Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A Saga do Planeta “Duna”
O IMPERADOR DEUS
Parte II
O estado de transe da profecia é diferente de qualquer outra experiência visionária. Ele não constitui um recuo da exposição bruta aos sentidos (como o são muitos dos estados de transe), mas sim a imersão em uma infinidade de novos movimentos. As coisas se movimentam. Constitui um pragmatismo final no meio do Infinito, uma consciência exigente onde você chega, afinal, à percepção contínua de que o universo se move por si mesmo, de que ele muda, de que suas regras se alteram, de que nada é permanente ou absoluto em tais movimentos e de que uma explicação mecânica para todas as coisas só pode funcionar dentro de limites precisos. Uma vez que as fronteiras de tais limites sejam rompidas, as velhas explicações se desmancham, destruídas e arrastadas pelos novos movimentos. As coisas que vemos nesse transe são sérias, freqüentemente demolidoras. Elas exigem um esforço total para se permanecer intacto, para não se ser destroçado. E ainda assim você emerge desse estado profundamente mudado.
— Os diários roubados
Naquela noite do Dia da Audiência, enquanto outros dormiam, lutavam, sonhavam e morriam, Leto encontrou seu repouso no isolamento de sua câmara, com apenas algumas Oradoras Peixes de confiança para montar guarda nos portais.
Ele não dormiu. Sua mente rodopiava com as necessidades e os desapontamentos.
“Hwi! Hwi!”
Agora ele sabia por que Hwi Noree lhe tinha sido enviada. Ah, como ele sabia!
“Meu segredo mais oculto encontra-se exposto.”
Eles tinham descoberto seu segredo. Hwi era uma prova disso. E ele teve pensamentos desesperados. Poderia essa terrível metamorfose ser revertida? Poderia ele voltar à condição humana?”
“Não é possível.”
E mesmo que fosse possível, o processo lhe tomaria tanto tempo quanto fora necessário para chegar a esse ponto. E onde estaria Hwi daqui a mais de 3 mil anos? Reduzida a um monte de ossos e poeira seca nesta cripta.
“Eu podia mandar gerar alguma coisa como ela e prepará-la para mim... mas não seria minha suave Hwi.”
E que seria do Caminho Dourado enquanto ele estivesse perseguindo tais objetivos egoístas?
“Para o inferno com o Caminho Dourado! Será que esses tolos idiotas alguma vez pensaram em mim? Nem uma vez!”
Mas isso não era verdade. Hwi pensara nele. Ela tinha partilhado sua tortura.
Eram pensamentos loucos, e ele tentou afastá-los de sua mente enquanto seus sentidos lhe traziam os movimentos suaves das guardas e o fluxo da água debaixo de sua câmara.
“Quando fiz essa escolha, quais eram minhas expectativas?” Como a multidão dentro dele ria ante essa pergunta! Não tinha ele uma tarefa a completar? Não era essa a própria essência do acordo que mantinha aquela multidão sob controle?
— Você tem uma tarefa a terminar — eles disseram. — Você tem apenas um propósito.
“O objetivo único é a marca dos fanáticos, e eu não sou um fanático.”
— Você deve ser cínico e cruel. Não pode quebrar a promessa.
“Por que não?”
— Quem fez aquele juramento? Você o fez. Você escolheu este caminho.
“Expectativas!”
— As expectativas que a história cria para uma geração freqüentemente são destruídas na geração seguinte. Quem sabe isso melhor do que você?
“Sim... E expectativas frustradas podem alienar populações inteiras. E eu sozinho sou uma população inteira!”
— Recorde seu juramento!
“De fato. Eu sou uma força desorganizadora liberada através dos séculos. Eu limito as expectativas... incluindo as minhas próprias. Eu retardo o pêndulo.”
— E então o liberta. Nunca se esqueça disso.
“Estou cansado. Ah, como estou cansado. Se ao menos pudesse dormir... dormir de verdade.”
— Você está cheio de autopiedade também.
“Por que não? Afinal, que sou eu? O último dos solitários, forçado a olhar o que poderia ter sido. Cada dia eu olho para isto... e agora. Hwi!”
— Sua escolha altruística original o enche agora de egoísmo.
“Existe perigo à nossa volta. Devo usar meu egoísmo como uma armadura.”
— Existe perigo para todos que o tocam. Não é essa a sua própria natureza?
“Perigo até mesmo para Hwi. Querida, adoravelmente querida Hwi.”
— Você construiu altas muralhas à sua volta apenas para se sentar em seu interior entregando-se à autocomiseração?
“As muralhas foram erguidas porque grandes forças tinham sido liberadas em meu Império.”
— Você as liberou. Agora vai se aliar a elas?
“É obra de Hwi. Esses sentimentos nunca antes tinham sido tão poderosos em mim. São os malditos Ixianos!”
— Como é interessante que eles o ataquem com carne e não com máquinas.
“Porque eles descobriram meu segredo.”
— Você conhece o antídoto.
Ante tal pensamento, o corpo inteiro de Leto estremeceu ao longo de seu comprimento. Ele conhecia bem o antídoto, que sempre funcionara em ocasiões anteriores: deixar-se perder no tempo de seu próprio passado. Nem mesmo as Irmãs Bene Gesserits podiam realizar tais safáris, mergulhando para dentro ao longo do eixo das memórias — para trás, para trás, até os limites da consciência celular, ou parando numa ramificação, para se deleitar num sofisticado prazer sensorial. Certa vez, após a morte de um Duncan particularmente soberbo, ele havia percorrido os grandes desempenhos musicais preservados em suas memórias. Mozart o cansara rapidamente. “Pretensioso! Mas Bach... ah, Bach.”
Leto relembrou o prazer que sentira.
“Eu me sentei ao órgão e deixei que a música me encharcasse.” Somente três vezes em todas as suas memórias tinha havido alguém como Bach. Mas mesmo Licallo não era melhor; igualmente bom, mas não melhor.
Seriam as intelectuais femininas uma escolha adequada para essa noite? Sua avó Jessica fora uma das melhores. Mas a experiência lhe dizia que alguém tão próximo dele quanto Jessica não seria um antídoto adequado para suas atuais tensões. A busca teria que se aventurar mais longe.
Ele se imaginou então descrevendo tal safári a um visitante admirado, um visitante inteiramente imaginário, pois ninguém se atreveria a lhe fazer perguntas sobre um assunto tão sagrado.
“Eu viajo para trás no tempo, no vôo de meus ancestrais, caçando ao longo dos tributários, mergulhando em seus recessos e fendas. Você não seria capaz de reconhecer muitos dos nomes. Quem jamais ouviu falar em Norma Cenva? Eu a vivi!”
— Viveu-a? — seu visitante imaginário indagava.
“É claro. Por que outro motivo julga que alguém manteria um ancestral por perto? Você pensa que foi um homem quem projetou a primeira nave da Corporação? Seus livros de história lhes dizem que foi Aurelius Venport? Eles mentem. Foi sua amante, Norma. Ela lhe deu o projeto, juntamente com cinco crianças. Ele pensou que seu ego não aceitaria menos. No fim, o conhecimento de que não preenchera realmente a imagem que dele faziam foi o que o destruiu.”
— Você o vivenciou também?
“Naturalmente. Eu atravessei as longas peregrinações dos Fremen. Através da linhagem de meu pai, e da de outros, recuei até a Casa de Atreus.”
— Que linhagem ilustre!
“Com sua razoável quota de tolos.”
“Distração é do que preciso”, pensou ele.
Seria então uma viagem através de prazeres e façanhas sexuais, então?
— Você não tem idéia das orgias interiores que me são disponíveis! Sou o derradeiro voyeur-participante(s) e observador(es). A ignorância e a má compreensão a respeito da sexualidade já causaram muita mágoa. Como temos sido abismalmente estreitos em mentalidade — e como temos sido miseráveis.
Leto sabia que não podia fazer tal escolha, não essa noite, não com Hwi lá fora em sua Cidade.
Iria escolher uma revista de guerras, então?
— Qual Napoleão foi o maior covarde? — indagou a seu visitante imaginário.
— Não vou revelar, mas eu sei. Oh, sim, eu sei.
“Aonde posso ir? Com todo o passado aberto para mim, aonde posso ir?”
Bordéis, atrocidades — tiranos, acrobatas, nudistas, cirurgiões, prostitutos, músicos, mágicos, instigadores, sacerdotes, artesãos, sacerdotisas...
— Você sabe — indagou a seu visitante imaginário — que a hula preserva uma antiga linguagem de sinais que um dia foi privilégio dos homens? Nunca ouviu falar na hula? É claro, quem é que dança a hula hoje em dia? As danças preservaram muita coisa, contudo. As traduções se perderam, mas eu as conheço. Durante uma noite inteira fui uma série de califas, movendo-me para leste e para oeste junto com o Islam — uma travessia de séculos. Mas não vou entediá-lo com os detalhes. Vá embora agora, visitante!
“Como é sedutor”, pensou ele. “Este canto de sereia que me faria viver apenas no passado.
“E como o passado é inútil agora, graças aos malditos Ixianos. Como é tedioso o passado quando Hwi está aqui. Ela viria até mim agora mesmo se eu a chamasse. Mas não posso chamá-la... não agora... não esta noite.”
E o passado continuava a atraí-lo.
“Eu poderia fazer uma peregrinação ao meu passado. Não precisa ser um safári. Poderia ir sozinho. A peregrinação purifica. Os safáris me transformam num turista, essa é a diferença. Eu poderia ir sozinho para o meu mundo interior.
“E nunca mais retornar.”
Leto sentiu a inevitabilidade daquilo, aquele estado de sonho que por fim o dominaria.
“E eu crio um estado de sonho especial através do meu Império. Dentro desse sonho, novos mitos se formam, novas direções aparecem e novos movimentos. Novos... novos... novos... Coisas que brotam de meus próprios sonhos, surgindo a partir de novos mitos. Quem mais suscetível a eles do que eu? O caçador apanhado em sua própria rede.”
Leto soube então ter encontrado uma condição para a qual não haveria antídoto — passado, presente ou futuro. Seu grande corpo tremeu nas sombras de sua câmara de audiências.
Diante do portal, uma Oradora Peixe sussurrou para a outra:
— Deus está perturbado?
Sua companheira guarda respondeu:
— Os pecados deste universo perturbariam qualquer um.
Leto ouviu-as e chorou em silêncio.
Quando parti para liderar a humanidade ao longo de meu Caminho Dourado, eu lhe prometi uma lição que até seus ossos iriam recordar. Conheço um padrão profundo que os humanos negam com suas palavras, ainda que suas ações o confirmem. Eles dizem que buscam a segurança e a quietude, aquela condição a que chamam de paz. E mesmo enquanto falam, eles criam as sementes da agitação e da violência. Se encontram sua quieta segurança, sentem-se mal nela. Quão tediosa a julgam. Olhe para eles agora.
Olhe para o que fazem enquanto eu registro estas palavras. Ah! Eu lhes dei eras de tranqüilidade forçada que prosseguem a despeito de todos os esforços para se mergulhar no caos. Acreditem-me, a memória da Paz de Leto permanecerá com eles para sempre — Eles só irão buscar sua quieta segurança, daqui para a frente, com extrema cautela e cuidadosa preparação.
— Os diários roubados
Muito contra a sua vontade, Idaho encontrou-se, ao amanhecer, na companhia de Siona, sendo levado para “um lugar seguro” num ornitóptero imperial. Corriam para leste em direção ao arco dourado da luz solar erguendo-se sobre uma paisagem lavrada pelos retângulos verdes das plantações.
O tóptero era um modelo grande, suficientemente espaçoso para conduzir um pequeno esquadra-o de Oradoras Peixes junto com seus dois convidados. A capitã-piloto do esquadrão era uma mulher musculosa e robusta, com um rosto que Idaho podia acreditar nunca ter sorrido, tendo dado seu nome como Inmeir. Ela sentava-se no assento do piloto, diretamente em frente a Idaho, com duas guardas igualmente musculosas em ambos os lados. Mais cinco guardas sentavam-se atrás de Idaho e Siona.
— Deus nos ordenou que o levássemos para longe da Cidade — dissera Inmeir, vindo falar com ele no posto de comando, debaixo da praça central. — É para sua própria segurança. Retornaremos a Siaynoq na manhã do próximo dia.
Idaho, fatigado por uma noite de alarmes, sentira a inutilidade de discutir contra as ordens do “próprio Deus”. Inmeir parecia bem capaz de agarrá-lo com um daqueles braços grossos e carregá-lo. Ela o conduziu do posto de comando para uma noite fria, coberta por uma cúpula de estrelas que pareciam rígidas facetas de brilhantes despedaçados. Foi somente quando chegaram ao tóptero que Idaho reconheceu Siona esperando por eles e começou a questionar o propósito dessa saída.
Durante a noite, Idaho viera a perceber que nem toda a violência em Onn se originara com os rebeldes organizados. Quando perguntou por Siona, Moneo lhe enviou um recado dizendo que “minha filha se encontra em segurança, fora do caminho”, acrescentando no final da mensagem: “Recomendo-a aos seus cuidados.”
No tóptero, Siona não respondera as perguntas de Idaho. Mesmo agora ela se sentava ao lado dele em aborrecido silêncio. Lembrava-lhe de si próprio naqueles primeiros e amargos dias, quando jurara vingança aos Harkonnen. E se perguntava qual a razão da amargura dela. O que a impulsionaria?
Sem saber por quê, Idaho se viu comparando Siona com Hwi Noree. Não fora fácil encontrar Hwi, mas ele o conseguira, a despeito das exigências inoportunas das Oradoras Peixes para que se dedicasse a tarefas em outro lugar.
Gentil, essa era a palavra que definia Hwi. Ela agia a partir de um núcleo de imutável gentileza e suavidade que constituía, à sua própria maneira, uma coisa de enorme poder. Ele achava isso intensamente atraente.
“Devo vê-la mais vezes.”
Por hora, entretanto, tinha que se contentar com o carrancudo silêncio de Siona, sentada ao seu lado. Bem... silêncio podia ser correspondido com silêncio.
Idaho olhou para a paisagem que passava. Aqui e ali podiam ser vistos os aglomerados de luzes dos vilarejos, apagando-se ante a aproximação da luz solar. O deserto do Sareer encontrava-se bem atrás, e essa era uma terra que, pela própria aparência, podia nunca ter sido ressecada.
“Algumas coisas não mudam muito”, pensou ele. “São apenas tiradas de um lugar e reformadas em outro.”
A paisagem relembrava-lhe os jardins luxuriantes de Caladan e fazia com que tentasse imaginar o que teria sido feito do verdejante planeta onde os Atreides tinham vivido por tantas gerações antes de habitarem Duna. Ele podia identificar estradas estreitas, estradas mercantis com um tráfego disperso de veículos puxados por animais de seis pernas que ele supunha fossem tavalos. Moneo dissera que tavalos criados para enfrentar as exigências de tal paisagem eram os principais animais usados não apenas ali, mas por todo o Império.
— Uma população que anda a pé é mais fácil de se controlar. As palavras de Moneo repercutiam na memória de Idaho enquanto ele olhava para baixo. Regiões de pastagem apareceram adiante do tóptero, colinas verdes suavemente onduladas, cortadas em padrões irregulares por muros de pedras negras. Idaho reconheceu ovelhas e vários outros tipos de gado de grande porte. O tóptero sobrevoou um vale estreito, ainda mergulhado na escuridão, com apenas um indício da água que fluía em suas profundezas. Uma única luz e um fio de fumaça azul elevando-se das sombras do vale revelavam a ocupação humana.
Siona subitamente se mexeu e bateu no ombro da piloto, apontando para um ponto à direita e à frente deles.
— Não é Goygoa lá embaixo?
— Sim — respondeu Inmeir sem se virar, a voz tocada por alguma emoção que Idaho não podia identificar.
— Aquele não é um lugar seguro? — perguntou Siona.
— É seguro.
Siona olhou para Idaho.
— Ordene-lhe que nos leve para Goygoa.
Sem saber por que atendia ao pedido, Idaho disse:
— Leve-nos para aquele lugar.
Inmeir virou-se e suas feições, que durante a noite Idaho julgara ser um bloco quadrangular de não emoção, revelaram a evidência clara de algum sentimento profundo. Sua boca parecia presa numa expressão de severidade. Um nervo contorcia-se no canto do olho direito.
— Não Goygoa, Comandante. Há melhores...
— O Imperador-Deus lhe disse para nos levar a algum lugar específico? — perguntou Siona.
Inmeir demonstrou sua ira ante essa interrupção, mas não olhou diretamente para Siona.
— Não, mas Ele...
— Leve-nos então para este Goygoa — disse Idaho.
Inmeir voltou sua atenção bruscamente para os controles do tóptero e Idaho foi lançado de encontro a Siona enquanto a aeronave fazia uma curva brusca e voava em direção a um bolsão arredondado, aninhado entre colinas verdes.
Idaho olhou por sobre o ombro de Inmeir para examinar seu destino. No centro exato do bolsão encontrava-se um vilarejo construído com as mesmas pedras negras das cercas ao redor. Idaho viu pomares em algumas das colinas acima, jardins construídos em terraços que subiam em degraus sucessivos até uma pequena depressão na montanha, onde falcões podiam ser vistos deslizando sobre as primeiras correntes ascendentes da manhã.
Olhando para Siona, Idaho perguntou:
— Que é esse Goygoa?
— Você vai ver.
Inmeir colocou o tóptero num planeio rasante que os trouxe até um pouso suave sobre uma extensão plana de capim, na borda do vilarejo. Uma das Oradoras Peixes abriu a porta do lado virado para a vila e imediatamente as narinas de Idaho foram assaltadas por uma pesada mistura de aromas — capim pisado, estrume de animais, os pungentes cheiros de cozinha. Ela saltou para fora do tóptero e olhou para a rua do vilarejo onde as pessoas começavam a sair de suas casas para fitar os visitantes. Idaho viu uma mulher velha, num longo traje verde, curvar-se e sussurrar alguma coisa para uma criança que imediatamente virou-se e subiu correndo pela rua.
— Gosta deste lugar? — perguntou Siona. Ela saltara ao lado dele.
— Parece agradável.
Siona olhou para Inmeir enquanto a piloto e outras Oradoras Peixes se reuniam a eles no gramado.
— Quando voltaremos a Onn?
— Você não voltará — disse Inmeir. — Minhas ordens são para levá-la à Cidadela. E só o Comandante retornará.
— Percebo — assentiu Siona. — Quando partiremos?
— Amanhã, ao raiar do dia. Vou falar com o líder do vilarejo a respeito de alojamentos.
Inmeir saiu, entrando no vilarejo.
— Goygoa — disse Idaho. — Que nome estranho. Eu me pergunto o que era este lugar nos tempos de Duna.
— Por acaso eu sei — respondeu Siona. — Está marcado nos antigos mapas como Shuloch, o que significa “lugar assombrado”. A História Oral diz que grandes crimes foram cometidos aqui antes de todos os habitantes serem exterminados.
— Jacurutu — sussurrou Idaho, relembrando velhas lendas dos ladrões de água.
Olhou à sua volta, buscando a evidência de dunas e penhascos. Não havia nada — somente dois homens velhos com os rostos plácidos voltados para Inmeir. Usavam calças azuis desbotadas e camisas esfarrapadas. Seus pés estavam nus.
— Você conhece este lugar? — perguntou Siona.
— Somente como um nome de uma lenda.
— Há quem diga que existem fantasmas, mas não acredito nisso.
Inmeir parou diante de Idaho e fez sinal para que os dois homens descalços esperassem atrás dela.
— Os alojamentos são pobres, mas adequados — ela disse. — A não ser que vocês prefiram ficar em uma das residências particulares. — Ao dizer isso, virou-se e olhou para Siona.
— Nós vamos decidir depois — respondeu Siona, enquanto pegava Idaho pelo braço. — O Comandante e eu desejamos dar uma caminhada por Goygoa para admirar a paisagem.
Inmeir fez menção de dizer alguma coisa, mas ficou em silêncio. Idaho permitiu que Siona saísse na frente, passando pelas caras curiosas dos dois homens do lugar.
— Mandarei duas guardas com vocês — gritou Inmeir.
Siona parou e se virou.
— Não é seguro em Goygoa?
— É muito pacífico aqui — disse um dos homens.
— Então não precisaremos de guardas — disse Siona. — Deixe-as guardando o tóptero.
Novamente ela conduziu Idaho para fora do vilarejo.
— Tudo certo — disse Idaho, soltando o braço da mão de Siona.
— Que é este lugar?
— É muito provável que o ache um local de descanso muito repousante. Não é nem um pouco como o velho Shuloch. Muito pacífico.
— Você está aprontando alguma coisa — disse Idaho, caminhando ao lado dela. — Que é?
— Sempre ouvi dizer que os gholas eram cheios de perguntas. Eu também tenho perguntas.
— Ah?
— Como ele era no seu tempo? O homem Leto?
— Qual deles?
— Sim, eu me esqueço que houve dois, o avô e o nosso Leto. Quero dizer o nosso Leto, é claro.
— Era apenas uma criança, é tudo que eu sei.
— A História Oral diz que uma de suas primeiras noivas veio deste vilarejo.
— Noivas? Pensei...
— Quando ele ainda tinha forma humana. Foi depois da morte de sua irmã, mas antes que ele começasse a se transformar no Verme. A História Oral diz que todas as noivas de Leto desapareceram nos labirintos da Cidadela Imperial para nunca mais serem vistas, exceto como rostos e vozes transmitidos holograficamente. E ele não tem tido uma noiva há milhares de anos.
Eles haviam chegado a uma pequena praça no centro do vilarejo, um espaço de aproximadamente 50 metros de lado, tendo ao centro um lago de águas claras cercado por um muro baixo. Siona caminhou até o lado e se sentou na beirada de pedra, batendo com a mão ao lado para que Idaho se unisse a ela. Ele primeiro olhou à volta, notando como as pessoas do vilarejo os observavam por trás de cortinas, como as crianças apontavam e sussurravam. Depois, virou-se e ficou olhando para Siona.
— Que lugar é este?
— Já lhe disse. Diga-me como era o Muad'Dib.
— Ele era o melhor amigo que um homem poderia ter.
— Assim, a História Oral é verdadeira, mas ela chama o califado de seus herdeiros de Desposyni, e isso soa tão mal.
“Ela está me provocando”, pensou Idaho.
Ele se permitiu um leve sorriso, tentando adivinhar os motivos por trás das ações de Siona. Ela parecia estar esperando que alguma coisa importante acontecesse, ansiosa... mesmo temerosa... mas com o indício de algo ligado ao entusiasmo. Era tudo bem visível e nada do que ela dissesse agora poderia ser considerado outra coisa senão uma conversa banal, uma forma de ocupar o tempo ate... até o quê?
O leve som de pés correndo interrompeu esse devaneio. Idaho voltou-se e viu uma criança de uns oito anos correndo em direção a ele, saindo de uma rua lateral. Os pés descalços da criança erguiam pequenos géiseres de poeira enquanto ela corria, e havia o som de uma mulher gritando, um som desesperado em algum lugar rua acima. O corredor parou a 10 passos de distância e olhou para Idaho com um olhar faminto, com uma intensidade que ele achou perturbadora. A criança parecia vagamente familiar — um menino, uma figura decidida, com cabelo negro encaracolado, um rosto ainda não terminado, mas que já mostrava indícios do homem que iria ser — as maçãs do rosto um pouco altas, uma linha chata atravessando as sobrancelhas. Ele usava um macacão azul desbotado, que revelava o efeito de muitas lavagens, mas que obviamente fora um traje de material excelente. Tinha a aparência de algodão punji trançado de um modo que não permitiria nem que as bordas esfiapadas desfizessem a trama.
— Você não é meu pai — disse a criança, correndo de volta rua acima e desaparecendo numa esquina.
Idaho voltou-se carrancudo para Siona, quase temeroso de fazer a pergunta: “Esse é um filho de meu antecessor?” Conhecia a resposta sem precisar perguntar — aquele rosto familiar, o genótipo verdadeiramente revelado. “Eu mesmo, como uma criança.” A compreensão deixou-o com um sentimento de vazio, uma sensação de frustração.
“Qual é minha responsabilidade?”
Siona colocou ambas as mãos sobre o rosto e se apoiou sobre os cotovelos. Não tinha acontecido do modo como ela imaginara que poderia acontecer. Seu rosto traído por seu próprio desejo de vingança. Idaho não era simplesmente um ghola, uma coisa estranha que não merecesse consideração. Ela o vira ser lançado contra ela no tóptero, vira as emoções claras em seu rosto. E aquela criança. .
— Que aconteceu com meu predecessor? — perguntou ele, a voz saindo acusadora.
Ela abaixou as mãos. Havia uma raiva contida no rosto dele.
— Não estamos certos — ela disse —, mas um dia ele entrou na Cidadela e não saiu mais.
— Aquele era seu filho?
Ela assentiu com a cabeça.
— Tem certeza de que vocês não mataram meu antecessor?
— Eu... — Ela sacudiu a cabeça, chocada por sua dúvida, a acusação latente nas palavras dele.
— Aquela criança foi a razão de termos vindo aqui?
Ela engoliu em seco.
— Sim.
— Que se supõe que eu deva fazer quanto a ela?
Ela encolheu os ombros, sentindo-se culpada e suja por suas próprias ações.
— E quanto à sua mãe? — perguntou Idaho.
— Ela e os outros vivem no final daquela rua. — Siona fez um sinal na direção que o menino tomara.
— Outros?
— Existe um filho mais velho... uma filha. Você quer... Quer dizer, eu poderia arranjar...
— Não! O menino estava certo. Não sou seu pai.
— Sinto muito — sussurrou Siona. — Eu não devia ter feito Isso.
— Por que ele escolheu este lugar? — perguntou Idaho.
— O pai... seu...
— Meu predecessor!
— Porque este era o lar de Irti e ela não sairia daqui. Isso é o que as pessoas disseram.
— Irti... a mãe?
— Esposa, pelos velhos rituais, aqueles da História Oral.
Idaho olhou à sua volta para as frentes de pedra dos prédios que cercavam a praça, para as janelas cobertas, as portas estreitas.
— Então ele vivia aqui.
— Quando podia.
— Como ele morreu?
— Na verdade eu não sei... mas o Verme matou outros. Disso temos certeza!
— Como sabe disso? — Ele centrou um olhar avaliador no rosto dela. A intensidade fez com que Siona virasse o rosto.
— Não duvido das histórias de meus ancestrais — respondeu ela. — Elas são contadas em fragmentos e trechos, uma nota aqui, um relato sussurrado ali, mas acredito nelas. E meu pai também acredita!
— Moneo não me disse coisa alguma a respeito disso.
— Uma coisa se pode dizer a respeito dos Atreides — ela disse.
— Somos leais, e isso é um fato. Mantemos nossa palavra.
Idaho abriu a boca para falar e a fechou sem fazer nenhum som. É claro! Siona também era uma Atreides. O pensamento o fez estremecer. Ele sabia disso, mas ainda não pudera aceitar. Siona era algum tipo de rebelde, uma rebelde cujos atos eram quase sancionados por Leto. Os limites de sua permissão não eram claros, mas Idaho os sentia.
— Você não deve feri-la — dissera Leto. — Ela deve ser testada.
Ele voltou as costas para Siona.
— Você não sabe de nada com certeza — disse ele. — Fragmentos, rumores!
Siona não respondeu.
— Ele é um Atreides! — afirmou Idaho.
— Ele é o Verme! — respondeu Siona, e o ódio em sua voz era quase palpável.
— Sua maldita História Oral não é nada senão um monte de antigos mexericos! — acusou Idaho. — Só um tolo acreditaria nisso.
— Você ainda acredita nele — ela disse. — Isso vai mudar.
Idaho virou-se, encarando-a furioso.
— Você nunca falou com ele!
— Já falei, sim. Quando era criança.
— Você ainda é criança. Ele é todos os Atreides que já existiram, todos eles. É uma coisa terrível, mas conheci aquelas pessoas. Elas eram minhas amigas.
Siona apenas sacudiu a cabeça.
Novamente Idaho lhe voltou as costas. Sentia-se esvaído de toda emoção. Encontrava-se espiritualmente desossado. Sem querer, começou a atravessar a praça e subiu pela rua onde o menino desaparecera. Siona veio correndo atrás dele, igualou seu passo, mas ele a ignorou.
A rua era estreita, fechada por prédios feitos de pedra, todos de um único andar, as portas dentro de portais em arco, todas elas fechadas. As janelas eram pequenas versões das portas. Cortinas tremiam quando eles passavam.
Na primeira encruzilhada, Idaho parou e olhou para a direita, na direção seguida pelo menino. Duas mulheres de cabelos grisalhos usando longas saias pretas e blusas verde-escuras encontravam se a alguns passos de distância, cabeças curvadas em uma troca de mexericos. Elas ficaram em silêncio quando viram Idaho e olharam para ele com aberta curiosidade. Ele as encarou e depois olhou para a rua lateral. Estava vazia.
Idaho voltou-se na direção das mulheres e passou por elas a apenas um passo de distância. Elas aproximaram-se uma da outra e se viraram a fim de olhá-lo. Olharam apenas uma vez para Siona, e então voltaram a atenção para Idaho. Siona caminhava em silêncio ao lado dele, com uma expressão estranha no rosto.
“Tristeza?”, pensou ele. “Arrependimento? Curiosidade?”
Era difícil dizer. Ele estava mais curioso quanto às portas e janelas pelas quais iam passando.
— Já esteve antes em Goygoa? — perguntou Idaho.
— Não — respondeu Siona com a voz abafada, como se estivesse com medo daquilo.
“Por que estou caminhando ao longo desta rua?” Mesmo enquanto se fazia essa pergunta, ele já sabia a resposta. “Essa mulher, essa Irti: que tipo de mulher me traria para Goygoa?”
O canto de uma cortina à sua direita se ergueu e Idaho viu um rosto — o menino da praça.
A cortina caiu e depois foi empurrada de lado para revelar uma mulher de pé ante a janela. Idaho olhou sem fala para aquele rosto, imobilizado antes de poder completar um passo. Era o rosto de uma mulher conhecida apenas em suas fantasias mais íntimas — um oval suave com olhos escuros penetrantes, boca sensual.
— Jessica — sussurrou ele.
— Que você disse? — perguntou Siona.
Idaho não era capaz de responder. Era o rosto de Jessica ressuscitado de um passado que ele acreditava perdido para sempre, uma piada genética — a mãe do Muad'Dib recriada em nova carne.
A mulher fechou a cortina, deixando a memória de suas feições na mente de Idaho, uma pós-imagem que, ele sabia, jamais se apagara. Ela era mais velha do que a Jessica que partilhara os perigos de Duna — linhas de envelhecimento ao lado da boca e dos olhos, o corpo um pouco mais cheio...
“Mais maternal”, pensou Idaho. E então: “Será que eu cheguei a lhe dizer com quem ela se parecia?”
Siona puxou-lhe a manga.
— Quer entrar e conhecê-la?
— Não. Isto foi um erro.
Idaho virou-se para voltar, mas a porta da casa de Irti se escancarou. Um jovem saiu e fechou a porta atrás de si, voltando-se para confrontar Idaho.
Ele calculou a idade em torno de 16 anos, e não havia como negar o parentesco — o cabelo karakul, as feições fortes.
— Você é o novo — disse o jovem, a voz já grave como a de um adulto.
— Sim. — Idaho achou difícil falar.
— Por que veio? — o rapaz perguntou.
— Não foi idéia minha — respondeu Idaho, achando que isso era mais fácil de dizer, as palavras impulsionadas pelo ressentimento contra Siona.
O jovem olhou para Siona.
— Tivemos notícia de que meu pai está morto.
Siona assentiu com a cabeça.
O jovem voltou sua atenção para Idaho.
— Por favor, vá embora e não volte mais. Você causa aflição à minha mãe.
— É claro — concordou Idaho. — Por favor, peça desculpa por mim à Sra. Irti, peça-lhe que me perdoe por esta intromissão. Fui trazido aqui contra a minha vontade.
— Quem o trouxe?
— As Oradoras Peixes.
O jovem assentiu com a cabeça, um curto movimento. Olhou uma vez mais para Siona.
— Sempre pensei que vocês, Oradoras Peixes, fossem ensinadas a tratar sua própria gente com bondade.
Com isso, ele se virou e entrou na casa, fechando a porta com firmeza atrás de si.
Idaho voltou pelo caminho pelo qual viera, agarrando o braço de Siona enquanto se afastavam caminhando. Ela tropeçou, perdeu o passo e então se soltou de sua mão.
— Ele pensou que eu fosse uma Oradora Peixe — disse ela.
— É claro. Você tem a aparência. — Ele olhou para ela. — Por que não me disse que Irti já foi Oradora Peixe?
— Não me parecia importante.
— Ah.
— Foi assim que eles se conheceram.
Haviam alcançado o ponto onde a rua desembocava na praça. Idaho afastou-se da praça, caminhando com firmeza até a extremidade do vilarejo, onde as casas davam lugar aos jardins e pomares. Com o choque sentia-se isolado do mundo, sua consciência encolhendo-se ante tudo aquilo que não poderia ser assimilado.
Um muro baixo bloqueou-lhe o caminho. Ele pulou por cima, ouvindo que Siona o seguia. As árvores em torno deles estavam cheias de flores brancas com centros alaranjados onde insetos marrom-escuros trabalhavam. O ar estava cheio de seus zumbidos, e um cheiro floral lembrava a Idaho o perfume das florestas de Caladan.
Ele parou ao chegar ao topo de uma colina de onde podia voltar-se e olhar para a perfeição retangular de Goygoa. Os tetos eram negros e achatados.
Siona sentou-se no gramado espesso do topo da colina e abraçou os joelhos.
— Não era isso que você pretendia, era? — perguntou Idaho.
Ela sacudiu a cabeça e ele percebeu que Siona estava quase chorando.
— Por que você o odeia tanto? — perguntou ele.
— Nós não podemos viver nossas próprias vidas.
Idaho olhou para o vilarejo.
— Existem muitas vilas como essa aí?
— Essa é a forma do Império do Verme!
— Que há de errado com ele?
— Nada, se isso aí é tudo que você deseja.
— Está me dizendo que isso é tudo que ele permite?
— Isso, algumas cidades mercantis... Onn. Disseram-me que até mesmo as capitais planetárias são apenas grandes vilarejos.
— E eu repito: que há de errado com isso?
— É uma prisão.
— Então saia dela.
— Para onde? Como? Você pensa que a gente pode simplesmente entrar em uma nave da Corporação e ir para outro lugar? Para onde quiser? — Ela apontou para Goygoa, onde o tóptero podia ser visto em uma das extremidades, as Oradoras Peixes sentadas no capim das imediações. — Nossas carcereiras não deixariam que saíssemos!
— Elas saem — disse Idaho. — Elas vão para onde querem.
— Para onde o Verme as manda! — Ela comprimiu o rosto contra os joelhos e falou com a voz embargada. — Como era nos velhos dias?
— Era diferente, freqüentemente muito perigoso. — Ele olhou à sua volta para os muros que separavam as pastagens dos jardins e pomares. — Aqui em Duna não havia linhas imaginárias para marcar limites entre as terras. Era tudo o Ducado dos Atreides.
— Exceto para os Fremen.
— Sim, mas eles sabiam qual era o seu lugar... deste lado de uma determinada escarpa... ou além, onde uma depressão se tornava branca de encontro à areia.
— Eles podiam ir para onde desejassem!
— Dentro de certos limites.
— Alguns de nós anseiam pelo deserto — ela disse.
— Vocês têm o Sareer.
Ela ergueu a cabeça para lhe lançar um olhar furioso.
— Aquela coisinha!
— Mil e quinhentos quilômetros por quinhentos de largura... não é tão pequeno.
Siona levantou-se.
— Já perguntou ao Verme por que ele nos confina desse modo?
— A Paz de Leto, o Caminho Dourado para assegurar nossa sobrevivência. Isso é o que ele diz.
— Sabe o que ele disse para meu pai? Eu os espionava quando era criança. Eu ouvi.
— Que foi que ele disse?
— Disse que nos nega a maioria das crises para limitar nossas forças formadoras. Disse: “As pessoas podem ser sustentadas pela angústia, mas agora eu sou a angústia. Deuses podem transformar-se em fontes de angustia.” Essas foram suas palavras, Duncan. O Verme é uma doença!
Idaho não duvidou da precisão desse relato, mas as palavras não conseguiam estimulá-lo. Ele pensou, em vez disso, no Corrino que lhe haviam ordenado que matasse.
“Angústia.” O Corrino, descendente de uma família que um dia governara esse Império, revelara-se um homem gorducho de meia-idade que ambicionava o poder e conspirava para obter especiaria. Idaho ordenara a uma Oradora Peixe que o matasse, ato que provocara um intenso acesso de questionamento da parte de Monco.
— Por que não o matou você mesmo?
— Queria ver como agiam as Oradoras Peixes.
— E seu julgamento quanto ao desempenho delas?
— Eficiente.
Mas a morte do Corrino causara a Idaho um sentimento de irrealidade. Um homenzinho gordo, caído na poça de seu próprio sangue, uma sombra indistinta entre as outras sombras da noite em uma rua de plaspedra. Era irreal. Idaho podia lembrar-se do Muad'Dib dizendo: “A mente impõe esta estrutura a que chamam 'realidade'. Essa moldura arbitrária tem uma tendência a se tornar bastante independente daquilo que os seus sentidos relatam.” Que realidade impulsionava Leto?
Idaho olhou para Siona, erguida contra o fundo dos pomares e as colinas verdes de Goygoa.
— Vamos descer para o vilarejo, achar nossos alojamentos. Gostaria de ficar sozinho.
— As Oradoras Peixes vão nos colocar nos mesmos alojamentos.
— Com elas?
— Não, só nós dois juntos. A razão é bem simples: o Verme deseja que eu procrie com o grande Duncan Idaho.
— Eu escolho minhas próprias parceiras — resmungou Idaho.
— Tenho certeza de que uma de nossas Oradoras Peixes ficaria encantada — disse Siona. Virou-lhe as costas e começou a descer a colina.
Idaho observou-a por um momento, o corpo jovem e flexível oscilando num meneio, como os ramos das árvores do pomar ante o vento.
— Eu não sou o garanhão dele — murmurou Idaho. — Esta é uma coisa que ele vai ter que entender.
A cada dia que passa você se torna cada vez mais irreal, mais estranho em relação ao que me descubro sendo no dia seguinte. Eu sou a única realidade e, na medida em que difere de mim, você perde a condição real. E quanto mais curioso eu me torno, menos curiosos ficam aqueles que me adoram. A religião suprime a curiosidade.
Tudo que eu faço subtrai alguma coisa de meus adoradores. Assim é que, no final, não farei coisa alguma, entregando tudo de volta ao povo assustado, que se encontrará sozinho e forçado a agir por si próprio.
— Os diários roubados
Era um som como nenhum outro, o som de uma multidão esperando, e subia ao longo do túnel por onde Idaho marchava à frente da Carreta Real — sussurros nervosos, ampliados num sussurro maior, o arrastar de um gigantesco pé, o remexer de um enorme manto. E o cheiro — doce transpiração misturada com o hálito leitoso da excitação sexual.
Inmeir e seu grupo de Oradoras Peixes tinham trazido Idaho para esse lugar nas primeiras horas da manhã, descendo na praça de Onn quando esta ainda se encontrava imersa em frias sombras esverdeadas. Elas haviam decolado imediatamente, depois de entregarem Idaho a outra escolta de Oradoras Peixes. Inmeir estava obviamente infeliz porque devia levar Siona para a Cidadela e assim perderia o ritual de Siaynoq.
A nova escolta, vibrando com a emoção reprimida, conduzira-o para um local bem abaixo da praça, um local ausente de todos os mapas que Idaho estudara. Era um labirinto — primeiro em uma direção, depois em outra, através de corredores suficientemente largos e altos para acomodarem a Carreta Real. Idaho perdeu o senso de direção e ficou refletindo a respeito da noite anterior.
Os quartos de dormir em Goygoa, embora pequenos e espartanos, haviam sido confortáveis — duas camas em cada quarto, cada qual uma caixa com paredes de um branco lavado, uma única janela e uma única porta. Os quartos enfileiravam-se ao longo de um corredor num prédio designado como “Casa de Hospedagem” de Goygoa.
E Siona estava certa. Sem que lhe perguntassem se lhe convinha, Idaho fora alojado com ela, Inmeir agindo como se esse fosse um procedimento consagrado.
Quando a porta se fechou Siona lhe disse:
— Se me tocar eu tentarei matá-lo.
Aquilo foi dito com uma sinceridade tão seca que Idaho quase riu.
— Teria preferido a privacidade respondeu — Considere-se sozinha.
Ele dormira um sono leve, relembrando noites perigosas a serviço dos Atreides, a prontidão para o combate. O quarto raramente ficava inteiramente escuro — havia a luz do luar atravessando a cortina da janela, até mesmo a luz das estrelas refletindo-se nas paredes brancas de cal. Idaho ficou nervosamente sensível a Siona, sentindo o cheiro dela, sua respiração, seu remexer. Várias vezes ficou inteiramente desperto, consciente em duas dessas ocasiões, de que ela também estava ouvindo.
A manhã e o vôo para Onn vieram como um alívio. Eles haviam quebrado o jejum com um copo de suco de fruta frio, Idaho feliz por sair na escuridão anterior à aurora, caminhando rapidamente em direção ao tóptero. Ele não falara diretamente com Siona e se ressentiu dos olhares curiosos das Oradoras Peixes.
Siona falou com ele apenas uma vez, inclinando-se para fora do tóptero quando ele saía para a praça.
— Não me ofenderia ser sua amiga — ela disse.
Era um modo muito curioso de colocar a questão. Ele se sentiu vagamente embaraçado:
— Sim... bem, por que não?
Então, a nova escolta o levara para longe, chegando por fim a um terminal do labirinto. Leto o esperava lá na Carreta Real. O lugar de encontro era um trecho largo de um corredor que se estendia até convergir na distância, à direita de Idaho. As paredes eram de uma cor marrom-escura, riscadas com linhas douradas que brilhavam à luz amarela dos globos luminosos. A escolta tomou posição atrás da carreta, movimentando-se com habilidade para deixar Idaho confrontando o rosto de Leto envolto nas dobras da truta da areia.
— Duncan, você me precederá quando formos para Siaynoq — disse Leto.
Idaho fitou os poços azul-escuros dos olhos do Imperador-Deus, aborrecido com o mistério e o óbvio ar de excitação desse lugar. Sentia que tudo que lhe fora dito a respeito de Siaynoq só aprofundava ainda mais o mistério.
— Sou verdadeiramente o Comandante de sua Guarda, meu Senhor? — perguntou Idaho, o ressentimento forte em sua voz.
— De fato! E eu lhe outorgo uma honra agora. Poucos homens adultos já partilharam Siaynoq.
— Que aconteceu na cidade na noite passada?
— Violência sangrenta em certos lugares. Mas está bem calmo esta manhã.
— Baixas?
— Nada que valha a pena mencionar.
Idaho assentiu com a cabeça. Os poderes prescientes de Leto haviam-no advertido de algum perigo para o seu Duncan. Assim, o vôo para a segurança rural de Goygoa.
— Você esteve em Goygoa — disse Leto. — Não se sentiu tentado a ficar?
— Não!
— Não fique com raiva de mim — disse Leto. — Eu não o mandei para Goygoa.
Idaho suspirou.
— Que perigo exigia que me mandasse para longe?
— Não era com você. Mas acontece que você excita minhas guardas a exibirem excessivamente suas habilidades. As atividades da noite passada não exigiam isso.
— Ah?
Esse pensamento deixou Idaho chocado. Ele nunca se julgara capaz de inspirar heroismos, a não ser que pessoalmente o exigisse. É costume estimular as tropas. Líderes como o Leto original, avô desse aí, tinham sido inspiradores por sua própria presença.
— Você é extremamente precioso para mim, Duncan.
— Sim... bem, mas ainda assim não sou seu garanhão!
— Seus desejos serão considerados, é claro. Discutiremos isso em outra ocasião.
Idaho olhou para as Oradoras Peixes da escolta, todas elas de olhos arregalados e atentos.
— Sempre ocorre violência quando vem a Onn? — perguntou ele.
— Acontece em ciclos. Os descontentes estão bem dominados agora. Vai ficar mais pacífico por algum tempo.
Idaho olhou de novo para o rosto inescrutável de Leto.
— Que aconteceu com meu antecessor?
— Minhas Oradoras Peixes não lhe disseram?
— Elas dizem que ele morreu em defesa de seu Deus.
— E você ouviu um rumor em contrário.
— Que aconteceu?
— Ele morreu porque estava muito próximo de mim. Não o removi a tempo para um lugar seguro.
— Um lugar como Goygoa.
— Eu teria preferido que ele vivesse o resto de sua vida lá, em paz, mas você sabe bem, Duncan, que não é daqueles que andam atrás de paz.
Idaho engoliu em seco, encontrando um estranho aperto em sua garganta.
— Ainda assim, gostaria de saber particularidades sobre a morte dele. Ele tem uma família.
— Você terá as particularidades, e não tema pela família dele. Eles são meus protegidos. Eu os manterei a uma distância segura. Você sabe como a violência me acompanha. Essa é uma de minhas funções. É extremamente infeliz que aqueles a quem admiro e amo devam sofrer por causa disso.
Idaho comprimiu os lábios, insatisfeito com o que ouvia.
— Acalme sua mente, Duncan. Seu antecessor morreu porque estava muito perto de mim.
A escolta de Oradoras Peixes remexeu-se, inquieta. Idaho olhou para elas e então para a direita, ao longo do túnel.
— Sim, está na hora — disse Leto — Não devemos deixar as mulheres esperando. Marche bem adiante de mim, Duncan, e eu responderei suas perguntas sobre Siaynoq.
Obedecendo, porque não podia pensar em qualquer alternativa adequada, Idaho virou-se nos calcanhares e liderou a procissão. Ouviu a carreta estalar, entrando em movimento atrás dele, os passos abafados da escolta seguindo.
A carreta ficou silenciosa de repente, o que fez com que Idaho voltasse sua atenção. A razão era imediatamente evidente.
— Está usando suspensores — disse ele, voltando a atenção para a frente.
— Recolhi as rodas porque as mulheres vão se amontoar em volta de mim — explicou Leto. — Não podemos esmagar os pés delas.
— Que é Siaynoq? Que é realmente? — perguntou Idaho.
— Eu lhe contei. É a Grande Partilha.
— Estarei cheirando especiaria?
— Suas narinas são sensíveis. Existe uma pequena quantidade de melange nos biscoitos.
Idaho sacudiu a cabeça.
Tentando compreender esse acontecimento, ele perguntara diretamente a Leto na primeira oportunidade após sua chegada a Onn:
— Que é esse banquete de Siaynoq?
— Nós partilhamos um biscoito, nada mais. Até eu como.
— É como o Ritual Católico Laranja?
— Oh, não! Não é minha carne. É apenas uma forma de partilhar alguma coisa. Elas são lembradas de que são apenas femininas, como você é apenas masculino, mas eu sou o todo. Elas compartilham com o todo.
Idaho não gostara do tom dessa declaração.
— Apenas masculino?
— Você sabe quem elas satirizam durante o Banquete, Duncan?
— Quem?
— Os homens que as ofenderam. Escute-as enquanto falam baixinho entre elas mesmas.
Idaho tomara isso como um aviso: “Não ofenda as Oradoras Peixes. Você correrá perigo mortal atraindo a ira delas!”
Agora, enquanto marchava ao longo do túnel à frente de Leto, Idaho sentia que ouvira as palavras corretamente, mas que não aprendera coisa alguma com elas. Ele falou por sobre o ombro.
— Não entendo essa Partilha.
— Nós ficamos juntos no ritual. Você vai ver, vai sentir. Minhas Oradoras Peixes são um repositório de conhecimento especial, uma linha contínua que só elas partilham. Agora você vai partilhar também, e elas o amarão por isso. Escute-as com cuidado. Elas são abertas às idéias de afinidade. Seus termos de amor, em seu relacionamento mútuo, não conhecem reservas.
“Mais palavras”, pensou Idaho. “Mais mistério.”
Ele podia discernir uma ampliação gradual do túnel, o teto ficando cada vez mais alto. Havia mais globos luminosos, agora sintonizados num tom laranja-escuro. Ele podia ver o arco elevado de uma abertura a 300 metros de distância, uma rica luz vermelha na qual podia distinguir rostos brilhantes de suor que ondulavam suavemente para a direita e para a esquerda. Os corpos, abaixo dos rostos, eram uma parede negra de roupas. O suor da excitação era forte ali.
Enquanto se aproximava das mulheres à espera, Idaho percebeu uma passagem através delas e uma rampa inclinando-se para uma plataforma baixa à direita. O grande arco do teto curvava-se acima das mulheres, um espaço gigantesco iluminado por globos luminosos regulados em vermelho escuro.
— Suba na rampa à sua direita — instruiu Leto. — Pare um pouco além do centro da plataforma e se vire para encarar as mulheres.
Idaho ergueu a mão direita avisando que entendera. Estava emergindo no espaço aberto e as dimensões dessa câmara o deixaram assombrado. Colocou os olhos treinados na tarefa de estimar as dimensões, enquanto subia na plataforma, e calculou que o salão devia ter pelo menos 1.100 metros de lado — era um quadrado com cantos arredondados. Estava cheio de mulheres, e Idaho se lembrou de que estas eram apenas as representantes escolhidas nos amplamente dispersos regimentos de Oradoras Peixes — três mulheres de cada planeta. Elas se erguiam agora, os corpos tão comprimidos um contra o outro que ele duvidou de que uma delas pudesse cair. Elas haviam deixado apenas um espaço aberto, de uns 50 metros ao longo da plataforma, onde Idaho parou para observar a cena. Os rostos olhavam para ele — rostos, rostos.
Leto parou a carreta logo atrás de Idaho e ergueu um de seus braços de pele prateada.
Imediatamente, o rugido “Siaynoq! Siaynoq!” preencheu o grande salão.
Idaho ficou ensurdecido. “Certamente esse som deve ser ouvido através da Cidade”, pensou. “A menos que estejamos muito abaixo do solo.”
— Minhas noivas — disse Leto. — Eu lhes dou as boas-vindas a Siaynoq.
Idaho olhou para Leto vendo os olhos escuros brilhando, a expressão radiante. Leto dissera: “Esta amaldiçoada santidade!” Mas ele adorava aquilo.
“Será que Moneo já viu esta reunião?” perguntou-se Idaho. Era um pensamento estranho, mas ele conhecia sua origem. Tinha de haver algum outro humano mortal com quem isso pudesse ser discutido. A escolta dissera que Moneo estava despachando “negócios de Estado” cujos detalhes elas não sabiam. Ouvindo isso, Idaho sentira outra faceta do governo de Leto. As linhas do poder estendiam-se diretamente de Leto para a população, mas não se cruzavam com freqüência. Isso exigia muitas coisas, inclusive servos de confiança que aceitassem a responsabilidade de executar ordens sem questionamento.
— Poucos vêem o Imperador-Deus fazer coisas dolorosas — dissera Siona. — Eram assim os Atreides que conheceu?
Idaho olhou para a massa de Oradoras Peixes enquanto esses pensamentos corriam em sua mente. A adulação nos olhos delas! A admiração! Como Leto fizera isto? Por quê?
— Minhas adoradas — disse Leto. Sua voz trovejou sobre os rostos erguidos, sendo levada aos cantos mais remotos por sutis amplificadores Ixianos ocultos na Carreta Real.
As imagens suarentas dos rostos das mulheres preenchiam a mente de Idaho com o aviso de Leto. “Você correrá perigo mortal atraindo a ira delas!”
Era fácil crer no aviso num lugar como esse. Bastaria uma palavra de Leto e essas mulheres estraçalhariam um ofensor. Elas não iriam questionar, mas agir. Idaho começou a sentir um novo gosto por essas mulheres como exército. O perigo pessoal não as deteria. Elas serviam a Deus!
A Carreta Real estalou levemente enquanto Leto arqueava seus segmentos frontais para erguer a cabeça.
— Vocês são as mantenedoras da Fé! — disse Leto.
E elas responderam numa única voz:
— Senhor, nós obedecemos!
— Em mim vocês vivem eternamente! — disse Leto.
— Nós somos o Infinito! — elas gritaram.
— Eu amo vocês como não amo a mais ninguém! — ele disse.
— Amor! — gritaram elas.
Idaho estremeceu.
— Eu lhes dou o meu amado Duncan! — disse Leto.
— Amor! — gritaram elas.
Idaho sentia o corpo inteiro tremendo. Julgava-se capaz de cair ante o peso dessa adulação. Queria fugir e ao mesmo tempo queria ficar e aceitar isso. Havia poder ali. Poder!
Em voz baixa, Leto disse:
— Mudança de Guarda!
As mulheres curvaram suas cabeças, um movimento único, sem hesitação. De um ponto à direita de Idaho, apareceu uma linha de mulheres em vestidos brancos. Elas marcharam para o espaço aberto abaixo da plataforma e Idaho viu que algumas delas carregavam bebês e crianças pequenas, nenhuma com mais de um ano ou dois.
Pela explicação inicial que lhe fora dada, Idaho reconheceu essas mulheres como aquelas que deixavam o serviço imediato nas Oradoras Peixes. Algumas delas se tornariam sacerdotisas, outras passariam todo o seu tempo como mães... mas nenhuma deixaria verdadeiramente o serviço de Leto.
Enquanto olhava para as crianças lá embaixo, Idaho pensava em como a memória dessa experiência não ficaria enterrada bem fundo na mente das crianças. Elas viveriam esse mistério através de suas vidas, uma memória perdida na consciência, mas sempre presente, turvando as respostas desse momento em diante.
A última das recém-chegadas parou abaixo de Leto e olhou para cima. As outras mulheres no salão também ergueram os rostos e focalizaram os olhos em Leto.
Idaho olhou para a direita e para a esquerda. As mulheres de roupas brancas preenchiam o espaço abaixo da plataforma por pelo menos 500 metros em ambas as direções. Algumas delas erguiam suas crianças para Leto. A admiração e a submissão eram algo absoluto. Se Leto ordenasse, sentiu Idaho, aquelas mulheres despedaçariam seus bebês de encontro à quina da plataforma. Elas fariam qualquer coisa!
Leto abaixou seus segmentos frontais sobre a dianteira da carreta num grave movimento ondulante. Olhou para baixo benignamente e sua voz saiu como suave carícia.
— Eu lhes dou a recompensa por sua fé e seus serviços. Peçam e lhes será dado.
O salão inteiro reverberou com a resposta:
— Será dado!
— O que é meu é teu — disse Leto.
— O que é meu é teu — as mulheres gritaram.
— Partilhem comigo agora — disse Leto — a prece silenciosa por minha intercessão em todas as coisas: que a humanidade nunca termine.
Como se fossem uma, todas as cabeças no salão se curvaram. As mulheres de branco abraçaram suas crianças olhando para elas. Idaho sentia uma unidade silenciosa, uma força que buscava penetrá-lo e dominá-lo. Abriu bem a boca e respirou profundamente, lutando contra alguma coisa que sentia como uma invasão física. Sua mente buscou freneticamente alguma coisa a que pudesse agarrar-se, algo para protegê-lo.
Essas mulheres constituíam um exército de cuja força e união Idaho não suspeitara. Ele sabia que não ia entender essa força. Só podia observá-la e reconhecer que existia.
Era isso que Leto criara.
E as palavras dele durante um encontro na Cidadela, retornaram a Idaho:
— A lealdade, num exército masculino, prende-se ao próprio exército e não à civilização que o criou. A lealdade, num exército feminino, prende-se à figura do líder.
Idaho olhou para a prova visível da criação de Leto, notando a precisão penetrante daquelas palavras, e temendo-as.
“E ele me oferece uma parte disso”, pensou.
Sua própria resposta às palavras de Leto agora lhe parecia pueril.
— Eu não vejo a razão — dissera.
— Na maior parte as pessoas não são criaturas racionais.
— Nenhum exército, masculino ou feminino, garante a paz! Seu Império não é pacífico! O senhor apenas...
— Minhas Oradoras Peixes lhe contaram nossas histórias?
— Sim, mas eu também caminhei por sua cidade e observei o seu povo. Seu povo é agressivo!
— Está vendo, Duncan? A paz encoraja a agressão.
— E o Senhor diz que o seu Caminho Dourado...
— Não é precisamente uma paz. É tranqüilidade, campo fértil para o crescimento de classes rígidas e muitas outras formas de agressão.
— Está falando através de charadas!
— Eu falo de observações acumuladas, as quais me dizem que a postura pacífica é a postura dos derrotados. É a postura da vítima. As vítimas convidam à agressão.
— Sua maldita tranqüilidade forçada! Que bem ela traz?
— Se não existe inimigo, um tem de ser inventado. A força militar à qual se nega um alvo externo sempre se volta contra seu próprio povo.
— Qual é o seu jogo?
— Eu modifico o desejo humano através da guerra.
— As pessoas não querem a guerra!
— Elas querem o caos. E a guerra é a forma mais facilmente disponível de caos.
— Não acredito em nada disso. O Senhor está jogando algum jogo perigoso, só seu.
— Muito perigoso. Busco antigas fontes de comportamento humano e as redireciono. O perigo é que com isso eu poderia suprimir as forças que asseguram a sobrevivência humana. Mas lhe asseguro que meu Caminho Dourado permanece.
— Suprimiu o antagonismo!
— Eu dissipo as energias em um lugar e as direciono para outro. O que você não pode controlar, você domina.
— E que impede seu exército feminino de assumir o controle?
— Eu sou o líder delas.
Ao olhar para as mulheres apinhadas no grande salão, Idaho não podia negar o foco da liderança. Também percebia que uma parte daquela adulação se dirigia à sua pessoa. A tentação o mantinha imobilizado — qualquer coisa que desejasse delas... qualquer coisa! O poder latente nesse grande salão era explosivo. E essa compreensão o forçava a um profundo questionamento das palavras anteriores de Leto.
Leto dissera alguma coisa quanto à violência explosiva. E mesmo ao observar as mulheres em sua prece silenciosa, Idaho relembrava o que Leto dissera.
— Os homens são suscetíveis a fixação de classe. Eles criam sociedades compartimentadas em camadas. A sociedade de classes é um convite fatal à violência. Ela não desmorona. Ela explode.
— E as mulheres nunca fazem isso?
— Não, a menos que sejam quase completamente dominadas pelos homens ou presas a um modelo masculino de atitudes.
— Os sexos não podem ser tão diferentes.
— Mas são. As mulheres assumem uma causa comum baseadas no seu sexo, uma causa que transcende a classe e casta. É por isso que eu deixo minhas mulheres segurando as rédeas.
E Idaho se viu forçado a admitir que essas mulheres orando seguravam as rédeas.
“Que parte desse poder ele passaria para as minhas mãos?”
A tentação era monstruosa! Idaho ficou trêmulo com ela. E de modo friamente súbito percebeu que essa devia ser a intenção de Leto — “tentar-me”!
No piso do grande salão, as mulheres terminaram sua prece e ergueram os olhos para Leto. Idaho notou nunca antes ter visto tamanho arrebatamento em rostos humanos — nem no êxtase do sexo nem numa gloriosa vitória pelas armas — em parte alguma ele vira algo que se aproximasse dessa intensa adulação.
— Duncan Idaho se coloca ao meu lado hoje — disse Leto. — Duncan está aqui para declarar sua lealdade de modo que todos possam ouvi-la. Duncan?
Idaho sentiu um frio físico disparar por seus intestinos. Leto lhe dava uma escolha simples: “Declare sua lealdade ao Imperador-Deus ou então morra!”
“Se eu assumir uma cara amarrada, vacilar ou fizer algum tipo de objeção, essas mulheres vão me matar com as próprias mãos.
Uma raiva profunda tomou conta dele. Engoliu em seco, pigarreou e então disse:
— Que ninguém questione a minha lealdade. Eu sou leal aos Atreides.
Ouviu sua própria voz trovejar através da câmara, amplificada pelo engenho Ixiano de Leto.
O efeito espantou Idaho.
— Nós compartilhamos! — as mulheres gritaram. — Nós compartilhamos! Nós compartilhamos!
— Nós compartilhamos — disse Leto.
Jovens recrutas Oradoras Peixes, identificáveis pelos curtos mantos verdes, enxamearam para dentro do salão, surgindo de todos os lados. Pequenos rolos de movimento que rodopiavam através do desenho formado pelos rostos em adoração. Cada recruta trazia uma bandeja com pequenos biscoitos marrons empilhados. Enquanto as bandejas passavam através da multidão, as mãos se estendiam em ondas de movimento gracioso, pegando os biscoitos numa ondulante dança de braços. Cada mão apanhava apenas um biscoito, segurando-o no alto. Quando uma carregadora de bandeja se aproximou da plataforma e ergueu sua carga em direção a Idaho, Leto disse:
— Tire dois e me passe um.
Idaho ajoelhou-se e pegou dois biscoitos. As coisas eram frágeis, quebradiças. Levantou-se e passou um para Leto.
Numa voz estentórea, Leto perguntou:
— A nova Guarda foi escolhida?
— Sim, Senhor! — as mulheres gritaram.
— Vocês mantêm a minha Fé?
— Sim, Senhor!
— Vocês percorrem o Caminho Dourado?
— Sim, Senhor!
A vibração dos gritos das mulheres lançava ondas de choque através de Idaho, atordoando-o.
— Nós compartilhamos? — perguntou Leto.
— Sim, Senhor!
Enquanto as mulheres respondiam, Leto colocou seu biscoito na boca. Abaixo da plataforma, cada mãe deu uma mordida em seu biscoito e ofereceu o resto ao filho. A massa de Oradoras Peixes atrás das mulheres de branco abaixou os braços e comeu seus biscoitos.
— Duncan, coma o seu biscoito — disse Leto.
Idaho colocou a coisa na boca. Seu corpo de ghola não fora condicionado à especiaria, mas a memória falou aos seus sentidos. O biscoito tinha um gosto ligeiramente amargo, com um suave toque de melange. O gosto trouxe antigas memórias a consciência de Idaho — refeições num sietch, banquetes na Residência dos Atreides... o modo como os sabores de especiaria permeavam tudo naqueles velhos tempos.
Enquanto engolia o biscoito, Idaho tornava-se consciente da quietude no salão, um silêncio de respirações presas quebrado por um alto dique da carreta de Leto. Idaho virou-se e procurou a fonte do som. Leto tinha aberto um compartimento na parte de cima da carreta e estava retirando uma caixa de cristal dela. A caixa brilhava com uma luminosidade cinza-azulada em seu interior. Leto colocou a caixa sobre a carreta, abriu a tampa luminosa e retirou uma faca cristalina. Idaho reconheceu a lâmina imediatamente — o falcão gravado no cabo, as jóias verdes na beirada.
“A faca cristalina de Paul Muad'Dib!”
Idaho sentiu uma emoção profunda ante a visão dessa faca. Olhou para ela como se a imagem em seus olhos pudesse reproduzir o dono original.
Leto ergueu a lâmina e a segurou no alto, revelando sua curva elegante e uma iridescência leitosa.
— O talismã de nossas vidas — disse Leto.
As mulheres permaneceram num silêncio arrebatado, atentas.
— A faca do Muad'Dib — disse Leto. — O dente do Shai-Hulud. Irá o Shai-Hulud retornar outra vez?
A resposta foi um murmúrio contido, feito mais poderoso pelo contraste com os gritos anteriores.
— Sim, Senhor.
Idaho voltou sua atenção para os rostos extasiados das Oradoras Peixes.
— E quem é o Shai-Hulud? — perguntou Leto.
Novamente o murmúrio profundo:
— O Senhor.
Idaho assentiu para si mesmo. Ali se encontrava a evidência inquestionável de que Leto liberara um monstruoso reservatório de poder, nunca antes produzido desse mesmo modo. Leto dissera isso, mas as palavras eram um ruído sem sentido comparadas ao que se via e sentia nesse grande salão. E as palavras de Leto retornaram à mente de Idaho, como se estivessem esperando por esse momento para se revestirem de seu verdadeiro significado. Idaho relembrou o que vira na cripta, aquele lugar sombrio e úmido que Leto parecia achar tão atraente e que ele próprio achava repugnante — a poeira dos séculos que havia lá, os odores de antiga decomposição.
— Eu estive formando esta sociedade humana, moldando-a por mais de 3 mil anos, abrindo uma porta que levasse toda a espécie para fora da adolescência — dissera Leto.
— Nada do que diz explica um exército feminino! — protestara Idaho.
