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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O IMPÉRIO DO SOL / J. G. Ballard
O IMPÉRIO DO SOL / J. G. Ballard

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O IMPÉRIO DO SOL

 

A guerra chegou cedo a Xangai, surpreendendo a todos como as marés que invadiam o Yangtsé... Assim começa o novo e tocante romance de J.G. Ballard. O Japão invadiu a China em 1937 e, no final de 1941, os habitantes europeus do Setor Internacional de Xangai tinham quase se acostumado a viver na sua frágil ilha de neutralidade, testemunhando a brutal realidade da ocupação japonesa, da segurança de suas casas senhoriais e carros americanos. Para Jim, menino de onze anos, nascido e educado em Xangai, aquela era a verdadeira guerra. Os acontecimentos europeus, percebidos em tremidos jornais cinematográficos, eram tão exóticos e irreais quanto os épicos hollywoodianos que se seguiam.

Depois, houve o ataque japonês a Pearl Harbor, seguido do afundamento das belonaves inglesas e americanas ancoradas no Yangtsé. Separado dos pais durante a violência e confusão que se seguiram, Jim passou as semanas seguintes vivendo sozinho entre as grandes casas vazias das Concessões inglesa e francesa, até que finalmente foi preso e mandado para o campo de internamente) de Lunghua, que se tornou seu lar nos quatro anos seguintes. Ali, num mundo em que a extrema desnutrição era norma, onde a violência e a morte eram parte diária da existência, Jim encontrou uma espécie de paz e segurança. Seus companheiros ingleses eram geralmente egoístas e pouco amistosos, embora os americanos o mantivessem ocupado com pequenas incumbências e alimentassem sua curiosidade insaciável com exemplares esfarrapados do Reader's Digest. Mas as pessoas que ele mais admirava eram os guardas japoneses: os protetores que mantinham os habitantes do campo a salvo da guerra e do caos existentes além do limite da cerca. Porém o maior dos perigos estava para acontecer no verão de 1945, com o lançamento das bombas atômicas e a rendição dos exércitos japoneses...

 

A Véspera de Pearl Harbor

A guerra chegou cedo a Xangai, surpreendendo a todos como as marés que invadiam o Yangtze e devolviam a essa cidade pomposa todos os caixões lançados à deriva do cais de funerais do Dique Chinês.

Jim tinha começado a sonhar com guerras. De noite, os mesmos filmes mudos pareciam piscar na parede do seu quarto, na Avenida Amherst e transformavam sua mente adormecida numa sala vazia de cinejornais. No inverno de 1941, todos em Xangai exibiam filmes de guerra. Fragmentos dos seus sonhos acompanharam Jim pela cidade; nos saguões das grandes lojas comerciais e hotéis, as imagens de Dun-querque e Tobruque, Barbarossa e a Violação de Nanquim saltavam livres de sua cabeça abarrotada.

Para angústia de Jim, até o Decano da Catedral de Xangai tinha providenciado um projetor antigo. Após o serviço matutino de domingo, 7 de dezembro, véspera do ataque japonês a Pearl Harbor, os meninos do coro foram impedidos de se retirarem para casa e levados para a cripta. Ainda vestindo suas batinas, sentaram-se numa fila de cadeiras de armar requisitadas ao Xangai Iate Clube e ficaram vendo uma March of Time velha de um ano.

Pensando em seus sonhos embaralhados e confuso pela falta da trilha sonora, Jim mexeu no colarinho engomado. O organista voluntário martelava como uma dor de cabeça latejando no teto de cimento e a tela tremia com as imagens conhecidas de combates de tanques e desafios aéreos. Jim estava ansioso para se aprontar para a festa de Natal à fantasia que seria dada naquela tarde pelo Dr. Lockvvood, o vice-presidente da Associação de Residentes Ingleses. Teriam de atravessar as linhas japonesas até Hungjao e depois os mágicos chineses, fogos de artifício e novamente mais cinejornais, porém Jim tinha seus motivos para querer ir à festa do Dr. Lockvvood.

Do lado de fora das portas da sacristia, os motoristas chineses esperavam ao lado dos seus Packards e Buicks, discutindo irritadamente. Entediado pelo filme, que já vira umas doze vezes, Jim ficou ouvindo Yang, o motorista do pai, zombando do sacristão australiano. Contudo, vendo os cinejornais, os britânicos expatriados tornavam-se fervorosos patriotas, como as rifas para levantamento de fundos no clube de campo. Os bailes e festas, as incontáveis garrafas de uísque consumidas em benefício do esforço de guerra (como todas as crianças, Jim ficava muito intrigado pelo álcool, porém só o desaprovava muito vagamente) tinham logo conseguido dinheiro suficiente para comprar um Spitfire: provavelmente um daqueles*, imaginou Jim, que tinham sido derrubados no seu primeiro vôo, o piloto desmaiando no fedor do Johnnie Walker.

Habitualmente, Jim devorava os cinejornais, parte do esforço de propaganda montado pela Embaixada Britânica para enfrentar os filmes de guerra alemães e italianos exibidos nos cinemas e clubes do Eixo de Xangai. Às vezes, os cinejornais ingleses da Pathé lhe davam a impressão de que, apesar da sua ininterrupta série de derrotas, o povo britânico estava se divertindo com a guerra. Os filmes da March of Time eram mais sombrios, de uma forma mais atraente para Jim. Sufocando em sua batina apertada, viu um Hurricane incendiado cair de um céu coalhado de bombardeiros Dornier sobre uma paisagem de livro infantil de prados ingleses que ele não conhecera. O GrafSpee jazia afundado no Rio da Prata, um rio tão melancólico quanto o Yangtze e nuvens de fumaça elevavam-se de uma cidade arruinada na Europa oriental, o planeta negro de onde Vera Frankel, sua governanta de 17 anos, tinha fugido num navio de refugiados havia seis meses.

Jim ficou contente quando o cinejornal acabou. Ele e seus companheiros do coro atiraram-se aos trambolhões para a estranha luz do dia, em direção aos seus motoristas. Seu amigo mais íntimo, Patrick Maxted, tinha partido de Xangai com a mãe para a segurança da fortaleza britânica em Cingapura e Jim achou que devia ver os filmes por Patrick e mesmo pelas russas brancas que vendiam suas jóias nos degraus da catedral e os mendigos chineses sentados entre as lápides.

A voz do comentarista ainda reboava em sua cabeça ao voltar para casa através das ruas abarrotadas de Xangai no Packard dos pais. Yang, o motorista loquaz, tinha trabalhado num filme estrelado por Chiang Ching, a atriz que havia abandonado a carreira para juntar-se ao líder comunista Mao Tsé-tung. Yang gostava de impressionar seu passageiro de 11 anos com histórias de dubles e efeitos de trucagem. Porém naquele dia Yang ignorou Jim, expulsando-o para o assento traseiro. Tocou a formidável buzina do Packard, mantendo o duelo com os agressivos cules dos jinriquixás, que procuravam expulsar os carros estrangeiros da Estrada do Poço Borbulhante. Baixando a vidraça, Yang batia com seu chicote de couro de montaria nos pedestres desavisados, nas saracoteantes garotas de bar com bolsas americanas, nas amahs [1] idosas dobradas sob a canga de bambu com fileiras de galinhas decapitadas.

Um caminhão aberto, carregado de verdugos profissionais desviou-se à frente deles, a caminho do local de estrangulamentos na Cidade Velha. Aproveitando a oportunidade, um jovem mendigo descalço começou a correr ao lado do Packard. Socava as portas e estendia a palma da mão para Jim, berrando o grito de rua de toda Xangai:

- Sem mamãe! Sem papai! Sem uísque e soda!

Yang o chicoteou e o garoto caiu no chão, ergueu-se entre as rodas de um Chrysler em direção oposta e correu ao lado dele.

- Sem mamãe, sem papai...

Jim odiava o chicote de montaria, mas gostava da buzina do Packard. Pelo menos, dominava o rugido dos disparos dos atiradores, o gemido das sereias dos ataques aéreos em Londres e Varsóvia. Estava cheio da guerra européia. Jim olhou para a fachada extravagante da loja de departamentos Sincere Company, tomada por um imenso retrato de Chiang Kai-shek exortando o povo chinês a sacrifícios ainda maiores em sua luta contra os japoneses. Uma luz tênue, de uma lâmpada a neon defeituosa, bruxuleava sobre a boca mole do Generalissimo, o mesmo piscar que Jim vira em seus sonhos. Xangai inteira estava virando um cinejornal pingando de dentro de sua cabeça.

Seu cérebro teria ficado estragado por tantos filmes de guerra? Jim tentou contar a sua mãe os seus sonhos, mas como todos os adultos de Xangai naquele inverno, ela estava preocupada demais para dar-lhe atenção. Talvez ela também tivesse pesadelos. De uma forma misteriosa, aquelas imagens arrastadas de tanques e bombardeiros eram inteiramente silenciosas, como se sua mente adormecida estivesse tentando separar a guerra real dos conflitos inventados pela Pathé e British Movietone.

Jim não tinha a menor dúvida sobre qual era verdadeira. A guerra verdadeira era tudo o que ele vira pessoalmente desde a invasão japonesa da China em 1937, os velhos campos de batalha de Hungjao e Lunghua, onde os ossos dos mortos não enterrados apareciam na superfície dos campos fofos em cada primavera. A guerra real eram os milhares de refugiados chineses morrendo de cólera nos recintos cercados de Pootung e as cabeças ensangüentadas dos soldados comunistas espetadas em lanças por toda a extensão do Bund. Numa guerra verdadeira, ninguém sabia de que lado estava e não havia bandeiras nem comentaristas ou vencedores. Nurtia guerra verdadeira, não havia inimigos.

Ao contrário, o próximo conflito entre ingleses e japoneses, que todos em Xangai esperavam que arrebentasse no verão de 1942, pertencia ao reino do boato. O navio de suprimentos a serviço do cruzador alemão no Mar da China visitou abertamente Xangai e ancorou no rio, onde se abasteceu de combustível de uma dúzia de barcaças... muitas das quais, comentou causticamente o pai de Jim, pertencentes a companhias petrolíferas americanas. Quase todas as mulheres e crianças americanas tinham sido retiradas de Xangai. Na sua sala na Cathedral School, Jim ficou cercado de carteiras vazias. A maior parte dos seus amigos e suas mães tinham partido para a segurança de Hong Kong e Cingapura, enquanto os pais fechavam as casas e hospedavam-se em hotéis no Bund.

No começo de dezembro, quando a escola terminou as aulas, Jim foi ao encontro do pai no terraço do prédio do seu escritório na Estrada Szechwan e ajudou a queimar os caixotes de registros que os empregados chineses levavam pelo elevador. O rastro de papel queimado pairou sobre o Bund e misturou-se com a fumaça das chaminés impacientes dos últimos vapores a deixar Xangai. Os passageiros lotavam os passadiços: eurasianos, chineses, europeus lutando para subir a bordo, com seus pacotes e malas, prontos a enfrentar o risco dos submarinos alemães no estuário do Yangtze. As fogueiras apareceram nos terraços dos edifícios de escritórios no distrito financeiro, observados pelos binóculos de campanha dos oficiais japoneses nas suas fortalezas de cimento do outro lado do rio, em Pootung. Não era o ódio dos japoneses o que mais incomodava Jim, mas sua paciência.

Assim que chegaram à casa na Avenida Amherst, correu escada acima para mudar de roupa. Jim gostava de chinelos persas, camisa de seda bordada e calças de veludo azul, deixando-o parecido com um figurante do filme O Ladrão de Bagdá e estava ansioso para ir à festa do Dr. Lockwood. Teria de suportar os mágicos e cinejornais e depois ir ao encontro secreto que os boatos de guerra o tinham impedido de atender durante tantos meses.

Por um feliz acaso, a tarde livre de Vera era naquele sábado, quando ela visitaria os pais no gueto de Hongkew. Aquela mocinha cansada, ela mesma pouco mais que uma criança, habitualmente acompanhava Jim a toda parte, como um cão de guarda. Uma vez que Yang o levasse para casa - seus pais deveriam ter ido jantar com os Lock-woods - ele ficaria livre para perambular só pela casa vazia, seu maior prazer. Os nove criados chineses estariam lá, porém na cabeça de Jim e na de outras crianças inglesas, eles permaneciam tão passivos e invisíveis como os móveis. Acabaria de envernizar seu avião de balsa e terminaria outro capítulo do manual denominado Como Jogar Bridge de Contrato, que ele estava escrevendo num caderno de exercícios da escola. Após passar anos prestando atenção às partidas de bridge da mãe, tentando extrair alguma espécie de lógica das declarações “Um ouro”, “Passo”, “Três Copas”, “Três sem Trunfo”, “Dobro”, “Re-pico”, tinha preferido que ela lhe ensinasse as regras e tinha mesmo dominado as convenções, um código dentro de outro, de um tipo que sempre intrigou Jim. Com a ajuda de um guia de Ely Culbertson, estava a ponto de começar o capítulo mais difícil de todos, no lanço mental: tudo isso e ele tinha ainda de jogar uma única mão.

Contudo, se a tarefa se revelasse muito cansativa, poderia se decidir por um passeio de bicicleta pela Concessão Francesa, levando sua arma de ar comprimido para o caso de encontrar o grupo de franceses de 12 anos que constituía o bando da Avenida Foch. Quando voltasse para casa, estaria na hora do seriado radiofônico do Flash Gordon na estação XMHA, seguido do programa de discos, quando ele e seus amigos telefonavam fazendo pedidos sob seus últimos pseudônimos: “Batman”, “Buck Rogers” e (o de Jim), “Ace”, que ele gostava de ouvir sendo lido pelo locutor, apesar de sempre se encolher encabulado.

Assim que atirou sua batina à amah e vestiu a roupa de festa, descobriu que tudo aquilo estava ameaçado. Com a cabeça perturbada pelos boatos de guerra, Vera tinha resolvido não visitar os pais.

- Você vai à festa, James - informou-o Vera, abotoando sua camisa de seda. - Eu telefonarei aos meus pais explicando tudo.

- Mas, Vera... eles querem vê-la. Sei que querem. Você tem de pensar neles, Vera...

Confuso, Jim hesitou em lamentar-se. Sua mãe lhe dissera para ser bondoso com Vera e não aborrecê-la, como fizera com outras governantas. Aquela melancólica russa branca o assustou quando convalescia de sarampo, dizendo-lhe que podia ouvir a voz de Deus na Avenida Amherst, prevenindo-os a propósito dos maus caminhos. Logo depois, Jim tinha embasbacado seus colegas de colégio anunciando-lhes ser ateu. Ao contrário, Vera era uma moça calma, que nunca sorria e achava tudo estranho em relação a Jim e seus pais, tão estranho quanto a própria Xangai, aquela cidade violenta e hostil, a um mundo de distância de Cracóvia. Ela e os pais tinham fugido num dos últimos navios da Europa de Hitler e agora moravam, com milhares de refugiados judeus, em Hongkew, um bairro sombrio de moradias e gastos blocos de apartamentos por trás da área portuária de Xangai. Para espanto de Jim, Herr Frankel e a mãe de Vera sobreviviam num único quarto.

- Vera, onde moram seus pais? - Jim sabia a resposta, mas resolveu arriscar o ardil. - Moram numa casa?

- Moram num quarto, James.

- Um quarto! - Para Jim, aquilo era inconcebível, muito mais estranho que tudo nos quadrinhos de Superman e Batman. - De que tamanho? Tão grande quanto o meu? Tão grande quanto esta casa?

- Do tamanho do seu quarto de vestir. James, algumas pessoas não são tão felizes quanto você.

Assustado por aquilo, Jim fechou a porta do quarto de vestir e mudou sua calça de veludo. Seus olhos mediram a pequena peça. Como duas pessoas podiam sobreviver num espaço tão pequeno era tão difícil de conceber quanto as convenções no bridge de contrato. Talvez houvesse uma explicação simples que solucionasse o problema e ele teria assunto para outro livro.

Felizmente, o orgulho de Vera fê-la recuperar-se da maldade. Quando ela partiu para a casa dos pais, começando a longa caminhada até a estação do bonde na Avenida Joffre, Jim ainda estava meditando sobre o mistério daquele quarto extraordinário. Resolveu debater o assunto com os pais, porém, como sempre, eles estavam muito ocupados com as notícias da guerra para prestar-lhe atenção. Vestidos para a festa, estavam no escritório do pai, ouvindo o rádio de ondas curtas, que transmitia boletins da Inglaterra. Seu pai estava ajoelhado ao lado do aparelho em sua fantasia de pirata, o tapa-olho de couro puxado para a testa e óculos nos olhos cansados, como um bucaneiro estudioso. Olhava para o dial amarelo embutido como um dente de ouro na face de mogno do aparelho. Num mapa da Rússia, aberto no tapete, marcava a nova linha defensiva para onde o Exército Vermelho tinha se retirado. Olhou-o desanimadamente, tão espantado pela vastidão da Rússia quanto Jim ficara por causa do quarto minúsculo dos Frankel.

- Hitler estará em Moscou no Natal. Os alemães continuam avançando.

Sua mãe, fantasiada de pierrô, estava ao lado da janela, olhando o céu de dezembro cor de aço. O longo rabo de um papagaio de funeral chinês ondulava pela rua, a cabeça balançando ao mesmo tempo em que exibia seu sorriso feroz para as casas européias.

- Deve estar nevando em Moscou. Talvez o mau tempo os detenha...

- Uma vez em cada século? Mesmo isso seria pedir muito. Churchill precisa arrastar os americanos para a guerra.

- Papai, quem é o General Lama?

O pai ergueu os olhos, enquanto Jim esperava na soleira da porta, a amah carregando sua arma de ar comprimido como um carregador, aquele membro de uma infantaria voluntária de veludo azul, pronto a ajudar o esforço de guerra russo.

- A arma BB hoje não, Jamie. Leve seu avião em lugar dela.

- Amah, não toque nela! Eu a mato!

- Jamie!

O pai virou-se do aparelho, pronto a bater-lhe. Jim postou-se silenciosamente ao lado da mãe, esperando para ver o que ia acontecer. Embora gostasse de percorrer Xangai de bicicleta, em casa Jim sempre se mantinha junto da mãe, mulher inteligente e gentil, cuja finalidade na vida, achava ele, era ir a festas e ajudá-lo nos deveres de casa de latim. Quando ela saía, o menino passava muitas horas tranqüilas no quarto dela, misturando seus perfumes e distraindo-se com os álbuns de fotografias dela mesma antes do casamento, fotogramas de um filme encantado no qual ela desempenhava o papei de sua irmã mais velha.

- Jamie! Nunca diga isso... Você não vai matar Amah nem ninguém.

- O pai abriu as mãos e Jim percebeu o quanto ele estava exausto. Parecia freqüentemente a Jim que seu pai tentava permanecer bem calmo, sob o peso das ameaças dos sindicatos comunistas à sua firma, pelo seu trabalho para a Associação de Residentes Britânicos e por seus temores por causa de Jim e sua mãe. Quando ouvia as notícias de guerra, tornava-se quase delirante. Uma forte afeição tinha surgido entre seus pais, nunca vista por ele antes. Seu pai podia ficar zangado com ele, apesar de se interessar muito pelas menores coisas da vida de Jim, como se acreditasse que o filho construir seu modelo de avião fosse mais importante que a guerra. Pela primeira vez, estava totalmente desinteressado dos trabalhos escolares. Imprimiu toda espécie de informações estranhas em Jim: sobre a composição química das tintas modernas, sobre o esquema de bem-estar de sua companhia para os operários fabris, a escola e a universidade na Inglaterra, para as quais Jim iria após a guerra e como, se quisesse, podia tornar-se doutor. Eram elementos de uma adolescência sobre a qual seu pai parecia estar convicto de que nunca aconteceria.

Ajuizadamente, Jim resolveu não provocar o pai, nem se referir ao misterioso quarto dos Frankel no gueto de Hongkew, aos problemas do lanço mental e da trilha sonora perdida dentro de sua cabeça. Nunca mais voltaria a ameaçar Amah. Estavam indo a uma festa e ele iria tentar alegrar seu pai imaginando uma forma de parar os alemães às portas de Moscou.

Lembrando da neve artificial que Yang havia descrito nos estúdios cinematográficos de Xangai, Jim ocupou seu lugar no Packard. Ficou contente ao ver que a Avenida Amherst estava cheia de carros de europeus indo para suas festas de Nata!. Por todos os subúrbios ocidentais, as pessoas estavam usando fantasias, como se Xangai tivesse se tornado uma cidade de palhaços.

 

Mendigos e Acrobatas

Pierrô e pirata, seus pais tinham se acomodado em silêncio quando partiram para Hungjao, um distrito rural a oito quilômetros a oeste de Xangai. Habitualmente, sua mãe avisava Yang para evitar o velho mendigo que se postava no fim da estradinha. Mas quando Yang manobrou o carro pesado pelos portões, mal diminuindo a marcha antes de acelerar pela Avenida Amherst, Jim viu que a roda dianteira tinha esmagado o pé do homem. Aquele mendigo tinha aparecido dois meses antes, um amontoado de trapos vivos, cujas únicas propriedades eram uma esteira rasgada de papel e uma lata vazia de Craven A, que ele estendia aos passantes. Nunca saiu da esteira, mas defendia ferozmente seu ponto fora dos portões do taipan. Mesmo o Rapaz e Cule Número Um, o Garoto e o Chefe-Lavador-de-Pratos tinham sido incapazes de removê-lo.

Contudo, a posição tinha proporcionado alguma vantagem ao velho. Eram tempos duros, aquele inverno de Xangai e após uma semana inteira de um tempo particularmente gelado, estava cansado demais para erguer sua lata. Jim ficou preocupado com o mendigo e sua mãe disse-lhe que Cule tinha levado uma tigela de arroz para ele. Após uma forte nevada numa noite do começo de dezembro, formou-se um espesso acolchoado, de onde o rosto do homem emergiu como o de uma criança adormecida sob um edredão. Jim comentou consigo mesmo que ele nunca se mexeria porque estava aquecido sob a neve.

Havia muitos mendigos em Xangai. Eles sentavam-se nos portões das casas em toda a Avenida Amherst, sacudindo suas latas de Craven A como fumantes corrigidos. Vários exibiam cicatrizes lívidas e deformações, porém, ninguém os notou naquela tarde. Refugiados das aldeias e povoações nos arredores de Xangai vinham se abrigando na cidade. Carroças de madeira e jinriquixás enchiam a Avenida Amherst, cada um levando todos os pertences de uma família camponesa. Adultos e crianças curvavam-se sob o peso dos fardos amarrados às suas costas e forçavam as rodas com as mãos. Cules de jinriquixás puxavam os varais, cantando e cuspindo, as veias tão grossas como dedos agarrados à carne de suas panturrilhas inchadas. Funcionariozinhos empurravam bicicletas carregadas de colchões, fogões a carvão e sacos de arroz. Um mendigo perneta, o tórax amarrado num enorme sapato de couro, pulava pela estrada, entre o labirinto de rodas, um haltere de madeira em cada mão. Cuspiu e esmurrou o Packard quando Yang tentou forçá-lo a se afastar do caminho e depois desapareceu entre as rodas dos triciclos e jinriquixás, confiante no poder do cuspe e da poeira.

Quando atingiram a saída do Setor Internacional para a Grande Estrada Ocidental, encontraram uma fila de carros de ambos os lados do posto de controle. A polícia de Xangai tinha desistido de qualquer tentativa de impor uma ordem à multidão. O oficial inglês estava na torre do Seu carro blindado, fumando um cigarro enquanto olhava os milhares de chineses que se atropelavam à frente dele. De vez em quando, como que para manter as aparências, o suboficial sikh, de turbante caqui, espancava as costas dos chineses com sua vara de bambu.

Jim ergueu os olhos para ele. Estava fascinado pelos reluzentes cinturões daqueles homens fortes e suados, pelos seus alarmantes órgãos genitais, que expunham sem pudor sempre que queriam urinar e pelos coldres envernizados que sustentavam toda a sua masculinidade. Jim queria um dia também usar um coldre, sentir o enorme revólver Webley apoiado em sua ilharga. Entre as camisas do pai, no guarda-roupa, Jim tinha encontrado uma pistola automática Browning, um objeto gracioso parecendo o interior da cine câmara dos pais que ele tinha, certa vez, aberto acidentalmente, velando dezenas de metros de filme. Era difícil imaginar aquelas miniaturas de balas matando alguém, para não falar nos ativistas sindicais comunistas.

Em compensação, as Mausers usadas pelos suboficiais japoneses eram muito mais impressionantes que as Webleys. Os coldres de madeira pendiam até os joelhos, quase como bainhas de rifles. Jim observou o sargento japonês no controle, pequeno mas troncudo, que usava os punhos para empurrar de volta os chineses. Estava quase dominado pelos camponeses, lutando com suas carroças e jinriquixás. Jim, sentado ao lado de Yang no banco dianteiro do Packard, segurava cuidadosamente seu avião de balsa enquanto esperava que o sargento sacasse sua Mauser e desse um tiro para cima. Mas os japoneses eram cuidadosos com sua munição. Dois soldados abriram um espaço em torno de uma camponesa cuja carroça tinham virado. De baioneta calada, o sargento arrebentou com uma chicotada um saco de arroz, que se espalhou aos pés da mulher. Ela ficou tremendo e chorando numa voz monótona, cercada pelos reluzentes Packards e Chryslers, com seus passageiros europeus fantasiados.

Talvez ela tivesse tentado contrabandear uma arma pelo controle? Havia espiões comunistas e do Kuomintang por toda parte entre os chineses. Jim sentiu pena da camponesa, cujo saco de arroz era provavelmente sua única riqueza, mas ao mesmo tempo admirou o japonês. Gostava da sua bravura e estoicismo e sua tristeza, que tocou uma corda curiosa em Jim, que nunca ficava triste. Os chineses, que Jim conhecia bem, eram um povo frio e freqüentemente cruel, mas, em sua maneira superior, mantinham-se unidos, enquanto os japoneses eram solitários. Todos eles carregavam fotografias de suas famílias, iguais, cópias comuns, como se todo o Exército Japonês tivesse sido recrutado apenas entre os clientes de fotógrafos de rua.

Nos seus passeios de bicicleta por Xangai - passeios que seus pais ignoravam - Jim passava horas nos controles japoneses, dando um jeito, de vez em quando, de travar relações com um praça chateado. Nenhum deles jamais permitiu que visse suas armas, ao contrário dos praças ingleses, em seus abrigos de sacos de areia ao longo do Bund. Enquanto ficavam em suas camas, esquecidos da vida portuária à sua volta, deixavam Jim mexer nos pinos de suas Lee Enfield sem maiores problemas. Jim gostava deles e de suas vozes estranhas, cheias de histórias sobre uma Inglaterra estranha e inconcebível.

Mas se a guerra estourasse, eles poderiam derrotar os japoneses? Jim duvidava e sabia que seu pai também. Em 1937, no começo da guerra contra a China, duzentos fuzileiros japoneses subiram o rio e escavaram as praias de lama preta sob a fábrica de algodão do pai, em Pootung. À vista da suíte dos pais no Palace Hotel, tinham sido atacados por uma divisão de soldados chineses comandada por um sobrinho de Madame Chiang. Durante cinco dias, os japoneses ficaram em trincheiras que se enchiam de água até a cintura durante a maré alta e depois avançaram de baionetas caladas e expulsaram os chineses.

A fila de automóveis atravessou o controle levando grupos de americanos e europeus, já atrasados para suas festas de Natal. Yang dirigiu o Packard para a barreira, assoviando com medo. Diante deles, estava um Mercedes descapotado, exibindo flâmulas com a suástica, cheio de jovens alemães impacientes. Mas os japoneses examinaram o interior com a mesma meticulosidade.

A mãe de Jim segurou-lhe o ombro.

- Agora não, querido. Pode assustar os japoneses.

- Isto não os assustará.

- Agora não, Jamie - repetiu o pai, acrescentando com um humor pouco habitual: - Você poderá mesmo começar a guerra.

- Posso?

O pensamento intrigou Jim. Afastou seu avião da janela. Um soldado japonês estava metendo a baioneta do seu rifle pelo pára-brisa, como se cortasse uma teia invisível. Jim sabia que a seguir ele ia se inclinar pela janela dos passageiros, exalando no interior do Packard sua respiração fatigada, e aquele cheiro ameaçador era o de todos os soldados japoneses. Então todos ficaram imóveis, pois o menor movimento produziria uma curta pausa, seguida de uma violenta retribuição. No ano anterior, quando ele tinha dez, Jim quase provocou um ataque cardíaco em Yang, apontando seu Spitfire de metal na cara de um cabo japonês e entoando “Rata-ta-ta-ta”... Durante quase um minuto, o cabo japonês ficou olhando o pai de Jim sem expressão, balançando lentamente a cabeça para si mesmo. Seu pai era fisicamente forte, porém Jim sabia que era a espécie de força decorrente do jogo de tênis.

Desta vez, Jim queria apenas que o japonês visse seu avião de balsa; não para que o admirasse, mas que tomasse conhecimento de sua existência. Estava agora mais velho e gostava de se imaginar o co-piloto do Packard. Aviões sempre tinham interessado Jim, especialmente os bombardeiros japoneses que tinham devastado os distritos de Nantao e Hongkew de Xangai, em 1937. Rua após rua, os prédios tinham sido arrasados até o chão e na Avenida Edward VII, uma única bomba tinha morto mil pessoas, mais que qualquer outra bomba na história da guerra.

A atração principal das festas do Dr. Lockwood era, de fato, o campo de pouso fora de uso de Hungjao. Apesar dos japoneses controlarem os campos em torno da cidade, suas forças continuavam em atividade patrulhando o perímetro do Setor Internacional. íoleravam os poucos americanos e europeus que moravam nos distritos rurais e, na prática, eram poucos os japoneses à vista.

Quando chegaram à casa isolada do Dr. Lockwood, Jim ficou aliviado ao ver que a festa não estava sendo um sucesso. Havia apenas uma dúzia de carros na estradinha e seus motoristas estavam ativamente limpando o pó dos pára-lamas, ansiosos por uma rápida retirada. A piscina tinha sido esvaziada e o jardineiro chinês estava silenciosamente retirando do fundo um papa-figo morto. Os garotos menores e suas amahs estavam no terraço, assistindo a uma companhia de acrobatas cantoneses subirem em suas escadas engraçadas, fingindo desaparecer no céu. Viravam pássaros, estendendo asas de papel amarrotado e dançando de um lado para outro diante do berreiro das crianças e depois pulando nas costas uns dos outros, transformando-se num enorme frango vermelho.

Jim pilotou seu avião de balsa pela porta da varanda. Enquanto o mundo dos adultos continuou acima de sua cabeça, ele fez um circuito da festa. Muitos convidados tinham resolvido não se fantasiar, como se estivessem muito nervosos nos seus papéis reais para se disfarçarem. A reunião lembrou a Jim as festas que duravam a noite inteira na Avenida Amherst, que iam até a tarde seguinte, quando mães distraídas em vestidos de noite amarrotados andavam em volta da piscina, fingindo procurar os maridos.

A conversa cessou quando o Dr. Lockwood ligou o rádio de ondas curtas. Contente por ver que estavam todos ocupados, Jim saiu por uma porta lateral para o terraço dos fundos da casa. Viu a fila de mulheres fantasiadas andando no gramado. Havia vinte chinesas, em calças e túnicas pretas, cada uma com um banco em miniatura. Sentaram-se lado a lado, os instrumentos de jardinagem brilhando na grama, enquanto continuavam uma conversa incessante. Por trás delas, o gramado do Dr. Lockwood estendia-se como uma peça de xantungue verde.

- Olá, Jamie. Meditando outra vez? - O Sr. Maxted, pai do seu melhor amigo, surgiu na varanda. Uma figura solitária mas amável, numa roupa de pele de tubarão, que enfrentava a realidade através de um grande uísque com soda, apontou seu charuto para as capinadoras. - Se toda a população da China fosse posta em fila, iria dos pólos norte ao sul. Já pensou nisso, Jamie?

- Poderiam capinar o mundo inteiro?

- Se quiser encarar assim. Me disseram que saiu dos escoteiros.

- Bem...

Jim ficou em dúvida se valia a pena explicar ao Sr. Maxted por que tinha saído dos lobinhos, um ato de rebeldia com a única finalidade de avaliar seu resultado. Para seu desapontamento, os pais de Jim tinham ficado surpreendentemente indiferentes. Pensou em contar ao Sr. Maxted que não só tinha saído,dos escoteiros como se tornado ateu, mas que podia também se tornar comunista. Os comunistas tinham uma intrigante capacidade para inquietar todo mundo, talento que Jim respeitava profundamente.

Contudo, sabia que o Sr. Maxted não ficaria chocado com aquilo. Jim admirava o Sr. Maxted, arquiteto que virou empresário, autor dos projetos do Metrópole Theatre e de inúmeros clubes noturnos de Xangai. Jim freqüentemente procurava imitar suas maneiras mal-afamadas, porém descobriu logo que ser tão relaxado assim dava muito trabalho. Jim tinha uma idéia vaga do seu próprio futuro - a vida em Xangai era levada totalmente dentro de um presente intenso - porém se imaginou crescendo para ser como o Sr. Maxted. Eternamente acompanhado pelo mesmo copo de uísque e soda, como Jim achava que devia ser. O Sr. Maxted era o tipo perfeito do inglês que se tinha adaptado a Xangai, coisa que o pai de Jim, com sua mente severa, jamais fez. Jim sempre gostava dos passeios com o Sr. Maxted, quando ele e Patrick sentavam-se no banco dianteiro do Studebaker, partindo em viagens imprevisíveis numa tarde de um mundo de clubes noturnos e cassinos vazios. O Sr. Maxted dirigia pessoalmente o Studebaker, um truque de comportamento que parecia excitante e até pouco respeitável para Jim. Ele e Patrick giravam as rodas das roletas abandonadas, com o dinheiro do Sr. Maxted, sob os sorrisos tolerantes das empregadas russas brancas, remendando suas meias de seda, enquanto o Sr. Maxted, no escritório com o proprietário, contava montes de notas.

Talvez, em troca, ele devesse levar o Sr. Maxted em sua expedição secreta ao Aeroporto de Hungjao?

- Não perca a exibição do filme, Jamie. Confio em você para que me mantenha em dia com as últimas novidades em aviação militar...

Jim ficou vendo o Sr. Maxted equilibrar-se na beira de ladrilhos da piscina vazia, curioso para saber se ele cairia. Se o Sr. Maxted caísse sempre acidentalmente em piscinas, como acontecia, de fato, por que só caía quando estavam cheias de água?

 

O Aeródromo Abandonado

Pensando na resposta, Jim saiu do terraço. Atravessou o gramado correndo, deixando as podadeiras para trás, fazendo seu avião voar sobre as cabeças delas. As mulheres o ignoraram, suas facas cortando a grama, mas Jim sempre sentia um leve arrepio de pavor quando chegava muito perto delas. Podia imaginar o que aconteceria se desmaiasse no caminho delas.

Na parte sudoeste da propriedade ficava o poste da antena de rádio do Dr. Lockwood. Um trecho da cerca de madeira tinha sido deslocado pelos fios de sustentação e Jim entrou num buraco na beira de um campo não tratado. Em seu centro um túmulo erguia-se das canas-de-açúcar e os caixões apodrecidos projetavam-se da terra esboroada como uma cômoda.

Jim começou a atravessar o campo. Quando passou pelo túmulo, parou para olhar os caixões destampados. Os esqueletos amarelados estavam encravados na lama causada pela chuva, como se aqueles pobres camponeses tivessem sido deitados em catres de seda. Mais uma vez Jim foi afetado pelo contraste entre os corpos anônimos dos mortos recentes, que ele via diariamente em Xangai e aqueles esqueletos aquecidos pelo sol, cada um com uma identidade. Os crânios o intrigaram, com suas órbitas vesgas e dentes deformados. De muitas maneiras, aqueles esqueletos estavam mais vivos que os camponeses que durante pouco tempo usaram seus ossos. Jim apalpou suas faces e queixo, tentando imaginar seu próprio esqueleto ao sol, atirado naquele lugar tranqüilo à vista do campo de aviação vazio.

Deixando para trás o cemitério e seus conjuntos de ossos, Jim atravessou o campo até uma fila de choupos raquíticos. Subiu uma escada de madeira para um piso forrado de palha de arroz. A carcaça de um búfalo da índia jazia na sombra da cerca mas, fora isso, a paisagem estava vazia, como se todos os chineses no vale do Yangtze tivessem abandonado a região para se refugiarem em Xangai. Mantendo o avião de balsa acima da cabeça, Jim correu pelo chão forrado para um edifício de ferro que aparecia na beira de uma terra mais alta, algumas centenas de metros a oeste. Tomada por espinheiros e cana-de-açúcar, os restos de uma estrada de cimento estendiam-se além de uma portaria arruinada e depois davam lugar a um amplo campo de capim silvestre.

Aquele era o aeródromo de Hungjao, para Jim um lugar mágico, onde o ar misturava-se a sonhos e estímulos. Havia o hangar de ferro galvanizado, porém pouco restava do campo de aviação militar de onde os caças chineses tinham atacado as colunas da infantaria japonesa, que marcharam sobre Xangai em 1937. Jim entrou no capinzal que lhe ia até a cintura. Como a água no mar em Tsingtao, abaixo da superfície quente havia um mundo gelado, movido por correntes misteriosas. O vento vivo de dezembro açoitava a grama, espécimes giravam em torno dele como as correntes de ar provocadas por um aparelho invisível. Fazendo um esforço, Jim quase podia ouvir os sons dos motores dos aviões em movimento.

Atirou o modelo de balsa ao vento e pegou-o quando ele voltou a sua mão. Já estava cansado daquele modelo. Onde ele agora estava brincando, pilotos chineses e japoneses tinham estado em seus uniformes de vôo, afivelando os óculos antes de decolarem para o ataque. Jim caminhou pelo capinzal espesso que ia até seus ombros. As milhares de lâminas agitavam-se em torno de sua calça de veludo e camisa de seda, como que querendo identificar aquela miniatura de aviador.

Uma vala rasa constituía a extremidade sul do campo de aviação. Em meio aos compactos espinheiros, jazia a fuselagem de um caça monomotor japonês, derrubado talvez quando tentava pousar na fuga pelo capim. As asas, a hélice e a cauda tinham sido retiradas, mas a nacele permanecia intacta, o metal enferrujado do assento e dos comandos lavados pela chuva. Pelos postigos abertos do radiador, Jim pôde ver os êmbolos do motor que tinha levado aquele aparelho e se'u piloto céu afora. O metal anteriormente queimado, estava agora rugoso como pedra-pomes castanha, como os cascos dos submarinos ancorados na enseada das fortalezas alemãs em Tsingtao. Porém, apesar de toda a sua ferrugem, aquele caça japonês ainda pertencia ao céu. Durante meses, Jim esteve tentando arranjar um meio de convencer seu pai a levá-lo para a Avenida Amherst. De noite podia ficar ao lado da sua cama, iluminado pelos cine jornais dentro de sua cabeça.

Jim depositou seu modelo de balsa na capota do motor, subiu no pára-brisa e desceu para o assento de metal. Sem o pára-quedas que servia de almofada para o piloto, estava sentado no chão da nacele, num buraco de metal enferrujado. Olhou para o painel de instrumentos, com seus ideogramas japoneses, para as rodas em ordem e a alavanca do trem de aterrissagem. Abaixo do painel de instrumentos, pôde ver as culatras das metralhadoras montadas na coberta do pára-brisa e o interruptor que dava partida à hélice. Pairava uma poderosa atmosfera sobre a nacele, a única nostalgia que Jim sempre sentira, a memória intacta do piloto que tinha sentado em seus comandos. Onde estaria agora o piloto? Jim fingiu manobrar os comandos, como se essa ação simpática pudesse evocar o espírito do aviador morto havia muito tempo.

Sob um dos mostradores escuros, uma fita de metal contendo uma linha de caracteres japoneses tinha sido metida no painel, uma lista de pressões múltiplas ou inclinações. Jim extraiu a fita dos seus pinos, depois se levantou e meteu-a no bolso da calça de veludo. Saiu da nacele e pulou para o capo do motor. Seus braços e ombros tremiam com todas as emoções confusas que aquele aparelho estragado invariavelmente imprimiam em sua mente. Dando vazão à excitação, pegou seu modelo e atirou-o para o ar.

Levado pelo vento, o modelo inclinou-se lateralmente e pairou em toda a extensão do campo. Roçou o telhado de um velho fortim de cimento e foi cair adiante, no capim. Impressionado pela velocidade do modelo, Jim pulou da capota do motor e correu para o fortim, braços estendidos enquanto metralhava os insetos esvoaçantes.

- Tá-tá-tá-tá-tá... Vera-Vera-Vera!...

Além da vala encoberta do perímetro do campo de aviação, havia um velho campo de batalha de 1937. Ali os chineses tinham feito uma das suas muitas tentativas fúteis de paralisar o avanço japonês para Xangai. Trincheiras arrebentadas formavam linhas em ziguezague, uma paliçada de terra desmoronada, ligada a um grupo de cemitérios construídos no passadiço de um canal fora de uso. Jim podia lembrar sua visita a Hungjao com os pais, em 1937, poucos dias após o combate. Grupos de europeus e americanos partiram de Xangai e estacionaram suas limusines em estradas laterais, cobertas de cartuchos disparados. As senhoras, de vestidos de seda e os maridos em ternos cinza, caminharam entre os escombros de uma guerra preparada para eles pela passagem de um esquadrão de demolição. Para Jim, o campo de batalha parecia mais com um perigoso cimo de depósito de lixo: caixas de munição e granadas de cabo estavam espalhadas pela margem da estrada, havia rifles descarregados empilhados como fósforos e peças de artilharia ainda amarradas a carcaças de cavalos. Os cintos de balas de metralhadoras caídos no mato pareciam peles de cobras venenosas. Em volta, os cadáveres de soldados chineses estendiam-se pela beira das estradas e flutuavam nos canais, amontoados em torno dos pilares das pontes. Nas trincheiras entre os cemitérios, centenas de soldados mortos, lado a lado, com as cabeças repousando na terra esburacada, como se tivessem adormecido juntos num profundo sonho de guerra.

Jim chegou ao fortim, um edifício de cimento cujas seteiras deixavam entrar uma luz fraca em seu mundo de umidade. Subiu até o telhado e caminhou pela parte superior, procurando seu avião entre os espinheiros. O aparelho estava a cerca de seis metros de distância, preso ao arame farpado enferrujado de uma velha trincheira. Sua cobertura de papel estava rasgada nas asas, mas o esqueleto de madeira continuava perfeito.

Ia dar um salto do fortim, quando percebeu que um rosto olhava para ele da trincheira. Um soldado japonês completamente armado, agachado junto ao muro arrebentado; seu rifle, a faixa e lençol estavam estendidos ao seu lado como que prontos para inspeção. Com no máximo dezoito anos, um rosto passivo e redondo, olhava para Jim sem surpresa pela aparição daquele pequeno europeu de calça de veludo azul e camisa de seda.

Os olhos de Jim percorreram a trincheira. Havia mais dois soldados japoneses sentados numa viga de madeira que surgia do chão, os rifles apoiados nos joelhos. A trincheira estava cheia de soldados armados. Cinqüenta metros adiante, um segundo pelotão estava acocorado sob o parapeito de uma casamata de terra, fumando e lendo suas cartas. Mais além via-se outros grupos de soldados, as cabeças pouco visíveis entre as urtigas e a cana-de-açúcar silvestre. Uma companhia completa de infantaria japonesa estava acampada naquele velho campo de batalha, como que se reequipando com os mortos de uma guerra anterior, fantasmas dos seus antigos camaradas surgidos do túmulo e aprovisionados com uniformes e rações novos. Fumavam seus cigarros, piscando na luz pouco habitual do sol, os rostos virados para os arranha-céus do centro de Xangai, cujos anúncios de neon brilhavam através dos campos macios.

Jim virou-se para a fuselagem do caça, esperando ver seu piloto na cabina. Um sargento japonês estava caminhando pelo mato alto, entre o fortim e o aparelho. Suas fortes pernas deixavam um rastro amarelo. Jogou fora a bagana do seu cigarro, inalando a última baforada. Apesar de o sargento não tomar conhecimento dele, Jim sabia que o homem estava resolvendo o que fazer com aquele garotinho.

- Jamie!... Estamos esperando... há uma surpresa para você!

Era o pai chamando-o. Ficou parado no meio do campo, porém podia ver as centenas de soldados japoneses nas trincheiras. Estava usando os óculos, mas havia jogado fora o tapa-olho e o colete de sua fantasia de pirata. Apesar de sem fôlego após ter corrido da casa do Dr. Lockwood, forçou-se a ficar imóvel, de forma a, pelo menos, não perturbar os japoneses. Os chineses, que choravam em momentos de tensão e sacudiam os braços, nunca compreendiam aquilo.

Não obstante, Jim ficou surpreso por aquele pequeno sinal de deferência parecer satisfazer o sargento. Sem um olhar a Jim, jogou o cigarro fora e pulou a vala. Arrancou o aparelho de madeira do arame farpado e atirou-o entre os espinheiros.

- Jamie, está na hora dos fogos... - Seu pai caminhava silenciosamente no capinzal. - Precisamos ir agora.

Jim subiu para o telhado do fortim.

- Meu avião está lá embaixo. Acho que posso pegá-lo.

Seu pai ficou observando o sargento caminhar pelo parapeito da trincheira. Jim percebeu que seu pai estava com dificuldade de falar. Seu rosto estava tão tenso e lívido como quando os líderes trabalhistas da fábrica de algodão tinham ameaçado matá-lo. Contudo, continuava pensando em alguma coisa.

- Ora, vamos deixá-lo para os soldados... que o acharem.

- Como papagaios?

- Isso mesmo.

- Ele não estava muito zangado.

- Parecia que estavam esperando que acontecesse alguma coisa.

- A próxima guerra?

- Acho que não.

De mãos dadas, atravessaram o campo de aviação. Nada se mexia, a não ser a ondulação incessante do capim, ensaiando para o que estava por acontecer. Quando chegaram ao hangar, o pai deu um forte abraço em Jim, quase machucando-o, como se o garoto estivesse perdido para ele para sempre. Não estava zangado com Jim e parecia contente por ter sido obrigado a visitar o velho aeródromo.

Jim, porém, sentia-se vagamente culpado e zangado consigo mesmo. Tinha perdido seu avião de balsa e metido o pai num encontro perigoso com o japonês. Europeus solitários que surgiam no caminho dos japoneses, em geral eram deixados mortos à beira da estrada.

Quando voltaram para a casa do Dr. Lockwood, os convidados já estavam indo embora. Passando pelas crianças e amahs, entravam apressadamente em seus carros e partiam em caravana para o Setor Internacional. Usando a calça da fantasia de Natal do seu Papai Noel e uma barba de algodão, o Dr. Lockwood acenou-lhes enquanto o Sr. Maxted bebia seu uísque ao lado da piscina vazia e os mágicos chineses subiam em suas escadas e se transformavam em pássaros imaginários.

Ainda se lamentando pela perda do avião, Jim sentou-se entre os pais na parte traseira do Packard. Estariam com medo que ele pudesse se meter em outra, se sentasse ao lado de Yang, na frente? Ele tinha conseguido estragar a festa do Dr. Lockwood e tornado improvável que pudesse visitar novamente o Aeródromo de Hungjao. Pensou no caça abatido, no qual tinha depositado tanta imaginação e no piloto morto, cuja presença tinha sentido na cabina enferrujada.

Apesar desses reveses, Jim ficou encantado quando sua mãe lhe disse que deviam abandonar a casa da Avenida Amherst durante alguns dias e se instalarem na suíte da companhia no Palace Hotel. Os exames finais do período na Cathedral School começariam no dia seguinte, com geometria e escritura sagrada. Uma vez que a Cathedral ficava apenas a poucos metros do hotel, ele teria muito tempo pela manhã para revisão. Jim era forte em escritura sagrada, especialmente agora que era ateu e sempre gostou de receber o tradicional elogio do Reverendo Matthews (“O primeiro e o maior pagão de todos é...”).

Jim esperou no banco da frente do Packard enquanto os pais faziam a mudança e suas malas eram colocadas num caminhão. Quando atravessaram os portões, olhou para o vulto imóvel do mendigo na sua esteira esfarrapada. Viu a marca dos pneus Firestone do Packard no pé esquerdo do mendigo. Folhas e pedaços de jornal cobriam sua cabeça e ele já estava começando a fazer parte do lixo informe do qual tinha surgido.

Jim sentiu pena do velho mendigo, mas por algum motivo só conseguiu pensar nas marcas do pneu no pé. Se eles estivessem usando o Studebaker do Sr. Maxted, as marcas seriam diferentes: o velho receberia a impressão da Companhia Goodyear...

Procurando evitar esses pensamentos, Jim ligou o rádio do carro. Ele sempre esperava essas voltas ao entardecer pelo centro de Xangai, aquela cidade vibrante e sombria, mais excitante que qualquer outra no mundo. Quando chegaram à Estrada do Poço Borbulhante, encostou o rosto no pára-brisa e olhou para as ruas cercadas de clubes noturnos e casas de jogo, cheias de moças de bar, de bandidos e ricos mendigos com seus guarda-costas. A quase dez mil quilômetros de distância, os americanos em Honolulu estavam dormindo ao amanhecer de domingo, mas ali, um dia avançado no tempo como em tudo, Xangai estava pronta a começar uma nova semana. Multidões de jogadores dirigiam-se para os estádios ácjai alai [2], dificultando o movimento na Estrada do Poço Borbulhante. Um carro blindado da polícia, com duas metralhadoras Thompson montadas numa torrinha de aço por cima do motorista, partiu na frente do Packard e esvaziou a rua. Um grupo de jovens chinesas, de roupas lantejouladas, acompanhava um caixão de criança enfeitado de flores de papel. De braços dados, atiraram-se contra a grade do radiador do Packard e passaram pela janela de Jim, batendo na vidraça com suas mãozinhas e gritando obscenidades. Centenas de mulheres eurasianas de bares, com casacos de peles até os tornozelos, estavam sentadas nas filas de jinriquixás na frente do Park Hotel, assoviando entre os dentes para os moradores que surgiam nas portas giratórias, enquanto seus cafetões discutiam com casais tchecos e poloneses de meia-idade, vestidos com roupas limpas e remendadas, que tentavam vender o resto de suas jóias. Perto, nas vitrinas da loja de departamentos Sun Sun, na Estrada de Nanquim, um grupo de judeus europeus estava lutando no meio da multidão que passava com um bando de rapazes alemães mais velhos, com as braçadeiras ostentando a suástica do Clube Graf Zeppelin. Expulsos pelas sereias da polícia, invadiram a entrada do Cathay Theatre, o maior cinema do mundo, onde uma multidão de balconistas e datilógrafas chinesas, mendigos e batedores de carteira tinham saído para a rua, para ver as pessoas chegarem para a sessão da noite. Tão logo saltaram de suas limusines, as mulheres deslizaram seus vestidos longos entre a guarda de honra de cinqüenta corcundas com roupas medievais. Três meses antes, quando os pais o tinham levado à estréia de O Corcunda de Notre Dame, os corcundas eram duzentos, recrutados pela gerência do cinema em todos os becos de Xangai. Como sempre, o espetáculo fora do cinema superava tudo o que era exibido na tela e Jim estava ansioso para voltar para as ruas da cidade, longe dos cine jornais e suas infindáveis demonstrações de guerra.

Depois de jantar, quando Jim se retirou para seu quarto no décimo andar do Palace Hotel, procurou não dormir. Prestou atenção ao ronco de um hidroavião japonês pousando no rio, na Base Aérea de Nantao. Pensou no caça destruído no Aeródromo de Hungjao e no piloto japonês, cujo assento tinha ocupado naquela tarde. Talvez a alma do aviador morto tivesse entrado nele e o japonês quisesse entrar na guerra ao lado dos ingleses? Jim sonhou com a próxima guerra, com um cine jornal no qual aparecesse com sua roupa de aviador no tombadilho de um silencioso porta-aviões, pronto a ocupar seu posto com aqueles homens solitários da nação insular do Mar da China, levado com eles através do Pacífico pelo espírito do vento divino.

 

O Ataque ao Petrel

Um campo de flores de papel flutuava na maré matutina, amontoadas em torno de pilastras do molhe manchadas de petróleo, vestindo-as com golas de cores vivas. Pouco antes do amanhecer, Jim sentou-se na janela do quarto no Palace Hotel. Tinha vestido o uniforme do colégio e estava pronto a iniciar uma hora de revisão antes do desjejum. Contudo, como sempre, achou difícil afastar os olhos do cais de Xangai. O cheiro de cabeças de peixe e feijão chiando em azeite de amendoim erguia-se das frigideiras dos vendedores do lado de fora do hotel. Juncos com olhos pintados nos cascos passavam velejando por barcos de ópio ancorados na praia de Pootung. Milhares de sampanas e balsas estavam estacionadas ao longo do Bund, uma cidade de cabanas flutuantes ainda ocultas pela escuridão. Porém, entre as chaminés das fábricas de Pootung, o primeiro raio de sol estava começando a se estender sobre o rio, iluminando os perfis regulares do USS Wake e do HMS Petrel.

As belonaves americana e inglesa estavam ancoradas no meio do rio, defronte das casas e hotéis do Bund. Jim ficou vendo uma lancha levar dois oficiais ingleses de volta ao Petrel, depois de se divertirem em terra. Tinha conhecido o comandante do Petrel, Capitão Polkinhorn, no Xangai Country Club, e todos os navios de guerra no rio lhe eram familiares. Mesmo na luz nacarada, reparou que o navio italiano Emílio Carlotta, que tinha atracado ao lado do Passeio Público no Bund, defronte do Consulado inglês, de maneira provocadora, tinha deixado o ancoradouro durante a noite. Seu lugar fora ocupado por uma canhoneira japonesa, uma nave baixa e usada, com canhões sujos e camuflagem completa na chaminé e no tombadilho. A ferrugem pingava das aberturas das âncoras em ambos os lados do casco. Os protetores de aço ainda estavam descidos sobre as aberturas da ponte e sacos de areia protegiam as coberturas da frente e da retaguarda das torres dos canhões. Olhando aquela potente nave, Jim ficou imaginando se teria sido atingida durante sua patrulha pelas gargantas do Yangtze.

Marinheiros e oficiais movimentavam-se em torno da ponte de comando e um sinaleiro enviava uma mensagem luminosa através do rio.

Cerca de três quilômetros rio acima, além da Base Aérea Naval de Nantao, havia um aglomerado de cargueiros afundados, cujos cascos os chineses tinham furado em 1937, numa tentativa de bloquear o rio. Os raios do sol brilhavam nos buracos de seus mastros de aço e chaminés e a maré subindo lavava seus conveses, inundando os salões. Após ter voltado na lancha da companhia, de uma visita feita à fábrica do pai, Jim sempre ansiava por ir a bordo dos cargueiros e explorar seus camarotes submersos, um mundo de viagens esquecidas, dominado por grutas de ferrugem.

Ficou observando a canhoneira japonesa no Passeio Público. A lâmpada piscava insistentemente na ponte. Estaria aquela fatigada plataforma de guerra a ponto de afundar em seu próprio ancoradouro? Apesar de Jim ter um profundo respeito pelos japoneses, suas naves eram sempre superadas pelas inglesas em Xangai. O cruzador Idzumo, ancorado ao lado do Consulado Japonês em Hongkew, a uns mil metros rio abaixo, parecia muito mais impressionante que o Wake e o Petrel. Na verdade, o Idzumo, capitânea da Frota Japonesa na China, fora construído na Inglaterra e serviu na Armada Real antes de ser vendido aos japoneses durante a Guerra Russo-Nipônica de 1905.

A luz avançou pelo rio, pegando as flores de papel que cobriam sua retaguarda como grinaldas atiradas pelos admiradores daqueles marinheiros. Todas as noites em Xangai, os chineses pobres demais para pagarem enterros de parentes atiravam seus corpos do cais de funerais em Nantao, enfeitando os caixões com flores de papel. Carregados pela maré, voltavam com a próxima para o cais de Xangai, com todos os refugos abandonados pela cidade. Prados de flores de papel deslizavam com a maré e reuniam-se em jardins flutuantes em miniatura em torno de velhos e velhas, jovens mães e criancinhas, cujos corpos inchados pareciam ter sido alimentados durante a noite pelo paciente Yangtze.

Jim não gostava daquela regata de cadáveres. No sol nascente, as pétalas de papel pareciam rolos de vísceras espalhadas em torno das vítimas de bombas terroristas na Estrada de Nanquim. Fixou sua atenção na canhoneira japonesa. Uma lancha tinha sido descida e estava se dirigindo para o USS Wake. Uma dúzia de fuzileiros japoneses estava sentada frente a frente, com os rifles erguidos feito remos. Dois oficiais da marinha em roupa de gala estavam na proa, um deles com um megafone na mão enluvada.

Meio confuso por aquela visita formal tão cedo, Jim trepou no parapeito da janela e encostou o rosto na vidraça. Dois escaleres partiram do Idzumo, cada um com cinqüenta fuzileiros. As três embarcações encontraram-se no meio do rio e desligaram os motores. Ficaram balançando entre as flores de papel e velhos fardos. Um junco a motor passou por eles, as gaiolas de bambu no tombadilho cheias de cães ladrando, em sua viagem para o mercado de carne de Hongkew. Um cule nu estava ao leme, bebendo uma garrafa de cerveja. Não fez nenhuma tentativa de alterar o curso quando o junco inundou a lancha da canhoneira. Ignorando o jorro d'agua, o oficial japonês chamou o Wake pelo megafone.

Rindo para si mesmo, Jim tamborilou a janela com as palmas das mãos. Nenhum dos oficiais americanos estava a bordo, como sabiam todos em Xangai. Dormiam profundamente em seus quartos no Park Hotel. Confiante, um tripulante chinês sonolento, de calção e colete, surgiu do castelo de proa. Moveu a cabeça para a embarcação japonesa que emparelhava e começou a lustrar o parapeito de metal enquanto os fuzileiros subiam ao passadiço e dirigiam-se rapidamente ao tombadilho. Carregando rifles com as baionetas caladas, percorreram a extensão da embarcação, procurando algum membro americano da tripulação.

Seguida pelo segundo transporte, a lancha aproximou-se do HMS Petrel. Houve um breve diálogo com o jovem oficial inglês na ponte, que despediu os japoneses com o gesto de mão que Jim tinha visto seus pais fazerem para recusar comprar as cabeças de Java e os elefantes esculpidos dos vendedores em suas canoas, que rodeavam os navios turísticos na baía de Cingapura.

Estariam os japoneses querendo vender alguma coisa aos ingleses e americanos? Jim sabia que estavam perdendo tempo. Encostado na janela, de braços estendidos, procurou lembrar os sinais que tinha aprendido, contra a vontade, nos lobinhos. O oficial japonês na lancha estava sinalizando com uma luz para a canhoneira junto ao Passeio Público. Enquanto a luz saltitava pela água, Jim notou que centenas de chineses estavam desfilando diante do Consulado Britânico. Nuvens de fumaça e vapor saíam da chaminé da canhoneira, como se a nave estivesse para explodir.

O cano do canhão da torrinha dianteira expeliu um único tiro, que chamuscou a ponte e o tombadilho. Seiscentos metros além, houve uma explosão correspondente, quando a bala atingiu a superestrutura do Petrel. A onda de pressão da detonação atingiu os hotéis do Bund e o vidro grosso bateu no nariz de Jim. Quando a canhoneira deu o segundo tiro com a torrinha da retaguarda, ele pulou para a cama e começou a chorar, depois parou e agachou-se detrás da cabeceira de mogno.

Do seu ancoradouro ao lado do Consulado Japonês, o cruzador Idzumo também tinha começado a atirar. Seus canhões relampejavam entre a fumaça que saía das suas três chaminés e ondulava junto da água como uma serpente de plumas pretas. O Petrel já estava oculto por uma mortalha de vapor, sob a qual uma série de violentos incêndios se refletiam na água. Dois bombardeiros japoneses voavam sobre o Bund, tão baixo que Jim podia ver os pilotos nas suas cabinas. Multidões de chineses espalhavam-se pelos trilhos dos bondes, alguns em direção ao cais, outros abrigando-se nos degraus dos hotéis.

- Jamie! Que está fazendo? - ainda de pijama, seu pai surgiu descalço no quarto. Olhou vacilante os móveis, como se fosse incapaz de reconhecer aquela peça de sua própria suíte. - Jamie, afaste-se da janela! Vista-se e faça o que sua mãe mandar. Vamos embora em três minutos.

Pareceu não perceber que Jim estava usando o uniforme e o casaco do colégio. Ao protegerem os olhos do tiro direto, ouviram uma tremenda explosão no centro do rio. Como foguetes numa exibição de fogos de artifício, pedaços incandescentes do Petrel pairaram no ar e depois caíram na água. Jim sentiu-se atordoado pelo barulho e pela fumaça. Havia gente atropelando-se nos corredores do hotel, uma inglesa idosa berrava no buraco do elevador. Jim, sentado na cama, ficou olhando a plataforma em chamas no meio do rio. A cada segundo via-se um forte brilhar de luz vindo do seu centro. Os marujos britânicos do Petrel estavam dando o troco. Tinham equipado um dos canhões e estavam atirando de volta no Idzumo. Porém Jim os olhava tristemente. Concluiu que ele provavelmente tinha começado a guerra com seus confusos sinais semafóricos da janela, que os oficiais japoneses na lancha teriam mal interpretado. Percebeu agora que devia ter ficado nos lobinhos. Talvez o Reverendo Matthews o chicoteasse diante de toda a escola por ser espião.

- Jamie! Deite-se no chão!

A mãe ajoelhou-se na porta de comunicação. Numa pausa entre os tiros, ela o afastou das janelas que vibravam, sujeitando-o contra o tapete.

- Eu vou à escola? - perguntou o garoto. - É o exame da sagrada escritura.

- Não, Jamie. Hoje vai ser feriado escolar. Vamos ver se Yang consegue nos levar para casa.

Jim ficou impressionado com a calma da mãe. Resolveu não contar-lhe que ele tinha começado a guerra. Tão logo os pais se vestiram, trataram de deixar o hotel. Uma multidão de europeus e americanos cercava os elevadores. Recusando-se a usar as escadas, batiam nas grades de metal e gritavam pelos poços dos elevadores. Levavam maletas, usavam chapéus e sobretudos, como que decididos a pegar o primeiro vapor para Hong Kong. Sua mãe juntou-se a eles, mas seu pai pegou-a pelo braço e abriu caminho para a escada.

Com os joelhos trêmulos pelo esforço, Jim chegou ao vestíbulo antes deles. Chineses da cozinha, hóspedes dos andares inferiores e empregados russos brancos agachavam-se detrás dos móveis de couro e dos vasos de plantas, porém o pai de Jim passou por eles sem se deter, na direção das portas giratórias.

O fogo havia cessado. Multidões de chineses percorriam o Bund entre os bondes parados e os carros estacionados: velhas amahs coxeando em suas calças pretas, cules puxando jinriquixás vazios, mendigos e tripulantes de sampanas, garçons uniformizados dos hotéis. Uma mortalha de fumaça cinzenta, extensa como a neblina cobrindo uma cidade, pairava sobre o rio, dela emergindo o topo dos mastros do Idzumo e do Wake. No Passeio Público, continuavam incandescentes nuvens fuliginosas expelidas pela chaminé da canhoneira japonesa.

O Petrel estava afundando em seu ancoradouro. Saía fumaça da sua popa e do centro e Jim viu a fila de marinheiros na proa, esperando para ocupar seus lugares nos escaleres do navio. Um tanque japonês movia-se pelo Bund, as lagartas arrancando faíscas dos trilhos dos bondes. Desviou-se desajeitadamente de um bonde abandonado e esmagou um jinriquixás contra um poste telegráfico. Surgindo dos escombros, uma roda empenada atravessou a estrada. Emparelhou com o oficial japonês que comandava as tropas de assalto, a espada erguida como se fosse acutilar a roda a sua frente. Dois aviões de combate percorreram o cais, o deslocamento de ar provocado por seus motores desmantelando as cobertas de bambu das sampanas e revelando centenas de chineses escondidos. Um batalhão de fuzileiros japoneses avançou pelo Bund, parecendo um exército teatral entre as árvores ornamentais do Passeio Público. Um pelotão de baionetas caladas subiu correndo os degraus do Consulado Britânico, comandado por um oficial com uma pistola Mauser.

- Lá está o carro... precisaremos correr!

Segurando as mãos de Jim e sua mulher, o pai empurrou-os para a rua. Jim foi imediatamente atirado ao chão por um cule que passava. Ficou atordoado entre os pés ressonantes, esperando que o chinês de peito nu voltasse para se desculpar. Depois levantou-se, tirou a poeira do boné e do casaco e seguiu os pais para o carro estacionado defronte do Clube Xangai. Um grupo de chinesas exaustas estava sentado nos degraus, pondo em ordem suas bolsas e sufocando-se com a fumaça do óleo diesel, que deslizava pelo rio, vinda do casco afundado do Petrel.

Enquanto percorriam o Bund, o tanque japonês tinha chegado ao Palace Hotel. Em torno dele, um grupo variável de gente fugindo, mensageiros chineses, com seus uniformes americanos enfeitados, garçons com túnicas brancas e os hóspedes europeus segurando seus chapéus e maletas. Dois motociclistas japoneses, cada um com um soldado armado no side-car protegido, abriam caminho para o tanque. De pé em seus pedais, forçavam a passagem entre os jinriquixás, os triciclos, as carroças puxadas a cavalo e grupos de cules cambaleando sob fardos de algodão em rama, pendentes de cangas em seus ombros.

Um considerável engarrafamento bloqueava o Bund. Mais uma vez o atravancamento de Xangai dominava seus invasores. Talvez a guerra tivesse acabado? Pela janela de trás do Packard, também metido no engarrafamento, Jim viu um suboficial japonês gritando com os chineses em volta. Um cule morto jazia a seus pés, com a cabeça sangrando. O tanque estava emaranhado no trânsito de veículos, seu caminho bloqueado por um Lincoln Zephyr branco. Duas chinesas vestindo casacos de pele, dançarinas do clube noturno instalado no alto do edifício Socony, lutavam com os comandos, rindo entre suas mãozinhas cobertas de anéis.

- Espere aqui! - O pai de Jim abriu a porta e desceu do carro. - Jamie, fique com sua mãe!

Os fuzileiros que tinham capturado o USS Wake estavam atirando de metralhadora. Carabineiros na ponte atiravam nos marinheiros ingleses que nadavam do Petrel para terra. O escaler do navio, cheio de homens feridos, estava afundando nas águas rasas que cobriam os baixios lodosos sob o cais da Concessão Francesa. Os marinheiros afundavam até as coxas na lama escura, os braços escorrendo sangue. Um suboficial ferido caiu na água e foi arrastado para as pilastras escuras do Bund. Agarrando-se uns aos outros, os soldados ficaram abandonados na lama, enquanto a maré enchente ondulava à volta deles. As primeiras flores de enterro já os tinham alcançado e começavam a se aglomerar em seus ombros.

Jim ficou vendo seu pai abrir caminho entre os cules do sampana que enchiam o atracadouro. Um grupo de ingleses tinha chegado do Clube Xangai e estava tirando os sobretudos e casacos. De coletes e em mangas de camisa, pularam do atracadouro para a lama embaixo, os braços agitando-se ao mergulharem até as coxas. Os fuzileiros japoneses no USS Wake continuaram a atirar no escaler, mas dois ingleses tinham agarrado um marujo ferido. Pegaram-no pelos braços e o puxaram para a parte lodosa. O pai de Jim passou por eles, com os óculos respingados de água, afastando o lodo escuro do seu caminho. A maré tinha atingido seu peito quando conseguiu agarrar o suboficial ferido vagando entre os pilares do ancoradouro. Puxou-o para águas rasas, arrastando-o por um braço e ajoelhou-se exausto ao seu lado na lama imunda. Outros salvadores tinham chegado ao escaler afundado. Tiraram o último dos marujos feridos e caíram na água. Começaram a nadar e a se arrastar para a margem, ajudados na lama por um segundo grupo de ingleses.

A nuvem de petróleo em chamas do Petrel atravessou o Bund e envolveu o trânsito engarrafado e os japoneses que avançavam. Assim que Jim ergueu sua vidraça, o Packard foi jogado para a frente e depois violentamente sacudido de lado. O vidro do pára-brisa partiu-se e caiu sobre os assentos. Jim ficou no chão da cabine dos passageiros e a maçaneta da porta bateu na cabeça de sua mãe.

- Jamie, saia do carro... Jamie!

Tonta, ela abriu a porta e saltou para a estrada, pegando a bolsa no assento balançante. Detrás deles, o tanque japonês ia forçando a passagem pelo Lincoln Zephyr abandonado pelas dançarinas chinesas. A lagarta de metal esmagou o pára-lama traseiro e arrastou o carro pesado sobre a parte de trás do Packard.

- Levante, Jamie... estamos indo para casa...

Com a mão no rosto machucado, a mãe estava empurrando a porta empenada. O tanque parou antes de um novo movimento de passagem pelo Lincoln. Fuzileiros japoneses mexiam-se entre os carros e os jinriquixás, arremetendo com suas baionetas sobre a multidão. Jim subiu para o banco da frente e abriu a porta do motorista. Pulou para a estrada e meteu-se sob os varais de um jinriquixá carregado de sacos de arroz. O tanque avançou, expelindo fumaça pelo respiradouro do motor. Jim viu a mãe ser empurrada na multidão de chineses e europeus que os fuzileiros estavam forçando através do Bund. Um segundo tanque o seguia e depois uma fileira de caminhões camuflados cheios de soldados japoneses.

Um derradeiro tiro de carabina saiu do USS Wake. O último dos marinheiros feridos tinha sido empurrado para o lamaçal sob o Bund. Petróleo escorrendo do Petrel afundado estendia-se pelo rio, acalmando aquele campo de batalha. Os civis britânicos que tinham ajudado a resgatar os marinheiros estavam sentados, em mangas de camisa sujas de petróleo, ao lado dos homens feridos. O pai de Jim estava arrastando o suboficial ferido para a extensão lodosa. Exausto, perdeu as forças e desmaiou numa corrente rasa que passava pelo banco oleoso, vinda de um esgoto sob o cais.

Os soldados japoneses no Bund estavam orientando a multidão para longe do cais, obrigando os chineses e europeus a descer dos seus carros e jinriquixás. A mãe de Jim tinha desaparecido, separada dele pela fila de caminhões militares. Um marinheiro britânico ferido, um louro de não mais de dezoito anos, subiu os degraus da plataforma, as mãos estendidas como sangrentas raquetes de pingue-pongue.

Endireitando o boné do colégio, Jim passou correndo por ele e pelos cules da sampana que estavam olhando. Desceu os degraus e pulou da plataforma para a superfície esponjosa do lamaçal. Afundando até os joelhos, andou pelo solo lamacento em direção ao pai.

- Nós os tiramos... você é um bom rapaz, Jamie.

Seu pai estava sentado na corrente com o corpo do suboficial ao seu lado. Tinha perdido os óculos e um dos sapatos e a calça da sua roupa de trabalho estava negra de petróleo, porém ainda usava o colarinho branco e a gravata. Tinha numa das mãos uma luva de seda amarela, igual às que vira sua mãe usar nas recepções formais na Embaixada Britânica. Olhando-a, Jim percebeu que era a pele inteira de uma das mãos do suboficial, cuja carne tinha sido cozinhada inteiramente numa fornalha.

- Ela está indo...

Seu pai bateu a luva na água como se fosse a de um pedinte enfadonho. Uma explosão estrangulada e surda do casco soçobrado do Petrel soou no outro lado do rio. Houve um violento fluxo de vapor dos tombadilhos rachados e a canhoneira deslizou para o fundo. Uma nuvem de fumaça forte percorreu a água, como se estivesse sendo perseguida pela embarcação desaparecida.

O pai de Jim estava deitado na lama. Jim agachou-se a seu lado. O barulho dos motores dos tanques no Bund, as ordens gritadas pelos oficiais e o ruído dos aviões pareciam vir de muito longe. Os primeiros fragmentos do Petrel estavam chegando até eles, coletes salva-vidas, lascas de pranchas, um pedaço de suporte de tenda, com suas cordas pendentes, que lembravam uma enorme água-viva, arrancada do fundo pela canhoneira afundada.

Um relâmpago tremulou no cais como um silencioso tiro de canhão. Jim deitou-se ao lado do pai. Atirando acima deles, no Bund, havia centenas de soldados japoneses. Suas baionetas formavam uma fortificação de lâminas que refletiam o sol.

 

Fuga do Hospital

- Mitsubishi... Zero-Sen... ah... Nakajima... ah...

Jim estava deitado num catre na enfermaria infantil e ouvia o jovem soldado japonês designar os aparelhos que voavam sobre o hospital. Os céus de Xangai estavam coalhados de aeroplanos. Apesar do soldado saber apenas o nome de dois tipos de avião, achava difícil prosseguir diante da infindável atividade aérea.

