com todas as fibras de seu ser e ele não a queria.

Lembrou-se de que estava quase nua e morreu de vergonha. Vestiu depressa o bustiê.

— Levante-se e vamos para casa — ele disse friamente.

— Nathan, por favor...

— Cale a boca! Não vê que não posso falar agora? Vamos pegar as coisas e ir embora.

Kristin sentiu como se tivesse levado uma bofetada. Seguiu em silêncio, correndo para acompanhar os passos gigantescos dele.

— Kristin, eu vou para a costa — ele disse, quando entraram na cozinha.

— Agora?

— Foi o que eu disse, não ouviu?

— Mas já vai escurecer. Como é que vai voltar depois?

— Não vou voltar.

— Nunca?

— Deixa eu falar? Não vou voltar esta noite. Dou uma passada amanhã para ver se está tudo bem.

Kristin sentiu uma punhalada no coração, mas a raiva que surgia em seu peito lhe deu forças para se controlar.

— Por quê, Nathan? Diga-me.

— Meu Deus, Kristin, será que tenho de soletrar para você entender?

— Tem, sim.

— Se eu ficar aqui esta noite, não vou ser capaz de me controlar. Eu quero você, quero fazer amor com você. E se tocá-la de novo, não vou conseguir parar a tempo.

— Eu também desejo você — ela disse, sem pensar.

— Não posso ir para a cama com você, Kristin. — Ele a pegou pelos ombros e sacudiu-a. — Você sabe disso tão bem quanto eu. vou

me afastar daqui para que a gente não tenha do que se lamentar depois.

— Está me machucando...

Ele retirou as mãos imediatamente, o rosto sem expressão.

— O veleiro está com o tanque cheio — ela disse friamente, usando todo o seu orgulho para não chorar na frente dele. — Melhor ir antes que o vento mude.

— Droga, Kristin, você não acha que eu quero ir, acha?

— Não sei o que você quer ou não, Nathan, não posso ler os seus pensamentos.

— Você não entende! — seus olhos brilhavam de raiva. — É tudo brincadeira, é?

— Vá de uma vez!

— Se é assim que pensa, eu vou mesmo.

Ele saiu da cozinha depressa e ela ficou ouvindo enquanto, arrumava suas poucas posses, retomando em seguida.

— É a única saída, Kristin — ele disse sem emoção. — vou ficar com Alice e Luther e você me chama se precisar de alguma coisa.

— O que vai dizer a eles? Vão achar esquisito você se mudar para lá, assim.

— Luther e eu já tínhamos combinado ir pescar qualquer dia desses. Como temos de sair cedo, vai parecer lógico que eu vá dormir lá.

Parece que ele já tinha tudo preparado, ela pensou, magoada. Sentia-se fria por dentro.

— Diga que eu mando um abraço para eles. E se tiver carta de papai, não esqueça de trazer para mim. Quer dizer, se você voltar...

— Já disse que volto. Amanhã, de tarde. Até logo, Kristin. Cuide-se.

— Você também — ela disse baixinho.

Nathan saiu e fechou a porta com cuidado. Ela não conseguia acreditaír que ele estava indo embora. Minutos depois abriu a porta e correu até o farol. Da plataforma viu o veleiro se afastando pelo estreito em direção à costa. Nem uma vez Nathan olhou para trás e portanto não viu a figura solitária parada ao lado do farol, os cabelos revoltos pelo vento, envolvendo sua cabeça como uma nuvem escura.

Quando já não podia ver o veleiro entre as ondas, ela voltou lentamente para a casa. Já tinha ficado sozinha na ilha muitas vezes, mas nunca sentira aquela solidão.

Sinal de que Nathan havia mudado definitivamente sua vida. Revelando-lhe o prazer da camaradagem e os torvelinhos da paixão, ele tinha destruído a independência dela. Pela primeira vez na vida achou a cor do céu insípida... a floresta uma mera massa de árvores... os penhascos, cruéis. Sua ilha parecia estar zombando dela, de sua solidão.

Aterrorizada com essa sensação de vulnerabilidade, Kristin trancou a porta ao entrar. Nunca tinha feito isso antes. Atirou-se de bruços na cama, cansada demais para pensar, para entender, e deixou estourar o pranto que tinha controlado.

 

Nas profundezas de seu sono, Kristin se debatia. Alguém esmurrava a porta, gritando:

— Kristin, abra! Abra!

Sentou-se na cama e esfregou os olhos. E tornou a ouvir o ruído. Havia mesmo alguém batendo. Levantou-se ainda tonta e foi até a cozinha.

— vou pegar o machado e quebrar o trinco. Espero que ela esteja bem... — dizia a voz de Nathan.

— Deve estar dormindo, só isso — disse a voz suave de Alice, ansiosa. — Mas ela nunca tranca a porta...

Lentamente, Kristin abriu a porta, confusa e sonolenta.

— Graças a Deus! — exclamou Nathan, tomando-a nos braços.

— Alice? Que está fazendo aqui? E Luther? Não foi pescar hoje?

— Melhor a gente entrar, minha querida — disse Alice, muito séria, preocupada.

— Algo errado? — Kristin estremeceu, os nervos tensos.

— Entre.

— Por favor, me diga — ela pediu a Nathan, sabendo que ele lhe diria a verdade. — É papai, não é?

— É. — Os olhos azuis brilhavam, fixos nela, com profunda emoção.

— A lancha da polícia veio até a costa esta manhã. Ontem à noite encontraram os restos do barco de seu pai nos recifes do cabo.

— E meu pai? — ela perguntou, com medo.

— Deram busca na área, mas as correntes estão puxando para alto-mar. Não há muita esperança de encontrarem o corpo.

— Nathan, por favor, acha que é preciso tantos detalhes? — Alice interrompeu, compungida.

— Acho que sim.

— Quando foi que aconteceu? — Kristin perguntou, grata pela sinceridade dele, por mais brutal que pudesse parecer a Alice. — Eles sabem?

— Durante o temporal que me trouxe até aqui.

Ela fechou os olhos, dominada pela ironia daquele acaso que tinha lhe dado Nathan e tirado o pai.

— Por isso é que ele não escreveu — murmurou.

— Kristin, minha filha, está frio aqui. Vamos entrar, vou fazer um chá — disse Alice, maternal.

Tonta, Kristin olhou de um para outro. Alice, tentando com grande esforço não demonstrar quanto estava perturbada... Luther, o rosto

jovem, solícito e dedicado...

Nathan, sério e atento. O mais razoável era entrar em casa, tomar um chá, comer alguma coisa, como se nada tivesse acontecido: Mas: ela não sentia nenhuma vontade de entrar. Ia se sentir aprisionada. Queria ver o mar, o mar que tinha levado seu pai.

Virou-se subitamente e correu. A grama estava molhada, escorregadia. Os galhos da trilha pela floresta arranhavam suas pernas, seu rosto, seus braços, mas ela não sentia nada. Corria chorando, corria sem pensar.

— Kristin, pare! — Nathan gritou, correndo atrás dela.

Mas Kristin não ouviu e só quando tropeçou e caiu é que percebeu que ele a seguira, ajoelhava-se a seu lado, segurando-lhe o ombro.

— Solte-me! — ela gritou, histérica. — Solte-me! Meu pai está morto, está morto!

— Pare, Kristin! — Ele a sacudiu, segurando forte.

Ela se debateu, esmurrando o peito dele, atingindo as costelas quebradas. Nathan gemeu de dor e soltou-a. Kristin levantou e continuou correndo. Saiu da floresta, atravessou o campo, passou pela casa abandonada. Queria chegar ao mar. O mar, o mar...

De repente, as mãos de Nathan a agarraram, detendo a louca corrida. Ela lutou, chutou, gritando, chorando, e ele a esbofeteou com força. O choque a deixou tonta um instante, sem ar, fixando nele os olhos arregalados.

— Nathan... Nathan... — ela gemeu, mergulhando a cabeça no peito dele, chorando dolorida.

Os braços dele se fecharam em torno dela, protetores, seguros, e Kristin deixou sair com as lágrimas toda a dor que sentia pela perda do pai.

Quando finalmente a emoção pareceu se esgotar, Kristin levantou o rosto e olhou para ele. Nathan estava pálido.

— Desculpe ter batido em você — ela disse baixinho. — E desculpe eu ter fugido, mas precisava ver o mar... você compreende?

— Você nos deu um susto, Kristin. Pensei que ia pular do penhasco.

— Não... nada disso. Eu só não queria era ficar trancada em casa. Nathan apertou-a nos braços e, compreensivo, virou-a para ficar de frente para as ondas a azuis no sol da manhã. Abraçou-a por trás, colando-se às costas dela, cruzando os braços em seu peito. Durante longo tempo ficaram em silêncio, olhando as ondas quebrarem na praia.

— Queria que ele não tivesse morrido — ela disse, bem baixinho. Mas ainda bem que foi no mar. Ele adorava o mar... A amplidão, a liberdade, a força do oceano. Tinha muito medo que ele tivesse de se aposentar e ficar preso num escritório. Isso sim seria morte para ele...

Ela se apoiou em Nathan, sentindo que toda a sua emoção tinha se esvaziado. Tudo o que sentia era um profundo cansaço.

— Quero voltar para casa agora. Obrigada, Nathan. Isso é tudo o que eu posso lhe dizer, muito obrigada.

Voltaram abraçados.

Alice ficou na ilha para ajudar Kristin, e Luther voltou à vila e à pesca.

— Ele pode perfeitamente ficar sem mim alguns dias — disse Alice, confortadora.

Apesar da dor maior ter passado, Kristin sentia uma profunda tristeza e um terrível cansaço. Preparar uma refeição, arrumar uma cama pareciam façanhas impossíveis para ela. Alice cuidava de tudo, preparando pratos deliciosos para consolá-la.

No primeiro dia, Kristin se levantou e viu que Nathan estava trabalhando fora, pintando o barracão de ferramentas, coisa que Dugald pretendia fazer quando voltasse.

Ela parou ao lado dele e ficou olhando, os olhos úmidos.

— Você me passa esse trapo, por favor? — ele disse, percebendo a presença dela.

Kristin sentiu-se grata por ele não fazer perguntas do tipo "como está se sentindo". Ficou olhando enquanto ele limpava as mãos e uma onda de ternura a invadiu.

— Estou contente que esteja aqui — disse, tocando o braço dele.

— Será que Alice fez um café? — ele perguntou, abraçando-a como um irmão mais velho.

Caminharam para a cozinha e Kristin ficou aliviada de ver que o amor que sentia, aquele amor tão brilhante, tão forte, tão novo, não transparecia. Nathan a tratava agora como uma irmã mais nova. Seria por causa da presença de Alice?

Tomaram o café e ela foi para o quarto, descansar. A única coisa que lhe apetecia era dormir.

Na manhã seguinte sentiu-se um pouco melhor. Era um belo dia de verão e Alice a pôs para fora de casa.

— Para fora, já! — disse a velha senhora. — Eu vou fazer uma faxina no quarto dos fundos. Nathan deve estar por aí.

Era um alívio ouvir aquilo daquela maneira, pois o quarto dos fundos era o de seu pai. Kristin ouviu o bater ritmado do machado e abraçou o próprio corpo. Era tão reconfortante saber que Nathan estava na ilha...

Atrás da cocheira, sem camisa, ele cortava lenha com uma economia de movimentos que demonstrava grande experiência anterior. Tirou um lenço do bolso e enxugou o rosto suado, sorrindo para Kristin.

— bom dia — ela disse. — Estou feliz de ver você trabalhando. Mas tem certeza de que já pode fazer esse esforço todo?

— Até agora tudo bem. As costelas estão se comportando. Mas acho que já chega.

— Então vou ajudar a guardar.

Ela pegou uma braçada de lenha cheirando a resina e foi empilhar na cocheira. Dugald não estava mais ali, mas a rotina tinha de continuar... Ele havia de gostar

disso. E trabalhar ao lado de Nathan era um prazer especial. Voltou para pegar outra braçada e Nathan veio com ela. Deu um gemido de dor.

— Que foi? — Nathan perguntou.

— Uma farpa da madeira. Ai!

— Deixe ver. — Ele soltou os troncos que carregava e pegou a mão dela para examinar à luz da janela. — É grandona. Não mexa agora, eu tiro para você quando a gente voltar para casa.

Mas continuou segurando a mão dela, uma expressão estranha no rosto. Lentamente, ele levou a mão à boca e beijou a palma com lábios quentes. Kristin sentiu um arrepio na espinha. Amava-o tanto... Inconscientemente colou o corpo ao dele. E seus lábios se abriram para os de Nathan, num beijo que os incendiava de desejo.

Famintas, as mãos dele penetraram a blusa dela, redescobrindo as formas redondas dos seios, a curva suave da cintura. Kristin queimava de paixão. Mas, antes que se abandonasse inteiramente, uma vozinha pareceu sussurrar em sua cabeça: "Lembra-se da última vez? Nathan a deixou... Foi embora e deixou-a sozinha. Quer que aconteça de novo?"

— Não! — ela gritou baixinho. — Não, não faça isso! Não quero que me toque. — Conseguiu se libertar e afastou-se de costas, encarando aqueles olhos azuis que pareciam hipnotizá-la.

— Kristin, por que está dizendo isso? — Ele estava imóvel no lugar, paralisado.

— Não quero...

— Você quer, tanto quanto eu.

— Quero. Não, não quero... — Ela se agarrou a uma trave da cocheira, confusa, tentando controlar-se. — Deixe-me sozinha, Nathan. É isso que eu quero agora. Por favor...

— Droga! — Ele passou por ela e saiu depressa.

Kristin ficou imóvel e ouviu o machado que ele recomeçava a bater com força. Ela tinha feito tudo errado! Nathan a deixara antes, para evitar que acabassem na cama, mas se a deixasse agora ficaria completamente sozinha.

Pela primeira vez desde a morte do pai, pensou no futuro. Mais cedo ou mais tarde ia ter de deixar a ilha. Não iam permitir que continuasse na casa. Para onde iria, então? Ia ter de trabalhar, deixar aquele lugar e ir para a cidade. Morar num apartamento, trabalhar num escritório. Será que conseguiria? Saiu da cocheira. A grama verde se estendia até o penhasco. O mar brilhava azul no sol quente...

— Kristin!

Era Luther que chegava para levar Alice embora. Abraçaram-se fraternalmente.

— Estive com o padre da missão costa abaixo. Ele pode vir para um ofício fúnebre amanhã de tarde, se você quiser.

— É, acho que quero, sim.

— Tudo bem. Então vou confirmar com ele pelo rádio. Foram para a cozinha, onde Nathan já estava tomando um café.

— Hora de voltar para casa, mãe — Luther foi anunciando logo. — A geladeira está vazia.

— E as latas de bolachas também, garanto — Alice ralhou.

— Um homem tem de se alimentar, mãe.

— Mas você parece bem fortinho. — Kristin sorriu. — Muito obrigada por ter me emprestado Alice. Não sei o que teria feito sem ela.

— Pronta, mãe?

— Minha mala está no hall.

— Posso voltar com vocês? — perguntou Kristin de repente, quase sem perceber que havia elaborado um plano.

— Agora? — Alice perguntou, surpresa, olhando para Nathan.

— Mas é claro, querida. Tem certeza de que quer ir?

— Tenho — Kristin disse com firmeza. — vou pegar umas roupas. Dois minutos só, Luther.

Passou por Nathan de olhos baixos. Pegou o único vestido escuro que tinha, sapatos e uma muda de roupa. Nathan entrou, fechou a porta e ficou olhando para ela.

— Pronto — disse Kristin, tensa. — Acho que só preciso disso.

— O que é isso, afinal? — Nathan perguntou, perigosamente calmo.

— Nada demais. Preciso sair um pouco da ilha. Só isso.

— Você nunca quis isso antes.

— bom, as coisas estão um pouco diferentes do que eram antes, não acha?

— Muito bem. Então nos vemos na cerimónia amanhã. E saiu do quarto.

Caía uma garoa forte no dia seguinte, tornando céu e mar uma única massa cinzenta. O sino da igreja tocava solenemente enquanto as pessoas saíam, em grupos, depois do ofício fúnebre pela alma de Dugald MacKenzie. Todos queriam partilhar com Kristin as lembranças de Dugald. Muitos tinham sido salvos por ele em tempestades daquela costa oeste, tão bravia. Nathan, que havia chegado minutos antes da cerimónia, conversava atentamente com Luther. Kristin ainda não tinha falado com ele.

— Sinto pelo velho, Kristin — disse Del, desajeitado no terno escuro.

— Não vou dizer que nós fôssemos amigos, mas ele era danado de bom quando dava algum problema com o barco dos outros.

— Obrigada, Del. — Kristin estava tocada pela rude sinceridade de Del.

— Estão dizendo que esse seu amigo Nathan perdeu a memória.

— Isso mesmo.

— E você caiu nessa, Kristin?

— Acontece que é verdade.

— Então o que é que ele ainda está fazendo aqui?

— O que mais poderia fazer?

— Um monte de coisas. Cuidado, Kristin, não vá arranjar confusão.

— Que confusão, Del? — Ela mal conseguia disfarçar a irritação.

— É tão simples, ora. Ele deve ter mulher e filhos lá na terra dele, seja onde for. E está aproveitando para tirar umas férias. É isso aí.

— Que coisa mais feia de dizer, Del.

— É mais feio fazer do que dizer.

Um nome passou num relâmpago pela cabeça de Kristin: Carla...

— Tenho de ir agora, Del.

— Apareço lá na ilha qualquer dia desses. — Del se afastou, cruzando com Nathan, que se aproximava.

— O que é que ele queria? — ele perguntou. — Nada agradável, pelo

jeito que você está.

— Prefiro não falar disso.

— O que é que há entre vocês dois, afinal?

— Entre Del e eu? Nada. Absolutamente nada.

— Não parece.

— Mas é a verdade.

— Se não tivesse tanta gente por perto eu arrancaria a verdade de você. — Os olhos azuis brilhavam, furiosos.

— Estou dizendo a verdade!

— Claro... — Nathan se controlou. — Acho melhor voltarmos logo, antes que a neblina chegue. Quer dizer, se é que você quer voltar, não é?

Kristin sentiu a cruel indiferença que havia na voz dele, mas desejava voltar para casa. E desejava estar com Nathan, apesar do orgulho ferido.

— vou voltar, sim. Tenho de pegar a mala na casa de Alice, primeiro. Nos vemos no porto.

— Não precisa se preocupar — ele concluiu. — Eu e Luther vamos sair para pescar por uns dois dias. Não vai ter de me aguentar.

Durante os dias que se seguiram, a deliciosa camaradagem que havia entre eles transformou-se numa relação polida e formal. Irritantemente formal. "bom dia", "Boa noite", "Como vai?"

Ele saía para pescar sempre que o tempo estava bom e só voltava no final da tarde. E, enquanto Nathan não estava, ela não conseguia fazer nada. Sabia que tinha pouco tempo ali na ilha: uma carta oficial de condolências tinha chegado e com ela a notícia de que um oficial apareceria dentro dos próximos dois meses para acertar

tudo. Kristin sabia que não lhe seria permitido ficar. E não tinha importância, pois de qualquer forma não conseguiria mais viver ali, sem o pai, depois que Nathan fosse embora, o que parecia inevitável. Sua vida estava sem objetivo, vazia.

Dia a dia ficava mais tensa. O isolamento, em vez de aproximá-la de Nathan, parecia afastar os dois cada vez mais. Era uma tortura ouvi-lo no quarto antes de dormir, cruzar com ele quando saía do chuveiro, enrolado numa toalha, peito nu, cabelos molhados, ou descobri-lo no meio da noite, dormindo numa poltrona do estúdio, um disco chiando na vitrola.

Inevitavelmente as coisas tinham de estourar. Cerca de uma semana depois da cerimónia em memória de Dugald, Kristin levantou-se com a sensação de que nem tinha dormido.

