Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O ILUMINADO
Parte II
No “playground”
Jack veio até a varanda, fechando o zíper até o pescoço, e estranhou a luminosidade do ar. Na mão esquerda, tinha um aparador de arbusto. Com a mão direita, arrancou do bolso um lenço, passou-o nos lábios e enfiou-o no bolso novamente. Neve, disseram no rádio. Era difícil acreditar, mesmo vendo as nuvens se reunindo longe, no horizonte.
Caminhou para a topiaria, passando o aparador de uma mão para a outra. Não levaria muito tempo, pensou; bastava uma aparadela. As noites frias certamente impediam seu crescimento. As orelhas do coelho pareciam um pouco felpudas, e duas das pernas do cachorro estavam brotando verdes, mas os leões e o búfalo estavam bem. Um pequeno corte bastava, e depois era só a neve chegar.
O caminho pavimentado terminou tão abruptamente quanto um trampolim. Desviou-se dele, passando pela piscina vazia, para o caminho de cascalho, cercado pelas esculturas em arbustos, dirigindo-se ao playground. Passando pelo coelho, apertou o botão do cortador, O ruído brotou.
- Oi, seu coelho - disse Jack. - Como está passando hoje? Vamos tirar um pouco aqui de cima, e outro bocado das orelhas? Muito bem. Diga lá, conhece aquela do caixeiro viajante e da velhinha com o cachorrinho?
Sua voz soava artificial e idiota em seus ouvidos e ele se interrompeu. Ocorreu-lhe que não dava muita importância a esses animais. Sempre lhe parecera um pouco de maldade cortar e transformar um velho arbusto em algo que ele não era. Em uma das estradas de Vermont havia um quadro feito de arbusto no alto de uma colina contemplando a estrada, anunciando um determinado sorvete. Fazer a natureza ocupar-se de futilidades era simplesmente errado. Era grotesco.
(não foi empregado para filosofar, Torrance.)
Ah, isso era verdade. Como era verdade. Aparava as orelhas do coelho, juntando os galhos na grama. O aparador trabalhava com um zumbido surdo e metálico, próprio dos aparelhos a pilha. O soi brilhava, mas sem calor, e agora não era tão difícil acreditar que a neve estivesse chegando.
Trabalhando rapidamente, sabendo que parar para pensar, quando se está trabalhando neste tipo de tarefa, geralmente significa cometer um erro, Jack aparou o focinho do coelho (assim tão próximo não se parecia em nada com um focinho, mas sabia que, à distância de seis metros ou mais, o jogo de luz e sombra sugeria um focinho; isso, e a imaginação do observador) e, em seguida, a barriga.
Feito isso, desligou o aparador, caminhou para o playground, e voltou-se abruptamente para tosar todo o coelho. Sim, estava bem. Em seguida, apararia o cachorro.
- Mas se fosse meu hotel - falou - eu deceparia a coisa toda. - Faria mesmo. Simplesmente os deceparia e ref aria a grama onde estavam e colocaria em seu lugar meia dúzia de mesas de metal com coloridos guarda-sóis. As pessoas poderiam tomar coquetéis na grama do Overlook sob o sol de verão.
Gim, tequila e leite-de-onça, todos esses drinques deliciosos. Um rum-tônica, talvez. - Jack tirou o lenço do bolso traseiro, e devagar, esfregou-o nos lábios. - Vamos, vamos - disse, calmo. Isso não era coisa para se estar pensando.
Ia recomeçar, quando um impulso fez com que mudasse de idéia, e ele foi para o playground. Era engraçado como nunca se entendiam as crianças, pensou. Wendy e ele pensavam que Danny fosse adorar o playground; tinha tudo que um garoto quisesse. Mas Jack não achava que o menino tivesse estado por aqui mais de seis vezes, se muito. Pensava que, se houvesse uma outra criança com quem brincar, seria diferente.
O portão rangeu enquanto entrava, e o cascalho estalava sob seus pés. Foi primeiro à casa de brinquedo, a miniatura perfeita do Overlook. Batia-lhe na altura da coxa, exatamente da altura de Danny. Jack acocorou-se e olhou pelas janelas do terceiro andar.
- O gigante veio comer vocês todos em suas camas - falou com uma voz cavernosa. - Adeus, segurança. - Mas isso também não era engraçado. Podia-se abrir a casa simplesmente levantando-a. . . abria-se através de uma dobradiça embutida. O interior era uma decepção. As paredes eram pintadas, mas o lugar estava quase todo vazio. Mas tinha que ser, disse consigo mesmo, do contrário como é que as crianças conseguiriam entrar? A mobília de brinquedo que combinava com o lugar havia desaparecido, provavelmente estaria encaixotada no depósito. Fechou-a e ouviu o pequeno dique do trinco.
Caminhou para o escorregador, colocou o aparador no chão, olhou para a’ estrada para se certificar de que Wendy e Danny não tinham voltado, subiu e sentou-se. Era um escorregador grande para crianças, mas desconfortavelmente apertado para sua bunda grande de adulto. Quanto tempo fazia que não se sentava num escorregador? Vinte anos? Não era possível que fizesse tanto tempo, não parecia tanto tempo, mas tinha que ser isso ou mais. Lembrava-se de seu pai levando-o ao parque em Berlin, quando tinha a idade de Danny, e andara em todos os brinquedos: escorregador, balanços, gangorras, tudo. Ele e o velho comiam um cachorro-quente e amendoim, que compravam do homem da carrocinha. Sentavam-se num banco para comer, e uma nuvem escura de pombos pousava em volta de seus pés.
- Seus urubus desgraçados - dizia o pai. - Não lhes dê nada, Jacky. - Mas os dois acabavam dando comida aos pombos, e rindo do jeito como corriam atrás dos amendoins, da ganância com que corriam atrás dos amendoins. Jack não achava que o velho tivesse algum dia levado seus irmãos ao parque. Jack era o predileto e, mesmo assim, apanhava quando o velho ficava bêbado, o que acontecia freqüentemente. Mas Jack o amara até onde fora possível, mesmo quando o resto da família só o odiava e temia.
Escorregou, mas a descida não foi satisfatória, O escorregador, fora de uso, estava áspero e, na realidade, não se podia pegar velocidade. E sua bunda era simplesmente muito grande. Seus pés de adulto bateram na pequena depressão onde milhares de pés de crianças haviam pisado antes dele. Levantou-se, limpou a calça e olhou para o aparador. Mas, ao invés de apanhálo, foi para os balanços, que eram também uma decepção. As correntes tinham criado ferrugem, desde o encerramento da temporada, e rangiam como se sentissem dor. Jack comprometeu-se a lubrificá-las na primavera.
“É melhor parar por aqui”, advertiu a si mesmo. “Você não é mais uma criança. Não precisa deste lugar para constatar o fato.”
Mas prosseguiu para os túneis de cimento - eram muito pequenos para ele e desistiu - e em seguida foi para a cerca que delimitava os terrenos. Enroscou os dedos no arame e, através dele, o soi sombreava desenhos em seu rosto como um homem por trás das grades. Reconheceu a semelhança e sacudiu a cerca, fez cara de louco, e sussurrou:
- Deixe-me cair fora daqui! Deixe-me cair fora daqui! - Mas, pela terceira vez, não foi engraçado. Era hora de voltar ao trabalho.
Foi quando ouviu um ruído.
Voltou-se rapidamente, franzindo as sobrancelhas, envergonhado, imaginando se alguém o teria visto brincar ali como uma criancinha. Os olhos dirigiram-se para o escorregador, no ângulo oposto às gangorras e aos balanços, onde só o vento sentava. Para além do portão até a cerca baixa que dividia o playground do jardim da topiaria, os leões juntavam-se, protetores, em volta da alameda, o coelho curvava-se, como que para colher grama, o búfalo, pronto para investir, o cachorro, agachado. Adiante deles, o verde e o hotel. Dali, podia-se ver até a borda alta da quadra de roque no lado oeste do Overlook.
Tudo estava exatamente como antes. Então por que sentira calafrios, e por que se arrepiara?
Olhou de soslaio para o hotel mais uma vez, mas não hou v
resposta. Ele estava ali, suas janelas escuras, um fiozinho de fumaça saindo da chaminé, vindo da lareira do saguão.
(Cara, é melhor ir andando, ou eles vão voltar e pensar que você não fez nada, esse tempo todo.)
Claro, ir andando. Pois a neve estava chegando e ele tinha que cortar aqueles arbustos desgraçados. Fazia parte do acordo. Além do mais, não se atreveriam.
(Quem não se atreveria? O que não se atreveria? Atreveria a quê?)
Começou a caminhar de volta ao aparador ao pé do escorregador grande, e o ruído dos passos no cascalho parecia muito alto. A pele dos testículos arrepiou-se também, e as nádegas endureceram, ficando pesadas como pedra.
(Jesus, o que é isto?)
Parou ao lado do aparador, mas não fez o menor movimento para apanhá-lo. Sim, havia alguma coisa diferente. Na topiaria. E era tão simples, tão fácil de ver, que só ele não entendia. Vamos, ralhou consigo mesmo, apenas aparou o coelho filho da puta, e daí qual é o
(é isso aí)
Ficou asfixiado.
O coelho estava sobre as quatro patas, apanhando grama. O ventre contra o solo. Mas há menos de dez minutos estava apoiado nas patas traseiras, claro que estava, tinha aparado suas orelhas. . . e sua barriga.
Lançou os olhos para o cachorro. Quando chegara ao pátio ele estava sentado, como que pedindo um doce. Agora, ele estava agachado, a cabeça inclinada, a boca parecendo rosnar silenciosamente. E os leões.
(oh não, oh não, de jeito nenhum)
os leões estavam junto à alameda. Os dois à direita subitamente mudaram de posição, tinham-se juntado. A cauda do leão à esquerda agora estava quase encostada na alameda. Quando passara por eles e pelo portão, aquele leão estava à direita, e ele tinha certeza de que a cauda estava enrolada.
Não estavam mais guardando a alameda; bloqueavam-na.
Jack, de repente, colocou as mãos nos olhos, e depois tirou. O quadro não mudou. Um suspiro suave, muito calmo para ser um gemido, saiu dele. Na época em que bebia tinha medo de que alguma coisa assim acontecesse. Mas quando era um alcoólatra, chamava isso de delirium tremens. . . o velho Ray Milland em Farrapo humano, vendo insetos saindo das paredes.
Que nome se dava a isso, quando se estava sóbrio?
A pergunta tinha o propósito de ser retórica, mas sua mente respondeu
(chama-se loucura)
apesar disso.
Olhando fixamente para os animais, concluiu que alguma coisa havia mudado, enquanto ficou com as mãos nos olhos. O cachorro se aproximara. Não mais agachado, parecia estar em posição de corrida, coxas flexionadas, uma pata dianteira à frente, a outra para trás. A boca aberta, os galhos podados agudos e fortes. E agora ele imaginou que podia ver traços de dentes na folhagem também. Olhando para ele.
Por que têm que ser aparadas? pensou histérico. Estão per feitas.
Um outro som suave. Involuntariamente, deu um passo atrás ao olhar para os leões. Um dos dois à direita parecia ter-se movido um pouco adiante do outro. A cabeça estava baixa. Uma pata tinha coberto quase todo o caminho para a cerca baixa. Deus do céu, o que mais?
(em seguida, ele salta e o devora como em alguma história da carochinha)
Era como aquele jogo que jogavam quando crianças, a luz vermelha. Uma pessoa ficava na berlinda, virava de costas e contava até dez, os outros jogadores avançavam. Quando chegava a dez, dava uma volta rápida e se apanhasse alguém se mexendo, estava fora do jogo. Os outros ficavam imóveis como estátuas até que o chefe virasse de costas, e contasse novamente. Chegavam cada vez mais perto, e finalmente, entre cinco e dez, sentia-se uma mão nas costas.
O cascalho chocalhava na alameda.
Sacudiu a cabeça para ver o cachorro, e o animal estava na metade do caminho para a alameda, agora exatamente atrás dos leões, a boca aberta, bocejando. Antes, era apenas um arbusto aparado no formato de um cachorro, algo que perdia todo o contorno quando alguém se aproximava. Mas agora Jack podia ver que fora aparado para parecer um pastor-alemão, e estes podiam ser ferozes. Podiam ser treinados para matar.
Um ruído baixo.
O leão à esquerda tinha agora avançado para a cerca; o focinho tocava as bordas. Parecia estar sorrindo para ele maliciosamente. Jack deu mais dois passos atrás. A cabeça latejava, e ele sentia a garganta seca. Agora, o búfalo se movera, voltado para a direita, atrás e junto do coelho. A cabeça baixa, os chifres de arbusto verde apontados em sua direção. O negócio é que não se podia observá-los todos. Pelo menos de uma só vez.
Começou a emitir um som lamuriento, sem saber em sua concentração o que estava fazendo. Os olhos passavam de uma criatura-arbusto para outra, tentando vê-las se movendo. O vento batia forte, provocando um chocalhar na esteira de galhos. Que espécie de ruído haveria, se o apanhassem? Mas é claro que sabia. Um estalo, uma rachadura. Seria.
(não não NÃO NÃO ACREDITAREI NISSO EM HIPÓTESE ALGUMA!)
Tapou os olhos com as mãos, agarrando os cabelos, a testa, as têmporas que pulsavam. E assim ficou por muito tempo com o pavor crescendo até não agüentar mais, e tirou as mãos com um grito.
Ao lado da grama que o cercava, o cachorro estava sentado, como que pedindo um pedaço de alguma coisa. O búfalo olhando desinteressadamente para a quadra de roque, como estava quando Jack descera com o aparador. O coelho apoiado nas patas traseiras, orelhas em pé para captar o menor ruído, a barriga aparada exposta. Os leões, enraizados no lugar, ao lado da alameda.
Ficou gelado por muito tempo, a irritante aceleração da respiração finalmente diminuindo. Apanhou os cigarros, deixou cair quatro deles sobre o cascalho. Parou e apanhou-os, tateando, sem tirar os olhos da topiaria com medo de que os animais voltassem a se mover. Apanhou os cigarros, enfiou três deles de volta no maço, e acendeu o quarto. Depois de duas grandes tragadas, jogou-o fora, e amassou-o com o pé. Foi até o aparador e o apanhou.
- Estou muito cansado - disse, e agora parecia perfeito falar em voz alta. Não parecia maluquice. - Estive sob muita tensão. As vespas. . . a peça. . . o telefonema de Al. Mas tudo está bem.
Começou a arrastar-se de volta ao botei. Parte de sua mente arrastava-o para uma volta em torno dos animais de arbusto, mas caminhou direto pela alameda de cascalho, através deles. Uma brisa fazia-os farfalhar, isso era tudo. Aquilo tinha sido fruto de sua imaginação. Sentira um pânico terrível, mas agora ja terminara.
Na cozinha do Overlook parou para tomar dois Excedrins e, em seguida, desceu ao porão. Ficou olhando os papéis, até que ouviu o barulho do caminhão do hotel. Subiu para encontrá-los. Sentia-se bem. Não viu necessidade alguma de mencionar suas alucinações. Sentira um pânico terrível, mas agora já terminara.
A neve
Anoitecia.
Estavam na varanda, sob a luz fraca, Jack no meio, o braço esquerdo em volta dos ombros de Danny, e o direito em volta da cintura de Wendy. Juntos, impotentes, só podiam observar, uma vez que a decisão foi tomada sem serem consultados.
O céu ficara encoberto por volta de duas e meia, e uma hora depois começou a nevar, e desta vez não era preciso previsão de tempo para dizer que era neve forte, nada de flocos que se derreteriam ou que iriam embora quando o vento da noite começasse a assobiar. No início, caíam em perfeita linha reta, formando uma capa de neve que cobria tudo por igual, mas agora, uma hora depois de ter começado, o vento noroeste começou a soprar, e a neve começou a cair contra a varanda e os lados da entrada de carros do Overlook. Para além daqueles limites, a estrada desaparecera sob o cobertor branco, Os animais de arbusto também desapareceram, mas, quando Wendy e Danny chegaram em casa, ela elogiou o bom trabalho que Jack tinha feito. Você acha? perguntou ele, e não disse mais nada. Agora, os arbustos estavam enterrados sob o amorfo manto branco.
Curiosamente, todos eles pensavam coisas diferentes, mas sentiam a mesma emoção: alívio. A ponte fora atravessada.
- Haverá primavera algum dia? - murmurou Wendy.
Jack apertou-a.
- Antes do que imagina. O que me diz de entrarmos e jantar? Está frio aqui fora.
Ela sorriu. Durante toda a tarde, Jack parecera distante e. . . bem, estranho. Agora, falava como ele mesmo.
- Por mim, tudo bem. E você, Danny?
- Claro.
Entraram juntos, deixando o vento gritar em tom baixo, pelo resto da noite - um som que acabariam por conhecer bem. Flocos de neve dançavam e giravam pela varanda. O Overlook expunha à neve, como sempre o fizera por aproximadamente três quartos de século, as janelas escuras no momento forradas de neve, indiferente ao fato de que agora estava isolado do mundo. Ou possivelmente estava satisfeito com o quadro. Dentro de sua concha, os três viviam a rotina do anoitecer, como micróbios presos no intestino de um monstro.
Dentro do 217
Uma semana e meia depois, sessenta centímetros de neve branca e crespa cobria toda a extensão do Overlook. A coleção de animais estava enterrada até as coxas; o coelho, congelado sobre as patas traseiras, parecia erguer-se de uma piscina branca. Algumas das camadas chegavam a um metro e meio. O vento modificava-as constantemente, esculpindo nelas formatos de dunas sinuosas. Por duas vezes, Jack caminhara desajeitado pela neve até o depósito à procura da pá para limpar a varanda, a terceira vez encolheu os ombros, limpou apenas um amontoado junto à porta, e deixou Danny se divertir escorregando da esquerda para a direita. As camadas verdadeiramente heróicas cobriam a parte oeste do Overlook; algumas se acumulavam a uma altura de seis metros, e adiante delas o terreno estava limpo devido à constante ação do vento. As janelas do primeiro andar estavam cobertas, e a vista do restaurante que Jack tanto admirara no dia de enceramento da temporada não era agora mais excitante do que a vista de uma tela branca de cinema. O telefone ficara mudo nos últimos oito dias, e o radiotransmissor, no escritório de Ullman, era seu único meio de comunicação com o mundo exterior.
Nevava agora diariamente, às vezes apenas poucos flocos que se pulverizavam na superfície brilhante da neve, às vezes neve pesada, o assobio baixo do vento provocando um barulho agudo afeminado, que fazia o velho hotel sacudir e gemer assustadoramente até os alicerces da neve. A temperatura à noite não era nunca superior a doze graus abaixo de zero e, apesar de o termômetro da entrada de serviço ter subido a cinco graus abaixo de zero, as constantes agulhadas do vento tornavam desagradável a saída sem a máscara de esqui. Mas eles saíam nos dias em que o sol aparecia, geralmente com muita roupa e luvas. Sair era praticamente obrigatório, o hotel estava circundado pela marca dupla dos pés de Danny. As permutações eram quase infindáveis: Danny dirigindo, os pais puxando; o pai dirigindo, sorrindo, enquanto Wendy e Danny tentavam puxar (quando a neve congelava era possível puxá-lo, e totalmente impossível quando estava fresca); Danny e a mãe dirigindo; Wendy dirigindo sozinha, enquanto os homens puxavam e bufavam fumaça branca como cavalos, fingindo que ela era mais pesada do que na realidade. Riam muito nesses passeios de trenó em volta da casa, mas o assobio e a voz impessoal do vento, tão grandes e fantasmagoricamente sinceros, faziam suas risadas parecerem pequenas e forçadas.
Viram pegadas de caribu na neve, e uma vez os próprios caribus, um grupo de cinco, imóveis embaixo da cerca de segurança. Um de cada vez tomou o binóculo de Jack para vê-los melhor, e olhá-los deu a Wendy uma sensação estranha e irreal; perninhas enterradas na neve que cobria a estrada, e ocorreulhe que, no espaço de tempo até o degelo da primavera, a estrada pertencia mais ao caribu do que a eles. Agora, as coisas que os homens criaram, aqui, eram neutralizadas, O caribu entendia isso, acreditava ela. Baixara o binóculo, e dissera alguma coisa sobre começar o almoço, e na cozinha chorara um pouco, tentando livrar-se da terrível sensação de opressão, que, às vezes, caía sobre ela como uma mão grande que apertava seu coração. Pensou nos caribus. Pensou nas vespas que Jack colocara na área de serviço, sob o pirex, para congelar.
Havia muitos sapatos de neve pendurados em pregos no depósito, e Jack encontrou um par que cabia em cada um deles, apesar de o par de Danny ter ficado grande. Jack se deu bem com eles. Apesar de não ter colocado esses sapatos desde a infância em Berlin, New Hampshire, reaprendeu rápido. Wendy não dava muita importância a isso - até mesmo minutos de caminhada, metida naqueles sapatões, faziam suas pernas e tornozelos doerem muito, mas Danny estava intrigado e se esforçando por adquirir prática. ainda caía com freqüência, mas Jack estava satisfeito com o progresso. Disse que, por volta de fevereiro, Danny estaria fazendo círculos em volta dos dois.
O dia estava nublado, e ao meio-dia o céu já começara a cuspir neve. O rádio prometia outros dois ou três metros de neve, entoando louvores à Precipitação, a grande deusa dos esquiadores do Colorado. Wendy, sentada no quarto, tricotando um cachecol, pensava consigo mesma que sabia exatamente o que os esquiadores poderiam fazer com toda aquela neve. Sabia exatamente onde poderiam enfiá-la.
Jack estava no porão. Descera para verificar a fornalha e a caldeira - tais verificações tinham-se tornado um ritual desde que a neve os fechara ali - e, depois de se certificar de que tudo estava indo bem, atravessou o arco, acendeu a lâmpada, e sentou-se numa cadeira velha e com teias de aranha, que encontrou. Folheava os registros e papéis velhos, o tempo todo esfregando a boca com o lenço. O confinamento tirara de sua pele o bronzeado de outono, e, sentado, debruçado sobre as folhas amarelas e secas, o cabelo avermelhado despenteado, caído na testa, assemelhava-se um pouco a um lunático. Encontrara coisas estranhas enfiadas no meio das faturas, conhecimentos, recibos. Coisas inquietantes. Um pedaço de lençol ensangüentado. Um ursinho de pelúcia desmembrado, que parecia ter sido cortado em pedaços. Uma folha de papel violeta de carta de mulher, um resquício de perfume ainda grudado sob o cheiro do tempo, um parágrafo iniciado e deixado sem terminar, com tinta azul apagada: “Querido Tommy, não consigo pensar tão bem por aqui quanto esperava que pudesse, quero dizer sobre nós, claro, quem mais? Ah! Ah! As coisas estão seguindo seu curso. Tive sonhos estranhos sobre coisas sendo golpeadas durante a noite, acredite e. . . “ Era só. A nota estava datada de 27 de junho de 1934. Encontrou uma marionete que parecia ser uma bruxa ou um feiticeiro... em todo caso, alguma coisa com dentes grandes e um chapéu pontudo. Estava enfiada entre um Pacote de recibos de gás natural e um de recibos de água mineral. E algo que parecia ser um poema, rabiscado no verso de um cardápio com lápis preto: “Medoc f está aqui? f Estou sofrendo de sonambulismo de novo, meu querido. f As plantas se movem sob tapete”. Nenhuma data no cardápio, nenhum nome no poema, se é que era um poema. Indefinível, mas fascinante. Parecia-lhe que essas coisas eram como pedaços de um quebra-cabeça, coisas que eventualmente se encaixariam, se ele pudesse encontrar os pontos certos de ligação. E assim continuou olhando, assustando-se e esfregando os lábios a cada vez que a fornalha rugia atrás dele.
Danny estava parado diante do 217 novamente.
A chave mestra no bolso. Olhava para a porta com uma espécie de ansiedade embotada, e seu tronco parecia contrair-se e sacudir sob a camisa de flanela. Resmungava.
Não queria ter vindo, pelo menos depois da mangueira do extintor. Tinha medo de vir. Tinha medo, pois havia apanhado a chave mestra mais uma vez, desobedecendo ao pai.
Queria ter vindo. A curiosidade
(a curiosidade matou o gato)
era como um anzol em seu cérebro, uma espécie de sirene importuna, que seria acalmada. E o Sr. Hallorann não disse; “Não creio que haja coisas aqui que possam atingi-lo”?
(Você prometeu.)
(Promessas foram feitas para serem quebradas.)
Passou por cima disso. Era como se esse pensamento tivesse vindo de fora, como um inseto zumbindo, de modo velhaco.
(Promessas foram feitas para serem quebradas, meu caro red rum, para serem quebradas, partidas, despedaçadas, malhadas. ADIANTE!)
O resmungo transformou-se em música desafinada: “Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar. Vamos dar a meiavolta. .“
O Sr. Hallorann não estaria certo? Não seria essa, afinal, a razão por ter-se mantido calado e permitido que a neve os trancasse ali?
Feche os olhos, e desaparecerá.
O que vira na suíte presidencial desaparecera. E a cobra tinha sido, apenas, uma mangueira que caíra no tapete. Sim, até o sangue na suíte presidencial era inofensivo, coisa velha, algo que desaparecera muito antes de ele ter nascido, ou sequer pensar em nascer, alguma coisa que já acabara. Como um filme que só ele podia ver. Não havia nada, nada mesmo, neste hotel, que pudesse feri-lo, e se tivesse que provar isso a si próprio entrando neste quarto, por que não deveria fazê-lo?
(A curiosidade matou o gato, meu caro redrum, a satisfação trouxe-o de volta são e salvo, dos pés à cabeça; da cabeça aos pés ele estava são e salvo. Sabia que essas coisas)
(são como filmes de terror, não podem feri-lo, mas ó meu deus)
(que dentes grandes você tem vovó, e isso é um lobo fantasiado de BARBA AZUL ou um BARBA AZUL fantasiado de lobo e eu estou tão)
(contente por você ter perguntado por que a curiosidade matou aquele gato e era a ESPERANÇA de satisfação que o trouxe de volta)
Chegou ao corredor pisando macio no tapete emaranhado de mata azul. Passara diante do extintor de incêndio, colocara a boca de aço de volta no quadro, e então tateou-a repetidas vezes com o dedo, o coração batendo, sussurrando: “Venha ferir-me. Venha ferir-me, sua cretina. Não consegue, consegue? Huh? Você não é nada, além de uma simples mangueirazinha. Não consegue fazer nada, só ficar aí. Venha, venha”. Sentira-se louco com o desafio. E nada acontecera. Afinal de contas, era só uma mangueira, só lona e aço, poderia parti-la em pedaços e ela não se queixaria, nem se mexeria, nem lançaria ou sangraria lodo verde pelo tapete azul inteiro, pois era apenas uma mangueira, não fedia nem cheirava, não era uma cobra modorrando. . . e ele se apressara, apressara-se porque era
(“tarde, era tarde”, disse o coelho branco)
o coelho branco. Sim. Agora havia um coelho branco junto ao playground, já fora verde, mas agora estava branco, como se alguma coisa o tivesse atingido repetidas vezes nas nevascas e ventos noturnos, e o tivessem envelhecido.
Danny tirou a chave mestra do bolso, e enfiou-a na fechadura.
(o coelho branco estava a caminho de uma partida de croqué da Rainha Vermelha, onde as cegonhas serviam de bastões e os ouriços-cacheiros, de bola.)
Tocou a chave, deixou os dedos se moverem sobre ela. A cabeça estava seca e doendo. Virou a chave e os ferrolhos sacudiram.
(ARRANQUE-LHE A CABEÇA! ARRANQUE-LHE A CABEÇA! ARRANQUE..LHE A CABEÇA!)
(Este jogo não é cro qué, posto que os bastões são muito curtos este jogo é)
(Uac-bom! Direto no arco.)
(ARRANQUE-LHE A CABEEEEEEÇA...)
Danny abriu a porta. Suave, sem ruído. Viu-se diante de um grande conjugado de quarto-sala de estar, e apesar de a neve não ter chegado a tanto - as elevações maiores ainda estavam a trinta centímetros abaixo das janelas do segundo andar o quarto estava escuro, pois o pai fechara todas as cortinas do lado oeste há duas semanas.
Parou na entrada, tateou à sua direita e encontrou o interruptor. Duas lâmpadas num lustre de vidro se acenderam. Danny deu um passo à frente e olhou em redor. O tapete era espesso e macio, rosa-claro. Suave. Uma cama de casal com uma colcha branca. Uma mesa
(Por obséquio, diga-me. por que o corvo se parece com uma mesa?)
junto à janela de veneziana. Durante a temporada, o Escritor Permanente
(divertindo-me muito, desejo que esteja com medo)
teria uma bonita vista das montanhas para descrever para o pessoal em casa.
Avançou. Nada aqui, nada. Apenas um quarto vazio, frio, pois o pai estava aquecendo a ala leste hoje. Uma escrivaninha. Um armário de porta aberta exibindo uma porção de cabides do hotel, do tipo que não se pode roubar. Uma Bíblia sobre uma mesa de canto. A esquerda, estava a porta do banheiro, um espelho em toda sua extensão refletindo sua própria imagem pálida. Essa porta estava entreaberta e.
Viu sua imagem assentindo com a cabeça devagar.
Sim, era onde estava, fosse o que fosse. Ali dentro. No banheiro. Sua imagem avançou, como se evadindo do vidro. Estendeu a mão, pressionou-a contra a sua. Em seguida desapareceu num ângulo, ao abrir da porta do banheiro. Olhou o interior.
Um cômodo comprido, antigo, como um vagão de trem. Pequenos ladrilhos hexagonais no chão. No fundo, um vaso com a tampa levantada. A direita, um lavatório e um outro espelho acima, do tipo que esconde um armário de remédios. À esquerda, uma imensa banheira branca com pés, a cortina do chuveiro fechada. Danny entrou no banheiro, e caminhou em direção à banheira como em sonho, como se estivesse sendo impelido, como se tudo fosse um dos sonhos que Tony trouxera, que talvez visse alguma coisa boa ao abrir a cortina do chuveiro, algo que o pai tivesse esquecido, ou a mãe tivesse perdido, algo que faria os dois felizes.
Abriu então a cortina do chuveiro.
A mulher na banheira estava morta há muito tempo. Estava inchada e roxa, a barriga cheia de gases emergindo da água fria, com bordas geladas, como uma ilha de carne. Os olhos dela fixos nos de Danny, vidrados e imensos como bolas de gude. Sorria maliciosa, os lábios roxos arreganhados numa careta. O peito flácido. Os pélos púbicos boiando. As mãos geladas nas bordas de porcelana da banheira como garras de um caranguejo.
Danny gritou. Mas o som não escapou de seus lábios; introvertendo-se cada vez mais, caiu na escuridão como uma pedra num poço. Deu um único passo desajeitado para trás, ouvindo os calcanhares estalando contra os ladrilhos hexagonais, e ao mesmo tempo a urina se desprendendo, entornando sem poder ser controlada.
A mulher estava sentada.
ainda sorrindo maliciosa, os imensos olhos vidrados fixos nele, estava sentada. As palmas das mãos mortas faziam ruídos na porcelana. Seus seios pendiam murchos. Houve o som instantâneo da quebra dos pedaços de gelo. Ela não respirava. Era um cadáver, e morto há anos.
Danny voltou-se para trás e correu. Disparando pela porta do banheiro, os olhos saindo das órbitas, o cabelo arrepiado, transformando-se em ouriço diante do perigo numa
(croqué? ou roque?)
bola, a boca aberta e muda. Bateu contra a porta do 217, que agora estava fechada. Começou a esmurrá-la, longe de imaginar que não estava trancada, e que bastava girar o trinco para sair. Na boca ressoavam gritos surdos, que estavam além da audição humana. Só conseguia esmurrar a porta e ouvir a mulher vindo em sua direção, barriga inchada, cabelo seco, mãos estendidas - algo que ficara morto durante anos talvez conservado ali como num passe de mágica.
A porta não abria, não abria, não abria.
E em seguída a voz de Dick Hallorann chegou até ele, flão repentina e inesperadamente, mas tão calma, que suas cordas vocais presas se abriram e ele começou a gritar baixinho. . . não com medo, mas aliviado.
«Não creio que possam atingi-lo. . . são como desenhos de um livro.. . feche os olhos e desaparecerão)
Baixou as pálpebras. As mãos se cerraram. Os ombros se curvaram com o esforço de concentração:
(Nada ali nada ali nada ali, de jeito nenhum NADA ALI NÃO HÁ NADA!)
O tempo passou. E ele começava a relaxar, começava a
compreender que a porta devia estar aberta, e que podia sair,
quando as mãos sem vida há anos, inchadas, cheirando a peixe,
fecharam-se suavemeflte em torno de seu pescoço, e o foram
torcendo para que ele olhasse aquele rosto morto e roxo.
Quarta parte
Cercado de neve
Terra dos sonhos
O tricô a deixou com sono. Hoje, até Bartók a teria deixado com sono, e não era Bartók no pequeno fonógrafo, era Bach. Suas mãos ficavam cada vez mais lentas, e durante o tempo em que o filho fazia o reconhecimento da residente permanente do apartamento 217, Wendy dormia com o tricô no colo. A lã e as agulhas subindo e descendo, no ritmo lento de sua respiração. O sono era profundo, e ela não sonhou.
Jack Torrance também adormecera, mas o sono era leve e agitado, cheio de sonhos que pareciam ser muito vívidos para serem meros sonhos - eram certamente mais vívidos do que qualquer sonho que já tivera.
Seus olhos começaram a ficar pesados enquanto remexia pacotes de notas de leite, cem em cada pacote, parecendo ser dezenas de milhares, ao todo. ainda assim, passava os olhos sobre cada uma, temendo que, se não o fizesse, poderia perder exatamente a peça overlookiana que precisava para fazer a ligação mística que, tinha certeza, estava ali, em algum lugar. Sentiu-se como um homem segurando um fio em uma das mãos, tateando em um cômodo escuro e estranho à procura de uma tomada. Se encontrasse, seria recompensado com uma visão de maravilhas.
Desentendera-se com Al Shockley, ao telefone, por causa de seu pedido; sua estranha experiência no playground o ajudava a estar assim. Aquilo chegara muito próximo a algum tipo de colapso, estava convencido de que era sua mente revoltada com o pedido altamente safado de Al, que o forçava a desistir do projeto do livro. Talvez fosse um sinal de que seu senso de amor-próprio só pudesse chegar até aí, antes de se desintegrar por completo. Escreveria o livro. Se isso significasse o fim de sua amizade com Al Shockley, paciência. Escreveria a história do hotel sem rodeios, e a introdução seria sua alucinação causada pelos animais, O título seria sem sensacionalismo, mas objetivo: Um estranho balneário, A história do Hotel Overlook. Sem rodeios, sim, mas não seria escrito com intuito de vingança, por querer desforrar-se de Al, ou Stuart Ullman, ou George Hatfield ou seu pai (alcoólatra, brigão, miserável) ou qualquer outra pessoa. Escreveria porque o Overlook o encantara... poderia qualquer outra justificativa ser tão simples, ou tão verdadeira? Escreveria pela simples razão de que toda grande literatura, ficção e não-ficção, era escrita. . . a verdade sai, no fim, sempre sai. Escreveria porque sentia que precisava fazê-lo.
1 800 litros de leite. 370 litros de leite desnatado. Pg. Na conta, 140 litros de suco de laranja.
Escorregou na cadeira, ainda segurando um punhado de recibos, mas os olhos não mais olhavam para o que estava impresso ali. Ficaram fora de foco. As pálpebras estavam lentas e pesadas. Sua mente se transportara do Overlook para seu pai, que fora enfermeiro no Hospital Comunitário de Berlin. Homem grande. Um homem gordo, que chegava a um metro e oitenta e cinco de altura, era mais alto do que Jack, mesmo quando Jack já estava completamente crescido, com um metro e oitenta - o velho, então, já não estava mais por perto. “O mais fraco da ninhada”, dizia ele, e então dava uma palmada carinhosa em Jack e ria. Havia mais dois irmãos, ambos mais altos do que o pai, e Becky, que, com um metro e setenta e cinco, era só cinco centímetros mais baixa que Jack e mais alta que ele durante quase toda a infância.
Seu relacionamento com o pai era como o desabrochar de uma flor maravilhosa, que, depois de totalmente aberta, secara por dentro. Até os sete anos, adorara sem restrições e com muito ardor aquele homem alto e barrigudo, apesar dos tapas, dos hematomas e do ocasional olho roxo.
Lembrava-se das suaves noites de verão, a casa calma, o irmão mais velho, Brett, na rua com a namorada, o irmão do meio, Mike, estudando, Becky e a mãe na sala, assistindo a alguma coisa na televisão velha e teimosa; e ele sentado no corredor, só de paletó de pijama, ostensivamente brincando com seus caminhões, mas, na realidade, esperando o momento em que o silêncio fosse quebrado pelo abrir da porta, e o berro à chegada do pai, quando via que Jack o esperava, seu próprio grito agudo em resposta, enquanto o pai se dirigia ao corredor, seu couro cabeludo rosado brilhando sob o cabelo muito curto à luz do corredor. Naquela luz ele sempre parecia um fantasma gigante, terno e oscilante, metido nas roupas brancas do hospital, a camisa sempre solta (e, às vezes, manchada de sangue), a barra das calças caindo sobre os sapatos pretos.
O pai pegava-o nos braços, e ele era delirantemente jogado para cima, tão rapidamente que podia sentir a pressão do ar contra seu crânio como um capacete de chumbo, subindo cada vez mais, os dois gritando: “Elevador! Elevador! “, e havia noites em que o pai, na sua embriaguez, não interrompia o movimento dos braços a tempo, e Jack batia contra sua cabeça como um projétil humano, caindo no chão do corredor, atrás do pai. Mas, em outras noites, o pai, com bafo forte de cerveja, pegava-o nos braços, fazia-lhe cócegas, sacudia-o, levando-o a um delírio de gargalhadas, e, finalmente, ele era posto de pé, em soluços.
Os recibos escorregaram de sua mão e dançaram pelo ar, caindo preguiçosos no chão; suas pálpebras, que permaneceram cerradas com a imagem do pai tatuada em seu interior, como imagens estereotipadas, abriram-se um pouco e, em seguida, se fecharam novamente. Contraiu-se um pouco. O consciente, como os recibos, e como as folhas dos álamos de outono, caía dançando preguiçosamente.
Essa fora a primeira fase de seu relacionamento com o pai e, quando chegara ao fim, soube que Becky e seus irmãos, todos mais velhos, odiavam o pai; e a mãe, uma mulher estranha, que raramente levantava a voz, limitava-se a tolerá-lo, pois sua formação católica a obrigava a isso. Naqueles dias não parecia estranho para Jack que o pai ganhasse todas as discussões com os filhos, usando os punhos, e não lhe parecia estranho que seu amor passasse de mão em mão, com seu medo: medo do jogo do elevador, que poderia terminar num acidente em qualquer noite; medo de que o bom humor oscilante do pai, no seu dia de folga, de repente se transformasse em berros cruéis e em pancada da “boa mão direita”; e às vezes lembrava-se de que tinha medo até de que a sombra do pai caísse sobre ele, enquanto brincava. Foi aproximadamente no fim dessa fase que começou a observar que Brett nunca trazia suas namoradas à sua casa, nem Mike e Becky, seus amigos íntimos.
O amor começou a esfriar aos nove anos, quando o pai mandou a mãe para o hospital com sua bengala. Começara a carregar a bengala havia um ano, quando um acidente de carro o deixara manco. Depois disso, não ficava nunca sem ela, comprida, negra, grossa, de cabo dourado, Agora, cochilando, o corpo de Jack contraía-se, lembrando o medo do ruído que a bengala fez no ar, um assobio assassino, e seu estalido duro contra a parede. . . ou contra a carne. Ele batera na mulher sem razão nenhuma, de repente e sem avisar. Estavam à mesa de jantar. A bengala junto à sua cadeira. Era uma noite de domingo, um fim de semana de três dias para o pai, um fim de semana que passara bebendo em seu estilo inimitável. Galinha frita. Ervilhas. Purê de batatas, O pai à cabeceira da mesa, o prato cheio, cochilando ou quase cochilando. A mãe passando os pratos. E de repente, o pai despertou, os olhos enfiados nas órbitas gordas, brilhando com uma espécie de petulância idiota e maldosa. Cada membro da família se agitara, e a veia no centro de sua testa estava saliente, sempre um mau sinal. Uma de suas mãos grandes e sardentas caiu sobre o cabo dourado da bengala, acariciando-o. Disse qualquer coisa sobre o café nesse dia Jack estava certo que era “café” que o pai dissera. A mãe abriu a boca para responder, e em seguida a bengala zumbindo no ar, esmagandolhe o rosto. O sangue jorrou-lhe do nariz. Becky gritou. Os óculos da mãe caíram no prato de comida. A bengala retraiu-se e desceu novamente, desta vez sobre a cabeça, rompendo o couro cabeludo. A mãe tombou ao chão, O pai saíra da cadeira e foi para onde a mãe estava deitada, tonta, sobre o tapete, brandindo a bengala, locomovendo-se com a velocidade e agilidade grotescas de um homem gordo, olhos pequenos brilhando, mandíbulas tremendo, enquanto falava com ela, exatamente como sempre falava com os filhos durante tais explosões. “Agora. Agora, pelo amor de Deus. Acho que você vai tomar seu remédio agora. Maldito fedelho. Fedelho. Venha tomar seu remédio agora.” A bengala subira e descera sobre ela mais sete vezes, antes que Brett e Mike pudessem segurá-lo, arrastá-lo e arrancar a bengala de sua mão. Jack
(o pequeno Jacky agora ele era o pequeno Jacky agora cochilando e resmungando numa cadeira velha enquanto a fornalha rugia atrás dele)
sabia exatamente quantas rajadas foram, pois cada pancada no corpo de sua mãe estava gravada em sua memória como um golpe irracional de um cinzel na pedra. Sete pancadas. Nem mais, nem menos. Ele e Becky chorando, sem acreditar, olhando os óculos da mãe pousados no purê de batatas, uma lente partida, suja de molho. Brett gritando com o pai do corredor dos fundos, dizendo que o mataria, caso ele se movesse. E o pai repetindo vez após outra: “Fedelho maldito. Cria desgraçada. Dê-me a bengala, seu fedelho desgraçado. Dê-me.” Brett brandindo a bengala histericamente, dizendo sim, sim, vou dar, basta você se mover um pouquinho, vou dar-lhe tudo, e mais duas. Vou dar-lhe o bastante. A mãe levantando-se devagar, tonta, o rosto já inchado como um pneu velho com muito ar, sangrando em quatro ou cinco lugares diferentes, e ela dissera uma coisa terrível, talvez a única coisa que a mãe dissera, que Jack lembrava palavra por palavra: “Quem está com o jornal? Seu pai quer ler os quadrinhos. ainda está chovendo?” E então prostrou-se de joelhos novamente, o cabelo caído no rosto inchado e ensangüentado. Mike chamando o médico, falando ao telefone. Poderia vir imediatamente? Era sua mãe. Não, não podia dizer o que acontecera, não pelo telefone, não através de uma ligação. Simplesmente venha. O médico veio e levou a mãe para o hospital, onde o pai trabalhara toda a sua vida, O pai acalmou-se um pouco (ou talvez com a esperteza estúpida de qualquer animal pressionado), e disse ao médico que ela caíra da escada. Havia sangue na toalha da mesa, porque ele tentara enxugar com ela seu rosto querido. Teriam seus óculos voado, entrado pela sala de jantar, caindo no purê e no molho? perguntou o médico com um ar de sarcasmo repugnante. Foi isso o que aconteceu, Mark? Já ouvi falar de gente com uma estação de rádio nas obturações de ouro, e já vi um homem levar um tiro no meio da testa e sobreviver para contar a história, mas essa é novidade para mim. O pai limitara-se a sacudir a cabeça, e dizer que não sabia, deviam ter caído de seu rosto, quando a trouxe à sala de jantar. Os quatro filhos ficaram atordoados, em silêncio, pela estupenda tranqüilidade da mentira. Quatro dias depois, Brett largou o emprego no moinho, e alistou-se no Exército. Jack sempre sentira que não foi apenas a surra repentina e irracional da mesa de jantar, mas o fato de que, no hospital, a mãe havia corroborado a história do pai, enquanto segurava a mão do padre da Paróquia. Revoltado, Brett deixara-os para o que desse e viesse. Foi morto na província de Don Ho em 1965, o ano em que Jack, estudante, aderiu à agitação universitária pelo fim da guerra. Sacudira a camisa ensangüentada do irmão nas reuniões que eram cada vez assistidas por mais gente, mas não era a visão de Brett que tinha diante de seus olhos, quando falava; era a visão do rosto da mãe, estupidificado, sem entendimento, dizendo: “Quem está com o jornal?”
Mike abandonou a universidade três anos depois, quando Jack tinha doze anos - freqüentava a Universidade de New Hampshire, como bolsista. Um ano depois disso, o pai morreu de um derrame, que ocorreu enquanto preparava um paciente para cirurgia. Caíra, metido na roupa branca e desalinhada, morto possivelmente antes de chegar ao chão de ladrilhos vermelhos e pretos do hospital, e, três dias mais tarde, o homem que dominara a vida de Jacky, o irracional divino fantasma branco, estava debaixo da terra.
A lápide dizia: “Mark Anthony Torrance, amoroso pai”. Àquilo, Jack acrescentaria uma linha: “Sabia brincar de elevador”.
Foi deixado muito dinheiro de seguro. Há pessoas que colecionam seguros com a mesma compulsão de quem coleciona moedas e selos, e Mark Torrance fora desse tipo, O dinheiro do seguro entrara ao mesmo tempo que as mensalidades das apólices e as notas de bebida terminaram. Durante cinco anos foram ricos. Praticamente ricos.
No sono leve e atormentado, seu rosto apareceu-lhe rosado como se num vidro, seu rosto, mas não seu rosto, apenas os olhos grandes e a boca caída e inocente de um menino sentado no corredor com seus caminhões, esperando o pai, esperando pelo divino fantasma branco, esperando o elevador subir com velocidade vertiginosa e divertida, através da atmosfera de sal e serragem exalada das tabernas, esperando talvez a queda, expelindo molas velhas de relógio pelos ouvidos, enquanto o pai ria a bandeiras despregadas e
(transformado no rosto de Danny, muito parecido com seu próprio rosto em criança, seus olhos eram azul-claros, enquanto os de Danny eram acinzentados, mas os lábios ainda formavam um arco, a pele era morena, Danny no escritório, de calças plásticas, todos os seus papéis encharcados e o cheiro de cerveja no ar. . . o ar impregnado de fermento e cevada, o odor das tabernas... estalido de osso.. . sua própria voz, choramingando embriagada Danny, você está bem, doutor. . Õ Deus, seu pobre bracinho... e aquele rosto transformado no)
(rosto tonto da mãe levantando-se junto à mesa, inchado e ensangüentado, e a mãe dizia)
(“. . de seu pai. Repito, um aviso muitíssimo importante de seu pai. Por favor, continue sintonizado, ou sintonize imediatamente para a freqüência de Jack Feliz. Repetindo...
Um lento desvanecimento. Vozes soltas ecoando sobre ele, como num corredor interminável e nebuloso.
(As coisas continuam em seus devidos lugares, caro Tommy...)
(Medoc, está aí? Voltei a ser sonâmbula, querido. Temo os monstros desumanos. .
(“Desculpe-me, Sr. Uliman, mas este no é o escritório, com seus arquivos, a mesa grande de UlIman, um livro de reservas em branco para o próximo ano, já no lugar - nunca perde uma jogada, aquele tal do Ullman -, todas as chaves penduradas ordenadamente nos ganchos
(exceto uma, qual, que chave, chave mestra. . . chave mestra, quem está com a chave mestra? se subíssemos talvez veríamos)
e o grande radiotransmissor na prateleira.
Ligou-o. As transmissões do rádio chegando em pequenos estouros. Mudou de freqüência e ouviu, misturados aos ruídos, música, notícia, um pregador fazendo discursos fastidiosos, uma previsão do tempo. E uma outra voz, que voltou para ouvir. Era a voz de seu pai.
“..mate-o. Você tem que matá-lo, Jacky, e a ela também. Porque um artista verdadeiro precisa sofrer. Porque cada homem mata aquilo que ama. Porque estarão sempre conspirando contra você, tentando atrapalhá-lo, e arrasá-lo. Neste exato momento, aquele seu garoto está onde não devia. Desobedecendo às suas ordens. É o que está fazendo. Ele é um maldito fedelho. Dê-lhe uma bengalada, Jacky, até ele quase morrer. Tome um gole, Jacky, meu filho, e vamos brincar de êlevador. Depois vou com você, enquanto dá a ele o remédio. Sei que pode fazê-lo, claro que pode. . . deve matá-lo. Deve matá-lo, Jacky, e a ela também. Porque um verdadeiro artista precisa sofrer. Porque cada homem.
A voz de seu pai, cada vez mais alta, tornando-se enlouquecedora, sem ser absolutamente humana, algo esganiçada, petulante e atordoante, a voz do Divino Fantasma, do Deus-Porco, chegando morta até ele pelo rádio e
- Não! - gritou. - Você está morto, está no túmulo, na? está absolutamente dentro de mim! - Tinha afastado o pai por completo, e não era certo ele voltar, arrastando-se por este hotel a três mil e duzentos quilômetros da cidade da Nova Inglaterra onde o pai vivera e morrera.
Levantou-se, apanhou o rádio e espatifou-o no chão, espalhando molas e válvulas, como se fosse o resultado de uma louca brincadeira de elevador, que não deu certo, fazendo a voz do pai desaparecer, deixando apenas sua voz, a voz de Jack, a voz de Jacky, gritando na realidade fria do escritório.
- . . . morto, você está morto, você está morto!
E o ruído assustador dos pés de Wendy batendo no chão sobre sua cabeça, e a voz assustada e amedrontada de Wendy:
- Jack? Jack!
Ficou olhando o rádio despedaçado. Agora só havia o trenó no depósito para colocá-los em contato com o mundo exterior.
Colocou as mãos nos olhos e apertou as têmporas. Começava a dor de cabeça.
Catatonia
Wendy corria de meias pelo corredor, e desceu a escada de dois em dois degraus até o saguão. Não olhou para o lanço atapetado que levava ao segundo andar, mas, se olhasse, teria visto Danny, quieto e calado, os olhos perdidos no espaço, o polegar na boca, a gola e os ombros da camisa molhados. Havia hematomas no pescoço e debaixo do queixo.
Os gritos de Jack haviam cessado, mas isso não concorrera para minorar seu pavor. Sacudida no meio do sono pela voz do marido, naquele velho tom de valentão de que se recordava tão bem, ainda sentia como se estivesse sonhando - mas uma outra parte dela sabia que estava acordada, e isso a aterrorizava mais. Quase esperava entrar no escritório e encontrá-lo em cima de Danny, bêbado e confuso.
Empurrou a porta e Jack ali estava, esfregando as têmporas com os dedos. O rosto dele estava cadavérico. O radiotransmissor, a seus pés, em meio aos cacos de vidro.
- Wendy? - perguntou, incerto. - Wendy...?
A confusão pareceu crescer no instante em que viu o rosto verdadeiro dele, aquele que comumente escondia tão bem, era um rosto de desesperada infelicidade, o rosto de um animal preso numa armadilha, além de sua habilidade de decifrar e capitular inutilmente. Então, os músculos começaram a trabalhar, começaram a se contorcer debaixo da pele, a boca começou a tremer sem firmeza, o pomo-de-adão começou a subir e a descer.
Sua própria confusão e espanto eram encobertos pelo choque: ele ia chorar. Já o tinha visto chorar, mas nunca depois que parara de beber. e nunca naqueles dias a não ser que estivesse muito bêbado e sentindo um remorso patético. Era um homem firme, extremamente duro, e sua perda de controle a apavoraVa novamente.
Ele veio em sua direção, em lágrimas, a cabeça sacudindo involuntariamente, como que num esforço infrutífero para conter esta tempestade emocional, o peito contraído em um suspiro convulsivo que foi expelido com um imenso soluço angustiante. Os pés, calçados em sapatos esporte, tropeçaram nos destroços do rádio, e ele quase caiu em seus braços, fazendo-a cambalear com seu peso. Sentiu seu hálito, e não havia cheiro de bebida. Claro que não, não havia bebida por ali.
- O que há de errado? - Controlou-se o mais que pôde.
- Jack, o que é?
Mas ele não fazia outra coisa a não ser soluçar, agarrando-a, a cabeça enterrada em seus ombros numa atitude inútil, nervosa, contida. Os soluços eram fortes e violentos. Ele tremia, dos pés à cabeça.
- Jack? O que é? Diga-me o que há de errado!
Finalmente, os soluços começaram a se transformar em palavras, a princípio incoerentes, mas se tornando mais claras à medida que as lágrimas se esgotavam.
- ... sonho, acho que foi um sonho, mas foi tão real, eu.. . foi minha mãe dizendo que papai ia aparecer no rádio e eu. . . ele estava. . . ele estava me dizendo para. . . não sei, ele .gritava comigo. . . e então quebrei o rádio. . . para fazê-lo calar. Para fazê-lo calar. Ele está morto. Meu Deus, Wendy, meu Deus. Nunca tive um pesadelo assim. Nunca mais quero ter outro. Cristo! Foi horrível.
- Você simplesmente adormeceu no escritório?
- Não... não aqui. Lá embaixo. - Jack estava um Pouco mais consciente agora, não mais se apoiava nela, e o constante movimento de sua cabeça diminuiu e depois parou. - Eu estava olhando uns papéis velhos. Sentado numa cadeira. Notas de leite. Coisa boba. E acho que simplesmente apaguei.
- Você verificou o quarto dele quando desceu agora
quando comecei a sonhar. Devo ter andado dormindo até aqui.
- Ensaiou um sorriso tremido. - Mais uma vez.
- Onde está Danny, Jack?
- Não sei. Não está com você?
- Ele não estava. . . lá embaixo com você?
Jack olhou com o canto dos olhos, e seu rosto se contraiu pelo que viu no rosto dela.
- Nunca vai me deixar esquecer aquilo, não é Wendy?
- Jack...
- Quando eu estiver no caixão, você vai debruçar-se e dizer: “Bem feito, lembra-se de quando quebrou o braço de Danny?”
- Jack!
- Jack, o quê? - disse explosivo, e deu um salto. - Nega que é nisto que está pensando? Que o machuquei? Que uma vez o machuquei, e que poderia machucá-lo de novo?
- Quero saber onde ele está, só isso.
- Isso mesmo, poiha os bofes para fora, isso vai fazer tudo melhorar, não vai?
Ela voltou-se e caminhou para a porta.
Observou-a caminhando, gelado por um momento, um mata-borrão coberto de cacos de vidro em uma das mãos. Então jogou-o na cesta de lixo, foi atrás dela, alcançando-a no balcão do saguão. Colocou as mãos sobre seus ombros, e fez com que Wendy se voltasse. A cara dela estava boa.
- Wendy, desculpe. Foi o sonho. Estou triste. Perdoa? Claro - disse ela, sem modificar a expressão do rosto.
Desviou os ombros tensos de suas mãos. Ela andou até o meio do saguão e chamou. - Ei, doutor! Onde você está?
O silêncio voltou. Foi até as portas duplas do saguão, abriu uma delas e saiu pelo caminho que Jack limpara. Era mais parecido com uma trincheira; a neve amontoada ia à altura de seus ombros. Chamou-o novamente, o ar saindo em uma fumaça branca. Quando entrou, começava a parecer amedrontada.
Controlando sua irritação com ela, Jack disse, moderadamente:
- Tem certeza de que ele não está dormindo no quarto?
- Já falei que ele estava brincando em algum lugar, enquanto eu estava fazendo tricô. Podia ouvi-lo lá embaixo.
- Você adormeceu?
- O que isto tem a ver? Sim. Danny? mesmo?
- Eu... - Ela parou.
Jack balançou a cabeça.
- Não creio que tenha verificado.
Começou a subir as escadas sem esperar por ela. Wendy seguiu-o, quase correndo, mas ele subia os degraus dois a dois. Ela quase se chocou com ele, quando ele parou. Ficou ali estático, olhando para cima, os olhos arregalados.
- O quê...? começou ela, acompanhando o olhar do marido.
Danny lá estava, olhos perdidos, chupando o polegar. As marcas no pescoço eram cruelmente visíveis à luz dos archotes elétricos.
- Danny! - gritou ela.
Isso quebrou a paralisia de Jack, e ambos subiram depressa para onde Danny estava. Wendy caiu de joelhos ao lado dele, e acolheu o menino em seus braços. Danny veio docilmente, mas não retribuiu o abraço. Era como abraçar um cabo de vassoura, e o sabor do horror encheu a boca de Wendy. Ele se limitava a chupar o polegar, fixando o olhar distante para a escadaria adiante deles.
- Danny, o que aconteceu? - perguntou Jack. Estendeu a mão para tocar o lado inchado do pescoço de Danny. Quem fez isso em v.
- Não encoste a mão nele! - sussurou Wendy. Apertou o filho nos braços, levantou-o e afastou-se até a metade da escadaria, antes que Jack fizesse outra coisa a não ser ficar ali parado, confuso.
- O quê? Wendy, o que diabos você está t...
- Não encoste nele! Mato-o, se puser as mãos nele novamente!
- Wendy...
- Seu imbecil!
Ela voltou-se e desceu correndo o resto da escada para o primeiro andar. A cabeça de Danny sacudindo ligeiramente para cima e para baixo, enquanto ela corria. O polegar continuava na boca. Seus olhos eram janelas ensaboadas. Dobrou à direita no pé da escada, e Jack ouviu seus passos se afastando. A porta do quarto bateu. O trinco fechara. Fora trancada. Breve silêncio. Depois, as palavras suaves e baixas de consolo.
Jack ficou, durante algum tempo, literalmente paralisado com tudo que acontecera, num período tão curto, O sonho ainda estava com ele, pintando tudo com um leve matiz irreal. Era como se tivesse tomado uma pequena dose de mescalina. Teria machucado Danny como Wendy pensou? Tentara estrangular o filho a pedido do pai morto? Não. Nunca machucaria Danny.
(Caiu da escada, doutor.)
Nunca machucaria Danny agora.
(Como poderia saber que a bomba de inseticida estava com defeito?)
Nunca na vida fora propositadamente malvado, quando sóbrio.
(Exceto quando quase matou George Hatfield.)
- Não! - gritou ele na escuridão. Dava murros na perna, repetidamente.
Wendy sentou-se na poltrona acolchoada junto à janela com Danny no colo, segurando-o, murmurando velhas palavras sem sentido, aquelas de que você nunca se lembra depois, não importa o que possa acontecer. O filho aconchegava-se em seu colo, sem protestos, nem alegria, como um desenho para ser recortado, e os olhos do garoto nem sequer se moveram para a porta, quando Jack gritou de algum lugar do corredor: “Não!”
A confusão desaparecera um pouco na mente de Wendy, mas descobriu agora algo ainda pior por trás. Pânico.
Jack fizera aquilo, não tinha dúvidas. Suas negativas não significavam nada para ela. Achava perfeitamente possível que Jack tivesse tentado estrangular Danny, enquanto dormia, da mesma forma que esmigalhara o rádio enquanto dormia. Estava tendo uma espécie de colapso nervoso. Mas o que ela podia fazer? Não poderia ficar trancada ali para sempre. Precisavam comer.
Havia, na realidade, uma pergunta, e essa era respondida de modo frio e pragmático em seu subconsciente, a voz de sua maternidade, uma voz fria e indiferente, uma voz que saía do círculo mãe-criança e ia até Jack. Era uma voz que falava de autopreservação, mas somente depois de falar em preservação filial, e a pergunta era:
(Exatamente o quão perigoso ele é?)
Negara ter feito isso. Ficara horrorizado com o machucado, com a ligeira e implacável perturbação de Danny. Se o tivesse feito, uma parte distinta dele fora responsável. O fato de tê-lo feito enquanto dormia era - de uma forma terrivelmente grosseira - encorajador. Não seria possível que ele pudesse tirá-los dali? Levá-los para longe. E depois.
Mas não podia ver além de Danny e ela chegando salvos ao consultório do Dr. Edmonds, em Sidewinder. Não tinha nenhuma razão especial para ir mais adiante. A crise atual era mais do que suficiente para mantê-la ocupada.
Cantava em voz baixa para Danny, balançando-o no colo. Os dedos sobre o ombro do filho perceberam que a camisa estava úmida, mas não se incomodaram em transmitir a informação a seu cérebro, ao menos superficialmente. Se fosse transmitida, talvez se lembrasse de que as mãos de Jack, quando a abraçou no escritório, soluçando, estavam secas. Teria parado para pensar. Mas sua cabeça estava ainda pensando em outras coisas. A decisão tinha de ser tomada. . . aproximar-se de Jack, ou não?
Na realidade, não era uma decisão tão importante. Não havia nada que pudesse fazer sozinha, nem mesmo descer com Danny para o escritório, e pedir ajuda pelo radiotransmissor. O garoto havia sofrido um choque muito grande. Precisava ser levado rapidamente, antes que qualquer dano permanente pudesse ser causado. Recusava-se a acreditar que algum dano permanente já tivesse sido causado.
E ainda se sentia angustiada, procurando outra alternativa. Não queria expor Danny a Jack. Sabia que tomara uma decisão errada, quando fora contra seus impulsos (e contra os de Danny), deixando que a neve os prendesse ali dentro. . . por causa de Jack. Outra decisão errada fora quando pôs de lado a idéia do divórcio. Agora, estava praticamente paralisada com o pensamento de que pudesse estar cometendo um outro erro, de que pudesse arrepender-se a cada minuto de cada dia, pelo resto de sua vida.
Não havia arma no local. Havia facas penduradas na cozinha, mas Jack estava entre ela e os objetos.
Na tentativa de tomar a decisão correta, de encontrar a alternativa, à ironia amarga de seus pensamentos não ocorreu que: há uma hora, ela estava dormindo, convencida de que as coisas estavam bem, e que em breve melhorariam. Agora, considerava a possibilidade de usar uma faca de açougueiro contra o marido, se ele tentasse interferir entre ela e o filho.
Finalmente, levantou-se com Danny nos braços, com as pernas trêmulas. Não havia outra forma. Teria que admitir que Jack acordado era o Jack são, e que ele a ajudaria a descer com Danny para Sidewinder e o Dr. Edmonds. E, se Jack tentasse fazer qualquer coisa que não fosse ajudá-la, Deus que tomasse conta dele.
