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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O IMIGRANTE FELIZ / Mario Puzo
O IMIGRANTE FELIZ / Mario Puzo

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O IMIGRANTE FELIZ

 

Larry Angeluzzi esporeou briosamente seu cavalo preto retinto, em meio a um barranco formado por dois grandes muros de tijolos, e no pé de cada muro, ilhadas em suas calçadas separadas cinza-azuladas, as crianças pararam de brincar para contemplá-lo com muda admiração. Ele formou um grande arco com o foco de luz de sua lanterna vermelha; faíscas saltavam dos cascos de ferro de seu cavalo, quando batiam nos trilhos do trem, iluminando as pedras da Décima Avenida, e seguindo lentamente o cavalo, o cavaleiro e a lanterna vinha o comprido trem de carga, aproximando-se vagarosamente da estação terminal do St. John's Park, na Rua Hudson.

Em 1928, a Estrada de Ferro Central de Nova York utilizava as ruas da cidade para estabelecer a ligação ferroviária urbana entre as zonas Norte e Sul, mandando "batedores" a cavalo para alertar o tráfego. Daí a mais alguns anos isso terminaria, construindo-se uma passagem elevada. Mas Larry Angeluzzi, sem saber que era o último dessa classe de "batedores", que dentro em pouco seria apenas uma apagada recordação da história da cidade, cavalgava tão ereto e arrogante como qualquer vaqueiro do Oeste. Suas esporas eram brancas, sapatos de tênis pesados, usava um boné pontudo enfeitado com botões característicos. Suas calças azuis eram presas no tornozelo com brilhantes pregadores metálicos de ciclista.

Larry galopava na noite quente de verão, seu deserto era uma cidade de pedra. Mulheres tagarelavam sentadas em caixotes de madeira, homens postados nas esquinas tiravam baforadas de seus charutos, crianças arriscavam a vida numa brincadeira perigosa, deixando suas ilhas cinza-azuladas para subir no trem de carga em movimento. Todos se moviam à luz amarela esfumaçada dos postes e das lâmpadas esbranquiçadas das vitrinas das confeitarias. Em cada cruzamento, uma brisa fresca proveniente da Décima Segunda Avenida, margem de concreto do rio Hudson, arejava o cavalo e o cavaleiro e refrescava a quente máquina preta que soltava apitos de advertência atrás deles.

Na Rua 27, o muro do lado direito de Larry Angeluzzi fora derrubado, deixando ver um quarteirão inteiro sem construções. No espaço vazio vislumbrava-se Chelsea Park apinhado de formas escuras acocoradas, crianças sentadas no chão para ver o cinema ao ar livre apresentado por uma associação local. Na distante e gigantesca tela branca, Larry Angeluzzi viu um monstruoso cavalo com seu cavaleiro, banhado em falsa luz solar, caindo estrepitosamente sobre ele, sentiu seu próprio cavalo levantar-se assustado quando a sua cabeça balançando deu com aqueles imensos fantasmas; depois, deixaram para trás o cruzamento da Rua 28, e o muro surgiu novamente.

Larry estava quase em casa. Havia a ponte de pedestres que ligava a Décima Avenida com a Rua 30; quando ele passasse por baixo dessa ponte, estaria em casa, sua tarefa cumprida. Ajeitou o boné, pondo-o numa posição mais elegante, e manteve-se ereto na sela. Todas as pessoas sentadas na calçada, da Rua 30 à Rua 31, eram parentes e amigos. Larry fez o cavalo galopar.

Passou velozmente sob a ponte, acenou para as crianças inclinadas no balaústre acima de sua cabeça. Fez o cavalo empinar-se para as pessoas que estavam na calçada à direita, depois virou o animal para a esquerda, na direção do pátio ferroviário aberto que formava uma grande planície de aço, cheia de faíscas, até o rio Hudson.

Atrás dele, a enorme máquina preta vomitava nuvens brancas de vapor, e, como por mágica, a ponte e as crianças desapareciam, deixando atrás de si alegres gritinhos de prazer que se elevavam até as pálidas, quase invisíveis, estrelas. O trem de carga fez uma curva e entrou no pátio, a ponte reapareceu, e um grande número de crianças molhadas disparou escada abaixo para correr ao longo da avenida.

Larry amarrou o cavalo no poste de madeira perto do barraco do guarda-chaves e sentou-se no banco existente do lado de fora. No outro lado da avenida, pintado numa tela plana, o mundo que ele adorava começava a surgir centímetro a centímetro.

A padaria intensamente iluminada ficava perto da esquina da Rua 30, o seu enfeitado balcão de sorvetes estava cercado de crianças. O próprio panettiere enchia de sorvete vermelho, amarelo e branco os copinhos de papel, de arestas brancas. Ele tirava conchadas fartas, pois era rico e até freqüentava as corridas de cavalos para esbanjar dinheiro.

Além da padaria, na direção da Rua 31, ficava o armazém de secos e molhados, com suas vitrinas cheias de queijos provolone, de casca amarela, brilhante e cerosa, peças de presunto e triângulos de carne pendurados em papel de cor alegre. Em seguida, vinha a barbearia, fechada para negócios mas aberta para o jogo de cartas, com o enciumado barbeiro mesmo agora atento a qualquer cabelo recentemente cortado que não tivesse a marca de sua tesoura. As crianças atulhavam a calçada, ativas como formigas, enquanto as mulheres, quase invisíveis em suas roupas pretas, formavam grupinhos escuros em frente à porta de cada cortiço. De cada grupinho um sussurro de conversa irritada se elevava para o céu de verão, estrelado.

O guarda-chaves nanico veio lá dos trilhos e disse:

— Não há mais trem hoje, garoto.

Larry desamarrou o cavalo, montou, depois fez o animal virar-se e empinar-se.

Quando o cavalo se ergueu no ar, a fila de cortiços, a muralha ocidental da grande cidade, inclinou-se na direção de Larry como uma frágil lona. Na janela aberta de sua própria casa, no último andar do cortiço bem em frente, Larry viu a forma escura do que devia ser seu irmãozinho Vincent. Larry acenou, mas não percebeu qualquer movimento em resposta enquanto não acenou outra vez. Na parede havia apenas algumas vidraças esparsas iluminadas por fraca luz amarela. Todo mundo estava lá embaixo na rua, todo mundo estava olhando para ele. O rapaz fustigou o pescoço do cavalo e começou a galopar pelas pedras da Décima Avenida em direção à cocheira da Rua 36.

Mais tarde, a noite mais avançada, quando Larry Angeluzzi selava seu cavalo em St. John's Park, sua mãe, Lucia Santa Angeluzzi-Corbo, mãe também de Octavia e Vincenzo Angeluzzi, viúva de Anthony Angeluzzi, agora mulher de Frank Corbo e mãe de seus três filhos, Gino, Salvatore e Aileen, preparava-se para deixar o seu apartamento vazio, fugir ao sufocante calor de verão, passar o serão com as vizinhas num animado bate-papo e, acima de tudo, vigiar os filhos brincarem na escuridão das ruas da cidade.

Lucia Santa estava como queria naquela noite, pois o verão era a melhor quadra do ano — as crianças nunca ficavam resfriadas ou com febre, não havia preocupações com agasalhos, luvas, botas para neve e mais dinheiro para as necessidades escolares. Todos procuravam jantar depressa para fugir dos cômodos abafados e ir com a alegria da vida para as ruas; não havia brigas noturnas. A casa facilmente se conservava limpa, pois estava sempre vazia. Mas o melhor para Lucia Santa era que suas noites eram livres; a rua era um lugar de encontros e o verão era um tempo em que os vizinhos se tornavam amigos. Agora, portanto, com o cabelo preto penteado em forma de coque, usando um vestido preto limpo, ela apanhou o tamborete da cozinha e foi descendo os quatro lances de escada para se sentar na calçada da avenida.

 

Cada cortiço era uma praça de aldeia; cada um tinha seu grupo de mulheres, todas de preto, sentadas em tamboretes e caixotes e indo mais além do que um simples bate-papo. Elas lembravam fatos passados, discutiam moral e lei social, sempre baseando seus precedentes na aldeia montanhosa do sul da Itália de onde haviam escapado, fugido, já fazia muitos anos. E com que se compraziam as suas imaginações preferidas! Ora: se os seus pais severos fossem transportados por um milagre para enfrentar os problemas que elas enfrentavam todo dia? Ou suas mães, de mãos ligeiras e pesadas? Que gritos, se elas como filhas tivessem a ousadia que tinham esses filhos americanos? Se elas se atrevessem!

As mulheres falavam de seus filhos como se estivessem falando de estranhos. Era um assunto preferido, a corrupção dos inocentes pela terra nova. Ora: Felicia, que morava na esquina da Rua 31. Que tipo de filha era essa que não interrompeu a lua-de-mel ao receber a notícia da doença da madrinha, sendo o recado enviado pela própria mãe? Uma verdadeira vagabunda. Não, não, elas não estavam usando de rodeios. A própria mãe de Felicia contara a história. E aquele filho, pobre rapaz, que não podia esperar um ano mais para se casar como o pai mandou? Arre, que falta de respeito! Figlio disgraziato. Isso jamais poderia acontecer na Itália. O pai mataria o filho. E a filha? Na Itália — a mãe de Felicia garantiu com a voz ainda tremendo de fúria, embora isso tudo tivesse ocorrido havia três anos, a madrinha tivesse se restabelecido, os netos fossem a alegria de sua vida — ah, na Itália a mãe arrancaria a vagabunda de seu leito nupcial e a arrastaria pelos cabelos até a cama do hospital. Ah, Itália, Itália... como o mundo tinha mudado e para pior! Que loucura as havia levado a deixar uma terra como aquela, onde os pais mandavam e as mães eram tratadas com respeito pelos filhos?

Cada uma, por sua vez, contava uma história de insolência e rebeldia, todas elas heroínas e sofredoras, enquanto os filhos cuspiam o diabo, livres da aplicação da disciplina italiana — a correia de amolar navalha ou o rolo de macarrão. E no fim de cada história cada mulher proferia sua praga. Mannaggia America! — Maldita América! Mas na noite quente de verão suas vozes estavam cheias de esperanças, com um vigor jamais ouvido na pátria distante. Agora ali havia dinheiro no banco, filhos que sabiam ler e escrever, netos que se tornariam professores se tudo corresse bem. Elas falavam com uma fidelidade compungida de costumes que elas mesmas haviam reduzido a pó.

A verdade era a seguinte: essas mulheres rústicas, das regiões montanhosas da Itália, cujos pais e avós haviam morrido no mesmo quarto em que tinham nascido, essas mulheres amavam o ruído estridente de aço e pedra da grande cidade, o barulho dos trens no pátio ferroviário do outro lado da rua, as luzes das Paliçadas lá longe, na outra margem do Hudson. Como crianças, viveram na solidão, numa terra tão pobre que as pessoas se espalhavam isoladamente pelas encostas das montanhas para procurar um meio de vida.

A audácia as havia libertado. Eram pioneiras, embora nunca andassem na planície americana e nunca sentissem realmente o solo em que pisavam. Viviam num ambiente mais lúgubre, onde a língua era estranha, onde os filhos se tornavam membros de uma raça diferente. Era o preço que tinham de pagar.

Durante todo esse tempo, Lucia Santa permaneceu calada. Esperava a sua amiga e aliada, Zia Louche. Descansava, poupando energia para as longas horas de discussão alegre que teria de enfrentar daí a pouco. Ainda estava no começo da noite, e elas não voltariam para casa antes de meia-noite. Os quartos não estariam frescos antes disso. Ela cruzou as mãos no colo e virou o rosto para a brisa suave que soprava do rio lá da Décima Segunda Avenida.

Uma pequena mulher, graciosa e rechonchuda, Lucia Santa estava no máximo no que diz respeito à saúde, mental e física; era corajosa e não tinha medo da vida e de seus perigos. Mas não era estouvada nem imprudente. Era forte, experiente, precavida e perspicaz, bem preparada para a grande responsabilidade de educar uma família grande para a maturidade e a liberdade. A sua única fraqueza era a falta dessa dose natural de astúcia e sagacidade que vale muito mais para as pessoas do que a virtude.

Quando tinha apenas 17 anos, mais de 20 anos atrás, Lucia Santa partira de sua casa na Itália. Viajara os cinco mil quilômetros de oceano profundo para um país e povo estranhos e começara a vida com um homem que ela conhecera apenas quando brincavam juntos como crianças inocentes.

Balançando a cabeça ante a sua própria loucura, embora com orgulho, ela contara a história várias vezes.

Chegou a hora em que o seu pai, com austera piedade, disse a ela, sua filha predileta, que ela não podia contar com o enxoval de noiva. Suas terras eram muito pobres. Havia dívidas. A vida prometia ser ainda mais dura. Assim era. Ela só podia esperar encontrar um marido louco de amor.

Naquele momento ela perdeu todo o respeito por seu pai, por sua casa, por sua pátria. Uma noiva sem enxoval era uma coisa vergonhosa, tão vergonhosa como uma noiva que se levantasse do leito nupcial sem manchas de sangue; pior ainda, pois não podia haver recurso para a astúcia, para que a noite de núpcias ocorresse perto do período de menstruação. E mesmo isso os homens perdoavam. Mas que homem aceitaria uma esposa com o estigma da pobreza irremediável?

Só os pobres compreendem a vergonha da pobreza, maior do que a vergonha do maior pecador. Pois o pecador, vencido pelo seu próprio outro eu, é, em certo sentido, o vitorioso. Mas os pobres são realmente derrotados: pelo seu mundo, pelos seus padrones, pela fortuna e pelo tempo. São mendigos sempre necessitando de caridade. Para os pobres que têm sido pobres há séculos, a nobreza do trabalho honesto é uma lenda. As suas virtudes os levam à humilhação e à vergonha.

Mas Lucia Santa não tinha para quem apelar, embora o seu grande furor de adolescente persistisse. Então veio uma carta da América; um rapaz da fazenda vizinha, seu companheiro quando ambos eram crianças pequenas, escreveu pedindo-lhe que fosse unir-se a ele na terra nova. Tudo foi feito corretamente através dos pais de ambos. Lucia Santa procurava lembrar-se da cara do rapaz.

E assim, num ensolarado dia italiano, Lucia Santa e duas outras moças foram levadas à pretoria e depois à igreja pelos seus chorosos pais, tias e irmãs. As três jovens embarcaram num navio, casadas por procuração, viajando de Nápoles para Nova York, e americanas, por lei.

 

Como num sonho, Lucia Santa entrou numa terra de pedra e aço, dormiu nessa mesma noite com um estranho que era seu marido legal, deu dois filhos a esse estranho e estava grávida do terceiro quando ele negligentemente deixou-se matar num desses acidentes que fizeram parte da construção do novo continente. Ela aceitou tudo isso sem queixa. Na verdade, lamentou o fato, mas isso não era a mesma coisa; ela apenas pediu misericórdia ao destino.

Então, como uma viúva grávida, ainda jovem, sem ninguém para quem apelar, ela jamais sucumbiu ao terror, ao desespero. Tinha uma força enorme, não rara nas mulheres, para suportar a adversidade. Mas ela não era de pedra. O destino não a fizera rancorosa; isso ficava por conta das amigas e vizinhas — essas mesmas vizinhas com quem tão intimamente passava as noites de verão.

Ah, as esposas jovens, as mães jovens, todas as italianas jovens numa terra estranha! Que companheiras que eram! Como corriam para os apartamentos umas das outras, subindo e descendo as escadas dos cortiços contíguos!

— Cara Lucia Santa, prove este prato especial — dizia uma, oferecendo uma travessa de salsicha nova, torta de Páscoa com semente de trigo e queijo e uma crosta recoberta de ovos, ou ravióli bem recheado para o dia do santo da família, com um molho especial de carne e tomate. Que alvoroço, que cortesia e xícaras de café e confidências e promessas para ser madrinha da criança que ainda estava para nascer! Mas depois da tragédia, depois da compaixão e condolências iniciais, a verdadeira face da vida se apresentou a Lucia Santa.

Os cumprimentos passaram a ser frios, as portas viviam fechadas, as madrinhas em perspectiva desapareceram. Quem queria ser amiga de uma viúva jovem e robusta? Os maridos eram fracos, haveria pedidos de auxílio. A vida nos cortiços era muito íntima; uma mulher jovem sem um homem era uma coisa perigosa. Ela podia arrancar dinheiro e bens como a sanguessuga chupa sangue. Não faziam aquilo por malícia, apenas mostravam a prudência dos pobres, tão fácil de ser ridicularizada quando não se compreende o temor que está em sua raiz.

Uma amiga permaneceu fiel. Zia Louche, uma viúva velha, sem filhos, veio ajudar, tornou-se madrinha, quando o menino sem pai, Vincenzo, nasceu, e comprou para o afilhado um lindo relógio de ouro, quando ele foi crismado, de forma que Lucia Santa pôde manter a cabeça erguida, pois um presente tão valioso era um sinal de respeito e fé. Mas Zia Louche foi a única, e, quando passou o tempo do luto, Lucia Santa começou a ver o mundo de um modo novo e mais arguto. O tempo cicatrizara as feridas e agora elas todas eram amigas novamente. Talvez — quem sabe? — a jovem viúva tivesse sido muito precipitada em seu julgamento, pois essas mesmas vizinhas, na verdade, no próprio interesse delas, ajudaram-na a encontrar um segundo marido que daria comida e roupa a seus filhos. Houve um casamento na igreja. Essas mesmas vizinhas ofereceram-lhe uma formidável festa de casamento. Mas Lucia Santa nunca mais se deixou enganar pelo mundo.

 

E assim, naquela opressiva noite de verão, com a sua primeira fornada de filhos já crescidos e garantidos, a segunda fornada não mais crianças de colo, com exceção de Lena, e com algum dinheiro na caixa econômica; agora, depois de 20 anos de luta e uma boa parcela de sofrimento, Lucia Santa Angeluzzi-Corbo estava naquela pequena elevação de prosperidade que os pobres alcançam, e alcançam com tamanho esforço que acreditam que a luta foi ganha e que com o cuidado normal estão garantidos. Ela já tinha vivido uma existência; a história tinha acabado.

 

Bastava. Lá vinha Zia Louche, para completar a roda. Lucia Santa prestou atenção, pronta para entrar no tumulto da conversa. Mas avistou a filha, Octavia, vindo da esquina da Rua 30, passando pelo panettiere e sua caixa vermelha de pizza e latas claras de sorvete de limão. Depois Lucia Santa perdeu a filha de vista; por um momento ofuscante, os seus olhos ficaram radiantes com a visão da tina de madeira do panettiere, transbordando de moedas de cobre vermelho e cintilantes pratas de 10 centavos de dólar e outros valores. Ela sentiu um rápido e ardente impulso de raiva ao pensar que nunca poderia possuir tal tesouro e que aquele padeiro tão feio achasse a fortuna tão generosa. Depois avistou a mulher do panettiere — velha, de bigode, já incapaz de ter filhos — tomando conta daquela tina de madeira cheia de cobre e prata, com os seus olhos enrugados de dragão vomitando fogo na noite de verão.

Lucia Santa sentiu Octavia sentar-se a seu lado no tamborete; suas ancas e coxas se tocaram. Isso sempre a irritava, mas a filha se ofenderia se ela se movesse, por isso se conformou com a situação. Vendo a filha tão singularmente bela, vestida à moda americana, ela sorriu para a velha companheira Zia Louche de um modo que denotava orgulho e uma ponta de ironia. Octavia, respeitosamente calada e atenta, percebeu aquele sorriso e o compreendeu muito bem, embora ficasse mais uma vez confusa quanto à índole da mãe.

Como se a mãe pudesse compreender que Octavia queria ser tudo que aquelas mulheres não eram! Com a sua tola e transparente esperteza de jovem, usava um vestido azul que lhe ocultava o busto e tornava quadrada a redondeza de seus quadris. Usava luvas brancas, como a sua professora costumava fazer. Seus supercílios eram espessos e pretos, honestamente conservados sem que ela se preocupasse em arrancar um fio sequer. Desesperadamente, ela comprimia os lábios vermelhos com um rigor imaginário, com os olhos tranqüilamente sérios — e tudo para ocultar a ofegante sensualidade que era a ruína das mulheres que a cercavam. Pois Octavia raciocinava que satisfazer à terrível e atroz necessidade aplacava todas as outras necessidades, e ela sentia uma piedade espantosa por essas mulheres encantadas numa servidão real pelos filhos e os prazeres desconhecidos do leito nupcial.

Isso não seria o seu destino. Ela estava sentada com a cabeça abaixada, ouvindo, como Judas; fingindo ser fiel, planejava traição e fuga.

Agora somente com mulheres em torno, Octavia tirou o casaco; a blusa branca com o seu lacinho de fita vermelha era mais sedutora do que ela poderia pensar. Nenhum disfarce conseguiria ocultar a forma redonda de seu busto. O rosto sensual, a coroa de ondas e cachos azul-escuros de seu cabelo, grandes olhos lacrimosos, tudo zombava da sobriedade de seu vestido. Com malícia ela não poderia tornar-se mais provocante do que fizera com sua inocência.

Lucia Santa pegou o casaco e dobrou-o sobre o braço, um gesto de amor tipicamente maternal, que significava posse e domínio. Mas, acima de tudo, um gesto de reconciliação, pois um pouco antes, ao anoitecer, mãe e filha tinham discutido.

Octavia queria ir para a escola noturna, estudar para ser professora. Lucia Santa recusou dar permissão. Não; ela ficaria doente se trabalhasse e fosse para a escola.

— Por quê? Por quê? — perguntara a mãe. — Você, uma costureira tão boa, ganha bastante dinheiro.

A mãe se opunha por simples superstição. Esse rumo era conhecido. A vida era azarada, a pessoa que seguia um caminho novo corria perigo, ficava à mercê do destino. A filha era muito jovem para entender.

Inesperadamente, Octavia dissera com arrogância:

— Eu quero ser feliz.

Isso enfurecera tremendamente Lucia Santa, que sempre defendera os modos irritantes da filha, a escolha de seus livros, suas roupas talhadas de maneira afetada. A mãe imitara Octavia no inglês perfeito de uma mocinha frívola, dizendo:

—   Você quer ser feliz.

Depois acrescentara em italiano, com extrema seriedade:

— Graças a Deus você está viva.

 

No ar fresco da noite, Octavia aceitou o gesto de pacificação da mãe, sentada graciosamente, com as mãos cruzadas no colo. Lembrando-se da discussão, ela meditava no mistério de sua mãe falar inglês perfeito quando imitava os filhos. Pelo canto do olho, Octavia viu Guido, um rapaz moreno filho do panettiere, acenando através da noite quente de verão para a claridade de sua blusa branca. Em sua forte mão morena ele trazia um copo grande de papel cheio de sorvete de limão e laranja, que deu a ela, quase se curvando, sussurrando rapidamente algo que soava como "Não suje a sua blusa", e depois correndo de volta para o balcão para ajudar o pai. Octavia sorriu, deu umas lambidas no sorvete sem qualquer delicadeza e passou o copo para a mãe, que tinha paixão por sorvetes e chupou o copo com a voracidade de uma criança. A conversa cochichada das velhas continuava.

O seu padrasto virou a esquina da Rua 31 e entrou na avenida, empurrando o carrinho do bebê. Octavia viu-o ir da Rua 31 à Rua 30 e depois voltar. E, enquanto a ironia da mãe a embaraçava, essa ternura do padrasto lhe confundia as emoções. Pois ela o odiava como um tipo cruel, detestável, perverso. Ela o vira dar socos na mãe, bancar o tirano para os enteados. Na lembrança esmaecida da infância de Octavia, o galanteio dele a sua mãe começara muito rapidamente após o dia da morte do seu pai verdadeiro.

Ela queria olhar a criancinha adormecida, a irmãzinha que amava intensamente, embora fosse filha do seu padrasto. Mas não suportava falar ao homem, encarar os seus frios olhos azuis e o seu áspero rosto pontudo. Ela sabia que o padrasto a odiava como ela o odiava e que um tinha medo do outro. Ele nunca ousara bater-lhe como às vezes fazia com Vinnie. E ela não ligaria para as pancadas que ele dava no enteado se fosse bom pai noutras coisas. Mas ele trazia presentes para Gino e Sal e Aileen e nunca para Vincent, embora Vincent fosse um menino quieto. Ela o odiava porque ele nunca levava Vincent para passear ou cortar o cabelo com seus filhos legítimos. Tinha medo dele porque ele era estranho — o estranho misterioso e mau dos livros de histórias, o italiano de olhos azuis com a cara de Mefistófeles; e, contudo, ela sabia que ele era realmente um camponês analfabeto, um pobre e desprezível imigrante que se dava ares de importância. Um dia, ela o vira no metrô fingindo ler um jornal. Ela correra para contar à mãe, rindo desdenhosamente. A mãe apenas rira de modo curioso e não dissera nada.

 

Mas agora uma das mulheres de preto estava contando uma história sobre uma odiosa moça italiana (nascida na América, naturalmente). Octavia escutava.

— Sim, sim — dizia a mulher. — Estavam casados fazia um mês, mal tinham acabado a lua-de-mel. Oh, ela o adorava. Sentava-se no colo do marido na casa da mãe dele. Quando conversavam, ela brincava com a mão dele. Assim — duas mãos retorcidas com dedos verrugosos uniam-se amorosamente, obscenamente, no colo da narradora — e então foram dançar, na igreja. A idiotice desses jovens padres que nem mesmo falam italiano! O marido dela ganhou um prêmio por participar da competição. Ele recebeu o prêmio e caiu no chão, morto. Tinha o coração fraco, estava sempre doente. A mãe sempre o avisava, cuidava dele. Mas agora... A jovem esposa, dançando com outro homem, recebe a notícia. Pensam que ela corre para junto do marido? Não, ela grita. E chora: "Não, não. Não posso." Ela tem medo da morte como uma criança, não como uma mulher. O bem-amado está ali estatelado, todo urinado, abandonado, mas ela não o ama mais. E grita: "Não, eu não vou olhar para isso!"

Maliciosamente, Zia Louche disse, embrulhando os dois sentidos:

— Ah! Vocês podem estar certas de que ela olhava para "isso" quando "isso" estava vivo.

Uma explosão de gargalhada obscena, partida de todas as mulheres, repercutiu pela avenida, atraindo os olhares curiosos das mulheres das outras rodas. Octavia ficou revoltada, furiosa, porque até a sua própria mãe estava rindo com prazer.

Falando de coisas mais sérias, Lucia Santa e Zia Louche mantinham-se firmes contra o resto da roda de mulheres a respeito de uma história antiga, os detalhes exatos de um escândalo ocorrido 20 anos atrás lá na Itália. Octavia divertia-se em ver a mãe submeter-se à vontade de Zia Louche, e a velha companheira defender ardorosamente a mãe, cada uma delas tratando a outra como uma duquesa. A mãe virando-se para Zia Louche e perguntando respeitosamente:

— E vero, comare?

E Zia Louche sempre respondendo imperiosamente:

— Si, signora — como para demonstrar pouca intimidade diante das outras.

Octavia sabia da relação existente por trás disso, a gratidão da mãe por essa valiosa aliança na hora de seu maior infortúnio.

Mas a discussão foi se arrastando muito minuciosamente e Octavia acabou enjoando daquilo. Levantou-se para dar uma olhada na meia-irmãzinha, espiando para dentro do carrinho, mas sem cumprimentar o padrasto. Contemplou a garotinha com uma ternura extraordinária, uma emoção que ela não sentia nem por Vincent. Depois foi até a esquina da Rua 31 para olhar Gino, viu-o brincando, viu também o pequeno Sal sentado no meio-fio. Levou Sal para a mãe. Então, deu por falta de Vinnie. Olhando para cima, viu-o lá no alto, sentado no peitoril da janela do apartamento, escuro, imóvel, vigiando todos eles.

Frank Corbo, carrancudo, observou a enteada inclinar-se sobre a sua filhinha. Estranho, de olhos azuis, objeto de chacota (que homem italiano empurrava carrinho de bebê nas noites de verão?), analfabeto, com a mente muda, ele contemplava a beleza da cidade de pedra no escuro, sentia o ódio da enteada sem retribuí-lo. O seu rosto fino e rude ocultava uma agonia inexprimível e arrasadora. A sua vida era um sonho de beleza sentido mas não compreendido, de amor desvirtuado em crueldade. Em busca de libertação, ele deixaria a cidade naquela noite e abandonaria a família. Nas primeiras horas da manhã, enquanto ainda estivesse escuro, ele pegaria um caminhão de frutas e verduras e desapareceria sem uma palavra, sem discussão ou pancadaria. Trabalharia nos campos verdes e pardos de verão, conseguiria a paz do amor, restauraria as suas forças.

Ele sofria. Sofria como um surdo-mudo sofre por não poder cantar a beleza que vê, por não poder gritar de dor. Ele sentia amor e não podia fazer carinho. Havia muita gente dormindo nos quartos em volta dele, muitas pessoas andando nas ruas em volta dele. Tinha sonhos terríveis. Envolvidos de preto, sua mulher e filhos o cercavam, e cada um puxava da testa um punhal. Ele havia gritado.

Era tarde, muito tarde; os meninos já deviam estar na cama, mas ainda estava muito quente. Frank Corbo observava o filho correr loucamente numa espécie de brincadeira de pegar, incompreensível para o pai, tão incompreensível como a fala infantil dos americanos, como os livros e jornais, as cores do céu noturno, a beleza da noite de verão e todas as alegrias do mundo das quais ele se sentia afastado, todas tingidas de dor. O mundo era um grande mistério. Perigos enormes, contra os quais outros podiam proteger os filhos, arrastariam a ele e seus entes queridos para a desgraça. Ensinariam os próprios filhos dele a odiá-lo.

Mas o pai, desconhecendo se se salvaria, continuava a empurrar o carrinho para um lado e para outro. Não sabendo que lá no fundo de seu sangue, nas minúsculas células misteriosas de seu cérebro, um novo mundo se estava formando. Lentamente, dia a dia, dor a dor, a beleza perdida, as muralhas do mundo que ele tanto temia estavam desmoronando na eternidade de sua mente, e dentro de um ano surgiria um novo mundo fantástico, no qual ele mesmo seria o deus e o rei, os seus inimigos sobressaltados e temerosos, enquanto os seus entes queridos estariam perdidos para sempre, e contudo essa perda de amor não seria sentida ou lamentada. Um mundo de uma dor tão caótica que ele mergulharia em êxtase, enquanto o mistério e o medo desapareceriam. Ele seria livre.

Mas era como uma mágica, e nenhum sinal ou aviso podia vir antecipadamente. Agora, naquela noite, ele depositava confiança num verão futuro em que pudesse lavrar a terra, como tinha feito havia muito tempo, quando rapazote na Itália.

 

O mundo tem um brilho especial para as crianças, e os sons são mágicos. Gino Corbo atravessava o barulho dos motores e máquinas, círculos de luzes suaves das lâmpadas dos postes, ouvia mocinhas gargalharem e concentrou-se tão absortamente na brincadeira que a cabeça começou a doer-lhe. Correu de um lado para outro da Rua 31, procurando pegar outras crianças ou cercá-las. Mas alguém sempre se encostava na parede, com a mão esticada. Uma vez, Gino viu-se encurralado, mas um táxi interceptou a ação do seu oponente e ele conseguiu voltar correndo para a sua própria calçada. Viu o pai olhando a brincadeira e correu para ele gritando:

— Me dá um níquel para um sorvete de limão!

Apanhando a moeda, saiu correndo pela Décima Avenida e imaginou uma engenhosa travessura. Procurou passar correndo por entre a mãe e suas amigas. Zia Louche agarrou-o pelo braço e suspendeu-o no ar, os dedos magros da mulher pareciam uma armadilha de aço.

Os olhos ofuscados, impacientes, do garoto viram um grupo de caras velhas, algumas peludas e de bigode. Ansioso para ir embora, com medo que a brincadeira acabasse, Gino procurou escapar. Zia Louche segurou-o firmemente, dizendo:

— Descanse... sente junto da sua mãe e descanse. Você pode ficar doente amanhã. Veja como seu coração está batendo.

E pôs a sua garra descarnada no queixo do menino. Ele puxou o queixo violentamente. A velha segurou-o e disse com um amor feroz:

— Eh, come è faccia brutta.

Ele compreendeu que ela o estava chamando de feio, e isso o fez ficar quieto. Olhou para o grupo de mulheres. Elas estavam rindo, mas Gino não sabia que riam com prazer do desejo feroz dele, dos seus olhos em fogo.

O menino cuspiu em Zia Louche, a falsa cuspidela das mulheres italianas que denota desprezo numa discussão. Isso fez com que ela o soltasse, e ele foi tão ligeiro que a mãe conseguiu apenas atingi-lo de leve no rosto, quando ele fugia. Para a esquina, ao longo da Rua 30 até a Nona Avenida, subindo a avenida até a Rua 31, e depois seguindo pela Rua 31 até a Décima Avenida, iria ele; após percorrer os quatro lados do quarteirão, entraria de surpresa na brincadeira, vindo do escuro, e com um golpe de mestre esmagaria o inimigo.

Mas quando ele corria a toda velocidade para a Nona Avenida, uma linha de meninos inimigos formou uma parede à sua frente. Gino deu impulso às pernas, levantando-as e imprimindo-lhes mais velocidade, e rompeu o cerco, esmagando-os. Ao tentarem pegá-lo com as mãos, rasgaram-lhe a camisa, enquanto o vento lhe fustigava o rosto. Na Nona Avenida, os meninos vieram atrás dele, mas quando ele virou no escuro, no alto da Rua 31, não se atreveram a segui-lo. Gino parou de correr e começou a andar mansamente pela escadaria. Estava na parte final da praça, e abaixo dele, lá na rua, perto da Décima Avenida, desenhados pelos tênues cones da luz amarela projetada pelos postes de iluminação, os seus amigos corriam de um lado para outro, como ratinhos pretos, brincando ainda. Ele chegava a tempo.

Descansou na escuridão e depois começou a descer a rua mansamente, vagarosamente. No quarto de um porão, viu uma garotinha encostada numa parede meio branca, meio azulada. Ela repousava a cabeça no braço apoiado na parede, escondendo os olhos da luz mortiça e fria do quarto vazio, deserto, atrás dela. Gino sabia que a menina estava brincando de esconde-esconde, e não chorando, e que, se ele esperasse, o quarto deserto repentinamente se encheria de crianças aos gritos. Mas ele não parou, ignorando que sempre se lembraria daquela garota sozinha, escondendo os olhos numa parede azul e branca; desolada, sem nunca mudar de posição, como se, por não parar, ele a deixasse ali para sempre, encantada. Ele foi andando.

Uma tênue réstia de luz o fez deter-se. Ele tremeu. Sentada à janela, inclinada para o lado de fora de seu apartamento térreo, uma velhota irlandesa repousava a cabeça num travesseiro felpudo e o observava passar na rua vazia e silenciosa. Sob a fraca luz amarela, a cabeça, de tão velha, dava a impressão de ser só osso, enquanto a boca magra, com bigode, parecia uma mancha de sangue à luz de uma vela votiva vermelha. Por trás dessa cara feroz, vagamente visível nas sombras do quarto, um vaso, uma lâmpada e um ídolo brilhavam como ossos velhos. Gino olhou para ela. Os dentes apareceram quando a velha o cumprimentou. Gino saiu correndo.

Agora, ele conseguia ouvir os gritos dos amigos; estava perto dos arcos de luz da Décima Avenida. Agachou-se na escada de uma adega, escondido, poderoso, pronto para atacar. Nem lhe passou pela idéia ter medo do porão escuro, ali embaixo, ou da noite. Esqueceu a raiva da mãe. Ele só existia para esse momento e para o momento em que mergulhasse no poço de luz e levasse a melhor.

 

Lá do alto da Décima Avenida, o meio-irmão de Gino Corbo, Vincenzo Angeluzzi, de 13 anos de idade, meditava ao som atenuado, sussurrante, da noite de verão que lhe chegava aos ouvidos. Meditava no peitoril da janela, com a longa fila de quartos atrás dele escuros e vazios, a porta do corredor para a cozinha bem trancada. Ele se isolara espontaneamente.

O sonho de verão, liberdade e brincadeiras, tinha-lhe sido arrebatado. A mãe o informara de que na manhã seguinte ele começaria a trabalhar para o panettiere, e trabalharia até que as aulas começassem no outono. Carregaria pesados cestos de pão no sol quente, enquanto os outros meninos nadariam no rio, brincariam e se agarrariam às traseiras dos bondes para ver a cidade. Não poderia sentar-se na sombra para tomar sorvete de limão ou ler, com as costas apoiadas na parede da fábrica Runkel, nem jogar sete-e-meio valendo uns trocadinhos.

Um observador da muralha ocidental da cidade, tudo lhe oprimia a alma e o espírito, o terreno baldio do pátio ferroviário, os trilhos de aço, os vagões de carga abandonados, as máquinas soltando fagulhas vermelhas imundas e apitos baixos de aviso. O Hudson era uma tira preta embaixo da praia escarpada de Jersey.

Ele cochilava no peitoril da janela, quando um tumulto de vozes se ergueu como um grito fraco. Lá embaixo na avenida, ele viu a lanterna vermelha de um pequeno "batedor" guiando o seu trem de carga para sair de St. John's Park. As crianças continuavam a brincar, e Vincent esperava com melancólica satisfação pelos seus gritos de alegria, sentindo amargura por não participar do prazer delas. E depois as crianças estavam gritando e subindo atabalhoadamente a escada da ponte para esperar que a nuvem úmida de vapor as tornasse invisíveis.

Vincent era muito novo ainda para saber que era melancólico por natureza, que isso preocupava angustiosamente sua irmã Octavia, de modo que ela lhe trazia presentes e doces. Quando ele era pequenino, Octavia gostava de levá-lo para a cama dela, contar-lhe histórias e cantarolar para que ele dormisse com uma lembrança de sorrisos. Mas nada podia mudar a sua natureza.

Lá embaixo podia ouvir Zia Louche se esganiçando e a mãe a apoiá-la, com sua voz possante. Seu ressentimento provinha do fato de que aquela velha mirrada era sua madrinha e de que a moeda de ouro de cinco dólares que ela lhe dava todo aniversário devia ser paga com um beijo — um beijo que ele dava só para agradar à mãe. Achava a mãe bonita, embora ela fosse gorda e andasse sempre de preto, e ele sempre lhe obedecia.

Mas Zia Louche, desde quando podia lembrar-se, fizera-o odiá-la. Muitos anos atrás, quando ele brincava no chão da cozinha entre as pernas da mãe, Zia Louche ficava estudando-o. As duas mulheres cos­tumavam falar de maneira rude, sem a formalidade que adotavam em público, lembrando com prazer seus infortúnios através dos anos. De repente se calavam e olhavam para ele pensativamente, bebericando café. Então Zia Louche suspirava através dos dentes escurecidos pela idade e dizia, com piedade desesperada e cheia de indignação, para o menino:

— Ah, miserabile, miserabile... O seu pai morreu antes de você nascer.

Isso era o clímax; a velha passava, então, a outros assuntos, dei­xando-o perplexo e vendo a mãe empalidecer e os olhos dela ficarem vermelhos. Ela então se abaixava para apalpá-lo, mas nunca falava.

Lá embaixo na rua, Vincent viu a irmã Octavia levantar-se para olhar a irmãzinha. Ele a odiava também. Ela o traíra. Não protestara quando a mãe o mandara trabalhar. Depois o "batedor" passou por baixo da ponte, e Vincent viu o irmão Larry montado como um vaqueiro de verdade num cavalo preto.

Mesmo lá de cima, ele ouvia o barulho estridente dos cascos nas pedras. As crianças desapareceram e a ponte sumiu na nuvem de vapor expelida pela máquina. Com um grande chuveiro de fagulhas, o trem mergulhou no pátio ferroviário.

Era tarde. O ar da noite refrescou a cidade. Sua mãe e as outras mulheres apanharam seus tamboretes e caixotes, chamando os maridos e filhos. Seu padrasto empurrava o carrinho do bebê para a porta do cortiço. Era hora de se aprontar para ir para a cama.

Vincent saiu do peitoril da janela e atravessou os quartos para ir para a cozinha. Abriu a porta para o corredor, a fim de que a família entrasse em casa. Depois pegou a enorme bisnaga de pão e cortou três fatias grossas com casca. Passou-lhes vinagre vermelho, depois azeite grosso, amarelo-esverdeado. Afastou-se e salpicou sal sobre as três fatias, examinando-as com ar de satisfação. O pão grosseiro era uma coisa vermelha salpintada de manchas verdes oleosas. Gino e Sal adorariam esse lanche antes de dormir. Todos comeriam juntos. Ele esperou. Da rua, através do vão das janelas abertas e atravessando o corredor dos quartos, ele ouviu a voz de Gino num grito alto, contínuo.

Esse grito gelou Lucia Santa, que estava com o bebê nos braços. Octavia, na esquina da Rua 30, virou-se para a Rua 31. Na avenida, Larry rodou o seu cavalo. O pai, com as têmporas arrebentando de medo, começou a correr e praguejar. Mas o grito de Gino foi apenas de triunfo histérico. Gino emergira repentinamente da escuridão, cercara os inimigos e estava gritando.

— Incendeiem a cidade, incendeiem a cidade, incendeiem a cidade!

Terminando assim a brincadeira, ele não podia deixar de gritar as palavras mágicas ou parar de correr. Encaminhava-se para a enorme figura ameaçadora da mãe, dando grandes saltos no ar, então lembrou-se do insulto que fizera a Zia Louche e desviou-se, atravessando a porta e subindo as escadas.

Lucia Santa, com toda a intenção de lançá-lo no chão, sentiu-se dominada por um forte orgulho e ternura ante a alegria incontida do filho, o espírito que ela um dia deveria subjugar. E deixou-o passar incólume.

Os napolitanos desapareceram das ruas escuras, ouvindo o ressoar dos cascos nas pedras do calçamento, enquanto Larry Angeluzzi galopava seu cavalo para a cocheira da Rua 35.

 

A família Angeluzzi-Corbo morava no melhor cortiço da Décima Avenida. Havia apenas um apartamento em cada um dos quatro andares, assim as janelas se abriam para o oeste na Décima Avenida e para o leste nos fundos, dando uma corrente de ventilação de um lado para o outro. Como a família ocupava todo o andar — e na verdade o andar de cobertura — podia usar o fundo do corredor como um espaço extra para guardar certas coisas. A geladeira, um armário, inúmeras latas de massa de tomate e caixas de macarrão estavam amontoados junto à parede, pois, embora o apartamento consistisse em seis cômodos, todos estavam apinhados de coisas.

O apartamento tinha a forma de um E comprido, faltando o traço do meio. A cozinha formava a parte inferior; depois a sala de jantar, os quartos de dormir e a sala de estar, com suas janelas dando para a Décima Avenida, constituíam a longa linha vertical; e o pequeno quarto de Octavia, com porta transversal à sala de estar, era o traço superior do E. Gino, Vinnie e Sal dormiam na sala de estar, numa cama que se desarmava e era colocada num canto durante o dia e coberta com um pano apropriado. Os pais dormiam no primeiro quarto, e Larry no seguinte. Depois vinha a sala de estar, que era chamada de cozinha — onde havia uma grande mesa de madeira, utilizada para as refeições e outros usos — e transversalmente a ela ficava a verdadeira cozinha, com a caldeira, pia e fogão. Pelos padrões da vizinhança, o apartamento era extremamente espaçoso, e um exemplo do esbanjamento de Lucia Santa.

 

Octavia colocou a irmãzinha Aileen na cama da mãe e dirigiu-se para o próprio quarto, a fim de trocar a roupa de rua por um vestido caseiro. Quando saiu do quarto, os três meninos já estavam profundamente adormecidos na cama grande armada no meio da sala de estar. Ela atravessou o corredor na direção da cozinha, para lavar o rosto. A mãe estava sentada na sala de jantar, à espera, bebericando um cálice de vinho. Octavia sabia que a mãe ficaria acordada para concluir a discussão que haviam iniciado, e que depois, como conspiradoras, elas fariam planos juntas para o futuro da família — uma casa em Long Island, faculdade para o menino mais inteligente.

Lucia Santa começou, em tom de conciliação, a falar em italiano:

— O filho do padeiro está de olho em você. Será que lhe traz sorvetes para que você não fale com ele?

Ela própria regalou-se com a sua ironia, mas parou para dar toda a atenção a um ruído vindo do quarto de dormir. Perguntou preocupada:

— Você pôs Lena no meio da cama? Ela não vai cair?

Octavia ficou furiosa. Podia perdoar a provocação intencional, embora a mãe soubesse de sua aversão pelos rapazes da redondeza. Mas ela própria tinha dado à sua meia-irmãzinha o nome de Aileen. Depois de longa consideração, Lucia Santa concordara. Já era tempo de se tornar americana. Mas o nome não podia ser pronunciado em nenhum dialeto italiano. Era impossível. E assim fora abreviado para a forma Lena. Lucia Santa, depois de algumas tentativas heróicas para agradar à filha, um dia perdeu o controle e gritou em italiano:

— Isso nem mesmo é americano!

E assim a meninazinha passou a ser Lena para todo mundo, menos para as outras crianças da família. Octavia batia-lhes na cara, quando elas tomavam tais liberdades.

Mãe e filha preparavam-se para a batalha. Octavia afagou seus cachos, depois tirou o estojo de unha de uma prateleira da cozinha. E disse em inglês meticuloso, desdenhoso:

— Nunca me casarei com um desses carcamanos. Eles só querem uma mulher que possam tratar como uma cadela. Não quero levar a vida que você leva.

Começou a fazer uma operação complicada nas unhas. Pretendia pintá-las naquela noite. Isso aborreceria a mãe.

Lucia Santa observava a filha com uma calma exagerada de ópera, respirando de maneira rápida e profunda. Elas se pareciam muito uma com a outra, quando zangadas — olhos pretos lacrimosos, flamejantes; feições plenamente sensuais amortecidas pela raiva e mau humor. Mas, quando a mãe falou, foi num tom moderado.

— Ah — disse ela. — É assim que uma filha fala com a mãe na América? Brava. Você vai ser uma ótima professora.

Inclinou a cabeça friamente para a filha e acrescentou:

— Mi, mi dispiace. Eu, eu não ligo para isso.

E a mocinha sabia que outra insolência igual àquela faria a mãe se atirar sobre ela como um gato, com a mão aberta em sua cara. Octavia não tinha medo, mas era relativamente obediente; e sabia que a mãe, a chefe da família, apoiava-a bastante, respeitava-a, jamais formaria ao lado do mundo estranho contra ela. Sentia culpa por sua deslealdade porque achava que a vida da mãe era um desperdício.

Octavia sorriu para abrandar a crueldade de suas palavras. Depois explodiu:

— O que eu quis dizer é que não quero me casar, ou ter filhos se me casar. Não quero sacrificar a minha vida toda só por causa disso.

Na última palavra ela expressava o seu desprezo e também o seu medo oculto pelo que desconhecia. Lucia Santa olhou a sua filha americana de cima a baixo.

— Ah — retrucou ela — coitadinha da minha filha.

Octavia ficou vermelha de raiva, mas permaneceu calada. A mãe começou a pensar noutra coisa, levantou-se, foi até o quarto e voltou com duas notas de cinco dólares dentro da caderneta da Caixa Econômica.

— Tome aqui, depressa... ponha no seu vestido antes que seu pai e seu irmão cheguem. Deposite na Caixa Econômica amanhã, quando for trabalhar.

Octavia respondeu irrefletidamente com rancor:

— Ele não é meu pai.

Não as palavras, mas o ódio mudo por trás delas trouxe lágrimas rápidas e insopitáveis aos olhos da mãe. Pois somente as duas se lembravam do primeiro marido de Lucia Santa; só elas duas tinham realmente participado daquela primeira vida, tinham sofrido juntas. Ele era pai de três filhos, mas somente essa filha podia manter viva a lembrança dele entre elas. Para piorar a coisa, Octavia amava fervorosamente o pai, e a morte dele a chocara profundamente. A mãe sabia de tudo isso; sabia que o segundo casamento destruíra um pouco a afeição que a filha nutria por ela.

Lucia Santa disse num tom de voz baixo:

— Você ainda é muito moça, não compreende o mundo. Frank casou-se com uma viúva desolada que tinha três filhos pequenos. Ele nos deu o nosso pão. Protegeu a todos nós quando ninguém, a não ser Zia Louche, nem mesmo cuspia na porta de nossa casa. O seu próprio pai não era tão bonzinho como você pensa. Ah, eu podia lhe contar umas histórias... mas ele é seu pai.

As lágrimas tinham secado agora, e Lucia Santa punha a máscara das recordações tristes, a máscara da dor e raiva que sempre impressionava a filha.

Elas tinham discutido isso várias vezes e a ferida sempre se reavivava.

— Ele não vai ajudar — disse Octavia, com sua maneira impiedosa, própria da juventude. — A senhora vai fazer o pobre Vinnie trabalhar para esse padeiro nojento. Ele não vai ter qualquer divertimento este verão. Enquanto isso, o seu lindo marido, tudo o que pode fazer é ser zelador do prédio para não pagar aluguel. Por que ele não consegue encontrar trabalho? Por que ele é tão danadamente orgulhoso? Que diabo ele pensa que é? Meu pai trabalhava. Morreu trabalhando, pelo amor de Cristo!

Ela parou para conter as lágrimas. Depois prosseguiu calmamente, como se acreditasse que pudesse realmente convencer a mãe:

— Mas ele, ele perdeu o emprego na estrada de ferro apenas por ser esperto. O chefe disse a ele: "Não leve o dia inteiro para apanhar um balde de água", e então ele pegou o balde e nunca mais voltou. Ele achou isso tão engraçado, até teve orgulho disso. E a senhora nunca disse uma palavra. Nem o diabo de uma palavra. Eu o poria para fora de casa, jamais o deixaria entrar novamente. E estou bastante certa de que nunca o deixaria me fazer outro filho.

Octavia disse isso com escárnio, com um olhar que significava que ela jamais permitiria que ele a procurasse durante a noite para manterem relações sexuais. Mas a mãe agora perdeu a paciência.

— Fale de uma coisa que você entenda — replicou Lucia Santa. — Você é uma garota estúpida e quando ficar velha ainda será estúpida. Cristo, dê-me paciência!

Acabou de tomar o vinho de um gole e suspirou cansada:

— Vou dormir. Deixe a porta aberta para o seu irmão. E para o meu marido.

— Não se preocupe com o nosso lindo Lorenzo — retorquiu Octavia, passando esmalte nas unhas.

A mãe olhou com repugnância para o vermelho brilhante do esmalte e voltou para a sala.

— O que é que há agora com Lorenzo? — perguntou. — Ele saiu do trabalho à meia-noite. Por que não vem para casa? Todas as garotas a esta hora estão dentro de casa, a não ser aquelas vagabundinhas irlandesas da Nona Avenida. — E acrescentou com fingido fervor: — Graças a Jesus Cristo, ele só desgraça as boas e decentes moças italianas — arrematando com um sorriso de orgulho.

Octavia retrucou friamente:

— Larry deve ficar na casa dos Le Cinglata. O Sr. Le Cinglata está na cadeia novamente.

A mãe compreendeu imediatamente. A família Le Cinglata fabricava o seu próprio vinho e o vendia em copos em sua casa. Em suma negociava clandestinamente com bebida, infringindo a Lei Seca. Na última semana, a Signora Le Cinglata enviara a Lucia Santa três garrafões de vinho, provavelmente porque Lorenzo ajudara a descarregar um vagão de uvas. E a Signora Le Cinglata tinha sido uma daquelas moças que se casaram na igreja por procuração, havia muitos anos, na Itália. A mais tímida, mais acanhada de todas elas. Bem, não havia nada a fazer naquela noite. A mãe deu de ombros e foi para a cama.

Mas primeiro passou na sala de estar e cobriu os três meninos com um lençol. Depois olhou pela janela aberta lá para baixo, para a rua escura, e viu o marido ainda andando de um lado para o outro da Décima Avenida. Ela falou brandamente:

— Frank, não fique aí até muito tarde.

Ele não ergueu os olhos nem para ela nem para o céu.

Finalmente ela foi para a cama. E agora relutava em adormecer, pois parecia-lhe que, enquanto estivesse acordada, controlava, até certo ponto, os atos do marido e dos filhos. Sentiu aborrecimento, uma verdadeira indignação, porque não podia fazê-los deixar o mundo e entrar em casa, dormir quando ela ia dormir.

Esticou o braço. A criancinha estava bem protegida pela parede. Então gritou:

— Octavia, hora de dormir, vá pra cama, já é tarde! Você vai trabalhar amanhã!

A verdade é que ela não conseguia dormir enquanto alguém estivesse acordado dentro de casa. E então a filha atravessou o quarto sem dizer uma palavra, revoltada.

Na opressiva escuridão de verão, suspirando com a respiração da criancinha adormecida, Lucia começou a refletir sobre a sua vida. Casando-se em segundas núpcias, ela trouxera infelicidade para os próprios filhos. Sabia que Octavia a culpava de não ter demonstrado grande dor pela morte do primeiro marido. Mas não se podia explicar a uma filha ainda moça e virgem que o pai dela, o marido com quem se dorme na mesma cama, com quem se estava preparada para viver o resto da vida, era um homem de quem realmente não se gostava.

Ele era o senhor, mas um chefe sem previsão, criminoso na sua falta de ambição para a família, contente de passar o resto da vida nos cortiços miseráveis a poucos quarteirões das docas onde trabalhava. Oh, ele a tinha feito derramar muitas lágrimas. O dinheiro para a comida ele sempre dava, mas o resto do pagamento, que podia ser transformado em economias, gastava em vinho e jogo com os amigos. Nunca um níquel para ela. Ele havia cometido tal ato de generosidade em trazer Lucia Santa para o novo país e para a sua cama, paupér­rima como era ela, sem ter sequer enxoval, que não sentia a obrigação de ser mais generoso. Um gesto servia para a vida inteira.

Lucia Santa recordava tudo isso com um vago ressentimento, sabendo que nem tudo era verdade. A filha o adorava. Ele era um homem bonito. Seus belos dentes brancos mastigavam sementes de girassol, e a pequenina Octavia as aceitava de sua boca como nunca aceitava da boca da mãe. Ele amava a filha.

A verdade era muito simples. Ele era um homem bom, trabalhador, ignorante e amante do prazer. O sentimento dela era igual ao de milhões de mulheres com respeito aos maridos imprevidentes. Que os homens deviam controlar o dinheiro da casa, ter o poder de tomar decisões de que dependia o destino das crianças — que idiotice! Os homens não eram competentes. Mais ainda — não eram sérios. E ela já começara a lutar para usurpar-lhe o poder, como fazem todas as mulheres, quando num dia terrível ele sofreu o acidente e morreu.

Mas ela chorara. Oh, como chorara! Uma dor misturada com terror. Não dor por lábios, olhos ou mãos do marido que se fora, mas um lamento por seu escudo contra o mundo estranho, um choro por aquele que trazia o pão de seus filhos, o protetor da criança que carregava no útero. Essas viúvas arrancam os cabelos e fazem cortes na cara, soltam lamentos desvairados, cometem violências e usam luto para o mundo ver. Essas são as pessoas que sentem realmente, pois a verdadeira dor está cheia de terror. São pessoas desoladas. Os amorosos amarão novamente.

A morte dele fora comicamente grotesca. Enquanto um navio era descarregado, a prancha de desembarque tinha recuado bem acima da água, lançando cinco homens e toneladas incontáveis de bananas na lama do rio. Os seres humanos e os cachos de banana afundaram juntos. Nada jamais viera à tona.

Ela ousava pensar então: morto, ele lhes dera mais do que vivo. Na escuridão, agora, anos depois, zombando de sua própria juventude, ela ria ligeiramente. Como em sua juventude ela poderia ter tais pensamentos! Mas a Justiça atribuíra a cada filho mil dólares — até mesmo a Vincent, que ainda não havia nascido, sendo apenas um fato bem visível para o mundo. O dinheiro ficaria em depósito judicial, que aqui na América o pessoal era inteligente; nem mesmo os pais podiam tomar conta do dinheiro dos filhos. Ela própria também recebeu três mil dólares que ninguém na avenida sabia, a não ser Zia Louche e Octavia. Assim, nem tudo havia sido em vão.

Mas não se devia falar, nem sequer pensar, mesmo agora, naqueles meses que passara com o filho na barriga. Um filho cujo pai morrera antes dele nascer, como um filho do demônio. Mesmo agora ela era atacada por um terrível medo supersticioso; mesmo agora, 13 anos depois, as lágrimas lhe desciam pelas faces. Chorava por si mesma, pelo que ela era então, e pela criança por nascer, mas não pela morte do marido. A filha Octavia jamais poderia saber ou compreender.

E então sobreveio o mais vergonhoso; apenas um ano depois da morte do marido, e seis meses depois do nascimento do filho do finado marido, ela — uma mulher adulta — tinha pela primeira vez na vida se apaixonado por um homem, o homem que se tornaria seu segundo marido. Ela amando. Não era o amor espiritual das adolescentes ou dos padres; não a emoção por heróis de romances que podiam ser contados a mocinhas. Não; amor era a palavra para a carne quente, corpos ardentes, olhos e faces febris. Amor era a sensação de carne túrgida, esponjosa. Ah, que loucura, que bobagem para uma mãe de filhos! Graças a Nosso Senhor Jesus Cristo, ela agora já tinha superado isso.

E por quê? Frank Corbo tinha 35 anos, nunca havia casado; magro, esbelto, e de olhos azuis; considerado excêntrico por ainda estar solteiro naquela idade, excêntrico também por sua discrição, seu temperamento calado e orgulho solitário — esse orgulho tão ridículo naqueles que se sentem desamparados perante a sociedade e o destino. As vizinhas, procurando um homem para ser companheiro de uma viúva e para alimentar quatro bocas famintas, consideraram-no capaz de qualquer bobagem e um bom candidato. Ele trabalhava firmemente nos turnos matutinos das turmas de ferroviários e tinha as tardes livres para namorar. Não haveria escândalo.

Assim, as vizinhas, por bondade e instinto de defesa, aproximaram-nos, com plena consciência de que ambos fariam um bom negócio.

O namoro foi surpreendentemente puro e inocente, como se fossem dois adolescentes. Frank Corbo conhecia apenas a carne fugaz e fria da prostituta; ele viria para o leito nupcial ansioso de amor, com o amor ardente de um rapaz. Perseguiu a mãe de três filhos como se perseguisse uma adolescente, tornando-se assim mais ridículo aos olhos do mundo. À tardinha visitava-a, quando ela se sentava na frente do cortiço para cuidar dos filhos que brincavam e dormiam. Às vezes jantava com eles e se retirava antes das crianças irem dormir. Finalmente, um dia, pediu Lucia Santa em casamento.

Ela lançou-lhe um olhar brejeiro, tratando-o como um rapazinho, e perguntou:

— Você não tem escrúpulo de me pedir em casamento, a mim que ainda estou com um filho de colo, do primeiro marido?

E pela primeira vez ela viu aquele tenebroso olhar de ódio. Ele retrucou gaguejando que amava os filhos dela tanto quanto a ela. Que mesmo que ela não se casasse com ele, ele lhe daria dinheiro para o sustento dos filhos. De fato, ele ganhava um bom dinheiro na estrada de ferro e sempre levava sorvetes e brinquedos para as crianças. Às vezes, até dera-lhe dinheiro para comprar roupas para as crianças. A princípio ela tentou recusar, mas ele se aborreceu e disse:

— Que é que há, você não quer a minha amizade? Pensa que eu sou como os outros homens? Eu não ligo para dinheiro... — E começou a rasgar as sujas notas de dólares.

Por algum motivo, isso a fez chorar. Ela aceitara o dinheiro dele, e ele nunca se atrevera a abusar dela. Era ela que se tornava impaciente.

 

Num domingo de primavera, Frank Corbo, convidado, compareceu ao almoço, a festa da semana para as famílias italianas. Trouxe consigo um galão de vinho italiano ácido, feito em casa, e uma caixa de pastéis de creme, gnole e soffiati. Usava camisa, gravata e um terno com paletó de vários botões. Sentou-se à mesa com as crianças em volta dele; acanhado, desajeitado, mais tímido do que elas.

O espaguete veio coberto com o molho de tomate mais caprichado de Lucia Santa, os bolinhos de carne eram lindamente redondos e preparados com alho e salsa fresca. Houve também alface verde-escura com azeite e vinagre vermelho, depois nozes para serem comidas com o vinho. Tudo temperado com ervas, alho e pimenta-do-reino forte. Todos se empanzinaram. Finalmente, as crianças desceram para brincar na rua. Lucia Santa podia tê-las mantido em casa para evitar escândalo, mas não o fez.

E assim, numa tarde feliz, com a luz solar brilhando ao longo dos trilhos da estrada de ferro, diante dos olhinhos inocentes de Vin-cenzo, protegidos do pecado por um travesseiro convenientemente colocado, eles selaram seu destino no sofá da sala de estar, a mulher com a atenção apenas ligeiramente voltada para as vozes das crianças que se elevavam suavemente da rua lá embaixo.

Ah, que delícia, que delícia o prazer do amor! Depois de uma abstinência tão longa, o odor animal era um afrodisíaco, um sino a tocar na satisfação iminente; mesmo agora, tantos anos depois, a lembrança estava bem viva. E nesse ato de amor ela fora o elemento dominador.

O homem tão duro, tão forte contra o mundo, tinha chorado em seu seio, e, na luz solar rapidamente evanescente, ela compreendeu que em todos os seus 35 anos de vida ele jamais recebera carinho com tanta ternura. Aquilo foi demais para ele. Depois disso, ele mudara completamente. Tinha chegado muito tarde para o amor, e ele odiava a própria fraqueza. Mas por causa dessa tarde ela lhe perdoou muitas coisas, não tudo; e passou a gostar dele como jamais gostara do pri­meiro marido.

Houve muito poucos problemas até nascer o primeiro filho dele. O seu amor instintivo por Gino se tornou doentio, matando o amor pela mulher e enteados, e ele se tornou mau.

Mas no primeiro ano de casamento, na confiança do amor, ele contou-lhe a sua infância na Itália como filho de um pobre rendeiro agrícola. Muitas vezes passara fome e frio, mas o que nunca podia esquecer era que seus pais o fizeram usar sapatos menores do que os seus, dados pelos outros. Seus pés ficaram horrorosamente deformados, como se todos os ossos se tivessem quebrado e depois houvessem sido unidos num amontoado grotesco. Ele mostrou-lhe os pés, como que dizendo: "Não escondo nada de você; não precisava casar com um homem com os pés desse jeito."

Ela rira. Mas não riu quando soube que ele comprava sapatos de 20 dólares, de um lindo couro marrom. Gesto de um verdadeiro louco.

Os pais dele eram coisa rara na Itália, camponeses bêbados. Confiavam nele para que fizesse o trabalho do campo e lhes fornecesse o sustento. Quando ele se apaixonou por uma moça da aldeia, o casamento foi proibido. Ele fugiu e viveu nas matas durante uma semana. Quando o encontraram, era pouco mais do que um animal. Achava-se em estado de choque e foi internado numa instituição de doentes mentais. Depois de alguns meses, teve alta, mas se recusou a voltar para casa. Emigrou para a América, onde, numa das cidades mais populosas do mundo, ele levava uma vida da mais extrema solidão.

Passou a cuidar de si; jamais ficaria doente novamente. Na sua vida de solidão e trabalho árduo, ele encontrava a segurança. Enquanto não se visse emocionalmente envolvido com outros seres humanos, estava salvo, como uma coisa imóvel está até certo ponto a salvo dos perigos do movimento. Mas esse amor que o trouxe de volta à vida o trouxe de volta ao perigo, e talvez fosse esse conhecimento, animalesco, mais sentido do que propriamente percebido, que o tornara tão fraco naquela tarde de domingo.

Agora, depois de 12 anos de vida juntos, o marido era um segredo tão grande para ela como sempre fora para as outras pessoas.

 

Alguém tinha entrado pela porta. Alguém andava na cozinha. Mas os passos se afastaram novamente e desceram a escada. Por alguma misteriosa razão particular, o marido tinha voltado para a rua.

Noite. Noite. Ela queria o marido na cama. Queria o filho mais velho em casa. Queria todo mundo dormindo naquele apartamento, quatro andares acima do solo, que era uma fortaleza, isolada do mundo por tijolo, concreto e ferro. Queria todo mundo dormindo, dormindo no escuro, longe da vida, para que ela não precisasse mais manter guarda, para que pudesse entregar-se ao esquecimento.

Lucia Santa suspirou. Não havia recurso. No dia seguinte, ia discutir com Frank para não deixar o emprego de zelador. Ia resolver o caso Le Cinglata, o problema das roupas dos meninos, o do fogareiro para ferver a roupa suja. Ela ouvia a respiração dos filhos todos que dormiam ali em volta, Lena na sua cama, os três meninos na sala separada do quarto dela por um arco, Octavia no quarto com a porta aberta para circulação do ar. A sua respiração foi se transformando em grandes suspiros ascendentes e descendentes, e ela então caiu no sono.

 

Octavia estirou-se em sua cama estreita. Usava a combinação de rayon como camisola. O quarto era muito pequeno para caber mais algum móvel além de uma mesinha e uma cadeira, mas tinha uma porta que ela podia fechar.

Ela estava com muito calor e era muito moça para dormir. Sonhava. Sonhava com o seu verdadeiro pai.

Oh, como o amara e como se zangara porque ele morrera daquele jeito, deixando-a sozinha sem ninguém para amar! No fim do dia, ela gostava de encontrá-lo em frente ao cortiço e beijar o seu rosto barbado, sujo, com os seus pêlos pretos tão duros que lhe machucavam os lábios. Ela levava a sua marmita vazia para cima e, às vezes, com agrados arrancava dele o perigoso gancho de aço usado pelos estivadores.

E depois em casa ela arrumava o seu prato para o jantar, colocando carinhosamente para ele o garfo com os dentes direitos, a faca mais afiada, o seu cálice brilhando como diamante. Agitando-se até que a mãe, exasperada, punha-a para fora da mesa a palmadas, para que a comida fosse servida. E Larry, sentado em sua cadeira alta, nunca podia intrometer-se.

Mesmo agora, tantos anos depois, esperando o sono, ela pensava quase chorando: "Por que você não teve mais cuidado?" Censurava-o assim pela sua morte pecaminosa, como um eco da mãe, que sempre dizia:

— Ele não cuidava da família. Não cuidava do dinheiro. Não cuidava de sua vida. Não cuidava de nada.

A morte do pai trouxera o estranho de olhinhos azuis, com sua cara enviesada, torta. O segundo marido, o padrasto. Mesmo quando menina, ela jamais gostara dele, aceitava seus presentes desconfiada, ficava agarrando a mão de Larry, segurando-o, escondendo-se atrás da mãe, até que ele pacientemente a encontrava. Assim que ele fazia um gesto de carinho, ela largava-lhe a mão como um animal. Larry era o preferido dele até nascerem os seus próprios filhos. Ele jamais gostara de Vincent por alguma razão, o salafrário nojento — detestável, detestável.

Mas mesmo agora ela não podia culpar a mãe por ter se casado, não podia odiar a mãe por ter trazido com isso tanta tristeza. Ela sabia por que a mãe tinha se casado com aquele homem mau. Ela sabia.

 

Era um dos piores tempos da vida de Lucia Santa, e grande parte da desgraça que viera após a morte do marido era culpa de amigos, parentes e vizinhos.

Todos viviam em cima de Lucia Santa, insistindo para que ela entregasse o recém-nascido, Vincent, aos cuidados de uma prima rica, Filomena, que morava em New Jersey. Apenas por pouco tempo, até que ela recuperasse as forças.

— Vai ser uma felicidade para aquele casal sem filhos. E você pode confiar na Filomena, sua prima em primeiro grau, da Itália. A criança estará salva. E o marido da rica Filomena certamente concordará em ser padrinho e garantir o futuro do menino.

E falavam no tom mais piedoso possível, com toda a ternura:

— E você, Lucia Santa, todo mundo se preocupa com você. Como está magra. Ainda não se refez do parto. Ainda chorando a morte de seu amado marido e reduzida a frangalhos pelos advogados que defendem o seu caso. Você precisa se poupar. Cuide-se bem, se tem amor a seus filhos. E se você morrer?

Oh, como faziam ameaças!

— Seus filhos vão morrer ou ser internados num orfanato. Não vão poder ser enviados para os avós na Itália. Poupe sua vida, a única proteção de seus filhos.

E continuavam com a ladainha. E o menino voltaria daí a alguns meses; não, um mês; talvez alguns meses. Quem sabe? E Filomena viria aos domingos, o marido dirigindo um Ford. Eles a levariam até a linda casa deles em Jersey para visitar o garotinho Vincenzo. Ela seria uma hóspede de honra. Os outros filhos dela passariam o dia no campo, ao ar livre. E o lero-lero ia por aí afora.

Agora: como podia ela opor-se a eles, a si mesma ou aos filhos? Até mesmo Zia Louche meneara sua cabeça verrugosa, concordando.

Só a garotinha Octavia começou a chorar, dizendo repetidamente com um desespero infantil:

— Eles não vão querer mandar o maninho de volta.

Todos acharam graça de seu receio. A mãe riu e afagou os cachinhos pretos de Octavia, envergonhada agora de sua própria relutância.

— Só até eu ficar boa — disse ela à garotinha. — Depois Vincenzo volta para casa.

Posteriormente, a mãe não conseguiu compreender como chegara a deixar que a criança fosse. Na verdade, o choque da morte do marido e a brutalidade da parteira no nascimento de Vincenzo a tinham deixado fraca. Mas isso jamais serviu para que ela se perdoasse intimamente. Foi um ato que lhe trouxe grande vergonha e fê-la desprezar-se tanto a si mesma, que toda vez que precisava tomar uma decisão difícil ela se lembrava desse ato para ter certeza de que não seria covarde novamente.

E assim o garotinho Vincent tinha ido embora. A estranha Tia Filomena viera ao meio-dia, na hora em que Octavia estava na escola, e quando a menina voltou para casa o berço estava vazio.

Ela chorara e gritara, e Lucia Santa dera-lhe uma com a mão esquerda, duas com a mão direita, lindas bofetadas na cara, fazendo os ouvidos da filhinha zunir, dizendo:

— Agora, você tem razão para chorar.

A mãe estava satisfeita por se ver livre do bebê. Octavia a odiava. Ela era má como uma madrasta.

Mas então chegou aquele soberbo dia que a fez amar e confiar na mãe. Parte do que aconteceu ela mesma só viu como uma garotinha, mas a história foi contada inúmeras vezes, de forma que agora parecia a Octavia que ela vira tudo. Pois naturalmente foi contada: passou a ser a lenda da família, mencionada numa noite de conversa, difundida na mesa de Natal, entre nozes e vinho.

A encrenca começou logo após uma semana apenas. Filomena não veio naquele primeiro domingo, não houve automóvel para levar Lucia Santa para visitar seu garotinho. Apenas um recado pelo telefone para a confeitaria. Filomena viria no domingo seguinte, e para mostrar seu bom coração e seu pesar ela enviaria um vale postal de cinco dólares, uma pequena oferenda de paz.

Lucia Santa matutou bastante naquele domingo tenebroso. Foi se aconselhar com as vizinhas dos andares de baixo. Elas a tranqüilizaram, recomendando-lhe não pensar bobagens. Mas à medida que o dia passava, ela ia ficando cada vez mais triste.

Na segunda-feira de manhãzinha, disse a Octavia:

— Corra. Vá até a Rua 31 e traga Zia Louche.