Olhou-se no espelho sem entusiasmo: o rosto pálido, olheiras escuras. Escovou os cabelos descuidadamente, passou uma água no rosto e vestiu roupas velhas. Que importava sua aparência, se Nathan nunca olhava para ela?

Na cozinha, encheu a chaleira, colocou-a no fogo, cortou fatias de bacon e atirou-as na frigideira. Nathan entrou com seu passo silencioso, mas ela sentia a presença dele com todo o seu sistema nervoso, sem precisar ver ou ouvir.

— bom dia — ele disse. — O céu está azul, o sol brilha e o vento está fraco...

Ela não se voltou. Queimou o dedo na beirada da frigideira e xingou baixinho.

— Quer sanduíche de ovo ou de carne? — perguntou, irritada.

— De carne. Pode deixar que eu corto.

Ela passou manteiga no pão com violência e atirou as fatias para dentro do forno, batendo a porta. Virou o bacon, fez o chá. Suas mãos realizavam tudo automaticamente.

Agora, fritar os ovos. Mas quando se virou da geladeira, com os ovos na mão, Nathan virou-se também para guardar a carne e deram um encontrão. Os ovos se espatifaram no chão.

— Droga! — ela gritou. — Olhe o que você fez.

— Eu limpo — ele disse, controlado.

— Pode deixar. — Ela se irritou ainda mais com a calma dele.

— Está resolvida a se transformar em mártir, não é?

— O que é que isso quer dizer?

— Pensei que era óbvio. Mesmo para alguém tão mal-humorada como você.

— Não estou mal-humorada, droga!

— Está louca por uma briga, Kristin. Desde que levantou. Cuidado, que você pode perder.

— Diga-me uma coisa, Nathan. Você deixa bem claro que não me suporta. Por que não vai embora?

— Quer saber?

— Quero.

Ele passou por cima dos ovos melados no chão, os olhos azuis lustrosos de uma emoção que fez disparar o coração dela. Descontrolada, recuou um passo.

— Está com medo, Kristin?

— De você? Claro que não — ela mentiu.

— Então venha aqui.

— Não.

Fez-se um silêncio. A frigideira chiava e estalava. Kristin olhou. As fatias de bacon estavam reduzidas a tiras negras como carvão. Foi a gota d'água. Ridiculamente, sentiu lágrimas nos olhos.

— Droga, droga, droga! — protestou.

Nathan começou a rir devagarinho, até não conter mais as gargalhadas.

— Qual é a graça? — ela perguntou, para não começar a rir também.

— Quer saber por que não vou embora? — Ele a pegou pelos ombros e Kristin não reagiu. — Porque você é mal-humorada de manhã. Porque você nunca me amola. Porque é sincera, gostosa e muito, muito bonita... porque é... fiel. Fiel a si mesma. Tudo em você é verdadeiro, Kristin.

— Nunca me disse coisas assim. — Sua voz soou baixa e ela sentiu toda a ansiedade e tensão dos últimos dias deslizarem de seus ombros como a neve de uma árvore.

— Eu não podia dizer isso antes. Não sabia nem que eu era... Quer dizer, ainda não sei, mas pelo menos estou começando a me convencer de que, seja como for, sou um solitário. Não tenho mulher, nem filhos, nem família à minha procura.

— Não entendo...

— Eu ainda não expliquei... Estive na polícia e na Guarda Costeira com Luther. Até agora não encontraram nenhum Nathan em nenhuma lista de pessoas desaparecidas. Ninguém procurou por mim, pelo menos aqui, na Colúmbia Britânica. Se não surgir nenhum dado dentro de alguns dias, vão começar a procurar no resto do país. Luther fez umas fotos minhas e mandou pelo correio na semana passada. Dentro de uns dois dias vamos saber a resposta, e depois disso estará tudo resolvido.

Kristin ficou olhando para ele, confusa, sem saber o que pensar. Ele a puxou para mais perto, apertando-a nos braços.

— Desde que a conheci, Kristin, que me sinto dividido. Quero você. Mas como posso beijá-la, como podemos fazer amor, se eu de repente tiver uma mulher, filhos?

— Achei que você não me queria mais.

— Pois estava errada, meu bem. Tem sido uma tortura para mim estar tanto tempo a seu lado sem poder tocá-la, sem poder lhe dizer quanto eu a amo.

— Você me ama?

— Amo. Isso é bem óbvio, não?

— Não, Nathan, não tem sido nada óbvio. Eu cheguei a pensar que você me odiava.

— Que boba! Eu acho que a amo desde o primeiro momento em que a vi surgir da tempestade para me tirar do iate.

Tomada de emoção, ela se apoiou no peito dele, incapaz de falar.

— Eu sei, Kristin — ele continuou -, que deve ser difícil para você Eu não sei nem quem sou...

— Eu o amo, Nathan. E sei quem você é. Sei que é leal, forte generoso, bom. Isso é o que importa.

Ele inclinou a cabeça e se beijaram. A paixão contida há tanto tempo explodiu num fogo violento e urgente. Os corpos dos dois se colaram. Nathan enfiou a mão pelas roupas dela, para sentir-lhe a pele macia. Louca para sentir a pele dele contra a sua, Kristin desabotoou-lhe a camisa.

Nathan a afastou suavemente, devorando com o olhar as faces incendiadas, os olhos cinzentos, os cabelos castanhos, desfeitos, de Kristin.

— Você vai ter de ir? — ela perguntou, frustrada.

— vou. Luther deve estar chegando e não quero que nos veja assim.

— Não quero que vá! — ela gemeu.

— Eu volto, Kristin. E, quando voltar, não vamos mais ter de nos preocupar com Luther.

— Promete que volta logo?

— Prometo, meu amor.

— Tome cuidado. Eu não suportaria se alguma coisa lhe acontecesse agora.

Ele a beijou de leve e saiu depressa, fechando a porta. Incapaz de se conter, ela o seguiu porta afora um minuto depois. Correu para o muro da plataforma. Nathan estava subindo para o barco de Luther e pareceu sentir a presença dela. Voltou-se e acenou.

Quando o barco sumiu de vista, Kristin voltou para casa. O sol brilhava na vegetação gotejada de orvalho. O ritmo do mar murmurava em seus ouvidos. Pássaros se perseguiam no céu claro, chilreando.

Sol, mar, floresta... tudo se fundia num momento de pura felicidade.

Ele me ama, Kristin pensou, incrédula. Nathan me ama! E aquele momento ficaria para sempre gravado em sua memória.

 

Depois do café da manhã, Kristin resolveu dar uma boa limpada no estúdio. Escolheu um disco que combinasse com seu estado de espírito e colocou-o na vitrola, a todo volume, enquanto espanava os livros. Não ouviu quando bateram à porta da cozinha, não ouviu os passos que cruzaram a casa. De repente, sentiu-se observada e voltou-se para a porta. Deu um pulo. Um homem a olhava do batente e ela derrubou um bibelô, que se espatifou no chão.

— Del! Será que tem sempre de entrar assim de repente e quase me matar de susto? — ela gritou.

— Eu bati. Mas podia ter um batalhão aí na porta que você não ia ouvir com essa vitrola tão alta. E eu avisei que vinha, na última vez em que nos vimos.

— É, é verdade — ela disse, exasperada, curvando-se para pegar os cacos. — E esperou até Nathan sair, não é?

— É. Esperei, sim.

— O que quer, Del? — disse, agressiva.

Ele se recostou ao batente, os olhos desbotados cheios de significados, e ela sentiu que Del tinha tomado conta da situação. Sentiu medo. Mas Nathan a amava e isso lhe dava segurança e força.

— Quer tomar uma xícara de chá?

Ele aceitou e foram para a cozinha. A presença de Del era uma intromissão irritante. Se não pudesse estar com Nathan, tudo o que queria era estar sozinha para gozar aquele dia tão especial. Colocou a chaleira no fogo.

— Tem visto Alice? Estranho que ela não tenha vindo me visitar estes dias.

— Encontrei com ela na rua ontem — ele disse, acendendo um cigarro.

— Ela está bem?

— Acho que sim.

— Deve estar ocupada com o jardim, com a casa e com as costuras que está sempre fazendo. Mas é estranho que tenha ficado tanto tempo sem vir aqui.

— Ela deve ter lá suas razões. — Ele sorriu, maldoso.

— Pare de insinuar coisas e fale de uma vez, Del. É claro que está querendo me dizer alguma coisa.

— Acho que Alice está querendo deixar você e Nathan sozinhos... não quer incomodar. Deve estar achando que isso pode render alguma coisa, não é?

— Del, eu gostaria que você fosse embora. — Ela já não se importava

em ser franca .

— Eu vou depois que disser o que vim fazer aqui, Kristin.

— Então desembuche.

— Alice está cometendo um grave erro em tentar atirar você para cima de Nathan.

— Talvez nem tanto, Del. Já pensou nisso? Não que seja da sua conta, mas acontece que Nathan e eu somos adultos, perfeitamente capazes de cuidar de nós mesmos.

— Ah, não tem dúvida. Ele está se cuidando, mesmo.

— Pare com isso, Del. Você não foi com a cara dele desde o começo.

— Talvez eu seja o único a perceber o que ele é de verdade. E agora encontrei uma prova.

com uma espécie de horror, fascinada, ela o viu tirar do bolso um recorte de jornal.

— O que é isso? — perguntou.

— Você se apaixonou por ele, não foi? — Del percebeu a aflição dela e parecia ter pena. — Por que deixou isso acontecer, Kristin?

— Por que é que eu não posso me apaixonar por Nathan, Del? Kristin percebeu que ele estava tremendo.

— Ele não presta, só isso.

— Não é verdade. E você disse que tinha uma prova. Agora é tarde demais para voltar atrás. Diga logo.

— Sente-se — ele pediu ainda hesitando, girando entre os dedos o recorte de jornal. Finalmente estendeu-o para ela. — Desculpe, Kristin. Eu preferia não ter vindo, mas você ia acabar descobrindo, mais cedo ou mais tarde.

Ela fechou os olhos, pegou o papel e desdobrou-o devagar. Queria ter um fósforo e queimar aquilo, fosse o que fosse. Olhou cuidadosamente. Era uma foto de família.

No centro, Nathan, alto e bonito, vestindo um terno muito bem cortado; um menino de dez, onze anos, cujos traços eram a reprodução quase perfeita dos de Nathan; uma mulher bonita, chique, elegante, de vestido longo, a mão pousada no braço da criança; outro homem, mais baixo e sólido, mas parecido com os dois, e uma mulherzinha de cabelos cacheados, rindo para a câmera, muito alegre.

A legenda dizia: "Sr. Nathan Raines, conhecido homem de negócios, descansando em seu palacete em Vitória, com alguns membros da família, depois de mais uma viagem pelo mundo."

O rosto de Kristin ficou branco e ela ouviu vagamente a cadeira de Del raspar o chão. Rapidamente ele fez com que ela baixasse a cabeça.

Quando a tontura passou, ela o empurrou e tomou a olhar a foto: Nathan, o filho de Nathan. A mulher de Nathan e os outros dois deviam ser o irmão e a cunhada.

Mas isso não tinha importância. Nathan era casado.Tinha se apaixonado por um homem casado e sem memória que provavelmente amava a família.

Nem percebeu quando Del dobrou o recorte e colocou-o dentro do livro que estava sobre a mesa.

— Desculpe, Kristin — ele disse. — Não pensei que isso fosse perturbar tanto você.

Olhou para ele, ciente de que dizia a verdade. Não podia esperar que Del tivesse sensibilidade para prever o efeito que aquela revelação teria sobre ela. De repente, a compaixão dele tornou-se insuportável. Queria estar sozinha e resolver como, quando e se contaria a Nathan.

— Preciso ficar sozinha agora, Del, antes que Nathan volte do mar.

— Está se sentindo bem?

— Estou. Não precisa se preocupar.

— É — Então eu vou indo. Procure-me na próxima vez em que for à vila.

Ela fez que sim com a cabeça, sem conseguir falar, e finalmente, graças a Deus, ele saiu e fechou a porta. Por algum tempo Kristin ficou imóvel, insensível. Havia lamentado a morte do pai, mas aquilo tinha sido normal, natural; seu pai tivera uma vida longa, útil. Ela e Nathan, por outro lado, tinham tido tão pouco tempo juntos!

Aquele amor era novo, vivo e doce demais para ser destruído. A felicidade que sentira pela manhã parecia agora tão distante... Teria sido melhor nunca saber que Nathan também a amava. Lentamente a dor começou a emergir do fundo de seu coração. Kristin deitou o rosto sobre o braço dobrado na mesa e chorou.

Quando as lágrimas secaram, levantou-se e foi lavar os pratos. Precisava fazer alguma coisa, precisava pensar. Ia ter de contar a ele que tinha esposa e filho. O que aconteceria então? Ela não tinha dúvidas: Nathan iria embora, de volta para a família, em Vitória, e nunca o veria de novo. Sentia que não teria forças para contar, mas não tinha outra escolha.

Ou teria? Parou o que estava fazendo e endireitou o corpo devagar, à medida que uma idéia se formava em sua cabeça. Podia pelo menos deixar para amanhã. Assim teriam uma noite mais antes de o mundo desabar. A tentação era tão grande que ela pensou que fosse desmaiar.

Mas será que conseguiria enganá-lo? Olhou no espelho. Viu um rosto murcho, olhos opacos... Nathan sentiria imediatamente que havia alguma coisa errada e não descansaria enquanto ela não contasse o que era. Ia ter de contar, assim que ele entrasse.

Andou de um lado para o outro, arrumando toda a casa, parando indecisa, achando que conseguiria esconder dele o segredo, no minuto seguinte convencida de que seria incapaz. O relógio bateu três horas. Nathan chegaria logo e não podia encontrá-la daquele jeito.

Tomou um banho, lavou os cabelos e colocou uma roupa gostosa. Tudo isso a acalmou e deu forças. Ia ter de ser forte, custasse o que custasse. Foi para a cozinha preparar o jantar.

Pouco antes das cinco, olhou pela janela e viu Nathan atravessando o gramado, a capa amarela de pescador jogada no ombro. Assim que ele entrou, Kristin não controlou a emoção. Atirou-se nos braços dele.

— Oh, Nathan, me abrace, me abrace.

— Mas que bela recepção! — ele brincou, obedecendo. — Passei o dia inteiro esperando por isso, Kristin... Algo errado?

Ela sacudiu a cabeça que não, apertando o corpo dele.

— Olhe para mim — ele mandou. — O que aconteceu?

— Eu... senti a sua falta, só isso. Foi um longo dia. — E era verdade.

— Entendo. Mas não precisa ficar tão abalada, Kristin.

— É meio assustador estar apaixonada... Eu não sabia, até hoje, como a gente fica vulnerável. — Ela conseguiu se dominar. — Que tal galinha assada e arroz de forno para o jantar?

— Ótimo. Estou morto de fome. Será que dá tempo de tomar uma ducha antes?

— Dá.

Animada por ele não ter percebido a profundidade de sua dor, Kristin teve forças para manter a calma durante todo o jantar, chegando a esquecer, por momentos, a terrível visita de Del Clarke. Depois da Afeição foram para o estúdio e ela se acomodou no tapete de pele de urso enquanto ele colocava um disco na vitrola.

— Sabe o que é que está errado? — ele perguntou.

— O quê? — ela disse, ansiosa.

— Ainda não lhe dei um beijo desde que cheguei.

— Isso é fácil de resolver — ela murmurou, aliviada.

Devia ter se lembrado dos efeitos devastadores do toque dele, pois evidentemente não se satisfez com um beijo. Sem perceber como, Kristin se viu deitada de costas no tapete, Nathan deitado sobre ela, cobrindo de beijos sua boca, seus cabelos, seu pescoço. E todo o seu corpo vibrava àquele toque, correspondendo ardentemente.

A coxa dele separou suas pernas e as mãos fortes baixaram sua blusa, acariciando os seios firmes.

— Kristin... Kristin... - ele murmurou.

E de repente ela ficou dura. Uma noite, há tão pouco tempo, ele tinha chamado outro nome de mulher: "Carla... Carla..." E agora ela sabia quem era essa mulher.

Sentiu ciúme e com a força do desespero conseguiu afastar-se dele.

— Kristin! Eu a machuquei? — ele perguntou, preocupado.

— Não podemos fazer amor, Nathan. — Ela controlou um soluço de dor, sabendo que o estava ferindo, que teria de feri-lo ainda mais até a suprema crueldade de destruir aquele que amava mais que a própria vida.

— Por que está com medo, meu bem? — ele perguntou, sem se aproximar. — Não vou machucá-la. A primeira vez é sempre um pouco difícil mesmo.

— Hoje de manhã... — ela conseguiu dizer finalmente. — Eu nunca tive um dia tão feliz em toda a minha vida, Nathan. Tenho medo. Medo de que não dure muito...

— Kristin, vai durar para sempre. Eu a amo. Você me ama. Nada pode nos deter!

— Mas ainda não sabemos quem você é. E se descobrir que é casado, Nathan? Alguém, em algum lugar, deve esperar por você.

— Escute, Kristin. Luther esteve na polícia ontem à noite e eles ainda não descobriram nada. Eu não preciso lhe dizer quanto esta falta de identidade me incomoda. Cheguei a pensar que ia ficar louco. Ou que já estava. Eu não tenho passado. Só o presente e o futuro. E você faz parte disso, Kristin.

— Mas...

— Já pensei muito. Eu vou para Vitória daqui a alguns dias para resolver tudo, mas é praticamente certo que não tenho família. A menos que seja tão desprezível à ponto de ninguém querer mais saber de mim. Mas tenho de descobrir quem sou. Como poderemos nos casar se não tenho sobrenome?

— Você quer casar comigo?

— É claro que quero casar com você, Kristin. O mais depressa possível. É para isso que vou a Vitória...

E lá vai descobrir que tem mulher e filho, ela pensou com tal clareza que lhe pareceu ter falado alto.

— Kristin — ele insistiu -, você parece estar convencida de que tenho mulher, não é?

Tinha de contar, mas não sabia como, não tinha coragem.

— Não sei explicar — ele continuou -, não tenho nenhuma prova, mas tenho certeza de que sou livre.

Ela não respondeu, a cabeça baixa, os cabelos escondendo o rosto.

— Venha cá, Kristin. — Sua voz estava tão perturbada, tão dura e firme, que ela obedeceu. — Eu a amo, mas tem de confiar em mim. Eu não seria capaz de enganá-la, mesmo que quisesse. E espero o mesmo de você.

As coisas pioravam a cada instante. Ela começou a tremer e Nathan a puxou para si. Beijou-a. Mas Kristin recuou e sentiu que ele se imobilizava, tenso. Todo o rosto dele exprimia uma profunda dor, que aos poucos se transformou numa máscara de raiva fria.

— Não tem muito sentido continuar, não é? Vá para a cama, Kristin. Até amanhã.

— Desculpe — ela disse, levantando-se e caminhando até a porta. Nathan... Preciso lhe dizer uma coisa.

— Não, Kristin, chega por hoje.

— Tem de me ouvir.

— Suma daqui!

Cheia de medo ela obedeceu e se trancou no quarto. Por longo tempo ficou deitada no escuro, sem poder dormir, ouvindo o silêncio do outro quarto, cansada demais para pensar, triste demais para chorar...

No meio da noite despertou com a impressão de ter ouvido alguma coisa e pôs-se sentada na cama. Ficou atenta. E de repente aquele gemido lancinante nas trevas. Correu para o quarto de Nathan. Pelas cortinas abertas entrava um raio claro de luar. Ele estava sonhando, agitado, e tornou a gemer.

— Nathan, acorde! — ela disse sem poder suportar mais.

— Kristin? — ele murmurou, abrindo os olhos.

— Estava sonhando, Nathan.

Ele a enlaçou pelo ombro, puxando-a para o peito nu, num pedido silencioso de calor humano, de abrigo.