— O estupro é uma coisa estranha à mentalidade das mulheres, Duncan. Você me pergunta por uma diferença de comportamento com base sexual? Aí está uma.
— Pare de mudar de assunto!
— Não estou mudando. O estupro é sempre um pagamento para a conquista militar masculina. Os homens não precisam abandonar nenhuma de suas fantasias adolescentes enquanto se entregam ao estupro.
Idaho lembrou-se do ódio que tomara conta dele ante essa provocação.
— Minhas huris domesticam os homens — disse Leto. E essa domesticação é uma coisa que as mulheres conhecem a partir de eras de necessidade.
Idaho olhara sem palavras para o rosto encapuzado de Leto.
— Domesticar — dissera Leto. — Encaixar em algum padrão ordeiro de sobrevivência. As mulheres aprenderam isso nas mãos dos homens; agora os homens aprendem nas mãos das mulheres.
— Mas acabou de dizer..
— Minhas huris freqüentemente se submetem a uma forma de estupro, a princípio, mas apenas para converter isso numa profunda e unificadora dependência mútua.
— Maldição! Esta...
— Unindo, Duncan! Unindo.
— Eu não me sinto ligado a...
— A educação leva tempo. Você é a norma antiga em relação à qual a nova pode ser julgada.
As palavras de Leto momentaneamente esgotaram Idaho de todas as emoções, exceto um profundo sentimento de perda.
— Minhas huris ensinam a maturação. Elas sabem que devem supervisionar a maturação dos homens. E através disso encontram sua própria maturação. No final, as huris transformam-se em esposas e mães, e nós afastamos os impulsos violentos de suas fixações adolescentes.
— Eu terei de ver para crer!
— Você vai ver durante o Grande Partilhar.
E enquanto permanecia ao lado de Leto, no salão do Siaynoq, Idaho admitia a si mesmo ter presenciado alguma coisa de enorme poder, alguma coisa que poderia criar a espécie de universo humano que as palavras de Leto projetavam.
Leto recolocara na caixa a faca cristalina, depositando a caixa em seu compartimento sobre a Carreta Real. As mulheres observavam em silêncio, até mesmo as crianças pequenas — todas dominadas pela força que se podia sentir nesse salão.
Idaho olhou para as crianças, sabendo, a partir das explicações de Leto, que elas seriam recompensadas com posições de poder — homem ou mulher, cada qual num nicho poderoso. As crianças do sexo masculino seriam dominadas por fêmeas durante toda a vida, fazendo (nas palavras de Leto) “uma fácil transição da adolescência para a masculinidade reprodutora”.
As Oradoras Peixes e sua prole viviam existências “dominadas por uma certa excitação que não é disponível aos outros “Que irá acontecer aos filhos de Irti?”, perguntou-se Idaho. “Será que meu antecessor ficou aqui e observou sua esposa vestida de branco partilhar o ritual de Leto?
“E o que Leto me oferece aqui?”
Com esse exército feminino, um comandante ambicioso poderia assumir o controle do Império de Leto. Ou não poderia? Não... não enquanto Leto vivesse. Leto dizia que as mulheres não eram militarmente agressivas “por natureza”.
Ele dizia:
— Eu não estimulo isso nelas. Elas conhecem um padrão cíclico, com um Festival Real a cada 10 anos, uma mudança da Guarda, uma bênção para a nova geração e um pensamento silencioso para as irmãs tombadas e outros seres amados perdidos para sempre. Siaynoq após Siaynoq marcham para o futuro a um passo previsível. A própria mudança torna-se em uma não-mudança.
Idaho ergueu os olhos das mulheres de branco e suas crianças. Olhou através da massa de rostos silenciosos, dizendo para si próprio que esse era apenas um pequeno núcleo da enorme força feminina que espalhava sua teia através do Império. Ele podia acreditar nas palavras de Leto:
— O poder não se enfraquece. Torna-se mais forte a cada década.
“Com que finalidade?”, perguntou-se Idaho.
Ele olhou para Leto que estava erguendo as mãos em bênção sobre o salão de suas huris.
— Nós caminharemos entre vocês agora — disse Leto. As mulheres abaixo da plataforma abriram caminho, pressionando para trás. A abertura aumentou cada vez mais, como uma fissura se abrindo sobre a terra depois de um tremendo desastre natural.
— Duncan, você me precederá.
Idaho engoliu em seco. Colocou a palma de uma das mãos sobre a beirada da plataforma e saltou para o espaço aberto, movendo-se para dentro daquela fissura por saber que somente isso poderia dar fim a essa provação.
Uma rápida olhada para trás revelou a carreta de Leto flutuando majestosamente em seus suspensores.
Idaho virou-se e acelerou o passo.
As mulheres estreitaram o caminho através de suas fileiras. Era algo feito com uma estranha calma, com uma atenção fixa — primeiro em Idaho, depois naquele enorme corpo pré-verme, avançando atrás dele na carreta Ixiana.
E enquanto Idaho marchava à frente com estoicismo, as mulheres estendiam as mãos de todos os lados para tocá-lo, para tocar em Leto ou meramente tocar na Carreta Real. Idaho sentiu a paixão contida desse toque, e conheceu o medo mais profundo de sua vida.
O problema com a liderança é inevitável: quem vai bancar Deus?
— Muad'Dib, Da História Oral
Hwi Noree seguia uma jovem Oradora Peixe para baixo ao longo de uma rampa larga que se espiralava rumo aos subterrâneos de Onn. O chamado de Lorde Leto viera no final da tarde do terceiro dia do Festival, interrompendo um acontecimento que punha à prova sua capacidade de manter o equilíbrio emocional.
Seu primeiro assistente, Othwi Yake, não era um homem agradável — uma criatura de cabelo louro-palha, com rosto comprido e estreito e olhos que jamais olhavam alguma coisa por muito tempo, que nunca olhavam diretamente nos olhos de alguém com quem ele falasse. Yake lhe apresentara uma única folha de papel memoapaga, contendo o que ele descrevia como “um resumo da violência recentemente relatada na Cidade Festival”.
De pé junto à escrivaninha diante da qual ela estava sentada, Yake olhara para algum ponto à esquerda dela e dissera:
— Oradoras Peixes estão matando Dançarinos Faciais por toda a Cidade. — Ele não parecia particularmente impressionado com Isso.
— Por quê? — ela quis saber.
— Dizem que a Bene Tleilaxu fez um atentado contra a vida do Imperador-Deus.
O frio do medo percorreu o corpo de Noree. Ela apoiou-se no assento e deu uma olhada no escritório da embaixada — uma sala redonda com uma única escrivaninha em forma de meio círculo, a qual ocultava os controles de muitos engenhos Ixianos embaixo de sua superfície altamente polida. A sala era um lugar escuro, de aparência imponente, com painéis de madeira marrom ocultando os instrumentos que a protegiam contra a espionagem. Não havia janelas.
Tentando não se mostrar perturbada, Hwi olhou para Yake.
— E Lorde Leto...
— O atentado contra sua vida parece ter sido totalmente ineficaz. Mas isso pode explicar aquele açoite.
— Então você acha que houve tal atentado?
— Sim.
A Oradora Peixe de Lorde Leto entrara nesse momento, anunciando logo sua presença no escritório exterior. Era acompanhada por uma Bene Gesserit, uma velha que ela apresentou como “a Reverenda Madre Anteac”. Anteac olhara intensamente para Yake enquanto a Oradora Peixe, uma jovem com feições quase infantis, passava sua mensagem.
— Ele me disse para lembrá-la: “Retorne rapidamente se eu a chamar.” Ele a chama.
Yake começou a se mexer inquieto enquanto a Oradora Peixe falava. Sua atenção percorria a sala inteira como se ele estivesse procurando alguma coisa que não estava lá. Hwi deteve-se apenas para colocar um manto azul-escuro sobre o vestido, instruindo Yake para que permanecesse no escritório até ela retornar.
À luz alaranjada do entardecer fora da embaixada, em uma rua estranhamente vazia de qualquer tráfego, Anteac olhou para a Oradora Peixe e disse simplesmente:
— Sim.
Saiu, então, e a Oradora Peixe levou Hwi através de ruas vazias até um prédio alto e sem janelas, cujo subsolo guardava a rampa espiralada.
As curvas apertadas da rampa deixavam Hwi tonta. Pequenos e brilhantes globos luminosos brancos flutuavam no poço central, iluminando uma trepadeira verde-arroxeada com folhas imensas. A trepadeira pendia de brilhantes fios dourados.
A suave superfície negra da rampa engolia os sons que seus pés produziam, tornando Hwi extremamente consciente dos fracos sons abrasivos causados pelos movimentos do seu manto.
— Aonde está me levando? — perguntou Hwi.
— A Lorde Leto.
— Eu sei, mas onde ele está?
— Em seus aposentos particulares.
— É muito lá embaixo?
— Sim, o Senhor sempre prefere as profundezas.
— Caminhar dando voltas assim deixa-me tonta.
— É melhor não olhar para a trepadeira.
— Que é aquela planta?
— É chamada de trepadeira Tunyon, e se diz que não produz cheiro algum.
— Nunca ouvi falar dela. De onde ela vem?
— Somente Lorde Leto sabe.
Elas caminharam em silêncio, Hwi tentando compreender seus próprios sentimentos. O Imperador-Deus a enchera de tristeza. Ela podia sentir o homem que havia nele, o homem que ele poderia ter sido. Por que esse homem escolhera tal curso para a sua vida? Será que alguém saberia?
Talvez Duncan Idaho soubesse.
Seus pensamentos gravitaram em torno de Idaho — um homem muito atraente fisicamente. Tão intenso! Podia sentir-se atraída por ele. Se ao menos Leto tivesse o corpo e a aparência de Idaho... Moneo, porém — esse era outro caso. Olhou para as costas de sua acompanhante Oradora Peixe.
— Pode me falar a respeito de Moneo? — perguntou Hwi.
A Oradora Peixe olhou para trás, por sobre o ombro, uma estranha expressão em seus pálidos olhos azuis — apreensão ou alguma forma bizarra de admiração.
— Há algo errado? — perguntou Hwi.
A Oradora Peixe voltou sua atenção para a espiral descendente da rampa.
— O Senhor disse que iria perguntar a respeito de Moneo.
— Então, fale-me a respeito dele.
— Que há para dizer? Ele é o confidente mais íntimo do Senhor.
— Mais ainda do que Duncan Idaho?
— Oh, sim, Moneo é um Atreides.
— Moneo veio a mim ontem — disse Hwi. — Ele falou que eu devia conhecer uma coisa a respeito do Imperador-Deus. Moneo disse que o Imperador-Deus é capaz de fazer qualquer coisa, qualquer coisa se julgar que seja instrutiva.
— Muitos acreditam nisso — disse a Oradora Peixe.
— Mas você não acredita?
Hwi fez a pergunta enquanto a rampa dava uma volta final e se abria para uma pequena ante-sala, com uma entrada em arco a apenas alguns passos de distância.
— Lorde Leto a receberá imediatamente — disse a Oradora Peixe.
Hwi passou pelo arco e se viu numa sala de teto baixo. Era muito menor que a câmara de audiências e o ar parecia seco e quente. Uma pálida luz amarelada vinha de uma fonte oculta nos cantos superiores. Ela fez com que seus olhos se ajustassem à fraca iluminação, notando tapetes e almofadas espalhadas ao redor de um monte de... Hwi levou a mão à boca quando o monte se moveu e ela percebeu que era Leto em sua carreta, mas a carreta se encontrava numa área mais baixa. E ela percebeu imediatamente por que a sala tinha esse detalhe. Aquilo o tornava menos imponente aos convidados humanos, menos dominador por sua elevação física. Nada podia ser feito, contudo, quanto ao comprimento e à massa inescapável do seu corpo, exceto mantê-lo nas sombras, jogando a maior parte da luz em seu rosto e suas mãos.
— Entre e sente-se — disse Leto. Falou com voz baixa e agradável.
Hwi caminhou até uma almofada vermelha, a apenas alguns metros de distância do rosto de Leto, e se sentou.
Leto observou-lhe os movimentos com óbvio prazer. Ela usava um vestido dourado escuro e seu cabelo estava preso em tranças e amarrado para trás, o que fazia seu rosto parecer viçoso e inocente.
— Eu enviei sua mensagem para Ix — ela disse. — E lhes disse que deseja saber minha idade.
— Talvez eles respondam — disse Leto. — E a resposta pode até ser verdadeira.
— Eu gostaria de saber quando nasci. Todas as circunstâncias. Mas não sei por que isso lhe interessa.
— Tudo a seu respeito me interessa.
— Eles não vão gostar que me tenha feito Embaixadora permanente.
— Seus mestres são uma mistura curiosa de meticulosidade e lassidão. E não gosto de aturar os tolos.
— Julga-me tola, Senhor?
— Malky não era um tolo; nem você o é, minha querida.
— Não ouço falar do meu tio há anos. Algumas vezes me pergunto se ele ainda vive.
— Talvez venhamos a descobrir isso também. Alguma vez Malky falou com você sobre a prática do Taquiyya?
Ela pensou a respeito por um momento, depois disse:
— Era chamado de Ketman entre os antigos Fremen?
— Sim. É a prática de ocultar a identidade quando revelá-la pode ser danoso.
— Eu me lembro agora. Ele me contou que o Senhor escreveu histórias sob pseudônimo, algumas delas muito famosas.
— Foi nessa ocasião que conversamos sobre o Taquiyya.
— Por que fala a respeito disso, Senhor?
— Para evitar outros assuntos. Sabe que fui eu que escrevi os livros de Noah Arkwright?
Ela não conseguiu conter um pequeno riso.
— Que divertido, Senhor. Fizeram-me ler a respeito da vida dele.
— Escrevi esse relato também. Que segredos lhe pediram que obtivesse de mim?
Ela nem mesmo piscou ante essa estratégica mudança de assunto.
— Estão curiosos a respeito do funcionamento interno da religião de Lorde Leto.
— Ah, agora estão.
— Querem saber como tomou o controle religioso das mãos da Bene Gesserit.
— Sem dúvida esperando repetir meu desempenho em proveito próprio?
— Tenho certeza de que tal idéia se encontra na mente deles.
— Hwi, você é uma terrível representante dos Ixianos.
— Sou sua serva, Senhor.
— E não tem suas próprias curiosidades?
— Temo que minhas curiosidades possam perturbá-lo — ela disse.
Leto a fitou por um momento e disse:
— Percebo. Sim, você está certa. Por ora devemos evitar conversas mais íntimas. Gostaria que eu falasse a respeito da Irmandade?
— Sim, isso seria bom. Sabe que hoje encontrei uma integrante da delegação Bene Gesserit?
— Deve ser Anteac.
— Eu a achei assustadora.
— Não tema nada quanto a Anteac. Ela foi à sua Embaixada por ordem minha. Está consciente de que vocês foram invadidos por Dançarinos Faciais?
Hwi espantou-se, deixando escapar o fôlego. Depois ficou quieta enquanto uma sensação de frio lhe invadia o peito.
— Othwi Yake? — perguntou ela.
— Você suspeitava?
— Apenas não gostava dele, e me haviam dito que... — Ela encolheu os ombros ao compreender: — Que aconteceu com ele?
— O original? Está morto. Essa é a prática normal dos Dançarinos Faciais em tais circunstâncias. Minhas Oradoras Peixes têm ordens explícitas para não deixarem vivo nenhum Dançarino Facial na sua Embaixada.
Hwi permaneceu em silêncio, mas as lágrimas rolaram em seu rosto. Isso explicava as ruas vazias, o enigmático “sim” de Anteac. Explicava muitas coisas.
— Eu lhe darei assistência através das Oradoras Peixes até que possa fazer outros arranjos — disse Leto. — Minhas Oradoras Peixes a guardarão bem.
Hwi sacudiu as lágrimas de seu rosto. Os Inquisidores de Ix reagiriam com ódio contra os Tleilaxu. Será que acreditariam em seu relatório? Todos em sua Embaixada substituídos por Dançarinos Faciais! Era difícil de acreditar.
— Todos? — perguntou ela.
— Os Dançarinos Faciais não tinham motivo para deixar vivo quem quer que fosse de seu pessoal original. Você seria a próxima.
Ela estremeceu.
— Eles demoraram — explicou ele. — Porque sabiam que teriam de copiá-la com precisão para poderem desafiar meus sentidos. Eles não estão certos quanto às minhas habilidades.
— Então Anteac...
— A Irmandade e eu compartilhamos a habilidade de detectar Dançarinos Faciais. E Anteac... bem, ela é muito boa no que faz.
— Ninguém confia nos Tleilaxu. Por que não foram exterminados há muito tempo?
— Os especialistas possuem seus usos, assim como suas ilimitações. Você me surpreende, Hwi. Eu não suspeitava de que pudesse ser tão radical.
— Os Tleilaxu... eles são muito cruéis para serem humanos. Eles não são humanos.
— Pois eu lhe asseguro que os humanos podem ser igualmente cruéis. Eu mesmo já fui cruel em várias ocasiões.
— Eu sei, Senhor.
— Sob provocação. Mas as únicas pessoas que já pensei em eliminar foram as Bene Gesserits.
O choque foi muito grande para ser verbalizado.
— Elas estão próximas do que deveriam ser, e contudo muito distantes — ele disse.
Hwi encontrou sua voz.
— Mas a História Oral diz...
— A religião das Reverendas Madres, sim. Certa vez elas projetaram religiões específicas para sociedades específicas. Chamavam isso de engenharia. Como lhe parece?
— Desumano.
— De fato. E os resultados correspondem ao engano. Mesmo depois de todas as grandes tentativas no sentido de se conseguir o ecumenismo, havia incontáveis deuses, divindades menores e pretensos profetas através do Império.
— E o Senhor mudou isso.
— De certo modo. Mas os deuses não morrem com facilidade, Hwi. Meu monoteísmo predomina, mas o panteão original permanece; tornou-se clandestino, sob vários disfarces.
— Senhor, sinto em suas palavras... uma... — Ela sacudiu a cabeça.
— Que sou tão friamente calculista quanto a Irmandade?
Ela assentiu com a cabeça.
— Foram os Fremen que endeusaram meu pai, o grande Muad'Dib. Embora ele realmente não se importasse de ser chamado grande.
— Mas os Fremen...
— Se eles estavam certos? Minha querida Hwi, eles eram sensíveis aos usos do poder e pretendiam manter sua ascendência.
— Acho isso... perturbador, Senhor.
— Percebo. Você não aprecia a idéia de que se tornar um deus seja simples assim, como se qualquer um pudesse fazer isso.
— Parece trivial demais, Senhor. — A voz dela tinha o tom remoto de alguém que sonda o terreno.
— Eu lhe asseguro que não é uma coisa que qualquer um possa fazer.
— Mas o Senhor sugere ter herdado sua divindade dos...
— Nunca diga isso a uma Oradora Peixe. Elas reagem violentamente à heresia.
Ela tentou engolir, sentindo a garganta seca.
— Eu disse isso apenas para protegê-la.
A voz dela era fraca:
— Obrigada, Senhor.
— Minha divindade começou, quando eu disse aos meus Fremen que não mais poderia dar a água da morte para as tribos. Sabe o que é a água da morte?
— Nos tempos de Duna, era a água recuperada dos corpos dos mortos — disse ela.
— Ah, você leu Noah Arkwright.
Hwi conseguiu esboçar um leve sorriso.
— Eu disse aos meus Fremen que a água seria consagrada a uma Divindade Suprema, à qual não daríamos nome. Ainda se permitia que os Fremen controlassem essa água, graças à minha generosidade.
— A água devia ser muito preciosa naqueles tempos.
— Muito! E eu, como delegado dessa divindade sem nome, detive um controle pouco rigoroso dessa preciosa água por quase 300 anos.
Ela mordeu o lábio inferior.
— Ainda parece calculista? — perguntou ele.
Ela acenou afirmativamente.
— E era. Quando chegou a ocasião de consagrar a água da minha irmã, eu realizei um milagre. As vozes de todos os Atreides falaram de dentro da urna de Ghani. Assim, meus Fremen descobriram que eu era a Divindade Suprema.
Hwi falou com temor, a voz cheia de incertezas ante essa revelação:
— Senhor, está me dizendo que não é realmente um deus?
— Estou lhe dizendo que não brinco de esconder com a morte.
Ela olhou para ele durante vários minutos, antes de responder de um modo que lhe assegurava estar entendendo seu profundo significado. Era uma reação que, para ele, apenas lhe intensificava o encanto.
— Sua morte não será como as outras mortes — disse ela.
— Preciosa Hwi — murmurou ele.
— Calculo que o Senhor não tema o julgamento de uma verdadeira Divindade Suprema — ela disse.
— Está me julgando, Hwi?
— Não, mas temo pelo Senhor.
— Pense no preço que eu pago — ele disse. — Cada parte descendente de mim irá carregar algo da minha consciência preso dentro dela, perdida e desamparada.
Ela colocou ambas as mãos sobre a boca e olhou para ele aterrorizada.
— Esse é o horror que meu pai não pôde enfrentar e que tentou evitar: a infinita identidade vaga.
Ela abaixou as mãos e sussurrou:
— E o senhor será consciente?
— De certo modo... mas mudo. Uma pequena pérola da minha consciência acompanhará cada verme e cada truta da areia — dotada de conhecimento e no entanto incapaz de movimentar uma única célula, consciente num interminável sonho.
Ela estremeceu.
Leto observou enquanto ela tentava compreender tal existência. Poderia imaginar o clamor final, quando as peças subdivididas de sua identidade buscassem um minguante controle sobre a máquina Ixiana que escrevia os seus diários? Poderia sentir o silêncio esmagador que se seguiria àquela espantosa fragmentação?
— Eles usariam tal conhecimento contra o Senhor, se eu o revelasse.
— E vai contar?
— É claro que não!
Ela sacudiu a cabeça lentamente de um lado para o outro. Por que ele teria aceito essa transformação terrível? Não haveria escapatória?
Daí a pouco ela disse:
— A máquina que escreve seus pensamentos não poderia ser sintonizada a...
— A 1 milhão de partes de mim? A 1 bilhão? A mais? Minha querida Hwi, nenhuma daquelas pérolas de consciência será verdadeiramente eu.
Os olhos dela turvaram-se de lágrimas. Ela piscou e respirou fundo. Leto reconheceu nisso o treinamento Bene Gesserit, o modo como ela aceitava um fluxo de calma.
— Senhor, deixou-me terrivelmente temerosa.
— E não compreende por que fiz isso.
— É possível que eu compreenda?
— Oh, sim. Muitos podem entender. O que as pessoas fazem com a compreensão é outra coisa.
— Vai me ensinar o que fazer?
— Você já sabe.
Ela absorveu isso silenciosamente, e então disse:
— Tem alguma coisa a ver com religião. Posso sentir.
Leto sorriu:
— Posso perdoar seus mestres Ixianos por quase qualquer coisa devido à preciosa dádiva que me deram através de você. Peça e receberá.
Ela inclinou-se em direção a ele oscilando na almofada.
— Fale-me a respeito dos fundamentos da sua religião.
— Logo você vai conhecer tudo a meu respeito, Hwi. Prometo. Apenas se lembre de que a adoração do sol entre nossos primitivos ancestrais não estava muito distante do alvo.
— Adoração... do sol? — Ela se balançou para trás na almofada.
— O sol que controla todos os movimentos, mas que não pode ser tocado. O sol que é morte.
— Sua... morte?
— Qualquer religião circula como um planeta em torno de um sol que ela deve usar para obter sua energia, e do qual ela depende para sua própria existência.
A voz dela respondeu com pouco mais que um sussurro:
— Que vê no seu sol, Senhor?
— Um universo de muitas janelas através das quais posso olhar. E quaisquer que sejam as molduras das janelas, isso é o que eu vejo.
— O futuro?
— O universo, em suas raízes, não conhece o tempo, e contém por isso todos os tempos e todos os futuros.
— É verdade então — ela disse. — O Senhor viu uma coisa que isto — ela fez um gesto indicando o longo corpo anelado — evita.
— E você julga poder acreditar que isto seja, de algum modo, sagrado? — perguntou ele.
Ela só pôde assentir com a cabeça.
— Se você o partilhar todo comigo — ele disse —, eu lhe previno de que será uma carga terrível.
— E isso tornará sua carga mais leve, Senhor?
— Não mais leve, porém mais fácil de aceitar.
— Então eu a compartilharei. Diga-me, Senhor.
— Não ainda, Hwi. Você deve ser um pouco mais paciente.
Ela absorveu o desapontamento suspirando.
— É apenas que o meu Duncan Idaho se torna cada vez mais impaciente — explicou Leto. — Devo cuidar dele.
Ela olhou para trás, mas a pequena sala continuava vazia.
— Quer que eu saia agora?
— Gostaria que você nunca me deixasse.
Ela olhou para ele, notando a intensidade de seu olhar, o faminto vazio de sua expressão que a enchia de tristeza.
— Senhor, por que me conta os seus segredos?
— Eu não lhe pediria para ser a noiva de um deus.
Os olhos dela se arregalaram com o choque.
— Não responda — disse ele.
Quase sem mover a cabeça, ela enviou o olhar ao longo da extensão sombreada do corpo dele.
— Não procure por minhas partes que não mais existem — ele disse. — Algumas formas de intimidade física não me são mais possíveis.
Ela voltou a atenção para o rosto envolto nas dobras da pele de truta, notando como a epiderme era rosada naquele rosto, o efeito intensamente humano daquelas feições numa moldura tão alienígena.
— Se você quiser filhos — acrescentou ele —, só lhe peço que me deixe escolher o pai. Mas ainda não lhe pedi coisa alguma.
A voz dela era fraca.
— Senhor, não sei o que...
— Vou retornar logo à Cidadela — ele explicou. — Você virá ao meu encontro e então conversaremos. E lhe contarei a respeito da coisa que eu evito.
— Estou assustada, senhor, mais assustada do que jamais imaginei que pudesse ficar.
— Não tenha medo de mim. Não posso ser outra coisa senão gentil com a minha gentil Hwi. Quanto aos outros perigos, minhas Oradoras Peixes a protegerão com os próprios corpos. Elas não se atreverão a permitir que algum mal lhe aconteça.
Hwi levantou-se, trêmula.
Leto notou quão profundamente suas palavras a tinham afetado e sentiu a dor que havia nisso. Os olhos de Hwi brilhavam com lágrimas e ela apertou as mãos fechadas para controlar seus tremores. Ele sabia que de boa vontade ela iria ao seu encontro na Cidadela. Não importando o que ele pedisse, a resposta dela seria a mesma das Oradoras Peixes:
— Sim, Senhor.
Ocorreu a Leto que, se pudesse trocar de lugar com ele, aceitar sua carga, ela se ofereceria. E o fato de não poder fazer isso aumentava-lhe a dor. Ela era uma inteligência construída sobre uma profunda sensibilidade, sem qualquer das fraquezas hedonistas de Malky. Hwi era assustadora em sua perfeição. Tudo com relação a ela reafirmava sua certeza de que Hwi era o tipo de mulher que, caso tivesse crescido como um homem normal, Leto desejaria (Não! Exigiria!) como esposa.
E os Ixianos sabiam disso.
— Deixe-me agora — sussurrou ele.
Eu sou tanto pai quanto mãe para o meu povo. Já conheci o êxtase do parto e o êxtase da morte, e conheço todos os padrões que vocês devem aprender. Já não caminhei embriagado através do universo das formas? Sim! Já vi você delineado em luz, e aquele universo que você diz que vê e sente, aquele universo é o meu sonho. Minhas energias se focalizam sobre ele e eu estou em qualquer reino e ao mesmo tempo em todos eles. Assim você nasceu.
— Os diários roubados
— Minhas Oradoras Peixes me disseram que você foi para a Cidadela logo depois de Siaynoq — disse Leto.
Olhava acusadoramente para Idaho, que se encontrava no mesmo lugar ocupado por Hwi apenas uma hora atrás. Um espaço de tempo tão pequeno — e no entanto Leto sentia nele o vazio de séculos.
— Eu precisava de tempo para pensar — disse Idaho. Olhou para o fosso sombreado onde estava a carreta de Leto.
— E para falar com Siona?
— Sim. — Idaho ergueu o olhar para o rosto de Leto.
— Mas você procurou por Moneo — disse Leto.
— Será que elas relatam cada movimento que eu faço?
— Não cada movimento.
— Às vezes as pessoas têm necessidade de ficar sozinhas.
— É claro, mas não culpe as Oradoras Peixes por se preocuparem com você.
— Siona diz que vai ser testada!
— Foi por isso que procurou Moneo?
— Que teste é esse?
— Moneo sabe. Presumo que é por isso que você desejava vê-lo.
— O Senhor não presume nada! O Senhor sabe.
— Siaynoq o deixou perturbado, Duncan. Sinto muito.
— Tem alguma idéia de como é ser eu... aqui?
— O fardo do ghola não é fácil — disse Leto. — Algumas vidas são mais duras que as outras.
— Não preciso dessa filosofia juvenil!
— De que você precisa, Duncan?
— Preciso saber algumas coisas.
— Tais como?
— Não entendo nenhuma dessas pessoas que o cercam! Sem demonstrar qualquer surpresa, Moneo me diz que Siona participava de uma rebelião contra o Senhor. A filha dele!
— Em sua juventude, Moneo também foi um rebelde.
— Percebe o que estou dizendo? E o testou também?
— Sim.
— Vai me testar?
— Já o estou testando.
Idaho olhou furioso para ele:
— Eu não compreendo o seu governo, o seu Império, coisa alguma. Quanto mais eu descubro, mais chego à conclusão de que não sei o que está acontecendo.
— Como é feliz que tenha descoberto o caminho da sabedoria — disse Leto.
— O quê? — A ira contida de Idaho elevara sua voz ao tom de um grito de batalha dentro da pequena sala.
Leto sorriu.
— Duncan, já não lhe contei que, quando você julga que conhece alguma coisa, isso constitui uma barreira perfeita contra o aprendizado?
— Então me diga o que está acontecendo.
— Meu amigo Duncan Idaho está adquirindo um novo hábito. Está aprendendo a olhar sempre atrás daquilo que ele julga que sabe.
— Muito bem, muito bem. — Idaho assentiu com a cabeça lentamente. — Então o que havia por trás de me deixar tomar parte naquela história de Siaynoq?
— Estou unindo as Oradoras Peixes ao Comandante da minha Guarda.
— E eu tenho que me esquivar delas! A escolta que me levou para a Cidadela queria parar para uma orgia. E aquelas que me trouxeram aqui quando...
— Elas sabem o quanto fico satisfeito vendo filhos do meu Duncan Idaho.
— Maldito seja! Eu não sou seu garanhão!
— Não precisa gritar, Duncan.
Idaho respirou fundo várias vezes, depois disse:
— E quando eu lhes digo não elas ficam magoadas a princípio, e depois me tratam como um maldito — ele sacudiu a cabeça —, um santo ou coisa assim.
— Mas elas não lhe obedecem?
— Elas não questionam coisa alguma... a menos que seja algo contrário às suas ordens. Eu não queria voltar aqui.
— E no entanto elas o trouxeram.
— Sabe muito bem que elas não o desobedeceriam!
— Estou feliz por ter vindo, Duncan.
— Ah, isso eu posso ver!
— As Oradoras Peixes sabem o quanto você é especial, como eu me orgulho de você e o quanto eu lhe devo. Nunca é uma questão de obediência ou desobediência no que concerne a nós dois.
— Então é uma questão de quê?
— Lealdade.
Idaho ficou pensativo.
— Você sentiu o poder de Siaynoq? — perguntou Leto.
— Um abracadabra. Uma exibição de mágica!
— Então por que ficou perturbado?
— Suas Oradoras Peixes não são um exército, são uma força policial.
— Pelo meu próprio nome, asseguro-lhe que não é assim. A polícia é inevitavelmente corrupta.
— O Senhor me tentou com o poder — acusou Idaho.
— Esse é o teste, Duncan.
— Não confia em mim?
— Confio em sua lealdade implícita aos Atreides, sem questionamento.
— Então que conversa é essa de corrupção e de teste?
— Você foi quem me acusou de ter uma força policial. A polícia sempre observa que os criminosos prosperam. E é preciso ser um policial muito tolo para deixar de perceber que a posição de autoridade é a mais próspera que existe entre todos os postos criminosos disponíveis.
Idaho umedeceu os lábios com a língua e olhou para Leto, obviamente intrigado.
— Mas o treinamento moral do... Quero dizer, a lei... as prisões...
— Qual a vantagem das leis e das prisões quando infringir a lei não constitui pecado?
Idaho inclinou a cabeça levemente para a direita.
— Está tentando me dizer que sua maldita religião é...
— A punição dos pecados pode ser muito extravagante.
Idaho apontou por sobre o ombro para o mundo além da porta.
— Toda esta conversa a respeito de penas de morte... aquele açoite e...
— Tento passar sem prisões e sem leis, sempre que possível.
— Mas tem que ter algum tipo de prisão!
— Tenho? As prisões são necessárias apenas para fornecer a ilusão de que a polícia e as cortes são eficientes. Elas são uma espécie de seguro do trabalho.
Idaho virou-se ligeiramente e apontou o dedo em direção à porta pela qual entrara na pequena sala.
— O Senhor possui planetas inteiros que não são outra coisa senão prisões!
— Creio que você pode pensar em qualquer lugar como uma prisão, se é isso que suas ilusões desejam.
— Ilusões! — Idaho deixou cair os braços ao lado do corpo e ficou atônito.
— Sim. Você fala em prisões, polícia e leis, as ilusões perfeitas sobre as quais uma próspera estrutura de poder pode assentar-se enquanto sabe, com muita precisão, estar acima de suas próprias leis.
— E o Senhor acha que os crimes podem ser enfrentados com...
— Não são crimes Duncan, mas pecados.
— Então acha que sua religião pode...
— Já reparou nos pecados capitais?
— Quais?
— Tentar corromper um membro do meu governo ou ser corrompido por um membro de meu governo.
— E que corrupção é essa?
— Essencialmente, é a falha em observar e adorar a santidade do Deus Leto.
— O Senhor?
— Eu.
— Mas logo no início me disse que...
— Acha que não acredito na minha própria divindade? Tenha cuidado, Duncan.
A voz de Idaho saiu com uma raiva controlada.
— Disse-me que um de meus trabalhos seria ajudá-lo a manter seu segredo, que.
— Você não conhece meu segredo.
— Que é um tirano? Isso não é...
— Os deuses são mais poderosos que os tiranos, Duncan.
— Não gosto do que estou ouvindo.
— Quando foi que um Atreides já lhe pediu para gostar do seu trabalho?
— Está me pedindo para comandar suas Oradoras Peixes que são juiz, júri e carrasco... — Idaho interrompeu-se no meio da frase.
— E daí?
Idaho ficou em silêncio.
Leto olhou através da fria distância entre eles, um espaço tão curto e no entanto tão grande.
“É como cansar um peixe na extremidade de uma linha de pesca”, pensou Leto. “Você tem que calcular o ponto de ruptura de cada elemento na disputa.”
O problema com Idaho era que trazê-lo para a rede sempre lhe apressava o fim. E isso estava acontecendo muito rapidamente dessa vez. Leto sentiu tristeza.
— Não vou adorá-lo — disse Idaho.
— As Oradoras Peixes reconhecem que você possui uma dispensa especial — disse Leto.
— Como Moneo e Siona?
— Muito diferente.
— Assim, os rebeldes constituem um caso especial.
Leto sorriu.
— Todos os administradores em que eu mais confio um dia já foram rebeldes.
— Eu não era um...
— Você foi um rebelde brilhante! Você ajudou os Atreides a tomarem um Império das mãos de um monarca reinante.
Os olhos de Idaho ficaram fora de foco com a introspecção.
— Assim o fiz. — Ele sacudiu a cabeça de modo violento, como se quisesse tirar alguma coisa do cabelo. — E olhe no que o Senhor transformou esse Império!
— Estabeleci um padrão para ele, um padrão entre todos os padrões.
— É o que diz.
— A informação está congelada em padrões, Duncan. E nós podemos utilizar um padrão para decifrar outros. Os padrões de fluxo são os mais difíceis de se reconhecer e compreender.
— Mais abracadabra.
— Já cometeu esse engano antes.
— Por que deixa que os Tleilaxu fiquem me trazendo de volta à vida, um ghola atrás do outro? Onde está o padrão nisso?
— É por causa das qualidades que você possui em abundância. Deixarei que meu pai explique.
A boca de Idaho comprimiu-se numa linha de consternação.
Leto falou com a voz do Muad'Dib, e até mesmo seu rosto assumiu a semelhança das feições paternas.
— Você foi meu amigo mais verdadeiro, Duncan, melhor mesmo do que Gurney Halleck. Mas eu sou o passado.
Idaho engoliu em seco.
— As coisas que anda fazendo!
— São contra a natureza dos Atreides?
— Isso mesmo.
Leto retornou à sua voz normal.
— E no entanto ainda sou um Atreides.
— Será realmente?
— Que mais eu poderia ser?
— Eu desejaria saber!
— Pensa que eu faço mágicas com vozes e palavras?
— O que, por todos os sete infernos, está realmente fazendo?
— Preservando a vida enquanto preparo o palco para o próximo ciclo.
— E a preserva destruindo-a?
— A morte muitas vezes é útil à vida.
— Isso não é algo que um Atreides diga.
— Mas é. Freqüentemente percebemos o valor da morte. Os Ixianos, contudo, nunca perceberam esse valor.
— O que têm os Ixianos a ver com...
— Tudo. Eles pretendem fazer uma máquina para ocultar suas outras maquinações.
Idaho falou em tom meditativo:
— É por isso que a Embaixadora Ixiana estava aqui?
— Você já viu Hwi Noree — comentou Leto.
Idaho apontou para cima.
— Ela estava saindo quando eu cheguei.
— Você falou com ela?
— Eu lhe perguntei o que estava fazendo aqui. Ela disse que está escolhendo o seu lado.
Uma gargalhada escapou de Leto.
— Oh, sim. Ela é ótima. E revelou qual seria a sua escolha?
— Ela disse que agora serve ao Imperador-Deus. Não acreditei nela, é claro.
— Mas devia acreditar.
— Por quê?
— Ah, sim, esqueci. Uma vez você duvidou até mesmo de minha avó, Lady Jessica.
— Eu tinha boas razões.
— Também duvida de Siona?
— Estou começando a duvidar de todos!
— E diz que não sabe qual é o seu valor para mim — acusou Leto.
— Que há com Siona? — quis saber Idaho. — Ela diz que você quer que nós... quero dizer, maldição...
— Aquilo em que você deve confiar sempre com relação a Siona é a criatividade dela. Ela pode criar o novo e o belo. E devemos confiar sempre nos verdadeiramente criativos.
— Até mesmo nas maquinações dos Ixianos?
— Isso não é criativo. Sempre se reconhece a criatividade porque ela se revela abertamente O segredo e a dissimulação traem a existência de uma outra força inteiramente diferente.
— Então não confia nessa Hwi Noree, mas...
— Confio nela, e precisamente pelas razões que acabei de lhe dar.
Idaho ficou carrancudo, depois relaxou, suspirando.
— É melhor eu cultivar a amizade dela. Se é alguém que..
— Não! Você vai ficar longe de Hwi Noree. Tenho em mente algo especial para ela.
Eu isolei a experiência urbana dentro de mim e a examinei minuciosamente. A idéia da cidade me fascina. A formação de uma comunidade biológica sem o suporte de uma comunidade social operante sempre leva ao caos. Mundos inteiros têm sido transformados em comunidades biológicas únicas sem uma estrutura social interrelacionada, e isso sempre levou à ruína, tornando-se dramaticamente instrutivo em condições de superpopulação. O gueto é letal. As tensões psicológicas da superpopulação criam pressões explosivas. E a cidade constitui uma tentativa de controlar essas forças. As formas sociais pelas quais a cidade faz essa tentativa são valiosas para um estudo. Lembrem-se de que existe certa malignidade na formação de qualquer ordem social. É a luta pela existência da parte de uma entidade artificial. O despotismo e a escravidão pairam em suas fronteiras. Muitas agressões ocorrem, dai a necessidade de leis. E a lei desenvolve sua própria estrutura de poder, criando mais chagas e novas injustiças. Tal trauma pode ser curado pela cooperação, nunca pelo confronto. E o apelo à cooperação identifica o curandeiro.
— Os diários roubados
Moneo entrou na pequena câmara de Leto com evidente agitação. Realmente preferia esse lugar de encontro porque a carreta do Imperador-Deus ficava numa depressão de onde um ataque mortífero da parte do Verme seria mais difícil. Havia também o fato inegável de que Leto permitia que seu majordomo descesse até ali através de um tubo-elevador Ixiano, em vez de usar aquela rampa interminável. Mas Moneo sentia que as notícias que trazia essa manhã certamente iriam despertar o Verme que é Deus.
“Como apresentá-las?”
A aurora ocorrera apenas uma hora atrás; estavam no quarto dia do Festival, fato que Moneo podia saudar com serenidade somente porque o colocava mais perto do final dessas atribulações.
Leto mexeu-se quando Moneo penetrou na pequena câmara. A iluminação ativou-se ao seu sinal, focalizada somente em seu rosto.
— Bom dia, Moneo — ele disse. — Minha guarda me diz que você insistiu em entrar imediatamente. Por quê?
O perigo, Moneo conhecia por sua experiência, encontrava-se na tentação de revelar muita coisa em pouco tempo.
— Passei algum tempo com a Reverenda Madre Anteac — disse ele. — Embora ela mantenha isso bem escondido, tenho certeza de que é uma Mentat.
— Sim, era inevitável que a Bene Gesserit me desobedecesse às vezes. E essa forma de desobediência me diverte.
— Então não vai puni-las?
— Moneo, em última instância eu sou o único pai que meu povo possui. E um pai deve ser generoso, assim como severo.
“Ele está de bom humor”, pensou Moneo. Um pequeno suspiro de alívio lhe escapou, ante o qual Leto sorriu.
— Anteac fez objeção quando lhe disse que o Senhor concedera anistia a alguns Dançarinos Faciais selecionados entre os cativos.
— Tenho um uso festivo para eles.
— Senhor?
— Eu lhe direi depois. Vamos às notícias que o fazem entrar aqui às pressas a esta hora da manhã.
— Eu... ah... — Moneo mordeu o lábio superior. — Os Tleilaxu têm sido muito eloqüentes na sua tentativa de me agradar.
— É claro. E que foi que revelaram?
— Eles... ah, forneceram aos Ixianos equipamento e assessoria suficientes para a criação de um... bem, não exatamente um ghola, nem mesmo um clone. Talvez devêssemos usar o termo Tleilaxu: uma reestruturação celular. O... ah, experimento foi realizado com a proteção de algum tipo de escudo que, pelo que os homens da Corporação lhes asseguraram, seus poderes não poderiam penetrar.
— E o resultado? — Leto sentiu estar fazendo a pergunta num frio vácuo.
— Eles não estão certos. Os Tleilaxu não tiveram permissão de testemunhar. Mas eles observaram que Malky entrou nessa... ah, câmara, e que depois saiu com uma criança.
— Sim! Eu sei!
— Sabe? — Moneo estava intrigado.
— Por inferência. E tudo isso aconteceu há uns 26 anos?
— Isso é correto, Senhor.
— E eles identificam essa criança como sendo Hwi Noree?
— Eles não estão certos, Senhor, mas... — Moneo encolheu os ombros.
— É claro. E que deduz de tudo isso, Moneo?
— Existe um propósito profundo nessa nova Embaixadora Ixiana.
— Certamente que há, Moneo. Não lhe ocorreu como é estranha a maneira como Hwi, a gentil Hwi, representa um espelho do formidável Malky? Seu oposto em tudo, inclusive o sexo.
— Não tinha pensado nisso, Senhor.
— Pois eu pensei.
— Farei com que ela seja mandada de volta para Ix imediatamente — disse Moneo.
— Você não vai fazer nada disso!
— Mas Senhor, se eles.
— Moneo, já observei que você raramente vira as costas diante do perigo. Outros freqüentemente o fazem, mas em você isso é raro. Por que espera que eu cometa uma estupidez tão óbvia?
Moneo engoliu em seco.
— Bom, eu gosto quando você reconhece um erro em seu comportamento.
— Obrigado, Senhor.
— Também gosto quando você expressa a sua gratidão de um modo sincero, como acabou de fazer. Agora, Anteac estava com você quando ouviu essas revelações?
— Como ordenou, Senhor.
— Excelente. Isso vai mexer um pouco com as coisas. Você sairá agora e irá ao encontro de Lady Hwi. Vai dizer-lhe que desejo vê-la imediatamente. Isso irá deixá-la perturbada. Ela está pensando que não vamos nos encontrar até que eu a chame para a Cidadela. Quero que você lhe acalme os temores.
— De que maneira, Senhor?
Leto falou com tristeza:
— Moneo, por que me pede conselho a respeito de um assunto no qual é especialista? Acalme-a e a traga aqui tranqüilizada quanto às minhas boas intenções com relação a ela.
— Sim, Senhor. — Moneo curvou-se e recuou um passo.
— Um momento, Moneo!
O majordomo enrijeceu o corpo, o olhar fixo no rosto de Leto.
— Você está intrigado, Moneo — comentou Leto. — Às vezes você não sabe o que pensar de mim. Serei onisciente e todo-poderoso? Você me traz esses pequenos indícios e se pergunta:
“Será que ele já sabe disso? E se ele sabe, por que me importo?” Mas eu lhe ordenei que relatasse tais coisas, Moneo. Será que a sua obediência lhe ensinou alguma coisa?
Moneo começou a encolher os ombros e então pensou melhor. Seus lábios tremeram.
— O tempo também pode ser um lugar, Moneo — disse Leto.
— E tudo depende de onde você se coloca, para onde olha e o que ouve. A medida de tudo isso está na própria consciência.
Depois de um longo silêncio, Moneo arriscou:
— Isso é tudo, Senhor?
— Não, não é tudo. Siona receberá hoje um embrulho que lhe será entregue por um correio da Corporação. Nada deve interferir na entrega dessa encomenda. Está entendendo?
— Que há... nesse embrulho, Senhor?
— Algumas traduções. Matéria impressa que eu desejo que ela leia. Não farei nada para interferir. Não há melange no embrulho.
— Como... como sabe que eu temia que...
— Porque você teme a especiaria. Ela pode prolongar sua vida, mas você a evita.
— Temo seus efeitos colaterais, Senhor.
— Uma natureza dadivosa permitiu que a melange descobrisse para alguns de nós as profundezas inesperadas da psique, e no entanto você teme isso?
— Eu sou um Atreides, Senhor!
— Ah, sim, e para um Atreides a melange pode envolver o mistério do Tempo num processo peculiar de auto-revelação.
— Só preciso me lembrar do modo como me testou, Senhor.
— Não percebe a necessidade de sentir o Caminho Dourado?
— Não é isso o que eu temo, Senhor.
— Você teme aquela outra surpresa, a coisa que me levou a fazer minha escolha.
— Só tenho que olhar para o Senhor e conhecer esse medo. Nós Atreides...
Não conseguiu terminar, a boca seca.
— Você não deseja todas as memórias de seus ancestrais e as outras que se acumulam dentro de mim!
— Algumas vezes... algumas vezes, Senhor, penso que a especiaria foi a maldição dos Atreides!
— Desejaria que eu nunca tivesse existido?
Moneo ficou em silêncio.
— Mas a melange possui seus valores, Moneo. Os Navegadores da Corporação necessitam dela. E sem ela a Bene Gesserit degeneraria num bando desamparado de mulheres lamurientas!
— Nós devemos viver, com ela ou sem ela, Senhor. Sei disso.
— Muito perceptivo, Moneo. Mas escolheu viver sem ela.
— Será que não tenho essa escolha, Senhor?
— Por enquanto.
— Senhor, o que...
— Existem 28 palavras diferentes para designar a melange no Galach comum. Elas a descrevem por seu uso, sua diluição, sua idade, se foi obtida através de uma compra honesta ou por roubo ou conquista, se foi um presente para um homem ou uma mulher, além de muitos outros modos pelos quais é chamada. Que acha disso, Moneo?
— A nós são oferecidas muitas escolhas, Senhor.
— Somente no que concerne à especiaria?
A testa de Moneo se enrugou, pensativa, e então ele disse:
— Não.
— Você diz não tão raramente na minha presença. Adoro ver seus lábios formarem essa palavra.
A boca de Moneo contorceu-se numa tentativa de sorriso.
Leto falou severamente:
— Bem! Agora você deve ir ao encontro de Lady Hwi. E como despedida eu lhe darei um pequeno aviso que poderá ajudá-lo.
Moneo observou atentamente o rosto de Leto.
— O conhecimento das drogas teve origem principalmente com os homens porque eles tendem a ser mais aventureiros — uma extensão da agressividade masculina. Você leu a sua Bíblia Universal Laranja, e assim conhece a história de Eva e da maçã. Há um fato interessante a respeito dessa história: Eva não foi a primeira a colher e provar da maçã. Adão foi o primeiro e, ao fazer isso, aprendeu a colocar a culpa em Eva. Minha história lhe revela algo a respeito de como as sociedades encontram a necessidade estrutural para os subgrupos.
Moneo inclinou a cabeça levemente para a esquerda.
— Senhor, como isso me ajuda?
— Vai ajudá-lo com Lady Hwi!
A singular multiplicidade deste universo atrai a minha mais profunda atenção. Trata-se de uma coisa de fundamental beleza.
— Os diários roubados
Leto ouviu Moneo na antecâmara bem antes que Hwi entrasse na pequena sala de audiências. Ela usava largas pantalonas verde-pálidas, ajustadas nos calcanhares com fitas verde-escuras para combinarem com as sandálias. Uma blusa folgada do mesmo verde-escuro podia ser vista sob o manto negro.
Parecia calma ao se aproximar de Leto e se sentou sem esperar pelo convite, escolhendo uma almofada dourada, em vez da vermelha que tinha ocupado antes. Levara menos de uma hora para Moneo trazê-la e a aguda audição de Leto captou o ruído de Moneo inquieto na ante-sala, fazendo com que emitisse um sinal para fechar o portal em arco que dava para lá.
— Alguma coisa perturbou Moneo — disse Hwi. — Ele se esforçou muito para não me revelar isso, mas, quanto mais ele tentava me acalmar, mais despertava a minha curiosidade.
— Ele não a deixou assustada?
— Oh, não. Entretanto me disse algo muito interessante. Disse que devo me lembrar sempre de que o Imperador-Deus é uma pessoa diferente de todos nos.
— E por que isso é interessante?
— O interessante foi aquilo para o qual isso era apenas um prefácio. Ele disse que freqüentemente se admira do papel que desempenhamos em criar essa diferença no senhor.
— Isso é interessante.
— Creio que é uma verdadeira descoberta. Por que me chamou?
— Certa ocasião, seus senhores em Ix...
— Não são mais meus senhores, Senhor.
— Perdoe-me. Vou me referir a eles daqui em diante como os Ixianos.
Ela assentiu gravemente, e então pediu que ele continuasse, repetindo:
— Certa ocasião...
— Os Ixianos pensaram em criar uma arma... um tipo de caçador-rastreador, uma coisa mortífera auto-impulsionada com mente mecânica. Seria projetada com a capacidade de auto-aperfeiçoar-se e buscaria a vida para reduzi-la a seus componentes inorgânicos.
— Nunca ouvi falar nessa coisa, Senhor.
— Sei disso. Os Ixianos não reconhecem que os construtores de máquinas sempre correm o risco de se tornarem inteiramente mecânicos. E essa é a derradeira esterilidade. Máquinas sempre falham... com o tempo. E quando essas máquinas enguiçassem não restaria nada, nenhum ser vivo.
— Às vezes acho que eles são loucos.
— Essa é a opinião de Anteac. Esse é o problema mais imediato. Os Ixianos encontram-se agora engajados num empreendimento que estão mantendo oculto.
— Até mesmo do Senhor?
— Até mesmo de mim. Estou enviando a Reverenda Madre Anteac para que investigue isso para mim. Para ajudá-la, quero que você lhe revele tudo o que puder a respeito do lugar onde passou a infância. Não omita qualquer detalhe, não importa quão insignificante. Anteac vai ajudá-la a se lembrar. Queremos cada som, cada perfume, as formas e os nomes dos visitantes, as cores, até mesmo as comichões na sua pele. A menor coisa pode ser vital.
— Acha que esse é o lugar que estão ocultando?
— Sei que é.
— E acha que estão fazendo essa arma nesse...
— Não, mas essa será a desculpa que usaremos para investigar o lugar onde você nasceu.
Ela abriu a boca e aos poucos permitiu que um sorriso se formasse. Então disse:
— Meu Senhor é engenhoso. Falarei com a Reverenda Madre imediatamente.
Hwi começou a se levantar, mas ele a deteve com um gesto.
— Não devemos dar a impressão de estarmos com pressa.
Ela sentou-se outra vez na almofada.
— Cada um de nós é diferente, como observa Moneo — disse ele. — A gênese nunca pára. Seu deus continua a criá-la.
— Que Anteac vai descobrir? Já sabe, não sabe?
— Digamos que eu tenha uma forte convicção. Agora, você nunca mencionou o assunto que abordei antes. Não tem perguntas?
— Vai me fornecer as respostas na medida em que eu precisar delas.
Era uma declaração carregada, dotada de tamanha sinceridade e confiança que deteve a voz de Leto. Ele só podia olhar para ela notando como era extraordinária essa realização dos Ixianos — essa humana. Hwi permanecia extremamente sincera aos preceitos de uma moral pessoalmente escolhida. Era graciosa, honesta, calorosa e possuidora de um senso de empatia que a forçava a compartilhar cada angústia daqueles com quem se identificava. Ele podia imaginar a consternação de suas professoras Bene Gesserit quando confrontadas com esse núcleo irredutível de sinceridade. As professoras obviamente tinham ficado reduzidas à capacidade de adicionar um pequeno toque aqui, uma habilidade ali, tudo reforçando aquela força que a impedia de se tornar uma Bene Gesserit. E como isso devia tê-las exasperado.
— Senhor — disse ela —, vou conhecer os motivos que o forçaram a escolher essa vida.
— Primeiro deve compreender como é poder ver nosso futuro.
— Com sua ajuda, tentarei.
— Nada pode ser separado de sua fonte — ele disse. — A visão de futuro é a visão de um continuum no qual todas as coisas se moldam como bolhas formando-se embaixo de uma cachoeira. Você as vê e então elas desaparecem na correnteza. Se a correnteza termina, é como se as bolhas nunca tivessem existido. A correnteza é o meu Caminho Dourado, e eu vi o seu fim.
— Sua escolha — ela apontou para o corpo dele — mudou esse fim?
— Está mudando. E a mudança não vem apenas da maneira como a minha vida é construída, mas também da maneira como vou morrer.
— Sabe como vai morrer?
— Não como. Conheço apenas o Caminho Dourado na qual ela irá ocorrer.
— Senhor, eu não...
— É difícil de entender, eu sei. Morrerei quatro mortes — a morte da carne, a morte da alma, a morte do mito e a morte da razão. E todas essas mortes contêm a semente da ressurreição.
— Vai retornar dos...
— As sementes retornarão.
— E, quando tiver partido, que será da sua religião?
— Todas as religiões são apenas uma única comunhão. O espectro permanece contínuo dentro do Caminho Dourado. Apenas acontece que os seres humanos vêem primeiro uma parte e depois outra. As ilusões podem ser chamadas de acidentes dos sentidos.
— As pessoas ainda o adorarão — disse ela.
— Sim.
— Mas quando o sempre terminar restará apenas a cólera — ela disse. — Haverá apenas a negação. E alguns dirão que o Senhor foi apenas um tirano comum.
— Uma fraude — concordou ele.
Um aperto na garganta impediu-a de falar naquele momento. Depois ela disse:
— Como é que sua vida e sua morte mudam o... — Ela sacudiu a cabeça.
— A vida vai continuar.
— Acredito nisso, Senhor, mas como?
— Cada ciclo é uma reação ao ciclo precedente. Se pensar na forma do meu Império, então conhecerá a forma do próximo ciclo.
Ela virou o rosto a fim de não olhar para ele.
— Tudo que eu aprendi a respeito de sua Família me disse que só faria isso — ela gesticulou na direção dele sem olhar se tivesse um motivo altruístico. Mas não creio que eu conheça verdadeiramente a forma do seu Império.
— A Paz Dourada de Leto?
— Existe menos paz do que alguns gostariam de nos fazer acreditar — ela disse, olhando de volta para ele.
“A honestidade dela!”, ele pensou. “Nada a deteria.”
— Esta é a hora do estômago — disse ele. — E a hora em que nos expandimos tal como uma única célula se expande.
— Mas alguma coisa está ausente — disse ela.
“Ela é como os Duncans”, ele pensou. “Falta alguma coisa e ela sente imediatamente.”
— A carne cresce, mas a psique não cresce — ele disse.
— A psique?
— Aquela consciência reflexiva que lhe diz quão viva você pode se tornar. Você conhece bem isso, Hwi. E o sentido que lhe revela como ser sincera consigo mesma.
— Sua religião não é suficiente — ela disse.
— Nenhuma religião pode ser o suficiente. É uma questão de escolha — de uma única e solitária escolha. Entende agora por que sua amizade e sua companhia significam tanto para mim?
Ela piscou os olhos cheios de lágrimas, assentindo com a cabeça.
— Por que as pessoas não sabem disso?
— Porque as condições não permitem.
— As condições que o Senhor dita?
— Precisamente. Examine todo o meu Império. Está vendo a forma?
Ela fechou os olhos, pensativa.
— Alguém deseja sentar-se à beira do rio e pescar o dia todo? — perguntou ele. — Excelente. Esta é sua vida. Você deseja velejar num pequeno bote através de um mar interior e visitar estranhos? Soberbo! Que mais há para se fazer?
— Viajar pelo espaço? — perguntou ela, e havia um tom de desafio em sua voz. Hwi abriu os olhos.
— Você já deve ter percebido que a Corporação e eu não o permitimos.
— O Senhor não o permite.
— Certo. Se a Corporação me desobedece, não recebe especiaria.
— E manter as pessoas presas nos planetas afasta-as de confusões.
— Algo mais importante que isso. Deixa-as com desejo de viajar. Isso cria uma necessidade de realizar viagens longas e ver coisas estranhas. No final, a viagem passará a ser um sinônimo de liberdade.
— Mas a especiaria se esgota.
— E a liberdade se torna mais preciosa a cada dia que passa.
— Isso só pode levar ao desespero e à violência — disse Hwi.
— Um homem sábio entre meus antepassados... na verdade eu fui essa pessoa, sabia? Compreende que não há estranhos no meu passado?
Ela assentiu com a cabeça, admirada.
— Esse homem sábio observou que a riqueza é um instrumento de liberdade. Mas a busca da riqueza é o caminho para a escravidão.
— A Corporação e a Irmandade escravizam a si próprias!
— E os Ixianos e os Tleilaxu e todos os outros. Oh, eles conseguem um punhado de melange escondida, de tempos em tempos, e mantêm a atenção fixa. Um jogo muito interessante, não acha?
— Mas quando a violência começar...
— Haverá fome e desespero.
— Aqui em Arrakis também?
— Aqui, ali, por toda a parte. As pessoas olharão para os dias da minha tirania como “os bons tempos”. Serei o espelho do futuro deles.
— Mas isso será terrível! — retrucou ela.
“Ela não podia ter outra reação”, ele pensou.
E continuou:
— Quando a terra se recusar a sustentar as pessoas, os sobreviventes se aglomerarão em refúgios cada vez menores. Um terrível processo de seleção se repetirá em muitos mundos comida decrescendo e taxas de natalidade explodindo.
— Mas a Corporação não poderia.
— A Corporação estará muito desamparada, sem melange suficiente para operar os transportes disponíveis.
— Mas os ricos não vão escapar?
— Alguns.
— Então o Senhor realmente não terá mudado coisa alguma. Só continuaremos lutando e morrendo.
— Até que o verme da areia reine uma vez mais em Arrakis. Então nos teremos testado, com uma profunda experiência compartilhada por todos. Teremos aprendido que algo que pode acontecer em um planeta pode acontecer em qualquer planeta.
— Tanta dor e tanta morte — ela sussurrou.
— Você não entende a morte? — perguntou ele. — Precisa entender. A espécie precisa entender. Toda a vida deve entender.
— Ajude-me, Senhor — disse ela baixinho.
— A experiência mais profunda para qualquer criatura — ele disse. — Perto da morte vêm as experiências que a espelham ou trazem seu risco: doenças graves, acidentes e ferimentos. o parto para uma mulher... como foi um dia o combate para os homens.
— Mas suas Oradoras Peixes são...
— Elas ensinam sobrevivência — ele disse.
Os olhos dela arregalaram-se com o entendimento.
— Os sobreviventes. É claro!
— Como você é preciosa. Como é rara e preciosa. Abençoados Ixianos!
— E malditos também?
— Também.
— Não pensei que pudesse entender suas Oradoras Peixes — disse ela.
— Nem mesmo Moneo percebe — ele disse. — E eu me desespero quanto aos Duncans.
— É preciso apreciar a vida para desejar preservá-la — disse ela.
— E são os sobreviventes que mantêm o contato mais alegre e pungente com as belezas da vida. É mais comum as mulheres saberem disso do que os homens, já que o parto permite uma reflexão a respeito da morte.
— Meu tio Malky sempre disse que o Senhor tinha boas razões para impedir as lutas e a violência fortuita entre os homens. Que amarga lição!
— Sem algum tipo de violência prontamente disponível, os homens têm poucos modos de se testarem quanto às formas de enfrentar essa experiência fundamental — explicou ele. — Alguma coisa está faltando. A psique não se desenvolve. Que é que as pessoas dizem a respeito da paz de Leto?
— Que o Senhor nos faz chafurdar numa inútil decadência, como porcos em sua própria sujeira.
— Sempre reconheça a precisão da sabedoria popular. Decadência.
— A maioria dos homens não tem princípios — disse ela. — As mulheres de Ix queixam-se disso constantemente.
— Quando preciso identificar os rebeldes, olho para os homens com princípios — ele disse.
Ela olhou para ele em silêncio, imaginando como essa simples reação revelava tão profundamente a sua inteligência.
— Onde acha que encontro meus melhores administradores?
Uma pequena exclamação de espanto escapou dos lábios de Hwi.
— É por princípios que você luta — continuou ele. — A maioria dos homens passa a vida inteira sem ser testada, exceto no momento final. Eles dispõem de muito poucas arenas inamistosas para testarem a si mesmos.
— Eles têm o Senhor — disse ela.
— Mas eu sou muito poderoso. Sou equivalente ao suicídio. Quem buscaria a morte certa?
— Loucos... ou então os desesperados. Rebeldes?
— Sou equivalente à guerra. O último predador. Sou a força coesiva que os despedaça.
— Nunca pensei em mim mesma como uma rebelde — disse ela.
— Você é coisa muito melhor.
— E vai me usar de algum modo?
— Vou.
— Não como administradora.
— Já tenho bons administradores; incorruptíveis, sagazes, filosóficos e prontos a admitir seus erros, rápidos em perceber as decisões.
— E eles foram rebeldes?
— A maioria foi.
— Como são escolhidos?
— Eu diria que a maioria deles escolhe a si própria.
— Ao sobreviverem?
— Isso também. Mas há mais. A diferença entre um bom e um mau administrador conta-se em cinco batidas do coração. Os bons administradores fazem opções imediatas.
— Opções aceitáveis?
— Geralmente funcionam. Um mau administrador, por outro lado, hesita, vacila, pede comissões, pesquisas e relatórios. Acaba agindo de um modo que cria sérios problemas.
— Mas às vezes eles não precisam de mais informações para...
— Um mau administrador está mais preocupado com relatórios que com decisões. Ele quer um registro que possa exibir como desculpa para os seus erros.
— E os bons administradores?
— Ah, eles confiam em ordens verbais. E nunca mentem a respeito do que fizeram quando suas ordens verbais causam problemas. Além disso, cercam-se de pessoas capazes de agir sabiamente com base em ordens verbais. Freqüentemente a informação mais importante é aquela que revela que alguma coisa está indo mal. Os maus administradores escondem seus erros até que seja muito tarde para fazer correções.
Leto a observava enquanto pensava nas pessoas que o serviam — principalmente Moneo.
— Homens de decisão — ela disse.
— Uma das coisas mais difíceis para um tirano encontrar — disse ele —, são pessoas que realmente tomem decisões.
— E seu conhecimento íntimo do passado não lhe proporciona...
— Proporciona algum divertimento. A maioria das burocracias antes da minha buscou e promoveu pessoas que evitavam as decisões.