Foi até a porta e destrancou-a. Levantando Danny até os ombros, abriu a porta e saiu para o corredor.
- Jack? - chamou, nervosa, e não obteve resposta.
Em aflição crescente, caminhou até as escadas, mas Jack não estava lii. E enquanto permaneceu próximo às escadas, pensando no que faria depois, a canção veio lá de baixo rica, aborrecida, amargamente satírica:
“Me role na grama, me role, me deite e faça de novo”.
Tinha mais medo de sua voz do que de seu silêncio, mas não havia outra alternativa. Desceu as escadas.
“Foi ela!”
Jack ficara parado na escada, ouvindo o cantarolar pela porta trancada, e aos poucos sua confusão deu lugar à raiva. Na realidade, as coisas nunca mudaram. Wendy, pelo menos. Poderia passar vinte anos sem beber, e ainda assim, quando chegava a casa à noite e ela o abraçava à porta, ele viafsentia uma pequena dilatação das narinas da mulher, tentando perceber odores de uísque ou gim. Sempre deduzia o pior; se ele e Danny se acidentassem em um carro dirigido por um motorista cego e bêbado, que tivesse tido um colapso pouco antes da colisão, em silêncio ela o culparia pelos ferimentos de Danny, e daria as costas.
O rosto dela quando apanhou Danny. -. apareceu diante dele, e de repente quis apagar a raiva que continha, com O punhos cerrados.
Ela não tinha o direito
Sim, talvez de início. Tinha sido um beberrão, fizera coisas terríveis O fato de ter quebrado o braço de Danny fora uma coisa terrível. Mas se um homem se regenera, por acaso não merece crédito, mais cedo ou mais tarde? E se não conseguir, nãO merece ele uma segunda chance? Se um pai acusa sempre sua virtuosa filha de viver trepando com todos os rapazes da escola, não é de se esperar que ela venha a corresponder às acusações do pai? E se uma esposa, secretamente - não tão secretamente -, continua a acreditar que seu marido abstêmio é um bêbado...
Levantou-se, desceu devagar o primeiro lanço da escada, e ficou ali parado por um momento. Tirou o lenço do bolso traseiro, enxugou os lábios e considerou a hipótese de descer e esmurrar a porta, ordenando que o deixasse entrar para que pudesse ver o filho. Ela não tinha o direito de ser tão desgraçadamente arbitrária.
Bem, mais cedo ou mais tarde ela teria que sair, a não ser que planejasse um tipo radical de dieta para os dois. Um sorriso muito feio brotou-lhe nos lábios com esse pensamento. Deixála-ia vir até ele. Ela viria no momento certo.
Desceu ao andar térreo, ficou parado sem se dar conta junto ao balcão de recepção por um momento, e, em seguida, voltou-se para a direita. Foi ao restaurante, e ficou bem junto à porta. As mesas vazias, as toalhas brancas muito limpas, sob as capas de plástico transparente, reluziam. Estava tudo deserto agora mas
(O jantar será servido às 20:00 horas
Retirada das máscaras e baile à meia-noite)
Jack caminhou por entre as mesas, momentaneamente esquecido da mulher e do filho lá em cima, esquecido do sonho, do rádio quebrado, dos ferimentos. Passou os dedos pela capa lustrosa de plástico, tentando imaginar como teria sido aquela noite quente de agosto de 1945, a guerra vencida, o futuro à frente tão novo e com tantos caminhos, como uma terra de sonhos. As lanternas japonesas iluminadas e multicores penduradas em toda a entrada, a luz dourada que saía dessas janelas aitas que estavam agora cobertas de neve. Homens e mulheres fantasiados, aqui uma princesa, ali um cavaleiro de botas de cano longo, Jóias e imaginação faiscando por toda a parte, dança, euida a vontade, primeiro vinho, em seguida coquetéis, e depois talvez cerveja misturada com uísque, o nível da conversa cada vez mais alto, até que o grito animado saísse do tablado do chefe da orquestra: “Tirem as máscaras! Tirem as máscaras!”
(E a Morte Rubra dominava...)
Viu-se parado num canto do restaurante, junto à porta de vaivém estilizada do Salão Colorado, onde, naquela noite de 1945, a bebida toda era de graça.
(Aproxime-se do bar, cara, a bebida é por conta da casa.)
Abriu a porta de vaivém, e penetrou nas sombras profundas do bar. E uma coisa estranha aconteceu. Já tinha estado ali antes, uma vez para conferir o inventário que Uliman deixara, e sabia que o lugar estava completamente limpo. As prateleiras estavam vazias. Mas agora, na penumbra provocada pela luz filtrada que vinha do restaurante (que por si só já era bastante fraca, por causa da neve que bloqueava as janelas), pensou ver fileiras e mais fileiras de garrafas cintilando obscuramente atrás do bar, e sifões, e até cerveja pingando das três torneiras muito polidas. Sim, sentia até o cheiro de cerveja, aquele cheiro de coisa úmida e fermentada, em nada diferente do cheiro que envolvia o rosto de seu pai, toda noite quando voltava do trabalho.
Olhos arregalados, tateou à procura do interruptor, e a luz fraca e aconchegante do bar acendeu lâmpadas de vinte watts que estavam no topo dos lustres coloniais.
As prateleiras estavam todas vazias. Não tinham sequer acumulado poeira. As torneiras de cerveja estavam vazias, bem como os canos cromados, abaixo delas. A sua direita e esquerda, as cabines revestidas de veludo pareciam homens altos de costas, cada uma desenhada para dar o máximo de privacidade ao casal que ali estivesse. Bem em frente, do outro lado do tapete vermelho, estavam quarenta bancos em volta do bar em forma de ferradura. Cada banco era forrado de couro e trabalhado com marcas de gado - H circulado, barra D barra, semicírculo W, B deitado.
Chegou mais perto, sacudindo um pouco a cabeça de espanto, enquanto o fazia. Foi como aquele dia no playground, quando. . . mas não fazia sentido pensar nisso. Podia ainda jurar que tinha visto aquelas garrafas, vagamente, era tão verdadeiro quanto ver-se o formato escuro de móveis numa sala com as cortinas fechadas. Reflexos suaves no vidro. A única coisa que restara foi o cheiro de cerveja, e Jack sabia que era um cheiro que impregnava a madeira de todos os bares do mundo, depois de algum tempo, e não saía com nenhum produto de limpeza até agora inventado. O cheiro ali ainda parecia mais forte. . . quase fresco.
Sentou-se num banco e enterrou os cotovelos no bar revestido de couro. À sua esquerda, estava um pratinho de amendoim. . . vazio agora, claro. O primeiro bar onde pisava em dezenove meses e a droga estava vazia. . . sorte sua. Mesmo assim, uma forte e amarga onda de nostalgia caiu sobre ele, e o desejo físico, ardente, de beber pareceu crescer da barriga para a garganta, boca e nariz, enrugando os tecidos por onde passava, fazendo-os implorar por alguma coisa fria, molhada e longa.
Olhou as prateleiras novamente, numa esperança irracional e desesperada de que estivessem tão vazias quanto antes. Sorríu de dor e frustração. As mãos cerradas devagar, fazendo desenhos no forro de couro do bar.
- Oi, Lloyd - disse ele. - Um pouco desanimado hoje?
Lloyd disse que sim. Lloyd perguntou o que vai ser.
- Fico feliz por você ter perguntado - disse Jack. - Feliz mesmo. Pois tenho duas notas de vinte e duas de dez na carteira, e temia que fossem ficar quietinhas onde estão até o próximo abril. Não há um bar por aqui, acredita? E eu que pensei que houvesse botecos até na porra da Lua.
Lloyd condoeu-se.
- Veja bem - disse Jack. - Você me prepara vinte doses iguais de martíni. Vinte iguais, assim mesmo, pronto. Um por mês que passei sem beber, e mais um de reforço. Pode fazer isso, não pode? Não está muito ocupado?
Lloyd disse que não estava nada ocupado.
- Bom rapaz! Enfileire esses marcianos aqui em cima do bar, e eu vénho apanhá-los, um por um. São os ossos do ofício, Lloyd, amigo velho.
Lloyd voltou ao trabalho. Jack enfiou a mão no bolso procurando o prendedor de notas, e ao invés disso encontrou um vidro de Excedrin. Seu prendedor de notas estava na escrivaninha do quarto que sua mulher magrela fizera a gentileza de trancar. Beleza, Wendy. Sua miserável.
- Acho que estou duro - disse Jack. - Como está meu crédito nesta espelunca, por falar nisso?
Lloyd disse que o crédito estava bom.
- Ótimo. Gosto de você, Lloyd. Sempre foi o melhor de todos. O melhor barman de norte a sul, de leste a oeste.
Lloyd agradeceu o elogio.
Jack arrancou a tampa do vidro d Excedrin, tirou dois comprimidos, e jogou-os na boca. Sentiu o gosto ácido, familiar.
Teve uma estranha sensação de que as pessoas o observavam, curiosamente e com algum desprezo. As cabines atrás estavam cheias: havia senhores de meia-idade, e jovens maravilhosas, todos eles fantasiados, assistindo friamente a este triste ensaio de arte dramática.
Jack rodopiou no banco.
As cabines estavam todas vazias, enfileiradas desde a porta do salão à esquerda, até junto à curva do bar em ferradura, à direita, onde havia um pequeno espaço ocupado pelo bar. Assentos e encostos forrados de couro. Mesas lustrosas de fórmica escura, um cinzeiro sobre cada uma, uma caixa de fósforos em cada cinzeiro, as palavras “Salão Colorado” gravadas em dourado na porta de vaivém.
Voltou-se, engolindo com uma careta o resto do Excedrin que se dissolvia.
- Lloyd, você é maravilhoso. Já está tudo pronto. Sua rapidez só é ultrapassada pela beleza de seus olhos napolitanos cheios de alma. Saúde.
Jack contemplou os vinte drinques imaginários, as gotinhas de condensação nos copos de martíni, cada um com o realce de uma azeitona verde. Podia quase sentir o cheiro de gim no ar.
- Abstêmio - disse ele. - Já conheceu algum cavalheiro que tivesse embarcado no trem dos abstêmios?
Lloyd admitiu ter encontrado homens desse tipo, por vezes.
- Já travou relações com este homem depois de ele voltar a beber?
Lloyd honestamente não se recordava.
- Então, é porque você nunca viu - disse Jack. Envolveu o primeiro copo com a mão, levou-o até a boca, que estava aberta. Engoliu, e em seguida, jogou-o fora, por trás dos ombros. As pessoas acabavam de voltar do baile a fantasia, estudando-o, rindo à socapa. Podia senti-las. Se o fundo do bar tivesse espelhos ao invés daquelas prateleiras idiotas, poderia vê-las. Deixe-os olhar. Que se danem. Quem quiser olhar que olhe.
- Não, você nunca viu - continuou. - Poucos homens voltam a beber, mas aqueles que voltam vêm com uma fábula terrível para contar. Quando se embarca nesse trem, parece que se está no vagão mais limpo e claro que já se viu, com rodas de três metros de altura para que a cama se mantenha bem acima da sarjeta, onde os bêbados estão caídos, com seus sacos cheios de vinho vagabundo e bourbon de segunda. Você fica livre dos olhares maldosos das pessoas que lhe dizem para mudar de atitude, ou para se mandar para outra cidade. Olhando da sarjeta, aquele é o trem mais bonito que já se viu, Lloyd, meu filho. Enfeitado de bandeirinhas, banda na frente e três balizas de cada lado, girando seus bastões e mostrando as calcinhas. Cara, você precisa embarcar nesse trem e se afastar dos bêbados que tomam álcool puro e cheiram o próprio vômito para ficarem altos novamente e procuram na sarjeta guimbas de cigarro.
Bebeu mais dois drinques imaginários e jogou os copos para trás. Podia quase ouvi-los se despedaçando no chão. E, macacos me mordam, se não estivesse ficando alto. Era o Excedrin.
- Então, você embarca disse a Lloyd -, e como é bom estar ali. Meu Deus, positivamente. O trem é à coisa melhor e mais bonita de todo o desfile, e todo o mundo está nas ruas, batendo palmas, gritando e acenando para você. A não ser os bêbados arriados na sarjeta. Aqueles caras costumavam ser seus amigos, mas tudo é passado agora.
Levantou a mão vazia até a boca e bebeu o quarto. . . faltavam dezesseis. Progredia sensivelmente. Agitou-se um pouco no banco. Deixe-os olhar, se é assim que preferem. Tirem uma foto, gente, lembrança para a posteridade.
- Então você começa a ver coisas, Lloyd. Coisas que não via quando estava na sarjeta. O chão do vagão, por exemplo, não era nada, só tábuas de pinho, tão frescas que ainda expeliam seiva, e, se você tirasse os sapatos, com certeza absoluta se machucaria com uma farpa. As únicas coisas que existem no vagão são uns bancos compridos, com encostos altos, sem almofadas para você se sentar, na realidade, não são nada, mas simples bancos de igreja com um hinário a cada dois metros. Todas as pessoas sentadas nos bancos do vagão são mulheres sem busto, de vestidos longos, com uma fitinha no pescoço e o cabelo preso em coque tão apertado que quase se pode ouvi-lo estalando. E todos os rostos são achatados, pálidos e cheios de fervor, todos cantando “Vamo-nos encontrar no riiio, o lindo, lindo riiiiio”, e ali em frente eis uma puta fedorenta de cabelos louros, tocando órgão e pedindo para todos cantarem mais alto, cantarem mais alto. E alguém joga um livrinho de hinos na sua mão e diz: “Cante, irmão. Se espera continuar no vagão, tem que cantar de manhã, de tarde e de noite. Principalmente de noite”. E é quando você cai em si e vê o que é realmente o vagão, Lloyd. E uma igreja com grades nas janelas, uma igreja para as mulheres e uma prisão para você.
Parou. Lloyd tinha ido embora. Pior ainda, ele nunca tinha estado ali. Os drinques nunca tinham estado ali. Só as pessoas nos reservados, as pessoas do baile a fantasia, e ele podia quase ouvir as gargalhadas sufocadas, quando levavam as mãos à boca e apontavam, os olhos brilhando cheios de crueldade.
Rodopiou mais uma vez.
- Deixem-me...
(sozinho?)
Todos os reservados estavam vazios. As gargalhadas morreram como uma folha de outono. Jack olhou para o saguão vazio por um instante, os olhos bem abertos e sem expressão. Uma pulsação perceptível no centro da testa. E em sua alma uma certeza se formava, e essa certeza era de que ele estava ficando louco. Sentiu necessidade de pegar o banco do bar a seu lado, virá-lo de cabeça para baixo, e sair do lugar como um furacão. Ao invés disso, rodopiou e começou a cantar:
“Me role
na grama,
me role, me deite e faça de novo”.
O rosto de Danny surgiu à sua frente, não o rosto normal de Danny, alegre e atento, os olhos brilhando e muito abertos, mas o rosto catatônico e doentio de um estranho de olhos sem vida e opacos, chupando, como um bebê, o polegar. O que estava fazendo ali sentado, falando sozinho, como um adolescente, enquanto o filho estava lá em cima em algum lugar, agindo como um louco, como Wally Hoilis disse que Vic Stenger estava, antes de os homens de camisa branca terem vindo buscá-lo?
(Mas nunca encostei as mãos nele! Merda, não encostei!)
- Jack? - A voz era tímida e hesitante.
Ficou tão assustado que quase caiu do banco. Wendy estava de pé, junto à porta de vaivém, Danny em seus braços como uma cena idiota de um museu de cera de horror. Os três ali formavam uma cena que atingiu Jack intensamente: pouco antes do início do segundo ato de uma peça antiga que tratava de sobriedade, mas com uma montagem tão pobre que o cenógrafo esquecera de encher as prateleiras do Palácio do Pecado.
- Nunca encostei as mãos nele - disse Jack, veemente.
- Nunca, desde a noite em que quebrei seu braço. Nem sequer para surrá-lo.
- Jack, isso agora não importa. O que importa é.
- Isso importa! gritou. Esmurrou o bar, com força suficiente para fazer o pratinho vazio de amendoim saltar. - Importa, sim, merda, importa!
- Jack, temos que levá-lo embora das montanhas. Ele está.
Danny começou a se agitar. A expressão vaga de seu rosto começou a se desfazer como um bloco grosso de gelo. Os lábios se torciam, como se sentissem um gosto estranho. Os olhos arregalados. As mãos se erguiam, como se fossem se unir, e caíam.
Enrijeceu-se abruptamente nos braços da mãe. As costas curvaram-se, fazendo Wendy cambalear. E de repente ele começou a gritar, gritos loucos que saíam de sua garganta como flecha após flecha. O som parecia encher o andar vazio e voltar para eles. Deveria haver ali cem Dannys gritando de uma vez.
- Jack! - gritou ela, aterrorizada. - O Deus, Jack, o que há de errado com ele?
Ele desceu do banco, dormente da cintura para baixo, mais apavorado do que nunca em sua vida. Que buraco seu filho andara bisbilhotando? Que ninho escuro? E o que havia que pudesse picá-lo?
- Danny! - berrou. - Danny!
Danny o viu. Livrou-se dos braços da mãe com uma força repentina e feroz, que não lhe deu chance de segurá-lo. Ela esbarrou em um dos reservados e quase caiu dentro dele.
- Papai! - gritou, correndo para Jack, os olhos imensos e assustados. - Oh, papai, papai, foi ela! Ela! Oh, pa-paaaiii:..
Jogou-se nos braços de Jack como uma flecha cega, fazendo Jack balançar. Danny agarrou-se ao pai com força, a princípio parecendo esmurrá-lo como um lutador, depois apertando-lhe o cinto e soluçando junto à camisa do pai. Jack sentia o rosto do filho, quente, encostado na barriga.
Papai, foi ela.
Jack olhou para Wendy. Seus olhos eram como pequenas moedas de prata.
Wendy? - Voz macia, sussurrando. - Wendy, o que foi que você fez com ele?
Wendy olhou-o fixamente sem poder acreditar, o rosto pálido. Sacudiu a cabeça.
- Oh, Jack, você precisa saber. .
Lá fora, começara a nevar de novo.
Conversa na cozinha
Jack carregou Danny para a cozinha. O menino ainda estava soluçando muito, recusando-se a tirar o rosto do peito de Jack. Na cozinha, devolveu Danny a Wendy, que ainda estava espantada e sem poder acreditar.
- Jack, não sei do que ele está falando. Por favor, você precisa acreditar.
- Acredito - disse ele, apesar de, no fundo, admitir que lhe dava um certo prazer ver as posições invertidas, com tamanha rapidez. Mas sua raiva por Wendy era superficial. No fundo, sabia que seria mais fácil a esposa se matar do que ferir Danny.
A chaleira grande de chá estava no fogão, borbulhando. Jack jogou um saquinho de chá na xícara grande de cerâmica, e encheu-a pela metade com água quente.
- Há vinho aí na cozinha, não há? - perguntou a Wendy.
- O quê? Oh, sim. Duas ou três garrafas.
- Em qual armário?
Ela apontou, e Jack tirou uma das garrafas. Derramou uma boa quantidade na xícara de chá, guardou a garrafa, e encheu o resto com leite. Depois, acrescentou três colheres de açúcar e mexeu. Trouxe-a para Danny, que soluçava menos. Mas tremia, e seus olhos estavam arregalados e imóveis.
- Beba isto, doutor - disse Jack. - Tem um gosto horrível, mas vai fazê-lo sentir-se melhor. Pode beber, pelo papai?
Danny meneou a cabeça e segurou a xícara. Bebeu um pouco, fez uma careta, e olhou, indagativo, para Jack. Este balançou a cabeça, e Danny bebeu. Wendy sentiu um pouco de ciúme, sabendo que, se fosse por ela, o menino não beberia.
A propósito, veio-lhe um pensamento incômodo e assustador: Quisera ela culpar Jack? Seria tão ciumenta? Era como sua mãe teria pensado, e isso lhe parecia realmente uma coisa horrível. Lembrava-se de um domingo, quando o pai a levara ao parque e ela caíra do balanço, machucando os joelhos. Quando o pai a trouxe de volta para casa, a mãe gritou para ele: O que você fez? Por que não tomou conta dela? Que espécie de pai você é?
(Ela o desprezou até a morte; quando se divorciaram, já era muito tarde.)
Nunca dera a Jack o benefício da dúvida. Por menor que fosse. Wendy sentiu o rosto queimar, sabia que, se a coisa toda pudesse repetir-se, agiria e pensaria da mesma maneira. Carregava consigo uma parte de sua mãe sempre, fosse isso bom ou ruim.
- Jack. . . - começou ela, sem ter certeza se queria desculpar-se, ou se justificar. Qualquer uma das duas coisas, ela sabia, seria inútil.
- Agora não - disse ele.
Danny levou quinze minutos para beber metade da xícara e, a esta altura, já se mostrava visivelmente mais calmo. Os tremores haviam praticamente cessado.
Jack colocou as mãos solenemente sobre os ombros do filho.
- Danny, acha que pode nos contar exatamente o que aconteceu com você? E muito importante.
Danny passou os olhos de Jack para Wendy, de Wendy para Jack. O silêncio fez com que percebessem o assobio do vento lá fora, trazendo neve fresca de noroeste; o estalar e o gemido do velho hotel à espera de uma outra tempestade. Tal atordoamento veio a Wendy com força inesperada, como, às vezes, acontecia, semelhante a um aperto no coração.
- Quero. . . dizer tudo a vocês falou Danny. - Quem me dera eu tivesse contado antes. - Segurou a xícara, como que consolado com o calor.
- Por que não contou, filho? - Jack passou a mão no cabelo suado e caído sobre a testa de Danny.
- Porque tio Al arranjou emprego para você. E eu não podia entender como aqui podia ser bom e ruim ao mesmo tempo para você. Foi. . . - Olhou para os pais pedindo ajuda. Não tinha a palavra necessária.
- Um dilema? - Wendy, perguntou gentil. - Quando nenhuma das opções parecem boas?
- Isso mesmo. - Balançou a cabeça, aliviado.
- No dia em que você aparou os arbustos - falou Wendy -, eu e Danny tivemos uma conversa no caminhão. No dia da primeira rajada violenta de neve. Lembra-se?
Jack meneou a cabeça. O dia em que aparou os arbustos estava muito claro em sua mente.
Wendy suspirou.
- Acho que não conversamos muito, não foi, doutor?
Danny, a angústia personificada, sacudiu a cabeça.
- Sobre o que conversaram exatamente? - perguntou Jack. - Não sei se gosto de ver minha mulher e meu filho.
- .. .conversando sobre o quanto o amam?
- Seja lá o que for, não entendo. Sinto-me como se tive*e chegado ao cinema no meio do filme.
- Falávamos sobre você - disse Wendy, com calma. - E talvez não tenhamos dito tudo em palavras, mas nós dois sabíamos. Eu porque sou sua mulher, e Danny porque. .. simplesmente entende coisas.
Jack estava calado.
- Danny o disse muito bem, O lugar parecia bom para você. Ficaria longe das pressões que o faziam tão infeliz em Stovington. Seria seu próprio patrão, trabalhando com as mãos para poupar o cérebro. . . todo o seu cérebro. . . para poder escrever à noite. Depois. . . não sei bem quando. . . o lugar começou a parecer ruim para você. Passando aquele tempo todo lá embaixo no porão, revirando aqueles papéis velhos, toda aquela história antiga. Falando dormindo.
- Dormindo? - perguntou Jack. Seu rosto tinha uma expressão cautelosa e espantada. - Falo dormindo?
- A maior parte é bobagem. Certa vez, levantei para ir ao banheiro e você dizia: “Para o inferno com isso, mostrem pelo menos as pegadas, ninguém vai saber, ninguém nunca vai saber”. Outra vez você me acordou, praticamente gritando:
“Tirem as máscaras, tirem as máscaras, tirem as máscaras”.
- Jesus Cristo - exclamou Jack, passando a mão no rosto. Parecia doente.
- E seus velhos hábitos de quando bebia também. Mastigar Excedrin. Esfregar a boca a toda hora. Mal-humorado de manhã. E não conseguiu ainda terminar a peça, não é?
- Não. ainda não, mas é só uma questão de tempo. Tenho pensado em outra coisa... um novo projeto..
- Este hotel. O projeto sobre o qual Al Shockley telefonou. O que ele queria que você esquecesse.
- Como sabe? - vociferou Jack. - Estava ouvindo a conversa? Você.
- Não - disse ela. - Não poderia ouvir mesmo que quisesse, e você sabe disso. Danny e eu estávamos lá embaixo aquela noite. A mesa do telefone estava desligada. O telefone
lá de cima era o único do hotel que estava funcionando, porque estava ligado na linha direta. Você mesmo me disse isso.
- Como pode então saber o que Al me disse?
- Danny me contou. Danny sabia. Da mesma forma que, s vezes, sabe quando as coisas estão fora do lugar, ou quando as pessoas estão pensando em divórcio. - O médico disse.
Ela sacudiu a cabeça, impaciente.
- O médico é uma merda, e nós sabemos disso. Sempre soubemos. Lembra-se de quando Danny disse que queria ver os caminhões do Corpo de Bombeiros? Isso não foi intuição. Ele era apenas um bebê. Ele sabe coisas. E agora tenho medo...
- Olhou para os ferimentos no pescoço de Danny.
- Você realmente sabia por que tio Al telefonou para mim, Danny?
Danny meneou a cabeça.
- Ele estava com raiva mesmo, papai. Porque você telefonou para o Sr. Uliman, e este telefonou para ele. Tio Al não queria que você escrevesse nada sobre o hotel.
- Jesus - disse Jack, novamente. - Os ferimentos, Danny. Quem tentou estrangulá-lo?
O rosto de Danny escureceu.
- Ela! - exclamou o garoto. - A mulher naquele quarto. No 217. A mulher morta. - Seus lábios voltaram a tremer, e ele apanhou a xícara de chá e bebeu.
Jack e Wendy se entreolharam sobre a cabeça inclinada de Danny.
- Sabe alguma coisa sobre isso? - perguntou ele.
Ela sacudiu a cabeça.
- Sobre isso, não.
- Danny? - Jack levantou o rosto amedrontado do menino. - Tente, filho. Estamos aqui.
- Eu sabia que aqui era ruim - disse Danny, baixinho.
- Desde Boulder. Porque Tony me fez sonhar sobre isso.
- Que sonhos?
- Não consigo lembrar tudo. Ele me mostrou o Overlook de noite, com uma caveira e ossos cruzados na frente. E eu ouvia ruídos de batidas. Alguma coisa. . . não lembro o quê. . . me perseguindo. Um monstro. Tony me mostrou redrum.
- O que é isso, doutor? - perguntou Wendy.
O garoto sacudiu a cabeça.
- Não sei.
- Rum, como garrafa de rum? - perguntou Jack.
Danny sacudiu a cabeça novamente.
- Não sei. Então, nós chegamos aqui, e o Sr. Hallorann conversou comigo no carro. Porque ele é iluminado também.
Iluminado?
- É. - Danny fez um gesto com as mãos. - Ser capaz de entender coisas. Saber coisas. As vezes, a gente vê coisas. Como eu soube que tio Al telefonou. E o Sr. Hallorann, sabendo que vocês me chamam de doutor. O Sr. Hallorann, ele estava descascando batatas no Exército, quando ficou sabendo que o irmão dele tinha morrido num desastre de trem. E quando telefonou para casa, era verdade.
- Santo Deus - sussurrou Jack. - Você está inventando isso tudo, está, Dan?
Danny sacudiu a cabeça com violência.
- Não, juro por Deus. - Em seguida, com uma pontinha de orgulho, acrescentou: - O Sr. Hallorann disse que eu sou a pessoa mais iluminada que ele já conheceu. A gente conversou sem quase abrir nossas bocas.
Os pais se entreolharam novamente, completamente atordoados.
- O Sr. Hallorann quis ficar sozinho comigo porque estava preocupado - prosseguiu Danny. - Ele disse que aqui era um lugar ruim para os iluminados. Falou que vira coisas. Eu vi alguma coisa também. Logo depois que conversei com ele. Quando o Sr. Ullman estava mostrando as coisas para nós.
- O que foi? - perguntou Jack.
- Na suíte presidencial. Na parede perto da porta que dá para o quarto. Uma porção de sangue, e outras coisas. Coisa espirrada. Acho. . . que eram miolos.
- O meu Deus! - exclamou Jack.
Wendy estava agora muito pálida, os lábios quase cmzentos.
- Este lugar - continuou Jack. - Alguns caras ordinários foram donos daqui algum tempo atrás. Gente da Máfia de Las Vegas.
- Trapaceiros? - perguntou Danny.
- Sim, trapaceiros. - Olhou para Wendy. - Em 1966, um grandão chamado Vito Gieneili foi morto lá, com dois guarda-costas. Havia uma fotografia no jornal. Danny acabou de descrever a fotografia.
- O Sr. Hallorann disse que viu outras coisas - falou
Danny. - Uma vez foi no playground. E outra vez foi uma coisa ruim no apartamento 217. Uma empregada viu e perdeu o emprego porque falou nisso. Então, o Sr. Hallorann subiu e viu também. Mas não contou nada para ninguém, porque ele não queria perder o emprego. Mas falou para eu nunca ir lá. Mas eu fui. Porque acreditei quando ele disse que as coisas que a gente vê aqui não nos podem ferir. - Este final foi quase sussurrado, numa voz baixa e rouca, e Danny tocou os ferimentos inchados do pescoço.
- E o playground? - perguntou Jack, com uma voz estranha e casual.
- Não sei. O playground foi ele quem disse. Os arbustos em forma de animais.
Jack deu um pequeno pulo, e Wendy olhou-o curiosamente.
- Você viu alguma coisa por lá, Jack?
- Não - disse ele. - Nada.
Danny estava olhando para ele.
- Nada - disse o pai, com mais calma. E era verdade. Ele tinha sido vítima de uma alucinação. Foi só.
- Danny, temos que ouvir sobre a mulher - falou Wendy, gentilmente.
Então, Danny contou-lhes, mas suas palavras saíam aos borbotões, às vezes quase incompreensíveis, na pressa de vomitar tudo e se livrar do assunto; apertando-se cada vez mais de encontro ao peito da mãe, enquanto falava.
- Entrei - disse o garoto. - Roubei a chave mestra, e entrei. Era como se eu não pudesse me controlar. Eu precisava saber. E ela. . . a mulher. . . estava na banheira. Ela estava morta. Toda inchada. Ela estava pelada. . . não vestia nada. - Olhou desconsoladamente para a mãe. - E ela começou a se levantar, e ela me queria. Eu sei que sim, porque eu sentia. Ela não estava nem pensando do jeito que você e papai pensam. Era feio. . . era pensamento mau. . . como. . . como as vespas aquela noite no meu quarto! Só querendo machucar. Como as vespas.
Ele engoliu em seco e houve silêncio por um momento, tudo quieto enquanto a imagem das vespas se afundava dentro deles.
- Então, eu corri - continuou Danny. - Corri, mas a porta estava fechada. Deixei aberta, mas estava fechada. Não Pensei em simplesmente abrir de novo e sair correndo. Eu estava com medo. Então eu só. . . me encostei na porta e fechei meus olhos e pensei sobre o que o Sr. Hallorann disse, que tais coisas eram como desenhos de um livro, e se eu. . . ficasse dizendo para mim mesmo. . . você não está aí, vá embora, você não está aí... a mulher iria embora. Mas não funcionou.
Sua voz começou a se elevar histericamente.
- Ela me agarrou. . . me virou de frente. . . e eu vi os olhos dela. . . os olhos dela eram. . . e ela começou a me estrangular. . . eu sentia o cheiro dela. . . Sentia o cheiro de morte..
- Pare agora, ohhh - disse Wendy, alarmada. - Pare, Danny. Está tudo bem. E...
Já ia começar a cantarolar. Wendy Torrance, a cantora de qualquer hora, para qualquer coisa. Especial.
- Deixe-o terminar - disse Jack, peremptório.
- Não tem mais nada - falou Danny. - Eu desmaiei. Ou porque ela estava me estrangulando, ou porque eu estava com medo. Quando voltei a mim, estava sonhando que você e mamãe estavam brigando por minha causa, e que você queria fazer a “coisa feia” de novo, papai. Então, fiquei sabendo que não era um sonho. . . e que eu estava acordado. . . e. . . e fiz xixi na calça. Molhei minha calça como um bebê. - Sua cabeça caiu sobre o suéter de Wendy, e o garoto começou a chorar com uma fraqueza terrível, suas mãos largadas, caídas sobre as pernas.
Jack levantou-se.
- Tome conta dele.
- O que você vai fazer? - O rosto de Wendy estava cheio de medo.
- Vou subir até aquele quarto, o que você pensou que eu ia fazer? Tomar um cafezinho?
- Não, Jack. Não vá, por favor, não vá!
- Wendy, se há mais alguém no hotel, temos que saber.
- Não se atreva a nos deixar aqui sozinhos! - gritou ela, chegando a cuspir, tão forte era o grito.
- Wendy, isso é uma imitação perfeita de sua mãezinha.
Ela então começou a chorar, sem poder cobrir o rosto, porque Danny estava em seu colo.
- Sinto muito - falou Jack. - Mas tenho que ir, e você sabe. Sou a droga do zelador. Sou pago para isso.
Ela simplesmente chorava mais, e ele os deixou ali assim, saindo da cozinha, esfregando a boca com o lenço, enquanto a porta balançava atrás dele.
- Não se preocupe, mamãe. Vai correr tudo bem com ele. Ele não é iluminado. Nada por aqui pode feri-lo.
Em meio às lágrimas, ela disse:
- Não, não acredito nisso.
Tomou o elevador para subir, e era estranho, porque nenhum deles usara o elevador desde que se mudaram. Fechou a grade de metal e ela rangeu e sacudiu como louca, enquanto o elevador subia. Wendy sentia uma terrível claustrofobia no elevador, ele sabia. Ela visualizava os três, presos entre os andares, enquanto a tempestade se enraivecia lá fora, podia vê-los cada vez mais magros, mais fracos, morrendo de inanição. Ou, talvez, devorando-se uns aos outros, como aqueles jogadores de rúgbi fizeram. Ele se lembrava de um adesivo que tinha visto em um carro em Boulder. “Jogadores de rúgbi comem seus próprios mortos.”
Pensava em outros: “Você é aquilo que come”. Ou frases do cardápio. “Bem-vindo ao restaurante do Overlook, o orgulho das Rochosas. Coma sob o esplendor de Telhado do Mundo. Coxa humana grelhada, la spécialité de la maison.” O sorriso desprezivo brilhou mais uma vez em seu rosto. Quando o número 2 apareceu na parede, empurrou a grade para sua posição primitiva, e o elevador parou. Tirou o Excedrin do bolso, sacudiu três na mão e abriu a porta do elevador. Nada no Overlook o apavorava. Sentia que ele e o hotel simpatizavam um com O outro
Caminhou pelo corredor, jogando o Excedrin na boca, e mastigando um a um. Dobrou o corredor e tomou o corredor pequeno. A porta do apartamento 217 estava entreaberta, e a chave mestra estava pendurada na fechadura.
Franziu as sobrancelhas, sentindo uma onda de irritação e verdadeira raiva. Fosse o que fosse, o menino tinha violado uma ordem expressa. Fora informado, e de forma muito taxativa, de que algumas áreas do hotel estavam fora dos limites: o depósito, o porão e todos os quartos de hóspedes. Conversaria com Danny sobre isso, assim que o menino se acalmasse. Conversaria com ele ponderada, mas severamente. Havia muitos pais que fariam mais do que simplesmente conversar. Dariam umas boas palmadas, e talvez fosse disso que Danny precisasse. Se o menino tinha ficado com medo, não seria isso o que ele merecia?
Caminhou até a porta, retirou a chave mestra, meteu-a no bolso, e entrou. A luz estava acesa. Olhou a cama, viu que não estava desarrumada, e então foi direito ao banheiro. Uma curiosa certeza crescera dentro dele. Apesar. de Watson não ter mencionado nomes, nem números de apartamentos, Jack teve certeza de que este era o apartamento onde a mulher do advogado dormira com seu amante, e que este era o banheiro onde ela foi encontrada morta, cheia de barbitúricos e de álcool.
Abriu a porta espelhada do banheiro e entrou. A luz estava apagada. Acendeu-a e observou aquele cômodo que parecia um vagão de trem, decorado no estilo distinto do início do século XIX, e remodelado em estilo do século XX, que parecia ser comum a todos os banheiros do Overlook, excluindo os do terceiro andar - esses eram bizantinos, adequados à realeza, aos políticos, estrelas de cinema e mafiosos, que haviam se hospedado lá, no decorrer dos anos.
A cortina do chuveiro, cor-de-rosa, estava fechada protetoramente em volta da banheira com pés.
(no entanto se movia)
E pela primeira vez sentiu que a nova sensação de segurança (quase insolência) que se apossara dele quando Danny foi a seu encontro, gritando Foi ela! Foi ela!, o abandonava. Um dedo frio pressionou levemente a base de sua espinha, fazendo sua temperatura cair dez graus. Foi seguido por outros e, de repente, subiram por suas costas até a omoplata, tocando sua espinha como um instrumento selvagem.
A raiva que sentia de Danny desapareceu, e enquanto dava um passo à frente e empurrava a cortina de volta, sentiu sua boca seca e teve apenas pena do filho, e medo.
A banheira estava seca e vazia.
Alívio e irritação desabafaram num repentino “Pô! “, que escapou de seus lábios comprimidos, como uma pequena expiosão. A banheira tinha sido limpa e esfregada no fim da estação; fora a mancha de ferrugem debaixo das torneiras, tudo reluzia. Havia um cheiro longe, mas definido, de desinfetantes, do tipo que pode irritar o nariz durante semanas, meses, uma vez usado.
Curvou-se e passou os dedos pelo fundo da banheira. Seca como um osso. Nem um sinal de umidade, O menino tinha tido ou uma alucinação, ou um sonho. Sentiu raiva de novo. Foi quando o tapete do banheiro atraiu sua atenção. Inclinou-se para ele. O que fazia um tapete ali? Devia estar lá embaixo, no armário de roupas de cama e banho. A roupa toda estava lá. Nem as camas estavam realmente feitas nos quartos de hóspedes; os colchões estavam forrados com capas de plástico e cobertos com colchas. Pensou que Danny tivesse descido e apanhado - a chave mestra abriria o armário -, mas, por quê? Passou a ponta dos dedos em toda a extensão do tapete. Estava seco.
Voltou à porta do banheiro e ficou parado ali. Estava tudo em ordem. O menino tinha sonhado. Não havia nada fora do lugar. Estava confuso com a presença do tapete de banheiro, mas a explicação lógica era que alguma camareira, apressada como louca no último dia de temporada, simplesmente tivesse esquecido de apanhá-lo. A não ser por isso, tudo estava.
Suas narinas dilataram-se um pouco. Desinfetante, aquele cheiro peculiar, desinfetante. E.
Sabonete?
Certamente não. Mas, uma vez identificado, o cheiro era muito claro para não se sentir. Sabonete. Mas não daqueles sabonetes Ivory tamanho gigante, que se recebem nos hotéis ou motéis. Este odor era leve e perfumado, um sabonete de mulher. Tinha um cheiro rosado. Camay ou Lowila, a marca que Wendy sempre usara em Stovington.
(Não é nada. E sua imaginação.)
(Assim como os arbustos; no entanto se moveram.)
(Não se moveram!)
Atravessou a porta que dava para o hall, sentindo a dor de cabeça começar em suas têmporas. Muita coisa acontecera hoje, coisas demais. Não espancaria o menino, nem lhe daria palmadas, apenas conversaria com ele, mas, por Deus, não ia acrescentar a seus problemas o apartamento 217. Não com base num tapete de banheiro seco e num cheiro de sabonete Lowila. Ele...
Houve um som metálico atrás dele. Surgiu assim que suas mãos se fecharam em volta da maçaneta, e um observador poderia pensar que o aço da maçaneta carregava uma carga elétrica. Ele estremeceu violentamente, olhos arregalados, contorção dos músculos faciais, caretas.
Em seguida, controlou-se um pouco, soltou a maçaneta e voltou-se cuidadosamente Suas juntas estalaram. Começou a andar de volta à porta do banheiro, passo a passo.
A cortina do chuveiro, que ele tinha puxado para olhar dentro da banheira, estava agora fechada, O som metálico, que lhe parecera como movimento de ossos numa cripta, tinha sido dos anéis da cortina, no trilho. Jack olhou fixamente para a cortina. Tinha o rosto lívido, como se tivesse sido encerado, mas sentia um calor de medo por dentro, O mesmo que sentira no playground.
Havia alguma coisa atrás da cortina de plástico cor-de-rosa. Havia alguma coisa na banheira.
Podia sentir, embaciado e turvo, através do plástico, um formato quase amorfo. Poderia ser qualquer coisa. Uma ilusão de óptica. A sombra do chuveiro. Uma mulher morta, reclinada em seu banho, um sabonete Lowila em uma das mãos inchadas, enquanto esperava pacientemente por qualquer amante que aparecesse.
Jack ordenou a si mesmo que desse um passo à frente, com coragem, e abrisse a cortina. Para expor o que quer que pudesse estar lá. Ao invés disso, deu as costas, tremendo, passos largos, o coração batendo amedrontado dentro do peito, e voltou ao quarto.
A porta para o corredor estava fechada.
Olhou imobilizado para ela durante um longo segundo. Sentia o gosto do terror agora. No fundo da garganta, como o sabor de cerejas passadas.
Caminhou até a porta com os mesmos passos largos e trêmulos e forçou a maçaneta.
(Não vai abrir.)
Mas abriu.
Apagou a luz com um gesto desajeitado, pisou no corredor, fechou a porta sem olhar para trás. Lá dentro, parecia ouvir o ruído de alguma coisa molhada, longe, difícil de distinguir, como se alguma coisa tivesse acabado de se arrastar com surpresa, da banheira, para saudar um visitante, como se concluísse que o visitante estava indo embora antes do término das amenidades sociais, por isso corria para a porta, toda roxa e sorridente, para convidar o visitante a entrar novamente. Talvez para sempre.
Passos se aproximando da porta, ou seria apenas o bater de seu coração nos ouvidos?
Apalpou a chave mestra. Parecia escorregadia, incapaz de girar na fechadura. Segurou-a firme. Trancou a porta, e deu alguns passos atrás, encostando-se na parede em frente à porta, e um suspiro de alívio escapou-lhe. Fechou os olhos, e todas aquelas velhas frases começaram a desfilar por sua mente, parecia haver centenas delas,
(ficando doido com um parafuso solto o cara ficou maluco ficou tantã enlouqueceu endoidou biruta maluco)
todas com o mesmo significado: ficando louco.
- Não - choramingou, conscientizando-se com dificuldade de que tinha ficado reduzido a isto, choramingando com os olhos fechados como uma criança. - Oh, não, Deus. Por favor, Deus, não.
Mas debaixo da confusão de seus pensamentos caóticos, debaixo do martelo mecânico em que se transformou seu coração, podia ouvir o ruído leve e furtivo da maçaneta sendo virada para um lado e outro, como se alguma coisa trancada lá dentro tentasse inutilmente sair, alguma coisa que queria encontrá-lo, alguma coisa que gostaria de ser apresentada à sua família, enquanto a tempestade sacudia em torno deles, e a clara luz do dia tornava-se noite escura. Se abrisse os olhos e visse aquela maçaneta se mexendo, ficaria louco. Portanto, manteve-os fechados e, depois de algum tempo, houve calma.
Jack esforçou-se por abrir os olhos, meio convencido de que, quando o fizesse, ela estaria diante dele. Mas o corredor estava vazio.
Sentiu-se observado da mesma forma.
Olhou para o olho-mágico no centro da porta e imaginou o que aconteceria se se aproximasse e olhasse por ele. Com que se defrontaria?
Seus pés se moviam
(os pés não me faltarão agora)
antes que percebesse. Afastou-se da porta e caminhou pelo corredor principal, seus pés deslizavam na mata azul e negra do tapete. Parou na metade do caminho para as escadas e olhou para o extintor de incêndio. Achou que as dobras da mangueira estavam ajeitadas de forma um pouco diferente. E tinha quase certeza de que o bocal de metal estava virado de frente para o elevador, quando chegou ao corredor. Agora estava virado para o outro lado.
- Não vi nada disso - falou Jack Torrance, muito claramente. Seu rosto estava branco e desfigurado, e a boca continuava tentando sorrir.
Mas não desceu pelo elevador. Ele se parecia muito com uma boca aberta. Demasiadamente. Foi pela escada.
O veredicto
Entrou na cozinha e olhou-os, jogando a chave mestra para cima com a mão esquerda, e aparando-a. Danny estava pálido e cansado. Wendy tinha chorado, ele notou; os olhos dela estavam vermelhos e com olheiras. Sentiu uma súbita explosão de alegria por isso. Não estava sofrendo sozinho, isto era certo.
Olharam-no em silêncio.
- Nada por lá - disse ele, surpreso com a sinceridade de sua voz. - Absolutamente nada.
Jogava a chave mestra para cima, sorrindo, seguro, para eles, observando o ar aliviado em seus rostos, e pensou que jamais em sua vida tinha tido tanta vontade de beber quanto agora.
O quarto
À tardinha, Jack apanhou uma cama de armar no depósito do primeiro andar e colocou-a no canto de seu quarto. Wendy esperara que o menino não fosse dormir bem à noite, mas antes de Os Waltons terem terminado, Danny já estava cochilando, e, quinze minutos depois de o cobrirem, ele dormia a sono solto,
imóvel, uma das mãos sob a bochecha. Wendy sentou-se, olhando para ele, marcando o livro de bolso com o dedo.
Jack sentara-se à escrivaninha, examinando a peça.
- Merda - disse Jack.
Wendy desviou o olhar de contemplação a Danny.
- Que é?
- Nada.
Baixou os olhos para a peça com mau humor. Como pôde ter achado isso bom? Era pueril. Tinha sido feita milhares de vezes. Pior, não tinha idéia de como ia terminá-la. Já tinha parecido simples. Denker, num acesso de cólera, agarra o espeto junto da lareira e bate em Gary até vê-lo morto. Em seguida, parado de pernas abertas sobre o corpo, o espeto sujo de sangue em uma das mãos, grita para o público: “Está por aqui, em algum lugar, e eu vou encontrar!” Então, ao apagar das luzes, e ao cair do pano, o público vê o corpo de Gary, de bruços, na frente do palco, enquanto Denker caminha a passos largos para a estante e, agitadamente, começa a arrancar os livros das prateleiras, olhando-os, jogando-os para o lado. Achou que o tema já tinha sido muito explorado para poder ser considerado novidade, novidade seria se a peça conseguisse uma temporada de sucesso na Broadway: uma tragédia em cinco atos.
Mas, além de sua repentina mudança de interesse para a história do Overlook, uma outra coisa acontecera. Desenvolvera sentimentos opostos com relação a suas personagens. Isso era algo muito recente. Em geral, gostava de todas as suas personagens, as boas e as más. Ficava contente por isso. Permitialhe tentar ver todos os seus ângulos, e entender mais claramente suas motivações. Sua história favorita, vendida para uma pequena revista do sul do Maine chamada Contraband, era uma peça de nome Eis aqui o Macaco, Paul DeLong. Era sobre um corruptor de crianças, a ponto de cometer suicídio em seu quarto. O nome do corruptor de crianças era Paul DeLong, Macaco para os íntimos. Jack gostava muito de Macaco. Sentia pena de suas necessidades bizarras, sabendo que ele não era o único culpado pelos três crimes de estupro, no passado. Havia pais ruins, o pai dele o espancava, exatamente como seu próprio pai, a mãe era uma molenga e tola, como sua mãe fora. Uma experiência homossexual no curso primário. Humilhação em público. Experiências piores no científico e na universidade. Fora preso e enviado a um estabelecimento para doentes mentais, depois de se exibir para duas menininhas que desciam do ônibus escolar. Pior que tudo, tivera que sair de lá, abandonado pelas ruas, porque o diretor decidira que ele estava bem, O nome desse homem era Grimmer. Grimmer sabia que Macaco DeLong apresentava sintomas anormais, mas escrevera o relatório bom e promissor, e o deixara ir de qualquer forma. Jack gostava e simpatizava com Grimmer, também. Grimmer tinha que dirigir um estabelecimento sem pessoal competente e sem verba, e tentar manter a coisa toda à custa de saliva, cercas de arame e donativos pequenos, dotações do governo estadual que tinha que se defrontar com os eleitores. Grimmer sabia que Macaco podia relacionar-se com outras pessoas, que não sujava a calça, e nem tentava apunhalar seus companheiros com uma tesoura. Não pensava que era Napoleão. O psiquiatra que cuidava do caso de Macaco achava que suas chances seriam bem melhores na rua, e ambos sabiam que, quanto mais tempo um indivíduo fica num hospital psiquiátrico, mais se torna dependente daquele ambiente fechado, como um viciado em drogas. Ao mesmo tempo, havia gente saindo pela janela. Paranóicos, esquizóides, ciclotímicos, semicatatônicos, homens que afirmavam ter ido ao céu em discos voadores, mulheres que haviam queimado a genitália dos filhos, alcoólatras, piromaníacos, cleptomaníacos, maníaco-depressivos, suicidas. Mundo cão, rapaz. Se não estiver muito bem regulado, vai sacudir, espernear e rolar, antes de completar trinta anos. Jack compreendia os problemas de Grimmer. Entendia os pais das vítimas assassinadas. Tinha pena das próprias crianças mortas, claro. E de Macaco DeLong. Deixe que o leitor o culpe. Naquela época não queria julgar. O manto de moralista pesava-lhe sobre os ombros.
Começara A pequena escola com a mesma veia otimista. Mas, ultimamente, começara a escolher os lados, e, ainda pior, chegara a detestar seu herói, Gary Benson. A princípio concebido como um menino inteligente, mais amaldiçoado do que abençoado pelo dinheiro, um menino que queria acima de tudo colecionar notas altas, para poder ingressar numa boa universidade por merecimento e não porque o pai mexera os pauzinhos, tornara-se para Jack uma espécie de pudico, um seminarista diante do altar de conhecimentos, ao invés de um coroinha contrito, um modelo visível das virtudes dos escoteiros, por dentro um cínico, cheio, não de inteligência (como tinha sido idealizado, a princípio), mas apenas de uma esperteza animal dissimulada. Durante toda a peça se dirigia a Denker infalivelmente como “senhor”, exatamente como Jack ensinara ao próprio filho a se dirigir às pessoas mais velhas e de mais autoridade. Achava que Danny usava a palavra muito sinceramente, e Gary Benson, como a princípio idealizado, também, mas, assim que começara o quinto ato, vinha-lhe cada vez mais forte que Gary usava a palavra de maneira satírica, exteriormente um cara correto, enquanto em seu íntimo fazia caretas e olhava de esguelha para Denker. Denker, que jamais possuíra qualquer das coisas que Gary tinha. Denker, que tivera de trabalhar a vida inteira, apenas para se tornar diretor de uma única escolinha. Defrontava-se com a ruína, por causa de um menino rico, bonito, aparentemente inocente, que colara nas provas finais, e tinha então espertamente disfarçado. Jack vira Denker, o professor, não muito diferente dos apavorados pequenos césares sul-americanos, nos seus remos de bananas, mantendo os dissidentes contra o muro da quadra mais próxima de tênis ou handball, um superfanático em um atoleiro relativamente pequeno, um homem cujos caprichos se transformam numa cruzada. No início, queria usar a peça como um microcosmo para dizer alguma coisa sobre o abuso do poder. Agora, tinha uma tendência sempre maior de ver Denker como um Sr. Chips, e a tragédia não era uma tortura intelectual de Gary Benson, mas a destruição de um professor e diretor velho, incapaz de ver através do cínico embuste desse monstro mascarado de menino.
Não pudera terminar a peça.
Sentava-se agora olhando para ela, com o olhar zangado, imaginando se havia algum modo de salvar a situação. Na realidade, não achava que houvesse. Começara com uma peça, e de alguma forma ela se transformara em outra. Abracadabra. Bem, que diabo. De qualquer forma, já tinha sido feita antes. Era um caminhão de merda. E por que enlouquecia em cima dela, hoje à noite? Depois do dia que passara, não se admirava por não Conseguir raciocinar.
- ... levá-lo?
Levantou os olhos, tentando afastar as teias de aranha.
- Hein?
Eu disse: como vamos levá-lo? Temos que levá-lo daqui, Jack.
Por um momento, seu raciocínio ficou tão embotado que nem sequer tinha certeza sobre o que a esposa estava falando. Compreendeu então, e deu uma gargalhada.
Diz isso como se fosse muito fácil.
- Não quis dizer. .
- Não há problema, Wendy. Vou apenas mudar de roupa naquela cabine telefônica do saguão, e levá-lo voando em minhas costas até Denver. Super-Homem Jack Torrance, era assim que me chamavam nos velhos tempos.
O rosto de Wendy demonstrou uma leve mágoa.
- Entendo o problema, Jack. O rádio está quebrado. A neve.. . mas você precisa entender o problema de Danny. Meu Deus, será que você não entende? Ele ficou quase catatônico, Jack! E se ele não tivesse melhorado?
- Mas melhorou - falou Jack, em poucas palavras. Ele também tinha ficado com medo dos olhos sem expressão de Danny, sem emoção, claro que tinha. A princípio. Mas, quanto mais pensava no assunto, mais imaginava se não teria sido uma mentirinha, para se livrar do castigo. Afinal de contas ele havia violado uma ordem que lhe tinha sido expressamente dada.
- Mesmo assim - disse ela. Aproximou-se dele e sentou-se na ponta da cama junto da escrivaninha. Seu rosto estava preocupado e surpreso. - Jack, os ferimentos no pescoço dele! Foi alguma coisa! E quero afastá-lo disso!
- Não grite. Minha cabeça está doendo, Wendy. Estou tão preocupado quanto você, portanto, por favor. . não. grite.
- Está bem - disse ela, baixando a voz. - Não vou gritar. Mas não o entendo, Jack. Alguém está aqui conosco. E não é alguém muito interessante. Temos que descer a Sidewinder, não só Danny, como todos nós, Rapidamente. E você.
você fica aí sentado lendo sua peça!
- Temos que descer, temos que descer. . . você só fica dizendo isso. Acho que você pensa que eu realmente sou um super-homem.
- Acho que você é meu marido - falou Wendy com calma, e baixou o olhar para suas mãos.
As têmporas de Jack latejavam. Bateu o original da peça contra a mesa, desalinhando a pilha de papel e amassando as folhas de baixo.
Está na hora de você ouvir algumas verdades, Wendy. Você não parece tê-las assimilado, como dizem os sociólogos. Está tudo solto em sua cabeça, como uma porção de bolas de bilhar. Você precisa aceitá-las. Precisa entender que estamos cercados pela neve.
Danny, de repente, começou a ficar inquieto na cama. ainda dormindo, começou a virar de um lado para o outro. Da mesma maneira que ficava, quando nós brigávamos, pensou Wendy, sombria. E estamos fazendo o mesmo de novo.
- Não o acorde, Jack. Por favor.
Ele olhou para Danny e um pouco do rubor de suas faces havia desaparecido.
- OK. Desculpe-me. Desculpe-me se pareci irritado, Wendy. Não é por sua causa. Mas eu quebrei o rádio. Se a culpa é de alguém, tem que ser minha. Era nosso grande meio de comunicação com o mundo exterior. Acabou-se a brincadeira. Por favor, venha nos buscar, Sr. Guarda-Florestal, não podemos ficar até tão tarde.
Não - disse ela, e colocou a mão em seu ombro. Ele encostou a cabeça na mão dela. Ela ajeitou o cabelo dele com a outra mão. - Acho que tem algum direito, depois do que o acusei. As vezes, sou como minha mãe. Posso ser uma cadela.
Mas você precisa entender que algumas coisas... são difíceis
de se superar. Tem que entender isso.
- Você quer dizer o braço dele? - Seus lábios se estreitaram.
Sim - disse Wendy, e continuou rapidamente. - Mas não é só você. Preocupo-me quando ele vai brincar lá fora. Preocupo-me com o fato de ele querer uma bicicleta no ano que vem, mesmo sendo uma com rodinhas auxiliares. Preocupo-me com seus dentes, sua Visão, e com esta coisa que ele chama de luz. Preocupo-me. Porque ele é pequeno; e parece tão indefeso, e porque. . . porque alguma coisa neste hotel parece desejá-lo. E vai passar por cima de nós para apanhá-lo, se for preciso. É por isso que temos que levá-lo daqui, Jack. Sei disso! Sinto isso! Temos que levá-lo.
As mãos dela apertaram-se dolorosamente nos ombros do marido, por causa da agitação, mas ele ficou imóvel. Uma de suas mãos encontrou o seio esquerdo da mulher, e ele começou a acariciá-lo por cima da blusa.
Wendy - disse ele, e parou. Esperou que ele reestruturasse o que quer que fosse dizer. A mão forte sobre seu seio era gostosa e apaziguadora. - Eu poderia descer deslizando com ele. Ele poderia andar sozinho metade do caminho, mas eu teria que carregá-lo a maior parte do tempo. Significaria ter que acampar uma, duas ou três noites. Isso implicaria preparar uma mochila para carregar os utensílios e os colchonetes enrolados. Temos o rádio AM/FM, portanto poderíamos escolher um dia quando a previsão do tempo previsse três dias de estiagem. Mas se a previsão estivesse errada - concluiu, a voz macia e comedida - acho que poderíamos morrer.
O rosto dela empalidecera. Parecia transparente, quase fantasmagórico. Ele continuava a acariciar-lhe o seio, esfregando a ponta do polegar no mamilo.
Ela emitiu um som suave. . . por causa das palavras do marido, ou da leve pressão em seu seio, ele não sabia. Levantou um pouco a mão e desabotoou o primeiro botão de sua blusa. Wendy mexeu um pouco as pernas. De repente seus jeans ficaram muito apertados, quase agradavelmente irritantes.
- Significaria ter que deixá-la sozinha porque você em matéria de caminhar na neve não vale um tostão. Seriam três dias ao deus-dará. Quer isso? - Sua mão desceu ao segundo botão, afastou-o, e o espaço entre os dois seios ficou à mostra.
- Não - disse ela com uma voz um pouco cheia. Olhou para Danny. Tinha parado de se virar de um lado para outro. O polegar voltara à boca. Tudo bem. Mas Jack estava omitindo alguma coisa. Tudo era desanimador, Haveria alguma coisa a mais. . . o quê?
- Se ficarmos - disse Jack, desabotoando o terceiro e o quarto botões com aquela mesma lentidão deliberada -, um guarda-florestal, ou um fiscal de caça, virá aqui bisbilhotar para descobrir como estamos. Nesse momento, nós, simplesmente, diremos que queremos descer. Ele irá providenciar. - Alisou seu busto pelo V da blusa aberta, curvou-se, e encaixou os lábios em um mamilo. Estava duro e levantado. Deslizou a língua devagar de um lado para outro, de um jeito que sabia que ela gostava. Wendy gemeu um pouco e arqueou as costas.
Alguma coisa que eu esqueci?)
- Amor? - ela perguntou. Suas mãos buscavam a cabeça do marido, de tal forma que, quando ele respondeu, a voz estava amortecida pela carne da mulher. - Como é que o guarda-florestal nos levaria?
Ele levantou um pouco a cabeça para responder, e então colocou a boca no outro mamilo.
- Se o helicóptero não puder ser utilizado, acho que teria que ser em um snowmobile 1
Mas temos um! Uliman disse que sim!
1 Veículo a motor, adaptado especialmente para andar na neve, e equipado com esquis no lugar de rodas. (N. da T.)
Sua boca gelou no seio dela por um momento, e então ele se sentou. O próprio rosto de Wendy estava vermelho, e os olhos faiscando. Os de Jack, por outro lado, estavam calmos como se ele estivesse lendo um livro meio sem graça ao invés de tirar um sarro com a mulher.
- Se há um snowmobile, não há problema - continuou Wendy, animada. - Podemos descer os três juntos.
- Wendy, nunca dirigi um snowmobile em minha vida.
- Não pode ser tão difícil de se aprender. Lá em Vermont, a gente vê crianças de dez anos dirigindo-os pelos campos. . . apesar de não se saber o que passa pela cabeça dos pais dessas crianças. E você tinha uma moto quando nos conhecemos.
- Jack tinha uma Honda 350 cc. Trocara-a por um Saab pouco depois que Wendy e ele foram viver juntos.
- Acho que poderia - disse ele, devagar. - Mas imagino em que estado deve estar a manutenção. Ullman e Watson.
eles dirigem este lugar de maio a outubro. Só têm o verão na cabeça. Certamente não haverá gasolina nele. Pode estar sem velas e bateria. Não quero que construa castelos, Wendy.
- Quanto à gasolina, não há problema disse ela, agora bastante excitada com a idéia. Tanto nosso carro quanto o caminhão do hotel estão cheios. Há gasolina para o gerador de emergência lá embaixo, também. E deve haver algum latão de gasolina naquele depósito, para você poder levar um pouco mais como reserva.
Sim - disse ele. - Há sim. - Na realidade, havia dois latões, um com vinte e outro com dez litros.
- Aposto como as velas e a bateria estão lá também. Ninguém guardaria um snowmobile num lugar e as velas e as baterias noutro, guardaria?
- Não parece possível, não é? - Levantou-se e caminhou até onde Danny dormia. Uma mecha de cabelo caíra sobre a testa do menino, e Jack ajeitou-a delicadamente. Danny nem se mexia.
E se conseguir consertá-lo, você nos leva embora? - perguntou Wendy, por trás dele. - No primeiro dia em que o rádio informar bom tempo?
Por um momento, ele não respondeu. Ficou parado olhando o filho, e seus sentimentos se dissolveram numa onda de amor. Ele era como ela dissera, vulnerável e frágil. As marcas no pescoço estavam salientes.
- Sim - respondeu. - Vou consertá-lo, e nós vamos dar o fora o mais depressa possível.
- Graças a Deus!
Ele se voltou. Wendy tinha tirado a blusa e deitado na cama, a barriga achatada, os seios apontados para o teto. Brincava com eles, preguiçosamente.
Depressa, senhores - disse ela, baixinho. - Está na hora.
Depois, sem nenhuma luz acesa no quarto a não ser o abajur que Danny trouxera de seu quarto, ela deitou-se no regaço dos braços do marido, sentindo-se deliciosamente em paz. Achava difícil acreditar que repartiam o Overlook com um assassino clandestino.
Jack?
Huuuuuuum?