Durante três dias, Jim repousou calmamente na enfermaria do último andar do Hospital Santa Maria, na Concessão Francesa, só incomodado pelo fumar escondido do jovem soldado e sua identificação de aviões. Sozinho na enfermaria, pensou na mãe e no pai e esperou que eles fossem logo visitá-lo. Prestou atenção à partida dos hidroaviões da Base Aérea Naval de Nantao.

- ... ah... ah...

O soldado sacudiu a cabeça, novamente perplexo, e procurou no chão imaculado uma ponta de cigarro. No corredor do andar de baixo, Jim podia ouvir as missionárias francesas discutirem com os soldados japoneses que agora ocupavam aquela ala do hospital. Apesar do colchão duro, das paredes caiadas com seus ícones desagradáveis sobre cada cama - o menino Jesus crucificado, cercado de discípulos chineses - e do horrível cheiro de produtos químicos (uma coisa que tinha a ver, conjeturou, com intensos sentimentos religiosos), Jim achava difícil acreditar que a guerra tinha, finalmente, começado. Paredes de estranheza separavam tudo, cada rosto que o olhava era estranho.

Lembrou a festa do Dr. Lockwood cm Hungjao e os mágicos chineses que se transformavam em pássaros. Mas o bombardeio do Petrel, o tanque que esmagou o Packard, os enormes canhões do Idzumo, tudo fazia parte do reino do faz-de-conta. Quase esperou que Yang entrasse na enfermaria e lhe contasse que eles eram parte de um épico technicolor sendo filmado nos estúdios cinematográficos de Xangai.

O que era real, sem dúvida nenhuma, era o lamaçal do qual seu pai tinha ajudado a retirar os marinheiros feridos e onde ficaram durante seis horas ao lado do suboficial morto. Tinha sido como se os japoneses tivessem ficado tão surpresos pela velocidade do seu ataque que tivessem sido obrigados a esperar antes de terem completamente compreendido toda a extensão da sua vitória. Poucas horas depois do ataque a Pearl Harbor, os exércitos japoneses que cercavam Xangai tinham ocupado o Setor Internacional. Os fuzileiros que capturaram o USS Wake e ocuparam o Bund comemoraram com um desfile diante dos hotéis e casas bancárias.

Enquanto isso, os sobreviventes feridos do Petrel e seus salvadores civis britânicos continuaram no lamaçal ao lado do esgoto. Um destacamento armado da polícia militar desceu e caminhou entre eles. O Capitão Polkinhorn, ferido na cabeça, e seu imediato tinham sido levados, porém os outros tinham sido deixados ao sol. Um oficial japonês em uniforme de parada, a bainha do sabre na mão enluvada, andou entre os soldados feridos e exaustos, examinando-os um a um. Olhou para Jim, sentado ao lado do pai esgotado de uniforme escolar e boné, evidentemente confuso pelo distintivo floreado da Cathedral School e achou que o menino era um grumete especial da Armada Real.

Uma hora mais tarde, o Capitão Polkinhorn foi levado numa lancha até o local do afundamento do Petrel. Antes de abandonar o navio, o capitão pôde destruir os códigos, e nos dias seguintes os japoneses enviaram vários emissários aos destroços numa tentativa infrutífera de recuperar as caixas de códigos.

Logo depois das dez horas, os japoneses reabriram o Bund e milhares de preocupados chineses e europeus neutros espalharam-se ao longo do cais. Olharam a tripulação ferida do Petrel e permaneceram silenciosos quando o Sol Nascente foi, com cerimônia, içado no mastro do USS Wake. Tremendo ao lado do pai no frio sol de dezembro, Jim examinou os olhos inexpressivos dos chineses amontoados no cais. Estava testemunhando a total humilhação das forças Aliadas pelo império do Japão, uma lição objetiva a todos os que se recusavam a entrar na Esfera da Co-Prosperidade. Felizmente, poucas horas depois, um grupo de funcionários da França de Vichy e da Alemanha abriram caminho na multidão. Protestaram voluvelmente por causa do tratamento dado aos feridos britânicos. Levados por uma de suas abruptas maneiras de mudar de opinião, os japoneses afrouxaram e os prisioneiros foram transportados para o Hospital Santa Maria.

Uma vez lá, o único pensamento de Jim era sair do hospital e voltar para junto da mãe na Avenida Amherst. O médico francês que passou mercúrio-cromo em seus joelhos e as irmãs que o banharam viram imediatamente que Jim era estudante inglês e tentaram mandá-lo embora. Os japoneses, contudo, tinham ocupado uma ala inteira do hospital, retirado os pacientes chineses e guarnecido cada andar. Um jovem soldado foi postado na parte externa da enfermaria infantil no último andar e passava o tempo pedindo cigarros às freiras e dizendo em voz alta os nomes das aeronaves que passavam.

Uma freira chinesa disse a Jim que seu pai estava com outros civis numa enfermaria embaixo, ainda se recuperando dos efeitos do esforço cardíaco a que foi submetido, mas que estaria em condições de ir embora dentro de alguns dias. Nesse ínterim, por motivos que só ele sabia, o Alto Comando Japonês começou a elogiar a bravura do Capitão Polkinhorn e seus homens. No segundo dia, o comandante do Id-zumo enviou um grupo de oficiais fardados ao hospital, que prestou homenagem aos marinheiros feridos na melhor tradição do bushido [3], curvando-se diante de cada um. O jornal Shanghai Times, de língua inglesa, pertencente a um inglês mas, havia muito, simpático aos japoneses, publicou uma fotografia do Petrel na primeira página e um artigo exaltando a coragem da sua tripulação. A manchete principal descrevia o ataque japonês a Pearl Harbor e o bombardeio do Campo Clark em Manila. Desenhos fornecidos por uma agência neutra mostravam cenas apocalípticas de fumo subindo dos navios de guerra americanos afundados.

Agora que os japoneses tinham ganho a guerra, resmungou Jim, talvez a vida em Xangai voltasse ao normal. Quando o jovem soldado lhe mostrou o jornal, ele examinou cuidadosamente as fotografias dos caças-bombardeiros decolando dos porta-aviões japoneses, cenas que ele parecia recordar dos seus próprios sonhos no quarto do Palace Hotel, na véspera da guerra.

Descansando na cama ao lado da sua, o soldado apontou para o avião ávido para impressionar Jim com aquele surpreendente feito de armas.

- ... ah... ah...

- Nakajima - disse Jim. - Nakajima Hayabusa.

- Nakajima?...

O soldado deu um suspiro profundo, como se o tema da aviação militar estivesse muito além do alcance daquele inglesinho. Na verdade, Jim conhecia a maior parte das aeronaves japonesas. Cinejornais britânicos da Guerra Sino-Japonesa zombavam abertamente dos aviões nipônicos e dos seus pilotos, porém o pai de Jim e o Sr. Maxted sempre falavam deles com respeito.

Jim estava imaginando como poderia ir ver seu pai, quando o cabo de serviço berrou uma ordem pelo vão da escada. O jovem praça ficou apavorado por aquele pequeno e desagradável cabo, evidentemente o posto mais importante no exército japonês. Atirou fora a ponta do cigarro, pegou a carabina e saiu correndo da enfermaria, fazendo um gesto de advertência a Jim.

Contente por ficar só, Jim imediatamente saltou da cama. Viu pela janela um grupo de órfãos chineses convalescentes, na sacada da ala ao lado. Em suas camisolas européias - como a de Jim, doadas por uma casa de caridade francesa local - passavam o dia inteiro olhando para ele. Uma escada de incêndio de ferro ligava as duas alas, bloqueadas por montes de sacos de areia, amontoados contra as janelas, em 1937, para protegê-las contra as balas perdidas atiradas através do rio.

Descalço, Jim atravessou a enfermaria até a porta dos fundos. Uma passagem estreita aparecia entre os sacos de areia e a areia solta estava coberta de centenas de pontas de cigarros jogadas pelos médicos franceses entediados. Caminhando com cuidado entre pedaços de vidros quebrados, começou a andar pela passagem de incêndio. Uma escada de metal levava à ala oposta, ligada por uma ponte enferrujada à enfermaria abaixo da sua.

Jim desceu depressa os degraus e atravessou a ponte. Em algum lugar daquele pavimento estavam seu pai e os sobreviventes do Petrel. As janelas das enfermarias dando para a passagem tinham sido pintadas com piche de blackout. Observado pelos olhos escancarados dos órfãos, prosseguiu pelo passadiço em torno da ala. A porta traseira que dava para a enfermaria estava aferrolhada, mas assim que puxou o ferrolho as crianças chinesas aninharam-se no chão do balcão. Um soldado japonês armado apareceu no telhado gritando para baixo, no vão entre as alas. Soldados de baionetas caladas atravessaram o pátio do hospital correndo e uma motocicleta com side-car armado apareceu na entrada. Jim ouviu botas e coronhas de carabinas soando nos degraus de pedra e a voz de uma freira francesa ergueu-se protestando.

O menino agachou-se entre os sacos de areia do lado de fora da porta trancada. Havia soldados caminhando pelo passadiço da enfermaria das crianças e a areia começou a cair pelas grades enferrujadas. Uma buzina soou na Avenida Foch e Jim ficou convencido de que todas as forças japonesas de ocupação em Xangai estavam à procura dele.

Um ferrolho estalou e a porta abriu-se para a enfermaria escura. No breve clarão do sol, Jim viu a peça cavernosa cheia de homens enfaixados, alguns no chão, entre as camas, e as enfermeiras sendo afastadas pelos japoneses armados de carabinas e padiolas. À medida que as faces lívidas dos jovens marinheiros britânicos viravam-se para o sol, um fedor de doença e ferimentos surgiu da sala escura e envolveu Jim.

O cabo japonês olhou o garoto, agachado, de pijama, sobre as pontas de cigarros. Bateu a porta e Jim ouviu-o gritar ao mesmo tempo em que atacava um dos soldados japoneses a socos.

Uma hora mais tarde tinham ido todos embora, deixando Jim sozinho na enfermaria infantil. Ao som das buzinas da Avenida Foch, observou um caminhão militar virar para o recinto do hospital. A tripulação do Petrel e os oito civis ingleses que tinham ajudado a salvá-los, estavam amontoados no vão da escada e enchiam o caminhão. Homens feridos, em maças, jaziam entre as pernas de outros, mal podendo sentar-se.

Jim não viu o pai, porém a irmã francesa disse-lhe que ele tinha andado até o caminhão que os levaria à prisão militar em Hongkew.

- Esta manhã um dos seus marujos fugiu. Foi muito ruim para nós.

A irmã encarou Jim sob o olhar desaprovador do cabo japonês. Ela estava zangada com ele, naquela nova maneira que ele tinha notado nas últimas semanas, não por alguma coisa que ele tivesse feito mas por causa da sua incapacidade de transformar as circunstâncias em que ele mesmo se encontrava.

- Você mora na Avenida Amherst? Precisa voltar para casa. - A irmã fez um gesto de cabeça para uma freira chinesa, que estava pondo lençóis recém-lavados na cama de Jim. Percebeu que elas estavam ansiosas por se verem livres dele. - Sua mãe virá procurá-lo.

Jim vestiu-se, deu o nó na gravata e cuidadosamente alisou o boné do colégio. Quis agradecer à irmã, porém ela já tinha saído para cuidar dos seus órfãos.

 

O Jovem com a Faca

As guerras sempre animavam Xangai, aceleravam a pulsação das suas ruas congestionadas. Mesmo os cadáveres em suas sarjetas pareciam vivos. Multidões de camponesas ocupavam o calçamento da Avenida Foch; fora do Círculo Desportivo Francês, os vendedores trancavam suas rodas quando apertavam suas carroças umas contra as outras, filas de triciclos e jinriquixás, lado a lado, entalados nos carros que prosseguiam sob um contínuo explodir de buzinas. Jovens bandidos chineses, em vistosas roupas americanas, postavam-se nas esquinas das ruas gritando de maneira esquisita uns para os outros. Nos triciclos na porta do Hotel Regency, mulheres de casacos de peles, com os guarda-costas ao lado, como deslumbrantes senhoras esperando para serem levadas a passear. A cidade toda tinha saído para as ruas, como se a população estivesse comemorando a ocupação do Setor Internacional, sua retirada do domínio de americanos e europeus por outro poder asiático.

Contudo, quando Jim chegou à esquina da Avenida Pétain com a Haig, um sargento da polícia britânica, auxiliado por dois sikhs da força policial de Xangai, ainda estavam dirigindo o trânsito de seus pedestais acima da multidão, observados por um único soldado japonês parado atrás deles. A infantaria japonesa armada mantinha-se como visitante nos caminhões camuflados que percorriam as ruas. Um grupo de oficiais estava parado fora do Radium Institute, calçando as luvas. Pregados sobre os da Coca Cola e da Caltex, havia cartazes recentes de Wang Ching-wei, líder renegado do regime fantoche. Uma coluna de soldados chineses passou por Jim na Avenida Pétain, gritando palavras de ordem no ar barulhento. Continuaram marchando desajeitadamente, marcando o compasso diante da fachada barroca do Del Monte Casino e depois passaram acelerados pelo estádio de corrida de galgos, um exército cule de uniforme laranja-claro e alpargatas de modelo americano.

Fora da estação de bondes na Avenida Haig, as centenas de passageiros ficaram subitamente silenciosas ao ver uma decapitação pública. Os corpos de um homem e uma mulher, com roupas acolchoadas de camponeses, talvez batedores de carteira ou espiões do Kuomintang, jaziam na plataforma de madeira. Os chineses de serviço limpavam as botas, enquanto o sangue corria nas ranhuras dos trilhos de aço. Um bonde lotado aproximou-se, sua sineta obrigando o grupo de execução a se separar. Ficou tocando a sineta, com a haste de contato sibilando e jogando fagulhas do fio de eletricidade superior, as rodas dianteiras com uma umidade vermelha como que pintadas para o desfile anual do sindicato.

Normalmente, Jim teria parado para observar a multidão. A caminho de casa, na volta da escola, Yang freqüentemente passava pela Cidade Velha. Os estrangulamentos públicos eram realizados num pequeno estádio com um chão de madeira lavado e fileiras de bancos circulares em torno dos postes de teca de execução, que sempre atraíam uma audiência atenta. Os chineses gostavam do espetáculo da morte, pensava Jim, como uma forma de lembrar como sua vida era precária. Gostavam de ser cruéis pelo mesmo motivo, para se lembrarem da vaidade de pensarem que o mundo era alguma coisa mais.

Jim ficou observando os cules e camponesas olhando para os corpos decapitados. A chegada de bondes já os estava afastando, submergindo aquela pequena morte. Afastou-se tropeçando num braseiro de carvão no qual um vendedor de rua estava fritando pedaços de cobras. Gotas de gordura caíram no recipiente de madeira onde uma única cobra nadava, sacudindo-se violentamente quando pulou na gordura sibilante. O vendedor com sua concha quente deu um bote em direção a Jim, tentando atingir sua cabeça, porém ele deslizou entre os jinriquixás estacionados. Correu ao longo dos trilhos sujos de sangue para a entrada da estação.

Forçou passagem entre os passageiros que esperavam e apertou-se num banco de cimento com um grupo de camponesas, carregando galinhas em cestos de vime. Os corpos das mulheres recendiam a suor e fadiga, porém Jim estava cansado demais para se mexer. Tinha andado quase quatro quilômetros pelas ruas atulhadas. Sabia que estava sendo seguido por um jovem chinês, provavelmente um catador de fregueses de um triciclo ou um espião das dezenas de milhares de bandos de assaltantes. Um jovem alto, com cara de caveira, cabelos pretos gordurosos e jaqueta de couro, tinha reparado em Jim perto do estádio. Seqüestros eram comuns em Xangai: antes que seus pais aprendessem a confiar em Yang, insistiam para que Jim fosse sempre ao colégio acompanhado pela governanta. Ele imaginou que o jovem estivesse interessado em sua jaqueta e sapatos de couro, seu relógio de aviador e a caneta-tinteiro americana que aparecia no bolso do peito.

O rapaz caminhou entre a multidão e dirigiu-se a Jim, com as mãos amarelas iguais a ferrões.

- Americano?

- Inglês. Estou esperando meu motorista.

- Inglês... Venha comigo.

- Não... ele está ali.

O rapaz estendeu o braço, blasfemando em chinês, e agarrou o pulso de Jim. Seus dedos apalparam a pulseira de metal, procurando abri-la. As camponesas o ignoraram, as galinhas meio adormecidas em seus colos. Jim empurrou a mão do rapaz e sentiu os dedos fechando-se em seu antebraço. Dentro da jaqueta de couro, o rapaz tinha uma faca e estava a ponto de decepar a mão de Jim junto ao pulso.

Jim puxou o braço com violência. Antes de o jovem poder agarrá-lo novamente, Jim atirou-lhe a cesta de vime que estava nos joelhos da mulher à sua direita. O rapaz caiu de costas, batendo com os calcanhares na ave que cacarejava. A mulher ficou em pé e começou a gritar com Jim. Ele a ignorou e livrou-se da faca. O rapaz seguiu-o quando Jim correu entre as filas de passageiros do bonde, procurando mostrar-lhes seu punho arranhado.

A cem metros da estação, Jim atingiu a Avenida Joffre. Descansou na porta de entrada trancada do Nanking Theatre, onde E o Vento Levou tinha sido levado no ano anterior numa versão chinesa ilegal. Os rostos parcialmente desfeitos de Clark Gable e Vivien Leigh erguiam-se em sua armação, sobre uma réplica quase em tamanho natural da incendiada Atlanta. Carpinteiros chineses serrando os painéis da fumaça pintada, que se erguia no céu de Xangai, que mal se distinguia das fogueiras ainda subindo dos edifícios da Cidade Velha, onde as tropas irregulares do Kuomintang tinham resistido à invasão japonesa.

O rapaz com a faca continuava atrás dele, pulando e desviando-se entre a multidão, com suas alpargatas baratas. No centro da Avenida Joffre ficava o posto de controle da polícia, cercado de sacos de areia, marcando o perímetro ocidental da Concessão Francesa. Jim sabia que nem a polícia de Vichy, nem os soldados japoneses, fariam alguma coisa para ajudá-lo. Eles estavam olhando um monomotor bombardeiro que voava baixo sobre a pista de corridas.

Assim que a sombra do avião cruzou a estrada, Jim sentiu que o rapaz chinês arrancou seu boné e pegou seus ombros. Jim libertou-se e correu pela rua apinhada na direção do posto de controle, zigue-zagueando entre os triciclos e gritando:

- Nakajima!... Nakajima!...

Um ajudante chinês, com o uniforme de Vichy, tentou bater-lhe com seu bastão, porém um dos sentinelas japoneses parou para dar uma olhada em Jim. Sua atenção foi despertada pelos ideogramas japoneses na etiqueta de metal que Jim havia arrancado do caça abatido no Aeródromo de Hunjao e que, agora, exibia diante dele. Mal tolerando aquele garoto, continuou a patrulhar, afastando-o com a extremidade da sua carabina.

- Nakajima!...

Jim misturou-se à multidão de pedestres que andava pelo posto de controle. Como ele imaginou, seu perseguidor tinha desaparecido entre os mendigos e cules de jinriquixás desocupados no lado francês da cerca de arame farpado. Mais uma vez Jim percebeu que os japoneses, oficialmente seus inimigos, eram sua única proteção em Xangai.

Afagando seu braço machucado e furioso por ter perdido o boné do colégio, Jim chegou finalmente à Avenida Amherst. Puxou a manga da camisa para cobrir as pisaduras visíveis em seu pulso. Sua mãe vivia constantemente preocupada com os perigos e a violência das ruas de Xangai e ignorava inteiramente seus longos passeios de bicicleta pela cidade.

A Avenida Amherst estava vazia. A multidão de mendigos e refugiados tinha desaparecido. Mesmo o velho com sua lata de Craven A tinha sumido. Jim subiu a aléia, olhando para a frente na esperança de ver sua mãe, sentada no sofá do quarto, conversando sobre o Natal. Ele já havia se convencido de que em sua casa a guerra nunca era comentada.

Uma tira comprida de papel, com dizeres em japonês, tinha sido pregada na porta de entrada, a peça branca carimbada, selada e com números de registro. Jim tocou a campainha, esperando que o Rapaz Número Dois abrisse a porta. Estava exausto, tão extenuado quanto seus sapatos arrebentados e reparou que a manga do seu casaco tinha sido rasgada até o cotovelo pela faca do ladrão.

- Rapaz, depressa!... - Começou a dizer: - Vou matar você... - mas examinou-se.

A casa estava silenciosa. Não havia barulho das amahs, discutindo por causa das tinas de roupa suja nas dependências dos empregados ou o clip-clip do jardineiro cortando a grama em torno dos canteiros de flores. Alguém tinha desligado o motor da piscina, apesar de seu pai fazer questão de ter o filtro funcionando o inverno todo. Erguendo os olhos para as janelas do seu quarto, viu que os protetores do ar-condicionado tinham sido fechados.

Jim prestou atenção ao ressoar da campainha na casa vazia. Cansado demais para tocá-la novamente, sentou-se nos degraus luzidios e soprou os joelhos arranhados. Era difícil imaginar como seus pais, Vera, os nove criados, motorista e jardineiro, podiam ter ido embora juntos.

Houve uma explosão abafada no fim da aléia, o cansado ruído intermitente de um motor pesado. Um veículo japonês com lagartas entrou na Avenida Amherst, a tripulação de pé entre as antenas de rádio. Rodavam pelo meio da rua, obrigando uma limusine Mercedes do governo alemão a subir a calçada.

Jim pulou da varanda e escondeu-se atrás de uma pilastra. Um muro alto, encimado por telhas castanho-avermelhadas, cobertas com cacos de vidro, cercava a casa. Agarrando as telhas com as pontas dos dedos, subiu a parede abaixo da janela gradeada do vestiário. Depois de se ter içado para a borda de cimento, arrastou-se de joelhos entre os cacos de vidro. No ano anterior, sem que o jardineiro e o vigia noturno soubessem, tinha trepado no muro uma porção de vezes, sempre retirando um pouco mais das pontas aguçadas. Abaixou-se na beira e pulou para os galhos escuros do cedro, atrás da casa de verão.

À sua frente estava o jardim cercado e silencioso, muito mais o verdadeiro lar de Jim que a própria casa. Ali tinha brincado sozinho com sua imaginação. Tinha sido um piloto derrubado sobre o telhado da pérgula rosa, um atirador nos galhos mais altos dos choupos por trás das quadras de tênis, um soldado de infantaria correndo através do gramado com sua espingarda de ar comprimido, atirando-se nos canteiros e tornando a se levantar para assaltar o monte de pedras sob o mastro da bandeira.

Das sombras atrás da casa de verão, Jim olhou para as janelas da varanda. Um avião sobre sua cabeça aconselhou-o a não correr subitamente pela grama. Apesar de não alterado, o jardim pareceu ter ficado sombrio e selvagem. A grama não cortada estava começando a crescer e os rododendros estavam mais escuros do que ele se lembrava. Esquecida pelo jardineiro, sua bicicleta estava caída nos degraus do terraço. Jim caminhou pela grama crescida até a piscina. A água estava coberta de folhas e insetos mortos e o nível baixara quase um metro, cobrindo os lados com uma cortina espumante. Pontas de cigarro jaziam pisadas nos ladrilhos brancos e um embrulho chinês boiava sob o trampolim de mergulho.

Jim caminhou pela trilha que levava ao alojamento dos empregados, detrás da casa. Um fogão a carvão estava no pátio, mas a porta da cozinha estava trancada. Procurou ouvir algum ruído vindo de dentro da casa. Ao lado dos degraus que levavam à cozinha, ficava o abrigo do compactador de lixo. Uma calha ia do compactador para a cozinha, pela parede ao lado do tanque. Dois anos antes, quando ele era mais moço, Jim tinha apavorado sua mãe subindo pela calha enquanto ela preparava um jantar de cerimônia com o empregado.

Desta vez não havia perigo do motor ser ligado. Jim ergueu a coberta de metal, pulou entre as lâminas em forma de foice e bordejou a calha engordurada. A tampa de metal abriu-se para mostrar a familiar cozinha ladrilhada de branco.

- Vera! Cheguei! Rapaz!

Jim pulou para o chão. Nunca tinha visto a casa tão escura antes. Caminhou pela poça d'agua em torno da geladeira e entrou no corredor vazio. Ao subir a escada para o quarto da mãe, o ar estava velho, com um cheiro de suor estranho.

As roupas de sua mãe estavam espalhadas sobre a cama desfeita e malas abertas jaziam pelo chão. Alguém tinha removido suas escovas de cabelo e vidros de perfume do toucador, e o chão encerado estava coberto de talco. Havia dezenas de impressões digitais no pó, os pés descalços da mãe misturando-se com as impressões nítidas de botas grossas, como o desenho de danças complicadas impressas nos manuais de fox-trot e tango dos pais.

Jim sentou-se na cama, de frente para a imagem estrelada de si mesmo que se projetava do centro do espelho. Um objeto pesado tinha sido atirado contra o grande espelho e pedaços de si mesmo pareciam voar pelo quarto, espalhando-se pela casa vazia.

Adormeceu aos pés da cama da mãe, apaziguado pelo perfume da sua camisola de seda, sob aquela valiosa estátua de um menino destruído.

 

A Piscina Seca

O tempo tinha parado na Avenida Amherst, tão imóvel quanto a muralha de poeira que pairava nos quartos, envolvendo Jim brevemente quando ele caminhou pela casa vazia. Odores quase esquecidos, um leve cheiro de tapete, lembrou-lhe o período antes da guerra. Durante três dias esperou pela volta dos pais. Todas as manhãs ele subia ao telhado inclinado sobre seu quarto e examinava as ruas residenciais nos subúrbios ocidentais de Xangai. Viu as colunas de tanques japoneses entrarem na cidade, vindos do interior e tentou consertar seu casaco, impaciente para encontrar os pais, quando voltassem com Yang no Packard.

O ar estava cheio de aeronaves e Jim passava as horas identificando-as. A seus pés, o gramado sereno, apenas um pouco mais escuro a cada dia, agora que o jardineiro não mais podava suas pontas nem o aparava. Jim brincava nele de tarde, arrastando-se sobre as pedras e fingindo ser um dos fuzileiros japoneses que tinham atacado o Wake. Porém as brincadeiras no jardim tinham perdido o encanto c ele passava a maior parte do tempo no sofá do quarto da mãe. A presença dela pairava no ar como seu odor, mantendo presa a imagem deformada no espelho estilhaçado. Jim lembrou as longas horas juntos, fazendo o dever de casa de latim e as histórias que ela lhe contava da sua infância na Inglaterra, um país tão estranho quanto a China, onde teria de ir para a escola quando a guerra acabasse.

No talco espalhado pelo chão em volta dele, viu as marcas dos pés de sua mãe. Ela andara de um lado para outro, empurrada por um superansioso companheiro, talvez um dos oficiais japoneses a quem ela estivesse ensinando o tango. Jim tentou dar os passos da dança, que pareciam ser muito mais violentos que qualquer tango já visto por ele e deu um jeito de cair e cortar a mão no espelho quebrado.

Ao chupar o ferimento, lembrou-se da mãe lhe ensinando a jogar mah-jong e os enigmáticos ladrilhos coloridos que estalavam dentro e fora das paredes de mogno. Jim pensou em escrever um livro sobre o mah-jong, porém tinha esquecido a maioria das regras. No tapete da sala de visitas, fez uma pilha de pedaços de bambu apanhados na estufa e começou a construir um papagaio para carregar um homem, de acordo com os princípios científicos que seu pai lhe ensinara. Mas as patrulhas japonesas na Avenida Amherst iriam ver o papagaio vindo do jardim. Desistindo, Jim passeou pela casa vazia e viu o nível da água quase imperceptivelmente diminuindo na piscina.

Os alimentos na geladeira tinham começado a exalar um cheiro horrível, mas os armários da despensa estavam cheios de frutas enlatadas, biscoitos de coquetel e carnes em conserva, guloseimas que Jim adorava. Fazia as refeições na mesa da sala de jantar, em seu lugar habitual. De noite, quando parecia improvável que os pais viessem para casa naquele dia, ia dormir no seu quarto, no último andar da casa, com um dos seus modelos de aeronaves na cama ao seu lado, coisa que Vera sempre proibiu. Depois chegavam os sonhos de guerra e todas as belonaves da Esquadra Japonesa subiam o Yangtze, os canhões disparando como afundaram o Petrel e ele e seu pai salvando os marinheiros feridos.

Na quarta manhã, quando desceu para o desjejum, Jim descobriu que tinha esquecido de fechar a torneira da cozinha e toda a água tinha fluído da caixa. A despensa tinha um estoque amplo de sifões com soda, porém, naquela altura, ele tinha aceito a idéia de que seus pais não voltariam. Olhou pela janela da varanda para o jardim maltratado. Não que a guerra tivesse mudado tudo - na verdade, Jim tinha progredido - porém tinha deixado coisas de forma estranha e de uma maneira duvidosa. Mesmo a casa parecia sombria, como se estivesse se afastando dele por uma série de atos pequenos e inamistosos.

Tentando manter o ânimo, Jim resolveu visitar os lares dos seus amigos mais íntimos, Patrick Maxted e os gêmeos Raymond. Depois de se ter lavado com soda, foi ao jardim procurar sua bicicleta. Durante a noite, a piscina havia se esvaziado. Jim nunca tinha visto o tanque vazio e examinou interessado o chão inclinado. O antes misterioso mundo de linhas azuis ondulantes, percebido através de uma cascata de bolhas, agora estava exposto à luz matutina. Os ladrilhos estavam escorregadios com folhas e sujeira, e a escada de cromo, que antigamente desaparecia num abismo aquático, findava bruscamente ao lado de um par de espumantes chinelos de borracha.

Jim pulou para o fundo da parte rasa. Escorregou na superfície úmida e seu joelho machucado deixou uma mancha de sangue nos ladrilhos. Uma mosca pousou imediatamente na mancha. Olhando para os pés, Jim caminhou pelo chão inclinado. No ralo de metal do fundo havia um pequeno museu de verões passados: um par de óculos de sol de sua mãe, um pregador de cabelo de Vera, um copo de vinho e meia-coroa inglesa que seu pai tinha atirado na piscina para ele. Jim freqüentemente vislumbrava a moeda de prata, reluzindo como uma ostra, porém nunca fora capaz de pegá-la.

Jim meteu a moeda no bolso e deu uma olhada nas paredes úmidas. Havia qualquer coisa de sinistro numa piscina esvaziada e ele procurou imaginar que finalidade poderia ter se não estivesse cheia d'agua. Ela fê-lo lembrar-se das casamatas de cimento em Tsingtao e as marcas das mãos sangrentas de atiradores enlouquecidos nos lados das caixas de munição. Talvez estivessem para ser cometidos assassinatos em todas as piscinas de Xangai e suas paredes tivessem sido ladrilhadas para que o sangue pudesse ser lavado.

Deixando o jardim, Jim saiu com sua bicicleta pela porta da varanda. Depois fez uma coisa que sempre quis fazer: subiu com a bicicleta e passeou pelos formais quartos vazios. Encantado com o pensamento de como poderia ter escandalizado Vera e os criados, habilmente percorreu o estúdio do pai, intrigado pelas formas que os pneus deixavam no tapete espesso. Esbarrou na escrivaninha e bateu numa mesinha com uma lâmpada, quando desviou-se pela porta que dava para a sala de visitas. De pé nos pedais, ziguezagueou entre as poltronas e mesas, perdeu o equilíbrio e caiu sobre um sofá, tornou a montar sem tocar o chão, esbarrou nas portas duplas que levavam à sala de jantar, empurrou-as e começou a rodear violentamente a mesa envernizada. Deu uma volta pela despensa, zunindo de um lado para outro na poça d'agua sob a geladeira, espalhou as panelas na prateleira da cozinha e terminou num arroubo de velocidade em direção ao espelho do vestiário do andar inferior. Quando seu pneu dianteiro tremeu contra o espelho manchado, Jim gritou diante da sua excitada imagem refletida. A guerra lhe tinha dado pelo menos uma pequena compensação.

Alegremente, Jim fechou, às suas costas, a porta de entrada, esticou o rolo de papel e partiu em direção à casa dos gêmeos Raymond, na Estrada Columbia, que ficava perto. Sentiu como se todas as ruas de Xangai fossem quartos numa casa enorme. Passou acelerado por um pelotão de soldados chineses parecendo marionetes marchando pela Estrada Columbia e desviou-se para longe quando o oficiai comissionado soltou uma torrente de gritos. Jim prosseguiu pelas ruas do subúrbio, ziguezagueando entre os postes telefônicos, atropelando as latas de Craven A abandonadas pelos mendigos desaparecidos.

Estava sem fôlego quando chegou à casa dos Raymond na extremidade alemã da Estrada Columbia. Passou sem se deter pelos Opels e Mercedes estacionados - curioso, carros sombrios que davam a Jim uma boa idéia de como era a Europa - e parou diante da porta de entrada.

Uma tira de papel japonesa estava pregada no painel de carvalho.

A porta abriu-se e apareceram duas amahs, arrastando o toucador da Sra. Raymond pelos degraus abaixo.

- Clifford está? Ou Derek? Amah!...

Jim conhecia muito bem as duas amahs e esperou que elas respondessem no seu inglês pidgin*. Porém elas não lhe deram atenção e ergueram o toucador. Seus pés deformados, como punhos cercados, deslizaram nos degraus.

- Sou Jamie, Sra. Raymond...

Jim tentou passai pelas amahs, quando uma ergueu o braço e o esbofeteou.

Aturdido pelo tapa, Jim voltou para sua bicicleta. Nunca tinha sido esbofeteado com tanta força, nem nas lutas de boxe da escola nem nos combates com o bando da Avenida Foch. Suas faces pareciam ter sido arrancadas dos ossos. Seus olhos doíam, porém impediu-se de chorar. As amahs eram fortes, os braços endurecidos por uma vida de lavagem de roupa. Vendo-as com o toucador, percebeu que elas estavam dando o troco por alguma coisa que ele ou os Raymond lhes tinham feito.

Jim esperou até que elas chegassem ao último degrau. Quando uma das amahs caminhou em sua direção, com a clara intenção de tornar a esbofeteá-lo, montou na bicicleta e foi embora.

Fora da entrada dos Raymond, dois garotos alemães da sua idade estavam jogando bola, enquanto sua mãe abria o Opel da família. Normalmente, teriam gritado palavras de ordem para Jim ou atirado pedras até serem impedidos pela mãe. Mas, naquele dia, os três ficaram silenciosos. Jim passou pedalando, tentando esconder-lhes seu rosto ferido. A mãe ficou segurando os ombros dos meninos, observando Jim, como que preocupada com o que lhe iria acontecer breve.

Ainda chocado com a raiva espelhada no rosto da amah, Jim dirigiu-se ao edifício de apartamentos dos Maxted, na Concessão Francesa. Sentia como se tivesse a cabeça inchada e houvesse um dente mole na mandíbula inferior. Queria ver os pais e desejava que a guerra acabasse logo, se possível naquela tarde.

Empoeirado e subitamente muito cansado, Jim chegou ao controle cercado de arame farpado da Avenida Foch. As ruas estavam menos apinhadas, mas muitas centenas de chineses e europeus faziam fila para passar pelos guardas japoneses. O suíço dono de um Buick e um francês de Vichy, dono de caminhão a gasolina, faziam sinais pelos portões. Normalmente, os pedestres europeus teriam encabeçado a fila, mas agora esperavam sua vez entre os cules de jinriquixás e camponeses empurrando carrocinhas. Agarrando a bicicleta, Jim mal tocava no chão quando um cule descalço, com as panturrilhas doentes, passou penosamente por ele, sob uma escada de bambu como canga, carregada de fardos de lenha. A multidão se amontoava em torno dele, num fedor de suor e fadiga, gordura barata e vinho de arroz, os odores de uma Xangai nova para Jim. Um Chrysler de capota arriada, com dois jovens alemães no banco da frente, passara velozmente, a buzina berrando, o pára-choque traseiro batendo na mão de Jim.

Uma vez passado o controle, Jim endireitou a roda dianteira da sua bicicleta e pedalou para o edifício de apartamentos dos Maxted na Avenida Joffre. O jardim convencional, em estilo francês, estava tão imaculado como sempre, uma reconfortante lembrança da velha Xangai. Enquanto levava o elevador até o sétimo andar, Jim usou as lágrimas para limpar as mãos e o rosto, meio esperando que a Sra. Maxted tivesse retornado de Cingapura.

A porta do apartamento estava aberta. Jim entrou no saguão, reconhecendo o sobretudo de couro do Sr. Maxted atirado no chão. A mesma tempestade que tinha revirado o quarto de sua mãe, na Avenida Amherst, tinha devastado todas as peças do apartamento dos Maxted. Gavetas cheias de roupas tinham sido atiradas sobre as camas, guarda-roupas revirados jaziam abertos sobre pilhas de sapatos, malas por toda parte, como se dúzias de famílias Maxted tivessem sido incapazes de resolver o que emalar precipitadamente.

- Patrick...

Jim hesitou em entrar no quarto de Patrick sem bater. Seu colchão tinha sido jogado ao chão e as cortinas balançavam nas janelas abertas. Mas o modelo de avião de Patrick, mais bem construído que o do próprio Jim, ainda estava pendurado no teto.

Jim empurrou o colchão para a cama e deitou-se. Ficou olhando a aeronave girando no ar frio que varria o apartamento vazio. Ele e Patrick tinham passado horas inventando imaginários combates aéreos no céu daquele quarto sobre a Avenida Joffre. Jim ficou vendo os Spitfires e Hurricanes voando sobre sua cabeça. Seu movimento o acalmou, diminuindo a dor em seu queixo e ficou tentado a permanecer ali, dormindo calmamente no quarto do seu amigo ausente até que a guerra acabasse.

Porém Jim estava consciente de que já era tempo de achar sua mãe e seu pai. Na falta deles, qualquer outro inglês serviria.

Em frente ao edifício do apartamento dos Maxted, do outro lado da Avenida Joffre, ficava o conjunto da Companhia Shell, com quase todas as suas casas ocupadas por empregados ingleses. Jim e Patrick freqüentemente brincavam com os filhos deles e eram membros honorários do bando da Shell. Assim que Jim saiu com sua bicicleta da passagem dos Maxted, viu que os habitantes ingleses tinham ido embora. Sentinelas japonesas estavam postadas na entrada do conjunto, defendidos por uma cerca de arame farpado. Supervisados por um japonês não comissionado, um bando de cules chineses estava metendo móveis das casas num caminhão do exército.

A poucos passos da cerca de arame farpado, um velho com um casaco esfarrapado estava parado sob os plátanos e observava os japoneses. Apesar da sua roupa gasta, ainda usava punhos brancos e o peito da camisa engomado.

- Sr. Guerevitch! Estou aqui, Sr. Guerevitch!

O velho russo branco era o zelador da Companhia Shell e morava com a mãe idosa num pequeno bangalô junto ao portão. Um oficial japonês estava agora instalado na sala da frente, limpando as unhas enquanto fumava um cigarro. Jim sempre gostara do Sr. Guerevitch, embora o idoso russo não se impressionasse com ele. Uma espécie de artista amador, na exata maneira que ele desenharia cuidadosos navios à vela no livro de autógrafos de Jim. Seu guarda-louça cinza, na cozinha, estava cheio de colarinhos engomados em seus minúsculos painéis e Jim lamentava que o Sr. Guerevitch não pudesse se dar ao luxo de uma camisa de verdade. Será que poderia voltar a morar com ele na Avenida Amherst?

Jim chocou-se com esse pensamento enquanto o Sr. Guerevitch acenava-lhe através da estrada com o jornal. Sua mãe podia ser como o velho russo, porém Vera, não: os europeus orientais e os russos brancos eram ainda mais pretensiosos que os ingleses.

- Olá, Sr. Guerevitch, estou procurando meus pais.

- Mas como poderiam estar aqui? - O velho russo apontou para o rosto esfolado de Jim e balançou a cabeça. - O mundo inteiro está em guerra e você continua andando por aí de bicicleta...

Como o oficial japonês não comissionado começasse a abusar de um dos cules, o Sr. Guerevitch levou Jim para trás de um plátano. Abriu o jornal para mostrar um extravagante desenho artístico de dois imensos navios de guerra afundando sob o bombardeio japonês. Pelas fotografias ao lado deles, Jim reconheceu o Repulse e o Prince of Wales, as fortalezas inafundáveis que os cinejornais de guerra britânicos sempre afirmavam que cada um podia derrotar a esquadra japonesa de um só golpe.

- Não é um bom exemplo - refletiu o Sr. Guerevitch. - A linha Maginot do Império Britânico. Estou vendo que você está com o rosto vermelho.

- Caí da bicicleta, Sr. Guerevitch - explicou Jim patrioticamen-te, embora não gostasse de ter de mentir para defender a Esquadra Real. - Tenho andado aflito procurando meus pais. É um trabalhão, o senhor sabe.

- Estou vendo.

O Sr. Guerevitch olhou um comboio de caminhões passar velozmente. Guardas japoneses de baioneta calada estavam localizados na beira. Atrás deles, as cabeças encostadas nas costas umas das outras, inglesas e seus filhos, amontoadas sobre suas malas baratas e sacos de viagem caquis. Jim presumiu que fossem as famílias de ingleses membros das forças armadas capturados.

- Garoto! Pegue sua bicicleta! - O Sr. Guerevitch empurrou Jim. - Siga-os!

- Mas, Sr. Guerevitch... - A bagagem ordinária deixou Jim tão indeciso quanto as estranhas mulheres dos soldados ingleses. - Não posso ir com elas: são prisioneiras.

- Vá! Pedale! Você não pode morar na rua!

Quando Jim se instalou com firmeza nos pedais, o Sr. Guerevitch bateu-lhe solenemente na cabeça e atravessou a rua. Tornou a assumir seu posto detrás do jornal, observando os japoneses despojarem as casas no conjunto, como se especificasse seu mundo perdido para a Companhia Shell.

- Voltarei para vê-lo, Sr. Guerevitch.

Jim sentiu pena do velho zelador, porém no decorrer de sua viagem de volta à Avenida Amherst, estava mais preocupado com as duas belonaves. Os cinejornais britânicos estavam cheios de mentiras. Jim tinha visto a Esquadra Japonesa afundar o Peírel e era evidente agora que podiam afundar qualquer coisa. Metade da Esquadra Americana do Pacífico estava repousando no fundo de Pearl Harbor. Talvez o Sr. Guerevitch tivesse razão e ele devesse ter seguido os caminhões. Seus pais já poderiam ter chegado à prisão para onde foram levados.

Assim, com relutância, resolveu entregar-se aos japoneses. Os soldados ocupando o controle da Avenida Foch o chamaram com acenos quando ele tentou falar-lhes, mas Jim ficou de olho num dos cabos responsáveis por tudo.

Por qualquer motivo, aquele dia parecia ser o de escassez de cabos japoneses em Xangai. Embora estivesse cansado, Jim tomou o longo caminho de volta para casa pelas estradas Great Western e Columbia, porém não havia nenhum à vista. Contudo, quando chegou na entrada de sua casa na Avenida Amherst, viu que uma limusine Chrysler estava estacionada na porta da frente. Dois oficiais japoneses saltaram do carro e examinaram a casa enquanto alisavam seus uniformes.

Jim estava a ponto de pedalar até eles e explicar-lhes que morava ali e estava pronto a render-se. Então um soldado japonês armado surgiu no portão de pedra. Segurou a roda dianteira da bicicleta com a mão esquerda, os dedos agarrando o pneu entre os freios e com um grito rouco empurrou Jim de costas para um monte na estrada de terra.

 

Tempo de Piquenique

Impossibilitado de se render, Jim voltou com sua bicicleta arrebentada para o apartamento dos Maxted na Concessão Francesa. A partir dali, morou sozinho nas casas e apartamentos abandonados dos subúrbios ocidentais do Setor Internacional. A maior parte das casas tinha sido propriedade de ingleses e americanos, ou de residentes holandeses, belgas e franceses livres, todos internados pelos japoneses nos dias seguintes ao ataque a Pearl Harbor.

O edifício do apartamento dos Maxted era propriedade de um rico chinês que fugira para Hong Kong nas semanas anteriores ao início da guerra. A maioria dos apartamentos estava vazia havia meses. Apesar da família do porteiro chinês ainda morar nas duas peças do térreo, junto ao poço do elevador, tinha ficado inteiramente acovardada pelo pelotão da polícia militar japonesa que tinha prendido o Sr. Maxted. Enquanto os gramados cresciam maltratados e os jardins convencionais se deterioravam, passava o tempo cozinhando pequenas refeições em fogões a carvão, que instalara ao lado das estátuas de cimento no chão do tanque ornamental. O cheiro do feijão-soja e macarrão temperado deslizava entre as ninfas desnudas.

Na primeira semana, Jim pôde ir e vir livremente. Metia a bicicleta no elevador, ia até o sétimo andar e entrava no apartamento dos Maxted por uma janela estreita, esquecida aberta no balcão dos criados. A porta da frente estava munida de um olho mágico e um conjunto complexo de fechaduras elétricas: o Sr. Maxted, destacado membro de uma Sociedade de Amizade pró-China de Chiang, organização de negociantes locais, já havia sido vítima de uma tentativa de assassinato. Uma vez fechada a porta, Jim seria incapaz de torná-la a abrir, a não ser com a ajuda de uma iraquiana que morava na cobertura. Quando ele tocou a campainha, Jim olhou-a fazer uma careta no visor, partes do seu velho rosto irradiando uma mensagem misteriosa. Ela então ficou meditando durante dez minutos no elevador parado, imaculadamente vestida e adornada de jóias, naquele abandonado edifício de apartamentos.

Jim ficou contente por ter ficado só. Após ter sido derrubado de sua bicicleta pelo soldado japonês, mal tinha dado um jeito para voltar ao apartamento dos Maxted e dormiu no quarto de Patrick o resto do dia. Acordou na manhã seguinte com o barulho dos bondes fazendo estardalhaço na Avenida Foch, buzinas soando nos comboios japoneses entrando na cidade e os milhares de toques continuados que eram o hino de Xangai.

Os arranhões em seu rosto tinham começado a diminuir, deixando-o mais magro do que lembrava, a boca com uma forma mais velha e firme. Olhando-se no espelho do banheiro de Patrick e para seu casaco sujo e a camisa em mau estado, ficou imaginando se os pais ainda seriam capazes de reconhecê-lo. Jim limpou as roupas com uma toalha úmida... como o Sr. Guerevitch, muitos transeuntes chineses o olhavam com ar curioso. Não obstante, Jim percebeu que havia certa vantagem em ser pobre. Ninguém iria se dar ao trabalho de lhe decepar as mãos.

A despensa dos Maxted estava cheia de caixas de uísque e gim, uma caverna de Aladim de garrafas de ouro e rubi, mas havia apenas uns poucos potes de azeitonas e uma lata de biscoitos de coquetel. Jim fez um modesto desjejum na mesa de jantar e depois dedicou-se a consertar a bicicleta. Precisava dela para percorrer Xangai, encontrar os pais e render-se aos japoneses.

Sentado no chão da sala de jantar, Jim tentou endireitar as for-quilhas tortas. Seus dedos estavam esfolados pelo metal empoeirado, incapazes de se fecharem. Sabia que tinha sido muito assustado no dia anterior. Um espaço peculiar estava sendo aberto à sua volta, separando-o do mundo seguro que conhecera antes da guerra. Durante alguns dias, tinha sido capaz de enfrentar o afundamento do Petrel e o desaparecimento dos pais, mas agora sentia-se nervoso e levemente frio o tempo todo, mesmo no bom tempo de dezembro. Deixou cair e quebrou louça de uma forma que nunca lhe tinha acontecido e sentia dificuldade em concentrar-se.

Apesar disso tudo, Jim esforçou-se por consertar a bicicleta. Desatarraxou a roda dianteira e endireitou as forquilhas, dobrando-as contra a grade do balcão. Experimentou a bicicleta na sala de visitas e depois desceu de elevador para o vestíbulo.

Jim pedalou pela Avenida Foch, reparando que Xangai mudou. Milhares de soldados japoneses patrulhavam as ruas. Postos de sentinelas protegidos por sacos de areia tinham sido construídos à vista uns dos outros nas avenidas principais. Apesar das ruas estarem cheias de triciclos e jinriquixás, com caminhões dirigidos pela milícia-títere, as multidões tinham sido dominadas. Os chineses que enchiam as calçadas das lojas de departamentos na Estrada de Nanquim mantinham as cabeças curvadas, evitando os soldados japoneses que passeavam em meio ao movimento.

Pedalando com força, Jim acompanhou uni bonde atulhado que percorria ruidosamente a Avenida Edward VII. Chineses taciturnos penduravam-se nos seus balaústres e um jovem de cabelos curtos, vestido com uma roupa preta de mandarim, cuspiu cm Jim; depois saltou e correu para a multidão, com medo de que mesmo aquele pequeno ato provocasse uma reação cm cadeia. Corpos de chineses jaziam por todos as lados, as mãos amarradas nas costas no meio da estrada, atirados detrás dos locais protegidos, cabeças rachadas apoiando-se nas costas uns dos outros. Os milhares de jovens bandidos com suas roupas americanas tinham sumido, mas no controle da Estrada do Poço Borbulhante Jim viu um jovem vestido de seda azul sendo espancado por dois soldados com varas. Quando as pancadas atingiram sua cabeça, caiu de joelhos numa poça de sangue que escorria por suas lapelas.

Todos os salões de jogos e casas de ópio nas ruas laterais detrás da pista de corrida tinham fechado e grades de metal obstruíam a entrada das casas de prego e bancos. Mesmo a guarda de honra de corcundas fora do Cathay Theatre havia abandonado seu posto. Sua ausência inquietou Jim. Sem seus mendigos, a cidade parecia de uma incrível pobreza. Os ritmos rabugentos da nova Xangai eram determinados pelos infindáveis lamentos das buzinas japonesas. As estradas pareciam mais difíceis do que quando dava suas voltas pela cidade e ficou logo causado. Suas mãos estavam tão frias quanto o guidom. Procurando manter o ânimo, resolveu visitar todos os lugares de Xangai onde seus pais eram conhecidos, a começar pelo escritório do pai. O antigo grupo de empregados chineses sempre fazia um grande estardalhaço em torno de Jim e certamente se apressaria a ajudá-lo.

Contudo, a Estrada Szechwan tinha sido fechada pelos japoneses. Barricadas de arame farpado impediam ambas as extremidades da rua e centenas de civis japoneses entravam e saíam dos bancos estrangeiros e edifícios comerciais, carregando máquinas de escrever e caixas de fichas.

Jim pedalou para o Bund, dominado agora pelo casco cinzento do cruzador Idzumo, que estava ancorado a quatrocentos metros do cais, as velhas chaminés recém-pintadas, toldos protetores em suas tor-rinhas de canhão. A curta distância rio acima via-se o USS Wake, agora ostentando a bandeira do Sol Nascente, com vistosos ideogramas japoneses em seu casco. Uma complicada cerimônia de batismo estava tendo lugar defronte do Clube Xangai. Dezenas de velhos civis japoneses de fraque, alemães e italianos cm extravagantes uniformes fascistas, assistiam ao desfile de marinheiros e oficiais japoneses. Dois tanques, várias peças de artilharia e uma guarda de fuzileiros cercavam o terreno do desfile temporário nos trilhos da estação de bondes.

Os trilhos circulares de aço soavam sob suas botas, uma demonstração de sua vitória sobre as canhoneiras inglesas e americanas.

Apoiando o queixo no guidom, Jim olhou os soldados de baionetas caladas que guardavam a entrada do Palace Hotel. Nenhum deles deveria falar inglês ou ter qualquer idéia de que aquele garoto europeu com sua bicicleta avariada era um inimigo nacional. Se se aproximasse deles em plena vista dos espectadores chineses que se amontoavam, as sentinelas o atirariam ao chão.

Jim afastou-se do Bund e começou a longa viagem de volta ao apartamento dos Maxted. No momento de atravessar o controle da Avenida Joffre, estava cansado demais para continuar pedalando e empurrou a pequena bicicleta por entre as implorantes camponesas e os cules cochilantes dos jinriquixás. Depois de subir ao apartamento, sentou-se à mesa da sala de jantar e comeu alguns biscoitos de coquetel e azeitonas, lavando-se com água de soda do sifão. Adormeceu na cama do amigo, sob as infindáveis voltas da aeronave que boiava sob o teto como um peixe procurando uma saída para o céu.

Durante os dias seguintes, Jim tornou a tentar entregar-se aos japoneses. Como seus colegas de colégio, Jim sempre desprezou quem se rendesse - aceitava sem discutir a rígida moralidade dos Chums Annuals - mas render-se ao inimigo era muito mais difícil do que parecia. Agora Jim passava a maior parte do tempo cansado, visto que pedalava pelas ruas de Xangai ao acaso. Os soldados japoneses que guardavam o Clube de Campo e o adro da catedral, eram muito perigosos para serem contatados. Na Estrada do Poço Borbulhante, saiu atrás de um Plymouth que pertencia a um casal suíço, porém foi mandado embora com uma moeda atirada na estrada, como se fosse um dos garotos chineses mendigos.

Jim foi à procura do Sr. Guerevitch, mas o velho zelador russo não estava mais vigiando o conjunto da Shell: talvez ele também estivesse tentando se render. Jim pensou na alemã que o viu deixar a casa dos Raymond. Ela pareceu preocupada com ele, mas quando pedalou por toda a extensão da Estrada Columbia, verificou que os portões do condomínio alemão estavam fechados. Os germanos tinham se recolhido tão nervosos como todos por causa dos japoneses. Jim foi quase derrubado da bicicleta na Estrada de Nanquim por dois carros japoneses que ziguezagueavam na rua. Eles pararam um caminhão cheio de alemães do Graf Zeppelin Club, a caminho de atacarem os judeus em Hongkew. Os japoneses fizeram os alemães saltar do caminhão. Tiraram seus porretes e armas, arrancaram suas braçadeiras com a suástica e os amontoaram.

Após uma semana de sua chegada ao apartamento dos Maxted, a eletricidade e o fornecimento de água foram cortados. Jim bateu com a bicicleta nos degraus quando descia para o vestíbulo, onde encontrou a iraquiana discutindo com o porteiro chinês. Ambos viraram-se para Jim, gritando-lhe que saísse do prédio, apesar de saberem que ele passara a semana toda lá.

Estava contente por ir embora. Tinha comido o último dos biscoitos de coquetel e seu único alimento no dia anterior tinha sido um pacote mofado de castanhas-do-pará, que ele encontrou no guarda-louça. Sentia-se cansado, mas curiosamente aliviado: as últimas gotas d'agua das torneiras do banheiro quase o deixaram bêbado, a mesma sensação que sentira antes da guerra quando se preparava para ir a uma festa. Lembrou-se de seus pais, mas seus rostos já começavam a esmaecer em sua memória. Ele estava pensando o tempo todo em comida e descobriu que havia um grande número de casas desocupadas nos subúrbios ocidentais de Xangai, com ilimitadas quantidades de biscoitos de coquetel e água de soda, o bastante para mantê-lo até o fim da guerra.

Montando em sua bicicleta, Jim saiu da Concessão Francesa e pedalou pela Estrada Columbia. Silenciosas avenidas residenciais estendiam-se entre árvores e as casas vazias se destacavam nos jardins maltratados. A chuva tinha lavado a tinta vermelha dos rolos japoneses e ela escorria pelos painéis de carvalho, como se todos os americanos e europeus tivessem sido assassinados de encontro às suas portas da frente.

As forças invasoras japonesas estavam atarefadas demais com sua ocupação de Xangai para se incomodarem com essas casas abandonadas. Jim escolheu um beco em forma de crescente, oculto da estrada principal, onde uma casa, metade de madeira, surgia por detrás de muros altos. Uma tira meio apagada estava pendurada entre lâmpadas metálicas de carruagem. Jim sondou o silêncio dentro da casa e depois ocultou a bicicleta entre as folhas não varridas ao lado dos degraus. Na terceira tentativa, escalou a parede da garagem Tudor e seu telhado inclinado. Introduziu-se na densa folhagem do jardim, que se agarrava à casa como um sonho pesado recusando-se a ser desperto.

Carregando uma telha solta do telhado da garagem, Jim dirigiu-se ao terraço pelo gramado alto. Esperou até que um avião sobrevoasse seu espaço e depois quebrou a vidraça de uma janela que abrigava o ar-condicionado. Penetrou na casa abrindo os postigos do aparelho para encobrir a vidraça quebrada.

Jim movimentou-se rapidamente pelos quartos escuros, uma série de telas num museu esquecido. A casa estava cheia de fotografias de uma bela mulher que posava como estrela de cinema. Ignorou o retrato emoldurado sobre o grande piano e o enorme globo terrestre ao lado da estante. Anteriormente, Jim teria parado para brincar com o globo - tinha aborrecido o pai durante anos para ganhar um - mas agora estava esfomeado demais para perder tempo.

A casa tinha pertencido a um dentista belga. No seu estúdio, sob diplomas emoldurados, havia armários brancos contendo dezenas de dentaduras. Na escuridão, faziam-lhe caretas como bocas vorazes.

Jiniatn jantar centrou na cozinha. Rodeou a poça d'agua em torno da geladeira e habilmente correu os olhos pelas prateleiras da despensa. Para seu aborrecimento, o dentista belga e sua encantadora companheira tinham desenvolvido um gosto pela comida chinesa - coisa em que seus pais raramente tocavam - e a despensa estava como o depósito de um comprador chinês, com dezenas de intestinos secos e frutas enrugadas, penduradas.

Porém havia uma única lata de leite condensado, de uma gostosura e riqueza como nunca sentira antes. Bebeu o leite, sentado na escrivaninha do estúdio do dentista enquanto as dentaduras sorriam para Jeoois adormeceu num dormitório no andar superior, entre lenda que conservavam o perfume do corpo da mulher com o rosto de estrela de cinema.

 

Um Fim à Bondade

Sempre à procura de alimentos, Jim deixou a casa do dentista na manhã seguinte. Encontrou outro lar temporário numa mansão próxima, pertencente a uma viúva americana que seus pais tinham conhecido antes de sua partida para San Francisco. Foi seu ponto de partida, permanecendo alguns dias em cada casa, abrigado da cidade feia c defendido pelos altos muros de capim espesso.

Os japoneses haviam confiscado todos os rádios e câmaras, mas, fora isso, as casas estavam intactas. A maioria delas era muito mais luxuosa que a sua - apesar de rico, o pai de Jim sempre fora espartano - e eram dotadas de cinemas particulares e salões de baile. Abandonados pelos proprietários, Buicks e Cadillacs estragavam-se nas garagens, com os pneus amados.

Mas suas despensas estavam vazias, restando a Jim alimentar-se com as sobras das provisões de coquetéis da festa de cinqüenta anos de duração que havia sido Xangai. Às vezes, após ter encontrado uma caixa intacta de chocolate numa gaveta de penteadeira, Jim revivia e lembrava as danças ao som do rádio antes do almoço nos domingos e seu quarto na Avenida Amherst, agora ocupado por oficiais japoneses. Jogava bilhar nas salas de jogos na penumbra ou sentava-se numa mesa de jogo e dava mãos de bridge, jogando cada uma da melhor maneira possível. Deitava-se nas camas com perfumes esquisitos, lendo Life e Esquire e na casa de um médico americano leu todo Através do Espelho, um mundo reconfortante, menos estranho que o seu.

Mas os armários de brinquedos dos quartos das crianças o deixavam ainda mais deprimido. Folheou álbuns de fotografias, cheios de imagens de um mundo desaparecido de festas à fantasia e gincanas. Sempre esperando ver os pais, sentava-se nas janelas dos quartos, enquanto a água chupada das piscinas dos subúrbios ocidentais pingava nas paredes brancas com véus de espuma. Apesar de sentir-se muito cansado para pensar no futuro, Jim sabia que os pequenos estoques de alimentos estariam breve esgotados e que os japoneses iriam voltar sua atenção para aquelas casas vazias: as famílias de civis japoneses já estavam se mudando para as propriedades dos antigos Aliados na Avenida Amherst.

Jim mal reconheceu seu cabelo comprido e as maçãs pálidas, o rosto desconhecido no espelho estranho. Ele olhava para o vulto maltrapilho que apareceu à sua frente em todos os espelhos da Estrada Columbia, um pobre-diabo de metade da sua altura e duas vezes a sua idade. A maior parte do tempo, Jim sabia que estava doente e freqüentemente tinha de passar o dia deitado. O fornecimento principal para a Estrada Columbia tinha sido cortado e a água pingando das caixas do telhado tinha um desagradável sabor metálico. Uma vez, quando estava doente num quarto do sótão na Grande Estrada Ocidental, um grupo de civis japoneses passou uma hora caminhando pelas peças do andar inferior, porém Jim estava com febre demais para chamá-los.

Uma tarde, Jim subiu o muro de uma casa detrás do Clube de Campo Americano. Pulou para um amplo jardim maltratado e ficou andando em volta da varanda antes de perceber que um grupo de soldados japoneses estava preparando uma refeição na beira da piscina vazia. Havia três homens agachados nos trampolins, alimentando uma pequena fogueira com galhos. Outro estava no fundo da piscina, examinando os restos de toucas de banho e óculos de sol.

Um japonês viu Jim hesitar entre o capim alto e mexeu o arroz fervendo, no qual boiavam alguns pedaços de peixe. Não fizeram qualquer gesto de pegarem as carabinas, mas Jim sabia que não devia tentar fugir deles. Atravessou o capinzal até a beira da piscina e sentou-se nos ladrilhos cobertos de folhas. Os soldados começaram a comer, conversando em voz baixa. Eram homens atarracados, de cabeças raspadas, usando faixas e equipamentos melhores que as sentinelas japonesas em Xangai e Jim ficou imaginando se eram tropas de combate experimentadas.

Jim ficou vendo-os comer, os olhos fixos em cada pedaço que entrava em suas bocas. Quando o mais velho dos quatro soldados terminou, raspou um pouco do arroz e do peixe queimados da panela. Um praça de primeira classe, de uns quarenta anos, com mãos lentas e cuidadosas, fez um sinal para Jim adiantar-se e deu-lhe sua lata de refeição. Enquanto fumavam, os japoneses sorriam uns para os outros, vendo Jim devorar os restos de arroz gorduroso. Foi seu primeiro alimento quente desde que deixou o hospital e o calor e o sabor da gordura penetraram em suas gengivas. Seus olhos inundaram-se de lágrimas. O soldado japonês que tivera pena de Jim, percebendo que o menino estava morrendo de fome, começou a rir bondosamente e destampou sua garrafa metálica de água. Jim bebeu o líquido transparente clorado, tão diferente da água podre das torneiras da Estrada Columbia. Engasgou-se, reprimiu cuidadosamente o vômito e riu para o japonês. Imediatamente começaram todos a rir, recostando-se no capim alto que rodeava a piscina vazia.

Durante a semana seguinte, Jim acompanhou os japoneses em sua patrulha das ruas vazias. Cada manhã, os soldados surgiam de suas tendas no controle da Grande Estrada Ocidental e Jim tinha de correr dos degraus da casa onde havia passado a noite e juntar-se a eles. Os soldados raramente entravam nas mansões estrangeiras e só se preocupavam em afastar os mendigos chineses e ladrões que pudessem ser atraídos por aquela área residencial. Algumas vezes trepavam nos muros e exploravam os jardins maltratados, cujas árvores e moitas ornamentais pareciam mais interessantes para eles que as casas requintadamente mobiliadas. Jim fazia pequenos serviços para eles, apanhando as toucas de banho que eles colecionavam, rachando lenha e acendendo fogueiras. Silenciosamente, observava-os fazerem a refeição do meio-dia. Quase sempre, deixavam um pouco de arroz e peixe para ele e uma vez o praça de primeira classe deu-lhe um pedaço de açúcar-cande que ele separou de uma barra no bolso, mas, a não ser por isso, nenhum demonstrou qualquer interesse nele. Saberiam que ele era um nômade? Olhariam para seus sapatos bem-feitos mas estragados, para a lã do seu casaco de colégio, talvez achando que ele morou com alguma família européia rica mas fútil, que não se importasse de alimentar os filhos.

Dentro de uma semana, Jim ficou dependendo daquela patrulha japonesa para quase toda a sua alimentação. As casas na Estrada Columbia estavam sendo cada vez mais ocupadas por japoneses militares e civis. Várias vezes, quando se aproximava de uma casa vazia, Jim era expulso por guarda-costas chineses.

Certa manhã, os soldados japoneses não apareceram. Jim esperou com paciência no jardim da casa por trás do Clube de Campo Americano. Procurando acalmar sua fome, arrancou galhos das moitas de rododendros, pronto a fazer uma fogueira na beira da piscina vazia. Viu a aeronave voando à luz do frio de fevereiro e contou os três chocolates com recheio de licor no bolso do casaco, que tinha separado para uma emergência que sabia iria acontecer breve.

As portas da varanda abriram-se às suas costas. Ficou parado enquanto os soldados japoneses entraram no terraço. Estavam acenando para ele e Jim teve a vaga idéia de que eles tinham trazido seus pais junto e assim estava fazendo uma aparição formal através da casa em vez de subirem pelo muro.

Correu para os japoneses, que estavam gritando para ele de uma forma surpreendentemente áspera. Quando chegou ao terraço, percebeu que eram membros de uma nova patrulha. O cabo deu-lhe uns tapas e empurrou-o em volta dos canteiros, depois fê-lo limpar os galhos na beira da piscina. Gritando algumas palavras em alemão, atirou Jim na estrada e bateu o portão de ferro forjado às suas costas.

Ficou em meio às casas, no sol, mundos fechados onde ele tinha retornado brevemente à infância. Quando iniciou a longa viagem ao Bund, pensou nos soldados japoneses que o tinham alimentado com sua própria comida, porém percebia agora que aquela bondade, que seus pais e professores tinham sempre realçado, de nada valia.

 

O Cargueiro Encalhado

Um sol gelado fazia o rio tremer, tornando sua superfície em estilhaços de vidro, transformando os distantes bancos e hotéis do Bund numa fileira de bolos de noiva. Para Jim, quando sentou no estreito passadiço do cais de enterros, sob os estaleiros vazios de Nantao, as chaminés e mastros do Idzumo pareciam esculpidos em açúcar gelado. Formou com as mãos um binóculo de mentira e examinou os marinheiros de branco, tão agitados como piolhos, que se moviam nos tombadilhos e pontes. As torres dos canhões lembravam-lhe os enfeites dos bolos de Natal, cujo sabor passado ele sempre detestou.

Não obstante, Jim gostaria de comer o navio. Imaginou-se sugando os mastros, lambendo o creme das chaminés eduardianas, mergulhando os dentes nas proas de marzipã e devorando toda a parte da frente do casco. Depois disso, engoliria o Palace Hotel, o edifício Shell e toda Xangai...

O vapor saía das chaminés do Idzumo, se acalmava e deslizava pela superfície da água como um véu delicado. O cruzador tinha lançado as âncoras da popa e flutuava nas ondas, a proa apontando rio abaixo. Tendo ajudado a impor a ordem japonesa em Xangai, estava prestes a partir para outro teatro de guerra. Como que comemorando, uma regata de cadáveres girava na maré. Os corpos de quantidades de chineses, cada um numa jangada de flores de papel, cercavam o Idzumo, e estavam prontos a escoltar o cruzador até o estuário do Yangtze.

Jim ficou vigiando as patrulhas navais japonesas. No outro lado do rio, na margem de Putung, estavam os telhados galvanizados e as modernas chaminés da fábrica do pai. Jim lembrava vagamente suas visitas à fábrica, ocasiões embaraçantes em que os gerentes chineses o exibiam ao olhar inexpressivo de milhares de operários. Agora estava tudo em silêncio e o que lhe dizia respeito era o estrondo dos cargueiros afundados. O mais próximo, um costeiro de uma só chaminé, estava no fundo do canal, afundado apenas a cem metros da extremidade do cais de funeral. Sua ponte enferrujada, como um pão de centeio se esfarelando, ainda conservava para ele todo seu mistério. A guerra, que tinha mudado tudo tão radicalmente no mundo de Jim, havia muito tinha esquecido os restos daquele barco, porém Jim estava determinado a ir até ele. Tornar a se juntar aos pais, entregar-se aos japoneses, mesmo encontrar alimentos, nada disso tinha importância agora que o cargueiro estava, finalmente, ao seu alcance.

Durante dois dias Jim vagueou pelo cais de Xangai. Após ter sido descoberto pela patrulha japonesa, dirigiu-se ao Bund. Sua única esperança de encontrar os pais novamente residia na possibilidade de descobrir um dos seus amigos suíços ou suecos. Embora os europeus neutros andassem pelas ruas de Xangai, Jim não vira um só inglês ou americano. Teriam sido todos mandados para os campos de prisioneiros no Japão?

Então, quando pedalava pela Estrada de Nanquim, foi alcançado por um caminhão militar. Um grupo de homens louros, com uniformes britânicos, estava colocado atrás dos guardas.

- Depressa, rapaz! Mostre que está vivo!

- Mais depressa, rapaz! Não vamos esperar por você!

Jim firmou as mãos no guidom e pedalou com mais velocidade. Eles o estavam incentivando e aplaudindo, batendo palmas. Os japoneses franziam o cenho diante dessa brincadeira absurda. Jim gritou para o caminhão que se afastava e ouviram-se risadas e um último erguer de polegares quando sua roda da frente prendeu-se num trilho de bonde e atirou-o aos pés dos condutores de triciclos.

Pouco depois perdeu a bicicleta. Estava tentando endireitar as for-quilhas dianteiras quando um lojista chinês e seu cule caminharam em sua direção. O lojista segurou o guidom, mas Jim sabia que ele não estava querendo ajudar. Enfrentou os olhos vulgares dos dois chineses. Estava cansado e já havia sido bastante espancado.

Jim os viu levar a bicicleta pelo meio do povo e desaparecer numa das centenas de alamedas. Uma hora depois, chegou a pé à Estrada Szechwan, mas todo o bairro financeiro de Xangai estava ocupado por centenas de soldados japoneses e seus carros blindados.

Assim, Jim foi até o Bund olhar o Idzumo. Passou a tarde inteira no cais, atingiu o lodaçal onde os marinheiros feridos do Petrel tinham chegado e onde finalmente vira seu pai, além do molhe das sampanas e do mercado de peixes, com sua lívida luva atirada entre os trilhos do bonde, aos molhes da Concessão Francesa, onde o Bund separa-se dos cais de funeral e estaleiros de Nantao. Lá, Jim não foi incomodado. Aquela área de riachos e despejos estava coberta de vigas de cascos de barcos de ópio, carcaças de cães e de ataúdes que haviam deslizado para a margem novamente, nas praias de lama preta. Ao cair da tarde, viu os hidroaviões japoneses ancorarem em suas bóias na Base Aérea Naval. Esperou os pilotos saírem com seus óculos de voar e caminharem para as rampas. Mas ninguém, a não ser Jim, parecia interessado em hidroplanos e eles instalaram-se nos seus longos pontões, com as hélices tocadas pelo vento.

De noite, Jim dormiu no assento traseiro de um dos numerosos táxis velhos atirados no lamaçal. As buzinas dos carros blindados japoneses soavam pelo Bund e os faróis dos barcos de patrulha brilhavam no rio, mas Jim logo se sentiu sonolento com o ar frio. Seu corpo magro parecia flutuar na noite, pairando sobre a água escura, quando ele se agarrou aos leves cheiros humanos que saíam dos assentos dos táxis.

A maré estava cheia e os hidroplanos tinham começado a rodear suas bóias. O rio não mais pressionava os botalós dos cargueiros. Durante alguns instantes, a superfície transformou-se num espelho de óleo, do qual os vapores enferrujados emergiam como que dos seus próprios reflexos. Ao lado do cais de funeral, as sampanas balançavam, libertas do lamaçal, mesmo quando cheias d'agua.

Jim agachou-se no passadiço de metal, vendo a água bater na grade sob seus pés. Tirou do bolso do casaco um dos dois últimos bom-bons de chocolate com licor. Examinou a tira enigmática, com os signos do zodíaco e cuidadosamente sopesou-o. Guardando o maior, colocou o menor na boca. O álcool forte picou sua língua, porém ele chupou o doce chocolate escuro. A água castanha subia gelada no cais e ele se lembrou que o pai lhe disse que os raios de sol matavam as bactérias. A cinqüenta metros, o cadáver de uma jovem chinesa flutuava entre as sampanas, os calcanhares girando em torno da cabeça como se insegura da direção que tomaria aquele dia. Com cuidado, Jim passou um pouco de água de uma das mãos para a outra e depois bebeu rapidamente para que os germes não tivessem tempo de infectá-lo.

O licor do chocolate e o movimento das ondas fizeram-no sentir-se novamente tonto e apoiou-se contra uma sampana quase afundando, que batia contra o cais. Olhando para o cargueiro se decompondo, Jim entrou sem pensar na sampana e empurrou-a para a corrente gelatinosa.