— Percebo. Como é que vai me usar, Senhor?
— Casar-se-ia comigo?
Um fraco sorriso tocou-lhe os lábios:
— As mulheres também podem tomar decisões. Eu me casarei com o Senhor.
— Então vá e instrua a Reverenda Madre. Tenha certeza de que ela saiba o que está procurando.
— Minha gênese. O Senhor e eu já conhecemos meu propósito.
— Que não é isolado de sua fonte — disse ele.
Então ela se levantou:
— Senhor, poderia estar errado quanto ao seu Caminho Dourado? Será que a possibilidade de fracasso...
— Qualquer coisa e qualquer um podem falhar. Mas os amigos bons e corajosos sempre ajudam.
Os grupos tendem a condicionar seu ambiente para a sobrevivência do todo. E, quando se desviam desse comportamento, isso pode ser tomado como sinal de doença grupal.
Existem muitos sintomas indicativos. Eu, por exemplo, observo o ato de se compartilhar a comida. Essa é uma forma de comunicação, um sinal inescapável de aluda mútua, que também carrega em si um indicio mortífero de dependência. É interessante que hoje sejam os homens aqueles que usualmente cuidam da terra. São homens-maridos.
Um dia essa foi uma atividade exclusiva das mulheres.
— Os diários roubados
“Deve perdoar-me a insuficiência deste relatório — escreveu a Reverenda Madre Anteac. — Responsabilize por isso a necessidade de pressa. Parto amanhã para Ix, meu propósito sendo o mesmo que relatei em maiores detalhes anteriormente. O profundo e sincero interesse do Imperador-Deus por Ix não pode ser negado, mas o que devo narrar aqui é a estranha visita que acabo de receber da Embaixadora Ixiana, Hwi Noree.”
Anteac estava sentada num banquinho inadequado, o melhor que conseguira obter naqueles alojamentos espartanos. Estava sozinha em seu minúsculo quarto, o espaço-dentro-de-um-espaço que Lorde Leto se recusara a mudar mesmo depois do aviso da Bene Gesserit quanto à traição dos Tleilaxu.
Sobre o colo de Anteac se encontrava um pequeno quadrado preto tinto, com 10 milímetros de lado e não mais que três milímetros de espessura. Ela escrevia sobre esse quadrado com uma agulha brilhante — uma palavra sobre a outra, todas absorvidas pelo quadrado. A mensagem completa seria impressa sobre os receptores nervosos dos olhos de uma acólita-mensageira, onde ficaria latente até que pudesse ser lida na sede da Irmandade.
Hwi Noree apresentava tamanho dilema!
Anteac conhecia os relatórios das professoras Bene Gesserit enviadas para instruir Hwi em Ix. Mas tais relatos continham demasiadas lacunas. Eles levantavam grandes questões.
“Por que aventuras passou, criança?”
“Quais foram as coisas mais difíceis da sua infância?”
Anteac fungou e olhou para o quadrado-negro que aguardava novas palavras. Tais pensamentos a faziam lembrar-se de uma crença Fremen no sentido de que a terra onde você nasce faz de você o que você é.
— Existem animais estranhos no seu planeta? — os Fremen perguntavam.
Hwi chegara com uma impressionante escolta de Oradoras Peixes, mais de 100 mulheres musculosas, todas fortemente armadas. Anteac raramente presenciara semelhante exibição de armamento: pistolas laser, facas longas, lâminas de prata, granadas atordoantes.
Acontecera no meio da manhã. Hwi entrara deixando as Oradoras Peixes a cercarem os alojamentos da Bene Gesserit, tudo exceto essa espartana sala interior.
Anteac percorreu o alojamento com o seu olhar. Lorde Leto estava dizendo-lhe alguma coisa ao mantê-la aqui.
— É assim que você mede o seu valor para o Imperador-Deus!
Exceto... que agora ele enviava uma Reverenda Madre para Ix, e o declarado propósito dessa jornada sugeria muitas coisas a respeito de Lorde Leto. Talvez os tempos estivessem a ponto de mudar, com novas honras e mais melange para a Irmandade.
“Tudo depende de o quanto eu me sair bem.”
Hwi entrara nesse quarto sozinha e se sentara recatadamente sobre o catre de Anteac, sua cabeça mais baixa que a da Reverenda Madre. Um detalhe interessante que não devia ter acontecido por acidente. As Oradoras Peixes obviamente podiam ter colocado as duas em qualquer outro lugar, em qualquer relacionamento que Hwi ordenasse. E as primeiras palavras e chocantes de Hwi deixaram pouca dúvida quanto a isso:
— Você deve saber desde o começo que eu vou me casar com Lorde Leto.
Fora necessário um profundo controle para evitar que ela abrisse a boca de espanto. O senso de verdade em Anteac confirmava a sinceridade das palavras de Hwi, mas o significado completo disso ainda não podia ser avaliado.
— Lorde Leto ordena que não diga nada a respeito disso para ninguém — acrescentou Hwi.
“Que dilema!”, pensou Anteac. “Será que poderei relatar isso às minhas Irmãs na sede da Irmandade?”
— Todos vão saber no devido tempo — explicou Hwi. — Ainda não é hora. Eu lhe digo isso apenas porque ajuda a conscientizá-la do peso da confiança de Lorde Leto.
— Ele confia em você?
— Em nós duas.
Isto fizera Anteac estremecer de modo quase perceptível. O poder inerente a tal confiança!
— Sabe por que Ix a escolheu como embaixadora? — Anteac perguntou.
— Sim. Desejavam que eu o seduzisse.
— E parece ter tido sucesso. Será que isso significa que os Ixianos acreditam nas histórias dos Tleilaxu a respeito dos hábitos indecentes de Lorde Leto?
— Nem mesmo os Tleilaxu acreditam nelas.
— Posso tomar isso como sua confirmação quanto à falsidade de tais histórias?
Hwi falara com uma estranha ausência de emoção que mesmo o senso de verdade de Anteac e suas habilidades como Mentat acharam difícil decifrar:
— Falou com ele e o observou. Responda essa pergunta por si mesma.
Anteac dominou um pequeno impulso de irritação. A despeito de sua juventude, essa Hwi não era uma acólita... e nunca daria uma boa Bene Gesserit. Que pena!
— Relatou isso ao seu Governo em Ix? — perguntou Anteac.
— Não.
— Por quê?
— Eles logo saberão. Uma revelação prematura poderia prejudicar Lorde Leto.
Ela fala a verdade, lembrou-se Anteac.
— Sua primeira lealdade não é para Ix? — perguntou ela.
— Minha lealdade é para com a verdade. — Hwi sorriu então. — Ix se saiu melhor do que pensava.
— Ix a considera uma ameaça ao Imperador?
— Creio que a preocupação básica deles é com o conhecimento. Discuti isso com Ampre antes de partir.
— O Diretor de Assuntos Ixianos fora da Federação? É esse Ampre?
— Sim. Ampre está convencido de que Lorde Leto permite ameaças à sua pessoa somente dentro de certos limites.
— Ampre disse isso?
— Ele não acredita que o futuro possa ser escondido de Lorde Leto.
— Mas minha missão em Ix traz em si a sugestão de que... — Anteac interrompeu-se e sacudiu a cabeça, depois acrescentou: — Por que Ix fornece máquinas e armamentos para Lorde Leto?
— Ampre acredita que Ix não tenha escolha. Uma força esmagadora destrói as pessoas que representam uma ameaça muito grande.
— E se Ix se recusasse isso passaria dos limites para Lorde Leto. Sem meio-termo. Mas já pensou nas conseqüências de seu casamento com Lorde Leto?
— Quer dizer as dúvidas que tal ato levantará quanto à sua divindade?
— Alguns vão acreditar nas histórias dos Tleilaxu.
Hwi apenas sorriu.
“Maldição!”, pensou Anteac. “Como foi que perdemos essa garota?”
— Ele está mudando a estrutura de sua religião — acusou Anteac. — Claro que é isso.
— Não cometa o engano de julgar os outros a partir de si mesma — disse Hwi e, quando Anteac começou a retrucar, ela acrescentou: — Mas não vim aqui para discutir com você a respeito do Senhor.
— Não, é claro que não.
— Lorde Leto ordenou-me que lhe revelasse, com todos os detalhes de minha memória, a respeito do lugar onde nasci e fui criada.
Enquanto refletia sobre as palavras de Hwi, Anteac olhou para o quadrado preto em seu colo. Hwi passara a contar os detalhes que o seu Senhor (e agora noivo!) lhe havia ordenado, detalhes que teriam sido tediosos, às vezes, se não fossem as habilidades Mentat de Anteac para a absorção de dados.
Anteac sacudiu a cabeça ao considerar o que deveria ser relatado às suas Irmãs na Sede da Irmandade. Elas já estariam estudando a importância de suas palavras anteriores. Uma máquina capaz de ocultar a si mesma e seu conteúdo até mesmo da penetrante presciência do Imperador-Deus? Seria possível tal coisa? Ou seria apenas um tipo diferente de teste, um teste da sinceridade Bene Gesserit contra a de Lorde Leto? Mas e agora? Se ele já não soubesse da gênese dessa enigmática Hwi Noree...
Esse novo desenvolvimento reforçava os resultados da computação Mentat de Anteac quanto às razões pelas quais fora escolhida para essa missão em Ix. O Imperador-Deus não confiava esse conhecimento às suas Oradoras Peixes. Não queria que elas suspeitassem de uma fraqueza da parte de seu Senhor!
Ou seria mesmo tão óbvio quanto parecia? Engrenagens dentro de engrenagens — esse era o estilo de Lorde Leto.
Novamente Anteac sacudiu a cabeça. Curvou-se e reiniciou seu relatório para a Irmandade, deixando de mencionar a revelação de que o Imperador-Deus escolhera uma noiva.
Elas iriam descobrir logo. Enquanto isso, a própria Anteac consideraria as implicações.
Se você conhece todos os seus ancestrais, então se torna uma testemunha pessoal dos eventos que criaram os mitos e as religiões do nosso passado. Reconhecendo isso, deve reconhecer-me como um criador de mitos.
— Os diários roubados
A primeira explosão aconteceu exatamente quando a escuridão da noite envolveu a cidade de Onn. A detonação pegou alguns farristas ousados, que passavam diante da Embaixada Ixiana, a caminho de uma festa onde (pelo que fora prometido) alguns Dançarinos Faciais representariam um antigo drama a respeito de um rei que matara seus filhos. Depois dos acontecimentos violentos dos primeiros quatro dias de Festival, essas pessoas precisariam de alguma coragem para emergirem da segurança relativa de seus alojamentos. Histórias de mortes e ferimentos em testemunhas inocentes circulavam através da Cidade — e aqui novamente — mais munição para os cautelosos.
Nenhuma das vítimas e sobreviventes teria apreciado a observação de Leto de que as testemunhas inocentes estavam em escassez.
Os sentidos aguçados de Leto detectaram a explosão e a localizaram. Numa fúria instantânea, da qual depois se arrependeria, ele gritou para as suas Oradoras Peixes e lhes ordenou que “exterminassem os Dançarinos Faciais”, até mesmo aqueles que poupara anteriormente.
Numa reflexão imediata, essa sensação de fúria fascinou Leto. Fazia tanto tempo desde a última vez em que ele sentira uma raiva moderada. Frustração, irritação — esses tinham sido seus limites. Mas agora, com uma ameaça a Hwi Noree, a fúria!
Essa reflexão fez com que ele modificasse a ordem inicial, mas não antes de algumas Oradoras Peixes já terem saído correndo de sua Real Presença, seus mais violentos desejos liberados pelo que tinham visto em seu Senhor.
— Deus está furioso! — algumas delas gritavam.
A segunda explosão pegou algumas Oradoras Peixes entrando na praça, limitando a transmissão da nova ordem de Leto e provocando mais violência. A terceira explosão, perto da primeira, fez com que o próprio Leto entrasse em ação. Ele propeliu sua carreta como um jaganata enlouquecido, saindo de sua câmara de repouso e entrando no elevador Ixiano, de onde emergiu na superfície.
Saiu na extremidade da praça, encontrando uma cena de caos iluminada por milhares de globos luminosos flutuando livres no ar, liberados por suas Oradoras Peixes. O palco central da praça fora despedaçado, ficando intacta somente a base de plasteel por baixo da superfície pavimentada. Pedaços quebrados de alvenaria espalhavam-se pelo chão, misturados com os mortos e feridos.
Na direção da Embaixada Ixiana, bem do outro lado da praça, havia um combate violento.
— Onde está o meu Duncan? — gritou Leto.
Uma bashar da guarda veio correndo através da praça para se colocar ao seu lado, onde ela relatou, enquanto respirava, ofegante:
— Nós o levamos para a Cidadela, Senhor!
— Que está acontecendo por lá? — perguntou Leto, apontando para a batalha diante da Embaixada Ixiana.
— Os rebeldes e os Tleilaxu estão atacando a Embaixada Ixiana, Senhor. Eles têm explosivos.
Enquanto ela falava, outra detonação ocorreu diante da fachada despedaçada da Embaixada. Leto viu corpos contorcendo-se no ar enquanto voavam para fora num arco para caírem no perímetro de um clarão brilhante que deixou uma pós-imagem laranja cheia de pontos pretos.
Sem pensar nas conseqüências, Leto fez sua carreta flutuar nos suspensores e a lançou como uma bala através da praça — uma massa em disparada que sugava globos luminosos em sua esteira. Na extremidade da área de luta, ele saltou sobre suas defensoras e mergulhou no flanco dos atacantes, só então percebendo as armas laser que lançavam lívidos arcos azuis em sua direção. Sentiu a carreta golpeando carne, espalhando corpos à sua volta.
A carreta o despejou diretamente em frente da Embaixada, rolando-o sobre uma superfície dura enquanto ele atingia os destroços. Ele sentiu os raios laser comicharem em seu corpo anelado, depois uma onda de calor interior, seguida por um sopro de oxigênio escapando de sua cauda. O instinto o fez mergulhar o rosto profundamente no capuz de truta de areia e dobrar os braços nas profundezas protetoras de seu segmento frontal. O corpo de verme assumiu o controle, contorcendo-se e golpeando, rolando como uma roda louca, chicoteando para todos os lados.
O sangue lubrificou a superfície da rua. Sangue que era água para o seu corpo, mas a morte liberava essa água. Seu corpo chicoteando escorregou e deslizou nela, a água produzindo fumaça azulada de cada junta de flexão, onde ela penetrava através da pele de truta da areia. Isso o enchia de uma agonia da água que provocava mais violência da parte do grande corpo.
Ao primeiro ataque de Leto, o perímetro de Oradoras Peixes recuou. Uma bashar alerta viu a oportunidade agora apresentada e gritou acima do ruído da luta:
— Peguem os desgarrados!
As fileiras de mulheres guardiãs avançaram.
Houve uma luta sangrenta por alguns minutos, lâminas golpeando à luz implacável dos globos luminosos, a dança dos arcos de armas lazer, e mesmo mãos que golpeavam e dedos que mergulhavam em carne vulnerável. As Oradoras Peixes não deixaram sobreviventes.
Leto rolou para fora da massa sangrenta que restara diante da Embaixada, quase incapaz de pensar ante as ondas de agonia provocadas pela água. O ar à sua volta estava carregado de oxigênio, e isso lhe ajudava os sentidos humanos. Chamou sua carreta e ela flutuou em direção a ele, inclinando-se perigosamente sobre os suspensores danificados. Lentamente, ele coleou para cima da carreta inclinada e enviou o comando mental de retornar aos seus alojamentos debaixo da praça.
Muito tempo atrás ele se havia preparado para a eventualidade de sofrer danos causados por água — uma sala onde descargas de ar seco, superaquecido, limpariam seu corpo e o restaurariam. Areia seria melhor, mas não havia lugar dentro dos limites de Onn para a necessária extensão de areia sobre a qual ele pudesse aquecer-se e raspar seu corpo até a sua pureza normal.
No elevador, pensou em Hwi e enviou uma mensagem para que ela fosse trazida a ele imediatamente.
“Se ela sobreviveu.”
Não tinha tempo agora para realizar a busca presciente, só podia ter esperanças, enquanto seu corpo, humano e pré-verme, ansiava pelo calor purificante.
Uma vez na sala de limpeza, pensou em reafirmar sua ordem alterada. — “Poupem alguns Dançarinos Faciais!” Mas a essa altura as Oradoras Peixes enlouquecidas estariam se espalhando pela Cidade, e ele não tinha forças para fazer a varredura presciente que teria enviado suas mensageiras aos locais de encontro adequados.
Quando ele saía da sala de limpeza, uma capitã da Guarda lhe trouxe a notícia de que Hwi Noree, embora levemente ferida, estava em segurança e seria trazida à sua presença assim que a comandante local julgasse prudente.
No ato, Leto promoveu a capitã da Guarda a sub-bashar. Era uma criatura pesada, do tipo Nayla, mas sem o rosto quadrado desta — tinha feições mais arredondadas, mais próximas dos antigos padrões. Ela estremeceu no calor da aprovação por seu Senhor e, quando este lhe disse que retornasse para “deixar duplamente certo” que nenhum dano ocorresse a Hwi, ela se virou e saiu em disparada.
“Nem mesmo lhe perguntei o nome”, pensou Leto, enquanto rolava para cima de uma nova carreta, na depressão de sua pequena sala de audiências. Gastou alguns minutos de reflexão para lembrar o nome da nova sub-bashar — Kieuemo. A promoção teria de ser confirmada. Anotou mentalmente para fazer isso em pessoa, depois. As Oradoras Peixes, todas elas, teriam de aprender imediatamente o quanto ele valorizava Hwi Noree. Não que houvesse muita dúvida quanto a isso depois dessa noite.
Então realizou sua varredura presciente e enviou mensageiras para as Oradores Peixes na Cidade. Mas o dano já fora feito — corpos espalhados por toda Onn, alguns de Dançarinos Faciais, outros de gente apenas suspeita de o ser.
“E muitos me viram matar”, pensou ele.
Enquanto esperava pela chegada de Hwi, reviu o que acabara de acontecer. Esse não fora um típico ataque dos Tleilaxu, mas o ataque anterior, na estrada para Onn, encaixava-se num novo padrão, todo ele apontando para uma única mente com um propósito letal.
“Eu poderia ter morrido lá fora”, pensou.
Isso começava a explicar por que não tinha previsto esse ataque, mas ainda havia uma razão mais profunda... Leto podia ver essa razão emergindo em sua consciência, uma soma de todos os indícios. Que ser humano conhecia melhor o Imperador-Deus? Que ser humano possuía um lugar secreto de onde conspirar?
“Malky!”
Leto chamou uma guarda e pediu que perguntasse se a Reverenda Madre Anteac já deixara Arrakis. A guarda retornou num instante para relatar:
— Anteac ainda se encontra em seu alojamento. A Comandante da Guarda de Oradoras Peixes diz que não foram atacadas lá.
— Leve esta mensagem para Anteac — disse Leto. — Pergunte-lhe se agora compreende por que coloquei sua delegação em alojamentos tão afastados de mim. Diga-lhe que, enquanto estiver em Ix, deve tentar localizar Malky. Deve relatar sua localização à nossa guarnição em Ix.
— Malky, o antigo Embaixador Ixiano?
— Ele mesmo. Ele não deve continuar vivo e livre. Você deverá informar a comandante de nossa guarnição em Ix para que trabalhe em conjunto com Anteac, dando-lhe toda a assistência de que ela necessitar. Malky deve ser trazido a mim ou executado — o que for julgado necessário por sua comandante.
A mensageira-guarda assentiu, sombras projetando-se em seu rosto no lugar onde se colocara, ante o anel de luz iluminando o rosto de Leto. Ela não pediu uma repetição das ordens. Cada uma das guardas que trabalhavam mais junto dele havia sido treinada como gravador humano. Elas repetiriam exatamente as palavras de Leto, com as entonações originais, e nunca esqueceriam aquilo que o tinham ouvido dizer.
Assim que a mensageira saiu, Leto enviou um sinal particular de indagação e, dentro de segundos, teve uma resposta de Nayla. O engenho Ixiano dentro de sua carreta reproduzia uma versão não identificável da voz dela, um recital metálico, unicamente para seus ouvidos.
Sim, Siona estava na Cidadela. Não, Siona não havia contactado seus companheiros rebeldes. “Não, ela ainda não sabe que estou aqui observando-a.” O ataque à Embaixada? Aquilo fora feito por um grupo dissidente chamado “Elemento de Contato Tleilaxu”.
Leto suspirou mentalmente. Os rebeldes sempre davam a seus grupos rótulos tão pretensiosos.
— Algum sobrevivente? — ele perguntou.
— Não há sobreviventes conhecidos.
Leto achou divertido que, embora a voz metálica não fornecesse os tons emocionais, sua memória os suprisse.
— Você fará contato com Siona — instruiu ele. — Revele a ela que você é uma Oradora Peixe. Diga-lhe que não revelou isso anteriormente por saber que ela não confiaria em você e porque temia ser denunciada, já que você é solitária, entre as Oradoras Peixes, em sua fidelidade a Siona. Reafirme-lhe seu juramento de lealdade. Diga-lhe que você jura “por tudo que lhe é sagrado” que obedecerá Siona em tudo o que ela lhe ordenar. Se ela o ordenar, você o fará. E tudo isso é verdade, como você bem o sabe.
— Sim, senhor.
A memória forneceu a fanática ênfase na resposta de Nayla. Ela obedeceria.
— Se for possível, arranje uma oportunidade para que Siona e Duncan Idaho se encontrem a sós — ele disse.
— Sim, Senhor.
“Deixe que a afinidade desempenhe seu papel”, pensou ele.
Interrompeu o contato com Nayla, pensou por um momento e então mandou chamar a comandante de suas forças na praça. A bashar chegou daí a pouco, o uniforme escuro manchado e poeirento, a presença de sangue ainda em suas botas. Era uma mulher alta e magra, com linhas de envelhecimento no rosto que lhe davam feições aquilinas e um ar de poderosa dignidade. Leto lembrou seu nome de tropa, Iylyo, que significava “Confiável” no antigo idioma Fremen. Mas a chamou pelo nome materno, Nyshae, Filha de Shae, que estabeleceu o tom de sutil intimidade desse encontro.
— Repouse em uma almofada, Nyshae — ele disse. — Você trabalhou duro.
— Obrigada, Senhor.
Sentou-se na almofada vermelha que Hwi usara. Leto notou as marcas de fadiga em torno da boca de Nyshae, mas os olhos dela permaneciam alertas. Ela olhou para ele, ávida por ouvir suas palavras.
— Tudo está tranqüilo na minha Cidade, uma vez mais — ele disse, sem dar o tom de pergunta e deixando a interpretação para Nyshae.
— Tranqüilo mas não bom, Senhor.
Ele olhou para o sangue nas botas dela.
— E quanto à rua em frente à Embaixada Ixiana?
— Está sendo limpa, Senhor. Os consertos já estão sendo providenciados.
— E a praça?
— Pela manhã, estará como sempre esteve.
O olhar dela permanecia firme em seu rosto. Ambos sabiam que ele ainda não chegara ao motivo dessa entrevista. Todavia, Leto agora identificava uma coisa assomando na expressão de Nyshae.
“Orgulho de seu Senhor!”
Pela primeira vez ela vira o Imperador-Deus matar. E a semente de uma terrível dependência fora plantada. “Se o desastre nos ameaçar, meu Senhor virá.” Era assim que aquilo parecia aos olhos dela. Não mais agiria em completa independência, recebendo seu poder do Imperador-Deus e sendo pessoalmente responsável pelo uso desse poder. Havia algo de possessivo na expressão dela. Uma terrível máquina mortífera esperava ali, esperando que ele chamasse.
Leto não apreciava o que estava vendo, mas o dano já fora causado. Qualquer remédio agora exigiria pressões lentas e sutis.
— De onde os atacantes conseguiram pistolas laser? — indagou ele.
— De nossos próprios depósitos, Senhor. A guarda do Arsenal foi substituída.
“Substituída.” Esse era um eufemismo que possuía certa adequação. As Oradoras Peixes caídas em desgraça eram isoladas e reservadas para o momento em que Leto encontrasse um problema que exigisse a ação de Comandos Suicidas. Elas morreriam felizes, é claro, acreditando que assim expiavam seus pecados. E mesmo o rumor de que essas desesperadas tinham sido enviadas já era suficiente para acalmar os distúrbios.
— O arsenal foi invadido por meio de explosivos? — ele perguntou.
— Explosivos e roubo, Senhor. A Guarda do Arsenal descuidou-se.
— E a fonte dos explosivos?
Parte da fadiga de Nyshae era visível na maneira como ela encolheu os ombros.
Leto só pôde concordar. Sabia que poderia pesquisar e identificar essas fontes, mas isso serviria para muito pouca coisa. Pessoas decididas sempre podiam achar ingredientes para confeccionar explosivos caseiros — coisas comuns como açúcar e alvejantes, fertilizantes e óleo inocentes, plásticos, solventes e extratos da sujeira debaixo de uma pilha de estrume. A lista era virtualmente interminável, crescendo com cada acréscimo ao conhecimento e à experiência humanos. Até mesmo em uma sociedade como aquela que ele havia criado, a qual tentava limitar a adoção de tecnologia e de novas idéias, não havia esperança real de eliminar completamente as armas pequenas que fossem perigosamente violentas. A idéia de controlar tais coisas era uma quimera, um mito perigoso e perturbador. A chave era limitar o desejo da violência. E nesse aspecto essa noite fora um desastre.
“Tanta injustiça nova”, ele pensou.
Como se tivesse ouvido seu pensamento, Nyshae suspirou.
“É claro. As Oradoras Peixes eram treinadas desde a infância para evitarem a injustiça, sempre que possível.”
— Devemos procurar os sobreviventes entre a população — disse ele. — Cuidar para que suas necessidades sejam atendidas. Eles devem ser levados à conscientização de que os Tleilaxu foram os culpados.
Nyshae assentiu com a cabeça. Não havia alcançado o posto de bashar permanecendo ignorante quanto à instrução básica. Por enquanto ela acreditava naquilo. Apenas por ouvir Leto dizer, acreditava na culpa dos Tleilaxu. E havia um sentido prático no seu entendimento. Sabia por que eles não tinham massacrado todos os Tleilaxu.
“Não se devem eliminar todos os bodes expiatórios.”
— E devemos fornecer algum tipo de diversionismo — disse Leto. — Felizmente, pode haver um bem ao nosso alcance. Mandarei chamá-la assim que acabar de conferenciar com Lady Hwi Noree.
— A Embaixadora Ixiana, Senhor? Ela não está implicada na...
— Ela é totalmente inocente — disse ele.
Viu a crença no que dissera estabelecer-se nas feições de Nyshae, uma cobertura de plástico que podia prender-lhe a mandíbula e vidrar-lhe os olhos. “Até mesmo Nyshae.” Ele sabia as razões por que as tinha criado, mas algumas vezes se sentia um pouco assombrado com as suas criaturas.
— Ouço Lady Hwi chegando à minha ante-sala. Mande-a entrar quando você sair. E, Nyshae...
Ela já estava de pé, mas esperou em paciente silêncio.
— Esta noite promovi Kieuemo a sub-bashar — ele disse. — Cuide para que isso se torne oficial. Quanto a você, estou muito satisfeito. Peça e receberá.
Ele viu essa fórmula lançar uma onda de prazer através de Nyshae, mas esta se controlou imediatamente, mostrando uma vez mais seu valor para ele.
— Vou testar Kieuemo, Senhor — ela disse. — Se mostrar-se apta, poderei tirar férias. Há muitos anos não vejo minha família em Salusa Secundus.
— Quando quiser.
E ele pensou: “Salusa Secundus. É claro!”
A referência às origens de Nyshae lembrou-lhe a quem ela se assemelhava: “Harq al-Ada. Ela tem o sangue dos Corrino. Somos parentes mais próximos do que eu pensava.”
— Meu Senhor é generoso — disse ela.
Saiu, então, com uma nova elasticidade em seu andar. Ele ouviu a voz dela na ante-sala:
— Lady Hwi, nosso Senhor irá vê-la agora.
Hwi entrou, iluminada por trás e por um momento emoldurada pelo arco da porta, com passo hesitante, até que seus olhos se ajustaram à iluminação da câmara interior. E ela veio como uma mariposa atraída pelo brilho em torno do rosto de Leto, afastando o olhar apenas para buscar sinais de ferimentos ao longo do corpo mergulhado nas sombras. Ele sabia que não havia sinal visível, mas ainda lhe restavam dores e tremores internos.
Os olhos de Leto detectaram um coxear quase imperceptível, Hwi apoiando-se mais na perna direita, embora um longo vestido de cor verde-jade escondesse o ferimento. Ela parou na beira do declive que abrigava a carreta, olhando diretamente para os olhos dele.
— Disseram que você tinha sido ferida, Hwi. Está sofrendo?
— Um corte na perna abaixo do joelho, Senhor. Um pequeno pedaço de alvenaria arremessado pela explosão. Suas Oradoras Peixes o trataram com uma pomada que tirou a dor. Senhor, temi por sua segurança.
— E eu temi por você, gentil Hwi.
— Exceto quanto à primeira explosão, eu não corri perigo, Senhor. Elas me carregaram para uma sala subterrânea bem no fundo, embaixo da Embaixada.
“Ela não viu o que fiz”, pensou ele. “Posso ser grato por isso.”
— Mandei chamá-la para pedir seu perdão — ele disse.
Ela sentou-se sobre a almofada dourada.
— Que há para ser perdoado, Senhor? O Senhor não é a razão de...
— Estou sendo testado, Hwi.
— O Senhor?
— Existem aqueles que desejam saber até onde vai minha preocupação com a sua segurança, Hwi Noree.
Ela apontou para cima.
— Aquilo... foi por minha causa?
— Por nossa causa.
— Oh, mas quem...
— Você concordou em se casar comigo, Hwi, e eu...
Ergueu a mão para silenciá-la quando ela começou a falar.
— Anteac contou-nos o que você lhe revelou, mas isso não se originou em Anteac.
— Então, quem é...
— O quem não é importante. Mas é importante que você reconsidere. Devo dar-lhe a oportunidade de mudar de opinião.
Ela abaixou seu olhar.
“Como são suaves as suas feições”, ele pensou.
Era-lhe possível criar, apenas na imaginação, a experiência de toda uma vida humana partilhada com Hwi. Havia exemplos suficientes em seu acervo de memórias sobre os quais poderia construir a fantasia de uma vida conjugal. Podia recolher nuanças ao seu capricho — pequenos detalhes de uma experiência mútua, um toque, um beijo, todo aquele doce partilhar do qual se ergue uma coisa de beleza quase dolorosa. Algo que doía nele com uma dor mais profunda que as lembranças físicas de sua violência na Embaixada.
Hwi ergueu o queixo e olhou dentro dos olhos dele. Ele viu uma ânsia apaixonada de ajudá-lo.
— De que outro modo eu poderia servi-lo, Senhor.
Ele se relembrou de que ela ainda era um primata, algo que ele não era mais, não de todo. As diferenças tornavam-se mais profundas a cada minuto.
A dor permanecia dentro dele.
Hwi era uma realidade inescapável, uma coisa tão fundamental que nenhuma palavra poderia expressá-la. A dor dentro dele quase ultrapassava sua capacidade de suportá-la.
— Eu a amo, Hwi. Eu a amo como um homem ama uma mulher... Mas não poderá ser. Nunca.
Lágrimas fluíram dos olhos dela.
— Devo partir? Devo retornar a Ix?
— Eles só iriam magoá-la, tentando descobrir o que saiu errado em seu plano.
“Ela viu a minha dor”, pensou ele. “Ela conhece a frustração e a futilidade. Que irá fazer? Não vai mentir. Não irá dizer que corresponderá ao meu amor como uma mulher em relação a um homem. Conhece a inutilidade. E conhece também seus próprios sentimentos em relação a mim: compaixão, admiração, uma curiosidade que ignora o medo.”
— Então ficarei — disse ela. — Desfrutaremos de tanto prazer quando pudermos obter do fato de simplesmente estarmos juntos. Creio que isto é o melhor que podemos fazer. E se significa que devemos nos casar, então que assim seja.
— Devo então partilhar com você um conhecimento que nunca dividi com outra pessoa. Eu lhe darei um poder sobre mim que...
— Não faça isso, Senhor! E se alguém me forçar a...
— Você nunca mais deixará o meu lar. Meus alojamentos aqui na Cidadela, os lugares seguros do Sareer; este será seu lar.
— Como quiser.
“Como é suave e franca a sua calma aceitação”, pensou Leto. A dor pulsante dentro dele havia se acalmado. Isso em si era um perigo para ele e para o Caminho Dourado.
“Como são espertos os Ixianos!”
Malky notara como os todo-poderosos eram forçados a enfrentar um constante canto da sereia: a atração do autodeleite.
“A constante consciência do poder exercido aos seus menores caprichos.”
Hwi tomou esse silêncio como sinal de incerteza.
— Nós nos casaremos, Senhor?
— Sim.
— Alguma coisa deve ser feita quanto às histórias dos Tleilaxu que...
— Nada.
Ela olhou para ele relembrando a conversa anterior. “As sementes da dissolução já foram plantadas.”
— Temo, Senhor, que eu possa enfraquecê-lo — ela disse.
— Então deve encontrar meios de me fortalecer.
— Como pode fortalecê-lo o fato de diminuirmos a crença no Deus Leto?
Ele pôde notar um sinal de Malky na voz dela, aquele jeito de pesar as coisas que o tornara tão revoltantemente charmoso. “Jamais escapamos aos professores da nossa infância.”
— Sua pergunta pede uma resposta — disse ele. — Muitos continuarão a me adorar de acordo com os meus planos. Outros vão acreditar nas mentiras.
— Senhor... pediria que eu mentisse pelo Senhor?
— É claro que não. Mas lhe peço que fique em silêncio quando poderia falar.
— Mas se eles insultarem.
— Você não protestará.
Uma vez mais as lágrimas rolaram no rosto dela. Leto ansiava por tocá-las, mas elas eram água... dolorosa água.
— Deve ser feito desse modo — concluiu ele.
— Explicará para mim, Senhor?
— Quando eu não mais existir, eles me chamarão de Shaitan, o Imperador de Gehenna. A roda deve girar e girar ao longo do Caminho Dourado.
— Senhor, não seria possível que a ira fosse dirigida apenas contra mim? Eu na....
— Não! Os Ixianos fizeram-na muito mais perfeita do que pensaram. Verdadeiramente a amo. Não posso evitá-lo.
— Não desejo causar-lhe dor! — As palavras pareciam arrancadas com aflição de dentro dela.
— O que está feito está feito. Não vamos chorar.
— Ajude-me a compreender.
— O ódio que vai desabrochar quando eu tiver partido, esse também se apagará num inevitável passado. Um longo tempo vai passar. E então, num futuro muito distante, meus diários serão encontrados.
— Diários? — Ela pareceu chocada com a aparente mudança do assunto.
— Minhas crônicas sobre a minha época. Meus argumentos, minhas justificativas. Existem cópias, e fragmentos dispersos, vão sobreviver, alguns numa forma distorcida, mas os diários originais estarão esperando, esperando e esperando. Eu os escondi muito bem.
— E quando forem descobertos?
— As pessoas então saberão que fui uma coisa bem diferente do que elas supunham.
A voz dela saiu num trêmulo sussurro:
— Eu já sei o que elas vão aprender.
— Sim, minha querida Hwi. Creio que você sabe.
— O senhor não é nem deus, nem diabo, mas uma coisa nunca vista antes e que nunca mais será vista outra vez, pois sua presença elimina tal necessidade.
Ela enxugou as lágrimas do rosto, passando a mão sobre elas.
— Hwi, você compreende como é perigosa?
O alarme mostrou-se em sua expressão, na tensão de seus braços.
— Você tem as marcas de uma santa. E pode compreender como é doloroso encontrar uma santa no lugar errado, na época errada?
Ela sacudiu a cabeça.
— As pessoas precisam ser preparadas para os santos — continuou ele. — De outro modo elas simplesmente se tornam suplicantes, seguidores e mendigos, adoradores enfraquecidos, para sempre abrigados à sombra do seu santo. Elas são destruídas por isso, pois isso produz apenas a fraqueza.
Depois de alguns momentos de meditação, ela assentiu, e então perguntou:
— E existirão santos depois que tiver partido?
— Esse é o propósito do meu Caminho Dourado.
— A filha de Moneo, Siona, será.
— Por enquanto é apenas uma rebelde. Quanto à santidade, deixaremos que ela decida. Talvez faça apenas aquilo para o que foi gerada.
— E o que é, Senhor?
— Pare de me chamar de Senhor — disse ele. — Seremos o Verme e sua esposa. Chame-me de Leto se preferir. Senhor atrapalha.
— Sim L... Leto. Mas o que é...
— Siona foi criada para governar. Existe perigo em tal coisa. Quando você governa, adquire o conhecimento do poder. Isso pode levar a uma impetuosa irresponsabilidade, a dolorosos excessos que podem gerar um terrível destruidor — o hedonismo desenfreado.
— Siona iria...
— Tudo que sabemos a respeito de Siona é que ela pode permanecer dedicada a esse desempenho particular, ao padrão que preenche seus sentidos. Ela é necessariamente uma aristocrata, mas a aristocracia se volta principalmente para o passado. Essa é a falha. Você não enxerga muita coisa de qualquer caminho, a menos que seja como Janus, olhando simultaneamente para trás e para a frente.
— Janus? Oh, sim, o deus com dois rostos opostos. — Ela umedeceu os lábios com a língua. — E você é Janus, Leto?
— Eu sou Janus aumentado 1 bilhão de vezes. Mas sou também algo inferior. Tenho sido, por exemplo, aquilo que meus administradores mais admiram: um responsável por decisões que podem ser levadas a cabo.
— Mas se os decepcionar.
— Eles se voltarão contra mim, é verdade.
— Siona irá substitui-lo se...
— Ah, que enorme se! Você observa que Siona ameaça minha pessoa. Mas ela não ameaça o Caminho Dourado. Existe também o fato de que minhas Oradoras Peixes possuem certa ligação com o Duncan.
— Siona parece... tão jovem.
— E eu sou seu figurão favorito. O impostor que mantém o poder sob falsas afirmações, jamais consultando os desejos do seu povo.
— Eu não poderia falar com ela e...
— Não! Nunca tente persuadir Siona a coisa alguma. Prometa-me isso, Hwi.
— É claro, se me pede, mas eu...
— Todos os deuses têm esse problema, Hwi. Na percepção das necessidades mais profundas, devo freqüentemente ignorar as mais imediatas. E não responder às necessidades imediatas é uma ofensa aos jovens.
— Não poderia argumentar com ela e...
— Nunca tente argumentar com pessoas que sabem que estão certas!
— Mas quando sabe que elas estão erradas...
— Acredita em mim?
— Sim.
— E se alguém tentasse convencê-la de que sou o maior mal de todos os tempos...
— Eu ficaria furiosa. Eu iria... — Ela se interrompeu.
— A razão só é valiosa — ele disse — quando atua sobre o panorama físico, não-verbal, do universo.
Hwi franziu a testa, pensando. Fascinava Leto sentir-lhe o despertar da consciência.
— Ahhh — suspirou ela.
— Nenhuma criatura racional jamais será capaz de negar novamente a experiência de Leto — disse ele. — Vejo sua compreensão despertando. Despertar! É em torno disso que gira toda a vida!
Ela assentiu com a cabeça.
“Sem discussão”, pensou ele. “Quando percebe a trilha, ela a segue para descobrir aonde conduz.”
— Enquanto houver vida, cada fim é um início. Eu vou salvar a humanidade até de si mesma.
Novamente ela assentiu. A trilha ainda conduzia para a frente.
— É por isso que, na perpetuação da humanidade, nenhuma morte pode ser um completo fracasso. É por isso que o nascimento nos toca tão profundamente. E por isso que a morte mais trágica é a morte de um jovem.
— E Ix ainda lhe ameaça o Caminho Dourado. Sempre soube que eles conspiravam para realizar alguma coisa maligna.
“Eles conspiram. Hwi não percebe a mensagem sub-reptícia em suas próprias palavras. Não tem necessidade de ouvi-la.”
Ele olhou para ela cheio de admiração. Hwi possuía uma forma de honestidade que para alguns poderia parecer ingênua, mas que Leto reconhecia como não sendo meramente inconsciente. A honestidade não era o seu núcleo, constituía a própria Hwi.
— Então vou mandar realizar uma exibição na praça amanhã — disse Leto. — Será uma exibição dos Dançarinos Faciais sobreviventes. Depois disso, nosso noivado será anunciado.
Que não reste dúvida de que eu sou uma reunião de meus ancestrais, uma arena na qual eles exercitam meus impulsos. Eles são minhas células e eu sou o corpo deles Esse é o favrashi através do qual eu falo, a alma, o inconsciente coletivo, a fonte dos arquétipos, o repositório de todo trauma e de toda alegria. E sou a escolha do seu despertar. Meu samhadi é o seu samhadi. Suas experiências são minhas. Seu conhecimento destilado é minha herança. Esses bilhões sou eu.
— Os diários roubados
A exibição dos Dançarinos Faciais ocupou quase duas horas do início da manhã e depois veio o anúncio que enviou ondas de choque através da Cidade Festival.
— Faz séculos desde a última vez que ele escolheu uma noiva!
— Mais de mil anos, minha cara.
O desfile das Oradoras Peixes fora breve. Elas o aplaudiram com entusiasmo, mas estavam perturbadas.
“Vocês são minhas únicas noivas”, ele dissera. Não era esse o significado de Siaynoq?
Leto achava que os Dançarinos Faciais haviam representado bem, a despeito de seu óbvio terror. Os trajes tinham sido encontrados nas profundezas de um museu Fremen — mantos negros com capuz, cinturões de corda branca e falcões verdes, de asas abertas, sobre as costas — uniformes dos sacerdotes itinerantes do Muad'Dib. Junto com esses trajes, os Dançarinos Faciais haviam assumido rostos sombrios, cheios de rugas, e executaram uma dança que contava como as legiões do Muad'Dib haviam espalhado a religião delas através do Império.
Hwi, usando um brilhante vestido prateado, com um colar de jade verde, sentara-se ao lado de Leto na Carreta Real durante todo o ritual. Uma única vez ela se inclinou para junto de seu rosto e perguntou:
— Isso não é uma paródia?
— Para mim, talvez.
— E os Dançarinos Faciais sabem disso?
— Suspeitam.
— Então não estão tão assustados quanto parecem.
— Oh, sim, estão assustados. Acontece apenas que eles são mais valentes do que a maioria das pessoas espera que sejam.
— A valentia pode ser tão tola — sussurrou ela.
— E vice-versa.
Ela lhe concedeu um olhar avaliador antes de retornar sua atenção para o espetáculo. Quase 200 Dançarinos Faciais haviam sobrevivido ilesos e todos eles tinham sido reunidos nessa dança. Os intrincados entrecruzamentos e posturas podiam fascinar a assistência. Era possível observá-los e, por algum tempo, esquecer os sangrentos acontecimentos anteriores a esse dia.
Leto lembrou-se disso ao se encontrar sozinho em sua pequena sala de reunião, pouco antes do meio-dia, quando Moneo chegou. Moneo vira a Reverenda Madre Anteac embarcar num transporte ligeiro da Corporação, conferenciara com a Comandante das Oradoras Peixes a respeito da violência da noite anterior e fizera um rápido vôo de ida e volta à Cidadela para se certificar de que Siona estava bem vigiada e não estivera implicada no ataque à Embaixada. Retornara a Onn logo após o anúncio do noivado, não tendo recebido qualquer aviso prévio.
Moneo estava furioso. Leto nunca o vira antes com tanta raiva. Ele entrou às pressas na sala e só parou a dois metros do rosto de Leto.
— Agora vão acreditar nas mentiras dos Tleilaxu! — disse ele.
Leto respondeu num tom amistoso.
— Como persiste essa exigência de que nossos deuses sejam perfeitos. Os gregos eram muito mais razoáveis quanto a essas coisas.
— Onde ela está? — ele quis saber. — Onde é que...
— Hwi está repousando. Foi uma noite difícil e uma longa manhã. Quero que ela esteja bem descansada quando retornarmos à Cidadela, esta noite.
— Como foi que ela conseguiu isso?
— Realmente, Moneo! Será que você perdeu todo o senso de cautela?
— Estou preocupado com o Senhor! Tem idéia do que eles dizendo na Cidade?
— Estou inteiramente consciente dessas histórias.
— Que está fazendo?
— Sabe, Moneo, creio que apenas os velhos panteístas possuíam a idéia certa a respeito das divindades: fracos mortais sob um disfarce imortal.
Moneo ergueu ambos os braços para o céu.
— Eu vi a expressão no rosto deles! — Abaixou os braços. — Isso terá se espalhado por todo o Império em duas semanas.
— Certamente levará mais tempo que isso.
— Se seus inimigos precisavam de uma coisa para uni-los.
— Desonrar o deus é uma antiga tradição humana, Moneo. Por que deveria eu ser uma exceção?
Moneo tentou falar, mas se descobriu incapaz de pronunciar uma palavra. Caminhou ao longo da borda do fosso que continha a carreta, depois caminhou de volta, reassumindo a posição diante do rosto de Leto e olhando furioso para a sua face.
— Se vou ajudá-lo, preciso de uma explicação. Por que fez isso?
— Emoções.
A boca de Moneo formou a palavra sem pronunciá-la.
— Elas vieram a mim quando eu pensava que já as tinha perdido para sempre — disse Leto. — E como são doces estes últimos goles de humanidade.
— Com Hwi? Mas certamente não pode...
— Memórias de emoções nunca são o suficiente, Moneo.
— Está me dizendo que se entrega a uma.
— Entrega? Certamente que não! Mas o tripé sobre o qual gira a Eternidade é composto pela carne, o pensamento e a emoção. Senti que estava reduzido à carne e ao pensamento.
— Ela fez algum tipo de bruxaria — acusou Moneo.
— E claro que fez, e como sou grato a ela por isso. Se negamos a necessidade do pensamento, Moneo, como alguns o fazem, perdemos o poder da reflexão; tornamo-nos incapazes de definir o que nossos sentidos relatam. Se negarmos a carne estaremos desgovernando o veículo que nos transporta. Mas, se negamos a emoção, perdemos todo o contato com o nosso universo interior. E foram as emoções o que eu mais perdi.
— Eu insisto, Senhor, para que...
— Está me deixando zangado, Moneo. Essa é uma emoção.
Leto viu a fúria frustrada de Moneo esfriar, abafada como ferro quente mergulhado em água fria. Mas ainda restava nele um pouco de vapor.
— Não me preocupo por mim, Senhor. Minha preocupação é com o Senhor, e sabe disso.
Leto falou suavemente:
— É a sua emoção, Moneo, e eu a considero muito.
Moneo respirou fundo, trêmulo. Nunca tinha visto seu Imperador-Deus nesse estado de espírito, refletindo essa emoção. Leto parecia ao mesmo tempo exaltado e resignado, se Moneo o estava interpretando corretamente. Não se podia ter certeza.
— Isso é que faz a vida valer a pena — disse Leto. — O que faz a vida cálida e cheia de beleza. É isso que quero preservar, mesmo que me seja negado.
— Então, essa Hwi Noree.
— Ela me lembra de modo pungente o Jihad Butleriano. E a antítese de tudo que é mecânico e não humano. Como é singular, Moneo, que logo os Ixianos, dentre todos os povos, produzissem essa pessoa que incorpora tão perfeitamente as qualidades que eu mais aprecio.
— Não compreendo sua referência ao Jihad Butleriano, Senhor. Máquinas que pensam não possuem lugar no...
— O alvo do Jihad eram as atitudes mecânicas, tanto quanto as próprias máquinas. Os seres humanos criaram aquelas máquinas para usurparem nosso senso de beleza, nossa necessária identidade, a partir da qual fazemos julgamentos vitais. Naturalmente, as máquinas foram destruídas.
— Senhor, ainda me ressinto do fato de dar boas-vindas a uma...
— Moneo! Hwi me tranqüiliza meramente com sua presença. Pela primeira vez em séculos não me sinto solitário, a não ser quando ela está longe de mim. Se eu não precisasse de outra prova de emoção, essa serviria.
Moneo ficou em silêncio, obviamente sensibilizado pela evocação da solidão de Leto. Certamente podia compreender o que significava não poder partilhar as intimidades do amor. Sua expressão revelava isso.
E, pela primeira vez em muito tempo, Leto notou o quanto Moneo estava envelhecido.
“Acontece tão repentinamente com eles”, pensou.
Isso deixou Leto profundamente consciente de o quanto se importava com Moneo.
“Eu não devia deixar que essas ligações emocionais acontecessem comigo, mas não posso evitar... principalmente agora que Hwi está aqui.”
— Eles vão rir do Senhor e fazer piadas obscenas — disse Moneo.
— Isso é bom.
— Como pode ser bom?
— É algo novo. Nossa tarefa sempre foi colocar o novo em equilíbrio e com ele modificar o comportamento, sem comprometer a sobrevivência.
— Mesmo assim, como pode gostar de uma coisa dessas?
— A invenção de obscenidades? Qual é o oposto da obscenidade?
Os olhos de Moneo arregalaram-se num súbito questionamento. Ele já vira a ação de muitas polaridades — uma coisa sendo conhecida pelo seu oposto.
“As coisas destacam-se contra um fundo que as define”, Leto pensou. “Certamente Moneo perceberá isso.”
— É muito perigoso — advertiu Moneo.
“O veredicto final do conservadorismo.”
Moneo não estava convencido. Um profundo suspiro o fez estremecer.
“Preciso me lembrar de que não devo afastar suas dúvidas”, pensou Leto. “Foi assim que falhei na praça, ante minhas Oradoras Peixes. Os Ixianos estão segurando a borda esfarrapada das dúvidas humanas. Hwi é uma evidência disso.”
Uma perturbação soou na ante-sala. Leto selou o portal contra qualquer intrusão impetuosa.
— Meu Duncan chegou — comentou ele.
— Provavelmente já ouviu sobre seus planos de casamento...
— Provavelmente.
Leto percebeu que Moneo lutava com suas dúvidas, seus pensamentos inteiramente transparentes. Naquele momento, Moneo se encaixava tão perfeitamente em seu nicho humano que Leto tinha vontade de abraçá-lo.
“Ele representa todas as variações: confiança e dúvida, amor e ódio... tudo! Todas as qualidades que são desfrutadas no calor de uma emoção, no desejo de se entregar à Vida.”
— Como é que Hwi está aceitando isso? — perguntou Moneo.
Leto sorriu. “Já que Moneo não pode duvidar de mim, tem que duvidar dos outros.”
— Admito que esta não é uma união convencional: ela é primata e eu não o sou mais inteiramente.
Novamente Moneo se debateu com todas as coisas que só podia sentir, mas não expressar.
Observando Moneo, Leto sentia o fluxo de uma consciência observacional, um processo de pensamento que ocorria tão raramente, mas como uma ampliação tão vivida, quando acontecia, que Leto nem se mexia para não causar a menor ondulação no fluxo.
“O primata pensa e, ao pensar, sobrevive. Debaixo desse pensamento existe uma coisa que vem com as células.
É a corrente da preocupação humana para com a espécie: alguma coisa que eles disfarçam, prendem e escondem debaixo de barreiras espessas, mas eu já sensibilizei Moneo deliberadamente para essa atuação do seu eu mais interior. Ele me segue porque acredita que guardo o melhor caminho para a sobrevivência humana. Sabe que existe uma consciência celular. É o que descubro quando esquadrinho o Caminho Dourado. Isso é humanidade e nós dois concordamos: deve permanecer!”
— Onde, quando e como será conduzida essa cerimônia? — perguntou Moneo.
— Não por quê? — notou Leto. Moneo não mais buscava entender o porquê. Retornara ao terreno seguro. Era o majordomo, o diretor da casa do Imperador-Deus, seu Primeiro-Ministro.
“Ele tem nomes, verbos, adjetivos e advérbios com os quais pode agir. As palavras trabalharão para ele ao seu modo habitual. Talvez Moneo jamais vislumbre o potencial transcendente de suas palavras, mas entende bem seus usos mundanos.”
— E quanto à minha pergunta? — insistiu Moneo.
Leto piscou para ele, pensando: “Eu, por outro lado, sinto que as palavras são mais úteis quando me descortinam um vislumbre de lugares atraentes e ainda não descobertos. Mas o uso das palavras é bem pouco compreendido por uma civilização que ainda acredita, sem questionar, num universo mecânico de causas e efeitos absolutos — obviamente redutíveis a uma única causa-raiz e a um efeito primário.”
— Como uma craca, o sofisma Ixiano-Tleilaxu se agarra aos negócios humanos.
— Senhor, perturba-me profundamente quando não presta atenção.
— Mas eu presto atenção, Moneo.
— Não em mim.
— Até mesmo em você.
— Sua atenção vagueia, Senhor. Não precisa ocultar isso de mim: Eu trairia a mim mesmo antes de trair o Senhor.
— Acha que estou sonhando acordado?
— Sonhando o quê, Senhor? — Moneo nunca antes questionara essa palavra, mas agora.
Leto explicou a alusão, pensando: “Quão ancestral!” Os teares e lançadeiras funcionando na memória de Leto. “Pele de animal para trajes humanos... de caçador para pastor... os longos passos ao longo da escada rumo à consciência... e agora eles devem dar outro longo passo, maior ainda que os anteriores.”
— Está se deixando levar por pensamentos fúteis — acusou Moneo.
— Tenho tempo para pensamentos fúteis. Essa é uma das coisas mais interessantes a respeito da minha existência como multidão singular.
— Mas, Senhor, existem assuntos que exigem sua...
— Você ficaria surpreso com o que pode surgir a partir de pensamentos fúteis, Moneo. Nunca me importei de dedicar um dia inteiro a coisas com as quais um ser humano não gastaria nem um minuto. Por que não? Com minha expectativa de vida em torno de 4 mil anos, que é um dia a mais ou a menos? Quanto tempo conta uma vida humana? Um milhão de minutos? Já vivi quase tantos dias quanto isso.
Moneo ficou imóvel, em silêncio, inferiorizado por essa comparação. Sentia sua própria vida reduzida a um cisco no olho de Leto. — E a fonte dessa alusão não lhe passou despercebida.
“Palavras... palavras... palavras...”, pensou Moneo.
— As palavras são quase sempre inúteis em assuntos do coração — disse Leto.
Moneo conteve sua respiração a um mínimo. “O Senhor pode ler pensamentos!”
— Através da nossa história — continuou Leto —, o uso mais poderoso das palavras tem sido o de enlaçar algum acontecimento transcendental, dando a esse acontecimento um lugar nos registros aceitos, explicando esse acontecimento de tal modo que possamos mais tarde usar tais palavras e dizer: “Era isso que significava.”
Moneo sentiu-se derrotado por essas palavras, terrificado pelas coisas implícitas que elas podiam fazê-lo pensar.
— É assim que os acontecimentos se perdem na história — concluiu Leto.
Depois de um longo silêncio, Moneo arriscou:
— Não respondeu a minha pergunta, Senhor. E o casamento?
“Como ele parece cansado”, pensou Leto. “Totalmente derrotado.”
Falou rapidamente:
— Nunca precisei tanto de seus serviços. O casamento deve ser realizado com o maior cuidado. Necessito da precisão de que só você é capaz.
— Onde, Senhor?
“Um pouco mais de vida na voz dele.”
— Na Vila de Tabur, no Sareer.
— Quando?
— Deixo a data por sua conta. Avise quando todas as coisas estiverem prontas.
— E quanto à cerimônia em si?
— Você a conduzirá.
— Vai precisar de assistentes, Senhor? Artefatos de algum tipo?
— Os paramentos do ritual?
— Alguma coisa que eu possa não...
— Não vamos precisar de muita coisa para a nossa pequena charada.
— Senhor! Eu lhe suplico! Por favor...
— Você se colocará ao lado da noiva e a entregará no casamento. Usaremos o ritual dos Antigos Fremen.
— Vai precisar de anéis de água, então.
— Sim! Vou usar os anéis de água de Ghani.
— E quem comparecerá à cerimônia, Senhor?
— Somente uma guarda de Oradoras Peixes e a aristocracia.
Moneo olhou para o rosto de Leto.
— O que... o que meu Senhor chama de aristocracia?
— Você, sua família, o séquito da casa, os cortesãos da Cidadela.
— Minha fam... — Moneo engoliu em seco. — Está incluindo Siona?
— Se ela sobreviver ao teste.
— Mas...
— Ela não pertence à família?
— É claro, Senhor. Ela é uma Atreides e...
— Então inclua Siona!
Moneo tirou de dentro do bolso um minúsculo memogravador, artefato Ixiano preto e desprovido de detalhes, cuja própria existência feria as prescrições do Jihad Butleriano. Um suave sorriso tocou os lábios de Leto. Moneo conhecia seus deveres e iria executá-los.
O clamor de Duncan Idaho, do lado de fora do portal, tornou-se mais estridente, mas Moneo ignorou esse som.
“Moneo conhece o preço dos seus privilégios”, pensou Leto. “É outro tipo de casamento — o casamento entre o privilégio e o dever. E a explicação do aristocrata e sua desculpa.”
Moneo terminou de tomar suas notas.
— Alguns detalhes, Senhor — disse Moneo. — Haverá algum traje especial para Hwi?
— O traje destilador e o manto de uma noiva Fremen, os autênticos.
— Jóias ou outras quinquilharias?
O olhar de Leto fixou-se nos dedos de Moneo, os dedos arranhando o minúsculo gravador, e viu ali a dissolução.
“Liderança, coragem, senso de conhecimento e de ordem Moneo possui tudo isso em abundância. Eles o cercam como uma aura sagrada, mas ocultam de todos os olhos, exceto dos meus, a podridão que o devora por dentro. É inevitável. E se eu partisse ela se tornaria visível para todos.”
— Senhor? — Moneo insistiu. — Está devaneando?
“Ah! Ele gosta da palavra!”
— Isso é tudo — disse Leto. — Apenas o manto, o traje destilador e os anéis de água.
Moneo curvou-se e se afastou.
“Ele está olhando para a frente agora”, Leto pensou. “Mas mesmo essa novidade vai passar. Ele se voltará para o passado uma vez mais. E eu já tive tantas esperanças em relação a ele. Bem... talvez Siona...”
“Não crie heróis”, disse meu pai.
— A voz de Ghanima, Da História Oral
Só pelo modo como Idaho caminhou pela pequena câmara, seus gritos exigindo uma audiência agora recompensados, Leto pôde ver uma importante transformação no ghola: era uma coisa que já se repetira tantas vezes que se tornara profundamente familiar para ele. O Duncan nem mesmo cumprimentara Moneo, que saía. Tudo se encaixava num padrão. E como o padrão se tornara aborrecido!
Leto tinha um nome para essa transformação nos Duncans. Chamava-a de “Síndrome do Desde”.
Os gholas freqüentemente nutriam suspeitas a respeito de coisas secretas que poderiam ter sido desenvolvidas através dos séculos de esquecimento, desde sua última consciência relembrada. O que as pessoas tinham feito durante todo esse tempo? Por que elas poderiam querer a mim, esta relíquia do passado? Nenhum ego poderia dominar tais dúvidas para sempre — especialmente num homem desconfiado.
Um dos gholas acusara Leto:
— O Senhor colocou coisas no meu corpo. Coisas que eu desconheço! Essas coisas no meu corpo lhe dizem tudo o que estou fazendo! Sou espionado por toda parte!
Outro o acusara de possuir “uma máquina manipuladora que nos obriga a fazer tudo o que deseja que façamos”.
Uma vez desencadeada, a “Síndrome do Desde” nunca mais era inteiramente eliminada. Podia ser freada, desviada, mas a semente dormente brotaria à menor provocação.
Idaho parou onde Moneo estivera e havia uma expressão velada, de suspeitas não-especificadas, em seus olhos, na disposição de seus ombros. Leto deixou que a situação fervesse, levando essa condição à consciência. O olhar de Idaho fixou-se no seu, depois se afastou para examinar a sala. Leto reconheceu os sentimentos que havia por trás daquele olhar.
“Os Duncans nunca esquecem.”
Enquanto estudava a disposição da sala, usando os artifícios de percepção que lhe haviam sido ensinados séculos atrás por Lady Jessica e pelo Mentat Thufir Hawat, Idaho começou a perceber um sentimento atordoante de afastamento. Julgou que a sala o rejeitava, cada coisa que havia nela — as almofadas macias: coisas grandes e bulbosas, feitas de ouro verde e de um vermelho que era quase roxo; os tapetes Fremen, cada qual uma peça de museu, dobrando-se um sobre o outro em espessas pilhas em torno do fosso de Leto; a falsa luz solar de um globo luminoso Ixiano, que envolvia o rosto do Imperador num calor seco, tornando as sombras ao redor mais profundas e misteriosas; o cheiro do chá de especiaria, vindo de algum lugar próximo; e aquele rico odor de melange que se irradiava do corpo de verme.
Idaho sentia que muita coisa lhe havia acontecido, e muito rapidamente, desde que os Tleilaxu o tinham abandonado à mercê de Luli e da Amiga naquela despojada cela de prisão.
“Muita coisa... muita coisa...”
“Estarei aqui realmente?”, perguntou-se: “Será que este sou eu? Que pensamentos são esses que eu estou tendo?”
Olhou para o corpo imóvel de Leto, aquela massa enorme e sombria que jazia, silenciosa, na carreta dentro do fosso. A própria imobilidade daquela massa carnuda apenas sugeria energias misteriosas, energias terríveis que poderiam ser liberadas de formas que ninguém mais poderia prever.
Idaho ouvira histórias a respeito da luta na Embaixada Ixiana, mas os relatos das Oradoras Peixes tinham uma aura de intervenção milagrosa que obscurecia os dados físicos.
— Ele caiu voando sobre eles e executou um terrível massacre entre os pecadores.
— Como foi que ele fez isso? — perguntara Idaho.
— Ele era um Deus irado — respondera a informante.
“Irado”, pensou Idaho. “Teria sido por causa da ameaça a Hwi?” As histórias que ele tinha ouvido! Nenhuma era convincente. Hwi casando-se com essa massa... Não era possível! Não a encantadora Hwi, a Hwi de suave delicadeza. “Ele está fazendo algum jogo terrível, está nos testando... nos testando...” Não havia uma realidade honesta nessa época, paz alguma, exceto a presença de Hwi. Tudo mais era insanidade.
Enquanto voltava a atenção para o rosto de Leto — aquela face Atreides esperando em silêncio -, o senso de estar deslocado tornou-se ainda mais forte em Idaho. Começou a imaginar se, por um sutil aumento de esforço mental, ao longo de alguma estranha trilha nova, ele não poderia romper as barreiras fantasmagóricas e relembrar todas as experiências dos outros Ghola Idahos.
“Que será que eles pensavam quando entravam nesta sala? Será que sentiam esta sensação de deslocamento, esta rejeição?”
“Só com um pequeno esforço extra.”
Sentiu-se tonto e imaginou que poderia desmaiar.
— Há algo errado, Duncan? — Era o tom de voz mais calmo e moderado que Leto podia conseguir.
— Não é real — disse Idaho. — Não pertenço a este lugar.
Leto preferiu fazer-se de mal-entendido.
— Mas minha guarda me diz que você veio até aqui por sua própria escolha, que você viajou de tóptero desde a Cidadela e exigiu uma audiência imediata.
— Eu quero dizer aqui, agora! Nesta época!
— Mas eu preciso de você.
— Para quê?
— Olhe à sua volta, Duncan. As maneiras pelas quais você pode me ajudar são tão numerosas que você não poderia realizá-las todas.
— Mas aquelas suas mulheres não me deixam lutar! Cada vez que tento ir para onde está a...
— Está questionando o fato de ser mais valioso vivo do que morto? — Leto fez um som cacarejante, depois disse: — Use a cabeça, Duncan! É isso o que eu valorizo mais.
— E meu esperma? Que valor ele tem?
— O esperma é seu para o colocar onde desejar.
— Não quero deixar para trás viúva e órfãos, da maneira como...
— Duncan! Eu disse que a escolha é sua.
Idaho engoliu em seco:
— Você cometeu um crime contra nós, Leto, um crime contra nós todos: os gholas que ressuscita sem jamais nos perguntar se é isso que desejamos.
Essa era uma novidade em relação ao pensamento dos Duncans. Leto olhou para Idaho com renovado interesse.
— Que crime?