— Estava num deserto — ele contou devagar — que se estendia até o horizonte. Era de noite e o luar fazia sombras alongadas nas dunas. Sabia que era o único ser humano ali e estava perdido. Não tinha idéia de direção, não sabia quem era, nem por que estava ali, mas era terrivelmente importante descobrir, entender. Meu Deus,

nunca senti tamanha solidão.

— Eu estou aqui. Não está mais sozinho, foi só um sonho. — Ela se curvou para ele e beijou-o de leve.

— Você está fria — ele disse, puxando-a para baixo do cobertor.

Ela se abandonou, colando o corpo ao de Nathan, sentindo que estava nu debaixo das cobertas, permitindo afinal que passado, presente e futuro se dissolvessem no desejo apaixonado de ser amada por ele.

— Nathan... — murmurou — eu quero você.

— Kristin...

— Eu o amo, Nathan, eu o amo tanto...

— Eu também a amo e não vou descansar enquanto não for minha mulher.

Kristin se entregou à magia com que ele despertava todo o seu corpo, sem lutar, sem reagir, permitindo que seus impulsos naturais a conduzissem por um caminho inteiramente novo. Cada beijo, cada carícia, era uma expressão recíproca de amor, de generosidade, de atenção.

Gritou o nome dele ao sentir dentro de seu corpo a força do homem que amava e, num crescendo de sensações desconhecidas, viu-se num território inteiramente novo.

Um lugar onde a dor e o prazer se misturavam explodindo num calor brando e pulsante.

Parecia que tinha acabado de fechar os olhos quando o despertador tocou. Estavam ainda enlaçados, nus, e Kristin não conseguia lembrar em que momento caíra no sono.

Sentiu que Nathan também tinha acordado, mas por longos minutos ficaram deitados em silêncio. Ela sorriu e olhou para ele, satisfeita. Ele ria também, os olhos azuis fixos nela.

— Hora de levantar — ele murmurou.

— Eu não tenho de levantar.

— Claro que tem. Está achando que vou eu fazer o café da manhã?

— Não vejo por que não.

Como castigo ele arrancou os lençóis e ficou olhando o corpo dela. Kristin corou, sem saber o que fazer.

— Melhor levantar. Luther deve estar chegando.

— É — ele disse, espreguiçando-se como um gato selvagem, esticando os músculos do corpo nu.

Só quando estava colocando os talheres na mesa, sorrindo ainda de satisfação, foi que lhe veio à lembrança a visita de Del e a terrível revelação. Parecia tudo tão distante... Sabia que estava tudo para acabar, mas no momento a única coisa que importava era o amor de Nathan ainda presente em cada fibra de seu corpo. Pela primeira vez na vida sentia-se uma mulher de verdade, uma mulher amada e desejada pelo homem que amava.

A comida esfriava na mesa. Nathan estava demorando. Kristin chegou até a porta e chamou:

— Nathan...

Nenhuma resposta. Preocupada, foi até o quarto. Ao passar pelo estúdio viu que ele estava ali. Voltou-se para olhar para ela. Kristin perdeu o fôlego. Nathan tinha se transformado num estranho, pálido, de olhos duros.

— Que boa atriz você é, Kristin!

— Nathan, o que aconteceu?

— Pode parar com isso, Kristin. Esse ar inocente não convence mais.

— Pelo amor de Deus, do que é que está falando?

— Disto. — Ele estendeu para ela o recorte de jornal que estava entre as páginas do livro que tinha na mão.

Kristin sentiu o sangue fugir de seu rosto. Aquele livro estava na mesa da cozinha durante a visita de Del. E ela pensara que Del tivesse levado embora a foto...

Mas ele a havia colocado entre as páginas do livro. O livro que ela mesma tinha trazido para o estúdio, enquanto arrumava a casa...

— Pensou que tinha escondido bem, não é? Pena que eu descobri. Sua brincadeira podia ter durado um pouco mais.

— Não é nada disso!

— Claro, você ia me contar, não é? — ele disse macio, irónico. — O que é que ia dizer? "Ah, Nathan, sabe, a semana passada eu descobri que você tem mulher e filho." Era isso? Responda!

Ela tremeu com aquele grito furioso e não conseguiu dizer nada.

— Como pôde fazer uma coisa dessas, Kristin? Você mais do que ninguém sabia quanto era difícil para mim não lembrar quem era. E estava tudo aqui: Nathan Raines, de Vitória. Por que não me contou? Eu lhe contei tudo, tudo. A procura na polícia, as fotos, a ida até Vitória na semana que vem. Contei que sentia que não era casado, que a amava. E você ficou quieta e ouviu. E sabia o tempo todo quem eu era. Como pôde fazer isso, Kristin, como? — Ele esmurrou a estante com tanta força que os objetos sobre ela tremeram.

— Nathan, tem de acreditar em mim. Eu só soube ontem.

— Acreditar em você? — ele rugiu, amargo. — Nunca mais vou acreditar em você, Kristin. Você destruiu toda a confiança que havia entre nós. Me enganou, mentiu para mim. Mas para que tudo isso agora, meu Deus? É o fim, está tudo acabado.

— Não! — ela gritou, apoiando-se à parede para não cair. — Não pode acabar. Eu não sei mais viver sem você!

— Devia ter pensado nisso antes, minha querida. — O sarcasmo dele a feria mais fundo do que a fúria.

— Muito bem, então está acabado — ela disse, querendo revidar o golpe que a destruía. — Mas os meus problemas não interessam mais, não é, Nathan? Você me condena, mas esquece um detalhe importante...

— O quê?

— Sua mulher, Nathan. É por causa dela que está tudo acabado. Porque você é casado. Eu sei até o nome dela... Não lhe contei isso também, não é? Carla... Carla Raines.

— Como é que sabe? Este jornal não traz o nome dela.

— Quando você estava doente depois do acidente, começou a me beijar uma noite, com febre... e me chamou de Carla.

— Então sabia o tempo todo!

— Não, não sabia. Fiquei sabendo ontem. E não me importa a mínima se você acredita ou não!

Mas ele pareceu não ouvir, mergulhando em si mesmo, branco como um papel, esfregando a mão na testa.

— Carla — murmurou — Carla... e meu filho. Como posso ter um filho se não me lembro nem o seu nome?

Paralisada pela dor, pela derrota que o abatia, Kristin nada disse. Lentamente ele endireitou o corpo, como quem toma para si uma carga intolerável. Voltou para ela o olhar azul, absolutamente sem expressão.

— vou pedir a Luther que me leve para Tofino. De lá posso pegar um avião. Nunca mais voltarei aqui. Até logo, Kristin.

Passou por ela e saiu.

— Até logo — Kristin sussurrou, já sozinha.

 

Agosto, quente e seco, chegou com menos chuva ainda do que sempre. Desde a partida de Nathan, Kristin tinha ficado confusa e desanimada, recusando-se a ir para a costa. Luther e Alice é que vinham sempre à ilha e insistiam com ela para passar uns dias na vila. Ela recusava.

Amava Nathan e de alguma forma ia ter de retornar ao trabalho para esquecê-lo e tornar a vida na ilha suportável. Sabia agora que ia poder continuar ali. Além de lhe deixar um pouco de dinheiro, Dugald havia comprado a velha casa de fazenda e quase toda a terra da ilha. A não ser pela área do farol, a ilha de Sitka pertencia agora a ela.

Quando recomeçou a ir à vila, passava longas horas na praia, ajudando Luther a remendar as redes. Ou então tardes calmas conversando com Alice. Retornava sempre ao entardecer. Alice nunca a pressionava para falar de Nathan e deixava que escolhesse o rumo da conversa.

Uma tarde, estavam as duas na sala esperando Luther para jantar. Era estranho que ele estivesse tão atrasado. Nunca perdia o jantar, principalmente quanto Kristin estava lá. Começava a entardecer e ela ia ter de voltar para a solidão da ilha. Antes de conhecer Nathan, nunca havia sentido esse vazio, que agora tinha de controlar a cada momento do dia. A ilha de Sitka que ela tanto amava era agora apenas um grande vazio. Seus olhos se encheram de lágrimas.

— Oh, Alice... — ela disse, deixando finalmente as lágrimas correrem, deitando no ombro da amiga tão mais velha. — Tenho estado tão estranha ultimamente. Passo bem uns dias, depois, de repente, esse terrível vazio me domina e não sei se vou conseguir continuar vivendo sem Nathan. Eu me sinto tão boba!

— O amor faz isso mesmo com a gente, filha. É assim que é, não só com você, mas com todo mundo.

— Eu o magoei tanto, Alice. Foi um erro terrível não ter contado da foto no jornal logo que eu soube.

— Mas é compreensível, você o amava.

— Mas ele não compreendeu. Foi embora.

— Ele vai voltar, Kristin. Luther tem certeza e eu também. — Alice sorriu, consoladora. — É um bom homem e ama você, eu sei disso.

— Mas ele não pode voltar. É casado. Além disso, não vai me perdoar pelo que fiz.

— Você salvou a vida dele, Kristin, e o ama sem reservas. Claro que ele vai perdoar você.

Luther entrou de repente, parecendo aflito.

— Kristin! — ele disse. — Quanto tempo faz que está aqui?

— Por quê? Algum problema?

— Não. Eu pensei que estivesse na ilha. Nós... eu não sabia que vinha para cá. Foi por isso que atrasei para o jantar, porque dei uma passada lá.

— Para quê, Luther? Alguma coisa?

— Não, nada. Só queria saber como você estava. Da próxima vez, trate de estar lá quando eu for, viu?

Kristin riu, consolada com a camaradagem do amigo que era quase um irmão. Ele entrou para se lavar antes do jantar.

— Eu vou ter de ir — ela disse, abraçando Alice. — Já vai escurecer. Muito obrigada pelo jantar e pelo apoio. Eu volto dentro de uns dias. Talvez você e Luther possam ir um dia desses para fazermos um piquenique. Que tal?

— Otima idéia! — Alice beijou Kristin. — Vamos ver como é que vai ser esta semana. Cuide-se bem e confie em mim, Kristin. Ele vai voltar. Acredite.

Kristin não respondeu. Saiu e caminhou depressa em direção ao ancoradouro. Viu Del Clarke à distância e apressou o passo, tentando evitá-lo, mas antes que chegasse ao barco ele a deteve pelo braço.

— Não toque em mim, Del Clarke. Nunca, ouviu bem? Nunca mais toque em mim!

— Que é isso, Kristin? Eu só queria falar com você. Chamei de longe, mas acho que você não ouviu.

— Não tenho nada a falar com você.

— Mas eu tenho — ele insistiu. — Agora que ele foi embora de uma vez...

Ela voltou para ele um olhar furioso e ia responder, mas Del a deteve com um gesto.

— Não, não estou querendo torturá-la, não. O que eu quero dizer é que acho que deve estar sendo muito difícil para você ficar sozinha lá na ilha sem ninguém para ajudar, agora que o seu pai morreu. bom, o que eu queria dizer é que pode contar comigo para o que precisar. A gente é da mesma espécie, Kristin. Somos daqui deste lugar. Isto aqui é o que a gente é, a gente pode se dar muito bem, você e eu. Eu ia tratá-la bem, pode crer...

— Por favor, Del — ela disse, perplexa com a mudança de Del, que ela conhecia e temia desde menina. — Eu tenho de voltar. Está ficando tarde, vai escurecer.

— Escute-me um pouco, Kristin — ele continuou, andando ao lado dela para o barco. — Sei que o seu pai e eu não combinávamos muito bem, mas ele também era daqui. A gente tinha isso em comum. E o velho Dugald MacKenzie ia gostar de saber que a filha dele está com alguém daqui e não com um estranho qualquer. Eu... eu quero casar com você, Kristin.

— Del, escute... — perplexa, Kristin falava com calma — você e eu... agente não se...

— Não, Kristin, não diga nada ainda. Só prometa que vai pensar no assunto. A gente ia se dar bem os dois juntos. Um dia eu ainda vou ter muito dinheiro para lhe dar tudo o que você quiser. Tudo, mesmo. Prometa que vai pensar. Só isso. Eu passo lá na ilha para ver se você precisa de alguma coisa e saber a sua resposta, certo?

Antes que ela pudesse responder, ele se afastou. Kristin ficou olhando enquanto Del entrava no depósito e viu o grupo de amigos que o esperava e o saudou com uma gargalhada rude, em coro. Mas o que Kristin não ouviu foi Del dizer aos amigos que com jeitinho e lábia podia conseguir muito mais coisas e que ele ia "conseguir aquela garota" de qualquer jeito.

Apesar de tudo, era bom estar em casa. Aquela ilha e aquela casa eram o seu lar. Nunca tinha tido nenhum outro e, agora que perdera Nathan, nunca teria outro. Apesar da terrível solidão, aquele farol, ereto como uma sentinela, a casa, a floresta eram o seu mundo. Só seu. Amava Nathan como nunca mais amaria na vida. Precisava dele, mas sabia que nunca o teria. Tudo o que tinha era a ilha.

Atravessando o gramado, sentiu-se observada. Parou e olhou em torno, percebendo uma presença invisível. Mas era bobagem, estava sozinha. Sozinha: essa a herança de Nathan.

Entrou na casa, fechou a porta e, de repente, uma luz se acendeu na sala.

— Quem está aí? — ela perguntou, paralisada de medo.

Nenhuma resposta. Não havia nenhum outro barco no ancoradouro, como poderia ter alguém ali? Mas isso não importava. Havia alguém na casa. Dominada pelo medo, Kristin começou a recuar. A única idéia que tinha na cabeça era fugir.

— Não fuja, Kristin — disse uma voz grave. — Eu voltei. — Nathan surgiu no batente da porta.

Kristin ficou absolutamente imóvel, muda, o coração e a mente num repentino turbilhão.

— Como... como chegou até aqui?

— Luther me trouxe faz umas horas. Estava esperando você. — Ele chegou mais perto e estendeu a mão.

— Não, não me toque. Não chegue perto de mim.

— Kristin... por favor...

— Não! Não tem nada que fazer aqui. Não é mais o seu lugar — ela disse firme controlando as emoções, levantando a mão para evitar aquele toque que poria abaixo toda a sua resistência.

— Eu tinha de ir, Kristin; Sei que foi duro para voeê, mas...

— Não tem nada que me explicar, Nathan. Quero que vá embora. Não o quero mais aqui. Pode levar o barco e pedir a Luther que me traga de volta amanhã de manhã.

Ela esperou, mas por um longo tempo ele nada disse, não fez nem um gesto. Incapaz de suportar aqueles olhos azuis, Kristin passou por ele decidida e foi para a sala.

Nathan a seguiu. Ela viu a mala no chão, o paletó dele sobre o sofá. Sem pensar, agarrou o paletó e atirou para ele.

— Já disse para sair daqui. Já!

O paletó atingiu-o no peito e caiu a seus pés. Nathan ficou olhando para ela um tempo, depois curvou-se e pegou o paletó, tornando a atirá-lo no sofá.

— O que é que há? — ela gritou. — Por que não vai de uma vez? Ou será que perdeu a audição, além da memória?

Fez-se mais um longo silêncio. O rosto dele enevoou-se, dolorido. Kristin baixou a cabeça.

— Desculpe — ela disse, baixinho -, foi crueldade minha dizer isso. Mas por favor... vá embora e me deixe sozinha. Antes de você aparecer, há dois meses, eu era feliz aqui.

— Eu não acredito — ele disse com firmeza. — Estava contente, talvez, mas não feliz. E eu também não era feliz, até que a conheci.

— Não quero você aqui, Nathan — ela disse, reunindo todas as forças, tentando não esquecer que ele tinha mulher e filho. — Saia da minha ilha.

— Não pode estar sendo sincera, Kristin. Temos muita coisa a nos dizer, muita coisa a explicar um para o outro.

— Não, sr. Nathan Raines! Não entende que, ao partir daqui, você resolveu por nós dois? Não temos mais nada a conversar.

— Cale a boca, Kristin! — ele gritou, furioso. — Cale a boca e ouça! Eu a magoei indo embora daquele jeito. Pensa que não sei disso? Não pude esquecê-la nem por um momento desde que parti. E voltei o mais depressa que pude. Eu sou humano, Kristin. E você tem de me perdoar. Foi um inferno ficar nesta ilha sem saber quem eu era, sem ter idéia do meu passado, desejando você ao mesmo tempo com medo de tocá-la, com medo de estar com você e de repente descobrir que seria impossível. Você não faz idéia...

— Será que não? Eu entendo bem o desespero de que você está falando — ela disse, desesperada. — Mas você esteve comigo e é casado. Casado com Carla e tem um filho. É impossível.

— Mas, Kristin...

— Não, Nathan, chega... Eu não aguento mais! Eu ia lhe mostrar a foto, nunca pretendi escondê-la. É verdade, eu tive medo. Sabia que você iria embora da ilha quando soubesse, mas eu já esperava por isso e não pretendia esconder a foto. Nunca conseguiria fazer isso. Eu o amava demais. Você foi embora sem saber disso, foi embora pensando que...

— Eu lhe escrevi, Kristin, explicando tudo. Que minha memória tinha voltado, tudo o que eu sentia por você, meus planos com Luther e a razão da minha demora. Foram três semanas terríveis e eu rezava para que você compreendesse. Mas você não respondeu à minha carta e eu voltei assim que pude.

— Não recebi carta nenhuma, Nathan — ela disse, começando a ceder. — Nada. Você partiu naquela manhã e eu não soube mais nada.

— Meu Deus! Mas eu escrevi, juro, Kristin. — Ele se aproximou, tomou-a entre os braços e, dessa vez, ela não reagiu. — Não sei como foi que você não recebeu a carta, mas eu escrevi.

— Não importa se eu acredito ou não, Nathan — ela disse triste, afundando no peito dele. — Não faz nenhuma diferença agora.

— Mas é claro que faz! Temos planos a discutir...

— Planos... como podemos ter planos? — Ela escapou dos braços dele, frustrada. — Não quero ouvir suas explicações, Nathan. Não pode ficar aqui, não pode! Vai ter de ir embora e é melhor que seja agora.

Nathan deu um passo para ela, mas a porta da cozinha bateu com força. Os dois se voltaram, atónitos, pegos de surpresa. Del estava parado na porta aberta, vermelho de raiva, cheirando fortemente a bebida. Empurrou Kristin e avançou alguns passos.

— Ouvi dizer que ele voltou e vim ver se era verdade.

— Não tem o direito de entrar aqui assim — disse ela, endireitando-se, pois ele a tinha quase derrubado. — Está bêbado. Saia daqui, Del!

— Não me dê ordens, Kristin, eu faço o que quiser por aqui. Já contou para o sr. Raines o que nós combinamos?

— Saia daqui, Del Clarke! — Nathan falava baixo, mal controlando a violenta ira que contraía seus maxilares. — Saia ou eu o atiro para fora. Nunca mais toque em Kristin, ouviu bem? Nunca mais.

— Olha só o mocinho da cidade... Ficou bravo! Acha que consegue me fazer ir embora, não é? — Ele mal parava em pé. — Ela não liga que eu a toque. E você... eu o esmago como um verme, Raines, como um verme.

Ele se atirou para cima de Nathan, que desviou o corpo agilmente. Del aterrissem sobre a mesa da cozinha, derrubando as cadeiras. Num segundo Nathan estava em cima dele, prendendo seu braço direito torcido atrás das costas. Rapidamente atirou-o porta afora e Del rolou pela grama, já úmida de orvalho.

— Você ouviu o que eu disse, Del: nunca mais toque nela. Nunca!

A violência contida na voz de Nathan era tamanha que Del nada respondeu. Desajeitadamente, colocou-se de pé e ficou olhando para o outro, os olhos apertados de raiva.

— É melhor contar para ele da gente, Kristin. Nenhum forasteiro vai levar o que é meu...     O que já era meu antes de ele chegar. Ele já se divertiu com você quanto quis, mas é muito besta se pensa que pode voltar aqui para se divertir mais. Você é minha agora... como antes de ele chegar. E eu mato ele... mato ele se...