O barco apodrecido estava meio cheio de água, que encharcou os sapatos e a calça de Jim. Ele arrancou parte do tombadilho e usou a tábua para remar em direção ao cargueiro. Quando atingiu o navio, a sampana tinha quase submergido. Agarrou o corrimão de estibordo abaixo da ponte e subiu para o convés, enquanto o casco alagado derivava em direção a outro cargueiro.

Jim viu-o ir, depois caminhou pela água que cobria o tombadilho de metal até a altura de seus tornozelos. O rio começou a mudar vagarosamente e a superfície graxenta estava intacta quando penetrou no salão aberto sob a ponte e escoou pela vigia. Jim entrou no salão, uma caverna enferrujada que parecia ainda mais antiga que o forte alemão em Tsingtao. Ele estava em pé na superfície do rio, que corria de todos os riachos, estradas e canais da China, para levar aquele garoto nas costas. Se ele caminhasse nas ondas, poderia andar em frente até o Idzumo...

Colunas de fumaça saíam trêmulas das chaminés do cruzador, como se ele estivesse se preparando para levantar âncora. Seus pais estariam a bordo? Consciente de que poderia agora estar só em Xangai, naquele vapor que sempre sonhara visitar, Jim olhou da ponte para a margem. A maré estava começando a vazar e os cadáveres rodeados de flores se dirigiam para o alto-mar. O cargueiro foi forçado pela corrente e seu bojo enferrujado estalou e cantou. As chapas se chocavam e os cabos se arrastavam pela coberta de proa, as adriças de velas invisíveis ainda esperando impelir aquele velho casco à segurança de um mar tropical, a um mundo de distância de Xangai.

Alegremente, Jim sentiu o tombadilho estremecer sob seus pés. Riu para si mesmo na amurada, notando ao mesmo tempo que alguém o olhava do estaleiro além do cais de funerais. Um homem, usando capa e boné de marinheiro americano, estava parado na casa do leme de um dos três carvoeiros parcialmente construídos. Timidamente, mas de capitão para capitão, Jim acenou-lhe. O homem não lhe deu importância e tirou uma tragada do cigarro protegido na mão. Ele estava olhando não apenas Jim mas um jovem marujo num escaler de metal que tinha se afastado do botaló do vapor seguinte.

Ansioso para cumprimentar seu primeiro passageiro e tripulante, Jim deixou a ponte e desceu para o tombadilho. O marinheiro se aproximou mais, remando forte em movimentos curtos, procurando não agitar a água. A cada grupo de remadas, virava a cabeça para olhar Jim e perscrutava as vigias, como se desconfiasse de que aquele cargueiro enferrujado estivesse infestado de crianças. O escaler estava baixo na água, sob o peso das grandes costas do marinheiro. Encostou e Jim viu uma trave, chaves de parafusos e serra de arco entre seus pés. No banco, anéis de metal das vigias, arrancados dos cascos do navio.

- Olá, garoto... está seguindo costa acima? Quem mais está com você?

- Ninguém. - Por mais esperança de segurança que o jovem americano oferecia, Jim não estava ansioso por abandonar o navio. - Estou esperando meus pais. Eles se... atrasaram.

- Atrasaram? Bem, talvez cheguem mais tarde. Você parece estar precisando de ajuda.

Estendeu o braço como que para subir a bordo, porém assim que Jim pegou-lhe a mão, o marujo puxou-o brutalmente para o escaler, batendo seus joelhos contra as vigias de metal. Sentou Jim empertigado e apontou para as lapelas do seu casaco e para o distintivo. Seu despenteado cabelo louro emoldurava um franco rosto americano, porém ele esquadrinhou o rio de maneira furtiva, como se esperasse um mergulhador naval japonês completamente aparelhado para surgir à superfície ao lado do escaler.

- Diga, por que está tentando nos incomodar? Quem o trouxe aqui?

- Vim sozinho. - Jim alisou o casaco. - Este navio agora é meu.

- Você é um garoto inglês meio doido. Você esteve sentado naquele cais durante dois dias. Quem é você?

- Jamie... - Jim procurou pensar em alguma coisa que impressionasse o americano, pois percebeu que devia ficar com aquele jovem marinheiro. - Estou construindo uma asa delta... e escrevi um livro sobre o bridge de contrato.

- Espere só até Basie ver isto.

Assim que se afastaram do cargueiro, o americano pegou os remos. Com algumas remadas vigorosas, aproou o escaler para o lamaçal. Entraram num riacho raso entre os cais de funeral, um canal preto e cheio de óleo que cortava o estaleiro. O americano olhou melancolicamente para um caixão vazio que havia alijado seu ocupante. Cuspiu nele para dar sorte e afastou-o com o remo. Habilmente, dirigiu o bote para a retaguarda de um iate sem mastros amarrado a uma barcaça encalhada. Ocultos sob a saliência da proa do iate, que imitava um cisne, atracaram numa plataforma de madeira. O americano carregou as peças da vigia num braço, reuniu suas ferramentas e fez sinal a Jim, que estava no escaler.

Atravessaram o estaleiro, passaram por pilhas de placas de aço, rolos de correntes e arame enferrujado, caminhando em direção dos cascos estragados dos três carvoeiros. Jim apressou o passo, imitando o andar agressivo do americano. Finalmente, tinha encontrado alguém que podia ajudá-lo a encontrar seus pais. Talvez o americano e seu companheiro na casa do leme também estivessem querendo se render. Os três juntos eram demais para que os japoneses pretendessem ignorá-los.

Um velho caminhão Chevrolet estava estacionado sob a hélice do carvoeiro maior. Entraram pelo vão de uma placa que estava faltando no casco. O americano ergueu Jim até uma plataforma de bambu colocada ao longo da quilha. Passaram por uma escada de escotilha até o próximo tombadilho, atravessaram a casa do leme e meteram-se por uma escotilha estreita até chegar a um camarote de metal atrás da ponte.

Desmaiando de fome, Jim cambaleou contra o caixilho da porta. Um odor familiar pairava no ar, lembrando-lhe o do quarto de sua mãe na Avenida Amherst, os cheiros de pó-de-arroz, colônia, cigarros Craven A e, durante um momento, teve a certeza de que ela iria surgir daquele cubículo escuro como uma fada de Natal e dizer-lhe que a guerra tinha acabado.

 

Frank e Basie

Um fogão a carvão ardia suavemente no centro do camarote, suas doces emanações subindo pelo céu aberto. O chão estava coberto de trapos sujos de óleo e pedaços de motores, vigias de metal e corrimões de escadas. De cada lado do fogão, havia uma cadeira de lona com “Imperial Airways” gravado no arcabouço e um saco de dormir coberto com uma colcha chinesa.

O americano atirou suas ferramentas no monte de partes de metal. Sua grande cabeça e ombros quase enchiam o camarote e ele atirou-se impacientemente na cadeira. Deu uma olhada na frigideira no fogão e depois virou-se melancolicamente para Jim.

- Ele já está arrebentando meus nervos, Basie. Não sei se ele está esfomeado ou maluco...

- Venha cá, menino. Você está com ar de quem precisa deitar.

Um homem pequeno, mais velho, emergiu da quilha e fez um gesto para Jim com o cigarro que estava segurando em sua mão branca. Tinha um rosto agradável e sem marcas, do qual toda a copiosa experiência de sua vida tinha sido habilmente apagada e mãos macias, ativamente se esfregando sob a quilha. Seus olhos examinaram detalhadamente as roupas manchadas de lama de Jim, o tique nervoso de sua boca, as maçãs repuxadas e as pernas inseguras.

Limpou o talco da cama e contou as peças de metal resgatadas.

- Só isso, Frank? Não é muito para levar ao mercado. Aqueles comerciantes de Hongkew estão cobrando dez dólares por um saco de arroz.

- Basie! - O jovem marinheiro atirou uma bota grossa no monte de metal, mais exasperado consigo mesmo que com o velho. - O rapaz esteve desabrigado no cais durante dois dias! Você quer os japoneses aqui?

- Frank, os japas não estão nos procurando. O riacho de Nantao está infestado de cólera: por isso viemos para cá.

- Você praticamente deu bandeira. Está querendo que eles venham nos procurar? É isso, Basie? - Frank mergulhou um trapo numa lata de fluido de limpeza. Começou a esfregar vigorosamente a fuligem que cobria o suporte da vigia. - Se quiser dar duro, tente sair daqui... com esse garoto vigiando você o tempo todo.

- Frank, pense em meus pulmões. - Basie inalou um pouco de fumaça do seu Craven A, acalmando esses órgãos delicados. - Além disso, o menino nem mesmo reparou em você. Tinha outras coisas em que pensar, coisas de criança que você já esqueceu, Frank, mas que eu ainda lembro. - Abriu um espaço aquecido para Jim na cama. - Venha cá, filho. Como chamavam você antes da guerra ter começado?

- Jamie.

Frank jogou fora o trapo.

- Toda esta porcaria não dá para comprarmos uma passagem de sampana para Tchungking. Vamos precisar do Queen Mary para sair daqui. - Considerou Jim com um olhar sombrio. - E não temos arroz bastante para você, garoto. Quem é você, Jamie?...

- Jim... explicou Basie. - Um nome novo para uma vida nova. Quando Jim sentou-se ao seu lado, ele estendeu a mão empoeirada e suavemente apertou o polegar contra o tique de fome que pulsava no canto esquerdo da boca de Jim, que se manteve passivamente, enquanto Basie expunha-lhe as gengivas e olhava astutamente para seus dentes.

- É uma dentadura muito bem cuidada. Alguém pagou uma bolada por essa doce boquinha. Frank, você nem imagina como certas pessoas descuidam dos dentes dos filhos. - Basie bateu no ombro de Jim, apalpando a lã azul do casaco. Raspou a lama do emblema do colégio. - Parece ser uma boa escola, Jim. A Cathedral School?

Frank lançou um olhar furioso por cima das vigias. Parecia cansado de Jim, como se aquele garoto pudesse tirar Basie dele.

- Cathedral? Ele é alguma espécie de sacerdote?

- A Cathedral School, Frank. - Basie virou com interesse crescente para Jim. - É uma escola para taipans. Jim, você deve conhecer gente importante.

- Ora... - Jim ficou em dúvida. Não podia pensar em nada, a não ser no arroz cozinhando no fogão a carvão, mas conseguiu lembrar de uma recepção ao ar livre na Embaixada Britânica. - Uma vez fui apresentado a Madame Sun Yat-sen.

- Madame Sun? Você foi... apresentado?

- Eu tinha só três anos e meio.

Jim manteve-se imóvel, enquanto as mãos brancas de Basie exploravam seus bolsos. O relógio deslizou do seu pulso e desapareceu na confusão de colônia e pó-de-arroz sob o acolchoado. Contudo, as maneiras solicitas, como as dos criados que antigamente o vestiam e despiam, eram curiosamente tranqüilizantes. O marinheiro estava apalpando cada osso em seu corpo, como que procurando uma coisa preciosa. Pela escotilha aberta, Jim pôde ver um hidroplano decolar da Base Aérea Naval. Um barco-patrulha tinha fechado o canal, dando espaço às correntes que formavam enormes remoinhos em torno dos cascos dos cargueiros. Jim voltou-se para a panela e seu cheiro inebriante de gordura queimada. Subitamente ocorreu-lhe que aqueles dois marinheiros americanos podiam querer comê-lo.

Mas Basie tinha tirado a tampa da panela. Um vapor agradável subiu de um grosso cozido de arroz e peixe. Basie tirou um par de pratos e colheres de alumínio de uma maleta de couro sob a cama. Sempre fumando seu Craven A, serviu-se de uma porção e outra para Jim, com a destreza de um garçom do Palace Hotel. Enquanto Jim devorava o peixe cozido, Basie olhava com a mesma aprovação irônica que o soldado japonês tinha exibido.

Basie mexeu o cozido.

- Comeremos mais tarde, Frank.

Frank estava esfregando uma vigia, com os olhos na panela.

- Basie, eu sempre comi com você.

- Tenho de pensar por nós, Frank. Além disso, precisamos cuidar do nosso amiguinho. - Tirou um grão de arroz do queixo de Jim. - Diga-me, Jim, conheceu outros chineses figurões? Chiang Kai-shek, talvez?...

- Não... mas você sabe que seu nome não é verdadeiramente chinês. - A comida quente atordoou o cérebro de Jim. Lembrou de uma palavra que sua mãe usava, que ele sempre tentou introduzir em sua conversa com adultos. - É uma corrupção de Shanghai Czech.

- Uma corrupção!... - Basie agora estava sentado. Tendo terminado de comer, começou a empoar as mãos. - Está interessado em palavras, Jim?

- Um pouco. E em bridge de contrato. Escrevi um livro a respeito.

Basie parecia cético.

- Palavras são mais importantes, Jim. Reserve uma nova palavra a cada dia. A gente nunca sabe quando ela poderá ser útil.

Jim terminou o cozido e recostou-se satisfeito na parede de metal. Não conseguia lembrar nenhuma de suas refeições antes da guerra e cada uma desde então. Aborrecia-o pensar em todos os alimentos que recusara em toda a sua vida e os esmerados estratagemas que Vera e sua mãe tinham usado para persuadi-lo a terminar o pudim. Reparou que Frank estava olhando para uns grãos de arroz que ele tinha deixado na colher e lambeu-a depressa. Jim deu uma olhada na panela, ficando contente ao ver que havia bastante arroz para Frank. Agora tinha a certeza de que aqueles dois marinheiros comerciantes não iriam comê-lo, porém o medo tinha sido justificado: ouviu boatos no clube de campo que marinheiros ingleses torpedeados no Atlântico tinham praticado o canibalismo.

Basie serviu-se de uma pequena quantidade de arroz. Não fez qualquer tentativa de comer aquela segunda porção, mas ficou brincando com o prato sob o olhar aflito de Frank. Jim viu logo que Basie gostava de controlar o jovem marujo e estava usando Jim para mantê-lo inquieto. A educação de Jim tinha sido de modo a evitar que conhecesse gente como Basie, porém a guerra tinha modificado tudo.

- E quanto a seu pai, Jim? - perguntou Basie. - Por que não está em casa com sua mãe? Eles estão aqui em Xangai?

- Estão... - Jim hesitou. Suas experiências nas últimas semanas disseram-lhe para não acreditar em ninguém, exceto talvez nos japoneses: - Estão em Xangai... mas a bordo do Idzumo.

- O Idzumol - Frank pulou da cadeira. Apanhou um prato de alumínio em sua mochila e serviu-se abundantemente da panela de arroz. Entre colheradas, apontou a colher para Jim: - Garoto, quem é você? Basie!...

- No Idzumo não, Jim. - Com suas mãos brancas, Basie escolheu um pedaço de carvão no saco sob a cama. - O Idzumo está indo para Futchau e Manila Bay. Jim enganou você, Frank.

- Ora, pensei que estava no Idzumo. - Jim resolveu afastar a pequena dúvida ainda existente nos olhos de Basie. - Meu pai vai freqüentemente a Manila.

- Não num cruzador japonês, Jim.

- Basie!...

- Frank... - Basie imitou a voz do outro. - Um dia você vai me acreditar. Suponho que os pais de Jim tenham se mandado juntamente com os outros ingleses e agora Jim anda à procura deles. Jim?...

Jim balançou a cabeça, tirando o último bombom de chocolate recheado de licor do bolso do casaco. Desembrulhou o papel prateado e deu uma mordida na garrafa em miniatura de chocolate. Depois, lembrando do que Vera havia martelado nele sobre a necessidade de ser educado, ofereceu metade do chocolate a Basie.

- Curaçao... Bem, as coisas melhoraram desde que você chegou, Jim. Todas essas palavras novas e agora este delicioso bombom nos traz um pouco do estilo Palace Hotel. - Quando Basie cravou os dentes afiados no chocolate, pareceu um gato branco sugando o cérebro de um rato. - Então, esteve morando sozinho em casa, Jim. Na Concessão Francesa?

- Avenida Amherst.

- Frank... Antes de deixarmos Xangai, temos de ir até lá. Deve haver uma porção de casas vazias, não é mesmo, Jim?

Jim cerrou os olhos. Estava muito cansado, mas acordado, pensando no arroz que tinha acabado de comer, tornando a sentir o gosto de cada grão embebido em peixe. Basie continuou falando, sua voz afastada percorrendo o ar cheio de fumaça, com seu cheiro de colônia e Craven A. Pensou na mãe fumando na sala de estar na Avenida Amherst. Agora que ele tinha conhecido aqueles dois marinheiros americanos, gostaria de vê-la novamente. Ficaria com Basie e Frank; juntos poderiam deixar o interior dos cargueiros; cedo ou tarde os barcos-patrulha japoneses os descobririam.

Um bafo quente, de peixe, bateu em seu rosto. Jim acordou com um sufoco. O corpo enorme de Frank debruçava-se sobre o dele, os braços fortes em suas coxas, as mãos apalpando os bolsos do casaco. Jim empurrou-o e Frank voltou calmamente para sua cadeira, continuando a lustrar as vigias.

Estavam sós no camarote. Jim podia ouvir Basie no passadiço de bambu, embaixo. A porta do caminhão bateu e o velho motor começou a pulsar, parando a seguir, bruscamente. Ouviu um toque distante da sereia do Idzumo. Com um olhar significativo a Jim, Frank bateu no metal fosco.

- Sabe, rapaz, você tem talento para dar nos nervos das pessoas. Como os japoneses não o pegaram? Você deve ter pés ligeiros.

- Tentei me entregar - explicou Jim. - Mas não é fácil. Você e Basie querem se render?

- Só se for pro diabo... embora eu não saiba a opinião de Basie. Estou tentando convencê-lo a comprar um sampana para podermos viajar rio acima até Chungking. Porém Basie vive mudando de opinião. Ele quer ficar em Xangai, agora que os japas estão aqui. Ele acha que podemos fazer um monte de dinheiro assim que chegarmos aos acampamentos.

- Vocês vendem muitas vigias, Frank?

Frank examinou Jim, ainda em dúvida sobre o garoto.

- Menino, ainda não vendemos uma única. É esse o jogo de Basie, como uma droga, ele precisa de gente trabalhando para ele. Em algum lugar do pátio, tem um saco de dentes de ouro que vende em Hongkew. - Com um sorriso conhecedor, Frank ergueu uma chave de fenda suja de óleo e tocou o queixo de Jim. - É uma boa coisa você não ter nenhum dente de ouro pois, do contrário...

Frank moveu rapidamente o pulso.

Jim sentou-se, lembrando-se de como Basie havia examinado suas gengivas. O som do motor do caminhão fazia vibrar o camarote de metal. Eie estava cansado daqueles dois comerciantes do mar que tinham, de alguma forma, escapado do cerco japonês em torno de Xangai e percebeu que poderia tanto temê-los como a qualquer outro na cidade. Pensou na bolsa de Basie de dentes de ouro escondida. Os córregos e canais de Nantao estavam cheios de cadáveres e suas bocas estavam cheias de dentes. Todo chinês procurava ter, pelo menos, um dente de ouro, como prova de importância. E agora que a guerra tinha começado, seus parentes podiam estar cansados demais para arrancá-los antes do enterro. Jim imaginou os dois percorrendo o lamaçal de noite com suas chaves de fenda, Frank remando o bote nos riachos escuros, Basie na proa, com uma lanterna, pescando os cadáveres que boiavam e examinando suas gengivas...

 

Música Dançante

Aquela imagem apavorante dominou os três dias que Jim passou com os marujos americanos. De noite, enquanto Basie e Frank dormiam juntos sob o acolchoado, ele permanecia acordado em sua pilha de sacos de arroz ao lado do fogão a carvão. Refletidas nas vigias e nos puxadores de latão, as brasas brilhavam como dentes de ouro. Quando acordava de manhã, Jim apalpava o queixo para ter certeza de que Frank não tinha arrancado um dos seus molares por maldade.

Durante o dia, Jim sentava-se no cais de funeral e ficava de vigia enquanto Frank remava para os cargueiros estragados. Quando começava a sentir frio, Jim voltava para o camarote e deitava-se sob o acolchoado, enquanto Basie instalava-se na cadeira da Imperial Airways e fazia bonecos de arame com velhos limpadores de cachimbos. Basie tinha trabalhado como camaroteiro na Cathay-America Line e tratava Jim com os mesmos gestos e truques de salão com que tinha tratado os filhos dos passageiros. Esforçava-se igualmente para fazer com que Jim tomasse as refeições matutinas e vespertinas, enquanto o inquiria incessantemente sobre seus pais. Em grande parte, Basie tinha-se moldado pelas passageiras a quem tinha servido, sempre se empoando no calor enquanto acendiam seus cigarros.

Todas as tardes, saíam juntos no caminhão e percorriam os mercados chineses de Hongkew. Neles, Basie regateava um saco de arroz e vários pedaços de peixe, negociando maços de cigarros franceses, tirados dos pacotes sob sua cama. De vez em quando dizia a Frank para levar Jim até a barraca do vendedor, onde o negociante chinês inspecionava solenemente o menino antes de sacudir a cabeça.

Ficou logo claro para o garoto que Basie estava tentando vendê-lo aos negociantes. Cansado demais para resistir, sentava-se no caminhão entre os dois americanos, como uma das galinhas que as chinesas carregavam ao lado, nos bancos dos bondes. Sentia-se indisposto a maior parte do tempo, mas seu valor potencial garantia-lhe pelo menos as refeições de peixe cozido. Finalmente, os negociantes chineses acabariam por compreender que alguns ienes podiam ser ganhos, denunciando-os aos japoneses.

Enquanto isso, evitava as grosseiras mãos de Frank, esquadrinhava a cabeça à procura das palavras pouco usuais de que Basie tanto gostava e regalava o camaroteiro com histórias das grandes casas da Avenida Amherst. Jim inventou vidas de encantos totalmente imaginários, que ele afirmava terem sido levadas pelos pais. Basie nunca deixava de ficar fascinado por aqueles relatos da vida grã-fina de Xangai.

- Conte sobre as festas na piscina - pedia Basie, enquanto esperava que Frank ligasse o motor antes da última visita ao mercado de Hongkew. - Imagino que devem ter sido muito... divertidas.

- Basie, claro que eram divertidas. - Jim recordou as horas que tinha passado, sozinho, tentando recuperar a meia coroa que brilhava no fundo da piscina como um dos dentes de Basie. - Tinha bombons de chocolate com licor, um piano branco, uísque e soda. E mágicos.

- Mágicos, Jim?

- Acho que eram mágicos...

- Você está cansado, Jim. - Quando sentaram no caminhão, Basie passou um braço sobre seus ombros. - Você tem pensado demais, todas essas palavras novas.

- Já usei todas elas, Basie. Será que a guerra vai acabar logo?

- Não se preocupe, Jim. Dou aos japas três meses no máximo.

- Tão cedo assim, Basie?

- Talvez um pouco mais. Leva muito tempo para começar uma guerra, há grandes investimentos a proteger. Como Frank, eu e este caminhão.

Nunca tinha ocorrido a Jim que alguém pudesse desejar a continuação de uma guerra e ele ficou confuso com a lógica estranha com que partiram para Hongkew. Foram sacolejando pela estrada de terra que passava por trás do estaleiro, através de um trecho desolado de armazéns vazios, depósitos de lixo e sepulturas. Havia mendigos morando à beira dos canais, em choupanas construídas de pneus de caminhões e de caixas de embalagem. Uma velha estava agachada à beira da água fedorenta, limpando uma privada de madeira. Ao abrigo do caminhão, Jim olhou com pena para aquela gente desabrigada; apesar de haver passado apenas uns dias, sua situação era ainda mais desesperadora que a deles. Uma estranha duplicação da realidade se instalara, como se tudo o que lhe acontecera desde a guerra estivesse ocorrendo no interior de um espelho. Era o seu eu no espelho que sentia fraqueza e fome e que pensava em comida o tempo todo. Não sentia mais pena daquele outro eu. Jim imaginou que era assim que os chineses faziam para sobreviver. Contudo, um dia, os chineses podiam emergir do espelho.

Quando atravessaram o riacho Nantao na Concessão Francesa, viram a primeira patrulha japonesa, guardando o posto de controle na extremidade norte da ponte de aço. Porém Basie e Frank não pareceram temer os soldados armados: Jim reparou que os americanos não se deixavam facilmente impressionar por ninguém. Frank chegou mesmo a tocar a buzina para um soldado japonês que caminhava pela estrada. Jim encolheu-se sob o painel, esperando ser atacado a tiros, mas o japonês acenou-lhes, olhando-os de mau humor, talvez achando que Frank e Basie fossem trabalhadores russos brancos.

Na hora seguinte, visitaram os mercados de Hongkew, passando por centenas de cães latindo em suas gaiolas de bambu, não apenas mestiços chineses, mas spaniels, basses, perdigueiros, terriers, soltos nas ruas famintas de Xangai pelos seus proprietários aliados. Várias vezes pararam para Basie saltar e falar com um barraqueiro chinês, conversando no seu fluente cantonês de beira de cais. Porém nenhuma vigia ou dente de ouro mudou de mãos.

- Frank, o que é que Basie está querendo comprar?

- Ele parece mais interessado em vender.

- Por que Basie não consegue me vender?

- Ninguém quer você. - Frank atirou para o alto a meia coroa que tinha roubado do bolso de Jim e aparou-a na mão enorme. - Você não vale nada. Quanto você pensa que vale?

- Não valho nada, Frank.

- Você é pele e osso. Daqui a pouco vai ficar doente o tempo todo.

- Se eles me comprarem, que farão comigo? Não podem me comer, sou pele e osso.

Mas Frank não se deu ao trabalho de responder. Basie voltou ao caminhão, balançando a cabeça. Deixaram Hongkew e atravessaram o Suchau no Setor Internacional. Percorreram as ruas centrais, perdendo-se no trânsito da Avenida Foch, seguindo os bondes lentos e barulhentos entre o engarrafado movimento dos triciclos e jinriquixás.

Jim procurou guiá-los em direção aos subúrbios residenciais a oeste de Xangai, falando-lhes das casas ricas, com mesas de bilhar, uísque e bombons de licor. Porém percebeu que Basie e Frank estavam matando tempo antes do crepúsculo. Logo depois das seis horas, a luz abandonou as fachadas dos edifícios de apartamentos na Concessão Francesa. Os dois marujos enrolaram suas janelas. Frank abandonou a Estrada do Poço Borbulhante e enveredou pelos distritos chineses sem luz do norte de Xangai.

- Frank, você está indo pelo caminho errado - avisou Jim. Mas Basie apertou as costas de sua manopla empoada sobre a boca de Jim.

- Silêncio, Jim. Em boca fechada não entram moscas.

Jim apoiou a cabeça oscilante no ombro de Basie. Iniciaram uma viagem ao acaso pelas ruas estreitas. Centenas de rostos chineses apertavam-se contra as janelas, quando passavam entre jinriquixás e carroças de búfalos. Jim tornou a sentir fome e o permanente saltar das rodas sobre os trilhos fora de uso deixou-o tonto. Desejou que voltassem a Nantao, ao fogão a carvão com sua panela de arroz.

Uma hora depois, Jim acordou para descobrir que tinham atingido os subúrbios ocidentais de Xangai. O sol moribundo tocava os telhados da Estrada Columbia. Ao atravessarem os Opels e Buicks estacionados no conjunto alemão, Basie mostrou as casas vazias.

Jim sentiu-se reviver e soprou as mãos para aquecê-las. Tinham dado uma volta completa na cidade, mas percebeu que tinha tentado aqueles homens desonestos com sua conversa sobre a vida dos ricos. Como um guia com um grupo de turistas crédulos, iniciou um comentário sobre as casas nas quais tinha se instalado nos últimos dois meses.

- Esta tem uísque e gim, Basie. Esta tem uísque, gim e um piano branco... não, só uísque.

- Esqueça as bebidas. Frank e eu não estamos pretendendo montar um bar. Você é menino de coro, Jim? Poremos você no piano branco e poderá cantar Yankee Doodle Dandy.

- Esta tem um cinema - continuou Jim. - E aquela está cheia de dentes.

- Dentes, Jim?

- Pertenceu a um dentista. Talvez haja dentes de ouro, Basie. Viraram na Avenida Amherst e passaram pelas mansões vazias.

O fornecimento de eletricidade da rua ainda estava cortado e as casas nos jardins maltratados pareciam ainda mais sombrias que o cair da noite, encalhadas ali como os cargueiros na corrente. Mas Basie olhou-as com evidente respeito, como se os anos passados como camaroteiro na Cathay-America Line dessem o verdadeiro valor daqueles cascos encalhados. Estava claramente contente por sua ligação com Jim.

- Você é muito observador, Jim, para quem nasceu aqui. Admiro um garoto que aprecia um bom lar. Qualquer um pode encontrar os próprios pais, mas ter a inteligência de ver além disso...

- Basie...

Frank interrompeu o devaneio. Tinham parado sob as árvores a duzentos metros do começo da estrada de Jim.

- Bem, Frank.

Basie abriu a porta e saltou para a estrada. Não havia patrulhas japonesas e os vigias chineses tinham recuado para detrás dos muros para passarem a noite. Basie apontou para um beco estreito que passava entre moitas na direção de uma casa.

- Jim, está na hora de esticar as pernas. Dê uma volta até ali e veja se há alguém tocando o tal piano branco.

Jim prestou atenção ao som baixo mas forçado do motor do caminhão. Frank recostou-se despreocupadamente, mas seu pé enorme estava sobre o acelerador. O rosto pálido de Basie pendia como uma lanterna sob as árvores. Jim percebeu que eles pretendiam abandoná-lo ali. Fracassando em seu intento de vendê-lo aos negociantes chineses, iriam abandoná-lo nas avenidas da noite de Xangai.

- Basie, eu... - Frank tinha posto a mão em seu ombro, pronto a jogá-lo na estrada. - Podemos ir até minha casa? É ainda mais luxuosa.

- Luxuosa?

Basie saboreou a palavra no ar cinzento. Olhou as casas em torno, as torres Tudor e as fachadas brancas modernas, as reproduções de castelos e fazendas, cobertos de telhas verdes.

Subiu no caminhão e fechou a portinhola sem travá-la.

- Está bem. Frank, vamos dar uma olhada na casa de Jim. Avançaram sob as árvores e dobraram na estradinha sem vigia.

Ao se aproximarem da casa silenciosa, Jim pôde ver que Basie estava desapontado. Abriu a porta facilmente, pronto a pegar Jim e atirá-lo em seus próprios degraus.

Jim agarrou-se ao painel e nesse instante dois vultos apareceram na entrada da varanda. Usavam vestes brancas com mangas enormes que flutuavam. Jim estava certo de que sua mãe tinha voltado para casa e estava se despedindo de uma de suas visitas.

- Basie! São japas...

Jim ouviu o grito de Frank e viu que os dois vultos eram soldados de folga, nos seus quimonos militares. Os soldados os tinham visto e estavam gritando para a porta aberta. Um sargento fardado surgiu da luz de querosene que enchia o saguão. Parou no primeiro degrau de cima, o coldre da Mauser contra sua coxa grossa. Frank estava tentando dar marcha à ré no caminhão quando os soldados de quimono pularam no estribo e deram socos no vidro. Dois outros soldados, com bastões de bambu, desceram correndo os degraus da varanda.

Quando o motor morreu, Jim sentiu-se empurrado para fora do caminhão, caindo no chão. Os japoneses de quimono estavam saindo apressadamente da casa, como um grupo de mulheres ofendidas saindo do banho. Jim viu-se no cascalho áspero, entre as botas engraxadas do sargento japonês, cujas coxas furiosas batiam contra o coldre. Os soldados tinham apanhado Frank dentro da boléia do caminhão. Ele sacudia as pernas para fora cada vez que os soldados o espetavam com seus bastões de bambu, atingindo seu rosto e peito sangrentos. Dois soldados observavam dos degraus da casa, socando Basie alternada-mente, ajoelhado a seus pés na estradinha.

Jim ficou contente ao ver os japoneses. Pela porta aberta, podia ouvir, entre os golpes fortes e os gritos de Frank, o som arranhado de um conjunto dançante japonês tocando na vitrola de piquenique de sua mãe.

 

Ó Cinema ao Ar Livre

Com os braços aquecidos pelo sol de primavera, Jim descansou confortavelmente na primeira fila do cinema ao ar livre. Sorrindo intimamente, olhou a tela vazia a seis metros de distância. Na última hora, a sombra indistinta do Park Hotel tinha estado se mexendo através da tela branca. Após uma longa viagem entre os armazéns e edifícios de apartamentos de Tchapei, a sombra da tabuleta de neon sobre o hotel tinha finalmente chegado à tela. As letras imensas, cada uma o dobro do tamanho do jovem japonês que patrulhava o andar, moveram-se da esquerda para a direita num andar brusco, abarcando o vulto da sentinela magra e sua carabina num espetacular filme solarizado.

Encantado com a exibição, Jim riu por trás dos seus joelhos e ficou em pé no instável banco de teca. O diorama da tarde, exibido em colaboração com o sol e com o Park Hotel, tinha sido o divertimento principal de Jim durante as três semanas que passou no cinema ao ar livre. Ali, antes da guerra começar, desenhos animados e seriados produzidos pela indústria cinematográfica de Xangai eram exibidos de noite para um público de operárias e trabalhadores portuários chineses. Jim teve diversas oportunidades de ver Yang, o motorista da família, aparecer exatamente naquela tela. Ele já tinha feito um completo reconhecimento do centro de detenção e num escritório fora de uso sobre a sala de projeção havia rolos de películas empoeiradas. Talvez o cabo japonês do corpo de sinaleiros, que estava agora tentando desmantelar o projetor, quisesse mostrar um dos filmes de Yang.

Sua gargalhada provocou um olhar zangado do soldado no palco. Ele evidentemente desconfiava de Jim, que se mantinha fora do seu alcance. Protegendo os olhos, o soldado esquadrinhou os bancos de madeira, onde uns poucos detidos gozavam do sol da tarde. Três filas além de Jim, estava o grisalho marido da missionária moribunda, que jazia em seu colchão, no dormitório de cimento sob as poltronas. Ela não tinha se mexido do antigo depósito desde sua chegada, mas o Sr. Partridge cuidava dela pacientemente, dando-lhe água da torneira da latrina e alimentando-a com a papa de arroz que duas eurasianas cozinhavam uma vez por dia no pátio atrás da bilheteria.

Jim estava preocupado com o velho inglês, de cabelos grisalhos e pele macerada. Às vezes, ele parecia incapaz de reconhecer a mulher. Jim ajudou-o a erguer uma proteção em torno da Sra. Partridge, que nunca falava e tinha um cheiro desagradável. Usaram o sobretudo inglês do Sr. Partridge e o vestido de gala amarelado de sua mulher, suspendendo-os de um pedaço de fio elétrico que Jim puxou da parede. Quando ficava aborrecido, Jim ia para o depósito e expulsava as crianças eurasianas que iam brincar ali.

Havia cerca de trinta pessoas no campo de detenção para o qual Jim tinha sido enviado após uma semana na Prisão Central de Xangai. Comparado com a cela, úmido dormitório que ele partilhava com uma centena de prisioneiros eurasianos e britânicos, o cinema ao ar livre parecia tão ensolarado quanto as praias públicas de Tsingtao. Jim nada mais soubera de Basie desde sua captura pelos japoneses e estava contente por se ter livrado do camaroteiro. Nenhum dos detidos na Prisão Central, cuja maior parte era constituída de capatazes contratados e negociantes marítimos de costeiros chineses, tinha ouvido falar sobre os pais de Jim, mas a transferência para o centro de detenção era um passo na direção deles.

Logo após sua prisão, Jim caiu doente com uma forte febre, durante a qual vomitou sangue. Supôs que tinha sido enviado para o centro de detenção a fim de convalescer. Além de vários casais ingleses idosos, havia um velho holandês e sua filha já moça e uma silenciosa belga, cujo marido ferido dormia ao lado de Jim, no depósito dos homens. Os restantes eram eurasianas que tinham sido abandonadas em Xangai pelos maridos ingleses dos serviços militares.

Ninguém se sentia contente por estar junto: ou eram muito velhos ou doentes de malária e disenteria e só uns poucos dos filhos dos eurasianos falavam alguma coisa de inglês. Assim, Jim passava o tempo no cinema ao ar livre, passeando em torno das cadeiras de madeira. Apesar de suas dores de cabeça, tentou, infrutiferamente, travar relações com os soldados japoneses. E todas as tardes havia o filme de sombras da silhueta de Xangai.

Jim viu as letras do anúncio de neon do Park Hotel borrarem-se e desaparecerem. Apesar de passar o tempo todo com fome, estava feliz no centro de detenção. Depois de meses perambulando pelas ruas de Xangai, tinha finalmente conseguido entregar-se às tropas japonesas. Jim tinha meditado profundamente sobre o problema da rendição, tomando coragem e mesmo uma certa quantidade de malícia. Como exércitos inteiros conseguiam?

Sabia que os japoneses tinham-no agarrado apenas porque estava com Basie e Frank. Sentia-se apavorado quando lembrava dos soldados de quimono atacando Frank com seus bastões, mas, finalmente, iria breve rever os pais. Havia prisioneiros entrando e saindo constantemente do centro de detenção. Dois ingleses tinham morrido no dia anterior: uma mulher muito enfaixada a quem não permitiram que Jim visse e um velho com malária, um inspetor aposentado da policia de Xangai.

Se ao menos ele pudesse descobrir para qual dos doze campos em torno de Xangai seus pais tinham sido enviados... Saiu de onde estava e tentou falar com o Sr. Partridge, mas o velho missionário estava mergulhado em si mesmo. Jim aproximou-se das duas eurasianas sentadas a alguns bancos de distância atrás dele. Mas, como sempre, balançaram as cabeças e fizeram gestos bruscos afastando-o.

- Nojento!...

- Sujo!...

- Vá embora!...

Invariavelmente gritavam com Jim e tratavam de manter os filhos longe dele. Às vezes imitavam sua voz durante as febres. Jim sorriu-lhes e voltou para sua cadeira. Sentia-se cansado, como acontecia com freqüência, e pensou em descer ao depósito e dormir durante uma hora no seu colchão. Porém uma refeição de arroz cozido era servida de tarde e, no dia anterior, quando se sentira febril, tinha perdido sua ração. Ficava surpreso de como aquela gente velha e doente conseguia levantar-se na hora da refeição. Ninguém tinha pensado em acordá-lo e nada era deixado na marmita de metal. Quando protestou, o soldado coreano lhe deu um cascudo. Jim tinha certeza de que as eurasianas que cuidavam dos sacos de arroz na bilheteria lhe estavam dando menos que sua parte. Desconfiava de todas e de seus filhos estranhos, que pareciam quase ingleses mas só falavam chinês.

Jim estava decidido a obter sua porção de arroz. Sabia que estava mais magro que antes da guerra e que até seus pais reconheceriam isso. Na hora das refeições, quando se olhava nas vidraças rachadas da bilheteria, mal se reconhecia, o rosto comprido, com as órbitas fundas e a testa saliente. Jim evitou os espelhos: as eurasianas o olhavam sempre pelos seus espelhos de maquilagem.

Resolvendo pensar em alguma coisa útil, Jim deitou-se no banco de teca. Ficou vendo uma voadeira Kawanishi atravessar o rio. O barulho do seu motor era reconfortante e lembrava-lhe todos os seus sonhos de voar. Quando estava faminto ou. sentia saudade dos pais, freqüentemente sonhava com aeronaves. Durante uma de suas febres tinha chegado mesmo a ver o vôo de bombardeiros americanos no céu sobre o centro de detenção.

Um apito soou no pátio ao lado da bilheteria. O sargento japonês responsável pelo centro de detenção estava segurando outra de suas listas de chamada. Jim tinha percebido que ele parecia incapaz de lembrar os nomes dos prisioneiros por mais de meia hora. Jim segurou a mão do Sr. Partridge e, juntos, acompanharam as duas eurasianas. Um caminhão militar tinha estacionado na entrada do cinema, cujos altos muros de tijolos tinham escondido os filmes da visão dos chineses dos blocos de edifícios vizinhos. Nos intervalos entre os apitos do sargento, Jim ouviu o choro de uma criança inglesa.

Havia chegado um novo grupo de prisioneiros. Invariavelmente, isso significava que outros partiriam. Jim ficou certo de que estaria a caminho dentro de instantes, provavelmente para novos campos em Hungjao ou Lunghua. No depósito, ele e os velhos ainda capazes de ficar em pé esperaram, ao lado dos seus colchões, cada um segurando sua marmita. Ouviu os recém-chegados sendo retirados do transporte. Irritantemente, havia inúmeras criancinhas que choravam sem parar e distraíam os japoneses da séria tarefa de decidir para onde Jim seria enviado.

Seguido de dois soldados armados, o sargento japonês estava parado na soleira da porta. Todos três tinham no rosto máscaras de algodão - havia um cheiro pútrido vindo do jovem belga adormecido no chão - porém o sargento inspecionava cuidadosamente cada homem em volta e contava a quantidade exata de marmitas. A ração diária de arroz ou batata-doce era destinada ao recipiente de metal e não à pessoa ligada a ele. Freqüentemente, quando o Sr. Partridge ficava cansado, após alimentar a mulher, Jim recebia a ração por ele. Uma vez, sem perceber, tinha começado a comer a papa rala. Jim ficou embaraçado e olhou para as mãos culpadas. Partes de sua mente e corpo repetidamente separavam-se umas das outras.

Para disfarçar o tique em seu rosto, riu alegremente para o sargento japonês e procurou parecer forte e saudável. Só os mais saudáveis estavam aptos a deixar o centro de detenção. Porém, como de costume, o sargento pareceu deprimido pelo alegre olhar de Jim. Deu um passo para o lado quando os recém-chegados entraram no depósito. Dois maqueiros chineses da prisão carregavam uma padiola com uma inglesa desmaiada, usando um vestido de algodão manchado. Estava estendida, com o cabelo molhado na boca, enquanto seus dois filhos, garotos com a idade de Jim, seguravam os lados da padiola. Um trio de mulheres mais velhas passou coxeando, inseguras por causa do cheiro e da luz cinzenta. Atrás delas, um soldado alto, calçando botas cheias de protuberâncias e calções do exército inglês. Estava de peito nu e suas costelas salientes pareciam uma gaiola de passarinho, na qual Jim quase pôde ver seu coração adejando.

- Bravo, rapaz...

Deu a Jim um sorriso forçado e bateu-lhe na cabeça. Sentou-se depressa encostado na parede, com o rosto cadavérico virado para o cimento úmido. Uma segunda parelha de maqueiros depositou uma padiola no chão ao lado dele. De um berço de palha trançada, ergueram um homem pequeno, de meia-idade, com um casaco de marinheiro sujo de sangue. Tiras de ataduras de papel de arroz tinham sido colocadas nos ferimentos de suas mãos inchadas, rosto e testa.

Jim olhou para aquele vulto desamparado e ergueu o braço até a boca para tampar o cheiro desagradável. Inúmeras eurasianas estavam saindo do campo de detenção com os filhos. Olhando em volta os doentes e moribundos no depósito e para os maqueiros e soldados japoneses com sua? máscaras de algodão, Jim percebeu pela primeira vez a verdadeira finalidade do centro de detenção.

O Sr. Partridge e os velhos ficaram ao lado dos seus colchões, sacudindo seus pratos na direção dos guardas, pedindo a refeição da noite. O marinheiro ferido fez um sinal a Jim com suas mãos enfaixadas, batendo num recipiente vazio com o mesmo ritmo usado pelo mendigo moribundo fora dos portões da Avenida Amherst. Mesmo o soldado macilento tinha achado a tampa de uma marmita de metal. Com o rosto encostado na parede, batia com a tampa no chão de pedra.

Jim começou a tagarelar com o japonês olhando através de sua máscara branca. Contudo, até o instante em que esteve quase se desesperando de jamais encontrar os pais, sentiu um impulso de esperança. Ajoelhou-se no chão e tirou a marmita do marinheiro ferido, percebendo um leve perfume de colônia e certo agora de que, juntos, podiam deixar o centro de detenção e chegar à segurança dos campos de prisioneiros.

- Basie! - gritou. - Está tudo bem!

 

Aeronave Americana

- A guerra vai acabar logo, Basie. Vi aviões americanos, bombardeiros Curtiss e Boeings...

- Boeings?... Jim, você está...

- Não fale, Basie. Agora estou trabalhando para você, igual a Frank.

Jim agachou-se ao lado do marinheiro americano, tentando lembrar as amahs da sua primeira infância. Ele nunca tinha se preocupado com coisa alguma antes, exceto um coelho angorá que tinha morrido tragicamente em alguns dias. Inclinou a marmita e procurou derramar um pouco de água na boca de Basie, depois mergulhou os dedos no líquido escuro e deixou Basie chupá-los.

Havia três semanas que Jim se dedicava ao camaroteiro, levando-lhe a ração de arroz cozido e batatas-doces, apanhando água na torneira do corredor. Ficava horas sentado ao lado de Basie, abanando o marinheiro estendido no colchão sob a bandeira da porta. A corrente de ar fresco o revigorou logo e,. uma a uma, ele retirou as ataduras de papel flutuando de seu rosto e pulsos. Auxiliado por Jim, afastou o colchão do soldado inglês que agonizava contra a parede. Em uma semana, tinha recobrado forças bastantes para ficar de olho nos guardas japoneses e nas idas e vindas da eurasiana que cozinhava para os prisioneiros.

Enquanto limpava a marmita de Basie, Jim ficou imaginando se o marinheiro realmente o reconheceu. Saberia ele que Jim tinha dado um jeito de enganá-lo? Talvez ele denunciasse Jim aos outros prisioneiros, mas havia pouca possibilidade de poder fazê-lo. Aliviado por ter, finalmente, um aliado na luta contra a eurasiana, apoiou a cabeça nos joelhos.

Sentiu Basie cutucá-lo com a marmita.

- Hora da comida, Jim. Fique na fila. - Tão logo Jim sentou, esperando que não tivesse falado dormindo, Basie limpou um pouco da sujeira do rosto. Os olhos argutos do camaroteiro examinaram detalhadamente o estado lamentável em que Jim se encontrava. – Torne - se útil para a Sra. Blackburn, Jim. Agradeça-lhe. Uma mulher sempre necessita de ajuda para acender o fogo.

De certa forma, durante suas visitas à latrina, Basie tinha aprendido o nome da eurasiana. Jim saiu correndo do depósito com as duas marmitas. Os outros prisioneiros o seguiram, os velhos agitando-se em seus colchões. O Sr. Partridge tirou a marmita da mão do soldado inglês, que estava sentado numa poça de urina junto à parede.

Saía fumaça do pátio atrás da bilheteria. A eurasiana abanava os alimentos no fogão, mas o arroz e as batatas-doces tinham sumido. Um soldado japonês olhou com tristeza para a lavagem tépida e balançou a cabeça para os prisioneiros esfomeados. Estes se arrastaram entre os bancos de teca do cinema, sentaram-se e ficaram olhando para a fumaça que deslizava pela tela vazia.

Segurando as marmitas, Jim movimentou-se em torno da Sra. Blackburn e dedicou-lhe seu mais caloroso sorriso. Ela não gostava de Jim, mas permitiu-lhe rachar a lenha. Empurrou as achas para o fogão e soprou com força para acendê-las. Abanou as cinzas até que a lenha tornasse a queimar. Meia hora depois, com a aprovação dos soldados japoneses, Jim foi recompensado com sua primeira ração decente.

Basie ficou contente, mas não impressionado. Depois de terminar de comer, apoiou-se nos cotovelos. Olhou seus companheiros de prisão, alguns cansados demais para fazerem suas refeições e arrancou as últimas ataduras de papel dos cortes acima dos seus olhos. O que quer que lhe tivesse acontecido na Prisão Central de Xangai - e Jim jamais ousaria perguntar a respeito de Frank - tinha novamente se tornado o ex-camaroteiro da Cathay-America Line, pronto a reunir uma pequena parte de um mundo periclitante em torno de si mesmo. Tornou a vigiar Jim, suas roupas andrajosas e aparência de espantalho, seus olhos amarelados e fundos. Sem comentário, deu a Jim um pedaço da casca da batata.

- Ora, obrigado, Basie.

- Estou cuidando de você, Jim. Jim devorou o presente.

- Você está cuidando de mim, Basie.

- Ajudou a Sra. Blackburn?

- Procurei agradá-la. Tornei-me muito útil à Sra. Blackburn.

- Muito bem. Se encontrar um jeito de ajudar as pessoas, vai se dar bem.

- Como este pedaço de batata... Basie, quando estava na Central de Xangai, alguém fez referência a meu pai e minha mãe?

- Acho que ouvi alguma coisa, Jim. - Basie pôs as mãos em concha, com ar conspirador. - Boas notícias, eles estão em um dos campos e esperando ver você. Vou encontrá-los para você.

- Obrigado, Basie!

Depois disso, Jim passou a ajudar regularmente a Sra. Blackburn. Todas as manhãs, acordava de madrugada para retirar a cinza do fogão, rachar lenha e colocar as achas. Muito antes da água no caldeirão começar a ferver, Jim já havia marcado as batatas-doces para Basie e para ele, separando as que tivessem menos machucados e fungos. Viu que a Sra. Blackburn servia-lhe o melhor arroz, no qual, por sugestão de Basie, tinha posto cuidadosamente o mínimo de água. Após a refeição, enquanto os outros prisioneiros enxaguavam suas marmitas na torneira da latrina, Basie sempre mandava Jim encher suas marmitas com a água morna no caldeirão das batatas. Basie insistia que ele e Jim bebessem unicamente aquele líquido escuro e forte.

Entretanto, como os demais, Basie nunca deixou que Jim se aproximasse muito dele, mas aprovava claramente os esforços do menino. Ao fim da sua segunda semana no centro de detenção, Basie permitiu-lhe levar seu colchão para perto dele. Deitado aos pés de Basie, Jim podia interceptar a Sra. Blackburn em sua ida para a bilheteria.

- Esteja sempre ativo, Jim. - Basie estava deitado enquanto o menino o abanava. - O que quer que aconteça, continue andando pelo pátio. Seu pai concordaria comigo.

- De fato, ele concordaria com você. Depois da guerra, vocês poderão jogar tênis juntos. Ele é muito bom mesmo.

- Bem... O que eu quis dizer, Jim, é que estou tentando continuar sua educação. Seu pai irá gostar.

- Acho que lhe dará uma recompensa, Basie. - Jim presumiu que a idéia de uma recompensa instigaria Basie na procura de seu pai. - Uma vez ele deu cinco dólares a um motorista de táxi que me levou de Hongkew para casa.

- Foi, Jim? - Às vezes, Basie ficava em dúvida sobre se Jim estava se divertindo à sua custa. - Diga-me, viu algum avião hoje?

- Um Nakajima Xoki e um Zero-Sen.

- E americanos?

- Não tornei a vê-los. Desde que você chegou, Basie. Vi-os durante três dias e depois desapareceram.

- Imaginei isso. Deve ter sido uma forma especial de vôo de reconhecimento.

- Para ver como estamos todos aqui? De onde vêm eles, Basie? Da Ilha de Wake?

- É uma longa viagem, Jim. Devem ter dado o máximo de sua capacidade. - Basie tirou o leque das mãos do menino. Um velho australiano tinha chegado para conversar com Basie sobre a guerra. - Vá ajudar a Sra. Blackburn e não se esqueça de cumprimentar o Sargento Uchida.

- Sempre cumprimento, Basie.

Jim andou para lá e para cá em torno da conversa, esperando ouvir as últimas novidades, mas ambos o mandaram embora. Basie estava surpreendentemente bem informado sobre o andamento da guerra, a queda de Hong Kong, Manila e das índias Orientais Holandesas, a rendição de Cingapura e o contínuo avanço do Japão através do Pacífico. As únicas boas notícias eram os vôos dos aviões americanos que Jim vira sobre Xangai, mas por um motivo que Basie nunca mencionou. Ele gostava de falar em segredo contando aos velhos ingleses coisas sobre os outros ocupantes da Prisão Central de Xangai, que tinham morrido e sido entregues à Cruz Vermelha Suíça. Basie chegou mesmo a vender uma informação em troca de pequenas quantidades de comida. O Sr. Partridge deu-lhe sua batata em troca de notícias de seu cunhado em Nanquim. Inspirado nisto, Jim tentou contar à Sra. Blackburn sobre os aviões americanos, porém ela apenas mandou-o de volta às achas.

Agora que se sentia mais forte, Jim percebeu como era importante ser obcecado por comida. Divididas irmãmente entre os prisioneiros, suas rações diárias não eram suficientes para mantê-los vivos. Muitos tinham morrido e quem se sacrificasse pelos outros também morreria logo. O único meio de sair do centro de detenção era manter-se vivo. Enquanto fizesse recados para Basie, trabalhasse duro para a Sra. Blackburn e se inclinasse diante do Sargento Uchida, tudo iria bem.

Não obstante, algumas das astúcias de Basie deixavam o menino em dúvida. Na manhã da morte da Sra. Partridge, Basie soube de notícias encorajadoras a respeito do irmão dela em Nanquim e logo depois estava em condições de vender as escovas de cabelo da velha para a Sra. Blackburn. Sempre que alguém morria, Basie estava à mão com notícias e conforto, apesar da morte ser um termo elástico para o camaroteiro, aberto a todo tipo de interpretações. Jim apanhou as rações do soldado Blake durante dois dias após ele ficar imóvel no chão do depósito, a pele esticada sobre as costelas como papel de arroz cobrindo uma lanterna. Ele sabia que o praça tinha morrido da mesma febre que ele e outros prisioneiros a tinham apanhado. Mas imediatamente Jim começou a olhar para as velhas missionárias com olhos esperançosos, aguardando que a febre recrutasse os velhos. Anteriormente, ele e Basie tinham admitido sua participação nesse esquema de ração suplementar, eliminada toda a culpa.

Jim notou como Basie era diferente do seu pai a esse respeito. Em casa, se ele fizesse alguma coisa errada, as conseqüências sobrepunham-se a tudo durante dias. Com Basie, desapareciam instantaneamente. Pela primeira vez na vida, Jim sentiu-se livre para fazer o que quisesse. Toda espécie de idéias caprichosas passavam em sua mente, alimentadas pela fome e pela excitação de roubar os velhos prisioneiros.

Quando descansava entre as tarefas que fazia defronte da tela vazia do cinema, pensava nos aviões que tinha visto nas nuvens sobre Xangai. Quase podia evocá-los em sua visão, uma flecha de prata na parte mais distante do céu. Jim os via melhor quando estava com fome e esperou que o soldado Blake, que devia estar muitas vezes esfomeado, também os visse.

 

A Caminho dos Campos

No dia da morte da inglesa, um carregamento fresco de prisioneiros chegou ao centro de detenção. Jim estava na soleira da porta do depósito das mulheres, quando a Sra. Blackburn e a filha do velho holandês procuravam consolar os dois meninos, de olhos fixos na mãe que jazia no chão de pedra, na sua camisola encharcada, como uma afogada retirada do rio. Os filhos continuavam virados para ela, como se esperassem que ela lhes desse suas últimas instruções. Jim sentiu pena dos meninos, Paul e David, embora mal os conhecesse. Pareciam muito mais moços que Jim, mas na verdade eram mais de um ano mais velhos.

Jrm tinha os olhos pregados na marmita e nos tênis da morta. A maioria dos prisioneiros aliados tinham sapatos muito melhores que os soldados japoneses e ele tinha reparado que os corpos que saíam do campo de detenção tinham os pés nus. Mas quando se introduziu silenciosamente no depósito, ouviu um apito agudo vindo do pátio e uma série de berros. O Sargento Uchida estava chegando ao pico da raiva que precisava atingir para fazer cumprir a mais simples instrução. Com máscaras nos rostos, os soldados japoneses começaram a tocar dos depósitos todos que pudessem andar. Um caminhão tinha parado na porta do cinema e os prisioneiros estavam indecisos na estrada.

Todas as intenções de Jim a respeito dos tênis da morta tinham sumido da sua cabeça. Finalmente, iria seguir para os campos nos arredores de Xangai. Passando apressadamente pelos dois garotos, Jim mergulhou entre os guardas e correu degraus acima. Formou ao lado dos seus companheiros de prisão: o Sr. Partridge, com a maleta da mulher, como se estivesse carregando a lembrança dela numa longa viagem, Paul e David, a holandesa e seu pai, e muitas das velhas missionárias. Basie ficou atrás dele, com as faces lívidas ocultas pela gola da sua japona, tão bem dissimulado que estava quase invisível. Tinha se apagado do pequeno mundo do centro de detenção, que havia manipulado durante algumas semanas e tornaria a surgir como um parasita marinho da sua concha assim que atingisse o terreno, muito mais suculento dos campos de prisioneiros.

Os recém-chegados apareceram, duas anamitas e um grupo de ingleses e belgas mais idosos, os doentes e anciãos carregados em maças pelos padioleiros chineses. Examinando seus olhos amarelos, Jim viu que, breve, haveria marmitas extras.

Com a máscara de algodão enfiada até o nariz, o Sargento Uchida começou a escolher os prisioneiros que iriam para os campos. Sacudiu negativamente a cabeça para o Sr. Partridge e chutou a maleta dele, irritado. Apontou para a holandesa e seu pai, Paul e David e dois idosos casais de missionários.

Jim lambeu os dedos e limpou a fuligem do rosto. O sargento empurrou Basie para o caminhão. Sem olhar para Jim, o camaroteiro subiu entre os guardas, os braços nos ombros dos dois meninos.

O Sargento Uchida apertou os dedos contra a testa franzida de Jim. Com suas constantes curvaturas e sorrisos, sua ânsia de ser útil, Jim tinha sido um constante aborrecimento para o sargento, que demonstrava uma evidente alegria por se ver livre dele. Então deu uma olhada nos recém-chegados, que olhavam com ar indiferente para o fogão apagado e para os restos do arroz cozido na beirada do recipiente.

O sargento fechou as mãos no pescoço de Jim. Com um grito abafado pela máscara de algodão, empurrou-o para o fogão. Assim que Jim levantou-se, o sargento chutou os sacos de carvão, espalhando os pedaços pelo chão de pedra.

Jim limpou a fornalha. Os recém-chegados andaram entre os bancos e sentaram-se de frente para a tela vazia do cinema, como que esperando o começo da exibição. Basie e o casal holandês, Paul e David e os velhos missionários ficaram na rua, na traseira aberta do caminhão, olhados à distância por uma multidão de cules de jinriquixás e camponesas.

- Basie!... - gritou Jim. - Ainda trabalho para você!... Mas o camaroteiro tinha perdido o interesse nele. Já havia feito camaradagem com Paul e David, introduzindo-os em seu séquito. Eles ajudaram Basie, quando este subiu na traseira do caminhão com os joelhos feridos.

- Basie!...

Jim desembaraçou-se brutalmente. Olhou para a tela do cinema, atravessada pelas primeiras sombras dos hotéis de Xangai. Um soldado japonês mascarado contava um monte de marmitas. A medida que os prisioneiros feridos eram carregados em suas maças, Jim percebeu que a maior parte dos companheiros do centro de detenção tinha sido enviada para lá porque eram muito velhos ou esperavam que morressem, seja de disenteria, seja de tifo ou outra febre qualquer que ele e o soldado Blake tinham pegado na água contaminada. Tinha a certeza de que muitos dos prisioneiros iriam morrer breve e, se ele ficasse no centro de detenção, pereceria com eles. As anamitas já haviam recolhido as marmitas do soldado. Estavam apontando para o fogão e para os sacos de carvão. Quando se ocupassem com a confecção do arroz e das batatas-doces, não dariam a Jim sua ração justa. Ele tornaria a ver os aviões americanos e morreria.

- Basie!...

Jim largou a peneira. O resto dos prisioneiros que partiam tomou seus lugares no caminhão. O soldado japonês na traseira depositou a holandesa no fundo de madeira do caminhão. Basie sentou-se entre os dois meninos ingleses, fazendo um brinquedo com um pedaço de arame que tinha na mão. O caminhão deu a partida, avançou um metro e parou. O motorista japonês gritou da janela. Sacudiu um mapa emoldurado e socou a porta de metal. Os guardas na rua gritaram de volta, ansiosos para fechar os portões do centro de detenção e descansar na sala dos ordenanças. Então o motor enguiçou e ouviu-se um clamor imediato de vozes zangadas, os soldados e o motorista discutindo sobre o destino do caminhão.

- Wusung...

O Sargento Uchida retirou a máscara de algodão. Seu rosto estava ficando rubro e gotas de saliva apareceram em seus lábios, como pus saindo de um ferimento. Já furioso com o motorista, caminhou pelos portões abertos. O motorista tinha saído de sua cabina, inconsciente da tempestade prestes a se abater sobre ele. Sacudiu o mapa e esticou-o no pára-lama do caminhão, encolhendo os ombros, desesperado diante do labirinto das ruas vizinhas.

Jim seguiu o Sargento Uchida até os portões. Viu que nem o sargento nem o motorista japonês tinham a menor idéia das vizinhanças de Wusung, um distrito agrícola no estuário do Yangtze, que ficava além dos subúrbios ao norte de Xangai. O motorista apontava para o Bund e Nantao e entrou em sua cabina. Sentou-se passivamente quando o Sargento Uchida apareceu entre os guardas, aborrecido, e começou a gritar asperamente com ele.

Parado ao lado dos guardas, Jim esperou que o Sargento Uchida atingisse o clímax de sua raiva, quando viu-se forçado a tomar uma decisão. Bastante seguro, o sargento examinou a compacta silhueta de edifícios e armazéns e depois apontou ao acaso para uma rua calçada, onde havia trilhos fora de uso. Sem se impressionar, o motorista pigarreou. Com um gesto de cansaço, ligou o motor e escarrou na estrada, aos pés de Jim.

- Em frente!... - gritou-lhe Jim. - Wusung... é para lá!... Apontou para a rua com os trilhos enferrujados.

O Sargento Uchida deu-lhe um murro, machucando-lhe as orelhas. Repetiu o gesto, tirando-lhe sangue da boca. Nesse momento, uma nuvem de fumaça surgiu nos portões. As anamitas tinham acendido o fogão com lenha molhada e a fumaça inundou o cinema ao ar livre, deslizando pelos bancos, como se a tela estivesse incendiada.

Contente por se livrar de Jim, o Sargento Uchida agarrou-o com suas mãos poderosas. Atirou-o na traseira do caminhão, gritando para o guarda japonês sentado entre os prisioneiros. O soldado arrastou Jim por cima do colo da holandesa e de seu pai. Assim que o caminhão se afastou do centro de detenção, as rodas já ajustadas aos trilhos, Jim pulou para a cabina dianteira camuflada. Firmou-se sobre o telhado inclinado e não tomou conhecimento da torrente de insultos que o motorista lhe berrava. Ergueu a boca ensangüentada para o vento, deixando que os odores deletérios de Xangai enchessem seus pulmões, contente por estar novamente à procura dos pais.

 

A Ração de Água

Estavam perdidos? Durante uma hora, enquanto rodavam pelos subúrbios industriais ao norte de Xangai, Jim ficou agarrado à barra de madeira detrás da cabina, com a cabeça cheia de cálculos de direção. Riu interiormente, esquecendo a doença e as semanas horríveis do cinema ao ar livre. Seus joelhos sofriam com o balanço contínuo e de vez em quando tinha de se agarrar ao cinto de couro do soldado japonês ao seu lado. Mas finalmente estava viajando em direção à zona rural e o mundo bem-vindo dos campos de prisão.

Às infindáveis ruas de Chapei sucederam-se uma área de edificações e cotonifícios abandonados, barracas de policiais e favelas construídas nos barrancos dos canais escuros. Prosseguiram sob as correias de teto de uma aciaria, enfeitadas com dragões que as escondiam, sonhos de fogo invocados de suas fornalhas silenciosas. Lojas de penhor fechadas alinhavam-se ao lado de estações de rádio e fábricas de cigarros e pelotões das tropas-fantoches chinesas patrulhavam a cervejaria Del Monte e o depósito de caminhões Dodge. Jim nunca tinha estado em Chapei. Lá, antes da guerra, um garotinho inglês tinha sido morto em poucos minutos por causa dos seus sapatos. Agora ele estava a salvo, protegido pelos soldados japoneses: riu tanto por causa disso que a holandesa estendeu o braço para acalmá-lo.

Mas Jim gostava do ar fétido, do cheiro de fertilizante humano dos recipientes abertos de esgoto que assinalavam a proximidade do subúrbio. Mesmo a hostilidade do motorista não conseguiu aborrecê-lo. Sempre que paravam num controle militar, o motorista punha a cabeça para fora da cabina e fazia um gesto ameaçador a Jim, como se aquele prisioneiro de onze anos de idade fosse o responsável por aquela viagem absurda.

Observando o ângulo do sol, como fizera durante horas no centro de detenção, Jim ficou certo de que estavam viajando para o norte. Passaram pelas ruínas da olaria de Chapei, com seus fornos em forma de fortes alemães de Tsingtao. Seu emblema continuava ao lado dos portões, uma enorme chaleira chinesa, da altura de três andares, inteiramente construída com tijolos verdes. Durante a guerra sino-japonesa de 1937, tinha sido perfurada pelo fogo e parecia agora com o globo terrestre esburacado. Milhares de tijolos tinham emigrado através dos campos adjacentes para as aldeias ao lado do canal, incorporados às cabanas e habitações, visão de uma China mágica rural.

Esses estranhos deslocamentos atraíam Jim. Pela primeira vez sentiu-se capaz de gozar a guerra. Olhou alegremente para os bondes e blocos de edifícios queimados, para as milhares de portas escancaradas para as nuvens, uma cidade vazia invadida pelo céu. Seu único desapontamento foi seus companheiros não participarem de sua excitação. Ficavam sentados tristemente nos bancos, olhando para o chão. Uma das missionárias jazia no fundo, cuidada por outro prisioneiro, um inglês de cabelo louro, com o rosto ferido, que segurava seu pulso com uma das mãos e comprimia o diafragma com a outra. Os dois meninos ingleses, mal conscientes da morte da mãe, estavam sentados entre Basie e o casal holandês.

Jim esperou até que Basie erguesse os olhos, mas o camaroteiro não parecia conhecê-lo. Sua atenção estava voltada para os dois meninos e tinha habilmente penetrado no vácuo de suas vidas. De uma página de um jornal chinês, modelou uma série de animais, gargalhando quando os garotos riam fracamente. Como um mágico depravado, Basie introduziu as mãos nos bolsos de suas calças e jaquetas escolares, procurando alguma coisa interessante.

Jim olhou-o sem ressentimento. Ele e Basie tinham colaborado no centro de detenção, com o objetivo de se manterem vivos. Mas Basie, honestamente, tinha se livrado de Jim tão logo pôde partir para os campos.

O caminhão bateu num buraco do calçamento, deslizou pela estrada e foi se chocar com uma rampa gramada. Tinham deixado os arredores setentrionais de Xangai e estavam entrando numa área de campos incultos e cheios de palha de arroz. Adiante de uma fileira de túmulos, a duzentos metros de distância, um canal corria para uma aldeia deserta. O motorista japonês saltou de sua cabina e curvou-se sobre as rodas dianteiras do caminhão. Começou a conversar com o motor fumegante, incluindo de vez em quando Jim nos seus resmungos. Tinha apenas vinte anos, mas havia claramente sofrido uma vida inteira de desespero. Jim conservou a cabeça abaixada, mas o motorista subiu no estribo, ergueu um dedo para ele e soltou um longo discurso, que soou como uma declaração de guerra.

O motorista voltou para seu lugar, resmungando sobre o mapa e Basie comentou:

- Olhe do jeito que quiser e continuaremos perdidos.

Sua atenção foi imediatamente afastada dos meninos para o que pudesse ganhar com a situação deles.

- Jim, você sabe para onde estão nos levando?

- Wusung. Estive lá no clube de campo, Basie. Jim ficou brincando com seus animais de papel.

- Estamos indo para o clube de campo - disse aos meninos. - Se Jim conseguir encontrá-lo para nós.

- Assim que chegarmos ao rio, Basie. Depois, fica a leste ou oeste.

- É uma grande ajuda, Jim. Leste ou oeste...

O inglês louro ao lado da missionária ficou de joelhos. Havia um grande ferimento sangrando em sua testa e no malar esquerdo, como se tivesse sido recentemente atingido pela coronha de uma carabina. Com alguma dificuldade, instalou-se no banco. As longas pernas sardentas surgiram do seu calção caqui, terminando num par de sandálias de couro. Quase chegando aos trinta, não tinha bagagem nem objetos, porém possuía os modos seguros dos oficiais da Armada Real, que causavam uma funda impressão nas festas ao ar livre de Xangai, provocando um arrepio nas mães dos amigos de Jim. Não ligava para o guarda japonês, falando como se ele fosse um simples criado que logo voltaria para seu alojamento. Jim concluiu que ele era um desses ingleses desagradáveis que se recusavam a compreender que tinham sido derrotados.

O homem tocou o ferimento do rosto e virou-se para Jim, cuja figura esmolambada apreciou sem comentário.

- Os japoneses capturaram tanta terra que os mapas lhes são inúteis - comentou amavelmente. - Jim, será que eles estão perdidos?

Jim meditou antes de responder.

- Na verdade, não. Apenas capturaram alguns mapas.

- Ótimo... nunca se deve confundir o mapa com o território. Você nos levará a Wusung.

- Não podemos voltar para o centro de detenção, Dr. Ranso-me? - perguntou um dos missionários. - Estamos muito cansados.

O médico olhou para os campos de arroz abandonados e para a velha prostrada a seus pés.

- Pode ser melhor assim. Esta pobre alma não agüenta muito mais.

O caminhão tornou a andar, dirigido a meia velocidade estrada abaixo. Jim voltou para seu posto de observação sobre a cabina do motorista e esquadrinhou os campos à procura de alguma coisa que pudesse mesmo remotamente parecer Wusung. As palavras do médico não o preocuparam. Mesmo que estivessem perdidos, como poderia ele fazê-los retornar ao centro de detenção?

Jim sabia que a fúria do Sargento Uchida tornava improvável que o motorista ousasse voltar. Mas ficou de olho no Dr. Ransome, tentando adivinhar se ele falava bastante japonês para virar a cabeça do motorista. Parecia ter dificuldades de visão, especialmente quando olhava para Jim, com um curioso olhar de soslaio. Achou que ele tinha entrado na guerra num estágio mais avançado que o de Basie e ele mesmo. Era provavelmente oriundo de um dos estabelecimentos missionários do interior e não tinha nenhuma idéia do que acontecia no centro de detenção.

Mas tinham perdido o rumo ou continuavam nele? A direção das sombras lançadas pelos postes telegráficos à margem da estrada pouco tinha mudado: Jim tinha sido sempre interessado em sombras, desde que seu pai lhe tinha mostrado como calcular o peso ou mesmo a altura de um prédio medindo com passos sua sombra no chão. Continuavam indo para noroeste e logo chegariam à ferrovia Xangai - Wusung. Começou a sair fumaça do radiador do caminhão. O borrifo refrescou o rosto de Jim, mas o punho do motorista socou a porta, numa advertência e Jim percebeu que ele estava resolvendo quando parar e voltar para Xangai.

Conformando-se com a viagem perdida e com sua volta ao centro de detenção, Jim examinou a carabina de repetição do guarda e seu capacete em forma de crisântemo imperial. A holandesa puxou seu casaco sujo de fuligem.

- Ali, James. É ali?...

Um avião incendiado jazia nas margens de um canal fora de uso. Capim e espinheiro cresciam entre as asas, quase invadindo a nacele, mas o emblema do esquadrão ainda era legível.

- É um Nakajima - disse para a Sra. Hug, contente por partilhar aquele interesse em identificar aviões. - Tem só duas metralhadoras.

- Só duas? Mas parece mais...

A holandesa parecia impressionada, porém Jim tinha desviado sua atenção do aparelho. Na parte mais afastada do campo, oculto pelos espinheiros, estava o aterro de uma linha férrea. Um pelotão de soldados japoneses descansava na plataforma de cimento de uma estação lateral, preparando uma refeição numa fogueira de gravetos. Um carro de estado-maior camuflado estava estacionado ao lado dos trilhos. Estava cheio de rolos de arame, que os engenheiros sinaleiros estavam recolocando entre os postes telegráficos.

- Sra. Hug... esta é a ferrovia para Wusung!

Com a fumaça inundando a cabina do motorista, o caminhão parou. Começou a virar em sentido contrário. Ao lado de Jim, o guarda japonês estava acendendo um cigarro pelo retorno da viagem. Jim puxou seu cinto e apontou através do campo de arroz. O soldado acompanhou seu braço estendido e depois empurrou-o para o chão. Gritou para o motorista, que atirou a maleta com o mapa sobre o assento a seu lado. Com o motor fumegante, o caminhão deu uma freada, fez meia-volta e começou a se dirigir para a estação rodoviária pela estrada de areia.

O Dr. Ransome sustentou os meninos ingleses quando eles escaparam das mãos de Basie e cambalearam de encontro à missionária. Ajudou Jim a levantar-se.

- Bom trabalho, Jim. Eles devem ter água para nós: você deve estar sedento.

- Um pouco. Eu bebi no centro de detenção.

- Foi uma boa idéia. Quanto tempo você esteve lá? Jim tinha esquecido.

- Bastante tempo.

- Posso imaginar. - O Dr. Ransome tirou o pó do casaco de Jim. - Foi a um cinema antes?