— Oh, eu o ouvi cuspindo profundos pensamentos — acusou Idaho. Apontou o dedo por sobre o ombro, indicando a entrada do aposento. — Sabe que pode ser ouvido lá fora, na ante-sala.
— Quando desejo ser ouvido, sim. (“Mas somente meus diários ouvem tudo!”) Mas gostaria de saber a natureza do meu crime.
— Há um tempo, Leto, um tempo em que você está vivo. O tempo em que você deve estar vivo. Pode haver uma espécie de mágica nesse tempo, algo que você sente enquanto está vivendo nele. E você sabe que nunca mais vai haver uma época como essa.
Leto piscou, sensibilizado pela angústia do Duncan. As palavras eram evocativas.
Idaho elevou ambas as mãos, com as palmas para cima, à altura do peito, um mendigo pedindo uma coisa que ele sabia não poder receber.
— Então... você acorda e relembra sua morte... e relembra os tanques axlotl... e a maldade dos Tleilaxu que despertou você... e se supõe que tudo vá começar de novo. Mas não começa. Nunca é mais o que era. Isso é um crime!
— Eu tirei a mágica?
— Sim!
Idaho deixou as mãos caírem nos lados do corpo e as comprimiu em punhos. Sentia-se arrastado na crista de uma vaga que iria afogá-lo à menor distração.
“E quanto à época?” Leto pensou “Isso também nunca vai acontecer de novo. Mas o Duncan não entenderia a diferença.”
— Que o fez vir correndo desde a Cidadela? — perguntou Leto.
Idaho respirou fundo e então:
— É verdade? Vai se casar?
— É verdade.
— Com essa Hwi Noree, a Embaixadora Ixiana?
— Correto.
Idaho lançou um rápido olhar ao longo do comprimento de Leto.
“Eles sempre procuram os órgãos genitais”, pensou Leto. “Talvez eu devesse ter feito alguma coisa, uma protuberância volumosa para deixá-los chocados.” Sufocou a risada que ameaçava escapar de sua garganta. “Outra emoção ampliada. Obrigado por isso, Hwi. Obrigado, Ixianos.”
Idaho sacudiu a cabeça.
— Mas você...
— Existem outros elementos fortes num casamento, além do sexo — disse Leto.— Vamos ter filhos de nossa própria carne? Não. Mas os efeitos dessa união serão profundos.
— Eu ouvi enquanto estava falando com Moneo — disse Idaho. — Pensei que fosse algum tipo de piada, uma...
— Cuidado, Duncan!
— Realmente a ama?
— Mais profundamente do que qualquer homem jamais amou uma mulher.
— Bem, e quanto a ela? Será que ela.
— Ela sente uma... uma compaixão arrebatadora, uma necessidade de partilhar comigo, de dar o que puder dar. É a natureza dela.
Idaho suprimiu um sentimento de repugnância.
— Moneo está certo. Vão acreditar nas histórias dos Tleilaxu.
— Esse será um dos efeitos profundos.
— E ainda quer que eu... que eu procrie com Siona!
— Você conhece meus desejos. Eu deixo a escolha para você.
— Quem é aquela mulher? Aquela Nayla?
— Você já conheceu Nayla? Ótimo.
— Ela e Siona agem como irmãs. Aquela brutamontes! Que está acontecendo entre elas, Leto?
— O que você gostaria que estivesse acontecendo? E que importância tem isso?
— Nunca conheci uma pessoa tão brutal! Ela me faz lembrar Raban, a Besta. Você nunca saberia que ela é uma mulher se ela não...
— Vocês já se encontraram antes. Conheceu-a como Amiga. — Idaho olhou para ele num rápido silêncio, o silêncio de uma criatura rasteira que sente a aproximação do falcão.
— Então confia nela? — perguntou Idaho.
— Confiar? Que é confiar?
“O momento está chegando”, pensou Leto. Podia ver a coisa se formando nos pensamentos de Idaho.
— Confiança é aquilo que se dá num voto de lealdade — ele disse.
— Como a confiança que existe entre mim e você? — perguntou Leto.
Um sorriso amargo tocou os lábios de Idaho.
— Então é isso que você está fazendo com Hwi Noree? Uma associação, um compromisso de...
— Hwi e eu já confiamos um no outro.
— Confia em mim, Leto?
— Se eu não puder confiar em Duncan Idaho, então em quem mais poderei confiar?
— E se eu não puder confiar em você?
— Então terei pena de você.
Idaho recebeu isso com um choque quase físico. Seus olhos se arregalaram com as obrigações não-verbalizadas. Ele queria confiar. Queria a magica que não viria nunca mais.
Então Idaho indicou que seus pensamentos partiam numa curiosa tangente.
— Eles podem nos ouvir lá na ante-sala?
— Não. (“Mas meus diários ouvem!”)
— Moneo estava furioso. Qualquer um podia ver. Mas saiu como um carneiro dócil.
— Moneo é um aristocrata. Está casado com o dever, com as responsabilidades. Quando se lembra dessas coisas, sua raiva desaparece.
— Então é assim que o controla?
— Ele controla a si mesmo — disse Leto, relembrando como Moneo olhara para cima, depois de tomar notas, não à espera de uma aprovação, mas para estimular seu senso de dever.
— Não — insistiu Idaho. — Ele não se controla. É você que o faz.
— Moneo está preso ao passado por vontade própria. Eu não fiz isso.
— Mas ele é um aristocrata... Um Atreides.
Leto relembrou as feições envelhecidas de Moneo, pensando em como era inevitável que a aristocracia se recusasse a cumprir sua derradeira obrigação — que era sair do caminho e desaparecer na história. Ele teria que ser afastado. E o seria. Nenhum aristocrata jamais superara as exigências de mudança.
Idaho ainda não havia terminado.
— Não é um aristocrata, Leto?
Leto sorriu.
— A derradeira aristocracia morre em mim. — E pensou:
“O privilégio transforma-se em arrogância. A arrogância promove a injustiça. As sementes da ruína desabrocham.”
— Talvez eu não vá ao seu casamento. Nunca me imaginei como um aristocrata.
— Mas você o foi. Foi o aristocrata da espada.
— Paul era melhor — lembrou Idaho.
Leto falou com a voz do Muad'Dib:
— Porque você me ensinou! — Depois voltou ao tom normal: — A tarefa implícita da aristocracia é ensinar, por vezes através de um horrível exemplo.
E ele pensou: “O orgulho do berço leva às fraquezas do casamento consangüíneo e à miséria. Está aberto o caminho para o orgulho da riqueza e das realizações. Entram os novos-ricos, montando no poder como os Harkonnen o fizeram, nas costas do ancient régime.”
O ciclo repetia-se com tamanha insistência que Leto achava que alguém já devia ter percebido como ele se fundira a padrões de sobrevivência de que a espécie já não necessitava, mas nunca perdera.
“Mas não. Ainda carregamos conosco um detrito que devemos eliminar.”
— Existirá alguma fronteira? — perguntou Idaho. — Alguma fronteira onde eu pudesse me perder e nunca mais ser parte disto?
— Se há alguma fronteira, então você deve ajudar-me a criá-la — disse Leto. — Não existe atualmente qualquer lugar para ir aonde outros de nós não possam segui-lo e encontrá-lo.
— Então não me deixaria partir?
— Vá, se quiser. Outros de você tentaram. Digo-lhe que não existe fronteira, nenhum lugar para se esconder. Agora mesmo, como tem sido há muito, muito tempo, a humanidade é como uma criatura unicelular, unida por uma perigosa cola.
— Nenhum planeta novo? Nenhuma estranha...
— Oh, nós crescemos, mas não nos separamos.
— Porque você nos mantém unidos! — acusou ele.
— Não sei se você pode entender isto, Duncan, mas se existe uma fronteira, algum tipo de fronteira, então o que se encontra atrás de você não pode ser mais importante do que o que jaz adiante.
— Você é o passado!
— Não, Moneo é que é o passado. Ele é muito rápido na hora de erguer as tradicionais barreiras aristocráticas contra todas as fronteiras. Você deve entender o poder dessas barreiras. Elas não apenas envolvem os planetas e as terras desses planetas, mas envolvem as idéias. Elas reprimem a mudança.
— Você reprime a mudança!
“Ele não vai se desviar”, pensou Leto. “Mais uma tentativa.”
— O sinal mais seguro de que existe uma aristocracia é a descoberta de barreiras contra a mudança, cortinas de ferro, de aço, pedra ou qualquer substância que exclua o novo, o diferente.
— Sei que deve haver uma fronteira em alguma parte — disse Idaho. — Você a está escondendo.
— Não escondo fronteira alguma. Eu quero fronteiras! Quero surpresas!
“Eles chegam direto ao ponto”, pensou Leto, “e então se recusam a atingi-lo.”
Confirmando essa previsão, os pensamentos de Idaho dispararam em nova trilha.
— Realmente fez com que Dançarinos Faciais se exibissem no seu noivado?
Leto sentiu um impulso de raiva, seguido imediatamente por um prazer perverso ante o fato de poder sentir emoções com tal profundidade. Queria deixar que essa emoção gritasse para o Duncan, mas isso nada resolveria.
— Os Dançarinos Faciais se exibiram — confirmou.
— Por quê?
— Eu queria que todos compartilhassem minha felicidade.
Idaho olhou para ele como se tivesse acabado de descobrir um inseto repelente em sua bebida. Com voz tranqüila, ele disse:
— Essa é a coisa mais cínica que já ouvi um Atreides dizer.
— Mas um Atreides a disse.
— Está deliberadamente tentando me enrolar! Está evitando minha pergunta.
“Outra vez na briga”, pensou Leto. E disse:
— Os Dançarinos Faciais de Bene Tleilaxu são uma colônia de organismos. Individualmente, são híbridos. Essa é uma escolha que eles fazem para e por si mesmos.
Leto esperou, pensando: “Devo ser paciente. Eles precisam descobrir por si mesmos. Se eu disser, não vão acreditar. Pense, Duncan, pense!”
Depois de um longo silêncio, Idaho disse:
— Fiz o meu juramento. Isso é importante para mim. Ainda é importante. Não sei o que você está fazendo nem por quê.
— Foi por isso que voltou da Cidadela?
— Sim.
— Vai voltar para lá agora?
— Que outra fronteira existe?
— Muito bom, Duncan! Sua raiva sabe, mesmo que sua razão não saiba. Hwi vai para a Cidadela esta noite. Eu me juntarei a ela amanhã.
— Gostaria de poder conhecê-la melhor — disse Idaho.
— Você vai evitá-la — disse Leto. — E isso é uma ordem. Hwi não é para você.
— Sempre soube que havia bruxas — disse Idaho. — Sua avó era uma.
Ele virou-se nos calcanhares e, sem pedir permissão para sair, caminhou de volta por onde tinha vindo.
“Como ele parece um menino”, pensou Leto, observando a rigidez nas costas de Idaho. “O homem mais velho do nosso Universo e o mais jovem — ambos num só corpo.”
O profeta não se desvia com ilusões de passado, presente e futuro. A fixação da linguagem determina distinções muito lineares. Os profetas guardam a chave da fechadura que existe na linguagem. A imagem mecânica permanece apenas uma imagem para eles. Este não é um universo mecânico. A progressão linear de eventos é imposta pelo observador. Causa e efeito? Isso não é tudo. O profeta pronuncia as palavras fatídicas. Você vislumbra uma coisa “destinada a ocorrer”. Mas o instante profético libera algo de infinito prodígio e poder. O universo sofre uma mudança fantasmagórica e assim o sábio profeta oculta a realidade por trás de rótulos cintilantes.
O não-iniciado então acredita que a linguagem profética é ambígua. O ouvinte desconfia do mensageiro profético. O instinto lhe diz como a pronúncia embota o poder de tais palavras, e os melhores profetas o levam através de uma cortina e deixam que você olhe por si mesmo.
— Os diários roubados
Leto falou com Moneo usando a voz mais fria que jamais usara.
— O Duncan me desobedece.
Encontravam-se na sala elevada, feita de pedra dourada, no topo da Torre Sul da Cidadela. Era o terceiro dia desde o Festival Decenal de Onn. Um portal aberto ao lado dele revelava a luz implacável do meio-dia no Sareer. O vento fazia um som ululante através da abertura, erguendo poeira e areia, que faziam com que Moneo mantivesse as pálpebras semicerradas. Leto parecia não notar essa irritação. Olhava para o Sareer, onde o ar estava vivo com os movimentos do calor. O distante fluir das dunas sugeria uma mobilidade na paisagem que somente seus olhos observavam.
Moneo encontrava-se imerso nos odores rançosos do seu próprio medo, sabendo que o vento transmitia a mensagem desses odores aos sentidos de Leto. Os preparativos para o casamento tinham perturbado as Oradoras Peixes — tudo era paradoxal, lembrando a Moneo alguma coisa que o Imperador-Deus dissera nos primeiros dias de sua ligação.
“O paradoxo é um indicador que lhe pede para olhar além dele. Se os paradoxos o incomodam, isso revela seu profundo desejo de absolutos. O relativista trata os paradoxos como meramente interessantes, talvez divertidos ou mesmo — que pensamento terrível — educativos.”
— Você não responde — disse Leto. Ele se voltou de sua observação do Sareer e focalizou o peso de suas atenções sobre Moneo.
Moneo só podia encolher os ombros. “Quão próximo estará o Verme?”, perguntou-se. Já reparara que o retorno de Onn para a Cidadela algumas vezes despertava o Verme.
Nenhum sinal daquela horrível mudança no Imperador-Deus se revelara ainda, mas Moneo podia senti-la. Será que o Verme poderia chegar sem aviso?
— Acelere os preparativos para o casamento — disse Leto. — Faça-o acontecer assim que seja possível.
— Antes de testar Siona?
Leto ficou em silêncio por um momento, e então:
— Não. Que vai fazer quanto ao Duncan?
— Que desejaria que eu fizesse, Senhor?
— Eu disse a ele que não fosse ver Noree, que a evitasse. Eu lhe disse que era uma ordem.
— Ela tem simpatia por ele, Senhor, nada mais.
— Por que motivo ela teria simpatia por ele?
— Ele é um ghola, não possui ligação com nossa época, não tem raízes.
— Ele tem raízes tão profundas quanto as minhas!
— Mas ele não sabe disso, Senhor.
— Está discutindo comigo, Moneo?
Moneo recuou meio passo, consciente de que isso não o afastava do perigo.
— Oh, não, Senhor! Mas sempre tento lhe dizer com sinceridade o que realmente acredito estar acontecendo.
— Vou dizer a você o que está acontecendo. Ele a está cortejando.
— Mas é ela que toma a iniciativa dos encontros, Senhor.
— Então você sabia disso!
— Não sabia que fora terminantemente proibido, Senhor.
Leto falou com uma voz meditativa:
— Ele é hábil com as mulheres, Moneo, extraordinariamente hábil. Ele vê dentro da alma delas e as faz realizarem o que quer. Tem sido sempre assim com os Duncans.
— Não sabia que tinha proibido todos os encontros entre eles, Senhor! — A voz de Moneo era quase estridente.
— Ele é mais perigoso que qualquer um dos anteriores. É um sinal dos nossos tempos.
— Senhor, os Tleilaxu ainda não têm pronto um sucessor para ele.
— E nós precisamos deste?
— O Senhor mesmo disse isso. É um paradoxo que não entendo, mas o Senhor disse.
— Quanto tempo até que possa vir um substituto?
— No mínimo um ano, Senhor. Devo indagar-lhes quanto a uma data específica?
— Faça isso hoje.
— Ele pode ouvir a respeito, Senhor. O anterior ouviu.
— Não quero que aconteça desse modo, Moneo!
— Eu sei, Senhor.
— E não me atrevo a falar a respeito disso com Noree. O Duncan não é para ela. E no entanto não posso feri-la! — A última frase foi quase um lamento.
Moneo ficou em silêncio, admirado.
— Não pode perceber isso? — exigiu Leto. — Moneo, ajude-me.
— Percebo que é diferente com Noree. Mas não sei o que fazer.
— Que é diferente? — A voz de Leto tinha um tom penetrante que varou Moneo.
— Falo de sua atitude em relação a ela, Senhor. É diferente de tudo que já vi no Senhor.
Moneo notou os primeiros indícios — um contorcer das mãos do Imperador-Deus, o início de um embaçamento em seus olhos. “Deuses! O Verme está vindo!” Sentia-se totalmente exposto. Uma simples pancada daquele grande corpo o esmagaria de encontro à parede. “Devo apelar para o seu lado humano.”
— Senhor — disse Moneo —, li os relatos e ouvi suas próprias palavras a respeito do seu casamento com sua irmã Ghanima.
— Se ao menos ela estivesse comigo agora — disse Leto.
— Ela nunca foi sua mulher, Senhor.
— Que está sugerindo?
O contorcer das mãos de Leto tornou-se uma vibração espasmódica.
— Ela era... quero dizer, Senhor, que Ghanima era a mulher de Harq al-Ada.
— É claro que era! Todos vocês Atreides descendem deles.
— Há alguma coisa que não me tenha dito, Senhor? Seria possível que... isto é, com Hwi Noree... os Senhores pudessem procriar?
As mãos de Leto tremiam tão fortemente que Moneo se admirava de que ele não percebesse. Os grandes olhos azuis ficaram ainda mais vidrados.
Moneo recuou outro passo em direção às escadarias, que levavam para baixo e para fora desse lugar mortalmente perigoso.
— Não me pergunte quanto a possibilidades — disse Leto, e sua voz parecia sinistramente distante, perdida em algum lugar entre as camadas do passado.
— Nunca mais, Senhor — disse Moneo. Ele se curvou, recuando até ficar a apenas um passo da porta. — Falarei com Noree, Senhor... e com o Duncan.
— Faça o que puder. — A voz de Leto já estava muito distante, naquelas camadas interiores onde apenas ele podia penetrar.
Lentamente Moneo saiu pela porta, fechou-a atrás de si e colocou as costas contra ela, tremendo. “Ah, desta vez foi perto, mais perto que em qualquer outra.”
Mas o paradoxo permanecia. Para onde ele apontaria? Qual seria o significado das estranhas e dolorosas decisões do Imperador-Deus? Que teria atraído o Verme Que Era Deus?
Um som pulsante soou de dentro do ninho de Leto, uma batida surda contra a pedra. Moneo não se atreveu a abrir a porta para investigar. Afastou-se da superfície que refletia aquela pavorosa batida e desceu as escadarias com cautela, não se atrevendo a respirar normalmente até alcançar o solo e a guarda Oradora Peixe que lá esperava.
— Ele está perturbado? — perguntou ela, olhando escada acima.
Moneo assentiu. Ambos podiam ouvir as pancadas perfeitamente.
— Que o perturba? — perguntou a guarda.
— Ele é Deus e nós somos mortais — disse Moneo.
Essa era uma resposta que geralmente satisfazia as Oradoras Peixes, mas agora novas forças se encontravam em ação.
Ela olhou diretamente para ele e Moneo viu o treinamento, homicida a ponto de emergir em suas feições suaves. Era uma mulher relativamente jovem, com cabelos castanhos-avermelhados, rosto geralmente dominado por um nariz arrebitado e por lábios grossos, mas agora seus olhos eram duros e indagadores. Somente um tolo daria as costas àquele olhar.
— Eu não o perturbei — disse Moneo.
— É claro que não — concordou ela. Sua expressão suavizou-se um pouco. — Mas gostaria de saber quem ou o que o fez.
— Creio que ele está impaciente com seu casamento — disse Moneo. — Acho que isso é tudo.
— Então antecipe a data! — disse ela.
— É exatamente isso que eu vou fazer.
Moneo virou-se e saiu apressado pelo corredor em direção à sua própria área da Cidadela. Deuses! As Oradoras Peixes estavam se tornando tão perigosas quanto o próprio Imperador-Deus.
“Aquele estúpido Duncan! Colocou-nos a todos em perigo. E Hwi Noree! Que deve ser feito com relação a ela?”
O padrão das monarquias e sistemas semelhantes contém uma mensagem de valor para todas as formas políticas. Minhas memórias asseguram-me que governos de todo o tipo podem lucrar com essa mensagem. Os governos só podem ser úteis aos governados enquanto são restritas as tendências inerentes no sentido de uma tirania. As monarquias possuem algumas boas qualidades. Podem reduzir o tamanho e a natureza parasitária da burocracia. Podem tomar decisões rápidas, quando necessário. Encaixam-se numa necessidade humana ancestral (tribal/feudal) de hierarquia paternalista, onde cada pessoa conhece seu lugar. É valioso conhecer o seu lugar, mesmo que esse lugar seja temporário. É exasperante ser mantido numa posição contra a vontade. É por isso que eu ensino a respeito da tirania da melhor maneira que posso — através do exemplo. Mesmo que vocês estejam lendo estas palavras após a passagem de éons, minha tirania não terá sido esquecida. Meu Caminho Dourado assegura isso! E, conhecendo minha mensagem, espero que vocês sejam extraordinariamente cuidadosos quanto aos poderes que delegam a qualquer governo.
— Os diários roubados
Leto preparou-se com paciente cuidado para seu primeiro encontro com Siona desde que ela fora banida, na infância, para as escolas de Oradoras Peixes da Cidade Festival. Ele disse a Moneo que iria vê-la na Pequena Cidadela, uma torre de observação que havia construído no Sareer central. O lugar fora escolhido para proporcionar a visão do antigo, do novo e dos lugares intermediários. Não havia estradas para a Pequena Cidadela. Os visitantes chegavam de tóptero. Leto ia para lá como que por mágica.
Com as próprias mãos, nos primeiros dias de sua ascensão, Leto usara uma máquina Ixiana para escavar um túnel secreto sob o Sareer, até sua Torre, fazendo todo o trabalho ele mesmo. Naqueles dias, uns poucos vermes da areia selvagens ainda vagavam pelo deserto. Ele revestira o seu túnel com paredes maciças de sílica fundida e inscrutara incontáveis bolhas de água em suas camadas exteriores para repelir os vermes. O túnel antecipara seu crescimento máximo e as exigências de uma Carreta Real que, até então, fora apenas um fragmento de suas visões.
Nas horas anteriores à aurora do dia dedicado a Siona, Leto desceu para a cripta e deu ordens à guarda para que não fosse perturbado por ninguém. Sua carreta correu através de um dos aros escuros da cripta, onde ele abrira um portal oculto, emergindo na Pequena Cidadela menos de uma hora depois.
Uma de suas maiores delícias era sair sozinho para a areia. Sem carreta, apenas seu corpo pré-verme para carregá-lo. A areia o roçava de modo deliciosamente sensual e o calor provocado por sua passagem através das dunas, à primeira luz da aurora, lançava uma esteira de vapor que lhe exigia continuar em movimento. Parou apenas ao encontrar um bolsão relativamente seco, a uns cinco quilômetros de distância. Deixou-se ficar lá, no centro de uma inconfortável umidade deixada pelo orvalho residual, o corpo bem do lado de fora da sombra projetada pela torre, a qual se estendia para ele a partir do leste, através das dunas.
Dessa distância, os 3 mil metros de altura da torre podiam ser vistos como uma agulha impossível golpeando o céu. Somente a união inspirada dos comandos de Leto e da imaginação Ixiana haviam tornado viável essa estrutura. Com 150 metros de diâmetro, a torre acomodava-se sobre fundações que mergulhavam tão profundamente na areia quanto ela se erguia acima. A mágica do plasteel e das ligas superleves mantinham-na flexível ao vento e resistente à ação abrasiva da areia.
Leto gostava tanto desse lugar que racionava suas visitas, organizando uma longa relação de regras pessoais que tinham de ser preenchidas. As regras resumiam-se numa “Grande Necessidade”.
Por alguns momentos, enquanto estava lá, ele pôde libertar-se de algumas cargas do Caminho Dourado. Moneo, o bom e confiável Moneo, cuidaria para que Siona chegasse bem ao cair da noite, e Leto teria um dia inteiro para relaxar e pensar. Para brincar e fingir que não tinha preocupações, para beber o alimento bruto da terra num frenesi de apetite que ele nunca se poderia permitir em Onn ou na Cidadela. Naqueles lugares, ele estava confinado a mergulhos furtivos através de passagens estreitas, tendo apenas a cautela presciente para o impedir de topar com bolsões de água. Aqui, entretanto, podia correr através da areia e por dentro dela, alimentar-se e se sentir forte.
A areia esmagou-se abaixo dele enquanto ele rolava, flexionando o corpo num puro gozo animal. Podia sentir seu lado verme sendo restaurado, uma sensação elétrica que enviava mensagens de saúde através dele.
O sol encontrava-se agora bem acima do horizonte, pintando uma linha dourada sobre um dos lados da torre. Havia o cheiro de poeira no ar e o odor de distantes plantas espinhudas que haviam respondido aos vestígios de orvalho na manhã. Suavemente a principio, depois com mais rapidez, ele descreveu um largo círculo em torno da Torre, pensando em Siona enquanto o fazia.
Não podiam ocorrer mais atrasos. Ela tinha de ser testada, e Moneo sabia disso tanto quanto Leto.
Ainda naquela manhã, Moneo dissera:
— Senhor, existe uma violência terrível guardada dentro dela.
— Ela está começando a se viciar em adrenalina — dissera Leto. — É hora do escaldamento.
— Hora do quê, Senhor?
— É uma expressão muito antiga. Significa que Siona deve ser submetida a uma privação completa. Deve passar pelo choque da carência.
— Oh... percebo.
Ao menos dessa vez, Leto notou que Moneo estava mesmo vendo. Ele passara pelo seu escaldamento.
— Os jovens são geralmente incapazes de tomar decisões difíceis, a menos que essas decisões estejam associadas à violência imediata e ao conseqüente fluxo de adrenalina — explicara Leto.
Moneo mantivera-se num silêncio reflexivo, relembrando então:
— É um grande perigo.
— Essa é a violência que está vendo em Siona. Até mesmo as pessoas mais velhas podem prender-se a ela, mas os jovens se entregam.
Enquanto circundava a Torre à luz crescente do dia, apreciando ainda mais a sensação que a areia lhe proporcionava na medida em que ia secando, Leto pensava a respeito dessa conversa. Diminuiu a velocidade de sua passagem através da areia e o vento atrás dele trouxe às suas narinas humanas o cheiro do oxigênio exalado e o odor do pó de pedra aquecido. Ele inalou profundamente, erguendo sua consciência ampliada até outro nível.
Esse dia preliminar tinha um propósito múltiplo. Ele pensava no encontro que se avizinhava da maneira como um antigo toureiro teria julgado seu primeiro exame do adversário chifrudo. Siona possuía sua própria versão dos chifres, embora Moneo pudesse certificar-se de que ela não traria armas físicas para esse encontro. No entanto, Leto tinha de estar certo de conhecer cada força e cada fraqueza de Siona. E teria de criar suscetibilidades especiais sobre ela sempre que fosse possível. Ela precisava ser preparada para o teste, seus músculos psíquicos paralisados por grampos bem plantados.
Pouco depois do meio-dia, seu lado verme saciado, Leto retornou à torre, arrastou-se para cima de sua carreta e se ergueu nos suspensores até o ápice, onde um portal se abria apenas ao seu comando. Pelo resto do dia ele ficou lá naquele ninho, pensando, tramando.
O esvoaçar das asas de um ornitóptero, sussurrando no ar logo ao cair da noite, assinalou a chegada de Moneo.
“Fiel Moneo.”
Leto fez com que a plataforma de pouso se estendesse de seu ninho e o tóptero deslizou para ela com as asas em concha, pousando suavemente. Ele olhou através da escuridão que se adensava. Siona emergiu e correu em direção a ele, temerosa dessa altura desprotegida. Usava um manto branco sobre um uniforme negro sem insígnias. Deu um rápido olhar para trás ao parar na entrada da torre e então voltou sua atenção para Leto, que esperava na carreta, bem no centro do ninho. O tóptero decolou, mergulhando na escuridão. Leto deixou o portal aberto e a plataforma estendida.
— Existe uma sacada do outro lado da torre — ele disse. — Iremos para lá.
— Por quê?
A voz de Siona era pura suspeita.
— Disseram-me que é um lugar frio. E de fato há uma sensação de frio em minha face quando eu a exponho à brisa deste lugar.
A curiosidade a trouxe mais para perto dele.
Leto fechou o portal atrás dela.
— A visão noturna desta sacada é magnífica — disse Leto.
— Por que estamos aqui?
— Porque aqui não seremos ouvidos.
Ele virou-se em sua carreta e se deslocou silenciosamente para a sacada. Uma fraca iluminação oculta dentro do ninho revelava seus movimentos. Ouviu que ela o seguia.
A sacada era um meio anel no arco sudeste da torre, com um etéreo balaústre correndo à altura do peito em torno do perímetro. Siona caminhou até o balaústre e olhou em volta para aquela extensão de terra.
Leto sentiu sua receptividade expectante. Alguma coisa seria dita ali, e somente para os ouvidos dela. O que quer que fosse ela iria ouvir e responderia a partir do poço de seus próprios motivos. Leto olhou por sobre ela em direção à extremidade do Sareer, onde a muralha artificial de sua fronteira não passava de uma linha chata e baixa vista dali, quase invisível à luz da Primeira Lua que se erguia sobre o horizonte. Ele ampliou sua visão, identificando o distante movimento de um comboio vindo de Onn, o brilho baço das luzes de veículos de tração animal caminhando ao longo da estrada elevada em direção à Vila de Tabur.
Podia relembrar em sua memória a imagem do vilarejo aninhado entre as plantas que cresciam numa área úmida ao longo da base interior da muralha. Seus Fremen de Museu cultivavam tamareiras, altas gramíneas e até mesmo hortas por lá. Não era como nos velhos tempos, quando qualquer lugar habitado, até mesmo uma minúscula depressão com algumas plantas rasteiras alimentadas por uma única cisterna dotada de armadilha de vento, poderia parecer luxuriante quando comparada com as areias sem fim. A Vila de Tabur era um paraíso em comparação com o Sietch Tabr. Todos no vilarejo sabiam que bem além da muralha da fronteira do Sareer se encontrava o rio Idaho, deslizando para o Sul numa longa linha reta que estaria prateada agora, à luz da lua. Os Fremen de Museu não podiam subir à íngreme face da muralha, mas sabiam que a água estava lá. A terra sabia também. Se um habitante de Tabur colocasse o ouvido contra o solo, ouviria a terra lhe falando com o som de distantes corredeiras.
Haveria pássaros noturnos ao longo da barragem agora, pensou Leto, criaturas que viveriam sob a luz do sol em qualquer outro mundo. Duna exercera sua magia evolutiva sobre eles, que ainda viviam à mercê do Sareer. Leto vira os pássaros lançarem sombras fracas sobre a água e, quando eles mergulhavam para beber, produziam ondulações que o rio apagava.
Mesmo a essa distância, Leto sentia o poder da água longínqua, uma coisa vigorosa vinda de seu passado, que se afastava dele como a corrente fluindo para o sul nas extensões de fazendas e florestas. A água descia através de colinas ondulantes, ao longo das margens de uma abundante vida vegetal que substituíra todo o deserto de Duna, exceto por esse último lugar, esse Sareer, esse santuário do passado.
Leto lembrava-se do impulso rosnante das máquinas Ixianas que haviam imposto à paisagem esse curso de água. Parecia ter sido pouco tempo atrás, pouco mais de 3 mil anos.
Siona remexeu-se e olhou para trás, mas Leto permanecia em silêncio, sua atenção fixa além dela. Uma pálida luz de cor âmbar brilhava acima do horizonte, reflexo de uma cidade em nuvens distantes. Pela direção e pela distância, Leto sabia ser a cidade de Wallport, transplantada para um clima mais quente, ao sul de sua antiga e austera localização, sob a fria e enviezada luz do norte. O brilho da cidade era como uma janela para o passado. Ele sentia um raio daquela luz golpeando através de seu peito, ultrapassando a espessa e escamosa membrana que lhe substituíra a pele humana.
“Eu sou vulnerável”, pensou.
E no entanto sabia ser o senhor desse lugar. E o planeta era o senhor dele.
“Eu sou parte dele.”
Ele devorava o solo diretamente, rejeitando apenas a água. Sua boca e seus pulmões humanos haviam sido relegados a respirarem apenas o suficiente para sustentar o vestígio de humanidade que lhe restava... e para falar.
Leto disse para Siona, que estava de costas:
— Gosto de falar e tenho horror ao dia em que não mais serei capaz de manter uma conversa.
Com certa desconfiança, ela se voltou, olhando para ele à luz do luar, um desgosto muito óbvio em sua expressão.
— Concordo em que, aos olhos de muitos humanos, eu sou um monstro.
— Por que estou aqui?
“Direto ao ponto!” Ela não se desviaria. A maioria dos Atreides tinha sido assim, ele pensou. Era uma característica que procurava manter ao fazê-los procriar. Revelava um forte senso de identidade interior.
— Preciso descobrir o que o Tempo fez com você — ele disse.
— Por que precisa saber disso?
“Há um pouco de medo na voz dela”, pensou ele. “Pensa que vou interrogá-la a respeito de sua tola rebelião e dos nomes de seus companheiros sobreviventes.”
Como ele permanecesse quieto, ela perguntou:
— Pretende me matar do modo como matou meus amigos?
“Então ela ouviu a respeito da luta na Embaixada. E presume que eu sei tudo a respeito de suas antigas atividades na rebelião. Moneo andou instruindo-a, maldito! Bem... eu teria feito o mesmo em tais circunstâncias.”
— Você é realmente um deus? — perguntou ela. — Não entendo por que meu pai acredita nisso.
“Ela tem algumas dúvidas”, pensou ele. “Ainda disponho de espaço para manobrar.”
— As definições variam — respondeu ele. — Para Moneo eu sou um deus... e isso é uma verdade.
— Um dia você foi humano.
Ele começou a apreciar os saltos da inteligência de Siona. Ela tinha aquela curiosidade segura que era a marca dos Atreides.
— Você está curiosa quanto a mim — ele disse. — o mesmo comigo: estou curioso quanto a você.
— Que o faz pensar que estou curiosa?
— Você costumava me observar cuidadosamente quando era criança. Vejo o mesmo olhar em seus olhos esta noite.
— Sim, tenho imaginado como é ser como você.
Ele a observou por um momento, notando como a luz do luar desenhava sombras sobre os olhos dela, ocultando-os. Podia imaginar que os olhos de Siona fossem de azul total como os seus, o azul do vício da especiaria. Com esse acréscimo imaginário, Siona guardava curiosa semelhança com sua irmã Ghani, morta há muito tempo. Eram os contornos do rosto dela e a disposição de seus olhos. Quase disse isso a Siona, depois achou melhor não fazê-lo.
— Você come comida humana? — perguntou ela.
— Por longo tempo, depois que coloquei a pele da truta da areia, senti meu estômago com fome. Ocasionalmente, tentava ingerir alimento. Meu estômago geralmente o rejeitava. Os cílios da truta da areia propagavam-se por toda parte em minha carne humana. Comer tornou-se uma coisa incômoda. Atualmente, costumo ingerir apenas substâncias secas que por vezes contêm um pouquinho de especiaria.
— Você... come melange?
— Às vezes.
— Mas não possui mais apetites humanos?
— Eu não disse isso.
Ela olhou para ele com expectativa.
Leto admirava o modo como ela deixava que as questões não respondidas funcionassem em seu favor. Ela era brilhante e aprendera muito em sua curta vida.
— A fome do estômago era um sentimento terrível, uma dor que eu não conseguia aliviar. Então eu corria, corria pelas dunas como uma criatura insana.
— Você... corria?
— Minhas pernas eram mais longas em relação ao meu corpo naqueles dias. Eu podia caminhar com muita facilidade. Mas a dor da fome nunca me abandonava. Creio que era a fome da minha humanidade perdida.
Ele notou nela o início de uma simpatia relutante, o questionamento.
— Ainda sente essa... dor?
— Agora é apenas uma ligeira ardência. Esse é um dos sinais de minha metamorfose final. Dentro de mais alguns séculos terei voltado para a areia.
Ele viu os punhos dela se contraírem.
— Por quê? — ela exigiu saber. — Por que fez isso?
— Essa mudança não é de todo ruim. Hoje, por exemplo, está muito agradável. Sinto-me bem jovial.
— Há mudanças que não podemos ver — ela disse. — Sei que deve haver. — Relaxou as mãos.
— Minha visão e minha audição tornam-se extremamente agudas, mas não o meu tato. Exceto pelo rosto, não sinto as coisas do modo como sentia outrora. Isso me faz falta.
Novamente ele notou nela a simpatia relutante, um impulso em direção a uma compreensão empática. Ela queria saber!
— Quando se vive tanto tempo — ela disse -, como se sente a passagem do Tempo? Será que ele se acelera à medida que os anos passam?
— Essa é uma coisa estranha, Siona. O Tempo às vezes passa correndo por mim, às vezes se arrasta.
Gradualmente, à medida que conversavam, Leto foi diminuindo a iluminação oculta de seu ninho e movendo a carreta para mais perto de Siona. Agora ele desligou as luzes, deixando apenas a lua. A frente de seu carro projetava-se da sacada, seu rosto a apenas dois metros de Siona.
— Meu pai me disse que, quanto mais velho você se torna, mais lentamente o tempo passa. Foi isso que disse a ele?
“Testando a veracidade das minhas palavras”, pensou ele. “Então ela não é uma reveladora da verdade.”
— Todas as coisas são relativas, mas, comparado ao sentido humano do tempo, isso é verdade.
— Por quê?
— Tem relação com aquilo em que me tornei. No fim, o Tempo vai parar para mim e eu estarei congelado como uma pérola apanhada no gelo. Meus novos corpos se dispersarão, cada qual com uma pérola oculta em seu interior.
Ela virou-se, olhando na direção oposta a ele, perscrutando o deserto e falando sem olhar para trás.
— Quando falo com você aqui na escuridão, quase consigo esquecer quem você é.
— Foi por isso que escolhi esta hora para o nosso encontro.
— Mas por que este lugar?
— Porque é o último lugar em que posso me sentir em casa.
Siona virou as costas para o balaústre, apoiando-se nele e olhando para Leto.
— Quero vê-lo.
Ele acendeu todas as luzes do ninho, inclusive os ofuscantes globos luminosos brancos ao longo da borda exterior do teto da sacada. À medida que as luzes se acendiam, um escudo transparente Ixiano escorregava para fora de um recesso na parede e fechava a sacada atrás de Siona. Ela sentiu aquilo mover-se atrás dela e se espantou, mas assentiu como se entendesse. Pensava que aquilo fosse uma defesa contra um ataque qualquer. Não era, servia apenas para evitar os insetos noturnos.
Siona olhou para Leto, percorrendo o corpo dele com o olhar, parando nos tocos que tinham sido suas pernas, voltando então a atenção para os braços e as mãos, para o rosto.
— Suas histórias oficiais nos dizem que todos os Atreides são descendentes de você e de sua irmã Ghanima. A História Oral discorda.
— A História Oral está correta. Seu ancestral foi Harq al-Ada. Ghani e eu nos casamos apenas no nome, um movimento para consolidar o poder.
— Como o seu casamento com essa mulher Ixiana?
— Isto é diferente.
— Vai ter filhos com ela?
— Nunca fui capaz de ter filhos. Escolhi esta metamorfose antes que isso fosse possível.
— Você era uma criança e então — ela apontou — virou isto?
— Nada entre as duas coisas.
— Como uma criança sabia o que escolher?
— Eu era uma das crianças mais velhas que o universo já viu. Ghani era a outra.
— Aquela história sobre suas memórias ancestrais!
— Uma história verdadeira. Estamos todos aqui. A História Oral não concorda?
Ela virou-lhe as costas e ficou rígida. Uma vez mais, Leto sentiu-se fascinado por este gesto humano: a rejeição unida à vulnerabilidade. Daí a pouco ela se voltou, concentrando seu olhar nas feições dentro das dobras do capuz de truta da areia.
— Você tem a aparência dos Atreides — ela disse.
— Cheguei a essa conclusão tão honestamente quanto você.
— Você é tão velho, por que não tem rugas?
— Nada com relação à minha parte humana envelhece do modo habitual.
— Foi por isso que fez essa coisa consigo mesmo?
— Para ter vida longa? Não.
— Não vejo por que motivo alguém poderia fazer tal escolha — murmurou ela. E depois, mais alto: — Jamais conhecer o amor...
— Você está bancando a tola! — ele disse. — Não quer dizer amor, quer dizer sexo.
Ela encolheu os ombros.
— Pensa que a coisa mais importante a que renunciei foi o sexo? Não, a maior perda foi algo muito diferente.
— O quê? — indagou ela com relutância, traindo quão profundamente isso a sensibilizava.
— Não posso caminhar entre meus semelhantes sem que eles notem. Eu não sou mais um de vocês. Estou sozinho. Amor? Muitas pessoas me amam, mas minha forma nos mantém afastados. Estamos separados, Siona, por um abismo que nenhum outro humano se atreve a cruzar.
— Nem a sua mulher Ixiana?
— Sim, ela o faria se pudesse, mas não pode. Não é uma Atreides.
— Quer dizer que eu... poderia? — Ela tocou o peito com o dedo.
— Se houvesse uma quantidade suficiente de trutas da areia por aí. Infelizmente, todas elas envolvem a minha carne. Se eu morresse, contudo...
Ela sacudiu a cabeça horrorizada com o pensamento.
— A História Oral diz a verdade — ele disse. — E nunca devemos nos esquecer de que você acredita na História Oral.
Ela continuou a sacudir a cabeça de um lado para o outro.
— Não há qualquer segredo quanto a isso — disse ele. — Os primeiros momentos da transformação é que são críticos. Sua consciência deve mergulhar para dentro e para fora simultaneamente, tornando-se una com o Infinito. Eu poderia fornecer-lhe suficiente melange para que conseguisse isso. Dada uma quantidade suficiente de especiaria, você pode sobreviver àqueles terríveis primeiros momentos... e a todos os outros momentos.
Ela estremeceu incontrolavelmente, seu olhar fixo nos olhos dele.
— Sabe que estou lhe dizendo a verdade, não sabe?
Ela assentiu com a cabeça e inspirou fundo de modo trêmulo. Depois perguntou:
— Por que fez isso?
— A alternativa era muito mais terrível.
— Que alternativa?
— Com o tempo, você poderá entendê-la, tal como Moneo a entendeu.
— Seu maldito Caminho Dourado!
— Maldito não. Muito sagrado.
— Pensa que sou uma tola que não pode...
— Penso que lhe falta experiência, mas que possui uma grande capacidade de cujo potencial nem mesmo você suspeita.
Ela respirou fundo três vezes e então recuperou um pouco da compostura.
— Se não pode unir-se sexualmente à Ixiana, então...
— Criança, por que insiste em não me entender? Não se trata de sexo. Antes de Hwi eu não tinha com quem formar um par. Não havia ninguém como eu. Em todo o vazio cósmico, eu era único.
— Ela é... como você?
— Deliberadamente. Os Ixianos a fizeram desse modo.
— Fizeram-na.
— Não seja uma idiota completa! — retrucou ele. — Ela é a essência da armadilha para deuses. Mesmo a vítima não pode rejeitá-la.
— Por que me diz essas coisas? — sussurrou ela.
— Você roubou duas cópias dos meus diários — ele disse. — Você leu as traduções da Corporação e já sabe o que poderia me apanhar.
— Então sabia?
Ele viu o atrevimento retornar ao olhar dela, um sentimento de seu próprio poder.
— É claro que você sabia — ela disse, respondendo sua própria pergunta.
— Era o meu segredo — ele disse. — Não imagina quantas vezes eu amei um companheiro e vi esse companheiro me escapar... como seu pai está me escapando agora.
— Você... o ama?
— E amei sua mãe. Algumas vezes eles se vão rapidamente, outras vezes com agonizante lentidão. A cada vez eu fico destroçado. Posso bancar o empedernido e tomar as decisões necessárias, mesmo decisões que causam a morte, mas não posso escapar ao sofrimento. Por muito, muito tempo — aqueles diários que roubou dizem a verdade —, essa foi a única emoção que conheci.
Ele viu a umidade nos olhos dela, mas a linha do maxilar ainda revelava uma decisão firme.
— Nada disso lhe dá o direito de governar.
Leto suprimiu um sorriso. Finalmente alcançavam a raiz da rebelião de Siona.
“Por que direito? Onde está a justiça em meu governo? Ao impor minhas leis sobre eles, usando o peso do braço das Oradoras Peixes, estarei sendo justo para com o impulso evolutivo da humanidade? Conheço todo o cântico da evolução, a ladainha e as frases de efeito.”
— Em nenhum lugar você vê sua mão rebelde no poder que eu mantenho — disse ele.
A juventude dela ainda exigia o seu momento.
— Nunca o escolhi para me governar — disse ela.
— Mas você me dá forças.
— Como?
— Opondo-se a mim. Eu afio minhas garras em gente como você.
Ela deu uma rápida olhada nas mãos dele.
— Figura de linguagem — explicou ele.
— Assim, finalmente o ofendi — ela disse, ouvindo apenas a raiva nas palavras e no tom de voz.
— Você não me ofendeu. Somos parentes e podemos falar asperamente um com o outro dentro da família. O fato é que eu tenho mais a temer de você do que você de mim.
Isso a deixou desconcertada, mas apenas por um momento. Ele viu a crença enrijecer-lhe os ombros, e então a dúvida. Ela abaixou o queixo e olhou para cima em direção a ele.
— O que o Grande Deus Leto poderia temer de mim?
— Sua violência ignorante.
— Está me dizendo que é fisicamente vulnerável?
— Não vou avisá-la de novo, Siona. Há limites aos jogos de palavras que podemos fazer. Você e os Ixianos sabem que aqueles a quem amo é que são fisicamente vulneráveis. Logo, a maior parte do Império vai saber disso. É o tipo de informação que viaja com rapidez.
— E todos se perguntarão que direito tem de governar!
Havia uma satisfação na voz dela que fez subir em Leto uma raiva abrupta. Achou difícil controlá-la. Esse era um lado das emoções humanas que ele detestava. Rigozijar-se com a desgraça alheia. Demorou algum tempo antes que ele se atrevesse a responder, e então resolveu golpear através das defesas dela até atingir a parte vulnerável que já tinha visto.
— Eu governo pelo direito da solidão, Siona. Minha solidão é em parte liberdade e em parte escravidão. Ela diz que não posso ser comprado por nenhum grupo humano. Minha escravidão a vocês diz que servirei a todos com o melhor das minhas habilidades.
— Mas os Ixianos o pegaram! — ela disse.
— Não, eles me deram uma dádiva que me fortalece.
— Ela o enfraquece!
— Isso também — admitiu ele. — Mas forças muito poderosas ainda me obedecem.
— Oh, sim — concordou ela. — Eu entendo isso.
— Você não entende.
— Então tenho certeza de que vai me explicar — desafiou ela.
Ele falou tão suavemente que ela teve de se inclinar para mais perto dele a fim de ouvir.
— Não existem outros, de espécie alguma, em parte alguma, que possam me atrair para coisa alguma — para compartilhar alguma coisa, para assumir compromissos ou mesmo para a menor tentativa de criar outro governo. Eu sou único.
— Nem mesmo essa mulher Ixiana pode...
— Ela é tão semelhante a mim que não me enfraqueceria desse modo.
— Mas quando a Embaixada Ixiana foi atacada...
— Ainda posso ser irritado pela estupidez.
Ela olhou zangada, franzindo a testa.
Leto julgou ser esse um bonito gesto naquela situação, inteiramente inconsciente. Sabia que a tinha feito pensar. E estava certo de que ela nunca antes considerara o fato de que ser único implicasse algum direito.
Ele olhou para a silenciosa irritação dela, dizendo:
— Nunca antes houve um governo exatamente como o meu. Em toda a nossa história. Sou responsável apenas perante mim mesmo, extraindo um pagamento completo por aquilo que sacrifiquei.
— Sacrificou! — disse ela com sarcasmo, mas ele ouviu as dúvidas implícitas. — Cada déspota diz alguma coisa semelhante — ela continuou. — Você é responsável apenas perante você mesmo!
— O que torna cada coisa viva minha responsabilidade. Eu zelo por vocês através destes tempos.
— Através de que tempos?
— Os tempos que poderiam ter sido e não são mais.
Ele notou indecisão nela. Ela não confiava em seus instintos, em suas habilidades de previsão não-treinadas. Podia dar um salto ocasional, como acontecera ao roubar os seus diários, mas a motivação para o salto se perdia na revelação conseqüente.
— Meu pai diz que você pode ser muito hábil com as palavras.
— E ele deve saber. Mas existe um tipo de conhecimento que só se pode adquirir através da participação. Não há meios de aprender simplesmente se levantando, olhando e falando.
— É isso que ele quer dizer.
— Você está certa. Não é lógico. É uma luz, um olho que pode ver, mas que não vê a si próprio.
— Estou cansada de falar — ela disse.
— Como eu. — E pensou: “Já vi o bastante, fiz o bastante. Ela está completamente aberta às suas dúvidas. Como eles são vulneráveis na sua ignorância!”
— Não me convenceu de coisa alguma — ela disse.
— Não era esse o propósito deste encontro.
— Qual era o propósito?
— Verificar se já está pronta para ser testada.
— Test... — Ela inclinou a cabeça um pouco para a direita e olhou para ele.
— Não brinque de inocente comigo. Moneo lhe contou e eu digo que você está pronta!
Ela tentou engolir em seco e então começou:
— Que está...
— Já mandei que Moneo a levasse de volta à Cidade — disse Leto. — Quando nos encontrarmos de novo, você aprenderá realmente de que têmpera é feita.
Conhecem o mito do Grande Depósito de Especiaria? Sim, eu também conheço essa história. Um majordomo me contou um dia, para me divertir. A história diz que há um tesouro de melange, um gigantesco tesouro, tão grande quanto uma montanha, escondido nas profundezas de um planeta distante. Esse planeta não é Arrakis, não é Duna.
A especiaria foi oculta muito tempo atrás, antes mesmo do Primeiro Império e da Corporação Espacial. A história diz que Paul Muad'Dib foi para lá e ainda vive ao lado do tesouro, que o mantém vivo e esperando. O majordomo não entendeu por que essa história me perturbou.
— Os diários roubados
Idaho tremia de raiva enquanto caminhava ao longo dos corredores de plaspedra em direção a seus alojamentos na Cidadela. A cada posto de guarda por que passava, uma mulher batia continência. Ele não respondia. Sabia estar causando inquietação entre elas. Ninguém podia ter dúvidas quanto ao estado de espírito do comandante. Mas ele não perdia o passo firme. A pesada batida de suas botas ecoava pelas paredes.
Ainda podia sentir o gosto do almoço — um familiar cardápio Atreides composto de costeleta, cereais cozidos com uma porção azeda de pseudocarne, tudo acompanhado de um copo de claro suco cidrit. Moneo o encontrara numa mesa de canto, no refeitório da Guarda, com uma tabela regional de operações colocada ao lado do prato.
Sem esperar por um convite, Moneo sentara-se diante dele e puxara para o lado a tabela de operações.
— Trago uma mensagem do Imperador-Deus.
O tom muito controlado preveniu Idaho de que esse não era um encontro casual. Outros sentiram isso. Um silêncio perceptível propagou-se pelas mulheres nas mesas próximas, espalhando-se pela sala.
Idaho abandonou suas costeletas.
— Sim?
— Estas foram as palavras do Imperador-Deus — disse Moneo. — “Foi má sorte minha que Duncan Idaho se tornasse enamorado de Hwi Noree. Esse infortúnio não deve continuar.”
A raiva fez Idaho comprimir os lábios, mas ele permaneceu em silêncio.
— Essa tolice nos coloca a todos em perigo — disse Moneo. — Noree é a prometida do Imperador-Deus.
Idaho tentou controlar sua raiva, mas as palavras o traíam:
— Ele não pode casar-se com ela!
— Por que não?
— Qual é o jogo dele, Moneo?
— Sou um mensageiro com uma única mensagem. Nada mais — disse Moneo.
A voz de Idaho era baixa e ameaçadora.
— Mas ele lhe faz confidências.
— O Imperador-Deus tem compaixão de você — mentiu Moneo.
— Compaixão! — gritou Idaho, aprofundando o silêncio na sala.
— Noree é uma mulher de óbvios atrativos. Mas não é para você.
— O Imperador-Deus falou — zombou Idaho — e não há apelação.
— Percebo que entendeu a mensagem.
Idaho fez menção de se levantar da mesa.
— Aonde vai? — quis saber Moneo.
— Vou acertar essa situação com ele agora!
— Isso é suicídio certo — advertiu Moneo.
Idaho olhou furioso para ele, subitamente consciente das mulheres que ouviam atentamente nas mesas à sua volta. Uma expressão que o Muad'Dib teria reconhecido imediatamente surgiu no rosto dele: “Jogando com o Diabo”, era como o Muad'Dib a chamava.
— Sabe o que os Duques Atreides originais sempre diziam? — perguntou Idaho, e havia um tom de zombaria em sua voz.
— É pertinente?
— Diziam que todas as suas liberdades desaparecem quando você olha para um governante absolutista.
Rígido com o medo, Moneo inclinou-se na direção de Idaho e seus lábios quase não se moveram. Sua voz era pouco mais que um sussurro.
— Não diga tais coisas.
— Porque uma dessas mulheres poderia relatar?
Moneo sacudiu a cabeça, descrente.
— Você é mais descuidado que todos os outros.
— Realmente?
— Por favor! É extremamente perigoso tomar essa atitude.
Idaho ouviu um remexer nervoso propagando-se pelo salão.
— Ele pode apenas nos matar — disse Idaho.
Moneo falou num sussurro nervoso:
— Seu tolo! O Verme pode dominá-lo ante a menor provocação!
— O Verme, você diz? — E a voz de Idaho era desnecessariamente alta.
— Você deve confiar nele — disse Moneo.
Idaho olhou para a esquerda e para a direita.
— Sim, acho que elas ouviram isso.
— Ele é bilhões e bilhões de pessoas unidas num único corpo — disse Monco.
— Assim me disseram.
— Ele é Deus e nós somos mortais.
— Então, como pode um deus fazer coisas más?
Moneo empurrou a cadeira para trás e se levantou bruscamente.
— Eu lavo minhas mãos quanto a você! — Virou-se e saiu apressado do salão.
Idaho olhou para o refeitório, descobrindo-se no centro das atenções de todas as guardas.
— Moneo não julga, mas eu o faço — disse ele.
Para sua surpresa, descobriu alguns sorrisos maldosos entre as mulheres. Todas elas voltaram a comer.
Enquanto caminhava ao longo de um corredor da Cidadela, Idaho repetia essa conversa em sua mente, buscando singularidades no comportamento de Moneo. O terror podia ser reconhecido e até mesmo entendido, mas ali parecia haver muito mais que o medo da morte... muito, muito mais.
“O Verme pode dominá-lo.”
Idaho sentia que isso tinha escapado sem que Moneo o desejasse. Que poderia significar?
— Você é mais descuidado que qualquer um dos outros.
Idaho se incomodava por ter de ouvir comparações entre si mesmo e um desconhecido. Quão cuidadosos os outros teriam sido?
Chegou à porta do seu alojamento, colocou a mão no fecho de palma e hesitou. Sentia-se como um animal caçado recuando para o seu covil. As guardas do refeitório certamente teriam relatado a conversa para Leto a essa altura. O que iria fazer o Imperador-Deus? A mão de Idaho moveu-se sobre o fecho e a porta girou para dentro. Ele entrou na ante-sala de seu apartamento e trancou a porta olhando para ela.
“Será que ele vai mandar suas Oradoras Peixes me buscarem?”
Olhou em volta da área de entrada. Tratava-se de um espaço convencional, com prateleiras para roupas e sapatos, um espelho para o corpo inteiro, um armário de armas. Olhou para a porta fechada do armário. Nenhuma das armas ali dentro oferecia qualquer ameaça real ao Imperador-Deus. Não havia sequer uma arma laser... embora até mesmo pistolas laser fossem ineficazes contra o Verme, de acordo com todos os relatos.
“Ele sabe que irei desafiá-lo.”
Idaho suspirou e olhou para a frente, em direção ao portal arqueado que conduzia à sala de estar. Moneo substituíra a mobília por peças mais pesadas, mais rígidas, algumas delas reconhecivelmente Fremen — escolhidas nas arcas dos Fremen de Museu.
Fremen de Museu!
Idaho cuspiu e passou pelo portal. Dois passos para dentro do quarto e ele parou, chocado. A luz suave das janelas do norte revelava Hwi Noree sentada num longo divã.. Ela usava um vestido azul-brilhante que se colava ao seu corpo, bem revelador. Olhou para ele quando entrou.
— Graças aos deuses você não foi ferido — disse ela.
Idaho olhou para trás, para a porta de fecho. Depois olhou especulativamente para Hwi. Ninguém a não ser algumas guardas selecionadas deveriam ser capazes de abrir aquela porta.
Ela sorriu ante a sua confusão:
— Nós Ixianos fabricamos esses fechos — ela disse.
Ele se sentiu temeroso por ela.
— Que está fazendo aqui?
— Precisamos conversar.
— Sobre o quê?
— Duncan... — Ela sacudia a cabeça. — Sobre nós!
— Elas a avisaram — disse ele.
— Disseram-me para rejeitá-lo.
— Moneo a enviou!
— Duas mulheres da Guarda que o ouviram no refeitório. Elas trouxeram a noticia até mim. Acham que você está correndo um perigo terrível.
— É por isso que está aqui?
Ela se levantou num movimento gracioso que fez Idaho lembrar-se do modo como a avó de Leto, Jessica, se movia. O mesmo controle fluido dos músculos, cada movimento cheio de beleza.
A compreensão veio como um choque.
— Você é uma Bene Gesserit.
— Não! Elas estavam entre as minhas instrutoras, mas não sou uma Bene Gesserit.
Suspeitas enevoaram-lhe a mente. Que alianças estariam funcionando no Império de Leto? Que saberia um ghola a respeito de tais coisas?
“As mudanças desde a época em que eu vivi.”
— Suponho que você ainda seja simplesmente Ixiana.
— Por favor, não zombe de mim, Duncan.
— Afinal, que é você?
— Sou a noiva destinada ao Imperador-Deus.
— E vai servi-lo fielmente!
— Vou.
— Então nada há para conversarmos.
— Exceto esta coisa entre nós.
Ele pigarreou.
— Que coisa?
— Esta atração. — Ela ergueu uma das mãos quando ele começava a falar. — Quero me lançar em seus braços, encontrar o amor e o abrigo que sei que existe aí. E você deseja isso também.
Ele ficou rígido.
— O Imperador-Deus o proíbe!
— Mas eu estou aqui.
Ela deu dois passos em direção a ele, o vestido ondulando sobre o corpo.
— Hwi... — Ele tentou engolir com a garganta seca. — É melhor você sair.
— É prudente, mas não é melhor.
— Se ele descobrir que você esteve aqui.
— Não é meu costume deixar você deste modo. — Novamente ela lhe deteve a resposta erguendo a mão. — Fui criada e treinada com um único propósito.
Suas palavras o encheram de gélida cautela.
— Que propósito?
— Seduzir o Imperador-Deus. Oh, ele sabe disso. E não mudaria coisa alguma em mim.
— Nem eu.
Hwi chegou um passo mais perto de Idaho e este sentiu o perfume leitoso de seu hálito.
— Eles me fizeram muito bem — ela disse. — Fui projetada para agradar um Atreides. E Leto diz que seu Duncan é mais Atreides do que muitos nascidos com o nome.
— Leto?
— De que outro modo eu trataria aquele com quem vou me casar?
Enquanto falava, Hwi inclinou-se na direção de Idaho. E, como se um ímã tivesse encontrado seu ponto de atração crítica, eles se aproximaram um do outro. Hwi comprimiu o rosto contra a túnica de Idaho, os braços em torno do corpo dele, sentindo-lhe os músculos rijos. Idaho repousou o queixo sobre os cabelos dela, o almíscar enchendo-lhe os sentidos.
— Isto é loucura — sussurrou ele.
— Sim.
Ele ergueu o queixo dela e a beijou.
Hwi pressionou o corpo contra o dele.
Nenhum dos dois teve dúvidas sobre aonde isso levaria. Ela não resistiu quando ele a ergueu nos braços e a carregou para o quarto.
Apenas uma vez Idaho falou:
— Você não é virgem.
— Nem você, amor.
— Amor — sussurrou ele. — Amor, amor, amor...
— Sim... sim!
Na paz posterior ao coito, Hwi colocou ambas as mãos por trás da cabeça e se espreguiçou, contorcendo-se na cama. Idaho sentou-se de costas para ela, olhando para a janela.
— Quem foram seus outros amantes? — ele indagou.
Ela se apoiou sobre um cotovelo.
— Não tive outros amantes.
— Mas... — Ele se virou, olhando para ela.
— Na minha adolescência — explicou ela —, havia um jovem que precisava muito de mim. — Ela sorriu. — Depois me senti muito envergonhada. Como eu tinha sido confiante! Pensei que tivesse falhado diante daqueles que dependiam de mim. Mas eles descobriram e ficaram entusiasmados. Sabe, acho que estava sendo testada.
Idaho ficou carrancudo.
— E foi assim comigo? Eu precisava de você?
— Não, Duncan. — As feições dela ficaram sérias. — Nós demos prazer um ao outro porque assim é que é com o amor.
— Amor! — repetiu ele num tom amargo.
Ela comentou:
— Meu tio Malky costumava dizer que o amor é um mau negócio porque nele não se tem garantias.
— Seu tio Malky era um homem sábio.
— Ele era estúpido! O amor não precisa de garantias.
Um sorriso torceu os cantos da boca de Idaho.
Ela também sorriu para ele.
— Você sabe que é amor quando quer proporcionar prazer e manda para o inferno as conseqüências.
Ele assentiu com a cabeça.
— Eu penso apenas no perigo que você corre.
— Nós somos o que somos — ela disse.
— E que vamos fazer?
— Vamos lembrar com carinho o que aconteceu aqui pelo resto de nossas vidas.
— Você fala... de modo tão definitivo.
— Falo sim.
— Mas nos veremos um ao outro a cada...
— Nunca mais deste modo.
— Hwi!
Ele se lançou através da cama, colocando o rosto sobre o peito dela. Ela acariciou-lhe o cabelo.
Com sua voz abafada contra ela, ele disse:
— E se eu a tiver fecund...
— Shh! Se houver uma criança, haverá uma criança.
Idaho ergueu a cabeça e olhou para ela.
— Mas ele saberá com certeza!
— Ele vai saber de qualquer modo.
— Você acha que ele já sabe de tudo?
— Não de tudo, mas saberá disto.
— Como?
— Eu vou lhe dizer.
Idaho afastou-se bruscamente dela e se sentou na cama. A raiva confundia-se com a perplexidade em sua expressão.
— Sou obrigada — ela disse.
— E se ele se voltar contra você... Hwi, contam histórias. Você pode ficar num perigo terrível!
— Não. Tenho necessidades também. Ele sabe disso. Não irá ferir nenhum de nós.
— Mas ele...
— Ele não irá destruir a mim. E sabe que, se o ferir, isso me destruirá.
— Como pode se casar com ele?
— Querido Duncan, ainda não viu que ele precisa mais de mim do que você?
— Mas ele não pode... quero dizer, você não pode...
— Esse prazer que tivemos um com o outro. Não vou tê-lo com Leto, isso é impossível para ele. Ele me confessou.
— Então por que não... se ele ama você...
— Ele tem planos maiores, necessidades maiores. — Ela se aproximou e pegou a mão direita de Idaho entre as suas. — Eu soube disso desde que comecei a estudar a respeito dele. Suas necessidades são maiores do que qualquer uma das nossas.
— Que planos? Que necessidades?
— Pergunte a ele.
— Você sabe?
— Sim.
— Quer dizer que acredita nessas histórias a respeito de...
— Há honestidade e bondade nele. Sei por minhas próprias reações a ele. O que meus mestres Ixianos fizeram em mim, creio, foi uma espécie de reagente que revela mais do que aquilo que eles desejavam que eu soubesse.
— Então acredita nele! — acusou Idaho. Tentou tirar a mão de entre as mãos dela.
— Se for vê-lo, Duncan, e...
— Ele nunca mais me verá!
— Verá.
Ela puxou a mão dele para junto de sua boca e lhe beijou os dedos.
— Sou um refém — ele disse. — Você me deixou temeroso... vocês dois juntos...
— Nunca pensei que seria fácil servir a Deus — ela disse. — Mas não pensava que seria tão duro.