— Não diga isso, Del — implorou Kristin, horrorizada. — Não diga uma coisa dessas...

— Cale a boca, sua vagabunda. Cale a boca! Pergunte se ele se contenta com mercadoria de segunda mão, pergunte. E conte para ele como é que se resolvem essas coisas por aqui, Kristin. Eu ainda vou cuidar dele, pode deixar. Do meu jeito, quando eu quiser. É melhor não esquecer isso!

Ele se virou e atravessou o gramado com passo incerto. Escorregou, caiu, tornou a se levantar e desceu os degraus para o ancoradouro, desaparecendo de vista.

Kristin levou a mão à testa e apoiou-se na porta. Estava tonta, tudo girava. De repente, um zunido estalou em seus ouvidos e a escuridão a envolveu como um manto.

Os braços fortes de Nathan ampararam a sua queda. Sem nenhum esforço, ele a carregou para dentro da casa e colocou-a na cama.

A proximidade de Nathan, o cheiro bom, a firmeza e a doçura de seu toque a reanimaram.

— Oh, Nathan...

— Fique quieta.

Ele desabotoou a camisa dela, rapidamente foi ao banheiro, e colocou uma toalha molhada em sua testa.

— Estou enjoada — ela disse. — Vá embora... eu vou vomitar, por favor, vá...

— Mandei ficar quieta, Kristin MacKenzie. Pelo menos uma vez na vida, veja se obedece.

Ela queria abrir os olhos, olhar para ele. O que será que estava pensando? Nathan tinha de ir embora, senão Del ia matá-lo. Ele era louco o bastante para isso. E não ia jogar limpo.

— Del falava sério, Nathan... Ele vai querer matá-lo. Tem de ir embora... por favor.

— Calma, Kristin, calma.

Ela abriu os olhos finalmente. Ali estava Nathan, seu belo e forte Nathan, sentado à beira da cama.

— Não vou embora enquanto não acertarmos tudo, enquanto não dissermos tudo o que tem de ser dito. Então, se você ainda quiser que eu vá embora, eu vou. E nunca mais voltarei.

Nathan olhou intensamente para ela um momento, depois se levantou e foi até a janela.

— O que tem a me dizer sobre você e Del, Kristin?

— Nada. Absolutamente nada. Por que acha que existe alguma coisa?

— Chega de brincadeiras. Diga-me a verdade, Kristin.

— Você me acreditaria, Nathan? Depois da foto do jornal, depois de tudo o que houve, você acreditaria em mim?

— Acreditaria, sim. Porque sei que você só conhece a verdade. Diga-me, Kristin: você dormiu com ele?

— Não, Nathan, nunca. Eu... só estive com você, Nathan, só com você.

— Porque se ele tivesse... se ele tivesse tocado você... Deus me perdoe, mas eu seria capaz de matá-lo.

— Não fale assim, Nathan. É loucura.

— Não, não é nenhuma loucura depois de tudo o que vivemos juntos, sabendo tudo o que somos um para o outro.

— Não somos mais nada um para o outro, Nathan. E você não tem nada que fazer aqui. Não entende isso? Tem de ir embora de Sitka e me deixar sozinha para ver se consigo reencontrar um pouco de paz. Era melhor que não tivesse voltado. Que não volte nunca mais. Tem sua mulher e seu filho para cuidar. Não pode fazer isso com eles.

— Não tenho mulher. Não tenho filho nenhum.

O tempo pareceu parar. Kristin fechou os olhos sem saber se tinha mesmo ouvido aquelas palavras ou se tinha imaginado.

— Kristin, escute — ele disse, chegando até a cama. — Aquela mulher na foto é uma amiga da família. Carla Monteroy. O menino é filho do meu irmão. Não tenho mulher nenhuma, nem filho.

— Oh, meu Deus! Meu Deus! — Ela afundou o rosto no travesseiro e começou a chorar.

— Não me mande embora, Kristin. Não posso deixar você. Eu a amo tanto... — Ele apertou-a nos braços. — E você me ama, eu sei disso. Não posso ter me enganado, depois do que vivemos juntos. Diga, Kristin, diga para mim.

— Eu o amo, Nathan, amo muito. Nunca tive nada a ver com Del, nunca. É você, só você que eu amo.

— Quero que se case comigo, Kristin. O passado deve ficar no passado. Você vai comigo amanhã? E casa comigo? O mais depressa possível?

— Sim, Nathan — ela disse baixinho. — Claro que sim.

— Eu a amo, mais do que o ar que respiro. Nunca se esqueça disso, não importa o que acontecer.

— E eu o amo — ela sussurrou, pensando que afinal ia alcançar tudo o que mais desejara: viver com Nathan. Para sempre.

 

A viagem até Vitória foi memorável para Kristin. Ela nunca tinha andado de avião antes e sentiu um certo medo. Mas depois de algum tempo relaxou e maravilhou-se com a vista da costa lá embaixo. Nathan se recostou na poltrona e ficou ouvindo sorridente os comentários e exclamações surpresas dela.

— Oh, Nathan! Olhe lá, já viu coisa mais linda?

— Já, sim.

— O que pode ser mais bonito que essa paisagem vista das nuvens?

— Uma certa senhorita que dentro de algumas horas será a sra. Nathan Raines.

Kristin corou e recostou-se ao lado dele.

— Feliz, Kristin?

— Estou, sim. Conte-me da cidade, Nathan, como é que é?

— Por que não espera para ver? Não quero estragar a surpresa. Eu adoro ver essa expressão em seu rosto, os olhos iluminados de curiosidade.

— Então, pelo menos me conte sobre a sua família.

— Mas eu já contei ontem à noite.

— Não — ela protestou. — Ontem você só disse os nomes deles. E não me diga para esperar para ver. Não é justo. Eu quero estar preparada para o que vou encontrar.

— É, talvez tenha razão, mas não há muito o que dizer. É uma família normal. Talvez a única exceção seja minha mãe. Meu irmão Charles e a mulher dele, Annabel, mais o filho Jon, moram com ela.

— Nossa! Não fica um pouco apertado? Se morassem sozinhos talvez pudessem ter mais espaço.

— Espere até ver a casa e resolver se acha apertado.

— Porquê?

— Porque, minha cara Kristin, a casa da minha família é um verdadeiro museu. Grande o bastante para abrigar... quatro famílias desse tamanho.

— E você também mora lá?

— Não. Deus me livre! Eu mudei já faz muito tempo. Moro num apartamento. Mas Charles e Annabel vivem bem lá. Acho que sabem lidar muito bem com Marion, sem problemas.

— Marion?

— É. Minha mãe.

— Ela é difícil?

— Talvez... talvez seja, sim. — Ele sorriu.

— E o que foi que ela disse de mim? — Kristin perguntou, meio preocupada.

— Nada.

— Nada? Ela deve ter dito alguma coisa...

— Ela ainda não sabe nada de você, Kristin.

— Por quê? — Kristin estava alarmada.

— Porque eu achei melhor não dizer nada. Ainda.

— Mas por quê?

— Não precisa se preocupar, achando que há alguma terrível razão secreta. Não contei porque você é minha. Só minha, apenas isso, Kristin MacKenzie. E durante as próximas horas vai continuar sendo o meu segredo.

— Mas eu não entendo. Eles não estão à minha espera, nem nada... como é que podemos nos casar sem ter planejado nada?

— Kristin — ele disse, olhando firme os olhos dela, cheios de lágrimas — eu contei a Charles e Annabel, portanto você não é um segredo total. Eles estão loucos para conhecê-la e lhe dar as boas-vindas. Mas minha mãe... droga! Como é que posso lhe explicar? Minha mãe gosta de dominar as pessoas e fazer com que tudo funcione

de acordo com os seus planos. E durante longo tempo eu deixei que ela dominasse a minha vida. Até que conheci você. Quero você, quero viver a nossa vida só nós dois, juntos, resolvendo sozinhos o que queremos, sem interferências da minha mãe. Acho que foi por isso que ainda não contei nada a ela. Só vou contar depois do casamento.

— Depois do casamento? Não entendo! Pensei que você ia querer a sua família a seu lado.

— Não, não quero.

— Nem Charles e Annabel?

— Primeiro eu pensei que seria bom tê-los como padrinhos, mas depois vi que isso poderia colocá-los em posição difícil diante de Marion, por terem sabido de tudo e não contado nada a ela. E resolvi diferente.

Kristin ficou imóvel, pensando, tentando entender.

— Ficou preocupada? — ele perguntou atencioso, com uma ansiedade na voz que ela nunca tinha ouvido.

— Não. Quer dizer, fiquei, sim. Não sei. Acho que estou confusa, só isso. Parece tão estranho você agir assim com sua família. Parece meio... desonesto.

— Por favor, Kristin, tente compreender. Eu quero construir uma vida para nós, só nossa, de mais ninguém. Não quero que ninguém interfira, que ninguém estrague o nosso amor. Tudo o que quero é nos proteger, só isso.

— Mas sua mãe... ela deve amá-lo e vai ficar magoada se...

— Não, meu bem — ele respirou muito fundo -, minha mãe só ama a si mesma e à sua posição social. Tudo o mais só serve para ela se promover. Até alguns meses atrás eu era parte disso tudo. Foi então que resolvi viajar no verão sozinho. E conheci você. Não posso e não quero voltar para a vida que tinha antes. Por isso, por favor, fique comigo e faça o que lhe peço.

Nathan falava não com amargura, mas com uma estranha tristeza, como se tivesse sido ferido muito profundamente no passado. Kristin queria saber mais, mas percebeu que seria penoso para ele falar mais sobre o assunto naquele momento.

— É com você que vou casar, Nathan Raines, não com a sua mãe. Vamos fazer tudo como você quiser, da sua maneira.

Um carro com motorista estava à espera deles no aeroporto e foram para o apartamento de Nathan. Kristin nem teve tempo de olhar as coisas, pois assim que chegaram Nathan lhe deu um lindo vestido de seda branca para o casamento, que ele mesmo tinha escolhido.

Poucas horas depois ela estava, orgulhosa, ao lado de Nathan, na capelinha de uma igreja do centro de Vitória, ouvindo a voz solene do ministro que os declarou marido e mulher. Quando Nathan a tomou nos braços, Kristin sentiu a força e o poder daquele homem que era agora seu marido. E, de repente, sentiu uma aterradora estranheza.

Ele parecia diferente, muito diferente. De alguma maneira sutil, era um homem diferente daquele que havia estado com ela na ilha. Mas com a mesma rapidez com que tinha surgido, Kristin afastou da mente esse pensamento, repreendendo a si mesma por ter permitido que aquilo tivesse aflorado à sua consciência mesmo por um breve momento. Não, ele não havia mudado. Ela o amava e viveriam juntos uma vida inteira de felicidade, pois estava convencida de que nunca, antes, ninguém tinha amado tanto quanto os dois se amavam. Jantaram num cantinho discreto de um restaurante caríssimo.

— Nathan! Tem certeza de que a gente pode pagar tudo isso? Parece muito caro — ela cochichou, maravilhada com o que via.

— É. É muito caro, sim — ele cochichou também, entrando no jogo.

— Mas nós podemos pagar.

Ela percebeu que Nathan era bem conhecido ali quando o maitre o cumprimentou sorridente, oferecendo a carta de vinhos. Nathan, porém, preferiu champanhe para celebrar.

Foi uma refeição maravilhosa. Quando saíram, satisfeitos, um brilho de desejo acendia os olhos dele e se refletia nos dela.

Era uma noite quente e agradável de agosto e Nathan, com o braço na cintura dela, conduziu-a para o carro que esperava.

— Você se importa se a gente andar um pouco? — ela pediu. — A noite está linda. E todas essas luzes... Eu nunca vi uma coisa dessas na minha vida, Nathan.

Nathan sorriu, trocou algumas palavras com o motorista e o grande carro negro se afastou. Caminharam de mãos dadas pela rua. Kristin olhava as vitrines, admirando a beleza das roupas. Era tudo novo para ela. Cruzaram com centenas de pessoas, carros que corriam depressa pela rua.

— É um mundo completamente diferente, é incrível. Tão estimulante. Mas... um pouco assustador. Eu nunca conseguiria me localizar aqui, ia me perder.

— Não se preocupe, não vai ter de se localizar na cidade. Eu não vou deixá-la sozinha nem um minuto. E vamos voltar para Sitka o mais depressa possível, não esqueça.

— É. É verdade — ela disse, séria. — Eu gosto daqui, daquilo que estou vendo. Mas não conseguiria viver aqui para sempre. Deve ser muito cansativo viver aqui o tempo todo, não, Nathan?

Ele parou no meio do fluxo de pessoas, curvou-se e beijou-a ferozmente, incendiando nela a chama do desejo e da paixão. Ninguém pareceu notar o que acontecia.

— Acho — ele murmurou — que é hora de voltar para casa agora.

— Não tinha percebido que seu apartamento é no último andar — disse Kristin, enquanto subiam no elevador.

— Meu apartamento "é" o último andar, Kristin.

Ela sentiu-se boba por não ter notado antes, quando tinham vindo trocar de roupa para a cerimónia. A noite tornava as coisas ainda mais novas para Kristin, uma mistura de luz dourada e escuridão.

A porta do elevador se abriu. Nathan cruzou o hall e abriu a porta do apartamento. Era como se Kristin estivesse entrando ali pela primeira vez.

— É igual ao restaurante.

— Como é? — ele perguntou.

— Parece tudo tão caro!

— É, acho que sim. — Ele olhava firme e intensamente para ela, atento a todas as suas emoções.

— Você tem muito dinheiro, Nathan?

— Será que isso importa? Será que vai fazer alguma diferença para nós?

— Não, acho que não. — Ela atravessou a sala para olhar pela enorme janela panorâmica que tomava toda uma parede.

— Como assim, acho que não? — ele perguntou, calmo.

Ela olhou para o porto, pois o apartamento dava para o mar. As luzes da cidade, dos navios e barcos brilhavam na escuridão da noite. Ficou sem ar diante da beleza da vista.

— Eu fiz uma pergunta, Kristin.

— O quê?

— Nada. — Ele riu, divertido. — Vamos sair para a sacada.

Nathan fez deslizar a porta de vidro, afastou as cortinas e saíram para o ar quente da noite. Kristin olhou tudo, maravilhada, incapaz de dizer uma palavra. Sentiu que os dedos dele puxavam seu rosto para o dele.

— Está gostando? — ele perguntou.

— Acho tudo tão lindo, Nathan. Você mora num lugar lindo, cheio de maravilhas. Já tinha ouvido falar de cidades e visto fotos nos livros de Dugald, mas nunca pensei que fosse assim.

— E não são mesmo assim. — Ele suspirou, pesado. — Na verdade, Kristin, só em raros momentos a gente vê as coisas como você está vendo. Mas isso tudo não passa de

um brilho de superfície. Se a gente não esquecer que toda essa beleza é apenas uma casca, então, sim, é uma maravilha. Mas se esperar mais da cidade, vai ficar decepcionada.

Kristin olhou para ele, preocupada. Não entendia aquela tristeza em sua voz. Nathan desviou os olhos para a noite. Sentindo a mudança de humor dele, que não conseguia

entender nem questionar, ela se aproximou e o abraçou. Durante longo tempo ficaram li, olhando a vista no ar cálido da noite.

— Nathan — ela disse baixinho.

— Quê?

— Eu o amo, muito, muito.

— E eu também a amo. Muito. Muito. — Suavemente ele pousou os lábios nos dela.

Carregou-a nos braços, levou-a para dentro e colocou-a no chão. purante um longo momento olhou para ela sem nada dizer. Tocou seus cabelos, seu rosto, desenhou com a ponta dos dedos o pescoço, o colo de Kristin. Ela sentia um arrepio de prazer a cada toque.

— Está com medo? — ele perguntou baixinho. .— Não.

— Faz tanto tempo... Desde Sitka...

Lentamente Nathan abriu, um por um, os botõezinhos do vestido dela e deixou que ele caísse suavemente ao chão. Kristin encarava ainda, confiante. Nathan observou calidamente o rosto dela e as emoções que se sucediam nos traços finos, todo o amor que ela sentia por ele e não dissimulava. com os dedos trémulos Nathan tirou-lhe as roupas de baixo e ela ali ficou, nua no seu amor, diante dele. Suavemente ele a tomou nos braços e deitou-a na cama. Kristin fechou os olhos, esperando, ouvindo os ruídos dos movimentos dele na luz fraca que se refletia da cidade. E então sentiu, contra a sua, a pele de Nathan, o toque do corpo dele, forte, suave, potente.

— Meu Deus! Kristin... — ele sussurrou, deslizando numa longa carícia a mão forte por todo o corpo dela. — Que saudade de você! Como senti a sua falta estas semanas. Você é minha, minha!

E Kristin correspondeu plenamente àquele desejo que o consumia. Pertencia de fato a ele. E a mais ninguém. Todo o seu corpo ansiava pela plenitude que só Nathan podia lhe dar e se uniram na noite com um desejo tão grande, que nenhum dos dois pensava pudesse jamais ser satisfeito.

 

A alvorada tingiu de rosa o céu cinzento sobre a cidade. Kristin havia despertado várias vezes durante a noite, contente por ter o corpo de Nathan ao lado do seu.

Acariciava o cabelo preto, muito grosso, contrastando com a alvura do travesseiro. Ele dormia de bruços, um braço estendido na cama, o outro enrolado nela, mantendo-a

junto do corpo. Ela amava o toque dele, o cheiro dele, tudo dele. E adorava ser dele, inteira e verdadeiramente pertencente a ele.

— Que horas são? — ele perguntou baixinho, virando na cama.

— Não sei, mas o sol já está para nascer.

— Meu Deus! É muito cedo... Como é que você ousa me acordar a essa hora, mulher? Vai ter de aprender a se comportar. Não, não, nem tente se levantar. Você vai passar o dia inteiro aqui na cama comigo, Kristin Raines. De castigo.

— Doce castigo! — Ela suspirou.

Ele buscou com os lábios a boca de Kristin, primeiro suavemente, depois mais e mais intenso, até que ela sentiu o desejo crescer no corpo dele. As mãos de Nathan exploravam cada milímetro do corpo dela, despertando toda sua paixão. Depois, ali ficaram abraçados um no outro, partilhando um silêncio que falava muito alto da profunda satisfação que sentiam.

E assim passaram os dias seguintes. Cada momento do dia e da noite juntos, exultando no amor que trocavam. Passeavam pela cidade, comendo em pequenos restaurantes, vagavam por jardins magníficos, pelo porto. Andavam de mãos dadas pela costa rochosa, aventuravam-se por ruazinhas escuras, de noite. Mas sempre juntos.

No quarto dia estavam tomando café no terraço quando soou o interfone do prédio.

— Que barulho é esse? — Kristin perguntou, assustada com o zumbido.

— É o "mundo exterior", Kristin, que veio para nos levar embora.

Kristin ficou olhando enquanto ele atravessava o terraço, indo para a sala. Não se cansava de olhar para o marido. Amava-o inteiro e tudo o que vinha dele. Os últimos dias tinham sido maravilhosos para ambos, sem nenhuma interrupção de espécie alguma.

— Bem... — ele disse, retomando à sacada. — Finalmente você vai conhecer a minha família. Pelo menos uma parte. Charles e Annabel estão subindo.

Ouviram a porta do elevador, depois a porta do apartamento se abrir e passos no carpete da sala.

— Não se preocupe — disse Nathan. — Eles são bonzinhos e nunca comeram criancinhas no café da manhã. Pode ficar sossegada.

Kristin sorriu, nervosa. Era bobagem temer. Eram os parentes de Nathan. Tinham de ser gente boa. Como ele.

— Estamos aqui no terraço — Nathan gritou.