- Mas não exibiam filmes.

- Posso imaginar.

Jim recostou-se, apalpando os joelhos e olhando para a Sra. Hug. Os prisioneiros estavam largados nos bancos defronte uns dos outros, sacudidos para cá e para lá como bonecos em tamanho natural que tivessem perdido o recheio. Longe de reanimá-los, a viagem de Xangai fê-los parecerem doentes e nervosos. Mas Jim sorriu para o avião enferrujado na beira do canal. Agora não havia mais perigo de voltarem para o centro de detenção. O soldado japonês atirou fora o cigarro e segurou a carabina numa postura militar. Um cabo sinaleiro pulou da plataforma da ferrovia e atravessou os dormentes.

- Sra. Hug, acho que não vamos voltar para Xangai.

- Não, James: você deve ter olhos muito aguçados. Quando crescer poderá ser piloto.

- Provavelmente serei. Já estive num avião, Sra. Hug. No aeródromo de Hungjao.

- E ele voava?

- De certa maneira, sim.

Confidencias feitas a adultos freqüentemente iam além do que Jim pretendia. Tinha percebido que o Dr. Ransome o estava observando. O médico estava sentado ao lado do pai da Sra. Hug, cuja respiração penosa ele estava tentando melhorar. Porém seus olhos estavam fixos em Jim, em suas pernas magrelas, suas roupas andrajosas e no seu pequeno rosto excitado. Quando chegaram aos trilhos da ferrovia, deu um sorriso encorajador a Jim, que achou melhor não retribuir. Sabia que, por algum motivo, o Dr. Ransome não o aprovava. Porém o médico não tinha estado no centro de detenção.

Pararam junto aos trilhos. O motorista fez continência para o cabo e acompanhou-o até a estação, onde ele abriu o mapa sobre o gabinete do telefone de campanha. Os prisioneiros ficaram no calor do sol, enquanto o cabo apontava para os campos ressequidos. Uma nuvem de poeira elevou-se do solo inculto, um véu branco que velou os distantes arranha-céus de Xangai. Um comboio de caminhões japoneses rodava pela estrada, um breve ruído que misturou-se ao roncar distante de um avião de transporte.

Jim trocou de banco e sentou-se ao lado da Sra. Hug, que amparava o pai idoso contra o peito. Duas das missionárias estavam deitadas no chão do caminhão, enquanto outros prisioneiros cochilavam ou se lamuriavam. Basie tinha perdido o interesse nos meninos ingleses e estava observando Jim por cima da gola suja de sangue do seu casaco.

Milhares de moscas zumbiam em torno do caminhão, atraídas pelo suor e urina escorrendo sobre as tábuas de madeira. Jim esperou o motorista voltar com seu mapa, porém ele sentou-se sobre dois fardos de fios telefônicos, conversando com dois soldados que preparavam a refeição do meio-dia. Suas vozes e o crepitar da madeira queimando, conduzidos pelos trilhos de aço, eram aumentados pela cúpula de luz que os envolvia.

Jim impacientava-se no banco à medida que o sol queimava sua pele. Podia ver o mais ínfimo detalhe de tudo o que o cercava, as placas de ferrugem nos trilhos da ferrovia, as folhas denteadas dos espinheiros ao lado do caminhão, o solo branco suportando o peso dos pneus carecas. Jim contou os fios de barba azulada em torno dos lábios do soldado japonês de vigia e as bolas de muco que aquele sentinela chateado chupava e impelia das narinas. Olhou a mancha de umidade espalhando-se em torno das nádegas de uma das missionárias no chão e as chamas que lambiam a panela na plataforma da estação, refletindo-se nas culatras lustrosas das carabinas ensarilhadas.

Apenas uma vez, antes, Jim tinha visto o mundo de maneira tão vivida assim. Os aviões americanos estariam para voltar? Com uma olhada exagerada, com o objetivo de aborrecer o Dr. Ransome, examinou o céu. Queria ver tudo, cada paralelepípedo nas ruas de Chapei, os jardins maltratados da Avenida Amherst, seus pais, todos juntos na luz prateada de um avião americano.

Sem pensar, Jim levantou-se e gritou. Mas o guarda japonês empurrou-o rudemente de volta ao banco. Os soldados na plataforma da ferrovia estavam sentados entre um amontoado de equipamentos de sinalização, atulhando as bocas de peixe com arroz. O cabo gritou para o caminhão, pulou por cima da missionária e desceu pela traseira. Apoiou a carabina na linha férrea e marchou, com sua baioneta calada, entre as folhas secas de cana-de-açúcar silvestre. Logo que conseguiu bastante cavacos para a fogueira, reuniu-se aos soldados na plataforma.

Durante uma hora, a fumaça mesclou-se à luz do sol. Jim ficou sentado no banco e espantou as moscas do rosto, ansioso para espiorar a estação ferroviária e o avião derrubado perto do canal. Sempre que alguém se mexia, o japonês berrava da plataforma e apontava o cigarro de forma ameaçadora. Os prisioneiros não tinham levado rações ou água com eles, mas havia no carro duas latas onde os soldados enchiam seus cantis.

Quando o pai da Sra. Hug foi forçado a deitar-se no chão, o Dr. Ransome protestou junto ao japonês. Parou meio desequilibrado na traseira do caminhão, ignorando o insulto e apontando para os passageiros exaustos a seus pés. O ferimento no rosto havia inflamado por causa do sol e das moscas e tinha um olho quase fechado. Parado ali estoicamente, lembrou a Jim os mendigos desfilando suas feridas nas ruas de Xangai. O cabo japonês não pareceu preocupado, porém, após uma descansada caminhada em torno do caminhão, permitiu que os prisioneiros descessem. Ajudados pelos maridos, Basie e o Dr. Ransome puseram as velhas no chão, onde ficaram na sombra entre as rodas traseiras.

Jim acocorou-se na terra branca, retraçando os desenhos dos pneus com uma vareta. Quantas vezes cada pneu teve de rodar para chegar até a lona? O problema, um dos muitos que o preocupavam incessantemente, era, na verdade, de solução fácil. Jim alisou a terra branca e começou uma operação de aritmética. Deu um grito de alegria quando a primeira fração foi resolvida e depois reparou que estava sozinho em pleno sol, entre o caminhão e o aterro da ferrovia.

Atendidos por um fatigado Dr. Ransome, os prisioneiros se amontoaram na sombra escassa sob a traseira do caminhão. Basie deixou-se cair sobre sua japona e ele e o velho pareciam tão mortos quanto os manequins jogados fora que Jim freqüentemente via no beco atrás da loja de departamentos da Sincere Company.

Precisavam de água ou um deles morreria e teriam todos de retornar a Xangai. Jim observou os japoneses na plataforma. A refeição havia terminado e dois dos soldados tinham desembrulhado um fardo de fio telefônico. Chutando uma pedra à sua frente, Jim caminhou para o aterro da ferrovia. Atravessou os trilhos e, sem parar, subiu para a plataforma de cimento.

Ainda saboreando a refeição, os japoneses estavam sentados em torno das brasas da sua fogueira. Ficaram olhando para Jim quando este se curvou e parou esperando, com as roupas em farrapos. Nenhum deles o mandou embora, porém Jim sabia que aquela não era a hora de lhes enviar o seu melhor sorriso. Compreendeu que o Dr. Ransome não poderia se aproximar dos japoneses logo depois da refeição sem ser espancado ou mesmo morto.

Esperou, enquanto o motorista falava com o cabo sinaleiro. Apontando insistentemente para Jim, expôs o que parecia ser um longo relatório sobre o enorme aborrecimento causado por aquele garotinho ao exército japonês. O cabo riu ao ouvir aquilo, bem-humorado, depois do peixe. Tirou da mochila uma garrafa de Coca-Cola e encheu-a pela metade de água tirada do seu cantil. Erguendo-a, fez sinal a Jim que se aproximasse.

Jim pegou a garrafa, curvou-se profundamente e recuou três passos. Disfarçando o sorriso, os japoneses o examinavam em silêncio. Ao lado do caminhão, Basie e o Dr. Ransome inclinaram-se da sombra, os olhos fixos no líquido da garrafa, iluminado pelo sol. Estavam evidentemente convencidos de que ele iria trazer a água e dividir aquela ração inesperada.

Cuidadosamente, Jim limpou a garrafa na manga de seu casaco. Levou-a aos lábios, bebeu lentamente, procurando não se engasgar, fez uma pausa e engoliu as últimas gotas.

Os japoneses caíram na gargalhada, divertindo-se muito. Jim riu junto, consciente de que só ele, entre os prisioneiros ingleses, tinha apreciado a piada. Basie esboçou um parco sorriso, mas o Dr. Ransome parecia perplexo. O cabo pegou a garrafa de Coca-Cola e encheu-a até o gargalo. Ainda rindo entre eles, os soldados puseram-se em pé e voltaram à tarefa de estender o fio telefônico.

Seguido pelo motorista e pelo guarda armado, Jim carregou a garrafa, atravessando os trilhos. Estendeu-a ao Dr. Ransome, que o olhou sem comentário. O médico bebeu rapidamente e passou o líquido tépido para os outros, ajudando o motorista a encher novamente as garrafas com o conteúdo do cantil. Uma das missionárias estava doente e vomitou a água no chão aos seus pés.

Jim retomou seu lugar atrás da cabina do motorista. Sabia que estava certo ao beber primeiro. Os outros, inclusive o Dr. Ransome e Basie, estavam sedentos, mas apenas ele tinha se preparado para arriscar tudo por algumas gotas d'agua. Os japoneses poderiam tê-lo atirado nos dormentes e quebrado suas pernas nos trilhos, como tinham feito com os soldados chineses que mataram na Estação Siccawei. Jim sentiu-se imediatamente diferente dos outros, que se tinham portado tão passivamente quanto os campônios chineses. Jim percebeu que estava mais próximo dos japoneses, que haviam tomado Xangai e afundado a esquadra americana em Pearl Harbor. Ouviu o ruído de um avião de transporte oculto pela névoa de poeira branca e tornou a pensar em tombadilhos de porta-aviões no Pacífico, em homenzinhos em roupas de vôo bufantes ao lado dos seus aviões não-blindados, prontos a correr qualquer risco além de sua própria vontade.

 

Uma Paisagem de Aeródromos

Assim que o motorista encheu de água o radiador do caminhão, o Dr. Ransome colocou a Sra. Hug no banco, ao lado dos meninos ingleses. Pareceu a Jim que as duas missionárias no chão estavam moribundas, com os lábios lívidos e os olhos semelhantes aos de um rato envenenado. As moscas enxameavam nos rostos delas, entrando e saindo de suas narinas. Após tê-las içado para o caminhão, o Dr. Ransome ficou cansado demais para socorrê-las e descansou os braços nos joelhos lerdos. Os maridos ficaram sentados lado a lado, resignados, como se o gosto por deitar no chão fosse uma pequena excentricidade partilhada por suas mulheres.

Jim inclinou-se sobre o telhado da cabina do motorista. Consciente do abismo que agora separava Jim dos seus companheiros de prisão, o Dr. Ransome adiantou-se e sentou no banco ao lado dele. O sol cheio de poeira e a longa viagem de Xangai tinham eliminado o pigmento de suas sardas. Apesar de seu peito e pernas fortes, ele estava mais cansado do que Jim imaginara. O sangue tinha irrompido dos ferimentos inflamados do seu rosto e começou a supurar em torno do seu olho.

Curvou-se e abriu espaço para o soldado japonês que se instalou ao lado de Jim.

- Bem, estamos nos sentindo melhor graças à água. Foi muita coragem sua, Jim. De onde vem você?

- Xangai!

- Está orgulhoso?

- Claro... - Jim arrastou os pés diante da pergunta, balançando a cabeça como se o Dr. Ransome fosse um médico da roça. - Xangai é a maior cidade do mundo. Meu pai disse que é mesmo maior que Londres.

- Esperemos que se mantenha assim... talvez haja ainda um ou dois invernos de fome. Onde estão seus pais, Jim?

- Eles se foram. - Jim meditou na resposta, pensando se valia a pena inventar uma história para o Dr. Ransome. Aquele jovem médico tinha um ar convencido que o desgostava, a mesma atitude exibida pelos recém-chegados da Inglaterra... Jim imaginou como os cinejornais britânicos tinham justificado a rendição de Cingapura. Podia facilmente imaginar o Dr. Ransome entrando numa disputa com os guardas japoneses, causando problemas para todos. Apesar de toda a sua exibição de espírito público, o médico tinha bebido mais que sua justa parte de água. Jim também notou que ele estava menos interessado nos velhos moribundos do que fingia. - Estão no Campo de Wusung - disse. - Sabe, estão vivos.

- Fico muito contente. Campo Wusung? Então poderá vê-los breve?

- Muito breve... - Jim passou os olhos pelos campos de arroz silenciosos. Ao pensamento de ver sua mãe, sorriu, ato que retesou os músculos de seu rosto. Ela não tinha a menor idéia de todas as suas aventuras nos últimos quatro meses. Mesmo que lhe contasse tudo, pareceria como uma daquelas tardes secretas antes da guerra, quando ele passeara de bicicleta por toda Xangai e voltara com histórias de arrepiar o cabelo, que ele nunca pudera contar. - Sim, vou vê-los breve. Quero que conheçam Basie.

O rosto pálido de Basie escondeu-se na gola da japona. Olhou cansado para os japoneses ao lado dos trilhos da via férrea, como que suspeitoso do que poderia lhes estar reservado naqueles campos nus.

- Terei prazer em conhecê-los, Jim. - Para o Dr. Ransome disse, sem nenhum entusiasmo: - Estive cuidando dele.

- Cuidou de mim. Basie tentou vender-me em Xangai.

- Tentou? Parece uma boa idéia.

- Para os negociantes de Hongkew. Porém eu não valia nada. Mas tomou conta de mim da mesma forma.

- Ele fez um bom trabalho.

O Dr. Ransome bateu nas costas de Jim. Passou a mão pela cintura do menino e apalpou seu fígado inchado, depois ergueu-lhe o lábio superior e examinou seus dentes.

- Está tudo bem, Jim. Eu estava procurando saber o que você tem comido. Todos nós teremos de plantar verduras em Wusung. Talvez os japoneses nos vendam uma cabra.

- Uma cabra?

Jim nunca tinha visto uma cabra, animal exótico de grande mau humor e independência, qualidades que ele admirava.

- Você se interessa por animais, Jim?

- Sim... não muito. Interesso-me mesmo é por aviação.

- Aviação? Aeroplanos, é o que quer dizer?

- Não exatamente. - Como que por acaso, Jim acrescentou: - Sentei-me na nacele de um avião de combate japonês.

- Você admira os pilotos japoneses?

- São corajosos...

- E isso é importante?

- É uma boa idéia quando se quer ganhar uma guerra.

Jim ficou ouvindo o distante zumbido de um avião. Ele desconfiava do médico, de suas longas pernas, suas maneiras britânicas e seu interesse em dentes. Talvez ele e Basie constituíssem um par de ladrões de cadáveres? Jim pensou na cabra que o Dr. Ransome queria comprar dos japoneses. Tudo o que tinha lido sobre cabras confirmava que eram criaturas difíceis e caprichosas. E isso sugeria que havia algo pouco prático a respeito do Dr. Ransome. Poucos europeus tinham dentes de ouro e os únicos mortos que o médico estaria apto a ver durante muito tempo seriam europeus.

Jim resolveu ignorar o Dr. Ransome. Ficou perto do guarda japonês, as mãos aquecidas pelo telhado camuflado da cabina do motorista. Tão logo eles partiram pela auto-estrada, os soldados começaram a caminhar pelos dormentes da ferrovia, desenrolando o fio telefônico. Estariam se preparando para lançar um papagaio capaz de levar um homem? O soldado mais distante já se havia perdido na névoa de poeira branca e seu vulto indistinto parecia surgir do solo. Jim sorriu intimamente, pensando que o soldado podia subitamente pairar no céu sobre suas cabeças. Ajudado pelo pai, Jim tinha empinado dúzias de papagaios no jardim da Avenida Amherst. Era fascinado pelos papagaios-dragões que flutuavam na retaguarda dos casamentos e funerais chineses e pelos de briga que flutuavam nos cais de Putung, mergulhando uns contra os outros com fios com navalhas e cerol. Porém o melhor de tudo eram os papagaios com homens voadores que seu pai tinha visto no norte da China, com uma dúzia de linhas seguras por centenas de homens. Um dia Jim voaria num desses papagaios, levado nas costas do vento...

O ar invadiu seus olhos lacrimejantes quando o caminhão aumentou a velocidade na estrada livre. Confiante no seu rumo, o motorista estava ansioso para entregar seus prisioneiros a Wusung e voltar a Xangai antes do crepúsculo. Jim estava fortemente agarrado ao telhado da cabina, enquanto os prisioneiros se amontoavam nos bancos atrás dele. Os dois maridos das missionárias já estavam sentados no chão e o Dr. Ransome ajudou a Sra. Hug a deitar-se sob o banco.

Jim, porém, havia perdido o interesse neles. Estavam entrando agora numa área de aeródromos militares. Essas antigas bases chinesas que, antigamente, protegiam o estuário do Yangtze, tinham sido ocupadas pelas forças aéreas do Exército e da Marinha. Passaram por uma base de aviões de combate destruída por uma bomba, onde engenheiros japoneses estavam soldando um novo telhado na concha de aço de um hangar. Uma fila de caças Zero estava pousada no campo de grama e um piloto preparado para voar andava entre as asas. Sem pensar, Jim acenou-lhe, mas o piloto perdeu-se entre as hélices.

Três quilômetros depois, além de uma aldeia vazia e seu pagode incendiado, foram atrasados por um comboio de caminhões carregando as asas e fuselagem de bombardeiros bimotores. Uma esquadrilha ao sol da tarde estava pronta para decolar e atacar os exércitos chineses a oeste. Toda aquela atividade deixava Jim excitado. Quando pararam no posto de controle militar na Estrada de Suchau, ele estava impaciente para se mexer. Sentou-se ao lado de Basie, esperando impacientemente, enquanto um sargento no kempetai conferia a lista de prisioneiros e o Dr. Ransome protestava por causa das condições das missionárias.

Logo depois, deixaram a auto-estrada e entraram em outra secundária, não pavimentada, que corria ao lado de um canal industrial. Passavam tanques japoneses, amarrados aos tombadilhos de barcaças motorizadas, enquanto sua tripulação de metralhadores dormia no convés. Normalmente, a imaginação de Jim teria se banqueteado com esses veículos de batalha, mas no momento só se interessava por aviões. Desejava ter voado com os pilotos japoneses que atacaram Pearl Harbor e destruíram a Frota do Pacífico dos Estados Unidos, ou ter viajado nos bombardeiros que tinham afundado o Repulse e o Prince of Wales. Talvez, quando a guerra acabasse, ele pudesse entrar para a Força Aérea Japonesa e ter o emblema do Sol Nascente pregado nos ombros, como os pilotos americanos que tinham voado com os Tigres Voadores e usado a bandeira da China Nacionalista em suas jaquetas de couro.

Apesar de suas pernas estarem exaustas, Jim ainda estava em pé atrás da cabina do motorista, na sua marcha para os portões do campo de internamento em Wusung. Na cabeça, tinha identificado o avião japonês da planície do Yangtze, certo de que, breve, tornaria a ver os pais. Um caça monomotor sobrevoou-os e subiu no céu crepuscular, levado pela cobertura dourada sob a parte inferior de suas asas. Jim ergueu os braços e deixou o sol cair sobre a tinta de camuflagem que manchava suas mãos e pulsos, imaginando que ele, também, era uma aeronave. Atrás dele, a holandesa tinha desmaiado no chão do caminhão. Ela jazia aos pés do pai, enquanto o Dr. Ransome e o soldado japonês tentavam erguê-la e colocá-la no banco.

Atravessaram uma ponte de madeira sobre um lago artificial e passaram pela sede incendiada do clube de campo, do qual só as falsas vigas Tudor de cimento pintadas não tinham pegado fogo. O casco de uma lancha de passeio jazia no raso, com o tombadilho cheio de juncos, que avançavam pela praia para as cinzas do hotel.

À frente deles, um caminhão militar estava virado nos portões de um pátio abandonado, no qual um incêndio ainda maior tinha começado recentemente. Soldados japoneses entediados vadiavam na frente do posto de guarda e olhavam um grupo de trabalhadores chineses pregando fios de arame farpado numa fileira de postes de pinheiro. Detrás da casa de guarda, ficava o edifício do escritório do empreiteiro, cercado de pilhas de pranchas e estacas de madeira para cercas e um abrigo de bambu onde um segundo grupo de cules cochilava em seus colchões ao lado de um braseiro a carvão.

O caminhão parou em frente à casa de guarda, onde o motorista e seus prisioneiros ficaram olhando para aquele lugar desolado. O antigo pátio estava sendo convertido num campo de prisioneiros civis, porém nenhum tinha sido internado ali havia meses. Jim, entre Basie e o Dr. Ransome, ficou aborrecido consigo mesmo por ter presumido que seus pais estariam no primeiro campo que visitassem.

Uma infindável discussão começou entre o motorista japonês e o sargento responsável pela construção do campo. Era claro que o sargento já havia decidido que aquele caminhão e sua carga de prisioneiros aliados não existiam. Ignorou os protestos do motorista e sacudiu o cigarro com ar pensativo enquanto andava de um lado para outro da varanda de madeira da casa de guarda. Finalmente, apontou para um trecho de terreno coberto de espinheiros no interior dos portões, que ele tinha evidentemente resolvido ser terra de ninguém entre o campo e o mundo exterior.

O Dr. Ransome esquadrinhou os acres de edificações devastadas pelo fogo, uma confusão calcinada na qual, alguma vez, tivessem cuidado do gado.

- Isso não pode ser o campo. A menos que queiram que o construamos.

Os olhos claros de Basie emergiram da gola da sua japona. Mal tinha forças para sentar-se ereto, mas ainda podia captar uma leve oportunidade.

- Wusung? Pode ter suas vantagens, doutor... sermos os primeiros aqui...

O Dr. Ransome começou a ajudar a erguer a Sra. Hug do chão, mas o soldado japonês ergueu a coronha de sua carabina e o empurrou de volta ao banco. O sargento permaneceu nos espinheiros, olhando pela traseira do transporte os prisioneiros exaustos. As velhas jaziam em poças de urina aos pés dos maridos. Os irmãos ingleses aconchegavam-se a Basie, enquanto a Sra. Hug reclinava-se nos joelhos do pai.

Deliberadamente, Jim pensou na mãe e nas horas felizes que passara jogando bridge no quarto dela. Quando as lágrimas começaram a correr-lhe pelo nariz, aspirou-as em sua garganta crestada. O Dr. Ransome poderia ensiná-lo a chorar? Olhou a ponta incandescente do cigarro do sargento e para o centro quente do fogão de carvão no crepúsculo. O grupo de operários junto à cerca de arame farpado estava voltando para sua cabana de bambu.

- Você está cansando a todos, Jim - advertiu-o o Dr. Ransome. - Fique quieto ou pedirei a Basie que o venda aos japoneses.

- Eles não iriam me querer.

O menino esquivou-se à tentativa do médico de agarrá-lo. Ajoelhou-se no banco ao lado da cabina do motorista. Balançando-se para a frente e para trás, ficou vendo o sargento levar os dois japoneses à casa de guarda, onde os soldados estavam fazendo sua refeição da noite. Havia garrafas de cerveja e vinho de arroz na mesa de madeira, iluminada por uma candeia a querosene. Um cule chinês estava agachado junto ao braseiro, abanando o carvão até as chamas brilharem e o cheiro de gordura quente espalhar-se no ar.

De algum modo, Jim tinha apanhado os olhares dos soldados na casa de guarda. Viu que, longe de estarem preocupados com seus prisioneiros não desejados, os japoneses os deixariam ali a noite inteira. Pela manhã, estariam tão doentes para se transportarem a um outro campo que teriam de voltar ao centro de detenção em Xangai.

O ar da noite caiu sobre os pátios incendiados. Os cules chineses terminaram sua refeição e sentaram-se sob a cabana de bambu, bebendo vinho de arroz e jogando cartas. Os japoneses bebiam cerveja na casa de guarda. Centenas de estrelas surgiam sobre o Yangtze e com elas as luzes de navegação dos aviões militares. Três quilômetros ao norte, além das fileiras de túmulos, Jim viu as luzes dos mastros de um cargueiro japonês aproando para o mar alto, sua superestrutura branca surgindo como um castelo pelos campos fantasmagóricos.

Um cheiro pútrido subiu de uma das missionárias. Seu marido estava sentado ao seu lado, no chão, apoiado nas pernas do Dr. Ransome. Querendo ver melhor o cargueiro, Jim subiu para o telhado da cabina do motorista. Instalado ali, ficou vendo o cargueiro desaparecer na noite e então ergueu os olhos para as estrelas sobre a sua cabeça. Desde o verão anterior, vinha estudando as principais constelações.

- Basie...

Jim sentiu tonteira; o céu noturno estava deslizando em sua direção. Perdendo o equilíbrio, rolou pelo telhado da cabina e depois sentou-se para ver o motorista e o soldado japonês saírem da casa de guarda. Carregavam varas e Jim concluiu que estavam vindo para bater-lhe por estar sentado sobre a cabina. Pulou depressa para o chão e estendeu-se ao lado da holandesa.

O motorista abriu a traseira. Quando a comporta caiu com estrondo, ele passou a vara sobre as correntes ondulantes. Gritou para os prisioneiros e fez um sinal afastando-os do caminhão. Auxiliados pelo Dr. Ransome, a Sra. Hug e os velhos, desceram para os espinheiros.

Acompanhados por Basie e os garotos ingleses, seguiram o soldado para o pátio das toras. As duas missionárias estenderam-se no chão sujo. Ainda estavam vivas, mas o motorista fez um gesto com seu bastão para o Dr. Ransome e mandou que se afastasse delas.

Jim atravessou o chão molhado e pulou para o solo. Estava a ponto de correr atrás do Dr. Ransome quando o motorista segurou-o pelo ombro e apontou para o sargento na varanda da casa de guarda, que estava parado sob a luz de querosene, com um pequeno saco na mão.

Devagar, Jim aproximou-se do sargento, que atirou o saco no chão, a seus pés. Jim ajoelhou-se nos sulcos profundos deixados pelos pneus do caminhão e endereçou ao sargento seu mais caloroso sorriso. Dentro do saco, havia nove batatas-doces.

Na hora seguinte, Jim movimentou-se atarefadamente em torno do pátio. Enquanto os prisioneiros descansavam na loja de madeira, ele reacendeu o fogão a carvão. Sob o olhar desinteressado dos cules chineses, abanou as brasas até flamejarem, depois alimentou o fogo com lascas de madeira inútil. O Dr. Ransome e os meninos ingleses levaram-lhe uma jarra de água do tonel existente atrás da casa de guarda. Embora a Sra. Hug estivesse bebendo da jarra, Jim preferiu esperar até que a água das batatas tivesse esfriado. O Dr. Ransome procurou ajudá-lo com o panelão porém Jim o empurrou. As eurasianas no campo de detenção lhe tinham ensinado que as batatas cozinhavam mais depressa em pouca água e uma tampa bem vedada.

Mais tarde, antes de levar as batatas cozidas para o escritório de madeira, Jim reservou a maior para si mesmo. Sentou ao lado do Dr. Ransome nas pranchas de pinho, enquanto os maridos das missionárias permaneciam deitados na serragem, incapazes de comer. Jim lamentou que eles tivessem ganho mesmo a menor batata. Ao mesmo tempo, precisava que aqueles velhos sobrevivessem, já que deveriam viajar para o campo seguinte. A holandesa parecia bem, apesar de ter dado sua batata aos meninos ingleses. Mas Basie já estava examinando a serraria, fazendo um inventário das suas possibilidades em silêncio, e se eles ficassem no campo Wusung, Jim jamais encontraria os pais.

- Ah, você está aqui, Jim. - O Dr. Ransome deu-lhe sua batata. Tinha dado uma dentadinha, porém a maior parte dela estava intacta. - É muito boa, você vai gostar.

- Ora, obrigado...

Devorou rapidamente a segunda batata. O gesto do Dr. Ransome o confundiu. Os japoneses eram bondosos com crianças e os dois americanos tinham, de certa maneira,.sido amistosos, mas Jim sabia que os ingleses realmente não se interessavam por crianças.

Apanhou o caldeirão de água de batata quente, que reservara para Basie e para si mesmo, oferecendo o líquido adocicado aos outros.

Ajoelhou-se ao lado dos velhos missionários, batendo os dentes e esperando que o emblema da Cathedral School provocasse uma fagulha em suas mentes e os ressuscitasse.

- Eles não parecem muito bem - confidenciou ao Dr. Ransome. - Mas provavelmente comerão as batatas de manhã.

- Provavelmente. Descanse, Jim... Você vai se consumir cuidando de todos. Amanhã prosseguiremos a viagem.

- Bem... poderá ser uma viagem enorme. - A segunda batata tinha reconfortado Jim e pela primeira vez teve pena do ferimento infectado no rosto do Dr. Ransome. Retribuindo o favor, confidenciou-lhe: - Se for alguma vez aos cais de funerais em Nantao, não beba aquela água.

Jim estendeu-se na serragem fofa, que tinha o cheiro suave de pinho. Pelas portas abertas da serraria, podia ver as luzes de navegação do avião japonês cortando a noite. Poucos minutos depois, foi forçado a admitir que não poderia reconhecer nenhuma das constelações. Como tudo o mais desde a guerra, o céu estava num estado de mudança. Em conseqüência dos seus movimentos, os aviões japoneses eram seus únicos pontos fixos, um segundo zodíaco sobre a terra destruída.

 

Vagabundos

- À direita... à direita... não... quis dizer à esquerda!

Jim inclinou-se para a janela de passageiros da cabina e gritou para o motorista, enquanto o caminhão se esforçava em direção ao tombadilho de tábuas da ponte flutuante. Os engenheiros japoneses tinham construído aquela travessia temporária sobre o Rio Suchau nas semanas seguintes ao ataque a Pearl Harbor, mas a ponte já estava rachando em conseqüência do tráfego pesado. Assim que o caminhão rodou para o primeiro pontão de aço, o entabuamento molhado começou a se deslocar nas suas cordas desgastadas.

Colocado como vigia pelo motorista japonês, Jim viu o pneumático dianteiro afundando a placa de madeira na água. Ele sempre gostara de ver a água subindo pelos ralos ou invadindo os degraus de um quebra-mar. A corrente castanha limpou a poeira do pneumático careca revelando o nome do fabricante gravado na lateral: respondendo a um questionamento de Jim a seus pais, uma companhia britânica - Dunlop. O caminhão sacolejou para os lados, inclinando-se sobre suas molas fracas. Em algum lugar atrás dele, um corpo rolou pelo chão do caminhão, mas Jim estava fascinado pela água correndo pela calota dentada, penetrando pela roda como os jatos de uma fonte secreta.

- À esquerda!... À esquerda!... - gritou Jim, mas o soldado na traseira já estava dando o alarma.

Com um suspiro cansado, o motorista japonês puxou o freio de mão, expulsou Jim da cabina e pulou para as placas de madeira inundadas pelo rio.

Jim atirou-se para o tombadilho do caminhão pela janela traseira. Pulou por cima das pernas esticadas do Dr. Ransome e ajoelhou-se no banco, pronto a se interessar mais de perto pela crescente discussão entre o motorista e o guarda japonês.

A duzentos metros rio abaixo, o grupo de engenheiros estava erguendo o trecho central da velha ponte ferroviária. Jim ficou contente por vê-los trabalhar. Passou a maior parte da manhã meio desligado e o fluxo firme da água pelos pontões aliviou seus olhos. Tomou seu

pulso, imaginando se teria contraído beribéri ou malária ou outra das doenças que ouvira o Dr. Ransome discutir com a Sra. Hug. Estava curioso para experimentar algumas doenças novas, mas então lembrou o centro de detenção e os aviões americanos que tinha visto sobre Xangai. Na noite anterior, quando tinham acampado perto de uma fazenda de criação de porcos operada pela guarda japonesa, Jim desconfiou que até o Dr. Ransome tinha visto os aviões.

Sem dúvida, o médico não parecia muito bem de saúde. Desde que haviam deixado Wusung, o ferimento em sua face tinha infeccionado completamente seu queixo e nariz. Ele estava agora deitado no fundo do caminhão, com as pernas sardentas incrivelmente brancas ao sol brilhante. Estava adormecido, porém parecia estar pensando intensamente sobre alguma coisa com uma das metades da sua cabeça. Tinha conversado pela última vez com Jim antes da refeição noturna, quando conseguiu que o menino recebesse do guarda japonês a ração integral devida aos prisioneiros. Com um enorme esforço, disse a Jim para se despir e lavou suas roupas na água dos porcos, usando um sabonete perfumado que pediu à Sra. Hug.

Basie sentou no chão a seu lado, tendo no colo as cabeças dos dois meninos ingleses adormecidos. O camaroteiro continuava consciente, mas se retraíra, com o rosto suave como a carne de um fruto passado. Tinha enjôos freqüentes e o fundo do caminhão estava coberto de vômito e urina, que ele ficava pedindo a Jim para limpar.

A Sra. Hug e o pai também estavam no chão, raramente se falando e se concentrando em cada solavanco da estrada. Felizmente, os dois casais de missionários tinham sido deixados para trás, em Wusung. Seus lugares tinham sido ocupados por um inglês de meia-idade e sua empertigada mulher, do consulado britânico em Nanquim. Sentaram-se próximos ao guarda japonês na retaguarda do caminhão, os rostos vazios de expressão em conseqüência de alguma tragédia que os tivesse atingido. Entre eles estava uma cesta de vime cheia de roupa, que o motorista e o guarda remexiam todas as noites, servindo-se de sapatos e chinelos. O casal olhava sem falar para a paisagem de campos ceifados de canais, e Jim concluiu que eles tinham perdido o interesse na guerra.

Duas vezes ao dia, quando os japoneses paravam para se preparar uma refeição, o guarda ordenava a Jim que passasse uma jarra de barro de água entre os prisioneiros. No resto do tempo, era deixado só, livre para se concentrar na tarefa de guiar aquele caminhão antiquado para o campo de internamento onde estavam seus pais.

Fazia dias que estavam na estrada, em um giro indeciso num raio de quinze quilômetros a noroeste de Xangai. Jim tinha perdido a conta do número exato de dias, mas pelo menos estavam andando para a frente e, felizmente, os japoneses não estavam nem um pouco preocupados pelas condições cada vez piores dos seus prisioneiros.

No primeiro dia, após partirem de Wusung, uma viagem de três horas pelo campo levou-os ao antigo seminário de São Francisco Xavier, na Estrada de Suchau, um dos primeiros campos de prisioneiros estabelecidos pelos japoneses nas semanas seguintes a Pear! Harbor. O seminário já estava cheio de pessoal militar. Esperaram a tarde inteira no fim de uma fila de ônibus de recrutas da Companhia de Trânsito de Xangai, que levavam várias centenas de civis holandeses e belgas. Jim deu uma olhada atenta entre a cerca dupla de arame. Grupos de soldados britânicos vagabundavam em frente de suas cabanas ou sentavam-se no pátio de reuniões, nos bancos envernizados retirados da capela do seminário, como a congregação de uma catedral ao ar livre. Mas não havia homens, mulheres ou crianças civis. Os guardas japoneses estavam ocupados com infindáveis séries de chamadas e não tinham tempo para os recém-chegados que esperavam ser admitidos. Jim ficou em pé no banco, fazendo sinais por cima do arame, para que todos, no campo, o vissem.

Todavia, as centenas de soldados entediados não estavam interessados naqueles civis e seus ônibus de Xangai. Jim ficou aliviado quando foram mandados embora. Assim que partiram em direção a Suchau, o motorista permitiu-lhe que sentasse no banco da frente. De certa forma, aquele inquieto menino inglês, que tanto o tinha amolado, oferecia agora uma pequena medida de segurança. Jim era incapaz de ler o mapa impresso em caracteres japoneses ou compreender uma palavra dos longos monólogos dirigidos aos vidros sujos pelos insetos. Porém ele ajoelhou-se no banco da frente, batendo os dentes e inclinando-se para fora da janela para ver os aviões que surgissem. Toda a força aérea japonesa parecia estar a caminho de atacar os exércitos chineses a oeste.

O terreno plano que ladeava a estrada Xangai-Suchau tinha sido um campo de batalha e os milhares de trincheiras esboroadas e fortins destruídos lembraram a Jim as ilustrações da enciclopédia de Ypres e do Somme, um imenso museu de combate que ninguém visitara durante anos. Os escombros da guerra e os vôos dos bombardeiros e caças provocaram-lhe lembranças. Queria pairar como um papagaio de combate sobre os sinuosos parapeitos e pousar numa das maciças fortalezas construídas de sacos de areia entre os túmulos. Jim ficou desapontado porque nenhum dos seus companheiros de prisão estava interessado na guerra. Teria ajudado a conservar seu ânimo, tarefa que Jim estava considerando cada vez mais difícil.

Jim gostava de imaginar que ele era o verdadeiro líder daquele bando de prisioneiros viajantes. Às vezes, quando carregava o pesado jarro de água e acendia o fogão de noite, compreendia que não passava

de um pouco mais que o Cule Número Dois deles. Porém, sem Jim para juntar os cavacos e cozinhar as batatas-doces, mesmo o Dr. Ransome e Basie teriam seguido o caminho das missionárias. Reparou que, após terem deixado a estação de guarda na fazenda dos porcos, todos se permitiram ficar doentes. Durante a noite, os japoneses tinham espancado um ladrão chinês; a voz do sujeito berrava através dos campos encharcados, fazendo estremecer a superfície escura. No dia seguinte, todos ficaram no fundo do caminhão, Basie com seus pulmões e o Dr. Ransome incapaz de enxergar com o olho infeccionado.

Jim sentia-se febril, mas observava os aviões japoneses sobre a cabeça. O ruído dos seus motores clareava sua cabeça. Sempre que seu ânimo fraquejava ou ficava com pena de si mesmo, pensava nos aviões prateados que vira no centro de detenção.

O caminhão estava passando pela ponte pênsil, manipulada por um destacamento de técnicos japoneses. Incapaz de se manter, Jim escorregou do banco. O Dr. Ransome estendeu o braço fracamente para sustentá-lo.

- Agüente, Jim. Fique junto do motorista: faça com que continue para a frente...

Dezenas de moscas banqueteavam-se no rosto do médico, alimentando-se no ferimento em torno do olho. Ao lado dele, Basie, com Paul e David, a Sra. Hug e o pai. Só o casal inglês com a cesta de vime cheia de sapatos estava sentado ao lado do soldado, na traseira do caminhão.

Jim esticou o casaco, enquanto um cabo japonês subia pela traseira. Um sujeito mal-humorado, com botas encharcadas, dava ordens aos gritos aos soldados que empurravam o caminhão através da ponte. Quando chegaram na ribanceira oposta, os soldados caminharam pela beira d'agua, para seu trabalho na ponte da ferrovia. O cabo começou a insultar o motorista, claramente enojado pelas condições dos prisioneiros. Sacou a pistola Mauser e fez um gesto para uma vala antitanque no barranco que deixara para trás.

Jim ficou aliviado quando o cabo caminhou de volta para sua ponte. Apesar de estar enfermo, não queria que eles parassem no fosso do tanque. Tinha dificuldade em sentar no banco e ficou tentado a deitar no chão, ao lado do Dr. Ransome, onde podia ficar olhando diretamente para o céu. A paisagem dos campos de arroz, riachos e aldeias desertas passava, emergindo de uma névoa branca como os ossos moídos de todos os mortos da China. A poeira envolveu a cabina do caminhão, camuflando-a para a região onde ia entrar. Quanto tempo tinham estado na estrada? As linhas de túmulos estavam tentando pregar peças nos olhos de Jim, movendo-se em ondas em direção ao pesado veículo, um mar de mortos. Os caixões abertos estavam vazios, prontos para pegar os pilotos americanos que, breve, cairiam do ar. Havia milhares de ataúdes, o bastante para receber o Dr. Ransome e Basie, seus pais e Vera, o Cule Número Dois e ele próprio...

O caminhão tinha parado, fazendo a cabina bater na cabeça de Jim. Um grupo de cabanas cobertas com papel alcatroado alinhava-se à beira da estrada, detrás de uma cerca de arame farpado, que o separava do barranco de um canal. Preguiçosamente, Jim olhou para aquele pequeno campo de internamento, construído num conjunto de uma olaria. Um par de barcaças tinha soçobrado em seus ancoradouros, e vagonetes ainda cheios de telhas continuavam no pátio ao lado dos fornos. Dois dos depósitos de tijolos tinham sido incorporados ao campo pela cerca de arame farpado que dividia o espaço da fábrica. Homens e mulheres tomavam sol nos degraus das cabanas de madeira, arames de roupa lavada flutuavam entre as janelas, um alegre semáforo de primavera.

Jim apoiou o queixo no painel lateral do caminhão. Abaixo dele, o Dr. Ransome estava tentando se levantar. O guarda pulou da traseira e caminhou para a estrada, onde o ônibus da Universidade de Xangai estava cercado de soldados japoneses. Os passageiros olhavam pelas vidraças empoeiradas das janelas. Havia duas freiras cobertas de véus negros, inúmeros meninos da idade de Jim e uns vinte homens e mulheres ingleses. Uma multidão de prisioneiros já se havia reunido na cerca. Com as mãos nos bolsos dos seus calções andrajosos, olhavam silenciosamente, enquanto um sargento japonês entrava no ônibus para inspecionar os prisioneiros.

O Dr. Ransome estava ajoelhado na retaguarda do caminhão, o ferimento no rosto oculto pela mão. Jim olhou para uma inglesa num vestido esfiapado de algodão, que estava parada junto à cerca, as mãos enclavinhadas no arame. Ela o olhou com a mesma expressão que o menino vira no rosto da mãe alemã na Estrada Columbia.

O ônibus estava entrando no campo pelos portões abertos. O sargento japonês ficou na porta dos passageiros, pistola na mão, acenando para que a multidão de prisioneiros se afastasse. Seus rostos mal-humorados deixavam ver que eles saudavam esses recém-chegados com pouco entusiasmo, mais bocas para serem alimentadas de suas rações escassas. Jim sentou-se assim que o caminhão dirigiu-se aos portões. O Dr. Ransome caiu ao chão e foi posto numa cadeira pelo casal inglês da cesta de vime.

Jim sorriu para a mulher andando ao longo da cerca. Quando ela estendeu-lhe a mão, o menino ficou imaginando se ela seria amiga de sua mãe. O campo estava cheio de famílias e em algum lugar, entre os casais que passeavam, podiam estar seus pais. Examinou os rostos ingleses, os bandos de crianças rindo detrás das sentinelas japonesas. Para sua surpresa, teve um momento de pena, de tristeza de que sua procura estivesse logo terminada. Enquanto os estivesse procurando, estava preparado para ter fome e ficar doente, mas agora que a procura chegara ao fim, sentiu-se triste ao lembrar tudo pelo qual passara e quanto tinha mudado. Estava agora mais próximo dos campos de batalha arruinados e daquele transporte infestado de moscas, das nove batatas-doces no saco sob o assento do motorista e até, de certa forma, do campo de detenção, do que jamais tornaria a estar de sua casa na Avenida Amherst.

O caminhão parou nos portões. O sargento japonês olhou pelo fecho da retaguarda para os prisioneiros deitados no fundo. Empurrou para trás o Dr. Ransome com sua Mauser, mas o médico ferido desceu para o solo, onde se ajoelhou aos pés do sargento, prendendo a respiração. A multidão de internados já havia começado a se dispersar. Mãos nos bolsos, os homens caminharam de volta para suas cabanas e sentaram-se nos degraus com as mulheres.

As moscas enxameavam sobre o caminhão e pousaram nas poças úmidas que cobriam o fundo. Pairaram em torno da boca de Jim, alimentando-se das úlceras em suas gengivas. Durante dez minutos os soldados japoneses discutiram, enquanto o motorista esperava com o Dr. Ransome. Dois prisioneiros mais antigos aproximaram-se pelos portões e participaram da discussão.

- Campo Wusung?

- Não, não, não...

- Quem os mandou nestas condições?

Evitando o Dr. Ransome, aproximaram-se do caminhão e olharam para os prisioneiros por entre a nuvem de moscas. Quando Jim perdeu a paciência e assoviou para si mesmo, eles o olharam sem expressão. As sentinelas japonesas abriram os portões de arame farpado, mas os prisioneiros ingleses imediatamente os fecharam e começaram a gritar, chamando o sargento nipônico. Quando o Dr. Ransome deu um passo à frente para protestar, os ingleses fizeram gestos mandando-o embora.

- Cai fora, homem...

- Não podemos recebê-lo, doutor. Há crianças aqui.

O médico subiu no caminhão e sentou-se no fundo ao lado de Jim. O esforço de ter ficado em pé o deixara exausto e ele deitou-se cobrindo o ferimento com as mãos, enquanto as moscas lutavam entre seus dedos.

A Sra. Hug e o casal inglês com a cesta de vime tinham esperado em silêncio durante a discussão. Assim que os soldados japoneses retornaram ao campo e trancaram os portões, a Sra. Hug disse:

- Eles não vão nos receber. Os líderes ingleses do campo...

Jim olhou para os prisioneiros que passeavam pelo conjunto. Grupos de meninos jogavam futebol no pátio de tijolos da olaria. Estariam seu pai e sua mãe se escondendo entre os fornos? Talvez, como os líderes ingleses do campo, preferissem que Jim fosse embora, amedrontados pelas moscas e pela doença que ele trouxera de Xangai.

Jim ajudou Basie e o Dr. Ransome a beber e depois sentou-se no banco oposto. Virou as costas para o campo, para os prisioneiros britânicos e seus filhos. Todas as suas esperanças residiam na paisagem em volta, nas suas guerras passadas e futuras. Sentiu uma estranha leveza na cabeça, não porque seus pais o tivessem rejeitado, mas porque esperava que o fizessem e não se importava mais.

 

O Fugitivo

Ao se aproximar o crepúsculo, entraram numa área de campos de combate a cerca de quinze quilômetros ao sul de Xangai. A luz da tarde subiu no espaço como que retornando ao sol uma pequena parte da força que tinha atirado sobre os campos indiferentes. O terreno de trincheiras e fortins parecia ter surgido completamente armado da cabeça de Jim. Um tanque estava instalado como um barracão sobre rodas na junção das estradas de Xangai e Hangchau, a luz do sol brilhando através de suas escotilhas abertas. As trincheiras surgiam entre os túmulos, um labirinto perdido em si mesmo.

Além da encruzilhada, uma ponte de madeira estendia-se sobre um canal. Suas pilastras brancas, das quais a chuva tinha eliminado todo traço de resina, eram tão macias quanto pedra-pomes. O motorista dobrou o mapa e abanou-se com ele, sem coragem de arriscar suas rodas nas tábuas desgastadas. A Sra. Hug e o casal inglês estavam atrás do caminhão e suas sombras estendiam-se pelos leitos brancos dos campos ressequidos. Jim afastou as moscas do rosto do Dr. Ransome e afagou sua cabeça. Imaginou que ele era uma das sombras, um tapete escuro estendendo-se pelo solo cansado. Um quilômetro e meio ao sul, entre os túmulos, viu os lemes de uma fila de aviões pousados projetando-se contra o ar escurecido. Jim examinou os aparelhos, procurando identificar as bojudas fuselagens e motores. Eram Brewster Buffalos, um tipo de caça americano que não tinha similar entre os japoneses.

Era ali, entre os montículos de túmulos, que os aviões americanos aguardavam antes de decolar em sua mente? Contudo, o motorista japonês também tinha visto os lemes. Jogou fora o cigarro e gritou para o guarda, que tinha saltado do caminhão e estava experimentando as tábuas da ponte.

- Lunghua... Lunghua!...

O motor foi ligado e o motorista virou para leste na encruzilhada, partindo em direção daquele distante campo de aviação.

- Estamos indo para o Aeródromo de Lunghua, Dr. Ransome

- falou Jim entre os joelhos. O médico estava deitado no chão, ao lado de Basie e do pai da holandesa, olhando Jim com seu único olho.

- Há Brewster Buffalos: os americanos devem ter ganho a guerra.

Jim deixou o ar cálido roçar seu rosto. Aproximaram-se do campo de aviação militar, o enorme aeródromo gramado que vira perto de Xangai. Havia três hangares de metal e uma oficina de madeira instalada no antigo estacionamento para carros do Pagode Lunghua. Dezenas de aparelhos tinham sido estacionados no asfalto ao lado dos hangares, caças de grande capacidade, de desenho avançado. Os três Brewster Buffalos, sem suas marcas de fábrica americanas, estavam na beira do campo. Um par de mecânicos com um poderoso guindaste erguia um canhão antiaéreo para a plataforma superior do pagode de pedra.

O motorista parou no posto de controle, onde os soldados japoneses manejavam uma plataforma fortificada. Enquanto as sentinelas montavam guarda, andando de um lado para outro no crepúsculo, seu cabo falou num telefone de campanha. Foram mandados seguir para a estrada perimetral. A superfície sulcada tinha sido reforçada com esteiras, estava profundamente revolvida por um comboio de veículos cheios de pedras de construção. Um caminhão passou balançando por eles, com uma carga de telhas arrancadas de edifícios da Cidade Velha.

Guardas armados, aos pares, patrulhavam a estrada perimetral, as baionetas rasgando o ar escuro. Dois transportes monomotores estavam estacionados na beira do campo. Acompanhado de sua tripulação de terra, um piloto japonês falou com dois colegas de uniforme. O piloto apontou para o caminhão quando este passou chocalhando e ocorreu a Jim que talvez ele, Basie e o Dr. Ransome estivessem para voar de Xangai e que iria breve juntar-se aos pais em Hong Kong ou no Japão.

Jim esperou que o caminhão parasse junto aos aviões, mas o motorista apressou-se em direção ao extremo sul do campo de aviação. O capim macio deu lugar a um terreno acidentado de cana-de-açúcar silvestre e não nivelado. Atravessaram o leito seco de uma vala de irrigação e seguiram o caminhão cheio de telhas na direção de um vale estreito, oculto por paredes de espinheiros. Nuvens de poeira branco-acinzentadas ergueram-se no ar noturno, à medida que os veículos militares à frente deles depositavam suas cargas de pedra e cascalho no chão. Soldados e policiais armados da força aérea vigiavam o vale, carabinas na mão, os uniformes esbranquiçados de poeira.

Vigiados por sentinelas japonesas, centenas de soldados chineses capturados, com túnicas esfarrapadas, estavam carregando as telhas e pedras do alto e construindo um leito para a pista de cimento. Mesmo na luz crepuscular e apesar de todas as privações dos meses passa-

dos, Jim pôde ver as miseráveis condições desses prisioneiros chineses. Muitos estavam mortalmente emaciados. Sentavam-se nus nos espinheiros encharcados, com uma única telha nas mãos, como o fragmento de uma cumbuca de mendigo. Outros subiram a leve inclinação para a beira do campo de aviação, com cestos de vime carregados de pedras, agarrados junto ao peito.

O caminhão parou junto ao cimo. Com um sacolejar de correntes, a traseira do veículo abriu-se. Sob a guarda do soldado japonês, a Sra. Hug e o casal inglês desceram para o solo. O Dr. Ransome ajoelhou-se junto aos bancos, mal podia comandar seu corpo sofredor.

- Isso, Jim: vamos levar todos para seus alojamentos. Ajude a Sra. Hug. Basie, meninos...

Ergueu-se vacilante, mas conseguiu colocar Basie em pé. O rosto do camaroteiro já estava coberto por uma camada de talco, a delicada pele feminina que Jim tinha visto pela primeira vez junto aos cais de funeral em Nantao. Agarrado ao ombro de Jim, arrastou-se pelo chão úmido do caminhão.

Desceram e ficaram juntos na nuvem de pó branco ao lado do cimo. A Sra. Hug sentou-se com o pai num monte de pedras, segurando as mãos dos meninos ingleses. Os soldados chineses enchiam seus cestos e cuspiam nas pedras. Quando subiam a terra ferida para a pista de decolagem, seus vultos cobertos de giz pareciam iluminar o ar da noite.

Em torno deles, as sentinelas japonesas vigiavam sem se mover. A vinte metros de distância, no declive sul do vale, dois sargentos estavam sentados em cadeiras de bambu, à beira de um poço que tinha sido recentemente aberto entre os espinheiros. Suas botas e o solo aos seus pés estavam cobertos de cal.

Jim ergueu uma telha cinzenta. Nenhum dos japoneses pareceu importar-se com sua atividade na pista, mas Basie já estava segurando uma pedra. Jim seguiu um soldado chinês nu em direção à pista. Subiu a inclinação e atravessou o solo sulcado. Os chineses largaram seus cestos no chão e voltaram. Jim depositou sua telha na trincheira rasa cheia de pedras e tijolos quebrados que atravessava o aeródromo e perdia-se na noite. Basie passou por ele e deixou a pedra cair aos seus pés. Cambaleou na poeira, tentando limpar o pó de giz das mãos.

Atrás deles, o Dr. Ransome parou no alto com a Sra. Hug e o casal inglês. Estava discutindo com um soldado japonês, que lhes fazia sinais para se dirigirem à pista. Segurando a carabina numa das mãos, o soldado pegou uma telha e estendeu-a ao Dr. Ransome.

Jim esperou entre as pedras quebradas. Olhou dentro do crepúsculo que cobria a superfície da pista. Lembrou do capim turbilhonante no Aeródromo de Hungjao e tentou imaginar os remoinhos provocados pelos Brewster Buffalos. Virou-se para o aparelho de transporte estacionado junto da estrada perimetral. O piloto japonês e os oficiais uniformizados estavam caminhando pelo capim, em direção à pista. Pararam na beira enlameada, rindo enquanto inspecionavam a obra. Suas fivelas e emblemas polidos brilhavam como as jóias dos europeus que tinham visitado os campos de batalha perto de Hungjao, antes da guerra.

Jim entrou no capinzal, deixando as nuvens de pó e as fileiras de soldados chineses para trás. Queria ver pela última vez os aparelhos estacionados, parar sob o vão escuro de suas asas. Viu que os soldados chineses estavam trabalhando até a morte, que aqueles homens famintos estavam deixando seus próprios ossos num tapete para os bombardeiros japoneses, que iriam pousar sobre eles. Então iriam voltar para o cimo, onde os sargentos de botas sujas de cal estavam esperando com suas Mausers. E depois de terem largado suas pedras, ele, Basie e o Dr. Ransome também voltariam para o cume.

A última réstia de luz tinha desaparecido das fuselagens dos aviões, mas Jim podia cheirar seus motores no ar da noite. Inalou o odor de gasolina e de líquido refrigerante de motor. Começou imediatamente a gritar para as vozes à sua volta, os corpos brancos dos soldados chineses e as pistas de ossos. Mandou calar o jovem piloto japonês com uniforme de vôo, que estava apontando para ele e gritando para o sargento no cimo. Jim esperou que seus pais estivessem a salvo e mortos. Limpando a poeira de seu casaco, correu para o abrigo do avião, ansioso para se envolver em suas asas.

 

O Campo de Lunghua

Vozes se queixavam ao longo do arame murmurante, levadas como notas tensas pelas cordas de uma harpa. A quinze metros da cerca do perímetro, Jim estava deitado no capim alto, ao lado de uma armadilha para faisões. Ficou ouvindo os guardas discutirem enquanto executavam o patrulhamento horário do campo. Agora que os ataques aéreos americanos tinham se tornado um acontecimento diário, os soldados japoneses não mais colocavam suas carabinas nos ombros. Seguravam suas armas de canos longos com ambas as mãos e estavam tão nervosos que, se tivessem visto Jim fora do campo, teriam atirado nele sem hesitar.

Jim observou-os através da rede da armadilha de faisões. No dia anterior, tinham matado um cule chinês que tentava roubar dentro do campo. Viu que um dos guardas era o praça Kimura, um filho de camponês de ossada larga que tinha crescido quase tanto quanto Jim nos seus anos de campo. As costas fortes do praça tinham rompido seu dólmã gasto e só seu cinto de munição mantinha ajustada sua farda arrebentada.

Antes da guerra ter finalmente se voltado contra os japoneses, o praça Kimura freqüentemente convidava Jim ao bangalô que ele dividia com três outros guardas e permitia-lhe vestir sua armadura de kendo. Jim lembrou da minuciosa cerimônia em que os soldados japoneses o vestiram com a armadura de couro e metal e o cheiro pronunciado do corpo do praça Kimura, que enchia o capacete e os protetores das costas. Lembrou-se da violência com que ele o atacou com a espada segura pelas duas mãos, o remoinho de golpes que atingiram seu capacete antes que ele pudesse retribuir. Ficou com uma zoeira na cabeça durante dias. Ao lhe dar ordens, Basie era obrigado a gritar, acordando os homens do dormitório do Bloco E, fazendo com que o Dr. Ran-some levasse Jim ao hospital do campo e examinasse seus ouvidos.

Lembrando aqueles braços poderosos e a rapidez dos olhos do praça Kimura, Jim Ticou estendido no capim alto detrás da armadilha. Pela primeira vez, ficou contente porque a armadilha não pegara uma ave. Os dois japoneses pararam junto ao arame da cerca e esquadrinharam o grupo de edifícios abandonados, localizados fora do perímetro noroeste do Campo Lunghua. Ao lado deles, exatamente no interior do campo, estava o prédio abandonado do salão de reuniões, o balcão curvo do seu círculo superior a céu aberto. O campo ocupava o local de um colégio de treinamento de professores que tinha sido bombardeado e devastado durante os combates em torno do Aeródromo de Lunghua, em 1937. Os prédios atingidos perto do campo de pouso haviam sido excluídos do campo e tinha sido ali, no quadrilátero de capim alto entre os esgotos das residências, que Jim colocou suas armadilhas para faisões. Após a chamada daquela manhã, tinha se esgueirado pela cerca, onde esta emergia de um barranco de espinheiros cercando um fortim esquecido no perímetro do aeródromo. Deixando os sapatos nos degraus da casamata, começou a andar por um canal raso e depois arrastou-se pelo capim alto entre os prédios arruinados.

A primeira das armadilhas estava apenas a poucos passos da cerca, uma distância que tinha parecido enorme a Jim quando, pela primeira vez, arrastou-se sob o arame farpado. Tinha olhado para trás, para o mundo seguro do campo, para as cabanas e a caixa-d'agua, para a casa de guarda e dormitórios, um tanto temeroso de ser expulso de lá para sempre. O Dr. Ransome freqüentemente chamava Jim de “uma alma livre”, quando vagava pelo campo, perseguindo alguma idéia nova que lhe viesse à cabeça. Mas ali, no capim alto, entre os prédios estragados, sentiu-se dominado por uma estranha gravidade.

Pela primeira vez, prevalecendo-se ao máximo daquela inércia, Jim deitou-se por trás da armadilha. Um avião estava decolando do Aeródromo de Lunghua, claramente destacado contra as fachadas amarelas dos edifícios de apartamentos da Concessão Francesa, porém ele não tomou conhecimento do aparelho. O soldado ao lado do praça Kimura gritou para as crianças que brincavam no balcão da sala de reuniões. Kimura estava voltando para a cerca. Examinou a superfície do canal e as moitas de cana-de-açúcar silvestre. As rações escassas do ano anterior - os guardas japoneses eram quase tão mal-alimentados quanto os seus prisioneiros ingleses e americanos - tinham consumido o resto da gordura jovem dos braços de Kimura. Após um ataque recente de tuberculose, seu rosto forte estava intumescido, parecido com o de um cule. O Dr. Ransome tinha insistentemente recomendado a Jim que nunca vestisse a armadura de kendo do praça Kimura. Uma luta entre eles seria, agora, unilateral, muito embora Jim tivesse apenas quatorze anos. Mas, pela carabina, ele gostaria de desafiar Kimura...

Como que adivinhando a ameaça dentro do capim, o praça Kimura chamou o companheiro. Encostou a arma na estaca de pinheiro da cerca, atravessou o arame e parou nos espinheiros cerrados. As moscas voavam do canal raso e pousavam em seus lábios, porém Kimura ignorou-as e olhou para a faixa de água que o separava de Jim e das armadilhas de faisões.

Teria visto as pegadas de Jim na lama mole? Jim arrastou-se para longe da armadilha, mas o contorno do seu corpo ficou claramente delineado no capim esmagado. Kimura estava enrolando as mangas esfarrapadas, pronto a enfrentar sua caça. Jim viu-o caminhar pelos espinheiros. Tinha certeza de que podia correr mais que Kimura, mas não mais rápido que a bala da carabina do segundo soldado. Como poderia explicar a Kimura que as armadilhas de faisões eram idéia de Basie? Foi Basie quem insistiu na requintada camuflagem de folhas e galhos, quem o fez pular a cerca duas vezes por dia, apesar de nunca terem visto uma ave e muito menos apanhado uma. Era importante estar às boas com Basie, que tinha fontes de alimentação pequenas mas confiáveis. Podia dizer a Kimura que Basie conhecia o segredo do rádio do campo, mas então a alimentação extra cessaria.

O que mais aborrecia Jim era o pensamento que, se Kimura o atacasse, teria que revidar. Poucos garotos da sua idade ousariam tocar em Jim e, no ano anterior, desde que as rações tinham falhado, poucos homens. Contudo, se revidasse ao ataque de Kimura, seria morto.

Acalmou-se, calculando o melhor momento para levantar-se e entregar-se. Curvar-se-ia diante de Kimura sem demonstrar emoção e esperou que as centenas de horas que passou em torno da casa de guarda - se bem que por instigação de Basie - pesassem a seu favor. Antigamente, dera lições de inglês a Kimura, mas embora estivessem claramente perdendo a guerra, o japonês não ficou interessado em aprender a língua.

Jim esperou que Kimura subisse o barranco em sua direção. O soldado ficou no meio do canal, um objeto preto e reluzente brilhando em sua mão. Os riachos, lagoas e poços fora de uso dentro do Campo Lunghua tinham montes de armas enferrujadas e munição em estado duvidoso, abandonadas durante as hostilidades de 1937. Jim olhou através do capim para o cilindro apontado e concluiu que a maré no canal tinha deixado a descoberto uma velha bala de canhão ou uma cápsula de morteiro.

Kimura gritou para o segundo soldado, que esperava junto do arame farpado. Afastou as moscas do rosto e falou para o objeto como se murmurasse para uma criancinha. Levantou-o por trás da cabeça, na posição usada pelos soldados japoneses no ato de atirar uma granada. Jim esperou a explosão e depois percebeu que o praça Kimura estava segurando uma grande tartaruga de água doce. A cabeça do animal saiu do casco e Kimura começou a rir, excitado. Sua face de tísico parecia a de um garoto, lembrando a Jim que o praça Kimura já havia sido criança, como ele mesmo antes da guerra.

Após ter atravessado o campo de desfile, os japoneses desapareceram entre as cordas de roupas lavadas, esfarrapadas, que se estendiam pelas barracas do campo. Jim emergiu da caverna úmida da casamata. Calçando os sapatos de couro de jogar golfe que o Dr. Ransome lhe dera, atravessou a cerca. Carregava a tartaruga de Kimura. O antigo animal tinha pelo menos meio quilo de carne e Basie, quase certamente, conheceria uma receita especial para tartaruga. Jim podia imaginar Basie tentando tirá-la de sua casca e depois decepando sua cabeça com uma navalha...

Diante de Jim estava o Campo Lunghua, seu lar e universo nos últimos três anos e a sufocante prisão de quase dois mil aliados de várias nacionalidades. As cabanas maltratadas, o dormitório de cimento, o estropiado campo de parada e a casa de guarda com sua torre de vigia inclinada jaziam amontoados sob o sol de junho, ponto de encontro de moscas e mosquitos na bacia do Yangtze. Mas assim que atravessou o arame farpado, Jim sentiu o ar se acalmar à sua volta. Correu pela trilha de cinzas, a camisa esfarrapada agitando-se em seus ombros ossudos, como os trapos lavados pendurados entre as cabanas.

Nas suas incessantes viagens em torno do campo, Jim tinha aprendido a conhecer qualquer pedra ou erva daninha. Uma tabuleta desbotada pelo sol, primariamente pintada com as palavras “Regent Street”, tinha sido pregada numa estaca de bambu à margem da trilha. Jim ignorou-a, como fez com outras semelhantes, com as inscrições “Piccadilly”, “Knightsbridge” e “Petticoat Lane”, que determinavam as trilhas principais no interior do campo. Aquelas recordações de uma Londres imaginária - que a maioria dos prisioneiros britânicos nascidos em Xangai nunca vira - intrigaram Jim mas, de certa forma, aborreceram-no. Com sua constante conversa sobre a Londres de pré-guerra, as velhas famílias britânicas no campo reivindicavam uma exclusividade especial. Jim lembrou de um verso de um dos poemas que o Dr. Ransome o obrigou a decorar: “um campo estrangeiro que é eternamente Inglaterra”... Mas ali era Lunghua, não a Inglaterra. Nomeando as trilhas sujas de esgoto entre as cabanas meio podres, inspiradas numa Londres, os prisioneiros britânicos se permitiam fugir da realidade do campo, e tinham outra desculpa para sentarem-se quando deviam estar ajudando o Dr. Ransome a limpar as fossas. Para seu crédito aos olhos de Jim, nem os americanos, holandeses e belgas no campo perdiam seu tempo com nostalgia. Os anos em Lunghua não tinham dado a Jim uma opinião muito alta sobre os ingleses.

E, contudo, as tabuletas das ruas de Londres o fascinavam, como parte da magia que ele havia descoberto no campo. O que, concebivelmente, eram a Lord, Serpentine e o Trocadero? Havia pouquíssimos livros ou revistas em que um nome impresso pouco usual tivesse todo o mistério de uma mensagem das estrelas. De acordo com Basie, que sempre tinha razão, os aviões de combate com os radiadores no ventre, que bombardearam o Aeródromo de Lunghua, eram denominados “Mustangs”, nome de um potro selvagem. Jim apreciava o nome; saber que os aviões eram Mustangs tornava-se mais importante para ele que a confirmação de que Basie ouvia o rádio secreto do campo. Tinha fome de nomes.

Jim tropeçou na trilha estragada, incapaz de dominar os sapatos de golfe. Naqueles dias, tinha se tornado muito freqüentemente estouvado. O Dr. Ransome o tinha advertido para não correr, mas os ataques aéreos americanos e a perspectiva iminente do fim da guerra o tornavam impaciente demais para andar. Tentando proteger a tartaruga, esfolou o joelho esquerdo. Capengou pela trilha e sentou nos degraus da fonte de água potável. Ali, a água salobra retirada dos poços no campo era, antigamente, fervida pelos prisioneiros. Ainda havia um pequeno estoque de carvão nos depósitos do campo, mas o grupo de trabalhadores de seis britânicos que cuidava das fogueiras tinha perdido o interesse. Embora o Dr. Ransome protestasse por isso, eles preferiam sofrer de disenteria crônica, em vez de se dar ao trabalho de ferver a água.

Enquanto Jim tratava o joelho, os membros do grupo, sentados no lado de fora da cabana próxima, olhavam o céu como se esperassem que a guerra fosse acabar dentro de dez minutos. Jim reconheceu o Sr. Mulvaney, contador da Companhia de Força de Xangai, que tinha nadado muitas vezes na piscina da Avenida Amherst. Ao seu lado estava o Reverendo Pearce, missionário metodista, cuja mulher, que falava japonês, colaborava abertamente com os guardas, informando-os diariamente das atividades dos prisioneiros.

Ninguém criticava a Sra. Pearce por isso e, na verdade, a maioria dos prisioneiros em Lunghua estava ansiosa para colaborar. Jim desaprovava sem muito empenho, mas concordava que era provavelmente sensato fazer tudo para sobreviver. Após três anos no campo, a noção de patriotismo nada significava. Os prisioneiros mais corajosos - e colaboração era muito arriscada - eram os que compravam as boas graças dos japoneses e assim ajudavam os companheiros com pequenos suprimentos de alimentos e ataduras. Além disso, havia poucas atividades ilícitas para denunciar. Ninguém em Lunghua sonharia com tentar fugir e todos verdadeiramente denunciariam qualquer louco que ousasse atravessar a cerca, com medo das conseqüências.

Os aguadeiros raspavam seus tamancos nos degraus e olhavam para o sol, movendo-se apenas para arrancar os carrapatos presos às suas costelas. Embora emagrecido, o processo de inanição tinha, de certa forma, parado, aparecendo o esqueleto sob a pele. Jim invejou o Sr. Mulvaney e o Reverendo Pearce: ele próprio ainda estava crescendo.

A aritmética que o Dr. Ransome lhe ensinara deixou bem claro que o suprimento alimentar do campo estava diminuindo rapidamente à medida que os prisioneiros estavam morrendo.

No centro do campo de parada, um grupo de garotos de doze anos estava jogando bola de gude na terra ressequida. Vendo a tartaruga, correram para Jim. Cada um possuía uma libélula, que era mantida amarrada a um barbante. As chamas azuis iam e vinham sobre suas cabeças.

- Jim, podemos pegá-lo?

- O que é isso?

- O praça Kimura lhe deu? Jim sorriu com benevolência.

- É uma bomba.

Ergueu a tartaruga e, generosamente, permitiu que todos a examinassem. Apesar da diferença em anos, muitos dos meninos tinham sido seus amigos íntimos nos dias que sucederam a sua chegada a Lunghua, quando havia necessitado de todo aliado que pudesse encontrar. Porém tinha crescido mais que eles e feito outras amizades: o Dr. Ransome, Basie e os marítimos no Bloco E, com seus antigos exemplares de antes da guerra de Seleções e Mecânica Popular, que ele devorou. De vez em quando, como que recapturando sua infância perdida, Jim tornava a entrar no mundo juvenil dos jogos e jogava pião e bola de gude e brincava de amarelinha.

- Está morta? Está se mexendo!

- Está sangrando!

Uma mancha de sangue vinda do joelho de Jim deu à cabeça da tartaruga um ar pirata.

- Jim, você a matou!

O mais velho dos meninos, Richard Pearce, estendeu a mão para tocar no quelônio, mas Jim deu-lhe um safanão. Não gostava de Richard Pearce e o temia ligeiramente. O outro era quase da sua altura. Invejava as rações extras japonesas com que era alimentado pela sua mãe. Da mesma forma que os alimentos, os Pearce tinham uma pequena biblioteca de livros confiscados, que conservavam ciumentamente.

- É uma espécie de hipoteca - explicou Jim, imponente. Legalmente, as tartarugas pertenciam ao mar, ao rio visível a um quilômetro e meio a oeste do campo, aquele amplo tributário do Yangtze no qual tinha sonhado um dia velejar com os pais para a segurança de um mundo sem guerra.

- Cuidado! - Fez um gesto afastando Richard. - Ensinei-a a atacar!

Os meninos recuaram. Havia ocasiões em que o humor de Jim os incomodava. Embora se esforçasse por parar, Jim se ressentia por causa

das roupas deles: roupas usadas, remendadas por suas mães, porém muito superiores aos andrajos que vestia. Mais ainda, ressentia-se pelo simples fato de terem mães e pais. No decorrer do ano anterior, Jim tinha pouco a pouco percebido que não podia mais lembrar-se de como eram seus pais. Seus vultos difusos ainda partilhavam dos seus sonhos, porém o menino tinha esquecido seus rostos.

 

O Cubículo

- Jovem Jim!...

Um homem quase nu, usando tamancos e calções esfarrapados, gritou dos degraus do Bloco G. Em suas mãos, os varais de uma carrocinha de madeira com rodas de ferro. Embora a carrocinha estivesse descarregada, suas alças quase arrancavam os braços do homem de suas juntas. Ele virou-se para a inglesa sentada nos degraus de cimento, que usava um camisolão gasto, de algodão. Ao gesticular em direção a eles, suas omoplatas pareciam estar funcionando soltas das costas, quase voando através do arame farpado.

- Estou indo, Sr. Maxted!

Jim empurrou Richard Pearce e correu pela trilha de escória para o bloco do dormitório. Vendo o carrinho sem comida, ocorreu-lhe que o velho devia ter perdido a refeição diária. O medo de ficar sem alimentos, mesmo por um único dia, foi tão intenso que esteve a ponto de agredir o Sr. Maxted.

- Venha, Jim. Sem você o sabor não é o mesmo.- O Sr. Maxted deu uma olhada nos sapatos de golfe de Jim, aquele calçado cheio de pregos, muito velho e que impelia seu vulto de espantalho em suas voltas incessantes pelo campo. Virando-se para a mulher, comentou:

- Nosso Jim está gastando todo o seu tempo no décimo nono buraco.

- Eu prometi, Sr. Maxted, estou sempre pronto...

Jim teve de parar quando chegou à entrada do Bloco G. Usou os pulmões até que a tonteira abandonou sua cabeça e tornou a avançar. Com a tartaruga na mão, subiu os degraus até o vestíbulo e esgueirou-se entre duas velhas, encalhadas como fantasmas em meio a uma conversa que já haviam esquecido.