Octavia choramingou:

— Eu vou me atrasar para a escola. A mãe retrucou:

— Hoje você não vai à sua linda escola! — E falou com tamanha ameaça que a garota saiu voando de casa.

Zia Louche chegou, com um xale na cabeça, um casaco de lã que lhe ia até os joelhos. Lucia Santa serviu o cerimonioso café, depois disse:

— Zia Louche, vou ver o meu garotinho. Tome conta da menina e de Lorenzo. Faça-me esse favor.

Fez uma pausa e prosseguiu:

— Filomena não veio ontem. Você acha que eu devo ir?

Posteriormente, Lucia Santa sempre insistia em afirmar que se Zia Louche a houvesse tranqüilizado, ela não teria ido naquele dia e que pela resposta honesta ela sempre seria grata à velha Louche. Pois Zia Louche, balançando a sua cabeça velha e mirrada, como uma feiticeira arrependida, disse:

— Eu lhe dei um mau conselho, signora. O pessoal anda falando coisas que eu não gosto.

Lucia Santa suplicou-lhe que falasse claramente, mas Zia Louche recusou-se, porque tudo era fofoca, nada que se devesse repetir para uma mãe preocupada. Uma coisa, porém, causava estranheza — a promessa de enviar cinco dólares. A coitada fazia bem em não confiar em tal caridade. Era melhor ir, pôr o espírito da gente em paz.

Na luz festiva de inverno, a mãe dirigiu-se até a estação de barcas da Rua 42, e, pela primeira vez depois que chegara da Itália, viajou por água novamente. Em Jersey, tomou um bonde, mostrou um pedacinho de papel com um endereço e depois andou vários quarteirões até que uma mulher generosa pegou-a pela mão e levou-a à residência de Filomena.

Ah, que casa bonita para o diabo morar! Tinha um telhado pontiagudo, como nada que ela vira na Itália, como se fosse um brinquedo, não como uma coisa para ser usada por gente grande. Era branca e limpa, com persianas azuis e uma varanda fechada. Lucia Santa ficou subitamente acanhada. Gente tão rica jamais praticaria uma traição com uma pobre mulher como ela. A quebra da promessa de domingo podia ser explicada de várias maneiras. Contudo, ela bateu no lado da varanda. Atravessou a porta de tela e bateu na porta da casa. Bateu uma porção de vezes.

A quietude era assustadora; como se a casa estivesse abandonada. Lucia Santa começou a sentir-se fraca de medo. De repente, dentro da casa, seu filhinho começou a choramingar, e ela ficou envergonhada de sua terrível e ridícula desconfiança. Paciência. O choro do menino transformou-se em gritos de terror. Sua mente se perturbou. Ela empurrou a porta, entrou no vestíbulo e subiu a escada, acompanhando os gritos até chegar a um quarto.

Como era bonito! O quarto mais bonito que Vincenzo poderia ter! Era todo azul, com cortinas azuis, um berço azul, um cavalo de brinquedo, branco, colocado numa pequena cômoda azul. E nesse lindo quarto se encontrava seu filho todo urinado. Ninguém para lhe trocar as fraldas, ninguém para lhe acalmar os gritos de terror.

Lucia Santa tomou-o nos braços. Quando sentiu o corpo quente e ensopado de sua própria urina, quando viu o rosto rosado e enrugado e o cabelo bem preto do menino, ela se encheu de uma alegria selvagem, exultante, a certeza de que só a morte poderia arrebatar-lhe aquele filho. Olhou em volta do quarto bonito com a raiva muda de um animal, notando todas as evidências de sua permanência. Depois abriu uma gaveta da cômoda e encontrou alguma roupa para vestir o bebê. Quando o fazia, Filomena entrou bruscamente no quarto.

Então, só vendo que drama se desenrolou ali. Lucia Santa acusou a outra de desalmada. Deixou uma criança sozinha! Filomena protestou. Tinha ido apenas ajudar o marido a abrir o armazém. Estivera fora apenas 15 minutos — não, 10. Que coisa terrível, que falta de sorte! Mas a própria Lucia Santa às vezes não deixara o menino sozinho? Gente pobre não podia ser tão cuidadosa quanto queria (como Lucia Santa sorriu com escárnio quando Filomena se incluiu entre os pobres); os filhos dessa gente têm forçosamente de chorar.

A mãe estava cega à razão, cega com uma raiva torturante e desesperada, e não podia dizer o que sentia. Quando seu filho era deixado sozinho em casa e começava a chorar, eram carne e sangue iguais aos seus que vinham em seu auxílio. Mas que podia pensar uma criança que era deixada sozinha e aparecia apenas um rosto desconhecido? Mas Lucia Santa disse simplesmente o seguinte:

— Não, é fácil ver que como não é seu próprio sangue você não se importa em sair e deixá-lo sozinho. Vá ajudar no armazém. Vou levar meu filhinho para casa.

Filomena perdeu a cabeça. Linguaruda como era, gritou logo:

— E o nosso trato, então? Como é que vou aparecer diante de minhas amigas, como se não merecesse cuidar de seu filho? E tudo isso que comprei, dinheiro jogado fora?

Depois, acrescentou astutamente:

— E nós duas sabemos que não combinamos a coisa claramente.

— O quê? O quê? — perguntou Lucia Santa.

Então a situação se esclareceu. Houvera uma trama cruel para fazer uma caridade. As vizinhas haviam garantido a Filomena que, com o tempo, a viúva desamparada, obrigada a trabalhar para sustentar os filhos, iria renunciando aos poucos a todos os direitos sobre o seu filhinho e deixaria Filomena adotar a criança. Elas haviam sido cautelosas, falando por rodeios, mas deram a entender que Lucia Santa até esperava ter tão boa sorte. Nada podia ser dito diretamente, é claro. Esse era um assunto muito delicado. Lucia Santa cortou tudo pela raiz com uma estrepitosa gargalhada.

Filomena veio com outra toada. Olhe as roupas novas, esse lindo quarto. Ele seria filho único. Teria tudo, uma infância feliz, a universidade, seria advogado, médico, até professor. Coisas que Lucia Santa jamais poderia sonhar de oferecer. Que era ela? Não tinha dinheiro. Comeria "o pão que o diabo amassou" a vida inteira.

Lucia Santa escutava atordoada, horrorizada. Quando Filomena disse: "Vamos, você entendeu por que eu ia lhe mandar dinheiro toda semana", a mãe recuou a cabeça como uma cobra e cuspiu com toda a força no rosto da mulher mais idosa. Depois, com o filho nos braços, saiu correndo da casa. Filomena precipitou-se atrás dela, soltando pragas.

Isso era o fim da história como era contada — com gargalhadas, agora. Mas Octavia sempre se lembrava mais claramente da parte que nunca se contava: a mãe chegando em casa com o filhinho Vincent nos braços.

Entrou em casa tremendo de frio, com o casaco envolvendo o garotinho adormecido; sua tez pálida estava escura com o sangue da raiva, fúria e desespero. Ela tremia. Zia Louche falou:

— Venha. O café está esperando. Sente-se. Octavia, as xícaras.

O garotinho começou a chorar. Lucia Santa procurou acalmá-lo, mas os seus gritos foram se tornando cada vez mais altos. A mãe, furiosa e sentindo-se culpada, fez um gesto dramático, como para atirar a criança fora; depois disse para Zia Louche:

— Tome aqui o menino.

A velhota começou a arrulhar para o menino com uma voz destoada.

A mãe sentou-se à mesa redonda da cozinha. Repousou a cabeça na mão, escondendo o rosto. Quando Octavia veio com as xícaras, ela disse, ainda protegendo o rosto:

— Veja. Uma garotinha sabe a verdade e nós rimos. — Acariciou a filha, com os dedos cheios de ódio, machucando-lhe a carne tenra. — Ouça as crianças no futuro. Nós, adultos, somos animais. Animais.

— Hum... hum... — cantarolava Zia Louche. — Café. Café quente. Acalme-se.

O garotinho continuava a choramingar. A mãe estava sentada quieta. Octavia compreendeu que uma raiva enorme do mundo, do destino, tornava a mãe incapaz de falar. Lucia Santa, com a sua tez pálida escurecida, continha as lágrimas, apertando os olhos com os dedos.

Zia Louche, muito assustada para falar com a mãe, repreendia o garotinho.

— Vamos, chore — dizia ela. — Ah, como ele se sente bem! Como é fácil, hem? Você tem direito. Ah, que belo! Mais alto. Mais alto!

Mas de repente a criança calou-se, sorrindo com sua carinha desdentada, enrugada.

A velhota berrou com raiva fingida:

— Acabou tão cedo? Vamos. Chore.

Balançou o garotinho suavemente, mas Vincent sorria, as suas gengivas desdentadas pareciam uma imitação das dela.

Então a velhota disse lentamente, com uma voz triste, cadenciada:

— Miserabile, miserabile. Seu pai morreu antes de você nascer.

Ao ouvir essas palavras, Lucia Santa perdeu o controle. Enfiouas unhas com força na carne de seu próprio rosto, e as duas correntes de lágrimas misturaram-se com o sangue dos dois grandes cortes que ela fizera nas faces. A velhota pipilou:

— Vamos, Lucia, tome agora um pouco de café.

Ela não deu resposta. Depois de muito tempo, levantou o rosto escuro. Ergueu o braço coberto de preto para o teto manchado e disse com uma voz estranhamente decidida, cheia de veneno e ódio:

— Maldito Deus!

Ao ver a mãe nesse momento de orgulho satânico, Octavia adorou-a. Mas mesmo agora, tantos anos depois, ela se lembrava com vergonha da cena que se seguiu. Lucia Santa perdeu toda a dignidade. Começou a xingar. Zia Louche dizia:

— Shhh... pense na garotinha, que está ouvindo.

Mas a mãe saiu correndo do apartamento e desceu os quatro lances da escada, gritando obscenidades contra as vizinhas, que imediatamente trancavam as portas nas quais ela batia.

Gritava em italiano:

— Mulheres do diabo! Prostitutas! Assassinas de crianças!

Subia e descia as escadas, e de sua boca saía uma sujeira que ela nem sabia que conhecia, que as ouvintes invisíveis comeriam as tripas dos seus próprios pais, que haviam cometido os atos mais imundos dos animais. Ela delirava. Zia Louche passou o garotinho para os braços de Octavia e desceu as escadas. Agarrou Lucia Santa pelos cabelos pretos compridos e arrastou-a para casa. E, embora a mulher mais nova fosse muito mais forte, começou a soltar uivos de dor, caindo desmaiada perto da mesa.

Pouco depois, tomou café, acalmou-se e recompôs-se. Havia muito o que fazer. Ela acariciou Octavia murmurando:

— Mas como você sabia? Uma criança, como podia entender tal maldade?

Contudo, a mãe apenas rira quando Octavia, ao lhe falar para não se casar novamente, dissera:

— Lembre-se que eu tinha razão sobre o roubo de Vinnie por Filomena.

Depois parara de rir e retrucara:

— Não tenha medo. Eu sou sua mãe. Ninguém vai maltratar meus filhos. Não enquanto eu viver.

A mãe segurava a balança do poder e da justiça; a família nunca se corromperia. Segura, invulnerável, Octavia adormeceu, com a última imagem tremulando: a mãe, com o filhinho Vincent nos braços, voltando da casa de Filomena, furiosa, triunfante, embora mostrando vergonha e culpa por ter deixado o garotinho ser levado para a casa da outra.

 

Larry Angeluzzi (somente a mãe o chamava de Lorenzo) se considerava perfeitamente adulto com a idade de 17 anos. E com justiça. Tinha ombros largos, altura média e antebraços bastante musculosos.

Aos 13 anos, deixara a escola para dirigir um carro puxado a cavalo de uma grande lavanderia. Tinha inteira responsabilidade pela cobrança, cuidava do cavalo e sabia como lidar com os fregueses. Carregava os pesados sacos de roupa lavada, subindo quatro andares sem perder o fôlego. Todos pensavam que ele tivesse pelo menos 16 anos. E as mulheres casadas, cujos maridos já tinham saído para o trabalho, ficavam encantadas com ele.

Ele perdeu a virgindade numa dessas entregas, prazerosamente, de boa vontade, afável como sempre, não dando muita atenção à coisa; era outro pequeno detalhe do seu trabalho, como engraxar as rodas do carro, meio por obrigação, meio por prazer, já que as mulheres não eram muito novas.

O trabalho de "batedor", montado num cavalo e guiando um trem pelas ruas da cidade, satisfazia o seu espírito de heroísmo; e o salário era bom, o trabalho fácil, e um caminho aberto para chegar a guarda-freio ou guarda-chaves — duas excelentes funções vitalícias. Larry era ambicioso; queria ser chefe.

Ele já apresentava o encanto másculo do conquistador de mulheres nato. Os seus dentes brilhavam como pérolas, quando ele sorria. Tinha feições fortes, duras, regulares, cabelos bem pretos, extensas sobrancelhas e pestanas pretas. Era de temperamento amável, sempre pensando que todo mundo fazia bom juízo dele.

Bom filho, sempre dava à mãe o salário que recebia. Na verdade, ele agora ficava com algum dinheiro, escondia-o; afinal de contas, tinha 17 anos e era um rapaz que vivia na América, e não na Itália.

Não era vaidoso, mas gostava de desfilar no seu cavalo preto pela Décima Avenida, com o trem de carga serpeando lentamente atrás dele, enquanto ia agitando uma lanterna vermelha na mão, para avisar perigo ao mundo. Havia sempre uma explosão de alegria quando ele passava por baixo da ponte de ferro e madeira da Rua 30 e entrava em sua própria zona residencial, fazendo o cavalo empinar para as crianças que esperavam por ele e pela máquina com sua nuvem branca de vapor. Às vezes parava o cavalo perto do meio-fio e a garotada o rodeava pedindo uma carona, especialmente as meninas. Seu irmão Gino contemplava-o como um entendido em pintura admirando um quadro: não muito perto, um pé na frente do outro, a cabeça morena ligeiramente inclinada para trás, com a admiração brilhando-lhe nos olhos; ficava tão embevecido ao ver o irmão montado a cavalo que perdia a fala.

Contudo, embora Larry fosse bastante trabalhador, inteiramente responsável para um rapaz tão moço, tinha um defeito. Aproveitava-se das mocinhas. Elas eram muito fáceis para ele. Mães zangadas levavam as filhas à presença de Lucia Santa e faziam cenas horrorosas, gritando que ele ficava com as meninas fora de casa até muito tarde, que ele tinha prometido casar-se com elas. E assim por diante. Famoso por suas conquistas, ele era o Romeu da redondeza, conquanto popular entre as velhas da avenida. Pois ele tinha respeito. Era como um rapaz criado na Itália. Suas boas maneiras, que eram tão naturais quanto sua amabilidade, o faziam sempre pronto a ajudar nas incontáveis pequenas dificuldades dos pobres: tomava emprestado um caminhão para ajudar alguém a se mudar para um novo cortiço, visitava rapidamente uma tia idosa que estivesse hospitalizada. Mais importante, porém, é que ele tomava parte, com verdadeira dedicação, em todos os acontecimentos da vida social — casamentos, enterros, batizados, velórios, comunhões e crismas, esses sagrados costumes tribais ridicularizados pelos rapazes americanos. As velhas da Décima Avenida faziam-lhe os maiores elogios; diziam que ele sabia sempre quais as coisas realmente importantes. De fato, ele recebera uma honra que nenhum italiano se lembrava de ter sido dada antes a um rapaz tão novo. Fora convidado para ser padrinho dos filhos dos Guargios, seus primos distantes. Lucia Santa proibiu-o. Era muito moço para tamanha responsabilidade; a honra lhe viraria a cabeça.

 

Larry ouviu Gino gritar "Incendeiem a cidade", viu-o correr e viu também o pessoal desaparecer da rua e entrar nos cortiços. Saiu trotando o cavalo avenida acima para a estrebaria da Rua 35, depois passou a galopar, sentindo nos ouvidos o sopro do vento, o grande barulho dos cascos nas pedras. O rapaz da estrebaria estava dormindo, de forma que Larry desatrelou o cavalo e depois ficou livre.

Foi diretamente para a casa dos Le Cinglata, um pequeno quarteirão adiante na Rua 36. A Signora Le Cinglata servia o anisete e o vinho na cozinha, cobrando por copo e favorecendo os que bebiam mais. Nunca havia mais de cinco ou seis fregueses de cada vez; eram sempre trabalhadores italianos solteiros, ou casados, cujas mulheres não haviam vindo da Itália para juntar-se a eles.

O Sr. Le Cinglata estava terminando uma dessas penas de 30 dias que eram um risco do seu negócio.

— Ah, a polícia — dizia sempre a Signora Le Cinglata nessas ocasiões. — Pôs o meu marido na cruz. Ela era religiosa.

Quando Larry entrou no apartamento, havia apenas três homens. Um deles, um siciliano escuro, encorajado por saber que o marido dela estava na cadeia, atormentava a signora, segurando-lhe a saia quando ela passava, entoando sugestivas canções italianas. Havia em seus gestos apenas a lascívia inocente, a malícia infantil de um homem primitivo. Larry sentou-se à mesa. Conversou em italiano com os homens mais velhos. Retribuiu o sorriso de saudação da signora, e a sua pronta pretensão de igualdade ofendeu o siciliano.

Erguendo as enormes sobrancelhas cerradas com fingido espanto, ele gritou em italiano:

— Signora Le Cinglata, a senhora serve aqui a crianças? Tenho de beber meu copo de vinho com crianças de peito?

A mulher serviu um refresco de cereja para Larry, e o siciliano lançou-lhes um olhar de troça esmagador.

— Oh, me desculpe — disse ele numa linguagem condescendente, interrompida. — É seu filho? Seu sobrinho? Ele a protege quando seu marido está nas grades? Oh, me desculpe.

Berrou até se engasgar.

A signora, rechonchuda, ainda bela e rija, não achou graça.

— Basta — retrucou ela. — Pare, ou procure outro lugar para beber. E dê graças a Deus que não vou contar a meu marido o seu belo comportamento.

O siciliano retrucou com uma inesperada seriedade:

— Agradeça a Deus se ninguém for contar a seu marido o seu belo comportamento. Por que você não procura um homem em vez de um menino? — e bateu no peito com ambas as mãos, como um cantor de ópera.

A Signora Le Cinglata, de maneira alguma envergonhada mas perdendo a paciência, falou rispidamente:

— Lorenzo, jogue esse sujeito escada abaixo.

A frase foi disparatada e se destinava apenas a convencer o homem a ir embora. Larry começou a dizer algo em tom conciliatório, com um sorriso amável no rosto. Mas o siciliano, com a honra ofendida, levantou-se e gritou furioso:

— Seu americanozinho de merda! Você jogar a mim escada abaixo? Eu lhe faço todo em pedacinhos.

O rosto largo e barbado do homem demonstrava uma índole autoritária. Larry sentiu um impulso rápido de terror infantil, como se fosse um ato de parricídio atacar esse homem. O siciliano agigantou-se, e Larry aplicou uma direita violenta naquela enorme cara escura. O siciliano caiu no chão. De repente o medo de Larry desapareceu e ele começou a sentir somente pena e remorso pela humilhação do homem.

Pois esse homem não podia usar as mãos e não pretendia realmente fazer-lhe nenhum mal. Vinha como um urso inofensivo para abraçar e castigar uma criança, grotesco, humano, sem ser cruel. Larry ajudou-o a sentar-se numa cadeira, deu-lhe um cálice de anisete para beber, murmurou algumas palavras de conciliação. O homem deu-lhe uma pancada na mão, atirando o cálice no chão, e retirou-se do apartamento.

 

A noite ia passando. Homens entravam, outros saíam. Alguns jogavam bisca com um baralho velho e sujo, oferta do estabelecimento.

Larry estava sentado no canto, abatido com a sua aventura. Depois seus sentimentos se modificaram. Sentiu orgulho. As pessoas pensariam nele com respeito, como um homem com quem se devia tomar cuidado, embora não fosse ordinário ou perverso. Era o herói dos filmes de mocinho, como Ken Maynard, que nunca batia num homem caído. Começou a cochilar, sentindo-se feliz, quando então a Signora Le Cinglata veio falar com ele, na sua maneira esquisita e coquete, em italiano, e o seu sangue despertou repentinamente. A hora tinha chegado.

A Signora Le Cinglata pediu licença, dizendo que precisava ir buscar outro galão de vinho e outra garrafa de anisete. Saiu da cozinha, atravessou o comprido apartamento e dirigiu-se para o distante quarto de dormir. Havia uma porta lá. Larry seguiu-a, murmurando que ia ajudá-la a carregar as garrafas, como se ela fosse se surpreender ou se aborrecer com a sua presunção juvenil. Mas, quando ela o ouviu fechar a porta a chave, inclinou-se para apanhar um garrafão vermelho entre os inúmeros colocados ao lado da parede. Ao fazer isso, Larry levantou-lhe o vestido e a anágua com as duas mãos. Ela voltou-se com suas avantajadas calcinhas cor-de-rosa, com a barriga de fora, e protestou sorrindo:

— Eh, giovanotto.

Os grandes botões de pano escorregaram de suas casas e ela deitou-se de costas na cama, mostrando os grandes seios caídos, de bicos enormes, enquanto tirava as calcinhas frouxas. Com alguns movimentos selvagens, Larry acabou e permaneceu deitado na cama, acendendo um cigarro. A signora vestiu-se e, respeitável, apanhou o garrafão vermelho com uma das mãos e a garrafa fina e clara de anisete com a outra, e juntos voltaram para os fregueses.

Na cozinha, a Signora Le Cinglata despejava vinho e pegava nos copos e cálices com as mesmas mãos que o haviam acariciado. Ela trouxe um novo copo de refresco de cereja, mas escrupuloso por ela não se haver lavado, ele não o bebeu.

Larry preparou-se para sair. A Signora Le Cinglata acompanhou-o até a porta e sussurrou:

— Fique, passe a noite aqui.

Dando-lhe o melhor dos sorrisos, ele respondeu, também sussurrando:

— Hum, minha mãe depois ia me fazer muitas perguntas.

Ele sempre representava esse papel, o de filho obediente, quando lhe interessava escapulir.

Não foi para casa. Dobrou a esquina e voltou para a estrebaria. Fez uma cama, com palha e a manta do cavalo, usando a sela como travesseiro. O movimento incessante dos cavalos em suas cocheiras era um calmante para ele; os cavalos não podiam atrapalhar-lhe os sonhos.

Assim deitado, ele analisou o seu futuro, como fazia muitas noites, como fazem todos os jovens. Sentiu um grande poder. Sentia-se, considerava-se, como uma pessoa destinada ao sucesso e à glória. No mundo em que vivia, ele era o mais forte dos rapazes de seu bairro, o mais famoso, o que obtinha mais êxito com as moças. Até as mulheres feitas eram suas escravas. E naquela noite ele havia subjugado uma mulher feita. Larry tinha apenas 17 anos e em sua mente jovem o mundo permaneceria estático. Ele não se tornaria mais fraco, nem o mundo mais forte.

Ele seria poderoso. Faria a família rica. Sonhava com moças americanas milionárias, que possuíam automóveis e casas grandes, que se casariam com ele e amariam a sua família. No dia seguinte, antes do trabalho, ele iria ao Central Park no seu cavalo e passearia ali, montado em seu garboso animal.

Larry via-se descendo a Décima Avenida de braços com uma garota rica, e todo mundo olhando para ele com admiração. A garota adoraria a família dele. Ele não era pretensioso. Nunca lhe passava pela cabeça desprezar a família, sua mãe e a irmã, os amigos. Pois considerava-os todos extraordinários, já que eram realmente parte dele. Larry tinha um espírito verdadeiramente inocente, e, dormindo na fedorenta estrebaria, como um cowboy numa campina do Oeste, vaidoso de suas recentes vitórias sobre o homem e a mulher, Larry Angeluzzi não podia duvidar de seu destino feliz. Ele dormia em paz.

 

Na família Angeluzzi-Corbo somente os meninos — Vincent, Gino e Sal, entrelaçados na mesma cama — tinham sonhos verdadeiros.

 

Octavia levantou-se cedo quando o ar fresco da noite desapareceu dando lugar ao sol nascente de agosto. Lavou-se na pia da cozinha e, passando pelo corredor, percebeu que o padrasto não estava na cama. Mas ele dormia pouco e acordava cedo. O outro quarto vazio provava que ela tinha razão; Larry não viera para casa. Sal e Gino estavam descobertos, com seus órgãos sexuais aparecendo através da roupa de baixo. Octavia cobriu-os com o lençol amassado.

Vestindo-se para o trabalho, ela sentia o desespero e desesperança da família. Estava sufocada pelo ar quente de verão, pela proximidade do odor quente dos corpos adormecidos. A luz matinal mostrava bem claramente a mobília barata já estragada, o papel de parede desbotado, o linóleo com manchas pretas onde o revestimento colorido estava gasto.

Nesses momentos, ela se sentia condenada: tinha medo de que um dia acordaria numa quente manhã de verão tão velha quanto a mãe, numa cama e numa casa como aquela, seus filhos vivendo na imundície, tendo pela frente dias intermináveis para lavar roupa, cozinhar e lavar pratos. Octavia sofria. Sofria porque a vida não era boa — os seres humanos não eram completamente separados — e surgia de alguns momentos escuros num leito nupcial. Ela balançou a cabeça, aborrecida, embora temerosa, sabendo quão vulnerável era, sabendo que um dia devia deitar-se naquela cama.

 

Com o cabelo preto ondulado penteado, usando um vestido barato azul e branco, Octavia saiu do cortiço e foi andando pela, já quente, calçada azul da Décima Avenida, com destino a sua oficina de costura, na Sétima Avenida com Rua 36, passando pela porta dos Le Cinglata por curiosidade, talvez para ver o irmão.

Lucia Santa acordou pouco depois e percebeu imediatamente que o marido não tinha vindo para casa. Levantou-se prontamente e revistou o armário. Os sapatos de 20 dólares do marido estavam lá. Ele voltaria.

Atravessou o outro quarto para ir até a cozinha. Bravo, Lorenzo não tinha vindo para casa. Lucia Santa ficou logo carrancuda. Fez café e traçou seus planos para o dia. Vincenzo começava a trabalhar na padaria, ótimo. Gino teria de ajudá-la no trabalho de zeladora do edifício, ótimo. Um castigo para o pai, que fugira à responsabilidade. Foi até o vestíbulo e apanhou as garrafas de leite e a grande bisnaga de pão italiano, da grossura de sua coxa e da altura de uma criança. Cortou várias fatias grossas e passou manteiga numa, para ela mesma. Deixou os meninos dormirem.

A primeira parte da manhã era outra hora do dia que ela adorava. O ar ainda fresco, os meninos prestes a acordar e o resto do pessoal fora de casa, ela sentia-se forte para os deveres da vida.

 

"Que bella insalata!" — que bela salada! — foram as palavras que os meninos ouviram no momento em que acordaram. Todos saltaram da cama, e Gino olhou pela janela. Lá embaixo estava o verdureiro, em pé no assento de sua carroça, segurando para o alto e para as pessoas que estavam nas janelas uma alface lindamente verde em cada mão estirada. "Que bella insalata!", repetiu ele, não suplicando a ninguém que comprasse, somente pedindo ao mundo que olhasse para aquela beleza. Com orgulho, e não adulação, na voz, ele repetia o pregão toda vez que o seu cavalo dava um passinho, requebrando ao longo da avenida. Em sua carroça, viam-se caixas de cebolas deslumbrantemente brancas, batatas pardas grandes, maçãs, talos de cebolinhas, alho-porro e raminhos de salsa. A sua voz se elevava de maneira encantadora, com admiração inevitável, desinteressada, um grito para os namorados. "Que bela salada!"

Na hora do café, Lucia Santa instruiu os filhos.

— Ouçam, papai foi pra fora por algum tempo. Até ele voltar, vocês devem ajudar. Vincenzo vai trabalhar na panetteria. Assim, você, Gino, vai me ajudar a lavar as escadas do prédio hoje. Vai me trazer baldes de água, e espremer o esfregão, e varrer, se você não for muito bobo. Salvatore, você pode tirar a poeira dos corrimãos das escadas, e Lena também.

Ela sorriu para as duas criancinhas.

Vincenzo baixou a cabeça, embirrado. Mas Gino olhou para ela com um desafio calmo, especulativo.

— Hoje eu estou ocupado, mãe — disse ele.

Lucia Santa inclinou a cabeça para ele delicadamente e replicou:

— Ah, você está ocupado todo dia. Mas eu também estou ocupada.

Ela estava brincando.

Gino aproveitou a vantagem e falou muito sério:

— Mãe, hoje eu tenho de tirar gelo do trem; prometi a Joey Bianco. Vou trazer gelo de graça para a senhora antes de vender.

Depois, com um golpe genial, ele acrescentou:

— E para a Zia Louche também.

Lucia Santa olhou-o com uma ternura que fez Vinnie ficar com ciúme. Depois ela disse:

— Está bem, mas lembre-se de que a minha geladeira deve ficar cheia... a minha, antes de tudo.

Vincent atirou no chão a sua fatia de pão, e a mãe lançou-lhe um olhar ameaçador. Depois disse a Gino:

— Mas esta tarde esteja em casa para ajudar, senão você vai se arrepender.

Falou, porém, sem grande convicção, pois sabia que ele não teria mais muito tempo para brincar.

 

Gino Corbo, como qualquer general de dez anos de idade, tinha feito grandes planos, não havendo, contudo, revelado todos à mãe. Olhando pela janela do quarto da frente, ele via o pátio ferroviário, do outro lado da rua, abarrotado de vagões de carga paralisados. Mais além, o rio Hudson brilhava com sua cor azul. Para a sua visão infantil, o ar estava maravilhosamente puro. Ele atravessou a porta do apartamento correndo, desceu rapidamente as escadas e mergulhou no sol de agosto.

O passeio queimava sob seus pés calçados com sapatos de tênis. Sua calça azul desbotada e sua camisa de rayon agitavam-se ao vento, depois colaram-se ao seu corpo.

Ele procurava seu amigo e sócio Joey Bianco.

Joey tinha 12 anos, mas era menor do que Gino. Era o menino mais rico da Décima Avenida e tinha mais de 200 dólares no banco. No inverno vendia carvão, agora no verão vendia gelo, roubando as duas coisas dos trens. Também vendia sacos de papel para compras, no mercado que se estendia pelas ruas da Nona Avenida.

Lá vinha ele, puxando a grande caixa de madeira de seu carrinho. Era o melhor carrinho da Décima Avenida; o único de seis rodas que Gino já tinha visto, e a caixa podia conter gelo no valor de um dólar ou três meninos para serem empurrados. As rodas, pequenas e sólidas, eram revestidas com pneumáticos pesados; uma longa cavilha de madeira guiava as duas rodas da frente, havendo outras rodas para a caixa do carrinho. Joey usava uma corda de secar roupa, em lugar de corda comum, para puxar o carrinho.

Tomaram primeiro um cerimonioso copinho de sorvete de limão para começar o dia. O próprio panettiere os atendeu pessoalmente, ficando tão impressionado com a atividade deles que pôs uma concha extra de sorvete no copinho de cada um.

Joey Bianco ficava contente quando Gino vinha. Gino deixava-o receber e contar o dinheiro. E Gino subia no teto dos vagões ferroviários. Joey gostava de subir nos vagões, mas detestava ter de deixar o seu carrinho abandonado. Agora Gino disse a Joey:

— Vamos, entre no carrinho que eu te empurro.

Joey segurou a linha de direção, orgulhosamente sentado na caixa, e Gino empurrou o carrinho pela avenida, passando pela barraca do guarda-chaves, até o cascalho entre os trilhos. Quando estavam escondidos pelos altos vagões de carga espalhados pelo pátio, pararam. Joey avistou uma portinhola aberta e tirou o pegador de gelo de seu carrinho.

Gino falou imperiosamente:

— Me dê esse pegador.

Correu para o vagão de carga e subiu pela escadinha de ferro até a portinhola aberta lá em cima.

Em pé no teto do vagão, muito acima do chão, ele sentia-se livre. Lá longe, via a janela de seu quarto da frente e os muros dos cortiços. Via lojas, gente, cavalos, carrinhos e caminhões. Gino parecia estar navegando num oceano de vagões de carga — marrons, pretos, amarelos, com nomes esquisitos como Union Pacific, Santa Fé, Pennsylvania. Alguns vagões de gado vazios empestavam o ar. Virando-se, ele viu os penhascos das Paliçadas de Jersey salpicados de verde, com a água azul embaixo. Através de centenas de vagões de carga imóveis, algumas máquinas pretas roncavam baixinho, enquanto a sua fumaça branca acrescentava um novo cheiro de queimado, agradável naquela manhã de verão.

Joey gritou para ele:

— Vamos, Gino, atire o gelo pra baixo antes que chegue o guar­da!

Gino apanhou o pegador de aço brilhante e começou a tirar os blocos de gelo pela portinhola. O vagão estava cheio até o teto e era fácil arrancá-los de um só impulso. Empurrava cada bloco pela borda do carro, vendo-o cair no cascalho. Grandes lascas prateadas desprendiam-se e subiam, atingindo-o. Joey punha os braços em volta do bloco de gelo e abraçava-o, levando-o então para o carrinho. Em pouco tempo, o carrinho estava cheio. Gino desceu e foi empurrá-lo, enquanto Joey o puxava da frente, guiando-o.

Gino queria encher a geladeira da mãe, mas o panettiere apanhou-os quando atravessavam a avenida e comprou toda a primeira carga por um dólar. Depois eles foram buscar outra. Desta vez, o merceeiro interceptou-os e comprou a carga toda por um dólar, alguns refrescos e sanduíches.

Inebriados com a riqueza, resolveram deixar as mães esperar, permanecendo vazias as suas geladeiras. A terceira carga foi para as famílias que moravam no primeiro andar. Já era quase meio-dia. Na quarta carga eles se encrencaram.

O guarda ferroviário já os tinha visto antes, quando eles se metiam cada vez mais para dentro do pátio, abrindo novos vagões para não terem de tirar gelo de uma fonte exaurida. Devastavam como um animal que mata três ou quatro vítimas e tira a melhor parte de cada uma delas. Assim, o guarda esperou e encaminhou-se para o lado da Décima Avenida, cortando-lhes a retirada.

Joey avistou-o primeiro e gritou para Gino:

— Butzo, é Charlie Chaplin!

Gino viu, de sua posição elevada, quando o guarda de pernas tortas agarrou Joey pela camisa e esbofeteou-o de leve.

Ainda segurando firme Joey, o guarda berrou para Gino:

— Muito bem, garoto, vamos descer daí ou eu subo e lhe arrebento o traseiro.

Gino olhou para baixo, sério, como se estivesse realmente considerando a ameaça, mas tramando alguma coisa. O sol estava muito quente e fervia-lhe o sangue, dando ao mundo uma luz especial, destemida. Gino tremia de emoção, mas não tinha medo. Sabia que estava a salvo. O guarda poria Joey para fora do pátio e quebraria o carrinho. Mas Gino lera uma história sobre mães de pássaros e, pensando nisso, concebeu um plano enquanto olhava para o guarda: ele salvaria Joey e o carrinho.

Provocadoramente, pôs o rosto angular, quase de homem, para fora do vagão e gritou para baixo:

— Ah! ah! ah! Charlie Chaplin não sabe pegar a gente!

Depois abaixou-se e começou a descer a escada do outro lado do vagão de carga. Mas desceu apenas alguns degraus e esperou.

O guarda disse furiosamente a Joey:

— Fique aqui.

Depois mergulhou por baixo do vagão para pegar Gino. Chegou apenas a tempo de o menino subir novamente a escada. O guarda voltou arrastando-se para segurar Joey.

Gino dava pulos no teto do vagão, cantando:

— Charlie Chaplin não sabe pegar a gente!

O guarda ficou danado da vida e ameaçou:

— Garoto, estou lhe avisando. Desça desse trem, ou quando eu o apanhar lhe arrebento esse traseiro.

Isso parece que sossegou Gino, e ele olhou sério para baixo. Levantou o nariz com o polegar para o guarda, correu lentamente, de modo desajeitado, pelo teto do vagão de carga, e saltou, balançando-se, para o carro seguinte. No chão, o guarda acompanhava-lhe os passos facilmente, olhando ameaçadoramente para trás para que Joey não tentasse fugir com seu carrinho. A composição constava apenas de 10 ou 11 vagões.

Gino saltou alguns vagões, depois fingiu que ia descer novamente pelo outro lado. O guarda mergulhou por baixo. Ele não podia manter o olho em Joey se fizesse isso, mas não se importava. Tinha decidido que ia arrebentar o traseiro do garoto que estava correndo sobre o teto dos vagões.

Acenando com sua figurinha abaixada e saltando, Gino continuou a correr pelo teto dos vagões, cada vez mais dentro do pátio, depois esperou que o guarda ficasse na mesma direção e olhou para ele. Em seguida, levantando a cabeça, viu Joey correr, puxando o carrinho para a liberdade, lá do outro lado da avenida.

— Garoto, é melhor você descer — disse o guarda. — Você me obriga a persegui-lo e vai acabar apanhando com isto — e mostrou o cassetete.

Pensou em puxar o revólver para assustar o menino, mas os trabalhadores italianos de uma das turmas do pátio podiam ver, e ele seria um homem jurado. Retornou por baixo do vagão de carga, ainda a tempo de ver Joey e o carrinho atravessarem salvadoramente para a avenida. Ficou tão irritado que gritou para Gino:

— Você, seu carcamaninho ordinário, desça daí que eu lhe arrebento a corcunda!

Satisfeito, ele viu a ameaça surtir efeito; o garoto estava voltando pelo teto dos vagões até ficar diretamente acima dele. Então aquela cara escura e séria de criança inclinou-se sobre ele. E o guarda ouviu o menino gritar com um súbito desprezo que assumia uma pretensa igualdade de força:

— Foda-se, Charlie Chaplin!

Uma grande pedra de gelo branco passou zunindo pela cabeça do guarda, e o garoto saiu balançando-se desajeitadamente ao longo do teto dos vagões, internando-se no labirinto do pátio.

O guarda, agora realmente furioso mas confiante, correu para acompanhá-lo, com a cabeça comicamente levantada. O garoto estava caindo sozinho na armadilha. Estava furioso não com o insulto, mas por ser chamado de Charlie Chaplin. Ele era vaidoso, e suas pernas tortas o tornavam sensível.

De repente, Gino desapareceu. O guarda mergulhou rapidamente por baixo do vagão de carga para apanhá-lo descendo a escada do lado oposto. Atrapalhou-se com os trilhos e perdeu um segundo precioso. Quando chegou ao outro lado, não viu nenhum sinal do garoto. Recuou para ampliar o seu campo de visão.

Viu Gino quase literalmente voando ao longo do teto dos vagões fechados, pulando de um para outro, na direção da Décima Avenida, e depois desaparecer do lado do vagão distante do guarda. Este correu, mas chegou apenas a tempo de ver o garoto atravessar a Décima Avenida para a sombra protetora do muro dos cortiços, onde, sem sequer olhar para trás, Gino parou para descansar e tomar um sorvete de limão. Não havia o menor vestígio de Joey.

O guarda teve de rir, não pôde evitá-lo. O garoto levara a melhor, um merdinha daquele. Mas não havia de ser nada, o dia dele chegaria; ele era Charlie Chaplin, sim; ele os faria gritar, mas não de alegria.

 

Gino nem se preocupou em olhar para trás, quando atravessou a avenida. Queria encontrar Joey Bianco e o dinheiro do gelo. Ouviu a mãe berrar da janela do quarto andar:

— Gino, bestia, onde está o gelo? Venha comer!

Gino olhou para o alto, e acima de sua mãe viu o céu azul.

— Vou subir daqui a dois minutos! — gritou ele.

Depois saiu correndo e dobrou a esquina para a Rua 30. Viu então Joey sentado num alpendre, com o carrinho amarrado no corrimão de ferro do porão.

Joey estava melancólico, quase chorando, mas, quando viu Gino, saltou no ar e disse alvoroçadamente:

— Eu ia dizer a sua mãe!... Puxa, eu não sabia o que fazer!...

A Rua 30 estava empoeirada e toda ensolarada. Gino entrou no carrinho e foi guiando, enquanto Joey o empurrava. Na Nona Avenida, compraram sanduíches de salame e Pepsi. Depois foram para a Rua 31, onde havia sombra, e sentaram-se de costas apoiadas na parede da fábrica de chocolate Runkel.

Comeram os sanduíches com a alegria e o apetite de homens que tiveram um dia plenamente satisfatório: trabalho duro, aventura e o pão ganho com o próprio suor. Joey estava admirado e insistia em dizer:

— Caramba, você me salvou, Gino! Você de fato tapeou aquele guarda!

Gino mostrou-se modesto, pois sabia que aprendera aquele truque num livro sobre pássaros, mas não disse a Joey.

O sol de verão desapareceu. Passaram algumas nuvens escuras rápidas. O ar morno, empoeirado, e o cheiro das calçadas quentes de pedra e do asfalto derretido foram varridos por um lençol precipitado de chuva, precedido de pancadas fortes. Joey e Gino enfiaram-se por baixo da plataforma de carga. A chuva fustigava, parte dela entrando pelas rachaduras no piso da plataforma, e eles viravam o rosto para cima, a fim de receber as gotas frescas direto nele.

Naquele ambiente sombreado, havia bastante luz para se jogar cartas. Joey puxou o baralho ensebado do bolso das calças. Gino não gostava de jogar porque Joey ganhava sempre. Jogavam sete-e-meio e Gino perdeu os 50 centavos do dinheiro do gelo. Continuava a chover.

Joey, gaguejando um pouco, disse:

— Gino, tome aqui de volta os seus 50 centavos por ter-me salvo do guarda.

Gino se ofendeu. Heróis nunca aceitam pagamento.

— Vamos — disse Joey com mais firmeza. — Você salvou meu carrinho, também. Tem de receber os 50 centavos de volta.

Gino de fato não queria o dinheiro. Tiraria o brilho da aventura, se o outro lhe pagasse. Mas Joey estava quase chorando, e Gino viu que por algum motivo tinha de aceitar o dinheiro.

— Está bem — concordou Gino, e Joey entregou-lhe o dinheiro.

Ainda chovia. Esperaram quietamente, enquanto Joey, despreocupado, baralhava as cartas. A chuva continuava a cair. Gino girou a moeda no chão.

Joey continuava a olhar para a moeda. Gino a pôs no bolso.

— Você quer jogar sete-e-meio novamente, valendo o dobro? — perguntou Joey.

— Não — respondeu Gino.

Finalmente a chuva parou e o sol saiu, e eles também saíram, arrastando-se como toupeiras, de baixo da plataforma. O sol renascido estava lá longe no oeste, sobre o rio Hudson. Joey disse:

— Jesus! Está ficando tarde. Preciso ir para casa. Você vem comigo, Gino?

— Ah — retrucou Gino — eu não.

Ele viu Joey puxar o carrinho na direção da Décima Avenida.

A última turma saiu da fábrica Runkel. Os operários cheiravam a chocolate, e o cheiro era tão doce e ativo como o das flores, carregado no ar da chuva recente. Gino sentou-se na plataforma e esperou até que os homens acabassem de sair.

Estava imensamente feliz com tudo o que via — os tijolos dos cortiços apresentando uma cor vermelha carregada, pela incidência dos fortes raios solares, as crianças saindo novamente para brincar nas ruas, os poucos cavalos e carroças dirigindo-se para a avenida, um deles deixando uma trilha de bolas granuladas e douradas de bosta. As mulheres vinham abrir as janelas; travesseiros apareciam nas sacadas; rostos de mulheres, pálidos, encimados por toucas pretas, inclinavam-se para a rua como gárgulas ao longo da muralha de um castelo. Finalmente os olhos de Gino se surpreenderam com a rápida correnteza de água da chuva nos esgotos inundados. Ele tirou a sua moeda de meio dólar do bolso, equilibrou-a num pedaço de pau e fê-lo arrastar pela correnteza na direção da avenida. Depois correu atrás, viu que estava perto da Décima Avenida, apanhou o pedaço de pau e a moeda e voltou para a Nona Avenida.

No caminho, ao passar por uma fileira de casas vazias, viu uma turma de rapazes grandes como Larry balançando-se numa corda pendurada no telhado quatro andares acima deles. Saltavam da sacada da janela do segundo andar e balançavam-se acima da Rua 31, atravessando o ar, como Tarzan, até atingir a janela de uma casa vazia bem longe da rua.

Um rapazola louro, de camisa vermelha, descreveu um grande semicírculo, errou a janela, fez impulso contra a parede que atingiu com os pés e, enroscando-se, voou de retorno ao lugar de onde tinha partido. Por um momento, deu a impressão de que estava realmente voando. Gino contemplou-o com grande inveja. Mas não adiantava. Eles não o deixariam fazer aquilo. Era muito pequeno. Ele prosseguiu o seu caminho.

Na esquina da Nona Avenida com a Rua 31, na sombra retangular iluminada da passagem elevada, Gino pôs novamente o pedaço de pau, com a moeda em cima, no esgoto e viu-o correr até a Rua 30; balançando, subindo com as ondinhas, atropelando pedaços encharcados de jornal, cascas e caroços de frutas, restos dispersos de excrementos de animais, raspando o fundo do asfalto preto-azulado que brilhava por baixo da água. O pedaço de pau virou a esquina e começou a descer a Rua 30 para a Décima Avenida, sem deixar cair a moeda. Gino marchava atentamente a seu lado, olhando de soslaio para os garotos que o tinham perseguido na noite anterior. O seu "barco" passava por latas vazias, girava em torno de montes de lixo, mas conseguiu livrar-se para finalmente atravessar uma seqüência de pequenos arco-íris de esgoto. Então Gino apanhou sua moeda de meio dólar, quando o "barco" atravessou as grades do esgoto por baixo da ponte da Décima Avenida. Mergulhado em seus pensamentos, dobrava a esquina da avenida quando foi atingido no estômago pelo irmãozinho Sal, que, de cabeça baixa, estava brincando e vinha correndo. Sal gritou afobado:

— A mãe está procurando você! Nós já comemos e você vai levar uma surra!

Gino deu meia-volta e retornou para a Nona Avenida, procurando os arco-íris no esgoto. Voltou às casas vazias e encontrou a corda balançando sozinha. Desceu ao porão e entrou na casa, subindo umas escadas bambas até o segundo andar. A casa estava saqueada, os encanamentos roubados por causa do chumbo, as lâmpadas e globos também tinham sido levados. O chão não oferecia firmeza, pois estava coberto por uma camada de reboco. Tudo lhe pareceu quieto e perigoso, quando ele atravessou na ponta dos pés os quartos lugubremente desertos e os vãos sem as portas. Finalmente, chegou à janela e conseguiu ver a rua. O vão quadrado das janelas era apenas uma abertura vazia de pedra. Gino subiu na sacada, inclinou-se e pegou a corda.

Tomou impulso para fora da sacada e por um momento glorioso teve a sensação de estar realmente voando como um passarinho. Atravessou o ar, por cima da rua, e, completando o arco, pousou na sacada de uma janela três prédios adiante no quarteirão. Tomou impulso e foi novamente para a frente — cada vez mais depressa, voando de um lado para outro, atingindo as sacadas das janelas e a parede, depois tomando impulso, com os pés, para voltar, como se fossem asas, até que os braços não o puderam mais suportar e ele escorregou pela corda, queimando as mãos, quando freou para não cair no porão, e saltou correndo para a Décima Avenida, num movimento bem ritmado.

Já começava a escurecer. Gino ficou surpreso e, plenamente convencido de que agora estava em dificuldade, foi descendo a Rua 31 na direção da Décima Avenida, fazendo o possível para conservar o ar de surpresa na fisionomia. Mas ninguém de sua família estava entre as pessoas já sentadas na frente dos cortiços, nem mesmo Sal. Subiu os quatro lances de escada.

Ao passar pelo segundo andar, ouviu Octavia e a mãe gritando uma com a outra. Preocupado, diminuiu o passo. Quando penetrou no apartamento viu as duas, uma de frente para a outra, com manchas vermelhas nas faces pálidas, os olhos fuzilando. Ambas se viraram para ele, quietas, ameaçadoras. Mas Gino, fascinado, só tinha olhos para o irmão Vinnie, já sentado à mesa. A cara de Vinnie estava completamente branca, coberta de farinha de trigo, a roupa também toda empastada de farinha. Ele parecia muito cansado, com os olhos enormes e escuros naquela cara enfarinhada.

— Ah, você já está em casa — a mãe foi dizendo. — Bravo!

Gino, percebendo que as duas mulheres olhavam para ele como juizes, apressou-se a sentar-se à mesa para que elas lhe trouxessem comida. Estava morrendo de fome. Um bofetão atordoante no pé do ouvido o fez ver estrelas, e através da tonteira ouviu a mãe gritar:

— Seu safado! Você desapareceu o dia todo! Que foi que você fez? E, ainda por cima, o signor senta-se na mesa para comer sem se lavar! Vá! Figlio de puttana! Bestia! Vincenzo, vá se lavar também, você vai se sentir melhor.

Os dois meninos se dirigiram à pia da cozinha para se lavar e voltaram para a mesa.

Os olhos de Gino encheram-se de lágrimas — não devido ao bofetão, mas por causa do fim horrível de um dia tão bonito. Primeiro ele fora um herói, depois a mãe e a irmã zangadas como se o odiassem. Ele baixou a cabeça, envergonhado como qualquer vilão, perdendo a fome até que a mãe pôs um prato de lingüiça e pimentão embaixo de seu nariz.

Octavia lançou um olhar furioso para Gino e disse para Lucia Santa:

— Ele tem de fazer a sua parte. Por que diabo? Vinnie vai trabalhar pra ele quando o próprio pai pouco liga? Se ele não trabalhar, Vinnie larga a padaria e vai se divertir também em suas férias de verão.

Sem ciúme, Gino notou que Octavia e a mãe olhavam para Vinnie com pena e amor, enquanto ele, cansado e indiferente, comia. Percebeu que a irmã estava prestes a chorar por algum motivo. Viu as duas mulheres se preocuparem exageradamente com Vinnie, servindo-o como se ele fosse um adulto.

Gino meteu a mão no bolso, tirou a moeda de 50 centavos e deu-a à mãe, dizendo:

— Fiz isto vendendo gelo. Pode ficar com o dinheiro. Posso trazer pra casa 50 centavos todo dia.

— É melhor você parar de roubar gelo nos trens — falou Octavia.

Lucia Santa estava nervosa.

— Ora, a estrada de ferro não se incomoda que os meninos tirem um pouco de gelo.

Olhou para Gino, com um sorriso curiosamente carinhoso no rosto.

— Leve seu irmão ao cinema, domingo, com o dinheiro — acrescentou ela, passando manteiga num pedaço grande de pão para ele.

O rosto de Vinnie ainda estava branco, mesmo depois de a farinha ter saído. Os traços estranhos de fadiga e tensão, sempre repulsivos no rosto de uma criança, fizeram Octavia passar o braço em volta dele e dizer preocupadamente:

— Que foi que mandaram você fazer, Vinnie? O trabalho é muito duro?

Vinnie deu de ombros e respondeu:

— Está tudo bem. Só que é muito quente. Depois acrescentou com relutância:

— Eu me sujei carregando sacos de farinha lá do depósito.

Octavia compreendeu e disse revoltada:

— Essa gente nojenta! — Voltando-se para a mãe, falou: — Seu imundo camponês carcamano, o panettiere, fazendo um menino como Vin carregar esses sacos pesados. Quando o filho dele pedir para eu me encontrar com ele, vou cuspir-lhe na cara em plena rua.

Vinnie observava-as esperançosamente. Octavia, tão zangada, podia fazê-lo deixar o emprego. De repente, ele se sentiu envergonhado porque a mãe precisava do dinheiro.

Lucia Santa deu de ombros e comentou:

— Cinco dólares por semana, além de nosso pão de graça, como cortesia. Sorvete de limão de graça, quando Vincenzo estiver atendendo a freguesia, e isso é dinheiro poupado no verão. Com o pai deles desaparecido...

Octavia explodiu. A calma com que a mãe aceitava o desaparecimento do pai tornou-a furiosa:

— É exatamente isto! O pai dele foi embora! Não dá merda nenhuma!

Mesmo com toda sua raiva, ela achou graça no olhar que os meninos lhe lançaram — uma moça usando uma palavra indecente como aquela. Mas a mãe não achou graça e Octavia completou num tom mais brando:

— Não é justo. Não é justo para Vinnie.

A mãe falou num italiano feroz, perguntando:

— Quem é você, que quer ser professora quando tem a boca suja como uma prostituta?

Fez uma pausa para receber uma resposta. Mas ela havia modificado toda a idéia que Octavia fazia de si mesma. A mãe continuou:

— Se você quer uma casa para mandar, case-se, tenha filhos, grite quando eles saírem da sua barriga. Então, você vai poder bater neles, vai poder decidir quando eles devem trabalhar e como e quem deve trabalhar.

Olhou para a filha, friamente, como se estivesse enfrentando uma inimiga mortal, e acrescentou:

— Basta. Bastanza.

Voltando-se para Gino, disse:

— Você, giovanotto. De manhã à noite, eu não o vejo. Você pode ser atropelado. Pode ser raptado. Isso é uma coisa. Agora: seu pai foi embora por algum tempo e assim todo mundo tem de ajudar. Amanhã, se você desaparecer, eu lhe bato com isto.

Foi até o guarda-louça e tirou o pedaço de pau usado para estirar a massa para o ravióli nos dias de festa; o rolo de macarrão. Com a voz rouca, mais irritada, ela gritou:

— Por Jesus Cristo, vou fazer você aparecer! Vou bater-lhe tanto que mesmo que você fosse o Espírito Santo não poderia desaparecer. Agora, coma. Depois, lave os pratos, limpe a mesa e varra o chão. E que eu não veja você ir lá pra baixo esta noite.

Gino ficou impressionado. Embora não sentisse medo, permaneceu atento e nervoso durante todo o desabafo. Daquele barulho às vezes vinha um impulso inesperado que dava margem a que se escapulisse. Mas nada aconteceu. As duas mulheres foram lá para baixo e Gino sentiu um alívio e passou a comer a lingüiça gorda, os pimentões oleosos, misturando tudo deliciosamente na boca e satisfazendo a fome. A tempestade tinha passado, não ficara qualquer ressentimento. Ele trabalharia para a mãe no dia seguinte, iria ajudá-la.

Vinnie olhava para o seu prato, não comia. Gino falou animadamente:

— Puxa, aposto que você trabalhou duro para o nojento do pa­nettiere. Vi você carregando um cesto enorme. Para onde ia levando aquilo.

— Não — disse Vinnie. — Eles têm uma casa na Nona Avenida. Não é tão ruim assim. Apenas carregar a farinha lá do depósito.

Gino olhou para ele. Havia algo errado.

Mas Vinnie já estava se sentindo melhor e engoliu umas garfadas das grandes de comida, ignorando que o que sentira aquele dia todo fora medo. Que sofrera uma crueldade comum — um menino saindo do seio da família para receber ordens de estranhos, a fim de executar uma árdua tarefa. Era a sua primeira experiência de vender parte de seu ser por dinheiro, tão diferente de fazer alguma coisa para a mãe ou engraxar os sapatos do irmão mais velho para ganhar uns trocados.

Mas a escola viria no outono e o livraria daquilo, e ele se esqueceria como a sua mãe e irmã o tinham lançado fora da família e do seu regulamento por amor e sangue. Não pensava mais que não podia brincar nas manhãs ensolaradas de verão, ou andar à toa pelo quarteirão falando com os amigos, escondendo-se na sombra da Rua 31, enquanto saboreava calmamente um copinho de sorvete de limão. Sentia a terrível tristeza que só as crianças podem sentir, porque não têm conhecimento da tristeza dos outros, do desespero geral dos homens.

Gino limpou a mesa e começou a lavar os pratos. Vinnie ajudou-o a enxugar. Gino contou as suas aventuras com o guarda ferroviário, a casa vazia e a corda, e o jogo de cartas com Joey; mas não disse nada sobre a "volta de barco" em torno do quarteirão, porque com 10 anos de idade já estava muito velho para aquele tipo de brincadeira.

Gino escondeu uma panela suja e encrostada de gordura e fuligem no forno. Depois os dois meninos foram para a sala de estar para olhar a avenida. Gino sentou-se no peitoril de uma janela e Vinnie no de outra. Ambos estavam em paz.

Gino perguntou:

— Por que diabo mamãe e Octavia estão danadas comigo? Palavra que me esqueci. Vou fazer tudo amanhã.

— Elas estão danadas porque papai foi embora. Não sabem onde ele está. Ele deve ter fugido.

Os dois riram com a piada de Vinnie. Só crianças fugiam.

Lá embaixo na Décima Avenida, avistavam a lanterna vermelha de um "batedor" ferroviário e, atrás dele, como um pequeno fantasma redondo, a mancha branca do holofote da máquina que o seguia. As pessoas lá embaixo eram apenas sombras iluminadas pelos postes de luz, pelo anúncio luminoso do balcão de sorvete do panettiere e pelas lâmpadas das vitrinas do armazém e da confeitaria.

Gino e Vincent, sentados cochilando no peitoril de suas janelas, sentiam no rosto cansado a brisa fresca que soprava do rio Hudson. Cheirava a capim, árvores e outras coisas verdes pelas quais tinha passado antes de chegar à cidade.

 

No fim de agosto, todos começavam a detestar o verão, menos as crianças. Os dias eram cheios do cheiro de pedra queimada, asfalto derretido, gasolina e estéreo dos cavalos que puxavam as carroças dos vendedores de frutas e verduras. Sobre a muralha ocidental da cidade, onde morava a família Angeluzzi-Corbo, pairavam nuvens de vapor deixadas pelas locomotivas, ar imobilizado pelo calor. Flocos negros se desprendiam dos fogos acesos, quando as máquinas puxavam vagões de carga em longas filas. Nessa tarde de domingo, quando tudo estava calmo, os abandonados vagões ferroviários amarelos, marrons e pretos formavam sólidos blocos geométricos na luz solar dourada líquida, abstrações numa selva de aço e ferro, pedra e tijolo. Os brilhantes trilhos prateados se estendiam para dentro e para fora.

A Décima Avenida, toda aberta para o rio na Décima Segunda Avenida, sem qualquer muro intermediário para fazer sombra, era mais clara do que as outras avenidas da cidade e mais quente durante o dia. Agora estava deserta. A enorme festa dominical duraria de meio-dia até as quatro horas, pois se esticaria com as nozes e o vinho e a narração das histórias da família. Algumas pessoas visitavam os parentes mais afortunados que tinham obtido sucesso e se haviam mudado para casas próprias em Long Island ou Jersey. Outras aproveitavam o dia para comparecer a enterros, casamentos, batizados, ou — mais importante que tudo — levar alegria e guloseimas para os parentes hospitalizados.

Os indivíduos mais americanizados podiam até levar a família a Coney Island, mas não faziam isso mais do que uma vez por ano. A viagem era longa, e o tamanho da família exigia grande despesa com cachorros-quentes e refrescos, mesmo que levassem consigo sua própria comida e bebida em sacos de papel. Os homens detestavam ir. Esses italianos nunca se haviam deitado preguiçosamente numa praia. Expunham-se ao sol toda a semana, trabalhando nos trilhos da estrada de ferro. No domingo queriam o ar fresco de uma casa ou jardim, queriam distrair-se com um baralho, bebericar vinho, ou ouvir a tagarelice das mulheres que não os deixariam mover sequer um dedo. Podiam também tanto ir trabalhar quanto ir a Coney Island.

O melhor de tudo era uma tarde de domingo sem obrigações. As crianças no cinema, a mãe e o pai tiravam uma sesta juntos, depois da pesada refeição, e faziam um amorzinho completamente a sós e à vontade. Era o único dia livre da semana e era zelosamente guardado. Recuperavam-se as forças. Consolidavam-se os laços da família. Não se podia negar, era um dia reservado pelo próprio Deus.

Nesse domingo, as ruas, vazias, ensolaradas, despontavam em linhas retas para fora da Décima Avenida. Já que a redondeza era muito pobre para possuir automóveis, nenhum carro estragava a simetria da calçada de concreto entremeado de ardósia azul-acinzentada. O sol brilhava no asfalto preto, nos corrimãos de ferro das varandas e nas rústicas escadarias de pedra pardacenta. Tudo isso parecia fixado para sempre no sol ofuscante de verão; era deslumbrante, como que não-oculto, nesse dia, pelas chaminés das fábricas inativas.

Mas Lucia Santa havia escolhido esse domingo para ser um dia de luta, para pegar o inimigo, os Le Cinglata, desprevenido.

Toda a família estava fora de casa. Octavia, obediente filha italiana como era, havia levado Sal e a irmãzinha Lena para um passeio. Vincenzo e Gino tinham ido ao cinema. Lucia Santa estava livre.

O filho mais velho, a proteção e amparo de uma família sem pai, não tinha mostrado o devido respeito por seu sangue nem por sua mãe. Lorenzo não estivera presente ao almoço de domingo. Não tinha vindo dormir em casa nas duas últimas noites, e aparecia pela manhã apenas para dizer à mãe que tinha de trabalhar até tarde e que dormiria na estrebaria da estrada de ferro. Mas Lucia Santa dera pela falta de sua melhor roupa no armário, havendo desaparecido também uma de suas duas camisas brancas e uma maleta. Isso era bastante. Bastanza. A sua palavra de decisão.

Um filho dela, que ainda não tinha 18 anos, solteiro, que ainda não era dono de seu nariz, ousava deixar o seu próprio teto, o domínio de sua mãe? Que desgraça para o nome da família! Que golpe no seu prestígio na vizinhança! Que desafio a seus poderes legítimos. Rebelião. Rebelião que não podia ser tolerada.

Vestida de preto, respeitável no seu chapéu e véu domingueiros, munida de sua bolsa como competia a uma senhora, com as pernas enfiadas em meias de algodão marrom presas por ligas que lhe cortavam as coxas, Lucia Santa saiu pelas ruas resplandecentes e subiu pela Décima Avenida até a Rua 36, onde moravam os Le Cinglata. À medida que andava, mais crescia a sua raiva pela cena que teria de fazer. Aquela cadelinha, aquela sonsinha de fala macia, que 20 anos atrás tinha chorado na igreja, fazendo tanto barulho porque teria de dormir com um homem que nunca vira. Del-i-cato. Oh, que coisa horrível! Oh, que coisa terrível! Oh! Ah! Ah! Lucia Santa sorriu sinistramente. Essa gente que se dava ares de importância... Isso era o verdadeiro instinto da prostituta inata. Votos de casamento e documentos legais para que a ordinária pudesse andar de cabeça erguida, encarar toda pessoa, rica ou pobre, que fosse importante. Desde que não houvesse disgrazia. Então se alguém insultasse a nossa honra, podíamos cometer um assassinato com a consciência tranqüila. Mas isso não era a Itália. Ela pôs de lado esses pensamentos, sanguinários como os de qualquer rapaz inexperiente.

Mas, na verdade, isso era o que a América podia fazer a uma respeitável moça italiana que não tinha mais pais para dirigi-la. Ela agora era uma mulher, a Signora Le Cinglata. Mas que ares de importância! Que graças ela havia assumido! Oh, os mais astutos possíveis.

E o filho dela. América ou não América, 17 anos de idade ou não, trabalhando ou não, ele teria de obedecer à mãe ou levaria a mão na cara. Ah, se o pai legítimo dele estivesse vivo haveria bofetões a valer — mas, então, Lorenzo jamais se atreveria abandonar o teto paterno.

A sombra do cortiço dos Le Cinglata trouxe-lhe alívio. Lucia Santa descansou no fresco vestíbulo escuro, com seu usual cheiro bolorento de ratos, e reuniu suas forças para subir as escadas e enfrentar a batalha que a aguardava. Por um momento, sentiu um desespero debilitante, uma grande e súbita compreensão de sua vulnerabilidade ante o destino e a vida — seus filhos alienados por modos estranhos e uma língua estrangeira, um marido tão excêntrico que era até um perigo na luta pela sobrevivência.

Mas tais pensamentos levavam ao desastre. Ela subiu. Nenhum filho dela seria gangster, um pamonha criminoso explorado por uma mulher mais velha sem-vergonha. Por um momento, no vestíbulo escuro, naquele tenebroso vão de escada, Lucia Santa teve uma visão terrível da cadeira elétrica, seu filho sangrando, apunhalado pelo siciliano ou o marido ciumento. Na hora em que a porta dos Le Cinglata se abriu, sentiu o sangue ferver-lhe nas veias e preparou-se para a batalha.

Mas logo de início ela hesitou. Na porta estava o Sr. Le Cinglata, com seu enorme bigode embranquecido, uma camisa limpa e calças pretas, com suspensórios, e sua grande pança. Não estava nem sequer pálido em conseqüência de sua rápida passagem pela cadeia.

Lucia Santa agora estava em dúvida. Com o marido em casa, que é que o filho dela estava fazendo ali? Seria tudo apenas mexerico? Mas ela não acreditava, especialmente quando viu a Signora Le Cinglata em pé junto à mesa. O olhar de uma inimiga estava claramente estampado naquele rosto, uma culpa desafiadora misturada a um estranho ciúme.

Aquela mulher vestida de preto, com a diferença de que tinha o rosto mais magro e mais jovem do que o de Lucia Santa, podia ser a mãe de Lorenzo. Como uma mulher da sua idade se atrevia a corromper um menor? Como é que elas duas poderiam ter sido outrora tão jovens e ela tão inocente?

— Ah, signora — disse o Sr. Le Cinglata. — Venha sentar e tomar um copo de vinho.

Ele a conduziu a uma mesa de tampo metálico branco. Pegou um jarro de meio galão e serviu-lhe um copo de vinho.

— As uvas foram boas no ano passado. Este vinho nos lembra a Itália.

E acrescentou, piscando o olho:

— Este não é o vinho que eu vendo, pode acreditar.

Lucia Santa compreendeu que só a uma visita respeitável como ela era servido um vinho de tal safra.

A Signora Le Cinglata trouxe um prato de tarelle, duro e incrustado, salpicado de pontinhos pretos de pimenta. Pôs o prato na mesa, depois cruzou os braços. Ela não bebia.

O Signor Le Cinglata encheu um copo de vinho para si mesmo e disse:

— Beba, Lucia Santa — falando com uma cordialidade tão sincera que a mãe ficou desarmada, como geralmente lhe acontecia ao ser tratada com uma cortesia inesperada.

Ela bebeu. Depois disse num tom de voz mais brando do que pretendia:

— Eu ia passando e pensei que Lorenzo estivesse aqui, ajudando a Signora Le Cinglata a atender os fregueses.

O marido sorriu e respondeu:

— Não, não. Nas tardes de domingo nós descansamos. Nada de negócios até a noite. Afinal, não somos judeus.

Lucia Santa falou, um pouco mais vigorosamente:

— Perdoe-me por dizer isso. O senhor deve entender uma mãe. Lorenzo ainda é muito moço para esse tipo de negócio. Não tem o raciocínio de um adulto. Uma noite ele bateu num homem que tinha idade para ser seu pai. Um siciliano que pode resolver matá-lo. Sem dúvida, Signor Le Cinglata, o senhor sabe a respeito disso, a respeito de todas essas coisas.

O homem foi expansivo e tolerante.

— Ah, sim, eu sei. Um bom rapaz. Bravo, bravo, o seu Lorenzo. A senhora o educou como um bom italiano, respeitador dos mais velhos, prestativo. Sei que o bom dinheiro que lhe pagamos ele entrega à mãe. Não há muita gente em que eu possa confiar, dar a liberdade que ele goza em minha casa, mas com Lorenzo não tenho qualquer dúvida. Que cara honesta que ele tem!

E continuou a falar nesse tom, até que Lucia Santa tornou-se impaciente e interrompeu-o:

— Mas ele não é um anjo do céu. Deve obedecer. Não tenho razão? Deve um filho mostrar respeito pela mãe ou não? E agora dei por falta de algumas de suas roupas. Assim, pensei que o senhor soubesse, talvez ele repousasse aqui uma noite ou outra.

Pela primeira vez a Signora Le Cinglata falou, e Lucia Santa admirou-se do seu descaramento, sua falta de vergonha, sua voz firme.

— Ah — disse a mulher. — Seu filho é um homem crescido. Ganha o seu próprio pão e um pouco mais para ajudar os seus outros filhos. Não estamos na Itália. A senhora quer dominá-lo com mão de ferro.

Aqui, agora, a Signora Le Cinglata cometeu um erro. Ante tamanha rudeza, Lucia Santa podia aborrecer-se e expressar seus verdadeiros sentimentos. Retrucou, porém, com frieza e delicadeza:

— Ah, a senhora não sabe as amolações que os filhos causam. Como pode a senhora, a senhora que é tão feliz, não ter nenhum? Ah, as preocupações de uma mãe, uma cruz que a senhora deve agradecer a Deus nunca ter de carregar. Mas deixe-me dizer-lhe uma coisa, minha cara Signora Le Cinglata. América ou não América, África, ou mesmo Inglaterra, isso não importa. Meus filhos dormem sob o meu teto até se casarem. Meus filhos não se tornam bêbados nem brigam com bêbados, nem vão para a cadeia, nem tampouco para a cadeira elétrica.

A Signora Le Cinglata então se aborreceu e retrucou gritando:

— O quê? O quê? A senhora quer dizer que nós não somos gente de respeito? O seu filho é bom demais em nos visitar? Mas quem é a senhora? De que parte da Itália a senhora vem? Na minha província e na sua não havia nenhuma nobreza com o nome de Angeluzzi ou Corbo. E agora meu marido, o melhor amigo e companheiro de trabalho do verdadeiro pai de seu filho, quase um padrinho, não deve ser amigo de Lorenzo? É isso o que a senhora quer dizer?

Agora Lucia Santa estava encurralada, e amaldiçoou a astúcia da outra mulher. Tinha uma resposta pronta para dar, mas não podia usá-la — que ela não se opunha à amizade do marido, mas à da mulher. Não se atreveu a dá-la. Um marido ciumento e enganado podia se vingar na mulher e no amante também. Ela disse defensivamente:

— Não, não, naturalmente ele pode visitar esta casa. Mas não trabalhar aqui. Não ficar até tão tarde entre homens briguentos. Não dormir aqui! — concluiu secamente.

A Signora Le Cinglata sorriu.

— Meu marido sabe que o seu filho dormiu aqui. Ele não dá ouvidos a mexericos sem fundamento. Não acredita que a sua mulher vai se desgraçar com um simples rapazinho. Está agradecido à proteção de seu filho e deu a ele 20 dólares pelos seus bons serviços. Agora me diga uma coisa: será que a própria mãe do rapaz faz o pior juízo dele?

Com o marido olhando para a sua garganta, Lucia Santa forçosamente respondeu logo:

— Não, não. Mas o pessoal fala. Seu marido é um homem sensato, graças a Deus.

Um bobo e um idiota, pensou ela furiosamente. E quanto à mãe fazendo o pior juízo do filho, quem é que tinha mais direito?

Nesse instante, porém, sem bater, como se estivesse entrando em sua própria casa, apareceu Lorenzo, parando subitamente, e a cena que isso representou explicou tudo à mãe.

Larry sorriu com uma ternura sincera para todos, para a mãe, depois para a amante e finalmente para o marido em quem punha chifres. Os três retribuíram o sorriso. Mas a mãe percebeu que o sorriso do marido traído ocultava uma falsidade e desprezo pela juventude; era o sorriso de um homem que não se julgava enganado. E a Signora Le Cinglata — como é que uma mulher daquela idade podia ter tal expressão no rosto, os lábios cheios, úmidos e vermelhos, os olhos pretos penetrantes, olhando diretamente para o rosto do rapaz?