O homem que surgiu na porta era bem o irmão de Nathan. Tinha os mesmos cabelos escuros, também era bronzeado e forte, um pouco mais jovem, mais baixo, mas muito bonito. A mulher ao lado dele era magra, bonita, cabelos ruivos encaracolados e um grande sorriso que iluminava seu rosto. Era, sem sombra de dúvida, o mesmo casal que Kristin tinha visto na foto do jornal,há tanto tempo.

Charles apertou a mão do irmão e em seguida a mulher o abraçou calorosamente.

— Seu capeta! — ela ralhou. — Nós pensamos que você não ia voltar nunca mais. Mas agora dá para entender por que não quis saber da gente.

Foi até Kristin e abraçou-a sem cerimónia, muito gentil.

— Olá — disse. — Eu sou Annabel e esse é meu marido Charles, respectivamente cunhada e irmão do notório e esquivo Nathan Raines. Bem-vinda ao clã dos Raines. E que você sobreviva!

— Pare com isso, Annabel. Vai assustar a moça — disse Charles, também rindo. — Não dê atenção a nada do que ela diz, Kristin. É uma senhora muito brincalhona, acredite-me.

— Não dê atenção a nenhum dos dois. — Nathan apertou-a num abraço. — São ambos brincalhões. E não precisa se preocupar, Charles, ela não vai se assustar.

— Não. Claro que ainda não conheceu a mamãe Marion — completou Annabel, maliciosa.

— Querem comer alguma coisa? — Nathan interrompeu.

— Não, não. Já tomamos café — disse Charles. — Estamos de pé desde que o sol raiou. Jon foi passar o dia com os avós, John e Marylin, os pais de Annabel — ele explicou para Kristin. — Foram velejar. Velejar é a coisa que o menino mais gosta na vida, graças ao tio que o infectou com essa doença pelo mar. Mas acho que aceitamos um café não é, Annabel?

Kristin sorriu e foi para a cozinha buscar as xícaras. Annabel foi com ela.

— Kristin, estou muito contente em conhecê-la — disse ela. — Você fez maravilhas com Nathan, acredite. Não é mais o mesmo homem desde que a conheceu. Está muito feliz com você. Sabe jogar ténis?

— Não, nunca joguei.

— E squash?

— Também não. Não sei se Nathan lhe contou, mas eu moro numa ilha muito isolada, na costa norte. Nunca tive a oportunidade de...

— Não tem importância nenhuma. Você parece em ótima forma. Aposto que é capaz de acabar vencendo o campeão Nathan qualquer dia desses. Posso ensiná-la a jogar, se quiser.

— Eu adoraria — disse Kristin, retornando com ela para o terraço. Eu sei velejar bastante bem, se você quiser...

— Annabel — disse Charles -, a moça vai pensar que você é doida. Deixe a coitada sossegada.

Annabel fez uma careta para o marido e ambos riram. Evidentemente eles gostavam de brincar um com o outro. E Kristin resolveu que gostava deles.

Nathan e Charles pareciam estar discutindo negócios, pois Nathan estava sério, com um ar nada satisfeito.

— Vão ter de aceitar, Charles. Não tenho a menor intenção de alterar os meus planos. Você se virou muito bem nesses últimos meses. E sozinho. Eles vão ter de levar isso em conta.

— Olhe — disse Charles, sacudindo a cabeça -, a mim isso não incomoda nada. Posso tocar a coisa, se você quiser. Mas posso também trabalhar para você, se resolver ficar. Não vou me incomodar de trabalhar para você.

— Pensei que você tinha me entendido quando expliquei que não queria mais saber do negócio, Charles.

— Eu entendi, sim. Entendo muito bem. Mas Marion acha que...

— Às favas com Marion! — seus olhos brilhavam, com raiva. Aposto que ela está por trás dessa recusa da Maclntyre Collins em aceitar você no cargo.

— Não duvido nada. Ela não aceitou a sua decisão. Não aceitou mesmo. Acha que você talvez esteja precisando de um descanso, para então resolver tudo direitinho.

— Charles sorriu. — Direitinho quer dizer do jeito dela, claro. Quer que você volte como diretor-presidente do conselho da Raines Filhos e todas as subsidiárias.

— Já dei o que podia dar a ela, Charles. — Nathan girava a xícara de café entre os dedos, o olhar perdido ao longe. — Já me dediquei o bastante aos Estaleiros Raines. Agora já chega. Não é a vida que eu Acolheria para mim, como não

fui mesmo eu que escolhi ter levado essa vida até agora. Marion foi quem sempre resolveu tudo e eu deixei que me controlasse. Tenho trinta e seis anos e trabalhei bastante para todos vocês por quinze anos da minha vida. Agora o que eu quero, o que eu preciso, é

uma vida minha, própria. Uma vida simples. E, por tudo o que

há de piais sagrado, é isso o que vou ter. Marion não vai conseguir me deter. Desta vez, não!

O silêncio carregado que se formou em seguida pareceu estender-se por horas.

— Nathan, eu não entendo tudo isso que você estava dizendo Kristin falou devagar, incapaz de suportar por mais tempo aquela tensão no ar. — Mas tenho certeza de que, se você explicar a Marion o que sente, ela acaba compreendendo.

— Assim fosse! — Charles suspirou, irónico.

— Kristin e eu não conseguiríamos sobreviver aqui, Charles — disse Nathan, apoiando-se na amurada e olhando o porto lá embaixo. — Em Sitka temos tudo o que precisamos, tudo o que queremos e vamos voltar para lá o mais depressa possível. Foi isso o que decidimos juntos e é exatamente o que vamos fazer. E Marion, com toda a sua corte, terá de aceitar isso como fato consumado. Eu espero poder contar com o seu apoio, pois meu plano depende em grande parte de você.

— Sabe que pode confiar em mim — disse Charles, caminhando até o irmão. — No que depender de mim, pode fazer exatamente aquilo que quer. Mas não subestime Marion.

É tudo o que peço. É uma mulher poderosa e nunca foi contrariada em nada em sua vida, até hoje. Sabe que ela não vai ficar sentada assistindo passivamente você abandonar a vida que ela planejou para você.

— Ela não tem outra escolha, Charles. Nenhuma escolha.

— Espero que esteja certo. Por você e por Kristin.

— Ih, vocês dois aí... — Annabel interrompeu. — Isso não faz nenhum sentido. Vamos falar de coisas mais agradáveis. Negócios, negócios, negócios. Só estão falando disso desde que chegamos. Que tal irmos todos almoçar no Iate Clube?

— O que acha, meu bem? — Nathan sorriu para Kristin. — Será que devemos abandonar a nossa reclusão e confraternizar com esses dois aqui?

— Acho que seria ótimo. Quero ir, sim.

— Então — Nathan suspirou profundamente -, depois do almoço vamos pegar o touro pelos chifres e visitar Marion.

Ninguém sorriu.

O almoço ao ar livre, perto da área do porto pertencente ao Iate Clube foi adorável. Riram e conversaram muito, como se já nem se lembrasse mais dos momentos sérios

de antes. Kristin porém, julgou ver, por instantes, uma nuvem de preocupação toldar os olhos de Nathan. Queria muito falar nisso, mas, quando ele percebeu que ela o vigiava, recomeçou a conversar animadamente.

Terminado o almoço combinaram de se encontrar no fim da tarde na casa da família. Nathan levou-a a fazer compras e, como se fosse possível, mostrou-se ainda mais

atencioso do que sempre. Mandaram entregar os pacotes no apartamento de Nathan e foram para o temido encontro. Durante a maior parte do caminho nada disseram.

— Chama-se Maplewood — ele disse de repente.

— O quê?

— A casa de Marion. O lar da minha infância. — Sua voz soava amarga, com uma nota de ansiedade à proximidade da visita.

— Você fala sem muito entusiasmo — ela comentou.

— Nunca tive, acredite.

— Porquê?

— Só Deus sabe. Quando você era criança, Kristin, ficava sozinha demais, não tinha ninguém com quem conviver. Mas eu, desde que me lembro das coisas, nunca pude ficar sozinho. Eu tinha de ser o que minha mãe havia planejado para mim. Nunca compreendi exatamente o que tinha sido isso até conhecer você e a ilha de Sitka. Só

quando voltei para cá foi que compreendi inteiramente como a minha vida havia sido horrível e vazia até então. Ela fez a mesma coisa com meu pai, sabe? A mesma coisa. Controlou meu pai até ele não aguentar mais. E Deus me perdoe, mas nunca me esquecerei disso. Ela acabou por matá-lo. E não vou deixar que faça o mesmo conosco.

Nunca!

Repentinamente ele virou o carro para o acostamento, freou e desligou o motor, virando-se para Kristin com um olhar muito amoroso.

— Desculpe, Kristin. Estou fazendo exatamente o que não queria fazer. Acho que estou tornando esse encontro ainda mais difícil para você. Já lhe disse hoje quanto eu a amo? Já, sra. Raines?.

— Já, Nathan — ela disse, beijando os dedos dele. — E não se esqueça de que eu também o amo.

— Então, não precisamos de mais nada, não é? — Ele respirou fundo, tornou a ligar o motor e seguiram.

Kristin rezava por dentro para que aquele amor realmente fosse suficiente.

— É aqui? — Kristin perguntou, sem poder acreditar.

— É — Nathan respondeu, divertido com a reação dela. — Como vê, é mesmo um museu, como eu já disse.

Estavam diante de uma gigantesca mansão de pedra cinzenta, -0odeada por enormes gramados e árvores altas, muito bem cuidados. Toda a propriedade era cercada por um alto muro. O porteiro abriu o pesado portão de ferro batido, acenando sorridente para Nathan à direção do carro esporte, vermelho.

— Como vai, sr. Raines? — disse ele, chegando à janela. — Que bom que está de volta. E a senhora deve ser a sra. Raines, de quem a sra. Ânnabel estava falando hoje.

Seja muito bem-vinda, senhora.

— Obrigado, Edward. Como vai sua mulher?

— Bem melhor, obrigado. Já vai voltar para casa dentro de uns dias. Ela é forte.

— bom. Fico contente em saber disso. Se precisar de alguma coisa, pode me procurar.

— Está tudo muito bem, senhor. Nathan sorriu e tocou o carro pelo jardim.

— Edward e Nellie — Nathan explicou — trabalham para nós há muitos anos. Eram funcionários da família de meu pai antes dele se casar. Gente boa.

— Eles moram aqui na casa também? — Kristin perguntou.

— Não. Moram ali — disse ele, apontando uma réplica da mansão, em tamanho menor, à esquerda do jardim.

O longo caminho de cascalho circundava a casa e só depois da curva foi que Kristin percebeu que tinham entrado pelos fundos. Quando Nathan parou o carro na frente da mansão, ela viu um gigantesco gramado, cheio de canteiros extremamente bem cuidados, que se estendia até a borda da água, onde havia barcos atracados e uma casa de barcos parcialmente oculta entre as árvores.

— Pronta? — Nathan perguntou.

— Pronta.

Subiram as escadarias de pedra de mãos dadas e repentinamente ela sentiu como se estivesse indo para uma execução. Horrorizada, hesitou uma fração de segundo,

mas Nathan percebeu.

— Vai dar tudo certo, Kristin. Sossegue.

Nathan não bateu. Empurrou a porta de carvalho maciço e entrou. Um homem vestido de preto apareceu misteriosamente de uma das muitas portas do hall e veio até eles.

— Boa tarde. — Ele fez uma reverência formal. — A sra. Raines espera pelos senhores no estúdio. A sra. Ânnabel disse que vinham, e ela está esperando. Pediu que entrassem.

Kristin mal podia acreditar no formalismo com que Nathan era recebido

em sua própria casa e estremeceu, arrependida com aquela frieza imensa.

— Nós, Raines, somos muito especiais com a criadagem e as boas maneiras, não é, meu bem? — ele disse amargurado, como se tivesse lido os pensamentos dela.

Atravessaram o hall e entraram para uma sala decorada inteiramente em tons de verde e ouro, com tapetes grossos, cortinas de veludo pesado e grandes poltronas estofadas.

Kristin arregalou os olhos para todo aquele luxo, até que viu a mulher sentada diante da lareira. Então aquela era Marion, mãe de Nathan. Ela olhou, sem nenhuma surpresa ou alegria visível no rosto, e examinou os dois friamente.

Nathan não se moveu. Esperou um movimento da parte dela. Eles se encaravam através da grande sala vazia. Finalmente ela tomou a iniciativa e caminhou até eles.

Num segundo Kristin percebeu o poder e a segurança daquela mulher. Era alta, cabelos grisalhos, cerca de sessenta anos, e ainda muito atraente. Seus traços eram duros e frios. Os olhos azuis como gelo, muito diferentes do azul quente e penetrante dos olhos de Nathan. Tudo nela indicava frieza e contenção. Parou diante dos dois, lançou um rápido olhar para Kristin e voltou a atenção para o filho. Um sorriso que não era um sorriso surgiu em seus lábios.

— Nathan! Que surpresa! Eu não o esperava hoje.

— Annabel lhe disse que eu vinha. — Nathan não se movia e sua voz era excessivamente calma.

— Foi o que eu disse. Até Annabel me contar, eu não sabia que você vinha. — O sorriso continuava, como se estivesse pintado naquele rosto.

É algum tipo de jogo, Kristin pensou. Um jogo que ela não compreendia, com regras que ela nunca entenderia. Olhou para Nathan em busca de algum indício, alguma pista, mas o rosto dele parecia uma máscara, imóvel.

— Sente-se, Nathan — disse a mãe, voltando para sua poltrona. — E me apresente a sua amiguinha.

— Annabel não lhe contou quem é ela?

— Quem é ela?

Nathan e Kristin estavam em pé diante dela, como figuras grudadas num livro. Um livro que nenhum dos dois escreveria. Ela apertou ainda mais a mão de Nathan, que não abandonara um instante.

— Esta é Kristin, Marion. Minha esposa, Kristin. Marion, minha mãe.

— Sua voz soava fria e sem inflexão.

O sorriso murchou nos lábios de Marion.

— Desculpe — ela disse. — Não estou entendendo.

— Eu disse que Kristin é minha mulher, Marion. Estamos casados faz quase uma semana.

— Como vai, sra. Raines? — disse Kristin, estendendo a mão para a mulher que parecia agora abalada.

Marion não moveu um músculo, fixando o filho absolutamente perplexa. Pôs-se de pé lentamente.

— Se isso é alguma piada, Nathan, devo dizer que é de muito mau gosto.

— Não é uma piada, Marion. Kristin e eu nos casamos.

— Como pôde fazer uma coisa dessas, Nathan? — A mulher estava agora absolutamente descontrolada e tremia. — Como pôde ter a coragem de ignorar a sua posição nesta família? Quem é ela? Tem família?

— Sou filha de Dugald MacKenzie, sra. Raines — disse Kristin, ingénua. É claro que tinha família. Que coisa mais boba, de perguntar. Todo mundo tem família.

— Dugald MacKenzie? — A voz de Marion tremia, horrorizada. Que é ela? Quem é essa moça? — ela gritou.

— Nathan já lhe disse, sra. Raines. Sou a mulher dele.

— Cale a boca, menina! Não diga nem mais uma palavra. Quero falar com você-a sós, Nathan.

— Sobre o quê, Marion? — ele perguntou, perigosamente calmo.

— A sós, Nathan.

— Não. Kristin é minha mulher, Marion, e você vai ter de aceitar isso e todas as outras modificações que vão acontecer por aqui. Isso é tudo o que temos a nos dizer — ele falava com calma, mas um músculo de seu maxilar traía toda a tensão.

Apesar de todos os avisos, Kristin não conseguia acreditar no que via. Como poderia fazer Marion entender tudo o que eram um para o outro?

— Nós nos amamos muito, sra. Raines. Muito mesmo. Eu serei uma boa esposa para ele e...

— Amor! O que é isso?

— Marion, cuidado!

— Cuidado? Você é quem tem de tomar cuidado. Livre-se dessa mulher. Seu casamento já está arranjado. Você e Carla...

— Cale a boca e ouça, mãe. Estamos casados e vamos continuar casados. Charles vai dirigir os negócios da família. Kristin e eu vamos construir a nossa vida. Em outro lugar, uma vida nossa, própria, sem interferência de ninguém, muito menos sua. Está entendendo?

— Ah, estou... Estou, sim — ela respondeu friamente, recobrando todo o seu controle, olhando para Nathan de olhos entrecerrados como se o odiasse, como se odiasse o próprio filho. — Sim, eu entendo perfeitamente — Marion continuou, voltando para Kristin os olhos de gelo. — E agora, tire essa mulherzinha da minha casa!

Virou de costas para eles e saiu da sala.

 

Nada disseram durante a interminável volta de carro até em casa. Pela primeira vez desde que Nathan voltara, Kristin se sentia abandonada, sozinha. Entraram no apartamento.

Ele atirou o suéter no sofá e foi para o terraço, fixando o vazio, aparentemente esquecido da presença dela. Ela se aproximou, pousou a mão nas costas dele, mas sentiu os músculos se tensionarem debaixo de seu toque.

— Desculpe, Nathan. Eu não sabia que...

— Não... Esqueça, Kristin. Não quero falar disso.

— Se não quer falar comigo, então com quem é...

— Quando digo que não quero falar é porque não quero mesmo. Esqueça. — Ele a empurrou, irritado.

— Tem vergonha de mim. Não é isso? — Ela sentiu os olhos se encherem de lágrimas e não as conteve.

— Meu amor — ele murmurou, abraçando-a com força, com pena das lágrimas que rolavam pela face dela. — Nunca mais diga isso. Nem pense nisso!

— Eu não entendo... — Kristin chorava, deixando sair toda a tensão acumulada. — Não consigo entender. Ela nem me conhece, nunca me viu antes na vida...

— Não é isso, meu bem. Você não é a mulher que ela escolheu. Foi só por isso que reagiu daquela forma. Ela é minha mãe, Kristin, mas não me conhece também. Não deixe que isso a perturbe. Vamos, chega de lágrimas. Quero ver um sorriso. Ainda estamos em nossa lua-de-mel. Não podemos permitir que ninguém estrague isso.

Naquela noite eles se abraçaram e fizeram amor com um abandono e uma ferocidade que eram inteiramente novos para ambos, como se sentissem um certo medo, um certo desespero. Finalmente, exaustos, dormiram abraçados. No dia seguinte Kristin acordou com o ruído de Nathan já desperto.

— O que foi? — ela perguntou, sonolenta.

— Estou me vestindo — ele disse baixinho. — Durma.

— Por que levantou? Ainda são sete e meia.

— Tenho de ir trabalhar, Kristin. Uma reunião do conselho diretor. Tenho de estar lá.

— Mas você não me disse nada ontem à noite...

— Eu ainda não sabia. Marion trabalha depressa. Eu não queria interferir diretamente. Queria deixar que Charles tomasse conta da situação aos poucos, mas ele telefonou

ontem à noite, depois que você dormiu. Vai precisar de minha ajuda para garantir o apoio de alguns dos membros mais poderosos do conselho. Parece que Marion já mexeu os pauzinhos. — Ele a beijou rapidamente e começou a vestir o paletó.

— Vai demorar? — Kristin perguntou, olhando aquele homem que era completamente novo para ela.

— Não sei ainda. Eu telefono. Por que não chama Annabel e sai para

fazer umas compras com ela à tarde?

— Você não volta até de tarde? — ela perguntou, triste.

— Não me pressione, Kristin — ele disse, impaciente. — Volto assim que puder. Isso é tudo.

Já era tarde da noite quando ele voltou e, durante as semanas seguintes, todos os dias foram iguais. Kristin tentou conversar com ele a respeito, mas Nathan não queria falar. Parecia dia a dia se afastar mais dela.

Annabel passava muito tempo com ela, ensinando-a a jogar ténis, levando-a para almoçar no Iate Clube e tentando de todas as formas aliviar a sua solidão. Mas ela não poderia nunca substituir Nathan, nem curar a ferida causada por essa ausência inexplicada.