A Memória tem um significado curioso para mim, um significado que espero outros possam compartilhar. Continuamente me admiro com a maneira como as pessoas podem ocultar-se de suas memórias ancestrais, abrigando-se por trás de uma espessa barreira de mitos. Oh, não espero que elas busquem a terrível proximidade de cada momento vivo que sou obrigado a vivenciar. Posso compreender que não desejem mergulhar numa sopa de insignificantes detalhes ancestrais. Você tem razão em temer que os seus momentos de vida possam ser tomados por outros. E no entanto o significado está lá dentro dessas memórias! Nós carregamos em frente toda a nossa ancestralidade como uma onda viva, com todas as esperanças, alegrias, mágoas, agonias e triunfos do nosso passado. Nada dentro dessas memórias permanece totalmente desprovido de significado ou influência, não enquanto houver uma humanidade em alguma parte. Nós temos esse brilhante Infinito à nossa volta, esse Caminho Dourado da eternidade ao qual podemos continuamente dedicar nossa fraca mas inspirada lealdade.
— Os diários roubados
— Eu o convoquei, Moneo, devido ao que minhas guardas me disseram — disse Leto.
Eles se encontravam na escuridão da cripta onde, Moneo se lembrou, algumas das decisões mais dolorosas do Imperador-Deus se haviam originado. Moneo também ouvira os relatórios e estivera esperando pelo chamado durante toda a tarde, até que ele veio logo depois do jantar. Um momento de terror o engolfara.
— É a respeito... a respeito do Duncan, Senhor?
— É claro que é a respeito do Duncan!
— Contaram-me, Senhor... seu comportamento...
— Comportamento terminal, Moneo?
Moneo curvou a cabeça.
— Se diz assim, Senhor.
— Quanto tempo até que os Tleilaxu nos possam fornecer um outro?
— Eles dizem que têm tido problemas, Senhor. Pode levar até dois anos.
— Sabe o que minhas guardas me disseram, Moneo? — Moneo prendeu a respiração. Se o Imperador-Deus soubesse da última... Não! Até mesmo as Oradoras Peixes estavam aterrorizadas com a afronta. Se fosse outro que não um Duncan, as mulheres se teriam encarregado de eliminá-lo. — Bem, Moneo?
— Disseram-me, Senhor, que ele chamou um grupo de guardas e lhes fez perguntas sobre suas origens. Em que mundos elas tinham nascido? Qual o seu parentesco, sua infância?
— E as respostas não o satisfizeram.
— Ele as assustou, Senhor. Ficou insistindo.
— Como se a repetição pudesse produzir a verdade. Sim.
Moneo permitiu-se a esperança de que essa pudesse ser toda a preocupação do seu Senhor.
— Por que os Duncans sempre fazem isso, Senhor?
— Foi o treinamento inicial deles. O Treinamento Atreides.
— Mas como isso difere do...
— Os Atreides viviam a serviço das pessoas que eles governavam. A medida de seus governos era encontrada nas vidas dos governados. Assim, os Duncans sempre desejavam saber como as pessoas viviam.
— Ele passou uma noite em um vilarejo, Senhor. Esteve em algumas das cidades. Viu...
— Tudo reside na maneira como você interpreta os resultados, Moneo. A evidência não é coisa alguma sem os julgamentos.
— Tenho observado que ele julga, Senhor.
— Nós todos fazemos isso, mas os Duncans tendem a acreditar que este universo está submetido à minha vontade. E eles sabem que não se pode agir errado em nome do certo.
— E o que ele diz que o Senhor...
— É o que eu digo, o que todos os Atreides dentro de mim dizem. Este universo não permitirá isso. As coisas que você tenta fazer não permanecem caso...
— Mas o Senhor não age de maneira errada!
— Pobre Moneo. Não percebe que criei um veículo para as injustiças.
Moneo não podia falar. Percebeu que fora distraído por um aparente retorno da brandura no Imperador-Deus. Mas agora sentia mudanças ocorrendo no grande corpo, e essa proximidade... Olhou à volta, percorrendo com o olhar a câmara central da cripta e lembrando a si mesmo das muitas mortes que haviam acontecido ali e que ali estavam sepultadas.
“Será que a minha hora chegou?”
Leto falou em tom meditativo:
— Você não pode ter sucesso fazendo reféns. Essa é uma forma de escravidão. Um ser humano não pode possuir outro ser humano. Este universo não vai permitir.
As palavras ficaram brilhando na consciência de Moneo, um contraste aterrorizante com os ruídos da transformação que ele sentia em seu Senhor.
“O Verme está chegando!”
Novamente Moneo olhou para a cripta à sua volta. Esse lugar era muito pior do que o ninho! O refúgio era muito remoto.
— Bem, Moneo, você tem alguma resposta?
Moneo arriscou um sussurro.
— As palavras do Deus me iluminam.
— Iluminam? Você não está iluminado!
Moneo falou desesperado:
— Mas eu sirvo ao meu Senhor!
— Você pede para servir ao seu Deus?
— Sim, Senhor.
— Quem criou a sua religião, Moneo?
— O Senhor.
— Essa é uma resposta sensata.
— Obrigado, Senhor.
— Não me agradeça! Diga-me o que é que as instituições religiosas perpetuam!
Moneo recuou quatro passos.
— Fique onde está! — ordenou Leto.
Com todo o corpo tremendo, Moneo sacudiu a cabeça, atônito. Finalmente encontrara uma pergunta sem resposta. E deixar de responder precipitaria sua morte. Ele esperou por ela, a cabeça curvada.
— Então eu lhe direi, pobre servo.
Moneo permitiu-se ter esperanças. Ergueu o olhar para o rosto do Imperador-Deus, notando que os olhos dele ainda não estavam vidrados... e suas mãos ainda não tremiam.
Talvez o Verme não viesse.
— As instituições religiosas perpetuam um relacionamento senhor-servo que é mortífero — explicou Leto. — Elas criam uma arena que atrai os seres humanos orgulhosos e sedentos de poder, possuidores de todos os preconceitos daqueles cuja visão é estreita!
Moneo só podia assentir com a cabeça. Estaria havendo um tremor nas mãos do Imperador-Deus? Aquela face terrível estaria se encolhendo dentro das dobras do seu capuz?
— Secretas revelações de infâmia, isso é o que os Duncans buscam — disse Leto. — Os Duncans possuem muita compaixão por seus companheiros e um limite muito definido de lealdade.
Moneo estudara os holos dos antigos vermes da areia de Duna, as gigantescas bocas cheias de dentes de faca cristalina em torno de um fogo consumidor. Notou a tumescência dos anéis latentes na superfície tubular de Leto. Estariam mais proeminentes? Uma nova boca se abriria abaixo daquela face envolvida nas dobras?
— Os Duncans sabem em seu coração que deliberadamente ignorei a advertência de Maomé e de Moisés — disse Leto. — Até mesmo você sabe disso, Moneo!
Era uma acusação. Monco começou a assentir, então sacudiu a cabeça de um lado para o outro. Imaginou se deveria atrever-se a tentar outra fuga. Sabia de sua experiência que palestras sobre esse tema não podiam continuar por muito tempo sem a chegada do Verme.
— Que poderia ser essa advertência? — perguntou Leto. Havia um tom zombeteiro em sua voz.
Monco permitiu-se um ligeiro encolher de ombros.
Abruptamente, a voz de Leto trovejou pela câmara, um barítono ancestral que falava através dos séculos:
— Vocês são servos de Deus, não servos de servos!
Moneo entrelaçou as mãos e implorou:
— Eu sirvo ao Senhor!
— Moneo, Moneo — disse Leto, a voz baixa e ressonante. — Um milhão de erros não podem criar uma coisa certa, direita. O que é certo se conhece porque perdura.
Moneo só podia esperar em trêmulo silêncio.
— Eu destinara Hwi a procriar com você, Moneo — disse Leto. — Agora é muito tarde.
As palavras levaram um instante para penetrar na consciência de Moneo. Ele sentia que o significado delas estava fora de qualquer contexto conhecido. “Hwi? Quem era Hwi? Oh, sim — a noiva Ixiana do Imperador-Deus. Procriar comigo?” Moneo sacudiu a cabeça.
Leto falou com infinita tristeza:
— Você também deverá passar. Será que todos os nossos trabalhos serão esquecidos como o pó?
Sem o menor aviso, ainda enquanto falava, o corpo de Leto saltou em convulsão, rolando para fora do carro. A velocidade e a monstruosa violência daquele movimento lançaram-no a centímetros de Moneo, que gritou e fugiu correndo pela cripta.
— Moneo!
O chamado de Leto deteve o majordomo na entrada do elevador
— O teste, Moneo! Vou testar Siona amanhã!
A percepção do que eu sou ocorre na consciência atemporal que não estimula nem ilude. Eu crio um campo sem identidade nem centro, um campo onde até mesmo a morte se torna mera analogia. Não desejo resultados. Apenas permito a existência desse campo que não possui objetivos nem desejos, que não tem perfeições nem visões de realização. Nele, a consciência primal onipresente é tudo. É a luz que se derrama através das janelas do meu universo.
— Os diários roubados
O sol se ergueu, enviando seu brilho cruel através das dunas. Leto sentia a areia debaixo dele como uma suave carícia. Somente seus ouvidos humanos, escutando a raspagem abrasiva de seu pesado corpo, informavam o contrário. Era um conflito sensorial que ele aprendera a aceitar.
Ouviu Siona caminhando atrás dele com leveza em seus passos, um suave derramar de areia enquanto ela subia para esse nível no topo da duna.
“Quanto mais eu agüento, mais vulnerável me torno”, pensou ele.
Tal pensamento freqüentemente lhe ocorria nesses dias em que ia para o deserto. Olhou para cima. O céu estava sem nuvens e com uma densidade de azul que os velhos dias de Duna nunca tinham visto.
Que era um deserto desprovido de um céu sem nuvens? Pena que não pudesse ter o tom prateado de Duna.
Satélites Ixianos controlavam esse céu, nem sempre com a perfeição que ele poderia desejar. Tal perfeição era uma fantasia mecânica que falhava sob o controle humano. Ainda assim, os satélites mantinham um domínio suficientemente controlado para lhe dar essa manhã de calma no deserto. Ele inspirou profundamente com seus pulmões humanos e ouviu a aproximação de Siona. Esta havia parado e Leto sabia que ela estava admirando a vista.
Ele sentia sua imaginação atuando como um feiticeiro a invocar todas as coisas que se haviam unido para produzir o cenário físico desse momento. Sentia os satélites.
Ótimos instrumentos que tocavam a música para a dança do aquecimento e resfriamento das massas de ar, perpetuamente monitorando e ajustando as poderosas correntes verticais e horizontais. Divertia-o lembrar que os Ixianos tinham julgado que iria usar essa delicada maquinaria num novo tipo de despotismo hidráulico — negando a umidade àqueles que desafiassem seu governo, punindo outros com terríveis tempestades. Como tinham ficado surpresos ao se perceberem equivocados!
“Meus controles são mais sutis.”
Lenta e suavemente, colocou-se em movimento, nadando na superfície arenosa, deslizando duna abaixo sem nem uma vez olhar para trás, em direção à fina agulha da torre, sabendo que ela desapareceria daí a pouco na névoa do calor diurno.
Siona o seguia com uma docilidade pouco característica. A dúvida fizera seu trabalho. Ela tinha lido os diários roubados, ouvira as advertências do pai. Agora não sabia o que pensar.
— Que teste é esse? — perguntara a Moneo. — Que ele irá fazer?
— Nunca é a mesma coisa.
— Como foi que ele o testou?
— Será diferente com você. Eu somente a confundiria se lhe contasse minha experiência.
Leto ouvira secretamente enquanto Moneo preparava sua filha, vestindo-a com um autêntico traje destilador Fremen, com um manto negro sobre ele, ajustando corretamente as bombas nas botas. Moneo não se havia esquecido.
Ele olhou para cima, encarando-a enquanto ajustava as botas.
— O Verme virá. Isso é tudo que lhe posso dizer. Você deve encontrar um modo de viver na presença do Verme.
Ele se levantara então, explicando a respeito do traje destilador, de como ele reciclava os fluidos do próprio corpo. Fez com que ela puxasse um tubo do bolsão de recolhimento e o sugasse, depois fechasse de novo o tubo.
— Você estará sozinha com ele no deserto — disse Moneo.
— O Shai-Hulud nunca fica distante quando se está no deserto.
— E se eu me recusar a ir? — perguntou ela.
— Você irá... mas pode não voltar.
Essa conversa acontecera na câmara ao nível do solo da Pequena Cidadela, enquanto Leto aguardava no ninho. Ele desceu quando já sabia que Siona estava pronta, deslizando na escuridão anterior à aurora sobre sua carreta com os suspensores ligados. A carreta ficara numa sala ao nível do solo, depois que Moneo e Siona partiram. Enquanto Moneo andava sobre o solo plano até o seu tóptero e decolava em asas sussurrantes, Leto fez com que Siona testasse o portal fechado da câmara ao nível do solo, então olhou para cima, em direção às alturas impossíveis da Torre.
— O único caminho para fora é através do Sareer — ele dissera.
Ele tomou a frente, conduzindo-a para longe da Torre, nem mesmo lhe ordenando que o seguisse, confiando em seu bom senso, sua curiosidade e suas dúvidas.
O progresso ondulante de Leto levou-o para baixo, ao longo da face escorregadia da duna, e sobre a seção exposta do complexo rochoso do subsolo da torre, depois subindo outra face arenosa em ângulo raso, de modo a criar uma trilha para que Siona seguisse. Os Fremen chamavam esses rastros de compressão de “as dádivas de Deus aos cautelosos”. Leto movia-se lentamente, dando a Siona um pouco de tempo para que ela reconhecesse que esse era o domínio dele, seu habitat natural.
Chegou ao topo de outra duna e se voltou para lhe observar o progresso. Ela se mantivera na trilha que ele fizera e parou somente quando chegou ao topo. O olhar dela voltou-se para o seu rosto; depois ela se virou para fitar o horizonte. Ouviu o rápido fôlego da respiração dela. O ar trêmulo pelo calor ocultava agora o topo da torre. A base podia ser apenas um distante afloramento de rocha.
— Isso é como era — ele disse.
Havia alguma coisa com relação ao deserto que falava à alma eterna das pessoas possuidoras de sangue Fremen. Ele escolhera esse lugar pelo seu impacto como deserto — uma duna ligeiramente mais alta que as outras.
— Dê uma boa olhada — recomendou ele, depois escorregou pelo outro lado da duna, a fim de remover seu volume do campo de visão dela.
Siona voltou-se lentamente outra vez, olhando para longe.
Leto sabia qual era a sensação mais íntima produzida pelo que ela via. Exceto pela insignificante mancha borrada da base da Torre, não havia a menor elevação no horizonte — plano, plano por toda parte. Sem plantas, sem qualquer movimento de coisa viva. De seu ponto de vista, havia um limite de aproximadamente oito quilômetros até a linha onde a curvatura do planeta ocultava tudo além.
Leto falou de onde havia parado, logo abaixo da crista da duna.
— Este é o verdadeiro Sareer. Você só o conhece quando está aqui a pé. Isto é tudo que restou do bahr bela ma.
— O oceano sem água — sussurrou ela.
Novamente ela se virou e examinou o horizonte inteiro.
Não havia vento e Leto sabia que, sem o vento, o silêncio devorava a alma humana. Siona estava sentindo a perda de todos os pontos de referência familiares. Fora abandonada num lugar perigoso.
Leto olhou para a próxima duna. Naquela direção, eles chegariam daí a pouco a uma linha de colinas baixas, que originalmente tinham sido montanhas, mas que agora se encontravam despedaçadas no entulho e nas rochas remanescentes. Continuou a repousar calmamente, deixando que o silêncio fizesse seu trabalho por ele. Era até agradável imaginar que essas dunas seguiam interminavelmente, como um dia o tinham feito, até circundarem totalmente o planeta. Mas mesmo essas dunas estavam degenerando. Sem as tempestades Coriólis originais de Duna, o Sareer não conhecia nada mais forte que uma brisa e os ocasionais vórtices de calor que não tinham mais que um efeito local.
Um desses pequenos “diabos de vento” dançou a uma distância média para o sul e o olhar de Siona seguiu sua trilha. De repente ela disse:
— Você tem alguma religião pessoal?
Leto levou um momento preparando sua resposta. Sempre o surpreendia o modo como o deserto provocava pensamentos religiosos.
— Você se atreve a me perguntar se tenho alguma religião pessoal?
Sem revelar nenhum traço dos temores que ele sabia que ela sentia, Siona virou-se e olhou para ele. A audácia era sempre uma marca dos Atreides, ele se lembrou.
Como ela não respondeu, ele disse:
— Você é sem dúvida uma Atreides.
— É essa a sua resposta?
— Que é que você realmente quer saber, Siona?
— Em que você acredita!
— Ho! Você pergunta pela minha fé. Bem, vejamos... Acredito que alguma coisa não pode emergir do nada sem intervenção divina.
A resposta a intrigou.
— Como é que um...
— Natura non facit saltus — ele disse.
Ela sacudiu a cabeça, não entendendo a antiga citação que saltara dos lábios dele. Leto traduziu:
— A natureza não dá saltos.
— Que língua era essa? — perguntou ela.
— Um idioma que não é mais falado em parte alguma do meu universo.
— Por que a usou, então?
— Para sondar suas memórias ancestrais.
— Não tenho nenhuma! Só queria saber por que me trouxe aqui.
— Para lhe dar o sabor do seu próprio passado. Venha até aqui e suba nas minhas costas.
Ela hesitou a princípio; depois, percebendo a futilidade de um desafio, desceu pela face da duna e subiu nas costas de Leto.
Este esperou até que ela estivesse ajoelhada em cima dele. Não era o mesmo que nos velhos tempos, ele sabia. Ela não tinha ganchos de Produtor e não poderia ficar de pé nas suas costas. Ergueu os segmentos frontais ligeiramente para fora da superfície.
— Por que estou fazendo isto? — ela perguntou. Seu tom de voz dizia que se sentia uma tola lá em cima.
— Quero que sinta o modo como nossa gente um dia viajou, orgulhosa, através desta terra, no topo das costas do gigantesco Verme da Areia.
Começou a deslizar ao longo da Duna, logo abaixo de sua crista. Siona vira os holos. Conhecia essa experiência intelectualmente, mas o pulso da realidade tinha uma batida diferente e ele sabia que ela responderia ao ritmo.
“Ah, Siona”, pensou ele, “você nem mesmo começou a suspeitar do modo como vou testá-la.”
Leto se endureceu então. “Não devo ter piedade. Se ela morrer, ela morre. Se qualquer um deles morre, é um acontecimento necessário, não mais que isso.”
E tinha de se lembrar de que isso se aplicava até mesmo a Hwi Noree. Apenas não podiam morrer todos eles.
Sentiu quando Siona começou a apreciar a sensação de cavalgar em suas costas. Houve uma leve mudança de peso quando ela se apoiou para trás, sobre as pernas, a fim de erguer a cabeça.
Ele moveu-se para longe, então, subindo uma curva barracan e se unindo a Siona no apreciar das antigas sensações. Leto podia apenas vislumbrar o remanescente das elevações no horizonte à frente. Eram como uma semente do passado aguardando, uma lembrança da força auto-sustentada e expansível que operava num deserto. Podia esquecer por um momento que nesse planeta havia apenas uma pequena fração de superfície ainda como deserto — o dinamismo do Sareer sobrevivia num ambiente precário.
A ilusão de passado estava ali, contudo. Ele a sentia ao se mover. Fantasia, é claro, uma fantasia que se esvaía enquanto sua tranqüilidade forçada continuava. Mesmo esse extenso barracan que agora atravessava não era tão grande quanto os que haviam existido no passado. Nenhuma das dunas aqui era tão grande.
Todo esse deserto preservado subitamente lhe pareceu ridículo. Quase parou numa superfície de seixos entre dunas, continuando mais lentamente enquanto tentava conjurar as necessidades que mantinham todo esse sistema funcionando. Imaginou a rotação do planeta, provocando grandes correntes que transportavam ar frio e ar quente para novas regiões a um enorme volume — tudo monitorado e governado por aqueles minúsculos satélites com seus instrumentos Ixianos e seus pratos focalizadores de calor. Se os monitores lá no alto podiam ver alguma coisa, viam o Sareer parcialmente como um “deserto em relevo”, com muralhas físicas e de ar frio a circundá-lo. Isso tendia a criar gelo nas bordas e exigia mais ajustamentos climáticos.
Não era fácil, e Leto por isso perdoava os erros ocasionais.
Enquanto se movia uma vez mais sobre as dunas, perdia o senso desse delicado equilíbrio, colocando de lado a memória das vastidões pedregosas fora das areias centrais e se entregando à apreciação desse “oceano petrificado”, com suas ondas congeladas e aparentemente imóveis. Voltou-se para o sul, paralelamente às colinas remanescentes.
Sabia que a maioria das pessoas ficava ofendida com essa sua paixão pelo deserto. Ficavam perturbadas e se afastavam. Siona, contudo, não virava as costas. Para todos os lados que ela olhava, o deserto pedia identificação. Ela cavalgava silenciosamente em suas costas, mas ele sabia que seus olhos estavam ocupados. E antigas memórias começavam a se agitar.
Três horas depois ele chegou a uma região de dunas cilíndricas, tipo dorso de baleia, algumas delas com 150 quilômetros de comprimento no ângulo dos ventos predominantes. Além delas se encontrava um corredor rochoso entre dunas, e então uma região de dunas-estrela com quase 400 metros de altura. Finalmente entraram nas dunas trançadas do erg central, onde a elevada pressão do ar eletricamente carregado ergueu-lhes o moral. Sabia que a mesma mágica devia estar funcionando com Siona.
— Aqui foi onde se originaram as canções da Longa Jornada — ele disse. — Estão perfeitamente preservadas na História Oral.
Ela não respondeu, mas ele sabia que ouvira.
Leto atrasou o passo e começou a falar com Siona, contando-lhe a respeito de seu passado Fremen. Sentia o aumento do interesse da moça que até mesmo fazia perguntas ocasionais, mas também podia sentir os antigos temores crescendo nela.
Mesmo a base de sua Pequena Cidadela não era mais visível dali. Ela não podia reconhecer mais nada feito pelo homem. Devia estar pensando agora que ele se entregava a uma conversa informal sobre coisas sem importância para lhe afastar a mente de algo portentoso.
— A igualdade entre homens e mulheres originou-se aqui — disse ele.
— Suas Oradoras Peixes negam que homens e mulheres sejam iguais — ela disse.
Sua voz, cheia de uma descrença indagadora, era um localizador melhor do que a sensação que ela provocava, agachada em suas costas. Leto parou na interseção de duas dunas trançadas e deixou que a exalação do oxigênio por ele gerado diminuísse.
— As coisas não são as mesmas hoje em dia — ele disse.
— Mas homens e mulheres de fato possuem diferentes exigências evolutivas atuando sobre si. Com os Fremen, entretanto, havia uma interdependência. Isso estimulava a igualdade por aqui, onde as questões da sobrevivência se tornam imediatas.
— Por que me trouxe aqui? — ela exigiu saber.
— Olhe atrás de nós — disse ele.
Sentiu que ela se virava. Daí a pouco ela disse:
— Que é que eu devo ver?
— Deixamos algum rastro? Pode ver por onde passamos?
— Sopra uma brisa fraca agora.
— Ela cobriu nossos rastros?
— Suponho que sim... sim.
— Este deserto nos transformou no que fomos e somos — explicou ele. — É o verdadeiro museu das nossas tradições. E nenhuma dessas tradições foi perdida.
Leto viu uma pequena tempestade de areia, uma ghibli, abrindo caminho através do horizonte sul. Notou as estreitas fitas de pó e areia movendo-se adiante dela. Certamente Siona a tinha visto.
— Por que não me diz para que me trouxe aqui? — ela insistiu. O medo era óbvio em sua voz.
— Mas eu lhe disse.
— Não, não disse!
— Que distância já percorremos, Siona?
— Ela pensou a respeito.
— Trinta quilômetros? Vinte?
— Mais. Posso me mover bem rápido em minha própria terra. Não sentiu o vento em seu rosto?
— Sim — disse ela, taciturna. — Então por que me pergunta a distância?
— Desça e fique onde eu possa vê-la.
— Por quê?
“Bom”, ele pensou. “Ela acredita que vou abandoná-la aqui e correr mais depressa do que ela pode me seguir.”
— Desça e explicarei.
Ela escorregou de suas costas e deu a volta para onde ele podia olhar em seu rosto.
— O tempo passa rapidamente quando os sentidos estão ocupados — explicou ele. — Saímos há mais de quatro horas. Percorremos aproximadamente 60 quilômetros.
— Por que isso é tão importante?
— Moneo colocou alimentos secos no bolso do seu manto. Coma um pouco e eu lhe direi.
Ela encontrou um cubo seco de protomor e o mordiscou enquanto o observava. Era uma autêntica comida antiga dos Fremen, até mesmo com leve adição de melange.
— Você já sentiu seu passado — explicou ele. — Agora deve ser sensibilizada para o seu futuro, o Caminho Dourado.
Ela engoliu.
— Não acredito no seu Caminho Dourado.
— Se vai viver, deve acreditar nele.
— É esse o seu teste? Ter fé no Grande Deus Leto ou morrer?
— Você não precisa ter qualquer fé em mim. Quero que tenha fé em si mesma.
— Então, por que é importante ter vindo até onde viemos?
— Assim compreenderá por quanto ainda tem de seguir.
Ela levou a mão à face.
— Eu na....
— Bem aí, onde está, você se encontra no meio do Infinito. Olhe à sua volta para perceber o significado do Infinito.
Ela olhou para a direita e para a esquerda, em direção ao deserto continuo.
— Vamos caminhar para fora do meu deserto juntos — ele explicou. — Só nós dois.
— Você não caminha — retrucou ela.
— Uma figura de linguagem. Mas você vai caminhar. Isso eu lhe asseguro.
Ela olhou na direção por onde tinham vindo.
— Então foi por isso que me perguntou a respeito dos rastros?
— Mesmo que houvesse rastros, você não poderia voltar. Não há nada em minha Pequena Cidadela que pudesse usar para a sua sobrevivência.
— Nem água?
— Nada.
Ela encontrou o tubo do bolsão de recolhimento em seu ombro, sugou-o e o recolocou. Ele notou o cuidado com que ela havia selado a extremidade. Mas Siona não puxara sobre a boca a máscara facial, embora Leto tivesse ouvido o pai dela advertindo-a quanto a isso. Queria ter a boca livre para falar.
— Está me dizendo que eu não poderia fugir de você?
— Fuja se quiser.
Ela descreveu meio circulo, examinando a vastidão desolada.
— Existe um ditado sobre estas terras abertas — ele disse. — Que uma direção é tão boa quanto outra. De certo modo, isso é verdade, mas eu não contaria com isso.
— Mas sou realmente livre para abandoná-lo se quiser?
— A liberdade pode ser uma condição muito solitária.
Ela apontou para o lado íngreme da duna sobre a qual eles tinham parado.
— Mas eu podia ir até lá embaixo e...
— Se eu fosse você, Siona, não desceria por onde apontou.
Ela olhou com raiva para ele.
— Por quê?
— No lado íngreme de uma duna, a menos que siga as curvas naturais, a areia pode deslizar sobre você e enterrá-la.
Ela olhou para a face inclinada, absorvendo isso.
— Percebe como as palavras podem ser belas? — perguntou ele.
Ela voltou a atenção para o seu rosto.
— Devemos seguir em frente?
— Aqui você aprende a valorizar o descanso. E a cortesia. Não há pressa.
— Mas não temos água, exceto...
— Usado sabiamente, esse traje destilador a manterá viva.
— Mas quanto tempo vamos levar para...
— Sua impaciência me preocupa.
— Mas só temos esta comida seca no meu bolso. Que vamos comer quando...
— Siona! Já percebeu como está exprimindo nossa situação como mútua? Que iremos comer? Não teremos água. Devemos prosseguir? Quanto tempo vamos levar?
Ele percebeu a secura na boca de Siona, enquanto ela tentava responder.
— Poderia ser que nos tornamos interdependentes? — perguntou ele.
Ela falou com relutância:
— Não sei como sobreviver aqui.
— Mas eu sei?
Ela concordou com um gesto de cabeça.
— E por que eu deveria partilhar tão precioso conhecimento com você? — perguntou ele.
Ela encolheu os ombros, um gesto digno de pena que o sensibilizou. Como o deserto era rápido em eliminar certas atitudes anteriores.
— Partilharei meu conhecimento com você — ele disse. — E você deve encontrar alguma coisa valiosa que possa partilhar comigo.
O olhar dela percorreu-lhe o comprimento, parando nas nadadeiras que tinham sido as pernas e os pés dele, depois voltou para o seu rosto.
— Acordos comprados com ameaças não são acordos — ela disse.
— Não lhe ofereço a violência.
— Há muitos tipos de violência — ela disse.
— E eu trouxe você aqui, onde pode morrer?
— Será que eu tive escolha nisso?
— Não é fácil nascer Atreides. Acredite-me, eu sei — ele disse.
— Você não tinha de fazer isso desse modo.
— Nisso você está errada.
Ele voltou-se na direção oposta a ela e partiu numa trilha senoidal, descendo a duna. Podia ouvi-la tropeçando e escorregando enquanto o seguia. Leto parou bem na sombra da duna.
— Esperaremos o dia passar aqui — explicou. — Consome menos água viajar à noite.
Uma das palavras mais terríveis em qualquer idioma é Soldado. Os sinônimos desfilam através da nossa história: yogahnee, trooper, hussardo, kareebo, cossaco, deranzeef, legionário, sardaukar, oradora peixe... conheço todos eles. Eles se erguem nas fileiras da minha memória para me lembrar: sempre tenha certeza de que o exército está com você.
— Os diários roubados
Idaho finalmente encontrou Moneo nos longos corredores subterrâneos que ligavam os complexos ocidental e oriental da Cidadela. Desde o raiar do dia, duas horas atrás, que Idaho estivera rondando a Cidadela em busca do majordomo, e lá estava ele, bem no fim do corredor, falando com uma pessoa oculta num portal. Moneo era reconhecível, mesmo a essa distância, pela postura e pelo inevitável uniforme branco.
As paredes de plaspedra do corredor eram cor de âmbar, ali, 50 metros abaixo da superfície, e iluminadas por tiras luminosas ajustadas para as horas diurnas. As brisas frias eram sugadas para estas profundezas por um simples arranjo de asas de movimento livre, que se erguiam como gigantescas figuras em mantos sobre as torres do perímetro, na superfície. Agora que o sol havia aquecido as areias, todas as pás apontavam para o norte, buscando o ar frio que se derramava no Sareer. Idaho sentia o cheiro de pedra na brisa enquanto caminhava.
Sabia o que esse corredor devia representar. Ele tinha algumas das características de um antigo sietch Fremen. O corredor era amplo, suficientemente largo para acomodar a carreta de Leto. E o teto em arco parecia de pedra. Mas as tiras luminosas gêmeas estavam em desacordo. Idaho nunca vira tiras luminosas antes de ir para a Cidadela.
Em sua época, elas haviam sido consideradas pouco inviáveis por consumirem muita energia e serem muito dispendiosas em termos de manutenção. Os globos luminosos eram mais simples e mais fáceis de serem substituídos. Mas ele viera a perceber que Leto considerava poucas coisas como inviáveis.
“O que Leto quer alguém fornece.”
O pensamento tinha um sentido agourento enquanto Idaho marchava pelo corredor em direção a Moneo.
Pequenas salas enfileiravam-se ao longo do corredor, à maneira dos sietch, todas sem portas, com apenas cortinas de tecido castanho-avermelhado a ondularem na brisa, bloqueando as entradas. Idaho sabia que essa área era constituída principalmente de alojamentos para as jovens Oradoras Peixes. Reconhecera uma câmara de reunião, com seus compartimentos para depósito de armas, cozinha, salão de jantar e oficinas de manutenção. Também vira outras coisas por trás da inadequada privacidade das cortinas, coisas que o encheram de fúria.
Moneo virou-se ante a aproximação de Idaho. A mulher com quem Moneo estivera falando recuou e deixou a cortina cair, mas não antes que Idaho vislumbrasse um rosto mais velho, com ar de comando. Idaho não reconheceu aquela comandante em particular.
Moneo acenou enquanto Idaho parava a dois passos de distância.
— As guardas disseram que esteve procurando por mim.
— Onde ele está, Moneo?
— Onde está quem?
Moneo olhou Idaho de cima abaixo, notanto o velho uniforme Atreides, preto com o falcão vermelho no peito, as botas de cano alto brilhando com o polimento. Havia uma aparência ritual no homem.
Idaho respirou e falou através dos dentes trincados:
— Não comece esse jogo comigo!
Moneo desviou sua atenção da faca embainhada na cintura de Idaho. Parecia peça de museu, com seu cabo decorado com jóias. Onde Idaho teria encontrado aquilo?
— Quer dizer o Imperador-Deus... — disse Moneo.
— Onde?
Moneo manteve a voz branda.
— Por que está tão ansioso para morrer?
— Elas disseram que você estava com ele.
— Isso foi mais cedo.
— Vou encontrá-lo, Moneo!
— Não agora.
Idaho levou a mão à faca.
— Terei de usar a força para fazê-lo falar?
— Eu não recomendaria isso.
— Onde... ele... está?
— Já que insiste, está no deserto com Siona.
— Sua filha?
— Existe outra Siona?
— Que estão fazendo?
— Ela está sendo testada.
— Quando voltarão?
Moneo encolheu os ombros, depois disse:
— Por que essa raiva inconveniente, Duncan?
— Que é esse teste de sua filha?
— Não sei. Agora, por que está tão perturbado?
— Estou enojado deste lugar! Oradoras Peixes! — Ele virou a cabeça e cuspiu.
Moneo olhou ao longo do corredor por onde Idaho viera, relembrando a aproximação do homem. Conhecendo os Duncans, era fácil reconhecer o que alimentara a raiva atual.
— Duncan — disse Moneo —, é perfeitamente normal para mulheres adolescentes, assim como para homens nessa faixa, haver sentimentos de atração física por representantes de seu próprio sexo. A maioria supera isso.
— Devia ser eliminado!
— Mas é parte da nossa herança.
— Eliminado! E isso não é... não é...
— Oh, fique quieto. Se você tentar reprimir isso, só aumentará sua força.
Idaho olhou furioso para ele.
— E você diz que não sabe o que está acontecendo lá com sua própria filha!
— Siona está sendo testada, eu lhe disse.
— E que se supõe que isso signifique?
Moneo levou uma das mãos aos olhos e suspirou. Depois abaixou a mão, perguntando-se por que fizera esse gesto humano tão antiquado, tolo e perigoso.
— Quer dizer que ela pode morrer lá!
Idaho ficou desconcertado, um pouco de sua raiva esfriando.
— Como pode permitir que...
— Permitir? Você acha que tenho escolha?
— Todo homem tem uma escolha!
Um sorriso amargo percorreu os lábios de Moneo.
— Como você pode ser tão mais tolo que os outros Duncans?
— Outros Duncans! — repetiu Idaho. — Como foi que esses outros morreram, Moneo?
— Do modo como todos nós morremos. O tempo deles esgotou-se.
— Você mente — disse Idaho comprimindo os dentes, os nós dos dedos brancos sobre o punho da faca.
Ainda falando com brandura, Moneo advertiu:
— Tenha cuidado. Há limites ao que eu posso relevar, principalmente agora.
— Este lugar está podre! — disse Idaho, gesticulando com a mão livre para o corredor atrás dele. — Há algumas coisas que nunca vou aceitar!
Moneo olhou para o corredor vazio sem prestar atenção.
— Você deve amadurecer, Duncan. Precisa.
A mão de Idaho comprimiu-se em torno do punho da faca.
— O que quer dizer com isso?
— Esta é uma época sensível. Qualquer coisa perturbadora para ele, qualquer coisa... deve ser evitada.
Idaho mantinha-se à beira da violência, sua raiva contida apenas por alguma coisa intrigante nos modos de Moneo. Haviam sido ditas palavras, entretanto, que não podiam ser ignoradas.
— Não sou uma maldita criança imatura que possa...
— Duncan! — Era o som mais alto que Idaho já ouvira partindo do afável Moneo. A surpresa o conteve enquanto Moneo continuava: — Se as exigências da sua carne voltam-se para a maturidade, mas alguma coisa o mantém na adolescência, um comportamento muito ruim se desenvolve. Vamos...
— Está... me... acusando... de...
— Não! — Moneo indicou o corredor com um gesto. — Oh, sei o que você deve ter visto lá atrás, mas aquilo.
— Duas mulheres num beijo apaixonado! Você pensa que não...
— Isso não tem importância. A juventude explora o seu potencial de muitos modos.
Idaho conteve-se à beira de uma explosão, inclinando-se na ponta dos pés.
— Fico feliz de aprender isso sobre você, Moneo.
— Sim? Bem, já aprendi a respeito de você, muitas vezes.
Moneo observou o efeito dessas palavras, enquanto elas se torciam por dentro de Idaho, deixando-o emaranhado. Os gholas nunca escapavam ao fascínio dos outros que os tinham precedido.
Idaho falou num sussurro rouco:
— E que aprendeu?
— Você me ensinou coisas muito valiosas — disse Moneo. — Todos nós tentamos evoluir, mas, se alguma coisa nos bloqueia, podemos transformar esse potencial em dor: buscando-a ou dando-a. Os adolescentes são particularmente vulneráveis a isso.
Idaho inclinou-se mais para perto de Moneo.
— Estou falando de sexo!
— É claro que está.
— Está me acusando de comportamento adolescente.
— Isso mesmo.
— Eu deveria cortar a sua...
— Oh, cale-se!
A voz de Moneo não tinha as nuanças do treinamento Bene Gesserit sobre o controle da Voz, mas tinha uma vida inteira de comando por trás dela. Alguma coisa em Idaho só podia obedecer.
— Sinto muito — desculpou-se Moneo. — Mas fico perturbado pelo fato de que minha única filha... — Ele não terminou, encolhendo os ombros.
Idaho respirou fundo duas vezes.
— Você é maluco. Todos vocês o são! Diz que sua filha pode estar morrendo, e no entanto você...
— Seu tolo! — retrucou Moneo. — Tem idéia de como suas preocupações mesquinhas me parecem? Suas perguntas estúpidas e seu modo egoísta de... — Ele se interrompeu, sacudindo a cabeça.
— Eu dou desconto porque você tem problemas pessoais — respondeu Idaho. — Mas se você...
— Desconto? Você dá o desconto? — Moneo se conteve, trêmulo. Era demais!
Idaho falou, tentando controlar-se:
— Posso perdoá-lo por...
— Você! Você tagarela a respeito de sexo e de perdão e dor e... pensa que você e Hwi Noree...
— Deixe-a fora disso!
— Oh, sim. Deixe-a de fora. Não toque nesse ponto doloroso! Você compartilha o sexo com ela e nunca pensa a respeito de separação. Diga-me, tolo, como você se entrega em face disso?
Embaraçado, Idaho respirou fundo. Não imaginara uma paixão tão reprimida no calmo e quieto Moneo, mas esse ataque, isso não podia ser...
— Você me julga cruel? — perguntou Moneo. — Eu lhe faço pensar em coisas que você preferiria evitar. Ah! Coisas mais cruéis já foram feitas ao Senhor Leto por nenhuma outra razão senão a crueldade!
— Você o defende? Seu...
— Eu o conheço melhor!
— Ele usa você!
— Com que finalidade?
— Diga-me você!
— Ele é nossa melhor chance de perpetuar.
— Perverter não é perpetuar!
Moneo falou em tom tranqüilizador, mas suas palavras abalaram Idaho.
— Vou lhe dizer isto só uma vez. Os homossexuais encontram-se entre os melhores guerreiros da nossa história, os suicidas de último recurso. Eles também foram nossos melhores sacerdotes e sacerdotisas. O celibato não é um acaso nas religiões. Também não é por acaso que os adolescentes dão os melhores soldados.
— Isso é perversão!
— Exato. Os comandantes militares conhecem a respeito da transformação pervertida do sexo em dor há milhares e milhares de séculos.
— É isso que o Grande Senhor Leto está realizando?
Ainda calmo, Moneo continuou:
— A violência exige que você cause a dor e a sofra. É bem mais controlável uma força militar impulsionada pelos impulsos mais íntimos.
— Ele o transformou num monstro também!
— Você disse que ele me usa. Eu permito isso por saber que o preço que ele paga é muito superior ao que ele exige de mim.
— Até mesmo a sua filha?
— Ele não oculta coisa alguma. Por que deveria? Oh, creio que você entende isso a respeito dos Atreides. Os Duncans sempre foram bons nisso.
— Os Duncans! Maldito, eu não...
— Você apenas não tem coragem para pagar o preço que ele está pedindo — disse Moneo.
Num movimento rápido demais para ser visto com clareza, Idaho tirou a faca da bainha e saltou para Moneo. Mas, por mais rápido que se tivesse movido, Moneo foi mais rápido ainda saltou de lado e derrubou Idaho de cara no chão. Idaho lançou-se para a frente, rolando e se preparando para ficar em pé, e então hesitou, percebendo que realmente tentara atacar um Atreides. Moneo era um Atreides. O choque manteve Idaho imóvel.
Moneo também estava parado, olhando para ele. Havia uma curiosa fisionomia de tristeza na face do majordomo.
— Se vai me matar, Duncan, é melhor fazê-lo à traição, pelas costas. Você pode ter sucesso desse modo.
Idaho apoiou-se num joelho, colocando um dos pés no chão, mas continuou segurando a faca. Moneo havia se movimentado tão rapidamente e com tamanha graça — de modo tão... tão natural! Idaho pigarreou.
— Como foi que...
— Ele nos tem procriado para isso há muito tempo, Duncan, aperfeiçoando muitas coisas em nós. Tem cultivado em nós a ligeireza, a inteligência, o autocontrole, a sensibilidade. Você... você é apenas um modelo mais antigo.
Sabem o que os guerrilheiros dizem muitas vezes? Afirmam que suas rebeliões são invulneráveis à guerra econômica porque eles não possuem economia, vivem parasitariamente daqueles que vão derrubar. Os tolos só deixam de levar em conta o preço que inevitavelmente devem pagar. O padrão é inexorável em suas falhas degenerativas. Repete-se nos sistemas de escravidão, nos Estados do bem-estar, nas religiões estratificadas, nas burocracias socializantes — em qualquer sistema que crie e mantenha dependências.
Seja um parasita por muito tempo e você não poderá existir sem um hospedeiro.
— Os diários roubados
Leto e Siona passaram todo o dia nas sombras da duna, movimentando-se apenas na medida em que o sol se movia. Ele ensinou-a a se proteger sob um cobertor de areia durante o calor do meio-dia. Nunca ficava muito quente ao nível das rochas entre as dunas.
No cair da tarde, Siona aproximou-se de Leto em busca de calor, um calor que ele sabia possuir em excesso nesses dias.
Falavam esporadicamente. Ele lhe contou a respeito da nobreza dos Fremen que haviam dominado essa paisagem. Ela sondou em busca de conhecimentos secretos que ele pudesse estar escondendo.
Uma vez ele disse:
— Você pode achar curioso, mas é aqui que eu posso ser mais humano.
Essas palavras não conseguiram torná-la inteiramente consciente de sua vulnerabilidade humana e do fato de que ela poderia morrer ali. Mesmo quando não estava falando, ela não recolocava a máscara facial de seu traje destilador.
Leto reconheceu a motivação inconsciente por trás desse fracasso, mas sabia da futilidade de abordá-lo diretamente.
No fim da tarde, o frio da noite já começava a avançar sobre a terra quando ele começou a agradá-la com canções da Longa Jornada que não haviam sido preservadas pela História Oral. Agradou-lhe o fato de ela gostar de uma de suas favoritas, “A marcha de Liet”.
— A melodia é realmente antiga — ele disse — uma coisa pré-espacial da Velha Terra.
— Poderia cantá-la novamente?
Ele escolheu um de seus melhores barítonos, um artista há muito falecido, que enchera vários salões de concertos.
As muralhas do passado além da lembrança
Ocultam-me de uma queda ancestral
Onde todas as águas despencam!
Num jogo de espumas
Escavando cavernas em argila.
Embaixo do rumor da torrente.
Quando ele terminou, ela ficou em silêncio por um momento, e então comentou:
— É uma canção curiosa para uma marcha.
— Eles gostavam dela porque podiam dissecá-la.
— Dissecar?
— Antes que nossos ancestrais Fremen viessem a este planeta, a noite era o tempo de contar histórias, cantar canções e recitar poesia. Nos dias de Duna, entretanto, ela era reservada à falsa escuridão, a hora do brilho do dia no sietch. A noite era a ocasião em que se podia sair e andar... como estamos fazendo agora.
— Mas você falou em dissecar.
— Que a canção significa? — perguntou ele.
— Oh. É... é apenas uma canção.
— Siona!
Ela notou a irritação na voz dele e ficou em silêncio.
— Este planeta é filho do Verme — advertiu ele. — E eu sou o Verme.
Ela respondeu com surpreendente despreocupação.
— Então me diga o que isso significa.
— O inseto não possui mais liberdade com relação à sua colméia do que nós com relação ao nosso passado. As cavernas estão lá, com todas as mensagens escritas na espuma das correntezas.
— Prefiro canções dançantes — ela disse.
Era uma resposta petulante, mas Leto preferiu tomá-la como simples mudança de assunto. Contou-lhe a respeito da dança matrimonial das mulheres Fremen, com os passos reminescentes do rodopio dos “diabos de pó”. Leto orgulhava-se de ser bom contador de histórias, e era evidente, pela atenção arrebatada de Siona, que ela podia ver as mulheres girando em sua mente, longos cabelos negros impulsionados por antigos movimentos, colando-se sobre rostos há muito reduzidos ao pó.
A escuridão quase os envolvia quando ele terminou.
— Venha — ele disse. — O amanhecer e o anoitecer ainda são as horas das silhuetas. Vamos ver se alguém partilha nosso deserto.
Siona o seguiu na crista de uma duna e ambos olharam em torno, para o deserto onde a noite chegava. Havia apenas um pássaro bem no alto, atraído pelos movimentos dos dois. Pela disposição das fendas nas pontas das asas e pela forma ele sabia que era um abutre. Apontou-o para Siona.
— O que eles comem? — perguntou ela.
— Qualquer coisa que esteja morta, ou quase.
Isso a impressionou e ela olhou para os últimos raios de sol tingindo de dourado o rabo do pássaro solitário.
Leto insistiu no assunto:
— Algumas pessoas ainda se aventuram no meu Sareer. Algumas vezes, um Fremen de Museu se afasta e se perde. Eles realmente só são bons nos rituais. E além disso há as extremidades do deserto e os restos deixados por meus lobos.
Diante disso, Siona virou-lhe as costas, mas não antes que ele percebesse o sentimento que ainda a consumia. Siona estava sendo duramente testada.
— O dia no deserto é pouco gracioso — continuou ele. — É por isso que viajamos à noite. Para um Fremen, a imagem do dia é a da areia soprada pelo vento apagando nossos rastros.
Os olhos dela brilharam com lágrimas quando ela se voltou, mas suas feições estavam serenas.
— Que vive neste lugar agora?
— Abutres, algumas criaturas noturnas, um remanescente ocasional da vida vegetal dos velhos dias, coisas que se enterram.
— E isso é tudo?
— Sim.
— Por quê?
— Porque foi aqui que nasceram e eu não permito que conheçam nada melhor.
Era quase escuridão, com aquela súbita fosforescência que o deserto de Leto adquiria nesses momentos. Ele a observou naquele instante luminoso, reconhecendo que ela ainda não entendera sua outra mensagem. Mas ele sabia que a mensagem lhe penetraria e se inflamaria dentro dela.
— Silhuetas — ela disse, relembrando-lhe. — Que esperava encontrar quando subimos aqui?
— Talvez pessoas a grande distância. Nunca se tem certeza.
— Que pessoas?
— Já lhe disse.
— Que teria feito se tivesse visto alguém?
— Era costume dos Fremen considerar pessoas distantes como hostis até que jogassem areia no ar.
A escuridão caiu sobre eles como uma cortina.
Siona transformou-se num movimento fantasmagórico sob a luz das estrelas.
— Areia? — ela perguntou.
— Jogar areia é um gesto profundo. Significa: “Nós compartilhamos da mesma carga.” A areia é nosso único inimigo. Isto é o que nós bebemos. A mão que segura a areia não segura armas. Está entendendo?
— Não. — Ela o provocou com desafiante falsidade.
Sem uma palavra, ela caminhou ao longo do arco da duna, afastando-se dele com um furioso excesso de energia. Leto deixou-se ficar bem atrás dela, interessado no fato de ela ter escolhido a direção certa instintivamente. As memórias Fremen estavam se remexendo dentro de Siona.
Onde a duna mergulhava para cruzar com outra, ela esperou por ele. Leto notou que a máscara facial do traje destilador permanecia aberta, pendendo, frouxa. Ainda não era hora de censurá-la por isso. Algumas das atitudes inconscientes tinham que seguir seu rumo natural.
Quando ele chegou junto dela, ela disse:
— Esta direção é tão boa quanto qualquer outra?
— Se a mantiver — disse ele.
Ela olhou para as estrelas e ele percebeu que identificava as Ponteiras, as Flechas Fremen que haviam guiado seus ancestrais sobre esta terra. Percebia, entretanto, que seu reconhecimento era apenas intelectual. Ela ainda não chegara a aceitar as outras coisas que agiam dentro dela.
Leto ergueu seus segmentos frontais para perscrutar adiante à luz das estrelas. Eles estavam se deslocando um pouco para noroeste, numa trilha que um dia conduzira, através da Cordilheira Habbanya e da Caverna dos Pássaros, para o grande erg abaixo da Falsa Muralha Oeste e o Caminho do Passo dos Ventos. Nenhum desses marcos permanecia. Ele cheirou a fria brisa, que trazia os odores de pó de pedra e mais umidade do que ele julgava agradável.
Uma vez mais Siona partiu — mais lentamente dessa vez, mantendo a direção por meio de olhares ocasionais às estrelas. Ela confiara em Leto para confirmar o caminho, mas agora se guiava por si mesma. Ele sentia o torvelinho por baixo dos pensamentos cautelosos dela e sabia que as coisas estavam emergindo. Ela começara a sentir aquela intensa lealdade dos companheiros de viagem em que o povo do deserto sempre confiara.
“Nós sabemos”, pensou ele, “que se formos separados de nossos companheiros, estaremos perdidos entre as dunas e as rochas. No deserto, o viajante solitário é um homem morto. Somente o verme vive sozinho aqui”.
Deixou que ela assumisse a dianteira de modo a que o ruído raspante de sua própria passagem pela areia não fosse muito audível. Ela tinha de pensar no lado humano dele. Ele contava com a lealdade para trabalhar a seu favor. Siona era frágil, cheia de ódio contido — mais rebelde que qualquer outra pessoa que ele já tinha testado.
Leto deslizou atrás dela, revendo seu programa de procriação, moldando as decisões necessárias para uma substituição, caso ela falhasse.
Enquanto a noite progredia, Siona andava cada vez mais lentamente. A Primeira Lua estava alta no zênite e a Segunda Lua, bem acima do horizonte, antes que ela parasse para repousar e comer.
Leto ficou satisfeito com a pausa. A fricção criara uma dominância do verme, o ar em volta dele cheio das exalações químicas de seus ajustes térmicos. A coisa em que ele pensava como sendo seu supercarregador de oxigênio soprava de modo contínuo, tornando-o intensamente consciente das fábricas de proteínas e dos recursos em aminoácidos que seu lado verme havia adquirido para acomodar o relacionamento placentário com suas células humanas. O deserto apressava o movimento em direção à sua metamorfose final.
Siona parara próximo da crista de uma duna-estrela.
— É verdade que você come areia? — perguntou ela, quando Leto veio ao seu encontro.
— É verdade.
Ela olhou para o horizonte geado pelo luar.
— Por que não trouxemos um engenho de sinalização?
— Queria que você aprendesse sobre posses.
Ela virou-se em direção a ele e Leto sentiu-lhe a respiração próxima da face. Ela estava perdendo demasiada umidade no ar seco. Ainda não se lembrava da advertência de Moneo. Seria uma amarga lição, sem dúvida alguma.
— Realmente não o entendo — ela disse.
— E no entanto você se dedica a fazer exatamente isso.
— É mesmo?
— De que outro modo poderia me dar algo de valor em troca do que lhe dou?
— Que é que você me dá? — Toda a amargura estava lá, bem como um indício da especiaria de sua comida seca.
— Eu lhe dou esta oportunidade de estar sozinha comigo, de compartilhar comigo e passar o tempo sem preocupação. Você a desperdiça.
— E quanto a posses?
Ele sentiu-lhe a fadiga na voz, a mensagem da água começando a gritar dentro dela.
— Eles, os Fremen, eram magnificamente ativos nos velhos tempos — disse ele. — E sua visão de beleza limitava-se àquilo que fosse útil. Nunca encontrei um Fremen ganancioso.
— E que isso deve significar?
— Nos velhos tempos, tudo que você levava para o deserto era o necessário, e isso era tudo que você levava. Sua vida não é mais livre de posses, Siona, ou você não teria perguntado a respeito de um aparelho sinalizador.
— Por que um sinalizador não é necessário?
— Ele não lhe ensinaria coisa alguma.
Ele moveu-se em torno dela, seguindo a linha indicada pelas Ponteiras.
— Venha, vamos usar esta noite em nosso benefício.
Ela correu para caminhar ao lado de seu rosto envolto nas dobras.
— Que acontecerá se eu não aprender sua maldita lição?
— Você provavelmente vai morrer.
Isso a silenciou por algum tempo. Ela caminhou ao lado dele, dando apenas uma olhadela ocasional para o lado, ignorando o corpo de verme e se concentrando nos remanescentes visíveis de sua humanidade. Depois de algum tempo, ela disse:
— As Oradoras Peixes disseram-me que você ordenou a união da qual eu nasci.
— Isso é verdade.
— Elas dizem que você mantém registros e que ordena esses cruzamentos entre Atreides visando seus próprios fins.
— Isso também é verdade.
— Então, a História Oral está correta.
— Pensava que você acreditasse na História Oral sem questionamentos...
Ela, porém, encontrava-se numa única trilha:
— Que acontece se um de nós faz objeção quando você ordena uma união?
— Eu concedo ampla liberdade, desde que tenha as crianças que ordenei.
— Ordenou? — Siona estava indignada.
— É o que eu faço.
— Você não pode esgueirar-se em cada quarto e nos seguir a cada minuto de nossas vidas! Como pode saber se suas ordens são obedecidas?
— Eu sei.
— Então sabe que não vou obedecê-lo!
— Está com sede, Siona?
Ela se surpreendeu.
— O quê?
— Pessoas que têm sede falam de água, não de sexo.
Ainda assim ela não colocou a máscara sobre a boca e Leto pensou: “As paixões dos Atreides sempre correm desenfreadas, mesmo à custa da razão.
Duas horas depois eles desceram das dunas para uma extensão de cascalho varrida pelos ventos: Leto avançou, Siona sempre ao lado dele. Ela olhava freqüentemente para as Ponteiras. Ambas as luas se encontravam baixas no horizonte e sua luz projetava longas sombras de cada pedra.
De certo modo, Leto achava esses lugares mais fáceis de atravessar do que a areia. As rochas sólidas conduziam melhor o calor do que a areia. Ele podia achatar-se sobre as pedras e aliviar o funcionamento de suas fábricas químicas. Cascalho e mesmo pedras de bom tamanho não o detinham.
Siona tinha mais problemas nesse terreno, contudo, e quase torceu o tornozelo várias vezes.
As terras planas podiam ser um local muito difícil para os seres humanos desacostumados a elas, pensou Leto. Se eles ficassem junto do solo, veriam apenas uma grande vastidão vazia, um lugar estranho, especialmente sob a luz do luar — dunas a distância, uma distância que parecia não se modificar com o andar do viajante — nada em parte alguma, a não ser o vento aparentemente eterno, algumas rochas e, quando se olhava para cima, as estrelas implacáveis. Esse era o deserto do deserto.
— Foi aqui que a música dos Fremen adquiriu sua eterna solidão — disse ele. — Não lá em cima, nas dunas. E aqui que você realmente aprende a pensar que o paraíso deve ser o som de água corrente e um alivio, qualquer que seja, para esse vento interminável.
Nem mesmo isso a lembrou da máscara facial. Leto começou a se sentir desesperado.
A manhã os encontrou bem dentro da planura.
Leto parou junto de três grandes pedras, empilhadas uma contra a outra, uma delas mais alta que as suas costas. Siona inclinou-se sobre ele por um momento, gesto que de certo modo lhe restaurou as esperanças. Ela se afastou daí a pouco e subiu na pedra mais alta. Ele a observou virando-se lá em cima para examinar o panorama.
Sem olhar, Leto já sabia o que ela estava vendo: areia soprada formando uma névoa sobre o horizonte que obscurecia o sol nascente. Quanto ao resto, haveria apenas a planície e o vento.
A rocha estava fria embaixo dele, com o frio de uma manhã no deserto. O frio tornava o ar muito mais seco e ele achava isso mais agradável. Sem Siona ele teria continuado a avançar, mas ela se encontrava visivelmente exausta. Inclinou-se sobre ele uma vez mais, assim que desceu da pedra, e passou quase um minuto antes que Leto percebesse que ela estava escutando.
— Que está ouvindo? — perguntou ele.
Ela respondeu, sonolenta:
— Há um ronco dentro de você.
— O fogo nunca se apaga de todo.
Isso a interessou. Ela se afastou do seu lado e foi para a frente a fim de lhe olhar o rosto.
— Fogo?
— Cada criatura viva tem um fogo em seu interior, alguns lentos, outros rápidos. O meu é mais quente que o da maioria.
Ela se encolheu de frio.
— Então não está sentindo frio aqui?
— Não, mas posso ver que você está. — Ele puxou sua face parcialmente para dentro da depressão formada pelas dobras da pele de truta da areia, produzindo assim uma cova no fundo do arco de seu primeiro segmento. — É quase como se deitar em uma rede — ele disse, olhando para baixo. — Se você se encolher aqui, vai se sentir quente.
Sem hesitar, ela aceitou o convite.
Mesmo tendo-a preparado para isso, Leto achou tocante a confiança dessa resposta. Tinha de lutar contra um sentimento de piedade muito mais forte do que qualquer outro que experimentara antes de conhecer Hwi. Ali não poderia haver espaço para a piedade, lembrou a si mesmo. Siona estava revelando claros indícios de que muito provavelmente iria morrer nesse lugar. Tinha de se preparar para o desapontamento.
A moça cobriu o rosto com o braço, fechou os olhos e dormiu.
“Ninguém teve tantos passados como eu tive”, ele se lembrou.
Do ponto de vista humano, sabia que as coisas que fazia podiam parecer cruéis e insensíveis. Era forçado agora a se enrijecer, buscando apoio em suas memórias, deliberadamente selecionando “erros do nosso passado comum”. Esse acesso de primeira mão aos erros humanos era sua maior força agora. O conhecimento dos erros lhe proporcionava correções de longo prazo. Precisava estar constantemente consciente das conseqüências. Se as conseqüências eram ocultas ou perdidas, as lições estavam perdidas.
Mas quanto mais perto ele chegava de se tornar um verme da areia, mais difícil se tornava tomar decisões que outros chamariam de desumanas. Houvera época em que ele fazia isso com toda a facilidade. Agora, na medida em que sua humanidade lhe escapava, ele se sentia mais e mais tomado por preocupações humanas.
No berço do nosso passado, deito-me de costas em uma caverna tão estreita que eu só poderia entrar nela fazendo contorções, não me arrastando. Lá, à luz dançante de uma tocha de resina, desenho no teto e nas paredes as criaturas que caço e as almas do meu povo. Como é esclarecedor sondar o passado através de um círculo perfeito, até aquela luta ancestral por um momento visível da alma. E o tempo inteiro vibra o chamado: “Aqui estou!” Com a mente formada pelos gigantescos artistas que vieram depois, vejo as impressões digitais e os músculos fluidos desenhados sobre a rocha com carvão e nódoas vegetais. Como somos tão mais do que meros eventos mecânicos!
E meu lado anticivil se pergunta: “Por que eles não querem deixar a caverna?”
— Os diários roubados
O convite para encontrar Moneo em sua sala de trabalho chegou a Idaho no final da tarde. Durante o dia inteiro, Idaho ficara na rede, em seu alojamento, pensativo.
Cada pensamento dirigia-se naturalmente para a facilidade com que Moneo o deixara esparramado no piso do corredor, naquela manhã.
“Você é apenas um modelo mais antigo.”
E a cada pensamento Idaho se sentia ainda mais diminuído. Sentia apagar-se a vontade de viver, deixando cinzas onde sua raiva se queimara até se esgotar.
“Sou apenas o recipiente de algum esperma útil e nada mais.”
Era um pensamento que convidava à morte ou ao hedonismo. Sentia-se empalado num espinho do acaso, com forças irritantes puxando-o de todos os lados.
A jovem mensageira, em seu limpo uniforme azul, era apenas outra irritação. Ela entrou devido à resposta baixa à sua batida na porta, e parou sob o portal em arco da ante-sala, hesitando até ter julgado o estado de espírito de Idaho.
“Como as notícias viajam rápido”, pensou ele.
Ele a via ali, emoldurada pelo portal, uma projeção da essência das Oradoras Peixes — mais voluptuosa que algumas, mas não mais espalhafatosamente sensual. O uniforme azul não ocultava os quadris graciosos, os seios firmes. Ele olhou para o rosto travesso sob o cabelo louro — o corte das acólitas.
— Moneo me mandou procurá-lo — ela disse. — Pergunta se poderia juntar-se a ele em seu gabinete de trabalho.
Idaho vira o gabinete de trabalho várias vezes, mas ainda se lembrava melhor de sua primeira visita. Sabia, ao entrar na sala, que era o lugar onde Moneo passava a maior parte do tempo. Havia uma mesa de madeira marrom, riscada por finos grãos dourados. Tinha dois metros por um e se apoiava sobre pernas curtas, em meio a almofadas cinzentas. Essa mesa parecera a Idaho alguma coisa rara e dispendiosa, escolhida para se destacar no ambiente. E as almofadas, que eram do mesmo tom cinzento do piso, das paredes e do teto, eram as únicas mobílias.
Considerando-se o poder de seu ocupante, a sala era pequena, não mais que cinco metros por quatro, com teto elevado. A luz penetrava por duas janelas estreitas de vidro opaco, que se opunham uma à outra nas paredes. As janelas abriam-se a uma altura considerável, uma delas voltada para a fronteira noroeste do Sareer e a borda verde da Floresta Proibida, a outra fornecendo uma visão de sudoeste sobre as dunas ondulantes.
“Contraste.”
A mesa produzira uma nuança interessante em seu pensamento. A superfície parecera-lhe um arranjo demonstrando a idéia de confusão. Finas folhas de papel de cristal pareciam espalhadas sobre a superfície, deixando apenas vislumbres da madeira granulada embaixo delas. Letras rebuscadas cobriam alguns dos papéis. Idaho reconheceu palavras em Galach e quatro outras línguas, inclusive um raro idioma transitório de Perth. Várias folhas de papel tinham desenhos e algumas estavam rabiscadas com pinceladas negras de escrita na caligrafia em negrito da Bene Gesserit. O mais interessante de tudo haviam sido quatro tubos brancos enrolados, com aproximadamente um metro de comprimento — impressos tridimensionais produzidos por um computador ilegal. Ele suspeitara de que o terminal do computador estivesse escondido atrás de um painel em uma das paredes.
A jovem mensageira de Moneo pigarreou para tirar Idaho de seu devaneio.
— Que resposta devo levar para Moneo? — perguntou.
Idaho focalizou a atenção no rosto dela.
— Gostaria que eu a fecundasse?
— Comandante! — Ela estava obviamente chocada, não tanto pela sugestão, e sim pelo desvio do assunto.
— Ah, sim — disse Idaho. — Moneo. Que devemos dizer a Moneo?
— Ele aguarda sua resposta, Comandante.
— Há realmente alguma importância na minha resposta?
— Moneo disse-me para informá-lo de que deseja conferenciar com o senhor e Lady Hwi juntos.
Idaho sentiu um vago aumento de interesse.
— Hwi está com ele?
— Ela foi chamada, Comandante. — A mensageira pigarreou uma vez mais. — O comandante desejaria que eu viesse aqui mais tarde, esta noite?
— Não, obrigado. Mudei de idéia.
Ele achou que ela ocultara bem seu desapontamento, mas a voz escapou rigidamente formal:
— Devo dizer a Moneo que vai atender seu chamado?