Lucia Santa contemplou Lorenzo com tenebrosa ironia. O seu lindo filho com sua perfídia. Mas ele — com seu cabelo como seda azul-escura, suas carregadas feições bronzeadas, seu nariz grande, bem carnudo e masculino, sua pele sem apresentar os defeitos característicos da juventude — ele, o Judas, virou a cabeça para olhar para a mãe com um espanto afetuoso. Largou a maleta que estava carregando e perguntou:

— Mãe, que é que a senhora está fazendo aqui? E eu pensando que azar meu não ter encontrado a senhora em casa...

Ela sabia o que tinha acontecido. Ele esperara para vê-la partir, observando de algum lugar escondido, jamais imaginando que ela estava indo para ali. Depois entrara rapidamente em casa para apanhar roupa limpa. "Figlio de puttana", pensou ela, "que tipo falso que ele era!"

Mas Lucia Santa não demonstrou sua raiva.

— Ah, meu filho — disse ela. — Você está se mudando para sua nova casa? O Signor e Signora Le Cinglata o estão adotando? Minha comida não lhe agrada? Alguém de sua família o insultou? Você está se modificando, não está?

Larry deu uma gargalhada e respondeu:

— Ah, vamos mãe, pare de brincar.

Ele foi ladino. Achou-a humorística. E com o melhor dos seus sorrisos explicou:

— Eu lhe disse que ia ficar aqui algum tempo para ajudar. Quero lhe dar um pouco mais de dinheiro. Zi Le Cinglata tem de ir ao tribunal e depois ao campo para comprar uvas. Não se preocupe, mãe, todo o dinheiro que eu ganhar será seu.

— Grazia — respondeu a mãe.

Todos sorriram, até o Signor Le Cinglata, que o rapaz se achasse tão esperto que chamasse o marido enganado de "Tio". O Signor Le Cinglata entrou no espírito da coisa.

— Lucia Santa — disse ele familiarmente. — Considero Lorenzo como meu próprio filho. Ah, que disgrazia nós não termos filhos! Mas, agora, quem protegerá minha mulher, quando eu estiver fora? Este negócio é duro e perigoso para uma mulher sozinha. Deve haver um homem forte na casa. Seu filho tem o seu horário normal na estrada de ferro. Depois vem para cá até de manhãzinha. Precisa dormir durante o dia. Os seus filhos pequenos vivem correndo para dentro e para fora de casa. Por que ele não pode descansar aqui, onde tudo é calmo? Tenho confiança absoluta no seu filho e não ligo para mexericos sem fundamento. Um homem que faz o dinheiro que eu faço não precisa se preocupar com as opiniões dos vizinhos.

Tudo ficou bem claro para a mãe. Ela sentiu um desprezo tremendo por aquela gente. Ali estava um marido, e italiano, que por amor ao dinheiro deixava a mulher corneá-lo. Ali estava uma mulher que sabia que o marido ligava mais para os negócios e para o dinheiro do que para a sua honra e bom nome, e fazia da mulher sua prostituta. Lucia Santa ficou realmente chocada, uma das poucas vezes em sua vida.

Aonde iria parar o seu filho, vivendo com gente daquela espécie? Ela disse para Lorenzo, ainda porém sem demonstrar raiva:

— Apanhe todas as suas coisas, figlio mio, e volte para a sua própria casa. Não vou sair daqui enquanto você não vier.

Larry olhou para todos eles com um sorriso embaraçado.

— Vamos, mãe — disse ele. — Já faz cinco anos que estou trabalhando e levando dinheiro para casa. Não sou criança.

Lucia Santa levantou-se, imponente em seu vestido preto, e falou dramaticamente:

— Eu sou sua mãe e você se atreve a me desafiar na presença de estranhos?

A Signora Le Cinglata disse, com desprezo furioso:

—   Va, va, giovanotto. Vá com sua mãe. Quando a mãe chama, os filhos devem obedecer.

O rosto bronzeado de Larry tornou-se vermelho e Lucia Santa viu a raiva de um homem adulto em seus olhos. Ele parecia o falecido pai.

— Com os diabos! Não vou! — gritou Larry.

A mãe precipitou-se sobre ele e bateu-lhe na cara, aplicando-lhe uma vigorosa bofetada. Ele deu um empurrão que a fez cambalear até a mesa da cozinha.

O Signor e a Signora Le Cinglata ficaram perplexos. Agora a coisa podia complicar-se muito. Eles se postaram entre a mãe e o filho.

— Ah! — Lucia Santa soltou um grito estridente de satisfação. — Um filho que bate na mãe. Animale! Bestia! Sfachim! Figlio de puttana! Graças a Deus seu pai está morto. Graças a Deus ele não pode ver o filho bater na própria mãe por causa de estranhos.

O rosto de Larry apresentava cinco riscas vermelhas, mas ele não estava mais zangado. Então falou, justificando-se:

— Ora, mãe, eu apenas a empurrei. Acabe com isso.

Sentia-se culpado, arrependido, por ver lágrimas de humilhação nos olhos da mãe.

Lucia Santa virou-se para o casal Le Cinglata e disse:

— Isso é o que vocês querem, não é? Está bem. Meu filho pode ficar aqui. Mas vou dizer uma coisa a vocês. Meu filho tem de ir pra casa de noite. Ou então vou ao distrito policial. Ele é menor. Mando o garoto para um reformatório e vocês para a cadeia. Vender vinho e uísque é uma coisa, mas aqui na América se protege a criança. E, como a senhora diz, não estamos na Itália.

E dirigindo-se para o filho:

— E você, fique com seus amigos. Não quero a sua companhia na rua. Fique, divirta-se. Mas, meu querido filho, eu lhe aviso, durma esta noite na minha casa. Ou com toda a sua importância eu o trancafio no reformatório — e Lucia Santa retirou-se com dignidade.

Ao voltar para casa, ela pensava: "Ah, é assim que essas pessoas fazem fortuna. O dinheiro antes de tudo. Mas que escória que são! Que animais! Contudo, quando têm dinheiro se atrevem a encarar todo mundo com orgulho."

Nessa noite, depois que as crianças foram dormir, Octavia e a mãe sentaram-se na grande mesa redonda da cozinha para tomar café. Não havia sinal de Larry. Octavia estava um pouco assustada com a firme decisão da mãe de pôr Larry no reformatório. Ela não poderia ir trabalhar no dia seguinte. Ambas teriam de ir ao distrito policial dar queixa. Octavia jamais pensara que a mãe pudesse ser tão cruel e dura ou que pudesse desprezar o dinheiro extra que Larry ganhava com os Le Cinglata.

Uma pancada na porta as sobressaltou, e Octavia foi abri-la. Um homem alto, escuro, de boa aparência, vestido numa roupa tão bonita quanto a de um galã de cinema, sorriu para ela e perguntou em italiano impecável:

— Esta é a casa do Signor Corbo? — E logo acrescentou: — Venho da parte dos Le Cinglata, sou advogado deles; pediram-me para falar com a senhora.

Octavia trouxe-lhe uma xícara de café. Amigo ou inimigo, a todo visitante tinha-se de oferecer algo para beber.

— Agora — começou o jovem advogado — acho que a senhora não tem razão para se preocupar tanto com seu filho. Todo mundo está nesse negócio clandestino de bebida. Não há nada de mal nisso. O próprio Presidente tem a sua bebidazinha escondida. E será que a senhora é tão rica que pode dispensar alguns dólares?

— Senhor advogado — retrucou a mãe — pouco me importa como ou o que o senhor diz.

O homem observava-a atentamente, sem se ofender com o que ela dizia. E Lucia Santa continuou:

— Meu filho dorme na casa de sua mãe, de seus irmãos, de suas irmãs. Até o dia em que ele se casar. Isto, ou vai para o reformatório para satisfazer o seu prazer. Quando tiver 18 anos, ele poderá ir embora e eu deixarei de ser sua mãe. Mas, enquanto for menor, não tenho alternativa. Nenhum filho meu será gigolô, sentenciado ou assassino.

O jovem advogado estava olhando seriamente para ela. De repente, falou de modo decidido:

— Ótimo. Nós nos entendemos muito bem; perfeitamente, signora. Agora, ouça-me. De forma alguma vá à polícia. Eu lhe prometo que amanhã sem falta seu filho estará aqui. A senhora não voltará a ter esse aborrecimento. Agora estamos combinados, não?

— Esta noite — replicou Lucia Santa.

— Ora... — retrucou o advogado. — Estou decepcionado com a senhora. Nem Jesus Cristo poderia fazer o seu filho vir para casa esta noite. A senhora, uma mãe, com a experiência que tem da vida... a senhora deve compreender o orgulho do rapaz. Ele se considera homem feito. Deixe-o vangloriar-se dessa pequena vitória.

A mãe sentiu-se satisfeita e lisonjeada e reconheceu a verdade. Finalmente concordou, balançando a cabeça.

O jovem advogado levantou-se rapidamente e disse:

— Buona sera, signora.

Inclinou a cabeça para Octavia e retirou-se.

— Está vendo? — perguntou a mãe sinistramente. — Foi disso que eu salvei o seu irmão.

Octavia ficou perplexa. A mãe prosseguiu:

— Advogado... Ah! Ah! Ah! Eles trabalham em combinação com a Mão Negra. A palavra "assassino" estava estampada na cara daquele sujeito.

Octavia deu uma gostosa gargalhada e retrucou:

— Mãe, a senhora está maluca, a senhora está realmente maluca.

Depois olhou para a mãe com amor e respeito. A mãe dela, uma simples camponesa, apesar de considerar aquele tipo um perigoso criminoso, não se tinha atemorizado ou acovardado. De fato, no começo ela dera a impressão de que ia apanhar o rolo de macarrão.

— Então, amanhã eu posso trabalhar? — perguntou Octavia.

— Sim, sim — respondeu Lucia Santa. — Vá trabalhar. Não perca um dia de trabalho. Não podemos dispensá-lo. Gente como nós nunca será rica.

 

Segurando a filhinha Lena no colo, Lucia Santa olhava pela janela da sala de estar para a luz ofuscante da manhã de fim de agosto. As ruas estavam com tráfego intenso, e diretamente abaixo dela um vendedor ambulante gritava sua toada impertinente:

— Batatas. Banana. Espinafre. Tudo barato, barato, barato.

Sua carroça estava cheia de caixas vermelhas, pardas, verdes e amarelas de frutas e verduras. Era como se Lucia Santa estivesse olhando para uma mancha brilhante que uma criança fizera no linóleo.

Do outro lado do pátio ferroviário, ela viu uma multidão de homens, rapazes e meninos. Graças a Deus, Lorenzo estava seguro em sua cama depois de ter trabalhado no turno da noite, ou ela teria sentido aquela terrível dor mortificante, o medo enfraquecedor em suas pernas e entranhas. Ela olhava a rua atentamente.

Viu um menino em pé sobre o teto de um vagão de trem, olhando para o pessoal lá embaixo. Ele andava de um lado para o outro, dando alguns passos de cada vez, de modo rápido e furioso. O sol brilhava numa camisa de rayon azul com uma risca branca em torno do peito. Só podia ser Gino. Mas que estava fazendo ele? Que é que tinha acontecido? Não havia máquina perto do vagão. Ele provavelmente não estava em perigo.

Lucia Santa sentiu aquela força, teve aquela percepção de conhecimento quase divina que as mulheres sentem ao olhar pelas janelas para ver os filhos brincarem, observando sem serem observadas. Como a lenda de que Deus olha através de uma nuvem para as crianças que estão muito absorvidas para olhar para cima e vê-lo.

Houve um lampejo de couro preto lustroso, quando o guarda ferroviário uniformizado subiu a escada do vagão de carga, e a mãe compreendeu o que se passava. Correu para o quarto e gritou: — Lorenzo, acorde! Depressa!

Ela o sacudiu com um grito tão estridente que o filho deu um pulo. Saltou da cama, de cueca e camiseta, com o peito cabeludo e as pernas à mostra, indecente para qualquer mulher, menos a mãe, o cabelo revolto, o rosto oleoso com o suor do sono de verão. Seguiu a mãe até a janela da sala de estar. Chegaram exatamente a tempo de ver Gino saltar do teto do vagão, para fugir do guarda que tinha subido para pegá-lo. Viram-no ser agarrado por outro guarda de uniforme preto que esperava no chão. Quando Gino atirou-se, a mãe soltou um grito.

Larry berrou:

— Jesus Cristo! Quantas vezes eu já lhe disse para fazer esse menino parar de roubar gelo?

Em seguida, ele correu para o quarto e vestiu as calças e os sapatos de tênis e desceu precipitadamente as escadas.

Quando ele saiu do prédio, a mãe estava gritando da janela:

— Depressa, depressa, estão matando o menino!

Ela vira um dos guardas dar um sopapo no ouvido de Gino. Todo o grupo estava caminhando para o barraco da Décima Avenida. Lucia Santa viu Larry atravessar correndo a avenida, precipitar-se na direção deles e arrebatar Gino das mãos do guarda. Nesse momento, ela perdoou os insultos do filho na casa dos Le Cinglata, perdoou-lhe o péssimo comportamento nas últimas semanas. Ele ainda sabia o que um irmão significava; não havia dever mais sagrado do que o do sangue, isso estava acima da Pátria, da Igreja, da esposa, da mulher e do dinheiro. Como Deus, ela via o pecador redimir-se e se rejubilava com aquilo.

Larry Angeluzzi atravessou a rua como um homem que corre para cometer um assassinato. Estava sob uma tremenda tensão. Durante as últimas semanas, vivera com um sentimento de raiva, humilhação e culpa. A imagem que formava de si mesmo estava destroçada. Tinha realmente batido na mãe e a envergonhara perante estranhos. E tudo por causa de pessoas que se haviam utilizado dele e depois o mandaram embora. Um garoto que servira para levar recados e depois levar um pontapé no traseiro, um objeto de ridículo. Em sua opinião, ele se tornara um vilão, um anjo caído do seu próprio céu. Às vezes não podia acreditar que tivesse agido daquele modo e pensava que tinha sido um acidente — que a mãe tropeçara e cambaleara, que ele havia estirado a mão para firmá-la e o fizera de mau jeito. Mas por trás desse pensamento veio logo um rubor de vergonha. Agora, não sabendo que estava procurando a redenção, ele arrebatou Gino do guarda e sentiu, como se fosse um toque físico, que os olhos da mãe estavam fixados nele.

Gino estava chorando, embora não derramasse lágrimas de dor ou medo. Até o último momento, tinha certeza de que conseguiria escapar. Ele até tivera a coragem de saltar do teto do vagão para o cascalho duro, e não se machucara. As suas lágrimas eram as de um menino furioso, frustrado e abatido por se ver tão pequeno, desamparado e encurralado.

Larry conhecia um dos guardas, Charlie, mas o outro era um estranho. Larry passava muitas noites de inverno no barraco com Charlie, contando e ouvindo histórias sobre as garotas do lugar, rindo da presunção do homem de pernas tortas. Mas agora ele perguntava friamente a ambos:

— Que diabo vocês estão fazendo com meu irmão?

Queria conciliar as coisas; sabia que era hora de agir com amabilidade e jeito. Mas as palavras saíram num tom grosseiramente desafiador.

O guarda alto, o estranho, perguntou a Charlie Chaplin:

— Quem é este sujeito? — e esticou o braço para agarrar Gino.

Larry empurrou Gino para trás e disse:

— Vá para casa. Gino não se mexeu.

Charlie Chaplin falou para o companheiro:

— Ele é o "batedor" do turno da noite.

Depois, voltando-se para Larry:

— Escute, Larry, este seu irmão roubou gelo durante todo o verão. Uma vez me atirou pedras e disse que eu me fodesse. Um garoto como este. Seu irmão ou não, vou enchê-lo de pancadas. Agora afaste-se, garoto, ou você vai se machucar. E pode perder o emprego, ainda por cima. Você também trabalha para a estrada, não se esqueça. E não tem razão.

Um dos trabalhadores que estavam assistindo à cena disse em italiano:

— Eles já deram uns bons sopapos no seu irmão.

Larry recuou até que sentiu calçamento em vez de cascalho. Estavam fora do pátio. Então falou:

— Estamos agora fora da propriedade da estrada. Vocês não têm mais autoridade aqui.

Larry pretendia discutir ponderadamente; não queria perder o emprego.

— Mas estou surpreso com você, Charlie. Desde quando você trabalha na companhia? Todo garoto aqui da Décima Avenida rouba gelo do pátio. Até o irmãozinho de sua pequena. Que diabo, você não está falando com um novato! Muito bem, você bateu no meu irmão porque ele lhe atirou uma pedra. Vocês estão quites.

Ele viu, pelo canto do olho, primeiro a multidão, depois Gino, com os olhos secos e triste, o rosto do menino apresentando um olhar de sedenta vingança que era até engraçado. Larry disse afetuosamente para o irmão:

— Se você aparecer outra vez nesse pátio, eu lhe dou uma tremenda surra. Agora, vamos embora.

Tudo estava resolvido. Todo mundo saía de cabeça erguida, ele não tinha sido muito bruto e não fizera inimigos, e não recuara tampouco. Larry sentia-se orgulhoso de seu bom senso. Mas o guarda alto e estranho estragou tudo. Disse para Charlie Chaplin:

— Então você me fez vir de tão longe até aqui para nada?

Charlie deu de ombros. O guarda alto estendeu o braço e deu uma bofetada com as costas da mão no rosto de Gino e disse grosseiramente:

— Quero encontrar você novamente aqui.

Larry deu-lhe um soco tão violento que seu boné preto saiu voando por cima da multidão. O círculo se abriu, e todo mundo ficou esperando que o guarda, de boca sangrando, se levantasse. Sem o boné ele parecia mais velho, e menos ameaçador com sua cabeça quase completamente careca. O guarda levantou-se e encarou Larry.

Um olhou fixamente para o outro. O guarda tirou o cinturão do revólver e entregou-o a Charlie juntamente com sua túnica preta. Agora, só de camisa, sobressaía seu tórax largo. Falou claramente:

— Muito bem, você é um desses carcamanos valentes. Agora vai ter de brigar.

— Aqui não — disse Charlie. — Vamos para trás daqueles vagões de gado.

Todos passaram por um pátio para chegar a um quadrado natural de cascalho. Não havia a mínima idéia de cilada. Era um caso de honra. Os dois guardas viviam no West Side. Se usassem agora sua autoridade oficial, eles se desgraçariam para sempre na redondeza.

Larry tirou a camiseta e enfiou-a nas calças. Moço como era, tinha um peito tão cabeludo e ainda mais largo do que o do guarda. Só tinha medo de uma coisa — que a mãe descesse e fizesse uma cena. Se ela fizesse isso, ele sairia de casa para sempre. Mas, olhando para cima, ainda viu a figura dela na janela.

Pela primeira vez na vida, Larry queria realmente brigar, machucar alguém, para se convencer de que era o senhor de seu mundo.

Gente vinha correndo da avenida para ver a luta. Cabeças emergiam das janelas dos cortiços. O filho do panettiere, Guido, aproximou-se de Larry, dizendo:

— Vou ser o seu segundo.

Atrás dele estava Vinnie, com um olhar apavorado no rosto.

Larry e o guarda levantaram as mãos um contra o outro. Nesse momento, Larry sentiu toda a força da mãe olhando pela janela, e seus dois irmãos pequenos, sob tensão e com os olhos arregalados, na multidão. Sentiu um grande ímpeto de força. Ele nunca seria humilhado; ninguém jamais o veria derrotado. Saltou em cima do homem. Trocaram alguns socos, com os punhos escorregando pelos ombros e braços um do outro. O guarda atingiu Larry em cheio no rosto, quando ele investia, deixando-lhe um longo corte sangrento na face.

O filho do panettiere precipitou-se entre os dois, bradando:

— Tire o anel, seu covardão! Lute limpo!

O guarda ficou vermelho e tirou a grossa aliança de ouro que tinha puxado para o nó do dedo e jogou-a para Charlie Chaplin. A multidão vaiou-o. O guarda correu para Larry.

O rapaz, um pouco assustado com todo aquele sangue lhe correndo pelo rosto, embora cheio de ódio, atingiu o guarda com violento soco diretamente no estômago. O guarda foi ao chão. A multidão gritou. Guido continuava gritando:

— Ponha-o a nocaute, Larry! Ponha-o a nocaute!

O guarda levantou-se e todo mundo ficou quieto. Larry ouviu a mãe lá de longe gritando:

— Lorenzo! Pare! Pare!

Algumas pessoas se viraram e olharam para a avenida, para a janela do cortiço. Larry fez um gesto brusco, imperioso, para que a mãe se calasse.

Os dois oponentes continuavam a dançar um em frente ao outro até que o guarda caiu novamente, não devido à força de um soco, mas para descansar. Já estava sem fôlego. Quando se levantou, Larry derrubou-o outra vez com um direto no rosto.

O homem, furioso com a humilhação, agarrou Larry pelo pescoço e procurou dar-lhe um pontapé. Larry atirou-o longe. Ambos estavam esgotados, e nenhum dos dois tinha mais condições para conseguir uma vitória nítida. Charlie Chaplin agarrou o colega, enquanto Guido agarrava Larry. Cada um segurou o seu amigo. A luta estava terminada.

— Muito bem — disse Charlie Chaplin com autoridade. — Foi uma boa luta. Vocês dois mostraram que não são covardes. Apertem as mãos e nada de guardar rancor.

— Está certo — retrucou Guido.

Depois, piscando o olho para Larry e com uma voz cheia de condescendência pelos guardas, acrescentou:

— Empatou.

Alguns dos assistentes apertaram a mão de Larry e bateram-lhe de leve no ombro. Todo mundo sabia que ele ganhara a luta.

Em seguida, Larry e o guarda riram encabulados. Apertaram-se as mãos e bateram-se nos ombros para mostrar sua amizade. O guarda disse com voz rouca:

— Você é muito bom, garoto.

Ouviram-se murmúrios de aprovação. Larry pôs o braço em volta de Gino e disse:

— Vamos embora, mano.

Atravessaram a avenida e subiram as escadas de casa. Guido e Vincent vieram com eles.

Quando entraram, a mãe tentou dar uma bofetada em Gino, da qual ele se livrou facilmente. Então ela viu o rosto cortado de Larry. Torceu as mãos e lamentou-se:

— Marrone, marrone — e correu para pôr um pano úmido sobre o corte, enquanto gritava para Gino: — Sfachim, por sua causa, seu irmão levou uma surra!

— Ah, mãe — retrucou Larry com orgulho e satisfação — eu ganhei a luta... pergunte a Guido.

— É verdade — interferiu Guido. — Seu filho podia ser um lutador profissional, dona Lucia. Ele bateu um bocado naquele guarda. Não teria nenhuma marca se não fosse aquele anel.

Gino falou entusiasmado:

— Mãe, Larry derrubou aquele salafrário quatro vezes. Isso fez você ganhar a luta, não é, Larry?

— É verdade — respondeu Larry. — Mas vamos parar com isso. Ele se sentia cheio de ternura pela mãe e pelo irmão e por toda a família.

— Ninguém vai meter a mão em pessoa alguma de minha família — acrescentou ele. — Eu matava aquele sujeito se não fosse o meu emprego na estrada.

Lucia Santa serviu café a todos eles. Depois falou:

— Lorenzo, volte pra cama. Lembre-se de que você tem de trabalhar de noite.

Guido e Vinnie foram para a padaria. Larry tirou a roupa e foi para a cama. Ali deitado, ouviu Gino contar à mãe, com a voz emocionada e com satisfação, tudo sobre a luta.

Larry sentia-se cansado e em paz. Não era mais um vilão. De noite, quando passasse no seu cavalo pela Décima Avenida, com a grande máquina preta e o trem interminável atrás dele, o pessoal da avenida olharia para ele, gritaria para ele, falaria com ele. Seria tratado com respeito. Ele protegera o irmão e defendera a honra da família. Ninguém se atreveria a maltratar qualquer pessoa de sua família. E caiu no sono...

Na cozinha, a mãe, com o rosto revelando tremenda fúria, disse para Gino:

— Se você entrar novamente naquele pátio, eu te mato.

Gino deu de ombros.

Lucia Santa estava feliz, mas um pouco irritada por toda aquela confusão a respeito da luta, orgulho masculino e outras bobagens, como se tais coisas tivessem realmente grande importância. Agora, ela não queria mais ouvir falar no assunto. Tinha aquele desprezo íntimo pelo heroísmo masculino, que muitas mulheres sentem mas não ousam expressar; elas acham o orgulho masculino pelos atos heróicos uma infantilidade; pois, afinal de contas, que homem arriscaria a vida dia após dia e ano após ano como fazem todas as mulheres no ato do amor? Queria que eles tivessem filhos, que o corpo deles se abrisse como uma grande caverna de sangue ano após ano! Eles então não se sentiriam tão orgulhosos de seus narizes pingando sangue, de seus pequenos cortes de faca. Gino ainda estava tagarelando sobre a luta. Ela o agarrou pelo cangote e o atirou porta afora como um gatinho. Depois gritou para ele:

— Não se atreva a chegar atrasado para o jantar!

 

O resto do verão Lucia Santa teve de brigar com Octavia num calor implacável intensificado pelo concreto. O calçamento e os esgotos estavam cobertos do pó de fragmentos de bosta seca — detrito de milhões de pessoas e animais. Até as grandes estruturas de pedra inanimada pareciam soltar partículas de saibro no ar como um cachorro solta pêlo.

Octavia venceu. Primeiro mudou de emprego, tornando-se professora de costura na Companhia Melody, organização que promovia a venda de máquinas de costura. Octavia dava as aulas grátis que acompanhavam cada compra. O salário era três dólares menos por semana do que ela estava ganhando, mas havia promessa de promoção. Podia também fazer vestidos para a mãe e a irmãzinha Lena no próprio trabalho. Esta última vantagem convenceu Lucia Santa. Foi uma vitória para Octavia.

Vinnie emagreceu bastante durante o verão. A mãe se preocupava, e a irmã também. Um dia Octavia levou os três irmãos pequenos para a clínica dentária grátis da Associação do Hudson. Antes ela vira um anúncio dizendo que estavam abertas as inscrições para o programa de férias do Herald Tribune, que mandava gratuitamente crianças para acampamentos de verão por duas semanas ou para residências particulares no campo. Ela inscreveu o nome de Vinnie. Isso foi antes do emprego na padaria.

Agora ela discutia o assunto com a mãe. Vinnie perderia apenas duas semanas de trabalho. De qualquer maneira, teria de deixar o emprego quando a escola abrisse no outono. Seria bom se pudesse aproveitar a oportunidade de passar duas semanas no campo com uma família de fazendeiros, com todas as despesas pagas. A mãe protestava, não por causa do dinheiro, mas porque ela não conseguia compreender o princípio básico de que uma criança da cidade precisava passar algumas semanas no ar puro do campo. Sendo ela uma camponesa, não podia acreditar nisso. Ela também achava difícil acreditar que um casal estranho concordasse em aceitar um menino desconhecido em sua casa por duas semanas sem fazê-lo trabalhar para pagar a sua permanência. Quando Octavia explicou que as pessoas recebiam um pequeno pagamento, ela compreendeu. Devia ser uma boa quantia.

Finalmente Lucia Santa concordou. Gino ocuparia o lugar de Vinnie na padaria durante as duas semanas. Vinnie recebeu uma carta que deveria pôr no correio se, por acaso, não gostasse do lugar para onde ia, para que Octavia fosse buscá-lo. Depois Vincent não quis mais ir. Estava apavorado por ter de conviver com pessoas estranhas. Mas Octavia se aborreceu tanto e esteve a ponto de chorar que ele acabou indo.

Gino estragou a reputação da família, no que diz respeito a atividade e confiança, trabalhando para o panettiere. Depois de uma entrega de pão, levava horas para voltar. Chegava tarde e saía cedo. Atirou quatro sacos pela escada do depósito e arrastou-os para cima, rasgando-os e derramando a farinha. Comeu toneladas de pizza e tomou sorvete à vontade. Contudo, ninguém podia zangar-se com ele. O panettiere simplesmente informou a mãe que Gino não seria aceito como substituto de Vinnie no verão seguinte e ambos riram, o que fez Octavia ficar furiosa. Deus me livre se Vinnie fizesse aquilo de que eles estavam rindo, a mãe o moeria de pancadas.

Octavia tivera sua recompensa. De repente já estava no fim do verão, a escola abriria daí a uma semana, e Vinnie voltou para casa. A transformação foi espantosa. Ele tinha uma mala nova de couro marrom brilhante. Usava novas calças de flanela branca, camisa branca, gravata e paletó azuis. Estava com o rosto bronzeado e cheio. Pelo menos, uns dois centímetros e meio mais alto. Era bem um homenzinho quando os assistentes sociais o deixaram em casa, saltando do táxi que haviam tomado na Grande Estação Central.

Naquela noite, a família Angeluzzi-Corbo foi para casa mais cedo. Quando Vinnie contou-lhes tudo sobre o campo, Gino e Sal ficaram com os olhos arregalados e até a irmãzinha Lena parecia estar ouvindo.

O campo era um lugar sem tijolos ou calçamento. Não havia ruas sujas como as da cidade; maçãs, pequenas e verdes, pendiam de árvores por toda parte. Framboesas cresciam no mato aonde quer que a gente fosse. A gente comia tudo quanto tinha vontade. O campo era uma casinha branca, feita de madeira, e as noites eram tão frias que a gente tinha de usar cobertor. Todo mundo tinha carro porque não havia metrô nem bonde. A mãe não se impressionou. Já vivera no campo. Mas Gino ficou embasbacado ao pensar no que tinha perdido.

Depois Vincent mostrou-lhes seu pijama. Ele era o primeiro da família a possuir um. Era preto e amarelo, e ele mesmo o escolhera. A mãe perguntou:

— Mas você dorme dentro disso?

No inverno todo mundo dormia com roupas de baixo grossas e suéter de lã. No tempo quente usavam-se cuecas e camisetas. Pijamas eram para os chineses.

— Mas por que essas pessoas compraram todas essas roupas para você? — perguntou ela. — Arranjaram tanto dinheiro assim com o Fundo de Assistência?

— Não — respondeu Vinnie com orgulho. — Gostaram de mim. Querem que eu volte para o ano e disseram que eu podia levar Gino também. Contei-lhes tudo a respeito da família. Vão me escrever de vez em quando e mandar um presente de Natal. Assim, vou ter de mandar um presente para eles também.

— Então, eles não têm filhos? — perguntou a mãe.

— Não — respondeu Vincent.

Vendo-o feliz, Octavia falou impulsivamente.

— Você não precisa voltar para a padaria, Vin. Falta só uma semana para a escola. Ela pode ir para o inferno.

Vinnie estava embevecido. Ambos olharam para Lucia Santa, mas ela riu para eles, concordando. Seu rosto estava pensativo.

Ela estava admirada. Então, havia gente boa no mundo que fazia as crianças felizes. Que espécie de gente era essa? Quão segura era essa gente que podia esbanjar amor e dinheiro com um menino que nunca vira e que talvez jamais viesse a ver novamente? Vagamente, ela sentiu que fora de seu mundo havia outro tão diferente quanto outro planeta. Não era um mundo em que gente como eles pudesse pensar em viver sempre lá. Entraram nele por caridade, e a caridade se dissipava como uma estrela cadente, extinguia-se. Ah, na Itália os ricos, os gordos proprietários de terras comiam vivas as crianças dos pobres. Mas era bastante que naquela noite os seus filhos fossem felizes e tivessem esperança. Ela estava contente.

O verão acabou mal para Octavia. Seu chefe, um homem apresentável, amável, sempre muito delicado, chamou-a uma tarde a seu escritório.

— Srta. Angeluzzi — disse ele. — Tenho observado o seu trabalho aqui. Você é uma ótima professora. As mulheres que compram suas máquinas e recebem lições de costura estão satisfeitas com você. E também estão muito satisfeitas com suas máquinas. E aí é que está o problema, minha cara.

Octavia ficou perplexa.

— Não sei o que é que o senhor quer dizer — respondeu ela.

— Bem, você é jovem, sem dúvida é inteligente. Isso é bom, muito bom. E é uma pessoa decidida. Leva a sério o seu trabalho. Vi uma mulher aqui encontrar dificuldade, uma mulher muito bronca, isso era fácil de notar-se, e você se empenhou junto a ela até a mulher aprender a técnica da coisa. Não hesito em afirmar que você é a melhor funcionária que já tivemos.

Ele bateu-lhe delicadamente no braço e ela esquivou-se. Ele sorriu; a grosseira educação italiana da moça a traíra. Um homem só toca numa mulher por uma razão.

A cabeça de Octavia começou a rodar de contentamento com o elogio. Era uma verdadeira professora, afinal de contas. Sempre tivera razão.

— Mas, Octavia — prosseguiu o chefe, gentilmente — a Companhia de Máquinas de Costura Melody não está aqui para dar lições de costura. Nem tampouco para vender essas máquinas ordinárias que anunciamos para atrair gente para a nossa loja. Queremos vender as boas máquinas. As melhores. Agora, esse é o seu trabalho aqui. Estou lhe promovendo a vendedora, com um aumento de dois dólares. Mas você continua a fazer a mesma coisa. Apenas deverá ser sociável. Os olhos da moça brilharam subitamente e ele sorriu.

Não, não comigo. Seja sociável e saia com as senhoras a quem você ensina. Tome café com elas, procure ser uma verdadeira amiga. Você fala italiano, e isso ajuda. Ora, não ganhamos dinheiro com as máquinas que anunciamos. A sua função consiste em fazer essa gente mudar para os modelos mais caros. Compreendeu? Continue a proceder como você está fazendo agora. Apenas seja amiga dessas mulheres, talvez até seja interessante sair com elas à noite. Venha trabalhar um pouco mais tarde no dia seguinte. Se você vender bem, fará o seu próprio horário.

Ele começou a bater-lhe no braço novamente, parou e riu para ela de maneira agradável, paternal.

Octavia deixou o escritório impressionada, feliz, imensamente lisonjeada. Agora tinha um bom emprego, um emprego de futuro. Naquela tarde, saiu com algumas das jovens mulheres casadas, para tomar café, e elas lhe falaram de modo tão respeitoso que Octavia se sentiu muito importante, tal como uma verdadeira professora. Quando perguntou a uma delas como funcionava a máquina, a mulher respondeu-lhe que muito bem, acrescentando:

O seu chefe tentou convencer-me a mudar para aquela máquina muito mais cara. Mas por que vou mudar? Apenas faço roupas para os meus filhos e para mim mesma, e assim economizo algum dinheiro.

Então Octavia compreendeu claramente o que o chefe lhe pedira para fazer.

Tendo-se iniciado na função de vendedora, ela pela primeira vez na vida tinha de tomar uma decisão moral e intelectual que nada tinha a ver com suas próprias relações pessoais, seu corpo, seu sexo, sua família. Aprendeu que para progredir no mundo precisava espoliar os seus semelhantes. Pensou na sua mãe, uma jovem inexperiente, ser enganada daquela maneira. Se fosse um caso de aumentar as contas, de cobrar a mais para manter o emprego, talvez o fizesse. Mas ela ainda era tão ingênua que achava que usar a sua personalidade, os seus sorrisos, as suas palavras de amizade, era como usar o seu próprio corpo para ganho material. Tentou algumas vezes, mas não tinha o necessário traquejo para finalmente assegurar a venda.

Em duas semanas foi despedida. O chefe estava perto da porta quando ela saiu. Ele balançou a cabeça para ela, sorrindo com uma piedade amável, e disse:

— Você é uma boa moça, Octavia.

Mas ela não retribuiu o sorriso. Seus olhos pretos brilhavam de raiva e ela lançou-lhe um olhar de desprezo. Ele não precisava entendê-la. Nada perdera, pois o seu modo de viver tinha vencido. Podia demonstrar a amabilidade indulgente do vitorioso para com o vencido. Podia dar-se ao luxo de exibir tal tolerância.

Octavia começou a ver o desmoronamento de seus sonhos. Parecia-lhe agora que as professoras de quem ela gostara a tinham realmente enganado com suas recomendações, com suas exortações para que encontrasse uma vida melhor, uma vida que ela não se podia dar ao luxo de procurar. Tinham-lhe vendido um ideal muito caro para o mundo. Voltou para a oficina de costura. Quando arranjou um novo emprego, contou tudo à mãe; esta a ouviu calada. Ela estava penteando o cabelo do pequeno Sal, segurando o menino entre os joelhos. Lucia Santa disse apenas o seguinte:

— Gente como você nunca fica rica.

Octavia respondeu com raiva:

— Eu não faria isso com gente pobre. A senhora também não faria. Pôr dinheiro no bolso desses salafrários nojentos.

À mãe falou de modo cansado:

— Estou muito velha para esses truques. Não sou inteligente. Não gosto de gente boa demais para que eu seja gentil com ela, mesmo quando se trata de dinheiro. Mas você é moça ainda, pode aprender. Não é tão difícil. Mas não. Minha família lê livros, vai ao cinema, pensa que pode proceder como gente rica. Ter orgulho. Ser pobre não é nada para mim. Eu fui pobre, meus filhos podem ser pobres — e empurrou Sal para a porta.

Sal virou-se e pediu:

— Mãe, me dá um níquel para um refresco.

A mãe, que sempre lhe dava um níquel, respondeu zangada:

— Você não ouviu o que acabo de dizer a sua irmã? Nós somos pobres. Agora, vá embora.

Sal olhou para ela sério. Ela pensou com irritação que todos os seus filhos eram muito sérios. Então Sal perguntou, com o perfeito raciocínio de uma criança:

— Se a senhora nunca me tivesse dado um níquel para tomar refresco seria rica?

Octavia deu uma estrepitosa gargalhada. A mãe apanhou a carteira de dinheiro e com uma cara séria deu a Sal uma moeda de prata. Sal saiu correndo de casa sem dizer mais nada.

Lucia Santa deu de ombros e sorriu para Octavia. Contudo, a mãe pensou, se eu nunca tivesse dado a meus filhos um níquel para tomar refresco, nós seríamos ricos. Se nunca tivesse dado a eles dinheiro para ir ao cinema e ao beisebol, se comprasse carne apenas uma vez por semana e acendesse a luz elétrica somente quando estivesse bem escuro. Se mandasse meus filhos trabalhar o ano inteiro, em vez de esperar até que eles acabassem a escola secundária, se os fizesse pregar botões em cartões, de noite, em vez de ler e escutar o rádio... quem sabe?

Milhares de casas foram compradas em Long Island através de poupança mesquinha. Mas isso jamais ocorreria em sua família. Eles sempre seriam miseráveis, inclusive ela mesma. E a culpa era dela. Ela nunca os fizera sentir o gosto da pobreza como uma boa mãe devia fazer.

Lucia Santa não tinha ilusões a respeito dos seres humanos. Eles não eram maus, nem intencionalmente maldosos. Mas o dinheiro era um deus. O dinheiro podia fazer a gente livre. O dinheiro podia dar segurança. Rejeitar dinheiro? É como pedir a um homem que jogue fora sua arma em plena selva.

O dinheiro protegia a vida dos nossos filhos. O dinheiro os fazia sair da escuridão. Quem não havia chorado por falta de dinheiro? Quem não havia chorado por dinheiro? Quem vem quando o dinheiro chama? Médicos, padres, filhos obedientes.

O dinheiro era uma nova pátria. Acordada de noite na cama, pensando nas somas crescentes de dinheiro, Lucia Santa sentiu o repentino e profundo frio misturado com medo que os sentenciados sentem quando contam os dias que terão de ficar entre as grades.

E dinheiro significava amigos, parentes respeitosos. Jamais poderia surgir um novo Jesus para condenar as pessoas com dinheiro.

Não ser rico, mas ter dinheiro; ter dinheiro como um ponto de apoio e, depois, enfrentar o mundo.

Octavia sabia que a mãe estava pensando em dinheiro. Dinheiro para médicos, dinheiro para roupas, dinheiro para a estufa a óleo, dinheiro para os livros escolares, dinheiro para as roupas de comunhão. Dinheiro para uma casa em Long Island, e talvez o pequenino Sal fosse o destinado a ir para a faculdade.

Contudo, Octavia pensava, apesar disso tudo a mãe era negligente com dinheiro. Comprava o melhor azeite, queijo caro, presunto importado. Servia carne pelo menos três vezes por semana. E muitas vezes chamava um médico para os filhos doentes, quando outras famílias dariam remédios caseiros e esperariam que a febre ou o resfriado passasse. Na Páscoa, cada filho ganhava uma roupa ou um vestido novo.

Mas com o intervalo de poucas semanas havia sempre cinco ou 10 dólares que a mãe dava a Octavia para depositar. Havia agora mais de 150 dólares na caderneta da Caixa Econômica que ninguém sabia, a não ser ela e a mãe. Octavia ignorava qual seria o sinal mágico que faria a mãe resolver dar um dos grandes passos na vida da família e comprar uma casa em Long Island.

 

Era outono, as crianças freqüentando a escola, as noites muito frias para se sentar na avenida, muito trabalho a fazer para se passar a noite toda em conversa fiada. Havia roupa para lavar e passar, sapatos para engraxar, botões para pregar nos cartões que rendiam um dinheirinho a mais. As estufas a óleo eram trazidas do quintal ou do porão, onde estavam guardadas. A cidade mudou a sua luz; o sol se tornou amarelo-frio, os calçamentos ficaram cinzentos como aço. Os prédios ficaram mais altos e mais finos e mais diferentes uns dos outros. Não se sentia mais o cheiro de pedra e asfalto. O ar perdera sua solidez, de pó e calor, característica do verão. A fumaça branca dos trens de gado no pátio ferroviário lembrava a vida rural. Foi na manhã de um dia como esse que Frank Corbo voltou para o seio da família.

 

Os filhos maiores estavam na escola e no trabalho. Zia Louche estava tomando café com Lucia Santa. As duas ouviram passos na escada e, quando a porta se abriu, Frank Corbo, soberbo, mas como uma criança esperando um gesto de boas-vindas, ficou parado por alguns momentos antes de entrar no apartamento. Estava com um bom aspecto, o rosto bronzeado e cheio, o olhar mais brando. Lucia Santa disse friamente:

— Ah, você voltou para casa, finalmente...

Mas havia um tom de boas-vindas em sua voz, apesar do protesto mudo, resignado. Zia Louche, sendo mais velha, sabia como tratar um marido que voltava ao lar. Disse ela:

— Ah, Frank, com que bom aspecto você está! Como é bom ver que você está com esse ótimo aspecto...

E ela precipitou-se para oferecer-lhe uma xícara de café. Frank Corbo sentou-se à mesa em frente de sua mulher.

Encararam-se por um momento. Não havia nada que qualquer dos dois pudesse dizer. O que ele fizera teria sido impossível deixar de fazer. Não havia desculpa ou apelo que justificasse o seu gesto. Lucia Santa devia aceitar a situação como devia aceitar a doença ou a morte. E tão impossível também era que ela conseguisse perdoá-lo. Ela levantou-se e foi até a porta onde ele deixara a maleta, como se não pretendesse ficar, e a levou para o canto mais distante da sala. Depois fez uma omelete ligeira para ele comer acompanhada do café.

Quando ela inclinou a cabeça por cima do marido para servi-lo, ele a beijou no rosto e ela aceitou o beijo. Era o gesto de duas pessoas que se haviam traído reciprocamente e que com aquele beijo se comprometiam a nunca se vingar uma da outra.

As duas mulheres e o homem estavam sentados em volta da mesa tomando café. Zia Louche perguntou:

— Que tal foi voltar a trabalhar na terra? Ah, trabalho, trabalho mesmo, é a melhor coisa para um homem. Na Itália, as pessoas trabalham 16 horas por dia e nunca ficam doentes. Mas você, você está com um ótimo aspecto. A terra lhe fez bem, então?

Frank Corbo meneou a cabeça e respondeu delicadamente:

— Foi muito bom.

As duas crianças pequenas, Sal e Lena, atravessaram o corredor, vindas da sala da frente, onde estavam brincando. Quando viram o pai, pararam e seguraram-se as mãos. Começaram então a olhar fixamente para ele.

Zia Louche falou com firmeza:

— Beijem o pai de vocês, vamos.

Mas o pai estava olhando para os filhos com uma espécie de admiração misturada com desconfiança e apreensão. Quando se aproximaram dele, o pai se inclinou e beijou-lhes a fronte com uma delicadeza infinita. Depois que ele fez isso, sua mulher viu-lhe aquele olhar aflito no rosto, que sempre a preocupara.

O pai tirou do bolso dois saquinhos de balas e deu um a cada uma das crianças. Elas se sentaram no chão perto da cadeira dele, para abrir os saquinhos e examinar o seu conteúdo, esfregando-se nas pernas do pai como gatos. Ele bebeu seu café, aparentemente sem tomar conhecimento, não fazendo qualquer gesto para tocar nelas novamente.

Zia Louche foi embora. Quando a porta se fechou, Frank Corbo puxou um maço de notas do bolso, tirou duas para ele e entregou o resto a Lucia Santa. Eram 100 dólares.

A mulher ficou comovida.

— Talvez você tenha feito a coisa certa. Está com um aspecto melhor. Como você se sente, Frank? — falou ela com uma voz que denotava preocupação.

— Melhor — respondeu o marido. — Eu estava doente. Não quis brigar antes de partir, por isso não disse nada a você. O barulho da cidade, o barulho dentro de casa. Minha cabeça doía o tempo todo. Fora daqui, tudo estava calmo. Eu trabalhava duro o dia inteiro e à noite dormia sem sonhos. Que é que um homem podia desejar mais?

Ambos ficaram calados por alguns momentos. Finalmente, ele disse, como que se desculpando:

— Isso não é muito dinheiro, mas é tudo o que ganhei. Não gastei um níquel comigo. Meu chefe me deu a maleta, a roupa e meu sustento. Melhor do que ficar aqui lavando as escadas.

A mulher retrucou serenamente:

— É um bocado de dinheiro.

Mas não pôde deixar de acrescentar:

— Gino lavou as escadas por você.

Ela esperava que ele se zangasse. Mas Frank meneou a cabeça e disse num tom moderado, sem ironia:

— Os filhos devem sofrer pelos pecados dos pais.

Ele falava como um homem religioso, um cristão, e, confirmando a suspeita dela, puxou um exemplar da Bíblia, de borda vermelha, do bolso do paletó.

— Está vendo isto? — perguntou ele. — Este livro contém a verdade e eu nem sei lê-lo. É em italiano e não consigo lê-lo. Quando Gino vier da escola vai ler para mim. Os trechos estão marcados.

A mãe olhou-o atentamente.

— Você deve estar cansado — disse ela. — Vá pra cama e durma. Vou mandar as crianças descerem pra brincar na rua.

Depois que ele tirou a roupa e foi para a cama, a mulher levou-lhe uma toalha úmida para que ele enxugasse o rosto e as mãos. Ele não fez qualquer tentativa de possuí-la nem demonstrou desejo, e, quando fechou os olhos e voltou a cair na cama, parecia que estava fechando os olhos para o mundo no qual entrara novamente. Lucia Santa sentiu algo terrivelmente anormal por trás da saúde aparente e impressão de boa sorte. Olhando para ele, sentiu uma estranha piedade por aquele homem que ela havia amado, que tinha sido seu marido por tantos anos. Como se no decorrer de cada dia, em cada segundo, cada minuto, cada dia ela tivesse urdido o destino dele, como se ele fosse seu prisioneiro morrendo em sua cela. Ela era uma carcereira inocente, não o havia perseguido, não o havia condenado, não o havia sentenciado. Mas nunca podia tê-lo deixado escapar. Lucia Santa sentou-se na cama e pôs a mão dela na dele. Ele já tinha adormecido. Ficou sentada assim por algum tempo, de algum modo satisfeita porque ele estaria dormindo em segurança em sua cama, quando o resto da família voltasse para casa, porque Octavia, Larry, Gino e Vinnie o veriam pela primeira vez como um ser inofensivo e teriam pena dele.

Naquela noite, a família estava jantando quando o pai se levantou e foi juntar-se a ela. Octavia disse um "alô" muito friamente. Larry foi afetuoso em sua saudação, dizendo com a maior sinceridade:

— Você está com bom aspecto, pai. Sentimos sua falta aqui.

Gino e Vincent olhavam para ele curiosamente. O pai perguntou a Gino:

— Você foi bom para sua mãe enquanto estive fora?

Gino balançou a cabeça. O pai sentou-se e depois, após uma ligeira reflexão tirou do bolso duas notas de um dólar e sem dizer uma palavra deu-as a Gino e Vincent.

Octavia ficou aborrecida porque ele não perguntou a Vincent se havia sido bom para a mãe. Ela compreendia Vincent e sabia que ele se magoara, que o dólar não compensaria aquilo. Ficou ainda mais aborrecida porque entendeu que o padrasto não fizera aquilo de propósito.

De repente, o pai fez uma declaração que surpreendeu a todos.

— Alguns amigos meus vêm me visitar hoje à noite — disse ele.

Ele nunca levara amigos para casa. Como se soubesse ou sentisse, de algum modo, que essa não era realmente sua casa, seu lar, que ele nunca podia ser o chefe dessa família. Nem mesmo levara para casa companheiros de jogo de cartas para tomar um copo de vinho. Naquela noite, Larry tinha de ir trabalhar, mas Octavia resolveu ficar em casa para receber aqueles indivíduos e ajudar a mãe se eles estivessem coligados com o padrasto contra a família.

 

A casa estava arrumada, os pratos lavados, café fresco no fogão e bolo comprado na confeitaria sobre a mesa, quando as visitas chegaram. Eram o Sr. e a Sra. John Colucci e o filho de nove anos de idade, Job.

Os Colucci eram jovens, estavam entrando na casa dos 30. O Sr. Colucci era magro e sério, apenas com um pequeno sotaque para revelar que ele não nascera na América. Usava camisa, gravata e paletó. A sua mulher era pesada e exuberante, mas não chegava a ser gorda. Não tinha sotaque, mas parecia mais italiana do que o marido.

Toda a família Angeluzzi-Corbo ficou surpresa com o carinho que os Colucci demonstraram por Frank Corbo. Apertaram-lhe a mão calorosamente, perguntaram-lhe afetuosamente como ele ia e interrogaram:

— E esta é sua mulher — com um tom admirado — e estes são seus filhos? — como que temerosos e incrédulos.

Tratam-no como se ele fosse um tio rico, pensou Lucia Santa. E ela via o marido reagir ao amor deles. Ele nunca fora expansivo, mas ela percebia pelo seu tom, pela sua voz respeitável, que era a primeira vez, desde que se casaram, que o marido procurava mostrar-se digno da admiração de seus interlocutores. Ele estava nervoso, ansioso para agradar. Pela primeira vez, parecia querer que as pessoas fizessem bom juízo dele. Ele mesmo serviu o café.

Todos se sentaram em torno da mesa grande da cozinha. Octavia estava encantadora, no melhor estilo americano, com sorrisos freqüentes e uma voz baixa e suave. Os Colucci tinham um comportamento irrepreensível. Era óbvio que o Sr. Colucci trabalhava num escritório e não em serviço pesado. A Sra. Colucci falava um italiano culto que ela nunca pudera aprender na Itália. Eles não eram filhos de camponeses das montanhas, mas da classe de funcionários, de longas gerações de servidores públicos da Itália. O Sr. Colucci era um dos poucos italianos cuja família emigrara para a América por motivos religiosos e não por pobreza. Eram protestantes e ali na América haviam formado uma nova seita, a Igreja Batista Literal.

Evidentemente, teria sido pela vontade de Deus que eles encontraram Frank Corbo. O dono da fazenda era um primo em primeiro grau dos Colucci, e eles passavam as férias de verão na fazenda, a bem da saúde do filho. Lucia Santa, uma camponesa ressuscitada, levantou os supercílios ante a repetição de um assunto que ela ouvira tanto durante o último verão. Mas, o Sr. Colucci continuou, o que mostrava a mão de Deus era que eles moravam a apenas poucos quarteirões um do outro, e toda manhã ele passava pela casa de Frank Corbo. O Sr. Colucci trabalhava na fábrica de chocolate Runkel, na esquina da Rua 31. O melhor de tudo era que ele tinha certeza de que podia arranjar um emprego na fábrica para Frank Corbo, mas não era para isso que tinham vindo fazer aquela visita.

Não. O Sr. Colucci prometeu que ensinaria Frank Corbo a ler e escrever. Usariam a Bíblia como texto. Tinham vindo naquela noite para cumprir a promessa de visitá-lo, para ensinar-lhe não somente a ler e escrever, mas também sobre Jesus Cristo. Ele teria de ir ao curso que eles mantinham no templo da Igreja Batista Literal. O Sr. Colucci queria assegurar-se de que a Sra. Lucia Santa Corbo não se oporia, não se zangaria, se o marido fosse três noites por semana ao templo. Ele conhecia o respeito, a consideração que se deve a uma esposa e mãe de filhos italiana. Não fez qualquer menção a objeções religiosas, como se soubesse que não haveria nenhuma.

Lucia Santa olhou-o de maneira mais compassiva. Concluiu que o marido se tornaria protestante, mas para ela isso não tinha importância em qualquer sentido. Ele era um adulto. Mas o emprego na fábrica Runkel... Ele traria para casa chocolate em tablete e em pó. O salário não seria muito pequeno. Isso era sorte. O marido podia tornar-se até judeu se quisesse. Ela não daria sua anuência, pois não lhe competia fazê-lo; o pai não podia ser vetado. Ela aprovou.

A tensão afrouxou, eles falaram sobre si mesmos, disseram um ao outro de que parte da Itália tinham vindo, quando e por que saíram de lá. Os Colucci não fumavam nem bebiam. A religião era a vida deles, pois acreditavam num Deus vivo. Contaram histórias maravilhosas dos milagres que a sua fé havia operado. Nas reuniões do templo, crentes caíam no chão em transe e falavam línguas estranhas; bêbados tornavam-se abstinentes totais, homens maus que espancavam violentamente a mulher e os filhos tornavam-se meigos como os santos. Lucia Santa levantou os supercílios num espanto cortês. O Sr. Colucci prosseguiu:

— Pecadores se tornam divinos. Eu mesmo fui um grande pecador, de uma maneira que prefiro nem falar.

A sua mulher baixou a cabeça por um momento e, quando a levantou, havia um sorriso melancólico em seus lábios. Mas o Sr. Colucci não dissera isso para se vangloriar. Ele tinha jeito de quem fora vítima de uma terrível desgraça e que depois de grande sofrimento tinha sido salvo não por uma virtude própria.

O Sr. Colucci prosseguiu para se explicar melhor. Mesmo agora, se Frank não sentisse fé, não tinha importância. Eles eram amigos dele, fariam tudo para ajudá-lo. Só por amor a ele e a Deus. A fé viria com o decorrer do tempo.

A família ficou impressionada, apesar das palavras "amor" e "Deus". Nunca tinha visto nem mesmo ouvido falar de um homem como o Sr. Colucci. Lucia Santa esperava algum pedido, alguma artimanha solicitando pagamento por essa boa ação. Mas não houve nada disso. Ela levantou-se para fazer café fresco e servir a tarelle. O pai observava todos eles, impassível, mas aparentemente contente.

Não podia haver dúvida. Tudo estava em harmonia. O Sr. Colucci percebeu isso e se empolgou. Explicou um pouco mais a religião deles. Todo mundo devia amar-se uns aos outros, ninguém devia desejar bens terrenos. Dentro em pouco, viria o Armagedon, Deus exterminaria o mundo, e somente os eleitos, os verdadeiros crentes, seriam salvos. A Sra. Colucci meneou a cabeça. Sua boca linda, cor vermelho-sangue natural, estava cerrada de convicção, seus maravilhosos olhos escuros brilhavam em volta da sala.

Os meninos, sentindo que a conversa não lhes interessava, afastaram-se de mansinho. Gino, Vincent e Job atravessaram o corredor para a sala da frente. O Sr. Colucci prosseguiu. Lucia Santa ouvia com uma calma gentil. Essa gente ia ver o marido dela trabalhar. Bravo. Podia contar com suas orações. Todos os filhos dela, com exceção de Sal e Lena, já tinham feito a comunhão e crisma na Igreja Católica, mas ela fizera isso quando os vestira de roupa nova no Domingo de Páscoa, como parte de um rito social primitivo. Ela mesma havia muito deixara de pensar em Deus a não ser para automaticamente amaldiçoar-lhe o nome por alguma desgraça. Não havia dúvida; quando ela morresse, receberia prudentemente a extrema-unção, de acordo com a sua religião. Mas agora não ia à missa nem mesmo no Natal ou na Páscoa.

Octavia ficou mais impressionada. Ela era jovem e a crença na bondade e o desejo de fazer boas obras inspiravam-lhe respeito. Queria ser tão bonita quanto a Sra. Colucci e pensou por um momento que era bom que Larry não estivesse em casa para exercer seus encantos sobre ela, como ele certamente faria.

O pai observava e ouvia, como se esperasse que o Sr. Colucci dissesse alguma coisa que ele desesperadamente queria ouvir, como se o Sr. Colucci estivesse prestes a proferir algumas palavras mágicas que seriam uma chave para ele. Continuava esperando.

Na sala da frente, Gino tirou o baralho do buraco redondo da parede no qual a chaminé da estufa era fixada no inverno.

— Quer jogar sete-e-meio? — perguntou a Job.

Vinnie já estava sentado no chão, tirando as moedas do bolso. Gino sentou-se em frente a ele.

— Jogar cartas é pecado — disse Job.

Era um menino sério, quase bonito, parecido com a mãe, mas de forma alguma afeminado. Sentou-se no chão e ficou olhando.

— Você quer uma carta, pelo amor de Deus? — Gino perguntou suavemente.

— Falar no nome de Deus no jogo é pecado — disse Job.

— Merda — retrucou Vinnie.

Ele nunca dizia palavrões, mas o que aquele catarrento pensava ser, para ensinar a Gino como se comportar?

Gino inclinou a cabeça e olhou para Job matreiramente.

— Se você falar desse jeito aqui no quarteirão, menino, eles lhe tiram as calças e as penduram no poste de luz. Você vai ter de correr para casa com todo mundo vendo a sua bunda de fora.

O olhar amedrontado que se estampou no rosto de Job os satisfez. Continuaram a jogar cartas e ficaram absorvidos no jogo. De repente Job falou:

— Ora, muito bem, mas vocês dois também vão para o inferno, e muito cedo.

Gino e Vinnie nem se preocuparam. Job disse calmamente:

— Meu pai falou que o Fim do Mundo está chegando.

Gino e Vinnie pararam de jogar por uns momentos. O Sr. Colucci os havia impressionado.

Job sorriu com confiança.

— É gente como vocês que vai causar isso. Vocês enfurecem Deus porque fazem coisas más como jogar e dizer palavrões. Se gente como vocês fizesse tudo o que eu e meu pai dizemos, talvez Deus não acabasse com o mundo.

Gino franziu as sobrancelhas. Tinha feito a comunhão e crisma no ano passado e as freiras que lhe ensinaram o catecismo nada tinham dito sobre isso.

— Quando é que vai acontecer? — perguntou ele.

— Daqui a pouco — respondeu Job.

— Diga à gente quando — insistiu Gino, ainda respeitosamente.

— Vai ser por meio de fogo, inundação e armas saindo do céu. Tudo vai explodir. A terra vai se abrir e engolir gente para o inferno e o oceano vai cobrir tudo. E todo mundo vai ser queimado no inferno. Menos uns poucos que acreditam e andam direito. E então Deus vai amar todo mundo novamente.

— É, mas quando?

Gino era teimoso. Sempre queria resposta quando fazia uma pergunta, não importava qual fosse.

— Daqui a 20 anos — respondeu Job.

Gino contou seus níqueis.

— Aposto um níquel — disse ele para Vincent.

Vinnie deu cartas. Tudo podia acontecer em 20 anos.

Vinnie perdeu. Com idade bastante para fazer uma gozação, ele disse:

— Se eu tivesse um nome como Job, o mundo não acabaria tão cedo para mim.

Os dois irmãos olharam para Job com ar insolente, e pela primeira vez ele ficou zangado e retrucou:

— Recebi esse nome em homenagem a um dos maiores homens da Bíblia. Vocês sabem o que Job(*) fez? Ele acreditava. Então Deus resolveu experimentá-lo. Deus matou-lhe os filhos e depois fez a sua mulher fugir. Depois Deus o tornou cego e fez-lhe nascer milhões de pústulas. Depois Deus tirou-lhe seu dinheiro e sua casa. Depois, vocês sabem o que aconteceu? Deus mandou Satanás à casa de Job para perguntar se ele ainda amava Deus. Vocês sabem o que Job respondeu?

Ele fez uma pausa teatral e arrematou:

— Job respondeu: "O Senhor dá, o Senhor tira. Amo o meu Deus."

Vinnie ficou impressionado e olhou atentamente para Job. Gino sentiu-se ofendido e perguntou:

— Ele queria realmente dizer isso? Ou ficou com medo de que Deus o matasse?

— Ora, ele quis mesmo dizer isso — retrucou Job. — E então Deus proporcionou-lhe algumas coisas boas, em compensação porque ele acreditava. Meu pai diz que Job foi o primeiro batista literal. Esta é a razão por que os batistas literais vão se salvar quando o mundo acabar, e todo aquele que não nos ouvir vai ficar enterrado um milhão de anos. Ou mais ainda. É melhor que vocês dois parem de jogar cartas e de soltar palavrões.

Mas como ele era um menino meio "gira", Gino embaralhou as cartas, dobrou-as e fê-las cair como uma cascata. Job olhava, fascinado por tal habilidade. Gino virou-se para ele e perguntou:

— Quer experimentar? — e meteu o baralho na mão de Job.

O menino tentou embaralhar as cartas, mas elas caíram e se espalharam pelo chão. Ele apanhou-as e tentou novamente, com ar atento e sério. De repente, uma sombra enorme se estendeu pela sala. A Sra. Colucci estava contemplando-os; eles não a ouviram atravessar o corredor.

Vinnie e Gino sentiram-se fascinados por sua beleza. Ficaram fitando-a embevecidos. Ela olhou o filho de alto a baixo muito friamente, com um supercílio levantado.

Job gaguejou:

— Mãe, eu não estava jogando, Gino estava me mostrando como se embaralha. Eu estava só olhando eles jogarem.

Gino falou acaloradamente:

— Ele não está mentindo, dona Colucci, estava só olhando. A senhora sabe — acrescentou com enorme admiração — ele não jogava, por mais que a gente quisesse convencê-lo.

A Sra. Colucci sorriu e replicou:

— Eu sei que o meu filho nunca mente para mim, Gino. Mas pegar nas cartas já é um começo. O pai vai ficar muito zangado com ele.

Gino sorriu para ela confidencialmente:

— A senhora não precisa contar ao pai dele.

A Sra. Colucci respondeu friamente:

— Naturalmente eu não vou contar. Mas Job com certeza vai.

Gino ficou surpreso e olhou para Job interrogativamente. A Sra. Colucci falou com uma voz mais suave:

— O Sr. Colucci é o chefe de nossa casa, assim como Deus governa o mundo. Você não guarda segredos de Deus, guarda, Gino?

Gino fitou-a pensativamente.

Vinnie estava embaralhando as cartas zangado. Estava danado por Gino se deixar enganar por essas pessoas, por proceder como se elas gostassem dele, sendo ludibriado pelas boas maneiras delas. No lindo rosto sério da Sra. Colucci, ele vira um olhar de desagrado por estarem eles jogando cartas, como se ela os tivesse pilhado em algo tão vergonhoso sobre o que não se podia falar.

— Deixe de ser intrometido, Gino — disse ele, dando cartas.

Gino, intrigado por algo que não podia compreender, disse para Job:

— Você vai contar a seu pai? Não está brincando? Se você não contar, a sua mãe também não conta. Não é verdade, dona Colucci?

Uma expressão de desagrado se estampou no semblante da mulher, mas ela não disse nada.

Job não respondeu, mas lágrimas começaram a correr-lhe dos olhos. Gino ficou espantado e disse:

— Vou contar a seu pai que eu lhe meti as cartas na mão. Foi o que fiz. Não é verdade, Vin? Vamos, vou contar a ele.

A Sra. Colucci retrucou asperamente:

— O pai vai acreditar em tudo o que ele disser. Boa-noite, meninos. Diga boa-noite a seus amigos, Job.

O garoto não disse nada, e mãe e filho atravessaram o corredor na direção da cozinha.

Os dois irmãos perderam a vontade de jogar. Gino foi até uma das janelas, abriu-a e sentou-se no peitoril. Vincent foi para a outra janela e fez o mesmo.

O pátio ferroviário estava escuro, com exceção do holofote de uma máquina preta invisível em movimento, esfregando aço em aço. Até o rio Hudson estava quase azul-escuro sob a pálida lua de outono, e os penhascos das Paliçadas eram sombras de montanhas lá longe. A Décima Avenida embaixo da janela estava escura e sossegada, bafejada, limpa de cheiros e gente, por um vento frio noturno de outubro. Somente na esquina da Rua 31 havia vida, uma fogueira com alguns meninos em torno dela.

Gino e Vincent viram o pai sair do prédio com os Colucci. Ia acompanhá-los até o bonde da Nona Avenida. Ficaram olhando até ele voltar. Viram-no parar junto à fogueira, contemplando as chamas durante um longo tempo. Continuaram de olho nele. Finalmente, ele veio caminhando pela avenida e entrou em casa.

Gino e Vincent saíram da janela. Armaram e fizeram a cama. Vinnie vestiu o pijama que trouxera do campo. Olhando para ele, Gino disse:

— Esse Job é um bom menino, mas tem muita sorte em não morar no nosso quarteirão.

 

O Sr. Colucci não era de conversa, era de ação. Frank Corbo já estava trabalhando na fábrica de chocolate Runkel na semana seguinte, e a sua chegada em casa à noite era um prazer para as crianças. Voltava com o corpo e a roupa cheirando a chocolate. Sempre tinha um grande bloco de chocolate em bruto no bolso. Era chocolate puro, muito mais delicioso do que o de confeitaria. Entregava-o a Gino para dividir com as crianças. Gino cortava com a faca, dava metade a Vinnie e ficava com a outra metade. Depois cada um dava um pedaço a Sal e à irmãzinha Lena. Gino sempre pensava que o pai trabalhava numa imensa montanha de chocolate com uma picareta, arrancando-lhe pequenos pedaços.

O pai seria batizado, na nova fé, durante a Páscoa. Todas as noites ele ia à casa dos Colucci tomar lições de leitura; depois ia ao templo para o culto religioso e mais lições. Às vezes fazia Gino ler a Bíblia para ele, mas o menino protestava: lia mal e com evidente má vontade, especialmente os trechos preferidos do pai, nos quais o homem era chamado a prestar contas por um Deus irado e vingativo. Gino lia isso num tom tão arrastado, de modo tão inexpressivo e maçante, que apenas irritava o pai. Um dia, Frank Corbo falou-lhe suavemente e com um sorriso nos lábios:

— Animale! Você então não acredita em Deus? Não tem medo de morrer e ir para o inferno?

Gino ficou surpreso e confuso.

— Fiz minha comunhão e crisma — retrucou o menino.

O pai olhou para ele, deu de ombros e nunca mais lhe pediu para ler a Bíblia.

Durante os dois meses seguintes, tudo correu serenamente. Não houve brigas.

Então, Lucia Santa, vendo o marido tão bem, trabalhando, tranqüilo, bem-comportado, pensou que não havia desculpa para que ele não fosse melhor. Queixou-se de que ele estava sempre fora de casa, que os filhos nunca o viam, que ele não a levava a visitar os parentes. Parecia que ele estava esperando tal queixa, que a sua nova índole realmente não estava agradando a ele mesmo. Houve uma cena; ele deu um murro, houve gritos e berros, Octavia ameaçou o pai com uma faca de cozinha. Foi como nos velhos tempos outra vez. Frank Corbo saiu de casa e só voltou na manhã seguinte.

Começou a modificar-se gradativamente. Passou a não ir ao templo tão freqüentemente. Muitas noites vinha logo para casa e ia diretamente para a cama sem comer. Ficava deitado, olhando para o teto, sem dormir e sem falar. Lucia Santa levava-lhe um prato de comida quente; às vezes ele comia, outras vezes batia-lhe violentamente na mão, derrubando o prato e sujando a roupa de cama. Depois não deixava a mulher mudar o lençol naquela noite.

Ele dormia um pouco e acordava por volta da meia-noite, gemendo e revolvendo-se na cama. Tinha dores de cabeça terríveis, e Lucia Santa lhe molhava as têmporas com álcool. Não obstante, na manhã do dia seguinte ele se encontrava em perfeitas condições de ir trabalhar. Ninguém o fazia deixar de ir ao emprego.

Naquele inverno, as noites foram como um pesadelo. Os gritos do pai despertavam a pequenina. Gino, Vincent e Sal se agarravam os três; Gino e Vincent curiosos e contidos, mas Sal tão amedrontado que tremia. Octavia acordava e ficava na cama furiosa com a paciência da mãe com o pai. Larry não tomava conhecimento disso, pois trabalhava de noite e ficava fora de casa até as primeiras horas da manhã.

O pai piorou. Passou a acordar no meio da noite e a xingar a mulher, primeiro num ritmo lento, depois mais rápido — os ritmos da Bíblia. Todo mundo estava dormindo, a casa às escuras, quando de repente, saindo da escuridão profunda, a voz do pai se espalhava pelo apartamento, vibrante, viva:

— Sua rameira... Sua cadela... Sua vagabunda nojenta, imunda, ordinária, mentirosa...

Depois prosseguia num tom mais alto e mais rápido:

— Demônio do inferno... filha de uma rameira... mãe de uma rameira.

Finalmente proferia uma série enorme de obscenidades que terminava com um grande gemido de dor e um grito terrível de socorro:

— Gesú, Gesú, socorra-me!

Todos acordavam, assustados, sentavam na cama, esperavam, sem saber o que ele faria a seguir. A mulher o acalmava, falando baixinho, implorando-lhe que sossegasse para que a família pudesse dormir. Molhava-lhe as têmporas com álcool, o que deixava o apartamento completamente impregnado com o cheiro.

Octavia e Lucia Santa discutiram a respeito de mandá-lo para o hospital. Lucia Santa recusou-se a aceitar a sugestão. Octavia, fatigada devido à falta de sono e à preocupação, ficou histérica, e a mãe teve de bater-lhe na cara. Uma noite, quando o pai começou a gemer "Gesü, Gesú", veio de trás da porta do quarto de Octavia uma imitação de seu gemido como resposta. Quando o pai xingou em italiano, Octavia respondeu aos gritos, remedando seu dialeto e pronunciando os palavrões na língua estrangeira, estridentemente, no escuro, de modo mais impressionante do que o pai. Sal e a pequenina Lena começaram a chorar. Vinnie e Gino sentaram-se na beira da cama, tontos de sono e de medo. Lucia Santa bateu na porta do quarto da filha, pedindo-lhe para parar. Mas Octavia perdera o controle, e foi o pai quem parou primeiro.

No dia seguinte, o pai não foi trabalhar. Lucia Santa deixou-o descansar, enquanto mandava os meninos para a escola. Depois levou o café do marido.

Ele estava rígido como madeira, os olhos vagamente fixos no teto. Quando ela o sacudiu, ele falou de modo cavernoso:

— Estou morto, não os deixe me enterrar sem roupa. Calce-me com os meus melhores sapatos. Deus me chamou. Estou morto.