Em cada lado do corredor, havia uma série de pequenos alojamentos, cada um com quatro beliches de madeira. Após o primeiro inverno no campo, quando muitas das crianças nas barracas não isoladas tinham morrido, famílias com filhos foram transferidas para os salões do antigo colégio. Apesar de não serem aquecidos, os quartos, com paredes de cimento, mantinham-se acima do ponto de congelamento.

Jim dividia seu quarto com um jovem casal inglês, Sr. e Sra. Vincent e seu filho de seis anos. Tinha morado a centímetros de distância dos Vincent durante dois anos e meio, mas suas existências não podiam estar mais distantes. No dia da chegada de Jim, a Sra. Vincent tinha estendido uma velha colcha demarcando a fronteira nominal do quarto. Ela e o marido - corretor na Bolsa de Xangai - nunca deixaram de se ressentir com a presença de Jim e, com o passar dos anos, tinham fortalecido seus limites, amarrando um xale velho, uma aná-gua e a tampa de uma caixa de papelão, dando-lhe a aparência de um dos barracões em miniatura que pareciam surgir espontaneamente em torno dos mendigos de Xangai.

Não contentes de emparedar Jim em seu mundo minúsculo, os Vincent tinham repetidamente tentado invadi-lo, mudando de posição os pregos e cordas de onde pendia a colcha. Jim tinha se defendido, primeiro entortando os pregos até que, para horror dos Vincent, a estrutura inteira ruiu certa noite em que estavam se despindo, e depois demarcando a parede com régua e lápis. Os Vincent imediatamente reagiram, sobrepondo seu próprio sistema de marcas.

Tudo isso enraiveceu Jim. Apesar de tudo, ainda gostava da Sra. Vincent, uma loura frágil e bonita, apesar de seus nervos estarem sempre tensos e ela nunca ter feito a menor tentativa de se preocupar com ele. Jim sabia que, se morresse de fome no seu beliche, ela encontraria um motivo educado para não socorrê-lo. No primeiro ano em Lunghua, as poucas crianças sós eram postas de lado, a menos que estivessem preparadas para se deixarem usar como criadas. Só Jim havia recusado e nunca tinha servido de empregado para o Sr. Vincent.

A Sra. Vincent estava sentada no seu colchão de palha, com suas mãos brancas cruzadas no colo como um esquecido par de luvas, quando Jim irrompeu pelo quarto. Ela olhou para a parede caiada acima do beliche do filho como que assistindo a um filme invisível projetado numa tela. Jim se preocupava quando a Sra. Vincent passava muito tempo vendo esses filmes. Enquanto a olhava pelas frestas do seu cubículo, procurou adivinhar o que ela estava vendo: talvez um filme feito em” casa ou ela na Inglaterra antes de casar, sentada num desses gramados ensolarados que pareciam cobrir o país inteiro. Jim concluiu que haviam sido esses gramados que tinham fornecido os aeródromos de emergência para a Batalha da Inglaterra. Como certificou-se por suas observações em Xangai, os alemães não eram muito afiados em gramados ensolarados. Foi por isso que perderam a Batalha da Inglaterra? Muitas de suas idéias eram irremediavelmente confusas, de uma forma que até o Dr. Ransome ficava cansado demais para desembaraçar.

- Jim, você está atrasado - disse a Sra. Vincent com ar desaprovador, de olhos pregados em seus sapatos de golfe. Como os demais, ela era incapaz de conviver com sua intimidante presença. Jim percebeu imediatamente que os sapatos lhe davam uma autoridade especial. - Todo o Bloco G está a sua espera.

- Estive com Basie, ouvindo as últimas notícias da guerra. Sra. Vincent, o que é o décimo nono buraco?

- Você não deve trabalhar para Basie. As coisas que esses americanos pedem que façamos... Eu lhe disse que estamos em primeiro lugar.

- O Bloco G vem primeiro, Sra. Vincent.

Jim estava convencido disso. Mergulhou sob a aba da separação, entrando em seu cubículo. Prendendo a respiração, deitou-se no beliche, a tartaruga sob a camisa. O réptil preferia sua própria companhia e Jim desviou sua atenção para os sapatos novos. Com suas biqueiras brilhantes e tachas reluzentes, eles eram uma peça inteira do mundo de pré-guerra, para a qual podia ficar olhando durante horas, como a Sra. Vincent com seus filmes. Rindo em silêncio, Jim continuou deitado enquanto o sol quente brilhava na parede do cubículo, destacando as manchas curiosas na velha colcha. Olhando-as, Jim visualizou as cenas de combates aéreos e de armadas, o afundamento do Petrel e mesmo o jardim na Avenida Amherst.

- Jim, hora da cozinha!... - ouviu alguém gritando dos degraus sob a janela.

Mas Jim permaneceu em seu beliche. Era uma longa distância até as cozinhas e não adiantava chegar cedo. Os japoneses tinham comemorado o feriado a sua moda, cortando a já magra ração pela metade. Os mais antigos freqüentemente recebiam menos que os últimos, quando o cozinheiro percebia quantos prisioneiros tinham morrido ou estavam doentes demais para pegar suas rações.

Além disso, Jim não tinha obrigação de ajudar na carrocinha de comida nem, no caso, ao Sr. Maxted. Porém, como Jim tinha notado, os que estavam preparados para ajudar seus companheiros de prisão tendiam a agir assim e isso não fazia parar os preguiçosos demais para trabalhar com suas infindáveis queixas. Os ingleses eram especialmente bons em se lamentar, coisa que os americanos e holandeses nunca fizeram. Breve, refletiu Jim com um certo prazer amargo, eles estariam doentes demais mesmo para se lamentarem.

Olhou para os sapatos, imitando conscientemente o sorriso infantil do praça Kimura. O beliche de madeira enchia o cubículo, porém Jim sentia-se perfeitamente feliz no seu universo em miniatura. Tinha pregado nas paredes várias páginas de uma velha revista Life que Basie lhe dera. Havia fotografias de pilotos da Batalha da Inglaterra sentados em poltronas ao lado dos seus Spitfires, de um bombardeiro

Heinkel destruído, de St. Paul flutuando como um vaso de guerra num mar de fogo. Ao lado, uma página toda colorida de anúncio de um carro Packard, tão belo aos olhos de Jim quanto os caças Mustang que bombardearam o Aeródromo de Lunghua. Os americanos teriam produzido um novo modelo de Mustang a cada ano ou a cada mês? Talvez houvesse um ataque aéreo naquela tarde, quando ele poderia conferir as mais recentes modificações de desenho dos Mustangs e Superfortalezas. Jim olhou para cima, à escuta de ataques aéreos.

Ao lado do Packard havia um pedaço que Jim tinha cortado de uma fotografia maior de uma multidão fora dos portões do Palácio Buckingham, em 1940. Os vultos borrados de um homem e uma mulher, parados, de braços dados, faziam Jim lembrar dos pais. Aquele casal inglês desconhecido, talvez morto num ataque aéreo, quase se tinha tornado em sua mãe e seu pai. Jim sabia que eram totalmente estranhos, mas conservou o fingimento vivo de forma que, em troca, pôde manter intensa a recordação perdida dos pais. O mundo antes da guerra, sua infância na Avenida Amherst, sua turma na Cathedral School, pertenciam àquele filme invisível que a Sra. Vincent via em seu beli-che.

Jim permitiu que a tartaruga caminhasse pelo seu colchão de palha. Se a carregasse com ele, o praça Kimura ou um dos guardas podia supor que ele tinha deixado o campo. Agora que a guerra estava terminando, os guardas japoneses estavam convencidos que os prisioneiros ingleses e americanos viviam constantemente tentando fugir: a última coisa, na verdade, a cruzar suas mentes. Em 1943, alguns ingleses tinham fugido, esperando ser abrigados por amigos neutros em Xangai, mas foram logo descobertos pelo exército de delatores. Vários grupos de americanos tinham se dirigido, no verão de 1944, para Chunking, a capital da China Nacionalista, a mais de mil e quatrocentos quilômetros a oeste. Todos tinham sido delatados por camponeses chineses apavorados com as represálias, entregues aos japoneses e executados. Daí em diante, as tentativas de fuga cessaram completamente. Em junho de 1945, os arredores de Lunghua estavam tão hostis, percorridos por bandidos, camponeses esfomeados e desertores do exército, que o campo e seus guardas japoneses eram a única segurança.

Jim tocou com o dedo a velha cabeça da tartaruga. Era uma pena cozinhá-la: Jim invejava a carapaça maciça do quelônio, uma fortaleza particular contra o mundo. Tirou de debaixo do beliche uma caixa de madeira que o Dr. Ransome tinha ajudado a pregar. Nela estavam todos os seus pertences: um emblema japonês de boné que lhe fora dado pelo praça Kimura; três piões de aço; um jogo de xadrez e um exemplar do Latin Primer de Kennedy, empréstimo sem prazo de devolução do Dr. Ransome; a jaqueta da Cathedral School, uma recordação cuidadosamente dobrada do seu eu mais jovem; e o par de tamancos que havia usado nos últimos três anos.

Jim colocou a tartaruga na caixa e cobriu-a com a jaqueta. Quando ergueu a aba do seu cubículo, a Sra.'Vincent ficou observando todos os seus movimentos. Ela o tratara como o seu Cule Número Dois e ele estava perfeitamente consciente de que tolerava o fato por motivos que mal compreendia. Como todos os homens e rapazes mais velho do Bloco G, Jim sentia atração pela Sra. Vincent, mas sua verdadeira atraçãopara Jim, estava em outra parte. Suas longas horas olhando a parede caiada e seu desinteresse mesmo pelo próprio filho - ela alimentava o menino atacado de disenteria e mudava suas roupas sem olhá-lo durante minutos - sugeriam a Jim que ela permanecia eternamente acima do campo, além daquele mundo de guardas, ódio e ataques aéreos americanos aos quais ele se dedicava apaixonadamente. Jim queria tocá-la, menos por luxúria adolescente que por simples curiosidade.

- A senhora pode usar meu beliche, Sra. Vincent, se quiser dormir.

Quando Jim tocou seu ombro, ela o repeliu. Seus olhos vagos podiam se tornar notavelmente duros.

- Jim, o Sr. Maxted continua esperando. Talvez esteja na hora de você voltar para as cabanas...

- Para as cabanas, não, Sra. Vincent - resmungou ele fingida-mente.

Para as cabanas, não, repetiu violentamente para si mesmo ao deixar o quarto. As cabanas eram frias e se a guerra continuasse além do inverno de 1945, muito mais gente iria morrer naquelas barracas geladas. Contudo, pela Sra. Vincent, talvez ele voltasse para as cabanas...

 

A Universidade da Vida

Por todo o campo soou o roçar de rodas de ferro. Nas janelas dos alojamentos, nos degraus dos blocos de dormitórios, os prisioneiros estavam tornando a sentar-se, erguidos durante uns minutos pela lembrança de comida.

Jim deixou o vestíbulo do Bloco G e encontrou o Sr. Maxted ainda segurando os varais do carro de comida. Tendo feito o esforço vinte minutos antes para erguer os varais, tinha exaurido suas forças. O ex-arquiteto e empresário, que tinha representado tudo o que Jim mais admirava em Xangai, havia sido tristemente sugado por seus anos em Lunghua. Após sua chegada ao campo, Jim tinha ficado contente por encontrá-lo, mas agora percebia o quanto o Sr. Maxted tinha mudado. Seus olhos sempre olhavam as guimbas atiradas pelos guardas japoneses, mas apenas Jim era bastante rápido para apanhá-las. Jim irritava-se com isso, mas conservava o Sr. Maxted longe da saudade, por seu sonho infantil de crescer um dia e se tornar igual a ele.

O Studebaker e as moças nos cassinos de jogo de tarde tinham preparado mal o Sr. Maxted para o mundo do campo. Assim que Jim pegou as alças de madeira, ficou imaginando quanto tempo o arquiteto tinha ficado na trilha suja de esgoto. Talvez o dia inteiro, olhado até cair pelo mesmo grupo de prisioneiros ingleses que estavam sentados nos degraus sem oferecer ajuda pelo menos uma vez. Meio nus em suas roupas andrajosas, olhavam para o campo de exercícios, sem mesmo se interessar por um caça japonês que voava sobre suas cabeças. Vários dos casais seguravam suas marmitas, prontos a formar uma fila, uma reação reflexa à chegada de Jim.

- Finalmente...

- ...esse menino...

- ...ficou fora de si.

Esses murmúrios provocaram um sorriso amigável no Sr. Maxted.

- Jim, você vai levar bola preta no clube de campo. Não faz mal.

- Eu não me importo. - Quando o Sr. Maxted cambaleou, Jim segurou-o pelo braço. - O senhor está bem, Sr. Maxted?

Jim chamou com um gesto os homens postados nos degraus, mas ninguém se mexeu. O Sr. Maxted firmou-se.

- Vamos, Jim. Uns trabalham, outros olham e assim são as coisas.

No ano anterior tinha havido um terceiro membro do grupo, o Sr. Carey, proprietário da agência Buick na Estrada de Nanquim. Porém tinha morrido de malária havia seis semanas e agora os japoneses tinham cortado a ração alimentar a um ponto onde apenas dois deles eram necessários para empurrar o carro.

Levado pelos sapatos novos, Jim caminhou pela estradinha. As rodas de ferro arrancavam chispas das pedras duras. O Sr. Maxted segurou seu ombro, ofegante.

- Devagar, Jim. Você vai chegar lá antes que a guerra acabe.

- Quando ela vai acabar, Sr. Maxted?

- Jim... ela está caminhando para um fim? Outro ano, 1946. Diga-me, você que ouve o rádio de Basie.

- Não tenho ouvido o rádio, Sr. Maxted - respondeu Jim sinceramente. Basie era muito prudente para admitir que um inglês penetrasse no círculo secreto de ouvintes. - Sei que os japoneses se renderam em Okinawa. Espero que a guerra termine logo.

- Não muito breve, Jim. Nossos problemas poderão então começar. Ainda está dando lições de inglês ao praça Kimura?

- Ele não está interessado em aprender inglês - Jim foi obrigado a confessar. - Acho que a guerra terminou realmente para ele.

- A guerra terminou realmente para você, Jim? Você tornará a ver sua mãe e seu pai.

- Bem...

Jim preferia não falar sobre seus pais, mesmo com o Sr. Maxted. Ambos tinham estabelecido uma longa camaradagem, apesar do Sr. Maxted pouco ter feito para ajudar Jim e raramente se referia ao seu filho Patrick ou a suas visitas aos clubes e bares de Xangai. O Sr. Maxted não era mais a pessoa asseada que caía em piscinas. O que aborrecia Jim era que sua mãe e seu pai podiam também ter mudado. Logo após sua chegada a Lunghua, Jim ouviu que seus pais tinham sido internados num campo perto de Suchau, mas os japoneses se recusaram a examinar uma possibilidade de transferência.

Atravessaram o campo de exercícios e aproximaram-se das cozinhas, detrás da casa de guarda. Uns vinte carrinhos de comida e seus responsáveis estavam alinhados ao lado do postigo de atendimento, entrechocando-se como um bando de jinriquixás e seus cules. Como Jim tinha calculado, ele e o Sr. Maxted deveriam ocupar seu lugar na metade da fila. Os atrasados conversavam animadamente, observados por centenas de prisioneiros esquálidos. Um dia, na semana anterior, não houve comida como represália por um ataque de Superfortalezas que arrasaram Tóquio e os prisioneiros tinham continuado a olhar para as cozinhas até o fim da tarde. O silêncio havia perturbado Jim, fazendo-o lembrar dos mendigos nos portões das casas na Avenida Amherst. Sem pensar, tinha tirado os sapatos e os escondido entre os túmulos do cemitério do hospital.

Jim e o Sr. Maxted ocuparam seus lugares na fila. Fora da casa de guarda, um grupo de trabalhadores ingleses e belgas estava endireitando a cerca. Dois deles desenrolavam um rolo de arame farpado, que os outros cortavam e pregavam nos moirões. Vários soldados japoneses trabalhavam lado a lado com seus prisioneiros, com uniformes andrajosos que mal se distinguiam dos puídos caquis dos outros.

O motivo dessa atividade era um grupo de trinta chineses acampados fora dos portões. Camponeses e aldeões despojados, soldados dos exércitos fantoches e crianças abandonadas estavam sentados em plena estrada, olhando os portões de arame farpado sendo consertados contra eles. Os primeiros daquela gente miserável tinham aparecido três meses antes. De noite, os mais desesperados tentaram trepar pelo arame, apenas para serem aprisionados pelas patrulhas internas. Os que sobreviveram na casa de guarda até o amanhecer foram levados para o rio pelos japoneses e espancados até morrerem na margem.

À medida que avançavam para a portinhola de atendimento, Jim observava os chineses. Apesar de ser verão, os camponeses ainda usavam suas roupas forradas de inverno. Desnecessário dizer, a nenhum dos chineses admitidos no Campo Lunghua tinha sido permitido se alimentar sozinho. Contudo, vinham assim mesmo, atraídos por aquele único lugar onde havia comida naquela terra desolada. Para preocupação de Jim, ficavam até morrer. O Sr. Maxted tinha razão quando dizia que, com o término da guerra, os verdadeiros problemas dos prisioneiros não iam terminar, mas começar.

Jim preocupava-se com o Dr. Ransome, a Sra. Vincent e o resto do companheiros de prisão. Como sobreviveriam sem os japoneses para cuidar deles? Preocupava-se especialmente com o Sr. Maxted, cujo cansado repertório de piadas sobre o clube de campo nada significava no mundo real. Mas pelo menos o Sr. Maxted estava tentando manter o local animado e eles dependiam da integridade do campo.

No decorrer de 1943, quando a guerra ainda se inclinava em favor do Japão, os prisioneiros tinham agido juntos. A comissão de diversões, da qual o Sr. Maxted era presidente, organizava todas as noites um programa de conferências e concertos. Foi o ano mais feliz da vida de Jim. Cansado do seu cubículo acanhado e o indiferente martelar da Sra. Vincent, passava as noites ouvindo conferências de uma infindável variedade de assuntos: a construção das pirâmides, a história do recorde mundial de velocidade terrestre, a vida de um comissário distrital em Uganda (o conferencista, oficial aposentado do Exército da índia, afirmava ter dado seu próprio nome a um lago do tamanho de Gales, o que deixou Jim espantado), as armas de infantaria da Grande Guerra, a administração da Companhia de Bondes de Xangai e dezenas de outros.

Sentado na primeira fila do salão de reuniões, Jim devorava aquelas conferências, a muitas das quais assistia duas a três vezes. Ajudou a copiar as partes das produções dos Lunghua Players de Macbeth e Noite de Reis, e trocou o cenário de The Pirates of Penzance e Trial by Jury. Na maior parte do ano de 1944, houve uma escola no campo, dirigida por missionários, que Jim achou tediosa em comparação com as conferências vespertinas. Porém conformou-se, por causa de Basie e do Dr. Ransome. Ambos concordaram em que ele não devia faltar a nenhuma aula, quando mais não fosse, desconfiou Jim, para dar um descanso a sua inesgotável energia.

Mas nó inverno de 1944, tudo aquilo tinha chegado ao fim. Depois dos ataques americanos ao Aeródromo de Lunghua e dos primeiros bombardeios nos estaleiros de Xangai, os japoneses estabeleceram um toque de recolher noturno. O fornecimento de energia elétrica ao campo foi desligado definitivamente e os prisioneiros recolhidos aos seus alojamentos. A ração alimentar já modesta foi reduzida a uma única refeição diária. Submarinos americanos bloquearam o estuário do Yangtze e os enormes exércitos japoneses na China começaram a recuar para a costa, incapazes de se alimentarem.

A perspectiva de sua derrota e um ataque iminente às ilhas japonesas deixaram Jim ainda mais nervoso. Comia qualquer resto de comida que podia arranjar, sabedor que era do número crescente de mortes por beribéri e malária. Jim admirava os Mustangs e Superfor-talezas, porém, às vezes, desejava que os americanos retornassem ao Havaí e se contentassem em tirar do fundo seus navios de guerra em Pearl Harbor. Assim, o Campo Lunghua voltaria a ser o lugar agradável que ele conhecera em 1943.

Quando Jim e Maxted voltaram com as rações ao Bloco G, os prisioneiros estavam esperando silenciosamente, com seus pratos e marmitas. Estavam todos nos degraus, os homens de peitos nus, de ombros ossudos e costelas como gaiolas de passarinhos - suas pálidas mulheres em batas esfarrapadas - olhando inexpressivos como que diante de um cadáver. Encabeçando a fila, estavam a Sra. Pearce e seu filho, seguidos dos casais de missionários, que passavam o dia à procura de comida.

Centenas de moscas pairavam sobre o vapor que saía do balde de metal contendo trigo e batata-doce. Quando ergueu os varais, Jim contorceu-se de dor, não pelo esforço de empurrar a carrocinha, mas devido ao calor da batata-doce que tinha roubado e metido na camisa. Enquanto se manteve curvado, ninguém pôde ver a batata e ele exibiu uma pantomima de caretas e gemidos.

- Ai, ai... ah, meu Deus...

- Excelente para o Grupo de Atores de Lunghua, Jim.

O Sr. Maxted o tinha visto tirar a batata da lata quando saíram da cozinha, porém não reclamou. Curvado para a frente, entregou a carrocinha aos missionários.. Subiu correndo os degraus, passou pelos Vincent parados, de pratos nas mãos... nunca lhes ocorreu, nem a Jim, que poderiam pegar o prato do rapaz e trazê-lp. Mergulhou pela cortina para dentro do seu cubículo e atirou a batata fumegante dentro do colchão, com a esperança de que a palha úmida diminuísse a fumaça. Pegou seu prato, voltou correndo para o vestíbulo e retomou seu lugar na ponta da fila. O Sr. Maxted já havia servido o Reverendo e a Sra. Pearce, mas Jim atirou o filho dela para um lado com um movimento de ombros. Estendeu o prato e recebeu uma concha de trigo cozido e uma segunda batata-doce, que ele tinha mostrado ao Sr. Maxted no instante em que deixou a cozinha.

Voltando ao beliche, Jim relaxou pela primeira vez. Puxou a cortina e deitou-se, o prato quente como um pedaço de sol, contra seu peito. Estava sonolento mas, ao mesmo tempo, tonto de fome. Reconfortou-se com o pensamento de que poderia haver um ataque aéreo americano naquela tarde: quem ele queria que vencesse? A pergunta era importante.

Jim tomou a batata-doce nas conchas das mãos. Estava quase esfomeado demais para saborear a polpa cinzenta, mas olhou a fotografia do homem e da mulher fora do Palácio Buckingham, esperando que os pais, onde quer que estivessem, também tivessem uma batata extra.

Quando os Vincent voltaram com suas rações, Jim sentou-se e afastou a cortina, de forma a poder ver seus pratos. Gostava de ver a Sra. Vincent tomando as refeições. Sem retirar os olhos dela, Jim examinou o trigo. Os grãos pegajosos eram brancos e inchados, impossíveis de distinguir dos gorgulhos que infestavam a sujeira daquele armazém. Nos primeiros anos do campo, todos empurravam os gorgulhos para um lado ou os atiravam pela janela mais próxima, mas agora Jim, cuidadosamente, os poupava. Freqüentemente, eram mais de uma centena de insetos em três fileiras na beira do prato de Jim, apesar de ultimamente seu número estar em declínio.

- Coma os gorgulhos - disse-lhe o Dr. Ransome e ele obedeceu, apesar de todos os jogarem fora.

Mas havia proteínas neles, fato que o Sr. Maxted parecia achar deprimente quando Jim lhe falou a respeito.

Após ter contado os 87 gorgulhos - seu número, calculou Jim, estava diminuindo menos rapidamente que a ração - misturou-os com o trigo, um alimento animal usado no norte da China, e engoliu seis colheradas. Parando para respirar, esperou pela Sra. Vincent para começar a comer sua batata-doce.

- É preciso, Jim? - perguntou o Sr. Vincent.

Mais baixo que Jim, o corretor e ex-jóquei amador sentou no beliche ao lado do filho doente. Com o cabelo preto e rosto magro amarelado como um limão chupado, lembrava Basie a Jim, mas o Sr. Vincent nunca se entendera com Lunghua.

- Você vai ter saudade deste campo quando a guerra acabar. Imagino como vai ser quando for para a escola na Inglaterra.

- Vai ser um pouco estranho - concordou Jim, terminando o último dos gorgulhos. Ele era sensível em relação às roupas esfarrapadas e seus decididos esforços para se manter vivo. Deixou o prato limpo com um passar de dedo e lembrou uma frase predileta de Basie:

- Seja como for, Sr. Vincent, o melhor professor é a universidade da vida.

O Sr. Vincent pousou a colher.

- Jim, podemos terminar a refeição? Já conhecemos sua opinião sobre a universidade da vida.

- De acordo. Mas devemos comer os gorgulhos, Sra. Vincent.

- Eu sei, Jim. O Dr. Ransome também nos disse.

- Ele disse que precisamos de proteína.

- O Dr. Ransome tem razão. Precisamos comer os gorgulhos. Esperando animar a conversa, Jim perguntou:

- Sra. Vincent, acredita em vitaminas?

A Sra. Vincent fixou o olhar no prato. Falou com verdadeiro desânimo:

- Que menino estranho...

O comentário aborreceu Jim. Tudo naquela mulher com seu fino cabelo louro o intrigava, embora, de muitos modos, ele desconfiasse dela. Seis meses antes, quando o Dr. Ransome pensou que Jim tivesse contraído pneumonia, ela nada fizera para ajudá-lo e o Dr. Ransome foi obrigado a ir diariamente dar banho em Jim. Contudo, na noite anterior ela o ajudara com seu latim de casa, na verdade mostrando a diferença entre gerúndios e gerundivos.

Jim esperou até a moça começar a comer a batata-doce. Após ter tido a certeza de que sua batata era a maior das quatro no alojamento e resolvendo não guardar nada para a tartaruga sob seu beliche, partiu a casca e comeu rapidamente a polpa quente. Quando terminou o último pedaço, deitou-se e desceu a cortina. Agora só - os Vincent, embora a poucos centímetros de distância, deviam também estar em outro planeta - Jim meditou sobre os trabalhos que teria de enfrentar naquele dia. Primeiro, havia a segunda batata a ser contrabandeada do quarto. Havia a aula de latim para o Dr. Ransome, trabalhos a serem feitos para Basie e para o praça Kimura, e depois o ataque aéreo vespertino: em suma, um programa completo até o toque de recolher da noite, quando ele provavelmente ficaria perambulando pelos corredores do Bloco G com seu tabuleiro de xadrez, à procura de parceiros.

Com a cartilha de Kennedy na mão, Jim saiu do seu cubículo. A segunda batata avolumava-se no bolso da calça, mas durante meses a presença da Sra. Vincent às vezes lhe dava uma inesperada ereção e ele contava com a confusão para fugir em segurança.

Com a colher a meio caminho da boca, o Sr. Vincent olhou para a protuberância com uma expressão de profunda tristeza. Sua mulher olhou à sua maneira para Jim, que esgueirou-se rapidamente do alojamento. Contente como sempre que se livrava dos Vincent, desceu o corredor até a porta da rua sob a escada de incêndio e saltou por cima das crianças sentadas nos degraus. Assim que o ar quente penetrou nos farrapos de sua camisa, correu para o mundo familiar e tranqüilizador do campo.

 

O Ataque Aéreo

A caminho do hospital, Jim parou para fazer o dever de casa na arruinada sala de reuniões. Do balcão do último andar, ele podia não apenas ficar de olho nas armadilhas de faisões do outro lado da cerca, mas também manter-se inteiramente a par das atividades do Aeródromo de Lunghua. A escada para lá estava parcialmente interrompida por pedaços de alvenaria caídos do teto, porém Jim esgueirou-se por uma estreita passagem praticada pelos garotos do campo. Subiu a escada e sentou no degrau de cimento que constituía a primeira fila do balcão.

Com a Cartilha nos joelhos, Jim comeu descansadamente a segunda batata. Abaixo dele, o arco do procênio da sala de reuniões tinha sido transformado por um bombardeio num monte de destroços e vigas de aço, mas o panorama agora exposto parecia, de muitas maneiras, com uma paisagem exibida numa tela de cinema. Ao norte, os edifícios de apartamentos da Concessão Francesa, com suas fachadas reproduzidas nos campos encharcados. À direita de Jim, o Rio Whangpu surgia do distrito de Nantao de Xangai e fazia uma curva enorme pela terra abandonada.

À sua frente, o Aeródromo de Lunghua. A pista de concreto dirigia-se diagonalmente pelo platô aos pés do pagode. Jim podia ver os canos dos canhões antiaéreos, instalados em seus antigos parapeitos de pedra, as poderosas luzes de pouso e as antenas de rádio instaladas nos telhados. Sob o pagode, estavam os hangares e as oficinas, protegidas por sacos de areia. Alguns velhos aviões de reconhecimento e bombardeiros adaptados estendiam-se pela fita de cimento, tudo o que restava da antes invencível força aérea que tinha pairado sobre Lunghua.

Nas extremidades do campo, no capim espesso perto da estrada perimetral, jaziam os escombros do que pareceu a Jim ser toda a Força Aérea Japonesa. Inúmeros aviões enferrujando estavam pousados em seus trens de aterrissagem achatados entre as árvores ou nas moitas de espinheiros onde tinham virado depois de caírem com suas tripulações feridas. Durante meses, aviões japoneses atingidos tinham caído do céu no cemitério do Aeródromo de Lunghua.como se uma batalha aérea titânica tivesse sido travada muito acima das nuvens.

Os sucateiros chineses já estavam agindo entre os restos dos aviões. Com a incansável capacidade dos chineses de transformarem um conjunto de refugo em outro, eles cortavam a superfície de metal das asas e recuperavam os pneus e tanques de combustível. Em alguns dias, estariam à venda em Xangai como telhados, cisternas e sandálias de solas de borracha. Jim nunca soube se essas transformações eram feitas com a permissão do comandante japonês da base. No espaço de algumas horas, um grupo de soldados saía num caminhão, levando alguns chineses. Jim via-os dirigindo-se pelos campos alagados para oeste do aeródromo, enquanto os japoneses arrancavam os pneus e placas de metal das carroças de salvamento. Mas os chineses voltavam sempre ao seu trabalho, ignorados pela tripulação dos canhões antiaéreos, nos sacos da areia à margem da estrada perimetral.

Jim chupou os dedos, extraindo o último pedaço de batata-doce das unhas estragadas. O calor do alimento diminuiu a dor incômoda dos seus dentes. Olhou os chineses trabalhando, tentado a deslizar entre os arames e juntar-se a eles. Havia muitos modelos novos de aviões japoneses. A apenas quatrocentos metros das armadilhas de faisões havia o bojo arrebentado de um Hayate, um dos poderosos aviões de alta altitude que os japoneses estavam enviando para destruir as Superfortalezas em seus vôos sobre Tóquio. O capim alto entre o campo e a parte sul do aeródromo raramente era patrulhado. O olhar prático de Jim examinou as profundezas e bueiros nos barrancos de espinheiros e cana-de-açúcar silvestre, acompanhando o curso de um canal esquecido.

Um segundo grupo de cules chineses estava trabalhando no centro do campo de pouso, consertando a pista de cimento. Os homens carregavam cestas com pedras, que tiravam dos caminhões estacionados entre as crateras de bombas. Um rolo compressor movia-se para cima e para baixo, manobrado por um soldado japonês.

O apito agudo de suas válvulas manteve Jim sentado. O grupo de cules lembrava-lhe que ele também tinha trabalhado na pista. Nos últimos três anos, sempre que via aparelhos japoneses decolando de Lunghua, Jim sentia um orgulhoso mal-estar, como se suas rodas saíssem da superfície de cimento. Ele, Basie e o Dr. Ransome, juntamente com os prisioneiros chineses, tinham trabalhado até a exaustão, ajudando a assentar a pista que lançava os Zeros e Hayates ao espaço para atacar os americanos. Jim tinha perfeita consciência de que sua confiança na Força Aérea Japonesa decorria da ainda temível certeza de que tinha quase dado sua vida para construir a pista, como os soldados chineses enterrados no seu poço de lama indistinguível sob as canas-de-açúcar oscilantes. Se ele tivesse morrido, seus ossos, os de Basie e os do Dr. Ransome teriam sustentado os pilotos japoneses decolando de Lunghua para se arremessarem sobre os navios ancorados em torno de Iwo Jima e Okinawa. Se os japoneses vencessem, aquela pequena parte de sua mente que jazia eternamente dentro da pista ficaria apaziguada. Mas se fossem derrotados, todos aqueles temores seriam de nenhuma valia.

Jim lembrou os pilotos do pôr-do-sol, que o tinham afastado da turma de trabalho. Sempre que ele via os japoneses andando em torno dos seus aparelhos, pensava nos três jovens pilotos, com sua tripulação de terra, caminhando à luz da noite para inspecionar a pista. Mas para o menino inglês caminhando para os aparelhos estacionados, os japoneses nem mesmo tinham reparado na turma de trabalho.

Os aviadores fascinavam Jim, muito mais que o praça Kimura e sua armadura de kendo. Diariamente, quando sentava no balcão do salão de reuniões ou ajudava o Dr. Ransome na horta do hospital, olhava os pilotos em seus folgados macacões de vôo, fazendo os exames exteriores antes de entrarem nos aparelhos. Mais que todos, Jim admirava os pilotos kamikazes. No mês anterior, mais de uma dúzia de unidades especiais de ataque tinha chegado ao Aeródromo de Lunghua, que era usado como base para missões suicidas contra os porta-aviões no Mar da China. Nem o praça Kimura, nem os outros guardas do campo davam a menor atenção aos pilotos-suicidas, e Basie e os marinheiros americanos do Bloco E se referiam a eles como “voluntários para picadinho” ou “lelés da cuca”.

Porém Jim se identificava com aqueles pilotos kamikazes e ficava sempre emocionado com as cerimônias batidas que tinham lugar à beira da pista. Na manhã anterior, enquanto ele trabalhava na horta do hospital, abandonou seu balde de excrementos e correu para a cerca de arame farpado para vê-los partir. Os três pilotos, com suas faixas brancas na cabeça, eram pouco mais velhos que Jim, com rostos infantis e narizes achatados. Postaram-se ao lado dos seus aviões no sol quente, nervosamente afastando as moscas de suas bocas, com os rostos tensos quando o chefe do esquadrão fez continência. Mesmo quando vivaram o Imperador, gritando com voz rouca para um auditório de moscas, nenhum dos metralhadores antiaéreos notou-os e o praça Kimura, atravessando os canteiros de tomates para retirar Jim da cerca, parecia espantado com sua preocupação.

Jim abriu sua gramática de latim e começou o dever de casa que o Dr. Ransome lhe passara: todos os tempos passivos do verbo amo. Ele gostava de latim; de muitos modos, sua rígida formalidade e suas famílias de substantivos e verbos lembravam a ciência da química, tema predileto de seu pai. Os japoneses tinham fechado a escola do campo como uma forma astuciosa de se vingarem dos pais, que eram aprisionados o dia inteiro com seus rebentos, porém o Dr. Ransome ainda distribuía a Jim uma série de tarefas. Havia poemas para decorar, equações simultâneas para resolver, conhecimentos gerais (onde, graças ao pai, Jim tinha freqüentemente uma surpresa para o Dr. Ransome) e francês, que ele detestava. Aquilo parecia-lhe uma incrível quantidade de trabalho de casa, refletia Jim, alimentando na imaginação que a guerra estava a ponto de terminar. Mas talvez aquela fosse a maneira de o Dr. Ransome conservá-lo calado durante uma hora diariamente. De uma certa forma, também, o trabalho de casa ajudava o médico a manter a ilusão de que, mesmo no Campo Lunghua, os valores de uma Inglaterra desaparecida ainda sobreviviam. Era uma ilusão, pois Jim estava disposto a ajudar o Dr. Ransome, sempre que necessário.

“Amatussum, amatuses, amatusest”... Enquanto recitava o tempo de verbo, Jim notou que os varredores chineses estavam fugindo do avião destruído. A turma»de cules tinha se dispersado, atirando seus cestos de pedras no chão. O soldado japonês pulou do rolo compressor e correu para as bases antiaéreas, cujos canhões estavam percorrendo o céu. Imediatamente um relâmpago de luz apareceu no Pagode Lunghua, como se os japoneses estivessem acendendo uma fogueira de culto. O som de sua única metralhadora atravessou o campo de aviação, logo seguido pelo gemido de uma sereia de ataque aéreo. A buzina sobre a casa de guarda no Campo Lunghua começou a soar, um matraquear rouco que perfurava a cabeça de Jim.

Excitado pela possibilidade de um ataque aéreo, Jim examinou o céu pelo teto aberto do salão de reuniões. Por todo o campo, os prisioneiros corriam pelas trilhas. Os homens e mulheres, cochilando como internos de um asilo nos degraus das cabanas, esgueiraram-se pelas portas, mães inclinadas nas janelas do rés-do-chão, puxando seus filhos para um lugar seguro. Dentro de um minuto, o campo ficou deserto, deixando a Jim conduzir o ataque aéreo sozinho, do balcão do salão de reuniões.

Ouviu atentamente, já desconfiando de um alarme falso. Os ataques aéreos chegavam cada dia mais cedo, à medida que os americanos avançavam suas bases através do Pacífico e do continente chinês. Os japoneses estavam agora tão nervosos que pulavam ao ver uma nuvem no céu. Um bimotor de transporte atravessou os campos encharcados, com seus pilotos inconscientes do pânico embaixo.

Jim voltou à cartilha latina. Nesse momento, uma sombra enorme cruzou o salão de reuniões e percorreu o solo na direção da cerca perimetral. Uma tempestade dee ruídos encheu o ar, do qual surgiu um caça monomotor de fuselagem prateada e com a insígnia de estrelas e listas da Força Aérea Americana. A apenas dez metros acima da cabeça de Jim, as asas do Mustang eram maiores que a sala de reuniões. A fuselagem estava suja de ferrugem e óleo, mas seu poderoso motor tinha o deslizar suave do Packard de seu pai. O Mustang ultrapassou a cerca e tocou a pista de cimento do aeródromo, à altura da cabeça de um homem sobre o convés. No seu vácuo, um rodopiar de folhas e terra ergueu-se do chão.

Em torno do campo de aviação, os canhões antiaéreos viraram-se para o campo. As fileiras do Pagode Lunghua explodiram em luzes, como a árvore de Natal colocada fora da loja de departamentos da Sincere Company em Xangai. Sem vacilar, o Mustang voou diretamente para a torre de fogo antiaéreo, o barulho dos seus canhões soando no clangor de outro Mustang que deslizou pelos terrenos encharcados a oeste do campo. Seguiu-se um terceiro avião, tão baixo que Jim olhou a cabina de cima. Pôde ver os pilotos e o emblema em sua fuselagem, enegrecida pelo combustível que espirrava dos motores esgotados. Mais dois Mustangs sobrevoaram o campo, e os jatos de ar dos seus motores rasgaram as folhas de zinco dos telhados das barracas ao lado do Bloco G. A uns oitocentos metros a leste, entre o Campo Lunghua e o rio, uma segunda esquadrilha de caças americanos chegara do mar, tão baixa sobre os campos vazios encharcados, que ficara oculta pelas filas de montículos funerários. Subiram ao atravessar o perímetro do campo de aviação e depois tornaram a mergulhar para atirar nos aviões japoneses estacionados ao lado dos hangares.

Balas antiaéreas explodiram sobre o campo, suas sombras pulsando como corações na terra branca. Uma cápsula explodiu num relâmpago abrasador sobre a sala de reuniões, ensurdecendo o ar. Do teto de cimento caiu pó sobre os ombros de Jim. Balançando sua cartilha de latim, Jim contou as dezenas de explosões. Os pilotos dos Mustangs saberiam que Basie e os comerciantes marítimos americanos estavam prisioneiros no Campo Lunghua? Sempre que atacavam o aeródromo, os pilotos escondiam-se até o último instante por trás dos blocos de dormitórios de três andares, muito embora aquilo atraísse o fogo dos japoneses para o campo e tivesse morto muitos prisioneiros.

Porém Jim ficou contente com a proximidade dos Mustangs. Seus olhos banqueteavam-se com cada rebite de suas fuselagens, nas aberturas para metralhadoras em suas asas, nos enormes radiadores ventrais que Jim tinha a certeza de que haviam sido colocados lá apenas por uma questão de estética. Jim admirava os Hayates de Zeros dos japoneses, mas os caças Mustangs eram os Cadillacs dos combates aéreos. Estava demasiadamente sem fôlego para gritar aos pilotos, contudo acenou com a cartilha para eles, quando passaram sob o dossel das cápsulas antiaéreas.

As primeiras ondas de aviões de ataque tinham varrido o aeródromo. Claramente visíveis contra os edifícios de apartamentos da Concessão Francesa, voaram para Xangai, prontos a bombardear os estaleiros e a base aeronaval de Nantao. Mas as baterias antiaéreas que

cercavam a pista continuavam atirando para o ar, formando arabescos no espaço, deixando traços fosforescentes. No centro, o grande Pagode de Lunghua, surgindo entre a fumaça que se erguia dos hangares incendiados, seus canhões atirando incessantemente.

Jim jamais vira um ataque aéreo em tal escala. Uma segunda onda de Mustangs cruzou os campos encharcados entre o Campo Lunghua e o rio, seguida de um esquadrão de caças-bombardeiros bimotores. Trezentos metros a oeste do campo, um dos Mustangs mergulhou a estibordo em direção ao sola. Desgovernado, deslizou no ar e a ponta da asa atingiu o barranco de um canal desativado. O avião capotou no terreno alagado e explodiu no ar numa cortina de chamas, através da qual Jim pôde ver o vulto incendiado do piloto americano, ainda preso ao seu assento. Pilotando os restos incandescentes do seu aparelho, rasgou as árvores do outro lado do campo, um fragmento do sol cuja luz continuou a brilhar nos campos em volta.

Um segundo Mustang atingido afastou-se dos outros em vôo. Arrastando uma coluna de fumaça oleosa, surgiu entre as explosões antiaéreas e atirou-se para o espaço. O piloto estava procurando fugir do aeródromo, mas assim que seu Mustang começou a perder altura, virou o aparelho de costas e deixou-se cair, com segurança, da cabina. Seu pára-quedas abriu-se e ele tombou abruptamente. Seu aparelho em chamas caiu arrastando uma fumaça escura num arco oscilante sobre os campos vazios e depois mergulhou no rio.

O piloto pairou solitário no céu silencioso. Seus companheiros rumaram para Xangai, as fuselagens prateadas perdidas nas janelas cheias de sol da Concessão Francesa. O barulho martelado dos seus motores tinha sumido e o fogo antiaéreo cessado. Um segundo pára-quedista estava descendo entre os canais, a oeste do aeródromo. Um cheiro de petróleo queimado e de refrigerador de motor encheram o ar convulsionado. Por todo o campo, tempestades em miniatura de folhas e insetos mortos pairavam e depois rodopiavam pelas trilhas novamente, como que assombrados pelas rajadas de ar dos Mustangs desaparecidos.

Os dois pára-quedas caíram em direção aos montículos fúnebres. Um destacamento de soldados japoneses num caminhão com o radiador fumegante partiu rapidamente pela estrada perimetral, com o objetivo de liquidar os pilotos. Jim sacudiu a poeira da cartilha de latim e ficou esperando os tiros de carabina. O resplendor luminoso que ainda surgia dos Mustangs em chamas pairava sobre os riachos e campos encharcados. Durante alguns minutos o sol se arrastou para perto da terra, como se escorraçasse os mortos dos seus campos.

Jim lamentou os pilotos americanos, que tinham morrido no emaranhado de seus equipamentos, sob o olhar de um cabo japonês com uma Mauser e do único menino inglês escondido no balcão daquele

edifício em ruínas. Mas o fim deles lembrou a Jim o seu próprio, sobre o qual tinha pensado às escondidas desde sua chegada a Lunghua. Recebeu com alegria os ataques aéreos, o ruído dos Mustangs ao deslizarem sobre o campo, o cheiro de petróleo e cordite, as mortes dos pilotos e mesmo a probabilidade de sua própria morte. Apesar de tudo, sabia que não valia nada. Apertou a cartilha latina, tremendo com a ânsia secreta que a guerra poderia tão vivamente satisfazer.

 

O Hospital

- Jim!... Você está aí?... Está ferido?...

O Dr. Ransome estava parado no entulho que cobria o chão da sala de reuniões, gritando para o balcão. Tinha ficado exausto com o esforço de correr do Bloco D e seus pulmões arfavam em seu peito. Os anos em Lunghua o tinham tornado mais magro, porém seus grandes ossos mantinham-se unidos por pouco mais que alguns tendões. Acima da barba áspera, seu único olho bom tinha visto a cabeça de Jim, branca de poeira, como que encanecida pelo ataque aéreo.

- Jim, preciso de você no hospital. O Sargento Nagata disse que você pode ficar comigo durante a chamada.

Jim livrou-se do seu devaneio. Estranhamente, o halo expelido pelo corpo em chamas do piloto americano ainda pairava sobre os campos despovoados, porém ele resolveu não mencionar essa ilusão de óptica ao Dr. Ransome. A sereia de tudo-limpo uivou no pagode, sinal esse repetido pela buzina da casa de guarda. Jim saiu do balcão e esgueirou-se escada abaixo.

- Pronto, Dr. Ransome. Acho que quase fui morto. Alguém morreu?

- Esperemos que não. - O Dr. Ransome debruçou-se na balaustrada e espanou a poeira de sua barba com o chapéu de palha de cule que usava. Embora hesitante por causa do ataque aéreo, olhou Jim com ar cansado mas paciente. Após os ataques, quando os guardas japoneses começavam a insultar os prisioneiros, ele ficava freqüentemente de mau humor com Jim, como se este fosse o culpado. Passou a mão pelo cabelo de Jim, espanando o pó de cimento e examinando o couro cabeludo à procura de marcas de sangue. - Jim, nós sabemos que você não deve se postar lá em cima durante os ataques. Os japoneses já têm muito com que se preocupar: podem pensar que você está procurando fazer sinais aos pilotos americanos.

- Eu estava, porém eles não me viram. Os Mustangs são muito velozes. - Jim gostava do Dr. Ransome e queria assegurar-lhe que estava tudo bem. - Preparei minha aula de latim, doutor.

Surpreendentemente, o Dr. Ransome não estava interessado em se Jim havia decorado seus verbos. Caminhou em direção ao hospital, um amontoado de tendas de bambu que os prisioneiros, numa estimativa realista dos recursos médicos do campo, tinham construído ao lado do cemitério. A chamada já havia começado e as trilhas estavam desertas. Guardas japoneses caminhavam ruidosamente entre as cabanas, quebrando as últimas vidraças com a coronha dos seus rifles. Esta precaução tinha sido instituída pelo Sr. Sakura, o comandante do campo, para proteger os prisioneiros da explosão das bombas. Na verdade, foi uma represália pelo ataque aéreo, fazendo com que os prisioneiros aprendessem à própria custa, no crepúsculo, quando, na hora de comer, milhares de mosquitos anófeles surgiam das poças estagnadas que cercavam o campo.

Nos degraus do Bloco E, um dos dormitórios masculinos, o Sargento Nagata berrou na cara do chefe do bloco, Sr. Ralston, o organista do Cinema Metrópole, de Xangai. Atrás do sargento, havia três guardas de baionetas caladas, como se esperassem que um esquadrão de fuzileiros navais americanos surgisse do edifício. As centenas de prisioneiros esfarrapados esperaram pacientemente. À medida que a guerra se aproximava, os japoneses tornavam-se dúbios e perigosos.

- Dr. Ransome, o que acontecerá se os americanos desembarcarem em Wusung?

Aquele porto no estuário do Yangtze dominava a entrada em Xangai pelo rio. Todos no campo falavam sobre Wusung.

- Os americanos provavelmente desembarcarão em Wusung, Jim. Eu sempre pensei que você devia estar no quartel-general de MacArthur. - O Dr. Ransome parou para recuperar o fôlego. Forçou o ar para dentro do peito ossudo, olhando o reflexo do seu vulto nas pontas dos sapatos de Jim. - Procure não pensar nisto: você tem muitas outras coisas fervilhando em sua cabeça. Talvez os americanos não desembarquem lá.

- Se desembarcarem, os japoneses lutarão.

- Eles lutarão, Jim. Como você sempre afirmou lealmente, os japoneses são os mais corajosos soldados do mundo.

- Ora...

Falar de coragem deixava Jim embaraçado. A guerra nada tinha a ver com bravura. Dois anos antes, quando ele era mais moço, parecia importante descobrir quem era o soldado mais bravo, pois era parte de sua tentativa de preencher as rachaduras de sua vida. Certamente, os japoneses vinham em primeiro lugar e os chineses em último, com os ingleses oscilando entre eles. Mas Jim pensou nos aviões americanos que tinham varrido o céu. Por mais bravos que fossem, nada havia que os japoneses pudessem fazer para parar aquelas máquinas belas e dominadoras.

- Os japoneses são bravos - concordou Jim. - Mas agora a bravura não é importante.

- Não tenho tanta certeza. Você é bravo, Jim?

- Não... claro que não. Mas podia ser - garantiu Jim.

- Acho que você é.

Embora repentino, o comentário do Dr. Ransome tinha uma sutileza desagradável. Estava claramente aborrecido com Jim, como se o culpasse pelo ataque dos Mustangs. Aquilo seria porque tinha aprendido a gostar da guerra? Discutiu o assunto assim que chegaram ao hospital. No chão, diante dos maltratados degraus de bambu, via-se a cápsula intacta de uma bala antiaérea. Apanhou-a, curioso para saber se ainda estava quente, mas o Dr. Ransome tirou-a dele e jogou-a por cima da cerca de arame farpado.

Jim ficou parado nos degraus estragados, flexionando os sapatos nos pedaços de bambus. Ficou tentado a arrancar a cápsula das mãos do Dr. Ransome. Era agora quase tão alto quanto o médico e mesmo mais forte em muitos aspectos: no decorrer dos últimos três anos, enquanto Jim crescia, o grande corpo do Dr. Ransome tinha murchado e se desgastado. Jim mal podia acreditar em suas recordações do corpo robusto daquele homem ruivo, com pernas e braços poderosos, o dobro do tamanho dos soldados japoneses. Mas no decorrer dos primeiros dois anos no campo, o Dr. Ransome tinha dado grande parte da sua ração a Jim.

Entraram no hospital e Jim foi para seu lugar fora do dispensado com o Dr. Bowen - otorrinolaringologista do Hospital Geral de Xangai - e as quatro viúvas missionárias que constituíam o grupo de enfermagem. Enquanto esperavam o Sargento Nagata para fazer a chamada, Jim deu uma olhada nas enfermarias em volta, onde os trinta pacientes jaziam em seus catres. Após cada ataque aéreo, havia algumas mortes, de choque ou exaustão. A lembrança de que a guerra estava quase no fim parecia encorajar certas pessoas a morrer. Contudo, para os ainda dispostos a manterem-se vivos, uma morte era uma boa notícia. Para Jim, significava um velho cinto ou um par de suspensórios, uma caneta-tinteiro, e uma vez, milagrosamente, um relógio de pulso que ele tinha usado durante três dias, antes de entregá-lo, como tudo o mais, a Basie. Os japoneses tinham confiscado todos os relógios de pulso ou de parede: como dizia o Dr. Ransome, queriam” deixar os prisioneiros sem noção de tempo. Naqueles três dias, Jim tinha marcado o tempo que levou fazendo tudo.

A maior parte dos pacientes sofria de malária, disenteria e afecções cardíacas decorrentes de má alimentação. Os pacientes de beriberi perturbavam especialmente Jim, com suas pernas inchadas e pleurises, com as cabeças tão confusas que pensavam estar agonizando na Inglaterra. Nos seus momentos derradeiros, recebiam um privilégio especial: o único mosquiteiro do hospital e ficavam naquela sepultura provisória até serem entregues ao cemitério ao lado da horta da cozinha.

Enquanto o Sargento Nagata se aproximava do hospital, acompanhado de dois soldados, Jim deu uma olhada na enfermaria dos homens. Havia dias que o Sr. Barraclough, secretário do clube de campo de Xangai, estava agonizando e Jim notou seu anel de ouro de sinete. Podia não ser de ouro - nem sempre o que oferecia a Basie era - mas deveria valer alguma coisa. Jim não tinha remorso de roubar os mortos. Os únicos pacientes suficientemente bobos para entrar no hospital eram os sem parentes ou amigos que olhassem por eles nas cabanas ou blocos-dormitórios. Além de não ter remédios'- o pequeno suprimento destinado pelos japoneses tinha sido usado no primeiro ano - o hospital raramente curava alguém. Os japoneses, concluindo corretamente que todos os que eram internados no hospital iriam morrer breve, imediatamente dividiam suas rações alimentares. Apesar disso, pensou Jim, levou um tempo enorme antes que os Drs. Ransome e Bowen o declarassem oficialmente morto. Jim sabia que uma grande parte das batatas extras que tinha comido provinha das rações de mortos. O Dr. Ransome dedicava-se muito aos doentes e Jim lamentava que, recentemente, ele começasse a perder a esperança.

- Eles estão chegando - gritou o Dr. Ransome. - Jim, preste atenção. Não discuta com o Sargento Nagata hoje. E não lhe fale do ataque aéreo.

Notando que os olhos de Jim estavam fixos no anel de sinete, virou-se para encarar o Sargerfto Nagata, quando este subiu ruidosamente os degraus de bambu. O Dr. Ransome desaprovava o roubo de cadáveres, embora soubesse que Jim trocava as fivelas de cintos e suspensórios por alimentos. Contudo, como Jim silenciosamente refletiu, o Dr. Ransome tinha suas próprias fontes de suprimento. Ao contrário da maioria dos prisioneiros em Lunghua, aos quais tinha sido permitido levar uma maleta antes de serem internados, o Dr. Ransome tinha entrado no campo apenas com uma camisa, calções e sandálias de couro. Contudo, seu alojamento no Bloco D abrigava uma impressionante quantidade de coisas: um terno completo, uma vitrola portátil com muitos discos, uma raquete de tênis, uma bola de rúgbi e uma estante de livros que tinham sido a base da educação de Jim. Isso, como todas as roupas que Jim tinha usado no campo e seus magníficos sapatos de golfe, que atraíram imediatamente a atenção do Sargento Nagata, o Dr. Ransome tinha obtido da quantidade de pacientes que visitavam a cada noite seu alojamento no Bloco D. Muitos nada tinham para dar, mas as mulheres jovens sempre levavam uma modesta contribuição pelos misteriosos serviços que o Dr. Ransome lhes prestava. Richard Pearce chegou mesmo a reconhecer que Jim estava usando uma das suas camisas velhas, porém era muito tarde.

O Sargento Nagata parou diante dos prisioneiros. O peso do ataque aéreo o tinha deixado evidentemente abalado. Suas mandíbulas cerraram-se quando ele expeliu algumas gotas de cuspe. A barba em torno de sua boca tremeu como antenas minúsculas recebendo um aviso adiantado da ira por vir. Ele precisava se irritar até ficar furioso, mas o brilho das pontas dos sapatos de Jim o distraiu. Como todos os soldados japoneses, o sargento usava botas estragadas, que deixavam aparecer seus dedos ressaltados como imensos polegares.

- Menino... - Parou diante de Jim e bateu em sua cabeça com a folha de papel, soltando uma nuvem de pó branco. Ele sabia pelo praça Kimura que Jim estava envolvido em todas as atividades ilegais do campo, porém nunca fora capaz de pegá-lo em flagrante. Sacudiu o pó com a mão e com esforço pronunciou as duas únicas palavras consecutivas em inglês que os anos em Lunghua lhe tinham ensinado: - Menino difícil...

Jim esperou que ele prosseguisse, fascinado pelo cuspe em seus lábios. Talvez o Sargento Nagata gostasse de um relato em primeira mão do ataque aéreo, pensou Jim.

Mas o sargento entrou na enfermaria dos homens, gritando em japonês com os dois médicos. Olhou para os moribundos, pelos quais nunca demonstrou o menor interesse e Jim teve a súbita e divertida idéia de que o Dr. Ransome estava ocultando um piloto americano ferido. Quis tocar no piloto antes que os japoneses o matassem, sentir seu capacete e sua indumentária de vôo, passar os dedos na poeira e no combustível dos seus óculos.

- Jim!... Pare de imaginar!...

A Sra. Philips, uma dás viúvas missionárias, pegou-o quando ele se esgueirava para frente, quase desmaiando diante da imagem daquele vulto angelical caindo entre as almofadas. Jim parou, fingindo estar fraco de fome e tentando evitar o olhar de suspeita da sentinela japonesa na porta da enfermaria. Esperou a chamada chegar ao fim, pensando no provável saque ligado à morte de um piloto americano. Breve, um dos americanos seria derrubado dentro do Campo Lunghua. Jim tratou de escolher em qual dos edifícios arruinados seria melhor ocultar seu corpo. Cuidadosamente negociados, a mochila e o equipamento podiam ser trocados com Basie por batatas-doces extras durante os meses seguintes e até mesmo por um casaco quente para o inverno. Haveria batatas-doces para o Dr. Ransome, que Jim estava determinado a manter vivo.

Balançou-se nos calcanhares e ouviu uma velha chorar na enfermaria ao lado. Pela janela, via-se o pagode no aeródromo de Lunghua. A torre da artilharia apareceu sob uma nova luz.

Durante mais de uma hora, Jim ficou na fila com as missionárias, vigiado pelas sentinelas. Os Drs. Ransome e Bowen tinham ido com o Sargento Nagata ao escritório do comandante, talvez para serem interrogados. Os guardas circulavam em torno do campo silencioso com suas listas, realizando chamadas repetidas. A guerra estava chegando ao fim e apesar disso os japoneses estavam obcecados em saber o número exato de prisioneiros que tinham em seu poder.

Jim fechou os olhos para acalmar sua mente, porém o sentinela berrou com ele, suspeitando que Jim estivesse armando uma das suas, o que seria desaprovado pelo Sargento Nagata. A lembrança do ataque aéreo excitava Jim. Os Mustangs ainda cruzavam o campo, a caminho de atacar a torre de metralhadora. Imaginou-se no comando de um dos atacantes, caindo em terra quando seu avião explodiu, tornando a erguer-se como um dos jovens pilotos kamikazes que saudavam o imperador, antes de atirarem seus Zeros sobre os porta-aviões americanos em Okinawa. Um dia, Jim se tornaria um piloto ferido, caindo entre os montículos tumulares e os pagodes blindados. Pedaços de roupa de vôo e de pára-quedas, talvez mesmo do seu próprio corpo, se espalhariam pelos campos encharcados, alimentando os prisioneiros por trás da cerca e os chineses morrendo de fome no portão...

- Jim!... - sussurrou a Sra. Philips. - Treine seu latim...

Forçando-se a não piscar, para irritação do sentinela japonês, Jim olhou para a luz do sol fora da janela do ambulatório. A paisagem silenciosa parecia estar em chamas, o halo surgido do corpo ardente do piloto americano. A luz atingiu a cerca enferrujada e a folhagem empoeirada das canas-de-açúcar silvestres clareava as asas do avião derrubado e os ossos dos camponeses enterrados nos montículos. Jim ansiou pelo próximo ataque aéreo, sonhando com a luz violenta, quase incapaz de respirar por causa da fome que o Dr. Ransome tinha reconhecido mas que nunca pôde saciar.

 

A Horta do Cemitério

Quando a chamada terminou, Jim permaneceu nos degraus do hospital. Os Drs. Ransome e Bowen voltaram da sala do comandante e imediatamente se fecharam no ambulatório com as quatro missionárias. O Dr. Ransome parecia tão nervoso quanto os japoneses. A velha cicatriz sob o olho estava sangrando. O Sargento Nagata o teria esbofeteado por protestar contra outro corte na ração de alimentos?

Mãos nos bolsos, Jim passeou pela trilha atrás do hospital. Examinou os canteiros de tomates, feijões e melões na horta. A safra modesta serviria para complementar a magra dieta dos pacientes, embora a maior parte das verduras fosse desviada para os marinheiros americanos no Bloco E. Jim gostava daquele trabalho com plantas. Conhecia cada uma e podia dizer, a um simples olhar, se as crianças tinham roubado um único tomate. Felizmente, a enorme fila de túmulos no cemitério ao lado as mantinha a distância. Além dos seus benefícios nutritivos, a Botânica era um assunto intrigante. No ambulatório, o Dr. Ransome cortava e tingia os pedaços dos talos e raízes das plantas, colocava-os sob o microscópio do Dr. Bowen e fazia Jim retirar as centenas de células e vasos nutrientes. A classificação de plantas era um completo universo de palavras; cada erva no campo tinha um nome. Os nomes cercavam tudo; enciclopédias invisíveis jaziam em cada cerca e vala.

Na tarde anterior, Jim tinha cavado duas valas com fertilizantes para uma nova safra de tomateiros. Entre a horta e o cemitério havia uma fila de tambores de cinqüenta galões que ele e o Dr. Ransome tinham enterrado e depois enchido com o esgoto do excesso da fossa do Bloco G. Um grupo de prisioneiros do bloco tinha filtrado a maior parte do esgoto numa das lagoas de drenagem, porém Jim e o Dr. Ransome fizeram suas próprias viagens com baldes, corda e carroça. Como disse o Dr. Ransome, não tinha sentido desperdiçar tudo o que pudesse ser mantido vivo, mesmo por uns poucos dias. Os tomates desabrochando e os melões crescendo provavam que ele tinha razão.”

Jim removeu a cobertura de madeira de um dos tonéis. Esperou que os milhares de moscas tivessem o primeiro quinhão, depois pegou a escadinha de bambu com seu recipiente de madeira e começou a espalhar as fezes nas valas rasas. Trabalhava com o ritmo lento mas medido dos camponeses chineses que tinha observado quando adubavam suas semeaduras antes da guerra.

Uma hora depois, quando tinha coberto o estéreo com uma camada de terra, Jim descansou numa das sepulturas do cemitério ao lado. Várias pessoas estavam visitando o hospital, os chefes de blocos e seus assistentes, um grupo de americanos do Bloco E, os antigos holandeses e belgas. Mas Jim estava cansado demais para importuná-los por notícias. Havia tranqüilidade na horta, com suas cercas verdes de feijões e tomateiros. Freqüentemente ele os visualizava ali para sempre, mesmo depois da guerra ter acabado.

Empurrou sua fantasia bucólica para o fundo da imaginação e prestou atenção ao ronco de um Zero surgindo na cabeceira da pista. Um único avião kamikaze estava para decolar, tudo o que os japoneses podiam reunir como represália ao ataque aéreo americano. O jovem piloto, pouco mais velho que Jim, usava suas faixas cerimoniais, mas a guarda de honra consistia unicamente em um cabo e um recruta. Ambos se afastaram antes que o piloto subisse para a cabina e voltaram ao seu trabalho de conserto nos hangares estragados.

Jim observou o avião erguer-se da pista aos solavancos. Elevou-se sobre o campo, o motor esforçando-se sob o peso da bomba, planou em direção ao rio e aproou para o Mar da China. Jim colocou as mãos nos olhos e acompanhou o vôo do avião, até que este desapareceu entre as nuvens. Ninguém entre os japoneses do Campo Lunghua tinha dado a menor atenção ao aparelho. O incêndio ainda continuava nos hangares junto ao pagode e uma nuvem de fumaça elevava-se dos barracões incendiados. As crateras, porém, já estavam sendo cobertas pela turma de operários cules chineses e os negociantes de sucata estavam revirando o bojo dos aviões atingidos.

- Continua interessado em aviões, Jim? - perguntou a Sra. Philips quando, juntamente com a Sra. Gilmour, saiu do pátio do hospital. - Você deveria entrar para a RAF.

- Vou entrai na Força Aérea Japonesa.

- Como? A Força?...

As missionárias deram uma risadinha, ainda duvidosas do senso de humor de Jim e empurraram sua carrocinha de madeira. As rodas de ferro trepidaram na trilha de pedra, sacudindo o corpo que as duas iam enterrar.

Jim esfregou os três tomates que tinha arrancado. Nenhum era maior que uma bola de gude, porém Basie iria gostar. Meteu-os no bolso da camisa e olhou as Sras. Philips e Gilmour cavarem a sepultura. Ficando logo fatigadas, as duas sentaram-se na carrocinha, descansando ao lado do cadáver.

Jim caminhou para elas e tirou a pá das mãos calejadas da Sra. Philips. Era o corpo do Sr. Radik, o antigo diretor principal do Cathay Hotel. Jim usufruíra suas conferências acadêmicas no navio Berengaria, da Atlantic, e ficou contente por poder pagar sua dívida. Cavou o solo macio. Em um dos seus poucos atos de previdência, quando ainda estavam bastante fortes para fazê-lo, os prisioneiros tinham escavado em parte as tumbas estreitas. Porém o esforço de retirar agora uma nova camada de terra molhada era demais para as missionárias. Os mortos eram enterrados acima do solo, cobertos pela terra solta. As chuvas fortes dos meses de monção afrouxavam os montículos, de modo que estes faziam o perfil dos corpos que abrigavam, como se aquele pequeno cemitério ao lado do campo de aviação militar estivesse fazendo o possível para ressuscitar alguns dos milhões que tinham morrido na guerra. Aqui e ali, um braço ou pé surgia do túmulo, os membros de inquietos falecidos lutando sob suas cobertas castanhas. Os ratos tinham cavado fundo na sepultura da Sra. Hug, a holandesa que tinha chegado a Lunghua com Basie e o Dr. Ransome, e os túneis lembraram a Jim a Linha Maginot que ele construíra atrás das defesas que tinha edificado para seu exército de soldados de chumbo na Avenida Amherst.

Cavou, resolvido a enterrar o Sr. Radik muito abaixo do chão, de maneira a que o diretor não se tornasse alimento de ratos. As Sras. Gilmour e Philips ficaram sentadas na carrocinha ao lado do corpo, olhando caladas. Sempre que ele parava para descansar, elas o brindavam com sorrisos idênticos, tão pálidos quanto as flores estampadas em seus vestidos gastos de algodão.

- Jim! Pare com isso e venha cá! Preciso de você!

O Dr. Ransome estava gritando da janela do ambulatório. Não gostava de ver Jim cavando túmulos.

Centenas de moscas zumbiam em torno da carroça e pousavam no rosto do Sr. Radik. Com o Berengaria na cabeça, Jim continuou a cavar o solo.

- Jim, o doutor está chamando...

- Está bem... já acabei.

As mulheres tiraram o Sr. Radik da carroça. Apesar de cansadas pelo esforço, carregaram o corpo com o mesmo cuidado que teriam se ele estivesse vivo. Ainda estaria vivo para aquelas duas viúvas cristãs? Jim sempre se impressionara com crenças religiosas fortes. Seus pais eram agnósticos e ele respeitava os devotos cristãos da mesma maneira que respeitava os membros do Clube Graf Zeppelin ou fregueses das lojas de departamentos chinesas, pelo seu domínio de um exótico ritual estranho. Além disso, os que se dedicavam intensamente a outros, como as Sras. Philips, Gilmour e o Dr. Ransome, freqüentemente tinham crenças que revelavam-se corretas.

- Sra. Philips - perguntou enquanto colocavam o Sr. Radik no túmulo - quando a alma deixa o corpo? Antes de ser enterrado?

- Sim, Jim. - A Sra. Philips ajoelhou-se e começou a cobrir o rosto do Sr. Radik com terra. - A alma do Sr. Radik já partiu. O doutor está chamando outra vez. Espero que você tenha preparado sua lição de latim.

- Claro.

Jim meditou sobre tudo aquilo enquanto caminhava para o hospital. Ele freqüentemente observava os olhos dos pacientes quando morriam, procurando detectar um relâmpago de luz quando a alma saía. Uma vez tinha ajudado o Dr. Ransome, quando este massageava o peito nu de uma jovem belga atacada de disenteria. O Dr. Bowen dissera que ela estava morta, mas o Dr. Ransome comprimiu seu” coração sob as costelas e subitamente os olhos dela giraram e olharam para Jim. A princípio, Jim pensou que a alma tinha voltado, porém ela continuava morta. As Sras. Philips e Gilmour a levaram e enterraram uma hora depois. O Dr. Ransome explicou que durante alguns segundos tinha bombeado o sangue de volta ao cérebro.

Jim entrou no ambulatório e sentou-se na mesa de metal defronte do Dr. Ransome. Ele teria preferido continuar com o tema da alma do Sr. Radik, mas o doutor estava curiosamente avesso a discutir temas religiosos com Jim, apesar de ir aos serviços religiosos nas manhãs de domingo. A cicatriz em seu rosto ainda sangrava e ele estava absorvido por seu recipiente de cera derretida. Sempre que estava cansado ou aborrecido com Jim, o Dr. Ransome derretia algumas velas e mergulhava pedaços de tecido velho no líquido quente e depois pendurava-os para secar. No inverno anterior, tinha feito centenas daqueles quadrados de cera, que os prisioneiros tinham usado para substituir as vidraças quebradas das janelas. Apesar das horas de trabalho terem ajudado a afastar os ventos gelados que desciam do norte da China, poucos prisioneiros eram gratos ao Dr. Ransome. Contudo, como Jim tinha observado, o Dr. Ransome não estava interessado na gratidão deles.

Jim mergulhou um dedo na cera quente, porém o Dr. Ransome o afastou bruscamente. Evidentemente, sua conversa com o comandante do campo o deixara preocupado: estava se preparando para o inverno, como que tentando se convencer de que estariam todos ali quando ele chegasse.

Tirando os sapatos, Jim começou a polir as biqueiras. Após três anos de tamancos e sobras, gostava de impressionar a todos com aquelas botinas de couro valiosas.

- Jim, é formidável você estar sempre tão elegante, mas procure não esfregá-los o tempo todo. - O Dr. Ransome fixou a atenção nos quadrados de cera. - Eles perturbam o Sargento Nagata.

- Gosto que eles fiquem brilhantes.

- Eles estão muito brilhantes. Até os pilotos americanos devem tê-los visto. Eles provavelmente pensam que temos aqui um campo de golfe e fazem mira servindo-se dos bicos dos seus sapatos.

- Quer dizer que estou ajudando o esforço de guerra?

- De certa forma...

Antes que Jim pudesse calçar os sapatos, o Dr. Ransome segurou-lhe o tornozelo. A maior parte das feridas nas pernas de Jim estava infeccionada e em conseqüência da dieta pobre jamais ficariam devidamente curadas, porém acima do tornozelo direito havia uma ulceração do tamanho de uma moeda, cheia de pus. O Dr. Ransome afastou a cumbuca de cera derretida da vela acesa. Ferveu uma colherada de água num recipiente de metal e depois esvaziou e limpou a ulceração com um pedaço de algodão.

Jim submeteu-se sem protestar. Tinha estabelecido sua única ligação estreita em Lunghua com o Dr. Ransome, apesar de saber que o médico não estava de acordo com ele em muitas coisas. Guardava-lhe rancor por Jim mostrar uma verdade evidente sobre a guerra, a de que o povo só era capaz de se adaptar a ela. Havia horas em que chegava mesmo a desconfiar que Jim gostava de latim por motivos errados. Irmão de um mestre de jogos de um internato (uma dessas instituições repressoras, semelhantes a Lunghua, para a qual Jim fora aparentemente destinado), tinha trabalhado no país inteiro com missionários protestantes. O Dr. Ransome era mais ou menos uma espécie de administrador e chefe do time de rúgbi, embora Jim não tivesse certeza até onde esses modos eram calculados. Tinha notado como o médico podia ser notavelmente tortuoso, quando isso lhe convinha.

- Bem, Jim, tenho a certeza de que você estudou a lição...

O Dr. Ransome abriu a cartilha de latim. Apesar de distraído pelos prisioneiros que se reuniram fora das cabanas e blocos de dormitórios, olhou o texto com atenção. Centenas de homens e suas mulheres, muitos com os filhos, estavam atravessando o campo de exercícios. Ele começou a interrogar Jim, que continuou a lustrar os sapatos sob a mesa.

- “Eles foram amados”?...

- Amabantur.

- “Você será amado”?...

- Amatus eris

- “Serei amado”?...

- Amabor.

- Correto: vou lhe preparar uma aula. A Sra. Vincent o ajudará com o vocabulário. Ela não se incomoda com suas perguntas?

- Agora não.

Jim relatou-lhe sua mudança de temperamento. Ele imaginou que o Dr. Ransome tinha sido útil com algum problema especial feminino.

- Bem. As pessoas precisam ser encorajadas. Ela talvez não tenha sido muito útil com a trigonometria.

- Não preciso que ela me ajude. - Jim gostava de trigonometria. Ao contrário do latim ou da álgebra, este ramo da geometria estava diretamente ligado a um tema que lhe era caro: a guerra aérea. - Dr. Ransome, os bombardeiros americanos que voam com os Mustangs desenvolvem a velocidade de 512 quilômetros por hora: medi a velocidade pela projeção de suas sombras através do campo pelas batidas do meu coração. Se eles quisessem atingir o Aeródromo de Lunghua, teriam de lançar as bombas a cerca de mil metros de distância.

- Jim, você é um fruto da guerra. Imagino que os atiradores japoneses também sabem disso.