O que aconteceu com ele?
Jack não respondeu diretamente.
- Ele tem realmente alguma coisa. Algum talento que nos falta. A maioria de nós, me perdoe. E talvez o Overlook tenha também.
- Fantasmas?
- Não sei. Não no sentido de Algernon Blackwood, com certeza. Seria mais como que resíduos de sensações das pessoas que aqui ficaram. Coisas boas e coisas ruins. Neste sentido, suponho que todo grande hotel tenha seus fantasmas. Especialmente os velhos.
Mas uma mulher morta na banheira . . Jack, ele não está ficando louco, está?
Abraçou-a rapidamente.
- Sabemos que ele entra. . . bem, em transe, na falta de uma palavra melhor. . . de vez em quando. Sabemos que, quando está em transe, ele às vezes. . . vê?. . . coisas que não entende. Se os transes premonitórios são possíveis, são provavelmente funções do subconsciente. Freud afirmou que o subconsciente nunca fala em linguagem literal. Apenas através de símbolos. Se você sonha que está numa padaria onde ninguém fala sua própria língua, pode ser por causa de preocupações suas em manter a família, Ou talvez simplesmente porque ninguém o compreende. Já li que sonhar que se está caindo denota sensações de insegurança. Jogos, pequenos jogos. O consciente de um lado da rede, o subconsciente do outro, arremessando uma imagem infantil, total, para lá e para cá. O mesmo com relação a doentes mentais, e intuições, tudo isso. Por que a premonição seria diferente? Talvez Danny realmente tenha visto sangue nas paredes da suíte presidencial. Para um menino de sua idade, a visão de sangue e o conceito de morte estão interligados. Para as crianças, a imagem é sempre mais acessível que o conceito, de qualquer forma. William Carlos Williams sabia que seria um pediatra. Quando crescemos, os conceitos tornam-se mais fáceis, e deixamos as imagens para os poetas. . . isto é só conversa fiada.
- Gosto de sua conversa fiada.
- Folgo em saber.
- As marcas no pescoço, jack. Essas são verdadeiras.
- Sim.
Ficaram em silêncio por muito tempo. Começara a pensar que Jack tivesse adormecido, e ela mesma já estava meio zonza, quando ele disse:
- Tenho duas explicações para isso. E nenhuma das duas envolve uma quarta pessoa no hotel.
- Quais? - Wendy se apoiou num cotovelo.
- Estigmas, talvez.
Estigmas? Isso não é quando as pessoas sangram na Sexta-Feira Santa ou coisa parecida?
Sim. Às vezes, pessoas que acreditam muito na dívindade de Cristo apresentam marcas que sangram nas mãos e pés durante a Semana Santa. Era mais comum na Idade Média do que agora. Naquela época, tais pessoas eram consideradas abençoadas por Deus. Não creio que a Igreja Católica tenha considerado qualquer uma delas como milagres, sem rodeios, o que foi muito inteligente da parte deles. Os estigmas não são muito diferentes de algumas coisas que os iogues fazem. Só que agora são mais bem compreendidos, só isso. As pessoas que entendem da interação mente-corpo... estudam-na, quero dizer, ninguém entende. . . acredite, temos muito mais controle sobre nossas funções involuntárias do que se poderia pensar. Podem-se diminuir os batimentos cardíacos, se se pensar bastante. Pode-se acelerar o próprio metabolismo. Fazer-se suar mais. Ou fazer-se sangrar,
- Você acha que Danny pensou para aqueles ferimentos aparecerem no pescoço? Jack, simplesmente não posso acreditar nisso.
- Acredito que seja possível, apesar de não me parecer provável. A melhor hipótese é de que ele mesmo o tenha feito.
- A si mesmo?
- Ele já entrou nesses “transes”, e se machucou tempos atrás. Lembra-se daquele dia na mesa do jantar? Mais ou menos há dois anos, eu acho. Estávamos danados da vida um com o outro. Ninguém conversava muito. Então, de repente, seus olhos se enrolaram, e ele meteu a cara direto em cima do prato. E em seguida caiu. Lembra-se?
- Sim - disse ela. - Claro que sim. Pensei que ele estivesse tendo uma convulsão.
- De outra vez estávamos no parque - falou Jack. - Só Danny e eu. Sábado de tarde. Ele estava sentado num balanço, balançando-se. Caiu no chão. Era como se tivesse levado um tiro. Corri, apanhei-o e de repente ele voltou a si. Piscou para mim e disse: “Machuquei a barriga. Diga a mamãe para fechar as janelas do quarto, se chover”. E naquela noite choveu à beça.
- Sim, mas...
- E ele aparece sempre com cortes e cotovelos esfolados. Suas canelas parecem um campo de batalha. E quando se pergunta onde foi que ele arranjou esse ou aquele machucado, ele simplesmente diz: “Oh, eu estava brincando, e isso foi o final da brincadeira”.
Jack, toda criança se arrebenta e se machuca. Com meninos pequenos é muito comum, desde a fase em que estão aprendendo a andar, até os doze ou treze anos.
- Tenho certeza de que Danny também faz das suas - respondeu Jack. - É um menino ativo. Mas me lembro daquele dia no parque, e aquela noite na mesa de jantar. E imagino se algumas quedas e machucados de nosso filho advêm simplesmente de desmaios. Isso que o Dr. Edmonds disse que Danny fez no consultório, pelo amor de Deus!
Sim. Mas as marcas no pescoço eram dedos. Eu juraria. Isso não foi nenhum resultado de um tombo.
- Ele entra em transe - disse Jack. Talvez veja alguma coisa que tenha acontecido naquele quarto. Uma briga. Talvez um suicídio. Emoções violentas. Não é a mesma coisa que assistir a um filme; ele está num estado altamente sugestionável. Ele está bem no centro da coisa maldita. Talvez seu subconsciente esteja visualizando o que quer que tenha acontecido, de maneira simbólica. .. como uma mulher morta que ressuscitou, um zumbi, uma assombração, espírito maléfico, pode escolher o termo.
- Está me deixando arrepiada - falou Wendy, com a voz cheia.
- Eu mesmo estou. Não sou nenhum psiquiatra, mas tudo se encaixa muito bem. A mulher morta andando, como um símbolo de emoções mortas, vidas mortas, que simplesmente não desistem, nem desaparecem. . mas devido ao fato de ela ser uma imagem do seu subconsciente, ela também é ele. No estado de transe, o Danny consciente está submerso. A imagem do subconsciente está mexendo os pauzinhos. Portanto, Danny colocou as mãos em volta do pescoço e.
- Pare - disse ela. - Já imagino o quadro. Acho que deve ser mais pavoroso do que ver um estranho se arrastando pelos corredores, Jack. Você pode fugir de um estranho, mas não de você mesmo. Está falando de esquizofrenia.
- De um tipo muito limitado - disse Jack, um pouco contrafeito. - E de natureza muito especial. Porque ele parece capaz de ler pensamentos, e realmente parece ter, de tempos em tempos, um conhecimento antecipado de fatos. Não acho que isso seja uma doença mental, por mais que tente. De qualquer forma, todos temos traços de esquizofrenia em nós. Acho que, à medida que Danny for crescendo, vai saber controlar isso.
- Se você estiver certo, então é imperativo que o levemos daqui. Não importa o que tenha, este hotel o está tornando pior.
- Eu não diria isso - objetou ele. - Se fosse obediente, em primeiro lugar não teria nunca subido àquele quarto. Isso nunca teria acontecido.
- Meu Deus, Jack! Está querendo dizer que o fato de quase ter sido estrangulado foi um. . . castigo por passar dos limites?
- Não... não. Claro que não. Mas...
- Nada de mas - falou Wendy, sacudindo violentamentea cabeça. - A verdade é que estamos supondo. Não temos ideia de quando ele vai dobrar um corredor e se deparar com um daqueles. . . filmes de terror de curta metragem, sei lá eu. Temos que levá-lo embora daqui. - Riu um pouco na escuridão.
Daqui a pouco nós estaremos vendo coisas.
Não diga besteira - disse Jack, e na escuridão do quarto viu os leões agrupando-se na alameda, não mais na posição original, mas em posição de guarda, leões famintos de novembro. Um suor frio brotou-lhe na testa.
Você não viu nada mesmo, não é? - perguntou ela.
- Isto é, quando subiu até o quarto. Não viu nada?
Os leões haviam desaparecido. Via agora uma cortina de chuveiro cor-de-rosa com uma sombra por trás. A porta fechada. Aquele barulho amortecido e rápido, e ruídos que poderiam ser passos. Seus terríveis batimentos cardíacos, enquanto ele lutava com a chave mestra.
- Nada - respondeu, e era verdade. Estava confuso, sem ter certeza do que estava acontecendo. Não tivera oportunidade de analisar seus pensamentos à procura de uma explicação razoável sobre as marcas no pescoço do filho. Ele mesmo tinha estado sugestionável, com todos os diabos. Alucinações, às vezes, podiam ser contagiosas.
- E não mudou de idéia? Com relação ao snowmobile, digo.
As mãos dele se apertaram a seu lado.
(Pare de me chatear!)
Disse que iríamos, não disse? Irei. Agora vá dormir. Foi um dia muito longo e muito duro.
- E como falou Wendy. Houve um ruído de lençóis quando ela se virou para ele e beijou seu ombro. - Amo-o, jack.
Eu também a amo disse ele, mas estava somente dizendo palavras. As mãos continuavam cerradas. Eram como pedras nas pontas dos braços. A testa latejando. Ela não dissera uma palavra sobre o que aconteceria a eles depois que descessem, quando a festa terminasse. Nem uma palavra. Tinha sido porque Danny isso, Danny aquilo, e Jack, tenho tanto medo. Oh sim, ela tinha medo de uma porção de lobisomens imaginários e sombras, muito medo. Mas também não faltavam os verdadeiros. Quando chegassem a Sidewinder, estariam com sessenta dólares e a roupa do corpo. Nem sequer um carro. Mesmo que Sidewinder tivesse uma casa de penhores, o que não era o caso, não possuíam nada para empenhar, só o anel de noivado de brilhantes de Wendy e o rádio Sony AMfFM. Um avaliador poderia dar vinte dólares. Um avaliador bonzinho. Não haveria emprego, nem temporário, talvez só como limpador de neve, por três dólares a tarefa. O quadro de Jack Torrance, trinta anos, que já publicara um conto na Esquire e que alimentava sonhos – em hipótese alguma sonhos descabíveis, ele sentia - de se tornar um importante escritor da década seguinte, com uma pá nos ombros, batendo de porta em porta. . . aquele quadro de repente ficou mais claro do que os leões, e ele apertou ainda mais as mãos, sentindo as unhas enfiadas nas palmas, e tirando sangue em místicas meias-luas. John Torrance, na fila para trocar os seus sessenta dólares por vales de comida, na fila, novamente, da Igreja Metodista de Sidewinder para receber donativos e olhares maldosos dos moradores. John Torrance explicando a Al que eles simplesmente tinham que partir, tinham que desligar a caldeira, tinham que abandonar o Overlook e tudo que continha, exposto aos vândalos ou ladrões em snowmobiles, porque, veja, Al, attendez-vous, Al, há fantasmas por lá, e estão atrás de meu filho. Adeus, Al. Pensamentos do capítulo IV - chega a primavera de John Torrance. O que mais? Qualquer coisa? Poderia conseguir chegar até a costa oeste no Volkswagen, supunha ele. Uma bomba nova de gasolina resolveria o problema. Oitenta quilômetros a oeste, e tudo em declive, podia-se com certeza colocar o Fusca em ponto morto e ir até Utah. Continuar até a ensolarada Califórnia, terra das laranjas e das oportunidades. Um homem com um excelente antecedente de alcoolismo, espancador de aluno, e caçador de fantasmas, poderia, sem duvida, se fazer. Como preferir. Engenheiro de manutenção - limpando ônibus interestadual. Negócio com carros - lavar carros com macacão de borracha. Artes culinárias, talvez, lavar pratos num restaurante. Possivelmente, uma posição mais responsável, num posto de gasolina. Um trabalho que, inclusive, continha estímulos intelectuais em conseguir troco, e escrever notas. Posso darlhe vinte e cinco horas por semana pelo salário mínimo. Isso era duro num ano em que o pão custava sessenta cents a forma.
O sangue começou a escorrer das palmas das mãos. Como estigmas, oh, sim. Apertou mais, martirizando-se com a dor. A mulher dormia a seu lado, por que não? Não havia problemas.
Concordara em levar Danny e ela para longe dos lobisomens e não havia problemas. Então veja você, Al, achei que a melhor coisa a fazer seria.
(matá-la.)
O pensamento veio de lugar nenhum, nu e sem adornos. A necessidade de derrubá-la para fora da cama, nua, desnorteada, acabando de acordar; esmurrá-la, agarrar seu pescoço como o caule verde de uma árvore, e estrangulá-la, polegares na traquéia, os dedos apertados no topo da espinha, sacudindo sua cabeça e batendo-a contra o chão, uma vez atrás da outra, batendo, batendo, amassando, esmigalhando. Agite e balance, meu bem. Sacuda, chocalhe e balance. Faría com que ela tomasse o remédio. Até a última gota. A última gota amarga.
Ouvia um ruído amortecido em algum lugar, imediatamente exterior a seu mundo interior quente e apressado. Olhou para o outro lado do quarto e Danny se mexia novamente, virando na cama, revolvendo os cobertores. O menino gemia do fundo da garganta, um som preso e pequeno. Que pesadelo? Uma mulher roxa, há muito morta, cambaleando atrás dele, dobrando corredores de hotel? De alguma forma não achava que fosse isso. Alguma outra coisa perseguia Danny em seus sonhos. Algo pior.
O cadeado amargo de suas emoções estava quebrado. Levantou-se da cama, e caminhou em direção ao menino, sentindose enjoado e com vergonha de si mesmo. Era em Danny que tinha que pensar, não em Wendy, ou em si próprio. Só em Danny. E não importa de que forma os fatos se debatiam, sabia no fundo do coração que Danny devia ser levado dali. Ajeitou os cobertores do menino, e colocou por cima o acolchoado que estava nos pés da cama. Danny acalmou-se novamente, Jack tocou-lhe a testa
(que monstros brincavam por trás daquele osso?)
e achou-a quente, mas não tanto. E ele dormia em paz novamente. Estranho.
Voltou para a cama e tentou dormir. Ilusão.
Era tão injusto as coisas terem ficado assim. . . a má sorte parecia persegui-los. Não puderam afastá-la simplesmente vindo para cá. Quando chegassem a Sidewinder amanhã à tarde, a oportunidade dourada se teria evaporado - desaparecido como o sapato azul de camurça, como diria um velho colega seu. Considere a diferença se não descessem, se pudessem de alguma forma eliminar a hipótese. Concluiria a peça. De algum modo arranjaria um fim para ela. Sua própría dúvida sobre as personagens poderia acrescentar um toque de ambigüidade atraente, no final original. Talvez até faria algum dinheiro com ela, não era impossível. Mesmo na falta disso, Al poderia muito bem convencer o conselho de Stovington a readmiti-lo. Ficaria em experiência, claro, talvez por até três anos, mas, se pudesse se manter sóbrio e escrevendo, talvez não tivesse que passar três anos em Stovíngton. Claro que não ligava muito para Stovington antes, sentia-se sufocado, enterrado vivo, mas isso tinha sido uma
reação imatura. Além do mais, como é que um homem podia gostar de lecionar, quando passava as três primeiras aulas com uma dor de cabeça de estourar os miolos? Não seria assim novamente. Conseguiria manter sua responsabilidade muito mais. Tinha certeza.
Em algum lugar no meio daquele pensamento, as coisas começavam a se partir e ele adormeceu. Seu último pensamento seguiu-o como um sino.
Parecia-lhe possível encontrar paz ali. Finalmente. Se pelo menos deixassem.
Quando acordou estava parado no banheiro do 217.
(sonâmbulo de novo - por quê? - nenhum rádio aqui para quebrar)
A luz do banheiro estava acesa, o quarto atrás dele na escuridão. A cortina do chuveiro estava fechada em volta da banheira. O tapete ao lado estava amassado e molhado.
Começou a sentir medo, mas a qualidade sonhadora de seu medo dizia-lhe que não era real. ainda assim ísso não podia conter medo. Tantas coisas no Overlook pareciam sonhos.
Caminhou para a banheira, sem querer, incapaz de dar as Costas e sair.
Abriu a cortina.
Deitado na banheira, nu, refestelado, quase sem peso na água, estava George Hatfieid, uma faca enfiada no peito. A água, à sua volta, era rosada. Os olhos de George estavam fechados. Seu pênis flutuava límpido, como alga marinha.
- George - jack se ouviu dizendo.
Com a palavra, os olhos de George se abriram. Eram de prata, não eram absolutamente olhos humanos. As mãos de George, brancas, encontraram as bordas da banheira, e ele se levantou, ficando sentado. A faca estava enfiada no tórax, eqüidistante dos dois mamilos. A ferida não tinha lábios.
- Você adiantou o cronômetro - disse George Olhos de Prata.
- Não, George, não adiantei. Eu.
Eu não sou gago.
George estava de pé agora, ainda fixando-o com aquele olhar inumano e prateado, mas a boca tinha se fechado num sorriso horrível de morto. Jogou uma perna para fora da banheira de porcelana. Um pé branco e enrugado colocou-se no tapete.
- Primeiro, você tentou derrubar-me da bicicleta, depois adiantou o cronômetro, e depois tentou apunhalar-me, mas eu mesmo assim no gaguejo. - George vinha em sua direção, as mãos de fora, os dedos ligeiramente dobrados. Cheirava a mofo e umidade, como folhas molhadas pela chuva.
- Foi para seu próprio bem - disse Jack, indo para trás.
- Adiantei-o para seu próprio bem. Além do mais, acontece que eu sei que você colou no exame final.
- Eu não colo. . . eu não gaguejo.
As mãos de George tocaram seu pescoço.
Jack deu as costas e correu, correu com a lentidão flutuante e sem peso, tão comum aos sonhos.
- Foi, sim! Você colou! - gritava de pavor e raiva, enquanto atravessava o quarto escuro. - Vou provar!
As mãos de George estavam em seu pescoço novamente. O coração de Jack inchou de medo até ele estar certo de que iria explodir. E então, finalmente, suas mãos envolveram a maçaneta, ela girou sob suas mãos e ele abriu a porta. Saiu, não para o corredor do segundo andar, mas para o porão depois do arco. A lêmpada cheia de teias estava acesa. Sua cadeira, inflexível e geométrica, ao lado. E tudo ao redor era uma miniatura das montanhas, com caixas e caixotes, pacotes amarrados de notas e fichas, e Deus sabe o que mais. Sentiu-se aliviado.
Vou encontrar! - ouviu-se gritando. Apanhou uma caixa de papelão; ela se partiu ao meio em suas mãos, esparramando uma cascata de folhas finas amarelas. - Está por aqui em algum lugar! Vou encontrar! - Enfiou as mãos no fundo da pilha de papéis e tirou um ninho de vespas feito de papel com uma das mãos, e um cronômetro com a outra, O cronômetro batia. Pregado por trás estava um fio elétrico comprido, e na outra extremidade uma banana de dinamite. - Aqui! - gritou. - Aqui, tome!
Triunfou de alívio. Tinha feito mais do que fugir de George; tinha sido vitorioso. Com estes talismãs em suas mãos, George nunca encostaria nele novamente. George voaria de medo.
Começou a virar para poder confrontar-se com George, e foi então que as mãos de George se colocaram em volta de seu pescoço, apertadas, sufocando-o, obstruindo inteiramente sua respiração, depois de um suspiro final.
- não sou gago - sussurrou George, por trás dele.
Deixou cair o ninho de vespas, e as vespas se agitaram para fora numa furiosa nuvem marrom e amarela. Seus pulmões se incendiavam. Seu olhar hesitante caiu sobre o cronômetro, e ele recuperou a sensação de triunfo, acompanhada de uma onda alta de cólera justificada. Ao invés de ligar o cronômetro, o fio se ligou ao cabo dourado de uma bengala negra e forte, como a que o pai carregava depois do acidente com o caminhão de leite.
Agarrou-a e o fio partiu-se. Sentiu a bengala pesada em suas mãos. Sacudiu-a no ar. Ela esbarrou no fio do qual pendia a lâmpada que começou a balançar, fazendo as monstruosas sombras do cômodo se agitarem no chão e nas paredes. Ao baixar, a bengala atingiu algo muito mais duro. George gritou. A força das mãos, no pescoço de Jack, diminuíra.
Desvencilhou-se de George. Este estava de joelhos, a cabeça inclinada, as mãos entrelaçadas sobre ela. Sangue jorrava por seus dedos.
- Por favor - sussurrou George. - Dê-me um descanso, Sr. Torrance.
- Agora você vai tomar seu remédio - resmungou Jack.
- Ora, por Deus, como vai. Fedelho. Vira-lata. Agora, por Deus, agora mesmo. Cada gota. Cada gota, miserável!
Enquanto a luz balançava sobre ele, e as sombras dançavam e se agitavam, começou a sacudir a bengala, baixando-a consecutivamente, seu braço subindo e descendo como máquina. Os dedos sangrentos que George usava como proteção largaram a cabeça, e Jack baixou a bengala seguidas vezes sobre o pescoço, ombros, costas e braços. Mas a bengala não era mais uma bengala; parecia um taco com uma espécie de cabo brilhante e listrado. Um taco com um lado duro e outro macio. A extremidade usada estava pegajosa com sangue e cabelo. E o ruído surdo e imenso do taco contra a pele tinha sido substituído por um estrondo surdo, que ecoava e repercutia. Sua própria voz adquirira esta qualidade, berrando, sem corpo. E ainda assim, paradoxalmente, soava mais fraca, modulada, petulante. . . como se ele estivesse bêbado.
A figura a seus pés ergueu a cabeça devagar, como que suplicando. Não havia um rosto precisamente, mas apenas uma máscara de sangue através da qual emergiam os olhos. Baixou o taco para um último golpe e depois de arremessado viu que aquele rosto abaixo dele não era o de George, mas o de Danny. Era o rosto do filho.
- Papai...
E então o taco caiu, atingindo Danny entre os olhos, fechando-os para sempre. E alguma coisa, em algum lugar, parecia estar rindo.
(!Não!)
Voltou a si, parado, nu, junto à cama de Danny, as mãos vazias, o corpo suado. Seu grito final tinha sido apenas em sua mente. Disse-o mais uma vez, desta vez num sussurro.
Não. Não, Danny. Nunca.
Voltou à cama sobre pernas que eram de borracha. Wendy dormia profundamente. O relógio na mesa-de-cabeceira marcava quinze para as cinco. Deitou-se para conseguir dormir até as sete, quando Danny acordou. Colocou então as pernas para fora da cama, e começou a se vestir. Era hora de descer e verificar a caldeira.
O “snowmobile”
Algum tempo depois de meia-noite, enquanto todos eles dormiam inquietos, a neve cessara depois de ter caído vinte centímetros, fresquinha, sobre a velha camada. As nuvens se dissiparam, um vento fresco as tinha varrido, e agora Jack estava no meio de uma réstia empoeirada de sol, que penetrava pela janela suja do lado leste do depósito de equipamentos.
O lugar era quase tão comprido quanto um carro a frete, e quase tão alto. Cheirava a graxa, óleo, gasolina e. . . um cheiro leve e nostálgico. . . de grama. Quatro cortadores elétricos de grama, enfileirados como soldados em revista, encostados na parede do lado sul, dois deles do tipo que se pode dirigir, como pequenos tratores. À esquerda deles estavam cavadeiras, pés redondas e cortantes para cirurgia dos gramados, uma serra, um cortador elétrico de arbustos, e um mastro fino de aço longo com uma bandeira vermelha no topo. Caddie, vá apanhar minha bola em dez segundos e encontrará vinte e cinco cents dentro dela para você. Sim, senhor.
Na parede leste, onde o sol batia com mais intensidade, três mesas de pingue.pongue encostadas uma na outra como um castelo de cartas. As redes tinham sido removidas e despencavam da prateleira. No canto havia uma pilha de discos para jogo, e um jogo de roque... os pauzinhos amarrados todos juntos com pedaços de fio, bolas pintadas de cores vivas, uma espécie de caixa de ovos (galinhas estranhas você tem por aqui, Watson.
sim, e precisava ver os animais lá no jardim da frente, ah, ah), e os tacos, dois pares, de pé, em seus cavaletes.
Caminhou até eles, pisando numa bateria (que, tempos atrás, teria ficado debaixo da capota do caminhão do hotel, sem dúvida) e um carregador de bateria, e um par de cabos para carregar bateria. Tirou um dos tacos curtos do cavalete e o segurou diante do rosto, como um cavaleiro pronto para a batalha, saudando seu rei.
Fragmento de seu sonho (confuso agora, desvanecido) repetido, algo sobre George Hatfield e a bengala de seu pai, o suficiente para deixá-lo inquieto, e por absurdo que pareça, um pouquinho culpado por segurar um taco de roque. Não que roque fosse um jogo de grama tão comum; seu mais moderno primo, o croqué, é muito mais popular agora... e uma versão infantil do jogo. Roque, no entanto.. . deve ter sido um senhor jogo. Jack encontrara um livro de instruções mofado no porão, de um dos anos no início da década de 20, quando houve no Overlook um Torneio Norte-Americano de Roque. Um senhor jogo.
(esquizofrênico)
Franziu as sobrancelhas e então sorriu. Sim, era uma espécie de jogo esquizofrênico. O taco expressava isso perfeitamente. Uma extremidade dura de um lado e macia do outro. Um jogo de finesse e objetividade, e um jogo de poder desmascarado, da era do tacape.
Sacudiu o taco no ar. . . uuump. Sorriu um pouco do poderoso som assobiador que fazia. Em seguida, colocou-o no cavalete, e voltou-se para a esquerda. O que viu o fez franzir a testa novamente.
O snowmobile estava quase no meio do depósito, um equipamento razoavelmente novo, e Jack não se importou com sua aparência. “Bombardier Skidoo”, estava escrito ao lado do capô, de frente para ele, em letras negras. Havia um friso negro à esquerda e à direita do motor, que chamariam de frisos de corrida, um carro de corrida. Mas a pintura era amarelo-viva, e era disso que não gostava. Acachapado ali naquela réstia de sol da manhã, corpo amarelo e frisos, esquis negros e estofamento negro, sem capota, parecia uma monstruosa vespa mecânica. Quando estivesse em movimento devia também fazer o mesmo ruído. Lamuriosa, zumbindo, pronta para picar. Mas depois, com que mais se pareceria? Pelo menos estava sendo honesto. Depois de ter executado o trabalho, eles estariam bem machucados. Todos eles. Por volta da primavera, a família Torrance estaria tão machucada, que o que aquelas vespas tinham feito com a mão de Danny pareceria beijos de mãe.
Arrancou o lenço do bolso de trás, esfregou os lábios com ele, e foi até o Skidoo. Ficou parado olhando-o, a testa agora muito enrugada, e enfiou o lenço de volta no bolso. Lá fora, uma rajada repentina de vento batia contra o depósito, fazendo-o balançar e estalar. Olhou pela janela, e viu o vento carregar um lençol de reluzentes cristais de neve para trás do hotel, rodopiando-o alto, no céu azul.
O vento melhorou e ele voltou a olhar a máquina. Era realmente uma coisa nojenta. Podia-se praticamente esperar que um ferrão longo saísse pela traseira. Jamais gostara dos malditos snowmobiles. Agitavam o silêncio do inverno em milhões de fragmentos chocalhados. Espantavam a fauna. Expeliam imensas nuvens poluentes de fumaça azul - deixe-me respirar. Era talvez o último brinquedo grotesco do final da idade do petróleo, dado como presente de Natal a uma criança de dez anos.
Lembrava-se de um artigo de jornal que lera em Stovington, uma história acontecida no Maine. Um menino num snowmobile correndo numa estrada que nunca percorrera antes, a mais de cinqüenta quilômetros por hora. Noite. Faróis apagados. Havia uma corrente pesada esticada entre dois postes com uma placa: “Pare”, pendurada no meio. Diziam que a probabilidade era a de que o garoto não tivesse visto a placa. Uma nuvem deve ter encoberto a lua. A corrente decapitara-o. Ao ler a história Jack quase se sentiu feliz, e agora, olhando esta máquina, a sensação voltava.
(Se não fosse por Danny, eu teria imenso prazer em pegar um daqueles tacos, abrir o capô, e esmurrá-lo até)
Deu um longo suspiro. Wendy estava certa.
Haja o que houver, mesmo a fila da Previdência Social, Wendy estava certa. Esmurrar esta máquina até morrer seria uma enorme insensatez, não importando o aspecto agradável que essa insensatez teria. Seria quase equivalente a esmurrar o filho até matá-lo.
- Porcaria - disse, em voz alta.
Foi até a traseira do carro, e desatarraxou a tampa do tanque de gasolina. Encontrou um medidor em uma das prateleiras, que lhe batia na altura do peito, em volta pelas paredes, e apanhou-o. Três centímetros saíram molhados. Não era muito, mas era o suficiente para ver se a maldita coisa andaria. Depois, poderia tirar mais do Volks e do caminhão do hotel.
Tampou novamente o tanque e abriu o capô. Nem velas, nem bateria. Voltou à prateleira, e começou a bisbilhotá-la, colocando de lado chaves de fenda e chaves inglesas, um carburador que tinha sido tirado de um cortador de grama velho, caixas plásticas de parafusos, pregos e porcas de vários tamanhos. A prateleira era grossa e escura com graxa velha, e os anos de acumulação de poeira tinham grudado como pele de animal. Não gostou de tocá-la.
Encontrou uma caixinha manchada de óleo com a abreviatura Skid, laconicamente escrita a lápis. Balançou-a e alguma coisa chocalhou lá dentro. Velas. Examinou uma contra a luz, tentando determinar a abertura, sem procurar pelo regulador. Merda, pensou chateado, e jogou a vela de volta na caixa. Se a vela estiver desregulada, azar. Merda.
Havia um banco atrás da porta. Arrastou-o, sentou-se, e adaptou as quatro velas, e em seguida colocou as cabecinhas de plástico sobre cada uma. Feito isso, deixou os dedos brincarem com o magneto. Riam quando eu sentava ao piano.
De volta às prateleiras. Desta vez não conseguiu encontrar o que queria, uma pequena bateria. Três ou quatro volts. Havia chaves de caixa, um estojo cheio de brocas e puas, sacos de fertilizantes e Vigoro para os canteiros de flores, mas nenhuma bateria de snowmobile. Isso não o incomodava em nada. Na verdade, deixava-o contente. Estava aliviado. Fiz o que pude, capitão, mas não consegui. Está bem, filho. Vou condecorá-lo. Você é um orgulho para meu regimento. Obrigado, senhor. Tentei.
Começou a assobiar Red river valley com ritmo, enquanto remexia os últimos sessenta ou oitenta centímetros de prateleira. As notas saíam junto com uma fumaça branca. Percorrera o circuito completo do depósito, e a coisa não estava lá. Talvez alguém tivesse levado para cima. Talvez Watson tivesse. Deu uma gargalhada. Aquela velha história de roubar o escritório.
Alguns clipes, algumas resmas de papel, ninguém vai dar pela falta desta toalha de mesa, ou deste talher, e o que me diz desta boa bateria de snowmobile? Sim, é fácil de se carregar. Jogue na mala. Roubo, benzinho. Todo mundo tem dedos grudentos. Por trás das cortinas, costumávamos chamar quando criança.
Voltou ao snowmobile, e deu-lhe um bom chute na lateral, enquanto passava. Bem, foi o fim de tudo. Teria de dizer a Wendy que sentia muito, mas...
Havia uma caixa junto à porta. O banco estava bem em cima. Escrito nela, a lápis, a abreviatura Skid.
Olhou para a caixa, com um sorriso nos lábios. Olhe, senhor, é a cavalaria. Parece que seus sinais de fumaça funcionaram afinal.
Não era justo.
Alguma coisa - sorte, destino, providência - estava tentando salvá-lo. Algum outro tipo de sorte, sorte mesmo. E no último momento a velha falta de sorte voltara. A cartada azarada não estava terminada ainda.
Uma onda cinzenta e silenciosa de ressentimento brotou-lhe na garganta. As mãos apertaram-se.
(Injusto, merda, injusto!)
Por que não olhou em outro lugar? Qualquer lugar! Por que não teve um torcicolo, ou uma coceira no nariz, ou necessidade de piscar? Só uma dessas coisinhas. Nunca a teria visto.
Bem, não tinha. Era só. Era uma alucinação, em nada diferente do que acontecera ontem fora do quarto no segundo andar, ou no maldito zoológico de arbusto. Um cansaço momentâneo, só isso. Bacana, pensei que tivesse visto uma bateria de snowmobile, naquele canto. Agora não há nada lá. Fadiga de combate, eu acho, senhor. Perdão. Levante a cabeça, filho. Acontece com todos nós mais cedo ou mais tarde.
Abriu a porta com força bastante para estalar as dobradiças, e trouxe para dentro seus sapatos de neve. Estavam cheios de neve, e ele os bateu no chão com força para limpar um pouco. Calçou o pé esquerdo... e parou.
Danny estava lá fora, junto à plataforma do leite. Tentando fazer um boneco de neve, pelo visto. Mas não estava com sorte; a neve estava muito fria para poder juntar um pedaço no outro. ainda assim, tentava, lá fora na manhã de sol, um menininho enrolado sobre a neve brilhante, e sob o céu brilhante. Com o chapéu na cabeça virado ao contrário.
(Em nome de Deus, em que você estava pensando?)
A resposta veio sem interrupção.
(Em mim. Estava pensando em mim.)
De repente, lembrou-se da noite anterior, deitado na cama, e em seguida estava contemplando o assassinato da mulher.
Naquele instante, ajoelhado ali, tudo ficou claro para ele.
O Overlook não estava apenas influindo sobre Danny. Estava influindo sobre ele também. Não era Danny o elo fraco, era ele. Ele era o vulnerável, aquele que podia ser manobrado.
(até eu não me importar mais e dormir. . . e quando fizer iSSO, se fizer)
Olhou para a sucessão de janelas, e o sol batendo nas muitas poças refletia um brilho intenso, que ofuscava seus olhos, mas olhou assim mesmo. Pela primeira vez percebeu como elas se pareciam com olhos. Refletiam o sol, e retinham em seu interior sua própria escuridão. Não olhavam para Danny. Olhavam para ele.
Nesses poucos segundos entendeu tudo. Lembrava-se de uma certa fotografia em preto e branco que vira quando criança, numa aula de catecismo. A freira mostrara a fotografia num cavalete para ele, e chamou-a de um milagre de Deus. A turma olhou-a inexpressivamente, vendo nada mais do que uma mistura de preto e branco, sem sentido e sem forma. Então, uma das trianças na terceira fileira suspirara: “E Jesus! “, e aquela criança levou para casa um Testamento novinho em folha, e um calendário também por ter sido o primeiro. Os outros olharam mais fixamente, entre eles Jack Torrance. Um por um os mennos deram um suspiro semelhante, uma menininha, quase em êxtase, deu um grito estridente: “Eu estou vendo! Eu o estou vendo!” Ela também foi premiada com um Testamento. Finalmente, todos viram o rosto de Jesus numa mistura de preto e branco, exceto Jacky. Esforçava-se cada vez mais, agora com medo, uma parte dele cinicamente pensando que os outros todos estavam fingindo para agradar à Irmã Beatrice, uma outra parte convencida secretamente de que ele não estava vendo, porque Deus decidira que ele era o maior pecador da classe. “Você não está vendo, Jacky?”, Irmã Beatrice lhe perguntara com seu jeito meigo e triste. Estou vendo suas tetas, pensara ele desesperadamente. Começou a sacudir a cabeça, e fingiu alegria dizendo:
“Sim, estou! Oh! É Jesus!” E todos na classe riram e o aplaudiram, fazendo-o sentir-se triunfante, envergonhado e amedrontado. Mais tarde, quando todos haviam subido do porão da igreja para a rua, ele ficou para trás olhando aquela mistura preta e branca sem sentido, que Irmã Beatrice deixara no cavalete. De. testou-a. Era uma farsa. “Merda-inferno-merda”, sussurrou en tre os lábios, e quando virou as costas viu o rosto de Jesus com o rabo do olho, triste e sábio. E virou-se novamente, o coração na boca. Tudo ficou claro, e ele olhara a fotografia maravilhado, sem poder acreditar que não tinha visto. Os olhos, o ziguezague da sombra na sobrancelha, o nariz afilado, os lábios compadecidos. Olhando para Jacky Torrance. O que era uma coisa sem significado tinha se transformado num desenho completo do rosto de Nosso Senhor Jesus Cristo. O encantamento transformou-se em terror. Ele tinha blasfemado diante da fotografia de Jesus. Seria amaldiçoado. Ficaria no inferno com os pecadores. O rosto de Cristo estivera na fotografia o tempo inteiro. O tempo inteiro.
Agora, ajoelhado ao sol, e observando o filho brincar na sombra do hotel, sabia que era tudo verdade. O hotel queria Danny, talvez todos eles, mas Danny com certeza. Os arbustos realmente caminharam, Havia uma mulher morta no 217, uma mulher que talvez fosse apenas um espírito, e inofensivo, em quase todas as circunstâncias, uma mulher que agora constituía um perigo. Como um mecanismo malévolo de um relógio de brinquedo ao qual ele tivesse dado corda e posto para funcionar pela própria cabeça estranha de Danny. . . e pela sua própria. Foi Watson quem lhe contara que um homem caíra morto de um colapso, um dia, na quadra de roque? Ou tinha sido Ullman? Não importava. Tinha havido um assassinato no terceiro andar. Quantas velhas brigas, suicídios e colapsos? Quantos assassinatos? Estaria Grady espreitando, em algum lugar na ala oeste, com seu machado, esperando apenas que Danny o provocasse para ele poder aparecer?
Os hematomas inchados em volta do pescoço de Danny.
O brilho das garrafas semivisíveis no salão vazio.
O rádio.
Os sonhos.
O álbum de recortes que encontrara no porão.
(Medoc, você está az’? Virei sonâmbula de novo, meu cara.
Levantou-se de repente, jogando os sapatos novamente para fora. Tremia. Bateu a porta, e apanhou a caixa da bateria. Ela escorregou de seus dedos trêmulos
(oh deus e se eu a quebrei)
e caiu. Abriu as dobras do papelão e retirou a bateria, sem prestar atenção ao ácido que poderia estar escorrendo se ela se tivesse quebrado. Mas não se quebrara. Estava inteira. Um pequeno suspiro escapou-lhe da boca.
Segurou-a com cuidado, levou-a para o Skidoo, colocou-a na plataforma junto à frente do motor. Encontrou uma pequena chave inglesa em uma das prateleiras, e ligou os cabos rapidamente e sem problema. A bateria estava carregada; não havia necessidade de usar o carregador. Houve uma faísca e um pequeflo cheiro de ozônio, quando colocou o cabo positivo em seu lugar. Trabalho executado, ele se afastou, limpando as mãos nervosamente na jaqueta de brim desbotado. Pronto. Deveria funcionar. Não havia por que não. Nenhuma razão a não ser a de que fazia parte do Overlook, o Overlook realmente não queria que eles saíssem dali. Em hipótese alguma. O Overlook estava se divertindo a valer. Havia um menininho para amedrontar, um homem e sua mulher para instigar e, se jogasse as cartas corretamente, eles terminariam voando pelos corredores do Overlook como sombras de um romance de Shirley Jackson, o que quer que caminhasse na Casa da Colina caminhava sozinho, mas não se estaria sozinho no Overlook, não mesmo, haveria bastante companhia aqui. Mas não havia realmente nenhuma razão para o snowmobile não funcionar. A não ser, claro,
(A não ser o fato de que ele, na realidade, não queria ir.)
sim, a não ser isso.
Ficou parado olhando para o Skidoo, aspirando fumaça branca. Queria que fosse como tinha sido. Quando chegou, ele não tinha dúvidas. Descer seria a decisão errada. Wendy estava apenas com medo do lobisomem criado por um simples menininho histérico. Agora, de repente, ele via seu outro lado. Era como a sua peça, sua maldita peça. Não sabia mais de que lado estava, ou como as coisas ficariam. Uma vez que você viu o rosto de um deus naquela mistura de preto e branco, era o fim da brincadeira. . . não poderia nunca deixar de vê-lo. Pode ser que alguns riam e digam que não é nada, simplesmente uma porção de borrões sem significado, uma figura formada pela ligação de pontos numerados, mas sempre veria o rosto de Nosso Senhor Jesus Cristo olhando para você. Você o vira numa transição súbita de gestaltismo, o consciente e o inconsciente se unindo naquele momento do choque do conhecimento. Você sempre o veria. Tinha sido condenado a vê-lo sempre.
(Virei sonâmbula de novo, meu caro)
Tudo estava bem até que viu Danny brincando na neve.
Foi culpa de Danny. Era tudo culpa de Danny. Era ele o iluminado, ou coisa que o valha. Não era uma luz, era uma praga. Se ele e Wendy estivessem aqui sozinhos, passariam o inverno muito bem. Sem dor, sem peso na cabeça.
(Não quero ir? Não posso?)
o Overlook não queria que fossem, e ele também não queria que fossem. Nem Danny. Talvez ele fosse parte do hotel agora. Talvez o Overlook, o grande e errante Samuel Johnson que ele era, o escolheria para ser seu Boswell. Você me diz que o novo zelador escreve? Muito bem, contrate-o. Está na hora de divulgar nossa história. No entanto, vamo-nos livrar da mulher e do filho mimado em primeiro lugar. Não queremos que ele seja perturbado. Nós não...
Estava parado ao lado do banco do snowmobile, a cabeça começando a doer novamente. O que resolveu? Ir ou ficar? Muito simples. Não complique. Devemos ir ou ficar?
Se formos, quanto tempo levará para se encontrar um buraco em Sidewinder?, perguntou uma voz, lá no fundo, O lugar escuro com uma droga de uma TV em cores onde os homens, com as barbas por fazer e desempregados, passam o dia assistindo a jogos? Onde o cheiro de urina no banheiro dos homens data de dois mil anos, e há sempre uma ponta de cigarro Camel se desmanchando na privada? Onde a cerveja custa trinta cents o copo, e você a mistura com sal, e a vitrola automática está cheia de músicas caipiras de setenta anos?
Quanto tempo? O Deus, ele temia que não fosse levar muito tempo.
- Não posso vencer - disse ele, baixinho. Isso era tudo. Era como tentar jogar paciência sem um ás no baralho.
Abruptamente, debruçou-se sobre o motor do Skidoo e arrancou o magneto. Saiu com extrema facilidade. Olhou-o por um momento e, em seguida, foi até a porta dos fundos e abriu-a.
Daqui, a vista das montanhas não era obstruída, era de uma beleza de cartão-postal à luz da manhã. Um vasto campo de neve ia até os pinheiros a um quilômetro de distância. Arremessou o magneto na neve, o mais longe que pôde. Foi muito mais longe do que devia. Houve um ligeiro movimento de neve, quando caiu. A brisa leve carregou os grânulos de neve para outros lugares. Dissipem-se, eu ordeno. Não há nada para ver. Está tudo acabado. Disperso.
Sentiu-se em paz.
Ficou parado à porta, por muito tempo, respirando o ar puro da montanha, e então fechou-a com força e saiu pela outra porta para dizer a Wendy que teriam de ficar. No caminho, parou e brincou de atirar neve com Danny.
Os arbustos
Era dia 29 de novembro, três dias depois do Dia de Ação de Graças. A última semana fora boa, a ceia de Ação de Graças a melhor que já tinham tido em família. Wendy assara o peru que Dick Hallorann deixara e, apesar de comerem até se fartar, a bela ave tinha ficado quase inteira. Jack suspirara, dizendo que comeriam peru pelo resto do inverno: peru com molho, sanduíche de peru, peru com talharim, surpresa de peru.
Não, Wendy disse com um sorriso. Só até o Natal. Depois comeremos o capão.
Jack e Danny suspiraram juntos.
Os hematomas no pescoço de Danny desapareceram, e seus pavores pareciam ter sumido com eles. Na tarde do Dia de Ação de Graças, Wendy ficara puxando Danny no trenó, enquanto Jack trabalhava na peça, que estava quase pronta.
- ainda está com medo, doutor? - perguntou ela, sem saber como fazer a pergunta parecer insignificante.
- Sim - respondeu o garoto, simplesmente. - Mas agora eu fico nos lugares seguros.
- Seu pai diz que mais cedo ou mais tarde os guardasflorestais vão perguntar-se por que não nos comunicamos mais pelo rádio, Virão até aqui para ver se há alguma coisa errada. Então, pode ser que a gente vá embora. Você e eu. E seu pai fique até o fim do inverno. Ele tem boas razões para querer que seja assim. De certo modo, doutor. . . eu sei que isto é duro para você entender. . . estamos encostados na parede.
- Sim - respondera Danny, com reservas.
Na tarde bonita, os pais estavam no andar de cima, e Danny sabia que tinham feito amor. Estavam cochilando agora. Estavam felizes, sabia. Sua mãe ainda tinha um pouco de medo, mas a atitude do pai era estranha. Era a sensação de haver feito alguma coisa muito difícil e bem-feita. Das Danny no parecia ver exatamente o que era essa coisa. O pai guardava isso com cuidado, até mesmo em sua mente. Seria possível, pensou Danny, ficar feliz por ter feito alguma coisa, e ao mesmo tempo ficar to envergonhado dessa coisa, que tentava até nem pensar nela? A pergunta era complicada. Não achava que isso fosse possível . . . numa cabeça normal. Suas investigações mais sérias em relação ao pai trouxeram apenas um retrato obscuro de alguma coisa parecida com um polvo, girando no céu azul. E, nas duas ocasiões em que se concentrara profundamente para chegar à questão, o pai de repente ficou olhando fixamente para ele, como se soubesse o que Danny estava fazendo.
Ele agora estava no saguão, arrumando-se para sair. Saía muito, levando o trenó, ou seus sapatos de neve. Gostava de sair do hotel. Quando estava ao sol, era como se tivesse tirado um peso dos ombros.
Puxou uma cadeira, subiu nela, e tirou o capuz e a calça de neve do armário do salão, e então sentou-se para vesti-los. As botas estavam na caixa, e ele as enfiou, a língua de fora no canto da boca, enquanto as amarrava. Colocou as luvas e a máscara de esqui, e estava pronto.
Passou pela cozinha em direção à porta dos fundos, e então parou. Estava cansado de brincar nos fundos do hotel, e a esta hora do dia o lugar onde brincava estaria coberto pela sombra do hotel. Não gostava nem de ficar sob a sombra do Overlook. Resolveu colocar os sapatos de neve e ir brincar no playground. Dick Hallorann lhe dissera que se mantivesse afastado da topiaria, mas os animais de arbusto não o incomodavam tanto. Estavam enterrados sob a neve, e nada aparecia, a não ser uma ligeira elevação que era a cabeça do coelho e as caudas dos leões. Saindo da neve como estavam, as caudas pareciam mais absurdas do que amedrontadoras.
Danny abriu a porta dos fundos e tirou os sapatos de neve da plataforma de leite. Cinco minutos depois, estava amarrando-os aos pés, na varanda da frente. O pai lhe dissera que ele (Danny) tinha um jeito especial de usar os sapatos - passos largos e lentos e virando os tornozelos para sacudir a neve dos cadarços, exatamente antes de a bota bater de volta ao chão e o mais importante era ele desenvolver os músculos das coxas, barriga das pernas e tornozelos. Danny descobriu que seus tornozelos se cansavam primeiro. Andar pela neve era quase tão duro para os tornozelos quanto patinar, porque tem-se que ficar limpando os cadarços o tempo todo. De cinco em cinco minutos ele tinha que parar com as pernas abertas, com os sapatoS achatados na neve, para descansar.
Mas não precisava descansar no caminho do playground, porque era em descida. Menos de dez minutos depois que lutava para subir a montanhosa duna de neve que se acumulara na varanda da frente do Overlook, ele estava com as mãos enluvadas no escorregador. Não estava sequer arquejando.
O playground parecia muito mais bonito no meio da neve do que no outono. Parecia uma escultura de um reino de fadas. As correntes dos balanços tinham-se congelado em estranhas posições, os assentos dos balanços dos meninos grandes descansavam sob a neve. O trepa-macaco era uma caverna de gelo guardada por gotas congeladas em forma de dentes. Só as chaminés do Overlook de brinquedo emergiam da neve
(quisera que aquele outro estivesse enterrado assim, só que sem a gente dentro)
e os topos dos túneis de cimento salientes em dois lugares como iglus dos esquimós. Danny vagueou por ali, agachou-se e começou a cavar. Em pouco tempo descobriu a boca escura de um deles, e entrou no túnel frio. Na sua cabeça, era Patrick McGoohan, o Agente Secreto (passaram as reprises desse programa duas vezes na televisão de Burlington e o pai nunca perdia; deixava de ir a uma festa para ficar em casa e ver o Agente Secreto ou Os Vingadores e Danny sempre fizera companhia a ele), em busca dos agentes do KGB nas montanhas da Suíça. Tinha havido avalanchas na região, e o famoso agente do KGB, Slobbo, matara a namorada com um dardo venenoso, mas em algum lugar ali perto estava a máquina russa antigravidade. Talvez no fundo deste mesmo túnel. Apanhou a pistola e passou pelo túnel de concreto, os olhos muito abertos e alertas, fumaça saindo pelo nariz.
A outra extremidade do túnel estava solidamente bloqueada pela neve. Tentou escavar, mas ficou espantado (e um pouco inquieto) de ver como estava sólida, quase como gelo, pelo peso frio e constante de mais neve em cima.
Seu jogo de faz-de-conta fracassou e de repente ele percebeu que estava preso, e extremamente nervoso, dentro daquele anel apertado de cimento. Podia ouvir sua respiração: era úmida, rapida e oca. Ele estava debaixo da neve, e com muita dificuldade a luz se infiltrava pelo buraco que abrira para entrar ali. De repente, quis sair e ficar no sol, mais do que tudo, e se lembrou de que o pai e a mãe estavam dormindo e não sabiam onde ele estava, que, se o buraco que ele cavou desmoronasse, ele ficaria preso, e o Overlook não gostava dele.
Danny virou-se para o outro lado com alguma dificuldade e engatinhou pelo túnel, os sapatos de neve batendo atrás dele, as palmas de suas mãos esmagando as últimas folhas mortas de outono, e deixando-as para trás. Acabara de chegar à saída do túnel, quando uma pequena rajada de neve caiu, uma queda sem importância, mas suficiente para salpicar seu rosto e obstruir a abertura por onde ele tinha entrado e deixá-lo na escuridão.
Por um momento, seu cérebro congelou em pânico, e ele não conseguia pensar. Então, como que vindo de muito longe, ouviu o pai dizendo que ele não deveria nunca brincar no depósito de entulhos de Stovington, porque, às vezes, pessoas idiotas jogavam suas geladeiras velhas lá, sem tirarem as portas, e se você entrasse numa e acontecesse de a porta bater, não haveria mais jeito de sair. Você morreria na escuridão.
(Não gostaria que uma coisa assim acontecesse com você, gostaria, doutor?)
(Não, papai.)
Mas tinha acontecido, sua mente frenética dizia, tinha acontecido, ele estava no escuro, estava fechado, e era tão frio quanto uma geladeira. E.
(alguma coisa está aqui comigo.)
Com o susto, sua respiração cessou. Um pavor estonteante passou-lhe pelas veias. Sim. Sim. Havia alguma coisa aqui com ele, alguma coisa horrorosa que o Overlook guardara para uma oportunidade como esta. Talvez uma aranha imensa que se tinha escondido debaixo das folhas mortas, ou, um rato. . . ou talvez o cadáver de alguma criança que morrera ali no playground. Não acontecera isso? Sim, pensou ele, talvez. Pensou na mulher na banheira. No sangue e nos miolos na parede da suíte presidencial. Em alguma criança com a cabeça partida num tombo de um balanço, engatinhando atrás dele no escuro, sorrindo, à procura de um colega, no seu playground interminável. Para sempre. A qualquer momento ele a ouviria aproximando-se.
Na outra extremidade do anel de concreto, Danny ouviu o furtivo farfalhar das folhas mortas, como se alguma coisa estivesse se aproximando dele, engatinhando. A qualquer momento sentiria uma fria mão segurar seu tornozelo.
Aquele pensamento quebrou-lhe a paralisia. Ele estava ca vando
a neve solta que tapou a extremidade do túnel, jogando-a para trás aos bocados, por entre suas pernas, como um cachorro cavando à procura de um osso. Uma luz azul penetrava, vindo de cima, e Danny imaginou-se um mergulhador saindo do fundo da água. Arranhara as costas no anel de concreto. Um dos sapatos embaraçara no outro. Entrou neve por dentro de sua máscara de esqui e pela gola do capuz. Cavou a neve, com as unhas. Alguma coisa invisível lá estava e parecia tentar segurá-lo, sugá-lo, empurrá-lo para o anel de concreto e mantê-lo ali. Para sempre.
Em seguida saiu, o rosto voltado para o sol, rastejando pela neve, fugindo do anel de cimento, semi-enterrado, respirando com dificuldade, o rosto quase comicamente branco de neve - uma máscara viva. Foi mancando até a gangorra e sentou-se para ajeitar os sapatos e descansar. Enquanto os ajeitava e amarrava novamente, não tirava os olhos do buraco do fundo do túnel. Esperou para ver se alguma coisa sairia. Nada aconteceu e, em três ou quatro minutos, Danny voltou a respirar com mais calma. Fosse o que fosse, essa coisa não tolerava o sol. Estava engaiolada ali dentro, talvez só podendo sair quando escurecesse. . . ou quando as duas saídas de sua prisão circular estivessem bloqueadas pela neve.
(mas estou seguro agora estou seguro vou voltar porque agora estou)
Alguma coisa bateu de leve atrás dele.
Voltou-se em direção ao hotel, e olhou. Mas mesmo antes de olhar
(Está vendo os índios neste desenho?)
sabia o que veria, porque sabia o que era aquela leve batida. Era o ruído de um pedaço grande de neve caindo, o mesmo ruído que havia quando a neve escorregava do telhado do hotel e caía no chão.
(Está vendo)
Sim. Via. A neve caíra do arbusto em forma de cachorro. Quando chegara, era apenas um amontoado inofensivo de neve fora do playground. Agora estava ali descoberta, um pedaço de verde fora do lugar na brancura da neve, O cão estava sentado, como que pedindo um docinho ou alguma sobra.
Mas desta vez não se iria apavorar, não se entregaria. Pelo menos não estava preso num buraco escuro. Estava sob a luz do sol. E aquilo era apenas um cachorro, O dia hoje está bonito, Pensou esperançosamente. O sol simplesmente derreteu a neve de cima do velho cio, e o resto caiu em pedaços. Talvez seja só isso.
(Não se aproxime daquele lugar. . . mantenha-se afastado.) os cadarços dos sapatos estavam apertados demais. Levantou-se e olhou fixamente para o anel de concreto, quase totalmente submerso na neve, e o que viu no fundo de onde saíra congelou seu coração. Havia um círculo escuro no fundo, uma sombra que marcava o buraco que cavara para entrar. Agora, apesar do brilho refletido da neve, pensou estar vendo alguma coisa ali. Algo se mexendo. Uma mão. O aceno de uma criança infeliz, desesperada, uma mão acenando, suplicando, afogada.
(Salve-me. Oh, por favor, me salve. Se não me pode salvar, pelo menos venha brincar comigo. . . Para sempre. Para sempre. Para sempre.)
- Não - sussurrou Danny, rouco. A palavra saiu seca e simples de sua boca, que estava seca. Sentia sua mente hesitando, tentando ir embora, como fizera quando a mulher no quarto tinha. . . não, melhor não pensar nisso.
Agarrou os cordões da realidade, e segurou-os com força. Tinha que sair dali. Concentrar-se nisso. Ficar calmo. Ser como o Agente Secreto. Patrick McGoohan choraria e urinaria nas calças como um bebezinho?
E seu pai?
Isso o acalmou.
Atrás dele, aquele baque surdo de neve caindo veio novamente. Virou-se, e a cabeça de um dos leões estava fora da neve agora, rosnando para ele. Estava mais próximo do que devia, quase no portão do playground.
O pavor quis aparecer, e ele o dominou. Era o Agente Secreto, e escaparia.
Começou a sair do playground, tomando o mesmo atalho que o pai tomara no dia que a neve caiu. Concentrou-se nos sapatos. Passos largos e lentos. Não levante muito os pés ou perderá o equilíbrio. Mexa o tornozelo e tire a neve do peito do pé. Parecia tão lento. Chegou ao canto do playground. A neve estava alta aqui, e ele pôde passar por cima da cerca.
Na metade da travessia quase caiu, quando o sapato ficou preso em um dos postes da cerca. Perdeu o equilíbrio, balançou os braços, lembrando-se de como era difícil levantar, uma vez no chão.
A sua direita, o ruído novamente, pedaços de neve caindo. Olhou e viu os outros dois leões, sem neve, agora sobre as quatro patas, lado a lado, a vinte metros de distância. As marcas recortadas, que eram os olhos, estavam fixas nele. O cachorro virara a cabeça.
(Só acontece quando você não está olhando.)
- Olhe!...
Tropeçou e caiu de frente na neve, os braços sacudindo inutilmente. Mais neve entrou no capuz, pelo pescoço e pelo cano das botas. Lutou para sair da neve e colocou os sapatos no chão, o coração batendo forte,
(Agente Secreto, lembre-se de que você é o Agente Secreto)
e se desequilibrou para trás. Por um momento ficou ali deitado, olhando para o céu, pensando que seria mais simples desistir.
Pensou então na coisa dentro do túnel de concreto, e sabia que não podia. Pôs-se de pé, e olhou para a topiaria. Os três leões estavam agrupados, a menos de quinze metros de distância. O cachorro colocara-se à esquerda deles, como se para impedir a fuga de Danny. Estavam livres da neve a não ser por alguns flocos em volta do pescoço e do focinho. Todos o olhavam fixamente.
Sua respiração estava acelerada, e o pânico era como um rato em sua testa, torcendo-se e roendo. Lutava contra o pânico e contra os sapatos.
(A voz do pai: Não, não lute contra eles, doutor. Pise neles como se fossem seus pés. Caminhe com eles.)
(Sim, papai.)
Começou a andar novamente, tentando readquirir o ritmo tranqüilo que praticara com o pai. Aos poucos foi conseguindo, mas com o ritmo veio a consciência do cansaço, do quanto o medo o tinha cansado. Os tendões das coxas, da barriga das pernas e dos tornozelos estavam trêmulos e quentes. Adiante podia ver o Overlook, zombando de longe, parecendo olhá-lo com suas muitas janelas, como se este fosse uma espécie de concurso no qual estava pouco interessado.
Danny olhou por cima dos ombros, e sua respiração acelerada acalmou-se por um momento, e em seguida continuou ainda mais apressada. O leão mais próximo estava agora apenas a seis metros de distância, enfrentando a neve como um cachorro nadando numa lagoa. Os dois outros estavam à direita e à esquerda, lado a lado. Eram como um pelotão do exército, o cachorro, ainda à esquerda, o batedor. O leão mais próximo estava de cabeça baixa. Os ombros juntos poderosamente sobre o pescoço.
A cauda levantada como se, no instante anterior, se tivesse voltado para olhar e estivesse balançando para llá e para cá. Achou-o parecido com um grande gato doméstico que se divertia, brincando com o rato antes de matá-lo,
...caindo...)
Não, se caísse estaria morto. Não o deixariam levantar-se jamais. Eles o agarrariam. Sacudiu os braços como louco e acelerou o passo, cambaleando. Equilibrou-se e correu, olhando para trás de tempos em tempos. O ar saía e entrava pela garganta como vidro quente.
o mundo se resumia na neve brilhante, nos arbustos verdes e no ruído de seus sapatos. E numa outra coisa. Um ruído surdo de passos. Tentou correr mais depressa, mas não pôde. Caminhava sobre a entrada enterrada, um menino com o rosto quase escondido na sombra de seu capuz. A tarde estava calma e brilhante.
Quando olhou para trás novamente, o leão da frente estava apenas a metro e meio de distância. Ele sorria. A boca estava aberta, o dorso tenso como uma mola de relógio. Atrás dele e dos outros podia ver o coelho, a cabeça agora saindo da neve, verde-clara, como se tivesse virado a cara sem expressão para assistir ao fim da caçada.
Agora, no jardim da frente do Overlook, entrou em pânico e começou a correr desajeitado nos sapatos de neve, sem se atrever a olhar para trás, cada vez mais inclinado para a frente, os braços esticados como um cego tateando obstáculos. O capuz caiu para trás, descobrindo a pele branca e a face corada, olhos arregalados de pavor. A varanda estava muito próxima agora.
Atrás dele ouvia o repentino esmagar de neve, como se alguma coisa tivesse saltado.
Caiu nos degraus da varanda, gritando sem voz, e subindo apoiado nas mãos e joelhos, os sapatos batendo e virados para o lado errado.
Houve um ruído cortando o ar e de repente sentiu dor na perna. Ruído de roupa sendo rasgada. Alguma outra coisa que podia - devia - estar em sua mente.
Um urro, um rugido zangado.
Cheiro de sangue e cipreste.
Caiu na varanda, soluçando rouco, o gosto forte de cobre na boca. O coração batendo forte no peito. Havia um fio de sangue saindo do nariz.
Não tinha idéia do tempo que passara ali até que as portas do saguão se abriram e Jack saiu, só de jeans e chinelos. Wendy estava atrás dele.
- Danny! - gritou ela.
- Doutor! Danny, pelo amor de Deus! O que houve? O que aconteceu?
O pai ajudou-o a se levantar. Abaixo do joelho, a calça de neve estava rasgada. Por baixo, a meia de lã tinha sido rasgada e a barriga da perna superficialmente arranhada. . . como se ele tivesse tentado trepar num cipreste muito denso, e os galhos o tivessem arranhado.
Olhou para trás. Lá embaixo, depois do gramado, estavam alguns amontoados de neve. Os animais. Entre eles e o playground. Entre eles e a estrada.
Suas pernas lhe faltaram. Jack tomou-o nos braços. Danny começou a chorar.
O saguão
Contara-lhes tudo, omitindo apenas o que acontecera com ele, quando a neve bloqueou a saída do anel de concreto. Não conseguia repetir aquilo. E não encontrava as palavras certas para expressar a crescente sensação de pavor e cansaço, quando ouviu as folhas mortas de álamo estalarem furtivamente na fria escuridão. Mas contou-lhes sobre o ruído surdo dos pedaços de neve caindo. Sobre o leão com a cabeça e os ombros juntos, lutando contra a neve para persegui-lo. Contou-lhes até de como o coelho virara a cabeça para assistir ao final.