Uma manhã, depois de Nathan ter saído, Kristin sentou-se na sala para ler um livro quando o telefone tocou. Era Annabel.

— Kristin? O que vai fazer hoje à tarde? — ela perguntou.

— Oh, olá, Annabel.

— Olá, Annabel — a outra arremedou, alegre como sempre. — Que desânimo!

— É que eu pensei que fosse Nathan. — Kristin explicou.

— Olhe aqui, Kristin. — Annabel respirou fundo do outro lado da linha. — Eu não sei de tudo o que está acontecendo, mas acho que você deve ser paciente e ficar ao lado de Nathan. Pelo que Charles me conta, parece que ele está lutando com todas as forças.

— Como assim? — Kristin perguntou alarmada, pensando que o silêncio de Nathan podia ser causado por algo muito sério que ele estivesse tentando esconder, para poupá-la.

— Raines Filhos. Só isso. Eu não sei detalhes, mas Charles não está nada contente com o que está acontecendo. Está bravo feito um urso, esses dias. — Annabel fez uma pausa e mudou de assunto e de tom: bom, mas eu liguei foi para falar de hoje à tarde. Está ocupada?

— Não, não estou.

— Ótimo. Eu vou dar uma festinha no jardim, mais tarde. Pensei em convidar você a semana passada, mas acabei esquecendo. Quero que venha. Assim pode conhecer outras pessoas. E o dia está tão lindo que é um crime ficar trancada em casa.

— Não sei, Annabel. Eu nunca fui a uma festa dessas. Não sei se ia me sentir bem.

— Bobagem. Seja você mesma, só isso.

— Não sei...

— Nathan provavelmente vai chegar tarde, como sempre. Portanto, nada de desculpas, Kristin Raines.

— Está bem. — Kristin suspirou. — Acho que já estarei aqui quando ele voltar.

— Claro. Olhe, chame um táxi e venha ali pelas quatro. Até já.

— Espere! Não desligue. O que é que eu devo vestir e como é que chego até aí?

— Chame um táxi — Annabel riu, divertida — e mande ir para Maplewood Estale, em Uplands. E vista uma roupa bonita, que combine com você, sua ingénua. Agora tenho de correr, há milhões de coisas para fazer ainda.

Kristin chegou a Maplewood um pouco depois das quatro. Pagou o táxi e ficou parada no caminho de cascalho, olhando o amplo gramado. Pelo menos cem pessoas, homens e mulheres, caminhavam, conversando e bebendo. Sentiu-se em pânico. Não podia ficar ali. Seu vestido era simples demais e nunca saberia o que falar com aquela gente.

Contou o troco do táxi. Não havia o bastante para voltar para o apartamento. Tinha sido bobagem não trazer mais dinheiro. Mas podia voltar a pé. Estava acostumada a andar e, apesar de não ter prestado muita atenção, achava que conseguiria localizar-se.

Virou-se e deu dois passos. Então ouviu seu nome. Era Annabel, chamando-a com gestos. Não podia mais ir embora. Respirou fundo e avançou para o grupo de pessoas.

— Como vai, Kristin? — Annabel disse, sorridente. — Que bom que veio. Eu adoro festas, você não? Vamos, vou apresentá-la para algumas pessoas. Pode começar a se divertir.

Annabel circulou com ela, apresentando-a como a "mais nova" Raines, a esposa de Nathan. Kristin achava aquilo tudo muito estranho, não estava acostumada à maneira

de falar e se comportar daquela gente. Um criado chegou e cochichou alguma coisa com Annabel.

— Desculpe um instante, Kristin — ela disse. — Charles no telefone. vou ver se o convenço a vir para a festa. Olhe, pegue outro drinque e circule por aí. Eu já volto.

Abandonada, Kristin sentiu medo de novo. Não saberia o que conversar fcom aquela gente. Alguém a agarrou pelo cotovelo.

— Eu estou indo por ali. Vamos? — disse um homem de voz pastosa, olhos brilhantes de bebida.

— Deixe-me... Eu nem o conheço — ela gaguejou, tentando soltar-se da mão que a agarrava com força.

— Isso a gente resolve bem depressinha — ele disse sorrindo, malicioso..

— Calma, Roger — uma voz fria e precisa interrompeu. — Nada dos seus velhos truques por aqui, meu amigo! Pelo menos não com essa mocinha. Ela é o que se pode chamar de intocável. É a mulher de Nathan. A esposa dele, para ser mais clara.

Roger soltou-a e desapareceu rapidamente no meio da multidão. Kristin virou-se e deparou com a mulher que tinha visto na foto do jornal. Carla...

— Venha — disse a mulher. — Vamos sentar num canto e nos apresentar.

Ela se virou e Kristin não pôde deixar de segui-la até uma mesa com duas cadeiras, num canto mais afastado.

— Aqui está bom — ela disse. — Podemos ver todo mundo sem sermos incomodadas.

A mulher sentada diante de Kristin era realmente bonita. Ainda mais bonita que na foto. Alta, loura, muito ereta, evidentemente segura de si.

— Não ligue para Roger. Todo mundo já aprendeu a ignorar os truques dele. Quando a gente não quer, claro. — Ela riu, mas sem alegria. — Eu sou Carla. Carla Monteroy.

— Eu sei... — Kristin gaguejou, confusa. — Vi o seu retrato. Eu sou Kristin Raines. Esposa de Nathan.

— Eu sei — Carla respondeu no mesmo tom, numa ironia sutil que Kristin não entendeu. — O que é isso em sua mão?

— Ah... é o troco do táxi — Kristin explicou, olhando o dinheiro que

apertava nervosamente entre os dedos. — Mas... eu... eu não trouxe o bastante para voltar para o apartamento.

— Você é mesmo inocente, não é? — Carla perguntou depois de observá-la um longo momento.

— Não estou entendendo...

— Ora, pare com isso. Esse arzinho de ingénua não vai me enganar, não. Não a mim. Qualquer mulher capaz de convencer Nathan a se casar não pode ser nada ingénua, isso eu garanto.

Kristin pôs-se de pé, profundamente tocada por aquelas palavras.

— Sente-se — Carla ordenou e Kristin obedeceu maquinalmente. Tenho algumas coisas a lhe dizer. Para seu próprio bem.

Kristin fixava a mulher, meio hipnotizada pelo ódio que via naqueles olhos.

— Você já deve saber sobre Nathan e eu, suponho.

— Eu... não estou entendendo.

— Será que é só isso o que sabe dizer? "Não estou entendendo?" Carla tinha perdido toda a beleza, o rosto contraído de raiva.

— O que quer dizer com "Nathan e você"?

— Nathan e eu íamos nos casar. Nós fomos amantes. Somos amantes. Kristin sentiu-se mortalmente ferida. Não conseguia respirar, tudo à sua volta girava, perdendo foco, um estranho zumbido crescendo em seus ouvidos.

— Não!

— Sim — disse Carla, segura. — Estranho que Nathan não tenha lhe contado nada. Ele geralmente é muito sincero sobre essas coisas com as novas mulheres dele.

— Nathan nunca foi casado antes. Nunca! — Kristin gritou.

— Não mesmo, é verdade — Carla disse, tranquila. — Mas não pense que o casamento será sagrado para Nathan Raines. Você não va conseguir nos separar. Já deve saber disso.

— Que quer dizer?

— Ele tem chegado em casa muito tarde essas últimas semanas, não tem? E não tem estado sozinho, posso lhe garantir. Tenho gostado muito da companhia dele. E na cama também. Ele está com uma energia nova, diferente...

— Mentira... mentira! — Kristin gritou, levantando e afastando-se da mesa, louca para escapar.

Carla levantou-se também, agilmente, e agarrou-a pelo braço, enfiando as unhas longas em sua carne.

— Enfrente a situação, Kristin. Você vai perder pé daqui por diante. Não pode estar achando seriamente que vai conseguir amarrar um homem como Nathan. Vai ter de... reparti-lo. Mas é só uma questão de tempo. Ele vai acabar dispensando você, assim que perder o interesse. Por que não volta para a sua

ilha deserta antes que se machuque? -Como sabe que...

— Nathan me conta tudo. Tudo. — Carla sorriu. — É um jogo de adultos, Kristin, querida. Trate de se divertir. Talvez até mesmo com o nosso amigo Roger. Mas não espere ganhar Nathan. Não vai conseguir. Ele é meu. Divirta-se. — Ela virou-se e deixou Kristin sozinha, ferida, abalada.

— Não... não... não — Kristin repetia sem parar, caminhando cegamente por entre as pessoas.

Os rostos se voltavam para ela, perplexos, retorcidos, sufocantes. Ia ser esmagada, ia ser morta, toda aquela gente negava a sua existência. Empurrou-os todos e correu, perseguida pelos demónios libertados por Carla.

— Não! — ela gritou, muito alto.

Seguiu-se um longo silêncio. Annabel surgiu a seu lado e pegou sua mão.

— Kristin... Pelo amor de Deus! O que foi que aconteceu? Kristin percebeu de repente que todos os rostos da festa a encaravam em silêncio, imóveis. Achou que ia morrer de vergonha. Tinha arruinado Nathan. Todos sabiam que era esposa dele e não tinha conseguido se comportar direito. Eles não. Eles sabiam, eram calmos,

sofisticados, capazes de lidar tranquilamente uns com os outros.

Ela também ia ser assim, ia sim, e Nathan teria orgulho dela e a amaria de novo. — Não foi nada, Annabel — ela disse, com voz tensa. — Desculpe. Agora estou bem, obrigada.

Mas tudo o que ela queria era escapar. Escapar daqueles rostos que a ameaçavam. Esperou até que o silêncio se povoasse novamente de risadas e conversas e virou-se para ir embora.

— Onde vai? — Annabel perguntou, sem sair do lado dela.

— Para casa. vou embora para casa.

— Charles e Nathan já vão chegar. Nathan a leva para casa. Por que não entra e deita um pouquinho? — sua expressão demonstrava genuína preocupação.

— Eu estou bem. De verdade — Kristin disse, ciente de que não conseguiria aguentar mais nem um minuto ali.

Virou-se e se afastou depressa, deixando Annabel. Ia seguir o conselho dela, procurar refugio no interior da casa.

Mas o pesadelo não tinha terminado. Marion estava parada nos degraus da entrada, os olhos gelados fixos nela.

— Pelo visto você já conheceu Carla, a melhor amiga de Nathan. Pena que não a tivesse conhecido antes de casar com meu filho. Teria sido bem melhor para você – ela disse, calma, acenando a mão num breve gesto de despedida..— Volte sempre, Kristin.

Kristin tapou a boca com as mãos, sufocando os soluços. Correu, fugindo da casa.

Correu, correu, até sentir que os pulmões iam estourar, incapaz de ver as casas, os rostos, os carros que passavam por ela. Começou a tremer e Apercebeu que estava

chovendo. Mas continuou correndo, perseguida pelas palavras de Carla, que não conseguia tirar da cabeça.

De alguma forma tinha conseguido chegar à cidade. Pensou reconhecer a ma por onde ela e Nathan haviam passeado na primeira noite. Diminuiu o passo, buscando desesperadamente algum lugar conhecido, tentando loucamente se localizar, saber onde estava, para que lado seria o apartamento de Nathan.

Vagou assim por longo tempo. Estava perdida, molhada até os ossos, morta de frio. Não sabia como chegar em casa e, pior ainda, não sabia nem mesmo o endereço. Lembrou-se então do dinheiro que ainda apertava na mão. Contou: três dólares e cinquenta centavos. Podia, fazer um telefonema, chamar Annabel e pedir que a orientasse. Annabel ajudaria. Correu mais dois quarteirões, até achar uma cabine telefónica.

Procurou na lista o nome de Annabel, depois o de Charles. Nada. Nem Annabel nem Charles Raines estavam na lista. Desesperada, procurou então o nome de Nathan e por fim o de Marion. Mas nada encontrou.

— O que é que eu vou fazer? — Kristin chorava. — Meu Deus, o que é que vou fazer?

Tentou olhar a lista de novo, mas as lágrimas borravam sua visão.

— Olhe aqui, mocinha, se não consegue achar o número, peça informações ou então desista de uma vez. Eu quero telefonar — disse uma mulher muito gorda que esperava

atrás dela.

— Informações?

— É. Informações.

— Que número... eu não entendo.

— Que boboca! — disse a mulher irritada, afastando-se depressa na chuva.

Tentando manter a calma, Kristin procurou nas indicações dependuradas na cabine e encontrou o número de informações. Colocou a moeda e discou. Depois de alguns toques

a telefonista atendeu.

— Informações.

— É, isso mesmo — ela disse, aliviada.

— Informações. Que número deseja, por favor.

— É... o número de Annabel Raines, por favor.

— Desculpe, mas não consta da lista.

— Bem... Charles Raines, então... de Maplewood.

— Desculpe, mas esse número não consta da lista.

— Não entendo. O que quer dizer isso?

— Não tenho autorização para informar esse número.

— Mas eu sou cunhada dele, por favor...

— Sinto muito. O regulamento não permite a informação dos números que não constam da lista. É só isso?

— É... Não! Por favor, não desligue. Me dê o número de Nathan Raines, por favor.

— Desculpe, mas esse número também não consta.

— Pelo amor de Deus... Nathan é meu marido! — Kristin gritou. Eu preciso saber...

— Sinto muito. Não temos autorização... Click.

Kristin apoiou a testa contra o vidro da cabine. Tudo o que podia fazer agora era andar, procurar...

Horas depois ela sentia frio e estava cansada demais para reconhecer o que quer que fosse. Caminhava às cegas, com a vaga sensação de já ter passado por aquelas vitrines.

Uma mão agarrou-a pela manga.

— Tem fogo, moça? — A voz era rude;

— Não. — Kristin tentou passar. O homem cheirava a bebida.

— Quer fumar, mocinha?

— Não! — Ela deu um passo, mas ele a agarrou pela manga com mais força.

— Não seja assim. Não precisa ser assim. Eu sou amigo. Olhe aqui... Ela deu um safanão para se soltar e a manga do vestido se rasgou.

Correu, sem olhar para trás, o mais depressa que podia.

Uma mão forte a alcançou e agarrou. Kristin se debateu com toda a força que lhe restava.

— Não me toque. Largue! Solte!

A voz disse o seu nome. Uma vez, duas, dez... E ela finalmente ouviu e olhou para o rosto do homem.

— Nathan, Nathan... Oh, Nathan! Leve-me para casa. Por favor, leve-me para casa. — Atirou-se nos braços dele.

O apartamento era um abrigo seguro e agradável. Kristin suspirou aliviada quando a porta se fechou atrás dela.

— Oh, Nathan...

— Não diga nada — ele ordenou bruscamente. — Tire essa roupa molhada, tome um banho quente e seque o cabelo. Conversamos depois.

A voz dele soava dura e ela identificava, pelo brilho dos olhos azuis, que Nathan estava furioso.

— Por favor, não fique bravo... Eu explico...

— Vai explicar mesmo. Mas depois que fizer o que eu mandei. Ela ficou imóvel, profundamente ferida pela raiva que ele sentia.

— Kristin! Você não ouviu? Ou será que eu vou ter de tirar a sua roupa e lhe dar banho como se você fosse mesmo uma criança? Vá de uma vez!

Meia hora depois ela voltou para a sala. Ele estava terminando de falar ao telefone.

— Muito bem. Até amanhã de manhã, então. Pode deixar, eu digo a ela. — Nathan riu, sem alegria.

Ela esperou, de pé na frente dele, mas Nathan desligou o telefone e serviu-se de bebida. Kristin já tinha se acalmado e resolvido que devia contar a ele as acusações

de Carla. Ele, porém, ainda estava furioso com ela.

— Quanto tempo vou ter de esperar pelo castigo? — ela perguntou, calma.

Ele esvaziou o copo num trago e tornou a enchê-lo.

— Não acha que já chega, Nathan?

— Quanto tempo mais vou ter que aguentar essa sua atitude, Kristin? Essa atitude de criança desmiolada?

— Do que é que está falando?

— Estou falando do que você fez na festa hoje à tarde, estou falando da maneira como foi embora. E dessa fuga louca pela cidade.

— Você não sabe o que aconteceu. Não estava lá.

— Sei exatamente o que aconteceu. Annabel estava feito louca à sua procura e Carla me contou...

— Carla?!

— É, Carla.

— O que foi que ela lhe contou, Nathan?

— Tem idéia do que podia ter acontecido com você? É muito boba se pensa que a cidade é apenas essa beleza de luzes coloridas. Não sabe o inferno que foi para mim esta noite.

Nathan parecia um estranho para ela. Aquelas palavras, aquela raiva o afastavam dela. Kristin virou-se para voltar para o quarto, mas ele a agarrou pelo braço.

— Nunca mais fuja de mim desse jeito — ele disse por entre os dentes.

— Nunca!

— Não me toque — ela disse baixinho, ameaçadora. — Não me toque como se eu fosse propriedade sua.

— O que está dizendo?

— Estou dizendo que você só está preocupado porque eu o envergonhei, porque não me comportei direito com a sua família. Você não liga para mim. Não se importa a

mínima com o que eu sinto, com o que tive de passar hoje à noite. Só se preocupa é com a propriedade dos Raines. E eu odeio a propriedade dos Raines. Odeio isso

tudo. Não me toque. Nunca mais chegue perto de mim. Eu quero voltar para casa. Odeio isto aqui.

Ela arrancou o braço da mão dele e começou a chorar descontroladamente.

— Você prometeu que a gente ia voltar para Sitka. Prometeu. Mas mentiu para mim. O que você quer é me fazer ficar aqui até...

— Quer dizer que ficar comigo é assim tão doloroso, Kristin?

— É. É, sim. E eu vou para casa. Sozinha, se for preciso...

— Você é minha mulher, Kristin. Seu lugar é junto comigo — ele disse friamente.

— Você prometeu — ela gemeu.

— Cale a boca! É inútil esta discussão. Não quero que fique assim nervosa. É melhor dormir. Charles e eu vamos para Calgary amanhã de manhã. Você vai para Maplewood. Fica lá com Annabel até nós voltarmos. Devo chegar dentro de uns quatro dias.

— Não! — Ela arregalou os olhos, aterrorizada. — Eu não vou para lá.

— Eu não estou perguntando, Kristin. Vai ficar em Maplewood até eu voltar.

— Não. vou com você, ou então fico sozinha, mas para Maplewood eu não vou!

— Não vou deixá-la sozinha depois do que fez hoje. Não posso confiar. E não quero passar os próximos dias, a milhares de quilómetros de distância, me preocupando com você.

— Ela me odeia — Kristin gemeu.

— Não seja ridícula. Annabel é sua amiga.

— É, sim. Mas Marion... sua mãe me odeia.

— Não — ele disse, cansado -, não é verdade. Ela já aceitou você. Foi Marion mesmo quem sugeriu que ficasse lá em Maplewood enquanto estou fora.

 

— Onde está Annabel, Marion? — Nathan perguntou.

— Pare de se preocupar, Nathan. Tudo vai dar certo. Nós vamos tomar conta de Kristin. Vá de uma vez, senão acaba perdendo o avião.

Kristin apenas olhava enquanto Marion se despedia do filho e fingia estar contente por tê-la em casa. Kristin nada dizia, os olhos vazios. Pelo menos Annabel estaria ali também.

— Então diga a Charles que estou pronto. Marion pareceu surpresa, depois riu.

— Annabel devia ter lhe contado ontem à noite que Charles vai encontrá-lo diretamente no aeroporto. Foi para o escritório hoje cedo e de lá ia direto para o aeroporto. Desculpe, meu filho, vou ralhar com ela por ter esquecido.

— Não tem importância — ele disse.

Nathan tinha os olhos cansados, com olheiras. Não havia conseguido dormir, talvez pela própria inquietação de Kristin na cama. Curvou-se e beijou-a de leve nos lábios.