— Faça isso. — Ele acenou para que ela se afastasse.
Depois que ela tinha saído, ele considerou a possibilidade de simplesmente ignorar a convocação. Mas a curiosidade crescia dentro dele. Moneo queria falar-lhe na presença de Hwi? Por quê? Será que ele pensava que isso traria Idaho correndo? Engoliu em seco. Quando pensava em Hwi, o vazio em seu peito se tornava total. Essa mensagem não podia ser ignorada. Alguma coisa de terrível poder o mantinha ligado a Hwi.
Levantou-se, os músculos rígidos depois do longo tempo inativos. A curiosidade e a força de ligação com Hwi o impeliam. Saiu para o corredor, ignorando os olhares curiosos das guardas que passavam, e seguiu aquela constrangedora pressão interior até a sala de Moneo.
Hwi já estava lá, defronte à mesa atulhada de Moneo. Seus pés, calçando chinelos vermelhos, dobravam-se na almofada cinzenta sobre a qual ela se sentava. Idaho só percebeu que ela usava um longo vestido marrom, com um cinturão de pano verde trançado; então ela se voltou em sua direção e ele só pôde notar-lhe o rosto. A boca que formava seu nome mesmo sem pronunciá-lo.
“Até ela ouviu”, pensou ele.
Estranhamente, esse pensamento lhe dava forças. Os pensamentos desse dia começavam a tomar novas formas em sua mente.
— Por favor, sente-se, Duncan — disse Moneo.
Ele indicou uma almofada ao lado de Hwi. Sua voz tinha um tom pausado, curioso, que poucas pessoas além de Leto já haviam notado. Ele mantinha o olhar voltado para baixo, em direção à superfície abarrotada de sua mesa. A luz baixa do sol do fim da tarde lançava uma sombra parecida com uma aranha vinda do peso de papel dourado, em forma de árvore, com um fruto feito de jóias, tudo montado numa montanha de cristal-fogo.
Idaho sentou-se na almofada indicada, observando o olhar de Hwi seguindo-o até que estivesse sentado. Ela então olhou para Moneo e ele julgou ver ódio na expressão dela. O costumeiro uniforme branco de Moneo estava aberto na gola revelando um pescoço enrugado e uma ligeira papada. Idaho olhou nos olhos do homem, preparado para esperar, forçando Moneo a abrir a conversa.
Moneo devolveu-lhe o olhar; notando que Idaho ainda usava o uniforme negro de seu encontro com ele essa manhã. Havia até mesmo um pequeno sinal de sujeira na frente, lembrando o corredor onde Moneo o derrubara. Mas Idaho não usava mais a velha faca Atreides. Isso perturbou Moneo.
— O que fiz esta manhã foi imperdoável — disse Moneo. — Portanto, não vou lhe pedir que me perdoe. Apenas lhe peço que compreenda.
Hwi não pareceu surpresa por essa abertura, notou Idaho. Isso revelava muito a respeito do assunto que os dois tinham estado discutindo antes da sua chegada.
Como Idaho não respondesse, Moneo disse:
— Eu não tinha o direito de fazê-lo sentir-se inadequado.
Idaho percebeu que sentia uma reação curiosa aos modos e palavras de Moneo. Ainda havia o sentimento de estar sendo manobrado e superado, de estar muito longe do seu tempo, mas não mais suspeitava de que Moneo pudesse estar brincando com ele. Alguma coisa havia reduzido o majordomo a um arenoso substrato de honestidade. Essa percepção colocava o universo de Leto, o erotismo mortal das Oradoras Peixes, a inegável candura de Hwi — tudo — num novo relacionamento, uma forma que Idaho sentia entender. Era como se os três nessa sala fossem os últimos seres humanos verdadeiros em todo o universo. Ele falou com um sentimento de amarga autodepreciação.
— Você tinha todo o direito de se proteger quando o ataquei. Satisfaz-me que seja tão capaz.
Idaho virou-se para Hwi, mas, antes que ele pudesse falar, Moneo disse:
— Você não precisa me defender. Creio que o desprazer que ela sente com relação a mim é totalmente irredutível.
Idaho sacudiu a cabeça.
— Será que todo o mundo aqui sabe o que vou dizer antes que eu o diga, o que eu vou sentir antes que eu o sinta?
— É uma de suas qualidades mais admiráveis — disse Moneo. — Não ocultar seus sentimentos. Nós — ele encolheu os ombros — somos necessariamente mais circunspectos. Idaho olhou para Hwi.
— Ele fala por você?
Ela colocou a mão sobre a de Idaho:
— Eu falo por mim mesma.
Moneo esticou o pescoço para olhar as mãos unidas, depois afundou em sua almofada com um suspiro.
— Vocês não devem fazer isso.
Idaho segurou a mão dela com mais força, sentindo a resposta.
— Antes que um de vocês pergunte — disse Moneo —, minha filha e o Imperador-Deus ainda não voltaram do teste.
Idaho sentiu o esforço que era exigido de Moneo para falar calmamente. Hwi também percebeu.
— É verdade o que dizem as Oradoras Peixes? — perguntou ela. — Siona morre se fracassar?
Moneo permaneceu em silêncio, mas seu rosto era como rocha.
— É como o teste da Bene Gesserit? — perguntou Idaho. — O Muad'Dib disse que a Irmandade faz um teste para descobrir se você é humano.
As mãos de Hwi começaram a tremer. Idaho sentiu e olhou para ela.
— Elas testaram você?
— Não — disse Hwi. — Mas ouvi as jovens falando a respeito. Elas dizem que você deve suportar a agonia sem perder o senso de identidade.
Idaho voltou a atenção para Moneo, notando o princípio de um tique nervoso ao lado do olho esquerdo do majordomo.
— Moneo — disse Idaho num suspiro, dominado por uma súbita compreensão —, ele testou você!
— Não desejo discutir testes — respondeu Moneo. — Estamos aqui para decidir o que deve ser feito com relação a vocês dois.
— Não pode deixar isso por nossa conta? — perguntou Idaho. Ele sentia a mão de Hwi tornando-se escorregadia com a transpiração.
— É da conta do Imperador-Deus — respondeu Moneo.
— Mesmo que Siona falhe? — indagou Idaho.
— Principalmente se ela falhar!
— Como foi que ele o testou? — perguntou Idaho.
— Ele me mostrou um pequeno vislumbre de como é ser o Imperador-Deus.
— E?
— Eu vi tanto quanto sou capaz de ver.
As mãos de Hwi comprimiram convulsivamente as de Idaho.
— Então é verdade que você um dia foi um rebelde — disse Idaho.
— Comecei com amor e preces — disse Moneo. — Depois mudei para ódio e rebelião. E fui transformado no que vê diante de você. Reconheço o meu dever e o cumpro.
— Que ele fez com você? — quis saber Idaho.
— Declamou para mim a prece da minha infância: “Eu dou minha vida em dedicação à glória maior de Deus.” — Moneo falou numa voz meditativa.
Idaho notou a imobilidade de Hwi, seu olhar fixo no rosto de Moneo. No que ela estaria pensando?
— Eu admiti que essa tinha sido a minha prece — continuou Moneo. — E o Imperador-Deus me perguntou o que eu daria se minha vida não fosse o bastante. Ele gritou para mim: “Que é a sua vida quando você guarda uma dádiva muito maior?”
Hwi mexeu afirmativamente a cabeça, mas Idaho apenas se sentiu ainda mais confuso.
— Ouvi a verdade na voz dele — disse Moneo.
— Você é um Revelador da Verdade? — perguntou Hwi.
— Sob a força do desespero, sim — disse Moneo. — Mas só nesse caso. Eu lhe juro que ele me falou a verdade.
— Alguns Atreides tinham o poder da Voz — murmurou Idaho.
Moneo sacudiu a cabeça.
— Não, era verdade. Ele me disse: “Olho para você agora e se pudesse verteria lágrimas. Considere o desejo como um ato!”
Hwi inclinou-se para diante, quase tocando a mesa.
— Ele não pode chorar?
— Vermes da areia — sussurrou Idaho.
— O quê? — Hwi virou-se em direção a ele.
— Os Fremen matavam Os vermes da areia com água — disse Idaho. — Com o afogamento, produziam a essência de especiaria para suas orgias religiosas.
— Mas Lorde Leto ainda não é totalmente um verme da areia — observou Moneo.
Hwi inclinou-se para trás em sua almofada e olhou para Moneo.
Idaho comprimiu os lábios, pensando. Teria Leto a inibição dos Fremen em relação às lágrimas? Como os Fremen sempre se admiravam do desperdício de umidade! “Dar água aos mortos.”
Moneo voltou-se para Idaho:
— Eu tinha esperanças de que você pudesse ser levado a um entendimento. Lorde Leto disse: “Você e Hwi devem separar-se e nunca mais ver um ao outro.”
Hwi soltou a mão de Idaho.
— Nós sabemos.
Idaho disse com resignada amargura:
— Nós conhecemos seu poder.
— Mas não o compreendem — disse Moneo.
— Eu não desejo mais do que isso — disse Hwi. Ela colocou a mão sobre o braço de Idaho para silenciá-lo. — Não, Duncan. Nossos desejos particulares não têm lugar aqui.
— Talvez você devesse orar a ele — disse Idaho.
Ela virou-se e olhou para ele, fitando-o até que Idaho baixasse a cabeça. Quando ela falou, sua voz tinha um tom musical que ele nunca ouvira antes:
— Meu tio Malky sempre me dizia que Lorde Leto nunca respondeu a uma prece. Ele dizia que Lorde Leto via na prece uma tentativa de coerção, uma forma de violência contra o deus escolhido, dizendo ao imortal o que fazer: “Dê-me um milagre, Deus, ou não acreditarei no Senhor!
— Prece como hubris — disse Moneo. — Intercessão sobre uma demanda.
— Como ele pode ser um deus? — retrucou Idaho. — Como ele próprio admitiu, não é imortal.
— Eu citarei Lorde Leto a esse respeito — disse Moneo. — “Eu sou todos os deuses que precisam ser vistos. Eu sou a palavra convertendo-se em milagre. Eu sou todos os meus ancestrais. Não será isso um milagre suficiente? Que mais vocês poderiam querer? Pergunte a si mesmo: Onde existe um milagre maior?”
— Palavras vazias — zombou Idaho.
— Também lhe disse isso — replicou Monco. — Devolvi-lhe suas próprias palavras da História Oral: “Dê para a glória maior de Deus!”
Hwi ficou boquiaberta.
— Ele riu de mim — disse Monco. — Riu e me perguntou como eu poderia dar o que já pertencia a Deus.
— Você ficou furioso? — indagou Hwi.
— Oh, sim. Ele percebeu e disse que iria me mostrar como contribuir para a glória. Ele disse: “Você pode observar que é, em cada detalhe, um milagre tão grande quanto eu.” — Moneo virou-se, olhando para a janela à sua esquerda. — Temo que minha raiva me fizesse surdo e eu estivesse totalmente despreparado.
— Oh, ele é muito hábil — disse Idaho.
— Hábil? — Moneo olhou para ele. — Não creio, não no sentido em que você diz. Acho que Lorde Leto não é mais hábil do que eu nesse sentido.
— Despreparado para quê? — perguntou Hwi.
— Para me arriscar — respondeu Moneo.
— Mas você arriscou muito com sua raiva — ela disse.
— Não tanto quanto ele. Eu vejo em seus olhos, Hwi, que você compreende isto. O corpo dele lhe causa repugnância?
— Agora não — respondeu ela.
Idaho trincou os dentes de frustração.
— Ele me enoja!
— Amor, não deve dizer essas coisas — disse Hwi.
— E você não deve chamá-lo de amor — censurou Moneo.
— Você prefere que ela aprenda a amar alguém mais perverso e brutal do que qualquer Barão Harkonnen já sonhou ser — disse Idaho.
Moneo comprimiu os lábios, depois disse:
— Lorde Leto me falou a respeito desse homem perverso do seu tempo, Duncan. Não creio que você entendesse o seu inimigo.
— Ele era gordo, monstruoso...
— Ele era um caçador de sensações — disse Moneo. — A gordura era um efeito colateral, ou então uma sensação em si mesmo, pois ela ofendia as pessoas e ele adorava ofendê-las.
— O Barão consumiu apenas alguns planetas — disse Idaho. — Leto consome o universo.
— Amor, por favor! — protestou Hwi.
— Deixe-o falar. Quando eu era jovem e ignorante, como minha Siona e este pobre tolo, fiz coisas semelhantes.
— É por isso que deixou sua filha partir para a morte? — perguntou Idaho.
— Amor, isso é crueldade — disse Hwi.
— Duncan, sempre foi uma de suas falhas buscar a histeria. Eu o advirto que a ignorância floresce a partir da histeria. Seus genes proporcionam vigor e você pode inspirar algumas Oradoras Peixes, mas você é um líder fraco.
— Não tente me enfurecer — disse Idaho. — Sei muito bem que não devo atacá-lo, mas não me provoque tanto.
Hwi tentou segurar a mão de Idaho, mas ele a retirou.
— Conheço o meu lugar — ele disse. — Sou um útil seguidor e posso carregar a bandeira dos Atreides. O verde e o negro estão em minha alma!
— Os indignos mantêm o poder promovendo a histeria — disse Moneo. — A arte dos Atreides é a arte de governar sem histeria, a arte de ser responsável pelos usos do poder.
Idaho levantou-se num ímpeto.
— Quando é que o seu Imperador-Deus já foi responsável por alguma coisa?
Moneo olhou para a mesa abarrotada e falou sem voltar os olhos para cima.
— Ele é responsável pelo que fez a si mesmo. — Depois ergueu os olhos brilhantes. — Você não tem coragem, Duncan, de aprender por que ele fez isso a si mesmo!
— E você tem?
— Quando eu estava no auge da fúria — disse Moneo — e ele via a si próprio através dos meus olhos, ele disse: “Como se atreve a ser ofendido por mim?” E foi então — Moneo engoliu em seco — que ele me fez ver o horror... que ele já tinha visto. — Lágrimas rolaram dos olhos de Moneo, descendo por suas faces. — E fiquei apenas feliz por não ter sido obrigado a tomar tal decisão... por poder me contentar em ser um seguidor.
— Eu o toquei — sussurrou Hwi.
— Então você sabe? — perguntou Moneo.
— Sem ter visto, eu sei — ela disse.
Em voz baixa, Moneo continuou:
— Quase morri daquilo. Eu... — Ele estremeceu, então olhou para Idaho. — Você não deve...
— Malditos sejam todos vocês! — explodiu Idaho. Levantou-se e saiu correndo da sala.
Hwi ficou olhando, seu rosto uma máscara de angústia.
— Oh, Duncan — sussurrou.
— Está vendo? — perguntou Moneo. — Você estava errada. Nem você nem as Oradoras Peixes puderam melhorar o gênio dele. Mas você, Hwi, você só contribuiu para a sua destruição.
Em sua aflição, Hwi voltou-se para Moneo.
— Não vou tornar a vê-lo.
Para Idaho, a passagem em direção aos seus alojamentos tornou-se uma das ocasiões mais difíceis de que tinha memória. Tentava imaginar seu rosto como uma máscara de plasteel, imóvel para ocultar a turbulência interior. Nenhuma das guardas por que passava podia ver sua dor. Não sabia que a maioria delas fizera suposições precisas quanto às suas emoções e tinha compaixão por ele. Todas elas tinham assistido a palestras a respeito dos Duncans e haviam aprendido a ler bem suas emoções.
No corredor perto de seus alojamentos, Idaho encontrou Nayla caminhando lentamente em direção a ele. Havia alguma coisa no rosto dela, uma aparência de indecisão e perda, que o deteve brevemente e quase o tirou de sua concentração interna.
— Amiga? — disse ele, falando quando estava a apenas alguns passos dela.
Ela olhou para ele, o reconhecimento óbvio em sua face quadrangular.
“Que mulher estranha”, pensou ele.
— Não sou mais Amiga — ela disse, e passou por ele sem se virar.
Idaho voltou-se, olhando para as costas dela — aqueles ombros pesados, aquela insinuação de músculos terríveis.
“Para que será que ela foi preparada?”, ele se perguntou.
Mas foi apenas um pensamento passageiro. Logo suas preocupações retornaram, mais fortes que antes. Ele caminhou mais alguns passos até o quarto.
Uma vez lá dentro, Idaho parou com os punhos contraídos.
“Não tenho mais laços com época alguma”, pensou. E como era estranho que esse não fosse um pensamento de liberdade. No entanto sabia que tinha feito aquilo que libertaria Hwi de seu amor por ele. Sentia-se diminuído. Em breve ela iria pensar nele como um bobo, pequeno e petulante, dominado apenas pelas próprias emoções. Podia sentir-se apagado das preocupações imediatas dela.
“E aquele pobre Moneo!”
Idaho sentia a forma das influências que tinham formado o dócil majordomo. “Dever e responsabilidade.” Que abrigo seguro eram elas num tempo de decisões difíceis.
“Um dia eu fui assim”, pensou Idaho. “Mas isso foi em outra época, outra vida.”
Os Duncans às vezes perguntam se compreendo as idéias exóticas do nosso passado. E, se as compreendo, então por que não posso explicá-las. O conhecimento, os Duncans acreditam, resume-se apenas aos pormenores. Tento explicar-lhes que todas as palavras são plásticas. As imagens verbais começam a ser distorcidas no momento em que são pronunciadas. As idéias embebidas na linguagem exigem uma língua determinada para serem expressas. Essa é a própria essência do significado da palavra exótico.
Percebe como começa a se distorcer? A tradução cambaleia na presença do exótico. O Galach que eu falo aqui impõe-se a si próprio. É uma moldura externa de referência, um sistema particular. O perigo espreita em todos os sistemas. Os sistemas incorporam as crenças implícitas de seus criadores. Adote um sistema, aceite suas crenças, e você ajudará a reforçar a resistência à mudança. Servir-me-á de algum modo dizer aos Duncans que não existem linguagens para certas coisas? Ah! Mas os Duncans acreditam que todas as linguagens me pertencem.
— Os diários roubados
Por dois turnos completos de dias e noites, Siona deixou de fechar a máscara sobre o rosto, perdendo água preciosa a cada respiração. Foi necessária a advertência dos Fremen às crianças antes que ela se lembrasse das palavras de seu pai. Leto falara com ela finalmente, no frio da terceira manhã da travessia, quando eles pararam à sombra de uma rocha na planura varrida pelos ventos do erg.
— Guarde cada fôlego, cada suspiro, pois ele carrega o calor e a umidade da sua vida.
Sabia que passariam mais três dias e três noites no erg antes de alcançarem água. Agora era a quinta manhã desde a partida da Torre da Pequena Cidadela. Eles haviam avançado sobre montes rasos de areia durante a noite — não eram dunas, mas dunas podiam ser vislumbradas adiante, e até mesmo os remanescentes da Cordilheira Habbanya eram uma linha fina e quebrada, vislumbrada na distância, desde que se soubesse para onde olhar.
Agora, Siona tirava a máscara facial apenas para falar claramente. E falava com lábios negros, que sangravam.
“Ela tem a sede dos desesperados”, pensou Leto enquanto deixava os sentidos sondarem as cercanias. “Logo chegará ao momento de crise.” Seus sentidos lhe diziam que ainda se encontravam sozinhos na extremidade da planície. Aurora estava a apenas alguns minutos no passado. A luz baixa criava barreiras de reflexo na areia, as quais ondulavam, erguiam-se e caíam no vento incessante. Seus sentidos filtraram o vento para que pudesse ouvir outras coisas — a respiração pesada de Siona, o escorrer da areia nas rochas ao lado, seu próprio corpo pesado friccionando uma fina cobertura de areia.
Siona puxou a máscara facial, mas a manteve segura para uma rápida recolocação.
— Quanto tempo até encontrarmos água?
— Três noites.
— Existe alguma direção melhor para seguirmos?
— Não.
Ela passara a apreciar a economia Fremen como informação importante. Bebeu avidamente as poucas gotas em sua bolsa recolhedora.
Leto reconheceu a mensagem nos movimentos dela — gestos familiares para Fremen in extremis. Siona estava agora totalmente consciente de uma experiência comum entre seus ancestrais — o patiyeh, a sede à beira da morte.
As poucas gotas no bolsão de recolhimento do traje se haviam acabado. Ele a ouviu sugando o ar. Siona recolocou a máscara e falou com a voz abafada.
— Não vou conseguir, vou?
Leto olhou para os olhos dela, vendo aquela clareza de pensamentos trazida pela proximidade da morte, uma consciência penetrante, raramente conseguida de outro modo. Isso ampliava apenas o que era necessário à sobrevivência. Sim, ela estava bem dentro do tedah ri-agrimi, a agonia que abre a mente. Logo estaria tomando aquela decisão final que acreditava já ter sido assumida. Leto reconhecia pelos indícios que era preciso tratar Siona com extrema cortesia. Ele teria que responder cada pergunta com candura porque cada pergunta traria um julgamento.
— Vou? — insistiu ela.
Ainda havia um resto de esperança em seu desespero.
— Nada é certo — ele disse.
Isso jogou-a no desespero.
Não fora essa a intenção de Leto, mas ele sabia que isso acontecia com freqüência — uma reação precisa, embora ambígua, era reconhecida como a confirmação dos temores mais profundos da pessoa.
Ela suspirou.
Sua voz abafada pela máscara sondou uma vez mais:
— Você tinha alguma intenção especial para mim em seu programa de procriação.
Não era uma pergunta.
— Todas as pessoas têm intenções — disse ele.
— Mas você queria minha concordância total.
— É verdade.
— Como podia esperar que eu concordasse quando sabe que odeio tudo a seu respeito? Seja honesto comigo!
— O tripé onde assenta a concordância é formado pelo desejo, o conhecimento e a dúvida. Honestidade e precisão têm muito pouco a ver.
— Por favor, não discuta comigo. Sabe que estou morrendo.
— Eu a respeito demasiado para discutir com você.
Ele ergueu ligeiramente os segmentos frontais, sondando o vento. Já começava a trazer o calor do dia, mas havia muita umidade para o seu conforto. Lembrava-lhe de que, quanto mais ordenava o clima controlado, mais coisas existiam exigindo controle. Os absolutos só levavam mais perto das indeterminações.
— Você diz que não está discutindo, mas...
— A discussão fecha as portas dos sentidos — disse ele, abaixando-se de novo na superfície. — Ela sempre mascara a violência. Uma discussão, se prolongada por muito tempo, sempre conduz à violência. Não tenho intenções violentas com relação a você.
— Que quer dizer com desejo, conhecimento e dúvida?
— O desejo une os participantes. O conhecimento estabelece os limites do diálogo. A dúvida molda as perguntas.
Ela aproximou-se a fim de olhar diretamente para o rosto dele de menos de um metro de distância.
Como era singular, ele pensou, que o ódio pudesse fundir-se tão completamente com a esperança, o medo e a admiração.
— Poderia me salvar?
— Existe um modo.
Ela assentiu com a cabeça e Leto percebeu que Siona havia saltado para a conclusão errada.
— Você quer trocar isso pelo meu acordo! — ela acusou.
— Não.
— Se eu passar no seu teste.
— Não é meu o teste.
— De quem é?
— Ele deriva de nossos ancestrais comuns.
Siona abaixou-se para se sentar na rocha fria e ficou em silêncio. Ainda não se sentia pronta para pedir pelo lugar de repouso dentro da borda quente do segmento frontal. Leto julgou poder ouvir o grito que esperava dentro da garganta dela. Agora suas dúvidas estavam em ação. Ela estava começando a se perguntar se ele realmente podia ser encaixado naquela imagem do Último Tirano. Olhou para ele com aquela terrível limpidez que Leto havia identificado nela:
— Que o faz fazer o que faz?
A pergunta era bem colocada. Ele disse:
— A necessidade de salvar o meu povo.
— Que povo?
— Minha definição é mais ampla que a de qualquer outro... mesmo que a da Bene Gesserit, que julga ter definido o que é ser humano. Refiro-me à eterna linha de toda a humanidade, qualquer que seja a definição.
— Está tentando me dizer.
Sua boca tornou-se muito seca para continuar falando. Ela tentou acumular saliva. Leto viu os movimentos dentro da máscara facial. Sua pergunta era óbvia, contudo, e ele não esperou.
— Se não fosse eu, agora não haveria gente em parte alguma, gente alguma. E o caminho rumo a essa extinção da humanidade era mais horrendo do que a imaginação mais extravagante poderia conceber.
— Sua suposta presciência — retrucou ela.
— O Caminho Dourado ainda permanece aberto.
— Eu não confio em você!
— Porque não somos iguais?
— Sim!
— Mas somos interdependentes.
— Qual a necessidade que tem de mim?
“Ah, o grito do jovem incerto do seu nicho.” Sentia a força dentro dos laços secretos da dependência e se forçou a ser duro. “A dependência gera a fraqueza!”
— Você é o Caminho Dourado — disse Leto.
— Eu? — era quase um sussurro.
— Você leu aqueles diários que roubou de mim. Eu estou neles, mas onde está você? Olhe para o que eu criei, Siona. E você, você não pode criar nada a não ser você mesma.
— Palavras, mais palavras habilidosas.
— Não sofro por ser adorado, Siona, sofro por nunca terem gostado de mim. Talvez... Não, não me atrevo a ter esperanças com relação a você.
— Qual é o propósito daqueles diários?
— Uma máquina Ixiana os registra. Deverão ser encontrados numa época distante. Farão as pessoas pensarem.
— Uma máquina Ixiana? Você desafia o Jihad!
— Há uma lição nisso também. O que tais máquinas realmente fazem? Elas aumentam o número de coisas que podemos fazer sem pensar. E coisas que nós fazemos sem pensar... esse o verdadeiro perigo. Olhe a distância que você caminhou neste deserto sem pensar na sua máscara facial.
— Você podia ter me avisado!
— E aumentar a sua dependência?
Ela olhou para ele por um momento, depois disse:
— Por que deseja que eu comande as suas Oradoras Peixes?
— Você é uma mulher Atreides, cheia de iniciativa e capaz de pensar com independência. Você pode ser sincera apenas para se manter fiel à verdade tal como a vê. Foi gerada e criada para comandar. O que significa ser livre da dependência.
O vento fazia rodopiar o pó e a areia em torno deles enquanto ela pesava as palavras de Leto.
— E se eu concordar, vai me salvar?
— Não.
Ela estivera tão certa de que a resposta seria o oposto que levou várias batidas do coração para que pudesse compreender aquela única palavra. Durante esse tempo, o vento diminuiu ligeiramente, expondo uma vista da paisagem de dunas até os restos da Cordilheira Habbanya. O ar ficou subitamente gelado com aquele frio que fazia tanto para roubar a umidade da carne quanto a luz solar mais quente. Parte da consciência de Leto detectou a oscilação do controle do clima.
— Não? — Ela estava tão intrigada quanto furiosa.
— Não faço acordos de sangue com pessoas em quem devo confiar.
Ela sacudiu a cabeça lentamente, de um lado para o outro, mas seu olhar permaneceu fixo no rosto dele.
— Que irá fazê-lo salvar-me?
— Nada me obrigará a fazer isso. Por que acha que me levaria a fazer por você o que não pode fazer por mim? Esse não é o caminho que leva à interdependência.
Os ombros dela abaixaram-se.
— Se não posso fazer um acordo com você ou forçá-lo a...
— Então você deve escolher outro caminho.
“Que coisa maravilhosa é observar o crescimento explosivo da compreensão”, ele pensou. As feições expressivas de Siona não lhe ocultavam coisa alguma. Ela focalizou a atenção em seus olhos, fitando-os como se quisesse penetrar em seus pensamentos. Uma nova força surgiu em sua voz abafada.
— Você me faria conhecer tudo a seu respeito... mesmo cada fraqueza?
— Você roubaria de mim o que eu daria abertamente?
A luz da manhã atingia-lhe duramente o rosto.
— Não lhe prometo coisa alguma.
— Nem eu exijo isso — disse Leto.
— Mas vai me dar... água se eu pedir?
— Não é apenas água.
Ela acenou afirmativamente com a cabeça.
— E eu sou Atreides.
As Oradoras Peixes não ocultavam a lição referente a essa suscetibilidade especial nos genes dos Atreides. Ela sabia de onde a especiaria se originava e o que poderia fazer com ela. As instrutoras, nas escolas das Oradoras Peixes, nunca lhe tinham falhado. E as pequenas adições de melange na comida seca de Siona também tinham feito seu trabalho.
— Essas dobras pequenas e curvas ao lado do meu rosto — disse Leto. — Acaricie uma delas suavemente com o dedo e ela produzirá algumas gotas de umidade pesadamente carregadas de essência de especiaria.
Ele viu a compreensão nos olhos dela. Memórias que não reconhecia como memórias estavam falando para ela. E Siona era o resultado de muitas gerações através das quais a sensibilidade dos Atreides fora aumentada.
Mesmo a urgência de sua sede não fez com que ela agisse.
Para ajudá-la a superar a crise, contou-lhe a respeito das crianças Fremen buscando trutas da areia na borda de um oásis e tirando a umidade delas para uma rápida revitalização.
— Mas eu sou Atreides — ela disse.
— A História Oral diz a verdade.
— Então eu poderia morrer disso?
— Esse é o teste.
— Você me transformaria numa verdadeira Fremen!
— De que outro modo você poderia ensinar seus descendentes a sobreviverem aqui depois que eu tiver partido?
Ela tirou a máscara e colocou o rosto a um palmo de distância do dele. Um dedo se ergueu e tocou uma das dobras curvas do capuz de truta da areia.
— Coce suavemente — ele disse.
A mão obedeceu, não à voz dele, mas a alguma coisa de dentro de Siona. Os movimentos do dedo eram precisos, fazendo brotar outras memórias, uma coisa que passara de uma criança para a outra... do modo como tanta informação e tanta desinformação sobreviviam. Leto virou o rosto ao máximo que poderia e olhou de lado para aquele rosto tão próximo ao seu. Pálidas gotas azuis começavam a se formar na borda da dobra. Ricos aromas de canela os envolveram. Ela inclinou-se em direção às gotas e Leto pôde ver os poros ao lado do nariz dela, o modo como a língua se mexia enquanto ela bebia.
Daí a pouco Siona recuou — não totalmente satisfeita, mas movida pela cautela e pela suspeita, do mesmo modo como Moneo tinha agido. “Tal pai, tal filha.”
— Quanto tempo até que comece a agir? — perguntou ela.
— Já está agindo.
— Eu quero dizer.
— Um minuto, mais ou menos.
— Não lhe devo nada por isto!
— Não exigirei pagamento.
Ela fechou a máscara facial.
Leto viu as distâncias enevoadas entrarem nos olhos dela. Sem pedir permissão, ela bateu em seu segmento frontal, exigindo que ele preparasse a cálida rede de sua carne. Leto obedeceu e ela se acomodou na suave curva. Se olhasse bem para baixo, ele poderia vê-la. Os olhos de Siona permaneciam abertos, mas ela não mais via esse lugar. Teve uma súbita convulsão e começou a tremer como uma pequena criatura morrendo. Leto conhecia a experiência, mas não podia modificar o menor detalhe. Nenhuma presença ancestral iria permanecer em sua consciência, mas ela carregaria consigo, para sempre, as visões claras, os sons e os cheiros. As máquinas rastreadoras estariam lá, o cheiro de sangue e entranhas, os seres humanos encolhidos em suas tocas, conscientes apenas de que não poderiam escapar... enquanto o tempo todo os movimentos mecânicos se tornavam mais próximos, cada vez mais próximos, mais próximos... tornando-se mais altos... mais altos!
E em todo lugar onde ela procurasse seria a mesma coisa. Não havia fuga em parte alguma.
Leto sentiu a vida dela se esvaindo. “Lute contra a escuridão, Siona!” Essa era uma coisa que os Atreides faziam. Eles lutavam pela vida. E agora Siona estaria lutando por outras vidas além da sua. Mas ele sentia o esgotamento... o terrível esvair-se da vitalidade. Ela mergulhava mais fundo na escuridão, mais fundo do que qualquer outro havia penetrado. Ele começou a embalá-la suavemente, com um movimento oscilante do seu segmento frontal. Isso ou então aquele tênue fio quente de determinação, talvez as duas coisas juntas prevalecessem. Por volta do inicio da tarde, a carne dela passara dos tremores para alguma coisa que se aproximava do verdadeiro sono. Somente um sopro ofegante ocasional traía os ecos da visão. Ele a ninava suavemente, rolando-a de um lado para o outro.
Será que ela poderia retornar daquelas profundezas? Sentia as respostas vitais tranquilizadoras. A força que havia nela!
Siona despertou no final da tarde, uma quietude tomando conta dela de repente, uma mudança no ritmo da respiração. Os olhos abriram-se bruscamente, ela olhou para ele e depois rolou para fora da rede a fim de ficar de pé, de costas para Leto, pensando durante quase uma hora.
Moneo fizera a mesma coisa. Era um novo padrão nesses Atreides. Alguns dos anteriores tinham discursado para ele. Outros haviam recuado e se afastado aos tropeções, olhando para trás, forçando-o a segui-los, remexendo-se e raspando por sobre as pedras. E outros se haviam agachado e olhado para o chão. Nenhum lhe tinha dado as costas. Leto tomou isso como um novo desenvolvimento, um sinal de esperança.
— Você está começando a ter idéia de quão distante minha família se prolonga no passado — disse Leto.
Ela se virou, a boca uma linha contraída, mas não lhe encarou o olhar. Ele podia notar que ela estava aceitando, contudo, uma compreensão que poucos humanos poderiam compartilhar do modo como ela compartilhara: aquela multidão singular feita de toda a humanidade dentro da sua família.
— Você podia ter salvo meus amigos na floresta — acusou ela.
— Você também poderia tê-los salvo.
Ela comprimiu os punhos e os apertou contra as têmporas, enquanto olhava furiosa para ele.
— Mas você conhece tudo!
— Siona!
— Eu precisava aprender desse modo? — sussurrou ela.
Ele permaneceu em silêncio, forçando-a a responder a pergunta por si mesma. Precisava ser conduzida a um reconhecimento de que sua consciência básica funcionava do modo Fremen, e que, como as terríveis máquinas daquela visão apocalíptica, os predadores seguiriam qualquer criatura que deixasse rastros.
— O Caminho Dourado — ela sussurrou. — Posso senti-lo. — Olhou com raiva para ele. — É tão cruel!
— A sobrevivência sempre foi uma coisa cruel.
— Eles não podiam se esconder — sussurrou ela outra vez. Depois falou alto: — Que fez comigo?
— Você tentou ser uma rebelde Fremen. Os Fremen possuíam uma habilidade quase inacreditável para notarem sinais no deserto. Podiam até mesmo seguir a tênue filigrana dos rastros do vento soprando a areia.
Percebeu o início do remorso na consciência dela, memórias dos companheiros mortos flutuando em sua mente. Falou rapidamente, sabendo que a culpa logo iria passar, seguida de um ódio contra ele:
— Você teria acreditado se eu apenas a tivesse trazido aqui e lhe contado?
O remorso ameaçou dominá-la. Ela abriu a boca por baixo da máscara numa expressão de espanto.
— Você ainda não sobreviveu ao deserto — lembrou ele.
Lentamente, os tremores dela se controlaram. Os instintos Fremen que colocara em ação exerciam sua moderação habitual.
— Vou sobreviver — ela disse. E encarou o olhar dele. — Você nos lê através de nossas emoções, não é?
— Aquilo que acende o pensamento — respondeu ele. — Posso reconhecer a mais tênue nuança comportamental a partir de suas origens emocionais.
Ele a viu aceitar sua própria nudez do modo como Moneo havia aceito; com medo e ódio. Não tinha muita importância. Sondou o tempo adiante deles. Sim, ela iria sobreviver ao deserto porque suas trilhas estavam na areia ao lado dele... mas não viu indícios da carne dela naqueles rastros. Um pouco além dos rastros de Siona, contudo, ele viu uma súbita abertura onde coisas haviam sido ocultas. O grito de morte de Anteac ecoou em sua consciência presciente... e o enxame de Oradoras Peixes atacando!
“Malky vem vindo”, pensou ele. “Nós nos encontraremos novamente, Malky e eu.”
Leto abriu os olhos exteriores e viu Siona ainda olhando furiosa para ele.
— Eu ainda o odeio! — ela disse.
— Você odeia a crueldade necessária do predador.
Ela falou com uma exaltação maligna:
— Mas eu vi outra coisa! Você não pode seguir meus rastros!
— O motivo para você preservar e transmitir isto.
Enquanto ele falava, começou a chover. A súbita penumbra da nuvem e o cair da água atingiram-nos simultaneamente. A despeito do fato de ter sentido a oscilação do controle do clima, Leto ficou chocado por esse assalto. Sabia que às vezes chovia no Sareer, uma chuva que logo se dispersava na medida em que a água se esgotava e desaparecia. As poucas poças se evaporariam sob a luz do sol que não demoraria a retornar. Na maioria das vezes a precipitação nem tocava o solo; era uma chuva fantasmagórica, vaporizada ao atingir a camada de ar superaquecida, logo acima da superfície do deserto, e então se dispersando ao vento. Mas essa pancada o ensopou.
Siona tirou a máscara facial e ergueu o rosto ávido para a água que caía, nem mesmo notando seu efeito em Leto.
Na medida em que a água penetrava por trás da cobertura de truta da areia, ele se enrijecia, curvando-se e se enrolando numa bola agonizante. Impulsos opostos de truta e de verme de areia produziam um novo significado para a palavra dor. Leto sentia-se rasgado ao meio. A truta da areia queria correr para a água e englobá-lo. O verme da areia sentia a morte no encharcamento. Espirais de fumaça azul erguiam-se de cada ponto onde a chuva o tocava. A estrutura interna de seu corpo começava a manufaturar a verdadeira essência de especiaria. Uma fumaça azul elevou-se em torno do ponto onde ele jazia em meio às poças de água. Leto se contorcia e gemia.
As nuvens passaram e levou alguns minutos para que Siona sentisse a perturbação.
— Que há de errado com você?
Ele estava incapaz de responder. A chuva se fora, mas a água permanecia nas rochas e nas poças ao lado e embaixo dele. Não havia escapatória.
Siona viu a fumaça azul erguendo-se de cada ponto em que a água o tocava.
— É a água!
Havia, à direita, uma protuberância de terra, ligeiramente mais alta, onde a água não permanecera. Dolorosamente, ele seguiu para ela, gemendo a cada nova poça. A elevação estava quase seca quando Leto a atingiu. A agonia foi se esvaindo lentamente e ele se tornou consciente de que Siona se encontrava bem diante dele. Ela o sondou com palavras de falsa preocupação.
— Por que a água o fere?
“Fere? Que palavra inadequada!” Não havia maneira de escapar às suas perguntas. Agora ela sabia o suficiente para pesquisar as respostas. E a resposta poderia ser encontrada. Hesitantemente, ele explicou a relação que havia entre a truta e o verme da areia. Ela escutou em silêncio.
— Mas a umidade que me deu...
— Estava coberta e mascarada pela especiaria.
— Então, por que se arrisca aqui fora sem a carreta?
— Você não pode ser Fremen na Cidadela ou em uma carreta.
Ela assentiu afirmativamente com a cabeça.
E ele viu a chama da rebelião retornar-lhe aos olhos. Ela não precisava sentir-se culpada ou dependente. Não podia mais evitar a crença no seu Caminho Dourado, mas que diferença isso fazia? As crueldades de Leto não poderiam ser perdoadas! Ela poderia rejeitá-lo, negar-lhe um lugar em sua família. Ele não era humano, não era como ela, nem um pouco. E ela detinha o segredo da sua destruição! Envolva-o com água, destrua o seu deserto, imobilize-o dentro de um fosso de agonia! Será que ela acreditava poder ocultar seus pensamentos apenas virando-lhe as costas?
“E que posso eu fazer a esse respeito?”, ele se perguntou. “Ela deve sobreviver agora, enquanto eu devo demonstrar não-violência.”
Agora que sabia alguma coisa a respeito da natureza de Siona, como seria fácil entregar-se, mergulhar cegamente nos próprios pensamentos. Era sedutora essa tentação de viver apenas dentro de suas próprias memórias. Mas seus filhos ainda exigiam outra lição através do exemplo para poderem escapar à última ameaça do Caminho Dourado.
“Que decisão dolorosa!” Ele experimentou uma nova simpatia pela Bene Gesserit. Sua dúvida e seu embaraço eram semelhantes ao que elas haviam experimentado ao confrontarem a realidade do Muad'Dib. “O objetivo final do seu programa de procriação — meu pai —, elas também não podiam dominá-lo.”
“Uma vez mais na disputa, queridos amigos”, pensou ele, e suprimiu um sorriso amargo ante seu próprio histrionismo.
Dado tempo suficiente para as gerações evoluírem, o predador produz adaptações particulares para a sobrevivência de sua presa, a qual, através de uma operação circular de retroalimentação, produz mudanças no predador, que novamente modificam a presa — etc., etc., etc. Muitas forças poderosas fazem a mesma coisa. E vocês podem incluir entre essas forças a religião.
— Os diários roubados
— O Senhor me ordenou que lhe dissesse que a sua filha vive. — Nayla transmitiu a mensagem a Moneo em voz monótona, olhando por cima da mesa para a figura sentada em meio ao caos de notas, papéis e instrumentos de comunicação.
Moneo pressionou as palmas das mãos firmemente, uma contra a outra, e olhou para a sombra alongada, desenhada em sua mesa pela luz do cair da tarde passando sobre a árvore cheia de jóias do seu peso de papel Sem olhar para a figura corpulenta de Nayla, de pé e rígida diante dele, Moneo perguntou:
— Os dois retornaram à Cidadela?
— Sim.
Moneo olhou para a janela à sua esquerda, sem ver realmente a borda poeirenta de escuridão suspensa sobre o horizonte do Sareer, nem o vento ávido coletando grãos de areia em cada duna.
— O assunto de que falamos antes? — perguntou ele.
— Foi arranjado.
— Muito bem. — Ele acenou com a mão para mandá-la sair, mas Nayla permaneceu de pé na frente dele. Surpreso, Moneo focalizou a atenção nela pela primeira vez desde que havia entrado.
— Exige-se que eu pessoalmente compareça a esse — ela engoliu em seco — casamento?
— Lorde Leto ordenou. Você será a única a comparecer armada com laser. Isso é uma honra.
Ela permaneceu em posição, o olhar fixo em algum ponto acima da cabeça de Moneo.
— Sim? — perguntou ele.
A grande mandíbula de Nayla moveu-se convulsivamente, e então ela disse:
— Ele é Deus e eu sou mortal.
Virou-se nos calcanhares e deixou a sala de trabalho.
Moneo tentou imaginar vagamente o que estaria incomodando a volumosa Oradora Peixe, mas seus pensamentos giravam como um compasso em direção a Siona.
“Ela sobreviveu como eu sobrevivi.” Siona agora tinha um senso interior dizendo-lhe que o Caminho Dourado permanecia não interrompido. “Como eu tenho.” Ele não encontrou qualquer sentido de participação nesse pensamento, nada para fazê-lo sentir-se mais próximo da filha. Era uma carga que iria inevitavelmente dobrar-lhe a natureza rebelde. Nenhum Atreides poderia voltar-se contra o Caminho Dourado. Leto cuidara disso!”
Moneo lembrou-se de seus próprios dias de rebelião. A cada noite uma nova cama e um impulso constante para continuar fugindo. As teias do passado agarravam-se à sua mente, prendendo-se, não importando o quanto ele tentasse sacudir memórias perturbadoras.
“Siona foi enjaulada. Como eu fui enjaulado. Como o pobre Leto foi enjaulado.”
O toque do sino que anunciava o cair da noite penetrou em seus pensamentos e ativou as luzes da sala de trabalho. Ele olhou para o trabalho ainda incompleto dos preparativos para o casamento de Hwi Noree com o Imperador-Deus. Tanto trabalho! Daí a pouco comprimiu um botão de chamada e pediu à acólita Oradora Peixe, que atendeu, que trouxesse um copo com água e depois chamasse Duncan Idaho para a sala de trabalho.
Ela voltou rapidamente com a água e colocou o copo próximo da mão esquerda de Moneo. Este notou os dedos longos, os dedos de uma tocadora de alaúde, mas não olhou para o rosto.
— Mandei alguém chamar Idaho — ela disse.
Ele fez um gesto afirmativo com a cabeça e continuou seu trabalho. Ouviu-a sair e somente então ergueu a cabeça para beber a água.
“Algumas vidas são como as mariposas de verão”, pensou ele. “Mas eu tenho cargas sem fim.”
A água tinha um gosto insípido. Ele dominou os sentidos, fazendo o corpo sentir-se dormente. Depois olhou para as cores do poente no Sareer, enquanto se apagavam na escuridão, imaginando que era capaz de reconhecer beleza naquela visão familiar, mas tudo que podia pensar era que a luz se modificava segundo seus próprios padrões. “Não tem qualquer relação comigo.”
Com a escuridão completa, o nível de iluminação em sua sala de trabalho aumentou automaticamente, trazendo consigo a claridade do pensamento. Sentia-se inteiramente preparado para Idaho. Esse era um que precisava aprender as necessidades, e rapidamente.
A porta de Moneo se abriu, era a acólita novamente.
— Vai comer agora?
— Depois.
Ela começou a sair, mas ele a deteve erguendo a mão:
— Gostaria que a porta ficasse aberta.
Ela franziu a testa, surpresa.
— Você pode praticar sua música — ele disse. — Gostaria de ouvir.
Ela tinha um rosto redondo, liso, quase infantil, que se tornou radiante ao sorrir. Com o sorriso ainda nos lábios, ela se virou e saiu.
Daí a pouco ele ouviu os sons de um alaúde do tipo biwa em seu escritório externo. Sim, a jovem acólita tinha talento. As cordas mais graves eram como chuva tamborilando sobre um telhado, com os tons médios por baixo. Talvez ela pudesse passar ao baliset algum dia. Moneo reconheceu a canção: a memória do sussurro profundo do vento de outono num planeta distante onde nunca existira deserto. Uma música triste, melancólica, e no entanto maravilhosa.
“É o choro dos enjaulados”, pensou. “A memória da liberdade.” Esse pensamento pareceu-lhe curioso. Será que a liberdade sempre exigiria a rebelião?
O alaúde se calou. Ouviu o som de vozes baixas e então Idaho entrou na sala. Moneo o observou entrar. Um truque de iluminação dava ao rosto de Idaho a aparência de uma máscara trágica, com olhos fundos. Sem esperar pelo convite, ele se sentou diante de Moneo e a aparência se foi. “Apenas outro Duncan.” Agora estava usando um uniforme negro sem insígnia.
— Estive me fazendo uma pergunta peculiar — disse Idaho. — Fico feliz por ter me chamado, queria lhe fazer essa pergunta. Que foi, Moneo, que meu antecessor não aprendeu?
Rígido com a surpresa, Moneo sentou-se com as costas eretas. Que pergunta tão pouco típica de um Duncan. Será que haveria uma peculiar diferença Tleilaxu nesse ai, afinal de contas?
— Que o leva a essa pergunta? — indagou Moneo.
— Estive pensando como Fremen.
— Você não era Fremen.
— Estive mais perto de ser um do que você pensa. Stilgar, o Naib, uma vez me disse que eu provavelmente nascera Fremen sem saber disso até vir para Duna.
— E que acontece quando se pensa como um Fremen?
— Você se lembra de que nunca deveria estar na companhia de gente por quem você não desejaria morrer.
Moneo colocou as mãos sobre a mesa, as palmas para baixo. Um sorriso cruel surgiu no rosto de Idaho.
— Então que está fazendo aqui? — perguntou Moneo.
— Suspeito que você seja boa companhia, Moneo. E me pergunto por que Leto o escolheria como seu companheiro mais chegado.
— Eu passei no teste.
— O mesmo teste em que sua filha passou?
“De modo que ele ouviu que eles estão de volta.” Isso significa que algumas Oradoras Peixes lhe estavam relatando coisas... a menos que o Imperador-Deus tivesse convocado o Duncan... “Não, eu teria ouvido.”
— Os testes nunca são idênticos — explicou Moneo. — Fui obrigado a entrar no labirinto de uma caverna, tendo apenas uma sacola de comida e um frasco de essência de especiaria.
— O que você escolheu?
— O quê? Oh... se você é testado, você descobre.
— Existe um Leto que eu não conheço — disse Idaho.
— Não lhe falei isso?
— E existe um Leto que você não conhece.
— Porque ele é a pessoa mais solitária que o universo já viu — replicou Moneo.
— Não faça jogos com a emoção tentando despertar minha simpatia — disse Idaho.
— Jogos com a emoção. Essa é muito boa — concordou Moneo. — As emoções do Imperador-Deus são como um rio: contínuas, ininterruptas, espumantes e violentas à menor sugestão de uma barreira. Ele não deve ser obstruído.
Idaho olhou à sua volta para a sala de trabalho brilhantemente iluminada, depois voltou seu olhar para a escuridão exterior e pensou a respeito do curso domado do Rio Idaho em algum ponto lá fora. Voltando a atenção para Moneo, perguntou:
— Que sabe a respeito de rios?
— Em minha juventude, viajei para ele. Até mesmo confiei minha vida à concha flutuante de um barco num rio, e depois num mar cujas praias se perderam durante a travessia.
Enquanto falava, Moneo sentia ter esbarrado no indicio de alguma verdade profunda com relação a Lorde Leto. A sensação lançou-o num devaneio, fazendo-o pensar naquele planeta distante em que atravessara um mar de uma praia a outra. Acontecera uma tempestade durante a primeira noite da travessia e em algum lugar, dentro das profundezas do navio, havia um ruído irritantemente não-direcional, um “sug, sug, sug, sug” das máquinas em funcionamento. Ele ficara no convés com o capitão, sua mente focalizando-se no som dos motores, recuando e voltando para ele como as montanhas de água verde-escura que iam e vinham sem parar. Cada golpe da quilha abria a carne do mar como o golpe de um punho. Era um movimento insano, uma sacudidela úmida, para cima... para cima... para baixo! E seus pulmões tinham doído com o temor reprimido. A arremetida do navio e do mar tentando vencê-lo — violentas explosões de água sólida, hora após hora, bolhas brancas derramando-se para fora dos conveses, depois outro mar e outro.
E tudo isso era uma chave para o Imperador-Deus.
“Ele é tanto a tempestade quanto o navio.”
Moneo voltou a atenção para Idaho, sentado diante dele, do outro lado da mesa. Nem um tremor no homem, mas ali havia um desejo ardente.
— De modo que não vai me ajudar a descobrir o que os outros Duncans não aprenderam — disse Idaho.
— Mas vou ajudá-lo.
— Então, que foi que eu sempre deixei de aprender?
— A confiar.
Idaho recuou da beira da mesa e olhou com raiva para Moneo. Quando sua voz escapou, era rouca e dura.
Eu diria que já confiei em demasia.
Moneo foi implacável.
— Mas como você confia?
— Que quer dizer?
Moneo colocou as mãos sobre o colo.
— Você escolhe seus companheiros por suas habilidades em lutar e morrer a favor do que é direito, tal como o vê. Você escolhe mulheres que possam complementar sua visão masculina de si próprio. Você não permite as diferenças que possam emergir da boa vontade.
Alguma coisa movimentou-se no portal que dava para a sala de Moneo. Ele olhou para cima a tempo de ver Siona entrando. Ela parou, uma das mãos sobre os quadris.
— Bem, pai, de novo com seus velhos truques, hein?
Idaho virou-se bruscamente para ver quem tinha falado.
Moneo a observou procurando sinais de mudança. Ela tinha tomado um banho e colocado um uniforme novo, o ouro e negro de uma comandante Oradora Peixe, mas as mãos e o rosto ainda traíam a evidência de sua provação no deserto. Ela tinha perdido peso e os ossos da face mostravam-se salientes. O ungüento pouco fazia para ocultar as fendas nos lábios, e veias surgiam em suas mãos. Seus olhos tinham uma aparência ancestral e sua expressão era a de alguém que provara resíduos amargos.
— Estive ouvindo vocês dois — ela disse, deixando cair a mão da curva do quadril e se dirigindo mais para o interior da sala. — Como se atreve a falar em boa vontade, pai?
Idaho notara o uniforme. Comprimiu os lábios, pensando:
“Comandante das Oradoras Peixes? Siona?”
— Compreendo sua amargura — disse Moneo. — Já tive sentimentos semelhantes.
— Teve mesmo?
Ela se aproximou ainda mais, parando ao lado de Idaho, que continuou a examiná-la com uma expressão especulativa.
— Estou cheio de alegria por vê-la viva — disse Moneo.
— Como lhe é gratificante me ver a serviço do Imperador-Deus — ela disse. — Você esperou tanto tempo para ter um filho e agora olhe! Está vendo que sucesso eu sou? — Virou-se lentamente para exibir o uniforme. — Comandante das Oradoras Peixes. Uma comandante com uma tropa de uma só pessoa, mas ainda assim uma comandante.
Moneo forçou a voz para um tom frio e profissional:
— Sente-se.
— Prefiro ficar de pé. — Ela olhou para o rosto erguido de Idaho. — Ah, Duncan Idaho, meu companheiro programado. Não acha isso interessante, Duncan? Lorde Leto diz que eu serei encaixada na estrutura de comando das Oradoras Peixes dentro do devido tempo. Enquanto isso, tenho uma auxiliar. Conhece aquela chamada Nayla, Duncan?
Idaho fez que sim com a cabeça.
— Realmente? Eu acho que talvez eu não a conheça. — Siona olhou para Moneo. — Você a conhece, pai?
Moneo encolheu os ombros.
— Mas você fala de confiança, pai — disse Siona. — Em quem confia o poderoso ministro Moneo?
Idaho virou-se para ver o efeito dessas palavras no majordomo. O rosto do homem parecia modificar-se com a emoção reprimida. “Raiva? Não... alguma outra coisa.”
— Eu confio no Imperador-Deus — disse Moneo. — E, na esperança de que ele possa ensinar alguma coisa a vocês dois, estou aqui para lhes transmitir os seus votos.
— Seus votos? — provocou Siona. — Ouviu isso, Duncan? As ordens do Imperador-Deus agora são votos.
— Fale o que tem a dizer — disse Idaho. — Sei que temos muito pouca escolha, seja lá o que for.
— Você sempre tem uma escolha — disse Moneo.
— Não o escute — disse Siona. — Ele é cheio de truques. Eles esperam que a gente se atire nos braços um do outro e gere mais gente como meu pai. Seu descendente, meu pai!
O rosto de Moneo ficou pálido. Ele segurou a beira da mesa de trabalho com ambas as mãos e se inclinou para a frente.
— Vocês dois são tolos! Mas vou tentar salvá-los a despeito de vocês mesmos. Vou tentar salvá-los.
Idaho viu as faces de Moneo tremerem, a intensidade do olhar do homem, e se sentiu curiosamente sensibilizado por isso.
— Não sou o garanhão dele, mas vou ouvir você.
— Sempre um erro — disse Siona.
— Fique quieta, mulher — replicou Idaho.
Ela olhou furiosa para o alto da cabeça de Idaho.
— Não fale comigo desse modo ou enrolarei seu pescoço em volta dos calcanhares!
Idaho ficou rígido e começou a se virar.
Moneo fez uma careta e acenou com a mão para que Idaho continuasse sentado.
— Eu o advirto, Duncan, de que ela provavelmente faria isso. Não sou páreo para ela, e você se lembra de sua tentativa de violência contra mim?
Idaho respirou fundo e rápido, depois deixou o ar escapar lentamente.
— Diga o que tem a dizer.
Siona caminhou até se empoleirar na beira da mesa de Moneo e olhou para os dois.
— Muito melhor — ela disse. — Deixe-o dizer sua fala, mas não ouça.
Idaho comprimiu os lábios.
Moneo soltou a borda da mesa. Sentou-se e olhou de Idaho para Siona.
— Quase completei os preparativos para o casamento do Imperador-Deus com Hwi Noree. Durante essas festividades, quero vocês dois fora do caminho.
Siona voltou um olhar questionador para Moneo.
— Idéia sua ou dele?
— Minha! — Moneo respondeu ao olhar a filha. — Você não tem senso de dever? Não aprendeu nada ficando com ele?
— Oh, aprendi o que você aprendeu, pai. E dei minha palavra, a qual pretendo manter.
— Então vai comandar as Oradoras Peixes?
— Quando ele me confiar um comando. Você sabe, pai, ele é muito matreiro. Mais do que você.
— Para onde vai nos mandar? — perguntou Idaho.
— Uma vez que concordemos em ir — disse Siona.
— Existe um pequeno vilarejo de Fremen de Museu na extremidade do Sareer — explicou Moneo. — É chamado de Tuono. A vila é relativamente agradável, encontra-se à sombra da Muralha, com o rio do outro lado. Há um poço e a comida é boa.
“Tuono?”, perguntou-se Idaho. O nome lhe parecia familiar.
— Havia uma bacia de Tuono no caminho para o Sietch Tabr.
— E as noites são longas e não há diversão — disse Siona.
Idaho voltou-lhe um olhar de censura e foi correspondido.
— Ele nos quer procriando e o Verme satisfeito — ela disse.
— Quer bebês no meu ventre, novas vidas para perverter e torcer. Eu o verei morto antes de lhe dar isso!
Idaho olhou para Moneo com uma expressão confusa.
— E se nos recusarmos a ir?
— Acho que vocês irão.
Os lábios de Siona se torceram.
— Duncan, já viu um desses pequenos vilarejos no deserto? Não há conforto, não...
— Já vi a vila de Tabur — disse Idaho.
— Tenho certeza de que é uma metrópole comparada a Tuono. Nosso Imperador-Deus não celebraria suas núpcias em qualquer aglomerado de palhoças de lama! Oh, não. Tuono terá casas de lama seca e nada de amenidades, tão perto dos Fremen originais quanto possível.
Idaho manteve a atenção em Moneo enquanto falava.
— Fremen não vivem em casas de lama.
— Quem se importa com onde eles conduzem seus jogos ritualísticos? — retrucou ela.
Ainda olhando para Moneo, Idaho disse:
— Os verdadeiros Fremen possuem apenas um culto, o culto da honestidade pessoal. Eu me preocupo mais com a honestidade do que com o conforto.
— Não espere conforto de mim! — retrucou Siona.
— Não espero nada de você — disse Idaho. — Quando partimos para esse Tuono, Moneo?
— Você vai? — ela perguntou.
— Estou considerando uma aceitação da bondade de seu pai — respondeu Idaho.
— Bondade! — Ela olhou para ele e para Moneo.
— Vocês devem partir imediatamente — instruiu Moneo. — Reservei um destacamento de Oradoras Peixes, sob o comando de Nayla, para escoltá-los e fornecer o que precisarem em Tuono.
— Nayla? — perguntou Siona. — Verdade? Ela vai ficar conosco lá?
— Até o dia do casamento.
Siona concordou com um aceno lento da cabeça.
— Então, aceitamos.
— Aceite por você mesma! — exclamou Idaho.
Siona sorriu.
— Desculpe. Posso pedir formalmente que o grande Duncan Idaho me acompanhe a essa primitiva guarnição onde ele manterá as mãos longe da minha pessoa?
Idaho olhou para ela com as sobrancelhas contraídas.
— Não tema quanto ao lugar onde vou colocar minhas mãos. — Ele olhou para Moneo. — Está sendo gentil, Moneo? É por isso que está me mandando para longe?
— É uma questão de confiança — disse Siona. — Em quem ele confia?
— Serei forçado a ir com sua filha? — insistiu Idaho.
Siona levantou-se.
— Ou nós aceitamos ou a tropa vai nos amarrar e carregar do modo mais desconfortável. Você pode ver isso no rosto dele.
— Assim, realmente não tenho escolha — disse Idaho.
— Você tem a escolha que todos têm — disse Siona. — Morra agora ou depois.
Idaho continuava olhando para Moneo.
— Suas intenções reais, Moneo? Não satisfaria a minha curiosidade?
— A curiosidade tem mantido muitas pessoas vivas quando tudo mais falhou — respondeu Moneo. — Estou tentando mantê-lo vivo, Duncan. Nunca fiz isso antes.
Foram necessários mais de mil anos até que a poeira do antigo deserto planetário de Duna deixasse a atmosfera para se fixar no solo e na água. O vento chamado raspador de areia não era visto em Arrakis há 2.500 anos, e 20 bilhões de toneladas de poeira podiam ser transportadas por aquele vento em apenas uma dessas tempestades. O céu tinha freqüentemente uma aparência prateada e os Fremen diziam: “O deserto é um cirurgião cortando a pele do planeta para expor o que está embaixo.” O planeta e as pessoas tinham camadas. Podia-se vê-las. Meu Sareer não passa de uma fraca lembrança do que existiu. Devo ser o raspador de areia dos dias de hoje.
— Os diários roubados
— Você os enviou a Tuono sem me consultar? Que surpresa, Moneo! Você não tem um pensamento independente assim há muito tempo.
Moneo encontrava-se a 10 passos de Leto, no sombrio centro da cripta, cabeça baixa, usando cada artifício que conhecia para evitar tremores e ciente de que até mesmo isso poderia ser visto e interpretado pelo Imperador-Deus. Era quase meia-noite. Leto deixara o majordomo esperando, esperando.
— Rezo para não tê-lo ofendido, meu Senhor — disse Moneo.
— Você me divertiu, mas não se acostume com isso. Ultimamente não consigo separar o cômico do triste.
— Perdoe-me, Senhor — sussurrou Moneo.
— Que é esse perdão que você pede? Será que sempre deve pedir julgamento? Seu universo não pode apenas ser?
Moneo ergueu o olhar para aquela face espantosa envolta nas dobras. “Ele é tanto o navio quanto a tempestade. O pôr-do-sol existe por si mesmo.” Moneo sentia-se à beira de terríveis revelações. Os olhos do Imperador-Deus estavam fixos nele, queimando, sondando.
— Senhor, que deseja de mim?
— Que tenha fé em si mesmo.
Sentindo que alguma coisa poderia explodir dentro dele, Moneo disse:
— Então, o fato de não consultá-lo antes...
— Como você é esclarecido, Moneo! Almas pequenas, buscando o poder sobre os outros, primeiro destroem a fé que os outros possam ter em si mesmos.
As palavras eram perturbadoras para Moneo. Sentia nelas a acusação, a confissão. Sentia seu controle sobre uma coisa terrível, mas infinitamente desejável, enfraquecer. Tentou encontrar palavras que a recuperassem, mas sua mente permanecia vazia. Talvez se ele perguntasse ao Imperador-Deus.
— Senhor, se me contasse seus pensamentos a respeito de...
— Meus pensamentos desaparecem ao contato!
Leto olhava para Moneo de cima para baixo. Como eram estranhos os olhos do majordomo, sobrepondo-se àquele nariz aquilino dos Atreides — olhos livres num rosto de metrônomo. Será que Moneo ouviria aquela rítmica pulsação: “Malky vem vindo! Malky vem vindo! Malky vem vindo!?”
Moneo queria gritar de angústia. A coisa que ele tinha sentido — tudo se fora! Colocou ambas as mãos sobre a boca.
— Seu universo é uma ampulheta bidimensional — acusou Leto. — Por que tenta conter a areia?
Moneo abaixou as mãos e suspirou.
— Deseja ouvir a respeito dos preparativos para o casamento, Senhor?
— Não seja cansativo! Onde está Hwi?
— As Oradoras Peixes a estão preparando para...
— Consultou-a a respeito dos preparativos?
— Sim, Senhor.
— E ela aprovou?
— Sim, mas me acusou de viver pela quantidade de atividades, não pela qualidade.
— Não é maravilhoso, Moneo? Será que ela notou a perturbação entre as Oradoras Peixes?
— Creio que sim, Senhor.
— A idéia de meu casamento as perturba.
— Foi por isso que mandei o Duncan para longe, Senhor.
— E Siona com ele para...
— Senhor, sei que a testou e que ela...
— Ela sente o Caminho Dourado tão profundamente quanto você, Moneo.
— Então, por que a temo, Senhor?
— Porque você coloca a razão acima de tudo.
— Mas não conheço a razão do meu medo!
Leto sorriu. Isso não era como jogar um dado bolha em uma tigela infinita. As emoções de Moneo eram uma peça maravilhosa, representada apenas nesse palco. Quão perto da beira ele caminhava sem ao menos notar!
— Moneo, por que insiste em tirar fragmentos de um continuum? — perguntou Leto. — Quando vê um espectro, você deseja uma cor acima de todas as outras?
— Senhor, não o compreendo!