Jim recostou-se, pensando a respeito.

- Talvez não.

- Bem, não podemos contar-lhes... ou podemos? Isso seria desleal com os pilotos americanos. Já como está, os japoneses estão derrubando muitos deles.

- Porém eles os estão derrubando sobre o aeródromo - explicou Jim. - Então já atiraram suas bombas. Se quiserem impedi-los de atingir a pista, devem acertá-los a mais de mil metros de distância.

A perspectiva excitou Jim: aplicada às bases japonesas por todo o Pacífico, essa nova tática poderia virar a guerra contra os americanos e dessa forma salvar Lunghua. Tamborilou os dedos na mesa, imitando a maneira como tocou o piano branco na casa vazia da Avenida Amherst.

- Sim... - O Dr. Ransome estendeu a mão e gentilmente comprimiu a de Jim na mesa, procurando acalmá-lo. Mergulhou outro quadrado de algodão na cumbuca de cera. - Talvez seja melhor deixarmos a trigonometria e darei um pouco de álgebra. Precisamos que a guerra acabe, Jim.

- Claro, Dr. Ransome.

- Você quer que a guerra acabe, Jim? - O Dr. Ransome freqüentemente parecia duvidoso disso. - Uma porção de gente aqui não durará muito mais. Você está ansioso para tornar a ver sua mãe e seu pai?

- Sim, estou. Penso neles todos os dias.

- Ótimo. Lembra como eles são?

- Lembro...

Jim detestava mentir para o Dr. Ransome, mas de certa maneira estava pensando na fotografia do homem e da mulher desconhecidos, que ele tinha pregado na parede do seu alojamento. Nunca informou

ao médico que aqueles eram seus pais postiços. Jim sabia que era importante manter viva a recordação deles, de forma a conservar sua confiança no futuro, porém seus rostos tinham se tornado nebulosos. O Dr. Ransome podia não aprovar a forma pela qual ele estava se enganando.

- Que bom que você se lembra deles, Jim. Eles podem ter mudado.

- Eu sei... devem estar famintos.

- Mais que famintos, Jim. Quando a guerra terminar, tudo vai se tornar muito incerto.

- Então devemos permanecer no campo? - Jim gostou da idéia. Muitos prisioneiros falavam em deixar o campo sem nenhuma idéia real do que poderia acontecer-lhes. - Enquanto estivermos em Lunghua, os japoneses cuidarão de nós.

- Não estou muito certo disso. Nós nos tornamos um empecilho para eles. Jim, eles não podem mais nos alimentar...

Então era a isso que o Dr. Ransome estava querendo chegar. Jim sentiu um cansaço silencioso se abater sobre ele. Suas longas horas passadas extraindo baldes de esgoto, plantando e regando as plantas na horta do hospital e puxando a carroça de ração com o Sr. Maxted tinham sido parte de sua tentativa de manter o campo funcionando. Contudo, como sempre soube, o fornecimento de alimentos dependia do capricho dos japoneses. Seus próprios sentimentos, sua determinação de sobreviver, no fim de nada valiam. A atividade não significava mais que o movimento nos olhos da belga, que parecia ter voltado dentre os mortos.

- Haverá mais algum alimento, Dr. Ransome?

- Esperemos que sim. Os japoneses não podem mais se alimentar. Os submarinos americanos...

Jim olhou para as pontas brilhantes dos seus sapatos. Queria ver o pai e a mãe antes que morressem. Recobrou as forças, procurando convocar sua velha vontade de sobreviver. Deliberadamente, pensou no estranho prazer que os cadáveres no cemitério do hospital lhe davam, a excitação culposa de estar vivo, afinal de contas. Jim sabia por que o Dr. Ransome não gostava que ele cavasse túmulos.

O Dr. Ransome marcou as lições no livro de álgebra e deu-lhe dois pedaços de ataduras de papel de arroz para resolver as equações simultâneas. Enquanto ficou parado, o Dr. Ransome retirou os três tomates do bolso de Jim. Colocou-os na mesa ao lado da cumbuca de cera.

- Eles vêm da horta do hospital?

- Sim.

Jim devolveu com franqueza o olhar do Dr. Ransome. Recentemente, tinha começado a encará-lo com um olhar mais adulto. Os longos anos de prisão, as constantes discussões com os japoneses tinham feito aquele jovem médico parecer de meia-idade. O Dr. Ransome ficava freqüentemente inseguro de si mesmo, como ficava com os roubos de Jim.

- Tenho que dar alguma coisa a Basie quando o vir.

- Eu sei. É uma boa coisa você ser amigo de Basie. Ele é um sobrevivente, embora sobreviventes possam ser perigosos. A guerra existe para gente como Basie. - O Dr. Ransome pôs os tomates na mão de Jim. - Quero que os coma, Jim. Arranjarei alguma coisa para você dar a Basie.

- Dr. Ransome... - Jim procurou alguma forma de tranqüilizá-lo. - Se dissermos ao Sargento Nagata sobre a distância de mil metros... os japoneses não mais derrubarão aviões, porém poderão nos dar comida?...

O Dr. Ransome sorriu pela primeira vez. Destrancou o armário dos remédios e tirou de uma caixa de aço dois condons de borracha.

- Jim, você é um pragmático. Dê isto a Basie e ele retribuirá. Agora, coma os tomates e vá.

 

As Volúveis de Lunghua

Somos as volúveis de Lunghua,

Somos as garotas que todos os rapazes adoram,

  1. C. nada significa para mim,

Pois toda noite de terça-feira caímos na farra...

Quando atravessou o campo de exercícios para o Bloco E, Jim parou para ver os Lunghua Players ensaiando seu próximo concerto nos degraus da Cabana 6. O chefe do conjunto era o Sr. Wentworth, gerente do Banco Cathay, cujas maneiras exageradas e teatrais fascinavam Jim. Ele gostava dos amadores dramáticos, quando todos os envolvidos estavam no centro da atenção pública. Jim tinha desempenhado um pajem em Henry V, papel que ele adorou. A indumentária que a Sra. Wentworth tinha preparado para ele, usando veludo purpura, era a única roupa decente que tinha vestido nos últimos três anos. Tinha oferecido vesti-la na produção seguinte dos Lunghua Players, The Importance of Being Earnest, porém o Sr. Wentworth preferiu não incluí-lo no elenco.

... Temos também debates e conferências, E concertos especialmente para você...

O ensaio não foi um sucesso. As quatro coristas, nas suas fantasias de pierrô, no palco provisório de caixas de embalagens, tentavam lembrar a canção. Preocupadas pelo ataque aéreo, as mulheres ignoraram o Sr. Wentworth e ficaram prestando atenção ao céu. Apesar dos raios quentes do sol, elas esfregavam os braços para mantê-los aquecidos.

O público de prisioneiros entediados afastou-se e Jim resolveu deixar os atores à própria sorte. Os Lunghua Players recrutavam seus membros entre os mais pretensiosos das famílias inglesas e havia alguma coisa de absurdo no tom esgoelado de suas vozes... tão afetadas quanto o jogo de rúgbi que o Dr. Ransome, num raro lapso de bom senso, tinha organizado no inverno anterior. Os times de prisioneiros esfomeados (maridos das Volúveis de Lunghua) cambalearam pelo campo de exercícios numa paródia grotesca de jogo de rúgbi, exaustos demais para passar a bola, ridicularizados por uma multidão de companheiros de prisão excluídos do jogo porque nunca tinham aprendido as regras.

Jim passou pela casa de guarda, dando uma olhada rápida pelo campo. Um grupo de prisioneiros tinha se reunido junto aos portões, esperando o caminhão militar que traria as rações do dia, vindo de Xangai. Nenhum anúncio oficial de que as rações iriam ser cortadas tinha sido feito, porém as notícias já se tinham espalhado pelo campo.

Significativamente, havia uns poucos mendigos chineses no lado de fora dos portões. Uma camponesa morta jazia na beira do capinzal, mas os soldados-fantoches e os cules dos jinriquixás fora de uso tinham desaparecido, abandonando um círculo de velhos agachados e algumas crianças esquálidas.

Jim entrou no Bloco E, o edifício do dormitório dos homens e subiu a escada até o terceiro andar. Qualquer que fosse o estado atmosférico, os prisioneiros britânicos do Bloco E passavam quase todo o tempo em seus catres. Alguns estavam muito doentes de malária para se moverem, e jaziam estirados em colchões de palha encharcados de suor e urina. Outros, porém, ainda bastante fortes para andar, passavam o tempo sem fazer nada ao lado deles, olhando as mãos durante horas ou examinando as paredes.

A visão de tantos adultos recusando-se a se adaptar à realidade do campo sempre deixava Jim confuso, mas recompôs-se logo que chegou ao dormitório americano. Gostava dos americanos e os aprovava em tudo. Sempre que entrava naquele enclave de ironia e bom humor, seu ânimo melhorava.

Duas das antigas salas de aula estavam ocupadas pelos negociantes marítimos. As portas de vaivém tinham sido retiradas e a peça de teto alto continha uns sessenta homens. Jim observou o labirinto de compartimentos. Os ingleses, no Bloco E, alojavam-se em dormitórios abertos, porém cada um dos americanos tinha construído uma pequena peça com o material que pudera obter: lençóis puídos, pranchas de madeira, colchões de palha e vime trançado. De vez em quando, um grupo de americanos saía do bloco E jogava uma partida tranqüila de Softball, porém habitualmente permaneciam em seus alojamentos minúsculos, deitados em seus beliches, e divertiam uma permanente corrente de meninas adolescentes, mulheres inglesas solitárias e mesmo algumas casadas, que se aproximavam deles por motivos não muito diferentes, segundo Jim.

Por algum mecanismo que Jim nunca compreendeu, a atividade sexual parecia gerar um infindável suprimento daquelas coisas que mais o fascinavam. Aquele tesouro tinha sido introduzido no campo pelos marujos americanos e agora circulava como uma segunda moeda corrente: livros de histórias em quadrinhos, exemplares da Life, de Seleções e da Saturday Evening Post, canetas novas, batons e pó-de-arroz, pregadores vistosos, isqueiros e cintos de celulóide, abotoaduras e fivelas do Oeste selvagem: uma coleção de bugigangas que, aos olhos de Jim, tinham o estilo e a magia dos aviões de combates Mustangs.

- Olhem, é Xangai Jim...

- Garoto, Basie está furioso com você...

- Filho, vamos jogar xadrez?

- Jim, preciso de água quente e de uma navalha.

- Jim, me traga uma chave de fenda canhota e um balde de fumaça...

- Por que Basie está furioso com Jim?

Jim trocou cumprimentos com os americanos: Cohen, o gênio do softball e fanático por xadrez; Tiptree, o enorme foguista simpático, que era o rei dos livros de histórias em quadrinhos; Hinton, ainda outro camaroteiro e filósofo; Dainty, o telegrafista e primeiro galã de Lunghua - homens amáveis que desempenhavam papéis para alegria de Jim, de quem constantemente zombavam. Quando notavam Jim, a maioria deles celebrava o rapaz que, em troca, além do respeito pela América, fazia inúmeros serviços para eles. Muitos dos cubículos ficavam fechados enquanto os negociantes entretinham suas visitas, mas outros tinham as cortinas erguidas, de maneira que os marinheiros podiam ficar em seus catres e ver o mundo passar. Dois dos marítimos mais velhos estavam atacados de malária, porém faziam pouco barulho a esse respeito. Jim sentia que, em seu todo, os americanos eram a melhor companhia, não tão estranhos e desafiadores quanto os japoneses, porém infinitamente superiores aos taciturnos e complicados ingleses.

Por que Basie estaria zangado com ele? Jim caminhou pelo estreito corredor de lençóis pendurados. Pôde ouvir uma inglesa do cubículo 5 se queixando do marido e duas moças belgas que moravam com o pai viúvo no Bloco G rirem a propósito de uma coisa que lhes era mostrada.

O compartimento de Basie ficava no canto nordeste do salão, com duas janelas que lhe forneciam uma visão ampla do campo todo. Como sempre, ele estava no catre, de olho nos soldados nipônicos fora da casa de guarda, enquanto recebia o último relatório de Demarest, seu vizinho de compartimento e chefe dos lacaios. Sua camisa de algodão de mangas compridas estava gasta, mas bem passada: após Jim tê-la lavado e secado, Basie a dobrava num complexo embrulho tipo origami e a metia sob o colchão, do qual retornava com a marca de uma esmerada passada de loja de departamentos. Uma vez que Basie raramente saía do seu beliche, parecia aos olhos de Jim cada vez mais frio e enrugado que o Sr. Sekura e, em muitos aspectos, os anos passados em Lunghua tinham sido menos tensos para Basie que para o comandante nipônico. Suas mãos e faces ainda estavam suaves e não gastos, embora com a lividez de mulher doente. Andando em volta do seu compartimento, como se estivesse na copa do navio Aurora, olhava o Campo Lunghua da mesma forma que tinha encarado o mundo além dele: uma série de camarotes que deviam ser mantidos prontos para uma sucessão de passageiros incautos.

- Entre, garoto. Pare de ofegar tanto, você está deixando Basie acalorado.

Demarest, antigo garçom de bar, falou sem mexer os lábios: ou, como Jim acreditava, tinha começado sua carreira como ventríloquo ou, como o Sr. Maxted afirmava, tinha passado longos períodos preso.

- O rapaz tem razão... - Basie fez um gesto para que Jim sentasse, enquanto Demarest voltava para seu compartimento. - Não há ar bastante para ele em todo Lunghua, não é, Jim?

Jim procurou controlar a respiração: não possuía glóbulos vermelhos suficientes, de acordo com o Dr. Ransome, mas freqüentemente ele e Basie estavam de acordo.

- Você tem razão, Basie. Os Mustangs levam todo o ar com eles. Viu o ataque aéreo?

- Ouvi, Jim... - Basie olhou sombrio para Jim, como se o considerasse responsável pelo estardalhaço. - Esses pilotos filipinos devem ter ido à escola de aviação em Coney Island.

- Filipinos? - Jim tinha finalmente controlado os pulmões. - São mesmo pilotos filipinos?

- Alguns deles, Jim. Há um par de asas operando com equipamento de MacArthur. O restante são Tigres Voadores baseados em Chungking.

Basie acenou sabiamente, observando Jim para ter certeza de que o rapaz tinha apreciado sua cultura superior.

- Chungking...

Jim ficou ansioso. Aquele era o gênero de informação no qual sua mente se banqueteava, muito embora soubesse que Basie enfeitava suas declarações em benefício próprio. Em algum lugar do campo havia um rádio oculto, que nunca tinha sido descoberto, não porque estivesse bem escondido, mas porque os japoneses foram atrapalhados pelas falsas informações dadas pelos prisioneiros ansiosos por colaborar. A despeito de todos os seus esforços, Jim tinha sido incapaz de seguir a pista do rádio, que ficava inativo durante longos períodos. Então Basie o supria com novos boletins de sua própria lavra, descrevendo uma guerra paralela. Jim sempre fingiu ficar impressionado, embora pudesse raramente separar os boatos da ficção total. Era uma forma importante de conservá-los estreitamente unidos.

Havia, também, o interesse de Basie em expandir o vocabulário de Jim.

- Fez seus deveres escolares hoje, Jim? Aprendeu todas as palavras?

- Fiz, Basie. Aprendi um monte de palavras latinas. - Basie ficava intrigado com o domínio do latim pelo rapaz e facilmente incomodado e por isso Jim resolveu não recitar todo o tempo passado de Amo. - E algumas palavras inglesas. “Pragmático”, sugeriu, o que Basie recebeu com abatimento, e “sobrevivente”.

- Sobrevivente? - Basie deu uma risada. - É uma palavra útil. Você é sobrevivente, Jim?

- Ora...

O Dr. Ransome não citara o vocábulo como um elogio. Jim procurou lembrar outra palavra interessante. Basie nunca as usava, mas parecia armazená-las, conservando-as estocadas para dias melhores, como que se preparando para uma vida de cuidadosa formalidade.

- Há mais novidades, Basie? Quando os americanos vão desembarcar em Wusung?

Mas Basie estava preocupado. Manteve a cabeça no travesseiro e passou o olhar pelo conteúdo do alojamento, como que preocupado com todos os seus pertences. À primeira vista, seu cubículo parecia cheio de velhos trapos e cestas de vime, mas realmente constituía-se num completo armazém geral. Havia panelas e frigideiras de alumínio, uma quantidade de calças compridas e blusas femininas, um jogo de mahjong, várias raquetes de tênis, meia dúzia de sapatos desirmanados e uma quantidade digna de um rei de velhos exemplares de Seleções e Mecânica Popular. Tinham sido todos obtidos por troca, embora Jim nunca tivesse sabido o que Basie dera em troca: como o Dr. Ransome, ele chegara ao campo sem nada.

Por outro lado, Jim lembrou que a maior parte daquele material era inútil. Ninguém era forte bastante para jogar tênis, os sapatos estavam cheios de buracos e nada havia para cozinhar nas panelas. O camaroteiro, apesar de toda a sua malícia, era o mesmo homem limitado que Jim tinha conhecido nos estaleiros de Nantao, com a mesma visão clara porém mínima do mundo. O talento de Basie expandia-se para encher apenas as mais modestas possibilidades dos pequenos roubos à sua volta. Jim ficou preocupado com o que iria acontecer a Basie quando a guerra acabasse.

- Negócios, Jim - anunciou Basie. - Você colocou as armadilhas? Até onde foi? Cruzou o riacho?

- Logo adiante, Basie. Fui até o velho trecho semeado.

- Ótimo...

- Não peguei nenhum faisão, Basie. Não creio que haja faisões por lá, Fica muito perto do campo de pouso.

- Existem faisões, Jim. Mas precisamos levar as armadilhas para a estrada de Xangai. - Olhou para Jim com ar sagaz. - Então teremos de pôr um chamariz.

- Podemos colocar um, Basie.

Jim ficou pensando que sempre houve um: ele próprio. Toda aquela aventura de colocar armadilhas nada tinha a ver com a caça de faisões. Talvez um dos americanos estivesse planejando visitar Xangai e Jim estava sendo usado para testar a estrada de fuga. Alternativamente, aqueles marujos entediados podiam estar fazendo um jogo entre si: até onde poderiam estender as armadilhas antes de serem baleados pela sentinela japonesa na torre de vigia? Embora gostassem de Jim, eram muito capazes de jogar com sua vida. Aquele era um humor americano da melhor espécie.

Jim cambaleou de cansaço, desejando poder deitar-se atravessado no catre. Basie o estava observando de maneira esperançosa. De sua janela, deve ter visto Jim trabalhando na horta do hospital e estava esperando um pouco de feijão ou tomates. Basie sempre exigia essas gulodices, embora fosse generoso à sua maneira. Quando Jim era mais moço, o camaroteiro passava horas fazendo brinquedos para ele com o fio de cobre e carretéis de algodão, cosendo peixes voadores que pendurava em bóias flutuantes. No seu aniversário, Basie foi o único a dar-lhe um presente.

- Basie, trouxe-lhe uma coisa...

Jim tirou os dois preservativos do bolso. Basie puxou de debaixo do beliche uma lata de biscoito enferrujada. Ao tirar a tampa, Jim viu que ela estava abarrotada de centenas de preventivos, como os americanos os denominavam. Em virtude do estoque original de cigarros ter acabado, aqueles imundos objetos de borracha constituíam a unidade monetária do Campo Lunghua. A quantidade em circulação mal tinha diminuído em três anos, não porque houvesse poucas relações sexuais em Lunghua, mas porque os preservativos eram unidades de troca valiosas demais para serem usados à toa. Para jogar pôquer, os marujos americanos usavam pilhas de camisas-de-vênus como fichas. Era duplamente irônico, como Jim ouviu o Dr. Ransome comentar, que seu valor continuasse a subir, apesar de quase todos os prisioneiros no campo serem impotentes ou estéreis.

Basie examinou os objetos, desconfiado da sua condição primitiva.

- Onde os conseguiu, Jim?

- São bons, Basie. São da melhor qualidade.

- É mesmo? - Basie aceitava com freqüência a perícia de Jim em áreas as mais inesperadas. - Você andou bisbilhotando o consultório do Dr. Ransome?

- Não havia tomates, Basie. O ataque aéreo acabou com eles.

- Esses pilotos filipinos... Não faz mal. Diga-me como é o consultório do Dr. Ransome. Há remédio nele, imagino.

- Basie, há montes de remédios lá. Iodo, mercurocromo...

Na verdade, o armário estava vazio. Jim procurou lembrar do armarinho de remédios do pai no banheiro e os nomes estranhos aplicados ao mundo misterioso do corpo adulto:

- ... pessários, supositórios...

- Supositórios? Deite-se, Jim. Você está ficando cansado, - Basie passou o braço sobre os ombros de Jim. Olharam juntos pela janela para a multidão de prisioneiros esperando o caminhão de rações atrasado, procedente de Xangai. - Não se preocupe, Jim, breve haverá muito o que comer. Esqueça toda essa conversa de que os japas vão cortar nossas rações.

- Eles são capazes disso, Basie. Somos um incômodo para eles.

- Incômodo? O Dr. Ransome está preocupando você com todas essas palavras. Acredite, Jim, é preciso muito mais que nós para incomodar os nipos. - Meteu a mão sob o travesseiro e tirou uma pequena batata-doce. - Coma-a, enquanto faço nossos negócios. Quando tiver acabado, lhe darei uma Seleções que você poderá levar para o Bloco G.

- Puxa, obrigado, Basie!

Jim engoliu a batata. Ele gostava do alojamento de Basie. A abundância de objetos, mesmo que inúteis, era tranqüilizadora, como a abundância de palavras que rodeavam o Dr. Ransome. O vocabulário latino e os termos de álgebra eram inúteis também, mas ajudavam a recompor o mundo. A confiança de Basie no futuro o encorajou.

Enquanto lambia o último pedacinho dos dedos, guardando a casca para a noite, o caminhão militar chegou de Xangai em segurança, com a ração alimentar dos prisioneiros.

 

A Execução

Dois soldados japoneses, com baionetas caladas, estavam postados atrás da cabina do caminhão, as coxas sumidas entre os sacos de batatas e trigo quebrado. Contudo, ao inclinar-se pela janela de Basie, Jim conseguiu ver que a ração tinha sido reduzida à metade. Ficou satisfeito por ter chegado algum alimento, mas, ao mesmo tempo,, sentiu-se meio desapontado. Uma multidão de centenas de prisioneiros seguiu o veículo até as cozinhas, mãos nos bolsos dos seus calções andrajosos, os tamancos ressoando. Como teriam reagido se o caminhão estivesse vazio? Nenhum dos prisioneiros, nem mesmo o Dr. Ransome, parecia capaz de se juntar para as últimas fases da guerra. Jim quase saudou a fome quando tornou a ver a estranha luz que os Mustangs trouxeram com eles...

À sua volta, os americanos estavam deixando seus alojamentos e amontoando-se junto às janelas. Demarest apontava as colunas de fumaça que surgiam do setor dos estaleiros ao norte de Xangai. Embora estivessem a mais de quinze quilômetros de distância, Jim ouviu o rolar surdo sobre os desertos campos alagados, um trovão já esquecido que ecoou sobre o solo muito depois das bombas terem explodido. Os sons tamborilaram nas janelas, um vago ultimato aos indiferentes prisioneiros de Lunghua.

Jim procurou nas nuvens de fumaça sinais de aviões americanos. Nenhum dos doze Zeros em condições do Campo de Aviação de Lunghua decolou para interceptá-los.

- São B-29, Basie?

- São, Jim. Superfortalezas bombardeadoras, que chamamos arma de defesa de um hemisfério. Vindo diretas de Guam.

- De Guam, Basie...

Jim ficou impressionado pelo pensamento de que aqueles quadrimotores de bombardeio tinham feito a longa viagem através do Pacífico para atacar as docas de Xangai, onde ele passara tantas horas agradáveis brincando de esconder. Os B-29 apavoravam Jim. Os enormes bombardeiros aerodinâmicos reuniam todo o poder e graça da

América. Normalmente, eles voavam acima do fogo antiaéreo japonês, mas, dois dias antes, Jim tinha visto uma única Superfortaleza atravessar os terrenos encharcados para oeste do campo, apenas a uns 150 metros acima do solo. Tinha dois motores em chamas, mas a vista daquele imenso bombardeiro, com sua cauda alta e curva, convenceu Jim de que os japoneses tinham perdido a guerra. Já havia visto tripulações americanas capturadas, presas durante algumas horas na casa de guarda de Lunghua. O que o deixou muito impressionado foi que aquelas máquinas complexas eram levadas por homens como Cohen, Tiptree e Dainty. Isso era a América.

Jim pensou com intensidade nos B-29. Queria beijar suas fuselagens prateadas, acariciar seus motores. O Mustang era um aparelho lindo, mas as Superfortalezas pertenciam a uma espécie diferente de beleza...

- Calma, garoto... - Basie abraçou seu peito arfante. - Foi uma caminhada de Lunghua. Você vai se confundir.

- Eu estou bem, Basie. A guerra está quase no fim, não?

- Está. Não muito perto para você, Jim. Diga-me, você alguma vez viu os Pilotos do Inferno em Xangai?

- Claro que vi, Basie! Eu os vi atirarem-se através de uma parede em chamas!

- Está bem. Vamos ficar calmos e continuar com nosso trabalho.

Durante a hora seguinte, Jim ficou muito ocupado com as tarefas que Basie lhe deu. Primeiro, teve de apanhar água no tanque atrás da casa de guarda. Depois de ter levado o balde para o Bloco E, Jim foi procurar combustível para o fogão. Basie continuava insistindo em ferver a água de beber, mas a diminuição do combustível dificultava a coisa. Depois de ter reunido algumas achas e pedaços de palha de colchões, Jim examinou os caminhos em volta do Bloco E, à procura de fragmentos de carvão de pedra incrustados nas estradinhas. Mesmo as cinzas soltavam um calor surpreendente.

Depois de ter acendido o fogão, Jim soprou as chamas preguiçosas. Colocou os pedaços de carvão de pedra no tubo de barro onde, como explicou o Dr. Ransome, o ar circulava mais rapidamente. Assim que a água de beber ferveu, transferiu um pouco do líquido cinzento para a marmita, que levou para cima e deixou esfriar no parapeito da janela de Basie. Recolheu as roupas de Basie e lavou as camisas sujas na água restante. Elas podiam ser deixadas durante uma hora, enquanto ele fazia fila para pegar as rações de Basie. Diariamente, os homens do Bloco E eram os últimos a serem servidos e eles faziam fila nas cozinhas. Jim sempre gostou da longa espera para pegar a ração de Basie e sentia-se crescido na companhia de adultos. As filas dos prisioneiros suarentos, cobertos de chagas e picadas de mosquitos, desprendia um violento cheiro de agressão e Jim pôde compreender os guardas japoneses tornando-se cansados deles. Muitas de suas palavras obscenas estavam acima de sua compreensão, sua conversa brutalmente crua sobre os corpos e as partes secretas das mulheres, como se aqueles homens macilentos estivessem querendo provocar-se, descrevendo o que não podiam mais realizar. Mas sempre havia frases a serem conservadas e saboreadas quando estivesse em seu alojamento. Quando voltou ao Bloco E, com as camisas e a comida de Basie, Jim achou-se no direito de empurrar Demarest para o lado e sentar-se aos pés do beliche. Ficou vendo Basie comer o cereal, empurrando os gorgulhos de um lado para outro, como os negociantes chineses faziam com seus ábacos.

- Trabalhamos muito hoje, Jim. Seu pai sentiria orgulho de nós. Em que campo você disse que ele estava?

- O Central de Suchau. E minha mãe também. Você vai conhecê-los breve.

Jim queria que Basie estivesse presente ao seu encontro, de forma que o camaroteiro pudesse identificá-lo, caso seus pais não o reconhecessem.

- Terei prazer em conhecê-los, Jim. Se eles não tiverem sido removidos para o interior...

Jim reparou a inflexão estranha na voz de Basie.

- Para o interior?

- Ora, é possível, Jim. Talvez os amarelos afastem as pessoas dos campos perto de Xangai.

- Então ficaremos longe da guerra?

- Sim, de fato você ficará fora da guerra...

Basie escondeu a batata-doce entre as panelas sob seu catre. Ele remexeu entre os sapatos e raquetes de tênis e depois retirou um exemplar de Seleções. Folheou as páginas encardidas, que tinham sido lidas uma dúzia de vezes por todos os moradores do Bloco E. Camadas de fitas gordurosas, manchadas de sangue seco e pus, prendiam a capa na lombada gasta.

- Jim, você ainda está lendo Seleções A de agosto de 1941 tem matéria interessante...

Basie saboreava cada instante da excitação de Jim. Aquela calculada gozação era parte do ritual. Jim esperou com paciência, consciente de que Basie o explorava, mandando-o trabalhar diariamente em troca das velhas revistas. Aquele enfadonho comerciante percebia que Jim era obcecado por tudo o que era americano e sua maneira bondosa conservava-o indeciso, racionando os velhos exemplares de Life e Collier's, que Jim necessitava tanto quanto as batatas-doces extras. As revistas alimentavam uma imaginação descabelada.

A troca desigual, trabalho por revistas, também era parte da tentativa consciente de manter o campo andando, a qualquer custo. A atividade protegia sua mente de certos temores que ele tinha tentado reprimir, de que os anos em Lunghua chegassem ao fim e ele se encontrasse novamente fugindo. A luz que surgia do corpo ardente do piloto do Mustang tinha sido um aviso para ele. Enquanto fizesse trabalhos para Basie, Demarest e Cohen, indo e vindo da cozinha, carregando água e jogando xadrez, Jim podia manter a ilusão de que a guerra seria eterna.

Seleções na mão, Jim sentou-se nos degraus externos do Bloco E. Olhou de soslaio para o sol, forçando-se a não se fixar nas páginas. Grupos de prisioneiros vagavam pelas sacadas após a refeição. A sombra entre as pilastras era reservada para os internos doentes, que se agachavam juntos, como as famílias dos mendigos nas entradas dos blocos de escritórios atrás do Bund de Xangai.

Ao lado de Jim estava um rapaz que tinha sido gerente de andar na loja de departamentos da Sincere Company e agora estava no grau mais avançado de malária. Seu corpo tremia de febre e ele estava sentado nu nos degraus de cimento, olhando os Lunghua Players ensaiando seu recital. Seus lábios descorados, dos quais todo o ferro tinha sido eliminado havia muito, repetia uma frase inaudível.

Jim ficou imaginando como ajudar aquela figura esquelética. Ofereceu-lhe a Seleções, gesto que lamentou imediatamente. O rapaz agarrou a revista e amarfanhou as páginas como se as palavras impressas tivessem inflamado suas recordações. Começou a cantar, com voz rouca dificilmente perceptível.

... somos as garotas que todos os rapazes adoram, C.A.C. nada significa para mim...

Um jato de urina incolor desceu entre suas pernas e gotejou pelos degraus. Deixou cair a revista, que Jim prontamente apanhou antes que as páginas pudessem ficar ensopadas. Quando Jim se endireitou, ouviu a sereia de ataque aéreo soar na casa de guarda. Segundos depois, antes que os prisioneiros pudessem alcançar os abrigos, parou bruscamente. Todos ergueram os olhos para o céu limpo, esperando que os Mustangs surgissem, vindos dos campos encharcados.

O toque da sereia, porém, assinalou uma exibição completamente diferente. Quatro soldados japoneses, entre eles o praça Kimura, saíram da casa de guarda. Cercaram um cule chinês que puxava um jinriquixá trazendo de Xangai um dos seus oficiais. Completamente exausto pela longa viagem, o cule arrastava-se penosamente em suas sandálias de palha pela terra nua do campo de exercícios. Tinha a cabeça abaixada ao puxar os varais e ria silenciosamente à maneira tensa dos chineses assustados.

Os soldados japoneses andavam com passos rudes em ambos os lados dele. Nenhum estava armado, mas levavam bastões, com os quais batiam nas rodas do jinriquixá e nas costas do cule. O praça Kimura caminhava atrás da carruagem e chutava o assento de madeira, empurrando o veículo contra as pernas do cule. No meio do campo de exercício, Kimura e outro soldado pegaram a carruagem e a empurraram para a frente, atirando o cule no solo.

Os soldados começaram a andar em volta do jinriquixá derrubado. O praça Kimura chutou suas rodas, quebrando os raios. Os outros partiram os varais e arrebentaram os cabos. Juntos, viraram o veículo e estraçalharam a forração.

O cule ajoelhou-se no chão, rindo silenciosamente. No silêncio, Jim pôde ouvir o estranho cantarolar do chinês, quando percebeu que ele estava para ser assassinado. Em torno do campo de exercícios, centenas de prisioneiros olhavam, imóveis. Homens e mulheres, sentados em arremedos de espreguiçadeiras no lado de fora das cabanas ou parados nos degraus dos blocos de dormitórios. Os Lunghua Players interromperam o ensaio. Ninguém falou quando os soldados japoneses começaram a andar em volta do jinriquixá, chutando seu assento e esfacelando seu encosto de madeira. De uma caixa sob o assento caíram montes de farrapos, um balde de metal, um saco de algodão cheio de arroz, e um jornal chinês, que era tudo o que possuía aquele analfabeto. Ele sentou-se no meio dos grãos de arroz espalhados no chão e começou a cantar em voz aguda, erguendo o rosto para o céu.

Jim alisou as páginas de Seleções, pensando se devia ler um artigo sobre Winston Churchill. Teria gostado de ir embora, mas à sua volta os prisioneiros estavam imóveis olhando o campo de exercícios. Os japoneses tinham a atenção presa ao cule. Erguendo os porretes, cada um deu-lhe uma pancada na cabeça e depois se afastou como em profunda meditação. Sem fôlego agora, o cule cantava para si mesmo enquanto o sangue escorria de suas costas e formava uma poça em torno dos seus joelhos.

Jim sabia que os soldados japoneses iriam levar dez minutos para matar o cule. Embora estivessem confusos por causa do bombardeio e pela perspectiva do fim iminente da guerra, agora estavam calmos. Toda a exibição, como a ausência de armas, visava a mostrar aos prisioneiros ingleses que os japoneses os desprezavam, primeiro por serem prisioneiros e depois por não ousarem fazer o menor movimento para salvar aquele cule chinês.

Jim concluiu que os nipônicos tinham razão. Nenhum dos internados britânicos moveria um dedo, mesmo se cada cule chinês fosse espancado até a morte diante deles. Jim ouviu os golpes dos porretes e os gritos abafados quando o cule sufocou-se com o.sangue. O Dr. Ransome teria provavelmente tentado impedir os japoneses. Mas o médico tinha o cuidado de nunca se aproximar do campo de exercícios.

Jim pensou em seu exercício de álgebra, parte do qual já havia feito de memória. Dez minutos depois, quando os japoneses voltaram para a casa de guarda, as centenas de prisioneiros se afastaram do terreno. Os Lunghua Players continuaram o ensaio. Metendo a Seleções dentro da camisa, Jim voltou ao Bloco G por outro caminho.

Tarde naquela noite, após haver terminado de comer a casca da batata de Basie, Jim deitou-se no beliche e, finalmente, abriu a revista. Não havia anúncios em Seleções, o que era uma pena, mas Jim olhou para a tranqüilizante reprodução da limusine Packard pregada na parede de seu compartimento. Ouviu os Vincent conversarem em voz baixa e os débeis acessos de tosse do filho deles. Quando voltou do Bloco E, encontrou o menino brincando no chão com a tartaruga. Houve uma rápida discussão entre Jim e o Sr. Vincent, que tentou impedi-lo de recolocar o animal na caixa de madeira sob o beliche. Porém Jim se manteve firme, confiante em que o Sr. Vincent não sé atreveria a lutar com ele. A Sra. Vincent ficou olhando, inexpressiva, enquanto o marido sentava na cama, olhando desesperadamente para os punhos erguidos de Jim.

 

Uma Fuga

- A guerra tornou a acabar, Sr. Maxted?

Em torno de Jim, que estava esperando à porta da cozinha, os prisioneiros estavam pondo de lado os carros de comida gritando e apontando para os portões. A sereia de tudo-limpo soava pelo campo, o lamento de um pássaro ferido tentando fugir ao bombardeio americano. Com os braços sobre os ombros dos companheiros, os prisioneiros ficaram vendo os soldados japoneses saírem da casa de guarda. Cada um dos trinta homens tinha uma carabina com a baioneta calada e uma bolsa de lona com seus objetos pessoais. Entre os colchões de palha e a armadura de kendo, havia dois bastões de baseball, pares de alpargatas penduradas pelos cordões e uma vitrola portátil, tudo conseguido dos prisioneiros em troca de cigarros, alimentos e notícias sobre parentes em outros campos.

- Parece que seus amiguinhos estão indo embora, Jim. - O Sr. Maxted passou os dedos magros na?costelas, procurando pedaços de pele solta. Olhou-as de soslaio ao sol de agosto, como que preocupado por deixar pedaços de si mesmo pelo campo afora. - Guardarei seu lugar se você desejar despedir-se do praça Kimura.

- Ele sabe meu endereço, Sr. Maxted. Não gosto de despedidas. Eles provavelmente voltarão esta tarde, quando descobrirem que não há para onde ir.

Não querendo arriscar-se a perder o lugar na cabeça da fila da cozinha, onde ele e o Sr. Maxted estavam desde o amanhecer, Jim subiu na carroça de rações. Olhando por cima das cabeças dos homens defronte dele, viu os japoneses se afastarem, atravessando os portões do campo. Faziam fila indiana pela estrada, as costas contra a fuselagem enegrecida pelo fogo de um avião japonês caído no campo alagado a cem metros de distância. O aparelho bimotor tinha sido abatido havia dois dias, quando levantava vôo do Aeródromo de Lunghua, estraçalhado pelas metralhadoras dos aviões de combate Lightning, que surgiam sem aviso do interior deserto.

Ao se equilibrar na carrocinha de metal, Jim pôde ver o praça Kimura examinando inquieto o horizonte oriental, de onde os temíveis aviões americanos emergiam como pedaços do sol. Mesmo na quente luz de agosto, o rosto de Kimura tinha a textura incolor da cera fria. Ele lambeu os dedos e limpou o rosto, nervoso por ter de deixar o mundo seguro do Campo Lunghua. À sua frente, grupos de camponeses chineses, sentados no capinzal verde, olhavam para os portões que os haviam repelido durante tantos meses e estavam agora desguarnecidos. Jim tinha certeza de que aqueles chineses esfomeados, no seu universo mortal, eram incapazes de perceber o significado de um portão aberto.

Jim olhou para o espaço não vigiado entre os pilares. Ele também achava difícil aceitar que, breve, seria capaz de atravessar os portões em direção à liberdade. O soldado, na torre de vigia, desceu a escada para a cobertura da casa de guarda, sua metralhadora de mão pendurada na correia que cruzava seus ombros. O Sargento Nagata surgiu da casa de guarda e reuniu seus homens fora do campo. Desde a desaparição do comandante nas confusões da semana anterior, o sargento era a patente mais antiga no campo.

- Sr. Maxted, o Sargento Nagata está indo... a guerra acabou.

- Acabou outra vez, Jim? Acho que não podemos garantir...

No decorrer da semana anterior, quando os boatos sobre o término da guerra varriam o campo de hora em hora, o Sr. Maxted tinha achado o ânimo de Jim cada vez mais sombrio. Quando corria pelos caminhos, fazendo as tarefas que lhe davam, Jim gritava para os passantes, acenava para os prisioneiros descansando fora das cabanas, pulava animadamente entre os túmulos no cemitério do hospital quando os aviões americanos sobrevoavam o espaço, tudo parte de sua tentativa de cobrir as inseguranças do mundo a nascer além do campo. O Dr. Ransome o tinha esbofeteado duas vezes.

Agora, contudo, que a guerra tinha acabado, o rapaz estava surpreendentemente calmo. Breve iria encontrar seus pais, voltar para casa da Avenida Amherst, para aquele esquecido reino de criados, de Packards e de pisos encerados. Ao mesmo tempo, Jim refletiu que os prisioneiros deviam comemorar, atirar os tamancos para o ar, apoderar-se da sereia de ataques aéreos e tocá-la por sua vez em homenagem aos aviões americanos por chegarem. Porém muitos deles eram como o Sr. Maxted, olhando silenciosamente para os japoneses. Pareciam tristes e cansados, os homens quase nus em seus calções andrajosos, as mulheres, em gastas roupas de banhos de sol e camisolões de algodão remendados, com os olhos infectados de malária, incapazes de enfrentar o fulgor da liberdade. Expostos à luz que parecia fluir para dentro do campo pelos portões abertos, seus corpos estavam mais morenos e mais gastos e, pela primeira vez, pareciam como se fossem culpados de um crime.

Boatos e confusão haviam exaurido a todos, no Campo Lunghua. No decorrer de julho, os ataques americanos tinham se tornado quase ininterruptos. Ondas de Mustangs e Lightnings vinham das bases de Okinawa, bombardeando os campos de aviação em torno de Xangai, atacando as forças japonesas concentradas no estuário do Yangtze. Do balcão da sala de reuniões em ruínas, Jim testemunhou a destruição da máquina militar nipônica, como se estivesse assistindo a um filme épico de guerra na sala do Cathay Theatre. Os edifícios de apartamentos da Concessão Francesa estavam ocultos por centenas de colunas de fumaça que se erguiam de caminhões incendiados e vagões de munições. Com medo dos Mustangs, os comboios japoneses só se locomoviam depois do escurecer e o ruído dos seus motores mantinha todos acordados noite após noite. O Sargento Nagata e seus guardas tinham desistido de qualquer tentativa de patrulhar o perímetro do campo, com medo de serem feridos pela polícia militar que supervisava.os comboios.

Em fins de julho, quase toda a resistência japonesa aos bombardeios americanos tinha cessado. Uma única metralhadora antiaérea, montada no topo do Pagode Lunghua, continuava a atirar nos aviões que surgiam, mas as baterias em torno da pista tinham se retirado para defender os estaleiros de Xangai. Naqueles derradeiros dias de guerra, Jim passou horas no salão de reuniões, esperando pelas poderosas Superfortalezas, em cujas asas e fuselagens prateadas ele tinha investido tanto da sua imaginação. Ao contrário dos Mustangs e Lightnings, que passavam como carros de corrida sobre os campos alagados, os B-29 surgiam sem aviso no céu sobre sua cabeça, como se convocados pelo cérebro esfomeado de Jim. Seu trovão avançou sobre o solo, vindo dos estaleiros de Nantao. Um transporte de tropas japonês inclinou-se contra os bancos de lama, incessantemente bombardeado até Jim poder ver a luz do dia através de sua superestrutura.

Em meio a tudo isso, a pista de cimento do Aeródromo de Lunghua permaneceu intacta. Por um esforço heróico, os operários japoneses continuaram a encher as crateras após cada vôo, como se esperassem uma frota aérea de resgate chegar das ilhas nipônicas. A brancura da pista excitou Jim, sua superfície inundada de sol, misturada com os ossos calcinados dos chineses mortos e talvez mesmo com seus próprios ossos numa morte que poderia ter ocorrido. Esperou im-pacientemente que os japoneses fizessem seu último esforço.

Essa confusão de lealdades, o medo do que poderia acontecer a eles quando os japoneses fossem derrotados, afetava a todos no campo. Freqüentemente havia recepções festivas dos prisioneiros levianos agachados no lado de fora das barracas quando um B-29 atingido abandonava sua formação. O Dr. Ransome tinha predito corretamente que o suprimento de comida para Lunghua acabaria breve. Uma vez por semana, um único caminhão chegava de Xangai com alguns sacos de batatas fermentadas e os restos dos alimentos dos animais, cheios de gorgulhos e excrementos de ratos. Surgiram brigas entre os prisioneiros fazendo fila por suas pequenas rações. Irritados por verem Jim esperar o dia inteiro na porta da cozinha, um grupo de ingleses do bloco E o empurrou e derrubou sua carroça de ferro. Daí em diante, passou a pedir a ajuda do Sr. Maxted, importunando o arquiteto até ele descer do beliche.

Durante a última semana de julho, observaram juntos a estrada de Xangai, esperando que o caminhão das rações não tivesse sido atacado por algum Mustang em vôo rasante. No decorrer daqueles dias de fome, Jim descobriu que a maior parte dos prisioneiros no bloco G tinha estado guardando uma pequena reserva de batatas e que ele e o Sr. Maxted, que se tinham oferecido como voluntários para apanhar a ração diária, estavam entre os poucos que não tinham feito planos para o futuro.

Jim sentou-se no beliche, com o prato vazio na mão, e ficou vendo os Vincent dividirem uma batata estragada. Chuparam o conteúdo com seus dentes amarelados. Finalmente, a Sra. Vincent deu-lhe um pedacinho de casca. Ela estaria com medo de que Jim agredisse seu marido? Felizmente, Jim tinha se alimentado na modesta reserva que o Dr. Ransome tinha juntado dos seus pacientes moribundos.

Mas por volta de 1? de agosto, mesmo esses suprimentos chegaram ao fim. Jim e o Sr. Maxted perambularam pelo campo com sua carrocinha, como se esperassem que uma carga de arroz ou de trigo se materializasse sob os suportes da caixa-d'água ou entre os túmulos do cemitério. O Sr. Maxted pegou Jim uma vez olhando para os pulsos da Sra. Hug, que tinham emergido de sua cova, tão brancos quanto a pista do Aeródromo de Lunghua.

Para Jim, um vazio estranho cercava o campo. O tempo tinha parado em Lunghua e muitos dos prisioneiros estavam convencidos de que a guerra já havia acabado. No dia 2 de agosto, depois do boato de que os russos tinham entrado na guerra contra o Japão, o Sargento Nagata e seus soldados se retiraram para a casa de guarda e deixaram de patrulhar a cerca, abandonando o campo aos seus habitantes. Grupos de prisioneiros britânicos atravessaram a cerca e andaram pelos campos alagados próximos. Pais ficaram com seus filhos nos montículos funerários, apontando para a torre de vigia e para os blocos de dormitórios, como se estivessem vendo o campo pela primeira vez. Um grupo de homens, chefiado pelo Sr. Tulloch, o mecânico-chefe da Agência Packard em Xangai, atravessou os campos, com a intenção de ir até a cidade. Outros se reuniram diante da casa de guarda, zombando dos soldados japoneses, que olhavam das janelas.

Durante o dia todo, Jim ficou confuso pelo colapso evidente da ordem no interior do campo. Não queria acreditar que a guerra tinha acabado. Subiu pela cerca e passou alguns minutos com as armadilhas de faisões, voltando depois ao campo, indo sentar-se sozinho no balcão da sala de reuniões. Reanimando-se finalmente, saiu à procura de Basie. Porém os marinheiros americanos não mais recebiam suas freguesas e tinham bloqueado as portas do dormitório. Basie chamou Jim pela janela, avisando-o para não deixar o campo.

De fato, o fim da guerra ainda estava longe. Ao anoitecer, uma coluna de carros blindados japoneses passou pelo campo a caminho de Hangchau. A polícia militar trouxe de volta à casa de guarda os seis ingleses que tinham tentado ir até Xangai. Brutalmente espancados, ficaram desmaiados durante três horas nos degraus da casa de guarda. Quando o Sargento Nagata permitiu que fossem carregados para seus catres, eles descreveram o terreno confuso ao sul e a oeste de Xangai, os milhares de camponeses desesperados voltando para a cidade com os retirantes japoneses, os grupos de bandidos e soldados esfomeados dos exércitos-fantoches deixados à própria sorte.

Apesar desses perigos, logo no dia seguinte Basie,,Cohen e Demarest fugiram de Lunghua.

Os prisioneiros se atiraram contra a casa de guarda vazia, os tamancos ressoando na trilha cimentada. Ofendido pelos homens quase nus, Jim segurou com firmeza os varais da carrocinha de ferro. Os outros prisioneiros tinham abandonado seus veículos, mas Jim estava decidido a não se deixar apanhar, se o caminhão dos alimentos chegasse. Não havia comido desde a tarde anterior. Embora os prisioneiros estivessem a ponto de dominar a casa de guarda, só podia pensar em comida.

Um grupo de ingleses e belgas estava nos portões, gritando através do arame para as filas de soldados japoneses na estrada. Sob o peso dos rifles e colchões enrolados, eles tremiam ao sol de agosto. O praça Kimura olhou despreocupadamente para os desertos campos alagados, como se desejasse estar de volta ao seguro mundo do campo.

Cusparadas agitaram o chão em torno das botas arrebentadas dos soldados. Dando vazão à ira de anos contra os antigos guardas, as mulheres Cuspiam através da cerca, gritando e zombando. Uma belga começou a gritar em japonês, rasgando pedaços de tecido usado da manga do seu vestido de algodão e atirando-os aos pés dos soldados.

Jim agarrou-se à carrocinha, sacudindo os varais quando o Sr. Maxted, cansadamente, procurou sentar-se no eixo de madeira. Estava desinteressado das mulheres que cuspiam e seus maridos excitados. Onde estava Basie? Por que tinha fugido? Apesar dos boatos de que a guerra tinha acabado, Jim ficou surpreso pelo fato de Basie ter ido embora de Lunghua, expondo-se a todos os percalços do interior. O camaroteiro era muito precavido, nunca se arriscando a tentar alguma coisa nova ou a pôr em perigo sua modesta segurança. Jim ficou imaginando se ele tinha ouvido alguma mensagem de advertência no rádio secreto, pois havia abandonado seu alojamento cheio de objetos custosamente conseguidos no decorrer dos anos, os sapatos, raquetes de tênis e centenas de preservativos.

Jim lembrou-se de que Basie havia contado que os ocupantes dos campos nas cercanias de Xangai tinham sido levados mais para o interior. Estaria ele avisando-o de que estava na hora de partir, antes que os japoneses tivessem algum acesso de loucura assassina, como tiveram em Nanquim em 1937? Os japoneses matavam sempre seus prisioneiros antes da última resistência. Porém Basie tinha se enganado e provavelmente estava morto numa vala depois de ter sido massacrado por bandidos.

Faróis brilharam na estrada de Xangai. Enxugando os queixos, as mulheres se afastaram da cerca. Fios de cuspe escorriam por seus seios. Um carro de estado-maior japonês estava se aproximando, seguido de um comboio de caminhões militares, todos cheios de soldados armados. Um deles já havia parado e um destacamento saltou para a estrada e correu pelo terreno existente no perímetro do campo. De baionetas caladas, tomaram posição em frente à cerca.

Agora silenciosos, as centenas de prisioneiros viraram-se para observá-los. Um segundo destacamento da Polícia da Força Aérea atravessou a vau do canal que separava o Aeródromo de Lunghua do campo. A leste, a longa curva do Rio Whangou completava o círculo com seu emaranhado de córregos e valas de irrigação.

O comboio atingiu o campo, os faróis iluminando as cusparadas. no chão. Soldados armados pularam para o solo, baionetas nas carabinas. Pelos seus uniformes limpos e equipamento em ordem, Jim pôde ver que se tratava de soldados de proteção de uma unidade especial de campo da polícia. Atravessaram os portões rapidamente, tomando posições fora da casa de guarda.

Os prisioneiros recuaram, esbarrando uns nos outros como um rebanho de ovelhas. Apanhado pelo recuo, Jim foi derrubado da carrocinha pela multidão. Um cabo japonês, baixo mas troncudo, cuja Mauser balançava no coldre em sua Cintura como um porrete, segurou os varais da carrocinha e impeliu-a para os portões. Jim esteve a ponto de correr para a frente e arrancar os varais das mãos do japonês, porém o Sr. Maxted segurou-lhe os braços.

- Jim, pelo amor de Deus... Pare!

- Mas... é a carrocinha do Bloco G! Eles vão nos matar, Sr. Maxted?

- Jim... Vamos procurar o Dr. Ransome!

- O caminhão das rações está vindo?.

Jim empurrou o Sr. Maxted, cansado de sustentar seu corpo doente.

- Mais tarde, Jim. Talvez ele chegue mais tarde.

- Acho que o caminhão não virá.

Ao mesmo tempo em que os soldados japoneses empurravam os prisioneiros através do campo de exercícios, Jim ficou observando os guardas patrulharem a cerca. Tornar a ver os japoneses tinha restaurado sua confiança. A perspectiva de ser morto o excitava; após as incertezas da semana anterior, recebia alegremente qualquer fim. Durante uns derradeiros momentos, como o cule do jinriquixá, que cantou para si mesmo, eles ficariam inteiramente conscientes de seus próprios pensamentos. O que quer que acontecesse, ele sobreviveria. Pensou na Sra. Philips, na Sra. Gilmour e na sua discussão sobre o momento exato em que a alma deixa o corpo moribundo. A alma de Jim já havia abandonado seu corpo e não precisava mais dos seus ossos fracos e suas feridas inflamadas para resistir. Ele estava morto, assim como o Sr. Maxted e o Dr. Ransome. Todos em Lunghua estavam mortos. Era um absurdo eles não terem compreendido isso.

Eles postaram-se na beira do capinzal, atrás da multidão de prisioneiros que, agora, enchia o campo de exercícios. Jim começou a rir em silêncio, aliviado por ter compreendido o verdadeiro significado da guerra.

- Eles não precisam nos matar, Sr. Maxted...

- Claro que não, Jim.

- Sr. Maxted, eles não precisam porque...

- Jim! - O Sr. Maxted deu um tapa no rapaz e depois encostou-lhe a cabeça no peito magro. - Lembre-se de que é inglês.

Com ar circunspecto, Jim parou de sorrir. Acalmou-se e depois se libertou do abraço do Sr. Maxted. O instante de humor tinha desaparecido, mas o palpite sobre sua verdadeira situação e sua sensação de estar fora de si mesmo permaneceram. Preocupado com o Sr. Maxted, que estava expelindo um catarro escuro no chão entre os pés descalços, Jim passou ó braço em torno dos seus quadris ossudos. Sentiu pena do velho arquiteto, lembrando seus passeios de Studebaker pelos clubes noturnos de Xangai e sentiu-se triste por estar ele tão desmoralizado, que tudo o que podia fazer para tranqüilizar Jim era lembrar-lhe de que era inglês.

Fora da casa de guarda, onde o comandante da polícia se havia instalado, os cabeças dos blocos estavam falando com um sargento japonês. O esquálido Dr. Ransome, com o chapéu de cule na mão, encolhido em sua camisa de algodão, estava parado diante deles. A Sra. Pearce entrou na casa de guarda passando a mão nos cabelos e no rosto, dando ordens a um soldado nipônico no seu veloz japonês.

Os prisioneiros, na primeira fila da multidão, viraram-se e correram pelo campo de exercícios gritando uns para os outros.

- Uma maleta! Todos de volta aqui dentro de uma hora!

- Estamos indo para Nantao!

- Todos para fora! Em fila nos portões!

- Eles estão prendendo nossas rações em Nantao!

- Uma maleta!

Imediatamente os casais de missionários postaram-se nos degraus do Bloco G, bolsas nas mãos, como se tivessem de alguma forma adivinhado o movimento seguinte. Olhando-os, Jim se convenceu de que o campo estava apenas sendo mudado e não fechado.

- Venha, Sr. Maxted: estamos voltando para Xangai! Ajudou o homem enfraquecido a ficar em pé e a caminhar entre as centenas de prisioneiros que partiam. Quando Jim atingiu seu quarto, verificou que a Sra. Vincent já havia feito as malas. Enquanto o filho dormia no beliche, ela parou na janela, vendo o marido voltar do campo de exercícios. Jim pôde ver que ela estava começando a eliminar todas as recordações do campo.

- Estamos partindo, Sra. Vincent. Estamos indo para Nantao.

- Então você precisa fazer as malas.

Ficou esperando que ele saísse para poder permanecer mais um pouco sozinha no quarto.

- De acordo. Eu já estive em Nantao, Sra. Vincent.

- Eu também. Não posso imaginar por que os japoneses querem que voltemos para lá.

- Nossas rações estão num depósito lá.

Jim ficou pensando se devia carregar a maleta da Sra. Vincent. Tornavam-se necessárias novas alianças e o corpo esguio mas cadeirudo podia muito bem ter mais ânimo que o do Sr. Maxted. Quanto ao Dr. Ransome, iria ficar muito ocupado com seus pacientes, a maioria dos quais breve entraria em coma.

- Vou ver logo meus pais, Sra. Vincent.

- Que bom. - Com muita ironia, perguntou: - Acha que eles vão me dar uma recompensa?

Embaraçado, Jim curvou a cabeça. Durante sua doença, cometeu o erro de tentar gratificar a Sra. Vincent com a promessa de uma recompensa, mas intrigou-o que ela pudesse ver alguma coisa engraçada na sua recusa de erguer um dedo para ajudá-lo. Jim hesitou antes de sair do quarto. Tinha passado quase três anos com a Sra. Vincent e ainda continuava gostando dela. Ela era uma das poucas pessoas no Campo Lunghua que apreciava a graça de tudo.

Tentando igualar-se a ela, o rapaz disse:

- Uma gratificação? Sra. Vincent, lembre-se de que é inglesa.

 

A Marcha para Nantao

Como a migração de uma esfarrapada feira de diversões do interior, a marcha do Campo Lunghua para os estaleiros de Nantao começou duas horas mais tarde. Esgotados, mesmo antes de partirem, em virtude da longa espera, Jim observou os prisioneiros se reunirem em seus lugares na frente da fila. Sob o olhar entediado dos policiais japoneses, os prisioneiros atravessaram cautelosamente os portões, os homens carregados de malas e camas de campanha, as mulheres com embrulhos de roupas esfarrapadas, metidas em cestos de vime. Pais carregavam filhos doentes nas costas, enquanto as mães puxavam os filhos menores pela mão. Quando parou atrás do carro de comando japonês que devia encabeçar a marcha, Jim ficou surpreso pela quantidade de bagagem que tinha permanecido sob os beliches, todos aqueles anos, em Lunghua.

A recreação tinha sido evidentemente prioritária quando empaco-taram seus objetos, antes de serem internados. Tendo passado os anos de paz nas quadras de tênis e nos campos de criquete do Extremo Oriente, esperaram confiantes que os anos de guerra passassem da mesma forma. Dezenas de raquetes de tênis pendiam das alças das maletas; havia pás de criquete e varas de pescar e até um conjunto de bastões de golfe amarrado a uma trouxa de fantasias de pierrôs levadas pelo Sr. e Sra. Wentworth. Esfarrapados e subalimentados, os prisioneiros arrastavam-se pela estrada em seus tamancos de madeira, formando uma longa fila de cerca de trezentos metros. O esforço de carregar a bagagem já estava se manifestando, e uma das camponesas chinesas sentada fora dos portões estava agora de posse de uma raquete de tênis branca.

Encostados em seus veículos, os soldados e suboficiais da polícia olhavam sem comentar. Bem alimentadas e equipadas, essas tropas de segurança tão temidas pelos chineses eram os homens mais fortes que Jim tinha visto durante a guerra. Pelo menos daquela vez, pareciam curiosamente sem pressa. Fumavam seus cigarros sob o forte calor do sol, olhavam para os poucos aviões americanos de reconhecimento e não procuravam brutalizar os prisioneiros ou apressá-los. Dois dos caminhões atravessaram os portões e deram a volta ao campo, recolhendo os pacientes do hospital e os prisioneiros dos blocos de dormitórios que estavam doentesdemais para se locomoverem.

Jim sentou-se em sua caixa de madeira, procurando adaptar sua mente e olhos às amplas perspectivas do mundo fora do campo. O ato de caminhar sem objeção através dos portões tinha sido uma sinistra experiência, e Jim tinha ficado bastante enervado para tornar a entrar no campo pretextando amarrar os cordões dos sapatos. Tranqüilizando-se, bateu na caixa de madeira que continha suas coisas: a gramática de latim, o casaco do colégio, o anúncio do Packard e a pequena fotografia do jornal. Agora que iria ver sua mãe e seu pai de verdade, pensou em rasgar a fotografia do casal desconhecido no Palácio Buckingham, seus pseudo pais durante tantos anos. No último instante, como medida de precaução, tinha metido a fotografia na caixa.

Prestou atenção ao choro das crianças exaustas. As pessoas já começavam a sentar-se na estrada, procurando esconder o rosto dos enxames de moscas, que tinham abandonado o campo e se aproximado dos corpos suarentos no outro lado da cerca. Jim olhou para Lunghua. O terreno de campos alagados e canais em torno deles e a estrada de volta a Xangai, que tinham sido tão reais quando vistos através da cerca, pareciam agora lúgubres e superiluminados, como parte de uma paisagem de alucinação.

Jim cerrou os dentes doloridos, resolvido a dar as costas ao campo. Lembrou-se dos suprimentos de alimentos nos armazéns de Nantao. Era importante continuar na cabeça da fila e, se possível, cair nas boas graças dos dois soldados japoneses ao lado do carro de comando. Jim estava examinando essa possibilidade, quando um vulto quase nu, com calções esfarrapados e tamancos de madeira, arrastou-se em sua direção.

- Jim... achei que ia encontrá-lo aqui. - O Sr. Maxted ergueu o rosto doentio para o sol. Um leve suor de malária cobria seu rosto e testa. Esfregou a sujeira das costelas, como que para expor a pele cor de cera aos raios curativos do sol. - Então era isto o que estávamos esperando...

- Não trouxe sua bagagem, Sr, Maxted.

- Não, Jim. Acho que não vou precisar de nenhuma bagagem. Você deve achar estranho aqui fora.

- Não acho mais. - O rapaz examinou cuidadosamente os campos abertos, suas infinitas perspectivas, interrompidas apenas pelos montículos fúnebres e os canais ocultos. Era como se aqueles soldados japoneses entediados tivessem parado o relógio. - Sr. Maxted, acha que Xangai mudou?

Um sorriso triste, tocado de recordações de dias mais felizes, iluminou brevemente o rosto do Sr. Maxted.

- Jim, Xangai jamais mudará. Não se preocupe, você reconhecerá seus pais.

- Eu andei pensando nisso - confessou o rapaz.

Seu outro problema era o Sr. Maxted. Jim tinha chegado à frente da coluna, parte para ser o primeiro na fila das rações quando tivesse atingido Nantao, mas também para se livrar de todas as obrigações que o campo lhe havia imposto. Por ser sozinho, tinha sido forçado a realizar muitas tarefas em troca de favores que raramente se materializaram. Era evidente que o Sr. Maxted precisava de ajuda e estava esperando apoiar-se em Jim.

Recusando teimosamente cooperar, Jim sentou-se em sua caixa de madeira, pensando no Sr. Maxted, enquanto o arquiteto cambaleava ao seu lado. Suas mãos lívidas, quase estragadas pelos meses empurrando a carroça de alimentos, pendiam ao longo do seu corpo como bandeiras brancas. Seus ossos eram mantidos juntos por pouco mais que suas recordações de bares e piscinas de um eu mais jovem. O Sr. Maxted estava morrendo de inanição, como muitos dos homens e mulheres que se juntaram à marcha. Porém, fez Jim lembrar-se do soldado inglês moribundo no cinema ao ar livre.

Na vala ao lado da margem gramada, jazia o cilindro cinzento de um Mustang lança-tanque. Procurando uma forma de abandonar o Sr. Maxted, Jim ia atravessar a estrada quando um jato de fumaça quente saiu da descarga do carro. O sargento japonês estava no assento traseiro, mandando todos prosseguirem. Soldados armados marchavam pela estrada em cada lado da coluna, gritando com os prisioneiros.

Houve um estrépito de tamancos, como se centenas de cartas de madeira estivessem sendo empurradas e jogadas. O primeiro da fila, Jim deu um passo à frente, caixa na mão e os sapatos brilhando ao sol quente do Yangtze. Acenou para o sargento japonês e andou resolutamente estrada abaixo, os olhos fixos nas fachadas amarelas dos edifícios de apartamentos da Concessão Francesa, que se erguiam como uma miragem dos canais e campos alagados.

Guiados pelos enxames de moscas que dançavam sobre suas cabeças, os prisioneiros caminharam pela estrada que levava a Nantao. Sobre os montículos funerários e velhas trincheiras, chegava o ruído dos aviões americanos bombardeando os estaleiros e os quintais pantanosos ao norte de Xangai. O trovão reboou sobre os alagados. O fogo antiaéreo brilhou nas janelas dos edifícios comerciais no Bund e iluminou as tabuletas apagadas de neon - Shell, Caltex, Socony Vacuum, Philco -, os fantasmas despertos das grandes companhias internacionais, que tinham adormecido durante a guerra. Meio quilômetro a oeste, estava a estrada principal de Xangai, ainda movimentada com os comboios de caminhões japoneses e artilharia pesada dirigindo-se à cidade. O barulho dos seus motores soava como um tormento na terra estóica.

Jim encabeçou a marcha, procurando prestar atenção aos homens e mulheres às suas costas. Mas só conseguiu ouvir o som de sua respiração, como se a experiência da liberdade os tivesse deixado mudos. Jim ignorou sua própria respiração ruidosa. Apesar da incessante atividade em Lunghua, ele nunca havia desempenhado uma tarefa com aquele andar arrastado, ainda mais carregando uma caixa de madeira. Na primeira hora, ficou muito preocupado com a exaustão do Sr. Max-ted, para notar a sua. Mas logo depois, ao chegarem à ferrovia Xangai-Hangchau, o Sr. Maxted foi obrigado a parar, derrotado pela pequena elevação que levava à passagem de nível.

- Estamos subindo, Jim... parecem as Colinas de Xangai.

- Precisamos continuar andando, Sr. Maxted.

- Sim, Jim... você é igual a seu pai.

Jim ficou com o Sr. Maxted, aborrecido mas incapaz de ajudar. O Sr. Mjxted ficou no meio da estrada, as mãos apertando a parte superior da pelve, balançando a cabeça para as pessoas que passavam. Bateu no ombro de Jim e acenou-lhe para que continuasse.

- Vá andando, Jim. Fique na cabeça da fila.

- Guardarei seu lugar, Sr. Maxted.

Nessa altura, várias centenas de pessoas tinham'ultrapassado Jim e ele levou meia hora para voltar ao seu lugar na coluna. Mais alguns minutos e ele teria caído, os pulmões doendo por causa do ar úmido que respirava. Só a extensa parada no controle do canal evitou que se juntasse ao Sr. Maxted.

Tinham atingido um canal industrial que ia para oeste, do rio a Suchau. Dois jovens soldados japoneses, que a guerra tinha esquecido, patrulhavam a plataforma de sacos de areia ao lado da ponte de madeira. Seus rostos estavam tão famintos como os dos prisioneiros, cujos tamancos arrastavam-se sobre as placas de madeira sulcadas.

Enquanto os caminhões atravessavam as vigas podres, os mil e oitocentos prisioneiros sentaram-se no barranco, ocupando o capim alto numa extensão de quase quinhentos metros. Em volta, acomodaram sua bagagem de maletas, raquetes de tênis e bastões de críquete em torno deles. Como sonolentos espectadores de uma regata, ficaram olhando para a água cheia de algas. A corrente deslizava por um casco incendiado de um junco blindado, amarrado na margem oposta.

Jim ficou contente por deitar-se. Sentia-se com sono e um tanto febril, o cérebro irritado pelo sol quente e a luz forte que se refletia no capim amarelo. Pôde ver o Dr. Ransome parado na traseira dos três caminhões, mal se equilibrando entre os pacientes em suas padiolas. Jim pensou na lição de latim, agora com uma semana de atraso, porém o Dr. Ransome estava a cem metros de distância.

Vigiados pelos soldados japoneses na estrada acima deles, vários homens desceram até a beira d'agua. Encheram suas marmitas e ficaram bebendo juntos no raso. Jim desconfiava da água, lembrando os córregos escuros de Nantao e os milhares de litros que tinha fervido para Basie. Haveria uma tripulação de cadáveres no junco blindado? Dentro da torrinha de ferro, agora banhada pelas águas verdes do canal, estaria o capitão daquele minúsculo vaso de guerra chinês? Jim quase podia ver o sangue escorrendo no canal, satisfazendo a sede dos prisioneiros ingleses, a caminho de alimentar as raízes dos arrozais plantados para outra geração de renegados chineses.

Jim abriu sua caixa de madeira e tirou a marmita. Desceu a encosta entre as mulheres que descansavam e seus filhos exaustos. Agachando-se na margem estreita, encheu cuidadosamente sua marmita com a água de cima, esperando que as algas pudessem mantê-lo. Bebeu o fluido tépido, observando os desenhos feitos por seus sapatos de golfe, que se dissolviam na areia fina.

A marmita cheia, o rapaz subiu o barranco, de volta à caixa. À sua direita, estava a mulher de um engenheiro da Shell, do Bloco D. Muito enfraquecida, estava deitada no capim alto, cujas folhas já se tinham introduzido pelas aberturas de sua bata de algodão. O marido estava sentado a seu lado, mergulhando os dedos em sua marmita e umedecendo seus dentes cariados com a água verde.

A esquerda de Jim, estava a Sra. Philips. Jim ficou aborrecido porque ela o viu bebendo na margem e resolveu descansar ao lado dele. Tinha sem dúvida alguma coisa na cabeça e queria aborrecê-lo por causa da sua lição de latim. Embora tivesse saído de Lunghua, o rapaz sentia-se prisioneiro do campo. Todos os que ajudara continuavam dependendo dele. Quase esperou ver Basie surgir da torrinha do junco blindado e gritar: “Jim, trabalho”...

Porém a Sra. Philips não parecia estar a ponto de mandá-lo fazer coisa alguma. A caminhada desde Lunghua a arrasara. Estava deitada no capim com sua maleta de vime, tudo o que restou de décadas que passou no interior da China. Seu rosto era agora a mais lívida madre-pérola, como se tivesse sido afogada e depois tirada da água para aquela margem tranqüila. Seus olhos estavam fixos num ponto remoto do céu. Jim tocou-lhe o rosto, imaginando se ela estava morta.

- Sra. Philips... trouxe-lhe água.

Ela sorriu-lhe e sorveu a água, seus frágeis punhos agarrados às alças da valise, como um casal de ratos brancos.

- Obrigada, Jim. Você está com muita fome?

- Hoje de manhã, estava. - Tratou de pensar numa piada que alegrasse a Sra. Philips. - Depois de toda essa caminhada, o que está me faltando é ar e não comida.

- Sim, Jim... - A Sra. Philips abriu sua caixa. Remexeu dentro e tirou uma batata pequena. - Pronto. Lembre de rezar por todos nós.

- Ah, rezarei! - Jim deu um dentada na batata, antes que ela resolvesse desistir. - Devolvê-la-ei quando tivermos chegado em Nantao. Todas as nossas rações estão lá.

- Você já me retribuiu, Jim. Muitas vezes. - A Sra. Philips recomeçou a examinar acuradamente o céu. - Já comeu a batata?

- Estava, de fato, muito boa. - Quando Jim terminou a batata, reparou que os olhos da velha moveram-se ligeiramente. - Sra. Philips, está procurando Deus?

- Estou, Jim.

- Ora... - Jim ficou impressionado. Estava ansioso para retribuir a generosidade da Sra. Philips, nem que fosse com uma modesta discussão de teologia. Estudou o ângulo do olhar da velha. - Acha que Deus está bem acima da gente?

- Sem dúvida, Jim.

- Sobre o paralelo 31? Sra. Philips, Deus não estará sobre o pólo magnético? Basta que olhe para o chão, embaixo de Xangai...

Embriagado pela batata fermentada, Jim riu à idéia da divindade aprisionada nas entranhas da terra, embaixo de Xangai, talvez no porão da loja de departamentos da Sincere Company.

A Sra. Philips segurou-lhe a mão, procurando consolá-lo. Sempre olhando para o céu, resolveu:

- Nantao... depois nos levarão para o interior...

- Não... nossas rações...

Jim virou-se para os guardas japoneses. Os três caminhões tinham atravessado a ponte e ele pôde ver o Dr. Ransome andando entre seus pacientes, com um garotinho nos braços. Seus gritos soavam através do sol ofuscante. As centenas de prisioneiros estavam na luz forte como vultos nas pinturas lúgubres que anunciavam os espetáculos de filmes chineses. Os japoneses estavam acocorados ao lado dos caminhões, comendo um mingau de arroz cozido, que retiraram das suas mochilas. Não fizeram o menor gesto para dividir sua comida com os jovens soldados que defendiam a ponte.

Para o interior?... Havia embarcadouros em Nantao, mas por que os japoneses quereriam retirá-los de Xangai? Jim olhou a Sra. Vincent chapinhando na beira da água a cinqüenta metros de distância. Tendo encontrado um trecho da corrente que a satisfez, mergulhou a marmita, enchendo-a para o marido e o filho. O Dr. Ransome tinha organizado uma fila com os homens sentados no dique sob os caminhões e eles passavam baldes de água para os doentes.

Jim balançou a cabeça diante de todo aquele esforço. Evidentemente, estavam sendo levados para o interior, de forma a poderem ser mortos sem que os americanos pudessem vê-los dos aviões. Ouviu a mulher do homem da Shell chorando no capim amarelo. Os raios de sol esquentavam o ar sobre o canal, criando uma intensa aura de ansiedade que agredia suas retinas e lembrava-lhe o halo formado pela explosão do Mustang. O corpo incendiado do piloto americano, vivi-ficando a terra morta. Seria melhor que todos morressem; suas vidas teriam um fim já implícito desde que o Idzumo tinha afundado o Petrel e os ingleses tinham se rendido em Cingapura sem lutar.