A mulher ficou tão assustada que lhe tocou nos braços. Estavam gelados e rijos. E então o marido começou a gritar:

— Gesú, Gesú! Misericórdia! Aiuto, Aiuto!

Ela tentou segurar-lhe a mão.

— Frank, deixe-me chamar o médico — pediu ela. — Você está doente.

Num tom cavernoso, ameaçador, o marido retrucou:

— Se o médico vier, eu o jogo pela janela.

Mas a ameaça tranqüilizou Lucia Santa, pois agora os frios olhos azuis do marido estavam inflamados de raiva. O calor percorria-lhe os braços, os quais ela apalpava. Então ela ouviu alguém subindo as escadas e entrando em casa. Era Larry chegando do trabalho noturno.

— Lorenzo, venha cá ver seu pai! — gritou ela.

O tom de sua voz fez Larry atravessar rapidamente o corredor em direção ao quarto.

— Veja como ele está doente e não quer que eu chame o médico — disse a mãe. — Fale com ele.

Larry ficou impressionado com o aspecto do padrasto. Notou a mudança, a extraordinária magreza do rosto, a tensão na boca, os traços de loucura. Ele falou brandamente:

— Vamos, pai. A gente tem de chamar o médico, mesmo que o senhor morra. Talvez o pessoal diga que mamãe o envenenou ou coisa parecida. O senhor compreende? A gente tem de arranjar o atestado de óbito — e sorriu para o padrasto.

Mas Frank Corbo lançou-lhe um olhar de desprezo, como se o enteado fosse idiota ou maluco.

— Nada de médicos — disse ele. — Deixe-me descansar — arrematou, fechando os olhos.

Lucia Santa e Larry foram para a cozinha, no outro lado do apartamento. A mãe disse:

— Lorenzo, vá à fábrica Runkel e chame o Sr. Colucci. Ele pode falar com Frank. Ontem à noite ele passou mal novamente. Se isso continuar... não, chame o Sr. Colucci.

Larry estava extremamente cansado e queria ir dormir. Mas viu que a mãe, sempre tão forte e confiante, estava prestes a chorar, mas não tinha coragem de fazê-lo. Ele sentiu um profundo amor e piedade por ela, e contudo uma curiosa aversão por ver-se envolvido no caso, como se fosse uma tragédia que não lhe dissesse respeito. Bateu de leve no braço da mãe e disse:

— Está bem, mamãe — e saiu de casa em busca do Sr. Colucci.

 

O Sr. Colucci, embora fosse funcionário do escritório, não pôde sair do trabalho. Chegou às cinco horas da tarde, acompanhado de três outros homens. A roupa deles cheirava a chocolate. Entraram e viram Frank Corbo deitado imóvel na cama. Rodearam-no como discípulos.

— Frank, Frank — disse o Sr. Colucci. brandamente. — Que é isso? Que é que você está fazendo? Você não pode deixar sua mulher e filhos. Quem vai sustentá-los? Deus não o chamaria agora; você ainda tem muito de bom a fazer. Frank, vamos, levante-se, ouça um amigo que gosta de você. A sua hora não chegou ainda.

Os outros homens murmuraram "amém" como se estivessem rezando.

— Precisamos chamar um médico para as suas dores de cabeça — disse o Sr. Colucci.

O doente levantou-se, apoiando-se num cotovelo. Falou num tom baixo, zangado, cheio de vida:

— Vocês me disseram que não havia necessidade de médicos, que Deus decide, o homem crê. Vocês são uns falsos. São uns Judas.

E apontou, com o braço estendido, o dedo indicador quase no olho de Colucci. Ele era um quadro na parede.

O Sr. Colucci ficou espantado. Sentou-se na cama e pegou a mão de Frank Corbo, dizendo:

— Meu irmão, ouça-me. Eu creio. Mas quando vejo sua mulher e filhos no estado em que se encontram, minha fé vacila. Mesmo a minha. Não posso fazer de minha fé sua destruição. Você está doente. Tem essas dores de cabeça. Sofre. Meu irmão, você não crê. Você diz que Deus o chamou e diz também que está morto. Você blasfema. Viva agora. Sofra mais um pouco. Deus terá misericórdia de você no Armagedon. Levante-se agora e venha até minha casa jantar. Depois iremos ao templo e rezaremos juntos pela sua salvação.

O Sr. Colucci estava chorando. Os outros homens baixaram a cabeça, Frank Corbo olhou para eles com os olhos arregalados, de modo aparentemente controlado.

— Eu vou me levantar — respondeu explicitamente e fez sinal para que os amigos se retirassem, a fim de que ele se vestisse.

Colucci e os outros homens foram para a cozinha e sentaram-se à mesa para tomar o café que Lucia Santa lhes trouxe.

O Sr. Colucci olhava fixamente a mesa de madeira sem dizer palavra. Estava numa aflição terrível. O que ele vira naquela cama era uma caricatura de Cristo e do verdadeiro crente, a crença levada à sua conclusão lógica; o homem que se deitara para morrer. Ele disse a Lucia Santa:

— Signora Corbo, seu marido estará em casa às nove horas da noite. Chame o médico. Não tenha medo, eu ficarei com ele. — E, pondo a mão no ombro dela, continuou: — Signora, acredite em mim. Seu marido tem amigos verdadeiros. Nós rezaremos por ele. Ele ficará curado. E a sua alma se salvará.

Lucia Santa ficou fria e implacavelmente zangada com o contato daquela mão. Quem era aquele homem, com seu filho único, um estranho para sua dor e sofrimento, que pretendia consolá-la? Inexperiente, criminoso em sua religiosidade intrometida — ele era a causa da doença do marido. Ele e seus amigos haviam-lhe transtornado a cabeça com sua idiotice, sua repulsiva e subserviente intimidade com Deus. E além disso ela tinha certa aversão ao Sr. Colucci. De maneira um tanto profunda, ela sentia que ele pouco se importava com a vida ou com os seus semelhantes; que com uma mulher bonita ele demonstrava grande desconfiança e falta de fé por conformar-se com um só filho. Lembrando-se do choro dele na cama de seu marido, ela sentiu um desprezo tremendo por ele e por todos os homens que buscavam alguma coisa além da vida, alguma grandeza. Como se a vida, como vida apenas, não fosse suficiente. Que ares que essa gente assumia! Ela desviou os olhos do Sr. Colucci, de sua piedade, de seu sofrimento, para que ele não pudesse ver-lhe o rosto. Lucia Santa o odiava. Era ela quem devia sentir a angústia, a fúria da sofredora que devia curvar-se ao destino; quanto ao Sr. Colucci, competia-lhe derramar as lágrimas fáceis da compaixão.

 

O médico era filho do proprietário de vários cortiços na Décima Avenida. Seu pai, um camponês italiano, não tinha feito força nem suado, não tinha deixado a pátria, não tinha arrancado todos os níqueis de seus inquilinos patrícios, não tinha se alimentado parcimoniosamente de pasta e fagioli quatro vezes por semana para que o filho se tornasse um samaritano. O Dr. Silvio Barbato era moço ainda, mas não tinha ilusões a respeito do juramento hipocrático. Tinha muito respeito pelo pai, conhecia bem o seu próprio direito para ser sentimental em relação a esses italianos do Sul que viviam como ratos naquela parte da cidade. Mas ele ainda era jovem demais para considerar o sofrimento como uma coisa artificial. A piedade não tinha sido arrancada de seu coração.

Ele conhecia Lucia Santa. Como garoto, antes do pai ficar rico, ele morara na Décima Avenida e mostrara o devido respeito por uma mulher mais velha. Ele viveu como ela não vivera, com seu espaguete às quintas e domingos; pasta e fagioli às terças, quartas, sextas e sábados; e scarola às segundas para limpar os intestinos. Ele não podia intimidá-la e agir de modo completamente profissional. Mas, toda vez que entrava numa casa como aquela, agradecia ao pai.

Seu desabafo era completo. O pai fora sagaz em fazê-lo médico. As pessoas sempre caíam doentes, havia sempre hospitais, nunca faltava trabalho. O ar estava cheio de micróbios, nos maus ou bons tempos. Algumas pessoas conseguiam escapar por algum tempo, mas havia sempre o longo processo da morte. Quem quer que fosse vivo tinha dinheiro que acabava indo para o bolso do médico.

Ele sentou-se para tomar sua xícara de café. Tinha de fazê-lo ou não o chamariam novamente. A geladeira no corredor estava provavelmente cheia de baratas. A filha — como era mesmo o nome dela? — já tinha idade bastante para trabalhar e estava tão desenvolvida que o casamento se impunha ou ela se complicaria. Havia muita gente explicando coisas sobre o paciente. Os amigos e conselheiros da família se reuniram em torno — a coisa mais irritante para os médicos. As velhas, amigas da casa, eram as piores.

Afinal, ele viu o doente, que estava na cama. Parecia calmo. O Dr. Barbato sentiu-lhe o pulso, tomou-lhe a pressão. Era o bastante. Por trás desse rosto duro, calmo, devia haver uma tensão insuportável. Tinha ouvido outros médicos contarem casos como esse. Eram sempre os homens que tombavam sob as glórias da terra nova, nunca as mulheres. Havia muitos casos de italianos que enlouqueciam e tinham de ser internados no hospício, como se ao deixarem a pátria tivessem rompido uma raiz vital para a sua mente.

O Dr. Barbato sabia o que fazer aqui. Frank Corbo devia ser hospitalizado, submetido a um longo período de repouso, afastado da pressão que o atormentava. Mas esse homem tinha de trabalhar, tinha filhos para alimentar. Todos estavam ameaçados. O Dr. Barbato continuou o seu exame. Puxando o lençol, ficou assustado ao ver os dois pés horrivelmente deformados e sentiu um temor quase supersticioso.

— Como aconteceu isto? — perguntou ele em italiano, com um tom delicado, mas firme, que exigia uma resposta.

Frank Corbo ergueu-se sobre os cotovelos e puxou o lençol, cobrindo as pernas.

— Isto não lhe interessa — retrucou ele. — Eles não me incomodam de jeito algum.

Estava ali um inimigo.

— O senhor então tem dores de cabeça — falou o médico.

— Sim — respondeu o paciente.

— Por quanto tempo?

— Sempre — retrucou o pai.

Nada podia fazer aqui. O Dr. Barbato escreveu uma receita, recomendando um sedativo forte. Esperou pacientemente o pagamento da consulta, enquanto Lucia Santa correu para outro quarto, a fim de tirar o dinheiro de seu esconderijo. Sentiu-se um tanto constrangido. Sempre queria que as pessoas que lhe dessem dinheiro se vestissem um pouco melhor, que tivessem mobília melhor. Depois viu o rádio, e seu constrangimento desapareceu. Se eles podiam dar-se àquele luxo, podiam também pagar o médico.

Frank Corbo voltou ao trabalho na semana seguinte. Estava bem melhor. Às vezes, durante a noite, gemia e xingava alto, mas apenas por alguns minutos, e depois da meia-noite sempre dormia bem. Mas, antes de completar outra semana, ele voltou um dia para casa antes do almoço. Parou no vão da porta e disse para a mulher:

— O padrone me mandou pra casa. Estou muito doente para trabalhar.

Para horror de Lucia Santa, ele começou a chorar.

Ela o fez sentar-se à mesa da cozinha e serviu-lhe café. Ele estava muito magro. Falava como se nunca tivesse falado desde o dia em que se casaram. Perguntou a ela num tom apavorado:

— Será que estou tão doente assim? O padrone diz que eu paro muito de trabalhar e que esqueço a máquina. Que preciso tomar um longo período de descanso e depois ir vê-lo. Mas não estou doente assim, estou ficando melhor, estou me controlando. Estou cuidando direitinho de mim. Não é verdade?

Lucia Santa respondeu:

— Não se preocupe com o trabalho, descanse um pouco. Você tem de ficar bom. Vá passear um pouco esta tarde, leve Lena para tomar ar no parque.

Ela olhou para a cabeça abaixada do marido. Estaria ele melhor ou pior? Ela nada podia fazer a não ser esperar.

Quando ele saiu com a garotinha, a mulher deu-lhe um dólar para bombons e charutos. Ela sabia que ele gostava de ter algum dinheiro no bolso e isso o animaria. Ele passou a tarde toda fora e voltou exatamente na hora do jantar.

A família toda estava reunida em torno da mesa: Octavia, Larry, Vincent, Gino e Sal. Todos sabiam que o pai perdera o emprego e estavam constrangidos. Mas ele estava tranqüilo, e tão bem-compor-tado e prestativo para a mulher que logo todos se sentiram aliviados. Parecia que o choque de perder o emprego tinha eliminado todas as outras bobagens de sua cabeça. Todo mundo tagarelava. Larry enganava os irmãos, dizendo que as baratas estavam jogando beisebol na parede, e quando Sal e Gino se viravam ele roubava-lhes as batatas do prato. Octavia dava de comer à irmãzinha Lena e segurava-a no colo. Vinnie observava tudo. Larry não conseguia enganá-lo. Ele pegava o vestido da mãe, quando ela passava servindo a comida, fazendo-a parar e servi-lo primeiro.

Quando todos saíram da mesa, Lucia Santa perguntou ao marido se ele ia ao templo. Ele respondeu que não precisava mais do Sr. Colucci. A mulher ficou admirada. Seria possível que o marido, que, em detrimento da família, nunca tinha sido ladino, usara os Colucci apenas para arranjar trabalho? Mas então por que estava ele doente? A contradição causou-lhe espécie.

Mais tarde, quando chegou a hora de dormir, Lucia Santa instalou-se em sua cadeira da cozinha para coser até meia-noite. Agora ela queria estar sempre bem arrumada e pronta quando o marido tivesse seus ataques. Se até a meia-noite nada acontecesse, ela podia ir tranqüila para a cama; o perigo tinha passado.

Frank Corbo olhou para ela e, com o que para ele era ternura, falou:

— Vá. Vá descansar. Vou ficar de pé um pouco e depois vou pra cama.

Ela sabia que o marido queria dizer até depois da meia-noite. Já eram quase 11 horas. Todos os outros já estavam dormindo e Larry tinha ido trabalhar. Lucia Santa sentiu grande alívio e orgulho ao pensar que o seu raciocínio estava certo. Ele se achava melhor. Os homens tinham esses acessos, mas passavam.

— Vou acabar este pedacinho — respondeu ela.

Enquanto a mulher costurava, Frank Corbo fumava seu charuto. Ele serviu-lhe um copo de vinho e também tomou um, embora fosse contra a religião de Colucci. Já passava de meia-noite quando foram para a cama, com a filhinha Lena deitada entre os dois. Estava muito escuro, em meio às trevas da noite, quando Lucia Santa acordou e ouviu o marido repetir num tom claro e sereno:

— Que é que esta boneca está fazendo entre nós dois? Tire-a daqui, antes que eu a jogue pela janela.

Lucia Santa pôs um braço sobre a criança adormecida e perguntou em voz baixa, solícita:

— Frank, que é isso? Que é que há?

Ainda tonta de sono, ela não conseguia compreender. O marido perguntou num bom baixo, ameaçador:

— Por que você pôs esta boneca entre nós dois?

Lucia Santa, sempre procurando falar baixo, murmurou:

— Frank, Frank, é a sua filhinha. Acorde, Frank.

Houve um longo silêncio, mas Lucia Santa não teve coragem de voltar a dormir. De repente, a cama toda tremeu violentamente.

Ele ergueu-se como um anjo vingador. A luz inundou o quarto e a sala da frente, onde os meninos dormiam, e ali estava Frank Corbo em pé, todo vestido. O rosto quase preto do sangue da raiva. A sua voz parecia um trovão, quando ele começou a gritar:

— Fora desta casa! Seus imundos, filhos de romeiras e cadelas! Fora desta casa antes que eu mate vocês todos!

A mulher pulou da cama, de camisola, com a filhinha apertada nos braços. Foi até a sala da frente e disse aos apavorados Gino e Vincent:

— Depressa, vistam-se, peguem Salvatore e corram para a casa de Zia Louche. Depressa, agora mesmo.

O pai estava berrando, xingando, mas quando viu Vincent prestes a sair ele falou:

— Não, Vincenzo pode ficar. Vincenzo é um anjo.

Mas a mãe foi empurrando Vincent pelo corredor.

Marido e mulher estavam frente a frente. Não havia piedade nos olhos do pai. Ele disse calmamente, mas com verdadeiro ódio.

— Apanhe a sua boneca e saia desta casa.

Lucia Santa olhou para a porta do quarto de Octavia.

O homem viu o olhar dela e disse:

— Não me faça bater na porta de sua filha. Faça-a descer para a rua, que é onde ela deve ficar.

A porta se abriu. Octavia estava ali, já vestida e segurando a sua tesoura de costura na mão direita. A mãe falou imediatamente:

— Octavia, venha comigo.

Octavia não tinha medo; ela saíra do seu quarto pronta para brigar e defender a mãe e os meninos. Mas viu na cara do pai o riso de um prazer tão cruel que pela primeira vez sentiu receio. Tirou a irmãzinha dos braços da mãe e, ainda segurando a tesoura, correu para a cozinha. Vinnie, Sal e Gino estavam agarrados uns aos outros, usando apenas a capa sobre a roupa de baixo de inverno. Ela os conduziu escada abaixo e para fora de casa. Lucia Santa ficou só com o marido.

Ela pôs um vestido por cima da camisola, perguntando-lhe, com a voz tremendo:

— Frank, que é isso? Você foi tão bom o dia todo, que é isso agora?

Seus olhos azuis estavam opacos, o rosto duro mantinha-se calmo. Ele tornou a repetir:

— Todo mundo fora desta casa.

Ele se aproximou da mulher e a empurrou pelo corredor até a porta.

Larry e o panettiere irromperam no apartamento e se interpuseram entre os dois. Frank Corbo agarrou Larry pela garganta e empurrou-o contra a parede, gritando:

— Só porque você me deu um dólar hoje, pensa que pode se meter aqui? — e jogou um punhado de moedas em cima do rapaz.

Larry estava atento, alerta, e ponderou:

— Pai, vim só ajudar. A polícia está chegando. O senhor tem de se acalmar.

De repente, uma sirena tocou. Frank Corbo correu para a sala da frente, a fim de olhar pela janela.

Lá embaixo, na rua, viu os seus três filhos pequenos metidos em sobretudo, rodeando Octavia, e esta apontando para ele quando o policial saiu do carro. Viu os dois guardas entrarem correndo no cortiço. Ficou muito calmo e voltou pelo corredor até a cozinha, dizendo para todos num tom moderado:

— A polícia tem cassetetes. Ninguém pode enfrentar a polícia. Nem mesmo Deus pode enfrentar cassetetes — e sentou-se numa cadeira da cozinha.

Os dois corpulentos policiais, ambos irlandeses e altos, entraram no apartamento aberto cautelosa e calmamente. Larry levou-os para um lado e falou-lhes em voz baixa. Frank Corbo observava todos eles. Depois Larry foi sentar-se perto do padrasto. Havia lágrimas de angústia em seus olhos. Então ele disse:

— Ouça, pai. Vem aí uma ambulância. O senhor está doente, compreende? Não procure complicar a situação. Por mamãe e pelos garotos.

Frank Corbo deu-lhe um violento empurrão. Imediatamente os dois policiais avançaram, mas Lucia Santa adiantou-se a eles.

— Não, esperem, esperem — disse ela.

Aproximou-se do marido e falou-lhe serenamente, como se o pa­nettiere e os policiais não pudessem ouvir. Octavia e os meninos tinham vindo do frio da rua e estavam postados no outro lado da sala, observando-os. A mulher disse:

— Frank, vá para o hospital. Eles vão tratar de você. Que é que as crianças vão sentir quando virem a polícia lhe bater e arrastá-lo pela escada abaixo? Frank, Frank, seja razoável. Eu irei ver você todo dia. Numa semana ou duas você já estará bom. Agora, vamos.

O marido levantou-se. Quando fez isso, dois enfermeiros de jaqueta branca assomaram no alto da escada e entraram no apartamento. Frank Corbo estava em pé junto à mesa, de cabeça baixa, matutando. Depois ergueu a cabeça e disse animadamente:

— Todo mundo deve tomar café. Eu mesmo vou fazê-lo.

Os dois homens de jaqueta branca começaram a andar na direção dele, mas Lucia Santa interceptou-lhes o caminho. Larry foi para o lado dela. Ela disse para os enfermeiros e os guardas:

— Façam a vontade dele, por favor. Ele irá se vocês fizerem a vontade dele. Mas, se usarem a força, ele se tornará uma fera.

Enquanto o café estava coando, Frank Corbo começou a barbear-se na pia da cozinha. Os enfermeiros estavam apreensivos e atentos. Os policiais se achavam a postos com os cassetetes. Ele acabou rapidamente e pôs xícaras de café na mesa. Os meninos e Octavia estavam no lado oposto da mesa. Enquanto tomavam café para agradá-lo, ele fez a mulher apanhar-lhe uma camisa limpa. Depois examinou a todos com um brilho sardônico nos olhos.

— Figlio de puttana! — começou ele. — Homens maus. Eu conheço vocês dois, seus tiras. Tarde da noite, vocês vão para a padaria beber uísque. É assim que vocês trabalham? E você, panettiere! Você fabrica uísque no quarto dos fundos, contra a lei. Oh, eu vejo vocês todos de noite quando todo mundo está dormindo. Eu vejo tudo. De noite, estou em toda parte. Vejo os pecados do mundo. Monstros... maconheiros... assassinos... filhos e filhas de rameiras... conheço vocês todos. Vocês pensam que podem me subjugar?

Ele gritava de modo rápido e incoerente, e deu um empurrão na mesa, fazendo as xícaras se chocarem umas com as outras.

Parecia estar suspenso nas pontas dos pés; tornou-se alto e ameaçador. Larry e a mãe afastaram-se dele. Os dois enfermeiros formaram uma linha com os policiais e se encaminharam para ele. De repente Frank Corbo viu, do outro lado da enorme mesa de madeira, o rosto do seu filho Gino, lívido de terror, os olhos quase brancos, despidos de toda sensibilidade. Com as costas para os inimigos, o pai piscou o olho para o filho. Ele viu a cor voltar ao rosto de Gino, o medo ser aliviado pela surpresa.

Mas agora a comédia havia terminado. Os quatro homens cercaram Frank Corbo, mas não tocaram nele. Ele levantou as palmas das mãos como que lhes implorando que parassem, que ouvissem algo importante que queria dizer. Mas ele não falou. Meteu a mão no bolso e entregou à mulher a chave do apartamento e depois a carteira de dinheiro. Lucia Santa agarrou-o pelo braço e conduziu-o para fora do apartamento escada abaixo. Larry segurou no outro braço do padrasto. Os policiais e os enfermeiros seguiram logo atrás.

A Décima Avenida estava vazia. O vento soprava em volta da ambulância e o carro da polícia estava parado em frente ao cortiço. Frank Corbo encarou a mulher na rua escura e falou-lhe em voz baixa:

— Lucia Santa, deixe-me ir para casa. Não deixe que eles me levem. Eles vão me matar.

Do outro lado da rua, um motor roncou. A mulher baixou a cabeça. Largou o braço do marido e afastou-se. Sem qualquer aviso, os dois enfermeiros precipitaram-se sobre ele, enfiaram-lhe uma coisa nos braços e, meio empurrado, meio suspenso, meteram-no na ambulância. Um dos policiais pulou dentro dela para ajudar. Não houve um ruído sequer. Frank Corbo não protestou. Houve apenas um movimento de braços com mangas brancas e azuis. Lucia Santa mordeu o próprio punho e Larry assistiu a tudo paralisado. A ambulância partiu, e então o policial que ficou aproximou-se deles.

A bruma do alvorecer encobria as estrelas, mas ainda não havia realmente a luz do dia. Lucia Santa chorava na rua, enquanto Larry dava ao policial seus nomes, o nome do padrasto, os nomes dos meninos e de todo mundo que estava em casa naquela noite, e contava como tudo começara.

 

Somente no domingo seguinte foi que deram permissão para visitar Frank Corbo. Depois do almoço, Lucia Santa disse à filha:

— Você acha que eu devo deixar que ele venha para casa? Você acha que não há perigo?

Octavia deu de ombros, receando dar uma resposta honesta. Estava espantada com o otimismo da mãe.

Larry assumiu o comando como o homem mais velho da família. Falou como um homem que denota desdém pela covardia das mulheres.

— Vocês acham que vamos deixar papai apodrecer lá no hospital só porque perdeu um pouco a cabeça uma noite? Vamos tirá-lo de lá. Ele vai ficar bom, não se preocupem.

— É muito fácil para você — retrucou Octavia — falar como um figurão magnânimo. Você nunca está em casa. Está sempre caçando suas zinhas, suas estúpidas vagabundinhas. Então, enquanto você se diverte, mamãe, as crianças e eu seremos degoladas. E você ficará tã... ã... ã... o desolado quando chegar em casa. Mas você estará vivo e nós mortas. Você não é bronco assim, Larry.

— Ah, você sempre gosta de exagerar as coisas — disse Larry. — Depois que o velho sentir o gostinho daquele hospital, nunca mais vai ficar doente outra vez. — Em seguida, falou sério e sem maldade: — O seu problema, mana, é que você jamais gostou dele.

— Por que ia gostar? — retrucou Octavia com raiva. — Ele nunca fez nada por Vinnie nem pelos seus próprios filhos. Quantas vezes bateu em mamãe? Bateu nela até mesmo quando ela estava grávida, e eu nunca vou esquecer isso.

Lucia Santa ouvia a discussão entre os dois, com o rosto triste, as sobrancelhas pretas franzidas. Os argumentos deles eram tipicamente infantis, esse tipo de conversa nada significava para ela. Eles não tinham aptidão, nem emocional nem mental.

Como muitas outras pessoas, essa camponesa analfabeta, inexperiente, tinha o poder de vida e morte sobre os seres humanos mais chegados a ela. Todos os dias do ano, as pessoas deviam condenar e trair seus entes queridos. Lucia Santa não pensava em termos de sentimentos. Mas o amor e a piedade tinham seu valor, seu peso na vida.

O homem que servira de pai para os seus filhos, que a salvara de uma desesperada e desamparada viuvez e a despertara para o prazer, não tinha mais qualquer valor real para ela. Ele traria a guerra para a família. Octavia teria de ir embora; casaria cedo para fugir dele. Ele seria um peso morto na batalha contra a vida. Ela tinha obrigação para com os filhos, pequenos e grandes. Tinha de libertar-se do amor que era apenas pessoal, uma emoção de luxo, de vidas sem complicação.

Mas, acima do amor, estava a honra, estava o dever, estava a união contra o mundo. Frank Corbo jamais traíra essa honra; apenas não fora capaz de satisfazer tal compromisso. E ele era o pai de três filhos. Havia o fator sangue. Nos anos futuros, ela teria de enfrentar esses filhos. Teria de prestar contas a eles, pois ele lhes dera vida, eles estavam em dívida com ele. Por trás disso, estava o medo primitivo que os pais têm de seu próprio destino quando estão velhos e desamparados e se tornam filhos de seus filhos e, por sua vez, procuram clemência.

Gino, que durante todo o tempo estava se contorcendo e se virando e discutindo com Sal e Vinnie, e aparentemente não prestando atenção à conversa, disse de repente para a mãe:

— Papai piscou o olho para mim naquela noite.

A mãe, perplexa, não entendeu bem a palavra "piscou". Octavia então explicou-lhe e Lucia Santa ficou empolgada.

— Vocês estão vendo? — disse ela. — Ele estava fingindo. Sabia o que estava fazendo, mas estava com a cabeça fraca, não podia controlar-se.

— Vocês sabem — interveio Larry. — Ele viu Gino olhando tão assustado, foi por isso. Eu lhes disse que não era coisa séria. Ele está um pouco doente, só isso. Vamos trazê-lo para casa.

A mãe perguntou a Octavia:

— Hem, está bem?

Ela já se decidira, mas queria a aprovação da filha. Octavia olhou para Gino, que virou a cabeça para o outro lado.

— Vamos experimentar — respondeu ela. — Farei o possível.

Todos ajudaram a mãe a se aprontar. Acondicionaram o espaguete numa terrina pequena, frutas e meia bisnaga de pão. Apenas para o caso de que ele não pudesse voltar para casa naquele mesmo dia. Disseram até piadas. Lucia Santa falou:

— Ah, naquela noite, quando ele chamou Vincenzo de anjo, então compreendi que ele estava maluco.

Era uma piada mordaz que duraria através dos anos. Finalmente ela estava pronta para sair. Gino perguntou-lhe:

— Será que papai vem mesmo pra casa hoje?

A mãe olhou para ele. Havia uma espécie de medo no rosto do menino que ela não conseguia compreender. Respondeu então:

— Se não for hoje, talvez amanhã, não se preocupe.

Ela viu a apreensão desaparecer dos olhos do garoto, e a confiança absoluta dele deu à mãe aquela sensação carinhosa e familiar de poder e amor.

Vinnie, ouvindo as palavras ditas pela mãe a Gino, gritou com uma alegria sincera:

— Viva! Viva!

Octavia falou para a mãe:

— Vou arrumar os meninos e fazê-los esperar vestidinhos em frente de casa.

Larry ia com ela. Antes de partirem, ele disse para os garotos:

— Agora, se a gente trouxer papai para casa hoje, ninguém vai aborrecê-lo, a gente vai deixá-lo descansar. Façam tudo o que ele pedir.

Lucia Santa sentiu uma grande leveza de espírito; acreditou que tudo terminaria bem, que aquela noite terrível não fora tão significativa como parecera. A tensão tinha sido muito grande, todo mundo se deixara levar pela emoção. Na verdade, não tinha havido necessidade de chamar a polícia ou a ambulância para levá-lo para o hospital. Mas talvez aquilo tivesse sido para melhor. Agora o ambiente estava calmo e eles fariam o possível para contornar a situação.

Resoluta, vestida de preto, e levando ela mesma o embrulho da comida, Lucia Santa caminhou até a Rua 23 para pegar o bonde para o Hospital Bellevue, com o filho mais velho de braço com ela como um menino bom e obediente.

Lucia Santa e Larry chegaram a uma mesa de recepção cheia de gente e esperaram. Depois de um tempo enorme, disseram-lhes que deviam ver o médico, e seguiram as instruções para ir a seu gabinete.

Dizia-se que nesse grande hospital a equipe profissional era a melhor do mundo, que suas enfermeiras eram mais eficientes e mais trabalhadoras do que quaisquer outras, e que a assistência que prestava aos indigentes era a melhor possível. Mas para Lucia Santa essas coisas pouco importavam naquela tarde de domingo. Para ela, parecia que o Hospital Bellevue era o terror dos pobres, a última indignidade dolorosa e vergonhosa que eles sofriam da vida antes de morrer. Estava cheio de indivíduos da ralé, de desamparados da sorte, de necessitados. Tuberculosos sentavam-se nas sacadas lúgubres, aspirando o ar cheio de fuligem, contemplando a cidade de pedra destilar o veneno que lhes devorava os pulmões. Os indivíduos muito velhos ficavam ali sem ser atendidos, a não ser pelos parentes que os visitavam, os quais lhes traziam comida e procuravam instilar-lhes um sopro de esperança. Em algumas enfermarias estavam aqueles enfurecidos pela vida, por Deus ou pela humanidade, que haviam ingerido lixívia ou praticado qualquer outro mal contra o próprio organismo na sua ânsia de morrer. Agora, com uma agonia física para aliviar os seus outros sofrimentos, eles se agarravam à vida. Depois, havia aqueles loucos que tinham fugido do mundo para uma escuridão mais suave.

Lucia Santa refletia que, fosse o que fosse que se dissesse do lugar, devia-se dizer a verdade: que era um hospital de caridade. Nada devia a ela e a pessoas como ela e nada receberia delas. Os seus escuros corredores azulejados eram barulhentos, com crianças esperando remédios, tratamento, pontos, curativos. Em outra enfermaria, crianças aleijadas por automóveis e pais bêbados lutavam por uma única cadeira de rodas.

Em algumas camas estavam os doentes honrados — os homens cujo trabalho assegurava o sustento da mulher e filhos, cujo medo da morte se misturava com a visão de suas famílias desamparadas, desprotegidas.

Era um hospital para o qual as pessoas traziam comida diariamente para os seus entes queridos — panelas de espaguete, sacos de laranja — e toalhas, sabonete e roupa de cama limpa. Era uma oficina em que as partes do vaso humano quebrado eram novamente coladas, mas sem piedade, ternura ou amor; um lugar para tornar o animal apto a suportar sua carga; indiferente ao espírito magoado, proporcionava uma caridade relutante que, por princípio, jamais dispensava flores. Situado na parte oriental da cidade, medieval em sua construção no estilo de torre e portões de ferro, era um símbolo do inferno. Os pobres devotos benziam-se quando atravessavam esses portões; os gravemente enfermos resignavam-se à morte.

Lucia Santa e o filho encontraram o gabinete do médico e entraram. A mãe não podia acreditar que um homem tão moço, metido em sua mal-ajambrada jaqueta branca, tivesse poder sobre seu marido. Assim que se sentaram, ele disse que ela não podia ver o marido naquele dia; seria melhor que ela assinasse certos papéis necessários.

Lucia Santa falou para Larry, em voz baixa, em italiano:

— Conte-lhe a respeito do piscar de olho.

O médico interveio, também em italiano:

— Não, signora, é a senhora que vai me contar.

A mãe ficou surpresa, ele parecia tão americano...

Ele falava o italiano dos ricos e a tratava com uma cortesia cavalheiresca. Lucia Santa explicou-lhe como no auge da loucura naquela noite terrível o marido piscara o olho para o seu filho legitimo mais velho. Para tranqüilizá-lo, para mostrar que ele não estava maluco. Era claro, ele perdera a cabeça por qualquer fraqueza ou exasperação com a família, ou desespero com o seu destino. Eles eram pobres. Ele estava realmente muito doente para ganhar o sustento da família. Este era o motivo por que às vezes os homens se portavam de maneira tão estranha. E ele andara todo o inverno sem chapéu. Seus miolos tinham-se congelado. E ela não devia esquecer que, ao trabalhar nas obras do novo metrô para a Oitava Avenida, ele ficara soterrado durante alguns minutos e fora atingido na cabeça.

Ela continuou a falar e a falar para mostrar que a doença era física, externa, sujeita a um simples cuidado caseiro, mas sempre voltava ao piscar de olho. Ele enganara a todos naquela noite. Tapeara todo mundo, até os médicos.

O médico ouviu tudo com grave cortesia e tato, balançando a cabeça para concordar com o fato de que aquele piscar de olho era muito estranho, que o frio e a pancada na cabeça podiam ser fatores que haviam agravado o caso. A mãe não imaginava que aquela cortesia era uma exteriorização de piedade e compaixão. Quando ela acabou, o médico falou num italiano bonito, revelando-se como inimigo.

— Signora — disse ele — seu marido está muito doente. Demasiado doente para este hospital. Demasiado doente para sua casa. Deve ser enviado para outro lugar. Talvez num ano ou dois, ele esteja bom. Ninguém sabe. Essas coisas ainda são um mistério.

A mãe respondeu em voz baixa:

— Eu não assino nenhum papel. Quero ver meu marido.

O médico lançou um olhar para Larry e sacudiu a cabeça. Larry falou:

— Vamos, mamãe, eu a trago aqui novamente amanhã, talvez então a gente possa ver o pai.

Lucia Santa continuou sentada quieta, muda como um animal. O médico disse numa voz gentil, sem esperança:

— Signora, se o seu marido tivesse febre, impaludismo, a senhora não o mandaria ganhar a vida lá fora, a senhora não o deixaria exposto ao frio para trabalhar. Se as pernas dele estivessem quebradas, a senhora não o faria andar. Para ele, sair para enfrentar o mundo é demais. É muito doloroso para ele. A doença é um sinal para que ele não caminhe para a morte. A senhora pode demonstrar o seu amor por seu marido assinando esses papéis.

Ele pegou uma pasta de papel amarela em cima da mesa. Lucia Santa ergueu a cabeça e olhou-o fixamente, dizendo num italiano rude:

— Jamais assinarei.

O médico ficou vermelho. Depois falou com gravidade:

— Vejo que a senhora traz um embrulho para o seu marido. Quer entregar pessoalmente a ele? A senhora não poderá ficar, mas poderá falar com ele por um momento.

Lucia Santa ficou vermelha, por sua vez, com a bondade do médico, e meneou a cabeça. O doutor pegou o telefone de sua mesa e falou com alguém. Depois levantou-se e disse para Lucia Santa:

— Venha comigo.

Quando Larry se levantou da cadeira, o médico aconselhou:

— Acho melhor você esperar sua mãe aqui.

Lucia Santa seguiu o médico através de corredores escuros como os de uma prisão, subindo e descendo escadas, até que depois de percorrerem um longo caminho chegaram a uma porta que dava para uma enorme sala azulejada onde se viam várias banheiras espalhadas, algumas protegidas com cortinas. Ela seguiu o médico através da sala, em direção a outra porta no canto mais afastado. Mas de repente o médico parou ao lado de uma das banheiras com cortina. Com a mão direita, segurou firmemente Lucia Santa pelo braço, como para evitar que ela tropeçasse ou caísse. Com a esquerda, puxou a cortina, presa em sua haste de metal.

Um homem nu, com os braços amarrados para o lado, estava sentado numa banheira cheia de água. Lucia Santa gritou:

— Frank!

O crânio estreito virou-se para ela, o rosto alongado no esgar arreganhado de um animal selvagem acuado e aterrorizado. Os olhos azuis pareciam vidro, brilhando numa fúria sem alma. Não olhavam para ela, mas para o céu invisível lá em cima. Era uma expressão de loucura satânica, desesperada, e o médico deixou cair a cortina, quando o inevitável grito de angústia da mulher fez os médicos-assistentes acorrerem em seu auxílio. O embrulho caiu no chão azulejado, desfazendo-se e sujando as meias e os sapatos de Lucia Santa.

Ela estava sentada no gabinete do médico novamente. Larry procurava fazê-la parar de chorar. Mas ela chorava com pena de si mesma, que devia se tornar viúva novamente, que devia dormir sempre numa cama solitária; com pena de seus outros filhos, que ficariam também sem pai; chorava porque havia sido vencida, derrotada pelo destino. E chorava porque pela primeira vez em muitos anos ficara aterrorizada; amara um homem, tivera filhos dele e depois o vira, não morto, mas com a alma arrancada do corpo.

Ela assinou todos os papéis. Agradeceu ao médico pela sua bondade. Quando deixaram o hospital, Larry levou-a para casa num táxi. Estava preocupado com ela. Mas quando saltaram na Décima Avenida, a mãe estava completamente restabelecida: ele não teve nem mesmo de ajudá-la a subir as escadas. Nem mesmo viram os meninos, Gino, Vinnie e Sal, esperando na esquina da avenida.

 

No primeiro sábado da primavera, Octavia resolveu fazer uma limpeza completa na casa. Vinnie e Gino foram destacados para fazer uma faxina no prédio — lavar o vestíbulo, os corredores e as escadas, e limpar o quintal do cortiço. O pequeno Sal e a irmãzinha Lena receberam panos para tirar o pó das cadeiras e da grande mesa de madeira, as cadeiras com suas travessas torneadas, a mesa com seus grandes arcos misteriosos de madeira por baixo, formando cavernas nas quais as duas crianças podiam sentar-se e esconder-se. Com a grande garrafa de óleo de limão, fizeram tudo ficar brilhoso, verde-escuro e oleoso, de forma que Octavia teve de passar por cima um pano enxuto.

Os armários foram completamente esvaziados e as prateleiras forradas com folhas limpas de jornal. Toda a louça foi espalhada sobre a mesa da cozinha para ser lavada, a fim de se tirar a camada superficial de sujeira.

Numa hora, Vincent e Gino estavam de volta ao apartamento com a vassoura, o esfregão, o balde e a chaleira para a água de sabão quente. Gino falou:

— Já acabamos tudo. Vou sair agora para brincar.

A cabeça de Octavia pulou rapidamente para fora do armário. Ela estava zangada. Houvera uma transformação em Gino nos últimos meses. Ele sempre fora irresponsável; mas obrigado, sem possibilidade de desaparecer, ele trabalhava prazenteiramente e bem. Agora estava embirrado, petulante. Estragava tudo. Octavia franziu as sobrancelhas para os dois. Vinnie também estava se comportando mal. Octavia gritou:

— Mãe, olhe. Eles lavaram o prédio todo com uma chaleira de água quente. Quatro lances de escada e quatro corredores e o mármore do andar térreo com uma miserável chaleira de água quente.

Ela riu desdenhosamente. Lucia Santa disse da cozinha:

— Eh, está bem, desde que tudo pareça um pouco limpo.

Octavia retrucou quase gritando:

— Como, diabo, pode parecer limpo com uma chaleira de água quente?

Ela ouviu a mãe rir e riu também. Era uma manhã tão bonita... O apartamento estava inundado de luz amarela. Os dois meninos ali postados, com os esfregões e o balde, pareciam tão engraçados! Eles detestavam aquilo. O rosto deles estava retorcido de repulsa.

— Muito bem — disse Octavia. — Vinnie, você me ajuda aqui nos armários; Gino, você lava as janelas por dentro. Depois você e Vinnie levam toda a porcaria lá para o quintal e eu acabo as janelas.

— Com o diabo! Eu não faço é mais nada! — disse Gino.

Octavia nem olhou para ele.

— Não seja espertinho.

— Eu vou sair — falou Gino.

Vinnie e Sal ficaram espantados com a ousadia de Gino. Nenhum dos irmãos jamais se atrevia a desafiar Octavia; até Larry às vezes recebia ordens dela. Ela sempre puxava o cabelo deles e os esbofeteava quando eles se tornavam petulantes e não queriam obedecer. Uma vez ela até dera com uma garrafa de leite na cabeça de Larry.

Octavia estava meio ajoelhada no armário. E falou por cima do ombro:

— Não faça eu me levantar.

— Pouco estou ligando — replicou Gino. — Não vou lavar nenhuma porcaria de janela. Vou brincar.

Octavia saltou no chão e veio em cima dele. Com uma das mãos agarrou-lhe o cabelo, com a outra deu-lhe duas boas bofetadas. Ele tentou escapulir, mas ela era muito forte para ele. Segurou-o firme. Espancou-o, embora sem machucá-lo realmente, e gritou:

— Agora, seu merdinha, diga que não lava as janelas que eu te mato!

Gino não respondeu. Livrou-se da irmã com um inesperado rompante de força. Ele olhou para ela, não com ódio ou medo, mas com a sua surpresa dolorosamente desarmante, sua perplexidade simplesmente indefensável. Octavia não conseguia acostumar-se àquele olhar. Ela batia em Vinnie às vezes mais do que aquilo, portanto não era remorso que ela sentia. E, apesar de seus sentimentos com respeito ao padrasto, ela jamais considerou Lena, Sal e Gino como meio-irmãos. Todos eram filhos da mãe dela.

Lucia Santa veio lá da cozinha e disse para Octavia:

— Chega, não bata mais. Gino, vá só lavar as duas janelas da frente e depois pode ir brincar.

Mas o rosto magro e escuro de Gino estava agora cheio de teimosia e raiva. Ele respondeu:

— Eu não lavo nenhuma filha da puta de janela.

Esperou para ver o que elas iam fazer. Conciliatoriamente, Lucia Santa disse:

— Não diga palavrões, um menino pequeno como você.

Gino berrou:

— Octavia vive soltando palavrões o tempo todo! E ela é uma moça! Você nunca a repreende! E com outras pessoas ela se finge de senhora distinta!

A mãe riu e Octavia virou o rosto para o outro lado para não rir na frente deles. Era verdade. Os seus admiradores, especialmente o filho do panettiere, nem podiam imaginar como ela soltava palavrões. Eles não ousavam pronunciar em sua presença palavras que ela usava em casa quando se irritava com a mãe ou com os irmãos. Às vezes, quando estava histérica de raiva, ficava chocada consigo mesma. Uma de suas amigas chamara-a de "virgem de boca suja".

— Bem, bem — disse a mãe. — Ajude só até a hora do almoço; depois você pode sair. A comida já está quase pronta.

Ela sabia que Octavia estava zangada por ter sido desobedecida, mas as coisas iam tão bem que ela queria paz na família. Para sua surpresa, Gino respondeu petulantemente:

— Eu não estou com fome. Vou sair agora mesmo. Pro diabo o almoço!

O garoto pegou o seu bastão de beisebol que estava no canto e virou-se para sair. Foi quando recebeu uma violenta bofetada da mãe, em cheio na boca. Ela estava zangada e gritou:

— Animale! Cabeça dura! Você é exatamente como seu pai. Agora vai ficar em casa o dia todo.

Ele não chegava ao queixo dela. A mãe olhou-o nos olhos, dois grandes poços escuros de raiva, loucos com a frustração que sofrera. Ele levantou o bastão e atirou-o cegamente, mas mirando com cuidado para não atingir ninguém. O pau fino e comprido descreveu um arco graciosamente e varreu a pilha de louça de cima da mesa, deixando-a limpa. Houve um estardalhaço tremendo. Pedaços de pratos e xícaras voaram pela sala.

Seguiu-se um momento de grande silêncio atordoante. Gino lançou um olhar perplexo para a mãe e para Octavia, virou-se e fugiu. Atravessou a porta, desceu as escadas e mergulhou na Décima Avenida e na revigorante luz solar da primavera. A mãe recuperou-se o bastante para gritar para baixo pelo corredor escuro, cheirando a pimentão, alho frito e azeite.

— Figlio de puttana! Besta! Animal! Não volte para casa para comer!

Gino sentiu-se bem melhor subindo a Rua 31. Para o inferno todo mundo. Para o inferno a mãe e a irmã. Todos podiam ir para o inferno. Deu um salto quando sentiu um puxão no braço, mas era apenas Vinnie.

— Vamos para casa — suplicou Vinnie. — Octavia pediu que eu levasse você de volta.

Gino virou-se. Deu um empurrão no irmão e disse:

— Você quer brigar, seu filho da puta?

Vinnie olhou para ele seriamente e retrucou:

— Vamos, eu o ajudo nas janelas. Depois a gente vai jogar bola.

Gino saiu correndo para a Nona Avenida e, embora Vinnie fosse um bom corredor, não havia mais qualquer ruído de que alguém o estivesse perseguindo.

 

Ele estava livre, mas sentia um descontentamento esquisito. Nem sequer estava louco. Não ia fazer exatamente o que alguém lhe dissesse, nem mesmo Larry. O pensamento de Larry obrigou-o a fazer uma pausa. Ele tinha de sair da redondeza. Com toda a certeza iam mandar Larry atrás dele.

Na Nona Avenida, Gino agarrou-se à traseira de uma carroça que ia para a zona suburbana. Depois de alguns quarteirões, o carroceiro, um corpulento italiano de bigode, viu-o e agitou o chicote. Gino saltou, apanhou uma pedra e atirou-a na direção da carroça. Na verdade, não fez pontaria, mas a pedra chegou perto. Ouviu-se uma torrente de palavrões, a carroça parou e Gino fugiu para a Oitava Avenida. Ali agarrou-se à traseira de um táxi. O motorista viu-o e acelerou o carro para que ele não pudesse saltar antes do Central Park. Aí chegando, o motorista ameaçou-o, arreganhando os dentes para ele.

Pela primeira vez na vida, Gino entrou no Central Park. Viu uma fonte perto de um cocho de cavalos e tomou um gole de água morna. Não tinha nem mesmo um níquel para um refresco. Penetrou profundamente no parque, indo até onde podia ir de oeste para leste, até que avistou as grandes pedras quadradas brancas que abrigavam os ricos. Nada significavam para ele. Seus olhos infantis não abrangiam pensamentos de dinheiro. Ele sonhava com bravura no campo de batalha, com grandeza no campo de beisebol. Pensava em sua própria singularidade.

Gino procurava um lugar no parque em que pudesse sentar-se, encostado a uma árvore, e não ver as fachadas de pedra erguendo-se para o céu; ou contemplar, através da tela de folhas, as sombras negras de automóveis e carroças em movimento. Buscava a ilusão de uma floresta. Mas, onde quer que ele estivesse, em pé ou sentado, toda vez que dava uma volta completa, encontrava pelo menos uma fachada de pedra por cima das árvores, um cartaz suspenso perto do céu, o som de buzinas tocando ou o barulho de cascos de cavalo. O cheiro de gasolina misturado com o odor da relva e das árvores. Finalmente, cansado, Gino deitou-se à beira de um lago que tinha margens cimentadas e, fechando os olhos, fez os edifícios altos perderem sua solidez e se tornarem aéreos, suspensos acima das árvores como uma gravura num conto de fadas. Mais tarde, sairia da floresta e entraria na cidade. Sem aviso, caiu no sono.

Dormiu um sono encantado. Sabia que as pessoas passavam por ali e olhavam para ele, uma bola pulou perto dele, dois desocupados vieram atrás dela e ficaram olhando para ele. Mas ele não podia acordar o bastante para vê-los realmente. As estações mudavam como se os anos passassem rapidamente. Primeiro, estava muito quente e Gino rolava na grama para a sombra de uma árvore. Depois, vieram chuvas à luz solar e ele se molhou, e depois sentiu frio e escureceu, e depois ficou ensolarado como no verão. Mas estava muito cansado para conseguir levantar-se. Deitando a cabeça nos braços, enterrando o nariz e os olhos na grama fresca, dormiu a vida inteira, mas quando acordou apenas uma tarde tinha passado.

As torres suspensas da cidade estavam todas azuis com o crepúsculo que se aproximava; não havia raios solares amarelos no ar. O parque estava preto e verde. Gino teria de correr para chegar em casa antes de escurecer.

Saiu do Central Park na Rua 72. Estava preocupado agora. Queria voltar para casa, para sua própria casa, seu próprio bairro; queria ver novamente os irmãos, as irmãs e a mãe. Fora o mais longo tempo que ele já passara longe deles. Agarrou-se à traseira de um táxi. Teve sorte; o carro foi para o centro da cidade e depois entrou na Nona Avenida. Mas na Rua 31 o carro corria muito. Gino saltou de qualquer jeito, batendo os pés antes de atingir o solo. Conseguiu equilibrar-se e saiu correndo. De repente ouviu um guincho de metal atrás de si. Sentiu um choque e viu-se suspenso do chão e voando pelo ar. Bateu no calçamento e deu um salto. Não estava machucado, mas ficou assustado porque sabia que fora atropelado.

Um grande carro azul estava metade na calçada, metade na sarjeta. Um homem alto saiu do veículo e correu para Gino. Tinha olhos azuis e pouco cabelo e o seu rosto apresentava tal expressão de susto e apreensão que Gino teve pena dele e falou imediatamente:

— Eu estou bem, senhor.

Mas o homem começou a apalpar-lhe o corpo todo em busca de ossos quebrados. Havia apenas um rasgão na perna das calças e sangue saindo dali.

O homem perguntou muito nervoso, quase em pânico:

— Você está bem, meu filho? Como se sente?

— Meu joelho está doendo — respondeu Gino.

O homem olhou para ele. Havia uma arranhadura profunda de onde o sangue corria lentamente. O homem pegou Gino como se fosse uma criança de colo e colocou-o no assento dianteiro do carro. Para o pessoal que se aglomerara em volta, ele disse:

— Vou levar este garoto para o hospital.

Em frente ao Hospital Francês, na Rua 30, o homem estacionou o carro e acendeu um cigarro. Olhou para Gino atentamente, estudando-lhe o rosto.

— Agora, diga-me a verdade, garoto, como você se sente?

— Estou bem — respondeu Gino.

O menino sentia algo no estômago. Estava um pouco apavorado por ter sido atropelado por um carro.

— Deixe-me ver o seu joelho — pediu o homem.

Gino levantou a perna da calça. O sangue tinha estancado e uma crosta de carne viva começava a se formar em todo o joelho.

— Nunca perco sangue quando me firo — falou Gino com orgulho. — Sempre me aparece logo uma crosta.

O homem suspirou e disse:

— Acho melhor a gente entrar.

Gino retrucou prontamente:

— Esses hospitais fazem sempre a gente esperar e eu preciso ir para casa, ou minha mãe vai ficar furiosa. Estou bem, senhor.

Saltou do carro e arrematou:

— Além disso, a culpa não foi do senhor. — O seu tom era de uma pessoa tranqüilizando outra. Gino afastou-se, mancando, do carro.

O homem chamou:

— Espere um instante, garoto.

Inclinou-se para fora da janela, estendendo uma nota. Eram cinco dólares.

Gino ficou embaraçado.

— Não — replicou ele. — A culpa foi minha. Não quero nenhum dinheiro.

— Tome — retrucou o homem resolutamente. — Não faça a sua velha gastar a grana com calças novas só porque você acha que é um grande homem.

Ele se parecia com Lindbergh quando estava sério. Quando Gino apanhou o dinheiro, o homem apertou-lhe a mão, sorriu e disse num tom aliviado e lisonjeiro:

— Você está bem, garoto.

Tudo o que Gino tinha a fazer agora para chegar em casa era atravessar a Nona Avenida, por baixo do viaduto ferroviário, e descer a Rua 30 até a Décima Avenida.

Virou a esquina com uma grande sensação de felicidade. Sal estava brincando na rua, a mãe estava sentada em seu tamborete, em frente ao cortiço, em companhia de Zia Louche e outra mulher. Octavia estava em pé no balcão do sorvete, conversando com o filho do panettiere. Gino passou por ela, e os dois fingiram que não se viram um ao outro. Diante do cortiço, ele parou e encarou a mãe quando ela falou com ele. Ela não estava furiosa, ele logo percebeu.

— Buona sera — disse ela calmamente. — Você resolveu voltar para casa? Sua ceia está no forno.

Ela olhou rapidamente para o outro lado e falou com Zia Louche. Gino pensou amargurado: "Ela nem notou a minha perna."

Subiu, mancando, as escadas. Estava aliviado. Tudo parecia esquecido. E agora pela primeira vez tinha consciência de uma dor latejante no joelho. A boca estava seca e salgada, os olhos doíam um pouco e as pernas estavam trêmulas.

Vinnie estava lendo na cozinha. Quando viu Gino, tirou um prato de pimentão, ovos e batatas do forno e pôs na mesa. Depois foi até a geladeira e trouxe uma garrafa de leite. Gino tomou um gole diretamente da garrafa. Depois sentou-se para comer.

Vinnie falou calmamente, mas de modo um tanto acusador:

— Onde você esteve o dia todo? Mamãe e Octavia estavam preocupadas e Larry procurou você em toda parte. Todos estavam preocupados com você.

— Ah, com certeza — respondeu Gino sarcasticamente.

Mas se sentia melhor. Depois de algumas garfadas, não pôde comer mais. Pôs a perna em cima da cadeira. Estava rija. Levantou a perna da calça. A crosta estava enorme e cheia de sangue, e inchada como um bolo de casamento.

— Puxa! — disse Vinnie impressionado. — É melhor você pôr um pouco de iodo nisso. E a sua cara e as suas mãos como estão, também. Você esteve numa briga?

— Não — respondeu Gino. — Fui atropelado por um carro.

Quase chorou quando disse isso. Foi até a pia e lavou-se. Depois foi para a sala da frente, armou a cama e tirou a roupa. Sentiu frio, então pôs um cobertor por cima do corpo. Puxou a nota de cinco dólares do bolso das calças e segurou-a. O estômago palpitava, o rosto esquentou. Agora via o carro como não vira então, aproximando-se a toda velocidade e atingindo-o, com o seu corpo voando pelo ar. Vinnie estava sentado na cama perto dele.

— Fui atropelado por um carro — disse Gino com a voz trêmula. — Está vendo? O cara me deu cinco dólares. Era um sujeito legal. Queria até que eu fosse para o hospital, mas eu não estava machucado. Eu estava agarrado na traseira de outro carro e saltei bem na frente dele. A culpa foi toda minha.

Abriu a mão.

— Está vendo? Cinco dólares.

Os dois garotos olharam fixamente o dinheiro. Era uma fortuna. Vinnie ganhara uma moeda de ouro de cinco dólares de Zia Louche, quando foi crismado, mas jamais teria permissão para gastá-la.

— Puxa! — disse Vinnie. — Que é que você vai fazer com ela, dar para mamãe?

— Nunca — respondeu Gino. — Se ela souber que fui atropelado, eu levo uma surra. — Depois acrescentou seriamente: — A gente vai fabricar aquelas garrafas de gengibirra que você sempre quis, Vinnie, para vender e ganhar dinheiro. Lembra-se? Talvez a gente possa montar um bom negócio.

Vinnie estava encantado. Aquilo sempre fora o seu sonho.

— Não está brincando? — perguntou ele.

E, quando Gino balançou a cabeça concordando, Vinnie falou:

— É melhor você deixar eu guardar o dinheiro. A mãe pode tirar de você para fazer você economizar.

— Não, senhor — respondeu Gino desconfiado. — Eu mesmo vou guardar este dinheiro.

Vinnie ficou surpreso e magoado. Gino sempre o deixava guardar o dinheiro dele, tanto o que ganhava com a venda do gelo como no sete-e-meio.

— Vamos — insistiu Vinnie. — Deixe-me guardar os cinco dólares. Você vai perder a nota.

Gino retrucou rancorosamente:

— Eu é que fui atropelado pelo carro, você não. Você nem mesmo veio comigo. Estava do lado de Octavia. Você tem sorte que eu lhe fiz meu sócio.

Gino deitou-se de costas na cama. Vinnie olhava-o atentamente. Gino nunca agira daquela maneira antes.

— Está bem — disse ele. — Você guarda o dinheiro.

Gino continuou deitado de costas e disse quase distraidamente:

— E eu tenho de ser o chefe na fabricação da gengibirra. O dinheiro é meu.

Isso melindrou Vinnie. Era o mais velho e a idéia era dele. Quase disse: "Você e seu dinheiro podem ir para o inferno", mas em lugar disso falou:

— Está bem, você vai ser o chefe. Você quer uma atadura no joelho?

— Não, não está doendo — respondeu Gino. — Vamos falar sobre como fazer a gengibirra. E, lembre-se, não conte a ninguém que fui atropelado. Senão eu levo uma surra.

Vinnie disse:

— Vou apanhar papel e lápis para fazer as contas das despesas.

Foi para a cozinha, limpou a mesa e lavou os pratos. A mãe tinha dado ordens severas para que Gino limpasse tudo quando acabasse de jantar. Depois, Vinnie tirou o lápis e o bloco de papel de sua pasta da escola.

Quando voltou para a sala da frente, já estava quase escuro, eram as últimas réstias do crepúsculo. Na obscuridade, viu a mão de Gino caída sobre o cobertor. A nota de cinco dólares amarrotada estava no chão. Gino dormia profundamente, com o corpo completamente inerte.

Mas ouviu uns sons esquisitos vindos da cama. Vinnie se aproximou e viu que o irmão estava chorando em seu sono, as lágrimas corriam-lhe pelas faces. Vinnie sacudiu-o para acordá-lo do pesadelo, mas o irmão continuava a dormir, respirando ritmada e profundamente. Os ruídos do choro pararam finalmente, deixando apenas o rosto e os cílios de Gino molhados. Vinnie esperou um pouco ao lado da cama, caso o irmão acordasse e quisesse os cinco dólares de volta. Depois meteu o dinheiro no esconderijo secreto deles na parede.

Vinnie sentou-se no peitoril da janela no escuro. Era uma noite muito calma, e, sendo ainda o início da primavera, não era provável que o pessoal da avenida ficasse lá fora até tarde. Até o pátio ferroviário estava sossegado; não havia máquinas em movimento, nem ruídos de aço. Vinnie continuou a olhar para a cama, para se assegurar de que o irmão estava bem, e imaginando onde poderiam arranjar as garrafas para a gengibirra que iam fazer. Sabia que Gino o deixaria ser o chefe.

 

A luz cinzenta enfumaçada de outono dava à cidade um aspecto de linhas e sombras. A ponte da Décima Avenida estava meio obscurecida, como se estivesse sobre um desfiladeiro sem fundo, não apenas dois andares acima de uma rua calçada com pedras e marcada com linhas paralelas de aço. Por baixo da ponte, da direção da Rua 29, vinha uma carroça, puxada por um lerdo cavalo castanho. A carroça estava carregada de engradados feitos com ripas de madeira, cheios de uvas roxas.

A carroça parou entre as Ruas 30 e 31. O carroceiro e o ajudante empilharam 20 engradados em frente a um cortiço. O carroceiro inclinou-se para trás e gritou para o alto, como se estivesse cantando uma melodia:

— Ca-te-ri-na, as uvas estão aqui esperando por você!

Quatro andares acima, uma janela se abriu, homens, mulheres e crianças puseram a cabeça para fora. Segundos depois, como se tivessem voado escada abaixo, emergiram do cortiço. Um homem deu uma volta em torno das caixas, farejando os cachos por entre as ripas, como um cachorro.

— São boas este ano? — perguntou ao carroceiro.

O carroceiro não se preocupou em responder. Estendeu a mão para receber o dinheiro. O outro pagou.

Entrementes, a mulher que descera pôs duas crianças de guarda, enquanto ela e os outros filhos apanhavam, cada um, um engradado e levavam-no para a adega. O pai arrancou uma ripa de uma caixa, expondo em parte o seu conteúdo, e tirou um cacho grande de uvas azul-escuras para chupar. Quando a mulher e os filhos voltaram da adega, ele distribuiu cachos de uvas para todos. Em frente de cada cortiço, essa cena se repetia, o pai inclinando-se prazerosamente sobre a pilha de engradados, enquanto outros homens menos venturosos se juntavam em volta para desejar-lhe boa sorte com o vinho. Lambiam os lábios pensando nos enormes jarros, vermelho-escuros, empilhados junto às paredes de suas adegas.

Gino tinha inveja das outras crianças, aquelas crianças felizes cujos pais faziam vinho. Estava ao lado do pai de Joey Bianco, mas Joey era muito mesquinho para dar-lhe sequer um cacho de uvas, o mesmo acontecendo com o pai. Este, aliás, era tão mesquinho que não tinha a gentileza de abrir uma caixa de uvas para distribuir como amostras com os parentes e amigos íntimos.

Mas agora o rechonchudo panettiere, usando o seu gorro branco de padeiro, estava recebendo três altas pilhas de engradados colocados em frente de sua padaria. Abriu dois dos engradados e distribuiu grandes cachos de uvas com todos os meninos. Gino deu um salto e apanhou sua parte. O panettiere disse em sua voz retumbante:

— Ragazzi, ajudem a carregar isso e haverá pizza para todos.

Os meninos se atiraram como formigas nas três pilhas de engradados, que prontamente desapareceram para dentro da adega. Gino ficou sem nada para carregar.

O panettiere olhou para ele de modo reprovador:

— Ah, Gino, figlio mio, que será de você? O trabalho foge de você, por mais que você se esforce. Você precisa aprender agora; aqueles que não trabalham não comem. Fora!

O panettiere começou a se virar, mas o olhar aborrecido de Gino o fez parar.

— Ah — disse ele. — A culpa não é sua. Você apenas não se mexe com muita rapidez na hora de trabalhar. Se tivesse sobrado um engradado, você o teria levado, não é?

Quando Gino meneou a cabeça concordando, o panettiere fez sinal para que ele entrasse na padaria. No momento em que os outros meninos subiram da adega para ganhar a sua recompensa, Gino já estava na avenida comendo a sua pizza, o molho quente de tomate cortando o gosto doce do suco da uva de sua boca.

Ao cair da noite, os meninos, com a boca suja de roxo das uvas e de vermelho do molho de tomate, corriam gritando num e noutro sentido da avenida, subiam e desciam disparados as escadas da ponte, como demônios barulhentos, dançavam no vapor da locomotiva que passava lá embaixo e reapareciam numa chuva de fagulhas. A cidade de pedra se elevava acima deles com uma cor preta devido ao início do outono. Era o último alvoroço deles, antes de serem chamados das janelas para fugirem à noite que caía. Empilharam os engradados vazios na sarjeta, e um dos meninos maiores acendeu um fósforo e incendiou o papel em volta da pilha para fazer uma fogueira. A Décima Avenida irrompeu em fachos de luz alaranjada, e em torno deles os meninos formaram um grande círculo. Os gritos das mães, pondo as cabeças para fora das janelas, ecoaram pelas ruas estreitas, frias ao crepúsculo, gritos longos e esticados, como os dos pastores montanha abaixo.

Lucia Santa, como Deus atrás de uma nuvem, olhava de sua janela do último andar da Décima Avenida, 358, com os cotovelos pousados num travesseiro sem fronha. Observava seus filhos e outros meninos chupando uvas, correndo pela ponte, vistos pela metade à luz das fogueiras alaranjadas, reduzidos a sombras tremulantes pela noite de outono, fria e agitada pelo vento. O frio estava vindo cedo naquele ano. O verão, a abençoada estação de repouso para a gente da cidade, tinha chegado ao fim.

Agora começaria a escola. Devia haver camisas brancas para os meninos, calças consertadas e passadas a ferro. Sapatos de couro deviam ser usados em lugar dos de tênis remendados com tiras. O cabelo tinha de ser cortado e penteado. Luvas de frio, que eles sempre perdiam, deviam ser compradas; chapéus e casacos. A estufa devia ser colocada na sala de estar perto da cozinha; devia ser verificada e mantida em funcionamento. Dinheiro devia ser poupado para a contribuição de inverno para o médico. No fundo do pensamento, Lucia Santa alimentava a idéia de economizar dinheiro fazendo Sal roubar carvão do pátio ferroviário. Mas Salvatore era muito medroso; ele não gostava daquilo. Com Gino não era mais possível. Estava ficando muito grande; podia ser considerado como um criminoso. Lucia Santa pensava nisso com a astúcia dos pobres.

Agora, à luz amarela, ela conseguia ver um menino pequeno sair da calçada para a sarjeta e depois correr e pular sobre a fogueira. Gino. Resolvido a estragar sua roupa. Depois um menino ainda menor tentou fazer o mesmo e caiu na beira do fogo, provocando uma chuva de fagulhas. Quando Lucia Santa viu Gino tentar novamente, ela gritou:

— Managgia Gesú Cristo!

Disparou pelo corredor até a cozinha, agarrou o rolo preto de macarrão e desceu precipitadamente as escadas. Octavia levantou os olhos do livro que estava lendo.

Quando Lucia Santa irrompeu da porta do cortiço, Gino estava sobre a fogueira pela terceira vez. Em pleno ar, ele viu a mãe, depois alcançou o chão e tentou desviar-se. O rolo fino preto atingiu-lhe as costelas, de maneira firme e dolorosa. Soltou um grito, para satisfazer à mãe, e foi correndo para casa. Então a mãe viu Sal voar por cima do fogo, e, quando ele passou correndo por ela, Lucia Santa sentiu que as calças dele cheiravam a queimado. Ela deu tempo para ele mergulhar antes de atirar o rolo de macarrão, que o pegou também em cheio. Sal soltou um gemido e foi correndo para casa, atrás de Gino. No momento em que Lucia Santa subiu as escadas, eles já tinham tirado o blusão e o gorro e se escondido debaixo da cama. Ficariam quietos, pelo menos durante meia hora. Um dia tinha chegado ao fim, uma estação, um pedaço da vida dela.

— Largue este livro — disse a mãe. — Ajude os meninos.

Octavia suspirou e largou o livro. Ela costumava ajudar nas noites de domingo, em compensação pelo seu dia de descanso, que era sábado. Sempre sentia um tipo de paz especial nas noites de domingo.

Octavia tirou a roupa seca da banheira, limpou-a e abriu a torneira de água quente. Depois foi até o seu quarto e gritou para baixo da cama:

— Saiam dai, vocês dois!

Gino e Sal arrastaram-se para fora. Sal perguntou:

— Mamãe ainda está zangada?

— Não — respondeu Octavia com firmeza — mas se vocês não se comportarem, ela vai ficar aborrecida. Agora, nada de brigas na banheira, ou vocês dois apanham.

Lucia Santa estava na cozinha preparando a ceia. Vinnie tinha chegado do cinema e estava ajudando a mãe a pôr a mesa. Ele tomaria banho depois.

Quando Gino e Sal saíram da banheira, a roupa de baixo de inverno estava esperando por eles, com suas mangas e pernas compridas. De algum esconderijo esquecido, surgiram as suas pastas da escola, surradas mas ainda em condições de serem usadas. Também esperando por eles estavam os sanduíches de bolinhos de carne e copos de cream soda, pois a mãe recusava servir leite com qualquer comida feita com molho de tomate.

Depois da ceia, Octavia passou um sermão em todos eles: Sal, Gino e Vinnie. Era costume.

— Agora — começou ela. — Nenhum de vocês é burro. Quero ver boas notas este ano, e em comportamento também. Vinnie, você foi muito bem no ano passado, mas precisa ir melhor, agora que você está mais adiantado. Você quer ir para a faculdade, não é? Se suas notas forem muito boas, você poderá ir de graça.

Não havia qualquer possibilidade de pagar a faculdade. Vinnie teria sorte se não precisasse trabalhar logo depois de terminar o curso secundário. Mas Octavia tinha seus próprios planos e seu próprio dinheiro para esse fim. Vinnie iria para a faculdade. Ela cuidaria da família. Foi isso que finalmente a levou a desistir de qualquer idéia de lecionar.

— Gino — prosseguiu Octavia — se você obtiver notas de comportamento iguais às do ano passado, eu vou lhe mandar para o hospital, vou lhe moer de pancadas. E os seus estudos podiam ser bem melhores. Agora, comporte-se, ou você vai acabar no reformatório e desgraçar toda a família.

Octavia estava exagerando; Gino nunca se comportara tão mal a ponto de ter de ir para o reformatório, nunca fora tão indisciplinado na escola e nunca tirara zero em comportamento.

Ela tinha seu público. Até a irmãzinha, Aileen, sentou-se em seu berço e tentou sair dele para sentar-se numa cadeira da mesa. Octavia pegou a menina e colocou-a no colo.

— Sal — continuou ela — você foi muito bem no ano passado. Mas agora a escola vai ficar cada vez mais difícil. Vou ajudá-lo a fazer os seus deveres escolares; portanto, não se preocupe. Sou tão boa professora quanto aquelas da escola — disse ela, com uma presunção quase infantil. E continuou: — Uma coisa: quero todo mundo aqui em cima, e não na rua, quando eu voltar do trabalho. Nessa altura já estará escuro e não haverá mesmo razão para vocês continuarem lá fora. Quem não estiver em casa às seis horas da tarde vai sofrer o diabo. E nada de jogar baralho nem de brincar enquanto os deveres escolares não estiverem feitos e verificados por mim. E vocês, Vinnie, Gino e Sal, tirem uma noite, cada um, para ajudar mamãe a lavar e enxugar os pratos. Dêem uma folgazinha a ela.

Octavia fez uma última advertência, atemorizadora em sua simplicidade e sinceridade, dita sem qualquer floreio ou preâmbulo:

— Se vocês não passarem de ano, se vocês ficarem para trás, eu mato vocês.

Aileen mexeu-se nervosamente em seu colo.

— Ninguém vai desonrar o nome desta família — continuou Octavia — e vocês não vão crescer como carcamanos ignorantes para viverem o resto da vida na Décima Avenida.

Lucia Santa irrompeu na sala, irritada pelo fraseado da filha.

— Bastanza. Basta. Afinal, eles não estão indo para a guerra.

Depois, falou para os meninos:

— Mas lembrem-se disto, mascalzoni que vocês são. Eu daria tudo para ter ido para a escola, para saber ler e escrever. Somente os filhos dos ricos iam para a escola na Itália. Na idade de vocês, eu estava perseguindo cabras, colhendo verduras e revolvendo estrume. Eu matava galinhas, lavava pratos e limpava casas. Escola para mim era como cinema. Se o pai de vocês tivesse ido para a escola, teria arranjado um trabalho melhor e, quem sabe, talvez não tivesse ficado doente. Portanto: tomem conhecimento da sorte que vocês têm, ou aprenderão a ter sorte com o rolo de macarrão.

