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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O HOTEL NEW HAMPSHIRE - P.2 / John Irving
O HOTEL NEW HAMPSHIRE - P.2 / John Irving

                                                                                                                                                 

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O HOTEL NEW HAMPSHIRE

Segunda Parte

 

As curvas das suas pernas pequeninas dobraram-se sobre o assento da cadeira aparafusada ao chão, as pernas esguias chicotearam o ar para trás e para a frente, levantando pó do chão. Ela só tinha onze anos, e eu tentava imaginar onde é que podia ter aprendido todas aquelas palavras que utilizava e por que motivo o seu pensar parecia o de uma pessoa mais velha. Porque é que as mulheres da nossa família eram cheias de sabedoria, como a Mãe, ou raparigas que pareciam mais velhas que a sua idade - como o Júnior Jones dizia da Franny -, ou como a Lilly: pequenina, doce, mas com uma inteligência tão precoce? Porque é que a inteligência tinha ido toda para elas?, magicava eu, pensando no Pai; embora a Mãe e o Pai tivessem ambos trinta e sete anos, ele parecia-me dez anos mais novo - "e dez anos mais burro", dizia a Franny. E eu, o que era?, pensei, porque a Franny e até a própria Lilly faziam-me sentir que ia ficar com quinze anos para sempre. E o Egg era imaturo - um garotinho de sete anos com os hábitos de um de cinco anos. E o Frank era o Frank, o rei dos ratos, capaz de fazer regressar cães do reino dos mortos, capaz de dominar uma língua estrangeira e capaz de aproveitar as curiosidades da História para seu uso pessoal; mas apesar das suas evidentes aptidões, eu sentia que o Frank -em muitos outros domínios - raciocinava com uma idade mental de quatro anos.

A Lilly continuava sentada, com a cabeça inclinada para a frente e as perninhas a oscilarem.

- Eu gosto do Hotel New Hampshire - disse ela. - Aliás, adoro isto aqui. Não quero sair daqui - soluçou, com as lágrimas a assomarem-lhe aos olhos, como era de esperar.

Abracei-a, peguei-lhe ao colo e levei-a para o quarto dela.

- Pensa no caso de outra maneira - disse-lhe eu. - Só vamos para outro Hotel New Hampshire, Lilly. A mesma coisa, mas noutro país.

Mas a Lilly não parava de chorar.

- Preferia ficar com o circo Fritz's Act - soluçou ela. - Preferia ficar com eles, e nem sequer sei o que fazem]

É claro que depressa iríamos saber o que faziam. Depressa de mais. Estava-se no Verão, e antes de termos preparado a bagagem - antes mesmo de termos reservado as passagens de avião - o tipo de um metro e vinte e quarenta e um anos chamado Frederick "Fritz" Worter fez-nos uma visita. Havia alguns papéis a assinar, e alguns dos outros membros do Fritz's Act quiseram ver a sua futura casa.

Uma manhã, estava o Egg a dormir ao lado do Sorrow, olhei pela janela para o Elliot Park. Ao princípio nada me pareceu estranho; havia uns homens e umas mulheres a saírem de uma carrinha Volkswagen. Eram todos mais ou menos do mesmo tamanho. Afinal de contas, aquilo era um hotel, e pensei que fossem hóspedes. Foi então que vi que eram cinco mulheres e oito homens - e, no entanto, saíam de uma carrinha Volkswagen com ar de quem estava confortavelmente instalado. E, quando reconheci o Frederick "Fritz" Worter no meio deles, compreendi que os outros eram todos do mesmo tamanho que ele.

O Max Urick, que tinha estado a barbear-se enquanto olhava pela sua janela do quarto andar, deu um pulo e cortou-se.

- Um sacana dum carregamento de anões... - disse-nos ele mais tarde. - Não é exactamente o que uma pessoa espera ver quando acaba de se levantar.

É impossível dizer o que a Ronda Ray poderia ter feito, ou dito, se ela os tivesse visto; mas a Ronda ainda estava na cama. A Franny e os meus halteres jaziam imóveis no seu quarto. O Frank - quer estivesse a sonhar, a estudar alemão ou a ler sobre Viena - estava no seu mundo à parte. O Egg dormia ainda com o Sorrow ao lado. E a Mãe e o Pai - que mais tarde ficariam atrapalhados por causa disso - estavam a divertir-se no 3E.

Corri para o quarto da Lilly, sabendo que ela desejaria ver a chegada pelo menos da parte humana do Fritz's Act, mas a Lilly já estava acordada e a observá-los pela janela; tinha vestida uma camisa de dormir de outros tempos, que a Mãe lhe havia comprado numa loja de antiguidades, e apertava nos braços a sua boneca de trapos, toda embrulhada na camisa.

- É mesmo um circo pequeno, tal e qual o senhor Worter disse - murmurou a Lilly, com um tom de adoração na voz.

Ficámos a ver os anões reunirem-se ao lado do Volkswagen, no Elliot Park; estavam a espreguiçar-se e a bocejar; um dos homens fez um pino; uma das mulheres fez uma roda; outro começou a andar com as mãos no chão, como um chimpanzé. Mas o Fritz bateu palmas e acabou com aquelas tolices; reuniram-se então todos, como uma equipa de futebol em miniatura (com dois jogadores a mais) a combinar uma jogada. Depois, puseram-se a caminhar em boa ordem em direcção à entrada.

A Lilly foi abrir-lhes a porta. Eu fui para o intercomunicador anunciar a chegada. Ao 3E, por exemplo, comuniquei: "Novos proprietários acabam de chegar - todos os treze. Terminado. Escuto." Ao Frank: "Guten Mor-gen! Fritz's Act ist hier angekommen. Wachs du auf!" E à Franny: "Anões! Vai acordar o Egg para ele não ficar assustado; pode pensar que é um sonho. Diz-lhe que estão cá treze anões mas que são inofensivos!"

Em seguida corri ao quarto da Ronda Ray; conseguia dar-lhe melhor as mensagens pessoalmente:

- Eles já cá estão! - segredei eu do lado de fora da porta.

- Continua a correr, John-O - respondeu a Ronda.

- São treze. Só cinco mulheres e oito homens. Há pelo menos três homens para ti!

- De que tamanho são eles? - perguntou a Ronda.

- Isso é surpresa - respondi-lhe -, Anda ver. - Continua a correr. Vão todos dar uma corrida.

O Max Urick foi esconder-se com a Sr.a Urick na cozinha; tinham vergonha de ser apresentados, mas o Pai arrastou-os cá para fora para conhecerem os anões, e a Sr.a Urick levou-os a verem a cozinha, exibindo os seus panelões e o cheirinho simples mas bom da sua comida.

- Eles são pequenos - admitiu a Sr.a Urick mais tarde -, mas são muitos. Sempre terão de comer qualquer coisa.

- Eles jamais conseguirão acender a luz - disse o Max Urick. - Vou ter de mudar os interruptores todos.

Depois de muito rabujar, lá se mudou do quarto andar. Obviamente, era o quarto andar que os anões queriam.

- É para não destoar dos bochechos em que se lavam e da amostra de chichis que fazem - resmungava o Max Urick, mas só quando a Lilly não estava por perto.

A Franny pensou que o Max só estava zangado por ir ficar mais próximo da Sr.a Urick. Mas ele não se aproximou mais dela do que o terceiro andar, onde (imaginei eu) seria para sempre contemplado com o som dos passos de minúsculos pezinhos por cima dele.

- Para onde é que vão os animais? - perguntou a Lilly ao Fritz.

O Fritz explicou que o circo utilizaria o Hotel New Hampshire apenas como residência de Verão e que os animais ficariam lá fora.

- Que espécie de animais é que vai haver - perguntou o Egg, apertando o Sorrow contra o peito.

- Animais vivos - respondeu uma das anãs, que era mais ou menos do mesmo tamanho que o Egg e que parecia intrigada com o Sorrow, fazendo-lhe festas sem parar.

Foi no fim de Junho que os anões transformaram o Elliot Park numa feira; as lonas outrora brilhantemente coloridas, e agora de desbotados tons pastel, ondulavam ao vento sobre as barracas de feira, orlavam os carrosséis, estendiam-se em cúpula sobre a grande tenda onde iriam ter lugar as principais representações. Os garotos da cidade de Dairy foram-se aproximando, e ficavam todo o dia a rondar pelo parque, mas os anões não tinham pressa; armaram as barracas de feira, mudaram três vezes o carrossel de lugar - e recusaram-se a ligar o motor que o accionava, nem sequer para o experimentar. Um dia chegou um caixote, com as dimensões de uma mesa de casa de jantar, cheio de grandes rolos de bilhetes de várias cores, cada um tão grande como um pneu.

O Frank conduzia o carro com o máximo cuidado pelo parque agora todo atravancado, contornando as barracas de feira e a tenda grande e dizendo às crianças da cidade para saírem dali.

- Abre a quatro de Julho, miúdos - informava o Frank, oficiosamente, com o braço pendurado fora da janela do carro. - Voltem cá nessa altura.

Nessa altura já nós teríamos partido; esperávamos no entanto que os animais chegassem antes de nos termos de ir embora, ainda que soubéssemos antecipadamente que íamos perder a noite de estreia.

- De qualquer forma, vimos tudo o que eles fazem - disse a Franny.

- Sobretudo - disse o Frank - que eles se limitam a andar por ali a exibir a sua pequenez.

A Lilly ficou a ferver. Fez referência aos pinos, aos números de malabarismo, à dança da água e do fogo, à pirâmide de oito homens, à paródia à equipa de basebol de ceguinhos e à anã mais pequena, que dizia que conseguia montar em pêlo em cima de um cão.

- Mostra-me o cão - disse o Frank.

Ele ficara chateado por o Pai ter vendido o carro ao Fritz. Agora tinha de lhe pedir autorização para dar os seus passeios de carro pelo Elliot Park. O Fritz era generoso com o carro, mas o Frank detestava ter de lho pedir.

A Franny gostava de ter lições de condução com o Max Urick na carrinha do hotel, porque ele ficava todo excitado quando a Franny guiava depressa.

- Prego a fundo! - encorajava-a ele. - Ultrapassa-me esse totó! Tens espaço à farta!

E a Franny voltava das lições toda orgulhosa por ter deixado quase três metros de borracha à roda do coreto ou quatro metros à esquina da Front Street, junto ao tribunal. "Deixar borracha" era a expressão corrente em Dairy, New Hampshire, para descrever o acto de deixar duas riscas pretas no pavimento, fazendo chiar os pneus.

- É revoltante - dizia o Frank. - Dá cabo da embraiagem, dá cabo dos pneus, não passa de exibicionismo de adolescente. Ainda arranjas problemas; ainda ficas sem licença de aprendizagem, e o Max com a carta apreendida (o que se calhar até era justo que acontecesse), e acabam por atropelar algum cão, ou uma criança; ou então uns rufias quaisquer da cidade vão tentar fazer corridas contigo, ou seguir-te até casa e dar-te uma coça; ou então dão-ma a mim, só porque eu te conheço.

- Vamos para Viena, Frank - disse a Franny. - Trata mas é de chupar tudo o que a cidade de Dairy nos pode dar, de lamber tudo até à última gota!

- Lamber? - disse o Frank. - Que horror!

 

O Freud escreveu:

OLÁ!

JÁ QUASE ESTÃO CÁ! BOA ALTURA PARA VIREM. MUITO TEMPO PARA OS GAROTOS ADAPTAR-SE ANTES DE ESCOLA COMEÇAR. TODOS À ESPERA DA VOSSA CHEGADA. ATÉ AS PROSTITUTAS! AH! AH! PUTAS CONTENTES POR PODEREM TER INSTINTOS MATERNAIS COM MIÚDOS - - É VERDADE! MOSTREI-LHES TODAS AS FOTOGRAFIAS. VERÃO BOA ÉPOCA PARA AS PUTAS: MONTES DE TURISTAS. TODA A GENTE DE BOM HUMOR. ATÉ ESTUPORES DAS RELAÇÕES LESTE-OESTE PARECEM CONTENTES. NÃO ANDAM TÃO ATAREFADOS NO VERÃO - SÓ ESCREVEM À MÁQUINA DEPOIS DAS 11 DA MANHÃ. A POLÍTICA TAMBéM TIRA FÉRIAS NO VERÃO.

AH! AH! AGRADÁVEL AQUI, BOA MÚSICA NOS PARQUES. BONS GELADOS. ATÉ URSO ESTÁ MAIS FELIZ - TAMBéM CONTENTE COM A VOSSA VINDA. A PROPÓSITO, URSO CHAMA-SE SUSIE. SAUDADES MINHAS E DA SUSIE. FREUD.

 

- Susie? - perguntou a Franny.

- Um urso chamado Susie! - comentou o Frank.

Parecia irritado por não ser um nome alemão, ou por o urso afinal ser uma ursa. Era uma desilusão para todos nós, suponho - uma espécie de anticlimax antes de termos realmente começado. Mas as mudanças são assim: primeiro é a excitação, depois a ansiedade e por fim a quebra. Primeiro fizemos um curso intensivo sobre Viena e depois começámos a ter saudades - antecipadas - do velho Hotel New Hampshire. Em seguida houve um período de espera - interminável, e talvez a preparar-nos para qualquer desilusão inevitável quando da partida e da chegada no mesmo dia, simultaneamente, que a invenção dos aviões a jacto tornou possível.

No dia l de Julho pedimos emprestada a carrinha Volkswagen que pertencia ao Fritz's Act. Tinha uns curiosos comandos manuais para travar e acelerar, pois os anões não conseguiam chegar com os pés aos pedais. O Pai e o Frank puseram-se a discutir sobre quem seria mais hábil a guiar aquele invulgar veículo. Finalmente, o Fritz ofereceu-se para conduzir a primeira leva até ao aeroporto.

O Pai, o Frank, a Franny, a Lilly e eu iríamos na primeira leva. A Mãe e o Egg encontrar-se-iam connosco em Viena no dia seguinte, e o Sorrow ia de avião com eles. Mas na manhã em que íamos partir o Egg levantou-se antes de mim. Estava sentado na cama, de camisa branca, com as calças e os sapatos de sair, e com um casaco de linho branco; parecia um dos anões - no número cómico dos criados aleijados que serviam num restaurante muito elegante. O Egg estava à espera que eu acordasse para o ajudar a fazer o nó da gravata. Em cima da cama, ao lado dele, estava sentado o Sorrow, um canzarrão de dentuça arreganhada num sorriso, que era o sorriso idiota e gelado dos loucos.

- Tu vais amanhã, Egg - disse eu. - Nós vamos hoje, mas tu e a Mãe só vão amanhã.

- Quero estar pronto - respondeu o Egg, com ar ansioso.

Dei-lhe o nó da gravata - para o pôr de bom humor. Ele pôs-se a vestir o Sorrow - com um traje apropriado para andar de avião - quando eu desci com as minhas malas até ao Volkswagen. O Egg e o Sorrow seguiram-me até lá abaixo.

- Se tiverem espaço - disse a Mãe ao Pai -, gostava que um de vocês levasse o cão morto.

- Não! - disse o Egg. - Quero que o Sorrow fique comigo!

- Sabem que podem despachá-lo com a bagagem - disse o Fritz. - Não é necessário levá-lo a bordo.

- Pode ir sentado ao meu colo - disse o Egg, pondo fim à questão. A bagagem pesada, arcas e caixotes, tinha sido despachada à nossa frente.

A bagagem de cabina e a que ia connosco no avião estava pronta e fechada.

Os anões estavam a dizer adeus.

Pendurada na escada de incêndio, junto à janela da Ronda Ray, via-se a sua camisa de noite cor de laranja - outrora berrante agora desbotada como as tendas do Fritz's Act. A Sr.a Urick e o Max estavam na entrada de serviço; ela tinha estado a arear caçarolas - ainda estava de luvas de borracha -, e o Max tinha na mão um cesto com folhas.

- Quatrocentas e sessenta e quatro! - gritou o Max. O Frank corou; deu um beijo à Mãe e disse:

- Até breve.

A Franny deu um beijo ao Egg.

- Até breve, Egg - disse ela.

- O quê? - perguntou o Egg.

Tinha tirado a roupa ao Sorrow, e o animal estava em pêlo. A Lilly chorava.

- Quatrocentas e sessenta e quatro! - gritou o Max Urick, com ar desvairado.

A Ronda Ray também lá estava, com uma nódoa de sumo de laranja na farda branca.

- Continua a correr, John-O - murmurou ela, mas com simpatia. Deu-me um beijo - deu um beijo a todos menos ao Frank, que se tinha

esgueirado para dentro do Volkswagen para fugir àqueles contactos.

A Lilly continuava a chorar; um dos anões estava a andar na velha bicicleta da Lilly. E no momento preciso em que saímos do Elliot Park chegaram os animais do Fritz's Act. Vimos as compridas plataformas de reboque, as jaulas e as correntes. O Fritz teve de parar a carrinha durante uns instantes, e começou a correr de um lado para o outro dando ordens a toda a gente.

Da nossa jaula - a carrinha Volkswagen - espreitámos os animais; tínhamos estado em dúvida se não seriam de espécies anãs.

- Póneis - disse a Lilly, ainda lacrimejante. - E um chimpanzé. Numa jaula com elefantes vermelhos pintados de um dos lados – como o papel de parede de um quarto de criança -, um grande macaco guinchava.

- Animais perfeitamente normais - disse o Frank.

Um cão de trenó deu uma volta à carrinha a ladrar. Uma das anãs montou a cavalo nele.

- Não há tigres - disse a Franny, desapontada -, nem leões, nem elefantes.

- Estão a ver o urso? - perguntou o Pai.

Numa jaula cinzenta, sem pinturas, estava sentado um vulto escuro balançando-se no mesmo lugar, embalado ao som de qualquer triste melodia interior. Tinha um nariz demasiado comprido, o dorso demasiado largo, o pescoço, demasiado espesso e as patas demasiado curtas para poder ser feliz.

- Aquilo é um urso? - perguntou a Franny.

Havia uma jaula que parecia cheia de gansos e galinhas. Era essencialmente um circo de cães e póneis, com um macaco e um urso decepcionantes - meras imagens simbólicas do exotismo que todos esperávamos.

Ao virar-me para trás para os seguir com o olhar, no Elliot Park, quando o Fritz voltou a carrinha e arrancou - em direcção ao aeroporto e a Viena -, vi que o Egg ainda tinha nos braços o animal mais exótico de todos. Com a Lilly a chorar ao meu lado, imaginei ver - no caos dos anões em movimento e dos animais a serem descarregados - todo um circo chamado Sorrow, em vez do Fritz's Act. A Mãe acenava, e a Sr.a Urick e a Ronda Ray faziam o mesmo. O Max Urick estava aos gritos, mas não o conseguíamos ouvir. Os lábios da Franny, em sincronia com os dele, murmuravam:

- Quatrocentas e sessenta e quatro.

O Frank já estava a ler o dicionário de alemão, e o Pai - que não era homem de olhar para trás - estava sentado à frente com o Fritz e falava rapidamente sobre tudo e nada. O Lilly chorava, mas tão docemente como a chuva. E o Elliot Park desapareceu: o meu último olhar captou o Egg em movimento, esforçando-se por correr no meio dos anões, erguendo o Sorrow, como um ídolo, acima da cabeça - um animal para ser adorado por todos aqueles outros animais vulgares. O Egg parecia excitadíssimo e estava a gritar, e os lábios da Franny, em sincronia com os dele, murmuravam:

- O quê? O quê? O quê?

O Fritz levou-nos a Boston, onde a Franny teve de andar às compras, à procura daquilo a que a Mãe chamava "roupa interior para a cidade"; a Lilly percorria a chorar as secções de lingerie, e o Frank e eu andávamos à deriva pelas escadas rolantes. Chegámos ao aeroporto cedo de mais. O Fritz desculpou-se por não poder ficar à espera connosco, pois os animais precisavam dele. O Pai desejou-lhe felicidades, agradecendo-lhe antecipadamente por vir trazer a Mãe e o Egg ao aeroporto no dia seguinte. O Frank foi "abordado" na casa de banho dos homens do aeroporto, mas recusou-se a descrever o incidente à Franny e a mim; continuou a dizer apenas que tinha sido "abordado". Estava indignado com o caso, e a Franny e eu ficámos furiosos com ele por não nos contar tudo tintim por tintim. Para consolar a Lilly, o Pai comprou-lhe um saco de voo em plástico e entrámos no avião antes de escurecer. Penso que descolámos por volta das sete ou oito horas da tarde. As luzes de Boston, numa noite de Verão, estavam meio apagadas, meio acesas, e ainda havia luz suficiente para vermos o porto com nitidez. Era a primeira vez que viajávamos de avião e gostámos muito.

Durante toda a noite sobrevoámos o oceano. O Pai dormiu durante todo o caminho. A Lilly não dormiu; perscrutava a escuridão e contou-nos que vira dois paquetes. Eu passei a noite a dormitar e a acordar. De olhos fechados, via o Elliot Park a transformar-se num circo. A maior parte dos lugares que deixamos na infância vão perdendo a sua fantasia, vão-se tornando mais prosaicos. Imaginei-me a regressar a Dairy e interroguei-me se o Fritz's Act iria melhorar ou arruinar aquela zona.

Aterrámos em Frankfurt às sete e quarenta e cinco da manhã. Ou talvez fosse às oito e quarenta e cinco.

- Deutchland! - disse o Frank.

Foi ele quem nos conduziu através do aeroporto de Frankfurt até ao voo de ligação para Viena, lendo todos os letreiros em voz alta e falando amistosamente com todos os estrangeiros.

- Os estrangeiros somos nós - não cessava a Franny de murmurar.

- Guten Tag - dizia o Frank, saudando todas as pessoas que passavam.

- Esses eram franceses, Frank - disse a Franny. - Tenho a certeza. O Pai quase perdeu os passaportes, de modo que os atámos com dois elásticos fortes ao punho da Lilly; em seguida peguei-lhe ao colo, pois parecia exausta de tanto chorar.

Saímos de Frankfurt às nove menos um quarto, ou talvez às dez menos um quarto, e chegámos a Viena por volta do meio-dia. Foi um voo curto e agitado, num avião mais pequeno. A Lilly viu umas montanhas e ficou assustada. A Franny disse que esperava que no dia seguinte houvesse menos turbulência, para a Mãe e para o Egg. O Frank vomitou duas vezes.

- Diz isso em alemão, Frank - provocou-o a Franny. Mas o Frank sentia-se demasiado mal para lhe responder.

Tivemos um dia e uma noite e a manhã seguinte para prepararmos a Gasthaus Freud para a chegada da Mãe e do Egg. A nossa viagem havia totalizado cerca de oito horas no ar - umas seis ou sete de Boston até Frankfurt e mais uma hora até Viena. O voo da Mãe e do Egg devia sair de Boston um pouco mais tarde no dia seguinte e vir aterrar em Zurique; o voo de ligação de Zurique a Viena levaria cerca de uma hora, e o de Boston para Zurique - como o nosso voo para Frankfurt - estava previsto demorar cerca de sete horas.

Mas a Mãe e o Egg - tal como o Sorrow - aterraram bem antes de Zurique. Menos de seis horas depois da partida de Boston, embateram fulgurantemente no oceano Atlântico - ao largo daquela região do continente chamada França. Mais tarde (e sem lógica), houve na minha imaginação uma ligeira consolação em saber que eles não caíram no meio da escuridão e em imaginar que era possível ter havido - no espírito deles - uma réstia de esperança, determinada pela visão de terra firme à distância (embora não tivessem chegado lá). Era muito improvável que o Egg fosse a dormir, embora fosse lícito guardar essa esperança. Bastava conhecer o Egg para saber que ele tinha passado toda a viagem acordadíssimo - com o Sorrow aos pulos em cima dos joelhos - e que ia no lugar ao lado da janela.

O que quer que fosse que tinha corrido mal, segundo nos disseram, passara-se rapidamente; mas de certeza que devia ter havido tempo para gritar qualquer aviso - numa língua qualquer. E tempo para a Mãe beijar o Egg e apertá-lo contra o peito; e tempo para o Egg perguntar: "O quê?"

E apesar de nos termos mudado para a cidade de Freud, sou obrigado a confessar que os sonhos são sempre sobrevalorizados: o meu sonho com a morte da Mãe foi inexacto, e eu nunca mais havia de voltar a tê-lo. A morte dela - mediante um grande esforço de imaginação - pode ter tido início com o homem de smoking branco, mas não foi um lindo veleiro branco que a levou para longe. Ela despenhou-se do céu para o fundo do mar, ao lado do filho aos gritos e com o Sorrow apertado contra o peito.

Como não podia deixar de ser, a primeira coisa que os aviões de salvamento descobriram foi o Sorrow. À procura dos destroços submersos, a tentar avistar os primeiros despojos à superfície da água cinzenta da madrugada, alguém viu um cão a nadar. Um exame mais próximo convenceu a equipa de salvamento de que o cão era apenas mais uma vítima; não havia sobreviventes, por isso como poderia a equipa de salvamento saber que este cão já estava morto antes? Aos vivos da minha família não causou surpresa saber o que tinha levado à descoberta dos corpos. Já antes o Frank nos tinha feito descobrir aquela característica do Sorrow: que o Sorrow - como a tristeza - vem sempre ao de cima.

Foi a Franny quem disse, mais tarde, que devíamos estar todos atentos à forma que a tristeza iria tomar a seguir, e que devíamos aprender a reconhecer as suas diferentes poses.

O Frank mantinha-se silencioso, a ponderar as responsabilidades da ressurreição - sempre uma fonte de mistério para ele e agora uma fonte de sofrimento.

O Pai teve de identificar os corpos; deixou-nos à guarda do Freud e foi de comboio. Mais tarde, não viria a falar muitas vezes da Mãe e do Egg; não era homem para ficar agarrado ao passado, a necessidade de nos criar sem dúvida que o impediu de se entregar a reflexões tão complacentes como perigosas. E decerto que lhe deve ter ocorrido que era isto que o Freud queria que a Mãe lhe perdoasse.

A Lilly havia de chorar, pois sempre soubera que o Fritz's Act seria mais pequeno e mais agradável para viver - em todos os aspectos.

E ei-la Sem a Mãe e sem o Egg - e com a tristeza numa pose desconhecida, ou escondida sob uma máscara - compreendi que tínhamos chegado a um país estrangeiro.

 

         A TRISTEZA VEM À TONA DA ÁGUA(*)

A Ronda Ray, cuja respiração me havia primeiramente seduzido ao escutá-la num intercomunicador - e cujas mãos quentes, fortes e pesadas ainda consigo sentir de vez em quando durante o sono -, nunca abandonou o primeiro Hotel New Hampshire. Permaneceu fiel ao Fritz's Act e serviu-o bem - descobrindo talvez, com o decorrer dos anos, que servir anões à mesa e fazer-lhes as camas era de longe preferível aos serviços que prestava a adultos de tamanho mais normal. Um dia o Fritz escreveu-nos a contar que a Ronda tinha morrido - "durante o sono". Depois de perder a Mãe e o Egg, nunca mais achei que uma maneira de morrer pudesse ser "melhor" do que outra, embora a Franny dissesse que a da Ronda o tinha sido.

Pelo menos, porém, sempre foi melhor do que a do Max Urick, cuja vida findou numa banheira do terceiro andar do Hotel New Hampshire. Talvez o Max nunca tivesse dominado a sua irritação por ter de ceder as instalações sanitárias mais pequenas e o refúgio que tanto apreciava no quarto andar. Imagino-o atormentado pela sensação ou talvez mesmo pelo próprio som dos anões a viverem por cima da sua cabeça. Sempre achei que deve ter sido a mesma banheira em que o Egg tentou esconder o Sorrow que acabou por pôr fim à vida do Max - depois de quase ter feito o mesmo com a da Bitty Tuck. O Fritz nunca explicou qual tinha sido a banheira, só disse que era no terceiro andar; aparentemente, o Max tinha tido um ataque durante o banho - afogando-se em seguida. A morte do velho marinheiro, tantas vezes regressado das profundezas para vir a acabar numa banheira, foi uma fonte de angústia para a pobre Sr.a Urick, que não a achava nada "fácil" ou "suave".

- Quatrocentas e sessenta e quatro - repetia a Franny sempre que nos referíamos ao Max.

A Sr.a Urick ainda hoje é cozinheira do Fritz's Act

 

*. O título original do capítulo é "Sorrow Floats"; o autor continua a jogar com o duplo sentido da palavra sorrow ao longo da narrativa, em alusão aos anteriores episódios protagonizados pelo Sorrow (cão). (N. da T.)

 

- talvez um tributo à alimentação (e à vida) simples mas boa. Houve um Natal em que a Lilly lhe enviou um lindo pergaminho escrito à mão com estas palavras de um poeta anónimo, traduzido do anglo-saxão: "Aqueles que vivem humildemente têm anjos do céu para lhes dar coragem, força e confiança."

Ámen.

O Fritz do Fritz's Act de certeza que tinha anjos desses a olharem por ele. Quando se reformou ficou em Dairy, fazendo do Hotel New Hampshire a sua casa de todo o ano (quando já não andava na estrada com o circo, a fazer o circuito de Inverno, com os anões mais jovens). A Lilly ficava triste sempre que pensava nele, pois, se tinha sido o tamanho do Fritz que começara por a impressionar, era a ideia de ficar no Hotel New Hampshire com ele (em vez de ir para Viena) que lhe vinha à mente sempre que pensava no Fritz - imaginando, deste modo, como as nossas vidas teriam sido diferentes se não tivéssemos perdido a Mãe e o Egg. Não tinha havido "anjos do céu" à mão para os salvar.

Mas, evidentemente, não tínhamos essa imagem do mundo da primeira vez que vimos Viena.

- A Viena de Freud - como dizia o Frank; e nós sabíamos a que Freud ele se referia.

Por toda a cidade (em 1957) havia brechas entre os edifícios, edifícios em ruínas e esventrados, edifícios deixados tal como as bombas os tinham deixado. Nalguns quarteirões reduzidos a escombros, frequentemente na periferia de terrenos de jogos agora desertos de crianças, tinha-se a sensação de haver bombas por detonar enterradas no entulho metodicamente varrido e amontoado. Entre o aeroporto e os bairros da periferia, passámos por um tanque russo, solidamente implantado - numa base de betão - como uma espécie de monumento. Da escotilha da torre brotavam flores, o cano comprido estava enfeitado com bandeiras, e a estrela vermelha estava desmaiada e salpicada de excrementos de passarinhos. Ficara estacionado permanentemente em frente de algo que parecia ser uma estação de correios, mas o nosso táxi ia depressa de mais para termos a certeza.

A tristeza vem sempre ao de cima, mas nós chegámos a Viena antes das más notícias, e a nossa disposição tendia para um optimismo prudente. A destruição provocada pela guerra tornara-se menos flagrante à medida que nos aproximávamos dos bairros centrais; de quando em quando via-se mesmo o sol brilhar por entre as fachadas trabalhadas - e uma fila de cupidos de pedra inclinava-se de um telhado por cima das nossas cabeças, com as barrigas tracejadas por rajadas de metralhadora. Havia mais gente nas ruas, embora os bairros da periferia se assemelhassem a uma dessas velhas fotografias sépia tiradas a uma hora em que as pessoas ainda não se levantaram - ou depois de toda a gente ter sido morta.

- Até mete medo - atreveu-se a Lilly a dizer. Com o medo, tinha parado finalmente de chorar.

- É velho - disse a Franny.

- Wo ist die Gemiitlichkeit? - cantarolava o Frank, alegremente, olhando em redor como que à procura de algo de reconfortante.

- Acho que a vossa mãe vai gostar disto aqui - disse o Pai, com ar optimista.

- O Egg não vai gostar - disse a Franny.

- O Egg não vai conseguir ouvir nada - disse o Frank.

- A Mãe também vai detestar - disse a Lilly.

- Quatrocentas e sessenta e quatro - disse a Franny.

O condutor do nosso táxi disse qualquer coisa ininteligível. Até o Pai percebeu que ele não falara em alemão. À custa de denodados esforços, o Frank lá conseguiu falar com o homem, e descobriu que ele era húngaro - refugiado da recente revolução. Procurámos o espelho retrovisor e os olhos tristes do condutor, em busca de sinais de feridas persistentes - imaginando-as, já que não conseguíamos vê-las. Depois, de repente, surgiu um parque à nossa direita, e um edifício tão encantador como um palácio (era um palácio), e do portão de um pátio saiu uma mulher gorda de ar prazenteiro, com uma farda de enfermeira (tratava-se obviamente de uma ama), empurrando um carrinho de bebé de dois lugares (alguém tinha tido gémeos!), e o Frank leu uma estatística idiota de um estúpido prospecto de viagens.

- Sendo uma cidade de menos de milhão e meio de habitantes - leu ele -, Viena ainda tem mais de trezentos cafés!

Olhámos pelas janelas do táxi para as ruas, esperando vê-las manchadas de café. A Franny baixou o vidro e pôs-se a farejar; sentimos o cheiro forte a gasóleo da Europa, mas nada de café. Não demorámos muito a saber para que serviam os cafés: para ficar sentado muito tempo, para fazer os trabalhos de casa, para falar com as prostitutas, para jogar aos dardos, para jogar bilhar, para beber mais do que café, para fazer planos - relativos à nossa fuga - e, evidentemente, para as insónias e para os sonhos. Mas naquele momento ficámos deslumbrados com a fonte na Schwarzenberg-platz, atravessámos a Ringstrasse, cheia de animação devido aos eléctricos, e o nosso condutor começou a cantarolar de si para si "Krugerstrasse, Krugerstrasse", como se por meio desta repetição a ruazinha fosse de repente surgir à nossa frente (e surgiu mesmo), e depois "Gasthaus Freud, Gasthaus Freud".

A Gasthaus Freud não apareceu de repente à nossa frente. O condutor passou devagarinho mesmo junto dela, e o Frank correu até ao Kaffe Mowatt a pedir informações. Foi aí que nos indicaram o edifício pelo qual não tínhamos dado. A confeitaria havia desaparecido (embora as tabuletas da antiga Konditorei - BONBONS e outras - estivessem encostadas à janela pelo lado de dentro). O Pai pôs a hipótese de isto querer dizer que o Freud - nos preparativos para a nossa chegada - tinha começado os planos de ampliação e comprado a confeitaria. Mas, após um exame mais atento, compreendemos que um incêndio havia destruído a Konditorei e, no mínimo, posto em perigo os habitantes da Gasthaus Freud, que lhe era contígua.

Entrámos no hotel pequeno e escuro, passando pelo novo anúncio ao lado da confeitaria destruída pelo fogo; o letreiro, traduziu o Frank, dizia: NÃO PISEM O AÇÚCAR.

- Não pisem o açúcar, Frank? - perguntou a Franny.

- É o que ali diz - respondeu o Frank.

Na realidade, ao entrarmos cautelosamente no vestíbulo da Gasthaus Freud sentimos uma certa viscosidade no chão (sem dúvida dos pés que já tinham circulado em cima do açúcar - o repugnante vidrado do açúcar cristalizado derretido pelo fogo). Nesse momento fomos envolvidos por um abominável cheiro a chocolate queimado. A Lilly, a cambalear com as suas malas pequeninas, foi a primeira a entrar e deu um grito.

Estávamos à espera de ver o Freud, mas tínhamo-nos esquecido do urso dele. A Lilly não esperava vê-lo no vestíbulo, à solta. E nenhum de nós esperava vê-lo sentado num sofá, junto à mesa da recepção, com as pernas cruzadas e os calcanhares apoiados numa cadeira; parecia estar a ler uma revista (parecendo de facto um "urso esperto", como o Freud tinha afirmado), mas o grito da Lilly fez com que as folhas lhe saltassem das patas e com que ele se acomodasse numa posição de urso. Girou o corpo e saiu do sofá, deslocando-se de lado em direcção à mesa da recepção, sem olhar para nós. Foi então que vimos como ele era pequeno - atarracado e baixo, nem maior nem mais comprido do que um Labrador (era no que estávamos todos a pensar), mas consideravelmente mais robusto, com uma cintura grossa, um grande traseiro e braços vigorosos. Ergueu-se nas patas traseiras e deu uma terrível pancada na campainha da recepção, com tanta violência que o ping foi abafado pelo choque surdo da pata do animal.

- Valha-me Deus! - exclamou o Pai.

- És tu? - gritou uma voz. - É o Win Berry?

O urso, impaciente por o Freud ainda não ter aparecido, agarrou na campainha e arremessou-a pelo vestíbulo fora. A campainha foi chocar com toda a força numa porta - com um som de martelo a abater-se num canudo de órgão.

- Estou a ouvir-te! - exclamou o Freud. - Valha-me Deus! És mesmo tu!

E saiu da sala com os braços abertos - aos nossos olhos de garotos, uma figura tão estranha como um urso. Pela primeira vez, compreendemos que o Pai tinha aprendido o seu "Valha-me Deus!" com o Freud, e talvez fosse o contraste entre esta descoberta e o corpo do Freud que nos surpreendeu. O corpo do Freud não tinha qualquer semelhança com a figura e os movimentos atléticos do meu pai. Se o Fritz tivesse dado direito de voto aos seus anões, o Freud talvez pudesse ter sido admitido no circo, pois era apenas um pouco maior do que eles. O corpo dele parecia marcado por algo que se assemelhava à história resumida do seu antigo poder; mas agora limitava-se a ser robusto e compacto. O cabelo preto de que ouvíramos falar era branco e comprido e flutuante como barbas de milho. Tinha uma bengala que se assemelhava a um taco de basebol - e que descobrimos, mais tarde, ser de facto um taco de basebol. A estranha mecha de pêlo que lhe crescia no rosto ainda era do tamanho de uma moeda corrente, mas a sua cor era tão cinzenta como a berma de um passeio - a cor ignorada e desprezada das ruas citadinas. Mas o principal (sobre o envelhecimento do Freud) era que ele estava cego.

- És mesmo tu! - gritava o Freud, atravessando o vestíbulo virado não para o Pai mas para o poste de ferro antigo no início do corrimão da escada.

- Estou aqui - disse o meu pai, docemente.

E o Freud abriu os braços e dirigiu-se às apalpadelas em direcção à voz do meu pai.

- Win Berry! - exclamou o velho, ao mesmo tempo que o urso se precipitava para ele, lhe agarrava no cotovelo com a sua patorra e o impelia na direcção do meu pai.

Quando o Freud abrandou o passo, receoso das cadeiras fora do lugar, ou de tropeçar nos nossos pés, o urso empurrou-o por trás com o focinho. Não era apenas um urso esperto, pensámos nós, as crianças; era um urso treinado como guia de cegos. Agora o Freud tinha um urso para ver por ele. Era indiscutivelmente o tipo de urso que podia modificar a vida de uma pessoa.

Observámos o gnomo cego que abraçava o meu pai; observámos a dança desajeitada de ambos no vestíbulo desconfortável da Gasthaus Freud. À medida que as vozes deles baixavam de tom, ouvíamos as máquinas de escrever no terceiro andar - os radicais a fazerem a sua música, os esquerdistas a escreverem as suas versões do mundo. Até as máquinas de escrever pareciam seguras de si - demarcadas de todas as outras visões imperfeitas do mundo, mas seguras de que tinham razão, absolutamente convencidas dela, cada palavra tap-tap-tap no lugar certo, como dedos tamborilando impacientemente em tampos de mesas, dedos marcando o ritmo entre discursos.

Mas não terá isto sido melhor do que chegar de noite? É possível que o vestíbulo tivesse parecido mais cuidado sob a claridade baça da iluminação insuficiente e sob a indulgência da escuridão. Mas não terá sido melhor (para nós, crianças) ouvir as máquinas de escrever e ver o urso do que ouvir ou imaginar o ranger das camas, o movimento das prostitutas a subir e a descer as escadas, os cumprimentos e despedidas culpados (que se repetiam durante toda a noite) no vestíbulo?

O urso meteu o focinho no meio de nós, os miúdos. A Lilly ficou de pé atrás (pois ele era maior do que ela), eu senti-me envergonhado, o Frank tentou ser simpático - em alemão -, mas o urso só tinha olhos para a Franny. Apoiou a sua pesada cabeça contra a cintura dela e enfiou-lhe o focinho entre as pernas. A Franny deu um salto, a rir, e o Freud disse:

- Susie! Estás a portar-te bem? Ou estás a portar-te mal? O urso chamado Susie virou-se para ele, deu uma corridinha em quatro patas na sua direcção, atingindo o velho no estômago e atirando-o ao chão. O meu pai pareceu disposto a intervir, mas o Freud - apoiando-se ao taco:

- Ora, Susie! - exclamou ele na direcção errada. - A Susie está a dar espectáculo. Não gosta de críticas. E não gosta tanto de homens como de raparigas. Onde estão as raparigas? - perguntou o velho, com as mãos estendidas em duas direcções.

E a Franny e a Lilly dirigiram-se para ele - com o urso Susie atrás da Franny, empurrando-a com o focinho, afectuosamente. O Frank, na súbita obsessão de fazer amizade com o urso, puxou o pêlo espesso do animal, tartamudeando:

- Ah, deves ser o urso Susie. Ouvimos todos falar muito de ti. Eu sou o Frank. Sprechen Sie Deutsch?

- Não, não, alemão não. A Susie não gosta de alemão. Fala a mesma língua que tu - respondeu o Freud, na direcção do Frank.

O Frank, com ar idiota, inclinou-se para o urso, puxando-lhe novamente pelo pêlo.

- Sabes dar um aperto de mão, Susie? - perguntou-lhe ele, inclinando-se.

Mas o urso virou-se para ele e pôs-se de pé.

- Não se está a portar mal, pois não? - perguntou o Freud. - Susie, porta-te bem!

De pé, o urso não era mais alto do que nenhum de nós - à excepção da Lilly e do Freud. O focinho dele chegava ao queixo do Frank. Ficaram face a face, durante um momento, e o urso deslocou o peso para as patas traseiras, esquivando-se como um pugilista.

- Eu sou o Frank - disse o Frank, nervosamente, ao urso, estendendo-lhe a mão; em seguida, com as duas mãos, tentou agarrar a pata direita do urso e apertá-la.

- Quieto com as mãos, miúdo - disse o urso ao Frank, afastando-lhe os braços com um movimento rápido e curto.

O Frank cambaleou para trás e tropeçou na campainha da recepção, que fez um ping rápido.

- Como é que conseguiu isso? - perguntou a Franny ao Freud. - Como é que o pôs a falar?

- Ninguém me pôs a falar, querida - disse o urso Susie, enterrando o focinho na anca da Franny. A Lilly deu outro grito.

- O urso fala! O urso fala! - exclamou ela.

- É um urso esperto] - comentou o Freud. - Eu não vos disse?

- O urso fala! - gritava a Lilly, histericamente.

- Pelo menos não grito - disse o urso Susie.

Foi então que abandonou totalmente o aspecto e os gestos de um urso; dirigiu-se na vertical, com ar mal humorado, para o sofá - onde o primeiro grito da Lilly a tinha perturbado. Sentou-se, cruzou as pernas e pôs os pés em cima de uma cadeira. Estava a ler a revista Time, mas um número bastante antigo.

- A Susie é do Michigan - disse o Freud, como se isto explicasse tudo. - Mas estudou em Nova Iorque. É muito esperta.

- Fui para a Sarah Lawrence - disse o urso. - Mas vim-me embora. Que monte de merda mais elitista - disse ela, referindo-se à Sarah Lawrence e passando impacientemente a Time de uma pata para a outra.

- É uma rapariga - disse o Pai. - É uma rapariga com um fato de urso!

- Uma mulher - disse a Susie. - Vejam só.

Estava-se em 1957, e a Susie era um urso muito avançado para a época.

- Uma mulher com um fato de urso - disse o Frank, enquanto a Lilly se encostava a mim e se agarrava à minha perna.

- Não há ursos espertos - disse o Freud, carrancudo. - Excepto deste tipo.

Lá em cima, as máquinas de escrever discutiam umas com as outras, sobrepondo-se ao nosso silêncio e estupefacção. Olhámos para o urso Susie - um urso esperto, de facto, e uma espécie de cão de cego, também. Saber que ela não era um urso de verdade fazia-a parecer maior e adquirir um novo poder aos nossos olhos. Pensámos que ela devia ser mais do que a vista do Freud; talvez fosse também o seu coração e o seu espírito.

O Pai percorreu o vestíbulo com a vista, enquanto o seu velho mentor cego se apoiava nele. E o que estaria o Pai a ver desta vez? Que castelo, que palácio, que hipótese de classe, de luxo, a ampliar-se no horizonte - enquanto ele mirava, distraído, o sofá de molas frouxas onde o urso estava sentado, e as reproduções dos impressionistas: os nus cor-de-rosa e de aparência bovina tombados por entre flores de luz (que contrastavam violentamente com os motivos florais do papel de parede)? E o cadeirão com o estofo a explodir (como as bombas que se podiam imaginar sob todas as ruínas nos bairros periféricos); e um candeeiro de pé, de luz demasiado pálida para se poder sonhar junto dele.

- Pena aquilo da confeitaria - disse o Pai ao Freud.

- Pena?! - exclamou o Freud. - Nein, nein, nicht pena! Muito bom. Aquilo foi ao ar, e eles não tinham seguro. Podemos comprá-la barata! Arranjar uma entrada que as pessoas vejam da rua! - prosseguiu ele, embora, evidentemente, não houvesse nada que os seus olhos pudessem ver. -Um incêndio que veio mesmo a calhar - continuou o Freud. - Um incêndio mesmo a tempo para a vossa chegada - disse ele, apertando o braço do meu pai. - Um incêndio magnífico!

- O género de incêndio de um urso esperto - disse o urso Susie, folheando cinicamente o velho número da Time.

- Foste tu que o puseste? - perguntou-lhe a Franny.

- O que é que achas, querida? - respondeu a Susie.

Houve uma vez uma mulher que também havia sido violada, mas quando eu lhe contei a história da Franny e como me parecia que ela a tinha enfrentado - talvez não a enfrentando, ou negando a parte pior do caso -, a mulher disse-me que a Franny e eu estávamos errados.

- Errados? - espantei-me eu.

- Podes ter a certeza! - disse a mulher. - A Franny foi violada e não espancada. E esses sacanas roubaram mesmo o "ela dentro dela", como esse artolas desse preto teu amigo lhe chama. O que é que ele percebe disso? Se calhar acha-se um perito em violações lá porque tem uma irmã? A tua irmã despojou-se da única arma que tinha contra esses rufias: o sémen deles. E ninguém a impediu de se lavar, ninguém a ajudou a fazer face ao caso: e por isso ela vai ter que lhe fazer face durante toda a vida. Na realidade, ela sacrificou a sua integridade começando por não lutar contra os atacantes. E tu - disse-me essa mulher -, tu andaste a espalhar a violação da tua irmã e despojaste a violação da sua integridade quando foste a correr buscar o herói em vez de ficares no local e de resolveres tu próprio as coisas.

- Uma violação tem integridade? - perguntou o Frank.

- Fui buscar ajuda - disse eu. - De qualquer forma, eles espancavam-me e violavam-na à mesma.

- Tenho de falar com a tua irmã - disse a mulher. - Ela está mergulhada na sua psicologia de amadora, e isso não funciona, acredita: sei do que falo quando falo de violação.

- Toda a psicologia é amadora - tinha dito uma vez o Iowa Bob. - Diabos levem o Freud e essa cambada toda!

- Esse Freud - tinha o meu pai acrescentado.

E talvez também o nosso Freud, pensaria eu mais tarde.

De qualquer forma, essa mulher perita em violações disse que a reacção aparente da Franny à violação não passava de conversa fiada; e saber que a Franny ainda escrevia cartas ao Chipper Dove dava-me de facto que pensar. A perita em violações disse que, pura e simplesmente, uma violação não era assim, e que não tinha de modo nenhum aquele efeito. Ela sabia, dizia ela. Havia-lhe acontecido o mesmo. E na universidade aderira a uma espécie de clube de mulheres que tinham todas sido violadas; e, em conjunto, haviam chegado à conclusão do que isso era exactamente e de quais eram exactamente as reacções correctas a ter. Mesmo antes de ela começar a falar com a Franny vi até que ponto era importante para ela a sua própria infelicidade e como - no espírito dela - a única reacção verosímil perante o facto era a sua. Que outra pessoa pudesse ter reagido de forma diferente a uma mesma violação só significava para ela que a violência não podia de maneira nenhuma ter sido a mesma.

"As pessoas são assim", teria dito o Iowa Bob. "Precisam de tornar universais as suas piores experiências. Isso dá-lhes uma espécie de apoio."

E quem as pode censurar? É desesperante discutir com uma pessoa assim; por causa de uma experiência que lhes negou a sua própria humanidade passam a negar outras formas de humanidade nos outros, as quais constituem a verdade da variedade humana - em paralelo com a sua semelhança. Tanto pior para essa mulher.

"Provavelmente, ela teve uma vida muito infeliz", teria dito o Iowa Bob.

Era verdade: de facto, essa mulher tivera uma vida muito infeliz. Essa mulher perita em violações era o urso Susie.

- Que merda de disparate é esse do "pequeno incidente sem importância entre tantos outros"? - perguntou o urso Susie à Franny. - Que merda é essa de "o dia mais afortunado da minha vida"? Esses bandidos não te quiseram só foder, querida, quiseram tirar-te a força, e tu deixaste-os. Qualquer mulher que aceite a sua violação tão passivamente... como é que tu podes dizer que, de certo modo, sabias que o Chip Dove ia ser o "primeiro". Ora, minha querida! Minimizaste a enormidade do que te aconteceu só para te ser um bocadinho mais fácil aceitá-lo.

- De que violação é que estás a falar? - perguntou-lhe a Franny. - Quer dizer, tu tiveste a tua e eu tive a minha. Se eu digo que ninguém tocou no meu eu mais profundo é porque ninguém lhe tocou. Achas que lhe tocam sempre?

- Mas nem duvides, querida! Um violador usa o sexo como uma arma. Ninguém usa uma arma contra ti sem te tocar. Por exemplo, como é que vai a tua vida sexual?

- Ela só tem dezasseis anos - disse eu. - Aos dezasseis anos é natural que não tenha uma vida sexual por aí além.

- Não confundo as coisas - respondeu a Franny. - Uma coisa é o sexo e outra coisa é a violação. É o dia e a noite.

- Então porque é que andas sempre a dizer que o Chipper Dove foi o "primeiro", Franny? - perguntei-lhe eu, calmamente.

- É isso mesmo! Boa pergunta! - comentou o urso Susie.

- Olhem - disse-nos a Franny, perante o Frank pouco à vontade, armado em solitário e a fazer de conta que não ouvia, e a Lilly a seguir a nossa conversa como se se tratasse da final de um campeonato de ténis que exigisse reverência relativamente a cada batida da bola -, olhem - repetiu ela. - Eu é que sou a dona da minha violação. É minha. É um problema meu, que eu enfrento à minha maneira.

- Mas tu não o estás a enfrentar - disse a Susie. - Nunca te encolerizaste o suficiente. Tinhas de te encolerizar. Tinhas de ficar furiosa com tudo aquilo.

- Tem de se ficar obcecado e de se permanecer obcecado - disse o Frank, revirando os olhos e citando o velho Iowa Bob.

- Estou a falar a sério - disse a Susie.

Estava a falar a sério de mais, evidentemente - mas com mais verosimilhança do que parecera à primeira vista. Com o tempo, ela acabaria finalmente por encarar a violação de uma forma correcta. Anos mais tarde, viria a dirigir um óptimo centro destinado ao tratamento de crises provocadas por violações, e a escrever, como primeiríssima linha de orientação na literatura dedicada ao assunto, que a questão de "a quem pertence a violação" é a mais importante de todas. Acabaria por compreender que, embora a sua cólera fosse essencialmente saudável para ela, podia não ter sido a coisa mais saudável para a Franny naquela altura.

"Deixe a vítima ventilar o seu problema", escreveu ela no seu boletim de aconselhamento; e também: "Mantenha os seus problemas à parte dos problemas da vítima." Mais tarde, a Susie havia de tornar-se de facto uma perita em violação, escrevendo a famosa frase: "Atenção: a verdadeira solução de cada caso de violação pode não ser a sua; tenha em atenção que pode haver mais do que uma." E dava o seguinte conselho a todas as pessoas que trabalhavam com ela: "É essencial compreender que não há uma forma única de a vítima reagir e de se adaptar a esta crise. Qualquer vítima pode manifestar todas, nenhuma ou qualquer combinação dos sintomas usuais: culpa, recusa, cólera, confusão, medo, ou algo totalmente diferente. E os problemas podem ocorrer daí a uma semana, um ano, dez anos, ou nunca."

Isto é uma grande verdade. O Iowa Bob teria gostado tanto deste urso como do Urrr. Mas, nos primeiros dias que passou connosco, a Susie portava-se como um urso perante os problemas da violação - e perante uma data de outros problemas também.

Fomos impelidos a uma intimidade com ela que não era natural, pois iríamos repentinamente sentir necessidade de nos voltar para ela como para uma mãe (na ausência da nossa mãe); passado algum tempo, voltar-nos-íamos para a Susie por outros motivos. Quase imediatamente, este urso esperto (embora arisco) mostrou-se mais observador do que o velho cego que era o Freud, e a partir do primeiro dia e da primeira noite que passámos no hotel voltámo-nos para a Susie para sabermos tudo quanto precisávamos de saber.

- Quem são as pessoas das máquinas de escrever? - perguntei eu. - Quanto é que cobram as prostitutas? - perguntou a Lilly.

- Onde é que eu posso comprar um bom mapa? - perguntou o Frank. - De preferência, um que indique passeios turísticos a pé.

- Passeios turísticos a pé, Frank? - disse a Franny.

- Mostra os quartos aos garotos, Susie - pediu o Freud ao seu urso espertalhão.

Fosse lá porque fosse, começámos todos por ir ver o quarto do Egg, que era o pior - um quarto com duas portas e sem janelas, um cubo com uma porta de comunicação com o quarto da Lilly (cuja única diferença, para melhor, era uma janela) e outra porta que dava para o vestíbulo do rés-do-chão.

- O Egg não vai gostar do quarto - disse a Lilly.

Mas o que ela queria dizer é que o Egg não ia gostar de nada: nem da mudança, nem daquilo tudo. Acho que ela tinha razão, e agora, quando penso no Egg, tenho tendência a vê-lo neste quarto da Gasthaus Freud que ele nunca viu. O Egg numa caixa sem ar e sem janelas, num espaço minúsculo, enclausurado no coração de um hotel estrangeiro - um quarto que não podia ser dado aos hóspedes.

É esta a tirania característica das famílias: o filho mais novo fica sempre com o pior quarto. O Egg não teria sido feliz na Gasthaus Freud, e hoje interrogo-me se algum de nós o poderia ter sido. É evidente que não tivemos um bom começo. Só havia passado um dia e uma noite antes de as notícias da Mãe e do Egg se abaterem sobre nós, e antes de a Susie também se tornar o nosso "cão de cego", e de o Pai e o Freud começarem os dois a dirigir um grande hotel - ou pelo menos um hotel bem sucedido, esperavam eles: se não um grande hotel, pelo menos um bom hotel.

No próprio dia da chegada, o Pai e o Freud já estavam a fazer planos. O Pai queria mudar as prostitutas para o quinto andar e o Simpósio para as Relações Leste-Oeste para o quarto andar, deixando assim livres o segundo e o terceiro andares para os hóspedes.

- Porque é que os clientes que pagam hão-de ter de subir até ao quarto e ao quinto andar? - perguntou o Pai ao Freud.

- As prostitutas - recordou o Freud ao meu pai - também são clientes que pagam.

E não precisou de acrescentar que elas também faziam uma data de viagens todas as noites.

- E alguns dos seus clientes são velhos de mais para subirem aquelas escadas todas - concluiu o Freud.

- Se são velhos de mais para subirem aquelas escadas - disse a Susie - também são velhos de mais para fazerem porcarias. É melhor dar-lhes o badagaio nas escadas do que esticarem o pernil na cama, em cima de uma das raparigas mais novas.

- Valha-me Deus! - exclamou o Pai. - Então dêem o segundo andar às prostitutas e desandem esses malditos radicais lá para cima.

- É sabido - disse o Freud - que os intelectuais nunca estão em boa forma.

- Nem todos esses radicais são intelectuais - disse a Susie. - E qualquer dia vamos mesmo ter de pôr um elevador. Acho que devemos deixar as putas mais perto do chão e pôr os pensadores a trepar.

- Pois, e põem-se os hóspedes no meio - concluiu o Pai.

- Que hóspedes? - perguntou a Franny.

Ela e o Frank tinham estado a inspeccionar o livro de registos. A Gasthaus Freud não tinha hóspedes.

- Foi o incêndio da confeitaria - explicou o Freud. - O fumo espantou os hóspedes. Assim que arranjarmos a entrada, os clientes vão chover.

- E o fornicanço não os vai deixar dormir durante toda a noite, e as máquinas de escrever vão acordá-los de manhã - comentou a Susie.

- Uma espécie de hotel boémio - disse o Frank, cheio de optimismo.

- E o que é que tu percebes de boémios, Frank? - - perguntou a Franny.

No quarto do Frank havia um manequim de modista, um antigo pertence de uma prostituta que tivera um quarto permanente no hotel. Era um manequim corpulento, encimado pela cabeça toda lascada de um outro manequim que o Freud afirmava ter sido roubado num dos grandes armazéns da Kàrntnerstrasse.

Um rosto bonito, mas corroído, com a cabeleira postiça posta de viés.

- Vem mesmo a calhar para pendurares os teus fatos, Frank - ironizou a Franny, enquanto o Frank pendurava o casaco no manequim com ar mal humorado.

- Que gracinha! - disse ele.

O quarto da Franny era contíguo ao meu. Partilhávamos uma casa de banho com uma banheira antiga, suficientemente funda para cozinhar um boi lá dentro. A retrete era ao fundo do corredor, do lado oposto ao vestíbulo. Só o quarto do Pai tinha casa de banho e retrete privativa. Aparentemente, a Susie partilhava a mesma casa de banho que eu e a Franny, embora só pudesse lá entrar passando por um dos nossos quartos.

- Não se preocupem - disse a Susie. - Não me lavo lá muito.

Nós bem podíamos dizê-lo. O cheiro não era exactamente a urso, mas era acre, salgado, rico e forte; e quando ela tirou a cabeça de urso e vimos pela primeira vez o seu cabelo escuro e húmido, o seu rosto pálido e salpicado de marcas e os seus olhos nervosos e espantados, sentimo-nos mais à vontade com o seu disfarce de urso.

- Isto que vocês vêem - disse a Susie - são as devastações do acne, a desgraça da minha adolescência. Eu é que dei origem à piada da "miúda que não é de deitar fora se lhe enfiarmos um saco na cabeça".

- Deixa lá! Não tenhas complexos - disse o Frank. - Eu sou homossexual. Também não sou propriamente um êxito como adolescente.

- Bem, pelo menos és atraente - disse a Susie. - Toda a tua família é atraente - prosseguiu ela, lançando-nos um olhar significativo. - Vocês também podem ser alvo de discriminações, mas digo-vos uma coisa: não há discriminação pior do que a da "classe dos horríveis". E eu fui uma criança feia, e fico mais feia em cada dia que passa.

Ficámos a olhar para ela metida dentro do fato de urso, sem a cabeça, e a pensar, é claro, se o corpo da Susie seria tão volumoso como o de um urso. E quando a vimos da parte da tarde, a suar, de T-shirt e calções de ginástica, fazendo flexões de joelhos encostada à parede do escritório do Freud - o aquecimento para desempenhar o seu papel quando os radicais saíssem e as prostitutas chegassem para a noite -, verificámos que o seu físico estava bem adaptado à sua particular forma de imitação do animal.

- Um bocado atarracada, hem? - disse-me ela.

"Bananas a mais", teria dito o Iowa Bob. "E hábito de correr a menos." Mas - para ser justo - era difícil a Susie ir aonde quer que fosse sem ir vestida e sem ter de actuar como um urso. E fazer exercício é difícil quando se está vestido de urso.

- Não posso dar a conhecer o meu disfarce, senão há sarilhos - explicou ela.

E, de facto, como é que o Freud se havia de arranjar sem ela? Era a Susie quem mantinha a ordem naquela casa. Quando os radicais foram incomodados por provocadores de direita, quando houve violentos confrontos na entrada e nas escadas, quando uns fascistas da nova-vaga se puseram a gritar "Nada é livre!", quando um pequeno grupo de manifestantes entrou no vestíbulo a protestar, com dísticos que diziam que o Simpósio Leste-Oeste devia mudar-se... mais para Leste - nessas alturas é que o Freud precisava dela, dizia a Susie.

- Vão-se embora, que estão a irritar o urso! - gritava o Freud.

Por vezes era precisa uma rosnadela em surdina ou uma pequena investida.

- É divertido - disse a Susie. - Eu não sou assim tão lixada para andar à pancada, mas a verdade é que ninguém tenta lutar com um urso. Tudo o que tenho a fazer é agarrar alguém que eles encolhem-se logo todos numa bola e põem-se a gemer. Eu limito-me a respirarem cima desses sacanas, ou carrego-lhes um bocadinho em cima. Ninguém tenta defender-se contra um urso.

Devido à gratidão dos radicais por causa desta protecção de urso, não houve qualquer problema em dizer-lhes que se mudassem lá para cima. O meu pai e o Freud explicaram-lhes o caso a meio da tarde. O Pai ofereceu-me para mudar as máquinas de escrever, e eu comecei a transportá-las para os quartos vazios do quinto andar. Havia meia dúzia de máquinas de escrever e um duplicador; o habitual material de escritório; e um aparente excesso de telefones. Senti-me um bocado cansado lá para a terceira ou quarta secretária, mas não andava a fazer o meu levantamento de pesos habitual - devido à viagem - e, por este motivo, soube-me bem fazer exercício. Perguntei a alguns dos radicais mais jovens se sabiam onde é que eu podia arranjar uns halteres, mas eles pareceram altamente desconfiados - por nós sermos americanos -, e ou não compreendiam inglês ou preferiam falar na língua deles. Houve um breve protesto de um radical mais velho, que se lançou numa acesa discussão com o Freud, mas o urso Susie começou a ganir e a rebolar a cabeça à roda dos tornozelos do velho - como se estivesse a tentar assoar o nariz na dobra das calças dele -, e este acalmou-se e subiu a escada, embora soubesse que a Susie não era um urso de verdade.

- O que é que eles estão a escrever? - perguntou a Franny à Susie. - Quer dizer, é um dos tais panfletos, é propaganda?

- Porque é que eles têm tantos telefones? - perguntei eu, pois durante todo o dia não tínhamos ouvido os telefones tocarem uma única vez.

- Fazem uma data de chamadas para o exterior - respondeu a Susie. - Acho que ameaçam as pessoas pelo telefone. Mas eu não leio os boletins deles, nem tenho nada a ver com a política deles.

- Mas qual é a política deles? - perguntou o Frank.

- Mudar esta merda toda - respondeu a Susie. - Começar de novo. Querem fazer uma limpeza geral e arrancar com tudo de novo.

- Também eu - disse o Frank. - Isso parece-me uma boa ideia.

- Têm um ar assustado - disse a Lilly. - Não olham a direito para as pessoas, e quando o fazem parece que não as vêem.

Estão sempre a olhar por cima de nós.

- Isso é porque tu és muito baixinha - disse a Susie. - Para mim, olham eles, e bem.

- E um deles também anda sempre a olhar para a Franny - disse eu.

- Não é isso que eu quero dizer - retorquiu a Lilly. - O que eu quero dizer é que eles não vêem as pessoas quando olham para elas.

- É porque estão a pensar como tudo podia ser diferente - respondeu o Frank.

- As pessoas também, Frank? - perguntou a Franny. - Eles acham que as pessoas também podiam ser diferentes? E tu também achas?

- É! - disse a Susie. - Por exemplo, podíamos estar todos mortos.

A dor torna-nos íntimos com todas as coisas; por causa do desgosto que tivemos com a Mãe e o Egg ficámos a conhecer os radicais e as prostitutas como se sempre os tivéssemos conhecido. Desempenhávamos o papel dos garotos desamparados, órfãos de mãe (para as prostitutas) e cujo adorado irmão foi imolado (para os radicais). E, assim - para compensar a nossa melancolia, acrescida da melancolia provocada pelas condições da Gasthaus Freud -, os radicais e as prostitutas tratavam-nos muito bem. E, apesar da aparente oposição da noite para o dia, tinham mais semelhanças entre si do que eles próprios podiam imaginar.

Ambos acreditavam nas possibilidades comerciais de um simples ideal: ambos acreditavam que poderiam, um dia, ser "livres". Ambos pensavam que os seus corpos eram objectos facilmente sacrificáveis por uma causa (e fáceis de consertar, ou de substituir, após o transe do sacrifício). Até os seus nomes eram semelhantes - embora por motivos diferentes. Tinham apenas nomes de código, ou alcunhas, ou então, se usavam os nomes verdadeiros, usavam só o nome próprio.

E até havia dois que tinham o mesmo nome, mas não havia confusão possível, pois o radical era um homem e a prostituta uma mulher, e nunca estavam ao mesmo tempo na Gasthaus Freud. O nome era Old Billig - billig, em alemão, significa "barato". Chamava-se assim a prostituta mais velha, porque os seus preços ficavam abaixo da tabela relativamente aos praticados no bairro onde ela trabalhava; as prostitutas da Krugerstrasse, embora a Krugerstrasse ficasse no Primeiro Bairro, eram uma espécie de subúrbio das da Kàrntnerstrasse (que ficava ao virar da esquina). Quando se virava da Kàrntnerstrasse para a nossa pequena rua, era como se descêssemos para um mundo sem luz. Saindo da Kàrntnerstrasse, perdia-se de vista o brilho do Hotel Sacher e o grandioso esplendor da Ópera, e notava-se como as prostitutas eram mais olheirentas, como tinham os joelhos ligeiramente arqueados e os tornozelos cambados (por estarem muito tempo de pé), ou como pareciam ter a cintura mais grossa - como o manequim no quarto do Frank. A Old Billig era a veterana das prostitutas da Krugerstrasse.

O seu homónimo, entre os radicais, era o senhor idoso que tinha discutido mais acaloradamente com o Freud a propósito da mudança para o quinto andar. Este Old Billig tinha adquirido o qualificativo de "barato" devido à sua reputação de levar uma vida de mera subsistência - e também ao facto de ser aquilo a que os outros radicais chamavam "o radical dos radicais". No tempo dos bolcheviques, ele era bolchevique; quando os nomes mudavam, ele mudava o dele. Estava na vanguarda de todos os movimentos, mas, fosse pelo que fosse, quando o movimento se desnorteava e caía na anarquia, ou começava a arrastar-se no meio de intermináveis problemas, o Old Billig retirava-se para a rectaguarda e desaparecia discretamente da vista, esperando pela próxima vanguarda. Os idealistas entre os radicais mais jovens desconfiavam do Old Billig e, simultaneamente, admiravam a sua resistência - o seu espírito de sobrevivência. O que não deixava de se assemelhar à ideia que as colegas da Old Billig, a prostituta, faziam dela.

A antiguidade é uma instituição capaz de suscitar tanto a reverência como o ressentimento, dentro e fora da sociedade.

Tal como o Old Billig radical, a prostituta Old Billig foi a que mais discutiu com o Freud sobre a mudança de andares.

- Mas vocês vão ficar mais abaixo - disse o Freud. - Vão ter de subir menos um lanço de escadas. Num hotel sem elevador, o segundo andar é uma melhoria relativamente ao terceiro.

Consegui seguir o alemão do Freud, mas não a resposta da Old Billig. O Frank disse-me que ela protestava a pretexto de ter demasiadas "recordações" para mudar de sítio.

- Olha para este rapaz! - disse o Freud, tacteando na minha direcção. - Olha para estes músculos!

O Freud, é claro, "olhava" para os meus músculos apalpando-os, apertando-me e dando-me palmadinhas; e empurrava-me mais ou menos na direcção da velha prostituta.

- Apalpa-o! - exclamou ele. - É capaz de mudar as tuas recordações todas. Se lhe déssemos um dia, era capaz de mudar o hotel todo!

E o Frank contou-me que a Old Billig dissera ao Freud, recusando o convite para me apalpar:

- Já apalpei músculos que cheguem. Sinto músculos quando durmo a fornicar. É claro que ele pode mudar as recordações. Mas não quero nada partido.

E, assim, lá fiz a mudança das "recordações" da Old Billig com o maior cuidado: uma colecção de ursos de porcelana que rivalizava com a da Mãe (e, depois da morte da Mãe, a Old Billig convidou-me a visitar o seu quarto durante o dia - quando não estava de serviço e andava fora da Gasthaus Freud -, e eu consegui passar algum tempo sozinho com os ursos, recordando a colecção da Mãe, que perecera com ela). A Old Billig também gostava de plantas - plantas que saltavam de vasos modelados para se assemelharem a animais: flores que brotavam do dorso de rãs, fetos alastrando sobre um maciço de flamingos, uma laranjeira a brotar da cabeça de um crocodilo. As outras prostitutas tinham sobretudo roupas, cosméticos e medicamentos para mudar. Era estranho pensar que elas tinham apenas "quartos de noite" na Gasthaus Freud - ao contrário da Ronda Ray, que tinha um "quarto de dia"; e surpreendeu-me verificar como os quartos de dia e os quartos de noite eram usados para fins semelhantes.

Conhecemos as prostitutas nessa primeira noite em que as ajudámos a mudarem-se do terceiro para o segundo andar. Havia quatro prostitutas na Krugerstrasse, mais a Old Billig. Os nomes delas eram Babette, Jolanta, Dark Inge e Screaming Annie. A Babette chamava-se assim por ser a única que falava francês; costumava apanhar a maioria dos clientes franceses (por estes serem tão susceptíveis quanto a terem de falar qualquer língua que não seja a sua). A Babette era pequenina - e, por este motivo, a preferida da Lilly -, com um rosto de duende que a luz sombria do vestíbulo da Gasthaus Freud podia fazer lembrar desagradavelmente (sob certos ângulos) o de um roedor. Anos mais tarde ocorreu-me que a Babette talvez sofresse de anorexia sem o saber - e, em 1957, nenhum de nós sabia o que era anorexia. Mesmo quando não era Verão, vestia-se com tecidos estampados, às flores, com um ar muito estival, e dava a curiosa sensação de ter sempre um excesso de pó-de-arroz (como se, ao tocá-la, uma pequena nuvem de pó se fosse evolar dos seus poros); outras vezes, a pele dela parecia de cera (como se, ao tocá-la, o dedo pudesse deixar uma marca).

A Lilly disse-me certa vez que a pequenez da Babette constituía uma parte importante do seu crescimento (da Lilly), pois a Babette ajudava-a a compreender que as pessoas pequenas podem ter relações sexuais com pessoas grandes sem ficarem totalmente destruídas. Foi isso mesmo que a Lilly disse: "Sem ficarem totalmente destruídas."

A Jolanta tinha escolhido este nome porque dizia que era um nome polaco, e ela gostava de anedotas polacas. Tinha um rosto quadrado e um ar possante, e era tão grande como o Frank (e quase tão desajeitada como ele); emanava dela uma cordialidade que uma pessoa suspeitava ser falsa - como se, no meio de uma piada estrondosa, a sua disposição pudesse azedar subitamente e fazê-la sacar uma faca da mala ou estilhaçar um copo de vinho na cara de alguém. Tinha ombros largos e seios pesados e pernas sólidas mas não gordas - o encanto robusto de uma camponesa que tivesse sido insolitamente corrompida por uma qualquer insidiosa espécie de violência citadina; parecia erótica, mas perigosa. Nos primeiros dias e noites que passei na Gasthaus Freud foi com a imagem dela que me masturbei a maior parte das vezes - era com a Jolanta que eu tinha mais problemas em falar, não por ela ser a mais rude, mas por ser aquela de quem eu tinha mais medo.