Os três estavam no saguão. Jack acendera a lareira. Danny estava enrolado num cobertor no sofá pequeno, onde, certa vez, há dez milhões de anos, três freiras sentaram-se rindo como meninas, enquanto esperavam a fila na recepção diminuir. O menino tomava sopa de macarrão numa caneca. Wendy estava sentada a seu lado, afagando-lhe os cabelos, Jack no chão, o rosto cada vez mais circunspecto, à medida que Danny contava a história. Por duas vezes, Jack puxou o lenço do bolso de trás e esfregou o lábio ferido.
- Então, eles me seguiram - concluiu o garoto. Jack levantou-se e foi à janela de costas para eles. Danny olhou para a mãe. - Seguiram-me o tempo todo, até a varanda. - Lutava por manter a voz calma, porque se mantivesse a calma talvez acreditassem. O Sr. Stenger não ficara calmo. Começara a chorar e não tinha conseguido parar, então os HOMENS DE CAMISAS BRANCAS levaram-no, porque, se alguém não pudesse parar de chorar, isso significava que TINHA PERDIDO UM PARAFUSO, e quando voltaria? NINGUÉM SABE. Seu capuz, calças e sapatos encharcados estavam sobre o tapete junto às grandes portas da frente.
(Não vou chorar. Não vou me permitir chorar)
E achava que conseguiria, mas não conseguia parar de tremer. Olhava para o fogo, e esperara que o pai dissesse alguma coisa. Altas chamas amarelas na lareira de pedra escura. Um pedaço de lenha estourou e as faíscas correram para a chaminé da lareira.
- Danny, venha cá. Jack voltou-se para eles. Seu rosto ainda tinha aquela expressão extremamente aflita. Danny não gostava de olhar.
- Jack...
- Só quero que o menino venha aqui um minuto.
Danny desceu do sofá e foi para junto do pai.
- Menino obediente. Agora, o que você está vendo?
Danny sabia o que iria ver, mesmo antes de chegar à janela. Abaixo das confusas pegadas de botas, marcas de trenó e de sapatos de neve, que demarcavam sua área normal de brincar, o campo de neve que cobria os jardins do Overlook descia até a topiaria e o playground, mais adiante, Estava desfigurado por dois conjuntos de pegadas, um deles em linha reta da varanda ao playground, o outro uma linha sinuosa que subia.
- Só minhas pegadas, papai. Mas.
- E os arbustos, Danny?
Os lábios de Danny começaram a tremer. Ia chorar. E se não conseguisse parar?
(não vou chorar não vou chorar não vou não vou. não
VOU)
- Tudo coberto de neve - sussurrou. - Mas, papai...
- O quê? Não ouvi!
- Jack, isto é um interrogatório! Não vê que ele está triste, que ele está. .
- Cale a boca! Bem, Danny?
- Eles me arranharam, papai. Minha perna.
- Você deve ter cortado a perna na neve.
Então, Wendy ficou entre eles, o rosto pálido e zangado.
- O que você quer que ele faça? - perguntou ela. - Confesse um crime? O que há com você?
A estranheza dos olhos de Jack pareceu diminuir.
- Estou tentando ajudá-lo a descobrir a diferença entre uma coisa real e uma alucinação, só isso. Agachou-se junto a Danny para que pudessem ficar da mesma altura, e então o abraçou apertado. - Danny, não aconteceu de verdade. OK? Foi como aqueles transes que você, às vezes, tem. Só isso.
- Papai?
- Que é, Dan?
- Não cortei a perna na neve. ainda não está congelada. ainda está macia. Nem fica grudada para a gente fazer bolas de neve. Lembra-se de que a gente tentou fazer uma guerra de bola de neve e não conseguiu?
Sentiu a severidade do pai.
- No degrau da varanda, não foi?
Danny esquivou-se. De repente, teve a luz. Sua mente iluminou-se repentinamente, como às vezes acontecia, como tinha acontecido com a mulher que queria entrar na calça cinza do homem. Olhou o pai com os olhos fixos e arregalados.
- Você sabe que estou dizendo a verdade - murmurou o garoto, chocado.
- Danny. . - O rosto de Jack ficou tenso. Você sabe porque viu.
O som da mão espalmada de Jack no rosto de Danny foi cheio, sem ser em nada dramático. A cabeça do menino sacudiu, a marca vermelha dos dedos no rosto.
Wendy gemeu.
Ficaram imóveis por um momento, os três, e então Jack agarrou o filho e disse:
- Danny, perdoe-me, você está bem, doutor?
- Você bateu nele, seu safado! - gritou Wendy. - Seu sujo!
Agarrou a outra mão do filho, e por um momento Danny foi puxado pelos dois.
- Por favor, parem de me puxar! - gritou para eles, e havia tanta agonia em sua voz que os dois o soltaram, e então as lágrimas tiveram que cair e ele perdeu as forças, chorando entre o sofá e a janela, os pais o olhando, sem poder fazer nada, como crianças que olham um brinquedo quebrado numa luta furiosa. Na lareira, um outro pedaço de lenha estourou como uma granada, assustando-os.
Wendy deu-lhe aspirina infantil, e Jack colocou-o na cama, sem protestos. Não dormia, mas o polegar estava em sua boca.
- Não gosto disso - falou ela. - Ë uma regressão.
Jack não respondeu
Olhou-o com calma, sem raiva, sem também sorrir.
- Quer que me desculpe por tê-lo chamado de safado? Muito bem, peço desculpa. Perdão. Mas ainda acho que não devia ter batido nele.
- Eu sei - murmurou Jack - Sei disso. Não sei que diabo foi que aconteceu comigo.
- Você prometeu que nunca mais bateria nele.
Ele a olhou furioso, e então a fúria arrefeceu. De repente, com pena e pavor, ela viu como seria Jack quando velho. Nunca o tinha visto assim antes.
(de que forma?)
Derrotado, ela mesma respondeu. Tem a expressão de quem foi pisado.
- Sempre pensei que pudesse cumprir minhas promessas
- falou Jack,
Ela foi até ele, e colocou as mãos sobre seu braço.
Bem, está terminado. E quando o guarda-florestal vier para nos ver, vamos dizer que queremos descer. Certo?
Certo - respondeu ele; e no momento, pelo menos, estava sendo sincero. Da mesma forma que sempre fora sincero naquelas manhãs seguintes, olhando o rosto pálido e desfigurado no espelho do banheiro. Vou parar, vou largar tudo de vez. Mas a manhã dava lugar à tarde, e à tarde sentia-se melhor. E a tarde dava lugar à noite. Como diria um grande pensador do século XX, a noite precisa vir.
Surpreendeu a si mesmo desejando que Wendy perguntasse sobre os arbustos, perguntasse o que Danny quis dizer com Você sabe porque viu. Se ela o fizesse, ele contaria tudo. Tudo. Os arbustos, a mulher no quarto, até sobre a mangueira do extintor de incêndio que pareceu ter mudado de posição.
Mas até onde iria a confissão? Poderia dizer que jogara o magneto fora? Que poderiam todos estar em Sidewinder agora, se não o tivesse feito?
O que ela disse foi:
- Quer chá?
- Quero. Uma xícara de chá cairia bem.
Ela foi até a porta e parou, esfregando os braços por cima do suéter.
- A culpa é tanto minha quanto sua - disse. - O que estávamos fazendo enquanto ele passava por aquele. . . sonho, ou seja lá o que for?
- Wendy...
- Estávamos dormindo - disse ela. - Dormindo como um casal de adolescentes satisfeitos.
Pare com isso. Acabou.
- Não - respondeu Wendy, e lançou-lhe um sorriso estranho e inquieto. - Não acabou.
Foi fazer o chá, e o deixou tomando conta do filho.
O elevador
Jack acordou de um sono leve e inquieto, onde figuras enormes e indefinidas o perseguiam por campos de neve intermináveis, o que pensou ser um outro sonho: escuridão, uma repentina mistura de sons mecânicos.
Então, Wendy sentou-se ao lado, e ele percebeu que não era um sonho.
- O que é isso? - a mão dela, fria, agarrou-lhe o pulso. Ele reprimiu a vontade de sacudi-la. . . como é que podia saber o que era aquilo? O relógio iluminado na mesa-de-cabeceira marcava cinco para meia-noite.
O barulho novamente. Alto e constante, com pouquíssima diferença.
Era o elevador.
Danny estava sentado.
- Papai? Papai? - Sua voz era sonolenta e cheia de medo.
- Estou aqui, doutor disse Jack. - Venha para cá. Sua me também está acordada.
Houve o ruído das roupas de cama, enquanto Danny subia na cama para ficar entre eles.
- É o elevador - sussurrou o garoto.
- É, sim - disse Jack. - Só o elevador.
- o que quer dizer com só? - perguntou Wendy. Havia um certo tom de histeria em sua voz. - Já é madrugada. Q uem está mexendo nele?
Hummmmmmm. Clicfclanc. Em cima deles agora. O chocalhar da grade se abrindo, a batida das portas se abrindo e fechando. Em seguida, o ruído do motor e dos cabos novamente.
Danny começou a chorar.
Jack pôs os pés no chão.
- Talvez seja um curto. Vou dar uma olhada.
- Não se atreva a sair deste quarto!
- Não seja boba - disse ele, vestindo o robe. - E o meu trabalho.
Ela mesma estava fora da cama pouco depois, tendo Danny a seu lado.
- Nós vamos também.
- Wendy...
- Por que não? - perguntou Danny, triste. - Por que não, papai?
Ao invés de responder deu as costas, o rosto zangado e duro. Fechou o robe junto à porta, abriu-a, e saiu pelo corredor escuro.
Wendy hesitou por um momento, e foi praticamente Danny que começou a andar primeiro. Ela acompanhou-o rapidamente, e todos saíram juntos.
Jack não se importou com as luzes. Wendy tateou à procura do interruptor que acendia as quatro lâmpadas do corredor que dava para o corredor principal. Adiante, Jack já dobrava o corredor. Desta vez, Danny encontrou o interruptor e acendeu as lâmpadas. O corredor, que dava para as escadas, e o elevador, iluminaram-se.
Jack estava parado diante da porta do elevador, que era ladeada por bancos e cinzeiros de pé. Estava imóvel em frente à porta fechada. No roupão xadrez desbotado, chinelos de couro marrom, o cabelo despenteado, ele parecia um absurdo Hamlet do século XX, uma figura indecisa tão influenciada pela tragédia próxima que não conseguia desviar ou alterar seu curso.
(deus pare de pensar como louca)
As mãos de Danny estavam muito apertadas às da mãe. Olhava-a atentamente, o rosto tenso e ansioso. Tentava captar seus pensamentos, concluiu Wendy. Simplesmente, o muito ou o pouco que obtinha era impossível dizer, mas ela ruborizou-se, como se ele a tivesse apanhado masturbando-se.
- Venha - disse ela, e caminharam no corredor em direÇão a Jack.
O barulho ali era mais alto, de modo amedrontador e desconeXo. Jack olhava fixamente para a porta. Pela janelinha de vidro, no centro, ela pensou que poderia enxergar os cabos vibrando um pouco. O elevador retiniu parando abaixo deles, no saguão. Ouviram as portas abrirem... (festa)
Por que pensara em festa? A palavra simplesmente saltara em sua cabeça sem razão alguma. O silêncio no Overlook era completo e intenso, com exceção dos ruídos estranhos que vinham do cabo do elevador.
(deve ter sido uma senhora festa)
(???QuE FESTA???)
Por um momento, a mente de Wendy se encheu com uma imagem tão real, que parecia ser uma lembrança. . . não qualquer lembrança, mas uma daquelas de que a gente gosta, uma daquelas que a gente guarda para ocasiões muito especiais, e raramente fala nelas. Luzes. . . centenas, talvez milhares delas.
Luzes e cores, o estourar das rolhas de champanha, uma orquestra de quarenta figuras tocando In the mood, de Glenn Miller. Mas este músico morrera antes de ela ter nascido, como podia ter Glenn Miller na lembrança?
Olhou para Danny e viu sua cabeça tombada de lado, como se estivesse ouvindo algo que ela não ouvia. O rosto dele estava pálido.
Um baque.
A porta fechou-se lá. Um zumbido quando o elevador começou a subir. Ela viu o motor em cima do carro pela janelinha de vidro, depois o interior do carro visto pelos losangos formados pela grade. Uma luz amarelo-pálida, do teto do carro. Estava vazio. O carro estava vazio. Estava vazio, mas
(nas noites de festa deviam encher o carro além dos seus limites de segurança, mas naturalmente ele era novo nessa época, e todos usando máscaras.)
(???QuE MÁSCARAS???)
O elevador parou no andar de cima, terceiro andar. Ela olhou para Danny. Seu rosto era só olhos. A boca apertada, amedrontada e branca. Acima deles, a grade abrindo. A porta do elevador aberta num baque, aberta num baque porque era hora, a hora era chegada, era hora de dizer
(Boa noite. . . boa noite. . . sim, foi maravilhoso. . . não, realmente não posso ficar para a retirada das máscaras. . . cedo para a cama, cedo para levantar. . . oh, aquela era Sheila?.
O monge?. . . aquela não é a graciosa Sheila fantasiada de monge?. . . sim, boa noite. . . boa)
Tamp.
Som metálico. Motor engatado. O carro começou a descer.
- Jack - sussurrou ela. - O que é? O que está acontecendo?
- Um curto-circuito - respondeu Jack. Seu rosto estava como madeira. - Eu lhe disse que era um curto-circuito.
- Fico ouvindo vozes em minha cabeça! - gritou Wendy. - O que é? O que está acontecendo? Sinto-me como se estivesse ficando louca!
- Que vozes? - Olhou-a com doçura.
Ela voltou-se para Danny.
- Você ouviu. .
Danny meneou a cabeça devagar.
- Sim. E música. De muito tempo atrás. Em minha cabeça.
O elevador parou novamente. O hotel estava silencioso, estalando, deserto. Lá fora o vento gemia na escuridão.
- Talvez vocês dois estejam loucos - disse Jack, naturalmente. - Não escuto absolutamente nada, só mesmo o elevador passando por um caso de soluços elétricos. Se vocês dois querem formar um dueto histérico, bem. Mas não me incluam.
O elevador estava descendo novamente.
Jack deu um passo à direita, onde havia uma caixa com a frente de vidro. Deu-lhe um soco para quebrá-lo. Cortou a mão. E de dentro tirou uma chave comprida e lisa.
- Jack, não. Não.
- Vou cumprir meu dever. Agora, deixe-me sozinho, Wendy!
Ela tentou agarrar-lhe o braço. O marido a empurrou. Seus
pés tropeçaram na barra do robe e ela caiu no tapete com um tombo desajeitado. Danny deu um grito estridente e caiu de joelhos ao lado dela. Jack voltou-se para o elevador e enfiou a chave no buraco.
Os cabos do elevador desapareceram e o piso do carro surgiu na pequena janela. Um segundo depois, Jack girou a chave com força. Houve um rangido e um chiado, enquanto o elevador parava. Por um momento, o motor desembreado, no porão, gritou ainda mais, e então o interruptor de circuito desligou-o, e o Overlook ficou em silêncio. O vento da noite lá fora parecia muito alto. Jack olhou estupidamente para a porta cinza de metal do elevador. Havia três manchas grandes de sangue embaixo da fechadura.
Voltou-se para Wendy e Danny. Ela estava sentada e Danny tinha o braço à sua volta. Os dois o olhavam fixamente, como se ele fosse um estranho, possivelmente um estranho perigoso. Ele abriu a boca sem ter certeza do que ia sair.
- É. Wendy, é o meu trabalho.
- À merda com o seu trabalho - disse ela, claramente.
Ele se voltou para o elevador, passou os dedos na fenda que corria no lado direito da porta, e abriu-a um pouco. Depois, conseguiu pôr todo o seu peso na porta e abriu-a.
O carro parara na metade, o piso na altura do peito de Jack. A luz ainda ligada, contrastando com a escuridão do poço embaixo.
Olhou para o interior, no que pareceu um longo tempo. Está vazio - falou ele, então. - Um curto-circuito,
como eu disse. - Enfiou os dedos na fenda atrás da porta e começou a fechá-la. . . Em seguida, as mãos dela pousaram sobre seu ombro, com surpreendente força, afastando-o.
- Wendy! - gritou Jack. Mas ela já tinha alcançado o piso do elevador e dava pulos para poder olhar o interior do carro. Em seguida, com um movimento dos músculos dos ombros e barriga, ela tentou impulsionar-se para cima. Por um momento, ficou suspensa. Seus pés balançavam-se sobre a escuridão do poço e um chinelo cor-de-rosa caiu do pé e desapareceu.
- Mamãe! - gritou Danny.
Então, ela subiu, seu rosto enrubesceu, a testa tão pálida e iluminada como uma lamparina.
- O que me diz disto, Jack? Isto é um curto-circuito?
- Jogou alguma coisa e, de repente, o corredor estava cheio de confetes vermelhos, brancos, azuis e amarelos. - É?
Uma serpentina verde, desbotada em um tom pastel claro com a idade. - E isto? - Atirou-a, e ela veio pousar no tapete azul, uma máscara de cetim negro, enfeitada de lantejoulas no canto das têmporas. - Isto lhe parece um curto-circuito, Jack?
- gritou para o marido.
Jack afastou-se devagar, sacudindo a cabeça mecanicamente. A máscara olhava perdida para o teto, pousada sobre o tapete do corredor coberto de confete.
O salão de baile
Era 1º de dezembro.
Danny estava no salão de baile da ala leste, em cima de uma poltrona estofada, de espaldar alto, olhando o relógio. Ficava no centro, uma prateleira enfeitada, ladeada por dois grandes elefantes de marfim. Quase esperava que os elefantes começassem a se mexer, tentando espetá-lo com suas presas, mas eles estavam imóveis. Eram “seguros”. Desde a noite do elevador, dividia todas as coisas no Overlook em duas categorias. O elevador, o porão, o playground, o apartamento 217 e a suíte presidencial (era “suíte”, era assim que se escrevia; tinha visto num livro de contabilidade que o pai estivera lendo no jantar na noite anterior, e memorizara com cuidado) . . . estes lugares eram “inseguros”. Seus alojamentos, o saguão e a varanda eram “seguros”. Aparentemente o salão de baile também era.
(Os elefantes pelo menos são.)
Não estava certo quanto aos outros lugares e, portanto, geralmente os evitava.
Olhou o relógio dentro da redoma de vidro. Ficava sob o vidro porque toda a sua engrenagem estava exposta. Um sulco cromado ou de aço contornava esses trabalhos, e imediatamente abaixo do mostrador havia uma barra com um par de rodas dentadas em cada extremidade. Os ponteiros do relógio estavam parados um quarto depois das onze, e apesar de não conhecer algarismos romanos podia adivinhar pela configuração dos ponteiros a que horas o relógio tinha parado. O relógio repousava sobre uma base de veludo. Em frente, um pouco distorcida pela curva da redoma, estava uma chave de prata, cuidadosamente trabalhada.
Supôs que o relógio era uma das coisas que ele não devia tocar, como as peças decorativas da lareira que ficavam no armário torneado de bronze junto à lareira do saguão, ou o menino alto de porcelana no fundo do restaurante.
Uma sensação de injustiça e de revolta cresceram nele e (não se incomode com o que não devo tocar, sim plesmente não se incomode; me tocou, não tocou? brincou comigo, não brincou?)
era verdade. E não tinha tido cuidado para não quebrá-lo, também.
Danny estendeu as mãos, tocou a redoma de vidro, e levantou-a. Deixou, por um momento, um dedo brincar sobre o interior do relógio, a ponta do dedo indicador acompanhando os dentes, passando de leve sobre as rodas. Pegou a chave de prata. Para um adulto, seria desconfortavelmente pequena, mas cabia perfeitamente entre seus dedos. Colocou-a no buraco, no centro do mostrador. Entrou firmemente em seu lugar, com um pequeno dique, mais sentido do que ouvido. Girava para a direita, claro: sentido horário.
Danny girou a chave até que ela ficasse travada, e então retirou-a. O relógio começou a bater. Os dentes giravam. Uma grande roda balançava de um lado para outro, em semicírculos. Os ponteiros se mexiam. Se a pessoa mantivesse a cabeça imóvel e os olhos bem abertos, poderia ver o ponteiro de minutos caminhando para seu encontro, daqui a quarenta e cinco minutos, com o ponteiro das horas. As doze.
(E a Máscara da Morte Rubra dominava tudo.)
Franziu a testa, e afastou o pensamento. Era um pensamento sem significado ou referência para ele.
Estendeu o dedo indicador mais uma vez e empurrou o ponteiro dos minutos até o das horas, curioso com o que poderia acontecer. Obviamente, não era um relógio de cuco, mas aquele trilho de metal tinha que ter um propósito.
Houve uma pequena série de diques, e então o relógio começou a tocar o Danúbio azul, de Strauss. Um rolo de fazenda com não mais do que cinco centímetros de largura começou a se desenrolar. Uma pequena série de martelinhos subiam e desciam. Por trás do mostrador duas figuras foram vistas, bailarínos, à esquerda uma jovem com uma saia fofa e meias brancas, à direita um rapaz de malha e sapatilhas. Suas mãos estavam seguras em arco sobre suas cabeças. Juntaram-se no meio, em frente ao 6.
Danny viu pequenas estrias em seus lados, exatamente abaixo das axilas. A barra entrou por essas estrias, e ele ouviu um outro pequeno dique. As rodas dentadas dos dois lados da barra começaram a girar. O Danúbio azul soava. Os braços dos bailarinos desceram e se entrelaçaram. O rapaz levantou a moça acima da cabeça e em seguida rodopiou sobre a barra. Deitavam-se agora de bruços, a cabeça do rapaz mergulhada por baixo da saia curta de balé da moça, o rosto dela apertado no meio da malha do rapaz. Contorciam-se num frenesi mecânico.
O nariz de Danny franziu. Estavam beijando os pipis. Aquilo fê-lo sentir-se mal.
Minutos depois, as coisas começaram a retroceder. O rapaz rodopiou sobre a barra. Levantou a jovem numa posição ereta. Pareciam cumprimentar-se, enquanto suas mãos formavam o arco sobre suas cabeças. Retiraram-se como chegaram, desaparecendo assim que o Danúbio azul terminou. O relógio começou a repicar os carrilhões de prata.
(Meia-noite! Está batendo meia-noite!)
(Tirem as máscaras!)
Danny rodopiou na poltrona, quase caindo. O salão de baile estava vazio. Adiante do janelão via neve fresca, começando a cair. O imenso tapete do salão (que ficava enrolado para o baile, claro), com um bordado rico, dourado e vermelho, repousava tranqüilo sobre o chão. Espalhadas em redor, estavam pequenas mesas para dois, as cadeiras viradas com as pernas apontando para o teto.
O salão todo estava vazio.
Mas não estava realmente vazio. Porque aqui, no Overlook, as coisas simplesmente pareciam não terminar. Houve uma noite interminável em agosto de 1945, com alegria e bebida, alguns poucos escolhidos subindo e descendo no elevador, bebendo champanha e soprando língua-de-sogra na cara um do outro. ainda não era de manhã, em junho, há cerca de vinte anos, e os mafiosos atiraram nos corpos esfacelados e cheios de sangue de três homens, que viveram sua infindável agonia. Num quarto do segundo andar, uma mulher boiava na banheira, esperava visitantes.
No Overlook, tudo tinha uma espécie de vida. Era como se se tivesse dado corda no lugar todo, com uma chave de prata. O relógio batia. O relógio batia.
Ele era aquela chave, pensou Danny triste. Tony avisara, e ele simplesmente deixou que as coisas prosseguissem.
(Só tenho cinco anos!)
Gritou para aqueles que ele pressentia estarem ali.
(Não faz nenhuma diferença eu ter só cinco anos?)
Não houve resposta.
Voltou-se, relutante, para o relógio.
Tentava pará-lo na esperança de que alguma coisa acontecesse para ajudá-lo a não chamar Tony novamente, que um guarda-florestal chegasse, ou um helicóptero, ou uma equipe de salvamento; sempre chegavam na hora certa nos programas da televisão, e as pessoas eram salvas. Na televisão, os guardas, a SWAT e o pessoal da equipe médica era uma força branca amiga, contrabalançando o mal que ele percebia no mundo; quando as pessoas estavam em apuros, eram ajudadas. Eles não tinham que lutar para sair sozinhos.
(Por favor?)
Não houve resposta.
Nenhuma resposta, e se Tony viesse seria o mesmo pesadelo? A voz exuberante, rouca e petulante, o tapete preto e azul como cobras? Redrum?
Mas o que mais?
(Por favor oh por favor)
Nenhuma resposta.
Com um suspiro trêmulo, olhou para o mostrador do relógio. Rodas dentadas giravam e se encaixavam umas nas outras. Uma outra balançava hipnoticamente de um lado para outro. E se você mantivesse a cabeça imóvel, poderia ver o ponteiro dos minutos caindo de doze para cinco. Se você mantivesse a cabeça imóvel, poderia ver que.
O mostrador desapareceu. Em seu lugar, estava um buraco negro e redondo. Levava para o além. Começou a aumentar. O relógio desapareceu. O salão atrás dele. Danny cambaleou e caiu na escuridão que se escondera por trás do mostrador por todo o tempo.
O pequeno menino na poltrona, de repente, encostou-se e refestelouse nela, a cabeça jogada para trás, os olhos arregalados e perdidos em direção ao teto alto do salão.
Descendo, descendo, descendo, descendo para o corredor, agachado no corredor, e dobrara no lugar errado, tentando tomar de volta o caminho das escadas, dobrara no lugar errado e agora E AGORA.
viu que estava num corredor curto, sem saída, que levava apenas à suíte presidencial, e o estrondo se aproximava, o taco de roque assobiando brutalmente pelo ar, enterrando a cabeça na parede, cortando o papel de seda, fazendo cair pequenos pedaços de gesso.
(Merda, venha cá! Tome seu)
Mas havia outra figura no corredor. Indiferentemente relaxada contra a parede atrás dele. Como um fantasma.
Não, não um fantasma, mas todo vestido de branco, vestido de branco.
(Vou alcançá-lo, seu maldito fedelho)
Danny encolheu-se de medo. Subindo pelo corredor principal do terceiro andar. Logo o dono daquela voz apareceria dobrando o corredor.
(Venha cá! Venha cá, seu merdinha!)
A figura de branco se ajeitou um pouco, tirou o cigarro do canto da boca, e puxou um pedaço de fumo do lábio inferior. Era Hallorann, viu Danny. Vestido com o uniforme branco de cozinheiro, ao invés do casaco azul que usava no último dia.
“Se houver problema”, dissera Hallorann, “dê um sinal. Um chamado forte como o que você deu minutos atrás. Pode ser que eu o escute até mesmo lá na Flórida. E se isso acontecer, virei correndo. Virei correndo. Virei correndo.
(Venha agora então! Venha agora, venha AGORA! Oh, Dick, preciso de você, nós todos precisamos)
“..correr. Perdão, mas tenho que correr. Perdão, Danny amigão, mas tenho que correr. Foi muito divertido, seu danadão, mas tenho que ir depressa, tenho que correr.”
(Não!)
Mas, enquanto observava, Dick Hallorann virou-se, pôs o cigarro de volta no canto da boca, e passou indiferente através da parede.
Deixando-o sozinho.
E foi quando a sombra dobrou o corredor, imensa na escuridão do corredor, só deixando claro o vermelho dos olhos.
(Ah, você está ai’! Peguei-o, seu bosta! Agora você vai aprender!)
Balançou-se em direção a Danny, cambaleando, o taco de roque sacudindo. Danny caminhando para trás, gritando, e de repente passando através da parede e caindo, rolando pelo buraco do coelho para uma terra cheia de extravagâncias
Tony estava muito adiante, também caindo.
(Não posso mais vir, Danny. . . ele não me vai deixar chegar perto de você.., nenhum deles vai me deixar chegar perto de você chame Dick chame Dick.. -)
- Tony! - gritou.
Mas Tony desaparecera, e, de repente, ele estava numa sala escura. Mas não totalmente escura. Uma luz muito fraca. Vinha de algum lugar. Era o quarto da mãe e do pai. Via a escrivaninha do pai. Mas o quarto era um terrível campo de batalha. Já estivera neste quarto antes. O toca-discos da mãe derrubado no chão. Seus discos espalhados pelo tapete. O colchão metade fora da cama. Quadros arrancados das paredes. A cama tombada como um cachorro morto, o Violento Volkswagen Violeta reduzido a pedaços de plástico violeta.
A luz vinha da porta do banheiro, entreaberta. Por trás dela, uma mão flácida balançando, sangue pingando das pontas dos dedos. E, no espelho do armário de remédios, a palavr-a REDRUM acendendo e apagando.
De repente, um imenso relógio dentro de uma redoma de vidro materializou-se na frente. Não havia ponteiros, nem números no mostrador, apenas uma data escrita em vermelho:
2 DE DEZEMBRO. E então, olhos arregalados de pavor, viu a palavra REDRUM refletida vagamente na redoma de vidro, agora refletida duas vezes. E viu que formava MURDER
Danny Torrance gritou de pavor. A data desaparecera do mostrador. O próprio mostrador desaparecera, substituído por um buraco escuro que crescia, crescia como uma pupila dilatada. Apagava tudo, e ele tombou para a frente, começando a cair, caindo, ele estava. Caindo da poltrona.
Por um momento deitou-se no chão do salão, ofegante.
REDRUM.
MURDER.
REDRUM.
MURDER.
1Murder assassinato. (N. da T.)
(E a Máscara da Morte Rubra dominava tudo!)
(Retirem as máscaras! Retirem as máscaras!)
E, por trás de cada máscara brilhante e linda, o rosto até então escondido com a forma do que o perseguira nos corredores escuros, os olhos vermelhos e grandes, vagos e homicidas.
Oh, ele tinha medo do rosto que poderia aparecer, quando finalmente chegasse a hora da retirada das máscaras.
(DICK! )
gritou com toda a força. A cabeça parecia tremer com a força.
(!!! OH DICK OH POR FAVOR POR FAVOR POR FAVOR VENHA!!!)
Acima, o relógio, o relógio a que dera corda com a chave de prata continuava a marcar os segundos, minutos e horas.
Questões de vida e morte
Flórida
O terceiro filho da Sra. Hallorann, Dick, vestido de uniforme branco de cozinheiro, um Lucky Strike pendurado no canto da boca, apanhou seu Cadillac reformado no estacionamento do Mercado de Frutas e Legumes, e deu uma volta devagar em torno do prédio. Masterton, agora sócio, que conservava desde antes da Segunda Guerra Mundial um jeito especial e todo seu de andar se arrastando, empurrava uma caixa de alfaces para dentro do edifício alto e escuro.
Hallorann apertou o botão que abria a janela do lado do banco do acompanhante e gritou;
- Esses abacates estão caros à beça, seu pão-duro.
Masterton olhou por cima dos ombros, deu um sorriso largo para mostrar os três dentes de ouro, e gritou de volta:
- E sei exatamente onde que você pode enfiá-los, rapaz.
- Não costumo esquecer-Lhe desse tipo de lembrete, mano.
Masterton fez um sinal obsceno com o dedo. Hallorann retribuiu.
- Recebeu os pepinos? - perguntou Masterton.
Recebi.
- Venha cedo amanhã, vou dar-lhe as batatas mais bonitas que já se viu.
- Vou mandar o menino disse Hallorann. - Vai passar por lá hoje à noite?
- Comes e bebes, mano?
- É isso aí.
- Conte comigo. Vá devagar para casa. Todo guarda daqui a St. Pete sabe seu nome.
- Você sabe de tudo, bem? - perguntou Hallorann, sorrindo.
Sei mais do que você pensa, homem.
Ouça este crioulo metido. Quer ouvir?
- Vá embora, saia daqui antes que eu jogue estas alfaces em cima de você.
- Pode jogar. Sendo de graça, eu pego.
Masterton fez que ia jogar um pé de alface. Hallorann desviou rapidamente a cabeça, levantou a janela, e saiu. Sentia-se bem. Durante a última meia hora tinha sentido cheiro de laranja, mas não estranhou. Tinha passado a última meia hora em um mercado hortigranjeiro.
Eram quatro e meia da tarde, primeiro dia de dezembro, o velho inverno açoitava quase todo o país, mas aqui os homens usavam camisas abertas de manga curta, e as mulheres, vestidos leves e shorts. No topo do edifício First Bank of Florida, um termômetro, enfeitado com imensas grapefruits, marcava vinte e cinco graus. Agradeço a Deus por ter-me dado a Flórida, pensou Hallorann, com seus mosquitos e tudo.
No banco de trás da limusine havia duas dúzias de abacates, um caixote de pepinos, idem de laranjas, ibidem de grapefruits. Três sacolas de compras cheias de cebola, as verduras mais maravilhosas que o bom Deus criou, ervilhas boas que seriam servidas com a entrada e que voltariam intatas nove vezes em cada dez refeições, e uma única abóbora, que era estritamente para consumo pessoal.
Hallorann parou no sinal da Vermont Street, e, quando a seta verde acendeu no sinal, engatou e saiu pela Estrada 219, a setenta, mantendo essa velocidade até que a cidade começou a dar lugar a uma porção de postos de gasolina e lanchonetes. A encomenda hoje tinha sido pequena, poderia ter mandado Baedecker buscar, mas este estava doido para chegar sua vez de comprar a carne e, além do mais, Hallorann nunca deixava passar uma oportunidade de um papo com Frank Masterton. O amigo talvez aparecesse à noite para assistir à televisão e beber a cerveja de Hallorann, ou talvez não. Qualquer possibilidade era boa. Mas vê-lo era importante. De uns tempos para cá, tornara-se importante, pois eles não eram mais jovens. Nos últimos dias parecia estar pensando muito neste assunto. Quando se chega próximo aos sessenta (ou. . . para dizer a verdade. . . se ultrapassa) já não se é mais tão jovem, e é preciso começar a pensar na morte. Pode-se ir a qualquer hora. E isso estava em sua mente aquela semana, não de forma pesada, mas como um fato. Morrer é uma parte da vida. A pessoa tem que perceber isso, se quiser tornar-se um ser humano em sua totalidade. E, ainda que fosse difícil entender sua própria morte, não era impossível aceitá-la.
Por que isso estava em sua mente, não podia dizer, mas a outra razão para ele mesmo ter apanhado a pequena encomenda era porque assim poderia subir até o pequeno escritório sobre o Frank’s Bar e Grili. Havia lá um advogado agora (o dentista que passara por lá o ano passado tinha aparentemente falido), um jovem negro de nome Mclver. Hallorann entrara e dissera a este Mclver que queria fazer um testamento, e será que Mclver poderia ajudá-lo? Bem, Mclver respondeu, para quando quer o documento? Para ontem, disse Hallorann, jogando a cabeça para trás e rindo. Tem alguma coisa complicada em mente?, foi a próxima pergunta de Mclver. Hallorann não tinha. Tinha seu Cadillac, sua conta bancária uns nove mil dólares - e um armário de roupas. Queria que tudo fosse para sua irmã. E se ela morrer antes de você?, perguntou Mclver. Não se incomode, respondeu Hallorann. Se isso acontecer, farei um novo testamento. O documento estava pronto e assinado em menos de três horas - trabalho rápido para um rábula e agora morava no bolso da camisa de Hallorann, dobrado dentro de um envelope azul com a palavra TESTAMENTO em letras desenhadas.
Não podia dizer por que escolhera esse dia ensolarado, quando se sentia tão bem, para fazer algo que adiara durante anos, mas o impulso viera, e ele não dissera nada, Acostumara-se a seguir seus impulsos.
Estava fora da cidade agora. Acelerou a limusine até os proibidos cem, e a deixou correr na pista da esquerda, que servia de escoamento para a maior parte do tráfego ao redor de Petersburg. Sabia, por experiência própria, que a limusine rodaria ainda com a mesma estabilidade a cento e quarenta, e até a cento e noventa. Mas sua época de corredor já havia passado há muitos anos. A idéia de pôr cento e noventa no carro numa reta simplesmente o apavorava. Sentia frio.
(Deus, essas laranjas têm cheiro forte. Será que estão passadas?)
Insetos se esmagavam contra o pára-brisa. Ligou o rádio numa estação de soul de Miami e ouviu a voz macia de Al Green,
“Que época linda vivemos,
Agora está ficando tarde e devemos nos separar. .
Abriu a janela, para jogar fora a ponta do cigarro e afastar o cheiro de laranjas. Batia os dedos de leve no volante e cantarolava. Pendurada no espelho retrovisor, sua medalha de São Cristóvão balançava um pouco.
De repente, o cheiro forte de laranjas aumentou, e sabia que alguma coisa estava vindo a ele. Viu os próprios olhos no espelho retrovisor arregalarem-se surpresos. E então a coisa veio de uma vez, numa força imensa que afastou tudo o mais:
a música, a estrada adiante, a própria consciência de si mesmo como única criatura humana. Era como se alguém lhe tivesse encostado um revólver psíquico na cabeça e tivesse atirado um grito de calibre 45.
(H!oH DICK OH POR FAVOR POR FAVOR
POR FAVOR vENHA!!!)
A limusine emparelhou com uma caminhonete dirigida por um homem com roupa de trabalhador, O homem viu a limusine avançando em sua pista e buzinou. Quando o Cadillac continuou a correr, ele olhou rapidamente para o motorista e viu um grande homem preto ao volante, os olhos voltados vagamente para cima. Mais tarde, o homem disse à mulher que sabia tratar-se de um desses cabelos afros que todos os negros usam hoje em dia, mas, na ocasião, parecera que cada fio de cabelo na cabeça do crioulo estava arrepiado. Pensou que o negro estivesse tendo um ataque cardíaco.
O trabalhador freou bruscamente, aproveitando o pouco espaço que lhe restava. Foi adiante, o Cadillac ainda o fechando, e viu apavorado quando as lanternas traseiras, grandes e em forma de foguete, cortaram sua pista a menos de um centímetro do pára-choque.
O trabalhador passou para a esquerda, ainda buzinando, e berrou ao passar pela limusine descontrolada. Mandou o motorista da limusine ir praticar algum ato sexual anormal sem parceiro. Participar de sexo oral com roedores e pássaros. Articulou seu desejo de que todas as pessoas de sangue negro voltassem ao continente de origem. Expressou sua sincera convicção sobre o lugar que a alma do motorista da limusine ocuparia depois de morto. Concluiu dizendo que achava ter conhecido a mãe do motorista numa casa de prostitutas em Nova Orleans.
Depois, seguiu em frente e se viu fora de perigo, percebendo, de repente, que urinara na calça.
Na mente de Hallorann o pensamento se repetia
(VENHA DICK POR FAVOR VENHA DICK POR FAVOR)
mas começou a se esvanecer como acontece com uma estação de rádio quando você se aproxima dos limites da área de transmissão. Sentiu que o carro estava no acostamento a mais de oitenta quilômetros por hora. Dirigiu-o de volta à estrada, sentindo a traseira do carro por um momento antes de retomar o asfalto.
Havia um anúncio de restaurante adiante. Hallorann ligou a seta e entrou, o coração batendo forte no peito, o rosto pálido. Estacionou, tirou o lenço do bolso, e esfregou a testa com ele.
(Santo Deus!)
- O que deseja?
A voz surpreendeu-o novamente, apesar de não ter sido a voz de Deus, mas sim a de uma garçonete bonitinha, junto à janela do carro com um bloco de pedidos.
- Sim, benzinho, um refrigerante. E um sorvete duplo de creme, OK?
Sim, senhor. Ela saiu, os quadris balançando jei tosos debaixo do uniforme de náilon vermelho.
Hallorann recostou-se no banco de couro, e fechou os olhos. Não sobrara mais nada, O último vestígio se apagara, quando estacionou e fez o pedido à garçonete. Tudo que restou foi uma dor de cabeça forte, como se os miolos tivessem sido torcidos, espremidos e postos para secar. Como a dor de cabeça que teve quando deixou aquele menino Danny penetrar em sua mente lá em cima, na “Menina dos Olhos de Ullman”.
Mas desta vez tinha sido muito mais forte. Naquela ocasião o menino tinha apenas brincado com ele. Desta vez, tinha sido uma loucura, cada palavra gritava alto em sua cabeça.
Olhou para os braços. O sol quente batia neles, mas ainda assim estavam arrepiados. Tinha dito ao menino que o chamasse, se precisasse de ajuda, lembrava-se disso. E agora o menino estava chamando.
De repente. imaginou como poderia ter deixado aquele menino por lá, iluminado como era. Tinha que haver problemas, talvez sérios.
De repente, ligou a limusine, deu marcha à ré, e voltou para a estrada, o motor cantando no asfalto. A garçonete dos quadris salientes parou junto ao arco do anúncio, com uma bandeja nas mãos.
- Vai tirar o pai da forca? - gritou ela, mas Hallorann já havia saído.
O gerente era um homem chamado Queems; e, quando Hallorann entrou, Queems falava ao telefone com o bookmaker, pois queria apostar em quatro cavalos. Não, nada de acumulada. Apenas os quatro de sempre, seiscentos dólares redondos. E os Jets no domingo. Como assim, os Jets 1 contra os BilIs 2? Ele não sabia contra quem os Jets iam jogar? Quinhentos. Quando Queems desligou, desapontado, Hallorann compreendeu como um homem poderia ganhar cinqüenta mil por ano como gerente deste pequeno balneário, e ainda vestir calça velha, O gerente olhou para Hallorann com os olhos vermelhos de tanto olhar para o fundo do copo de uísque da noite anterior.
- Algum problema, Dick?
Sim, Queems, acho que sim. Preciso de três dias.
Havia um maço de Kent no bolso da camisa amarela de Queems. Tirou um cigarro sem remover o maço, segurando-o entre os dedos, e mordendo, melancólico, o filtro. Acendeu-o com o isqueiro de mesa.
Eu também - disse o gerente. - Mas o que tem em mente?
- Preciso de três dias repetiu Halloran. É o meu garoto.
Os olhos de Queems baixaram para a mão esquerda de Hallorann, que não tinha aliança.
Estou divorciado desde 1964 - falou Hallorann, com paciência.
Díck, você sabe qual é a situação no fim de semana. Estamos lotados. Até os portões. Até mesmo os quartos baratos. Até o Salão Flórida vai estar cheio no sábado à noite.
1 Jets time de futebol de Nova York. (N. da T.)
2 Bills - time de futebol de Buffalo. (N, da T.)
Portanto, eu lhe dou meu relógio, minha carteira, minha pensão. Merda, dou-lhe até minha mulher, se você agüentar. Mas, por favor, não me peça dias de folga. O que ele tem, está doente?
- Sim, senhor disse Hallorann, imaginando-se amassando um chapéu de pano barato entre os dedos e revirando os olhos. - Levou um tiro.
- Tiro! - exclamou Queems. Colocou o Kent no cinzeiro que tinha um emblema da Universidade de Mississípi, por onde se formara em administração.
- Sim, senhor - confirmou Hallorann, sombrio.
Acidente de caça?
Não, senhor -. disse Hallorann, baixando o tom de voz. - Jana está vivendo com um motorista de caminhão. Um branco. Ele atirou no meu garoto. Está num hospital em Denver, Colorado. Estado grave.
- Com os diabos, como foi que você descobriu? Pensei que tivesse ido comprar os legumes.
- Sim, senhor, eu fui. - Ele parara no escritório da Western Union antes de ir para o hotel, para reservar um carro no balcão da Avis no Aeroporto de Stapleton. Antes de sair roubara um formulário da Western Union. Agora, tirava do bolso o formulário dobrado, e em branco, e o passava pelos olhos arregalados de Queems. Colocou-o de volta no bolso, e, deixando a voz baixar mais um pouco, disse: Jana mandou. Estava na minha caixa de carta quando voltei agora.
- Deus. Meu Deus - falou Queems. Havia uma expressão peculiar de preocupação em seu rosto, com a qual Hallorann já se habituara. Era quase uma expressão de piedade de um branco que se considerava “bonzinho para com os crioulos”, quando se tratava de um negro ou seu filho mítico. - Sim, muito bem, vá andando. Baedecker pode substituí-lo durante os três dias, acho eu. O menino que está trabalhando de garçom pode ajudar.
Hallorann balançou a cabeça, deixando seu rosto parecer mais calmo, mas a idéia de um menino ajudar Baedecker o fazia rir por dentro. Mesmo em dias calmos, Hallorann duvidava de que o menino pudesse acertar o penico na primeira mijada.
- O senhor pode descontar no pagamento desta semana.
disse Hallorann. - Tudo. Sei o problema que isto está causando para o senhor.
O rosto de Queems contraiu-se ainda mais, parecia ter um osso atravessado na garganta.
- Podemos conversar sobre isso mais tarde. Vá e arrume as malas. Vou conversar com Baedecker. Quer que lhe faça uma reserva no avião?
- Não, senhor, eu mesmo faço.
- Muito bem. - Queems levantou-se, curvou-se sinceramente e soltou uma grande quantidade de fumaça. Tossiu com força, o rosto fino e branco tornando-se vermelho. Hallorann fez força para manter a expressão sombria. - Espero que tudo se resolva, Dick. Telefone quando tiver alguma notícia.
- Telefonarei.
Apertaram-se as mãos sobre a mesa.
Hallorann desceu até o andar térreo e foi às dependências dos empregados explodindo numa gargalhada. ainda ria e enxugava os olhos com o lenço, quando o cheiro de laranjas veio forte e nauseante, seguido pelo raio, que o atingiu na cabeça, levando-o, numa vertigem, de volta contra uma parede de reboco cor-de-rosa.
(!!!PoR FAVOR VENHA DICK POR FAVOR
VENHA DEPRESSA!!!)
Aos poucos, recuperou-se e finalmente se sentiu capaz de subir as escadas externas do apartamento. Guardava a chave debaixo do capacho, e, quando se abaixou para apanhá-la, alguma coisa caiu do seu bolso batendo no chão com um ruído surdo. Sua mente ainda estava tão ligada à voz que ouvira na cabeça que, por um momento, só conseguia olhar para o envelope azul, sem saber o que era.
Em seguida, virou-o e a palavra “TESTAMENTO” fixou-se nele com letras negras.
(Ó meu Deus, é isso?)
Não sabia. Mas poderia ser. Durante toda a semana o pensamento do próprio fim tinha estado em sua mente como uma... bem, como uma
(Vá, diga)
como uma premonição.
Morte? Por um momento sua vida inteira passou diante dele, não com sentido históríco, nem topográfico, dos altos e baixos por que o terceiro filho da Sra. Hallorann, Dick, passara mas sua vida como era agora. Martin Luther Kíng havia ido à montanha. Dick não podia dizer o mesmo. Nenhuma montanha, mas chegara a um platô ensolarado depois de três anos de luta. Tínha bons amigos. Tinha todas as referências de que precisasse para um emprego em qualquer lugar. Quando queria trepar, bem, encontrava sempre uma amiga simpática, sem perguntas nem frescuras sobre o significado daquilo. Assumira o fato de ser negro. . . assumira mesmo. Já tinha mais de sessenta e graças a Deus passava bem.
Arriscaria tudo isso - o fim dele mesmo - por causa de três brancos que nem sequer conhecia?
Mas isso era mentira, não era?
Conhecia o menino. Haviam-se relacionado como muitos amigos não se relacionam mesmo depois de quarenta anos de amizade. Conhecia o menino, e o menino o conhecia, pois ambos tinham uma espécie de farol na cabeça, algo que não haviam pedido, algo que simplesmente lhes tinha sido concedido.
(Agora você tem uma lanterna, e ele o farol.)
E, às vezes, aquela luz, aquela luz interior, parecia uma coisa bonita. Você podia escolher os cavalos, ou, como o menino dissera, podia dizer ao pai onde estava a arca dada por perdida. Mas isso era só o molho, o molho numa salada onde embaixo havia uma ervilha muito mais amarga escondida em meio a pepinos frescos, Você podia sentir o gosto de dor, de morte e de lágrimas. E agora o menino estava preso naquele lugar, e ele iria. Por causa do menino. Pois, conversando com o menino, só se notava que eram de cor diferente quando abriam as bocas. Portanto, iria. Faria o que pudesse, pois, se não o fizesse, o menino morreria exatamente dentro de sua cabeça.
Mas, por ser humano, não podia conter um desejo amargo de que nunca tivesse que passar por ísso.
(Ela começou a sair e vir atrás dele.)
Enfiava uma muda de roupa na sacola, quando um pensamento lhe veio à cabeça, deixando-o gelado pelo poder da lembrança, como sempre acontecia. Tentava pensar o menos possível.
A camareira, Delores Vickey, era seu nome, tinha ficado histérica. Dissera algumas coisas às outras camareiras e, pior ainda, a alguns hóspedes. Quando a coisa chegou aos ouvidos de Uliman, como era de se esperar, ele a despedira, imediatamente. Ela fora até Hallorann aos prantos. Não por ter sido despedida, mas por causa do que vira naquele apartamento do segundo andar. Entrara no 217 para trocar as toalhas, dizia ela, e lá estava aquela tal da Sra. Massey, deitada, morta, na banheira. Aquilo, naturalmente, era impossível. A Sra. Massey fora, discretamente, levada para longe, no dia anterior, e estava naquele momento voando de volta a Nova York - junto com as bagagens ao invés de junto aos passageiros da primeira classe a que se acostumara.
Hallorann não gostava muito de Delores, mas subira, naquela noite, para olhar. A criada tinha a pele cor de azeitona, vinte e três anos, e trabalhava como garçonete no final da temporada, quando o movimento diminuía. Era um pouco iluminada, julgava Hallorann, na verdade não mais do que um vislumbre; um homem tímido e sua acompanhante, usando um casaco desbotado, chegaram para jantar e Delores trocou uma de suas mesas pela deles, O homenzinho deixou, ao sair, uma boa gorjeta sob o prato, o que já era bastante desagradável para a menina que havia feito a troca, mas foi pior, pois Delores gritava de alegria por causa disso. Era preguiçosa, cometia vexames numa organização dirigida por um homem que não admitia vexames. Costumava se sentar num armário de roupas de cama, lendo fotonovela e fumando, mas quando Uliman aparecia numa de suas “incertas” (e ai da moça que era apanhada descansando os pés) encontrava-a trabalhando eficientemente, a revista escondida sob os lençóis na prateleira de cima, o cinzeiro cuidadosamente enfiado no bolso do uniforme. Sim, pensava Hallorann, ela era uma preguiçosa e uma relaxada, e as outras moças ressentiam-se dela, mas Delores tinha um certo vislumbre de luz interior. Não se metia nunca em maus lençóis. Mas o que vira no 217 a amedrontara o suficiente, de tal forma que ela estava mais do que contente em pôr em andamento os papéis que Ullman emitira, e sumir.
Por que ela viera até ele? Um iluminado identifica outro, pensou Hallorann, rindo.
Então, ele subiu aquela noite, e foi levado a entrar no apartamento, que deveria ser ocupado novamente no dia seguinte. Usara a chave mestra para entrar, e se Ullman o apanhasse com ela teria ido fazer companhia a Delores Vickey, na fila da Previdência Social.
A cortina do chuveiro, em volta da banheira, estava fechada. Abrira-a, mas mesmo antes de o ter feito, pressentiu o que iria ver. A Sra. Massey inchada e roxa, deitada molhada na banheira, que estava com água pela metade. Parara olhando para ela, uma pulsação forte na garganta. Havia outras coisas no Overlook: um pesadelo ocorria a intervalos irregulares uma espécie de baile a fantasia de que participava no salão do Overlook, e, ao grito de retirada das máscaras, todos exibiam seus rostos, que eram os mesmos de insetos podres e havia os arbustos em formato de animais. Duas vezes, talvez três, ele tinha (ou pensava ter) visto os animais se movendo, sempre muito pouco. Aquele cachorro parecia sair de sua posição para outra um pouco mais agachada, e os leões pareciam andar para a frente, como se ameaçando os pequenos vira-latas do playground. Ano passado, em maio, Ullman mandara-o ao sótão para procurar um jogo de ferramentas de lareira que agora ficava ao lado da lareira do saguão. Enquanto estava lá em cima, as três lâmpadas penduradas apagaram-se, e ele ficou perdido. Tropeçara por ali durante um tempo indeterminado, cada vez mais próximo do pânico, batendo as canelas nas caixas, e se chocando contra coisas, com uma sensação cada vez mais forte de que alguma coisa o espreitava no escuro. Alguma criatura grande e terrível que se esgueirara pela madeira quando as luzes se apagaram. E quando literalmente tropeçou no trinco da porta de saída, desceu o mais depressa que pôde, deixando a porta aberta, coberto de fuligem e desarrumado, com uma sensação de desastre sem possibilidade de ser impedido. Mais tarde, Ullman descera pessoalmente à cozinha, para informar que ele havia deixado a porta de saída do sótão aberta e as luzes acesas lá em cima. Hallorann por um acaso achara que os hóspedes gostariam de subir e brincar de esconde-esconde? Achava que eletricidade era de graça?
E ele suspeitava de que - não, estava quase certo - muitos dos hóspedes teriam visto ou ouvido coisas também. Nos três anos que estivera ali, a suíte presidencial tinha sido ocupada dezenove vezes. Seis dos hóspedes que passaram por lá deixaram o hotel mais cedo, alguns deles com a aparência de doentes. Vários hóspedes deixaram outros apartamentos de forma igualmente brusca. Certa noite, em agosto de 1974, ao anoitecer, um homem que recebera condecorações de bronze e prata na Coréia
(ele agora fazia parte da diretoria de três das principais empresas do país, e comentava-se que havia pessoalmente despedido um famoso noticiarista da televisão) teve inúmeras crises histéricas de gritos no gramado. E havia dezenas de crianças, durante a estada de Hallorann no Overlook, que simplesmente se recusavam a ir ao playground. Uma criança tivera uma convulsão no túnel de concreto, mas Hallorann não sabia se isso poderia ser atribuído à música da sirene mortal do Overlook ou não. . . comentava-se, entre os empregados, que a criança, única filha de um bonito artista de cinema, era epiléptica sob controle médico, e que simplesmente esquecera de tomar o remédio naquele dia.
E, então, com o olhar fixo no cadáver da Sra. Massey, teve medo, mas não ficou totalmente amedrontado. Não era de todo inesperado, O pavor veio quando ela abriu os olhos exibindo pupilas prateadas e começou a sorrir para ele. O pavor veio quando
(ela começou a sair e vir atrás dele.)
Fugira, o coração disparado, e não se sentira seguro nem depois de ter saído, fechado e trancado a porta. Na realidade, admitia consigo mesmo fechando o zíper da sacola, nunca mais se sentira seguro em lugar nenhum do Overlook.
E agora o menino. . . chamando, clamando por ajuda.
Olhou o relógio. Eram cinco e meia da tarde. Foi até a porta do apartamento, lembrou-se de que era inverno no Colorado, especialmente nas montanhas, e voltou ao armário. Tirou o casacão comprido de pele de carneiro de um saco de plástico e o colocou nos braços. Era a única peça de roupa de inverno que possuía. Apagou as luzes e olhou ao redor. Esquecera alguma coisa? Sim. Uma coisa. Tirou o testamento do bolso da camisa e colocou-o na borda do espelho da penteadeira. Se tivesse sorte, voltaria para apanhá-lo.
Claro, se tivesse sorte.
Saiu do apartamento, trancou a porta, colocou a chave debaixo do capacho, e desceu as escadas externas para seu Cadillac conversível.
No meio do caminho para o Aeroporto Internacional de Miami, confortavelmente distante da mesa telefônica onde Queems ou seus bajuladores ouviam as conversas, Hallorann parou no centro comercial de máquinas de lavar públicas e telefonou para as Aerolineas United. Vôos para Denver?
Havia um às seis e trinta e seis da tarde. O cavalheiro conseguiria chegar a tempo?
Hallorann olhou o relógio que marcava seis e dois, e disse que conseguiria. Há lugar no avião?
Vou verificar.
Um ruído seguiu-se de um falso Mantovani destinado a tornar a espera mais agradável. Não tornava. Hallorann apoiava-se ora num pé ora noutro, alternando olhares entre o relógio e uma jovem mãe que tirava roupas da máquina de lavar com um bebê dormindo em uma cesta em suas costas. Ela temia que chegasse em casa mais tarde do que planejara, o assado queimasse e o marido Mark? Milce? Matt? - ficasse aborrecido.
Um minuto se passou. Dois. Ele tinha acabado de resolver apanhar o carro, ir até lá e arriscar a sorte, quando uma voz enlatada de reservas de vôo veio ao ar. Havia um lugar, uma desistência. Era na primeira classe. Isso fazia alguma diferença?
Não. Ele queria.
O pagamento seria em dinheiro ou com cartão de crédito?
Dinheiro, henzinho, dinheiro. Preciso viajar.
E o nome era...?
Hallorann, Dick. Até mais tarde.
Desligou e correu para a porta. O simples pensamento da moça preocupada com o assado apossou-se dele cada vez mais até que pensou que fosse enlouquecer. As vezes é assim, sem nenhuma razão, você capta um pensamento, totalmente isolado, totalmente puro e claro. . . e geralmente inútil.
Quase conseguiu.
Acelerara a limusine a cento e vinte e o aeroporto já estava praticamente à vista, quando a polícia rodoviária o fez parar.
Hallorann abriu a janela automática e a boca para o guarda que folheava páginas na caderneta de multas.
- Eu sei - disse o guarda, consolando. - É um funeral em Cleveland. Seu pai. E um casamento em Seattle. Sua irmã. Um incêndio em San Jose que acabou com a loja de doces do VOVÔ. Maconha guardada num armário na rodoviária em Nova York. Adoro este trecho da estrada nas proximidades do aeroporto. Desde menino, a hora das historinhas é a coisa que mais gosto.
- Ouça, seu guarda, meu filho está. .
- A única parte da história que eu nunca adivinho antes do fim - disse o guarda, encontrando a página certa na caderneta de multas - é o número da carteira de habilitação do motoristafcontador de histórias e seu registro. Portanto, seja bonzinho. Deixe-me dar uma olhada.
Hallorann olhou nos olhos calmos e azuis do guarda, tentou ainda assim contar a história de que o filho estava em situação crítica, e resolveu que só pioraria as coisas. Este guardinha não era nenhum Queems. Pegou a carteira de documentos.
- Que beleza - falou o guarda. - Quer fazer o favor de tirá-las? Só preciso ver como estão as coisas.
Calado, Hallorann tirou a carteira de motorista e seu registro da Flórida, e os entregou ao guarda.
- Muito bem. Está tudo tão direitinho que você vai ganhar um presente.
O quê? - perguntou Hallorann, esperançoso.
- Quando eu acabar de anotar estes números, vou deixálo soprar este balãozinho para mim.
- Oh, Deeeeus! - resmungou Hallorann. - Seu guarda, meu vôo...
- Ohhh - fez o guarda de trânsito. - Não seja teimoso.
Hallorann fechou os olhos.
Chegou ao balcão da United às seis e quarenta e nove, esperando, mesmo sem esperança, que o vôo estivesse atrasado. Não precisou sequer perguntar. O monitor de partidas sobre o balcão contou a história. O vôo 901 para Denver, de seis e trinta e seis, partira às seis e quarenta. Fazia nove minutos.
- Merda - disse Dick Hallorann.
E de repente o cheiro de laranjas, forte e nauseante, e ele só teve tempo de ir ao banheiro dos homens antes que a coisa chegasse, ensurdecedora, amedrontadora:
(!!!VENHA POR FAVOR VENHA DICK POR FAVOR POR FAVOR VENHA!!!)
Uma das coisas que venderam para aumentar um pouco sua reserva, antes de se mudarem de Vermont para Colorado, fora uma coleção de duzentos discos de rock and roli e blues de Jack que renderam um dólar cada um. Um desses discos, o favorito de Danny, era um álbum duplo de Eddie Cochran com quatro páginas de apresentação escritas por Lenny Kaye. Wendy sempre se surpreendia com a fascinação de Danny por esse determinado disco de um rapaz que vivera pouco, e morrera jovem. . . morrera, na realidade, quando ela tinha dez anos.
Agora, às quinze para sete (hora da montanha), enquanto Dick Halborann contava a Queems sobre o namorado branco de sua ex-mulher, ela aproximou-se de Danny, que estava sentado no meio da escada entre o saguão e o primeiro andar, jogando uma bola vermelha de borracha de uma mão para a outra, e cantando uma das canções daquele disco. Sua voz era baixa e desafinada.
“Então, eu subo um-dois, subo três, subo quatro vezes”, cantava Danny, “cinco, subo seis, subo mais sete. . . quando chego lá em cima, estou muito cansado para dançar o rock. .
Ela chegou mais perto, sentou-se num dos degraus, e viu que o lábio inferior do filho estava inchado, e que havia sangue seco no queixo. O coração bateu mais forte no peito, mas conseguiu falar com naturalidade.
- O que houve, doutor? perguntou ela, apesar de, no íntimo, saber. Jack o agredira. Claro que sim. Só faltava isso, não é mesmo? Mais cedo ou mais tarde voltava ao ponto de partida.
- Chamei Tony .- respondeu Danny. - No salão. Acho que caí da cadeira. Não está mais doendo. Só. . . parece que minha boca está muito grande.
- Foi isso mesmo que aconteceu? - perguntou Wendy, olhando-o agitada.
- Não foi papai respondeu. - Hoje não.
Olhou para ele envergonhada. A bola passava de uma mão para a outra. Ele lera sua mente. O filho havia lido sua mente.
- O que... o que Tony lhe disse, Danny?
- Não importa. - Seu rosto estava calmo, a voz indiferente.
- Danny. - Ela agarrou seu ombro, com mais força do que pretendia. Mas ele não recuou, nem tentou afastá-la.
(Oh, nós estamos acabando com este menino. Não é só Jack, sou eu também, e talvez não sejamos só nós, o pai de Jack, minha mãe, estariam aqui também? Claro, por que não? O lugar já é uma droga com os fantasmas que existem, por que não mais um casal? Ó Deus do céu, ele é como uma daquelas malas que mostram na propaganda da televisão, arrebentada, atirada dos aviões, passando por prensas mecânicas. Ou um relógio Timex. Pode entrar água, ele continua a funcionar. Oh, Danny, perdão)
- Não importa disse ele novamente. A bola passava de uma mão para a outra. - Tony não pode mais vir. Eles não vão deixar. Ele está vencido.