Sal estava com os olhos arregalados. Gino e Vinnie se achavam calmos, embora um pouco impressionados. Sal perguntou amedrontado:

— Mas, mãe, e se eu não conseguir aprender, e se não for muito inteligente? Então, a culpa não vai ser minha.

Falou tão sério que a mãe e a irmã riram. Octavia respondeu brandamente:

— Não se preocupe, todo mundo nesta família é bastante inteligente para passar. Faça apenas o possível. Eu vou ajudá-lo, e eu era a garota mais inteligente da minha turma no ginásio.

Vinnie e Gino replicaram juntos com um "ah! ah! ah!", iludidos pelo tom suave e triste da irmã, para apoquentá-la. Os grandes olhos escuros de Octavia fuzilavam, mas ela sorriu e perguntou a Lucia Santa:

— Bem, eu era, não era, mãe?

Esse desejo ardente de uma glória desconhecida por eles contribuiu mais para convencer os meninos do que qualquer de suas ameaças, com exceção daquela de que os mataria se eles ficassem para trás. Eles não duvidaram dessa ameaça por um momento sequer.

Lucia Santa observava a filha. Ela se lembrava de como Octavia gostava de ir à escola, e foi isso que fez que Lucia Santa tolerasse tais modos americanos, tornando a educação tão importante. Ela desconfiava da grande ambição, dos grandes objetivos. Pois, segue-se que, quanto maior a recompensa, maiores os riscos. A pessoa pode ficar completamente desorientada com a derrota esmagadora. É melhor uma segurança modesta. Mas Lucia Santa prestou esse tributo à filha.

Disse gravemente aos filhos:

— Sim, Octavia podia ser professora se não fosse o pai de vocês.

Ela viu Gino olhar diretamente para os seus olhos, atento.

— Sim — prosseguiu ela, falando para o menino. — Se o pai de vocês cumprisse o seu dever, sustentasse a família, Octavia podia ter deixado de trabalhar. Mas ele nunca pensava em ninguém, e você, figlio de puttana que é, vai pelo mesmo caminho. Esta noite você estava pulando a fogueira. Estragou a sua roupa nova e deu um mau exemplo a seu irmão menor. Agora tenho de comprar calças novas para a escola. Animale que você é. Você nunca pensa em ninguém. Mas eu lhe aviso...

Octavia interrompeu-a rapidamente:

— Muito bem, mãe, isso é outra coisa. O grande caso é que eles sabem como é importante a escola para a vida deles. Se vocês aprenderem alguma coisa na escola, poderão ser gente. Do contrário, serão apenas uns porcalhões lá nas docas ou na estrada de ferro, como Larry.

Quando os meninos foram para a cama, Lucia Santa ficou muito ocupada remendando e passando a ferro a roupa lavada para a semana seguinte. Havia uma cesta tão cheia que ela precisava apenas esticar a mão sem abaixar-se. Octavia apoiou o livro no açucareiro grande. Reinava uma tranqüilidade absoluta, com exceção do ranger das molas da cama, vindo da sala, toda vez que um dos meninos se virava inquietamente no sono. As mulheres se achavam em perfeito estado de sossego e paz de espírito, chefes de uma tribo obediente. Tudo corria suavemente; ambas estavam de acordo — a filha, uma fiel mas poderosa subordinada; a mãe, chefe indiscutível, mas mostrando respeito e admiração pela ajuda habilidosa e fiel da filha. Nunca se falou, mas a expulsão do pai aliviou-as de uma grande tensão e preocupação. Sentiam-se quase felizes por ele estar fora de casa e por reinarem agora de maneira absoluta.

Lucia Santa levantou-se para pôr o café no fogo, pois Octavia quando estava entregue à leitura se esquecia de tudo. A mãe se interrogava: "Que será que há nesses livros que atordoa a minha filha, causando-lhe um esquecimento mágico?" Era algo que ela nunca saberia, e se fosse mais jovem sentiria alguma inveja ou pesar. Mas era uma mulher ocupada, com trabalho importante a fazer por muitos anos, e não podia tornar-se infeliz por causa de prazeres dos quais não conhecia o gosto. Ela já tinha bastante pesares por causa de prazeres cujo gosto conhecia. Mas não podia fazer nada a respeito disso, tampouco. E fez uma careta devido à fumaça e aos pensamentos.

Tinha de ir até o outro extremo do corredor para apanhar novamente o leite na geladeira, e um bom presunto italiano apimentado para tentar Octavia, que estava ficando muito magra. Lucia Santa ouviu alguém subindo lentamente as escadas, mas fosse lá quem fosse só podia estar no segundo andar. Deixou a porta do apartamento aberta, para refrescar-se um pouco do ferro quente. De qualquer forma, ninguém poderia passar por essa porta, pela geladeira e pela cômoda e depois subir pelo telhado e fugir. Sentou-se à mesa com a filha, ambas tomando café e comendo o presunto com pão grosso. Ouviram passos se aproximando, e depois a cabeça, coberta com xale, de Zia Louche surgiu lenta e cautelosamente no último degrau da escada, e a velha entrou cambaleando no apartamento, praguejando terrivelmente em italiano.

Tinham bastante intimidade com ela, não precisavam dar-lhe as costumeiras saudações da cortesia formal. Lucia Santa levantou-se para pegar outra xícara e cortar mais pão, embora soubesse que a velha jamais comia diante de outras pessoas. Octavia perguntou amavelmente em italiano e com respeito:

— Como está se sentindo, Zia Louche?

A velha fez um gesto de impaciência agastada, como uma pessoa que está à espera da morte e, portanto, acha tal pergunta importuna, de mau gosto. Ficaram algum tempo em silêncio.

— Trabalho e mais trabalho — falou afinal Lucia Santa. — Essa escola, cada vez com maiores exigências. Os meninos precisam se vestir como o próprio Presidente, e eu tenho de lavar e passar roupa como uma escrava.

Zia Louche respondeu com um vago "hum-hum" e fez outro gesto de impaciência, como que para afastar todas as pessoas que esperavam que a vida corresse suavemente. Tirou seu surrado casaco preto e depois o comprido suéter cujos botões desciam até os joelhos. Sob aqueles olhos enviesados, Octavia sentiu que não podia continuar a ler; seria falta de respeito. Levantou-se e começou a passar a ferro devagarinho. A mãe esticou o braço e fechou o livro, que estava aberto em cima da mesa, para que a filha não pudesse retomar a leitura, enquanto passava a ferro. Então Octavia percebeu que estava merecendo a subida honra de ouvir a palavra de Zia Louche endereçada a ela.

— Minha jovem senhorita — falou Zia Louche, com a grosseira familiaridade das velhas — o seu lindo irmão, será que ele apareceu hoje por aqui?

— Não, Zia Louche — replicou Octavia com gravidade.

Se outra pessoa qualquer usasse esse tom com ela, Octavia lhe cuspiria na cara, especialmente as deslambidas matronas gordas, aquelas carcamanas que sempre falavam com as moças numa voz cheia de piedade maliciosa, por elas nunca terem provado os prazeres do leito nupcial.

— E você, Lucia Santa? — perguntou Zia Louche.

Quando a mãe balançou a cabeça negativamente, a velha continuou com argúcia:

— Então você não se interessa por esse seu belo filho, um rapaz de 17 anos, num país como este? Você não tem medo que lhe aconteça alguma coisa?

Octavia viu o rosto da mãe contorcer-se numa carranca de inquietação.

Lucia Santa deu de ombros desanimadamente.

— Que é que houve agora com aquela disgrazia? Nas noites de sábado ele nunca dorme em casa. Não aconteceu nada?

Zia Louche deu uma rápida gargalhada sarcástica.

— Oh, sim, algo aconteceu. Uma comédia completa foi representada. E, como é costume na América, a mãe é a última a saber. Calma, Lucia Santa, seu lindo filho está salvo, está vivo. O conquistador de mulheres — ela disse isso em inglês, com um prazer incrível — encontrou finalmente uma garota que é muito viva. Parabéns, Lucia Santa, pelo casamento de seu filho e de sua nora... à moda americana.

O efeito atordoante disso foi tamanho, que Octavia e a mãe puderam apenas olhar fixamente para Zia Louche. A velha, com sua maneira provocadora, esperava atrair grande parte da raiva delas para si mesma, mas não pôde conter os acessos e mais acessos de gargalhada que lhe abalaram o velho esqueleto na sua carne vestida de preto, dizendo em voz entrecortada:

— Não, não, Lucia Santa, você deve me perdoar, você tem toda a minha amizade nisso, mas, oh, que bandido que é o seu filho Lorenzo! Che mascalzone! Isso é demais, realmente demais...

Mas então ela viu o rosto empedernido da amiga, os lábios apertados pelo insulto quase mortal que lhe fizera. Ela se recompôs. Manteve os ossos enrugados da cara numa gravidade apropriada à sua idade. Mas não pôde esconder certo desdém pela inquietação delas.

— Perdoe-me mais uma vez — disse Zia Louche. — Mas, com um filho tão mulherengo, que é que você esperava, afinal de contas? Você preferia vê-lo espancado ou morto? Seu filho não é burro, Lucia Santa. A Signora Le Cinglata, 20 anos estéril, e o Signor Le Cinglata, casado duas vezes, quarenta anos marido e nunca pai, finalmente encontraram a felicidade.

Baixou a cabeça com ar zombeteiro e prosseguiu:

— Graças ao bom Deus. Mas o Signor Le Cinglata acha que deve dar graças a outra pessoa mais próxima e afia a faca para pagar sua dívida. E a descarada Signora Le Cinglata sonhou em casar com seu filho. É possível isso com uma mulher nascida e criada na Itália? Ah, América... terra descarada!

Nesse ponto Lucia Santa ergueu a mão ameaçadoramente para o céu numa praga muda à desavergonhada Le Cinglata, mas inclinou-se para a frente para ouvir mais.

Zia Louche então prosseguiu:

— Seu filho finalmente caiu na armadilha preparada pelos tigres que ele tão impensadamente domou. Uma palavra da Signora Le Cinglata ao marido e ele é um homem morto. Mas se ele dá esperança à velha prostituta, que é que pode acontecer? Que desgraça? Ela pode até envenenar o velho e arrastar os dois para a cadeira elétrica. Mas você conhece seu filho, ele é esperto e fará tudo para não ter de dizer "não" a alguém. Assim, ele corre para a pretoria e se casa com uma inocente mocinha italiana que o via passar no seu cavalo pela Décima Avenida, desde que usava tranças, sem nunca ter falado com ele. Ninguém sabia que ele conhecia essa noiva, nem mesmo o viram falar com ela em público. O pessoal dela mora na Rua 31, família de Marconozzi, respeitável, mas gente pobre, muito pobre mesmo. Oh, como é astuto esse seu filho! Ele podia ser padre.

A mãe perguntou calmamente:

— A moça tem boa reputação?

Zia Louche arreganhou os dentes lascivamente.

— Homens como o seu filho só se casam com moças irrepreensíveis. Esta é a filosofia deles. Quem valoriza mais a virgem do que o conquistador de mulheres? Mas ela é um palito.

A velha ergueu um dedo indicador esquelético, cujos ossos enodados eram mais lascivos do que qualquer carne arredondada.

— Meu querido Deus, ele vai quebrá-la em dois pedaços como um graveto — disse ela benzendo-se.

Octavia estava furiosa, envergonhada por esse casamento tão típico dos pobres, com o escândalo, a sordidez da vida do irmão. A asquerosa loucura sexual de que todos eles estavam contaminados. Ela percebeu com surpresa que a mãe agora não estava, de forma alguma contrariada, e que até ria frouxamente. Octavia não compreendia que essa notícia, conquanto surpreendente, desconcertante, uma coisa que seria melhor não tivesse acontecido, não era realmente má notícia. Como podia ser para uma mulher que esperava que sonhos mais terríveis se tornassem realidade? O medo de doença misteriosa, atos criminosos de paixão, prisão, a cadeira elétrica — tudo era perfeitamente possível, tudo discernível. Lorenzo podia ter se casado com uma prostituta, com uma desmazelada ou até com uma irlandesa. Então ele se casara às pressas, uma ocorrência comum com os filhos dos pobres, e sem desonra; a desonra ficaria com os pais da moça.

— Todo mundo vai pensar o pior — disse Octavia em voz alta. — Os nojentos salafrários.

Mas Lucia Santa estava agora rindo francamente, com a frustração dos Le Cinglata, com a astúcia do filho.

— Onde está agora esse meu lindo filho? — perguntou ela a Zia Louche.

A velha respondeu:

— Deixe-me acabar. O Signor Le Cinglata considera-se o pai. A mulher tem apenas de manter o homem de joelhos pelas duas orelhas e depois poderá levá-lo para onde quiser. Mas há outra questão. A mãe da moça, ah, a mãe da noiva, precisa saber. Este é o problema. Eles são tão orgulhosos quanto pobres. Considerarão a filha desonrada.

Lucia Santa fez um gesto de impaciência.

— Eu vou contar a eles. Também somos igualmente orgulhosos e com certeza tão pobres quanto eles. Nós nos entenderemos. Mas onde estão os noivos agora?

A velha levantou-se, gemendo quando os seus ossos estalaram.

Atravessou a porta claudicando e gritou para o poço da escada: — Lorenzo, Louisa, subam!

Enquanto as três mulheres esperavam que os recém-casados subissem as escadas, matutavam nessa nova mudança da sorte. A mãe compreendeu de repente que a perda da renda do filho seria um golpe sério para a família. Mas até ele ter filhos poderia contribuir com alguma coisa para os irmãos e irmãs sem pai. Estava resolvida a convencê-lo disso. Depois, o apartamento do segundo andar iria vagar dentro em pouco; eles poderiam mudar-se para lá, de modo que ela vigiaria a nora, ajudaria o casal nas suas dificuldades iniciais e a cuidar dos bebês que nascessem — pois não tinha dúvida de que seria logo avó. Além disso, tinha grande curiosidade em ver a cara da moça que o seu lindo filho havia finalmente escolhido, a garota que lhe tinha finalmente posto o freio na boca.

Octavia também estava pensando em dinheiro. Esse Larry salafrário, abandonando a família exatamente quando ela mais necessitava de dinheiro! E de repente ela se convenceu de que essa era a verdadeira razão de seu casamento! Já que a mãe o dominara de modo muito rigoroso, tirando-lhe a maior parte de seu pagamento, restringindo-lhe a liberdade, ele tinha escolhido esse meio de se libertar daquela escravidão. E agora, que a família estava em dificuldade, Larry não podia ver futuro ali. Octavia preparou-se para recebê-lo como um cínico traidor e para que sua sirigaita não tivesse dúvidas sobre a situação dela naquela família.

Zia Louche esperava. Sem sombra de malícia, estava encantada por assistir a uma comédia tão primorosa.

A cabeça bem-feita de Larry surgiu primeiro por cima da escada. A moça estava quase invisível atrás dele, Larry apresentava um sorriso desconcertado, mas encantador; sua confiança habitual traía um ligeiro toque de acanhamento. A mãe esperava por ele com um sorriso de boas-vindas acompanhado de um perdão desdenhoso:

Larry falou prontamente:

— Mãe, mana, quero apresentar-lhes minha mulher.

Ele puxou a moça magricela de trás dele.

— Lou, aqui é minha mãe e minha irmã Octavia.

A mãe abraçou a moça e fê-la sentar-se. À vista do belo rosto, pálido e magro, com grandes olhos castanhos obcecantes, uma figura imatura, Octavia sentiu enorme pena da moça. Era uma menina, jamais conseguiria manobrar Larry, nem sabia a vida que iria levar. Octavia, olhando para o irmão, seu corpo forte, cabelo preto liso, conhecendo sua crença romântica em si mesmo, também sentiu pena dele; que isso seria o fim dos seus sonhos; que a sua vida chegara ao fim. Lembrou-se do irmão cavalgando pela Décima Avenida, em seu cavalo preto, com faíscas saltando das pedras do calçamento e dos trilhos de aço; da maneira como ele falava de si mesmo, como se só ele visse um grande destino. Ela compreendeu que a bondade dele — ir cedo para o trabalho para ajudar a mãe, deixar a escola e não preparar a mente para a luta da vida — o deixara sem armas para combater por seu destino. Agora ele teria filhos, os anos voariam tão depressa como o cavalo passava por baixo da ponte, e ele chegaria à meia-idade. E, desde que ele era Larry, ainda estava sonhando. Ela gostara dele, quando eram crianças juntos, e agora a compaixão a tornara bondosa para a esposa-menina do irmão. Beijou a face de Larry e abraçou a cunhada, sentindo o corpo da outra rijo de medo.

Todos se sentaram para uma festa de casamento com café e pãezinhos redondos secos e arranjaram para que os recém-casados dormissem ali até que vagasse o apartamento do segundo andar. Larry se animou falando alegremente; tudo estava indo bem. Ele sentia-se perfeitamente à vontade. Mas de repente Louisa enterrou o rosto nas mãos e começou a chorar, dizendo entre soluços, baixos e abafados:

— Tenho de ir para casa contar à minha mãe.

Lucia Santa levantou-se e falou com decisão:

— Todos nós vamos. Devemos conhecer-nos uns aos outros, todos nós, já que somos parentes.

Larry disse evasivamente:

— Xi, mãe, tenho de ir trabalhar no turno da noite. Vocês vão agora com Lou, amanhã eu vou lá.

A noiva olhou para ele com uma surpresa nervosa. Octavia explodiu com raiva:

— Com os diabos, que você vai trabalhar hoje, Larry! A sua noite de casamento é uma boa desculpa para um dia de folga no trabalho. Você vai com mamãe e Louisa à casa dela para defender sua mulher.

Louisa olhou para Octavia com os olhos arregalados, como se ela tivesse proferido alguma blasfêmia. Larry sorriu e retrucou:

— Vamos, mana, pare de exagerar tanto a coisa. Você quer que eu vá, Lou?

A moça balançou a cabeça afirmativamente. Ele pôs a mão protetoramente nas costas dela e disse:

— Então eu vou.

Quando a moça respondeu: "Obrigada, Larry", Octavia deu uma gargalhada estridente. Ficou surpresa ao ver a mãe lançar-lhe um olhar tão ameaçador, surpresa porque a mãe não obrigara Larry a fazer o que era direito. Mas quando Lucia Santa disse delicadamente para o filho: "Acho melhor você vir com a gente, Lorenzo", ela compreendeu que a mãe estava desempenhando um novo papel; que não mais se considerava a dona daquele filho e, de um modo um tanto frio, o estava expulsando do seu coração — não com raiva ou rancor ou falta de amor, mas como alguém que se livra de um peso para ter mais força para suportar outras cargas. Quando todos saíram, Octavia estava tão deprimida que passou a ferro toda a roupa e não abriu mais o livro.

 

A vida é tão cheia de surpresas para os meninos pequenos que Gino não se espantou quando na manhã seguinte viu o cabelo preto comprido de uma moça na cama do irmão Larry. Metido em sua modesta roupa íntima de inverno, ele estava ali em pé estudando-os. Larry parecia diferente, a moça tampouco apresentava um aspecto normal. Os dois bem pálidos, lívidos de sono no apartamento frio, indefesos numa inconsciência extremamente profunda, num esgotamento trágico, tinham a pureza indecisa da morte. O cabelo bem preto, todo espalhado e despenteado, dos dois caía como se fosse uma única massa sedosa nascendo junto ao rosto de ambos. Então Larry se mexeu; a força, o vigor e a vida começaram a percorrer-lhe o corpo, o sangue começou a circular em seu organismo e coloriu-lhe as faces. As sobrancelhas cerradas pretas se mexeram, os olhos se abriram, e aqueles olhos escuros começaram a brilhar. Larry afastou a sua cabeça da cabeça da moça, de forma que agora o cabelo deles não se misturava, e ele estava separado. Viu Gino observando-os e sorriu para ele.

Vinnie já tinha tomado a parte de cima da garrafa de leite, os primeiros três centímetros de creme gelado que eram um prêmio para o garoto madrugador. Gino procurou abrir outra garrafa de leite, mas a mãe fez a mão doer-lhe, batendo-lhe com a lâmina de uma faca.

Quando Gino voltou ao quarto para acabar de se vestir, seu irmão Larry estava sentado, com a cabeça descansando na armação da cama, fumando um cigarro, e a moça estava dormindo com o rosto para a parede e as costas pequenas curvadas contra o mundo. As alças de uma combinação branca apareciam, mostrando as omoplatas que se destacavam da pele como asas de galinha. Quando Gino passou, Larry estendeu o braço e puxou o cobertor para cobrir a mulher do frio, mostrando seu próprio peito cabeludo por cima da comprida e pesada roupa de baixo, ao fazer isso.

 

Gino nunca esqueceu aquele ano. Tantas coisas aconteceram, começando com o casamento de Larry.

Um dia, ao voltar da escola para casa, viu Joey Bianco sentado na plataforma da fábrica Runkel, com todos os seus livros espalhados na calçada. Para seu espanto, Joey estava chorando; mas, através das lágrimas, o seu rosto apresentava uma raiva melancólica. Gino aproximou-se cautelosamente e perguntou:

— Que é que há, Joey? Aconteceu alguma coisa a seu pai ou a sua mãe?

Joey balançou a cabeça negativamente, ainda chorando. Gino sentou-se a seu lado, subindo na plataforma.

— Você quer jogar sete-e-meio? — perguntou Gino. — Tenho 16 centavos.

— Não tenho dinheiro para jogar — respondeu Joey bruscamente, lamentando-se depois em voz alta: — Perdi todo o meu dinheiro. Meu pai me disse que eu o pusesse no banco e agora o banco perdeu todo o meu dinheiro. Esses nojentos salafrários. E meu pai nem liga, ele ri de mim. Todos diziam que o dinheiro seria meu quando eu crescesse, e o roubaram de mim. E agora todos eles riem de mim.

O menino chorava e praguejava desoladamente.

Gino se comoveu. Ele, mais do que ninguém, sabia que golpe terrível era aquele. Quantas vezes Gino comprara sorvete e deixara Joey dar uma lambida porque o amigo queria economizar os dois centavos de dólar? Quantas vezes Joey ficara em casa nas tardes de domingo para economizar o dinheiro do cinema e pô-lo no banco? Quantas vezes Joey dera as costas ao vendedor de cachorro-quente e seu carrinho de três rodas com o guarda-chuva de listras vermelhas, apertando firmemente um níquel no bolso, enquanto Gino saboreava o pãozinho macio, a salsicha coberta de molho vermelho, o chucrute branco oleoso e jatos de mostarda amarela, enfiando tudo de uma só vez na boca? Gino sentiu a perda também, pois de alguma forma era seu dinheiro. Embora os outros meninos procurassem ridicularizar Joey, Gino sempre o respeitava e dava-lhe pelo menos uma mordida de cachorro-quente, um pedacinho de pizza, uma lambida de sorvete para ajudá-lo a vencer a tentação. E mesmo na Páscoa, quando todo mundo comprava ovos açucarados brancos e cor-de-rosa por 10 centavos, mesmo então Joey agüentava firme, embora só houvesse Páscoa uma vez por ano. Gino tinha orgulho de que o seu amigo era, talvez, o menino mais rico de Chelsea e certamente o mais rico da Décima Avenida. Portanto, ele perguntou lenta e temerosamente:

— Joey, quanto você perdeu?

Joey respondeu com uma calma desesperada e solene, quase aterrado:

— Duzentos e treze dólares.

Os dois se entreolharam completamente consternados. Gino jamais sonhara que seria tanto assim. Pela primeira vez, Joey compreendeu a extensão e natureza de sua tragédia.

— Oh, Jesus! — clamou ele.

Gino então falou:

— Vamos, Joey, apanhe seus livros. Vamos para casa.

Joey saltou da plataforma e chutou furiosamente todos os livros, chutou-os até vê-los espalhados a metros de distância na sarjeta. Depois gritou:

— Fodam-se os livros! Foda-se a escola! Vou me vingar em todo mundo! Não vou mais pra casa!

Saiu correndo para a Nona Avenida e desapareceu entre as sombras de ferro cinzento da passagem elevada.

Gino apanhou os livros. Estavam rasgados, sujos e manchados de bosta de cavalo. Limpou-os nas calças e depois encaminhou-se para a Décima Avenida e foi até a casa de Joey, no número 356.

Os Bianco moravam no terceiro andar. Depois que Gino bateu, ouviu uma mulher chorando e quis descer correndo as escadas, mas a porta se abriu muito rapidamente. A mãezinha atarracada de Joey, toda de preto, fez-lhe sinal para entrar.

Gino ficou surpreso ao ver que o pai de Joey já estava em casa, sentado à mesa da cozinha. Era um homenzinho corcunda com um bigode enorme, que sempre saía à rua com um chapéu cinza amarrotado e, por alguma razão, estava usando-o agora, mesmo à mesa. Diante do homem estavam um jarro de vinho tinto escuro e um copo pela metade ao lado.

— Eu trouxe os livros de Joey para casa — disse Gino. — Ele vem depois que acabar de ajudar o professor.

Pôs os livros sobre a mesa. O homenzinho ergueu os olhos e disse com uma generosidade de bêbado:

— Buono giovanotto, bom menino. Você é o filho de Lucia San­ta e amigo de Joey, um bom menino. Nunca ouve ninguém, não é? Segue a sua própria cabeça. Muito bem. Tome um copo de vinho comigo. E agradeça a Deus você não ter pai.

— Eu não bebo, Zi' Pasquale — respondeu Gino. — De qualquer forma, obrigado.

Ficou triste ao ver o Sr. Bianco sentir-se tão culpado pelo prejuízo do filho. A mulher estava sentada à mesa, observando o marido.

— Beba, beba — insistiu Zi' Pasquale Bianco.

A mulher trouxe um cálice e o homem encheu-o de vinho.

— À América — disse o homenzinho. — Àqueles presidentes americanos dos bancos, que talvez um dia devorem as entranhas de suas mães.

— Calma, calma — falou a Sra. Bianco suavemente.

Nos velhos tempos, Gino vira Zi' Pasquale em sua ressurreição, triunfo e glória do dia-a-dia.

Primeiro, o homenzinho curvado, grotesco, o corpo cheio de protuberâncias e nós, arrastava-se penosamente desde o pátio ferroviário pelos trilhos de aço afundados, encravados na Décima Avenida. Como vinha cansado! Como vinha empoeirado e sujo, o suor secando e fechando os poros! O chapéu redondo, cinza sujo e de aba preta, repelia os perigosos raios de sol; a marmita do almoço vazia balançava no lado direito de seu corpo quando ele subia as escadas escuras do cortiço e entrava no apartamento.

Tirava as roupas de cima, depois Zia Bianco trazia água morna e sabão e passava-lhe um pano úmido nas largas costas nodosas. Em seguida, ele vestia uma camisa azul limpa, bebia um rápido copo de vinho, quando tirava a jarra de baixo da pia, e ia para a mesa.

Primeiro Zi' Pasquale encarava todos eles, quase acusadoramente, mesmo Gino, e depois sacudia um pouco a cabeça para mostrar que não os culpava por alguma desgraça misteriosa. Depois, tomava um gole de vinho de seu copo. Lentamente, cautelosamente, endireitava a espinha como se as forças estivessem sendo reintroduzidas em seu corpo. Depois a mulher se inclinava sobre ele com o enorme prato fundo de feijão e massa anuviado por um vapor de alho e molho pardo de feijão. Zi' Pasquale pegava uma colher como se estivesse segurando uma pá, começava a cavar e, com a destreza de um bom trabalhador, o monte de feijão e massa desaparecia por trás daquela enorme boca com bigode, e, depois de três desses ataques, ele largava a colher e cortava um pedaço grande de pão.

Com a colher numa das mãos, o pão na outra, ele introduzia vida e energia em sua própria alma. A cada colherada, ele se tornava visivelmente mais forte, mais poderoso. Ficava mais alto em sua cadeira, ultrapassava todos eles. A sua tez ficava cor-de-rosa, havia um brilho de dentes brancos e até um traço dos lábios vermelho-escuros quando o bigode ficava ensopado de molho. O pão preto duro estalava como tiros entre seus dentes, a grande colher de metal brilhava como uma espada em volta da cabeça dele. O homem esvaziava seu copo de vinho. E, como se ele tivesse esmagado tudo na mesa até o seu estado primitivo, havia o cheiro de uva e farinha de trigo e raízes cruas de feijão na terra.

Finalmente, Zi' Pasquale tomava uma faca da mulher e cortava um pedação de queijo granuloso, esfarelante, do bloco redondo de casca preta. Segurava contra a luz para que todo o queijo ficasse sob a tentação de seu aroma. Com a outra mão, apanhava o resto do pão em cima da mesa e depois, poderoso, sereno, quase com a autoridade sagrada, ria sinceramente para todos e perguntava em seu italiano meridional grosseiro:

— Quem é melhor do que eu?

A mulher soltava um "ahn" de aprovação, como se ele estivesse confirmando uma crença dela mesma que ele próprio negara. Mas os dois meninos sempre olhavam para o pai pensativamente, procurando compreender.

Eles viram. A comida de quem tivera melhor gosto naquela noite? O vinho de quem correra mais fortemente pelo sangue? A carne, os ossos e os nervos de quem ficaram tranqüilos com esse repouso generoso? Zi' Pasquale gemia de satisfação quando a dor da fadiga saía de dentro dele. Erguia-se um pouco para espreguiçar-se, soltando em seguida um suspiro suave de verdadeiro alívio. Nesse exato momento, quem no mundo inteiro se sentia mais feliz?

Nessa noite, Gino procurou dizer alguma coisa confortante.

— Está tudo bem, Zi' Pasquale, Joey pode economizar novamente. Vou ajudar a vender carvão da estrada de ferro e no próximo verão a gente pode vender gelo. Não vai demorar.

O grande bigode começou a tremer e o rosto do homenzinho se enrugou numa gargalhada.

— Meu filho e seu dinheiro. Ah, figlio mio, se isso fosse tudo. Você sabe o que perdi? O meu filho sabe o que perdi? Cinco mil dólares. Vinte anos levantando cedo, trabalhando no frio cortante e neste tremendo calor americano. Ouvindo insultos do chefe, trocando o meu próprio nome, um nome que existe há mil anos na Itália, o nome de Baccalona — sua voz trovejou o nome — da cidade de Salermo, Itália. Renunciei a tudo. E meu filho está chorando na rua.

Bebeu outro copo cheio de vinho e voltou a falar:

— Cinco mil dólares, 20 anos de minha vida. Meus ossos estão doendo por causa desse dinheiro arrancado penosamente de sua medula. Que se danem o céu e Jesus Cristo! Eles me roubaram esse dinheiro sem pistola, sem faca, em plena luz do dia. Como é possível?

A mulher suplicou:

— Pasquale, pare de beber. Você tem de ir trabalhar amanhã, você não trabalhou hoje. Muitos estão perdendo o emprego nesta Depressão. Coma um pouco e vá dormir. Vamos agora.

Zi' Pasquale respondeu suavemente:

— Não se preocupe, mulher, eu vou trabalhar amanhã. Não tenha medo. Não fui trabalhar quando nossa filhinha morreu? Hem? Não fui trabalhar quando você teve as crianças? Quando você esteve doente e as crianças também? Eu vou trabalhar, não tenha medo. Mas você, coitada, que nunca acendia a luz enquanto não estivesse tão escuro que não se pudesse mais ver, só para economizar uns níqueis! As vezes que você comeu espinafre sem carne e usou sueteres em casa para poupar carvão. Isso não significa nada para você? Ah, mulher, você é feita de ferro. Ouça-me, meu pequeno Gino, tenha medo delas.

Zi' Pasquale esvaziou outro copo cheio de vinho e caiu inconsciente no chão sem dizer mais palavra.

A mulher, certa de que o marido agora não podia ouvir, desabafou os seus lamentos. Gino ajudou-a a arrastar o Sr. Bianco para o quarto, enquanto ela chorava e lastimava suas desgraças. Viu-a tirar a roupa do marido até este ficar reduzido a uma figura patética, encolhida, metida numa roupa de baixo comprida amarelo-clara, roncando fortemente através do bigode, o que constituía um quadro paradoxalmente cômico.

A mulher fez Gino sentar-se na cozinha com ela. Onde estava Joey?, perguntou ela. Depois prosseguiu. O coitado do marido era a esperança deles, a salvação deles, não devia curvar-se às Fúrias. O dinheiro estava perdido — era terrível, mas não era a morte.

América, América, quantos sonhos se sonham em teu nome? A quantos pensamentos sacrílegos de felicidade tu dás origem? Há um preço a ser pago, embora se pense que a felicidade possa vir sem os terríveis pagamentos. Aqui havia esperança, na Itália nada. Começariam novamente, ele era apenas um homem de 48 anos. Ainda tinha 20 anos de trabalho em seu corpo. Pois todo corpo humano é uma mina de ouro. O minério do trabalho produz montanhas de alimento, abrigo para o frio, festas de casamento e coroas fúnebres para serem penduradas na porta do cortiço. Aquele cômico corpo miúdo e nodoso, metido em sua comprida roupa de baixo e com o seu bigode esbranquiçado, ainda tinha um tesouro a produzir, e com seu senso prático feminino a Sra. Bianco estava mais preocupada com o marido do que com o dinheiro que tinham perdido.

Depois de muito tempo, Gino conseguiu escapulir. Chegou em casa atrasado; todo mundo já estava na mesa. Como era bom entrar naquela cozinha quente que cheirava a alho, azeite e molho de tomate borbulhando como vinho quente escuro na panela! Cada um encheu seu prato, servindo-se na terrina central abarro­tada de espaguete. Não havia bolinhos de carne com a massa de terça-feira, apenas um pedaço de carne de segunda, tão tenra por ter sido cozida no molho que se podiam arrancar com o garfo tiras de carne. Quando estavam comendo, Larry e a mulher vieram do apartamento de baixo para unir-se a eles na mesa.

Ficaram todos contentes em ver Larry, principalmente os meninos. Ele sempre animava o ambiente, contando piadas e casos a respeito da estrada de ferro, conhecia todas as fofocas sobre as famílias da avenida. Octavia e Lucia Santa ficavam sempre alegres e animadas, quando ele estava presente, e não repreendiam os meninos.

Gino observou que Louisa estava engordando, mas que a cabeça dela estava diminuindo.

— Pois é — dizia Larry — o panettiere perdeu 10 mil dólares na Bolsa e mais algum dinheiro no banco, mas ele não precisa se preocupar com a padaria. Um bocado de gente da avenida perdeu dinheiro. Graças a Deus você é pobre, mãe.

Octavia e a mãe riram uma para a outra. O dinheiro era segredo para todo mundo, e além do mais estava na Caixa Econômica. Lucia Santa instou com Louisa:

— Coma um pouco mais, você precisa se manter forte.

Ela tirou um grande pedaço de carne do prato de Larry e pôs no de Louisa, dizendo para Larry:

— Você, animale, você é forte demais. Coma espaguete, sua mulher precisa de carne.

Uma estranha expressão de prazer brilhou no rosto da moça. Ela era muito quieta, raramente falava, mas agora respondeu timidamente:

— Obrigada, mamãe.

Gino e Vincent entreolharam-se; sentiram que alguma coisa não estava muito certa. Conheciam bem a mãe. Ela não fora sincera, não gostava realmente da moça, e esta agradecera muito acabrunhada. Larry riu para os meninos e piscou o olho. Apanhou uma colherada de molho e disse com grande espanto:

— Olhem as baratas na parede.

Era o velhíssimo truque usado por ele para roubar as batatas coradas nas noites de sábado. Vinnie e Gino recusaram-se a virar a cabeça, mas Louisa olhou em volta rapidamente, e nesse momento Larry tirou o pedaço de carne do prato dela e deu-lhe uma dentada antes de pô-lo novamente lá. Os meninos riram, mas Louisa, compreendendo que tinha sido ludibriada, desatou a chorar. Todo mundo ficou perplexo.

Larry justificou-se:

— Ah, vamos, isso é um truque antigo em nossa família. Eu estava apenas brincando.

A mãe e Octavia apresentaram sua solidariedade a ela. Octavia disse:

— Deixe-a em paz enquanto ela estiver assim, Larry.

Lucia Santa falou:

— Louisa, o animal do seu marido brinca como a fera que é. Da próxima vez... molho quente na cara dele.

Mas Louisa levantou-se da mesa e desceu as escadas correndo para o seu apartamento no segundo andar.

— Lorenzo, vá atrás dela, leve alguma coisa para ela comer — disse a mãe.

Larry, que cruzara os braços, respondeu:

— Com os diabos que eu vou.

E começou a comer seu espaguete novamente. Ninguém disse nada. Finalmente Gino falou:

— Joey Bianco perdeu 213 dólares no banco e o pai dele perdeu cinco mil.

Viu o rosto da mãe assumir uma expressão medonha de triunfo. Era a mesma expressão que ela mostrara quando ouvira contar que o panettiere perdera dinheiro. Mas, quando Gino relatou como Zi' Pasquale se embriagara, o rosto da mãe se alterou e ela disse, abatida:

— Nem mesmo os espertos têm segurança neste mundo, esta é que é a verdade.

Ela e Octavia trocaram outro olhar de satisfação. Fora mero acaso, pura sorte, elas terem posto seu dinheiro na Caixa Econômica. Quando abriram a conta, eram muito acanhadas para atravessar a entrada de colunas brancas e o grande saguão de mármore do banco com seu dinheirinho.

A mãe disse, com uma tristeza impessoal, como se o seu triunfo maldoso a fizesse sentir-se culpada:

— Coitado, ele gostava tanto de dinheiro, casou-se com uma miserável sem lhe ter qualquer afeição. Eles eram felizes. Um casamento perfeito. Mas nem sempre as coisas dão certo, faça a gente o que fizer.

Ninguém dava atenção a Lucia Santa. Eles a conheciam. Em sua fala e em seu pensamento, ela era pessimista a respeito da vida. Contudo, vivia como uma verdadeira crente na boa fortuna. Levantava-se de manhã contente, mordia o pão, sabendo que ele teria gosto bom. A sua esperança era uma energia física, renovada pelo amor que dedicava aos filhos e pela necessidade de lutar por eles. Todos eles acreditavam que ela nunca sentia medo. Portanto, as palavras dela pouco significavam, eram mera superstição. Comeram na maior tranqüilidade. Quando acabaram, Larry refestelou-se com um cigarro e Octavia e a mãe falaram com ele, contando casos a respeito de suas fugidas quando rapazola. Vinnie pegou o prato de espaguete de Louisa e pôs o pedaço de carne no molho ainda quente. Então cobriu-o com outro prato.

— Bom menino — disse Lucia Santa — leve alguma coisa para sua cunhada comer.

Vinnie desceu as escadas com os dois pratos e uma garrafa de refrigerante. Alguns minutos depois, ele voltou com as mãos vazias e sentou-se à mesa.

Larry olhou um instante para ele e perguntou:

— Ela está bem?

Quando Vinnie balançou a cabeça afirmativamente, Larry continuou com o caso que estava contando.

 

À tardinha de um domingo de março, Octavia Angeluzzi estava na cozinha, espiando os quintais lá embaixo. Dentro do bloco de cortiços havia um grande espaço vazio, o qual era cortado por cercas de madeira para formar muitos quintais separados.

Octavia contemplava os jardins construídos em canteiros de cimento. Algum paesano, saudoso da pátria, deixara uma caixa semelhante a um chapéu de três bicos cheia de sujeira pilosa, e dali nasceu um galho ósseo. No pé dele, pequenos talos, como dedos, apresentavam folhas extremamente amarelas. À luz prateada do inverno, um vaso de flores vermelho vazio erguia-se de um canteiro cimentado, cinzento. Por cima de tudo isso, enchendo o ar e entrecruzando-se de forma que nem mesmo uma bruxa pudesse voar por cima dos quintais, viam-se inúmeras cordas brancas de roupa, sujas e gastas, estendendo-se das janelas até postes alvos de madeira distantes.

Octavia sentia-se terrivelmente cansada. Era o frio, pensava ela, o inverno longo sem sol e as longas horas de trabalho. Com a Depressão, os salários tinham caído. Agora ela tinha de trabalhar mais horas por menos dinheiro. À noite, ela e a mãe pregavam botões nos cartões, em casa, às vezes com as crianças ajudando. Mas os meninos zombavam da ninharia que pagavam, um centavo o cartão, e raramente trabalhavam. Ela tinha de rir deles. As crianças podiam dar-se ao luxo de ser independentes.

Ela sentia dor no peito, nos olhos e na cabeça e uma quentura geral. E havia o estribilho constante a lhe percorrer a mente: que seria deles sem o dinheiro de Larry e três meninos e uma menina para criar? Toda semana agora ela tinha de ir à Caixa Econômica retirar dinheiro. O sonho tinha desmoronado; as economias iam diminuindo gradativamente; eles estavam cada vez mais longe de possuir uma casa. Contemplando a paisagem desolada, que recebeu um toque de estranha humanidade à vista de um gato andando no topo de uma cerca, ela pensava em Gino e Sal, crescendo para se tornarem trabalhadores brutos, grosseiros, broncos, morando em favelas, criando os filhos num ambiente de pobreza. Um acesso de inquietação apoderou-se dela, seguido de uma sensação de enjôo e medo. Ela os veria humilhar-se e implorar a caridade como os pais fizeram antes deles. O pobre pede, para continuar vivo.

E que seria de Vinnie? Com grande pesar Octavia compreendeu que já traçara o futuro dele. Vinnie teria de ir trabalhar logo para ajudar os irmãos e as irmãs. Não havia outra saída.

Oh, aquele nojento salafrário do Larry — deixar a família quando ela mais precisava da ajuda dele. E tendo a petulância de vir do segundo andar comer. Mas os homens eram nojentos. Ela teve a visão súbita de um homem — peludo, parecendo um gorila, nu e com o pênis enorme e ereto — essa era a própria imagem do homem. As suas faces ficaram vermelhas e ela estava tão fraca que não podia sustentar-se de pé. Foi até a mesa da cozinha e sentou-se. Sentiu uma dor sufocante no peito e compreendeu com um terror tranqüilo que estava doente.

Foi Gino quem chegou primeiro e encontrou Octavia inclinada sobre a mesa, chorando de medo e dor, cuspindo manchinhas vermelhas de sangue no encerado branco e azul. Octavia murmurou: — Vá chamar mamãe e Zia Louche.

Gino estava tão assustado que se virou e desceu as escadas correndo sem dizer uma palavra.

Quando as duas mulheres subiram, Octavia tinha recuperado as forças e estava sentada de cabeça erguida. Não limpara o encerado. Começara a limpar, para não sobressaltar a mãe, mas certa necessidade de compaixão, o medo de que pensassem que ela estava se fingindo de doente para fugir à luta da família tinha-a inconscientemente convencido a deixar tudo como estava.

Lucia Santa precipitou-se na sala. Viu imediatamente o rosto abatido, doentio e compungido da filha e depois as manchas de sangue. Torceu as mãos e bradou:

— Oh, meu Deus! — caindo logo no choro.

Essa dramaticidade irritou Octavia e fez Gino, atrás dela, murmurar:

— Caramba!

Mas isso foi apenas por um momento. A mãe prontamente se controlou, pegou a filha pela mão e levou-a pela fileira de quartos. Depois gritou para Gino:

— Corra! Depressa, chame o Dr. Barbato!

Gino, encantado com a excitação e a sua própria importância, desceu outra vez correndo os quatro lances da escada.

Com Octavia já deitada na cama, Lucia Santa apanhou uma garrafa de álcool e foi cuidar da filha até o médico chegar. Despejou bastante álcool em sua mão em concha e umedeceu a testa e o rosto quentes de Octavia. As duas estavam agora calmas, mas Octavia notou aquela expressão de grande inquietação no rosto da mãe, aquela expressão que parecia fechar o mundo. Procurou brincar.

— Não se preocupe, mamãe — disse ela. — Eu vou ficar boa. Pelo menos não vou ter filho sem um marido. Ainda sou uma boa moça italiana.

Mas, em momentos como esse, Lucia Santa não tinha senso de humor. A vida havia lhe ensinado a ter certo respeito pelos caprichos do destino.

Ela sentou-se ao lado da cama da filha como um pequeno Buda vestido de preto. Enquanto esperava o médico, a sua mente pensava tumultuosamente no que essa doença poderia significar, que nova desgraça poderia trazer. Sentiu-se vencida pelo desastre — o marido levado para o hospital de alienados, o filho casando-se muito cedo, a Depressão com a sua falta de trabalho, e agora a doença da filha. Ali estava ela sentada, reunindo suas forças, pois não havia agora dúvidas sobre a sua infelicidade pessoal. A família inteira estava em perigo, toda a sua estrutura, a sua vida. Não era mais uma questão de derrotas simples; agora havia o perigo de aniquilação, de afundar até o ponto mais profundo da existência.

O Dr. Barbato acompanhou Gino, subindo as escadas, entrando no apartamento e atravessando os quartos até chegar onde repousava Octavia. Como sempre, estava elegantemente trajado, com o bigode aparado. Tinha ingressos para a ópera na Academia de Música de Brooklyn e estava com pressa. Quase não viera, estivera a ponto de dizer ao menino que chamasse o Hospital Bellevue.

Quando viu a moça e ouviu o caso, sabia que a sua vinda tinha sido perda de tempo. Ela teria de ir para o hospital. Mas sentou-se ao lado da cama, notando que Octavia estava embaraçada por ser examinada por um homem tão moço, e que ela estava consciente da mãe que o vigiava severamente. Ele pensou contrariado: "Essas italianas pensam que os homens são capazes de trepar com uma mulher mesmo que esta se encontre à morte num leito". Conseguiu controlar-se e dizer calmamente:

— Agora, signora, vou ter de examinar sua filha. Faça o menino sair do quarto.

Ele preparou-se para puxar o lençol. A mãe virou-se e viu Gino com os olhos arregalados. Deu-lhe um bofete e disse:

— Desapareça. Desta vez com a minha permissão.

E Gino, que esperava elogio por toda a sua correria naquela emergência, voltou para a cozinha resmungando pragas.

O Dr. Barbato pôs o estetoscópio no peito de Octavia, olhando profissionalmente, mas na verdade dando uma boa espiada no corpo da moça. Verificou com surpresa que ela era muito magra. Os seios e as ancas largas, arredondadas, eram decepcionantes. Ela perdera muito peso. O rosto liso, triste, da moça, entretanto, não demonstrava isso, pois, embora finamente traçado, jamais poderia apresentar-se descarnado. Os olhos, castanhos, grandes e lacrimosos, observavam-no com intensidade temerosa. A mente do médico registrou, também, sem desejo, quão maduro estava aquele corpo para o amor. Ela se parecia com aqueles quadros de nus que ele vira na Itália na sua viagem de formatura. Era um tipo clássico aquela moça, feita para ter filhos e intensa atividade no leito conjugal. O melhor era ela casar logo, doente ou não.

Ele ergueu-se, cobrindo Octavia novamente com o lençol, e falou com uma tranqüila confiança.

— Você vai ficar boa — e fez sinal para que a mãe o acompanhasse até o outro quarto.

Mas ficou surpreso quando Octavia solicitou:

— Por favor, doutor, fale na minha frente. Minha mãe vai ter de me contar, de qualquer jeito. Ela não vai saber o que fazer.

O médico aprendera que as sutilezas da profissão nada valiam para essa gente, e com razão. Ele falou serenamente para as duas:

— Você tem pleurisia, não muito séria, mas precisa ir para o hospital para descansar e tirar chapas de raios X. O sangue que você está tossindo é grave. Deve haver algo com os pulmões.

Por um momento isso lhe trouxe à mente a ópera que ia ver naquela noite. A heroína morrendo de tuberculose, cantando como louca debaixo de luzes brilhantes; sua única perda era um amante, uma perda de prazer; sua morte era tratada de tal maneira que se tornava frívola. Ele falou sinceramente para Lucia Santa:

— Não se assuste; mesmo que sejam os pulmões, não pode ser coisa muito séria. Não derrame lágrimas à toa. O pior que pode acontecer é que sua filha tenha alguns meses de repouso. Portanto, amanhã, leve-a à Clínica do Hospital Bellevue. Vou dar-lhe algo para esta noite.

Tirou uma das amostras que recebera dos laboratórios farmacêuticos e deu-a à mãe, dizendo:

— E lembre-se, amanhã sem falta, para o Bellevue. Este apartamento é frio, as crianças são muito barulhentas, ela precisa de repouso. As chapas de raios X são importantes. Agora, signora, não deixe de seguir a minha recomendação. — E acrescentou num tom mais brando: — Não se preocupe.

O médico foi embora, sentindo um misto de desagrado e satisfação. Poderia ter ganho 15 dólares, em vez daqueles nojentos dois dólares. Poderia tratá-la durante a semana seguinte, tirar as chapas de raios X em seu consultório, cuidar de todo o negócio. Mas ele conhecia a pobreza da família. Mais tarde estava aborrecido consigo mesmo, sentindo frustração porque os conhecimentos que adquirira deviam ser dados por um preço tão barato, porque os sacrifícios feitos por seu pai produziam frutos tão amargos. Era um homem com uma poderosa arma econômica que não podia usá-la em sua plenitude. Que azar danado não ter sido a filha do panettiere. Ele sugaria o padeiro até secá-lo, o espremeria até a última gota. E com toda a justificativa, sem tapeá-lo realmente, com toda a decência. Oh, algum dia ele mudaria para um bairro onde a clientela tivesse recursos e ele pudesse trabalhar e fazer fortuna com a consciência limpa. O Dr. Barbato era simplesmente um homem que não suportava a visão e o cheiro da pobreza. Os seus atos repentinos de compaixão o faziam infeliz por muitos dias depois. Ele os considerava, na verdade, como um vício e não uma virtude.

Na cozinha, Sal e Vinnie, de volta do cinema, depois de terem assistido à matinê de domingo, estavam quietamente sentados, comendo grandes fatias de pão cascudo molhadas no vinagre e azeite, enquanto Gino, a um canto da mesa, fazia o dever escolar. Lucia Santa olhava para todos eles com tristeza.

— Gino — falou ela — tire 10 centavos da minha bolsa para você. Depois vá dizer a seu irmão Lorenzo que venha aqui em cima... subito.

Lucia Santa sentiu um repentino amor pelo filho ao vê-lo saltar feliz, a fim de cumprir as suas ordens; o pronto esquecimento da briga foi um bálsamo para o espírito da mãe.

Na manhã seguinte, Lucia Santa cometeu um ato tão monstruoso que a fez perder a simpatia de toda a Décima Avenida, de quem quer que tivesse ficado com pena dela naquele novo infortúnio. Fez o Dr. Barbato ficar tão zangado que ele praguejou em italiano pela primeira vez desde que começara a cursar a escola de Medicina. Até Zia Louche censurou Lucia Santa. Foi um ato insensato, imoral, chocante; contudo, foi simplesmente um ato de amor. Lucia Santa não levou a filha para o hospital de caridade Bellevue; em vez disso fez Larry conduzi-las em seu carro ao Hospital Francês, na Rua 30, entre a Nona e a Oitava Avenidas, a pouco mais de um quarteirão de distância. Era um hospital alegre, limpo e caro. As enfermeiras lá deviam ser delicadas, os médicos encantadores, os funcionários subservientes. Não haveria espera de horas em saguões escuros para ser admitida. A filha de Lucia Santa seria tratada como um ser humano, isto é, como um membro da sociedade que pode pagar as suas contas.

Ninguém ficou mais surpreso do que a própria Lucia Santa. Foi um gesto fantasticamente idiota que consumiria as economias de anos, exatamente no momento em que se tornavam mais necessárias. Não havia em casa quem ganhasse o sustento da família. Foi um ato de pura arrogância.

Mas havia razões. Lucia Santa passara acordada a noite inteira, sem conseguir dormir, tivera pesadelos. Via a sua linda filha aprisionada nas torres do Bellevue, perdida nos corredores sombrios, maltratada como um animal. E depois havia a superstição. O marido entrara no Bellevue e nunca retornara. Era uma capela mortuária; a filha morreria e seria cortada em pedacinhos, sendo a sua carne colocada em frascos.

Assim, nas primeiras horas da manhã, Lucia Santa tomou sua decisão, e sentiu tamanho alívio que não dava a menor importância ao que o mundo pensasse — as amigas, os parentes ou os vizinhos. Na escuridão de sua cama, ela chorara aquele terrível choro solitário que se deve carpir sozinha sem ninguém para ver; não uma exibição de mágoa, mas um alívio de angústia que substitui o consolo de um amigo ou ente querido. Lucia Santa chorou por ver-se sem forças e por compreender que não havia no mundo a quem pudesse recorrer. Esse seu ato terrível era o daquelas pessoas que não podem mostrar ter necessidade de piedade. Ao amanhecer, ela se recuperou, e, quando se levantou da cama, o seu rosto se apresentava forte e confiante.

Depois que os meninos foram mandados para a escola, Larry subiu e eles enrolaram Octavia, já vestida com roupas quentes, em cobertores. Ajudaram-na a descer as escadas e a entrar no carro de Larry. Quando Lucia Santa entrou no veículo, disse para o filho:

— Vamos para o Hospital Francês:

Octavia começou a protestar, mas a mãe gritou com raiva:

— Quieta! Não diga uma palavra!

As formalidades foram cumpridas rapidamente. Octavia foi colocada num lindo quarto, sossegado e limpo. Havia quadros na parede. Na volta para casa, Larry disse à mãe, sentindo o ciúme que sempre tivera da irmã, que daria cinco dólares por semana à família até que Octavia estivesse trabalhando novamente. A mãe esticou o braço e tocou-o com a mão, dizendo em italiano:

— Ah, você é um bom menino, Lorenzo.

Mas, pelo seu tom de voz, Larry reconheceu a recusa da mãe; ela não contava com ele, não confiava nele, não tinha respeito por ele naquela crise. Mas, se ele estivesse no lugar de Octavia, jamais teria sucumbido, se a doença tivesse atingido a ele e não a Octavia.

 

Lucia Santa Angeluzzi-Corbo, um general sitiado pelo inimigo, analisava o destino e os encargos da família, planejava táticas, ruminava estratégias, contava os recursos, media as lealdades dos aliados. Octavia ficaria ausente, numa casa de repouso, durante seis meses. Estaria incapacitada de trabalhar possivelmente por um ano. Um ano de salário perdido.

Lorenzo dava cinco dólares por semana, às vezes mais dois ou três. Vincenzo trabalharia na padaria — mais cinco dólares por semana e o dinheiro do pão economizado. Gino era imprestável. Sal e Aileen muito pequenos.

E a mulher de Lorenzo estava grávida, outra racha na armadura. Talvez fosse melhor não contar tampouco com o dinheiro de Lorenzo.

Não, vamos pensar de outro jeito. Vincenzo tinha três anos para acabar o ginásio. Era necessário que ele concluísse aquele curso? Gino era teimoso, precisava ser domado, tinha de ajudar, ela era muito tolerante com ele.

A mãe compreendeu mais do que nunca como Octavia era importante para a família em certas coisas além do dinheiro. Era Octavia quem fazia os meninos conseguirem boas notas na escola, levava-os para a clínica dentária gratuita da Associação do Hudson. Era Octavia quem planejava como economizar dinheiro e guardá-lo na Caixa Econômica, pouco importando quanto eles precisassem para a comida ou roupa. Era Octavia quem lhe dava a força, na qual ela se apoiava, quem a amparava nos momentos de fraqueza.

E agora, Lucia Santa pensava, ela estava de novo sozinha. Tinha de enfrentar novamente as terríveis batalhas. Porém, agora mais velha, mais rija, mais experiente, não sentia o desespero, o terror, a desorientação, que conhecera quando era uma viúva jovem. Era uma calejada veterana da desgraça, o seu espírito não se deixava abater por sonhos tolos e juvenis. Ela lutava agora como alguém que luta desesperadamente apenas para continuar a viver.

Lucia Santa chegou à decisão a que tinha de chegar. Não havia outro recurso a não ser recorrer à assistência social, ao amparo aos necessitados. E a luta para chegar a essa decisão abrangia várias coisas.

Mas de forma alguma abrangia a consciência, ou a preocupação de ser honesta para com as autoridades. Nascera num país em que o povo e o Estado são inimigos implacáveis. Não havia uma razão melhor.

A caridade é como sal na ferida. Dói. O Estado faz caridade com o ódio acirrado que a vítima dispensa ao chantagista. O beneficiário está sujeito a hostilização, insulto e profunda humilhação. Os jornais se arregimentam para lançar invectivas aos arrogantes salafrários que preferem pedir a morrer de fome ou deixar seus filhos morrerem de fome. Diz-se claramente que os pobres procuram a caridade como uma grande e sórdida cavilação que praticam com prazer. E há realmente quem faça isso. Assim como há gente que sente prazer em enfiar agulhas profundamente em sua barriga, em engolir cacos de vidro. É uma questão de gosto. Falando da humanidade em geral, os pobres aceitam a caridade com uma vergonha e uma perda de dignidade verdadeiramente lamentáveis.

Larry providenciou para que o visitador do serviço social fosse à casa da mãe, mas não ficou para assistir à entrevista. O seu orgulho de homem sentia-se afrontado. Não participaria daquilo, desligava-se por completo daquele negócio. Lucia Santa encontrou um lugar para esconder o azeite italiano importado, do qual ela nem sequer podia pensar em se privar; seria um golpe tremendo contra ela.

 

 

O visitador chegou à tardinha. Era um homem moço, solene, de aspecto cômico, com grandes olhos pretos redondos. Aqueles olhos tinham espessas sobrancelhas arredondadas por cima, e círculos escuros por baixo, de modo que o homem parecia uma coruja. Mas era delicado. Bateu na porta delicadamente. Inspecionou o apartamento desculpando-se, abrindo as portas dos armários e guarda-louça e andando pelo apartamento mais como um inquilino em perspectiva do que um visitador do serviço social. Tratou Lucia Santa de signora, e seu próprio nome tinha um toque de elegância; ele se chamava La Fortezza.

Ouviu todo o relato de Lucia Santa e tomou nota dos detalhes em sua caderneta, balançando afirmativamente a cabeça e murmurando frases de pesar em italiano, quando ela contava uma determinada desgraça. Falava um italiano escolar, mas que dava para entender.

Puxou formulários, fez perguntas. Não, não; ela não tinha dinheiro no banco, nem tampouco seus filhos; não possuía nada, nem seguro; nada. Não tinha jóias para vender, a não ser sua aliança, mas ele garantiu que isso não se contava. Quando acabaram, o Sr. La Fortezza sentou-se numa cadeira e inclinou o corpo para a frente, com as mãos apertando a beirada da mesa, como garras, e os olhos redondos de círculos pretos como que recriminando.

— Signora Corbo — disse ele — desagrada-me grandemente ter de informá-la que vai haver dificuldades. Cada um dos seus três filhos mais velhos tem dinheiro em depósito judicial pelo infeliz acidente que vitimou o pai deles. A rigor, esse dinheiro deve desaparecer antes que a senhora obtenha o benefício. Esta é a lei. E, se eu não comunicar que a senhora tem esse dinheiro, poderei me complicar.

Ele olhou para ela com toda a seriedade.

Lucia Santa foi tomada completamente de surpresa. Que esse jovem delicado, um rapaz italiano, tivesse bancado o espião, tivesse pedido informações aos vizinhos, depois preparado uma armadilha — isso a enfureceu. Respondeu asperamente:

— Muito bem. Vou jogar o dinheiro na rua.

Ele sorriu da piada dela e esperou. Ela sentiu que nem tudo estava perdido.

— Não há nada que o senhor possa fazer por mim? — perguntou.

O Sr. La Fortezza fez uma expressão um tanto constrangida, uma coruja devorando um rato peculiarmente vigoroso.

— Ah, signora — disse ele — uma mão lava a outra.

Depois, ainda um tanto embaraçado (ele ainda era muito moço para se sentir à vontade com a desonestidade), explicou que ia arriscar perder o emprego para conseguir 16 dólares para ela de duas em duas semanas, mas que quando trouxesse o cheque ela teria de dar-lhe três dólares. Afinal de contas, era um dinheiro que ela não devia receber, ela estava infringindo a lei etc. A proposta era tentadora. Lucia Santa ficou tão grata que serviu café com bolo, embora somente o café fosse bastante para cumprir a lei da hospitalidade. E durante o café o Sr. La Fortezza contou suas desventuras. Como se formara em Direito depois de muitos sacrifícios dos pais, gente como ela; agora não havia trabalho, e ele tinha de exercer aquela humilde função para o governo municipal. Como podia retribuir ao pai com o salário que ganhava? Doía-lhe trabalhar daquele jeito, mas como podia ter alguma esperança de montar o seu próprio escritório de advocacia a não ser que fizesse um dinheirinho por fora? E, afinal de contas, ambos lucravam, já que a signora não tinha realmente direito a um benefício da assistência social. E assim por diante. Despediram-se como amigos.

O Sr. La Fortezza vinha de duas em duas semanas com o cheque. Havia sempre uma cerimônia. Lucia Santa mandava Gino ao armazém pagar a conta "pendurada" e trocar o cheque. Ele também comprava uma porção de presunto americano, bem rosado em sua borda retangular da gordura branca, cremosa, doce; um pouco de pão americano macio, em fatias; e queijo americano amarelo. Pois o Sr. La Fortezza tinha um estômago fraco e torcia o nariz para os legítimos salami e pepperoni italianos, o saboroso provolone, o cascudo pão italiano ''arrebenta-gengiva''.

Gino contemplava, de olhos arregalados, a pequena cena a ser representada. As fatias rosadas e amarelas colocadas num comprido prato de cerimônia, a grande caneca de café, e o Sr. La Fortezza à vontade, descansando os pés inchados em outra cadeira, enquanto falava a Lucia Santa sobre suas provações e tribulações, a mãe balançando a cabeça em solidariedade. Pois o coitado subia inúmeros lances de escada, discutia com aqueles italianos de classe baixa que procuravam esconder que os filhos trabalhavam e o insultavam porque ele não aprovava as suas solicitações de auxílio, dizendo que ele era judeu e não italiano, pois nenhum italiano serviria ao governo contra a sua própria gente.

— Ah — dizia sempre o Sr. La Fortezza — foi para isso que meus pobres pais economizaram todo dinheiro que podiam? Comiam scarola e pasta e feijão todo dia da semana? Para o filho ganhar o pão à custa de sua própria saúde?

Lucia Santa cacarejava piedosamente.

Os olhos de coruja eram tristes. O Sr. La Fortezza estava na rua com qualquer tempo. Ele não andava bem. Quatro anos na universidade estudando duro.

— Signora — confessava ele — não sou um desses tipos inteligentes; afinal de contas, meus antepassados foram camponeses analfabetos por mais de mil anos, e mesmo agora é bastante para eles que eu não tenha de trabalhar com as mãos.

Comido o presunto e o queijo, ele se levantava, pronto para se despedir. Lucia Santa lhe dava os três dólares com um jeitinho esquisito, pegando a mão dele e colocando o dinheiro aí, como se ele o fosse recusar terminantemente se ela não o forçasse a receber. O Sr. La Fortezza fazia um gesto de relutância, rejeitando o dinheiro; depois dava um suspiro, levantava uma sobrancelha e emitia um monossílabo, com uma voz bem desconsolada, para mostrar que as circunstâncias eram tão desesperadoras que era impossível recusar o dinheiro.

Era verdade, eles gostavam um do outro. Ele apreciava aquela senhora pela sua cortesia, pela sua atenção aos seus sentimentos, pelo atencioso lanche que fazia com ele. Ela, por sua parte, tinha verdadeira pena daquele jovem tão triste, agradecendo a Deus por nenhum de seus filhos exibir tão pouca alegria na vida. Não guardava qualquer ressentimento por ter de lhe pagar aquele tributo.

Daí a poucas semanas, o Sr. La Fortezza conseguiu também um abono-moradia de 15 dólares por mês. Sem que lhe fosse pedido, Lucia Santa pôs uma nota de cinco dólares na mão dele, em vez de três dólares. Havia entre os dois uma compreensão sólida como uma rocha.

A coisa cresceu mais ainda. Ele arranjou-lhe mais quatro dólares por semana. Lucia Santa passou a fazer questão de oferecer-lhe um pacotinho de comida e bebida para ele levar para casa, algumas fatias de presunto rosado, uma garrafa de anisete forte, feito em casa, para ajudar a digestão. Agora que Larry tinha um calhambeque, com o qual gostava de rodar quando não estava trabalhando, a mãe fazia o filho levar o Sr. La Fortezza em casa lá no Bronx, na Avenida Arthur.

Os três, Larry, o Sr. La Fortezza e Gino, iam na trepidante e barulhenta lata-velha, passando velozmente por entre cavalos e carroças, bondes e automóveis. Gino percebeu que Larry era sempre delicado, mas nutria certo desprezo ao jovem advogado, o que se revelava por meio de pequenas observações zombeteiras. O Sr. La Fortezza obviamente nem pensava que estava sendo ridicularizado. Desfiava seriamente seu rosário de desventuras. Como a assistência social pagava mal a seus funcionários, como era caro o aluguel que tinha de pagar pela casa no Bronx, como os pais já estavam agora ficando tão velhos que não podiam mais trabalhar, e ele tinha de sustentá-los e pagar a hipoteca. Havia um verdadeiro temor, quase terror, em sua voz, quando ele falava de sua necessidade desesperada de dinheiro, e isso embaraçava Gino. Pois o Sr. La Fortezza era rico. Freqüentara a faculdade, possuía uma casa confortável, e a família ia para fora nas férias de verão. O que o pessoal da Décima Avenida sonhava conseguir depois de 40 anos de labuta árdua, esse homem moço já tinha; vivia no sonho e estava mais aterrorizado do que o trabalhador mais miserável dos cortiços de Gino.

Quando o Sr. La Fortezza saltava do carro, com seu pequeno embrulho pardo de comida e bebida debaixo do braço, Larry acendia um cigarro e piscava o olho para o irmãozinho. Gino piscava também. Voltavam para a Décima Avenida animados e confiantes, como se um dia fossem conquistar o mundo.

O Dr. Barbato, subindo os quatro lances de escada para o apartamento dos Angeluzzi-Corbo, dessa vez era um homem impiedosamente determinado, por Jesus Cristo, a fazer com que aquela família pagasse devidamente os seus honorários. A gente procura ajudar e os outros é que levam o dinheiro. Por que ele ia perder o dinheiro para o Hospital Francês?

Então o Hospital Bellevue não era suficientemente bom para esses pobres carcamanos ignorantes? Eles queriam o melhor dos serviços médicos, não é? Quem diabo pensavam eles que eram, esses miserabili, esses mendigos sem um penico para urinar, recebendo assistência social e com a filha num sanatório em Raybrook!

A porta se abriu quando o médico surgiu no alto do último lance de escada. Ali de sentinela estava o pequeno Sal, olhando de modo muito solene. Na cozinha, os pratos do jantar estavam espalhados em cima da mesa, o encerado amarelo salpicado de restos de batatas fritas e ovos. Gino e Vincent estavam jogando cartas na mesa. Um lindo par de bandidos, pensou o médico raivosamente, mas ele se abrandou quando Vincent levantou-se da mesa para conduzi-lo através da série de quartos, fazendo isso com uma delicadeza natural e recatada, e dizendo com voz suave:

— Minha mãe está doente.

No quarto escuro, sem janela, se achava deitada a pesada figura de Lucia Santa. Em pé, ao lado dela, estava a garotinha Aileen, deixando a mãe lavar-lhe as mãos e o rosto com o pano que tinha tirado de uma bacia com água ao lado da cama. A cena lembrou ao médico alguns quadros religiosos que ele vira na Itália, não por qualquer sentimentalismo, mas devido à composição da mãe em repouso cuidando da filha e à pouca iluminação do quarto, com o amarelo baço da lâmpada elétrica lançando um brilho beatifico nas paredes de cor escura.

Procurou isolar a semelhança. Então deduziu, de suas leituras, que isso era simplesmente o modo de educar os camponeses, a confiança completa dos filhos na mãe. Essa era a gente que os pintores famosos tinham usado como modelo.

O Dr. Barbato postou-se ao pé da cama e disse gravemente:

— Ah, Signora Corbo, está tendo pouca sorte neste inverno. Era uma manifestação de pesar e uma advertência pela maneira censurável pela qual ela se portara com Octavia.

Mesmo deitada de costas na cama, Lucia Santa ficou tão zangada que suas faces enrubesceram e os seus grandes olhos pretos brilharam subitamente. Mas a reverência dos pobres por uma personagem tão eminente quanto o médico a fez calar-se, embora pudesse lembrar-lhe que ele também comera da mão dela uma fatia de pão grosso embebido em vinagre e azeite. Ela disse documente:

— Ah, doutor, minhas costas, minhas pernas, não posso andar nem trabalhar.

O médico respondeu:

— Primeiro mande a menina para a cozinha.

A garotinha aproximou-se ainda mais da cama e esticou o braço, pondo-o na cabeça da mãe. E esta disse meigamente:

— Vá, Lena, vá para a cozinha ajudar seus irmãos com os pratos.

O médico sorriu, e Lucia Santa, vendo-o sorrir, gritou em italiano:

— Vincenzo, Gino, mascalzoni que vocês são, já começaram a lavar os pratos? Vocês deixaram a cozinha desarrumada para o doutor ver? Esperem que eu dou cabo de vocês dois. Lena, vá lá, e venha me dizer se eles não estiverem trabalhando.

A meninazinha, contente com o seu papel de espiã, correu para a cozinha.

O Dr. Barbato andou em volta da cama e sentou-se nela. Puxou o cobertor e pôs o estetoscópio no peito da mulher, primeiro por cima da camisola. Quando estava prestes a pedir-lhe que levantasse a camisola, a garotinha estava do lado deles, com seus olhos castanho- escuros curiosos, dizendo para a mãe:

— Gino e Vincent estão lavando os pratos e Sal está limpando a mesa.

A mãe viu o embaraço do médico.

— Está bem, Lena, e agora vá ajudá-los e vigiá-los. Ninguém deve vir aqui enquanto eu não chamar. Diga isso a eles.

A garotinha saiu disparada.

Lucia Santa esticara o braço para afagar a cabeça da filha, e o médico, vendo-lhe os pulsos inchados, sabia o que podia esperar. Quando ficaram a sós, pediu que ela se virasse de barriga para baixo e depois suspendeu-lhe a camisola de lã. Viu as partes encaroçadas na base da espinha e disse com uma gargalhada tranqüilizadora:

— Ah, signora, está com artrite. Um mês na Flórida fará da senhora uma nova mulher. A senhora precisa de luz solar, calor, descanso.

Examinou-a de modo completo e firme, apertando-lhe partes do corpo para ver onde ela sentia dor. O médico tinha consciência das nádegas protuberantes daquela camponesa quarentona. Exatamente como as da filha, eram as nádegas daqueles nus sensuais italianos pendurados em Florença, grandes, arredondadas, tão profundas quanto largas, mas não lhe despertaram qualquer desejo. Nenhuma dessas mulheres lhe despertava desejo. Em sua mente elas eram sujas, sujas de pobreza. Ele baixou-lhe a camisola.

A mulher virou-se. O médico olhou para ela muito sério e falou rispidamente:

— Que é isso, signora? Não pode andar? Não pode trabalhar na casa? Não é assim tão grave. Na verdade, a senhora precisa de descanso, mas deve poder andar. As suas articulações estão inchadas nos pulsos, nas pernas e nas costas, mas não é assim tão grave.