Leto fechou os olhos, lembrando-se de incontáveis ocasiões em que ouvira esse grito. Os rostos eram um espectro contínuo. Abriu os olhos para apagá-los.
— Enquanto um ser humano permanecer vivo para vê-las, as cores sofrerão uma mortis linear, mesmo que você morra, Moneo.
— Que coisa é essa de cores, Senhor?
— O continuum, o interminável, O Caminho Dourado.
— Mas pode ver coisas que nós não vemos, Senhor!
— Porque se recusam!
Moneo encostou o queixo no peito.
— Senhor, sei que evoluiu além do resto de nós. É por isso que o adoramos e...
— Maldito seja, Moneo!
Moneo ergueu a cabeça olhando aterrorizado.
— As civilizações desmoronam quando seus poderes deixam para trás as religiões! — disse Leto. — Por que não pode ver isso? Hwi pode...
— Ela é Ixiana, Senhor. Talvez ela...
— Ela é uma Oradora Peixe! Desde o berço ela nasceu para me servir. Não! — Leto ergueu uma de suas minúsculas mãos quando Moneo tentou falar. — As Oradoras Peixes estão perturbadas porque as chamei de minhas noivas, e agora vêem uma estranha, não-treinada no Siaynoq, que sabe mais do que elas.
— Como pode ser, Senhor, quando suas Oradoras falharam?
— Que está dizendo? Cada um de nós vem a si sabendo quem é e o que deve fazer.
Moneo abriu a boca, mas a fechou sem falar.
— As crianças pequenas sabem — disse Leto. — E só depois que os adultos as confundiram que elas escondem esse conhecimento até de si mesmas. Moneo! Descubra a si próprio!
— Senhor! Não posso! — As palavras foram arrancadas de Moneo. Ele tremia de angústia. — Não tenho seus poderes, seu conhecimento de...
— Basta!
Moneo ficou em silêncio, o corpo tremendo.
Leto foi tranqüilizador:
— Está tudo certo, Moneo. Exigi muito de você e posso ver sua fadiga.
Lentamente, os tremores de Moneo diminuíram. Ele respirou fundo, sorvendo o ar.
Leto disse:
— Haverá algumas mudanças em meu casamento Fremen. Não usaremos os anéis de água de minha irmã Ghanima. Usaremos, em vez disso, os anéis de minha mãe.
— Lady Chani, Senhor? Mas onde estão os anéis?
Leto girou o corpo volumoso na carreta e apontou para a intercessão de dois túneis cavernosos à sua esquerda, onde a luz fraca revelava os primeiros nichos sepulcrais dos Atreides em Arrakis.
— Em sua tumba, no primeiro nicho. Você vai tirar os anéis e trazê-los para a cerimônia.
Moneo olhou através da distância sombria da cripta.
— Senhor... não é uma... profanação a...
— Você se esquece, Moneo, de que ela vive em mim. — Ele falou então com a voz de Chani: — Posso fazer o que quiser com meus anéis de água!
Moneo se encolheu:
— Sim, Senhor. Eu os trarei comigo para a vila de Tabur quando...
— Vila de Tabur? — perguntou Leto em sua voz habitual. — Mas eu mudei de idéia. Nós nos casaremos na vila de Tuono!
A maior parte da civilização é baseada na covardia. É fácil civilizar ensinando a covardia. Minam-se os padrões que levariam à bravura. Contém-se a livre iniciativa.
Regulam-se os apetites, colocam-se cercas nos horizontes. E se faz uma lei para regular cada movimento. Nega-se a existência do caos e se ensina as crianças a respirarem lentamente. Doma-se.
— Os diários roubados
Idaho ficou pasmo ante sua primeira visão da vila de Tuono a curta distância. Aquele era o lar de Fremen?
A tropa de Oradoras Peixes tirara-os da Cidadela ao raiar do dia, com Idaho e Siona espremidos num grande ornitóptero, acompanhado por duas aeronaves de escolta, menores. E o vôo fora lento, quase três horas. Pousaram num hangar de plaspedra, chato e redondo, a quase um quilômetro do vilarejo, e dele separado por velhas dunas, presas no lugar pelo cultivo de capins ralos e alguns arbustos raquíticos. Enquanto desciam, a muralha, diretamente atrás da vila, parecia tornar-se cada vez mais alta, mais alta, o vilarejo encolhendo ante tal imensidão.
— Os Fremen de Museu são mantidos geralmente livres da contaminação por tecnologia de fora do planeta! — explicara Nayla, enquanto a escolta trancava os tópteros dentro do hangar baixo.
Uma integrante da tropa já fora enviada, caminhando na frente, em direção a Tuono, para anunciar a chegada.
Siona permanecera em silêncio durante a maior parte da viagem, mas observara Nayla com uma intensidade dissimulada.
Por algum tempo, durante a marcha através das dunas iluminadas pela luz da manhã, Idaho tentara imaginar que estava de volta aos velhos tempos. A areia era visível nas plantações e, nos vales entre as dunas, havia solo ressequido, capim amarelo, arbustos espinhentos. Três abutres, com suas asas de pontas fendidas, circulavam na abóbada celeste — “a busca elevada”, como os Fremen chamavam. Idaho tentara explicar isso para Siona caminhando ao lado dela. Só é preciso preocupar-se com os comedores de carniça quando eles começam a descer.
— Já me instruíram a respeito dos abutres — disse ela com a voz fria.
Idaho notou-lhe a transpiração no lábio superior. Havia um forte cheiro de suor na tropa que se comprimia à volta deles.
Sua imaginação não conseguia deixar de focalizar as diferenças entre o passado e essa época. Os trajes destiladores padrão, que usavam, eram mais para exibição do que para recolhimento eficiente da água do corpo. Nenhum Fremen verdadeiro teria confiado sua vida a um deles, nem mesmo ali, onde o ar tinha cheiro de água próxima. E as Oradoras Peixes da tropa de Nayla não caminhavam mantendo o silêncio dos Fremen. Elas falavam entre si como crianças.
Siona avançava em passos firmes ao seu lado, em carrancudo silêncio, sua atenção freqüentemente se voltando para as costas largas e musculosas de Nayla, que seguia alguns passos adiante da tropa.
Que haveria entre essas duas mulheres? Idaho ficou imaginando. Nayla parecia devotada a Siona, atenta a cada palavra de Siona, obedecendo a cada vontade expressa por Siona... Exceto que Nayla não desobedecia as ordens de trazê-los até a vila de Tuono. Ainda assim, Nayla respeitara Siona, chamando-a de “Comandante”. Havia alguma coisa profunda entre essas duas, alguma coisa que despertava a admiração e o temor de Nayla.
Afinal chegaram a um declive que descia para o vilarejo e a Muralha atrás dele. Vista do ar, Tuono fora um aglomerado de brilhantes retângulos bem do lado de fora da sombra da muralha. Desse ponto de vista mais próximo, entretanto, ficava reduzida a um aglomerado de choças em decomposição, que se tornavam ainda mais deploráveis com as tentativas de enfeitar o lugar. Fragmentos de minerais brilhantes e pedaços de metal desenhavam arabescos nas paredes das construções. Uma bandeira verde esfarrapada ondulava num poste de metal no topo da estrutura mais elevada. A brisa intermitente trazia o cheiro de lixo e de esgotos a céu aberto às narinas de Idaho. A rua central do vilarejo estendia-se através da areia, esparsamente plantada, até onde estava a tropa, terminando numa borda irregular de pavimento quebrado.
Uma delegação trajando mantos esperava perto do prédio com a bandeira verde, aguardando com expectativa junto à mensageira das Oradoras Peixes que Nayla enviara na frente. Idaho contou oito pessoas na delegação, todas homens usando o que pareciam ser autênticos mantos Fremen de cor marrom-escura. Uma fita verde na testa podia ser vista por baixo do capuz de um dos membros da delegação — o Naib, sem dúvida. Crianças aguardavam a um dos lados com flores. E mulheres de capuzes negros podiam ser vistas, olhando das ruas laterais, ao fundo. Idaho achou a cena perturbadora.
— Vamos acabar com isso — disse Siona.
Nayla assentiu, concordando, e liderou a marcha declive abaixo até a rua. Siona e Idaho ficaram alguns passos atrás dela. O resto da tropa se deixou ficar para trás, em silêncio agora, e olhando à volta com indisfarçada curiosidade.
Quando Nayla se aproximou da delegação, o homem com a fita verde se adiantou, curvando-se. Caminhava como um velho, mas Idaho pôde notar que não o era, apenas um homem de meia-idade com as faces lisas e sem rugas, nariz atarracado sem marcas dos tubos de respiração, e os olhos! Os olhos revelavam pupilas definidas, sem o azul total do vício da especiaria. Eram olhos castanhos. Olhos castanhos num Fremen!
— Eu sou Garun — disse o homem, quando Nayla parou diante dele. — Sou o Naib deste lugar. Eu lhes dou as boas-vindas Fremen a Tuono.
Nayla gesticulou por sobre o ombro, indicando Siona e Idaho, que haviam parado logo atrás dela.
— Há alojamentos preparados para os convidados?
— Nós Fremen somos conhecidos pela hospitalidade — disse Garun. — Está tudo pronto.
Idaho cheirou os odores azedos e prestou atenção aos sons desse lugar. Olhou pelas janelas abertas do prédio com a bandeira, à sua direita. A bandeira Atreides tremulando sobre aquilo? A janela mostrava um auditório com teto baixo, uma pequena plataforma a uma das extremidades. Ele viu fileiras de assentos e um tapete marrom no piso.
Tudo com a aparência de um palco arrumado, um lugar para o entretenimento de turistas.
O som de passos abafados trouxe a atenção de Idaho de volta para Garun. Crianças estavam se agrupando em volta da delegação estendendo buquês de flores vermelhas em suas mãos sujas. As flores estavam murchas.
Garun falou com Siona, identificando corretamente as insígnias douradas de uma Comandante Oradora Peixe em seu uniforme.
— Vai desejar uma exibição de rituais Fremen? — perguntou ele. — Nossa música ou nossa dança?
Nayla aceitou um buquê de flores de uma das crianças, cheirou-a e espirrou.
Outra criança estendeu flores para Siona, fitando-a com olhos arregalados. Ela aceitou as flores sem olhar para a criança. Idaho meramente fazia sinal para que as crianças se afastassem quando se aproximavam dele. Elas hesitavam, olhando para ele, então saíam correndo em direção ao resto da tropa.
Garun disse a Idaho:
— Se lhes der algumas moedas, elas não o incomodarão.
Idaho estremeceu. Era esse o treinamento de crianças Fremen?
Garun voltou a atenção para Siona. Com Nayla ouvindo, ele começou a explicar a planta de sua vila.
Idaho afastou-se deles e seguiu rua abaixo, notando como os olhares se voltavam para ele e depois se desviavam. Sentia-se profundamente irritado com as decorações superficiais dos prédios, nenhuma delas disfarçando a evidência da decrepitude. Olhou para o portal aberto do auditório. Havia uma severidade em Tuono, alguma coisa lutando por baixo das flores murchas e do tom servil da voz de Garun. Em outra época e outro planeta, essa teria sido uma vila daquelas que têm burros nas ruas — com camponeses em roupas presas por cordas adiantando-se com seus pedidos. Ele podia ouvir as súplicas na voz de Garun. Esses não eram Fremen! Essas pobres criaturas viviam à margem, tentando reter partes de um todo ancestral. E o tempo todo aquela realidade perdida escorregava, cada vez mais longe de seu alcance. O que Leto criara ali? Esses Fremen de Museu haviam perdido tudo, exceto a mera existência e o anunciado vazio de velhas palavras que não entendiam nem mesmo pronunciavam corretamente!
Voltando para junto de Siona, Idaho curvou-se para observar o corte do manto marrom de Garun, vendo como ele era apertado pela necessidade de poupar tecido. O cinza lustroso de um traje destilador podia ser visto por baixo, exposto à luz solar, que um verdadeiro Fremen jamais deixaria tocar o seu traje destilador desse modo. Idaho olhou para o resto da delegação, notando um tratamento idêntico no modo parcimonioso como era usado o tecido, algo que traía o domínio emocional sob o qual eles viviam. Tais roupas não permitiam gestos expansivos nem liberdade de movimentos. Esses mantos eram tão apertados e limitadores como o modo de vida de toda essa gente!
Movido pelo desgosto, Idaho avançou abruptamente e abriu o manto de Garun para olhar o traje destilador. Exatamente como suspeitara! O traje era outra fraude — não tinha braços nem bombas nas botas!
Garun recuou, levando a mão ao punho da faca que Idaho deixara descoberta em seu cinturão.
— Ei! Que está fazendo? — perguntou em voz queixosa. — Não se toca assim num Fremen!
— Você, um Fremen? — perguntou Idaho. — Eu vivi com os Fremen! Eu lutei ao lado deles contra os Harkonnen! Eu morri com os Fremen! Você? Você é uma fraude!
Os nós dos dedos de Garun ficaram brancos sobre o cabo da faca. Ele voltou-se para Siona.
— Quem é esse homem?
Nayla respondeu:
— Esse é Duncan Idaho.
— O ghola? — Garun virou-se para olhar o rosto de Idaho. — Nunca vimos um de vocês aqui antes.
Idaho sentia-se quase dominado pelo desejo de limpar esse lugar, mesmo que fosse ao custo de sua vida, dessa vida diminuída, que podia ser reproduzida interminavelmente por gente que não tinha verdadeira consideração por ele. “Um modelo antigo, sim!” Mas esse não era o modo Fremen.
— Puxe essa faca ou tire as mãos dela — ordenou Idaho.
Garun tirou a mão da faca num movimento brusco, justificando-se:
— Não é uma faca de verdade, é apenas para enfeitar. — Sua voz tornou-se ávida. — Mas temos facas verdadeiras, até mesmo facas cristalinas! Elas são mantidas trancadas em mostruários de modo a serem preservadas.
Idaho não pôde conter-se. Jogou a cabeça para trás e deu uma gargalhada. Siona sorriu, mas Nayla o observou, pensativa, e o resto da tropa de Oradoras Peixes se aproximou, circundando-os vigilante.
A gargalhada teve um efeito curioso em Garun. Ele abaixou a cabeça e uniu as mãos bem apertadas, mas não antes que Idaho as visse tremendo. Quando Garun olhou para cima outra vez foi para sondar Idaho, olhando-o debaixo de sobrancelhas carregadas. Idaho sentiu-se sóbrio de repente. Era como se uma bota terrível tivesse esmagado o ego de Garun numa temerosa subserviência. Havia uma espera vigilante nos olhos do homem. E por uma razão que não podia explicar, Idaho lembrou-se de uma passagem da Bíblia Universal Laranja. Perguntou a si mesmo. “Serão esses os humildes que nos irão superar a todos e herdar o universo?”
Garun pigarreou e disse:
— Talvez o ghola Duncan Idaho possa testemunhar nossos modos de vida, nossos rituais e julgá-los?
Idaho sentiu-se envergonhado pelo pedido melancólico e disse sem pensar:
— Eu lhes ensinarei qualquer coisa Fremen de que me lembre. — Olhou para ver Nayla observando-o, carrancuda. — Vai ajudar a passar o tempo — justificou. — E quem sabe? Pode trazer de volta a esta terra algo dos verdadeiros Fremen.
Siona disse:
— Não precisamos jogar velhos jogos ritualísticos! Leve-nos para nossos alojamentos.
Nayla abaixou a cabeça, embaraçada, e falou sem olhar para Siona.
— Comandante, há uma coisa que ainda não me atrevi a lhe dizer.
— Que irá certificar-se de que nós permaneceremos neste lugar imundo — respondeu Siona.
— Oh, não! — Nayla olhou para o rosto de Siona. — Para onde poderiam ir? A Muralha não pode ser escalada, e existe apenas o rio além dela, de qualquer modo. E na outra direção fica o Sareer. Oh, não... é outra coisa. — Nayla sacudiu a cabeça.
— Desembuxe! — ordenou Siona.
— Estou sob ordens estritas, Comandante, que não me atrevo a desobedecer. — Nayla olhou para as outras integrantes da tropa e depois de volta para Siona. — Você e o Duncan Idaho devem ser alojados juntos.
— Ordens de meu pai?
— Senhora Comandante, dizem que são ordens do próprio Imperador-Deus, e não nos atrevemos a desobedecer.
Siona olhou para Idaho.
— Vai se lembrar do meu aviso, Duncan, quando falamos pela última vez na Cidadela?
— Minhas mãos são minhas para que eu faça o que quiser — retrucou Idaho. — E não creio que você tenha alguma dúvida quanto aos meus desejos!
Ela virou-lhe as costas após um rápido aceno da cabeça e olhou para Garun.
— Que importa onde iremos dormir neste lugar desagradável? Leve-nos para nossos alojamentos.
Idaho achou fascinante a resposta de Garun — ele virou a cabeça em direção ao ghola, ocultando o rosto por trás do capuz Fremen, e então deu uma secreta e conspiratória piscada de olho. Somente então Garun os conduziu pela rua suja.
Qual é o perigo mais imediato para minha administração? Vou lhes dizer. É um verdadeiro visionário, uma pessoa que tenha estado na presença de Deus com o pleno conhecimento de onde se colocava. O êxtase divisionário libera energias que são como as do sexo-livres de preocupação com qualquer coisa, exceto a criação. Um ato de criação pode ser muito semelhante a outro. Tudo depende da visão.
— Os diários roubados
Leto encontrava-se fora de sua carreta, na sacada elevada da torre de sua Pequena Cidadela, dominando um mau humor que sabia ser proveniente dos necessários atrasos na data de seu casamento com Hwi Noree. Olhou em direção ao sudoeste. Em algum ponto além do horizonte escurecido, o Duncan, Siona e seus companheiros estariam completando seis dias de estada na vila de Tuono.
“Esses atrasos foram falha minha”, pensou Leto. “Fui eu que mudei o local do casamento, tornando necessário que o pobre Moneo revisasse todos os seus preparativos.”
E agora, é claro, havia a questão de Malky.
Nenhuma dessas necessidades poderia ser explicada a Moneo, que Leto ouvia andando dentro da câmara central do ninho, preocupado por estar ausente do posto de comando, onde dirigia os preparativos para a festa. Moneo vivia se preocupando tanto!
Leto olhou na direção do sol poente, que flutuava acima do horizonte, apagando-se no fraco tom laranja de uma tempestade recente. A chuva agachava-se sob as nuvens do sul, agora além do Sareer. Em prolongado silêncio, Leto observara-a estender-se por algum tempo, parecendo não ter começo nem fim. As nuvens tinham crescido num céu cinzento, com a chuva avançando embaixo em linhas visíveis. Sentiu-se dominado por memórias que vinham sem serem desejadas. O estado de espírito que isso provocava era difícil de dominar e, mesmo sem pensar, Leto murmurou alguns versos de um poema muito antigo.
— Falou, Senhor?
A voz de Moneo veio de um ponto mais baixo, bem ao lado de Leto. Apenas virando os olhos, Leto podia ver o fiel majordomo de pé, esperando atento.
Leto traduziu para o Galach os versos que citara:
— O rouxinol faz seu ninho na ameixeira, mas que fará com relação ao vento?
— Isso é uma pergunta, Senhor?
— Uma velha pergunta. A resposta é simples. Deixe o rouxinol ficar com suas flores.
— Não compreendo, Senhor.
— Pare de dizer o óbvio, Moneo. Incomoda-me quando você faz isso.
— Perdoe-me, Senhor.
— Que mais poderia fazer? — Leto observou as feições abatidas de Moneo. — Você e eu, Moneo, o que quer que a gente faça, fornecemos um bom teatro.
Moneo olhou para o rosto de Leto.
— Senhor?
— Os rituais durante as festas religiosas de Baco foram as sementes do teatro grego, Moneo. A religião freqüentemente leva ao teatro. E eles vão fazer um ótimo teatro a partir de nós.
Uma vez mais Leto virou-se, olhando para o horizonte sudoeste.
Lá agora havia um vento empilhando as nuvens. Leto podia ouvir a areia impulsionada pelo vento rodopiando entre as dunas, mas na elevada torre havia apenas uma quietude profunda, com um suave assovio de vento ao fundo.
— As nuvens — sussurrou ele. — Eu beberia outra vez uma taça de luar, com uma antiga barcaça oceânica aos meus pés, nuvens finas e meu céu escurecido, o manto azul-cinzento sobre os ombros e os cavalos relinchando por perto.
— Meu Senhor está perturbado — disse Moneo, e a compaixão em sua voz doeu em Leto.
— São as sombras brilhantes do meu passado — disse Leto. — Nunca me deixam em paz. Procuro ouvir um som tranqüilizador, como o sino de um vilarejo campestre ao cair da noite, e ele me diz que eu sou o som e a alma deste lugar.
Enquanto ele falava, a escuridão envolveu a torre. Luzes automáticas acenderam-se em torno deles. Leto manteve a atenção voltada para fora, onde a fina fatia de melão formada pela Primeira Lua deslizava acima das nuvens, com a luz alaranjada do planeta revelando o círculo completo do satélite.
— Senhor, por que viemos até aqui? — perguntou Moneo. — Por que não me diz?
— Eu queria o benefício da sua surpresa — respondeu Leto. — Uma nave ligeira da Corporação logo pousará ao nosso lado: minhas Oradoras Peixes trazendo-me Malky.
Moneo sorveu subitamente o ar, prendendo a respiração por um momento antes de exalar.
— O tio... de Hwi? Esse Malky.
— Está surpreso por não ter sido avisado disso.
Moneo sentiu um frio percorrer-lhe todo o corpo:
— Senhor, quando deseja manter coisas fora de meu conhecimento...
— Moneo? — Leto falou em tom suavemente persuasivo. — Sei que Malky lhe ofereceu maiores tentações do que qualquer outro...
— Senhor! Eu nunca...
— Sei disso, Moneo. — Ele continuou falando em tom suave. — Mas a surpresa revigorou suas memórias. Agora está armado para qualquer coisa de que eu necessite.
— O que... o que meu Senhor...
— Talvez tenhamos que nos livrar de Malky. Esse é o problema.
— Eu? O Senhor quer que eu...
— Talvez.
Moneo engoliu em seco.
— A Reverenda Madre...
— Anteac está morta. Ela me serviu bem, mas agora está morta. Houve uma violência extrema quando minhas Oradoras Peixes atacaram o... o lugar onde Malky estava escondido.
— Nós estamos melhor sem Anteac — comentou Moneo.
— Eu aprecio a sua desconfiança em relação à Bene Gesserit, mas preferia que Anteac nos tivesse deixado de outro modo. Ela era fiel a nós, Moneo.
— Uma Reverenda Madre era...
— Tanto a Bene Tleilaxu quanto a Corporação queriam o segredo de Malky — contou Leto. — Quando eles nos viram avançando contra os Ixianos, atacaram antes de minhas Oradores Peixes. Anteac... bem, ela só pôde retardá-los um pouco, mas foi o suficiente. Minhas Oradoras Peixes investiram contra o lugar e...
— O segredo de Malky, Senhor?
— Quando alguma coisa desaparece — explicou Leto —, isso constitui uma mensagem tão significativa quanto o aparecimento de algo. Os lugares vazios sempre valem nosso estudo.
— O que meu Senhor quer dizer com vazio?
— Malky não morreu! Certamente eu teria sabido disso. E para onde ele foi quando desapareceu?
— Desapareceu... de sua observação, Senhor? Quer dizer que os Ixianos...
— Eles aperfeiçoaram um engenho que me forneceram muito tempo atrás. Eles o aperfeiçoaram lentamente, de modo sutil, carapaças ocultas dentro de carapaças, mas percebi as sombras. Fiquei surpreso. Fiquei satisfeito.
Moneo pensou a respeito disso. “Um engenho que escondia. Ah!” O Imperador-Deus mencionara uma coisa assim em várias ocasiões, um modo de ocultar os pensamentos que gravava. Ele disse:
— E Malky traz o segredo do...
— Oh, sim! Mas esse não é o verdadeiro segredo de Malky. Ele guarda outra coisa pensando que eu não suspeito.
— Outra... mas se ele pode esconder-se até do Senhor..
— Muitos podem fazê-lo agora, Moneo. Eles se dispersaram ante o ataque de minhas Oradoras Peixes. O segredo do engenho Ixiano já se espalhou amplamente.
Os olhos de Moneo arregalaram-se de preocupação.
— Senhor, se alguém...
— Se eles aprenderam a ser hábeis, não deixarão rastros. Diga-me, Moneo, que é que Nayla diz a respeito do Duncan? Será que ela se ressente por relatar diretamente a você?
— O que meu Senhor ordenar... — Moneo pigarreou.
Não podia imaginar por que o Imperador-Deus falara de rastros ocultos, do Duncan e de Nayla ao mesmo tempo.
— Sim, é claro — concordou Leto. — É só eu ordenar que Nayla obedece. E que ela diz do Duncan?
— Ele não tentou procriar com Siona, se essa e a...
— Mas que é que ele tem feito com meus fantoches, o Naib Garun e os outros Fremen de Museu?
— Ele fala com eles sobre os antigos costumes, sobre as guerras contra os Harkonnen e os primeiros Atreides aqui em Arrakis.
— Em Duna!
— Sim, Duna.
— É por não existir mais Duna que não existem mais Fremen — disse Leto. — Você transmitiu minha mensagem a Nayla?
— Senhor, por que aumenta o perigo?
— Você transmitiu minha mensagem?
— A mensageira foi enviada a Tuono, mas ainda posso chamá-la de volta.
— Você não a chamará de volta!
— Mas Senhor...
— Que ela vai dizer a Nayla?
— Que... que sua ordem para Nayla é manter-se em absoluta e inquestionada obediência a minha filha, exceto... Senhor! Isso é perigoso!
— Perigoso? Nayla é uma Oradora Peixe. Ela me obedecerá.
— Mas Siona... Senhor, temo que minha filha não lhe sirva de todo o seu coração. E Nayla é.
— Nayla não deve desviar-se.
— Senhor, vamos celebrar o casamento em outro lugar.
— Não!
— Senhor, eu sei que sua visão revelou.
— O Caminho Dourado perdura, Moneo. Sabe disso tão bem quanto eu.
Moneo suspirou.
— O Infinito lhe pertence, Senhor. Eu não questiono...
Ele interrompeu a frase quando um rugido estremeceu a torre, cada vez mais alto, mais alto.
Ambos viraram-se na direção do som — uma pluma descendente de luz azul alaranjada envolveu-os em rodopiantes ondas de choque e pousou no deserto, a menos de um quilômetro de distância, para o sul.
— Ah, meu convidado está chegando — disse Leto. — Vou mandá-lo em minha carreta, Moneo. Traga somente Malky com você. Diga aos homens da Corporação que eles conquistaram meu perdão e depois os mande embora.
— Seu per... sim, Senhor. Mas se eles possuem o segredo do...
— Eles servem ao meu propósito, Moneo. Você deve fazer o mesmo.
Obediente, Moneo dirigiu-se à carreta que se encontrava mergulhada nas sombras, na outra extremidade da câmara. Subiu nela e observou um círculo de noite aparecer na parede. Uma plataforma de pouso projetou-se na escuridão. A carreta flutuou para fora, leve como uma pena, e deslizou em ângulo até a areia, ao lado da nave ligeira da Corporação, que se erguia como uma miniatura distorcida da torre da Pequena Cidadela.
Leto observou da sacada, seus segmentos frontais ligeiramente erguidos para proporcionarem um melhor ângulo de observação. Sua visão aguda identificava os movimentos da mancha branca que era Moneo, de pé na carreta, sob a luz do luar. Servidores da Corporação, de pernas longas, saíram com uma liteira que colocaram na carreta, parando Por um momento para conversarem com Moneo. Quando partiram, Leto fechou a cobertura-bolha da carreta e viu o luar refletir-se nela. Obedecendo ao chamado de seu pensamento, a carreta e sua carga retornaram à plataforma de pouso. A nave da Corporação ergueu-se com muito ruído enquanto Leto trazia a carreta para a área de iluminação da câmara, fechando a abertura atrás dela. Abriu a cobertura-bolha e a areia raspou embaixo dele, enquanto rolava até a liteira e elevava seus segmentos frontais para observar Malky. Ele se encontrava como que dormindo, amarrado à liteira por largas faixas de elástico cinzento: o rosto do homem era cinza-pálido sob o cabelo grisalho-escuro.
“Como ele envelheceu”, pensou Leto.
Moneo desceu da carreta e olhou para o ocupante da liteira.
— Ele está ferido, Senhor. Queriam mandar um médico...
— Queriam mandar era um espião.
Leto observava Malky — a pele escura enrugada, as fundas maçãs do rosto, o nariz fazendo enorme contraste com o oval arredondado do rosto, as espessas sobrancelhas quase brancas. Não fosse uma vida inteira de testosterona... sim.
Os olhos de Malky se abriram. Era um grande choque encontrar a maldade naqueles olhos castanhos de corça! Um sorriso torceu a boca de Malky.
— Lorde Leto. — A voz de Malky não passava de um sussurro rouco. Seus olhos voltaram-se para a direita, focalizando-se no majordomo. — E Moneo. Perdoem-me por não me levantar.
— Está sentindo dor? — perguntou Leto.
— Às vezes sinto. — Os olhos de Malky percorreram os arredores. — Onde estão as huris?
— Temo que lhe deva negar esse prazer, Malky.
— Muito bem — disse a voz rouca. — Realmente não me sinto apto a suportar as exigências delas. Não foram huris que mandou atrás de mim, Leto.
— Elas foram profissionais em sua obediência a mim — respondeu Leto.
— Eram caçadoras sangüinárias!
— Anteac era a caçadora. Minhas Oradoras Peixes eram meramente a turma da limpeza.
Moneo desviava sua atenção de um para o outro. Havia uns tons perturbadores nessa conversa e, a despeito da voz fanhosa, Malky parecia quase petulante... mas ele sempre fora assim. Um homem perigoso!
Leto disse:
— Pouco antes de sua chegada, Moneo e eu estávamos discutindo o Infinito.
— Pobre Moneo — disse Malky.
Leto sorriu.
— Está lembrado, Malky? Uma vez você me pediu para demonstrar o Infinito.
— E você disse que não havia um Infinito para ser demonstrado. — Malky voltou o olhar para Moneo. — Leto gosta de brincar com paradoxos. Conhece todos os truques de linguagem que já foram inventados.
Moneo dominou um ímpeto de raiva. Sentia-se excluído da conversa, um objeto de diversão de dois seres superiores. Malky e o Imperador-Deus eram quase como dois velhos amigos, relembrando os prazeres de um passado comum.
— Moneo acusa-me de ser o único possuidor do Infinito — disse Leto. — Ele se recusa a acreditar que possui tanto Infinito quanto eu.
Malky olhou para Leto.
— Está vendo, Moneo? Percebe como ele é hábil com as palavras?
— Fale-me da sua sobrinha, Hwi Noree — pediu Leto, — É verdade o que eles estão dizendo, Leto? Que vai se casar com a gentil Hwi?
— É verdade.
Malky riu, depois fez uma careta de dor.
— Elas fizeram um estrago terrível em mim, Leto — sussurrou ele, depois disse: — Diga-me, velho verme.
Moneo emitiu um som de espanto.
Malky levou um momento para se recuperar da dor, depois continuou:
— Diga-me, velho verme, existe algum pênis monstruoso escondido nesse seu corpo de monstro? Que choque vai ser para a gentil Hwi!
— Eu lhe disse a verdade muito tempo atrás — respondeu Leto.
— Ninguém diz a verdade — disse a voz rouca.
— Você muitas vezes me dizia a verdade — lembrou Leto.
— Mesmo quando não o sabia.
— É porque você era mais esperto do que o resto de nós.
— Vai me falar a respeito de Hwi?
— Acho que já sabe.
— Quero ouvir de você — insistiu Leto. — Você obteve ajuda dos Tleilaxu?
— Eles nos deram o conhecimento, nada mais. Todo o restante fizemos sozinhos.
— Eu achei que não era coisa dos Tleilaxu.
Moneo não pôde mais conter a curiosidade.
— Senhor, que relação é essa de Hwi com os Tleilaxu? Por que o Senhor...
— Ora vamos, velho amigo Moneo — disse Malky, virando os olhos para o majordomo. — Não sabe que ele...
— Nunca fui seu amigo! — retrucou Moneo.
— Companheiro entre as huris, então.
— Senhor — disse Moneo, virando-se para Leto —, por que fala de...
— Shhh, Moneo — pediu Leto. — Estamos cansando nosso velho companheiro e ainda tenho coisas para aprender dele.
— Jamais se perguntou, Leto, por que Moneo nunca tentou tomar-lhe o controle de todo este negócio?
— O quê? — perguntou Moneo.
— Outra das velhas palavras de Leto — explicou Malky. — É perfeita. Por que não rebatiza seu Império, Leto? O Grande Negócio? * No original. o autor faz um trocadilho com a expressão Shebang (armação, negócio). formada pelas palavras she (ela) e bang (som de explosão) numa alusão de Malky à ação do exército feminino de Leto. (N. do T.)
Leto ergueu a mão para silenciar Moneo.
— Vai me dizer, Malky? A respeito de Hwi?
— Apenas umas pequeninas células do meu corpo — explicou Malky. — Depois o cuidado com a nutrição, o crescimento e a educação... tudo o oposto exato de seu velho amigo Malky. Fizemos tudo numa não-sala onde você não poderia ver!
— Mas eu noto quando alguma coisa desaparece — disse Leto.
— Não-sala? — perguntou Moneo ao captar a importância das palavras de Malky. — Você? Você e Hwi?
— Essa foi a forma que eu vi nas sombras — disse Leto.
Moneo olhou direto para o rosto de Leto.
— Senhor, vou cancelar esse casamento. Vou dizer.
— Você não fará nada disso!
— Mas Senhor, se ela e Malky são.
— Moneo — disse a voz rouca de Malky —, seu Senhor ordena e você deve obedecer!
Aquele tom de zombaria! Moneo olhou para Malky.
— O oposto exato de Malky — disse Leto. — Você não o ouviu?
— Que poderia ser melhor? — perguntou Malky.
— Mas certamente, Senhor, se agora sabe.
— Moneo — disse Leto —, você está começando a me perturbar.
Moneo caiu num embaraçado silêncio.
Leto disse:
— Assim está melhor. Você sabe, Moneo, certa vez, há dezenas de milhares de anos, quando eu era outra pessoa, cometi um engano.
— Você cometeu um engano? — zombou Malky.
Leto apenas sorriu.
— Meu engano foi corrigido pelo belo modo através do qual eu o expressei.
— Truques com palavras — provocou Malky.
— De fato! Foi isto que eu disse: “O presente é uma distração, o futuro é um sonho; somente a memória pode abrir o significado da vida. Não são palavras bonitas, Malky?
— Primorosas, velho verme.
Moneo colocou a mão sobre a boca.
— Mas minhas palavras são uma tola mentira. Eu sabia disso naquela época — explicou Leto —, mas estava enamorado da beleza das palavras. Não... a memória não abre significado algum. Sem a agonia da alma, que é uma experiência não-verbalizável, não existe significado em parte alguma.
— Não consigo ver significado na agonia causada em mim pelas suas Oradoras Peixes sedentas de sangue — disse Malky.
— Você não está sofrendo agonia — disse Leto.
— Se estivesse neste corpo, você...
— Isso é apenas dor física. Vai terminar logo.
— Então, quando é que conhecerei a agonia?
— Talvez mais tarde.
Leto flexionou seus segmentos frontais para longe de Malky, encarando Moneo.
— Você realmente serve ao Caminho Dourado, Moneo?
— Ah, o Caminho Dourado — zombou Malky.
— Sabe que sim, meu Senhor — respondeu Moneo.
— Então deve prometer-me que nada do que aprendeu aqui jamais escapará dos seus lábios. Nem por palavras, nem por sinais você o revelará.
— Prometo, Senhor.
— Ele promete, Senhor — resmungou Malky.
Uma das pequeninas mãos de Leto gesticulou na direção de Malky, que jazia olhando para o volumoso perfil de um rosto dentro de seu capuz cinzento.
— Por causa da antiga admiração e... muitos outros motivos, não posso matar Malky. Não posso nem mesmo lhe pedir isso... e no entanto ele deve ser eliminado.
— Oh, mas como ele é hábil! — comentou Malky.
— Senhor, se esperar do outro lado da câmara — disse Moneo. — Talvez, quando retornar, Malky não seja mais um problema.
— Ele vai fazê-lo — disse Malky com sua voz rouca. — Pelos Deuses! Ele vai.
Leto afastou-se para o limite da sala que se encontrava nas sombras, mantendo sua atenção voltada para a fraca linha em arco que se converteria numa abertura para a noite se ele apenas convertesse a vontade num comando de pensamento. Que longa queda haveria lá fora — bastava rolar para fora da plataforma de pouso. Ele duvidava de que até mesmo seu corpo pudesse sobreviver a tal queda. Mas não existia água na areia embaixo da Torre e ele pôde sentir o Caminho Dourado piscando para dentro e para fora da existência, somente porque se permitira a pensar em tal fim.
— Leto! — Malky gritou por trás dele.
Leto ouviu a liteira arrastando-se sobre a areia soprada pelo vento, que salpicava o piso de seu ninho.
Uma vez mais Malky gritou.
— Leto, você é o maior! Não existe maldade neste universo que possa superar...
O som de uma pancada em algo úmido calou a voz de Malky. “Um golpe na garganta”, pensou Leto. “Sim, Moneo conhece esse.” Então vieram o som do escudo transparente da sacada sendo aberto, o raspar da liteira no gradil e o silêncio.
“Moneo terá que enterrar esse corpo na areia”, pensou Leto. “Ainda não há nenhum Verme para devorar a evidência.” Virou-se e olhou através da câmara. Moneo inclinava-se sobre o balaústre, olhando para baixo.
“Não posso orar por você, Malky, nem por você, Moneo. Posso ser a única consciência religiosa de todo o Império porque estou verdadeiramente só... e assim não posso rezar.”
Vocês não entenderão a história a menos que compreendam seus fluxos, suas correntes e o modo como os líderes navegam dentro de tais forças. Um líder tenta perpetuar as condições que exijam sua liderança, e assim precisa do outro. Eu lhes aviso para examinarem minha carreira com muito cuidado. Eu sou tanto o líder quanto o outro.
Não cometam o engano de presumir que eu apenas criei a Igreja que constituiu o Estado. Essa era minha função como líder e eu possuía muitos modelos históricos para usar como padrão. Para um indício de meu trabalho como o outro, como aquele que observa e segue o líder, examine as artes da minha época. São bárbaras. A poesia favorita? A época. O ideal dramático popular? O heroísmo. As danças? Amplamente abandonadas. Do ponto de vista de Moneo, ele é correto em descrever isso como perigoso.
Isso estimula a imaginação. Faz com que as pessoas sintam falta de algo que lhes foi tomado. E que eu tomei delas? O direito de tomar parte na história.
— Os diários roubados
Idaho esticou-se no catre com os olhos fechados e ouviu algo pesado cair no outro leito. Sentou-se sob a luz da manhã, que passava enviesada através da única janela do aposento, refletindo-se do piso de azulejo branco para as paredes amarelo-claras. Siona, ele viu, chegara para se deitar em sua cama. Já estava lendo um dos livros que carregava sempre consigo num embrulho de tecido verde.
“Por que livros?”, perguntou-se ele.
Girou, colocando os pés no chão, e olhou à volta. Como poderia essa caixa espaçosa, de teto alto, ser considerada, mesmo remotamente, como algo Fremen? Uma larga mesa-escrivaninha, feita de um plástico marrom-escuro, manufaturado no local, separava as duas camas. Havia duas portas. Uma conduzindo diretamente para fora, através de um jardim. A outra dando para o luxuoso banheiro, cujos azulejos azul-pálidos cintilavam sob uma ampla clarabóia. O banheiro continha, entre seus muitos equipamentos funcionais, uma banheira escavada no chão e uma ducha, cada qual com pelo menos dois metros quadrados. A porta que dava para esse espaço sibarítico fora deixada aberta, e Idaho podia ouvir a água derramando-se da banheira. Curiosamente, Siona parecia gostar de se banhar com água em excesso.
Stilgar, o Naib de Idaho nos velhos dias de Duna, teria olhado para esse alojamento com desdém.
— Vergonhoso! — teria dito. — Decadente! Fraco!
Stilgar teria usado muitas palavras de censura em relação a essa vila, que se atrevia a ser comparada a um verdadeiro sietch Fremen.
O papel fez ruído quando Siona virou uma página. Estava deitada com a cabeça apoiada em dois travesseiros, um fino roupão branco cobrindo-lhe o corpo. Um roupão que ainda se colava à umidade do banho.
Idaho sacudiu a cabeça. Que haveria naquelas páginas que mantinha o interesse dela desse modo? Ela estivera lendo e relendo desde que tinham chegado a Tuono. Os volumes eram finos mas numerosos, exibindo apenas números em suas capas negras. Idaho vira o número nove.
Ele pulou da cama e foi até a janela. Havia um velho lá fora, bem longe, escavando entre as flores. Três lados do jardim eram protegidos por prédios, e as flores tinham botões enormes — vermelhos do lado de fora, mas, quando se abriam, brancos no centro. O cabelo grisalho do velho era uma espécie de flor, ondulando entre os botões brancos. Idaho sentiu o cheiro de folhas secas e de humo recentemente remexido, em meio a um forte perfume floral.
“Um Fremen cuidando de flores a céu aberto!”
Siona nada dissera quanto à sua estranha leitura. “Ela está me provocando”, pensou ele. “Quer que eu pergunte.”
Tentou não pensar em Hwi. O ódio ameaçava dominá-lo quando o fazia. Lembrou-se da palavra Fremen para uma emoção intensa: kanawa, o anel de ferro do ciúme. “Onde estará Hwi? Que estará fazendo neste instante?”
A porta para o jardim abriu-se com uma batida, e Teishar, ajudante de Garun, entrou. Teishar tinha um rosto de cor morta, cheio de rugas escuras. Seus olhos eram fundos, com um amarelado pálido em torno das pupilas. Usava um manto marrom. O cabelo lembrava capim deixado para apodrecer e Teishar parecia todo ele desnecessariamente feio, como um espírito escuro e elementar. Ele fechou a porta e ficou diante dela, olhando para eles.
A voz de Siona veio de trás de Idaho:
— Bem, que houve?
Idaho reparou que Teishar parecia estranhamente excitado, vibrando com alguma coisa.
— O Imperador-Deus... — Teishar pigarreou e começou de novo. — O Imperador-Deus virá a Tuono!
Siona sentou-se ereta na cama, dobrando o robe branco sobre os joelhos. Idaho olhou para ela e então uma vez mais para Teishar.
— Ele se casará aqui em Tuono! — disse Teishar. — Será feito à antiga maneira Fremen! O Imperador-Deus e sua noiva serão hóspedes de Tuono!
Ainda inteiramente sob o domínio do kanawa, Idaho olhou furioso para ele, com os punhos contraídos. Teishar inclinou a cabeça brevemente, virou-se e saiu, fechando a porta com força.
— Deixe-me ler alguma coisa para você, Duncan — disse Siona.
Idaho levou um instante para compreender as palavras. Com os punhos ainda fechados, os braços esticados dos lados do corpo, ele se virou e olhou para ela. Siona estava sentada na beira da cama, com um dos livros no colo. Ela tomou sua atenção como concordância.
— “Alguns acreditam” — ela leu — “que você deve unir integridade a uma certa quantidade de trabalho sujo antes de emprestar genialidade ao seu trabalho. Eles dizem que o compromisso começa quando você sai do seu sanctus com a intenção de realizar seus ideais. Moneo diz que minha solução é permanecer dentro do sanctus, mandando outras pessoas fazerem o trabalho sujo.” — Ela olhou para Idaho. — São palavras... do próprio Imperador-Deus.
Lentamente, Idaho relaxou os punhos. Sabia que precisava dessa distração e lhe interessava que Siona tivesse emergido de seu silêncio.
— Que livro é esse? — perguntou ele.
Sucintamente, ela lhe contou como roubara, com a ajuda de seus companheiros, as plantas da Cidadela e as cópias dos diários de Leto.
— É claro que você sabia disso. Meu pai deixou claro que nosso ataque foi traído por espiões.
Ele viu as lágrimas latentes nos olhos dela:
— Nove de vocês mortos pelos lobos?
Ela confirmou.
— Você é uma péssima Comandante! — disse ele.
Ela ficou irritada, mas, antes que pudesse falar, ele indagou:
— Quem os traduziu para você?
— Estes vieram de Ix. Eles dizem que a Corporação encontrou a Chave.
— Já sabemos que o nosso Imperador-Deus aprecia conveniências — disse Idaho. — Isso é tudo o que ele diz?
— Leia você mesmo.
Ela mexeu no embrulho ao lado da cama e pegou o primeiro volume da tradução, que jogou para a cama dele. Quando Idaho voltava para a sua cama, ela quis saber:
— Por que disse que sou péssima Comandante?
— Desperdiçar nove de seus companheiros daquele modo.
— Seu tolo! — Ela sacudiu a cabeça. — Você obviamente nunca viu aqueles lobos!
Ele pegou o livro e o achou pesado, percebendo que fora impresso em papel cristalino.
— Vocês deviam ter se armado contra os lobos — retrucou ele, abrindo o volume.
— Com que armas? Qualquer arma que pudéssemos obter teria sido inútil.
— Pistolas laser? — perguntou ele, virando uma página.
— Toque em uma arma laser em Arrakis e o Verme saberá!
Ele virou outra página.
— Seus amigos acabaram conseguindo armas laser.
— E olhe o que aconteceu com eles!
Idaho leu uma linha, depois disse:
— Era possível usar venenos.
Ela engoliu em seco, convulsivamente. Idaho olhou para ela
— Vocês acabaram envenenando os lobos, não foi?
A voz dela era quase um sussurro.
— Sim.
— Por que não fizeram isso antes?
— Mas nós... não sabíamos... que... poderíamos.
— E você nem ao menos experimentou. — Ele voltou-se para o volume aberto. — Uma péssima Comandante.
— Ele é tão arguto! — disse ela.
Idaho leu uma passagem do volume antes de voltar a atenção para ela.
— Isso o descreve muito pouco. Já leu tudo?
— Cada palavra! Algumas delas várias vezes.
Ele olhou para o livro aberto e leu em voz alta:
— “Eu criei o que pretendia — uma poderosa tensão espiritual através do meu Império. Poucos sentem a força disso. E com que energias eu criei essa condição? Não sou tão forte. O único poder de que disponho é o controle da prosperidade individual. Isso é a soma de todas as coisas que faço. Então por que as pessoas buscam minha presença por outros motivos? O que poderia conduzi-las à morte certa numa fútil tentativa de alcançar minha presença? Será que elas querem tornar-se santas? Será que pensam que desse modo obtêm a visão de Deus?”
— Ele é o maior dos cínicos — disse Siona, o choro evidente em sua voz.
— Como foi que ele a testou?
— Ele me mostrou um... ele me mostrou o seu Caminho Dourado.
— Isso é conveniente.
— É verdadeiro, Duncan. — Ela olhou para ele com os olhos brilhantes de lágrimas não derramadas. — Mas se isso algum dia foi uma razão justificadora para o Imperador-Deus, não é mais motivo para o que ele se tornou!
Idaho respirou fundo e disse.
— Os Atreides chegando a isso!
— O Verme deve acabar! — disse Siona.
— Eu me pergunto quando ele vai chegar.
— O pequeno amigo rato de Garun não disse.
— Devemos perguntar — sugeriu Idaho.
— Mas não temos armas.
— Nayla tem uma arma laser. Nós temos facas, cordas. Vi cordas em uma das salas de depósito de Garun.
— Contra o Verme? — ela perguntou. — Mesmo que pudéssemos obter a arma laser de Nayla, você sabe que não o atingiria.
— Mas será que a carreta dele é à prova de laser?
— Não confio em Nayla — disse Siona.
— Mas ela não lhe obedece?
— Sim, mas...
— Vamos prosseguir, um passo de cada vez — explicou Idaho.
— Pergunte a Nayla se ela usaria sua arma laser contra a carreta do Verme.
— E se ela se recusar?
— Mate-a!
Siona levantou-se, deixando de lado os livros.
— Como é que o Verme vai chegar a Tuono? — perguntou Idaho. — Ele é muito grande e pesado para um tóptero comum.
— Garun nos dirá. Mas acho que ele vai chegar da maneira como geralmente viaja. — Olhou para o teto que ocultava a Muralha do Perímetro do Sareer. — Acho que ele virá em peregrinação, com todo o seu séquito. Virá pela Estrada Real e descerá até aqui flutuando nos suspensores. — Ela olhou para Idaho. — E quanto a Garun?
— É um homem estranho — respondeu Idaho. — Um verdadeiro Fremen quase que desesperadamente e é nada do que eles foram em minha época.
— Como eles eram no seu tempo, Duncan?
— Eles tinham um ditado que os descreve bem: “Nunca ande na companhia de alguém com quem você não queira morrer.
— Você disse isso a Garun? — perguntou ela.
— Sim.
— Quer ser um Fremen de verdade. Sabe que não é.
— E a resposta dele?
— Disse que eu era a única pessoa assim que ele jamais conhecera.
— Garun pode ser mais sábio que qualquer um de nós — disse Siona.
Vocês acham que o poder pode ser a mais instável das conquistas humanas? Então, que acha das evidentes exceções à sua instabilidade inerente? Algumas famílias permanecem no poder. Sabe-se que burocracias religiosas muito poderosas permaneceram no poder. Considere a relação entre o poder e a fé. Serão mutuamente excludentes quando um depende da outra? A Bene Gesserit tem se mantido razoavelmente segura, dentro das leais muralhas da fé, por milhares de anos. Mas para onde foi o poder delas?
— Os diários roubados
Moneo falou num tom petulante:
— Senhor, eu queria que me tivesse concedido mais tempo.
Eles se encontravam no lado de fora da Cidadela, sob as curtas sombras do meio-dia. Leto estava diretamente em frente de Moneo, dentro de sua Carreta Imperial, com a cobertura-bolha retraída. Estivera mostrando o local a Hwi Noree, e ela agora ocupava um assento recentemente instalado, dentro do perímetro da cobertura e bem ao lado do rosto de Leto. Hwi parecia apenas curiosa com toda a agitação que começava a aumentar ao seu redor.
“Como ela é calma”, pensou Moneo. Controlou um tremor involuntário, ao pensar no que aprendera a respeito dela a partir de Malky. O Imperador-Deus estava certo. Hwi era exatamente o que parecia ser — o mais gentil e sensível dos seres humanos. “Será que ela teria realmente procriado comigo?” — pensou Moneo.
Sua atenção foi afastada para longe de Hwi. Enquanto Leto a conduzia pela Cidadela em sua carreta elevada em suspensores, um grande grupo de cortesãos e Oradoras Peixes se reunira. Todos os cortesãos usavam luxuosos trajes de comemoração em que predominavam tons dourados e vermelhos, brilhantes. As Oradoras Peixes usavam seus melhores uniformes azul-escuros, distintos apenas pelas diferentes cores dos falcões e guarnições. Uma caravana de transportadores de bagagens, constituída por trenós flutuando em suspensores, fora colocada atrás, com Oradoras Peixes para puxá-la. O ar estava cheio da poeira, dos sons e dos cheiros da excitação. A maioria dos cortesãos tinha reagido com desapontamento ao conhecer seu destino, e alguns haviam adquirido imediatamente suas próprias tendas e pavilhões. Estes tinham sido mandados previamente, junto com outros embaraços que agora se empilhavam à vista de Tuono. As Oradoras Peixes no cortejo não estavam recebendo isso de maneira festiva. Haviam se queixado em voz alta quando informadas de que não poderiam portar armas laser.
— Só um pouquinho mais de tempo, Senhor — dizia Moneo. — Ainda não sei como iremos.
— Não existe substitutivo para o tempo na solução de muitos problemas — disse Leto. — Mas você não pode confiar demais nele. Não aceitarei mais atrasos.
— Levaremos três dias só para chegar lá — queixou-se Moneo.
Leto pensou naquele tempo - na suave caminhada-marcha-caminhada da peregrinação... 180 quilômetros. Sim, seriam três dias.
— Tenho certeza de que fez ótimos arranjos para os pontos de parada no caminho — disse ele. — Muita água quente para as cãibras musculares.
— Teremos todo o conforto. Mas eu não gosto de deixar a Cidadela nessa ocasião! E sabe por quê!
— Temos equipamento de comunicações, assistentes leais. A Corporação foi adequadamente punida e disciplinada. Acalme-se, Moneo.
— Podíamos realizar a cerimônia na Cidadela!
Como resposta, Leto fechou a cobertura-bolha à sua volta, isolando Hwi com ele.
— Há perigo, Leto? — ela perguntou.
— Sempre há perigo.
Moneo suspirou, virou-se e caminhou para onde a Estrada Real começava sua longa subida rumo ao leste, antes de se curvar para o sul, em torno do Sareer. Leto colocou a carreta em movimento, atrás do majordomo, ouviu seu acompanhamento heterogêneo entrar no passo atrás.
— Estamos todos em movimento? — perguntou.
Hwi olhou para trás e à sua volta.
— Sim. — Ela virou-se na direção do rosto dele. — Por que Moneo está sendo tão difícil?
— Moneo acaba de descobrir que o instante pelo qual acaba de passar está para sempre além do seu alcance.
— Ele tem se mostrado muito pensativo e distraído desde que vocês voltaram da Pequena Cidadela. Não é mais o mesmo.
— Ele é um Atreides, meu amor, e você foi projetada para agradar a um Atreides.
— Não se trata disso, eu saberia se fosse.
— Sim... bem, acho que Moneo também descobriu a realidade da morte.
— Como é a Pequena Cidadela, onde você estava com Moneo? — perguntou ela.
— É o lugar mais solitário do meu Império.
— Acho que você evita minhas perguntas — ela disse.
— Não, amor. Compartilho sua preocupação quanto a Moneo, mas nenhuma explicação minha iria ajudá-lo agora. Moneo está aprisionado. Descobriu que é difícil viver no presente, inútil viver no futuro e impossível viver no passado.
— Acho que foi você que o prendeu, Leto.
— Mas ele deve livrar-se sozinho.
— Por que não pode libertá-lo?
— Porque ele pensa que minhas memórias são a chave para a sua liberdade. Pensa que vou construir nosso futuro a partir do nosso passado.
— Não é esse o modo como sempre se faz, Leto?
— Não, querida Hwi.
— Então como é que é?
— Muitos acreditam que um futuro satisfatório exige o retorno a um passado idealizado, um passado que de fato nunca existiu.
— E você, com todas as suas memórias, sabe que não é assim.
Leto virou o rosto dentro das dobras de truta da areia a fim de olhar para ela, sondando... relembrando-se. A partir das multidões que existiam dentro de si, podia formar uma combinação, uma sugestão genética de Hwi, mas a sugestão não se comparava com a verdade viva. Era assim, é claro. O passado eram fileiras de olhos olhando para fora como olhos de peixes boquiabertos, mas Hwi era a vibração da vida. Sua boca fora feita de curvas gregas, projetada para o cântico profético, mas ela não pronunciava sílabas enigmáticas. Contentava-se em viver, uma pessoa aberta como uma flor, perpetuamente produzindo sua fragrância.
— Por que está me olhando assim? — perguntou ela.
— Eu estava me esquentando em meu amor por você.
— Amor, sim. — Ela sorriu. — Penso que, desde que não podemos compartilhar o amor carnal, devemos compartilhar o amor espiritual. Vai compartilhá-lo comigo, Leto?
Ele fora surpreendido.
— Você pergunta por minha alma?
— Certamente que outros já perguntaram.
Ele falou de modo sucinto:
— Minha alma digere suas experiências, nada mais.
— Eu lhe pedi muito? — perguntou ela.
— Acho que você é incapaz de pedir demasiado de mim.
— Então eu me apóio em nosso amor para discordar de você. Meu tio Malky falava sobre sua alma.
Ele sentiu que não podia responder e ela tomou seu silêncio como um convite a que continuasse.
— Ele disse que você era o maior artista na arte de sondar a alma, sua própria alma em primeiro lugar.
— Mas seu tio Malky negava possuir uma alma!
Ela ouviu a dureza em sua voz, mas não se deixou intimidar.
— Ainda assim, acho que ele estava certo. Você é um gênio da alma, o mais brilhante.
— Você só precisa da insistente perseverança da longevidade. Não há brilho.
Encontravam-se agora na longa subida para o topo da Muralha do Perímetro do Sareer. Ele abaixou as rodas da carreta e desativou os suspensores.
Hwi falou suavemente, sua voz quase inaudível contra o som raspante das rodas da carreta, dos pés em movimento à volta deles.
— Posso chamá-lo de amor, de qualquer modo?
Ele falou dominando um aperto na garganta, que não era mais totalmente humana.
— Sim.
— Eu nasci Ixiana, amor. Por que não posso compartilhar a visão mecânica que eles possuem de nosso universo? Conhece meu ponto de vista, amor?
Ele só podia olhar para ela.
— Sinto o sobrenatural em cada movimento — ela disse.
A voz de Leto saiu rouca, soando com raiva mesmo para ele.
— Cada pessoa cria seu próprio sobrenatural.
— Não fique zangado comigo, amor.
Novamente, aquela terrível voz rouca.
— Para mim, é impossível ficar zangado com você.
— Mas alguma coisa aconteceu um dia entre você e Malky — insistiu ela. — Ele nunca me diria o que foi, mas freqüentemente comentava admirar-se por você tê-lo poupado.
— Foi devido ao que ele me ensinou.
— Que aconteceu entre vocês dois, amor?
— Preferia não falar a respeito de Malky.
— Por favor, amor. Sinto que é importante que eu saiba.
— Disse a Malky que tinha de haver algumas coisas que os homens não deveriam inventar.
— E isso foi tudo?
— Não. — Leto falava com relutância. — Minhas palavras o enfureceram. Ele disse: “Você acha que, num mundo sem pássaros, os homens não inventariam o avião! Que tolo é você! Os homens podem inventar qualquer coisa!”
— Ele o chamou de tolo? — Havia um choque na voz de Hwi.
— Estava certo. E, embora o negasse, falava a verdade. Ele ensinou-me que existe uma razão para fugir das invenções.
— Então, teme os Ixianos?
— É claro que os temo. Eles podem inventar a catástrofe.
— Então, que pode fazer?
— Andar mais depressa. A história é uma corrida constante entre a invenção e a catástrofe. A educação ajuda, mas nunca é o bastante. Você também deve correr.
— Está compartilhando sua alma comigo, amor. Sabia disso?
Leto olhou para o lado oposto a ela, focalizando sua atenção nas costas de Moneo. Os movimentos do majordomo, o ar de sigilo tão evidente nele. A procissão tinha alcançado o primeiro aclive suave, agora fazia a curva para começar a subida da Muralha Anel Leste. Moneo andava como sempre, um pé adiante do outro, consciente do lugar onde iria apoiar o próximo passo. Mas havia alguma coisa nova no majordomo. Leto podia sentir o afastamento do homem, não mais contente em marchar ao lado de seu rosto, não mais tentando identificar-se com o destino de seu Senhor. Para o leste, o Sareer aguardava. Para o oeste, viam-se o rio e as plantações. Moneo não olhava nem à direita, nem à esquerda.
— Você não me respondeu — disse Hwi.
— Já conhece a resposta.
— Sim, estou começando a entender alguma coisa a seu respeito — comentou ela. — Posso sentir alguns dos seus temores. E creio que já sei onde vive.
Ele voltou para ela uma expressão de espanto e se sentiu aprisionado por seu olhar. Não podia afastar os olhos. Um medo profundo percorreu-lhe o corpo e ele sentiu suas mãos começarem a se torcer.
— Você vive onde o medo de ser e o amor de existir se combinam, os dois em uma única pessoa.
Ele não podia nem piscar.
— Você é um místico — continuou ela. — Gentil com você mesmo apenas porque se vê no meio deste universo, olhando para fora, olhando de um modo como os outros não podem olhar. Você tem medo disso, e no entanto quer compartilhar esse dom mais que qualquer outra coisa.
— Que você viu? — sussurrou ele.
— Não tenho olhar interior, não ouço vozes — ela disse. — Mas tenho visto meu Lorde Leto, cuja alma interior eu amo, e conheço a única coisa que você verdadeiramente compreende.
Ele conseguiu escapar ao olhar dela, temendo o que pudesse dizer. O tremor em suas mãos podia ser sentido em todo o seu segmento frontal.
— Amor, é isso que compreende. Amor, e isso é tudo.
Suas mãos pararam de tremer. Uma lágrima rolou de cada um de seus olhos. Quando as lágrimas tocaram o capuz, fios de fumaça azul se elevaram. Ele sentiu a queima e ficou grato pela dor.
— Você tem fé na vida — disse Hwi. — E eu sei que a coragem do amor pode encontrar-se apenas nessa fé.
Ela estendeu a mão esquerda e enxugou as lágrimas de sua face. Ele se surpreendeu de que o capuz de truta da areia não reagisse com seu reflexo normal para evitar o toque.
— Sabe que, desde que me tornei assim, você é a primeira pessoa que toca o meu rosto?
— Mas eu sei o que você é e o que você foi — respondeu ela.
— O que eu era... ah, Hwi. O que eu era reduziu-se a esta face, tudo mais se perde nas sombras da memória... oculto... perdido.
— Não oculto de mim, amor.
Ele olhou diretamente para ela, não mais temeroso de encontrar seu olhar.
— Será possível que os Ixianos saibam o que criaram em você?
— Eu lhe asseguro, Leto, amor da minha alma, que eles não sabem. Você é a primeira pessoa, a única pessoa com a qual já me revelei completamente.
— Então eu não vou lamentar o que poderia ter sido — ele disse. — Sim, meu amor, compartilharei minha alma com você.
Pense nela como uma memória plástica, essa força dentro de você e de seus companheiros que os arrasta em direção às formas tribais. Essa memória plástica busca um retorno à sua antiga forma, a sociedade tribal. Está ao seu redor — o feudo, a diocese, a corporação, o pelotão, o clube esportivo, o grupo de dança, a célula rebelde, o conselho de planejamento, o grupo de preces... cada qual com seu senhor e seus servos, seu hospedeiro e seus parasitas. E os enxames de dispositivos alienantes (incluindo estas próprias palavras!) tendem, finalmente, a se unir à argumentação em favor do retorno “aqueles tempos melhores”. Eu me desespero ensinando-lhes outras maneiras. Vocês têm pensamentos quadrados que resistem aos círculos.
— Os diários roubados
Idaho descobriu que podia escalar um rochedo sem mesmo pensar a respeito conscientemente. Esse corpo criado pelos Tleilaxu lembrava-se de coisas que seus criadores nem mesmo suspeitavam. Sua juventude original podia estar perdida há eons, mas seus músculos eram jovens, graças aos Tleilaxu, e ele podia enterrar sua infância no esquecimento enquanto subia. Nessa infância ele aprendera a sobreviver nos rochedos elevados de seu planeta natal. Não importava se essas rochas diante dele haviam sido levadas ali pelos homens, também tinham sido esculpidas por eras de exposição aos elementos.
O sol da manhã estava quente em suas costas. Ele podia ouvir os esforços de Siona para alcançar uma posição de apoio relativamente simples numa saliência estreita bem abaixo dele. A posição era virtualmente inútil para Idaho, mas fora a discussão que finalmente levara Siona a concordar em que eles deviam tentar a escalada.
Eles.
Ela discordara de que ele tentasse sozinho.
Nayla, três de suas auxiliares Oradoras Peixes, Garun e três escolhidos entre seus Fremen de Museu aguardavam na areia, ao pé da barreira da Muralha que envolvia o Sareer.
Idaho não pensava na altura da Muralha. Só pensava em onde deveria apoiar em seguida a mão ou o pé. Pensava no rolo de corda leve em torno de seus ombros. A corda era da altura dessa Muralha. Ele a medira no solo, triangulando-a sobre a areia, sem contar seus passos. Quando a corda era suficientemente longa, ela o era enfim. A Muralha era tão alta quanto a corda era comprida. Qualquer outro modo de pensar embotaria sua mente.
Apalpando em busca de apoios que não poderia ver, Idaho subindo, tateando a face vertical... não, não inteiramente vertical. O vento, a areia e até mesmo um pouco de chuva, as forças do frio e do calor tinham realizado ali seu trabalho de erosão por durante mais de 3 mil anos. Durante um dia inteiro, Idaho ficara sentado na areia abaixo da Muralha, estudando o que o Tempo havia realizado. Fixara certos padrões em sua mente — uma sombra inclinada, uma linha fina, uma protuberância que se esboroava, uma pequena saliência de rocha aqui, outra ali.