- Como é que reconheces uma prostituta polaca? - perguntou-me ela. Tive de pedir ao Frank que traduzisse.

- Porque ela te paga para foderes com ela - respondeu a Jolanta. Isto já eu compreendi sem a ajuda do Frank.

- Percebeste? - perguntou-me ele.

- Claro, Frank, bolas!

- Então ri-te - disse ele. - É melhor rires.

E eu olhei para as mãos da Jolanta - tinha uns pulsos de camponês e os nós dos dedos de um pugilista - e ri-me.

A Dark Inge não era pessoa que se risse. Tinha uma vida muito infeliz. E o pior é que ainda não vivera muito, pois só tinha onze anos. Era mulata - filha de mãe austríaca e de um soldado negro americano - e tinha nascido no início da ocupação. O pai partira com as forças ocupantes, em 1955, e nada do que ele contara à Inge e à mãe sobre o tratamento dado aos negros nos Estados Unidos lhes dera vontade de ir com ele. De todas as prostitutas, a Dark Inge era a que falava melhor inglês, e quando o Pai partiu para França - para identificar os corpos da Mãe e do Egg - foi ela que passou connosco a maior parte das noites em que não dormimos. Era da minha altura, embora tivesse apenas a idade da Lilly, e a maneira como a vestiam fazia com que parecesse ter a idade da Franny. Flexível, bonita e com aquela cor de café, trabalhava como chamariz e não era uma verdadeira prostituta, e Não tinha autorização para andar na Krugerstrasse sem outra prostituta ao lado dela, a menos que fosse com o urso Susie; quando um homem a queria, diziam-lhe que só podia olhar para ela - e mexer nele mesmo. A Dark Inge não tinha idade para ser tocada, e nenhum homem era autorizado a ficar com ela sozinho no quarto. Se algum quisesse ficar com ela, o urso Susie fazia-lhes companhia. Era um sistema simples, mas funcionava. Se algum parecia que lhe ia tocar, o urso Susie punha-se a fazer os sons e os gestos apropriados que costumavam preceder uma investida. Se o homem pedisse à Dark Inge para despir demasiada roupa, ou se insistisse para que olhasse para ele enquanto se masturbava, o urso Susie ficava impaciente.

- Estás a irritar o urso - avisava-o a Dark Inge.

E o homem ia-se embora ou acabava de se masturbar rapidamente, enquanto a Dark Inge olhava para outro lado.

Todas as prostitutas sabiam que o urso Susie só demorava uma questão de segundos a chegar aos respectivos quartos: bastava-lhes darem um grito, pois a Susie - como qualquer animal bem treinado - conhecia as vozes delas todas de cor. O ganido nasal da Babette, o mugido violento da Jolanta, as "recordações" alquebradas da Old Billig. Mas para nós, garotos, os piores clientes eram os homens de expressão envergonhada que se masturbavam até com a mais insignificante visão da Dark Inge.

- Acho que não conseguia bater uma com um urso no quarto - disse o Frank.

- Eu acho é que tu não conseguias batê-la com a Susie no quarto, Frank - disse a Franny.

A Lilly estremeceu e eu também. Com o Pai em França - com aqueles corpos que eram tão importantes para nós - encarávamos o tráfico de corpos na Gasthaus Freud com a indiferença típica dos que acabam de sofrer a perda de um ente querido.

- Quando eu tiver idade para isso - disse-nos a Dark Inge -, vou levar dinheiro pela coisa a sério.

E nós, garotos, ficámos surpreendidos por a "coisa a sério" ser mais cara do que um tipo masturbar-se a olhar para a Inge.

A mãe da Dark Inge fazia tenção de a tirar do negócio antes de ela ter "idade para isso". Queria fazê-la parar antes que chegasse àquela idade. A mãe dela era a quinta dama da Gasthaus Freud - aquela a quem chamavam Screaming Annie(*). Fazia mais dinheiro que qualquer outra prostituta da Krugerstrasse, pois trabalhava para ter uma reforma respeitável (para a filha e para ela).

Quem quisesse uma flor frágil, ou uma francesinha, devia ir com a Babette. Para quem preferisse experiência e uma pechincha, havia a Old Billig. Quem ansiasse por perigo - ou desejasse um toque de violência -, podia experimentar com a Jolanta. Quem fosse envergonhado, podia pagar um olhar furtivo para a Dark Inge. E quem quisesse a ilusão das ilusões, ia com a Screaming Annie.

Como dizia a Susie:

- A Screaming Annie tem o melhor orgasmo fingido da profissão.

O orgasmo fingido da Screaming Annie podia arrancar a Lilly dos seus piores pesadelos, podia fazer com que o Frank se sentasse repentinamente na cama, hirto, a uivar de terror à vista da silhueta ameaçadora do manequim aos pés da cama, podia despertar-me do mais pesado dos sonos - de súbito completamente acordado, com uma erecção, ou a apalpar a garganta para ver onde é que tinha sido cortada. Em minha opinião, a Screaming Annie, por si só, era um argumento de peso para as prostitutas não ocuparem o andar imediatamente por cima do nosso.

Ela conseguia inclusivamente despertar o Pai do seu desgosto - até mesmo logo a seguir ao seu regresso de França. - Valha-me Deus! - exclamava ele.

E vinha dar um beijo a cada um de nós e ver se estávamos em segurança.

Só o Freud conseguia continuar a dormir. E o Frank dizia:

- Claro que não era o Freud que ia deixar-se enganar por um orgasmo simulado.

O Frank considerava-se muito inteligente por esta observação, que não se cansava de repetir - porque, é claro, se referia ao outro Freud, e não ao nosso gerente cego.

Por vezes, a Screaming Annie conseguia mesmo enganar o urso Susie, que resmungava:

- Meu Deus, desta vez foi mesmo um verdadeiro.

Ou, pior do que isso, às vezes a Susie confundia um orgasmo simulado com um possível grito de socorro.

 

*. Screaming Annie - Annie-Gritaria, à letra. (N. da T.)

 

- Por amor de Deus, isto não é ninguém a vir-se! - rugia a Susie, recordando-me a Ronda Ray. - Isto é alguém a morrer!

E lançava-se aos urros pelo corredor do segundo andar, atirava-se contra a porta da Screaming Annie, investia contra a cama desfeita, a rugir de uma forma aterradora - fazendo com que o parceiro da Screaming Annie se pusesse em fuga, desmaiasse, ou caísse redondo no chão. Aí, esta dizia docemente:

- Calma, calma, Susie, está tudo bem. É um tipo porreiro.

Mas, nessa altura, muitas vezes já era tarde de mais para reanimar o homem, que no mínimo dos mínimos tinha ficado reduzido a uma forma encolhida pelo medo.

- Isto é a culpabilização máxima - costumava dizer a Franny. - Quando um tipo está mesmo quase a vir-se entra-lhe um urso pelo quarto e atira-se a ele.

- No fundo, querida - dizia-lhe a Susie -, acho que alguns se vêm é com isso.

Haveria de facto alguns clientes da Gasthaus Freud que só se vinham quando atacados por um urso? - interrogava-me eu. Mas nós éramos demasiado jovens, e havia várias coisas sobre aquele lugar que nunca viríamos a saber. Tal como os vampiros dos nossos Halloweens do passado, nunca viríamos a achar totalmente real a clientela da Gasthaus Freud. Pelo menos, as prostitutas e os seus clientes - e os radicais.

O Old Billig (o radical) era o primeiro a chegar. Tal como o Iowa Bob, dizia que era demasiado velho para perder o que lhe restava de vida a dormir. Chegava de manhã tão cedo que às vezes passava pela última prostituta quando ela ia a sair e ele a entrar. Esta era inevitavelmente a Screaming Annie, que era a que trabalhava mais horas - para construir um futuro para si e para a filha mulata.

O urso Susie dormia durante as primeiras horas da manhã. A partir da madrugada, havia poucos problemas com as prostitutas, como se a luz garantisse a segurança das pessoas - embora nem sempre a sua honestidade -, e os radicais só começavam a discutir a partir do meio da manhã. A maior parte deles dormia até tarde. Escreviam os seus manifestos durante o dia e faziam os seus telefonemas com ameaças. Hostilizavam-se uns aos outros - "na ausência de inimigos mais tangíveis", como dizia o Pai, que, no fundo, era um capitalista. Se assim não fosse, como poderia ele imaginar o hotel perfeito? Quem, senão um capitalista, e um amante da estabilidade, quereria viver num hotel, gerir uma não indústria, vender um produto que era o sono - e não o trabalho -, um produto que era pelo menos repouso, para não dizer recreio? O meu pai pensava que os radicais ainda faziam menos sentido do que as prostitutas. Penso que depois da morte da minha mãe ele se sentiu identificado com aquelas fronteiras de sentimento onde a luxúria e a solidão se confundem, e talvez se sentisse mesmo grato para com a "profissão" - como as prostitutas chamam ao seu trabalho.

Tinha menos simpatia para com os transformadores do mundo, os idealistas decididos a alterar os aspectos desagradáveis da natureza humana. Hoje isto surpreende-me, pois penso no Pai simplesmente como outra espécie de idealista - mas é claro que ele estava mais decidido a viver deixando de lado os aspectos desagradáveis do que a modificá-los. O facto de o meu pai nunca ter aprendido alemão também o mantinha isolado dos radicais; em comparação, as prostitutas falavam melhor inglês.

O radical Old Billig sabia uma frase de inglês. Gostava de fazer cócegas à Lilly, ou de lhe dar um chupa-chupa, ao mesmo tempo que a fazia arreliar.

- Yankee go Home - dizia-lhe ele afavelmente.

- Ele é um velho gagá amoroso - dizia a Franny.

O Frank tentara ensinar ao Old Billig outra frase em inglês de que pensava ele iria gostar.

- Cão imperialista - dizia o Frank.

Mas o Billig confundia isto invariavelmente com "porco nazi" e saía-lhe sempre qualquer coisa esquisita.

Dos radicais, quem falava melhor inglês era quem usava o nome de código de Fehlgeburt. Foi o Frank o primeiro a explicar-me que Fehlgeburt significava "mau sucesso" em alemão.

- Como um "mau sucesso escolar", Frank? - perguntou a Franny.

- Não - respondeu o Frank. - Da outra espécie. Mau sucesso com bebés.

A Frãulein Fehlgeburt, como era chamada - a Miss Mau Sucesso, para nós, miúdos -, nunca tinha engravidado, e, por isso, nunca tivera um mau sucesso.

Era uma estudante universitária cujo nome de código era "Mau Sucesso" porque a única outra mulher do pessoal do Simpósio sobre as Relações Leste-Oeste tinha o nome de código de "Grávida". Esta tinha mesmo estado grávida. A Frãulein Schwanger - schwanger significa "grávida" em alemão - era uma mulher mais velha, mais ou menos da idade do Pai, famosa nos círculos radicais vienenses devido a uma gravidez passada. Tinha escrito um livro inteiro sobre a gravidez e outro - uma espécie de sequela do primeiro - sobre a experiência do aborto. Quando ficou grávida pela primeira vez usava no peito uma insígnia de um vermelho vivo que dizia "grávida" - SCHWANGER! -, e por baixo, em letras do mesmo tamanho, a pergunta: "ÉS TU O PAI?". Isto também dera uma capa sensacional para o seu livro, e ela tinha doado todos os direitos de autora a várias causas radicais. O aborto subsequente - e o respectivo livro - haviam-na tornado um popular tema de controvérsia; ainda conseguia reunir uma multidão quando fazia um discurso, e doava todos os seus proventos à causa a que era leal. O livro da Schwanger sobre o aborto - publicado em 1955, em simultâneo com o fim da ocupação - havia transformado a expulsão desta criança não desejada num símbolo de libertação da Áustria das potências ocupantes. "O pai", escrevia a Schwanger, "podia ter sido russo, francês, inglês ou americano; pelo menos para o meu corpo e para a minha maneira de pensar, ele era um estrangeiro indesejável."

A Schwanger era amiga da Susie, e ambas partilhavam um grande número de teorias sobre a violação. Mas a Schwanger também se tornaria amiga do meu pai. Era ela quem parecia dar-lhe mais consolo depois da perda da minha mãe, não porque houvesse alguma coisa entre eles (como se costuma dizer), mas pela sua maneira calma de falar - a cadência doce e firme das suas palavras -, que era, de todas as vozes da Gasthaus Freud, a que mais se assemelhava à da minha mãe.

- Não passo de uma realista - costumava ela dizer, com uma maravilhosa inocência, embora as suas esperanças de passar uma esponja na ardósia, de fazer nascer um mundo novo a partir do nada fossem tão fervorosas como os sonhos ardentes de qualquer dos radicais.

A Schwanger levava-nos, a nós, miúdos, várias vezes por dia, a tomar café com leite, canela e natas batidas no Kaffee Europa da Kãrntnerstrasse - ou no Kaffee Mozart, na Albertinaplatz Zwei, mesmo por trás da Ópera.

- Para o caso de não saberem - diria o Frank mais tarde (e interminavelmente) -, O Terceiro Homem foi filmado no Kaffee Mozart.

A Schwanger não se podia estar mais nas tintas para isso; eram as natas batidas que a arrancavam ao matraquear das máquinas de escrever e ao calor dos debates, era a calma do café que a atraía.

- É a única instituição válida da nossa sociedade. É uma pena que os cafés também tenham que desaparecer - dizia a Schwanger ao Frank, à Franny, à Lilly e a mim. - Bebam, queridos!

Quando queríamos natas batidas, pedíamos Schlagobers, e se Schwanger significava "grávida" para os outros, para nós, crianças, significava pura e simplesmente Schlagobers. Ela era a nossa radical de instintos maternais, com um fraquinho por natas batidas; gostávamos dela a valer.

E a jovem Frãulein Fehlgeburt, que cursava literatura americana na Universidade de Viena, adorava a Schwanger. Nós achávamos que ela parecia mesmo ter orgulho no seu nome de código, "Mau Sucesso", talvez por pensarmos que Fehlgeburt em alemão também significava "aborto". Tenho a certeza de que isto não pode ser verdade, mas no dicionário do Frank, pelo menos, a palavra mau sucesso e aborto era a mesma: Fehlgeburt - o que simboliza perfeitamente a nossa total estranheza relativamente aos radicais e a impossibilidade de os compreendermos. Todos os mal-entendidos têm na origem falhas de linguagem. Na realidade, nunca compreendemos o que estas duas mulheres significavam - a dura e maternal Schwanger reunindo forças (e dinheiro) para causas que nos pareciam absurdas, mas capaz de nos acalmar com a sua voz mais gentil e mais lógica e com os Schlagobers; e a Miss Mau Sucesso, a tímida estudante universitária, à deriva e tão hesitante a falar que lia alto para a Lilly (não só para confortar uma criança órfã mas para melhorar o seu inglês). Lia tão bem que a Franny, o Frank e eu quase sempre ficávamos a ouvir. A Fehlgeburt gostava de nos ler no quarto do Frank, de modo que dava a impressão de que o manequim também estava a ouvir.

Foi pela boca da Fràulein Fehlgeburt, na Gasthaus Freud - com o nosso pai em França e a nossa mãe e o Egg a serem retirados do fundo do frio oceano (sob a bóia de sinalização que era o Sorrow) -, que ouvimos pela primeira vez todo O Grande Gatsby; e foi o final do romance, com a pronúncia austríaca cantante da Miss Mau Sucesso, que tocou a Lilly.

- "Gatsby acreditava na luz verde, no futuro orgiástico que, ano após ano, vai recuando à nossa frente. Se isso é ilusório, pouco importa." - leu a Fehlgeburt, entusiasmada. - "Amanhã correremos mais depressa, estenderemos os braços mais além!... E uma bela manhã..."

Nessa altura fez uma pausa; os seus olhos assemelhavam-se a pires iluminados por essa luz verde que Gatsby via - e talvez também pelo futuro orgiástico.

- O quê? - perguntou a Lilly, retendo o fôlego.

Era como se um ligeiro eco do Egg nos tivesse chegado até ali, ao quarto do Frank.

- "Continuamos a insistir" - concluiu a Fehlgeburt -, "barcos contra a corrente, incessantemente remetidos para o passado."

- É tudo! Já acabou! - perguntou o Frank, com os olhos piscos de tanto os apertar.

- É claro que acabou, Frank - respondeu a Franny. - Não és capaz de reconhecer um final quando ouves um?

A Fehlgeburt tinha um ar exangue, com o rosto infantil crispado numa expressão triste de adulto, e uma madeixa de cabelo loiro e liso nervosamente enrolada à volta da orelhinha cor-de-rosa. Foi então que a Lilly começou com aquilo, e nós não a conseguimos fazer parar. Era ao fim da tarde, as prostitutas ainda não tinham chegado, mas quando a Lilly começou com aquilo a Susie pensou que a Screaming Annie estava a simular um orgasmo num quarto que não era o dela. A Susie entrou de rompante pelo quarto do Frank, atirando o manequim ao chão e fazendo a pobre Fràulein Fehlgeburt dar um gritinho de susto. Mas nem sequer esta entrada intempestiva fez com que a Lilly parasse. O choro parecia-lhe preso na garganta, e a dor estava-lhe atravessada no peito, como se ela soubesse que iria sufocar. Era inacreditável que aquele corpo tão pequeno pudesse produzir tais convulsões, que pudesse emitir tantos sons.

Claro que nós pensámos logo que não era o livro que a podia ter comovido tanto - mas sim a passagem dos barcos "incessantemente remetidos para o passado"; era o nosso próprio passado que a transtornava, todos o julgávamos perceber, era a Mãe, era o Egg, era a impossibilidade de jamais os esquecermos. Mas quando a acalmámos, a Lilly tartamudeou subitamente que era por causa do Pai que estava a chorar.

- O Pai é um Gatsby - dizia ela a chorar. - É! Eu sei que é!

E imediatamente todos nos precipitámos sobre ela. O Frank disse:

- Lilly, não te deixes impressionar por essa coisa do "futuro orgiástico". Não era exactamente a isso que o Iowa Bob se referia quando estava sempre a dizer que o Pai vivia no futuro.

- É um futuro muito diferente, Lilly - disse eu.

- Lilly - disse a Franny. - Qual é a luz verde, Lilly? Quer dizer, para o Pai: qual é a luz verde dele, Lilly?

- Estás a ver, Lilly - disse o Frank, como se estivesse aborrecido. - O Gatsby estava apaixonado pela ideia de estar apaixonado pela Daisy; já nem sequer era pela Daisy que ele estava apaixonado. E o Pai não tem nenhuma Daisy, Lilly - concluiu o Frank, hesitando um breve instante, pois provavelmente acabara de lhe ocorrer que o Pai também já não tinha uma mulher.

Mas a Lilly respondeu:

- É o homem de smoking branco, é o Pai que é um Gatsby. "Se isso é ilusório, pouco importa." - citou a Lilly. - Vocês não vêem! - esganiçou-se ela. - Vai haver sempre qualquer coisa. Qualquer coisa de ilusório. Qualquer coisa sempre a afastar-se de nós. Sempre. E o Pai não vai parar. Vai continuar atrás disso, e isso vai continuar sempre a afastar-se. Oh, bolas! - gritou ela, batendo com o pezinho no chão. - Bolas! Bolas! - lamentou-se a Lilly.

E recomeçou de novo, como se nada a pudesse deter - como uma rival à altura da Screaming Annie.

Mas esta só conseguia simular um orgasmo, enquanto a Lilly, como de súbito compreendemos, conseguia simular a própria morte. A sua dor era tão real que eu pensei que o urso Susie ia tirar a cabeça e tributar-lhe uma pequena vénia humana. Mas a Susie limitou-se a atravessar o quarto do Frank tal e qual como se fosse um urso, e saiu porta fora, deixando-nos frente a frente com a angústia da Lilly. Com a Weltschmerz da Lilly, como o Frank lhe viria a chamar.

- Nós sentimos angústia - disse o Frank. - Nós sentimos a dor, nós limitamo-nos a sofrer. Mas a Lilly tem uma verdadeira Weltschmerz. Não podemos traduzi-lo por "cansaço do mundo" - informou-nos o Frank, com ares doutorais -, seria uma tradução demasiado branda para definir o que a Lilly sente. A Weltschmerz da Lilly é uma "dor do mundo". Literalmente "mundo", que é a parte Welt, e "dor", que é o que realmente significa Schmerz: sofrimento, dor física real. A Lilly é um caso de "dor do mundo" - concluiu o Frank, cheio de orgulho.

- Uma coisa assim como a pena, não é, Frank? - perguntou a Franny. - Sim, uma coisa assim - respondeu o Frank, friamente.

A pena (sorrow) e o Frank não se davam bem. Agora, já não.

Na realidade, a morte da Mãe e do Egg - com o Sorrow ao colo, e subindo depois das profundezas para assinalar o túmulo - convenceu o Frank a desistir de dar aos mortos uma posição conveniente; o Frank iria desistir da taxidermia sob todas as suas formas e abandonar todas as manifestações de ressurreição, "incluindo a religião", como ele dizia. Segundo o Frank, a religião não passava de outra forma de taxidermia.

Na sequência da traição do Sorrow, o Frank tornar-se-ia muito céptico relativamente a qualquer tipo de crença. Viria a ser ainda mais fatalista do que o Iowa Bob e ainda mais descrente do que a Franny ou eu. Ateu até às raias da violência, passaria a acreditar apenas no Destino - no acaso feliz ou trágico, no gozo arbitrário ou na dor arbitrária. Viria a tornar-se um pregador contra qualquer espécie de mercadoria que alguém pudesse vender: da política à moral, o Frank sempre esteve na oposição, entendendo por isto "as forças opostas".

- Mas a que é que essas forças se opõem, Frank? - perguntou-lhe a Franny, uma vez.

- Limita-te a ser contra todas as previsões - informou ele. - Sê contra tudo aquilo que alguém defende. E sê a favor de tudo aquilo a que alguém se opõe. Se tomares um avião e ele não se despenhar, isso significa que tomaste o avião certo. E é tudo o que isso significa.

Por outras palavras, o Frank "distanciou-se". Depois de a Mãe e o Egg partirem, o Frank partiu ainda para mais longe - sabe-se lá para onde -, refugiou-se numa religião ainda mais falha de seriedade do que as religiões estabelecidas; ingressou numa espécie de seita antitudo.

- Talvez tenha sido mesmo o Frank a fundá-la - disse a Lilly uma vez. Ela referia-se ao nihilismo, à anarquia, à tolice e felicidade triviais face às trevas, à depressão que se abate tão regularmente como a noite sobre os dias mais despreocupados e mais alegres. O Frank acreditava em zás! Acreditava nas surpresas. Estava sempre num ataque e retirada constantes, e também estava, constantemente, de olhos bem abertos, a tropeçar desajeitadamente em plena luz do dia, de súbito jorrada - a atravessar a terra de ninguém pejada com os corpos tombados nas trevas de ainda há instantes.

- Ele enlouqueceu - disse a Lilly, que devia saber o que dizia.

A Lilly também tinha enlouquecido. Parecia tomar as mortes da Mãe e do Egg como um castigo pessoal por qualquer falha profundamente enraizada nela, e, por este motivo, decidiu mudar. Decidiu, entre outras coisas, crescer.

- Pêlo menos um bocadinho - disse ela, com uma determinação sombria.

A Franny e eu andávamos preocupados com ela. Parecia pouco provável que a Lilly pudesse crescer, e a energia que a imaginávamos a dispender com o seu "crescimento" era algo de assustador para a Franny e para mim.

- Eu também quero mudar - disse eu à Franny. - Mas a Lilly... não sei. A Lilly é apenas a Lilly.

- Toda a gente sabe isso - respondeu a Franny.

- Toda a gente menos a Lilly - retorqui eu.

- Precisamente. E tu, como é que tu vais mudar? Conheces alguma coisa melhor do que crescer?

- Não, melhor não - respondi eu.

Eu não passava de um realista numa família de sonhadores, uns maiores, outros mais pequenos. Sabia que não podia crescer; sabia que nunca iria realmente crescer; sabia que a minha infância nunca me abandonaria e que nunca seria suficientemente adulto - e suficientemente responsável - para o mundo. Esse maldito Welt, como diria o Frank. Não podia mudar o suficiente e sabia-o. Tudo o que podia fazer era algo que teria agradado à Mãe. Podia deixar de praguejar, podia moderar a minha linguagem - que tanto havia aborrecido a Mãe. E foi o que fiz.

- Isso significa que nunca mais vais dizer "foda-se", "merda", "broche", "na peida", "vai levar no cu", ou o que quer que seja? - perguntou-me a Franny.

- Isso mesmo - respondi eu.

- Nem sequer ccara de cu"? - perguntou a Franny.

- Não - disse eu.

- Seu grande cara de cu! - disse a Franny.

- Faz tanto sentido como outra coisa qualquer - comentou o Frank.

- Picha mole! - atirou-me a Franny como isco.

- Acho que é uma atitude nobre - disse a Lilly -, simples mas nobre.

- Este gajo vive numa casa de putas de segunda classe, com pessoas que querem virar o mundo do avesso e começar de novo, e fala em moderar a linguagem! - enfureceu-se a Franny. - Cabeça de cona! Peido torcido! Passas a noite a bater punhetas e a sonhar com mamas, mas queres falar bem, não é?

- Então, Franny... - disse a Lilly.

- Cala a boca, amostra de gente! A Lilly começou a chorar.

- Temos de nos manter unidos, Franny - interveio o Frank. - E estes insultos não servem para nada.

- Cala-te tu também! És mais maricas do que uma bufa de gato, Frank.

- E tu o que és, querida? - perguntou-lhe o urso Susie. - Porque é que tens a mania que és a mais calejada?

- Eu não tenho a mania que sou calejada - respondeu a Franny. - Olha o estúpido do urso! Tu não passas de um estafermo, toda cheia de bexigas, toda marcada pelo acne, e preferes ser um urso cretino que uma pessoa. Achas que isso é que é ser calejada? É muito mais fácil ser uma porra dum urso, não é? - continuou a Franny. - E trabalhar para um velho cego que pensa que tu és muito esperta... se calhar até pensa que tu és bonita! Eu não sou forte nem calejada - afirmou a Franny -, mas sou esperta. Consigo sobreviver. E mais do que sobreviver. Consigo aquilo que quero... quando sei o que é. Sou capaz de ver como é que as coisas são. Mas vocês - concluiu a Franny, dirigindo-se a todos nós, até à pobre Miss Mau Sucesso --, vocês passam o tempo à espera que as coisas se transformem em algo de diferente. Achas que não é isso que o Pai faz? - perguntou-me ela, de súbito.

- Ele vive no futuro - disse a Lilly, ainda a fungar.

- Ele é tão cego como o Freud - continuou a Franny -, ou pouco falta para tal. Por isso, sabem o que é que eu vou fazer? Não vou moderar a minha linguagem. Vou utilizá-la para atingir os alvos que quiser. É a única arma que possuo. E só vou crescer quando estiver pronta para isso, ou quando chegar a altura - disse ela, dirigindo-se agora à Lilly. - E nunca hei-de ser como tu, Frank. Nunca ninguém há-de ser como tu - acrescentou ela, ternamente. - E também não vou ser nenhum urso - disse ela à Susie. - Andas para aí a suar que nem um porco dentro desse disfarce estúpido, andas para aí a gingar, a pôr as pessoas pouco à vontade, porque tu te sentes pouco à vontade tal como és. Eu sinto-me bem como sou.

- És uma rapariga cheia de sorte - disse o Frank.

- Pois é, és uma rapariga cheia de sorte - ajudou a Lilly.

- De que te serve seres bonita se és tão sacana? - perguntou a Susie.

- De agora em diante, vou ser sobretudo uma mãe. Vou tomar conta de vocês, seus cabrões: de ti, de ti e de ti - disse a Franny, apontando para o Frank, para a Lilly e para mim. - Porque a Mãe não está aqui para o fazer, e o Iowa Bob também não. Os detectores de merda desapareceram, por isso vou eu detectá-la. Vou dizer onde é que está a merda: é esse o meu papel. O Pai não percebe nada do que se está a passar - concluiu a Franny.

E o Frank, a Lilly e eu, e até o urso Susie, anuímos com a cabeça. Sabíamos que era verdade. O Pai estava cego, ou pouco faltava para que o ficasse.

- Mesmo assim, não preciso de ti para fazeres de minha mãe - respondeu-lhe o Frank, não parecendo lá muito seguro do que dizia.

A Lilly poisou a cabeça no colo da Franny e aí pôs-se a chorar - mais confortada, pensei eu. A Franny, evidentemente, sabia que eu a amava - desesperadamente, excessivamente -, e por isso não tive de fazer nenhum gesto nem de dizer nada.

- Bem, eu não preciso que uma fedelha de dezasseis anos me dê lições de moral - disse o urso Susie.

Mas tinha tirado a cabeça de urso e segurava-a nas patorras. Mas o rosto devastado, os olhos magoados e a boca demasiado pequena traíam-na. Voltou a pôr a cabeça de urso, pois essa era a única coisa que lhe dava autoridade.

A estudante, a Miss Mau Sucesso, com ar sério e bem-intencionado, parecia não ter palavras para se exprimir, limitando-se a dizer:

- Não sei dizer. Não sei como dizer.

- Diz o que tens a dizer em alemão - encorajou-a o Frank.

- Deita isso cá para fora como puderes - aconselhou-a a Franny.

- Bem - disse a Fehlgeburt -, essa passagem, essa passagem encantadora, esse final... o d'O Grande Gatsby, é isso aí.

- Desembucha, Fehlgeburt! Deita isso cá para fora! - incitou-a a Franny.

- Bem - disse a Fehlgeburt -, eu não sei; mas, de certo modo, isso dá-me vontade de ir para os Estados Unidos. Quer dizer, o vosso país é contra a minha política, eu sei. Mas esse final, todo ele, seja como for, é tão belo... Dá-me vontade de estar lá. Quer dizer, acho que isto não faz sentido, mas gostava de estar nos Estados Unidos.

- Então achas que havias de gostar de lá estar? - perguntou a Franny. - Bom, eu gostava era que nós nunca tivéssemos de lá saído.

- Achas que podemos voltar, Franny? - perguntou a Lilly.

- Temos de pedir ao Pai - disse o Frank.

- Ah, sim... - exclamou a Franny.

E eu pude vê-la a imaginar esse momento, a introduzir um pouquinho de realidade nos sonhos do Pai.

- Desculpem que vos diga, mas o vosso país - interveio um dos radicais que se chamava apenas Arbeiter (que significa "operário" em alemão) -, o vosso país é um lugar criminoso. Desculpem que vos diga, mas o vosso país é o triunfo máximo da criatividade empresarial, o que significa que é um país controlado pelo pensamento de grupo das grandes companhias. Estas companhias são desumanas, pois não há ninguém pessoalmente responsável pela sua utilização do poder; uma grande companhia é como um computador que usa o lucro como uma fonte de energia, e como o combustível que lhe é necessário. Desculpem que vos diga, mas acho que os Estados Unidos é o pior país do mundo para um humanista viver.

- Merda para o que tu pensas - disse a Franny -, tu e os teus delírios filhos da puta. Tu é que pareces um computador.

- Pensas como uma caixa de velocidades - disse o Frank. - Quatro mudanças para a frente, a velocidades determinadas. E uma mudança para a marcha atrás.

O Arbeiter ficou a olhar para ele espantado. O seu inglês era um tudo nada hesitante - e o seu espírito, viria eu a lembrar-me mais tarde, era tão versátil como uma cortadora de relva.

- E quase tão poético, também - diria a Susie.

Ninguém gostava do Arbeiter. Nem sequer a sensível Miss Mau Sucesso. A fraqueza dela - entre os radicais - era a sua queda para a literatura, especialmente para o romance que é a literatura americana. ("O teu estúpido curso, querida", estava sempre a Schwanger a criticá-la.) Mas, para nós, crianças, o gesto da Fehlgeburt pela literatura era a sua força. Era o seu lado romântico que não estava completamente morto ou, pelo menos, ainda não. Com o tempo - e que Deus me perdoe -, eu ajudaria a matá-lo.

- A literatura é para os sonhadores - dizia o Old Billig à pobre Fehlgeburt.

O Old Billig radical, bem entendido. A Old Billig prostituta gostava de sonhos: uma vez disse ao Frank que os sonhos eram a única coisa de que ela gostava - os seus sonhos e as suas "recordações".

- Estuda economia, querida - aconselhou a Schwanger à Fehlgeburt. Foi este o conselho da Miss Grávida à Miss Mau Sucesso.

- A utilidade humana - informou-nos o Arbeiter - está directamente relacionada com a proporção da população total implicada na tomada de decisões.

- No poder - corrigiu-o o Old Billig.

- Na tomada de decisões pelo poder - disse o Arbeiter.

Os dois homens degladiavam-se como dois colibris lutando por uma mesma flor.

- Tretas de merda! - disse a Franny.

O inglês do Arbeiter e do Old Billig era tão mau que era fácil estar-lhes sempre a dizer coisas como "vai levar no cu" que eles não percebiam. Apesar da minha promessa de moderar a linguagem, sentia-me dolorosamente tentado a dizer-lhes coisas destas; mas tinha de me contentar hipocritamente em ouvir a Franny dizer-lhas.

- Quando a guerra racial acabar por rebentar na América - disse-nos o Arbeiter - será incorrectamente compreendida. Na realidade, vai ser uma guerra de estratificação de classes.

- Quando tu te peidas, Arbeiter - perguntou-lhe a Franny -, as focas do Jardim Zoológico param de nadar?

Os outros radicais raramente tomavam parte nas nossas discussões em grupo. Um deles consumia-se sobre as máquinas de escrever; o outro passava o tempo todo com o único automóvel do Simpósio das Relações Leste-Oeste, cujos seis membros dificilmente cabiam nele. O mecânico que trabalhava nesse automóvel decrépito - sempre a cair aos bocados, inútil para qualquer fuga, imaginávamos nós, e ao qual provavelmente ninguém iria recorrer para uma fuga, pensava o Pai - era um rapaz carrancudo, de rosto tisnado, de fato-macaco e com um boné de condutor de eléctrico, azul-marinho. Pertencia ao sindicato e trabalhava toda a noite no Strassenbahn(*) da linha principal, ao longo da Mariahilfer Strasse. Andava sempre com um ar ensonado e zangado, e fazia muito barulho com as ferramentas. Chamavam-lhe muito a propósito Schraubenschlíissel - que significava "alicate", em alemão. O Frank, sempre exibicionista, gostava de pronunciar o nome de Schraubenschlussel fazendo rolar a língua, mas a Franny, a Lilly e eu insistíamos na tradução e chamávamos-lhe Alicate.

- Olá, Alicate - cumprimentava-o a Franny, enquanto ele praguejava debaixo do carro. - Espero que continues sem ideias esquisitas na cabeça.

O Alicate não sabia inglês, e a única coisa que nós sabíamos da vida dele era que uma vez tinha tentado combinar um encontro com o urso Susie.

- Praticamente ninguém me convida para sair - comentou a Susie. - Mas que grande besta!

- Que grande besta! - repetiu a Franny.

- Para dizer a verdade, acho que ele nem nunca me viu, sabem? -disse a Susie.

- Ele sabe que és uma fêmea! - perguntou o Frank.

- Valha-me Deus, Frank! - exclamou a Franny.

- Bem, perguntar não ofende - respondeu o Frank.

- O que te digo é que esse Alicate é um tipo mesmo muito esquisito. Não saias com ele, Susie - aconselhou a Franny.

 

*. Strassenbahn - eléctrico. (N. da T.)

 

- Estás a brincar comigo? - perguntou a Susie. - Minha querida, eu nunca saio... com homens.

Isto não pareceu produzir qualquer efeito na Franny, mas vi o Frank, pouco à vontade, aproximar-se dela e depois afastar-se.

- A Susie é lésbica, Franny - - disse eu, quando ficámos os dois sozinhos.

- Não foi isso exactamente que ela disse.

- Eu penso que é.

- E depois? O que é que o Frank é? O ás do pedal? E o Frank é porreiro.

- Cuidado com a Susie, Franny.

- Pensas de mais em mim. Deixa-me em paz, está bem? Mas esta era a única coisa que eu nunca conseguia fazer.

- No fundo, todos os actos sexuais envolvem sempre quatro ou cinco sexos - disse-nos o sexto membro do Simpósio das Relações Leste-Oeste.

Isto era uma tal distorção do Freud - do outro Freud - que tivemos de pedir ao Frank uma segunda tradução, pois não conseguimos compreender a primeira.

- Foi isso que ele disse - garantiu-nos o Frank. - No fundo, todos os actos sexuais envolvem uma quantidade de sexos diferentes.

- Quatro ou cinco? - perguntou a Franny.

- Quando fazemos isso com uma mulher - disse o homem -, estamos a fazê-lo com nós próprios tal como viremos a ser e com nós próprios na nossa infância. E, escusado será dizer, com o ego em que a nossa parceira se for tornar e com o ego da sua infância.

- Escusado será dizer? - perguntou o Frank.

- Então, cada vez que se dá uma foda, há quatro ou cinco metidas nisso? - perguntou a Franny. - Parece-me extenuante.

- A energia dispendida no sexo é a única energia que não necessita de ser recarregada pela sociedade - informou-nos o sexto radical, que era um sonhador.

O Frank teve de se esforçar para traduzir isto.

- Somos nós próprios que recarregamos a nossa energia sexual - disse o homem, olhando para a Franny como se tivesse dito a coisa mais profunda do mundo.

- Fora de reinação?!... - murmurei eu à Franny.

Mas ela parecia mais hipnotizada do que eu achava que devia estar. Receei que ela gostasse deste radical.

O nome dele era Ernst. Só Ernst. Um nome normal, mas apenas um nome próprio. Ele não discutia. Trabalhava frases isoladas, desprovidas de sentido, proferia-as calmamente e voltava para a máquina de escrever. Quando os radicais saíam da Gasthaus Freud, ao fim da tarde, pareciam esbracejar durante horas no Kaffee Mowatt (do outro lado da rua) - um lugar escuro e soturno com uma mesa de bilhar e alvos para atirar dardos e uma fila solene e eternamente presente de homens que bebiam chá com rum, ao mesmo tempo que jogavam xadrez ou liam jornais. O Ernst raramente se reunia aos seus companheiros no Kaffee Mowatt. Passava o tempo a escrever e a escrever.

Se a Screaming Annie era a última prostituta a ir para casa, o Ernst era o último radical a partir. Se era frequente ela encontrar o Old Billig quando o velho radical chegava ao trabalho de manhã, não era menos frequente cruzar-se com o Ernst quando este finalmente acabava de trabalhar. Havia nele algo de sobrenatural, uma aura de outro mundo; quando conversava com a Schwanger, as vozes de ambos tornavam-se tão baixas que quase acabavam a segredar.

- O que é que o Ernst escreve? - perguntou a Franny à Susie .

- Pornografia - respondeu a Susie. - Também me convidou para sair. Mas este viu-me.

Isto deixou-nos mudos durante um instante.

- Que espécie de pornografia? - inquiriu a Franny, cautelosamente.

- Quantas espécies é que há, querida? - perguntou-lhe a Susie. - A pior. Degradação. Violência. Actos contra a natureza.

- Degradação? - admirou-se a Lilly.

- Isto não é para ti, querida - disse a Susie.

- Conta-me - pediu o Frank.

- É degradante de mais para te contar - disse a Susie ao Frank. - Sabes alemão melhor do que eu, Frank. Experimenta tu.

Infelizmente, o Frank experimentou traduzir-nos a pornografia do Ernst. Mais tarde, perguntei-lhe se ele pensava que fora a pornografia do Ernst a desencadear o verdadeiro sarilho - se nós tivéssemos conseguido ignorá-la, as coisas teriam ido por ali abaixo da mesma maneira? Mas a nova religião do Frank - a sua anti religião - já se tinha encarregado de dar todas as respostas por ele (a todas as perguntas).

- Por ali abaixo? - perguntou o Frank. - Bem, é evidente que é essa a direcção que acaba por prevalecer. Quer dizer, aconteça o que acontecer. Se não tivesse sido a pornografia, teria sido outra coisa qualquer. A questão é que nós estávamos votados a ir por ali abaixo. O que é que tu conheces que vá por aí acima! O que desencadeia o movimento descendente é qualquer coisa de imaterial - disse o Frank num dos seus irritantes improvisos repentistas. - Encara as coisas nesta perspectiva - continuou ele com ares doutorais. - Porque é que parece que leva mais de metade de uma vida para nos tornarmos uns adolescentes nojentos? Porque é que a infância nunca mais acaba, quando somos crianças? Porque é que parece ocupar uns bons três quartos da vida humana? E quando acaba, quando os miúdos crescem, quando, de repente, temos de enfrentar os factos... bem - dizia-me o Frank há muito pouco tempo -, conheces a história. Quando estávamos no primeiro Hotel New Hampshire, parecia que íamos continuar a ter treze, catorze e quinze anos para todo o sempre. Durante toda a puta da vida, como diria a Franny. Mas assim que deixámos o primeiro Hotel New Hampshire, o resto das nossas vidas parece que correu duas vezes mais depressa. É assim - prosseguiu ele, com ares presumidos. - Durante metade da vida temos quinze anos. Depois, um dia, entramos na casa dos vinte, que acabam no dia seguinte. E os trinta voam como um fim-de-semana passado numa companhia agradável. Antes de darmos por isso, estamos a pensar em ter quinze anos outra vez. Por ali abaixo? - insistiu o Frank. - É um longo caminho por ali acima até termos catorze, quinze e dezasseis anos. A partir daí, é claro que é tudo para baixo. E toda a gente sabe que para baixo é mais rápido que para cima. É para cima até aos catorze, quinze e dezasseis, e depois para baixo. Para baixo como a água, como a areia.

O Frank tinha dezassete anos quando nos traduziu a pornografia; a Franny tinha dezasseis e eu quinze. A Lilly, com onze, não tinha idade para ouvir. Mas insistiu que se tinha idade para ouvir a Fehlgeburt ler O Grande Gatsby também tinha idade para ouvir o Frank traduzir o Ernst. (Com uma hipocrisia característica, a Screaming Annie não deixou a filha, a Dark Inge, ouvir uma só palavra.)

É claro que Ernst era o nome dele na Gasthaus Freud. Na pornografia, usava uma quantidade de nomes diferentes. Não gosto de descrever aquela pornografia. A Susie dissera-nos que o Ernst ensinava na universidade uma cadeira chamada A História do Erotismo na Literatura, mas a pornografia dele não era erótica. A Fehlgeburt tinha feito o curso de literatura erótica do Ernst, e até ela admitia que a obra dele não tinha qualquer semelhança com o verdadeiro erotismo, que nunca é pornográfico.

A pornografia do Ernst dava-nos dores de cabeça e deixava-nos a garganta seca. O Frank costumava dizer que até os olhos lhe ficavam secos quando a lia; a Lilly desistiu de ouvir depois da primeira vez; e eu senti frio, sentado no quarto do Frank, com o manequim como uma professora primária indulgente a ouvir a leitura do Frank - senti um frio que subia do chão. Senti algo de frio subir-me pelas pernas das calças, depois de ter atravessado o soalho percorrido por correntes de ar, os alicerces do prédio e o solo abaixo de qualquer luz - onde eu imaginava estarem as ossadas da Vindobona de outras eras e os instrumentos de tortura mais usados entre os invasores turcos: chicotes, bastões, dispositivos para esticar a língua, adagas, as câmaras de horror em moda no Sacro Império Romano. Porque a pornografia do Ernst não era sobre o sexo, mas sobre a dor sem esperança, a morte sem uma única boa recordação. A sua leitura fez com que a Susie saísse precipitadamente para ir tomar um banho, com que a Lilly se pusesse a chorar (é claro), com que eu ficasse agoniado até à náusea (por duas vezes), com que o Frank atirasse com um dos livros ao manequim (como se tivesse sido este a escrevê-lo). Tratava-se de uma obra intitulada As Crianças do Barco para Singapura, embora nem sequer uma criança tivesse chegado ao destino.

Mas o único efeito que isto teve sobre a Franny foi fazê-la franzir o sobrolho e começar a pensar no Ernst. Fez com que ela o procurasse e lhe perguntasse - para começar - porque fazia ele aquilo.

- A decadência fortalece a posição revolucionária - respondeu-lhe o Ernst, lentamente, enquanto o Frank se afadigava para traduzir com exactidão o que ele dizia - Tudo o que é decadente acelera o processo, a revolução inevitável. Nesta fase é necessário provocar repugnância. Repugnância política, repugnância económica, repugnância pelas nossas instituições desumanas e repugnância moral... repugnância por nós mesmos, por aquilo em que nos permitimos transformar.

- Está a falar por ele - sussurrei eu à Franny.

Mas ela limitava-se a franzir o sobrolho, excessivamente concentrada nele.

- É evidente que o escritor pornográfico é um indivíduo altamente repugnante - prosseguiu ele, em tom monocórdico. - Mas estão a ver, se eu fosse comunista, que tipo de governo é que eu havia de querer no poder? O mais liberal possível? Não. Havia de querer o governo mais repressivo, mais capitalista, mais anticomunista possível, porque nessas circunstâncias é que eu havia de me dar bem. Onde estaria a Esquerda sem a ajuda da Direita? Quanto mais estúpidas e de Direita forem as coisas, tanto melhor para a Esquerda.

- És comunista? - perguntou a Lilly ao Ernst.

Ela sabia que em Dairy, New Hampshire, não era lá muito brilhante sê-lo.

- Isso foi apenas uma fase necessária - respondeu o Ernst, falando do comunismo e de si mesmo e dirigindo-se a nós, miúdos, como se tudo aquilo e todos nós já fizéssemos parte da História, do passado, como se algo de vasto estivesse em movimento e nós estivéssemos a ser arrastados por isso ou soprados para trás com os seus escapes. - Sou um escritor pornográfico - continuou o Ernst - porque estou ao serviço da revolução. Pessoalmente - acrescentou ele, com um vago aceno da mão -, bem... pessoalmente sou um esteta: as minhas reflexões centram-se no erotismo. Se a Schwanger chora nos cafés, se se entristece por causa dos Schlagobers, que também serão consumidos na voragem da revolução, eu lamento o erotismo, pois também ele terá de desaparecer. Por vezes, depois da revolução - suspirou o Ernst -, talvez o erotismo reapareça, mas nunca mais será o mesmo. No mundo novo, o seu significado será muito menor.

- No mundo novo? - repetiu a Lilly.

E o Ernst fechou os olhos, como se este fosse o refrão da sua peça musical favorita, como se com os olhos do espírito já conseguisse ver esse "mundo novo", um planeta totalmente diferente - habitado por seres novinhos em folha.

Fiquei a pensar que ele tinha mãos muito delicadas para um revolucionário; provavelmente, os seus dedos compridos e esguios eram-lhe úteis para escrever à máquina - o seu piano, onde o Ernst tocava a música da sua ópera da gigantesca transformação. O fato dele, azul, barato e ligeiramente lustroso, estava geralmente limpo mas amarrotado, e as camisas brancas andavam bem lavadas mas nunca eram passadas a ferro; não usava gravata; quando tinha o cabelo comprido de mais, cortava-o curto de mais. Tinha um rosto quase atlético, anguloso, jovem e decidido - e uma espécie de beleza varonil. A Susie e a Fehlgeburt disseram-nos que o Ernst tinha fama de ser um Don Juan entre as alunas da universidade. Quando dava aulas de literatura erótica, referiu a Miss Mau Sucesso.

O Ernst falava com paixão, e mesmo com humor; não era o mesmo orador monocórdico, frouxo, indolente, amorfo (ou pelo menos letárgico) que nos falava da revolução.

Era bastante alto; embora não fosse robusto, também não era frágil. Quando o vi puxar os ombros para a frente e levantar a gola do casaco - ao aprontar-se para deixar a Gasthaus Freud e ir para casa, após um dia de trabalho sem dúvida triste e enfadonho - fiquei surpreendido por, de perfil, ele me fazer lembrar o Chipper Dove.

As mãos do Dove também não eram as de um médio capitão de equipa - também eram demasiado delicadas. E recordei-me de o ver encolher os ombros para pôr os chumaços para a frente e correr devagar para a concentração da sua equipa, a pensar no sinal seguinte - na indicação ou na ordem a dar em seguida -, com as mãos como se fossem passarinhos poisando ao de leve nos chumaços que lhe protegiam as ancas. É claro que nessa altura compreendi quem era o Ernst: o capitão de equipa dos radicais, o jogador que dá o sinal, o autor dos planos ocultos, aquele em torno do qual os outros se reúnem. E também compreendi o que é que a Franny via no Ernst. Era mais do que uma semelhança física com o Chipper Dove, era aquele ar de auto-suficiência, aquele toque de perversidade, aquele sinal de destruição, aquela autoridade gélida - foi isso que abriu caminho insidiosamente até ao coração da minha irmã, que se apoderou do ela dentro dela, que lhe arrebatou a força.

- Queremos todos voltar para os Estados Unidos - disse eu ao Pai. - Queremos viver na América. Não gostamos de estar aqui.

A Lilly pegou-me na mão. Estávamos de novo no quarto do Frank - com este a socar nervosamente o manequim, a Franny em cima da cama dele, a olhar lá para fora pela janela e a ver o Kaffee Mowatt, do outro lado da Krugerstrasse. Era de manhã cedo, e alguém andava às beatas à porta do café, ao longo do passeio e na sarjeta. Os radicais não faziam parte da clientela nocturna do Kaffee Mowatt; à noite, as prostitutas utilizavam o café para saírem da rua - para fazerem um intervalo, jogar bilhar, beber uma cerveja ou um copo de vinho, ou para serem engatadas -, e o Pai deixava o Frank, a Franny e eu irmos lá atirar dardos. - Temos saudades de casa - disse a Lilly, a tentar não chorar. Ainda era Verão, e a Mãe e o Egg ainda não tinham desaparecido há tempo suficiente para que conseguíssemos alongarmo-nos em frases que falassem de saudades de alguém ou de alguma coisa.

- Isto aqui não vai funcionar, Pai - disse o Frank. - É uma situação impossível.

- E agora é boa altura para nos irmos embora - disse eu. - Antes de começarmos a escola e de assumirmos os nossos compromissos.

- Mas eu já tenho um compromisso - disse o Pai, com suavidade. - Para com o Freud.

Então um velho cego valia tanto como nós! - sentimos vontade de lhe gritar. Mas o Pai não nos permitiu determo-nos no tema do seu compromisso com o Freud.

- O que é que tu achas, Franny? - perguntou-lhe ele.

Mas a Franny continuava a olhar através da janela, para a rua que despertava. Lá vinha o radical Old Billig, e lá ia a prostituta Screaming Annie. Tinham ambos um ar cansado, mas eram ambos muito vienenses na atenção pelo formalismo: através da janela do quarto do Frank, aberta para a manhã estival, ouvimos a saudação calorosa que trocaram.

- Olha - disse o Frank ao Pai -, é certo que estamos no Primeiro Bairro, mas o Freud esqueceu-se de dizer que vivemos na pior rua de todo o bairro.

- Uma espécie de rua de sentido único - acrescentei eu.

- Sem sítio para estacionar - disse a Lilly.

Não havia estacionamento porque a Krugerstrasse parecia ser utilizada por camionetas de carga que entregavam encomendas nas portas das traseiras das casas elegantes da Kãrntnerstrasse.

A estação de correios do bairro também era na nossa rua - um edifício triste e sombrio que dificilmente atraía potenciais clientes ao nosso hotel.

- E há também as prostitutas - insistiu a Lilly.

- De segunda classe - disse o Frank. - Não há qualquer esperança de progresso. Estamos apenas a um quarteirão da Kãrntnerstrasse, mas nunca seremos a Kãrntnerstrasse.

- Nem sequer com uma entrada nova - disse eu ao Pai -, mesmo que seja uma entrada atraente. Não há ninguém para a ver. E depois, ainda por cima, vocês andam a meter as pessoas entre as putas e a revolução.

- Entre o pecado e o perigo - especificou a Lilly.

- É claro que a longo prazo isso vai acabar por não ter importância, acho eu - disse o Frank; tive vontade de lhe dar um pontapé. - Quer dizer, de qualquer modo, as coisas acabam sempre por ir por aí abaixo... não interessa exactamente quando partimos, o que é evidente é que havemos de partir. Isto é um hotel que está a ir por aí abaixo. Podemos partir enquanto se estiver a afundar ou depois de se ter afundado.

- Mas nós queremos partir agora, Frank - disse eu.

- Pois é, queremos todos - corroborou a Lilly.

- Franny? - perguntou o Pai.

Mas a Franny continuava a olhar pela janela. Uma camioneta dos correios tentava contornar um camião de carga na rua estreita. A Franny estava sempre atenta à chegada do correio, à espera de cartas do Júnior Jones - e do Chipper Dove, suponho.

Escrevia aos dois uma quantidade de cartas, mas só o Júnior Jones lhe respondia.

O Frank, sempre com a sua indiferença filosófica, disse:

- Quer dizer, podemos partir quando as prostitutas forem todas reprovadas nos exames médicos, quando a Dark Inge tiver finalmente idade, quando o carro do Schraubenschlíissel estoirar, quando o primeiro cliente nos processar, ou o último...

- Mas nós não podemos partir - interrompeu-o o Pai - até pormos o hotel a funcionar.

Até a Franny olhou para ele.

- Quer dizer - continuou o Pai -, quando for um hotel de renome, então podemos permitir-nos partir. Mas não o podemos fazer enquanto tivermos um fracasso nas mãos, pois não temos com que partir.

- Referes-te a dinheiro? - perguntei eu. E o Pai disse que sim com a cabeça.

- Já enterraste o dinheiro aqui? - perguntou-lhe a Franny.

- Vão começar a arranjar a entrada antes do fim do Verão - justificou-se o Pai.

- Então ainda estamos a tempo! - exclamou o Frank. - Não estamos?

- Desenterra o dinheiro, Pai! - pediu a Lilly.

O Pai sorriu com benevolência, abanando a cabeça. A Franny e eu olhámos pela janela para o Ernst da pornografia, que ia a passar pelo Kaffee Mowatt, com um ar altamente repugnado. Quando ia a atravessar a rua deu um pontapé num pedaço de lixo que encontrou no caminho. Deslocava-se com tanta determinação como um gato atrás de um rato, mas parecia eternamente desapontado consigo mesmo por chegar ao trabalho mais tarde do que o Old Billig. Tinha pelo menos três horas de pornografia à sua frente antes do intervalo para o almoço, antes de ir dar a aula na universidade (a sua "hora estética", como ele lhe chamava), e depois disso teria de fazer face às horas fatigadas e deprimentes do fim da tarde, que ele nos dizia reservar à "ideologia" - à sua contribuição para o boletim do Simpósio sobre as Relações Leste-Oeste. Que dia que ele tinha pela frente! Eu diria que ele já estava antecipadamente com raiva daquele dia. E a Franny não tirava os olhos dele.

- Temos de partir agora - disse eu ao Pai -, falidos ou não.

- Não temos nenhum lugar para onde ir - respondeu ele afectuosamente, erguendo as mãos, num gesto que era quase de indiferença.

- Irmos para lugar nenhum é melhor do que ficarmos aqui - disse a Lilly.

- Também acho - disse eu.

- Vocês não estão a ser lógicos - contrapôs o Pai, e eu fuzilei-o com os olhos.

O Pai olhou para a Franny de uma maneira que me fez lembrar a forma como por vezes olhava para a Mãe; estava outra vez de olhos postos no futuro e em busca de um perdão antecipado.

Queria ser perdoado por tudo o que viesse a acontecer. Era como se a força dos seus sonhos fosse tão intensa que ele se sentisse compelido a representar o futuro que imaginava - e nos pedisse para tolerarmos a sua ausência da realidade e talvez a sua ausência das nossas vidas durante algum tempo. É isto o "amor puro": o futuro. E foi este olhar que o Pai lançou à Franny.

- Franny? - perguntou-lhe ele. - O que é que tu pensas?

Era pela opinião da Franny que nós esperávamos sempre. Ela estava a olhar para o lugar da rua onde o Ernst tinha estado - o Ernst da pornografia, o Ernst "esteta" do erotismo, o Ernst conquistador. Compreendi que havia problemas com o ela dentro dela e que qualquer coisa ia mal no coração da Franny.

- Franny? - insistiu o Pai, docemente.

- Acho que devemos ficar. Temos de ver como é - respondeu ela, encarando-nos a todos.

Nós desviámos o olhar, mas o Pai deu-lhe um abraço e um beijo.

- Linda menina! - exclamou ele.

E a Franny encolheu os ombros; era evidente que estava a brindar o Pai com o encolher de ombros da Mãe. Era uma coisa que nunca o deixava indiferente.

Alguém me disse que hoje em dia a Krugerstrasse só está aberta a peões e que tem dois hotéis, um restaurante, um bar e um café - e até um cinema e uma discoteca. Alguém me disse que actualmente é uma rua chique. Bom, è difícil de acreditar. Seja como for, nunca mais quero voltar a ver a Krugerstrasse, por muito mudada que esteja.

Alguém me disse que hoje em dia há lojas elegantes na Krugerstrasse: uma boutique e um cabeleireiro, uma livraria e uma discoteca, uma loja de peles e outra que vende equipamentos de casas de banho. Acho tudo isto verdadeiramente espantoso.

Alguém me disse que a estação de correios ainda está lá. O correio não pode parar.

E ainda há prostitutas na Krugerstrasse; ninguém precisa de me dizer que a prostituição continua.

Na manhã seguinte acordei a Susie.

- Urrr! - resmungou ela, lutando para acordar. - Que merda é que foi agora?

- Preciso da tua ajuda. Temos de salvar a Franny.

- A Franny tem um couro rijo. É bonita e é forte - disse a Susie, virando-se para o outro lado. - E não precisa de mim.

- Tu tens ascendente sobre ela - disse eu, pondo toda a esperança nesta mentira.

A Susie só tinha vinte anos, quatro anos mais do que a Franny, mas, quando se tem dezasseis anos, quatro anos é uma grande diferença.

- Ela gosta de ti - continuei, sabendo que isto era verdade. - Pelo menos, és mais velha, e ela considera-te uma irmã mais velha, sabias?

- Urrr! - disse a Susie, continuando a fazer de urso.

- Talvez tu sejas esquisita - disse o Frank à Susie. - Mas a Franny pode ser mais influenciada por ti do que por nós.

- Salvar a Franny de quê? - perguntou a Susie.

- Do Ernst - respondi eu.

- Da própria pornografia - disse a Lilly, com um arrepio.

- Ajudá-la a recuperar o ela dentro dela - suplicou o Frank.

- Não costumo meter-me com raparigas menores - respondeu a Susie.

- Queremos que a ajudes e não que te metas com ela - disse-lhe eu. Mas a Susie limitou-se a sorrir. Sentou-se na cama. O disfarce estava a monte no chão do quarto, e o cabelo dela era como pêlo de urso, eriçado e cheio de redemoinhos, e o seu rosto como uma ferida sobre a T-shirt toda coçada.

- Ajudar alguém é o mesmo que metermo-nos com alguém - disse a Susie.

- Não queres ao menos tentar! - pedi-lhe eu.

- E perguntaste-lhe tu quando é que o sarilho começou - disse-me o Frank, mais tarde. - Bem, não começou com a pornografia... pelo menos, é esta a minha opinião. Evidentemente que não é que isso tenha importância, mas sei quando é que o sarilho começou para ti.

Tal como para a pornografia, não me apetece descrever o caso, mas de qualquer maneira o Frank e eu só vimos uma breve imagem - um rápido vislumbre, embora víssemos mais do que o suficiente. Tudo começou numa noite de Agosto em que o calor era tanto que a Lilly nos acordou, ao Frank e a mim, para pedir um copo de água - como se tivesse voltado a ser um bebé. Uma noite demasiado quente para que os homens na Krugerstrasse pensassem em prostitutas, pelo que a calma reinava na Gasthaus Freud. Não havia clientes para fazerem gritar a Screaming Annie, nem sequer havia ninguém suficientemente interessado para grunhir juntamente com a Jolanta, para gemer com a Babette, para regatear uma pechincha com a Old Billig, ou até para olhar para a jovem Dark Inge. Estava calor de mais para se estar no Kaffee Mowatt; as prostitutas estavam sentadas nas escadas da entrada fresca e escura da Gasthaus Freud - que se encontrava já em construção. O Freud estava na cama a dormir, evidentemente; não podia ver o calor. E o Pai, que via o futuro com mais nitidez do que o momento presente, também dormia.

Fui até ao quarto do Frank e, durante algum tempo, estive aos socos ao manequim.

- Valha-me Deus! - exclamou o Frank. - Quem me dera que arranjes uns halteres para me deixares o manequim em paz.

Mas ele também não conseguia dormir, e começámos a empurrar o manequim de um lado para o outro.

O som não se confundia com o da Screaming Annie - ou com o de qualquer das prostitutas. Também não parecia estar relacionado com a dor: havia demasiada luminosidade nesse som para ter a ver com a dor; havia como que a música da água naquele som, demasiado pura para que o Frank e eu pensássemos em alguém a foder por dinheiro, ou mesmo por luxúria - e também demasiada luminosidade e demasiada música da água para pensarmos em luxúria. Nunca antes o Frank e eu tínhamos ouvido tal som - e na minha memória, que é agora uma memória de quarenta anos, não me recordo de ter voltado a ouvir esta canção; nunca mais ninguém viria a cantar exactamente esta canção para mim.

Foi a canção que o urso Susie fez a Franny cantar. A Susie passou pelo quarto da Franny para se servir da casa de banho. O Frank e eu passámos pelo meu quarto para chegar à mesma casa de banho, por cuja porta podíamos espreitar para o quarto da Franny.

A cabeça do urso no tapete aos pés da cama da Franny foi a primeira coisa que nos perturbou, como se alguém tivesse decapitado a Susie por causa da sua intromissão. Mas não foi na cabeça do urso que o Frank e eu centrámos a nossa atenção. Foi o som produzido pela Franny que nos atraiu - simultaneamente penetrante e doce, tão bonito como se fosse a Mãe e tão cheio de felicidade como se fosse o Egg. Era um som quase isento de sexo, embora o sexo fosse o tema da canção, pois a Franny estava estendida na cama com os braços acima da cabeça, e a cabeça deitada para trás, e entre as suas longas pernas, que se agitavam ligeiramente (batendo a água como se ela estivesse a flutuar), no regaço negro da minha irmã (que eu não deveria ter visto), estava um urso sem cabeça, um urso sem cabeça que a lambia, como um animal a devorar uma presa recente, como um animal a beber no coração de uma floresta.

Esta visão assustou-nos, ao Frank e a mim. Não sabíamos para onde ir depois de termos presenciado isto e, sem qualquer razão, sem nada em mente, ou com demasiadas coisas, entrámos no vestíbulo aos tropeções. Todas as prostitutas, sentadas nas escadas, nos cumprimentaram; o calor e o tédio que as invadia, a sua inactividade fizeram com que parecessem invulgarmente contentes por nos ver, embora parecessem sempre bastante contentes quando nos viam. Só a Screaming Annie pareceu desapontada - como se tivesse pensado, durante um instante, que podíamos ser clientes. A Dark Inge disse-nos:

- Eh, pá! Parece que vocês viram um fantasma!

- Foi alguma coisa que comeram, queridos? - perguntou a Old Billig. - É tarde para vocês andarem a pé.

- É a tesão que não vos deixa dormir? - perguntou a Jolanta.

- Oui, oui - cantarolou a Babette. - Tragam-nos a vossa tesão!

- Parem com isso - disse a Old Billig. - Está calor de mais para foder.

- Nunca está calor de mais - contrapôs a Jolanta.

- Nem frio de mais - interveio a Screaming Annie.

- Querem jogar às cartas? - perguntou-nos a Dark Inge.

Mas o Frank e eu, como soldadinhos de corda, demos umas quantas voltinhas desajeitadas junto às escadas, mudámos de direcção, fomos até ao quarto do Frank - e depois, como imanes, fomos atraídos para o Pai.

- Queremos voltar para casa - disse-lhe eu.

Ele acordou e meteu-nos, ao Frank e a mim, na cama dele, como se ainda fôssemos pequenos.

- Por favor, vamos embora, Pai - murmurou o Frank.

- Logo que conseguirmos bons resultados aqui - garantiu-nos o Pai. - Logo que conseguirmos isso, prometo.

- Quando? - sibilei eu.

Mas o Pai passou-me o braço à roda do pescoço e beijou-me.

- Em breve - disse ele. - Este hotel vai arrancar em breve. Sinto isso. Mas ficaríamos em Viena até 1964; ficaríamos lá durante sete anos.

- Envelheci lá - diria a Lilly mais tarde.

A Lilly tinha dezoito anos quando partimos de Viena. Mais velha, mas nem um bocadinho mais crescida - como diria a Franny.

Já sabíamos que a tristeza vinha sempre ao de cima. Não devíamos ter ficado tão surpreendidos.

Mas na noite em que o urso Susie fez a Franny esquecer-se da pornografia - nessa noite em que fez a minha irmã cantar tão bem -, o Frank e eu ficámos chocados com uma semelhança ainda maior do que a que havia entre o Ernst e o Chipper Dove. No quarto do Frank, depois de termos empurrado o manequim, que encostámos à porta, o Frank e eu ficámos a segredar no escuro.

- Viste o urso? - perguntei eu.

- Não se via a cabeça - disse o Frank.

- Pois era. Por isso era só o fato de urso... como se a Susie estivesse acocorada.

- Porque é que ela ainda estava com o fato de urso? - perguntou o Frank.

- Não sei.

- Provavelmente só estavam a começar.

- Mas o aspecto do urso. Viste?

- Eu sei - murmurou o Frank.

- Aquele pêlo todo, o corpo assim enrolado.

Ali, na escuridão, ambos compreendemos com quem se parecia o urso Susie... ambos tínhamos visto com quem ele se assemelhava. A Franny havia-nos avisado. Ela dissera-nos para estarmos atentos às novas posições do Sorrow e aos seus novos disfarces.

- O Sorrow - murmurou o Frank. - O urso Susie é o Sorrow.

- De qualquer modo, parecia-se com ele.

- É o Sorrow, eu sei.

- Bem, talvez seja neste momento - disse eu. - Por agora é.

- O Sorrow - continuou o Frank a repetir até adormecer. - É o Sorrow - murmurou ele. - É impossível matá-lo. É o Sorrow, é a tristeza... vêm sempre ao de cima.

 

       O SEGUNDO HOTEL NEW HAMPSHIRE

A última renovação efectuada na nova entrada da Gasthaus Freud foi ideia do meu pai. Estou a vê-lo uma manhã de pé defronte da estação dos correios da Krugerstrasse, a olhar para a nova entrada - a confeitaria completamente integrada no hotel, os letreiros antigos encostados, como espingardas de soldados fatigados, aos andaimes que os operários estavam a desmontar. Os letreiros diziam:

 

             BONBONS, KONDITOREI,

             ZUCKER-WAREN, SCHOKOLADEN

             e GASTHAUS FREUD

 

E o meu pai percebeu que tinham de ser todos deitados fora; acabara-se a confeitaria, acabara-se a Gasthaus Freud.

- Hotel New Hampshire? - exclamou a Screaming Annie, que era sempre a primeira prostituta a chegar (e a última a partir).

- Mudar com os tempos - disse o radical Old Billig. - Enrolar-se sob os golpes e emergir sempre de sorriso nos lábios. Hotel New Hampshire soa-me muito bem.

- Outra fase, outra fase - disse o Ernst da pornografia.

- Brilhante ideia! - exclamou o Freud. - Pensem só na clientela americana! Isto é um verdadeiro chamariz! E acabou-se o anti-semitismo.

- Acabaram-se os hóspedes que não vinham aqui por causa das suas tendências antifreudianas, espero - disse o Frank.

- Que raio de nome é que pensavas que ele lhe iria dar? - perguntou-me a Franny. - É o hotel do Pai, não é?

"Aparafusados para sempre", como teria dito o Iowa Bob.

- Acho amoroso - disse a Lilly. - Tem um toque simpático, talvez pequeno, mas amoroso.

- Amoroso? - exclamou a Franny. - Ai, ai... vamos ter sarilhos: a Lilly acha que é amoroso.

- É natural - disse o Frank, filosoficamente -, mas isso não interessa.

Penso que se o Frank dissesse outra vez que alguma coisa não interessava eu me punha a gritar, e que podia simular algo mais do que um orgasmo se o Frank dissesse aquilo outra vez. Mas fui de novo salvo pelo urso Susie.

- Olhem, miúdos - disse a Susie -, o vosso velho deu um passo numa direcção prática. Já pensaram quantos turistas dos Estados Unidos e da Inglaterra vão achar este nome tranquilizador?

- Isso é verdade - corroborou a Schwanger, afavelmente. - Para os americanos e ingleses, isto é uma cidade de Leste. A própria forma de algumas igrejas (a temida cúpula em forma de bolbo), e as suas inferências de um mundo incompreensível para os Ocidentais... quanto mais de Oeste uma pessoa vier tanto mais até a própria Europa Central lhe pode parecer o Leste - continuou a Schwanger. - Quem se vai sentir atraído por este local são as almas sensíveis - vaticinou ela, como se estivesse a elaborar outra obra sobre a gravidez e o aborto. - Hotel New Hampshire soará aos seus ouvidos como sinos a tocar, e será uma melodia que lhes lembrará a pátria.

- Brilhante - disse o Freud. - Traz-nos essas almas sensíveis para aqui.

E suspirou, estendendo as mãos para dar uma pancadinha nas cabeças mais próximas. Encontrou a cabeça da Franny e bateu-lhe ao de leve, mas a pata enorme e macia do urso Susie afastou-lhe a mão.

Eu viria a habituar-me àquilo - àquela pata possessiva. Vivemos num mundo em que aquilo que inicialmente nos choca, como algo de execrável, pode tornar-se uma coisa corriqueira, e mesmo tranquilizadora. É verdade que aquilo que à primeira vista parece tranquilizador também se pode tornar execrável, mas tive de reconhecer que o urso Susie foi uma influência positiva para a Franny. Se a Susie conseguisse manter a Franny afastada do Ernst, já me podia dar por satisfeito - e seria pedir demasiado se o urso Susie convencesse mesmo a Franny a deixar de escrever ao Chipper Dove?

- Achas que és lésbica, Franny? - perguntei-lhe eu, a coberto da escuridão da Krugerstrasse.

O pai estava a ter problemas com o anúncio de néon cor-de-rosa a acender e a apagar:

 

           HOTEL NEW HAMPSHIRE!

           HOTEL NEW HAMPSHIRE!

           HOTEL NEW HAMPSHIRE!

 

Continuamente, sem parar.

- Duvido - respondeu a Franny, suavemente. - Acho que é só por gostar da Susie.

Eu estava a pensar, é claro, que uma vez que o Frank era homossexual, e que agora a Franny estava envolvida com a Susie, seria talvez uma questão de tempo até eu e a Lilly descobrirmos inclinações semelhantes. Mas, como de costume, a Franny estava a ler os meus pensamentos.

- Isso não é assim - murmurou ela. - O Frank está convencido. Eu não estou convencida de nada, excepto, talvez, de que isto é mais fácil para mim. Neste momento. Quer dizer, é mais fácil amar alguém do mesmo sexo. Não há um envolvimento tão grande, não se arrisca tanto - continuou ela. - Com a Susie sinto-me mais segura. Penso que é isso. Os homens são tão diferentes.

- Uma fase - continuava o Ernst a dizer, por tudo e por nada.