Lucia Santa olhou para ele durante algum tempo, antes de dizer:

— Me ajude a levantar.

Cautelosamente, ela girou as pernas por cima da beirada da cama e ele ajudou-a a ficar em pé. Quando ela começou a endireitar as costas, deu um grito abafado de dor e caiu pesadamente nos braços do médico. Ele a deitou delicadamente na cama. Não era possível ser fingimento.

— Bem, então a senhora tem de descansar — disse o Dr. Barbato. — Mas isso deve passar. Não completamente, a senhora vai ter sempre complicações, mas em pouco tempo eu lhe porei novamente no fogão.

Lucia Santa sorriu da piada do médico e respondeu:

— Muito obrigada, doutor.

 

Quando o Dr. Barbato saiu da casa dos Corbo, aspirou o ar fresco da Décima Avenida e começou a meditar sobre o mundo e a humanidade. Sentia algo semelhante a um terror intimo. Com ar de mofa, rememorou as desventuras daquela família. O marido no hospício, a filha com os micróbios corroendo-lhe o organismo por dentro daquelas tetas enormes (e é bom não esquecer que o primeiro marido morreu num acidente), o filho com um casamento funesto com uma garota imatura e extremamente pobre. Agora a mulher, carregada de filhos meio crescidos, ficava entrevada. Deitada ali sobre aquele volumoso traseiro, com aquele corpo pesado como mármore, e ainda tendo a petulância de se aborrecer com as observações dele.

Olhou para a fileira de cortiços, cujas janelas ardiam como pequenos fogos quadrados contra o céu de inverno. Sentindo um mal-estar, murmurou sem mesmo saber o que queria dizer:

— Que diabos eles estão procurando fazer?

O vento frio, vindo através do pátio ferroviário lá do rio Hudson, fez-lhe o sangue correr mais depressa. Ficou zangado, sentiu-se desafiado que isso pudesse acontecer diante de seus olhos, como se tivesse recebido um bofetão, como se ele tivesse sido provocado a se envolver numa intimidação cosmológica. Seu sangue fervia. Isso era demais. Demais mesmo. Muito bem, pensava ele, vamos ver o que se pode fazer. Seu sangue ficou tão quente que, apesar do frio cortante, teve de abrir a gola do casaco e o cachecol de lã que a mãe fizera para ele.

Durante os dois meses seguintes, o Dr. Barbato, só de raiva, exerceu a arte de curar. Visitava Lucia Santa dia sim, dia não, aplicava-lhe injeções, fazia-lhe tratamento térmico e batia papo sobre os velhos tempos, pelo menos uns 20 minutos, enquanto lhe dava massagens. Ela estava melhorando, mas ainda não podia levantar-se da cama. O Dr. Barbato falava de Octavia, quando é que ela ia sair do sanatório, e como a filha ficaria desolada se encontrasse a mãe tão doente. Alguns dias antes de Octavia voltar para casa, ele aplicou em Lucia Santa injeções de vitaminas e estimulantes, e a noite anterior à volta dela encontrou a mãe sentada na cozinha passando roupa a ferro na mesa, com as crianças em torno trazendo água quando ela pedia, e dobrando a roupa para ela.

— Muito bem, muito bem, ótimo, ótimo — disse o Dr. Barbato alegremente. — Um bom sinal de saúde quando a pessoa pode trabalhar, hem, signora?

Lucia Santa sorriu para ele. Era um sorriso que reconhecia a dívida dela e negava a sagacidade dele. Se havia trabalho, as pessoas tinham de levantar-se do leito de morte para executá-lo, ambos sabiam disso. Quando o Dr. Barbato se preparava para aplicar-lhe uma injeção, ela murmurou em italiano:

— Ah, doutor, como é que eu vou pagar ao senhor?

Desta vez, ele não ficou aborrecido. Com um sorriso confortante, respondeu:

— Basta convidar-me para o casamento de sua filha. — Dando a entender, assim, que havia alegrias na vida, que as recompensas deviam vir após o sofrimento, que a boa sorte vinha após a má sorte; que tudo acabaria bem, a filha se restabeleceria, as crianças cresceriam, o tempo passaria.

 

Octavia tinha ficado ausente durante seis meses. Durante esse tempo, Lucia Santa nunca visitou a filha, tinha sido impossível. A viagem era muito longa, as suas obrigações caseiras muito grandes, e ela não confiava em Larry nem em seu calhambeque. Deixar as crianças sozinhas era assunto em que nem mesmo queria pensar.

No dia em que Octavia voltou, Larry e Vinnie foram recebê-la na Grande Estação Central. O resto da família esperou no apartamento, as crianças vestidas com suas roupas domingueiras, Lucia Santa com seu melhor vestido preto. Zia Louche azafamava-se pela cozinha, renovando a água quente, batendo o molho de tomate.

Gino vigiava da janela da frente. Finalmente ele correu para a cozinha gritando:

— Mãe, estão chegando.

Lucia Santa enxugou as lágrimas que lhe acorreram aos olhos. Zia Louche começou a despejar o ravióli na panela de água quente. A porta do apartamento foi aberta e as crianças foram para o patamar da escada, inclinando-se sobre o balaústre e ouvindo as passadas subindo as escadas.

Quando Octavia apareceu, as crianças quase não a reconheceram. Estavam preparadas para ver uma pessoa pálida, inválida, uma pessoa a quem pudessem meigamente prestar auxílio; uma pessoa arruinada, saída do mundo dos mortos. Viram uma garota americana, em plena florescência. Octavia não tinha nem mesmo mais a sua tez habitualmente descorada. As faces estavam bem rosadas, o cabelo com ondulação permanente, à moda americana. Usava uma saia e suéter com uma jaqueta com cinto por cima. Porém, mais que tudo, o que as crianças estranharam foram a voz dela, o seu modo de falar, a sua maneira de cumprimentá-las.

Sorriu meigamente, com os dentes aparecendo entre os seus lábios controlados. Soltou um grito de satisfação, embora meio reprimido, abraçou Sal e Aileen, e disse para cada um deles:

— Oh, meu amor, que saudade senti de você!

Depois dirigiu-se a Lucia Santa, beijou-a na face — e não na boca — e disse com um lindo ar brejeiro:

— Ah, estou tão contente por estar em casa!

Larry e Vincenzo subiram finalmente as escadas, cada um carregando uma maleta, e um tanto embaraçados.

Octavia deu um piparote na cara de Gino, dizendo:

— Meu Deus, você está ficando bonitão!

Gino recuou. Todo mundo ficou admirado. Que teria acontecido com ela?

Os únicos que ficaram encantados com essa nova personalidade foram os dois irmãos menores, Sal e Aileen. Não saíam do lado de Octavia, devoravam-lhe a meiguice com os olhos, os ouvidos e o corpo, ficavam tremendo de prazer quando ela passava-lhes os dedos pelo cabelo e abraçava-os a todo momento, repetindo de maneira encantadora:

— Oh, como vocês cresceram!

Lucia Santa fez Octavia sentar-se de uma vez. Não dava atenção a esses ares novos. Queria que a filha descansasse da subida dos quatro lances de escada. Zia Louche, já servindo o almoço, disse para Octavia:

— Ah, graças a Deus você está de volta, minha mocinha, sua mãe precisa de você — e retornou correndo para o fogão antes que Octavia pudesse responder.

A refeição transcorreu num clima constrangedor. A conversação foi uma delicada troca de informações entre estranhos. Gino e Vinnie não brigaram na mesa. Sal e Aileen comportaram-se como verdadeiros anjos, não discutindo sobre quem ficaria com os bolinhos de carne maiores. Louisa subiu com o bebê e beijou Octavia cautelosamente atrás da orelha para evitar qualquer contágio. Sentou-se do outro lado de Larry, segurando o bebê longe de Octavia. Esta fez festas ao bebê, mas não tocou nele. Larry comeu, desculpou-se e depois foi trabalhar no turno das quatro à meia-noite. Saiu apressado.

Quando Octavia fez um gesto de que ia começar a limpar a mesa, todo mundo levantou-se horrorizado. Até Gino pôs-se de pé de um salto e agarrou os pratos para levar para a pia. Lucia Santa gritou:

— Que é que você está querendo fazer, ficar doente outra vez?

Assim Octavia sentou-se, com os pequeninos Sal e Aileen encostados em suas pernas e olhando enternecidamente para ela.

Somente a mãe percebeu a tristeza por trás do sorriso e conversa alegre de Octavia. Pois, sentar no apartamento novamente, ver os quartos atulhados de camas e armários de roupa e cheios de coisas das crianças fez Octavia ter um acesso de desespero. À medida que a tarde caminhava para a noite, observava a mãe executar todas aquelas inesquecíveis e intermináveis tarefas: lavar os pratos; passar a ferro a roupa limpa; acender a estufa a querosene na cozinha e a estufa a carvão na sala da frente; ao crepúsculo, acender a luz a gás que enchia a sala de sombras; e, finalmente, preparar as crianças para irem para a cama. Octavia pensou no que estaria fazendo agora no sanatório, naquele instante. Ela e sua amiga estariam dando um passeio pelo jardim. Estariam no quarto esperando a refeição e fofocando sobre os romances que iam ocorrendo. Todas comeriam juntas e depois jogariam bridge na sala de jogo. Octavia sentiu nostalgia da vida que acabara de deixar, a única vida que ela conhecera dedicada a cuidar da própria pessoa, saúde e prazer, sem preocupações e responsabilidade. Sentia-se sem jeito em sua própria casa, e a sua família parecia composta de estranhos para ela. Estava tão absorvida em seus pensamentos que nem notou como a mãe se movimentava rigidamente pela casa.

Na hora de dormir, quando Gino e Vinnie estavam tirando a roupa junto da cama armada na sala da frente, Gino sussurrou para Vinnie:

— Ela não soltou um só palavrão o dia inteiro.

— Acho que não se pode soltar palavrão no hospital e ela esqueceu — acrescentou Vinnie.

— Espero que sim — retrucou Gino. — É horrível quando uma garota solta palavrões, especialmente quando é a irmã da gente.

 

Assim, agora estavam sozinhas na cozinha, Octavia e Lucia Santa. Sentaram-se à grande mesa redonda com sua toalha encerada de cor amarela. As xícaras de café brilhavam de tão brancas diante delas. O ferro esperava por Lucia Santa num canto da sala. Uma panela de água assoviava na estufa a querosene. Lá do corredor vinha a suave respiração das crianças adormecidas. À luz amarelo-pálida da cozinha elas se encararam, e a mãe contou as dificuldades dos últimos meses. Quão desobediente Gino tinha sido, e até Vinnie e os dois pequerruchos. Como Larry e sua mulher, Louisa, não tinham ajudado tanto quanto podiam e como ela mesma tinha estado doente, mas não dissera nada nas cartas a Octavia para não a afligir.

Foi um longo recital, e Octavia só interrompia para perguntar de vez em quando:

— Mãe, por que a senhora não me escreveu? Por que não me contou?

— Eu queria que você ficasse boa — respondia a mãe.

Não houve gesto de ternura entre elas. Octavia disse brandamente:

— Não se preocupe, mamãe, vou voltar a trabalhar na próxima semana. E vou olhar para que os meninos se saiam bem na escola e ajudem em casa.

Teve um ímpeto de força, confiança e orgulho ao perceber que a mãe precisava dela. Naquele momento toda a sua estranheza desapareceu. Voltava a ser o que era. Quando Lucia Santa começou a passar a ferro, Octavia foi até o quarto apanhar um livro para ler a fim de fazer companhia à mãe.

Quando Octavia já estava em casa havia uma semana, ela e o visitador do serviço social finalmente se encontraram. Octavia estava meiga, feliz por se achar em casa, não exibia seu antigo mandonismo e não soltava palavrões nem gritava.

Entrou afobadamente no apartamento, por volta das quatro horas da tarde, e ficou surpresa ao encontrar o Sr. La Fortezza, com os pés em cima de uma cadeira, sorvendo tranqüilamente o seu café e comendo seu sanduíche de presunto. O Sr. La Fortezza lançou um atencioso olhar ao rosto atrevidamente bonito da moça e pôs de lado os seus petiscos. Ergueu-se como um cavalheiro.

— Esta é minha filha Octavia — disse Lucia Santa. — A mais velha.

O Sr. La Fortezza, abandonando seu jeito italiano, disse numa voz amistosa americana, de modo animado e casual:

— Ouvi falar muito em você, Octavia. Sua mãe e eu temos tido algumas longas e agradáveis conversas. Somos velhos amigos.

Octavia balançou a cabeça friamente e seus grandes olhos escuros fizeram um gesto de desagrado que ela não procurou dissimular. Lucia Santa, apreensiva com essa indelicadeza, disse:

— Venha tomar um pouco de café e falar com o moço. — E, dirigindo-se ao Sr. La Fortezza, acrescentou: — Esta é a mais inteligente, lê livros o tempo todo.

— Muito bem, venha tomar um pouco de café — disse o Sr. La Fortezza. — Terei prazer de falar com você, Octavia.

A moça sentiu-se tão ofendida que quase soltou um palavrão. O uso condescendente do seu prenome, a intimidade dele, fê-la cuspir, mas no lenço, como compete a um doente do pulmão recém-curado. Eles olharam para ela com uma compreensão indulgente. Assim, ela sentou-se e passou a ouvir a mãe bajular o visitador do serviço social.

Ora, ele lera romances, o Sr. La Fortezza, em que bastava um jovem das classes mais elevadas sorrir e mostrar-se condescendente com uma pobre operária, e a felizarda caía logo de costas, agitando as pernas no ar como uma cadela. Compreenda-se, não devido ao dinheiro, mas ao reconhecimento da nobreza. Coitado, o Sr. La For­tezza não tinha aquele aspecto brilhante, aquela sorridente aparência loura, aquele afável encanto americano, ou os milhões de dólares (sempre os milhões de dólares), que certamente nada significavam para heroínas. E assim o Sr. La Fortezza se tornou cada vez mais animado, mais loquaz, e tão encantador quanto lhe permitiam os seus dois olhos de coruja, de círculos escuros. Octavia olhava para ele cada vez com mais frieza. Gino e Vincent entraram em casa e, vendo a cara da irmã, ficaram ali pela sala, só na expectativa. La Fortezza falava agora de literatura.

— Ah, Zola, ele sabia escrever sobre os pobres. Um grande artis­ta, você sabe. Francês.

Octavia respondeu calmamente:

— Eu sei.

Mas La Fortezza prosseguiu:

— Eu gostaria de vê-lo vivo hoje para escrever sobre como os pobres vivem com os níqueis fornecidos pela assistência social. Que farsa! Mas há um escritor cujos livros a sua filha devia ler, Signora Corbo. Seria extremamente educativo. E faria você compreender a si mesma, Octavia, o seu ambiente.

Octavia louca para cuspir-lhe no olho, meneou a cabeça calmamente.

La Fortezza estava todo contente, como também estava a mãe. Com os olhos solenes, ele disse:

— Ora, você é uma garota inteligente. Gostaria de ir ver uma peça comigo algum dia? Pergunto-lhe na presença de sua mãe para mostrar meu respeito. Sou antiquado como sua mãe pode dizer. Signo­ra, não é verdade?

Lucia Santa sorriu e balançou a cabeça afirmativamente. Nutria ilusões de ver a filha casar com um advogado com um bom emprego no governo municipal. Pois as mães, mesmo nos livros, não põem as suas visões em pontos tão altos quanto as heroínas. Ela disse de modo benigno:

— Ele é um bom rapaz italiano.

La Fortezza continuou:

— Temos tido muitas conversas demoradas, sua mãe e eu, e nos entendemos um ao outro. Tenho certeza de que não se oporá a um encontro desinteressado entre nós dois. A prefeitura municipal consegue as entradas de teatro com abatimento. Será uma nova experiência para você, em vez do cinema.

Octavia havia ido ao teatro muitas vezes com suas amigas. As oficinas de costura conseguiam entradas com abatimento, também. Octavia lera os mesmos romances e sempre sentira um desprezo extremo pelas heroínas, essas donzelas generosas e estouvadas que se expunham à vergonha, enquanto serviam de objeto de prazer para os homens que ostentavam sua riqueza como isca. Mas esse estúpido e faminto fedelho italiano, só porque cursara a faculdade, pensava que podia "fisgá-la". Os olhos dela começaram a fuzilar, e ela falou estridentemente, em resposta ao seu convite:

— Você pode ir à merda, seu salafrário nojento!

Gino, num canto com Vinnie, cochichou:

— Huuuum, começou ela.

Lucia Santa, como uma inocente sentada num barril de pólvora e só agora vendo o estopim aceso, olhou em volta, completamente atônita, como que procurando para onde fugir. Um fluxo de sangue acorreu subitamente ao rosto do Sr. La Fortezza e até os seus olhos de coruja ficaram vermelhos. Ficou petrificado. Pois não há nada mais pavoroso do que uma jovem megera italiana. A voz de Octavia, num tom alto, forte, de soprano, acusou-o:

— Você tira oito dólares por mês de minha pobre mãe, que tem quatro filhos pequenos para alimentar e uma filha doente. Explora uma família com toda a nossa dificuldade e tem a petulância de me convidar para sair? Você é um nojento filho da puta, um nojento rastejante, gatuno. Meus irmãozinhos e minha irmãzinha ficam sem doces e sem cinema para que minha mãe pague a você, e você ainda quer que eu saia em sua companhia?

E, com voz estridente e nervosa, prosseguiu:

— Você é antiquado, sim senhor. Somente um verdadeiro canalha carcamano da Itália com uma respeitável signora de bosta produziria uma coisinha como você. Mas eu terminei o ginásio, li Zola e já fui ao teatro, portanto procure alguma garotinha inexperiente, antiquada, que você possa impressionar e "fisgar". Porque eu sei o que você é na realidade: um tapeador cheio de merda!

— Octavia, Octavia, pare! — gritou Lucia Santa horrorizada, e, virando-se para o jovem, explicou: — Ela está doente, está com febre.

Mas o Sr. La Fortezza estava voando porta afora e escada abaixo. Deixou o seu embrulho pardo lá onde estava. O seu rosto, quando ele saiu correndo, era o de um homem apanhado em flagrante no mais vergonhoso dos pecados e a quem eles não veriam nunca mais. Duas semanas depois veio um novo visitador, um velho americano, que reduziu o benefício, mas disse-lhes que o dinheiro em depósito judicial não podia ser considerado pela assistência social como bens de família, pois o magistrado só podia liberar o dinheiro em caso de necessidade extrema de um determinado filho, e o dinheiro de um filho não podia ser usado em benefício dos outros dois filhos ou da mãe.

Porém a cena final com o Sr. La Fortezza jamais seria esquecida por Gino e Vincent. Eles balançaram a cabeça, reprovando o terrível palavreado da irmã. Resolveram de todo o coração que nunca se casariam com uma garota como Octavia. Mas finalmente agora acabara aquela atmosfera, aquele tratamento especial dispensado à doente, o esforço de delicadeza para com um membro da família que retornara do hospital ou de uma longa viagem. Não havia dúvida. Essa era a Octavia de outrora. Ela estava bem novamente. Nem mesmo a mãe ficou zangada com o comportamento da filha, embora jamais compreendesse a indignação da moça com o Sr. La Fortezza. Afinal de contas, todo mundo deve pagar para continuar a viver.

 

No dia em que a carta chegou de Ravenswood, Octavia só a leu para a mãe quando as crianças já estavam na cama. Era uma comunicação oficial muito breve, dizendo que o pai podia ir para a casa da família em base experimental, se a mulher assinasse certos papéis. Declarava claramente que ele precisaria de cuidado e supervisão constantes. Com a carta veio um formulário para ser preenchido. Perguntava a idade dos filhos, a renda total da família e de cada um dos membros. Com tudo isso, a carta esclarecia que o pai ainda era um inválido, embora estivesse em condições de deixar a instituição.

Lucia Santa bebericava o seu café nervosamente.

— Mas ele não está realmente bom, então; querem apenas experimentá-lo — disse ela.

Octavia queria ser absolutamente justa.

— Ele está bem. Apenas não pode trabalhar nem fazer nada. Deve-se cuidar dele como de uma pessoa doente. Talvez depois de algum tempo possa voltar a trabalhar novamente. A senhora o quer de volta? — perguntou ela, baixando a vista e corando, pois estava pensando coisas vergonhosas da própria mãe.

Lucia Santa viu com interesse a filha corar.

— Por que não? — retrucou ela. — Ele é pai de três de meus filhos. Ganhou o nosso pão durante dez anos. Se eu possuísse um burro ou um cavalo que tivesse trabalhado tão duramente, eu o trataria com bondade quando ele estivesse doente ou velho. Por que não vou querer meu marido de volta?

— Não vou pôr qualquer dificuldade — disse Octavia.

— Vai haver bastante dificuldade — replicou Lucia Santa. — Quem sabe, ele pode fazer algum mal às crianças? E quem agüenta reviver aqueles anos? Teríamos todos de sofrer, arriscar a vida, para dar-lhe outra oportunidade. Não, é demais, é demais.

Octavia não disse nada. Ficaram sentadas juntas durante horas, ou pelo que pareciam horas, Octavia segurando a pena, o tinteiro e o papel de escrever, pronta para mandar uma resposta para o hospital de alienados.

A mãe matutava no problema. Lembrava-se de relatos de casos semelhantes, de entes queridos que voltavam para casa e cometiam homicídios e outros crimes em sua loucura.

Pensava na filha Octavia, que sofreria, seria obrigada a deixar a família e casar cedo para sair de casa.

Não podia arriscar. Com pleno conhecimento do que a sua decisão significava (em sua mente ela via a imagem de um animal enjaulado por anos incontáveis), condenou o marido, o pai de seus filhos, o companheiro daquele verão de prazer, a uma eternidade humana e terrena de desespero. Lucia Santa balançou a cabeça lentamente e declarou:

— Não, não vou assinar. Deixe que ele fique onde está.

Octavia ficou surpresa e até um pouco chocada. A lembrança da morte do próprio pai veio-lhe à memória; sentiu novamente aquela terrível sensação de perda que como garotinha sentira. Que bom seria que, por qualquer milagre, pudessem ressuscitá-lo, tal como agora podiam trazer o padrasto de volta a casa! De repente ela pensou que jamais poderia encarar Gino, Sal e a pequenina Aileen, se não trouxesse o pai deles de volta. E finalmente sugeriu:

— Acho que devemos falar com Gino e Sal. Afinal de contas, é o pai deles. Vamos ver como eles se sentem. Talvez devamos trazê-lo para casa, mãe.

Lucia Santa lançou um olhar perquiridor à filha, como que achando que ela havia perdido o juízo. Era um olhar que sempre desconcertava Octavia, por ser tão impessoal. Então disse:

— Deixe os meninos em paz, eles vão ter bastante sofrimento mais tarde. E nós não podemos nos dar ao luxo de trazer o pai deles para casa.

Octavia falou suavemente, baixando a cabeça para o seu café:

— Mãe, vamos fazer uma experiência... pelas crianças. Elas sentem falta dele.

Quando a mãe respondeu, o fez, surpreendentemente, com uma voz de desprezo. Balançou a cabeça e disse:

— Não, minha filha, é fácil para você ser boa e generosa. Mas pense: quando tudo se tornar difícil e você se arrepender de sua generosidade, vai ter de sofrer. E como vai ficar zangada quando a sua generosidade lhe trouxer aborrecimentos. Isso me aconteceu antes. Cuidado com os bondosos, com os indivíduos afetuosos que dão porque não sabem o que sua generosidade custará. E então mais tarde se zangam, mostram seu desprezo quando se conta com a generosidade deles. Como meus vizinhos se uniram para me ajudar quando seu pai morreu, como eu chorei com a bondade deles. Mas, coitadas de nós, não podemos ser eternamente boas, eternamente generosas, somos muito pobres, não podemos agüentar isso. E até sua tia, que era rica, rebelou-se. É tão bom... é tão maravilhoso ser generoso durante um curto espaço de tempo. Mas, como uma coisa constante, é uma aberração, é contra a natureza humana. Você vai se cansar de seu padrasto, haverá brigas, gritos, palavrões, e você casará com o primeiro homem que encontrar e desaparecerá. E eu é que vou pagar pelo seu coração grande e generoso. — Fez uma pausa e completou: — Ele será doente o resto da nossa vida.

Com estas palavras, condenou e sentenciou o marido para sempre.

As mulheres lavaram as suas xícaras de café. A mãe demorou-se na cozinha, para limpar a mesa e varrer o chão; Octavia foi para o seu quarto pensando em como falaria às crianças de manhã, entendendo que devia agir assim porque queria remir-se de qualquer culpa.

Na cama, Octavia pensou na mãe, em sua dureza, em sua fria decisão. Depois lembrou-se que deixara a carta na cozinha. Levantou-se e atravessou o corredor de combinação. A luz ainda estava acesa.

Lucia Santa estava sentada na mesa da cozinha com grandes sacos de açúcar, sal e farinha de trigo, enchendo o açucareiro, os saleiros e a vasilha de cobre de farinha. A carta, com o seu grande sinete preto oficial e o envelope timbrado do governo, estava ali em frente dela. A mãe tinha os olhos fixos na carta, como se soubesse ler, e parecia estar estudando cada palavra. Levantou a cabeça e disse para a filha:

— Eu fico com a carta, você pode respondê-la de manhã.

Gino, deitado mas acordado, ao lado do adormecido Sal, ouviu tudo através da traiçoeira janela aberta entre o quarto e a cozinha. Não guardou ressentimento nem rancor contra a decisão da mãe, sentiu apenas um enjôo semelhante a uma dor de estômago. Pouco depois, a luz da cozinha se apagou, ele ouviu a mãe passar pela sua cama em direção ao quarto dela, e logo em seguida Gino adormeceu.

Lucia Santa não dormiu. Estirou o braço no escuro para pegar em Aileen e achou a pele macia e os ombros ossudos, o corpinho da criança encolhido contra a frialdade da parede de reboco. Ao tocar naquela carne inocente vulnerável, sentiu como que uma recuperação das forças. Estava tocando numa vida entregue a seus cuidados. Era a protetora de todos eles, tinha o destino deles nas mãos. Dela viriam o bem e o mal, a alegria e a dor. Fora por isso que resolvera lançar o marido no poço.

Mas isso não era bastante. Recordou-se dos tempos em que ele batia nela, xingava os enteados, esbravejava durante a noite e amedrontava os seus próprios filhos; lembrou-se do seu trabalho irregular, de sua religiosidade cara e desastrosa. Mas ela rejeitava tudo com um desesperador grito íntimo: "Frank, Frank, por que você não tomou cuidado? Por que você se descuidou a ponto de ficar tão doente?" Lembrou-se de como ele rasgava o dinheiro que ganhava com o suor, a expressão de orgulho ferido no rosto dele, e a bondade daquele homem quando ela era uma viúva desamparada. Com um grande suspiro, Lucia Santa aceitou a verdade. Era muito pobre, dispunha de poucos recursos para poder demonstrar compaixão pelo homem que amava. Não, nada de compaixão, pensava ela, nada de compaixão, nada de compaixão. Estirou o braço para tocar o corpo da criancinha adormecida, a pele nova de cetim do pequenino ser humano ao seu lado. Depois cruzou os braços, olhando para o escuro, e esperou que o sono chegasse. Condenara Frank Corbo a jamais ver os filhos crescidos, jamais deitar-se na cama dela, jamais conhecer um neto. E murmurou: "Deus, Deus, velai por mim, aiuta mi", como se ela mesma não pudesse agora merecer a compaixão que recusara dar.

Depois do jantar na noite seguinte, Octavia levou Sal e Gino para a sala de estar, a fim de falar com eles. Eles estavam um pouco apreensivos, porque Octavia se mostrava muito meiga, delicada e professoral, mas, quando ela falou, Gino compreendeu o que ia sair dali. Lembrou-se do que ouvira casualmente na noite anterior.

Quando Octavia explicou por que o pai não podia voltar para casa, Gino se lembrou das vezes em que ele o levara para cortar o cabelo, e como eles olhavam um para o outro, os olhos do garoto fixados diretamente para a frente, vendo magicamente, no espelho na frente dele, o pai sentado numa cadeira de arame, com uma parede de espelhos por trás de sua cabeça. E o pai vendo o rosto do filho no espelho; embora os dois estivessem de frente para a mesma direção, um atrás do outro, eles olhavam um para o outro sem acanhamento, protegidos pelos espelhos.

Sempre pareceu que essa parede de espelhos que os punha tão magicamente frente a frente protegia-os bastante para que um pudesse estudar os olhos do outro, reconhecendo que um era parte do outro. Entre eles, o barbeiro de bigode branco cortava o cabelo e tagarelava em italiano com o pai. Gino ficava hipnotizado pelo corte da tesoura e a queda suave de cabelo em seus ombros, pelo chão de ladrilho branco, o balcão de mármore branco com suas garrafas verdes de loção de cabelo, tudo refletido nos espelhos em volta deles. O pai ria para ele, através da parede de espelhos, e procurava fazê-lo rir, mas, protegido pelos espelhos interpostos, o menino recusava; o seu rosto continuava sério. Era a única vez que ele se lembrava de ver o pai rir continuamente.

Quando Octavia terminou de explicar tudo, Gino e Sal estavam prontos para descer para brincar. O pai estava doente, o que queria dizer que ele voltaria um dia, e o tempo nada significava naquela idade. Octavia observava-os atentamente para ver se descobria sinais de sofrimento. Ela perguntou com brandura:

— Vocês querem que ele venha para casa agora mesmo?

E o pequeno Sal respondeu quase em lágrimas:

— Eu não quero que ele venha para casa. Ele me mete medo.

Octavia e Gino ficaram surpresos porque Sal gostava do pai mais do que qualquer dos outros filhos.

Gino sentiu-se constrangido porque se considerava responsável pelo pai. Quantas vezes a mãe dissera: "Você é tal qual seu pai", quando ele se recusava a fazer algum trabalho, era desobediente, fugia à responsabilidade? Assim, ele aceitou o fato de que todas as dificuldades da família provinham do pai e conseqüentemente dele. Gino respondeu em voz baixa:

— O que mamãe quiser fazer está bem. — Fez uma pausa e acrescentou: — Pouco me importa.

Octavia deixou-os ir. Foi para a janela e viu-os sair disparados pela porta da rua. Sentiu uma tristeza esmagadora — não específica, mas geral, como se o padrasto tivesse sofrido algum destino comum à humanidade e que algum julgamento esperava por ela também.

 

Larry Angeluzzi começou a compreender um pouco da vida quando nasceu o seu segundo filho e a estrada de ferro passou a dar-lhe apenas três dias de trabalho por semana. Também conseguiu ver a si mesmo no espelho humano.

Um domingo, quando iam visitar um amigo, Larry e Louisa estavam na esquina da Rua 34 com a Décima Avenida esperando o bonde. Louisa segurava um filho pela mão e ele carregava o bebê. De repente, Larry viu o irmãozinho Gino, olhando-os do outro lado da avenida. No rosto escuro, duro, do menino havia uma expressão de piedade e embaraço e uma espécie de desagrado. Fez um sinal para que Gino se aproximasse e, enquanto o menino atravessava a avenida, Larry se recordava de quando Gino era um garotinho e se inclinava para trás para ver o irmão grande montado a cavalo. Sorriu delicadamente para Gino e falou:

— Está vendo o que acontece quando a gente se casa, garoto? — Disse isso brincando, sem saber que o irmãozinho jamais esqueceria.

Louisa, com o rosto já descarnado e seco, franziu as sobrancelhas para os dois e perguntou asperamente:

— Você não gosta disso?

Larry sorriu e respondeu:

— Eu estou só brincando.

Mas Gino olhou para ela seriamente, enfeitiçado pelos dois, vendo algo além deles.

Gino, por uma questão de delicadeza, fez-lhes companhia até chegar o bonde. Larry pensou, ele está crescendo, eu trabalhava na idade dele. E perguntou:

— Como é que você vai indo na escola, garoto?

Gino deu de ombros e respondeu:

— Bem.

Quando Larry embarcou no bonde com a família, viu Gino acompanhá-lo com os olhos à medida que se afastavam.

Rolando nos trilhos, distanciando-se quase magicamente do irmão mais moço no ar claro e agradável daquela manhã de domingo, Larry teve a sensação de que tudo estava perdido; de que sua vida terminara. E aquela manhã, aquele encontro, aquele momento de percepção é que o levaram a um novo modo de vida, deixando a estrada de ferro, seus oito anos de casa e seu emprego firme e certamente vitalício.

Certa manhã da semana seguinte, Larry desceu para ir à panet-teria comprar uns pãezinhos para o café. Não trabalhara na noite anterior, a estrada ainda estava indo devagar. Guido, o filho do padeiro, agora com um bigodinho, cumprimentou-o alegremente. Bateram papo. Guido deixara a escola para ajudar na padaria em tempo integral. Sentindo-se um homem de negócios, perguntou:

— Larry, você gostaria de um bom emprego?

Larry sorriu.

— Claro — respondeu com uma delicadeza natural, mas sem a intenção de deixar a estrada de ferro.

— Venha cá — falou Guido.

Foram então para o quarto dos fundos. Lá estava o panettiere, com um cálice de anisete diante dele, conversando com um homem de sua idade, evidentemente italiano, mas vestido à americana, sem sinal de imigrante recente; cabelo bem aparado, gravata fina, lisa e de cor firme.

— Larry — volveu Guido — quero apresentar a você Zi' Pas-quale — o Sr. di Lucca — que foi companheiro de infância do meu pai na Itália. Zi' Pasquale, este é meu amigo, Larry, de quem lhe falei.

Larry ficou vermelho de satisfação ao saber que tinham falado nele. Ignorava se o homem era realmente tio de Guido ou se isso era um meio cortês de tratar um amigo íntimo da família. Larry sorriu francamente para eles e apertou firmemente a mão do estranho. O pa­nettiere interveio:

— Sente-se — e serviu-lhe um cálice de anisete.

Larry sorriu e retrucou:

— Eu não bebo. Posso tomar uma xícara de café.

Viu o Sr. di Lucca fitá-lo com o olhar tipicamente inquiridor que um pai italiano lança ao pretendente à mão de sua filha, olhos apertados, desconfiados, percucientes.

Guido serviu café, encheu o cálice de Zi' Pasquale de anisete e falou casualmente:

— Pai, Zi' Pasquale lhe disse que estava procurando um elemento novo, não é verdade, Zi' Pasquale? Eu arranjei o cara, meu amigo Larry. Lembra-se de tudo o que eu disse sobre ele?

Os dois homens idosos sorriram de modo tolerante e afetuoso; o panettiere levantou as mãos num gesto de rejeição, e Zi' Pasquale deu de ombros como quem diz: "Não faz mal... essa juventude!" Na Itália as coisas não eram feitas desse modo. Zi' Pasquale perguntou ao panettiere:

— Este aqui é um bom rapaz?

O panettiere respondeu com relutância:

— Un bravo.

Todos sorriram uns para os outros. Beberam pachorrentamente, e os dois homens idosos acenderam seus charutos De Nobili. Todo mundo via que o Sr. di Lucca estava impressionado.

Larry estava acostumado com aquilo. Não ignorava que havia algo extremamente agradável em seu sorriso e nas suas maneiras, algo que o tornava instantaneamente simpático para os homens e as mulheres também. Sabia disso, com toda a modéstia, gostava disso e procurava corresponder a esse dom, o que o tornava ainda mais simpático.

— Você acha que vai gostar de trabalhar comigo? — perguntou o Sr. di Lucca.

Aqui as virtudes mais positivas de Larry entraram em ação, seu sentimento instintivo pelo que era próprio dessa gente. Essa era uma pergunta pessoal. Você me respeita como homem? Você me aceita como chefe da tribo, como um segundo pai, como um padrinho honorário? Se se atrevesse agora a perguntar que tipo de trabalho, quanto ia ganhar, onde, quando, como, quais as garantias, então tudo estaria terminado. Iria tudo por água abaixo.

Portanto, mesmo que não quisesse o emprego, não pudesse nem pensar em perder os oito anos de casa na estrada de ferro, ainda assim, apenas por simples cortesia e para ser agradável, Larry disse com grande sinceridade:

— Seria um prazer trabalhar para o senhor.

Pasquale di Lucca juntou as duas mãos com grande estrondo. Os seus olhos brilhavam, o rosto assumiu uma expressão espantada de prazer.

— Agora, por Cristo! — exclamou. — É possível que os italianos ainda cresçam como este jovem aqui na América?

Guido soltou uma gostosa gargalhada, e o panettiere estava radiante com todos eles. Larry mantinha um sorriso modesto nos lábios.

— Agora vou lhe mostrar que homem eu sou — disse Zi' Pas­quale di Lucca.

Puxou um maço de notas e deu três de 20 dólares a Larry, dizendo:

— Este é o pagamento de sua primeira semana. Você vai amanhã cedo a meu escritório para começar a trabalhar. Vai usar traje completo e gravata, limpos, não berrantes; como um americano, como eu. Eis o meu escritório.

Tirou um cartãozinho do bolso de dentro do paletó e deu-o a Larry. Depois recostou-se na cadeira, tirando baforadas do charuto.

Larry aceitou o dinheiro e o cartão. Estava atordoado para dizer algo mais do que murmurar seus agradecimentos. Isso era o dobro do que ele ganhava na estrada de ferro, mesmo em tempo integral.

Guido perguntou com orgulho:

— Que foi que eu lhe disse, Zi' Pasquale?

E o Sr. di Lucca balançou a cabeça concordando.

Todos repetiram suas bebidas, e Larry então perguntou qual seria o seu trabalho. O Sr. di Luca explicou que Larry seria cobrador do sindicato das padarias, que teria uma zona muito tranqüila, fácil, e, se se saísse bem, teria uma zona mais lucrativa num ano ou dois. Explicou que todos os donos de padaria deveriam pagar suas contribuições. Larry teria de manter livros de contabilidade como um agente de seguros, teria de mostrar tato, de ser capaz de passar as horas do dia, de manter relações amistosas com todo mundo, nunca beber enquanto estivesse trabalhando, nem se meter com qualquer mulher das padarias. Seria um trabalho duro, ganharia um bom salário. O Sr. di Lucca acabou de tomar seu cálice de anisete, levantou-se, apertou a mão de Larry e disse:

— Amanhã, às 10 horas.

Depois deu um abraço másculo no panettiere, bateu carinhosamente no rosto de Guido e escorregou-lhe uma nota dobrada, dizendo afetuosamente:

— Trabalhe bem para seu pai, hem? Ele é muito condescendente, como qualquer americano, mas se eu ouvir coisas... seu Tio Pasquale vem aqui para fazer de você um bom filho italiano.

Por baixo da afeição havia dureza.

Guido deu-lhe um empurrãozinho de brincadeira e disse:

— Não se preocupe comigo, Zi' Pasquale.

Deu-lhe o braço e levou-o até a porta, e os dois riram estrepitosamente um para o outro quando saíram. Zi' Pasquale recomendou:

— Case-se com uma boa moça italiana para ajudar você na padaria.

Quando Guido voltou, dançou em volta de Larry gritando:

— Você conseguiu! Você conseguiu! — Depois se acalmou e disse: — Larry, em dois anos você vai ter a sua própria casa em Long Island. Zi' Pasquale não é tratante. Não é verdade, pai?

O panettiere bebeu seu anisete tranqüilamente, depois suspirou.

— Ah, Lorenzo, Lorenzo, meu bravo rapaz — disse ele. — Agora você vai ver o que é o mundo e se tornar homem.

 

Larry Angeluzzi passou a levar uma boa vida. Dormia até tarde, almoçava em casa e depois fazia a ronda das padarias da sua zona. Os padeiros italianos eram distintos, davam-lhe café e biscoitos; os padeiros poloneses eram mal-humorados, mas logo simpatizaram com ele, embora não tomasse bebida forte com eles. Deliciavam-se com o seu êxito junto às moças polonesas que iam tomar café e ficavam até Larry sair para continuar a sua ronda. Às vezes, usava até o quarto dos fundos da padaria para um "amorzinho" rápido, sabendo que o padeiro gostaria de ter algo contra a moça para ele mesmo poder levá-la regularmente ao quarto dos fundos.

Os italianos pagavam sua contribuição sem discutir, como compete a gente que na terra natal dava ovos ao padre para ler uma carta e vinho ao escrevente da aldeia para dizer-lhe o que eram as leis. Os poloneses pagavam apenas por sua companhia e encanto pessoal. Ele só tinha dificuldade com os padeiros alemães.

Não tanto porque não quisessem pagar, mas ele sentia que não queriam pagar a um italiano. Raramente ofereciam-lhe café e pãezinhos ou conversavam para mostrar alguma amizade. Pagavam-lhe como pagavam a seus operários ou ao leiteiro. Isso estava bem, ele tomava bastante café agora, de qualquer jeito, mas tal atitude fazia-o sentir-se como um gangster.

Talvez se sentisse assim porque tinha dificuldade apenas com uma padaria e, por sinal, alemã. E o que o aborrecia mais ainda, por alguma razão, era que essa padaria fazia o melhor pão, os bolos de aniversário mais bonitos e mais deliciosos, os biscoitinhos mais gostosos. Fazia um movimento maior do que as outras e, contudo, se recusava a pagar qualquer contribuição. Era a única da qual Larry não conseguia cobrar. Quando ele contou ao Sr. di Lucca, o homem deu de ombros e retrucou:

— Você está faturando bastante? Vá aproveitando. Experimente mais uns dois meses, depois me fale.

Um dia Larry estava atrasado em sua ronda. Num ponto, por puro nervosismo, ele "andara" com uma garota extremamente feia que tivera a petulância de provocá-lo e fazer grande escarcéu daquilo. Não adiantou nada. Ele receava parar na padaria de Hooperman. O baixo e atarracado alemão agora gostava de brincar com ele, tratá-lo como um bobalhão, dizer-lhe piadas. Acabava sempre com Larry comprando um pouco de pão e biscoitinhos, não somente para mostrar boa vontade, não somente porque eram os melhores da cidade, mas para dar a Hooperman uma oportunidade de dizer que eram por conta da casa e por conseguinte iniciar uma espécie de relação amistosa.

Até então o trabalho era ótimo. Larry compreendia o que estava para acontecer, mas recusava-se a enfrentar a sua própria parte naquilo, recusava-se a enfrentar o fato de que um dia teria de fazer Hooperman pagar à força. O próprio Larry pagava a contribuição de Hooperman para evitar complicação. Isso foi muito bem até o dia em que dois outros padeiros alemães engrossaram com ele. Disseram-lhe com um sorriso manhoso que ele passasse na semana seguinte. Larry começou a pensar em voltar para o seu velho emprego na estrada de ferro.

Passou pela padaria de Hooperman e foi até a esquina. Lá estava a delegacia de polícia. Não era de admirar que o salafrário fosse tão valente, com tantos guardas na esquina. Larry continuou a andar, procurando pensar como resolver as coisas. Se não fizesse Hooperman pagar, teria de voltar para a estrada de ferro e se conformar com os nojentos 15 dólares por semana. Teria de esperar até que Hooperman estivesse sozinho para dizer-lhe que o Sr. di Lucca viria pessoalmente. Depois compreendeu com um choque que era o próprio Larry que o Sr. di Lucca enviaria. Logo, ele procuraria intimidar o alemão e, se isso não desse resultado, abandonaria aquilo. Um gangster! Como Octavia daria gostosas gargalhadas! A mãe provavelmente pegaria o rolo de macarrão para dar-lhe uma surra. Ah, diabo, tudo ia muito mal só por causa de um sujeito cabeçudo!

Depois de andar cerca de uma hora, passou pela vitrine da padaria de Hooperman e viu a casa vazia. Entrou. A moça do balcão meneou a cabeça e ele foi até os cômodos dos fundos, onde se achavam os fornos e as mesas cheias de bandejas. E lá estava Hooperman, às gargalhadas, com os dois padeiros que tinham engrossado com Larry naquele dia. Havia uma grande lata de cerveja na mesa e três enormes canecas douradas em torno dela.

Larry sentiu um choque de traição, depois teve um ressentimento feroz. Os homens o viram e todos explodiram em gargalhadas estrepitosas e descontroladas. A própria falta de maldade na atitude deles era insultuosa. Larry compreendeu o que pensavam dele, que sabiam o que ele valia, que nunca faria Hooperman pagar, que era apenas um menino procurando passar por adulto porque tinha mulher e filhos.

O Sr. Hooperman transformou o acesso de gargalhadas em palavras:

— Hum, eis o cobrador. Quanto tenho de lhe dar hoje, 10 dólares, 20, 50? Olhe, estou pronto.

Ergueu-se e esvaziou os bolsos, tirando níqueis e boladas amassadas de notas verdes.

Larry não pôde simular um sorriso nem mesmo seu encanto pessoal. Disse com a maior calma possível:

— O senhor não tem de me pagar nada, Sr. Hooperman; vim apenas dizer-lhe que o senhor não pertence mais ao sindicato. Só isso.

Os outros dois homens pararam de rir, mas Hooperman ficou histérico.

— Nunca pertenci a seu sindicato! — rugiu ele. — Eu cago no seu sindicato! Nunca paguei contribuição e nunca dei café e bolo de graça; portanto, vá à merda com o seu sindicato!

Larry respondeu, procurando pela última vez voltar às boas:

— Eu paguei as suas contribuições, Sr. Hooperman. Não queria vê-lo complicado, um bom padeiro como o senhor.

Isso tranqüilizou um pouco o padeiro, que apontou com o dedo para Larry.

— Seu vagabundo — disse com uma raiva aquietada. — Seu gangster. Você procura me meter medo, depois vem com essa conversa de amigo. Por que não trabalha como eu? Por que vem roubar meu dinheiro, meu pão? Eu trabalho. Trabalho 12, 14 horas, e tenho de dar dinheiro a você? Você, seu merdinha, caia fora! Caia fora de meu estabelecimento!

Larry ficou tão atordoado com esse desafio que se virou e saiu do cômodo. Ainda tonto, mas procurando recuperar-se e mostrar que não estava com medo, parou e pediu à moça do balcão um pão de milho e uma queijada. A moça apanhou a lata pesada de açúcar em pó e pulverizou a queijada. Ouviu-se um grito vindo dos fundos da padaria:

— Não venda nada a esse safado!

E Hooperman veio de lá de dentro para postar-se atrás do balcão. Arrancou a lata de açúcar da moça e berrou para Larry com verdadeiro ódio:

— Fora! Fora daqui! Fora!

Larry fitou-o, gelado de surpresa e choque. O padeiro esticou-se e sacudiu o braço. Larry sentiu o açúcar em pó salpicar-lhe o rosto e o cheiro doce invadir-lhe as narinas. Completamente descontrolado, o rapaz ergueu a mão esquerda e segurou o braço direito do padeiro. Depois Larry arremessou o punho direito na cara bruta e pequena do alemão. A cabeça realmente esticou-se em seu pescoço como uma bola amarrada num cordão apertado e depois voltou para o punho. Ele soltou o punho com vontade.

A cara do alemão ficou arrasada. O nariz completamente amassado e enchendo de sangue o balcão de mármore açucarado. Os lábios reduzidos a uma mancha vermelha de carne e, do lado esquerdo, os dentes arrebentados. O padeiro olhou para o sangue e depois correu como bêbado em volta do balcão para se postar entre Larry e a porta. E gritou roucamente:

— A polícia! Chamem a polícia!

A moça disparou pelo cômodo dos fundos e saiu do estabelecimento. Os outros dois padeiros a seguiram. Hooperman permanecia obstruindo a porta da frente, com os braços estendidos, uma expressão brilhante de louco furioso estampada em seu rosto arrasado. Larry começou a andar em volta do balcão para sair pela porta dos fundos. Sentiu Hooperman correr atrás dele, pendurar-se nele; evitando feri-lo, como se não tivesse coragem, Larry, contudo, ia arrastando-o. Porque não podia bater no homem novamente, e porque compreendia agora que desgraçara a família e iria para a cadeia, meteu o pé no grande vidro brilhante da frente do balcão. Cacos de vidros voaram em torno, e então ele chutou as compridas bandejas de biscoitos expostas. O padeiro deixou escapar um berro de agonia e arrastou-o para o chão, e assim a polícia os encontrou, rolando num chão cheio de biscoitos e cacos de vidro, num abraço mais forte do que o de amor.

Na delegacia de polícia, dois robustos detetives levaram Larry para a sala dos fundos. Um deles perguntou:

— Muito bem, que foi que houve, garoto?

Larry respondeu:

— Eu quis comprar um doce e ele me atirou açúcar na cara. Pergunte à moça.

— Você o roubou?

Larry respondeu que não.

Outro detetive meteu a cabeça pelo vão da porta.

— Ei, o alemão diz que esse menino cobra para di Lucca.

O detetive que estava interrogando Larry levantou-se e saiu da sala. Daí a cinco minutos ele voltou e acendeu um cigarro. Não perguntou mais nada a Larry. Todos esperavam.

Larry estava arrasado. Só pensava em ver seu nome no jornal, a mãe na desgraça, ele mesmo um criminoso e metido na cadeia, todo mundo desprezando-o. E agora estragara tudo para o Sr. di Lucca.

O detetive olhou para o relógio, saiu da sala e voltou daí a alguns minutos. Sacudiu o polegar na direção da porta e disse:

— Muito bem, garoto, vai dando o fora. Você está livre.

Larry não compreendeu, e não poderia acreditar no que ouvia.

— O seu patrão o está esperando lá fora — acrescentou o agente. Outro detetive segurou a porta aberta para Larry passar e, quando ele saiu, viu o Sr. di Lucca postado no pé da escada da delegacia.

O Sr. di Lucca agradeceu ao detetive e deu-lhe um aperto de mão desajeitado. Depois agarrou Larry pelo braço e desceu a rua com ele até um carro que os esperava. O motorista era um rapaz com quem Larry tinha freqüentado a escola e nunca mais vira. Ele e o Sr. di Lucca entraram no banco traseiro.

Depois veio a segunda surpresa. O Sr. di Lucca agarrou-o pelo braço e disse em italiano:

— Bravo, que sujeito formidável que você é! Eu vi a cara dele, daquele animal. Você fez um lindo trabalho. Aquele salafrário. Oh, você é um sujeito formidável, Lorenzo. Quando me contaram que você bateu nele porque ele não lhe quis vender pão, eu me senti felicíssimo. Ah, quem me dera que você fosse meu filho...

 

Eles passavam pela Décima Avenida em direção ao centro da cidade. Larry olhou através da janela para o pátio ferroviário. Era quase como se ele estivesse mudando de segundo em segundo, cada gota de sangue, cada pedacinho de carne, tornando-se outra pessoa completamente diferente. Nunca mais voltaria a trabalhar no pátio ferroviário, nunca mais teria medo como tivera naquela delegacia de polícia. Toda a majestade da lei desmoronara ante seus olhos com aquele aperto de mão entre o Sr. di Lucca e o detetive; seu rápido salvamento e a admiração que marcara sua liberdade. Pensou no sangue do padeiro, nos braços estendidos do padeiro para impedir-lhe a fuga, nos olhos fitando-o loucamente acima daquela cara amarrotada, e sentiu um mal-estar.

Larry teve de falar a verdade e então desabafou:

— Sr. di Lucca, não posso mais andar por aí batendo nesses caras por causa do dinheiro. Não me importo de cobrar, mas não sou gangster.

O Sr. di Lucca bateu-lhe carinhosamente no ombro.

— Não, não; quem faz essas coisas por prazer? Eu sou gangster? Não tenho filhos e netos? Não sou padrinho dos filhos de meus amigos? Mas você sabe o que é ter nascido na Itália? O indivíduo é um cachorro e tem de ciscar a terra como um cachorro para achar um osso sujo para roer. Dá ovos ao padre para salvar a alma, escorrega uma garrafa de vinho para o escrevente da cidade só para discutir. Quando o padrone, o dono da terra, vem passar o verão em sua propriedade, todas as moças da aldeia vão limpar a casa e enchê-la de flores frescas. Ele paga-lhes com um sorriso e tira as luvas para receber um beijo na mão. E então houve um milagre: América. Isso foi o bastante para fazer a gente acreditar em Jesus Cristo.

Fez uma pausa e prosseguiu:

— Na Itália eles eram mais fortes do que eu. Se eu tirasse uma azeitona do padrone, uma cenoura, ou, Deus me livre, um pão, tinha de fugir, esconder-me na África para escapar de sua vingança. Mas aqui isso é democracia, e o padrone não é tão forte assim. Aqui é possível escapar ao destino. Mas a pessoa tem de pagar.

Após outra pausa, continuou:

— Quem é esse alemão, esse padeiro que pode ganhar a vida, assar seu pão sem pagar? O mundo é um lugar perigoso. Mas com que direito ele assa pão nessa esquina, nessa rua? A lei? Os pobres não podem viver com base em todas as leis. Não haveria um só vivo. Apenas os padroni continuariam a existir. Ora, esse homem, esse alemão, você tem pena dele. Não tenha. Você vê como a polícia o trata bem? De fato, você é meu amigo, mas esse padeiro bem lá na esquina, perto da polícia, não manda café nem pãezinhos para fazer amigos. Que é que você acha disso? O policial de ronda, o padeiro faz com que ele pague o seu café. Que tipo de pessoa é essa?

O Sr. di Lucca fez outra pausa e no seu rosto se estampou uma expressão de desagrado afetado, quase inacreditável. E continuou:

— Esse é um homem que pensa que só porque trabalha duro, é honesto, nunca infringe as leis, nada pode lhe acontecer. É um bobo. Agora, ouça-me.

O Sr. di Lucca fez mais uma pausa e prosseguiu numa voz serena e bondosa:

— Pense em você mesmo. Você trabalhou duro, foi honesto, nunca infringiu a lei. Trabalhou duro? Olhe para os seus braços, parecem os de um gorila, de tanto trabalhar. Mas não há trabalho. Ninguém vem lhe dar um envelope de pagamento porque você é honesto. Você não infringe a lei e eles não o põem na cadeia. Isso é alguma coisa, mas serve para alimentar sua mulher e seus filhos? Portanto, o que é que gente como nós faz? Nós dizemos: Bem, não há trabalho. Não temos pagamento a receber. Não podemos infringir a lei e não podemos roubar porque somos honestos; então, vamos morrer de fome, eu, meus filhos e minha mulher. Não é verdade?

Esperou que Larry risse, mas o rapaz continuou a olhar fixamente para ele, aguardando mais. O Sr. di Lucca percebeu isso e falou com seriedade:

— Não vai ser sempre assim, viver violentamente. Basta. Você ainda trabalha para mim? Cem dólares por semana e uma zona melhor. De acordo?

Larry respondeu calmamente:

— Obrigado, Sr. di Lucca, está tudo bem comigo.

O Sr. di Lucca levantou um dedo paternalmente:

— Não pague mais a contribuição de ninguém.

Larry sorriu e respondeu:

— Não pagarei.

Quando o Sr. di Lucca o fez desembarcar na Décima Avenida, Larry andou pelo pátio ferroviário durante algum tempo. Compreendeu que a gente não pode ser sempre gentil com as pessoas e esperar que elas façam o que a gente quer; ao menos, não quando se trata de dinheiro. A gente tem de ser ordinária. O que o intrigava era a admiração que as pessoas votavam a um homem que cometia uma crueldade. Lembrava-se da cara toda amassada do alemão e não compreendia a exultação do Sr. di Lucca com aquilo. Por causa disso, ele ganharia dinheiro, sua mulher e filhos viveriam como gente que tem um negócio, ajudaria a mãe, os irmãos e as irmãs. E, francamente, não batera no alemão por causa do dinheiro. Ele não pagara as contribuições do cara durante todo o tempo?

 

Lucia Santa faz o organismo da família manter-se forte contra os golpes do tempo: o crescimento das crianças, a morte dos pais e todas as modificações impostas pela vida. Vive cinco anos num instante, e no seu rasto as grandes memórias sombrias que constituem a verdadeira substância da vida e a força do espírito.

Em cinco anos o mundo exterior tornou-se menor. Os círculos pretos das mulheres que conversavam encolheram, as crianças que gritavam e brincavam na noite escura de verão não pareciam tão densamente apinhadas. Do outro lado da avenida, as locomotivas barulhentas usavam um novo viaduto, e assim os "batedores", com seus bonés bicudos adornados de botões, suas esporas e lanternas vermelhas, tinham desaparecido para sempre. A passarela sobre a Décima Avenida, não mais necessária, fora demolida.

Em poucos anos, a muralha ocidental da cidade desapareceria e o povo que a habitava se espalharia como cinza — aquelas pessoas cujos pais na Itália haviam vivido na mesma rua da aldeia durante mais de mil anos, cujos avós haviam morrido no mesmo quarto em que tinham nascido. Lucia Santa mantinha-se em guarda contra os perigos mais imediatos, perigos que ela dominara durante os últimos cinco anos: morte, casamento, puberdade, pobreza e a falta de senso de dever que florescia na meninada criada na América. Não sabia que se defendia de um ataque eterno e que se tornaria mais fraca, já que se colocava contra o próprio destino.

Mas ela construíra um mundo, tinha sido o seu monólito. Seus filhos, levantando-se sonolentos das camas aquecidas, encontravam sua torrada às primeiras horas da manhã, a roupa da escola pendurada em cadeiras perto da estufa a querosene. Ao voltarem da escola, encontravam-na passando a ferro, cosendo, cuidando de grandes panelas pardacentas no fogão da cozinha. Ela se movia em nuvens de vapor como um deus humilde, desaparecendo e reaparecendo, entre cheiros de pimentão, alho, molho de tomate, carne guisada e verduras. Traindo sua mortalidade, o velho rádio em forma de catedral despejava suas canções italianas na voz de Carlo Buti, o Bing Crosby da Itália, a paixão das matronas italianas, e cujo rosto magro, sofredor e encimado por um chapéu branco característico, via-se entre salames nas vitrines dos armazéns da Décima Avenida.

A porta nunca estava trancada para qualquer criança que voltasse da escola ou da brincadeira. Nem nascimento nem morte podiam impedir que pratos fumegantes aparecessem na mesa de jantar. E à noite Lucia Santa esperava até que a casa estivesse sossegada e em repouso para então ir dormir. Os filhos jamais a viram de olhos fechados e indefesa contra o mundo.

Havia dias em sua vida que eram como verdadeiros camafeus. Houve um dia no inverno em que Gino chegou da escola e encontrou a mãe completamente só, e assim passaram uma tarde juntos, felizes, sem mesmo se falarem.

Gino estudava a mãe que passava a roupa a ferro à luz cinza e fria do crepúsculo. Correu o nariz pelo fogão, levantando a tampa das panelas para cheirar, e não ficou satisfeito. Ele não gostava de espinafre verde ao azeite. Uma panela com batatas cozidas o aborreceu ainda mais; assim, bateu com a tampa da panela e perguntou zangado:

— Ah, mãe, você não tem nada de bom para a gente comer?

Depois ele se inclinou sobre o rádio para mudar para uma estação americana. A mãe fez um gesto ameaçador e ele saltou fora. Na verdade, gostava de escutar a estação italiana, especialmente a romanza que a mãe ouvia agora. Parecia sempre que as personagens iam matar-se e ele compreendia bastante para acompanhar o drama. Não era nada como as novelas americanas. Aqui golpes eram assestados; os pais não eram compreensivos, mas firmes e intolerantes; os homens matavam os amantes de suas esposas intencionalmente, e não por acidente. As mulheres realmente envenenavam os maridos, geralmente com algo que causava uma dor horrível, e gritos acompanhavam o clímax da tragédia. A tortura deles era um consolo para os vivos.

Gino levou os livros que trouxera da biblioteca e foi ler na mesa da cozinha. Do outro lado, a mãe passava a roupa a ferro, e o vapor quente aquecia a sala. Estava muito calmo no apartamento; todo mundo fora de casa. Sal e Lena lá embaixo na rua brincando, Vinnie trabalhando. Estava escurecendo, até que de repente Gino não conseguia mais ler. Levantou a cabeça e viu a mãe olhando para ele, imóvel, com uma expressão esquisita no rosto. Sentia-se o cheiro do alho, azeite quente e batatas polvilhadas com farinha, o chiar da panela de água no fogão a querosene. Então a mãe ergueu a mão para acender a luz.

O garoto sorriu para ela e baixou a cabeça para o livro. Lucia Santa acabou de passar a ferro e dobrou a tábua. Olhou para Gino, que continuava lendo. Ele raramente sorria, tornara-se um rapaz sério, muito sossegado. Como as crianças se modificavam! Mas ainda era cabeçudo, ainda era teimoso, às vezes tão louco quanto fora o pai. Ela levou a roupa para o quarto e colocou-a na cômoda. Depois voltou para a cozinha e muito quietamente descascou algumas batatas, cortou-as em fatias finas, abriu lugar no fogão para a sua grande frigideira preta. Uma colherada de banha pardacenta, feita em casa, derreteu-se rapidamente. Fritou as batatas até adquirirem um tom pardo-dourado, depois esparramou dois ovos sobre elas. Pôs tudo num prato e, sem dizer uma palavra, colocou-o sobre o livro de Gino e embaixo de seu nariz.

Gino soltou um grito de puro prazer. Lucia Santa disse:

— Coma depressa antes que os outros cheguem e vejam, ou ninguém comerá aquele bom espinafre.

Ele engoliu as batatas e ajudou-a a pôr a mesa para os outros.

Outro inverno que viveu, bastante amargurada, foi aquele em que morreu Zia Louche. Derramou mais lágrimas pela velha do que teria derramado pela própria mãe. A pobre velha morrera sozinha, no frio do inverno, nos dois quartos mal mobiliados que pelos últimos 20 anos tinham sido seu ninho solitário. Morrera como um besouro, sua pele escamosa, rija de frio, suas perninhas entrelaçadas, suas veias geladas e azuladas pela morte. Seu único conforto era o fogão preto a querosene encimado por uma panela de esmalte branco com água.

Zia Louche, Zia Louche, onde estavam os seus entes queridos para cuidar de seu corpo? Onde estavam os filhos para chorar em seu túmulo? E pensar que ela invejara a falta de responsabilidade daquela velha orgulhosa, sua vida sem cuidado mundano. Lucia Santa conheceu então a própria fortuna. Criara um mundo que não acabaria, que nunca a expulsaria de seu seio, e ela nunca morreria sozinha e seria enterrada como um inseto esquecido.

Mas que milagre ela ter levado todos tão longe! Milagre impossível sem a formidável Zia Teresina Coccalitti, que, no mesmo inverno em que Zia Louche morrera, se tornara íntima de Lucia Santa e aliada da família Angeluzzi-Corbo.

Teresina Coccalitti era a mais temida e respeitada mulher da Décima Avenida. Alta, muito magra, trajando sempre um vestido preto, que usava por um marido morto havia 20 anos, aterrorizava os vendedores de frutas, merceeiros e açougueiros; os senhorios nunca ousavam censurá-la por causa de aluguel atrasado, os visitadores do serviço social deixavam-na assinar os papéis necessários e jamais lhe faziam uma simples pergunta embaraçosa.

A sua língua era venenosamente suja, os ossos apertados de sua cara apontavam para a própria máscara demoníaca da astúcia. Contudo, quando se tratava de sua conveniência, sabia apresentar um encanto servil, perigoso como uma serpente.

Com quatro filhos trabalhando, ela recebia auxílio da assistência social. Quando comprava uma dúzia de frutas, esticava a mão, depois de pagar, e apanhava mais uma. Intimidava o açougueiro por causa de uns restos de vitela ou por causa da gordura de um pedaço de carne. Ninguém no mundo podia com ela.

Foi Zia Coccalitti quem ensinou Lucia Santa a esticar o dinheiro. Ovos eram comprados de um bom rapaz que roubava caixas da parte traseira dos caminhões. Roupas e bananas vinham daqueles ousados estivadores que descarregavam os navios, embora ninguém soubesse o que as roupas estavam fazendo no navio. Material para vestidos, boas sedas, lã pura eram vendidos de porta em porta por gatunos delicados e eloqüentes, rapazolas da redondeza que os surripiavam por um processo especial. E todo esse pessoal negociava mais honestamente com a gente do que os lojistas do norte da Itália, que se empoleiravam na Nona Avenida como abutres romanos.

Quem vivia de outro modo? Ninguém, naquele mundo.

E assim os anos passaram. Só cinco? Aparentemente mais, embora tivessem passado tão depressa. Só a morte podia marcar o tempo.

O panettiere um dia achou a mulher morta como o dragão que ela era, com as garras profundamente enterradas num balde de prata maciça, no rosto uma expressão tranqüila de quem encontrara o verdadeiro Jesus. Depois, que transformação sofreu o panettiere! Aquele homem que trabalhava como um animal deixou tudo por conta do filho, que foi emagrecendo nos fornos quentes. Fechava a padaria cedo, não fazia mais sorvete de limão nem mantinha mais as paredes de vidro limpas para exibir as pizzas. Divertia-se dia e noite com os velhos camaradas nos fundos da barbearia, perdendo aqueles baldes de prata e cobre que sua mulher-dragão tão fielmente guardara. E vivia sistematicamente ao ar livre, passando pela Décima Avenida como um duque, com enormes charutos americanos fumegando-lhe na boca.

E, assim, foi o panettiere quem viu primeiro Octavia rebocar o seu futuro marido na esquina da Rua 31 para a Décima Avenida. Observava-os com interesse e compaixão à medida que se aproximavam de Lucia Santa, que estava inocentemente sentada em seu tamborete na frente do cortiço. Um simples olhar para o rapaz era o bastante. A família Angeluzzi-Corbo estava para sofrer outro infortúnio.

Aquele sujeito carregava uma pilha de livros — um homem crescido — e com seu cabelo preto alto à Pompadour, seus óculos com armação de tartaruga, feições magras e recurvadas como um arco, proclamava-se um judeu. Não somente um judeu, mas um judeu que não estava no melhor de sua saúde.

Tornou-se logo sabido que Octavia Angeluzzi ia casar-se com um pagão. Um escândalo. Não porque o homem era judeu, mas porque não era italiano. Pior do que isso era o próprio espirito de contradição da moça. Onde encontrara ela um judeu, em nome de Cristo? Pois quarteirões acima e abaixo, no lado oriental e na muralha ocidental da Décima Avenida, havia italianos, irlandeses e poloneses católicos. E, então, que se podia esperar de uma garota italiana que usava soutiens comprados em lojas, para cobrir os seios?

Não havia preconceito ou má vontade. Os velhos da família, os tios, tias e padrinhos, estavam felizes por ter uma parenta encontrado um arrimo tão tarde na vida. Ela devia estar, pelo menos, com 25 anos de idade, madura para complicações.

Agora, graças ao bom Jesus, ela se casaria, conheceria a vida: em suma, abriria as pernas. Nunca teria de suportar aquela deferência habilidosa dispensada às solteironas, aos aleijados e aos deformados. Regozijaram-se porque Octavia não apodreceria como um fruto não saboreado. E é bom lembrar — os judeus são ganhadores de dinheiro de primeira linha. A Octavia Angeluzzi nada faltaria, e, boa filha italiana como era, não deixaria que a mãe, os irmãos menores e a irmãzinha vivessem sem conforto. Assim diziam os vizinhos, o panet­tiere, Zia Coccalitti e o louco barbeiro ciumento, que contemplava a cabeleira alta à Pompadour do judeu com um inflamado olhar cobiçoso.

Lucia Santa não partilhava dessas opiniões otimistas. Na verdade, aquele rapaz era bonito, simpático, de constituição esbelta, e delicado como uma moça. Quanto a ser judeu, não quer dizer que ela não tivesse preconceito, o caso simplesmente era que a sua desconfiança era tão grande que abrangia igualmente os cristãos, irlandeses, turcos e judeus. Mas esse sujeito carregava um estigma. Aonde quer que fosse, levava um livro debaixo do braço ou aberto nas mãos.

É fácil rir dos preconceitos dos pobres, o raciocínio deles provém de uma experiência especial. Como é irritante ouvir-se o patife de um ladrão siciliano dizer:

— Se você quer justiça, ponha um presente na balança.

Como é insultante para uma nobre profissão quando a manhosa Teresina Coccalitti murmura:

— Quando a gente diz advogado, diz ladrão.

Lucia Santa tem um ditado próprio:

— Aqueles que lêem livros deixam a família morrer de fome.

Não vira ela, com os próprios olhos, Octavia devorar livros até tarde da noite (nunca ousaria dizer, mas não podia ser aquilo a razão da doença da filha e da visita ao sanatório?), quando podia estar costurando vestidos para as mocinhas filhas dos Santini, do panettiere e daquele barbeiro louco, ganhando Deus sabe quanto dinheiro? Os filhos dela também — Vinnie, Gino e agora até o pequeno Sal — iam à biblioteca atrás de livros de bobagens, insensíveis ao mundo exterior e a suas obrigações. E para quê? Para entorpecer-lhes a mente com histórias inverídicas, para entrar em mundos nos quais não podiam viver. Que tolice!

Analfabeta, ela estava a salvo da corrupção e não podia ter idéia da magia dos livros. Contudo, sentia o poder deles e raramente protestava. Mas vira tanta gente que, achando a vida dolorosa, fugira ao dever da luta. Como um homem pobre não devia gastar tempo e dinheiro em bebida e jogo de cartas, como uma mulher não devia desperdiçar sua força e vontade em sonhos de felicidade, assim os jovens, com uma grande luta pela frente, não deviam envenenar sua vontade com contos de fadas e sonhos que saíam das páginas de papel que eles viravam, viravam e viravam noite adentro.

Se Lucia Santa soubesse, como se comprovaria mais tarde, estar com a razão, teria enxotado Norman Bergeron do cortiço com o rolo de macarrão. Verdadeiro renegado, ele se recusava a lutar pelo próprio pão contra o seu semelhante. Tolo e inocentemente bondoso, punha de lado seu diploma universitário para se tornar um assistente social; mas não possuía aquela força de caráter inflexível tão necessária àqueles que ministram caridade. Era como um açougueiro que desmaiava à vista de sangue. Um tio dera-lhe um empreguinho de escritório em seu negócio de roupas feitas e fora lá que ele encontrara Octavia.

Como todos os homens fracos, Norman Bergeron tinha um vício secreto. Era poeta. Não somente em inglês, mas — muito mais terrível — em iídiche. Pior, ele só sabia uma coisa perfeitamente: literatura iídiche — um tanto, ele mesmo o dizia, de que havia menos procura do que qualquer outro na Terra.

Mas tudo isso ainda era ignorado. E, apesar de seus inúmeros pressentimentos, Lucia Santa parecia (para espanto de Octavia) sentir certo prazer em que a filha não se casasse com um italiano.

Era verdade que Lucia Santa queria que cada um dos seus filhos homens se casasse com uma boa moça italiana que sabia desde o berço que o homem era quem mandava, devia ser esperado como um duque, ser alimentado com boa comida que levava horas para ser preparada; que cuidava dos filhos e da casa sem se lamentar por não receber ajuda. Sim, sim, todos os seus filhos homens deviam casar-se com boas moças italianas. Seu filho Lorenzo tinha encontrado a fortuna após casar com Louisa, e isso era a prova.

Por outro lado, que mãe que sofrera sob a tirania masculina desejaria para sua querida filha aqueles tiranos carcamanos, aqueles homens rudes e despóticos, que trancavam a mulher em casa, nunca saíam com ela a não ser para um casamento ou enterro; que faziam um tremendo escarcéu se o espaguete não estivesse fumegando na mesa no momento exato em que as suas botas pesadas cruzassem o limiar da porta; que nunca erguiam um dedo para ajudar a própria mulher grávida e sentavam-se calmamente para fumar seus fedorentos charutos De Nobili, enquanto a mulher barriguda ficava no peitoril da janela, tão desequilibrada quando lavava o vidro sujo, que corria o perigo de cair como balão no calçamento da Décima Avenida.