E se já estivessem mortos? Jim recostou-se e procurou contar os pontos de luz. Aquela simples verdade era conhecida de cada chinês desde o nascimento. Antes, os ingleses internados tinham aceito que não mais teriam medo da sua jornada para o campo de morte...

- Sra. Philips... Estive pensando na guerra. - Jim rolou sobre si mesmo no capim. Ia explicar à Sra. Philips que ela estava morta, mas a idosa missionária tinha adormecido. Jim examinou seus olhos fechados e a boca aberta, que mostrava uma dentadura quebrada. - Sra. Philips, nunca mais precisaremos nos preocupar...

Brilharam faróis na poeira. O carro da polícia movia-se na estrada. Soldados japoneses caminhavam pelo barranco abaixo, balançando as carabinas e ordenando aos prisioneiros que ficassem de pé. Os caminhões na traseira da coluna tinham ligado os motores. Homens e mulheres subiam pelo barranco, carregando as crianças e as bagagens. Outros continuavam no capim molhado, relutantes em deixar aquele canal tranqüilo.

Jim ficou de lado, fazendo do braço um travesseiro. Sentia-se so-nolento após a batata da Sra. Philips; o troar do bombardeio e as vozes das mulheres inglesas pareciam muito distantes. Olhou as folhas de capim, tentando calcular com que velocidade elas cresciam: um oitavo de centímetro a cada dia, um milionésimo de quilômetro por hora?...

Então reparou num soldado japonês em pé no capim, a seu lado. Todos, menos uma centena de prisioneiros, tinham subido a rampa e feito uma fila atrás do carro da polícia. Em torno de Jim, uns poucos estavam deitados silenciosamente. A Sra. Philips estava agarrada à sua cesta de vime e a mulher do Bloco D choramingava enquanto seu marido apertava-lhe os ombros.

Grãos de arroz pendiam da barba por fazer em torno dos lábios do soldado. Outros soldados moviam-se como piolhos quando perceberam a presença de Jim. Tinham a expressão que Jim vira antes, no centro de detenção em Xangai, mas pela primeira vez Jim não se sentiu preocupado. Ele permaneceria ali ao lado da água mansa e ajudaria a Sra. Philips a procurar Deus.

- Venha, Jim! Estamos esperando por você!

Um vulto pálido desceu cambaleando a encosta. O Sr. Maxted curvou-se e sorriu para o soldado japonês, como que contente por tê-lo reconhecido. Caiu no capim e puxou o ombro de Jim.

- Seja bonzinho, Jim. Estamos indo para Nantao.

- Eles estão nos levando para o interior, Sr. Maxted. Prefiro ficar aqui com a Sra. Philips.

- Acho que a Sra. Philips quer descansar. Eles estão retendo nossas rações em Nantao. Precisamos de você para guiar a marcha.

Amarrando o calção, o Sr. Maxted tornou a curvar-se para o soldado japonês e ajudou Jim a se levantar.

A coluna se arrastava para a frente, acompanhando o carro policial. Jim olhou os cento e tantos prisioneiros que tinham ficado no barranco às suas costas. Enquanto o soldado lambia os grãos de arroz pendurados no queixo, a Sra. Philips ficou ajoelhada a seus pés no capim amarelo, ao lado da mulher do Bloco D e seu marido agachado. Outros soldados moveram-se pelo barranco, carabinas preparadas, enquanto andavam entre os prisioneiros descansando. Iriam mais tarde ajudar a Sra. Philips e os outros até Nantao?

Jim duvidou. Afastando a Sra. Philips do pensamento, agarrou sua caixa de madeira e colocou os pés nas marcas deixadas na terra pelo homem capengando à sua frente. O Sr. Maxted já havia caído atrás. O breve descanso no barranco tinha cansado a todos. A meio quilômetro da ponte, junto de uma carcaça incendiada de um caminhão de munições, a estrada de Nantao afastava-se do canal num ângulo reto e ia por uma parte pavimentada entre dois campos alagados. A marcha parou. Vigiados pelos japoneses, que não fizeram a menor menção de apressá-los, os prisioneiros ficaram hesitantes ao sol. Jim prestou atenção à respiração cansada. Depois houve um arrastar de tamancos e a marcha continuou.

O rapaz voltou o olhar para o caminhão de munições. Ficou espantado ao ver que centenas de maletas tinham sido atiradas na estrada vazia. Exaustos de carregarem seus pertences, os prisioneiros os abandonaram sem dizer uma palavra. As maletas e cestos de vime, as raquetes de tênis, bastões de críquete e fantasias de pierrô estavam jogados ao sol, como a bagagem de um grupo de excursionistas que tivesse desaparecido no espaço.

Agarrando sua caixa com firmeza, Jim apressou o passo. Depois de tantos anos sem qualquer pertence, não tinha a intenção de se desfazer deles agora. Pensou na Sra. Philips e em sua conversa no canal ensolarado, um lugar muito mais agradável que o cemitério do campo, onde a tinha inquirido com freqüência sobre questões de vida e morte. Tinha sido gentil da parte da Sra. Philips dar-lhe sua última batata e ele lembrou seus pensamentos sonhadores de ter morrido. Porém não tinha. Jim bateu os pés na terra, surpreso com a própria fraqueza. A morta, com sua pele de madrepérola, quase o seduzira com uma batata-doce.

 

O Estádio Olímpico

Durante toda a tarde marcharam para o norte, pela planície do Rio Whangpu, entre o labirinto de riachos e canais que separavam os campos alagados. O Aeródromo de Lunghua ficou para trás e os edifícios de apartamentos da Concessão Francesa ergueram-se como tabuletas de anúncios na luz de agosto. O rio estava a poucos metros à direita, a superfície castanha entremeada de destroços de barcos-patrulha e juncos motorizados que encalharam nos baixios.

Ali, nas proximidades do distrito de Nantao, a devastação causada pelos bombardeios americanos era visível por todos os lados. Crateras semelhantes a piscinas circulares cobriam os terrenos agrícolas, onde flutuavam carcaças de búfalos da índia. Ultrapassaram os restos de um comboio que tinha sido atacado pelos caças Mustang e Lightning. Uma fila de caminhões e carros militares estava sob as árvores, como que desmantelados numa oficina ao ar livre. Rodas, portas e eixos estavam espalhados em torno dos veículos, cujos pára-lamas e carroçadas tinham sido atingidos pelos canhões.

Enxames de moscas voavam dos pára-brisas manchados de sangue, quando os prisioneiros pararam para se aliviar. A poucos passos atrás de Jim, o Sr. Maxted saiu da fila e sentou-se no estribo do vagão de munição. Sempre com a sua caixa, Jim foi ao seu encontro.

- Estamos muito perto, Sr. Maxted. Posso sentir o cheiro do cais.

- Não se preocupe, Jim. Estou de olho.

- Nossas rações...

O Sr. Maxted estendeu o braço e segurou o punho de Jim. Esgotado peia malária e pela desnutrição, seu corpo estava a ponto de fundir-se com o veículo destruído debaixo dele. Os três caminhões passaram, os pneus esfarelando o vidro partido que cobria o solo. Os doentes do hospital jaziam atirados uns sobre os outros como rolos de tapetes. O Dr. Ransome estava no último caminhão, encostado na cabina do motorista, os pés ocultos pelos corpos amontoados. Vendo Jim, agarrou a lateral do caminhão.

- Maxted!... Venha, Jim! Largue sua caixa!

- A guerra acabou, Dr. Ransome!

Jim observou os trinta soldados japoneses que guarneciam a retaguarda da marcha. Carabinas penduradas nos ombros, caminhavam num passo moderado. Fizeram Jim lembrar-se dos amigos de seu pai voltando de partida de caça em Hungjao, antes da guerra. Nuvens de fumaça branca saíram dos caminhões, ocultando o Dr. Ransome. O primeiro dos soldados que passou por Jim era um homem grande, com os olhos pregados no chão. Suas narinas vibraram ao cheiro de urina. À medida que atravessavam a poeira, uma película fina cobria seus uniformes e cintos e fez Jim lembrar da pista do Aeródromo de Lunghua.

- De fato, Jim... - O Sr. Maxted levantou-se e Jim sentiu o cheiro de fezes que saiu do seu calção. - Vamos levá-lo para Nantao...

Apoiando-se no ombro de Jim, começou a andar mancando, os tamancos moendo o vidro quebrado. Incapazes de alcançar os caminhões, começaram a andar entre nuvens de poeira, juntando-se aos poucos retardatários no fim da coluna. Uma quantidade de prisioneiros tinha desistido, sentando-se com os filhos nos estribos dos carros bombardeados do estado-maior, ciganos a ponto de iniciar uma nova vida entre aqueles veículos parcialmente destruídos. Porém Jim olhou para a poeira que cobria suas pernas e sapatos, como o talco atirado por um coveiro nos ossos de um esqueleto chinês antes de tornar a ser enterrado, e viu que estava na hora de prosseguir.

No fim da tarde, aquela camada de poeira nas pernas e braços de Jim começou a brilhar na luz. O sol caiu sobre as colinas de Xangai e os canteiros inundados tornaram-se um tabuleiro de xadrez líquido, de quadrados iluminados, um tabuleiro de guerra no qual estavam colocados aviões caídos e tanques abandonados. Iluminados pelo ocaso, os prisioneiros postaram-se no barranco da ferrovia que se dirigia aos armazéns em Nantao, como um grupo de extras de cinema sob os refletores do estúdio. Em volta deles, os riachos e lagoas estavam cheios de água sulfurosa, conseqüência do entupimento dos canos de uma fábrica de perfumes, por mulas e búfalos afogados no seu cheiro.

Os caminhões sacolejavam para a frente sobre os dormentes de madeira. Jim equilibrou-se no corrimão de aço e, através do crepúsculo, perscrutou os depósitos de tijolos ao lado do molhe. Um cais de cimento atravessava o rio até uma casa de força destroçada. Servindo-se de binóculos, um grupo de soldados japoneses examinou o casco fumegante de um navio carvoeiro, que tinha sido atingido pelos bombardeiros americanos e tinha encalhado num banco de areia no meio da corrente. Chamuscada pelas explosões, sua ponte de comando estava agora tão preta quanto os mastros e os porões de carvão.

A um quilômetro e meio do carvoeiro ficava a base aeronaval de Nantao e os cais de funeral onde Jim tinha encontrado refúgio ao lado de Basie. Imaginando se o camaroteiro tinha voltado ao seu antigo esconderijo, Jim guiou o Sr. Maxted entre os trilhos, enquanto os prisioneiros seguiam o barranco da ferrovia para a calçada que margeava o rio. A oeste das docas, nas águas da lagoa rasa, via-se a carcaça queimada de um B-29, a cauda sobressaindo no crepúsculo como um quadro de cartazes prateado, exibindo a insígnia do esquadrão.

Jim ficou olhando aquele enorme avião atingido e sentou-se ao lado do Sr. Maxted entre os corpos amontoados no lusco-fusco. A fome o entontecia. Chupou os nós dos dedos, contente até mesmo pelo gosto do pus, e depois cortou talos de capim da encosta e mastigou as folhas ácidas. Um cabo japonês estava escoltando o Dr. Ransome e a Sra. Pearce na direção do pátio do cais. O atracadouro e os armazéns, que a distância tinham parecido intactos, foram bombardeados até se transformarem em escombros. A maré montante balançava os cascos enferrujados de dois torpedeiros encalhados ao lado do molhe e sacudia os cadáveres de marinheiros japoneses entre os juncos, a cinqüenta metros de distância de onde Jim estava agachado. Sem se amedrontarem, inúmeros prisioneiros ingleses desceram o barranco e foram beber água na margem. Uma mulher esgotada carregava o filho à maneira de uma mãe chinesa, segurando-o pelos joelhos enquanto ele fazia suas necessidades na lama suja de petróleo, e depois agachou-se e fez o mesmo. Outras se juntaram a ela e quando Jim foi beber na beira da água, o ar noturno estava fedendo a evacuação das mulheres.

Jim parou na beira do rio, com a caixa de madeira entre os pés. A maré lambeu o pó branco dos seus sapatos. Na sua marmita, a água reluzia com o petróleo vazado dos cargueiros afundados na baía de Xangai. Camadas oleosas cobriam a superfície do Whangpu, como se quisessem eliminar toda a vida do rio.

Bebeu com todo o cuidado e depois examinou a água em torno da caixa. Não soltara a caixa de madeira desde Lunghua, segurando com firmeza os poucos pertences que tinha reunido com muito esforço. Vinha tentando manter a guerra viva e com ela a segurança que conhecera no campo. Agora era tempo de se livrar de Lunghua e enfrentar abertamente o presente, que, embora incerto, era a única regra que o tinha sustentado durante os anos de guerra.

Empurrou sua caixa para a superfície oleosa. Nos últimos instantes do crepúsculo, a água morta ficou viva com rosas de cores iridescentes. À medida que a caixa se afastava flutuando, como o caixão de uma criança chinesa, os círculos de óleo corriam para cercá-la, enviando frêmitos de luz através do rio.

Jim subiu entre os prisioneiros que descansavam e sentou-se ao lado do Sr. Maxted. Estendeu-lhe a marmita de água e depois tirou a poeira dos sapatos.

- Tudo bem, Jim?

- A guerra precisa acabar, Sr. Maxted.

- Acabará, Jim - o Sr. Maxted tinha se animado um pouco. - Vamos voltar para Xangai esta noite.

- Xangai?... - Jim não sabia se o Sr. Maxted estava delirando, sonhando com Xangai, da mesma forma que os prisioneiros moribundos no hospital do campo falavam da volta à Inglaterra. - Não estão nos levando para o interior?

- Agora, não...

O Sr. Maxted apontou na escuridão para o navio carvoeiro queimando ao largo do molhe.

Jim ficou olhando a fumaça subindo da ponte e do convés do navio, por todos os lados, menos do cano. O fogo estava grassando na casa de máquinas e a popa do navio brilhava como uma fornalha. Era aquele o navio que iria levá-los para o interior, para os campos de morte além de Suchau. Apesar de todo o seu alívio, Jim ficou desapontado.

- E as nossas rações, Sr. Maxted?

- Vamos recebê-las em Xangai. Exatamente como nos velhos tempos, Jim.

Jim ficou vendo o Sr. Maxted mergulhar de volta entre os prisioneiros exaustos. Tinha feito seu último esforço para sentar-se ereto, procurando convencer Jim de que tudo estava bem, que a sorte e a habilidade de um bombardeador americano, que tinha evitado serem eles embarcados a bordo do navio carvoeiro, continuava a protegê-los.

- Sr. Maxted, quer que a guerra acabe? Ela precisa acabar logo.

- Já está quase terminada. Pense em seus pais, Jim. A guerra terminou.

- Mas, Sr. Maxted, quando a próxima começa?...

Soldados japoneses estavam andando ao longo dos trilhos da ferrovia, acompanhados, pelo Dr. Ransome e a Sra. Pearce. Os cabos gritavam uns para os outros, com as vozes reboando pelos trilhos. Caía uma garoa e os guardas, esperando junto aos caminhões, vestiram seus capotes. Erguia-se fumaça dos trilhos quentes quando os prisioneiros se levantavam e pegavam os filhos. Ouviam-se murmúrios na escuridão e as mulheres agarravam as mãos dos maridos.

- Digby... Digby...

- Scotty...

- Jake...

- Bunty...

Uma mulher com uma criança adormecida no colo pegou o braço de Jim, porém ele a afastou e tentou firmar o Sr. Maxted. A escuridão e o rio pegajoso tinham deixado os dois tontos e a qualquer momento poderiam cair nos trilhos. Guiados pelos três caminhões, os prisioneiros deixaram o barranco e juntaram-se no molhe ao lado dos armazéns destruídos. Uma centena de prisioneiros ficou no passadiço, cansados demais para continuar e resignados a aceitar qualquer que fosse o futuro que os japoneses lhes destinassem. Sentaram-se na chuva sob o barranco da ferrovia, vigiados pelos soldados em seus capotes escorrendo água.

À medida que a coluna de prisioneiros ia se instalando, Jim notou que um quarto dos seus componentes, que tinha deixado Lunghua naquela manhã, havia ficado pelo caminho. Mesmo antes de terem chegado aos portões do estaleiro, inúmeros prisioneiros voltaram. Um velho escocês do Bloco E, contador aposentado da Companhia de Força de Xangai, com quem Jim freqüentemente jogava xadrez, subitamente saiu da fila. Como se tivesse esquecido de onde estivera em todos aqueles anos de guerra, vagou pelo pátio pedregoso e depois saiu andando na chuva para o aterro da ferrovia.

Uma hora após o crepúsculo, chegaram a um estádio de futebol nos subúrbios a oeste de Nantao. Aquela arena de cimento tinha sido construída por ordem de Madame Chiang Kaishek, na esperança de que a China pudesse hospedar os Jogos Olímpicos de 1940. Ocupado pelos japoneses após a invasão de 1937, o estádio se tornou o quartel-general militar da zona de guerra sul de Xangai.

A fila de prisioneiros atravessou o silencioso estacionamento de carros. Dezenas de crateras de bombas tinham arrebentado o asfalto, mas as linhas brancas de demarcação ainda se estendiam pela escuridão. Veículos militares destroçados estavam estacionados em filas esmeradas: caminhões e vagões de combustível atingidos por granadas, tanques sem lagartas e carros blindados, cada um puxando duas peças de artilharia. Jim olhou para a fachada estragada do estádio. Fragmentos de bombas tinham deslocado pedaços do emboço branco e os ideogramas chineses originais proclamando o poder do Kuomintang tinham tornado a surgir mais uma vez, com frases que pendiam na escuridão como os tabiques sobre os cinemas chineses na Xangai de antes da guerra.

Entraram num túnel de cimento que levava à arena escura. Com suas tribunas curvas, lembrou a Jim o centro de detenção em Xangai, com todos os seus perigos aumentados uma centena de vezes pela guerra. Os soldados japoneses formavam um cordão em torno da pista de corrida. A chuva escorria de seus capotes e fazia brilhar as baionetas e as culatras das suas carabinas. Os primeiros prisioneiros a chegar já estavam sentados no capim molhado. O Sr. Maxted caiu no chão, aos pés de Jim, como se tivesse sido libertado de um arreio. Jim agachou-se a seu lado, afastando as moscas que os seguiram até o estádio.

Os três caminhões surgiram do túnel e pararam na trilha calçada. O Dr. Ransome passou por cima dos seus pacientes e desceu pela traseira. A Sra. Pearce desceu da cabina do segundo caminhão, deixando o marido e o filho ao lado do motorista japonês. Jim ficou ouvindo o médico discutir com o japonês na chuva. Abrigado em seu capote, o primeiro-sargento da guarda olhou-o inexpressivamente, depois acendeu um cigarro e caminhou para as tribunas, onde sentou na fila da frente como se fosse assistir a uma exibição de acrobacia à meia-noite.

Jim ficou satisfeito ao ver a Sra. Pearce retornar à cabina do seu caminhão. A voz chorosa do Dr. Ransome, na tonalidade que usava com assiduidade quando censurava Jim durante seus brinquedos no cemitério do hospital, estava deslocada no estádio de Nantao. Alguns minutos após sua chegada, um silêncio total caiu sobre os mil e duzentos prisioneiros. Eles se amontoaram no gramado, vigiados pelos guardas nas tribunas. O Dr. Ransome moveu-se entre as mulheres e as crianças, ainda tentando prosseguir suas inspeções de Lunghua. Jim esperou, até que ele tropeçou na escuridão, provocando um berro zangado de um grupo de homens.

A chuva inundou o estádio e Jim deitou-se de costas, deixando-a correr pelo rosto, aquecendo suas faces geladas. Apesar da chuva, milhares de moscas pousaram nos prisioneiros. Jim afastou-as da boca do Sr. Maxted, tentando lavar seu rosto com a chuva, porém elas se banquetearam em seus lábios, picando suas gengivas.

Jim vigiou o fraco respirar da boca do Sr. Maxted. Ficou imaginando o que podia fazer por ele e lamentou ter atirado fora sua maleta. Jogar a caixa de madeira no rio tinha sido um gesto sentimental, mas sem graça - seu primeiro ato adulto. Ele podia ter trocado seus pertences e obtido um pouco de comida para o Sr. Maxted. Uma pequena parte dos soldados japoneses era católica, adepta do credo romano. Um dos guardas, em seu capote encharcado, podia ter-se interessado pela cartilha e Jim talvez tivesse conseguido dar-lhe lições de latim.

Mas o Sr. Maxted dormia pacificamente. Uma saliva cinzenta surgia entre as moscas em seus lábios e nos de outros prisioneiros próximos. Uma hora depois, já com a chuva parada, os faróis de um ataque aéreo americano iluminaram o estádio, como os relâmpagos na estação da monção. Como uma criança a salvo em seu quarto na Avenida Amherst, Jim tinha observado os relâmpagos que expuseram os ratos apanhados no meio da quadra de tênis e nas beiras da piscina. Vera tinha afirmado que Deus estava tirando fotografias da maldade de Xangai. O relâmpago silencioso dos ataques noturnos, para os lados da base naval japonesa no estuário do Yangtze, atirava um resplendor úmido sobre os braços e pernas do rapaz, outra recordação daquela poeira fina que ele vira pela primeira vez quando ajudou a construir a pista no Aeródromo de Lunghua. Sabia que estava acordado e adormecido ao mesmo tempo, sonhando com a guerra e simultaneamente tendo visões provocadas pela guerra.

Jim apoiou a cabeça no peito de Maxted. Os velozes relâmpagos dos ataques aéreos enchiam o estádio e cobriam os prisioneiros adormecidos como mortalhas. Iriam eles tomar parte na construção de uma pista gigantesca? Em sua mente, o som dos aviões americanos inculcava poderosas premonições de morte. Conjugando os verbos latinos, a coisa mais próxima do que ele podia considerar uma prece, adormeceu ao lado do Sr. Maxted e sonhou com pistas.

 

Império do Sol

Um úmido sol matutino encheu o estádio, refletindo-se nas poças de água que cobriam as pistas de atletismo e nos radiadores cromados dos carros americanos estacionados atrás das balizas do lado norte do campo de futebol. Apoiando-se no ombro do Sr. Maxted, Jim observou as centenas de homens e mulheres deitados na grama quente. Alguns prisioneiros estavam agachados no solo, com os rostos queimados de sol e não obstante pálidos como couro lavado do qual a tinta tivesse escorrido. Ficaram olhando para os carros, desconfiados de suas grades brilhantes, com olhos cautelosos dos camponeses de Hungjao olhando dos arrozais para o Packard do seu pai.

Jim afastou as moscas da boca e olhos do Sr. Maxted. O arquiteto estava estendido sem se mover, as costelas alvas bambas em torno do seu coração, mas Jim podia ouvir sua respiração débil.

- Está-se sentindo melhor, Sr. Maxted?... Vou lhe trazer água.

Jim esgueirou-se entre os carros. Mesmo o menor esforço para firmar os olhos o exauriu. Tentando conservar a cabeça ereta, sentiu o chão oscilar, como se ele e as centenas de prisioneiros estivessem sendo jogados para fora do estádio.

O Sr. Maxted virou-se para olhar Jim, que apontou para os carros. Havia mais de cinqüenta: Buicks, Lincolns Zephyres, dois Cadillacs brancos, lado a lado. Teriam vindo buscar seus donos ingleses, agora que a guerra tinha acabado? Jim bateu no rosto do Sr. Maxted e depois enfiou a mão na caverna sob suas costelas, tentando massagear seu coração. Seria uma pena que o Sr. Maxted morresse exatamente no dia da chegada do seu Studebaker, para levá-lo de volta aos clubes noturnos de Xangai.

Todavia, os soldados japoneses, sentados nos bancos de cimento perto da entrada do túnel, ficaram sorvendo seu chá ao lado de um fogão a carvão. Sua fumaça deslizou entre os caminhões do hospital. Dois jovens soldados estavam passando baldes de água a um esgotado Dr. Ransome, mas as tropas de segurança não pareciam mais interessadas nos prisioneiros de Lunghua, que tinham ocupado o campo de futebol, como eles o haviam feito durante os anteriores dias de marcha.

Com as pernas trêmulas, o rapaz levantou-se e examinou os carros estacionados, à procura do Packard dos pais. Onde estavam os motoristas? Deviam estar esperando ao lado dos seus veículos, como sempre faziam fora do clube de campo. Então um chuvisco sombreou o sol e uma luz parda cobriu o estádio. Olhando para os cromados enferrujados, Jim verificou que aqueles carros americanos estavam estacionados ali havia anos. Seus pára-brisas estavam cheios de marcas do inverno e apoiavam-se em pneumáticos vazios, parte da pilhagem praticada pelos japoneses contra os nativos aliados.

Jim examinou as tribunas nos declives ao norte e a oeste do estádio. As fileiras de cimento tinham sido despojadas de suas cadeiras e trechos das tribunas eram agora usados como armazéns ao ar livre. Dezenas de armários de madeira negra e mesas de mogno, com o verniz ainda intacto, e centenas de cadeiras de sala de jantar estavam amontoadas como no sótão de um depósito de mobiliário. Armações de camas e guarda-roupas, geladeiras e condicionadores de ar estavam postos uns sobre os outros, subindo inclinados para o espaço. O imenso camarote presidencial, onde Madame Chiang e o Generalissimo poderiam antigamente ter cumprimentado os atletas mundiais, estava agora abarrotado de rodas de roleta, balcões de coquetel e uma confusão de ninfas de gesso douradas segurando pomposas lâmpadas sobre a cabeça. Rolos de tapetes persas e turcos, apressadamente embrulhados em encerados, jaziam nos degraus de cimento, com a chuva escorrendo sobre eles como se fossem uma pilha de canos enferrujados.

Para Jim, esses troféus surrados, tirados das casas e clubes noturnos de Xangai, pareciam vibrar com um frescor de vitrina, como os andares cheios de móveis nos quais ele e a mãe costumavam antigamente andar nas lojas de departamentos da Sincere Company. Olhou para as tribunas, como se esperasse que a mãe surgisse num vestido de seda e passando a mão enluvada sobre aqueles corrimões de laça preta.

Sentou-se e protegeu os olhos da reverberação. Massageou as faces do Sr. Maxted com o polegar e o indicador, beliscando-lhe os lábios e expulsando as moscas pretas em sua boca. Em torno deles, os colegas do Campo Lunghua estavam atirados no capim úmido, olhando para aquela amostra de suas antigas propriedades, uma miragem que se tornou mais nítida na oblíqua luz de agosto.

Todavia, a miragem logo se desfez. Jim limpou as mãos no calção do Sr. Maxted. Os japoneses tinham freqüentemente usado o estádio como estação de trânsito e o capim estava coberto de panos sujos e da cinza de pequenas fogueiras, cordas de suportes de tendas e caixotes de madeira. Eram inconfundíveis restos humanos, manchas de sangue e pedaços de excremento, onde se banqueteavam milhares de moscas.

O motor de uma ambulância começou a funcionar ruidosamente. Os soldados japoneses tinham descido dos balcões e estavam constituindo um grupo de marcha. Duplas de guardas subiram nas traseiras, com máscaras de algodão no rosto. Ajudado por três prisioneiros ingleses, o Dr. Ransome desceu os doentes quase mortos ou muito enfermos para continuarem a viagem do dia. Estavam nos sulcos que marcavam o capim, como que tentando enrolar a terra macia em torno deles.

Jim abaixou-se ao lado do Sr. Maxted, manipulando seu diafragma como se fosse um fole. Ele tinha visto o Dr. Ransome trazer seus pacientes de volta à vida e era importante para o Sr. Maxted estar em boas condições para retomar a marcha. Â sua volta, os prisioneiros estavam sentados eretos e alguns homens estavam ao lado de suas mulheres e filhos amontoados. Alguns dos internados mais antigos tinham morrido na noite anterior: a três metros de distância, a Sra. Wentworth, que tinha feito o papel de Lady Bracknell, jazia em seu usado vestido de algodão, olhos abertos para o céu. Outros estavam rodeados de poças de água formada pela pressão dos seus corpos no capim macio.

Os braços de Jim doíam pelo esforço de massagear. Esperou que o Dr. Ransome saltasse da ambulância e fosse procurar o Sr. Maxted. Contudo, os três veículos já estavam partindo do estádio. A cabeça loura do Dr. Ransome surgiu da ambulância, quando esta dirigiu-se lentamente pelo túnel. O rapaz ficou tentado a correr atrás dela, mas já havia decidido ficar com o Sr. Maxted. Tinha aprendido que cuidar de alguém era a mesma coisa que ser cuidado por alguém.

Jim ficou ouvindo as ambulâncias atravessarem o estacionamento, suas caixas de mudança rangendo à medida que aumentava a velocidade. O Campo Lunghua tinha sido, finalmente, desmantelado. Um grupo de marcha formou-se ao lado do túnel. Cerca de trezentos prisioneiros ingleses, os mais moços com suas mulheres e filhos, tinham se alinhado na trilha e estavam sendo examinados por um sargento da polícia. Ao lado deles, na extremidade do campo de futebol, estavam os prisioneiros cansados demais para sentar ou ficar em pé. Estavam atirados no capim como feridos num campo de batalha. Os soldados japoneses caminharam entre eles, como se estivessem procurando uma bala perdida, sem o menor interesse naqueles britânicos que tinham se metido num beco sem saída da guerra.

Uma hora depois, a coluna andou, os prisioneiros marchando penosamente pelo túnel, sem um olhar para trás. Seis soldados japoneses os seguiram e o resto continuou a patrulhar os armários pretos e as geladeiras. O mais velho dos suboficiais comissionados esperou ao lado do túnel, para vigiar os aviões americanos de reconhecimento, que voavam sobre o local, não fazendo qualquer tentativa para mobilizar os prisioneiros ao estádio. Dentro de quinze minutos, contudo, um segundo grupo começou a se reunir e os japoneses adiantaram-se para examiná-los.

Jim esfregou as mãos no capim molhado e meteu os dedos na boca do Sr. Maxted. Os lábios do arquiteto tremeram em torno de suas articulações. Mas o sol de agosto já estava tirando a umidade do capim. O rapaz voltou sua atenção para uma poça de água na estradinha. Esperou que a sentinela passasse e depois atravessou o capim, indo beber nas mãos em concha. A água escorreu por sua garganta como mercúrio gelado,, uma corrente elétrica que quase parou seu coração. Antes que o japonês pudesse mandá-lo embora, o rapaz rapidamente colheu mais água e levou-a para o Sr. Maxted.

Assim que pingou o líquido na boca do arquiteto, as moscas fugiram das suas gengivas. Ao lado dele, jazia o vulto idoso do major Griffin, oficial reformado do Exército Indiano que havia feito conferências em Lunghua sobre armas da infantaria na Grande Guerra. Fraco demais para sentar-se, apontou para as mãos de Jim.

O rapaz beliscou os lábios do Sr. Maxted, ficando aliviado quando sua língua estendeu-se num espasmo. Procurando animá-lo, Jim disse:

- Sr. Maxted, nossas rações devem estar chegando.

- Jamie, você é um bom rapaz... perseverante. O Major Griffin fez-lhe um sinal:

- Jim...

- Estou indo, Major Griffin...

O rapaz atravessou o caminho de cimento e voltou com uma quantidade de água. Quando se abaixou ao lado do major, passando o líquido em seu rosto, reparou que a Sra. Vincent estava sentada no capim a alguns metros de distância. Ela havia deixado o marido e o filho com um grupo de prisioneiros no meio do campo de futebol. Cansada demais para continuar a andar, olhou o rapaz com o mesmo ar desesperado que lhe atirava quando Jim comia seus gorgulhos. A chuva da noite tinha lavado os restos de tinta do seu vestido de algodão, dando-lhe a palidez funérea das trabalhadoras chinesas do Aeródromo de Lunghua. A Sra. Vincent estava construindo uma pista estranha, refletiu Jim.

- Jamie...

Ela o chamou pelo seu nome de criança, que o Sr. Maxted, sem querer, tinha recolhido de alguma recordação de antes da guerra. Ela queria que Jim tornasse a ser criança, para continuar a fazer as infindáveis tarefas que o mantinham vivo em Lunghua.

Ao retirar a água fresca da estradinha, Jim lembrou como a Sra. Vincent tinha se recusado a socorrê-lo quando ficou doente. Contudo, sempre se sentiu intrigado ao vê-la comer. Esperou enquanto ela bebia nas suas mãos.

Quando a mulher terminou, Jim ajudou-a a se levantar.

- Sra. Vincent, a guerra agora terminou.

Com uma careta, ela empurrou-lhe a mão, porém Jim não mais se importava. Viu-a caminhar cambaleante entre os prisioneiros sentados. O rapaz abaixou-se ao lado do Sr. Maxted, afastando as moscas do seu rosto. Ainda podia sentir a língua da Sra. Vincent em seus dedos.

- Jamie...

Alguém estava chamando como se ele fosse um cule inglês atendendo a uma ordem dos seus senhores europeus. Muito tonto mesmo para sentar, Jim ficou ao lado do Sr. Maxted. Já era tempo de parar de receber ordens. Suas mãos estavam geladas por causa da água da estradinha. A guerra tinha durado muito tempo. No centro de detenção e em Lunghua, ele fez o que pôde para se manter vivo, mas agora uma parte dele queria morrer. Era a única maneira pela qual ele podia terminar a guerra.

Jim olhou para as centenas de prisioneiros na grama. Queria que todos morressem, rodeados de seus tapetes apodrecidos e armários de coquetéis. Muitos deles, tinham prazer em ver, já o tinham forçado e Jim sentiu raiva dos que ainda estavam em condições de andar, que estavam agora formando um segundo grupo de marcha. Desconfiou de que eles estavam caminhando para a morte nos arredores, porém desejou que ficassem no estádio e morressem à vista dos Cadillacs brancos.

Raivosamente, Jim afastou as moscas do rosto do Sr. Maxted. Rindo para a Sra. Vincent, começou a se balançar nos joelhos como fizera quando criança, cantando para si mesmo e monotonamente batendo no chão.

- Jamie... Jamie...

Um soldado japonês estava patrulhando a trilha próxima. Atravessou o capim e baixou os olhos para Jim. Irritado pelo barulho, estava a ponto de dar-lhe um pontapé com a bota estragada. Mas um raio de luz inundou o estádio, cintilando sobre as tribunas do canto sudoeste do campo de futebol, como se uma imensa bomba americana tivesse explodido em algum lugar a nordeste de Xangai. A sentinela hesitou, virando-se para ver a luz às suas costas tornar-se mais intensa. Diminuiu em alguns segundos, mas seu fraco reflexo atingiu tudo dentro do estádio, os móveis saqueados nas tribunas, os carros por trás das balizas do gol, os prisioneiros no gramado. Estavam sentados no chão de uma fornalha acesa por um segundo sol.

Jim olhou para suas mãos e joelhos brancos e para o rosto atormentado do soldado japonês, que ficou desconcertado com o fulgor.

Ambos ficaram esperando pelo trovão que sobrevinha aos relâmpagos das bombas, mas um silêncio uniforme desceu sobre o estádio e as terras ao redor, como se o sol tivesse piscado, parando de funcionar durante uns segundos. Jim sorriu para o japonês, desejando poder dizer-lhe que a luz era uma premonição de sua morte, a visão de sua pequena alma juntando-se à alma imensa do mundo agonizante.

Esses jogos e alucinações continuaram até o fim da tarde, quando um ataque aéreo a Hongkiu tornou a iluminar o estádio. Jim ficou em sua modorra, sentindo a terra estremecer sob suas costas como o chão do salão de baile do Clube de Campo de Xangai. Os fachos de luz moveram-se de um lado da seção de tribunas para um outro, transformando os móveis numa série de quadros iluminados, ilustrando as vidas dos colonizadores britânicos.

Ao anoitecer, o último grupo de marcha reuniu-se ao lado do túnel. Jim ficou perto do Sr. Maxted, observando os cinqüenta prisioneiros se organizarem numa coluna. Para onde iriam? Muitos dos homens e mulheres mal podiam manter-se de pé e Jim duvidou de que pudessem ir além do estacionamento fora do estádio.

Pela primeira vez desde que deixaram Lunghua, os japoneses tinham ficado impacientes. Ansiosos para se livrarem dos últimos prisioneiros ainda capazes de andar, os soldados atravessaram o campo de futebol. Bateram nos prisioneiros e os empurraram. Um cabo, com uma máscara de algodão, meteu sua tocha nas caras dos mortos e depois os virou de costas.

Um civil eurasiano, de camisa branca, moveu-se por trás dos japoneses, ansioso para ajudá-los a juntarem-se ao grupo, como o funcionário de uma eficiente companhia de viagens. Nas beiras do campo, os japoneses de guarda já estavam desnudando os corpos dos mortos, tirando-lhes os sapatos e cintos.

- Sr. Maxted... - Num último instante de lucidez, Jim sentou-se, consciente de que precisava abandonar o arquiteto moribundo e juntar-se à marcha durante a noite. - Agora preciso ir, Sr. Maxted. Está na hora da guerra acabar...

Estava tentando ficar de pé quando sentiu o Sr. Maxted agarrar seu punho.

- Não vá com eles... Jim... fique aqui.

Jim esperou que o Sr. Maxted morresse. Porém ele apertou o pulso do rapaz contra o chão, como se tentasse soldá-lo ao solo. Jim ficou vendo o grupo se arrastar para o túnel. Incapaz de andar mais de três passos, um homem caiu e foi retirado da fila. Jim prestou atenção às vozes dos japoneses se aproximando, abafadas pelas máscaras nos rostos, e ouviu o sargento fazer um esforço e cuspir no mau cheiro.

Um soldado ajoelhou-se ao seu lado, a respiração difícil e áspera

sob a máscara. Mãos fortes passaram pelo peito e quadris de Jim, apalpando seus bolsos. Bruscamente, arrancaram-lhe os sapatos dos pés, atirando-os na trilha cimentada. Jim ficou imóvel, enquanto as chamas dos depósitos de petróleo incendiados em Hongkiu dançavam nas tribunas, iluminando as portas das geladeiras roubadas, as grades dos radiadores dos Cadillacs brancos e as lâmpadas das ninfas de gesso no camarote do Generalíssimo.

 

O Eurasiano

Uma luz tranqüila aquecia o estádio. Do céu sem nuvens, tombou uma rajada de granizo, uma lufada de fumaça gelada, deslocada das asas de um aparelho americano, três mil e seiscentos metros acima do vale do Yangtze. Iluminados pelo sol, os cristais caíram no campo de futebol como uma cascata de enfeites de Natal.

Jim sentou-se e tocou nas pedras do granizo, pepitas de ouro branco espalhadas no capim. Ao seu lado, o Sr. Maxted tinha o corpo envolto numa roupa luminosa, seu rosto cor de cinza salpicado de arco-íris em miniatura. Mas em poucos segundos o granizo derreteu-se na terra. Jim procurou o aparelho, esperando que ele pudesse lançar outra cascata de granizo, mas o céu estava limpo de horizonte a horizonte. Alguns prisioneiros no estádio ajoelharam-se na grama, comendo o granizo e conversando sobre os cadáveres dos companheiros.

Os japoneses tinham desaparecido. Os oficiais não comissionados e os soldados da polícia tinham apanhado seu equipamento e sumido durante a noite. Jim ficou em pé, descalço na grama gelada, olhando para o túnel de saída. A luz fraca do sol mudou de posição nas paredes de cimento do estacionamento vazio. Um dos prisioneiros ingleses já havia entrado coxeando no túnel, com seus tamancos estragados, seguido da mulher com seu vestido andrajoso e as mãos comprimindo o rosto.

Jim ficou esperando um tiro de carabina que derrubasse o homem aos pés da mulher, mas o casal entrou no estacionamento e olhou as filas de veículos bombardeados. Jim deixou o Sr. Maxted e caminhou pela pista de cimento, com a intenção de acompanhá-los, mas depois resolveu precavidamente subir numa das tribunas.

Os degraus de cimento pareciam perder-se no espaço. Jim parou para descansar entre os terraços de moveis pilhados. Sentou-se numa cadeira de espaldar alto junto de uma mesa de jantar e bebeu a quente água de chuva depositada na madeira negra encerada. Abaixo dele, os trinta e tantos prisioneiros no campo de futebol estavam se levantando como se abandonassem um piquenique já no fim. As mulheres sentavam-se na grama, calmamente alisando o cabelo entre os corpos dos seus antigos amigos, enquanto alguns maridos examinavam, pelas janelas empoeiradas, os painéis de instrumentos dos carros estacionados.

Mais de uma centena de prisioneiros estavam mortos, espalhados pelo campo como se tivessem caído do céu durante a noite. Virando-lhes as costas, Jim subiu entre as poças de água até a última fila da tribuna. Agora que tinha deixado o Sr. Maxted, sentiu-se culpado pela sua morte, uma culpa de certa forma ligada aos seus sapatos perdidos. Olhou suas pegadas molhadas e pensou que deveria ter vendido os sapatos aos japoneses por um pouco de arroz ou uma batata-doce. Daquela maneira, fingindo estar morto, tinha perdido tanto o Sr. Maxted quanto seus calçados.

Contudo, a morte havia protegido Jim e o livrado da marcha noturna. Ficando com aqueles corpos em suas horas mortas, ao mesmo tempo dormindo e acordado, sentia-se mais perto deles do que dos vivos. Muito depois do Sr. Maxted ter esfriado, Jim continuou a massagear suas faces, mantendo as moscas afastadas, até ter certeza de que sua alma o deixara. Nos dias seguintes ficou perto do Sr. Maxted, apesar das moscas e do cheiro emanado pelo corpo do arquiteto morto. Os prisioneiros, descansando no centro do campo, mandavam Jim embora, sempre que o rapaz se aproximava. Bebendo a água da chuva que pingava dos móveis nas tribunas, tinha sobrevivido com uma única batata, achada no bolso traseiro da calça do Sr. Wentworth e com o arroz azedado atirado contra ele pelos soldados japoneses.

Jim debruçou-se no balaústre de metal e olhou para o estacionamento embaixo. O casal inglês estava olhando para as filas de veículos abandonados, sozinhos num mundo silencioso. Jim riu para eles, um engasgo áspero que expulsou de sua boca uma bola de pus amarelo. Queria gritar-lhes: O mundo se foi! Na noite passada todos pularam em seus túmulos e se cobriram de terra!

Já vai tarde... Jim olhou a terra moribunda, as crateras de bombas cheias de água nos campos cultivados, os silenciosos canhões antiaéreos do Pagode de Lunghua, os cargueiros encalhados nos bancos do rio. Atrás dele, não mais a seis quilômetros de distância, estava a cidade vazia. Os edifícios de apartamentos na Concessão Francesa e os prédios de escritórios do Bund eram como a imagem ampliada daquela distante perspectiva que o mantivera durante tantos anos.

Um vento gelado, vindo do rio, passou pelo estádio e durante um momento a estranha luz nordeste que ele tinha visto sobre as tribunas voltou a ofuscar o sol. Jim olhou para suas mãos pálidas. Sabia que estava vivo mas, ao mesmo tempo, sentia-se tão morto quanto o Sr. Maxted. Talvez sua alma, em vez de abandonar seu corpo, tenha morrido dentro de sua cabeça?

Novamente sedento, Jim desceu os degraus de cimento, procurando água em mesas e armários. Se a guerra tivesse acabado, era hora de procurar os pais. Contudo, sem os japoneses para protegê-los, seria perigoso para os ingleses pôr-se a caminho de Xangai a pé.

Por trás das balizas do gol, um prisioneiro britânico tinha dado um jeito de erguer o chassis de um dos Cadillacs brancos. Observado por seus companheiros, curvou-se sobre o motor e mexeu nos pistões. Jim ergueu-se e desceu a galope os degraus, ansioso para ser o co-motorista. Ele ainda lembrava todas as ruas e becos de Xangai.

Ao atravessar a pista de atletismo, notou que três homens entraram no estádio. Dois deles eram cules chineses, de peito nu, calças pretas de algodão amarradas nos tornozelos, acima das sandálias de palha. O terceiro era o eurasiano de camisa branca, que Jim tinha visto com as tropas de segurança japonesas. Ficaram parados junto ao túnel, enquanto o eurasiano inspecionava o estádio. Deu uma olhada nos prisioneiros instalados na grama, porém sua atenção estava nitidamente fixada nos móveis roubados nas tribunas.

O eurasiano tinha uma poderosa pistola automática metida no cós da calça, porém sorriu para o rapaz de forma agradável, como se fossem velhos amigos separados pelas desventuras da guerra.

- Olhe, garoto... Você está bem? - Examinou a camisa rasgada de Jim, as pernas e pés nus, cobertos de sujeira e pústulas. - Campo de Lunghua? Acho que você passou o diabo.

Jim olhou impassível o eurasiano. Apesar do sorriso, não havia simpatia no olhar do homem. Falava com forte sotaque americano, porém recentemente adquirido, que Jim concluiu ter sido aprendido ao interrogar tripulações de aviões americanos capturados. Usava um relógio de pulso cromado e a pistola Colt em sua cintura era igual às que os guardas japoneses em Lunghua tinham tomado dos pilotos das Superfortalezas derrubadas. Suas narinas dilatadas estremeceram ao fedor que se erguia do campo de futebol, distraindo-o de seu exame das tribunas. Deu um passo para o lado, a fim de que dois prisioneiros ingleses se arrastassem pelo túnel.

- É um início - refletiu. - Sua mãe e seu pai estão aqui? Parece que você pode usar um par de sacos de arroz. Pergunte por aí, rapaz, se eles têm braceletes, anéis de casamento, berloques. Podemos trabalhar juntos nisso.

- A guerra acabou?

O eurasiano baixou os olhos, eclipsados por alguma sombra passageira. Recuperou-se e sorriu sutilmente.

- Com certeza. Agora, a qualquer instante toda a esquadra americana estará atracando no Bund. - Ao notar que Jim não estava convencido, o eurasiano explicou: - Rapaz, eles jogaram bombas atômicas. Tio Sam atirou um pedaço do sol em Nagasaki e Hiroxima, matando um milhão de pessoas. Um grande relâmpago...

- Eu vi.

- Rapaz?... Terá iluminado o céu inteiro? Pode ser. - O eurasiano pareceu duvidoso, porém afastou os olhos do saque nas tribunas e começou a inspecionar Jim. Apesar de toda a sua maneira calma, não estava seguro de si mesmo, como que consciente de que a esquadra americana pudesse não ficar muito convencida do seu ato pró-americano. Olhou cautelosamente para o céu. - Bombas atômicas... muito ruim para todos os japoneses, mas sorte sua, garoto. E para sua mãe e seu pai.

Jim considerou isso enquanto o eurasiano pisava na caixa de lixo de cimento na entrada do túnel e começava a esquadrinhá-la por dentro.

- A guerra acabou mesmo?

- Sim, acabou, terminou, somos todos amigos. O imperador acabou de anunciar a rendição.

- Onde estão os americanos?

- Estão chegando, rapaz; devem chegar aqui com suas bombas atômicas.

- Uma luz branca?

- Isso mesmo. A bomba atômica. Uma superarma dos Estados Unidos. Talvez você tenha visto a bomba de Nagasaki.

- Sim, eu vi a bomba atômica. O que aconteceu ao Dr. Ransome? - Tendo o eurasiano ficado confuso, acrescentou: - E os que abandonaram a marcha?

- Uma pena, rapaz - O eurasiano sacudiu a cabeça, como que lamentando um descuido. - Os americanos bombardearam, algumas doenças... Talvez seus amigos as tenham sofrido...

Jim estava começando a se afastar quando o eurasiano virou-se da caixa de lixo. Segurava numa das mãos um par de tamancos estragados, que atirou na trilha. Na outra, levava os sapatos de golfe de couro de Jim, amarrado pelos cordões. Ia dizer alguma coisa aos cules que esperavam, quando Jim deu um passo à frente.

- Eles são meus: ganhei do Dr. Ransome.

Falou claramente e tirou os sapatos das mãos do eurasiano. Jim esperou que ele sacasse o revólver ou ordenasse aos cules que o derrubassem. Apesar de enfraquecido pela fome e exausto pelo esforço de subir na tribuna, Jim tinha consciência de que estava outra vez tentando impor a ascendência do europeu.

- Está bem, rapaz. - O eurasiano estava genuinamente preocupado. Eu estava conservando esses sapatos para o caso de Você voltar. Diga a seu pai e a sua mãe.

Jim passou pelos cules e entrou no túnel iluminado. Grupos de ingleses e inglesas estavam vagando entre os tanques e caminhões incendiados no estacionamento. Acompanhavam as linhas de demarcação meio apagadas, sem terem idéia de onde iriam dar, como se tivessem sobrevivido à guerra toda apenas para expirar naquele labirinto miserável. Fora do estádio, o sol de agosto tinha se tornado ainda mais intenso pelo silêncio total que cobria os campos de plantio e os canais. Um resplendor branco cobria o solo abandonado. Teriam os campos sido queimados pelo relâmpago da bomba atômica, que o eurasiano tinha descrito? Jim lembrou o corpo incandescente do piloto do Mustang e a luz silenciosa que tinha inundado o estádio e parecia vestir os mortos e os vivos em suas mortalhas.

 

O Piloto Kamikaze

Protegido em seus sapatos, Jim parou ao lado do fortim de cimento que guardava os veículos no estacionamento. A estrada de Xangai passava pela porta, dirigindo-se para os subúrbios ao sul da cidade. Nada se mexia nos campos em volta, porém, a cerca de trezentos metros de distância, um destacamento de soldados fantoches chineses estava numa vala antitanque que ladeava a estrada. Ainda usando seus gastos uniformes verde-alaranjados, estavam agachados em volta de um fogão a carvão, mantendo as carabinas entre as pernas. Um oficial não comissionado pulou da vala e esperou, mãos nas cadeiras, observando Jim, assim que ele surgisse na estrada.

Se o rapaz se aproximasse deles seria morto por causa dos sapatos. Jim sabia que estava fraco demais para andar até Xangai, tendo de enfrentar sozinho todos os perigos da estrada. Escondido detrás do fortim, caminhou para a segurança do Aeródromo de Lunghua. Seu limite ocidental ficava a pouco mais de oitocentos metros, terreno cheio de espinheiros e cana-de-açúcar silvestre, coberto de tambores de combustível e fuselagens de aviões abandonados. Entre os enferrujados lemes horizontais, pôde distinguir a pista de cimento, a superfície branca quase se evaporando no calor.

O estádio ficou para trás. A estrada era um meridiano vazio cercando um planeta rejeitado peia guerra. Jim seguiu a beira, caminhando sobre os tamancos quebrados e os trapos deixados pelos prisioneiros ingleses durante os últimos metros de sua caminhada para o estádio. Em ambos os lados dele, havia trincheiras e fortins bombardeados, um mundo de lama. No declive de uma armadilha para tanques cheia de água, entre pneumáticos e caixas de munição, estava o cadáver de um soldado chinês, com o uniforme laranja arrebentado por seus ombros e nádegas inchados, brilhando com um resplendor oleoso como uma lata de tinta aberta. Um cavalo de carga estava morto na margem da estrada, com o couro esfolado nas costelas. Jim examinou o interior daquela gaiola espaçosa com a vaga esperança de haver um rato nela.

Ele abandonou a estrada quando esta dobrou a leste, para as docas de Nantao. Atravessou os campos inundados, acompanhando a muralha de terra de uma vala de irrigação. Mesmo ali, a 1.500 metros a oeste do rio, o combustível dos cargueiros encalhados espalhava-se pelos riachos e canais, cobrindo os canteiros inundados com um brilho lívido. Jim descansou na estrada que rodeava o aeródromo, depois pulou a cerca de arame e caminhou em direção ao aparelho abandonado mais próximo. Do outro lado do campo de aviação, sob a imponente torre antiaérea do Pagode de Lunghua, ficavam os hangares e oficinas bombardeados. Alguns mecânicos japoneses perambulavam entre os destroços, mas os negociantes chineses de ferro-velho ainda não tinham chegado, nitidamente temerosos daquela zona de silêncio. Jim procurou ouvir o barulho de serras de arco ou instrumentos de corte, mas o ar estava vazio, como se a fúria do bombardeio americano tivesse eliminado todo o som da região durante os anos futuros.

Jim parou sob o leme de um Zero. A cana silvestre.crescia entre suas asas. Tiros de canhão tinham queimado a coberta de metal da longarina da fuselagem, mas a concha enferrujada ainda conservava toda a magia daquelas máquinas que ele tinha vigiado do balcão do salão de reuniões, decolando da pista que ele tinha ajudado a construir. Jim tocou as rápidas asas do mecanismo e passou a mão ao longo do flanco deformado da hélice. Glicol tinha vazado do radiador do resfriador e coberto o avião com um tracejamento rosado. Subiu na asa e examinou a cabina, o painel intacto de comutadores e manivelas. Uma ternura imensa cercava a válvula de regulagem, as alavancas do trem de aterrissagem, os rebites metidos no metal por alguma japonesa desconhecida na linha de montagem da Mitsubishi.

Jim caminhou entre os aviões estragados, que pareciam flutuar nos bancos verdes de espinheiros, deixando-os voar mais uma vez dentro de sua imaginação. Atordoado por sua beleza estragada, sentou-se para descansar na traseira de um Hayate de combate. Examinou o céu de Xangai, esperando a chegada dos americanos ao Aeródromo de Lunghua. Apesar de estar sem comer há dois dias, sua mente estava clara.

- ...aah... aah...

O som, um suspiro profundo de raiva e resignação, vinha da extremidade do campo de pouso. Antes de Jim poder se esconder, ouviu um barulho nos espinheiros detrás do Zero. Um aviador japonês parou a seis metros dele. Usava uma macacão folgado de piloto, com a insígnia do grupo especial de ataque pregado nas mangas. Estava desarmado, porém levava uma estaca que tinha arrancado da cerca. Moveu-se violentamente entre os espinheiros à sua volta e olhou irritado para o avião enferrujado, arfando como que tentando incitá-lo a voar.

Jim caiu de joelhos, esperando que a tênue camuflagem do Hayate o ocultasse. Reparou que aquele oficial-piloto japonês ainda não atingira os vinte anos, com um rosto indefinido, nariz e queixo malformados. Sua pele amarela e os ossos salientes dos seus pulsos disseram a Jim que o aprendiz de piloto estava tão esfomeado quanto ele. Só os seus suspiros guturais eram exalados pela respiração de um homem adulto, como se, ao juntar-se à sua unidade kamikaze, tivesse recebido a garganta e pulmões de um piloto mais velho.

- Raios...

Ele reparou Jim sentado no aparelho e, por alguns segundos, examinou-o entre os espinheiros. Depois deu-lhe as costas e continuou seu patrulhamento mal-humorado do perímetro do aeródromo.

Jim ficou vendo o soldado derrubar as canas-de-açúcar, talvez que^ rendo limpar a área para o pouso de um helicóptero. Os japoneses teriam inventado uma arma secreta para responder à bomba atômica, um foguete de grande potência que iria necessitar de uma pista mais longa que a de Lunghua? Jim esperou que ele avisasse aos guardas ao pé do pagode. Porém o japonês só estava interessado na sua procura do aparelho derrubado. Parou para balançar a cabeça e Jim tornou a lembrar da juventude do piloto. No início da guerra e até há poucos meses, ele devia ter sido um colegial recrutado diretamente da sala de aula para a academia de treinamento aéreo.

Jim levantou-se e caminhou pelos espinheiros em direção ao capim amarelado da beira do campo de aviação. Começou a seguir o japonês a cinqüenta metros de distância - atrás dele e se deteve quando o piloto parou para consertar o leme de profundidade de um Zero estragado. Esperou até que o japonês tornasse a andar e então caminhou depois dele, sem se esforçar por se esconder e colocando cuidadosamente os pés nas pegadas do piloto.

Na hora seguinte, movimentaram-se na beira sul do aeródromo, o jovem piloto com o rapaz a reboque. As cabanas e blocos de dormitórios do Campo Lunghua surgiram na reverberação do ar. Longe, no outro lado do campo de aviação, as tripulações japonesas de terra passavam o tempo ao lado dos hangares incendiados. Embora ciente de que Jim o estava seguindo, o piloto não fez qualquer tentativa de chamá-lo. Somente quando chegaram ao campo de visão de dois soldados que tomavam conta de um depósito de carabinas, o japonês parou e fez sinal a Jim.

Pararam juntos ao lado de um avião enferrujado do qual os negociantes de sucata tinham arrancado as asas. O piloto sorveu o ar, distraído pelo olhar paciente do rapaz, como um colegial mais velho forçado a tomar conhecimento de um admirador mais novo. Apesar de toda a sua juventude, ele parecia sentir-se à beira de um desespero adulto. Nuvens de moscas ergueram-se do cadáver de um cule chinês caído entre as canas-de-açúcar, no meio de tanques de combustível e

blocos de motores. As moscas pairaram em torno da boca do piloto, esvaziando seus lábios como convidados impacientes num banquete. Elas fizeram Jim lembrar das moscas que tinham coberto o rosto do Sr. Maxted. Saberiam que aquele jovem piloto devia ter morrido num ataque aos porta-aviões americanos em Okinawa?

Por qualquer motivo, o japonês nada fez para afastar as moscas. Sem dúvida, sabia que sua própria vida tinha acabado, que as forças do Kuomintang, prestes a reocupar Xangai, estariam ansiosas para tratar com ele.

O japonês ergueu sua estaca de madeira. Como um homem adormecido, saído de um sonho, atirou-se para o meio dos espinheiros. Quando Jim hesitou, ele meteu a mão no bolso do seu blusão de vôo e tirou uma pequena manga.

Jim tirou a fruta amarela da mão áspera do piloto. A fruta ainda estava quente do corpo do aviador. Procurando demonstrar a mesma disciplina, Jim se forçou a não comer a manga. Esperou, enquanto o piloto olhava para a pista de cimento.

Com um derradeiro grito de ódio, o piloto deu um passo à frente e bateu na cabeça de Jim, empurrando-o para a cerca como que advertindo-o a se afastar do solo contaminado.

 

A Geladeira no Céu

A manga doce escorreu em torno da boca de Jim, como a língua da Sra. Vincent em suas mãos. A três metros da cerca do perímetro, Jim sentou num tanque de Mustang que tinha caído no capim à margem de um campo encharcado. Engoliu a fruta macia e mastigou até chegar ao caroço, retirando tudo o que pôde. Imediatamente começou a pensar na próxima manga. Se ele conseguisse se ligar ao jovem piloto japonês, fazer recados para ele e tornar-se útil, haveria mais mangas. Em poucos dias estaria bastante forte para caminhar até Xangai. Nesse ínterim, os americanos teriam chegado e Jim poderia apresentar-lhes o piloto kamikaze como amigo. Sendo povo de coração generoso, os americanos passariam por cima daquela coisa de somenos importância como os ataques suicidas aos seus porta-aviões em Okinawa. Quando a paz chegasse, o japonês poderia ensinar-lhe a voar...

Quase embriagado pela seiva leitosa da manga, Jim deslizou para o chão, as costas apoiadas no tanque. Olhou para a superfície da plantação inundada, resolvendo ser sério com ele mesmo. Primeiro, podia ter certeza de que a guerra tinha realmente acabado? O eurasiano de camisa branca tinha ficado repentinamente desconfiado, porém só estava preocupado em roubar a mobília e carros armazenados no estádio. Quanto a ensinar a voar, um piloto kamikaze poderia não ser o instrutor ideal...

Um zumbir familiar inundou o céu de verão, uma ameaça de motores. Jim pôs-se em pé, quase se engasgando com o caroço da manga. Bem à sua frente, mais ou menos a 250 metros acima das plantações vazias, estava um bombardeiro americano. Uma Superfortaleza quadrimotor voava mais vagarosamente que qualquer avião americano jamais visto por Jim durante toda a guerra. Iria pousar no Aeródromo de Lunghua? Jim começou a abanar para o piloto na cabine envidraçada. Quando a Superfortaleza passou sobre sua cabeça, seus motores sacudiram o solo com o barulho e o aparelho abandonado na extremidade do campo de pouso começou também a tremer.

As portas do compartimento de bombas abriram-se, aparecendo os cilindros prateados prontos a caírem de seus suportes. A Superfortaleza passou roncando, o sibilo de um dos seus motores de estibordo rasgando o ar. Fraco demais para mexer-se, Jim esperou a bomba explodir em torno dele, mas o céu ficou coalhado de pára-quedas coloridos que, às dezenas, flutuavam alegremente, como que gozando o céu de verão. Os animados guarda-sóis lembraram a Jim os balões de ar quente que os mágicos chineses soltavam nos jardins da Avenida Amherst no auge das festas infantis. Estariam os pilotos dos B-29 tentando diverti-lo, para manter seu ânimo até que pudessem pousar?

Os pára-quedas passaram, caindo em direção ao Campo Lunghua. Vacilante, Jim tentou firmar os olhos nas cúpulas coloridas. Duas delas se chocaram, embaraçando suas cordas. Uma caixa prateada arrastou seu pára-quedas maltratado e caiu no solo, batendo numa rampa do canal duzentos metros adiante.

Fazendo um derradeiro esforço, antes de ter de deitar-se pela última vez entre os restos dos aparelhos, Jim caminhou entre as canas-de-açúcar, entrando no campo encharcado. Atravessou a água rasa até uma cratera de bomba submersa no meio do campo e depois seguiu sua crista até o canal.

Quando subiu o barranco, o último dos pára-quedas tinha caído nas terras a oeste do Campo Lunghua. O zumbido dos motores dos B-29 cessou sobre o Yangtze. Jim aproximou-se do pára-quedas vermelho, bastante grande para cobrir uma casa, caído no barranco. Olhou a fazenda reluzente, mais luxuosa que qualquer tecido jamais visto por ele, para os pontos e costuras impecáveis, para o cordame branco que se arrastava na galeria de escoamento que ladeava o canal.

O recipiente tinha se rompido com o impacto. Jim escorregou pelo declive de terra ressequida pelo sol e agachou-se ao lado do cilindro aberto. À sua volta, no chão da galeria, havia uma quantidade de latas de comida e pacotes de cigarros. O recipiente estava cheio de caixas de papelão e uma tinha se rompido e caído da ponta do cone, espalhando seu conteúdo no solo. Jim arrastou-se entre as latas, esfregando os olhos para poder ler os rótulos. Havia latas de Spam, Klim e Nescafe, barras de chocolate e pacotes de celofane de cigarros Lucky Strick e Chesterfield e fardos de Seleções e Life, Time e Saturday Evening Post.

A visão de tantos alimentos deixou Jim confuso, forçando-o a uma escolha que havia anos não acontecia. As latas e pacotes estavam gelados, como se acabassem de sair de uma geladeira americana. Jim começou a encher a caixa rompida com carne enlatada, leite em pó, barras de chocolate e um pacote de Seleções. Depois, pensando no futuro pela primeira vez em vários dias, acrescentou um pacote de cigarros Chesterfield.

Quando retornou da galeria, o pano vermelho do pára-quedas estava balançando suavemente no ar que circulava ao longo do canal. Apertando o tesouro gelado de encontro ao peito, Jim saiu do barranco e vadeou o campo encharcado. Estava seguindo a beira da cratera da bomba em direção ao perímetro do aeródromo, quando ouviu o descansado zumbir dos motores de uma B-29. Parou para procurar a aeronave, já imaginando como podia enfrentar todo aquele tesouro caindo do céu.

Quase imediatamente, ouviu-se um tiro de carabina. A uns cem metros de distância, separado de Jim pelo campo aberto, um soldado japonês estava correndo ao longo do barranco do canal. Descalço, uniforme andrajoso, passou disparado pelo pára-quedas, pulou para o mato rasteiro que cobria o declive e atirou-se para o campo encharcado. Perdido entre os respingos provocados por seus calcanhares apressados, desapareceu entre os montículos tumulares e as moitas de cana-de-açúcar.

Jim achatou-se na beira da cratera da bomba, ocultando-se entre as parcas folhas do arroz silvestre. Apareceu um segundo soldado japonês. Estava desarmado, mas continuava usando seu talabarte e bolsas de munição. Correu ao longo do barranco do canal e parou para recuperar o fôlego ao lado do pano do pára-quedas. Virou-se para olhar e Jim reconheceu o.rosto inchado e tuberculoso do praça Kimura.

Um grupo de europeus o estava seguindo pelo barranco, porretes pesados de bambu nas mãos. Um dos homens tinha uma carabina, porém Kimura não tomou conhecimento e apertou o talabarte em torno do seu uniforme maltratado. Chutou uma de suas botas estragadas para dentro da água e depois caminhou barranco abaixo até o encharcado campo cultivado. Tinha andado dez passos quando se ouviu um segundo tiro de carabina.

O praça Kimura ficou de rosto para baixo na água rasa. Jim esperou no arrozal silvestre até que os quatro europeus se aproximassem do pára-quedas. Prestou atenção na sua discussão nervosa. Eram todos antigos prisioneiros ingleses, descalços e com calções esfarrapados, embora nenhum tivesse estado internado em Lunghua. Seu cabeça era um agitado jovem britânico, cujos punhos estavam envoltos em ataduras sujas. Jim imaginou que ele tivesse ficado preso durante anos numa cela subterrânea. Sua pele branca retraía-se na luz do sol como a carne exposta de uma lesma tirada de sua casca. Ele sacudiu seus curativos no ar, flâmulas sangrentas que assinalavam um tipo especial de raiva a si mesmo.

Os quatro homens começaram a enrolar o pano do pára-quedas. Apesar da fome dos meses passados, trabalhavam apressadamente e tinham logo retirado a caixa de metal da vala. Tornaram a guardar dentro seu conteúdo, colocaram o focinho metálico no lugar e arrastaram o pesado cilindro pelo barranco.

Jim ficou vendo sua caminhada entre os montículos funerários em direção ao Campo Lunghua. Ficou tentado a correr atrás e juntar-se a eles, mas todo o cuidado aprendido nos anos anteriores o aconselhou a não se expor. O praça Kimura estava na água a quinze metros de distância, uma nuvem rubra expandindo-se de suas costas, como uma cobertura de um pára-quedas afundado.

Quinze minutos depois, quando ficou convencido de que ninguém estava olhando perto dos campos encharcados, Jim surgiu da moita de arroz silvestre e voltou para seu esconderijo entre os aparelhos abatidos.

Apressadamente, sem se dar ao trabalho de lavar as mãos na água da plantação, Jim desprendeu a chave da lata de Spam e enrolou a tampa de metal. Um cheiro penetrante ergueu-se da massa rosada de carne picada, que apareceu à luz do sol como uma ferida. Mergulhou os dedos na carne e levou um pedaço aos lábios. Um sabor estranho mas forte encheu sua boca, o gosto de gordura animal. Após anos de arroz cozido e batatas-doces, sua boca era um oceano de temperos exóticos. Mastigando lentamente, como o Dr. Ransome lhe ensinara, arrancando o último grama de nutrição de cada pedaço, Jim terminou a carne.

Sedento após todos os temperos, abriu a lata de Klim, só para achar um pó branco. Meteu os grãos na boca, meteu a mão na água através do capim na beira do campo e levou uma mancheia de água quente aos lábios. Uma abundante espuma cremosa quase o sufocou e o rapaz vomitou a torrente branca na terra trabalhada. Jim olhou surpreso para aquela fonte nevada, imaginando se iria morrer de fome porque tinha esquecido de como comer. Ajuizadamente, leu as instruções e misturou meio litro de leite tão rico que sua espuma gorda no sol parecia óleo dos riachos e canais.

Entorpecido pelo alimento, Jim deitou-se no capim quente e começou a lamber, contente, a barra dura de chocolate. Tinha acabado de fazer a melhor refeição de sua vida e seu estômago estufou-se sob as costelas como uma bola de futebol. Ao seu lado, na superfície do campo encharcado, nuvens de moscas banqueteavam-se no monte de vômito branco. Jim retirou a lama da segunda lata de Spam e esperou que o piloto japonês tornasse a aparecer, para poder retribuir-lhe a manga.

Cerca de quatro quilômetros a oeste, perto dos campos de Hungjao e Siccawei, dezenas de pára-quedas coloridos estavam caindo de um B-19 atravessando o céu de verão. Rodeado por essa visão de toda a abundância da América caindo do espaço, Jim riu alegremente para si mesmo. Começou sua segunda e quase mais importante refeição, devorando os seis números de Seleções. Folheou as brancas páginas enrugadas das revistas, tão diferentes dos ensebados exemplares que tinha lido e relido em Lunghua. Estavam cheias de cabeçalhos e anúncios de um mundo que ele nunca conhecera e uma quantidade de nomes inimagináveis: Patton, Eisenhower, Himmler, Belsen, Jipe, GI, AWOL, Utah Beach, von Rundstedt, o Bulge e milhares de outros detalhes da guerra européia. Juntas, descreviam uma aventura heróica num outro planeta, cheia de cenas de sacrifícios e estoicismo, de incontáveis atos de bravura, um universo longe da guerra que Jim tinha presenciado no estuário do Yangtze, aquele vasto rio, com largura insuficiente para carregar todos os mortos da China através de sua boca. Saciando-se com as revistas, Jim cochilou entre as moscas e vômito. Tentando não ser superado pela Seleções, lembrou a luz lívida da bomba atômica em Nagasaki, cujo relâmpago ele tinha visto refletido através do Mar da China. Seu halo claro ainda permanecia sobre os campos silenciosos, porém mal parecia igual ao Dia D e à Bastogne. Ao contrário da guerra na China, todos na Europa sabiam exatamente de que lado estavam, um problema que o rapaz nunca havia realmente resolvido. Apesar de todos os novos nomes que ela dera a conhecer, estaria a guerra se recarregando ali, ao lado dos grandes rios da Ásia oriental, para ser combatida eternamente naquela linguagem muito mais ambígua que Jim tinha começado a aprender?

 

Tenente Price

No começo da tarde, Jim já havia descansado o suficiente para afastar sua mente daquele problema e fazer uma segunda refeição. O Spam quente, não mais gelado pelo seu vôo a grande altura nos compartimentos de bombas da B-29, escorreu entre seus dedos para o chão sujo. Ele recuperou o bloco de carne gelatinosa, raspou as moscas e a sujeira e engoliu-o com o resto do leite em pó.

Mastigando uma barra de chocolate e pensando na ofensiva das Ardenas, Jim ficou observando uma B-29 voar sobre os subúrbios, a três quilômetros a sudoeste. Um Mustang de combate escoltava o bombardeiro, fazendo amplos círculos a trezentos metros acima da Superfortaleza, como se o seu piloto estivesse cansado da pequena tarefa de defender o avião de socorro. Uma nuvem de pára-quedas começou a descer, talvez dirigida a um grupo de prisioneiros de Lunghua, abandonados pelos japoneses durante a marcha para o estádio de Nantao.

Jim virou-se para o horizonte de Xangai. Estaria ele bastante forte para andar os poucos mas perigosos quilômetros até os subúrbios ocidentais? Talvez seus pais já tivessem voltado para a casa da Avenida Amherst? Poderiam estar famintos após a viagem de Suchau e ficariam contentes com a última lata de Spam e o pacote de Chesterfield. Sorrindo para si mesmo, Jim pensou na mãe: não conseguia mais lembrar seu rosto, mas podia perfeitamente imaginar sua reação à lata de Spam. Como um divertimento extra, ela iria ter muito o que ler...

O rapaz levantou-se, ansioso por começar a andar de volta a Xangai. Bateu no estômago estufado, imaginando se havia uma nova doença americana para quem comesse demais. Nesse instante, viu entre os ramos das árvores rostos virados para ele. Seis soldados chineses caminhavam entre os aviões destruídos, seguindo a estrada perimetral. Eram chineses do norte, altos e ossudos, completamente equipados e com uniformes azuis. Havia estrelas vermelhas de cinco pontas em seus quepes moles e o chefe levava uma metralhadora de confecção estrangeira, resfriada a ar e com a carga num tambor. Usava óculos e era mais moço e magro que seus soldados, com o olhar fixo de um contador ou estudante.

Com passo firme, como se já tivessem coberto uma enorme distância, os seis soldados pararam entre os aparelhos. Passaram a cerca de 20 passos de Jim, que escondeu a Spam e o pacote de Chesterfield atrás das costas. Concluiu que aqueles homens eram comunistas chineses. De acordo com a opinião geral, odiavam os americanos. Vendo os cigarros, eles poderiam matá-lo antes que pudesse explicar que, antigamente, ele também tinha pensado seriamente em se tornar comunista.

Mas os soldados atiraram-lhe um olhar desinteressado, sem aquela irresoluta mistura de deferência e desprezo com que os chineses sempre olharam europeus e americanos. Passaram apressadamente e logo sumiram entre as árvores. Jim atravessou a cerca, à procura do piloto japonês. Desejava avisá-lo sobre aqueles soldados comunistas, que poderiam matá-lo à primeira vista.

Jim já havia decidido não caminhar sozinho para Xangai. Os distritos de Lunghua e Nantao estavam infestados de homens armados.