Entretanto, a Fehlgeburt, encorajada pela reacção favorável a O Grande Gatsby, começou a ler-nos o Moby Dick. Devido ao que tinha acontecido à Mãe e ao Egg, era-nos difícil ouvir falar do oceano, mas superámos isso concentrando-nos na baleia e nos diversos arpoadores (todos tínhamos um preferido), e mantendo-nos atentos às reacções da Lilly, à espera que ela acabasse por identificar o Pai com o Ahab.

- Ou, se calhar, vai achar que o Frank é a baleia branca - disse a Franny baixinho.

Mas foi o Freud que a Lilly identificou.

Uma noite em que o manequim estava em posição de sentido e a Fehlgeburt lia em tom monótono, como o mar - como a maré -, a Lilly disse:

- Estão a ouvi-lo? Sssshh!

- O quê? - disse o Frank, como um fantasma, como teria dito o Egg, sabíamos todos nós.

- Acaba com isso, Lilly - sussurrou a Franny.

- Não, escutem - insistiu a Lilly.

E durante um momento sentimo-nos como se estivéssemos sob o convés, nos nossos beliches de marinheiros, a ouvir a perna de pau do Ahab a andar sem descanso por cima de nós. Um matraquear de madeira, um bater de osso. Era apenas o taco de basebol do Freud, que coxeava às cegas no andar de cima - ia ter com uma das prostitutas.

- A qual é que ele vai? - perguntei eu.

- À Old Billig - respondeu a Susie.

- Os velhos querem-se com os velhos - disse a Franny.

- Acho que é amoroso, não é? - disse a Lilly.

- Bem, é a Old Billig esta noite - disse a Susie. - Ele deve estar cansado.

- Ele vai para a cama com elas todas? - perguntou o Frank.

- Com a Jolanta não - disse a Susie. - Ela assusta-o.

- Ela assusta-me a mim - disse eu.

- E com a Dark Inge também não, é claro - disse a Susie. - O Freud não a pode ver.

Nunca me tinha passado pela cabeça ir às putas - com uma ou com todas. A Ronda Ray não tinha sido verdadeiramente como elas. Com a Ronda Ray, tinha sido só sexo ligado a uma gratificação monetária; em Viena, o sexo era um negócio. Podia-me masturbar a pensar na Jolanta; isso já me excitava o suficiente. E quanto ao amor... bem, quanto ao amor, eu tinha sempre o meu pensamento na Franny. E nas noites do final do Verão, tinha também a Fehlgeburt. Como o Moby Dick era uma experiência de leitura monstruosa, a Fehlgeburt ficava à noite até mais tarde. O Frank e eu íamos levá-la a casa. Ela tinha um quarto alugado num edifício mal conservado por trás da Rathaus(*), perto da universidade, e não gostava de atravessar

 

*. Rathaus - Paços do Concelho, palácio municipal. (N. da T.)

 

a Kàrntnerstrasse ou o Graben sozinha à noite, pois por vezes acontecia ser confundida com uma prostituta.

Quem quer que confundisse a Fehlgeburt com uma prostituta devia ter uma grande imaginação, pois ela tinha um evidente ar de estudante. Não é que não fosse bonita, o problema era que a beleza não era uma solução - para ela. Por muito bom aspecto que tivesse - e tinha-o -, eliminava-o ou negligenciava-o. O cabelo dela era ralo; nas raras ocasiões em que estava limpo, tinha um ar descuidado. Usava bluejeans e uma camisola de gola alta ou uma T-shirt, e em torno da boca e dos olhos havia aquela espécie de cansaço que revela demasiada leitura, demasiada escrita, demasiada reflexão - demasiado dessas coisas que não cabem no nosso próprio corpo e que não se compadecem com o seu cuidado nem com os seus prazeres. Aparentava mais ou menos a mesma idade da Susie, mas tinha demasiada falta de humor para ser um urso - e o seu desdém pelas actividades nocturnas no Hotel New Hampshire não andava com certeza longe daquilo a que o Ernst chamava "repugnância". Quando estava a chover, o Frank e eu levávamo-la apenas até à paragem do eléctrico na Ringstrasse, junto à Ópera; quando estava bom tempo, acompanhávamo-la através da Praça dos Heróis e subíamos a Ring até à universidade. Não passávamos de três miúdos que tinham estado a sonhar com baleias, passeando sob os grandes edifícios de uma cidade demasiado antiga para todos nós. Na maioria das vezes, era como se o Frank não viesse connosco.

- A Lilly só tem onze anos - disse a Fehlgeburt. - É maravilhoso ela gostar de literatura. Isso pode vir a ser a sua salvação. Aquele hotel não é lugar para ela.

- Wo ist die Germiitlichkeit? - cantava o Frank.

- És muito boa para a Lilly - disse eu à Miss Mau Sucesso. - Gostavas de vir a ter uma família?

- Quatrocentas e sessenta e quatro! - cantarolava o Frank.

- Só quero ter filhos depois da revolução - disse a Fehlgeburt, a falar a sério.

- Achas que a Fehlgeburt gosta de mim? - perguntei eu ao Frank quando regressámos a casa.

- Espera até as aulas começarem - sugeriu o Frank. - Arranja uma rapariga jeitosa, da tua idade.

E assim, embora eu vivesse num bordel vienense, o meu mundo sexual era provavelmente igual ao mundo sexual da maioria dos americanos que tinham quinze anos em 1957; vinha-me com imagens de uma prostituta perigosamente violenta, enquanto conduzia a casa uma jovem "mais velha" - à espera do dia em que tivesse coragem para a beijar ou mesmo para lhe pegar na mão.

Esperava que as "almas sensíveis" - os hóspedes que (como a Schwanger tinha vaticinado) seriam atraídos para o Hotel New Hampshire - me fizessem lembrar de mim próprio. Mas não o fizeram. Chegavam de quando em quando em autocarros: grupos estranhos em excursões organizadas por agências de viagens - e algumas destas excursões eram tão estranhas como os grupos que as faziam. Bibliotecários de Devon, Kent e Cornwall; ornitologistas de Ohio - tinham estado a observar cegonhas em Rust. Tinham uns hábitos tão regulares que iam todos para a cama antes das prostitutas começarem a trabalhar; dormiam durante toda aquela balbúrdia nocturna e frequentemente já estavam a caminho de um circuito turístico de manhã antes de a Screaming Annie simular o seu último orgasmo e antes de o radical Old Billig entrar - com o mundo novo a brilhar-lhe nos olhos. Os grupos não tinham interesse nenhum, e por vezes o Frank conseguia ganhar algum dinheiro extra como guia em "passeios turísticos a pé". E não eram difíceis de contentar - mesmo a Sociedade Coral Masculina japonesa, que descobriu as prostitutas em grupo (e as utilizou em grupo). Aquilo é que foram uns tempos de alvoroço e de desatino, com toda a gente a fornicar e a cantar ao mesmo tempo! Os japoneses traziam montes de máquinas fotográficas e tiraram fotografias de toda a gente - e também todas as nossas fotografias de família. Com efeito, o Frank dizia sempre que era uma vergonha que as únicas fotografias que possuíamos da época que passámos em Viena tivessem sido tiradas pela Sociedade Coral Masculina Japonesa de visita à cidade. Há uma da Lilly com a Fehlgeburt - com um livro, claro. Há outra, muito enternecedora, dos dois Old Billigs, com o ar daquilo a que a Lilly chamaria um velho casal "amoroso". Há também uma da Franny encostada ao ombro robusto do urso Susie, um bocadinho magra, mas com um ar forte e saudável - "estranhamente confiante", como o Frank a descrevia neste período. Há uma, bastante curiosa, do Pai e do Freud: parecem estar a partilhar o taco de basebol - ou ter estado a disputá-lo; é como se tivessem estado a lutar para ver quem ia jogar a seguir e só tivessem interrompido a briga o tempo suficiente para a fotografia ser tirada.

Eu estou de pé com a Dark Inge. Lembro-me do senhor japonês que me pediu a mim e à Inge para nos pormos um ao lado do outro; nós estávamos sentados a jogar às cartas, mas o japonês disse que a luz não era boa e que nos tínhamos de pôr de pé. O instante retratado é levemente artificial; a Screaming Annie ainda está sentada, pois encontrava-se na parte da mesa em que havia muita luz, e a Babette - coberta com camadas de pó-de-arroz - está a segredar qualquer coisa à Jolanta, que se encontra de pé um pouco afastada da mesa e com os braços cruzados sobre o imponente peito. A Jolanta nunca conseguiu aprender as regras do nosso jogo de cartas. Nesta fotografia, a Jolanta tem o ar de quem está prestes a interromper o jogo. Lembro-me de que os japoneses também tinham medo dela - talvez por ela ser muito maior do que qualquer deles.

E o que caracteriza todas estas fotografias - que são as únicas imagens que temos de recordação de Viena, do período de 1957 a 1964 - é que todas as pessoas que nos eram familiares tiveram de se deixar fotografar com um ou dois japoneses, com uma ou duas pessoas completamente estranhas.

Até na fotografia do Ernst da pornografia encostado ao carro, lá fora. O Arbeiter está encostado ao guarda-lamas com ele - e aquelas pernas que aparecem por baixo da grelha do velho Mercedes, aquelas pernas pertencem ao Alicate. O máximo que alguém jamais conseguiu fotografar do Schraubenschlussel foram as pernas. E à volta do carro há uma série de japoneses - um círculo de estranhos que nenhum de nós voltaria a ver.

Teríamos podido saber na altura - se olhássemos mais de perto para a fotografia - que aquele não era um carro vulgar? Onde é que já se viu um Mercedes, mesmo velho, que precisasse de tantos cuidados mecânicos? Herr Alicate estava sempre metido debaixo do carro ou a rastejar à volta dele. E por que motivo o carro que pertencia ao Simpósio sobre as Relações Leste-Oeste exigia tantos consertos se andava tão pouco? Olhando para ele agora, claro... bem, a fotografia é evidente. É difícil olhar para a fotografia e não ver naquele velho Mercedes aquilo que ele efectivamente era.

Uma bomba. Uma bomba constantemente espoletada e voltada a espoletar, sempre pronta a explodir. O carro inteiro era uma bomba. E aqueles japoneses desconhecidos que enchiam todas as nossas fotografias, as únicas que tínhamos... bem, agora é fácil de ver nestes estranhos, naqueles senhores estrangeiros, o símbolo dos desconhecidos anjos da morte que iriam acompanhar aquele carro. E pensar que durante anos nós dissemos piadas uns aos outros sobre o mau mecânico que devia ser o Schraubenschlussel para estar sempre às voltas com aquele Mercedes? Quando afinal ele era mas era um perito! O Sr. Alicate, o perito em bombas. Durante quase sete anos aquela bomba esteve pronta - todos os dias.

Nunca teríamos sabido do que é que eles estavam à espera ou qual seria o momento propício para agirem se não tivéssemos precipitado os acontecimentos. Hoje já só nos restam as fotografias dos japoneses, que narram uma história obscura.

- Do que é que te lembras de Viena, Frank? - perguntei-lhe. Estou constantemente a fazer-lhe esta pergunta. O Frank foi para um

quarto para estar sozinho e quando saiu estendeu-me uma pequena lista:

 

  1. A Franny com o urso Susie.
  2. Ir comprar os teus malditos halteres.
  3. Levar a Fehlgeburt a casa.
  4. A presença do rei dos ratos.

 

O Frank estendeu-me esta lista e disse:

- É claro que há mais, mas não quero entrar nessas questões.

Eu compreendo e, é claro, lembro-me também de ir comprar os halteres. Fomos todos. O Pai, o Freud, a Susie e nós, os mais novos. O Freud foi porque sabia onde era a loja de artigos desportivos. A Susie foi porque o Freud a podia ajudar a lembrar-se onde era a loja gritando-lhe no eléctrico:

- Já passámos o hospital da Mariahilfer? - gritou o Freud. - É a segunda à esquerda, ou a terceira, a seguir a ele.

- Urrr! - exclamou a Susie, olhando pela janela.

O condutor do Strassenbahn preveniu o Freud:

- Espero que não haja problemas; o urso não está preso. Geralmente não os deixamos entrar se não vierem presos.

- Urrr! - repetiu a Susie.

- É um urso muito esperto - disse o Frank ao condutor. Na loja de artigos desportivos comprei cento e cinquenta quilos de pesos, uma barra comprida e dois halteres pequenos para os exercícios de braços.

- Mande entregar no Hotel New Hampshire - disse o Pai.

- Eles não levam a casa - disse o Frank.

- Não levam a casa? - exclamou a Franny. - Mas nós não podemos com os pesos!

- Urrr! - disse a Susie.

- Porta-te bem, Susie - gritou o Freud. - Não sejas malcriado!

- O urso ficaria muito grato se levassem os pesos a casa - disse o Frank ao vendedor da loja.

Mas não deu resultado. Devíamos ter percebido nessa altura que o poder que um urso tinha de nos facilitar a vida estava a diminuir. Distribuímos os pesos o melhor que pudemos. Pus trinta e cinco quilos em cada um dos halteres pequenos e levei um em cada mão. O Pai, o Frank e a Susie tiveram de aguentar com a barra comprida e o resto dos pesos. A Franny abria as portas e desimpedia o caminho no passeio, e a Lilly dava a mão ao Freud; foi ela o seu cão de cego no regresso a casa.

- Valha-me Deus! - exclamou o Pai, quando não nos deixaram entrar no Strassenbahn.

- Deixaram-nos vir para cá! - disse a Franny.

- Não é por causa do urso - disse o Freud. - É a barra mais comprida.

- Parece perigosa, da maneira como vocês a transportam - disse a Franny, dirigindo-se ao Frank, à Susie e ao Pai.

- Se tivesses continuado a trabalhar com os pesos, como o Iowa Bob - disse eu ao Pai -, podias transportá-la sozinho. E assim já não parecia tão pesada.

A Lilly tinha reparado que os austríacos permitiam ursos nos eléctricos, mas não halteres; reparou também que eram liberais no que respeita aos esquis. Sugeriu então que comprássemos um saco de esquis e puséssemos o haltere grande lá dentro. Assim, o condutor do eléctrico pensaria que o haltere era apenas um par de esquis particularmente pesado.

O Frank sugeriu que um de nós fosse buscar o carro do Schraubenschlussel.

- Nunca funciona - disse o Pai.

- Agora já deve estar bem em condições de andar - disse a Franny. - Esse parvalhão anda a arranjá-lo há anos.

O Pai saltou para um eléctrico e foi a casa pedir o carro. Não deveríamos ter compreendido perante a rápida recusa dos radicais que era uma bomba que se encontrava estacionada diante do nosso hotel? Mas interpretámos aquilo como uma mera manifestação de má-criação. E assim lá tivemos de transportar aquele peso todo para casa. Por fim, tive de deixar os outros, com o haltere grande, no Kunsthistorisches Museum. Também não deixavam entrar um haltere no museu - nem tão-pouco um urso.

- Não é que o Brueghel se importasse - disse o Frank.

Mas tiveram de matar o tempo à esquina da rua. A Susie dançou um pouco; o Freud deu umas tacadas leves com o taco de basebol; a Lilly e a Franny entoaram uma canção americana: passaram o tempo ganhando uns cobres. Palhaços de rua, especialidades vienenses, "a presença do rei dos ratos", como dizia o Frank - era o Frank que estendia o boné aos transeuntes. Era o boné da farda de condutor de autocarro que o Pai lhe tinha comprado - o boné gasto de gato-pingado que o Frank usava quando brincava aos porteiros no Hotel New Hampshire. Durante toda a nossa estada em Viena, o nosso rei dos ratos a fingir, o Frank, nunca o largou. Todos nós pensávamos muitas vezes no triste actor com os seus roedores não desejados que um dia deixou de se afastar das janelas abertas, que deu o salto, levando com ele os seus pobres ratos. A VIDA É UMA COISA SÉRIA, MAS A ARTE É UMA PARÓDIA! - era a sua divisa. As janelas abertas que evitara durante tanto tempo tinham acabado por atraí-lo.

Corri para casa com os meus setenta e cinco quilos.

- Oi, Alicate - disse eu para o radical debaixo do carro.

Corri de volta ao Kunsthistorisches Museum e trouxe mais trinta e sete quilos e meio para casa. O Pai, o Frank, o urso Susie, a Franny, a Lilly e o Freud trouxeram os trinta e sete quilos e meio que faltavam. Agora que tinha os pesos, podia evocar o primeiro Hotel New Hampshire - e o Iowa Bob - e senti-me menos estrangeiro em Viena.

É claro que tínhamos de ir à escola. Era uma escola americana perto do Jardim Zoológico em Hietzing, não muito longe do palácio de Schonbrunn. Durante algum tempo, a Susie acompanhou-nos todas as manhãs no eléctrico, e foi buscar-nos no fim das aulas. Era uma óptima maneira de travar conhecimento com os outros alunos - ser levado e trazido por um urso. Mas o Pai ou o Freud tinham de vir com a Susie, pois não era permitido os ursos não acompanhados andarem nos eléctricos, e como a escola ficava perto do Jardim Zoológico as pessoas da zona ficavam mais apreensivas ao verem um urso do que os habitantes do centro da cidade.

Só mais tarde me ocorreu que todos nós prejudicámos muito o Frank não reconhecendo a sua discrição sexual. Durante os sete anos em Viena nunca soubemos quem eram os seus parceiros. Ele dizia-nos que eram alunos da American School - e, dado que era o mais velho e estava no curso de alemão mais avançado, ficava frequentemente mais tempo na escola, sozinho. A vizinhança dos excessos sexuais no segundo Hotel New Hampshire deve tê-lo impelido a tornar-se discreto, da mesma maneira que eu fui levado a sussurrar por causa do intercomunicador, na minha iniciação com a Ronda Ray. E a Franny, de momento, tinha o seu urso - "e a sua violação para vencer", dizia-me a Susie constantemente.

- Ela já superou isso - disse eu.

- Mas tu não - respondeu a Susie. - Continuas a ter o Chipper Dove na cabeça. E ela a mesma coisa.

- Então foi o Chipper Dove que a Franny ainda não arrumou - retorqui eu. - A violação já está superada.

- Veremos. Olha que eu sou um urso esperto.

E as almas sensíveis continuavam a vir, mas não em quantidades esmagadoras; quantidades esmagadoras de almas sensíveis seria provavelmente uma contradição - embora pudéssemos ter aproveitado as quantidades. Mesmo assim, a nossa lista de hóspedes estava mais bem recheada do que no primeiro Hotel New Hampshire.

Os grupos turísticos eram mais fáceis do que os indivíduos. Há qualquer coisa numa alma sensível que a torna muito mais sensível individualmente do que em grupo. As almas sensíveis que viajavam sós ou os casais sensíveis (por vezes com filhos sensíveis) pareciam ser os que mais facilmente ficavam perturbados com a actividade diurna e nocturna, no meio da qual eles eram uns hóspedes angustiados. Mas, nos nossos três ou quatro primeiros anos no segundo Hotel New Hampshire, apenas um hóspede se queixou - por aqui se vê como aquelas almas eram verdadeiramente sensíveis.

A queixosa foi uma americana: uma mulher que viajava com o marido e uma filha mais ou menos da idade da Lilly. Eram do New Hampshire mas não da região da Dairy. O Frank estava de serviço à recepção quando eles chegaram para se hospedar - ao fim da tarde, depois das aulas. Notou logo que a mulher começou imediatamente a rabujar sobre as saudades que tinha da "velha decência asseada, simples e honesta", que ela aparentemente associava ao New Hampshire.

- É a mesma merda das coisas simples mas boas - disse a Franny, recordando a Sr.a Urick.

- Não houve nenhum sítio em que não nos roubassem, em toda a Europa - contou ao Frank o marido da senhora do New Hampshire.

O Ernst estava na entrada, a explicar à Franny e a mim algumas das posições mais insólitas da "união tântrica". Era muito difícil seguir a explicação em alemão, mas, embora a Franny e eu nunca tivéssemos chegado aos calcanhares do Frank - e a Lilly fosse, daí a um ano, quase tão boa como ele na conversação -, a Franny e eu aprendemos muito na American School. Mas, é claro, o coito não fazia parte do programa escolar. Isso era a especialidade do Ernst, e embora ele me provocasse arrepios não podia suportar vê-lo a falar a sós com a Franny, de modo que, sempre que o via a falar com ela, punha-me também a ouvir. O urso Susie também gostava de ouvir - com uma pata a tocar algures na minha irmã, uma linda patorra, bem visível para o Ernst. Mas no dia em que os americanos do New Hampshire se hospedaram, o urso Susie estava na casa de banho.

- Até cabelos nas casas de banho - disse a mulher ao Frank. - Nem imagina a sujidade que tivemos de suportar.

- Deitámos fora os guias turísticos - continuou o marido para o Frank. - Não se pode confiar neles.

- Agora só confiamos nos nossos instintos - disse a mulher, olhando para a nova entrada do Hotel New Hampshire. - Tentamos ver se descobrimos um toque americano.

- Quem me dera já em casa - disse a filha, com uma vozinha de rato.

- Temos dois bons quartos no terceiro andar - disse o Frank. - São quartos com comunicação.

Mas o facto de isso poder ser demasiado próximo das prostitutas do andar de baixo preocupava-o.

- Mas, pensando melhor - emendou o Frank -, a vista do quarto andar é melhor.

- Tanto pior para a vista - disse a mulher. - Ficamos com os quartos do terceiro andar. E nada de cabelos! - acrescentou ela, com ar ameaçador, no preciso momento em que o urso Susie entrava no vestíbulo.

Este, vendo a rapariguinha que acabava de chegar, sacudiu a cabeça com ar exibicionista e emitiu uma fungadela muito ursina, rosnando em surdina.

- Olhem, um urso! - exclamou a rapariguinha, agarrando-se à perna do pai.

O Frank bateu na campainha, que fez um ping agudo, e gritou:

- Paquete!

Tive de me arrancar às descrições do Ernst sobre as posições tântricas.

- O grupo vyanta tem duas posições principais - estava ele a explicar, amenamente. - A mulher inclina-se para a frente até tocar o solo com as mãos, enquanto o homem, de pé, a penetra por trás. A esta posição chama-se dhenuka-vyanta-asana, ou posição de vaca - acrescentou o Ernst, com o seu olhar líquido poisado na Franny.

- Posição de vaca? - exclamou a Franny.

- Urrr! - grunhiu a Susie, desaprovadoramente, pondo a cabeça no colo da Franny, a fazer de urso para os novos hóspedes.

Comecei a subir as escadas com a bagagem. A rapariguinha não tirava os olhos do urso.

- Tenho uma irmã mais ou menos da tua idade - disse-lhe eu.

A Lilly tinha saído para levar o Freud a dar um passeio - com certeza com este a fazer-lhe prelecções sobre todos os pontos de interesse da cidade que não podia ver.

Era assim que o Freud nos proporcionava circuitos turísticos. Com o taco de basebol de um lado e um de nós, ou a Susie, do outro. Nós conduzíamo-lo pela cidade, gritando alto os nomes das ruas quando chegávamos a uma esquina. O Freud também estava a começar a ficar surdo.

- Estamos na Blutgasse? - gritava o Freud. - Estamos na Travessa do Sangue?

E a Lilly, o Frank, a Franny ou eu respondíamos bem alto:

- Já! Blutgasse!

- Virem à direita - ordenava-nos o Freud. - Quando chegarmos à Domgasse, meninos, procurem o número cinco. É a entrada da casa de Fígaro, onde Mozart escreveu As Bodas de Fígaro. Em que ano, Frank?

- Mil setecentos e oitenta e cinco! - respondia o Frank aos gritos.

- Mas mais importante do que o Mozart - dizia o Freud - é o primeiro café de Viena. Ainda estamos na Blutgasse, meninos?

- Já! Travessa do Sangue! - dizíamos nós.

- Procurem o número seis - gritava o Freud. - O primeiro café de Viena. Nem a Schwanger o conhece. Ela gosta do seu Schlagobers, mas é como toda essa gente da política, não tem nenhum sentido da História.

É verdade que com a Schwanger não aprendíamos nada de História. Aprendíamos a gostar de café, acompanhado de copinhos de água; aprendíamos a gostar do pó macio que os jornais deixavam nos nossos dedos. A Franny e eu lutávamos pelo único exemplar do InternationalHerald Tribune. Nos sete anos que passámos em Viena, trazia sempre notícias do Júnior Jones.

- Penn State trinta e cinco, Navy seis - lia a Franny, e todos nós aplaudíamos.

E depois seriam o Cleveland Browns 28, New York Giants 14, ou o Baltimore Colts 21 a 17 contra o pobre Browns.

Embora as notícias que o Júnior enviava à Franny raramente versassem sobre outro assunto que não este - nas cartas que de vez em quando lhe escrevia -, havia qualquer coisa de especial em saber dele de uma forma tão indirecta, através dos resultados do futebol, com alguns dias de atraso, no Herald Tribune.

- Na Judengasse, virem à direita! - indicava o Freud.

E nós lá seguíamos a Travessa dos Judeus até à Igreja de São Ruprecht.

- Século onze - murmurava o Frank. Para o Frank, quanto mais antigo melhor.

Depois descíamos até ao canal do Danúbio. Ao fundo da rampa, no Franz Joself-Kai, estava o monumento onde o Freud nos levava muitas vezes: uma placa de mármore em memória dos assassinados pela Gestapo, cujo quartel-general tinha sido naquele local.

- É aqui mesmo! - gritava o Freud, batendo com o pé e dando uma pancada forte com o taco de basebol.

- Descrevam-me a placa! - exclamava ele. - Nunca a vi.

Claro que não. Tinha sido num campo de concentração que ele perdera a vista. Tinham feito uma experiência qualquer com os seus olhos que falhara.

- Não, não era um campo deferias - disse a Franny à Lilly, que sempre tivera medo que a mandassem para um campo de férias e que não ficou nada surpreendida ao saber que lá torturavam as pessoas.

- Não era um campo de férias, Lilly - disse o Frank. - O Freud esteve num campo da morte.

- Mas Herr Tod nunca me encontrou - contou o Freud à Lilly. - O senhor Morte nunca me encontrou em casa quando me veio visitar.

Foi o Freud quem nos explicou que os nus da fonte do Neuer Markt, a fonte da providência - ou a fonte do Donner, segundo o seu autor - eram na realidade cópias dos originais. Estes encontravam-se no Belvedere Inferior. Concebidos para representar a água como fonte de vida, os nus tinham sido condenados pela imperatriz Maria Teresa.

- Uma filha da puta, essa - disse o Freud. - Criou uma Comissão de Castidade.

- Uma Comissão de Castidade"!! E o que é que essa comissão fazia? - perguntou a Franny.

- O que é que podia fazer? O que é que fazem as pessoas numa comissão dessas? Como não puderam impedir o sexo, resolveram foder umas quantas fontes.

A própria Viena de Freud - do outro Freud - era notória pela sua incapacidade de impedir o sexo, embora os émulos vitorianos da Comissão de Castidade de Maria Teresa não tivessem deixado de o tentar.

- Nessa época - acentuou o Freud, com ar admirativo -, as putas podiam andar no engate nas coxias da Ópera.

- Nos intervalos - acrescentou o Frank, não fôssemos nós não ter percebido.

O passeio favorito do Frank com o Freud era à Cripta Imperial - o Kaisergruft, nas catacumbas da Kapuzinerkirche. Desde 1633 que os Habsburgos têm sido sepultados aí. Lá está também a Maria Teresa, a velha austera. Mas não o seu coração. Os corpos nas catacumbas não têm coração. Estes corações encontram-se noutra igreja - seria coisa para outro passeio.

- A História acaba por separar tudo - entoava o Freud diante dos túmulos sem corações.

Adeus Maria Teresa - e Franz Josef, e Elizabeth, e o infeliz Maximiliano do México. E, é claro, no meio deles, lá estava o prémio do Frank: o herdeiro dos Habsburgos, o pobre Rudolf, o suicida. O Frank ficava sempre muito sombrio e taciturno nas catacumbas.

A Franny e eu ainda o ficávamos mais quando o Freud nos conduzia ao longo da Wipplingerstrasse até à Filttergasse.

- Virem! - gritava ele, com o taco de basebol a tremer-lhe nas mãos. Desembocávamos na Judenplatz, o antigo bairro judeu de Viena. Tinha sido uma espécie de gueto no século XIII; aqui, a primeira expulsão dos judeus remontava a 1421. Pouco mais sabíamos acerca da outra expulsão mais recente.

O mais aborrecido quando íamos ali com o Freud era este passeio não ter grande coisa para ver do ponto de vista histórico. O Freud referia-se a casas que já não eram casas.

Identificava edifícios inteiros que já não existiam. E as pessoas que ele ali conhecera também já lá não estavam. Era um passeio por coisas que não podíamos ver, mas o Freud ainda as via; via 1939, e antes, quando tinha estado na Judenplatz com um par de olhos que funcionavam.

No dia em que chegou o casal do New Hampshire com a filha, o Freud tinha levado a Lilly à Judenplatz. Percebi isso quando a vi deprimida à chegada. Eu tinha acabado de levar as malas e os americanos para os seus aposentos no terceiro andar, e também eu estava deprimido. Enquanto subia a escada não havia deixado de pensar no Ernst a descrever a "posição de vaca" à Franny. As malas não eram muito pesadas, porque eu imaginava-as como sendo o Ernst, e era como se o estivesse a levar para o cimo do Hotel New Hampshire, onde o ia atirar de uma janela do quinto andar.

A mulher do New Hampshire passou rapidamente a mão pelo corrimão e exclamou:

- Pó!

O Schraubenschlílssel ultrapassou-nos no patamar do segundo andar. Estava todo besuntado de óleo desde as pontas dos dedos até aos cotovelos; trazia um rolo de fio de cobre ao pescoço, parecendo um nó de forca, e transportava nos braços uma coisa manifestamente pesada, em forma de caixa, que parecia uma bateria gigante - uma bateria demasiado grande para um Mercedes, como eu havia de recordar muito mais tarde.

- Olá, Alicate - disse eu.

Ele respondeu com um grunhido, passando por nós; trazia nos dentes, de uma forma bastante delicada - para ele -, uma espécie de fusível num invólucro de vidro.

- É o mecânico do hotel - disse eu, pois foi o que se me afigurou a explicação mais fácil.

- Não é lá muito asseado - comentou a mulher do New Hampshire. - Há algum carro no último andar? - perguntou o marido.

Quando penetrámos no corredor do terceiro andar, à procura, na semi-obscuridade, do número dos quartos, abriu-se uma porta no quinto andar e um bater frenético de máquina de escrever chegou até nós - talvez fosse a Fehlgeburt a terminar a redacção de um manifesto ou a escrever a sua tese sobre o romance, que está no cerne da literatura americana -, e o Ar-beiter gritou pelo vão da escada:

- Compromisso! O que tu representas é o compromisso.

- Cada coisa tem a sua altura própria! - ripostou o Old Billig.

O Old Billig radical tinha dado por findo o seu dia de trabalho; atravessou o patamar do terceiro andar quando eu ainda me debatia com a bagagem e as chaves.

- Vais para onde sopra o vento, meu velho! - gritou o Arbeiter.

É claro que isto foi tudo dito em alemão, e suponho que - para os americanos, que não compreendiam alemão - aqueles gritos numa língua estranha pareciam ainda mais ameaçadores do que já eram. Eu achava-os bastante ameaçadores, e eu já sabia alemão.

- Um dia, meu velho - concluiu o Arbeiter -, o vento vai mesmo varrer-te de vez!

O Old Billig radical parou no patamar e virou-se para cima, respondendo ao Arbeiter:

- Tu estás mas é maluco! Vocês vão matar-nos a todos! Não sabem o que é ter paciência!

E algures, entre o terceiro e o quinto andares, deslocando-se suavemente, com a sua figura delicada cheia de Schlagobers, a boa Schwanger tentava acalmar os dois, descendo alguns degraus para vir sussurrar qualquer coisa ao Old Billig, para logo voltar a subir para ir falar com o Arbeiter.

- Cala-te! - vociferou o Arbeiter. - Vai-te emprenhar outra vez. Vai fazer outro aborto. - E, continuando a injuriá-la: - Vai ver se comes mais Schlagobers.

- Animal! - gritou o Old Billig, recomeçando a subir as escadas. - É possível não deixar de ser civilizado, mas tu não! - continuou ele para o Arbeiter. - Tu nem sequer és um humanista!

- Por favor - tentava acalmá-los a Schwanger. - Bitte, bitte...

- Queres Schlagobers? - rugiu o Arbeiter para ela. - Pois eu quero Schlagobers a correr por toda a Kàrntnerstrasse - disse ele, desvairado. -Quero Schlagobers a interromper o trânsito no Ring. Schlagobers e sangue. É isso que hão-de ver, por todo o lado. Escorrendo pelas ruas! Schlagobers e sangue.

E eu fiz entrar os sensíveis americanos do New Hampshire nos seus quartos poeirentos. Em breve ficaria escuro, e as cenas de gritaria lá em cima cessariam. Mas por baixo começariam os gemidos e os suspiros, as camas a ranger, o som da água a correr das torneiras dos bidés, os passos do urso - patrulhando o segundo andar - e o taco de basebol do Freud a bater, regularmente, de quarto em quarto.

Quereriam os americanos ir à Ópera? Voltariam para ver a Jolanta a arrastar um bêbedo corajoso lá para cima - ou a atirá-lo pela escada abaixo? Estaria alguém a apalpar a Babette na entrada como quem amassa pão, enquanto eu jogava às cartas com a Dark Inge e lhe contava os feitos do Júnior Jones? O Braço Negro da Lei deixava-a feliz. Quando tivesse "idade", dizia ela, havia de fazer a trouxa e de ir visitar o pai para ver com os seus olhos como era dura a vida dos negros na América.

E a que horas da noite o primeiro orgasmo simulado da Screaming Annie faria a criança do New Hampshire correr a refugiar-se no quarto dos pais, através da porta de comunicação? Ficariam os três encolhidos na mesma cama até de manhã - ouvindo o regatear estafado com a Old Billig e os choques abafados que significavam que a Jolanta estava a dar cabo de alguém?

A Screaming Annie tinha-me dito o que me faria se eu alguma vez tocasse na Dark Inge.

- Mantenho a Inge afastada dos homens na rua - confidenciou-me ela. - Mas não quero que ela pense que está apaixonada, ou coisa parecida. Quer dizer, de certo modo, isso ainda é pior... eu sei por mim. Isso é que dá cabo da gente. Quer dizer, se eu não deixo que ninguém lhe pague para isso (nem pensar) muito menos vou deixar que tu a leves à borla.

- Ela só tem a idade da minha irmã Lilly - disse eu. - Para mim.

- Quem é que quer saber da idade dela? - retorquiu a Screaming Annie. - Eu estou de olho é em ti.

- Já tens idade para ter uma moca - disse-me a Jolanta. - Já a vi. Tenho bom olho para ver mocas.

- Se ficares com tesão podes aproveitar e usá-la - disse a Screaming Annie. - Só te estou a avisar: se quiseres dar uso à moca, não o faças na Dark Inge, senão ficas sem ela.

- Nem mais - corroborou a Jolanta -, dá-lhe uso connosco e não te metas com a miúda. Mete-te com ela, que nós damos cabo de ti. Por muitos pesos que levantes, há-de haver uma altura em que vais ter que dormir.

- E quando acordares - disse a Screaming Annie - e fores pela moca, não a encontras.

- Entendido? - perguntou a Jolanta.

- Com certeza! - respondi eu.

Então, a Jolanta encostou-se toda a mim e beijou-me na boca. Foi um beijo tão carregado de ameaças e tão mórbido como o beijo da Passagem do Ano, a saber a vomitado, que levei da Doris Wales. Mas quando a Jolanta acabou de me beijar, afastou-se de mim subitamente com o meu lábio inferior preso nos dentes até eu gritar de dor. Então, a sua boca largou-me. Senti os braços levantarem-se por si próprios - como acontecia nos exercícios com os halteres pequenos, ao fim de uma meia hora a praticar. Mas a Jolanta recuou sempre de olhos postos em mim, com as mãos metidas na bolsa. Não tirei os olhos das mãos dela e da bolsa até ela sair do quarto. A Screaming Annie ainda lá ficou.

- Desculpa a mordidela - disse ela. - A sério que não lhe tinha dito para fazer isso. Ela tem mau fundo. Sabes o que ela tem na carteira? Preferi não saber.

A Screaming Annie devia saber. Vivia com a Jolanta - foi a Dark Inge quem me disse. Aliás, a Dark Inge não só me contou que a mãe e a Jolanta eram amigas do género lésbico mas que a Babette também vivia com uma mulher (uma prostituta que andava na Mariahilfer Strasse). Na verdade, só a Old Billig tinha preferência pelos homens; e, disse-me a Dark Inge, a Old Billig era tão velha que já não preferia nada - a maior parte do tempo.

Deste modo, as minhas relações com a Dark Inge permaneceram num plano estritamente não sexual; na realidade, nem sequer me teria ocorrido pensar nela sexualmente se a mãe não tivesse levantado a questão. Continuei a limitar-me à minha imaginação: sobre a Franny, sobre a Jolanta. E, é claro, à minha corte tímida e hesitante à Fehlgeburt, a leitora. Todas as raparigas da American School sabiam que eu vivia "naquele hotel da Krugerstrasse"; eu não pertencia à mesma classe de americanos que elas. As pessoas dizem que, na América, a maior parte dos americanos não liga qualquer importância à classe a que as pessoas possam pertencer, mas sei muito bem o que se passa com os americanos que vivem no estrangeiro, e estes são ferozmente conscientes do tipo de americanos que são.

A Franny tinha o urso e, suponho, tinha a sua imaginação, tal como eu. Tinha o Júnior Jones e os seus resultados no futebol; deve ter sido um grande esforço para ela imaginá-lo fora dos limites dos jogos. E tinha a correspondência com o Chipper Dove e a sua imaginação bastante unilateral a respeito dele.

A Susie tinha uma teoria quanto às cartas da Franny para o Chipper Dove.

- Ela tem medo dele - disse a Susie. - Está aterrorizada com a'perspectiva de alguma vez o voltar a ver. É o medo que a leva a fazer isso, a escrever-lhe constantemente. Porque se ela se lhe puder dirigir normalmente, se ela puder fingir que tem uma relação normal com ele, bem... então, para ela, ele não é um violador, então ele nunca lhe fez aquilo, e ela não tem que encarar o facto de ele o ter feito. Tudo porque - continuou a Susie - o que ela tem é medo que o Dove ou qualquer outro como ele a viole outra vez.

Fiquei a pensar naquilo. O urso Susie podia não ser o urso esperto que o Freud tinha em mente, mas não havia dúvida que era um urso esperto. Nunca mais me esqueci do que uma vez a Lilly disse a respeito dela:

- Podes fazer troça da Susie porque ela tem medo de se assumir como ser humano e de ter de enfrentar (como ela costuma dizer) outros seres humanos. Mas quantos seres humanos sentem o mesmo e não têm imaginação para fazer alguma coisa a esse respeito? Pode ser estúpido viver a vida disfarçado de urso, mas tens de admitir que é preciso ter imaginação para isso.

E todos nós sabíamos o que era viver com imaginação, é claro. O Pai não podia viver sem ela; a imaginação era o seu hotel pessoal. O Freud só podia ver graças a ela. A Franny, serena no presente, olhava também para mais além, para o futuro - e eu estava sempre a olhar para a Franny (à procura de sinais, de quaisquer sinais vitais, de orientação). De todos nós, o Frank era talvez o da imaginação mais bem sucedida; construiu o seu próprio mundo e manteve-se nele. E a Lilly, em Viena, tinha uma missão - que iria preservá-la durante algum tempo. A Lilly havia decidido crescer. E isso tinha de ser feito com a sua imaginação, pois notavam-se poucas alterações físicas.

O que a Lilly fez em Viena foi escrever. As leituras da Fehlgeburt tinham-na empolgado. A Lilly queria ser escritora, acima de todas as coisas.

Isso deixou-nos tão confusos e atrapalhados que nunca denunciámos a ninguém aquela vocação - embora soubéssemos que era isso que ela passava o tempo a fazer. E ela também tinha demasiada vergonha de o fazer às claras para o poder admitir. Mas todos nós sabíamos que a Lilly estava a escrever qualquer coisa. Durante quase sete anos, escreveu ininterruptamente. Conhecíamos o som da sua máquina de escrever: era diferente da dos radicais. A Lilly escrevia muito devagar.

- O que é que estás a fazer, Lilly? - perguntava-lhe alguém, batendo à sua porta sempre fechada.

- A tentar crescer - era a resposta.

E isto também passou a ser o nosso eufemismo para o caso. Se a Franny dizia que tinha sido espancada quando tinha sido violada - se a Franny podia disfarçar as coisas dessa maneira, pensei eu -, então a Lilly também tinha o direito de dizer que estava a "tentar crescer" quando estava (todos nós o sabíamos) a "tentar escrever".

E foi assim que, quando eu disse à Lilly que na família do New Hamp-shire havia uma menina da mesma idade, ela respondeu:

- E então? Tenho de ir crescer mais um bocado. Talvez vá ter com ela depois do jantar.

Uma das maldições das pessoas tímidas - nos maus hotéis - é que muitas vezes são demasiado tímidas para partir. São tão tímidas que nem se atrevem a queixar-se. E esta timidez é muitas vezes acompanhada por uma certa boa educação; ainda que se vão embora porque um Schraubenschliis-sel as assustou na escada, porque uma Jolanta mordeu alguém na cara em plena entrada, porque uma Screaming Annie as fez ver a morte de perto com os seus uivos, ou por encontrarem pêlo de urso no bidé, mesmo assim ainda pedem desculpa.

Este não era o caso da mulher do New Hampshire. Porém, esta era menos sensível que o hóspede tímido comum. Aguentou os primeiros engates das prostitutas no início da noite (a família devia ter ido jantar fora). A família aguentou até depois da meia-noite sem uma queixa; nem sequer uma chamada inquiridora para a recepção. O Frank estava a estudar com o manequim. A Lilly estava a tentar crescer. A Franny estava na recepção, e o urso Susie andava por ali - a sua presença conferia aos clientes das prostitutas a sua natureza pacífica habitual. Eu estava agitado. (Andei agitado durante sete anos, mas naquela noite estava-o particularmente.) Tinha estado a atirar dardos no Kaffee Mowatt com a Dark Inge e a Old Billig. Para esta, era mais uma noite que passava devagar. A Screaming Annie encontrou um cliente a atravessar a Kàrntnerstrasse em direcção à Kruger-strasse, um pouco depois da meia-noite. Estava à espera da minha vez nos dardos quando a Screaming Annie e o seu furtivo companheiro penetraram no Mowatt; a Screaming Annie viu a Dark Inge comigo e a Old Billig.

- Já passa da meia-noite - disse ela à filha. - Vai-te deitar. Amanhã é dia de escola.

E assim voltámos todos ao Hotel New Hampshire, mais ou menos juntos. A Screaming Annie e o seu cliente iam um pouco à nossa frente, e a Inge e eu seguíamos um de cada lado da Old Billig, que falava do vale do Loire, em França.

- Era para aí que eu gostaria de ir quando me reformasse - disse ela. - Ou então nas próximas férias.

A Dark Inge e eu sabíamos que a Old Billig passava sempre as férias -todas as férias - com a família da irmã, em Baden. Apanhava um autocarro ou um comboio numa paragem em frente da Ópera; Baden seria sempre muito mais acessível para a Old Billig do que a França.

Quando entrámos no hotel, a Franny disse-nos que os hóspedes estavam todos lá. A família do New Hampshire fora deitar-se havia cerca de uma hora. Um jovem casal sueco subira ainda mais cedo. Um velhote qualquer de Burgenland não saíra do quarto toda a noite. E uns ingleses entusiastas do ciclismo tinham chegado embriagados, haviam ido duas vezes verificar se as suas bicicletas estavam na cave, tentaram armar-se em desportistas com o urso Susie (até este rosnar) e agora estavam com certeza a dormir a sono solto nos seus quartos. Fui para o meu levantar pesos - e passei pela porta da Lilly no instante mágico em que a sua luz se apagou; por aquela noite, tinha parado de crescer. Fiz alguns exercícios de antebraços com o haltere grande, mas não estava muito empenhado; já era bastante tarde; estava a fazer os levantamentos apenas porque estava aborrecido. Ouvi o estrondo do manequim a bater na parede que separava o meu quarto do do Frank; alguma coisa que este estava a estudar tinha-o posto de mau humor, e ele vingava-se no manequim - ou então estava também apenas aborrecido. Bati na parede.

- Mantém-te afastado das janelas abertas - disse o Frank.

- Wo ist die Germutlichkeitl - pus-me eu a cantar, pouco entusiasmado.

Ouvi a Franny e o urso Susie passarem de mansinho à porta do meu quarto.

- Quatrocentas e sessenta e quatro, Franny! - sussurrei eu.

Ouvi o impacte seco do taco de basebol do Freud a cair de uma cama por cima de mim. Era com certeza a cama da Babette. O Pai, como de costume, dormia profundamente - sem dúvida a sonhar regaladamente; sempre e sempre a sonhar. Uma voz de homem exclamou qualquer coisa no patamar do segundo andar, e ouvi a Jolanta responder: respondeu atirando-o pela escada abaixo.

- Sorrow - ouvi o Frank a murmurar.

A Franny estava a cantar a canção que a Susie a sabia fazer cantar, e eu tentei concentrar-me na luta na entrada. Era com certeza uma luta fácil para a Jolanta. A dor vinha toda do homem.

- Tens uma pila que parece uma peúga molhada e vens-me dizer que a culpa é minha? - dizia a Jolanta.

A isto seguiu-se o som do homem a receber um golpe - provavelmente a base da palma da mão a afundar-se-lhe na cara; era difícil ter a certeza, mas ouviu-se o homem a cair outra vez - isso era certo. Este disse qualquer coisa, mas as palavras saíram-lhe abafadas. Estaria a Jolanta a estrangulá-lo? Valeria a pena interromper a canção da Franny? Seria aquilo uma tarefa para o urso Susie?

Nessa altura ouvi a Screaming Annie. Acho que toda a gente na Kruger-strasse ouviu a Screaming Annie. Acho até que algumas pessoas elegantes que tinham ido à Ópera e que acabavam de sair do Bar Sacher, dirigindo-se para casa pela Kàrntnerstrasse, devem ter ouvido a Screaming Annie.

Num dia de Novembro de 1969 - cinco anos depois de termos deixado Viena -, duas notícias aparentemente sem relação foram manchete nos matutinos locais. Foi anunciado que, a partir de 17 de Novembro de 1969, as prostitutas ficavam proibidas de se passearem no Graben e na Kàrntnerstrasse - bem como em todas as ruas laterais da Kãrntnerstrasse com excepção da Krugerstrasse. Elas reinaram nestas ruas durante trezentos anos, mas a partir de 1969 só lhes deixaram a Krugerstrasse. Em minha opinião, os vienenses desistiram de tentar salvar a Krugerstrasse antes de 1969. Em minha opinião, foi o orgasmo simulado da Screaming Annie na noite que a família do New Hampshire passou no hotel que determinou a decisão oficial. Aquele orgasmo simulado acabou com a Krugerstrasse.

No mesmo dia de 1969 em que as autoridades austríacas tornavam pública a limitação da prostituição da Kàrntnerstrasse à Krugerstrasse, os jornais noticiavam também que uma ponte nova sobre o Danúbio tinha aberto fendas; apenas algumas horas após as cerimónias de inauguração da ponte, esta abriu fendas. A interpretação oficial quanto ao sucedido deitava as culpas para cima do desgraçado do Sol. Em minha opinião, o sol não era para ali chamado. Só a Screaming Annie podia fazer uma ponte abrir fendas - mesmo uma ponte nova. Devia ter ficado uma janela aberta no quarto em que ela estava a trabalhar.

Acho mesmo que a Screaming Annie a simular um orgasmo podia fazer os corpos dos empedernidos e cruéis Habsburgos saírem dos túmulos.

E nessa noite em que a tímida família do New Hampshire se hospedou no nosso hotel, a Screaming Annie produziu aquele que foi seguramente o orgasmo record de toda a nossa estada em Viena. Era um orgasmo que dava para sete anos. E foi seguido tão de perto pelo breve gemido do seu companheiro que estendi uma mão para fora da cama e agarrei num dos meus halteres, em busca de auxílio. Senti o manequim no quarto do Frank voar da parede a que estava encostado e este cambalear em direcção à porta. A bela canção da Franny cessou de repente em pleno crescendo, e o urso Susie devia estar freneticamente à procura da cabeça. Por muito que a Lilly tivesse conseguido crescer antes de apagar a luz, tenho a certeza que deve ter perdido uns bons dois centímetros no momento em que se encolheu com o som terrível da Screaming Annie.

- Valha-me Deus! - exclamou o Pai.

O homem que a Jolanta estava a espancar na entrada encontrou subitamente as forças necessárias para se libertar e sair porta fora. E quanto às outras prostitutas que andavam na Krugerstrasse, só posso imaginar que aquilo as tenha feito reflectir na sua profissão. "Quem é que chamou a isto a vida fácil"?, devem elas ter pensado.

Havia alguém a soluçar. Seria a Babette, assustada, que tinha ficado fora de ritmo com o Freud? O Freud à procura do taco de basebol, como uma arma? A Dark Inge receando pela mãe? E pareceu que uma das máquinas de escrever dos radicais - lá em cima no quinto andar - se moveu sozinha sobre a mesa e se esmagou estrepitosamente no chão.

Em menos de um minuto, estávamos na entrada a subir as escadas para o segundo andar. Nunca vi a Franny parecer tão profundamente perturbada; a Lilly foi ter com ela e agarrou-se-lhe à ilharga. O Frank e eu seguíamos em fila, como soldados, atraídos sem pronunciar palavra em direcção ao grito devastador. Este já tinha parado, e o silêncio que se lhe seguiu era quase tão arrepiante como o grito. A Jolanta e o urso Susie subiram a escada - como "gorilas" a aproximarem-se, com cara de maus, de alguns desordeiros desprevenidos.

- Sarilho - resmungou o Pai. - Isto tem mesmo ar de sarilho.

No patamar do segundo andar encontrámos o Freud com o seu taco de basebol, apoiado na Babette.

- Não podemos continuar com isto - estava o Freud a dizer. - Nenhum hotel pode sobreviver a uma coisa destas, independentemente da classe a que pertence a sua clientela. É de mais, é mais do que um ser humano pode suportar.

- Urrr! - fez a Susie, com o pêlo eriçado.

A Jolanta tinha outra vez as mãos dentro da carteira. Os soluços continuavam, e apercebi-me então que era a Dark Inge, demasiado assustada para investigar sequer aquela incrível barulheira produzida pela mãe.

Quando chegámos à porta da Screaming Annie, verificámos que a família do New Hampshire não era tão tímida como tinha parecido inicialmente. É certo que a filha estava meia morta de susto, mas tinha forças suficientes para se manter de pé, apenas ligeiramente apoiada no seu trémulo pai. Este estava em pijama, por cima do qual tinha vestido um roupão às listas vermelhas e pretas. Empunhava um candeeiro de mesa-de-cabeceira, com o fio enrolado em torno do pulso, a que tinha retirado a lâmpada e o quebra-luz - para o transformar numa arma mais eficente, suponho eu. A mulher do New Hampshire estava de pé, mais perto da porta.

- O grito veio daqui - anunciou ela, apontando para a porta da Screaming Annie. - Agora parou. Devem estar mortos.

- Não entres - disse-lhe o marido, com o candeeiro a saltar-lhe na mão. - Isto não deve ser espectáculo para mulheres e crianças.

A mulher fitou o Frank, provavelmente porque era ele que estava na recepção e que os tinha oficialmente hospedado nesta casa de doidos.

- Nós somos americanos - disse ela, com ar de desafio. - Nunca estivemos expostos a uma coisa tão sórdida, mas se nenhum de vocês tem tripas para entrar ali, eu entro.

- A senhora entra? - exclamou o Pai.

- É evidente que se trata de um assassínio - disse o marido.

- Nada mais evidente - sublinhou a mulher.

- Com uma faca - acrescentou a filha, encolhendo-se involuntariamente e agarrando-se ao pai. - Deve ter sido uma faca - insistiu quase num sussurro.

O marido deixou cair o candeeiro e apanhou-o outra vez.

- Então? - disse a mulher ao Frank.

Mas o urso Susie furou por entre os presentes.

- Deixem entrar o urso - disse o Freud. - Não misturem os hóspedes nisto. Deixem entrar o urso!

- Urrr! - fez a Susie.

O marido, pensando que o urso o podia atacar a ele e à família, apontou-lhe o candeeiro ao focinho com ar ameaçador.

- Não façam o urso zangar-se! - avisou-os o Frank, e a família recuou.

- Tem cuidado, Susie - disse a Franny.

- Assassínio - murmurou a mulher do New Hampshire.

- Uma coisa indizível - disse o marido.

- Uma faca - disse a filha.

- Foi apenas um maldito orgasmo - disse o Freud. - Nunca tiveram nenhum, com os diabos?

E avançou com a mão nas costas da Susie; deu uma pancada na porta com o taco de basebol, tacteou à procura da maçaneta e chamou:

- Annie?

Reparei na Jolanta, mesmo atrás do Freud, como se fosse a sua sombra ampliada - com as selvagens mãos dentro da carteira escura. A Susie deu um ronco convincente junto à porta.

- Um orgasmo? - exclamou a mulher do New Hampshire, e o marido tapou automaticamente os ouvidos da filha.

- Meu Deus - diria a Franny mais tarde. - Eram capazes de trazer a filha para ver um homicídio, mas nem sequer a deixavam ouvir falar em orgasmo. Os americanos são gente bem estranha.

O urso Susie meteu ombros à porta, fazendo o Freud perder o equilíbrio. A extremidade do taco de basebol escorregou no chão do patamar, mas a Jolanta agarrou o velho e apoiou-o à ombreira da porta; a Susie irrompeu pelo quarto, a rugir. A Screaming Annie estava nua, apenas com as meias e o cinto de ligas; estava a fumar um cigarro inclinada sobre um homem deitado de costas na cama, completamente imóvel, soprando-lhe o fumo para a cara; ele não se esquivava nem tossia, e encontrava-se também nu, apenas com umas peúgas verde-escuras.

- Morto! - exclamou ofegante a mulher do New Hampshire.

- Tod? - sussurrou o Freud. - Digam-me qualquer coisa!

A Jolanta tirou as mãos da carteira e enterrou um punho entre as pernas do homem. Os joelhos deste elevaram-se com um estalo e ele tossiu; depois ficou de novo estendido.

- Não está morto - disse a Jolanta, e abriu caminho para fora do quarto.

- Ele apenas desmaiou em cima de mim - disse a Screaming Annie.

Parecia surpreendida. Mais tarde, pensei que não era possível uma pessoa estar consciente e no seu perfeito juízo e ser levada a pensar que a Screaming Annie se estava a vir. Era provavelmente mais seguro desmaiar do que aguentar e voltar para casa maluco.

- Mas ela é uma puta? - perguntou o marido.

E nessa altura foi a vez da mulher do New Hampshire tapar os ouvidos à filha; e tentou mesmo tapar-lhe também os olhos.

- Você é cego ou quê? - perguntou o Freud. - Claro que é uma puta!

- Nós somos todas putas - interveio a Dark Inge, vinda não se sabe de onde e a abraçar a mãe, contente por ver que ela estava bem. - Qual é o problema?

- Pronto, pronto - disse o Pai. - Todos para a cama!

- Estes são seus filhos! - perguntou ao Pai a mulher do New Hamp shire.

Não estava muito certa sobre qual de nós apontar com o gesto que fez com a mão.

- Bem, alguns são - respondeu o Pai, amavelmente.

- Devia ter vergonha - disse-lhe a mulher. - Expor as crianças a esta vida sórdida.

Acho que nunca ocorreu ao meu pai que estivéssemos "expostos" a qualquer coisa de particularmente "sórdido". Nem o tom de voz da mulher do New Hampshire se assemelhava a algo que ele pudesse ter ouvido da minha mãe. No entanto, o Pai pareceu subitamente chocado com aquela acusação. A Franny disse mais tarde que compreendeu, ao ver o genuíno espanto espelhado na cara do Pai logo seguido pela crescente expressão de algo mais parecido com a culpa do que alguma vez lhe tínhamos visto - que, apesar do desgosto que os sonhos dele nos podiam causar, preferíamos sempre que ele fosse sonhador do que se sentisse culpado; podíamos aceitá-lo como estando fora da realidade, mas não podíamos ter gostado tanto dele se fosse do género de se preocupar constantemente connosco, se fosse verdadeiramente "responsável" da maneira que geralmente se espera que os pais o sejam.

- Lilly, não devias estar aqui, querida - disse o Pai para a Lilly, afastando-a da porta.

- Também acho que não - disse o homem do New Hampshire, esforçando-se agora por manter os olhos e os ouvidos da filha tapados ao mesmo tempo, mas ele próprio incapaz de se afastar dali.

- Frank, leva a Lilly para o quarto, por favor - pediu o Pai, suavemente. - Franny, estás bem, querida?

- Claro que sim - respondeu a Franny.

- Desculpa, Franny - disse o Pai, conduzindo-a ao longo do patamar.

- Por tudo isto - acrescentou ele.

- E pede desculpa? - exclamou a mulher do New Hampshire, com ar sarcástico. - Expõe os filhos a uma depravação destas, a esta podridão repugnante, e depois ainda pede desculpa!

Mas a Franny virou-se contra ela. Nós podíamos criticar o Pai, mas não deixávamos que mais ninguém o fizesse.

- Cale a boca, sua mal fodida - disse a Franny para a mulher.

- Franny! - exclamou o Pai.

- Você tem mas é a rata cheia de teias de aranha! - continuou a Franny. - E você, seu picha mole - disse ela, dirigindo-se agora ao homem -, conheço quem está à altura de lhe ensinar o que é que é "repugnante". Aybha ou gajãsana, sabem o que é?

Eu sabia, e comecei a sentir as mãos a suar.

- A mulher deita-se de barriga para baixo - prosseguiu a Franny -, e o homem deita-se em cima dela, empurrando para a frente as partes baixas e arqueando a cintura.

A mulher do New Hampshire fechou os olhos quando ouviu a expressão "partes baixas"; o pobre marido parecia querer tapar os olhos e os ouvidos de toda a sua família ao mesmo tempo.

- Esta é a posição de elefante - explicou a Franny.

E eu estremeci. A "posição de elefante" era uma das duas posições principais (juntamente com a "posição de vaca") no grupo wyanta. Foi da posição de elefante que o Ernst falou de maneira mais sonhadora. Pensei que ia começar a ficar agoniado quando, subitamente, a Franny se pôs a chorar. O Pai levou-a dali rapidamente - e o urso Susie, consternado mas sempre seguro do seu papel de urso, foi atrás deles a choramingar.

O cliente que tinha desmaiado quando a Screaming Annie acabou com a Krugerstrasse recuperou os sentidos. Ficou terrivelmente embaraçado quando me viu a mim, ao Freud, e à família do New Hampshire, à Screaming Annie, à filha desta e à Babette, todos a olhar para ele. Pelo menos, pensei eu, sempre foi poupado à visão do urso - e do resto da minha família. Tarde como de costume, a Old Billig apareceu por ali: tinha estado a dormir.

- O que é que se passa? - perguntou-me ela.

- A Screaming Annie não te acordou?

- A Screaming Annie já não me acorda. Aqueles malditos reformadores do mundo lá em cima no quinto andar é que não me deixam dormir.

Olhei para o relógio. Ainda não eram duas da manhã.

- Ainda estás a dormir - sussurrei para a Old Billig. - Os radicais não vêm tão cedo.

- Estou bem acordada - retorquiu a Old Billig. - Alguns dos radicais não foram para casa esta noite. Às vezes ficam aqui toda a noite. E geralmente não fazem barulho. Mas a Screaming Annie deve tê-los perturbado. Deixaram cair qualquer coisa. E começaram a silvar que nem umas cobras, a tentarem apanhar a tal coisa do chão.

- Eles não deviam cá estar de noite - disse o Freud.

- Já vi que chegasse de tanta sordidez - exclamou a mulher do New Hampshire, parecendo sentir-se ignorada.

- Eu vi-a toda - disse o Freud, misteriosamente. - Toda a sordidez. A gente acaba por se habituar.

A Babette afirmou que já chegava de emoções para uma noite e foi para casa. A Screaming Annie foi deitar a Dark Inge. O seu embaraçado companheiro tentou ir-se embora tão despercebidamente quanto possível, mas a família do New Hampshire ficou a vê-lo sair do hotel. A Jolanta veio ter com o Freud, com a Old Billig e comigo ao patamar do segundo andar. Pusémo-nos à escuta no vão da escada, mas os radicais - se estavam lá - estavam agora sossegados.

- Sou muito velha para andar a subir e descer escadas - disse a Old Billig -, e demasiado esperta para ir meter o nariz onde não sou chamada. Mas eles estão lá em cima. Vão lá ver.

Dito isto voltou para a rua - para a vida fácil.

- Eu cá sou cego - desculpou-se o Freud. - Levava metade da noite para subir estas escadas, e depois acabava por não ver nada se eles lá estiverem.

- Passa-me aí o taco de basebol - disse eu para o Freud. - Eu vou ver.

- Leva-me a mim contigo - disse a Jolanta. - Que se lixe o taco.

- De qualquer forma - disse o Freud -, preciso do taco.

A Jolanta e eu dissemos-lhe boa-noite e começámos a subir a escada.

- Se houver novidade - disse o Freud -, acordem-me para me contar. Ou então contam-me amanhã.

A Jolanta e eu ficámos à escuta durante algum tempo no patamar do terceiro andar, mas a única coisa que conseguimos ouvir foi a família do New Hampshire a encostar todos os móveis às portas dos seus quartos. O jovem casal sueco tinha continuado a dormir no meio daquilo tudo - aparentemente habituado a certo tipo de orgasmos, ou habituado ao assassínio. O velho de Burgeland era capaz de ter morrido no seu quarto pouco depois de se ter hospedado. Os ciclistas da Grã-Bretanha estavam no quarto andar, a meu ver provavelmente demasiado bêbedos para acordarem, mas quando a Jolanta e eu parámos no patamar desse andar à escuta dos radicais encontrámos lá um dos ciclistas ingleses.

- Droga de coisa estranha, não? - sussurrou ele.

- Mas o quê? - perguntei eu.

- Pareceu-me ouvir uma droga de um grito. Mas era lá em baixo. E agora ouço-os a arrastar o corpo lá em cima. Droga de mistério.

Olhou para a Jolanta.

- A pega fala inglês? - perguntou-me ele.

- A pega está comigo - respondi eu. - Não será melhor voltar para a cama? - sugeri-lhe.

Nessa altura eu teria os meus dezoito ou dezanove anos, e os efeitos do halterofilismo começavam a impressionar as pessoas. O ciclista voltou para a cama.

- O que é que achas que está a acontecer? - perguntei à Jolanta, indicando com a cabeça o silencioso quinto andar.

Ela encolheu os ombros; não era nada como o encolher de ombros da mãe, ou da Franny, mas era um encolher de ombros de mulher. Enfiou as suas mãos enormes dentro da carteira.

- Que é que me interessa o que se está a passar? - disse a Jolanta. - Eles podem mudar o mundo - continuou ela, referindo-se aos radicais -, mas a mim é que não mudam.

De certo modo, isto sossegou-me, e lá subimos ao quinto andar. Não tinha lá voltado desde que havia ajudado, três ou quatro anos antes, a mudar as máquinas de escrever e outro equipamento de escritório. Até o patamar parecia diferente. Estava cheio de caixas e de garrafões - seriam de produtos químicos ou de vinho? De qualquer forma, se fossem produtos químicos, havia ali muito mais do que o necessário para um copiador. Deviam ser produtos para o carro, pensei eu. Não sabia ao certo. Fiz a coisa mais natural: bati à primeira porta a que chegámos. O Ernst abriu; estava a sorrir.

- O que foi? - perguntou ele. - Não conseguem dormir? Orgasmos de mais?

E, vendo a Jolanta mesmo atrás de mim, continuou:

- Estão à procura de um quarto mais sossegado? E convidou-nos a entrar.

O quarto tinha ligação com outros dois - eu lembrava-me que anteriormente tinha ligação apenas com um -, e os móveis pareciam muito diferentes, embora durante aqueles anos eu não tivesse visto nem um único objecto volumoso a sair ou a entrar; só as coisas que eu pensei que o Schraubenschlíissel precisava para o carro.

O Schraubenschlussel estava no quarto, bem como o Arbeiter - o infatigável Arbeiter. Deve ter sido uma das enormes caixas que pareciam baterias que a Old Billig e eu tínhamos ouvido cair de uma mesa; dado que as máquinas de escrever estavam noutra parte do quarto, era evidente que ninguém estivera a escrever à máquina. Havia alguns mapas - ou talvez planos técnicos - espalhados por todo o lado, bem como o tipo de equipamento que normalmente associamos a uma garagem, mas não a um escritório: produtos químicos, material eléctrico.

O radical Old Billig, que tinha chamado maluco ao Arbeiter, não estava lá. E a minha doce Fehlgeburt, como boa aluna de literatura americana, estava em casa a ler ou a dormir. Em minha opinião só estavam ali os radicais maus: o Ernst, o Arbeiter e o Wrench.

- Aquilo é que foi um orgasmo esta noite! - disse o Schraubenschlussel, olhando de soslaio para a Jolanta.

- A fingir, como sempre - disse a Jolanta.

- Talvez este tenha sido a sério - aventou o Arbeiter.

- Acredita no que quiseres - retorquiu a Jolanta.

- Trouxeste a mázona contigo, hem? - disse-me o Ernst. - Estou a ver que agora andas com a pega de carne mais rija atrás de ti!

- Tu também só sabes é escrever sobre isso - ripostou a Jolanta. - Se calhar nem és capaz de a pôr de pé.

- Conheço uma posição mesmo boa para ti - disse-lhe o Ernst. Mas eu não queria ouvir aquilo. Estava cheio de medo deles todos.

- Já nos vamos embora - disse eu. - Desculpem termos vindo incomodá-los. Não sabíamos que estava aqui alguém à noite.

- O trabalho acaba por se atrasar, se às vezes não ficarmos até mais tarde - disse o Arbeiter.

Com a Jolanta ao meu lado, com as suas mãos fortes a apertar qualquer coisa dentro da carteira, despedimo-nos. E não foi imaginação minha ter entrevisto - mesmo antes de sair - o vulto de outra pessoa nas sombras do quarto mais afastado. Ela também tinha uma carteira, mas o que tinha na carteira estava cá fora - na mão dela, apontando para a Jolanta e para mim. Vi-a apenas de relance, a ela e à pistola, antes de ela recuar para a sombra e de a Jolanta fechar a porta. Esta não a viu, pois estava de olho no Ernst. Mas eu vi-a: a nossa meiga e maternal Schwanger - com uma pistola na mão.

- Já agora o que é que tens na carteira? - perguntei à Jolanta.

Ela encolheu os ombros. Dei-lhe as boas-noites, mas ela fez deslizar uma manápula pela frente das minhas calças e agarrou-me durante um momento; eu tinha saltado da cama tão rapidamente que não tivera tempo para vestir roupa interior.

- Vais-me mandar outra vez para a rua? - perguntou-me ela. - Só queria dar mais um pinote antes de poder chamar a isto uma noite.

- Já é muito tarde - disse eu, sabendo que ela me estava a sentir a entesar na mão dela.

- Não me parece que ela ache que seja tarde.

- Acho que deixei a carteira nas outras calças - menti eu.

- Pagas-me depois. Confio em ti.

- Quanto? - perguntei eu quando ela começou a apertar com mais força.

- Para ti são só trezentos xelins - disse ela.

Eu sabia que eram trezentos xelins para toda a gente.

- É muito - disse eu.

- Não me parece que ela ache que seja muito - disse a Jolanta, dando-me uma torcidela brusca com a mão.

Naquela altura, eu já estava muito teso, e aquilo doeu-me.

- Estás a magoar-me. Desculpa, mas não me apetece.

- Apetece, pois - disse ela, mas largou-me.

Olhou para o relógio e voltou a encolher os ombros. Desceu comigo para a entrada; dei-lhe outra vez as boas-noites. Quando fui para o meu quarto e ela desceu para a Krugerstrasse, vinha a entrar a Screaming Annie - com outra vítima. Deitei-me na cama a pensar se conseguiria cair num sono suficientemente profundo para não dar pelo próximo orgasmo simulado; depois concluí que não e fiquei acordado à espera dele - após o que esperava ter todo o tempo para dormir. Mas desta vez estava a demorar; comecei a imaginar que já se tinha produzido, que eu passara pelo sono e não dera por ele, e assim - como a própria vida - pensei que o que estava para acontecer já tivera lugar, já tinha passado, e permiti-me esquecê-lo, só para ser surpreendido momentos mais tarde. E foi do sono mais profundo - precisamente quando uma pessoa cai a dormir - que o orgasmo simulado da Screaming Annie me foi arrancar.

- Sorrow! - gritou o Frank a sonhar, como o pobre Iowa Bob assustado com a sua "premonição" do animal que o havia de matar.

Juro que pude sentir a tensão da Franny a dormir. A Susie roncou. A Lilly disse: "O quê?" O Hotel New Hampshire estremeceu sob o silêncio que se segue ao ribombar de um trovão. Deve ter sido mais tarde, no meio do sono, que ouvi algo de pesado ser transportado para baixo, sair pela porta da entrada e ser carregado no carro do Schraubenschlussel. Inicialmente tomei aquilo pelo ruído cauteloso da Jolanta a transportar para a rua um cliente morto, mas ela não se teria dado ao trabalho de fazer pouco barulho. "Isto é só imaginação", disse eu, durante o sono; nessa altura, o Frank bateu na parede.

- Mantém-te afastado das janelas abertas - sussurrei eu. Encontrámo-nos no corredor. Observámos os radicais a carregar o carro pela janela aberta. O que quer que fosse que estavam a carregar, parecia pesado e inerte; a princípio pensei que fosse o corpo do Old Billig - o radical -, mas eles estavam a ser demasiado cautelosos para a coisa ser um corpo. Fosse o que fosse, tinha de ir apoiado entre o Arbeiter e o Ernst, no banco de trás. Então, o Schraubenschlussel partiu com aquilo no carro.

Pela janela do veículo, o Frank e eu vimos a silhueta daquela misteriosa coisa - ligeiramente encostada ao Ernst, e maior do que ele, inclinada para o lado oposto ao do Arbeiter, que tinha o braço à volta dela como se estivesse a tentar desesperadamente captar o interesse de uma amante voltada para outra pessoa. A coisa - o que quer que fosse - era manifestamente não humana, mas tinha de certa forma uma aparência estranhamente animal. Agora tenho a certeza que aquilo era completamente mecânico, mas a sua forma parecia animal, vista assim dentro do carro em andamento - como se o Ernst da pornografia e o Arbeiter levassem um urso entre eles, ou um cão grande, como o Sorrow. Era apenas uma carrada de dor, como o Frank e eu - e nós todos - viríamos a saber, mas o seu mistério obcecava-me.

Tentei descrever aquilo (e o que a Jolanta e eu tínhamos visto no quinto andar) ao Pai e ao Freud. Procurei igualmente descrever a sensação de tudo aquilo à Franny e à Susie. O Frank e eu tivemos uma longa conversa sobre a Schwanger.