Graças a Deus, Octavia ia se casar com um homem que não era italiano e portanto devia ter pena das mulheres. Só uma vez Lucia Santa fez uma observação insultuosa sobre a escolha da filha, e isso foi anos depois. Um dia, no decorrer da conversa, xingando os filhos, um por um, pela ingratidão e teimosia deles; e não encontrando crime adequado para Octavia, disse com um escárnio avassalador:

— E ela, a minha filha, mais inteligente do que todos os irmãos, escolheu para marido o único judeu que não sabe ganhar dinheiro.

Mas, apesar dos pesares, esse casamento foi o coroamento adequado de cinco anos de sorte. Lucia Santa insistiu em realizar um grande casamento, especialmente na igreja. Não houve qualquer dificuldade por parte de Norman Bergeron. A sua leitura de livros era uma virtude nesse caso. Não fez objeção quanto a casar-se como cristão ou a educar os filhos como cristãos. Não houve objeções por parte da família dele. Norman explicou a Lucia Santa que a família o declarara morto e proscrito por causa desse casamento. Lucia Santa adorou essa boa notícia. Isso simplificaria tudo. Octavia e Norman pertenceriam a ela.

 

Lucia Santa não poupou despesa. A festa de casamento no cortiço foi realizada com a maior pompa. Grandes jarros vermelhos de vinho provenientes da adega do panettiere alinhavam-se no corredor externo do apartamento, montanhas de presunto suculento e toras dos queijos mais fortes cobriam a mesa e esperavam nas camas forradas com lençol, docinhos coloridos e brilhantes e amêndoas enormes cobertas com açúcar enchiam as bandejas de prata emprestadas. Na cozinha, havia filas de caixas de refrigerantes — de laranja, creme e morango — empilhadas até o teto.

Todo mundo da Décima Avenida veio prestar sua homenagem, e mesmo aqueles parentes soberbos que possuíam casa própria em Long Island vieram conversar e exibir-se ante a pobre camponesa que tinham deixado tão para trás. Pois quem podia resistir a tal casamento, e, ainda mais, se para alguns era a primeira apreciação íntima de um noivo pagão?

Os jovens dançavam na sala da frente no meio de bandeirolas coloridas e ao som da música de um gramofone emprestado pelo barbeiro maluco. Na sala de jantar e na cozinha, no outro extremo do apartamento, os italianos velhos tagarelavam em filas de cadeiras emprestadas e encostadas nas paredes de reboco pintado de azul. Octavia deu a grande bolsa cerimonial de seda, para presentes de envelopes de dinheiro, a Lucia Santa, que a apertava carinhosamente de encontro à anca. Com dignidade, ela puxava-lhe os cordéis de prata para abrir-lhe as mandíbulas e deixá-la engolir o tesouro oferecido.

Para Lucia Santa foi um dia de glória. Mas não há dia tão bom que não apresente a sua parte de desprazer.

Uma antiga colega de escola de Octavia, do tempo do ginásio, uma garota italiana cuja família morava em casa própria com telefone, chamada Angelina Lambrecora, apareceu, dizendo que não ia demorar, só vinha desejar felicidade a Octavia e trazer-lhe um presente mimoso. Mas essa sirigaita começou a virar a cabeça de todos os rapazes e até de alguns velhos. Seu lindo rosto era enfeitado como que por um rouge profissional, tinha até um sombreado nos olhos e um batom delicado que escondia a vulgaridade de sua enorme boca e a tornava tão apetitosa quanto aquelas uvas profundamente vermelhas da Itália. Estava vestida de um modo indefinido, meio costume, meio vestido, com a metade superior dos seios escandalosamente levantada, constituindo uma festa para os olhos. Todos os homens dançaram com ela. Larry abandonou a mulher por sua causa, fazendo a pobre Louisa chorar. Perseguiu aquela ordinária, atirando-se para aqueles olhos pintados, soltando nuvens de seu deslumbrante encanto masculino, mostrando aqueles dentes quadrados brancos no mais desarmante e lisonjeiro dos sorrisos. Angelina flertou com todos eles, rebolando as ancas ao dançar, enquanto o panettiere, seu filho Guido, o barbeiro de vista curta e o grisalho Ângelo, de 75 anos de idade, cuja vida era sua confeitaria, todos pararam de conversar e de beber vinho para ficar ali como cachorros, com a língua de fora, os joelhos dobrados para aliviar a pressão sobre a virilha, devorando-a com seus olhares fogosos. Até que Angelina, sentindo os cosméticos se derreterem no apartamento abafado, anunciou que precisava ir pegar o trem para Long Island. Octavia beijou-a rapidamente para apressar a sua retirada, pois até Norman Bergeron, privado de seus livros naquela noite, estava fitando Angelina através de seus óculos de poeta, de armação de tartaruga.

Tudo muito bem. O mundo nunca estava completo sem o número apropriado de sirigaitas. Um dia ela também teria filhos, engordaria e envelheceria, e tagarelaria na cozinha, enquanto outras tomariam seu lugar. Mas essa coisinha afetada e tentadora, rejeitando friamente a fina flor da Décima Avenida, tanto os velhos quanto os jovens, foi até a cozinha despedir-se de Lucia Santa, arrulhando à moda tipicamente americana, como se fosse igual às demais porque era moça e bonita. Lucia Santa sorriu de maneira fria e distante, como qualquer baronesa, e ouviu com prazer as palavras melosas que a garota disse, pensando, entrementes, que, se a pequena Lena crescesse como aquela moça na casa que iam comprar em Long Island, ela seria uma senhorita americana cujas nádegas, de tanto apanhar, ficariam tão vermelhas quanto as suas faces.

Angelina virou-se para ir embora e então sobreveio a desgraça. Seus olhos deram com Gino, ainda nos seus 16 anos, mas alto, moreno e forte, bonitão na nova roupa cinza, comprada do estivador surripiador justamente para aquela ocasião.

Gino espontaneamente tornara-se prestativo na festa, abrindo garrafas de refrigerantes e jarros de vinho para servir os italianos na cozinha. Ele era quieto e distante, movia-se com uma fluidez rápida que tinha uma estranha atração. Tudo isso o fazia parecer respeitoso, na velha tradição italiana, um servidor dos mais velhos. Só Lucia Santa sabia que as pessoas presentes naquela sala não significavam nada para ele. Gino não via a cara delas, não ouvia o que diziam, não se importava se pensavam bem ou mal dele, e não se importava se estavam vivas ou mortas. Movia-se num mundo que não existia, mas no qual fora apanhado de surpresa e aprisionado por aquela noite. Servia aquela gente para fazer o tempo passar.

Mas como os parentes não tinham jeito de saber aquilo tudo, ficaram impressionados — especialmente um primo distante, de Tuckahoe, Piero Santini, de barba escura, extremamente magro de tanto trabalhar, que possuía quatro caminhões. Tinha uma mulher gorda e boba, adornada com jóias falsas, no momento devorando toneladas de docinhos, e uma filha tímida de 17 anos, que estava sentada entre o pai e a mãe, e não podia despregar os olhos de Gino.

Piero Santini notou o olhar ardente da filha, o que não era surpresa, pois ele a guardava como um dragão. A princípio não gostou, depois refletiu um pouco. Sua mimosa Caterina fora educada com muito rigor, à velha moda italiana. Não importavam frases como "namore este" ou "marque encontro com aquele", ou "dance fora do círculo familiar". "Ah! Ah! Ah! Que se dane a dança!" Era o que dizia Piero Santini, fazendo um saracoteio obsceno.

Ele martelava na cachola de Caterina o que os homens queriam: enfiar-lhe uma coisa entre as pernas e inchar-lhe a barriga, depois cair fora, deixando-a para vergonha, miséria e o suicídio dos pais. Mas ela estava madura. Quanto tempo podia ainda continuar isso? A sua mulher era uma idiota e ele mesmo estava pronto para comprar mais dois caminhões. Estaria ocupado, distante e cuidando para que não lhe roubassem até os colhões durante a noite, contando seu dinheiro.

Assim, Piero Santini, com aquela adaptabilidade que provou sua grande eficácia nos negócios, mudando os caminhões do transporte de produção para o transporte de lixo, às vezes até para o carregamento de uísque, quando o preço era justo, começou a pensar em outras coisas. Talvez o tempo tivesse chegado. Observou Gino e ficou impressionado. Que rapaz sossegado! E se via logo que não era preguiçoso. O modo pelo qual se movia mostrava um corpo forte e ágil; não havia dúvida de que podia carregar um caminhão na metade do tempo que levariam dois ajudantes preguiçosos e um motorista. Devia valer seu peso em ouro. (Como Lucia Santa e todos os seus amigos e vizinhos riram desse pensamento a respeito de Gino — o recordista de perder emprego na Décima Avenida, um caso absolutamente sem esperança.) Santini continuou a observar Gino. Quando a sua mulher se levantou para atacar uma nova pilha de docinhos e Gino serviu-lhe um copo de vinho, ele bateu na cadeira vazia a seu lado e disse em italiano:

— Sente-se aqui um instante, quero falar com você.

Esse gesto de consideração chamou a atenção de todo mundo. Piero Santini, o primo rico de Tuckahoe, tão delicado com esse rapazola faminto, miserável? Todos os olhares estavam concentrados neles. Teresina Coccalitti cutucou Lucia Santa, que, apesar de sua falta de astúcia, compreendeu o que estava sendo articulado.

De repente, como que atraídos por um ímã, todos os olhares passaram dos dois homens para a donzela. Caterina Santini era uma lenda, um mito, uma flor italiana que florescia no mau solo americano sem se corromper. Um crédito para os pais dela, e numa idade tenra, entendida em todos os segredos da cozinha, ela preparava para o pai, na festa de domingo, macarrão feito em casa; não usava pintura, não usava saltos altos para enfraquecer seus ossos pélvicos.

Mas agora seu dia tinha chegado, como chega até para os santos. Pecado e desejo achavam-se estampados em seu rosto. Imensamente ruborizada, com o peito subindo e descendo, ela estava como que querendo explodir da pele. Podia-se sentir o calor que se desprendia dela, e seus olhos, recatadamente baixados para o seu regaço torcido, não enganavam ninguém.

Que golpe para Lucia Santa, e para o seu filho de cara mais feia, embora na verdade ele fosse um magnífico animal jovem; e por que não seria, brincando ao sol o dia todo em vez de trabalhar depois da escola? Que bênção para a festa nupcial! Lucia Santa, ávida como um lobo farejando sangue, inclinou-se para a frente a fim de tentar captar o que o astuto Santini dizia ao filho dela, mas a maldita música vinda da sala da frente abafava as palavras que ela ansiava ouvir. O sombrio Piero, em meloso italiano, perguntava a Gino:

— Então, meu rapaz, que é que você faz, que é que você planeja para sua vida, hem, ainda está na escola?

Mas, bastante estranhamente, o rapaz fitou-o com olhos sérios, como se não entendesse bem italiano. Depois sorriu de leve, e Piero compreendeu: o garoto estava constrangido por receber a atenção de uma figura tão importante e tinha acanhamento em responder. Para pô-lo à vontade e aproximá-lo do assunto, Piero bateu-lhe delicadamente no ombro e disse:

— Minha querida filha está morrendo de sede. Traga-lhe um copo de refrigerante como um bom rapaz. Caterina, não é verdade que você está morrendo de sede?

Caterina não levantou os olhos. Sentia-se apavorada com o que lhe estava acontecendo. Balançou a cabeça afirmativamente.

Gino entendeu a palavra "refrigerante" e o aceno da moça. Ergueu-se para servi-la. Não compreendia nada do que estava acontecendo, e como poderia compreender, já que essas pessoas não existiam? Trazendo o refrigerante, afastou-se rapidamente e não viu Piero Santini bater outra vez na cadeira. O pai da moça, espantado com aquele insulto, fez uma careta e deu de ombros para que todos vissem, como quem pergunta: "Com esses miseráveis, famintos e grosseiros, que é que adianta mostrar uma bondosa cortesia?" Todos riram da humilhação do soberbo e mesquinho ricaço Santini e suspiraram por sua pobre filha, que mergulhou seu vermelho nariz sem pó num refrigerante efervescente, mortificada. E era divertido contemplar a raiva estampada no rosto de Lucia Santa ante o comportamento do filho Gino, que todo mundo sabia ser tão louco quanto o pai e que terminaria da mesma maneira, e isso não era a prova?

Foi no fim dessa comédia que a linda Angelina apareceu para se despedir; e, para espanto de todos, Gino fez a sua segunda conquista. Primeiro, Gino foi o único rapaz que não viu Angelina, quando olhou para ela; e isso imediatamente provocou o interesse da moça. Depois, também, ela percebeu a desaprovação geral ao papel que desempenhava e, desafiadoramente, desempenhou-o cabalmente. Ao dar com Gino, aproximou-se dele requebrando e disse para Lucia Santa:

— Que filhos bonitos que a senhora tem!

E Gino ficou inteiramente atordoado; cheirava seu perfume, sentia o calor de seu braço, via aqueles lábios grossos, bem pintados, espichados para ele. Não sabia o que estava acontecendo, mas queria perfeitamente manter-se quieto e descobrir. Quando Angelina pediu o casaco, todos os homens apresentaram-se espontaneamente e, mais ainda, como cavalheiros distintos, ofereceram-se para acompanhá-la até a estação do metrô, mas ela falou graciosamente:

— Gino vai me levar até a estação... ele é muito novo para ser perigoso.

Como todas as camas estavam cheias de travessas de comida, esperando a vez de irem para a mesa, o apartamento de Larry e Louisa, embaixo, estava sendo usado como vestiário. Angelina disse:

— Vou descer com ele.

Agarrou Gino pelo braço e os dois saíram. A festa de casamento prosseguiu. Lucia Santa pensou em mandar Vincenzo ao apartamento de Larry, sob algum pretexto, para se assegurar de que nada aconteceria, e depois pensou melhor. O filho já tinha idade e estava bastante crescido para provar uma mulher, e ali estava uma boa oportunidade sem perigo para ele. Manga franca. E, afinal, ele não teria de pagar. Que assim fosse.

O Dr. Barbato chegou para tomar seu copo de vinho, comer seus salgadinhos e doces, e dançar com a noiva. Avistou Lucia Santa, cercada como uma rainha, e foi depositar seu envelopezinho na grande bolsa de cetim. Foi saudado com uma frieza típica de rainha. O médico se zangou; esperava ser calorosamente recebido depois de tudo o que fizera por essa família miserável. Lembrou-se do que lhe dissera o pai: "Nunca espere gratidão de um jumento ou de um camponês."

Contudo, um copo de bom vinho amoleceu o Dr. Barbato e o segundo copo amoleceu-o ainda mais. Sem mesmo querer, sem qualquer afeição, compreendia aquela gente. Como podia uma pessoa como Lucia Santa mostrar gratidão por alguém que a ajudasse? Ela estaria constantemente de joelhos. Para ela tal ajuda era simplesmente o destino. Desde que não culpava nenhum ser humano pelos seus próprios infortúnios, também não atribuía a ninguém os pequenos golpes de sorte que a bafejavam, e entre estes se incluía a caridade esporádica do Dr. Barbato.

O médico cofiou o bigode, endireitou o colete. Atendera a muitos desses italianos, e alguns deles tinham sido crianças com seu pai na Itália, mas lhe mostravam uma frieza como se ele fosse um usurário, um padrone ou mesmo um agente funerário. Oh, ele sabia muito bem como aquelas pessoas se sentiam por trás do respeitoso, meloso "SignoreDottore isto" e "Signore Dottore aquilo". Ele se alimentava dos infortúnios delas; a dor delas era lucro para ele; o médico vinha no momento funesto de necessidade e medo da morte, exigindo dinheiro por socorrê-las. De algum modo primitivo, elas sentiam que a arte da cura era uma coisa mágica, divina, não para ser comprada e vendida. Mas então quem pagaria pela faculdade, pela escola, pelos longos anos de estudo e labuta torturante, enquanto eles, aqueles palermas e labregos ignorantes, tomavam seu vinho e apostavam seu níquel suado na virada de uma carta suja de baralho? Que eles me odeiem, pensava o médico; que vão para as clínicas grátis, que esperem horas para que um interno descarado olhe para eles como um boi ou uma vaca. Gemeriam no Hospital Bellevue e ele trabalharia em Long Island, onde o pessoal brigaria para pagar-lhe as contas e sabia o que estava usufruindo. O Dr. Barbato, para mostrar que a indiferença daqueles carcamanos não o afetava de modo algum, apresentou o seu melhor sorriso de despedida e saudou-os no melhor italiano universitário, o que o tornou quase ininteligível, e depois, para alívio de todos, partiu. Enquanto as festividades prosseguiam lá em cima, Angelina e Gino procuravam o casaco dela nas roupas empilhadas no apartamento de Larry. Os temores de Lucia Santa eram infundados. Angelina não era a moça desamparada que aparentara ser, e Gino ainda era muito inocente para se aproveitar da fraqueza dela. Antes de acompanhá-la até a estação do metrô, ela deu-lhe um beijo com o calor de sua boca ardente revestida de uma camada de batom. O corpo dela apertou o dele tão fugazmente, que Gino apenas se lembrava disso em seus sonhos.

 

Sim, o casamento foi um sucesso, um dos maiores da avenida, um motivo de glória para a família Angeluzzi-Corbo e uma grande vitória pessoal para Lucia Santa. Que não descansou em sua glória, mas convidou Piero Santini para o almoço de domingo, a fim de que Gino pudesse talvez mostrar a Caterina as vistas da cidade que ela havia perdido por morar lá no mato distante de Tuckahoe.

 

Um homem como Piero Santini, que tinha quatro caminhões e contrato para transportar o lixo da cidade, não iria mostrar-se sensível à humilhação. Os Santini vieram almoçar no domingo seguinte.

Lucia Santa excedeu-se. Na manhã de domingo, quebrou uma colher de pau na cabeça de Gino, a fim de convencê-lo de que não era aconselhável ir para a rua jogar beisebol. Depois preparou um molho digno de um rei de Nápoles e fez macarrão largo com massa feita em casa. Para a salada, abriu a garrafa de azeite quase sagrado enviado da Itália por sua pobre irmã camponesa — azeite impossível de ser comprado, primeiro sangue da azeitona.

Gino, em sua roupa nova, cinza, comprada do estivador, e Caterina, em seu vestido de seda vermelha, foram propositadamente colocados lado a lado. Vincenzo, o favorito das senhoras de idade, divertia a Signora Santini tirando-lhe a sorte com um baralho. Salvatore e Lena limparam a mesa e lavaram os pratos, ativos e implacavelmente eficientes como duendes. Finalmente Gino, como que instruído pela mãe, perguntou a Caterina se ela gostaria de ir ao cinema, e ela, sempre obediente, olhou para o pai pedindo permissão.

Para Piero Santini o momento era terrível. Era igual àquelas poucas vezes em que ele permitira que os seus caminhões transportassem uísque, e levara dias sem vê-los, não sabendo onde estavam, o que estava acontecendo com eles. Agora sofria quase tanto. Mas era impossível evitá-lo; isso era a América. Acenou com a cabeça, concordando, e disse:

— Não volte muito tarde, hem, amanhã é dia de trabalho.

Lucia Santa estava radiante, quando o casal de jovens partiu. Vitoriosa, quebrou nozes e deu aos ativos Salvatore e Lena pedaços oleosos e nodosos. Encheu o copo de vinho de Piero Santini, pôs uma travessa de bombas de creme geladas perto do cotovelo da Signora Santini. Larry e sua mulher, Louisa, subiram para se reunir a eles, a fim de tomarem um café bem quente e reforçado com anisete. Piero Santini e Lucia Santa trocaram astutos olhares de satisfação, conversaram com a familiaridade recém-nascida daqueles que estão prestes a se tornarem parentes. Mas não se havia passado ainda uma hora quando se ouviu o bater de saltos na escada e logo entrou Caterina, sozinha, com o olhar furioso, o rosto marcado pelas lágrimas, sentando-se à mesa sem dizer uma palavra.

Consternação. Santini praguejou, Lucia Santa juntou as mãos como que rezando. Que teria acontecido. Será que aquele animale do Gino a teria violentado na rua, ou no próprio cinema? Será que ele a tinha levado até o telhado? O quê! Em nome de Deus! A princípio, Caterina não respondeu, mas finalmente murmurou que deixara Gino no cinema; ele estava assistindo a um filme que ela não queria ver. Nada acontecera.

Quem acreditava nela? Ninguém. Fora-se a agradável cordialidade, a boa disposição. O ambiente e a conversa esfriaram. Mas o que, no sagrado nome de Jesus Cristo, poderia ter ocorrido? Ah, os jovens espertos, que males eles cometem, nas circunstâncias mais desfavoráveis! Mas não houve jeito de se convencer Caterina a revelar o mistério, e finalmente, embaraçados, os Santini se retiraram.

A família Angeluzzi-Corbo — Lucia Santa, Vinnie, Larry e Louisa, os carrancudos Sal e Lena — esperava agrupada em torno da mesa como juizes, o comparecimento do criminoso. Afinal, Gino, faminto como um lobo, após quatro horas de cinema, subiu aos pulos as escadas, precipitou-se porta adentro e quase derrapou para parar, quando sentiu a força daqueles olhos acusadores fixados sobre ele.

Lucia Santa levantou-se, mas vacilou; estava furiosa, porém desorientada. De que era ele culpado? Ela começou a querer firmar-se.

— Animale, bestial Que fez você com aquela pobre moça no cinema?

Gino, com os olhos arregalados de surpresa, respondeu:

— Nada.

A inocência do filho era tão clara que Lucia Santa pensou que ele fosse louco, que não distinguisse o bem do mal. Então ela se controlou e perguntou, de modo paciente e calmo:

— Por que Caterina deixou você lá sozinho?

Gino deu de ombros.

— Ela disse que ia ao toalete. Apanhou o casaco e saiu. Quando percebi que ela não voltava, achei que não gostava de mim; então pensei: "Que ela vá para o inferno!", e fiquei vendo o filme. Mãe, se ela não gosta de mim, que idéia é essa sua e do pai dela de fazê-la sair comigo? Ela achava graça o tempo todo, nem sequer falava.

Larry balançou a cabeça, lamentando toda a história, e disse para a mãe, brincando:

— Está vendo, mãe, bem que eu tentei; nós agora já poderíamos ter um caminhão na família.

Louisa torceu o nariz e Vinnie falou suavemente para Gino:

— Seu bobo, ela está louca por você.

Agora, para quase toda a família aquilo não passava de uma piada. Mas Lucia Santa, a única que via o âmago da coisa, ficou na verdade furiosa. Pensava seriamente em abrir mais um pouco a cabeça de Gino com o rolo de macarrão, pois com certeza era tão louco quanto o pai.

Como era possível que, como um santo idiota, ele dissesse que a mocinha não gostava dele; sem qualquer vestígio de rancor, sem um mínimo de orgulho masculino ferido. Que era então Caterina para esse seu soberbo filho? Merda? A filha de um homem rico que podia garantir o seu futuro e o seu sustento; bonita, com pernas grossas e seios grandes, muito acima desse vagabundo, desse imprestável, desse candidato à cadeira elétrica; e ele nem ligava? Não tinha a menor importância para ele que a jóia de uma mocinha italiana não gostasse dele? Quem ele pensava que era, o rei da Itália? Que tolo que era, se não conseguia ver como os olhos da pobre Caterina o devoravam. Oh, era um caso perdido, completamente perdido, tal como o pai, e a caminho de uma terrível desgraça. Pegou o rolo de macarrão para bater nele, injustamente, apenas por prazer e para aliviar a bílis, mas Gino, com o instinto dos verdadeiros criminosos que fogem mesmo quando são inocentes, girou nos calcanhares e desceu correndo as escadas. Assim desmoronou outro sonho de Lucia Santa, e, tolo e cômico como foi, plantou a primeira semente de ódio no seu peito.

 

Durante sete anos, Frank Corbo deixou a família em paz. Agora ele viria perturbá-la novamente. Lá longe, em Long Island, no Hospital Estadual dos Peregrinos para Alienados, ele resolveu empreender sua última escapada. E assim, numa noite escura, na clausura de seu cubículo, estourou os miolos. Lentamente, divinamente, fez subir a grande onda de sangue cerebral que atirou seu corpo no chão ladrilhado da cela e libertou para sempre aquela minúscula centelha que restava de sua alma.

 

Eram 10 horas da manhã, quando o telegrama chegou, e Lucia Santa estava tomando café com a fabulosa Teresina Coccalitti. E essa terrível mulher, para mostrar sua grande amizade, revelou um dos seus segredos. Sabia ler inglês. Isso causou mais espanto em Lucia Santa do que a notícia contida no telegrama. Como essa mulher estava armada contra o mundo! E como encarou friamente Lucia Santa! Não podia haver dor fingida perante aqueles olhos argutos.

É bem terrível saber que um ser humano que deu a vida para nos inspirar confiança não nos pode mais levar a ter pena de seu destino. Consigo mesma, Lucia Santa era completamente honesta; a morte de Frank Corbo trouxe uma sensação de alívio, uma libertação de medo oculto e incômodo de que algum dia ela devia condená-lo novamente a ser enclausurado. Ela o temia; tinha receio, por causa dos filhos; lamentava os sacrifícios que a vida dele exigiria.

Indo mais adiante. Ela acreditava no perdão de Deus: a morte do marido tirara-lhe um peso terrível do espírito. Em suas raras visitas, vendo-o enclausurado no cubículo provido de janelas com grades, a sua fé na vida se esvaíra, ela perdera as forças para os dias futuros.

Lucia Santa não sentira dor; apenas um alívio enorme da tensão. O homem que fora pai de três de seus filhos morrera paulatinamente em seu coração durante aqueles anos em que estivera encerrado no hospício. Ela não conseguia manter diante dos olhos a figura viva do marido.

Agora Teresina Coccalitti mostrava o espírito impiedoso que caracterizava a Décima Avenida. Ela pôs Lucia Santa no caminho certo. Por que trazer o corpo do marido através de toda Nova York, pagar a um agente funerário, fazer um espalhafato tremendo, lembrar a todo mundo que o marido morreu louco? Por que não levar a família toda para o hospital e realizar os funerais lá? Frank Corbo não tinha família no país para se ofender ou prestar sua última homenagem. Centenas de dólares seriam poupados, mexericos evitados.

Uma rainha não teria raciocinado mais friamente.

Lucia Santa preparou um farto jantar, na verdade muito pesado para o tempo quente de verão, e a família Angeluzzi-Corbo comeu reunida aquela noite. Lucia Santa ficou chocada quando Gino recebeu a notícia muito friamente, encarando-a com firmeza e indiferença. Salvatore e Aileen certamente não podiam lembrar-se dele, mas Gino tinha 11 anos quando o pai fora internado.

Enquanto comiam, traçavam os planos. Larry já dera um telefonema interurbano para o hospital, providenciando para que o enterro fosse realizado ao meio-dia e para que uma pedra fosse colocada no túmulo. Tomara emprestada a limusine do patrão, — o Sr. di Lucca insistira com ele — para levar toda a família até o hospital. Partiriam às sete em ponto da manhã; seria um longo caminho a percorrer. Estariam de volta à tardinha. Seria apenas um dia de trabalho a perder. Octavia e o marido dormiriam na casa da avenida, no antigo quarto de Octavia, Lena poderia dormir de novo com a mãe naquela noite. Tudo foi devidamente combinado.

Gino comeu depressa e depois pôs uma camisa e calça limpas. Quando ele atravessou a porta, Lucia Santa gritou-lhe apreensivamente:

— Gino, volte cedo esta noite. Partimos às sete da manhã.

— Está bem, mãe — respondeu ele e desceu as escadas correndo.

Larry não gostou.

— Ele não sabe que devia ficar em casa esta noite? — perguntou à mãe.

Lucia Santa deu de ombros.

— Toda noite ele vai para a sua Associação de Hudson. Ele é o maioral no seu clube de garotos.

Larry protestou com razão.

— Isto não é modo de se mostrar respeito pelo pai. Vou passar na Associação mais tarde, quando ele e seus amigos estiverem de amores com suas pequenas. A senhora não devia tê-lo deixado ir esta noite.

Octavia soltou uma gargalhada estrepitosa. Quando Larry se metia a moralista, ela sempre achava graça.

— Logo você é que tem de falar — retrucou ela. — Lembra-se das alterações que você dava quando tinha a idade dele?

Larry riu desconcertado, lançando um rápido olhar à mulher. Ela estava ocupada com a criança.

— Ah, vamos parar com isso, mana — começou ele, e, depois, como se nada tivesse acontecido, a história e as aventuras da família passaram a ser rememoradas, enquanto Sal e Lena limpavam a mesa.

Norman Bergeron abriu um livro de poesias. Vinnie encostou seu rosto pálido na mão e começou a ouvir atentamente. Lucia Santa trouxe terrinas de nozes, um jarro de vinho e garrafas de refrigerantes. Teresina Coccalitti apareceu por lá, e tendo-a como nova ouvinte, eles contaram todas as velhas histórias a respeito de Frank Corbo. Octavia começou com a sua frase inevitável: "Quando ele chamou Vinnie de anjo, eu sabia que ele estava louco...". E assim foram até a hora de dormir.

Na manhã seguinte, Lucia Santa verificou que Gino não viera para casa na noite anterior. Às vezes passava as noites fora durante os meses de verão, vagabundando com os amigos, fazendo sabe lá Deus o quê. Mas logo naquele dia é que ele ia atrasá-los para o enterro? Estava de fato aborrecida.

Todos acabaram a refeição matinal, e Gino ainda não tinha chegado. Sua roupa boa estava estendida na cama com uma camisa branca nova e uma gravata. Lucia Santa mandou Vinnie e Larry procurá-lo na rua. Passaram em seu carro pela sede da Associação do Hudson, na Rua 27, e depois foram até a confeitaria da Nona Avenida, onde os rapazes às vezes jogavam baralho a noite inteira. O proprietário míope disse que sim, que Gino estivera ali, havia coisa de uma hora, e fora com uns amigos assistir à sessão matinal do cinema Paramount, Capitol ou Roxy, não tinha certeza qual.

Quando voltaram e deram a notícia a Lucia Santa, ela pareceu ficar atordoada. Tudo o que disse foi:

— Bem, então ele não pode ir.

Quando estavam entrando no carro, Teresina Coccalitti veio até a esquina da Rua 31 para desejar-lhes boa viagem. Em seu habitual vestido preto, com o seu rosto pálido-escuro e cabelo bem preto, ela parecia um resto da noite que se recusava a desaparecer. Lucia Santa convidou-a a acompanhá-los. Teresina sentiu-se honrada — um dia no campo seria um verdadeiro regalo. Não hesitou um momento sequer e empurrou Vinnie para dentro, tomando-lhe o lugar ao lado da janela. E foi assim que ela pôde contar toda a história às amigas da Décima Avenida sobre como a família Angeluzzi-Corbo fora até Long Island enterrar Frank Corbo, como Gino desaparecera e não vira a cara do pai antes de ser coberto de terra. E como só Lucia Santa chorara — mas lágrimas tão cheias de fel que só podiam provir de um poço de raiva, não de dor.

— Haverá o dia do ajuste de contas — afirmou Teresina Cocca­litti, balançando a sua cabeça preta de falcão. — Ele é uma serpente no coração da mãe.

 

Lucia Santa Angeluzzi-Corbo descansava a sua sombra espessa ao cre­púsculo. Sentada à mesa redonda da cozinha, esperava recuperar as forças para descer até a Décima Avenida, a fim de haurir a brisa fresca vespertina.

Durante o dia, sem qualquer motivo, sofrera, de um modo misterioso, um golpe para o espírito que naquela noite enfraquecera a sua razão de viver. Escondeu-se na cozinha escura e vazia, longe de todos, surda e cega a tudo o que amava e tinha de mais caro. Ansiava por mergulhar num sono tranqüilo em que não houvesse o mínimo vestígio de sonho.

Mas quem podia deixar o mundo desprotegido? Lena e Sal brincavam na rua lá embaixo. Gino perambulava pela cidade como um animal selvagem na floresta. Vincenzo dormia indefeso no quarto dos fundos que tinha sido de Octavia, esperando que o acordassem e lhe dessem de comer para ir trabalhar no turno das quatro à meia-noite na estrada de ferro. Os seus netos, os filhos de Lorenzo, esperavam que ela fosse pô-los na cama. A mulher de Lorenzo, doente e rancorosa, devia ser estimulada com uma xícara de café quente para recuperar alguma fé na vida, devia aprender a compreender que os seus sonhos de felicidade eram apenas contos de fadas da infância que toda mulher devia perder.

Lucia Santa não sabia que a sua cabeça estava pendendo sobre a grande mesa redonda. Por um momento, o encerado frio, tocando-lhe no rosto, deu-lhe algum conforto, antes que ela caísse naquele sono profundo em que tudo descansava, menos a mente. Seus pensamentos e preocupações foram se acelerando cada vez mais, até que se apoderaram completamente de seu corpo e fizeram-no tremer no sono. Ela sofria como nunca sofrera quando acordada. Gritava silenciosamente por misericórdia.

América, América, que ossos, carne e sangue diferentes crescem em teu nome? Meus filhos não me entendem quando eu falo, e eu não os entendo quando eles choram. Por que Vincenzo chorava, aquele rapaz bobo, as lágrimas correndo-lhe pelas faces azuladas por sua barba de homem? Ela se sentara na cama dele e batera-lhe na cara como se ele fosse uma criança, terrivelmente assustada. Ele trabalhava, ganhava seu pão, tinha uma família, um lar e uma cama para repousar a cabeça, contudo chorava, dizendo:

— Eu não tenho amigos.

Mas que significava isso?

Pobre Vincenzo, que é que você deseja da vida? Não é bastante estar vivo? Miserabile, miserabile, seu pai morreu antes de você nascer e o fantasma dele o persegue a vida toda. Viva para os seus irmãozinhos e irmãzinha, e depois para a sua mulher e filhos, e o tempo passará e você envelhecerá e tudo será apenas um sonho como eu estou sonhando agora.

Mas nunca lhe diga que o destino é um demônio. Vincenzo e Octavia, seus melhores filhos, e ambos infelizes. Como podia ser isso, quando Lorenzo e Gino, aqueles dois bandidos, sorriam fingidamente para ela e, mostrando alegria nos dentes, iam levando a vida? Onde estavam Deus e a justiça? Oh, mas eles haveriam de sofrer também — não eram invencíveis; o mal está sujeito ao destino. Contudo, eram filhos dela, e aquelas cadelas ordinárias que cochichavam que Lorenzo era um ladrão e assassino eram falsas como Deus.

Não. Lorenzo jamais seria um homem verdadeiro como os pais camponeses da Décima Avenida, como o pai dela na Itália: maridos, protetores dos filhos, fazedores de pão, criadores de seu próprio mundo, resignados com a vida e o destino e que se conformavam em ser pedras para constituir a rocha em que sua família se apoiava. Isso seus filhos seriam. Mas ela dava Lorenzo como um caso encerrado; ela cumprira o seu dever, e ele não era mais uma parte real de sua vida.

Lá no fundo de seu sonho agitava-se um monstro secreto. Lucia Santa procurou acordar antes de ver a sua forma. Sabia que estava sentada em sua cozinha escura, mas pensou que apenas um momento tinha passado e que agora ia apanhar seu tamborete para descer até a avenida. A cabeça dela caiu novamente no encerado frio. O monstro levantou-se e tomou forma.

"Você é igual a seu pai." Era sempre assim que ela encarava a rebeldia de seu filho mais querido. Os olhos aflitos de Gino ficavam com ela quando ele saía de casa. Mas ele nunca reclamava. No dia seguinte, comportava-se como se nada tivesse acontecido.

Era uma verdadeira maldição. Ele tinha os mesmos olhos azuis, assustadores, num rosto escuro, mediterrâneo; tinha o mesmo ar re-, traído e a mesma relutância em falar, o mesmo descaso pelos interesses daqueles mais aproximados dele no sangue. Era inimigo dela, como o pai fora antes, e ela pensava vingativamente em seus crimes: ele a tratava como uma estranha, nunca respeitava suas ordens. Ele a ofendia e maculava o nome da família. Mas haveria de aprender, aquele seu filho; ela ajudaria a vida a lhe ensinar. Quem era ele para divertir-se nas ruas, durante a noite, e correr no parque o dia todo, enquanto seu irmão Vincenzo ganhava o seu pão? Ele já estava quase com 18 anos; devia aprender que não podia ser sempre criança. Ah, se pelo menos isso pudesse ser...

Em seu sonho, Lucia Santa ouviu o monstro começar a dar gargalhadas. Quais eram aqueles pequenos crimes? Mesmo na Itália havia filhos que achavam prazer na preguiça egoísta e na desonra. Mas agora julguemos o crime pelo qual ela nunca o censurava e pelo qual não podia haver perdão. Ele se recusara a ver a cara do pai morto e antes de ele desaparecer para sempre dentro da terra. E assim, agora em seu sonho, ela começou a gritar e a condená-lo eternamente às profundas do inferno.

A luz inundou a cozinha e Lucia Santa ouviu nitidamente passos se aproximando da porta, sabendo que acordaria antes de pronunciar aquelas irrevogáveis palavras de maldição. Felizmente ergueu a cabeça e viu a filha Octavia postada perto dela. Lucia Santa não chegou a pronunciar aquelas terríveis palavras sobre Gino; não lançou seu filho mais querido no inferno.

Octavia sorriu.

— Mãe, a senhora estava gemendo tanto que eu ouvi perfeitamente lá do segundo andar.

Lucia Santa suspirou e disse:

— Faça um pouco de café, vou ficar esta noite em minha própria casa.

Quantas e quantas noites tinham as duas ficado sentadas juntas na cozinha?

Pela abertura da janela traiçoeira que dava para a fila de quartos, elas sempre escutavam a respiração compassada das crianças menores. Gino era um encrenqueiro havia muito tempo, escondendo-se debaixo da mesa redonda rodeada de suas enormes pernas de garras. Para Octavia tudo ali era familiar. A tábua de passar, em pé e inclinada no canto da cozinha; o rádio enorme, em forma de catedral; o armário pequeno, com gavetas para louça e talheres, toalhas de prato, botões e pano para remendos.

Era uma sala onde se podia permanecer horas e mais horas, trabalhar e comer. Octavia tinha saudade dela. Seu impecável apartamento no Bronx tinha uma mesa de porcelana com cadeiras de cromo. A pia branca brilhava como uma parede de ladrilho. Aqui estavam os restos da vida. Depois de cada refeição, a cozinha parecia um campo de batalha com panelas devastadas, enormes terrinas oleosas e escorregadias devido ao azeite e molho do espaguete, além de pratos sujos que davam para encher uma banheira.

Lucia Santa estava imóvel; seu rosto, cada traço de seu corpo encolhido, mostrava um terrível cansaço de espírito. Era um aspecto que assustava Octavia quando criança, mas agora sabia que aquilo passaria, que de manhã a mãe se levantaria milagrosamente restaurada.

Apenas para confortá-la, Octavia perguntou meigamente:

— Mãe, a senhora não se sente bem? Quer que eu chame o Dr. Barbato?

Com uma animosidade deliberada, teatral, Lucia Santa respondeu:

— Estou enjoada dos meus filhos. Estou enjoada da vida.

Mas ao dizer essas palavras reanimou-se. A cor voltou-lhe às faces. Octavia sorriu.

— A senhora sabe, sinto falta principalmente disso... de ouvir a senhora ralhar furiosamente comigo o tempo todo.

Lucia Santa deu um suspiro.

— Eu nunca ralhei furiosamente com você. Você era a melhor de meus filhos. Ah, se pelo menos o resto desses animais se comportasse como você...

O exagero de Lucia Santa impressionou Octavia, que retrucou:

— Mãe, a senhora sempre fala como se eles fossem muito maus. Larry, lhe dá dinheiro toda semana; Vinnie lhe entrega o envelope de pagamento sem sequer abri-lo; Gino e os meninos não se metem em complicações. Que diabo que a senhora quer, afinal, pelo amor de Cristo?

O corpo de Lucia Santa empertigou-se, e seu cansaço desapareceu quase visivelmente. Sua voz tornou-se vibrante ao se preparar para uma discussão que era realmente uma conversa arrebatada, o prazer de sua vida. Ela escarneceu em italiano, essa língua adorável para o escárnio:

— Lorenzo, meu filho mais velho. Ele me dá 10 dólares toda semana... a mim, sua mãe, para alimentar esses seus irmãos e irmã órfãos de pai. Mas aquelas vagabundinhas, com quem ele anda, tomam-lhe todo o dinheiro que ganha no sindicato. A coitada da mulher dele vai matá-lo um dia em sua própria cama. E eu, eu não direi uma só palavra contra ela no julgamento.

Octavia sorriu de satisfação.

— Seu querido Lorenzo? Ah, mãe, deixe de fingimento. Hoje à noite ele vem com sua nota de 10 dólares e sua conversa mole e a senhora o tratará como um príncipe. Tal como essas zinhas que lambem a merda dele.

Lucia Santa disse distraidamente em italiano:

— Com um marido eu pensei que a sua boca ficasse limpa como a outra ficou suja.

Octavia tornou-se completamente vermelha. Lucia Santa se rejubilou. A vulgaridade superficial de sua filha, americana, não era páreo para a dela, italiana até os ossos.

Ouviram passos atravessando os quartos e logo entrou Vinnie na cozinha, com o rosto tonto de sono. Estava usando apenas calças largas e camiseta.

Ele se tornara um rapaz baixo com uma constituição robusta na qual não havia qualquer excesso de carne, de forma que parecia descarnado e desajeitado. Seu rosto era escuro e de aspecto doentio, e ele tinha uma sombra espessa de barba. Podia parecer impetuoso e duro com suas feições ásperas, sua boca bem grossa e nariz avantajado, mas os seus enormes olhos escuros eram peculiarmente indefesos e tímidos, e ele raramente sorria. Pior que tudo para Octavia, sua personalidade tinha mudado. Ele sempre tivera algo cativantemente meigo e amável em si; sempre fora bondoso e atencioso de um modo espontâneo e natural. Mas agora, conquanto fosse obediente à mãe e procurasse ser delicado com todo mundo, seus gestos de cortesia denotavam como que uma queixa amarga, zombeteira. Octavia preferia muito mais que ele dissesse a todo mundo que se danasse. Ela se preocupava com ele, mas ele a irritava, também. Ele era uma decepção. Ela sorriu amargamente ao pensar naquilo. Não somos todos nós? Refletiu no marido sozinho no apartamento no Bronx, lendo, escrevendo, esperando por ela.

Vinnie gritou com uma irritação sonolenta. Sua voz era profundamente masculina, embora infantil e petulante.

— Mãe, por que diabo a senhora não me acordou? Eu lhe disse que precisava sair. Se eu tivesse de ir trabalhar, a senhora me acordaria em tempo.

Octavia retrucou asperamente:

— Ela caiu no sono. Não é brincadeira tomar conta de uns peraltas como vocês.

Lucia Santa virou-se para Octavia:

— Por que você está implicando com ele? O menino trabalha duro a semana inteira. Quase nunca vê a irmã, e quando ela aparece é pra ralhar com ele. Venha cá, Vincenzo, sente-se aqui, tome um pouco de café e coma alguma coisa. Venha, meu filho, e talvez a sua mãe possa encontrar uma palavra agradável para lhe dizer.

Octavia respondeu com raiva:

— Mãe, a senhora é tão fingida...

Então ela percebeu algo no rosto de Vinnie que a fez parar. A princípio, quando a mãe repreendeu Octavia, Vinnie pareceu satisfeito, comovido de gratidão por ela defendê-lo, mas, quando Octavia sorriu, ele compreendeu subitamente que estava sendo engabelado pela mãe. Ele sorriu amargamente ao pensar como podia ser facilmente consolado, depois sorriu francamente com Octavia de si mesmo e da mãe. Tomaram café e conversaram animadamente com aquela profunda intimidade que uma família unida tem, que evita que um aborreça o outro, por mais enfadonha que seja a conversa.

Octavia viu o rosto taciturno de Vinnie abrandar-se em tranqüilidade, e se lembrou da sua meiguice afável. Ele sorriu e até achou graça nas histórias de Octavia sobre uma chefe da sua oficina de costura. Ele contou alguns casos engraçados da estrada de ferro. E Octavia compreendeu que falta fazia ao irmão, como o casamento dela quebrara a harmonia da família — e para quê? Oh, ela sabia agora o que era o casamento; atendera o seu chamado e seu corpo despertara e se deixara dominar por uma paixão consumidora, e não podia repeli-lo agora como fizera outrora, mas ainda não era feliz.

Não, ela não era tão feliz com o marido como o era naquele instante, feliz por ter abrandado a expressão de sofrimento e solidão estampada no rosto do irmão mais novo, pilhado tão nu e tão espontâneo ao acordar de seu sono. Ela quisera ter feito tanto por ele, e não fizera nada — e para quê? O desejo da carne fora muito forte para ela, e encontrara um marido gentil que dominara seus temores. Não teriam filhos, e, graças a isso e a outras precauções preliminares contra o destino, ela e o marido sairiam da pobreza para uma vida melhor. Ela seria feliz algum dia.

Quando Vinnie acabou de se vestir, Lucia Santa e Octavia viram-no com a ternura especial que as mulheres de uma família dispensam a seus rapazes. Ambas imaginaram Vinnie passeando pela rua e enxotando as moças com uma bengala. Admitiram que ele teria uma noite de prazer, aventura de conquistas, entre amigos que não podiam deixar de admirá-lo, apreciá-lo e distingui-lo por ser ele o príncipe que elas, a mãe e a irmã, conheciam muito bem.

Vinnie pôs a sua roupa de sarja e sua fina gravata de seda com seus estonteantes contornos vermelhos e azuis. Alisou o cabelo com água, arrumando o seu rosto áspero, sensível, com blocos simétricos e caprichosamente penteados de cabelo bem preto.

Octavia buliu com ele:

— Quem é a garota, Vinnie? Por que você não a traz aqui em casa?

E a mãe disse, não severamente, à moda bem americana, para parecer uma piada:

— Espero que você arranje uma boa moça italiana, não uma vagabunda irlandesa da Nona Avenida.

Vinnie deu uma risada estrondosa, satisfeita, como se tivesse uma dúzia de garotas a seus pés. Mas, ao dar o nó na gravata e vendo a sua cara e o seu sorriso fingido no espelho, sentiu-se deprimido e acabrunhado.

Ele era usado para a lisonja da família, para observações tais como: "Ah, ele é o quietinho, o que nunca sabe de nada; aquele com o qual temos de tomar cuidado; Deus sabe quantas garotas ele tem, escondidas em outra redondeza." Não podia deixar de sentir-se desvanecido com esse elogio, mas como, diabo, se podia acreditar em tais coisas?

Pelo amor de Cristo, ele trabalhava das quatro da tarde até meia-noite, de terça a domingo. Quando, diabo, podia encontrar as garotas? Nem mesmo conhecia rapazes da sua idade, somente os homens com quem trabalhara os últimos quatro anos na seção de carga. Rápida e rispidamente ele partiu.

Lucia Santa suspirou profundamente e perguntou:

— Aonde vai ele tarde da noite? Que espécie de gente vai encontrar? Que fazem eles? Aproveitar-se-ão dele, pois é tão inocente...

Octavia instalou-se confortavelmente em sua cadeira. Ansiava por ter um livro diante de si e desejava que a sua cama esperasse além do corredor. Mas bem longe, no tranqüilo apartamento desinfetado do Bronx, o marido não dormiria enquanto ela não voltasse. Ficaria lendo e escrevendo na sala de estar provida de cortina e abajur e com o soalho atapetado, e a receberia com o seu sorriso afetuoso, embora penalizado, perguntando: "Passou bem o tempo com sua família?"

Depois a beijaria com a tristeza amável que os tornava estranhos um para o outro.

Lucia Santa aconselhou:

— Não fique aqui até muito tarde. Não quero você no metrô quando todos os assassinos estão viajando para cima e para baixo.

— Eu tenho tempo — retrucou Octavia. — Estou preocupada com a senhora. Talvez eu precise passar aqui algumas noites, tomando conta dos meninos, para lhe dar descanso.

Lucia Santa deu de ombros.

— Tome conta de seu marido, ou você ficará viúva e conhecerá o que sua mãe sofreu.

Octavia respondeu alegremente:

— Então, eu me mudarei logo para vir morar novamente com a senhora.

Mas, para sua surpresa, Lucia Santa olhou para ela de modo taciturno e penetrante, como se não tivesse sido uma piada. Ela corou.

A mãe percebeu que magoara os sentimentos da filha e disse:

— Você me acordou em má hora. Em meu sonho eu ia amaldiçoar o diabo do meu filho como eu o amaldiçôo acordada.

Octavia pediu calmamente:

— Mãe, esqueça isso.

— Não, nunca esquecerei. — Lucia Santa pôs a mão nos olhos. — E, se existe um Deus, ele há de sofrer. — Baixou a cabeça e o aspecto de grande cansaço se espalhou pelo seu rosto e também pelo corpo. — O pai dele foi coberto de terra e o filho mais velho não estava lá para derramar as suas lágrimas. — A sua voz estava verdadeiramente aflita. — Então Frank Corbo não era nada nesta terra, sofreu por nada e está ardendo no inferno. E você me fez aceitar Gino de volta nesta casa sem uma surra, sem uma palavra. Ele nunca se incomodou com o que nós sentimos. Acho que alguma coisa terrível lhe aconteceu que o fez sair louco como o pai. Depois voltou calmamente, recusando-se a falar. Engoli minha bílis, sufoquei-me com ela, e ela está me sufocando agora. Que tipo de animal, que tipo de monstro? Ele traz o desprezo do mundo para o seu pai morto e para si mesmo, depois volta e come e bebe e dorme sem a mínima vergonha. É meu filho, mas em meus sonhos eu o amaldiçôo e o vejo morto no caixão do pai.

Octavia gritou para a mãe:

— Merda! Merda! Merda! — Seu rosto estava contorcido de raiva. — Eu fui ao enterro dele e o detestava. E daí? A senhora foi ao enterro dele e não derramou uma miserável lágrima. A senhora não o visitou uma vez sequer no hospício no seu último ano de vida.

Isso aquietou as duas mulheres. Bebericaram seu café. Octavia acrescentou:

— Gino vai se sair bem, tem boa cabeça. Talvez seja alguma coisa.

Lucia Santa deu uma gargalhada com desprezo.

— Oh, sim, um vagabundo, um criminoso, um assassino. Mas uma coisa ele nunca será: um homem que traz para casa seu envelope de pagamento por um trabalho honesto.

— Veja, é por isso que a senhora está tão zangada... porque Gino não quer trabalhar depois da escola. Porque é o único em quem a senhora não consegue mandar.

— Quem é que deve mandar nele senão a mãe? — perguntou Lucia Santa. — Ou você acha que ninguém nunca vai mandar nele? Isso é o que ele pensa. Ele vai comer de graça o resto da vida, não é isso? Mas não é assim. Que lhe acontecerá quando descobrir o que é a vida, como ela é dura? Ele espera muito, gosta muito da vida. Eu era como ele, na sua idade, e sofri por isso. Quero que aprenda comigo o que é a vida, não com os estranhos.

— Mãe, a senhora não pode — hesitou Octavia. — Veja o seu querido Larry, toda a complicação que a senhora arranjou para ele, e agora ele é quase um gangster, cobrando dinheiro para esse sindicato falso.

— Que é que você está dizendo? — gesticulou Lucia Santa com desprezo. — Eu não podia nem sequer fazê-lo bater nos irmãozinhos por mim, ele era tão medroso...

Octavia balançou a cabeça reprovadoramente e retrucou de modo lento e com espanto:

— Mãe, às vezes a senhora é tão esperta. Como pode ser tão estúpida?

Lucia Santa bebericou distraidamente seu café.

— Ah, bem, ele está fora de minha vida. — Ela não viu Octavia virar o rosto para o outro lado, e então continuou: — Gino é quem mais me dá dor de cabeça. Ouça isso agora. Aquele bom emprego na farmácia, ele ficou lá dois dias. Dois dias! Outras pessoas ficam no emprego 15 anos; meu filho, dois dias.

Octavia deu uma gargalhada.

— Ele saiu do emprego ou foi demitido?

— Ah, você acha graça? — perguntou Lucia Santa em seu italiano mais fino, traindo a sua completa exasperação. — Ele foi posto para fora. Depois da escola, um dia, parou para jogar futebol, depois foi trabalhar. Pensava certamente que fechariam a farmácia até ele aparecer lá, não havia mal nenhum. Não sabia que o padrone, não querendo liquidar o seu negócio, teve que ficar ele mesmo lá. Não, meu querido Gino nem completou a primeira semana.

— Seria melhor eu falar com ele — disse Octavia. — A que horas ele chega em casa?

Lucia Santa deu de ombros.

— Quem sabe? Um rei chega e sai quando bem entende. Mas, diga-me uma coisa: que é que esses rapazolas têm para conversar até três horas da manhã? Eu olho pela janela e os vejo sentados na escadaria falando e falando, mais do que as velhas.

Octavia suspirou.

— Diabo, sei lá...

A filha se aprontou para ir embora. Lucia Santa tirou as xícaras de café da mesa. Não houve qualquer gesto de carinho, nem beijo de despedida. Era como se ela fosse lá fora fazer uma visita e depois voltasse. A mãe foi até a janela da sala da frente a fim de acompanhar a filha com os olhos até ela dobrar a Décima Avenida para a estação do metrô.

 

Segunda-feira era a noite de folga de Vinnie Angeluzzi na estrada de ferro. Era a noite que ele compensava a carne pela pobreza de sua vida.

A importunação da mãe e da irmã o embaraçara, porque ele ia sair para gastar seus cinco dólares e ficar com a escrita em dia, de modo simples e eficiente. Tinha vergonha disso porque era outra prova de fracasso. Ele se lembrava do orgulho oculto na voz da mãe quando ela repreendia Larry por aproveitar-se das moças. Ela e Octavia ficariam desgostosas se soubessem o que ele ia fazer agora.

Vinnie trabalhava no turno das quatro à meia-noite na estrada de ferro, desde que deixara o ginásio. Nunca fora a uma festa, nunca beijara uma garota, nunca falara com uma pequena na quietude de uma noite de verão. Seu dia de folga era segunda-feira, e não havia nada a fazer naquela noite da semana. Sua timidez piorava a coisa.

Assim, Vinnie foi pegar a sua condução pobre, mas honesta, para ir ao bordel respeitável recomendado pelo chefe da seção de carga, que não queria ver seus subordinados rondando os bares para apanhar prostitutas que atendiam ao bater de palmas ou coisa pior. Às vezes o próprio chefe aparecia por lá.

Para esse divertimento todos os funcionários iam vestidos de maneira impecável, como se fossem procurar emprego. Usavam traje completo, gravata, chapéu e sobretudo leve, que era o uniforme para o dia de lazer, o sétimo dia dedicado ao descanso e à festa da alma. Vinnie, com seu chapéu preto, era sempre alvo de brincadeira por parecer um gangster, embora fosse o mais novo de todos. Encontravam-se no bar de Diamond Jim, que vendia cachorros-quentes e sanduíches de carne assada quente, e frios quase tão cinzentos quanto a pele do chefe da seção de carga. Cerimoniosamente, pediam uísque, e um dos funcionários dizia autoritariamente, pondo o dinheiro no balcão:        

— Esta rodada é minha.

Depois que cada um tivesse pago solicitamente uma rodada de bebidas, eles saíam para a Rua 42, feericamente iluminada pelos letreiros a neon dos cinemas que se estendiam ao longo dos dois lados da rua. Nessa hora havia tantos transeuntes vagando por ali que eles tomavam grande cuidado para se manterem juntos, como se, caso um deles se separasse dos demais, se perdesse, não sendo capaz de encontrar os outros. Quando percorriam a Rua 42, passavam pelas grandes mulheres de papelão pintado, sedutoras em suas armações verticais de madeira, a sua nudez desenhada em luzes elétricas vermelhas e roxas.

Era um hotel sossegado, de quatro andares, recatadamente invisível naquele fogo de carne fria, ardente. Quando atravessavam a entrada iam diretamente para o elevador. Não tinham de passar pelo vestíbulo, pois aquela entrada só era usada por gente como eles. O ascensorista piscava o olho — era uma piscada séria, comercial, sem dúvida um comentário frívolo sobre o trabalho que realizava — e levava-os para o andar superior. O ascensorista despejava-os num corredor atapetado, deixava a porta de sua gaiola de ferro aberta e desguarnecida para bater na porta apropriada e murmurar a senha secreta, depois estudava-os atentamente quando eles penetravam em fila na sala.

Era a sala de estar de um apartamento de dois quartos com inúmeras cadeiras de couro pequenas. Geralmente havia um homem lendo uma revista, esperando a vez. Havia uma mulher quase invisível na pequena cozinha, tomando café e dirigindo o movimento. Em seu armário, viam-se garrafas de uísque e copos. Quem quisesse uma bebida podia entrar na cozinha e largar uma nota de dólar, mas geralmente as coisas andavam com tamanha rapidez que não havia tempo. Essa mulher tinha muito pouco a ver com os fregueses e parecia mais uma guardiã de presídio feminino.

Era do rosto dessa mulher que Vinnie se lembrava sempre —nunca das garotas que trabalhavam nos quartos. Ela era baixa e seu cabelo era denso e muito preto, e, embora não houvesse meio de se determinar a sua idade, era muito velha para o ofício. Mas eram seu rosto e sua voz que a tornavam desumana.

A voz era aquele horrível som rouco que muitas prostitutas têm, como se torrentes de sêmen doentio inundando-lhe o corpo tivessem afetado as cordas vocais. Ela só falava com grande esforço. Sua voz era mais assustadora do que qualquer cicatriz visível. Suas feições eram para os olhos jovens de Vinnie a verdadeira máscara da maldade. A boca era grossa e sem forma e apertava-lhe friamente os dentes que expulsavam a carne. As faces e bochechas eram pesadas, pendulares, como de uma matrona, mas o nariz era atrevido e engrossado por algo mais misterioso do que a natureza, os olhos negros e inexpressivos como dois pedaços de carvão. Por trás de tudo isso, havia algo em cada um de seus gestos e palavras que denotava não que ela odiava ou desprezava o mundo, mas que não sentia mais qualquer emoção carnal por alguém ou por alguma coisa. Era assexuada. Quando passava por uma pessoa, a sua cabeça pendia para um lado, como um tubarão. Uma vez ela resvalou perto de Vinnie e ele encolheu-se para trás como se ela fosse arrancar um pedaço de carne do corpo dele. Quando um homem saía de um quarto, ela apontava para o freguês seguinte, mas só depois de abrir a porta do quarto e de gritar para dentro:

— Está pronta, querida?

Ouvindo essa voz, o sangue de Vinnie ficava completamente gelado.

Mas ele era moço. Quando entrava no quarto, seu sangue esquentava outra vez. Via apenas vagamente o rosto pintado da mulher, sempre a mesma. Geralmente loura, ela se movia no círculo dourado de uma lâmpada forte com abajur, de modo que as cores de seu rosto pareciam refratar a luz, a boca vermelha pintada, o comprido nariz pálido brilhando através de seu osso branco empoado, as faces cadavéricas, espectrais, e as órbitas dos olhos de aparência verde com manchas pretas.

O que acontecia a seguir sempre embaraçava Vinnie. A mulher levava-o até uma mesa baixa no canto do quarto, onde havia uma bacia de água quente. Ela tirava os sapatos, as meias e as calças, e ela lavava-lhe as partes pudendas, examinando-as atentamente, clinicamente.

Depois ela o levava para a cama na parede distante, ele usando ainda a camisa e a gravata (uma vez, cheio de entusiasmo, ele começou até a tirar essas coisas e a mulher disse algo como: "Não, pelo amor de Cristo, não posso perder toda a noite.") e, saindo de seu roupão, ficava nua diante dele, à luz sombria da lâmpada da cabeceira da cama.

Os mamilos pintados de vermelho, a barriga redonda, com uma protuberância de gordura, o nítido triângulo preto e duas longas colunas de coxas bastante empoadas, tudo servia para aquele fim. Quando a prostituta tirava o roupão e apresentava aquele corpo, o sangue subia para o cérebro de Vinnie com tamanha força que ele ficava com dor de cabeça o resto da noite.

O abraço era formal, uma verdadeira pantomima, a mulher afundando-se de costas na cama coberta com uma colcha, Vinnie arrastado para cima dela, caindo de joelhos, freando o corpo em torno do qual a mulher cruzava as pernas fortemente.

Estava perdido. Carne; carne quente macia contra a sua própria carne; cera derretida; carne morna, mole, pegajosa, sem sangue ou nervos fibrosos. O corpo dele, tecido separado, luxuriosamente, sugava o que aquela carne destilava. Sua armadura esticada impressionava-se naquela cera que se moldava com a forma de seus próprios ossos, e num momento ofuscante ele se sentia livre de sua solidão.

Era só isso. Os colegas esperavam, e todos saíam para jantar no "china". Em seguida iam assistir a um filme no Paramount ou jogar boliche, e, para finalizar, um café mais tarde no automático. Quando os companheiros arranjavam namorada firme ou ficavam noivos, não deixavam de vir ao hotel, mas cortavam a noitada logo depois, para visitarem a namorada. Iam se afastando aos poucos.

Para Vinnie, isso era como o alimento que comia, a cama em que dormia, o dinheiro que ganhava, parte da rotina necessária da vida, para se manter vivo. Mas, à medida que o tempo passava, ele se sentia cada vez mais separado do mundo que o cercava e de seus habitantes.

 

Onde estavam aqueles desgraçados que amaldiçoavam a América e seu sonho? E quem podia duvidar agora? Com a guerra na Europa, os ingleses, franceses, alemães e até Mussolini esbanjando milhões para matar, todo italiano ao longo da muralha ocidental da cidade estava com os bolsos cheios. A terrível Depressão tinha terminado, um homem não precisava mais pedir o seu pão, os visitadores do serviço social podiam ser insultados e postos escadas abaixo. Faziam-se planos para se comprar casas em Long Island.

Na verdade, era dinheiro ganho para ajudar os povos a se matarem uns aos outros. A guerra na Europa criava trabalho para todos. Assim resmungavam aqueles que tinham a cabeça quente e procuravam complicações. Mas em que outro país até o pobre podia se tornar rico com a desgraça do mundo?

Naturais do sul da Itália, Sicília, Nápoles, os Abruzos, aqueles italianos da Décima Avenida não se interessavam que Mussolini ganhasse a guerra. Nunca amaram a terra natal; ela nada significava para eles. Por séculos o seu governo fora o mais ferrenho inimigo de seus pais e dos pais de seus pais antes deles. Os ricos cuspiam nos pobres. Os gigolôs de Roma e do norte tinham-lhes sugado o sangue. Que sorte estar ali a salvo na América!

Somente Teresina Coccalitti mostrava-se descontente. Não podia mais declarar que os filhos não estavam trabalhando nesses tempos e fora riscada da assistência social. Agora andava toda cheia de segredos, comprando grandes sacos de açúcar e latas de banha e peças intermináveis de fazenda. Dizia misteriosamente para Lucia Santa:

— Virá um dia... ah, virá um dia... — mas tapava logo a boca com os dedos e não falava mais nada.

Que queria ela dizer? Na verdade, havia a convocação militar, mas apenas um rapaz da Décima Avenida fora chamado. Nada de grave.

Lucia Santa andava muito ocupada para ouvir as palavras da Signora Coccalitti zunindo em sua cabeça. Enchentes de ouro iam invadindo os cortiços. As crianças estavam trabalhando depois da escola. Sal e Lena faziam meio expediente na nova indústria farmacêutica da Nona Avenida. Vinnie tinha serviço sete dias por semana. Que os povos da Europa se matassem uns aos outros, para seu contentamento íntimo, se isso era o seu prazer. A aldeia dos pais de Lucia Santa era tão pequena, a terra tão imprestável, que nenhum de seus parentes podia estar em perigo.

Somente aquele patife do Gino não trabalhava. Mas esse era o seu último verão de ociosidade. Ele terminaria o curso secundário em janeiro e não haveria mais desculpas. Não adiantava nada pedir às amigas que arranjassem emprego para ele, pois Lucia Santa tentara e Gino sempre era despedido.

Mas havia uma coisa que aquele mascalzone podia fazer. Vinnie esquecera seu saco de comida novamente; Gino podia levá-lo para ele. Lucia Santa impediu a passagem de Gino quando, com o bastão de beisebol debaixo do braço, aquela luva de parteira na mão, ele tentava passar por sua figura volumosa. Como um duque com bengala e chapéu.

— Leve isto para o seu irmão no trabalho — disse a mãe, estendendo o saco pardo engordurado, e poderia ter rido ao ver a cara de desagrado que ele fez.

Como ele era orgulhoso, como são todas as pessoas que não têm de suar para ganhar o pão... Como era sensível...

— Estou atrasado, mãe — retrucou Gino, não tomando conhecimento do saco de comida.

— Atrasado para quê? — perguntou Lucia Santa impacientemente. — Atrasado para casar? Atrasado para pôr no banco todo o dinheiro que você ganhou esta semana? Atrasado para ver um amigo a fim de conseguir um trabalho honesto?

Gino suspirou:

— Mãe, Vinnie pode arranjar alguma coisa para comer na cantina.

Aquilo era demais. Lucia Santa volveu asperamente:

— Seu irmão está sacrificando a vida por você... nunca brinca nem corre no parque. Você nem mesmo o convida a sair, e ele que é tão solitário. E você não pode nem mesmo levar-lhe a comida? Você é uma vergonha. Vá jogar seu beisebol e vagabundar por aí com seus amigos. Eu mesma levo.

Acabrunhado, Gino apanhou o saco. Viu a luz da vitória nos olhos da mãe, mas não se importou. Queria de fato fazer alguma coisa por Vinnie.

Saiu andando depressa pela Décima Avenida para a Rua 37 e depois para a Décima Primeira Avenida. Gostava de fazer o corpo mover-se livremente através do ar carregado do verão. Quando era menor, dava saltos enormes para ver se podia voar como lhe parecia que podia, mas agora estava muito crescido. Quando já estava chegando ao edifício do serviço de carga, atirou o saco de papel pardo para o alto e para a frente, depois deu uma corrida estonteante para pegá-lo antes de cair no chão.

Subiu vagarosamente no edifício velho cheirando a rato num elevador com grade de ferro. O ascensorista, trajando um uniforme cinza sujo com um distintivo amarelo enferrujado na lapela, abriu as portas de metal, com aquele desprezo misterioso que alguns adultos dispensam aos jovens, e Gino saltou num escritório de sobreloja que se estreitava no sentido da extremidade afastada do edifício.

Era um pesadelo em que o indivíduo vê uma prisão na qual sabe que algum dia virá a viver. Havia filas extensas de mesas com máquinas de calcular lançando rolos de inúmeras contas de fretes. Os funcionários que trabalhavam com essas máquinas estavam todos de colete, camisa branca e gravata solta pendente. Eram mais velhos do que Vinnie, e muito ligeiros. As máquinas batiam cegamente. Cada mesa tinha a sua própria lâmpada amarela; o resto do escritório estava às escuras, com exceção de um balcão comprido empilhado de contas impressas. Neste balcão um homem magro curvado, com a cara mais desolada que Gino já vira, estava separando faturas à luz de um ofuscante projetor. Não havia rumor de vozes. Não havia vestígio da luz do dia que brilhava lá fora. Era como se essas pessoas estivessem todas sepultadas acima do barulho dos vagões de carga engatados que se moviam lá embaixo, no poço do edifício. Gino olhou e finalmente localizou Vinnie.

O irmão era o único funcionário sem colete e usava uma camisa de cor para poder vesti-la dois ou três dias sem trocá-la. O seu cabelo preto ondulado parecia úmido à luz da lâmpada amarela com braço de ferro. Gino percebeu que Vinnie era mais vagaroso do que os outros e que seu rosto se contorcia com uma intensa concentração no trabalho. Os outros tinham a expressão indiferente de sonâmbulos.

De repente, Vinnie ergueu os olhos. Fitou Gino sem expressão. Acendeu um cigarro. Com surpresa, Gino verificou que Vinnie não podia vê-lo, como também qualquer um dos outros funcionários. Ele estava postado no escuro, fora do mundo deles. Atravessou a primeira linha de mesas para o quadrado amarelo iluminado. Como se ele tivesse tapado o sol, cabeças se moveram subitamente. Vinnie levantou os olhos.

Uma alegria confrangedora estampou-se no rosto de Vinnie. Seu sorriso era meigo, como teria sido em sua infância. Gino ergueu o saco de comida e atirou-o. Vinnie o apanhou com habilidade e Gino foi postar-se desajeitadamente ao lado da mesa do irmão.

— Obrigado, garoto — disse Vinnie.

Os funcionários sentados em cada lado dele pararam de bater nas máquinas, e Vinnie lhes falou:

— Este é meu irmão mais novo, Gino.

Gino ficou embaraçado com o orgulho na voz de Vinnie. Os dois funcionários disseram um "Alô, garoto" e lançaram-lhe olhares frios, como que examinando-o. Compenetrou-se de suas calças azuis de algodão grosseiro e sua camiseta esportiva e ficou desconcertado, como se tivesse vindo a alguma assembléia cerimoniosa impropriamente vestido. O homem de cara desolada gritou:

— Vamos bater as contas, rapaziada, estamos ficando para trás.

Depois ele arrastou os pés até Vinnie e entregou-lhe um monte de contas. Parecia um rato velho magro.

— Você está com a sua conta atrasada agora, Vinnie — disse ele.

Vinnie respondeu nervosamente ao homem que voltava para o seu lugar:

— Eu desconto na hora do café.

Gino virou-se para ir embora. Vinnie levantou-se e acompanhou-o do círculo iluminado até o elevador. Esperaram, escutando o ranger dos cabos de aço e o barulho do elevador subindo.

— Tome um atalho atravessando o pátio ferroviário — aconselhou Vinnie. — Mas cuidado com as locomotivas que estão manobrando. — Pousou a mão no ombro do irmão e acrescentou: — Obrigado por me trazer a comida. Você tem jogo sábado?

— Tenho — respondeu Gino.

O elevador estava demorando. Ele queria ir embora. Viu Vinnie olhar nervosamente para os funcionários nas suas máquinas, no círculo iluminado, e perturbar-se quando o homem de cara de rato se virou, procurando-os cegamente no escuro.

— Se eu acordar em tempo vou assistir — disse Vinnie.

Então o elevador chegou, com as suas portas de ferro deslizando, e Gino entrou e começou a descer vagarosamente. O fedor de coisa podre, de ratos e de merda velha causou-lhe enjôo. Quando saiu do edifício, levantou a cabeça para a luz solar quente e sadia de setembro. Ficou parado algum tempo, sentindo um alívio quase alegre e uma liberdade total.