- Quem não vai?
- As pessoas no hotel - disse ele. Olhou-a então, e seus olhos não estavam indiferentes. Estavam penetrantes e apavorados. - E as. . . as coisas no hotel. Há todos os tipos de coisas. O hotel está cheio delas.
- Você vê...
Não quero ver - respondeu, baixinho, e então olhou de volta para a bola de borracha, passando de uma mão para a outra. - Mas posso ouvi-las, às vezes tarde da noite, São como o vento, todas suspirando juntas. No sótão. No porão. Nos quartos. Em todo lugar. Achei que era minha culpa, por causa do jeito que sou. A chave. A chavinha de prata.
- Danny, não. . . não se aborreça assim.
Mas ele também - disse Danny. - Papai. E você. Ele quer todos nós. Está enganando papai, está brincando com ele, tentando fazê-lo pensar que o hotel me quer mais do que todo mundo. Ele me quer mais do que todo mundo, mas vai levar todos nós.
- Se pelo menos aquele suo wmobile.
- Não deixariam - falou Danny, com a mesma voz baixa. - Fizeram-no jogar uma peça na neve. Muito longe. Eu sonhei. E ele sabe que aquela mulher está mesmo no 217. - Olhou para a mãe com os olhos negros e apavorados. - Não importa se você acredita em mim ou não.
Passou um braço em volta do filho.
Acredito em você. Danny, diga a verdade. Jack. . . Jack vai tentar machucar a gente?
- Eles vão tentar obrigar papai disse Danny. - Tenho chamado o Sr. Hallorann. Ele disse que, se eu precisasse dele, era só chamar. E eu chamei. Mas é muito difícil. Eu fico cansado. E o pior é que não sei se ele está me ouvindo ou não. Acho que ele não pode responder porque é muito longe para ele. E eu não sei se é muito longe para mim, ou não. Amanhã.
O que tem amanhã?
Sacudiu a cabeça.
- Nada.
Onde é que ele está agora? - perguntou Wendy. - Seu pai.
- Está no porão. Acho que ele não vai subir hoje.
Ela se levantou de repente.
- Espere aqui. Cinco minutos.
A cozinha estava fria e deserta sob as lâmpadas fluorescentes. Ela foi até a prateleira onde estavam penduradas as facas nos trilhos magnéticos. Apanhou a mais comprida e mais afiada, enrolou-a num pano de prato, e saiu da cozinha, apagando as luzes.
Danny estava sentado na escada com os olhos acompanhando o movimento da bola de borracha em suas mãos. Cantava:
“Ela mora no vigésimo andar na cidade, o elevador está quebrado. Então subo um-dois, subo três, subo quatro.
(Ciranda, cirandinha. .
Parou de cantar. Ouviu.
(. . . Vamos todos cirandar. .
A voz estava em sua cabeça, tão junto dele, tão terrivelmente nítida, que poderia ser parte de seu próprio pensamento. Era suave e infinitamente furtiva. Zombando dele. Parecendo dizer:
(Oh sim, você vai gostar daqui. Experimente, você vai gostar. Experimente, você vai gooostar. .
Agora, seus ouvidos estavam atentos e ele os ouvia novamente, a assembléia, fantasmas ou espíritos, ou talvez o próprio hotel, uma terrível casa de diversões onde todos os espetáculos terminavam em morte, onde todos os fantasmas, especialmente pintados, eram reais, onde arbustos caminhavam, onde uma pequena chave de prata poderia dar início à obscenidade. Suave, suspirando, sussurrando como o interminável vento do inverno que brincava sob a beirada do telhado à noite, o vento mortalmente tranqüilo que os turistas do verão nunca escutaram. Era como o zumbido sonolento das vespas de verão num ninho adormecido, como um morto que começava a acordar. Estavam a três mil metros de altitude.
(Por que um corvo é como uma escrivaninha? Quanto maior a altitude, menor o número, claro! Tome mais uma xícara de chá!)
Era um som vivo, mas não eram vozes, nem respiração. Um homem com uma tendência a filósofo chamaria de som de almas. A babá de Dick Hallorann, que crescera nas estradas do sul, anos antes da passagem do século, chamaria de assombração. Um médium teria um nome comprido para isso: eco mediúnico, psicognosia, telepatia. Mas para Danny isto era apenas o som do hotel, o velho monstro, estalando e cada vez fechando mais o cerco em volta deles: corredores encolhendo em tempo e distância, sombras famintas, hóspedes inquietos que não descansavam em paz.
No salão escuro, o relógio sob a redoma de vidro bateu sete e meia com uma única nota musical.
Uma voz rouca, transformada pela bebida em voz brutal, gritou:
“Retirem as máscaras e vamos trepar!”
Wendy, no meio do saguão, sacudiu-se e ficou imóvel.
Olhou para Danny na escada, ainda brincando com a bola.
- Ouviu alguma coisa?
Danny limitou-se a olhá-la.
Dormiram pouco aquela noite, mesmo com a porta trancada.
E no escuro, com os olhos abertos, Danny pensou:
(Ele quer ser um deles e viver para sempre. É isso o que ele
Wendy pensava:
(Se for preciso, vou levá-lo mais adiante. Se vamos morrer, prefiro que seja nas montanhas.)
Ela deixara a faca, ainda embrulhada no pano, debaixo da cama. Mantinha a mão junto dela. Cochilavam e acordavam. O hotel rangia em volta deles. Lá fora, a neve começara a cair do céu como chumbo.
No porão
(!!! A caldeira a maldita caldeira!!!)
O pensamento explodiu brilhante e vivo na mente de Jack Torrance, apoiado na voz de Watson:
(Se esquecer, ela vai aumentando e você e sua família vão terminar na Lua. . . está regulada para 250 mas explodiria muito antes disso. . . ninguém me faria ficar junto dela a 180.)
Passara a noite inteira ali, examinando caixas de discos velhos, dominado por uma sensação desvairada de que o tempo estava ficando curto, e que teria de andar depressa. Além do mais, os indivíduos vivos, as conexões que tornariam tudo claro, o iludiam. Seus dedos estavam amarelos e sujos por causa dos papéis velhos. E ficou tão absorto, que não verificara a caldeira nenhuma vez. Regulara-a a noite anterior por volta das seis, quando desceu. Agora eram.
Olhou o relógio e se assustou, derrubando uma porção de notas velhas.
Deus, eram cinco e quinze da manhã.
Atrás dele, a fornalha começou a funcionar. A caldeira assobiava e gemia.
Correu até ela. O rosto, que ficara mais fino no último mês, estava agora sombreado pela barba por fazer, e ele tinha a aparência de um prisioneiro de um campo de concentração.
O manômetro da caldeira marcava 210 libras. Julgou que pudesse praticamente ver os lados da caldeira velha, remendada e soldada, inchando com a corrente letal.
(Ela aumenta. . . ninguém me faria ficar junto dela a 180...)
De repente, uma voz interior fria e tentadora falou com ele.
(Deixe. Vá apanhar Wendy e Danny e se mande daqui. Deixe-a explodir.)
Podia visualizar a explosão. Uma trovoada que rasgaria primeiro o coração desse lugar, depois a alma. A caldeira explodiria num brilho laranja-arroxeado que faria chover estilhaços quentes por todo o porão. Em sua mente, podia ver os pedaços de metal incandescentes batendo no chão, parede e teto, como estranhas bolas de bilhar, assobiando morte pelo ar. Alguns, certamente, entrariam por aquele arco de pedra, acendendo papéis velhos no outro lado, e incendiariam o inferno, O fogo destruiria os segredos, queimaria os indícios, um mistério que ninguém decifraria. Em seguida, a explosão de gás, um grande estrondo e a crepitação de uma chama gigante que transformaria todo o hotel numa grelha. Escadas, corredores, tetos e quartos em chamas como o castelo no último rolo de um filme de Frankenstein. As chamas se alastrando para as alas, correndo pelos tapetes como hóspedes ansiosos. O papel de parede de seda carbonizando e enrolando. Não havia sistema contra incêndio automático, apenas aquela mangueira fora de moda e ninguém para usá-la. E não havia bombeiro no mundo que pudesse chegar antes do final de março. Queime, benzinho, queime. Em doze horas não haveria mais nada, simplesmente ossos.
O ponteiro do manômetro subia para 212. A caldeira estalava e gemia como uma velha tentando levantar-se da cama. Jatos de vapor que assobiavam começaram a brincar em volta dos velhos remendos; pedaços de solda começaram a chiar.
Não via; não ouvia. Estava paralisado, com a mão na válvula que baixaria a pressão e conteria o fogo, os olhos brilhando como safiras.
(É minha última chance.)
A única coisa não vendida, até agora, era a apólice de seguro de vida que havia feito, com Wendy, no verão, entre o primeiro e o segundo anos em Stovington. Quarenta mil dólares em caso de morte, indenização dobrada, se um dos dois morresse em acidente de trem, avião ou incêndio. Como um jogo de dados, quanto mais diferente a morte, mais dinheiro.
(Um incêndio. . . oitenta mil dólares.)
Teriam tempo de sair. Mesmo que estivessem dormindo, teriam tempo de sair. Acreditava nisso. E não achava que os arbustos, ou qualquer outra coisa, tentassem detê-los, se o Overlook entrasse em chamas.
(Chamas.)
O ponteiro do manômetro sujo de óleo, quase opaco, subira a 215.
Uma outra lembrança ocorreu-lhe, uma lembrança de infância. Havia um ninho de vespas nos galhos inferiores da macieira no quintal de sua casa. Um de seus irmãos mais velhos - não se lembrava de quem agora - fora picado enquanto se balançava no pneu velho que o pai pendurara em um dos galhos mais baixos da árvore. Era um fim de verão, quando as vespas estão no seu apogeu.
O pai, acabando de chegar em casa, vestido no uniforme branco, cheirando a cerveja, reunira os três meninos, Brett, Mike e o pequeno Jacky, e lhes dissera que ia se livrar das vespas.
“Agora, vejam”, dissera sorrindo e cambaleando um pouco (nessa época não usava a bengala, a colisão com o caminhão de leite se daria anos depois). “Talvez aprendam alguma coisa. Foi meu pai quem me ensinou.”
Juntara uma porção de folhas úmidas pela chuva, debaixo do galho onde o ninho de vespas repousava como uma fruta venenosa em meio às maçãs velhas, porém saborosas, do fim de setembro. Ateou fogo às folhas, O dia estava claro e sem vento. As folhas arderam, mas não queimaram de verdade, e exalaram um cheiro - uma fragrância - que ele sentia a cada outono, quando os homens juntavam folhas e queimavam. Um aroma suave, levemente ácido, rico, evocativo. As folhas faziam muita fumaça, que subia envolvendo o ninho.
O pai deixara as folhas queimando a tarde inteira, bebendo cerveja na varanda, jogando as latas vazias em um balde de plástico, os dois filhos mais velhos a seu lado, e o pequeno Jacky sentado nos degraus a seus pés, brincando com o João Teimoso e cantarolando:
“Seu coração enganador... vai fazer você chorar.
seu coração enganador. . . o vai trair”.
Às quinze para seis, antes do jantar, o pai foi até a árvore tendo os filhos cuidadosamente agrupados atrás dele. Em uma das mãos levava uma enxada. Afastou as folhas, deixando pequenos pedaços ao redor para queimar e morrer. Depois, virou o cabo da enxada para cima, sacudindo, e depois de duas ou três tentativas derrubou o ninho no chão.
Os meninos correram buscando a segurança na varanda, mas o pai ficou ali junto do ninho, olhando e remexendo. Jacky engatinhou para ver. Algumas vespas arrastavam-se devagar sobre o terreno de papel de sua propriedade, mas não tentavam voar. De dentro do ninho, um lugar escuro e estranho, vinha um som que nunca mais seria esquecido: um zumbido baixo, sonolento, como o ruído de fios de alta tensão.
«Por que elas não o mordem, papai?”, perguntara Jacky.
“A fumaça deixa as vespas tontas, Jacky. Vá buscar minha lata de gasolina.”
Correu para ir buscá-la, O pai embebeu o ninho de gasolina.
“Agora, dê o fora, Jacky, a menos que queira perder as sobrancelhas.”
Ele se afastara. De algum lugar em meio às dobras de seu blusão, o pai tirou um fósforo de cozinha. Acendeu-o e o atirou no ninho. Houve uma explosão branda. O pai afastara-se às gargalhadas, O ninho das vespas desapareceu num instante.
“Fogo”, dissera papai, voltando-se para Jacky com um sorriso. “O fogo mata qualquer coisa.”
Depois do jantar os meninos saíram e, sob a luz do entardecer, colocaram-se solenemente, de pé, em volta do ninho carbonizado. Do interior quente vinha um ruído de corpos de vespas pipocando como milho.
O manômetro marcava 220. Um ruído baixo e metálico crescia no fundo da coisa. Jatos de vapor levantavam-se em centenas de lugares como um porco-espinho.
(O fogo mata qualquer coisa.)
Jack acordou de repente. Estava cochilando. . . e quase que só foi acordar no céu. Em que, em nome de Deus, estaria pensando? Proteger o hotel era seu dever. Era o zelador.
Um suor frio espalhou-se por sua mão tão rapidamente que, a princípio, perdeu a firmeza ao segurar a grande válvula. Em seguida, colocou os dedos nos pinos. Girou-os uma, duas, três vezes. Houve um imenso assobio de vapor, a respiração do dragão. Uma névoa morna levantou-se da caldeira e o envolveu. Por um momento, não via mais o marcador, mas pensou que devia ter esperado muito tempo; o gemido e o chiar dentro da caldeira aumentavam, seguidos por uma série de ruídos metálicos fortes e o solavanco do metal.
Quando o vapor se dissipou um pouco, constatou que o manômetro caíra de volta a 200 e ainda estava caindo mais. Os jatos de vapor que escapavam pelos remendos de solda começaram a diminuir de intensidade. Os ruídos começaram a baixar.
Cento e noventa... 180... 175...
(Ele descia a cento e quarenta quilômetros por hora, quando o assobio transformou-se num grito...)
Mas não achava que fosse explodir agora. A pressão estava a 160.
(. . . encontraram-no nos escombros com a mão na válvula, escaldado pelo vapor.)
Afastou-se da caldeira, resfolegando, tremendo. Olhou para as mãos e notou que já havia bolhas nas palmas. A merda com as bolhas, pensou, e deu uma gargalhada. Quase morrera com a mão na válvula, como Casey. o engenheiro, em O fim da Locomotiva 97. Pior ainda, teria acabado com o Overlook. O fracasso final. Fracasso final. Fracassara como professor, como escritor, como marido e como pai. Fracassara até como bêbado. Mas não poderia fazer, em termos de fracasso, nada melhor do que explodir o edifício de que deveria estar cuidando. E este não era um edifício qualquer.
Em hipótese alguma.
Deus, precisava de um gole.
A pressão caíra para 80. Com cuidado, tremendo um pouco por causa da dor nas mãos, fechou a válvula novamente. Mas daqui para a frente a caldeira teria que ser observada mais de perto do que de costume. Ela podia ter sido seriamente afetada. Não arriscaria mais do que 100 durante o resto do inverno. E, se sentissem um pouco de frio, paciência, teriam simplesmente que sorrir e enfrentar.
Furara duas bolhas. As mãos latejavam como dentes podres.
Um gole. Um gole o reanimaria, mas não havia nada naquela maldita casa além de vinho próprio para cozinhar. A esta altura, um gole seria medicinal. Só isso, por Deus. Um anestésico. Cumprira com sua obrigação e agora poderia usar um pouco de anestésico. . . algo mais forte do que Excedrin. Mas não havia nada.
Lembrou-se das garrafas reluzindo nas sombras.
Salvara o hotel. O hotel gostaria de recompensá-lo. Tinha certeza disso. Tirou o lenço do bolso e foi à escada. Esfregou a boca. Só um gole. Um só. Para aliviar a dor.
Servira o Overlook, e agora o Overlook o serviria. Tinha certeza. Seus pés nos degraus eram rápidos e ávidos, os passos apressados como os de um homem que chegou em casa de uma guerra longa e amarga. Eram cinco e vinte e cinco da manhã.
Danny acordou ofegante de um pesadelo terrível. Tinha havido uma explosão. Um incêndio, O Overlook estava em chamas. Ele e a mãe assistiam ao desastre do jardim da frente.
A mãe dissera:
“Veja, Danny, veja os arbustos”.
Olhou-os e eles estavam todos mortos. Suas folhas eram de um marrom sufocante. Os galhos muito juntos pareciam esqueletos de cadáveres semi-esquartejados. E então o pai surgira pelas enormes portas do Overlook, ardendo como uma tocha. Suas roupas estavam em chamas, a pele adquirira um bronzeado escuro e sinistro que escurecia cada vez mais, o cabelo um matagal queimando.
Foi quando acordou, a garganta sufocada de medo, as mãos agarradas ao lençol e cobertores. Gritara? Olhou para a mãe. Wendy estava deitada de lado, enrolada nos cobertores, o cabelo cor de palha caindo no rosto. Parecia uma criança. Não, ele não gritara.
Deitado na cama, olhando para cima, o pesadelo começou a apagar-se. Tinha uma sensação curiosa de que uma grande tragédia
(incêndio? explosão?)
tinha sido evitada por pouco. Deixou sua mente passear, à procura do pai, e o encontrou em algum lugar lá embaixo. No saguão. Danny se esforçou mais um pouco, tentando penetrar no pai. Não era bom. O pai pensava sobre a “coisa feia”. Pensava em como
(um ou dois seriam bons não me importo que o sol esteja se pondo em alguma parte do mundo-- lembra como costumávamos dizer isso, Al? gim e tônica bourbon com um pouco de tds que e rum e coca-cola duas pessoas quase iguais um gole para mim e um gole para os três marcianos que aterraram em algum lugar do mundo princeton ou houston, stokely on carmichael ou alguma merda de lugar afinal de contas é época de ser feliz e nenhum de nós está)
(SAiA DA CABEÇA DELE, SEU MERDINHA!)
Recuou apavorado com aquela voz na cabeça, os olhos arregalados as mãos apertadas na colcha. Não era a voz do pai, mas uma mímica perfeita. Uma voz que conhecia. Rouca, bruta, e ainda assim delineada com uma espécie de humor.
Estava tão próximo então?
Afastou os cobertores e botou os pés no chão. Com os pés puxou os chinelos de baixo da cama, e os calçou. Foi até a porta, abriu-a e correu para o corredor, os chinelos deslizando no pêlo do tapete. Dobrou o corredor.
Havia um homem engatinhando na metade do corredor, entre ele e a escada.
Danny ficou imóvel.
O homem olhava para ele. Os olhos eram pequenos e vermelhos. Estava vestido com uma espécie de fantasia prateada, bordada de lantejoulas. uma fantasia de cachorro, imaginou Danny. Brotando do traseiro dessa estranha obra de criação, havia uma cauda comprida e desajeitada com um pompom na ponta. Um zíper ia até o pescoço na parte de trás da fantasia. À esquerda, estava a cabeça do cachorro ou lobo, olhos mortiços acima do focinho, a boca aberta rosnando sem sentido, e mostrando o desenho preto e azul entre as presas que pareciam ser de papier-máché.
A boca, o queixo e as faces do homem estavam sujos de sangue.
Começou a rosnar para Danny. Sorria, mas o rosnar era verdadeiro. Saía do fundo da garganta como um som primitivo. Em seguida, começou a latir. Os dentes também estavam manchados de sangue. Começou a engatinhar em direção a Danny, sacudindo o rabo. A cabeça de cachorro da fantasia repousava despercebida sobre o tapete, com o olhar perdido para o ombro de Danny.
- Deixe-me passar - disse Darmy.
- Vou comê-lo, menininho respondeu o homem-cachorro, e de repente uma chuva de latidos saiu de sua boca risonha. Eram imitações humanas, mas a ferocidade dos latidos era verdadeira. O cabelo do homem era preto, molhado com suor provocado pela fantasia sufocante. Havia uma mistura de uísque e champanha em seu hálito.
Danny recuou, mas não correu.
- Deixe-me passar.
- Só se for sobre meu cadáver - respondeu o homemcachorro. Seus pequenos olhos vermelhos estavam atentamente
Mas seu pai podia vir aqui. E mais cedo ou mais tarde ele fixados no rosto de Danny. Continuava a sorrir. Vou comêlo, menininho. E acho que vou começar por seu peruzinho roliço.
Começou a empinar-se para a frente, dando pequenos saltos e rosnando.
Danny não agüentou. Voou de volta para o corredor pequeno que o levava ao quarto, olhando por cima dos ombros. Houve uma série de uivos, latidos, rosnares, quebrados por murmúrios inarticulados e risadinhas.
Danny ficou parado no corredor, tremendo.
- Levante! - gritava o homem-cachorro bêbado, dobrando o corredor. Sua voz era violenta e desesperadora. - Levante, Harry, seu filho da puta! Não me importa quantos cassinos e companhias aéreas e cinematográficas você tenha! Sei bem do que gosta no aconchego do seu lar-r! Levante! Vou soprar... vou bufar. . . até Harry Derwent suuuuuuuumir! - concluiu com um uivo longo que parecia transformar-se num grito de raiva e dor antes de desaparecer.
Danny voltou-se, apreensivo, para a porta fechada do quarto no fundo do corredor e caminhou calmamente para lá. Abriu-a e enfiou a cabeça pela fresta. A mãe dormia na mesma posição. Ninguém ouvia aquilo, só ele.
Fechou a porta com cuidado e voltou à intersecção do seu corredor com o principal, esperando que o homem-cachorro tivesse desaparecido, da mesma forma que o sangue nas paredes da suíte presidencial desaparecera. Espreitou com cuidado.
O homem com a fantasia de cachorro ainda estava lá. Colocara a máscara de volta, e estava agora sobre as quatro patas junto à escadaria, querendo agarrar o rabo. De vez em quando dava um salto no tapete e voltava grunhindo.
Au! Au! Au! Grrrrr!
Esses sons saíam de dentro da boca estilizada da máscara, e entre eles havia o que podiam ser soluços ou risos.
Danny voltou ao quarto e se sentou na cama de armar, tapando os olhos com as mãos. O hotel agora dirigia os fatos. Talvez, no início, as coisas que aconteceram tivessem sido apenas acidentes. Talvez, no início, as coisas que vira fossem mesmo como gravuras de terror que não podiam atingi-lo. Mas agora o hotel controlava essas coisas e elas podiam atingi-lo, O Overlook não queria que ele fosse atrás do pai. Isso poderia estragar a festa. Por isso, colocara o homem-cachorro em seu caminho, assim como colocara os arbustos de animais entre eles e a estrada.
Começou a chorar, as lágrimas rolando silenciosamente pelo rosto. Era tarde demais. Iam morrer, os três, e, quando o Overlook abrisse no próximo final de primavera, estariam bem aqui para saudar os hóspedes junto com o resto dos fantasmas. A mulher na banheira. O homem-cachorro. A horrorosa coisa escura que estava no túnel de cimento. Estariam.
(Pare! Pare com isso!)
Enxugou furiosamente as lágrimas. Esforçar-se-ia para que isso não acontecesse. Nem com ele, nem com o pai e a mãe. Esforçar-se-ia.
Fechou os olhos e dirigiu a mente para fora num raio possante.
(!!! DICK POR FAVOR VENHA RÁPIDO ESTAMOS EM APUROS DÍCK PRECISAMOS)
E de repente, na escuridão dos olhos fechados, a coisa que o perseguia pelos corredores escuros do Overlook em sonhos estava ali, ali mesmo, uma criatura enorme vestida de branco, o tacape pré-histórico levantado sobre a cabeça:
- Vou fazer você parar! Seu maldito fedelho! Vou fazer você parar porque sou seu PAi!
- Não! - Voltou à realidade do quarto, os olhos bem abertos e arregalados, gritos vibrando inutilmente na boca, enquanto a mãe acordava, levantando o lençol até o peito.
- Não, papai, não não não.
E os dois ouviram o sacudir do tacape invisível, cortando o ar em algum lugar muito próximo, depois desaparecendo no silêncio, enquanto ele corria para junto da mãe, abraçando-a, tremendo como um coelho numa armadilha.
O Overlook não o deixaria chamar Dick. Isso também poderia estragar a festa.
Estavam sós.
Lá fora, a neve caía mais forte, formando uma cortina que Os separava do resto do mundo.
O vôo de Dick Hallorann foi chamado às seis e quarenta e cinco da manhã, hora do leste, e o comissário de embarque o deteve junto ao portão 31, onde ele ficou, passando a mala, nervoso, de uma mão para outra, até a última chamada às seis e cinqüenta e cinco. Procuravam por um homem de nome Cariton Vecker, o único passageiro do vôo TWA 196, de Miami para Denver, que ainda não chegara.
- Muito bem - disse o comissário, entregando a Hallorann uma ficha de embarque de primeira classe. - Você é o felizardo. Pode embarcar.
Hallorann apressou-se na rampa de embarque coberta, e deixou a aeromoça de sorriso mecânico rasgar o passe e lhe dar o canhoto.
Serviremos café da manhã a bordo - disse a aeromoça.
- Se preferir.
- Só café, benzinho - disse ele, e desceu o corredor em direção a uma poltrona na ala dos fumantes. Ficou na expectativa de que o desaparecido Vecker desse o ar de sua graça no último segundo, como uma caixa de surpresa. A mulher na poltrona da janela lia Você pode ser seu melhor amigo com uma expressão indiferente no rosto. Hallorann apertou o cinto, colocou as grandes mãos negras sobre os braços da poltrona. e jurou ao ausente Cariton Vecker que seriam necessários cinco comissários fortes da TWA para arrancá-lo da poltrona. Olhou o relógio. Os minutos para as sete horas - hora da decolagem se arrastavam com uma lentidão tremenda.
Às sete e cinco a aeromoça informou que haveria um ligeiro atraso enquanto o pessoal da manutenção verificava mais uma vez um dos trincos da porta de cargas.
Merda - murmurou Dick Hallorann.
A mulher de fisionomia impenetrável e expressão indiferente voltou-se para ele, e em seguida baixou os olhos de volta ao livro.
Passara a noite no aeroporto, indo de balcão em balcão - United, American, TWA, Continental, Braniff -, chateando o pessoal de passagens. Por volta da meia-noite, bebendo a oitava ou nona xícara de café na lanchonete, chegou à conclusão de que era um imbecil por ter arcado com o peso dessa coisa toda. Havia autoridades. Descera aos telefones, e depois de falar com três telefonistas diferentes, conseguiu o número de emergência da autoridade do Parque Nacional das Montanhas Rochosas.
O homem que atendeu ao telefone parecia profundamente cansado. Hallorann usa um nome falso e dissera que havia problemas no Hotel Overlook, a oeste de Sidewinder. Problemas sérios.
Pediram-no que aguardasse na linha.
O guarda-florestal (Hallorann presumiu que fosse um guarda-florestal) voltou em cerca de cinco minutos.
- Eles têm um radiotransmissor - disse o guarda.
- Claro que têm um radiotransmissor.
- Não tivemos ainda nenhum chamado de socorro vindo deles.
- Cara, isso não importa. Eles.
- Que tipo de problema é, Sr. Hail?
- Bem, há uma família. O zelador e sua família. Acho que ele talvez tenha ficado louco, sabe. Acho que talvez possa agredir a mulher e o filho.
- Posso saber como o senhor obteve esta informação?
Hallorann fechou os olhos.
- Como se chama, rapaz?
- Tom Staunton, senhor.
- Bem, Tom, eu sei. Agora, serei tão objetivo quanto puder. Há problemas lá por cima. Talvez assassinato, está entendendo?
- Sr. Hall, eu realmente preciso saber como o senhor.
- Ouça - disse Hallorann. - Estou lhe dizendo que sei. Há alguns anos houve um sujeito por lá chamado Grady. Ele matou a mulher e as duas filhas, e depois se matou. Estou lhe dizendo que vai acontecer de novo, se vocês não arrastarem a bunda até lá e impedirem!
- Sr. Hall, não está ligando do Colorado.
- Não. Mas que diferença.
- Se o senhor não está no Colorado, está fora do alcance do radiotransmissor do Hotel Overlook. Se está fora do alcance do radiotransmissor, não pode nunca ter estado em contato com a, uhn... - ruído distante de papel - família Torremce. Enquanto o senhor esperava na linha, tentei telefonar. Não está
No ar funcionando, o que não é de estranhar. Há ainda quarenta quilômetros de linhas telefônicas aéreas entre o hotel e Sidewinder. Minha conclusão é que o senhor deve ser algum tipo excêntrico.
- Oh, cara, você é um pobre.. . - Mas seu desespero era muito grande para encontrar um substantivo que combinasse com o adjetivo. De repente, uma idéia luminosa. - Chame-os! - gritou.
- Senhor?
- Você tem rádio, eles têm rádio. Chame-os, portanto! Chame-os e pergunte o que há de novo!
Houve uma pausa breve, e o ruído dos interurbanos.
- Você experimentou isso também, não é? - perguntou Hallorann. - Foi por isso que me fez esperar tanto tempo na linha. Experimentou o telefone e, em seguida, o rádio, e não conseguiu nada, mas ainda assim acha que não há nada de errado. . . o que vocês estão fazendo aí? Estão com a bunda sentada num banco, e jogando baralho?
- Não, não estamos - disse Staunton, com raiva. Hallorann sentiu-se aliviado pelo tom de raiva na voz. Pela primeira vez, sentiu que falava com um homem, e não com uma gravação. - Sou o único homem aqui, senhor. Todos os outros guardas do parque, mais os fiscais, mais voluntários, estão lá em cima em Hasty Notch, arriscando suas vidas porque três imbecis com seis meses de experiência resolveram tentar escalar o lado norte de King’s Ram. Estão presos no meio do caminho lá em cima e talvez desçam, talvez não. Há dois helicópteros, e os homens que estão seguindo para lá estão arriscando suas vidas, porque já é noite aqui, e está começando a nevar. Portanto, se ainda tem dificuldade de juntar os fatos, vou ajudá-lo. Número um, não tenho ninguém aqui para mandar ao Overlook. Número dois, o Overlook não tem prioridade aqui... o que acontece no parque tem prioridade. Número três, ao anoitecer nenhum dos helicópteros poderá voar porque vai nevar pra burro, de acordo com o Serviço de Meteorologia. O senhor entende a situação?
- Sim - disse Hallorann, com calma. - Entendo.
- Agora, minha opinião do motivo pelo qual não consegui comunicação com eles pelo rádio é muito simples. Não sei que horas são onde o senhor está, mas aqui são nove e meia. Acho que devem tê-lo desligado e ido para a cama. Agora, se o senhor...
- Boa sorte com seus alpinistas, cara - disse Hallorann.
- Mas quero que saiba que eles não são os úmnicos que estão presos lá por cima, por não saberem onde estavam se metendo.
Desligou o telefone.
Às sete e vinte da manhã o 747 da TWA deslizou, taxiou, e foi em direção à cabeceira da pista. Hallorann deu um suspiro profundo e silencioso. Carlton Vecker, onde quer que você esteja, corra, meu amigo.
O avião levantou vôo às sete e vinte e oito, e às sete e trinta e um, depois de ganhar altitude, a cabeça de Dick Hailorann foi atingida mais uma vez pelo tiro de pensamento. Os ombros contraíram-se por causa do cheiro de laranjas, e sacudiram espasmodicamente. A testa franziu, a boca arqueou numa careta de dor.
(!!! DICK POR FAVOR VENHA RÁPIDO ESTAMOS EM APUROS DICK PRECISAMOS)
E foi só isso. De repente, acabou. Nenhum desmaio desta vez. A comunicação fora cortada, como se com uma faca. Sentiu medo. As mãos ainda apertadas nos braços da poltrona estavam quase brancas. A boca seca. Alguma coisa acontecera com o menino. Tinha certeza. Se alguém tivesse machucado aquela criança.
Sempre reage com tanta violência às decolagens? Olhou para o lado. Era a mulher de óculos de chifre.
- Não é isso - falou Hallorann. - Tenho uma chapa de aço. Por causa da Coréia. De vez em quando me dá uma pontada. Vibra, sabe? Mistura os sinais.
Ë mesmo?
Sim, senhora.
É o soldado que no final das contas paga pela intervenção estrangeira – falou inflexível, a mulher de fisionomia impenetrável.
- Ë mesmo?
Sim. Este país deve renunciar a estas guerrinhas sujas. A CIA tem sido a raiz de cada guerrinha suja em que a América tem participado neste século. Ah, e a díplomacia do dólar.
Ela abriu o livro e voltou a ler. O sinal de “Não fume” apagou. Hallorann viu a terra sumindo de vista, e pensou se o menino estaria bem. Desenvolvera um sentimento de afeição pelo menino, apesar de seus familiares não terem significado grande coisa.
Pedia a Deus que eles estivessem tomando conta de Danny.
Bebida por conta da casa
Jack estava no restaurante junto à porta de vaivém que dava para o Salão Colorado, a cabeça levantada, escutando. Sorria.
Em volta dele, ouvia o Hotel Overlook renascer.
Era difícil dizer como sabia, mas imaginava que não devia ser muito diferente das percepções que Danny tinha por vezes. . . tal pai, tal filho. Não era assim que se dizia popularmente?
Não via, não ouvia, apesar de estar muito próximo disso; uma sensação separada desses sentidos pela mais tênue cortina de percepção. Era como se um outro Overlook estivesse agora a poucos centímetros deste, separado do mundo real (se é que tal coisa como “mundo real” existe, pensou Jack), mas aos poucos se harmonizando com ele. Lembrou-se dos filmes em terceira dimensão a que assistira quando menino. Se você olhava para a tela sem os óculos especiais, via uma imagem dupla - o tipo da coisa que sentia agora. Mas depois de colocar os óculos, tudo fazia sentido.
Todas as eras do hotel estavam juntas agora, só faltando a atual, a Era dos Torrance. E esta estaria junto com o resto muito breve, isso era bom. Isso era muito bom.
Podia quase ouvir o pretensioso ding! ding! da campainha prateada do balcão de recepção, intimando carregadores a se apressarem, enquanto homens vestidos em elegantes calças de flanela da moda de 1920 entravam, e homens de paletós transpassados da moda de 1940 saíam. Havia três freiras sentadas diante da lareira esperando a fila de encerramento de contas diminuir, e atrás delas, elegantemente vestidos, tendo prendedores de brilhante em suas gravatas azuis, vermelhas e brancas,
Charles Grondin e Vito Gienelli discutiam lucros e perdas, vida e morte. Havia uma dúzia de caminhões na área de carregamento nos fundo desalinhados como fotografias maltiradas.
No salão da ala leste, dezenas de diferentes convenções sobre negócios aconteciam ao mesmo tempo a poucos centímetros umas das outras. Havia um baile. Havia saraus, recepções de casamento, festas de aniversário e comemorações. Homens conversando sobre Nevilie Chamberlain e o arquiduque da Áustria. Música. Alegria. Embriaguez. Histeria. Amores passageiros, nunca, mas uma tendência constantemente disfarçada à sensualidade. E quase podia ouvi-los todos juntos se movimentando pelo hotel, e dizendo piadinhas. No restaurante, onde estava, cafés da manhã, almoços e jantares dos últimos setenta anos estavam todos sendo servidos simultaneamente atrás dele. Podia quase... não, elimine o quase. Podia ouvi-los, ainda longe, porém claros. . . da mesma forma que alguém ouve um trovão a quilômetros num dia quente de verão. Podia ouvi-los todos, os maravilhosos estranhos. Tornara-se consciente deles, assim como eles devem ter-se tornado conscientes dele desde o início.
Todos os apartamentos do Overlook estavam ocupados esta manhã.
Casa cheia.
E por trás da porta de vaivém, um murmúrio baixo de conversa sinuosa como fumaça preguiçosa de cigarro. Mais sofisticada, mais privada. Risos femininos grossos, parecendo vibrações de bruxas em torno das vísceras e da genitália. O ruído de máquina registradora, a janela suavemente iluminada pela penumbra, registrando o preço dos gins com gelo, manhattans, gim-tônicas, alta fidelidade. A vitrola automática entornando suas melodias.
Empurrou a porta, e entrou.
- Olá, rapazes - disse, suavemente, Jack Torrance. - Estive ausente por algum tempo, mas estou de volta.
- Boa noite, Sr. Torrance - falou Lloyd, com prazer.
- Que bom ver o senhor.
- É bom estar de volta, Lloyd - disse ele, grave, pendurando a perna num banco entre um homem com um terno azul e uma mulher de olhar turvo e de vestido preto, que olhava o fundo do copo.
- O que vai ser hoje, Sr. Torrance?
- Martíni - respondeu, com muito prazer. Olhou para o fundo do bar com suas fileiras de garrafas cintilantes, tampadas com sifões de prata. Jim Beam. Wild Turkey. GiIb’5 Sharrod’s Private Labei. Toro. Seagram’s. Estamos aí.
- Um marciano duplo, por favor - falou Jack. Estão aterrados por aí, Lloyd. - Tirou a carteira, e com cuidado colocou uma nota de vinte sobre o bar.
Enquanto Lloyd preparava o drinque, Jack olhou para trás. Todos os reservados estavam ocupados. Alguns dos ocupan tes estavam fantasiados. . . uma mulher de calça de odalisca e sutiã coberto de pedraria, um homem com uma cabeça de rapo. soerguendo-se astutamente de seu traje de gala, um homem com uma fantasia prateada de cachorro com um pompom na ponta da cauda longa, que fazia cócegas no nariz de uma mulher de sarongue, para alegria de todos.
- O senhor não paga, Sr. Torrance - disse Lloyd, colocando o copo sobre a nota de vinte. - Seu dinheiro não é recebido aqui. Ordens do gerente.
- Gerente?
Um certo desconforto tomou conta dele; no entanto, pegou o copo de martíni e o agitou, observando a azeitona balançar no fundo da bebida gelada.
- Claro. O gerente. - Lloyd deu um sorriso largo, mas seus olhos estavam cercados de olheiras e a pele estava terrivelmente branca, como um defunto. - Mais tarde ele espera cuidar do bem-estar de seu filho. Ele está muito interessado em seu filho. Danny é um menino inteligente.
O cheiro de gim era enlouquecedor, mas também lhe parecia estar bloqueando a razão. Danny? O que isso tudo tinha a ver com Danny? E o que estava fazendo num bar com um copo na mão?
JURARA. Tornara-se ABSTÊMIO. RENUNCIARA.
O que poderia querer com o filho? O que poderiam querer com Danny? Wendy e Danny não estavam envolvidos. Tentou ver os olhos sombreados de Lloyd, mas estava muito escuro, muito escuro, era como tentar ver emoção nas órbitas vazias de um crânio.
(Sou eu que eles devem estar querendo. .. não é? Sou eu. Nem Danny, nem Wendy. Quem gosta daqui sou eu. Eles queriam ir embora. Fui eu que cuidei do snowmobile. .. vasculhe” a papelada velha. . . baixei a pressão da caldeira. . . menti... praticamente vendi minha alma. . . o que poderiam querer com ele?)
- Onde está o gerente? - tentou perguntar casualmente, mas as palavras pareciam chegarfaos lábios já entorpecidas, conseqüência do primeiro drinque, como palavras de um pesadelo ao invés das de um sónho doce.
Lloyd limitava-se a sorrir.
- O que querem com meu filho? Danny não está nisto... está? - Sentiu o apelo em sua própria voz.
O rosto de Lloyd parecia estar fugindo, mudando, tornando-se algo nojento. A pele branca tornando-se hepaticamente amarela, rachando. Chagas vermelhas brotavam na pele, expelindo um líquido malcheiroso. Gotas de sangue brotando na testa de Lloyd como suor, e em algum lugar um carrilhão de prata batia um quarto de hora.
(Retirem as máscaras, retirem as máscaras!)
- Beba seu drinque, Sr. Torrance - disse Lloyd, calmo.
- Isso não é um assunto que lhe diga respeito. Não a este ponto.
Pegou o copo novamente, levou-o à boca, e hesitou. Ouviu o estalo duro e horrível do braço quebrado de Danny. Viu a bicicleta voando sobre a capota do carro de Al, estilhaçando o pára-brisa. Viu a única roda sobre a estrada, com os raios torcidos apontando para o céu como pedaços de uma corda de piano.
Percebeu que a conversa cessara.
Olhou para trás. Estavam todos olhando-o com expectativa, em silêncio. O homem ao lado da mulher de sarongue tirara a máscara de raposa da cabeça, e Jack viu que era Horace Derwent, o cabelo louro-claro caindo-lhe na testa. Todos no bar também olhavam. A mulher ao lado olhava-o de perto, como se tentasse focalizá-lo. O vestido escorregava em um ombro, e, olhando para baixo, ele podia ver um mamilo sobre o seio flácido. Voltando o olhar para o seu rosto, começou a pensar que essa devia ser a mulher do 217, a que tentara estrangular Danny. Por sua vez, o homem de terno azul tirava um pequeno revolver de cabo de pérola, calibre 32, do bolso do paletó e o girava despropositadamente, como que pensando em roletarussa.
(Quero...)
Descobriu que as palavras não passavam pelas cordas vocais congeladas e tentou mais uma vez.
- Quero ver o gerente. Eu... Eu não creio que ele entenda. Meu filho não faz parte disso. Ele.
- Sr. Torrance - falou Lloyd, com a voz saindo com terrível gentileza de dentro do rosto vermelho de chagas. - O senhor se encontrará com o gerente na ocasião certa. Aliás, ele resolveu fazê-lo seu agente neste assunto. Agora, beba seu drinque.
Beba seu drinque - todos repetiram.
Pegou-o com a mão trêmula. Era gim puro. Olhou para dentro do copo, e sentiu como se estivesse se afogando.
A mulher a seu lado começou a cantar sem vida e sem ritmo:
“Role. . . role. . . o barril.., e nós teremos. . . um barril. . . de alegria...
Lloyd acompanhou. Em seguida o homem de terno azul. O homem-cachorro juntou-se a eles, batendo uma pata na mesa;
- «Está na hora de rolar o barril. .
Derwent juntou sua voz à do resto. Um cigarro levantado no canto da boca, elegantemente. O braço direito em volta dos ombros da mulher de sarongue, e a mão tocando-lhe delicadamente o seio. Ele olhava para o homem-cachorro com grande desprezo, enquanto cantava.
- “. . porque a turma está. . . toda. . . aqui!”
Jack levou o copo à boca e bebeu o gim em três goles, que desceram livres pela garganta, como um furgão atravessando um túnel, explodindo, ricocheteando no cérebro, onde era tomado por uma crise convulsiva de tremores.
Quando isso acabava, sentia-se bem.
- Mais um, por favor - disse empurrando o copo vazio para Lloyd.
- Pois não, senhor - falou Lloyd, apanhando o copo. Lloyd parecia perfeitamente normal de novo. O homem da pele cor de azeitona guardara o 32. A mulher à sua direita olhava fixamente para o copo, um seio agora inteiramente exposto, recostada no couro que revestia o bar. Um murmúrio vago saiu de sua boca flácida. A conversa voltou, enredando, enredando.
O novo drinque apareceu diante dele.
- Muchas gracias, Lloyd - disse ele, pegando-o.
- É sempre um prazer servi-lo, Sr. Torrance. – Lloyd sorriu.
- Você sempre foi o melhor, Lloyd.
- Obrigado, senhor.
Bebeu devagar desta vez, deixando o gim descer lentamente pela garganta, jogando alguns amendoins pela corredeira.
A bebida nem bem acabava, e ele já pedia mais. Senhor presidente, conheci os mayianos, e tenho o prazer de informar que eles são muito simpáticos. Enquanto Lloyd fazia outro, começou a revistar os bolsos à procura de uma moeda para pôr na vitrola automática. Pensou em Danny novamente, mas o rosto do filho estava coberto de penugem e indefinível. Machucara Danny uma vez, mas isso tinha sido antes de ter aprendido a conviver com a bebida. Esses dias estavam distantes dele agora. Nunca machucaria Danny novamente.
Nem morto.
Conversa na festa
Estava dançando com uma bela mulher.
Não tinha idéia das horas, quanto tempo passara no Salão Colorado, ou há quanto tempo estava aqui no salão de baile. O tempo deixara de ser importante.
Tinha vagas lembranças: de ouvir um homem que já tinha sido um cômico de sucesso no rádio, e depois um astro de variedades no início da história da televisão, contando uma piada muito longa e engraçada sobre o incesto entre gêmeos siameses; de ver a mulher de calça de odalisca e sutiã coberto de lantejoulas fazendo um striptease lento e insinuante ao som da música especial da vitrola automática (parecia o tema musical de David Rose para A desnudada); atravessando o saguão com mais dois homens, vestidos com roupas que datavam dos anos 20, todos cantando versos às calcinhas de Rosie O’Grady. Parecia ver, pelas grandes portas duplas, arcos que acompanhavam a entrada de carros - brilhavam como jóias, em suaves cores pastel. O globo grande de vidro no teto da varanda estava aceso, e os insetos noturnos batiam e voavam à sua volta, e uma parte dele, talvez o último pequeno traço de sobriedade, tentou dizerlhe que eram seis horas de uma manhã de dezembro. Mas o tempo fora abolido.
(As discussões sobre a loucura terminam em biablablá.
De quem era isso? De algum poeta que lera na universidade? De algum poeta universitário que agora vendia máquinas de lavar roupa em Wansau ou apólices de seguro em Indianápolis? Talvez um pensamento original? Não importava.
(A noite está escura f as estrelas estão no alto f uma torta de creme f flutua no céu.
Riu sem se conter.
- Qual é a graça, meu bem?
E aqui encontrava-se ele novamente no salão de baile, O lustre estava aceso e os casais dançavam, alguns fantasiados, outros não, aos acordes suaves de uma orquestra do pós-guerra - mas que guerra? Você sabe?
Não, claro que não. Estava certo de uma coisa somente:
dançava com uma bela mulher.
Ela era alta, de cabelos castanho-avermelhados, com um vestido de cetim branco, e dançava junto dele com os seios apertados leve e docemente contra seu peito. Sua mão entrelaçada na dele. Usava máscara de cara de gato, e o cabelo tinha sido penteado para um lado, o que parecia juntar o vale formado entre os ombros que se tocavam. O vestido era rodado, mas podia sentir as coxas dela roçando em suas pernas de vez em quando, certificando-se cada vez mais de que ela estava completamente nua sob o vestido
(para melhor sentir sua ereção, meu querido)
e de que ele estava excitado. Se isso a ofendia, dissimulava bem; chegava cada vez mais perto dele.
- Nada de engraçado, meu bem - disse ele, e riu novamente.
- Gosto de você - sussurrou ela, e Jack achou que seu perfume era como o lírio escondido secretamente por entre fendas cobertas de musgo. . . lugares onde a luz do sol é pouca, e as sombras são muitas.
- Gosto de você também.
- Poderíamos subir, se quisesse. Eu deveria estar com Harry, mas ele não vai perceber nunca. Está preocupado em chatear Roger.
A música terminou. Houve aplausos e em seguida a orquestra começou a tocar Mood indigo quase que imediatamente.
Jack olhou por cima dos ombros nus da mulher, e viu Derwent, de pé, junto à mesa de bebidas. A garota de sarongue estava com ele. Havia garrafas de champanha dentro de baldes de gelo enfileirados ao longo da toalha branca de mesa, e Derwent segurava uma garrafa espumante. Um grupo de pessoas juntou-se, rindo. Diante de Derwent e da garota de sarongue, Roger, de quatro, pulava grotescamente, sacudindo o rabo. Latia.
- Fale, rapaz, fale! - gritou Harry Derwent.
- Au! Au! - respondeu Roger. Todos bateram palmas; alguns homens assobiaram.
- Agora, sente-se. Sente-se, cachorrinho!
Roger sentou sobre as patas traseiras. O focinho da máscara estava frio no seu eterno rosnar. Dentro das órbitas, os olhos de Roger enrolavam-se comicamente. Estendeu os braços, balançando as patas.
- Au! Au!
Derwent virou a garrafa de champanha, e derramou uma espécie de Niágara de espuma sobre a máscara virada para cima.
Roger lambeu, e todos aplaudiram novamente. Algumas das mulheres gritaram de tanto rir.
- Não é o fim? - perguntou sua parceira, chegando mais perto novamente. - Todos acham. Ele é bissexual, sabe? Pobre Roger, ele não, é só homossexual. Passou um fim de semana com Harry, certa vez, em Cuba. . . oh, há muitos meses. Agora ele corre atrás de Harry por toda parte, abanando o rabinho.
Ela riu, O aroma tímido de lírio recendeu.
- Mas Harry nunca trepa mais de uma vez com o mesmo cara. . . e Roger é fogo. Harry disse que, se ele viesse ao baile fantasiado de cachorrinho, um cachorrinho bonitinho, poderia reconsiderar, e Roger é tão bobo que..
O número terminou. Houve mais aplausos. Os músicos desceram para descansar.
- Com licença, doçura - disse ela. - Há alguém com quem eu realmente preciso. . Daria! Daria, menina querida, por onde tem andado?
Ela se meteu em meio à multidão que comia e bebia, e ele a acompanhou de longe como um bobo, imaginando como, em primeiro lugar, teriam dançado juntos. Não se lembrava. Incidentes pareciam acontecer sem nenhuma conexão. Primeiro aqui, depois ali, depois em toda a parte. A cabeça girava. Sentia o cheiro de lírio e zimbro. Junto à mesa de salgados, Derwent segurava um pequeno sanduíche triangular sobre a cabeça de Roger, insistindo com ele, para alegria geral dos observadores, para que desse um salto mortal. A máscara de cachorro estava voltada para cima. As laterais prateadas da fantasia dilatavam e encolhiam. Roger, de repente, deu um salto, baixando a cabeça, e tentou virar uma cambalhota no ar. Seu salto foi muito baixo e fraco; caiu desajeitado sobre o dorso, batendo a cabeça nos ladrilhos. Um grunhido surdo saiu da máscara de cachorro.
Derwent puxou aplausos.
- Experimente mais uma vez, cachorrinho! Experimente mais uma vez!
Os observadores prosseguiram em coro - mais um, mais um - e Jack saiu de perto cambaleando, sentindo-se um pouco enjoado.
Quase caiu sobre o carrinho de bebidas, que era empurrado por um homem de sobrancelhas cerradas e de paletó branco. Seu pé tropeçou na prateleira inferior do carrinho; as garrafas e sifões na prateleira de cima tilintaram musicalmente.
- Perdão - disse Jack, rouco. De repente, sentiu-se confinado e sufocado; quis sair. Queria que o Overlook voltasse a ser o que era. . . livre desses hóspedes indesejáveis. Seu lugar não era o do verdadeiro abre-alas; era apenas mais um dos dez mil outros, um cachorrinho cumprindo ordens.
- Não foi nada - disse o homem de paletó branco. A linguagem fina e recortada saindo do rosto de assassino era surrealista. - Um drinque?
- Martíni.
Atrás deles, irrompeu uma outra gargalhada; Roger uivava uma música caipira. Alguém acompanhava ao piano.
- Aqui está.
O copo gelado foi colocado em suas mãos. Jack bebeu agradecido, sentindo o gim atingir e derrubar os primeiros sinais de sobriedade.
- Está bom, senhor?
- Está.
- Obrigado, senhor, - O carrinho começou a deslizar novamente.
Jack estendeu a mão e tocou o ombro do homem.
- Sim, senhor.
- Desculpe-me, mas como se chama?
O outro demonstrou surpresa.
- Grady, senhor. Delbert Grady.
- Mas você. . . quero dizer.
O garçom olhava-o com cortesia. Jack tentou falar nova
mente, apesar de a boca estar pesada pelo gim e pela irrealidade; sentia cada palavra tão grande quanto um cubo de gelo.
- Você já não foi o zelador daqui? Quando você. quando... - Mas não podia concluir. Não conseguiu dizer.
- Claro que não, senhor. Acho que não.
- Mas sua mulher. . . suas filhas.
- Minha mulher está ajudando na cozinha, senhor. As meninas, naturalmente, estão dormindo. Já é tarde.
Você era o zelador. Você. . . - Vamos, diga! - Você as matou.
A expressão de Grady continuou atenciosa.
- Não tenho a menor lembrança disso, senhor. - O copo estava vazio. Grady tirou-o dos dedos sem resistência de Jack, e começou a preparar-lhe outro drinque. Havia um pequeno balde de plástico, no carrinho, que estava cheio de azeitonas. De alguma forma lembravam cabeças degoladas. Grady espetou uma, com habilidade, jogou-a no copo, e o entregou a Jack.
- Mas você.
- O senhor é o zelador, meu senhor - disse Grady, moderadamente. - Sempre foi o zelador. Eu sei, senhor. Sempre trabalhei aqui. O mesmo gerente nos admitiu, ao mesmo tempo. Correto, senhor?
Jack engoliu a bebida rapidamente. Sua cabeça girava.
- O Sr. Uliman.
- Não conheço ninguém com esse nome, senhor.
- Mas ele.
- O gerente - disse Grady. - O hotel, senhor. Ë claro que o senhor sabe quem o admitiu, senhor.
Não - falou Jack, com voz rouca. - Não, eu.
- Creio que deve consultar seu filho, Sr. Torrance. Ele entende tudo, apesar de o senhor não lhe ter explicado. Bastante rebelde da parte dele, se me permite ser tão ousado, senhor. Na realidade, ele o traiu várias vezes, não é verdade? E ainda não tem seis anos.
- Sim - disse Jack. - Você tem razão. - Houve mais ímpetos de alegria por trás deles.
Ele precisa ser corrigido, se não se importa que eu diga. Ele precisa de um bom diálogo, e talvez de mais alguma coisa. Minhas meninas mesmo, senhor, não davam muita importância ao Overlook no princípio. Uma delas chegou até a roubar uma caixa de fósforos e tentou atear fogo ao hotel. Eu as corrigi. Corrigi severamente. E quando minha mulher tentou impedir-me de cumprir meu dever, eu também a corrigi.
Deu um sorriso afável e sem significado. - Acho triste, porém verdadeiro, o fato de as mulheres dificilmente entenderem a responsabilidade de um pai de família para com os filhos. Maridos e pais têm certas responsabilidades, não têm, senhor?
- Sim.
- Não gostavam do Overlook tanto quanto eu - disse Grady, começando a preparar outro drinque. Bolhas prateadas brotavam na garrafa de gim virada. - Da mesma forma que sua mulher e seu filho não gostam. . . não no momento, por enquanto. Mas virão a gostar. O senhor deve mostrar-lhes o erro de seus caminhos, Sr. Torrance. Concorda?
- Sim, concordo.
percebia.
Tinha sido muito frouxo em relação a eles. Maridos e pais tinham suas responsabilidades. Papai Sabe Tudo. Não entendiam. Sabiam que não era nenhum crime, mas deliberadamente não entendiam. Não era o que se podia chamar de um homem severo. Mas acreditava em castigo. E se seu filho e sua mulher, deliberadamente, colocaram-se contra sua vontade, contra as coisas que ele sabia serem melhores para eles, não teria ele om certo dever. .
- Uma criança mal-agradecida é pior do que um dente de serpente - falou Grady, entregando-lhe o drinque. - Realmente acho que o gerente poderia pôr seu filho na linha. E sua mulher o seguiria pouco depois. Concorda, senhor?
De repente ficou indeciso.
- Eu. . . mas. . . se pudessem simplesmente ir embora.
quero dizer, afinal de contas, sou eu que o gerente quer, não é? Deve ser. Porque. . . - Por quê? Deveria saber, mas subitamente compreendeu que não sabia. Oh, seu pobre cérebro flutuava.
- Cachorro feio! - dizia alto Derwent, seguido por uma explosão de alegria. - Cachorro feio que faz pipi no chão.
- E naturalmente o senhor sabe - continuou Grady, debruçando-se confidencialmente sobre o carro de bebidas. - Seu filho está tentando trazer um estranho para cá. Seu filho tem muito talento, do tipo que o gerente poderia usar para posteriorniente melhorar o Overlook, para posteriormente.
enriquecê-lo, poderíamos dizer. Mas seu filho está disposto a usar esse mesmo talento contra nós. Ele está deliberado, Sr. Torrance. Deliberado.
- Estranho? - perguntou Jack como um idiota.
urady assentiu.
- Quem?
- Um negro - disse Grady. Um negro cozinheiro.
- Hallorann?
- Acho que é este o nome, senhor.
Uma outra explosão de gargalhada por trás deles surgiu quando Roger disse alguma coisa com uma VOZ queixosa de protesto.
- Sim! Sim! Sim! - começou Derwent a cantar. Os outros em volta o acompanhavam, mas, antes que Jack ouvisse o que queriam que Roger fizesse agora, a orquestra começou a tocar novamente. . . a música era Tuxedo Junction, com muito sax, mas pouco soul.
(Soul? Soul ainda niio tinha sido descoberto. Ou tinha?)
(Um negro... um negro cozinheiro.)
Abriu a boca para falar sem saber o que iria sair. O que saiu foi:
- Disseram-me que você não terminou o curso secundário. Mas você não fala como um homem sem instrução.
- É verdade que abandonei a escola muito cedo, senhor. Mas o gerente se interessa por seus empregados. Ele acha que compensa. A instrução sempre compensa, não acha, senhor?
- Sim falou Jack, atordoado.
- Por exemplo, o senhor demonstra um grande interesse em aprender mais sobre o Hotel Overlook. Muito inteligente de sua parte, senhor. Muito nobre. Um certo álbum de recortes foi deixado no porão para que o senhor o encontrasse.
- Por quem? - perguntou Jack, ansioso.
- Pelo gerente, naturalmente. Outros materiais poderiam ser colocados à sua disposição, se o senhor desejasse.
- Eu quero. Muito. - Tentou controlar a ansiedade em sua voz e fracassou redondamente.
- O senhor é um verdadeiro estudioso - disse Grady.
- Persegue o objetivo até o fim. Até se esgotarem todas as fontes. - Baixou a cabeça com as sobrancelhas cerradas, ajeitou a lapela do paletó branco, e tirou com a ponta dos dedos uma poeirinha invisível aos olhos de Jack. - E o gerente não é miserável - prosseguiu Grady. - De maneira nenhuma. Eu, por exemplo, veja, abandonei os estudos no primeiro ano científico. Imagine o quão longe o senhor poderia ir na estrutura organizacional do Overlook. Talvez.., com o tempo... à cúpula.
- Sim.
- É mesmo? - sussurrou Jack.
- Mas isto realmente depende de seu filho, não é?
perguntou Grady, levantando as sobrancelhas espessas e de Al. guma forma agressivas.
- De Danny? - Jack franziu as sobrancelhas para Grady. -. Não, claro que não. Não permitiria que meu filho tomasse decisões com relação à minha carreira. Em hipótese alguma. Quem você pensa que sou?
- Um homem dedicado - disse Grady, afavelmente.
Talvez me tenha expressado mal. Digamos que seu futuro aqui depende de como o senhor decida lidar com os caprichos de seu filho.
- Tomo minhas próprias decisões - murmurou Jack.
- Mas o senhor deve acertar com ele.
- Vou acertar.
- Com firmeza.
- Um homem que não consegue controlar sua própria família goza de muito pouco prestígio junto ao gerente. Um homem que não consegue dirigir os rumos de sua mulher e de seu filho dificilmente conseguirá dirigir os seus, ou conseguirá assumir sozínho uma posição de responsabilidade numa organi. zação desta envergadura. Ele.
- Eu disse que cuidarei dele! - gritou jack de repente enraivecido.
Tuxedo Junction terminara, e a outra música ainda não começara. Seu grito caiu exatamente no intervalo, e a conversa de repente cessou atrás dele. Seu corpo inteiro estava quente. Percebeu que todos os observavam. Já tinham feito o que que. riam com Roger, e agora era sua vez. Role. Sente-se. Finja-se de morto. Se jogar o jogo conosco, jogaremos o jogo com você. Posição de responsabilidade. Queriam que sacrificasse o filho.
(. . .agora ele corre atrás de Harry por toda parte, abanail rabinho...)
(Role. Finja-se de morto. Castigue seu filho.)
- Por aqui, senhor - dizia Grady. - Algo que lhe pode
Sorriu idiotamente. Olhou para a mão esquerda e viu que havia outro copo, pela metade. Esvaziou-o com um gole.
Estava agora parado em frente à lareira, o calor do fogo aquecia as pernas.
(um incêndío?.. . em agosto?. . . sim.. . e não. . . tudo de uma só vez)
Havia um relógio sob uma redoma de vidro, ladeado por dois elefantes de marfim. Os ponteiros marcavam um minuto para a meia-noite. Olhou-o com os olhos turvos. Era isso que Grady queria que visse? Voltou-se para perguntar, mas Grady o tinha deixado.
No meio de Ticket to ride, a orquestra executou um floreio de metais.
- Está na hora! - proclamou Horace Derwent. - Meianoite! Retirem as máscaras! Retirem as máscaras!
Tentou voltar-se novamente para ver que rostos famosos se escondiam sob o brilho, a pintura e as máscaras, mas ficou paralisado, sem conseguir tirar os olhos do relógio... os ponteiros se haviam juntado e apontavam para cima.
- Retirem as máscaras! Retirem as máscaras! - prosseguiu o coro.
O relógio começou a bater delicadamente. Ao longo do trilho abaixo do mostrador, duas figuras se encontravam. Jack observava fascinado, esquecendo a retirada das máscaras. O relógio batia. As rodas dentadas giravam e se encaixavam, os metais brilhavam. A roda de equilíbrio balançava precisamente de um lado para outro.
Uma das figuras era um homem na ponta dos pés com o que parecia um pequeno taco nas mãos. A outra era um menino com orelhas de asno. As figuras encantavam pela fantástica precisão. Na frente do chapéu do garoto lia-se a palavra “BOBO”.
As duas figuras se afastaram para as extremidades opostas de um eixo de aço. De algum lugar, vinham os acordes de uma valsa de Strauss. Um jingle comercial louco passou-lhe pela cabeça: ‘Compre comida de cachorro, au-au, au-au, compre comida de cachorro. .
O taco de metal nas mãos da figura do pai caiu sobre a cabeça do menino. A figura do filho esfacelou-se. O taco subia e descia, subia e descia. As mãos do menino estendidas em defesa começaram a vacilar. O menino curvou-se, prostrado. E o taco ainda assim subia e descia no ar ao som da melodia de Strauss e parecia que ele podia ver o rosto contraído do menino.
A conversa continuou, alterando o ritmo ao compasso da orquestra, que executava agora um arranjo de Ticket to ride, de Lennon e McCartney.