- De certeza que te enganaste acerca da pistola - disse o Frank. - A Schwanger não podia fazer uma coisa dessas. Ela podia estar lá. É possível que ela não quisesse que tu a associasses a eles, e foi por isso que se escondeu. Mas não a estou a ver com uma pistola. E nunca ta iria apontar. Para ela, somos como filhos. Foi ela quem nos disse! Estás outra vez a imaginar coisas.

A tristeza vem sempre ao de cima; sete anos num lugar que se detesta é muito tempo. Pelo menos, sentia que a Franny estava segura; e isso era sempre o mais importante de tudo. A Franny estava no limbo. Estava calma, a marcar passo com o urso Susie - e assim eu também me sentia bem à tona de água.

Na universidade, a Lilly e eu inscrevemo-nos em Literatura Americana (para grande contentamento da Fehlgeburt). A Lilly escolheu este curso, é claro, porque queria ser escritora - queria crescer; e eu fi-lo mais como uma maneira indirecta de cortejar a reservada Miss Mau Sucesso; parecia-me a coisa mais romântica a fazer. A Franny inscreveu-se em Teatrologia Universal - ela estava sempre acima de nós, nunca havíamos de conseguir apanhá-la. E o Frank seguiu o conselho maternal e radical da Schwanger: inscreveu-se em Economia. Bastava pensar no Pai e no Freud para todos compreendermos que alguém tinha de o fazer. E, quando chegasse o momento, seria o Frank a salvar-nos, e todos nós ficaríamos gratos à Economia. Na realidade, o Frank tinha-se inscrito em dois cursos, embora a universidade só lhe desse um diploma em Economia. Acho que se pode dizer que o Frank fez uma "licenciatura periférica" em Religiões Universais.

- Conhecei o vosso inimigo - dizia ele a sorrir.

Durante sete anos todos nós flutuámos. Aprendemos alemão, mas só falávamos na nossa língua materna uns com os outros. Aprendemos Literatura, Drama, Economia, Religião, mas a simples vista do taco de basebol do Freud fazia-nos ficar com o coração despedaçado de saudades da pátria do basebol. (Embora nenhum de nós se interessasse muito pelo jogo, aquele taco fazia-nos ficar com os olhos marejados de lágrimas.) Soubemos pelas prostitutas que, fora do centro da cidade, a Mariahilfer Strasse era a zona de caça mais prometedora para as damas da noite. E todas elas falavam em sair da profissão se fossem desterradas para os bairros para lá da West-bahnhof, para o Kaffee Éden, para a foda-em-pé a cem xelins no Gaudenzdorfer Giirtel. Soubemos pelos radicais que a prostituição nem sequer era oficialmente legal - como nós pensávamos -, que havia prostitutas registadas que cumpriam as regras, iam aos exames médicos e "atacavam" nos bairros próprios, e que havia as "piratas", que nunca se registavam ou que não tinham uma Btíchl (uma licença) mas continuavam a exercer a profissão; que havia quase um milhar de prostitutas registadas na cidade no início dos anos 60; que a decadência se ia espalhando ao ritmo adequado para a revolução.

Que revolução é que eles esperavam que rebentasse, concretamente, foi coisa que nunca soubemos. Não sei sequer se todos os radicais o sabiam com segurança.

- Tens a tua Buchf? - perguntávamos nós, uns aos outros, quando íamos para o liceu, e, mais tarde, para a universidade. Ou então:

- Mantém-te afastado das janelas abertas - o refrão da nossa canção do rei dos ratos.

O nosso pai parecia ter perdido a personalidade quando perdeu a Mãe. Acho que nesses sete anos ele se tornou - para nós, filhos - cada vez mais uma presença e cada vez menos uma pessoa. Ele era uma pessoa afectuosa; podia mesmo ser sentimental. Mas parecia tão perdido para nós (enquanto pai) como a Mãe e o Egg, e penso que percebemos que ele precisava de passar por mais sofrimentos reais antes de poder readquirir a sua personalidade, antes de poder voltar a ter de facto uma personalidade: da mesma forma que o Egg tinha uma, da mesma forma também que o Iowa Bob tinha a sua. Às vezes cheguei a pensar que o Pai tinha ainda menos personalidade que o Freud. Durante sete anos sentimos a falta do nosso pai, como se ele tivesse estado naquele avião. Esperávamos que o herói que havia nele tomasse forma, talvez duvidando da sua configuração final - pois com o Freud como modelo, uma pessoa tinha de duvidar da visão do meu pai. No fim daqueles sete anos eu tinha vinte e dois; a Lilly, sempre a tentar crescer, chegou aos dezoito. A Franny tinha vinte e três - com o Chipper Dove a continuar ainda "o primeiro" e com a Susie como a sua única. O Frank, com vinte e quatro, deixou crescer a barba. Isto era quase tão embaraçoso como a Lilly querer ser escritora.

A Moby Dick voltou a afundar o Pequod e só o Ishmael voltou a sobreviver mais uma vez, para contar a sua história à Fehlgeburt, que no-la contou a nós. Nos meus anos de universidade, costumava insistir com a Fehlgeburt para que ela me lesse Moby Dick em voz alta.

- Eu nunca conseguirei ler esse livro sozinho - implorava-lhe eu. - Tenho de o ouvir de ti.

E isso, finalmente, facultou-me o acesso ao apertado e anárquico quarto da Fehlgeburt, por trás da Rathaus, perto da universidade. Ela lia-me à noite, e eu tentava levá-la a dizer-me por que motivo alguns radicais preferiam passar a noite no Hotel New Hampshire.

- Sabes, o único ingrediente da literatura americana que a diferencia das outras literaturas é uma certa esperança frívola e ilógica. É tecnicamente muito sofisticada, mas permanece ideologicamente ingénua - explicou-me a Fehlgeburt, num dos nossos passeios até ao quarto dela.

O Frank acabou por perceber e deixou de nos acompanhar, embora isso lhe tenha levado cerca de cinco anos. E a noite em que a Fehlgeburt me disse que a literatura americana era "tecnicamente muito sofisticada mas ideologicamente ingénua" não foi a noite em que a tentei beijar pela primeira vez. Após aquela tirada do "ideologicamente ingénua", acho que um beijo estaria deslocado.

Na noite em que beijei pela primeira vez a Fehlgeburt estávamos no quarto dela. Ela tinha acabado de ler aquela parte em que Ahab se recusa a ajudar o capitão do Rachel a procurar o filho perdido. A Fehlgeburt não tinha mobília no quarto; havia demasiados livros, um colchão - de pessoa só - estendido no chão, e um candeeiro de cabeceira, também no chão. Era um local triste, tão árido e tão atravancado como um dicionário, tão mortiço como a lógica do Ernst. Inclinei-me por cima do leito desconfortável e beijei a Fehlgeburt na boca.

- Não - articulou ela, mas eu insisti até ela corresponder ao beijo.

- É melhor ires-te embora - disse ela, deitando-se de costas e puxando-me para cima dela.

- Agora?

- Não, agora não é preciso ires-te embora.

Sentou-se e começou a despir-se. Fê-lo da maneira como costumava situar-se em relação ao Moby Dick - com indiferença.

- Vou-me embora depois! - perguntei eu, a despir-me.

- Se quiseres. O que eu queria dizer é que tu deves ir-te embora do Hotel New Hampshire. Tu e a tua família. Partam antes da temporada de Outono.

- Que temporada de Outono? - perguntei eu, agora completamente nu.

Estava a pensar na temporada de Outono do Júnior Jones com os Cleveland Browns.

- A temporada da Ópera - respondeu a Fehlgeburt, também despida, finalmente.

Era tão delgada como uma novela; não era maior que alguns dos contos mais curtos que ela lera à Lilly. Parecia que todos os livros do seu quarto se tinham nutrido dela, a haviam consumido a ela - em vez de a alimentarem.

- A temporada da Ópera começa no Outono - disse a Fehlgeburt -, e nessa altura tu e a tua família terão de deixar o Hotel New Hampshire. Promete-me - continuou ela, impedindo-me de trepar mais pelo seu corpo descarnado.

- Porquê?

- Por favor, vão-se embora - foi a resposta.

Quando a penetrei, pensei que fosse o sexo que lhe tivesse feito virem as lágrimas aos olhos, mas era outra coisa.

- Sou o primeiro? - perguntei.

A Fehlgeburt tinha vinte e nove anos.

- O primeiro e o último - respondeu ela a chorar.

- Tens alguma coisa para te proteger? - perguntei-lhe, já dentro dela.

- Quer dizer, para não ficares Schwanger?

- Não interessa - respondeu ela, com os modos irritantes do Frank.

- Mas porquê? - perguntei eu, procurando mexer-me com cuidado.

- Porque estarei morta antes de a criança nascer.

Saí de dentro dela. Fi-la sentar-se ao meu lado, mas ela - com uma força surpreendente - puxou-me outra vez para cima do seu corpo; agarrou-me com a mão e pôs-me dentro dela de novo.

- Vá lá - protestou ela, impacientemente.

Mas aquela impaciência não era a do desejo. Era outra coisa.

- Fode comigo - disse ela, apaticamente. - Depois passa aqui a noite ou volta para casa. Não me interessa. Mas saiam do Hotel New Hampshire. Por favor, vão-se embora. Sobretudo a Lilly, faz com que ela se vá embora - implorou ela.

E começou a chorar ainda mais, perdendo o mínimo interesse que pudesse ter tido no sexo. Eu ainda continuava dentro dela, mas a encolher cada vez mais. Senti-me frio - senti um bafo gelado que se elevava do chão, como a frialdade que me lembro de ter sentido quando o Frank nos leu pela primeira vez a pornografia do Ernst.

- O que é que eles ficam a fazer no quinto andar durante a noite? -perguntei à Fehlgeburt, que me mordeu o ombro e abanou a cabeça, com os olhos fechados com toda a força. - O que é que eles andam a tramar?

Encolhi tanto que saí completamente dela. Senti-a estremecer e estremeci também.

- Vão mandar a Ópera pelos ares - sussurrou ela - durante um dos espectáculos mais importantes. Vão fazer ir pelos ares As Bodas de Fígaro ou qualquer coisa assim popular. Ou outra coisa mais solene. Não sei qual vai ser o espectáculo escolhido: eles ainda não decidiram. Mas vai ser um que tenha a casa cheia - contou a Fehlgeburt. - A Ópera inteira.

- Estão loucos - disse eu.

Mas não reconheci a minha voz. Tinha um som de cana rachada como a voz dos Old Billig - tanto da prostituta Old Billig como do radical Old Billig.

A Fehlgeburt abanou a cabeça para trás e para a frente debaixo de mim; o seu cabelo escorrido açoitou-me o rosto.

- Por favor, leva a tua família embora dali - sussurrou ela. - Especialmente a Lilly. A Lillyzinha.

- Mas eles não vão também estoirar com o hotel, ou vão?

- Vai ficar toda a gente comprometida. Aquilo tem de comprometer toda a gente, ou então não serve de nada - disse ela, num tom agoirento.

Parecia-me que era a voz do Arbeiter que eu estava a ouvir por trás da voz dela, ou a lógica globalizante do Ernst. Uma fase, uma fase necessária.

Tudo. Os Schlagobers, o erotismo, a Ópera, o Hotel New Hampshire -tinha de desaparecer tudo. Tudo aquilo era decadente, podia eu ouvi-los recitar. Tudo aquilo era repugnante. Iam cobrir a Ringstrasse com os corpos de amantes da arte, de idealistas fora de moda suficientemente patetas e irrelevantes para gostarem de ópera.

- Promete-me - sussurrou-me a Fehlgeburt ao ouvido. - Vais tirá-los de lá. A tua família. Todos eles.

- Prometo - disse eu. - Com certeza.

- Não digas a ninguém que eu te disse.

- Claro que não.

- E agora, por favor, volta para dentro de mim. Por favor, quero senti-lo, só uma vez.

- Porquê só uma vez!

- Faz isso e não me perguntes nada. Faz-me tudo.

E eu fiz-lhe tudo. E lamento-o. Sentir-me-ei sempre culpado por causa disso. Aquilo foi tão desesperado e tão triste como sempre fora o sexo no segundo Hotel New Hampshire.

- Se achas que vais morrer antes de teres tempo de ter um bebé - disse-lhe eu depois - porque é que não te vais embora ao mesmo tempo que nós"! Porque é que não foges antes de eles porem o seu plano em prática, ou antes de o tentarem?

- Não posso - disse ela, com simplicidade.

- Porquê?

Com estes radicais no nosso Hotel New Hampshire eu estava condenado a ter de perguntar sempre porquê.

- Porque eu é que vou conduzir o carro. Sou a condutora. E o carro é que é a bomba principal. O carro é que vai desencadear tudo o resto. Alguém tem de o conduzir, e esse alguém sou eu: sou eu que conduzo a bomba - respondeu a Fehlgeburt.

- Mas porquê tu? - perguntei-lhe, procurando segurá-la, procurando fazer com que parasse de tremer.

- Porque sou a mais dispensável.

E lá estava mais uma vez a voz surda do Ernst, lá estava o método de raciocínio de "cortar pela raiz" do Arbeiter. Ocorreu-me que, para a Fehlgeburt acreditar naquilo, até a nossa meiga Schwanger a devia ter andado a convencer.

- Porque não a Schwanger? - perguntei eu à Miss Mau Sucesso.

- Ela é demasiado importante - disse a Fehlgeburt. - É maravilhosa. - continuou, com ar admirativo e cheia de desprezo por si própria.

- Porque não o Alicate? Vê-se que percebe de carros.

- Justamente. Ele é indispensável. Haverá outros carros, outras bombas para fabricar. A parte dos reféns é que me desagrada - desabafou ela subitamente. - Desta vez não é preciso. Haverá melhores reféns.

- Quem são os reféns?

- A tua família. Por serem americanos. Assim, a nossa acção ecoará para além das fronteiras da Áustria. É essa a ideia.

- E de quem é a ideia?

- Do Ernst.

- Porque é que não é o Ernst o condutor?

- O Ernst é o homem das ideias. Ele é que concebe os planos. Pensa em tudo.

Em tudo, sem dúvida, pensei eu.

- E o Arbeiter? Não sabe conduzir?

- Esse é demasiado leal. Não podemos perder um elemento tão leal. Eu não sou assim - disse ela baixinho. - Olha para mim! - gritou. - Estou a contar-te tudo, não estou?

- E o Old Billig? - perguntei.

- Não se pode confiar nele. Nem sequer está ao corrente do plano. É demasiado instável. Põe-se a pensar na sua própria sobrevivência.

- E isso è mau! - perguntei-lhe, afastando-lhe o cabelo do rosto sulcado pelas lágrimas e penteando-o para trás.

- Nesta fase é mau.

E eu nesse momento compreendi o que ela era: uma leitora, apenas uma leitora. Ela lia maravilhosamente as histórias dos outros; recebia instruções; seguia o chefe. A razão por que eu queria ouvi-la ler o Moby Dick era a mesma pela qual os radicais a tinham escolhido para condutora do carro. Ambos sabíamos que ela o faria; nada a deteria.

- Fizemos tudo? - perguntou-me a Fehlgeburt. - O quê? - respondi, sem ter percebido.

Estremeci. Havia de estremecer sempre ao ouvir este eco do Egg vindo de mim.

- Fizemos tudo, sexualmente! - insistiu ela. - Foi mesmo tudo? Tentei lembrar-me.

- Acho que sim. Queres fazer mais?

- Não particularmente. Só queria experimentar tudo uma vez. Se já fizemos tudo, podes ir para casa, se quiseres.

Encolheu os ombros. Não era o encolher de ombros da Mãe, nem da Franny, nem mesmo da Jolanta. Nem sequer era bem um movimento humano; era menos uma contracção muscular que uma espécie de pulsação eléctrica, um impulso mecânico do seu corpo tenso, um sinal difuso. Mais difuso não podia ser. Era um sinal de uma casa deserta. Era um sinal de "não estou, não me telefones que eu telefono". Era um tiquetaque de um relógio ou de uma bomba-relógio. Os olhos da Fehlgeburt piscaram uma vez na minha direcção, e ela adormeceu. Apanhei as minhas roupas. Reparei que ela não se tinha preocupado em marcar a página em que havia parado a leitura do Moby Dick; também não me dei ao trabalho de o fazer.

Já passava da meia-noite quando atravessei a Ringstrasse, vindo da Rathausplatz e descendo pela Dr. Karl Renner-Ring para penetrar no Volksgarten. Na esplanada, alguns estudantes gritavam uns com os outros de um modo amigável. Eu devia conhecer uns tantos, mas não me detive para beber uma cerveja. Não queria falar da arte disto ou daquilo. Não queria ter mais conversas sobre O Quarteto de Alexandria - sobre qual era o melhor desses romances, e qual era o pior, e porquê. Não queria saber quem tinha beneficiado mais com a sua correspondência mútua - o Henry Miller ou o Lawrence Durell. Nem sequer queria falar sobre Die Blechtrommel, que era a melhor coisa de que se podia falar - talvez sempre. E também não queria discutir as relações Leste-Oeste, o Socialismo e a Democracia, os efeitos a longo prazo do assassínio do presidente Kennedy -e, sendo americano, o que é que eu pensava da questão racial.

Estávamos no fim do Verão de 1964; eu não tinha estado nos Estados Unidos desde 1957 e sabia menos sobre o meu país do que alguns estudantes vienenses. E também sabia menos sobre Viena do que qualquer deles. Sabia sobre a minha família, sabia sobre as nossas prostitutas e sobre os nossos radicais. Era um especialista das questões relativas ao Hotel New Hampshire e um amador em tudo o resto.

Atravessei a Heldenplatz - a Praça dos Heróis - e detive-me onde uma vez milhares de fascistas tinham aplaudido e saudado Hitler. Pensei que os fanáticos haveriam de ter sempre um público; tudo o que se podia esperar era influenciar as dimensões desse público. Achei que devia memorizar esta reflexão e pô-la à prova com o Frank: ou ele a assumiria como sua, ou corrigi-la-ia, ou me corrigiria a mim. Gostaria de ter lido tanto como o Frank; gostaria de ter tentado crescer com tanta obstinação como a Lilly. A verdade é que ela enviara o produto dos esforços do seu crescimento a um editor de Nova Iorque. Nunca nos disse nada, mas teve de pedir dinheiro emprestado à Franny para os selos.

- É um romance - disse a Lilly, com um ar embaraçado - um bocadinho autobiográfico.

- Um bocadinho? - perguntou o Frank.

- Bem, é uma autobiografia mais ou menos imaginária.

- É muito autobiográfica, queres tu dizer - interveio a Franny. -Ena, pá!

- Mal posso esperar - disse o Frank. - Aposto que sou retratado como um verdadeiro patife.

- Não - retorquiu a Lilly. - São todos heróis.

- Somos todos heróis? - perguntei eu.

- Bem, para mim, são todos heróis. - disse a Lilly. - Por isso no livro também são.

- Mesmo o Pai? - perguntou a Franny.

- Bem, o Pai é o mais imaginário - respondeu a Lilly.

Eu achei que o Pai tinha mesmo de ser o mais imaginário, porque era o menos real - era, de todos nós, o que estava menos ali. Por vezes, eu tinha a sensação que o Pai estava menos connosco que o Egg.

- Como é que se chama o livro, querida? - tinha o Pai perguntado à Lilly.

- A Tentar Crescer - confessou a Lilly.

- Que outro nome poderia ter? - declarou a Franny.

- Até onde é que vai? - perguntou o Frank. - Quer dizer, onde é que acaba?

- Termina com a queda do avião - disse a Lilly. - Acaba aí.

Era onde a realidade acabava, pensei eu: mesmo antes da queda do avião; parecia uma excelente altura para acabar - para mim.

- Vais precisar de um agente - disse o Frank à Lilly. - Eu é que vou ser o teu agente.

O Frank tornar-se-ia mesmo o agente da Lilly, assim como se viria a tornar o agente da Franny, o agente do Pai e até mesmo o meu próprio agente - a certa altura. Não tinha sido em vão que ele se inscrevera em Economia. Mas eu não sabia isso naquela noite de fim de Verão de 1964 em que deixei a Fehlgeburt - a pobre Miss Mau Sucesso - adormecida e com certeza a sonhar com o seu sacrifício espectacular; a sua natureza "dispensável" era virtualmente a única coisa que eu conseguia ver quando me detive sozinho na Praça dos Heróis e me lembrei de como Hitler fizera tanta gente parecer dispensável a um grupo tão reduzido de verdadeiros crentes. Na noite silenciosa quase conseguia ouvir o clamor cego dos Sieg Heil! Podia ver o ar grave da cara do Schraubenschlussel a apertar uma porca e uma anilha num parafuso do bloco de um motor. E que outra coisa teria ele apertado? Podia ver o brilho vítreo e imbecil da devoção nos olhos do Arbeiter, fazendo declarações à imprensa após a sua prisão triunfal - e a nossa maternal Schwanger a sorver o seu Kaffee mit Schlagobers, com as natas batidas a deixarem um engraçado bigodinho na penugem do seu lábio superior. Podia ver como a Schwanger fazia o rabo-de-cavalo da Lilly, cantarolando de boca fechada ao adorável cabelo da Lilly da mesma maneira que a Mãe o fazia; como a Schwanger dizia à Franny que ela tinha a pele mais bonita do mundo e as mãos mais belas do planeta e que eu tinha uns olhos de alcova - oh, eu ia ser um perigo, avisara-me ela. (Tendo acabado de deixar a Fehlgeburt, não me sentia muito perigoso.) Havia sempre um pouco de Schlagobers nos beijos da Schwanger. E o Frank, dizia ela, era um génio; só era pena ele não encarar a política com mais seriedade. Foi todo este afecto que a Schwanger despejou sobre nós - tanto afecto com uma pistola na carteira. Queria ver o Ernst na posição de vaca - com uma vaca! E na posição de elefante! Com o que vocês sabem... Eles eram tão loucos como o Old Billig tinha dito; iam matar-nos a todos.

Deambulei pela Dorotheergasse em direcção ao Graben. Parei para um Kaffee mit Schlagobers no Hawelka. Um homem de barba na mesa ao meu lado explicava a uma jovem (mais jovem do que ele) a morte da pintura figurativa; estava a dizer qual era a tela exacta que assinalava o momento exacto em que toda esta forma de arte tinha morrido. Eu não conhecia aquele quadro. Pensei nos Schieles e nos Klimts que o Frank me tinha dado a conhecer - no Albertina e no Alto Belvedere. Gostava que o Klimt e o Schiele pudessem falar com este homem, mas ele já estava a falar da morte da rima e da métrica na poesia; mais uma vez, eu não conhecia o poema em questão. E quando ele passou ao romance, achei que era melhor levantar-me e ir-me embora. O criado que me servira andava muito atarefado, e eu não tive outro remédio senão ouvir a história da morte do enredo e da caracterização. Entre as várias mortes que o homem descreveu, incluía-se a morte da simpatia. Eu já estava a começar a sentir a simpatia a morrer dentro de mim quando finalmente o criado veio à minha mesa. A Democracia era a morte seguinte; esta foi despachada em menos tempo que o criado levou a fazer o troco. E o Socialismo consumiu-se antes de eu deixar a gorjeta. Olhei para o homem de barba e senti-me como se estivesse a levantar pesos; pensei que, se os radicais queriam fazer a Ópera ir pelos ares, deviam escolher uma noite em que só lá estivesse o homem de barba. Achei que tinha encontrado o condutor ideal para substituir a Fehlgeburt.

- Trotsky - deixou escapar bruscamente a jovem que estava com o barbudo, como se estivesse a dizer "obrigado".

- Trotsky? - exclamei eu, debruçando-me sobre a mesa deles, uma mesa pequena e quadrada.

Nessa altura eu levantava um haltere de trinta e cinco quilos num só braço. A mesa estava longe de ser tão pesada, e eu peguei nela com cuidado, com uma mão, e levantei-a acima da minha cabeça como um criado elevaria uma bandeja.

- Com que então, Trotsky, hem? O bom e velho Trotsky - disse eu. - "Se queres uma vidaVácil", disse o bom e velho Trotsky, "escolheste o século errado para nascer." Acha que é verdade? - perguntei ao barbudo.

Este não respondeu, mas a jovem deu-lhe uma cotovelada e ele refez-se um pouco.

- Eu acho que sim - disse a rapariga.

- Claro que é verdade - disse eu.

Apercebia-me dos olhares dos criados ansiosamente pousados sobre as bebidas e o cinzeiro que deslizavam ligeiramente no tampo da mesa, acima da minha cabeça; mas eu não era o Iowa Bob; os pesos nunca escorregavam para fora da barra quando eu levantava o haltere; isso nunca mais aconteceu. Eu era melhor com os pesos que o Iowa Bob.

- O Trotsky foi assassinado com uma picareta - disse o barbudo, com um ar enfadado, tentando permanecer impassível.

- Mas não está morto, pois não? - perguntei eu, sorrindo com um ar demente. - Nada morreu de verdade. Nada do que ele disse está morto. As pinturas que ainda podemos admirar não estão mortas. Os personagens dos livros não morrem quando paramos de os ler.

O homem de barba conservava os olhos fixos no local onde normalmente devia estar a mesa. Tinha sabido manter a dignidade, pensei eu, com plena consciência de que me encontrava de mau humor e não estava a ser justo; estava a armar-me em brigão, e senti-me envergonhado. Devolvi a mesa ao casal, sem ter entornado nada.

- Estou a perceber a sua ideia! - ouvi a jovem exclamar atrás de mim quando eu ia a sair.

Mas eu sabia que não tinha mantido ninguém vivo, nem por sombras: nem os espectadores na Ópera, porque sentada no meio deles estava com certeza aquela forma que o Frank e eu tínhamos visto dentro do carro, a ser transportada entre o Ernst e o Arbeiter, aquela forma animal da morte, aquele urso mecânico, aquela cabeça de cão química, aquela carga eléctrica de dor e de tristeza. E por mais coisas que ele tivesse dito em vida, o Trotsky estava morto; a Mãe, o Egg e o Iowa Bob estavam mortos - apesar de tudo o que tinham dito e de tudo o que significavam para nós. Saí para o Graben, sentindo-me cada vez mais como o Frank, sentindo-me antitudo; senti que me estava a descontrolar. É mau quando um halterofilista se descontrola.

A primeira prostituta com quem me cruzei não era uma das nossas, mas eu já a tinha visto antes - no Kaffee Mowatt.

- Guten Abend - disse ela.

- Vai-te foder - respondi eu.

- Vai levar no cu - disse-me ela.

O inglês dela chegava para aquilo, e eu senti-me miserável.

Estava outra vez com uma linguagem horrível. Tinha quebrado a promessa que fizera à Mãe. Foi a primeira e a última vez que isso me aconteceu. Tinha vinte e dois anos e comecei a chorar. Meti pela Spiegelgasse. Havia lá prostitutas, mas não eram as nossas, e eu não fiz nada. Quando elas disseram Guten Abend, respondi também Guten Abend, mas não liguei às outras coisas que disseram. Atravessei o Neuer Markt; sentia os vazios no peito dos Habsburgos, nos seus túmulos. Outra prostituta interpelou-me:

- Eh, pá, não chores! Um rapagão como tu... não chora! Mas a minha esperança era de não estar a chorar apenas por mim, mas por eles todos. Pelo Freud a chamar por nomes que nunca haveriam de responder, na Judenplatz. Por aquilo que o Pai não conseguia ver. Pela Franny, porque a amava - e porque queria que ela me fosse tão fiel como tinha provado poder ser à Susie. E também pela Susie, porque a Franny me havia mostrado que ela não era nada feia. Na realidade, a Franny já quase tinha conseguido convencer a Susie disso. Pelo Júnior Jones, que estava a sofrer a primeira das lesões no joelho que acabariam por o obrigar a sair dos Cleveland Browns. Pela Lilly, que lutava tanto. E pelo Frank, que se afastara tanto (para ficar mais perto da vida, dizia ele). Pela Dark Inge, que tinha dezoito anos - que dizia que "já tinha idade", embora a Screaming Annie teimasse que não - e que antes de o ano acabar havia de fugir com um homem. Este era tão preto como o pai dela e levou-a para uma cidade da Alemanha onde havia uma base do Exército; mais tarde vim a saber que ela tinha caído ali na prostituição. E a Screaming Annie passou a gritar uma canção ligeiramente diferente. Por todos eles! Pela minha Fehlgeburt condenada, e mesmo pela Schwanger, que tanto me tinha desiludido - por ambos os Old Billig, que eram optimistas, que eram ursos de porcelana. Por toda a gente - excepto pelo Ernst, excepto pelo Arbeiter, excepto por aquela tenaz que era o Alicate, excepto pelo Chipper Dove; a esses, eu odiava-os.

Não liguei a uma ou duas prostitutas que me fizeram sinal da Kãrntner-strasse. Uma prostituta alta e estonteante - que não jogava na mesma divisão que as nossas da Krugerstrasse - atirou-me um beijo da esquina da Annagasse. Segui a direito pela Krugerstrasse sem olhar, para não ver nenhuma delas - ou elas todas - a acenar-me. Passei defronte do Hotel Sacher - aquilo que o Hotel New Hampshire nunca seria. E depois cheguei à Staatsoper, cheguei à casa de Gluck (1714-87, como o Frank recitaria se ali estivesse); cheguei à Ópera Nacional, que era a casa de Mozart, a casa de Haydn, Beethoven e Schubert - de Strauss, Brahms, Bruckner e Mahler. Era esta casa que um escritor pornográfico a brincar à política queria fazer ir pelos ares. Era imensa; naqueles sete anos eu nunca tinha lá entrado - parecia uma coisa com muito mais categoria do que eu, e nunca fui um apreciador de música como o Frank, nem um amante de teatro como a Franny. (O Frank e a Franny estavam sempre a ir à Ópera; o Freud levava-os. Ele adorava ouvir a música enquanto a Franny e o Frank lhe descreviam tudo o resto.) Tal como eu, a Lilly nunca tinha ido à Ópera; aquilo era demasiado grande, dizia ela, e assustava-a.

Neste momento assustava-me a mim. Era demasiado grande para ir pelos ares! Mas eu sabia que eram as pessoas que eles queriam fazer saltar, e as pessoas são mais fáceis de destruir que os edifícios. O que eles queriam era um espectáculo. Queriam o que o Arbeiter tinha gritado para a Schwanger: queriam Schlagobers e sangue.

Na Kãrntnerstrasse, em frente da Ópera, havia um vendedor de salsichas, um homem com uma espécie de carrinho de cachorros quentes que vendia diferentes tipos de Wurst mil Senfund Bauernbrot - um género de salsicha com mostarda em pão de centeio. Mas não me apeteceu comer.

Eu sabia o que queria. Queria crescer e depressa. Ao fazer amor com a Fehlgeburt, tinha-lhe dito Es war sehr schôn, mas não foi. "Foi muito bom", mentira eu, mas não tinha sido nada; não tinha sido o suficiente. Fora apenas mais uma noite de levantamento de pesos.

Quando meti para a Krugerstrasse, já havia decidido ir com a primeira que me abordasse - mesmo que fosse a Old Billig, mesmo que fosse a Jolanta, prometi eu a mim próprio, corajosamente. Não interessava. Talvez eu as experimentasse a todas, uma após outra. Se o Freud era capaz, eu também havia de ser, e o Freud tinha feito tudo - o nosso Freud e o outro Freud, pensei eu: eles apenas foram tão longe quanto puderam.

Sabia que não estava ninguém conhecido no Kaffee Mowatt e não reconheci o vulto de pé sob o néon cor-de-rosa:

 

             HOTEL NEW HAMPSHIRE!

             HOTEL NEW HAMPSHIRE!

             HOTEL NEW HAMPSHIRE!

 

"É a Babette", disse eu para comigo mesmo, com uma vaga sensação de repulsa - mas foi apenas a brisa doce e enjoativa a cheirar a gasóleo da última noite de Verão que me fez pensar nela. A mulher viu-me e começou a andar na minha direcção - com ar agressivo, pensei eu; e ávido, também. Tive a certeza que era a Screaming Annie; por momentos pensei como é que me iria aguentar durante o seu famoso orgasmo simulado. Talvez que - dada a minha tendência para sussurrar - lhe pudesse pedir para não o fazer. Podia simplesmente dizer-lhe que sabia que era uma simulação e que não era necessário, pelo menos para mim. A mulher era demasiado esbelta para ser a Old Billig, mas tinha um ar demasiado robusto para ser a Screaming Annie. Tinha uma constituição demasiado sólida para poder ser a Screaming Annie. Então só podia ser a Jolanta, pensei eu; ao menos iria saber o que é que ela guardava na sua perversa carteira. Nos tempos que se aproximavam, pensei eu, estremecendo, podia mesmo ter de vir a servir-me do que houvesse na carteira da Jolanta. Mas a mulher que se aproximava não era suficientemente maciça para ser a Jolanta; era muito bem constituída no outro sentido - era demasiado esbelta e demasiado jovem de movimentos. Correu para mim na rua e abraçou-me; fiquei sem respiração, tal era a sua beleza. A mulher era a Franny.

- Onde é que estiveste! - perguntou-me ela. - Fora todo o dia, fora toda a noite. Estávamos mortos por te encontrar!

- Porquê?

O odor da Franny causava-me vertigens.

- A Lilly vai publicar o romance. Um editor de Nova Iorque está interessado em comprar o livro!

- Por quanto?

Perguntei isto porque tinha esperança que fosse o suficiente. Aquilo podia representar o nosso bilhete para sairmos de Viena: o bilhete que o segundo Hotel New Hampshire nunca nos pagaria.

- Valha-me Deus! A tua irmã tem um êxito literário e tu perguntas "por quanto?". És mesmo como o Frank. Também foi isso que ele perguntou.

- Tanto melhor para ele.

Ainda estava a tremer. Andava à procura de uma prostituta e tinha encontrado a minha irmã. E esta mantinha-me abraçado a ela, sem me deixar ir embora.

- Onde é que estiveste? - perguntou-me a Franny, pondo-me o cabelo para trás.

- Com a Fehlgeburt - disse eu, embaraçado. Nunca menti à Franny. Ela franziu as sobrancelhas:

- Então, e que tal?

Continuou agarrada a mim, mas como uma irmã.

- Nada de especial. Desviei o olhar.

- Horrível - acrescentei depois.

A Franny pôs os braços à minha roda e beijou-me. Ela ia beijar-me na face (como uma irmã), mas eu voltei-me para ela, embora estivesse a tentar desviar-me, e os nossos lábios encontraram-se. Aquilo foi o termo do Verão de 1964; fez-se subitamente Outono. Eu tinha vinte e dois anos e a Franny vinte e três. Beijámo-nos longamente. Não havia nada para dizer. Ela não era lésbica. Continuava a escrever ao Júnior Jones - e ao Chipper Dove - e eu nunca tinha sido feliz com outra mulher; por enquanto não; ainda não. Ficámos na rua, fora da zona iluminada pelo letreiro de néon, de modo que ninguém no Hotel New Hampshire nos podia ver. Tivemos de interromper o nosso beijo quando apareceu um cliente da Jolanta a sair do hotel a cambalear, e voltámos a interrompê-lo quando ouvimos a Screaming Annie. Daí a pouco saiu o seu estonteado cliente, mas a Franny e eu permanecemos na Krugerstrasse. Mais tarde, a Babette regressou a casa. Depois foi a vez da Jolanta, levando consigo a Dark Inge. A Screaming Annie saiu e entrou, saiu e entrou, como uma maré. A Old Billig prostituta atravessou a rua para o Kaffee Mowatt e sentou-se a uma mesa, sonolenta. Levei a Franny até à Kãrntnerstrasse, e depois descemo-la em direcção à Ópera.

- Pensas de mais em mim - começou a Franny a dizer, mas não se deu ao trabalho de acabar.

Beijámo-nos mais. A Ópera, ao nosso lado, era imensa.

- Eles vão fazer isto ir pelos ares - segredei eu para a minha irmã. - Vão fazer a Ópera ir pelos ares.

Ela deixou-me agarrá-la.

- Eu amo-te é de mais - disse-lhe eu.

- Também eu te amo, merda! - respondeu a Franny.

Embora o tempo já estivesse outonal, podíamos estar ali, a vigiar a Ópera, até a claridade aparecer e as pessoas normais começarem a sair para o trabalho. De qualquer forma, não havia nenhum lugar para onde pudéssemos ir - e absolutamente nada, sabíamo-lo bem, que devêssemos fazer.

- Mantém-te afastado das janelas abertas - segredámos um ao outro. Quando finalmente regressámos ao Hotel New Hampshire, a Ópera

ainda lá estava - em segurança. Durante mais algum tempo, pensei eu.

- Mais a salvo do que nós - comentei eu para a Franny. - Mais a salvo que o amor.

- Deixa-me dizer-te uma coisa, miúdo - disse a Franny, apertando-me a mão. - Tudo é mais seguro do que o amor.

 

         UMA NOITE NA ÓPERA: SCHLAGOBERS E SANGUE

- Meninos, meninos - disse-nos o Pai -, temos de ter muito cuidado. Penso que estamos no ponto de viragem, miúdos - continuou o Pai, como se ainda tivéssemos oito, nove, dez anos, e por aí fora, e nos estivesse a contar como tinha conhecido a Mãe no Arbuthnot-by-the-Sea, naquela noite em que viram pela primeira vez o Freud, com o State O'Maine.

- Há sempre um ponto de viragem - disse o Frank, filosoficamente.

- Muito bem, suponhamos que há - disse a Franny, com impaciência. - Mas que ponto de viragem é este, exactamente?

- Isso! - disse a Susie, olhando para a Franny com toda a atenção.

A Susie foi a única pessoa que reparou que a Franny e eu havíamos estado fora toda a noite. A Franny disse-lhe que tínhamos ido a uma festa perto da universidade, com pessoas que a Susie não conhecia. E o que é que havia de mais seguro do que ser acompanhada pelo irmão, e ainda por cima halterofilista? De qualquer modo, a Susie não gostava de festas; se fosse como urso não teria ninguém com quem falar, se não fosse como urso também ninguém se mostraria interessado em falar com ela. Estava de mau humor e amuada.

- Na minha opinião, há uma data de merdas que têm de ser resolvidas a correr - disse a Susie.

- Exactamente - disse o Pai. - É essa a situação típica de um ponto de viragem.

- Não podemos desperdiçar esta oportunidade - disse o Freud. - Acho que já não sobram muitos mais hotéis dentro de mim.

O que até nem era mau, pensei eu, tentando desviar o meu olhar da Franny. Estávamos todos no quarto do Frank, que fazia de sala de reuniões - como se o manequim fosse uma presença moderadora, um fantasma silencioso da Mãe, do Egg, ou do Iowa Bob. A acreditar no Frank, o manequim devia ter algum dom de irradiar certas ondas, e nós com certeza que as captávamos.

- Quanto é que podemos receber pelo romance, Frank? - perguntou o Pai.

- O livro é da Lilly - disse a Franny. - Não é nosso.

- De certo modo, é - disse a Lilly.

- Precisamente - interveio o Frank. - E da maneira como eu vejo a edição de uma obra, a questão agora já não está nas mãos dela. Agora ou somos levados ou ganhamos um balúrdio.

- É só sobre o crescimento - disse a Lilly. - Estou meia admirada de eles se terem interessado.

- Só se interessaram cinco mil dólares, Lilly - disse a Franny.

- Para nos irmos embora precisamos de quinze mil a vinte mil - disse o Pai. E acrescentou: - Se tivermos hipóteses de fazer alguma coisa com eles na América.

- Não se esqueçam de que vamos receber também algum por este local - disse o Freud, na defensiva.

- Depois de apitarmos a denunciar os malditos bombistas, não - disse a Susie.

- Vai haver um destes escândalos - corroborou o Frank - que não aparecerá um único comprador.

- De uma coisa podem estar certos: se denunciarmos o que quer que seja, teremos a Polícia à perna - disse o Freud. - Vocês não conhecem a nossa Polícia, nem os seus métodos da Gestapo. Vão acabar por arranjar uma história qualquer para nos entalarem, por causa das putas.

- Bem, há muito por onde nos pegarem - disse a Franny.

Não conseguíamos olhar um para o outro; quando a Franny falou, olhei pela janela. Vi o Old Billig radical a atravessar a rua. Vi a Screaming Annie a arrastar-se para casa.

- Não temos outra alternativa senão denunciá-los - disse o Pai. - Se eles pensam de facto que podem fazer saltar a Ópera, não vale a pena falar com eles.

- Nunca falámos com eles - disse a Franny. - Limitámo-nos a ouvir.

- Eles são loucos; sempre o foram - disse eu ao Pai.

- Tu não sabias isso, Paizinho? - perguntou a Lilly.

O Pai deixou pender a cabeça. Tinha quarenta e quatro anos e um cinzento distinto a tingir-lhe o espesso cabelo castanho sobre as têmporas; nunca usara patilhas, e o cabelo estava cortado de uma maneira uniforme, pelo meio da orelha e da testa, cobrindo apenas a nuca; nunca o tinha desbastado. Usava franja, como um rapazinho, e o cabelo ajustava-se-lhe tão bem à cabeça que à distância a que nos encontrávamos por vezes dava a impressão que o Pai tinha um capacete.

- Tenho muita pena, meninos - disse o Pai, abanando a cabeça. - Sei que isto não é muito agradável, mas sinto que estamos no ponto de viragem.

Abanou mais um bocado a cabeça. Parecia-nos verdadeiramente perdido, e só mais tarde o recordei na cama do Frank, naquele quarto que parecia um atelier de modista, com uma aparência mesmo muito elegante e um ar de quem tem tudo sob controle.

O Pai sempre fora bom a criar a ilusão de que tinha tudo sob controle: o Urrr, por exemplo. Nunca levantara pesos, como o Iowa Bob, ou como eu, mas tinha mantido uma figura atlética e conservado o seu ar juvenil - "um ar demasiado juvenil", como dizia a Franny. Ocorreu-me que ele se devia sentir só. Em sete anos não tivera nenhuma ligação! E se recorria às prostitutas era muito discreto com isso - e naquele Hotel New Hampshire quem é que podia ser assim tão discreto?

- Ele não vai com nenhuma delas - dissera a Franny. - Se fosse, eu sabia de certeza.

- Os homens são matreiros - dissera o urso Susie. - Mesmo os tipos porreiros.

- Então, ele não o faz, está tudo dito - decidira a Franny. O urso encolhera os ombros e a Franny dera-lhe um soco.

Mas, no quarto do Frank, foi o Pai quem trouxe à baila as prostitutas.

- Temos de lhes dizer o que vamos fazer com os malucos dos radicais - justificou-se o Pai - antes de comunicarmos à Polícia.

- Porquê? - perguntou-lhe a Susie. - Para elas poderem ir denunciar-nos a nós?

- E porque é que elas haviam de fazer uma coisa dessas? - perguntei eu à Susie.

- Temos de lhes dizer para elas poderem pensar no que vão fazer à vida - disse o Pai.

- Têm de mudar de hotel - disse o Freud. - A porcaria da Polícia vai fechar-nos a porta. Neste país, as pessoas são condenadas por simples associação. Perguntem a qualquer judeu!

Perguntem ao outro Freud, pensei eu.

- Mas suponhamos que nós éramos os heróis desta história - disse o Pai, e todos olhámos para ele.

Ah, isso seria uma maravilha, pensei eu.

- Como no livro da Lilly? - perguntou o Frank ao Pai.

- Suponham que a Polícia nos vai considerar uns heróis por desmascararmos a conspiração dos bombistas - continuou o Pai.

- A Polícia não vê as coisas dessa maneira - contrapôs o Freud.

- Suponham então que, como americanos - insistiu o Pai -, comunicamos o facto ao Consulado americano, ou à Embaixada, e alguém daí transmite a informação às autoridades austríacas, como se esta coisa toda fosse uma espécie de intriga verdadeiramente ultra-secreta e de primeira classe.

- É por isso que eu gosto de ti, Win Berry! - exclamou o Freud, marcando o compasso de alguma melodia interior com o taco de basebol. - Realmente és mesmo um sonhador! Isto não é nenhuma intriga de primeira classe! Isto é um hotel de segunda classe. Até eu consigo ver isso. E, para o caso de ainda não terem reparado, sou cego. E os outros também não são nenhuns terroristas de primeira classe - continuou o Freud. - Nem sequer conseguem manter em funcionamento um carro em perfeito estado! Cá por mim, nem sequer acredito que eles saibam como rebentar com a Ópera! Estou convencido que estamos em absoluta segurança. Se eles tivessem uma bomba, provavelmente já teriam caído pela escada abaixo com ela!

- A bomba é o carro todo - disse eu. - Ou a bomba principal, pelo menos, o que quer que isso seja. Foi o que disse a Fehlgeburt.

- Vamos falar com a Fehlgeburt - disse a Lilly. - Tenho confiança nela - acrescentou.

A Lilly tentava perceber como é que a rapariga que fora virtualmente a sua professora durante sete anos estava agora tão decidida a destruir-se. E se a Fehlgeburt tinha sido a professora da Lilly, a Schwanger tinha sido a sua ama.

Mas nós não voltaríamos a ver a Fehlgeburt. Parti do princípio que era a mim que ela não queria ver; e que via os outros. No fim do Verão de 1964 - à medida que a "temporada de Outono" se avizinhava -, eu fazia os possíveis por não estar a sós com a Franny, e esta tentava por todos os meios convencer a Susie de que, embora nada tivesse mudado entre elas, era melhor que ficassem apenas "boas amigas".

- A Susie é tão insegura - disse-me a Franny. - Quer dizer, ela até é amorosa, como diria a Lilly, mas estou a tentar cortar com ela sem minar a pouca confiança que eu lhe possa ter incutido. Isto é, ela começava agora mesmo a gostar de si própria, só um bocadinho. Eu estava quase a fazê-la acreditar que não era tão feia como isso; agora, como a ando a rejeitar, está outra vez a tornar-se um urso.

- Amo-te - disse eu à Franny, de cabeça baixa. - Mas o que é que nós vamos fazer.

- Vamo-nos amar um ao outro - disse a Franny -, mas não vamos fazer nada.

- Nunca, Franny?

- Pelo menos, por agora, não.

Mas as mãos dela deslizaram-lhe pelo regaço, por sobre os joelhos cerrados, e pararam no meu regaço, onde ela me apertou a coxa com tanta força que dei um salto.

- Pelo menos aqui, não - segredou ela, ferozmente, e depois largou-me. - Talvez seja só desejo - acrescentou. - Queres experimentar irmos matar o desejo com outra pessoa qualquer a ver se ele entre nós desaparece?

- Com quem? - perguntei.

Era ao fim da tarde, no quarto dela. Nunca me atrevia a ficar no quarto da Franny depois de escurecer.

- Em qual delas estás a pensar? - perguntou-me a Franny.

- Na Jolanta - respondi eu, enquanto a minha mão, voava involuntariamente para o lado e ia derrubar um quebra-luz.

A Franny voltou-me as costas.

- Bem, sabes em quem é que eu estou a pensar, não sabes? - perguntou ela.

- No Ernst - disse eu, e os meus dentes começaram a bater, tal o frio que me invadiu.

- Agrada-te a ideia? - perguntou ela.

- Não, merda! - sussurrei eu.

- Tu e a tua mania de sussurrares - exclamou a Franny. - Pois também eu não gosto de te imaginar com a Jolanta.

- Então não vamos fazer nada.

- Receio bem que vamos.

- Porquê, Franny?

Atravessei o quarto na direcção dela.

- Não, pára! - gritou ela, pondo-se de maneira a que a sua secretária ficasse parcialmente entre nós; havia um frágil candeeiro de pé no caminho.

Anos mais tarde, a Lilly enviar-nos-ia um poema a ambos. Quando o li, telefonei à Franny para saber se a Lilly lhe tinha enviado uma cópia. É claro que tinha. O poema era de um poeta muito bom chamado Donald Justice, e eu viria a ter um dia a oportunidade de ouvir o Sr. Justice ler os seus poemas em Nova Iorque. Gostei de todos, mas ouvia-o com a respiração suspensa enquanto ele recitava, por um lado com esperança que lesse o poema que a Lilly tinha enviado à Franny e a mim e, por outro lado, com medo que o fizesse. Não o leu, e eu fiquei sem saber o que fazer depois da sessão. Havia pessoas a falar com ele, mas pareciam amigos - ou talvez fossem outros poetas. A Lilly disse-me que os poetas dão sempre a ideia de serem todos amigos uns dos outros. Mas eu não sabia o que fazer; se a Franny estivesse comigo, teríamos os dois rodopiado em direcção do Donald Justice, que ficaria fascinado pela Franny, penso eu - toda a gente fica. O Sr. Justice parecia um verdadeiro cavalheiro e não quero sugerir que ele se fosse atirar a ela. Acho que, tal como os seus poemas, ele seria cândido e formal, austero, mesmo grave - mas aberto e até generoso. Parecia o tipo de homem a quem se pede para fazer uma elegia de alguém que se amou. Acho que ele podia ter feito uma sobre o Iowa Bob de partir o coração, e - olhando para ele após o seu recital de poesia em Nova Iorque, rodeado de admiradores elegantes - desejei que tivesse escrito e recitado uma espécie de elegia sobre a Mãe e o Egg. De certo modo, ele escreveu mesmo uma elegia sobre o Egg; escreveu um poema chamado Sobre a Morte de Amigos na Infância, que eu tomei muito pessoalmente como uma elegia sobre o Egg. O Frank e eu gostamos muito dele, mas a Franny diz que aquele poema a põe demasiado triste.

 

SOBRE A MORTE DE AMIGOS NA INFÂNCIA

Nunca os encontraremos de barba no rosto, no céu,

Nem ao sol por entre a aridez do inferno;

Quando muito, no pátio deserto da escola, ao crepúsculo,

Numa roda, talvez, ou de mãos dadas Em jogos cujos nomes já esquecemos. Venham, recordações, procuremo-los além entre as sombras.

 

Mas quando vi o Sr. Justice em Nova Iorque estava a pensar sobretudo na Franny e no poema Estratagemas de Amor - que era o nome do poema que a Lilly enviara à Franny e a mim. Eu nem sabia o que dizer ao Sr. Justice. Estava mesmo demasiado embaraçado para lhe apertar a mão. Suponho que lhe teria dito quanto gostaria de ter lido o poema Estratagemas de A mor quando estava em Viena com a Franny, no beco sem saída do Verão de 1964.

- Mas isso teria servido para alguma coisa? - perguntou-me a Franny mais tarde. - Teríamos acreditado nisso, nessa altura?

Eu nem sequer sei se o Donald Justice escreveu Estratagemas de Amor em 1964. Mas penso que sim; parece escrito para a Franny e para mim.

- Pouco importa - como diria o Frank.

De qualquer forma, passados uns anos, a Franny e eu recebemos Estratagemas de Amor pelo correio, expedido pela nossa querida e pequena Lilly, e uma noite lemos o poema um ao outro pelo telefone. Tenho tendência para sussurrar quando leio qualquer coisa boa em voz alta, mas a voz da Franny soou forte e nítida.

 

ESTRATAGEMAS DE AMOR

Mas estas manobras para evitar Que as mãos se toquem,

Este virar de cabeça para manter os olhos ocupados Em objectos mais ou menos neutros (Como a honra, por agora, manda) Dificilmente evitarão a sua queda.

São necessários remédios mais fortes.

Eles já descobrem

Que nenhum dos seus estratagemas resultou,

Nem poderia ter resultado,

Ainda que lhes tivessem vazado os olhos

Ou cortado as mãos pelos cotovelos.

 

E, de facto, eram necessários remédios mais fortes. Ainda que as nossas mãos tivessem sido cortadas pelos cotovelos, a Franny e eu ter-nos-íamos acariciado com os cotos - com o que quer que nos restasse, cegos ou não.

Mas nessa tarde, no quarto dela, fomos salvos pelo urso Susie.

- Está a passar-se qualquer coisa - disse a Susie, irrompendo pelo quarto dentro.

A Franny e eu ficámos à espera; pensámos que ela se referia a nós - que ela já sabia tudo.

 

A Lilly sabia, é claro. Não sei como, mas devia saber.

- Os escritores sabem tudo - dissera a Lilly uma vez. - Ou deviam saber. Têm de saber. Ou então têm de ficar calados.

- A Lilly deve ter percebido tudo desde o princípio - dissera-me a Franny no telefonema interurbano daquela noite em que descobrimos Estratagemas de Amor.

A ligação não estava boa e a linha crepitava cheia de ruídos - como se a Lilly estivesse a escutar. Ou o Frank - o Frank, como já disse, tinha nascido para o papel de ficar à escuta do amor.

- Ei, vocês dois. Está a passar-se qualquer coisa - repetiu o urso Susie, ameaçador. - Eles não encontram a Fehlgeburt.

- Quem são "eles"? - perguntei eu.

- O rei da pornografia e o seu bando de sacanas - disse a Susie. - Andam a perguntar-nos se vimos a Fehlgeburt. E a noite passada perguntaram às prostitutas.

- Ninguém a viu? - perguntei eu.

Senti o sopro frio cada vez mais familiar a subir-me pelas pernas das calças; um bafo de morte que provinha dos túmulos dos Habsburgos, de coração arrancado do peito.

Há quantos dias estávamos à espera enquanto o Pai e o Freud se guerreavam sobre a hipótese de arranjar alguém que comprasse o Hotel New Hampshire antes de irem denunciar os bombistas à Polícia? E quantas noites tínhamos perdido a discutir se devíamos comunicar a coisa ao Consulado americano, ou à Embaixada, e serem eles a informar a Polícia, ou se devíamos dirigir-nos directamente à Polícia austríaca? Quando se está apaixonado pela irmã, perde-se em grande medida a visão do mundo real. O maldito Welt, como dizia o Frank.

O Frank perguntou-me:

- Em que andar vive a Fehlgeburt? Já foste ao quarto dela. Vive num andar alto?

A Lilly, a escritora, percebeu logo a pergunta, mas naquele momento aquilo não fez sentido para mim.

- É no primeiro andar - respondi eu. - É apenas um lanço de escadas.

- Não é suficientemente alto - disse a Lilly, e foi então que eu percebi. Não era suficientemente alto para saltar pela janela. Era isso que ela

queria dizer. Se a Fehlgeburt tivesse finalmente decidido não se manter afastada das janelas abertas, precisara de ter arranjado outra maneira.

- Já sei - exclamou o Frank, agarrando-me no braço. - Se ela se armou em rei dos ratos, provavelmente ainda lá está.

O que eu senti, ao atravessar a Praça dos Heróis e ao subir o Ring em direcção à Rathaus, não foi só uma pequena falta de fôlego; para uma corrida de velocidade, a distância era demasiado grande, mas eu estava em forma. Sentia-me um tanto ou quanto ofegante, a esse respeito não há dúvida, mas sentia-me sobretudo culpado - embora não pudesse ter sido eu o único responsável. Não podia ter sido eu a razão principal pela qual a Fehlgeburt tinha deixado de se afastar das janelas abertas. E não havia indícios, disseram eles depois, que ela tivesse feito grande coisa após eu me ter ido embora. Talvez tenha lido um pouco do Moby Dick, pois a Polícia era muito minuciosa e verificou mesmo onde é que ela havia deixado a marca. E é claro que eu sei que a página onde ela tinha interrompido a leitura não estava marcada quando eu saí. Curiosamente, ela colocou a marca onde parara quando me tinha estado a ler - como se tivesse passado toda a noite a reler o livro até se ter decidido pela solução da janela aberta. A maneira de a Fehlgeburt pôr em prática esta solução tinha passado por uma pequena pistola de que eu desconhecia a existência. A carta de despedida era simples e não era dirigida a ninguém, mas eu sabia que se destinava a mim.

 

Na noite em que

viste a Schwanger

não me viste

a mim. Também tenho

uma pistola! "E

assim vamos teimando..."

 

concluía a Fehlgeburt, citando o final favorito da Lilly.

Na verdade, nunca cheguei a ver a Fehlgeburt. Esperei à porta, no corredor, pelo Frank. O Frank não estava em grande forma, pelo que ainda demorou algum tempo até se reunir a mim à porta do quarto dela. Este tinha uma entrada privativa por uma escada das traseiras que as pessoas do velho prédio de apartamentos só usavam para pôr lá fora o lixo. Provavelmente pensaram que aquele cheiro provinha justamente do lixo. O Frank e eu não chegámos a abrir a porta. O cheiro que se sentia cá fora era pior do que alguma vez fora o cheiro do Sorrow.

- Já vos disse, já vos disse a todos - afirmou o Pai. - Encontramo-nos no ponto de viragem. Estão prontos?

Via-se que ele não sabia o que fazer.

O Frank devolvera o contrato da Lilly para Nova Iorque. Como seu "agente", tinha ele dito, não podia aceitar uma oferta tão fraca pelo que era manifestamente uma obra de génio - "um génio ainda a florescer", acrescentou o Frank, embora ainda não tivesse lido A Tentar Crescer. O Frank acentuou o facto de a Lilly ter apenas dezoito anos. "Tem ainda muito que crescer", concluiu ele. Qualquer editor faria bem em entrar no titânico edifício de literatura que a Lilly ia construir (segundo o Frank) "pelo rés-do-chão".

O Frank pediu quinze mil dólares - e a promessa de outros quinze mil para publicidade. "Não vamos deixar que uma questãozinha económica se interponha entre nós", argumentou ele.

- Se nós sabemos que a Fehlgeburt morreu - disse a Franny -, então os radicais também vão ficar ao corrente.

- Basta um cheirinho - corroborou o Frank, mas eu não disse nada.

- Já quase que consegui um comprador - disse o Freud.

- Há alguém que queira o hotel? - perguntou a Franny.

- Querem transformá-lo num prédio de escritórios - disse o Freud.

- Mas a Fehlgeburt morreu - interveio o Pai. - Agora temos de dizer à Polícia, temos de contar tudo.

- Contem-lhes esta noite - propôs o Frank.

- Contem aos americanos - contrapôs o Freud. - E contem à Polícia amanhã. Entretanto, contem tudo esta noite às putas.

- Pois, é melhor avisar as putas esta noite - corroborou o Pai.

- E amanhã de manhã cedo - disse o Frank - vamos ao Consulado americano, ou à Embaixada. Aonde è que devemos ir?

Apercebi-me de que não sabia o que é que servia para o quê, ou quem é que era melhor para contar a quem. Demo-nos conta de que o Pai também não o sabia.

- Bem, no fim de contas, somos muitos - disse o Pai, timidamente. - Uns vão ao Consulado, enquanto outros vão falar com o embaixador.

Tornou-se-me evidente nessa altura como qualquer de nós desconhecia quase completamente o que se devia fazer vivendo no estrangeiro: nem sequer sabíamos se a Embaixada americana e o Consulado americano ficavam no mesmo edifício - na nossa ignorância, não sabíamos a diferença entre uma Embaixada e um Consulado. Tornou-se-me evidente também nessa altura o que aqueles sete anos tinham feito ao Pai: ele perdera o carácter decidido que devia ter tido naquela noite em Dairy, New Hampshire, em que levara a minha mãe a passear no Elliot Park e a convencera com o seu projecto de converter o Thompson Female Seminary num hotel. Primeiro perdera o Urrr - que lhe tinha proporcionado os seus estudos. E quando perdeu o Iowa Bob, perdeu também o instinto deste. O Iowa Bob era um homem treinado para agarrar uma bola com ressaltos imprevisíveis - um instinto precioso, sobretudo na hotelaria. E agora podia ver o que a tristeza e a dor tinham custado ao Pai.

- O senso comum - disse a Franny mais tarde.

- Ele não estava a jogar com o baralho todo - diria o Frank.

- Vai tudo correr bem, Pai - sentiu-se a Franny impelida a dizer-lhe nessa tarde na antiga Gasthaus Freud.

- Claro, Pai! - corroborou o Frank. - Vamos voltar para a América!

- Vou ganhar milhões, Pai - disse a Lilly.

- Vamos dar uma volta, Pai - propus-lhe eu.

- Quem é que vai dizer às putas? - perguntou ele, com ar perplexo.

- Basta dizerem a uma que ficam logo todas a saber - disse a Franny.

- Não - discordou o Freud. - Às vezes fazem segredo umas com as outras. Eu digo à Babette.

A Babette era a preferida do Freud.

- Eu digo à Old Billig - informou a Susie.

- E eu à Screaming Annie - disse o meu pai, que parecia confuso. Ninguém se ofereceu para dizer à Jolanta, pelo que eu me propus a fazê-lo. A Franny olhou para mim, mas eu desviei os olhos. Vi que o Frank estava concentrado no manequim; aguardava com esperança quaisquer ondas inspiradoras. A Lilly foi para o quarto. Parecia tão pequena, pensei eu - é claro, ela era tão pequena. Deve ter ido para o quarto tentar crescer mais um bocado - escrever sem descanso. Quando fazíamos as nossas conferências de família no segundo Hotel New Hampshire, a Lilly continuava a ser tão pequena que o Pai parecia esquecer-se que ela tinha dezoito anos; às vezes pegava nela e sentava-a ao colo, brincando com o seu rabo-de-cavalo. A Lilly não se importava. A única coisa de que gostava em ser tão pequena, disse-me ela, era o Pai continuar a tratá-la como se fosse ainda uma criança.

- A nossa criança escritora - dizia o Frank, às vezes, quando se referia a ela.

- Vamos dar uma volta, Pai - repeti eu. Não tinha a certeza de ele me ter ouvido.

Atravessámos o vestíbulo; alguém tinha entornado um cinzeiro no sofá decrépito em frente do balcão da recepção, e percebi que devia ter sido o dia de a Susie limpar a entrada.

A Susie era bem-intencionada, mas completamente desleixada. Quando era o seu dia de limpar a entrada, aquilo parecia uma espelunca.

A Franny estava de pé ao fundo das escadas, a olhar para cima. Não me lembrava de quando é que ela havia mudado de roupa, mas de súbito pareceu-me que se tinha arranjado. Tinha posto um vestido. A Franny não era do género de pessoa sempre de bluejeans e T-shirt - gostava de saias e de blusas soltas -, mas também não era forte em vestidos, e agora tinha um verde-escuro muito bonito, com alças fininhas.

- Já estamos no Outono - disse-lhe eu. - Isso é um vestido de Verão. Vais ter frio.

- Eu não vou sair - respondeu ela, continuando de olhos fixos nas escadas.

Olhei para os seus ombros nus e senti frio. Era ao fim da tarde, mas ambos sabíamos que o Ernst ainda não estava despachado - continuava a trabalhar, lá em cima, no quinto andar. A Franny começou a subir as escadas.

- Vou só sossegá-lo - disse-me ela, mas sem olhar para mim ou para o Pai. - Não se preocupem. Não lhe vou contar o que sabemos. Vou-me fazer de parva. Vou só tentar descobrir o que é que ele sabe.

- Mas ele é um canalha, Franny - exclamei eu.

- Eu sei - respondeu ela. - E acho que pensas demasiado em mim. Levei o Pai lá para fora, para a Krugerstrasse. Era ainda muito cedo

para as prostitutas, mas o dia de trabalho há muito que havia terminado: as pessoas que viviam na periferia já tinham recolhido aos seus subúrbios, e só a gente elegante andava a passear, a fazer tempo para o jantar, ou para a Ópera.

Descemos pela Kãrntnerstrasse até ao Graben e contemplámos, como era da praxe, a catedral de São Estêvão. Entrámos no Neuer Markt e olhámos os nus da fonte de Donner. Percebi que o Pai não sabia nada sobre eles, pelo que lhe contei a história abreviada das medidas repressivas de Maria Teresa. Pareceu genuinamente interessado. Passámos pela entrada do Hotel Ambassador, toda em escarlate e ouro luxuriantes, que dava para o Neuer Markt. O Pai evitou olhar para o Ambassador, ou então estava a olhar para os pombos que sujavam a fonte com os seus excrementos. Prosseguimos a caminhada. Ainda havia claridade durante algum tempo. Quando passámos em frente do Kaffee Mozart, o Pai disse:

- Parece um sítio agradável. Tem muito melhor aspecto do que o Kaffee Mowatt.

- É verdade - corroborei eu, tentando esconder a minha surpresa por ele nunca ter ido ali.

- Não me posso esquecer de vir cá um dia - disse ele.

Procurei que o passeio tomasse outro caminho, mas viemos dar ao Hotel Sacher na altura em que a claridade do céu começava a desaparecer - e quando se acenderam as luzes no Bar Sacher. Parámos a vê-las iluminar o bar; acho que aquele era pura e simplesmente o bar mais bonito do mundo. In den ganzen Welt, diz o Frank.

- Vamos tomar aqui uma bebida - disse o Pai.

E entrámos. Fiquei um pouco embaraçado pela maneira como ele estava vestido. Eu não estava mal. É assim que eu pareço sempre - não estar mal vestido. Mas de súbito o Pai pareceu-me um pouco maltrapilho. Apercebi-me de que as calças dele estavam tão amarrotadas que as suas pernas pareciam duas chaminés - só que em forma de sacos. Ele tinha emagrecido em Viena. O facto de não cozinharmos em casa tornara-o um pouco mais magro, e o cinto demasiado comprido não ajudava nada. Na realidade, reparei que o cinto não era dele, mas do Frank. Tinha-o pedido emprestado. Trazia uma camisa às risquinhas cinzentas e brancas, muito desbotada, que estava bem - lembrei-me que fora minha até que a prática dos pesos e halteres havia modificado o meu tórax. Agora já não me servia, mas não era uma camisa ordinária, só estava desbotada e um pouco amarrotada. O que não condizia era a camisa ser às riscas e o casaco aos quadrados. Graças a Deus que ele nunca usava gravata - arrepiei-me só de pensar que gravata ele poria com aquelas roupas. Depois percebi que ninguém no Sacher ia ser indelicado connosco, porque vi pela primeira vez qual era realmente o aspecto do meu pai. Parecia um milionário excêntrico, o homem mais rico do mundo, mas um homem que se estava nas tintas para a opinião dos outros. Parecia exibir aquela combinação de generosidade e de moleza que só os muito ricos têm; podia usar fosse o que fosse que parecia sempre que tinha um milhão de dólares no bolso - ainda que esse bolso tivesse um buraco no fundo. Havia algumas pessoas incrivelmente bem vestidas e com ar próspero no Bar Sacher, mas quando o meu pai e eu entrámos olharam todas para ele com uma espécie de inveja aflitiva. Acho que o Pai se apercebeu disso, embora normalmente se apercebesse muito pouco do que se passava no mundo real. E de certeza que também não se apercebia, na sua ingenuidade, da maneira como as mulheres olhavam para ele. Havia pessoas no Bar Sacher que tinham gasto mais de uma hora a vestir-se, e o meu pai era um homem que vivia em Viena há sete anos e não gastara no total mais de um quarto de hora a comprar roupa. Usava o que a minha mãe lhe tinha comprado e o que pedia emprestado ao Frank e a mim.

- Boa noite, Mr. Berry - disse-lhe o empregado do bar, e nesse momento compreendi que o Pai costumava ir ali com frequência.

- Guten Abend - respondeu o Pai.

Aquilo era praticamente tudo quanto ao alemão do Pai. Também sabia dizer Bitte, Danke e Auf Wiedersehen. E fazia umas vénias magníficas.

Pedi uma cerveja e o meu pai "o costume". "O costume" do Pai era uma bebida com um aspecto horroroso, uma mistela à base de uísque ou de rum mas que mais parecia uma taça de gelado. Ele não era uma pessoa que gostasse de beber; deu um ou dois goles e depois passou horas a brincar com o resto. Não ia ali pela bebida.

A melhor gente de Viena parava ali, e os hóspedes do Hotel Sacher faziam planos ou encontravam-se com as pessoas com quem iam jantar no Bar Sacher. É claro que o empregado nunca soube que o meu pai vivia no terrível Hotel New Hampshire, apenas a alguns minutos dali - e andando devagar. Gostava de saber de onde é que o empregado pensava que o meu pai vinha. Certamente de um iate, ou pelo menos do Bristol, do Ambassador ou do Imperial. E dei-me conta de que o Pai nunca precisara do smoking branco para se integrar no meio.

- Bom - disse-me o Pai, calmamente, no Bar Sacher. - Bom, John, sou um fracasso. Não me ocupei de vocês como devia.

- Não diga isso - retorqui eu.

- Agora é voltar para a terra da liberdade - disse ele, agitando a sua bebida de aspecto nauseante com o indicador, que depois chupava. - E acabaram-se os hotéis - continuou ele, suavemente. - Vou ter de arranjar um emprego.

Ele disse aquilo da mesma maneira que uma pessoa podia dizer que tinha de ser operada. Eu detestava vê-lo ficar cercado pela realidade.

- E vocês vão ter de ir para a escola - continuou ele. - Para a universidade - acrescentou, com ar sonhador.

Lembrei-lhe que já tínhamos andado todos na escola e na universidade. O Frank, a Franny e eu tínhamos mesmo concluído os nossos cursos universitários; e porque é que a Lilly devia terminar o dela - Literatura Americana - agora que já escrevera um romance?

- Oh - disse ele. - Bom, se calhar vamos todos ter de arranjar um emprego.

- Não há problema.

Ele olhou para mim e sorriu. Inclinou-se para a frente e beijou-me na face. Parecia tão absolutamente perfeito que ninguém naquele bar poderia ter pensado - um só instante - que eu era o jovem amante deste homem de meia idade. Fora um beijo de pai para filho, e as pessoas olharam para o Pai ainda com mais inveja do que a que tinham revelado quando o viram entrar.

Levou uma eternidade para parar de brincar com a bebida. Encomendou mais duas cervejas. Eu sabia o que ele estava a fazer. Estava a absorver o Bar Sacher; estava a contemplar pela última vez o Hotel Sacher; imaginando, é claro, que era ele o proprietário, que vivia ali.

- A tua mãe - disse ele - teria adorado isto tudo.

Fez um gesto quase imperceptível com a mão, e depois deixou-a repousar no colo.

Ela teria gostado de quê?, interrogava-me eu. Do Hotel Sacher e do Bar Sacher? Ah, sim, sem dúvida! Mas de que mais é que ela teria gostado? Do seu filho Frank, a deixar crescer a barba e a tentar decifrar a mensagem da sua mãe - o significado dela - num manequim de modista? Da sua filha mais velha, a Franny, a tentar descobrir tudo o que um escritor pornográfico podia saber? E teria ela gostado de mim? O filho que tinha corrigido a linguagem mas cujo maior desejo era fazer amor com a própria irmã? E a Franny também queria! Foi por isso que ela tinha ido ter com o Ernst, evidentemente.

O Pai não podia saber porque é que eu comecei a chorar, mas disse as coisas certas.

- Não vai ser assim tão mau - sossegou-me ele. - Os seres humanos são notáveis a aprender a viver com aquilo com que têm de viver - disse-me o Pai. - Se não conseguimos fortalecer com aquilo que perdemos, com aquilo de que sentimos a falta e com aquilo que queremos e não podemos ter, nunca teremos a força suficiente, não será assim? Que outra coisa nos pode fortalecer?

Toda a gente no Bar Sacher me viu a chorar e o meu pai a confortar-me. Acho que é um pouco por isso que eu acho este bar o mais maravilhoso do mundo: tem o condão de fazer com que ninguém se torne consciente de qualquer infelicidade.

Senti-me melhor com o braço do Pai a envolver-me os ombros.

- Boa noite, Mr. Berry - disse o empregado. - Auf Wiedersehen - despediu-se o Pai.

Ele sabia que nunca mais ali voltaria.

Lá fora tudo se tinha modificado. Estava escuro. Era Outono. O primeiro homem que passou por nós, caminhando apressado, trazia calças pretas, sapatos pretos de polimento e um smoking branco.

O meu pai não reparou no homem de smoking branco, mas a mim aquele símbolo, aquela recordação não me pareceram de bom agoiro. Eu sabia que o homem de smoking branco estava assim vestido certamente para ir à Ópera.