Não pensou mais em Vinnie. Começou a correr lentamente pelo pátio ferroviário, um grande campo de aço branco brilhante que alternadamente se abria em leque e convergia misteriosamente ao sol. Dobrou o braço como se estivesse carregando uma bola e disparou pelos dormentes de madeira, evitando os trilhos de ferro que se juntavam para pegar os seus pés que voavam. Máquinas pretas vinham em sua direção e ele se desviava facilmente para a esquerda e para a direita, aumentando a velocidade. Uma locomotiva vinha atrás dele, com o maquinista sentado na janela do lado de Gino. O rapazola apostou carreira com ela, indo a toda velocidade pelos dormentes de madeira ao lado da máquina, voando para a frente, até que o maquinista olhou displicentemente para ele e então a máquina preta roncou mais alto e ultrapassou-o, entrando num labirinto de vagões de carga parados, pardos e amarelos. Então, Gino parou, cansado. Sentiu um pouco de suor por baixo da camiseta branca de lã e estava vorazmente faminto e também com sede — e então, de repente, sentiu-se forte e revigorado. Deu outra corrida com passos longos e elásticos e saiu do pátio para entrar na rua próxima ao Chelsea Park. Ali encontrou os amigos batendo bola e esperando por ele.

 

Certa manhã, uma semana depois, Lucia Santa acordou pressentindo que alguma coisa estava errada. Sal e Lena ainda estavam na cama. Em certo momento, nas primeiras horas da manhã, Lucia Santa ouvira Gino chegar em casa; conhecia seu modo desleixado, barulhento, de tirar a roupa. Mas não ouvira Vinnie. Então lembrou-se de que segunda-feira era a noite de folga dele, e naquelas noites ele às vezes chegava em casa até mais tarde do que Gino.

Embora soubesse ser impossível alguém entrar em casa sem que ela acordasse, Lucia Santa foi verificar a cama de Vinnie. Ele agora usava antigo quarto de Octavia, o único aposento privado do apartamento. A cama não estava desfeita, ninguém tinha dormido nela naquela noite, mas Lucia Santa não ficou seriamente sobressaltada. Mais tarde, depois de mandar os meninos para a escola, encostou-se no travesseiro colocado no peitoril da janela e ficou vigiando se Vinnie aparecia na avenida. O tempo passava; ela viu a primeira turma de guarda-linhas atravessar a avenida para o almoço e sabia que devia ser quase meio-dia. Pela primeira vez, ficou preocupada. Pôs um casaco de lã grosseiro e desceu para falar com Lorenzo.

Sabia que o filho mais velho estava sempre em seus piores momentos de manhã, mas se achava muito nervosa para esperar. Encontrou Larry tomando o seu café, com uma camiseta amarrotada por cima do corpo e exibindo o peito cabeludo. Ele bebericava o seu café e respondeu com verdadeira impaciência:

— Mãe, ele não é uma criancinha, pelo amor de Deus! Seja lá o que for que estivesse fazendo, acabou muito tarde para vir para casa. Quando ele acordar vai para o trabalho.

— Mas se aconteceu alguma coisa com ele? — perguntou Lucia Santa, apreensiva. — Como é que vamos saber?

Larry retrucou secamente:

— Não se preocupe, a polícia mete o nariz em tudo.

Louisa serviu café para a sogra. Seu rosto sereno e sério também estava preocupado. Ela gostava de Vinnie e o conhecia melhor do que ninguém, com exceção da mãe, e achou estranha a ausência.

— Larry, por favor, vá ver se descobre o que houve — suplicou ela.

Isso era tão raro nela que Larry cedeu. Bateu de leve no ombro da mãe e disse:

— Irei até o escritório de Vinnie, está bem, mãe? Agora deixe-me acabar de tomar o café.

E assim Lucia Santa teve de voltar para cima e esperar.

Às três horas, Gino e os meninos chegaram da escola, e Larry ainda não havia regressado. A mãe procurou fazer Gino ficar com ela, mas ele pareceu não entender. Saiu correndo sem mesmo responder, parando apenas para apanhar a bola. Sal e Lena fizeram seus deveres escolares na mesa redonda da cozinha e ela preparou pão com azeite e vinagre para eles. Finalmente, às cinco horas, Larry veio dizer que Vinnie não fora trabalhar e que ninguém sabia onde ele estava. Ela percebeu que Larry estava preocupado também e começou a torcer as mãos e a invocar Deus em italiano.

Louisa subiu com os filhos e procurou acalmar a sogra. Na confusão ninguém ouviu os outros passos que subiam atrás dela. De repente surgiu o uniforme preto de um guarda ferroviário no vão da porta, tendo ao lado o rosto desolado do panettiere. O panettiere passou à frente do guarda ferroviário, como para evitar que Lucia Santa o visse e o ouvisse, inconscientemente mantendo as duas mãos suspensas, com as palmas voltadas para ela, num gesto de piedade tão indescritível que Lucia Santa ficou totalmente muda. Foi Louisa quem de repente deu um gemido de terror.

 

Gino estava sentado tranqüilamente na varanda da Assoiação do Hudson com os amigos, quando Joey Bianco chegou e disse:

— É melhor você ir para casa, Gino, há um bocado de confusão por lá.

Gino ultimamente pouco via Joey Bianco. Depois de crescidos, tinham-se afastado um do outro, como acontece freqüentemente às crianças, e agora sentiam-se reciprocamente embaraçados quando se encontravam. Assim, Gino não procurou parar Joey, quando ele continuou a andar, nem perguntou-lhe o que acontecera. Quase nem mesmo se abalou a ir para casa, mas depois resolveu ir ver o que estava ocorrendo.

Atalhou diagonalmente pelo Chelsea Park e correu desabalada-mente pela Décima Avenida até alcançar a esquina da Rua 30. Então avistou uma multidão em frente do seu cortiço e começou a andar bem devagar.

Não havia ninguém da família na multidão. Gino subiu disparado as escadas e entrou no apartamento.

Estava apinhado de vizinhos. No canto perto da janela, Gino viu Sal e Lena rijos e sozinhos, o rosto branco de medo. Parte da multidão se mexia ininterruptamente, e ele conseguiu ver a mãe sentada numa cadeira. O Dr. Barbato segurava uma agulha no ar. Larry agarrava a mãe com toda a força para evitar que ela se curvasse e se erguesse em convulsões.

Lucia Santa estava com um aspecto horrível, como se os músculos que ligavam os traços de seu rosto uns aos outros tivessem sido esmagados. A sua boca estava esquisitamente torcida e ela parecia querer falar. Seus olhos tinham a fixação peculiar dos cegos. A parte inferior de seu corpo estava fugindo da cadeira quando a mão do Dr. Barbato se moveu rapidamente e enfiou-lhe a agulha no braço. Depois ele permaneceu ao lado dela, observando-a.

Lentamente, as feições de Lucia Santa foram readquirindo uma espécie de serenidade. Suas pálpebras se fecharam e a tensão saiu do corpo.

— Ponha-a na cama — disse o Dr. Barbato. — Ela vai dormir uma hora. Chame-me quando ela acordar.

Larry e algumas das mulheres carregaram Lucia Santa para o quarto. Gino viu que estava ao lado de Teresina Coccalitti. Muito baixinho, sendo a primeira vez que falava com ela, perguntou:

— Que aconteceu a minha mãe?

Zia Teresina teve a satisfação em contar a ele. Teve o prazer, nesse dia negro, de dizer uma coisa certa.

— Oh, não aconteceu nada a sua mãe — respondeu ela, medindo as palavras. — Foi o seu irmão Vincenzo. Acharam-no no pátio ferroviário, atropelado por uma máquina. Quanto à sua mãe, isso é o que acontece aos pais quando choram os filhos. Tenha um pouco de pena dela agora.

Gino lembrou-se sempre da expressão de ódio no rosto daquela mulher que parecia um falcão negro; lembrou-se sempre quão pouco sentiu a morte do irmão e como ficou impressionado ao verificar que alguém, sua mãe ou qualquer outra pessoa, pudesse ficar tão arrasado pela dor.

 

Quando Larry saiu do quarto, fez sinal para que Gino o acompanhasse. Desceram as escadas juntos, correndo, e entraram no carro de Larry. Estava escurecendo. Foram até a Rua 36 com a Nona Avenida e pararam em frente de um cortiço de arenito pardo. Larry falou então pela primeira vez.

— Suba ao terceiro andar e diga a Lefty Fay para descer. Quero falar com ele.

Mas naquele momento ele viu alguém descer a varanda e baixar a janela, e então gritou:

— Ei, Lefty! — Depois disse para Gino: — Deixe-o entrar aqui em seu lugar, vá para trás.

Lefty Fay era um irlandês alto, de ombros largos, e Gino lembrava-se que ele crescera com Larry — de fato, era o único do quarteirão que podia derrotar Larry no soco. Enquanto os dois amigos acendiam seus cigarros, Gino encolhia-se no assento traseiro. A comunicação cruel de Zia Teresina não passava ainda de meras palavras. Ele não sentia que Vinnie estivesse realmente morto.

A voz de Larry estava calma no escuro. Cansada.

— Jesus Cristo, que dia nojento para todo mundo...

— É — respondeu Lefty Fay.

Sua voz era áspera por natureza, mas agora tinha um tom de verdadeira tristeza.

— Eu ia sair agora para tomar qualquer coisa. Não pude nem jantar — acrescentou ele.

— Como é que você não sabia que era meu irmão depois que a máquina o pegou?

Não havia qualquer acusação na voz de Larry, mas Lefty Fay perguntou zangado:

— Jesus Cristo, Larry, será que você está me acusando? Foi bem dentro do pátio, perto da Rua 42.

Quando viu que Larry não respondia, ele continuou mais calmo:

— Eu só o vi como menino, quando você e eu costumávamos andar juntos. Ele mudou um bocado desde então. E não tinha nenhuma identificação.

— Não estou acusando você — disse Larry. Sua voz estava muito cansada. — Mas o guarda ferroviário diz que você escreveu em seu informe que meu irmão pulou na frente da máquina. Como é que pode?

Na escuridão, Gino esperava que Fay respondesse. Houve um longo silêncio. Depois a voz rouca, curiosamente abafada, respondeu:

— Larry, juro perante Cristo que foi isso o que me pareceu. Se eu soubesse que era seu irmão, jamais escreveria tal coisa no informe, mas foi isso que me pareceu.

Gino sentiu que Larry estava forçando a voz ao insistir:

— Vamos, Lefty. Você sabe que meu irmão Vinnie não faria uma coisa dessas. Ele sempre teve medo da própria sombra, desde que era garotinho. Talvez estivesse bêbado ou se atrapalhasse no momento. Você pode mudar o informe.

Fay respondeu prontamente:

— Larry, eu não posso, você sabe que eu não posso. Os policiais virão todos para cima de mim. Então eu perco o emprego.

Larry retrucou com voz decidida:

— Eu lhe garanto um emprego.

Não houve resposta. Larry continuou:

— Lefty, eu sei que você está errado. Mas se você insistir nesse informe, sabe o que acontece a minha mãe? Vai ficar maluca. Você costumava comer lá em casa quando éramos meninos. Você fai fazer isso com ela?

A voz de Fay vacilou:

— Preciso pensar em minha mulher e filhos.

Larry não respondeu. Fay continuou:

— Se eu mudar o informe, a estrada talvez tenha de pagar indenização a sua mãe. Isso quer dizer que eles vão ficar danados comigo, com toda a certeza. Simplesmente não posso fazer isso, Larry. Não me peça uma coisa dessas.

— Você fica com metade da grana — retrucou Larry — e estou lhe pedindo isso.

Fay sorriu com uma raiva nervosa.

— Só porque você trabalha para di Lucca quer me obrigar a fazer isso, Larry?

Era quase um desafio, uma lembrança dos tempos em que eram crianças e Lefty vencia Larry na calçada.

De repente, Gino ouviu uma voz que não reconheceu e que fez o seu sangue esfriar com um medo tremendo. Era uma voz deliberada-mente saturada de todo o veneno, crueldade e ódio que uma criatura humana pode arrancar das profundezas do seu ser. A voz era de Larry.

— Pois eu vou crucificá-lo — disse ele.

Era mais que uma ameaça. Era um juramento de morte, e era uma coisa desumana.

O medo que invadiu o carro fez Gino sentir-se doente. Abriu a porta e saiu para o ar livre. Queria ir para longe dali, mas receava que, se o fizesse, Larry pudesse fazer alguma coisa a Fay. Mas depois viu Fay saltar do carro e Larry esticar o braço pela janela aberta para entregar-lhe algumas notas dobradas. Quando Fay se afastou, Gino entrou no assento dianteiro. Não podia olhar para o irmão. Ao se dirigirem para casa, Larry disse com uma voz cansada:

— Não pense que esse sujeito é safado, Gino. Toda vez que há um acidente, todo mundo mente. Ninguém quer levar a culpa. E o guarda ferroviário me disse que Vinnie estava bêbado... ele cheirava a álcool. A culpa foi dele, muito bem, mas ele nunca pulou na frente de máquina nenhuma.

Fez uma pausa e, então, como se tivesse de explicar, acrescentou:

— Eu me preocupo é com a velha. Jesus Cristo, eu me preocupo é com a velha!

Nenhum dos dois pôde falar em Vinnie.

 

Até a morte traz trabalho e fadiga: café a ser feito para os pranteadores íntimos, vinho a ser servido, gratidão e afeição a serem mostradas pela solícita apresentação do pesar dos parentes e amigos.

Sem falhas, todo mundo deve ser oficialmente notificado pelo parente consangüíneo mais próximo do morto. Havia os padrinhos que moravam em New Jersey, os irritadiços primos em seus castelos de Long Island, os velhos amigos em Tuckahoe; e todos devem ser tratados nesse dia como duques, pois os desolados ficam expostos aos olhares públicos, e suas atitudes devem ser impecáveis.

Então, também, como só os simplórios devem ser pranteados em sua própria casa, o velório precisa ser feito num local apropriado, estando presente um membro da família para receber as condolências das visitas. O corpo do pobre Vincenzo não deve ficar sozinho nesta terra. Ele terá mais companheiros na morte do que jamais teve na vida.

Cedo ainda para o início da longa noite do velório de Vincenzo, a família Angeluzzi-Corbo reuniu-se na cozinha da Décima Avenida. O cômodo estava frio. Como ninguém estaria de volta senão muito tarde, a estufa a querosene tinha sido apagada.

Lucia Santa estava sentada à mesa, ereta, angustiada e vestida de preto, os olhos com as pálpebras espessas e apertadas. Bebia café sem olhar para ninguém, seu rosto lívido quase amarelo. Octavia estava sentada ao seu lado, meio virada para ela, pronta para segurá-la e para cumprir qualquer ordem que lhe desse. A estranha imobilidade da mãe assustava a filha.

Lucia Santa olhou em volta da sala como se estivesse vendo todos eles pela primeira vez. Finalmente falou:

— Dêem a Salvatore e a Lena alguma coisa para comer.

— Eu vou dar — respondeu Gino imediatamente.

Ele usava uma roupa preta com um fumo de seda no braço esquerdo. Estava em pé atrás da mãe, fora da sua vista, encostado no peitoril da janela. Ele então atravessou rapidamente a porta para ir até a geladeira no corredor. Sentiu satisfação em sair da sala, mesmo que fosse apenas por um momento.

Aquele dia todo ele ficara em casa para ajudar a mãe. Servira café, lavara os pratos, recebera as visitas, tomara conta dos meninos. Aquele dia todo a mãe não falara uma só palavra com ele. Uma vez perguntou se ela queria comer alguma coisa. Lucia Santa lançou-lhe um olhar frio e demorado e virou-se para o outro lado sem dizer nada. Não falou mais com a mãe, e procurou ficar fora da sua vista.

— Alguém mais quer alguma coisa? — perguntou ele nervosamente.

A mãe levantou a cabeça e fitou-o diretamente nos olhos, duas manchas brilhando misteriosamente no alto de suas faces.

— Dê um pouco de café a mamãe — disse Octavia, numa voz muito baixa como falavam todos eles, quase num sussurro.

Gino trouxe o bule e encheu a xícara da mãe. Ao fazê-lo, tocou-lhe no corpo e ela se afastou, olhando-o de tal modo que ele ficou gelado, segurando idiotamente o grande bule pardo bem acima da mesa.

— É melhor a gente ir embora — disse Larry.

Ele estava estonteantemente bonito com sua roupa preta, gravata preta e camisa branca como a neve. O fumo em seu braço estava meio solto. Lucia Santa inclinou-se para prendê-lo.

— E Zia Coccalitti? — perguntou Octavia.

— Eu volto mais tarde para apanhá-la — respondeu Larry. — Não somente ela como também o panettiere e a mãe e o pai de Louisa.

Octavia disse nervosamente:

— Tomara que não haja muitas crianças pequenas andando lá no velório. Espero que os pais tenham bastante juízo para deixarem as crianças em casa.

Ninguém respondeu. Todos estavam aguardando que Lucia Santa fizesse o primeiro movimento. Gino encostou-se novamente no peitoril da janela, desleixado, de cabeça baixa, não olhando para ninguém, fora da vista da mãe.

Finalmente, Octavia não pôde mais esperar. Levantou-se e vestiu o casaco. Depois prendeu os fumos de seda em Sal e Lena. Louisa levantou-se e vestiu o casaco. Larry aguardava impacientemente na porta. Lucia Santa continuou imóvel. Todos estavam um pouco assustados com a calma dela. Octavia pediu:

— Gino, apanhe o casaco de mamãe.

Gino foi até o quarto, vestiu o seu próprio casaco e voltou para se postar ao lado da cadeira da mãe. Segurava o casaco dela completamente aberto para que ela pudesse levantar-se e vesti-lo facilmente. A mãe nem tomou conhecimento de Gino.

— Vamos, mãe — disse ele brandamente e denotando em sua voz pela primeira vez toda a pena que sentia dela.

Foi só então que Lucia Santa se virou na cadeira e ergueu os olhos para ele, mas com uma cara tão impiedosa e fria que Gino deu um passo atrás. Finalmente ela perguntou, com toda a calma:

— Oh, você vai a esse enterro, não é?

Por um momento, todos ficaram perplexos, sem acreditar, sem compreender o que ela dissera, por simples descrença em sua crueldade, até que viram o rosto de Gino ficar branco e aflito. Ele segurava o casaco entre ele e a mãe, como para se proteger. Seus olhos tinham uma fascinação angustiada.

A mãe continuou a fitá-lo com um terrível olhar impiedoso e tornou a falar, com toda a calma:

— Mas por que esta honra? Você não foi ver o seu pai no caixão. E, enquanto seu irmão estava vivo, você nunca o ajudou, nunca teve tempo para deixar um pouco os seus preciosos amigos e consolar o seu próprio irmão. Você nunca teve pena dele, nunca lhe deu nada.

Fez uma pausa, para permitir que um desprezo insultuoso de perdão entrasse na sua voz, e continuou:

— Você quer mostrar como está sentido agora, não é? Serve café, segura meu casaco... Então talvez você não seja um animal, afinal de contas. Talvez até saiba como o seu irmão gostava de você, como ele era bom.

Esperou por uma resposta, depois acrescentou simplesmente:

— Vá embora. Não quero ver a sua cara.

Tudo o que a mãe dissera, Gino sabia que ela ia dizer. Ainda assim, correu os olhos pela sala, procurando alguém que o ajudasse, mas no rosto deles viu o horror enjoado das pessoas que olham para uma vítima terrivelmente desfigurada de um acidente. Depois foi como se ele se tornasse cego e não pudesse ver nada. Deixou o casaco cair no chão e foi recuando até tocar no peitoril da janela.

Não soube se fechou os olhos ou se simplesmente se recusou a ver a cara da mãe, quando ela começou a gritar:

— Não quero que você vá! Tire o seu casaco! Fique em casa e se esconda novamente como o animal que você é!

E então a voz de Octavia se levantou contra ela, zangada, embora implorando:

— Mãe, a senhora está maluca? Cale-se, pelo amor de Cristo!

Ele ouviu Lena choramingar de terror. E então finalmente escutou o rumor de pessoas deixando a sala e descendo as escadas. Gino reconheceu a estranha gargalhada da mãe, misturada com o farfalhar de roupas novas duras. Depois ouviu Octavia sussurrar-lhe:

— Não dê atenção a mamãe. Espere um pouco, depois vá para o velório. Ela quer que você vá. — Fez uma pausa, depois perguntou: — Gino, você está bem?

Ele balançou a cabeça afirmativamente na direção da voz dela.

Estava tudo muito quieto. Devagar, ele começou a ver novamente. A lâmpada elétrica lançava um círculo amarelo sujo de luz, e flutuando nele estava a grande mesa redonda cheia de xícaras de café e salpicos de líquido lamacento estagnados nas dobras do encerado todo marcado. Como tinha de esperar para ir para o velório, limpou a cozinha e lavou os pratos. Depois vestiu o paletó com o fumo no braço e saiu de casa. Fechou a porta com a enorme chave de bronze e a colocou embaixo da geladeira. Quando saiu pela porta lá de baixo do cortiço, roçou na coroa fúnebre ali pendurada. As flores estavam pretas como a noite.

Gino desceu a Décima Avenida, passou por onde ficava outrora a passarela, seguindo a trilha elevada até ela ser tragada por um edifício enorme. De repente, viu uma placa que dizia St. John's Park, mas não havia árvores. Lembrou-se que seu irmão Larry sempre dissera que partia a cavalo de St. John's Park, e, quando menino, Gino pensava que era um parque mesmo, com arvoredo, grama e flores.

A câmara mortuária ficava na Rua Mulberry e ele tinha de andar na direção leste. No caminho, entrou numa lanchonete para comprar cigarros.

Os homens sentados diante do balcão eram todos trabalhadores noturnos. Havia uma terrível solidão naquele ambiente enfumaçado, como se nada pudesse reunir aquela gente. Gino saiu dali.

Lá fora, as ruas estavam escuras, com exceção dos pequenos círculos de luz lançados pelos postes de iluminação. No fim do quarteirão, avistou uma pequena cruz de neon. De repente, Gino sentiu uma estranha fraqueza, um tremor nas pernas, e sentou-se num alpendre para fumar um cigarro. Pela primeira vez se compenetrou de que iria ver o rosto de Vinnie morto. Lembrou-se de que ele e Vinnie, quando meninos, gostavam de ficar sozinhos, tarde da noite, sentados, sonolentos, no peitoril da janela, contando as estrelas acima da praia de Jersey.

Pôs as mãos no rosto, surpreso com as lágrimas. Um bando de garotos vinha rodopiando rua abaixo pelos círculos de luz amarela. Pararam e olharam para ele, rindo. Não tinham medo. Finalmente ele se levantou e pôs-se a caminhar depressa.

Havia um grande toldo preto diante da funerária, cobrindo toda a calçada, um véu de luto em céu aberto. Gino atravessou a porta e entrou numa antecâmara pequena, de onde se abria um arco para um enorme vestíbulo em estilo de catedral, cheio de gente.

Mesmo aqueles que ele conhecia pareciam estranhos. Estavam lá o panettiere, encrespado como carvão em sua roupa preta e seu filho Guido, de queixo sinistramente escuro. O próprio barbeiro, aquele solitário, estava quietamente sentado numa cadeira, seus olhos inquiridores suavizados pela morte.

As mulheres da Décima Avenida estavam sentadas perto das paredes em filas formais, e os colegas de trabalho noturno de Vinnie mantinham-se em pé, formando grupos. Estavam lá também Piero Santini, de Tuckahoe, e sua filha Caterina, agora casada e com a barriga grande, rosto rosado, olhos frios e confiantes, conhecedora do desejo e sexualmente satisfeita. Louisa, com o seu lindo rosto peculiarmente pesaroso, estava sentada com os filhos num canto, observando o marido.

Larry se achava em pé com um grupo de funcionários da estrada de ferro. Gino ficou chocado ao vê-los comportar-se com a maior naturalidade, rindo, conversando sobre trabalho extraordinário, sobre comprar uma casa em Long Island. Larry estava falando sobre o negócio de panificação, e o seu sorriso jovial punha todos eles à vontade. Era como se estivessem sentados tranqüilamente na padaria, fazendo um lanche.

Larry avistou Gino e fez sinal para que ele se aproximasse. Apresentou-o aos funcionários da estrada, que lhe apertaram a mão com uma firmeza solene para mostrar-lhe sua respeitosa condolência. Depois Larry levou o irmão para o lado e sussurrou: — Entre para ver Vinnie e falar com mamãe. Por um momento Gino ficou perplexo ao ouvir Larry dizer "entre para ver Vinnie", como se o irmão estivesse vivo. Larry levou-o até a outra extremidade da sala, onde havia outro arco menor quase escondido por um grupo de homens reunidos em frente dele.

Dois meninos pequenos passaram por Gino escorregando no soalho preto encerado, ouvindo-se a seguir um sussurro raivoso emitido pela mãe deles. Uma mocinha de não mais de 14 anos correu atrás dos garotos, esbofeteou-os ruidosamente e arrastou-os de volta para as suas cadeiras perto da parede. Gino finalmente atravessou o segundo arco e entrou em outra sala pequena. Junto à parede, do outro lado, estava o caixão.

Vinnie estava deitado em cetim branco. Seus ossos, sua testa, seu nariz fino e alto estavam inchados como montes em torno de seus olhos escavados, fechados. O rosto lembrava o dele, mas esse não era seu irmão. Vinnie não estava ali, de forma alguma. Tudo tinha desaparecido — a postura desajeitada de seu corpo, os olhos aflitos, protegidos, a compenetração da derrota, a bondade gentil e vulnerável. O que Gino viu foi uma estátua invencível, sem alma, sem interesse.

Contudo, ficou magoado com as mulheres presentes naquela pequena sala. Estavam sentadas perto da parede perpendicular ao caixão, falando com voz suave, mas sobre generalidades. Sua mãe falava pouco, num tom bem natural. Para agradá-la, Gino aproximou-se do caixão e curvou-se diretamente sobre o irmão, olhando mais para a cobertura de cetim e nada sentindo porque aquele não era realmente Vinnie — apenas uma prova geral da morte.

Virou-se para sair pelo arco, mas Octavia levantou-se, tomou-o pelo braço e levou-o para a mãe. Lucia Santa disse para as mulheres que estavam sentadas perto dela:

— Este é meu filho Gino, o mais velho depois de Vincenzo.

Era o seu modo de dizer que ele era o filho do segundo marido. Uma das mulheres, com o rosto enrugado como uma noz, disse quase com raiva:

— Eh, giovanotto, veja como as mães sofrem pelos filhos. Tome cuidado para não lhe trazer desgosto.

Era uma parenta consangüínea, e podia falar com impunidade, embora Octavia mordesse o lábio de raiva.

Gino baixou a cabeça e Lucia Santa perguntou:

— Você comeu alguma coisa?

Gino balançou a cabeça afirmativamente. Não podia falar, não podia olhar para a mãe. Temia que ela batesse nele na frente de todo mundo. Mas a voz dela era completamente normal. A mãe dispensou-o.

— Vá ajudar Lorenzo a falar com o pessoal, faça o que ele mandar.

E então Gino ficou espantado ao ouvir a mãe dizer para as mulheres em volta dela, numa voz cheia de satisfação:

— Há tanta gente aqui! Vincenzo tinha tantos amigos!

Isso lhe causou nojo. Nenhuma daquelas pessoas conhecia Vinnie ou se importava com ele.

A mãe viu aquele olhar e compreendeu. O desprezo inexperiente e arrogante que os jovens têm pela hipocrisia porque ignoram a necessidade terrível de proteção contra os golpes do destino. Ela deixou-o ir embora. Ele aprenderia.

O tempo tornou-se uma sombra naquele vestíbulo escuro. Gino recebia os recém-chegados e os conduzia através do soalho preto lustroso até onde a mãe estava sentada e Vinnie esperava no caixão. Ele via Lucia Santa receber consolo dessa gente que nada significava para ela ou para o irmão morto. Zia Louche teria lamentado sinceramente a morte do afilhado, mas Zia Louche estava morta. Nem mesmo Octavia parecia ligar tanto quanto ele pensava que ela ligaria.

Como num sonho, Gino mostrava a esses estranhos onde assinar o registro, onde pôr suas contribuições na caixa da parede. Depois os soltava como pombos para que abrissem caminho pelo soalho preto lustroso até os parentes que eles não viam desde o último enterro.

Pela primeira vez na vida ele desempenhava o papel de um membro da família. Acompanhava o pessoal na entrada e também na saída. Conversava com as pessoas, perguntava sobre as famílias, balançava a cabeça delicadamente ante o horror deles com o acidente que provocara aquela tragédia, identificando-se, sim, ele era o filho mais velho do segundo marido, vendo-os classificá-lo como a disgrazia. Os Santini não puderam esconder seu alívio de não participarem dessa família e dessa tragédia. O Dr. Barbato compareceu apenas por alguns minutos, bateu gentilmente no ombro de Gino com uma bondade inesperada, e dessa vez não pareceu culpado ou indiferente. O panettiere, mais íntimo do que os outros, quase um membro da família (afinal de contas, fora durante algum tempo patrão do falecido), disse para Gino:

— Então foi um acidente? Coitado, ele estava sempre tão triste...

Gino não respondeu.

Zia Teresina Coccalitti, aquele tubarão em forma de gente, não dizia uma palavra a ninguém. Estava sentada ao lado de Lucia Santa, paralisada de medo — como se a morte, estando tão perto, pudesse ciosamente descobrir a existência dela e de seus quatro filhos, a falcatrua deles com a assistência social, a casa deles, apinhada de açúcar, farinha de trigo e banha, que ela tinha certeza que fariam a sua fortuna um dia.

Guido, o filho do panettiere, estava lá com sua farda do Exército. Foi um dos primeiros soldados convocados em tempo de paz, e estava em casa em sua primeira licença. Parecia sentir sinceramente a morte de Vinnie. Havia lágrimas em seus olhos quando baixou a cabeça para beijar a face de Lucia Santa. Dom Pasquale di Lucca, em consideração a Larry, veio prestar sua homenagem, e não há dúvida de que a nota de 100 dólares na caixa de contribuição foi dele, embora como um perfeito cavalheiro a tenha posto dentro de um envelope sem qualquer indicação. O enorme vestíbulo estava agora cheio de gente, as crianças pequenas adormecidas em suas cadeiras junto da parede. Por volta das 11 horas, quando as pessoas já tinham parado de chegar, Larry tomou Gino pelo braço, dizendo:

— Vamos tomar café. Pedi a Guido que ficasse tomando conta. Saíram apenas de paletó e desceram à rua até uma pequena lanchonete. Durante o café, Larry disse bondosamente a Gino:

— Não se preocupe com os gritos da velha. Amanhã ela esquece tudo. E ouça, garoto, eu e Octavia vamos ajudar você a carregar o fardo. Eu darei 50 dólares por mês e ela vai dar 50 também.

Por um momento Gino não sabia que diabo Larry estava dizendo. Então compreendeu que o seu mundo tinha dado uma volta. A mãe, a irmãzinha e o irmãozinho dependiam agora dele. Todos aqueles anos tinham passado depressa para finalmente levá-lo ao que estivera sempre a sua espera. Ele iria trabalhar, dormiria em casa, não haveria separação entre ele e a mãe. Seria arrastado para a família e seu destino. Jamais poderia fugir de novo. E ficou surpreso com a resignação, quase alívio, que sentiu, agora que compreendera a situação. Foi quase que uma boa notícia.

— Tenho de arranjar um emprego — disse ele a Larry.

Larry balançou a cabeça concordando.

— Eu arranjo isso. Você vai para o lugar de Vinnie na estrada de ferro. Vai continuar a ir para a escola?

Gino arreganhou os dentes e respondeu:

— Claro.

Larry estirou o braço e bateu afetuosamente no braço do irmão.

— Você sempre foi um bom menino, Gino. Mas agora tem de endireitar um pouco, entende o que eu quero dizer?

Gino sabia que entendia. Que tinha de pensar na família. Que tinha de parar de fazer o que sentisse vontade. Que devia agradar mais à mãe. Que devia parar de ser menino. Balançou a cabeça concordando. De repente, perguntou em voz baixa:

— Você acha que Vinnie de fato se atirou na frente daquela máquina?

A transformação que ocorreu no rosto de Larry foi assustadora. Ainda era bonito, a carne de seu rosto adquirira a cor e a consistência do bronze, e agora aquele bronze parecia fumegar com certa fúria venenosa.

— Isso é um assunto muito sujo. Já dei um jeito no maquinista e no foguista. Se você ouvir alguém, seja lá quem for, bancando o sabido, venha me dizer, que eu dou um jeito nele. — Esperou um momento e continuou: — E não conte a ninguém sobre a minha conversa com Lefty Fay.

A raiva desvaneceu-se de seu rosto, sua pele ficou mais clara. Larry então acrescentou:

— Se a velha alguma vez perguntar alguma coisa, jure pela cruz que foi um acidente.

Gino balançou a cabeça concordando. Então começaram a voltar para o velório, e Larry segurou o braço de Gino e disse:

— Não se preocupe muito, garoto. Daqui a poucos anos estarei cheio do dinheiro, por causa da guerra e tudo, e então darei uma grande ajuda à família e você poderá fazer o que quiser. — Sorriu e completou: — Também já fui como você.

Encontraram Octavia debaixo do toldo preto esperando por eles, tiritando de frio. Ela perguntou estridentemente:

— Aonde vocês foram? Mamãe está tremendamente nervosa... pensa que Gino foi embora.

— Oh, Cristo — retrucou Larry. — Vou falar com mamãe. Fique aqui na sala, Gino.

Gino sentiu aquele medo que já lhe era bem familiar e imaginou que devia parecer assustado. Larry o estava protegendo. Estava desnorteado com o terror que lhe percorria o corpo.

Em poucos minutos, Larry voltou sorrindo e disse:

— Octavia está fazendo um barulhão por nada, como sempre. A velha só quer ter certeza de que estaremos aqui quando fecharem.

Os conhecidos estavam indo embora aos poucos. O agente funerário apareceu e, como um parente consangüíneo da morte, ajudou Larry e Gino a despacharem as visitas, até que finalmente só ficaram os mais íntimos da família. A enorme sala do velório estava vazia, Gino pôde ouvir as cadeiras atrás do pequeno arco serem arrastadas quando a mãe e suas amigas se preparavam para deixar o velório. A longa noite terminara. Havia um estranho silêncio na outra sala, e Gino pensou em ir para casa antes dos outros para evitar a mãe. Estava sentindo um medo dela como nunca sentira na vida.

O grito aterrorizante apanhou Gino completamente de surpresa, fazendo-o ficar gelado de horror. Foi seguido de outro berro que irrompeu num lamento de agonia e a voz da mãe gritando: "Vincenzo, Vincenzo", com uma dor tão profunda que Gino queria sair voando porta afora para muito longe, onde nunca mais pudesse ouvi-la. O agente funerário, perfeitamente calmo, como se estivesse esperando justamente isso e como se tivesse compreendido os pensamentos de Gino, pôs-lhe a mão no ombro como que para refreá-lo.

De repente, o arco ficou todo preto — quatro mulheres enroscavam-se e enrolavam-se umas em torno das outras como serpentes. Octavia, Louisa e Zia Teresina estavam procurando arrastar Lucia Santa através do arco, uma luta terrivelmente séria.

Tinham tentado palavras e carinhos ao lado do caixão, mas isso não adiantou. Tinham tentado lembrar Lucia Santa de seus deveres como a mãe de cinco outros filhos, e ela enterrou as unhas no caixão do filho morto. Agora as três mulheres não tinham pena dela. Não a deixariam ficar ali. Não permitiriam que enlouquecesse de dor. Não a deixariam virar as costas à vida e ao dever. Eram impiedosas. Octavia agarrava-a pelo braço e o ombro. Louisa puxava-a pelo outro braço, mas com menos força, de forma que o corpo pesado de Lucia Santa se torcia para o lado. Zia Teresina segurava a amiga cruelmente pelo pescoço e pelos seios e arrastava-a pelo soalho preto lustroso.

Mas a mãe, como um animal teimoso, encolhera o seu corpo pesado num monte resistente e não podia mais ser arredada de onde estava. Não protestava. Não gemeu novamente. Seu chapéu e véu pretos caíram de lado, desordenadamente, em sua cabeça. Seu rosto estava inchado, obstinado e enfurecido, com uma agonia quase bestial. Ela nunca estivera tão terrível, incontrolável, como se aquele mundo da morte tivesse de se fazer em pedaços e desaparecer diante de sua dor irresistível.

As três mulheres se afastaram dela. Louisa desatou a chorar. Octavia cobriu o rosto com as mãos, depois gritou com uma voz abafada:

— Larry, Gino, ajudem-nos!

Eles atravessaram a sala e se postaram junto das mulheres em volta da mãe. Gino não se atreveu a tocar nela. Lucia Santa levantou a cabeça e falou para Gino:

— Não deixe seu irmão sozinho. Não o deixe passar a noite sozinho. Ele nunca foi valente. Era muito bom para ser valente.

Gino baixou a cabeça concordando.

— Você nunca me obedece — disse ela.

Gino respondeu muito baixo:

— Eu fico aqui a noite toda. Eu prometo.

Ele se esforçou para esticar rapidamente o braço e endireitar o chapéu dela, a primeira vez na vida que ele tinha um gesto desses para com a mãe. Vagarosamente, Lucia Santa levantou o braço, pegou o chapéu com o véu e tirou-o da cabeça. Levava-o na mão ao caminhar para a porta, como se não suportasse proteger o rosto, como se agora, com a cabeça descoberta, pudesse enfrentar a vida novamente, sua injustiça irreversível, sua derrota inevitável.

O agente funerário ofereceu-se para trazer uma cama de lona para Gino e desculpou-se por ter de trancar a porta da rua, mostrando a Gino uma campainha que ele podia tocar se quisesse sair. Ele mesmo dormia num quarto diretamente em cima. Gino ficou balançando a cabeça para mostrar que compreendera, até que o homem desapareceu por um vão de porta interna.

Sozinho naquele ambiente fúnebre, sabendo que o corpo do irmão morto jazia dentro do caixão colocado atrás daquele pequeno arco, Gino sentiu-se seguro como não se sentira desde quando o irmão morrera. Juntou em fila algumas cadeiras dobradiças de madeira, para servir de cama, e enrolou o paletó à guisa de travesseiro. Deitado assim, fumando, com um braço encostado na parede fria, procurava pensar como o seu mundo se modificara.

Pensava nas coisas que aprendera. Larry era realmente um gangster, e o pessoal tinha medo de ser morto por ele. Que coisa maluca era aquilo. Larry jamais sequer batera nos irmãos menores. E Lefty Fay era um paspalhão em dizer que Vinnie se atirara na frente da máquina — Vinnie era tão medroso que deixara de se sentar no peitoril da janela. E a mãe chorando e berrando e fazendo aquela confusão toda. Sonolentamente, deixou que a sua mente lhe dissesse o que ele realmente sentia, que a dor dela era exagerada, que ela fizera uma encenação com a morte do irmão. E então se lembrou de suas próprias lágrimas no alpendre. Mas ele chorara por Vinnie como criança, quando eles brincavam juntos e se sentavam de noite no peitoril da janela, à luz das estrelas. Gradativamente, foi compreendendo que havia na dor pouca piedade pelos mortos. Que era um lamento por algo perdido por apenas uns poucos, e assim era preciso fazer uma encenação da morte, para esconder o que todos devem saber que é verdade: que a morte de um ser humano significa tão pouca coisa. Pobre Vinnie. Quem chorava por ele? Vinnie se tornara um rapaz lamuriento, infeliz, com quem ninguém gostava de ficar. Até a mãe às vezes se tornava impaciente com ele. Ela chorava pelos inúmeros pequenos e diferentes Vincents que existiram antes. Como eu fiz, pensou Gino. Nunca me importei com ele depois. Larry também não. Nem mesmo Octavia se importava realmente com ele. Mas a mulher de Larry se importava, por alguma razão Louisa se importava. E a velha Zia Louche teria chorado. Exatamente antes de cair no sono, Gino quis atravessar o arco e olhar o rosto do irmão morto, para se obrigar a sentir mais pesar, mas estava muito cansado. Seu cigarro caiu no soalho preto lustroso, sua minúscula brasa vermelha como um carvão no inferno. Dormindo, ele se encolheu em sua fila de cadeiras, sentindo frio por se encostar na parede coberta de pano. Tentou lutar para fugir do sono, ignorando que soltara um grito que acordara o agente funerário no quarto de cima.

Não era verdade. Ele não matara o irmão. Segurava o casaco da mãe em frente do rosto dela, mas os seus braços estavam tão cansados... Os olhos acusadores dela mantinham-no recuado, e, procurando uma espécie de misericórdia, ele murmurou:

— Eu chorei no alpendre lá na rua; olhe, minha cara ainda está molhada.

Mas a mãe apenas respondeu com escárnio:

— É mais uma de suas tramóias. Animale... animale... animale... E ela sorria para ele. O riso estonteante de uma garota. Gino quase caiu na armadilha que teria destruído a ambos. Quase falou do dia em que ficara na frente do cortiço, esperando que ela trouxesse o pai para casa. Mas manhosamente, astutamente, baixou a cabeça. Como ela não o acusara em vida, ele não a acusaria em seus sonhos. Tremendo, prometeu tornar-se outro Vinnie, trabalhar na estrada de ferro, casar, viver nos cortiços da avenida, esperar nas paradas dos bondes com um filhinho nos braços, acorrentar-se ao conhecido mundo tenebroso em que nascera.

 

As velhas da Décima Avenida formaram sua rodinha na noite de verão e cantavam as desgraças da família Angeluzzi-Corbo. A princípio todas diziam com pena:

— Ah, que vida terrível! Pobre Lucia Santa... seu primeiro marido morto, seu segundo marido inutilizado para a vida, e agora um filho crescido, já o arrimo da família, atropelado pelo trem. Que tragédia! Que desgraça! Amaldiçoado Deus, com Seu mundo e todos os Seus misteriosos santos e destinos!

As cabeças delas balançavam concordando. Mas outra mulher — não estranha ao infortúnio, respeitada por sua vida dura — balançou a cabeça grisalha e disse:

— É verdade, é verdade, contudo ela tem uma filha crescida, uma chefe de seção... inteligente, casada com um homem sensato. Tem filhos homens que honrariam qualquer mãe. Lorenzo, casado, que lhe deu alguns netos, fazendo sua fortuna no sindicato das padarias; Gino, agora um rapaz bom e obediente, um chefe de família que faz a gente pensar na Itália com seu trabalho duro na estrada de ferro e sem nunca arranjar encrenca com a polícia. Salvatore, que ganhou medalhas na escola e certamente será professor. Lena, uma filha italiana da velha escola, moça que trabalha em casa, sempre obediente, sempre cumpridora dos seus deveres. Vejam como todos respeitam Lucia Santa. Os dois casados ainda dão dinheiro à mãe, Gino traz o envelope de pagamento para casa fechado.

Cinco bons filhos. Na verdade, sem marido, mas, considerando certos maridos da Décima Avenida, isso não podia ser realmente uma desgraça. Pelo menos Lucia Santa agora tinha apenas uma pequena família. Até o coitado do falecido Vincenzo nunca trouxera disgrazia para a família. Adoecera e caíra embaixo de uma locomotiva. Fora um acidente. E fora enterrado no cemitério. Pobre Vincenzo, nascido sob uma má estrela, tivera um destino preparado para ele no começo da vida.

Assim, o equilíbrio era impressionante. Muitas mulheres tinham sofrido tanto ou mais. Maridos haviam morrido no trabalho, crianças tinham nascido deformadas, meninos ou meninas tinham morrido de resfriados inofensivos, de pequenas lesões. Não havia uma mulher nas redondezas que não tivesse enterrado pelo menos uma criança.

E vejamos os infortúnios de que Lucia Santa escapou. Filhas grávidas sem um marido à vista nas proximidades; filhos que se tornavam delinqüentes perigosos ou que acabavam encontrando descanso para as suas pernas desobedientes na cadeira elétrica. Maridos bêbados, jogadores, mulherengos.

Não, não, Lucia Santa tivera sorte de escapar durante um período de tempo tão longo do tributo de sofrimento correspondente à extensão de sua vida. Todos os seus filhos eram fortes, sadios, bonitos, e tinham o mundo diante deles. Logo ela colheria os frutos de todo o seu trabalho. Portanto, coragem! A América não era a Itália. Na América a gente podia fugir ao destino. Os filhos se tornavam altos e trabalhavam em escritórios de colarinho e gravata, longe do vento e da terra. As filhas aprendiam a ler e escrever, e usavam sapatos e meias de seda, em vez de matar o maldito porco e carregar lenha nas costas para poupar as forças dos valiosos burros.

O infortúnio não entrara certa vez até no céu? Quem podia fugir ao sofrimento? Quem podia passar pela vida sem chorar? Só os mortos não sofriam. Ah, os felicíssimos mortos! As velhas batiam palmas para dar graças a Deus pelo dia em que deixariam esta terra, este infeliz vale de lágrimas. Sim, sim, os mortos é que eram felizes, pois não sofriam mais.

Os seus olhos despendiam fogo, energia e força irradiados de seus volumosos corpos, vestidos de preto. Devoravam tudo o que acontecia na avenida, quando falavam. Soltavam pragas fulminantes contra as crianças que se encaminhavam para o mal. Chupavam gulosamente os enrugados copos de papel de sorvete de limão e davam grandes dentadas nas pizzas fumegantes, enterrando os fortes dentes amarelados na lava de molho de tomate quente e nos rios de queijo que corriam da oculta massa fermentada. Prontas para matar quem quer que ficasse no caminho de uma crosta de pão para elas ou seus filhos, inimigas implacáveis da morte. Estavam vivas. As pedras da cidade, o aço e o vidro, as calçadas azuladas, as ruas de pedras, tudo se tornaria pó e elas estariam vivas.

 

Pode um diabo tornar-se um anjo? O panettiere, o barbeiro, o Dr. Barbato e até a astuta Zia Teresina Coccalitti se admiraram com a transformação de Gino Corbo. Era verdade: o desastre fizera do rapazola um homem, pois agora Gino mourejava como um camponês na estrada de ferro, fazendo animadamente horas extraordinárias e levando seu envelope de pagamento para casa fechado e entregando-o à mãe.

Lucia Santa estava tão contente que dava a Gino o dobro do dinheiro para pequenas despesas que dava a Vinnie, garantindo a Octavia que só fazia isso porque Vinnie sempre roubava o dinheiro do extraordinário.

— Você está vendo — dizia a mãe a Octavia nas suas visitas de sexta-feira à noite — Gino sempre foi um bom menino.

E Octavia tinha de concordar, porque, apesar de trabalhar de noite e até fazer extraordinário no domingo, Gino estava terminando o último ano da escola secundária e se formaria em janeiro. Era mesmo um dos melhores alunos da turma pela primeira vez. Isso agradava imensamente a Lucia Santa.

— Eu não tinha razão? — perguntava ela a Octavia. — É a brincadeira de rua que cansa a cabeça da criança, não o trabalho honesto.

Octavia, ainda abalada pela morte de Vinnie, ficou admirada e espantada com a rapidez com que a mãe parecia recuperar-se. Estava mais calma, mais dócil com Sal e Lena, mas quanto ao mais, a mesma. Só uma vez deixou-se trair pela emoção. Uma noite, quando estavam falando de Vinnie quando pequeno, Lucia Santa disse com uma auto-censura amarga:

— Se eu o tivesse deixado com Filomena, em Jersey, ele estaria vivo.

Abandonando uma de suas lembranças de que mais se orgulhava, ela contudo ainda vivia cada dia com a confiança absoluta de quem acredita na boa sorte.

E por que não? Nunca o mundo tinha tratado tão bem a família Angeluzzi-Corbo. Gino fazia fortuna na estrada de ferro. Sal brilhava no ginásio e certamente cursaria a faculdade. Lena brilhava igualmente e seria professora. Ambos trabalhavam na panetteria vendendo pão depois da escola, ganhando uns bons cobres, o que fazia Lucia Santa exultar, quando examinava com Octavia as cadernetas dos bancos nas noites de sexta-feira. Lucia Santa só podia controlar seu otimismo perigoso com a lembrança de que daí a poucos meses, logo antes do Natal, o filho do panettiere, Guido terminaria seu tempo de serviço militar e ocuparia o lugar de Sal e Lena na padaria. Ela não podia contar com aquele dinheirinho para sempre.

Até o marido de Octavia estava trabalhando. O coitado do Norman Bergeron andava escrevendo miseráveis folhetos para um órgão do governo: funcionalismo público, previdência social, enfim, bom dinheiro. Que ele era infeliz, Octavia sabia, mas pensava que agora as coisas iam muito mal para ele. Norman poderia escrever poesia quando os povos da Europa deixassem de se matar uns aos outros e houvesse outra Depressão.

Mas o melhor de tudo para Lucia Santa foi o fato de Gino se tornar um homem, uma parte da vida real. Não precisava mais brigar com ele, já havia quase esquecido tudo o que o filho a fizera sofrer. Ele se tornara até mais sério. Será que as lutas dela tinham chegado ao fim? Lucia Santa não acreditou naquilo nem por um instante, mas jamais permitiria que dissessem que ela era uma daquelas pobres coitadas que não soubera aproveitar a sorte quando esta se apresentara.

Cada noite que Gino ia para o trabalho, levava consigo o mesmo sentimento de desgraça. Subir no elevador do edifício da companhia e depois penetrar no círculo de luz com as máquinas batendo parecia apenas o começo de um sonho. Mas aos poucos ele foi acreditando.

A estrada de ferro o pôs no turno de meia-noite às oito da manhã, e durante essas horas o escritório empoeirado estava "mal-assombrado" com arquivos, máquinas pretas paradas e a quase invisível teia de fios da gaiola do caixa. Cercado por essas coisas, Gino batia na máquina a noite toda. Era muito bom no seu trabalho — sua coordenação atlética e sua visão aguda ajudavam. A tarefa era 350 contas por noite, mas ele facilmente ultrapassava isso. Às vezes tinha uma hora livre para ler, enquanto esperava que chegassem novas contas da plataforma de carga.

Nunca falava com os colegas com quem trabalhava, nem participava da conversa geral deles. O chefe noturno dava-lhe as piores contas para bater, mas ele nunca protestava. Não tinha importância. Detestava tanto aquilo que nada tinha importância. Detestava o edifício e o escritório cheirando a rato. Detestava as teclas metálicas sujas da máquina de calcular. Detestava entrar naquele círculo amarelo de luz onde ficavam seis operadores das máquinas e o chefe do grupo.

Era um ódio incontrolável; às vezes seu corpo ficava realmente gelado, seu cabelo arrepiado e seu sangue tão amargo na boca que ele não podia deixar de se afastar da luz para as janelas escuras, a fim de contemplar aquelas ruas de sua prisão vigiadas por postes de lâmpadas amarelas. Quando o chefe do grupo, um rapaz chamado Charlie Lambert, gritava: "Vamos bater as contas, Gino", com aquela voz que os homens usam para rebaixar outros homens, ele nunca respondia, nunca voltava logo para sua máquina. Mesmo depois que soube que estava sendo marcado, não podia odiar Charlie Lambert. Sentia um desprezo tão frio pelo rapaz, que não podia considerá-lo como um ser humano ou reagir contra ele com emoção.

Labutar simplesmente para existir, ir levando a vida só para continuar a viver, era uma coisa que nunca conhecera. Mas sua mãe conhecera, Octavia conhecera, seu pai certamente conhecera. Vinnie devia ter estado naquela janela escura inúmeras noites, enquanto ele vagabundava pelas ruas da cidade com os amigos ou dormia confiantemente em sua cama.

Mas, à medida que os meses se passavam, foi achando mais fácil suportar. O que não podia pensar é que aquilo nunca terminasse. Compreendia que podia nunca terminar.

 

Como competia à mãe de uma família em tão esplêndidas circunstâncias, Lucia Santa dirigia a sua casa como uma verdadeira signora. O apartamento estava sempre quente, não importando o preço do carvão e do querosene. Havia sempre bastante espaguete na panela para os amigos e vizinhos que ali aparecessem depois da hora da refeição. Os filhos não podiam lembrar-se de uma vez sequer que deixassem a mesa sem ficar ainda bastantes bolinhos de carne e lingüiça mergulhados numa travessa de molho para uma última pilhagem. Havia colheres e garfos novos para serem usados no banquete de domingo, ao qual todo mundo da família, casado ou não, tinha de comparecer — embora nenhuma ordem fosse cumprida com mais boa vontade.

No primeiro domingo de dezembro, deveria haver uma peranze especial. O filho mais velho de Larry receberia a primeira comunhão, e Lucia Santa prometera ravióli. Começara a preparar a massa cedo, e agora ela e Octavia estavam construindo uma fortaleza de farinha de trigo na grande tábua de misturar. Quebraram uma dúzia de ovos nela, e outra dúzia, e outra, até que as quatro muralhas de pó branco desmoronassem, formando um mar de brancura com gemas amarelas flutuando. Misturaram tudo junto, fazendo grandes bolas esboroáveis de massa tão brilhante como ouro. Octavia e Lucia Santa gemiam com o esforço de transformar as bolas de farinha em camadas finas. Sal e Lena mexiam uma vasilha funda cheia de ricota, e na massa cremosa branca batiam pimenta, sal e ovos para torná-la extremamente saborosa.

Enquanto o ravióli cozinhava e o suculento molho de tomate fervia, Lucia Santa punha travessas de presunto e queijo na mesa. Depois vieram travessas de bife rolé recheado com ovos cozidos e cebolas, um enorme pedaço de carne de porco castanho-escura, tão tenra de cozinhar em fogo lento no molho, que a carne se desprendia suavemente do osso apenas ao se tocar com o garfo.

No almoço, Octavia conversava com Larry como raramente fazia, rindo de suas piadas e histórias. Norman tranqüilamente bebericava seu copo de vinho e batia papo com Gino a respeito de livros. Quando acabaram, Sal e Lena limparam a mesa e começaram a lavar o monte de pratos.

Era um domingo bonito para dezembro, e as visitas chegavam: o panettiere e Guido, finalmente fora do Exército depois de seu ano de serviço; o barbeiro ciumento, que, olhando através da cortina de vidro do vinho tinto, examinava todas as cabeças presentes para descobrir vestígios de uma tesoura estranha. O panettiere foi logo entrando num prato de ravióli quente; era louco por aquilo, uma comida que a megera de sua mulher, por estar sempre muito ocupada contando dinheiro, não tinha tempo para fazer.

Até Zia Teresina Coccalitti, que fizera de toda a sua vida um segredo simplesmente por conveniência, que durante tantos anos construíra sua fortuna à custa da assistência social, com quatro filhos robustos trabalhando — ninguém sabia como —, mesmo ela arriscou-se a tomar mais de um copo de vinho, devorou um pão cheio de lingüiça e conversou com Lucia Santa sobre aqueles bons tempos em que eram mocinhas na Itália e removiam estrume de seus quintais. Embora Zia Coccalitti geralmente tapasse a boca com os dedos verrugosos quando alguém lhe fazia uma pergunta pessoal, hoje ela sorriu quando o pa­nettiere censurou a sua trapaça com a assistência social. Tornando-se arrebatada e generosa com dois copos de vinho, ela aconselhou todos eles, de graça, a tomar tudo que o governo pudesse dar, pois a longo prazo a pessoa pagaria ao maldito Estado 10 vezes mais, quer tivesse tomado aquilo ou não.

Gino, entediado pela conversa, foi sentar-se no chão perto do rádio em forma de catedral e ligou-o. Queria escutar o jogo de futebol americano. Lucia Santa não gostou dessa indelicadeza, embora o rádio estivesse tão baixo que ninguém podia ouvi-lo. Depois não prestou mais atenção ao filho.

Foi Norman Bergeron o primeiro a notar algo esquisito em Gino. A cabeça dele estava inclinada junto ao rádio, mas ele olhava para todo mundo na sala. Depois Norman viu que Gino olhava muito atentamente para a mãe. Havia um sorriso em seu rosto. Um sorriso que encerrava algo cruel. Octavia, vendo o marido olhando para Gino, virou-se para o rádio.

Ela não podia ouvir, mas havia um brilho tão intenso nos olhos de Gino que ela gritou:

— Gino, que é que há?

Gino virou as costas para esconder o rosto.

— Os japoneses acabam de atacar os Estados Unidos — disse ele. Depois aumentou o volume do rádio e abafou todas as vozes da sala.

 

Gino esperou até depois do Natal. Então, uma manhã, saiu diretamente do trabalho e foi alistar-se no Exército. Naquela tarde foi ao escritório do marido de Octavia e pediu-lhe que dissesse a Lucia Santa onde ele estava. Enviado para um campo de treinamento na Califórnia, escrevia regularmente e mandava dinheiro para casa. Na primeira carta explicou que se alistara como voluntário para salvar Sal da convocação mais tarde, mas nunca mais mencionou isso.

 

— Aiuta mi! Aiuta mi!

Gritando por socorro contra os fantasmas dos seus três filhos mortos, Teresina Coccalitti corria pela beira da calçada, com o corpo esquisitamente inclinado, suas roupas pretas esvoaçando na brisa da manhã. Quando chegou na esquina, ela virou e voltou correndo de novo, gritando:

— Aiuto! Aiuto!

Contudo, ao primeiro daqueles gritos familiares de socorro, todas as janelas se fecharam ruidosamente na Décima Avenida.

Agora a mulher estava em pé na sarjeta, com as pernas abertas. Levantou a cabeça para o céu e acusou todos eles. Falava no italiano vulgar de sua aldeia natal, e naquela magra cara de falcão a sua astúcia inata, a sua voracidade e manha haviam sido corroídas pelo sofrimento.

— Oh, eu conheço vocês todas! — gritava ela para as janelas fechadas. — Vocês queriam me foder, suas putas e filhas de putas! Queriam me pôr na bunda, todas vocês, mas eu fui bem esperta!

Ela cortava o rosto com as unhas afiadas e só parou quando tudo era uma massa de tiras ensangüentadas. Depois levantou os braços para o céu e gritou:

— Só Deus! Só Deus!

Começou a correr pelo meio-fio, com o seu chapéu preto dançando para cima e para baixo, quando o único filho que lhe restava apareceu na esquina da Rua 31 para apanhá-la e arrastá-la para casa.

Isso ocorrera muitas vezes antes. A princípio Lucia Santa costumava correr para a rua, a fim de ajudar a velha amiga, mas agora olhava de sua janela como todo mundo. Quem pensaria que o destino ousaria dar tal golpe contra Teresina Coccalitti? Matar três de seus filhos em um ano de guerra, sendo ela uma pessoa tão manhosamente astuta, sempre tão misteriosa e capaz de qualquer traição em seu próprio benefício! Nada ajudara então? Não havia escapatória para ninguém? Pois se o mal não pode prevalecer contra o destino, que esperança existe para o bem?

 

Enquanto a guerra campeava no mundo, os italianos que viviam na muralha ocidental da cidade finalmente conseguiram concretizar o sonho americano em suas calejadas mãos. O dinheiro jorrava nos cortiços como água. Os homens faziam trabalho extraordinário e ganhavam dobrado na estrada de ferro, e aqueles cujos filhos tinham morrido ou ficado feridos trabalhavam mais duro do que todo o resto, sabendo que a dor não resistiria tanto quanto a pobreza.

Para o clã dos Angeluzzi-Corbo, os tempos mágicos tinham chegado. A casa de Long Island foi comprada, à vista, de gente miste­riosamente arruinada pela guerra. Uma casa grande, para duas famílias, a fim de que Larry e Louisa e seus filhos pudessem viver sob o olho vigilante de Lucia Santa. Haveria quartos com portas, separados, para todo mundo, mesmo para Gino, quando ele voltasse da guerra.

No último dia, Lucia Santa não agüentou ajudar os filhos a desmontar o apartamento, a encher as enormes caixas de madeira. Naquela noite, deitada completamente só em sua cama, não pôde dormir. O vento assoviava suavemente pelas fendas da janela que estiveram sempre bem protegidas por cortinas. Pedaços mais claros da parede onde tinham estado pendurados retratos brilhavam no escuro. Ouviam-se ruídos esquisitos no apartamento, nos armários e guarda-louças vazios, como se todos os fantasmas dos últimos 40 anos tivessem sido libertados.

Olhando fixamente para o teto, Lucia Santa ficou finalmente meio adormecida. Esticou o braço para proteger uma criança da parede. Começando a sonhar, ouviu Gino e Vincenzo irem para a cama e Frank Corbo entrar pela porta do corredor. E aonde fora Lorenzo novamente? Não tenha medo, dizia ela à pequenina Octavia, nenhum mal pode acontecer a meus filhos enquanto eu viver, e depois, tremendo, ela estava diante do próprio pai pedindo roupa de cama para o seu enxoval de noiva. E depois estava chorando e o pai a consolava e ela estava sozinha para sempre.

Nunca pretendera ser uma peregrina. Atravessar um oceano temível.

O apartamento ficou frio e Lucia Santa acordou. Levantou-se e vestiu-se no escuro, em seguida pôs um travesseiro no peitoril da janela. Encostada e olhando para a Décima Avenida, esperou que o sol raiasse e, pela primeira vez em muitos anos, ouviu realmente as máquinas e os vagões de carga se esfregarem uns nos outros no pátio ferroviário do outro lado da rua. Fagulhas voavam pela escuridão e ouvia-se o ruído nítido de aço chocando-se com aço. Lá longe, na praia de Jersey, não havia luzes por causa da guerra, apenas estrelas vislumbradas na sombra da noite.

De manhã houve uma longa espera pelos caminhões da mudança, Lucia Santa despediu-se dos vizinhos que vieram desejar boa sorte à família. Mas nenhum dos velhos amigos apareceu, nenhum deles morava mais na Décima Avenida. O panettiere vendera a padaria quando o filho, Guido, viera para casa gravemente ferido, impossibilitado de trabalhar. Ele se mudara para bem longe em Long Island, para Babylon ou West Islip. O barbeiro louco, com sua casa cheia de filhos, tinha se aposentado; com tão poucos cabelos de homens para cortar devido à guerra, também se mudara para Long Island, para uma cidadezinha chamada Massapequa, bem perto do panettiere, para jogarem cartas aos domingos. E outros também tinham ido para. aquelas cidadezinhas esquisitas com as quais haviam sonhado durante tantos anos.

O Dr. Barbato, para surpresa de todos, alistara-se como voluntário no Exército, e na África se tornara um herói, com retratos seus nas revistas e o relato de suas façanhas que, de tão terrificantes, fizeram com que seu pai sofresse um ataque simplesmente por ter ficado desesperado com a idiotice do filho. A pobre Teresina Coccalitti nunca se mudou de seu apartamento, vigiando zelosamente as intocáveis latas de azeite e de banha que algum dia libertariam seus filhos da morte. O amigo de infância de Gino, Joey Bianco, tinha escapado do Exército de uma maneira marota, ninguém sabe como; enriquecera e comprara um palacete para a mãe e o pai em Nova Jersey. Agora, portanto, era realmente hora de a família Angeluzzi-Corbo deixar aquele lugar. Finalmente, Piero Santini veio de Tuckahoe com seus caminhões. A guerra tornava difícil arranjarem-se tais coisas, mas Santini conseguira isso graças a um favor que fizera a um compatriota nascido em sua própria aldeia na Itália. E porque, abrandado agora, alegrou-lhe o contribuir para o final feliz dessa história.

Lucia Santa astuciosamente deixara um bule e algumas xícaras rachadas. Serviu café a Santini e os dois bebiam-no, enquanto olhavam para a Décima Avenida, equilibrando suas xícaras no peitoril da janela. Octavia, Sal e Lena levavam pacotes leves para os caminhões de mudanças que esperavam lá embaixo, enquanto dois velhos italianos musculosos, relinchando como burros, carregavam nas costas enormes armários e camas.

Depois de algum tempo, a única coisa que restou no apartamento foi o tamborete da cozinha considerado decididamente imprestável para a bela casa de Long Island. Louisa e seus três filhos subiram então as escadas para esperar com eles, os pequenos bandidos arrastando-se num mar de roupas jogadas fora e as sobras dos armários e jornais velhos.

E então chegou o momento final. A limusine do Sr. di Lucca, agora de Larry, estava esperando em frente do cortiço. Octavia e Louisa arrastaram as criancinhas por aquele monte de sujeira, através dos quartos abandonados, na direção da porta. Então Octavia disse para Lucia Santa:

— Vamos, mãe, vamos sair desta porcaria.

Para surpresa de todos, uma expressão atordoante estampou-se no rosto de Lucia Santa como se ela não acreditasse realmente que tinha de deixar aquela casa para sempre. Depois, em vez de dirigir-se para a porta, sentou-se no tamborete da cozinha e começou a chorar.

Octavia enxotou Louisa e seus filhos escada abaixo antes de virar-se para a mãe. Com voz estridente e exasperada, falou:

— Mãe, que diabo está acontecendo com a senhora agora? Vamos embora, a senhora pode chorar no carro. Todo mundo está esperando.

Mas Lucia Santa baixou a cabeça e enterrou-a nas mãos. Não podia deter as lágrimas.

Então a mãe ouviu a voz zangada de Lena dizer:

— Deixe mamãe em paz.

E Sal, que nunca falava, acrescentou:

— Nós a levaremos para baixo, vá na frente.

Octavia desceu as escadas, e a mãe levantou a cabeça. Os seus dois filhos menores mantinham-se em guarda, um de cada lado. Ela ainda não percebera que eles estavam tão crescidos. Lena era muito bonita, bem morena, com os olhos azuis do pai, mas com o rosto parecido com o de Gino. Então ela sentiu a mão de Salvatore em seu ombro. Ele tinha os olhos de um homem que nunca podia zangar-se. Naquele momento, a mãe se lembrou como Sal e Lena, calados em seu cantinho, tinham observado e certamente julgado todos eles. Ela não podia saber que para eles a mãe fora uma heroína numa peça aterradora. Viram-na sofrer os golpes do destino, a fúria do pai, as lutas desesperadas dela com Larry e Gino, e a dor terrível da morte de Vinnie. Mas, ao esticar os braços para apalpar-lhes o corpo, ela sabia que eles a haviam julgado e considerado inocente.

 

Então por que Lucia Santa chora naqueles cômodos vazios? Quem é melhor do que ela?

Vai morar na casa de Long Island, com os netos a seus pés. Salvatore e Lena se tornarão doutores ou professores. A sua filha Octavia é chefe de seção na oficina de costura e o filho Lorenzo é presidente de um sindicato, distribuindo empregos à farta como um duque na Itália. O seu filho Gino ainda está vivo, enquanto milhões morrem. Haverá sempre bastante comida e dinheiro para uma velhice cercada de filhos respeitosos e extremosos. Quem é melhor do que ela? Na Itália, há 40 anos, seu sonho mais desenfreado não tinha ido tão longe. E agora um milhão de vozes secretas gritavam:

— Lucia Santa, Lucia Santa, você encontrou a fortuna na América!

E Lucia Santa, chorando em seu tamborete da cozinha, levantou a cabeça para gritar contra elas:

— Eu queria tudo isso sem sofrimento. Queria tudo isso sem chorar pela morte de dois maridos e de um filho amado. Queria tudo isso sem o ódio desse filho concebido com verdadeiro amor. Queria tudo isso sem culpa, sem tristeza, sem medo da morte e do terror do dia do juízo. Com inocência.

 

América, América, sonho blasfemo. Se deu tanto, por que não podia dar tudo? Lucia Santa chorava pelos crimes inevitáveis que cometera contra aqueles que amava. Em seu mundo, quando criança, seu sonho mais desenfreado fora o de escapar do medo da fome, da doença e da força da natureza. O sonho consistia em continuar a viver. Ninguém sonhava mais do que isso. Mas na América eram possíveis sonhos mais desenfreados, e ela nunca soubera da existência deles. Pão e abrigo não eram bastantes.

Octavia queria ser professora. E que queria Vinnie? Algo que ela nunca saberia. E Gino... que sonhos devia ter tido! Certamente os mais desenfreados de todos... Mas mesmo agora, através das lágrimas, através da angústia, surgia um ódio terrível, e ela pensou que, mais do que tudo, ele queria o seu próprio prazer. Queria viver como filho de rico. Depois ela se lembrou como amolecera o coração do próprio pai para ganhar a roupa de cama para o seu casamento.

Com terrível clareza, ela sabia que Gino jamais voltaria para casa depois da guerra. Que ele a odiava como ela odiara o próprio pai. Que ele se tornaria um peregrino e procuraria Américas estranhas em seus sonhos. E agora, pela primeira vez, Lucia Santa implorava misericórdia. Deixe-me ouvir seus passos na porta e eu viverei aqueles 40 anos novamente. Farei meu pai chorar e se tornar um peregrino para enfrentar o temível oceano. Deixarei meu marido morrer e ficarei fora daquela casa em Jersey para xingar Filomena com Vincenzo nos meus braços e depois chorarei ao lado de seu caixão. E então farei isso uma vez mais.

Mas, tendo dito isso, achou que era demais. Lucia Santa ergueu a cabeça e viu que Salvatore e Lena a estavam observando apreensivamente. O rosto sério deles fê-la sorrir. As forças voltaram-lhe impetuosamente ao corpo, e ela pensou como eram bonitos os seus dois últimos filhos. Pareciam tão americanos também e isso a divertia por alguma razão, como se eles se tivessem livrado dela e do resto da família.

Salvatore segurava o casaco dela aberto para que, ao se levantar, ela se enfiasse facilmente nele. Lena murmurou:

— Vou escrever para Gino, dando o novo endereço, assim que a gente chegar lá.

Lucia Santa mirou-a de modo penetrante, certa de não haver dito nada em voz alta. Mas o rosto da menina, tão parecido com o de Gino, fê-la querer chorar de novo. Lançou um último olhar às paredes nuas e depois deixou para sempre aquela que fora sua casa durante 40 anos.

Lá fora, na Décima Avenida, três mulheres vestidas de preto esperavam por ela de braços cruzados. Ela as conhecia bem. Uma levantou a mão mirrada para saudá-la, gritando:

— Lucia Santa, buona fortuna!

Falou sinceramente, sem maldade, embora com um tom de advertência, como quem diz: "Cuidado, muitos anos ainda vêm por aí, a vida não acabou." Lucia Santa curvou a cabeça agradecendo.

Larry bateu no volante com impaciência, quando todos entraram desordenadamente na limusine. Depois arrancou vagarosamente para que os dois caminhões de mudanças pudessem segui-lo, na direção leste, para a Ponte de Queensborough. A princípio, por causa das lágrimas da mãe, houve um silêncio constrangedor, depois as três crianças se contorceram a começaram a brigar, Louisa gritou e bateu nelas, aquietando-as. A tensão afrouxou, e todos passaram a falar sobre a nova casa. Larry disse que levariam uma hora para chegar lá. De dois em dois minutos as crianças perguntavam:

— Ainda não estamos em Long Island?

Sal ou Lena respondia:

— Não, ainda não.

Lucia Santa baixou a janela para gozar o ar fresco. Pôs um dos garotinhos no colo e então Larry sorriu para ela e disse:

— Vai ser ótimo a gente viver junto, hem, mãe?

Lucia Santa mirou os olhos de Lena, mas essa menina inocente era como Gino, muito simples para compreender aquele riso da mãe. Octavia sorriu. Elas sempre penetravam no íntimo de Larry. As duas compreendiam. Larry estava radiante porque Louisa e os filhos teriam companhia, enquanto ele, o animal que era, perseguiria pobres moças que passavam miséria por causa da guerra.

Então começaram a subir o aclive da Ponte de Queensborough, atravessando as sombras inclinadas e intermitentes dos cabos suspensos. As crianças ficaram em pé para ver a água barrenta lá embaixo, mas daí a poucos momentos estavam fora da ponte e rodavam num amplo bulevar lindamente arborizado. As crianças começaram a gritar, e Lucia Santa disse-lhes, sim, agora estavam em Long Island.

 

(*)A grafia atual do nome do profeta, em português, é Jó, mas, para manter maior coerência com o nome do menino, conservamos a grafia inglesa Job, para os dois casos. (N. do T.)

 

                                                                                Mario Puzo  

 

                      

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