(Já ouvi melhores nos alto-falantes de supermercados.)
homem, podia ver a boca da figura do pai abrindo e fechando enquanto ralhava com a figura inconsciente e açoitada do filho.
Uma mancha vermelha saltou por dentro da redoma de vidro.
Mais outra. Mais duas.
Agora, o líquido vermelho espirrava como uma chuva atingindo as laterais do vidro da redoma e escorrendo, esconden do o que havia em seu interior, e, em meio a uma mancha vermelha, havia pequeninos fragmentos de tecido, osso e cérebro. E ainda podia ver o taco subindo e descendo enquanto o relógio continuava a funcionar e as rodas continuavam a encaixar os mecanismos e dentes dessa engrenagem habilmente fabricada.
- Retirem as máscaras! Retirem as máscaras! - gritava Derwent atrás dele, e em algum lugar um cachorro uivava com voz humana.
(Mas engrenagem de relógio não sangra, engrenagem de relógio não sangra)
A redoma inteira estava manchada de sangue, podia ver pedaços de cabelo, mas nada mais, graças a Deus, nada mais, e ainda assim achava que iria vomitar porque ouvia as pancadas, ouvia através do vidro assim como ouvia o Danúbio azul. Mas os sons não eram mais os tique-taques mecânicos de um taco mecânico atingindo uma cabeça igualmente mecânica, e sim os sons surdos de um taco verdadeiro dilacerando e golpeando destroços úmidos e esponjosos. Destroços que já tinham sido...
- RETIREM AS MÁSCARAS!
(... . .a Máscara da Morte Rubra dominava tudo!)
Com um grito angustiado, deu as costas para o relógio, tropeçando nos próprios pés como se fossem blocos de madeira, as mãos estendidas implorando que parassem, que levassem Danny, Wendy e ele, que levassem o mundo todo se quisessem, mas que parassem, e que deixassem nele um pouco de sanidade, um pouquinho só.
O salão estava vazio.
As cadeiras altas estavam sobre as mesas, com as pernas viradas para cima. As mesas cobertas com uma capa de plástico. O tapete vermelho com os bordados dourados estendidos sobre o soalho, protegendo a superfície de madeira encerada. No palco, havia somente um pé de microfone e um violão sem cordas, empoeirado, encostado na parede. A luz fria da manhã, luz de inverno, entrava pelas janelas altas.
Sua cabeça ainda girava, ainda se sentia bêbado, mas, quando se voltou para a lareira, a bebida havia sumido. Havia apenas os elefantes de marfim. . . e o relógio.
Atravessou, tropeçando, o saguão frio e sombrio, e o restaurante. Seu pé direito prendeu-se num pé de mesa, e ele caiu derrubando a mesa, fazendo barulho. Bateu o nariz com força no chão e começou a sangrar. Levantou-se, fungando e limpando o nariz com a mão. Atravessou o Salão Colorado e empurrou a porta de vaivém, fazendo-a bater contra as paredes.
O lugar estava vazio. . . mas o bar estava cheio. Deus seja louvado. Vidros e rótulos de prata cintilavam na escuridão.
Certa vez, lembrava-se, há muito tempo, aborrecera-se porque não havia um fundo de espelho no bar. Agora estava feliz. Olhando através dele veria um outro bêbado que abandonava o vagão dos abstêmios: nariz sujo de sangue, camisa para fora das calças, despenteado, rosto barbado.
(Isto é que é enfiar a mão inteira no ninho.)
A solidão caiu sobre ele repentina e totalmente. Gritou de infelicidade e desejou honestamente que estivesse morto. A mulher e o filho estavam lá em cima com a porta trancada. Os outros haviam todos partido. A festa terminara.
Cambaleou para a frente novamente, e chegou ao bar.
- Lloyd, onde diabos você está? - gritou.
Não houve resposta. Neste cômodo
(cela)
muito bem revestido, suas palavras nem sequer ecoavam para dar a ilusão de companhia.
- Grady!
Nenhuma resposta. Somente as garrafas, imóveis e atentas.
(Role. Finja-se de morto. Vá buscar. Finja-se de morto. Sente-se. Finja-se de morto.)
- Não importa, eu mesmo preparo, merda.
No meio do caminho para o bar, perdeu o equilíbrio e se Jogou para a frente, batendo a cabeça no chão. Pôs-se de quatro,
os olhos virando de um lado para outro, sons indistintos saindo da boca. Em seguida, perdeu os sentidos, o rosto virado de lado, roncando.
Lá fora, o vento assobiava mais alto, trazendo a neve espessa. Eram oito e meia da manhã.
Aeroporto de Stapleton, Denver
Às oito e trinta e um da manhã, uma mulher no vôo 196 da TWA começou a chorar e dar, aos gritos, sua opinião, que talvez fosse compartilhada pelos outros passageiros (ou mesmo pela tripulação), de que o avião ia cair.
A mulher de fisionomia impenetrável ao lado de Hallorann levantou os olhos do livro e fez uma breve análise caricatural:
- Criancice. E voltou a ler. Ela engolira duas vodcas durante a viagem, mas não pareciam tê-la afetado.
- Vai cair! gritou a mulher estridente. Eu simplesmente sei que vai!
Uma aeromoça correu a sua poltrona e se agachou a seu lado. Hallorann pensou com seus botões que somente aeromoças e jovens donas-de-casa conseguiam agachar-se com graciosidade; era um talento raro e maravilhoso. Pensava nisso, enquanto a aeromoça conversava calmamente e baixinho com a mulher, tranqüilizando-a aos poucos.
Hallorann não sabia se outras pessoas no 196 sentiam medo, mas ele, particularmente, morria de medo. Lá fora, não se via nada, a não ser uma fustigada cortina branca, O avião balançava um pouco com os ventos, que pareciam vir de toda parte. Os motores aumentavam a rotação para dar estabilidade maior, e, como conseqüência, o piso vibrava sob seus pés. Várias pessoas gemiam na classe turística atrás dele; uma aeromoça fora até lá com uma porção de sacos para enjôo, e um homem, três poltronas à frente de Hallorann, vomitara sobre o seu National Observer, e, sorrindo, pedia desculpas à aeromoça que veio ajudá-lo.
- Não foi nada - a moça o consolou -, é assim que me sinto com relação a Sele Qões.
Hallorann já voara o suficiente para poder conjeturar o que acontecera. A maior parte do trajeto voaram contra o vento, O tempo em Denver piorara de repente e inesperadamente, e agora era um pouco tarde para desviar a rota para qualquer outro lugar onde o tempo estivesse melhor. Antes tarde do que nunca.
(Buddy, rapaz, este é um ataque da cavalaria.)
Parecia que a aeromoça havia obtido sucesso em conter a histeria da mulher. Esta fungava e assoava o nariz num lenço, mas deixara de emitir suas opiniões sobre o possível fim do vôo para todos. A aeromoça deu-lhe um último tapinha nos ombros, e se levantou exatamente quando o 747 deu a pior guinada. A aeromoça cambaleou, e caiu sentada no colo do homem que vomitara no jornal, exibindo belas coxas cobertas de náilon. O homem piscou e, em seguida, deu-lhe um tapinha gentil no ombro. Ela sorriu, mas Hallorann viu estampado o esforço em sorrir. Era um vôo tremendamente difícil.
Houve um pequeno silvo, quando a luz do “Não fume” acendeu novamente.
- Aqui é o comandante falando - informou uma voz macia, com sotaque de sulista. - Estamos prontos para o pouso no Aeroporto Internacional de Stapleton. Foi um vôo difícil, pelo qual peço desculpas. A aterrissagem poderá ser também um pouco trabalhosa, mas não antecipamos nenhuma dificuldade real. Por favor, observem os avisos de “Apertar os cintos” e “Não fumar”, e esperamos que apreciem sua estada em Denver. Esperamos também...
Um outro solavanco sacudiu o avião, e fê-lo baixar com um vácuo nauseante. O estômago de Hallorann embrulhou. Muitas pessoas - não apenas mulheres - gritaram.
- ... vê-los novamente em um outro vôo da TWA muito breve.
- Deus me livre - disse alguém atrás de Hallorann.
- Tão tolo - comentou a mulher de fisionomia impenetrável ao lado de Hallorann, marcando o livro com um palito de fósforos, e fechando-o enquanto o avião começava a aterrissar. - Quando já se presenciaram os horrores de uma guerra suja. . . como o senhor já viu. . . ou já se sentiu a imoralidade degradante da intervenção da Clà na diplomacia do dólar.
como eu já senti. . . uma aterrissagem difícil se perde na insignificância. Estou certa, Sr. Hallorann?
- E como, senhora - respondeu, olhando para a neve que caía forte.
- Como é que sua chapa de aço está reagindo a isso tudo, se me permite a pergunta?
- Oh, minha cabeça está bem - disse Hallorann. - Só o estômago está um pouco enjoado.
- Que vergonha. - E abriu o livro novamente.
Enquanto baixavam pelas impenetráveis nuvens de neve, Hallorann pensou num acidente que ocorrera no Aeroporto de Boston, há alguns anos. As condições eram semelhantes, só que havia nevoeiro ao invés de neve, que reduzia a visibilidade a zero, O trem de aterrissagem ficara preso em um muro perto da cabeceira da pista. O que restara das oitenta e nove pessoas a bordo não foi muito diferente de um cozido.
Não se importaria muito se acontecesse com ele. Estava sozinho no mundo agora, e as presenças a seu funeral se restringiriam mais às pessoas com quem trabalhara, e àquele velho renegado Masterton, que, pelo menos, brindaria em sua homenagem. Mas o menino.., o menino dependia dele. Ele representava talvez toda a ajuda que aquela criança esperava, e não gostara do jeito como o último chamado o atingira. Ficara pensando na forma como os arbustos de animais pareciam mexer-se.
Uma mão leve e branca apareceu sobre a sua.
A mulher de fisionomia impenetrável tirara os óculos. Sem eles sua expressão tornara-se muito mais suave.
- Vai melhorar - disse ela.
Hallorann sorriu, e meneou a cabeça.
Como se esperava, o avião baixou com dificuldade, reencontrando-se com a terra com força suficiente para derrubar a maioria das revistas e arrastar bandejas que vinham da cozinha e que mais pareciam cartas gigantes de baralho. Ninguém gritou, mas Hallorann ouviu o trincar de dentes como se fossem castanholas de cigana.
Então as turbinas uivaram, o avião freou, e, enquanto o ruído diminuía, a voz suave do piloto, talvez não muito segura, veio ao interfone:
- Senhoras e senhores, aterrissamos no Aeroporto de Stapleton. Por favor, permaneçam sentados até a completa parada das turbinas. Obrigado.
A mulher ao lado de Hallorann fechou o livro e deu um longo suspiro.
- Dias melhores virão.
- Senhora, este ainda não acabou.
- Verdade. Pura verdade. Gostaria de tomar um drinque comigo?
- Gostaria, mas tenho um horário apertado a cumprir.
- Urgente?
- Muito urgente - disse Hallorann, sério.
- Algo que contribuirá de alguma forma para a melhoria da situação geral, espero.
Eu também espero - falou Hallorann, com um sorrisO. Ela tambén sorriu, e remoçou dez anos ao fazê-lo.
Como só tivesse uma sacola como bagagem, Hallorann foi o primeiro passageiro a chegar ao balcão da Hertz. Pelas janelas embaçadas podia ver a neve caindo. O vento levantava nuvens de neve, e as pessoas que andavam no parque de estacionamento lutavam contra ele. Um homem perdeu o chapéu, e Hallorann sentiu pena dele, enquanto o chapéu voava alto e imponente. O homem o perseguia com o olhar, e Hallorann pensou:
(Oh, não esquente a cabeça, cara. Esse chapéu só vai baixar no Arizona.)
E a propósito do pensamento:
(Se está assim em Denver, como estará a oeste de Boulder?)
Talvez seja melhor não pensar nisso.
- Deseja alguma coisa, senhor? - perguntou a moça de amarelo do balcão da Hertz.
- Se você tiver um carro, seria muito bom - disse, com um sorriso largo.
Por um preço mais pesado que o normal, conseguiu um carro mais pesado que o normal, um Buick Electra preto e prateado. Pensava nas estradas sinuosas mais do que no modelo, teria ainda que parar em algum lugar no caminho, para colocar correntes. Sem elas não iria muito longe.
- O tempo está feio? - perguntou, enquanto ela lhe entregava o contrato para ser assinado.
- Dizem que esta é a pior nevasca desde 1969 - respondeu a moça, de maneira inteligente. - O senhor tem que ir muito longe?
- Mais longe do que gostaria.
- Se o senhor quiser, posso telefonar para o posto da Texaco no entroncamento da Rodovia 270. Eles colocarão as correntes para o senhor.
Isso seria formidável, querida.
Ela apanhou o telefone e fez a ligação.
- Estarão à sua espera.
- Muito obrigado.
Ao deixar o balcão, viu a mulher de fisionomia impenetrável parada numa das filas em frente ao carrossel de bagagem. ainda estava lendo o livro. Hallorann, ao passar, piscou os olhos para ela. Ela levantou o rosto, sorriu, e fez com os dedos o sinal da paz.
(luz interior)
Ele levantou a gola do casaco, sorrindo, e passou a sacola leve para a outra mão. Muito pouco, mas fazia-o sentir-se melhor. Lamentava ter-lhe contado aquela mentira sobre a chapa de aço na cabeça. Em sua mente desejava-lhe o bem, e enquanto saía no vento e na neve, pensou que ela também lhe desejava o mesmo.
A taxa para colocação de correntes no posto de serviço era pequena, mas Hallorann ofereceu ao empregado da garagem mais dez dólares para ser passado à frente na lista de espera. Faltavam ainda quinze para as dez, antes de ele ter realmente entrado na estrada, os limpadores de pára-brisa estalavam e as correntes batiam monotonamente nas rodas grandes do Buick.
A estrada estava uma desgraça. Mesmo com as correntes não conseguia andar a mais de cinqüenta. Os carros derrapavam das formas mais loucas, e em muitos dos aclives o tráfego avançava com dificuldade, os pneus de verão rodavam impotentes na neve. Era a primeira nevasca do inverno aqui na baixada (se é que se podia chamar mil e seiscentos metros acima do nível do mar de “baixada”), e era fogo. Muitos dos motoristas estavam despreparados, o que era bastante normal, mas Hallorann ainda se viu xingando ao passar por eles, espreitando no retrovisor externo, sujo de neve, para se certificar de que nada estava
(Despencando pela neve. .
subindo pela esquerda para lhe cutucar a traseira.
Havia mais falta de sorte à sua espera no início da subida da Rodovia 36. Essa rodovia, que ligava Denver a Boulder, também vai para oeste de Estes Park, onde se junta com a Rodovia 7. Essa estrada, também conhecida como Estrada Montanhosa, passa por Sidewinder, pelo Hotel Overlook, e finalmente desce a encosta oeste até Utah.
O início da subida estava bloqueado por um caminhão virado. Chamas fortes estavam espalhadas em volta como velas de aniversário em um bolo idiota de criança.
Parou e baixou o vidro. Um guarda, com um chapeu de pele tipo cossaco, gritava e apontava para o fluxo do trafego, que se movia em direção norte na 125.
- Não pode subir por aqui! - berrou para Hallorann no vento. - Desça, entre na 91, que se encontra com a 36 em Broomfield!
- Pensei que pudesse fazer a volta pela esquerda! - gritou Hallorann. - Isso que você está dizendo significa mais trinta e dois quilômetros no meu caminho.
- Dou-lhe uma cacetada na cabeça! - gritou o guarda.
- Esta rampa está fechada!
Hallorann engatou a ré, esperou uma oportunidade, e prosseguiu a caminho da Rodovia 23. As placas informavam que estava apenas a cento e sessenta quilômetros de Cheyenne, Wyoming. Se não prestasse atenção à sua entrada, acabaria lá.
Aumentou a velocidade para cinqüenta e cinco, mas não se atreveria a ir mais rápido; a neve já ameaçava emperrar o limpador de pára-brisa e as rotas de tráfego estavam decididamente loucas. Trinta e dois quilômetros de desvio. Praguejou, e a sensação de que o tempo estava cada vez mais curto para o menino aumentou novamente, quase sufocando-o com a urgência. E ao mesmo tempo teve uma certeza determinada de que não voltaria dessa viagem.
Ligou o rádio, passou por cima dos anúncios de Natal, e encontrou uma previsão meteorológica.
...já quinze centímetros, e mais trinta são esperados em Denver e seus arredores ao cair da noite. A polícia local e estadual recomenda que você não tire seu carro da garagem a menos que seja absolutamente necessário, e avisa que a maioria dos desfiladeiros nas montanhas já foi fechada. Portanto, fique em casa, lubrifique seus esquis, e continue ligado na...
- Obrigado, mamãe - disse Hallorann, e, furioso, desligou o rádio.
Wendy
Por volta do meio-dia, depois que Danny foi para o banheiro, Wendy apanhou a faca enrolada no pano de prato que estava debaixo do travesseiro, colocou-a no bolso do roupão, e foi à porta do banheiro.
- Danny?
- Que é?
- Vou descer para preparar o almoço para nós. Está bem?
- Sim. Quer que eu desça?
- Não, vou trazer aqui para cima, O que me diz de uma omelete de queijo e sopa?
- Bom.
Ela hesitou do lado de fora da porta fechada por mais um momento.
- Danny, tem certeza de que está bem?
- Tenho - respondeu. - Tome cuidado.
- Onde está seu pai? Você sabe?
A voz dele voltou, curiosamente desanimada:
- Não. Mas está tudo bem.
Ela sufocou um desejo imenso de continuar fazendo perguntas, de prosseguir bisbilhotando. A coisa estava ali, sabiam o que era, bisbilhotar só aumentaria o medo de Danny. . . e dela também.
Jack enlouquecera. Por volta de oito da manhã, quando a tempestade começava a ficar mais forte, sentaram-se juntos na cama de armar de Danny, e o ouviram, lá embaixo, berrando e caindo por cima das coisas. A maior parte dos ruídos parecia vir do salão de baile. Jack cantava trechos desafinados de canções, Jack discutia, Jack gritava alto, apavorando-os e fazendo com que se entreolhassem. Finalmente, ouviram-no tropeçando pelo saguão, e Wendy pensou ter ouvido uma pancada alta, como se ele tivesse caído ou empurrado uma porta abrindo-a com violência. Desde oito e meia - fazia agora três horas e meia - só havia silêncio.
Ela foi até o pequeno corredor, dobrou para o corredor principal do primeiro andar, e desceu as escadas. Parou no intervalo do primeiro lance olhando para o saguão. Parecia deserto, mas o dia cinzento de neve deixara quase todo o longo saguão às escuras. Danny poderia estar errado. Jack poderia estar atrás de uma cadeira ou sofá. . . talvez atrás do balcão de recepção esperando que ela descesse.
Molhou os lábios.
- Jack?
Nenhuma resposta.
Sua mão segurou o cabo da faca, e ela começou a descer.
Vira o fim de seu casamento várias vezes, através do divórcio, da morte de Jackiem um acidente de carro, embriagado (uma visão constante na escuridão das madrugadas de Stovington), e, às vezes, em sonhos, acordada, via-se sendo descoberta por um outro homem, um herói de novela que a levaria para longe junto com Danny, em seu cavalo branco. Mas nunca se tinha imaginado rondando corredores e escadas como uma doente mental, segurando uma faca para se defender de Jack.
O pensamento fez com que uma onda de desespero tomasse conta dela, e teve que parar na metade da escada, segurando o corrimão, temendo que as pernas lhe faltassem.
(Admita. Não é só Jack, ele é apenas a única coisa sólida de tudo isso, onde você pode encostar as outras coisas, aquelas em que você não acredita e em que está sendo forçada a acreditar, aquilo tudo sobre os arbustos, os restos de festa no elevador, a máscara)
Tentou impedir o pensamento, mas era muito, tarde.
(e as vozes.)
Porque, por vezes, não parecera que havia um homem louco solitário abaixo deles, gritando e mantendo diálogos com. fantasmas em sua mente demente. Por vezes, como um sinal de rádio que ia e vinha, ela ouvira - ou imaginara ter ouvido
- outras vozes, música e risos. Em certos momentos, ouvia Jack conversando com um homem de nome Grady (o nome era familiar, mas não fez nenhuma ligação concreta), fazendo afirmações e perguntas no silêncio, falando alto, como se para se fazer ouvir em meio a um vozerio de uma festa. E então, misteriosamente, havia outros ruídos, parecendo escorregar do lugar: uma orquestra de baile, aplausos, um homem de voz alegre, mas ao mesmo tempo autoritária, que parecia tentar persuadir alguém a fazer um discurso. Durante trinta a sessenta segundos ouvira isso, tempo suficiente para aumentar o pavor, e os ruídos se extinguiram novamente, e ela só ouvia Jack, falando de modo imponente, mas ainda um engrolado, que lembrava sua voz de bêbado. Mas não havia nenhuma bebida no hotel, além do vinho na cozinha. Não era mesmo? Sim, mas, se ela podia imaginar que o hotel estava cheio de vozes e música, não poderia Jack imaginar-se bêbado?
Não gostava desse pensamento. De jeito nenhum.
Wendy chegou ao saguão e olhou em redor. A fita de veludo que cercava a porta do salão de baile fora baixada; a barra de aço em que estivera presa tinha sido arrastada, como se alguém tivesse descuidadamente esbarrado ao passar. Uma luz suave entrava pela porta aberta batendo no tapete do saguão, vinda das janelas altas e estreitas do salão de baile. Com o coração batendo forte, foi às portas abertas do salão e olhou. Estava vazio e silencioso, o único som era o eco baixo e curioso que parece permanecer em todos os lugares grandes, da catedral mais imponente ao mais simples salão de bingo de uma cidadezinha.
Voltou ao balcão de recepção e ficou ali, indecisa por um momento, ouvindo o vento uivar lá fora. Até agora, esta tinha sido a pior tempestade, e ainda continuava forte. Em algum lugar na ala oeste, um trinco de veneziana quebrara, e a veneziana batia ininterruptamente, como um stand de tiro ao alvo com um único freguês.
(Jack, você realmente devia cuidar disso. Antes que alguma coisa aconteça.)
O que faria se ele se aproximasse agora? pensou. Se ele saísse por detrás do balcão de recepção escuro, envernizado, com seus formulários e campainha prateada, como uma caixa de surpresa assassina, de onde saía um boneco grotesco sorridente com um cutelo de açougueiro na mão, e olhos desvairados? Ficaria paralisada de pavor, ou haveria nela uma leoa capaz de lutar pelo filho até a morte? Não sabia, O pensamento fazia-a sentir-se mal. . fazia-a sentir que sua vida inteira tinha sido um sonho longo e tranqüilo que acabara em um verdadeiro pesadelo. Estava calma. Quando os problemas apareciam, dormia. Seu passado não era digno de nota. Nunca fora exposta a uma prova de fogo. Agora, esta encontrava-se diante dela, não de fogo, mas de gelo, e não lhe seria permitido dormir numa situação dessas, O filho estava à sua espera lá em cima.
Apertando o cabo da faca com mais força, espreitou por cima do balcão.
Nada ali.
Deu um longo suspiro de alívio.
Levantou a tampa do balcão e prosseguiu, parando para dar uma olhada no escritório, antes de cair em si. Tateou, na porta seguinte, à procura dos interruptores das lâmpadas da cozinha, esperando friamente que uma mão pousasse sobre a sua a qualquer momento. Em seguida, as lâmpadas fluorescentes acenderam, e ela pôde ver a cozinha do Sr. Hallorann - agora sua cozinha - com azulejos verdes, fórmica brilhante, porcelana limpíssima, ferragens cintilantes. Prometera que manteria a cozinha limpa, e cumprira. Sentia que era um dos lugares seguros para Danny. A presença de Dick Hallorann parecia envolvê-la e consolá-la. Danny chamara pelo Sr. Hallorann, e lá em cima, sentada ao lado do filho amedrontado, enquanto o marido gritava e se enfurecia embaixo, aquilo parecia ser a mais remota esperança. Mas aqui, no lugar do Sr. Hallorann, parecia quase possível. Talvez estivesse a caminho agora, querendo chegar até eles independentemente da tempestade. Talvez fosse assim.
Foi à despensa, abriu a porta e entrou. Apanhou uma lata de sopa de tomate, fechou a porta da despensa novamente, trancou-a. A porta era bem rente ao chão. Se fosse mantida trancada, não seria preciso preocupar-se com detritos de rato nu camundongo no arroz, na farinha ou no açúcar.
Abriu a lata e colocou o conteúdo numa panela - plop. Foi à geladeira, apanhou leite e ovos para a omelete. Em seguida, foi ao frigorífico gigante apanhar queijo. Todas essas ações, tão comuns e tão parte de sua vida antes do Overlook, ajudavam-na a se acalmar.
Derreteu a manteiga na frigideira, dissolveu a sopa no leite, e então acrescentou os ovos batidos na panela.
Uma repentina sensação de que havia alguém atrás dela tomou conta de sua garganta.
Voltou-se para trás, segurando a faca. Ninguém.
(!Contenha-se, moça!) Cortou um pedaço de queijo, acrescentou-o à omelete, agitou a frigideira, e baixou o fogo. A sopa estava quente. Colocou a panela numa bandeja grande, com os talheres, dois pratos fundos, dois rasos, o sal e a pimenta. Quando a omelete ficou pronta escorregou-a para um dos pratos, e a cobriu.
(Agora de volta por onde veio. Apague as luzes da cozinha. Passe pelo escritório. Pelo portão da recepção, apanhe duzentos dólares.)
Parou no saguão junto ao balcão de recepção e descansou a bandeja ao lado da campainha prateada. A irrealidade só poderia chegar até aqui; tudo isso era como um jogo surrealista de esconde-esconde.
Parou no saguão escuro, franzindo a testa com o pensamento.
(Não fuja dos fatos desta vez, moça. Há certas verdades, tão loucas quanto a situação possa parecer. Uma delas é que você pode ser a única pessoa responsável que restou nesta pilha grotesca. Você tem um filho com quase seis anos para cuidar.
E seu marido, não importa o que tenha acontecido, nem o quão perigoso ele possa ser. . . talvez seja parte de sua responsabilidade também. E mesmo que não seja, considere isto: hoje é dia 2 de dezembro. Pode ser que fique presa aqui por mais quatro meses, se um guarda-florestal não aparecer. Mesmo que comecem a imaginar por que não os têm ouvido no radiotransmissor, ninguém virá hoje. . . ou amanhã. . . talvez nem durante semanas. Vai passar um mês se escondendo para apanhar comida com uma faca no bolso e se assustando a cada sombra? Acha realmente que pode evitar Jack durante um mês? Acha que pode proibir a entrada de Jack em seu quarto? Ele tem a chave mestra, e um chute mais forte pode arrebentar o trinco.)
Deixando a bandeja no balcão, caminhou devagar para o restaurante e observou. Estava deserto. Havia uma mesa com as cadeiras em volta, a mesa em que tentaram comer até que o vazio do restaurante começou a fazê-los sentirem-se esdrúxulos.
- Jack? - chamou ela, hesitante.
Naquele momento o vento soprou forte, fazendo a neve bater nas venezianas, mas lhe parecia que havia alguma coisa. Um gemido abafado.
- jack?
Nenhuma resposta desta vez, mas seus olhos bateram em algo debaixo da porta de vaivém do Salão Colorado, algo que cintilava longe, na luz suave, O isqueiro de Jack.
Criando coragem, foi até a porta de vaivém e a abriu, O cheiro de gim era tão forte que precisou prender a respiração. Se é que se podia chamar aquilo de cheiro; era positivamente uma catinga. Mas as prateleiras estavam vazias. Onde, em nome de Deus, ele encontrara bebida? Uma garrafa escondida atrás de um dos armários? Onde?
Houve outro gemido baixo, ligeiramente embriagado, que se ouvia perfeitamente. Wendy caminhou devagar para o bar.
- Jack?
Nenhuma resposta.
Olhou para o bar, e lá estava ele, estendido no chão em estado de letargia. Pelo cheiro, estava bêbado como um gambá. Deve ter tentado pular por cima do bar e perdeu o equilíbrio. Um milagre não ter quebrado o pescoço. Um velho provérbio ocorreu-lhe: “À criança e ao borracho, Deus põe a mão embaixo”. Amém.
ainda assim, não sentia raiva dele; olhando-o pensou que parecia um menininho terrivelmente cansado, que depois de muita atividade adormecera no meida sala. Deixara de beber, não foi Jack que tomara a decisão de recomeçar, não; havia bida para ele começar com. . . então de onde viera?
Em cada dois metros do bar em forma de ferradura havia garrafas de vinho cobertas de palha, com os gargalos tapados por velas. Deveriam dar a aparência de boêmia, achava ela.
Sacudiu uma, esperando ouvir o barulho de líquido.
(vinho novo em garrafas velhas)
Mas não havia nada. Colocou-a de volta no lugar.
Jack se mexia. Ela rodeou o bar, encontrou a portinhola e foi até onde Jack estava deitado, parando apenas para olhar as torneiras cintilantes. Estavam secas, mas ao passar por elas sentiu o cheiro de cerveja fresca.
Ao se aproximar de Jack, ele se virou, abriu os olhos, e olhou para ela. Por um momento seu olhar foi sem expressão, e aos poucos clareou.
- Wendy? - perguntou. - É você?
- Sim - disse ela. - Acha que agüenta subir? Se se apoiar em mim? Jack, onde foi que você.
Suas mãos apertaram brutalmente os tornozelos da mulher.
- Jack! O que você está.
- Peguei-a - falou, e começou a sorrir maliciosamente. Havia um cheiro azedo de gim e azeitonas em volta dele, que parecia acelerar um velho terror, um terror pior do que qualquer hotel por si só poderia causar. Uma parte distante dela pensou que o pior era que tudo se tivesse reduzido a isto, ela e o marido bêbado.
Jack, quero ajudar.
- Oh, sim. Você e Danny querem apenas ajudar. - A força no tornozelo aumentava agora. ainda segurando, Jack se pôs de joelhos, tremendo. - Vocês nos queriam ajudar, bem longe daqui. Mas agora. . . eu. . . a peguei!
- Jack, você está machucando meu tornozelo.
- Vou machucar muito mais que o tornozelo, sua sem vergonha.
A expressão atordoou-a de tal forma, que não fez o menor esforço para fugir, quando ele soltou o tornozelo, e cambaleou para se pôr de pé.
- Você nunca me amou - disse ele. - Queria que fôssemos embora porque sabia qual seria meu fim. Já parou para pensar nas minhas re. . . res. . . responsabilidades? Não, aposto que não. Tudo em que você pensa são formas de acabar comigo. E exatamente como minha mãe, sua puta!
- Pare com isto - disse ela, chorando. - Você não sabe o que está dizendo. Está bêbado. Não sei como, mas está bêbado.
- Oh, eu sei. Estou sabendo. Você e ele. Aquele fedelho lá em cima. Vocês dois, confabulando. Não é isso?
- Não, não! Nunca confabulamos nada! O que você.
- Mentirosa! - gritou. - Sei como fazem! Acho que sei! Quando eu digo: “Nós vamos ficar aqui e eu vou fazer meu trabalho”, você diz: “Sim, querido”, e ele diz: “Sim, papai”, e então fazem as confabulações. Planejaram usar o snowmobile. Vocês planejaram isso. Mas eu sabia. Deduzi. Achou que eu não fosse deduzir? Pensou que eu fosse um idiota?
Ela o olhava fixamente, sem poder falar. Ele iria matá-la, e depois mataria Danny. Então talvez o hotel ficasse satisfeito e deixasse que ele se matasse. Exatamente como o antigo zelador. Exatamente como
(Grady.)
Quase desmaiando de pavor, percebeu finalmente com quem Jack estivera conversando no salão de baile.
Você instigou meu filho contra mim. Isso foi o pior.
- Seu rosto cedeu à autopiedade. - Meu filhinho. Agora ele me detesta também. Você cuidou para que isso acontecesse. Sempre foi seu plano, não foi? Sempre teve ciúme, não teve? Exatamente como sua mãe. Não ficaria satisfeita enquanto não comesse o bolo inteiro, não é? Não é?
Ela não conseguia falar.
- Bem, vou dar um jeito em você - disse ele, e tentou pôr as mãos em volta do pescoço da mulher.
Wendy deu um passo atrás, em seguida outro, e ele cambaleou por cima dela. Wendy lembrou-se da faca no bolso do roupão, e tateou procurando-a, mas agora o braço esquerdo do marido passou em volta dela, prendendo-lhe o braço esquerdo. Ela sentiu o cheiro forte de gim e o azedo do suor.
- Tem que ser castigada - resmungou ele. - Punida. Punida... severamente.
A mão direita encontrou a garganta de Wendy.
Ao sentir-se asfixiada, o pânico tomou conta dela. A mão esquerda de Jack juntou-se à direita, e agora suas mãos estavam livres para poderem agarrar a faca, mas esqueceu-se disso. Ergueu as duas mãos e começou a empurrar inutilmente as mãos maiores e mais fortes do marido.
- Mã e! - gritou Danny de algum lugar. - Papai, pare! Você está machucando mamãe! - gritou ele em voz alta e aguda, e Wendy ouviu o som cristalizado ao longe.
Raios vermelhos de luz saltavam diante de seus olhos como bailarinos. O lugar escureceu. Viu o filho trepando no bar e se atirando sobre os ombros de Jack. De repente, uma das mãos que lhe apertavam garganta afastou-se para empurrar Danny rispidamente. O menino caiu sobre as prateleiras vazias, e, tonto, foi ao chão. A mão estava na garganta novamente. Os raios vermelhos começaram a se tornar pretos.
Danny chorava baixinho. O peito de Wendy ardia. Jack gritava em seu rosto:
- Vou dar um jeito em você! Sua miserável, vou mostrar quem é que manda aqui! Vou mostrar-lhe...
Mas todos os sons se apagavam em um longo corredor escuro. Começou a perder as forças. Uma das mãos soltou a mão de Jack, lentamente, até que o braço estivesse esticado, formando um ângulo reto com o corpo, a mão balançando como a de uma mulher afogada.
A mão esbarrou numa garrafa uma das garrafas de vinho enroladas em palha que serviam de castiçais decorativos.
Sem ver, usando de suas últimas forças, tateou à procura da garrafa e a encontrou, sentindo a gordura de parafina nas mãos.
(e Deus, se escorregar)
Levantou-a e em seguida baixou-a, rezando para acertar, sabendo que, se atingisse apenas o ombro ou o braço dele, ela estaria liquidada.
Mas a garrafa acertou em cheio a cabeça de Jack, e o vidro se espedaçou por dentro da palha. A base era grossa e pesada, e fez um ruído ao atingir o crânio do marido como se fosse uma bola de boliche que cai sobre o chão de madeira. Jack balançou, virando os olhos nas órbitas. A pressão na garganta diminuiu, e desapareceu por completo. Ele tirou as mãos de cima dela, como para se equilibrar, e em seguida caiu de costas.
Wendy respirou fundo. Ela mesma quase caiu, segurou-se no bar, tentando equilibrar-se. ainda não estava totalmente consciente. Ouvia Danny chorando, mas não tinha idéia de onde ele estava. Parecia um choro dentro de uma câmara de eco. Viu, vagamente, gotas de sangue pingando sobre a superfície escura do bar. . . do nariz, pensou. Limpou a garganta e cuspiu no chão. Sentiu uma agonia na garganta, que aos poucos se transformava em dor. . . suportável.
Aos poucos, foi recuperando os sentidos.
Soltou-se do bar, voltou-se e viu Jack deitado, a garrafa quebrada ao lado. Parecia um gigante derrubado. Danny estava agachado debaixo do balcão da caixa registradora do bar, as mãos na boca, olhos fixos no pai inconsciente.
Wendy foi até ele sem firmeza, e lhe tocou os ombros. Danny afastou-se.
- Danny, ouça...
- Não, não - resmungou ele, com a voz forte de homem feito, - Papai machucou você.., você machucou papai. .. papai machucou você. . . Quero ir dormir. Danny quer dormir.
- Danny...
- Dormir, dormir. Boa noite.
- Não!
A garganta doía novamente. Tremeu. Mas Danny abriu os olhos. Olhavam-na atentamente de dentro das órbitas cercadas de olheiras.
Wendy controlou-se para falar com calma, olhando-o nos olhos. Sua voz era baixa e rouca, quase um sussurro. Era difícil falar. Doía.
- Ouça, Danny. Não foi seu pai que tentou machucarme. E eu não quis machucá-lo. O hotel apossou-se dele, Danny.
O Overlook apossou-se de seu pai. Está me entendendo?
Uma espécie de compreensão brotoLi aos poucos nos olhos de Danny.
- A “coisa feia” - murmurou o garoto. Não havia nada por aqui antes, havia?
- Não. O hotel colocou aqui. O.. . - parou com uma crise de tosse e cuspiu mais sangue. Já sentia a garganta inchada, muito inchada. - O hotel fez com que ele bebesse, Você ouviu aquelas pessoas com quem ele conversava hoje de manhã?
- Ouvi. . . as pessoas do hotel.
- Eu também ouvi. E isso significa que o hotel está ficando mais forte. Quer machucar todos nós. Mas eu acho.
espero. . . que o faça somente através de seu pai. Ele era o ónico que o hotel poderia apanhar. Está me entendendo, Danny? É muito importante que você entenda.
- O hotel apanhou papai. - O garoto olhava para Jack e gemia.
- Sei que ama seu pai. Eu também amo. Temos que nos lembrar de qu o hotel está tentando machucá-lo tanto quanto a nós. - E ela estava convencida de que era verdade. Mas por que achava que Danny era a pessoa que o hotel realmente queria, a razão por estar indo tão longe. . . talvez a razão é que podia ir tão longe. Poderia ser até que de alguma forma a luz interior de Danny transmitisse força ao hotel, do mesmo modo que uma bateria gera força à parte elétrica de um carro. . . do mesmo modo que uma bateria aciona um carro. Se saíssem dali, o Overlook poderia apaziguar seu velho estado sensitivo, podendo mostrar tão-somente pequenos slides de terror aos hóspedes psiquicamente mais atentos que chegassem. Sem Danny, o hotel não seria mais do que uma casa mal-assombrada de um parque de diversões, onde um ou dois hóspedes ouviriam ruídos ou sons fantasmagóricos de um baile de máscaras, ou ocasionalmente veriam alguma coisa estranha. Mas se o hotel absorvesse Danny. . . ou sua luz interior, ou força vital, ou espírito. . . como queiram. . . como seria?
O pensamento deixou-a fria.
- Eu queria que papai estivesse bom - disse Danny, e as lágrimas voltaram a rolar.
- Eu também - disse ela, e abraçou Danny apertado.
- E, meu bem, é por isso que você precisa ajudar-me a pôr seu pai em algum lugar. Um lugar onde o hotel não possa fazê-lo machucar a gente, e onde ele não possa machucar-se. Então.
se seu amigo Dick vier, ou um guarda-florestal, poderemos leválo daqui. E eu acho que ele vai ficar bom novamente. Acho que ainda há uma possibilidade, se formos fortes e corajosos, como você foi quando pulou nas costas dele. Você entende? - Olhou-o suplicante, e pensou em como isso tudo era estranho; nunca o tinha visto tão parecido com Jack.
- Sim - falou Danny, balançando a cabeça. Acho.. que se a gente puder ir embora daqui... tudo vai ser como era antes. Onde a gente pode colocar papai?
- Na despensa. Há lá comida e um ferrolho forte na porta. E quentinho. E nós podemos usar a comida que está no congelador e na geladeira. Haverá comida bastante para nós, até chegar alguém para nos ajudar.
- A gente vai fazer isso agora?
- Sim, agora mesmo. Antes que ele acorde.
Danny levantava o balcão do bar, enquanto ela dobrava as mãos de Jack sobre o peito, e ouvia sua respiração. Era lenta, mas regular. Pelo cheiro, pensou ela, devia ter bebido muito e perdera o hábito. Achou que a bebida e a pancada na cabeça ajudaram a derrubá-lo.
Pegou as pernas de Jack e começou a arrastá-lo pelo chão. Estava casada há quase sete anos, ele deitara por cima dela inúmeras vezes. . . centenas. . . mas nunca imaginara que fosse tão pesado. Wendy assobiava ao respirar, e sentia dor na garganta ferida. No entanto, sentia-se bem, como há dias não se sentia. Estava viva. Tendo chegado tão próximo da morte, isso era precioso. E Jack também estava vivo. Por mera sorte, encontraram talvez o único modo de se salvarem.
Ofegante, parou por um momento, segurando os pés de Jack junto aos quadris. O cenário recordava-lhe o grito do velho pirata, na Ilha do tesouro, depois que o Capitão Gancho entregou-lhe o papel com a Mancha Negra: ainda vamos acabar com eles!
E em seguida lembrou-se, inquieta, de que o velho marujo morrera segundos depois.
- Você está bem, mamãe? Ele é. . . ele é muito pesado?
- Dou conta. - Voltou a arrastá-lo. Danny estava ao lado de Jack. Uma das mãos caíra de cima do peito, e Danny com muito carinho colocou-a de volta.
- Tem certeza, mamãe?
- Sim. É o melhor, Danny.
- E como botar papai na cadeia.
- Só por pouco tempo.
- Então está bem. Tem certeza de que agüenta?
- Tenho.
Mas quase não conseguiu. Danny estava segurando a cabeça do pai, quando passaram pela soleira da porta, mas suas mãos escorregaram no cabelo oleoso de Jack quando entraram na cozinha. A cabeça bateu no ladrilho, e Jack começou a resmungar e a se agitar.
- Tem que usar fumaça - murmurou Jack, rapidamente.
Agora corra e vá buscar a lata de gasolina.
Wendy e Danny entreolharam-se com medo.
- Ajude-me - disse ela, baixinho.
Por um momento, Danny parou como que paralisado pelo rosto do pai, e em seguida passou desajeitado para o lado dela para ajudá-la a segurar a perna esquerda. Arrastaram-no pela cozinha, numa espécie de câmara lenta de um pesadelo, e o único ruído era o zumbido das lâmpadas fluorescentes e das respirações.
Quando chegaram à despensa, Wendy baixou os pés de e voltou-se para procurar o ferrolho. Danny olhou para k, que se acalmara novamente. A camisa saíra para fora das calças, enquanto o arrastaram, e Danny imaginou se o pai, mesmo tão bêbado, sentiria frio. Parecia errado trancá-lo na despensa como um animal selvagem, mas vira o que ele tentou fazer com a mãe. Mesmo quando estava lá em cima, sabia que o pai a fazer isso. Ouvira, em sua cabeça, os dois discutindo.
(Se pelo menos pudéssemos todos sair daqui. Ou se fosse sonho que eu estivesse sonhando em Stovington. Se pelo...
O ferrolho estava preso.
Wendy puxava com toda a força, mas o ferrolho não saía do lugar. Não conseguia deslizar o miserável ferrolho. Isso não
ela o abrira sem problema, quando veio apanhar a lata de sopa. Agora não saía do lugar, e o que faria? Não pon colocá-lo na geladeira; morreria de frio. Mas se o deixasse do lado de fora e ele acordasse.
Jack mexeu-se de novo no chão.
- Cuido disso resmungou. - Compreendo.
- Ele está acordando, mamãe! - avisou Danny.
Soluçando, ela empurrou o ferrolho com as duas mãos.
- Danny? - Havia um tom ameaçador, se bem que vana voz de Jack. - E você, doutor?
- Durma, papai - disse Danny, nervoso. - Já é hora dormir, você sabe.
Olhou para a mãe, ainda fazendo força com o ferrolho, e ou imediatamente o que estava errado. Ela esquecera de girar o ferrolho antes de arrastá-lo. A pequena lingüeta estava presa
Aqui - disse ele, baixinho, afastando as mãos trêmulas da mãe; suas próprias mãos tremiam quase que com a mesma intensidade. Soltou a tranca e a lingüeta deslizou.
Rápido - disse ele. Olhou para baixo. Jack abrira os olhos, e desta vez olhava diretamente para o filho, o olhar vago índagador.
- Você colou - disse o pai. - Sei que colou. Mas está por aqui em algum lugar. E eu vou encontrar. Juro a você. Vou encontrar. . . - Suas palavras não faziam sentido mais uma vez.
Wendy abriu a porta da despensa com o joelho, sem sentir o cheiro forte de fruta seca que pairava no ar. Apanhou novamente os pés de Jack, e arrastou-o para dentro. Ela respirava com muita dificuldade agora, com as forças esgotadas. Enquanto puxava a corrente para acender a luz, os olhos de Jack se abriram novamente.
- O que está fazendo? Wendy, o que está fazendo?
Ela parou a seu lado.
Ele foi rápido; impressionantemente rápido. Uma das mãos caiu, e ela teve que pisar de lado, quase caindo pela porta para evitar que ele a agarrasse. ainda assim, ele conseguiu pegar um pedaço do roupão, e houve o ruído alto de pano se rasgando. Ele estava apoiado nos joelhos e mãos agora, o cabelo caído sobre os olhos, como um animal pesado. Um cachorro grande ou um leão.
- A merda vocês dois. Sei o que querem. Mas não vão conseguir. Este hotel. . . é meu. É a mim que eles querem. A mim! A mim!
A porta, Danny! gritou Wendy. - Feche a porta!
Ele bateu a porta pesada de madeira, exatamente quando Jack pulou. A porta trancou, e jack esmurrou-a inutilmente.
As mãozinhas de Danny buscaram o ferrolho. Wendy estava muito longe para ajudar; a questão de se ficaria preso ou solto seria decidida em dois segundos. Danny soltou o ferrolho, encontrou-o novamente, e o fechou. Houve uma série de murros, quando Jack jogou o ombro contra a porta. O ferrolho de ferro, com um centímetro de diâmetro, não foi abalado. Wendy suspirou lentamente.
- Tirem-me daqui! - gritava Jack. - Deixem-me sair! Danny, ora essa, sou seu pai e quero sair! Faça o que estou mandando!
A mão de Danny moveu-se automaticamente em direção ao ferrolho. Wendy segurou-a, e a apertou contra o peito.
Ouça o que seu pai está dizendo, Danny! Faça o que estou dizendo! Faça, ou vou dar-lhe uma surra que nunca mais vai esquecer. Abra esta porta ou eu esmago seus miolos!
Danny olhou para a mãe, pálido como uma janela de vidro.
Ouviam a respiração de Jack por detrás da pesada porta.
- Wendy, deixe-me sair! Deixe-me sair agora! Sua puta desclassificada! Deixe-me sair! Estou dizendo! Deixe-me sair e eu esqueço tudo! Se não me soltar, acabo com você! Estou dizendo! Acabo com você de tal forma que nem sua mãe vai reconhecê-la, no meio da rua! Agora, abra esta porta!
Danny gemeu. Wendy observouo, e viu que ele iria desmaiar a qualquer momento.
- Venha, doutor - disse ela, surpresa com a calma de sua própria voz. - Não é seu pai, lembre-se. E o hotel.
- Voltem aqui e me soltem AGORA! gritou Jack. Houve arranhões quando Jack atacou a porta com as unhas.
- É o hotel disse Danny. É o hotel. Eu me lembro.
Mas olhou por cima dos ombros com o rosto perplexo e apavorado.
Danny
Eram três horas da tarde de um dia muito longo.
Estavam sentados na cama grande, no quarto. Danny brincava com o Volkswagen violeta com o monstro que saía pela capota.
Ouviam as batidas de Jack na porta se espalhando por todo o saguão, as batidas e a voz rouca e aborrecida como a de um rei derrotado, vomitando promessas de castigo, vomitando palavrões, prometendo aos dois que passariam o resto da vida arrependidos por o terem traído depois de toda uma vida de sacrifícios por eles.
Danny pensou que de cima não pudessem mais ouvir, mas os gritos de raiva passavam pelo pequeno elevador de comida que ligava o quarto e a cozinha. O rosto da mãe estava pálido, e havia terríveis hematomas em seu pescoço, onde o pai tentara...
Virava o carro, vezes seguidas, em suas mãos, o prêmio que o pai lhe dera por ter aprendido as leituras.
(. . .onde papai tentara abraçá-la muito apertado.)
Mamãe pôs uma música no pequeno toca-discos. Sorriu para ele, cansada. O garoto tentou retribuir o sorriso, mas não Conseguiu. Mesmo com a música alta, achou que ainda ouvia o pai gritando e esmurrando a porta como um animal numa jaula do jardim zoológico. E se papai quisesse ir ao banheiro? Como seria?
Danny começou a chorar.
Wendy baixou o volume do toca-discos de uma vez, segurou o filho e o balançou no colo.
- Danny, meu amor, tudo vai terminar bem. Vai, sim. Se o Sr. Hallorann não ouviu sua mensagem, alguma outra pessoa ouvirá. Assim que a tempestade parar. Nevando como está ninguém vai conseguir subir até aqui. O Sr. Hallorann ou qual quer outra pessoa. Mas, quando a tempestade cessar, tudo vai ficar bem. Vamos embora. E sabe o que faremos na primavera? Nós três?
Danny sacudiu a cabeça encostada no peito da mãe. Não sabia. Parecia que nunca mais haveria primavera.
- Vamos pescar. Vamos alugar um barco e vamos pescar, como fizemos o ano passado em Chatterton Lake. Você, eu e papai. E talvez você pegue, uma perca para o jantar. Ou talvez a gente não apanhe nada, mas com certeza iremos nos divertir.
- Gosto muito de você, mamãe - disse Danny, abraçando-a.
- Oh, Danny, eu também gosto muito de você.
Lá fora, o vento assobiava e uivava.
Por volta de quatro e meia, quando o dia começava a morrer, os gritos cessaram.
Os dois cochilaram, inquietos; Wendy, ainda segurando Danny nos braços, não acordou. Mas Danny acordou. Por algum motivo, o silêncio era pior, mais agourento do que os gritos e socos contra a forte porta da despensa. Estaria o pai dormindo? Ou morto? Ou o quê?
(Sera que saiu?)
Quinze minutos depois, o silêncio foi quebrado por um ruído metálico. Houve um rangido forte e, em seguida, um zumbido mecânico. Wendy acordou com um grito.
O elevador funcionava novamente.
Ouviram-no, olhos arregalados, abraçados um ao outro. Passava por cada andar, a grade chocalhando, a porta de aço se abrindo. Havia risos, gritos bêbados, berros esporádicos, e interrupções.
O Overlook renascia em volta deles.
Jack
Ele sentou no chão da despensa com as pernas para a frente, um pacote de biscoito entre elas, olhando para a porta. Comia os biscoitos um por um, sem sentir o sabor, comendo só por comer, Quando saísse dali, iria precisar de muita força. Toda a força.
Nesse exato momento, pensou que nunca se sentira tão miserável em toda a sua vida. A mente e o corpo doíam terrivelmente. A cabeça doía, latejando como se estivesse de ressaca. Os outros sintomas estavam ali também: sentia como se alguém tivesse depositado um ancinho de adubo em sua boca, os ouvidos zumbiam, os ombros doíam por ter-se jogado contra a porta, e a garganta estava sensível por causa dos gritos inúteis. Cortara a mão direita no trinco.
E quando saísse dali, iria dar um jeito em alguém.
Mastigava ruidosamente os biscoitos, um por um, recusando-se a se render a seu pobre estômago, que queria vomitar tudo. Pensou nos Excedrins no bolso, e resolveu esperar até que o estômago se acalmasse um pouco. Não fazia sentido engolir um analgésico, se logo depois iria vomitá-lo. É preciso usar a cabeça. A admirável cabeça de Jack Torrance. Não é você o cara que ia viver de sua capacidade mental? Jack Torrance, o autor best seller. Jack Torrance, aclamado escritor de peças de teatro e ganhador do prêmio do Círculo de Críticos de Nova York. John Torrance, homem de letras, pensador respeitado, ganhador do prêmio Pulitzer, aos setenta, por seu fabuloso livro de memórias, Minha vida no século XX. A lição dessa merda toda era aprender a ser esperto.
Ser esperto é saber sempre onde estão as vespas.
Pôs um outro biscoito na boca, e mastigou.
A coisa recaía, supunha ele, na falta de confiança nele. O fato de não acreditarem que sabia o que era melhor para eles, e como alcançar melhor. A mulher tentara usurpá-lo, primeiramente por meios justos,
(OU quase)
depois injustos. Quando viu suas alegações e reclamações sendo contestadas por seus argumentos sensatos, ela voltou o menino contra ele, tentando matá-lo com uma garrafa, e, em seguida, trancando-o na merda da despensa, em meio a tantos outros lugares.
ainda assim, uma pequena voz interior o importunava.
(Sim, mas de onde veio a bebida? Esse não é na verdade)
o buszilis da questão? Você sabe o que acontece quando bebe você sabe por experiências amargas. Quando bebe, perde a razão.)
Atirou o pacote de biscoitos para o outro lado do pequeno cômodo. Ele bateu numa prateleira de enlatados e caiu no chão Olhou para o pacote, esfregou os lábios com a mão e, em seguida, olhou para o relógio. Eram quase seis e meia. Fazia horas que estava ali. A mulher o trancara ali, e ali ficaria por uma porrada de tempo.
Começava a sentir pena do pai.
O que nunca se perguntou, Jack imaginava agora, era exatamente o que levara o pai a começar a beber. E realmente.
quando se chegava à conclusão daquilo que seus alunos chamavam, satisfeitos, de causa. . não seria por um acaso a mulher com quem se casara? Uma mulher covarde, sempre se arrastando em silêncio pela casa, com uma expressão de mártir no rosto? Uma bola e uma corrente no tornozelo de papai? Não, não era bola, nem corrente. Na realidade nunca tentara fazer de papai um prisioneiro, como Wendy fizera com ele. Para o pai de Jack deve ter sido como o destino de McTeague, o dentista, no fim do grande romance de Frank Norris: algemado a um homem morto no deserto. Sim, como figura era melhor. Mental e espiritualmente morta, a mãe tinha estado algemada ao pai pelo matrimônio. ainda assim, o pai tentara agir com severidade, enquanto arrastava pela vida o cadáver morto. Tentou educar os quatro filhos ensinando-os a distinguir o certo do errado, a entender os princípios de disciplina e, acima de tudo, a respeitar o pai.
Bem, eram uns ingratos, todos, inclusive ele mesmo. E agora pagava o preço; seu próprio filho tornara-se também um ingrato. Mas havia esperança. De alguma forma sairia dali. Puniria os dois, severamente. Daria um exemplo a Danny, de tal forma que, quando estivesse crescido, saberia fazer melhor o que ele próprio havia feito.
Lembrava-se do jantar de domingo, quando, à mesa, o pai agredira a mãe com a bengala. . . como ele e os irmãos se horrorizaram. Agora podia ver como aquilo tinha sido necessario,
como seu pai apenas dissimulava sua embriaguez, como sua lucidez estivera sempre aguçada e viva por trás, todo o tempo, atenta ao menor sinal de desrespeito.
Jack engatinhou atrás dos biscoitos e voltou a comê-los, sentado junto à porta que ela trancara tão traiçoeiramente. ImajflOU exatamente o que o pai vira, e como descobrira o fingiento dela. Estaria ela zombando dele pelas costas? Pondo a língua para fora? Fazendo gestos obscenos com o dedo? Ou
Isimplesmente olhando-o insolente e arrogantemente, convencida de que ele estava muito bêbado para ver? Fosse o que fosse,
apanharaa, e a punira severamente. E agora, vinte anos depois, podia finalmente contemplar a sabedoria do pai.
Claro que você irá dizer que o pai tinha sido um bobo por ter-se casado com uma mulher assim, por ter-se deixado algemar a um cadáver em primeiro lugar. . . e um cadáver desrespeitoso. Mas, quando os jovens se casam precipitadamente, só lhes resta o arrependimento, e talvez o pai de papai se tivesse casado com o mesmo tipo de mulher, com quem o filho e o neto inconscientemente se casaram. Mas sua mulher, ao invés de se sentir satisfeita com o fato de já ter arruinado uma carreira e mutilado outra, optara pela tarefa ativa e venenosa de tentar destruir sua última e melhor oportunidade: tornar-se um membro do pessoal do Overlook, e possivelmente subir. . . até a posição de gerente. Negava-lhe Danny, e Danny era seu passe de admissão. Isso era tolice, naturalmente - por que iriam querer o filho, quando podiam ter o pai? --, mas os patrões sempre têm idéias tolas, e essa era a condição.
Não poderia argumentar com ela, percebia agora. Tentara isso no Salão Colorado, e ela se recusara a ouvir, agredira-o na cabeça com uma garrafa como recompensa por seu esforço. Ela não perderia por esperar. Ele sairia dali.
De repente, prendeu a respiração e levantou a cabeça. Um piano tocava um boogie-woogie em algum lugar, e as pessoas riam e batiam palmas. O som era amortecido pela porta de madeira, mas mesmo assim podia ouvir. A música era There’ll be a boi time iv the old town tonight.
Cerrou os punhos; tinha que se conter para não arrebentar a porta. A festa recomeçara. A bebida rolaria de graça. Em algum lugar, dançando com outra pessoa, estaria a moça que sentira tão loucamente nua sob o vestido branco de cetim.
Pagarão por isso! - berrou. - A merda vocês dois, Pagarão! Tomarão seu maldito remédio por isto, juro! Vocês.
- Aqui, aqui, agora - uma voz meiga falou por detrás da porta. - Não precisa gritar, amigo. Estou ouvindo bem.
Jack pôs-se de pé.
Grady? É você?
- Sim, senhor. Sou eu mesmo. Parece que o senhor está trancado.
- Deixe-me sair, Grady. Depressa.
- Vejo que não conseguiu dar conta do assunto que discutimos, senhor, O castigo para sua mulher e seu filho.
Foram eles que me trancaram aqui. Puxe o ferrolho, pelo amor de Deus!
- Deixou que eles o trancassem aí? - A voz de Grady denotava surpresa. - Oh, meu caro. Uma mulher com metade do seu tamanho e um menininho? isso dificilmente faz do senhor um bom candidato para essa alta posição.
O sangue começou a ferver nas veias de Jack.
- Deixe-me sair, Grady. Cuidarei deles.
- Cuidará mesmo, senhor? Imagino. - A surpresa transformou-se em pesar. - Lamento dizer que duvido muito. Eu... e os demais. . . realmente chegamos à conclusão de que seu coração não está nisto, senhor. Que o senhor não tem. . . estômago para isto.
- Eu tenho - gritou Jack. Juro.
- Traria seu filho para nós?
Sim! Sim!
- Sua mulher protestaria veementemente, Sr. Torrance. E ela aparenta ser. . . de alguma forma mais forte do que imaginávamos. De alguma forma, mais desembaraçada. Com toda a certeza, parece ter levado a melhor sobre o senhor.
Grady riu à socapa.
- Talvez, Sr. Torrance, devêssemos ter tratado tudo com ela.
- Eu o trarei, juro disse Jack. O rosto estava bem junto à porta agora. Suava. - Ela não objetará. Juro que não. Não poderá.
Temo que seja preciso matá-la - disse Grady, friamente.
- Farei o que for preciso. Simplesmente deixe-me sair. Dá a sua palavra, senhor? - insistiu Grady.
- Minha palavra, meu compromisso, minha promessa solene, o que diabo quiser. Se você.
Houve um estalo surdo do ferrolho sendo puxado. A porta abriu-se meio centímetro. A respiração e as palavras de Jack cessaram. Por um momento, sentiu que a morte estava ali fora daquela porta.
A sensação passou.
- Obrigado, Grady - murmurou. Juro que não irá arrepender-se. Juro que não.
Não houve resposta. Percebeu que todos os ruídos haviam cessado, a não ser o vento que uivava lá fora.
Abriu a porta da despensa; as dobradiças rangeram um pouco.
A cozinha estava vazia. Grady desaparecera. Tudo estava parado e congelado sob o brilho das lâmpadas fluorescentes. Seus olhos bateram no balcão de cortar carne, onde os três tomavam as refeições.
Ali em cima, havia um copo de martíni, uma dose de gim, e um prato plástico com azeitonas.
Encostado ali, um dos tacos de roque do depósito.
Olhou-o por muito tempo.
Então uma voz, mais grossa e muito mais poderosa do que a de Grady, falou de algum lugar, de todo lugar. . . de dentro dele.
(Cumpra a promessa, Sr. Torrance.)
- Cumprirei - disse, Sentiu a bajulação e a subserviência na própria voz, mas não conseguia controlá-la. - Cumprirei.
Caminhou até o balcão e segurou o cabo do taco.
Levantou-o.
Sacudiu-o.
O taco assobiou maliciosamente no ar.
Jack Torrance começou a sorrir.
Hallorann sobe a montanha
Faltavam quinze para as duas da tarde, e, de acordo com o odômetro do Buick da Hertz, estava a menos de cinco quilômetros de Estes Park, quando finalmente saiu da estrada.
Nas colinas a neve caía mais rápido e com uma fúria que Hallorann nunca vira (o que não era, talvez, de se estranhar, pois ele sempre fizera tudo para ver o menos possível de neve em sua vida), e o vento soprava forte - ora do oeste, ora do norte, trazendo nuvens de neve a seu campo visual, fazendo-o ver, em cada curva malfeita, que poderia ser arrastado a sessenta metros abaixo da estrada, o Electra rolando pela riban ceira. Para piorar ainda mais a situação, havia o fato de ser um inexperiente motorista de inverno. Apavorava-o ter a faixa amarela enterrada sob a neve, e o apavorava quando as rajadas de vento vinham livres pelos desfiladeiros, e faziam o pesado Buick derrapar. Apavorava-o ver que as placas da estrada estavam quase mascaradas de neve, e que era preciso adivinhar se a estrada dobraria para a esquerda ou para a direita naquela tela branca por onde passava. Sentia medo. Suava frio desde o iníCio da subida de Boulder e Lyons, manobrando o acelerador e o freio, como se fossem porcelana chinesa. Entre músicas de rock and roli no rádio, o locutor constantemente implorava que os motoristas se mantivessem afastados das estradas principais, e em hipótese alguma subissem as serras, pois muitas estradas estavam intransponíveis e todas eram perigosas. Grande número de pequenos acidentes foram noticiados, e dois graves: um grupo de esquiadores num microônibus e a família que seguia para Albuquerque pelas montanhas de Sangue de Cristo. O resultado dos dois acidentes foram quatro mortos e cinco feridos. “Portanto, fiquem longe das estradas e ouçam a boa música da sua KTLK”, concluiu alegre o locutor, aumentando então a tristeza de Hallorann quando tocou Seasons iv the sun. “Tivemos alegria, nos divertimos, tivemos Terry Jacks zombava feliz, e Hallorann desligou o rádio com raiva, sabendo que o ligaria novamente em cinco minutos. Não importava que fosse ruim, de qualquer forma era melhor do que dirigir sozinho por este manicômio branco.
