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Series & Trilogias Literarias
Tinha sido uma tarde fria em toda Maciaan. Com aquele céu tão apagado que ninguém sabe distinguir a hora do dia, se está cedo ou tarde. No leste ou oeste, as nuvens cobriam tudo. Um garoto subiu numa das torres do Castelo Henpakihan e forçou as vistas, mesmo assim, nada. De um lado, as montanhas do leste, do lado oposto, bem lá no fim, ele pensou ter visto o começo do mar. E de um canto a outro, tudo estava coberto pelo cinza celeste.
— Amadeu! Desça agora, garoto. Fica brincando aí, enquanto tem trabalho para fazer, moleque! — era seu pai gritando, alguns andares abaixo. Ele era um dos soldados da guarda real, mas a tarefa mais trabalhosa que tinha era educar o garoto, sem dúvidas. O menino desceu com a cara emburrada, pelas escadas.
Longe dali, numa grande cidade de casas de madeira e telhados inclinados, um jovem caminhava carregando nas costas quatro lobos ensanguentados. Ele era alto, de físico forte e tinha uma volumosa cabeleira loira que descia até as costas. Enquanto ele passeava sorridente, as pessoas ficavam contentes de cumprimentá-lo. Para alguns, ele virava as costas mostrando as feras que tinha matado, e só recebia elogios.
Em certo ponto, ele alcançou uma grande muralha de madeira, esperou que as portas se abrissem e entrou confiante. No interior não havia um castelo, estava mais para uma vila modesta. Aquele era o Palácio de Casul, um local distinto pela sua beleza natural. Jardins bem cuidados, casas grandes, algumas com três andares e todas de madeira, sem um grama de pedra.
— Quando vai largar essa imprudência, jovem Rupert? — um senhor magro olhava o rapaz de uma varanda numa casa próxima. Ao lado dele uma criança de grandes olhos azuis fitava o loiro.
— Não me enche, Valtezer. Eu não aguento ficar preso aqui dentro, preciso de ar puro, natureza selvagem!
— Cuidado, se continuar desse jeito, a natureza não vai sobreviver a você. — disse Valtezer. Rupert não tinha uma desculpa para os animais mortos, então apenas sorriu envergonhado. Acenou para a garotinha, que corou e escondeu-se atrás de Valtezer. Rupert entrou na casa, pensando que a noite seria longa e chuvosa.
Voltando para as terras do Castelo Henpakihan, porém mais ao norte, numa região acidentada e com várias colinas, dois amigos se entretinham num jogo de baralho. Era um jogo arcaico, com cartas coloridas, e regras que volta e meia um dos dois inventava para justificar uma trapaça. Yozien, alto e esguio, vencia a maioria das partidas com certa facilidade. Ele tinha um olhar de sabedoria e inspirava bondade, características condizentes com homens experientes, e ele já estava com seus quarenta anos. Tiestes tinha trinta e cinco, era forte e inteligente, mas muito impaciente.
— Esse jogo é ridículo mesmo, a vitória depende apenas de sorte. Um estrategista como eu apenas perde tempo jogando isto. — disse Tiestes, jogando as cartas em cima da mesa de pedra com força.
— E como temos tempo de sobra, você não está fazendo nada de errado. — sorriu Yozien. Ele pegou as cartas e embaralhou. Continuaram jogando até o advento da noite.
O local em que se encontravam era um templo a céu aberto, construído com monumentos de pedra, e utilizado para observar as estrelas. Ventos suaves carregavam pólen que desenhava pequenos caminhos no ar, conferindo uma atmosfera mística àquele lugar, infelizmente desconhecido por muitas pessoas. Talvez, se fosse visitado frequentemente, a magia se dispersasse... Iluminados por tochas, finalmente os dois pararam de jogar. Tiestes olhou para cima, se perguntando por que diabos ainda jogava com aquele velho trapaceiro. Foi então que percebeu o céu.
— As nuvens sumiram. — afirmou ele. Yozien olhou para o alto e percebeu o sumiço abrupto do cinza. O céu estava cintilante, não havia nada entre eles e as estrelas, e como estavam numerosas. Aquele templo era o melhor lugar, de toda Maciaan, para observação do céu.
— Já faz tempo desde a última vez que as estrelas se reuniram desse jeito... Você lembra, cinco anos atrás? — perguntou Yozien, levantando-se para pegar um cajado apoiado numa rocha alta ali perto.
— Aqueles foram dias complicados, espero que a surpresa de hoje não traga consequências iguais àquelas. — o mais jovem se espreguiçou após levantar.
— Bom, vou deixar você com suas obrigações, não quero atrapalhar em nada. E parabéns pelo seu novo filho. Ou filha. — Yozien pegou uma ovelha que estava pastando pelo local e caminhou com ela até que a luz das tochas não os alcançasse mais, tornando-os parte indissociável da escuridão noturna.
Tiestes pegou algumas peles, estendeu-as na grama e deitou-se. Quando acordou, não sabia se havia passado muito tempo, mas as estrelas ainda estavam lá, e um choro de criança pedia sua ajuda. O homem andou pelas pedras altas, até chegar ao centro do templo, onde havia uma lança fincada no solo. No topo da lança, uma pequena rede de pano estava pendurada, e dentro dela, um bebê sentado, chorando alto. Ele pegou a criança no colo, retirou a lança do chão e levou para casa.
Foram apenas alguns minutos de caminhada até Tiestes avistar sua casa. O choro da criança havia desaparecido e ele se distraía observando a lança. Era feita de alguma liga dourada de metal, e próximo da ponta haviam inscrições feitas em relevo. Coisas que Tiestes tentava imaginar o significado, até que finalmente parou em frente à porta. O lugar era pequeno e rudimentar. Apoiou a lança na parede atrás da porta e deitou a criança na mesa de madeira. Era um menino. Tiestes acendeu a lareira e pôs uma faca longa para ser aquecida no fogo. O garoto começou a chorar e desta vez não quietava, então Tiestes foi até a mesa e começou a brincar com ele, fazendo cócegas e de vez em quando, levantando o bebê no alto e olhando, para ter certeza que não havia nada de errado com ele.
Quando a lâmina da faca estava incandescente, ele calçou uma luva e a retirou das brasas. O menino continuava chorando. “Espero que não continue chorão depois de crescido”, pensou Tiestes. Colocou o menino de bruços na mesa, segurando a faca com uma das mãos. Olhou para as pequenas costas dele, procurando alguma coisa. O menino parou de chorar. Um pressentimento, talvez?
Tiestes lentamente aproximou a faca do garoto. Ele começou a se debater, estimulado pelo calor que emanava da faca. O menino tentou virar para trás e seu olhar cruzou com o de Tiestes. Os dois pararam e ficaram se examinando. O homem se deu conta do que estava para fazer, e jogou a faca para longe. Colocou o menino em um berço velho que estava no quarto e voltou para a sala chacoalhando a cabeça.
— Acho que essa solidão está me deixando louco — pensou ele.
O homem forte como um touro
— Amato, para de chorar, moleque! Você brigou com uns garotos do seu tamanho e já está abrindo o berreiro, devia ter visto quando eu encontrei o filho dos gigantes aqui no Cesaro. Foi um tempo antes de você nascer. Eu estava voltando do rio quando ouvi um barulho no meio do templo. Era assustador, parecia que o mundo estava desmoronando... Sabe aquela pedra enorme deitada? Pois é, ela estava erguida como as outras. O pequeno gigante a derrubou com um chute. Ele tinha a aparência de um bebê normal, mas era mais alto que eu, e pesava mais que um touro.
— Agora que estou lembrando melhor. Eu tive que chamar o Yozien para me ajudar a mover o monstrinho, nós passamos um bom tempo rolando ele de um lado para o outro, fazendo de tudo para sair do templo do Cesaro sem derrubar as rochas. O Yozien teve que trazer dezoito vacas, só assim que dava para matar a fome daquela peste. Dois dias depois que ele apareceu aqui, disseram que alguns gigantes tinham descido das montanhas do leste. Na noite que eu soube disso, as criaturas apareceram aqui no Cesaro. Não consegui nem ver o rosto deles antes de se abaixarem.
— Eles perguntaram do moleque, e eu falei que estava atrás da casa. Quando eu disse isso, o babão veio rolando e só parou quando destruiu boa parte da entrada do templo. Minha sorte foi que os grandões o pegaram e foram embora sem quebrar mais nada. Nunca vou me esquecer daquele cabeçudo arruaceiro, as esmeraldas que ele tinha nas costas iluminavam mais que uma fogueira em chamas, de tão grandes. Algum dia, se você encontrar um gigante com pedras no formato de touro nas costas, trate de dar uma lição nele pelo seu velho.
Amato já não chorava mais.
Capítulo 1: O garoto extraordinário
I
Uma manhã de Sol aquecia os habitantes de Kelicerata, a maior cidade do Leste, onde ficava o Castelo Henpakihan. A vida na cidade grande é cansativa, mas ninguém que já pisara em Kelicerata cogitava morar em outro lugar. Os melhores cavalos à venda estavam lá, os maiores guerreiros digladiavam no Impacta, a arena dos mais fortes, mas o verdadeiro atrativo era a beleza feminina. Alguns diziam até que Afrodite tinha nascido secretamente em alguma casa das redondezas e quando completou dez anos fugiu para conhecer o mundo. Quando um homem entrava pela primeira vez em Kelicerata, ele saía com pelo menos dois motivos para voltar: uma loira e uma morena. E se viesse de um lugar muito longe, ele prontamente pedia a uma delas para voltar com ele, para transformar a viagem tortuosa em uma saborosa aventura a dois.
— Eu não vou te esperar a manhã toda! — gritou um jovem cavaleiro para o interior de uma casa. Ele cruzou os braços, mas nem chegou a ficar impaciente, pois logo a porta da frente se abriu.
— Não sei pra quê sair da cidade a essa hora! — falou um garoto. Era Amadeu, com cabelo ainda desarrumado, caindo por cima do nariz. Ele puxou para trás, revelando sua cara de sono, mas não adiantou muito. Fechou a porta e deu a mão ao cavaleiro.
— Pode ir se acostumando, nós vamos viajar por um longo tempo e eu não vou ficar esperando você acordar no horário que quiser. Vou embora e deixo você dormindo para os lobos se fartarem. — disse o cavaleiro, dando um leve sorriso de canto de boca. Enquanto caminhava, ele olhava para todos os cantos, já imaginando quanto tempo levaria para ver essa cidade novamente. A taberna de Juanart, com suas noites infindáveis, a casa de ferragens dos irmãos Suines, onde todos os cavaleiros iam pedir socorro para consertar algum pedaço da armadura. Caso alguém chegasse com alguma peça trincada na inspeção do mestre ferreiro do castelo, teria que ouvir berros por horas a fio, por não dar valor ao trabalho dele. Com certeza, na mente ranzinza do velho, os cavaleiros deviam proteger as armaduras, e não o contrário.
Tudo aquilo e muito mais estava ficando fora do alcance dos dois, e não passariam de lembranças enevoadas. Pouco tempo depois, estavam atravessando o portão da cidade e entrando na Floresta dos Troncos Amarelos. Até então, não precisavam se preocupar com nada. Era uma floresta pacata, sem feras ou histórias misteriosas. No máximo um ou dois bandidos magros que não serviam de ameaça nem para coelhos.
Passaram os primeiros cinco dias atravessando a floresta rumo a oeste, aproveitando para estocar o quanto pudessem de frutas. Quando saíram da floresta, já não havia mais pão com eles, porém Amadeu estava empolgado. Finalmente aprenderia a caçar veados e outros animais de médio porte. Estavam nos Campos de Porocop, uma região verdejante, cheia de subidas e descidas, fauna diversificada e diversos rios.
— Se você seguir por aquele rio, um dia vai chegar ao mar. — disse o cavaleiro, apontando para um rio que passava longe.
— Podemos ir lá? Não aguento mais ficar andando... — reclamou Amadeu enquanto mordia uma maçã.
— Podemos sim, mas você vai ter que escolher, ou vê o mar, ou vai aprender a caçar. — o cavaleiro falou, tirando o arco das costas e o inclinando para Amadeu. Ele nem precisou de resposta. O garoto pegou o arco e saiu correndo na frente.
Amadeu não notou, mas enquanto os dias passavam, eles iam mais e mais para noroeste, cada vez mais longe de Kelicerata. Num final de tarde, depois de mais de trinta dias viajando, os dois perceberam que havia uma cidade ali perto. Alguns animais domésticos já tinham cruzado seu caminho, mas só na chegada da noite eles avistaram com clareza, devido às luzes que surgiam no horizonte, com o acender de tochas e lâmpadas a óleo. Era apenas um vilarejo, mas só de saber que iam dormir em camas, os dois encheram o peito e soltaram o ar vagarosamente, aliviados. Aceleraram o passo e num piscar de olhos tinham chegado à civilização.
— Vocês vieram sem montaria? — perguntou um morador. — Muito tempo que você não vem pra o lado de cá. — dizia outro. Amadeu, que nunca tinha ouvido o cavaleiro falar nesse local, percebeu que muitos o cumprimentavam.
— Quando você veio pra cá? Eu não me lembro disso... — perguntou Amadeu.
— É porque você era pequeno demais para lembrar, mas você já passou aqui também — respondeu o cavaleiro — vamos descansar essa noite e amanhã. Compraremos algumas coisas durante a tarde e partiremos no dia seguinte. E prepare-se. A viagem vai ser bem mais longa.
Amadeu baixou a cabeça e resmungou qualquer coisa para ninguém ouvir. Dois dias depois, era o menino que esperava o cavaleiro, no topo de uma colina. Ele estava de braços cruzados e muito impaciente. Olhava diretamente para o cavaleiro, que conversava com uma mulher segurando uma criança de colo, já na saída do vilarejo.
— Não mandei você sair correndo! Bem feito, teve de esperar. — o cavaleiro disse, pondo a mão na cabeça do menino. — Agora preste atenção, daqui pra frente vai ficar mais perigoso, por isso não quero você longe de mim. Daqui a um mês, mais ou menos, chegaremos ao lugar chamado Cesaro.
— É o mesmo lugar das histórias? — perguntou Amadeu com olhos arregalados.
— Exatamente. Então, se você não quiser ser comido por gigantes ou centauros, é melhor ficar do meu lado. A gente pode até ter sorte e não encontrar nenhum monstro no caminho. — disse o cavaleiro, andando na frente.
II
Os dias seguintes levaram os dois viajantes a uma exaustão constante. As noites eram muito frias, os dias quentes demais. Precisavam subir ladeiras de pedregulhos, explorar matas fechadas, atentar a qualquer barulho suspeito, praticamente dormiam com um olho aberto. Mesmo o jovem cavaleiro da guarda real, que já havia andado por estas terras misteriosas, não sentia segurança para dormir sossegado, por mais quieto que estivesse à madrugada.
Depois de algumas semanas na rotina selvagem, Amadeu já não reclamava mais da situação, apenas desejava que chegassem logo ao seu destino, para poder voltar ao aconchego da sua casa. Foi em uma tarde ensolarada, o menino ia caminhando na frente, tateando o chão com um graveto velho que encontrou na floresta. Aos poucos o matagal ia se dispersando, até que sumiu completamente. O cavaleiro viu que algo chamou atenção de Amadeu, pois logo que saiu da mata, o menino virou-se para a esquerda e correu.
Assim que passou da ultima árvore da mata densa, ele percebeu o motivo e ficou igualmente deslumbrado. Era o oceano. A imensidão azul se estendia no horizonte, eles finalmente haviam chegado ao Cesaro.
— Pai, olha só que demais! — Amadeu estava ajoelhado na ponta do penhasco. Olhou para baixo receoso, e se arrastou um pouco para trás. Os dois haviam chegado ao Cesaro pelo extremo oeste, aquela era uma vista privilegiada do mar e seus vários redemoinhos.
— Muito lindo, não é? A maioria das pessoas morre sem ver o mar... Vamos, estamos bem perto do templo, fica daqui a uns vinte minutos de caminhada. — disse o rapaz, agora calmo e sem preocupações.
Os dois ficavam mais tranquilos a cada passo que davam. Era como se a atmosfera assassina do caminho até o Cesaro fosse substituída instantaneamente por uma brisa acalentadora que lavava suas almas. Avistaram o casebre de Tiestes e ambos se consideraram vencedores. O jovem pediu ao garoto que esperasse a uns quinze passos da casa, e foi conferir se havia alguém lá dentro.
Ele levantou o punho para bater na porta, mas antes de sua mão encostar-se à madeira, a porta se abriu.
— O que deseja? — um Tiestes barbudo apareceu de dentro da casa.
— Oi. Não sei se você vai lembrar-se de mim... — disse o cavaleiro, ainda surpreso pela aparição repentina do homem.
— Claro que sim, você é o soldado que o Yozien encontrou quase morto na floresta, faz alguns anos. Pelo visto, seu filho cresceu bastante...
O cavaleiro chamou o menino, que se apresentou para Tiestes. — Eu sou Amadeu, futuro soldado de Kelicerata e campeão do Impacta! — um grande sorriso branco se estampou na barba de Tiestes, que os convidou para entrar.
Amadeu não ficou à vontade, achou o lugar muito sujo, mas lembrou da taberna do Juanart e percebeu que não estava tão sujo assim. Sentou num banco que havia na sala e ali permaneceu, enquanto os adultos conversavam. Curioso, ele olhou cada canto do local, a lareira, recentemente usada, um tapete que ele não conseguiu definir que animal ele havia sido, e... Sua curiosidade foi interrompida. Ele ouviu um barulho no quarto ao lado e resolveu investigar.
— Fico feliz que vocês estejam se dando bem, a vida no castelo deve ter muitas conveniências. Mas, acredito que não viajaram até aqui só para ver o que eu ando fazendo. O que você quer?
— Bem, eu sempre soube que o Amadeu tinha algo de especial, mas eu descobri algo que mais parece bruxaria que qualquer outra coisa... — o cavaleiro hesitou, e quando ia continuar a frase, foi interrompido pelo seu filho.
— Quem é esse chorão aqui? — Amadeu apareceu de dentro do quarto segurando um menino de pouco mais de um ano nos braços.
— Como você sabe que ele é chorão, se ele está dormindo? — perguntou Tiestes.
— Dá pra ver só de olhar a cara dele. — falou o menino com toda sinceridade. Tiestes soltou uma gargalhada, pegou o bebê e levou para o quarto.
— Gostei de você, moleque. Vamos deixar o chorão dormindo, por agora. Seu pai está querendo mostrar alguma coisa.
— Você tem fogo aí? — perguntou o cavaleiro.
Tiestes estranhou a pergunta, mas levou os dois para o fundo da casa, onde havia uma pequena oficina. Pegou algumas madeiras e folhas secas de um saco, montou uma pequena fogueira e acendeu. Estava curioso para saber o que ia acontecer.
O cavaleiro pegou uma tocha que estava pelo chão, acendeu na fogueira e pediu que Amadeu tirasse a camisa. Enquanto retirava, podiam-se ver cinco pedras verdes que brotavam de suas costas. O soldado aproximou a tocha até tocar o corpo do filho. Tiestes, por um segundo, ficou surpreso, mas já tinha visto coisa demais para se impressionar com aquilo. A pele do garoto continuava intacta. O pai esfregava o fogo no corpo inteiro, e não queimava o menino. Cabelos, braços, olhos, estava tudo perfeito.
— Entende o que eu quero dizer? — o cavaleiro olhou fixamente para Tiestes, procurando alguma resposta. Amadeu sorria de um jeito malandro, se exibindo para Tiestes, mostrando que era imune a qualquer queimadura, enquanto qualquer outra pessoa estaria gritando e chorando no seu lugar.
— Quer saber um segredo sobre os monstros desse lugar? Vamos ao desfiladeiro que eu vou te mostrar. — disse Tiestes para Amadeu, que saiu correndo na frente, gritando animado. Então Tiestes virou-se para o cavaleiro. — Você lembra o caminho para a casa do Yozien?
— Acho que sim. — respondeu o jovem.
— Fique lá com ele, vou falar com o garoto e de noite apareço para conversar com você. — dito isso, Tiestes saiu pela porta, em direção ao penhasco mais ao oeste do Cesaro.
Quando Tiestes chegou, o menino já estava sentado, com os pés balançando no vento forte que vinha do oceano e subia por toda parede do penhasco. Ele estava compenetrado na imensidão azul, de modo que Tiestes só via suas costas nuas e sua nuca, até ficar ao lado do garoto. Sentou também com as pernas penduradas e os dois ficaram olhando para o mar por um bom tempo antes da primeira palavra ser dita.
— Você sabe por que é imune a fogo?
— Um pouco... Quer dizer, acho que é porque sou um dos filhos do zodíaco, mas não tenho certeza. — os dois conversavam sem tirar os olhos do mar.
— Muito bem! Você já é bastante esperto por saber disso. Muitas pessoas de cidades menores falam dos caídos do céu como se fossem lendas, mas como você é de Kelicerata, acho que é mais fácil de acreditar. Fale-me tudo que sabe sobre os filhos do zodíaco e no final eu digo se está certo ou errado.
— Achei que você ia falar dos monstros que vivem no Cesaro... Bom, eu sei que algumas pessoas nascem com a benção de Sauza, e por isso são especiais. Essas pessoas são chamadas de filhos do zodíaco e alguns são bons, outros são bandidos. — Amadeu baixou a cabeça, envergonhado por não saber explicar mais que aquilo. Tiestes se comoveu com a inocência de Amadeu.
— Essa é uma visão bem popular, eu diria. Eu não sei se realmente é fruto de uma benção de Sauza, mas é verdade que algumas pessoas são diferentes. Você vê aqueles buracos enormes rodopiando na água? Foi uma dessas pessoas que fez isso.
Amadeu parou um pouco e notou que o oceano era formado de centenas de redemoinhos. Não estranhou da primeira vez, pois sempre que falavam do mar, diziam que era como um lago enorme, com turbilhões em todos os lados. Não parecia natural que toda aquela água rodopiando fosse obra de um homem. Ele começou a contar os redemoinhos.
— Nossa, tem mais de trinta, esse cara que fez deve ser um monstro! Ele mora em Kelicerata?
— Não, ele já morreu faz tempo. Mas em Kelicerata tem outros como ele. Veja, todas as pessoas que possuem algum poder deste tipo são marcadas com essas esmeraldas que você tem nas costas. Infelizmente não existe uma regra para o que ela pode fazer; cada um tem que descobrir sozinho. — Tiestes tirou a camisa que estava vestindo e revelou suas esmeraldas nas costas.
— Nossa! Você tem um monte! — o menino estava de olhos arregalados para as pedras. — Você também aguenta fogo?
— Não, não. Isso, até hoje, só vi em você. O que eu quero que entenda, é que de alguma forma, você tem uma razão especial para estar aqui no mundo. Por sorte ou azar, acabou sendo filho de um simples guarda real de Henpakihan, mas as grandes figuras de Maciaan, as pessoas realmente importantes, são caídos do céu.
— E o que você faz de especial? — Amadeu estava curioso com as possibilidades, agora sabia que não era o único. Queria ver mais coisas fantásticas.
— Eu posso ver qualquer coisa. — disse Tiestes sorrindo.
— Hã? — Amadeu não entendeu. Tiestes então pegou uma faca que levava na cintura e pediu para que o garoto riscasse um número na pedra que estavam sentados, sem que ele visse.
— Seis.
— Acertou na mosca. Como você adivinhou sem olhar? Seu rosto estava virado para o outro lado!
Tiestes levou a mão ao rosto tapando os olhos, e disse que ainda estava vendo o menino. Sem entender, Amadeu começou a olhar atentamente para Tiestes, reparando se havia alguma fresta entre seus dedos, mas não tinha nada. Quando desistiu de descobrir o segredo, percebeu uma abertura na garganta de Tiestes.
— O que é isso? — ele perguntou espantado. Aquilo era claramente um olho, mas era vermelho sangue, e sem íris. Contudo, o mais absurdo é que aquele olho não estava ali um minuto atrás, Amadeu tinha certeza disso.
— Esse é meu terceiro olho. Eu posso ver qualquer coisa em qualquer lugar do mundo com esses olhos vermelhos. Estou vendo você — e então se abriram mais dois olhos, um em cada lado da boca, rasgando a pele sob a barba negra — estou vendo seu pai na casa do Yozien e um homem pescando em Porocop.
Tiestes tirou a mão dos olhos, e os demais olhos foram se fechando, sem deixar qualquer cicatriz ou vestígio que haviam existido. Quando olhou para o menino, percebeu que ele estava um pouco assustado.
— Meu poder não é tão legal quanto o seu, mas não precisa fazer essa cara! Eu chamo de olho maldito.
— Mas você não é mau. — disse o menino.
— Eu posso ver qualquer lugar do mundo, mas eu não posso sair dos arredores do Cesaro. É uma maldição. Eu vejo tudo, mas não posso alcançar nada.
Os dois levantaram e começaram a caminhada de volta para o casebre. A esta altura a noite já começava a aparecer. Mais ao longe, descendo alguns barrancos e passando por pequenas plantações de frutas e cereais, existia uma casa, de mesmo porte que a de Tiestes, porém bem cuidada e mais aconchegante. O lugar era limpo, tinha janelas grandes que arejavam o interior e davam vista para um campo onde pastavam algumas dezenas de ovelhas. Na casa de Yozien, o cavaleiro da guarda real descobria a verdade sobre o menino.
— Então as histórias dos caídos do céu são verdadeiras... Isso quer dizer que existe realmente um dragão em Casul? Parece tão fantástico... Ano passado eu vi o Leão, mas ele não demonstrou ter nenhum poder extraordinário.
— Aquele que chamam de reencarnação de Sauza? Ele é um bom garoto. Quanto ao dragão, eu não vi com meus próprios olhos, mas ao que tudo indica, ele existe mesmo. — respondeu Yozien, acomodando-se numa cadeira de balanço.
— Com o poder de imunidade a fogo, Amadeu pode subir de patente muito mais rápido que um soldado comum. Se ele fosse mais velho, poderia concorrer a ministro de guerra de Kelicerata. Daqui a uns anos, com a nomeação do novo rei, muita gente vai tentar um lugar nos cargos de alta patente. Ele é determinado, pena que é muito novo.
— Não fique tão entusiasmado — Yozien inclinou-se para frente — se o garoto quiser entrar para o exército, ensine a ele do mesmo jeito que ensinaria a qualquer outro. Confiar demais no poder dele é burrice, afinal existem outros com habilidades semelhantes, mais fracos e mais fortes.
— Você disse que era guiado pela constelação de Áries. Posso perguntar qual seu poder? — o rapaz terminou de falar e tomou um longo gole d’água, desviando seu olhar de Yozien, após uma pergunta tão invasiva. O anfitrião esperou ele terminar o gole, e educadamente perguntou:
— Você quer mais água?
— Sim, por favor — respondeu por educação e não sede.
Yozien continuou sentado na cadeira de balanço, deixando uma atmosfera incômoda. O cavaleiro pensou se devia servir sozinho, sua água. Após hesitar, o rapaz resolveu servir seu próprio copo, então levantou. Parou então, assustado. A água estava saindo da jarra e vindo em sua direção, límpida e ondulante. O jovem sentou novamente e ergueu sua mão segurando o copo. A água continuou sua dança pelo ar e aterrissou no copo, numa queda lenta. A última gota desceu rapidamente, criando ondas na superfície.
— Eu sou um bruxo da água. Mas não espere que eu faça redemoinhos em lagos ou no mar. Não tenho toda essa habilidade.
Fascinado, o cavaleiro se perdeu em seus pensamentos. De repente, todas as histórias de gigantes, centauros e homens-peixe que ouvia quando criança, haviam se tornado verdade. Enquanto tentava recordar cada história que tinha ouvido na vida sobre seres extraordinários, Tiestes entrou pela porta, pisando firme.
— Que cara de bobo é essa? — o cavaleiro voltou para a realidade, e olhou zangado, e ofendido, para Tiestes.
— Eu contei a ele o que alguns filhos do zodíaco podem fazer e ele ficou um pouco animado. — disse Yozien, rindo enquanto balançava.
— Bom, Amadeu já está dormindo, demorei de chegar porque estava alimentando o chorão. Já que você descobriu tudo que precisava saber, eu recomendo que volte para casa, logo amanhã. Essas terras são cheias de surpresas desagradáveis, então quanto menos tempo ficar, melhor para você e o menino.
— Nós vamos amanhã cedo. E antes que me esqueça, eu tenho um recado para você, Tiestes — o cavaleiro levantou, numa ação de polidez e respeito, mantendo-se rígido e concentrado — uma mulher de um vilarejo próximo pediu que te informasse que ela teve um filho, e que você é o pai.
Tiestes engoliu seco. Tentou raciocinar, mas os pensamentos fugiam de sua mente assim que ele os pensava. Aos poucos ele se lembrou da mulher, do momento, das chances. Olhou para Yozien, que não teve reação alguma.
— Em primeiro lugar, eu não sou seu superior, pode descansar — o jovem tomou uma postura mais confortável — e em segundo, explique-se melhor. De onde é esta mulher, e o que ela disse, palavra por palavra.
— Eu a encontrei por acaso. Quando estava num vilarejo de Porocop, ela me abordou para saber se eu viria ao Cesaro. Então ela pediu que informasse a você sobre a criança. É um menino chamado Charles, forte e saudável. Não tem nem um ano ainda.
— Mas quanta informação, hein? Nunca vou achar o menino assim! — subitamente Tiestes demonstrava raiva, o que deixou o cavaleiro apreensivo. Tinha na cabeça a imagem de Tiestes sempre quieto, um homem de temperamento tranquilo. Sem jeito, tentou animar Tiestes com palavras de incentivo:
— Ora, não seja pessimista, Porocop deve ter no máximo uns quinze vilarejos. Uns seis meses pelos campos e você com certeza acha o lugar certo. Se tiver sorte, a encontra logo no primeiro. — o jovem tentava animar o ambiente, mas nenhum dos filhos do zodíaco demonstrava reação positiva. Yozien levantou da cadeira e aproximou-se do jovem, colocando a mão em seu ombro.
— Não se preocupe, ele vai encontrar antes do que você imagina. Vou lhe mostrar um lugar para dormir. Amanhã cedo encontramos o Amadeu, eu estou curioso para conhecê-lo.
Tiestes sentou-se a mesa. A vida dele era o Cesaro. Agora ele era pai de um garoto fora deste mundo, não podia obrigar a mulher — Fátima era seu nome, lembrou-se — a viver ali. Enquanto pensava, mais obstáculos apareciam para que Tiestes pudesse criar seu filho do jeito que queria. Alguns minutos depois, Yozien chegou à sala interrompendo seus pensamentos.
— Não se preocupe. Ache o garoto que eu o visitarei sempre, não vou deixar nada de ruim acontecer com ele.
Tiestes olhou para seu amigo. Yozien sempre foi mais alto, mas Tiestes sentiu algo diferente desta vez, um sentimento real de pequenez. Sentiu-se um verme levantando a cabeça para olhar um homem. Tiestes não gostou da sensação. Era mais que um favor pedido ao amigo, era uma relação de dependência. Ele precisava do filho de Áries, para ter algum contato com seu próprio filho. Foi embora, batendo a porta sem dizer uma palavra.
III
Amadeu nunca esteve tão feliz. Ele sabia do que era capaz, tinha confiança, poderia atingir o céu se empenhasse esforço suficiente. Parou a alguns passos do desfiladeiro, o mesmo que sentou com Tiestes algum tempo atrás. Amadeu era um garoto novo, mas tinha muitas memórias, todas retornando na sua cabeça naquele instante. Era um atropelo de saudades, mas não hesitou, ele sabia que conquistaria muito mais. Encheu o peito e deu alguns passos para trás, tomando distância. Correu o máximo que pôde. Sem saber explicar, ele sabia que voaria. Voaria por cima do mar, dos redemoinhos, dos homens-peixe.
Assim que pulou, ele sentiu a brisa do mar se transformando em mãos e braços, segurando ele. A natureza era muito mais forte, e tinha agarrado Amadeu de tal forma que ele não podia se soltar, puxando ele para baixo. Ele caiu.
Virou de costas para que a queda não doesse tanto, e viu o céu azul ficar escuro. Uma escuridão maior que a de seus olhos fechados. Mas como ele poderia saber disso? Deu-se conta então que, de fato, estava de olhos fechados e os abriu. Continuou escuro, mas estava salvo. Estava na casa de Tiestes, ofegante e assustado, nunca tivera um sonho tão real.
Um brilho verde familiar chamou a atenção do garoto. Vinha da sala, ele já fazia ideia do que poderia ser, mas precisava conferir. Bem devagar, esgueirou-se até a porta e inclinou a cabeça para ver o que estava iluminando o lugar. “É o perigo”, ele pensou. Um dos monstros do Cesaro. Tiestes estava debruçado na janela, sem roupas. As pedras das costas irradiavam uma luz virente de esperança, mas todo o resto do corpo dele estava coberto de vermelho sangue. Centenas de pequenos olhos o cobriam da cabeça aos pés. Quando um se fechava, outros dois se abriam. Eram olhos de lobos famintos, estavam à procura de algo e matariam quem se pusesse como obstáculo. O medo havia paralisado Amadeu, até que um olho se abriu e achou o garoto. O menino gritou, mas não havia voz. Estava hipnotizado pelo olho maldito que não piscava e se mantinha fixo nele, esperando uma chance para atacar.
O menino não suportou o medo e correu para debaixo das cobertas. Tirou as vistas da porta apenas quando a luz verde desapareceu e mesmo assim, não ficou tranquilo. Sabia que onde quer que Tiestes fosse, aquele olho ainda poderia vê-lo. Era impossível fugir, mas ele tentou se esconder no mundo dos sonhos, único lugar onde podia encontrar sua mãe e se sentir protegido pelo amor maternal.
— Acorda, Amadeu! Vem comer, rapaz! — chamava o cavaleiro. Já era manhã, a luz branca do dia clareava as paredes do quarto, onde Amadeu tinha dormido. Os dois saíram e ao lado da casa estavam Tiestes e Yozien, sentados numa mesa grande, com frutas, pães e ovos fritos. O bebê pelado em cima da mesa chorava alto.
Os quatro comeram em silêncio. Quando terminaram, Tiestes permaneceu sentado, Amadeu foi vestir-se para ir embora, o cavaleiro estocou comida e água e Yozien perguntou:
— Você teve muita sorte, podendo sair durante meses do seu trabalho, não é? Sendo parte da guarda real, e tudo.
— Bem, não estamos em guerra, então um soldado a menos não faz tanta falta — respondeu, desconfiado. Os dois olhavam para o cavaleiro de modo a constrangê-lo.
— E é uma grande coincidência o soldado ausente ser justamente você, pai do Amadeu. — insinuou Yozien.
— Olha, eu não sei qual o motivo dessa atitude de vocês... — Tiestes levantou e o jovem prontamente calou a boca.
— Meu rapaz, não precisa mentir. Nós sabemos que você foi chamado por Rupert Grankill e os governantes de Kelicerata no ano passado. Sabemos também que o poder do garoto não foi a única razão de você vir até aqui. Abre o bico.
— Não sei o que vocês dois estão atrás, mas eu não sei segredo nenhum. Realmente, quando o Leão foi até o Castelo Henpakihan, eu fui chamado pelos conselheiros. Eles me pediram para vir aqui novamente, mas eu recusei, por causa do Amadeu. Depois eu descobri sobre ele e o fogo, e então eu tinha meus motivos para vir. Pedi permissão aos conselheiros, fui atendido e agora estou aqui.
— Tem certeza que não foi incumbido de nenhuma missão? — insistiu Yozien.
— Eu juro! A única coisa que me disseram foi para abrir bem os olhos, ver se encontrava algum monstro diferente. E pediram para que eu contasse quantos filhos do zodíaco moravam aqui. Mas só tem vocês dois, como era sete anos atrás, quando eu vim até aqui... — os dois acreditaram na palavra do cavaleiro. Tiestes aproximou-se do jovem e disse:
— Nós acreditamos em você. Rezaremos para que Sauza olhe por ti na volta ao castelo, mas prometa que vai passar na vila onde está a mulher que te contou sobre meu filho.
— Eu prometo. — disse o cavaleiro, e Amadeu saiu da casa pronto para viajar.
Despediram-se, e os dois visitantes deixaram para trás os caídos do céu e seu bebê, sozinhos naquelas terras isoladas do resto do mundo.
— Gostei do moleque. Acho que vou chamar o chorão de Amadeu, também, o que acha?
IV
Beleza e poder
Yozien estava andando por um vilarejo, mãos dadas com uma criança. Era verão e a rua estava cheia, crianças correndo pela praça, mulheres se insinuando de suas varandas, comerciantes incomodando incessantemente quem olhasse para sua mercadoria, mesmo quem o fizesse apenas por curiosidade.
O menino chamava o velho desde a entrada da cidade, querendo parar e mostrar tudo que atraía sua atenção. A vontade de Yozien era de dar algum dinheiro e largar ele para se divertir, mas não poderia arriscar perdê-lo. Um menino curioso num lugar desconhecido é sempre prelúdio para problemas, e aquela multidão o engoliria num piscar de olhos.
— Chegamos, Amato. Vamos entrar. — disse ele entrando numa porta quase completamente obstruída com cestos feitos de vime. O menino não se preocupou em acompanhar Yozien. Foi direto para a janela e continuou a observar as pessoas na rua. Não demorou e Yozien apareceu com uma mulher.
— Oi, você é o Amato? Você é muito lindo! — disse a mulher, sorridente. Yozien tocou o ombro dela e andou até o fim da loja, sentando se num banco que havia ali. — Vem comigo, vou te levar num lugar. Vai ser melhor que ficar aqui, sem fazer nada, esperando a nossa conversa terminar.
Ela levou Amato para um lugar ali perto, cheio de crianças, todas sentadas. Era um teatro de bonecos. A mulher levou o menino para sentar num banco junto com outra criança, da mesma idade de Amato.
— Quando acabar, leve ele para a loja, Charles. — ela disse e foi embora.
Amato não sabia como havia começado a história, mas prestou atenção ao que estava acontecendo mesmo assim. Vários homens lutavam entre si, e uma mulher olhava do alto o que acontecia, até que chegou um boneco mais alto.
— Parem de brigar! Todos vocês! Pescador, quando foi a ultima vez que você trouxe peixe para casa? Fazendeiro, suas plantações estão mortas, nada faz você para cuidar delas! Comerciante, sua loja é saqueada e não mexe uma palha para impedir!
Houve um silêncio no teatro e na plateia.
— Esta mulher é a causa de tudo! Ela vem e acaba com suas vidas, seduz e desaparece! Vamos nos livrar dela!
— Não, Afrodite é minha! — bradou um boneco. — Vou ficar com Afrodite só para mim! — dizia outro. A mulher zombava da multidão de bonecos e das crianças, dando risadas histéricas.
— Chega! Vou me livrar dela, sozinho, se for preciso! — a cortina fechou e abriu mostrando o boneco mais alto remando e a mulher amarrada no barco.
— Obrigado por me salvar daqueles homens feios — dizia a mulher, claramente caçoando — vamos ficar juntos, nós dois!
— Não vou cair na sua lábia, malfeitora. Eu resisto à sua tentação! Vou te levar até a ilha do centro. Lá não vive ninguém, e não poderá fazer das suas.
A mulher esperneava e chorava, dizendo que não queria ficar sozinha.
— Eu prefiro morrer afogada! — e ela pulou do barco. De trás do teatro jogaram água, acertando as crianças da primeira fila e tirando gargalhadas de todos. A cortina fechou e abriu mostrando os moradores, um tempo depois.
— Ei, Fazendeiro! Não quer comprar nada? Tenho muitas mercadorias.
— Obrigado, Comerciante! Minhas plantações nunca estiveram melhores! Vou trazer uns tomates para sua família.
— Socorro! — o Pescador chegava rastejando. — Fui atacado, me ajudem!
— O que aconteceu, Pescador?
— Monstros da água! Eles destruíram tudo, todos os pescadores foram pegos! Temos que fugir! — o Pescador caiu, cansado.
— E agora, Fazendeiro, o que vamos fazer?
— Eu não sei, Comercian... Oh, não! — entraram em cena bonecos maiores parecidos com os homens, porém com a pele pintada de azul, rosnando para a plateia. Os bonecos começaram a fugir dos monstros, dando voltas. — E agora, pessoal? Quem vai nos ajudar? — perguntou um deles para a plateia.
— Sauza! Sauza! Sauza! — as crianças gritavam alto. Então o boneco mais alto apareceu novamente, levando as crianças à loucura. Ele expulsou os monstros do palco e vários homens apareceram para comemorar, e então todos gritaram juntos, bonecos e crianças — Sauza! Sauza! Sauza!
A cortina fechou e abriu novamente, mostrando Sauza com mais três do seu lado.
— Para cuidar das pessoas, vou deixar meu primeiro filho como o rei das terras do oeste, meu segundo filho como rei das terras do leste e meu terceiro filho vai para o oceano, cuidar para que nenhum homem-peixe tente aterrorizar a vida dos homens! Vou construir um castelo na ilha do centro e uma ponte ligando as terras do leste e oeste à ilha. Ninguém vai precisar se arriscar navegando! Agora vamos viver felizes! — a cortina fechou e uma banda começou a tocar músicas, demonstrando que a peça havia terminado. Os artistas por trás dos bonecos saíram de trás do teatro entregando flores e doces às crianças que levantavam, indo embora. Charles juntou-se ao grupo e Amato o seguiu sem questionar.
Ao chegarem à loja, logo se separaram. Amato preferiu se prostrar na janela e ver a rua, enquanto Charles partiu para os fundos, chamando pela mãe. Yozien já estava de saída. Despediu-se da família, fez Amato abraçar a mulher e agradecer a hospitalidade, afinal de contas ela foi carinhosa com ele até o último minuto, e os dois foram embora.
— O que vocês ficaram fazendo?
— Era um teatro de fantoches. Contou a história de Afrodite, mas estava faltando algumas coisas... — respondeu Amato desinteressado.
— Que tipo de coisa?
— Não mostrou que os homens-peixe eram filhos de Afrodite, e nem que Sauza construiu o Cesaro para ser a casa dele.
— Isso são apenas detalhes, Amato. Os filhos de Sauza, por exemplo, não tinham mãe. As pessoas não entendem isso, então é melhor nem dizer, para não causar confusão. Essa, inclusive, é a razão de tanta dúvida sobre o que são realmente os caídos do céu. É muito mais fácil aceitar que uma criança tem pai e mãe do que imaginar alguém ser filho de uma constelação. E o Charles, o que achou dele?
— Normal. Ele é muito quieto. Igual a meu pai.
E eles viajaram de volta para o Cesaro.
Capítulo 2: Quando anoitece
I
Era fim de tarde quando Bartolomeu, um roliço vendedor de peles, viajava para Kelicerata. Apesar dos relatos sobre ladrões e assassinos escondidos na floresta, ele estava tranquilo. Tinha feito uma viagem de vinte dias e não foi surpreendido por nada do tipo.
Resolveu parar a carroça e passar a noite numa área aberta que encontrou um pouco adiante da estrada. Amarrou seu cavalo e começou a montar a fogueira. Os pássaros que chilreavam nas árvores dos arredores pararam seu canto e observaram o intruso, com uma curiosidade anormal. Quando terminou a fogueira, Bartolomeu percebeu que estava quieto demais. Começou a olhar apreensivo para as árvores, tentando achar alguma coisa escondida entre os troncos. Um corvo grasnou e o barulho estridente serviu de aviso para Bartolomeu, que levantou num salto.
— Parado aí, camarada! — a ponta de uma lança tocou a nuca de Bartolomeu, que levantou os braços sem pressa.
— Eu não tenho dinheiro, sou um comerciante. Tudo que eu tenho aqui, ainda preciso vender, para ganhar alguma grana.
— Relaxa, bode velho. Não quero dinheiro nem sua mercadoria. Mas preciso de um favor seu. Tenho que chegar a Kelicerata antes do amanhecer, então vou emprestar esse seu cavalo por esta noite.
— Não, por favor... — Bartolomeu sentiu a pontada na nuca, e preferiu ficar calado, melhor perder um cavalo que a cabeça. Num movimento veloz, o ladrão retirou a ameaça da lança e deu um pontapé nas costas de Bartolomeu, que caiu de joelhos mais adiante.
As aves começaram a gralhar, trombeteando o perigo. Saltaram de seus galhos em direção ao bandido, que já desamarrava o cavalo, de costas para o assaltado. Bartolomeu aproveitou o momento de distração e correu para atacar, mas parou com medo, logo que viu o ataque dos pássaros. A revoada desceu de uma vez, formando uma nuvem escura e cercando o ladrão. Bicos e asas atacavam o homem que se debatia. O barulho agudo das aves era um som infernal que emanava do céu, impondo a justiça. Nenhum homem seria roubado na vista daqueles animais.
Mas o bandido não era frágil, pulou em cima do cavalo ignorando a dor. O animal, por sua vez, não era tão destemido. Espantou-se com o cerco das aves e disparou com rapidez. O ladrão riu. Mais alguns metros e entraria novamente na floresta, lá os pássaros não conseguiriam voar livremente, e seria mais fácil escapar. Mas acima da floresta, da luz poente no horizonte, surgiu uma aberração. Um corvo-imperador emergiu do verde, tapando o Sol com suas asas gigantescas. Os imperadores eram aves raríssimas; viviam na terra dos gigantes, ocasionalmente se perdendo do bando e sendo avistadas por viajantes. O ladrão ouviu o som da morte. Era um farfalhar sombrio. Tentou guiar o cavalo para os lados, mas ele não virava. Então percebeu que o animal não correu de medo, mas sim em ajuda às aves. Estava levando o malfeitor da floresta para encontrar seu fim nas garras do gigante negro.
Não era hora de desistir. O homem segurou sua lança e procurou mirar no corvo-imperador, mas a velocidade do animal era sem igual. Desceu como uma flecha e derrubou o ladrão de cima do cavalo. Ele rolou várias vezes antes de parar, ensanguentado, no chão. O bando de antes tinha voltado para seus galhos e apenas observava a execução pública. O gigantesco animal fazia a volta no ar para dar o golpe de misericórdia.
Bartolomeu correu para debaixo da carroça, prevendo o pior. O bandido, mesmo ferido, ergueu sua lança e mirou. Tinha visto a rapidez do bicho, se acertasse um golpe na cabeça, a morte era garantida. Quando o animal começou a descer, não tinha erro. Não havia luz para lhe ofuscar a visão, ele puxou o braço e arremessou a lança com toda sua força. Não acertou no meio dos olhos, onde tinha mirado, mas acertou mais embaixo. A lança penetrou o peito da ave, que levantou voo, desesperada. Subiu muitos metros, como procurando seu lugar nas estrelas, mas elas ainda não estavam visíveis. Então caiu, lenta e pesada, à frente do bandido. Vitória. Com o céu laranja, o ladrão caminhou em direção à sua sombra. Ela se esticava à sua frente e cobria chão, tocando com a cabeça o animal morto. A cada passo dado o pássaro se debatia menos, até perecer de vez.
Ele chegou perto, e com muito esforço virou o animal e retirou sua lança.
— Ei, vendedor! Gostou disso? — exibiu-se, e caiu de joelhos.
Bartolomeu saiu do seu esconderijo e viu seu cavalo lentamente se aproximar do ladrão, oferecendo montaria. O ladrão subiu desajeitado e desmaiou torcendo que o animal chegasse a Kelicerata. O bando de aves desceu das árvores e fez um círculo em volta do corvo-imperador, e num silêncio fúnebre, cada uma prestou seu respeito até o cair da noite.
II
Quando o ladrão acordou, a Lua cheia cintilava no céu. O cavalo estava deitado do seu lado, dormindo. Ainda estava no meio da floresta, porém tinha sido levado para um pequeno lago, com uma ilhota no meio. A ilha brilhava, reluzindo nas rochas a limpidez da Lua.
— Finalmente acordou? — disse uma voz. Um homem saiu do meio das pedras da ilha. Chegou até a borda e encarou o ladrão. — Qual seu nome, jovem?
— Amato. — disse, sem desconfiar do estranho. Havia algo nele que inspirava confiança, não era como os homens da cidade, corrompido por desejos e dinheiro.
— Pois bem, Amato. O que merece um homem que invade sua casa, furta seus convidados e mata o seu amigo? — o homem disse isso e pisou na beira da água. Passou a deslizar sobre ela, parado. Como se a água houvesse se transformado em uma esteira. Amato chegou à beira do lago e colocou a mão dentro d’água. Era límpida. E líquida. Que bruxaria era aquela?
O homem se aproximava. Estava parado e imponente, parecia um aristocrata, com uma mão na cintura, coberto de prata, nobre demais para afundar na água suja de um lago. Quando chegou mais perto, Amato percebeu que ele não usava roupas, apenas um manto cinza cobrindo-o do pescoço aos pés, incrustado de joias e brilhantes. Na beira do lago, a bruxaria se revelou. Um crocodilo saiu da água e o homem desceu de suas costas, sem uma gota de água nos pés descalços. O homem era forte e tinha um olhar penetrante sob espessas sobrancelhas negras.
— Em minha opinião, um homem deste tipo merece morrer agonizando. Muito prazer, Amato. Eu sou o Rei de Kelicerata. Scorpio. — e estendeu a mão em cumprimento.
— Você é o rei? — perguntou incrédulo.
Scorpio desamarrou o nó segurando o manto e virou de costas, com ele caindo e revelando o corpo do rei. Quinze esmeraldas revelaram sua luz na noite escura. Amato viu o brilho verde e levou a mão até as costas procurando a lança. Não estava lá. Olhou para os lados e a avistou ao lado do cavalo.