A sua pressa devia ser por estar atrasado. A "temporada de Outono", como a Fehlgeburt me tinha avisado, já pairava sobre nós. Podia-se senti-la no tempo que fazia.

A temporada de 1964 da New York Metropolitan Opera abriu com a Lúcia di Lammermoor, de Donizetti. Lera isto num dos livros de ópera do Frank, mas este afirmou que duvidava muito que a temporada em Viena abrisse com a Lúcia. Segundo ele, era provável que fosse uma coisa mais vienense: "Com o seu amado Strauss, o seu amado Mozart, ou mesmo com esse repolho alemão do Wagner." E eu nem sequer sabia se aquela noite em que eu e o Pai vimos o homem de smoking branco era a inauguração da temporada. O que não havia dúvida é que a Ópera estava em actividade.

- A versão italiana da Lúcia, de mil oitocentos e trinta e cinco, foi apresentada pela primeira vez em Viena em mil oitocentos e trinta e sete - dissera-me o Frank. - É claro que desde aí tem sido representada várias vezes. Talvez com o maior brilhantismo de sempre - acrescentara ele - quando foi com a grande Adelina Patti no papel da protagonista, particularmente na noite em que o seu vestido pegou fogo, no preciso instante em que começava a cantar a cena da loucura.

- Que cena é essa - tinha eu perguntado.

- Tens que ver para acreditar - dissera o Frank. - E mesmo assim é difícil acreditar. Mas o vestido da Patti pegou fogo quando ela estava precisamente a começar a cantar a cena da loucura. Nessa altura, o palco era iluminado por candeeiros a gás, e ela deve ter-se aproximado de mais de um deles. E sabes o que fez a grande Adelina Patti?

- Não.

- Arrancou o vestido em chamas e continuou a cantar. Aquilo é que eram uns tempos, em Viena.

E num dos livros de ópera do Frank li que a Lúcia, encarnada pela Adelina Patti, parecia destinada a este tipo de problemas. Em Bucareste, por exemplo, a famosa cena da loucura foi interrompida por um membro da assistência que caiu no fosso da orquestra - em cima de uma mulher -, e no pânico que se gerou alguém gritou "fogo". Mas a grande Adelina Patti gritou: "Não há fogo nenhum!", e continuou a cantar. E em São Francisco, um alucinado qualquer lançou uma bomba para o palco, e mais uma vez a destemida Patti fez com que a assistência ficasse presa aos seus lugares. Apesar de a bomba ter mesmo explodido.

- Era uma bomba pequena - assegurou-me o Frank.

Mas aquilo que o Frank e eu tínhamos visto ser transportado para a Ópera entre o Arbeiter e o Ernst não era uma bomba pequena; essa bomba era tão pesada como o Sorrow, essa bomba era tão grande como um urso. E é duvidoso que a Lúcia de Donizetti estivesse na Staatsoper de Viena na noite em que o Pai e eu dissemos A uf Wiedersehen ao Sacher. Por razões pessoais gosto de imaginar que era a Lúcia. Há muito sangue e Schlagobers nessa ópera - até o Frank está de acordo - e, de certa maneira, a história de um irmão que leva a irmã à loucura e provoca a sua morte, porque a força a aceitar um homem que ela não ama... bem, já estão a ver porque é que esta versão particular do sangue e Schlagobers me tinha de parecer especialmente adequada.

- Toda a chamada ópera séria é feita de sangue e Schlagobers - explicara-me o Frank.

Não sou suficientemente entendido em ópera para saber se isto é verdade; tudo quanto sei é que acho que devia ser a Lúcia di Lammermoor que estava a ser cantada na Ópera de Viena na noite em que o Pai e eu regressámos a pé do Hotel Sacher para o Hotel New Hampshire.

- A verdade é que não interessa qual era a ópera - está o Frank sempre a dizer, mas eu gostava que tivesse sido a Lúcia.

Gosto de imaginar que ainda não se tinha chegado à famosa cena da loucura quando o Pai e eu chegámos ao Hotel New Hampshire. A Susie estava no vestíbulo - sem a cabeça de urso - e chorava. O Pai passou por ela sem parecer dar-se conta de como ela estava perturbada - e sem o disfarce -, mas ele estava habituado a ursos infelizes.

Subiu as escadas. Ia comunicar à Screaming Annie as más notícias sobre os radicais, as más notícias para o Hotel New Hampshire.

- Naturalmente está com algum cliente, ou anda na rua - disse-lhe eu, mas o Pai respondeu que ia esperar por ela à porta do quarto.

Sentei-me com a Susie.

- Ela ainda lá está com ele - soluçou a Susie.

Eu sabia que, se a Franny ainda estava com o Ernst das pornografias, era porque estava a fazer mais qualquer coisa do que falar com ele. Já não havia razão para pretender ser um urso. Agarrei na cabeça de urso da Susie e enfiei-a, depois tirei-a. Eu não podia ficar para ali sentado na entrada à espera que a Franny, como uma prostituta, acabasse o serviço com ele e viesse de novo cá para baixo - e sabia que era inútil intervir. Chegaria demasiado tarde, como de costume. Desta vez não havia ninguém tão rápido como o Harold Swallow, nem havia o Braço Negro da Lei. O Júnior Jones viria de novo em socorro da Franny, mas chegaria demasiado tarde para a salvar do Ernst - e eu também. Se tivesse ficado na entrada com a Susie, teria chorado com ela, e acho que isso seria choradeira a mais para mim.

- Disseste à Old Billig? - perguntei à Susie. - Acerca dos bombistas?

- Só ficou aflita com a merda dos ursos de porcelana - disse a Susie, e continuou a chorar.

- Também eu amo a Franny - disse eu à Susie, e abracei-a.

- Mas não como eu! - exclamou a Susie, abafando um soluço. Sim, como tu, pensei eu.

Dirigi-me para as escadas, mas a Susie interpretou-me mal.

- Estão algures no terceiro andar - disse a Susie. - A Franny veio cá abaixo buscar uma chave, mas não vi o número do quarto.

Olhei para o balcão da recepção. Via-se logo que era a noite da Susie, dada a grande desordem que aí reinava.

- Vou procurar a Jolanta - disse eu. - Não é a Franny.

- Vais dizer-lhe, não? - perguntou a Susie.

Mas a Jolanta não estava interessada em que lhe dissessem nada.

- Tenho uma coisa para te dizer - informei-a eu da parte de fora da porta do quarto.

- São trezentos xelins.

E eu fi-los deslizar por baixo da porta.

- Muito bem, podes entrar.

Estava sozinha. Aparentemente tinha acabado de sair um cliente, pois ela estava sentada no bidé, com o soutien vestido.

- Queres com as mamas à mostra? As mamas são mais cem xelins.

- Tenho uma coisa para te dizer.

- Isso também são mais cem xelins.

Disse isto enquanto se lavava com a despreocupação e a falta de energia de uma dona de casa a lavar a louça. Dei-lhe outros cem xelins e ela tirou o soutien.

- Despe-te - ordenou ela. Obedeci, ao mesmo tempo que lhe dizia:

- São esses cretinos desses radicais. Deitaram tudo a perder. Querem fazer explodir a Ópera.

- E daí? - retorquiu a Jolanta a ver-me despir. - O teu corpo está basicamente errado. No fundo, és um rapazinho com grandes músculos.

- Posso precisar de te pedir emprestado o que tens na carteira - disse-lhe eu -, só até a Polícia tomar as coisas em mãos.

Mas a Jolanta ignorou isto.

- Gostas de pé, encostado à parede? - perguntou ela. - É assim que queres? É que se usarmos a cama, se eu tiver que me deitar, são cem xelins extra.

Encostei-me à parede e fechei os olhos.

- Jolanta - disse eu. - Eles não são para brincadeiras. A Fehlgeburt morreu. E esses loucos têm uma bomba. Uma bomba enorme.

- A Fehlgeburt já nasceu morta - retorquiu ela, flectindo os joelhos e começando a chupar-me.

Depois pôs-me um preservativo. Tentei concentrar-me, mas quando ela se pôs de pé encostada a mim e me meteu dentro dela, entalando-me de encontro à parede, informou-me imediatamente que eu não era suficientemente alto para fazer aquilo de pé. Paguei mais cem xelins e tentámos a coisa na cama.

- Agora não estás suficientemente teso - queixou-se ela. Comecei a pensar se o facto de não estar suficientemente teso não me iria

custar mais cem xelins.

- Por favor, não dês a entender aos radicais que estás ao corrente - disse eu. - E talvez fosse melhor para ti se saísses daqui durante uma temporada: ninguém sabe bem o que é que vai acontecer ao hotel. Nós vamos voltar para a América - acrescentei.

- Está bem, está bem - disse a Jolanta, empurrando-me de cima dela.

Levantou-se da cama, atravessou o quarto e foi sentar-se outra vez no bidé.

- Auf Wiedersehen - disse ela.

- Mas eu não me vim - protestei eu.

- E de quem é a culpa? - retorquiu ela, a lavar-se interminavelmente.

Suponho que se me tivesse vindo isso me teria custado mais cem xelins. Observei as suas costas largas a balançar sobre o bidé. Ela balançava-se com um pouco mais de intensidade do que o fizera debaixo de mim. Uma vez que estava de costas, agarrei na carteira que estava na mesa-de-cabeceira e espreitei lá para dentro. Parecia que tinha sido arrumada pela Susie. Havia um tubo com uma pomada qualquer que se tinha aberto; o interior da carteira da Jolanta estava todo pegajoso, coberto com uma espécie de creme. Havia o habitual bâton, as habituais embalagens de preservativos (apercebi-me que me tinha esquecido de tirar o meu), os habituais cigarros, uns comprimidos, perfume, lenços de papel, trocos, uma carteira repleta de dinheiro - e frasquinhos com tralha diversa. Nem sombras de faca, já para não falar de uma pistola. A sua carteira era uma ameaça fictícia, era um bluff. Ela era sexo a fingir, e agora, ao que parecia, também era violência fingida. Foi então que senti um frasco um pouco maior do que o resto

- de um tamanho bastante maljeitoso. Tirei-o da carteira e fiquei a olhar para ele. A Jolanta voltou-se e gritou-me:

- O meu bebé! Larga o meu bebé!

Quase que o deixei cair, este frasco grande. E no líquido turvo, como que a nadar, vi o feto humano, o delgado embrião de punhos fechados que tinha sido a única flor da Jolanta, colhida ainda em botão. No seu espírito

- da mesma maneira que uma avestruz se sente segura enterrando a cabeça na areia -, seria este embrião, para a Jolanta, uma espécie de arma fingida? Era isso que ela procurava na carteira e apertava quando as coisas se complicavam? E que improvável conforto constituiria isso para ela?

- Larga o meu bebé! - gritou ela, avançando para mim, nua, e a pingar água do bidé.

Coloquei o feto engarrafado no travesseiro da cama e escapuli-me.

Ouvi a Screaming Annie anunciar o seu falso orgasmo quando abri e fechei a porta da Jolanta. Aparentemente, o Pai estava a dar-lhe as más notícias. Sentei-me no patamar do segundo andar, pois não queria estar com o urso Susie na entrada e não me atrevi a ir procurar a Franny no andar de cima. O Pai saiu do quarto da Screaming Annie; desejou-me boa noite, com a mão no meu ombro, e desceu a escada para se ir deitar.

- Disseste-lhe? - perguntei-lhe, atrás dele.

- Não me pareceu que isso a interessasse. Fui bater à porta da Screaming Annie.

- Já sei - disse-me ela, quando viu quem era.

Mas eu não tinha conseguido vir-me com a Jolanta; houve qualquer coisa que se apossou de mim à porta da Screaming Annie.

- Ora, mas porque é que não disseste logo? - perguntou ela, ainda eu não tinha dito nada.

Fez-me entrar no quarto e fechou a porta.

- Tal pai, tal filho - disse ela.

Ajudou-me a despir; ela já estava nua. Não admira que tivesse de trabalhar tanto, pensei eu, já que manifestamente não conhecia o sistema de cobrar por todos os "extras" da Jolanta. A Screaming Annie limitava-se a fazer tudo por um preço único de quatrocentos xelins.

- E se não te vieres - disse-me ela - é por culpa minha. Mas vais ver que te vens - assegurou-me ela.

- Por favor - pedi-lhe eu -, se para ti tanto faz, gostaria que não te viesses. Quer dizer, gostava que não fingisses. Preferia um final tranquilo - implorei.

Mas ela já estava a começar a produzir uns sons esquisitos debaixo de mim. E foi então que eu ouvi um som que me assustou. Não se assemelhava a nada que eu tivesse alguma vez ouvido da Screaming Annie; também não era a canção que o urso Susie tinha conseguido que a Franny cantasse. Durante aquele instante terrível - pois havia tanta dor naquele som - pensei que era a canção que o Ernst da pornografia estava a fazer a Franny cantar, e depois apercebi-me que o som era meu. Era a minha voz angustiada. A Screaming Annie começou a cantar comigo, e no silêncio vibrante que se seguiu ao nosso pavoroso dueto ouvi nitidamente a voz da Franny a gritar - tão perto que ela devia estar no patamar do segundo andar.

- Meu Deus, queres-te despachar e acabar com isso? - gritou a Franny.

- Porque é que fizeste isso - sussurrei eu para a Screaming Annie, ofegante, debaixo de mim.

- O que foi que eu fiz?

- O orgasmo simulado. Tinha-te pedido para não o fazeres.

- Não foi simulado - segredou-me ela.

Mas antes mesmo de eu ter tempo para tomar esta novidade como um cumprimento, ela acrescentou:

- Nunca simulo um orgasmo. São todos verdadeiros. Por que diabo pensas que eu me tornei este destroço?

E porque é que eu pensava que ela estava tão determinada em não querer que a sua filha mulata entrasse "na profissão"?

- Desculpa - sussurrei.

- Espero que eles estoirem mesmo com a Ópera - disse a Screaming Annie. - E espero que rebentem também com o Hotel Sacher. Espero que varram toda a Kãrntnerstrasse. E a Ringstrasse e todos os que lá estiverem. Todos os homens - sussurrou a Screaming Annie.

A Franny estava à minha espera no patamar do segundo andar. Não tinha pior aspecto do que eu. Sentei-me ao lado dela e perguntámos um ao outro se estávamos "bem". Nenhum de nós deu uma resposta muito convincente. Perguntei à Franny o que é que ela tinha descoberto do Ernst, e ela teve um arrepio.

Pus um braço em torno dela e encostámo-nos os dois ao corrimão da escada. Repeti-lhe a pergunta.

- Descobri uma data de coisas, acho eu - segredou ela. - O que é que queres saber?

- Tudo.

E a Franny fechou os olhos e encostou a cabeça no meu ombro, voltando a cara para o meu pescoço.

- Ainda me amas? - perguntou ela.

- Claro que sim - segredei-lhe eu.

- E queres saber tudo?

Sustive a respiração, e ela prosseguiu:

- A posição de vaca? Queres saber algo a esse respeito? Limitei-me a ficar agarrado a ela. Não conseguia dizer nada.

- E a posição de elefante?

Podia senti-la a tremer. Ela estava a fazer todos os esforços para não chorar.

- Posso dizer-te alguma coisa sobre a posição de elefante - continuou a Franny. - O principal a esse respeito é que magoa.

Dito isto, começou a chorar.

- Ele magoou-te? - perguntei eu, meigamente.

- A posição de elefante magoou-me - disse ela.

Ficámos calados durante algum tempo, até ela parar de tremer.

- Queres que eu continue? - perguntou ela.

- Sobre esse assunto, não - respondi.

- Ainda me amas?

- Sim, é mais forte do que eu.

- Desgraçado de ti.

- Desgraçada de ti, também.

Há pelo menos uma coisa terrível acerca dos amantes, e refiro-me aqui aos verdadeiros amantes: pessoas que se amam uma à outra. Mesmo quando se sentem desgraçados e se reconfortam um ao outro, mesmo então terão prazer sexual em todo o contacto físico; mesmo quando sofrem, podem ficar excitados. A Franny e eu não podíamos ter ficado agarrados um ao outro nas escadas; era absolutamente impossível tocarmo-nos e não querer tocar em tudo.

Suponho que devia estar agradecido à Jolanta por nos ter interrompido. Ela ia para a rua procurar outro a quem extorquir dinheiro. Viu-me à Franny e a mim sentados na escada e deu-me de propósito com um joelho nas costas.

- Oh, desculpa - disse ela.

E, dirigindo-se à Franny, a Jolanta acrescentou:

- Não te envolvas com ele. Não se consegue vir.

A Franny e eu, sem uma palavra, seguimos mais ou menos a Jolanta até à entrada - mas só ela a atravessou e saiu para a rua, enquanto nós nos limitámos a espreitar o urso Susie. A Susie estava a dormir no sofá sobre o qual se tinha entornado o cinzeiro; o seu rosto estava quase sereno - ela não era tão feia como pensava. A Franny tinha-me dito que aquela piada sobre a Susie de que ela seria a genuína rapariga "que não é má se lhe enfiarem um saco na cabeça" não tinha graça nenhuma: os dois homens que a haviam violado tinham-lhe mesmo enfiado um saco na cabeça.

- Assim não temos de olhar para ti - disseram-lhe eles.

Este género de crueldade pode fazer qualquer pessoa transformar-se num urso.

- A violação é uma coisa que realmente me dá a volta à cabeça - confessaria eu mais tarde ao urso Susie - porque me parece ser a experiência mais brutal a que se pode sobreviver. Não podemos, por exemplo, sobreviver ao nosso assassínio. E acho também que é a experiência mais brutal que consigo imaginar porque não sou capaz de me ver a fazer isso a alguém, ou sequer ter vontade disso. Deste modo, é uma sensação que me é estranha: é isso que me faz achá-la tão brutal.

- Eu consigo imaginar-me a fazer isso a alguém - disse a Susie. - Posso imaginar-me a fazê-lo aos sacanas que mo fizeram a mim. Mas isso porque seria apenas uma questão de vingança. E não serviria de nada fazer isso a um sacana de um homem, porque um homem provavelmente teria prazer com isso. Há homens que pensam que nós temos realmente prazer em ser violadas. Só há uma razão para eles poderem pensar assim: é pensarem que, se fossem eles a ser violados, gostavam.

Mas na entrada cor de cinza do segundo Hotel New Hampshire, a Franny e eu tentámos simplesmente recompor a Susie e fazer com que fosse para o seu quarto deitar-se. Pusemo-la de pé e encontrámos-lhe a cabeça; escovámos-lhe as beatas (sobre as quais se tinha deitado) das costas peludas.

- Vá lá, Susie, sai para fora desse velho fato - tentou persuadi-la a Franny.

- Como é que foste capaz, com o Ernst? - resmungava a Susie para a Franny. E, dirigindo-se a mim: - E como é que tu foste capaz, com as putas? Não vos percebo. Estou demasiado velha para estas coisas.

- Não, eu é que já sou demasiado velho para isto, Susie - disse o Pai, calmamente, ao urso.

Não tínhamos dado por ele, de pé, na entrada, atrás do balcão da recepção. Pensávamos que tinha ido para a cama. Não estava só. A radical meiga e maternal, a nossa querida Schlagobers, a nossa querida Schwanger, estava com ele. Tinha a pistola na mão e fez-nos sinal para que nos sentássemos no sofá.

- Sê simpático - disse-me a Schwanger -, vai chamar a Lilly e o Frank. Acorda-os com cuidado. Não sejas rude nem demasiado brusco.

O Frank estava deitado na cama com o manequim ao seu lado. Estava completamente acordado; não tive de o despertar.

- Eu sabia que não devíamos ter esperado - disse o Frank. - Devíamos tê-los denunciado logo.

A Lilly também estava acordada. Estava a escrever.

- Aqui tens uma nova experiência sobre a qual poderás escrever, Lilly

- disse-lhe eu, de brincadeira, enquanto nos dirigíamos para a entrada de mãos dadas.

- Espero que seja apenas uma pequena experiência - disse a Lilly. Estavam todos à nossa espera na entrada. O Schraubenschlussel envergava a sua farda de condutor de eléctrico; tinha um ar muito "oficial". O Arbeiter tinha vindo com o fato para o trabalho; com efeito, estava tão bem vestido que não ficaria deslocado na Ópera. Trazia um smoking preto. E o capitão de equipa também estava lá, o médio de armação estava lá para os orientar - o Ernst conquistador, o Ernst autor pornográfico, o Ernst superstar. Só faltava o Old Billig. Esse ia sempre para onde soprava o vento, como o Arbeiter tinha observado: o Old Billig era suficientemente esperto para se excluir deste final do movimento. Ainda cá estaria para o espectáculo seguinte; para o Arbeiter, o Schraubenschlussel e a Schwanger, este seria certamente o espectáculo de gala (e talvez o último).

- Querida Lilly - disse a Schwanger -, vai buscar o Freud. Ele também devia estar aqui.

E a Lilly, mais uma vez no papel de cão de cego do Freud, trouxe-nos o velho crente - com o taco Louisville a bater no chão à sua frente. Tudo o que trazia vestido era um roupão de seda escarlate com um dragão negro nas costas ("Chinatown, New York City, 1939!", tinha-nos ele dito):

- Que história é esta? - perguntou o velho. - Que é feito da democracia?

A Lilly sentou o Freud ao lado do Pai, no sofá. O Freud bateu logo com o taco na canela do Pai.

- Oh, perdão! - exclamou ele. - De quem é este físico?

- Win Berry - respondeu o Pai, suavemente.

Era estranho, mas aquela foi a única vez em que nós, os filhos, o ouvimos proferir o seu nome.

- Win Berry! - exclamou o Freud. - Se o Win Berry está aqui, não pode acontecer nada de mal.

Ninguém parecia estar tão certo disso.

- Expliquem-se! - gritou o Freud para a sua escuridão. - Estão todos aqui. Sinto o vosso cheiro, oiço a respiração de cada um.

- A explicação é simples - disse o Ernst, calmamente.

- Básica - disse o Arbeiter. - Absolutamente básica.

- Precisamos de um condutor - continuou o Ernst, suavemente. - Alguém para guiar o carro.

- Ele anda que é um sonho - disse o SchraubenschlOssel, com ar de veneração. - Parece um gatinho a ronronar.

- Guia-o tu, Alicate - respondi-lhe eu.

- Caluda, querido - advertiu-me a Schwanger.

Olhei apenas para a pistola, para confirmar que estava apontada contra mim.

- Está calado, ó halterofilista - disse o Alicate.

Ele tinha uma ferramenta curta e com aspecto de ser pesada a sair do bolso da frente das calças da farda de condutor e apoiava a mão nela como se aquilo fosse a coronha de uma pistola.

- A Fehlgeburt estava minada pela dúvida - disse o Ernst.

- A Fehlgeburt morreu - disse a Lilly, a realista da família, a escritora da família.

- A Fehlgeburt teve um caso fatal de romantismo - continuou o Ernst. - Estava sempre a pôr em questão os meios.

- Os fins justificam os meios, como sabem - interveio o Arbeiter. - Isto é básico, absolutamente básico.

- És um atrasado mental, Arbeiter - lançou-lhe a Franny.

- E és tão dogmático como qualquer capitalista! - acrescentou o Freud.

- Mas, sobretudo, és um mentecapto, Arbeiter - disse o urso Susie. - Um mentecapto absolutamente básico.

- O urso seria o condutor ideal - sugeriu o Schraubenschlussel.

- Vai à merda, Alicate - ripostou a Susie.

- O urso é demasiado hostil para que possamos confiar nele - contrapôs o Ernst, com toda a lógica.

- Podes estar certo que sim - disse a Susie.

- Eu sei guiar - disse a Franny ao Ernst.

- Não sabes nada - exclamei eu. - Nem sequer tens a carta, Franny!

- Mas sei guiar - retorquiu a Franny. - O Frank ensinou-me.

- Eu sei guiar melhor do que tu, Franny - interveio o Frank. - Se algum de nós tiver de guiar, eu sou o melhor condutor.

- Não, sou eu - teimou a Franny.

- Confesso que me surpreendeste, Franny - disse o Ernst. - Foste melhor a seguir directivas do que eu pensava. Cumpriste as instruções à risca.

- Não te mexas, querido - disse-me a Schwanger, pois os meus braços tremiam, como acontecia quando fazia elevações durante muito tempo com o haltere grande.

- O que é que isso quer dizer? - perguntou o Pai ao Ernst (o seu alemão era mesmo mau). - Que directivas e que instruções são essas?

- Ele foi para a cama comigo - disse a Franny ao Pai.

- Deixa-te estar sentado - disse o Alicate ao meu Pai, pondo-se ao lado dele com a ferramenta.

Mas o Frank teve de traduzir aquilo para o Pai.

- Está quieto, Pai - disse ele.

O Freud açoitava o ar com o taco como se fosse um gato e o taco de basebol a sua cauda, batendo com ele na perna do meu pai - uma, duas, três vezes. Eu sabia que o Pai queria o taco. Ele era muito bom a manejar um taco de basebol.

Por vezes, quando o Freud estava a dormir a sesta, o pai levava-nos para o Stadtpark e batia umas bolas rasteiras para nós apanharmos. Todos gostávamos de apanhar bolas rasteiras. Um pequeno jogo do bom e velho basebol americano no Stadtpark, com o Pai a acertar nas bolas com o taco e a enviá-las como um raio a rasar a relva, até a Lilly gostava de jogar. Não é preciso ser-se grande para apanhar uma bola rasteira. O Frank era o pior naquilo. A Franny e eu éramos bons a interceptar as bolas - éramos muito parecidos em muitas coisas. O Pai destinava as tacadas mais fortes para nós os dois.

Mas agora era o Freud quem tinha o taco, e usava-o para acalmar o meu pai.

- Foste para a cama com o Ernst, Franny? - perguntou-lhe o Pai, suavemente.

- Sim - sussurrou ela. - Desculpa.

- Tu puseste-te na minha filha? - perguntou o Pai ao Ernst. O Ernst encarou aquilo como uma questão metafísica.

- Era uma fase necessária - disse ele.

E eu soube que naquele momento teria conseguido fazer o mesmo que o Júnior Jones: podia elevar o dobro do meu peso - talvez três ou quatro vezes, rapidamente; podia elevar aquele haltere e não sentir nada.

- A minha filha foi uma fase necessária? - perguntou o Pai ao Ernst.

- Isto não é uma situação emocional - disse o Ernst. - Isto é uma questão de técnica - continuava ele, ignorando o meu pai. - Embora tenha a certeza que guiavas muito bem o carro, Franny, a Schwanger pediu-nos para pouparmos as crianças.

- Mesmo o halterofilista? - perguntou o Arbeiter.

- Sim, também gosto muito dele - respondeu a Schwanger, sorrindo para mim, sem largar a pistola.

- Se obrigas o meu pai a guiar aquele carro, mato-te! - gritou a Franny, bruscamente, para o Ernst.

E o Alicate aproximou-se dela, com a ferramenta. Se ele lhe tivesse tocado, teria acontecido qualquer coisa, mas ele limitou-se a ficar de pé junto dela. O taco de basebol do Freud continuava a marcar o compasso. O meu pai tinha os olhos fechados; tinha uma dificuldade enorme em seguir o alemão. Devia estar a sonhar com difíceis bolas rasteiras batidas com mestria.

- A Schwanger pediu-nos, Franny - disse o Ernst, pacientemente -, para não fazermos de vocês órfãos de mãe e de pai. Não queremos fazer mal ao vosso pai. E não o faremos, se houver outra pessoa que se ocupe da condução do carro.

Houve um silêncio embaraçado na entrada do Hotel New Hampshire. Se nós, os filhos, ficávamos de fora, se o Pai devia ser poupado, se o urso Susie não era de confiança, estaria o Ernst a pensar em pôr uma das prostitutas ao volante do carro? Essas é que de certeza não eram de confiança. Só queriam saber delas próprias. Enquanto o Ernst da pornografia tinha estado a descobrir a sua dialéctica, as prostitutas passaram por nós na entrada - uma a uma, abandonavam o Hotel New Hampshire. Formavam uma equipa muda - amigas e cúmplices nas horas más -, ajudando a Old Billig a transportar os seus ursos de porcelana. Levavam as suas pomadas, as suas escovas de dentes, os seus comprimidos, perfumes e preservativos.

- Eram verdadeiros ratos a abandonar o navio a afundar-se - como diria o Frank mais tarde.

Não eram tocadas pelo romantismo da Fehlgeburt; nunca foram mais do que simples prostitutas. Deixaram-nos sem se despedirem.

- Então, afinal, quem é que vai ser o condutor, ó meu sacana de merda? - perguntou ao Ernst a Susie. - Quem diabo é que sobra?

O Ernst sorriu; era um esgar cheio de desprezo que se dirigia ao Freud. Embora este não o pudesse ver, de repente compreendeu.

- Sou eu! - gritou, como se tivesse ganho um prémio.

Estava tão excitado que o ritmo das batidas do taco de basebol duplicou.

- O condutor Sou eu! - gritava ele.

- É verdade - confirmou o Ernst, satisfeitíssimo.

- Brilhante! - exclamou o Freud. - O trabalho perfeito para um cego!

E o taco de basebol agitava-se como uma batuta a conduzir a orquestra - a orquestra da Ópera de Viena do Freud.

- E gostas muito do Win Berry, não gostas, Freud? - perguntou gentilmente, a Schwanger ao velho.

- Claro que gosto! - gritou o Freud. - É como se fosse meu filho! E abraçou o meu pai, segurando o taco com os joelhos.

- Então, se guiares o carro como deve ser - disse o Ernst para o Freud -, ninguém fará mal ao Win Berry.

- Se lixas as coisas - precisou o Arbeiter -, matamo-los a todos.

- Um por um - acrescentou o Schraubenschlússel.

- Como é que um cego pode guiar um carro, seus atrasados mentais!

- gritou o urso Susie.

- Explica como é que a coisa funciona, Schraubenschlússel - disse o Ernst, calmamente.

Tinha chegado o grande momento do Alicate, o momento para o qual ele tinha vivido: descrever todos os carinhosos pormenores do supremo desejo do seu coração. O Arbeiter parecia um pouco ciumento. A Schwanger e o Ernst escutavam com uma expressão afável, como professores orgulhosos do seu aluno que recebera um prémio. O meu pai, é claro, não compreendia a língua suficientemente bem para seguir o que se passava.

- Chama-se a isto uma bomba de simpatia - começou o Alicate.

- Oh, mas isso é brilhante - interrompeu o Freud. E depois, com uma risadinha: - Uma bomba de simpatia! Valha-me Deus!

- Pouco barulho - disse o Arbeiter.

- Na realidade, há duas bombas - prosseguiu o Schraubenschlússel.

- A primeira bomba é o carro. O carro todo - precisou ele, com um sorriso astuto. - A questão é que o carro tem de ser detonado a uma certa distância da Ópera... bastante perto, de facto. Se o carro explodir dentro de um determinado raio, a bomba que está na Ópera explodirá também, digamos "por simpatia" com a primeira explosão. Por isso eu lhe chamo uma bomba de simpatia - acrescentou o Alicate, repetindo-se imbecilmente. Esta parte até o Pai percebeu. - Primeiro explode o carro, e se este estiver suficientemente perto da Ópera faz explodir a bomba grande, que se encontra dentro do edifício. À bomba que está no carro chamo eu uma bomba de contacto. O contacto é a placa da matrícula da frente. Quando se carrega nesta, o carro vai pelos ares. E, com ele, hão-de ir pelos ares as pessoas que estiverem na sua vizinhança.

- Isso é inevitável - acrescentou o Arbeiter.

- A bomba da Ópera - disse o Schraubenschlússel, carinhosamente - é muito mais complicada do que a bomba de contacto. A bomba da Ópera é uma bomba química, mas é necessário uma espécie de impulso eléctrico muito delicado para a fazer explodir. O detonador da bomba da Ópera reage, com uma sensibilidade notável, a um certo tipo de explosão dentro de um determinado raio. É quase como se a bomba tivesse ouvidos - continuou o Alicate, rindo para si mesmo.

Foi a primeira vez que ouvimos o Alicate rir; era um riso odioso. A Lilly começou com arrancos, como se estivesse quase a vomitar.

- Ninguém te vai fazer mal, querida - sossegou-a a Schwanger.

- Tudo o que tenho a fazer é guiar o carro, com o Freud lá dentro, descendo a Ringstrasse até à Ópera - disse o Schraubenschlússel. - É claro, tenho de ter cuidado para não ir de encontro a nada. Tenho de encontrar um lugar seguro para estacionar junto ao passeio, e depois saio, e nessa altura o Freud põe-se ao volante. Ninguém nos dirá para sairmos dali antes de estarmos prontos. Em Viena ninguém põe questões a um condutor de eléctricos.

- Sabemos que sabes guiar, Freud - disse o Ernst ao velho. - Antigamente eras mecânico, não é verdade?

- É - respondeu o Freud, que estava fascinado.

- Fico de pé junto do Freud, a falar com ele pela janela do lado do condutor - prosseguiu o Alicate. - Espero aí até ver o Arbeiter sair da Ópera e atravessar a Karntnerstrasse para o outro lado.

- Para o lado seguro! - acrescentou o Arbeiter.

- Depois digo ao Freud para contar até dez e carregar no prego! - explicou o Schraubenschlússel. - Entretanto já terei virado o carro na direcção adequada. Ao Freud basta carregar no prego, dando a velocidade máxima que puder. Irá embater em qualquer coisa, quase imediatamente, seja para onde for que ele vire. Ele é cego! - continuou o Alicate entusiasmado. - Tem de chocar contra qualquer coisa. E quando isso acontecer, lá se vai a Ópera. A bomba de simpatia reagirá à primeira explosão.

- A bomba de simpatia - repetiu o Pai, ironicamente. Até o Pai percebeu aquela parte da simpatia.

- Aquilo está num lugar perfeito - disse o Arbeiter. - Está lá há muito tempo, de modo que temos a certeza de que ninguém sabe onde é que ela está. É muito grande, mas impossível de descobrir. Está debaixo do palco - concluiu o Arbeiter.

- Faz parte do próprio palco - precisou o Schraubenschlussel.

- Está mesmo onde eles passam para fazerem as suas malditas vénias finais! - disse o Arbeiter.

- É claro que aquilo vai matar toda a gente - disse o Ernst, com simplicidade. - Morrerá quem estiver no palco e provavelmente a maior parte da orquestra e a maioria dos espectadores nas primeiras filas da plateia. E para os que estiverem sentados cá atrás, afastados do palco, será um verdadeiro espectáculo de ópera.

- Schlagobers e sangue - disse o Arbeiter, a meter-se com a Schwanger, mas esta apenas sorriu, sempre com a pistola.

A Lilly vomitou. Quando a Schwanger se inclinou para a acalmar, eu podia ter tido uma oportunidade de lhe tirar a arma. Mas eu não estava a raciocinar convenientemente. O Arbeiter tirou a pistola à Schwanger, como se - para minha vergonha - estivesse a raciocinar com mais clareza do que eu. A Lilly não parava de vomitar, e a Franny tentou também acalmá-la, mas o Ernst continuou a falar.

- Quando o Arbeiter e o Schraubenschlússel voltarem aqui e nos comunicarem o nosso êxito, saberemos que não teremos de fazer mal a esta maravilhosa família americana - disse o Ernst.

- A família - interveio o Arbeiter - é uma instituição que os americanos idolatram do mesmo modo que idolatram os heróis desportivos e as estrelas de cinema; dão tanta atenção à família como à alimentação insalubre. Os americanos são perfeitamente loucos pela ideia da família.

- E depois de termos estoirado com a Ópera - disse o Ernst -, após termos destruído uma instituição que os vienenses veneram com o mesmo exagero nojento com que veneram os seus cafés, com que veneram o passado, bem... após termos feito a Ópera ir pelos ares, teremos em nosso poder uma família americana. Teremos uma família americana como refém. E ainda por cima uma família americana já marcada pela tragédia. A mãe e o filho mais pequeno já foram vitimados por um acidente. Os americanos adoram acidentes. Acham os desastres admiráveis. E aqui temos um pai a lutar para conseguir criar os outros quatro filhos, e nós temo-los cativos. O Pai não conseguiu acompanhar isto muito bem, e a Franny perguntou ao Ernst:

- Quais são as vossas exigências! Se somos reféns, quais são as exigências?

- Não há exigências, querida - respondeu a Schwanger.

- Não exigimos nada - disse o Ernst, pacientemente, sempre pacientemente. - Já vamos ter tudo o que queremos. Quando estoirarmos com a Ópera e vos tivermos como nossos prisioneiros, já teremos tudo o que queremos.

- Um público - disse a Schwanger, quase num sussurro.

- Um grande público - acrescentou o Ernst -, um público internacional. Não apenas um público europeu, não apenas o público de Schlagobers e sangue, mas também um público americano. O mundo inteiro ouvirá o que temos para dizer.

- Sobre o quê! - perguntou o Freud. Estava também a sussurrar.

- Sobre tudo - disse o Ernst, com a sua lógica. - Teremos um público para tudo o que tivermos para dizer, sobre tudo.

- Sobre o mundo novo - murmurou o Frank.

- Pois! - disse o Arbeiter.

- A maioria dos terroristas fracassa - explicou o Ernst - porque fazem reféns e ameaçam com violência. Mas nós começamos pela violência. Fica logo assente que somos capazes disso. E só depois é que fazemos reféns. Dessa maneira toda a gente nos irá ouvir.

Estávamos todos a olhar para o Ernst, o que, é claro, ele adorava. Era um escritor pornográfico disposto ao assassínio e à mutilação - não por uma causa, o que já seria bastante estúpido, mas por um público.

- És completamente tarado - disse a Franny ao Ernst.

- Estás a desiludir-me - retorquiu-lhe este.

- Como é que é? - gritou-lhe o Pai. - O que é que disseste à minha filha?

- Ele disse que eu o tinha desiludido, Pai - respondeu a Franny.

- Ela desiludiu-te! - exclamou o Pai. - A minha filha desiludiu-te! - gritou o Pai para o Ernst.

- Calma - disse o Ernst, serenamente.

- Pões-te na minha filha, e depois dizes que ela te desiludiu!! - exclamou o Pai.

O Pai arrancou o taco de basebol das mãos do Freud. Fê-lo num movimento muito rápido. Agarrou naquele taco Louisville como se este tivesse nascido com ele, fazendo-o descrever um arco na horizontal, acompanhando o movimento com as ancas e os ombros - uma tacada perfeita, levemente de baixo para cima, do género de impelir a bola numa trajectória ascendente, que se mantém mesmo depois de esta ultrapassar os limites da área central do terreno. E o Ernst da pornografia, que se baixou com demasiada lentidão, pôs a cabeça na posição ideal para a tacada do Pai. -Crac! - Com mais força do que qualquer bola rasteira que a Franny ou eu conseguiríamos apanhar. O meu pai atingiu o Ernst da pornografia em cheio no meio da testa, bem entre os olhos. A primeira coisa a atingir o solo foi a parte de trás da cabeça do Ernst, e em seguida os calcanhares, um após o outro. Pareceu ter decorrido um bom segundo depois de a cabeça ter batido no chão até o corpo do Ernst ficar imóvel. Um inchaço vermelho-vivo do tamanho de uma bola de basebol formou-se entre os olhos do pornógrafo enquanto um fiozinho de sangue começava a escorrer de um dos seus ouvidos, como se algo de vital mas pequeno - como o seu cérebro, como o seu coração - tivesse explodido dentro dele. Os seus olhos estavam bem abertos e nós percebemos que agora o Ernst da pornografia podia ver tanto como o Freud. Tinha saltado pela janela aberta com uma pancada fulminante do taco.

- Está morto? - gritou o Freud.

Acho que se o Freud não tivesse gritado, o Arbeiter teria carregado no gatilho e morto o meu pai. O grito dele pareceu ter provocado uma mudança no espírito do Arbeiter. Este enfiou o cano da pistola no ouvido da minha irmã Lilly, que não parava de tremer - já não tinha mais nada para vomitar.

- Por favor, não! - sussurrou a Franny para o Arbeiter.

O Pai continuava a segurar firmemente o taco de basebol, mas estava com ele imóvel. Agora era o Arbeiter quem tinha a arma a valer, e o meu pai tinha de esperar pelo lançamento certo.

- Mantenham-se calmos - disse o Arbeiter.

O Schraubenschlussel não conseguia tirar os olhos da bola púrpura na testa do Ernst, mas a Schwanger continuou a sorrir - para todos.

- Calma, calma - disse ela, em voz baixa. - Mantenham-se calmos.

- O que é que vão fazer agora! - perguntou o Pai ao Arbeiter serenamente.

Fez a pergunta em inglês, e o Frank teve de traduzir.

Nos minutos que se seguiram, o Frank andou atarefado a fazer de intérprete, pois o Pai queria saber tudo o que se estava a passar. Era um herói; estava no cais do velho Arbuthnot-by-the-Sea, só que agora o homem de smoking branco era ele - era ele quem tinha as coisas na mão.

- Devolve o taco ao Freud - disse o Arbeiter para o meu pai.

- O Freud precisa do taco - disse a Schwanger para o Pai, estupidamente.

- Dá lá o taco, Pai - disse o Frank.

O Pai devolveu o taco Louísville ao Freud e sentou-se ao seu lado. Pôs o braço em torno dos seus ombros e disse-lhe.

- Não vais ser obrigado a guiar aquele carro.

- Mas eu não estou na Ópera - disse o Arbeiter, num pânico súbito. - Ainda lá não estou, para ver se é intervalo ou não. O Schraubenschlussel tem de me ver sair da Ópera para saber que está tudo bem, que é o momento exacto.

Os radicais olharam para o seu chefe morto como se ele lhes fosse dizer o que fazer. Precisavam dele.

- Vais tu para a Ópera - disse o Arbeiter à Schwanger. - Eu sou melhor com a pistola. Fico eu aqui e vais tu para a Ópera. Quando tiveres a certeza de que não está no intervalo, sai do edifício de modo que o Schraubenschlussel te veja.

- Mas eu não estou vestida para a Ópera - replicou a Schwanger. -Tu é que estás.

- Não precisas de estar vestida de nenhuma maneira especial para perguntares a alguém se é intervalo! - gritou-lhe o Arbeiter. - Estás suficientemente bem para entrares lá, e podes tu mesma verificar se é intervalo.

Não passas de uma senhora de idade, e ninguém se vai pôr a discutir com uma senhora de idade por causa da maneira como ela está vestida, com os diabos!

- Não percam a calma - aconselhou o Schraubenschlussel, mecanicamente.

- Espera aí! - disse a nossa meiga Schwanger. - Eu não sou exactamente uma "senhora de idade"!

- Desanda daqui! - gritou-lhe o Arbeiter. - Põe-te a andar! E rápido! Damos-te dez minutos para lá chegares. Nessa altura, o Freud e o Schraubenschlussel já estarão a caminho.

A Schwanger ficou especada como se estivesse a tentar decidir se devia escrever sobre a gravidez ou outro livro sobre o aborto.

- Põe-te a andar, imbecil! - gritou-lhe o Arbeiter. - Não te esqueças de atravessar a Kãrntnerstrasse. E procura o nosso carro antes de atravessares a rua.

A Schwanger saiu do Hotel New Hampshire a arranjar-se - tentando compor o rosto com uma expressão tão maternal quanto conseguiu naquelas circunstâncias. Nunca mais voltaríamos a vê-la. Suponho que foi para a Alemanha. Pode ser que venha a escrever um livro de símbolos totalmente novo. Pode ser que também ainda venha a assumir-se como mãe de um novo movimento, noutro lado qualquer.

- Não és obrigado a fazer isto, Freud - sussurrou o meu pai.

- Claro que tenho de o fazer, Win Berry - disse o Freud, com ar satisfeito.

Levantou-se e dirigiu-se para a porta escolhendo o caminho com o seu taco. Conhecia o caminho muito bem se pensarmos na escuridão total em que vivia.

- Senta-te, velho tonto - disse-lhe o Arbeiter. - Ainda temos de esperar dez minutos. - E, virando-se para o Schraubenschlussel: - E tu, meu idiota, não te esqueças de sair do carro.

Mas o Alicate continuava a olhar para o seu capitão de equipa morto no chão. Também eu o contemplei. Durante dez minutos. Percebi o que é um terrorista. Um terrorista, acho eu, é simplesmente um outro tipo de escritor pornográfico. O escritor pornográfico afirma ter nojo do seu trabalho; o terrorista afirma não querer saber dos meios. Os fins, dizem eles, isso é que interessa. Mas ambos mentem. O Ernst adorava a sua pornografia; o Ernst tinha o culto dos meios. Nunca são os fins que interessam - são apenas os meios que são importantes. O terrorista e o autor pornográfico fazem o que fazem pelos meios. Os meios são tudo para eles. A detonação da bomba, a posição de elefante, os Schlagobers e sangue - é disso tudo que eles gostam. O seu distanciamento intelectual é uma fraude; a sua indiferença é fingida. Ambos mentem quando falam de "objectivos elevados". Um terrorista é um escritor pornográfico. Durante dez minutos, o Frank tentou que o Arbeiter mudasse de ideias, mas este não tinha ideias suficientes para poderem ser mudadas. Acho que o Frank só conseguiu confundir o Arbeiter. Aliás, para mim, o Frank era sempre uma fonte de confusão.

- Sabes o que é que vão apresentar esta noite na Ópera, Arbeiter? - perguntou o Frank.

- Música. Música e canto - respondeu este.

- Mas é importante saber qual é a ópera - mentiu o Frank. - Quer dizer, para o espectáculo desta noite não vai propriamente haver uma enchente. Espero que saibas isso. Os vienenses não vão vir em massa. Não é como se fosse Mozart, Strauss, ou mesmo Wagner.

- Não me interessa o que é - retorquiu o Arbeiter. - As filas da frente vão estar cheias. As filas da frente estão sempre cheias. E os estúpidos cantores estarão no palco. E a orquestra tem de actuar.

- É a Lúcia - disse o Frank. - Praticamente uma casa vazia. Não precisas de ser um wagneriano para saber que o Donizetti nem merece a pena ser ouvido. Confesso considerar-me um pouco wagneriano, mas não precisas de compartilhar a opinião dos alemães sobre a ópera italiana para saber que o Donizetti é simplesmente insípido. Harmonias caducas, ausência de qualquer dramatismo adequado à música - continuou o Frank.

- Caluda - disse o Arbeiter.

- Melodias de realejo! - continuou o Frank. - Meu Deus, não sei mesmo se lá estará alguém.

- Descansa que as pessoas aparecem - disse o Arbeiter.

- Mais valia esperar por um autor realmente famoso - insistiu o Frank. - Estoirem com aquilo noutra noite. Esperem por uma ópera importante. Se mandarem a Lúcia pelos ares, os vienenses até vão aplaudir! Pensarão que o vosso alvo era o Donizetti ou, ainda melhor, a ópera italiana! Vocês vão tornar-se uma espécie de heróis culturais e não os vilões que pretendem ser.

- E quando tiverem o vosso público - interveio a Susie - quem é que vai falar?

- O vosso orador está morto - disse a Franny para o Arbeiter.

- Não estás a pensar que és capaz de ser tu a agarrar um público, pois não, Arbeiter - perguntou-lhe a Susie.

- Cala a boca - disse o Arbeiter. - É possível arranjar lugar para um urso no carro com o Freud. Toda a gente sabe que o Freud tem um fraquinho por ursos. Podia ser uma óptima ideia levar um urso com ele, na sua última viagem.

- Agora já não se vão fazer alterações no plano - disse o Schraubenschlússel nervosamente. - Vamos cumprir o plano - continuou ele, olhando para o relógio. - Faltam dois minutos.

- Vão agora - comandou o Arbeiter. - Ainda demora um pouco a fazer sair o cego e a metê-lo no carro.

- Não é preciso! - gritou o Freud. - Conheço o caminho! Este hotel é meu. Sei muito bem onde é a porta.

E o velho dirigiu-se para a porta a bater com o taco.

- E vocês estacionaram esse maldito carro sempre no mesmo lugar durante anos! - acrescentou.

- Vai com ele, Schraubenschlussel - disse o Arbeiter ao Alicate. - Dá o braço ao velho.

- Não preciso de ajuda - disse o Freud, com satisfação. - Adeus, querida Lilly! Não vomites, querida. E continua a crescer.

A Lilly recomeçou com os vómitos e estremeceu; o Arbeiter afastou a pistola alguns centímetros do ouvido dela. Aparentemente estava enojado com o vomitado, embora a Lilly só tivesse feito uma pequena poça. Ela também não era grande vomitadora.

- Aguenta-te, Frank! - exclamou o Freud, para o átrio inteiro. - Não deixes que ninguém te chame maricas! És um príncipe, Frank! És melhor do que o Rudolf. És mais soberano do que todos os Habsburgos, Frank!

O Frank não conseguia falar, tal o desespero com que chorava.

- E tu és um amor, minha querida e doce Franny - continuou o Freud, suavemente. - Não é preciso ver para saber como és bonita.

- A uf Wiedersehen, Freud - disse a Franny.

- Auf Wiedersehen, halterofilista! - gritou-me ele. - Dá-me um abraço.

E abriu os braços com o taco Louisville numa mão, como uma espada.

- Deixa-me sentir como és forte - continuou ele.

E eu levantei-me e fui abraçá-lo. Foi aí que ele me segredou ao ouvido:

- Quando ouvires a explosão, mata o Arbeiter.

- Vamos lá! - impacientou-se o Schraubenschlussel, agarrando no braço do Freud.

- Gosto muito de ti, Win Berry! - gritou o Freud.

Mas o meu pai tinha a cabeça enterrada entre as mãos. Não olhou para cima de onde estava sentado, enterrado no sofá.

- Desculpa ter-te metido no negócio dos hotéis - continuou o Freud para o meu pai. - E no negócio dos ursos. Adeus, Susie! - acrescentou depois.

A Susie começou a chorar. O Schraubenschllissel conduziu o Freud até à rua. Podíamos ver o carro, o Mercedes transformado numa bomba; estava estacionado junto ao passeio quase em frente à porta do Hotel New Hampshire. Era uma porta giratória, e o Freud e o Schraubenschllissel giraram através dela.

- Não preciso da tua ajuda! - protestava o Freud para o Alicate. - Ponham-me só em contacto com o carro, com o guarda-lamas. Posso encontrar a porta sozinho, idiota! Basta que toque no guarda-lamas.

O Arbeiter começou a ficar com dores nas costas por estar inclinado para a Lilly. Endireitou-se um pouco; olhou para mim, para verificar onde eu estava. Olhou para a Franny. A sua pistola vagueava de um lado para o outro.

- Cá está, encontrei-o! - ouvimos o Freud exclamar lá fora, entusiasmado. - Isto aqui é um farol, não é verdade? - perguntou ele para o Schraubenschlussel.

O meu pai levantou a cabeça das mãos e fitou-me.

- É claro que é um farol, velho idiota! - gritou o Schraubenschlussel para o Freud. - Entra, se não te importas!

- Freud! - exclamou o Pai.

Deve ter compreendido, nesse momento. Correu para a porta giratória.

- Auf Wiedersehen, Freud! - gritou o Pai.

À porta, ele pôde ver toda a cena com clareza. O Freud, com a mão a tactear o farol, dirigia-se para a grelha do Mercedes em vez de caminhar para a porta do carro.

- Para o outro lado, burro! - indicou-lhe o Schraubenschlussel. Mas o Freud sabia muito bem onde é que estava. Soltou o braço da mão

do Alicate, levantou o taco Louisville e fê-lo girar. Estava manifestamente à procura da placa da matrícula da frente. Os cegos têm o condão de saber localizar exactamente as coisas que sempre estiveram no mesmo lugar. Bastaram-lhe três tacadas para dar com a placa da matrícula. O meu pai nunca mais se esqueceu disso. A primeira tacada foi um pouco alta - fora da grelha.

- Mais baixo! - berrou o Pai através da porta giratória. - A uf Wiedersehen!

A segunda tacada atingiu o pára-choques da frente um pouco à esquerda da placa da matrícula, e o meu pai gritou:

- Mais à direita! Auf Wiedersehen, Freud!

O Schraubenschlussel, contou o meu pai depois, já ia a fugir. No entanto, não teve tempo de se afastar o suficiente. A terceira tacada do Freud acertou em cheio no alvo; a terceira tacada do Freud foi a grande apoteose. Que quantidade de acção que aquele taco de basebol viu naquela noite! Nunca chegou a ser encontrado. O Freud também nunca foi encontrado na totalidade, e a própria mãe do Schraubenschlussel seria incapaz de identificar o filho. O meu pai foi arremessado para trás, enquanto os estilhaços das lâmpadas e dos vidros da porta giratória se lhe cravavam no rosto. A Franny e o Frank correram para o ajudar, ao mesmo tempo que eu imobilizava o Arbeiter entre os meus braços no preciso momento em que a bomba explodia - exactamente como o Freud me tinha dito para fazer.

O Arbeiter, que envergava o smoking negro para ir à Ópera, era um pouco mais alto do que eu e um pouco mais pesado. Cravei-lhe firmemente o queixo nas costas, entre as omoplatas, enquanto os meus braços lhe envolviam o tórax, prendendo-lhe os braços ao lado do corpo. Disparou a pistola uma vez, mas a bala perdeu-se no soalho. Durante um momento pensei que ele me podia acertar num pé, mas eu não ia deixá-lo levantar a arma nem um bocadinho. Sabia que a Lilly estava fora do alcance do Arbeiter. Ele disparou mais dois tiros para o chão. Eu apertava-o com tanta força que ele nem conseguia visar o meu pé, que estava mesmo atrás do dele.

O tiro seguinte acertou no seu próprio pé e ele começou a gritar. Largou a arma. Ouvi-a cair no chão e vi a Lilly apanhá-la, mas não estava a dar muita atenção à pistola. Estava concentrado na força com que apertava o Arbeiter. Para alguém que deu um tiro no pé, parou de gritar muito rapidamente. O Frank contou-me depois que o Arbeiter tinha parado de gritar porque não conseguia respirar. Eu também não estava a dar muita atenção aos gritos dele. Concentrava-me na força que fazia. Imaginei o maior haltere do mundo. Não sei exactamente o que é que eu pensei que estava a fazer com ele - um arremesso, uma flexão de braços, uma elevação, ou simplesmente a apertá-lo contra o peito. Para o caso, tanto fazia; eu só estava concentrado no seu peso. Realmente concentrado. Fiz os meus braços acreditarem em si próprios. Se eu tivesse abraçado a Jolanta com a mesma força, tê-la-ia partido em dois. Se eu tivesse abraçado a Screaming Annie daquela maneira, ela não teria gritado. Uma vez sonhara apertar a Franny assim. Eu levantava pesos desde que a Franny tinha sido violada, desde que o Iowa Bob me tinha revelado os segredos do exercício físico. Com o Arbeiter preso nos braços, eu era o homem mais forte do mundo.

- Uma bomba de simpatia! - ouvi o Pai gritar. Eu sabia que ele sofria.

- Valha-me Deus! É incrível! Uma maldita bomba de simpatia.

A Franny disse depois que se tinha apercebido imediatamente que o Pai estava cego. Não foi só pelo sítio em que ele se encontrava quando o carro foi pelos ares, ou pelos estilhaços de vidro que foram projectados de encontro ao seu rosto quando ele se encontrava de pé junto à porta giratória; nem tão-pouco foi por causa de todo o sangue que ela lhe viu nos olhos quando lhe limpou a cara o suficiente para ver o que lhe tinha acontecido.

- Soube não sei como - disse ela -, isto é, antes de ver os olhos dele. Sempre soube que ele era tão cego como o Freud, ou que viria a sê-lo. Eu sabia que ele ficaria cego.

- Auf Wiedersehen, Freud! - gritava o Pai.

- Sossega, Pai - ouvi a Lilly dizer-lhe.

- Pois! Está sossegado, Pai - disse a Franny.

O Frank subiu a Krugerstrasse até à Kãrntnerstrasse e dobrou a esquina em direcção à Ópera. Tinha de ver, é claro, se a bomba de simpatia tinha reagido - mas o Freud tivera visão suficiente para ver que o Mercedes estacionado diante do Hotel New Hampshire estava demasiado longe para fazer detonar a bomba da Ópera. E a Schwanger deve ter continuado a andar como se nada fosse com ela. Ou talvez tenha decidido ficar para assistir ao fim do espectáculo. Se calhar era uma ópera de que ela gostava. Talvez quisesse lá estar, a ver os actores serem chamados ao palco, a fazerem as suas últimas vénias sobre a bomba não detonada.

Mais tarde, o Frank contou que, quando saiu do Hotel New Hampshire para ver se a Ópera estava intacta, reparou que o Arbeiter estava de uma cor carmesim muito viva, que os seus dedos ainda mexiam - ou talvez fossem apenas contracções - e que parecia estar a dar pontapés. A Lilly disse-me depois que - enquanto o Frank foi ver a Ópera - o Arbeiter passou de carmesim a azul.

- Um azul cor de ardósia - disse a Lilly, a escritora -, da cor do oceano num dia enevoado.

E quando o Frank voltou, contou-me a Franny, o Arbeiter estava completamente imóvel e com uma tez branca e baça - a cor tinha desaparecido completamente do seu rosto.

- Estava da cor de uma pérola - disse a Lilly. Estava morto. Eu tinha-o esmagado.

- Agora já o podes largar - teve finalmente de dizer a Franny. - Está tudo bem. Vai tudo correr bem - sussurrou-me ela, pois sabia como eu gostava dos sussurros.

Beijou-me na face, e então eu larguei o Arbeiter.

Nunca mais voltei a sentir o mesmo pelo halterofilismo. Continuo a praticá-lo, mas sem o mesmo entusiasmo. Não gosto de me exceder. Bastam-me uns levantamentos leves, não muitos, estrictamente o suficiente para me começar a sentir bem. Já não gosto de me esforçar demasiado.

As autoridades disseram-nos que a "bomba de simpatia" do Schraubenschlussel podia ter funcionado se o carro estivesse mais perto. Os peritos em bombas concluíram igualmente que qualquer explosão que se tivesse dado na zona podia fazer detonar a bomba de simpatia em qualquer altura. Acho que o velho Schraubenschlussel não tinha sido tão infalível como pensava. Escreveram-se uma data de disparates sobre as intenções dos radicais. Seria publicada uma quantidade de asneiras sobre a "declaração" que eles teriam tentado fazer. E muito sobre o Freud. A sua cegueira foi referida de passagem; e que tinha estado num campo de concentração. Não se disse absolutamente nada sobre o Verão de 1939, sobre o State O'Maine e o Arbuthnot-by-the-Sea, sobre o sonho - ou sobre o outro Freud e o que ele poderia ter dito sobre aquilo tudo. Disseram-me as maiores cretinices sobre as questões de ordem política subjacentes àqueles acontecimentos.

"A política é sempre uma cretinice!", como teria dito o Iowa Bob.

E escreveu-se muito pouco sobre a Fehlgeburt e como ela nos podia destroçar o coração com a maneira como lia o final de O Grande Gatsby. Reconheceram, é claro, que o meu pai era um herói. Foram discretos relativamente à reputação de que gozava o nosso segundo Hotel New Hampshire - "no seu apogeu", como dizia o Frank, referindo-se àqueles dias sórdidos.

Quando o Pai saiu do hospital, oferecemos-lhe um presente. Para isso, a Franny tinha escrito ao Júnior Jones. Este tinha-nos enviado bolas de basebol durante todos aqueles sete anos, pelo que a Franny sabia que podia contar com ele para arranjar outro taco de basebol para o Pai. Um taco Louisville só para ele. É claro que ele ia precisar de um. E o Pai pareceu ficar comovido com o nosso presente - mais exactamente com a atenção da Franny, pois o taco tinha sido ideia dela. Acho que o Pai deve ter chorado um pouco quando estendeu as mãos pela primeira vez e nós lhe metemos lá o taco e percebeu o que é que estava a agarrar. Mas nós não podíamos ver se estava a chorar, pois ainda tinha pensos nos olhos.

E o Frank, que sempre tivera de traduzir as coisas para o Pai, tornou-se o seu intérprete noutros sentidos. Quando os membros da Staatsoper nos quiseram prestar uma homenagem, o Frank teve de se sentar ao lado dele - na Ópera - e segredar-lhe a acção que se ia desenrolando no palco. O Pai podia ouvir bem a música. Não me lembro que ópera era. Sei que não era a Lúcia. Era uma ópera cómica; particularmente burlesca, pois a Lilly tinha insistido que não queríamos Schlagobers e sangue. Era uma atitude simpática, da parte da Ópera Nacional de Viena, quererem agradecer-nos por os termos salvo, mas não queríamos ter de suportar um espectáculo de Schlagobers e sangue. Já tínhamos visto essa ópera. Tinha sido a ópera representada no Hotel New Hampshire durante sete anos.

E foi assim que, na abertura desta alegre ópera-bufa - fosse ela qual fosse -, o regente, a orquestra e todos os cantores apontaram o meu pai na fila da frente. (Ele tinha insistido para se sentar aí. "Assim estou certo de ver", dissera ele.) E o Pai levantou-se e fez uma vénia; era magnífico a fazer vénias. E acenou com o taco de basebol para o público. Os vienenses adoravam a parte da história do taco Louisville, pelo que ficaram comovidos e aplaudiram durante imenso tempo quando o Pai lhes acenou com ele. Nós, os filhos, sentimo-nos muito orgulhosos.

Interrogo-me frequentemente se o editor de Nova Iorque que queria ficar com o livro da Lilly por cinco mil dólares teria cedido às exigências do Frank se nós não nos tivéssemos tornado famosos - se não tivéssemos salvo a Ópera e morto os terroristas à nossa maneira de boa família americana.

- O que é que isso interessa? - perguntou o Frank, astutamente.

De facto, o que interessava é que a Lilly não tinha assinado o contrato de cinco mil dólares. O Frank tinha ido para voos mais altos. E quando os editores perceberam que aquela Lilly Berry era a rapariguinha que tivera uma pistola apontada à cabeça, que a pequena Lilly era a mais jovem sobrevivente (e certamente a mais pequena) da família Berry - que liquidara os terroristas, que tinha salvo a Ópera - bem... nessa altura, é claro, foi o Frank quem passou a dar cartas.

- A minha autora já está a trabalhar num novo livro - disse o Frank, o agente. - Não temos pressa nenhuma. No que respeita ao A Tentar Crescer estamos interessados na melhor oferta.

É claro que o Frank ia conseguir um rápido êxito financeiro.

- Queres dizer que vamos ficar ricos? - perguntou o Pai, sem ver nada.

Ao princípio de estar cego, tinha uma maneira desajeitada de inclinar a cabeça demasiado para a frente - como se isso o pudesse ajudar a ver. E o taco Louisville era o seu companheiro permanente, o seu instrumento de percussão.

- Podemos fazer o que quisermos, Pai - disse a Franny.

- Tu podes - acrescentou ela, dirigindo-se ao Pai. - Pensa numa coisa, e é como se já fosse tua.

- Podes sonhar à vontade, Pai - disse a Lilly.

Mas o Pai parecia pasmado perante todas as opções que se lhe deparavam.

- Tudo? - perguntou ele.

- Basta dizeres o que queres - disse eu.

Ele era outra vez o nosso herói. Era o nosso pai - finalmente. Estava cego, mas era ele quem mandava.

- Bem, tenho de pensar nisso - disse o Pai, prudentemente, com o taco de basebol a tocar todos os tipos de música.

Aquele taco Louisviile nas mãos do meu pai era musicalmente tão complicado como uma orquestra inteira. Embora ele nunca fizesse tanto barulho com o taco de basebol como o Freud, era mais variado do que este alguma vez teria sonhado ser.

E assim deixámos o nosso lar de sete anos longe de casa. O Frank vendeu o segundo Hotel New Hampshire por um preço ridiculamente elevado. No fim de contas, o velho edifício era uma espécie de marco histórico, argumentou o Frank.

- Vou regressar! - escreveu a Franny ao Júnior Jones.

- Vou regressar! - escreveu ela também ao Chipper Dove.

- Porquê, bolas, Franny? - perguntei eu. - Porquê escrever ao Chipper Dove?

Mas a Franny recusou-se a falar disso, limitando-se a encolher os ombros.

- Já te disse - insistiu a Susie -, a Franny vai ter de enfrentar isso, mais cedo ou mais tarde. Vocês vão ter ambos de enfrentar o Chipper Dove. E terão de enfrentar-se um ao outro, também.

Olhei para a Susie como se não soubesse do que é que ela estava a falar, mas ela disse:

- Eu não sou cega. Tenho olhos na cara. Além de que sou um urso esperto.

Mas ela não estava a ser ameaçadora.

- Vocês também arranjaram um bom problema - confiou-nos ela, à Franny e a mim.

- Não digas parvoíces - retorquiu a Franny.

- Bem, estamos a ser muito cuidadosos - disse eu à Susie.

- Durante quanto tempo pode uma pessoa ser assim tão cuidadosa? -perguntou a Susie. - Nem todas as bombas desapareceram. Vocês têm uma bomba entre os dois. Têm de ser mais do que cuidadosos.

E a Susie continuou a pôr-nos de sobreaviso.

- A bomba que têm entre os dois pode estoirar com ambos.

Por uma vez, a Franny pareceu não ter resposta. Peguei-lhe na mão, e ela correspondeu apertando a minha.

- Amo-te - disse-lhe eu quando ficámos sozinhos, o que nunca devíamos permitir que acontecesse. - Tenho imensa pena - sussurrei -, mas amo-te, amo-te mesmo muito.

- E eu amo-te desesperadamente - disse a Franny. Dessa vez foi a Lilly quem nos salvou. A despeito do facto de que já devíamos estar com tudo emalado e prontos para partir, a Lilly estava a escrever. Ouvimos a máquina de escrever e pudemos imaginar as mãos pequenas da nossa irmã a matraquear o teclado.

- Agora que vou ser editada - tinha dito a Lilly - tenho de fazer melhor. Tenho de continuar a crescer - continuara ela, com algum desespero. - Meu Deus, o próximo livro tem de ser maior do que o primeiro. E o outro a seguir terá de ser ainda maior.

Havia um certo desespero na maneira como dizia aquilo, e o Frank retorquiu:

- Comigo ao teu lado, miúda, com um bom agente, tens o mundo preso pelos tomates.

- Mas eu ainda tenho de fazer isso - queixou-se a Lilly. - Ainda tenho de escrever. Quer dizer, agora as pessoas estão a contar que eu cresça.

E o som da Lilly a tentar crescer com tanto afinco distraiu-nos, à Franny e a mim, um do outro. Saímos para a entrada do hotel, que sempre era um local mais público, onde nos sentimos a salvo. Recentemente, tinham sido mortos dois homens naquela entrada, mas para a Franny e para mim ela era um lugar mais seguro do que os nossos quartos.

As prostitutas tinham-se ido embora. Já não me interessa o que foi feito delas. Elas não quiseram saber o que foi feito de nós.

O hotel estava vazio. Um perigoso número de quartos parecia convidar-nos, à Franny e a mim.

- Um dia - disse-lhe eu - teremos de o fazer. Sabes isso muito bem. Ou achas que as coisas se modificarão se esperarmos que passe?

- Não se vão modificar - retorquiu ela. - Mas talvez, um dia, sejamos capazes de enfrentar isso. Um dia isso poderá ser um pouco mais seguro do que nos parece agora.

Eu duvidava que aquilo alguma vez fosse suficientemente seguro e estava à beira de procurar convencê-la a fazê-lo agora, a usar o segundo Hotel New Hampshire para aquilo que tinha sido previsto - acabar com aquilo, para ver se estávamos condenados ou apenas atraídos perversamente um pelo outro - mas desta vez o nosso salvador foi o Frank.

Ao trazer as malas para a entrada, pregou-nos um susto dos diabos.

- Santo Deus, Frank - gritou a Franny.

- Desculpem - resmungou ele.

O Frank trazia a sua estranha tralha habitual: os seus livros esquisitos, as suas roupas peculiares e o seu manequim.

- Vais levar o manequim para a América, Frank? - perguntou-lhe a Franny.

- Não é tão pesado como a carga que vocês os dois transportam - disse o Frank. - E é muito mais seguro.

Assim, o Frank também sabia. Nessa altura, a Franny e eu pensávamos que a Lilly não sabia; e - no que respeita ao nosso dilema - ainda bem que o Pai estava cego.

- Mantenham-se afastados das janelas abertas - disse o Frank para a Franny e para mim.

O maldito manequim que o Frank trazia ao ombro, como se fosse um toro de madeira leve, exibia uma perturbante semelhança com algo conhecido. Foi a falsidade espelhada nele que a Franny e eu notámos: o rosto lascado do manequim, a evidência da peruca, e o busto hirto, sem a macieza da carne - o peito fingido, o tórax inerte, a cintura rígida.

À luz mortiça da entrada do segundo Hotel New Hampshire, a Franny e eu podíamos ser levados a pensar que estávamos a ver as formas do Sorrow, quando na realidade não víamos nada. Mas não é verdade que o Sorrow nos tinha ensinado a estarmos precavidos, a olharmos para todo o lado? O Sorrow, a tristeza podem tomar todas as formas deste mundo.

- Mantém-te também afastado das janelas abertas, Frank - disse eu, tentando não olhar muito de perto para o manequim de modista.

- Temos de nos manter todos unidos - disse a Franny, no momento em que o Pai, a dormir, gritou:

- Auf Wiedersehen, Freud!

 

         APAIXONADO PELA FRANNY

         ENFRENTANDO O CHIPPER DOVE

O amor também vem sempre à tona e, se isto é verdade, o amor assemelha-se ao Sorrow, à tristeza, em muitos aspectos.

Regressámos a Nova Iorque em finais de 1964, mas desta vez já não em voos separados; pelo contrário, íamos bem juntos, seguindo o bom conselho da Franny. A hospedeira ficou aflita ao ver o taco de basebol, mas lá deixou o Pai levá-lo entre os joelhos - enfim, concessões humanas que se fazem aos cegos, fazendo vista grossa aos regulamentos.

O Júnior Jones não pôde ir esperar-nos ao avião. Estava a jogar a sua última temporada com os Browns - num hospital de Cleveland.

- Pá - disse-me ele então ao telefone -, pergunta lá ao teu pai se ele não quer trocar os joelhos dele pelos meus olhos.

- E se eu te der os meus joelhos, o que é que tu tens para me oferecer em troca? - ouvi a Franny perguntar-lhe ao telefone.

Não ouvi a resposta dele, mas ela sorriu, piscando-me o olho.

Poderíamos ter ido para Boston; estou certo de que o Fritz nos teria ido esperar ao avião e nos deixaria ficar no primeiro Hotel New Hampshire de graça. Mas o Pai tinha-nos dito que nunca mais queria voltar a ver Dairy, nem o New Hampshire, nem aquele primeiro Hotel New Hampshire. Claro que o Pai não teria podido "ver" nada, mesmo que lá ficássemos o resto da vida, mas compreendemos bem onde ele queria chegar. Nenhum de nós tinha estômago para voltar a ver Dairy e recordar os tempos em que a família estava toda completa - quando cada um de nós tinha os olhos bem abertos.

Mas em Nova Iorque já era território neutro, e o Frank sabia que durante algum tempo o editor da Lilly havia de tomar a seu cargo a nossa estada e o nosso bem-estar.

- Divirtam-se - disse-nos o Frank. - Basta ligar para o serviço de quartos.

O Pai portou-se como uma criança com o serviço de quartos, encomendando coisas que acabava por não comer e pedindo as bebidas intragáveis do costume.

Nunca tinha estado num hotel com serviço de quartos. Também se portou como se nunca tivesse estado em Nova Iorque, queixando-se de que os empregados do serviço de quartos falavam um inglês tão mau como o dos vienenses - o que aliás era perfeitamente natural, porque os empregados eram estrangeiros.