(Admita. Este neguinho é covarde não é pouco!)
Não tinha graça nenhuma. Teria voltado antes de chegar a Boulder, se não fosse pela convicção de que o menino estava com um terrível problema. Mesmo agora, uma vozinha no fundo do crânio - vinda da razão, mais do que da covardia - dizia-lhe que pernoitasse no motel de Estes Park, e esperasse as máquinas de limpeza para, pelo menos, poder ver as faixas novamente. Aquela voz lembrava-o da aterrissagem do jato em Stapleton, da sensação de afogamento, quando imaginou que O avião pudesse descer em pane, despejando os passageiros nos portões do inferno, e não no portão 39, pátio B. Mas a razão não se sobreporia à compulsão. Tinha que ser hoje. A tempestade era falta de sorte sua. Teria que agüentá-la. Temia que, se não agüentasse, teria algo bem pior contra o que lutar em seus sonhos.
O vento soprava novamente, desta vez vindo de nordeste, e mais uma vez não podia distinguir as colinas das barreiras de cada lado da estrada. Dirigia através do nada.
E então as lâmpadas altas de sódio da máquina de limpar neve apareceram em meio à garoa, de repente, e, para seu pavor, notou que, ao invés de estar ao lado, a frente do Buick estava voltada diretamente para aquelas lâmpadas. A máquina não se estava importando muito em se manter em sua faixa, e Hallorann deixou o Buick deslizar.
O ronco do motor diesel da máquina penetrava pelo assobio do vento, e houve então o barulho forte, longo, quase ensurdecedor, da buzina.
Os testículos de Hallorann tornaram-se dois pequenos sacos amassados cheios de gelo raspado. Suas entranhas pareciam ter-se transformado em massa de modelar.
A cor se materializava fora do branco, a neve ficou alaranjada. Via a cabine alta, a figura do motorista gesticulando por trás do limpador de pára-brisa. Via as lâminas limpadoras formando uma asa em V cuspindo mais neve para a barreira à esquerda da estrada como um tubo de descarga branco e esfumaçado.
UAAAAAAAAA! gritou a buzina, indignada.
Apertou o acelerador como se fosse o peito da mulher amada, e o Buick fugiu para a direita. Não havia barreira ali. A máquina limpava a neve atirando-a pela ribanceira.
(A ribanceira, ah sim, a ribanceira. .
As lâminas à esquerda de Hallorann, a mais de um metro acima do teto do Electra. Hallorann achou, a princípio, que o acidente fosse inevitável. Uma oração, que foi quase uma apologia inarticulada ao menino, passou rapidamente por sua cabeça como um pano rasgado.
A máquina passou, as lâmpadas azuis cintilavam no espelho retrovisor de Hallorann.
Jogou o volante do Buick de volta para a esquerda, mas nada aconteceu. Deslizou, e o Buick escorregou em direção à ribanceira, espirrando neve pelos pára-lamas.
Girou o volante na direção do deslizamento, e dianteira e traseira do carro inverteram posições. Apavorado, agora, apertou o freio com força e sentiu então uma batida forte. Diante dele
a estrada desaparecera. . . olhava para um abismo de neve, e pinheiros verde-acinzentados lá embaixo bem longe. (Vou minha Nossa Senhora vou despencar)
E foi então que o carro parou, inclinado num ângulo de trinta graus, o pára-choque esquerdo amassado na cerca de segurança, as rodas de trás quase para fora da estrada. Hallorann tentou a ré, as rodas giravam sem sair do lugar. O coração batia forte.
Desceu - com muito cuidado desceu - e deu a volta até a traseira do Buick.
Estava ali parado, olhando as rodas traseiras, quando uma voz alegre disse por trás dele:
Oi, cara. Você deve ter ficado maluco.
Voltou-se e viu a máquina a quarenta metros abaixo na estrada, escondida na neve que soprava, deixando aparecer somente a linha escura do tubo de descarga, e as luzes azuis no topo, O motorista estava bem atrás dele, vestido com um casacão comprido de pele de carneiro e uma capa impermeável por cima. Um capacete azul de engenheiro enfiado na cabeça, e Hallorann quase não acreditava que o capacete pudesse estar firme com todo este vento.
(Visão. Só pode ser visão, meu Deus.)
Oi - respondeu. - Pode ajudar-me a empurrar?
- Acho que sim - falou o motorista da máquina de limpar neve. - Que diabo o senhor está fazendo aqui por cima? Boa forma de se arrebentar todo.
- Negócio urgente.
- Nada é tão urgente - disse o motorista devagar e gentil, como se estivesse falando com um retardado mental. - Se se tivesse jogado por cima daquele poste, com um pouco mais de força, só iriam encontrá-lo no dia 1º de abril. Não é daqui, é?
Não. E não estaria aqui, se o negócio não fosse tão urgente como eu disse.
- E assim? - O motorista mudou de posição, como se estivessem batendo um papo no quintal de casa, ao invés de estarem parados, em meio a uma tempestade, entre a cruz e a caldeirinha, com o carro de Hallorann equilibrado a cem metros acima das árvores lá embaixo.
- Para onde vai? Estes?
- Não, um lugar chamado Hotel Overlook - respondeu flalloran1. - Um pouco mais acima de Sidewinder,
O motorista sacudiu a cabeça tristemente.
- Acho que sei bem onde é. O senhor nunca vai conseguir chegar até o Overlook. As estradas entre Estes Park e Sídewinder estão todas um inferno. Mal tiro a neve, aparece mais. Passei agorinha mesmo por um monte que tinha quase dois metros. E se conseguir chegar a Sidewinder, então, a estrada de lá para Buckland, Utah, está fechada. Não. - Meneou a cabeça. - Jamais vai conseguir, senhor. Nunca.
- Tenho que tentar - disse Hallorann, recorrendo às últimas reservas de paciência para manter a voz calma. - Há um menino lá em cima.
- Menino? Não. O Overlook fecha no fim de setembro. Não pode ficar mais tempo aberto. Há muita tempestade como esta.
- Ele é o filho do zelador. Está metido numa encrenca.
- Como sabe?
Sua paciência acabou.
- Pelo amor de Deus, vai ficar aí parado conversando fiado o dia todo? Eu sei, eu sei! Vai ajudar-me a empurrar, ou não?
- Está nervoso, não está? -. observou o motorista, sem se perturbar. - Claro, entre. Tenho uma corrente atrás do banco.
Hallorann voltou ao volante, começando a tremer fortemente. Suas mãos estavam paralisadas. Esquecera-se de trazer luvas.
A máquina colocou-se atrás do Buick, e ele viu o motorista sair com uma corrente comprida. Hallorann abriu a porta e gritou:
- O que posso fazer para ajudar?
Fique fora do caminho, só isso. Faço isto num piscar de olhos.
O que era verdade. O Buick sacudiu quando a corrente o arrastou, e um segundo depois, estava na estrada, mais ou menos voltado para Estes Park. O motorista foi até a janela e bateu no vidro. Hallorann abriu-a.
- Obrigado - disse ele. - Desculpe ter gritado com VOCê.
Já gritaram comigo antes - disse o motorista, sorrindo. - Acho que está um pouco nervoso. Tome. - Um par de luvas azuis, grandes, caiu no colo de Hallorann. - Vai precisar delas quando sair fora da estrada novamente, acho. Está frio. Use as luvas, a não ser que queira passar o resto da vida limpando o nariz com uma agulha de croché. E devolva. Foi minha mulher que fez, e tenho um carinho especial’ por elas, o nome e o endereço estão costurados no forro. Por falar nisso sou Howard Cottrell. Devolva quando não precisar mais delas’ E com frete pago, se não se importar.
- Está bem - disse Hallorann. - Obrigado. Obrigado mesmo.
Tome cuidado. Eu o levaria, mas estou mais enrolado do que linha em carretel.
- Não faz mal. Obrigado mais uma vez.
Começou a fechar a janela, mas Cottrell o impediu.
- Quando chegar a Sidewinder, se chegar, vá ao Durkjn’s Conoco. Fica do lado da biblioteca. Bem à vista. Pergunte por Larry Durkin. Diga que Howie Cottrell o mandou, e que quer alugar um snowmobile. Diga meu nome e mostre as luvas, vai ter um abatimento no preço.
- Mais uma vez, obrigado - falou Hallorann.
Cottrell meneou a cabeça.
- Engraçado. Não sei como conseguiu saber que alguém está encrencado lá em cima no Overlook. . . o telefone não funciona, tenho certeza absoluta. Mas acredito em você. Tenho um sexto sentido.
Hallorann balançou a cabeça.
- Eu também tenho.
- Sim, sei que tem. Mas tome cuidado.
- Fique tranqüilo.
Cottrell desapareceu na névoa com um aceno de despedida, o capacete ainda enfiado na cabeça. Hallorann prosseguiu viagem, as correntes açoitando a neve na estrada, finalmente cavando o suficiente para o Buick andar, Atrás dele, Howard Cottrell fez, com a buzina, um sinal de boa sorte, apesar de totalmente desnecessário; Hallorann podia senti-lo desejando-lhe boa sorte.
Dois iluminados num mesmo dia, pensou, e isso tem que ser uma espécie de presságio. Mas não acreditava em presságios, fossem bons ou maus. E o fato de encontrar-se com dois ilumi nados no mesmo dia (quando geralmente não se deparava com mais de quatro ou cinco ao longo de um ano) talvez não significasse nada. Uma sensação de determinação, uma sensação
(como se as coisas estivessem caminhando bem)
que não podia definir muito bem, ainda o acompanhava.
Era...
O Buick quis derrapar numa curva fechada, e Hallorann ‘ manobrou-o com cuidado, sem se atrever a respirar. Ligou o
rádio novamente, e ali estava Aretha, e sendo Aretha as coisas estavam bem. Qualquer dia desses repartiria com ela seu Buick da Hertz.
Uma outra lufada de vento atingiu o carro, fazendo-o balançar e deslizar. Hallorann controlou-o e chegou mais perto do volante. Aretha terminou a música e o locutor entrou no ar novamente, dizendo que dirigir hoje era uma boa maneira de se matar.
Hallorann desligou o rádio.
Conseguiu chegar a Sidewínder, apesar de ter fícado quatro horas e meia na estrada depoís de Estes Park. Quando chegou à estrada de subida da serra já estava escuro, mas a tem‘ pestade de neve não apresentava sinais de arrefecimento. Por duas vezes precisou parar diante de montes que eram tão altos quanto o carro, e esperar as máquinas passarem para derrubálos. Perto de um dos montes, a máquina aparecera na contramão e, mais uma vez, quase-quase. O motorista simplesmente deu uma guinada, sem sair para conversar fiado, mas mostrou o gesto com os dois dedos, que qualquer um acima de dez anos
conhece, e que não era o sinal de paz.
Parecia que quanto mais se aproximava do Overlook, maior era a compulsão de correr. Via-se olhando o relógio de pulso quase constantemente. As mãos pareciam estar voando.
Dez minutos depois de ter começado a subida, passou por duas placas. O vento limpara a neve das duas e ele pôde então ler o que estava escrito nelas. “Sidewinder 16 km”, dizia a Primeira. A segunda: “Estrada fechada 20 km adiante durante os meses de inverno”.
Larry Durkin - murmurou Hallorann consigo mesmo. Seu rosto estava cansado e tenso sob o brilho verde dos mostradores do painel. Eram seis e dez. - Conoco, ao lado da biblioteca. Larry.
E foi quando o cheiro de laranja atingiu-o com força total, com ira assassina:
(SAlA DAQUI SEU NEGRO SUJO NÃO SE META SEU NEGRO VOLTE VOLTE OU O MATAREMOS O ENFORCAREMOS NUMA ÁRVORE SEU MALDITO NEGRO E DEPOIS QUEIMAREMOS SEU CORPO É ISSO QUE FAZEMOS COM NEGROS POR ISSO VOLTE IMEDIATAMENTE)
Hallorann gritou no confinamento do carro. A mensagem não lhe chegou em palavras, mas numa série de logogrifos registrados com gravuras, que eram jogados em sua cabeça com força incrível. Tirou as mãos do volante para afastar as imagens. Em seguida, o carro bateu em uma barreira, derrapou e parou. As rodas traseiras giravam.
Hallorann colocou o carro em ponto morto, e cobriu o rosto com as mãos. Na realidade não chorou; só deixou escapar alguns poucos soluços. O peito ofegava. Sabia que, se aquele raio o tivesse atingido no meio de um trecho sem barreiras, estaria morto agora. Talvez fosse esse o intuito. E poderia atingi-lo novamente, a qualquer hora. Teria que se proteger contra isso. Estava cercado por uma imensa força vermelha de grande poder que podia advir da memória. Ele era puro instinto.
Tirou as mãos do rosto, e abriu os olhos com cuidado. Nada. Se havia mais alguma coisa que tentava amedrontá-lo, não estava conseguindo. Ele estava fechado.
Acontecera isso com o menino? Santo Deus, acontecera isso com o menininho?
E de todas as imagens, a que mais o incomodava era o ruído de uma surra grande, como um malho batendo num pedaço grosso de queijo. O que significaria isso?
(Deus, aquele menininho não. Deus, por favor.)
Engatou o carro, e acelerou um pouco. As rodas giravam, prendiam-se, giravam e prendiam-se novamente, O Buick começou a correr, os faróis cortando muito fracamente a neve. Olhou o relógio. Quase seis e meia. E começava a sentir que já era tarde demais.
“Redrum”
Wendy Torrance estava indecisa, parada no meio do quarto, olhando o filho, que adormecera.
Fazia meia hora que o barulho cessara. Todos os barulhos de uma vez. O elevador, a festa, as portas que abriam e fechavam. Ao invés de acalmá-la, o silêncio aumentava a tensão que crescia dentro dela; toda calmaria é sinal de tempestade. Mas Danny adormecera; a princípio um sono leve, depois, agitado, e finalmente, dez minutos depois, um sono mais pesado. Mesmo olhando fixamente para ele, dificilmente percebia o movimento do tórax estreito.
Imaginou qual teria sido a última vez que ele dormira a noite inteira, sem pesadelos, ou longos períodos de insônia, ouvindo festins, que só se tinham tornado audíveis - e visíveis - para ela, nos últimos dias, quando o cerco de Overlook em torno dos três apertou.
(Verdadeiros fenómenos psíquicos, ou hipnose coletiva?)
Ela não sabia, e não achava que fosse importante. O que estava acontecendo era horrível em todos os sentidos. Olhou para Danny e pensou
(Que Deus o guarde)
que, não sendo perturbado, poderia dormir o resto da noite. Qualquer que fosse seu talento, ele ainda era um menino pequeno, e precisava descansar.
Era com Jack que começava a se preocupar.
Fez uma careta de dor, tirou a mão da boca, e viu que quebrara uma unha. E suas unhas eram uma coisa que ela sempre tentara manter bonitas. Não eram tão longas para serem chamadas de garras, mas tinham um belo formato e
(e por que está se preocupando com as unhas?)
Riu um pouco, mas o riso era um ruído trêmulo, sem alegria.
Primeiro Jack parara de vociferar e bater na porta. Depois a festa recomeçara,
(por um acaso parara alguma vez? teriam cuidado para que, às vezes, os ruídos não fossem ouvidos?)
acompanhada dos ruídos do elevador. Depois, tudo acabara. Nesse novo silêncio, enquanto Danny dormia, imaginou ouvir vozes baixas, em tom de conspiração, vindas da cozinha, quase que exatamente embaixo do quarto. A princípio, afastara
o pensamento imaginando que fosse o vento, que era capaz de Imitar muitos sons da voz humana, desde um sussurro em volta das portas e janelas, até um grito na beira dos telhados. . . o som de uma mulher fugindo de um assassino num melodrama barato Ainda assim, sentada imóvel ao lado de Danny, a idéia de que eram realmente vozes tornou-se cada vez mais forte,
Jack e mais alguém, discutindo sua fuga da despensa, Discutindo o assassinato da mulher e do fílho.
Não seria nenhuma novidade dentro dessas paredes; assas sinatos já tinham ocorrido ali antes.
Foi até o aquecedor e encostou o ouvido ali, mas naquele exato momento a fornalha começou a funcionar, os ruídos se perdiam no ar quente que subia do porão. Quando a fornalha desligara novamente, há cinco minutos, o lugar estava totalmente em silêncio, e só o vento soprava.. a neve batia no prédio, e uma tábua rangia.
Olhou para a unha quebrada. Pequenas gotas de sangue brotavam por baixo.
(Jack saiu.)
(Não diga besteira.)
(Sim, ele saiu. Está com uma faca de cozinha ou talvez um cutelo de açougueiro. Está subindo para cá agora, pisando junto ao corrimão para os degraus não estalarem.)
(! Você está louca!)
Seus lábios tremiam, e por um momento pensou que tivesse falado em voz alta. Mas o silêncio continuava.
Sentiu-se sendo observada.
Virou-se de costas e olhou para a janela, e um rosto branco horrendo, com círculos escuros no lugar de olhos, a observava, o rosto de um monstro lunático que se escondera nestas paredes durante todo o tempo.
Era só uma figura de gelo do lado de fora do vidro.
Respirou fundo com medo, e lhe pareceu ouvir, muito nitidamente desta vez, risadinhas alegres vindas de algum lugar.
(Está com medo até de sua sombra. Já é ruim o bastante sem isso. Amanhã de manhã, estará pronta para o manicômio)
Havia só um modo de apaziguar esses medos, e ela sabia qual era.
Teria que descer e se certificar de que Jack ainda estava na despensa.
Muito simples. Descer. Verificar. Voltar. Oh, no caminho, parar e pegar a bandeja no balcão da recepção. A omelete não prestaria mais, mas a sopa poderia ser requentada no fogareiro junto à máquina de escrever de Jack.
(Oh sim e não morrer se ele estiver lá embaixo com uma faca.)
Foi à penteadeira, tentando sacudir o manto de medo que a envolvia. Espalhados sobre a penteadeira estavam uma pilha de moedas, uma de cupons de gasolina para o caminhão do hotel, dois cachimbos que Jack levava com ele para toda parte, mas que raramente usava... e o chaveiro dele.
Apanhou-o, segurou-o por um momento, e colocou-o de volta na penteadeira. A idéia de trancar a porta do quarto ocorreu-lhe, mas simplesmente não lhe agradou. Danny dormia. Vagos pensamentos passaram por sua mente, e algo batia mais forte, mas ela deixou passar.
Wendy atravessou o quarto, parou, indecisa, junto à porta por um momento, pegou a faca do bolso do roupão e segurou o cabo de madeira.
Abriu a porta.
O corredor pequeno estava vazio. As tochas elétricas todas brilhavam, mostrando o fundo azul e sinuoso da tecelagem.
(Está vendo? Por aqui, nenhum fantasma.)
(Não, claro que não. Querem eliminá-la. Querem que você faça algo ídiota e pueril, e é exatamente isso o que você está fazendo.)
Hesitou mais uma vez, miseravelmente presa, sem querer deixar Danny e a segurança do apartamento, e ao mesmo tempo precisando desesperadamente certificar-se de que Jack ainda estava. . seguramente isolado.
(Claro que está.)
(Mas as vozes)
(Não havia vozes. Foi sua imaginação. Foi o vento.)
Não foi o vento.
O som de sua própria voz assustou-a. Mas sua convicção fez com que prosseguisse. A faca balançava, refletindo luz no papel de parede de seda. Os chinelos sussurravam no pêlo do tapete. Os nervos à flor da pele.
Chegou ao corredor principal e espreitou, a mente preparada para o que pudesse ver ali.
Não havia nada para ver.
Depois de um momento de hesitação, começou a caminhar pelo corredor principal. Cada passo à frente, em direção à escada cheia de sombras, aumentava seu pavor, e a fazia consciente de que estava deixando o filho adormecido para trás, sozinho e desprotegido. O ruído dos chinelos no tapete parecia cada vez mais alto em seus ouvidos; por duas vezes olhou para trás para se convencer de que ninguém a seguia.
Chegou à escada e pôs a mão no pilar frio no topo do corrimão. Havia dezenove largos degraus até o saguão. Já os contara tantas vezes, que sabia de cor. Dezenove degraus atapetados e ninguém espreitando. Claro que não. Jack estava trancado na despensa, por trás de um ferrolho forte de aço e uma porta grossa de madeira.
Mas o saguão estava escuro, e cheio de sombras.
O coração batia forte na garganta.
Adiante, um pouco para a esquerda; o elevador aberto zombeteiro, convidando-a a entrar e fazer o passeio mais maravilhoso de sua vida.
(Não, obrigada)
O interior tinha sido revestido de serpentina rosa e branca de crepe. Confetes saindo das línguas-de-sogra. No canto direito, ao fundo, havia uma garrafa de champanha vazia.
Sentiu movimento atrás e se voltou para olhar para cima dos dezenove degraus que levavam ao segundo andar, e não viu nada; ainda assim tinha uma estranha sensação de que as coisas
(coisas)
saltaram para trás na mais profunda escuridão do corredor lá em cima, antes que seus olhos pudessem registrá-las.
Olhou os degraus novamente.
Sua mão direita suava no cabo de madeira da faca; passou-a para a esquerda, enxugou a palma direita no robe de veludo cor-de-rosa, e voltou a faca para a direita. Quase sem saber que sua mente comandava o corpo, impulsionando-o para a frente, começou a descer, a mão vazia escorregando pelo corrimão.
(Onde é a festa? Não se assustem, bando de sacanas! Não temam uma mulher apavorada com uma faca! Vamos ouvir um pouco de música! Um pouco de ânimo!)
Dez degraus, doze, treze.
A luz do corredor, do primeiro andar, era muito fraca aqui, e se lembrou de que teria que acender as luzes do saguão, ao lado da entrada para o restaurante, ou dentro do escritório da gerência.
Mas havia luz vinda de algum outro lugar, branca e silenciosa. As lâmpadas fluorescentes, claro. Na cozinha.
Parou no décimo terceiro degrau, tentando lembrar-se se as apagara ou deixara acesas quando ela e Danny saíram. Simplesmente não se lembrava.
Abaixo dela, no saguão, as cadeiras de espaldar alto estavam ocupadas pelas sombras. O vidro nas portas do saguão era branco, coberto por uma cortina de neve uniforme. Tachas de metal, nos sofás, brilhavam como olhos de gato. Havia uma centena de esconderijos.
Suas pernas estavam duras de medo, e ela continuou a descer.
Dezessete, dezoito, dezenove.
(Térreo, madame. Saia com cuidado.)
As portas do salão de baile estavam abertas, e só a escuridão saía de lá. De dentro, vinha um tique-taque constante, como o de uma bomba. Ficou imóvel, depois lembrou-se do relógio sobre a lareira, e sob a redoma de vidro. Jack ou Danny devem ter dado corda nele. . . ou talvez ele mesmo se dera corda, como tudo no Overlook.
Voltou-se para o balcão de recepção, querendo passar pelo portãozinho, ir à gerência, e chegar à cozinha. Brilhando, a bandeja de lanche.
Então, o relógio começou a bater, tinindo pequenas notas musicais.
Wendy ficou imóvel, a língua levantada no céu da boca. Em seguida, relaxou. Batia oito horas, só. Oito horas, cinco, seis, sete.
Contava as batidas. De repente, pareceu errado mexer-se antes de o relógio parar.
.oito. . . nove.
(?? Nove??)
dez. . . onze..
De repente, ocorreu-lhe. Voltou-se, sem graça, para a escada, já sabendo que era tarde demais. Mas como poderia saber?
Doze.
As luzes do salão de baile acenderam. Houve um imenso floreio de metais. Wendy deu um grito alto, insignificante diante do clangor dos metais.
- Retirem as máscaras! ecoou o grito. - Retirem as máscaras! Retirem as máscaras!
Em seguida sumiram, como se tivessem entrado por um longo túnel do tempo, deixando-a mais uma vez sozinha.
Não, sozinha, não.
Virou-se e ele caminhava em sua direção.
Era Jack, e ao mesmo tempo não era Jack. Seus olhos refletiam um brilho vago e assassino; a boca familiar esboçava um sorriso trêmulo e triste.
Trazia o taco de roque em uma das mãos.
- Pensou que me tivesse trancado? Foi isso que pensou?
O taco assobiou no ar. Ela deu um passo atrás, tropeçou num capacho, e caiu no tapete do saguão.
Jack...
- Sua miserável - murmurou ele. Sei o que você é.
O taco caiu assobiando, com enorme velocidade, sobre o estômago macio de Wendy. Ela gritou, submersa, de repente num oceano de dor. Muito vagarosamente ela viu o taco ricochetear. Viu paralisada que ele pretendia agredí-la até a morte com o taco que segurava nas mãos.
Tentou gritar mais uma vez, implorar-lhe que parasse pelo amor de Danny, mas não tinha fôlego. Só conseguia esboçar um soluço fraco, que dificilmente se assemelhava a qualquer som.
- Ora. Ora, por Deus - falou ele, sorrindo. Chutou o capacho para fora de seu caminho. - Acho que agora você vai tomar seu remédio.
O taco desceu, Wendy rolou para a esquerda, o roupão enrolado nos joelhos. O taco soltou-se das mãos de Jack, e caiu no chão. Ele teve que se curvar para apanhá-lo, e enquanto se abaixava, ela correu para a escada, recuperando finalmente o fôlego. Seu estômago era um hematoma latejando de dor.
- Miserável - disse ele entre dentes, e começou a correr atrás dela. - Sua miserável, acho que vou dar-lhe aquilo que merece. Acho mesmo.
Ela ouviu o taco assobiar no ar, e então uma dor imensa tomou conta do seu lado direito, quando o taco atingiu-a abaixo do busto, quebrando duas costelas. Caiu nos degraus, e uma nova agonia tomou conta dela, quando encostou no lado ferido. Mas o instinto a fez rolar, rolar fugindo do taco que zuniu ao lado de seu rosto, não o atingindo por um triz. Atingiu o tapete grosso da escada com uma pancada amortecida. Foi quando ela viu a faca, que caíra de sua mão com a queda. Estava no quarto degrau, brilhando.
- Miserável - repetiu Jack. O taco desceu. Ela deu um impulso para cima, e o taco atingiu-a bem abaixo da rótula. De repente sua perna ardia. Sangue começou a jorrar da barriga da perna. E, em seguida, o taco baixava novamente. Sacudiu a
perna, afastando-se dele, e o taco atingiu o degrau no espaço entre o pescoço e o ombro, esfolando-lhe a orelha.
Ele baixou o taco novamente, e desta vez ela rolou em sua direção, escada abaíxo, dentro de seu alcance. Um grito escapou-lhe quando suas costelas bateram nos degraus. Empurrou as pernas dele com o peso de seu corpo, fazendo-o cair de costas, gritando de raiva e surpresa, sacudindo os pés, tentando colocá-los no degrau. Em seguida, ele bateu no chão, o taco voando de sua mão. Sentou-se, olhando para ela por um momento com os olhos assustados.
Vou matá-la por isso - falou Jack.
Rolou e esticou o braço para apanhar o taco, Wendy tentou pôr-se de pé. A dor ia da perna ao quadril. O rosto estava pálido, mas ela encontrava-se lúcida. Pulou por cima das costas de Jack, cujas mãos se fechavam no cabo do taco de roque.
- Santo Deus! - gritou ela para o saguão do Overlook cheio de sombras, e enterrou a faca de cozinha nas costas do marido, até o cabo,
Jack ficou imóvel debaixo dela e depois gritou. Nunca ouvira um som mais pavoroso em toda a sua vida; era como se todos os quadros, janelas e portas do hotel tivessem gritado. Parecia prosseguir, enquanto ele continuava duro como um pedaço de pau sob o peso dela. Eram como um arremedo de cavalo e cavaleiro. A única diferença era que as costas da camisa xadrez vermelha e preta ficavam cada vez mais escuras, encharcadas de sangue.
Depois ele tombou, derrubando-a, fazendo-a gemer.
Ela se deítou, respirando com força durante algum tempo, sem poder mover-se. Ela era dor dos pés à cabeça. Em cada inspiração, alguma coisa a espetava, e o pescoço estava molhado de sangue por causa da orelha esfolada.
Os únicos ruídos eram os de sua luta em respirar, do vento e do tique-taque do relógio no salão de baile.
Finalmente, forçou-se para se pôr de pé e caminhou mancando até a escada. Ao alcançá-la, apoiou-se no corrimão e baixou a cabeça, sentindo-se fraca. Quando se achou melhor, começou a subir, apoiando-se na perna sadia, e puxando o corpo com os braços no corrimão. Olhou uma vez para cima, esperando ver Danny, mas a escada estava vazia.
(Graças a Deus ele ficou dormindo graças a Deus graças a Deus)
Depois de subir seis degraus, precisou descansar, cabeça baixa, o cabelo louro caindo sobre o corrimão. O ar assobiava dolorosamente pela garganta, como se tivesse criado espinhos. Seu lado direito era uma massa inchada e quente.
(Vamos Wendy vamos moça tranque-se por trás de uma porta e veja que não foram só estes os estragos. Quando chegar lá em cima no corredor pode rastejar. Eu lhe dou permissão)
Inspirou a quantidade de ar que suas costelas quebradas permitiram, e aos poucos foi subindo.
Quando estava no nono degrau, quase na metade do caminho, a voz de Jack chegou-lhe aos ouvidos. Ele dizia grosso:
Sua miserável. Você me matou.
O pavor tão negro como a noite tomou conta dela. Olhou para trás e viu Jack se levantando devagar.
A cabeça dele estava caída, e ela viu o cabo da faca, Os olhos de Jack pareciam contraídos, quase perdidos, as pálpebras caídas, Segurava sem força o taco na mão esquerda. A ponta estava ensangüentada. Um pedaço do robe de veludo cor-de-rosa colado quase no centro.
- Vou dar-lhe seu remédio murmurou ele, e começou a cambalear em direção à escada.
Tremendo de medo, ela voltou a se impulsionar para cima. Dez degraus, doze, treze. Mas o corredor do primeiro andar parecia-lhe tão distante quanto um pico de uma montanha inatingível. Arquejava. O cabelo se agitava no rosto. O suor corria-lhe. O tique-taque do relógio na redoma parecia encher-lhe os ouvidos, marcando o compasso dos suspiros agonizantes de Jack, enquanto ele começava a subir as escadas.
A chegada de Hallorann
Larry Durkin era um homem alto e magro, de olhar triste e cabelos vermelhos. Hallorann encontrara-o exatamente quando saía do posto Conoco, o rosto triste enterrado no capuz de um casaco do Exército. Relutou em executar qualquer outro serviço naquele dia de tempestade, não se interessando em saber
de onde Hallorann viera, e relutou mais ainda em alugar um de seus snowmobils a esse negro que insistia em subir até o velho Overlook. Entre os habitantes de Sidewinder, o hotel tinha uma reputação duvidosa. Crimes já haviam sido cometidos por lá. Um bando de gângsteres dirigiu o lugar durante algum tempo, e homens do tipo que fazem qualquer negócio também. E as coisas que aconteceram no velho Overlook nunca chegaram aos jornais, pois o dinheiro falava mais alto. Mas os habitantes de Sidewinder tinham uma boa idéia a respeito daquilo. A maioria das camareiras era de lá, e as camareiras vêem muita coisa.
Mas quando Hallorann mencionou o nome de Howard Cottrell e mostrou a Durkin a etiqueta dentro das luvas azuis, o dono do posto de gasolina mudou de atitude.
- Ele o mandou aqui, mandou? - perguntou Durkin, abrindo uma das garagens e levando Hallorann para dentro.
Ë bom saber que o velho ainda tem juízo. Pensei que não tivesse mais. - Acendeu as lâmpadas fluorescentes velhas e muito sujas. - Agora, diga-me, que diabo você quer naquele lugar lá em cima, cara?
Hallorann começou a perder a calma. Os últimos quilômetros para Sidewinder tinham sido muito difíceis. Uma lufada de vento, que não devia estar a menos de noventa quilômetros por hora, fez o carro dar uma derrapada de trezentos e sessenta graus. E havia ainda alguns quilômetros a percorrer, e só Deus sabia o que o esperava. Estava aterrorizado pelo menino. Já eram quase dez para as sete e tinha ainda que desfiar o rosário novamente.
- Alguém está em dificuldade lá em cima - disse, com muito cuidado. - O filho do zelador.
- Quem? O filho dos Torrance? Que tipo de dificuldade?
- Não sei - resmungou Hallorann. Estava doente com o tempo que isto tomava. Conversava com um homem de cidade de interior, e ele sabia que todos os homens de cidade de interior sentem uma necessidade enorme de fazer negócios pormenorizados, pesquisar antes de se meterem. Mas não havia tempo, pois agora ele era um crioulo apavorado e, se continuasse por muito tempo nesse papo, poderia resolver cortá-lo, e sair correndo.
- Olhe - disse. - Por favor. Preciso ir até lá em cima e tenho que ter um snowmobile para conseguir chegar. Pago seu preço, mas, pelo amor de Deus, deixe-me ir cuidar de minha vida!
- Muito bem - falou Durkin, imperturbável. - Se Howard o mandou, basta. Leve este ArcticCat. Vou colocar vinte e cinco litros de gasolina na lata de reserva, O tanque está cheio. Vai dar para subir e descer, acho eu.
- Obrigado - disse Hallorann, ainda inquieto.
- São vinte dólares. Isso inclui a gasolina.
Hallorann tirou uma nota de vinte da carteira e entregou a Durkin, que a enfiou em um dos bolsos da camisa, quase imperceptivelmente.
- Acho melhor trocar de casaco também - disse Durkin, tirando seu casaco com capuz. - O seu não vai valer nada esta noite. Você me devolve quando trouxer o snowmobile.
- Que é isto, eu não posso...
- Deixe de besteira comigo - interrompeu Durkin ainda com calma. - Não quero que fique congelado. Só tenho que andar dois quarteirões, e estou em casa. Deixe disso.
Um pouco tonto, Hallorann trocou seu casaco pelo de Durkin, com forro de pele e capuz. As lâmpadas fluorescentes zumbiam, fazendo-o lembrar-se da cozinha do Overlook.
- O filho dos Torrance - disse Durkin, meneando a cabeça. - É um menino bonitinho, não é? Ele e o pai costumavam vir até aqui antes de a neve começar a cair no duro. Quase sempre no caminhão do hotel. Eles pareciam tão apegados. Aquilo, sim, é um menininho que gosta do pai. Espero que ele esteja bem.
Eu também. - Hallorann levantou o zíper e fechou o capuz.
- Deixe-me ajudá-lo a levar isso lá para fora - disse Durkin. Empurraram o snowmobile pelo chão de concreto cheio de manchas de óleo. - Já dirigiu isso antes?
- Não.
- Bem, não há nada de mais. As instruções estão pregadas ali no painel, mas o negócio é basicamente parar e andar. O acelerador está aqui, exatamente como um acelerador de motocicleta. O freio é do outro lado. Apóie-se nele nas curvas. Esta preciosidade faz cento e dez quilômetros em neve dura, mas nesse pó gelado não vai conseguir passar de oitenta, e com sacrifício.
Estavam agora na área da frente do posto de gasolina, cheia de neve, e Durkin falava alto para se fazer entender na ventania.
- Mantenha-se na estrada! - gritou no ouvido de Hallorann. - Fique de olho nas cercas de segurança e nas placas, e tudo vai correr bem, eu acho. Se sair da estrada, morre. Entendeu?
Hallorann rneneou a cabeça.
- Espere! - disse Durkin, e correu à garagem.
Enquanto o outro não voltava, Hallorann ligou a chave e apertou um pouco o acelerador. O snowmobile encheu-se de vida.
Durkin voltou com uma máscara de esqui vermelha e preta.
- Ponha isto por cima do capuz! - gritou.
Hallorann apanhou-a. Era de tamanho pequeno, mas cortava o vento que batia nas faces, testa e queixo.
Durkin inclinou-se para se fazer ouvir.
- Acho que você deve saber das coisas do mesmo jeito que Howie às vezes sabe disse. - Não ligo, mas aquele lugar tem uma péssima reputação por aqui. Posso dar-lhe um rifle, se quiser.
- Não acho que vai ser preciso - gritou Hallorann.
Você manda. Mas se apanhar o garoto, traga-o para a Peach Street, 16. A mulher terá uma sopinha preparada.
- OK. Obrigado por tudo.
- Cuidado! - gritou Durkin. - Mantenha-se na estrada!
Hallorann meneou a cabeça e acelerou devagar. O snowmobile foi para a frente, o farol cortando a neve que caía forte com um cone claro de luz. Viu a mão levantada de Durkin pelo espelho retrovisor, e levantou a sua. Virou o guidom para a esquerda e tomou a rua principal, o snowmobile andando suave pela luz dos postes da rua. O velocímetro marcava cinqüenta. Eram sete e dez. No Overlook, Wendy e Danny dormiam e Jack Torrance discutia sobre questões de vida e morte com o zelador anterior.
Cinco quarteirões depois, os postes acabaram. Durante oitocentos metros havia pequenas casas, todas muito bem fechadas contra a tempestade, e depois somente a escuridão e o assobio do vento. Novamente na escuridão, sem nenhuma luz a não ser o facho fino do farol do snowmobile, o pavor envolveu-o, um medo infantil, sinistro e desalentador. Nunca se sentira tão só. Por vários minutos, enquanto as luzes de Sidewinder desapareciam no retrovisor, a vontade de voltar era quase incontrolável. Refletiu que, mesmo com toda a boa vontade e preocupação com o filho de Jack Torrance, Durkin não se oferecera para levar o outro snowmobile, e subir junto com ele.
(Aquele lugar tem uma péssima reputação por aqui.)
Trincando os dentes, apertou o acelerador e viu o ponteiro do velocímetro passar pelos sessenta e parar nos setenta. Parecia estar indo incrivelmente rápido, e ao mesmo tempo temia que não fosse rápido o suficiente. A essa velocidade, levaria quase uma hora para chegar ao Overlook. Mas a uma velocidade maior, poderia não chegar.
Mantinha os olhos fixos na cerca de segurança e nos refletores do tamanho de uma moeda colocados um sobre o outro no que, em outras épocas, seria o acostamento. Muitos deles estavam escondidos sob a névoa. Por duas vezes viu placas com sinais de curva, muito tarde, e sentiu o snowmobile subindo os montes que disfarçavam a ribanceira antes de voltar para o que seria, no verão, o leito da estrada. 9 odômetro contava a quilometragem com uma lentidão enlouquecedora - cinco, dez e finalmente quinze. Mesmo sob a ríiáscara de esqui, seu rosto começava a ficar duro e as pernas dormentes.
(Acho que daria cem dólares por um par de calças de esqui.)
A mudança de cada quilômetro, seu medo aumentava... como se o lugar tivesse uma atmosfera de veneno que se tornava cada vez mais densa, à medida que se aproximava. Era assim antes? Nunca, na realidade, gostara muito do Overlook, e havia outros que compartilhavam de seu sentimento, mas jamais desta forma.
Ele ouvia a voz que quase o arruinara antes de Sidewinder ainda querendo entrar, passar por suas fortalezas para chegar até a carne. Se ela foi forte quarenta quilômetros atrás, como seria agora? Não podia afastá-la. Um pouco dela estava infiltrando, enchendo seu cérebro com imagens sinistras. Trazia cada vez mais a imagem de uma mulher ferida dentro do banheiro com as mãos levantadas querendo proteger-se. Sentiu cada vez mais que aquela mulher devia ser.
(Deus, cuidado!)
A barreira se aproximava como se fosse um trem de carga. Pensando besteira não viu a placa. Jogou o guidom para a direita, e o snowmobile deu meia-volta, inclinando-se. Do lado de baixo veio o som de metal sobre pedra. Pensou que fosse capotar, mas conseguiu equilibrar-se antes de deslizar até uma superfície mais ou menos nivelada da estrada. Depois, a ribanceira estava à sua frente, o farol mostrando o fim da neve e a escuridão adiante. Virou o guidom mais uma vez, com o coração na garganta.
(Mantenha-se na estrada Dick velho camarada.)
Forçou-se por aumentar um pouco a velocidade. O ponteiro do velocímetro estava agora abaixo dos oitenta. O vento uivava. O farol rasgava a escuridão.
Algum tempo depois, viu numa curva uma luz brilhando adiante. Apenas um vislumbre, e em seguida foi encoberta por uma elevação. A luz foi tão breve que chegou a desejar que uma outra curva a trouxesse novamente um pouco mais próxima, por mais alguns segundos. Desta vez não questionou sua veracidade; já vira aquela luz deste ângulo várias vezes anteriormente. Era o Overlook. Parecia que as luzes eram do primeiro andar e do saguão.
Parte de seu pavor - o medo de sair da estrada, ou arrebentar o snowmobile numa curva despercebida - desapareceu por completo. O snowmobile cobria com estabilidade a primeira metade de uma curva em S que agora ele lembrava palmo por palmo, quando o farol focalizou
(ó santo deus o que é)
a estrada adiante dele. Pintado em preto e branco, Hallorann, a princípio, pensou que fosse algum lobo imenso que descera com a tempestade. Em seguida, ao aproximar-se, reconheceu-o, e o pavor bloqueou-lhe a garganta.
Não um lobo, mas um leão. Um leão de arbusto.
Suas feições eram uma máscara de sombra e neve, as ancas rijas para um salto. E realmente saltou, espalhando neve em volta das patas traseiras numa explosão silenciosa de cristais.
Hallorann gritou e virou o guidom para a direita, com força, baixando o corpo ao mesmo tempo. A dor de um arranhão profundo tomou conta do rosto, pescoço e ombros. A máscara de esqui rasgou-se. Ele foi atirado para fora do snowmobile. Bateu na neve, espalhou-a e rolou.
Sentia o leão vindo em sua direção. No focinho havia um cheiro amargo de folhas verdes e azevim. Uma pata imensa de folhas atingiu-o nas costas e ele voou a três metros de altura, e caiu estirado no chão como um capacho. Viu o snowmobile, sem motorista, chocar-se contra a barreira, a traseira levantada, o farol buscando o céu. O veículo caiu com um estrondo e parou.
Em seguida, o leão estava em cima de Hallorann. Havia um crepitar e farfalhar de folhas. Algo destruindo o capuz, rasgando-o. Deviam ser galhos duros, mas Hallorann sabia que eram garras.
- Você não existe! gritou Hallorann para o leão que rosnava. - Você não existe de forma alguma! - Lutou para se pôr de pé, e conseguiu chegar à metade do caminho do snowmobile, quando o leão deu um bote, atingindo-lhe a cabeça com uma pata de garras afiadas. Hallorann viu luzes explodindo silenciosas.
- Não existe - falou novamente, mas era apenas um murmúrio. Os joelhos enfraqueceram e ele caiu na neve. Arrastou-se em direção do snowmobile, o lado direito do rosto uma cicatriz de sangue. O leão atacouo mais uma vez, virando-o de barriga para cima como uma tartaruga. Rosnava jocosamente.
Hallorann lutou por alcançar o snowmobile. O que necessitava estava lá. E, então, o leão atirou-se sobre ele novamente, rasgando e ferindo.
Wendy e Jack
Wendy arriscou uma outra olhadela para trás. Jack estava no sexto degrau, arrastando-se com a ajuda do corrimão, como ela mesma estava fazendo. Ele ainda sorria maliciosamente, e sangue escuro corria-lhe lentamente pelo maxilar inferior. Mostrava os dentes para ela.
- Vou esmagar-lhe os míolos. Acabar com eles. - Subiu com dificuldade mais um degrau.
O pânico tomou conta dela, e a dor diminuiu um pouco. Arrastou-se o mais depressa que pôde, apesar da dor, empurrando o corrimão convulsivamente. Chegou ao topo e olhou para trás.
Ele parecia ganhar força ao invés de perder. Estava a quatro degraus do topo, medindo a distância com o taco de roque na mão esquerda, enquanto se impulsionava com a direita.
- Bem atrás de você - falou, arquejando, através do sorriso de sangue, como se estivesse lendo a mente de Wendy.
- Bem atrás de você agora, sua miserável. Com seu remédio. Ela correu cambaleando pelo corredor principal, as mãos pressionadas no peito. A porta de um dos quartos abriu, e um homem com uma máscara verde de terror apareceu. Que festa incrível, não é?, gritou no rosto de Wendy, soprando uma língua-de-sogra. Houve um ruído estridente, e, súbito, ela se viu enrolada em serpentinas de crepe. O homem de máscara riu às gargalhadas, e voltou para o quarto. Wendy caiu no tapete. Parecia explodir em dor, e lutava contra a perda de consciência desesperadamente. Podia ouvir vagamente o elevador funcíonando de novo, e sob os dedos das mãos percebia que o desenho do tapete parecia mover-se sinuosamente.
O taco bateu atrás, e ela se jogou para a frente, soluçando. Olhando para trás, viu Jack cambaleando, perdendo o equilíbrio, e baixando o taco pouco antes de cair, expelindo sangue no tapete.
A cabeça do taco atingiu-a exatamente entre as clavículas, e por um momento a agonia foi tão grande que ela se contorceu, com as mãos abrindo e fechando. Alguma coisa dentro dela estalara.. . ouviu perfeitamente, e, por uns poucos momentos, ficou consciente, de uma forma silenciosa e abafada, de que estava simplesmente observando estas coisas através de um invólucro de neblina.
Em seguida, recobrou a consciência, o pavor e a dor. Jack tentara levantar-se para concluir o trabalho.
Wendy também tentava pôr-se de pé e viu que era impossível. O esforço parecia provocar uma corrente elétrica em suas costas. Começou a se arrastar. Jack arrastava-se atrás, usando o taco de roque como muleta ou bengala.
Ela chegou ao pequeno corredor e fez a curva, usando as mãos para empurrar a aresta da parede. Seu pavor aumentou.
não achava que fosse possível, mas era. Era cem vezes pior vê-lo ou saber como ele se aproximava. Arrancava pêlos do tapete ao arrastar-se, e estava na metade deste pequeno corredor, quando viu que a porta de seu quarto estava aberta.
(Danny! Oh Deus)
Forçou para se pôr de joelhos e arranhou o papel de parede de seda na tentativa de se pôr de pé. As unhas se soltaram um
Pouco. Ignorou a dor, e, andando sem firmeza, passou pela porta, enquanto Jack dobrava o corredor, e começava a vir em direção à porta aberta, apoiado no taco de roque.
Ela se apoiou na penteadeira, firmou-se e agarrou o portal
- Não feche essa porta! - gritava o marido. - Sua desgraçada, não se atreva a fechá-la!
Ela bateu e trancou a porta. A mão esquerda escorregou sobre a penteadeira, derrubando moedas que rolaram em todas as direções. A mão buscou o chaveiro, no mesmo instante em que o taco batia sobre a porta, fazendo-a tremer. Enfiou a chave na fechadura, e a girou para a direita. Ao ruído da fechadura, Jack gritou, O taco batia na porta numa série de estrondos que a faziam recuar. Como poderia ele estar fazendo isso com uma faca enfiada nas costas? Onde encontrava força? Ela quis gritar Por que não morre? para a porta trancada.
Ao invés disso, deu-lhe as costas. Ela e Danny teriam que se trancar no banheiro, no caso de Jack arrebentar a porta. A idéia de fugir pelo elevador de comida passou-lhe pela cabeça louca, mas ela a rejeitou. Danny era pequeno e passaria, mas ela não conseguiria controlar a corda. Ele desceria batendo contra a parede.
Teria que ser no( banheiro. E se Jack entrasse ali.
Mas controlaria o pensamento.
- Danny, meu bem, vai ter que acordar ag...
Mas controlara o pensamento.
Quando o filho começou a dormir, ela jogara os cobertores e o edredom em cima dele. Agora, eles estavam esparramados.
- Vou pegá-la! - vociferou Jack. - Vou pegar vocês dois! - Cada palavra era pontuada por um baque do taco de roque, mas Wendy ignorava ambos. Toda a sua atenção estava voltada para aquela cama vazia.
- Venha cá! Abra esta maldita porta!
- Danny? - sussurrou ela.
Claro... quando Jack a atacou. Tinha que ter chegado até ele, como sempre acontecia com as emoções violentas. Talvez ele tivesse visto a coisa toda num pesadelo. Estava escondido.
Ela caiu de joelhos, sentindo dor na perna inchada e ensangüentada, e olhou debaixo da cama. Nada ali, somente bolas de poeira e os chinelos do marido.
Jack gritou seu nome, e desta vez, quando arremessou o taco, uma lasca comprida de madeira pulou da porta, e estalou no soalho; A outra pancada teve o som de uma rachadura, o ruído de madeira velha sob um machadinho. A cabeça do taco suja de sangue abrira um buraco na porta, e subia e descia, espalhando pedaços de madeira por todo o quarto.
Wendy, para se levantar novamente, apoiou-se no pé da cama e, mancando, atravessou o quarto até o armário de roupas. As costelas quebradas a espetavam, fazendo-a gemer.
- Danny?
Arrastou, aflita, os cabides; alguns escorregavam e caíam no chão. Ele não estava no armário.
Caminhou, mancando, em direção ao banheiro, e chegando à porta olhou para trás. O taco continuava a bater, alargando o buraco, e então uma mão apareceu, tateando à procura do trinco. Viu, apavorada, que deixara o chaveiro de Jack balançando na fechadura.
A mão abriu o ferrolho e, ao fazê-lo, esbarrou no chaveiro. As chaves balançavam. A mão agarrou-as vitoriosa.
Com um soluço, arrastou-se para dentro do banheiro, e bateu a porta, no mesmo instante em que a porta abriu e Jack entrou vociferando.
Wendy trancou a porta, olhando ao redor desesperada. O banheiro estava vazio. Danny também não estava lá. E ao olharse no espelho do armário de remédio, viu o próprio rosto coberto de sangue, e ficou contente. Nunca fora a favor de as crianças testemunharem pequenas discussões dos pais. E, talvez, a coisa que estava agora delirando pelo quarto, quebrando coisas, finalmente desmoronasse antes que visse o filho. Talvez, pensou, lhe fosse possível infligir mais danos ainda à coisa. matá-la, talvez.
Seus olhos passaram pela louça do banheiro, procurando por qualquer coisa que pudesse servir de arma. Havia um sabonete, mas, mesmo enrolado numa toalha, ela não achava que pudesse ser letal. Tudo o mais estava fixo. Deus, não haveria nada que pudesse fazer?
Por trás da porta, os ruídos animalescos de destruição continuavam, seguidos por gritos de que eles “tomariam seu remédio” e “pagariam pelo que tinham feito com ele”. Ele “lhes mostraria quem mandava ali”. Eles “não valiam nada”, os dois.
Houve um estrondo, quando o toca-disco foi virado, um estampido surdo quando o tubo de imagem do televisor de segunda mão foi atingido, o tilintar de vidro de janela seguido de uma corrente de ar frio por baixo da porta do banheiro. Uma pancada surda quando os colchões foram arrancados das camas onde dormiram juntos, lado a lado. Estrondos, quando Jack atacava as paredes indiscriminadamente com o taco.
Não havia nada do verdadeiro Jack naquela voz petulante que berrava e dizia disparates. Alternava tons baixos de auto:
piedade com gritos altos; lembravam-na os gritos deprimentes que ouvira na ala de geriatria do hospital onde trabalhara durante as férias de verão, quando era ainda estudante secundária Demência senil. Jack não estava mais lá fora. Ela ouvia a VOZ irada e lunática do próprio Overlook.
O taco atingiu a porta do banheiro, derrubando um enorme pedaço do painel fino da porta. Um rosto meio louco e determinado fixou o olhar nela. A boca, faces e garganta estavam cobertas de sangue, o único olho que conseguia ver estava miúdo e brilhante.
- Não tem para onde correr, sua vagabunda - disse-lhe ofegante, por entre o sorriso, O taco baixou novamente, sacudindo lascas de madeira para dentro da banheira e contra a superfície refletora do armário de remédios.
(!!! O armário de remédios!!!)
Um lamento desesperado escapou-lhe enquanto ela se virou, a dor momentaneamente esquecida, e abriu a porta espelhada do armário. Começou a vasculhar. Atrás dela, aquela voz rouca berrava:
- Estou chegando! Estou chegando, sua porca! - Demolia a porta num frenesi mecânico.
Vidros caíam ante seus dedos loucos - xarope, vaselina, xampu, água oxigenada, benzocaína - e se quebravam.
Suas mãos se fecharam sobre o estojo de gilete no mesmo instante em que ouviu novamente a mão, buscando o ferrolho e abrindo o trinco.
Tirou uma das lâminas, sem jeito, respirando com dificuldade. Cortara o polegar. Deu uma volta e cortou a mão que abria o trinco e que tateava à procura do ferrolho.
Jack gritou. A mão pulou fora.
Ofegante, segurando a gilete entre o polegar e o indicador, Wendy esperou que ele tentasse novamente. Tentou, e ela o cortou. Mais uma vez ele gritou, tentando agarrar-lhe a mão, e ela o cortou novamente. A lâmina girou em sua mão, cortando-a mais uma vez, e caiu no ladrilho junto à privada.
Wendy tirou mais uma lâmina do estojo e esperou.
Movimento no quarto..
(??indo embora??)
E um ruído entrando pela janela do quarto. Um motor. Um zumbido alto como se fosse um inseto.
Um berro de raiva de Jack, e então - sim, sim, tinha certeza - ele estava saindo do apartamento do zelador, passando pelos escombros e entrando no corredor.
(??Alguém chegando um guarda-florestal Dick Hallorann??)
- Ó Deus - murmurou ela, com a boca que parecia cheia de serragem e pedaços de madeira. - Ó Deus, por favor.
Tinha que sair agora, encontrar o filho, para juntos enfrentarem o resto deste pesadelo. Tentou sair, e procurou o ferrolho. O braço parecia esticar-se por quilômetros. Finalmente destravou-o. Abriu a porta, hesitou, e foi de repente tomada pela terrível certeza de que Jack fingira ir embora, que estava esperando por ela.
Wendy olhou em volta. O quarto estava vazio, a sala também. Coisas reviradas e quebradas por toda parte.
O armário? Vazio.
Depois, sombras suaves começaram a descer, e ela caiu sobre o colchão que Jack arrancara da cama, semiconsciente.
Hallorann derrotado
Hallorann conseguiu chegar ao snowmobile virado, exatamente no momento em que, a dois quilômetros dali, Wendy se arrastava no corredor pequeno que levava ao apartamento do zelador.
Não era o snowmobile que ele queria, mas a lata de gasolina presa na traseira. As mãos ainda metidas nas luvas azuis de Howard Cottrell pegaram a tira superior que prendia a lata, enquanto o leão rugia atrás. . . um som que parecia estar mais dentro de sua cabeça do que fora. Houve um empurrão forte da perna esquerda, fazendo-a doer, pois a junta nunca dobrara
daquela forma. Um gemido escapou pelos dentes trincados de Hallorann. O leão poderia matá-lo a qualquer momento, cansado das brincadeiras.
Procurou a segunda tira. Sangue jorrava-lhe nos olhos.
(Rugido! Empurrão!)
Esse atingiu-lhe a bunda, quase atirando-o para longe do snowmobile, novamente. Segurou-se pra valer.., para a vida.
Conseguiu então soltar a segunda tira. Segurou firme a lata de gasolina, quando o leão atacou outra vez, fazendo-o cair de costas. Viu-o novamente, apenas uma sombra na escuridão e na neve, tão pavoroso quanto uma carranca. Hallorann girou a tampa da lata, enquanto a sombra se aproximava, sacudindo neve. Abriu a lata, libertando um cheiro forte de gasolina.
Hallorann ficou de joelhos e, enquanto o leão se aproximava, abaixado e incrivelmente rápido, atirou-lhe gasolina.
Houve um chiado, um fungado e o leão recuou.
- Gasolina! - gritou Hallorann, com a voz ainda trêmula. - Vai queimar você, benzinho! Curta isso!
O leão aproximou-se novamente, ainda fungando feroz. Hallorann atirou mais gasolina, mas desta vez o leão não se acovardou. Avançou. Halloran sentiu, mais do que viu, a cabeça junto a seu rosto, e então jogou-se para trás, evitando-a. ainda assim, o leão atingiu seu peito e uma chama de dor se acendeu ali. A gasolina entornou da lata que ainda segurava e molhou seu braço e mão, frios como a morte.
Estava agora caído na neve, cerca de três metros à direita do snowmobile. O leão era uma presença enorme a sua esquerda, aproximando-se. Hallorann achou que via a cauda sacudindo.
Arrancou com os dentes a luva de Cottrell da mão, sentindo o gosto da lã ensopada de gasolina. Levantou a bainha do casaco e enfiou a mão no bolso das calças. Lá no fundo, junto com suas chaves e algum trocado, havia um isqueiro Zippo antigo. Comprara-o na Alemanha em 1954. Certa vez a molinha quebrou, e ele o devolveu à fábrica Zippo, e eles o consertaram sem cobrar nada, exatamente como o anunciado.
Um pesadelo tomou conta de sua mente por um segundo.
(Caro Zippo meu isqueiro foi engolido por um crocodilo caiu de um avião perdido na trincheira do Pacífico salvou-me de uma bala alemã na última guerra caro Zippo se este patife não funcionar esse leão vai me arrancar a cabeça)
Tirou o isqueiro. Apertou-o. O leão avançando para ele, um rosnado, o dedo de Hallorann tremendo no acendedor, uma fagulha, a chama,
(minha mão)
sua mão, encharcada de gasolina, em chamas, o fogo subindo pela manga do casaco, sem dor, sem dor por enquanto, o leão, assustado com a tocha que, de repente, se acendeu a sua frente, uma escultura vegetal com olhos e boca, fugindo, muito tarde.
Tremendo de dor, Hallorann encostou o braço em chamas nos galhos da criatura.
Em poucos minutos toda ela estava em chamas, uma fogueira empinada e tremendo na neve, O leão berrava de raiva e dor, parecendo querer agarrar o rabo em chamas, enquanto zíguezagueava para longe de Hallorann.
Este enfiou o braço bem fundo na neve, apagando o fogo, sem poder tirar os olhos do leão agonizante, nem por um momento. Então, pôs-se de pé. A manga do casaco de Durkin estava chamuscada, mas não queimada, e isso se aplicava também à mão. Vinte metros abaixo de onde estava, o leão de folhas transformara-se numa bola de fogo. Faíscas voavam para o céu e eram despedaçadas pelo vento. As costelas e o crânio foram marcados por uma chama alaranjada e em seguida pareceram cair, desintegrar e cair em pilhas separadas.
(Não se incomode. Vá em frente.)
Pegou a lata de gasolina e a colocou com dificuldade no snowmobile. Seu estado consciente parecia ir e vir, oferecendolhe cenas familiares, lampejos apenas. Em uma delas, Hallorann viu-se empurrando o snowmobile para a posição primitiva e se sentando nele, sem fôlego e sem poder mover-se durante alguns momentos. Em outra, ele estava prendendo novamente a lata de gasolina, que ainda estava pela metade. A cabeça latejava terrivelmente, por causa do cheiro da gasolina (e em conseqüência da luta com o leão, supunha), e viu, na neve, que vomitara, mas não se lembrava quando.
O snowmobile, com o motor ainda quente, pegou imediatamente. Apertou o acelerador, e o movimento inicial foi uma série de solavancos, o que fez a cabeça doer ainda com mais força. A princípio, o snowmobile ziguezagueou, mas o fato de ficar com metade do rosto acima do pára-brisa e exposto ao vento forte eliminou um pouco a letargia. Apertou mais o acelerador.
(Onde está o resto dos animais de arbustos?)
Não sabia, mas pelo menos não seria apanhado desprevenido novamente.
O Overlook apareceu diante dele, as janelas do primeiro andar iluminadas, lançando retângulos amarelos sobre a neve.
O portão da entrada estava trancado, e ele o abriu depois de cuidadosamente olhar em volta, rezando para que não tivesse perdido as chaves quando tirou o isqueiro do bolso. . . não, estavam lá. Apanhou-as ajudado pela luz do farol do snowmobile. Pegou a chave certa e abriu o cadeado, deixando-o cair na neve. A princípio, não achou que fosse conseguir abrir o portão; afastou, aflito, a neve em volta do portão, sem pensar na dor de cabeça e no medo de que outros leões estivessem espreitando. Conseguiu abri-lo cerca de cinqüenta centímetros, esgueirouse pela abertura e empurrou. Conseguiu abrir mais uns sessenta centímetros, espaço bastante para o snowmobile, e o atravessou.
Percebeu movimento adiante na escuridão. Os animais de arbustos, todos eles, estavam agrupados junto aos degraus do Overlook, guardando a entrada e a saída. Os leões espreitavam. O cachorro estava com as patas dianteiras no primeiro degrau.
Hallorann apertou o acelerador, o snowmobile foi à frente, levantando neve atrás. No apartamento do zelador, a cabeça de Jack Torrance sacudiu com o zumbido alto do motor, como o de uma vespa que se aproximava, e, de repente, ele começou a se mover laboriosamente para o corredor. A miserável não era importante agora. A miserável podia esperar. Agora era a vez do negro sujo. Esse negro sujo e intrometido se metendo onde não foi chamado. Primeiro ele, depois o filho. Mostraria a eles. Mostraria bem que. . . que ele. . . que tinha pulso!
Lá fora, o snowmobile voava como um foguete. O hotel parecia lançar-se sobre ele. A neve batia no rosto de Hallorann. O farol iluminou a cara do cão pastor.
Em seguida afastou-se, deixando uma abertura. Hallorann girou o volante com toda a força que lhe restava, e o snowmobile fez um semicírculo fechado, arremessando nuvens de neve, ameaçando derrubá-lo. A traseira bateu nos pés da escada da varanda e ricocheteou. Num piscar de olhos, Hallorann estava fora, subindo as escadas. Cambaleou, caiu, levantou-se. O cachorro rosnava - novamente em sua cabeça - junto dele. Auguma coisa arranhou o ombro do casaco e, em seguida, ele estava na varanda, no corredor estreito que Jack fizera no meio da neve, a salvo. Eles eram muito grandes para caberem ali.
Chegou às grandes portas duplas do saguão e mais uma vez procurou as chaves. Enquanto as buscava, experimentou girar a maçaneta e a porta abriu. Entrou.
- Danny! - gritou, rouco. - Danny, onde está?
Silêncio novamente.