— Muito mais fácil de acreditar, não? — ele pegou o manto e se cobriu. — Mas não se preocupe, Amato. Não vou matar você, por mais que mereça. Sabe por quê? Porque você é divino. Nunca um homem sozinho conseguiu matar um corvo-imperador, simplesmente porque é impossível. Mas você o fez. Quer se explicar?
O homem falava continuamente, quase em monólogo, um hábito típico da realeza. Amato desviou sua mente da lança e respondeu.
— Eu não tenho explicação, apenas fiz o que pude para sobreviver. E não sou ladrão. Precisava do cavalo para chegar até a cidade o mais rápido possível, depois devolveria. De algum jeito.
— Bom, agora você está mais longe ainda de Kelicerata. Era algum assunto urgente?
— Uma pessoa vai sair da cidade amanhã numa caravana. Eu queria encontrá-la antes da partida.
— Ora, mas isso eu posso resolver muito rapidamente. Mas eu não consigo tirar da cabeça o que você fez. Uma força dessa magnitude não pode ficar se escondendo no meio da floresta. Já considerou servir ao exército? Com sua habilidade em combate, poderia facilmente chegar a um posto alto. Quem sabe, até ministro de exército. Você sabe dos desafios do Impacta, não sabe?
— O que quer dizer com resolver rapidamente?
— Responda minha pergunta, rapaz! — o rei exalava altivez.
— Sinto muito, Sua Majestade. Por enquanto eu tenho tarefas que exigem toda minha atenção, não posso me dedicar a outros propósitos.
— E mesmo assim, você se arrisca por causa de uma mulher do campo?
Amato voltou a olhar a lança, lamentando não tê-la em suas mãos.
— Acertei, não é? Olha só, eu posso impedir ela de viajar. Não se preocupe com caravana alguma, seja onde for a moradia dela, eu a mando em segurança. Numa escolta real, o que acha? A única coisa que peço é que se acalme e abra sua mente. Vamos conversar, eu realmente acho você bastante interessante. Olhe para mim. Sou um rei que vive no meio de animais selvagens. E você, qual a sua história?
— Pode mesmo impedir ela de ir? Já não tarda a amanhecer.
Uma coruja pousou no ombro do rei trazendo uma sacola. Dela, o rei retirou um punhado de papéis e tinta. Arrancou uma pena da coruja e começou a escrever.
— Qual o nome dela?
— Regina. Ela vai numa caravana para os povoados no norte. — o rei anotou o que Amato disse e prendeu no pé da coruja, que voou para o alto.
— Feito. Amanhã vamos até o castelo para você cuidar desses ferimentos, por enquanto venha comigo. — disse o rei pulando em cima do crocodilo. Amato seguiu, e foram levados até a ilha no centro do lago. Era um lugar de magia, as rochas pareciam esculpidas, formando um santuário.
— Isso foi construído por Sauza, sabe? Junto com a Ponte dos Mundos e o Castelo de Libra, esta é a maior prova da existência de Sauza. E claro, tem o Cesaro, que ele construiu para cuidar das estrelas. Conhece, não é?
— Já ouvi falar — disse Amato — mas ele construiu para ser a casa dele, não?
— Ora, tem muito mais coisa por trás disso, jovem. Depois que Sauza construiu a ponte e o castelo para evitar o contato direto dos homens com o mar, ele fez um santuário no oeste e este que estamos agora. Ambos para estabelecer um vínculo verdadeiro entre o homem e as estrelas que guiam seu destino. Depois disto, ele foi para o norte e lá construiu o Cesaro, onde estabeleceu o vínculo dele com as estrelas. Ele doou seu poder e grandiosidade aos céus, e em compensação, os céus mandariam pessoas extraordinárias para proteger a humanidade que Sauza tanto estimava. É por isso que, a cada geração, surgem os chamados Filhos do Zodíaco. Quando os doze se unem, eles se igualam em poder a Sauza. Ou assim se pensava, até que apareceu Rupert Grankill.
— Quem é ele? — Amato estava aproveitando a situação. Os caídos do céu que ele conhecia nunca tinham te contado essas coisas. E vindo da boca daquele homem diferente, daquele rei... Era tudo verdadeiro, Amato tinha certeza.
— Você deve ter ouvido falar dele, mas com outra alcunha. Rupert Grankill é o Leão. O Rei de Casul. Dizem que as capacidades dele, sozinhas, são suficientes para igualá-lo a Sauza. Alguns até o referenciam como a reencarnação de Sauza. Mas chega disto. E você, qual a sua história?
— Não tem nada de especial, vivi com meu pai no campo, uma vida simples. Quando completei quinze anos saí de casa para viver sozinho, viajando. Passei os últimos cinco anos sobrevivendo e acumulando conhecimentos, para um dia voltar para casa e ver meu pai orgulhoso dos meus feitos.
— E mesmo agora, você não é sincero. Diga-me, que tarefas são essas que exigem toda sua atenção, que vão fazer seu pai orgulhoso? Seria você o orgulhoso? A ponto de não permitir que eu te ajude?
— Não leve a mal, Sua Majestade, mas nesse caso, não cabe a você me ajudar.
— Perdoe minha insistência... — o rei pareceu desistir de sua distinta curiosidade — Também é culpa dele, sabia? — Amato percebeu um tom tímido na voz do rei pela primeira vez. — Culpa daquele bastardo do Grankill. Eu sou muito grato pela minha posição, e quero o melhor para as pessoas do leste. Mas a impotência me corrói por dentro. Sou um rei incapaz de defender seu povo.
Mais uma vez, a conversa mudava de rumo. Mas Amato já estava interessado demais para perceber isto.
— Não entendo. Proteger de quê? As montanhas do leste servem como muralha intransponível e os rebeldes do sul nunca foram ameaça para este reino — Amato e Scorpio já conversavam com uma intimidade repentina, como se aquela conversa estivesse predestinada a ocorrer.
— E você não está esquecendo o oeste?
— Mas o oeste é o Reino de Casul, existe algum perigo de guerra? Nunca ouvi falar disto.
— Você esquece que no meio existe o oceano. O perigo de guerra com Casul, bom, não deveria haver. Mas há dez anos eu tive um pressentimento de que haveria guerra algum dia. Como rei, fui convidado para o casamento de Grankill. Meus conselheiros e eu já sabíamos que a esposa seria uma dos filhos do zodíaco, até porque Dorothea viveu no Palácio de Casul desde que nasceu. Ela é filha da constelação de Virgem.
— Eu não sabia que existiam mulheres nos filhos do zodíaco. — Amato ficou surpreso com o quanto ele desconhecia sobre os caídos do céu.
— Quando recebi o convite, havia um retrato pintado do casal. E realmente era o que nós esperávamos: Dorothea na imagem. Mas no dia do casamento houve uma surpresa, a noiva era a irmã gêmea dela, Água-Marinha.
— E isso muda tanto a situação? — Amato perguntou e Scorpio soltou uma gargalhada. Puderam-se ouvir grasnos na selva, como uma ressonância da risada do rei com os animais.
— Ah, jovem... Água-Marinha é nada menos que a Princesa do Mar. Filha de Nic-a-Noy, Imperador do Oceano e filho da constelação de peixes. Entende as consequências políticas disso? Por bem ou mal, os dois reinos se uniram e possuem força para esmagar Kelicerata. Não existe motivo para guerra, mas se um dia existir, nossa derrota é iminente. Por isso, eu insisto em trazer você para o meu lado. Todo esforço é bem vindo, principalmente de alguém capaz como você.
Amato entendeu a posição de Scorpio, mas não estava pronto para aquela união. Seus interesses eram prioridade, porém naquele lugar, ele sentiu que seu destino estava atado àquele rei fabuloso. Scorpio o convidou para dormir afirmando que partiriam para a cidade no dia seguinte. Amato olhou ao redor e achou melhor aceitar o convite a ter de fugir nadando pelo lago habitado por crocodilos.
III
De manhã, Scorpio acordou Amato e um gavião-imperador pousou na ilha. Os dois subiram nele e voaram até o Castelo Henpakihan. Enquanto Amato se prendia com força às penas do bicho, com os olhos incomodados pelo vento forte, Scorpio por vezes ficava de pé e apreciava a paisagem, da qual se sentia dono. Amato conhecia dois caídos do céu que não passavam de velhos acomodados, mas vendo o Escorpião, notou a grandiosidade que envolvia aquela majestosa figura, governante dos homens e da natureza. Algum dos outros nove seria tão formidável quanto ele?
O gavião-imperador desceu no castelo obedecendo às ordens de Scorpio, como um cão carente. Regina tinha passado a noite na corte real e recebeu Amato com um sorriso enorme. Uma noite de princesa para uma campesina. Várias morriam sem experimentar os sabores e os lençóis que ela apreciou.
— Quando você foi embora, eu não tinha certeza nem que ia te ver novamente. Esse foi o melhor presente que eu já recebi! — disse Regina antes de ser levantada no colo e beijar Amato.
— Então essa é a razão de tanta pressa? — disse Scorpio. Um súdito foi até ele, sussurrar no ouvido. Lembrou que o rei deveria vestir-se adequadamente. Caso o manto caísse seria impossível evitar constrangimentos pelo castelo. Scorpio ignorou e cumprimentou Regina. — Mas que bela mulher Amato conquistou. Fique à vontade para levar o vestido. E passe quantos dias quiser aqui no castelo.
— Sua Majestade, agradeço o convite, mas ela não era a única razão da minha pressa. Precisamos chegar ao nosso vilarejo junto com a caravana que partiu esta manhã. Se puder conceder o transporte que havia prometido, tenho certeza que alcançamos a caravana amanhã à noite, não mais que isto — respondeu Amato.
Scorpio atendeu e despediu-se de Amato e da recém-apresentada Regina. Amato passou por alguns aposentos onde foi medicado e recebeu uma boa notícia sobre a viagem. Ele e Regina receberam lugar numa carruagem com destino ao vilarejo e não à caravana. Ela ficou encantada e Amato ficou lisonjeado com a oferta, afinal era uma viagem bem mais confortável que ir junto com a caravana, principalmente para ele que passou os últimos tempos dormindo no chão de florestas.
— Ele é um rei tão jovem, não é? Quantos anos ele tem, uns trinta e três? — perguntou Regina entrando na carruagem.
— Não sei, não perguntei. Mas é um solitário rei jovem. O homem vive na floresta por opção... — e ao dizer estas palavras, eles saíram da maior cidade do leste.
Muitos dias se passaram até Amato e Regina chegarem ao vilarejo. A surpresa de todos foi instantânea. Nunca uma carruagem real havia parado ali, todos saíam de suas casas para ver quem estava dentro. Quando Regina desceu, as pessoas ficaram ainda mais surpresas e confusas. Amato agradeceu à escolta e desceu junto. Enquanto ela era cercada pelos amigos, Amato fez um sinal que encontraria com ela depois, e saiu. Foi direto para uma pequena loja de artesanatos.
— Bom dia! Fátima? — uma senhora magra surgiu do fundo da loja para atender o chamado.
— Amato, quanto tempo! O que te traz aqui? — disse a mulher recebendo-o com um abraço.
— Eu esperava encontrar Yozien aqui na cidade. Ele sempre vem quando tem caravana, para comprar e vender algumas coisas, sabe...
— Mas você chegou cedo demais, a caravana só vem daqui a uns três dias, e inclusive Regina vai chegar com ela. Você está muito bonito, mas essas roupas... Está precisando de novas.
— Obrigado, Fátima, mas estou bem assim, não precisa se preocupar. E Regina está na cidade, veio comigo. Nós viemos numa carruagem real. Depois vá visitá-la, ela ganhou um belo vestido de presente do rei.
— Carruagem real? Presente do rei? Explica isso direito, Amato! — E então ele explicou os pormenores, dando risada do espavento de Fátima com a história.
— E o Charles, onde está?
— Ah, meu filho, ele foi morar em Kelicerata, já tem alguns anos. Tentar algum futuro lá.
— Meu pai sabe disso?
— Sim, Yozien contou a ele logo que Charles foi embora. Ele deve me odiar, não é?
— Não diga isso. Mas você bem que poderia dizer que o pai dele está vivo. Embora eu ache que nem isso o tira de lá, ainda mais para viajar até o Cesaro. Aquela cidade é um veneno que acorrenta a alma dos homens.
— Não, isso eu não quero. O Cesaro, aquela terra é cheia de demônios. Se quiser conhecer o filho, Tiestes vai ter que sair de lá.
— Eu morei lá e nunca vi centauros e nem gigantes, acho que não passam de histórias inventadas. E olha o Yozien, tão magro, e vive viajando com ovelhas, não acha que se houvessem monstros, ele já teria morrido?
— É melhor prevenir, garoto. — disse Fátima, encerrando a conversa.
— Bom, eu vou ficar na cidade até a caravana chegar, se precisar de algo, é só pedir! — falou Amato. Despediu-se e saiu da loja.
Nos dias seguintes, Amato aproveitou o tempo para pensar sobre o que tinha aprendido com Scorpio. Muitas coisas que ele não entendia ainda, mas seu pai teria as repostas para suas perguntas.
IV
No dia em que a caravana chegou, Amato foi até a casa de Regina e se despediu dela prometendo que um dia ia buscá-la para que pudessem casar. Foi até a saída da cidade e deitou no chão olhando para a direção que sabia que, cedo ou tarde, Yozien apareceria. Algumas horas depois, ele viu ao longe uma carroça com vegetais, lã e algumas ovelhas, com um homem sentado em cima. A carroça não tinha cavalo, era a prova que ali vinha Yozien. Ele enchia um latão de lixo com água e colocava dentro da carroça, bem na frente. Ele empurrava a água, a água empurrava o latão e o latão empurrava a carroça.
— Achou que eu tinha morrido, velho bruxo? — perguntou Amato quando Yozien se aproximou. Estava bem velho, mas não parecia fraco. O trabalho braçal que fazia ajudou a manter a coluna ereta e os braços fortes.
— E tem como? Seu pai não tira o olho de você. Não quer vir comigo?
— Não, vou esperar você na volta. Vá fazer suas trocas e volte. Tenho muito a te contar.
Passado algumas horas, Yozien voltou e encontrou Amato treinando com sua lança. Parou a carroça ao lado dele e esperou que subisse.
— Você ficou forte, garoto. Quando saiu de lá, mal sabia o que fazer com esta lança.
— Imagina que matei um corvo-imperador com ela? Vocês acertaram quando disseram para eu levar comigo. Salvou minha vida, do jeitinho que vocês falaram.
— Então continue com ela, que salvará muito mais vezes. Onde você achou um corvo-imperador? Essa ave deveria viver apenas na floresta privativa do Castelo Henpakihan e nas montanhas do Leste.
— Pois é, eu tive um encontro com o Rei de Kelicerata. Quase me convenceu a entrar para o exército dele... — Yozien se incomodou ao ouvir aquilo, deixando transparecer a insatisfação no rosto franzido.
— Não ouse fazer uma coisa dessas. Aquele castelo está impregnado com ódio, eles discriminam tudo que não conhecem.
— Você conhece o castelo?
— Antes de morar no Cesaro, eu vivia no castelo, garoto. Eu era ministro de guerra de Kelicerata.
— O quê? — espantou-se Amato — Como assim?
— Não vamos falar disso, rapaz. É uma história velha e sem graça. Conte o que aconteceu com você nesses cinco anos. Comece pela luta com o corvo-imperador.
Amato ficou decepcionado, mas resolveu acatar o pedido de Yozien. Os dois viajaram para o Cesaro.
O dia em que chegaram era claro e quente. Amato desceu da carroça perto do templo e nada lá tinha mudado. As pedras continuavam do mesmo tamanho, nos mesmos lugares. Ele mudou tanto e ali tudo permanecia igual. Dispensou a carona para casa, disse a Yozien que iria caminhando. Yozien partiu para sua casa e Amato lembrou que seria impossível surpreender seu pai, por mais silenciosa que fosse a sua aproximação. Quando avistou a casa, Tiestes já esperava na porta.
Tiestes o recebeu com seriedade, mas respeitosamente. Aquele não era mais o menino chorão que fugiu com quinze anos. Era um homem feito.
— Você se tornou um grande homem, Amato — disse Tiestes dando um abraço.
— O que tem feito, pai?
— O mesmo que fiz minha vida inteira, garoto. Cuidar deste lugar. Mas você precisa me contar muitas coisas. Eu posso ter olhado algumas, mas não consegui ver tudo, nem ouvir o que era dito.
— Você se refere a ouvir o que o rei disse, não é? — perguntou Amato sem brincadeiras.
— Bom, você viajou, caçou, trabalhou, arranjou algumas mulheres, isso todo mundo faz algum dia. Mas conversar com o rei é uma coisa que poucos podem fazer. Na floresta dele, no templo de Henpakihan, ninguém tinha feito antes. Eu poderia não estar interessado?
— Vamos caminhar, faz muito tempo que não venho aqui.
Amato contou sobre suas viagens, as lutas contra os rebeldes do sul, as noites nas florestas, seu carinho por Regina, era tanta coisa para lembrar. Até que chegaram à ponta do Cesaro. Ficaram de frente com o oceano e seus infinitos redemoinhos.
— Pai, eu descobri muitas coisas sobre os caídos do céu. Tudo ainda é muito confuso, quero te perguntar, mas não sei se vai contar a verdade.
— Não vai saber se não perguntar. E eu não tenho motivos para te esconder nada.
— Pra início de conversa, que história é essa que o Cesaro não é a casa de Sauza, mas que ele construiu para ter um vínculo com as estrelas?
— Ora, se fosse apenas uma casa, seria uma casa simples, não um templo. — disse Tiestes acomodando-se na sombra de uma rocha. O dia estava quente demais. — Sauza sabia que não era imortal, então entregou seu poder aos céus, para que pudesse sempre estar olhando a humanidade de cima, ajudando quando necessário.
— É, e os caídos do céu são um fragmento do poder dele, não é? Por isso eles não têm pai nem mãe, eles surgem das constelações. Mas existem tantos deles que você nunca me contou. Alguns são até reis e princesas.
— Não contei porque não precisava contar. E foi melhor você descobrir isso sozinho.
— Mas lembra o que você me disse no meu último dia aqui no Cesaro? Pediu que eu levasse a lança e que um dia ela me salvaria. E se um dia eu encontrasse algum filho do zodíaco, deveria matá-lo com ela. Eu imaginei que pudesse encontrar algum deles por aí, mas agora sei que eles são pessoas importantes em Maciaan, não tem como eu chegar perto de gente assim.
— Você chegou bem perto de Scorpio, não foi? Teve a chance de matar, mas não o fez, e sou grato por isso, ele é um peixe grande demais. Você não teria êxito. — Amato percebeu que, como guerreiro, ainda não dava orgulho a seu pai.
— Eu não entendo, pai. Os caídos do céu são uma parte de Sauza, por que pediu que eu os matasse? — Tiestes sentou-se no chão e olhou para longe, procurando o melhor modo de responder.
— Eu quero sair daqui, Amato. Nunca pude segurar Charles em meus braços, ou qualquer outra pessoa de fora. Passei minha vida preso aqui no Cesaro, vendo tudo sem poder sair... — Tiestes suspirou e continuou. — Quando um caído do céu morre, o poder de Sauza volta para as estrelas. Numa possibilidade extraordinária, se onze deles morrerem, o céu não aguenta a pressão. Ele desaba e todo esse poder cai para o que restou. Entende? Sendo o último, eu teria o poder de Sauza inteiro para mim. Não seria mais um servo de Capricórnio, mas uma espécie de homem sem signo.
Tiestes olhou para Amato. Foi o gesto que indicou a verdade nas suas palavras. Tinha que ser. O homem era o guardião do Cesaro, se alguém conhecia tudo sobre os caídos do céu, era ele.
— Eu não tenho pretensões de dominar Maciaan, nem nada do tipo. Só queria ter força suficiente para sair daqui. Eu consigo ver todos os onze, mas não posso ir até onde eles estão.
— Isso implica matar Yozien, pai.
— Ele sabe desse meu desejo. O motivo de ele vir morar aqui foi a pena que sentiu de meu destino miserável. — nessa hora, Amato também sentiu pena de Tiestes.
— E se eu realizar esse seu sonho? — Amato andou até o desfiladeiro e sentou-se de frente para o mar. — Você só precisa dizer onde estão os alvos.
— É uma tarefa além de sua capacidade.
— Quem são eles, pai?! — gritou Amato.
O que seguiu foi um longo silêncio, quebrado por Tiestes.
— Yozien, bruxo da água. Scorpio, domador de feras. Desleal, gigante da constelação de Touro. Belila Grankill e Dorothea, gêmeas do armagedom. Rupert Grankill, o Leão. O Imortal de Câncer. O guerreiro de Libra. Atreio, líder dos rebeldes do sul. Nic-a-Noy o Imperador do Oceano.
— Está faltando um — disse Amato.
— É o filho de Gêmeos, Saga. Tudo acerca dele é um mistério. Ele sequer é um caído do céu desta geração, é dito que tem mais de duzentos anos. Eu sei a localização dele, mas... Não se preocupe com Saga. É muito cedo ainda para pensar nele.
— Eu fiquei sabendo que a Rainha de Casul é uma mulher-peixe. Como é possível, se ela é gêmea de uma humana?
— Veja bem, os caídos do céu surgem aqui no Cesaro com o passar do tempo. Alguns descobrem seu poder com suas experiências de vida. Outros já demonstram desde nascença. As gêmeas foram um caso a parte. O nascimento delas deu origem a uma catástrofe acima de qualquer proporção. Por razões políticas, Dorothea ficou sendo criada em Casul e Água-Marinha foi adotada por Nic-a-Noy, Imperador do Oceano. Não sei como acontece, mas no reino marinho ela deve ter se tornado uma mulher-peixe. Com quinze anos voltou para superfície e casou com o Leão, mudando seu nome para Belila Grankill.
Uma forte rajada vertical de vento bateu em Amato, levando sua confiança para a vastidão do céu. Tiestes levantou do chão e caminhou até ele. Sentou do seu lado e colocando a mão em seu ombro, disse:
— Não precisa fazer isso. Eu tenho que viver com minha maldição.
— Eu não serei capaz de matar todos eles sozinho, pai. Preciso de ajuda. Acho que seria uma grande vantagem para mim, entrar no exército de Kelicerata, concorda?
— Aproveite este dia e pense sobre o assunto, não precisa se decidir agora, Amato. Vou para casa.
Antes de Tiestes ir embora, Amato gritou:
— Qual deles é o pior? Qual dos onze devo temer? — Tiestes virou para Amato que permaneceu sentado olhando para o mar.
— Eu diria que as maiores ameaças são Saga e as gêmeas. Mas de todos os doze, Yozien é o único que não teria problema algum em derrotar os onze restantes. Será melhor deixá-lo morrer de velhice. — e Tiestes foi para casa.
O dia passou e Amato continuou sentado no penhasco. O Sol forte sobre sua cabeça mantinha seu corpo quente e espantava a covardia que teimava em surgir no seu coração. A noite finalmente caiu sobre o Cesaro. Era hora de agir, antes que os ventos gelados do céu escuro levassem de suas mãos a decisão que tinha tomado.
Amato pegou sua lança e partiu para a casa de Yozien. Ele estava esperando na frente, usando apenas calças e sandálias.
V
— Eu sabia que um dia esse dia chegaria. Você ama Tiestes demais. Sabe por que as gêmeas foram separadas entre Casul e o oceano? Eu sou um bruxo da água. Posso facilmente erguer toda a água do mar e derrubar de uma só vez sobre as terras do oeste. Sendo o ministro de guerra de Kelicerata, em menos de uma hora eu consigo matar todas as criaturas do Reino de Casul e do Império Oceânico. As gêmeas eram a segurança que eles tinham contra um ataque meu.
— Suas palavras de intimidação são atiradas em vão contra mim. Minha decisão já foi tomada e vou com ela até o fim. Você é de longe a maior das ameaças, escolher te deixar por último ou primeiro é um mero capricho. Se tiver que ser derrotado por você, que seja agora, pelo menos não vou desperdiçar anos da minha vida matando os outros dez. — dito isso, Amato empunhou sua lança.
— Eu não sou um assassino — Yozien abriu suas mãos e gotículas de orvalho começaram a subir das plantas e do capim. As pequenas partículas brilhantes se condensaram até formar dois sabres de água que Yozien empunhou, um em cada mão — mas aceito seu desafio. Você já é adulto, Amato. Vou te derrotar como um guerreiro, de modo honrado.
Começaram a se aproximar lentamente, mantendo uma base de ataque rígida. Quando Amato tinha Yozien no alcance de sua lança, o bruxo perguntou:
— Você acha que consegue matar seu próprio pai?
— Você não é meu pai, Yozien! — Amato levou a tarde inteira reunindo forças para a hora de dizer isto. Quando gritou, a voz não tinha raiva, pois já estava com a mente adestrada, mas mormente porque Yozien era muito hábil e a vitória dependia da concentração.
— Então sua resposta é não! Marque minhas palavras garoto: o céu estrelado é minha testemunha, você morrerá pelas mãos de seu pai! — o velho jogou um dos sabres na direção de Amato, que posicionou a lança para defender. Entretanto, o sabre se desmanchou no ar, virando um jorro d’água que passou pela lança e atingiu o rosto de Amato, momentaneamente o cegando.
Com uma velocidade incomum, o bruxo saltou contra Amato, empunhando com as duas mãos o sabre restante, num golpe vertical. Por instinto, o jovem levantou a lança para defender, e conseguiu parar o golpe. A extremidade do sabre se desmanchou com o impacto e caiu como chuva no rosto de Amato, impossibilitando sua visão novamente.
A parte quebrada do sabre rapidamente se transformou numa adaga com a qual o bruxo golpeou seu filho. Um grito. A adaga passou de raspão, mas a dor foi excruciante. Amato pulou para trás e montou uma base de ataque.
O velho aproveitou a chance e reuniu partículas de água formando duas espadas médias. Amato começou a investida com ataques rápidos. Yozien usava as espadas para desviar o curso da lança, que era redirecionada para fora. Andou alguns metros para trás usando essa esquiva, até que Amato exagerou em um golpe e o velho viu sua chance. Desviou o ataque desequilibrando Amato. Rodopiou, avançando o metro que distanciava os dois e no meio do caminho uniu as mãos, transformando as duas espadas médias em uma espada longa. No terceiro giro, ele desferiu um golpe horizontal mirando o pescoço de Amato.
O jovem se jogou ao chão por puro reflexo, largando até mesmo a lança no ar. Quando caiu, rolou para longe, deixando sua arma aos pés de Yozien.
— Você perdeu a lança, acabou a luta, Amato! — disse o bruxo, baixando a guarda.
— Ainda tenho essa pedra! — Amato levantou do chão atirando o que conseguiu arrancar do solo.
Yozien tranquilamente defendeu o ataque, mas não era uma pedra, era terra amassada. Ela se despedaçou com o impacto, lançando pedaços no rosto de Yozien. Aproveitando a cegueira, Amato ultrapassou o adversário, recuperando a lança que estava no chão e, sem perder tempo, assestou a ponta da lança para o coração de Yozien, mas uma chuva horizontal cercou Yozien, protegendo-o da lança, como um escudo, enquanto tirava terra dos olhos. Enquanto Yozien estava dentro do furacão de água, recobrou a visão.
Amato pulou para trás, pois estava muito próximo para um novo ataque. Yozien viu sua vitória. Puxou toda a água que o cercava para a mão, fazendo uma lança. Quando Amato caísse, estaria no alcance do golpe, sem chance de esquiva. Quando olhou para Amato, procurando o tempo certo de atacar, Yozien teve uma surpresa.
Amato estava atacando em pleno ar. Usou o pulo para trás como distração para simular uma ação de defesa, e arremessou a lança no meio do salto. O bruxo defendeu por reflexo, mas a água que formava a lança não conseguiu barrar o avanço da lança de metal atirada por Amato. Ela atravessou a água e penetrou no peito de Yozien.
Quando Amato pisou no chão, já estava chorando, mas a água no rosto disfarçou sua emoção. Yozien olhou para o rapaz e sorriu, caindo de costas.
— Você ficou forte, garoto. Antes, mal sabia o que fazer com esta lanç... — disse Yozien com o último suspiro.
— Você me disse... — disse Amato chorando e abraçando o velho caído — você me disse, pai...
Tiestes apareceu no alto de uma colina para contemplar o vencedor. Chegou perto e abraçou Amato.
— Vamos embora, você o venceu numa luta justa, não deve lamentar tanto.
No caminho para casa, Amato quebrou o silêncio:
— Agora não tem mais volta, pai. Mesmo que seja a última coisa que eu faça, eu vou matar todos os caídos do céu e tirar você dessa prisão.
Capítulo 3: Colisão
I
Um formigueiro é a melhor maneira de descrever Kelicerata, a maior cidade do leste de Maciaan, mormente pela complexidade do funcionamento da cidade, mas não apenas isto. A concentração de pessoas é muito maior que em qualquer outro lugar, e isso significa ter gente de todo tipo passando do seu lado. Ladrões, vagabundos, aproveitadores, todos eles circulam no meio das famílias trabalhadoras que construíram o reino. Nascidos e criados naquela balbúrdia, os irmãos Suines sabiam que uma oficina organizada facilitava o serviço e rendia mais dinheiro para eles, então dividiam as tarefas da casa de ferragens entre os três.
Gabriel, o mais velho, forjava e consertava as peças que chegavam, Babel, o irmão do meio, tomava conta da parte contábil e administrativa. Luca, o caçula, aprendia tanto a arte da forja quanto a contábil, e ajudava sempre que era preciso. Para Luca, também era delegado o serviço de levar o refugo para o entulho fora da cidade, e era isso que ele estava fazendo durante a tarde. Terminou de carregar uma carroça e partiu para o limite de Kelicerata, visando jogar o lixo fora.
Chegando ao ferro velho, ele viu um forasteiro caminhando pela estrada, tomando a direção da cidade, e resolveu puxar conversa:
— Oi, amigo, vindo de onde?
— Do norte, Porocop. — o forasteiro usava roupas pesadas, algumas partes de armadura acopladas nas vestes e carregava uma lança nas costas, o que deu uma ideia a Luca.
— Você parece forte, o que acha de umas moedas de ouro para ajudar a descarregar isso? — ele apontou para o entulho em cima da carroça.
— Que se dane, dinheiro sempre é bem vindo. Como se chama, moleque?
— Moleque não. Sou Luca, da maior casa de ferragens de Kelicerata. Vem comigo.
No ferro velho, crianças e mendigos chafurdavam nas pilhas de lixo, procurando algo de valor. Luca parou a carroça e eles começaram a descarregar usando pás.
— Como se chama, forasteiro?
— Amato. Não é a primeira vez que estou em Kelicerata, sabia?
— E você faz o quê? Com essa lança aí, parece um soldado. Isto é, sem patente.
— É mesmo? Talvez eu devesse conseguir uma patente, então. Eu vim para entrar no exército.
— Mais um... A cidade está cheia de gente assim. Amanhã à noite tem desafio no Impacta. Muitos parecidos com você chegaram essa semana, e todos querem seu lugar ao Sol. Os duelos no Impacta são muito disputados, e os vencedores ganham posições de destaque no exército.
— Interessante. Qualquer um pode competir?
— Acho que sim, não sei. Só compareço para ver o espetáculo. Deve haver alguma espécie de seleção anterior.
— Que tipo de espetáculo você está falando?
— Ora, você é burro? Só existe um tipo de espetáculo no Impacta. Lutas! Antigamente a seleção de capitães e generais era feita lutando contra feras, mas desde que Scorpio foi coroado, isso não existe mais. Os participantes lutam entre si, e os que sobrevivem ficam com os cargos.
— Que maneira estúpida de escolher. Então sempre os mais brutos ficam com patentes maiores.
— Não é assim, cara. Os capitães e generais são figuras de destaque no exército, eles precisam ter um apelo popular, até para levantar o moral dos seus subordinados. Muita gente do exército vai à minha oficina. Eles dizem que o comando verdadeiro do exército é do ministro de guerra e dos conselheiros, eles sim, mandam e desmandam lá.
A última peça era uma armadura trincada na altura do peito. Amato pegou e arremessou da carroça até o topo do monte de lixo.
— Quem sabe, eu não viro ministro de guerra? — falou ele rindo. Sentou na carroça e recebeu algumas moedas de Luca, que o convidou para uma carona até a cidade.
Amato desceu na frente da casa de ferragens e recebeu indicações de Luca, de como chegar até o Impacta. “Qualquer coisa pergunta na taberna do Juanart”, ele gritou antes de entrar. Caminhou um longo caminho até chegar ao Impacta, e uma notícia ruim aguardava Amato: não estavam aceitando mais ninguém. As eliminatórias ocorreriam durante a noite, se estendendo até a manhã do dia seguinte, e já tinham mais gente do que suportavam.
Mesmo com a notícia ruim, Amato não desistiu facilmente. Mais um longo caminho galgado e chegou até o Castelo Henpakihan. Já começava a escurecer. Ele foi barrado na entrada, mas a sorte lhe salvou. Um dos médicos que tratou dele alguns meses atrás passava naquele exato momento. O homem reconheceu Amato como amigo do rei, e então ele pôde entrar.
Amato esperava conversar com Scorpio, mas ele estava na floresta, “provavelmente vagando pelado com animais selvagens”, pensou. Um dos empregados do castelo anotou o pedido de Amato. Ele queria participar do desafio no Impacta, mas chegou atrasado para a inscrição. O recado foi amarrado ao pé de um falcão, que voou para a floresta. Amato comeu, banhou-se e bebeu durante a noite no castelo, até que a resposta chegou. Estava autorizado a participar do desafio sem sequer participar pela seleção preliminar. Ao final da carta, Scorpio disse até que estaria presente para assistir ao espetáculo.
Quando os súditos chamaram Amato para lhe mostrar o quarto que passaria a noite, uma mulher interrompeu.
— Podem deixar ele comigo. — a mulher era linda. Alta e lânguida, tinha traços sensuais: olhos claros estonteantes, boca carnuda, seios fartos e a pele macia. Amato logo caiu em seus encantos. — Então você é o ladrão da floresta?
— Disseram que eu sou ladrão? Não se preocupe que amanhã à noite eu já serei algo bem melhor... — Amato imaginava como seria aquela mulher por debaixo do vestido longo que usava.
— Vai tentar vaga para capitão? — disse a mulher segurando a mão de Amato e puxando ele para um corredor.
— Estou pensando algo mais alto. General, por exemplo? — a mulher não esperava a ousadia e levantou as sobrancelhas, impressionada.
— Ora, por que não tenta para ministro de guerra? Vou ficar feliz se você conseguir tirar o brutamonte aqui do castelo.
Entraram num quarto amplo. Ela empurrou Amato que caiu de costas na cama. Foi o lugar mais confortável que ele já havia deitado. — Quem é você? — ele perguntou.
— Eu sou a ministra da saúde do Reino de Kelicerata, Alba Monroe, e este aqui, é o quarto que nós vamos dormir hoje! — a mulher trancou a porta.
Ela subiu na cama e engatinhou até Amato, montando em cima dele.
— Você precisa relaxar, amanhã sua noite vai ser de matar. Vou cuidar de você, está bem? Você só precisa deitar e aproveitar.
— Eu sabia que a vida no castelo era boa, mas não esperava isso tudo na primeira noite. — disse Amato se acomodando na cama enquanto Alba tirava sua roupa. A noite passou rápida; enquanto Amato dava prazer àquela que podia ser ministra do paraíso, dezenas de bravos guerreiros lutavam e morriam nas eliminatórias do desafio do Impacta.
Na manhã, Amato acordou sozinho. A luz entrava pelas janelas altas e ofuscava a visão do renovado forasteiro de Porocop. Vestiu-se e foi até a copa do castelo. Antes de chegar ouviu gritos de alguém indignado.
— Como é possível uma coisa destas? Vocês não podem deixar o melão aberto deste jeito o tempo que quiserem. Eu poderia ter uma infecção séria, comendo isso!
Amato entrou no recinto e viu um senhor de aparência frágil, velho, pequeno e magro. Ele era o escandaloso. Sentada ao lado dele à mesa, estava Alba Monroe. A mesa era grande e estava lotada de comida. Algumas pessoas ainda estavam comendo, espalhadas pelos assentos da longa mesa. Amato andou cumprimentando, alguns respondiam, outros ignoravam. Ficou de frente para Alba e resolveu sentar. Cumprimentou os dois.
— Bom dia. — ele disse olhando nos olhos de Alba.
— Bom dia, rapaz. Sente-se, fique à vontade. Não se acanhe apenas por sentar de frente com o ministro do comércio.
— Desculpe, eu não sabia que o senhor era o mini... — Alba levantou e apertou a mão de Amato.
— Bom dia, eu sou Alba Monroe, ministra da saúde, este é o meu marido, Ingrid Monroe.
— Ingrid? — Amato pensou não ter ouvido direito, tanto pelo nome quanto pela relação dos dois. O ministro ficou visivelmente desconfortável com a pergunta dele.
— Este nome é um grande equívoco desmedido, que infelizmente passei a vida sem conseguir corrigir. Por favor, se dirija a mim por ministro do comércio.
— Tudo bem, senhor ministro. Fico feliz de comer na presença de pessoas tão ilustres. — ele tirou uma risadinha de Alba.
— Pena que vai comer aqui, a comida neste castelo vai ser responsável pela extinção de todos nós. Não beba esse suco, senti algo estranho logo que coloquei na boca!
— Cale a boca, Ingrid, o suco está ótimo! — respondeu Alba. Aquele casal não se preocupava em esconder problemas de relacionamento, mas não por desapego à imagem pública, e sim pelo desgaste no relacionamento, arrastado por anos a fio sem que nenhum dos dois tomasse uma atitude para reverter. Amato perceberia mesmo se não tivesse deitado com a mulher na noite anterior.
Enquanto Amato comia, os dois fizeram menção em se retirar. Quando levantaram, Amato lhes fez uma pergunta:
— Antes de irem, poderiam me dizer se algum destes que está aqui comendo é o ministro de guerra?
— Não seja tolo, rapaz. O ministro de guerra não consegue nem transitar pelo castelo. E com a benção de Sauza, amanhã já teremos outra pessoa como ministro.
Amato não entendeu o que Ingrid quis dizer com aquilo, e olhou para Alba buscando resposta. Ela se fez de boa esposa e acompanhou seu marido. Amato terminou o seu café sozinho e foi para o Impacta.
II
Chegando lá, ele já estava na lista dos participantes e foi encaminhado para um camarote. De lá, podia assistir ao que acontecia numa arena mais à frente. Ao seu lado, muitos homens fortes, alguns de tamanho descomunal, o dobro do tamanho de Amato. Eram todos guerreiros que haviam lutado durante a noite e tinham sido classificados.
— Esse moleque é muito bom!
— Ele está lutando há quatro horas sem parar! Tem um bom fôlego.
— Isso não vai ser suficiente na hora da luta de verdade.
Amato olhou para o que estava acontecendo na arena. Um guerreiro armado de espada e escudo estava derrotando todos que chegavam. Para obter classificação, cada homem precisava matar ou imobilizar quinze combatentes. Ele tinha derrotado os quinze e se negou a parar. Era muito habilidoso e rápido com a espada. Amato viu de cara que ele era um dos favoritos; passou cerca de quarenta minutos assistindo o guerreiro vencer luta após luta, até que não sobrou ninguém mais para derrotar. Ou haviam sido mortos, ou tinham desistido. Ele conseguiu, estava classificado. Lutaria à noite pelo lugar de general. Seu nome era Amadeu.
Amato passou o resto do dia vagando pela cidade, pensando na habilidade daquele homem. Amadeu seria um aliado formidável, porém o destino o colocou como adversário na mesma competição. “Eu e ele lutando pela vaga de general. Eu gostaria de ver essa luta”, pensou.
Ao cair da tarde, ele voltou para o castelo, onde aproveitou para praticar um pouco com sua lança. Uma coisa o fez parar. Ao longe, saído de alguma mata fechada, voava um gavião-imperador. Era suficiente para saber que Scorpio estava chegando. Quando a ave se atracou no castelo, próximo à janela, um vulto saltou para o interior e Amato entrou para encontrar com ele.
Várias pessoas esperavam por Scorpio, todos eles eram membros da realeza, com títulos menores. “Uma corja de bajuladores”, ele pensou. O rei desceu do pássaro gigante e caminhou rápido, deixando para trás os falsos elogios. Avistou Amato, foi ao seu encontro e o cumprimentou.
— Amato, como está, rapaz? Venha comigo, vamos para meus aposentos, esses ratos me enojam com suas palavras traiçoeiras. — Scorpio entrou num escritório, seguido por Amato, Ingrid e Alba.
— Sua Majestade, precisamos discutir as taxas cobradas às fazendas de grãos, pois... — Scorpio não o deixou terminar.
— Mas que cheiro é esse? Horrível! Há quanto tempo não usam este escritório? Está sentindo, Ingrid? Daqui a pouco vamos precisar usar máscaras para não sermos infectados por tanto mofo! — o ministro parou um pouco e puxou o ar com o nariz, procurando o mau cheiro de que o rei falava. Começou a tossir incessantemente, quase colocando os pulmões para fora.
— Tem razão, Sua Majestade, vou pegar algumas máscaras de ar! — Ingrid saiu, cobrindo a boca com a manga da camisa. Quando a porta se fechou, Alba pulou no colo do rei, deixando Amato estupefato.
— Você é muito maldoso com ele! — disse Alba, beijando Scorpio.
— Não chego nem perto do que você faz com o pobre velho. — Scorpio passava a mão pelo corpo de Alba com a maior intimidade, o que deixou Amato irritado — Oh, vocês dois já se conhecem? Amato, Alba, ministra da saúde.
— Já nos conhecemos muito bem... — disse Alba revelando tudo com seu olhar. Scorpio colocou-a de pé e foi até Amato.
— Você é rápido, hein... Vou torcer por você hoje à noite, apesar de achar que você não vai ter trabalho. Basta lutar como você fez aquele dia na floresta.
— Sua Majestade, obrigado pela consideração. Sei que estou atrapalhando aqui, então peço licença para sair.
— À vontade.
Amato viu o olhar de Alba, e descobriu que era apenas um brinquedo para ela. Engoliu a raiva e saiu do escritório. Cruzou com Ingrid no corredor. Ele usava uma máscara de pano que cobria a boca e o nariz, e carregava outras consigo. Amato passou e deu um tapa na mão do velho, derrubando as máscaras. Não havia dia melhor para liberar seu ódio. Foi tomar banho e se preparar para a grande satisfação que o esperava no Impacta.
III
Quando chegou, já pela noite, foi encaminhado para uma sala fechada. Lá estavam vários guerreiros, entre eles, Amadeu. O espetáculo começou. A luta para conseguir o posto de capitão se desenrolava na arena principal, e eles podiam apenas ouvir a reação da multidão que assistia à matança. Ninguém falava na sala, nenhuma provocação era desferida. Amato contou e eram doze competidores. Ele riu da ironia, ao perceber que teria que matar onze. Os outros não gostaram da risada dele.
Um soldado apareceu e avisou que já era a vez deles. Andaram em fila, lentamente pelos imensos corredores do impacta, até que chegaram à arena principal. Era gigantesca. Soldados retiravam corpos estendidos pelo chão e recolhiam armas e escudos quebrados. Os doze se alinharam, ficando de frente para o rei. Na área separada da arquibancada estavam os membros da realeza e entre eles, alguém que logo foi reconhecida. Amato cruzou olhar com Alba, e ela não parecia sequer preocupada com o risco que ele estava correndo; o fato alimentou seu espírito de luta.
— Ajoelhem-se perante o rei de Kelicerata, Scorpio! — gritou o animador do espetáculo. Scorpio levantou do trono e foi até a beira da arquibancada, pomposo como sempre. Onze se ajoelharam. Amato não. — Ajoelhe-se, bárbaro!
Amato deu dois passos para frente. Ele olhou para tudo à sua volta. Milhares de pessoas, de repente ficaram em silêncio. Todas queriam ver o que ele ia fazer. Quando o único som audível era o estalar do fogo queimando nas tochas que cercavam a arena principal, Amato levantou sua lança e bradou:
— Esta luta definirá os generais do exército de Kelicerata! Eu quero muito mais! Desafio o ministro de guerra para lutar aqui pelo seu posto! Se ele não tiver coragem de aparecer, desafio o próprio rei!
Um burburinho começou a tomar forma na multidão até se transformar num coro uníssono:
DESLEAL! DESLEAL! DESLEAL! DESLEAL!
Scorpio falou algo no ouvido do animador e voltou para seu trono. O animador anunciou que a luta agora valia o cargo de ministro de guerra e chamou Desleal para a arena. Amato focou o olhar na bancada do rei, esperando para ver quem ali se levantaria. Quem ali era o ministro de guerra?
O chão começou a balançar. Os doze guerreiros na arena começaram a se entreolhar.
— Você matou a todos nós! — gritou um. Seguindo o barulho que balançava o chão sob seus pés, eles olharam para trás. Do corredor de onde haviam entrado, vinha uma sombra enorme, ficando cada vez maior ao passo que se aproximava.
Enfim entrou na arena, Desleal, o gigante. Todos ficaram surpresos com o tamanho do guerreiro. Amato largou sua lança e não sentiu nem quando ela caiu em cima de seu pé. As lendas de gigantes contavam sobre criaturas enormes que alcançavam o céu com suas cabeças. Desleal não chegava nem perto de ser tão alto. Mas ninguém ousava questionar que ele, de fato, era um gigante.
— Eu desisto, não quero morrer! — caiu de joelhos um dos doze guerreiros.
— Quem quer um pedaço de mim?! Há, há, há! — Desleal disparou e em cinco passadas já tinha chegado ao centro da arena principal, chutando o homem de joelhos. Ele voou por cima da arquibancada e viu todas as pessoas boquiabertas acompanhando com os olhos a sua trajetória. Quando não se via mais ele, todos gritaram em êxtase.
No meio da arena, Amadeu tomou a iniciativa:
— Espalhem-se! Vamos nos separar! — seguindo sua ordem, todos correram para cantos opostos da arena — é hora de lutar!
Amato viu o gigante de perto e percebeu que ele era cerca de cinco vezes o tamanho de um homem normal. A estratégia mais eficaz seria inutilizar suas pernas. De prontidão, alguns dos homens atiraram flechas contra Desleal. O monstro sentia a dor e urrava para o céu. Agarrou a camisa que o cobria e arrancou do corpo, rasgando-a por completo e jogando para o lado.
A constelação de Touro brilhava nas costas dele. Amato se lembrou da história de seu pai com esse maldito gigante e finalmente adquiriu coragem para combatê-lo. Correu em direção a Desleal, que andava para a borda da arena. O gigante encurralou um dos que lhe atiravam flechas. O homem começou a chorar pela sua vida, mas Desleal não o poupou. Segurou com as duas mãos o corpo do homem e esmagou todos os seus ossos. Usou o cadáver como projétil e o arremessou em direção ao outro arqueiro. Acertou em cheio. Agora eram só nove contra um.
Enquanto o gigante atacava os arqueiros, não percebeu que Amato chegava sorrateiramente por trás. Quando dos pés do gigante estavam ao alcance da lança de Amato, a multidão alertou Desleal, mas era tarde demais. Amato fincou com força a lança no pé de Desleal. Um grito de dor, um reflexo correspondente: Amato foi chutado para o alto e sua lança voou para um canto da arena. O guerreiro atrevido caiu em um dos suportes das tochas que iluminavam a arena. Ficou ali, pendurado. Se caísse, quebraria as pernas, com certeza. Olhou para o lado e alguns metros adiante viu Scorpio, gargalhando com a selvageria de uma hiena. Ao lado dele, Alba observava tudo. Lançou um olhar de pena para Amato, que gritou de raiva. Ele não podia morrer daquele jeito.
Na arena, uma surpresa. Amadeu tinha diminuído a vantagem do gigante. Tinha movimentos rápidos, dava cambalhotas e cortava o pé de Desleal. Os outros o ajudavam, mas não tinham tanta habilidade. Logo um foi pisoteado. Outro foi esmurrado contra o chão. Era uma briga de leão contra formigas. A multidão gritava a cada esquiva de Amadeu, torcendo por ele e sabendo que eventualmente ele seria pego.
Desleal já estava impaciente, aquele rato rodopiante o fazia de bobo na frente de todos, isso era demais para aguentar. Deteve o seu descontrole e parou com o pisoteio, focando a mente para agarrar Amadeu num único golpe certeiro. Aproveitando a brecha, um dos guerreiros levantou seu machado e golpeou o pé, decepando o dedo de Desleal. Sangue jorrou, cobrindo o guerreiro, e Desleal urrou para a Lua, como um animal descontrolado. A dor foi aguda e inesperada. Com os olhos pulsando de raiva, o gigante resolveu que naquela noite nenhum homem ficaria vivo para conquistar o posto de general, ou qualquer outro. Desceu o punho de uma vez só.
Um homem esmagado. Com a onda do impacto, o dono do machado voou direto para a parede e caiu inconsciente. O monstro correu para matar mais um. Amadeu olhava em todas as direções, procurando um jeito de combater o gigante, até que viu Amato pendurado e teve uma ideia. Correu até a lança e a levantou. Desleal matou mais um e a multidão vibrou. Com toda a força, jogou a lança em direção a Amato. A lança acertou a parede, ficando presa. Amato notou que a lança agora servia de degrau para ele descer. Quando se preparou para soltar do suporte, Amato ouviu um grito:
— Não! Continue aí! — era Amadeu correndo desesperado em sua direção. Mais ao fundo, Amato viu o gigante esmagando os dois homens que restavam de pé.