- São mais estrangeiros do que os próprios vienenses jamais sonharam ser! - barafustou o meu pai. - Sprechen Sie Deutch? - vociferou ele ao telefone. - Valha-me Deus, Frank, não te importas de mandar vir um Fruhstuck como deve ser? Esta gente não percebe o que eu digo.

- Estamos em Nova Iorque, Pai - recordou-lhe a Franny.

- Em Nova Iorque não se fala alemão nem inglês, Pai - explicou o Frank.

- Então que diabo de língua é que se fala aqui? - perguntou o Pai. - Peço um café e um croissant e trazem-me chá com torradas!

- Ninguém sabe o que se fala aqui - disse a Lilly, olhando pela janela. O editor da Lilly instalou-nos no Hotel Stanhope, no cruzamento da

81.a Rua com a 5.a Avenida; a Lilly tinha pedido para ficar perto do Metropolitan Museum, e eu para ficar perto do Central Park - queria correr. Corria à volta do lago, sempre e sempre à volta, duas vezes por dia, quatro voltas de cada vez - a última volta a trazer a luxúria do sofrimento, a cabeça a andar à roda, os arranha-céus de Nova Iorque parecendo que iam desabar sobre mim.

A Lilly entretinha-se a olhar pela janela da nossa suite no 14.º andar. Gostava de observar aquela enorme torrente humana a entrar e a sair do museu.

- Acho que gostava de viver aqui - disse ela, suavemente. - É o mesmo que ver um castelo a mudar de soberano. E também se pode ver as folhas mudar nas árvores do parque; e, sempre que me visitares, podes correr à volta do lago e garantires-me que ele ainda lá está. Não quero nunca vê-lo de perto - disse a Lilly, num tom estranho -, mas há-de ser reconfortante ouvir-te falar da limpidez da água, da quantidade de pessoas a correrem pelo parque, da quantidade de esterco de cavalo espalhado nas pistas para cavaleiros. Um escritor tem de saber estas coisas.

- Bem, Lilly - disse o Frank -, acho que tens dinheiro para poderes pagar uma suite permanente aqui, mas também podes arranjar um apartamento, em vez disso. Não és obrigada a viver no Hotel Stanhope. Era mais prático teres o teu próprio apartamento.

- Não - disse a Lilly. - Se tenho dinheiro para isso, quero continuar a viver aqui. Decerto que esta família consegue perceber o que me leva a gostar de viver num hotel.

A Franny teve um arrepio. Tinha-me dito que não queria viver num hotel. Contudo, ficaria com a Lilly ainda durante algum tempo: depois de o editor ter deixado de pagar a conta e a Lilly ter querido conservar a sua suite da esquina no 14.º andar, a Franny havia de ficar a fazer-lhe companhia durante algum tempo.

- É para tu teres um pau-de-cabeleira, Lilly - dizia a Franny, metendo-se com ela.

Mas eu sabia que quem precisava de um pau-de-cabeleira era a própria Franny.

- E tu sabes por causa de quem é que eu preciso de um pau-de-cabeleira - disse-me a Franny.

O Frank e o Pai viriam a ser os meus paus-de-cabeleira; mudámo-nos os três para um apartamento sumptuoso que o Frank arranjou na Central Park South. Eu ainda podia continuar a correr, correr por todo o Central Park, investigar o estado do lago para poder informar a Lilly, chegar ao Hotel Stanhope ofegante e a pingar suor, para lhe falar da limpidez da água, e por aí fora, e para me mostrar à Franny - para ter uma oportunidade de a ver. Ainda não seria ali que o Pai, a Franny e eu acabaríamos por fixar as nossas residências permanentes; mas o Frank e a Lilly haviam de tornar-se aquele género de nova-iorquinos que assentam arraiais em certos locais da zona do Central Park e aí ficam para sempre. A Lilly iria viver no Hotel Stanhope durante o resto da vida, escrevendo sempre e tentando crescer até à altura do seu 14.º andar; embora pequena, era ambiciosa. Quanto ao Frank, o seu agente, passaria a dirigir os negócios a partir do seu apartamento, com seis telefones à disposição, no 222 da Central Park South. Eram ambos terrivelmente empreendedores e fura-vidas - a Lilly e o Frank -, e uma vez perguntei à Franny que diferença é que ela achava que havia entre os dois.

- Cerca de vinte quarteirões e o Jardim Zoológico do Central Park - gracejou a Franny.

Aquela era exactamente a distância entre eles, mas a Franny queria dizer que era essa também a diferença entre a Lilly e o Frank: um jardim zoológico e mais de vinte quarteirões.

- E qual é a diferença entre nós, Franny? - perguntei-lhe pouco depois da nossa chegada a Nova Iorque.

- Uma das diferenças entre nós é que, de uma maneira ou de outra, hei-de superar isto - respondeu-me a Franny. - Sou assim mesmo: acabo sempre por superar todas as crises. E hei-de superar esta também. Tu é que nunca hás-de conseguir superá-la. Conheço-te bem, meu irmão, meu amor. Tu nunca chegarás a superá-la... pelo menos, não o conseguirás sozinho, sem a minha ajuda.

Claro que ela tinha razão; a Franny tinha sempre razão - e estava sempre um passo à minha frente. Quando a Franny, por fim, acabou por ir para a cama comigo, preparou tudo consciente e deliberadamente. Sabia exactamente o que fazia e por que motivo o fazia - como consumação da sua promessa de ser uma mãe para nós, agora que a Mãe morrera; era o único meio de cuidar de nós, o único meio de nos salvar.

- Miúdo, tu e eu precisamos de uma tábua de salvação, mas tu, sobretudo, precisas dela urgentemente. Julgas que estamos apaixonados, e talvez eu própria pense o mesmo. Mas chegou a altura de te mostrar que não sou assim uma pessoa tão especial. Chegou a altura de lancetar o abcesso antes que ele rebente.

Ela soube escolher o momento apropriado, do mesmo modo que decidira não dormir com o Júnior Jones - "para salvar a situação", como diria mais tarde. A Franny tinha sempre os seus planos e as suas razões.

- Com o caraças, pá - disse-me o Júnior Jones ao telefone. - Diz à tua irmã que venha a Cleveland ver o que resta de um homem. Os meus joelhos pifaram, mas o resto funciona perfeitamente.

- Já não sou chefe de claque - disse-lhe a Franny. - Se quiseres ver-me, mexe-me esse cu e trata de vir a Nova Iorque.

- Eh, pá - berrou-me o Júnior Jones -, vê se lhe explicas que eu não posso andar, tenho as duas pernas engessadas! E o resto é grande e pesado de mais para levar de muletas. E diz-lhe que eu conheço bem a cidade de merda que é Nova Iorque. Pá, se me vêem lá de muletas, há gajos que vão tentar torcer-me o pescoço!

- Diz-lhe que quando se curar da loucura futebolística talvez arranje tempo para mim - respondeu a Franny.

- Oh, pá! - replicou o Júnior Jones. - Mas o que é que a Franny quer?

- Quero-te a ti - sussurrou-me ela, pelo telefone, quando tomou a sua decisão.

Eu estava no 222 da Central Park South, a tentar atender todos os telefones do Frank. O Pai queixava-se dos telefones, que não o deixavam ouvir a telefonia (que ele tinha todo o dia ligada), mas o Frank recusava-se a arranjar uma secretária, quanto mais um escritório.

- Não preciso de escritório; basta-me um endereço para o correio e alguns telefones - protestava ele.

- Ao menos arranja uma telefonista, Frank - sugeri-lhe eu, o que ele acabaria por aceitar um dia de má vontade, e já depois de o Pai e eu nos termos mudado dali.

Nos primeiros tempos que passámos em Nova Iorque, fui eu a telefonista do Frank.

- Desejo-te loucamente - segredou-me a Franny ao telefone. Estava sozinha no Stanhope.

- A Lilly foi a um almoço literário - disse a Franny.

Talvez essa fosse uma maneira de a Lilly crescer, pensei eu: ir a uma quantidade de almoços literários.

- O Frank não ia perder a oportunidade de fazer mais negócios - explicou-me a Franny. - Foi ao almoço com ela. Vão estar ocupados durante horas. E sabes onde eu estou, miúdo? Estou na cama. Toda nua, pendurada catorze andares por cima de ti. Bem por cima de ti. E desejo-te. Manda-te para cá, miúdo; é agora ou nunca. Nunca vamos poder saber se conseguimos viver sem isso se não experimentarmos.

A seguir desligou o telefone. Outro dos telefones do Frank estava a tocar. Deixei-o tocar. A Franny devia ter adivinhado que eu estava vestido para ir correr; estava pronto para sair porta fora.

- Vou dar uma corrida - disse eu ao Pai. - Vai demorar.

Vai ser uma corrida tão demorada que até pode ser daquelas de que nunca se regressa, pensei eu.

- Não atendo um único telefonema - disse o Pai de mau humor. Naquela altura ele andava com problemas por não ter ainda decidido o

que havia de fazer. Ficava sentado no esplêndido apartamento do Frank, com o taco Louisville e o manequim, e passava todo o dia a pensar.

- Tudo o que eu quiser? Posso mesmo fazer tudo o que quiser? - perguntava ele ao Frank umas cinquenta vezes por semana.

- Tudo o que quiseres, Pai - respondia-lhe o Frank. - Eu trato de tudo.

O Frank já conseguira um contrato para a publicação de três livros da Lilly. Tinha negociado uma primeira edição de A Tentar Crescer - com uma tiragem inicial de cem mil exemplares. Vendera os direitos cinematográficos à Warner Brothers e negociara um acordo em separado com a Columbia Pictures para um argumento original sobre os acontecimentos que levaram à explosão da bomba em frente do segundo Hotel New Hampshire - e à famosa bomba da Ópera, que não chegara a explodir. A Lilly já estava a trabalhar nesse argumento. E o Frank também conseguira um contrato para uma série de televisão baseada na vida quotidiana no primeiro Hotel New Hampshire (de que a Lilly também seria autora) - a série basear-se-ia em A Tentar Crescer e só seria lançada depois do filme. O filme chamar-se-ia A Tentar Crescer, mas a série de televisão seria lançada com o título de O Primeiro Hotel New Hampshire (isto, salientava o Frank, deixava em aberto a possibilidade de novos negócios).

- Mas quem - interrogava-me eu -, quem é que alguma vez ousaria produzir uma série televisiva sobre o segundo Hotel New Hampshire?

- Quem poderia querer fazê-lo? - completava a Franny.

Se a Lilly crescera só um bocadinho com o seu livro, o Frank crescera o dobro - para todos nós - com a venda do livro da Lilly. Sabíamos bem que não fora uma tarefa fácil para ela, e estávamos preocupados por ela trabalhar tanto, por ela estar sempre a escrever - e por estar sempre com tanto afinco a tentar crescer.

- Leva a coisa com calma, Lilly - aconselhava-a o Frank. - O cash flow parece uma torrente em fúria, tens uma excelente liquidez - explicava o nosso economista -, e o futuro é cor-de-rosa.

- Descansa um bocadinho, Lilly - aconselhava-a a Franny.

Mas a Lilly levava a literatura demasiado a sério - ainda que esta nunca a viesse a levar tão a sério.

- Sei que tenho tido sorte. Agora tenho de a merecer - dizia ela, esforçando-se cada vez mais.

Mas num dia de Inverno de 1964, pouco antes do Natal, a Lilly saíra para mais um dos seus almoços literários, e a Franny achou que era chegada a ocasião. Era agora ou nunca. Havia apenas uns vinte quarteirões e um jardim zoológico bem pequeno a separar-nos. Qualquer bom corredor de meio-fundo consegue fazer o percurso que vai da Central Park South até ao cruzamento da 81.a Rua com a 5.a Avenida num curtíssimo espaço de tempo. Estava um dia invernoso, de um frio estimulante, mas cinzento. A neve tinha sido limpa dos passeios e ruas de Nova Iorque - deixando o piso em óptimas condições para uma corrida veloz de Inverno. A neve do Central Park lembrava a velhice e a morte, mas o meu coração estava bem vivo e batia-me com força no peito. O porteiro do Hotel Stanhope já me conhecia - a família Berry seria bem-vinda ao Stanhope durante anos e anos. O recepcionista - um homem vivo e bem-disposto, com um acentuado sotaque britânico - cumprimentou-me enquanto eu esperava pelo elevador (os elevadores do Stanhope são lentos). Respondi ao seu cumprimento, enquanto limpava os ténis ao tapete; com o correr dos anos, eu havia de ver aquele homem ir ficando careca, mas sempre com a mesma boa disposição. Até mesmo com os clientes que reclamavam ele tinha um trato agradável. Como o europeu que a Lilly e eu vimos uma manhã, com um acesso de fúria, no balcão da recepção. Tratava-se de um sujeito corpulento, vestido com um roupão às riscas; estava coberto de caca da cabeça aos pés. Ninguém lhe falara de uma das características peculiares do Stanhope: as suas famosas sanitas que despejavam para cima. Se o leitor alguma vez ficar no Stanhope, tome um cuidado muito especial. Depois de fazer o seu "serviço" é aconselhável fechar logo a tampa da sanita e afastar-se. Aconselho-o a accionar o manípulo do autoclismo com o pé. Este europeu corpulento deve ter ficado a olhar para o seu "presente", especado bem por cima dele

- deve ter pensado que o ia ver desaparecer quando, de súbito, este foi projectado para cima, salpicando-o todo de alto a baixo. E o nosso sempre jovial recepcionista de sotaque britânico, atrás do balcão, olhou para o hóspede todo cagado que o descompunha numa fúria e disse:

- Ah, que maçada. Foi um pouco de ar a mais nos canos, não? Era a desculpa que ele dava sempre.

- Um pouco de ar a mais nos canos? - berrou o europeu corpulento.

- É mas é um monte de merda na cabeça! - urrou o homem em resposta. Mas isto passou-se noutra ocasião.

No dia em que lá fui para fazer amor com a Franny, o elevador subia a passo de caracol. Decidi subir as escadas a correr até ao 14.º andar. Quando lá cheguei devia estar com um ar incrivelmente sôfrego.

A Franny entreabriu a porta, mirou-me de alto a baixo e disse:

- Uh! Vais precisar de um valente duche!

- Está bem - concordei eu.

Pediu-me para eu deixar estar a porta encostada só até lhe dar tempo de voltar para a cama. Ainda não queria que eu a visse. Ouvi-a atravessar o quarto e enfiar-se na cama.

- Já podes - chamou-me a Franny.

E eu entrei, depois de ter colocado na porta o dístico NÃO INCOMODAR.

- Põe o dístico na porta! - pediu-me ela.

- Já pus - respondi-lhe, fitando-a.

Ela estava debaixo dos cobertores e parecia apenas um pouco nervosa. - Não precisas de tomar duche - acrescentou ela. - Eu gosto de ti todo suado. Pelo menos, estou habituada a ver-te assim. Mas eu estava nervoso, e acabei mesmo por tomar o duche.

- Despacha-te, palerma! - gritou-me ela.

Tomei o duche o mais depressa possível e usei o autoclismo com pretensões a repuxo com toda a cautela. O Stanhope é um hotel maravilhoso, especialmente para quem gostar de correr no Central Park e observar o Metropolitan Museum com os seus visitantes, mas é preciso um cuidado especial com as sanitas. Como pertenço a uma família habituada a sanitas bem esquisitas - como as sanitas para anões do primeiro Hotel New Hampshire, essas minúsculas sanitas que os pigmeus do Fritz's Act vêm usando até hoje - tenho tendência para ser condescendente para com as sanitas do Hotel Stanhope, embora saiba de algumas pessoas que afirmam que nunca mais lá voltarão a pôr os pés. Mas que importância tem um pouco de ar nos canos, ou até mesmo um monte de merda no alto da cabeça, se as recordações forem boas?

Saí da casa de banho todo nu; quando a Franny me viu, tapou a cara com o lençol, exclamando:

- Valha-me Deus!

Enfiei-me na cama junto dela, que me voltou as costas, começando às risadinhas.

- Tens os tomates todos molhados - disse-me ela.

- Já me enxuguei todo!

- Mas esqueceste-te dos tomates!

- Não há nada melhor do que fruta bem lavada!

Desatámos os dois às gargalhadas, como se estivéssemos loucos. E estávamos loucos.

- Amo-te - tentou ela dizer-me, mas ria tanto que mal conseguia falar.

- Desejo-te - disse-lhe eu.

Mas também ria tanto que comecei a espirrar no meio da frase, o que interrompeu a conversa por alguns instantes. Foi assim enquanto ela esteve voltada de costas, ficando nós encaixados como duas colherzinhas apaixonadas; mas quando ela se voltou, deitando-se em cima de mim com os seios contra o meu peito e as coxas enroscadas nas minhas, tudo mudou. Se tudo fora demasiado divertido a princípio, agora era demasiado sério e já não podíamos parar. A primeira vez que fizemos amor estávamos numa posição mais ou menos convencional.

- Nada de demasiado tântrico, por favor - pedira-me a Franny. Quando acabámos, ela disse:

- Bem, foi bom. Nada de excepcional, mas foi porreiro, não foi?

- Bem, para mim foi mais do que "porreiro". Mas não foi "fora de série". Nisso estou de acordo.

- Estás de acordo - repetiu a Franny, abanando a cabeça e roçando-me com os cabelos. - Muito bem. Prepara-te então para o "fora de série".

A dada altura, devo tê-la apertado demasiado nos braços, e ela pediu-me:

- Por favor, não me magoes.

- Não tenhas medo! - disse eu.

- Tenho, mas só um bocadinho.

- Eu tenho, e muito - confessei.

Fazer amor com uma irmã não é coisa que se deva descrever. Bastará dizer que se tornou "excepcional" e que depois ainda foi mais "fora de série"? Mais tarde foi piorando, é claro; mais tarde ficámos cansados. Por volta das quatro da tarde, a Lilly bateu à porta discretamente.

- É uma empregada? - perguntou a Franny.

- Não, sou eu - respondeu a Lilly. - Não sou uma empregada, sou uma escritora.

- Vai-te embora e volta daqui a uma hora - pediu-lhe a Franny. - Porquê? - perguntou a Lilly.

- Estou a escrever uma coisa - respondeu a Franny.

- Não estás nada - disse a Lilly.

- Estou a tentar escrever - exclamou a Franny.

- Está bem - disse a Lilly. - Mantém-te afastada das janelas abertas

- acrescentou ela.

Em certo sentido, a Franny estava de facto a escrever qualquer coisa; ela era a autora do rumo que tomou a nossa relação; ela assumiu uma responsabilidade maternal por esta relação. A Franny foi longe de mais - fez amor comigo demasiadas vezes. Fez-me ver que o que havia entre nós era de mais em tudo.

- Ainda tenho vontade de ti - murmurou ela.

Eram quatro e meia da tarde. No momento em que a penetrei, senti-a retrair-se.

- Estás dorida? - perguntei-lhe ao ouvido.

- É claro que estou! Mas é melhor não parares. Se paras dou cabo de ti

- garantiu-me a Franny.

E tê-lo-ia feito, realmente, como eu viria a compreender mais tarde. De certo modo, se tivesse continuado apaixonado por ela, ela tinha dado cabo de mim, ou melhor, tínhamos dado cabo um do outro. Mas ela limitou-se a levar aquilo até ao exagero, e sabia muito bem o que estava a fazer.

- É melhor ficarmos por aqui - sussurrei-lhe eu. Já eram quase cinco horas.

- Não, vamos continuar - respondeu-me ela, ferozmente.

- Mas tu estás dorida.

- Quero ficar ainda mais dorida. E tu? Também estás?

- Um bocadinho - confessei.

- Quero que fiques todo dorido. Desta vez é por cima ou por baixo? - perguntou-me ela, inflexível.

Quando a Lilly bateu novamente à porta, eu estava prestes a imitar a Screaming Annie; se houvesse uma ponte nova ali perto, eu tê-la-ia feito abrir fendas.

- Volta daqui a mais uma hora! - gritou-lhe a Franny.

- Já são sete horas - resmungou a Lilly. - Há três horas que estou à espera.

- E que tal se fosses jantar com o Frank? - sugeriu-lhe a Franny.

- Já almocei com o Frank! - respondeu-lhe a Lilly aos berros.

- Então vai jantar com o Pai! - insistiu a Franny.

- Nem sequer me apetece comer. Além disso, tenho de escrever. Está na minha hora de crescer.

- Tira uma folga esta noite! - sugeriu a Franny.

- Toda a noite? - perguntou a Lilly.

- Só por mais três horas.

Gemi baixinho. Onde é que eu ia arranjar estofo para mais três horas?

- E tu não estás com fome, Franny? - perguntou a Lilly.

- Se tiver fome, encomendo o jantar para o serviço de quartos, mas por acaso não tenho fome nenhuma.

Mas a Franny estava insaciável; a sua fome de mim iria salvar-nos a ambos.

- Já chega, Franny - supliquei-lhe.

Deviam ser umas nove horas. Não sei bem. Estava tão escuro que já não se via nada.

- Mas tu amas-me, não é verdade? - perguntou-me ela. O corpo dela movia-se como se fosse um chicote - o corpo dela era um haltere demasiado pesado para mim. Às dez horas consegui sussurrar-lhe ao ouvido:

- Por amor de Deus, Franny, temos de parar. Vamos acabar por nos magoarmos um ao outro, Franny.

- Não, meu amor - sussurrou-me ela -, é exactamente isso que não vamos fazer: magoar-nos um ao outro. Vamos ficar bem. Vamos ter uma vida maravilhosa - prometeu-me ela, levando-me a penetrá-la de novo, mais uma vez, e ainda outra vez.

- Franny, já não posso mais - tornei a sussurrar-lhe.

Estava cego de dor; tão cego como o Freud, tão cego como o Pai. E a Franny devia estar a sofrer mais do que eu.

- Podes sim, meu amor. Só mais uma vez - insistiu ela. - Sei que ainda tens qualquer coisa dentro de ti.

- Estou esgotado, Franny.

- Quase esgotado - corrigiu-me ela. - Ainda podemos fazer amor mais uma vez. Só depois disso teremos ambos esgotado a questão. Lembra-te que será a última vez, meu amor. Imagina o que seria viver assim todos os dias - disse ela, apertando-me contra si e tirando-me o que me restava de fôlego. - Acabaríamos por enlouquecer. Não é possível viver com isto. Anda, acaba com isto. Só mais esta vez, meu amor. A última vez! - gritou.

- Está bem - gritei-lhe eu. - Cá vou eu.

- Sim, meu amor, sim - disse a Franny.

Senti os joelhos dela enroscarem-se-me na espinha.

- Adeus, meu amor, adeus - sussurrou ela então. - Isso! - gritou, quando sentiu o meu corpo sacudir-se. - Pronto, pronto - murmurou ela, docemente. - Pronto, foi tudo o que ela escreveu - murmurou ela. - Isto é o fim da questão. Agora estamos livres. Agora acabou-se.

Ajudou-me então a entrar na banheira. A água queimava-me a pele como se fosse álcool.

- Esse sangue é teu ou é meu? - perguntei-lhe, enquanto ela tentava pôr a cama em ordem, agora que tinha posto as coisas em ordem connosco.

- Não importa, meu amor - respondeu-me ela, alegremente. - Sai quando se lavar.

"Parece um conto de fadas", viria a Lilly a escrever acerca da vida da nossa família. Concordo com ela. E o Iowa Bob também teria concordado. "É tudo um conto de fadas!", teria dito o Coach Bob. Até mesmo o Freud teria concordado com ele - os dois Freuds. É tudo um conto de fadas.

A Lilly chegou ao mesmo tempo que o carrinho do serviço de quartos e o desorientado criado estrangeiro - emigrado em Nova Iorque - que vinha trazer-nos o jantar, composto de uma série de pratos e várias garrafas de vinho. Deviam ser umas onze da noite.

- O que é que vocês estão a festejar? - perguntou-nos a Lilly.

- Bem, o John acabou agora mesmo uma grande corrida - explicou-lhe a Franny a rir.

- Não devias andar a correr à noite no parque, John - disse a Lilly, com ar preocupado.

- Só corri ao longo da Quinta Avenida. É um sítio perfeitamente seguro - tranquilizei-a.

- Perfeitamente seguro - repetiu a Franny, desatando às gargalhadas.

- O que é que se passa com ela, John? - perguntou-me a Lilly, olhando para a Franny.

- Acho que este é o dia mais feliz da minha vida - exclamou a Franny, sem parar de rir.

- Foi só um pequeno acontecimento entre tantos outros - disse-lhe eu. A Franny atirou-me com um pãozinho à cara. Desatámos os dois a rir.

- Valha-me Deus! - exclamou a Lilly, exasperada connosco e aparentemente revoltada com a quantidade de comida que tínhamos pedido.

- Podíamos ter tido uma vida muito infeliz - disse a Franny. - Isto é, todos nós - acrescentou, atacando a salada com os dedos.

Eu abri a primeira garrafa de vinho.

- Eu ainda posso ter uma vida infeliz - disse a Lilly, de sobrolho carregado. - Se tiver de suportar mais dias como o de hoje - acrescentou, abanando a cabeça com ar reprovador.

- Senta-te e come, Lilly - disse a Franny, que já se tinha sentado à mesa e estava já a atirar-se ao peixe.

- Pois é. Tu não comes o suficiente, Lilly - disse-lhe eu, enquanto me servia de coxas de rã.

- Hoje almocei. Foi um almoço bastante para o abrutalhado. Quer dizer, a comida estava boa, mas as doses eram exageradas. Só preciso de comer uma vez por dia - explicou-nos a Lilly.

Mas deixou-se ficar sentada à mesa connosco, a ver-nos comer. Tirou uma tira de feijão verde particularmente delgada da salada da Franny, comendo apenas metade e depositando o resto no meu prato de manteiga; pegou num garfo e remexeu nas minhas coxas de rã, mas eu sabia que ela só estava a brincar com a comida e que não tinha vontade.

- Conta lá o que é que escreveste hoje, Franny - pediu-lhe a Lilly. Apesar de estar com a boca cheia, a Franny não hesitou na resposta:

- Um romance completo. Foi terrível, mas era uma coisa que eu tinha mesmo de escrever. Depois de o acabar deitei-o fora.

- Deitaste-o fora? - espantou-se a Lilly. - Talvez se pudesse ter aproveitado alguma coisa.

- Era uma merda. Cada palavra. O John ainda leu um bocadinho, mas obriguei-o a devolver-mo para poder deitar tudo fora. Chamei cá o empregado e mandei-o deitá-lo para o lixo.

- Mandaste o empregado deitá-lo fora? - admirou-se a Lilly.

- Já nem era capaz de lhe tocar - respondeu a Franny.

- Quantas páginas tinha? - perguntou a Lilly.

- Demasiadas.

- E o que é que tu achaste daquilo que leste, John? - perguntou-me a Lilly.

- Uma porcaria. Só há um escritor na nossa família.

A Lilly sorriu, mas a Franny deu-me um pontapé por baixo da mesa. Entornei um pouco de vinho, e a Franny riu-se.

- Estou contente por saber que tens confiança em mim, John - confidenciou-me a Lilly. - Mas sempre que leio o final de O Grande Gatsby fico cheia de dúvidas. Acho-o tão belo! Penso que se nunca se conseguir escrever um final assim tão perfeito nem vale a pena começar a escrever um livro. Não vale a pena escrever um livro se não se pensar que pode ser tão bom como O Grande Gatsby. Quer dizer, se falhar, se o livro acabado não for lá muito bom, paciência. Mas o que importa é acreditar que ele pode ser muito bom antes de se começar a escrevê-lo. Às vezes, aquele maldito final de O Grande Gatsby esmaga-me por completo antes de começar a escrever.

Ela tinha os pequenos punhos fechados, e a Franny e eu vimos que apertava num deles o que restava de um pãozinho. A Lilly não gostava de comer, mas era capaz de espatifar uma refeição inteira sem absorver a menor quantidade de alimento.

- Falou a Lilly, a eterna preocupada - comentou a Franny. - Não penses tanto! Limita-te a fazer as coisas - disse-lhe ela, dando-me um pontapé por baixo da mesa na palavra "fazer".

Ao regressar ao 222 da Central Park South, eu parecia um mutilado. De facto, só depois daquele jantar pantagruélico compreendi que não estava em condições de correr vinte quarteirões e um jardim zoológico; e duvidava mesmo que fosse capaz de andar. A região genital doía-me que se fartava, e vi a careta de dor da Franny ao levantar-se da mesa para ir buscar a carteira. Também ela sofria as consequências dos nossos excessos - exactamente como ela tinha planeado, é claro: durante dias a fio, íamos ter de sentir a dor provocada por tanta fornicação. E essa dor salvar-nos-ia da loucura; essa dor convencer-nos-ia de que persistir naquela relação acabaria por nos conduzir à autodestruição.

A Franny procurou algum dinheiro na carteira e deu-mo para pagar o táxi, despedindo-se de mim com um simples beijo fraternal. Até hoje, entre a Franny e eu nunca mais houve outro tipo de beijos. Hoje, beijamo-nos um ao outro do mesmo modo que a maior parte dos irmãos o fazem. Pode parecer banal, mas é um meio de nos mantermos afastados das janelas abertas.

E quando saí do Stanhope - naquela noite pouco antes do Natal de 1964 - senti-me pela primeira vez verdadeiramente em segurança. Estava perfeitamente convencido de que nos manteríamos afastados das janelas abertas - que éramos todos capazes de sobreviver. Hoje creio que eu e a Franny só pensámos um no outro, assumindo uma atitude demasiado egoísta. Acho que a Franny pensava que a sua invulnerabilidade era contagiosa - como, aliás, pensa a maior parte das pessoas que tendem a acreditar que são invulneráveis. E eu tinha tendência para tentar ir atrás das convicções da Franny tão exactamente quanto podia.

Apanhei o táxi por volta da meia-noite, e desci a 5.a Avenida até chegar à Central Park South. Apesar das dores, tinha a certeza que dali já conseguia ir a pé até casa do Frank. Também queria ver as iluminações de Natal em frente do Plaza. Pensei mesmo em desviar-me do caminho habitual para admirar os brinquedos expostos nas montras da F. A. O. Schwarz. Pensei como o Egg teria adorado ver aquelas montras; o Egg nunca tinha vindo a Nova Iorque. Mas depois pensei que as montras que o Egg tinha imaginado toda a vida deviam ser ainda mais bonitas e mais cheias de brinquedos.

Percorri a Central Park South a coxear. O 222 fica entre o East Side e o West Side, mas mais perto deste último - um lugar ideal para o Frank, pensava eu; e para todos nós, pois éramos todos sobreviventes do Simpósio sobre as Relações Leste-Oeste.

Há uma fotografia do Freud - do outro Freud - na sua casa de Viena, no nº 19 da Berggasse. É de 1914, quando ele tinha cinquenta e oito anos; os seus olhos têm uma expressão reprovadora, um "eu bem vos disse", parecendo ao mesmo tempo preocupado e maldisposto. Exibe um semblante tão convincente como o Frank e tão ansioso como a Lilly. A guerra, que rebentaria em Agosto daquele ano, viria a destruir o Império Austro-Húngaro; essa guerra acabaria por trazer ao Herr Professor Doktor Freud a convicção de que o seu diagnóstico sobre as tendências agressivas e autodestrutivas dos seres humanos estava correcto. Nessa fotografia, percebe-se onde é que o Freud foi buscar a sua teoria de que o nariz humano é "uma formação genital". O Freud teve essa ideia "ao ver-se ao espelho", como costuma dizer o Frank. Em minha opinião, o Freud odiava Viena; em seu abono, devo dizer que o nosso Freud também odiava Viena, como a Franny fora a primeira a reconhecer. A Franny também odiava Viena e seria sempre uma freudiana no seu desprezo pela hipocrisia sexual, por exemplo. O Frank, por seu lado, seria um freudiano na medida em que era um anti Strauss - "o outro Strauss", esclarecia ele. Referia-se ao Johann, o Strauss vienense, o que escreveu aquela canção meio idiota que começa assim: "Feliz do homem que consegue esquecer-se daquilo que não tem força para mudar" (Die Fledermaus). Mas tanto o nosso Freud como o outro estavam morbidamente obcecados com tudo o que tinha caído no esquecimento - interessavam-se por tudo o que estava recalcado, por tudo o que fazia parte dos nossos sonhos. Tudo isso os levava a serem muito não vienenses. E o nosso Freud tinha chamado príncipe ao Frank e afirmara que ninguém tinha o direito de lhe chamar "maricas". O outro Freud também tinha caído nas boas graças do Frank: quando certa mãe escreveu ao bom doutor suplicando-lhe que curasse o filho da sua homossexualidade, o Freud explicou-lhe com brusquidão que a homossexualidade não era uma doença e que não havia nada para "curar". Muitos dos chamados grandes homens da História tinham sido homossexuais, como o grande Freud diria a esta mãe.

- Nem mais! Essa foi mesmo em cheio! - gostava o Frank de exclamar. - Olhem só para mim!

- E para mim - dizia o urso Susie. - Porque é que ele não mencionou algumas das grandes mulheres da História? Se querem que vos diga, acho o Freud um bocado suspeito.

- Qual deles, Susie? - perguntava-lhe a Franny, para a arreliar.

- Qualquer um. Entre os dois, venha o diabo e escolha. Um agarrado ao taco de basebol, o outro com aquela coisa no lábio.

- Era um cancro, Susie - explicou o Frank, bastante constrangido.

- Pois era - replicou o urso Susie -, mas o Freud chamava-lhe "esta coisa do meu lábio". Não chamava cancro ao cancro, mas chamava recalcadas a todas as outras pessoas.

- Estás a ser demasiado dura com o Freud, Susie - disse-lhe a Franny.

- É um homem, não é? - perguntou a Susie.

- És muito dura com os homens, Susie - disse-lhe a Franny.

- É verdade, Susie - anuiu o Frank. - Devias experimentar um!

- Que tal seres tu, Frank? - perguntou-lhe a Susie, fazendo-o corar.

- Bem - balbuciou o Frank -, para ser franco, não é para aí que eu estou virado.

- Acho que existe uma outra pessoa dentro de ti, Susie - disse a Lilly. - Dentro de ti existe uma outra Susie que quer sair cá para fora.

- Caneco! - resmungou a Franny. - Talvez haja um urso dentro dela a querer sair!

- Ou talvez exista um homem dentro dela! - sugeriu o Frank.

- Ou talvez seja só uma mulher maravilhosa, Susie - acrescentou a Lilly.

A Lilly, a escritora, havia sempre de querer ver heróis em todos nós.

Naquela noite, pouco antes do Natal de 1964, lá me fui arrastando penosamente pela Central Park South. Comecei a pensar no urso Susie e lembrei-me de outra fotografia do Freud - do Sigmund Freud - de que eu gostava. Nesta fotografia, ele já tinha oitenta anos e dentro de três anos estaria morto. Está sentado à sua secretária no nº 19 da Berggasse; era o ano de 1936, e os nazis em breve o obrigariam a deixar o seu velho consultório, a sua velha casa e a sua velha cidade - Viena. Nesta fotografia pode ver-se um par de óculos solenemente encavalitados na formação genital do nariz do Freud. Não está a olhar para a câmara - tem oitenta anos e pouco tempo lhe resta de vida; está a olhar para o seu trabalho, não desperdiçando connosco o seu precioso tempo.

Porém, na fotografia, há alguém a olhar para nós. É o seu cão de estimação, de raça chinesa, que dava pelo nome de JoFi. Estes cães, por qualquer razão, fazem lembrar um leão mutante; o cão do Freud tem aquele olhar vidrado próprio dos cães que se põem a fixar a câmara estupidamente. O Sorrow costumava fazer o mesmo; é claro que quando estava embalsamado ficava sempre a olhar para a câmara, e o triste cachorro do velho doutor Freud está ali na fotografia para nos dizer o que vai acontecer a seguir; podemos também detectar tristeza na fragilidade das montanhas de bagatelas que por pouco não deixavam espaço para o Freud no seu próprio consultório, no nº 19 da Berggasse, e até na própria cidade de Viena (a cidade que ele odiava e que o odiava também). Os nazis acabariam por pregar uma cruz suástica na porta da sua casa; aquela maldita cidade nunca gostou dele. E assim, no dia 4 de Junho de 1938, o velho Freud, já com oitenta e dois anos, chegava a Londres. Teria apenas mais um ano de vida num país que não era o seu.

O nosso Freud, nessa altura, estava a um Verão de ficar farto do Urrr; havia de voltar a Viena na altura em que todos aqueles suicidas recalcados do tempo do outro Freud estavam a transformar-se em verdadeiros assassinos. O Frank mostrou-me um ensaio da autoria de um professor da universidade de Viena - um homem extraordinariamente perspicaz chamado Friedrich Heer. E é assim mesmo que Heer descreve a sociedade vienense do tempo do Freud (e esta descrição aplica-se à época de qualquer dos Freuds, segundo creio): "Eram suicidas que não tardariam a tornar-se assassinos." Eram todos Fehlgeburts esforçando-se denodadamente por se tornarem Arbeiters; eram todos Schraubenschlussels a admirarem um escritor pornográfico.

Estavam prontos a seguir as instruções ditadas pelo sonho de um autor pornográfico.

- O Hitler - gosta o Frank de me lembrar - tinha um pavor atroz da sífilis. Não deixa de ser irónico - salienta o Frank, com o seu ar enfadado - se nos lembrarmos que o Hitler nasceu num país em que a prostituição sempre proliferou.

Também prolifera em Nova Iorque, como se sabe. Naquela noite de Inverno, especado na esquina entre a Central Park South e a 7.a Avenida, a olhar para a escuridão do centro da cidade, eu sabia que as prostitutas andavam por ali. Com o meu sexo ainda palpitante de dor graças aos inspirados esforços da Franny para me salvar - para nos salvar aos dois -, eu sabia, enfim, que estava a salvo delas; a salvo desses dois extremos, da Franny e das prostitutas.

Um carro dobrou a esquina um pouco depressa de mais; passava da meia-noite e este foi o único automóvel que vi em movimento nas duas artérias. Ia muita gente dentro deste carro; iam a cantar, acompanhando uma canção transmitida pela rádio. A rádio ia a tocar tão alto que ainda consegui ouvir um pedaço da canção, apesar de as janelas do carro estarem fechadas como protecção contra a noite invernosa. Não era um cântico de Natal, e eu achei-a despropositada no meio das iluminações natalícias do centro da cidade; estas iluminações eram temporárias, e a canção que eu entreouvi era uma daquelas canções para todos os corações sensíveis do universo, ao estilo Country and Western. Uma coisa qualquer, banal mas sincera, que era exprimida banal mas sinceramente. Durante o resto da minha vida tentei tornar a ouvir aquela canção, mas sempre que penso voltar a ouvi-la qualquer coisa me diz que não é exactamente a mesma. A Franny consegue fazer-me arreliar quando me diz que devo ter ouvido uma canção Country and Western chamada Heaven's Just a Sin Away (O Paraíso Está apenas à Distância de Um Pecado). De facto, essa canção servia; aliás, qualquer canção deste género servia.

À minha volta, só havia aquele fragmento de canção, as iluminações natalícias, o tempo invernoso, as minhas dores genitais - e um grande sentimento de alívio, pois agora estava livre para viver a minha vida - e o automóvel que ia depressa de mais, passando por mim de rompante. Ao atravessar a 7.a Avenida, na altura em que me pareceu poder fazê-lo com segurança, olhei em frente e vi um casal que vinha em direcção a mim. Caminhavam pela Central Park South em direcção ao Plaza - no sentido Oeste-Leste - e era inevitável, pensaria eu mais tarde, que nos fôssemos encontrar a meio da 7.a Avenida na noite em que a Franny e eu nos libertámos. O casal vinha um pouco embriagado, segundo creio - ou, pelo menos, a mulher estava um pouco ébria, e o modo como ela se apoiava no homem obrigava-o a trocar o passo. A mulher era mais nova do que o homem; em 1964, pelo menos, chamar-lhe-íamos uma rapariga. Lá vinha ela a rir, pendurada no braço do namorado; ele parecia andar pela minha idade, mas na verdade era um pouco mais velho. Nesta noite de 1964 devia andar pelos trinta anos. As risadas da rapariga retiniam com um som tão agudo e estridente, no ar gélido daquela noite, como o de finíssimos pingentes de gelo a caírem dos beirais de uma casa aprisionada em pleno Inverno. Eu estava muito bem-disposto, e evidentemente, embora houvesse qualquer coisa demasiado sofisticada e pouco autêntica nas risadas frias e estridentes da rapariga - e apesar de me doerem os testículos e de me arder o pénis -, olhei para aquele elegante casal e sorri.

Não foi difícil para o homem, nem para mim, reconhecermo-nos. Eu jamais poderia esquecer o seu rosto, o rosto de um médio, mesmo sem ter voltado a vê-lo desde aquela noite de Halloween no carreiro utilizado pelos futebolistas e desaconselhável às outras pessoas. Em certos dias em que estava a levantar pesos, ainda conseguia ouvi-lo dizer: "Eh, puto, a tua irmã tem o melhor cu desta escola. Achas que ela anda metida com alguém?"

"Anda; anda metida comigo", poderia ter-lhe respondido naquela noite na 7.a Avenida. Mas acabei por não lhe dizer nada. Apenas me detive diante dele, até ter a certeza de que me estava a reconhecer. Ele não tinha mudado; continuava com o ar que eu sempre lhe achara. E apesar de eu próprio julgar que eu tinha mudado - sabia que os pesos e halteres, pelo menos, haviam mudado o meu corpo -, creio que a constante correspondência da Franny deve ter conservado a nossa família na memória do Chipper Dove (se não no seu coração).

O Chipper Dove também parou no meio da 7.a Avenida. Um ou dois segundos depois, disse suavemente:

- Olha quem está aqui!

Tudo na vida é um conto de fadas.

Olhei para a namorada do Chipper Dove e disse-lhe:

- Tenha cuidado, senão ele viola-a.

Ela riu-se, com aquele riso agudo e estrídulo semelhante a gelo a partir-se, o som de pingentes de gelo a estilhaçarem-se. O Dove também se riu um pouco, ao mesmo tempo que ela. Ficámos os três especados no meio da 7.a Avenida, quando um táxi que seguia em direcção à baixa quase nos matou, ao virar para a Central Park South. Mas só a rapariga se esquivou - o Chipper Dove e eu nem sequer nos mexemos.

- Já repararam que estamos no meio da rua? - perguntou ela.

Ela era de facto muito mais nova do que ele, reparei eu então. Deu um pulinho para o passeio, ficando à nossa espera, mas nós não nos mexemos.

- Tem sido bom ter notícias da Franny - disse o Dove.

- Porque é que não lhe respondeste? - perguntei-lhe.

- Cuidado! - gritou-nos a rapariga, enquanto outro táxi, virando para o centro da cidade, buzinou furiosamente e foi obrigado a contornar-nos.

- A Franny também está em Nova Iorque? - perguntou-me o Chipper Dove.

Num conto de fadas, muitas vezes, não se chega a saber o que as pessoas querem. Tudo mudara. Eu nem sequer sabia se a Franny queria voltar a vê-lo ou não. Nem nunca tinha chegado a conhecer o conteúdo das cartas que ela lhe escrevera.

- Está, também cá está - respondi-lhe, cautelosamente.

Nova Iorque é uma cidade muito grande, pensei; e isso pareceu-me seguro.

- Bem, diz-lhe que gostava de voltar a vê-la - respondeu-me ele então, aproximando-se de mim. - Não posso deixar ali esta pequena à espera -segredou-me em tom conspiratório; até me piscou o olho.

Agarrei-o pelos sovacos e limitei-me a levantá-lo no ar. Para um médio, não se podia dizer que fosse muito pesado. Não ofereceu resistência, mas pareceu sinceramente surpreendido com a facilidade com que o ergui. Eu não sabia o que havia de fazer com ele; reflecti durante um minuto - ou, pelo menos, durante o que deve ter parecido um minuto ao Chipper Dove - e voltei a pô-lo no chão. Coloquei-o de novo na minha frente, no meio da 7.a Avenida.

- Eh! Mas vocês estão malucos? - gritou-nos a rapariga.

Nessa altura, dois táxis como que lançados numa corrida passaram por nós, um de cada lado, e os respectivos motoristas deitaram as mãos à cabeça.

- Diz-me lá porque é que queres voltar a ver a Franny.

- Deves ter andado a praticar umas coisas com os pesos e halteres - respondeu-me ele.

- Umas coisas - anuí. - Porque é que queres ver a minha irmã?

- Bem, para lhe pedir desculpa, entre outras coisas - balbuciou ele. Mas eu nunca seria capaz de acreditar no Dove. Ele tinha aquele sorriso

de gelo nos olhos azuis de gelo; parecia apenas levemente intimidado com os meus músculos; a sua arrogância era superior à que a maior parte das pessoas têm no coração e na mente.

- Podias ter respondido pelo menos a uma das cartas dela - disse-lhe eu. - Podias ter-lhe pedido desculpa em qualquer altura, por escrito.

- Bem - disse-me ele então, mudando o peso do corpo de um pé para o outro, como um verdadeiro médio a procurar a posição de equilíbrio e preparando-se para receber a bola -, bem, é tudo tão difícil de dizer - desculpou-se.

Eu quase que ia dando cabo dele ali mesmo; do Chipper Dove podia esperar tudo menos sinceridade - ouvi-lo parecer sincero era de mais para mim. Só me apetecia apertá-lo com mais força, com mais força do que ao próprio Arbeiter; mas, felizmente para ambos, ele mudou de tom. Começou a impacientar-se comigo:

- Olha lá, neste país, a violação é considerada um crime menor. Pela lei deste país, a violação ainda está longe do assassínio, para o caso de não saberes.

- Não tanto como tu julgas - respondi-lhe eu, ao mesmo tempo que outro táxi quase nos passava por cima.

- Chipper! - gritava agora a rapariga. - Queres que chame a Polícia?

- Escuta - disse o Dove -, diz só isto à Franny: diz-lhe que eu gostava de tornar a vê-la. É tudo. E, ao que parece - acrescentou ele, com o gelo dos olhos azuis a deslizar-lhe para a voz -, ao que parece, ela também ia gostar de me ver. Pelo menos, escreveu-me bastante.

Quase se queixava daquilo, como se as cartas da minha irmã tivessem sido uma chatice para ele.

- Se queres vê-la, tu próprio lho podes dizer - expliquei-lhe. - Deixa-lhe um bilhete, e o resto é com ela, se quiser ver-te. Deixa-lhe um bilhete no Hotel Stanhope.

- No Stanhope? Ela está lá de passagem? - perguntou o Chipper.

- Não, vive lá - respondi-lhe. - Somos uma família de hotéis. Não te lembras?

- Ah, sim - riu-se ele.

Imaginei-o a pensar que o Stanhope estava um bom escalão acima do Hotel New Hampshire - de qualquer dos dois hotéis New Hampshire, embora ele só tivesse conhecido o primeiro.

- Bem, então a Franny vive no Stanhope - comentou ele.

- Agora somos os donos do Stanhope - acrescentei eu.

Nem sei porque lhe menti, mas eu tinha pura e simplesmente de pregar-lhe alguma. Olhou para mim de boca aberta, o que me deu um certo gozo, enquanto um carro de desporto, de cor verde, lhe passou tão rente que a deslocação de ar lhe fez esvoaçar o cachecol. A namorada lá se aventurou de novo a deixar o passeio e a aproximar-se de nós cautelosamente.

- Chipper, por favor - disse ela, docemente.

- Esse é o único hotel que vocês têm? - perguntou-me o Dove, tentando parecer indiferente.

- Temos metade da cidade de Viena - respondi-lhe eu. - A metade que controla o resto. O Stanhope é apenas o primeiro de uma longa série em Nova Iorque. Vamos conquistar Nova Iorque.

- E amanhã vão acabar por conquistar o mundo, não é? - perguntou-me ele, com aquele gelo na voz.

- Pergunta à Franny tudo o que quiseres saber. Vou dizer-lhe que fique à espera de notícias tuas.

Tive de me afastar para não acabar por me atirar a ele, mas ainda ouvi a namorada perguntar-lhe:

- Afinal, quem é a Franny?

- É a minha irmã! - respondi-lhe eu. - E o teu amiguinho violou-a! Ele e outros dois patifes da mesma laia!

Desta vez, nem o Chipper Dove nem a namorada se atreveram a rir, e deixei-os no meio da 7.a Avenida. Estava em tal estado que mesmo que tivesse ouvido o chiar de travões e o baque de corpos contra um carro, ou contra o pavimento, não me teria sequer voltado para ver. Foi só nesse momento que, ao tomar consciência que aquelas dores nos órgãos genitais eram mesmo em mim, compreendi que andara demasiado a pé. Já tinha ultrapassado o 222 da Central Park South - estava a vaguear à volta de Columbus Circle - e tive de voltar para trás e meter para nascente. Quando voltei à 7.a Avenida, o Chipper Dove e a namorada já se tinham ido embora. Por instantes ainda perguntei a mim mesmo se o meu encontro com eles não teria passado de um sonho.

Teria preferido que fosse apenas um sonho. Fiquei preocupado ao imaginar a reacção da Franny, o modo como ela "enfrentaria isto", como a Susie costumava dizer. Fiquei preocupado com o simples facto de ter de dizer à Franny que tinha visto o Chipper Dove.

Que significado poderia ter para a Franny, por exemplo, se o Dove nunca aparecesse? Pareceu-me injusto que na precisa noite do triunfo da Franny e do meu próprio triunfo tivesse de encontrar o violador da minha irmã e revelar-lhe onde ela vivia. Sabia que estava fora de mim, de cabeça perdida - de volta à estaca zero, e sem ter a menor ideia do que a Franny queria. Tudo o que eu sabia é que eu precisava do conselho de um perito em violações. O Frank adormecera; de qualquer maneira, ele não era um perito em violações. O Pai adormecera também (no quarto que partilhava comigo), e eu olhei para o taco Louisville no chão, junto à cama dele, sabendo bem qual seria o conselho do Pai sobre violações - qualquer conselho desse tipo, para o Pai, teria de ter umas tacadas à mistura. Acordei-o sem querer ao descalçar os ténis.

- Desculpa - murmurei-lhe ao ouvido. - Vê lá se consegues adormecer outra vez.

- Mas que grande corrida a tua! - resmungou ele. - Deves estar exausto.

Eu estava realmente exausto, mas estava também bem acordado. Fui sentar-me à secretária em frente dos seis telefones do Frank. O único perito em violações residente no segundo Hotel New Hampshire estava apenas a um telefonema de distância; o perito de que eu necessitava residia agora em Nova Iorque. O urso Susie vivia em Greenwich Village. Embora fosse já uma hora da manhã, agarrei no telefone. A ocasião surgira por fim. Não importava que estivéssemos quase no Natal de 1964, porque tínhamos regressado ao Halloween de 1956. Todas as cartas escritas pela Franny que tinham ficado sem resposta mereciam finalmente uma resposta. Embora o Braço Negro da Lei do Júnior Jones viesse um dia a prestar os seus admiráveis serviços à cidade de Nova Iorque, ele ainda estava a recuperar daquele jogo rude que era o futebol; ainda teria de passar três anos da faculdade de Direito, e mais seis para arrancar com o Braço Negro da Lei. Mesmo que o Júnior viesse salvar a Franny, era de contar com as suas chegadas atrasadas. A solução para o caso do Chipper Dove apresentava-se agora; embora o Harold Swallow nunca o tivesse encontrado, o Dove estava agora fora do esconderijo. E, para enfrentar o Chipper Dove, eu sabia que a Franny precisava da ajuda de um urso esperto.

A nossa perita Susie é por si só um conto de fadas. Ao atender o telefone, à uma da manhã, parecia um pugilista a preparar-se para um novo assalto.

- Ó seu grandessíssimo camelo! Seu réptil nocturno! Pervertido! Sabe que horas são? - rugiu o urso Susie.

- Sou eu - respondi-lhe.

- Valha-me Deus! - respondeu a Susie. - Pensei que fosse um telefonema obsceno.

Quando lhe falei do Chipper Dove, ela achou que se tratava, de facto, de um telefonema obsceno.

- Acho que a Franny não vai ficar nada satisfeita por tu lhe teres dito onde ela morava. Na minha opinião, ela escreveu-lhe aquelas cartas todas para nunca mais ouvir falar dele.

A Susie vivia numa casa simplesmente horrorosa em Greenwich Village. A Franny gostava de lá ir visitá-la, e o Frank às vezes aparecia por lá -quando parava ali pelas vizinhanças (havia um bar muito ao gosto do Frank ao virar da esquina de onde morava a Susie) -, mas a Lilly e eu detestávamos o Village. A Susie é que costumava vir visitar-nos à baixa.

No Village, a Susie podia ser um urso sempre que quisesse; naquele sítio viviam pessoas com pior aspecto do que os ursos. Mas quando vinha ter connosco à baixa, tinha de ter um aspecto normal; nunca a deixariam entrar no Stanhope vestida de urso, e na Central Park South seria logo abatida por uns polícias quaisquer, que não deixariam de a tomar por um animal que tivesse fugido do jardim zoológico do Central Park.

Nova Iorque não era Viena e, embora a Susie estivesse a tentar libertar-se da mania dos ursos, no Village podia voltar ao estado ursino sem que ninguém reparasse sequer. Vivia com duas mulheres numa casa que só tinha uma retrete e um lavatório com uma torneira de água fria. Para tomar banho, vinha ter connosco - preferindo a suite da Lilly no Stanhope à luxuosa casa de banho do Frank no 222 da Central Park South; creio mesmo que a Susie gostava do perigo potencial que representavam as sanitas do Stanhope. Naquele tempo, ela lutava com afinco para se tornar uma actriz. As duas mulheres que partilhavam com ela o horroroso apartamento pertenciam a uma coisa qualquer chamada West Village Workshop. Era um atelier de teatro; um local onde se formavam palhaços de rua. O Frank referia-se-lhe dizendo que se o rei dos ratos ainda fosse vivo poderia ter assentado arraiais no West Village Workshop. Mas eu pensava que, se tivesse havido uma coisa como o West Village Workshop em Viena, talvez o rei dos ratos ainda estivesse vivo. Tem de haver algum lugar onde se possa aprender a dançar na rua, a fazer imitações de animais e pantomima, a andar de monociclo, a fazer terapia do grito e a representar números de degradação que sejam apenas representações. A Susie dizia que o West Village Workshop estava basicamente a ensiná-la a ter tanta confiança em si mesma como um urso, mas sem o fato de urso. Admitia que o processo ia ser demorado e, entretanto - à cautela -, tinha mandado arranjar o fato de urso a um especialista de disfarces de animais.

- Tens de ver agora o fato - dizia-me sempre a Susie. - Se achas que eu antes parecia um urso a sério... ainda não viste nada!

- É na verdade notável - disse-me o Frank. - A boca tem uma aparência húmida, e os olhos, então, são mesmo sinistros. E as presas? -prosseguiu o Frank, que sempre fora grande admirador de uniformes e máscaras. - As presas estão magníficas!

- Mas nós queremos todos que a Susie deixe de ser um urso - disse a Franny.

- O que nós queremos é que ela deite cá para fora o urso que tem dentro dela - corrigiu a Lilly.

E nessa altura púnhamo-nos todos a grunhir e a fazer outros ruídos esquisitos.

Mas quando eu contei à Susie que eu e a Franny nos tínhamos salvo um ao outro de nós próprios - apenas para nos termos de confrontar outra vez com o Dove -, ela pôs-se logo em actividade; a Susie era aquela amiga sempre imprescindível, uma amiga que, quando as coisas dão para o torto, volta logo a ser um urso para nos defender.

- Estás em casa do Frank? - perguntou-me ela.

- Estou.

- Aguenta-te aí, miúdo. Vou já ter contigo. Avisa o porteiro.

- Aviso-o que vem aí um urso ou que és tu que vens aí, Susie?

- Um dia, minha jóia, ainda vais ficar surpreendido com a verdadeira Susie.

De facto, não se enganava. Um dia ela viria a surpreender-me. Mas antes de a Susie chegar ao 222 da Central Park South, a Lilly telefonou-me para um dos seis telefones do Frank.

- O que é que aconteceu? - perguntei-lhe, pois já eram quase duas da manhã.

- Foi o Chipper Dove - segredou-me a Lilly, numa vozinha assustada. - Telefonou para aqui a perguntar pela Franny!

Grande filho da puta!, pensei eu. Telefonar à rapariga que violou numa altura em que ela estava a dormir! Devia ter querido certificar-se de que a Franny vivia de facto no Stanhope. Agora já não devia ter dúvidas.

- O que é que a Franny lhe disse?

- Ela não falou com ele. Não foi capaz. As palavras não lhe saíam da boca. Eu disse-lhe que a Franny não estava, mas ele respondeu que voltava a telefonar. É melhor dares cá um salto. A Franny está cheia de medo. Nunca a vi assim. Nem sequer vai voltar para a cama. Está só a espreitar à janela. Acho que ela se convenceu de que ele a vai violar outra vez.

Fui ao quarto do Frank e acordei-o. Sentou-se na cama com a rapidez de uma flecha, afastou os cobertores e atirou com o manequim para longe dele.

- O Dove - foi a única coisa que tive tempo para lhe dizer. - O Chipper Dove - foi tudo o que consegui dizer-lhe, antes de o Frank acordar num salto como se ainda estivesse a bater os pratos.

Deixámos uma mensagem para o Pai no gravador ao lado da cama dele, dizendo-lhe apenas que estávamos no Stanhope.

O Pai ajeitava-se bastante bem a lidar com o telefone; contava os buracos do disco, mas mesmo assim marcava muitos números errados, o que o arreliava tanto que invariavelmente gritava com as pessoas que atendiam os telefonemas como se a culpa fosse delas.

- Valha-me Deus! - gritava ele -, o senhor está no número errado! Era por estas e por outras que o meu pai, com o seu taco Louisville, aterrorizava muita gente em Nova Iorque.

Eu e o Frank encontrámos a Susie à porta do 222 da Central Park South. Tivemos de ir a correr até Columbus Circle para arranjar um táxi. A Susie não vinha vestida com o fato de urso. Trazia umas calças velhas e várias camisolas umas por cima das outras.

- Claro que está com medo - disse-nos a Susie, enquanto seguíamos a grande velocidade para o Stanhope. - Mas vai ter de ser ela a enfrentá-lo. O medo é uma das primeiras fases, meus caros. Se ela conseguir superar esse maldito medo, então logo virá a segunda fase, a da ira. E uma vez dominada pela ira, acabará por ficar livre. Olhem para mim.

Olhámos os dois para ela, mas não dissemos nada. Estávamos os dois de cabeça perdida, e sabíamo-lo.

A Franny estava a espreitar à janela, enrolada num cobertor, com a cadeira encostada ao aquecedor da sala. O Metropolitan Museum erguia-se majestoso naquela noite fria de vésperas de Natal, qual castelo abandonado pelos seus soberanos - tão abandonado que parecia amaldiçoado; até os próprios aldeões se tinham afastado dele.

- Como é que vou poder sair? - segredou-me a Franny. - Ele pode estar lá fora em qualquer sítio. Não me atrevo a sair.

- Franny, Franny - disse-lhe eu -, ele nunca mais te volta a tocar.

- Não lhe estejas para aí a dizer coisas. Não é assim que se faz. Não lhe digas nada, pergunta-lhe antes. Pergunta-lhe o que é que ela pretende fazer - admoestou-me o urso Susie.

- O que é que queres fazer, Franny? - perguntou-lhe a Lilly.

- Faremos tudo o que nos pedires, Franny - acrescentou o Frank.

- Pensa naquilo que queres que aconteça - disse o urso Susie. A Franny começou a tiritar e a bater os dentes. Reinava na suite um calor sufocante, mas a Franny estava gelada até aos ossos.

- Quero matá-lo - disse ela, suavemente.

- Não digas nada - segredou-me a Susie ao ouvido.

E, de qualquer modo, não havia nada para dizer. Sentámo-nos no quarto, e a Franny ainda ficou a espreitar pela janela durante cerca de uma hora. A Susie deu-lhe uma fricção nas costas para tentar aquecê-la. Como vi que a Franny me queria segredar qualquer coisa, inclinei-me para ela.

- Ainda estás dorido? - murmurou-me, sorrindo. Retribuí-lhe o sorriso e disse que sim com a cabeça.

- Também eu - acrescentou ela, sorrindo. Mas voltou a espreitar pela janela e disse:

- Quem me dera vê-lo morto. Daí a pouco repetiu:

- Não posso sair daqui. Posso tomar as refeições aqui, mas um de vocês tem de me fazer companhia a toda a hora.

Nós garantimos-lhe que sim.

- Matem-no - repetiu ela, já a alvorada ia rompendo no parque. - Ele pode muito bem estar ali escondido em qualquer lugar - acrescentou ela, vendo a claridade a aumentar. - Sacana! - gritou ela de repente. -Quero matá-lo!

Dividimo-nos em turnos, ficando a fazer-lhe companhia durante alguns dias. Inventámos uma história para contar ao Pai - dissemos-lhe que ela apanhara uma gripe e que precisava de ficar de cama para estar melhor no dia de Natal. Era uma mentira razoável, pensámos. Já uma vez a Franny tinha mentido ao Pai acerca do Chipper Dove; contara-lhe que só tinha sido "espancada".

Nem sequer esboçámos um plano para o caso de o Chipper Dove voltara telefonar. Nem fazíamos a menor ideia do que a Franny queria fazer a este respeito.

- Matem-no - era a única coisa que sabia dizer.

E o Frank, enquanto esperávamos pelo elevador no vestíbulo do Stanhope, disse:

- Talvez devêssemos mesmo matá-lo. Isso resolvia logo a questão.

A Franny era para nós como um chefe; quando estava perdida, também todos nós ficávamos perdidos. Precisávamos da opinião dela antes de estabelecermos um plano de acção.

- Talvez ele nem volte a ligar - opinou a Lilly.

- És uma escritora, Lilly - disse o Frank. - Devias saber isso melhor do que nós. Claro que vai voltar a telefonar.

O Frank estava a fazer uma das suas habituais afirmações contra o mundo, exprimindo uma das suas perversas teorias segundo a qual o que não se quer que aconteça é o que há-de precisamente acontecer. Como escritora, um dia, a Lilly haveria de aceitar a Weltanschauung perfilhada pelo Frank.

Mas o Frank tinha razão no que se referia ao Chipper Dove; este voltou mesmo a telefonar. Foi o Frank quem atendeu a chamada.

O Frank encarava aquela questão muito acaloradamente; quando ouviu a voz gelada do Chipper Dove, deu um salto - foi atacado por uma tal convulsão no sofá onde estava sentado que derrubou o candeeiro de pé alto que estava junto dele e atirou com o quebra-luz pelo ar, girando como um pião - de tal modo que a Franny percebeu logo o que se estava a passar. Ela desatou a gritar, saiu da sala a correr e meteu-se no quarto da Lilly (era o esconderijo mais próximo); e a Susie e eu tivemos de correr atrás dela e de a manter deitada na cama da Lilly, tentando acalmá-la.

- Ha... não... ela agora não está em casa - disse o Frank ao Chipper Dove. - Não queres deixar um número de telefone para que ela possa telefonar-te mais tarde?

O Chipper Dove deu-lhe o seu número de telefone; ou melhor, dois números - o de casa e o do trabalho. O facto de ele estar ocupado a trabalhar pareceu dar uma certa tranquilidade à Franny.

- O que é que ele fazl - perguntou ela ao Frank.

- Bem - disse o Frank -, ele só disse que trabalhava na firma do tio. Sabes como as pessoas se descartam com a palavra "firma", com a merda de uma firma, seja o que for que isso signifique.

- Pode ser uma firma qualquer, Franny - disse-lhe eu. - Uma firma de advogados ou uma firma comercial.

- Talvez seja uma firma de violadores - sugeriu a Lilly.

E lá tivemos, enfim, o primeiro momento de boa disposição desses últimos dias. A Franny desatou a rir.

- Anima-te, Franny - encorajou-a o Frank.

- Aquele filho da puta de merda! - gritou a Franny.

- Força, Franny - disse-lhe a Susie.

- Aquele cabrão de merda mais a puta da firma do tio! - uivou a Franny.

- É mesmo - espicacei eu. Por fim, a Franny acrescentou:

- Estou-me nas tintas para o matar. O que eu quero é assustá-lo. Quero que ele fique aterrorizado - disse ela, estremecendo de repente como se tivesse tido um arrepio; depois começou a chorar. - Ele assustou-me mesmo. Ainda estou com medo dele, Santo Deus. Quero assustar aquele sacana. Quero retribuir-lhe o medo que ele me meteu.

- Agora sim, isso é que é falar - disse o urso Susie. - Agora é que estás a começar a enfrentar a questão.

- Vamos violá-lo! - sugeriu o Frank.

- Quem estaria disposto a isso? - perguntou a Lilly.

- Eu era capaz de o fazer, pela causa - disse a Susie. - Mas mesmo comigo, acho que ele ia gostar. Os homens são uns vermes. Podem detestar-nos até às tripas, mas as pilas deles, essas, gostam sempre de nós.

- Não podemos violá-lo! - disse a Franny.

Agora sim, ela já me parecia perfeitamente bem. Voltava a ser a nossa chefe.

- Podemos fazer tudo o que quisermos - argumentou o Frank, o agente, o organizador.

- Mesmo que arranjássemos maneira de o violar - disse a Susie - mesmo que arranjássemos o violador perfeito, acho que não seria a mesma coisa: aquele cabrão havia sempre de conseguir sentir prazer.

Foi então que a Lilly, a escritora, falou; a nossa pequena Lilly, a criadora: era ela quem tinha mais imaginação.

- Ele não sentiria tanto prazer se pensasse que estava a ser violado por um urso - sugeriu a Lilly.

- Sodomia! - gritou o Frank, entusiasmado, batendo as mãos como se fossem os pratos que, um dia, usara na cabeça do Chipper Dove. - Sodomizar o sacana!

- Porra, calma aí! - disse o urso Susie. - Talvez ele pense que é com um urso, mas eu é que ainda continuo a saber que é com ele! Uma coisa é fazer tudo pela causa... tudo por ti, meu amor - disse ela à Franny -, mas têm de dar-me algum tempo para pensar no caso.

- Mas eu não penso que tenhas mesmo de o violar, Susie - explicou a Franny. - Acho que podias assustá-lo o suficiente chegando quase a fazê-lo.

Podias fingir que eras um urso no cio, Susie - explicou a Lilly.

- Um urso no cio! - aplaudiu o Frank, deleitado. - É isso mesmo! - gritou ele, com ar selvagem. - Um urso no cio fica desvairado! Até podes fingir que vais devorar os tomates do sacana enfiando-os na tua medonha bocarra de urso! Fá-lo pensar que vai ser chupado por um urso, pela última vez! - acrescentou o Frank.

- Posso levá-lo mesmo até ao limite - disse a Susie.

- Sim, mas mais longe não - retorquiu a Franny. - Eu só quero assustá-lo.

- Prega-lhe um susto de morte - articulou o Frank, exausto.

- Não exactamente um susto de morte, mas quase de morte - disse a Lilly.

- Um urso no cio; é uma ideia brilhante, Lilly - comentei eu.

- Dêem-me só um dia - pediu a Lilly.

- Para quê, Lilly? - perguntou a Susie.

- Para o guião. Vou precisar de um dia para escrever o guião como deve ser.

- Adoro-te, Lilly - disse a Franny, abraçando-a.

- Não se esqueçam que vão todos ter de ser óptimos actores - avisou a Lilly.

- É disso que eu estou a ter aulas, Santo Deus! - rugiu a Susie. - E vou trazer os meus amigos. Arranjas papéis para dois amigos, Lilly? - perguntou ela.

- Se forem mulheres arranjo! - respondeu a Lilly, franzindo o sobrolho.

- Claro que são mulheres! - exclamou a Susie, indignada.

- Também posso entrar? - perguntou o Frank.

- Não és mulher, Frank - expliquei-lhe eu. - Talvez a Lilly só queira mulheres.

- Bom, não sou mulher, mas sou maricas, e o Chipper Dove sabe-o - disse o Frank, irritado.

- Eu posso arranjar um disfarce de tratador para o Frank - disse a Susie à Lilly.

- Podes mesmo? - perguntou o Frank, entusiasmado.

Há muito tempo que ele não tinha oportunidade de usar disfarces.

- Deixem-me trabalhar no guião - disse a Lilly, a Lilly trabalhadora, que só sabia trabalhar com demasiado afinco. - Tem de sair tudo perfeito para ser verosímil. Tem tudo de bater certo.

De repente surgiu a pergunta da Franny:

- Eu também tenho de participar, Lilly?

Viu-se logo que ela não queria e que a ideia a assustava; queria que as coisas acontecessem, achava que queria assistir, mas não sabia se ia conseguir participar.

Peguei-lhe na mão e disse-lhe:

- Tens de ser tu a telefonar-lhe, Franny. Ela recomeçou a tiritar.

- Só tens de convidá-lo a vir aqui - acrescentou a Lilly. - Uma vez que o tragas cá não tens de lhe dizer grande coisa. Não tens que fazer nada, prometo-te. Mas tens de ser tu a telefonar-lhe.

A Franny tornou a espreitar pela janela. Esfreguei-lhe os ombros para ela não arrefecer. O Frank deu-lhe uma palmadinha na cabeça; o Frank tinha essa maneira irritante de mostrar o seu afecto pelos seres humanos, dando-lhes palmadinhas como se fossem cães.

- Coragem, Franny. Tu és capaz - disse-lhe o Frank.

- Tens de ser capaz, querida - disse-lhe com ternura o urso Susie, apoiando-lhe a pata meigamente no braço.

- É agora ou nunca, Franny. Lembras-te? - segredei-lhe eu. -Vamos para a frente com isto. E depois podemos voltar todos às nossas coisas, ao resto das nossas vidas.

- Ao resto das nossas vidas - repetiu a Franny, satisfeita. - Porreiro. Se a Lilly consegue escrever o guião, também eu consigo fazer esse maldito telefonema.

- Agora vão-se todos embora. Tenho de meter mãos à obra - disse a Lilly, preocupada.

Fomos todos ter com o Pai a casa do Frank, para celebrar.

- Nem uma palavra sobre este assunto ao Pai. Nada de o meter nisto. - disse a Franny.

Eu sabia que o Pai quase nunca estava metido em nada. No entanto, quando lá chegámos, ele tomara uma pequena decisão. Dos milhares de opções que se lhe deparavam, o Pai não conseguira elaborar aquilo a que o Iowa Bob teria chamado um plano de jogo: continuava sem saber o que é que queria fazer. A boa sorte era uma opção que não lhe era familiar. Mas quando chegámos a casa do Frank, bem dispostos, o Pai pelo menos já tomara uma minidecisão.

- Quero ter um desses cães de cego - disse ele.

- Mas tu tens-nos a nós, Pai - disse o Frank.

- Há sempre alguém por aqui para te levar onde tu quiseres - disse-lhe eu.

- Não é só isso; preciso de um animal perto de mim.

- Então porque é que não contratas a Susie? - perguntou a Franny.

- A Susie tem que deixar de ser um urso - respondeu o Pai. - Não devemos encorajá-la a continuar com esse tipo de comportamento.

Sentimo-nos todos um pouco culpados, e a Susie sorriu com satisfação. Mas é claro que o Pai não podia ver as nossas caras.