Seus olhos percorreram o saguão até os pés da escada e um suspiro lhe escapou. O tapete estava sujo de sangue. Havia um pedaço de veludo cor-de-rosa. As pegadas de sangue levavam à escada. O corrimão também estava sujo.
- O Deus - murmurou; e levantou a voz novamente.
- Danny! DANNY!
O silêncio do hotel parecia zombar dele com os ecos.
(Danny? Queem’ é Danny? Alguém aqui conhece um tal de Danny? Danny, Danny, quem está com Danny? Alguém quer jogar com Danny? Brincar com Danny? Saia daqui, seu preto. Ninguém nunca viu Danny mais gordo.)
Deus, teria ele passado por tudo aquilo, e chegado muito tarde? Já teria sido feito?
Subiu as escadas correndo, de dois em dois degraus, e parou no primeiro andar. O sangue ia até o apartamento do zelador. O horror cresceu em suas veias e no cérebro, enquanto começava a andar pelo corredor pequeno. Enfrentar os animais de arbusto tinha sido ruim, mas isto era pior. No fundo, tinha certeza do que iria encontrar, quando chegasse.
Não tinha pressa em ver.
Jack estava escondido no elevador, quando Hallorann subiu as escadas. Pôs-se por trás da figura de casaco coberto de neve, como um fantasma ensangüentado, com um sorriso nos lábios. O taco de roque estava levantado tão alto quanto a dor feia e dilacerante que sentia nas costas
(??a miserável me espetou não me lembro??)
permitia.
- Preto - murmurou. - Vou-lhe ensinar a não se meter com a vida dos outros.
Hallorann ouviu o assobio e se voltou, baixou a cabeça, e o taco de roque o atingIu. O capuz do casaco amorteceu a pancada, mas não o bastante. Um foguete explodiu em sua cabeça e ele viu estrelas. . . e depois nada.
Ele tombou sobre o papel de parede de seda e Jack atacou-o novamente, o taco cortando os lados desta vez, quebrando o osso da face de Hallorann e a maior parte dos dentes do lado esquerdo. Tombou.
- Agora - murmurou Jack. - Agora, por Deus. - Onde estava Danny? Tinha negócios a acertar com o filho desobediente.
Três minutos depois, a porta do elevador batia no escuro terceiro andar. Jack Torrance estava ali sozinho, O carro parara abaixo do piso, e foi preciso que ele desse um impulso para sair no terceiro andar, contorcendo-se de dor como um aleijado. Arrastava o taco lascado. No telhado, o vento assobiava e uivava. Jack virou os olhos. Havia sangue e confete em seu cabelo.
O filho estava ali em cima em algum lugar. Podia sentir. Deixado sozinho, faria qualquer coisa: riscar o elegante papel de parede de seda com os lápis de cor, estragar os móveis, quebrar as janelas. Era um mentiroso e um trapaceiro, e teria que ser castigado. . . severamente.
Jack Torrance fez esforço para se pôr de pé.
- Dany? - chamou. - Danny, venha cá um minuto, por favor. Você fez uma coisa errada e eu quero que venha e tome seu remédio como um homem. Danny? Danny!
Tony
(Danny...)
(Dannnyyy...)
Escuridão e corredores. Andava pela escuridão e corredores que eram como os que passavam por dentro do corpo do hotel, mas de alguma forma eram diferentes. As paredes forradas de papel de seda eram altas, e mesmo levantando a cabeça Danny não conseguia ver o teto. Estava perdido no infinito. Todas as portas estavam trancadas, e elas também se perdiam no infinito. Abaixo dos olhos mágicos (nestas portas gigantes eram do tamanho de uma alça de mira), pequenas caveiras e ossos cruzados estavam aparafusados em cada porta, no lugar dos números dos apartamentos.
E em algum lugar, Tony o chamava.
(Dannnyyy...)
Houve um ruído de batidas, Deus bem sabia, e gritos roucos, ao longe. Não conseguia entender bem palavra por palavra, mas agora conhecia o texto muito bem. Já o ouvira antes, em sonhos e acordado.
Parou, um menino pequeno com menos de três anos, de fraldas, e tentou decifrar onde estava, onde poderia estar. Havia medo, mas um medo suportável. Sentira medo todos os dias, fazia agora dois meses, a um nível que ia de simples inquietação até terror incrível. Este ele suportava. Mas queria saber por que Tony voltara, pois a forma como dizia seu nome não era parte nem das coisas reais nem da terra de sonhos, onde Tony, às vezes, lhe mostrava coisas. Por quê, onde.
- Danny.
Lá embaixo no corredor gigante, quase tão pequena quanto o próprio Danny, estava uma figura escura. Tony.
- Onde estou? - gritou, suave, para Tony.
- Dormindo - disse Tony. - Dormindo no quarto de sua mãe e de seu pai. - Havia tristeza na voz de Tony. - Danny, sua mãe vai ser muito machucada. Talvez seja morta. O Sr. Hallorann também.
- Não!
O menino gritou com uma tristeza distante, um terror que parecia abafado pelo ambiente de sonho e melancolia. No entanto, imagens de morte apareciam: um sapo morto pregado na estrada como uma estampa horrível; o relógio quebrado do pai por cima de uma caixa de sucata para ser jogado fora; túmulos com uma pessoa morta em cada um; um gaio morto junto a um poste telefônico; as sobras que a mãe raspava dos pratos caindo na boca escura da lixeira.
Não conseguia comparar estes símbolos simples com a realidade complexa de sua mãe; ela satisfazia sua definição infantil de eternidade. Ela foi quando ele ainda não era. Ela continuaria a ser quando ele deixasse novamente de ser. Danny aceitava a possibilidade de sua própria morte, convivia com isso desde o encontro no 217.
Mas não a dela.
Não a de papai.
Nunca.
Começou a se debater, e a escuridão e o corredor começaram a tremular. A forma de Tony tornou-se quimérica, indistinta.
- Não - gritou Tony. - Não faça isso, Danny!
- Ela não vai morrer! não vai!
- Então, você tem que ajudá-la. Danny. . . você está num lugar profundo em sua mente. No lugar onde estou. Sou parte de você, Danny.
- Você é Tony. Você não é o meu eu. Quero mamãe. quero mamãe..
- Eu não o trouxe aqui, Danny. Você mesmo se trouxe. Porque sabia.
- Não...
- Sempre soube - prosseguiu Tony, e começou a se aproximar. Pela primeira vez, Tony começou a se aproximar.
Está mergulhado no fundo de você mesmo, num lugar onde nada penetra. Estamos sozinhos aqui, por algum tempo, Danny. Este é um Overlook, onde ninguém pode vir nunca. Aqui, os relógios não funcionam. Nenhuma chave serve para lhes dar corda. As portas nunca foram abertas, e ninguém nunca ficou nos apartamentos. Mas você não pode ficar por muito tempo. Porque está chegando.
- E... - sussurrou Danny, com medo, e ao fazê-lo um ruídQ irregular de batidas parecia aproximar-se, mais alto, O terror, frio e distante de há poucos momentos, tornou-se uma coisa imediata. Agora, as palavras saíam. Roucas, desprezíveis; eram proferidas numa imitação grosseira da voz de seu pai, mas não era seu pai. Sabia disso agora. Sabia.
(Você mesmo se trouxe. Porque sabia.)
- Oh, Tony, é meu pai? - gritou Danny. - É meu pai, que está vindo pegar-me?
Tony não respondeu. Mas Danny não precisava de resposta. Sabia. Houve aqui uma festa de máscaras longa e horrível, e que continuava durante anos. Aos poucos uma força adveio, tão secreta e silenciosa quanto juros numa conta bancária. Força, presença, forma, eram todas apenas palavras e nenhuma delas era importante. Usavam muitas máscaras, mas era só um. Agora, em algum lugar, vinha em sua direção. Escondia-se por trás do rosto de papai, imitava a voz de papai, usava as roupas de papai.
Mas não era papai.
Não era seu pai.
- Tenho que ajudá-los! - gritou.
E agora Tony estava exatamente à sua frente, e olhar para Tony era como olhar num espelho mágico e se ver daí a dez anos, os olhos muito grandes e muito escuros, o queixo firme, a boca bem-traçada. O cabelo louro como o de sua mãe, mas os traços eram os do pai, como se Tony - como se o Daniel Anthony Torrance que um dia seria - fosse um rapazola, misto de pai e filho, um fantasma de ambos, uma fusão.
- Tem que tentar ajudar - disse Tony. - Mas seu pai. . . ele está com o hotel agora, Danny. É onde ele quer estar. O hotel quer você também, porque é muito ganancioso.
Tony passou por ele, entrando nas sombras.
- Espere! - gritou Danny. - O que posso...
- Ele está perto agora - disse Tony ainda indo embora.
- rem que correr. . . esconder-se. . . ficar longe dele. Ficar longe.
- Tony, não posso!
- Mas já começou - disse Tony. - Vai lembrar-se daquilo que seu pai esqueceu.
Desapareceu.
E de algum lugar ali perto vinha a voz de seu pai, aduladora.
- Danny? Pode sair, doutor. É só uma surrinha. Só. Aceite-a como um homem, e pronto. Não precisamos dela, doutor. Só eu e você, certo? Quando deixarmos esta pequena surra. . . atrás de nós, seremos apenas eu e você.
Danny correu.
Atrás dele, o gênio da coisa rompeu a normalidade fingida.
- Venha cá, seu merdinha! Agora!
Correu por um corredor comprido, ofegando. Dobrou para outro corredor. Subiu um lance de escada. E enquanto passava, as paredes, que eram tão altas e distantes, começaram a baixar; o tapete, que era apenas um borrão sob seus pés, readquiriu os traços sinuosos do desenho preto e azul; as portas voltaram a ser numeradas e por trás delas as festas intermináveis povoadas de gerações de hóspedes. A atmosfera parecia estar sombria à sua volta, as batidas do taco contra as paredes, ecoando. Ele parecia estar rompendo uma placenta fina do útero para o tapete da suíte presidencial no terceiro andar; deitados perto dele, em meio a uma quantidade enorme de sangue, estavam os corpos de dois homens de terno e gravatas estreitas. Tinham sido assassinados a tiros e agora começavam a se mexer diante dele e a se levantar.
Encheu os pulmões para gritar, mas não gritou.
(!!ROSTOS FALSOS!! NÃO VERDADEIROS!!)
Desvaneceram-se como fotografias velhas, e desapareceram.
Mais abaixo, o som distante do taco contra as paredes con tinuava subindo pelo poço do elevador e pelas escadas. A força dominadora do Overlook, na forma de seu pai, batendo-se no primeiro andar.
Uma porta abriu com um ranger, atrás dele.
Uma mulher em decomposição com um vestido odre de seda apareceu, os dedos amarelados e quebrados, coU rtos de anéis cheios de azinhavre. Vespas gordas passeavam sobre seu rosto.
- Venha - disse-lhe baixinho, sorrindo com os lábios negros. - Venha e dançareeeemos o taaaango.
- Rosto falso!! - gritou Danny. - Não verdadeiro! - Ela se afastou alarmada, e ao se afastar foi sumindo e desapareceu.
- Onde está? - gritou a coisa, mas a voz estava tão-somente em sua cabeça. Podia ainda ouvir a coisa que usava o rosto de Jack no corredor do primeiro andar. . . e mais alguma coisa.
O ruído alto de um motor se aproximando.
Danny ficou sem fôlego. Seria mais uma faceta do hotel, uma outra ilusão? Ou seria Dick? Queria - queria desesperadamente acreditar - que fosse Dick, mas não se atrevia a arriscar.
Foi para o corredor principal, e entrou então em um dos pequenos corredores, os pés deslizando no pêio do tapete. As portas trancadas exprimiam-lhe desagrado, como faziam em sonhos, em visões, só que agora estava no mundo de coisas reais, onde o jogo era pra valer.
Virou para a direita e vacilou, o coração batendo forte no peito. Calor tomava conta de seus tornozelos. Do aquecedor, naturalmente. Hoje devia ser o dia de papai esquentar a ala oeste e
(Vai lembrar-se daquilo que seu pai esqueceu)
O que era? Quase sabia. Algo que salvaria a mãe e a ele? Mas Tony disse que ele teria que fazer sozinho, O que era?
Encostou-se na parede, tentando desesperadamente pensar. Era tão difícil. . . o hotel ficava tentando entrar em sua cabeça. . . a imagem daquela forma escura e arrasada, sacudindo o taco de um lado para o outro, arrancando o papel de parede desprendendo poeira branca do gesso.
- Ajude-me - sussurrou. - Tony, ajude-me.
E de repente percebeu que o hotel estava em silêncio mortal. O ruído do motor cessara
(não deve ter sido verdadeiro)
e os ruídos da festa acabaram, e só havia o vento, assobiando sem fim.
O elevador zumbiu.
Subia.
E Danny sabia quem - o que - estava lá dentro.
Firmou-se nos pés, os olhos arregalados. O pânico invadiu seu coração. Por que Tony o mandara para o terceiro andar? Estava numa ratoeira aqui em cima. Todas as portas estavam trancadas.
O sótão!
Havia um sótão, ele sabia. Viera aqui com o pai no dia em que ele espalhou as ratoeiras lá em cima. Não deixara Danny subir com ele, por causa dos ratos. Temia que o filho fosse mordido. Mas a porta do sótão ficava no teto do último corredorzinho desta ala. Havia uma vara encostada na parede. O pai abrira a porta com a vara. Houve um zumbido de contrapeso, quando a porta abriu e uma escada baixara. Se conseguisse subir e tirar a escada.
Em algum lugar no labirinto de corredores atrás dele, o elevador parou. Houve um ruído metálico, quando a grade foi empurrada. E em seguida a voz - não em sua cabeça agora, mas terrivelmente real - chamando.
- Danny? Danny, venha cá um minuto, faça o favor. Fez uma coisa errada e quero que você venha tomar seu remédio, como um homem. Danny? Danny!
A obediência estava tão arraigada nele, que chegou a dar dois passos automaticamente em direção ao som daquela voz, até que parou. Cerrou as mãos.
(Não é verdadeiro! Rosto falso! Sei o que você é! Tire a máscara!)
- Danny! - berrava. - Venha cá, seu fedelho! Venha cá e o tome como um homem! - Um estrondo surdo e alto quando o taco atingiu a parede. Quando a voz berrou seu nome, novamente mudara de lugar. Aproximava-se.
No mundo de coisas reais, a caçada começava.
Danny correu. Pés silenciosos no tapete grosso, passava correndo pelas portas dos apartamentos, pelo papel de parede de seda, pelo extintor de incêndio pregado no canto do corredor. Hesitou, e em seguida mergulhou no último corredor. Nada no final, a não ser uma porta com ferrolho, e mais nenhum lugar para onde correr.
Mas a vara ainda estava lá, ainda encostada na parede onde o pai a deixara.
Danny apanhou-a. Levantou a cabeça para ver a porta. Havia um gancho na ponta da vara e era preciso enfiá-lo numa argola que havia na porta. Era preciso.
Havia um cadeado novinho balançando, qu Jack Torrance colocara no ferrolho depois de ter espalhado as ratoeiras, no caso de o filho resolver vir explorar o lugar qualquer dia.
Trancado, O terror tomou conta dele.
Atrás, a coisa se aproximava, desajeitada e cambaleante em frente à suíte presidencial, o taco assobiando no ar.
Danny recuou, encostando-se na última porta trancada, à espera.
O que foi esquecido
Wendy voltou a si, a inconsciência desvanecendo, a dor tomando seu lugar: as costas, a perna, o lado. . . não achava que fosse possível mexer-se. Até os dedos doíam, e a princípio não sabia por quê.
(A lâmina de gilete, era isso.)
O cabelo louro, molhado e embaraçado, caía-lhe nos olhos. Levantou-o, e as costelas espetaram lá dentro, fazendo-a gemer. Via agora um pedaço de colchão azul e branco, sujo de sangue. O sangue dela, ou talvez o de Jack. De qualquer forma ainda estava fresco. Não ficara muito tempo desacordada. E isso era importante porque..
(?por quê?)
Porque..
Primeiro, lembrou-se do zumbido do motor como se fosse um inseto. Por um momento fixou-se estupidamente na memoria, e então, num ataque vertiginoso e nauseante, sua mente parecia faiscar de volta, mostrando-lhe tudo de uma vez.
Hallorann. Deve ter sido Hallorann. Por qual outro motivo Jack sairia tão de repente, sem acabar. . . sem acabar com ela?
Porque não estava mais tranqüilo. Ele tinha que encontrar Danny rapidamente e... e fazê-lo antes que Hallorann o impedisse.
Ou será que já tinha acontecido?
Podia ouvir o zumbido do elevador subindo pelo poço.
(Não Deus por favor não o sangue o sangue ainda está fresco não permíta que já tenha acontecido.)
De algum modo, conseguiu pôr-se de pé e cambalear pelo quarto e pelas ruínas da sala até a porta quebrada. Abriu-a e foi ao corredor.
- Danny! - gritou, contorcendo-se com a dor no peito.
- Sr. Hallorann! Há alguém aí? Alguém?
O elevador corria novamente e parou. Ouviu o ruído metálico da grade sendo aberta e, logo em seguida, uma voz falando. Devia ser sua imaginação. O vento estava muito alto para poder realmente saber.
Encostada na parede, conseguiu chegar ao corredor principal. stava quase virando quando o grito a paralisou, pairando na escada e no poço do elevador:
-Danny! Venha cá, seu fedelho! Venha cá e o tome como um homem!
Jack. No segundo ou terceiro andar. Procurando por Danny.
Dobrou o corredor, perdeu o equilíbrio, quase caiu. Sem fôlego. Alguma coisa
(alguém?)
encostada na parede a alguns passos da escada. Arrastou-se mais depressa, contorcendo-se toda vez que seu peso caía sobre a perna machucada. Era um homem, viu, e ao se aproximar entendeu o significado do zumbido do motor.
Era o Sr. Hallorann. Finalmente chegara.
Ajoelhou-se ao lado dele, orando incoerentemente para que não estivesse morto. O nariz de Hallorann sangrava, e uma terrível placa de sangue saíra de sua boca. O lado do rosto era um hematoma inchado. Mas respirava, graças a Deus. A respiração vinha em suspiros longos, que lhe sacudiam o corpo.
Ao olhá-lo mais de perto, os olhos de Wendy arregalaramse. Uma das mangas do casaco que ele usava estava preta e chamuscada. Um dos lados estava rasgado. Havia sangue no cabelo e um arranhão superficial, mas feio, na nuca.
(Meu Deus, o que aconteceu com ele?)
- Danny! - a voz rouca berrava em cima deles. Venha cá, desgraçado!
Não havia tempo para reflexões. Começou a sacudi-lo, o rosto contraindo-se com a dor nas costelas. Sentia um de seus lados inchado e quente.
(E se estiverem perfurando o pulmão quando me mexo?)
Não podia fazer nada, também. Se Jack encontrasse Danny, matá-lo-ia, bateria nele até morrer com aquele taco, como tentara fazer com ela.
Sacudiu Hallorann, e começou a dar tapas no lado do rosto que não estava machucado.
- Acorde - disse. - Sr. Hallorann, precisa acordar. Por favor. . . por favor.
Lá de cima, as incansáveis batidas do taco, enquanto Jack procurava o filho.
Danny ficou encostado na porta, olhando o ângulo reto onde os corredores se encontravam. As batidas constantes e irregulares do taco contra as paredes ficaram mais altas. A coisa que o caçava gritava, uivava e xingava. Sonho e realidade se encontraram sem distinção.
Dobrou o corredor.
De certa forma, o que Danny sentiu foi alívio. Não era seu pai. A máscara do rosto e corpo fora arrancada e partida e transformou-se numa brincadeira de mau gosto. Não era seu pai, não este Show de Horror de Sábado à Noite com os olhos virados, ombros curvados e pesados, e camisa ensopada de sangue. Não era seu pai.
- Ora, por Deus - suspirou. Enxugou os lábios com a mão trêmula. - Agora você vai saber quem manda aqui. Vai ver. Não é você que eles querem. É a mim. A mim! A mim!
Bateu o taco já semidestruído, disforme pelos inúmeros impactos. Atingiu a parede, cortando um círculo no papel de parede de seda. Poeira de gesso espalhou-se. A coisa começou a sorrir.
- Vamos ver se você faz aqueles seus truques agora - murmurou. - Não nasci ontem, sabe. Não fui encontrado na porta da igreja, por Deus. Vou cumprir meu dever de pai, menino.
- Você não é meu pai - falou Danny.
A coisa parou. Por um momento, ficou, na realidade, in certa como se não estivesse segura de quem ou o que era. Depois, começou a andar novamente. O taco, assobiando, bateu numa porta e provocou um estrondo surdo.
- Mentiroso - disse. - Quem mais eu poderia ser? Tenho as duas marcas registradas, o umbigo e até o peru, meu rapaz. Pergunte a sua mãe.
- Você é uma farsa - disse Danny. - Simplesmente um rosto falso. A única razão que o hotel tem para usá-lo é que você não está tão morto quanto os outros. Mas quando não tiver mais nada a tratar, você não será absolutamente nada. Você não me apavora.
- Vou apavorá-lo! - berrou a coisa. O taco bateu com força no chão, entre os pés de Danny. O menino não se mexeu.
- Você mentiu a meu respeito. Você fez um pacto com ela! Vocês tramaram contra mim! Você foi desonesto! Colou no exame final! - Os olhos se iluminaram debaixo das sobrancelhas espessas. Havia neles uma expressão demente. - Vou descobrir. Está lá embaixo no porão. Vou encontrar. Eles me prometeram que eu poderia olhar tudo que eu quisesse. - Ergueu o taco mais uma vez.
- Me prometeram - retrucou Danny. - Mas estão mentindo
O taco hesitou no ar.
Hallorann começara a voltar a si, e Wendy parara de dar tapinhas em seu rosto. Alguns momentos atrás, as palavras Vocé foi desonesto! Colou no exame final! flutuaram pelo poço do elevador, longe, quase inaudíveis na ventania. De algum lugar do fundo da ala oeste. Estava praticamente convencida de que estavam no terceiro andar e que Jack - o que quer que tivesse possuído Jack - encontrara Danny. Não havia nada que ela ou Hallorann pudessem fazer agora.
- Oh, doutor - murmurou Wendy. Seus olhos encheram-se de lágrimas.
- Filho da puta, quebrou meu maxilar - resmungou Hallorann, com voz grossa. - E minha cabeça... - Tentou sentar-se. O olho esquerdo enegrecia rapidamente e inchava. ainda assim, viu Wendy.
- Sra. Torrance. .
- Chhhhh - fez ela.
- Onde está o menino, Sra. Torrance?
- No terceiro andar - respondeu Wendy. - Com o pai.
- Estão mentindo - falou Danny, novamente. Algo passara por sua cabeça, claro como um meteoro, muito rápido, muito claro para poder ser segurado. Só o rabo do pensamento sobrou.
(está lá embaixo no porão em algum lugar)
(vai lembrar-se daquilo que seu pai esqueceu)
- Você. . . você não devia falar assim com seu pai
disse a coisa, com voz rouca. O taco tremeu e baixou. - Só está piorando as coisas para você mesmo. Seu. . . seu castigo. Pior. - Cambaleou como um bêbado e olhou para Danny fixamente com autocompaixão que começou a se transformar em ódio. O taco começou a se erguer novamente.
- Você não é meu pai - disse Danny, novamente. - E se existe algum resto de meu pai dentro de você, este resto sabe que eles estão mentindo. Tudo é mentira e um embuste. Como o jogo com o dado viciado que meu pai colocou no meu sapato no Natal passado, como os presentes que põem nas vitrinas e que meu pai diz que não há nada dentro, nenhum presente, são só caixas vazias. Só para enfeitar, meu pai diz. Você é uma coisa, não meu pai. Você é o hotel. E quando conseguir o que quer, não vai dar nada a meu pai, porque você é egoísta. E meu pai sabe disso. Você teve de fazê-lo beber a “coisa feia». Só assim conseguiu conquistá-lo, sua careta mentirosa.
- Mentiroso! Mentiroso! - As palavras saíam em gritos fortes. O taco balançou no ar.
- Vá, bata. Nunca vai conseguir de mim o que você quer.
O rosto, na frente dele, modificou-se. Era difícil dizer como; não houve mudança de traços fisionômicos. O corpo tremeu um pouco, e então as mãos ensangüentadas se abriram como garras quebradas. O taco caiu e bateu no tapete. Foi só. Mas de repente seu pai estava ali, olhando para ele em agonia mortal, e com uma tristeza tão grande que o coração de Danny se inflamou dentro do peito. A boca arqueou.
- Doutor - disse Jack Torrance. - Vá embora correndo. Rápido. E lembre-se do quanto eu o amo.
- Não - falou Danny.
- Oh, Danny, pelo amor de Deus...
- Não - repetiu Danny. Segurou uma das mãos ensangüentadas do pai e beijou-a. - Está quase terminado.
Hallorann pôs-se de pé apoiando as costas na parede e se empurrando. Ele e Wendy se entreolharam como sobreviventes de um hospital bombardeado.
- Precisamos ir lá em cima - disse ele. - Precisamos ajudá-lo.
Os olhos assombrados no rosto pálido de Wendy fixaramse nos dele.
- Já é tarde - falou Wendy. - Agora, só ele pode ajudar-se.
Um minuto se passou, depois dois. Três. E então ouviram a coisa gritando, não de raiva ou triunfo agora, mas de terror mortal.
- Santo Deus - sussurrou Hallorann. - O que está acontecendo?
- Não sei - respondeu ela.
- Matou Danny?
- Não sei.
O elevador voltou a funcionar e começou a descer com a coisa raivosa engaiolada no interior.
Danny ficou imóvel. Não havia um lugar para onde corresse em que o Overlook não estivesse. Compreendeu de repente, total e claramente. Pela primeira vez na vida tivera um pensamento adulto, um sentimento adulto, a essência de sua experiência neste lugar ruim. . . uma triste experiência:
(Mamãe e papai não podem me ajudar e estou sozinho.)
- Vá embora - disse o menino ao estranho ensangüentado à sua frente. - Vá. Saia daqui.
Inclinou-se, exibindo o cabo da faca nas costas. Suas mãos fecharam-se em volta do taco novamente, mas, ao invés de apontar para Danny, inverteram-no apontando o lado duro do taco para seu próprio rosto.
O entendimento chegou rápido a Danny.
Então, o taco começou a subir e descer, destruindo a última imagem de Jack Torrance. A coisa no corredor dançava uma estranha e confusa polca, o ritmo marcado pelo hediondo taco batendo vezes seguidas. Sangue sujou o papel de parede.
Pedaços de ossos saltaram no ar como teclas de piano quebradas Era impossível dizer quanto tempo se passou. Mas quando voltou sua atenção para Danny, seu pai desaparecera para sempre O que restou do rosto tornou-se uma estranha composição muitos rostos misturados em um. Danny viu a mulher do 217 o homem-cachorro; o menino faminto que estava no anel de concreto.
- Máscaras tiradas, então - murmurou a coisa. - Não mais interrupções.
O taco ergueu-se uma última vez. Um tique-taque encheu os ouvidos de Danny.
- Alguma coisa mais a dizer? - perguntou a coisa. - Tem certeza de que não quer correr? Brincar de pique, talvez? Tudo o que temos é tempo, você sabe. Uma eternidade de tempo. Ou devemos ficar por aqui? Tanto faz. Afinal de contas, estamos perdendo a festa.
Sorriu com um dente quebrado.
E lhe ocorreu. O que o pai esquecera.
Um triunfo repentino encheu-lhe o rosto; a coisa viu e hesitou confusa.
- A caldeira! - gritou Danny. - Desde esta manhã não foi regulada! Está subindo! Vai explodir!
Uma expressão grotesca de terror e crescente percepção apossou-se da coisa semidestruída, diante dele. O taco caiu de suas mãos e ricocheteou inofensivamente no tapete preto e azul.
- A caldeira - gritou a coisa. - Oh, não! Isso não pode ser! Claro que não! Não! Seu fedelho desgraçado! Claro que não! Oh, oh, oh...
- Sim! - gritou Danny, com força. Começou a saltitar diante da coisa arruinada. - A qualquer momento! Eu sei! A caldeira, papai esqueceu a caldeira! E você esqueceu, também!
- Não, oh, não, não pode, não pode, seu menino sujo, farei você tomar o remédio, farei você tomar até a última gota, oh, não, oh, não...
De repente, virou-se de costas e começou a se afastar. Por um momento, sua sombra balançou na parede, crescendo e minguando. Deixava gritos como rastros, como serpentinas desenroladas.
Momentos depois, o elevador funcionava.
De repente, a luz interior estava sobre ele
(mamãe sr. hallorann dick os meus amigos juntos vivos estão vivos precisam sair vai explodir vai explodir até o céu)
como um nascer de sol brilhante e forte, e ele correu. Um pé chutou o taco de roque ensangüentado e deformado para o lado. Não percebeu.
Chorando, desceu as escadas.
Precisavam sair.
A explosão
Hallorann não sabia como as coisas evoluíram depois disso.
Lembrava-se de que o elevador descera passando por eles, sem parar, e que alguma coisa estava lá dentro. Mas não fez nenhum esforço para tentar ver através da pequena janela, pois o que lá estava não parecia humano. Minutos depois, houve pés correndo na escada. Wendy Torrance, a princípio, encolheu-se na direção dele, e depois começou a cambalear pelo corredor principal em direção às escadas o mais depressa possível.
- Danny! Danny! Oh, graças a Deus! Graças a Deus! Acolheu-o num abraço, gemendo de alegria e de dor.
(Danny.)
Danny olhou para ele por cima dos ombros da mãe, e Hallorann notou como o menino havia mudado. O rosto estava pálido e aflito, os olhos escuros e insondáveis. Parecia mais magro. Olhando os dois juntos, Hallorann achou que a mãe parecia mais nova, apesar da surra terrível que levara.
(Dick-precisamos ir-correndo-o lugar-vai)
Quadro do Overlook, chamas saltando do telhado. Tijolos caindo na neve. Alarme de incêndio.., não que algum caminhão do Corpo de Bombeiros pudesse chegar ali em cima muito antes do fim de março. O que mais vinha do pensamento de Danny era um sentido de urgência imediata, uma sensação de que iria acontecer a qualquer momento.
- Muito bem - falou Hallorann. Caminhou em direção aos dois, e, no começo, foi como nadar no fundo da água. Seu equilíbrio estava uma merda, e o olho direito estava fora de foco. O maxilar latejava até as têmporadas e descia ao pescoço, sentia a face tão grande quanto um repolho. Mas a urgência do menino o movia, e tornava o movimento mais fácil.
- Muito bem? - perguntou Wendy. Olhou Hallorann e o filho e, de volta, Hallorann. O que quer dizer com “muito bem”?
- Precisamos ir - falou Hallorann.
- Não estou vestida.., minhas roupas...
Danny soltou-se de seus braços e correu pelo corredor. Ela o acompanhou com os olhos, e quando ele desapareceu no encontro dos dois corredores, voltou os olhos para Hallorann.
- E se ele voltar?
- Seu marido?
- Ele não é Jack - murmurou Wendy. - Jack está morto. Este lugar o matou. Este maldito lugar. - Bateu com as mãos na parede e grítou, pois seus dedos cortados doeram.
- E a caldeira, não é?
- É, sim, senhora. Danny diz que vai explodir.
- Muito bem. - A palavra saiu carregada de ódio. - Não sei se posso descer esta escada novamente. Minhas costelas. .. ele quebrou minhas costelas. E alguma coisa em minhas costas. Está doendo.
- Vai conseguir falou Hallorann. - Vamos conseguir. - Mas de repente se lembrou dos animais de arbustos, e imaginou o que fariam se estivessem guardando a saída.
Danny voltava. Trazia as botas de Wendy, casaco e luvas, e também seu casaco e luvas.
- Danny - disse a mãe. - Suas botas.
- Tarde demais - respondeu o menino. Seus olhos fixaram-se neles com uma espécie de loucura desesperada. Olhou para Dick e, de repente, a mente de Hallorann se fixou na imagem de um relógio sob uma redoma de vidro, o relógio do salão de baile que fora doado por um diplomata suíço em 1949. Os ponteiros do relógio marcavam um minuto para a meia-noite.
- O meu Deus - exclamou Hallorann. - O meu Santo Deus.
Passou um braço em volta de Wendy e a levantou. Passou o outro braço em volta de Danny. Correu para a escada.
Wendy gritou de dor, quando ele apertou suas costelas quebradas, como se alguma coisa estívesse sendo triturada, mas Hallorann não diminuiu o passo. Atirou-se pela escada com OS dois nos braços. Um olho arregalado e desesperado, o outro inchado e miúdo como uma fresta. Parecia um pirata de um olho só, raptando reféns para serem resgatados depois.
De repente, a luz interior tomou conta dele, e entendeu o que Danny quis dizer quando falou que era tarde demais. Podia sentir a explosão pronta para ribombar no porão e rasgar as entranhas deste lugar horroroso.
Correu mais depressa, e passou pelas portas duplas.
A coisa correu pelo porão e entrou no brilho amarelo-pálido da sala da fornalha. Babava de medo. Estivera tão perto, tão perto de arrebatar o menino com seu poder terrível. Não poderia perder agora. Não podia acontecer. Regularia a caldeira e depois castigaria o menino severamente.
- Não podia acontecer - gritou. - Oh, não, não podia acontecer!
Cambaleava para a caldeira, que tinha um brilho vermelho na metade de seu corpo tubular. Ela soprava, chocalhava e assobiava vapores em centenas de direções, como um aerofone. O ponteiro do manômetro estava na ponta do marcador.
- Não, não será permitido! - gritou o gerente-zelador.
Colocou as mãos de Jack Torrance na válvula, ignorando o cheiro queimado que se espalhava ou o ressecar da pele enquanto a roda incandescente afundava, como que num sulco de lama.
A roda cedeu e, com um grito triunfante, a coisa girou-a com força. Um assobio gigante de vapor escapando saiu da caldeira, uma dúzia de dragões assobiando em concerto. Mas antes de o vapor obscurecer a agulha do manômetro totalmente, o ponteiro começou visivelmente a balançar.
- VENCI! - gritou. Saltava de contentamento na névoa quente que se erguia, sacudindo as mãos queimadas sobre a cabeça. - NÃO TÃO TARDE! VENCI! Não TÃO TARDE! NÃO...
As palavras transformaram-se em um grito de triunfo, e o grito foi engolido no estrondo da explosão da caldeira do Overlook.
Hallorann atirou-se pelas portas duplas e carregou os dois pela trincheira de neve da varanda. Viu claramente os animais, mais claro do que nunca, e quando caiu em si de que seu medo fazia sentido, pois os animais estavam entre a varanda e o snowmobile, o hotel explodiu. Pareceu-lhe que tudo aconteceu de uma vez, apesar de depois descobrir que não poderia ter sido assim.
Houve uma explosão, um som que parecia existir em uma nota baixa, difusa
(WHUMMMMMMMM...)
e, em seguida, houve um sopro de vento quente em suas costas, que parecia empurrá-los de leve. Foram atirados da varanda, os três, e um pensamento confuso
(é assim que o super-homem deve sentir-se)
passou pela mente de Hallorann, enquanto eles voavam no ar. O cozinheiro os soltara. Perdeu o controle sobre mãe e filho, e, em seguida chocou-se brandamente com a neve. Esta entrou por debaixo de sua camisa e no nariz, percebendo Hallorann, então, como era agradável em contato com seu rosto ferido.
Depois, com esforço, conseguiu subir o monte de neve, não pensando, nesse momento, nos animais de arbustos, nem em Wendy Torrance, ou sequer no garoto. Ao invés disso, voltou o corpo para ver a destruição final do hotel.
As janelas do Overlook se despedaçaram.
No salão de baile, a redoma do relógio partiu-se em duas e caiu no chão. O relógio parou de funcionar: suas peças ficaram imóveis. Houve um suspiro, um sussurro e uma grande onda de poeira. No 217, a banheira de repente partiu-se em duas, expelindo uma pequena torrente de água esverdeada de cheiro ruim. Na suíte presidencial, o papel de parede de repente explodiu em chamas. As dobradiças da porta de vaivém no Salão Colorado subitamente se partiram, e a porta caiu no chão do restaurante. Adiante do arco do porão, as grandes pilhas e pacotes de papel velho se incendiaram e subiram como assobio de maçarico. Agua quente rolou sobre as chamas sem apagá-las. Como folhas de outono queimadas debaixo de um ninho de vespas, elas giravam e escureciam tudo. A fornalha explodiu, partindo o teto do porão, derrubando-o como ossos de um dinossauro, O propulsor de gás que alimentara a fornalha, destampado agora, erguia-se num mastro escandaloso de chamas pelo soalho rachado do saguão. O tapete nos degraus foi tomado pelas chamas que subiam ao primeiro andar rapidamente, como se quisessem dar as espantosas notícias. Uma fuzilaria de explosões rasgou o ar. O lustre no restaurante, como uma bomba de cristal de cem quilos, caiu em estilhaços, derrubando mesas para todos os lados. As chamas eram vomitadas pelas cinco chaminés do Overlook em direção às nuvens.
(Não! Não pode! Não pode! NÃO PODE!)
A coisa berrava; gritava, mas agora estava sem voz e só gritava pânico, condenação e desgraça em seu próprio ouvido, dissolvendo, perdendo o pensamento e a força, a trama se desintegrando, buscando sem encontrar caminho, saindo, saindo, voando, saindo para o vazio, o nada, esfarelando-se.
A festa acabou.
A saída
O estrondo sacudiu toda a fachada do hotel. Vomitou vidro na neve, onde ficava brilhando como diamantes. O cachorro de folhas, que estava se aproximando de Danny e sua mãe, recuou, as orelhas de sombras caídas, o rabo entre as pernas, as ancas desarmadas. Em sua cabeça, Hallorann ouviu o cão ganir de medo, e, misturado a isso, estava o miado medroso e confuso dos grandes gatos. Esforçou-se para se pôr de pé e ir até os outros dois e ajudá-los, e ao fazê-lo viu algo mais horrendo do que o resto: o coelho, ainda coberto de neve, debatia-se contra a cerca do fundo do playground, e a rede de arame tilintava uma música horrenda, como uma cítara fantasmagórica. Mesmo ali ouviam os sons dos galhos, que formavam seu corpo, estalarem como ossos quebrados.
- Dick! Dick! - gritou Danny. Tentava sustentar a mãe, ajudá-la a tomar o snowmobile. As roupas que carregava para os dois estavam espalhadas pelo chão. Hallorann de repente percebeu que a mulher estava de roupa de dormir e Danny, sem casaco, sob uma temperatura de vinte e cinco graus abaixo de zero.
(meu deus ela está descalça)
Caminhou com dificuldade pela neve, apanhando o casaco, as botas de Wendy, o casaco e as luvas de Danny. Em seguida, correu para eles, afundando as pernas na neve, de vez em quando tendo que se debater para sair.
Wendy estava terrivelmente pálida, o lado do pescoço coberto de sangue, sangue que agora se congelara.
- Não posso - murmurou ela. Estava semiconsciente. - Não, eu. não posso. Sinto muito.
Danny olhou para Hallorann, suplicante.
- Ela vai melhorar - disse Hallorann, e carregou-a novamente. - Vamos.
Os três conseguiram chegar onde o snowmobile rodopiara e atolara. Hallorann colocou a mulher no banco de acompanhan te e lhe vestiu o casaco. Levantou-lhe os pés - apresentavam se frios, mas ainda não estavam congelados - e os esfregou com o casaco de Danny antes de calçar as botas. O rosto de Wendy estava pálido como alabastro, os olhos semicerrados e esgazeados, mas começara a tremer. Hallorann achou que era um bom sinal.
Atrás deles, uma série de três explosões levou o hotel pelos ares. Chamas alaranjadas iluminavam a neve.
Danny pôs a boca junto ao ouvido de Hallorann e gritou alguma coisa.
- O quê?
- Perguntei se precisava disso. - O menino apontava para a lata vermelha de gasolina tombada na neve.
- Acho que precisamos.
Apanhou-a e limpou-a. Não sabia dizer quanta gasolina ainda havia ali. Prendeu a lata na traseira do snowmobile, atrapalhando-se várias vezes até encaixá-la corretamente, pois os dedos estavam ficando dormentes. Pela primeira vez percebeu que perdera as luvas de Howard Cottrell.
(quando me livrar disso vou pedir à minha irmã para tricotar uma dúzia pra você, howie)
- Suba! - gritou Hallorann para o menino.
- Vamos nos congelar! - gritou Danny em resposta.
- Temos que passar pelo depósito! Há coisas por lá. cobertores. . coisas assim. Fique atrás de sua mãe!
Danny subiu, e Hallorann virou a cabeça para poder gritar no rosto de Wendy.
- Sra. Torrance! Segure-se em mim! Está me entendendo? Segure-se!
Ela pôs os braços em volta dele e descansou o rosto em suas costas. Hallorann ligou o snowmobile e apertou o acelerador delicadamente para que não sacudisse. A mulher segurava-se nele, sem forças, e se ela tombasse para trás, seu peso derrubaria tanto ela quanto o menino.
Começaram a se pôr em movimento. Ele fez um círculo com o snowmobile, tomando uma paralela a oeste do hotel. Hallorann entrou mais, para circular os fundos do depósito.
Viram momentaneamente o saguão do Overlook. A chama saindo pelo chão rachado como uma vela gigante de um bolo de aniversário, amarela no corpo e azul nas pontas. Naquele momento, parecia estar apenas iluminando, não destruindo. Viam o balcão da recepção com a campainha prateada, os decalques de cartões de crédito, a caixa registradora antiga, os pequenos tapetes, as cadeiras de espaldar alto, as almofadas de crina. Danny via o pequeno sofá junto à lareira onde as três freiras sentaram no dia que chegaram. . último dia. Mas este era o verdadeiro último dia.
Depois, o monte na varanda bloqueou o olhar. Minutos após, passavam pelo lado oeste do hotel. ainda havia luz suficiente para se enxergar sem o farol do snowmobile. Os dois andares superiores estavam agora em chamas, e flâmulas de fogo se agitavam nas janelas. A tinta branca começara a escurecer e derreter. As cortinas que cobriam as janelas da suíte presidencial - cortinas que Jack cuidadosamente fechara de acordo com instruções recebidas em meados de outubro - eram agora chamas que expunham a ampla escuridão por trás, como uma boca desdentada bocejando num último e silencioso extertor de morte.
Wendy apertou o rosto nas costas de Hallorann para se proteger do vento, e Danny também apertou o rosto nas costas da mãe, e portanto foi apenas Hallorann que viu o desfecho, e ele nunca tocou no assunto. Pensou ver uma coisa imensa e escura saindo da janela da suíte presidencial e encobrindo o campo de neve que ficara para trás. Por um momento, a coisa assumiu a forma de uma arraia imensa, e depois o vento pareceu apanhá-la, rasgá-la e picá-la como papel velho. Fragmentou-se, foi apanhada por um redemoinho de fumaça, e minutos depois desapareceu como se nunca tivesse existido. Mas nesses poucos segundos em que rodopiara escura, dançando como grãos de sombras, Hallorann lembrou-se de algo de sua infância. . . há cinqüenta anos ou mais. Ele e o irmão descobriram um imenso ninho de vespas ao norte de sua fazenda. Estava enfiado no espaço entre a terra e uma árvore velha partida por um raio. Seu irmão tinha uma cabeça-de-negro na aba do chapéu, guardada desde o 4 de Julho. Acendera-a e a jogara no ninho. Ex. plodira com um som alto, e um zumbido - quase um grito surdo - ergueu-se do ninho destruído. Ambos correram como se demônios estivessem em seu encalço. De certo modo, Hallorann supôs que eram demônios. E olhando para trás, como estava agora, vira, naquele dia, uma nuvem escura de diabinhos se erguendo no ar quente, rodopiando, desintegrando-se, procurando pelo inimigo que fizera isso com sua casa, para - a única inteligência grupal - picarem-no até a morte.
Depois, a coisa no céu desapareceu, e pode ser até que tenha sido fumaça e um pedaço de papel de parede, e havia apenas o Overlook, uma pira ardente na boca da noite.
Havia uma chave do depósito em seu chaveiro, mas Halorann viu que não havia necessidade de usá-la. A porta estava entreaberta, o cadeado pendurado, aberto.
- Não posso entrar lá - sussurrou Danny.
- Está bem. Fique com sua mãe. - Havia ali uma pilha de cobertores velhos. Provavelmente comidos pelas traças, mas é melhor do que morrer de frio. - Sra. Torrance, tudo certo?
- Não sei - respondeu uma voz fraca. - Acho que sim.
- Ótimo. Volto já.
- Volte o mais rápido que puder - sussurrou Danny. - Por favor.
Hallorann meneou a cabeça. Dirigira o farol para a porta e agora andava desajeitadamente pela neve, formando uma sombra comprida à sua frente. Abriu a porta do depósito e entrou. Os cobertores ainda estavam no canto, junto ao jogo de roque. Apanhou quatro - cheiravam a mofo e a coisa velha, e as traças certamente estavam-se banqueteando - e então parou.
- Um dos tacos de roque não estava ali.
(Foi com isso que ele me agrediu?)
Bem, não importava com o que fora agredido, importava? Mas seus dedos passearam pela face e começaram a explorar a inchação. Seiscentos dólares de tratamento dentário jogados fora numa única pancada. E afinal de contas
(talvez ele não tenha me agredido com um desses. Talvez um esteja perdido. Ou roubado. Ou levado como lembrança. Afinal de contas)
não importava. Ninguém iria jogar roque aqui no próximo verão. Ou em qualquer verão num futuro previsto.
Não, na realidade não importava, mas olhar para o porta-tacos com a falta de apenas um proporcionava uma espécie de fascinação. Viu-se pensando no uac! da cabeça do taco atingindo a bola de madeira. Um som gostoso de verão. Observá-lo roçando pelo
(osso, sangue)
cascalho. Conjeturando imagens de
(osso, sangue)
chá gelado, cadeiras de balanço na varanda, senhoras com chapéus de palha brancos, o zumbido de mosquitos, e
(meninos levados que não seguem os regulamentos.)
tudo isso. Claro. Jogo gostoso. Fora de moda agora, mas. gostoso.
- Dick? - A voz era fina, desvairada, e, em sua opinião, desagradável. - Você está bem? Venha, agora. Por favor!
(saia agora seu preto o senhor o está chamando.)
Apertou a mão num dos cabos de taco, gostando da sensação.
(sem pancada, não se educa uma criança.)
Seus olhos ficaram parados na escuridão. Realmente, estaria prestando aos dois um favor. Ela estava se acabando. . . de dor. . . e a maior parte
(tudo)
foi culpa daquele menino desgraçado. Claro. Deixara seu próprio pai lá queimando. Quando se pensa nisso, vê-se que está muito próximo de assassinato. Chamam a isso parricídio. Coisa desgraçadamente sórdida.
- Sr. Hallorann? - A voz dela era baixa, fraca, queixosa. Não gostava muito do som.
- Dick! - O menino agora soluçava de pavor.
Hallorann tirou o taco do cavalete e se voltou para a luz do farol do snowmobile, Os pés arranhavam as tábuas do depósito, como os pés de um brinquedo de corda posto em movimento.
De repente parou, olhando perdido para o taco em sua mão, e se perguntando, com crescente terror, o que estivera pensando em fazer. Assassinato? Pensara em assassinato?
Por um momento, toda a sua mente foi tomada por uma voz zangada, um pouco insolente:
(Faça-o! Faça-o, seu negro castrado! Mate-os! MATE OS DOIS!)
Então, derrubou o taco para trás com um grito baixo e horrorizado. Bateu no canto onde os cobertores estavam, uma das cabeças voltadas para ele, num convite mudo.
Ele voou.
Danny estava sentado no assento do snowmobiie e Wendy se segurava nele sem força. O rosto estava banhado de lágrimas, e o menino tremia como se estivesse com febre. Entre os dentes trincados, disse:
Onde o senhor estava? Nós ficamos com medo.
- E um bom lugar para se ter medo - falou Hallorann, devagar. - Mesmo que esse lugar queime até os alicerces, nunca vão conseguir trazer-me nem a duzentos quilômetros daqui. Tome, Sra. Torrance, enrole-se nestes cobertores. Vou ajudar. Você também, Danny. Vista-se como árabe.
Enrolou dois cobertores em Wendy, ajeitando um deles num capuz para cobrir-lhe a cabeça, e ajudou Danny a amarrar o seu para não cair.
- Agora, fé em Deus e pé na tábua - disse. - Temos muito chão pela frente, mas o pior já passou.
Deu a volta no depósito e dirigiu o snowmobile para sua trilha. O Overlook era uma tocha agora, apontada para o céu. Buracos grandes foram abertos dos lados, e havia um inferno lá dentro. A neve derretida corria como quedas-d’água.
Deslizaram pelo caminho iluminado. As dunas de neve estavam vermelhas.
- Veja! - gritou Danny, quando Hallorann diminuiu a velocidade no portão da frente. O menino apontava para o playground.
As criaturas de arbustos estavam todas em suas posições primitivas, mas estavam nuas, pretas, chamuscadas. Seus galhos mortos eram uma perfeita rede de fogo, suas folhas pequeninas espalhadas em volta dos pés como pétalas caídas.
- Estão mortos! - gritou Danny, com um triunfo histérico na voz. - Mortos! Eles estão mortos!
- Chhhh - fez Wendy. - Muito bem, meu amor. Muito bem.
- Ei, doutor - disse Hallorann. - Vamos para um lugar quentinho. Está pronto?
- Estou - murmurou Danny. - Já faz tanto tempo que estou...
Hallorann esgueirou-se pela abertura do portão. Um momento depois, estavam na estrada, na direção de Sidewinder. •O ruído do motor do snowmobile diminuiu até se perder no incessante rugir do vento. Chocalhava sobre os galhos desnudos dos animais de arbusto num som baixo e desolador. O fogo aumentava e diminuía. Algum tempo depois que o ruído do snowmobile desapareceu, o telhado do Overlook desabou - primeiro o da ala oeste, depois o da leste e, segundos depois, o telhado central. Uma imensa espiral de fagulhas e chamas subia na noite de inverno.
Um feixe de telhas em chamas e de caibros quentes foi arrastado pelo vento, entrando no depósito aberto.
Depois de algum tempo, o depósito também começou a queimar.
Encontravam-se ainda a trinta e cinco quilômetros de Sidewinder, quando Hallorann parou para colocar o resto da gasolina no tanque do snowmobile. Estava muito preocupado com Wendy Torrance, que parecia estar desfalecendo. ainda faltava um longo caminho.
- Dick! - gritou Danny. Estava de pé no assento, apontando. - Dick, veja! Olhe lá!
A neve cessara e uma lua cheia espreitava pelas nuvens. Lá embaixo, mas em sua direção, subindo por uma série de esses, estava uma corrente iluminada como um colar de pérolas. O vento diminuiu por um momento, e Hallorann ouviu o zumbido distante de motores de snowmobiles.
Hallorann, Danny e Wendy alcançaram-nos em quinze minutos. Haviam trazido roupas, conhaque e remédio.
E a longa escuridão terminara.
Depois de ter acabado de examinar as saladas que sua eventual substituta fizera, e de beliscar o feijão à moda da casa que serviam como abertura nesta semana, Hallorann tirou o avental, pendurou-o num gancho e saiu pela porta dos fundos. Tinha talvez quarenta e cinco minutos, antes que tivesse que se preparar mesmo, para jantar.
O nome desse lugar era Hospedaria Red Arrow, e estava cravada nas montanhas a oeste do Maine, a cinqüenta quilômetros da cidade de Rangely. Era um bom negócio, pensou Hallorann. O movimento não era pesado, as gorjetas ajudavam, e até então nenhuma refeição tinha sido devolvida. Nada mal, considerando-se que a estação estava chegando ao fim.
Passou pelo bar ao ar livre e pela piscina (apesar de não entender como alguém poderia usar a piscina, com o lago tão pertinho), atravessou um gramado onde um grupo de quatro pessoas jogava croqué e ria, e subiu uma colina. Ali, os pinheiros se espalhavam, e o vento sussurrava agradavelmente entre eles, trazendo o aroma de abeto e resina doce.
Do outro lado, algumas cabanas com vista para o lago estavam discretamente colocadas entre as árvores. A última era a mais bonita, e Hallorann a reservara para duas pessoas em abril, quando adquiriu o lugar.
A mulher estava sentada na varanda numa cadeira de balanço, com um livro nas mãos. Hallorann assustou-se novamente com a mudança dela. Uma coisa era a maneira rígida, quase cerimoniosa de se sentar, apesar do ambiente informal - forçada, naturalmente, pelo colete ortopédico. Ela tivera uma vértebra e três costelas quebradas e danos internos. As costas eram de cicatrização mais lenta, e ela ainda estava no colete. . . daí a postura formal. Mas a mudança era mais do que isso. Parecia mais velha, e parte da alegria desaparecera de seu rosto. Agora, enquanto lia o livro, Hallorann viu ali uma beleza sóbria, que faltava no dia em que se conheceram, há uns nove meses. Na época, ela era apenas uma menina. Agora, uma mulher, um ser humano que fora arrastado para o lado escuro da Lua e voltara capaz de juntar os pedaços. Mas esses pedaços, pensou Hallorann, nunca mais se encaixarão perfeitamente. Nunca, nunca mais.
Ela ouviu os passos de Hallorann e levantou os olhos, fechando o livro.
- Dick! Oi! - Começou a se levantar e uma careta de dor passou por seu rosto.
- Não, não se levante - disse ele. - Não me levanto em nenhuma cerimônia, a não ser que seja a rigor.
Sorriu quando ele subiu os degraus e se sentou ao lado dela na varanda.
- Como vão as coisas?
- Bem - admitiu Hallorann. - Experimente o camarão crioulo hoje à noite. Vai gostar.
- Combinado.
- Onde está Danny?
- Lá embaixo. - Apontou, e Hallorann viu uma figurinha sentada na ponta do ancoradouro. Usava jeans enrolados até os joelhos e uma camisa de listras vermelhas. Mais adiante, na água calma, uma bóia flutuava. De vez em quando, Danny enrolava a linha, observava o anzol, e depois o atirava na água novamente.
- Está ficando preto - disse Hallorann.
- Está. Muito preto. - Olhou-o contente.
Ele apanhou um cigarro, bateu e acendeu. A fumaça passeou preguiçosa na tarde ensolarada.
- E os sonhos que ele tem tido?
- Têm melhorado - disse Wendy. - Só um esta semana. Costumava ser toda noite, às vezes duas ou três vezes. As explosões. Os arbustos. E principalmente. . . você sabe.
- Sim. Ele vai melhorar, Wendy.
Ela olhou para ele.
- Vai? Não sei.
Hallorann meneou a cabeça.
- Você e ele, vocês estão melhorando. Diferentes, talvez, mas estão melhorando. Não são o que foram, vocês dois, mas isso não é necessariamente ruim.
Ficaram calados por algum tempo, Wendy balançando levemente a cadeira, Hallorann com os pés na cerca da varanda, fumando. Uma brisa subiu, abrindo seu caminho secreto pelos pinheiros, mas quase sem agitar o cabelo de Wendy. Ela o cortara.
- Resolvi aceitar a oferta de Al. .. Sr. Shockley - disse.
Hallorann balançou a cabeça.
- Parece um bom emprego. Alguma coisa em que se interessar. Quando começa?
- Logo depois do Dia do Trabalho. Quando Danny e eu sairmos daqui, iremos direto a Maryland procurar um lugar. Foi na verdade o panfleto da Câmara de Comércio que me convenceu, você sabe. Parece uma boa cidade para educar uma criança. E eu gostaria de estar trabalhando novamente antes que a gente entre muito no dinheiro do seguro que Jack deixou. ainda tenho mais de quarenta mil dólares. O bastante para mandar Danny para a universidade com uma boa sobra para ele poder começar a vida, se for bem investido.
Hallorann meneou a cabeça.
- E sua mãe?
Olhou-o e sorriu, abatida.
- Acho que Maryland é suficientemente distante.
- Não vai esquecer os velhos amigos, vai?
- Danny não me deixaria. Vá lá e fale com ele, está esperando o dia inteiro.
- Bem, eu também. - Levantou-se e ajeitou a roupa branca de cozinheiro nos quadris. - Vocês dois vão melhorar
- repetiu. - Dá para sentir?
Levantou os olhos para ele e, desta vez, o sorriso foi mais simpático.
- Sim - respondeu Wendy, tomando a mão dele e a beijando. - As vezes, acho que estou melhorando.
- O camarão crioulo - disse ele, indo para os degraus.
- Não esqueça.
- Não esquecerei.
Desceu a ladeira de cascalho que levava ao ancoradouro e depois tomou as tábuas, castigadas pelo tempo, até o final, onde Danny estava sentado, com os pés na água clara. Adiante, o lago largo, refletindo os pinheiros nas margens. O terreno era montanhoso por ali, mas as montanhas eram antigas, arredondadas e rebaixadas pelo tempo. Hallorann gostava delas.
- Já pegou muitos? - indagou Hallorann, sentando-se ao lado do garoto. Tirou um sapato, depois o outro. Com um suspiro, mergulhou os pés quentes na água fria.
- Não. Mas senti uma mordida, faz pouquinho.
- Amanhã de manhã, vamos passear de barco. Tem que ir para fora, se quiser apanhar peixe, meu rapaz. Os grandões estão lá longe.
- Grandes como?
Hallorann encolheu os ombros.
- Oh. . . tubarões, marlins, baleias, esse tipo de coisa.
- Não há nenhuma baleia!
- Baleia-azul, não. Claro que não. Estas daqui não vão a mais de vinte e cinco metros. Baleias rosadas.
- Como podem chegar aqui, vindo do mar?
Hallorann pôs a mão no cabelo louro-avermelhado do menino e o sacudiu.
- Nadam corrente acima, meu rapaz. É assim.
- Verdade?
- Sim.
Ficaram calados durante muito tempo, observando a calmaria, e Hallorann apenas pensando. Quando olhou de volta para Danny, viu que os olhos do garoto estavam cheios de lágrimas. Abraçando-o, disse:
- O que é isso?
- Nada - sussurrou Danny.
- Está com saudade de seu pai, não está?
Danny meneou a cabeça.
- Você sempre sabe. - Uma lágrima rolou do olho direito.
- Não podemos ter segredos - concordou Hallorann. - assim mesmo.
Olhando para a vara, Danny disse:
- Às vezes, fico pensando que seria melhor se fosse comigo. Foi minha culpa. Toda minha.
- Você não gosta de falar nisso na frente de sua mãe, não é?
- Não. Ela quer esquecer o que aconteceu. Eu também, mas.
- Mas não consegue.
- Não.
- Quer chorar?
O menino tentou responder, mas as palavras foram engolidas por um soluço. Encostou a cabeça no ombro de Hallorann e chorou, as lágrimas agora lavando seu rosto. Hallorann segurou-o sem dizer nada. O menino teria que derramar suas lágrimas várias vezes, ele sabia, e Danny tinha sorte em ser jovem ainda para poder chorar. As lágrimas que curam são também lágrimas que escaldam e castigam.
Quando ele se acalmou um pouco, Hallorann disse:
- Você vai passar por cima disso. Não lhe parece, agora, mas irá. Você é ilu...
- Eu queria não ser! - falou Danny, sufocado, a voz ainda grossa com as lágrimas. - Eu queria não ser!
- Mas é - disse Hallorann, com calma. - Queira ou não queira. Independe de sua vontade, menininho. Mas o pior já passou. Pode usar sua luz para conversar comigo, quando as coisas ficarem feias. E, se ficarem muito feias, simplesmente me chame e eu irei a seu encontro.
- Mesmo se eu estiver lá em Maryland?
- Mesmo lá.
Ficaram em silêncio, observando a bóia de Danny se mover a cerca de dez metros do ancoradouro. Depois, Danny disse, baixinho:
- Vai ser meu amigo?
- Se me quiser.
O menino apertou-o e Hallorann o abraçou.
- Danny? Ouça. Vou falar-lhe sobre isso pela primeira e última vez. Há coisas que não se devem dizer nem a um menino de sessenta anos; mas o modo como as coisas devem ser e como são na realidade dificilmente coincide. O mundo é um lugar duro, Danny. Não se importa com a gente. Não odeia você nem a mim, mas também não morre de amor por nós. Coisas terríveis acontecem no mundo, e são coisas que ninguém pode explicar. Indivíduos bons morrem de forma ruim e dolorosa e deixam as pessoas que os amam sozinhas. As vezes, parece que só as pessoas ruins permanecem sadias e prósperas. O mundo não ama você, mas sua mãe o ama e eu também. Você é um bom menino. Angustia-se pela morte de seu pai e, quando sente que precisa chorar pelo que aconteceu com ele, esconde-se num armário ou debaixo das cobertas e chora até que saia tudo de dentro de você novamente. É isso que um bom filho deve fazer. Mas, veja, você continua vivendo. É sua obrigação, neste mundo duro, manter viva a chama do amor e ver que continua vivendo, não importa como. Seja um bom artista e continue.
- Está bem - murmurou Danny. - Virei vê-lo no verão que vem, se quiser. . . se não se importar. No próximo verão, já vou ter sete anos.
- E eu sessenta e dois. E vou arrancar-lhe os miolos pelos ouvidos de tanto abraço. Mas vamos deixar um verão terminar para planejarmos o outro.
- OK. - Olhou para Hallorann. - Dick?
- Hummm?
- Você ainda vai viver muito, não vai?
- Não estou pensando nisso. Você está?
- Não, senhor. Eu...
- Morderam a isca, filhinho - falou Hallorann, apontando para o lago. Uma bóia vermelha e branca afundara. Subiu novamente faiscando, e desceu outra vez.
- Ei! - exclamou Danny.
Wendy descera e se juntara a eles, de pé, atrás do filho.
- O que é? - perguntou. - Lúcio?
- Não, senhora - respondeu Hallorann. - Acho que é uma baleia rosada.
A vara envergou. Danny puxou-a, e um peixe comprido e colorido cintilou, rápido, e sumiu novamente.
Danny enrolou o carretel freneticamente, arquejando.
- Ajude-me, Dick! Peguei! Peguei! Ajude-me!
Hallorann riu.
- Está indo muito bem sozinho, homenzinho. Não sei se é uma baleia rosada ou uma truta, mas qualquer uma serve. Qualquer uma virá a calhar.
Pôs um braço em volta de Danny, e o menino ficou enrolando o carretel pouco a pouco. Wendy sentou-se do outro lado de Danny, e os três estavam na ponta do ancoradouro sob o sol da tarde.
Stephen King
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