Desleal virou-se e não encontrou ninguém por perto. Mais longe, achou Amadeu, que já se posicionava bem abaixo de Amato. O gigante percebeu que armavam alguma, e liberou toda sua fúria: disparou mirando os dois. As pessoas da arquibancada começaram a correr com medo. Ele vinha rápido demais, e com a colisão, destruiria todos que estavam daquele lado.
— Ei, você! Jogue essas brasas que estão aí! — Amadeu apontava para o fogo à frente de Amato — Rápido! Ele está chegando!
Amato não teve escolha, em poucos segundos seria atropelado pelo estouro da manada. Virou o recipiente com as brasas, queimando completamente a palma da mão direita. Amadeu estava equilibrado em cima da lança fincada na parede. Catou as brasas e colocou dentro da roupa que usava. O gigante já vinha correndo. Amadeu tomou impulso e pulou em direção à cabeça de Desleal.
Em pleno ar, antes de chocar-se com o rosto de Desleal, a vestimenta pegou fogo. “Ele é uma bola de fogo!”, gritaram na multidão. O homem em chamas atingiu em cheio seu alvo, que caiu desequilibrado com a dor. O estrondo fez as pessoas darem um pequeno pulo. Amato desceu do suporte pela lança. Amadeu levantou-se, revelando a constelação de Câncer nas suas costas. O fogo se extinguira junto com a camisa. A multidão gritava como nunca, mas a sensação de vitória foi breve. Uma mão agarrou Amadeu.
Desleal, agora desfigurado, sem o lábio superior e parte do nariz, ergueu o filho de Câncer e gritou.
— Nunca um homem vai matar um gigante! Aprenda com sua petulância, seu verme!
Scorpio correu do trono até a beira da arquibancada e gritou:
— Não o mate!
Tarde demais. A lança de Amato já estava no ar e não podia ser detida. Atravessou a garganta do filho de Touro. Lentamente, Amadeu viu o chão se aproximando.
Alguns segundos de silêncio e enfim os aplausos, a gritaria. Amato, o que restou de pé, recebia o carinho. A luta estava encerrada, anunciava o animador. Pediu para que os vitoriosos chegassem ao centro da arena principal.
Amato apoiou Amadeu no ombro e os dois foram ao centro. Dois soldados entraram na arena e carregaram o homem do machado, que tinha retomado a consciência, mas não conseguia ficar de pé.
O animador perguntou o nome aos três e Scorpio pediu a ele que anunciasse o resultado.
— E ao final desta batalha sem precedentes na arena do Impacta, eu saúdo os vencedores. O caçador de recompensas Zuldur! O soldado da guarda real, Amadeu, o Imortal de Câncer! Estes dois serão os novos generais do exército de Kelicerata. E com vocês, o novo ministro de guerra de Kelicerata: o matador de dragões, Amato! — e muito se bebeu e comeu pelo resto da noite. A luta seria contada e recontada por anos a fio, enaltecendo a força e glória dos comandantes de Kelicerata.
Capítulo 4: Tempo de mudanças
I
Amato acordou pela tarde. Sua mão direita estava enfaixada, e seu corpo inteiro doía. Estava no mesmo quarto que tinha dormido no dia anterior. Não tinha consigo sua lança, nem roupas. No lugar, havia um uniforme dobrado ao lado da cama. Era um conjunto de calças e camisa de manga longa. Da cor vermelha, botas, cinto e luvas de couro. Notou o símbolo da bandeira de Kelicerata bordado no lado direito do peito. Terminou de se vestir e saiu. Encontrou Ingrid com sua esposa.
— Finalmente. Como é bom ver um ministro que cabe dentro do uniforme! — disse Ingrid para Alba, que riu com ele — Você foi esplêndido ontem, ministro Amato. Está passando bem? Foi minha mulher que se encarregou pessoalmente de seus cuidados, não há pessoa mais competente aqui no reino.
— Obrigado, ministro. — Amato percebeu que a roupa de Ingrid era igual a sua, mas de cor verde. — Agradeço também pela sua atenção, ministra Alba — ela usava um vestido chamativo, evidenciando o busto, com certeza não era o uniforme dela — estou muito bem, como podem ver.
— Isso que é bom. O rei está em reunião com os conselheiros do castelo, seria bom você ir lá, falar com eles. — disse Ingrid.
— Farei isso. Ministra, onde estão os outros dois? Amadeu e Zuldur?
— Estão na ala médica do castelo, lá embaixo. Deixe-me acompanhá-lo, é bom que você já conhece o local. — e os dois saíram, com a licença do ministro do comércio.
— Então você me quer por perto para cobrir a ausência do rei? — resmungou Amato.
— Ora, não seja ciumento. Você ainda tem muito que provar, se quiser exclusividade. Esta é a ala médica do castelo. Quase ninguém vem aqui, além dos pacientes, médicos e enfermeiros — eles agora andavam por salas enormes, com muitos leitos e divisórias de pano, separando-os — os que você quer, estão ali.
Alba apontou o lugar e foi embora. Amato viu os dois bravos que lutaram com ele. Os únicos que sobreviveram. Zuldur, alto, quase não cabia na cama, estava dormindo, com o corpo todo enfaixado. Amadeu estava acordado e claramente cansado.
— Parabéns, ministro.
— Parabéns, general.
Houve um silêncio, mas não era algo incômodo. Pessoas que enfrentaram a morte juntas não sentem nervosismo na presença um do outro. Um sentimento familiar, como se conhecessem de longa data, um tipo de confiança em que só se consegue ao salvar uma vida.
— Eu vi você nas eliminatórias. Sabia que era o mais habilidoso desde que bati os olhos. Mas fiquei surpreso de ver que você é o Imortal de Câncer.
— Imortal que quase morreu — disse quase sem força para rir — infelizmente o Zuldur não teve tanta sorte quanto eu. — Amato observou o estado de Zuldur e viu que faltava uma perna.
— Eu não tinha reparado. Desculpe, se não fosse a minha burrice, talvez estivéssemos melhores.
— Para com isso! Sem o seu desafio, teríamos lutado um contra o outro, sabe-se lá quem ia ficar vivo... Mas você está bonitão, já recebeu uniforme. A gente, só quando sair dessa cama.
— Leve o tempo que quiser. É uma ordem do ministro de guerra.
Os dois riram, e Amato se despediu. Subiu escadas, andou por corredores. Ainda era estranho, andar com aquele uniforme. Encontrou a sala onde Scorpio se reunia com os conselheiros.
— Finalmente, a estrela apareceu! — Scorpio levantou da cadeira onde estava sentado. De frente para ele, estavam os ministros de comércio e saúde, além de vários anciões e um velho troncudo, cabelos e barba longos, embaraçados. Todos viraram para ver Amato.
— Parabéns, Amato. Eu sabia que conseguiria. Sente-se. — Amato acomodou-se numa cadeira ao lado de um dos conselheiros. — Já que você veio até nós, vamos explicar seus deveres como ministro de guerra. Primeiramente, para oficializar seu cargo, receba a espada Limiar do Tempo, da mão de Calister, o mestre ferreiro do castelo.
O velho troncudo levantou da cadeira e pegou uma espada enrolada num pano escuro. Levou até Amato e a entregou, parabenizando-o. A espada era longa e leve, podia ser empunhada com uma mão sem problemas.
— Fico agradecido. Aproveitando a oportunidade, onde está a minha lança?
— Aquela coisa sem brilho? Você precisa empunhar algo que valorize a sua posição como ministro! — dizia Scorpio.
— Sua Majestade, na verdade a lança me intrigou bastante. Eu tomei a liberdade de levar e modificá-la. Não consegui tirar um arranhão sequer. Martelei, aqueci, e mesmo assim nada, parece ser indestrutível. Onde a conseguiu? — Perguntou Calister, virando-se para Amato.
— Foi presente de meu pai. Aquela lança salvou minha vida várias vezes; não quero me desprender dela.
— Tenho certeza, tão logo começar a praticar com a Limiar, logo esquecerá a lança. Ela pertenceu a um antigo rei de Kelicerata e tem sido passada a todos os ministros de guerra. — disse Scorpio.
— Mais tarde me procure, eu entrego a lança — falou Calister, indo se sentar.
— Bom, os dois ministros você já teve o prazer de conhecer. Estes senhores aqui ao lado, são o cérebro do reino. Mestres na diplomacia, finanças e oratória, tenho orgulho de dizer que todos nós somos bons no que fazemos graças a eles. — dizia Scorpio, e todos ouviam quietos. — Você passará os próximos meses aprendendo com eles. Estratégias de luta, de guerra, de manipulação. Tudo necessário para orquestrar uma vitória no campo de batalha, eles te ensinarão.
— Meses? Isso quer dizer que eu sou um ministro apenas de fachada?
— Ora, não fale assim — disse um dos conselheiros — faz parte do seu dever com Kelicerata. Não podemos largar o posto de ministro na mão de qualquer um. Nós vivemos muito mais que você, estudamos, não seja orgulhoso ao ponto de negar que pode aprender conosco.
— Lembram do último ministro de guerra impetuoso e idealista? Deve estar caído em alguma sarjeta sem um tostão no bolso. — disse outro, tirando risadas dos demais. — Amato, uma coisa que precisamos arranjar de imediato, é uma esposa. Um ministro precisa disto, o povo se identifica com um chefe de família.
— Quem é este ministro de que falaram? — perguntou Amato.
— Não é da sua época, jovem. O ministro anterior a Desleal, Yozien. Ele era um filho do zodíaco, assim como Sua Majestade. Ele tinha o poder para transformar Kelicerata na principal nação de Maciaan, mas o idiota insistia em discordar de nossas decisões. Lembram? Ele saiu daqui com uma mão na frente e outra atrás! — terminou rindo.
— Você já viu o oceano? — perguntou um dos conselheiros, Amato respondeu que sim. — Então viu os redemoinhos. Aquilo foi obra de um maldito bruxo da água, séculos atrás. Ele era o filho da constelação de Peixes, na época. Fez aquilo para proteger a sua nação. Ora vejam, um bando de monstros, ele chamava de nação — os ministros riram — Este Yozien, ele poderia reverter a situação do reino. Ele podia acabar com os redemoinhos e ainda por cima acabar com a raça daquelas aberrações. E mesmo assim se negou. Saiu da cidade tão odiado que não consigo nem imaginar onde tenha conseguido alguma paz.
— Um homem que protege os homens-peixe é tão monstro quanto eles! — disse Ingrid, soltando uma risada aguda.
— Eu cometi um erro, não sirvo para ministro deste reino. — Amato levantou e caminhou para a porta. Todos ficaram atônitos, olhando um para o outro, com exceção de Scorpio, que levantou e seguiu Amato.
— Está louco? — disse o rei fechando a porta. Agora os dois estavam no corredor, conversando sozinhos — Eu chamei você para fortalecer este reino. Acha que eu gostei de ver você matando um gigante? Um gigante que servia este mesmo reino! Olha, eu perdi uma vantagem enorme ontem, mas achei que tinha conquistado uma maior. Não vou aceitar que você destrua o que eu construí e depois saia dando as costas.
— Scorpio... Eu simpatizo com você, gostaria de servir sob seu comando. Mas não vou me submeter àquele tipo de gente. — Scorpio deu um tapa na cara de Amato.
— Você acha que eu gosto deles? É um bando de velhos aproveitadores. Mas não se pode ter tudo, garoto. Você quer mesmo largar a posição de ministro de guerra? Chame aquela garota para ser sua noiva. Escolha seus subordinados a dedo. Você só tem a ganhar, ficando do meu lado. Eu só peço que ature esses velhotes por algum tempo.
Amato escutou a voz de Scorpio, que mesmo cercado de paredes de pedra, ainda mantinha a persuasão de quando a selva o envolvia, dando apoio à suas palavras. Convencido pela lábia do rei, ele voltou para dentro da sala.
II
A manhã estava nublada, deixando o dia mais escuro que o normal. Valtezer foi até a varanda de seu quarto e admirou a vista. Morava numa casa alta, então ele conseguia ver por cima da muralha do Palácio de Casul. As pessoas começavam a abrir o comércio, sem pressa. As casas de madeira davam uma atmosfera única a Casul, nenhuma construção levava pedra na sua estrutura. As pessoas do reino odiavam pedras, usá-las então, era um tabu. Valtezer sabia das vantagens de usar pedras na construção, principalmente em muros para segurança, mas ele não ousava reviver o trauma que aquelas pessoas tinham passado. E ele gostava do resultado. Tendo apenas construções de madeira, ele achava que a cidade se tornava mais acolhedora.
Mais ao longe, olhando para o oeste, avistou uma montanha que ultrapassava altura das nuvens. Engoliu seco. Teve lembranças do tempo em que morava na antiga Casul, sua infância e juventude. Agora, estava tudo soterrado, embaixo daquela montanha. Valtezer sentiu os olhos arderem. Estava velho demais para forçar a visão. Olhou para os arredores do palácio e ninguém havia saído de sua casa. Apenas alguns guardas faziam ronda pelos jardins. Tomou um banho quente, vestiu-se, apanhou sua bengala e foi até a casa do rei.
— Bom dia! — Valtezer cumprimentou a serviçal que abriu a porta. — Já estão acordados?
— Rainha Belila e o príncipe. — respondeu a mulher.
— Pode voltar ao seu trabalho, vou encontrar com eles. — Valtezer se dirigiu ao quarto do príncipe. A casa do rei era grande para o padrão das outras casas dentro do palácio, e tinha um refinamento maior na sua arquitetura, mas ainda era uma casa simples e funcional. Ela refletia a personalidade do rei, adorado pelas massas populares pelo seu desapego à ostentação. Chegando ao quarto, encontrou a cama desarrumada, brinquedos espalhados pelo chão e a janela escancarada.
Olhou para a vista da janela, procurando o príncipe e a rainha. O que havia era apenas um grande jardim que levava a um lago artificial, escavado pelo próprio rei. Valtezer notou algumas ondulações no meio do lago. No seu passo devagar, ele voltou à entrada da casa e deu a volta até o jardim. Caminhou até a beira do lago, abaixou-se para catar um punhado de terra. As costas doeram na subida. Atirou o mais longe que conseguiu e esperou. A queda criou ondas que Valtezer se importou em contar. Uma, duas, três, quatro... Do centro das ondas, um garoto saltou. “Igual a um golfinho”, Valtezer ouviu o menino gritar e cair novamente na água.
Em poucos segundos, o garoto emergia à frente de Valtezer. Correu e abraçou as pernas do velho, que se apoiou em sua bengala. O menino tinha o cabelo loiro e curvilíneo do pai, e os olhos da mãe. Debaixo das pálpebras havia duas bolas negras. Aqueles olhos escuros ligavam Alcides à sua descendência submarina. E claro, sua respiração debaixo d'água também denunciava.
— Viu só, Valtezer? Igual a um golfinho!
— Infelizmente eu não sei o que é um golfinho, jovem príncipe. Mas foi um salto muito bonito.
A rainha veio logo atrás do menino. Tinha longos cabelos pretos, todos da sua espécie tinham. Seu tom de pele azulado causava estranheza a todos que viam pela primeira vez, bem como a negritude dos olhos. A superfície da água revelava suas curvas na medida em que ela caminhava para a terra. Ombros delicados, braços finos, era impensável que ela conseguisse nadar tão rápido sendo tão frágil. Os pequenos seios à mostra, como era comum para qualquer mulher-peixe. Plantas aquáticas cobriam seu sexo de olhares pervertidos, formando uma saia que descia até os joelhos.
— Bom dia, Valtezer — disse a rainha. O tom meigo na sua voz encantava a qualquer pessoa.
— Bom dia, Sua Majestade. Está animada com seu aniversário? É daqui a dois dias!
— Sim, bastante. Rupert me prometeu um presente bem especial.
— Sei que vocês não contam os dias nem os anos, mas nós, habitantes da terra, fazemos essa comemoração para festejar por mais um ano que continuamos vivos, e desejar dias ainda melhores para o futuro. Não se apegue tanto ao presente.
— Obrigado pelas palavras, Valtezer. Mas é que o festival cai no dia do meu aniversário, então eu nunca pude tirar o dia para festejar somente com minha família. E todos os anos, Rupert me deu presentes que eu poderia ganhar apenas por ser rainha. Este ano, ele me garantiu que será alguma coisa especial.
— Confiemos no rei, então.
— Minha mãe tem muita sorte de ter uma irmã gêmea, Valtezer. — o velho perguntou o motivo. — Ué, porque aí ela sabe quantos anos vai fazer!
— Há, há. Bem pensado, príncipe. Bem pensado...
Os três entraram na casa, a fim de acordar o rei preguiçoso. Belila o acordou gentilmente com a mão sobre o peito dele.
— Você é a mulher mais linda do mundo. — Rupert falou, acordando.
— Me segura, pai! — o menino correu e pulou na direção do rei, que o apanhou e colocou sentado em um dos ombros. O garoto era muito feliz, e o pai faria de qualquer coisa para manter isso.
— Jovem rei! O que acha de discutir alguns detalhes do festival enquanto tomamos café da manhã?
Rupert fez cara feia, mas sabia que era necessário. Foram os quatro para a mesa, onde a serviçal terminava de pôr a mesa. Não havia luxo, era uma mesa de madeira com seis lugares. Perfeito para uma refeição em família. Belila era a única a comer algo diferente. Ela só se alimentava de peixes. Após a refeição, Rupert passou a maior parte da manhã conversando com Valtezer. Todos os anos, era celebrado o Festival do Renascimento, para exaltar o rei como reencarnação de Sauza e o renascimento de Casul.
— Então estamos combinados. O importante é que à noite estarei livre, eu e minha esposa.
— Acho que o senhor tem direito a isso, pelo menos. Já que terminamos a conversa, não quer vir comigo até o milharal? Os carros alegóricos estão armazenados lá para aqueles lados.
— Não, eu quero deixar para ver no dia do desfile, mesmo. E agora tenho um compromisso. — o rei montou em seu cavalo Diomedes e partiu. Uma mulher encapuzada o esperava fora do palácio, encostada na muralha. Rupert parou, ela sentou na garupa e eles seguiram a muralha a galope, até o limite da cidade.
Chegaram a uma pequena casa no meio da floresta. A mulher soltou o corpo de Rupert e desceu do cavalo. Ele desmontou e o amarrou ao lado da casa. A mulher tirou o capuz e chamou o rei para entrar.
— Vem logo, a gente não pode sumir por muito tempo. — era Dorothea. Tinha pele branca como a espuma das ondas, cabelos loiros que desciam até as costas e olhos humanos, esverdeados. Fora essa troca de cores, ela era exatamente igual à rainha. Usava uma roupa justa e passava a mão sobre o corpo, seduzindo o rei. Ele a agarrou no colo e carregou para dentro da casa. Era um lugar comum, qualquer um que passasse perto, não adivinharia que era propriedade do Rei de Casul.
Foram direto para a cama, onde Dorothea gargalhava enquanto Rupert beijava seu corpo. Após um longo beijo apaixonado, ela perguntou cheia de si:
— Você realmente me ama, não é?
— Eu faço tudo por você, Doty. Te fazer feliz é o que mais importa, pra mim.
— Ai, que lindo... Você e suas palavras da boca pra fora — insistiu ela no seu jogo de sedução.
— Se duvida tanto, tire a prova. Seu aniversário está chegando, é hora de se aproveitar de mim. Peça qualquer coisa, se quiser eu trago o Sol para ser seu presente.
— Me torne rainha. — ela pediu a única coisa que tinha certeza de não poder ganhar.
— De novo isso? — Rupert ficou chateado, o pedido não tinha cabimento. Não era a primeira vez que ela pedia aquilo, e ele não gostava de ouvir isso nem por brincadeira. — Não estrague esse momento com discussões.
— Nossa, eu não falei sério, amor — mentiu — desculpa. Uma noite inteira com você, é só isso que eu peço no meu aniversário.
— Você é perfeita, sabia? Semana que vem, nós passaremos várias noites juntos... — disse ele beijando o pescoço de Dorothea.
— Mas não é presente de aniversário? Tem que ser no dia certo.
Ele parou, tentando achar o melhor jeito de contar. Mas não tinha jeito bom:
— Pois é, eu tenho que fazer uma coisa durante a noite...
— É ela, não é? — empurrou o corpo de Rupert para o lado da cama.
— Eu não tenho culpa do aniversário ser no mesmo dia! E eu já prometi que ia fazer uma coisa especial, não dá para cancelar assim.
— E que presente tão especial é esse? — o tom de voz já tinha ficado mais sério.
— Eu vou levar ela para conhecer a Torre Branca.
— EU NÃO ACREDITO! Aquele é o nosso lugar! Foi onde nos apaixonamos! Não é possível que você vai mesmo levar aquela aberração lá.
— Não fale assim da sua irmã! E eu vou levar. Há mais de dez anos que ela pede para conhecer, eu não consigo mais negar.
Dorothea sentou-se na cama e começou a ajeitar a roupa. Tocou o busto e sentiu o corpo ainda quente, mas ela não cedeu. Rupert merecia aquele castigo. Ela levantou e foi até a porta, pronta para ir embora.
— E não espere ver este corpinho tão cedo, viu?
— Eu posso ver esse corpo a hora que eu quiser, ouviu? Casei com uma mulher igual! — ela ignorou, mas Rupert sabia que isso a deixaria mordida por dentro. Ele saiu e os dois voltaram para a cidade sem dizer uma palavra. Dorothea desceu perto da entrada da muralha do palácio e Rupert foi cavalgando até o milharal. Não houve despedida.
III
Era o dia do festival em Casul. O Sol foi o primeiro a chegar, iluminando a avenida principal e a Praça da Renovação. Todos estavam animados, chegavam aos montes, cada qual com seu chapéu de festa. Era tradição no festival, cada um aparecer com seu chapéu, quanto mais espalhafatoso, melhor. Na praça, um palanque tinha sido montado, e agora estavam em destaque sobre ele o rei, a rainha, Valtezer e Dorothea. Os carros alegóricos passavam por toda a avenida principal e fechavam sua participação na praça, onde faziam reverência ao rei e então saíam.
O festival foi criado após a destruição da Casul original, para renovar as esperanças dos que foram salvos por Rupert Grankill, que passou a ser chamado de reencarnação de Sauza. As passagens dos carros mostravam a ruína e renascimento de Casul.
— Eu adoro este dia! Olhe a felicidade das pessoas! — disse Rupert para Belila, apontando para as pessoas na praça, todas cantando e dançando. A rainha usava braceletes de ouro, uma saia longa, e um chapéu de quase um metro de altura. Procurava não mexer muito a cabeça, para não desequilibrar. Dorothea sugeriu que ela jogasse os cabelos para frente do corpo, assim não deixaria os seios à mostra.
Dorothea estava animada. Considerava o festival sua festa de aniversário, o que não deixava de ser verdade. O nascimento das duas foi a causa da tragédia, embora poucos soubessem disso. Ela usava um vestido leve, pois o dia estava muito quente. O chapéu era uma grande bola com pequenas bandeiras do reino enfiadas.
— Lá vem o primeiro carro! — gritou Valtezer, animado.
Todos levantaram para ver melhor. O primeiro carro era puxado por doze cavalos. Um rio cortava o meio do carro, e nas laterais, pessoas e animais representavam a população da cidade. Eles cantavam e jogavam flores para os que dançavam na rua. A antiga cidade foi construída à margem do Rio Sulin, o maior do oeste de Maciaan. O carro deu uma volta na praça e parou em frente ao palanque. Rupert foi até a frente, saudar as pessoas. Ele usava a pele de um leão sobre o corpo, com a cabeça da fera servindo de chapéu.
As pessoas se fartavam. Havia comida tanto na rua quanto no palanque, e bebida à vontade. Não era dia de lucrar, e sim agradecer pela vida. E lá vinha o segundo carro. Os cavalos que puxavam estavam fantasiados de nuvens: brancos e cobertos de algodão. O carro era todo azul, com alguns detalhes brancos, simbolizando o céu. De repente, do meio de uma caixa azul no centro do carro, saiu uma cabeça de serpente, feita de pedra. Itatibe, o dragão, descia das alturas para dizimar a população. A cabeça continuava a sair, e depois do comprido pescoço, apareciam asas de pedra, completando a representação do bicho, que se escondia novamente na caixa, só para sair novamente aterrorizando as pessoas da rua. Quando Rupert foi saudar o carro, fez um gesto imitando um estrangulamento, apontando para o dragão. As pessoas gritavam e gargalhavam, bebendo mais e mais.
O terceiro carro vinha puxado por aldeões montados em cavalos, simbolizando a fuga da cidade original. Atrás deles, vinha um carro lotado de arvores, e ao meio delas, um pilar feito de pedra branca, de pureza inigualável, emergia. No alto do pilar, acima até das pessoas do palanque, Alcides ficava de pé, amarrado pela cintura, por precaução. Ele levantava um enorme bloco de pedra, cinco vezes maior que ele. Era o poder de Grankill interpretado pelo seu filho. Belila correu para a ponta do palanque e começou a gritar por Alcides, que parecia feliz e acenava para todos. Quando seu pai apareceu, ele levantou a pedra o máximo que pôde com uma mão. — Eu serei maior que você! — gritou.
— Eu tenho certeza disso! — Grankill gritou em retorno.
Ao final da tarde, chegava o último carro, puxado por soldados do reino. O carro inteiro era uma maquete da cidade, mostrando como foi possível prosperar mesmo depois da catástrofe. Dorothea começava a ver coisas, de tanto que havia bebido. — Tem pessoas pequeninas ali dentro! — ela apontava para a maquete. — Eu quero um pra mim!
Antes do cair da noite, Valtezer encerrou o festival, e chamou Rupert para discursar no final:
— Povo de Casul! É com muita alegria que venho prestigiar este festival todos os anos. Este ano, tive o prazer de ver meu filho no meu lugar. Espero que possamos ver, ano a ano, nossas crias tomando nosso lugar neste reino maravilhoso, fazendo ele crescer, prosperar e se tornar melhor do que jamais foi! Eu tive a oportunidade de salvar tantas vidas quando tinha apenas dez anos de idade. Pois tanto tempo depois, ainda carrego esta tarefa como uma obrigação. Enquanto eu estiver vivo, prometo que nunca abandonarei o meu povo! O destino nos impediu de fugir pela terra com uma doença. Eu abri os horizontes pelo mar. E é com espírito de esperança que eu pretendo, um dia, ver todo o meu povo livre para viver sem a ameaça de Itatibe. Seja aqui no oeste ou em qualquer outro canto de Maciaan. Vida longa à Casul!
Todos se retiraram do palanque após o discurso do rei. Belila finalmente pôde relaxar o pescoço. Foi com seu marido e filho para casa, no palácio. Estava muito feliz, ver o seu filho no desfile foi uma alegria que encheu os olhos dela, ao ponto que estava rindo como uma boba desde então. Eles foram exaustos para a cama.
IV
Na madrugada, Rupert acordou Belila, pedindo que ela levantasse.
— Para onde quer ir? Estamos no meio da noite.
— Eu prometi que ia te dar um presente, não foi? Agora é a hora! — disse ele, vestindo as calças.
Pularam em Diomedes e seguiram para o meio da floresta. Após algum tempo de cavalgada, Belila já avistava um pilar acima das folhas das árvores, ele brilhava com a cor da Lua.
— Vai me levar para a Torre Branca? — ela perguntou espantada.
— Sim, esse é seu desejo há tanto tempo... Chegou a hora de realizar — eles desceram numa clareira. Ainda estavam muito longe, não se via a base nem o topo da torre.
— O que foi? Por que paramos aqui? — perguntou ela, olhando para a longínqua torre.
— Você confia em mim?
— Claro que sim.
— Com a sua vida? — Rupert estendeu as mãos para Belila.
— Sim, confio em você mais que qualquer um. Confio a minha vida e do nosso filho às suas mãos. — ela segurou as mãos de Rupert. Ele, sem avisar, começou a girar Belila, segurando apenas pelas mãos.
— O que você está fazendo? — gritou ela enquanto girava. Ele não respondeu, apenas largou a mulher, que voou até o céu escuro.
Ele olhou para o alto, seguindo-a com os olhos, e correu. Correu mais rápido que qualquer homem já havia corrido. As árvores levantavam seus galhos, com medo de atrapalhar a corrida dele. Em poucos segundos, Rupert Grankill avistou a Torre Branca. Era na verdade uma coluna gigantesca. Diziam que fora construída por Sauza para equilibrar o céu e impedir que caísse sobre as cabeças dos homens. Sem diminuir a velocidade, Grankill continuou em linha reta para a Torre Branca. Quando prestes a se chocar, deu um salto e começou a correr verticalmente na coluna, seguindo o fuste até o topo.
Passaram-se alguns minutos de corrida ininterrupta. Grankill, à medida que subia, conseguia ver mais e mais longe, em certo ponto, só não era possível ver o oceano por causa da escuridão noturna. Mais alguns minutos e ele avistou o topo da Torre Branca. Agarrou-se na beirada do topo e ficou de pé. Começou a olhar para baixo, até que ouviu o grito.
— Socorrooo! — Belila chorava. Ele a segurou com uma precisão absurda, e ela o abraçou de tal forma a nunca mais deixar escapar.
— Calma, calma. Chegamos, abra os olhos. — ela abriu os olhos, ainda marejados. Era fantástico. Por um momento, achou que havia voltado para o mar. Era um oceano, não de água, de estrelas. O deslumbramento foi tal, que ela abriu a boca num sorriso e largou Rupert, estendeu o braço e alcançou uma estrela. Quando olhou para a mão, ela se transformou em pó.
— O que é isso? — perguntou maravilhada.
— Vem comigo. — ele pegou a mão de sua mulher e a levou para o que parecia ser uma banheira. Os dois sentaram.
— Onde está a água? — perguntou, confusa.
— Água? Vou te mostrar o que é um banho de Lua — ele ergueu sua mão para o céu, na direção da Lua. Segurou-a e trouxe para o meio da banheira. — Agora veja.
— Belila olhou a mão de Rupert e a Lua não estava mais lá, havia se transformado em líquido. Encheu a banheira, cobrindo os dois com um líquido pálido e brilhante. Não era frio, nem quente, apenas lindo.
— Que lugar maravilhoso. Estava aqui o tempo todo, e ninguém nunca veio?
— Acho que sim. Eu não sei bem como funciona, mas já descobri algumas coisas, veja! — Grankill molhou sua mão no líquido da Lua e a levou até as costas de Belila. Um fio de luz se revelou, saindo das costas da Princesa do Oceano até o vasto céu negro.
— Está saindo dos sinais de Aquário que carrego nas costas? — ela virou a cabeça, tentando descobrir.
— Sim, veja só — ele pegou o líquido com as mãos, e jogou no ar. Vários fios começaram a aparecer, como um arco-íris surge após a chuva. — Hum, isso é estranho...
— O que foi? — Enquanto Rupert perguntava, ela viu o fio que ligava o céu às pedras nas costas de Grankill.
— É que alguns desapareceram — ele contou e só havia dez fios — cada um representa um de nós, caídos do céu, mas está faltando gente.
— Este aqui deve ser a Doty — disse Belila apontando para um fio que descia para o chão, não muito distante de onde eles estavam — aquele ali deve ser papai! — mostrou um que descia um pouco mais longe, para leste.
— Estes dois nunca mudaram de posição, estão aí desde a primeira vez que eu subi, quase trinta anos atrás... — ele apontou para dois fios amarelos, que apontavam para o sul. Um deles estava quase sumindo, sem força para brilhar.
— E os quatro que restaram? Todos apontam bem para o leste.
— Um deles é Scorpio, outros dois devem ser Tiestes e Yozien, moradores de Kelicerata. Este último só pode ser o guardião de Libra, nunca o conheci. Na única vez que fui ao leste de Maciaan, eu não atravessei a Ponte dos Mundos.
— Foi nadando, não é? Eu lembro, quando era criança ouvi a história de um homem que nadou de um lado a outro de Maciaan ignorando todos de nosso povo, e enfrentando a força dos escudos do mar.
— Se eu soubesse que você estava lá embaixo, mergulhava até o fundo do mar. — disse o rei olhando no fundo dos olhos escuros da rainha. Belila deitou a cabeça no ombro de Rupert e jurou nunca deixar de amá-lo. O que para ela começou como um gesto político para promover paz entre o povo do mar e os homens, se transformou numa vida de conforto e felicidade que nada seria capaz de destruir.
Capítulo 5: Homens que fazem guerras
I
Anos passaram, e com eles, Amato dava forma a seu projeto. Os conselheiros não mais tinham receio de deixar decisões importantes nas mãos dele, pois haviam lhe ensinado bem. Ele se tornou um ótimo ministro de guerra, que lutava com sensatez e colocava o bem do reino em primeiro lugar. Combateu com ferocidade os rebeldes do sul, relegando-os para lugares ainda mais distantes, e as terras conquistadas foram vendidas num esquema escuso, onde os lotes terminaram nas mãos de membros da realeza. O homem impetuoso que entrou bradando suas vontades, agora seguia fielmente a cartilha dos conselheiros.
Regina se tornou esposa do ministro de guerra. Transformou-se na mulher mais querida do reino, mostrando que a vida na corte está ao alcance de qualquer pessoa. Longas foram as noites de lágrimas quando descobriu sobre Amato e a ministra da saúde. Quis lutar pelo amor de seu marido, declarando uma guerra aberta e expondo a infidelidade de Alba, mas Amato não permitiu. Ela deveria se calar, ou voltar a morar no campo. Escolheu suportar sozinha o desprezo. Apesar da mágoa guardada contra Amato, ela não conseguiria voltar a viver como uma mulher do campo. Havia dias em que levava horas imaginando os comentários maldosos das pessoas, impelindo-a a crer que possuía pobreza no sangue, por isso era seu destino voltar à miséria. Perdeu seu orgulho, mas não se fechou para o mundo. Continuou sendo a mesma mulher que dava esperança às jovens do reino, cheia de carinho com os membros da corte e da plebe. Mas a vingança existia. Passou a tomar, periodicamente, um chá que impedia a gravidez. Se tivesse que aguentar a humilhação calada, ele também ia ter que conviver com olhares e cochichos maliciosos aonde quer que fosse.
Tiestes, que observava os planos da nora, nunca disse nada a Amato. De certa forma ela o ajudava a concluir o que os dois tinham começado. “Um filho muda tudo. Melhor deixá-lo sem essa complicação”, pensava ele. Tiestes vivia sozinho, exclusivamente para cuidar do Cesaro. Ocasionalmente Amato aparecia para visitar e discutir estratégias, mas contava-se nas mãos as vezes que isto ocorrera. Uma noite, após chegar do templo, Tiestes deitou detrás da casa, olhando para o céu. Dentre todas as pessoas, ele era o que mais sabia sobre os mistérios do mundo, e mesmo ele, sabia tão pouco. “Aonde isso vai me levar?” ele pensou, e lembrou-se do filho. Fechou os olhos. Um terceiro olho se abriu no meio da testa, e ele sorriu, com a felicidade que só existe no coração de um homem orgulhoso. O olho se fechou e abriu novamente. Agora, Tiestes contemplava uma enorme mesa de jantar.
— Devo repetir: a vida aqui no castelo é deveras invejável! — dizia Bartolomeu, mais gordo que nunca.
— Ora, não faça cerimônia, sirva-se à vontade. — respondia Amato, fazendo seu prato e levando até uma mesa menor. Bartolomeu lutava para equilibrar tanta comida no prato e se sentia mal por ver ainda tantos sabores que ele ficaria sem experimentar.
— O Castelo Henpakihan é famoso pelos seus banquetes, e afirmo que faz jus!
— O Rei Scorpio teve a ideia de juntar todos no momento das refeições. Ele não gostava de comer sozinho. E esse convite particular que te fiz, demonstra meu interesse em discutir assuntos que chegaram aos meus ouvidos, e dizem respeito ao senhor. Mas sinta-se desde já convidado para vir outro dia e participar de um jantar informal. Poderá conhecer muita gente daqui do castelo.
— E eu fico muito agradecido — disse Bartolomeu já cheio de planos. Sabia exatamente que assuntos o ministro fazia menção. Sem reconhecer Amato como o ladrão da floresta, Bartolomeu sentia algo incômodo no rosto do ministro e isso despertou uma leve desconfiança. Sem lembrar o fato motivador desta suspicácia, Bartolomeu logo a deixou de lado e continuou a conversa — mas diga-me, que assuntos são esses? Espero boas novas, há, há!
— Tenha certeza que são. Fiquei sabendo da sua proposta de colonização das terras do sul, que foram recentemente integradas ao reino. Muito me agrada saber do seu espírito vanguardista, e apoio totalmente este projeto.
— Ora, mas muito me orgulha saber disto. Porém, a situação ainda é desanimadora. O ministro do comércio não compartilha do seu entusiasmo e não está colaborando.
— Que motivos o deixam tão irredutível? Seja sincero, por favor, conheço bem o ministro do comércio e sei que é uma pessoa difícil de lidar.
— Afirma a questão da segurança ser impeditiva, por se tratar de terras litorâneas. Mas eu sei muito bem que ele quer mesmo é continuar a centralização do poder econômico. Com meu projeto, as pessoas que vêm de longe para negociar em Kelicerata encontrariam outros postos de comercialização, possivelmente mais convidativos. Sobre a segurança, Sauza me guie! Há quantos anos não existe um registro de ataque dos homens-peixe? E até onde se sabe, eles não podem ser tão monstruosos assim, pois se fala que Casul tem uma rainha dessa mesma procedência!
— Sim, isto eu confirmo. Mas devo lembrar que as terras conquistadas já possuem donos. Dada permissão deles, não vejo problema algum que impeça seus planos. Ingrid precisa abrir os olhos e ver que além de uma cidade, Kelicerata é também um reino. E um reino não pode viver apenas de sua capital. Para fortalecermos a nação, o avanço pelas terras do sul é necessário. Imprescindível, eu diria.
— Mas sem o aval do ministro, não passamos de crianças a sonhar, eu receio... — disse Bartolomeu ao entornar um cálice de vinho.
— Quer saber? O convite, que te fiz para jantar, considere-o para daqui a três dias. Haverá uma celebração da nossa última vitória contra os rebeldes e é muito provável que o rei esteja presente. Sabendo do seu intuito nobre, acredito que ele vá te apoiar em qualquer argumento contrário que Ingrid venha a criar.
Nos últimos anos, o exército progrediu bastante em sua expansão, há quem dissesse que os rebeldes já não existiam mais. De fato, eles foram empurrados sem chance de contra-ataque para as regiões desérticas no extremo sul, tidas como inabitáveis. No entanto, as tropas de Kelicerata acabavam por encontrar, vez ou outra, acampamentos ou pequenos fortes em que os rebeldes estabeleciam-se temporariamente. E sempre que isso acontecia, eram exterminados sem demora. Estas pequenas vitórias aumentavam o moral e eram a desculpa necessária para a cidade festejar; os moradores do castelo não ficavam de fora, eram os que tinham o maior espírito comemorativo.
II
Na noite da festa, tudo ocorreu como o previsto, mas Scorpio, que era esperado, não compareceu. Era meio da madrugada e todos estavam empanturrados e embriagados. Cortesãos e soldados de alta patente gritavam e cantavam a plenos pulmões no salão do castelo. Regina evitava bebida, mas nesta noite acabou não resistindo e fez o que temia. Procurava a todo instante Alba, para mostrar a todos como gostava dela e o quanto são amigas, mas o efeito do álcool deixava estampada a falsidade no rosto dela, deixando qualquer um envergonhado de participar de conversas com as duas. Claro, até nos erros cometidos Regina — como toda mulher — carregava um toque de premeditação; estando sempre do lado de Alba, por mais insuportável que fosse, ela impedia qualquer contato dela com seu marido.
Zuldur e Amadeu narravam, com seus capitães, as batalhas que tinham travado na última viagem. Os cortesãos ouviam deslumbrados, de forma que era impossível discernir se o motivo da excitação era o teor heroico das aventuras, ou a conquista de novas terras que certamente cairiam em suas mãos. Em meio à algazarra, Amato puxou Bartolomeu pelo ombro e cochichou algo. O comerciante então subiu até um local mais alto, onde tocavam os músicos, e pediu o silêncio dos presentes.
— Peço atenção de todos, pois gostaria de agradecer publicamente a concessão que me foi dada pela corte e seu comando, para o estabelecimento de novos centros comerciais ao longo das terras recém-conquistadas! — e Bartolomeu, com sua figura proeminente, começou um longo discurso onde descreveu cada passo da chamada colonização do novo horizonte. Pego de surpresa, Ingrid correu para o lado de Amato:
— Mas o que é isso? A gulodice o levou à loucura? Nunca dei meu aval para a realização disto! — disse histericamente.
— Pois eu fiquei sabendo que os conselheiros até aprovaram, como você nunca deu o aval? — mentiu Amato.
— Aquelas terras já tinham destino! São férteis, vão ser destinadas à agricultura, nada além disto! — ele continuava e os braços não se continham, acabava derramando a bebida que carregava na mão direita.
— Ora, senhor ministro, mesmo fazendas precisam de comércio por perto, do contrário não há como prosperar. Foi o que ouvi os conselheiros dizendo alguns dias atrás...
— Você ouviu o que o monte de banha acabou de dizer? Os planos dele são bem mais ambiciosos que montar alguns pontos comerciais, ministro Amato! Isto vai desencadear a fragmentação de Kelicerata!
— Ingrid, pela última vez, trate deste assunto com os conselheiros! — disse aumentando a voz. — E o rei não está aqui, então se quiser realmente impedir isso, recomendo que vá o quanto antes, agora mesmo, se possível.
— E vou mesmo! — Ingrid estava rubro de raiva. Saiu do salão para falar com os conselheiros, nem que fosse necessário arrancar os velhos das suas camas.
Mas assim que saiu do salão, sentiu a força que sustentava o corpo, tonto pela bebedeira, se esvair. De repente, os efeitos do álcool eclodiam no seu estômago, revirando sua barriga por completo. Ele parou e procurou um lugar para sentar, mas a teimosia era ainda mais forte. Conseguiu gritar até um dos guardas e pediu para que fosse até os quartos dos conselheiros e os acordasse, pois logo ele chegaria para ter uma conversa urgente. O soldado andou alguns metros pelo corredor e algum barulho o fez parar em frente a uma porta aberta. Antes que Ingrid pudesse gritar apressando o guarda, uma machadinha voou de dentro do quarto e acertou a testa do homem, que caiu pesado no chão do corredor.
O ministro do comércio sentiu seu sangue gelar quando viu dois homens encapuzados saindo do quarto para arrastar o corpo do guarda. Paralisado, gritou por ajuda e por mais guardas. Os assassinos perceberam a comoção e saíram em disparada, largando o corpo para trás e desaparecendo na escuridão.
A festa estava encerrada, todos estavam apreensivos com o que tinham acabado de ouvir, e os guardas, capitães e generais tinham corrido para acudir. Amato correu no encalço, passou por Ingrid ainda sentado e pálido. Chegou até o aposento onde tinham estado os homens misteriosos e encontrou os conselheiros assassinados, amontoados num canto. Outras pessoas chegavam, se chocando com a cena, e Amato as deixou para correr atrás dos culpados. A gritaria agora se dava nos corredores de pedra, indicando direções para onde corriam os bárbaros.
Amato colocou a cabeça para fora de uma janela e visualizou toda perseguição. Quando percebeu a correria em direção ao pátio, assobiou. Em poucos segundos o corvo-imperador passou rasante, e Amato montou com um salto acrobático. Os homens corriam pelo pátio já quase entrando na mata fechada que cerca boa parte do castelo. A ave levou Amato e em questão de segundos já estavam no encalço dos assassinos. Subitamente ela parou, pousando no pátio, e Amato desmontou pulando, sendo arremessado com velocidade em cima dos perseguidos.
Fazendo menção de puxar uma espada, o primeiro encapuzado foi seguro por Amato, que não pensou duas vezes, perfurou-o com uma espada curta. O segundo bandido já corria na frente, e começou uma nova disputa de velocidade. Mais atrás, um imprevisto tinha detido os guardas.
— Tirem ele do caminho, rápido! — gritava um guarda.
— Não dá! Ele só obedece o ministro de guerra! — o soldado mantinha uma distância de quatro metros. Menos que isso, a ave bicava com uma velocidade inigualável. — Alguém traga uma tocha, talvez consigamos espantá-lo.
Mal terminou de falar, da fileira de trás chegou correndo Amadeu, brandindo dois sabres. Não titubeou, foi direto ao encontro do corvo-imperador sem diminuir a velocidade. A cada bicada, Amadeu defendia com as duas armas e girava o corpo, para dispersar a força do impacto que tinha o ataque de um oponente tão mais pesado que ele. Assim que passou debaixo da cabeça, esqueceu a defesa e apenas deu tudo de si na corrida, passando agilmente entre as pernas do animal e seguindo a perseguição ao assassino restante. Os guardas, ainda atônitos com a destreza e beleza dos movimentos de Amadeu, permaneciam parados, agora torcendo para que ele capturasse os assassinos.
Alguns passos adiante, o encapuzado estava caído. De nada ia adiantar parar, então Amadeu continuou o ritmo até entrar na mata. Continuava correndo, mas agora tinha uma dúvida em sua mente, “Que caminho seguir?”. A mata era densa e ele não via nenhum rastro. Resolveu apostar na melhor companheira que um guerreiro pode ter: a sorte. Partiu em linha reta. Alguns minutos depois, viu ao longe duas sombras estáticas entre os troncos das árvores. Puxou uma faca que sempre levava ao lado da bota e diminuiu a velocidade. Chegando mais perto, notou um feixe de luz delineando uma espada na mão de um deles. Andando cada vez mais lento, Amadeu viu quando o golpe de espada foi desferido. Era difícil distinguir qual dos dois era o assassino, mas no movimento de defesa, o capuz se destacou da sombra que cobria o corpo, e Amadeu não tinha mais dúvidas. Atirou a faca que perfurou o peito do bandido.
Amadeu caminhou até Amato, que ainda olhava o corpo no chão, agonizando.
— Seu maldito... — e com um último suspiro, faleceu deixando rolar da mão uma machadinha.
— Você chegou no momento exato, Amadeu! — Amato deu-lhe um tapinha no ombro.
— Mas não do jeito ideal. Agora nunca saberemos suas reais intenções... — Amadeu tinha o semblante decepcionado. Amato ajoelhou e passou a revistar o corpo.
— Calma, quem sabe não descobrimos algo de útil aqui? — disse, devolvendo a faca que retirou do morto. — Por exemplo, olha só o tanto que achei, deve ser dinheiro que eles roubaram do castelo. Espere...
— Isso não é dinheiro do nosso reino! — espantou-se Amadeu.
— É de Casul...
Minutos depois, os demais soldados chegavam ao encontro dos dois, mas eles já tinham outras dúvidas na cabeça. Pela vestimenta e comportamento, eles não eram simples gatunos, a operação era claramente de assassinato. Mas seriam os assassinos de Casul? E se não fossem, por que tinham tanto dinheiro daquele reino que é praticamente inalcançável?
III
No dia seguinte, não se comentava de outra coisa. O enterro dos conselheiros se daria no final da tarde, mas até lá muito foi discutido sobre as circunstâncias de suas mortes. Na cidade, todos opinavam, desde os criadores de frango até o mais alto posto da corte. Scorpio estava de volta pela manhã, após ter recebido uma mensagem relatando os acontecimentos. Após muita deliberação, foi divulgada a versão oficial dos fatos. Na noite anterior, durante a comemoração de mais um sucesso das forças de Kelicerata, assassinos invadiram o Castelo Henpakihan com a missão de eliminar o rei e seus conselheiros. Tiveram êxito matando os ilustres conselheiros, mas antes de conseguirem chegar até o rei, foram descobertos e perseguidos até a floresta, onde foram mortos pelos soldados do castelo. Em posse deles, foi encontrada uma vasta quantia em dinheiro, porém era moeda de Casul. O envolvimento da nação do oeste não foi esclarecido, precisando de maior averiguação.
O Sol despontava no céu da tarde e Calister caminhava para a sala de Amato. A invasão da noite anterior tinha transformado totalmente a dinâmica do castelo, naturalmente agitado, agora as pessoas carregavam uma aflição no olhar. Ele encolheu os ombros largos com pesar, “estão começando a aparecer, os primeiros sinais da guerra”, pensou. Encontrou com Zuldur na entrada do escritório de Amato. Trocaram um cumprimento gentil, os dois querendo evitar falar o que todos estavam falando após apertarem as mãos. Eles se entenderam pelo olhar, e entraram juntos para falar com o ministro de guerra.
— Boa tarde, alguém traz boas novas? — Amato se levantou para recebê-los.
— Infelizmente eu só tenho a notícia que você já esperava. As armas não tem nada demais, não tem como dizer se foram feitas aqui, em Casul ou em qualquer lugar.
— É uma pena. Estamos precisando de qualquer pista nesse sentido.
— Então vai gostar de ouvir isto — começou Zuldur — eu vi o comunicado oficial, e tem alguma coisa errada. Eu conheço os assassinos.
Os dois que estavam na sala arregalaram os olhos.
— Como é? Então você sabe de onde eles vieram?!
— Não exatamente, Amato. Do meu tempo de caçador de recompensa, veja... Nesse ofício se conhece todo tipo de gente, principalmente a concorrência. São dois irmãos, eram chamados de Vento e Água do Rio Negro. Eram silenciosos e esguios, contratados para trabalhos furtivos e de assassinato.