- Além disso, Nova Iorque é um sítio terrível para um urso viver. Receio bem que o tempo dos ursos esteja a chegar ao fim - suspirou o Pai. - Mas um cão de cego... Bem - disse-nos, um pouco embaraçado por ter de confessar a sua solidão -, sempre era alguém com quem eu podia falar um bocado. Vocês têm a vossa vida... ou vão tê-la em breve. Gostava de ter um cão, a sério! Não é propriamente o ele ser um cão de cego que me interessa. Só queria ter um bom cão. Posso?

- Claro que sim, Pai - anuiu o Frank.

A Franny deu-lhe um beijo e prometeu-lhe que no Natal teria o seu cão.

- Já no Natal? Não acho possível que me arranjes um bom cão de cego tão depressa. A menos que seja um cão mal treinado, mas isso depois é um problema.

- Tudo é possível, Pai - disse o Frank. - Eu vou tratar disso.

- Oh, Frank, por amor de Deus! Vamos todos tratar disso, se não te importas - disse a Franny.

- Só mais uma coisa - acrescentou o Pai.

O urso Susie pôs-me a pata na mão, como se adivinhasse o que se ia seguir.

- Há mais uma coisa - insistiu o Pai. Ficámos todos muito quietos, à espera do resto.

- Não se pode parecer com o Sorrow. Vocês é que têm olhos, por isso abram-nos bem e não me tragam nenhum cão que se pareça com o Sorrow.

A Lilly escreveu o conto de fadas necessário, e nós ensaiámos o nosso papel. Para aquele conto de fadas escrito por ela, ficámos na perfeição. No último dia de trabalho antes do Natal de 1964, a Franny respirou fundo e telefonou ao Chipper Dove para a "firma".

- Olá, sou eu! - disse-lhe com vivacidade. - Preciso imenso de ir almoçar contigo, no pior dos sentidos. Sim, sou eu, a Franny Berry. Podes vir buscar-me a qualquer hora. Sim, sim, no Stanhope, na suite mil quatrocentos e um.

Nesse momento, a Lilly arrancou-lhe o telefone das mãos e disse-lhe num tom de voz tão azedo como o de qualquer enfermeira azeda - e bem alto para o Chipper Dove poder ouvir:

- A quem é que está a telefonar agora! Não sabe que não deve fazer mais chamadas?

Depois a Lilly desligou o telefone e ficámos todos à espera. A Franny entrou na casa de banho e fechou a porta. Quando de lá saiu, vinha perfeitamente calma. Estava com um aspecto horroroso, mas isso fazia parte do seu papel. As duas mulheres do West Village Workshop tinham-se encarregado da maquilhagem; aquelas mulheres conseguiam fazer milagres. Eram capazes de pegar numa mulher bonita e deixá-la completamente escavacada; deixaram a Franny com um rosto sem vida, com a palidez de um pedaço de giz, com uma boca que parecia um traço e com agulhas no lugar dos olhos. E vestiram-na toda de branco, como uma noiva. Chegámos a recear que o guião da Lilly fosse demasiado teatral. O Frank espreitava pela janela, vestido com o seu cafetã de cor verde-lima e umas calças pretas de acrobata. Só tinha um pouco de bâton nos lábios.

- E se ele não aparecer? - perguntou o Frank, preocupado.

As duas amigas da Susie estavam lá - as duas mulheres brutalizadas do West Village Workshop. Tinham sido brutalizadas por homens, contara-nos a Susie. A negra chamava-se Ruthie; parecia uma cópia perfeita do Júnior Jones. Vestia um colete de pele de carneiro por cima da pele e umas calças de boca de sino de um vermelho-vivo, sobre as quais lhe pendia uma barriga flácida. Tinha um alfinete de prata, quase da grossura de uma cavilha de caminho de ferro, atravessado na cabeleira revolta. Numa das mãos negras segurava uma comprida trela de couro; na outra extremidade da trela estava preso o urso Susie.

Aquele disfarce de urso revelava uma grande vitória da imaginação animalesca. Especialmente a boca, como salientara o Frank, e os dentes; o seu aspecto húmido. E a sombria loucura do olhar. (Na realidade, a Susie só podia "ver" cá para fora através da boca.)

As garras também davam ao disfarce um toque muito especial; as garras eram a sério, esclarecia a Susie, orgulhosamente - cada pata era toda a sério, tinha de facto pertencido a um urso de verdade. E o facto de a Susie estar de açaimo acrescentava um não-sei-quê de realidade a tudo aquilo. Tínhamos comprado aquele açaimo numa loja de acessórios para cães de cego; era um açaimo a sério.

Regulámos o termostato do aquecedor para o máximo porque a Franny se queixava do frio. A Susie disse que lhe agradava o calor, pois quanto mais transpirasse mais se sentia um urso, e, encafuada dentro do disfarce de urso, já a adivinhávamos a suar em bica.

- Nunca me senti tanto como um urso - disse-nos ela, andando à nossa volta em quatro patas.

- Hoje, és toda inteirinha um urso, Susie - disse-lhe eu.

- É hoje que o urso que existe em ti vai sair cá para fora, Susie -disse-lhe a Lilly.

A Franny sentou-se no sofá, vestida como uma noiva, à luz débil de uma vela acesa na mesa ao lado dela. Havia várias velas acesas por toda a suite, e todas as janelas tinham as persianas corridas. O Frank queimara um pouco de incenso, e em toda a suite pairava um odor fantástico no ar.

A outra mulher do West Village Workshop era pálida, de ar deslavado, mas muito feminina, com um cabelo de um tom louro palha. Vestia o uniforme convencional das criadas de hotel, o mesmo uniforme usado pelas criadas do Stanhope, e ostentava um olhar absolutamente enfastiado e inexpressivo, a condizer perfeitamente com o seu enfadonho emprego. Chamava-se Elizabeth qualquer coisa, mas no Village era conhecida por Scurvy(*). Era considerada a melhor actriz saída do West Village Workshop - a rainha dos comediantes do Washington Square Park. Era capaz de ensinar terapia do grito a um quintal cheio de toupeiras; era capaz de ensinar as toupeiras a gritar tão alto que até as minhocas saíam da terra aos pulos. A Susie descrevia-a como uma histérica número um de primeira classe.

- Não há ninguém que seja capaz de representar uma cena de histeria melhor do que ela - tinha-nos dito a Susie.

E a Lilly escrevera para ela um número de histeria de primeira classe alínea a. A Scurvy estava sentada na suite a fumar um cigarro e parecia tão mergulhada em torpor como um vagabundo sentado num banco de jardim. Eu ia brincando com o haltere grande, no meio da sala de estar. O Frank e a Lilly tinham-me esfregado todo com óleo; eu estava todo besuntado dos pés à cabeça e cheirava que nem uma salada, mas o óleo realçava os meus músculos de uma maneira muito especial. Tinha vestido aquela espécie de fato de banho antigo de uma só peça que usam os lutadores e os halterofilistas.

- Vai fazendo exercícios de aquecimento - pediu-me a Lilly. - Continua a levantar isso, para que as veias fiquem salientes. Quando ele aqui chegar quero ver essas veias inchadas a estalar mesmo à flor da pele.

- Se ele vier - disse o Frank, impaciente.

- Está descansado que vem - disse a Franny, suavemente. - Está muito perto - continuou ela, fechando os olhos. - Sei que ele está aqui muito perto.

Quando o telefone tocou, demos todos um salto menos a Franny e a histérica número um de primeira classe chamada Scurvy, que nem pestanejou. A Franny deixou que o telefone continuasse a tocar um pouco mais. A Lilly saiu do quarto, impecavelmente vestida com o seu uniforme de enfermeira;

 

*. Scurvy - mosquinha morta. (N. da T.)

 

fez sinal à Franny para atender à quarta vez, e esta pegou no telefone. Não disse palavra.

- Está? Está lá? - perguntou o Chipper Dove. - Franny? - ouvimo-lo perguntar.

A Franny estremeceu, mas a Lilly continuou a fazer-lhe sinal com a cabeça.

- Sobe depressa! - murmurou a Franny ao telefone. - Sobe já enquanto a minha enfermeira não está! - sussurrou ela numa voz sibilante.

Em seguida desligou; depois começou aos vómitos, e por instantes pensei que tinha de ir outra vez vomitar à casa de banho, mas ela aguentou-se; já estava recomposta.

A Lilly compôs a cabeleira postiça, grisalha e curtinha, fazendo lembrar uma almofadinha. Parecia uma velha enfermeira de um lar para anões. As mulheres do West Village Workshop tinham maquilhado a cara da Lilly até ela ficar a parecer uma ameixa. A Lilly foi-se esconder no roupeiro que ficava mais perto da entrada e fechou a porta. Para quem estivesse na sala da suite, era fácil confundir o roupeiro com a porta de entrada.

A Scurvy pegou numa pilha de lençóis e saiu para o corredor.

- Cinco a sete minutos depois de ele ter entrado - disse-lhe eu.

- Não é preciso que me lembrem - respondeu ela, com ar rezingão. - Posso ouvir perfeitamente a minha deixa do lado de fora da porta. Não te esqueças que eu sou uma profissional, sim?

As mulheres do West Village Workshop tinham todas uma coisa em comum, confidenciara-me a Susie. Todas elas tinham sido violadas.

Comecei a levantar os pesos. Fazia-o depressa para o sangue afluir aos músculos. O urso Susie enroscou-se aos pés do sofá, na extremidade mais afastada da Franny, fingindo estar a dormir. Escondeu as patas e o focinho açaimado; visto de trás parecia um cão adormecido. A Ruthie, a negra grandalhona que parecia uma réplica do Júnior Jones, deixou-se cair bem a meio do sofá, encostada à Franny. Quando o urso hibernante começou a ressonar, o Frank despiu o cafetã e pendurou-o na maçaneta da porta - ficando só com as calças folgadas -, entrou no quarto da Lilly e ligou o gira-discos. Da sala, via-se a cama através da porta aberta do quarto. Quando a música começou a tocar, o Frank desatou a dançar em cima da cama. A música tinha sido escolhida por ele. Não lhe fora difícil decidir-se: escolhera a ária da loucura, da Lúcia, de Donizetti.

Olhei para a Franny e vi algumas lágrimas abrirem caminho para fora dos buracos de alfinete em que as duas actrizes lhe tinham transformado os olhos; as lágrimas deixaram uns sulcos pegajosos na maquilhagem que tinha empastada na cara. A Franny cruzou os dedos sobre o regaço, e eu bati levemente à porta do roupeiro, murmurando para a Lilly:

- Uma obra-prima, Lilly. Tem todos os sinais de uma obra-prima.

- Agora vejam lá é se não dão cabo dos vossos papéis - segredou a Lilly. Quando o Chipper Dove bateu à porta, os meus bicípetes já estavam bem salientes - tal como a Lilly os queria - e os antebraços tinham um excelente aspecto.

Umas gotas de suor deslizavam-me sobre o óleo da pele e, no quarto, a Lúcia começava a gritar. O Frank tinha um ar tão incrivelmente desengonçado aos saltos em cima da cama que eu mal conseguia olhar para ele.

- Entra! - gritou a Franny ao Chipper Dove.

Quando vi a maçaneta da porta girar, agarrei-a do lado de cá e puxei rapidamente o Chipper Dove para dentro. Devo ter aberto a porta com mais força do que o necessário, porque o Chipper Dove foi projectado para dentro da sala - caindo de gatas. Pendurei o dístico NÃO INCOMODAR na maçaneta do lado de fora e fechei a porta.

- Olhem quem cá está - disse a Franny, imitando a frieza gelada da voz do Chipper Dove.

- Ai, caraças! - gritou o Frank, de pé, aos saltos em cima da cama. Encostei o haltere à porta, mas o Chipper Dove levantou-se com toda a calma. Sorria com aquele sorriso que nunca o abandonava - ou, pelo menos, que ainda não o tinha abandonado.

- O que é que vem a ser isto, Franny? - perguntou-lhe ele, com ar displicente.

Mas a Franny tinha chegado ao fim do seu papel. A parte do guião que lhe dizia respeito tinha acabado. ("Olhem quem cá está", era tudo o que era preciso ela dizer).

- Vamos violar-te - disse eu então ao Chipper Dove.

- Espera aí! - disse o Dove. - Aquilo não foi propriamente o que se pode chamar uma violação! Tu até gostavas de mim, Franny - disse ele, sem obter resposta. - Lamento muito a intervenção dos outros dois tipos, Franny.

Mas os olhinhos de alfinete da Franny permaneceram mudos.

- Mas que merda é esta? - perguntou o Dove, dirigindo-se a mim. - Quem é que me vai violar?

- Eu cá não! - gritou o Frank do quarto, saltando cada vez mais alto. - Eu cá gosto de foder poças de lama. É o que eu ando sempre a fazer!

O Chipper Dove ainda conseguiu esboçar um sorriso.

- Então é aquela que está ali sentada no sofá? - perguntou-me, com ar manhoso.

Olhou para a grandalhona da Ruthie. Nessa altura deve ter-se lembrado do Júnior Jones - quando esta se limitou a devolver-lhe o olhar -, mas ainda conseguiu fazer um sorriso forçado.

- Não tenho nada contra as negras - disse ele, olhando ora para mim ora para a Ruthie. - De vez em quando gosto de uma negra.

A Ruthie levantou uma nádega do seu enorme traseiro e deu um peido.

- Nem penses que é comigo que vais foder - respondeu ela ao Chipper.

O Dove concentrou então toda a sua atenção em mim. O sorriso quase lhe desapareceu dos lábios, pois deve ter começado a suspeitar que eu é que seria a pessoa encarregada de violá-lo, e essa ideia não lhe agradava mesmo nada.

- Não, não é ele, imbecil! - gritou o Frank do quarto, enquanto arfava e saltava cada vez mais alto. - Ele gosta de mulheres, como tu! - gritou o Frank, entusiasmado. - Mulheres nojentas, mulheres nojentas, nojentas]

Caiu da cama abaixo, mas levantou-se num ápice e continuou com a dança, como um doido enfurecido. A ária da Lúcia tinha realmente um tom de loucura.

- Por acaso, não estás a querer dizer-me que é o cão, pois não? - perguntou-me o Chipper Dove. - Achas que me vou deixar foder por um cão?

- Que cão, pá? - perguntou-lhe a Ruthie.

A Ruthie tinha um sorriso tão terrível como o Chipper Dove.

- Aquele ali deitado - retorquiu o Dove, apontando para o urso Susie.

O urso Susie estava enroscado como se fosse uma bola, a ressonar, com o dorso peludo voltado para o Dove - as patas estavam encolhidas e a cabeça puxada para o peito. A Ruthie enfiou o seu enorme pé descalço entre as pernas do urso Susie e começou a esfregá-lo. O urso Susie começou a rosnar.

- Isto não é nenhum cão, pá - explicou-lhe a Ruthie, a sorrir e a esfregar o pé no urso de uma forma obscena.

Então a Ruthie rodou com força o pé entre as pernas do urso Susie e este acordou, com um rugido; então, começou a esfregar-se libidinosamente na Ruthie, procurando mordê-la. O Dove viu o açaimo frouxo e prestes a cair, viu a Ruthie esquivar-se às garras compridas e aguçadas, atirar a trela ao focinho do urso Susie e correr para o extremo oposto da sala. O urso Susie parecia pronto a investir atrás dela, mas bastou a Franny estender a mão e tocar-lhe apenas uma vez para ele se acalmar imediatamente; pôs a cabeça no colo da Franny, onde ficou a rosnar de mansinho.

- Urrr! Urrr! - ronronava ele.

- Mas isso é um urso - balbuciou o Dove.

- Podes crer que sim, pá - disse a Ruthie.

E o Frank, saltando cada vez mais alto, entoando a ária da Lúcia em uníssono com o disco - e, aparentemente, guindando-se a uma loucura ainda maior do que a dela -, gritou:

- É um urso no cio!

- É um urso que te deseja - disse eu ao Chipper Dove. Quando o Dove olhou de novo para o animal viu que a Franny tinha a mão exactamente no sítio onde deviam ser os órgãos sexuais. Ela ia-lhe esfregando as partes, e o urso Susie começou de repente a agitar-se, como se quisesse brincar, abanando a cabeça indolentemente e emitindo os ruídos mais obscenos. O West Village Workshop operara autênticas maravilhas no urso Susie; antigamente ele tinha sido um urso esperto, mas agora era um urso de meter respeito.

- Aquele urso está tão cheio de tesão que até a mim me fodia - disse a Ruthie.

- Espera aí... - disse o Chipper Dove.

Estava a agarrar-se desesperadamente à ilusão de que eu era a única pessoa de perfeito juízo entre todos os presentes. Eu sabia que era assim que ele estava a ver as coisas; eu era a sua última esperança. Tínhamo-lo exactamente no ponto em que a Lilly queria quando a Scurvy, a criada, bateu à porta. Puxei o haltere para o lado como se não pesasse nada e dei tal puxão na porta que ela entrou aos trambolhões na sala, numa confusão e numa desorientação ainda maiores que as do Chipper Dove. O urso Susie pôs-se a rosnar - demonstrando não gostar lá muito de movimentos bruscos -, e a pobre criada fitou-me aterrorizada.

- Na porta não diz NÃO INCOMODAR, sua atrasada mental? - gritei-lhe.

Pu-la de pé e rasguei-lhe a parte da frente do uniforme, o que a pôs logo em estado de grande histeria. Agarrei-a de cabeça para baixo e sacudi-a toda. O Frank apupava, deliciado.

- Tem cuequinhas pretas! Tem cuequinhas pretas! - guinchava ele, sempre aos saltos na cama.

- Está despedida - disse eu então à criada, que fungava sem parar. -Não sabe que não se deve entrar quando está pendurado o sinal de NÃO INCOMODAR? Se não consegue meter isto na cabeça, sua atrasada mental, então está despedida.

Passei-a para as mãos da Ruthie, sempre de cabeça para baixo. Aquilo era um exercício que a Ruthie e a amiga tinham praticado durante todo o ano, segundo a Susie me tinha explicado. Era uma espécie de dança apache, assim como se uma mulher quisesse violar outra. A Ruthie continuou a maltratar a Scurvy diante do Chipper Dove.

- Quero lá saber que você seja o dono do hotel! - gritava a Scurvy. -Vocês são todos uns nojentos, e eu não volto a limpar a porcaria desse urso. Não volto, não volto, não volto! - guinchou ela.

Em seguida fez um espantoso número de convulsões por baixo da Ruthie - puxando vómitos, espumando e rouquejando coisas sem nexo. A Ruthie deixou-a feita num oito, toda encolhida e a gemer - abalada de vez em quando por espasmos impressionantes.

Depois encolheu os ombros e disse-me:

- Tens de arranjar criadas com mais estofo do que esta merda destas brancas, pá. Sempre que o urso viola alguém, as criadas ficam sem saber o que fazer. Não sabem lidar com ele.

Quando tornei a fitar o Dove vi - finalmente! - que o seu olhar de gelo tinha desaparecido. Estava de olhos fitos no urso: a Susie correspondia com uma excitação cada vez maior à mão da Franny. A Ruthie chegou-se ao pé do urso e tirou-lhe o açaimo; a Susie brindou-nos com um sorriso eriçado de dentes brilhantes. Parecia mais urso do que qualquer urso. Só por este desempenho do guião da Lilly, o urso Susie teria sido capaz de convencer um urso de que era um urso. Um urso em pleno cio.

A propósito, eu nem sequer sei se os ursos entram em cio; seja como for, "pouco importa", como diria o Frank.

O que importava era saber que o Chipper Dove estava mesmo a acreditar. A Ruthie começou a coçar a Susie, cautelosamente, atrás das orelhas.

- Estás a vê-lo? Estás a ver aquilo ali? - perguntou a Ruthie, meigamente.

E o urso Susie começou então a raspar no chão e a baloiçar de um lado para o outro; pôs-se a farejar na direcção do Chipper Dove.

- Eh, pá! Escuta... - começou o Dove a dizer-me.

- É melhor não fazeres movimentos bruscos - disse-lhe eu. - Os ursos não gostam de movimentos bruscos.

O Dove ficou gelado. A Susie, demorando uma infinidade, começou a cheirá-lo. O Frank estava estendido na cama do quarto, completamente exausto.

- Vou dar-te uns conselhos - disse-lhe o Frank. - Tu deste-me a conhecer as poças de lama; agora é a minha vez de te dar alguns conselhos sobre ursos.

- Eh, pá! Por favor... - suplicou-me o Chipper Dove, baixinho.

- O principal - disse o Frank - é não te mexeres. Não tentes oferecer-lhe qualquer resistência. O urso é um animal que não admite qualquer tipo de resistência.

- É só deixares-te ir, pá - disse a Ruthie, com ar sonhador. Aproximei-me do Dove e desapertei-lhe o cinto das calças; tentou deter-me, mas eu disse-lhe:

- Nada de movimentos bruscos!

O urso Susie enfiou o focinho entre as pernas do Dove no preciso momento em que as calças dele caíam no tapete.

- Aconselho-te a que sustenhas a respiração - aconselhou-o o Frank do quarto.

Aquilo era a deixa da Lilly, que entrou na sala. Para o Dove, foi como se ela tivesse acabado de meter a chave à porta e entrado na suite.

Ficámos todos a olhar para a enfermeira anã; a Lilly tinha um ar irritado.

- Tive o pressentimento que tu tinhas voltado ao mesmo, Franny - disse a Lilly à sua doente.

A Franny enroscou-se no sofá, virando-nos as costas.

- A senhora é só a enfermeira dela, não é a mãe dela - disparei eu à Lilly.

- Mas isto não é nada bom para ela! Esta mania de violar, violar, violar toda a gente! - gritou-me a Lilly. - De cada vez que este malvado urso está no cio, vocês trazem logo para aqui quem quer que vos dê na gana... e pronto, é violado! Já estou farta de vos dizer que isto não é bom para ela.

- Mas isto é a única coisa de que ela gosta - respondeu o Frank, com um ar contrariado.

- Não está certo que ela goste disto - disse a Lilly, no seu papel de enfermeira teimosa, mas boa, que era na realidade.

- Ora! Deixe-se disso! - insisti eu. - Vá lá! Este é especial. Este foi o tipo que a violou a ela!

- E a mim obrigou-me a foder uma poça de lama - queixou-se o Frank.

- Se nos deixar violar só mais este - supliquei eu à Lilly -, prometo-lhe que nunca mais voltamos a violar ninguém.

- Promessas, só promessas - resmungou a Lilly, cruzando os seus pequenos braços à frente dos seus pequenos seios.

- Prometemos! - gritou o Frank. - Só mais um. Só este.

- Urrr! - roncou a Susie, e eu cheguei a pensar que o Dove ia cair para o lado.

A Susie continuou a roncar violentamente entre as pernas dele, parecendo querer dizer que também estava especialmente interessada neste indivíduo.

- Não! Por favor! Por favor! - desatou o Chipper Dove a gritar.

Com uma patada, a Susie tirou-lhe as pernas de debaixo do corpo, atirando-o ao chão, e apoiou todo o seu peso no peito dele. Pôs-lhe uma das patorras - uma pata de urso autêntica - nas partes íntimas.

- Por favor! - suplicava o Dove. - Por favor, isso não! Não! Por favor!

Era aqui que acabava o guião que a Lilly tinha escrito. Era aqui que devíamos parar. Todos os papéis acabavam ali. Só o da Lilly é que não. Só faltava ela dizer: "Não vai haver mais nenhuma violação. Acabou-se! E ponto final no assunto!" E, nesse momento, eu tinha que agarrar no Dove e atirar com ele para o corredor.

A Franny, porém, levantou-se do sofá e empurrou-nos a todos, dirigindo-se ao Dove.

- Chega, Susie - ordenou a Franny. E a Susie largou o Dove.

- Veste as calças, Chipper - disse-lhe a Franny.

Ele levantou-se para cair logo a seguir; fez um esforço para se voltar a pôr de pé e lá vestiu as calças.

- Da próxima vez que baixares as calças, seja para quem for, quero que penses em mim.

- Pensa em nós todos - acrescentou o Frank, saindo do quarto.

- Lembra-te bem de nós - disse-lhe eu também.

- Se nos tornares a ver - aconselhou-o a calmeirona da Ruthie -, é melhor mudares de passeio. Senão qualquer um de nós ainda é capaz de dar cabo de ti, pá - insistiu ela, com ar decidido.

A Susie tirou a cabeça de urso; nunca mais voltaria a precisar de usá-la. A partir daí, o fato de urso só seria usado por graça. Fitou o Chipper Dove bem nos olhos. Por seu lado, a histérica de primeira classe, categoria A, que dava pela alcunha de Scurvy levantou-se do tapete e veio também olhar para ele, como se o quisesse reter na memória; em seguida encolheu os ombros, acendeu um cigarro e desviou o olhar.

- E não te mantenhas afastado das janelas abertas! - gritou-lhe o Frank, quando o Dove já ia no corredor.

Caminhava com dificuldade, apoiado à parede. Não pudemos deixar de reparar que tinha molhado as calças.

O Chipper Dove ia a andar como um doente à procura dos sanitários de um hospital para alienados; deslocava-se com a insegurança frouxa de quem não sabe o que o espera na casa de banho dos homens - como se nem sequer soubesse bem o que havia de fazer quando chegasse ao urinol.

Mas havia em todos nós aquele sentimento inicial de desapontamento que devia ser bem analisado em qualquer estudo sério sobre a vingança. Por muito que tivéssemos feito, nunca seria tão horrível como o que ele fez à Franny - e, se tivesse sido tão horrível como o que ele fizera, teria sido de mais.

Pela vida fora, eu hei-de continuar sempre a sentir o peso do Chipper Dove quando o levantei pelos sovacos, deixando-lhe os pés a uns quantos centímetros do chão na 7.a Avenida. De facto, não havia nada a fazer com ele, senão pô-lo outra vez no chão; nunca haveria nada a fazer com ele, de resto: com os Chippers Doves, temos de passar a vida a levantá-los no ar e a voltar a poisá-los no chão, para todo o sempre.

E - pensará o leitor - foi assim que tudo acabou. A Lilly tinha provado o seu talento com uma verdadeira ópera, com um genuíno conto de fadas. O urso Susie desempenhara o seu papel de urso até o esgotar; guardaria apenas o disfarce de urso por motivos sentimentais ou para divertir as crianças - e, é claro, para o Halloween. O Pai estava quase a receber o seu cão de cego como prenda de Natal. Seria o primeiro de muitos cães de cego que viria a ter. E, assim que teve um animal com quem conversar, o meu pai viu finalmente o que queria fazer com o resto da sua vida.

- Agora vem aí o resto das nossas vidas - disse a Franny, com uma espécie de temor respeitoso. - O resto da porra das nossas vidas vem, finalmente, a caminho - acrescentou ela.

Naquele dia em que o Chipper Dove saiu do Stanhope a vaguear ao acaso, de regresso à sua "firma", parecia que todos nós íamos ser sobreviventes - pelo menos os que restávamos; parecia que tínhamos conseguido. A Franny estava agora livre para encontrar o seu caminho na vida. A Lilly e o Frank já haviam escolhido as suas carreiras - ou, como se diz, as suas carreiras é que os tinham escolhido a eles. O Pai precisava apenas de algum tempo a sós com o animal ao seu lado para conseguir tomar uma decisão. Eu sabia que uma licenciatura em Literatura Americana tirada numa universidade austríaca não me abria grandes perspectivas em Nova Iorque, mas que poderia eu fazer senão cuidar do meu pai - senão levantar todo o peso que conseguisse dos ombros do meu irmão e das minhas irmãs, sempre que esse peso tivesse de ser levantado?

Mas o que nós tínhamos todos esquecido, no meio das decorações natalícias e do frenético ajuste de contas com o Chipper Dove, era aquele vulto que nos assombrava desde o princípio. Tal como em qualquer conto de fadas, quando julgamos já ter saído do bosque é quando ainda estamos mais lá dentro do que pensávamos; quando julgamos estar fora do bosque é justamente quando nos apercebemos de que ainda estamos lá dentro.

Como é que nos podíamos ter esquecido tão depressa da lição que nos dera o rei dos ratos? Como é que teríamos podido afastar de nós aquele velho cão, companheiro da nossa infância, o nosso querido Sorrow, com a mesma facilidade com que a Susie dobrou o seu disfarce de urso dizendo: "Já está. Acabou-se. Agora toca a partir para outra"?

Há uma canção que os vienenses gostam de cantar - é uma das canções a que chamam Heurigen, canções que eles cantam para celebrar o primeiro vinho da época. Uma canção típica dessa gente que o Freud tão bem compreendeu, cujas canções estavam impregnadas de desejos de morte. O próprio rei dos ratos, sem dúvida, deve ter alguma vez cantado esta canção:

Verkauffs mei G'wand, I Fahr in Himmel. Vende as minhas roupas velhas, lá vou eu para o céu.

Quando o urso Susie levou as amigas de volta ao Village, o Frank, a Franny, a Lilly e eu telefonámos para o nosso querido serviço de quartos e pedimos champanhe. À medida que íamos saboreando o travo levemente adocicado da nossa vingança sobre o Chipper Dove, a nossa infância surgiu-nos como um lago límpido atrás de nós. Sentimos que estávamos enfim livres da tristeza e da dor. E, no entanto, um de nós deve ter cantado aquela canção, mesmo naquela altura. Um de nós estava a entoá-la em segredo.

A VIDA É UMA COISA SÉRIA, MAS A ARTE É UMA PARÓDIA!

O rei dos ratos estava morto, mas - para um de nós - não caíra no esquecimento.

Não sou poeta. Nem sequer fui o escritor da família. O Donald Justice tornar-se-ia o herói literário da Lilly: ele viria mesmo a substituir aquele maravilhoso final de O Grande Gatsby, que a Lilly nos tinha lido tantas vezes. O Donald Justice enunciou a questão que paira no coração da minha família, eterna hóspede de hotel, do modo mais eloquente. Tal como o Sr. Justice pergunta,

Como posso eu falar de fatalidade, e da nossa em especial, A não ser como de uma coisa em si mesma banal?

Acrescente-se a fatalidade à lista, então. Especialmente nas famílias, a fatalidade é mesmo "uma coisa em si mesma banal". A tristeza vem sempre à superfície. O amor também. E, com o passar dos anos, a fatalidade. Também ela vem sempre à superfície.

 

       O SÍNDROMA DO REI DOS RATOS

       O ÚLTIMO HOTEL NEW HAMPSHIRE

Eis o epílogo; há sempre um. Num mundo em que o amor e a tristeza vêm à superfície, existem sempre muitos epílogos - alguns dos quais continuam pela vida fora. Num mundo onde a fatalidade acaba sempre por impor a sua presença à força, alguns dos epílogos são curtos.

- Um sonho é a consumação dissimulada de um desejo reprimido - explicou-nos o Pai no jantar de Páscoa no apartamento do Frank em Nova Iorque, na Páscoa de 1965.

- Estás outra vez a citar o Freud, Pai - disse-lhe a Lilly.

- Qual deles? - perguntou a Franny, mecanicamente.

- O Sigmund - respondeu o Frank. - Capítulo Quarto de A Interpretação dos Sonhos.

Eu também devia ter sido capaz de identificar a fonte, porque eu e o Frank andávamos a fazer turnos à noite para ler ao Pai. O Pai tinha-nos pedido que lhe lêssemos toda a obra do Freud.

- Afinal, com o que é que tu sonhaste, Pai? - - perguntou-lhe a Franny.

- Com o Arbuthnot-by-the-Sea - respondeu-lhe o Pai.

À hora das refeições, o cão de cego do Pai estava sempre com a cabeça poisada no colo dele; cada vez que o Pai ia buscar o guardanapo metia um pedaço de comida na boca do cão, que levantava momentaneamente a cabeça para o apanhar, permitindo assim ao Pai servir-se do guardanapo.

- Não devias dar-lhe de comer à mesa - ralhava-lhe a Lilly.

Mas todos nós gostávamos do animal. Era uma cadela pastor-alemão, com o pêlo de um castanho-dourado particularmente intenso, que se misturava liberalmente com o preto por todo o corpo e que dominava a coloração do focinho elegante; este era particularmente comprido e afilado, de malares elevados e salientes, de tal modo que o seu aspecto em nada se assemelhava ao de um Labrador. O Pai tinha querido chamar-lhe Freud, mas nós achámos que já havia confusão suficiente com dois Freuds. Conseguimos convencer o Pai de que um terceiro Freud ia pôr toda a gente maluca.

A Lilly sugeriu o nome de Jung.

- O quê? Esse traidor! Esse anti-semita! - protestou o Frank. - Onde é que já se viu dar o nome de Jung a uma fêmea! Só o próprio Jung se lembraria de uma coisa dessas - acrescentou, fumegante de indignação.

A Lilly sugeriu então o nome de Stanhope, por causa do afecto que sentia pelo seu 14º andar; o Pai gostou da ideia de dar ao seu primeiro cão de cego o nome de um hotel, mas disse que nesse caso preferia o nome de um hotel de que realmente gostasse. Concordámos todos, por isso, com o nome de Sacher. No fim de contas, a Frau Sacher fora uma mulher.

O único mau costume da Sacher era deitar a cabeça no colo do Pai sempre que ele se sentava à mesa para comer qualquer coisa. Mas o Pai encorajava-a a fazer isso - pelo que o mau hábito era mais dele do que da cadela. Tirando isso, era um cão de cego modelo. Não atacava os outros animais, levando o meu pai desorientado e de rastos atrás dela; além disso, era especialmente esperta a lidar com elevadores - com o corpo, evitava que a porta se fechasse até o Pai sair ou entrar. Costumava ladrar ao porteiro do St. Moritz, mas com os outros transeuntes era amistosa, senão mesmo um tudo nada indiferente. Isto passava-se antes de sair a lei que, em Nova Iorque, obrigava os donos dos cães a limpar a porcaria que eles faziam, pelo que o Pai era poupado àquela humilhante tarefa - que lhe seria, aliás, impossível de desempenhar, pensava ele. Na verdade, o Pai já receava que uma tal lei fosse aprovada anos antes de qualquer outra pessoa começar a falar dela.

- Quer dizer, se a Sacher cagar no meio da Central Park South - costumava ele dizer -, como é que eu vou conseguir dar com a merda! Já é mau ter de apanhar merda de cão, mas sem a ver então é que havia de ser bonito! Não contem comigo! Se algum respeitável cidadão tentar dizer-me, ou insinuar sequer, que sou responsável pela caca que a cadela fizer, acho que vou dar uso ao taco de basebol!

Mas o Pai - durante algum tempo - não tinha com que se preocupar. Na altura em que aprovaram a lei da merda de cão já não vivíamos em Nova Iorque. À medida que o tempo foi melhorando, o Pai e a Sacher alongaram os seus passeios, sozinhos, entre o Stanhope e a Central Park South, e o meu pai achou que podia continuar a ser cego para a merda que a Sacher fizesse.

No apartamento do Frank, a cadela dormia em cima de um tapete entre a cama do Pai e a minha, e às vezes, durante o sono, eu ficava sem saber se era a Sacher ou o Pai quem eu ouvia a sonhar.

- Com que então sonhaste com o Arbuthnot-by-the-Sea - disse-lhe a Franny. - Sim, senhor, grande novidade!

- Não - disse o Pai. - Não foi um sonho como os antigos. A Mãe não estava lá. E nós não éramos mais novos outra vez. Não foi nada disso.

- Não havia nenhum homem de smoking branco, Pai? - perguntou-lhe a Lilly.

- Não, não. Neste sonho, eu já era velho, ainda mais velho do que hoje - acrescentou (ele tinha agora quarenta e cinco anos). - Neste sonho, eu ia dar um passeio com a Sacher ao longo da praia; estávamos a dar uma volta pelos terrenos do hotel, sempre à volta do hotel.

- Sempre à volta das ruínas, queres tu dizer - interveio a Franny.

- Bem - acrescentou o Pai, com astúcia - é claro que eu não podia ver se o Arbuthnot ainda estava em ruínas, mas tive a sensação de que tinha sido restaurado, pareceu-me que tinha sido tudo arranjado - disse-nos o Pai, tirando comida do seu prato para o colo e daí para a boca da Sacher. - Era um hotel novinho em folha - acrescentou ele, com ar malicioso.

- E aposto que no sonho eras o dono do hotel - disse-lhe a Lilly.

- Disseste-me que podia fazer tudo o que quisesse, não é verdade, Frank? - perguntou o Pai.

- No sonho eras tu o dono do Arbuthnot-by-the-Sea? - inquiriu o Frank. - E estava todo restaurado?

- E a funcionar como antes, Pai? - perguntou-lhe a Franny.

- A funcionar como antes - confirmou ele, dizendo que sim com a cabeça; e a Sacher também abanou a sua, afirmativamente.

- É isso que queres fazer? Queres ser dono do Arbuthnot-by-the-Sea?

- perguntei-lhe eu.

- Bem - respondeu o Pai -, é claro que teríamos de lhe mudar o nome.

- É claro - corroborou a Franny.

- O terceiro Hotel New Hampshire! - exclamou o Frank. - Lilly! Pensa só nisto! Outra série de televisão!

- Não tenho andado a trabalhar como deve ser na primeira série - disse a Lilly, com ar preocupado.

A Franny ajoelhou-se ao lado do Pai; pôs-lhe a mão no joelho e a Sacher começou a lamber-lhe os dedos.

- Queres começar de novo? - perguntou-lhe a Franny. - Queres começar tudo de novo? Acho que sabes que nada te obriga a fazê-lo.

- Que outra coisa poderia eu fazer, Franny? - perguntou-lhe ele, sorrindo. - É a última tentativa, prometo-vos - disse ele, dirigindo-se a todos nós. - Se não conseguir fazer do Arbuthnot-by-the-Sea qualquer coisa de muito especial, então desisto.

A Franny olhou para o Frank e encolheu os ombros; eu fiz o mesmo, e a Lilly limitou-se a revirar os olhos. O Frank disse:

- Bem, acho que não deve ser complicado saber quanto custa e quem é o dono.

- Não o quero ver, se ele ainda for o dono - disse o Pai. - Não quero ver esse malandro.

O Pai estava sempre a chamar-nos a atenção para coisas que não queria "ver", e nós, habitualmente, tínhamos o tacto suficiente para evitar chamar-lhe a atenção para o facto de ele não "ver" nada.

A Franny disse que também não queria ver o homem de smoking branco, e a Lilly contou que o via a toda a hora - quando estava a dormir; e a Lilly acrescentou que estava farta de o ver.

O Frank e eu acabámos por alugar um carro e por ir até ao Maine. Pelo caminho, o Frank ensinou-me a guiar. Tornámos a ver o monte de ruínas que era o Arbuthnot-by-the-Sea e chegámos à conclusão de que as ruínas não mudam grande coisa: qualquer que seja a capacidade de mudança existente nas ruínas, essa capacidade esgota-se sempre no considerável processo de mudança que se opera para que as ruínas se transformem em ruínas. Uma vez transformadas em ruínas, permanecem inalteráveis. Observámos mais algumas marcas de vandalismo; mas não deve ter muita piada praticar vandalismo em ruínas, e por isso aquilo tudo tinha quase o mesmo aspecto que no Outono de 1946, quando tínhamos vindo todos ao Arbuthnot-by-the-Sea para ver o Urrr morrer.

Não nos foi difícil reconhecer o cais onde o velho State O'Maine fora abatido, embora aquele cais - e os outros nas proximidades - tivessem sido reconstruídos e houvesse uma quantidade de barcos novos na água. O Arbuthnot-by-the-Sea parecia uma cidade fantasma; o que outrora fora uma alegre aldeola piscatória e lagosteira - que se estendia ao longo do terreno do hotel - não passava agora de uma feia vilazinha turística. Possuía uma marina, onde se podiam alugar barcos e comprar lingueirões, e uma praia pública, rochosa, perto da praia privativa do Arbuthnot-by-the-Sea. Como não havia ninguém por ali que tratasse do hotel, esta praia "privativa" dificilmente ainda podia merecer este qualificativo. Quando o Frank e eu visitámos o local, duas famílias faziam ali um piquenique; uma delas chegara de barco, mas a outra fora de carro até à praia. Tinham vindo pela mesma "estrada privativa" que eu e o Frank, passando pelo letreiro desbotado que ainda dizia:

 

   ENCERRADO POR TODA A TEMPORADA!

 

A corrente que outrora impedia a passagem nesta estrada há muito que fora quebrada e levada dali para fora.

- Só para tornar isto habitável era preciso uma fortuna - disse o Frank.

- E isso se o quiserem vender - respondi eu.

- Mas quem, em nome de Deus, quem é que estaria disposto a não vender isto? - perguntou o Frank.

Foi na agência imobiliária de Bath, no Maine, que o Frank e eu descobrimos que o homem de smoking branco ainda era o dono do Arbuthnot-by-the-Sea e que ainda estava vivo.

- Vocês querem comprar o hotel do velho Arbuthnot? - perguntou-nos o espantado agente.

Ficámos encantados por saber da existência de um "velho Arbuthnot".

- Só tenho notícias dele através dos seus advogados - acrescentou o agente. - Há anos que eles andam a tentar desfazer-se do hotel. O velho Arbuthnot vive na Califórnia, mas tem advogados em todo o país. Aquele com quem eu contacto a maior parte das vezes está em Nova Iorque.

Pensámos então que bastaria informar o advogado de Nova Iorque de que queríamos comprar o hotel,, mas - de regresso a Nova Iorque - o advogado do Arbuthnot deu-nos a notícia de que este queria ver-nos.

- Temos de ir à Califórnia - disse o Frank. - O velho Arbuthnot parece tão senil como um dos velhos Habsburgos, mas não vende o hotel sem se encontrar primeiro connosco.

- Valha-me Deus! - exclamou a Franny. - É uma viagem muito cara para uma pessoa se ir só encontrar com outra!

O Frank informou-a de que o Arbuthnot nos pagava as passagens.

- Provavelmente ele só quer é rir-se de vocês - disse-nos a Franny.

- Provavelmente quer é conhecer alguém mais maluco do que ele - acrescentou a Lilly.

- Não posso acreditar em tanta sorte! - exclamou o Pai. - Imaginar que o hotel ainda está à venda!

Nem eu nem o Frank achámos necessário descrever-lhe as ruínas - nem o novo turismo pindérico que pululava em redor do seu querido Arbuthnot-by-the-Sea.

- De qualquer modo, ele não vai ver nada - murmurou o Frank.

Estou contente por o Pai nunca ter tido a oportunidade de conhecer o velho Arbuthnot, um hóspede permanente do Beverley Hills Hotel, a chegar ao fim da sua permanência. Quando o Frank e eu chegámos ao aeroporto de Los Angeles, alugámos o nosso segundo carro dessa semana e lá fomos ao encontro do idoso Arbuthnot.

Numa suite com jardim privativo, com palmeiras, encontrámos o velhote assistido por uma enfermeira, por um advogado (aquele era o advogado californiano), e atacado por um enfisema que lhe viria a ser fatal. Estava sentado muito direito numa sofisticada cama de hospital, respirando cuidadosamente ao lado de uma fila de aparelhos de ar condicionado.

- Gosto de Los Angeles - arquejou o velho Arbuthnot. - Aqui não há tantos judeus como em Nova Iorque. Ou então sou eu que já estou finalmente imunizado contra os judeus.

Em seguida foi projectado para o lado na sua cama de hospital, dobrado sobre si mesmo em ângulo agudo, por um acesso de tosse que parecia tê-lo acometido de surpresa - e de lado; parecia que se tinha engasgado com uma perna de peru inteira. A sua recuperação parecia impossível: era como se o seu persistente anti-semitismo fosse enfim acabar com ele. (Estou certo de que o Freud assistiria a esta cena com alegria.) Mas o ataque cessou tão bruscamente como tinha começado e ele ficou de novo calmo. A enfermeira ajeitou-lhe as almofadas na cama e o advogado pôs-lhe no peito alguns documentos de aspecto importante, dando-lhe uma caneta que ele segurou com a mão trémula.

- Estou a morrer - disse-nos ele, como se não nos tivéssemos apercebido disso mal o víramos.

Usava um pijama de seda branca e parecia ter cem anos. Não devia pesar mais do que uns vinte e cinco quilos.

- Eles dizem que não são judeus - disse o advogado ao Arbuthnot, apontando para mim e para o Frank.

- Foi por isso que nos quis conhecer? - perguntou-lhe o Frank. - Podia ter ficado a saber isso pelo telefone.

- Posso estar a morrer - respondeu ele. - Mas não vendo nada a judeus.

- O meu pai - disse-lhe eu - era um grande amigo do Freud.

- Não do Freud em que está a pensar - disse o Frank ao Arbuthnot. Mas o velho recomeçou a tossir, e não chegou a ouvir o que o Frank tinha para lhe dizer.

- Freud? - perguntou o Arbuthnot, a tossir e a expectorar. - Também conheci um Freud! Era um judeu que amestrava animais. Os judeus não são bons a lidar com animais - confidenciou-nos ele. - É que os animais dão por isso, percebem? Sentem sempre quando uma pessoa tem qualquer coisa estranha. Este Freud que eu conheci era um judeu imbecil, amestrador de animais. Tentou amestrar um urso, mas o animal comeu-o! - uivou o Arbuthnot deliciado, o que lhe provocou novo ataque de tosse.

- Era uma espécie de urso anti-semita? - perguntou o Frank, o que levou o velho a rir-se tanto que eu pensei que o ataque de tosse que se seguiu o matasse.

- Eu estava mesmo a tentar matá-lo - disse o Frank mais tarde.

- Vocês devem estar loucos para quererem aquele hotel - disse o Arbuthnot. - Por acaso não sabem onde fica o Maine? Aquilo fica no fim do mundo! Não tem nenhum serviço de comboios decente, e de carreiras de aviões muito menos. Além do mais, é um sítio terrível para lá chegarem de automóvel (fica demasiado longe quer de Nova Iorque quer de Boston) e quando conseguirem lá chegar a água é demasiado fria e os percevejos chupam-vos todo o sangue em menos de uma hora. Hoje em dia, já nenhum dos velejadores com classe leva para ali o seu barco; isto é, os velejadores com dinheiro, é claro. Se tiverem algum dinheiro, não vão ter onde o gastar no Maine! Nem sequer há putas lá!

- De qualquer modo, gostamos daquilo - disse o Frank.

- Eles não são judeus, pois não? - perguntou o Arbuthnot ao advogado.

- Não - respondeu-lhe este.

- É difícil de dizer, olhando para eles. Antigamente eu era capaz de reconhecer um judeu à primeira vista, mas agora estou a morrer.

- É uma pena - comentou o Frank.

- O Freud não foi comido por um urso - disse eu ao Arbuthnot.

- O Freud que eu conheci, foi - respondeu o velho.

- Não - insistiu o Frank. - O Freud que conheceu foi um herói.

- O Freud que conheci não foi herói nenhum - teimou o Arbuthnot, com ar petulante.

A enfermeira enxugou-lhe a baba que lhe corria pelo queixo, tão distraidamente como se estivesse a limpar o pó de uma mesa.

- O Freud que ambos conhecemos - acrescentei eu - salvou a Ópera Nacional de Viena.

- Viena! - gritou o Arbuthnot. - Viena está cheia de judeus!

- Há mais judeus no Maine do que dantes - disse o Frank para o irritar.

- Em Los Angeles também - acrescentei eu.

- Tanto se me dá. Estou a morrer - disse o Arbuthnot. - Graças a Deus.

Assinou os documentos que tinha à sua frente, e o advogado entregou-os ao Frank. E foi assim que, em 1965, o Frank comprou o Arbuthnot-by-the-Sea e vinte e cinco acres de terreno na costa do Maine.

- Por uma pechincha - como disse a Franny.

Uma mancha azul fazia uma protuberância no rosto do velho Arbuthnot, e as duas orelhas estavam pintadas de púrpura com tintura de genciana, um fungicida antiquado.

Era como se um fungo gigante o estivesse a consumir por dentro.

- Só um momento - pediu-nos, quando já íamos a sair.

E as palavras ressoaram-lhe no peito com um eco de cisterna. A enfermeira voltou a ajeitar-lhe as almofadas, e o advogado fechou uma pasta com um estalido; o frio que fazia no quarto, proveniente de todos aqueles aparelhos de ar condicionado ronronando sem cessar, fez com que o Frank e eu nos sentíssemos como no túmulo - o Kaisergruft - dos Habsburgos sem coração, em Viena.

- Quais são os vossos planos? Que diabo tencionam vocês fazer com aquilo? - perguntou-nos ainda o Arbuthnot.

- Vai ser um Campo de Treino para Comandos Especiais - explicou-lhe o Frank. - Para o Exército Israelita.

Reparei no sorriso esboçado pelo advogado do Arbuthnot; foi um sorriso tão especial que fez com que eu e o Frank, mais tarde, procurássemos o nome dele nos documentos que nos tinha passado. Chamava-se Irving Rosenman e, apesar de ser de Los Angeles, nem o Frank nem eu tivemos a menor dúvida de que era judeu.

O velho Arbuthnot não esboçou nenhum sorriso.

- Rá-tá-tá-tá-tá! - exclamou o Frank, imitando o som de uma metralhadora.

Pensámos que o Rosenman se ia atirar para dentro dos aparelhos de ar condicionado para conseguir conter o riso.

- Os ursos hão-de dar com eles - disse o Arbuthnot, com ar estranho. - Os ursos hão-de acabar por apanhar os judeus todos.

O ódio irracional estampado no seu rosto enrugado era tão fora de moda e tão intenso como o fungicida das suas orelhas.

- Tenha uma morte muito feliz - desejou-lhe o Frank.

O Arbuthnot teve outro acesso de tosse; tentou dizer mais qualquer coisa, mas não conseguiu parar de tossir. Chamou a enfermeira para junto de si e esta não pareceu ter grande dificuldade em perceber o que ele queria dizer; já devia estar habituada. Em seguida encaminhou-nos para a porta, saindo atrás de nós para nos contar o que o Arbuthnot lhe tinha pedido para nos dizer.

- Ele diz que vai ter a melhor morte que o dinheiro puder comprar. O que é mais do que vocês alguma vez conseguirão.

Nem eu nem o Frank fomos capazes de retribuir qualquer mensagem ao velho. Satisfazia-nos bastante a ideia de o termos deixado a pensar em comandos israelitas no Maine. Despedimo-nos da enfermeira e do Irving Rosenman e voámos de regresso a Nova Iorque com o terceiro Hotel New Hampshire no bolso do Frank.

- É o sítio ideal para o guardares, Frank - disse-lhe a Franny. - No teu bolso.

- Nunca conseguirás voltar a transformar aquele lugar num hotel - disse a Lilly ao Pai. - Já deu o que tinha a dar.

- Nós vamos começar devagarinho - garantiu-lhe o Pai.

O Pai e eu éramos o tal "nós" a quem ele se tinha referido. Eu tinha-lhe dito que iria com ele para o Maine e que o ajudaria a arrancar.

- Então és tão louco como ele - dissera-me a Franny.

Mas eu tinha uma ideia que nunca havia de partilhar com o Pai. Se, como diz o Freud, um sonho é a consumação de um desejo, então - como diz também o Freud - o mesmo se deve passar com as brincadeiras. Uma brincadeira também é a consumação de um desejo. Eu tinha uma brincadeira, uma partida a pregar ao Pai. E tenho andado a pregá-la desde há mais de quinze anos. Como agora o Pai já tem mais de sessenta anos, acho que se pode dizer que essa partida "já tem barbas", pode-se dizer que eu já acabei de pregar essa partida.

O último Hotel New Hampshire nunca foi - nem nunca será - um hotel. Foi esta a partida que eu preguei ao Pai durante estes anos todos. O primeiro livro da Lilly, A Tentar Crescer, ia render o dinheiro suficiente para que pudéssemos restaurar o Arbuthnot-by-the-Sea; e quando fizeram a versão cinematográfica, podíamos ter voltado a comprar a Gasthaus Freud. Talvez nessa altura pudéssemos ter até comprado o Sacher ou, pelo menos, o Stanhope. Porém, eu sabia que não era necessário que o terceiro Hotel New Hampshire fosse um verdadeiro hotel.

- Ao fim e ao cabo - como diria o Frank -, os dois primeiros também não eram verdadeiros hotéis.

A verdade é que ou o Pai fora sempre cego, ou a cegueira do Freud era contagiosa.

Mandámos limpar a praia de detritos e recuperámos mais ou menos os "terrenos", isto é, cortámos a relva de novo e chegámos mesmo a fazer um certo esforço para pôr um dos courts de ténis em condições. Muitos anos mais tarde fizemos uma piscina, pois o Pai gostava de nadar, e eu ficava nervoso de o ver nadar no mar; receava sempre que ele perdesse o sentido de orientação e avançasse a nado pelo mar adentro. Quanto aos edifícios que tinham servido de dormitórios do pessoal - onde a Mãe, o Pai e o Freud tinham outrora residido? -, limitámo-nos a demoli-los; mandámos vir equipas de demolição para os tirar dali. Mandámos nivelar o terreno e pavimentá-lo. Dissemos ao Pai que era um parque de estacionamento, se bem que nunca tivéssemos lá muitos carros.

Devotámo-nos, porém, de alma e coração ao edifício principal. Instalámos um bar no sítio onde fora a recepção; transformámos o vestíbulo numa enorme sala de jogo - lembrámo-nos do alvo de atirar dardos e das mesas de bilhar do Kaffee Mowatt, pelo que acho que é justo dizer - como faz a Franny - que convertemos o vestíbulo num café vienense. Aquilo levou-nos a mexer também no que antes fora o restaurante do hotel e a cozinha; apenas deitámos abaixo algumas paredes, e transformámos aquilo tudo no que o arquitecto designou por "uma espécie de cozinha rural".

- Uma espécie de enorme cozinha rural - disse a Lilly.

- Uma estranha espécie - disse o Frank.

A ideia de restaurar o salão de baile foi do Frank.

- É para o caso de darmos uma grande festa - argumentou ele, se bem que nunca pudéssemos dar uma festa tão grande que não coubesse toda a gente na chamada "cozinha rural".

Mesmo com a eliminação de muitas das casas de banho, mesmo com a conversão do último piso em armazém e com a transformação do segundo andar em biblioteca, teríamos capacidade para alojar trinta pessoas em quartos individuais - em total privacidade - caso tivéssemos andado para a frente com o projecto e comprado as camas necessárias.

A princípio, o Pai pareceu intrigado com o excessivo silêncio.

- Mas onde é que estão os hóspedes? - perguntava ele, sobretudo no Verão, com as janelas abertas, quando seria de esperar ouvir as crianças, com as suas vozes agudas e leves a chegarem da praia às revoadas, à mistura com os gritos das gaivotas e das andorinhas-do-mar.

Eu tinha explicado ao Pai que no Verão o negócio corria suficientemente bem para nem sequer precisarmos de nos incomodar em ficarmos abertos no Inverno, mas nalguns verões ele fazia-me perguntas sobre o silêncio circundante, orquestrado pela constante percussão do mar.

- Pelas minhas contas, não consigo imaginar mais do que dois ou três hóspedes por aqui - dizia o Pai. - A menos que também já esteja a ficar surdo - acrescentava ele.

Mas nós explicávamos-lhe que o nosso hotel era uma estância de veraneio de tal categoria que não precisávamos de o ter cheio; já pedíamos um preço tão exorbitante pelos quartos que não era preciso tê-los todos ocupados para conseguirmos ganhar um balúrdio.

- É formidável, não é? - exclamou o Pai. - Foi o que eu sempre soube que este hotel podia ser. Só precisava daquela combinação especial entre classe e democracia. Eu sempre soube que ele podia ser uma coisa muito especial.

Bem, é claro que a minha família era um modelo de democracia; primeiro a Lilly arranjava o dinheiro, depois o Frank pegava nele e fazia-o render, e por fim, graças a isto, o terceiro Hotel New Hampshire tinha uma data de hóspedes que não pagavam. Queríamos vê-lo com o maior número de pessoas possível, pois a presença e o barulho das pessoas, quer o das suas manifestações de alegria, quer o das suas discussões, ajudavam a alimentar as ilusões do meu pai de que éramos finalmente um exemplo de distinção, gerindo um ponto de encontro da alta sociedade com a maior discrição.

A Lilly veio viver connosco e lá foi ficando enquanto aguentou. Nunca gostou de trabalhar na biblioteca, embora lhe tivéssemos oferecido praticamente todo o segundo andar.

- Há demasiados livros na biblioteca - dizia ela.

Quando escrevia, sentia que a presença de tantos livros tornava insignificantes os seus pequenos esforços. Uma vez ainda tentou escrever no salão de baile - naquele vasto espaço à espera de música e de pés graciosos. Fartou-se de escrever naquele salão, mas as suas minúsculas pancadas na máquina de escrever jamais conseguiriam encher aquela sala vazia - por muito que ela se esforçasse. E como ela se esforçava!

A Franny também acabaria por vir e por ficar, longe dos olhares do público; ela usaria o nosso terceiro Hotel New Hampshire para se recompor. A Franny tornar-se-ia famosa - ainda mais famosa do que a Lilly, receio. Na versão cinematográfica de A Tentar Crescer, a Franny desempenhou o seu próprio papel. Ao fim e ao cabo, ela é que é a heroína do primeiro Hotel New Hampshire. Na versão cinematográfica, evidentemente, ela é a única de nós que parece autêntica. Ao Frank, transformaram-no num homossexual estereotipado, que toca pratos e é taxidermista; fizeram da Lilly uma miúda "gira", mas nós nunca achámos gira a sua pequenez. O seu tamanho, receio eu, sempre nos pareceu um esforço falhado - e não havia nada de "giro" nem na luta nem no resultado. E, por fim, exageraram o Egg, transformando-o num personagem de uma ternura comovente - quando ele é que era de facto um simples miúdo "giro".

O papel do Iowa Bob foi desempenhado por um veterano actor de Westerns (o Frank, a Franny e eu lembrávamo-nos de ter visto este velho cow-boy levar um tiro e cair do cavalo abaixo para aí um milhão de vezes); tinha uma maneira de levantar os pesos como se estivesse a devorar um prato de panquecas - fazendo aquilo soar totalmente a falso. E, é claro, cortaram os palavrões todos. Um produtor qualquer chegou mesmo a dizer à Franny que o recurso ao calão revelava uma grande pobreza de vocabulário e muita falta de imaginação. O Frank, a Lilly, o Pai e eu divertíamo-nos à doida a perguntar à Franny o que é que ela tinha respondido àquilo:

- Mas que poia de merda que você me saiu, ó seu cara de caralho entupido! - tinha ela respondido. - Vá mas é levar no cu, e depois meta-o na boca.

Mas mesmo com as limitações impostas à sua maneira de falar, a Franny foi um sucesso em A Tentar Crescer. Mesmo apesar de representarem o Júnior Jones de uma maneira" que mais parecia um bobo - e muito senhor do seu papel de bobo - a tentar entrar para uma banda de jazz; embora os actores que faziam o papel da Mãe e do Pai fossem insípidos e vagos, o que era suposto ser eu - ai, valha-me Deus, é melhor nem falar nisso! Apesar de todos estes contras, a Franny brilhou a grande altura. Quando fizeram o filme, ela andava pelos vinte e tal anos, mas era tão bonita que representava perfeitamente o papel de uma rapariga de dezasseis.

- Acho que o cretino que escolheram para o teu papel - disse-me a Franny - deve ter tido instruções para emanar uma mistura de meiguice e estupidez sem vida nenhuma.

- Bem, não sei, acho que é isso que emana mesmo de ti, de vez em quando - dizia o Frank para me arreliar.

- Assim como que uma espécie de tia solteirona a levantar halteres - disse-me a Lilly. - Foi como apareceste no filme.

Mas durante os primeiros anos que passei a cuidar do Pai no terceiro Hotel New Hampshire era assim mesmo que eu me sentia a maior parte do tempo: uma espécie de tia solteirona a levantar pesos. Com uma licenciatura em Literatura Americana passada pela Universidade de Viena, podia ter feito coisas piores do que ser o guardião das ilusões do meu pai.

- Precisas de uma mulher que seja boa para ti - disse-me a Franny pelo telefone, numa chamada de Nova Iorque ou de Los Angeles, do miradouro do seu estrelato nascente.

O Frank contrapôs-lhe que talvez eu precisasse antes de um homem que fosse bom para mim. Mas eu era cauteloso. Sentia-me feliz a alimentar a fantasia do meu pai. Na tradição estabelecida pela malfadada Fehlgeburt, gostava sobretudo de ler à noite para o Pai; ler em voz alta para alguém é um dos grandes prazeres do mundo. Até consegui interessar o Pai no levantamento de pesos. Para levantar pesos não é preciso ver. Agora, o Pai e eu passamos, de manhã, horas maravilhosas no velho salão de baile. Temos colchões espalhados por todo o lado e um banco adequado para fazer elevações deitado. Temos halteres de todos os tipos e para todos os fins - e uma esplêndida vista sobre o oceano Atlântico. Apesar de o Pai não ter possibilidades de admirar aquele soberbo panorama, é feliz por sentir a brisa do mar acariciá-lo enquanto está deitado a levantar os pesos. Como já disse, desde que espremi o Arbeiter, já não me empenho tanto nos pesos como dantes, e o Pai tornou-se um halterofilista suficientemente bom para o perceber; às vezes mete-se comigo por causa disso, mas o que eu gosto é de fazer só um bocado de exercício com ele. Agora deixo os levantamentos mais pesados para ele.

- Eu sei que continuas em forma, mas já não és nada que se compare ao que eras no Verão de mil novecentos e sessenta e quatro - diz ele para me arreliar.

- Não se pode ter vinte e dois anos toda a vida - lembro-lhe eu.

E lá continuamos a levantar os pesos durante mais algum tempo.

Naquelas manhãs, com a neblina do Maine ainda a envolver-nos e a humidade do mar a cair-nos em cima do corpo, consigo imaginar que estou a recomeçar a viagem toda desde o princípio. Consigo acreditar que estou deitado no tapete onde o velho Sorrow gostava de se estender, com o Iowa Bob ao meu lado, a dar-me instruções, em vez de estar eu a dar instruções ao meu pai. Já os quarenta anos haviam de estar a aproximar-se sorrateiramente antes de eu tentar viver com uma mulher.

No dia em que fiz trinta anos, a Lilly enviou-me um poema do Donald Justice. Ela gostava do final e pensava que ele se aplicava a mim. Nessa altura, eu andava chateado, e despachei-lhe logo uma mensagem de volta perguntando-lhe: "Quem é esse Donald Justice, e como é que tudo o que ele diz tem sempre a ver connosco?"

A verdade, porém, é que se trata de um belo final para qualquer poema e que eu me sentia mesmo assim aos trinta.

 

Trinta anos hoje;

Vi o cintilar breve das árvores

Como as velas de um bolo

Quando o sol descia no horizonte,

Um clarão repentino,

Contudo, houve tempo para formular um desejo

Antes de a luz morrer no céu,

Se eu tivesse sabido o que desejar,

Como outrora sabia,

Curvado sobre a toalha branca,

Iluminado pelas velas,

Para as apagar com um sopro.

 

Quando o Frank fez quarenta anos, enviei-lhe um cartão de aniversário com um poema do Donald Justice - Homens de Quarenta Anos.

 

Os homens de quarenta anos

Aprendem a fechar docemente

As portas dos quartos

A que não regressarão.

 

O Frank respondeu de imediato com uma breve nota dizendo que tinha parado de ler a porcaria do poema precisamente naquele ponto. "Vê mas é se fechas tu as tuas portas!" - dizia a nota secamente. "Já falta pouco para também teres quarenta anos. Pela minha parte, passo a vida a bater com a porcaria das portas e a voltar atrás para elas!"

Bravo, Frank!, pensei eu. Ele continuou sempre a passar pelas janelas abertas e a seguir em frente sem a mais leve ponta de medo. É isto que fazem todos os grandes agentes: fazem com que os conselhos mais ilógicos e incríveis pareçam razoáveis; fazem com que a gente avance sem medo, e dessa forma com que a gente lá vá conseguindo mais ou menos aquilo que quer, ou pelo menos conseguindo qualquer coisa; pelo menos não acabamos de mãos vazias quando avançamos sem medo, quando nos precipitamos na escuridão como se fôssemos guiados pelo mais sensato conselho do mundo. Quem é que havia de pensar que o Frank acabaria por se tornar uma pessoa tão cheia de interesse? (Ele que fora uma criança detestável.) Não sou eu quem irá censurá-lo por forçar tanto a Lilly.

- Foi a própria Lilly - disse sempre a Franny - quem se forçou tanto a si mesma.

Quando os malditos críticos gostaram de A Tentar Crescer - quando condescendentemente lhe outorgaram os seus superiores elogios, dizendo que, apesar de ser quem era, a Lilly Berry da tal célebre família salvadora de Óperas, "não era má" como escritora, era até uma escritora altamente "promissora" -, quando falaram e voltaram a falar da frescura da sua voz, o que tudo isto significou para a Lilly é que agora ela tinha de continuar; que agora tinha de tornar-se uma escritora a sério.

Mas a nossa pequena Lilly tinha escrito o seu primeiro livro quase acidentalmente; aquele livro era apenas um eufemismo para tentar crescer, contudo incitava-a a crer que ela era uma escritora quando se calhar ela era apenas uma leitora sensível e apaixonada, uma apaixonada pela literatura que pensava que queria escrever. Acho que foi o escrever que matou a Lilly, porque o escrever pode fazê-lo. A escrita acabou pura e simplesmente por consumi-la: ela não tinha arcaboiço suficiente para aguentar a violência que se impunha a si própria, para suportar aquele constante desgaste. Depois da versão cinematográfica de A Tentar Crescer ter tornado a Franny famosa, e depois de a série de televisão O Primeiro Hotel New Hampshire ter levado o nome de Lilly Berry ao convívio das famílias, suponho que a Lilly queria "apenas escrever", como a todo o momento se ouve dizer aos escritores. Suponho que ela só queria ter liberdade para escrever o seu livro. O problema é que o seu segundo livro não foi lá muito bom. Chamava-se A Noite do Espírito, inspirado num verso roubado ao seu guru, o Donald Justice:

 

Eis que chega a noite do espírito

Cá estão os pirilampos agitando-se no sangue;

 

e por aí adiante. Ela teria sido mais esperta se tivesse escolhido o título e escrito o seu livro a partir de outro verso do Donald Justice:

 

Regula o arco tenso na certeza do alvo falhado.

 

O livro podia ter-se chamado Um Alvo Falhado, porque era isso mesmo que ele era. Era um projecto demasiado ambicioso para a sua capacidade.

Tratava da morte dos sonhos, da dificuldade que os sonhos têm em morrer. Era um livro corajoso na medida em que partia de algo directamente relacionado com a pequena autobiografia da Lilly, mas que partia rumo a regiões demasiado longínquas para que ela pudesse apanhar-lhes a essência; daqui resultou uma obra imprecisa que reflectia até que ponto lhe era estranha aquela linguagem que ela estava apenas a visitar de passagem. Quando se escreve de uma forma vaga e imprecisa sobre assuntos que não se conhecem bem, é-se sempre vulnerável. Não foi difícil feri-la quando a crítica - esses malditos críticos mais a sua esperteza saloia e pesada - lhe saltou em cima.

Segundo o Frank, que normalmente tinha razão nos juízos que fazia da Lilly, ela ainda se sentira pior com o facto de o mau livro que escrevera ter sido recebido como heróico por um influente grupo de maus leitores. Um certo tipo de estudantes universitários ignorantes sentiu-se atraído pela falta de rigor de A Noite do Espírito; este tipo de estudantes sentiu alívio ao descobrir que uma total obscuridade era não só passível de publicação mas também de se confundir com a seriedade. Do que alguns estudantes mais gostaram no livro, salientou o Frank, foi aquilo que a Lilly mais detestava - as suas análises introspectivas que não levavam a nada, a falta de enredo, as personagens inconsistentes e tão depressa caracterizadas como não, a ausência de um fio condutor. De certa forma, entre uma certa camada universitária, o fracasso evidente na clareza da exposição confirma que aquilo que qualquer idiota sabe ser um vício pode ser transformado pela arte para se assemelhar a uma virtude.

- Onde diabo é que estes putos universitários foram buscar essa ideia!

- queixou-se a Franny.

- Nem todos a perfilham - fez notar o Frank.

- Eles acham que tudo aquilo que é forçado e tenso e difícil, com um maldito D maiúsculo, é sempre melhor do que uma ideia directa, fluente e compreensível! - gritava a Franny. - Onde é que essa merda dessa gente terá ido buscar semelhante asneira!

- Só alguns é que são assim, Franny - dizia o Frank.

- Só aqueles que transformaram num culto o fracasso da Lilly? - perguntou a Franny.

- Só aqueles que dão ouvidos aos professores - corrigiu o Frank, com ar presumido, pisando confortavelmente terreno familiar com um dos seus estados de espírito antitudo. - Aliás, com quem julgas tu que os universitários aprendem a pensar assim, Franny? - perguntou-lhe o Frank. - Com os professores!

- Valha-me Deus! - exclamou a Franny.

Ela não pediu que lhe fosse dado um papel em A Noite do Espírito; de qualquer modo, era impossível fazer um filme a partir daquele livro. A Franny tornou-se uma estrela muito mais facilmente do que a Lilly se tornou escritora.

- Ser uma estrela é mais fácil - disse a Franny.

- A única coisa que é preciso fazer é não nos preocuparmos com aquilo que somos e confiarmos que as pessoas vão gostar de nós; basta confiarmos que as pessoas vão descobrir o nós dentro de nós. Só temos de nos descontrair e esperar que o nós dentro de nós se revele.

No caso de um escritor, acho que o nós dentro de nós precisa de mais alimento para poder emergir. Sempre desejei escrever uma carta ao Donald Justice acerca disto, mas julgo que vê-lo - uma única vez e à distância - já fora o suficiente. Se o que há de melhor e mais puro nele não se encontrar nos seus poemas, então é porque ele não é lá muito bom escritor. Por outro lado, se qualquer coisa de bom e de forte nele emerge nos seus poemas, seria provavelmente decepcionante conhecê-lo. Claro que não estou a insinuar que ele seja mau sujeito. Provavelmente é um homem maravilhoso. Mas nunca poderia ser tão preciso como os seus poemas; estes são tão grandiosos que a sua personalidade não podia deixar de atraiçoar uma tal grandeza. No caso da Lilly, é claro que o seu trabalho era uma traição a ela mesma - e ela sabia-o. Sabia que o seu trabalho não era tão adorável como ela, e a Lilly teria preferido o contrário.

O que salvou a Franny não foi apenas o facto de ser mais fácil ser uma estrela do que uma escritora. O que salvou a Franny foi ela não ter de ser uma estrela solitária. O que o Donald Justice sabe é que um escritor é sempre um solitário, quer viva sozinho quer não.

 

Não me reconhecerias.

Minha é a face que floresce

Nos espelhos embaciados dos lavabos

Quando estendes a mão para o interruptor.

 

Os meus olhos têm a expressão

Dos olhos frios das estátuas

Observando os seus pombos regressar

Do alimento que lhes lançaste.

 

- Valha-me Deus! - disse a Franny. - Quem é que teria vontade de o conhecer?

Mas todos achavam a Lilly adorável - excepto talvez ela mesma. A Lilly queria que as palavras dela fossem adoráveis, mas as palavras traíram-na.

É surpreendente a Franny e eu termos uma vez pensado no Frank como rei dos ratos; a ideia que fizemos dele estava totalmente errada. Subestimamos o Frank, desde o início. Ele era um herói, mas precisou de chegar o momento em que ele passaria a assinar todos os nossos cheques e a dizer-nos quanto podíamos gastar nisto ou naquilo para que reconhecêssemos nele o herói que sempre havia sido.

Não, a Lilly é que era o nosso rei dos ratos.

- Nós devíamos ter desconfiado! - soluçava a Franny sem parar. - Ela era pequena de mais!