— Não vai me dizer até logo? — ele murmurou.

— Até logo — ela disse maquinalmente.

— Muito bem, Kristin... — Ele suspirou. — Nos vemos dentro de alguns dias. — E foi embora.

— Bem, minha querida, agora vamos ter a oportunidade de nos conhecer melhor. Mas, primeiro, vai ter de me desculpar um instante. Tenho de dar as ordens do dia para os criados. Annabel geralmente cuida disso, mas ela e o filho Jon vão passar uns dias com os pais dela enquanto Charles está fora. — Marion sorria.

Kristin fechou os olhos, desesperada. Como poderia suportar quatro dias em companhia daquela mulher? O toque do telefone a assustou.

— Atenda, por favor — gritou Marion da porta. — E pegue recado, se for preciso. Tem papel aí.

— Alo? — Kristin obedeceu.

— Alo, Marion? — Era Carla. — Alo, está me ouvindo, Marion?

— Aqui é Kristin.

— Alo? Não estou ouvindo — Carla repetiu.

— Aqui é Kristin quem está falando. Marion está ocupada. Quer deixar recado?

— Claro, claro. — Carla riu do outro lado. — Diga a ela, por favor, que não vou poder ir ao jantar desta noite que tínhamos combinado. vou passar uns dias fora. Está me ouvindo bem, Kristin?

— Estou. Estou, sim — Kristin murmurou.

— bom. Está meio barulhento aqui. Estou no aeroporto: Vamos tomar o avião para Calgary.

Kristin ficou muda, sentindo o coração disparar.

— Alo, meu bem? Ainda está aí? Kristin?

— Alo.

— Não fique triste, Kristin querida. Eu bem lhe disse que Nathan e eu íamos ficar juntos, fosse como fosse. Você sabia disso... Olhe, dê um abraço em Marion e diga que a procuro assim que voltar. Aproveite a sua estada em Maplewood, querida. — E desligou.

Kristin desligou o aparelho devagar, sentindo as mãos frias. Fechou os olhos com força, tentando deter as lágrimas que ameaçavam transbordar, sentindo um nó na garganta.

Então era verdade mesmo: Carla e Nathan eram amantes.

— bom, já está tudo pronto — disse Marion, voltando para a sala. Tomara que Annabel volte logo. Eu não tenho cabeça para coisas da casa. Quem era no telefone, meu bem?

— Era Carla — Kristin respondeu sem entonação.

— É? O que é que ela queria?

— Ela disse que... Disse que não vai poder vir para o jantar. Vai passar uns dias em Calgary.

— Você certamente já sabe, Kristin, que ela está com Nathan — disse Marion, suspirando.

— Sei... Ela contou.

— Já deve saber também que eles estão juntos há anos. Desde muito antes de conhecer você. Venha sentar aqui para conversarmos. O que é que pretende fazer, agora que já sabe de tudo?

— Não sei... — Kristin sentou-se ao lado dela e pôs as mãos no rosto, sentindo-se febril e gelada ao mesmo tempo.

— Não acha que seria melhor voltar para casa? Para pensar melhor?

— Não sei.

— Você não pertence a este mundo, Kristin. Acho que seria impossível para você aceitar o fato de Nathan não se separar de Carla. Sua vida aqui seria terrível. Olhe, estou apenas tentando ajudá-la, sabe... Por que não sobe para seu quarto agora? Arrumei suas coisas no antigo quarto de Nathan. Você pode descansar um pouco. Sei que deve ter sido um choque para você. Vamos ter convidados para o jantar. Você desce para comer conosco, faço questão, e depois podemos conversar mais.

Ela ajudou Kristin a levantar-se da cadeira e acompanhou-a até o quarto.

Kristin obedecia a tudo, aparentemente adormecida, compreendendo lenta e dolorosamente que Nathan nunca a tinha amado da maneira que havia dito. Deitou-se na cama e caiu num sono profundo que, provisoriamente, anestesiava a sua dor.

— Vamos, Kristin — disse Marion, sacudindo-a pelo ombro. — Você dormiu o dia inteiro. Ninguém precisa de tanto sono assim na sua idade. Meus convidados já vão chegar e você tem de estar presente. Tem uma hora para se aprontar.

Havia vinte e oito pessoas em torno da longa mesa de mogno. Kristin tentava prestar atenção à conversa, tentava focalizar os rostos, as bocas que falavam com ela, mas era impossível. Estava dominada pela dor profunda de seu coração. De repente, percebeu que Marion estava falando com ela.

— Desculpe, eu não entendi...

— Claro, não estava prestando atenção, meu bem. Eu estava dizendo ao dr. Anderson, aqui a meu lado, como tem sido difícil para você se adaptar a esta nova vida. Mas é compreensível, uma vez que você vem de um ambiente que não é... digamos, sofisticado. E é claro que temos de levar em conta o fato de sua criação ter deixado muito a desejar.

— Ora, Marion! — interrompeu o velho dr. Anderson.

Kristin sentiu a raiva e o ressentimento crescerem dentro do peito e levantou-se devagar, olhando fixamente a mulher rígida sentada a seu lado, vestida de seda preta e pérolas.

— Fique sabendo, sra. Raines, que minha criação pode deixar muito a desejar pelos seus padrões, mas eu aprendi que não se deve ferir cruel e intencionalmente nenhuma outra pessoa. Meu pai não tinha posses, mas me ensinou a ter consideração e respeito pelos sentimentos dos outros, sra. Raines. E tudo isso, sra. Raines, a senhora acaba de provar que não tem, nem sabe o que é.

Deixou a mesa, com os convidados que escutavam em silêncio, e

atravessou a sala. Mas antes de chegar à porta tudo girou e a escuridão a envolveu.

— Não, doutor, não! — Sua voz era súplice. — O senhor tem de estar enganado!

— Nenhum engano, filha. Você logo estará de pé e tenho certeza de que Nathan vai dançar de alegria quando souber que vai ter um filho.

— Meu Deus, meu Deus! O que é que eu vou fazer? — Kristin fechou os olhos, agoniada. Afundou o rosto no travesseiro e chorou.

O médico compreendeu seu estado de espírito e saiu do quarto, deixando-a sozinha. Quase imediatamente Marion entrou.

— Então foi assim que conseguiu convencer meu filho a se casar com você! Eu devia ter entendido antes que é assim que gente do seu tipo age. Não quero ouvir nenhuma explicação, mocinha. Não ouse falar comigo. Nunca mais. Escute bem, quero que saia desta casa. Hoje. E não pense, nem por um instante, que vou acreditar que esse filho é de Nathan. Eu não sou nenhuma boba. Nathan nunca agiria dessa forma. Sei que ele mandaria você se livrar dessa gravidez. Portanto, é melhor levantar já e ir embora. Por falar nisso, tem um homem aí embaixo que diz que é de um lugar chamado Sitka. Talvez seja o verdadeiro pai desse filho. Seja ou não, a chegada dele é bem providencial. Pode ajudá-la com as malas e levá-la embora da minha casa. Vou mandar subir.

Derrotada, humilhada, Kristin deixou-se ficar afundada no travesseiro. A figura esguia apareceu na porta.

— Luther! Oh, Luther! — Ela estendeu a mão para ele.

— Kristin? O que é que aconteceu? Onde está Nathan?

— Viajou. Para Calgary. — Agoniada, ela fechou os olhos. — Ele não me quer mais; Luther. Eu não sirvo para este mundo.

Ela chorou e por isso não viu a raiva que brilhou nos olhos dele.

— Eu fui a Vancouver tratar de negócios — ele disse — e passei para ver como vocês estavam. Talvez quisessem voltar no barco comigo para Sitka. Você... você gostaria de voltar comigo agora? Sozinha?

— Quero, quero sim! Por favor, Luther, leve-me para casa. Eu quero voltar para casa.

Sentada na plataforma do farol, olhando o mar, Kristin sentiu, pela primeira vez nas últimas semanas, que era bom estar viva. Quase na linha do horizonte um barquinho a vela navegava nas águas agitadas daquele dia.

Luther e Alice logo terminariam de levar sua mudança para a casa abandonada do outro lado da ilha. O novo zelador em breve se mudaria para a casa que fora de Dugald, com a família. E assim que Luther arrumasse a velha casa de fazenda abandonada, ela também voltaria a morar na ilha. Já estava quase boa da pneumonia que pegara ao retornar. Se não fossem Luther e Alice, não sabia o que teria feito.

O barquinho a vela parecia aproximar-se na água revolta. Certamente tinha um bom piloto. Fazia quase um mês que Kristin voltara. O dr. Fraser, que cuidava de toda a gente daquelas ilhas, tinha temido pela vida do bebé, mas agora já estava tudo fora de perigo. Mesmo assim Luther e Alice ainda não deixavam que fizesse quase nada. A vontade de morrer que havia sentido, ao voltar, gradualmente se transformara num amargo ódio por Nathan e Marion, pelo que tinham feito com ela. Mas Kristin tinha pelo menos o bebê que crescia em seu ventre. Viveria para ele.

Ficaria ainda mais algum tempo com Alice e Luther e, assim que ele terminasse os reparos na casa, voltaria para a ilha, recomeçaria a viver, aprenderia a esquecer Nathan.

O vento estava ficando mais forte e mais frio. Ia voltar para casa. O barquinho estava chegando e sem dúvida ia atracar no ancoradouro. Devia ser algum conhecido do novo zelador.

Kristin atravessava o gramado quando sentiu algo estranho. Virou-se para olhar. Um instinto profundo a deixava inquieta. Quem seria, naquele barco? Mas não, não era ninguém. Era bobagem se preocupar. Apressou o passo e foi para a sua nova casa.

Luther e Alice não estavam. Kristin olhou em volta. A maioria de suas coisas já estava no lugar, mas ainda não era um lar. Isso só viria com o tempo. Controlou um pequeno gemido. Nathan e ela tinham sido tão felizes ali... Planejavam fazer da casa um lugar bonito e alegre. Mas por ora tudo era frio, vazio, empoeirado. E ela se sentia cansada, muito cansada.

Ouviu a porta se abrir e voltou-se, tentando sorrir para Luther. Ou Alice.

Mas era Nathan. Kristin ficou sem ar. Os dois se olharam por um longo momento silencioso, congelados. Ele estava diferente, mudado de alguma maneira profunda.

— Surpresa? Contente de me ver de volta, minha querida esposa? Depois de quatro longas semanas de separação? — sua voz soava fria.

— Vá embora daqui, Nathan. Vá embora! — Ela se apoiou na parede para não cair.

— Parece que já vivemos esta cena antes. Será uma mera repetição? Kristin olhou aquele homem que lhe parecia absolutamente estranho.

Tinha perdido peso e o rosto estava marcado. Os olhos azuis endurecidos, olhos de um homem com o coração gelado. Ela mal podia acreditar. Havia entre eles uma distância intransponível.

— Não — ela disse -, não é uma mera repetição. Você vai embora imediatamente. E desta vez vai sozinho.

— Não. Não vou sair daqui. E se resolver ir a algum lugar não vai ser sozinho. Você vai comigo. É minha esposa fiel e devotada.

— Está tudo acabado, Nathan.

— Não. Não está, Kristin. — Ele avançou um passo.

— Não toque em mim! Não chegue nem um passo mais perto. Luther já vai voltar e ele...

— Não me ameace com Luther nem com ninguém. — Ele a agarrou pelo pulso. — Por que não diz o nome de Del? Seria mais próprio para os seus lábios.

— Vá. embora daqui! Não é lugar para você. Nunca foi! — ela gritou, se debatendo.

— Kristin... — Ele tentou beijá-la, mas ela conseguiu mante-lo afastado.

— Não diga mais nada. Fora daqui! Eu o odeio! Odeio com todas as minhas forças. Vá para o inferno!

— Eu já estou nele — disse Nathan, soltando o braço dela; encarando-a imóvel por um longo momento.

— O que é que está esperando? Eu nunca mais vou viver com você. Nunca mais!

— Vai, sim, Kristin. Você é minha mulher. Ainda é minha mulher. Eu não vim aqui para pedir que volte comigo, Kristin. Estou aqui para lhe comunicar que vai viver comigo. Com ódio ou sem ódio, vai partilhar a minha cama e ser a minha esposa.

— Não! Nunca!

— Vai, sim. Vai. Nem que tenha de ser à força.

— E a criança, Nathan? — ela gritou. — O que quer que eu faça com o seu filho? Marion me disse que você certamente me mandaria abortar o bebê. Ela disse que...

— Vamos ter essa criança. — Ele cerrou os olhos com força.

— Mas você não quer esse filho, não é, Nathan? — ela perguntou, rindo ironicamente. — Não há lugar em sua vida para um bebê.

— Cale a boca, Kristin! O que é que está querendo? Gosta de me torturar assim? Que tipo de homem pensa que eu sou? Acha que estou orgulhoso porque minha mulher está grávida de outro homem? De Del Clarke?

— Del Clarke! — Ela arregalou os olhos. — Você pensa que eu...

— Pode parar com isso! Eu já sei, Kristin, já sei de tudo. Marion me contou. Contou também como estava adiantada a sua gravidez. Já estava grávida quando nos casamos, não estava? Que sorte a sua eu ter me casado com você, não? E como eu fui bobo! Meu Deus!

— Acredita em sua mãe, mesmo sabendo como ela é — ela disse, ainda mais ferida. — E não acredita em mim...

— Negue que estava grávida quando nos casamos?

— Não. Eu estava mesmo.

— Então...

— Você se esquece de que nós... Ora, que adianta isso agora? — ela disse, cansada. — É tarde demais, Nathan.

— Escute bem, Kristin. Eu aprenderei a viver com o fato de você ter um filho de outro homem. Mas você... você é minha e vai ficar comigo. Vai ser minha esposa. Em todos os sentidos da palavra.

— Não, nunca! — Sua boca tremia, seus olhos estavam cheios d`água.

— Eu nunca voltarei para Vitória com você.

— Não vamos voltar, Kristin. Charles assumiu os negócios.

— Onde, então? — ela perguntou. — Não posso ficar com você aqui. Aqui não!

— Eu poderia matá-la pelo que fez comigo — ele disse ameaçador, agarrando-a pelo pescoço. — E agora, não lute comigo, Kristin, não reaja. Pegue as suas coisas. Você vem comigo. Agora.

Ela estava apavorada, mas hesitava ainda.

— Faça o que eu mandei! — Nathan gritou.

— O que está havendo? — uma voz furiosa perguntou por trás dele. Nathan virou-se e deu de cara com Luther, que já estava pronto para uma briga, punhos cerrados, em alerta.

— Não é mais bem-vindo aqui, Nathan. Fora!

— Não quero discutir com você, Luther. Foi por ela que vim. É minha mulher e vai voltar comigo.

— Kristin fica aqui, conosco.

— Não me faça brigar por ela, Luther — disse Nathan, sinceramente pesaroso. — Não com você.

— Pois é comigo que vai ter de brigar, porque ela não vai com você. Kristin sentiu uma dor profunda ao ver aqueles dois homens se

defrontarem: um, o seu marido, o outro, que era como seu próprio irmão, desde criança. Os dois pareciam decididos a matar se preciso fosse. A matar por ela.

— Pare com isso, Luther! Por favor.

— Não se meta, Kristin — ele respondeu. — Deixe comigo.

— Nada disso — ela disse, colocando-se resolutamente entre os dois.

— Não quero que briguem. Podem se machucar.

— Não vou deixar que você fique com ele, depois de tudo o que ele fez para você — disse Luther a Kristin.

— Depois de tudo o que eu fiz? O que quer dizer isso? — Nathan protestou, a ponto de perder o controle.

— Quietos vocês aí! Parece a III Guerra Mundial! — Alice estava parada na porta com uma caixa de papelão nos braços e cruzou calmamente a sala. — Esta é a última, Kristin. vou deixar aqui. Então, Nathan, você voltou?

Ela se sentou na caixa e falou calmamente:

— Parece que isso já está se tornando um hábito, não é? Agora escutem um pouco. Não vai haver briga nenhuma, tratem de se acalmar. Você principalmente, Kristin. E você, Nathan, por que foi que voltou?

— Voltei para Kristin.

— Ela não quer ir com você.

— Não quero levá-la embora. Vamos ficar aqui mesmo, que é o lugar dela. Onde acho que pode ser... pode ser feliz.

— Acho — disse Alice, calma e cuidadosamente — que vai levar um bom tempo para a nossa menina conseguir ser feliz outra vez. Algo de muito mau e muito errado aconteceu com ela enquanto esteve fora daqui e eu acredito que você é o responsável.

— Isso é entre Kristin e eu, Alice. É uma coisa que nós dois vamos ter de resolver. Ninguém vai me deter, Alice. Ela é minha mulher.

— Mas isso não faz dela um objeto, Nathan, uma propriedade da qual você dispõe como quer.

— Não vou magoá-la, Alice — ele respondeu baixinho.

Kristin sentia uma nota quase de súplica na voz de Nathan, como se ele estivesse pedindo a Alice que pelo menos ela o compreendesse. Mas não podia ser verdade. Nathan nunca pediria nada a ninguém.

— Não vai magoá-la! — Luther gritou. — Você quase a matou e, se é que isso significa alguma coisa para você, ela quase perdeu o seu filho.

Incapaz de se controlar por mais tempo, Luther saltou sobre Nathan e esmurrou-o na boca. Kristin tinha certeza de que Nathan havia previsto aquele golpe, mas, estranhamente, ele nada fez para evitar o soco. Perdeu o equilíbrio, bateu na parede e tornou a endireitar o corpo. Mas não reagiu. Ficou absolutamente imóvel, olhando para Luther.

— Não, por favor! — Kristin suplicou, chorosa.

— Isso é tudo, Luther? — Nathan perguntou absolutamente controlado, apesar da enorme tensão evidente em seu corpo. — Ou quer me castigar mais?

— Seu filho da... — Luther rugiu, com mais raiva.

— Pare com isso, Luther! — Alice ordenou. — Vá para o barco. Eu já vou.

— Não vou deixá-la com ele.

— E eu não vou ficar aqui parada vendo essa bobagem — disse Alice.

— Vocês dois deviam ter mais juízo. Brigas nunca resolvem nada, só pioram as coisas. Pensem um pouco em Kristin. Isso não faz bem a ela. Ainda nem sarou direito.

— Esteve doente? — Nathan perguntou, preocupado.

— Teve pneumonia. Você não deve saber disso ainda. — Alice olhava Nathan com atenção. — Escutem aqui, vamos para a vila e vocês conversam depois de uma boa refeição. Vamos.

— Está louca, mãe? — Luther parou na frente dela. — Ele não vai para casa com a gente. Não deixo ele botar o pé na nossa casa.

— Saia da frente, Luther. — Alice estava brava. — Pode ser maior que eu, mas a casa é minha e nenhum filho vai me dizer o que eu posso ou não posso fazer lá. Nathan vem conosco para a vila e ponto final.

Luther saiu batendo os pés e Alice voltou-se para Nathan.

— Vem conosco — perguntou — ou vai sozinho?

— Kristin e eu vamos no meu iate.

— Não, eu não vou com ele — disse Kristin. — Quero ir com você e Luther.

— Não seja criança — disse Alice, muito séria. — Não é hora para isso, Kristin. Ele é seu marido, pelo menos por enquanto. Faça as suas concessões também, até resolver essa coisa toda.

Alice saiu e fechou a porta, deixando Kristin sozinha com o homem que mais odiava no mundo.

Ele cruzou a sala, mas Kristin baixou os olhos. Com dedos gentis Nathan levantou-lhe o rosto para que o encarasse. Lágrimas brotaram dos olhos de Kristin, que as enxugou com raiva.

— Você esteve doente? — ele perguntou baixinho. — Responda, Kristin.

E então ela perdeu o controle que vinha mantendo. Começou a chorar aos soluços.

— Oh, meu Deus! — Nathan gemeu, abraçando-a com força.