— Isso já diz muita coisa, Zuldur — Amato franziu a testa — não podemos afirmar a nacionalidade deles, mas mercenários dessa categoria não possuem escrúpulos. Sendo de Casul, Kelicerata ou qualquer outro lugar de Maciaan, gente desse tipo só obedece à persuasão do dinheiro. Aliás, isso só fortalece a suspeita de que eles foram contratados por Casul para exterminar os líderes de Kelicerata, levando em conta a enorme quantia de dinheiro que carregavam. Raros são os que possuem algum dinheiro de Casul aqui no leste, uma quantia dessa magnitude só pode ter saído da terra que as deu origem.
— Mas aí é que está o problema, Amato. Quando eu estava voltando com meus homens da última batalha, encontrei com eles. Uns quinze dias ao sul da capital. Estavam acampados na beira da estrada, vadiando.
— E o que tem demais? Para quem só sabe matar durante a noite, não me espanto de ficarem o dia deitados e sem trabalho. — disse Calister. Amato achou melhor que não competia a ele ouvir aquela conversa e pediu que se retirasse. O velho ficou ofendido, mas assentiu e saiu sem reclamar.
— Entende o que eu quis dizer, Amato? Eles estavam há quinze dias daqui, mas sabe-se lá quanto tempo de viagem até chegar em Casul. Com certeza foram contratados aqui mesmo na cidade.
— Absurdo! — Amato deu as costas e voltou para sentar em sua cadeira.
— Como eles poderiam tomar conhecimento da batalha, que durou apenas três dias, irem até Casul, conseguir o serviço de assassinato na celebração da vitória, e voltar a tempo de serem avistados por mim?
— Não sei. Mas eles vieram de Casul, disso não tenho dúvidas. Mais alguma coisa, general?
— Não, senhor.
— Então pode se retirar. Se lembrar de mais alguma coisa, não hesite em vir me relatar.
Depois naquela tarde, Amato estava na sala de Ingrid. Após muito pensar, achou ter desvendado o caso.
— E então, o que descobriu de novo? — perguntou o ministro do comércio.
— De antemão já aviso que Scorpio não era o alvo, mas você. — Ingrid eriçou os pelos da nuca.
— Hoje, chegou até mim a informação que os assassinos não poderiam ter recebido ordens de Casul em tempo hábil para realizar o crime. Mas a quantidade de dinheiro daquele reino denuncia que alguém do lado de lá estava envolvido. Afinal de contas, fora o tesouro da coroa, não existe mais ninguém aqui no leste de Maciaan que teria em mãos aquele montante.
— E o que isso tem a ver com eu ser o alvo? — Ingrid suava, nervoso.
— É simples. A pessoa que contratou os mercenários é daqui de Kelicerata. Porém precisa ser alguém de contatos, que tenha viajado o suficiente para ter alguém, ou alguma fonte de dinheiro, em Casul. E mais importante, precisa ganhar alguma coisa com o seu sumiço.
— Aquele gordo com certeza ganharia com a minha saída...
— Exatamente. Bartolomeu é o nome do suspeito. Um homem de quem desconhecemos o passado, sabemos apenas que instalou-se aqui alguns anos atrás, após uma vida de longas viagens comerciais. E as terras envolvidas no projeto dele, são justamente ao sul, que nos levam à Casul.
— Isso não é bem verdade. Mesmo percorrendo aquelas terras, ainda é impossível chegar até Casul, devido à doença da floresta ao oeste... — Ingrid estava determinado a dissecar minuciosamente os fatos. Não queria deixar a suspeita de seu assassinato passar com lacunas misteriosas ou suspeitos despercebidos.
— Isso é bobagem! Há anos falam dessa floresta, mas ainda não temos provas reais de que é impossível atravessá-la. E mesmo que seja, Bartolomeu é a maior suspeita. As terras que ele visa, além de fazer o caminho até Casul por terra, são litorâneas. Mesmo que haja algum impedimento pelo chão, ele poderia receber contatos vindo do mar. Está esquecendo, Ingrid, que a rainha de Casul é originária do reino dos homens-peixe?
Ingrid parou pensativo. Aquela conjuntura realmente fazia sentido. Falava para si:
— Uma vez eliminado, os conselheiros teriam que definir um novo ministro do comércio...
— E o próprio Bartolomeu é um nome forte para o cargo. Mas o risco de não ser nomeado deveria ser mínimo. Então a solução foi acabar com os conselheiros. Quando veio até mim para conversar, admito que eu tinha mostrado entusiasmo com o projeto dele e na minha cabeça era o nome certo, caso precisasse indicar o novo ministro.
— Ao que parece, então desvendamos toda a trama, mas a conjectura em si não prova nada! — Ingrid levou a mão ao rosto, preocupado.
— Não só isso! Está faltando o fator principal para desatar este nó. Por que diabos seria Casul a mandante de tudo isso?
— Não faço ideia. — a verdade é que ninguém conhecia bem Casul. Situada no oeste de Maciaan, era um reino que abrangia uma enorme península, cuja porção sul, ligada ao continente, era tomada por uma densa floresta. Há várias gerações, as pessoas já contavam de uma doença que afligia qualquer um que tentasse atravessar sua mata desconhecida.
— Então o que acha que devemos fazer? Como ministro da guerra, meu dever é entrar em contato com o reino deles, e usar diplomacia ou, em último caso, a força. Mas como os acontecimentos apontam para um viés comercial, acho que devemos ponderar juntos o curso a tomar.
— Hoje à noite, falaremos com o rei.
Com essas palavras, terminaram a conversa e Amato partiu. Chegou até a ala médica onde achou Alba sentada em sua mesa, com dezenas de documentos empilhados à sua volta.
— Pode tirar um tempo para mim? — perguntou com segundas intenções.
— Infelizmente não. Agora com os conselheiros mortos, eu tenho que fazer o trabalho que eles gentilmente faziam, me ajudando.
— Então você deve estar mesmo ocupada. Antes não te via fazer coisa alguma, em compensação os velhinhos...
— Está aqui para debochar?
Amato percebeu que ela estava realmente irritada e saiu. No fundo sabia que era fruto da própria vida mansa que levava. Agora precisava fazer jus à posição que tinha e, apesar de capaz, era desleixada.
Após a longa cerimônia que tomou parte no castelo, o céu já despontava coberto de estrelas. Nos aposentos do rei, estavam Scorpio, Amato e Ingrid. Os dois contaram ao rei o que haviam descoberto e consideravam ser a trama que conduziu os fatos da última noite. Os homens ponderaram e perceberam que nada podia ser feito contra Bartolomeu, pela falta de provas concretas. Mas que havia forças tentando desestabilizar o reino, era claro como a água. Então decidiram marchar para Casul e, se possível, tirar a limpo toda a história por trás dos assassinatos. Scorpio pediu a Amato que ficasse após a saída de Ingrid, e quando o ministro do comércio saiu, Amato foi questionado:
— Você lembra do que falei quando nos conhecemos?
— Sobre proteger Kelicerata?
— Nós seremos esmagados, caso haja guerra.
— Com todo respeito, Sua Majestade, meu trabalho é justamente assegurar o contrário.
— Não me venha com falsas esperanças. Numericamente eles nos superam. Apesar de Casul ser menor que Kelicerata, o povo da água nos ultrapassa com folga. E em força bruta também. Antes do meu nascimento, o ministro da guerra era um bruxo da água, um homem que sozinho poderia vencer Casul e os homens-peixe, sozinho. Deveríamos tentar encontra-lo. Pare e pense comigo: devido inferioridade militar, deveríamos explorar nossa força adquirida por Sauza, os filhos do zodíaco. Eu sei que posso fazer grande diferença no campo de batalha. Amadeu é também um lutador sem igual! — Scorpio parou um pouco e suas sobrancelhas escuras perderam o entusiasmo que vinha crescendo enquanto falava. — Não, estou aqui a sonhar... Mesmo que tivéssemos toda sorte do mundo, os filhos do zodíaco do lado oeste são muito mais perigosos. As gêmeas que controlam o dragão, que inclusive, destruiu a Casul original sozinho! E não bastasse isto, não temos noção do real poder do Leão, mas ele atravessou o oceano a nado, então não deve ficar longe do que dizem as histórias.
Amato já estava acostumado com o aspecto loquaz de Scorpio, então apenas ouviu quieto. Mesmo o rei estando com razão, uma guerra era necessário. Dava muito mais condições para eliminar os filhos do zodíaco. Foi com essa missão que Amato saiu do Cesaro, e por mais que o tempo passasse, Tiestes continuava preso ao Cesaro, e Amato não tinha mudado o seu objetivo original. Mataria todos os caídos do céu, inclusive o que falava à sua frente naquele mesmo momento.
— Scorpio, o tempo não é uma corda que podemos puxar, apressando os acontecimentos. Vamos até Casul, tentar esclarecer a situação. Havendo guerra, não se preocupe, eu terei os meios para trazer a vitória até Kelicerata.
Capítulo 6: O impedimento crucial
I
Alguns dias passaram e a comitiva estava formada para seguir caminho até Casul. Amato com Zuldur e sua tropa particular, composta de cinquenta soldados. Scorpio também fazia parte, mesmo a presença do rei não sendo essencialmente necessária numa visita diplomática. Ele escolheu ir, pois tinha grande curiosidade de conhecer Casul.
A saída com pompa se deu no início de uma manhã e o reino inteiro foi às ruas para saudar os viajantes. Não só a população de Kelicerata, mas também de cidades e povoados próximos, pois a notícia foi divulgada com impressionante rapidez. O caminho não era complicado, em algumas semanas já haviam passado da Floresta dos Troncos Amarelos e boa parte dos Campos de Porocop. Seguiam o mesmo destino dos vários rios que avistavam: o extremo oeste.
Quando chegaram à metade do percurso até alcançar o litoral, o grupo se dividiu. Trinta soldados montaram acampamento e permaneceram em Porocop, com a tarefa de coletar e armazenar alimentos e água, enquanto Scorpio, Amato e Zuldur continuavam a viagem com os soldados restantes. Isso porque uma vez no litoral, eles atravessariam a Ponte dos Mundos. A maior estrutura construída pelo homem, uma ponte que cobria todo o oceano até a península de Casul. Sendo apenas uma estrutura de pedra, e alta demais para permitir a pesca, não havia ecossistema que pudesse garantir subsistência de seus viajantes. Então ficava uma parte do grupo em Porocop e, dividindo-se em grupos menores, atravessavam a ponte um atrás do outro, dando intervalo de alguns dias entre as viagens, assim não faltaria comida e água para o primeiro grupo.
Numa tarde de Sol forte, Amato avistou um grupo de pescadores num tumulto. Os viajantes logo se interessaram em saber do que se tratava, embora Zuldur tivesse achado estranho tanta gritaria, mais parecendo que eles queriam chamar a atenção.
— Que fazem aí? — perguntou um dos soldados.
— Pegamos um monstro marinho! Não sabemos se é um homem-peixe, no entanto. — disse um dos homens na margem, apontando uma pequena embarcação no meio do rio. — Não querem nos ajudar, precisamos tirá-lo da água antes que se solte.
— Não temos tempo para trivialidades. — disse Zuldur. Mas em seguida olhou para os soldados e notou um brilho nos olhos curiosos. Estavam marchando sem parar, uma parada de alguns minutos para uma pequena distração não faria mal. Amato não viu problema, e deu de ombros. — Vamos homens, capturem essa fera o mais rápido possível!
Os soldados embarcaram num bote que estava na margem e foram até o meio do rio, chegando ao barco que lutava com as cordas sendo puxadas para o fundo d’água. Da margem observavam Zuldur, Amato, Scorpio e alguns dos pescadores, todos muito atentos, até que o barco virou e só se via a cabeça dos homens emergindo.
Risos correram soltos, e ao que menos se esperava, um dos homens desconhecidos se esgueirou para as costas de Scorpio e o agarrou, forçando a ponta de uma faca no pescoço do rei. Os soldados na água viam de longe os pescadores do barco já chegando à margem e revelando ao longe uma carruagem suja e abusada pelo tempo.
— Que belos soldados, vocês são! Deixar o rei ser capturado tão levianamente! — dizia o sequestrador puxando Scorpio, que permanecia absorto.
Amato andava lentamente pelos lados, procurando cercar o homem e Zuldur precavia os soldados que chegavam nadando. Nenhum movimento brusco deveria ser feio.
— Seja realista, seu verme! O que acha que vai fazer agora? Sair voando? — dito isso, chegava a carruagem, que ainda não tinha sido vista por Zuldur e Amato. Ambos arregalaram os olhos para aquela virada nos acontecimentos. Não teriam como impedir o rapto. Mas surpreendendo a todos, Scorpio se manifestou:
— Não tentem nada. Deixem-me com estes malfeitores. Ordeno que sigam caminho como planejado e sequer olhem para trás. Sendo bandidos dessa estirpe, provavelmente buscarão algum resgate pela minha segurança. Na pior das hipóteses, apenas estarei de volta ao castelo e um pouco menos abastado.
Os soldados não fizeram menção alguma de acatar esta ordem e se mantinham em posição, esperando alguma oportunidade milagrosa para contra-atacar.
— Não esqueçam que eu ainda sou o rei e vocês meu súditos! — falou Scorpio, e com um olhar altivo, ele conseguiu convencer Amato. Alguma coisa estava para acontecer, pensou Amato, e se Scorpio queria que fossem embora, confiava nele.
— Vamos embora! — disse, reunindo os soldados e partindo. Os bandidos subiam na carruagem levando o rei e, guiada por um sequestrador encharcado de água, ela sumiu no horizonte.
Todos continuaram seguindo para a Ponte dos Mundos, mas tinham perdido completamente a confiança no cumprimento da missão. Zuldur chegou a discutir por horas com Amato, mas acabou acatando as ordens.
Naquela mesma noite, os bandidos se embebedavam, logrando o sucesso. O rei, amarrado numa árvore, apenas olhava a decadência humana, já sabendo que seria fácil escapar. Os homens comiam pão velho e alguns peixes de carne dura. “Não parecem conhecer a arte da caça”, pensou Scorpio. O tempo correu e quando já estavam deitados de embriaguez, tagarelando em frente à fogueira, um grupo de veados apareceu sem temor algum e se acomodou ao lado deles.
Os homens começaram a rir pesadamente, acreditando aquilo ser uma miragem ébria. Um dos homens levantou e andou devagar até um dos animais e percebendo a submissão deles, sacou uma faca e cortou-lhe a garganta. Todos se puseram de pé, sem acreditar e correram para fazer o mesmo. Em pouco tempo, com todos trabalhando, já tinham boa quantidade de carne pronta para ser assada.
— Esse rei é um amuleto! Que tal ficarmos com ele ao invés de devolver para o castelo? — gritava um.
— Vamos pegar o dinheiro do resgate e fugir com ele — respondiam. Tempo depois já estavam empanturrados. Um deles foi buscar a sua faca para guardar e finalmente dormir, mas não encontrou. Olhou em todos os cantos e desistindo da busca, perguntou:
— Ei, quem de vocês pegou a minha faca?
Todos se entreolharam sem resposta, e perceberam que também tinham perdido suas armas. Olhavam para o rei amarrado. Não sabiam como, mas o desaparecimento dos objetos era obra dele.
— Não sejam estúpidos, estou vendo o ladrão daqui mesmo. — Scorpio olhou para um lado e mostrou um esquilo segurando uma faca nos dentes. O grupo de bandidos, pesada e lentamente corria atrás do animalzinho, sem se dar conta que outros da mesma espécie roíam a corda que amarrava o prisioneiro.
— Vou deixar vocês correndo atrás dele por alguns minutos.
Os homens olharam para trás e se depararam com Scorpio livre, de pé ao lado da fogueira.
— Maldito! — gritou um deles, correndo com os braços levantados. Momentos antes dele alcançar Scorpio, um corvo-imperador passou fugaz, levando o homem na ponta do bico. Outro pousou e Scorpio montou, dizendo enquanto levantava voo:
— Amigos, estes acabaram de comer, aposto que vão apreciar o lanche noturno — os homens olharam para o céu e perceberam incontáveis aves gigantes pairando no céu escuro. Correram sem direção certa, desesperados. Scorpio não chegou a ver nenhum deles ser dilacerado, pois já voava longe, em direção à ponte.
II
O Sol já começava a descer quando Amato e companhia avistavam a ponte. Todos permaneceram inertes com a paisagem. De uma encosta alta começava a Ponte dos Mundos, e seguia até o horizonte, sem revelar a outra ponta. Cerca de cinquenta metros abaixo, o mar azul, desconhecido para alguns do grupo, se estendia com suas centenas de redemoinhos.
— Achei que não chegariam nunca! Cheguei aqui ontem à noite... — disse Scorpio quebrando o transe. Todos se animaram, em especial Zuldur, que percebeu no rosto de Amato a certeza que o rei voltaria. Mesmo sendo completamente leal ao ministro de guerra, ele ainda tinha duvidado de sua inteligência e honradez. Decidiu jamais cometer este erro novamente, e abaixou a cabeça, fazendo um juramento silencioso.
Retomaram a viagem e rumaram para o oeste. A ponte era larga o bastante para que todos passassem sem perigo de cair. Um dos soldados contou quinze passos de um lado ao outro. Infelizmente era só isso que veriam dali em diante, água em todas as direções. Na primeira noite, um dos soldados tentou explicar a existência dos redemoinhos: os que não tinham medo de encontrar homens-peixe viajavam cada vez mais longe, guiando-se pela ponte. O imperador dos homens-peixe não suportava ver os animais do oceano sendo capturados, cada vez mais longe da costa e sumindo em grandes quantidades. E então os próprios homens-peixe começaram a ser capturados, foi quando ele usou magia negra para mudar o curso da água.
— É por isso que a água corre em círculos, ao invés de linha reta, como faz nos rios. — terminava a explicação. Scorpio notou que Amato sentava longe dos demais, e foi ter com ele.
— Pensando em voltar, já?
— Não, é que fazia um bom tempo que não via o mar. Particularmente, eu não sou um grande fã, mas admito que traz certa nostalgia. — Amato sentava perto da beirada, e olhava para a escuridão.
— Bom, agora não dá para enxergar, mas eu consigo ouvir o barulho e não me parece tão ruim...
— Não é nada demais, eu sempre exagero quando falo sobre esse assunto. — disse Amato antes de voltar para o meio dos soldados. Tinha certeza que o marulho o faria ter um sonho ruim.
Os dias passavam lentamente, a cada semana uma parte se reintegrava ao grupo, reabastecendo o suprimento de comida e água, mas as pessoas não se mostravam exatamente felizes, pois mesmo sabendo que não morreriam de fome, ainda não viam nada além do mesmo horizonte, dia após dia. No quadragésimo quinto dia desde que pisaram na Ponte dos Mundos, eles chegaram ao fim dela. Simplesmente acabava de repente, como se uma lâmina colossal tivesse caído do céu cortando a pedra. A continuação da ponte era visível, mas longe demais até para o falecido Desleal alcançar com um salto. A única opção era ir até a Ilha do Centro.
Já se via o Castelo de Libra, não muito longe, na Ilha do Centro. O castelo foi construído de modo a ocupar todo o território da ilha, sendo assim impossível de alcançar pela água. Um navegador não teria onde aportar ou mesmo pisar, pois daria de cara com um paredão de rochas que se erguia em todos os lados. A única entrada e saída só poderia ser alcançada pela Ponte dos Mundos.
— Vamos até o castelo pedir passagem. Zuldur, por favor, aguarde aqui e tome conta de tudo. — disse Scorpio. Ele e Amato seguiram por uma estreita saída que levava até a entrada do castelo. Um cavalo, ou até mesmo Zuldur, não seria capaz de passar, de tão estreito o corredor. Tanto Amato quanto Scorpio sentiram um medo contido ao olhar para baixo. Apesar de feita de rocha sólida, a pequena travessia aparentava fragilidade, e da cintura para cima não havia nada para se apoiar, um desequilíbrio seria queda certa para o redemoinho bem abaixo deles. Ao chegar à entrada, Amato poderia teria percebido a apreensão no semblante de Scorpio, se ele mesmo não estivesse concentrado em esconder sua tremedeira.
Entraram pelo castelo com passos leves, mas logo após, relaxaram. Era uma imensidão vazia, pedras geladas os cercavam de todos os lados e nada além disso. Percorreram o castelo até chegar a uma porta alta de madeira, com o desenho da balança entalhada.
— É aqui. — disse Scorpio. Em seguida, como reação ao que falara, a porta se abriu, e um jovem apareceu.
— Sejam bem-vindos ao salão do julgamento. Eu sou Bak-Tanu.
Amato estranhou o rapaz. Imaginava o guerreiro de Libra totalmente diferente. Era jovem demais e não parecia ter força alguma. “Provavelmente tem alguma habilidade especial”, pensou. Scorpio por sua vez tinha outras questões em mente. O nome do garoto era muito estranho, com certeza não vinha de Kelicerata ou das terras do sul. As vestes também eram diferentes de qualquer coisa que já tinha visto. Um verde escuro o cobria do pescoço até os pés descalços. Com as perguntas encarceradas dentro de suas cabeças, os dois foram encaminhados até o centro do salão. Adiante estava um único trono, com um homem de cabelos grisalhos sentado. O velho era forte e estava compenetrado, olhos nos visitantes sem demonstrar hesitação.
— Meu nome é Aok-Valere. Apresentem-se! — a voz poderosa disfarçava a idade. Scorpio deu dois passos à frente e ajoelhou-se.
— Eu sou o Rei de Kelicerata, o reino do leste. Um caído do céu, filho da constelação de Escorpião. O que me acompanha é um dos meus súditos mais ilustres, em Kelicerata é ministro de guerra e meu braço direito, Amato. — Amato imitou Scorpio, apesar de estar relutante sobre ficar de joelhos.
— Os que vêm até mim, não o fazem sem interesses. O que desejam, habitantes do leste?
— Estamos numa expedição ao reino do oeste. Precisamos investigar a relação de Casul com um recente crime que aconteceu, levando a vida de vários membros da corte de Kelicerata. Peço que dê passagem ao nosso grupo.
— Por que não mandaram um mensageiro ou investigador, se tudo não passa de uma suspeita? Muito me estranha a presença de um rei, um ministro e tantos soldados para este fim.
— Não creio que medidas políticas do nosso reino devam ser decididas por alguém como você, se me permite a liberdade de dizer — disse Amato.
— Perdoe o meu acompanhante, ele ainda não sabe como agir perante o glorioso guerreiro de Libra. — disse Scorpio apressadamente, o que surpreendeu Amato.
— Não tem problema. O seu pedido, no entanto, eu devo negar. Voltem para o lugar de onde saíram! — os três que ouviam não esperavam uma resposta tão direta. Amato já organizava as palavras para argumentar, quando viu Scorpio se levantando.
— Então só me resta agradecer a sua boa vontade de nos ter atendido. Com sua licença. — e dizendo isso, se retirou, levando Amato consigo.
Já de volta na entrada do castelo, os dois discutiam. Amato mostrava intensa raiva, enquanto Scorpio permanecia calado, para no final responder a todas as afrontas:
— Eu não devia ter trazido você ao castelo. Lembra todo o tempo que precisou estudar para deixar de ser um ministro de fachada? Pois eu também tive anos de preparo antes de ser coroado. E se existe algo que nenhum rei pode fazer, seja de Kelicerata ou Casul, é desobedecer ao guerreiro de Libra.
— Mesmo assim, não vejo a razão de tanta submissão!
— Você não deve estar lembrando, mas tanto esta ponte quanto este castelo foram construídos por Sauza. E eu, como filho do zodíaco, não posso me dar a certas liberdades.
Foi então que Amato se lembrou do seu pai. E o fato de não poder sair do Cesaro. Realmente, havia forças misteriosas que ele poderia não entender, mas que eram claras como água e firmes como pedra para os caídos do céu.
Dentro do castelo, outra voz reclamava solitária. O jovem Bak-Tanu se exaltava:
— Você deveria ser o homem mais justo! Como eu posso continuar aprendendo agora? Não fuja, eu quero uma explicação! — os dois subiam alguns lances de escada, levando a uma antiga sala de tortura. — Não finja que não está ouvindo! O que vou responder quando me perguntarem sobre você? Devo minha vida inteira ao senhor, então não seria capaz de expô-lo como a farsa que acabou de se mostrar. Mas, ao mentir sobre algo tão sério, não estaria eu sendo injusto? Por que não diz nada?
— Você sabe muito bem que eu não deixo nenhuma injustiça passar impune...
— Então por que negou o pedido daqueles homens? Sei que teve motivos próprios e decidiu arbitrariamente! Foi por ela? — antes de continuar falando, o som desapareceu da boca de Bak-Tanu. Ele viu seu mestre acionar a guilhotina, e com a queda da lâmina, o braço direito do velho rolou pelo chão, ao som de um grito desesperado.
— ... Mas eu sou um homem, e não estou livre de cometê-las. — disse afinal, com a voz carregada de dor.
Do lado de fora, o grupo já se ia ao longe, todos indignados por terem viajado em vão. Voltando pelo caminho, encontraram os últimos do grupo que ainda vinham no encalço, trazendo mantimentos, até que finalmente alcançaram a terra firme. Scorpio rapidamente reuniu um grande grupo de cavalos selvagens e os amansou, e em seguida chegaram as montarias dele e de Amato.
Erguido em seu gavião-imperador, Scorpio ordenou que voltassem o mais rápido possível para o Castelo Henpakihan. Amato, montado no seu corvo-imperador, tomava outro caminho, mas comprometeu-se a voltar o mais rápido possível.
III
O despertar da Lua
Já era tarde da noite quando Amato terminou sua escultura de areia. Apanhou uma brasa da fogueira e colocou de modo a iluminar o pequeno Cesaro que ele havia reproduzido. Orgulhoso, olhou para Yozien procurando ouvir elogios, mas o velho já dormia, deitado na praia.
— Não tem nem cinquenta e não aguenta ficar acordado à noite. Que vergonha, Yozien! — dizia Amato estufando o peito, mas não tão alto ao ponto de acordá-lo. Saiu em busca de pedras lisas pela praia, para montar outra escultura, quando de repente ouviu um barulho. Eram vozes que vinham da água. Procurou uma rocha para servir de esconderijo e pelo alto da pedra, se esgueirando, conseguiu ver. Três pessoas brincavam na beira da praia. Eram adolescentes com cabelos pretos, caídos nas costas. Amato ficou um tempo observando o que faziam. Entravam na água e subiam pulando, fazendo acrobacias. Em um dos saltos, Amato notou que um deles era uma garota. A luz da Lua refletiu na água e revelou pequenos seios que balançavam com o subir e descer das ondas. Sem perceber, o menino acabou se desequilibrando e caindo.
— Ei, o que é aquilo? — perguntaram os três. Andaram até a praia e cercaram Amato que tinha a pedra, antes seu refúgio, impedindo sua escapada.
— Sabe nadar? Vem com a gente! — disse um deles. Amato, completamente calado, obedeceu. Vivia sozinho com dois adultos, e só podia se divertir com outras crianças quando ia a algum vilarejo com Yozien. Não lhe passou na cabeça negar o convite.
Tirou a camisa e foi com os três. Enquanto nadavam para longe da costa, Amato percebeu a diferença nos olhos e na cor da pele daqueles estranhos. Mas a garota o encantava de tal jeito que ele menosprezou a estranheza no primeiro sorriso dela. Eles saltavam no ar com uma leveza desconhecida para Amato. Tinha dificuldade só para manter o peito acima da água, quanto mais dar pulos acima da cabeça dos outros.
— Vamos ajudar ele. — disse um dos garotos. Submergiram e Amato sentiu um puxão repentino. Foi sugado para dentro da água, mas antes de poder se desesperar, sentiu seu corpo girar e ser arremessado para o alto. Ele voava, o corpo rodopiando. De relance viu a garota acenar para ele com um largo sorriso no rosto, o que encheu seu peito de felicidade. Mas não calculou a descida e bateu de cara com a superfície da água. Levantou com o corpo ardido, fazendo caretas e tirando risadas dos demais.
— Ei, vamos levar ele para a mamãe. — falou um dos garotos. Os três se aproximaram de Amato e o convidaram para ir com eles.
— Não se preocupe, não tem problema nenhum, você vai poder até saltar da água igual a nós! — disse a garota. Ela estendeu a mão e ele segurou. Passou o braço pelo pescoço dela, se agarrando.
— Cuidado com a Água! — um dos garotos falou antes de disparar nadando para longe da costa, e os outros seguiram. Amato ficou maravilhado com a velocidade que nadavam. Ela ia pela superfície, de modo a deixar Amato respirar, e os outros dois os rodeavam, pulando da água com uma velocidade impressionante. O passeio era algo fantástico, Apenas a luz da Lua dava alguma noção de onde eles estavam. Subitamente Amato ouviu o som do mar aumentando; quando a garota pulou, ele pode notar do alto o que era. Um redemoinho gigantesco girava ao lado deles. Ele apertou o braço contra a garota e enterrou o nariz nos cabelos pretos dela.
Após mais um tempo de nado, os três estranhos pararam e ficaram boiando. A garota segurou os braços de Amato com uma força fora do comum, e disse:
— Não tenha medo. Confie em mim. — Amato confirmou e todos submergiram. Ele não conseguia ver nada além do preto, mas os outros pareciam saber para onde iam. Amato percebeu que era cada vez mais profundo, e que a força da água puxava com mais força. Mesmo confiante nos novos amigos, ele ainda precisava respirar. Com desespero, começou a agitar a garota, que não dava atenção e continuava a descer. Com medo de morrer, conseguiu girar e deu um pontapé com toda força nela, e acabou se soltando. Nadou com tudo que pôde. Quando emergiu, ele deu de cara com a Lua e soltou um grito que ecoou na escuridão, enquanto recobrava o fôlego. Seu corpo não aguentava mais nada, doía por dentro, e por isso ele não teve reação quando sentiu a corrente o levar. Dessa vez, o redemoinho o sugava e ele não teve como evitar, foi tragado e engolido enquanto era levado pela parede de água giratória.
Os dois garotos já nadavam a toda velocidade para salvar Amato quando a água do mar parou de se mover. Ele apareceu novamente na superfície, como se o mar o devolvesse de bom grado. Sem entender, começaram a olhar ao redor, e viram chegar pela superfície um homem. Yozien deslizava muito mais rápido que qualquer deles conseguia nadar. Apanhou Amato e com um movimento de mão, o fez cuspir toda água que havia engolido. Amato estava tonto e mal conseguia abrir os olhos. Ouviu sem muita certeza, o diálogo que desenrolava.
— O que você está fazendo aqui em cima?
— Nós só queríamos ver um pouco o mundo de terra, nem chegamos a sair da água.
— Eu não quero ouvir desculpas, aqui em cima não é o seu lugar. Voltem agora!
— Eu não tenho medo do mundo aqui em cima, ouviu?
— Calados! Essa insubordinação só cai bem quando direcionada contra quem não pode sobrepuja-la.
E com um movimento de mão, os três jovens foram puxados para o fundo do mar, pela força da água. Yozien voltou com Amato no colo, surfando numa onda tão forte que desfez todos os redemoinhos que havia no caminho. Quando chegou à praia, deitou o garoto, agora chorando, na areia. Depois de acalmar e fazer o garoto dormir, ele refez os redemoinhos.
Capítulo 7: Mudança de comportamento
I
Tiestes avistou ao longe a sombra cobrindo sua singela casa. O conhecido corvo-imperador dormia ao lado, sinalizando a visita de Amato. Entrou em casa e não encontrou ninguém, então foi até o templo. No centro, sentado na pedra onde antigamente Yozien sentava para jogar, estava ele rabiscando num papel.
— Já era tempo de você aparecer de novo. — disse Tiestes. Amato levantou os olhos e viu a barba, já grisalha, de seu pai. Levantou e deu um abraço.
— Como você está? A maioria não vive até a sua idade. — disse Amato rindo.
— Estou alerta como sempre! Mas não imaginava encontrar você aqui. A última vez que vi, estava voltando pela ponte. — disse Tiestes, e os dois sentaram à mesa de pedra.
— E chama isso de alerta? Já faz alguns dias que aconteceu. Bom, acho que um homem desatento em estado de alerta continua sem atenção... — continuou espirituoso.
— A verdade é que outra coisa tem prendido a minha atenção — disse Tiestes fechando o punho seriamente — alguns dias atrás nasceu o filho de Charles. O parto teve complicações, o garoto não me parece nutrido, e a mãe morreu logo após dar à luz.
— Sinto muito, pai, eu sequer sabia da gravidez.
— Deveria saber! Quando voltar, trate de saber o estado do garoto e me avise. E dê dinheiro ao Charles.
— Será providenciado, não tenha dúvida. — Amato começou a mexer no papel que rabiscava, às vezes dobrando e desdobrando, num gesto de inquietação. — Você tem conhecimento do que está acontecendo no reino?
— Acredito que sim. Pelo que vi, você contratou assassinos para matar os conselheiros e armar uma guerra contra Casul. Foi até o Castelo de Libra, mas teve de voltar.
— Quase isso. A nossa viagem era apenas para completar uma investigação. Quando estivéssemos em Casul eu arranjaria uma conexão entre eles e um comerciante de Kelicerata, suspeito de ser o mandante dos assassinatos.
— Esta guerra só vai trazer sofrimento para a população de ambos os lados, não é garantia nenhuma de conseguir matar os alvos.
— Não precisamos de garantia, pai. Você não ouve o que eles falam, mas eu ouço e sei que o combate entre os filhos do zodíaco é inevitável. Eles vão matar uns aos outros. — Tiestes baixou a cabeça, pensativo.
— O que eu sei é que sete anos atrás você matou meu amigo prometendo a minha liberdade, e até hoje o seu progresso avançou tanto quanto aquela noite.
— Você fala como se ele significasse mais para você que para mim! — os dois ficaram em silêncio por um tempo. — De qualquer forma, eu preciso de sua ajuda. O guerreiro de Libra decidiu que não podemos ir até Casul, e Scorpio baixou a cabeça como um cachorro. Sem essa passagem, preciso montar a investida avançando pela península.
— Você perdeu a cabeça? — Tiestes levantou a voz e ficou de pé.
— Sei que você não concorda, mas eu preciso que você detalhe mais este mapa. Preciso conhecer melhor o caminho para traçar um percurso, e não posso perder mais tempo enviando equipes de reconhecimento. — Amato recebeu um tapa no rosto que o levou ao chão. Boquiaberto, permanecia imóvel olhando para a violência repentina do pai.
— No fundo eu achava que você poderia me libertar, mas era puro engano. Você está insano! Ouça bem minhas palavras: Saga está naquela floresta maldita. Ir até lá só traz morte e destruição às pessoas. Eu te proíbo de ir até ele.
Amato segurou o papel rabiscado que continha o mapa de Maciaan e saiu sem dizer nada. Ao ver o corvo-imperador levantar voo ao longe, Tiestes lamentou:
— Você vai acabar arruinando tudo.
***
Do alto de uma torre no Castelo Henpakihan, um soldado vigiava os arredores com displicência. De tempo em tempo dava um gole numa garrafa de vinho que mantinha ao lado dos pés. Ao olhar mais para cima, procurando a cintilação das primeiras estrelas no céu, observou uma mancha inesperada.
Vindo do norte, mais alto que as nuvens, chegava Amato no seu corvo-imperador. Sendo o único no reino, desconsiderando o próprio rei, a utilizar aquele tipo de montaria, a admiração dos soldados foi logo conquistada. Mal sabiam eles que o comando da fera se dava não por subjugo do ministro, mas por subserviência ao rei. Nos primeiros anos após a nomeação de Amato, Scorpio o chamou até a floresta onde passava a maior parte dos dias e, desculpando-se pelo atraso, presenteou o amigo com o corvo-imperador. Passou ao animal a incumbência de cuidar de Amato e obedecer ao seu comando. Posteriormente, Scorpio reconheceu em Amadeu um talento ainda superior para combate, porém as suas realizações em campanhas não o destacava dos demais generais, significando que uma premiação de tal porte para um soldado que nada fez de excepcional não era cabível, para o lamento do rei.
De volta ao castelo, alguns soldados exercitavam esgrima num amplo pátio, quando tiveram de abrir espaço para o pouso e chegada do ministro. Avisado da permanência do rei no castelo, e da intenção de ter com ele assuntos a discutir, Amato disse apenas que estava cansado e se apresentaria na manhã do dia seguinte. A paz e o silêncio, no entanto, acabaram sendo interrompidos. Quando já estava deitado, músculos relaxados após um longo banho quente, batidas à porta distraíram o seu pensamento. Mesmo sem a permissão, minutos depois ela se abriu.
— Soube que havia chegado — era o ministro do comércio — Scorpio contou que a passagem até o reino de Casul nos foi proibida. O que faremos então?
Amato piscou o olho e percebeu que já tinha visto ratos mais corajosos que Ingrid. O medo constante de ser assassinado era para aquele homem como uma teia prendendo uma mosca, não deixando nenhuma alternativa a não ser permanecer imóvel e vulnerável.
— Amanhã conversamos. — respondeu Amato sem se mover da cama. Ingrid deu alguns passos e já próximo, tentou novamente:
— Ora, vamos com isso! Nosso reino sendo alvo de ataques sorrateiros e você preocupado em manter uma boa noite de sono? Isso não me parece correto.
— Vamos por terra até Casul. Partiremos o mais rápido possível. — Amato respondeu sem sequer abrir os olhos. Só queria se ver livre o mais rápido possível daquele inconveniente.
— Como assim? Está louco? — súbita histeria tomou conta de Ingrid, após ouvir a resposta. Antes de continuar a demonstrar sua revolta, outra pessoa surgiu à porta. Era Alba, que caminhava com pés leves e um perfume inebriante. Pôs os braços ao redor de Ingrid e perguntou:
— O que está acontecendo aqui? — Amato não tinha se dado conta da presença dela até ouvir a voz. Viu a linda mulher de uniforme, o que era muito raro de acontecer. Apesar de ser um modelo feminino, seguia o mesmo padrão que o uniforme dele e Ingrid, mas de um púrpura que a destacava em qualquer ambiente. Os olhos dela miravam ele, e de repente se sentiu acuado na própria cama, finalmente sentindo o perfume fatal. Voltou a si e lembrou-se de Ingrid parado bem ao lado dela.
— Nada. Seu marido apenas está me importunando por não concordar com algo que já está decidido.
— Ora, querido — dizia com a voz doce — vamos deixar ele descansar, acabou de chegar de uma longa viagem! E onde está sua esposa? Você deve estar doido por uma noite com ela, não é verdade?
— Ela está na casa de minha sogra. E por favor, estou cansado e ficaria muito agradecido se saíssem.
Ciente do incômodo que causava, Ingrid se despediu rudemente e saiu com a sua mulher. Alba notou um olhar cansado em Amato, e mais que isso, uma tristeza muito grande em ele ter que falar com Ingrid, quase digno de pena. “Fico até com vontade de ajudar”, ela pensou. No quarto, ele voltou a reclamar.
— Ele está fora de controle! Quer marchar direto para uma terra que não conhecemos, terras quais jamais alguém retornou!
— Ora, não seja rabugento! Deixou de reclamar no ouvido dele para fazê-lo no meu?
— Pois se eu não reclamar, eles farão o que bem entendem!
— Então que façam! Não imaginou o que pode lucrar com isso? O rei e o ministro de guerra desaparecidos. Com os conselheiros falecidos, nós dois podemos reivindicar o governo de Kelicerata sem maiores complicações.
Um brilho despontou nos olhos de Ingrid. Enquanto sua cabeça transbordava pensamentos de glória, Alba subiu à cama tomando um copo de vinho. Vagarosamente desabotoava o uniforme, chamando o marido com as mãos delicadas.
Ele abriu um largo sorriso, não se podendo dizer devido à provocação da mulher ou as fantasias que imaginava, sendo coroado. Alegre e desajeitado, caminhou até a cama onde ela já o esperava, seminua.
II
No dia seguinte, Amato atendeu o chamado de Scorpio e foi ter com ele. A teimosia de Ingrid já tinha marcado o seu humor desde o dia anterior, e não estava disposto a ter longas discussões sobre a nova investida. Infelizmente para Amato, Scorpio não tendia a aceitar sua requisição.
— Como está fora de questão? — exaltado, Amato já havia perdido a paciência no início da conversa.
— Eu já disse, não vou andar até Casul por aquelas terras malditas. — Scorpio mantinha a confiança no olhar de sempre, como um totem inabalável, passível apenas de admiração. — Se fosse uma necessidade essencial, saiba que eu iria sozinho pela ponte. Ou voando acima do oceano. Mas o sul ao reino de Casul é para mim um território proibido.
— E quem proibiu? — perguntou, atiçando a altivez do rei.
— Eu mesmo. Amato, eu sei bem das histórias sobre aquele lugar. Maldição, doença, morte, são bons meios para controlar o medo no coração das pessoas. Uma cabeça inteligente alastraria boatos desta natureza para proteger um local de invasores e curiosos. Porém eu sei que o que existe lá não é invenção e muito menos superstição. Você viu o santuário na floresta de Kelicerata e já lhe disse que existe uma força misteriosa, proveniente de Sauza que paira naquele lugar.
— Onde tomamos conhecimento do nosso destino através das estrelas no céu...
— Exatamente, e mesmo eu que passo tanto tempo de minha vida naquele lugar, não logrei desvendar os seus mistérios. Uma noite eu adormeci no santuário e tive um sonho em que eu voava por toda Maciaan. Sobrevoei a copa das maiores árvores do meu reino, observei do alto o Cesaro, de onde lembranças jamais tive, desci até as areias do deserto, onde as tempestades de areia guiavam meu caminho. Fui até o oceano, molhando minhas mãos e pés enquanto voava bem baixo. Planei por toda Casul, atentando para a beleza de sua natureza e dos animais que lá vivem. De repente, quando entrei no espaço aéreo de certa floresta ao sul de Casul, comecei a cair. Não tive apreensão, pois sabia que se tratava de um sonho. Quando tocasse o chão, acordaria no santuário bem ao meio da floresta, ileso.
Scorpio sentou-se com ombros pesados, a mera lembrança que ressurgia na mente o pressionava como um rochedo em suas costas, e continuou:
— Eu não acordei. Bati com minhas costas no chão, uma queda de altura inimaginável. As lágrimas jorraram sem eu me dar conta, pois a dor havia me privado de todos os sentidos. Estava completamente quebrado, sem poder me mover de jeito algum, mas eu sentia a grama roçar meus dedos. Abri meus olhos esperando encontrar a selva que observara ainda em voo, mas eu nada vi. Eu não estava cego, apenas não existia nada para se ver. Fiquei horas na pura escuridão, com o roçar da grama me dizendo que eu ainda estava vivo e em algum lugar. Depois de um tempo, eu senti que algo me rondava, mas não fazia som algum. Gritei para ter certeza que não estava surdo. E mesmo assim alguma coisa se aproximava sem fazer som, sem ser vista, pois o mundo inteiro era preto. Aquilo não chegou a me tocar, mas eu sei que algo estava me rondando, me observando. Quando finalmente acordei, estava tremendo, suando e não tinha certeza de quem eu era. Passei muitos dias até poder me considerar lúcido novamente, e desde então prometi a mim mesmo que jamais voltaria até aquele local. E recomendo que não tente a sua sorte.
Amato ouviu calado, e ao término sentiu um calafrio, principalmente porque a mão de Scorpio tremia, e sua testa brilhava com suor frio. Não parecia certo discordar do testemunho que acabara de ouvir, mas no fim das contas, ainda era um sonho.
— Os homens que servem Sua Majestade sabem que na iminência de guerra, estarão lutando contra a reencarnação de Sauza, e mesmo assim mantém sua convicção para marchar em frente. Peço que não desonre a escolha destes homens, principalmente se não acredita que essa força misteriosa seja mais ameaçadora que o próprio Sauza reencarnado.
— Eu já disse. A última coisa que espero é iniciar uma guerra, pois estaria declarando a destruição do meu reino.
— Então permita que eu envie uma equipe de reconhecimento, ao menos. Por mais real que seja sua percepção, ainda foi apenas um sonho. Pode não significar nada! Teremos que esperar mais assassinatos para agir?
Scorpio se pegou pensando nos seus conselheiros. Velhos bajuladores, egoístas e prepotentes, mas que saberiam agir neste momento. Seria o seu medo pela segurança do reino, a causa da aniquilação do mesmo? A própria Casul tinha sido totalmente destruída anos atrás, e hoje se mantém próspera. Talvez o caminho a seguir fosse o sul de Casul, pois mesmo a destruição é alguma coisa. Quando não houvesse nada para chamar de Kelicerata, aí sim ele teria sua derrota.
— Amato, eu não concordo com o caminho que você quer seguir. Mas eu quero saber aonde isso vai nos levar. A partir de amanhã, você estará encarregado de qualquer decisão estratégica envolvendo Kelicerata. Estou partindo em exílio voluntário e abdicando de qualquer contato humano. O acesso à floresta privativa está negado a todo e qualquer um que ande sobre duas pernas. Minhas feras darão cabo de qualquer um, inclusive você, se ousar.
— Não se preocupe, Sua Majestade. Conheço bem o seu hábito de passar longos períodos na selva. — enquanto fazia uma reverência em agradecimento, Amato sentia a grandiosidade do sucesso tomando conta de seu corpo.
— Desta vez eu pretendo não voltar mais. — e dito isto, Amato percebeu que falava com uma pessoa diferente da que o aguardava no momento que entrou no salão. “Ele perdeu o amor pelo seu reino, abandonou a condição social ou apenas ficou louco?” pensou Amato. Sem saber o que dizer, ele se despediu e saiu do cômodo, deixando Scorpio com sua mão ainda trêmula.
III
Durante a tarde, Amato andava pelas ruas de Kelicerata com um soldado escoltando. De frente a uma porta suja de uma casa modesta, os dois pararam. Sons de batida se perdiam nos aposentos da casa, sem que ninguém viesse atender à porta. Quando já se iam, uma gorda senhora saiu da casa ao lado procurando saber o motivo da visita. Não sabia se tratar do ministro de guerra, mas de ver o soldado junto, ela não estava esperando boas novas.
— Boa tarde, senhora. Conhece o paradeiro do dono desta casa?
— Ele deve estar por aí bebendo. Não faz nada o dia todo. O que foi que aconteceu?
Os dois estranhos se aproximaram da mulher. De dentro da casa dela saía um choro estridente.
— Não precisa se preocupar, só queremos conversar com a pessoa que mora ao lado, não viemos prendê-lo nem nada parecido. — logo após a palavra ser dita, um mendigo parou à primeira porta e pôs-se a abri-la com a chave.
— Charles! — gritou Amato. Nem bem viu quem o chamava, o andrajoso se apressou a entrar e bater a porta. O soldado foi rápido e a segurou antes de ser fechada.
— Viemos te ajudar! Trouxe dinheiro, também! — Amato continuava ao lado da gorda, que torcia a sobrancelha com pena do estado de Charles.
Ele saiu desconfiado, e vagarosamente se aproximou de Amato. O bafo de álcool queimou as narinas de Amato e a senhora tapou o rosto com a mão, reclamando:
— Toma vergonha na cara, vagabundo! Seu menino tá aqui dentro chorando!
Indiferente, Charles fitou Amato, mas não demonstrou nenhuma reação. Para ele, era um estranho com boas roupas.
— Dinheiro para mim. Quem mandou? — Amato não teve vontade de se apresentar, tal estado deprimente se encontrava o velho conhecido.
— Nós trabalhamos no castelo. Ficamos sabendo do falecimento da sua mulher após o parto de seu filho. Não gostaria de trabalhar com a gente? Podemos te arranjar um bom posto, com salário digno. E já trouxemos uma quantia de antemão.
— Deixa eu ver o dinheiro...
O soldado retirou da cintura uma bolsa com um punhado de moedas de ouro e entregou ao homem, que balançou no ar, sentindo o peso. Abriu e se maravilhou com a quantidade de dinheiro. Exalando um cheiro horrível, deu uma risadinha.
— Obrigado, mas eu não tenho interesse... — dito isso, saiu com a bolsa tilintando pela rua, deixando a porta da casa aberta.
— É um traste mesmo! — desaprovou a gorda. — Ficou assim depois que a mulher morreu, nem para o filho ele liga mais.
— Senhora, qualquer ajuda quer precisar, estará autorizada a pedir na entrada do castelo. Dinheiro, roupas, comida, o que quiser. Caso algum dia pense em deixar de criar o menino, não o largue às ruas, leve-o até lá que o acolheremos também.
— É mesmo? — a mulher duvidou. — Esse menino é seu filho, por acaso?
— Não é nada disso — Amato pediu uma placa de metal ao soldado, que tinha a marca de um brasão real — basta apresentar isso, que será atendida, entendeu?
— Muito obrigada, moço. — e a mulher se despediu, ainda com alguma desconfiança.
Na volta para o castelo, Amato encontrou Amadeu seguindo para o mesmo destino, e decidiram ir juntos.
— Zuldur ainda não voltou?
— Não, até agora nada. Como vamos proceder com a investigação?
— Que bom você perguntar isso. Eu ia te designar para liderar alguns regimentos até Casul. Por terra.
— Estou de prontidão desde já! Eu não ganhei a alcunha de imortal por ficar esperando na reserva. Quanto maior o desafio, maior é a conquista.
— Gosto do seu jeito de pensar, Amadeu. Mas gosto ainda mais do seu jeito de lutar. Só não vá se empolgar demais no meio do campo de batalha.
— Eu me empolgo sempre. Você ficasse com o posto de general, poderia comprovar com seus olhos.