Seu dedos entraram numa fenda áspera. Ele testou seu peso delicadamente nesse suporte. Sim. Repousou brevemente, pressionando o rosto contra a rocha morna, sem olhar para cima nem para baixo. Encontrava-se simplesmente ali. Tudo era uma questão de equilíbrio. Não podia permitir que seus ombros se cansassem logo. O peso devia ser equilibrado entre os pés e os braços. Os dedos sofriam um dano inevitável, mas, onde ossos e tendões resistiam, a pele podia ser ignorada.
Uma vez mais ele se arrastou para cima. Uma porção de rocha se esfarinhou em sua mão, o pé e as agulhas de pedra caíram sobre o lado direito de sua face, mas ele nem mesmo sentiu. Cada átomo de sua consciência concentrava-se na mão sondando, no equilíbrio de seus pés sobre as menores saliências. Ele era um ponto, um cisco que desafiava a gravidade... um apoio com o dedo da mão aqui, outro com o dedo do pé ali, agarrando-se ao paredão de rocha às vezes pela pura força da sua vontade.
Nove grampos improvisados faziam volume em um de seus bolsos, mas ele resistia à tentação de usá-los. Um martelo igualmente improvisado pendia de seu cinturão numa corda curta, cujo nós seus dedos tinham memorizado.
Nayla fora difícil. Não entregaria sua arma laser. Mas tinha obedecido uma ordem direta de Siona para que os acompanhasse. Era uma mulher estranha, estranhamente obediente.
— Você não jurou me obedecer? — perguntara Siona.
A relutância de Nayla tinha desaparecido.
Depois Siona explicara:
— Ela sempre obedece minhas ordens diretas.
— Então talvez não precisemos matá-la — dissera Idaho.
— Eu preferiria não tentar. Você não faz a menor idéia da força e da agilidade dela.
Garun, o Fremen de Museu que sonhava tornar-se um “verdadeiro Naib à moda antiga”, montara o cenário para essa escalada ao responder à pergunta de Idaho:
— Como o Imperador-Deus virá a Tuono?
— Do mesmo modo como nos visitou durante o tempo do meu bisavô.
— E como foi? — provocara Siona.
Na ocasião, eles estavam sentados nas sombras poeirentas, do lado de fora da casa de hóspedes, abrigando-se do sol da tarde, no mesmo dia do anúncio de que Leto se casaria em Tuono. Um semicírculo de auxiliares de Garun agachara-se em torno dos degraus onde Siona e Idaho conversavam com seu líder. Duas Oradoras Peixes apoiavam-se por perto, ouvindo. Nayla devia chegar em questão de momentos.
Garun apontou para a alta Muralha atrás do vilarejo, sua borda brilhando num distante tom dourado sob a luz do sol.
— A Estrada Real passa por ali e o Imperador-Deus tem um engenho que pode fazê-lo descer suavemente das alturas.
— Fica embutido em sua carreta — disse Idaho.
— Suspensores — concordou Siona. — Já os vi.
— Meu bisavô contou que eles vieram pela Estrada Real, com uma grande tropa. E o Imperador-Deus deslizou, planando até a praça de nossa vila. Os outros desceram por cordas.
Idaho falou, pensativo:
— Cordas?
— Por que eles vieram? — perguntou Siona.
— Para confirmar que o Imperador-Deus não havia esquecido seus Fremen, assim disse meu bisavô. Foi uma grande honra, mas não tão grande quanto esse casamento.
Idaho levantou-se enquanto Garun ainda falava. Havia uma visão clara da elevada Muralha nas proximidades — bem no fim da rua principal, uma vista que ia da base na areia até o topo brilhando à luz do sol. Idaho caminhara do canto da casa de hóspedes até a rua central. Lá parou e se virou, olhando para a Muralha. A primeira olhada lhe disse por que todos diziam não ser possível escalar aquela parede de rocha. Mesmo na ocasião, ele resistira em pensar numa medida da altura. Podiam ser 500 ou 5 mil metros. O mais importante residia naquilo que um estudo mais cuidadoso revelava: pequenas fendas transversais, pedaços partidos, até mesmo uma estreita projeção de rocha uns 20 metros acima da areia carregada pelo vento na base... e outra saliência, a dois terços da altura até o topo.
Sabia que uma parte inconsciente de si mesmo, um lado antigo e confiável, estaria fazendo as medidas necessárias, comparando-as com seu próprio corpo — tantos comprimentos de um Duncan até aquele lugar, um apoio para a mão aqui, outro ali. Suas próprias mãos. Já podia sentir-se escalando.
A voz de Siona soou junto de seu ombro direito quando ele se encontrava absorvido naquele primeiro exame.
— Que está fazendo? — Ela chegara em silêncio e agora olhava para onde ele olhava.
— Posso escalar aquela Muralha — disse Idaho. — Se levar comigo uma corda leve, posso puxar para cima uma corda mais pesada. O resto de vocês subirá facilmente.
Garun se unira a eles a tempo de ouvir isso.
— E por que você subiria a Muralha, Duncan Idaho?
Siona respondeu por ele, sorrindo para Garun.
— Para proporcionar uma recepção adequada ao Imperador-Deus.
Isso fora antes de suas dúvidas, antes que os olhos dela e sua ignorância quanto a tal escalada começassem a minar sua confiança.
Com a empolgação inicial, Idaho perguntou:
— Qual a largura da Estrada Real lá em cima?
— Eu nunca vi — respondeu Garun. — Mas me disseram que é muito larga. Uma grande tropa pode marchar através dela, assim dizem. E tem as pontes, os mirantes para olhar o rio... e... oh, é uma maravilha.
— Por que nunca subiu lá em cima para ver por si mesmo? — perguntou Idaho.
Garun apenas encolheu os ombros e apontou para a Muralha. Nayla chegou então e teve início a discussão a respeito da escalada. Idaho pensou a respeito daquela discussão enquanto subia. Como era estranho esse relacionamento entre Nayla e Siona! Elas eram como duas conspiradoras... mas não eram conspiradoras. Siona ordenava e Nayla obedecia. Mas Nayla era uma Oradora Peixe, a Amiga a quem Leto confiara o primeiro exame do novo ghola. Ela admitira ter estado na Guarnição Real desde a infância. E a força que havia nela! Considerando-se essa força, havia algo de espantoso na maneira como se curvava à vontade de Siona. Era como se Nayla escutasse vozes interiores que lhe dissessem o que fazer. Então ela obedecia.
Idaho tateou procurando outro apoio para a mão. Seus dedos serpentearam ao longo da rocha, para cima e para a direita, encontrando afinal uma fenda não-vista onde podiam penetrar. Sua memória fornecia a linha natural da ascensão, mas só o seu corpo podia aprender o caminho seguindo aquela linha. Seu pé esquerdo encontrou uma saliência... devagar, tentando. Mão esquerda para cima agora... nenhuma fenda, mas uma saliência. Seus olhos e depois seu queixo ergueram-se sobre a elevada plataforma de rocha que tinha visto lá de baixo. Ele subiu apoiando-se nos cotovelos, rolou para a saliência e repousou, olhando para cima e não para baixo. Havia um horizonte poeirento lá fora, uma brisa carregada de areia limitando a visão. Ele tinha visto muitos horizontes assim em seus dias de Duna.
Daí a pouco virou-se para encarar a Muralha, erguendo-se sobre os joelhos, as mãos apalpando para o alto, e continuou a escalada. A imagem da Muralha permanecia em sua mente como a tinha visto lá embaixo. Só precisava fechar os olhos e o padrão estava lá, fixado da maneira como ele tinha aprendido a fazer quando ainda era uma criança escondendo-se dos caçadores de escravos dos Harkonnen. As pontas dos dedos encontraram uma fenda onde podiam apoiar-se. Agarrando-se, ele prosseguiu o caminho para o alto.
Observando de baixo, Nayla experimentava uma crescente afinidade com o alpinista. A distância reduzira Idaho a uma forma muito pequena e solitária sobre o paredão da Muralha. Ele devia saber o que era estar sozinho com decisões graves a serem tomadas.
“Eu gostaria de ter um filho dele”, pensou ela. “Um filho nosso seria forte e desembaraçado. Por que o Imperador-Deus quer um filho de Siona com esse homem?”
Nayla havia despertado antes da aurora e caminhado até o topo de uma duna baixa, na extremidade do vilarejo, para pensar a respeito dessa coisa que Idaho propusera. Fora uma aurora esverdeada, com uma camada de poeira na distância, depois aquele dia implacável e a terrível imensidão do Sareer. Ela soube então que esta questão já fora prevista por Deus. Que se poderia ocultar de Deus? Nada poderia ser oculto, nem mesmo a remota figura de Duncan Idaho tateando em busca de um caminho na borda do céu.
Enquanto observava Idaho subindo, a mente de Nayla fazia um truque com ela, virando a parede da Muralha na horizontal e transformando Idaho numa criança engatinhando sobre uma superfície acidentada. Como ele parecia pequeno... e se tornava cada vez menor.
Uma ajudante ofereceu-lhe água, que ela bebeu. A água trouxe a Muralha de volta à sua verdadeira perspectiva.
Siona agachou-se na primeira saliência, inclinando-se a fim de olhar para o alto. “Se você cair, eu tentarei”, tinha prometido a Idaho. Nayla achara estranha essa promessa. Por que os dois queriam tentar o impossível?
E Idaho não conseguira dissuadir Siona dessa promessa impossível.
“É o destino”, pensou Nayla. “E a vontade de Deus.”
Os dois eram a mesma coisa.
Um fragmento de rocha caiu de onde Idaho se agarrara. Isso já tinha acontecido várias vezes. Nayla observou a rocha caindo. Ela levou um longo tempo para chegar ao chão, saltando e quicando da face da Muralha, num demonstração daquilo que os olhos deixavam de enxergar ao revelarem a Muralha como vertical.
“Ele vai conseguir ou não vai”, pensou Nayla. “O que acontecer será a vontade de Deus.”
Ela podia sentir, contudo, seu coração bater mais forte. A aventura de Idaho era como o sexo, ela pensou. Não era passivamente erótica, mas próxima de uma rara magia no modo como a envolvia. Tinha que continuar se lembrando de que Idaho não era para ela.
“Ele é para Siona. Se sobreviver.”
E se ele falhasse, então Siona tentaria. E Siona teria sucesso ou não teria. Nayla se perguntou se seria capaz de experimentar um orgasmo caso Idaho chegasse ao topo. Ele estava tão perto agora.
Idaho respirou fundo várias vezes antes de deslocar a rocha. Foi um mau momento e ele levou algum tempo para se recuperar, segurando-se num apoio de três pontos na Muralha. Quase que por sua própria vontade, a mão livre tateou para o alto uma vez mais, serpenteando por sobre um lugar roído para alcançar outra fenda delgada. Lentamente ele passou o peso para a outra mão. Lentamente... lentamente. Seu joelho esquerdo sentiu uma posição onde poderia conseguir um apoio para o dedo do pé. Ergueu o pé para esse lugar e o testou. A memória dizia-lhe que o topo estava próximo, mas ele a afastou. Havia apenas a escalada e o conhecimento de que Leto chegaria amanhã.
“Leto e Hwi.”
Ele não podia pensar nisso também. Mas o pensamento não se afastava. “O topo... Hwi... Leto... amanhã...”
Cada pensamento alimentava o seu desespero, forçando-o a uma recordação imediata das escaladas de sua infância. E quanto mais ele se relembrava conscientemente, mais suas habilidades eram bloqueadas. Foi forçado a fazer uma pausa, respirando profundamente numa tentativa de se concentrar, de retornar às maneiras naturais de seu passado.
Mas seriam naturais essas maneiras?
Havia um bloqueio em sua mente. Podia sentir intromissões, uma finalidade... a fatalidade do que poderia ter sido e agora nunca seria.
Leto chegaria lá amanhã.
Idaho sentiu a transpiração escorrendo em seu rosto, em torno do lugar onde o pressionava contra a rocha.
“Leto.”
“Vou derrotá-lo, Leto. Vou derrotá-lo por mim mesmo, não por Hwi, apenas por mim mesmo.”
Uma sensação de limpeza começou a se propagar por ele. Era como a coisa que lhe acontecera na noite em que se preparava para essa subida. Siona percebera sua falta de sono. Conversara com ele, contando-lhe os menores detalhes de sua corrida desesperada através da Floresta Proibida e seu juramento na beira do rio:
— Agora fiz meu juramento como Comandante das Oradoras Peixes — ela disse. — Honrarei esse juramento, mas espero que não aconteça do modo como ele deseja.
— E que ele deseja? — perguntou Idaho.
— Ele tem muitos motivos e eu não posso vê-los todos. Quem poderia compreendê-lo? Só sei que nunca vou perdoá-lo.
Essa memória trouxe Idaho de volta à sensação da rocha contra sua face. Sua transpiração secara na brisa e ele se sentia refrescado. Mas havia encontrado o seu centro.
“Nunca perdoar.”
Idaho sentiu os fantasmas de todos os seus outros eus, os gholas que tinham morrido a serviço de Leto. Poderia acreditar nas suspeitas de Siona? Sim, Leto era capaz de matar com seu próprio corpo, com suas próprias mãos. O boato que Siona contara tinha um sentimento de verdade em si. E Siona também era Atreides. Leto se tornara uma outra coisa... não mais Atreides, nem mesmo humano. Ele se tornara menos uma criatura viva e mais um fato brutal da natureza, opaco e impenetrável, com todas as suas experiências seladas dentro de si. E Siona opondo-se a ele. Os verdadeiros Atreides afastavam-se dele.
“Como eu faço.”
Uma realidade brutal da natureza, nada mais. Como essa Muralha.
A mão direita de Idaho tateou para cima e encontrou uma saliência afiada. Não pôde sentir coisa alguma acima dela, e tentou lembrar-se de uma fenda larga que havia nesse lugar, de acordo com o padrão. Ainda não se atrevia a crer que havia alcançado o topo... ainda não. A borda afiada cortou-lhe os dedos enquanto colocava o peso sobre eles. Levou a mão esquerda para esse nível, encontrou um apoio e se ergueu lentamente. Seus olhos alcançaram o nível das mãos. E ele olhou através de uma superfície plana que se estendia à sua frente... até o céu azul. A superfície à qual suas mãos se agarravam mostrava antigas fendas provocadas pelo tempo. Arrastou os dedos sobre essa superfície, uma das mãos de cada vez, buscando as fendas, arrastando para cima o peito... a cintura... os quadris. Rolou então sobre a borda, torcendo-se e se arrastando, até que a Muralha estava bem atrás. Só então se colocou de pé e se permitiu acreditar no que os sentidos lhe diziam.
“O topo.” E não haviam sido necessários martelos ou grampos.
Um som fraco o alcançou. Palmas?
Ele caminhou para a beirada, olhou para baixo e acenou. Sim, eles estavam aplaudindo. Voltando-se, caminhou até o centro da estrada, sentindo o júbilo, o tremor nos músculos, a dor de seus ombros diminuindo. Lentamente, descreveu um círculo completo, examinando o topo enquanto deixava que suas memórias finalmente estimassem a altura da escalada.
Novecentos metros... no mínimo isso.
A Estrada Real lhe interessava. Não era como ele a tinha visto no caminho para Onn. Era larga, muito larga... pelo menos 500 metros de largura. O piso era liso, um cinza contínuo, com sua beirada a uns 100 metros de cada borda da Muralha. Pilastras de rocha da altura de um homem marcavam a beira da estrada, estendendo-se como sentinelas ao longo da trilha que seria usada por Leto.
Idaho caminhou para o outro lado, oposto ao Sareer, e olhou para baixo. Bem longe, nas profundezas, o fluxo verde de um rio despencava transformando-se em espuma contra as rochas dos contrafortes. Olhou para a direita. Leto viria dali. Estrada e Muralha curvavam-se suavemente naquela direção, a curva começando a uns 300 metros do lugar onde ele se encontrava. Idaho voltou para a estrada e caminhou ao longo de sua beirada, seguindo a curva até onde ela fazia um “S” e se estreitava, inclinando-se suavemente para baixo. Ele parou e olhou o que se revelava agora, vendo um novo padrão tomar forma.
Uns três quilômetros abaixo daquela suave descida, a estrada se estreitava e cruzava uma garganta sobre uma ponte cujas treliças pareciam etéreas e insubstânciais como um brinquedo na distância. Idaho lembrou-se de uma ponte semelhante na estrada para Onn, o sentimento de tê-la percebido consistente sob seus pés. Confiava em sua memória, pensando nas pontes como fora forçado a pensar nelas na qualidade de líder militar — passagens ou armadilhas.
Caminhando para a esquerda, ele olhou para baixo e para a frente em direção a outra Muralha elevada, situada do lado oposto da ponte. A estrada continuava, formando uma curva suave até se transformar numa linha que seguia reta para o norte. Havia duas Muralhas, com o rio correndo entre elas. O rio deslizava num desfiladeiro íngreme, feito pelo homem, sua umidade confinada e canalizada para o norte através do vento, enquanto a água em si fluía para o sul.
Idaho passou a ignorar o rio. Ele estava lá embaixo e lá continuaria no dia seguinte. Fixou sua atenção na ponte, deixando seu treinamento militar examiná-la. Assentiu uma vez para si mesmo antes de voltar pelo caminho por onde viera, erguendo a corda dos ombros enquanto caminhava.
E foi apenas ao ver a corda serpenteando para baixo que Nayla teve seu orgasmo.
Que estou eliminando? A paixão burguesa pela pacífica conservação do passado. Essa é uma força de união, algo que mantém a humanidade como uma unidade vulnerável, a despeito da ilusória separação através dos parsecs do espaço. Se eu posso encontrar os fragmentos separados, então outros também podem localizá-los. Quando vocês estão juntos, podem compartilhar a catástrofe comum. Podem ser exterminados juntos. Assim eu demonstro o perigo terrível de uma mediocridade desapaixonada, do movimento sem ambições nem objetivos. Mostro a vocês que civilizações inteiras podem fazer isso. Dou-lhes eons de uma vida que escorrega suavemente em direção à morte, sem confusão, sem se mexer, sem mesmo perguntar por quê. Mostro-lhes a falsa felicidade e o guarda-catástrofe chamado Leto, o Imperador-Deus. Será que agora vocês aprenderão o que é a felicidade verdadeira?
— Os diários roubados
Tendo passado a noite com apenas um breve cochilo, Leto estava acordado quando Moneo emergiu da casa de hóspedes ao raiar do dia. A Carreta Real estivera estacionada quase no centro de um pátio triangular. Sua cobertura fora regulada para a opacidade em uma única direção, ocultando seu ocupante de olhares externos, e estava totalmente selada contra a umidade. Leto podia sentir o ligeiro ruído dos ventiladores que faziam o ar passar através de um ciclo de secagem.
Os pés de Moneo fizeram barulho nas pedras arredondadas da pavimentação do pátio enquanto ele se aproximava da carreta. A luz da aurora delineou em laranja o telhado da casa de hospedagem acima do majordomo.
Leto abriu a cobertura da carreta quando Moneo parou diante dele. Havia um cheiro de sujeira fermentando no ar, e a acumulação de umidade na brisa era dolorosa.
— Devemos chegar a Tuono por volta do meio-dia — disse Moneo. — Gostaria que me deixasse trazer tópteros para guardar o céu.
— Não quero tópteros — disse Leto. — Podem descer em Tuono usando suspensores e cordas.
Leto maravilhou-se com as imagens plásticas dessa breve troca de palavras. Moneo jamais gostara de peregrinações. Sua juventude como rebelde deixara-o com suspeita de tudo que não pudesse ver ou rotular. Ele permanecia uma massa de julgamentos latentes.
— O Senhor sabe que não quero tópteros para transporte — disse Moneo. — Eu os quero para vigiar...
— Sim, Moneo.
Moneo olhou para a extremidade aberta do pátio, que se voltava sobre o canyon. A luz da aurora dava um tom gelado à névoa que se erguia lá no fundo. Ele imaginou até onde o canyon descia... um corpo que se torcia, que girava enquanto caia. Moneo sentira-se incapaz de ir até a borda do desfiladeiro, na noite passada, e olhar para baixo. A queda era uma... enorme tentação.
Com aquele poder de percepção que enchia Moneo de assombro, Leto disse:
— Existe uma lição em cada tentação, Moneo.
Sem fala, Moneo virou-se para olhar diretamente nos olhos de Leto.
— Pode ver a lição em minha vida, Moneo?
— Senhor? — Era apenas um sussurro.
— Eles me tentaram primeiro com a maldade, depois com a bondade. Cada tentação moldada com delicada atenção às minhas suscetibilidades. Diga-me, Moneo: se eu escolho o bem, isso me torna bom?
— É claro que sim, Senhor.
— Talvez você nunca perca o hábito de fazer julgamentos.
Moneo olhou uma vez mais para a direção oposta ao Imperador, contemplando a borda do abismo. Leto rolou o corpo a fim de ver para onde ele olhava. Pinheiros anões tinham sido cultivados na beirada do canyon. Havia gotas de orvalho pendendo das agulhas úmidas, cada uma delas enviando uma promessa de dor para Leto. Ele desejava fechar a cobertura da carreta, mas havia algo naquelas jóias que atraía suas memórias, mesmo que lhe repelisse o corpo. A sincronia oposta ameaçava perturbá-lo.
— Eu apenas não gosto de andar a pé — disse Moneo.
— Era o modo Fremen — replicou Leto.
Moneo suspirou.
— Os outros estarão prontos dentro de alguns minutos. Hwi estava fazendo o desjejum quando eu sai.
Leto não respondeu. Seus pensamentos estavam perdidos em memórias da noite aquela que acabara de passar e as milhares de noites que se apinhavam no passado —, das nuvens e das estrelas, das chuvas e do negrume aberto, salpicado com flocos brilhantes de um cosmo despedaçado, um universo de noites, extravagante com elas como ele fora com as batidas de seu coração.
Moneo subitamente perguntou:
— Onde estão suas guardas?
— Eu as mandei comer.
— Não gosto que o deixem desguarnecido!
O som cristalino da voz de Moneo vibrou nas memórias de Leto, falando coisas que não eram expressas em palavras. Moneo temia um universo onde não houvesse Imperador-Deus. Preferia morrer a viver em tal universo.
— Que irá acontecer hoje? — ele quis saber.
Era uma pergunta dirigida, não ao Imperador-Deus, mas ao profeta.
— Uma semente soprada pelo vento pode ser o salgueiro de amanhã — ele disse.
— O Senhor conhece nosso futuro! Por que não o compartilha?
Moneo estava perto da histeria... recusava qualquer coisa que seus sentidos imediatos não lhe relatassem.
Leto virou-se com um olhar penetrante para seu majordomo, um olhar tão obviamente cheio de emoções acumuladas que Moneo recuou.
— Cuide de sua própria vida, Moneo!
Moneo respirou fundo, trêmulo.
— Senhor, não queria ofendê-lo. Buscava apenas...
— Olhe para cima, Moneo!
Involuntariamente ele obedeceu, olhando para um céu sem nuvens, onde a claridade da manhã se intensificava.
— Que é, Senhor?
— Não existe um teto protetor acima de você, Moneo. Somente um céu aberto, cheio de mudanças. Dê graças a ele. Cada sentido que você possui é um instrumento para reagir à mudança. Isso não lhe diz nada?
— Senhor, vim aqui apenas para perguntar quando estaria pronto para prosseguir.
— Moneo, peço-lhe para ser sincero comigo.
— Mas eu sou sincero, Senhor!
— Mas se você vive na má fé, as mentiras lhe parecem verdades.
— Senhor, se eu menti... então não sei.
— Isso tem a marca da verdade. Mas sei o que você teme e que não irá contar.
Moneo começou a tremer. O Imperador-Deus estava no mais terrível dos estados de espírito, com uma ameaça profunda em cada palavra.
— Você teme o imperialismo da consciência — disse Leto. — E tem razão de temê-lo. Mande Hwi para cá imediatamente!
Moneo virou-se nos calcanhares e correu de volta para a casa de hospedagem. Foi como se sua entrada alvoroçasse uma colônia de insetos. Em questão de segundos, as Oradoras Peixes emergiam tomando posição ao redor da Carreta Real. Cortesãos olhavam das janelas da hospedaria ou saiam para se colocar sob as beiradas do telhado, com medo de se aproximarem dele. Em contraste com toda essa excitação, Hwi saiu daí a pouco pela ampla porta central e caminhou para fora das sombras, aproximando-se lentamente de Leto, queixo levantado, o olhar buscando-lhe a face.
Leto sentiu que se acalmava ao olhar para ela. Hwi usava um vestido dourado que ele não vira antes. Fora bordado com linha cor de prata e jade em torno da gola e dos punhos das longas mangas. A bainha, quase arrastando-se no chão, tinha um espesso bordado verde para delinear guarnições de um vermelho profundo.
Ela sorriu ao parar diante dele.
— Bom dia, amor — disse ela suavemente. — Que fez para deixar o pobre Moneo tão perturbado?
Tranqüilizado pela presença dela e por sua voz, ele sorriu.
— Fiz o que sempre espero fazer. Produzi um efeito.
— Certamente que produziu. Ele contou às Oradoras Peixes que você estava num furioso e terrível estado de espírito. Está aterrorizador, amor?
— Somente para aqueles que se recusam a viver com suas próprias forças.
— Ah, sim. — Ela voltou-se para ele, então, exibindo seu novo vestido... — Gosta dele? Foram suas Oradoras Peixes que me deram. Elas mesmas o decoraram.
— Meu amor — disse ele com um tom caloroso. — Decoração! É assim que você prepara o sacrifício.
Ela veio até a beirada da carreta e se inclinou, apoiando-se nela, logo abaixo do rosto de Leto, uma expressão falsamente solene em seus lábios.
— Elas vão me sacrificar, então?
— Algumas delas gostariam.
— Mas você não permitirá.
— Nossos destinos estão unidos.
— Então não vou ter medo.
Ela estendeu a mão, tocando a pele prateada de uma das mãos dele, mas recuou rapidamente quando os dedos dele começaram a tremer.
— Perdoe-me, amor. Esqueci que estamos unidos em nossas almas, não em nossa carne — ela disse.
A pele de truta da areia ainda estremecia com o toque de Hwi.
— A umidade no ar me torna excessivamente sensível — explicou ele.
Lentamente, os tremores desapareceram.
— Recuso-me a lamentar o que não pode ser — sussurrou ela.
— Seja forte, Hwi, pois sua alma é minha.
Ela voltou-se ante um som vindo da hospedaria.
— Moneo está de volta — ela disse. — Por favor, amor, não o assuste.
— Moneo é seu amigo também?
— Somos amigos pelo estômago. Ambos gostamos de iogurte.
Leto ainda estava rindo quando Moneo parou ao lado de Hwi. Arriscou um sorriso, lançando um olhar intrigado para a moça. Havia gratidão nos modos do majordomo, e algo da subserviência que ele acostumara a mostrar com relação a Leto agora se voltava para Hwi:
— Está tudo bem com a Senhora, Lady Hwi?
— Vai tudo bem comigo.
Leto disse:
— Na hora do estômago, os amigos do estômago devem ser nutridos e cultivados. Vamos prosseguir em nosso caminho, Moneo. Tuono nos espera.
Moneo voltou-se, gritando ordens para cortesãos e Oradoras Peixes.
Leto sorriu para Hwi.
— Eu não faço o papel do noivo impaciente com certo estilo?
Ela saltou num ágil movimento para o leito da carreta, a saia segura por uma das mãos. Desdobrou o assento para si mesma. Só quando estava sentada, seus olhos no mesmo nível dos de Leto, foi que Hwi respondeu, e numa voz apenas para os ouvidos dele.
— Amor de minha alma, capturei outro de seus segredos.
— Diga-me de seus próprios lábios — ele disse, brincando nessa nova intimidade que havia entre eles.
— Você raramente precisa de palavras — disse ela. — Você fala diretamente aos sentidos com sua própria vida.
Um estremecimento percorreu o corpo inteiro de Leto. Demorou um instante antes que ele pudesse falar, e então foi numa voz que a obrigou a se esforçar para ouvir, acima do burburinho do cortejo que se agrupara.
— Entre o sobre-humano e o inumano — ele disse —, tenho muito pouco espaço para ser humano. Eu lhe agradeço, gentil e adorável Hwi, por esse pequeno espaço.
Em todo o meu universo, não vi nenhuma lei da natureza que fosse imutável ou inexorável. Este universo apresenta apenas relações mutáveis, por vezes tomadas como leis por consciências de vida curta. Esses sensores corpóreos a que chamamos de eu são efêmeros, pulverizando-se no brilho da eternidade, momentaneamente conscientes de condições temporárias que confinam nossas atividades e se modificam na medida em que elas mudam. Se você quer um rótulo para o absoluto, use seu nome próprio: Temporário.
— Os diários roubados
Nayla foi a primeira a vislumbrar a aproximação do cortejo. Transpirando fortemente sob o sol do meio-dia, encontrava-se junto a uma das pilastras de rocha que marcavam as extremidades da Estrada Real. O súbito lampejo de um reflexo distante captou-lhe a atenção. Olhou naquela direção, comprimindo as pálpebras e percebendo, com entusiasmo, estar vendo o brilho do sol na cobertura da carreta do Imperador-Deus.
— Eles vêm vindo! — gritou ela.
Sentiu a fome então. Na excitação e na unidade de seu propósito, nenhum deles trouxera comida. Apenas os Fremen haviam trazido água, e isso porque “os Fremen sempre carregam água quando deixam o sietch”. Faziam isso como rotina.
Nayla tocou com um dedo a coronha da arma laser, presa ao seu quadril. A ponte encontrava-se menos de 20 metros à frente dela, sua estrutura etérea arqueando-se sobre o abismo como uma fantasia alienígena unindo uma superfície desolada a outra.
“Isso é loucura”, ela pensou.
Mas o Imperador-Deus havia reforçado a sua ordem. Exigia que sua Nayla obedecesse todas as ordens de Siona.
As ordens de Siona eram explícitas, não deixando espaço para evasões. E Nayla não tinha meios de interrogar seu Imperador-Deus. Siona dissera.
— Quando a carreta estiver no meio da ponte: só então!
— Mas por quê?
Naquele momento elas estavam bem longe dos outros, enfrentando o frio da alvorada no topo da Muralha, Nayla sentindo-se isolada, distante e vulnerável.
As feições graves de Siona, sua voz baixa e intensa não podiam ser confundidas.
— Você julga que pode ferir a Deus?
— Eu... — Nayla só podia encolher os ombros.
— Você deve me obedecer!
— Eu devo — concordou Nayla.
Ela observou a aproximação do cortejo distante, notando o colorido dos cortesãos, as espessas massas de azul marcando suas irmãs Oradoras Peixes... a superfície brilhante da carreta de seu Senhor.
Era outro teste, concluiu. O Imperador-Deus saberia. Ele conhecia a devoção no coração de Sua Nayla. Era um teste. As ordens do Imperador-Deus deviam ser obedecidas em todas as coisas. Essa fora a primeira lição de sua infância como Oradora Peixe. O Imperador-Deus ordenara que Nayla obedecesse às ordens de Siona. Era um teste. Que mais poderia ser?
Ela olhou na direção dos quatro Fremen. Eles tinham sido posicionados por Duncan Idaho diretamente no meio da estrada e bloqueando parte da saída nessa extremidade da ponte. Sentavam-se de costas para ela e olhavam para a ponte, quatro montes de mantos marrons. Nayla ouvira as palavras que Idaho dissera a eles.
— Não abandonem este lugar. Vocês devem saudá-lo daqui. Levantem-se quando ele se aproximar e se curvem.
“Saudação, sim.”
Nayla fez um gesto afirmativo para si mesma.
As três outras Oradoras Peixes que tinham escalado a Muralha junto com ela haviam sido mandadas para o centro da ponte. Tudo que elas sabiam era o que Siona lhes dissera na presença de Nayla. Deviam esperar até que a Carreta Real estivesse a apenas alguns passos de distância, então se virar e sair dançando na frente dela, liderando a procissão até o ponto de observação acima de Tuono.
“Se eu cortar a ponte com minha arma laser, aquelas três vão morrer”, pensou Nayla. “E todos os outros que vieram com nosso Senhor.”
Ela inclinou o pescoço para olhar o abismo. Não podia ver o rio dali, mas podia ouvir seu murmúrio distante, um movimento das rochas.
Eles todos vão morrer!
“A menos que Ele realize um Milagre.”
Tinha que ser isso. Siona armara o palco para um Sagrado Milagre. Que mais poderia pretender ela, agora que fora testada, agora que usava o uniforme de uma Comandante Oradora Peixe? Siona fizera seu juramento ao Imperador-Deus. Fora testada por Deus, os dois sozinhos no Sareer.
Nayla voltou apenas os olhos para a direita, fitando os arquitetos dessa saudação de boas-vindas. Siona e Idaho encontravam-se ombro a ombro na estrada, uns 20 metros à direita de Nayla. Encontravam-se profundamente absortos numa conversa, olhando um para o outro, ocasionalmente assentindo com a cabeça.
Daí a pouco Idaho tocou o braço de Siona — um gesto curiosamente possessivo. Ele concordou com a cabeça uma vez e caminhou em direção à ponte, parando no canto do contraforte, diretamente à frente de Nayla. Olhou para baixo, depois passou para o outro canto desse lado da ponte. Novamente olhou para baixo, assim permanecendo por vários minutos antes de voltar para junto de Siona.
Que criatura estranha era esse ghola, pensou Nayla. Depois daquela espantosa escalada, não mais o julgava inteiramente humano. Ele era alguma coisa a mais, um semideus que se colocava ao lado de Leto. Mas ele podia ter filhos.
Um grito distante captou a atenção de Nayla. Ela virou-se e olhou para o outro lado da ponte. O cortejo estivera avançando no trote costumeiro de uma peregrinação real. Agora estava diminuindo o passo para uma caminhada lenta, a apenas alguns minutos da ponte. Nayla reconheceu Moneo marchando na dianteira, o uniforme brilhantemente branco, o passo determinado, o olhar voltado diretamente para a frente. A cobertura da carreta do Imperador-Deus estava selada. Ela cintilava numa opacidade espelhada enquanto ralava sobre suas rodas atrás de Moneo.
O mistério de tudo aquilo penetrou em Nayla.
Um milagre estava para acontecer!
Nayla olhou para a direita em direção a Siona. Siona retornou o olhar e acenou com a cabeça. Nayla pegou a pistola laser, tirando-a do coldre e a apoiando na pilastra de rocha enquanto mirava ao longo dela. Primeiro o cabo da esquerda, depois o cabo da direita, depois a etérea treliça de plasteel, à esquerda. A pistola laser parecia fria e estranha na mão de Nayla. Ela respirou trêmula antes de recuperar a calma.
“Devo obedecer. É um teste.”
Ela viu Moneo erguer o olhar da estrada e, sem modificar o passo, virar-se a fim de gritar alguma coisa para a carreta ou para os outros que vinham atrás. Nayla não pôde distinguir as palavras. Moneo olhou para a frente uma vez mais. Nayla firmou-se, uma parte da pilastra de rocha ocultando a maior parte de seu corpo.
“Um teste.”
Moneo vira as pessoas na ponte e no lado oposto dela. Identificara os uniformes das Oradoras Peixes e seu primeiro pensamento foi perguntar-se quem teria ordenado essa recepção. Virou-se e gritou uma pergunta para Leto, mas a cobertura da carreta do Imperador-Deus permanecia opaca, ocultando Leto e Hwi dentro dela.
Moneo estava em cima da ponte, a carreta atritando na areia soprada pelo vento, antes de reconhecer Siona e Idaho de pé, bem adiante, no outro lado. Ele identificou quatro Fremen de Museu sentados no meio da estrada. As dúvidas começaram a se agitar na mente de Moneo, mas ele não poderia modificar o padrão. Arriscou uma olhada para o rio lá embaixo — um mundo platinado capturado na luz do sol do meio-dia. O som da carreta era alto atrás dele. O fluxo do rio, o fluxo do cortejo, toda a vasta importância destas coisas nas quais ele desempenhava um papel — tudo isso dominava sua mente com vertiginosa sensação do inevitável.
“Não somos pessoas passando por este caminho”, pensou. “Somos elementos primais, unindo um fragmento do Tempo a outro. E, quando tivermos passado, tudo atrás de nós mergulhará num mundo sem som, um lugar como a não-sala dos Ixianos, e nada será o que fora antes que viéssemos.”
Um fragmento da canção da alaudista flutuou na memória de Moneo e seus olhos desfocaram-se na lembrança. Ele sabia que aquela canção era para os seus desejos, um desejo de que tudo isso terminasse, tudo se tornasse passado, todas as dúvidas banidas, a tranqüilidade restabelecida. A canção melancólica flutuava como fumaça através de sua consciência, enrolando-se e constrangendo:
O som dos insetos nas raízes do capim dos pampas.
Moneo cantarolou a canção para si mesmo:
O grito dos insetos marca o fim
Do outono o meu canto tem a cor
Das últimas folhas
Nas raízes do capim dos pampas.
Ele assentiu com a cabeça para o refrão:
O dia terminou,
Os Visitantes se foram.
O dia está terminado
Em nosso Sietch,
O dia está terminado.
E o vento da tempestade soa.
O dia está terminado.
Os visitantes se foram.
Moneo concluiu que a canção da alaudista tinha mesmo que ser muito antiga, uma velha canção Fremen, sem dúvida alguma. E ela lhe dizia alguma coisa a respeito de si mesmo. Ele desejava que os visitantes realmente fossem embora, que toda a excitação terminasse, que houvesse paz uma vez mais. A paz estava tão próxima... e no entanto ele não podia abandonar seus deveres. Pensou em todo o material empilhado lá na areia, fora do alcance da vista de quem olhasse de Tuono. Eles logo veriam aquilo tudo - tendas, comidas, mesas, pratos de ouro e facas decoradas com jóias, globos luminosos moldados nas formas de arabesco de antigas lâmpadas... tudo com a riqueza e a plenitude de expectativas de vidas muito diferentes.
“Eles nunca mais serão os mesmos em Tuono.”
Moneo passara duas noites em Tuono, certa vez, numa viagem de inspeção. Ele lembrava o cheiro dos fogos cozinhando as refeições — arbustos aromáticos acesos e queimando no escuro. Eles não usavam fogões solares “porque esta não era a maneira mais antiga”.
“A maneira mais antiga!”
Quase não existia cheiro de melange em Tuono. Havia uma suave acridez e os óleos tirados de arbustos de oásis, esse era o odor dominante. Sim... e as fossas e o fedor de lixo apodrecendo. Relembrou o comentário do Imperador-Deus quando terminara de relatar sua viagem.
— Esses Fremen não sabem o que perderam de suas vidas. Julgam manter a essência dos velhos tempos. Esse é o fracasso de todos os museus. Alguma coisa se apaga; evapora-se do que é exibido e se vai. As pessoas que administram os museus e o povo que vem curvar-se sobre as vitrines para olhar — poucos entre eles sentem essa coisa perdida. O que impulsionava o motor da vida nos velhos tempos. E quando a vida se vai, ela se vai.
Moneo voltou os olhos para as três Oradoras Peixes que se erguiam bem adiante dele na ponte. Elas levantaram os braços e começaram a dançar, rodopiando e saltitando, apenas alguns passos adiante.
“Como é estranho”, pensou ele. “Já vi outras pessoas dançarem a céu aberto, mas nunca as Oradoras Peixes. Elas só dançam na privacidade de seus alojamentos, na intimidade de suas próprias companheiras.”
Esse pensamento ainda estava em sua mente quando ele ouviu o primeiro zumbido terrível de uma pistola laser e sentiu a ponte guinar debaixo de si.
“Isso não está acontecendo!”, disse-lhe sua mente.
Ouviu a Carreta Real derrapar de lado sobre o leito da estrada, depois a pancada da cobertura se abrindo. Um tumulto de berros elevou-se atrás dele, mas não podia virar-se. O tabuleiro da ponte se havia inclinado acentuadamente para o lado direito de Moneo, jogando-o de cara no chão enquanto escorregava em direção ao abismo. Ele se agarrou a um cabo partido para se firmar, mas o cabo desceu com ele, tudo raspando na fina camada de areia que cobrira o leito da estrada. Moneo agarrou-se ao cabo com ambas as mãos, virando-se com ele. Então viu a Carreta Real. Estava escorregando na direção da beirada da ponte, a capota aberta. Hwi se erguia ali, uma das mãos segura ao assento dobrável, enquanto ela olhava para além de Moneo.
Um horrível guincho de metal se rasgando encheu o ar enquanto o leito da estrada se inclinava ainda mais. Ele viu pessoas do cortejo caindo, as bocas abertas, os braços se batendo. Alguma coisa prendera o cabo de Moneo. Com os braços estendidos acima da cabeça, ele virou-se uma vez mais, rolando. Sentia as mãos, lubrificadas pela transpiração do medo, escorregarem ao longo do cabo.
E outra vez seu olhar se voltou para a Carreta Real. Ela se encontrava bloqueada de encontro aos tocos das vigas partidas. E, enquanto Moneo olhava, as mãos inúteis do Imperador-Deus tentavam agarrar Hwi Noree, mas não conseguiam alcançá-la. E ela caiu da extremidade aberta da carreta, silenciosamente, o vestido dourado soprado para cima pelo vento da queda, revelando seu corpo esticado, reto como uma flecha apontando para baixo.
Um gemido profundo, meio ronco, escapou do Imperador-Deus.
“Por que ele não ativa os suspensores?” — perguntou-se Moneo. “Os suspensores irão suportá-lo.”
Mas a arma laser continuava zumbindo e, quando as mãos de Moneo escorregaram para fora da extremidade do cabo partido, ele viu a flecha de chama golpear as bolhas suspensoras da carreta, perfurando uma após a outra em erupções de fumaça dourada. Moneo esticou as mãos sobre a cabeça enquanto caía.
“A fumaça! A fumaça dourada!”
Seu manto chicoteou para cima, virando-lhe o corpo até que seu rosto estava voltado na direção do abismo. Com o olhar nas profundezas, ele reconheceu o redemoinho das corredeiras fervilhantes lá embaixo, um espelho de sua vida — correntezas precipitando-se e mergulhando, todo o movimento reunindo toda a substância. As palavras de Leto serpentearam em sua mente numa trilha de fumo dourado:
— A cautela é o caminho para a mediocridade. A mediocridade flutuante, desapaixonada, é tudo que a maioria das pessoas julga poder conquistar.
Moneo caiu livremente no êxtase da conscientização. O universo abria-se para ele como um vidro transparente, tudo fluindo para o não-Tempo.
“A fumaça dourada!”
— Leto! — gritou ele. — Siaynoq! Eu creio!
O manto foi então arrancado de seus ombros. Ele girou no vento do canyon, tendo um ultimo vislumbre da carreta inclinando-se... inclinando-se no leito partido da estrada. E o Imperador-Deus escorregou da extremidade aberta.
Alguma coisa sólida esmagou as costas de Moneo — sua última sensação.
Leto sentiu-se escorregando de cima da carreta, sua consciência congelada na imagem de Hwi atingindo o leito do rio — uma distante fonte aperolada que marcara seu mergulho nos sonhos e mitos do fim. Suas últimas palavras, calmas e firmes, ainda lhe soavam na memória:
— Eu devo ir na frente, amor.
Quando caiu da carreta, ele viu o arco de cimitarra do rio, uma coisa de bordas lascadas que tremulava em meio às sombras, uma lâmina de água afiada pela Eternidade e pronta agora para recebê-lo em sua agonia.
“Não posso gritar, não posso berrar”, pensou. “Nem mesmo as lagrimas me são mais possíveis. Elas são água e eu terei bastante água dentro de um instante. Só posso gemer em minha dor. Estou sozinho, mais sozinho do que jamais estive.”
Seu grande corpo anelado flexionou-se enquanto caía, girando e torcendo-se até que sua visão ampliada revelou Siona de pé na extremidade partida da ponte:
“Agora você vai aprender!”, pensou ele.
O corpo continuou a girar. Ele observou a aproximação do rio. A água era um sonho habitado pelos vislumbres dos peixes que ativavam a ancestral memória de um banquete ao lado de uma piscina de granito — carne rosada deslumbrando seus apetites.
“Eu me uno a você, Hwi, no banquete dos deuses!”
O clarão de uma explosão de bolhas o envolveu em agonia. Água, correntes violentas de água, o golpeavam de todos os lados. Sentiu o ranger das rochas enquanto lutava para subir, emergindo numa cascata torrencial. Seu corpo flexionava-se num paroxismo involuntário, jogando água para todos os lados com suas contorções. A Muralha do canyon, negra e úmida, passava veloz em seu olhar frenético. Lantejoulas partidas do que fora sua pele explodiam para longe dele, uma chuva de prata à sua volta, mergulhando no rio, um anel de movimentos deslumbrantes e cequins quebradiços — o brilho de escama das trutas da areia deixando para começar suas próprias vidas como colônias.
A agonia prosseguia. Leto admirava-se de poder continuar consciente com tudo que seu corpo estava sentindo.
O instinto o impulsionou. Ele agarrou-se a uma rocha em torno da qual a corrente o despejara e sentiu um dos dedos se soltar de sua mão antes que ele pudesse afrouxar o aperto. A sensação era apenas um tom menor numa sinfonia de dor.
O curso do rio lançou-o para a esquerda em torno de um contraforte do abismo e, como que dizendo que já tivera o suficiente dele, jogou-o rolando sobre a beira inclinada de um banco de areia. Ele ficou caído por um momento, a tinta azul da essência de especiaria flutuando para fora dele na correnteza. A agonia o fez mover-se, o corpo de verme arrastando-se sozinho, afastando-o da água. Toda a cobertura de truta da areia se fora, e ele sentia cada toque mais imediato, um sentido perdido restaurado quando tudo que poderia trazer-lhe era mais dor. Não podia enxergar o próprio corpo, mas sentia que uma coisa que teria sido um verme se arrastava, contorcendo-se para longe da água. Olhou para cima com olhos que viam tudo através das folhas de uma chama em que as formas se coagulavam por vontade própria. E finalmente reconheceu o lugar. O rio lançara-o numa curva onde abandonava para sempre o Sareer. Além dele se encontrava Tuono e de um lado da Muralha estava tudo o que restara do Sietch Tabr — o reino de Stilgar, o lugar onde toda a especiaria de Leto estava escondida.
Exalando fumaças azuis, seu corpo se arrastou ruidosamente ao longo de uma praia de cascalhos, deixando uma trilha de tinta azul sobre rochas partidas e um buraco úmido que podia ter sido parte do sietch original. Agora era apenas uma caverna rasa, bloqueada na extremidade interior por um desmoronamento de rocha. Suas narinas relataram-lhe o cheiro úmido de sujeira e o claro perfume da essência de especiaria.
Sons penetraram em sua agonia. Ele virou-se no confinamento da caverna e viu uma corda pendendo da entrada. Uma figura deslizou pela corda e ele reconheceu Nayla. Ela pulou para as rochas e se agachou, olhando para ele nas sombras. A chama que era a visão de Leto abriu-se para revelar outra figura pulando da corda:
Siona.
Nayla e ela correram em direção a ele, num barulho de pedras deslocadas, e pararam fitando-o. Uma terceira figura caiu da corda: Idaho. Ele se movia com uma ira frenética, lançando-se em direção a Nayla e gritando:
— Por que você a matou? Não devia matar Hwi!
Nayla o jogou no chão com um movimento quase indiferente de seu braço esquerdo. Ela subiu pelas rochas, apoiando-se nas mãos e nos pés, e parou de quatro, olhando para Leto.
— Senhor? Está vivo?
Idaho estava bem atrás dela, arrancando do coldre a pistola laser. Nayla voltou-se, espantada, enquanto ele apontava a arma e apertava o gatilho. A combustão começou no topo da cabeça de Nayla e a fez estourar, os pedaços caindo separados. Uma brilhante faca cristalina pulou do uniforme em chamas e caiu nas rochas. Idaho não viu. Com uma careta de ira no rosto, continuou queimando os pedaços de Nayla até que a carga da arma se esgotou. O arco brilhante desapareceu e só restaram pedaços úmidos e fumegantes de carne e roupa espalhados entre as rochas em brasa.
Era o momento pelo qual Siona aguardara. Ela avançou até ele e tomou a arma inútil de suas mãos. Ele lançou-se em direção a ela, que se colocou em posição para subjugá-lo, mas todo o ódio se esgotara.
— Por quê? — sussurrou ele.
— Está feito — ela disse.
Voltaram-se olhando em direção a Leto nas sombras da caverna.
Leto nem podia imaginar o que eles viam. A pele de truta da areia se fora, disso ele sabia. Devia haver alguma espécie de superfície perfurada pelos orifícios dos cílios da pele que sumira. Quanto ao resto, só podia devolver o olhar dessas duas figuras de um universo sulcado pela mágoa. Através das chamas de sua mente, via Siona como um demônio feminino. O nome do demônio veio sem ser solicitado e ele falou numa voz alta, ampliada pela caverna e muito mais elevada do que teria esperado:
— Hanmya!
— O quê? — Ela chegou um passo mais perto dele.
Idaho colocou ambas as mãos sobre o rosto.
— Olhe o que você fez ao pobre Duncan — disse Leto.
— Ele encontrará outros amores. — Quão insensível ela soava, um eco de sua própria juventude violenta.
— Você não sabe o que é amor — ele disse. — Que foi que você já deu algum dia? — Ele só pôde retorcer as mãos, os restos do que já tinham sido suas mãos. — Deuses, e o que foi que eu dei?
Ela se arrastou para mais perto e estendeu a mão em direção a ele, mas recuou.
— Eu sou real Siona. Olhe para mim. Eu existo. Você pode me tocar se tiver coragem. Estenda sua mão. Faça-o!
Lentamente ela estendeu a mão para o que tinha sido seu segmento frontal, o lugar onde ela dormira no Sareer. A mão estava manchada de azul quando ela a retirou.
— Você me tocou e sentiu o meu corpo. Não é mais estranho do que qualquer outra coisa no universo?
Ela começou a lhe virar as costas.
— Existe uma diferença entre nós — ele disse. — Você é Deus incorporado. Você caminha dentro do maior milagre deste universo, e no entanto se recusa a tocar, ver, sentir, acreditar.
A consciência de Leto flutuou para um lugar envolto pela noite, um lugar onde ele julgou poder ouvir o som metálico de seus impressores ocultos, matraqueando numa sala sem luz. Havia uma ausência total de radiação nesse local, uma não-coisa Ixiana que fazia desse um lugar de ansiedade e alienação espiritual, pois não tinha ligação com o resto do universo.
“Mas vai ter uma ligação.”
Sentia que seus impressores Ixianos tinham sido colocados em movimento, que estavam registrando seus pensamentos sem qualquer comando especial.
“Lembrem-se do que fiz! Lembrem-se de mim! Serei inocente outra vez.
A chama de sua visão dividiu-se para revelar Idaho de pé onde Siona ficara anteriormente. Havia uma gesticulação em algum ponto fora de foco, além de Idaho... ah, sim: Siona acenando instruções para alguém no topo da Muralha.
— Ainda está vivo? — perguntou Idaho.
A voz de Leto escapava em meio ao chiado da respiração:
— Deixe-os dispersarem-se, Duncan. Deixe-os correr e se esconder em qualquer lugar que quiserem, no universo que escolherem.
— Maldito! Que está dizendo? Eu teria preferido deixá-la viver com você!
— Deixar? Eu não deixei coisa alguma.
— Por que deixou que Hwi morresse? — gemeu Idaho. — Não sabíamos que ela estava lá com você.
A cabeça de Idaho tombou para diante.
— Você será recompensado — disse Leto com a voz rouca. — Minhas Oradoras Peixes vão escolher você em vez de Siona. Seja bondoso com ela, Duncan. Ela é mais do que Atreides e carrega consigo a semente da nossa sobrevivência.
Leto mergulhou de volta em suas memórias. Agora eram mitos delicados, mantidos por pouco tempo em sua consciência. Sentia ter caído num tempo que, pela própria natureza, modificara o passado. Havia sons, contudo, e ele lutou para interpretá-los. “Alguém subindo nas rochas?” As chamas partiram-se para revelar Siona ao lado de Idaho. Eles estavam de mãos dadas, como duas crianças, uma tranqüilizando a outra antes de se aventurarem num lugar desconhecido.
— Como ele pode viver assim? — sussurrou Siona.
Leto esperou pela força para responder.
— Hwi me ajuda — ele disse. — Nós tivemos uma coisa que poucos experimentaram. Nós nos unimos em nossas forças, e não em nossas fraquezas.
— E olhe para onde isso o levou! — retrucou Siona.
— Sim, e reze para que você consiga o mesmo. Talvez a especiaria lhe dê tempo — disse ele, rouco.
— Onde está a sua especiaria? — ela quis saber.
— Nas profundezas do Sietch Tabr. Duncan vai encontrá-la. Conhece o lugar, Duncan. Agora o chamam de Tabur. As linhas de relevo ainda estão lá.
— Por que fez isso? — sussurrou Idaho.
— Minha dádiva. Ninguém encontrará os descendentes de Siona. O Oráculo não pode vê-la — respondeu Leto.
— O quê? — Os dois perguntaram ao mesmo tempo, inclinando-se mais perto para ouvir a voz que desaparecia.
— Eu lhes dou um novo tipo de tempo, sem paralelos. Sempre divergirá. Não haverá pontos de concorrência nem curvas. Eu lhes dou o Caminho Dourado. Essa é minha dádiva. Nunca mais terão os tipos de coincidências que já tiveram.
Chamas cobriram sua visão. A agonia estava se apagando, mas ele ainda podia sentir os odores e ouvir os sons com uma acuidade terrível. Idaho e Siona estavam respirando com rapidez. Curiosas sensações cinestéticas começaram a ondular para dentro da mente de Leto — ecos de ossos e juntas que ele sabia não mais possuir.
— Olhe! — disse Siona.
— Ele está se desintegrando. — Essa era a voz de Idaho.
— Não. — Era Siona. — o exterior que está desmoronando. Olhe! O Verme!
Leto sentiu partes de si mesmo acomodando-se em morna suavidade. A agonia foi embora.
— Que são aqueles buracos nele? — perguntou Siona.
— Acho que eram trutas da areia. Vê as formas?
— Estou aqui para provar que um de meus ancestrais estava errado — disse Leto (ou pensou ter dito, o que era a mesma coisa com relação aos seus diários). — Eu nasci homem, mas não morro como homem.
— Não posso olhar! — disse Siona.
Leto ouviu-a virar-lhe as costas, um barulho de rochas.
— Ainda está aí, Duncan?
— Sim.
“Então ainda tenho voz.”
— Olhe para mim — pediu Leto. — Eu era um sangrento fragmento de polpa num ventre humano, um fragmento não maior que uma cereja. Olhe para mim, eu digo!
— Estou olhando. — A voz de Idaho era fraca.
— Você esperava um gigante e encontrou um gnomo. Agora está começando a conhecer as responsabilidades que surgem como resultado de suas ações. Que vai fazer com o seu novo poder, Duncan?
Houve um longo silencio, então a voz de Siona:
— Não o escute. Ele era louco!
— É claro — retrucou Leto. — Loucura com método. Isso é genialidade.
— Siona, você entende isso? — perguntou Idaho. Como era triste a voz do ghola.
— Ela entende — disse Leto. — É humano ter sua alma levada a uma crise que você não previu. E como sempre foi com os humanos. Moneo entendeu, afinal.
— Queria que ele se apressasse e morresse logo! — disse Siona.
— Eu sou o deus dividido e você me tornará uno — disse Leto — Duncan, creio que de todos os meus Duncans é você que eu aprovo mais.
— Aprova? — Algo da ira retornou à voz de Idaho.
— Existe mágica na minha aprovação. Tudo é possível num universo mágico. Sua vida foi dominada pela fatalidade do Oráculo, não a minha. Agora você percebe os caprichos misteriosos e me pede para afastá-los? Só queria poder aumentá-los.
Os outros dentro de Leto começaram a se reafirmar. Sem a solidariedade do grupo colonial para reforçar sua identidade, ele começou a perder sua posição entre eles, que começaram a falar a linguagem do “SE”. “Se você ao menos tivesse... Se nós tivéssemos podido...” Queria gritar para que ficassem em silêncio.
— Somente os tolos preferem o passado!
Leto não sabia se realmente pensara ou gritara essas palavras. A resposta foi um momentâneo silêncio interior, igualado por um silêncio exterior enquanto ele sentia alguns fios de sua antiga identidade ainda intactos. Tentou falar e conheceu a realidade disso porque Idaho disse:
— Escute, ele está tentando dizer alguma coisa.
— Não temam os Ixianos — disse ele, e ouviu sua própria voz como um sussurro se apagando. — Eles podem fazer as máquinas, mas não podem mais criar arafel! Eu sei. Eu estava lá.
Ficou em silêncio, reunindo suas forças, mas sentia a energia lhe escapando mesmo enquanto tentava mantê-la. Uma vez mais o clamor se ergueu em seu interior — vozes suplicando e gritando.
— Parem com essa tolice! — gritou, ou julgou ter gritado.
Idaho e Siona ouviram somente um sopro ofegante.
Dai a pouco Siona disse:
— Acho que ele está morto.
— E todos julgavam que era imortal — disse Idaho.
— Sabe o que diz a História Oral? — perguntou Siona. — Se deseja a imortalidade, você nega a forma. O que quer que possua forma tem mortalidade Além da forma está o informe, o imortal.
— Isto soa como ele falando — acusou Idaho.
— Acho que é — ela disse.
— Que ele quis dizer a respeito de seus descendentes, Siona. Se escondendo, não os encontrando? — perguntou Idaho.
— Ele criou um novo tipo de mimetismo. Uma nova imitação biológica. — explicou ela. — Sabia que fora um sucesso. Não podia me ver nos seus futuros.
— Que é você? — quis saber Idaho.
— Eu sou a nova Atreides.
— Atreides! — O nome era uma maldição na voz de Idaho.
Siona olhou para a carcaça em desintegração que tinha sido Leto Atreides II... — e alguma coisa mais. Essa alguma coisa mais estava escorrendo em fios de fumaça azul, onde o cheiro de melange era mais forte. Poças de líquido azul formavam-se nas rochas embaixo da massa que se derretia. Restavam ligeiros contornos do que já fora um ser humano — uma espumante massa rosa dissolvendo-se, um pedaço de osso riscado de vermelho que podia ter contido as formas das faces e da testa.
Siona disse:
— Sou diferente, mas ainda sou o que era.
Idaho falou num rouco sussurro:
— Os ancestrais, todos os...
— A multidão está lá, mas eu caminho em silêncio entre eles e ninguém me pode ver. As velhas imagens se foram, e apenas a essência permanece para iluminar o Caminho Dourado.
Ela virou-se e pegou a mão fria de Idaho entre as suas. Com cuidado, levou-o para fora da caverna, para a luz onde uma corda pendia, convidando-os a voltar para o topo da Muralha, onde os assustados Fremen de Museu aguardavam.
Pobre material com que moldar um novo universo, ela pensou, mas eles teriam que servir. Idaho necessitaria de uma gentil sedução, um cuidado dentro do qual o amor poderia brotar.
Quando ela olhou ao longo do rio, para onde o fluxo emergia desse abismo feito pelo homem, espalhando-se sobre as terras verdes, viu o vento sul impulsionando nuvens negras na sua direção.
Idaho retirou a mão de entre as suas, mas parecia mais calmo.
— O controle do clima está cada vez mais instável. Moneo julgava ser obra da Corporação.
— Meu pai raramente se enganava quanto a essas coisas — ela disse. — Você terá que verificar isso.
Idaho experimentou uma súbita memória das formas prateadas das trutas da areia fugindo do corpo de Leto no rio.
— Eu ouvi o Verme — disse Siona. — As Oradoras Peixes vão seguir você, não a mim.
Novamente Idaho sentiu a tentação do ritual do Siaynoq.
— Veremos — respondeu. Virou-se, olhando para Siona. — Que ele queria dizer quando falou que os Ixianos não podiam criar arafel?
— Você terá que ler nos diários — ela disse. — Vou mostrá-los a você quando retornarmos a Tuono.
— Mas que significa arafel?
— É escuridão do julgamento sagrado. Vem de uma velha história. Você a encontrará toda nos diários.
Extrato do resumo secreto de Hadi Benotto sobre as descobertas em Dar-es-Balat:
Eis o Relatório da Minoria. Concordaremos, é claro, com a decisão da maioria no sentido de censurar e copidescar cuidadosamente os diários de Dar-es-Balat, mas nossos argumentos devem ser ouvidos; Reconhecemos o interesse da Sagrada Igreja nessas questões, e os perigos políticos também não escaparam à nossa atenção. Compartilhamos o desejo da Igreja de Rakis no sentido de que a Sagrada Reserva do Deus Dividido não se torne “uma atração para turistas maravilhados”.
Entretanto, agora que todos os diários se encontram em nossas mãos, autenticados e traduzidos, emerge a forma precisa do Projeto dos Atreides. Como mulher treinada pela Bene Gesserit para entender os costumes de nossos ancestrais, tenho um desejo natural de compartilhar o padrão que pudemos expor — que é muito mais do que de Duna para Arrakis, de Arrakis para Duna, e daí para Rakis.
Os interesses da história e da ciência devem ser atendidos. Esses diários lançam uma luz valiosa sobre esse acúmulo de recordações pessoais e biografias dos Dias de Duncan, a Bíblia da Guarda. Não podemos esquecer os juramentos familiares: “Pelos milhares de filhos de Idaho!” e “Pelas nove filhas de Siona!”. O persistente culto da Irmã Chenoeh assume novo significado a partir das revelações dos diários. Certamente a caracterização do Judas/Nayla, feita pela Igreja, precisa de cuidadosa reavaliação.
Nós da Minoria devemos relembrar aos censores políticos que os pobres vermes da areia, em sua Reserva Rakiana, não nos podem fornecer ainda uma alternativa para as Máquinas Ixianas de Navegação. Nem as minúsculas quantidades de melange controladas pela Igreja representam qualquer ameaça comercial aos produtos dos tanques Tleilaxu. Não! Nós afirmamos que os mitos, a História Oral e a Bíblia da Guarda, e mesmo os Livros Sagrados do Deus Dividido, devem ser comparados com os diários de Dar-es-Balat. Cada referência histórica à Dispersão e aos Tempos da Fome deve ser reexaminada! Que temos a temer? Nenhuma máquina Ixiana pode fazer o que nós, os descendentes de Siona e de Duncan Idaho, fizemos. Quantos universos nós povoamos? Ninguém pode avaliar. Nenhuma pessoa jamais saberá. Será que a Igreja teme o profeta ocasional? Sabemos que os visionários não nos podem ver nem predizer nossas decisões. Nenhum tipo de morte jamais poderá alcançar toda a humanidade. Devemos nós da Minoria nos unir aos nossos companheiros da Dispersão antes que possamos ser ouvidos? Devemos deixar o núcleo original da humanidade ignorante e desinformado? Se a Maioria nos expulsar, vocês sabem que nunca mais seremos encontrados!
Mas não queremos partir. Somos mantidos aqui por aquelas pérolas na areia.
Sentimo-nos fascinados pela Igreja, que usa as pérolas como “o sol do entendimento”. Certamente nenhum ser humano racional pode fugir às revelações dos diários a esse respeito. Os usos reconhecidamente fugazes mas vitais da arqueologia terão seu dia de glória! Exatamente como a máquina primitiva que Leto usou para ocultar seus diários nos pode ensinar sobre a evolução de nossas máquinas, assim também se deve permitir que essa consciência ancestral fale conosco. Seria um crime contra a verdade histórica e contra a ciência abandonarmos as tentativas de comunicação com aquelas “pérolas de consciência” que os diários localizaram. Estará Leto II perdido no seu sonho interminável ou poderá ser despertado em nossa época? Trazido à plena consciência como um depósito de precisão histórica? Como pode a Sagrada Igreja temer essa verdade?
A Minoria não tem dúvida de que os historiadores devem ouvir a voz dos primórdios. Se são apenas os diários, devemos ouvi-los. Devemos ouvi-los durante tantos anos em nosso futuro quantos eles estiveram ocultos em nosso passado. Não tentaremos prever as descobertas que ainda serão feitas naquelas páginas. Dizemos apenas que elas devem ser feitas. Como poderíamos virar as costas à nossa mais importante herança? Como disse o poeta Lon Bramlis:
“Nós somos a fonte das surpresas!”
Frank Herbert
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