Uma parte dela não queria mais que ficar ali aninhada, naquela proteção segura e quente, mas uma outra parte, mais forte e ainda cheia de ódio, a afastava dele.

— Não... não... — ela gemeu. — Não quero que toque em mim. Solte! Tire as mãos...

— Pare, Kristin. Vai se machucar.

— Você nem liga para mim. — Ela riu, entre lágrimas.

— Eu estou aqui, Kristin. Estou aqui por você.

— Não, eu não acredito mais. Antes você estava aqui porque eu fazia parte das propriedades dos Raines. Agora é porque se preocupa comigo. Não, Nathan, eu nunca mais vou acreditar em você.

— Temos de discutir essas coisas com calma.

— Não. Não temos mais nada a dizer — ela disse, agressiva. — Eu estive doente, sim. Muito doente. O dr. Fraser disse que eu quase perdi o bebê. Isso teria sido ótimo para você, não? Eu tive pneumonia, logo depois que Luther me trouxe de volta.

— Luther? — ele repetiu, surpreso, intrigado.

— É. Luther. Por quê? Achou que tinha sido Del? Eu o odeio, Nathan Raines. Você e todo o seu mundo podre. Nada que você faça vai jamais mudar isso. Pode me forçar a viver com você, mas na primeira oportunidade pode estar certo de que eu irei embora. Talvez até vá com Del. Isso seria morte para você, não, Nathan?

Ele ficou olhando para ela, incapaz de fazer a pergunta que brilhava em seus olhos. Finalmente virou-se e foi até a porta.

— Vamos. Alice deve estar esperando. Não posso deixar que vá embora, Kristin. Eu tentei. Todas essas semanas, sozinho, eu não fiz outra coisa. Pensei até em me divorciar, mas não posso, Kristin. E se Deus me ajudar, nunca mais vou me afastar de você.

— Um dia, Nathan — ela disse amargamente -, você não terá outra escolha.

O jantar na casa de Alice foi terrível para todos. Luther saiu e Alice, Kristin e Nathan comiam em silêncio.

— Afinal, não acho uma boa idéia ter vindo para a sua casa, Alice disse Nathan finalmente. — Parece que expulsei Luther. Acho melhor nós irmos embora.

— Vamos esclarecer umas coisas agora mesmo, Nathan... — Alice falava com toda a calma. — Primeiro, você não expulsou Luther. Ele faz o que bem entende. Segundo, não vai levar Kristin para nenhum lugar. Ela fica aqui.

— Ela vem comigo... — ele disse, o rosto turvado de ódio.

— Fique quieto e deixe eu terminar — Alice interrompeu. — Vocês homens são todos iguais. Já vão querendo brigar antes de tentar entender. Querem um pedaço de torta de maçã ?

Nenhum dos dois respondeu enquanto ela tirava os pratos usados. Serviu-se de uma fatia bem grossa de torta e tornou a sentar-se.

— bom, eu pelo menos não perdi o apetite — disse séria, olhando Nathan nos olhos. — Já é outono, Nathan. O tempo já virou. É época de tempestades. Você bem sabe que esta terra não é fácil. Exige muito da gente. Para onde é que quer levá-la? Têm de estar bem acomodados antes do inverno. Ela pode perder a criança. E uma coisa eu lhe digo: não vai levá-la para Vitória. Ela voltou de lá transformada. Não é mais a menina alegre e inocente que eu conhecia. Não sei o que foi que aconteceu, mas sei que você é o responsável.

— Já lhe disse que não tenho intenção de voltar a Vitória — ele disse, cansado.

— Para onde, então?

— Para a casa da ilha. Sei que ela agora pertence a Kristin. vou arrumar o que está quebrado e podemos morar lá.

— Isso levaria meses.

— Não. Apenas algumas semanas e eu posso continuar trabalhando durante o inverno, até a casa ficar bonita e habitável.

— Isso até que parece razoável — Alice admitiu. — O que acha, Kristin?

— Acho que estou sendo tratada como um objeto e o odeio por isso, Nathan. Odeio com todas as minhas forças.

— Eu acredito, Kristin — ele disse, triste.

— E ainda assim quer viver comigo? Que tipo de casamento seria esse, Nathan?

— Você não me odiava antes — ele murmurou.

— Isso foi antes, antes de tudo o que aconteceu. Mas o passado está morto. Será que você não entende? Esqueça-se de mim, Nathan.

— Nunca... Não posso deixá-la, Kristin, entenda.

— Não vai conseguir me...

— Agora fiquem quietos — disse Alice, firme. — Não vão chegar a nada com essa conversa e eu gosto demais de vocês dois para deixar que se destruam assim. Escutem. Vocês têm de resolver isso entre vocês. Se fugir agora, Kristin, nunca saberá se teria sido possível salvar o seu casamento.

— Não quero viver com um homem que odeio, Alice. Odeio. Um homem que...

— Um homem que o quê, Kristin? — Ele se virou para ela bruscamente. — Termine o que ia dizer.

Ela quase tinha deixado escapar a relação dele com Carla, mas felizmente conseguira se controlar a tempo. Jurara a si mesma nunca contar nada daquilo a ninguém.

— Nada — disse, envergonhada.

— Que droga, Kristin! Diga de uma vez o que...

— Calma aí, Nathan — Alice interrompeu com firmeza. — Escutem bem. Quero que vocês dois fiquem aqui em casa até a casa da ilha ficar pronta. Não, não quero discussões.

Já preparei os quartos de cima. Para vocês dois, pelo tempo que for preciso. Tudo o que peço é que pensem bem. O mundo já é bastante triste como está. Não precisa de mais duas vidas destruídas. E esse é o fim do meu sermão. — Ela sorriu, olhando suavemente para os dois.

Derrotada, Kristin se levantou e foi para a escada, mas a voz de Alice a deteve:

— Não fique triste comigo, Kristin, mesmo que não esteja conseguindo me entender. Eu a amo como uma filha, nunca se esqueça. E você, Nathan, você era como parte da família antes e eu peço a Deus que volte a ser. Mas Luther e eu vamos detê-lo a qualquer custo, se tentar levar Kristin para onde ela não quiser. Lembre-se bem disso. Não vou mais deixar que ela se magoe como

quando Luther a trouxe de volta, há um mês.

Isso encerrava o assunto. Nada mais havia a dizer. Nathan se levantou da mesa e subiu com Kristin.

Os dois quartos eram bastante grandes, ocupando todo o segundo andar da casa. Um deles era de solteiro e o outro, evidentemente o quarto principal, com uma grande cama de casal. As janelas de ambos davam para um terraço típico das casas daquela região.

— Chama-se passeio de viúva, não é? — disse Nathan, olhando o terraço pela janela. — Você gostaria de estar viúva, Kristin?

— Eu não desejo a sua morte, Nathan. Quero apenas que saia da minha vida. Não posso sobreviver a seu lado do jeito que você é.

— Como é que eu sou, Kristin? — Ele a agarrou pelos ombros e fez que o encarasse. — Como é?

— Não — ela sacudiu a cabeça -, não adianta mais falar. Nada do que eu possa dizer vai mudar nada entre nós.

— Meu Deus, Kristin. Por favor, me conte tudo. Eu já aceitei essa criança. Que mais posso fazer?

Ela o encarou, demonstrando nos olhos toda a amargura das últimas semanas, mas nada disse sobre Carla. Ele desistiu, deixando cair os braços ao lado do corpo.

— Já mexeu? — ele perguntou, tentando tocar a barriga dela. Aterrorizada, Kristin se afastou, trémula e perturbada.

— Ainda não.

Durante um longo momento Nathan nada disse. Apenas fixou nela os olhos azuis, perplexos. Finalmente, com passos pesados, foi para o outro quarto.

— Não vou tocar em você, Kristin — disse tristemente, da porta -, a menos que você queira. Portanto, não precisa recuar e fugir de mim como um bicho assustado. Eu fico no outro quarto. — E fechou a porta.

 

As duas semanas seguintes foram difíceis para Kristin. Por causa da presença de Nathan, Luther evitava ficar em casa e nunca voltava para o jantar. Nathan levantava antes do sol nascer e trabalhava todo o dia na ilha, só voltando depois de escurecer. Dia a dia ele parecia mais cansado, mas Kristin não cedia. Via, maravilhada,

a enorme capacidade que Alice tinha de continuar a viver como se nada estivesse acontecendo.

As noites eram terríveis, pois Kristin ficava horas e horas encarando o escuro vazio, ouvindo os ruídos de Nathan no outro quarto.

Uma noite teve um monstruoso pesadelo e despertou com o toque das mãos de Nathan e a voz dele que falava baixinho e firme:

— Kristin... Kristin... Está sonhando...

Ela abriu os olhos. Nathan estava sentado na cama, sem camisa, aninhando-a nos braços. Recuou aterrada daquele homem que, minutos antes, em seu sonho, tinha estado entre os braços de Carla.

— Não! — ela gritou, afastando-se e sacudindo a cabeça. — Você a beijou. Você a ama, isso não é nenhum sonho. Eu sei.

E finalmente, incapaz de aguentar mais a dor e o desespero das últimas semanas, atirou-se na cama e chorou copiosamente.

— Tudo bem, Kristin — disse Nathan, que em vez de abraçá-la acariciava suavemente seus cabelos. — Chore até secarem as lágrimas. Ponha tudo para fora, vamos.

Finalmente, pouco a pouco, os soluços foram cessando e Kristin levantou a cabeça. Alice olhava da porta.

— Precisa de mim? — ela perguntou.

— Não — Nathan respondeu, olhando para Kristin. — Eu tomo conta dela. Está tudo bem: foi um sonho mau, mas vai ficar tudo bem.

Alice assentiu com a cabeça e fechou suavemente a porta. Ficaram a sós de novo.

— Conte-me seu sonho, Kristin — Nathan pediu docemente.

— Não... não posso. Não posso contar para você.

— O que foi que ela fez para você, Kristin?

— Quem?

— Carla.

— Nada. — Kristin não entendia como ele tinha descoberto. — Não quero falar disso.

— Tem de falar sobre isso.

— Não. Eu tenho vergonha. — Ela baixou o rosto, mas ele tornou a levantá-lo.

— O que foi que ela fez, Kristin? -ele insistiu.

A ternura dele e o fato de não tentar abraçá-la, esperando pacientemente, sentado à beira da cama, romperam as defesas dela. Atropelando as palavras, num fluxo febril, Kristin contou a ele tudo o que tinha acontecido em Maplewood: as revelações de Carla, a expulsão cruel de Marion. A única coisa que não conseguia suportar era a acusação de que Del era o pai da criança. Isso era demais para ela.

Quando finalmente se calou estava exausta, mas a amargura e o ciúme tinham desaparecido. Pela primeira vez em muito tempo ela via Nathan, seu marido, nitidamente.

Aqueles olhos azuis que a encaravam sem ver estavam profundamente marcados pela mais amarga dor.

— Que Deus me perdoe tudo o que permiti que lhe fizessem — ele disse, abraçando Kristin apertado durante um longo momento. — Carla e eu fomos amantes, Kristin. Há muito, muito tempo, antes de eu vir para Sitka. Parece que foi há séculos. Depois disso nunca mais estive com ela. Não estive com nenhuma outra mulher a não ser com você, Kristin. Tem de acreditar em mim.

— Eu acredito — ela disse baixinho, relaxando nos braços dele.

— É meu filho essa criança, não é, Kristin?

— É — ela disse, depois de longa pausa. — É seu filho. Eu disse a verdade quando jurei que nunca estive com nenhum outro homem. Só com você.

Ele baixou os braços, levantou-se lentamente e foi até a janela. Olhou a escuridão lá fora. Kristin sentiu falta do toque dele, daqueles braços em torno dela.

— Nathan? — disse baixinho.

— Quê?

— O que vai fazer?

— É uma boa pergunta. — Ele riu, amargo. — Eu estava pensando que... depois de tudo o que aconteceu, de tudo o que eu deixei que acontecesse, não tenho o direito de esperar que fique comigo. Eu a amo mais que minha própria vida, Kristin. Mas sinto que falhei e não mereço mais você.

— Nathan, por favor... — ela disse, preocupada com a mudança que tinha ocorrido nele.

— Não diga nada, Kristin. Você precisa dormir. Não vai mais ter pesadelos. Agora está tudo aberto e limpo.

— Nathan... — ela pediu, agarrada à mão dele. — Eu não quero dormir sozinha. Não me deixe.

— Tem certeza do que está me dizendo?

— Tenho. Tenho, sim.

Durante a noite ela despertou várias vezes, mas tornou a dormir com facilidade, confortada pela presença de Nathan que a envolvia entre os braços, o ritmo da respiração regular e tranquilo.

Tudo vai dar certo agora, ela pensou, acreditando finalmente.

Encostadas à pia, Alice e Kristin terminavam de lavar os pratos do jantar.

— Ele está atrasado demais hoje, Alice — ela disse, olhando o relógio pela milésima vez. — Será que teve algum problema na travessia do canal? O mar está agitado.

— Não é isso, não. — Alice também parecia preocupada. — Ele atracou já faz uma meia hora. Eu vi quando chegou. Não sei por que está demorando tanto. Por que não sai para encontrá-lo? Ele vai ficar contente.

— Não posso.

— Por que não?

— Não sei. Eu...

— Escute aqui, mocinha, ele me contou hoje de manhã qual era o problema de vocês. Acho que ambos foram vítimas das circunstâncias e nenhum dos dois tem culpa de nada. Agora as cartas estão na mesa e vocês podem curar as feridas um do outro, sem interferência de ninguém. Podem se amar de novo, com franqueza. Porque você o ama, Kristin, e ele também a ama, acima de tudo. Portanto, deixe de inventar desculpas, pegue seu casaco e vá ao encontro dele.

Kristin obedeceu. O vento estava forte e parecia empurrá-la pelas costas para que se apressasse. Kristin sorriu. Nathan ficaria com ela e tudo ia dar certo.

A noite estava escura, as nuvens correndo no céu encobriam a lua por longos momentos. Pensou ouvir alguém chamando seu nome e voltou-se para olhar. Mas devia ter sido impressão. De repente tomou a ouvir: o som de vozes irritadas, perto do píer. Pensou voltar e esperar Nathan em casa, mas seus instintos lhe diziam que havia algo errado no ar. Nathan! Nathan estava em perigo. Correu em direção às vozes. Virou a esquina do armazém e viu um grupo de homens em círculo, agressivos, gritando insultos para um outro sozinho que mal conseguia parar em pé. Era Nathan!

— Não! — ela gritou, horrorizada.

Ia correr para eles, mas uma mão suada surgiu das trevas e agarrou-a, cobrindo sua boca.

— Não se meta, Kristin — soou a voz de Del, aterradora e selvagem na escuridão. — Ele está recebendo aquilo que eu prometi. Depois disso, não vai ter mais coragem de ficar por aqui. Está vendo? Olhe bem, mocinha. Isso vai lhe ensinar a me acreditar. Eu tenho tido muita paciência, mas agora chega. Você vai ser minha de qualquer jeito.

— Não — ela gritou debatendo-se. — Mande eles pararem com isso. Vão matá-lo!

— Não, não vão, não — disse Del, agarrando-a pelos cabelos e forçando-a a assistir tudo. — Mas ele vai preferir morrer depois que os meus homens acabarem com ele.

Nathan estava de joelhos no meio dos homens, os braços dobrados, protegendo o estômago, a cabeça pousada nas tábuas do chão. Nem tentava mais se levantar. De repente, um dos amigos de Del se aproximou e deu um violento chute em suas costelas. Ele gemeu e caiu, inconsciente.

— Agora chega — disse um deles.

— Se ele continuar por aqui — disse Del, soltando os cabelos dela -, pode avisar que eu acabo com ele. vou buscá-la assim que ele for embora.

Ele se virou e foi embora, seguido por seu bando. Kristin correu para Nathan, caído, desacordado. com grande esforço conseguiu virá-lo de costas e ele levantou os braços, protegendo o rosto, como se esperasse outro golpe.

— Nathan... — ela sussurrou. — Nathan, sou eu... Kristin. Está me ouvindo?

— Kristin? — ele murmurou, os lábios inchados, os olhos incapazes de se abrirem.

— Sou eu. Estou aqui. Sossegue, tudo vai dar certo. vou chamar Luther para levá-lo para casa.

— Não, não quero.

— Escute, Nathan. A casa de Alice é muito longe. Você não vai conseguir sozinho.

— vou — ele disse, lutando para pôr-se de pé.

Desesperada, Kristin tentou ajudá-lo, com toda a sua força, mas ele recusou a ajuda.

— Não preciso e nem quero a sua ajuda, Kristin. Vá embora daqui.

— Não, não vou. Meu lugar é aqui, a seu lado.

Agoniada, Kristin se limitou a assistir ao terrível esforço que Nathan fez para se pôr de pé e caminhar para casa. Sentia a dor dele em seu próprio corpo, mas limitava-se a seguir ao lado dele.

Quando finalmente chegaram à porta da cozinha de Alice, todas as forças pareceram abandoná-lo e ele caiu para dentro. Luther correu em seu socorro e levou-o para cima, meio arrastado, meio andando.

Assim que o dr. Fraser desceu com Luther, Kristin subiu correndo a escada. Nathan parecia dormir e ela sentou-se à beira da cama.

— O que quer aqui, Kristin? — ele perguntou sem abrir os olhos.

— Quero ficar com você. Só isso.

— Vá embora. Que bobo eu fui em não perceber até esta noite quanto vocês me odiavam. Mas agora chega, não tenho mais forças para lutar. Vou embora amanhã.

— Por que diz isso? — ela perguntou, apavorada.

— Luther evidentemente sabia o que estava para acontecer. Del disse que você queria se livrar de mim e que talvez fosse essa a única maneira de entender. Pois muito bem, eu entendi, Kristin. O que me dá pena é que, depois de ontem à noite, eu pensei que nós ainda tínhamos uma chance. Mas agora sei que não. Pode ficar tranquila. vou providenciar para que você e o bebê sejam bem cuidados. Pelo menos financeiramente. vou embora amanhã.

Kristin levantou-se e caminhou até a janela. Sabia que agora ia ter de lutar pela própria vida.

— É. Acho que tem razão, Nathan — ela disse com calma. — Nós não podemos ficar juntos. Tudo o que conseguimos é magoar um ao outro. Foi assim desde o começo. E sabe por que não podemos ficar juntos, Nathan? Porque não acreditamos um no outro. Sempre que alguma coisa acontece estamos prontos a duvidar. Eu acreditei no pior a respeito de você e Carla. E deixei que sua mãe me afastasse de você. E você acreditou que eu e Del... — As lágrimas corriam por suas faces. Ela falava com cuidado, sabendo que era a sua última chance. — E agora você acredita que concordo com a monstruosidade que esses homens lhe fizeram. Será que não vê que eu o amo? Que não posso viver sem você?

— Kristin... — Nathan sussurrou.

Ela olhou e viu que ele não conseguia se sentar na cama.

— Acho que é melhor você vir até aqui, Kristin, senão eu vou me estatelar no chão. — Ele estendeu a mão, súplice. — Por favor... Kristin se aproximou da cama.

— Deite comigo, Kristin... — ele pediu suavemente. — Deite comigo como ontem à noite.

Ela obedeceu, segura do que fazia. Aninhou-se nos braços dele, mas não conseguia relaxar, ainda temerosa.

— Vai me deixar, Nathan? — perguntou, medrosa.

— Meu Deus, Kristin! — Ele a apertou com força. — Duvidei de você, quando devia apenas amá-la. Ninguém nunca me amou como você me ama, mas eu fui um idiota e não percebi isso. Não posso deixá-la nunca. Amo-a mais que a própria vida. Você é a minha vida, Kristin. E quero ficar com você para sempre, se você ainda me quiser.

Kristin nada respondeu, pois a alegria que se estampava em seu rosto era a melhor resposta que havia.

 

                                                                                Jan Maclean  

 

                      

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