— Eu não me arrependo, Amadeu. Meu trabalho pode não ter a carga emocional que a vida de um combatente, mas eu lutei meu caminho até aqui, e tenho muito para seguir ainda. E a nova geração de recrutas, tem a garra necessária?
— Tem uns muito bons. Mas nenhum com a sua ousadia.
— Nem sua habilidade. Estou certo?
— Eu ainda vou melhorar muito, não estou perto do meu auge. E tenho certeza que algum dos meus homens vai me superar um dia, se não for o caso, é culpa minha de não treiná-los suficiente.
— Tomara mesmo. Não é bom para um exército ter como seu maior guerreiro um homem que já beira os quarenta! — e os dois passaram pelo portão do castelo rindo.
Após conversar mais à luz do Sol poente, eles seguiram seus caminhos, e Amato se pegou pensando em como Amadeu era um bom amigo. Chegou a sentir vergonha de si mesmo. Sabia que podia confiar sua vida a Amadeu, porém se ele lhe fizesse o mesmo, se decepcionaria completamente. “Infelizmente, algumas coisas ruins não podem ser evitadas”, pensou Amato. Pela janela, podia ser vista com clareza a constelação de Áries cintilando.
IV
Quando terminou sua refeição, Amato topou com Ingrid Monroe. Já não tinha mais garganta para gastar com aquele que considerava um verdadeiro verme, mas ignorando o olhar seco, ele veio lhe falar.
— Como vai, ministro? Tenho uma notícia que pode te agradar.
— É mesmo? O que seria? Poderia acompanha-lo no jantar, mas acabei de me empanturrar, sabe...
— Apenas saiba que aceito a sua ideia louca de chegar a Casul pela península. E darei todo apoio que necessitar.
Dito isso, ele saiu andando, satisfeito por saber que a cabeça de Amato estava rodopiando em dúvidas devido à repentina mudança.
— Espere! — por reflexo, ele perguntaria o motivo da mudança de decisão do velho, mas logo viu que isso não importava. Agora tudo marchava segundo seus planos, então não havia por que discutir. Rapidamente desconversou — sua esposa não vai jantar em sua companhia?
— Hoje ela está fazendo averiguações em algumas casas hospitalares da cidade... É só isso que quer saber? — perguntou Ingrid, se divertindo com a tormenta que se passava na cabeça do ministro de guerra, ou ao menos assim ele pensava.
— Sim, sim. Então, boa noite.
Amato seguia para seus aposentos quando resolveu, com o humor renovado, visitar Scorpio uma última vez antes da partida. À porta do suntuoso quarto, ele se deteve. Ouviu urros de fúria, saindo do interior do aposento. Primeiro achou se tratar de uma sessão de exercícios físicos, mas fazer isso dentro de um quarto, no meio da noite, era peculiar até mesmo para Scorpio. E a ferocidade do grito e da respiração era demasiada, mesmo para as sessões de treino mais árduas. Silenciosamente abriu a porta devagar, até visualizar o que acontecia.
Em cima da cama estava Alba, completamente despida, de quatro como uma gata no cio, com os cabelos balançando sobre o rosto. Colado atrás dela, Scorpio mostrava sua selvageria, ignorando qualquer delicadeza emanada pelo corpo de Alba. Foi então que Amato se deu conta que nunca tinha visto Alba inteiramente despida. Fosse uma luva ou uma joia, ela sempre tinha algo junto ao seu corpo. Esse pensamento inexplicavelmente tomou conta da mente de Amato, e se indagava o que era aquilo que estava sentindo. Ciúme, não poderia ser. Ele sempre soube da natureza promíscua de Alba e aquilo já não o afetava. Inveja, talvez, mas o motivo não ficava claro. Chegou à conclusão que tinha inveja de Scorpio, mas não porque ele agora dominava o corpo e o espírito de Alba, mas era um sentimento bem mais profundo. A força dele, o respeito, o poder que exercia, e a ferocidade com que dominava sua presa. Um sentimento perturbador, de tal forma que ele não queria estar no lugar de Scorpio, brutalmente usando Alba. Ele queria ser Scorpio.
— Mas quanta baboseira estou pensando... — disse, retomando seus pensamentos. Fechou a porta devagar e foi até seu quarto. Antes de dormir, olhou por longo tempo o quadro na parede, em que posavam ele e Regina no dia do casamento. Não sabia explicar, mas não era mais um homem bom, o homem que estava retratado na pintura, e sentia falta de ser aquela pessoa. Chamou um serviçal e lhe deu algumas ordens, antes de finalmente pegar no sono.
No dia seguinte, Scorpio não existia mais no cotidiano do castelo. Tinha desaparecido e ninguém sabia o paradeiro, mas também não se preocuparam, pois era algo comum. Apenas não sabiam que desta vez, ele não voltaria. Enquanto limpava a sua lança, há muito não utilizada, Amato recebeu uma visita no quarto.
— Soube do sumiço do rei? — Alba andava pelo quarto arrastando a ponta da saia no chão. Cada passo era denunciado pelo barulho do tecido.
— Ele me comunicara da partida previamente. — respondeu sem tirar os olhos da lança.
— Estão trocando confidências? O que acha de trocar confidências comigo, hein? Pare de afiar essa arma, vem aqui que posso te contar alguns segredos meus... — provocou. Quando Amato se virou, ela já estava deitada na cama, o dedo passeando pelo decote, numa insinuação irresistível. Amato sentou na cama, ao lado dela.
— Eu só estava limpando. Esta lança não perde o fio. — ele segurou os cabelos de Alba com força e juntou a ponta da lança ao pescoço dela. Ambos se desafiavam com os olhos, e ele fez um corte raso na ponta da orelha de Alba, que tremeu assustada. Ela tocou com a mão para ter certeza do sangue, e antes que Alba pudesse dizer algo, ele a beijou. Alba não teria poder algum sobre ele, pois agora sabia que ela suportaria qualquer violência da parte dele. “A sua fragilidade é apenas uma ilusão”, pensou Amato.
— Você é tudo de bom! — disse Alba, olhando nos olhos de Amato. Ainda com o corpo suado, ela se vestiu e saiu satisfeita, sem sequer lembrar do corte que havia sofrido. Mas Amato continuou na cama, ainda aturdido. “Ela não tirou o bracelete de ouro... Ficou com ele até o fim”. Várias nuvens transcorreram a janela, enquanto Amato pensava sobre isso, sem saber o motivo.
Em uma das salas do castelo, Amadeu conversava com Calister e Gabriel Suines. Amato pediu que se apresentassem para ouvir as recomendações relativas à próxima campanha militar, e ali já estavam reunidos. Quando Amato chegava à sala, entretanto, Regina saltou em seus braços, lhe causando grande surpresa.
— Como é possível isso? Ontem à noite despachei o mensageiro para lhe buscar.
— É que eu já estava a caminho daqui, seu bobo! — a distância parecia ter restaurado o romance de Regina pelo seu marido. O sorriso que carregava por finalmente estar no castelo com Amato era ofuscante. Calister e Amadeu foram até a porta e a cumprimentaram, compartilhando da euforia contagiante trazida por Regina.
— Como está sua mãe? — adiantou-se Amato.
— Muito bem, quero trazê-la aqui por uns tempos, pois tem muita saudade de nós.
— Tenho uma reunião agora com esses falastrões, mas depois encontro contigo. — dito isso, os três se despediram e entraram na sala onde o primogênito dos irmãos Suines esperava.
— Meus bons homens, como já sabem, teremos algumas batalhas daqui em diante. Amadeu, daqui a cinco dias você marchará com mil e oitocentos homens ao sul de Kelicerata. Seguirá o trajeto definido previamente por Bartolomeu. Eu ainda não vi esses planos, mas confio no julgamento dele, até porque ele se valerá de nossa viagem para encaminhar os próprios empregados. Eles ficarão em determinados pontos para estabelecer comércio ao longo das terras costeiras.
— Mil e oitocentos? Isso é quase metade de toda força militar! Quais generais e capitães me acompanharão?
— Isso fica ao seu critério. Não estarei na viagem, então toda liderança militar e decisória fica sob sua alçada. O contingente se justifica pelo desconhecimento que temos do lugar mais ao oeste, onde começa a península. E claro, serve de garantia de vitória, pois uma vez atravessada, a península se torna o caminho ideal para um ataque de grande proporção, já que Casul jamais esperaria tropas vindo pelo sul.
— Zuldur ainda não chegou da última campanha, é uma pena. Seria minha primeira escolha. E posso tirar conclusão por esta viagem, que não existe negociação possível?
— A ordem é atacar de imediato. Estabelecida a rota para Casul, nada de avisos. Já tivemos comprovação que o assassinato dos membros da corte foi ordem deles. Enquanto esperam nossa chegada pelo leste para averiguação, serão surpreendidos por um ataque massivo oriundo do sul.
Amadeu não segurou a excitação e seus olhos brilharam. Era um guerreiro nato e o ardor da batalha o exortava.
— Calister, com a rota de abastecimento sendo construída, você deverá cuidar da fabricação dos armamentos. O senhor Gabriel Suines tem a matéria-prima e o conhecimento mais que suficiente para nos assistir. Ponha a mão-de-obra do castelo à disposição dele.
— Toda essa dedicação vai custar muito! — comentou Gabriel Suines, finalmente manifestando sua voz grave. Amato já conhecia o espírito sovina do homem, bem como sua ligação forte com seus irmãos, e não mostrou hesitação nas regalias.
— Eu, representando o rei, estou disposto a não apenas pagar pelo serviço prestado, mas ofereço também um estipêndio a você e seus irmãos, de forma que nada faltará para manter uma vida cheia de regalias.
Gabriel, acostumado a longas discussões com pechincheiros, ficou sem palavras, até mesmo para agradecer. Percebendo o convidado sem jeito, Amato apertou-lhe a mão e ofereceu uma bebida.
— Senhores, já estão a par de todas as informações. Nada mais tenho a dizer. — concluiu Amato.
Despediram-se e assim que abriram a porta, deram de cara com Regina, que ficara do lado de fora, esperando a reunião terminar.
— Não precisava ficar aqui esperando — reclamou Amato, despedindo-se novamente dos outros.
— Eu fiquei com vontade. — disse ela, segurando a mão de seu marido. Aquele carinho reconfortou Amato, e o fez lembrar a época que ainda não era ministro e agia demasiado cortesmente com Regina.
— Essa cama está desarrumada desde cedo? Como é possível que ninguém viesse ajeitar isto? — Regina exclamou sobre sua cama.
Amato engoliu seco e não deixou de se sentir culpado ao ver a mulher deitada na cama e esperando por ele.
— Querida, eu ainda tenho umas coisas para fazer... Nos vemos de noite, então? — sem esperar resposta, Amato pegou sua lança e sumiu pelos corredores do castelo. Somente quando anoiteceu, se deu conta que tinha passado um longo tempo sozinho no pátio, praticando com a lança.
V
No dia da partida, os soldados arregimentados cobriam o chão à frente do Castelo Henpakihan. Mais próximo ao portão do muro externo, o sacerdote abençoava os guerreiros em nome de Sauza, com Amadeu ajoelhado em sua frente, em sinal de respeito. Entre os que prestigiavam a partida, destacavam-se os três ministros do reino e Bartolomeu, que já era aclamado de patrocinador oficial da nova campanha, pelas conversas informais. Bem verdade que grande parte do investimento havia sido parte dele, visando à expansão comercial para além de Kelicerata, mas mesmo a classe operária despreocupada com detalhes monetários das ações da corte o alcunhava do mesmo jeito. Isto porque, à frente mesmo do general em comando, viajavam os guias que trabalhavam sob o comando de Bartolomeu. Eles é que tinham em poder o curso da viagem e os locais onde deveriam ser montados os pontos de comércio e fortes, berços das cidades que despontariam ao longo da costa.
A saída das tropas foi aclamada por toda cidade. Os que surgiam das janelas mais altas puderam ver os quase dois mil elmos chacoalhando pelas ruas, formando um lençol que cobria o solo com brilho e barulho das passadas ritmadas. Quando o exército já se ia longe, fora dos limites urbanos, a poeira baixou, e o único rastro deixado era de lenços e flores que tantas mulheres jogaram, sentindo a partida de seus cavaleiros.
— Agora vem o momento mais difícil para nós: esperar por notícias. — disse Bartolomeu.
— Boas notícias! — acrescentou Amato.
— Terminadas as formalidades, eu vou me recolher para meus afazeres. — disse Ingrid rispidamente. Horas atrás, durante a saída do exército, ele retorcia os punhos de raiva. Contava com a ida de Amato e Scorpio, bem como o desaparecimento dos mesmos nesta campanha, por muitos ainda acreditada ser suicida. E de fato, a permanência de Amato foi uma surpresa. Mormente devido à ida dele na campanha anterior, através da Ponte dos Mundos.
— Compareça hoje à noite! Beberemos ao sucesso de Kelicerata. E à sua prosperidade. — convidou Amato.
— Não tenha dúvidas que me farei presente! — aceitou Bartolomeu.
Com um sinal de mão, Amato providenciou um cavalo para servir de transporte a Bartolomeu na volta para casa. Após montar com espantosa agilidade, o comerciante indagou:
— Não terei escolta? Como faço então para devolver o animal?
— Eu que estou lhe devolvendo. Fique com ele. — ciciou Amato, e logo após, saiu caminhando para o interior do castelo, dando o braço a sua esposa que aguardava vistosa, mais adiante. Sem entender a resposta, Bartolomeu trotou para além do portão principal.
Já no castelo, percebendo a animação de Regina, Amato a convidou para um passeio no campo. Aceitando sem pensar, ela saiu apressadamente em direção ao quarto, para pegar um chapéu. Enquanto corria com seus passos curtos, Regina percebeu que mesmo com os tropeços que havia tido com seu marido, ela ainda podia ser feliz, e doravante se esforçaria para tal.
Tomando rumo para a estrebaria, onde combinou de encontrar Regina, Amato foi surpreendido, pois da penumbra, silenciosa como uma serpente, apareceu Alba.
— Achei que partiria junto com eles. Vai alcança-los depois com seu passarinho gigante? — perguntou, descansando despropositadamente a mão no peito de Amato.
— Interessada nos assuntos militares? Não deveria. Já faz coisa demais fora da jurisdição do seu ministério. — dito isto, retirou gentilmente a mão dela e continuou para a estrebaria.
Capítulo 8: Fim de Saga
I
Durante os primeiros dias da viagem, tudo correu muito bem, e o passo tinha um ritmo acelerado. Uma das razões era o percurso conhecido, a floresta dos troncos amarelos, famoso por sua placidez. A travessia foi mais demorada do que se rumassem para Porocop. Neste caso, bastaria seguir a direção norte e logo estariam fora dos limites da floresta. Mas como rumavam para o sul, o tempo para cobrir à pé era mais longo, quase o dobro de dias. Tanto tempo de calmaria pareceu enfadonho para boa parte dos soldados, mas não era algo que não esperassem, afinal quase todos já haviam percorrido os mesmos caminhos em viagens para combater os rebeldes.
Fora da floresta, a missão de liderar as tropas foi incumbida de fato aos guias despachados por Bartolomeu. Dias e noites passaram com os homens marchando para oeste. No quadragésimo quinto dia desde a saída do castelo, os homens tiveram a primeira dificuldade para dormir. Ao longe era possível se ver uma praia. Curiosos tomaram a frente e passavam minutos esquecidos de todas as tarefas, apenas contemplando o pequeno pedaço de azul que suas vistas podiam alcançar. Grande parte não conhecia o mar, e embora estivessem curiosos para conferir os tão famosos redemoinhos, ainda não era possível enxerga-los.
Amadeu aumentou o número de vigias nos acampamentos. Tal atitude, embora achasse correta para apaziguar os receios de todos, era estrategicamente falha. Um contingente maior do grupo acabou tendo de permanecer acordado por toda noite, e mesmo os mais animados que se juntavam em grupo para papear e esperar o tempo passar, ainda não se livravam da preocupação. Enquanto os soldados sofriam para pegar no sono, assim que adormeciam, o corpo esquecia o medo e descansava. Mas os designados para vigília tremiam a cada ruído que emergia do negrume noturno.
Havendo percebido esta falha na manhã seguinte, Amadeu se deu conta da dificuldade para lidar com o problema. Um discurso, por mais inflamado que fosse, não seria capaz de retirar da memória todas as lendas sobre os homens-peixe. Histórias contadas, repetidas por todos e de diversas formas, mesmo quando retratados nas cirandas, sustentavam no inconsciente a ferocidade dos homens-peixe.
— Um problema que não pode ser combatido, deve ser contornado — disse ele para os guias — não podemos seguir mais afastados da costa?
— General, nós viemos para indicar o melhor caminho, e o mais rápido. Levá-los por outras rotas seria o mesmo que não guia-los e largar para que viagem por conta própria. — respondeu um dos guias.
— Não pense que não nos preocupamos com nossa vida. Seguimos este caminho por sabermos ser seguro. O oceano é muito grande, general. A chance de um desses monstros aparecer na praia é muito remota. Pior seria andarmos mais por baixo e nos batermos com rebeldes, estes sim, uma ameaça constante. — replicou outro. — Podemos contar, durante a viagem, algumas das nossas passagens por estas terras a alguns soldados e torcer para que se espalhem. Nenhum de nós chegou a topar com uma dessas feras.
Ainda insatisfeito, porém de mãos atadas, Amadeu aceitou a ajuda dos guias para manter o clima de segurança entre os mil e oitocentos soldados. O caminho que tomaram era quase sempre plano, com poucas elevações e sem matas densas para atravessar. Nos dias em que se podia ver o mar, condizendo com a palavra dos guias, nada aconteceu, e muitos dos soldados passaram a questionar se tais monstros não eram apenas invenção de algum espertalhão que, recontada por longa data, acabou se tornando uma verdade inquestionável.
Contente com o moral do grupo, Amadeu ainda se preocupava, pois ele mais que qualquer um dos que marchavam, sabia que existem coisas inacreditáveis no mundo. Percebeu então que se lograsse transformar seu título de Imortal de Câncer numa lenda para as próximas gerações, um simples comentário desconfiado, ao ser levado a sério, colocaria em dúvida toda sua fama. O pensamento o fez ficar chateado por alguns dias e enfim ele riu de si mesmo, e da atenção exagerada que estava dando a seu ego.
Numa tarde em que o exército continuava sua marcha para o oeste, uma desordem tomou conta de alguns soldados. Ao que parecia, muitos deles reconheciam o local. Quase duzentos homens se manifestaram em concordância.
— Ali, lembro bem daquela forma! — dizia um soldado. Apontava para uma elevação do solo onde, de frente para o precipício, havia um gigante com um braço levantado para o alto. Era uma rocha de formato muito peculiar, justificando a atenção dos homens.
— Nós passamos por ela alguns dias antes de enfrentarmos um bando de rebeldes estacionados mais adiante. — lembrou outro. Alguns meses atrás uma das tropas havia caminhado até esses lados, na constante luta para afastar os rebeldes dos limites de Kelicerata. Na ocasião, a tropa havia viajado bem mais ao sul, de modo que avistaram a longínqua pedra em forma de gigante olhando para o norte. Agora, contemplavam aquela escultura talhada pelos ventos e chuvas virados para o sul. A pedra não estava tão longe também, sendo possível observar alguns detalhes, como a coloração de tom pastel, antes oculta devido a longa distância.
— Isso é uma boa notícia para nós! — disse o guia para Amadeu. Com o passar das semanas, boa parte dos viajantes se dispersou das tropas, parando nas vilas e fortificações previamente escolhidas por Bartolomeu. Acompanhando o exército a esta altura havia menos de trinta comerciantes e caçadores, além do guia principal.
— Por que se animou? — questionou Amadeu.
— É que o local onde ocorreu esta batalha que descrevem é o nosso ponto de chegada. Já há alguns poucos moradores, a vila é miúda ainda.
Amadeu entendeu o que significava a fala do guia. A partir dali, ele seguiria sozinho com seus homens em terras inexploradas. Essa era a maneira mais otimista de pensar, pois considerar o terreno adiante como explorado, seria tomar todas as histórias contadas sobre aquela região como verdade. E isso não era auspicioso para pessoas que até poucos dias ainda tinham medo de se aproximar da praia.
Quando chegaram à vila, Amadeu de prontidão anunciou que passariam aquela noite ali, para comemorar a conclusão do primeiro objetivo da viagem: deixar as sementes das quais se ergueriam os frutos da colonização por Kelicerata. Os motivos por trás desta decisão eram simples, renovar os ânimos dos soldados e dar tempo para tratar os que haviam se machucado ou adoecido.
Pouco antes do amanhecer, Amadeu acordou e pôs-se a rezar. Era um ritual próprio, que fazia sempre antes de apostar sua vida numa batalha. Apesar da constelação de Câncer marcada em suas costas, era um homem comum, ele sabia disso. Foi criado por um soldado, como outros vários, e a imunidade ao fogo, um presente dos céus, não era nada especial. Poderia passar a vida toda sem conhecer e morrer sem tê-la descoberto.
Secretamente pedia forças a Sauza e sorte no campo de batalha, para que pudesse vencer salvando quantos fosse possível. No final da oração, sempre pedia um sinal para ter certeza que fora ouvido. E sempre no fim da oração as estrelas começavam a desaparecer, e o Sol se erguia majestoso. Era o sinal que ele precisava para alentar seu espírito.
II
De manhã, após comer, o exército já se organizava para continuar viagem. Seguindo as últimas recomendações do guia, os homens partiram, rumando sempre para noroeste. Caso avistassem o oceano ao norte, podiam seguir direto para oeste que ainda estariam no caminho certo. A viagem se tornou tensa. Os homens tinham olhos e ouvidos sempre alerta, mirando o ponto mais distante que podiam alcançar, tentando captar qualquer sinal de ameaça. O trecho de atenção constante, porém, durou apenas um dia de viagem. No segundo dia, antes da metade da tarde os homens já tinham a cabeça confusa.
A praia, que eles enxergavam com clareza, estava localizada ao leste e não ao norte. Incrédulos, mas sem outra explicação lógica, o exército agora já tinha transposto todo o caminho de Kelicerata até a península de Casul.
— O mapa que o ministro Amato nos forneceu não é muito preciso. Sendo assim, a distância do último posto até a base da península, que era longa no mapa, acabou se mostrando curta — explicava Amadeu aos seus companheiros — sendo assim, devemos marchar ao norte, e após atravessarmos aquela floresta, já estaremos em terreno de Casul.
Os generais e capitães que se agrupavam com Amadeu seguiram com os olhos a direção que ele apontava o dedo. A floresta estava longe de ser um bosque indefeso. A mata era densa e nada era visível além das primeiras árvores, enfileiradas perfeitamente como se, por milagre, uma linha tivesse sido traçada para separar o campo da floresta. Os homens se separaram para instruir seus subordinados e em seguida o grupo já seguia para o norte.
Amadeu sentiu uma relutância em avançar, por parte da sua montaria. Quando olhou para os lados, percebeu a mesma coisa nos companheiros e em sua mente só conseguiu vincular aquilo a um mau agouro. Quando o grupo começava a adentrar pela floresta de aspecto intimista, aconteceu um imprevisto. Os que andavam a cavalo não conseguiam entrar, pois suas montarias não permitiam. Alguns pulavam, outros trotavam em círculos, houve até os que se jogavam ao chão, mas nenhum dos cavalos se atrevia a entrar.
Surpreso pelo inconveniente, Amadeu não podia abandonar os cavalos, mas não estava resolvido a parar a viagem, também. Ficou decidido que o exército continuaria a viagem normalmente, mas trinta dos homens ficariam ali, cuidado dos cavalos, e esperariam cerca de cinco horas antes de voltar até a vila de onde tinham saído por último. Aquele tempo era suficiente para percorrer boa parte da floresta, e caso houvesse algum incidente, poderiam recuar e encontrar os soldados e cavalos antes de terem partido.
O exército, há meses marchando com impecável disciplina e ordem, agora avançava sem forma. A floresta era robusta, e dificultava o avanço. Logo as tropas desfizeram as formações e avançavam caoticamente, cada soldado procurando o caminho mais fácil. Ventos frios sibilavam por entre os troncos, deixando todos arrepiados.
— Não ouço sapo algum. — dizia um dos soldados.
— Ora, e como vai haver sapos, aqui? Nem mosquitos eu vejo. Inseto nenhum, aliás!
Aqueles comentários aguçaram os sentidos de Amadeu, agora apreensivo com o lugar. Desconsiderando o barulho produzido pelo avanço das tropas, não havia som algum na floresta. Nenhum animal, nenhuma mariposa escondida pelos troncos, nada. Olhar a floresta era o mesmo que a uma pintura, pensou Amadeu.
Um pouco mais de caminhada, os homens que estavam mais adiantados chegaram a uma clareira. No centro, uma árvore chamou a atenção de todos. O tronco largo, maior que qualquer uma já vista por eles, crescia retorcido. O aspecto fantasmagórico deixou um mal estar no ar, e muitos acabavam franzindo o cenho ao se deparar com a cena. Os galhos eram longos e abrangentes, e as folhas eram completamente vermelhas. Pouco tempo atrás, os soldados estavam nervosos, músculos contraídos, devido à atmosfera macabra da floresta. Agora, novamente vendo o azul do céu, eles queriam acalmar o espírito, mas aquela árvore, intrigante e de certa maneira até bela, atacava o coração de cada um com melancolia e medo.
Após algum tempo de observação, os soldados notaram uma forma estranha no tronco, parecida com os ombros e cabeça de um homem. Enquanto uns tinham certeza que um homem esteve ali dentro e forçou a parede do tronco com seu corpo, tentando sair, outros pensavam apenas em como aquela árvore era estranha e mesmo assim, não merecia tanta atenção.
— Vocês são medrosos, mesmo! — disse um dos soldados caçoando e sentando numa pedra próxima para descansar. Centenas continuavam a surgir do meio da selva, e juntavam-se ao grupo que admirava a planta mórbida de copa escarlate.
— Ei, ao invés de ficar sentado, deveria cuidar desse ferimento na cabeça! — disse um recém-chegado ao grupo.
— Ferimento? De que está falando? — levantou o homem apalpando o rosto. — Não tenho ferimento algum!
De fato, ele não tinha se ferido antes ou depois de entrar na floresta, mas assim que olhou a mão que apalpava o rosto, ela estava coberta de sangue. O susto tirou-lhe a fala, e ele tirou o elmo e jogou para longe, determinado a descobrir onde estava a ferida, mas não encontrou nada. E sempre que olhava novamente, a mão estava mais cheia de sangue. Agora rodeado por soldados, o homem se desesperava, até que levantou o olhar para aqueles que o cercavam, e após um silêncio lúgubre, apontou aos seus companheiros.
— Vocês também estão sangrando!
A multidão se entreolhava assustada. Alguns tinham sangue escorrendo da testa, como suor, outros estavam com o pescoço pegajoso de tanto sangue. E nenhum havia se dado conta do fato. Não tinham ferimentos, e tão pouco sentiam dor. Mas o sangue escorria de suas peles como água da fonte. Diante do inexplicável, as pessoas começaram a gritar e a balbúrdia chamou a atenção de todos.
Amadeu, que chegava agora à clareira junto com outras dezenas, questionou o que seria aquilo. A mão, por instinto, alcançou o cabo da espada que levava à cintura, e em seguida um dos ensanguentados se jogou a seus pés.
— Estamos morrendo!
Desvencilhou-se e partiu para o meio do grupo confuso, com a espada pronta para atacar. No meio dos desesperados, entretanto, ele mesmo não sabia o que fazer.
— Onde está o inimigo? Cadê ele? — gritava. Um dos homens, com quem havia bebido e cantado dias antes, pendurou-se nos ombros de Amadeu, olhos aterrorizados.
— Não existe inimigo, nos salve, general!
A súplica do homem não fazia sentido, Amadeu tentou perguntar o que ocorrera, mas não teve tempo. Os homens cederam à loucura e começaram a correr. Um bando desgarrado gritava pedindo ajuda, e a cada minuto passado mais homens se uniam a algazarra. Centenas já jaziam no campo aberto, cobertos de sangue da cabeça aos pés.
— Fujam! Recuar! Recuar! — gritou Amadeu. Todos seguiram suas ordens. A selva perdeu sua quietude para as centenas de passadas barulhentas que varriam o solo. Amadeu pulava pelos obstáculos, o corpo leve como uma pluma. Os que acompanhavam, porém, tombavam à frente, ao lado, em todos os lugares. Um vulto se encolhia perto de um tronco próximo, Amadeu logo correu em auxílio.
— Levante, homem, tenha esperança! — tentou animar. O soldado já não tinha forças, e chorava sangue. A cena enojou Amadeu, que continuou sua fuga.
III
Tomados pelo tédio, os soldados que ficaram para trás passavam o tempo jogando uma bola de couro, ou apenas descansavam. O urro coletivo surgiu de chofre, preocupando a todos. Antes que pudessem se questionar o que acontecia, dezenas saíram do meio dos troncos, correndo e gritando.
— Vamos embora! Fujam!
Abdicando da razão para ceder ao primitivo instinto de sobrevivência, os homens foram até os cavalos. Amadeu já tinha alcançado uma montaria, bem como outros fugitivos.
— Os inimigos eram muitos? — questionavam os que tinham ficado para cuidar dos cavalos.
Sem obter nenhuma resposta que fizesse sentido, apenas seguiram os que já corriam na frente, disparados. Das centenas que conseguiram escapar da selva, menos de duzentos tinham conseguido uma montaria. Os que corriam a pé logo desabaram. A cavalo, os soldados fugiam desordenadamente. Aos poucos iam ao chão, quando não o cavaleiro, o cavalo. Amadeu já não reconhecia o local. Cavalgava por terras de chão vermelho, barrentas. Ele não recordava de lugar assim na viagem de ida.
O último cavaleiro havia tombado há meia hora. O cavalo que levava Amadeu já galopava sem forças. Ele parou o cavalo e afagou sua crina.
— Bom menino... — dito isso, notou a mão cheia de sangue. Desmontou e só então ele notou algo preso atrás do cavalo. Era uma maca amarrada à sela. Em cima, um soldado se agarrava com força ao couro da maca.
— Ei, você está aí desde que eu montei?
— Eu ainda estava mal. Tomei alguns remédios antes de sairmos da vila, mas sofri com febre até agora. Os meus amigos amarraram a maca ao cavalo para poupar esforços na hora de me levar de volta até a vila, mas aí todo mundo apareceu gritando... Eles estavam cobertos de sangue... — a garganta do homem se fechava com medo de descrever a cena. Com o rosto retorcido, o soldado começou a chorar. Lágrimas de sangue.
— Calma, vai ficar tudo bem... — disse Amadeu enxugando as lágrimas.
Após desatar a corda que prendia a sela à maca, o cavalo deitou na terra. Numa demonstração de extrema força e fidelidade, o animal não se permitiu morrer até o presente momento. Amadeu deitou com cuidado a cabeça do animal no chão, de onde ele não levantou mais.
— Vamos embora, amigo.
Amadeu começou a vagar sem rumo, arrastando a maca com o soldado doente em cima. Já estava sem forças quando percebeu que estava no meio de um deserto. O vento arremessava areia nos seus olhos, querendo confundir mais a direção que ele tomava. Quando não tinha mais força, ele desmaiou, tendo como ultima visão uma estátua de gigante levantando a mão, bem ao seu lado.
***
As nuvens passavam devagar no céu noturno. Amadeu abriu os olhos e não fazia ideia de quanto tempo tinha se passado. Percebeu o arrastar do chão em suas costas e levantou a cabeça, confuso. Estava sendo arrastado pela perna. Uma corda atada a seu pé ligava-o a um descamisado montado no cavalo. Ao virar para o lado, encontrou o soldado de antes, sendo arrastado da mesma forma, mas uma sacola de couro cobria sua cabeça. Antes de reagir, Amadeu tinha de se precaver. Engoliu saliva, o que lembrou seu corpo que não comia nem bebia água há bastante tempo. Voltou o olhar para o céu e fechou os olhos, respirando profundamente. Concentrou o pensamento nos músculos do corpo, imaginando-se envolto por panos quentes, relaxando a perna, costas e braços principalmente. A visualização, acompanhada do controle da respiração, deixava o corpo menos rígido e auxiliaria Amadeu na provável batalha que travaria com o homem sem vestes.
Encostou a mão no cabo da espada, conferindo se não tinha sido furtada. Num movimento rápido, ele cambalhotou para frente e cortou a corda que o prendia, enquanto desembainhava a espada. O cavalo empinou assustado e Amadeu instintivamente pulou para trás, armando uma base de combate.
— Por que essa agitação toda? — perguntou o homem. Não houve resposta, Amadeu estava boquiaberto demais para falar, e a posição de combate já não era mantida pelo guerreiro.
— Mas que raio é você? — perguntou Amadeu. A visão de um centauro foi capaz de congelar até mesmo o guerreiro mais habilidoso de Kelicerata.
— Vamos, eu vejo que tem uma constelação nas costas. É tão difícil acreditar no que está diante de seus olhos? — perguntou o centauro. A metade cavalo era bem maior que um animal comum, e a parte humana também não ficava devendo. Cada ombro do monstro tinha o tamanho da cabeça de Amadeu, uma luta contra aquela fera seria derrota garantida, pelo menos no estado atual de cansaço.
Amadeu olhou sobre os ombros e a roupa estava completamente destroçada nas costas, resultado de ser arrastado por sabe-se lá quanto tempo. A luz esverdeada das pedras escapava por entre os rasgos, iluminando o solo arenoso às costas de Amadeu. Sabendo não ser a hora de lutar, principalmente com um adversário perigoso como aquele, Amadeu baixou sua guarda. Por trás da figura imponente, a atitude do desconhecido parecia pacífica e disposta a dar explicações.
— Onde estamos? Quem é você? — perguntou embainhando a espada.
— Não está vendo? Estamos no meio do deserto! — deu uma gargalhada caçoando Amadeu. — E antes de perguntar meu nome, deveria se apresentar, cavaleiro.
— Eu sou um dos generais do reino de Kelicerata, meu nome é Amadeu! E você, fera?
— Fera? Meu nome é Adônis, mas só me chamam de Galope. — o centauro tinha um rosto rude, com sobrancelhas densas e uma volumosa barba negra no queixo. O cabelo comprido estava preso num coque.
— Pois bem, Adônis, que faz carregando pessoas pelo deserto? Matou meu companheiro?
— De maneira alguma, cavaleiro Amadeu. Eu os encontrei caídos e, num gesto de misericórdia, trouxe até aqui para salvar-lhes a vida.
— Aqui, e o que tem aqui? — perguntou Amadeu olhando em volta.
— Um pouco mais adiante daquela duna, veja. Meus associados estão com um acampamento montado.
— E por que a cabeça do meu soldado está coberta?
— Acho que você já sabe a resposta, não é, cavaleiro? Este homem está muito doente, é melhor que fique desse jeito, para sua própria segurança. Já você está em boas condições, pode caminhar até lá.
— Sim, não se incomode. Mas sabendo que ele está doente, por que não carrega o rapaz nas suas... costas?
— Não vamos exagerar na boa ação, cavaleiro. Ele não vai morrer por causa disso.
Amadeu não quis insistir, e eles foram andando até o acampamento. Era menor que o esperado, Amato contou apenas quatro tendas armadas no meio da areia.
— Finalmente voltou, Galope! — o menino saiu da tenda correndo e se encolheu assim que avistou Amadeu. Assustado, correu de volta para a tenda.
Amadeu sabia bem o motivo. Eram rebeldes.
— Atenção, todos! Resgatei estes dois perto da região proibida! Um deles contraiu a doença de Saga, então terei que leva-lo até o senhor Atreio. Quero que cuidem deste outro. Deem algo para comer e um leito para dormir esta noite. — Adônis terminava de dizer suas palavras quando o último rebelde saiu da tenda. Tímidos, acataram as ordens de Adônis sem responder. Eram o garoto, a mãe dele e um ancião.
— Não se preocupe. Eles não vão te atacar. — disse Adônis a Amadeu antes de levantar o soldado doente e acomodá-lo em cima do ombro.
“Nem se eles quisessem”, pensou Amadeu. Mesmo doente, daria cabo de um velho, uma mulher e seu filho com facilidade. Perguntou a Adônis o que faria com o soldado, mas não obteve resposta. O centauro apenas deu as costas e cavalgou pela escuridão da noite. O som do trote, mesmo abafado pela areia, dava a dimensão da velocidade surpreendente que ele empregava. Amadeu tomou uma sopa que lhe foi oferecida e depois se acomodou na tenda de Adônis. Os rebeldes, tomados por medo, e não raiva, serviram o forasteiro sem dizer uma palavra, sem olhar nos olhos dele também. Apenas o menino parecia mais curioso que amedrontado.
Mesmo sem sono, Amadeu resolveu deitar. Ninguém para conversar e a escuridão fria não davam muitas opções a ele, então fechou os olhos e decidiu esperar o Sol raiar. A paz dentro da tenda não durou muito, pois logo ele ouviu ruído de gente entrando. Fingiu estar dormindo, mas aguçou os sentidos para antever qualquer ameaça. O invasor era cuidadoso, tinha passos leves e movimentos rápidos, daí deduzia-se que era o menino. Aproximando-se furtivamente, conseguiu passar despercebido pelos sentidos de Amadeu, mas quando a mão dele tocou o cabo da espada que descansava ao lado, o cavaleiro interveio.
— Ei, garoto! — disse, levantando de chofre.
O menino gelou e arregalou os olhos.
— Não tenha medo. Qual seu nome? — disse Amadeu, calmamente — Quer ver a espada? Pode pegar!
Hesitante, o garoto puxou a espada da bainha.
— Ela se chama Limiar do Tempo. É uma boa espada não acha?
— Pensei que era mais pesada. Não é de metal?
— Claro que é! E corta muito bem.
O garoto começou a brandir a espada no ar. Receoso devido à falta de iluminação, Amadeu mandou o menino quietar e guardar a espada.
— Agora não é hora disso, que acha de amanhã eu te ensinar uns golpes?
— É mesmo? — disse o menino, escondendo a animação no sussurro.
— Sim, agora volte para sua cama.
— Eu me chamo Felipe. Qual o seu nome?
— Amadeu. — respondeu, e o menino desapareceu nas sombras, como um grão de areia levado pela ventania.
IV
A manhã seguinte passou devagar. O velho e a mulher, ainda mudos e sem dirigir olhares ao estranho, deixavam Amadeu desconfortável. O menino, por sua vez, cobrou tenazmente o aprendizado que tinha lhe sido prometido. Os dois simularam lutas por algumas horas, sendo estas vigiadas pela mãe de Felipe, não muito distante, até que Adônis chegou.
— Finalmente voltou, Galope! — gritou o menino, espetando o ar com a Limiar do Tempo.
— Más notícias para você, cavaleiro. O seu amigo não pode ser salvo. — deu o recado e foi até o acampamento, onde apanhou um punhado de verduras cozidas pelo ancião, e já se punha de partida novamente.
— Ei, espere, Adônis! O que quer dizer? Aonde você foi?
— Fique mais alguns dias com essa gente. Logo levarei você à sua terra. — aconselhou, antes de sair galopando.
— Felipe, você sabe para onde ele está indo? — Amadeu perguntou ao menino.
— Não. Só sei que ele foi até Atreio.
Sem tempo para desperdiçar com perguntas, Amadeu montou num dos cavalos dos rebeldes e disparou em linha reta até o ultimo ponto que avistara Adônis. O centauro, no entanto, superava com folga a velocidade de qualquer montaria e já não podia ser visto. Em linha reta, mesmo sem a sombra de Adônis para seguir, Amadeu se manteve firme, até uma tempestade de areia surgir e anular qualquer senso de direção. Em meio à agitação do vento, o cavalo libertou-se do controle e, indomável, derrubou Amadeu da sela.
Rosto afundado na areia, com a montaria perdida na nuvem de areia, Amadeu pôs-se a socar o chão, extravasando a raiva. Seguindo o barulho dos socos, um trote se aproximava. “O cavalo voltou? Ou seria Adônis?” pensava ele. Levantando o rosto com dificuldade, Amadeu lutava para manter os olhos abertos. Em meio à turbidez, uma sombra alta apareceu para Amadeu. A imagem era inusitada: uma mulher despida, de longos cabelos lisos esperava ao lado de um cavalo. O olhar misterioso deixou Amadeu sem ação.
— Beba água e espere. Logo mais a tempestade cessará. E então volte para o acampamento.
A mulher sumiu do mesmo jeito que surgira, sem deixar rastros. Amadeu agarrou o cantil e esperou a tempestade passar. Uma voz trouxe o cavaleiro à realidade.
— Amadeu! Levanta!
— Ah, é você, Felipe... — o menino olhava do alto de um cavalo.
— Eu trouxe sua espada.
— Pois é, um cavaleiro não vive sem sua espada não é? — ele montou na garupa. Felipe montava muito melhor que Amadeu ou qualquer outro soldado de Kelicerata. Amadeu sentiu vergonha quando notou o nível do garoto. “Tamanha qualidade só pode ser atribuída ao cavalo. De um povo que anda com um centauro, deve ser isso mesmo”, repetia em pensamento.
— Vou te levar até o velho Atreio. Ele vai gostar de você.
— Obrigado, Felipe. Ele vive com alguma mulher?
— Não, ele é muito velho para isso! — disse o menino de zombaria.
— É que antes de você me socorrer... Uma mulher apareceu no meio da tempestade de areia.
— Deve estar falando de Katia. Ela é minha professora de montaria.
— Ela não gosta muito de usar roupas, não é?
— Por quê?
— Nada.
Cerca de uma hora depois, os dois chegaram ao local onde estava Atreio. Não havia nada de diferente do outro acampamento; pairava a mesma atmosfera humilde, sendo que nesse havia uma tenda maior e um centauro servindo de guardião.
— Mas você é teimoso, cavaleiro! Felipe, eu não dei ordem para trazer nada, muito menos o forasteiro.
— Eu trouxe porque quis! — disse o menino desmontando e correndo em direção à tenda. A corrida foi sumariamente interrompida por Adônis.
— Ninguém entra na tenda. O mestre está descansando.
Amadeu desmontou sem pressa. Caminhou até Adônis visando um cumprimento e num estalar de dedos, esquivou-se do centauro, com sua agilidade costumeira. O fato deixou o garoto e o centauro com cara de bobo, até porque nunca tinham presenciado os movimentos ágeis do general.
Quando entrou na tenda, mais uma vez, nenhuma surpresa. Lugar simples, como no outro acampamento. Mas nesta tenda, atrás do ancião que repousava imóvel no centro, a mulher pousava ainda despida. Com a entrada do invasor, ela cobriu-se com almofadas.
— Então você que veio com o homem doente? — o ancião disse com uma voz modorrenta.
— Sim. — Amadeu voltou-se para ele, só agora fitando a faixa que cobria os olhos do velho.
— Katia, nos deixe a sós. — pediu Atreio. A mulher enrolou o corpo num pano e saiu da tenda. — Infelizmente a doença do seu amigo não tem cura. Eu achei que teria como ajudar, mas foi um delírio de um velho à beira da morte. — disse ele soltando uma risada abafada.
— Ele é um soldado do meu exército, mas não o conheço realmente para chamar de amigo. Que doença é essa? E por que vocês, rebeldes, cuidam de soldados de Kelicerata?
— Muitas perguntas... Em primeiro lugar, eu deixei o posto de líder dos rebeldes. Isso foi há algumas semanas. Estou beirando os cem anos de idade, não tenho mais a aptidão necessária para liderar o grupo. E mesmo se tivesse, os objetivos já são muito diferentes dos que eu tinha quando o criei. Parti então em exílio com algumas pessoas próximas para encarar a minha morte. De tal forma, eu não tenho nenhuma obrigação de odiar você, mesmo sendo um general de Kelicerata.
— Entendo. No fim da existência, escolheu abdicar da materialidade da vida para entregar sua alma sem arrependimentos. Uma escolha sábia.
O ancião deu uma risada longa e inspirada, pouco parecia ter saído de pulmões debilitados. Com um sinal de mão, pediu uma toalha a Amadeu, que prontamente o atendeu. Quando Atreio enxugou o suor da testa, o cavaleiro sentiu um frio na espinha. Marcas de sangue na toalha. Adônis chegou à porta e avisou que ia dar uma volta com os dois que esperavam do lado de fora. Após o barulho dos três a galope desaparecer no vento, Atreio voltou a falar.
— Minhas intenções não possuem tanta nobreza assim, jovem. Eu, como você sou um dos caídos do céu. Minha vinda para morrer no deserto deve-se a este fato.
— Eu não tinha conhecimento disto... Eu sou o filho de Câncer. Meu corpo é imune ao fogo. Parece uma grande vantagem à primeira vista, mas eu não tenho muito uso para esta habilidade.
— Ah, mas você tem sim. Essa sua imunidade garantiu sua vida nos últimos dias.
— Então esta doença afeta a todos menos a mim? O que é isto, afinal de contas? — questionou Amadeu.
— Quem sabe... Nos meus tempos de juventude, ouvi a história de Saga, o filho de Gêmeos. Dizia-se que ele era um homem terrível, dominador de uma grotesca magia negra. Um dia, porém, enquanto praticava a arte das trevas, alguma coisa deu errado e o feitiço venenoso que usava acabou se alastrando por toda vila que morava, alcançando a vegetação ao redor e impregnando toda região com uma maldição. Qualquer um que pisasse no local teria de viver sozinho, pois seu corpo se estufaria com veneno. Mas acabou que ninguém sequer tinha a chance de viver isolado, pois o sangue, ao dar lugar para o veneno, precisava ir para algum lugar, e saía por todo corpo, causando dor e agonia, levando a pessoa à morte em poucas horas.
— Que poder maligno...
— Mas nem isso pode ser comprovado. Quando eu era mais velho, já liderando os rebeldes, encontrei uma família que vivia sozinha nos campos abaixo da península. Eles me contaram uma versão diferente do poder de Saga. O que me foi dito era algo passado de geração em geração, para proteger os filhos e os netos do perigo — o ancião, sofrendo o efeito do calor do deserto, suava mais, e a testa começava a acumular gotículas de sangue.
— A família me contou de um garoto cego marcado pela constelação de Gêmeos nas costas. O menino havia ganhado o dom de manipular a flora a seu bel prazer. Um verdadeiro dom divino. Mas ele foi muito maltratado pela sua deficiência, e quando sua mãe morreu, ele ainda jovem perdeu a única pessoa que o amava sem reservas. Com o julgamento inocente dos infantes, ele cedeu ao sentimento de vingança e criou uma planta linda, porém diabólica. Quando florescia, esta planta liberava toxinas. Carregadas com o pólen, essas toxinas adentravam o corpo daqueles que se aproximavam para observá-la, através dos olhos. E a doença assim se propagava, de olho em olho, pessoa por pessoa...
— Mas você não pisou na floresta. Então a história real deve ser a segunda versão, não?
— Nunca poderemos saber. Mas ao que parece, o seu soldado sobreviveu porque dispendeu pouco esforço. Ele mencionou estar doente e foi carregado numa maca da floresta até aqui. Sem suor ou lágrimas o sangue não se esvaiu de suas veias. Enquanto ele ficar parado, poderá viver.
— Mas este é um destino muito triste. E pensar que alguns filhos do zodíaco podem ser tão destrutivos... O meu rei é outro. Pode controlar toda vida animal. É um dom deveras perigoso.
— Ah, o pequeno atrevido... Lembro dele quando era criança.
— Conheceu o rei? Mas como, sendo o líder dos rebeldes?
— Pegue um pouco de água para este velho, por favor. — e molhando a garganta, Atreio retomou a explicação. — O templo do leste, uma das construções de Sauza, era aberto para visitação de qualquer um. Mas diferente das outras construções, era muito fácil chegar. As pessoas não entendiam o significado espiritual do local e o infestaram com sujeira e destruição. Até então, Scorpio era um menino, muito travesso, aliás. Quando ele cresceu um pouco, tomou conhecimento do poder emanado do templo, e para preservá-lo, infestou a floresta com animais ferozes. Até hoje é possível qualquer um chegar até o templo, mas no caminho encontrará animais de força inigualável. Único com coragem para adentrar, Scorpio acabou sendo o frequentador exclusivo do templo, e a floresta se tornou privativa do Castelo Henpakihan. Meu intuito inicial na formação da força rebelde era abrir novamente a passagem para o templo, mas isso também já se perdeu. A disputa dos rebeldes agora diz respeito a terras e dinheiro, coisas das quais não se compara ao magnífico valor de uma vida. — a sobrancelha do ancião se torceu e ele deixou o copo que segurava cair, deixando a água penetrar a areia aos seus pés.
— O que aconteceu? O que está sentindo, velho? — Amadeu percebeu a expressão esquisita no rosto de Atreio e correu para a entrada da tenda, no intuito de chamar Adônis. Foi impedido pelo grito que ecoou em suas costas.
— Não se precipite! — Atreio chegou vagarosamente ao seu lado. — Veja só como aqueles três se divertem...
— O que há com a garota? Eu sinto algo diferente nos olhos dela.
— Ela morava numa vila de Kelicerata. Durante um dos ataques do grupo rebelde, a família dela resistiu à ocupação e foi morta diante dos seus olhos. Com o trauma, fechou seu coração, e desde então ela não fala. Devido à minha habilidade, eu consegui achar um caminho para entender seus medos e frustrações. Ela veio me seguindo desde então. A cabana que foi montada para ela no acampamento, sequer foi usada. Ela tem passado os dias aqui, tentando me confortar nessa terra sem vida.
— Como não fala? Há pouco tempo conversou comigo!