E assim perdemos a Lilly. Ela foi a tristeza que nunca compreendemos bem, e através de cujos disfarces nunca vimos com clareza. Talvez ela não tenha crescido o suficiente para podermos ver.

Escreveu uma obra-prima cuja autoria nunca reivindicou devidamente. Escreveu o argumento para o filme protagonizado pelo Chipper Dove; foi a autora e a encenadora daquela ópera, na grande tradição dos Schlagobers e sangue. Soube exactamente em que ponto concluir aquela história. Foi A Noite do Espírito que não esteve à altura das suas expectativas, e a dificuldade que teve em começar de novo - a tentar escrever o livro cujo ambicioso título seria Tudo depois da Infância. Isto nem sequer é um verso do Donald Justice, mas ideia da própria Lilly. Só que também não esteve à altura de o fazer.

Quando a Franny bebe de mais fica furiosa com o ascendente que o Donald Justice teve sobre a Lilly; por vezes fica tão embriagada que censura o pobre Donald Justice por aquilo que aconteceu à Lilly. Mas o Frank e eu somos sempre os primeiros a garantir à Franny que foi a qualidade que matou a Lilly; foi o final de O Grande Gatsby que não foi o final dela, que não era um final que estivesse ao seu alcance. E uma vez a Lilly disse:

- Raios partam esse Donald Justice! Já escreveu todos os versos bons!

É possível que ele tenha escrito o último verso que a minha irmã leu. O Frank encontrou o exemplar de Luz Nocturna do Donald Justice, que pertencia à Lilly, aberto na página vinte, cujo canto havia sido muitas vezes dobrado para a marcar. E no alto da página havia um verso muito sublinhado - com bâton, uma vez, com várias cores de diferentes esferográficas, e até a lápis, ao de leve.

Não penso que o final possa estar certo.

Talvez tenha sido este verso que levou a Lilly a fazer aquilo.

Era uma noite de Fevereiro, a Franny estava longe, na costa do Pacífico, e não a poderia ter salvo. O Pai e eu estávamos no Maine, mas a Lilly sabia que íamos para a cama cedo. Nessa altura, o Pai ia no seu terceiro cão de cego. A Sacher tinha morrido vítima dos seus excessos alimentares. A cadelita de pêlo dourado, a dos latidos agudos e alegres, tinha sido atropelada por um automóvel - tinha o vício de correr atrás dos carros, felizmente não quando o Pai ia na outra ponta da trela - e também tinha morrido; o Pai chamara-lhe Schlagobers, pois o bicho tinha um temperamento que fazia lembrar nata batida. O terceiro estava sempre a peidar-se, mas era só neste aspecto que se parecia desagradavelmente com o Sorrow; era outro pastor-alemão, mas desta vez um macho, e o Pai insistiu em chamar-lhe Fred. Este era também o nome do "pau para toda a obra" do terceiro Hotel New Hampshire - um pescador de lagostas reformado e surdo, chamado Fred. Sempre que o Pai chamava qualquer cão - quer fosse a Sacher, quer fosse a Schlagobers -, o Fred respondia sempre, fosse qual fosse o sítio do hotel onde estivesse a trabalhar:

- O quê?

Aquilo irritava tanto o Pai (e recordava-nos tanto o Egg, embora não o disséssemos) que ele sempre ameaçou chamar Fred ao cão que se seguisse.

- Já que aquele palerma do Fred responde sempre que eu chamo o cão, pouco importa o nome que lhe puser! - irritava-se o Pai. - Valha-me Deus, se ele vai passar a vida a berrar "O quê?", podemos muito bem dar-Ihe o nome dele.

Por isso, o cão de cego número três ficou Fred. O único mau hábito que ele tinha era tentar montar-se na filha da mulher-a-dias sempre que a garota saía de ao pé da mãe. Atirava a garota ao chão com um ar desvairado, e punha-se a tentar montá-la. A garota guinchava.

E a mulher-a-dias gritava, dando-lhe com o esfregão, com a vassoura ou com o que quer que estivesse à mão:

- Pára com isso, Fred!

E o Pai, ao ouvir aquela barulheira, sabia logo o que se estava a passar e berrava:

- Raios te partam, Fred, andas sempre cheio de tesão, meu sacana! Vem já deitar o cu aqui, Fred!

E o velho surdo, o pescador de lagostas reformado, o nosso outro Fred, perguntava:

- O quê? O quê?

E eu lá tinha de ir ter com ele (pois o Pai recusava-se a fazê-lo) e de lhe dizer:

- NÃO É CONSIGO, FRED! NÃO É NADA, FRED!

- Ah - dizia ele, voltando ao trabalho. - Pensei que estavam a falar comigo.

Por conseguinte, teria sido inútil a Lilly telefonar-nos para o Maine. Não poderíamos ter feito muito mais por ela do que berrar Fred umas quantas vezes.

- O que a Lilly tentou foi chamar o Frank. Ele não estava muito longe; talvez pudesse tê-la ajudado. Agora dizemos-lhe que ele talvez tivesse podido ajudá-la daquela vez mas que - como nós bem o sabemos -, a longo prazo, a fatalidade flutua. De qualquer modo, a Lilly entrou em contacto com o atendedor de chamadas do Frank. O Frank tinha substituído a telefonista por um desses atendedores automáticos, com uma daquelas exasperantes gravações da sua voz que ele tanto gostava de fazer.

ESTÁ! AQUI É O FRANK - MAS NA VERDADE NÃO ESTOU AQUI POR AGORA! (AH! AH!) QUER DEIXAR RECADO? ESPERE PELO SINALZINHO E DESABAFE TUDO CÁ PARA FORA.

A Franny deixava muitos recados que punham o Frank furioso.

- Vai foder um bolo-rei, Frank! - gritava a Franny à porcaria do aparelho. - Custa-me dinheiro cada vez que essa merda desse aparelhómetro me responde. Estou em Los Angeles, porra, seu atrasado mental, seu monte de merda, seu cagalhão de cavalo!

E aí ela imitava toda a espécie de sons a imitar traques e beijos muito molhados, e o Frank telefonava-me, repugnado como de costume.

- Francamente! - dizia ele. - Não percebo a Franny. Deixou-me um recado nojento no gravador. Eu sei que ela acha que é muito engraçadinha, mas não sabe que nós já estamos todos fartos das ordinarices dela? Isso já não é próprio da idade dela, se é que alguma vez o foi. Tu que melhoraste a tua linguagem podias fazer um esforço para melhorar a dela.

E continuava por ali fora.

O recado da Lilly deve ter assustado o Frank. Provavelmente ele não regressou do encontro que tivera naquela noite muito depois de ela ter telefonado; ligou o aparelho e foi ouvindo os recados, enquanto lavava os dentes e se preparava para ir para a cama.

Na maioria, os recados eram sobre assuntos de negócios. O jogador de ténis de quem ele é o representante estava a ter problemas por causa de um anúncio de desodorizante. Um argumentista tinha telefonado a queixar-se que um realizador o andava a "manipular" e o Frank fez um rápido registo mental - sobre o facto de este escritor precisar mesmo de muita "manipulação". Uma coreógrafa famosa não conseguia ir para a frente com a sua autobiografia; estava bloqueada na infância, confidenciava ela ao Frank, que se limitou a continuar a lavar os dentes. Bochechou, apagou a luz da casa de banho e foi então que ouviu a Lilly.

- Olá, sou eu - dizia ela como que a pedir desculpa ao aparelho.

A Lilly estava sempre a pedir desculpa. O Frank sorriu e abriu a cama; punha sempre o seu manequim de modista na cama antes de se deitar. Houve uma pausa prolongada, e o Frank pensou que o aparelho se tinha avariado, o que era frequente acontecer. Mas nesse momento a Lilly acrescentou:

- Sou só eu.

Alguma coisa no cansaço da voz dela fez com que o Frank verificasse que horas eram e ficasse à escuta com certa ansiedade. Na pausa que se seguiu, o Frank lembra-se de ter murmurado o nome dela:

- Continua, Lilly - sussurrou ele.

E a Lilly cantou a sua cançãozinha, só um pequeno trecho de uma canção; era uma das canções Heurígen - uma canção tola e triste, uma canção de rei dos ratos. Claro que o Frank sabia aquela canção de cor.

Verkauffs mei G'wand, I Fahr in Himmel. Vende as minhas roupas velhas, lá vou eu para o céu

- Porra, Lilly! - murmurou o Frank para o gravador, começando a vestir-se à pressa.

- Auf Wiedersehen, Frank - disse a Lilly, quando acabou a sua pequena canção.

O Frank não lhe respondeu. Correu em disparada até Columbus Circle e apanhou um táxi. E embora o Frank não fosse grande corredor, tenho a certeza de que fez uma boa média; eu não teria conseguido fazer melhor.

Mesmo que ele estivesse em casa quando a Lilly telefonou, eu sempre lhe disse que qualquer pessoa leva mais tempo a percorrer vinte quarteirões e um jardim zoológico do que a cair de catorze andares - a distância da janela da suite da esquina do 14.º andar do Stanhope ao cruzamento da 81.ª Rua com a 5.ª Avenida. O percurso da Lilly era mais curto do que o do Frank, e ela tê-lo-ia vencido de qualquer maneira; ele não poderia ter feito nada. Mesmo assim, contou o Frank, ele não disse (nem sequer pensou para consigo) ".Auf Wiedersehen, Lilly" até lhe terem mostrado o pequeno corpo dela.

A Lilly deixou um bilhete melhor do que a Fehlgeburt. A Lilly não era louca. Deixou um bilhete de suicida muito sério:

"Desculpem. Não sou suficientemente grande, é só isso."

O que eu recordo melhor são as mãozinhas dela: como lhe saltitavam no colo, quando dizia qualquer coisa com ar pensativo - e a Lilly estava sempre pensativa.

- Não havia riso suficiente nela, pá - diria o Júnior Jones mais tarde. As mãos da Lilly não se conseguiam conter; dançavam ao som do que quer que ela sonhava ouvir - talvez a mesma música ao ritmo da qual o Freud batia o taco de basebol, a mesma canção que o Pai ouve agora, com o taco agitando-se graciosamente junto dos seus pés cansados. O meu pai, o caminhante cego: caminha por todo o lado, percorre os terrenos do Hotel New Hampshire durante horas e horas, todos os dias, de Verão e de Inverno. Primeiro era a Sacher a conduzi-lo, depois a Schlagobers, mais tarde o Fred; quando este ganhou o hábito de matar doninhas, tivemos de nos desembaraçar dele.

- Gosto do Fred - disse o Pai. - Mas com os peidos e as doninhas, vai acabar por afugentar os hóspedes.

- Bem, os hóspedes não se queixam - disse eu ao Pai.

- Estão só a ser bem-educados, estão a mostrar que têm classe. Mas é asqueroso, é uma verdadeira violência, e se algum dia o Fred se atira a uma doninha quando eu for com ele... bem, com mil raios, garanto-te que o mato; dou-lhe com o taco de basebol.

E assim acabámos por encontrar uma família simpática que queria um cão de guarda; não eram cegos, mas não se importavam que o Fred andasse sempre aos traques e cheirasse que nem uma doninha.

E agora o Pai passeia com o cão de cego número quatro. Nós já estávamos cansados de lhes dar nomes, e quando a Lilly morreu o Pai perdeu mais um pedaço da sua boa disposição.

- Não tenho paciência para dar um nome a outro cão. Querem experimentar vocês?

Mas eu também não estava com paciência. A Franny estava a rodar um filme em França, e o Frank - que fora o mais abalado pela morte da Lilly - sentia-se irritado só de pensar em cães.

O Frank tinha demasiada tristeza no seu espírito; o cão chamado Sorrow - chamado "Tristeza" - voltava a vir à superfície; não tinha a menor disposição para escolher nomes de cães.

- Valha-me Deus! - exclamou o Frank. - Chama-lhe Número Quatro.

O meu pai encolheu os ombros e decidiu-se simplesmente por Quatro. É por isso que agora, ao crepúsculo, quando o Pai anda à procura do seu companheiro de passeios, o oiço gritar o número quatro.

- Quatro! Raios te partam! Quatro! - brada ele.

E o velho Fred, o "pau para toda a obra", continua a perguntar:

- O quê?

E o Pai continua a bradar:

- Quatro! Quatro! Quatro!

Faz-me lembrar alguém que recorda um jogo de infância: aquele em que se atira a bola ao ar e se grita pelo número de alguém, que tem de tentar apanhá-la antes de bater no chão.

- Quatro! - oiço o Pai a chamar.

E imagino uma criança a correr de braços estendidos para a bola.

Por vezes, a criança é a Lilly, outras vezes o Egg.

E quando, por fim, o Pai encontra o Quatro, eu fico a olhá-lo pela janela, a ser cuidadosamente guiado pelo animal até ao cais; à luz ténue do fim da tarde, é possível confundir o meu pai e o seu cão de cego com um homem muito mais novo que passeia no cais - talvez com um urso; talvez para irem pescar pescadas polacas.

- Não tem piada pescar quando não se pode ver o peixe a sair da água - disse-me o Pai.

E assim, com o Quatro, o Pai limita-se a ficar sentado no cais, à espera do anoitecer, até aos ferozes mosquitos do Maine o fazerem regressar ao Hotel New Hampshire.

Há mesmo um letreiro a dizer HOTEL NEW HAMPSHIRE. O Pai insistiu nisso e, apesar de não o poder ver - e de não dar pela falta dele, se eu me tivesse limitado a fingir que havia um letreiro -, é uma concessão que lhe faço de bom grado, embora por vezes seja um incómodo. Acontece haver turistas que se perdem e que vêm dar connosco; vêem o letreiro e pensam que somos um hotel. Expliquei ao Pai um sistema muito complicado que nos foi permitido pelo "êxito" deste negócio hoteleiro. Quando os turistas perdidos nos encontram e perguntam se há quartos, perguntamos-lhes se têm reservas.

Dizem que não, é claro, mas invariavelmente - ao olharem em redor e ao aperceberem-se do silêncio e da paz que conseguimos neste terceiro Hotel New Hampshire - insistem:

- Mas com certeza que têm vagas, não têm?

- Não, não temos vagas - respondemos sempre. - Sem reservas, não há vagas.

Por vezes, o Pai discute comigo por causa disto.

- Mas de certeza que temos espaço para eles - sibila ele. - Parecem simpáticos. Há uma ou duas crianças, estou a ouvi-las implicar, e a mãe parece cansada; provavelmente fizeram uma longa viagem de carro.

- Os nossos padrões têm de ser respeitados, Pai - respondo eu. - Francamente, o que é que os nossos outros hóspedes iam pensar se começássemos a afrouxar os critérios de admissão?

- Só acho que é muito elitista - murmura ele, pensativo. - Sempre soube que isto era um lugar especial, mas de qualquer modo nunca sonhei que chegasse ao ponto de...

E em geral interrompe a frase neste ponto, sorridente. Em seguida acrescenta:

- Hem? A tua mãe é que havia de ter gostado disto, não havia?

E o taco de basebol agita-se no ar, como que mostrando aquilo tudo à Mãe.

E eu respondo, sem a mais ligeira hesitação:

- Pois havia, Pai.

- Talvez não tivesse gostado de todos os momentos - acrescenta o meu pai, sonhador -, mas pelo menos gostaria desta parte. Pelo menos do fim.

O fim da Lilly, considerando o seu culto subsequente, foi tão simples e tão calmo quanto nós conseguimos que fosse. Eu gostava de ter tido a coragem de pedir uma elegia ao Donald Justice, mas foi - tanto quanto possível - um enterro em família. O Júnior Jones apareceu; sentou-se ao lado da Franny, e eu não pude deixar de reparar na perfeição com que se davam as mãos. Muitas vezes é preciso um enterro para uma pessoa compreender que envelheceu. Reparei que o Júnior Jones tinha algumas rugas ténues em torno dos olhos; agora era um advogado afogado em trabalho - pouco ouvíramos falar dele enquanto tirava o curso, pois eclipsara-se quase por completo na Faculdade de Direito, tal como outrora se tinha eclipsado sob uma pilha de jogadores dos Cleveland Browns. Tenho a impressão de que o curso de Direito e o futebol são experiências igualmente míopes. Jogar na linha avançada, dizia sempre o Júnior, tinha-o preparado para tirar o curso de Direito. Trabalho duro, mas chato, chato, chato.

Agora o Júnior dirigia o Braço Negro da Lei, e eu sabia que quando a Franny estava em Nova Iorque ficava com ele.

Ambos eram estrelas, e talvez estivessem finalmente à vontade um com o outro. Mas, no enterro da Lilly, tudo em que eu conseguia pensar era como ela gostaria de os ver juntos.

O Pai, ao lado da Susie, mantinha a extremidade mais pesada do taco de basebol no chão, entre os joelhos - a oscilar apenas ligeiramente. E quando caminhava - apoiado no braço da Susie, o antigo urso, que fazia de cão de cego do Freud - segurava no taco Louisville com grande dignidade, como se este não passasse de uma sólida bengala.

A Susie estava de rastos, mas aguentou-se no enterro - por causa do Pai, suponho. Ela idolatrava-o desde aquela tacada miraculosa - a tacada fabulosa e instintiva que tinha atirado com o Ernst da pornografia para o outro mundo. Na altura do suicídio da Lilly, a Susie não estava longe. Havia trocado a costa Leste pela costa Oeste, e depois tinha regressado à costa Leste. Durante algum tempo, dirigia uma comunidade em Vermont.

- Virei aquilo de pantanas - disse-nos ela a rir.

Depois arrancou com um serviço de orientação familiar em Boston, que desabrochou num centro de dia (pois havia grande necessidade de um desses centros), que acabou por frutificar num centro para a solução de crises provocadas pela violação (quando os centros de dia começaram a proliferar). Este último centro não foi bem aceite em Boston, e a Susie admite a hipótese de nem toda a hostilidade ter vindo do exterior. É evidente que em toda a parte havia indivíduos que adoravam a violação e que odiavam as mulheres, e uma quantidade de gente imbecil pronta a afirmar que mulheres que trabalhassem num centro deste tipo tinham de ser aquilo a que a Susie chamava "lésbicas praticantes e feministas turbulentas". Os bostonianos fizeram passar um mau bocado à Susie e ao seu primeiro centro de crises de violação. Ao que parece, como forma de expressarem a sua opinião, chegaram mesmo a violar uma das empregadas do centro. Mas até a Susie admite que, nos primeiros tempos, algumas das mulheres desses centros eram "lésbicas praticantes e feministas turbulentas", que também elas odiavam os homens, e que por conseguinte alguns dos problemas do centro eram internos. Algumas dessas mulheres eram simples filósofas anti-sistema, sem o sentido de humor do Frank, e se as pessoas encarregadas de fazer cumprir a lei não viam com bons olhos as mulheres que queriam que houvesse alguma justiça relativamente à violação - para variar -, também havia mulheres que se opunham à lei em geral, e ao fim e ao cabo ninguém ajudava muito a vítima.

O centro da Susie em Boston foi destruído quando algumas dessas mulheres que odiavam os homens castraram um pretenso violador num parque de estacionamento em Black Bay. A Susie regressou a Nova Iorque - e voltou à orientação familiar. Especializou-se em espancamentos de crianças - "enfrentando o problema", como ela costumava dizer, tanto das crianças como daqueles que as espancavam. Mas fartou-se de Nova Iorque (dizia que não tinha piada viver em Greenwich Village se não se fosse um urso) e convenceu-se de que o seu futuro era a resolução das crises provocadas pela violação.

Tive de concordar, tendo assistido à sua representação no Stanhope em 1964. A Franny dizia sempre que fora uma representação melhor do que ela própria teria feito, e a Franny é muito boa. A forma como teve de controlar-se para a sua única fala no ajuste de contas com o Chipper Dove deve ter-lhe dado a confiança necessária. De facto, em todos os filmes em que entrou mais tarde, a Franny faria sempre reviver essa velha fala: "Olhem só quem está aqui!" Encontrava sempre uma maneira de encaixar aquela deixa no texto.

É claro que ela não usa o seu nome real. As estrelas de cinema raramente o fazem. E Franny Berry não é exactamente o tipo de nome que chame a atenção das pessoas.

O nome dela em Hollywood, o seu nome de actriz, conhece-o o leitor bem. Esta é a história da nossa família, e não seria correcto mencionar o nome artístico da Franny - embora eu saiba que o leitor a conhece. A Franny é aquela por quem o leitor sente sempre desejo. É sempre a melhor, mesmo quando faz de má; é sempre a heroína, mesmo quando morre, mesmo quando morre por amor - ou pior, por causa da guerra. É a mais bela, a mais inacessível, mas também, de certo modo, a mais vulnerável - e a mais dura. (Ela é o motivo que nos faz ir ao cinema, ou ficar no cinema.) Outros sonham agora com ela - agora que ela me libertou dos sonhos tão destruidores em que me aparecia. Agora consigo viver com os sonhos em que sonho com a Franny, mas deve haver muitos dos seus admiradores que não vivem assim tão bem com os sonhos em que sonham com ela.

A Franny adaptou-se muito facilmente ao êxito. A Lilly nunca teria conseguido adaptar-se assim, mas para a Franny foi fácil - pois foi sempre a estrela da família. Sempre esteve habituada a ser a atracção principal, o centro das atenções - aquela por quem esperávamos e a quem escutávamos. Nasceu para ter o papel principal.

- E eu nasci para ser um miserável de um agente de merda - dizia o Frank, com ar soturno, depois do funeral da Lilly. - Até disto fui agente - continuou ele, referindo-se à morte da Lilly. - Ela não tinha tamanho suficiente para toda a merda que lhe dei para fazer - disse ele, começando a chorar.

Tentámos animá-lo, mas o Frank prosseguiu:

- Sou sempre eu a merda do agente, porra! Sou sempre eu a causa de tudo. Olhem para o Sorrow. Quem é que o embalsamou? Quem é que começou esta história toda? - continuou o Frank, chorando cada vez mais.

- Não passo do palerma do agente.

Mas o Pai estendeu o taco de basebol para o Frank, como se fosse uma antena, e disse:

- Frank, Frank, meu filho. Não foste tu o causador dos problemas da Lilly. Quem é o sonhador da família, Frank? - perguntou o Pai, e todos olhámos para ele. - Bem, sou eu. Sou eu o sonhador, Frank. E a Lilly só sonhou mais do que era capaz. Herdou esses malditos sonhos. Herdou-os de mim.

- Mas eu é que era o agente dela - disse o Frank, estupidamente.

- Pois eras, mas isso não interessa - respondeu-lhe a Franny. - Quer dizer, interessa é que sejas o meu agente, eu preciso mesmo de ti. Mas ninguém podia ser agente da Lilly, Frank.

- Pouco importa, Frank - disse-lhe eu, pois ele estava sempre a dizer-me o mesmo -, pouco importa quem possa ter sido o agente dela, Frank.

- Mas fui eu! - continuou ele, com uma teimosia exasperante.

- Meu Deus, Frank - Concluiu a Franny -, é mais fácil falar com o teu atendedor de chamadas. E foi isto que acabou por o recompor.

Durante algum tempo tivemos que aguentar com o muro das carpideiras, com o culto do suicídio da Lilly, com a veneração dos admiradores que pensavam que o seu suicídio fora uma derradeira declaração, a prova da sua seriedade. No caso da Lilly isto era uma ironia, pois o Frank, a Franny e eu sabíamos que o suicídio da Lilly - do ponto de vista dela - tinha sido o derradeiro reconhecimento de que não era suficientemente boa. Mas estas pessoas insistiam em amá-la por aquilo de que ela menos gostava em si mesma.

Um grupo de admiradores do suicídio da Lilly escreveu mesmo à Franny pedindo-lhe que se deslocasse às universidades do país a fim de fazer conferências sobre o trabalho da irmã - como se fosse a própria Lilly. Era à Franny, à actriz, que faziam apelo: desejavam vê-la representar o papel da Lilly.

E nós lembrámo-nos do único papel que a Lilly jamais tinha representado - o de escritora enclausurada - e do seu relato da única reunião do Departamento de Inglês a que assistiu. Nesta reunião, a Comissão de Conferências revelou que só havia dinheiro para mais duas visitas de poetas relativamente conhecidos, ou para mais uma visita de um escritor ou poeta famoso; ou ainda que podiam gastar todo o dinheiro que restava nos honorários exorbitantes pedidos por uma mulher que percorria as universidades do país a "fazer" de Virgínia Woolf. Embora a Lilly fosse a única pessoa deste Departamento de Inglês que dava os livros de Virgínia Woolf nas suas cadeiras, sentiu-se isolada ao opor-se ao desejo do departamento de convidar a tal "encarnação" da Virgínia Woolf.

- Penso que a Virgínia Woolf teria querido que o dinheiro fosse para um escritor vivo - disse a Lilly. - Um escritor autêntico.

Mas o departamento insistiu que queria todo o dinheiro para pagar à mulher que "fazia" de Virgínia Woolf.

- Está bem - acabou por dizer a Lilly. - Estou de acordo, mas só se a mulher fizer tudo. Só se ela for até ao fim.

Fez-se um silêncio na reunião do Departamento de Inglês, e alguém perguntou à Lilly se ela estava a falar a sério - se era possível que ela tivesse tão "mau gosto" que estivesse a sugerir que a mulher viesse à universidade para se suicidar.

E a minha irmã respondeu:

- O meu irmão Frank classificaria de repelente o facto de vocês, professores de literatura, gastarem dinheiro numa actriz que imita uma escritora que já morreu e cuja obra vocês não ensinam, em vez de o gastarem com um escritor vivo, cuja obra provavelmente vocês não leram. Sobretudo se tiverem em atenção que a mulher cuja obra não está a ser ensinada, e cuja pessoa vai ser imitada, estava obcecada pela diferença entre a verdadeira grandeza e o fingimento. E vocês querem pagar a alguém para fingir que é ela! Deviam ter vergonha! Vão lá buscar a mulher e tragam-na aqui. Eu dou-lhe as pedras para meter nos bolsos e levo-a até ao rio.

E foi isto que a Franny disse ao grupo que queria que ela representasse o papel de Lilly e que "fizesse" as universidades do país.

- Deviam mas é ter vergonha - disse a Franny. - Além disso sou alta de mais para fazer de Lilly. A minha irmã era mesmo baixa.

Os admiradores do suicídio atribuíram isto à falta de sensibilidade da Franny - e, por associação, em notícias de vários quadrantes, a nossa família foi descrita como sendo indiferente à morte da Lilly (devido à nossa má-vontade em acedermos a estes convites para representar uma Lilly fingida). Em desespero de causa, o Frank ofereceu-se como voluntário para "fazer" de Lilly numa sessão de leitura das obras de poetas e escritores suicidas. Como é natural, nenhum dos escritores ou poetas iriam ler trechos das suas obras; vários leitores contratados simpatizantes da obra dos mortos - ou, ainda pior, simpatizantes do seu "estilo de vida", o que quase sempre queria dizer do seu "estilo de morte" - leriam a obra dos suicidas como se fossem os autores mortos entretanto regressados a este mundo. A Franny também não quis tomar parte nisto; mas o Frank ofereceu-se como voluntário e foi rejeitado.

- A pretexto de "falta de sinceridade" - disse ele. - Acharam que eu não seria sincero! Bem teria eu razão em o ser! - gritou o Frank. - Que aqueles gajos bem devem ser capazes de aguentar uma dose mortal de falta de sinceridade!

E o Júnior Jones casou com a Franny - finalmente!

- Isto é um conto de fadas - disse-me a Franny, numa chamada interurbana. - Mas o Júnior e eu decidimos que, se continuarmos a adiar, já não vai haver mais nada para adiar.

Nessa altura, a Franny já se estava a aproximar dos quarenta. O Braço Negro da Lei e Hollywood tinham, pelo menos, Schlagobers e sangue em comum. Acho que as pessoas consideravam a Franny e o Júnior - na sua vida em Nova Iorque e Los Angeles - entre "os mais". Mas eu penso muitas vezes que as pessoas envoltas numa auréola de fama são apenas indivíduos muito atarefados. O Júnior e a Franny eram consumidos pelo seu trabalho, e sucumbiram ao conforto de terem os braços um do outro onde cair exaustos.

Fiquei muito feliz com a decisão deles, e só lamentei que ambos tivessem declarado que não tinham tempo para miúdos.

- Não quero filhos para depois não poder tomar conta deles - disse a Franny.

- Nem mais, pá - disse o Júnior Jones.

E, uma noite, a Susie disse-me que ela também não queria ter filhos, pois as crianças que ela viesse a dar à luz seriam feias, e ela não ia pôr no mundo uma criança feia - por nada desta vida; isso seria a maior crueldade a que uma criança pode ser exposta: a discriminação sofrida por quem não é bonito.

- Mas tu não és feia, Susie! - disse-lhe eu. - Só leva um bocadinho a habituarmo-nos. Acho que és mesmo atraente, se queres saber.

E era isso mesmo que eu pensava; achava a Susie uma heroína.

- Então deves estar doente - disse a Susie. - Tenho uma cara que parece um machado ou um escopro ferrugento. E um corpo como um saco de papel - continuou ela. - Como um saco de papel cheio de flocos de aveia frios.

- Acho que és muito bonita - disse-lhe eu.

E achava-a mesmo. A Franny tinha-me mostrado como a Susie era atraente. E eu tinha ouvido a canção que o urso Susie ensinara a minha irmã a cantar; além disso, eu tivera alguns sonhos interessantes em que a Susie me ensinava uma canção como aquela. Por isso repeti:

- Acho que és muito bonita.

- Então é porque o teu cérebro è como um saco de papel cheio de flocos de aveia frios - respondeu ela. - Se achas que eu sou muito bonita é porque estás mesmo doente, rapaz.

E, certa noite, em que não havia hóspedes no Hotel New Hampshire, ouvi um rastejar peculiar; o Pai tanto podia andar a deambular à noite como de dia - pois, evidentemente, era sempre noite para ele. Mas para onde quer que o Pai fosse, o taco Louisville arrastava-se atrás dele ou tacteava à sua frente, e, à medida que envelhecia, o seu andar cada vez se parecia mais com o do Freud, como se psicologicamente o Pai tivesse começado a coxear - como uma forma de solidariedade para com o velho intérprete de sonhos. Além disso, para onde quer que o Pai fosse, era sempre acompanhado pelo cão de cego número quatro. E, como nós nos esquecíamos de cortar as unhas do animal, o Pai e ele faziam uma barulheira dos diabos.

O velho Fred, o "pau para toda a obra", tinha um quarto no terceiro andar e dormia como uma pedra no fundo do mar; dormia tão profundamente como os diques abandonados, destruídos pelas focas, ora afundados nos baixios lamacentos, ora lavados pela maré. O velho Fred pertencia ao género de pessoas que dormem ao ritmo do Sol; como era surdo, dizia que não gostava de estar a pé à noite. Especialmente no Verão, as noites do Maine vibram com ruídos - pelo menos se as compararmos aos dias do Maine.

- O oposto de Nova Iorque - comprazia-se o Frank a dizer. - O único momento de calma na Central Park South é por volta das três da manhã. Mas no Maine é o único momento em que há algum movimento. É a essa hora que a maldita natureza acorda.

Reparei que eram três da manhã - de uma noite de Verão, com o mundo dos insectos em plena azáfama; as aves marinhas pareciam bastante tranquilas, mas o ruído do mar continuava, incessante. E eu continuava a ouvir aquele estranho rastejar. A princípio, era difícil dizer se era fora da minha janela, que estava aberta - embora houvesse uma rede -, ou se o som vinha do outro lado da porta, no vestíbulo. A minha porta também estava aberta. E no Hotel New Hampshire, as portas que davam para o exterior nunca eram trancadas - havia portas de mais.

Um coati, pensei eu.

Mas nesse momento algo de muito mais pesado do que um coati arrastou-se pelo chão sem tapetes do patamar que conduzia à escada e pisou suavemente o vestíbulo alcatifado em direcção à minha porta; eu podia pressentir o peso do que quer que aquilo fosse - pois fazia ranger as tábuas do soalho. Até o mar parecia ter-se acalmado, até o mar parecia estar à escuta do que quer que aquilo fosse - era o tipo de som que se ouve à noite e que faz com que a maré se detenha, que faz com que as aves (que nunca voam de noite) se ergam em direcção ao céu e fiquem a pairar, suspensas, como se estivessem pintadas no céu.

- Quatro? - sussurrei eu, pensando que o cão podia andar a rondar. Mas o que quer que estivesse no vestíbulo era demasiado hesitante para ser o cão de cego número quatro. O cão já tinha aí estado antes e não iria deter-se junto de cada porta.

Desejei ter comigo o taco de basebol do Pai, mas quando o urso se perfilou na porta escancarada compreendi que não havia nenhuma arma no Hotel New Hampshire suficientemente potente para me proteger deste intruso. Continuei deitado, muito quieto, fingindo dormir profundamente - com os olhos bem abertos. Na luz baça, difusa e macia como flanela que antecede a alvorada, o urso parecia descomunal. Olhava para o meu quarto, para a minha cama onde nada mexia, com a atenção de uma velha enfermeira fazendo uma verificação às camas num hospital. Tentei não respirar, mas o urso sabia que eu estava ali. Farejou, com uma inspiração profunda, e, cheio de graciosidade, a quatro patas, entrou no quarto. Bem, porque não?, pensava eu. Foi um urso que começou o conto de fadas que é a minha vida; não destoaria muito se fosse um urso a acabar com ela. O animal aproximou o focinho morno do meu rosto e cheirou-me todo; com uma fungadela cheia de determinação, pareceu rever a história da minha vida - e com um gesto próximo da comiseração pousou-me uma pesada pata na anca. Era uma noite de Verão bastante quente - para o Maine -, e eu estava nu, só coberto por um lençol. O hálito do urso era quente e cheirava um pouco a frutos - talvez ele tivesse acabado de comer amoras silvestres -, mas era um hálito extraordinariamente agradável, embora não exactamente puro. Quando o urso puxou o lençol para trás e me olhou de alto a baixo, eu senti só a pontinha do icebergue de medo que o Chipper Dove deve ter sentido quando pensou que um urso em pleno cio o desejava. Mas este urso rosnou desdenhosamente com aquilo que viu.

- Urrr! - disse o urso, empurrando-me com brusquidão. Arranjou assim um espaço ao meu lado e meteu-se na cama comigo. Foi quando me abraçou e quando eu identifiquei o elemento mais característico do seu odor estranho e forte que suspeitei não se tratar de um urso vulgar. Misturado com o seu hálito agradável a frutos e com a pungência de mostarda verde do seu suor de Verão, detectei o odor nítido da naftalina.

- Susie? - perguntei.

- Pensei que nunca mais descobrias.

- Susie! - exclamei eu, virando-me para ela e abraçando-a por minha vez.

Jamais me havia sentido tão feliz por a ver.

- Calma aí! - ordenou-me a Susie. - Não acordes o teu pai. Andei a rastejar por todo este maldito hotel a tentar encontrar-te. Primeiro encontrei o teu pai, e alguém me disse "O quê?" a dormir, e encontrei um cão completamente mentecapto que nem sequer deu por que eu era um urso; o estupor deu ao rabo e voltou a adormecer. Mas que cão de guarda! E pensar que foi o malandro do Frank quem me deu as instruções; acho que o Frank não é de confiança nem para indicar o caminho para o Maine quanto mais para esta partezinha esquisita deste estado decrépito. Caraças, pá! - continuou a Susie. - Só queria ver-te antes de romper o dia, queria estar contigo enquanto ainda fizesse escuro. E devo eu ter saído de Nova Iorque ao meio-dia de ontem, para agora a maldita madrugada estar quase a romper. E ainda por cima estou exausta - prosseguiu ela, começando a chorar. - Estou a suar como um porco nesta porcaria de fato idiota, mas cheiro tão mal e tenho tão mau aspecto que não me atrevo a despi-lo.

- Despe-o - disse-lhe eu. - Cheiras muito bem.

- Ah, devo mesmo cheirar! - disse ela, ainda a chorar.

Mas eu tirei-lhe a cabeça de urso. Ela enxugou as lágrimas com as patas, mas eu segurei-lhe as patas e beijei-a na boca durante um bom bocado. Acho que tinha razão a respeito das amoras; para mim, é a isso que a Susie sabe: a amoras silvestres.

- Sabes muito bem - disse-lhe eu.

- Devo mesmo saber - resmungou ela.

Mas deixou-me tirar-lhe o resto do fato de urso. Lá dentro era como uma sauna. Vi que a Susie tinha uma constituição de urso e que estava tão encharcada em suor como um urso acabado de sair de um lago. Compreendi como a admirava - pelas suas qualidades de urso, pela sua complicada coragem.

- Gosto muito de ti, Susie - disse-lhe, fechando a porta e voltando a meter-me na cama com ela.

- Despacha-te, daqui a pouco há luz. E então é que vais ver como eu sou feia.

- Já te estou a ver agora, e acho que és encantadora.

- Tens de te esforçar muito para me convenceres.

Já desde há alguns anos que ando a convencer a Susie de que é encantadora. É claro que eu a acho encantadora, e dentro de poucos anos penso que ela vai, finalmente, concordar comigo. Os ursos são criaturas teimosas, mas sãs de espírito; uma vez que consigamos a confiança deles, deixam de fugir de nós.

A princípio, a Susie estava tão obcecada com a sua fealdade que tomou todas as precauções possíveis e imaginárias contra uma possível gravidez, pensando que a pior coisa que ela poderia fazer era pôr uma pobre criança neste mundo cruel e permitir-lhe sofrer os maus tratos a que os feios estão em geral condenados. Quando comecei a dormir com a Susie ela tomava a pílula e além disso ainda usava um diafragma; punha tanta geleia espermicida no diafragma que eu tinha de reprimir a sensação de que íamos cometer uma espécie de morticínio - do esperma. A fim de eliminar esta minha ansiedade, a Susie insistia para que eu também usasse um preservativo.

- É esse o problema com os homens - costumava ela dizer. - Temos de nos encher tanto de defesas antes de nos atrevermos a fazê-lo com eles que às vezes perdemos de vista o objectivo.

Mas recentemente a Susie acalmou-se um bocado. Aparentemente acha que um método de controle de nascimentos é suficiente. E, se acontecer algum acidente, só posso esperar que ela o aceite com estoicismo. É claro que eu jamais a pressionaria a ter uma criança a não ser que ela a desejasse. As pessoas que querem obrigar as mulheres a terem filhos que elas não desejam não passam de monstros.

- Mas, mesmo que eu não fosse tão feia - protestava a Susie -, já estou demasiado velha. Depois dos quarenta pode haver toda a espécie de complicações. Arrisco-me a não ter um bebé feio, mas a nem sequer ter um bebé: posso dar à luz uma espécie de bananal Depois dos quarenta é muito perigoso.

- Disparates, Susie - digo-lhe eu. - Basta que te mantenhas em forma: uns exercícios ligeiros com os pesos, umas corridas. O teu coração é jovem, Susie. O urso que está dentro de ti ainda é uma cria.

- Convence-me - diz-me ela.

E eu sei o que isso quer dizer. É o eufemismo que usamos sempre que temos vontade um do outro. Ela dir-me-á apenas, inesperadamente:

- Preciso de ser convencida. Ou então serei eu a dizer-lhe:

- Susie, estás com ar de quem precisa de ser convencida. Ou ainda basta que ela me diga:

- Urrr!

E eu sei exactamente o que isso significa.

Quando nos casámos, foi isso que ela disse quando chegou o momento de dizer "sim". A Susie disse "Urrr!".

- O quê? - exclamou o celebrante.

- Urrr! - repetiu a Susie, fazendo que sim com a cabeça.

- Ela diz que sim - esclareci eu o padre. - Aquilo quer dizer que sim.

Penso que nem a Susie nem eu viremos alguma vez a curar-nos completamente da Franny, mas assim temos o nosso amor por ela em comum, e isso é ter mais em comum do que o que tem a maioria dos casais. E se outrora a Susie foi os olhos do Freud, eu agora vejo pelo meu pai, pelo que a Susie e eu temos também em comum a visão do Freud.

- O teu casamento foi feito no céu, pá - disse-me uma vez o Júnior Jones.

Na manhã a seguir a ter feito pela primeira vez amor com o urso Susie fui encontrar-me com o Pai no salão de baile já um pouco atrasado para a nossa sessão de levantamento de pesos. Ele já estava a exercitar-se com afinco quando eu cheguei de rompante.

- Quatrocentas e sessenta e quatro - disse-lhe eu.

Esta era a maneira como nos costumávamos cumprimentar. Recordando aquele velho estupor do Schnitzler, o Pai e eu achávamos que este era um modo engraçado de dois homens que viviam sem mulher se saudarem um ao outro.

- Quatrocentas e sessenta e quatro o tanas! - grunhiu o Pai. - Quatrocentas e sessenta e quatro uma ova! Tive de te ouvir quase toda a noite. Santo Deus, posso ser cego, mas oiço muito bem. Pelas minhas contas, ainda te faltam umas quatrocentas e cinquenta e oito. Já não tens estofo para quatrocentas e sessenta e quatro. Isso era dantes. Quem diabo é ela? Nunca imaginei um animal daqueles!

Mas quando eu lhe disse que tinha estado com a Susie, e que esperava sinceramente que ela ficasse a viver connosco, o Pai ficou contentíssimo.

- É isso que nos tem faltado! - exclamou ele. - Isso vem mesmo a calhar! Quer dizer, não se pode exigir melhor hotel do que isto. Acho que te estás a portar brilhantemente na hotelaria. Mas precisamos de um urso. Toda a gente precisa de um urso! E agora que o arranjaste, estás livre, John. Agora escreveste o final feliz.

Ainda não, pensei eu. Mas, bem vistas as coisas - perante a tristeza e o sofrimento, perante a fatalidade, perante o amor -, eu sabia que tudo podia ser muito pior.

Mas então o que é que ainda falta? Apenas um filho, acho eu. Falta um filho. Eu queria um filho, e continuo a querer. Depois do Egg e depois da Lilly, tudo o que preciso, neste momento, é de filhos. É claro que ainda posso convencer a Susie, mas serão a Franny e o Júnior Jones a contemplar-me com a minha primeira criança. Nem a própria Susie receia esta criança.

- Esta criança vai ser uma beleza - diz a Susie. - Com a Franny e o Júnior a fazê-la, como é que pode falhar?

- E nós, como é que podemos falhar? - pergunto-lhe eu. - Logo que a tiveres, acredita que a acharás linda.

- Mas pensa só na cor - diz a Susie. - Com a Franny e o Júnior a fazê-la, não vai sair uma cor absolutamente deslumbrante?

Mas eu sei que, conforme me explicou o Júnior Jones, o filho dele e da Franny pode ter uma cor qualquer,

- Dou-te toda uma gama entre o café e o leite - gosta o Júnior de dizer - Um bebé de qualquer cor será sempre um bebé com uma cor deslumbrante, Susie - digo-lhe eu. - Sabes isso muito bem.

Mas a Susie ainda precisa de ser mais convencida.

Acho que quando a Susie vir o bebé do Júnior e da Franny também quererá ter um. Pelo menos, espero que isso aconteça - pois já tenho quase quarenta anos e a Susie já dobrou esse cabo, e para termos uma criança não podemos esperar muito mais. Penso que o bebé da Franny terá efeitos mágicos. Até o Pai concorda - até o Frank.

E não é mesmo da Franny levar a sua generosidade ao ponto de se oferecer para ter uma criança para mim? Com efeito, desde aquele dia em Viena em que ela nos prometeu que ia tomar conta de nós, que ia ser a nossa mãe, desde esse dia em diante a Franny cumpriu o prometido - a heroína que havia dentro dela nunca parou de lutar, a heroína que havia dentro da Franny podia levantar em peso um salão de baile cheio de halteres.

Foi no último Inverno, depois dos grandes nevões, que a Franny me telefonou para me dizer que ia ter uma criança - só para mim. Nessa altura, a Franny tinha quarenta anos; disse que ter um filho era fechar a porta de um quarto ao qual nunca regressaria. Era tão cedo quando o telefone tocou que a Susie e eu pensámos que era alguma chamada de urgência do Centro de Crises de Violação, na "linha quente" do centro, e a Susie saltou da cama já à espera de ter outra crise entre mãos. Mas era o telefone normal que estava a tocar, e era a Franny quem estava do outro lado - lá longe, na costa Oeste. Ela e o Júnior ainda estavam a pé; ainda não tinham ido para a cama, disseram eles - salientaram que, na Califórnia, ainda era noite. Pareciam ligeiramente embriagados e meio patetas, e a Susie zangou-se com eles. Disse-lhes que só uma vítima de violação nos teria telefonado a uma hora daquelas, e passou-me o telefone.

Tive de fazer à Franny o relatório habitual sobre as actividades do centro. A Franny tinha contribuído com bastante dinheiro para o centro, e o Júnior Jones tinha ajudado a arranjar um bom apoio jurídico na nossa área do Maine. Só no ano passado, o Centro de Crises de Violação da Susie deu apoio médico, psicológico e jurídico a noventa e uma vítimas de violação - ou de abusos do mesmo tipo.

- Nada mau para o Maine - como diz a Franny.

- Em Nova Iorque e Los Angeles, pá - diz o Júnior Jones -, há cerca de noventa e uma mil vítimas por ano. De tudo - acrescentou.

Não foi difícil convencer a Susie de que todos aqueles quartos no Hotel New Hampshire podiam servir para alguma coisa. Temos mais do que é preciso para um centro desse tipo, e a Susie formou algumas mulheres vindas da universidade de Brunswick, pelo que temos sempre aqui uma mulher para atender a "linha quente". A Susie tinha-me recomendado para nunca atender esse telefone.

- A última coisa que uma vítima de violação quer ouvir, quando telefona a pedir auxílio - disse-me ela -, é uma maldita voz de homem.

É claro que, com o Pai, as coisas eram mais complicadas, pois ele não podia ver que telefone é que estava a tocar. Foi assim que ele, quando apanhado desprevenido pela campainha de um telefone, criou o hábito de gritar "Telefone!", nem que esteja mesmo ao pé do aparelho.

Surpreendentemente, embora o Pai continue a pensar que o Hotel New Hampshire é um hotel, não é nada mau conselheiro em casos de violação. Com efeito, ele sabe que as crises provocadas pela violação são o modo de vida da Susie - mas o que ele não sabe é que isso é o nosso único modo de vida, e por vezes enceta uma conversa com uma vítima de violação que está a passar alguns dias connosco, no Hotel New Hampshire, para se restabelecer, e confunde-a com um dos "hóspedes".

Pode acontecer que a vítima esteja a descansar lá em baixo, num dos cais, e o meu pai vá dar um passeio a fazer tap-tap-tap com o seu taco Louisville até ao embarcadouro; o Quatro abana o rabo para lhe indicar que está ali alguém, e o Pai começa logo a tagarelar.

- Viva! Quem está aqui? - perguntará ele. E a vítima de violação responderá talvez:

- Sou eu, a Sylvia.

- Ah, sim, a Sylvia! - dirá então o Pai, como se a tivesse conhecido toda a vida.- Então que tal acha o hotel, Sylvia?

E a pobre Sylvia pensará que esta é a maneira indirecta e particularmente bem educada de ele se referir ao centro - "o hotel" - e entrará no jogo.

- Oh, tem sido muito importante para mim - dirá então ela. - Quer dizer, eu precisava de falar com alguém, mas não queria sentir que tinha de falar sobre fosse o que fosse antes de estar pronta, e o que é bom aqui é que ninguém nos pressiona, ninguém nos diz o que devemos sentir ou fazer, mas somos ajudadas a sentir isso mais facilmente do que o conseguiríamos sozinhas. Não sei se compreende o que quero dizer - acrescentará depois.

E o Pai dirá:

- É claro que percebo o que quer dizer, minha querida. Estamos neste ramo há anos, e é justamente isso o que faz um bom hotel: proporciona às pessoas o espaço e a atmosfera para aquilo de que elas precisam. Um bom hotel transforma o espaço e o ambiente em algo de generoso, de acolhedor. Um bom hotel faz surgir os gestos necessários, como acarinhar uma pessoa, ou dizer-lhe uma palavra amável, justamente quando (e só quando) elas precisam disso. Um bom hotel está sempre à disposição quando precisamos dele - dirá o meu pai, com o taco de basebol a bater o ritmo da letra e da melodia -, mas nunca nos dá a sensação de nos controlar.

- Pois, acho que é isso - dirá a Sylvia, ou a Betsy, ou a Patrícia, ou a Columbine, ou a Sally, ou a Alice, ou a Constance, ou a Hope.

- Vai acabar por me fazer deitar tudo cá para fora, mas não pela força - dirão elas.

- Não, nunca pela força, minha querida - concordará o Pai. - Um bom hotel não força nada. Prefiro até chamar-lhe apenas um espaço de simpatia - continuará ele, não confessando nunca a sua dívida para com o Schraubenschlussel e a sua bomba de simpatia.

- E - dirá a Sylvia -, toda a gente aqui é simpática.

- É verdade. É disso que eu gosto num bom hotel! - corroborará o Pai, entusiasmado. - Toda a gente é simpática. Num grande hotel - dirá ele para a Sylvia, ou para quem quer que o esteja a ouvir -, as pessoas têm o direito de esperarem simpatia. Vêm até nós, minha querida (e por favor desculpe-me de eu lhe estar a dizer isto), como alguém que foi mutilado, e nós somos os seus médicos e as suas enfermeiras.

- Sim, é verdade - dirá a Sylvia.

- Se chegas a um grande hotel partida aos bocados - continuará o meu pai sem parar -, quando se for embora estará de novo inteira. Limitamo-nos a restabelecê-la, mas fazemo-lo de uma maneira quase mística (é este o espaço de simpatia de que falo), pois não se pode forçar ninguém a restabelecer-se; as pessoas têm de traçar o seu próprio caminho. Nós só proporcionamos o espaço - prosseguirá o Pai, com o taco de basebol a abençoar a vítima de violação como uma varinha mágica. - O espaço e a luz - concluirá o meu pai, como se fosse um santo a abençoar outro santo.

É assim mesmo que se deve tratar uma vítima de violação, diz a Susie; elas são sagradas, e tratamos delas como um grande hotel trata os seus hóspedes. Todos os hóspedes de um grande hotel são hóspedes de honra, e todas as vítimas de violação no Hotel New Hampshire são hóspedes de honra - e sagrados.

- De facto é um bom nome para um Centro de Crises de Violação - concorda a Susie. - Hotel New Hampshire: isso até lhe dá uma ponta de classe.

E, com o apoio das autoridades do condado e de uma maravilhosa organização de médicas chamada Kennebec Women's Medical Associates, dirigimos um Centro de Crises de Violação a sério no hotel a fingir que é o nosso. A Susie diz-me às vezes que o Pai é o melhor conselheiro que ela encontrou.

- Quando alguma está mesmo nas lonas - confia-me a Susie -, mando-a até lá abaixo ao cais falar com o cego e o seu cão número quatro. Seja o que for que ele lhe diga, deve dar resultado. Pelo menos até agora nenhuma se atirou à água.

- Mantenha-se afastada das janelas abertas, minha querida - dirá o meu pai, sistematicamente. - Isso é o mais importante, minha querida - acrescenta ele.

Sem dúvida que é a Lilly quem confere aquela autoridade ao conselho do meu pai. Ele sempre fora bom a aconselhar os filhos - mesmo quando não fazia a mínima ideia de qual era o problema.

- Talvez seja precisamente por ele não fazer a mínima ideia - diz o Frank. - Por exemplo, ele ainda não sabe que eu sou homossexual e está constantemente a dar-me bons conselhos.

Que faro!

- Está bem, está bem - disse-me a Franny ao telefone, no Inverno passado, logo após os grandes nevões. - Não te telefonei para ouvir os pormenores de todas as violações no Maine. Desta vez não, miúdo. Ainda queres ter uma criança?

- Claro que quero - respondi eu. - Todos os dias tento convencer a Susie.

- Bem, gostavas de um bebé meu?

- Mas tu não queres ter filhos, Franny - lembrei-lhe eu. - O que é que queres dizer com isso?

- Quero dizer que o Júnior e eu estamos a ficar um bocado sentimentais. E em vez de fazer como se faz agora, pensámos que conhecíamos a mãe e o pai perfeitos para uma criança.

- Especialmente nos dias que correm, pá - disse o Júnior, na sua extensão do telefone. - O Maine ainda pode ser o último refúgio.

- Todos os miúdos deviam ser criados num hotel meio maluco, não te parece? - perguntou a Franny.

- O que eu acho, pá - interveio o Júnior Jones -, é que todos os miúdos deviam ter pelo menos um dos pais sem ter nada que fazer. Não te quero insultar, pá, mas és o tipo perfeito de ama. Estás a perceber o que eu quero dizer?

- Ele quer dizer que tomas conta de toda a gente - precisou a Franny, docemente. - Ele acha que é mais ou menos esse o teu papel. És um pai perfeito.

- Ou uma mãe, pá - acrescentou o Júnior.

- E quando a Susie tiver um bebé junto dela, talvez fique inspirada - disse a Franny.

- Talvez ela arranje coragem - disse o Júnior Jones.

E a Franny deu um uivo ao telefone. Era evidente que eles os dois andavam a cozinhar aquele telefonema já há bastante tempo.

- Então? - gritou a Franny. - Perdeste a língua? Ainda aí estás? Está lá? Está lá?

- Então, pá! - exclamou o Júnior Jones. - Caíste para o lado ou quê?

- Foi algum urso que te engoliu os tomates? - perguntou-me a Franny. - Estou a perguntar-te se queres o meu filho?!

- Isto não é brincadeira nenhuma, pá - disse o Júnior Jones.

- Sim ou não, miúdo? - insistiu a Franny. - Eu amo-te, percebes? Não teria uma criança para uma pessoa qualquer, estás a perceber, miúdo?

Mas eu não conseguia falar, de tão feliz que me sentia.

- Estou a oferecer-te nove malditos meses da minha vida! Estou a oferecer-te nove meses do meu lindo corpo, miúdo! - disse a Franny, para me espicaçar. - É pegar ou largar!

- Eh, pá! - gritou o Júnior. - A tua irmã, cujo corpo é desejado por milhões de pessoas, está a oferecer-se para alterar a sua forma por ti. Está disposta a ficar como uma garrafa de Coca-Cola só para te dar um filho, pá. Não sei muito bem como é que me vou haver com isso - acrescentou ele -, mas nós os dois gostamos de ti, percebes? O que é que dizes? É pegar ou largar!

- Amo-te! - acrescentou a Franny, furiosamente. - Estou a tentar dar-te aquilo de que precisas, John.

Mas a Susie tirou-me o telefone das mãos.

- Mas o que é isto? - disse ela para a Franny e para o Júnior. - Vocês acordam-nos com certeza por causa de outro maldito caso de violação e agora põem-no todo vermelho e incapaz de falar! Mas que raio de merda vem a ser esta, afinal?

- Se o Júnior e eu tivermos uma criança - perguntou a Franny à Susie -, tu e o John tomam conta dela?

- Não tenhas a mais pequena dúvida, meu amor - disse a minha boa Susie.

E foi assim que a questão ficou decidida. Ainda estamos à espera. Com a Franny, é natural que demore mais tempo do que com outra pessoa qualquer.

- É mas é por minha causa, pá - diz o Júnior Jones. - O bebé vai ser tão grande que precisa de ficar mais tempo no forno do que os outros.

E deve ter razão, pois neste momento a Franny já tem o meu filho na barriga há quase dez meses.

- Ela está tão grande que até podia jogar nos Browns - lamenta-se o Júnior Jones.

Todas as noites lhe telefono para ele me pôr ao corrente da evolução do estado da Franny.

- Santo Deus - diz-me a Franny. - Passo o tempo todo na cama, à espera de explodir. Estou tão aborrecida. As coisas que eu sofro por ti, meu amor.

E compartilhámos entre nós uma gargalhada.

A Susie passa o tempo a cantar o Any Day Now(*), e o Pai levanta pesos cada vez maiores; nestes últimos dias, o Pai tem andado a levantar pesos num autêntico frenesim. Está convencido de que a criança nascerá halterofilista, e diz que tem de estar em forma para se encontrar à altura da situação. E as funcionárias do centro têm sido muito pacientes comigo - com a maneira como eu me precipito para o telefone quando este toca (para qualquer deles).

- É a linha quente - dizem-me elas. - Acalme-se.

- Deve ser só outro caso de violação, amor - sossega-me a Susie. - Não é o teu filho. Acalma-te.

Não é que eu esteja ansioso por saber se vai ser um rapaz ou uma rapariga.

 

*. Any day now - a todo o momento. (N. da T.)

 

Por uma vez estou de acordo com o Frank. Não interessa. É claro que, hoje em dia, com todos os testes que se fazem como medida de precaução - sobretudo quando se trata de uma mulher com a idade da Franny, eles já sabem o sexo da criança; pelo menos alguém sabe. Mas não a Franny, que não quis saber. Quem é que vai querer saber uma coisa dessas antecipadamente? Quem não sabe que metade do prazer reside na surpresa?

- Seja o que for, já vem mas é aborrecido - diz o Frank.

- Aborrecido, Frank? - exclamou a Franny. - Como te atreves a dizer que o meu filho vai nascer aborrecido?

Mas o Frank estava apenas a expressar uma opinião típica em Nova Iorque sobre as crianças do Maine.

- Se a criança for criada no Maine - insiste o Frank - vai ter mesmo que se aborrecer!

Mas eu chamei a atenção do Frank para o facto de a vida nunca ser aborrecida no Hotel New Hampshire. Não o fora no alegre e despreocupado primeiro Hotel New Hampshire, nem na escuridão do sonho que fora o segundo Hotel New Hampshire, nem no nosso terceiro Hotel New Hampshire - no grande hotel que finalmente tínhamos. Aqui ninguém se aborrece. E o Frank acabou por concordar; no fim de contas, ele é um hóspede assíduo e sempre bem recebido do hotel. Assume o controle da biblioteca do segundo andar, da mesma maneira que o Júnior Jones domina os halteres no salão de baile quando é ele quem está de visita e que a beleza da Franny enche de encanto todas as divisões quando ela está cá - o bom ar do Maine e o mar frio do Maine: a Franny dá um encanto especial a tudo. Espero veementemente que o filho dela venha a ter uma influência igualmente boa.

Para a confortar, tentei ler à Franny pelo telefone um poema do Donald Justice, um poema chamado A Uma Criança de Dez Meses:

Retardatário, ninguém Se lembrará de te criticar Por hesitares assim.

Quem, ao levantar a mão para bater A uma porta tão estranha como esta, Não recuaria?

- Pára lá com isso - interrompeu a Franny. - Acaba com essa merda do Donald Justice, por favor. Já ouvi poemas suficientes do Donald Justice para ficar grávida com eles, ou pelo menos para me darem volta ao estômago.

Mas o Donald Justice tem razão, como sempre. Quem não hesitaria em entrar neste mundo? Quem não adiaria este conto de fadas o mais possível? Como vêem, o filho da Franny já revela um discernimento notável, uma sensibilidade rara.

E ontem nevou; no Maine aprendemos a aceitar o tempo como uma coisa pessoal. A Susie estava a investigar uma alegada violação de uma criada em Bath, e eu estava preocupado com a sua viagem de regresso, a ter de guiar no meio da tempestade, mas ela chegou sã e salva antes de escurecer, e ambos dissemos como esta tempestade nos recordara o grande nevão do Inverno passado, naquele dia em que a Franny tinha telefonado para nos comunicar o presente que tinha para nos oferecer.

O Pai costuma brincar na neve como uma criança.

- Para um cego, a neve é uma autêntica maravilha - disse ele ontem, entrando na cozinha todo coberto de branco.

Tinha estado lá fora, em pleno nevão, a rebolar-se na neve com o Quatro - ficaram ambos completamente cobertos de neve. A borrasca era violenta; por volta das três e meia da tarde tivemos de acender as luzes. Aticei o fogo em dois dos fogões de lenha. Um pássaro, cego pela neve, tinha voado de encontro ao vidro de uma janela do salão de baile, estilhaçando-o e partindo o pescoço. O Quatro encontrou-o no meio dos halteres e andou com ele pelo hotel até a Susie conseguir tirá-lo da boca do cão. A neve das botas do Pai começou a derreter, tornando o chão da cozinha escorregadio. Foi por isso que ele escorregou numa poça e me deu com o taco Louisville nas costelas. Ele brande sempre o taco Louisville quando perde o equilíbrio. Tivemos uma pequena altercação por causa daquilo. Tal como uma criança, ele nunca tirava a neve das botas antes de entrar em casa.

- Não posso ver se tenho neve! - queixa-se ele, infantilmente. - Como é que posso tirar a neve das botas se não a vejo?

- Calem-se os dois! - diz a Susie. - Quando houver uma criança cá em casa, vocês os dois têm de parar de gritar.

Fiz massa italiana com uma máquina óptima que o Frank trouxe de Nova Iorque; ela alisa a massa em folhas e corta-a na forma que se quiser. É importante ter brinquedos assim quando se vive no Maine. A Susie fez um molho de mexilhão para a massa. O Pai picou-lhe a cebola; aparentemente, a cebola não lhe incomoda os olhos. Quando ouvimos o Quatro ladrar, pensámos que tinha encontrado outro pobre pássaro. Vimos uma carrinha Volkswagen tentar abrir caminho através da tempestade, na estrada de acesso ao hotel; o carro resvalava e derrapava constantemente. Quem quer que estivesse ao volante, ou se encontrava muito excitado ("outra maldita violação" - disse a Susie instintivamente), ou então era alguém de fora do Estado. Nenhum condutor do Maine teria tanta dificuldade em guiar na neve, pensei eu, mas aquela dificilmente se podia considerar a época turística, no Hotel New Hampshire. A carrinha não conseguiu chegar ao parque de estacionamento, mas aproximou-se o suficiente para eu conseguir ver a placa do Arizona.

- Não admira que não saibam guiar - disse eu, o que era um ponto de vista típico do Maine relativamente às pessoas de fora.

- Pois - disse a Susie -, sempre te queria ver perdido no deserto do Arizona. Devias parecer um perfeito idiota.

- O que é um deserto? - perguntou o Pai, e a Susie riu.

O condutor da carrinha do Arizona caminhava sobre a neve na nossa direcção; nem sequer sabia andar na neve - estava sempre a cair.

- Tiveram uma violação lá longe no Arizona, Susie - disse-lhe eu -, e tu és tão famosa que só querem falar contigo.

- Então eles não sabem que somos um hotel de veraneio? - perguntou o Pai, rabujento. - Vou dizer que estamos encerrados por esta temporada.

O homem do Arizona ficou desolado ao ouvir isto. Explicou que pensava estar a caminho das montanhas, para ir fazer esqui - coisa que nem ele nem a família jamais haviam experimentado -, mas indicaram-lhe mal o caminho ou então perdera-se na tempestade, e ali estava ele à beira-mar em vez de estar nas montanhas.

- Não estamos na época balnear - sublinhou o Pai.

O homem podia ver isso perfeitamente. Parecia simpático, mas extremamente fatigado.

- Nós temos quartos suficientes - segredou-me a Susie.

Eu não queria começar a aceitar hóspedes; com efeito, do que eu mais gostava neste Hotel New Hampshire era que os únicos hóspedes que havia estavam na imaginação do Pai. Mas quando vi todos aqueles miúdos saltarem do Volkswagen e começarem a brincar na neve mudei de opinião. A mãe também tinha um ar muito cansado - simpática mas cansada.

- O que é aquilo? - gritou um dos miúdos.

- É o mar, acho eu - respondeu a mãe.

- O mar! - exclamaram as crianças.

- Também há uma praia? - gritou um dos miúdos.

- Acho que sim, debaixo desta neve toda - disse a mãe.

E assim convidámos o homem mais a mulher e as quatro crianças a hospedarem-se no Hotel New Hampshire, embora estivéssemos "encerrados para a época". Era fácil fazer mais massa, era fácil aumentar um molho de mexilhão.

O Pai ficou um pouco embaraçado a conduzir os hóspedes aos quartos. Era a primeira vez que tinha de fazer isto neste Hotel New Hampshire e apercebeu-se - ao andar à procura de roupa de cama na biblioteca - de que não sabia onde estavam as coisas. É claro que tive de o ajudar, e fiz o papel de quem passava o tempo a conduzir hóspedes aos quartos.

- Têm de nos desculpar se parecemos um pouco amadores - disse eu ao pai da simpática família. - Quando estamos fechados perdemos um pouco a prática.

- É muito gentil da vossa parte receberem-nos - disse a jovem mãe. - Os miúdos estavam desapontados por não verem ninguém a fazer esqui, mas como também nunca tinham visto o mar, para eles é uma festa. E amanhã logo podem ir ao esqui - acrescentou ela. Parecia-me uma boa mãe.

- Também estou à espera de um filho - disse-lhe eu. - De um momento para o outro.

E só mais tarde a Susie me chamou a atenção para o facto de que o meu comentário deve ter parecido estranho, dado que visivelmente ela não estava grávida.

- O que é que eles hão-de ter pensado ao ouvir-te dizer isso, meu palerma? - disse a Susie.

Mas tudo correu bem. Os miúdos tinham um apetite devorador, e depois do jantar ensinei-os a fazer empada de maçã. Enquanto esta estava no forno, levei-os a dar um passeio invernoso e assustador pela praia e pelos cais cobertos de neve; mostrei-lhes as ondas gigantes a espumarem por entre o rendilhado de gelo que orlava a costa, mostrei-lhes como o mar, durante uma tempestade, é uma enorme montanha de água cinzenta num vaivém constante. O meu pai, é claro, contou ao jovem casal do Arizona tudo sobre o fabuloso espaço de simpatia que um verdadeiro grande hotel proporciona; e descreveu o nosso hotel àquela gente simpática do Arizona, contou-me depois a Susie, como se estivesse a descrever o Sacher.

- Mas, para ele, é como se nós fôssemos o Sacher - disse nessa noite o urso meigo e quente nos meus braços, enquanto a tempestade rugia e a neve não parava de cair.

- É verdade, meu amor - disse eu.

Era maravilhoso ficar na cama de manhã a ouvir as vozes das crianças. Tinham descoberto os halteres no salão de baile, e o Pai estava a ensiná-los. O iowa Bob teria adorado este Hotel New Hampshire, pensei eu.

Foi então que acordei a Susie e pedi-lhe para vestir o fato de urso.

- Urrr! - queixou-se ela. - Já estou velha de mais para voltar a ser um urso.

Ela tem sempre um pouco de urso, de manhã cedo - a minha querida Susie.

- Vá lá, Susie - insisti eu. - Faz lá isso pelos miúdos. Pensa no que isso significará para eles.

- O quê? - exclamou a Susie. - Queres que vá assustar as crianças?

- Não, não, Susie - disse eu. - Assustá-las, não.

Eu só queria que ela vestisse o fato de urso e fosse lá para fora, para a neve, na vizinhança do hotel. E eu então exclamaria de repente: "Olhem! Pegadas de urso na neve! E são recentes!"

E todas as pessoas do Arizona, grandes e pequenas, viriam cá para fora a pensar em que espécie de região selvagem tinham ido cair, como se fosse um sonho. E depois eu gritaria: "Olhem! Lá vai o urso! Ali, junto à pilha de lenha!" E a Susie, então, deter-se-ia - talvez eu a pudesse mesmo convencer a dar um ou dois valentes "Urrr!" -, para logo desaparecer atrás da lenha, a andar à urso, esgueirando-se para casa por uma das portas das traseiras; depois tiraria o disfarce e entraria na cozinha, dizendo: "Que história é essa do urso? Hoje em dia já é raro ver-se um urso por aqui."

- Queres que eu vá lá para fora, para o meio da neve? - perguntou-me a Susie.

- É só pelos miúdos, Susie. Que festa é que isso não vai ser para eles! Primeiro vêem o mar, e depois um urso. Toda a gente devia ver um urso, Susie.

E ela, é claro, concordou. Ficou um bocado resmungona com a coisa, mas isso só contribuía para melhorar o seu número; a Susie sempre foi óptima a fazer de urso, e agora está a começar a convencer-se de que também é um adorável ser humano.

E assim proporcionámos aos visitantes do Arizona a visão de um urso para levarem com eles. O Pai acenou-lhes um adeus do salão de baile, após o que se virou para mim e disse:

- Com que então um urso, hem? A Susie ainda se constipa, ou apanha alguma pneumonia. E ninguém pode estar doente, nem sequer constipado, quando a criança chegar. Eu percebo mais de crianças do que tu. Um urso... - repetiu ele, a abanar a cabeça.

Mas eu sabia que a família do Arizona tinha ficado convencida; o urso Susie é uma obra-prima de convicção.

O urso que tinha parado junto à pilha de lenha, com o seu hálito enevoado na manhã clara e fria, as suas patas a deixarem marcas de garras na neve fresca e intacta - como se aquele fosse o primeiro urso da Terra, e esta a primeira neve do planeta -, tudo fora convincente. Como a Lilly sabia, tudo é um conto de fadas.

E assim vamos sonhando. E assim inventamos as nossas vidas. Oferecemo-nos uma mãe santificada, fazemos do nosso pai um herói; e o nosso irmão mais velho, e a nossa irmã mais velha - transformam-se também nos nossos heróis. Inventamos aquilo que amamos e aquilo que tememos. Há sempre um irmão corajoso que perdemos - e também uma irmãzinha perdida. E assim vamos sonhando, incessantemente: o melhor hotel, a família perfeita, a vida de veraneio. E os nossos sonhos escapam-se-nos ainda quase tão vívidos e reais como os conseguimos imaginar.

No Hotel New Hampshire, estamos aparafusados para toda a vida - mas que importância tem um pouco de ar nas canalizações, ou mesmo um monte de merda no cabelo, se as recordações forem boas?

Espero que isto seja um final apropriado para ti, Mãe - e para ti, Egg. É um final que tem em conta o estilo do teu final preferido, Lilly - aquele que tu nunca cresceste o suficiente para escrever. Talvez não hajam halteres suficientes neste final para satisfazer o Iowa Bob, nem suficiente fatalismo para o Frank. Talvez este final não tenha o suficiente sobre a natureza dos sonhos quer para o Pai quer para o Freud. Nem tenacidade suficiente para a Franny. E acho que também não é suficientemente feio para a Susie.

Talvez não seja suficientemente grande para o Júnior Jones, e sei que não é nem de longe suficientemente violento para agradar a alguns dos nossos amigos e inimigos do passado; pode não merecer mais do que um gemido à Screaming Annie - onde quer que ela esteja agora a gritar.

Mas é isto que fazemos: vamos sonhando, e os nossos sonhos escapam-se-nos quase tão vívidos e reais como os conseguimos imaginar. É isso que acontece, quer queiramos quer não. E porque é isso que acontece, é disso mesmo que precisamos: precisamos de um urso bom e esperto. O espírito de algumas pessoas é suficientemente bom para que elas possam viver por si - o seu espírito pode ser um urso bom e esperto. Acho que é isso que se passa com o Frank: ele tem por espírito um urso bom e esperto. Não é o rei dos ratos que eu inicialmente pensava. E a Franny tem um urso bom e esperto chamado Júnior Jones. Ela também é exímia em manter a dor à distância. E o meu pai tem as suas ilusões, que são suficientemente poderosas. As ilusões do meu pai são o seu urso bom e esperto. E finalmente resto eu, é claro, com o urso Susie - com o seu Centro de Crises de Violação e o meu hotel de conto de fadas -, de maneira que também eu estou bem. Tem de se estar bem quando se está à espera de um bebé.

O Coach Bob sempre soube isto: é preciso ficarmos obcecados e manter-mo-nos obcecados. Temos de nos manter afastados das janelas abertas.

 

                                                                                John Irving  

 

                      

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