— Então acho que ela também sente algo diferente nos seus olhos — disse Atreio com um sorriso paterno no rosto — mas eu te aviso de antemão: ela é um espírito livre. Não há quem possa enjaular o amor e ódio que existe no coração dela.
— Entendo... Atreio, não devia ficar exposto ao Sol. Deixe-me limpar isto — Amadeu tentou enxugar o sangue no rosto do ancião, mas foi impedido.
— Pare de bobagens. Minha hora chegou, chame os três.
Amadeu correu mais à frente e chamou a atenção dos três que cavalgavam na areia. Katia foi a primeira a avistar o chamado e com o olhar que ela devolveu, o próprio Amadeu esqueceu o que estava a fazer, hipnotizado pela amazona.
— O que aconteceu, cavaleiro? — Adônis arfava com força.
— Ele disse que chegou a hora. — os quatro caminhavam em direção a Atreio, que já se distanciava da tenda. Adônis foi até ele e após trocarem longas palavras, o centauro voltou, chamando Amadeu.
— Vocês não vão se despedir? — Amadeu indagou Katia e Felipe
— Não precisa, ele já sabe o que queremos dizer. — respondeu Felipe.
O nervosismo fazia Amadeu tremer. Após a morte de Desleal, tinha esquecido desse sentimento, ao que parece, um prelúdio à morte de um caído do céu.
— Com você eu não preciso usar isto. — Atreio retirou a venda nos olhos, revelando pela primeira vez os olhos cinzentos e enrugados a Amadeu. O general segurou a venda com o punho cerrado. Em seguida, o velho retirou a camisa, revelando em suas costas numerosas pedras esverdeadas desenhando a constelação de Sagitário.
— Eu não vim aqui para libertar meu espírito, como você pressupôs erroneamente. Tampouco descobrir a paz no momento antes de morrer. O dom que ganhei das estrelas foi a compreensão. Foi ela que me uniu à Katia, Galope e tantos outros. O pequeno Scorpio pode controlar os animais. Eu consigo entender a vida. Plantas, animais, homens, até a água das cachoeiras. Eu vim até este lugar, pois aqui não há nada, apenas o silêncio. Não sinto o crescer das árvores e nem a alegria das andorinhas. Este é o lugar para se estar, na hora da morte.
Tendo conhecido aquele ancião há poucas horas, Amadeu entendeu que desde o início seu coração era um livro aberto para ele. Tendo mais pessoas como Atreio no mundo, talvez não houvesse guerra e sofrimento. Com os olhos úmidos, ele lamentou:
— Desculpe. Sem a minha chegada até aqui, você não teria contraído a doença. Poderia ter vivido muito mais...
— Não seja bobo. Eu já estava aqui para abraçar a morte antes de você chegar. E você finalmente deu um sentido à morte desse velho. Enquanto conversava com você debaixo da tenda, meu poder me fez compreender a doença, eu entendi o coração de Saga. E mais importante: entendi como ele se mantém vivo até os dias atuais.
— O que? Então vai usar o mesmo artifício para sobreviver?
— O contrário, jovem. Vou usar o mesmo artifício para morrer. E acabar com a disputa por terra dos rebeldes contra Kelicerata de uma vez por todas. Agora pare com isso e venha me ajudar.
Atreio e Amadeu começaram a cavar um buraco com as mãos. O ancião sentou com as pernas cruzadas e ordenou que o cobrisse com areia. Relutando, Amadeu acatou a ordem. Atreio foi enterrado por completo, nada sobrou além de uma elevação de areia, igual a tantas outras por ali.
Voltando para os outros, Amadeu sentiu um tremor no solo. Com o olhar duvidoso, olhou para os que o esperavam. A garota e o menino estavam tão confusos quanto ele, mas Adônis tinha uma segurança no olhar que fez Amadeu voltar o rosto para o túmulo de Atreio.
Como obra de feitiçaria, o solo arenoso tingiu-se de vermelho e adquiriu firmeza. Do túmulo, brotou uma planta que em questão de minutos, lançava sua folhagem ao extremo céu azul. As folhas, de tonalidade púrpura, gotejavam um líquido cristalino. Adônis levantou o cantil para armazenar o líquido. O vasto deserto, agora terra vermelha, começou a florescer. À medida que o líquido penetrava no solo, a vegetação tomava forma e fontes de água jorravam ao longe.
Na base do tronco da árvore milagrosa, Amadeu percebeu uma forma estranha, joelhos dobrados, ombros curvados. Uma figura humana dentro do tronco. Adônis chegou junto.
— Ao invés de sugar a vida ao redor, ele ofereceu a dele para criar um novo ambiente fértil e apto para povoamento. Disse que a paz dos rebeldes só é possível graças a você e seu amigo.
— Onde está ele?
— Está amarrado atrás da tenda. Lá não bate Sol, então achamos ser o lugar certo para prendê-lo. Apesar de tudo, ele ainda é uma ameaça a todos os homens vivos.
Amadeu correu até o soldado e tirou o saco de couro que cobria a cabeça do homem.
— Soldado, você construiu isso. — o homem não escondia a surpresa. Até então estava no meio de um deserto. Agora, campos de gramíneas o rodeavam até o horizonte. — Qual seu nome?
— Darit, senhor.
— Darit, infelizmente a doença não tem cura. Você vai chorar e suar sangue até morrer. E caso você tire esta venda do rosto, vai contagiar a todos com a enfermidade. Venha comigo até Kelicerata. Tenho certeza que podemos arranjar um meio de prolongar sua vida.
O homem, ainda cheio de dúvidas, mas confiante no seu comandante, vendou os olhos. Reunidos, os cinco deliberavam sobre o futuro.
— Felipe, volte até o acampamento. Sua família deve estar precisando de explicações sobre o que aconteceu com o deserto. De lá, parta para as vilas do nosso povo e dê as boas novas. É o fim da luta contra Kelicerata. — ordenou Adônis.
— Espero reencontrar você, assim posso ensinar mais a arte da esgrima!
O menino despediu-se e saiu montado, veloz como um relâmpago. Os quatro restantes decidiram ir até Kelicerata. Adônis ofereceu carona a Darit, e Katia conduzindo seu cavalo, deixou Amadeu cavalgar com ela. Quando estavam prontos para partir, ela retirou o pano que cobria o corpo, dando um sorriso provocante a Amadeu.
— Não faz isso com o cavaleiro... — aconselhou o centauro antes de disparar levantando terra com os cascos.
Naquela primeira noite de viagem, no meio da madrugada, as estrelas reluziram com força, e durante menos de um segundo, Amadeu pôde jurar que viu o céu mudando de forma. Nesse tempo ínfimo, uma mensagem surgiu em sua mente: “Morrerás antes de tocar no Leão”.
Longe dali, na mesma noite, outro homem admirava as estrelas. O movimento do céu também foi percebido por ele que viajava nu, montado no lombo de um urso selvagem: Scorpio. Uma frase o impeliu a viajar até o lago onde se encontrava a ilhota que guardava o templo do leste: “Morrerás antes de tocar no Leão”.
Capítulo 9: Reunião na corte
I
Dentro dos limites de Kelicerata, o grupo parou a viagem.
— Aqui nos separamos. — disse Adônis, descendo Darit das suas costas.
— Obrigado por nos trazer até aqui. Até chegarmos à capital levará alguns dias de caminhada, mas não corremos mais nenhum risco. — agradeceu Amadeu, desmontando do cavalo de Katia.
— Katia, volte para o seu grupo. Felipe já deve estar sentindo falta de você, ou de suas aulas. — completou com uma gargalhada.
— E você, para onde vai, Adônis? — Amadeu teve vontade chamar Katia para continuar com ele, mas estranhamente lhe faltou coragem. Os olhos misteriosos revelavam que ela negaria o pedido. Ouvir o pedido ser desprezado seria pesado demais para o coração confuso do cavaleiro.
— Minha lealdade era com Atreio, ninguém mais. Pretendo visitar uns locais do passado, retomar minhas memórias... Ao fim da viagem, devo estabelecer-me no Cesaro. E cuidado, vocês dois. Retirar esta venda significa assassinar toda população do reino. — apontou para os olhos de Darit.
— Não se preocupe, eu sei que não devo tirar isso jamais. — respondeu o homem. A voz trêmula denunciava que ainda não tinha aceitado o destino cruel, apesar do esforço mental que vinha empregando na ideia.
— Então, boa sorte a todos! Sauza guie nossos caminhos! — seguiu-se o estrondoso galope do centauro, que em poucos segundos desaparecia no horizonte.
— Katia... Eu pretendo te visitar novamente. No pé da árvore.
Ela nada respondeu. Os cabelos loiros cobriam os seios pequenos. Ela apenas girou graciosamente e cavalgou para o sul. Sem poder ver nada, Darit se moveu apenas quando Amadeu o chamou para continuar a viagem.
— Tire a armadura. Vamos entrar na cidade como cidadãos comuns, sem alardear nossa volta.
Com as roupas do corpo e a Limiar do Tempo, Amadeu chegou à capital com o soldado enfermo. As poucas horas de caminhada já preocupavam, pois Darit entrou na cidade com os poros escorrendo sangue. Seguiram devagar até os portões do castelo, onde finalmente foram reconhecidos. Pedindo sigilo sobre a sua chegada aos guardas que protegiam os portões, ele foi até o interior do castelo e solicitou uma audiência com o ministro de guerra.
— Mas o que você está fazendo aqui? — Amato levantou a voz assim que entrou na sala, afobado.
— Calma, você vai entender... — começou a explicar. Após contar todo o ocorrido nos meses que estivera ausente, Amadeu anunciou sua saída do exército de Kelicerata.
— Espere, você não pode fazer isso! O calor do deserto fritou seus miolos? E logo agora que entraremos em guerra com Casul?
— Você ainda pretende fazer guerra? Depois de tudo que acabei de contar? Não percebe que existem soluções mais benéficas que a luta?
— Muito me desaponta ouvir estas palavras da boca do maior guerreiro de Kelicerata. Acontece que agora eu tenho dois mil soldados que desapareceram do mapa. E a guerra vai acontecer, quer você queira ou não, então o mais conveniente é que eles levem a culpa por estas mortes também.
— Não é possível que vai culpar Casul por essas mortes!
— Eles atacaram primeiro, Amadeu. E agora perdi metade do exército em vão! Correndo solta, esta notícia só vai trazer calamidade à sociedade. Chegaremos num ponto de vulnerabilidade que será mais vantajoso entregar o reino de bandeja para o Leão. É isso que você quer? Achei, pela sua personalidade, que teria no mínimo uma vontade de lutar contra ele. O maior guerreiro do exército, chamado de imortal, mesmo com todo esse lisonjeio nunca conseguiu alcançar a fama de Rupert Grankill.
Amadeu se lembrou da voz que sussurrou em seu ouvido. O que parecia ser um aviso dos espíritos da natureza, após ouvir a provocação de Amato, soava como um desafio. Amadeu queria a felicidade, mas era um guerreiro e não podia negar o que levou a vida inteira para construir. Decidido a enfrentar o Leão, mas teimoso demais para afirmar naquele momento, pois estava enraivado com a atitude de Amato e não queria assumir a derrota na discussão, Amadeu apenas deu as costas e saiu da sala dizendo:
— Não esqueça de Darit!
— Eu não esqueci, Darit. Venha comigo, precisamos arranjar um local para você. Tentarei atender todos os seus desejos, afinal de contas, você poupou Kelicerata de muitas batalhas futuras. Peço apenas que tenha consciência da responsabilidade que cai sobre esses seus olhos, e dignidade suficiente para nunca abri-los novamente.
Amato encaminhou o soldado para um quarto afastado. Bem suntuoso, é verdade, mas a escolha do aposento teve um caráter mais estratégico que de premiação. As janelas do lugar davam para uma linda paisagem: árvores frondosas compunham o cenário em que, nos dias de céu claro, podia se ver ao longe as montanhas do leste. Nenhum campo aberto ou vista da cidade. Era impossível para Darit trocar olhares com alguém, pois naqueles trechos ninguém passava. Havia o perigo de um pássaro se aproximar e acabar contraindo a doença, mas seria muito improvável, pensou Amato. Antes correr este risco remoto que enclausurar e fomentar o ódio num homem capaz de acabar com toda a vida no reino. “A porta trancada deve ser suficiente”, convenceu-se.
Enquanto caminhava, encontrou Regina esbanjando gracejos.
— Oi, meu amor. Estive à sua procura todo esse tempo!
— Não tenho tempo para conversas, Regina. Preciso de silêncio para redigir uma carta, o quanto antes. — sem ter intenção de parar e dar ouvidos às frivolidades da esposa, ele continuou a andar.
— Uma carta? E vai mandar para quem? — ela seguia o passo de Amato. Sem paciência para lidar com a insistência feminina, Amato segurou-a pelos ombros com rudeza.
— Os dois mil soldados que saíram do castelo estão mortos. MORTOS! Amadeu foi o único sobrevivente e está aqui no castelo. Se entender a gravidade deste fato, perceberá que o que não me falta agora são problemas. A guerra começou, e agora Kelicerata precisa mais de um ministro de guerra que você de um marido!
Regina permaneceu sem palavras enquanto viu seu marido sumir pelos corredores. Os últimos meses, de felicidade para o casal, agora eram ameaçados pela sombra do relacionamento tempestuoso que ela experimentara tempos atrás. Correu para uma janela próxima, procurando esconder o rosto e as lágrimas que corriam.
II
No ínterim entre a chegada de Amadeu e o envio final de tropas à Casul, Scorpio reapareceu no castelo. O único a se surpreender foi Amato, sendo ele o único que sabia da decisão de exílio permanente. A volta, no entanto, não decorrera do arrependimento de Scorpio e renovação dos interesses para com a nação. O reino, antes alvo de grande apreço, não exercia peso algum sobre a consciência de Scorpio, os meses que passou no exílio tinham inclusive aumentado o desprendimento do rei para com o reino. A linha do destino, entretanto, não é algo que um homem pode manejar como bem entende, desatando os nós desagradáveis. Entendido que a mensagem enviada pelo céu, no dia em que Atreio morreu, era direcionada a ele, o seu orgulho tinha sido manchado. Para provar-se digno, Scorpio teria que matar o Leão, ou morrer na tentativa.
Amato pouco se interessou pela atuação do rei na guerra. Estava certo de voltar à floresta privativa do Castelo Henpakihan e caçar Scorpio com mesma perseverança que um cão segue uma raposa, após ter acabado com os filhos do zodíaco em Casul. A morte dele, na guerra, era apenas uma antecipação de um fato inevitável. No perfil estratégico, a volta de Scorpio se mostrou vantajosa, e isso Amato não podia negar. Dezenas de feras abandonaram a vida na floresta para seguir o seu mestre. Ursos, tigres e lobos, aves e cavalos selvagens. Todos se submeteram ao trato do exército de Kelicerata e no dia da partida foram levados com as tropas, em jaulas e caixotes.
O exército, por sua vez, deparava-se com a investida definitiva. Após duas tentativas fracassadas, a sociedade não suportaria mais derrotas contra Casul. A necessidade de vitória era tão grande nesta campanha que todo o efetivo foi empregado. Para evitar o crescimento da criminalidade na capital, foram incorporados forçadamente às tropas, vagabundos e andarilhos, recebendo o posto de soldado raso, sem qualquer privilégio. Zuldur foi nomeado o general em comando, e respondia apenas a Amato e Scorpio. Entre as patentes altas, estava Amadeu. Sem qualquer poder decisório ou espírito patriota, ele valia-se da guerra como meio de chegar a seu objetivo de lutar com o Leão. Posição idêntica à de Scorpio, mesmo que ambos desconhecessem a coincidência. Para Amato, só restava imaginar quão grande seria o poder do homem, dito ser a reencarnação de Sauza, e se tamanha grandeza era páreo para aqueles dois extraordinários combatentes.
III
A carta não enviada
Querido pai,
Agora entendo sua obstinação em impedir a travessia da península. Apesar de ter mantido minha vida a salvo permanecendo em Kelicerata, perdi um incontável contingente, que agora, perto da hora derradeira, me faz falta. O episódio não trouxe apenas notícias ruins, devo acrescentar. Descobri que o líder dos rebeldes do sul, de paradeiro desconhecido, faleceu pouco tempo atrás, e o mais importante: um dos meus generais é imune ao poder de Saga. Preciso maquinar um jeito de matar Saga através dele, mas sem levantar suspeitas, pois este mesmo general é o Imortal de Câncer, me pergunto se você o conheceu...
Aqui no castelo, outros assuntos povoaram minha mente durante os últimos meses. A chama do amor reacendeu no meu coração. Estou em ótimos termos com Regina. Ela chegou a me confessar que usou métodos para evitar a gravidez, e agora se arrepende bastante. Diz que não tem feito nada para evitar, mas ainda não há sinal de nenhum herdeiro a caminho. Sinto que ela se sente culpada por isso, mais ainda, ela se entristece por pensar que eu posso me afastar dela devido a isso. A ministra da saúde terá um filho em algumas semanas e admito que existe de minha parte, a possibilidade de paternidade. Mas afirmo também que não tenho interesse algum de reconhecer o bastardo, pois a megera não passa de uma devassa. Pelos cálculos que fiz, o rei também pode ser o pai. Nada me tira da cabeça que ela agiu premeditadamente, pois com a minha morte e de Scorpio, o filho dela será herdeiro, e mesmo que voltemos da batalha, poderá reivindicar o trono do mesmo jeito, alegando a paternidade de um de nós dois.
Ciente desta malícia, não posso deixar Regina desamparada. Tomarei o seu neto como meu protegido, e darei a Regina para criar como nosso filho. Tenho certeza que logo receberemos uma visita sua. A guerra seguirá conforme eu presumi e ao seu término restará apenas filhos de Capricórnio, Peixes e Escorpião. O último pode facilmente ser localizado, pois ele se isolou numa floresta aqui do reino visando ter proximidade com o templo do leste. Dentre em pouco tempo o senhor será agraciado com a força de Sauza, e finalmente se verá livre da maldição. Aguardo ansioso por este dia.
Sinto sua falta.
Capítulo 10: A longa travessia
I
Partiam do leste de Maciaan novos ares de mudança. Com o avanço do exército de Kelicerata para o oeste, os dias ficavam mais quentes e as noites mais sombrias. O tremor de terra era perceptível além das colinas, anunciando a passagem dos mais de dois mil soldados. Mesmo das mais longínquas distâncias, era possível precisar aonde ia a hoste, pois nos céus, as gigantescas aves acompanhavam o passo. Gaviões-imperadores podiam ser vistos fazendo sombra, e à noite, o farfalhar inconfundível denunciava que corvos-imperadores também seguiam com os homens. Mesmo com a determinação de Amato, na iminência de uma nova recusa no Castelo de Libra, seria impossível arranjar outra forma de travessia para tantos soldados. Com as aves, no entanto, não demoraria levar as tropas de uma extremidade à outra da ponte, galgando assim o trecho faltante. “Talvez seja melhor usar isso, assim que chegarmos ao limite da ponte. No caso do guerreiro de Libra negar novamente passagem, pretendia obriga-lo pela força, mas agora que Scorpio está aqui, talvez não seja tão fácil”. O pensamento tomou conta de Amato por longos dias.
O céu noturno também sofreu mudanças durante esse tempo. Em toda Maciaan, pessoas estranhavam as estrelas. Estavam cada dia mais numerosas e algumas jamais vistas, agora brilhavam forte. Era como se o universo aos poucos se reunisse para assistir a um grande show. O fenômeno também foi percebido por Scorpio, que demonstrou uma tremenda curiosidade, desejando estar no templo do leste para tentar resolver este mistério.
Quando chegaram à ponte, as tropas se agruparam em porções menores e estreitas, seguindo em fila. A nova configuração dava trabalho para a comunicação entre os generais e capitães, pois o tempo de uma ordem chegar até a última tropa, saindo de Zuldur que marchava nas primeiras filas, era de quase uma hora. Durante a travessia, ignorando a ordem seguida por todo grupo, Amato foi até a borda e olhou atentamente para o oceano. O marulho reavivava memórias, mas serviu também de alerta.
— Como eu vou matar o Imperador do Oceano? — questionava-se. Um inimigo implacável, ainda que aparentemente invencível, pode ser analisado e combatido. O Imperador do Oceano, por sua vez, sequer podia ser estudado. A dúvida o afligiu e acabou vencendo o intelecto do ministro de guerra. Sem uma alternativa, teria de se valer do plano que traçara ainda no Castelo Henpakihan. Precisaria capturar a Rainha de Casul e usá-la como isca, para trazer à terra firme o adversário inalcançável.
Esta estratégia nada agradava Amato. Primeiramente por ser um ardil dos mais desprezíveis. Em segundo, porque uma vez atraído, a única opção seria lutar contra o homem-peixe, e nunca é sábio enfrentar um inimigo que não se conhece, especialmente um filho do zodíaco.
Scorpio não se importava com estratégias. Queria provar a si mesmo que era capaz de vencer numa disputa de habilidades, e o único preparo ao qual se dedicava era o mental. Foi num momento de concentração que Zuldur chegou ao seu lado e perguntou:
— Não quer comer conosco, Sua Majestade? Um dos recrutados era saltimbanco, está a entreter todos com anedotas!
— Obrigado, general Zuldur, mas estou bem, aqui.
— Então desculpe a intromissão. Antes de ir, quero externar mais uma vez o contentamento de estar ao seu lado nesta guerra. Aguardo veemente o momento de estarmos lado a lado na frente de batalha.
— Quanto a isto, devo decepcioná-lo mais uma vez. Meu papel nessa guerra é meramente figurativo. É verdade que sigo com as tropas, mas meu motivo é usar a guerra como veículo para travar um duelo particular com Rupert Grankill. Depois de terminada, a guerra trará a ascensão de um novo rei à Kelicerata. Poderá ser Rupert Grankill, outro de Casul, ou até mesmo você, Zuldur. Mas mesmo que eu vença o duelo e Kelicerata a guerra, eu ainda sairei de cena.
Constrangido com o posicionamento indiferente do rei mediante o destino de seus próprios súditos, Zuldur despediu-se e foi ter com Amato.
— Amato, acabo de ter conhecimento das intenções do rei. Presumo que já conhecia as aspirações dele.
— Sim, eu estava ciente do fato.
— E não se opôs, mesmo sabendo que o intuito de Amadeu é exatamente o mesmo? Eu já taxei como sandice essa ideia quando Amadeu me contou. Mas agora que sei do rei, vejo que foi uma completa irresponsabilidade sua! O que acontecerá caso os dois encontrem o Leão? Vão se bater para decidir quem deve ser o adversário?
— Exatamente essa foi a minha conclusão, e é o principal motivo de que escondi as intenções um do outro. Não quero duas das figuras mais importantes de Kelicerata se batendo aqui.
— Mas se batendo em Casul, não vê problemas?
— Em Casul haverá uma guerra, Zuldur! Acha mesmo que eles vão impedir o confronto para que dois comecem a duelar? É mais provável que eliminemos Grankill antes mesmo de um dos dois alcançar o aposento do rei.
— Ainda acho que devíamos resolver o problema o quanto antes. Um desentendimento no campo de batalha pode afetar o desempenho do exército inteiro. Estou aconselhando como general e amigo.
— É meu amigo e general, mas não adivinho. Deixe de perder tempo com especulação e vá terminar de comer.
Alguns dias após esta conversa, o exército de Kelicerata finalmente chegou à extremidade da ponte. Enquanto uns se exaltaram, considerando aquilo uma vitória, outros desanimavam, pois a chegada até ali indicava que estavam no meio da travessia, ou seja, marchariam ainda alguns meses antes de ver terra firme. Amato olhou para o céu, fitando os pássaros gigantes, capazes de transpor enormes distâncias com o bater de asas. Queria sugerir a travessia para o outro extremo com a ajuda dos animais, mas não o fez por receio de levantar suspeitas. E também porque antes de concluir o pensamento, alguém já o chamava.
— Você não vem? — perguntou Scorpio, já pisando na ponte menor que levava até o castelo na Ilha do Centro.
— Já estou indo. — respondeu Amato, perdendo a chance de propor a travessia com os pássaros.
Desta vez, o dois foram bem mais rápidos. Atravessaram a ponte estreita sem olhar para o redemoinho abaixo e não fizeram cerimônia para abrir a porta do castelo. Caminharam decididamente pelos espaçosos salões e corredores intimistas com suas paredes de pedras frias. Já sabiam o caminho e não perderam tempo observando miudezas. Para surpresa dos dois, a sala do trono estava vazia, e sua porta de madeira com o símbolo da balança, completamente escancarada.
— E agora, o que fazemos? — perguntou Amato. Antes de obter qualquer resposta, uma voz jovial se fez ouvir num corredor ao fundo.
— Vocês realmente capricharam desta vez! — o rapaz que falava era o mesmo da outra vez. Não havia mudado em quase nada, de forma que logo foi reconhecido.
— Ora, se não é Bak-Tanu. É um prazer revê-lo. — adiantou-se Scorpio. O jovem sorriu e encaminhou-se até o trono, onde sentou com certa intimidade. O fato fez Scorpio ajoelhar-se em reverência, ato que foi imitado por Amato.
— O que posso fazer pelos dois viajantes da nação do leste?
— Nada de novo. Como fizemos pouco mais de um ano atrás, viemos humildemente pedir passagem pela Ponte dos Mundos.
— Pelo que vi agora a pouco, o motivo é travar guerra com Casul. Estou correto? — Amato manifestou-se involuntariamente, como se estivesse calado até então num ato de contenção, se preparando para persuadir impetuosamente com um só argumento decisivo:
— Nós trouxemos toda força militar do reino num esforço colossal. Não estamos dispostos a aceitar — a mão de Scorpio apertou a garganta de Amato, não num ato de violência, como Amato pensou de início, mas de prudência.
— Esse seu súdito continua impertinente, não é? — disse Bak-Tanu com um riso breve.
— É um traço de personalidade que temo nunca desaparecer. Mas respondendo a sua pergunta, sim, pretendemos guerrear.
— Tudo bem. Sendo esta a única razão de estarem aqui, eu não devo prendê-los mais neste castelo. Permissão concedida.
“Foi tão fácil assim?”, pensou Amato. Era bem verdade que ele não conhecia nada sobre o funcionamento do Castelo de Libra nem da função do guerreiro, que, aliás, ele sequer sabia identificar. Para sanar a dúvida, atreveu a se manifestar novamente:
— Agradeço demais a sua decisão. Gostaria apenas de tirar uma dúvida se for possível... O guerreiro de Libra, onde está?
— Bem na sua frente. — respondeu Bak-Tanu. Levantou do trono e foi até a parede ao fundo da sala, de onde retirou uma espada longa e visivelmente ornamental, pois ao longo da lâmina havia desenhos e inscrições de um tom estético duvidoso.
— Ah, então me desculpe, eu imaginei ser o homem mais velho de antes...
— Naquela época eu estava terminando meus estudos com Aok-Valere. Não se preocupe com ele, o importante é que eu sou o guerreiro de Libra e vou completar a ponte agora mesmo para vocês.
Dito isto, ele baixou a ponta da espada em frente ao trono, e só então os dois ajoelhados puderam perceber uma pequena fenda que ali se encontrava. A lâmina se adequou perfeitamente no buraco, e ouviu-se um grande estrondo de rochas quebrando.
— Estão liberados para ir embora. Se quiserem ver a ponte sendo erguida, corram para o terraço, subindo o corredor à direita. — falando isso ele encerrou sua participação e saiu pelo mesmo corredor por onde entrara, deixando a espada fincada no chão do salão.
— Vamos ver! — Scorpio correu com um sorriso infante estampado no rosto. Amato teve vontade de seguir o corredor e dar cabo do jovem ali mesmo, mas acarretaria muitos riscos. Poderia dar um fim a ele na volta da guerra vitoriosa, e no caso de derrota, poderia precisar dos préstimos do mesmo. Com uma ponta de curiosidade, resolveu seguir Scorpio, que já subia os primeiros degraus.
O terraço era apenas um dos vários no Castelo de Libra. O vento tinha força descomunal e a vista era deslumbrante. Centenas de redemoinhos cercavam os dois, e o brilho no mar pareceu convidativo para um mergulho. Enquanto Amato se perdia na vista, tão igual e ao mesmo tempo tão diferente do que vinha vendo nas últimas semanas, Scorpio gritou:
— Olha só aquilo!
Do meio das águas salgadas, emergindo do profundo azul, o pedaço faltante da ponte apareceu. A visão era colossal; apenas coberto de limo em toda superfície, o trecho não tinha nada de diferente do resto da ponte. Podia-se ver também a euforia dos milhares de soldados, e foi essa cena que levou Scorpio ao fim da vida. Animado com a conquista e a alegria dos soldados, ele comentou:
— Deve estar uma gritaria enorme. Pena que não possamos ouvir daqui. Aliás, aqui o único som é o assobio do vento, percebeu? É de entristecer o coração, nem os meus animais eu consigo ouvir...
Este foi o erro crucial de Scorpio, e após terminar a última frase, a lança de Amato havia lhe perfurado as costas. Sem ouvir isto, Amato continuaria deslumbrado com a cena ao invés de perceber a grande oportunidade de eliminar o filho de Escorpião. Numa luta, o poder de Scorpio era praticamente imbatível. Somado isso ao fato de ser um rei e ter uma legião de súditos, mata-lo seria um verdadeiro desafio de habilidade política e militar. No entanto, estavam os dois ali, sozinhos, provavelmente no único lugar de Maciaan onde Scorpio era indefeso.
Já ciente da morte, Scorpio tentava entender o motivo do ataque. Não podia ver se o rosto de Amato demonstrava malícia, ódio ou satisfação. Seria ele o espião de Casul? Planejava um golpe para tomar o trono? Era ciúme de Alba? Em poucos segundos Scorpio tentou desvendar o motivo de sua morte por diversos ângulos. Ao mesmo tempo, a lança era fincada com mais força, de forma a empurrá-lo para a beirada. Com a cabeça tonta, o prelúdio para o sono eterno, Scorpio recebeu o último empurrão da ponta da lança, e na queda do paredão ainda conseguiu girar, mas a visão estava embaçada e não conseguiu captar o semblante de Amato. O reino de Kelicerata, os súditos, a vida livre e selvagem; o poderoso rei morreu sem descobrir o que mais amava, deixando apenas um clamor que foi levado pelo vento enquanto caía para o infinito desconhecido:
— Por quê?
II
Espantado ainda com o que fizera, Amato permaneceu minutos em silêncio, observando a ponte, os soldados eufóricos e a dança das nuvens. Quando voltou a si, desceu as escadas e encontrou a alta porta de madeira trancada, com o símbolo de Libra entalhado impedindo sua passagem. Agora, mesmo se quisesse, não poderia matar o guerreiro de Libra. Deu voltas no castelo procurando uma fonte de água e mesmo nos andares mais abaixo, olhando pela janela percebeu ser alto demais para limpar a lança na água do mar. Mas não desistiu, pois o sangue precisava sumir. Quando já estava preocupado com a demora da busca, encontrou uma escadaria estreita e de teto bem baixo, diferente de todo o resto do castelo. Ela levava a um nível bem mais abaixo, de forma que a descida se tornou até preocupante.
— Espero que isso aqui não desmorone... — disse ele tateando as pedras que o rodeavam, para certificar-se da solidez da estrutura. Não que aparentasse fragilidade, mas minutos antes, quando Bak-Tanu enfiou a espada no chão, o som de rochas quebradiças foi muito alto, a dar impressão do castelo ter sofrido um grande abalo na sua base.
Após certo ponto, a descida se transformou numa provação de coragem, pois a luz da entrada estava fora de alcance e a escuridão se tornou absoluta. Amato cogitou retornar, e o teria feito se um barulho de água não tivesse chamado sua atenção. Convicto de ter encontrado água, desceu com ânimo e ao pé da escadaria ficou aturdido com o que encontrara. Uma grande banheira d’água reluzindo um tom azulado quase celeste. A luz bruxuleava nas paredes, e revelou ser de fato um cubículo onde não havia nada além da própria banheira.
Amato estranhou, mas estava intrigado mesmo é com a fonte de luz. Enquanto limpava a lança, tentou cutucar o fundo da banheira com o cabo para pegar o objeto dotado de luminescência. Estava convencido que era uma estrela, que havia caído do céu e na certa alguém a tinha esquecido ou escondido no local. Qual foi a surpresa quando ele mergulhou toda a lança na banheira e não conseguiu tocar o fundo:
— Ué? Será um túnel? Bom, se era um túnel, agora já foi inundado. Acho que o dono da estrela deixou cair e ela desceu até o fundo, fora do alcance — um pouco desapontado, Amato subiu a escadaria de volta com a lança sem traço algum de ter sido utilizada para matar.
Enquanto voltava para a Ponte dos Mundos, Amato viu boa parte dos soldados já adiante, no trecho que havia emergido. Zuldur, no entanto, permanecia estático, esperando pela volta dos seus comandantes. Os últimos trinta metros foram de passos vagarosos e respiração profunda. Amato não queria demonstrar fraqueza na voz e nem deixar dúvidas quanto à mentira que estava prestes a contar.
— Sensacional, Amato! Ainda agora não consigo acreditar que essa ponte subiu tão rapidamente do oceano! Onde está Scorpio?
— Ele não vem conosco, Zuldur. Resolveu passar um tempo estudando com o guerreiro de Libra.
— Como assim? Isso está muito estranho... Em todo caso, melhor deixar alguns guardas com ele, só por segurança — prontamente Amato o impediu.
— Nem isso será necessário. Ele afirmou que chegará a Casul em tempo para a batalha. Deixar outros no castelo só causará problemas, principalmente na hora de viajar nos gaviões-imperadores. E não faça essa cara, vamos andando!
O tom insistente de Amato deixou Zuldur incomodado. Não queria duvidar do ministro de guerra, mas sentiu uma grande vontade de ir tirar isto a limpo com Scorpio. Olhou para a estreita ponte que levava ao castelo e terminou por desistir da ideia. Não era possível atravessar a cavalo, e mesmo ele sozinho, largo do jeito que era, teria dificuldade, pois precisaria andar lateralmente e com a perna de madeira, ainda por cima. Lançou um último olhar ao castelo isolado e seguiu caminho com as tropas.
Após mais longas semanas, o grupo de soldados quebrou a quietude eterna que os acompanhava há tanto tempo. A euforia não era sem motivo, afinal o término da ponte já podia ser visto. Um grande contraste foi observado pelos homens, no que se tratava do fim da ponte. No leste, a ponte surgia de um alto paredão de pedra cinzenta, já no oeste, a ponte começava de uma praia extensa, cobrindo com areia branca e dunas baixas quase todo o litoral avistado. Enquanto antes havia certo temor de cair da beirada do penhasco, agora o mar parecia até paradisíaco, disfarçando com a espuma branca os perigos que guardava. Assim que o exército tinha completado a travessia, alguns soldados foram até a beirada da praia. Não ocorrendo nada de estranho, como ataque de monstro, outros seguiram o exemplo. Vários tiraram as botas e molharam as canelas, mas não se atreveram a ir mais fundo, com medo de serem puxados pelo redemoinho que, mesmo longe, girava com força. Alguns tentaram beber a água e foram motivo de risada pelas caretas que faziam. Enquanto os homens se distraiam, recém-chegados ao reino de Casul, o Cesaro recebia uma visita inusitada.
III
Tiestes dava passos morosos da sua casa até um matagal próximo, com intenção de buscar lebres ou outros animais que tivessem caído nas armadilhas que ele deixara na floresta. Com um olho de cor vermelho-sangue aberto na testa, ele passou a observar as armadilhas, e várias delas tinham sido ativadas, porém nada haviam capturado. Isso acontecia uma vez ou outra, mas desta vez eram muitas, o que deixou Tiestes desconfiado. Passou a vasculhar toda a floresta atrás de um intruso. Um novo olho se abriu no ombro direito e logo abaixo dele, mais um. Tiestes não descobriu nada de estranho, mas ainda não estava convencido. O olho que estava no braço piscou uma vez e passou a vigiar o templo. O do ombro também piscou e percorreu o desfiladeiro que bordeava o Cesaro, mas nenhum deles encontrou nada de anormal.
O olho da testa fechou uma vez e abriu novamente para procurar no último lugar possível, a campina a leste do templo que terminava nas montanhas do leste. Foi então que ele logo avistou o invasor parado numa meseta, segurando os animais capturados e já abatidos. Além do intruso, o olho maldito encontrou também Tiestes, bem pequeno. Este fechou os olhos malditos, que desapareceram na pele sem deixar rastros, e virou-se para onde se encontrava o intruso. Mesmo de longe, Tiestes não teve dúvida alguma sobre quem era. Seu velho amigo estava de volta. Levantou o braço e acenou. O intruso viu o gesto e correu em direção ao guardião do templo. A distância entre os dois era enorme, mas foi percorrida em poucos segundos pelo galope do centauro Adônis.
— Vejam só, se não é o filho de Capricórnio, continua guardando o templo, hein?
— Desde sempre. Você levou bastante tempo para voltar, Adônis.
— Nem me fale. Você ainda era um garotinho naquela época. Ficou forte!
— E também velho. — o ar cansado que os anos deixaram em Tiestes se tornaram visíveis no seu rosto.
— Você não teve uma vida muito fácil, não foi?
— Da minha vida eu não tenho nada para contar. Isto aqui resume toda ela — abriu os braços indicando o lugar em que pisavam — e você? Logo que você foi embora atrás do filho de Sagitário, tentei te acompanhar, mas era rápido demais até para meus olhos.
— Então vamos até sua casa, contarei muita coisa enquanto você prepara um cozido!
Os dois passaram o dia rindo à toa, conversando trivialidades pelo puro prazer da conversa. Tiestes se lembrou de Yozien, por várias vezes no dia. Quando a noite caiu abafada pelo calor, Adônis externou sua vontade de visitar o templo e os dois foram até ele. Muitas décadas atrás, Adônis nasceu do lodo pantanoso ao sul do Cesaro. Seu surgimento coincidiu com a chegada do filho de Sagitário anterior a Atreio e com a morte dele, o centauro passou a vagar pelo mundo sem direção. Anos depois, retornou ao templo para servir ao novo arauto do poder sagitariano, porém havia chegado tarde demais. Atreio já era adulto e passara a vagar pelo mundo sem destino.
O centauro resolveu ficar no Cesaro, mesmo com a vontade urgente de correr mundo afora atrás de Atreio. Cuidando do templo viviam Bato, o filho de Câncer que precedera Amadeu, Yozien e o pequeno Tiestes. Adônis viveu bons anos com aquelas pessoas, até o dia em que Tiestes finalmente conseguiu controlar o poder do olho maldito, quando ainda tinha apenas cinco anos de idade. A pedido de Adônis, ele passou a procurar por Atreio, guiando-se apenas pela constelação de Sagitário.
Após inúmeras buscas, espiando secretamente as costas das pessoas, o menino encontrou o signo zodiacal nas costas de um homem alto e cabelo escuro, que vivia na capital do Reino de Kelicerata. Animado com a descoberta, Adônis despediu-se de Bato e Yozien e cavalgou como um relâmpago até a capital, levando como guia o pequeno Tiestes. A viagem não durou dois dias inteiros, dado a velocidade absurda do híbrido. A sorte estava do lado dos viajantes, pois, sendo considerado uma criatura monstruosa, Adônis não poderia entrar pelos portões da cidade sem esperar ser agredido pelos habitantes; o objeto da busca, porém, não se encontrava atrelado à balbúrdia urbana, e sim numa floresta além da cidade.
Sem muitas dificuldades, acabaram achando Atreio vagando na selva com um pequeno grupo de amigos. Quando foi incumbida a Tiestes a missão de chamar Atreio para longe dos amigos, de modo a se encontrar com Adônis, que aguardava escondido, algo de errado aconteceu. O menino se contorcia de dor e rolava no chão, envolto por gritos de agonia. Sem ideia alguma sobre o mal que afligia o garoto, o centauro permaneceu estático até que de uma mata próxima apareceu o grupo de amigos, prontos a acudir.
Paralisados de ambos os lados, tanto Adônis quanto os homens ficaram sem ação, mas um grito de horror de Tiestes foi o suficiente para mudar a situação. Os homens logo concluíram que aquilo era efeito de alguma violência causada pela fera e passaram a tacar pedras e galhos; os ataques nada faziam a Adônis, mas ele não ousava revidar, para não causar uma impressão errada em Atreio, e porque estava mais preocupado com a súbita situação de Tiestes.
De chofre, o filho de Sagitário cessou a investida e pediu o mesmo de seus companheiros. Seu poder havia resolvido o mal entendido e Atreio agora sabia de tudo, desde a intenção de Adônis, até o mal que afligia Tiestes. Foi então que se soube da maldição do filho de Capricórnio, e após a rápida explicação que a volta ao Cesaro era necessária urgentemente, o centauro correu como nunca. O trote foi tão veloz e ameaçador que o estrépito podia ser ouvido a longas distâncias. Alguns curiosos lograram avistar o causador do barulho, e por anos a fio as histórias de centauros se propagaram, principalmente nas áreas mais próximas ao Cesaro, onde um maior contingente de pessoas presenciou a disforme figura correndo enquanto carregava o corpo de um pequeno homem morto.
Todas essas memórias retornaram a Adônis enquanto percorria o templo, e cessaram quando Tiestes fez uma pergunta:
— Mais um filho de Sagitário morreu e você permanece vivo. Você não sente um desejo de ver tudo acabar logo?
— Pelo seu tom de voz, parece que fez a pergunta a si mesmo...
— Eu fui muito inocente no passado, Adônis. Eu usei meu filho como instrumento para me livrar da maldição e os efeitos da minha tolice estão levando o mundo à ruina.
— Você sabe como quebrar a maldição?
— Não exatamente. A maldição está ligada ao meu destino com Capricórnio. Foi assim com Bato, e não vejo como mudar isso no meu caso. O que eu almejava era ser o homem sem signo.
— Você realmente acha que isso é possível? Matar todos os filhos do zodíaco não me parece plausível.
— É possível sim. E meu filho tomou a missão para si. O problema é que ele ficou obcecado com isso e matará muitos milhares quando deveriam ser apenas onze. Você já deve estar sabendo da guerra entre Kelicerata e Casul...
— É obra de seu filho? Mas que loucura, Tiestes! Eu conheci o filho de Câncer, Amadeu. É um bom homem, eu não gostaria que ele morresse por um motivo dessa natureza.
— Amadeu. Realmente ele é uma peça rara. Mas não entenda mal, fui impelido por uma força maior que minha vontade. O meu primogênito foi criado pela mãe numa vila do norte de Kelicerata. Minha vontade de estar perto dele foi o que me fez ir adiante com meu plano. Agora, ele virou um bêbado e está rumando com o exército para a guerra. No final das contas será usado na linha de frente, junto com os outros vagabundos sem preparo militar.
— Você devia avisar ao seu filho, então, que ele está prestes a matar o próprio irmão na guerra.
— E me diga como posso fazer isso, então!
Para a surpresa de Tiestes, Adônis tinha a resposta. Muitos anos atrás, Atreio havia descoberto um novo segredo sobre a maldição de Tiestes, e contado para Adônis.
— O seu corpo não pode ficar longe do Cesaro. Mas ele pode durar enquanto você levar um pedaço do Cesaro com você. Quando criança, você saiu com apenas a água do Cesaro no cantil e migalhas de terra e poeira no corpo e roupas. E só isso deixou você viver por mais de dois dias.
— Essa informação seria útil apenas se eu fosse percorrer curtas distâncias. Não espera que eu saia daqui até Casul carregando uma caixa com terra e água, não é?
— Você não. Mas eu posso levar bem rápido.
A ideia tomou forma na cabeça de Tiestes e ele pôs-se a pensar, em seguida um olho maldito se abriu na sua testa e logo ele respondeu:
— Ainda sim, não dará tempo. As tropas de Amato já estão a menos de um dia de caminhada da capital de Casul. Nem você seria capaz de chegar tão rápido.
— Prefere ficar aqui e não tentar? — nesse momento Tiestes teve a impressão que Adônis estava propondo a viagem unicamente para quebrar o tédio que o acompanhava após a morte de Atreio.
— Bom, já que você insiste, por que não?
IV
Assim que a luz matutina despontou no céu, Adônis e Tiestes já terminavam os preparos para a partida. Sem tempo de montar uma estrutura forte para carregar terra suficiente para cobrir Tiestes, e confiável de se viajar por longas distâncias e numa alta velocidade, os dois se renderam à simplicidade. O centauro encontrou uma grande rocha que tinha uma cavidade larga o suficiente para um humano deitar-se. A rocha maciça aguentaria ser arrastada por terra sem o perigo de trincar, de forma que o maior trabalho que tiveram pela noite foi lixar uma asa na extremidade da rocha para que os dedos do centauro não deslizassem durante a viagem. A força para arrastar peso tão grande acabou por não ser um problema, visto que após desenterrar a rocha, Adônis a levantou acima da cabeça com facilidade.
Após um descanso de poucas horas, menos ainda para Tiestes, que demorou em adormecer, os dois acordaram e trataram de comer. Adônis permanecia quieto, para não suscitar nenhuma mudança de ideia por parte de Tiestes. Quando estavam prestes a entrar na mata fechada, rumo a sul, o homem se deteve por momentos, virando-se em direção ao templo. Incerto sobre o que fazer, o centauro resolveu esperar, e tão demorada foi a hesitação que ele pensou a viagem já estar terminada antes mesmo de encetar a caminhada. Quando o guardião finalmente terminou de se despedir do seu templo, ambos adentraram na floresta, ziguezagueando para evitar a pedra arrastada de derrubar árvores desnecessariamente. Em pouco tempo, chegaram ao fim da floresta que delimitava o Cesaro. Sair daquelas matas era um perigo mortal para Tiestes. A voz de Adônis quebrou a incerteza da sua mente, com uma imposição seca.
— Suba logo aí na pedra! E não vá se espantar, mas eu fiquei muito mais veloz que antes. Não é a toa que me apelidaram de Galope.
Tiestes subiu e começou a se ajeitar na cavidade da pedra, agora coberta por terra e areia. Enterrado ali junto, um barril com água. A única que Tiestes beberia durante toda a viagem. Quando estava enterrado, apenas com a cabeça para o lado de fora da terra e encostada na superfície da pedra, Tiestes assinalou que estava tudo bem e que poderia começar a puxar. Olhando para a copa das árvores, não ouviu nenhum ruído da pedra sendo arrastada, apenas o lento movimento das folhas das árvores que aos poucos iam ficando para trás, dando espaço para o céu azul da manhã. Quando nada além do azul e algumas poucas nuvens eram fitadas por seus olhos, Tiestes ouviu um barulho medonho, um urro de aspecto ribombante, cuja impressão deixada na mente de Tiestes era não ter sido feito para ouvidos humanos, sendo a sua melhor alternativa, olvidar. Subitamente a pedra começou a se mover de forma inacreditável. As nuvens passavam pelo céu matutino na velocidade de pequenos e ligeiros pássaros, dos quais é quase impossível acompanhar a trajetória do voo.
Tomado de certo medo, por vivenciar uma movimentação mais rápida que qualquer outro humano, inclusive Amato no seu corvo-imperador, Tiestes abriu um olho maldito na testa. O olho fitava do alto os campos que eles cavalgavam, e a travessia vista daquele ângulo era igualmente amedrontadora, de tal forma que Tiestes preferiu fechar os olhos — os três olhos — e deixar a viagem correr sozinha, ainda que os constantes solavancos o lembrassem do perigo que corria, caso o puxador escapasse da mão de Adônis.
Durante a manhã, nos Campos de Porocop, um garoto conversava com o pai:
— Aquela velha doida está contando mentiras! — disse apontando para uma senhora dos ombros arqueados, que permanecia estática no topo de uma colina.
— Não fale assim da Dona Fátima, filho. Ela foi abandonada pelo filho, é sozinha no mundo. Temos que respeitar a dor alheia, vamos lá ver se precisa de ajuda.
— O que houve, Dona Fátima? Por que essa cara de espanto?
— Eu acabei de ver um monstro passar correndo adiante — o homem tomou aquilo como delírio da velha, pois não havia monstro nenhum até onde a vista alcançava — ele trotava como um cavalo, e estava carregando uma pedra enorme!
O homem solidário ajudou a senhora a andar até a vila, e deixou-a em casa, descansando. Dias depois, um grande rastro seria descoberto, riscando as planícies, e a história da velha passaria a ser levada a sério, retomando as antigas memórias de centauros na região.
De volta a Casul, alguns soldados — especialmente os que apresentavam alguma debilidade ou indício de doença — ficaram para trás, nas imediações da ponte, encarregados de manter uma rota sempre vigiada e abastecida, na segunda metade da ponte. Um fato que foi logo percebido foi o retorno das aves gigantes. Durante a travessia da ponte elas eram vistas e ouvidas muito raramente. Ao que indicava, haviam transposto a longa distância muito antes dos soldados. Amato teve grande interesse no retorno dos bichos, primeiro porque tinha dúvidas se a ausência de Scorpio tornaria os animais selvagens, e segundamente devido à grande vantagem que era ter seu corvo-imperador novamente ao alcance. Decidiu não enviar batedores, pois pretendia ele mesmo sair de noite e fazer reconhecimento do terreno para a batalha. Para a surpresa de todos, ao fim da tarde já era possível avistar o contorno da capital de Casul, a localização tinha sido confirmada por uma dupla de viajantes nativos, capturados assim que avistados pelo exército. O assentamento foi montado para descansar, e se o reconhecimento noturno trouxesse informações favoráveis, a batalha ocorreria no dia seguinte, pela manhã.
Capítulo 11: A invasão
I
O farfalhar de asas anunciava o retorno de Amato, trazendo informações sobre o alvo. Os generais e capitães foram reunidos para deliberar sobre mudanças de estratégia numa tenda ampla, entre eles, Amadeu e Zuldur.
— A sensação que tive ao me aproximar, era de que Casul era extremamente vasta e populosa, haja vista a quantidade considerável de pessoas e casas situadas fora da muralha da cidade.
— Nada de excepcional em haver moradores marginalizados que acabam se estabelecendo nos arredores da cidade. — respondeu alguém.
— Mas o número de pessoas vivendo assim é absurdamente alto! E não me pareceram vagabundos e mendicantes. Havia comércio, praças, estábulos.
— Teria a capital um aglomerado de cidades envolvendo-a? Neste caso será ainda mais complicado de traçar uma estratégia! — comentou outro.
— Mas aí está o problema. Após dar algumas voltas e observar a cidade marginalizada, passei acima da muralha para espiar a capital, e o que vi foi muito aquém da minha expectativa. Muitas casas, sim, e de construção visivelmente mais trabalhada. Porém em número eram poucas, e espaçadas.
— Será que não se confundiu em meio à escuridão?
— É provável que algumas edificações tenham passado despercebido, mas definitivamente, a cidade que está dentro dos portões é menor, bem menor que a cidade que a cerca. Mas a escuridão, por mais densa que esteja, não seria capaz de esconder um castelo por inteiro. E não estou equivocado em dizer que não há castelo algum nessa Casul.
— Será mesmo a capital? — inquiriu Amadeu. — A única confirmação que temos é daqueles viajantes. Podem estar mentindo.
— Não podemos cair num tipo de armadilha deste nível! — exaltou-se Zuldur.
— Mas não temos alternativa. Se não atacarmos amanhã, com certeza aparecerão moradores curiosos, e nossa presença será alardeada até chegar à verdadeira Casul. O perímetro circular da muralha não nos ajuda, de forma que o ponto vulnerável deve ser o portão de entrada.
— Então dominaremos a cidade mesmo sem confirmação de que é Casul? — indagou um.
— Sim! Não haverá problemas maiores. A maioria dos inimigos está desprotegida, poderemos acabar com eles e depois empregar um esforço maior na penetração da muralha. Caso seja Casul, não teremos complicações estratégicas de combate. Não sendo, teremos muitas pessoas para questionar, bem como locações adequadas para aboletar a todos e tratar eventuais feridos.
— Em todo caso, o melhor é sairmos daqui já de posse da informação. Vou me certificar de arrancar a verdade dos prisioneiros. — se dispôs um dos capitães.
— De qualquer maneira, a estratégia será igual, independente da cidade ser ou não Casul. Um agrupamento frontal, cercado pelas laterais por formações em arco, para evitar que os moradores nos cerquem, afinal de contas não temos certeza do tamanho desta cidade marginal à muralha. Eu deixo as alocações dos grupos nas mãos dos generais.
Com todos cientes do plano, a reunião se desfez, e todos se dispersaram, entre eles Zuldur, que vaticinava a vitória em alto som. Na tenda, Amadeu se aproximou de Amato para conversar.
— Finalmente chegou a hora... Quero pedir uma coisa, Amato. Caso eu não volte, existe uma mulher e um garoto que eu gostaria de mandar uma mensagem.
— É seu filho?
— Não, não. São as pessoas que conheci no deserto.
— Ora, pare de bobagem, acha mesmo que vai morrer em combate? Logo você?
— Mas o Leão é famoso mundialmente pela força...
— Não acredito que ele supere Desleal. E você lutou muito bem contra ele. Acabou vencendo.
— Nós vencemos.
— Sim, nós vencemos. E vamos vencer de novo.
Foi então que Amadeu puxou um cantil que levava na cintura e colocou na mesa. De dentro, correu um líquido púrpura que encheu um vaso. O líquido fez Amato se lembrar de Alba vestida no uniforme de mesma cor.
— Quando o filho de Sagitário morreu, esse líquido caiu das folhas da árvore que ele gerou. É como se fosse o sangue dele, capaz de dar mais força a quem o tome, ou assim eu acredito.
— Ele disse isso?
— Não, mas é algo que eu sei. Não posso explicar, é só uma impressão que tenho. Vamos, vire logo o seu cantil! Se vamos lutar juntos, não quero guardar vantagem só para mim.
Enquanto Amadeu enchia os cantis, Amato, incrédulo, questionou:
— Você acha mesmo que é uma boa ideia tomar isso antes da batalha?
Amadeu entendia a preocupação. Caso o líquido fizesse mal, no lugar de bem, poderia coloca-los em grandes apuros. Pôs um pouco dentro de um copo e tomou de uma vez.
— Não! Você está louco? — gritou Amato.
— Nada demais. Achei que sentiria alguma mudança, mas tem o mesmo efeito de água.
— E o sabor?
— Também não senti.
Amato cheirou o líquido depositado no seu cantil e tomou um gole. Sem nenhuma mudança, os dois deixaram tudo como estava e se despediram.
II
Faltando poucos minutos para chegar o Sol, detrás das colinas, Amadeu se ajoelhou e começou a sua prece. Ele pediu para ser guiado pela força e sabedoria de Sauza. Suplicou pela segurança de seus companheiros e subordinados, e se atreveu até a algo mais. Queria ter a sorte de voltar ileso do campo de batalha. Apesar de ter em vista um único oponente, sabia que era formidável, e chegar até ele não seria uma tarefa fácil. Diante de tal desafio, ele queria retornar vitorioso, e em condições ideais para partir imediatamente até o lugar que havia prometido estar, próximo à misteriosa Katia.
Na sua introspecção, foi interrompido por gritos de dor, e em seguida por vozes lhe chamando o nome. Manteve a calma e continuou sua prece, sem mostrar qualquer preocupação com o que poderia estar acontecendo ao seu redor. Os gritos começaram a se amontoar, indicando azáfama nos arredores, e os gritos chamando por Amadeu agora ecoavam em várias vozes diferentes. Ele terminou sua prece e pediu um sinal, o certificado que seria atendido. A gritaria aumentava e Amadeu não se movia, esperando pelo sinal. Manteve a fé no advento da resposta, porém uma mão o agarrou pelo ombro, e o grito não pôde mais ser ignorado.
— O que está fazendo? Dois dos nossos já foram feridos! — um soldado assustado o chacoalhava. Amadeu levantou, checou mais uma vez o céu escuro e seguiu o homem. — Eles alcançaram as lanças e estão se mantendo firmes na defesa, mesmo cercados eles insistem em não se entregar!
— Por que não os mataram de uma vez?
— Nos incumbiram de apenas conseguir respostas, não pensamos que...
Amadeu agilmente tomou a espada do companheiro e num movimento vertical separou-o da bainha que levava na cintura. Correu até o meio da algazarra, onde cerca de quinze homens faziam um círculo; no centro, os dois prisioneiros se defendiam usando lanças. Ele abriu caminho por entre os soldados e, portando apenas a bainha da espada, se defendeu da investida do prisioneiro que estava de frente, e com poucos passos ritmados, diminuiu a distância, deixando-o ao alcance do golpe. Um sonoro zumbido tomou conta do círculo e a bainha subiu diagonalmente acertando o queixo do prisioneiro. Totalmente derrotado, ele caiu por cima do companheiro, este de costas para Amadeu. O que pegou todos de surpresa foi a ponta da lança, que na trajetória de queda junto ao seu portador, passou pelo antebraço de Amadeu, fazendo-lhe um corte extenso.
O oponente restante se deu conta do amigo caído e por cima do ombro fitou a imagem de Amadeu, favorecido pela posição. Com o medo norteando suas ações, o homem gritou e correu o mais rápido que pôde, já esperando um golpe pela retaguarda. Atirou a lança na parede de soldados e pulou atrás dela. Levou um corte profundo nas costas enquanto passava por entre os guardas, mas conseguiu quebrar o cerco. Correu sem olhar para trás, e apesar dos soldados que o seguiam, já estava com uma boa vantagem na corrida. O golpe mortal nunca veio, pois Amadeu, após derrubar o primeiro prisioneiro, continuou estático. Quando o homem virou o rosto e o viu de soslaio, Amadeu percebeu todos os traços do rosto dele. Não era conhecido, muito menos representava ameaça, mas foi a luz refletida na face que o paralisou. Inconformado, Amadeu relutava em virar de costas, e quando por fim o fez, o disco solar já estava totalmente visível acima do horizonte.
— Perdi o sinal. Isso com certeza não é um bom agouro...
Com a perda do elemento surpresa, o exército se preparava para a batalha com mais rapidez que o usual. Antes da confusão, os prisioneiros não deram mais informações sobre a cidade, mas mantiveram a afirmação que era de fato, a capital de Casul. Enquanto os soldados terminavam os preparos, e Zuldur, na condição de líder, motivava todos com um discurso, dentro da tenda de Amato, ele abriu um baú, de aspecto recente, ou que pouco era usado.
Dentro do baú, ele retirou um elmo, com o formato de cabeça de dragão, de superfície polida, quase espelhada. Ele o pôs na cabeça e após o ajustar, checou o rosto num pequeno espelho.
— Então, finalmente eu vou usar o elmo do matador de dragões... Tive sorte que não ficou apertado.
Olhou para a lança com certa intimidade, convicto que sairia vitorioso mais uma vez, pois assim tinha sido em todos os outros duelos que travou usando ela. Pela metade da manhã, todos estavam prontos, e Zuldur se apresentou para sugerir a partida.
— Marcharemos ao seu comando, ministro Amato.
— Então já está na hora! Algum problema que eu deva saber de antemão?
— Fora o fugitivo, não tivemos mais problema algum. Ah, o corte no braço direito de Amadeu parece que não foi muito fundo.
— Braço direito? Mas é o que ele usa para esgrima!
— Na verdade ele usa os dois, não precisa se preocupar quanto a isso.
— Certo, então vamos partir de uma vez, pois o calor da batalha nos espera.
Mais uma vez o estrépito invadiu a calmaria de Maciaan, enquanto as tropas se dirigiam até o lado mais elevado de um vasto campo próximo à cidade. Os pássaros gigantes não tinham aparecido, mas as outras bestas ainda estavam presas e o instinto de sobrevivência as faria lutar. Os animais eram selvagens por natureza, uma vez que o próprio Scorpio os tinha trazido dos mais funestos cantos das matas fechadas.
Enquanto os soldados eram arregimentados, uma comoção podia ser vista na cidade, e em ato contínuo, apareciam soldados do lado de lá. Aquilo demonstrava o conhecimento prévio do ataque, mas para a sorte de Amato, os moradores só foram avisados de última hora. Em pouco mais de vinte minutos, havia soldados alinhados em ambos os lados, com uma larga campina de poucos aclives separando-os.
Nas linhas de frente, os soldados teorizavam sobre seus adversários. Observavam a quantidade deles, o porte físico, a postura. De Kelicerata, os homens tinham mais nervosismo, pois dentre as casas e ruelas atrás das tropas inimigas, apareciam mais e mais homens. Apesar das casas serem simples, de construção não mais elaborada que as residências de vilas menores, o contingente crescia a cada segundo, o que mostrava ter uma grande extensão. Do lado oposto, sobrava no coração dos soldados o sentimento de dúvida. O posicionamento do exército inimigo era vantajoso, de forma que as linhas de frente se situavam no topo de uma elevação. Quantos mais haveriam por detrás dos primeiros, não era possível saber sem buscar um melhor ponto de observação. E assim os homens permaneciam enfileirados, sem alterar a formação que obstruía uma rua larga que abria caminho por toda a cidade.
Quando a movimentação cessou e os dois lados pareciam prontos, Amato notou a falta de uma liderança; era indício de não ser a capital, ou pelo menos este foi o pensamento que perdurou até a aparição de um homem a cavalo. As tropas abriam caminho e os soldados mostravam respeito àquele guerreiro atrasado. No lugar de tomar a frente e dar instruções à tropa, o cavaleiro trotou em seu cavalo malhado até o centro do que estava para se tornar o campo de batalha. Era Rupert Grankill montado em Diomedes.
Percebendo se tratar do líder daquela hoste, Amato fez sinal para Zuldur e os dois cavalgaram até o centro, de encontro ao recém-chegado. Enquanto se aproximavam, Amato e até mesmo o gigantesco Zuldur se impressionaram com o porte do adversário. Com uma volumosa cabeleira que descia até a cintura, o adversário tinha uma altura descomunal. O seu rosto demonstrava fatuidade, e aquilo se tornou especialmente incômodo dado ao fato do homem não estar usando qualquer tipo de armadura ou proteção. Quando chegaram próximos, uma borrasca congelou a cena por alguns segundos, até que alguém quebrou o silêncio.
— Invasores, não tenho qualquer intenção de lutar com Kelicerata. Ordeno que juntem suas bandeiras e voltem para suas terras.
— Não deseja lutar? Vocês deviam ter pensado sobre isto antes de enviar assassinos ao nosso castelo! — vociferou Zuldur.
— Nós somos soldados de Kelicerata, e estamos prontos para atacar em retaliação ao ato de guerra iniciado pelo Reino de Casul. Identifique-se e declare sua rendição, do contrário avançaremos de cidade em cidade até encontrarmos o seu covarde rei.
— Mas que espécie de pacóvios são os habitantes de Kelicerata? Eu sou Rupert Grankill, o Rei de Casul.
Os dois, empedernidos, se entreolharam com os olhos alertas. Zuldur se lembrou do desaparecimento de Scorpio, e em sua mente se sentia grato por ele não ter voltado ainda. Amato se sentiu tolo, por agir de tal forma diante da reencarnação de Sauza, e após tomar conhecimento da identidade de Grankill, se deu conta do perigo que estava correndo naquele exato momento. Aquela figura imponente, montado em seu cavalo estoico, subitamente se tornou a fonte de terror que secretamente começava a tomar conta de Amato e Zuldur. Grankill mantinha-se firme na sela, calmo e com sua fisionomia airosa, quase que sem se importar com o perigo que sua cidade estava correndo.
— Então — retomou Amato — será mais fácil ainda. Desista agora ou seja o responsável por desencadear a morte de milhares. A escolha é sua.
— Os meus homens são responsáveis pela própria vida. Vieram para proteger suas casas sem medo de morrer. Aqui em Casul não temos um exército regular, então todos que estão atrás de mim possuem o desejo de lutar, até porque sabem que o resultado não mudará com ou sem a presença deles. O seu exército será dizimado, e para fazer isso, eu sou suficiente. Após um breve silêncio, o ministro de guerra declarou:
— Você vai morrer.
Com estas palavras, Amato encerrou a conversa e retornou com Zuldur para junto do exército. Quanto tomou posição e se virou novamente para o campo, Grankill estava ainda parado no campo vazio.
— Ele é retardado? Está no alcance das nossas flechas! — gritou com Zuldur, a raiva tomando conta do corpo. Grankill desceu do cavalo com calma e retirou a camisa de pano que usava, jogando-a no chão. — Essa provocação vai ter resposta.
Os arqueiros foram posicionados à frente da infantaria e, sob o comando de Zuldur, dezenas de flechas foram atiradas visando o homem solitário. Risadas de todos os tons foram pontuadas no exército de Kelicerata, inclusive vindo de Amato. A nuvem pontiaguda descia na trajetória e, no momento de perfurar o alvo, o Leão mostrou suas presas. Num movimento circular com velocidade impossível, ele impediu todas as flechas de acertarem a ele ou ao cavalo. Ao que se seguiu, as gargalhadas continuaram, mas do lado oposto do campo de batalha, com os homens de Casul se divertindo.
Barulhos abafados, de espadas e lanças caindo ao chão, podiam ser escutados. Os homens de Kelicerata, completamente estupefatos, não tiveram outra reação, diante daquele movimento de espada inolvidável. Três reações foram críticas: Zuldur empenhou-se em não demonstrar o pânico que o afligia, mas o sobrolho evidenciou o espanto dele; Amadeu engoliu a saliva e foi tomado por uma súbita crispação; Amato, boquiaberto e com olhos arregalados, saiu do transe apenas quando viu o sorriso vitorioso de Grankill. Ordenou um novo ataque aos arqueiros, mais para se certificar do que tinha acabado de presenciar, do que propriamente em uma investida.
Os homens se multiplicaram, de forma que a quantidade de flechas era consideravelmente maior. O fato se repetiu, em movimentos inimagináveis de Grankill manejando uma simples espada com apenas uma das mãos. Enquanto todos temiam qualquer ordem de Amato para avançar, uma vez que estavam tomados de medo do que aquele homem era capaz de fazer, uma pessoa se destacou. Amadeu abandonou sua posição e começou a galopar em direção ao inimigo. Instantaneamente Amato gritou:
— ZULDUR!
— Cavalaria! — seguindo o comando de Zuldur, o berrante foi soprado e a cavalaria disparou, alcançando Amadeu e o engolindo no barulho do trote. Foi o movimento mais acertado, pois Amadeu, o elemento mais importante da força do leste, num ímpeto juvenil havia se jogado para o alcance das flechas inimigas. Agora, com a cavalaria ao seu lado, o avanço estava mais seguro.
Grankill montou novamente em Diomedes e deu as costas, voltando para o meio do seu exército, e enquanto retornava, levantou a espada verticalmente. Foi o sinal, e todos os homens de Casul seguiram em disparada para combater a investida do oponente.
A manhã de céu claro foi tomada por uma nuvem de poeira densa, em que pouco se ouvia além dos gritos e do choque entre metal. A tática previamente discutida logo foi implementada e, seguindo a cavalaria, a infantaria partiu em seu primeiro avanço. Nesse agrupamento estava a maior parte dos recrutas sem experiência em combate. Cercando pelos lados, duas formações em arco avançaram, impedindo qualquer tentativa de ofensiva lateral do inimigo. Amato aproximou-se de Zuldur.
— Estou deixando o curso da batalha nas suas mãos capazes. — avisou.
— Onde vai?
— Levarei alguns soldados comigo, entraremos na cidade pelos flancos, longe da batalha principal.
— Devíamos seguir o plano!
— Não seja impertinente, Zuldur. Quer dar aulas a um estrategista do meu calibre? Não se preocupe, pois tenho tudo esquematizado na cabeça há muito tempo, já.
Amato saiu levando um grupo de cinco soldados carregando duas grandes caixas. Enquanto eles tomavam distância, Amato constantemente olhava para a nuvem de poeira, tentando localizar Amadeu. Embora a busca tenha sido infrutífera, ele pôde ver alguns dos caixotes sendo abertos no campo, em meio aos soldados inimigos, e de dentro, atacavam os animais, ferozes e sedentos de sangue. Não tinham sido alimentados no dia anterior visando esse tipo de selvageria. Quando o pequeno grupo entrava na cidade, por um beco estreito, Amato sorriu, ao ver que um gavião-imperador desceu para a cortina opaca e emergiu lançando vários soldados no ar. Pelo visto, Scorpio já os tinha instruído previamente, e a ausência do domador não ocasionou problemas maiores. Uma revolta por parte daqueles bichos gigantes era um risco letal para o exército.
III
Amato e os outros se esgueiravam por ruelas, tentando evitar ficar em evidência, mas não demorou muito até serem descobertos. Das janelas, apareciam moradores barulhentos, alardeando a localização deles. Alguns não esperavam a chegada dos soldados, e jogavam cadeiras, água fervente e outros objetos. Os homens atentavam e mudavam a direção a cada esquina, tentando despistar os olhares. Enquanto corriam paralelamente a uma murada baixa, retomaram o passo cuidadoso, pois uma baderna estava acontecendo logo detrás do muro.
Um dos soldados correu até o fim da murada e espreitou-se cuidadosamente, para não ser detectado. O barulho indicava luta de espadas, mas era cedo demais para o grupo ter avançado. A comoção também era comedida, indicando uma briga pequena. Os demais haviam estagnado no caminho, esperando o sinal do averiguador, que estava tenso, o filete de suor descendo pela testa e umedecendo a sobrancelha. Enquanto estirava o pescoço, tentando espiar sem ser notado, foi pego de surpresa! Um corpo caiu bem à sua frente, lançado com força. Era um inimigo, e já caiu inconsciente. A visão o deteve ainda mais, mas após uma longa respiração, foi chamado à atenção por Amato. Finalmente olhou a briga e descobriu quem era o causador da confusão.
Amadeu lutava sozinho contra seis homens. O homem avisou aos restantes e correu em ajuda ao general. Amato correu atrás; os outros quatro permaneceram quietos a mando de Amato. Eles estavam encarregados de puxar os caixotes, não seria vantajoso que se machucassem. Os três logo exterminaram com os inimigos, especialmente pela vantagem de atacar pelas costas.
— O que faz tão longe da batalha?
— Você sabe muito bem. Avancei procurando pelo Leão, e até agora não encontrei rastro dele.
Amadeu havia combatido os inimigos incontido, aniquilando os adversários rapidamente e avançando em meio à multidão; acabou por abandonar a montaria para usar uma movimentação mais versátil. O atraso causado pelos combates o fez perder velocidade, e agora ele tinha avançado tanto quanto os outros, que evitaram lutas percorrendo uma distância maior a pé.
— Una-se a nós! Se esta é Casul, a morada do rei está em algum lugar. Mesmo que não haja um castelo, ele precisa morar sob algum teto! — Amato chamou os soldados restantes, e eles vieram de trás do muro para a larga rua que Amadeu vinha percorrendo.
— Amato, por falar nisso, você não achou essa cidade um tanto curiosa?
Amato ficou ensimesmado, mas percebeu o motivo da pergunta quando fitou os homens surgindo do seu lado.
— O muro... É de madeira?
— Sim, não só ele, mas tudo na cidade. Não acha isso estranho?
Talvez eles não saibam trabalhar a pedra. Não, é impossível, visto que eles possuem armas de metal.
— Inimigos! — gritou um dos soldados.
Uma leva de oito nativos chegou pela rua larga. O som pesado das passadas inimigas incutiu novamente o espírito de luta nos soldados, e eles partiram para combate. Com a queda do último guerreiro dos oito, o moral se elevou, e puderam perceber também que a indumentária dos inimigos não era indicada para guerrear. Apesar de algumas proteções no peito, cintura e pernas, poucos usavam elmo, ou usavam alguma proteção na cabeça de pouca eficácia. Amato lembrou sobre Grankill falar da inexistência de um exército regular, e um grande sorriso de vitória lhe marcou o rosto. Seguido a isso, uma enorme sombra os envolveu por breves segundos e seguiu. Um gavião-imperador cruzou os céus indo na direção que levava a vasta rua.
Durante o voo, todos olharam atentamente, esperando o triunfante ataque do animal, mas o que seguiu foi uma cena assombrosa que aluiu a certeza da vitória. De algum local adiante, um homem subiu verticalmente pelo ar e alcançou a ave. Ela gorgolejou uma vez mais e despencou do céu. O homem, apesar de ensombrado pela distância, não podia ser outro além do Leão. O silêncio tomou conta do grupo e Amadeu correu na direção em que a ave tinha sido derrubada, até ser chamado à atenção:
— Amadeu, pare! Iremos com você, não seja impulsivo! Venha, vamos tomar uma rua lateral. Passaremos despercebidos e evitaremos combates como o de agora há pouco.
Ele consentiu e juntou-se aos demais. A rua que tomaram era demasiada estreita, de forma que precisaram se enfileirar, e o soldado que não carregava nenhum caixote veio por último. Era necessário este cuidado, pois havia o risco de algum inimigo se aproximar, escondido por detrás do caixote que vinha no fim da fila, e pegá-los desprevenidos.
Ao final da ruela, precisaram se conter, pois se depararam com uma vasta praça, onde estava reunida uma boa quantidade de inimigos. Plumas brancas e escuras se espalhavam pelo chão da praça, e num canto adiante, junto a uma casa de teto tombado — provavelmente devido à queda do animal — o corpo do gavião-imperador jazia.
A imobilização era total no beco. Todos com olhos atentos, e tomando cuidado com a respiração. Amato fez sinal para Amadeu e os dois retrocederam, dando a primeira posição na fila aos dois soldados que traziam o primeiro caixote.
— Retirem a tranca da caixa. Vocês devem correr o mais rápido possível, levar a caixa até o meio da multidão e se espalhar. Evitem ficar rodeados, pois não poderemos ajudar caso isto aconteça. Vamos esperar eles serem tomados pelo pânico, e atacaremos, certifiquem-se de não morrer até lá.
Os soldados se entreolharam, certamente com uma mistura de medo e decepção. Não tem como sair vivo do meio de uma multidão de inimigos, ao mesmo tempo nenhum deles queria desobedecer à ordem do superior. Amadeu era um ídolo entre os soldados, e Amato tinha total confiança dos subordinados. Não fosse isto, talvez os homens se negassem a cumprir aquela ordem.
Eles não tinham ideia, mas aquela era a Praça da Renovação. Os homens surgiram do beco gritando e evocando toda coragem que podiam. Os homens na praça, pegos de surpresa, ainda tiveram tempo o suficiente para se preparar. Assestaram lanças e espadas na direção dos dois. Quando perceberam que seriam atingidos, os dois largaram o puxador e correram para lados opostos. O que correu para o lado direito não escapou, e foi perfurado por uma das lanças atiradas. O outro se safou deitando no chão, mas a multidão inimiga logo correu para aproveitar a guarda baixa do soldado. Quando estavam próximos do homem deitado, foram pegos de surpresa. Do interior do caixote pulou um tigre listrado. O ataque foi preciso, ele abocanhou o ombro de um dos homens. Trêmulos de susto, os homens esqueceram completamente o inimigo caído e abriram um círculo ao redor do tigre. Tomados pelo pavor, a área que os separava da fera aumentava mais e mais. Os que estavam mais atrás bateram em retirada, desaparecendo pelas ruas adjacentes. O que tentou fugir pelo beco foi abatido assim que despontou na mira de Amadeu.
Ele estava o tempo todo com o arco empunhado e os dedos de gatilho preparados para efetuar o disparo, assim que alguém surgisse no campo de visão, estreitado pelas esquinas do beco. O rugido do tigre era o mais evidente, anulando qualquer sensação que os gritos de terror poderiam causar ao grupo de Amato. Após o alarido cessar, julgaram seguro sair do beco. Os dois companheiros jaziam mortos, o tigre também caído, cercado por oito soldados. Cerca de uma dúzia estavam estendidos pela praça, cobertos de sangue. Os outros com certeza fugiram com medo, e os restantes pareciam estar ainda abalados, o que auxiliou Amadeu a derrubar dois deles com flechas certeiras na lateral da cabeça. Os seis restantes de pé perceberam a continuidade do ataque e correram aos berros. Um logo foi morto pela lança de Amato, que o atingiu no peito. Amadeu e outro soldado — um dos que carregava o segundo caixote — brandiram as espadas contra os que já estavam mais próximos.
A Limiar do Tempo dançou com graciosidade e eliminou dois adversários sem muito trabalho. Amato lutava precavido contra um dos adversários e o terceiro aliado acabou perecendo em meio aos dois oponentes restantes, que o cercaram impiedosamente. Amadeu correu em vingança e matou um dos inimigos, o outro correu para usar a mesma tática com Amato. Quando achou uma abertura, Amato perfurou a barriga do oponente, e seguido a isso ouviu um tombo à suas costas. Amadeu o tinha salvado; retirou a lança do morto e atirou nas costas do inimigo que pretendia assalta-lo pelas costas.
— Mais uma vez, você salva minha pele. — agradeceu Amato.
— Podem sair daí! — chamou Amadeu.
Do beco surgiu o carregador restante puxando o caixote e o soldado que havia ficado na retaguarda, empurrando por trás.
— E agora? Ele não parece estar por aqui.
Amato rondou o lugar, atentando para o interior dos estabelecimentos ao redor da praça, mas parecia não haver ninguém. E mesmo havendo, não pareciam dispostos a sair para lutar. A fonte, ainda com água cristalina, parecia ter sido lapidada no bronze. Ele tomou um pouco nas mãos e molhou a garganta. No centro dela, a estátua de um homem com os braços esticados para o alto, carregando uma esfera consideravelmente maior que ele.
— Realmente, uma cidade curiosa...
— Amato! Veja só daquele lado!
O filho de Câncer apontava para uma fortificação do lado oeste. Era a muralha que Amato vislumbrou durante a noite. Sem saber que o Palácio de Casul era a concentração das casas dos governantes e pessoas mais influentes de Casul, e não uma grande construção arquitetônica, Amato não tinha certeza se lá era o melhor lugar para se dirigir. Até então, pensava se tratar apenas de uma cidade menor, e desta forma, sem importância; todavia ao chegar junto a Amadeu e vislumbrar um pedaço da muralha, decidiu que valia a pena checar aquele local.
— É, se tem um muro separando do resto das casas, alguma coisa existe lá dentro... Tomando por base a nossa posição de ataque, se lembro bem, o portão de entrada deve ser a noroeste daqui. Vamos indo?
Os quatro partiram, deixando os últimos resquícios do campo de batalha para trás. Até mesmo os gritos e as colisões de metal frio deixaram de ser ouvidos à medida que continuavam a entrar. Não ocorreu nenhum imprevisto, de modo que a única vez em que avistaram inimigos, eles permaneceram quietos e não foram detectados pelo grupo de sete que passou cavalgando pela rua paralela. Apenas Amadeu teve a ousadia de se esgueirar mais à frente, pretendendo checar a identidade dos homens. Como nenhum era o Leão, ele voltou a se esconder. O direcionamento estava correto, pois logo chegaram ao portão, que estava trancado.
— Olha só, até o muro de proteção é de madeira! Devem ter levado anos para levantá-lo. — brincou um dos soldados.
— Como vamos entrar? — questionou-se Amato.
— Empresta um pouco? — Amadeu pegou a lança do ministro com o consentimento deste. Com um empurrão forte, ele fincou a ponta da lança na parede — É, acho que ela segura firme. Essa lança sempre me impressiona!
Os três mantiveram-se calados e confusos, apenas olhando o que Amadeu tinha em mente. Ele experimentou a espada Limiar do Tempo e com a ajuda de algumas batidas e força suficiente, ela também perfurou a madeira. Satisfeito com o resultado das duas armas, ele tomou espaço, preparou o arremesso e jogou a lança, que se manteve presa com facilidade à parede, numa altura considerável. Amato então já percebera a intenção dele, afinal já tinha visto o truque antes.
Amadeu pediu que movessem o caixote para debaixo da lança e assim o fizeram. Ele subiu e quando pôs o pé em cima da caixa, ouviu-se um barulho abafado e um estrondo, todos se paralisaram, esperando pelo pior. Mais três impactos fortes contra a parede, e logo o silêncio retornou.
— Cuidado para não irritar o bicho, senão estamos perdidos! — disse o soldado. Amato e o carregador permaneceram em guarda, ainda receosos com o possível rompimento da caixa.
Amadeu continuou a subida, equilibrou-se de pé na lança e posicionou a Limiar do Tempo horizontalmente; com vários socos e empurrões, ela acabou se prendendo de forma satisfatória e ele a usou como apoio para chegar ao topo do muro. De pé, deparou-se com uma mulher na varanda de uma casa próxima. Ela correu para dentro da casa assim que percebeu o invasor. Sem poder perder mais tempo, Amadeu pulou para o chão, tendo o cuidado de rolar para amenizar o impacto. Pelo lado de dentro, abriu o portão e encontrou novamente os companheiros.
— Já fomos avistados, tenham cuidado.
Após retirar a espada e a lança, eles atravessaram o portão. Uma calmaria desconfortável tomou conta de todos. Do lado de fora, a ausência de pessoas era a justificativa do silêncio, mas nos arredores do palácio, eles não tinham a menor dúvida de que eram observados. Sombras nas janelas, olhos brilhantes em pequenas frestas, tudo estava bem evidente, carregando o silêncio com uma sensação assustadora.
Enquanto andavam, lenta e cuidadosamente, aguçavam os ouvidos para a menor mudança no ambiente. Amato foi o que reagiu quando o perigo iminente se revelou. O barulho surgiu dentro de um grande armazém e pegou todos de surpresa: dois homens apareceram montados, passando a toda velocidade. O arremesso da lança foi preciso, derrubou um dos cavaleiros. Os outros se prepararam para lutar, cientes da desvantagem contra um adversário montado, mas o esforço foi em vão. O outro cavaleiro passou ao lado deles, ao ponto que o homem atingido gritava “Não pare! Continue e traga-o até aqui!”.
Chegando próximo, para retirar a lança, Amato foi surpreendido por uma ameaça.
— Você morrerá assim que ele chegar...
— Pena que não vai estar vivo para se dar conta da bobagem que está dizendo. Sua cidade está ruindo, seu porco.
— Ela já ruiu uma vez, e nós começamos de novo. Isto não significa nada para o povo de Casul!
Amato fincou a lança, forçando um giro anormal nos olhos do homem abatido, até que faleceu.
— O outro saiu para a cidade! — disse Amadeu.
— Vamos embora! Não podemos perder mais tempo. Ei, o que é aquilo?
Os três seguiram Amato. Chegaram a uma enorme lagoa. Por um breve momento, Amato pensou estar perto do templo do oeste, afinal era num lugar parecido que ficava o templo do leste, aquele tão protegido por Scorpio.
— O que estamos fazendo aqui? É apenas um monte de água! — reclamou o soldado. Ele abandonou o puxador do caixote e foi até a beirada, onde se agachou para lavar o rosto.
— Ei, viram aquilo? — Amato apontou para o centro do lago, onde uma agitação de bolhas apareceu por um breve momento.
— Eu vi — concordou Amadeu — tem algo aqui.
O diálogo cessou com o surgimento de um galope próximo.
IV
Rupert Grankill parou próximo ao corpo de seu amigo, estirado no chão.
— Duval...
Ele apeou e levou a mão aos olhos do amigo, fazendo uma breve oração e pedindo desculpas pelo atraso. Pegou Duval em seus braços e levou até uma bancada próxima, onde deitou o corpo e cobriu-lhe o rosto com um lenço que retirou do bolso. Meneou e Diomedes andou até ele.
— Não saia daqui, ouviu? — ele pegou uma sacola presa à sela e andou vagarosamente para o lado da água.
O corpo de Grankill estava perfeito, não havia ferimentos ou sequer sinal de cansaço. Mesmo a tristeza que levava consigo, não transparecia no olhar. O seu aspecto não parecia nada diferente de um dia qualquer; por trás da imponência e até frieza de olhar, o coração do Leão batia veloz, num ritmo acelerado. A cada passo dado, sua vontade de exterminar os invasores aumentava, ao mesmo passo que se elevava a rispidez e concentração dos movimentos. Este era nada além do maior guerreiro do mundo, não se podia esperar menos autocontrole.
Quando chegou ao lago, avistou os malditos que trouxeram dor e medo aos seus amigos. O comandante, dois espadachins e um homem carregando uma caixa contendo mais um animal selvagem. Adversários tão patéticos... Era até vergonhoso para Grankill admitir que deixou seu palácio ser invadido por tão pouco.
— Preparados para morrer? — perguntou, lançando a sacola que trazia na mão. A cabeça de Zuldur rolou da sacola até atingir o pé do soldado mais próximo ao lago. A amálgama de sentimentos tomou conta dos homens, prevalecendo a tristeza, que subitamente deu lugar à raiva. O soldado deu passos lentos até chegar ao companheiro do caixote.
— Vamos abrir logo is...
— Não! Eu não admitirei interferências! — gritou Amadeu. — Abram a jaula e mato o animal e depois vocês dois!
— Era de se esperar... — resmungou Amato.
— Rupert Grankill, eu vim da distante Kelicerata apenas para combatê-lo. Aceita o meu desafio?
— Qual é o seu nome?
— Amadeu!
— Não! Não quero saber este nome! Nós não somos simples homens. Somos mais que isso, e nossos nomes reais já estavam decididos antes de qualquer pai nos carregar no colo.
— Eu sou o Imortal de Câncer!
— Eu estava correto... Então prepare-se, Imortal. Pois antes da sua morte você conhecerá o poder da Reencarnação de Sauza!
Todos assumiram posições de combate. Embora apenas Amadeu avançasse, Amato mantinha uma base firme com a lança mirando o Leão; ao lado do caixote, os dois restantes empunhavam espadas, empedernidos.
A espada de Grankill era grande, parecia ter sido feita sob medida. A posição jactante não enganava os olhos de Amadeu, ele estava preparado para atacar ou contra-atacar com toda a força. Enquanto os olhos travavam um combate isolado, Amadeu percebeu que precisava tomar a iniciativa. Deixar a escolha para um inimigo tão formidável era pedir para ser pego de surpresa. Decidiu usar uma sequência de dois golpes circulares, sua especialidade.
O fogo emanando dos olhares era perverso e majestoso, capaz de petrificar alguém menos combativo. Ao entrar no alcance do Leão, Amadeu levantou a Limiar do Tempo e desceu num movimento circular, mirando o pescoço do inimigo. Grankill apenas levantou a sua espada para impedir o ataque, com uma naturalidade anormal.
A defesa era exatamente o que Amadeu esperava; ao chocar as lâminas, nenhum peso foi sentido na espada de Grankill, pois Amadeu transformou a força da descida da lâmina em impulso para um movimento imprevisível: ele girou a Limiar do Tempo em torno da espada inimiga, desorientando o pulso do adversário e deixando o caminho livre para uma estocada diretamente no peito dele. O movimento foi executado com perfeição. Grankill estava com o pulso mal posicionado e não podia consertá-lo a tempo de impedir a estocada. A Limiar seguiu numa ligeira trajetória reta, até que foi repelida de baixo para cima, sendo direcionada para o alto.
Amadeu não pôde acreditar no que estava acontecendo em sua frente. O Leão apenas levantou o antebraço, usando os músculos do lado direito do corpo, sem sequer perder tempo com uma retomada do movimento do pulso. Quando levantou os olhos — tomados de espanto — reparou no rosto intacto de Grankill. O homem não demonstrou qualquer vestígio de emoção, seja medo, surpresa ou até entusiasmo. Após a defesa esplêndida, veio um corte diagonal, que Amadeu escapou por reflexo, devido à sua enorme experiência em combate, e mesmo assim seu sangue gelou quando sentiu o ar passar próximo a seu corpo, seguindo o curso da lâmina inimiga.
A base de ataque de Grankill não havia se modificado, o que transtornou Amadeu e o fez perceber a diferença de grandeza entre os dois:
“Não pode ser. Isso deve ser um truque... Ele com certeza está se empenhando ao máximo! Mas esse rosto tão despreocupado, tão indiferente... E se ele estiver apenas brincando comigo? Isto não é uma luta, é uma execução! Eu vim procurando o maior dos desafios e encontrei o guerreiro mais temível e orgulhoso do mundo inteiro”. Amadeu começava a ter o seu espírito quebrado, antes de levar o primeiro golpe.
— Vai ficar aí parado? Então é a minha vez de atacar! — Grankill inclinou o corpo para frente e levou a mão direita para trás, empunhando a espada longa.
— Cuidado! — um grito agudo e inesperado cortou o ar que cercava os homens.
Seguindo o aviso, uma esfera de gelo de aproximadamente dois metros de diâmetro passou veloz em frente à Amato, que se preparava para atacar Grankill por trás. O deslocamento de ar frio que seguiu o bloco de gelo trouxe um arrepio à espinha de Amato, que seria esmagado se estivesse um passo à frente. O olhar acompanhou o pedregulho níveo que rolou após tocar o chão. Os dois soldados e Amadeu deram mais atenção ao grito que à pedra de gelo, de forma que procuraram a fonte. Do centro do lago, uma mulher começava a cair do que tinha sido um salto vertical, de onde arremessou o enorme pedregulho e gritou alertando seu marido. Os dois que estavam mais próximos à margem, tremeram da cabeça aos pés; se a mulher tivesse mirado neles, não teria errado daquela distância. Amadeu, por outro lado, teve uma reação inesperada. Talvez pela pressão mental exercida por Grankill, ou pela magnitude do medo — jamais sentido tão fortemente pelo Imortal de Câncer — ou talvez até pelas gotículas de água que circulavam a mulher, espirradas da superfície quando ela emergiu velozmente; algum desses fatores — ou todos somados — nublou a visão de Amadeu e ele murmurou para si:
— Katia...
Ela caiu novamente dentro do lago e desapareceu. O barulho fez Amato finalmente virar o rosto, para tentar descobrir de onde vinha o bloco de gelo, mas a mulher de corpo esguio já não estava mais à vista. A sorte havia sorrido para Grankill, que aproveitou o susto e desferiu um golpe horizontal com a espada. A ponta alcançou o ombro de Amadeu e abriu um corte que seguiu até metade do peito. O grito de dor só não foi mais repentino que o pulo evasivo. Amadeu saltou para longe do alcance de Grankill, levando a mão ao ferimento. Quando abaixou os olhos para conferir a ferida aberta, notou que a armadura havia sido partida como uma folha de papel. Não teve tempo para ponderar se era graças ao fio descomunal da espada, ou a velocidade absurda do golpe, mas tinha descoberto que a armadura era apenas um peso extra, sem oferecer qualquer proteção. Fez menção em retirar parte da armadura, e recebeu um sinal de consentimento de Grankill. Este aproveitou a ocupação de Amadeu para um reposicionamento: encetou uma série de passos curtos, visando sair do meio dos oponentes.
— Amato! Eu não pedi ajuda! — vociferou o general, após certificar-se que a ferida não era profunda, apesar da dor aguda que sentia. Retirou a camisa que usava por baixo da armadura também, pois já estava parcialmente empapada com seu sangue.
— Ele também não, e quase morremos agora a pouco graças a um ataque traiçoeiro.
— Não necessito de qualquer ajuda para dar cabo de vocês. — retrucou o Leão. — Belila!
Na margem do lago a superfície tremeu com pequenas ondas, tão fracas que passariam despercebidas, não fosse a atenção desmesurada nos olhares dos homens. O topo da cabeça apareceu, revelando os cabelos negros, e progressivamente o corpo da mulher emergiu. Da cintura para cima, podia-se notar o corpo esbelto da rainha, com mechas escuras e úmidas caídas sobre os seios pequenos. O olhar assassino fulminou o espírito dos invasores, exceto por Amadeu, que ainda olhava para a mulher com candura.
— Mandei você ficar escondida com o príncipe! Este homem teve a petulância de me desafiar, e agora eu preciso mostrar qual é o lugar dele, usando a morte como lição. — o tom era imperativo, mostrando que o rei não estava disposto a discutir.
— Pode brincar o tempo que quiser com ele, mas eu não vou deixar ninguém ameaçar o meu filho! — ela levou a mão à superfície da água e apertou o polegar contra a palma da mão rígida.
— Não faça isso! — gritou Grankill. Sem ter ideia do que estava para acontecer, Amato montou uma guarda de defesa e assestou a lança para a nova ameaça. A mulher girou o corpo com velocidade, e da água ela retirou algo arqueado, parecido com uma lâmina de foice, que tão logo havia se formado, foi arremessado fugaz até os soldados próximos da margem. O primeiro teve a chance de abaixar, enquanto o que parava atrás dele foi surpreendido pelo objeto desconhecido que o atingiu o braço. O objeto cortante ainda teve velocidade para seguir reto e só cair mais adiante, deixando um rastro de sangue respingado no chão. Amato, o que estava mais próximo do projétil caído, tentou desvendar do que se tratava, mas apenas olhando à distância não teve muito êxito, e só conseguiu inferir que era uma lâmina afiada, e que parecia ser feita de gelo, a rocha translúcida oriunda do topo das montanhas do leste, que se perfazia em água após ser retirada do seu ambiente.
Após ser acertado, o carregador gritou exasperado e o medo lhe tomou conta do corpo, bem como do companheiro agachado à frente. Ambos correram, largando o caixote à margem, mas a fuga não durou muito para o que já estava ferido. A mulher-peixe saltou da água com um impulso sem igual, perfazendo toda a distância que os separavam em um pulo. Ela agarrou-se ao braço ensanguentado e, ignorando o berreiro, cravou os dentes na ferida do soldado. O som causou calafrios em Amato, e à medida que era despedaçado, o braço era puxado pela mulher, até que foi separado do ombro e um grito de horror enegreceu as esperanças dos invasores. O homem que corria, com as pernas trêmulas, acabou por cair não muito longe, lágrimas de desespero correndo-lhe a face.
O monstro apertou os dedos na garganta do homem desmembrado, desejando encerrar a lamentação, mas tão logo o grito de medo se findou, outro tomou seu lugar, mas de um tom muito mais resoluto:
— Não faça isso! — Amadeu gritara, mas Amato não lhe deu ouvidos e arremessou a lança no monstro. Pela primeira vez, o rosto de Grankill adquiriu emoção, ao passo que os olhos arregalados indicavam sua impotência em deter a lança que já chegava ao corpo de sua esposa.
— NÃÃÃÃO! — Amadeu, estranhamente o mais comovido, esqueceu toda dor do ferimento e partiu em direção à mulher, acertada nas costas pela lança de Amato. Grankill imediatamente se colocou no caminho, imaginando que ainda poderia salvar a rainha, se acabasse com os inimigos rapidamente.
Amadeu não diminuiu o ritmo. Correndo em direção ao oponente invencível, traçou um risco no ar com a Limiar do Tempo, que foi facilmente bloqueada pela espada de Grankill. Ato contínuo, Amadeu direcionou as duas espadas para o chão entre os dois. Grankill já previra um novo ataque com essa manobra, mas foi surpreendido: Amadeu nada tentou ofensivamente, usou a espada como sustento para pisar-lhe um pé e saltar sobre o obstáculo. O movimento foi tão veloz quanto os desferidos por Grankill anteriormente. Desceu ao solo ainda correndo, e chegou à Belila, deitada ao lado do corpo caído do carregador.
Amadeu certamente havia perdido a razão, pois já não era possível se enganar quanto à tonalidade azulada da pele e o cabelo escuro de Belila, mas mesmo assim ele se desmanchou em lágrimas, ajoelhado com ela nos braços, suplicando em sussurros:
— Katia... Por quê? Você não podia morrer agora! Você seria como uma mãe para mim... Katia! Abra os olhos, por favor...
Enquanto o soldado tremia deitado no solo, e Amato tentava inutilmente mover as pernas paralisadas, Rupert Grankill caminhou lentamente até Belila e apanhou a lança caída no chão coberto pelo sangue escuro que escorria de suas costas tão delicadas, marcadas pelas pedras virentes formando a constelação de Aquário. Amadeu, desconsolado e com a mente destruída, permaneceu a chorar enquanto abraçava Belila. No esforço de provar seu valor aos céus, ele lutou contra o melhor e agora pagava o preço, tomado pela insanidade e desconsolo. Grankill levantou a lança e a enterrou nas costas do Imortal de Câncer, encerrando a luta e fazendo jorrar para o alto o sangue quente do derrotado. A precipitação carmesim foi a última coisa vista por Amadeu.
Capítulo 12: A maior ameaça
I
O Sol já cruzara o zênite quando Rupert Grankill suspendeu o corpo de Amadeu pela ponta da lança e atirou para o lado, fazendo-o cair próximo a Amato. Ele levantou o Belila no colo e se deu conta que não havia mais jeito. Ela estava morta e a reencarnação de Sauza nada podia fazer para mudar a situação. Lágrimas correram-lhe os olhos, e em silêncio ele se conteve num pesar aturdiante. Amato viu o ensejo para atacar o Leão, porém a lança estava há alguns passos de distância, ainda fincada em Amadeu. A precaução gritou mais alto no seu ouvido e ele resolveu permanecer imóvel.
O Rei de Casul caminhou com a mulher até a parede de uma casa próxima e a deitou num banco comprido que estava ali encostado.
— Apareça. Eu percebi sua presença logo que você se aproximou, Doty.
Da janela surgiu uma mulher de pele clara e cabelos loiros. A face idêntica à mulher que acabara de ser assassinada, com exceção dos olhos humanos verdes.
— Ela era uma ótima mulher, e mãe melhor ainda. Sempre tratou as pessoas com respeito e amor, muito embora vários a estranhassem. E o que eu fiz para protegê-la? — a sua voz demonstrava abatimento, e o rosto já sério, começava a esmorecer.
— Desculpe. Eu também não pude fazer nada... — respondeu Dorothea.
— Não tente se culpar. Aqui na cidade você não possui recurso algum para ajudar. E não é como se eu precisasse. Foi minha tolice que permitiu que isto acontecesse. Alcides deve estar amedrontado no fundo do lago. Espere aqui que vou terminar isto e volto com ele.
Grankill voltou-se para os dois inimigos restantes e começou com as passadas lentas, com um ar fúnebre. Amato adiantou-se e foi até o corpo de Amadeu para recuperar a lança. O soldado manteve-se deitado, com as costas rijas e os cotovelos apoiados no chão. Enquanto via o inimigo se aproximar, sabia que fugir de nada adiantaria; a morte agora era inevitável. Grankill apanhou sua espada do chão e adiantou-se para Amato primeiro.
— Deveria estar mais preocupado em rezar que em matar a sede. — disse o Leão com os olhos ainda marejados. Amato largou o cantil e atacou com a lança. Sem demonstrar esforço algum, o Leão desviou o ataque e contra-atacou. A lâmina atravessou o corpo de Amato, e Grankill ainda o levantou no ar, empurrando mais a espada no corpo do inimigo. A sensação de dor aguda no peito lancinou não só o corpo, mas o espírito de Amato, que redescobriu na iminência da morte, o choro incontido, há tanto tempo esquecido. Grankill derrubou o corpo e retomou as passadas lentas para o último adversário.
Quando metade do caminho já tinha sido galgada, o medo estampado no rosto do homem deitado havia sido substituído por um olhar perturbado que mirava algo nas costas de Grankill. Curioso, virou-se e da mesma forma se espantou. Amato estava de pé, em posição de combate.
Amato descobrira uma forma de combater o inimigo. Quando Grankill depositou Belila no banco e andou até sua espada no chão, Amato igualmente correu para pegar sua lança e foi neste momento que algo o impressionou: o corpo de Amadeu, perfurado no tronco e com um longo risco aberto no ombro e peito, não possuía qualquer marca ou cicatriz no braço direito, que havia sido ferido horas antes, por um prisioneiro ainda no acampamento. Sem qualquer esperança, ele resolveu apostar na ideia louca que lhe surgira na cabeça. O líquido — que, segundo contara Amadeu, tinha transformado o deserto em terra fértil — seria capaz de regenerar o ferimento de um homem quando bebido? Ele não tinha como saber, mas a possibilidade lhe ocorreu, e com uma súbita vontade de ter adivinhado corretamente, ele catou seu cantil e bebeu o que Amadeu havia partilhado na tenda.
— Como ainda está de pé? — indagou o Leão.
Amato não respondeu, apenas correu para o ataque. Uniu toda a força que tinha numa série de estocadas mirando o peito de Rupert, porém após ter bloqueado três ataques, o Leão aproveitou uma abertura e contra-atacou, atravessando novamente o peito de Amato. Em seguida ele furou outra região do tronco, e para certificar-se da morte, atravessou a garganta de Amato com a lâmina. O corpo caiu instantaneamente no chão, batendo as costas contra o solo. Grankill não tinha mais dúvidas da vitória, mas permaneceu atento ao corpo. Quando finalmente se convenceu de havê-lo matado, Grankill baixou a guarda e a lança subiu rapidamente num ataque frontal. Cravou-se entre duas costelas. Se Amato estivesse mais bem posicionado, certamente teria atingido o coração do inimigo.
Rupert Grankill sentiu um ar gelado percorrer sua espinha dorsal, e pela primeira vez duvidou de sua vitória. Aquilo nada tinha a ver com o ferimento que acabara de levar, afinal a dor era insignificante para ele, apesar de ter sido um ataque forte o suficiente para matar muitos homens. Ele segurou o cabo da lança e a retirou do corpo, fazendo sangue escorrer pelo abdômen. Amato levantou, ficando de frente para o adversário, sem qualquer marca dos ferimentos infligidos.
— O que diabos é você? — perguntou Grankill com os olhos arregalados.
— Sou o homem que vai te matar! — atreveu-se Amato.
— Vamos ver se consegue levantar depois disso!
Grankill pela primeira vez segurou o cabo da espada longa com as duas mãos e preparou um ataque horizontal, intencionando decepar a cabeça de Amato. Este levantou o cabo da lança para servir de obstáculo, segurando-o com as duas mãos, bem separadas. O golpe foi desferido numa velocidade absurda, que rasgou o próprio ar que os cercava. A espada de Grankill premeu o cabo da lança de tal forma que teria quebrado as montanhas do leste em pedregulhos, mas a lança manteve a sua reputação de indestrutível e permaneceu intacta. Amato, entretanto, era apenas um homem comum, e a força da colisão o arremessou para longe, fazendo-o bater no tronco de uma árvore antes de descer ao solo e ser arrastado ainda por alguns metros. Seguido do impacto que lançou o inimigo longe, a espada de Grankill trincou e a ponta caiu no chão.
II
Enquanto esperava recuperar a dor que sentia no corpo, Amato continuou deitado no chão. Passou a maquinar um jeito de atrair o filho de Peixes para terra firme, pois tinha certeza que poderia vencê-lo, mas primeiro teria de se encontrar com ele, e sequestrar a filha não era mais uma opção. Podia se dar ao luxo de pensar sobre isto, afinal de contas já dava por vencida a luta com o filho de Leão. Podia ser mais fraco, mas a vantagem que tinha agora era insuperável. Foi então que viu uma massa negra tomar conta de parte do céu azul. Lembrou-se que não fazia ideia de quanto tempo duraria o efeito do elixir milagroso, então era de suma importância que vencesse Grankill o quanto antes. Levantou-se e correu até o inimigo, que permanecia inerte.
— Morra! — gritou ao investir com a ponta da lança, mas foi repelido e derrubado ao chão. Grankill torceu-lhe o pulso e tomou a lança, apontando-a para o meio dos olhos de Amato, agora caído.
— Eu não sei como vou fazer para te matar, mas por enquanto você vai ter que esperar um pouco... — ele parecia tenso, e olhava constantemente para o alto. Amato buscou o alvo de sua atenção, mas nada havia no céu além de umas nuvens negras. De chofre, começou uma chuva pesada, que intrigou Amato. Um pouco adiante, o soldado que tinha sobrevivido contra todas as probabilidades se deu conta de uma tosse lânguida, que provinha de alguém próximo a ele. Quão surpreso ficou ao notar que o outro soldado, com o braço arrancado não morrera, ainda que a perspectiva de sair vivo dali naquele estado fosse nula.
Os quatro passaram longos minutos petrificados: o incapaz no chão, engasgando com a chuva; o soldado amedrontado mais perto dele; Amato imobilizado no chão; e Grankill de pé, olhando para a chuva. Do mesmo modo que surgiu, a chuva cessou. O silêncio não durou muito, pois uma voz ecoou pelo lugar:
— Rupert Grankill!
O dono da voz era invisível, mas seguindo o chamado, uma grande coluna de água levantou-se do meio do lago, e, transformada num braço gigantesco, atacou o Leão. A força da água carregou Rupert e Amato, exprimindo-os contra a parede de uma casa próxima. Os dois caíram no chão, engasgados com a água. Enquanto recuperavam a respiração, a água do chão úmido se acumulava, tomando uma forma humanoide, de frente para Grankill. Quando ele retomou o fôlego e encarou a nova figura, ela definiu sua forma e o que antes era líquido virou sólido: um homem alto, mais até que Rupert Grankill, com músculos tão grandes o quanto podem ficar sem descaracterizar um humano, longos cabelos negros, olhos igualmente escuros e pele azulada.
— Onde está Água-Marinha? — perguntou secamente.
— Imperador Nic-a-Noy — Grankill ajoelhou-se perante o homem-peixe — como Vossa Majestade Imperial tomou conhecimento...
— Eu sempre fui contra ela morar fora do oceano. Nesses vinte anos que passaram, eu sempre me questionei se não tinha errado em permitir que ela viesse. E hoje eu percebi que você é que deveria ter se mudado para lá, quando acertamos o casamento. Ela sabia que eu não poderia viver longe dela, então antes de dizer adeus, ela entalhou uma estátua de si mesma, à frente da minha casa. Você sabe bem que ela consegue solidificar a água. Pois aquela estátua era uma das poucas fontes de luz no fundo do mar. Algumas pessoas deslumbraram-se tanto com o feito dela, que todos já acreditavam que seria a nova mãe de todos.
— Nova Afrodite? — perguntou Grankill.
— Pois há pouco, a luz se extinguiu. E quando eu fui checar a estátua, ela havia desaparecido. Voltou a ser água. Foi assim que eu soube que algo aconteceu com ela. Eu estou enganado? — o homem-peixe causava uma intimidação fora do normal. A sua figura era cruel e imponente, de tal forma que reacendeu no soldado as memórias da infância e as lendas sobre os monstros do oceano. Amato, apesar de impressionado, estava mais interessado na sua própria sobrevivência. Poderia se livrar de dois poderosos inimigos, se fosse capaz de induzi-los a lutar um contra o outro.
— Não. — Rupert Grankill levantou-se e encarou o homem-peixe nos olhos. — Ela está ali.
Seguindo a direção apontada, o monstro foi até o corpo inerte de Belila. Nas costas do monstro, a constelação de Peixes estava marcada com as mesmas pedras que nos demais. Ele ajoelhou-se ao lado da mulher e levando a boca próxima ao ouvido, disse algumas palavras inaudíveis, mas o tom de lamentação era evidente. Após levantar, algo próximo a ele lhe chamou a atenção.
— Quem está aí? — perguntou para a sombra atrás da janela. Sem obter resposta, fez um movimento de mão que arrancou da superfície do lago um jato líquido. A mulher foi puxada pela água através da janela e caiu diante do monstro.
— Nic-a-Noy! Não faça mal a ela! — desesperou-se Grankill.
— Ora, como eu vou fazer mal? Ela é exatamente igual à Água-Marinha! — disse o monstro, bizarramente afável. — O filho da minha menina está vivo?
— Sim, está escondido em algum lugar no fundo do lago.
— Ótimo. Rupert Grankill! Você me decepcionou. Cheguei a imaginar que era diferente dos outros homens, mas não passa do mesmo lixo! A partir de hoje, a proibição de atacar humanos não existe mais. E eu vou levar a minha filha, o seu filho, e esta mulher para viver com o povo do mar, após matar você.
— O quê?! — gritaram juntos, Dorothea e Grankill.
O monstro adiantou-se, e Grankill empunhou sua espada para lutar. Dorothea correu para a árvore próxima e escondeu-se detrás do tronco. Amato não conteve o riso, que se abriu largamente no rosto. Olhou a lança nas proximidades e agarrou-se a ela, esperando a chance de acabar com aquilo. Aproveitaria qualquer chance para dar cabo do lutador vitorioso. Estava pronto para arremessar a lança contra as costas do Leão, pois acreditava piamente na sua vitória. O Imperador do Oceano era grande e forte, mas ele sabia que força e tamanho não faziam diferença para a grandeza de Grankill. E no primeiro ataque, o Leão cortou horizontalmente o monstro, partindo-o em dois.
A lança já estava para ser arremessada contra as costas do Leão, quando o monstro deu-lhe um soco no rosto, fazendo Grankill cambalear para trás. Boquiaberto, Amato parou sem entender. Tinha certeza do que vira antes.
— Vai revidar?! — gritou o monstro. Impressionante como sua voz era poderosa, realmente ajustada à figura impiedosa do homem-peixe.
Lançou mais um soco mirando o rosto de Grankill, mas o Rei de Casul mostrou sua agilidade e, ao passo que esquivava, puxou a espada num movimento reto, que rasgou o braço do monstro. O braço caiu e, antes de tocar o chão, se liquefez. Sem o braço para defender, o Leão atacou a abertura e enfiou a espada no peito do bicho. Sem sentir qualquer coisa, Nic-a-Noy segurou a cabeça de Grankill com a enorme mão que lhe restava e o levantou no ar.
— Você sabe muito bem que não pode me vencer, Rupert Grankill! Em todas as gerações dos filhos do zodíaco, o Elemental sempre é o mais poderoso, não vai me dizer que esqueceu? — um novo braço se formou no lugar do antigo, com água que jorrava do lugar do corte. Após tomar a forma exata do braço, ela solidificou e o homem-peixe estava novamente intacto.
— Doty! Fuja daqui! Ele não pode ser vencido! Vai, corre de uma vez! Você sabe o local aonde ninguém vai te alcançar! — enquanto Grankill abanava os braços, mandando a mulher correr, Nic-a-Noy segurou o braço que empunhava a espada, contendo-o.
— Por favor, não mate o Rupert! — Dorothea parou em prantos e suplicava ao imperador — Foram eles! Eles mataram a minha irmã!
— Então eles morrerão em seguida! — com uma força absolutamente superior a qualquer uma já vista, o monstro apertou o braço do Leão e o quebrou em pedaços, apenas para arrancá-lo num puxão. Dorothea berrou e não segurou mais o choro. Saiu correndo, tomada de terror.
Segurado pela cabeça, Grankill foi arremessado para o alto e do meio do lago saiu um enorme braço que o acertou em pleno ar e o espremeu contra a parede da casa até destruí-la.
— Menos um. Agora vocês dois!
Amato olhou para o soldado, e ambos entraram em pânico. O homem, trêmulo e desorientado, ainda conseguiu atirar uma flecha no monstro, mas ela o atravessou como se ele fosse apenas uma alma sem corpo.
— Eu sou feito de água, seu verme! Acha que pode vencer água com flechas?
Amato bebeu o resto que tinha do líquido no cantil, e gritou para o soldado:
— Vamos fugir! Abra a porta do caixote para nos dar mais tempo! — Amato deu a ordem e começou a correr. O soldado, igualmente apressado, foi até a porta do caixote e destrancou, mas ouviu uma súplica.
— Nããã...
Era o carregador do caixote. Em seu último suspiro, tentou alertar o companheiro de algum perigo. Sem tempo para tentar entender, o soldado tentou localizar o monstro, mas não o encontrou mais, apenas uma grande poça d’água onde antes ele estava. Sem entender, mas disposto a fugir, o homem foi surpreendido por uma massa de água que o atingiu numa erupção violenta, que partiu da superfície do lago.
— Você matou minha filha? — rosnou antes de arrancar a cabeça do soldado — E o que você tem aqui dentro?
Nic-a-Noy estraçalhou a madeira, escancarando o interior do caixote. O estrondo da caixa se partindo foi alto, de maneira que Amato virou-se para a origem do som. O que viu apaziguou o medo que bombeava o sangue tão ferozmente em suas veias. Nic-a-Noy olhava friamente para o interior da caixa, quando sua pele azulada começou a ser rasgada por um líquido vermelho. Ele passava as mãos pelo corpo, tentando limpar, sem sucesso. Tentou se liquefazer, mas não adiantava. A água em que ele se transformava adquiriu uma tonalidade rubra. Ele então agarrou o homem dentro do caixote e estrangulou. “O que fez comigo?!”, podia-se ouvir de longe, até que o corpo do Imperador do Oceano se cobriu completamente de vermelho e toda aquela força e ódio se transformaram em uma poça de sangue.
III
Amato desejou se aproximar para ter certeza da morte do monstro, mas seria arriscado demais, poderia contrair a doença de Saga. Desde que saíram do Castelo Henpakihan, Darit havia sido aprisionado numa das caixas e misturado com os demais animais. Os únicos que sabiam eram Amato e os dois carregadores responsáveis por cuidar dele. Tinham sido avisados do perigo, por isto foram cautelosos durante a travessia da ponte. Quando chegaram a Casul, no entanto, as tropas se misturaram aos puxadores das caixas, então precisaram amarrar e amordaçar Darit, para que ele não chamasse atenção com gritos ou pancadas. Antes de morrer, o carregador tentara advertir o soldado da necessidade de cobrir os olhos, mas morreu sem ter êxito.
A mulher que fugira em prantos passou a cavalo. Amato virou de costas e não tinha dúvidas que era a gêmea da rainha de Casul. Tentou acompanhar a mulher correndo. Algumas pessoas iam à frente, amedrontadas. Provavelmente estiveram o tempo todo assistindo à luta, e agora fugiam dele. Era a sorte rindo para Amato mais uma vez. Segurou firme a lança e ainda ameaçou os que o observavam de longe, e logo eles entravam em suas casas, assustados. A mulher passou pelo portão da muralha, que já ia ser fechado por um velho. Amato não perdeu tempo e chegou chutando a bengala do velho, que caiu sentado.
— Para onde ela foi, velho?
— Eu não sei, ela só me pediu para fechar o portão! — suplicou Valtezer.
— Você estava vendo a luta? Hein? Já sabe que Grankill morreu, não é? A rainha igualmente! Quer que eu volte lá para matar o príncipe? — Amato blefou, mas de fato ele sabia do príncipe, pois Belila tinha sido incisiva quando falou em proteger seu filho.
— O garoto não! Ele é só uma criança!
— Então responda de uma vez, velho inválido!
— Ela foi para o oeste... Para o meio da floresta — revelou.
— Onde eu arranjo um cavalo? Responda! — chutou Valtezer, mas sem conseguir qualquer resposta, resolveu seguir a pé. Tomou o Sol como base para descobrir a direção oeste, passou a correr furtivamente, até que encontrou um homem montado, indo devagar para o sul numa rua adjacente. Amato não ponderou se havia outros nas proximidades. Atirou a lança incontinenti e roubou o cavalo. A essa altura, ele se perguntava o que teria acontecido com o exército. Ele não se deixou levar pelos acontecimentos; nunca esqueceu que a guerra era apenas uma ferramenta para matar os filhos do zodíaco, mas ainda sim, viver o momento supera com folga a expectativa da imaginação. Ele agora estava sozinho no território inimigo, o qual não tinha familiaridade, e ainda não tinha cumprido sua missão. Voltou até o paredão da muralha e seguiu para o oeste.
Sem qualquer pista concreta de para onde ir, Amato apenas cavalgou pela floresta, muitas vezes diminuindo a velocidade por pensar ter ouvido algum ruído suspeito. Acabaram sendo apenas distrações, que ele eventualmente parava de perseguir e retomava o passo para o interior da mata. O sinal que o fez atentar efetivamente foi um relinchar próximo. Cuidadosamente trespassou a distância que o separava de um casebre simples no meio do nada. Deitado à porta, um cavalo — Diomedes — e do lado de dentro nenhum sinal de vida.
Amato amarrou sua montaria num galho próximo entrou na clareira a pé. Evitando o olhar agressivo do cavalo, passou o mais longe que podia e encostou o ouvido na porta. Sem perceber nenhum ruído, pôs a mão na maçaneta, e quase pulou de susto com o relinchar do cavalo às suas costas. Abriu a porta destrancada e entrou devagar. Mal bateu a porta novamente, um vulto surgiu de um canto, quebrando o clima melancólico do interior, e correu para a janela. Amato seguiu, mas antes de alcançar, a pessoa havia pulado. Não era outra que não Dorothea, e para Amato não restava dúvidas. Retornou para a porta de onde tinha entrado, mas deteu-se por um momento, ao avistar uma mesa encostada na parede, com papel e tinta. Apressadamente pegou uma pena e escreveu um parágrafo curto, ao passo que Dorothea montava em Diomedes e saía galopando.
Com o papel sendo abanado no ar, para secar a tinta mais rapidamente, Amato saiu pela porta da frente e ainda conseguiu ver a fugitiva desaparecendo na floresta. Correu até seu cavalo, montou e partiu atrás dela. Prendeu o papel na divisão armadura que cobria o peito, na junta próxima ao ombro, de forma a deixar o escrito bem evidente. Havia sido displicente por achar que alcançaria com facilidade uma mulher, pois Diomedes tinha uma resistência incrível, ao passo que não foi possível a Amato alcança-los.
A filha de Virgem não escondia o medo durante a fuga, mas não havia sentido em fugir sem rumo. Amato sabia de duas possibilidades: ela estaria rumando para algum lugar específico, ou tentando despistar. A última possibilidade foi sumariamente eliminada, pois ela seguia quase em linha reta, o que levou o ministro de guerra a imaginar prováveis complicações no seu caminho. Seu cavalo não aguentaria aquele ritmo por tanto tempo; percebeu bem ao passar por Diomedes, que era um animal vigoroso, de porte atlético incomum e agora notava toda sua agilidade e velocidade. Caso a corrida se prolongasse, ele a perderia de vista com certeza. Isso se agravaria se saíssem da floresta. Cogitou acertá-la com a lança durante a cavalgada, mas era muito arriscado ter de parar para recolher a arma após um lançamento ruim. Sem a certeza de como prosseguir, Amato resolveu arriscar e tentar chegar o mais perto possível, e imprimiu mais velocidade à perseguição.
Ainda sem qualquer avanço significativo, Amato viu Dorothea sair da mata densa, numa abertura mais adiante. Já com ar de desânimo, sem esperança de alcançar sua presa, ele tomou um grande susto, quando viu por meio das árvores a mulher desmontando e virando de frente para ele. “Agora é a hora!”, pensou. Seguiu reto em direção à mulher que parecia estar rezando, seguro que a decapitaria em um movimento. Subitamente, Dorothea lançou um olhar assassino e empurrou os braços agressivamente. Amato nada entendeu, até que sentiu um estranho tremor e um pedregulho enorme avançou em sua direção, cuspido pelas entranhas da terra.
Tentou dar meia volta, mas não teve tempo suficiente, a pedra atingiu em cheio os dois. Amato ainda conseguiu cair de costas no chão, se mantendo consciente, mas o seu cavalo rodopiou com o impacto direto e caiu sem um resquício de vida dentro de si. Suportando a dor, ele levantou do chão e seguiu com passos lentos. A mulher o encarava na clareira.
— Eu não podia fazer nada contra você na cidade, mas aqui é bem diferente! Não se aproxime ou eu vou atacar! — gritou. Ela podia ser uma mulher de grandes qualidades, mas não estava apta para combater. Por trás da ameaça feroz, notava-se muito claramente o medo em sua voz. Amato continuou sem receio algum.
Ao ver o inimigo se aproximar destemidamente, Dorothea viu que ameaças vazias não lhe assegurariam a vida, então correu alguns passos e ajoelhou-se no chão, com os olhos fechados como antes, e recitando numa voz baixa e tremida, um mantra em uma língua desconhecida. Amato chegara à clareira e não teve pressa em chegar até a mulher agachada, pois foi tomado por uma visão espetacular. Na sua frente, o que antes julgara ser um paredão de pedra, era na verdade uma torre de pedra maciça. A torre era fabulosamente erguida, de modo que seu topo não era visto da base. A tonalidade branca da pedra por si só era curiosa.
— Esta cor se mistura bem ao céu quando vista de longe, por isso não a enxergamos hoje antes do ataque...
Teve vontade de poupar a mulher para ter suas dúvidas sobre aquela torre respondidas, mas algo o alertou antes disso. O chão que pisava se tornou instável, com um tremor muitas vezes superior ao de antes. Ciente do perigo que corria por ter deixado Dorothea sozinha no chão, ele correu e a agarrou pelos ombros:
— O que você fez, sua bruxa? — Ela soluçava e chorava como uma criança.
— Por favor, não me mate! — as palavras se fizeram ouvir no meio da choradeira. O tremor de terra havia se tornado tão forte que nem Amato conseguia se manter de pé, e acabou por cair por cima de Dorothea, desajeitado. Quando tentou rolar para ganhar alguma estabilidade, o tremor parou de repente. “O que foi isso?”, ele abriu a boca para perguntar, mas não chegou a emitir nenhum som. Do meio da terra uma grande área rochosa foi lançada para o alto, levando consigo tudo que estava por cima, inclusive Amato e Dorothea. Ela estirou-se no chão, pois já sabia o que ocorreria, mas Amato foi pego desprevenido. A pedra havia sido lançada tão rapidamente — como um fragmento de explosão ocorrida no subsolo — que Amato foi puxado para o solo, batendo as costas e a cabeça no chão. A subida foi tão veloz que o próprio ar à sua volta era rápido demais para ser inspirado. Em desespero, Amato acabou perdendo os sentidos.
IV
Quando recobrou a consciência, Amato encontrou à sua frente um céu alaranjado. Ao seu lado, Dorothea ainda estava deitada, com o rosto virado para o chão. Ele tentou se mover, mas não conseguiu, foi quando inclinou a cabeça para cima e viu o paredão passando em alta velocidade. Olhou para o alto e ainda não podia ver o topo. A impotência tomou conta do seu corpo. Estava sozinho, respirava com dificuldade e a boca estava seca. Gostaria de beber um pouco d’água antes de morrer. Apenas aceitou sua própria insignificância enquanto olhava o céu, de onde as luzes das numerosas estrelas começavam a despontar.
— Por que vocês nos atacaram?
A voz fina tirou Amato do transe em que ele se induzira. Dorothea estava apoiada com as mãos e joelhos no chão. Amato tentou levantar e percebeu que era possível. Apesar de difícil, a força que os empurrava para cima minguava aos poucos. Conseguiu pôr-se de joelhos para responder.
— Eu precisava matar os caídos do céu. E eu quase consegui.
Dorothea voltou a chorar, agora sem qualquer escândalo. Amato checou o corpo. Estava dolorido, mas não aparentava nenhum grande ferimento. Ainda tinha a lança e o papel preso ao peito. Sentiu-se estúpido por não ter guardado um resto da bebida usada na luta com Grankill. Poderia beber e se jogar para o chão, embora não acreditasse que o estrago de uma queda tão longa pudesse ser recuperado, mesmo com aquele elixir.
A força que os prendia fortemente ao solo agora era quase nula, de forma que os dois se puseram de pé. Dorothea timidamente se afastava de Amato, se aproximando mais e mais da ponta. Ele pensou que ela ia acabar se jogando, mas no final das contas não faria diferença. A velocidade da pedra tinha baixado muito, ao passo que a lateral da torre passava sem tanta velocidade. Ao perceber que ela se aproximava ainda mais da beirada mais próxima da parede, Amato descobriu as intenções da mulher. Ele olhou para cima e finalmente, o topo podia ser avistado, e aos poucos se aproximava. Ela sabia desde o começo, e planejara se esconder no pico.
Sem denunciar que havia descoberto a trama da filha de Virgem, Amato manteve-se parado, mas já se preparava para correr e saltar atrás dela. Levantou a perna direita, a mais dolorida, e já não tinha mais problemas de velocidade. O impulso do pedregulho foi feito na medida para que alcançasse a exata altura do topo. Não entendia como Dorothea tinha feito aquilo, mas admirou a habilidade e precisão.
Quando finalmente ultrapassaram o topo da torre, ela se lançou perfeitamente, e caiu na superfície plana. Amato disparou para pular atrás. Enquanto corria, o chão parou completamente de subir e seguindo uma breve pausa, começou a cair. Com sorte ele foi rápido e já tinha chegado até a beirada, mas a súbita queda do solo em que pisava o fez cometer um grande erro. O impulso acabou sendo muito fraco, e ele mal alcançou o topo da torre. Debruçado sobre a beirada, sentiu um enorme frio tomar conta de seu corpo, desde os pés — soltos no ar — até a cabeça. O pavor o tinha petrificado, e a falta de reação o fez soltar a força nos braços. Dorothea correu assim que o viu pendurado e, tomando cuidado para não se arriscar demais na beirada, deu-lhe pontapés no ombro. Uma grande ironia, o pontapé que deveria derrubar o homem pendurado, foi o que o fez voltar a si. Amato agarrou o tornozelo de Dorothea, que se jogou no chão, temerosa. Ele aproveitou o momento e empregou todos os esforços para se erguer e colocar-se de pé no topo da Torre Branca.
— Por favor, não me mate — implorava Dorothea caída no chão. Seu rosto enrubescido brilhava sob a fraca luz do luar.
— Não seja burra, como eu poderia te matar agora? Eu caí na sua armadilha. Agora não tenho como sair daqui sem a sua ajuda. E estou disposto a poupar-lhe a vida de bom grado, se me ajudar com isto. — Amato tentou admitir derrota para ganhar a simpatia de Dorothea usando um artifício muito conhecido. O vitorioso, sempre cheio de si, muitas vezes escolhe demonstrar alguma nobreza de espírito ao ter misericórdia do seu inimigo; era com isso que ele contava, porém Dorothea não chegou a acreditar nem por um minuto. Ela havia passado as últimas horas em puro medo, um pesadelo constante, nem o maior dos inocentes acreditaria no inimigo após uma repentina demonstração de resignação. Ela sabia que, se ajudasse na descida, seria morta assim que colocassem os pés no chão. Mas a situação era ainda pior. Ela não queria ajudar e nem podia. Ao se dar conta que cedo ou tarde os dois morreriam, ela preferiu escolher a forma, e se arrastou até a beirada, gritando:
— ITATIBE! ITATIBE! SOCORRO!
— Ficou louca? Acha que alguém vai te ouvir a essa distância?
— Agora não temos mais saída. Ele vai chegar e nós dois vamos morrer.
Amato sabia que ela presenciara a morte dos filhos do zodíaco na beira do lago. Qualquer ajuda que ela recorresse, só poderia ser alguém diferente, que ele não conhecia. “Quem poderia ser?” ele se perguntava. Quem quer que fosse esse Itatibe, não seria capaz de chegar até o topo da torre, mas mesmo assim ela pedia ajuda. Até então só conseguia imaginar um tipo de pessoa capaz de alcança-los — um gigante — e foi então que lembrou-se da velha história sobre Casul.
— O dragão? Está chamando por ele, não é?
O rosto de Dorothea denunciava que ele acertara.
— Ora, mulher, está vendo isto aqui? — Ele retirou o elmo. — Eu sou conhecido em Kelicerata como o Matador de Dragões! Sinto te desapontar, mas o seu amiguinho não será de grande ajuda.
Dorothea olhou o elmo com formato de cabeça de dragão e teve um estalo. Sabia que os dois não estavam falando da mesma coisa, então resolveu brincar com a ignorância de Amato.
— Você matou muitos dragões?
— Tanto quanto o céu tem de estrelas. E espero que o seu monstrinho chegue logo, para eu adicioná-lo à minha coleção. — blefou.
— Então dragões existem de verdade?
— Claro que sim... Espere, do que você está falando? Você não acabou de chamar o dragão de Casul? Explique-se.
— Aqui em Casul, os dragões são criaturas imaginárias. Existem apenas nas estórias infantis, eu não sabia que eles existiam de verdade. — Amato foi pego de surpresa, mas desconfiava que podia ser alguma artimanha, então não deu o braço a torcer.
— Pois lá em Kelicerata, as criaturas de estórias infantis são os homens-peixe. E aqui em Casul pudemos confirmar a veracidade da sua existência! Se o dragão de Casul não existe, então quem é esse Itatibe que você tanto gritou?
— Ele é a marca dos meus crimes. E os crimes da minha irmã. Nós trouxemos muita dor e sofrimento para Casul quando nascemos. Nós chamamos Itatibe de dragão porque ele é a materialização da destruição inevitável, o monstro que não pode ser combatido. Nos pareceu correto associá-lo ao monstro que traz o fim do mundo, por isso a representação dele é um dragão.
Amato não entendia o significado daquelas palavras, e a situação muito o desagradava. Uma criatura desconhecida podia estar a caminho e ele nada sabia a seu respeito.
— Corte o papo furado! O que é esse Itatibe? Fale agora ou te furo o corpo todo! — ameaçou com a lança.
— Você não percebeu que na cidade não havia nenhuma pedra? E não notou também que a minha irmã gêmea esfriava a água até virar pedra? E que eu controlo as pedras que existem na natureza? — Amato tinha notado tudo isto, mas nunca lhe ocorrera relacionar os fatos. — Você pergunta o que é Itatibe, e, no entanto, ele está bem visível, e vindo para cá...
Amato tomou uma base de defesa e segurou firme a lança, procurando Itatibe. Acima da cabeça, apenas a Lua e as estrelas; ao redor, muito pouco era visto, a noite chegara com força, turvando tudo ao redor. Após rodar as vistas por todos os lados, viu que nada de estranho os rodeava. Nem dragão, nem Itatibe, nem nada. A mesma paisagem que podia se esperar. Uma imensidão de campos, uma enorme área com o apenas o topo das árvores visível, ao longe uma área iluminada — provavelmente a capital de Casul — e ao oeste uma montanha com o pico esbranquiçado.
Amato quase pensou que estava sendo feito de bobo, até que ouviu um grande estrondo, tão forte quanto os trovões que anunciam as tempestades mais devastadoras; o céu, porém, permanecia limpo. Quando o estrondo passou a se repetir, a intervalos constantes de terror e força bruta, foi que Amato percebeu de onde vinha. A montanha, estranhamente solitária, movia-se na direção da Torre Branca, com pulos colossais. Cogitando estar num sonho dos mais insanos, Amato virou para Dorothea e perguntou:
— A montanha é Itatibe?
— Ela apareceu no dia em que eu nasci, e esmagou a capital de Casul original com um salto.
O topo da torre era ainda mais alto que o pico da montanha, porém Amato já não tinha mais esperanças de sair vivo. Mesmo se conseguisse voltar ao chão, não havia maneira de destruir uma montanha. Ele sentou com as pernas cruzadas e abaixou a cabeça. Convencido que Itatibe era realmente a destruição inevitável, seu corpo aceitou a certeza da morte, se livrando de qualquer intenção assassina. Foi com um olhar sereno que ele perguntou a Dorothea:
— O que as pessoas diziam de você, na cidade? — ela não sentiu ódio, pena, ou qualquer coisa no rosto de Amato, de forma que respondeu da mesma forma.
— Eles não sabiam. Ou melhor, eram poucos que sabiam. Mas mesmo que soubessem, acredito que nada mudaria. Minha irmã, que também levou a culpa, se casou com Rupert, que por sua vez foi quem salvou a vida de quem morava na cidade.
— Ele conseguiu salvar gente? De ser esmagada por uma montanha?
Foi então que ela abriu um sorriso, e Amato viu que havia amor nos olhos dela.
— Ele podia fazer o impossível se tornar possível. Quando Itatibe pulou em cima da cidade, ele suportou o peso inteiro com os braços. As casas ruíram automaticamente, matando milhares. Mas quem estava nos espaços abertos, ou num nível de altura mais baixo que Rupert, escapou do impacto.
— Ele segurou? Ele segurou uma montanha com os braços acima da cabeça?
— Assim como Sauza faria. — disse ela com um riso abafado. Amato deitou de costas e iniciou uma longa gargalhada. Foi um ato de sinceridade que não teve vergonha de expor para aquela estranha.
Capítulo 13: Quando o céu desmoronou
I
Amato e Dorothea permaneceram deitados, cada um no seu canto, olhando as estrelas. O estrondo chegou a uma altura que não podiam mais ignorar, somado ao tremor que fazia a Torre Branca dar leves chacoalhadas. Levantaram-se e viram, logo abaixo deles, uma montanha que, com todo o resplendor característico de uma criação da natureza, se batia contra a Torre Branca.
— Ela não vai quebrar, mesmo com o peso da montanha forçando?
— Eu não sei. A Torre Branca foi feita por Sauza, então não ficaria impressionada se continuasse de pé.
Enquanto olhavam para baixo, Itatibe parou de se mover, e empregou um enorme salto. A força do vento que se seguiu era tão forte que os dois se jogaram ao chão, com medo de serem arrastados pela corrente de ar. Tal qual a pedra lançada por Dorothea, Itatibe agora subia numa rapidez assustadora. Amato viu passar por ele centenas de metros cobertos de gelo, seguido por um enorme paredão de pedra rígida. Diante de tal magnitude, pensou o quão fácil seria libertar o seu pai se controlar aquela montanha fosse o poder de um dos seus aliados. Quando finalmente a base da montanha passou a altura da torre, e cobriu a visão das estrelas, Amato e Dorothea deram adeus ao mundo. Quando Itatibe parou no ar e começou a descer, o grito saiu rasgando a garganta dos dois. Seus corpos foram totalmente cobertos de terra e pequenas pedras, mas ainda estavam vivos.
No escuro, Dorothea não fazia ideia do que a salvara. Amato, por sua vez, sabia muito bem. A lança, que ele assestara segundos antes de ser esmagado, penetrou na base da montanha, equilibrando-a entre a torre e o céu. Agora ele não tinha nenhuma dúvida de que ela era indestrutível. Tanto quanto a Torre Branca.
Tateando a lança, ele percebeu que metade do cabo ainda estava para fora da montanha, com a extremidade pressionada contra o topo da torre. Foi assim que engatinhou até onde estava Dorothea, visível pela luz verde emitida pelas suas costas. Agarrou-lhe o pescoço com a mão e passou a gritar:
— ITATIBE! EU SEI QUE VOCÊ PODE OUVIR! VOU MATAR ESTA MULHER, OUVIU? PARA SALVAR, VOCÊ SÓ PRECISA ESMAGAR OUTRA CIDADE!
— Você está maluco? ITATIBE! — ela tentava gritar, mas já faltava-lhe ar para respirar.
A montanha se abalou; ao que parecia, tentava pular para esmagar Amato contra a Torre Branca. A lança fincou-se mais e mais, ao ponto que as costas de Amato já tocavam a base da montanha, com ele engatinhado.
— ITATIBE! VOCÊ SÓ PRECISA ESMAGAR A CIDADE SUBMARINA! SÓ ISSO! EU DEIXO A MULHER LIVRE.
Sem qualquer certeza de que fora convincente, ou sequer entendido, Amato deitou-se novamente, agora por cima de Dorothea, com medo de ser imprensado. Após alguns segundos de silêncio, a montanha se moveu novamente. Não tentou pular, mas se inclinou para cair. Enquanto o monstro gigantesco caía para o leste, arrastando a sua base na beirada da Torre Branca, chovia terra e pedra por cima dos dois deitados. Amato procurava apertar-se contra Dorothea, com medo de ser atingido pela montanha, e não foi um medo infundado. Um pedaço da base, de forma pontiaguda, passou-lhe nas costas, fazendo um grande corte. Amato não aguentou a dor e, com um grito desesperado, rolou para o lado, ainda agarrando Dorothea. Sendo a torre não muito larga, eles caíram da beirada, pelo lado oeste.
O clima noturno da noite em Casul tinha um ar frio que rodopiava invisível pelo céu, levando apenas folhas soltas e os sons dos animais. Um relincho foi carregado da mesma forma. Era Diomedes próximo à Torre Branca, onde permanecia solene ao lado do corpo de Dorothea. Já encoberta pela escuridão, a montanha rumava para a costa leste, e abaixo das estrelas, ouvia-se ao longe o som de asas batendo.
Amato acordou e o céu já começava a clarear. O suor que secara com o tempo havia deixado sua pele oleosa e malcheirosa, o fedor do cabelo era ainda mais forte, abafado pelo elmo. A sujeira o cobria por inteiro, e sentiu um gosto ruim na boca. Ele precisava de um banho, mas não tinha vontade sequer de levantar, tamanha a indisposição. Para piorar, o cansaço e a dor no corpo não cessavam. Amato levantou a cabeça e retirou o elmo, jogando-o para o lado. Seu corvo-imperador estava quieto, olhando seu mestre. Começou a lembrar de tudo que tinha acontecido no dia anterior, o ataque de Itatibe, e a queda da torre, onde ficou inconsciente.
“Por que diabos eu mandei aquela aberração para o oceano? Agora que Amadeu está morto, eu deveria ter ordenado que ele esmagasse a floresta do sul, assim Saga já estaria morto.”, pensou em voz alta enquanto andava até a ave gigante. Retirou a armadura e sentiu um grande alívio. Mas a camada imunda sobre seu corpo não sairia sem um longo banho, de forma que ainda sentia-se enojado. Subiu e partiu para o leste. Enrolou a corda que fazia o papel de rédea no braço direito e deitou no corpo do pássaro, adormecendo assim que pousou a cabeça.
Durante o dia, um soldado alocado em um dos pontos de apoio na Ponte dos Mundos percebeu um ruído incomum. O grupo fazia parte dos homens que mantinham a rota da ponte abastecida. Divididos e separados por longas distâncias, estes grupos alternavam entre si a travessia de metade da ponte, de forma que após algumas semanas, um grupo sempre chegava à terra firme e estocava água e alimentos. Voltava para a ponte enquanto o grupo que chegava atrás permanecia em terra acumulando as suas provisões, e assim funcionava o rodízio, uma vez que deixar os soldados fixados nos pontos de apoio tinha se mostrado desvantajoso na primeira travessia, causando mudanças de comportamento e até loucura em alguns dos homens.
— Ouviu? Começou hoje e agora está bem mais forte.
— É, você tem razão. O que será isso?
Os dois homens estavam deitados no chão com as orelhas coladas na pedra.
— Luca! Vem cá!
De dentro da tenda Luca Suines surgiu, com um rosto pálido e o olhar pesado. Ele negou o estipêndio oferecido pelo Rei Scorpio e foi irredutível quanto a se unir aos soldados para lutar contra Casul. Gabriel, o seu irmão mais velho não se opôs, pois conhecia a teimosia do caçula, porém não podia arriscar perder o seu irmão. Pediu a Amato que deixasse Luca numa posição de risco mínimo, e manteve segura a parte de Luca no acordo, para que recebesse o dinheiro integralmente quando voltasse da batalha.
— Agora eu não estou bom, ainda bem que seremos os próximos a ir para Kelicerata... — disse Luca, ignorando o chamado dos companheiros e indo para a beirada da ponte, onde se pôs de joelhos e passou a vomitar.
— Passando mal de novo? Não acredito...
— Você acha que tem relação com aquela onda?
— Que onda? — perguntou Luca, chegando junto aos dois.
— Hoje cedo uma onda enorme veio do noroeste. Passou atropelando todos os redemoinhos no caminho. E agora esse barulho no chão, vem cá ouvir, está ficando bem alto agora!
Luca abaixou-se e imitou os dois, com a orelha no chão, até que ouviu o que tanto falavam. Era barulho de pedra riscando pedra, e mais fraco ele ouviu rápidas batidas.
— Parece que tem um trote de cavalo!
Os dois estranharam a constatação e novamente se puseram a ouvir.
— É verdade! Consigo ouvir umas batidas agora!
— Ei, o que é aquilo? — um dos homens enxergou uma sombra na ponte.
— É um cavalo puxando... Uma pedra?
— Ei, está bem alto o barulho! — disse Luca, ainda prostrado no chão.
Os dois rapazes já se levantavam assustados.
— Ele está vindo para cá! Vamos fugir! Luca, levanta daí!
Luca levantou os olhos e deu de cara com um centauro arrastando uma enorme pedra com a mão, a poucos metros de si. Cobriu a cabeça com os braços e o monstro passou por ele. Atrás de Luca, um dos soldados foi atingido pela lateral da rocha e o outro evitou ser atropelado pulando da ponte para a morte certa na água. Luca se arrastou até a beirada e não conseguiu avistar nenhum dos dois na superfície do mar. Quando se virou para a ponte, o monstro já era uma sombra desaparecendo no horizonte. Sozinho e sem saber o que fazer, Luca Suines correu até uma das barracas montadas e saiu montado num cavalo, na direção de Kelicerata.
II
— Tiestes! Olha só isso!
Adônis mostrou ao filho de Capricórnio uma estranha ilha do lado norte, bem longe da ponte. Não havia praia, árvores, coisa alguma, era apenas um enorme pedregulho que saía das profundezas do mar.
— Isso não pode ser natural...
— Não é. É o monstro que destruiu Casul no passado. Itatibe. — Tiestes sabia de muito mais, percebeu Adônis, mas este não tinha intenção de perguntar. Retomou a viagem até que parou novamente, a pedido de Tiestes.
— Olha só o que nós encontramos no meio do caminho... — haviam chegado ao Castelo de Libra, e no topo de uma das torres, viram um corvo-imperador pousar.
— Eu não tenho como ir até lá. Tem certeza que não terá problemas indo sozinho?
— Não se preocupe — respondeu em meio a uma tosse que seguia um guincho — não vou demorar.
Tiestes seguiu pela ponte estreita de olho onde pisava, e na testa, um olho maldito brilhava. A tosse era o primeiro indício que ele já não podia ficar muito tempo longe do seu refúgio, enterrado na cavidade da pedra, de modo que seguiu depressa. Entrou no castelo e foi direto até a sala do guerreiro de Libra onde encontrou duas pessoas empunhando espadas. Uma estava de pé, apontando a ponta da espada para a testa do oponente. O outro era Amato, apoiado numa espada curta, sujo e totalmente vencido pelo cansaço.
— Então você é o escolhido por Aok-Valere?
— Sim. E você, quem é? — indagou Bak-Tanu.
— Eu sou Tiestes, o filho de Capricórnio.
— Então não recomendo se aproximar. Este rapaz intenta matar todos os caídos do céu. E ainda por cima veja só o seu estado, não consegue sequer raciocinar. Mesmo eu afirmando que não sou o filho de Libra, ele insistiu em me atacar. — Bak-Tanu estava encharcado, os cabelos completamente molhados, porém a roupa que vestia estava estranhamente seca.
— Mas você é o guerreiro de Libra... — balbuciou Amato.
Tiestes se agachou, tomou a espada curta e segurou Amato.
— Não se preocupe, Amato. Ele não é o filho de Libra. Você é. — ato contínuo, Tiestes apunhalou Amato nas costas. Com os olhos arregalados, mas sem forças até para exprimir um grito de dor, Amato se perdeu em dúvidas.
— O que quer dizer, pai? Só precisamos matar ele. E Sauza. Não, Saga...
— Eu não sou seu pai, Amato. Nós somos filhos das estrelas. Eu errei muito ao te criar. Você encaminhou meu filho para a morte, Amato, e eu não vou deixar meu neto crescer alheio à minha presença.
— Então ele pensava que o guerreiro de Libra, o guardião do castelo, era obrigatoriamente um dos caídos do céu? Morreu em vão. Mas o corpo dele não pode ficar aqui! — avisou Bak-Tanu.
Tiestes retirou a lâmina das costas de Amato, e no corte se avistou uma cor verde escondida sob a pele, no meio do sangue vermelho. Pegou-o no colo e levou até a janela. Amato grunhia e seus olhos enchiam-se de lágrimas.
— Pai. Quando Yozien perguntou se eu era capaz de matar o meu pai... Ele falou de você.
O sangue pingava nas pontas das botas de Tiestes.
— Eu vou matar Saga, não se preocupe. Você conseguiu, Amato. Eu serei livre. Estou orgulhoso de você. — Após ouvir aquelas palavras, Amato não conseguiu segurar o choro e desabou em prantos, enquanto caía na direção da água. Dentro do castelo, Bak-Tanu questionou:
— O que ele me disse é verdade? Água-Marinha e Nic-a-Noy estão mortos?
— Sim. — Tiestes voltou a engasgar e sentia a tosse ficar mais forte.
— Filho de Capricórnio, você está ligado a essa destruição do povo do mar? Todo mundo está atordoado. Por que maldita razão Itatibe esmagou a cidade submarina?
— Guerreiro de Libra, eu menti a vida toda para o meu filho, e o fiz cometer tantos erros que não consigo contar. Mesmo com todos os meus pecados, você arriscaria matar a mim e entregar o poder de Sauza às mãos de Saga? — fez-se um longo silêncio. Bak-Tanu não poderia matar Tiestes, se este fosse o caso. — Eu já vou sair do castelo, não precisa se deter por mais tempo, de modo que já pode ir. Vá ajudar o seu povo.
— Espere! Antes de ir... Não quer que eu o julgue pelo assassinato que acabou de cometer?
— Seria uma honra, meu jovem. Mas deixo para uma próxima vez.
Tiestes voltou para junto de Adônis e continuaram a viagem para Casul. Após cerca de dois dias de viagem, Galope finalmente baixou a pedra permanentemente no chão.
— Eu não me arrisco a passar deste ponto. Tem certeza que vai conseguir?
— Não se preocupe, eu tenho tudo sob controle... — Tiestes não conseguia parar a tremedeira das mãos, e já respirava com dificuldade. O dia estava nublado, era como se o Sol não ousasse iluminar a floresta sombria que os dois olhavam.
— Vou esperar durante algumas horas. Se não voltar, te darei como morto.
— Se eu não voltar, Saga vai ter todo o poder de Sauza nas mãos, e você terá muito com o que se preocupar.
Tiestes fechou os olhos e sobre as pálpebras fechadas, abriram-se dois olhos malditos. Ele entrou na floresta. O clima maléfico da floresta agravou-se com aqueles dois pontos brilhantes vagando por entre os troncos das árvores. Os olhos vermelhos eram tão assustadores quanto o caminho que Tiestes estava percorrendo. O olho esquerdo mostrava o caminho que ele trilhava, enquanto o direito estava fixo na árvore amaldiçoada que guardava o corpo de Saga. Após trinta minutos, Tiestes já não tinha certeza se chegaria vivo até Saga, então passou a correr, o que se provou ainda mais danoso, pois sua respiração falhava constantemente e o coração palpitava num ritmo alucinado. Sentindo a circulação do sangue pelas pontas dos dedos, braços, e até nos olhos fechados, Tiestes desesperou-se e correu até alcançar a clareira. Prestes a morrer, ele arrastou-se até o filho de Gêmeos e enfiou a lâmina da espada no corpo de Saga, coberto pela casca do tronco.
Um líquido de cheiro forte escorreu pela lâmina. Apesar de diferente, era definitivamente sangue. Sem forças para se manter de pé, Tiestes sentou no pé da árvore, e esperou sentir alguma mudança. Cada segundo levava uma eternidade, ao ponto que Tiestes não suportou mais a dor e desfez os olhos malditos; involuntariamente acabou abrindo seus próprios olhos em desespero. O que impediu seu último grito foi a imagem de uma mulher, pálida como a espuma do mar, que olhava fixamente para ele. Ela estendeu a mão oferecendo ajuda. Tiestes esticou o braço para alcança-la, mas quando tentou abraçar a mulher misteriosa, seu corpo atravessou o dela, e ele caiu no chão sem vida.
III
O homem sem signo
Próximo à Itatibe, na superfície do oceano, um garoto loiro de olhos pretos jogava com um homem-peixe adulto. Ele tinha a pele azulada, cabelos e olhos pretos, uma grande cicatriz de queimadura na palma da mão direita e uma pedra verde escura nas costas.
— Rá! Viu só esse salto?
— Vi, foi muito bom. Não estou mentindo.
— Igualzinho a um golfinho.
— Você vive falando nesses golfinhos. Eu nunca vi nenhum.
— Eles só vivem no norte, perto da terra de onde veio a mãe de todos. E tem muitos outros tipos também. Eles não vêm para esse lado, não importa o quanto você implore, deve ser culpa dos escudos do mar, é muito difícil nadar com eles do lado.
— Então vamos até lá. Eu quero ver esses animais.
— Mas temos que ficar e ajudar na reconstrução da cidade.
— Ora... Nós não temos mais família. Não precisamos morar com o povo do mar, podemos nadar para qualquer lugar, e lá será nossa morada.
— Eu não sei...
— Eu te dou essa lança dourada, se você me mostrar o caminho! É só me alcançar, Alcides!
— Ei, eu vou! Espera, Amat-Gadu!
Daniel Monteiro
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