Queria primeiro voltar ao campo e juntar-se aos internados britânicos que tinham morto o praça Kimura. Tão logo tivessem recobrado as forças, iriam querer sair para os bares e clubes noturnos de Xangai. Jim, com toda a experiência adquirida no Studebaker do Sr. Maxted, seria seu guia.

Embora os portões do Campo Lunghua ficassem a pouco mais de um quilômetro e meio dali, Jim levou duas horas para atravessar os arredores desertos. Evitando o praça Kimura, Jim entrou no terreno alagado e depois seguiu o barranco do canal até a estrada de Xangai. Os acostamentos estavam atulhados de destroços de ataques aéreos. Caminhões e vagões de suprimentos queimados enchiam as valas, cercados dos corpos mortos dos soldados fantoches, de carcaças de cavalos e de búfalos da índia. Um resplendor de luz dourada surgia dos milhares de cartuchos gastos, como se aqueles soldados mortos tivessem pilhado um tesouro nos instantes anteriores à sua morte.

Jim caminhou ao longo da estrada deserta, observando um avião de combate americano surgir vindo do oeste. Instalado em sua nacele aberta, o piloto rodeou Jim, com o motor em marcha lenta, parecendo que a máquina prateada sussurrava no ar. Então Jim viu que suas metralhadoras estavam preparadas, suas portas de ejeção abertas e lhe ocorreu que o piloto poderia matá-lo por divertimento. Jim ergueu c pacote de Chesterfield e a Seleções, exibindo-os ao piloto como um par de passaportes. O piloto acenou-lhe e inclinou o avião lateralmente, embicando na direção de Xangai.

A presença daquele aviador americano encheu Jim de júbilo. Caminhou confiante os derradeiros cem metros em direção ao campo. A vista dos prédios familiares, da caixa d'agua e da cerca de arame farpado animou-o e tranqüilizou-o. Estava voltando para o seu verdadeiro lar. Se Xangai estivesse muito perigosa, talvez seus pais quisessem abandonar a Avenida Amherst e morar com ele em Lunghua. Praticamente, era uma pena que os soldados japoneses não estivessem lá para protegê-los...

Assim que Jim chegou ao campo, ficou surpreso ao ver que os camponeses chineses e desertores do exército tinham voltado aos seus lugares ao lado dos portões. Estavam acocorados ao sol, olhando calmamente para o inglês de peito nu que parou detrás da cerca, uma pistola no coldre suspenso em seus quadris ossudos. Jim reconheceu-o: era o Sr. Tulloch, o mecânico-chefe da agência Packard em Xangai. Tinha passado a guerra toda jogando cartas no Bloco D, parando de vez em quando para se engalfinhar com o Dr. Ransome por se recusar a fazer parte do grupo do esgoto. Jim o viu pela última vez deitado fora da casa de guarda, depois da abortada tentativa de caminhar até Xangai.

Agora passava o tempo nos portões, mexendo num ferimento infeccionado no lábio e vigiando a atividade no campo de exercícios. Dois ingleses estavam arrastando uma armação de pára-quedas e sua tela para o interior da casa de guarda. Um terceiro homem estava instalado no telhado, esquadrinhando os arredores com um binóculo japonês.

- Sr. Tulloch... - Jim empurrou os portões, tilintando o pesado cadeado e a corrente. - Sr. Tulloch, o senhor trancou os portões.

Tulloch olhou com ar desgostoso para o rapaz, evidentemente sem reconhecer aquele sujeito andrajoso de 14 anos e desconfiado do pacote de cigarros.

- De que raio de lugar você saiu? Rapaz, você é inglês?

- Sr. Tulloch, eu estava em Lunghua. Vivi aqui durante três anos. - Quando Tulloch começou a se afastar, Jim gritou: - Trabalhei no hospital com o Dr. Ransome!

- Dr. Ransome? - Tulloch virou-se para os portões. Examinou Jim com ceticismo. - O doutor mexe-na-merda?

- Ele mesmo, Sr. Tulloch. Mexi em merda para o Dr. Ransome. Tenho de ir a Xangai procurar minha mãe e meu pai. Temos um Packard, Sr. Tulloch.

- Ele mexeu sua última merda... - Tulloch tirou o molho de chaves do Sargento Nagata da bolsa de munição do seu coldre. Continuava em dúvida sobre se devia deixar Jim entrar. - Um Packard? Bom carro...

Destrancou os portões e fez sinal a Jim para que entrasse. Ouvindo o barulho, o inglês de mãos enfaixadas, que tinha morto o praça

Kimura, saiu correndo da casa de guarda. Embora magro, tinha um físico forte, nervoso, e uma palidez que era aumentada por suas juntas ensangüentadas. Jim já havia visto aquela mesma pele cor de giz e olhos perturbados nos prisioneiros libertados, após meses nas celas subterrâneas do quartel da polícia em Bridgehouse. Seu peito e ombros estavam cobertos de marcas de queimaduras de dezenas de cigarros, como se seu corpo tivesse sido crivado com um atiçador em brasa, numa tentativa de acendê-lo.

- Tranque esses portões! - Apontou a mão ensangüentada para Jim. - Ponha-o para fora!

- Price, eu conheço o rapaz. Seus pais compraram um Packard.

- Livre-se dele! Cada um aqui tem um Packard...

- Está bem, tenente. Suma, rapaz. Parece inteligente.

Jim tentou manter o portão aberto com o sapato de golfe e o Tenente Price socou-o no peito com o punho enfaixado. Sem fôlego, o rapaz pulou para o chão, ao lado dos chineses que observavam. Continuou segurando a lata de Spam e a caixa de cigarros Chesterfield, mas as seis Seleções dentro da camisa caíram no capim e foram imediatamente apanhadas pelas camponesas. As mulherzinhas esfomeadas, em suas calças pretas, sentaram-se em volta dele, cada uma com uma revista, como se fossem tomar parte num grupo de discussão da guerra européia.

Price bateu os portões na cara deles. Tudo à sua volta, o campo, as desertas glebas trabalhadas, mesmo o sol, parecia odiá-lo. Sacudiu a cabeça para Jim e depois seu olhar caiu sobre a lata na mão do rapaz.

- Onde apanhou isso? As coisas jogadas em Lunghua nos pertencem! - Gritou em chinês para as mulheres, desconfiando terem sido elas as cúmplices daquele roubo. - Tulloch... Eles roubaram nosso Spam!

Destrancou o portão, pretendendo tirar a lata de Jim, quando gritaram da torre de observação. O homem com o binóculo atirou-se escada abaixo, apontando para os campos do outro lado da estrada de Xangai.

Dois B-29 apareceram a oeste, os motores roncando sobre a terra deserta. Ao verem o campo, separaram-se. Uma voou para Lunghua, as portas das bombas se abrindo para mostrar seu conteúdo. A outra alterou o curso para o distrito de Putung, a leste de Xangai.

Quando as Superfortalezas trovejaram sobre suas cabeças, Jim encolheu-se ao lado dos chineses. Armados com a carabina e os porretes de bambu, Price e três ingleses atravessaram os portões e correram para o terreno próximo. O céu já estava cheio de pára-quedas, as coberturas azuis e escarlates caindo nos campos alagados a quase um quilômetro de distância.

O ruído dos motores do B-29 transformou-se num som abafado. Jim ficou tentado a seguir Price e seus homens, para oferecer-lhes ajuda. Os pára-quedas tinham pousado por trás da linha de velhas trincheiras. Perdendo a direção, os ingleses correram para todos os lados. Price subiu no parapeito de um reduto de terra e sacudiu a carabina furiosamente. Um dos homens meteu-se num canal raso e chapinhava em círculos entre a vegetação aquática, enquanto os outros corriam pelas separações de lama entre os canteiros.

Enquanto Tulloch os observava sem esperança, o rapaz levantou-se e passou por ele, entrando no portão. O mecânico de Packard soltou a enorme pistola no coldre. A visão dos pára-quedas caindo despertou-o e os músculos dos seus braços e costas tremeram de excitação.

- Sr. Tulloch, a guerra acabou? - perguntou Jim. - Acabou mesmo?

- A guerra?... Tulloch parecia ter esquecido de que ela tinha acontecido. - É melhor que tenha, rapaz: a qualquer instante agora a próxima pode começar.

- Vi alguns soldados comunistas, Sr. Tulloch.

- Estão em toda parte. Espere até que o Tenente Price comece a agir contra eles. Nós os poremos na casa de guarda, rapaz. Saia daqui...

Jim acompanhou Tulloch pelo campo de exercícios, entrando juntos na casa da guarda. O chão antes imaculado da sala do oficial de dia, encerado pelos prisioneiros chineses no intervalo de suas surras, estava coberto de sujeira e lixo. Calendários e documentos japoneses estavam misturados a caixas vazias de Lucky Strike, cartuchos usados e velhas botas de infantaria rasgadas. Encostados na parede do fundo da sala do comandante, estavam empilhadas dezenas de caixas de ração. Um inglês cinqüentão, nu, antigo garçom do Clube de Campo de Xangai, sentado numa banqueta de bambu, separava a carne enlatada do café e dos cigarros, tinha empilhado as barras de chocolate na mesa do comandante e rudemente atirou para o lado os pacotes de Seleções e Saturday Evening Post. Todo o chão da sala estava coberto de revistas jogadas fora.

Ao seu lado, um jovem soldado inglês, metido num uniforme andrajoso dos Seaforth Highlanders, estava cortando as cordas de náilon dos pára-quedas. Amarrava as cordas em rolos e depois, habilmente, dobrava o tecido azul e encarnado.

Tulloch examinou o rico depósito, evidentemente intimidado pela fortuna que ele e seus companheiros tinham reunido. Afastou Jim da porta, temendo que a vista de tantas barras de chocolate pudesse perturbar o rapaz.

- Não fique parado aí, filho. Vá comer seu Spam lá.

Mas Jim estava olhando as revistas empilhadas no chão a seus pés. Queria arrumá-las e juntá-las para a próxima guerra.

- Sr. Tulloch, eu queria agora voltar para Xangai.

- Xangai? Lá não há nada, a não ser seis milhões de cules esfomeados. Eles o retalharão antes que possa ao menos dizer Estrada do Poço Borbulhante. *

- Sr. Tulloch, minha mãe e meu pai...

- Rapaz! Nenhum pai ou mãe de alguém está indo para Xangai. Todos aqueles dólares FRB conseguem cem sacos de arroz? Aqui eles caem do céu.

Um tiro de carabina soou nos campos cultivados, seguido de mais dois em rápida sucessão. Deixando o garçom nu protegendo seu rico depósito, Tulloch e o Seaforth Highlander saíram correndo da casa de guarda e subiram a escada da torre de observação.

Jim começou a arrumar as revistas no chão da sala do comandante, porém o garçom gritou e fez um gesto mandando-o embora. Ficando só, Jim dirigiu-se ao pátio das celas, atrás da sala do oficial de dia. Com a Spam quente na mão, examinou as celas vazias, o sangue enegrecido e os excrementos secos que manchavam as paredes de cimento.

Na cela na extremidade do pátio, coberta por uma esteira de palha pendurada das grades, estava o corpo de um soldado japonês morto. Estava deitado no banco de cimento que era o único móvel da cela, as costas marcadas pelo que restava de uma cadeira de madeira. Sua cabeça tinha sido reduzida a uma polpa que lembrava uma melancia esmagada, cheia de sementes pretas de centenas de moscas.

Jim olhou o soldado pelas grades, abalado porque um dos japoneses que o tinham vigiado durante tantos anos tivesse sido aprisionado e espancado até morrer numa de suas próprias celas. Jim tinha aceito a morte do praça Kimura no anonimato do campo encharcado, porém aquela reviravolta de todas as regras que governavam sua vida no campo, finalmente convenceu Jim de que a guerra poderia ter acabado.

Saiu do pátio das celas e voltou à sala do oficial de dia. Sentou-se na mesa do Sargento Nagata, luxo que nunca se permitira antes, e começou a ler os números de Life e Saturday Evening Post. Desta vez, os anúncios em profusão, os cabeçalhos e frases de propaganda - “Quando Carros Melhores forem construídos, a Buick os construirá!” - não o emocionaram. Apesar dos alimentos que comeu, sentia-se meio tonto pela tarefa de achar um caminho para Xangai e também pelas confusões que a paz arbitrária tinha imposto à paisagem estabelecida e segura da guerra. A paz tinha chegado, mas estava longe de se coadunar adequadamente.

Pelas janelas quebradas, Jim viu um B-29 cruzar o rio a um quilômetro e meio, procurando nos armazéns de Putung grupos de prisioneiros aliados. Os camponeses fora dos portões de Lunghua ignoraram o bombardeiro. Jim reparou que os chineses nunca olhavam para os aviões voando. Embora fossem súditos de um dos governos aliados na guerra com o Japão, não queriam partilhar dos suprimentos de ajuda.

Prestou atenção às vozes zangadas dos britânicos retornando de sua incursão pelos campos alagados. Apesar de todos os esforços, tinham conseguido apenas dois recipientes de pára-quedas. Enquanto o Tenente Price ficava de guarda junto ao portão, a carabina tremendo em suas mãos, os outros arrastaram o material para dentro do campo. O suor pingava de seus corpos sobre a seda vermelha. Os pára-quedas restantes tinham desaparecido nos arredores, corajosamente subtraídos sob o nariz de Price pelos moradores secretos dos montículos funerários.

Grandes como bombas, as caixas jaziam no chão da sala do comandante. O garçom nu estava sentado nelas, o suor de suas nádegas embaçando o prateado, enquanto o Seaforth Highlander arrancava seus cones com coronhadas da sua carabina. Os homens rasgaram as caixas de papelão, enchendo os braços pálidos com latas de carne e de café, chocolates e cigarros. O Tenente Price pairava sobre eles, os ossos de suas costas agitando-se como castanholas. Ele estava excitado e exausto ao mesmo tempo, ansioso para pôr em funcionamento outra vez sua irritação e fazer bom uso de toda a violência que tinha encontrado em si mesmo ao espancar o japonês até a morte.

Notou Jim tranqüilamente lendo suas revistas na escrivaninha do Sargento Nagata.

- Tulloch! Ele está aqui outra vez! O rapaz com o Packard...

- Ele estava no campo, tenente. Trabalhava como criado de um dos médicos.

- Está perambulando por toda parte! Meta-o numa das celas!

- Ele não é do tipo falador, tenente. - Tulloch agarrou o braço de Jim, puxou-o com relutância para o pátio das celas. - Ele veio a pé desde o Estádio de Nantao.

- Nantao?... O grande estádio? - Price virou-se para Jim, interessado, olhando-o com toda a astúcia de um fanático. - Quanto tempo levou, rapaz?

- Três dias - retrucou Jim. - Ou acho que foram seis. Até que a guerra acabou.

- Ele não sabe contar.

- Ele deve ter visto bastante, tenente.

- Aposto que sim. Vagabundando o tempo todo. Rapaz, o que foi que viu no estádio? - Price fez uma careta maliciosa a Jim. - Carabinas? Armazéns?

- Principalmente carros - explicou o rapaz. - Pelo menos cinco Buicks, dois Cadillacs e um Lincoln Zephyr.

- Esqueça os carros. Você nasceu numa garagem? Que mais viu?

- Apenas um monte de tapetes e móveis.

- Casacos de peles? - interrompeu Tulloch. - Não havia artilharia lá, tenente. E uísque escocês, filho?

Price arrancou o exemplar de Life das mãos do rapaz.

- Pelo amor de Deus, vai estragar seus olhos. Ouça o Sr. Tulloch. Viu algum uísque escocês?

Jim recuou um passo, pondo a peça prateada entre ele e aquele homem instável. Como que excitadas pelo possível saque existente no Estádio de Nantao, as mãos do tenente estavam sangrando através dos curativos. Jim sabia que o Tenente Price gostaria de pegá-lo só e depois bater-lhe até a morte, não porque fosse cruel, mas apenas porque o sofrimento do rapaz afastaria toda a agonia que ele tinha suportado.

- Provavelmente havia uísque escocês - disse diplomaticamente. - Há lá uma porção de bares.

- Bares?... - Price passou por cima dos pacotes de Chesterfield, pronto a bater em Jim. - Vou lhe dar barras...

- Bares de bebidas: pelo menos uns vinte. Pode haver uísque lá.

- Parece um hotel. Tulloch, que espécie de guerra sua gente fez aqui? Está bem, rapaz, que mais viu?

- Vi a bomba atômica atirada em Nagasaki - respondeu Jim com voz nítida. - Vi o relâmpago branco! A guerra acabou agora?

Os homens suados largaram suas latas e pacotes. O Tenente Price encarou Jim, surpreendido pela declaração, mas preparado para acreditar nela. Acendeu um cigarro enquanto um avião americano sobrevoava o campo, um Mustang voltando a sua base em Okinawa.

Jim gritou, para sobrepor-se ao barulho:

- Eu vi a bomba atômical...

- Sim... você deve tê-la visto.

O Tenente Price apertou as ataduras em torno dos seus pulsos ensangüentados. Tragou violentamente o cigarro. Olhando ansioso para Jim, pegou o exemplar de Life e saiu da sala do comandante. Enquanto o motor do Mustang se afastava pelos campos encharcados, puderam ouvir Price andando de um lado para o outro no pátio das celas, batendo nas portas dos cubículos com a revista enrolada.

 

As Moscas

O Tenente Price acreditava que teria sido envenenado pela bomba atômica? Jim atravessou o campo de exercícios, olhando para as cabanas vazias e os blocos de dormitórios. As janelas estavam abertas ao sol como se os moradores tivessem fugido à sua aproximação. A menção ao ataque a Nagasaki e sua confusão com o saque esperado por Price no estádio de Nantao tinham acalmado o antigo oficial da polícia de Nanquim. Durante uma hora, Jim tinha ajudado os homens a desembalar as caixas de pára-quedas e Price não tinha se oposto quando Tul-loch deu ao seu jovem recruta uma barra de chocolate americano. Imagens de fome e violência fundiram-se na mente de Price, como tinha acontecido durante os anos em que esteve preso pelos kempetai.

Segurando sua lata de Spam e um maço de revistas Life, Jim subiu os degraus do vestíbulo do Bloco D. Parou no quadro de notícias, com seus esmaecidos boletins do campo e ordens de comando. No dormitório, andou entre as filas de beliches. Os baús feitos a mão tinham sido pilhados pelos japoneses após a partida dos prisioneiros, como se ainda houvesse alguma coisa de valor a ser achada naquele lixo de esteiras manchadas de urina e móveis de caixotes de embalagem.

Contudo, apesar do vazio do campo, este parecia pronto para uma ocupação imediata. Fora do Bloco G, Jim olhou a terra crestada, as marcas de rodas de ferro estragadas das carroças de alimentos, gastas pelos anos, traçando o caminho para as cozinhas do campo. Parou na soleira da porta do seu quarto, não muito surpreso de ver os recortes de revistas envelhecidos pendurados na parede sobre seu beliche. Nos últimos instantes, antes de juntar-se à marcha, a Sra. Vincent tinha arrancado a cortina do seu alojamento, satisfazendo o desejo há muito contido de ocupar a peça inteira. Cuidadosamente dobrada, a cortina estava sob o catre de Jim e ele ficou tentado a pendurá-la novamente.

Um cheiro acentuado espalhava-se pela peça, odor que ele nunca tinha notado durante os anos da guerra, ao mesmo tempo atraente e ambíguo. O rapaz concluiu que era o do corpo da Sra. Vincent e por um momento imaginou que ela havia voltado ao campo. Jim estirou-

se no catre da Sra. Vincent e equilibrou a lata de Spam na testa. Examinou a peça daquele ângulo pouco familiar, privilégio que nunca lhe tinha sido permitido durante a guerra. Imprensado por trás da porta, seu cubículo devia ter parecido com esses periclitantes abrigos que os mendigos de Xangai erguiam em volta deles mesmos, feitos de jornais e esteiras. Freqüentemente, ele deve ter parecido à Sra. Vincent um animal num canil. Não era de espantar, refletiu Jim enquanto folheava um exemplar de Life, que a Sra. Vincent tenha ficado tão profundamente irritada com ele, desejando que fosse embora, até mesmo ao ponto de esperar que Jim morresse.

Jim ficou deitado no colchão de palha dela, ajustando seus quadris e costas ao molde raso que ela havia deixado. Olhado do ponto de vista da Sra. Vincent, os últimos três anos pareciam sutilmente diferentes; até alguns passos através de um pequeno quarto provocavam uma guerra separada, um flagelo à parte para aquela mulher com o marido esgotado e o filho doente.

Pensando em sua afeição pela Sra. Vincent, Jim desejou que ainda estivessem juntos. Sentia falta do Dr. Ransome e da Sra. Pearce, bem como do grupo de homens que passava os dias sentado nos degraus externos do vestíbulo. Ocorreu a Jim que eles também sentissem falta de Lunghua. Talvez um dia voltassem todos ao campo.

Saiu do quarto e caminhou pelo corredor até a porta dos fundos, onde as crianças tinham brincado. As marcas dos seus jogos - amarelinha, gude e brigas - ainda cobriam o chão. Jim chutou uma pedrinha para dentro do contorno da amarelinha e destramente pulou pelos quadrados e depois foi dar uma volta pelo campo vazio. Imediatamente começou a sentir Lunghua se reunindo em torno dele outra vez.

Ao se aproximar do hospital, começou a ter esperanças que o Dr. Ransome estivesse lá. Na entrada da Barraca 6, um pierrô empapado de chuva, das Volúveis de Lunghua, estava caído dentro de uma poça de lama. Jim parou para lavar a lata de Spam. Limpou a etiqueta com a gola da fantasia, lembrando as aulas do Dr. Ransome sobre higiene.

As cortinas de bambu estavam baixadas sobre as janelas do hospital, como se o Dr. Ransome quisesse que os pacientes dormissem de tarde. Jim subiu os degraus, percebendo um leve murmúrio dentro do prédio. Quando empurrou as portas, uma nuvem de moscas o envolveu. Enlouquecidas pela luz, encheram a entrada exígua do vestíbulo, como que tentando expulsar o cheiro abominável que impregnava suas asas.

Afastando as moscas de sua boca, Jim dirigiu-se à enfermaria dos homens. O ar mofado escorria pelas paredes de compensado, banhando as moscas que se alimentavam nos corpos empilhados sobre os catres. Identificáveis por seus calções esfarrapados e roupas floridas e pelos tamancos encravados nos pés inchados, dúzias de prisioneiros de

Lunghua jaziam nos beliches como quartos de carne num açougue condenado. Suas costas e ombros reluziam com uma gosma e as bocas chanfradas nos rostos inchados ainda estavam abertas como se aqueles homens e mulheres tumefatos tirados de um tanque tivessem sido vítimas de uma fome voraz.

Caminhou pela enfermaria crepuscular, a lata de Spam fortemente apertada de encontro ao peito, respirando através das revistas que lhe protegiam a boca. Apesar de seus rostos deformados, Jim reconheceu vários prisioneiros. Procurou o Dr. Ransome e a Sra. Vincent, concluindo que os corpos eram dos internados de Lunghua que tinham ficado para trás durante a marcha. As moscas banqueteavam-se nos corpos, de certa maneira sabedoras de que a guerra tinha acabado e determinadas a aproveitar cada pedaço de carne para a próxima fome da paz.

Jim parou nos degraus do hospital, olhando para o campo vazio e para os pastos silenciosos além da cerca. As moscas logo o abandonaram e voltaram à enfermaria. Jim dirigiu-se à horta da cozinha. Caminhou entre as plantas ressequidas, pensando em regá-las e arrancou os dois últimos tomates. Levou os frutos aos lábios, mas parou antes de comê-los. Lembrou-se dos seus temores de que sua alma tivesse morrido no estádio em Nantao, apesar de seu corpo ter sobrevivido. Se sua alma tivesse sido incapaz de se libertar e tivesse morrido com ele, a alimentação do seu corpo o incharia como os cadáveres no hospital?

Pensando em sua última noite no estádio de Nantao, Jim sentou-se na sacada da sala de reuniões. No fim da tarde, um negociante chinês chegou aos portões do campo, acompanhado de três cules. Carregavam jarros de louça com vinho de arroz, pendurados em cangas de bambu colocadas em suas costas. Jim ficou observando o negócio de trocas começar no exterior da casa de guarda. Prudentemente, o Tenente Price tinha fechado a porta da arca na sala do comandante. Pacotes de Lucky Strike e um único forro de pára-quedas foram trocados pelas jarras de vinho. Quando o comerciante partiu, seguido de seus cules com o fardo de seda escarlate, os ingleses não demoraram a ficar bêbados. Jim resolveu não voltar à casa de guarda naquela noite. O corpo alvo do Tenente Price cambaleava no crepúsculo, as queimaduras de cigarros no seu peito avermelhadas pelo vinho.

Da sacada, Jim estendeu o olhar pelo Aeródromo de Lunghua. Com todo cuidado, abriu a lata de Spam. Era uma pena que o Dr. Ransome não estivesse ali para dividir com ele. Quando levou a carne quente à boca, pensou nos cadáveres no hospital. Ele não tinha ficado chocado com os corpos dos prisioneiros mortos. Na verdade, sabia o tempo todo que os que tombassem durante a marcha de Lunghua seriam deixados para morrer, ou mortos, onde caíssem. Contudo, associou as fatias de presunto com os cadáveres inchados. Estavam todos envoltos na mesma gosma. Os vivos que comessem ou bebessem muito depressa, como Tulloch e o tenente da polícia com suas mãos ensangüentadas, breve iriam se juntar aos mortos superalimentados. Os alimentos nutriam os mortos, os ansiosos e pacientes mortos dos seus próprios corpos.

Jim ficou ouvindo os gritos embriagados que saíam da casa de guarda e a saraivada de tiros de carabina, quando Price atirou sobre as cabeças dos chineses nos portões. Com sua palidez de masmorra e mãos enfaixadas, aquele albino assustava Jim; o primeiro dos mortos a surgir do túmulo, ansioso por começar a nova guerra mundial.

Pousou os olhos na tranqüilizadora geometria da pista do aerodrome A quatrocentos metros de distância, o jovem piloto japonês caminhava entre os destroços do avião. Vara de bambu na mão, inspecionava os espinheiros. Sua volumosa roupa de vôo, iluminada pelo ar da tarde, lembrou a Jim outro piloto do anoitecer, que o tinha salvo havia três anos e lhe aberto as portas de Lunghua.

 

Um Quarto Reservado

Logo depois do amanhecer, Jim foi acordado pelos primeiros vôos de reconhecimento dos aviões americanos de combate. Ele tinha passado a noite dormindo no beliche da Sra. Vincent e da janela do Bloco G tinha visto os pares de Mustangs circularem sobre o pagode no Aeródromo de Lunghua. Uma hora mais tarde as quedas aéreas começaram sobre os campos de prisioneiros perto de Xangai. Os esquadrões de B-29 surgiram da luz nebulosa sobre o Yangtze e, com suas portinholas de bombas abertas, começaram a atravessar os campos encharcados desertos; uma esquadrilha para alugar de limusinas vazias.

Agora que a guerra tinha acabado, os bombardeiros americanos pareciam pouco desejosos ou muito cansados para se concentrar em outros objetivos. Para grande aborrecimento de Tulloch e do Tenente Price, deixaram cair suas cargas nos espaços abertos em volta do campo, deram uma volta completa e dirigiram-se sem pressa para casa, cumprida a obrigação.

Quando o Exército e a Esquadra americanos viriam a Xangai? Do telhado do Bloco G, Jim examinou a tranqüila superfície do rio, a quase cinco quilômetros ao norte. Sem dúvida os americanos estavam cuidadosos ao subir o Yangtze, temendo que os comandantes dos submarinos japoneses tivessem resolvido não se render. Mas até que chegassem, era muito perigoso para Jim partir à procura da mãe e do pai. Toda Xangai e seus arredores estavam encerrados numa zona onde não havia guerra nem paz, um vácuo que breve seria ocupado por todos os generais senhores de guerra e desleais da China.

Após esperar que Price e seus homens abandonassem o campo à procura de pára-quedas, Jim foi até a casa de guarda. A ventania dos motores das Superfortalezas de socorro tinha expulsado o fedor da carne apodrecida do hospital, uma mortalha que cobriu o campo durante horas. Mas Tulloch não reparou. Uma vez o Tenente Price fora do caminho, um espectro assombrando outros espectros entre os montículos funerários, Tulloch estava pronto a receber Jim na sala de comando. Jim serviu-se das latas empilhadas contra a parede. Fez uma

refeição rápida de Spam e leite em pó e depois sentou-se na mesa do Sargento Nagata, na sala do oficial de dia, mastigando uma barra de chocolate e escolhendo um número de um dos exemplares das revistas americanas.

Mais tarde, quando Tulloch saiu para insultar a multidão crescente de chineses famintos fora dos portões, Jim subiu a escada da torre de observação. Viu Price e seu grupo examinando os riachos a oeste do campo. Tinham se juntado aos prisioneiros aliados de Hungjao e os homens armados estavam percorrendo os barrancos das valas antitanques, atirando nos campos encharcados.

Ficou logo patente que os antigos internos britânicos não eram os únicos catadores de lixo fuçando os arredores. Os camponeses chineses estavam retornando às aldeias que tinham abandonado nas semanas que antecederam o fim da guerra. Bandos de cules percorriam a área, arrancando os pneus e painéis dos veículos japoneses queimados. Pelotões dos soldados renegados do Kuomintang, que tinham desertado para os exércitos fantoches chineses, perambulavam pelas estradas, conscientes do seu destino se caíssem nas mãos dos seus antigos companheiros do Exército Nacionalista, em vez de levados para Xangai pelos pára-quedistas americanos. Logo que Jim instalou-se no posto de observação, uma companhia dessas tropas desmoralizadas entrou espalhadamente pelos portões de Lunghua. Ainda completamente armados, em uniformes rasgados de onde haviam retirado as insígnias, passaram a pequena distância do solitário mecânico de Packard, protegendo seu tesouro de barrasde chocolate e Saturdays Evenings Posts.

Ao meio-dia, quando o Tenente Price apareceu, envolto como um cadáver no tecido do pára-quedas arrastado por seus homens, Jim juntou seu pacote de revistas e voltou ao Bloco G. Passou uma hora colocando-as na devida ordem e depois saiu para dar uma volta no campo. Evitando o hospital, pulou a cerca e explorou o terreno mal-cuidado entre o campo e o Aeródromo de Lunghua, esperando encontrar a tartaruga que ele tinha soltado na última semana da guerra.

Mas o canal ao lado da cerca continha apenas o cadáver de um aviador japonês. Setores do Aeródromo de Lunghua - o pagode, barracas e torre de controle - estavam agora ocupados por uma brigada avançada de tropas nacionalistas. Por motivos pessoais, os aviadores e tripulações de terra japoneses não fizeram qualquer tentativa de fugir e ficaram nos hangares e oficinas gotejantes. Diariamente, os soldados nacionalistas pegavam uns poucos japoneses e os matavam no terreno baldio ao sul e a oeste do aeródromo.

A visão daqueles aviadores japoneses mortos, flutuando de rosto para baixo no canal, entre os Mustangs lança-tanques, inquietou tanto Jim quanto os corpos dos ingleses no hospital do campo. Daí em diante, resolveu permanecer na segurança do recinto do campo. De noite, dormia no beliche da Sra. Vincent e passava os dias experimentando a comida em lata e o chocolate americanos e classificando sua coleção de revistas. Naquela altura, tinha reunido uma biblioteca substancial que empilhou cuidadosamente nos beliches vazios do quarto. Os exemplares de Time, Life e de Seleções cobriam cada aspecto concebível da guerra, um mundo ao mesmo tempo familiar e contudo totalmente distante de suas próprias experiências em Xangai e Lunghua. Havia instantes, quando lia os relatos dramáticos de batalhas de tanques e cabeças-de-praia, que ficava imaginando se ele mesmo, afinal de contas, tinha estado na guerra.

Porém continuou a apanhar as revistas no chão do escritório do comandante, ocultando nelas algumas latas extras de Spam e leite em pó, parte de uma reserva que ele tinha começado a reunir sensivelmente a longo prazo. Tinha ficado claro para Jim que as remessas aéreas americanas tinham se tornado menos freqüentes e cedo ou tarde para-riam. Agora que suas forças tinham voltado, Jim sentia-se capaz de procurar ativamente em torno do campo e nada lhe foi mais agradável que encontrar, sob um beliche do Bloco D, uma raquete de tênis e uma lata de bolas.

Na terceira manhã, enquanto Price e seus homens estavam de binóculos no telhado da casa de guarda, esperando impacientemente pelos aviões de socorro americanos, um velho caminhão Opel chegou aos portões do campo. Dois ingleses nus da cintura para cima, prisioneiros do Campo de Lunghua num determinado período, estavam sentados na cabina de direção, enquanto suas mulheres e filhos chineses ficavam na traseira com seus pertences. Jim tinha visto os homens pela última vez, capatazes da Companhia de Navegação Moller, no pátio das docas, no Estádio de Nantao, levantando os capôs dos Cadillacs brancos, na manhã em que a guerra acabou. Tinham dado um jeito de ir a Xangai recolher suas famílias, que não haviam sido internadas pelos japoneses. Sentindo-se desamparados na cidade hostil, tinham resolvido voltar a Lunghua.

Já haviam obtido sua primeira pilhagem. Um recipiente prateado de pára-quedas jazia como uma bomba no chão do caminhão, tornando as crianças chinesas de olhos escuros, minúsculas em suas túnicas. Jim ficou olhando da janela de Basie, no Bloco E, sorrindo satisfeito, enquanto Tulloch e o Tenente Price desciam do telhado da casa de guarda. Encaminharam-se para o portão mas não fizeram menção de destrancá-lo. Uma discussão desconexa teve lugar entre Price e os antigos prisioneiros de Lunghua, que apontavam furiosos para o Bloco E, agora vazio, a não ser pelo rapaz de 14 anos rindo para si mesmo na janela do último andar.

Jim deu socos no parapeito de cimento e acenou para os homens e suas mulheres de olhar fixo. Após três anos tentando sair do campo, eles estavam agora de volta aos seus portões, prontos para tomarem seus postos para a Terceira Guerra Mundial. Finalmente, tinham começado a perceber a simples verdade que Jim estava farto de saber: que dentro de Lunghua estavam livres.

Os portões se abriram; tinha começado uma troca. O Tenente Price tinha se encantado com o Opel. Num minuto, os dois ingleses e suas famílias tinham disparado pelo campo de exercícios, na direção do Bloco D, acompanhados pelos primeiros Mustangs da manhã. Quando sobrevoaram o campo, a rotação das suas hélices provocou um vento forte que invadiu os edifícios vazios, um fedor de carne deteriorada, uma pestilência de milhares de moscas de esgoto.

Os mendigos chineses sentados nos portões protegeram os rostos. Mas Jim inalou o violento fedor, expulsando dos seus pensamentos o hospital e o aviador japonês no canal além da cerca. Tinha chegado a hora de esquecer os mortos. De sua maneira peculiar, o campo estava se tornando novamente vivo. Os dias do leite em pó e barras de chocolate o tinham tornado mais forte, mas ainda não em condições para o longo caminho de volta a Xangai. Outras pessoas iriam retornar ao campo e talvez sua mãe e seu pai viessem juntar-se a ele. Mesmo com os reduzidos suprimentos atirados pelos americanos, haveria um suprimento constante de alimentos. Jim olhou para as cozinhas silenciosas atrás da casa de guarda e a enferrujada quantidade de carroças de metal. Imediatamente começou a pensar numa batata-doce...

Seus sapatos ressoaram nos corredores vazios e nos degraus de pedra. Quando correu do vestíbulo, ouviu o motor ligado do Opel. Tulloch e o Seaforth Highlander estavam enchendo a traseira do caminhão de panos de pára-quedas e caixas de alimentos enlatados.

- Jim! Pare! - Tulloch acenou-lhe. - Está indo para onde?

- Bloco G, Sr. Tulloch... - Respirando com força, Jim encostou-se no pára-lama sacolejante do Opel. Na soleira dá casa de guarda, o Tenente Price estava municiando sua carabina, o ritual de um homem contando seu ouro escondido. - Quero reservar um quarto para meus pais: eles poderão estar vindo para Lunghua. Reservarei um quarto para o senhor, Sr. Tulloch.

- Jim... Jim... - Tulloch pôs a mão na cabeça dele, procurando acalmar o rapaz superexcitado. - Está na hora de você encontrar seu pai, rapaz. A guerra acabou, Jim.

- Mas na próxima guerra, Sr. Tulloch. O senhor disse que iria começar breve.

O mecânico de Packard ajudou Jim a subir para o chão do caminhão.

- Jim, você precisa se livrar da última guerra antes de começar a próxima. Vamos lhe dar uma carona: você está voltando para Xangai!

 

A Estrada para Xangai

O caminhão adernou de um lado para outro da estrada de Xangai, atirando Jim sobre o sacolejante pacote de seda de pára-quedas. Agarrou-se às caixas de papelão das rações K, empilhadas à sua volta, e prestou atenção a Tulloch e ao Tenente Price, acima do rugir do motor.

Pela camuflagem rala da janela traseira, Jim pôde ver as mãos enfaixadas do policial, deliberadamente levantadas do volante para permitir que o veloz caminhão balançasse e deslizasse do meio da estrada., Os pneus atingiram a beira, levantando uma tempestade de pó e folhas. Tulloch estava sentado no assento de passageiros, ao lado da jarra de vinho de arroz, segurando a carabina para fora da janela aberta. Ele bateu no capo denteado quando o edifício de apartamentos da Concessão Francesa apareceu entre as árvores destroçadas pelas bombas.

Apesar do perigo do Tenente Price na direção, Jim estava contente com que os dois homens estivessem tão animados. Durante o primeiro quilômetro, o tenente tinha sido incapaz de passar a segunda e eles tinham andado pela estrada de Xangai num barulhento movimento lento, que ameaçava ferver a água do radiador. Então, um avião de socorro em Hungjao devolveu a Price toda a sua habilidade de dirigir. Ele arremessou o veículo pelas trilhas de fazendas e barrancos dos canais, seguindo os pára-quedas na direção do local de pouso, animado pela perspectiva de mais produtos americanos a serem vendidos no mercado negro de Xangai.

Outros, porém, tinham chegado antes dele ao tesouro. Durante meia hora tinham percorrido os campos alagados vazios, incapazes de encontrarem uma única caixa de pára-quedas. Price agitava a carabina, ameaçando um mundo inteiro de canais silenciosos.

Felizmente, a raiva de Price logo acabou. Após ter voltado à estrada de Xangai, o tenente dirigiu o caminhão para o cadáver de um carteiro japonês caído junto de uma motocicleta. A cabeça do morto tinha explodido num líquido de montes de vermes e o tecido cerebral encharcava as árvores da estrada. Essa destreza de direção fez Price sentir-se muito bem, o que Jim esperou fosse duradoura, para permitir-lhe chegar a Xangai e saltar do caminhão no primeiro sinal de trânsito.

Jim olhou para trás, para os distantes telhados do campo. Era estranho estar partindo de Lunghua e percebeu que, uma vez mais, era prisioneiro do campo, como tinha sido durante a guerra. A uma simples palavra de Tulloch, o mundo aparentemente seguro que tinha começado a reconstruir para si mesmo, fora de um pequeno quarto e algumas latas de Spam, tinha caído a seus pés.

Passaram pelo Pagode de Lunghua na extremidade norte do aeródromo, os canos de suas metralhadoras antiaéreas ainda apontando para o céu. Jim examinou os hangares arruinados, à procura de algum indício do jovem piloto kamikaze, lamentando nunca ter podido retribuir-lhe a manga. A um quilômetro e meio a leste, ficava o Estádio Olímpico de Nantao. Os ideogramas chineses na fachada crivada de balas, celebrando a generosidade do Generalissimo Chiang, erguiam-se ainda mais claramente acima do estacionamento, como se a China feudal do passado tivesse voltado para reclamar sua época.

O caminhão dobrou, deslizando na curva. Por um capricho, o Tenente Price tinha virado numa trilha enlameada que se dirigia ao estádio. Jim ouviu Tulloch protestar, mas nesse instante o jarro de vinho foi estendido por cima do volante. Passaram entre o primeiro dos fóruns de areia e as covas de carabineiros que protegiam o antigo quartel japonês. Fileiras de valas de tanques desmoronando cruzavam os campos, os declives cobertos de cinzas e caixas de munição.

Jim ficou deitado de costas no fardo de seda de pára-quedas. Ele soube o tempo todo que a visão do Estádio Olímpico iria provar ser uma grande tentação. Desde sua chegada ao Campo de Lunghua, o grupo de ingleses não o tinha deixado de inquirir sobre os móveis saqueados nas tribunas. Jim tinha sido forçado a enfeitar suas recordações, de forma a garantir seus suprimentos de alimentos enlatados e revistas da sala do comandante. Nesta altura, seu faz-de-conta tinha dominado a imaginação de Price e agora era tarde para recuar.

A cem metros do estacionamento, abandonaram a estrada e pararam num aqueduto entre dois barrancos de armadilhas de tanques. Price e Tulloch, ambos embriagados pelo vinho de arroz, saíram da cabina de direção. Acenderam cigarros, olhando furtivamente para o estádio.

Price bateu no lado do caminhão com a carabina. Com voz de zombaria, gritou:

- Xangai, Jim...

- Só um desvio, Jim - garantiu Tulloch, com voz de bêbado. - Vamos pegar uma caixa de uísque e alguns casacos de peles para as garotas da Estrada de Nanquim.

- Não estou vendo nenhum casaco de peles, Sr. Tulloch, nem uísque. Só muitas cadeiras e mesas de jantar.

O Tenente Price empurrou Tulloch para o lado.

- Mesas de jantar? Acha que viemos aqui para almoçar? Olhou para a fachada do estádio como se aquela miserável brancura de cal desafiasse sua própria pele lívida.

Jim evitou a carabina apontada para sua cabeça.

- Há cristaleiras e guarda-roupas.

- Guarda-roupas? - Tulloch interveio. - Pode ser isso, tenente.

- Pode ser... Price se acalmou. Tocou a queimadura de cigarro no peito, tamborilando um código secreto de dor e recordação. - Eu lhe disse que o rapaz é muito vivo.

Os dois homens atravessaram a estrada e entraram no estacionamento. Price inclinou-se sobre um tanque sem marcas e expeliu dos pulmões o escarro da prisão pela escotilha aberta. Jim esgueirou-se entre as filas de caminhões, pensando no Sr. Maxted. Ainda estaria estendido no capim ensangüentado? Tendo comido tanto, Jim sentiu-se culpado e lembrou que podia ter vendido os sapatos. Por causa dos bares saqueados que continha, o Estádio Olímpico parecia sombrio e ameaçador, um lugar de maus presságios. Ele tinha visto ali o resplendor do relâmpago atômico de Nagasaki. Seu clarão lívido ainda pairava sobre a estrada da sua marcha da morte de Lunghua, a mesma luz pálida que se podia ver na fachada cor de cal do estádio e na pele do Tenente Price.

Afastando as moscas com um exemplar da Life, Jim sentou-se no parapeito de um caminhão. Examinou uma fotografia de fuzileiros navais americanos, içando uma bandeira no topo do Monte Suribachi, após a batalha de Iwo Jima. Naquela revista, os americanos tinham travado uma guerra heróica, muito próxima das revistas de desenhos animados que Jim tinha lido quando criança. Mesmo os mortos eram deslumbrantes, a idéia que os brancos tinham dos mortos...

Dois Mustangs de combate sobrevoaram, guiando uma Superfortaleza que vinha do oeste com dificuldade, as portinholas das bombas abertas, prestes a deitar suas Spams e Seleções sobre os campos vazios. Os motores reboaram no solo sob os pés de Jim, fazendo estremecer as filas de veículos inutilizados.

Jim abaixou a revista e reparou que os homens armados estavam correndo do túnel de entrada do estádio, as vozes abafadas pelo barulho do avião. A Superfortaleza voava lentamente, mas os homens espalharam-se em pânico em volta do túnel, como se esperassem que o estádio fosse bombardeado. Um europeu barbado, com a jaqueta de couro de piloto americano, correu pelo estacionamento, seguido de dois outros carregando armas. Um chinês sem camisa, com um cinto de pistola segurando as calças pretas, correu agachado, chefiando um grupo de cules com pedaços de bambus.

Perseguindo-os pelo túnel, apareceu um destacamento de soldados nacionalistas, carabinas apontadas na forte luz do sol. Pararam para atirar nos fugitivos, mandando uma furiosa rajada de balas. Jim abriu a porta do caminhão e entrou na cabina do motorista. A quinze metros da frente do túnel, Tulloch jazia na poeira branca que tinha caído da fachada do estádio. O Tenente Price passou por ele, andando para a fila de caminhões, o rosto como uma lanterna, esquadrinhando o chão. Jogando fora os curativos, pulou o muro de separação do estacionamento e mergulhou no campo inundado do outro lado da estrada.

O oficial chinês deu um derradeiro tiro de pistola no vulto esguichante de Price e depois ajoelhou-se na entrada do estádio. Carabinas preparadas, seus homens se aproximaram dos veículos enferrujados. Fizeram uma demonstração simbólica de limpeza de qualquer membro ferido do grupo expedicionário, voltaram-se e retiraram-se para a segurança do estádio. Tulloch permanecia morto ao sol, o sangue correndo sobre a poeira branca.

Pára-quedas azuis e vermelhos estavam caindo sobre Hungjao. Jim escorregou pelo assento, abriu a porta do lado oposto da cabina e pulou para o chão. Encoberto pelos vagões de munição e armas pesadas, correu para o muro.

O Tenente Price tinha abandonado o Opel e seu carregamento de sedas e rações K. Quando Jim atingiu o bueiro, descobriu o caminhão sozinho entre as valas antitanques. No chão, ao lado da porta de passageiros, uma leve fumaça ainda se erguia dá bagana do último Lucky Strike de Tulloch.

Jim examinou o painel de instrumentos pela janela. Poderia dirigir o veículo até Xangai? Era muito perigoso entregar-se aos soldados nacionalistas no estádio: eles o fuzilariam tão logo o vissem com a certeza de que o rapaz era membro da expedição.

Pensando em Tulloch, que tinha morrido antes de ver os Cadillacs .brancos de Nantao, Jim resolveu andar para Xangai. Estava subindo na traseira do Opel, para selecionar várias latas de alimentos e exemplares de Seleções, quando ouviu passos ao lado do caminhão. Antes de poder virar-se, alguém o pegou pelos ombros. Punhos duros socaram sua cabeça por trás e o atiraram no chão.

Entre os pacotes de cigarro, Jim sentiu o sangue escorrer do seu nariz e boca, pingando entre suas mãos no tecido dos pára-quedas. Ergueu os olhos para o chinês de busto nu, com o cinto e a pistola, que tinha corrido do estádio. Olhou para Jim com ar inexpressivo que o rapaz vira com freqüência no rosto do cozinheiro da Avenida Amherst antes de matar uma galinha. Atrás dele, impaciente para se apoderar da carga do caminhão, estava um cule chinês com um porrete de bambu.

Em ambos os lados do bueiro, homens armados estavam descendo o barranco, chefiados pelo europeu barbado de jaqueta de couro de aviador. Metade dos membros do seu grupo de bandidos eram chineses, alguns deles cules com porretes, outros em uniformes nacionalistas e fantoches, sempre com os rifles e talabartes. Os outros eram europeus ou americanos, usando uma mistura de roupas e cintos de munição, coldres e bolsas da polícia de Xangai, pendentes de suas túnicas. Pelos seus corpos esgotados, Jim deduziu que a maioria era de antigos prisioneiros.

Quando o cule ergueu o porrete de bambu, Jim aspirou o sangue que escorria e engoliu o catarro quente.

- Vou para o campo de Lunghua. Sou prisioneiro inglês. - Apontou para sudoeste. Em virtude do nariz inchado, sua voz soava estranhamente grave, como se seu corpo tivesse envelhecido nos poucos instantes que lhe foram deixados. - Campo de Lunghua...

Ignorando-o, os homens armados sentaram no barranco e fumaram seus cigarros. O europeu de jaqueta de aviador caminhava em volta do caminhão. Um cule pegou a bagana de Tulloch e deu uma tragada. Todos olhavam o céu e a estrada deserta além do estádio. Tinham trazido com eles o tempo lento e vazio do campo de prisioneiros. Seus rostos eram franzidos e pálidos e pareciam ter emergido de uma cova profunda na terra.

- Lunghua.., - repetiu Jim. O cule com o porrete continuou de olhos pregados nele. Jim sabia que, ao menor sinal, o chinês daria um passo à frente e esmagaria seu crânio. O de peito nu, que tinha batido nele, estava examinando o caminhão, inspecionando os pneus traseiros. Esperando que alguma coisa chamasse a atenção dos europeus, Jim apontou para o estádio: - Lincoln Zephyrs... em Nantao. Buicks, Cadillacs brancos...

- Que conversa é essa de Cadillacs?

Um homenzinho de cabelos prateados e sotaque efeminado americano dirigiu-se ao caminhão, carabina pendurada no ombro. Ninguém prestou-lhe atenção e ele acendeu um cigarro para disfarçar a falta de resposta. A chama tremulou em seu rosto empoado, expondo um familiar par de olhos desconfiados, com seu agudo mas modesto foco.

- Basie! - Jim limpou o sangue do nariz. - Sou eu, Basie: Jim! Xangai Jim!

O camaroteiro virou-se para o rapaz. Após um instante de reflexão, sacudiu a cabeça de forma quase informal, como se reconhecer o rapaz de 14 anos não mais lhe interessasse. Examinou os pacotes de ração K e apalpou a seda do pára-quedas. Afastou-se para dar mais espaço ao cule para manejar seu porrete.

- Basie! - Jim juntou as revistas espalhadas e limpou o sangue das capas com os dedos. Ergueu-as diante do olhar furioso do chinês de busto nu com a pistola. - A revista Life, Basie, a Seleções. Guardei os últimos números para você... Basie, aprendi centenas de palavras novas: Belsen, von Rundstedt, GI Joe...

 

Os Bandidos

O carro partiu pela margem de uma lagoa cheia de óleo, passou pelo casco enferrujado de um barco torpedeiro. Espremendo-se entre Basie e o francês barbado no assento traseiro, Jim ficou vendo o borrifo saltar das rodas do Buick. Os pálidos arco-íris abriam-se como caudas de pavões, transformando os distantes edifícios de escritórios de Xangai em torres de uma cidade de estojos de tintas. A mesma luz berrante cobria o barco torpedeiro e vestia os corpos dos japoneses mortos na beira.

Jim tentou olhar para trás, para o perfil de Xangai que se afastava, porém as arranhaduras do seu pescoço tornavam-lhe difícil virar a cabeça.

- Ei, rapaz... - O francês bateu no braço de Jim com a carabina apoiada em seus joelhos. - Fique quieto. Está querendo mais sangue em seu nariz?...

- Jim, não há espaço para agitação aqui. Vamos apenas ficar sossegados e aprender novas palavras. - Basie abraçou-o. - Fique de olho pregado nessa Seleções para não dormir.

- Está bem, Basie. Ficarei acordado.

Jim sabia que ficar acordado era o que mais importava. Apoiou os pés nas caixas de munição no chão do carro e depois franziu os lábios até que seus olhos brilharam. Ao lado do francês, contra a porta de passageiros da direita, estava o cule com o porrete de bambu, que esteve a ponto de matar Jim, antes que Basie interviesse. No assento dianteiro, ao lado do motorista chinês, estavam dois australianos do Campo Siccawei.

Os sete estavam amontoados no Buick salpicado de lama. Suas janelas ainda estavam enfeitadas com a insígnia e os rótulos de papel de arroz do general chinês fantoche, cujo carro de comando tinha sido conservado durante toda a guerra. Vômito seco, sangue do nariz de Jim e de ferimentos de homens atingidos, manchavam os assentos. Além de porretes e armas, os carros estavam abarrotados de caixas de munição, pacotes de cigarros americanos, jarras de cerâmica com vinho de arroz e garrafas de cerveja, nas quais os homens mijavam continuamente enquanto percorriam as estradas secundária para o sudoeste de Xangai.

Fizeram uma parada e a água oleosa da lagâttfervou as rodas do Buick. À sua frente, ia o caminhão japonês levando uma dúzia de membros daquele grupo de bandidos. O veículo sobrecarregado derrapou numa rampa estreita de tijolos cinzentos, que ia da praia à estrada do barranco. Estava cheio de caixas de pára-quedas, suprimentos japoneses tomados naquela manhã dos armazéns militares de Nantao e uma coleção de colchões enrolados, bicicletas e máquinas de costura pilhadas nas aldeias do interior, ao sul de Lunghua.

O Buick subiu a rampa de tijolos esfarinhados e acompanhou o caminhão entre as nuvens de poeira que revoluteavam, provocadas pelas rodas. A estrada se embrenhava a partir da lagoa, logo se perdendo num emaranhado de campos e canais. Jim ficou imaginando se aquele grupo de bandidos tinha alguma idéia para onde estavam indo, um venenoso vaivém que andava de um lado para outro na terra macia. Contudo, a oitocentos metros de distância, ao longo de uma estrada paralela, um outro caminhão rodava pelos terrenos abandonados. O velho Opel, capturado no Estádio Olímpico, levava os restantes de cinco membros da quadrilha. Tinham deixado a base aeronaval de Nantao logo depois do amanhecer, mas arranjaram um jeito de se reunirem a poucos minutos do seu próximo objetivo.

Assim que as estradas convergiram, Jim pôde ver o vulto do pistoleiro chinês de peito nu, calça preta e cinto com revólver. Ele estava em pé por trás da cabina de direção, dando ordens aos berros ao cule no volante. Jim temia aquele antigo oficial do exército fantoche chinês, cujos nós dos dedos ainda podia sentir nos ossos machucados da sua nuca. Só a presença de Basie o tinha salvo, mas a suspensão temporária do castigo podia ter curta duração. O Capitão Sung dava pouca atenção a Basie ou a todos os outros membros europeus da quadrilha de bandidos e considerava Jim um cachorro a ser morto, se necessário. Uma hora após sua captura pelos bandidos, Jim estava se arrastando entre os montículos funerários que estavam a cavaleiro de uma aldeia perto de Hungjao, mandado à frente como um bigle para farejar a terra e descobrir alguma coisa. Ainda meio tonto, o sangue do nariz gotejando na Seleções que levava na mão, deteve-se entre os caixões apodrecidos até que o tiroteio amainasse e os bandidos voltassem da aldeia com seu saque de bicicletas, sacos de dormir e fardos de arroz. Percebendo que o Capitão Sung era o verdadeiro chefe daquele grupo de bandidos, tratou de se tornar útil ao chinês. Porém o Capitão Sung não queria que Jim fizesse coisas para ele. A guerra tinha modificado o povo chinês: os aldeões, cules errantes e soldados fantoches perdidos, olhavam para os europeus de uma forma que o rapaz jamais tinha visto antes da guerra, como se não mais existissem, apesar de os ingleses terem ajudado os americanos a derrotar os japoneses.

Os caminhões-pararam numa encruzilhada. O Capitão Sung pulou do Opel e caminhou para o Buíck. Sem refletir, Basie segurou o braço de Jim. O camaroteiro tinha sido preparado para vê-lo morrer e só as abundantes descrições do rapaz, a respeito da recompensa que os esperava no Estádio de Nantao, sustentaram o interesse de Basie nele.

Uma tempestade de pó rodeou os três veículos quando deram a volta e partiram por um canal fora de uso. A cerca de oitocentos metros, pararam numa ponte de pedra acima de uma aldeia deserta. O Capitão Sung e dois dos seus homens desceram do caminhão, aos quais se juntaram o francês e o cule com o porrete que estavam no Buick. Os australianos, sentados no banco da frente do carro, bebiam de um jarro de vinho e ignoraram os esfarrapados habitantes. Normalmente, o Capitão Sung teria chamado Jim e mandado o rapaz esquadrinhar os prédios, mas a aldeia estava evidentemente abandonada, saqueada muitas vezes pelas quadrilhas de bandidos da região.

- Estamos voltando para Xangai, Basie? - perguntou Jim.

- Breve, Jim. Primeiro temos que arranjar equipamento especial.

- Equipamento que você armazenou nas aldeias? Equipamento para o esforço de guerra?

- Isso mesmo, Jim. Equipamento que a OSS deixou aqui para nós enquanto eu estava trabalhando escondido para o Kuomintang. Você não vai querer que os comunistas o peguem, não é?

Ambos tinham feito essa viagem sob esse pretexto. Jim olhou para a aldeia deserta, sua única rua enlameada dividida por um rego de esgoto.

- Deve haver uma porção de comunistas por aqui. A guerra acabou, Basie?

- Acabou, Jim. Digamos que acabou efetivamente,

- Basie... - Um pensamento familiar ocorreu ao rapaz. - A próxima guerra começou realmente?

- É uma maneira de dizer, Jim. Estou contente por tê-lo ajudado a aprender as palavras.

- Ainda há uma porção de palavras que não aprendi, Basie. Gostaria de voltar para Xangai. Se tiver sorte, poderei ver minha mãe e meu pai hoje.

- Xangai? É uma cidade perigosa, Jim. Precisa-se mais que sorte em Xangai. Vamos esperar até vermos a Esquadra americana atracar ao longo do Bund.

- Tio Sam chegará logo, Basie? todos os Gobs e GIs Joe?

- Chegarão logo. Cada GI Joe da área do Pacífico...

Basie parecia entusiasmado com a idéia de se reunir aos seus patrícios. Jim o tinha inquirido sobre sua fuga de Lunghua, porém Basie foi astutamente evasivo. Como sempre, o que quer que tenha acontecido após a fuga, há muito deixou de o interessar. Continuou o mesmo sujeitinho enjoado, preocupado com suas mãos, ignorando tudo o que não fosse uma vantagem imediata. Sua força era nunca se permitir sonhar, porque nunca tinha sido capaz de ter certeza de nada, enquanto que o Dr. Ransome tinha sempre a certeza de tudo. Todavia, o Dr. Ransome, provavelmente, tinha falecido na marcha da morte de Lunghua, enquanto Basie sobreviveu. Mas agora, pela primeira vez, a perspectiva da existência do tesouro no Estádio Olímpico tinha disparado a mola de segurança da cautela de Basie. Jim assiduamente alimentava a visão do camaroteiro de bastante riqueza, para fazê-lo voltar luxuosamente aos Estados Unidos. Concluiu que Basie tinha ouvido no rádio do campo sobre a marcha iminente para os locais de matança e tinha subornado um guarda-noturno para o esconder num dos armazéns de Nantao.

Sentado ao lado de Basie, enquanto este lustrava as unhas, Jim percebeu que toda a experiência da guerra mal havia tocado o americano. Toda a mortandade e fome eram parte de um confuso drama desenrolado à margem da estrada, visto pela janela de passageiros do Buick, um espetáculo cruel como os estrangulamentos públicos em Xangai, que os marinheiros ingleses e americanos assistiam quando estavam em terra. Nada havia aprendido com a guerra porque nada tinha esperado dela, como os camponeses chineses a quem, agora, despojava e matava. Como dissera o Dr. Ransome, gente sem esperança é perigosa. De uma certa maneira, quinhentos milhões de chineses tinham de ser ensinados a esperar tudo.

Jim cuidou do seu nariz ferido enquanto os homens armados agacharam-se na ponte com seus jarros de vinho de arroz. Apesar dos anos de desnutrição nos campos, poucos dos antigos prisioneiros se davam ao trabalho de comer os alimentos enlatados, empilhados na traseira dos caminhões. Bebiam sozinhos no sol forte, raramente falando uns com os outros. Jim mal sabia o nome de alguns. Ao anoitecer, quando voltavam à base aeronaval de Nantao, a maior parte se dispersava com sua parte da pilhagem do dia, indo para os seus esconderijos nos prédios da Cidade Velha, tornando a se reunir na manhã seguinte como operários de fábrica. Jim dormiu no Buick estacionado na rampa de cimento, cercado pelas carcaças dos hidroaviões queimados, enquanto Basie e o francês barbado passavam a noite bebendo no salão dos pilotos.

O francês voltou de uma ida à aldeia e encostou-se na janela de Basie.

- Nada... nem mesmo um pedacinho de merda.

- Podiam ter-nos deixado pelo menos isso - retrucou Basie, enojado. - Por que os chineses não voltam a suas aldeias?

- Eles sabem que a guerra acabou? - perguntou Jim. - Você precisa dizer-lhes, Basie.

- Talvez... Não podemos esperar para sempre, Jim. Há grandes forças marchando sobre Xangai, cerca de seis diferentes exércitos do Kuomintang.

- Então ficará difícil pegar seu equipamento?

- De fato. Iremos agora a essa aldeia comunista. Depois levarei você para o seu pai. Poderá dizer-lhe como cuidei de você durante a guerra, como ensinei-lhe todas essas palavras.

- Você cuidou de mim, Basie.

- Isso. - Basie olhou pensativamente para Jim. - Você fica conosco. Seria muito ruim se fosse seqüestrado aqui.

- Aqui há muitos seqüestradores, Basie?

- Seqüestradores e comunistas. Gente que não quer saber que a guerra acabou. Lembre-se disso, Jim.

- Tá bem... - Procurando distrair o camaroteiro com mais algumas coisas alegres, Jim perguntou: - Basie, você viu a bomba atômica ser lançada? Eu vi o relâmpago sobre Nagasaki, do Estádio de Nantao.

- Olhe, rapaz... - Basie encarou Jim, confundido pela voz calma daquele rapaz de nariz sangrando. Pegou um pano de limpar armas no parapeito da janela de trás e limpou o nariz de Jim. - Você viu a bomba atômica...

- Durante um minute inteiro, Basie. Uma luz branca cobriu Xangai, mais forte que o sol. Supus que Deus queria ver tudo.

- Acho que ele conseguiu. Aquela luz branca, Jim. Talvez eu possa botar seu retrato na revista Life.

- Puxa, você pode, Basie?

A idéia de aparecer na Life inebriou Jim. Limpou o sangue da boca e procurou alisar sua camisa esfarrapada, no caso de um fotógrafo aparecer subitamente em cena. A um sinal do Capitão Sung, os bandidos voltaram para suas conduções. Quando deixaram a aldeia e se dirigiram ao rio, Jim imaginou sua fotografia entre as de tanques Tigre e fuzileiros americanos. Tinha agora passado quatro dias com o grupo de bandidos de Basie e lhe ocorreu que seus pais poderiam pensar que ele tivesse morrido na marcha da morte de Lunghua. Talvez eles estivessem sentados na beira da piscina na Avenida Amherst, folheando o último número da Life, quando reconheceriam o rosto de seu filho entre almirantes e generais...

Estavam passando o limite oriental do Aeródromo de Lunghua. Jim inclinou-se por cima de Basie e pendurou-se na janela. Esquadrinhou os regatos e campos preparados, à procura de corpos de tripulações aéreas japonesas. As unidades do Kuomintang que tinham se apoderado do aeródromo ainda estavam matando os japoneses aos montes.

- Jim, você gosta desses aviões?

- Vou ser piloto um dia, Basie. Vou levar meus pais para Java. Pensei muito sobre isso.

- É um bom sonho... - Basie empurrou Jim e apontou para o avião destruído entre as árvores. - Olhe lá um piloto japonês: ninguém ainda o descobriu.

Basie fez mira com a carabina. Jim esticou o pescoço para a janela, examinando a fileira de árvores. Ao lado da cauda de um Zero de combate, viu o rosto pálido do piloto, perdido entre as asas erguidas e as fuselagens.

- Ele é um hashi-crash - disse Jim apressadamente. - Um cara meio maluco. Basie, você quer que eu lhe informe sobre o estádio? Talvez haja casacos de peles. Acho que o Sr. Tulloch os viu, antes de ser morto, em centenas de engradados de uísque escocês...

Felizmente, Basie estava levantando a janela. Uma dolorosa areia fina encheu o carro, vinda da superfície esbranquiçada da estrada, juntando-se à névoa que subia dos campos alvacentos, das valas de tanques e montículos funerários, a mesma luz que Jim vira do Estádio Olímpico, anunciando o fim de uma guerra e o começo de outra.

Pouco antes do anoitecer, chegaram à aldeia comunista no rio, a três quilômetros ao sul de Lunghua. As casas maltratadas de um só andar, encostadas às paredes de uma fábrica de louça, como os habitantes medievais que Jim tinha visto nas enciclopédias em sua infância, amontoando-se em torno de uma catedral gótica. Os fornos abobadados e as chaminés de tijolos levaram até eles a última luz do dia, como que anunciando o calor e o benefício que a ordem comunista havia trazido àquele aglomerado de choupanas.

- Muito bem, Jim, esqueça o poder da palavra. Você está entendendo.

Antes que Jim pudesse colocar sua Seleções no peitoril da janela traseira, o Capitão Sung abriu a porta. O oficial de peito nu arrancou Jim do Buick. Segurando o rapaz de nariz ensangüentado como um camponês faz com um porco fuçador de trufas, impeliu Jim através da estrada com uma série de upas e grunhidos, cutucando-o violentamente com sua pistola automática. Os dois caminhões e o Buick tinham parado ao lado do barranco da ferrovia Xangai-Hungchau. A trezentos metros adiante, uma ponta da linha estendia-se num amplo arco para a olaria, ocultando-os da aldeia. Os homens armados instalaram-se no terreno drenado que prolongava o barranco. Uns abriram suas bolsas de munição e limparam a culatra de suas carabinas. Outros fumaram cigarros e beberam vinho dos jarros de barro que tinham colocado na carroçaria do Buick. Ensimesmados, ficaram em silêncio na luz moribunda.

Quando os berros e assovios do Capitão Sung desapareceram às suas costas, Jim correu pela superfície dura do terreno. Contraiu o nariz, esperando parar o sangramento e depois deixou o sangue lambuzar seu rosto no vento. Com sorte, cada sentinela comunista no barranco pensaria que ele já estava ferido e dirigiria seu fogo para os atiradores atrás dele.

Atingiu o pé do barranco e agachou-se entre as touceiras de arroz silvestre. Limpou o sangue nos seus talos e lambeu os dedos. Já havia atingido o seu propósito. Cinqüenta metros adiante, o Capitão Sung tinha atravessado o terreno e estava subindo o solo macio do barranco. Armados de cacetes, os cules o acompanharam, seguidos de Basie e do francês. Dois grupos de atiradores estavam caminhando pelo campo alagado seguinte. Os australianos e um desertor do Kuomintang ficaram sentados no estribo do Buick, bebendo vinho.

Jim subiu a rampa esbranquiçada. A chuva tinha levado partes do barranco e ele se arrastou sob os trilhos enferrujados e seus dormentes apodrecidos. Vários trechos da ferrovia tinham sido recentemente recolocados, presumivelmente pelos soldados comunistas que tinham instalado sua base na aldeia. O molhe da olaria, a linha férrea e a reserva de tijolos no fabrico dos velhos fornos e chaminés, juntos com a proximidade do Aeródromo de Lunghua, tinha trazido a guarnição comunista para aquele modesto lugar atrasado. De acordo com Basie, porém, eles haviam ido embora dois dias antes, continuando seu avanço para Xangai e a aldeia de algumas centenas de habitantes ficara sem defesa. Além de seus pertences, devia haver depósitos de armas comunistas e podiam ser arranjados colaboradores com a complacência dos generais do Kuomintang, ao se aproximarem de Xangai.

Oculto pelos dormentes, Jim agachou-se na beira do barranco. Abaixo dele, havia uma extensão de terra não arada, separada por um canal navegável da miscelânea de canteiros de verdura que rodeavam a aldeia. As ruas estreitas estavam vazias, porém um tênue fio de fumaça elevava-se de várias chaminés.

Do outro lado do rio, um atirador naval deu uma única salva de tiros. Dois navios de guerra chineses nacionalistas estavam ancorados no meio da corrente. A bala caiu no pátio da olaria, erguendo uma nuvem de poeira vermelha. Das praias do rio, ao sul, chegou o som de armas de pequeno calibre, onde uma companhia de soldados do Kuomintang desembarcou de uma barcaça de madeira.

Com os motores a diesel pulsando surdamente, um junco blindado subiu o canal sob o barranco da ferrovia. Oficiais chineses, em elegantes uniformes e capacetes de aço americanos, estavam na ponte, esquadrinhando a aldeia e suas hortas com binóculos. A segunda nave de guerra mais próxima atirou outra granada, que explodiu sobre os telhados cinzentos, provocando uma chuva de escombros. Imediatamente, houve um alvoroço. Como formigas fugindo de um vaso de flores quebrado, centenas de chineses fugiram das aléias estreitas para o campo ao redor. Carregavam sobre as cabeças colchões enrolados e trouxas de roupas. Correram pelas trilhas entre os canteiros de verduras. Uma velha de calça e jaqueta pretas atravessou um córrego ao lado da estrada, com água pela cintura, gritando para os parentes que escalavam a encosta.

O junco motorizado navegava ao longo do canal, suas máquinas batendo como punhos contra o casco de madeira. Jim pôde ver nitidamente os vincos recentes nas fardas dos oficiais chineses mais antigos e suas elegantes botas americanas de guerra. Até os destacamentos de soldados rasos no tombadilho sob a ponte estavam prodigamente equipados com armas e rádios. Estacionada no meio do tombadilho do junco, havia uma limusine Chrysler preta, com a flâmula de um general do Kuomintang esvoaçando no mastro cromado.

Uma base de metal para um canhão automático tinha sido montada no bojo do junco. Sem aviso, os artilheiros abriram fogo sobre a aldeia. Os projéteis passaram sobre as cabeças dos aldeões fugitivos e explodiram contra os telhados das casa. A um sinal da ponte, os atiradores moveram o cano, apontando para uma vila a algumas centenas de metros a oeste da aldeia. Imediatamente, as primeiras balas da canhoneira atingiram a estrada de terra que ladeava as choupanas. A companhia de soldados nacionalistas que havia desembarcado na barcaça de madeira estava agora correndo pelos alagados, caçando os aldeões fugitivos.

Então, a primeira bala da salva seguinte provocou uma imensa explosão. O grupo de habitantes da lama tinha desaparecido, desvanecido no ar pelas nuvens ferventes dos seus próprios escombros. O esconderijo da munição detonada continuou a queimar, jogando colunas de fumaça para o céu. Na estrada que ia dar na cabana, dezenas de aldeões jaziam entre suas trouxas e colchões, como se os habitantes daquela aldeia tivessem resolvido passar a noite nos campos.

Jim pôs as mãos em concha sobre o nariz e a boca, tentando impedir-se de gritar. Observou a planície de fogo abaixo dele, os campos enfumaçados iluminados pelos relâmpagos dos canhões navais e pelas casas incendiadas em torno das olarias. Os fornos e chaminés brilhavam ao crepúsculo, como se as estufas tivessem sido novamente acendidas para serem alimentadas pelos corpos dos aldeões caídos em suas hortas. Jim ficou ouvindo os motores dos juncos que desciam do canal, uma feia pulsação levando o ritmo de sua morte pela China, enquanto generais imaculados mascaravam seus olhos com binóculos, calculando sua astronomia de canhões.

- Basie... - Os bandidos tinham se retirado dos trilhos da ferrovia. O Capitão Sung e seus cules tinham descido o aterro e estavam voltando aos seus caminhões. - Basie, podemos voltar a Lunghua?

- Voltar ao campo? - O camaroteiro deu uma olhadela através do pó que caía. Tinha ficado meio atordoado pela onda de choque provocada pela explosão do depósito de munição e olhou para a paisagem embaixo como se estivesse saindo de um sonho. - Você quer voltar para o campo, Jim?...

- Precisamos estar preparados, Basie. Quando chegam os americanos?

Pela primeira vez, Basie pareceu não ter resposta. Ficou deitado nos dormentes e depois apontou para o norte e assoviou triunfante. Quinze quilômetros adiante, na superfície escura do rio, os mastros e o tombadilho de um cruzador americano tinham ocupado seu lugar ao lado das quadras de escritórios e hotéis do Bund de Xangai.

 

Os Pilotos Derrubados

A manhã inteira o som do fogo de artilharia tinha cruzado o rio, vindo de Putung. Uma coluna de fumaça, tão extensa quanto o grupo de armazéns incendiados, debruçava-se sobre a água e escurecia as areias de Nantao. Do banco da frente do Buick estacionado na planície enlameada, Jim ficou observando os reflexos dos tiros de canhão no pára-brisa empoeirado. As peças de artilharia americana trazidas pelos nacionalistas emitiam um ruído áspero e úmido, como se seus canos estivessem cheios de água. Ao abrigo do sol, um ar sombrio caía sobre a maré baixa que batia na praia. O cano reluzente do morteiro do Kuomintang detrás do cais do Putung, refletiu-se nas articulações de Jim, quando este segurou a direção do Buick e iluminou a torre blindada dos submarinos encalhados a cem metros de distância.

Jim viu que um avião de reconhecimento surgiu da nuvem de fumaça, sacudindo os fiapos de neblina preta que corriam de suas asas. Uma esquadrilha de três bombardeiros americanos aproximou-se a sudoeste. O tiroteio cessou e o barco torpedeiro, fortificado com sacos de areia, partiu para cruzar o rio, pronto a recolher qualquer coisa boiando.

Uma dúzia de pára-quedas saiu das B-29 e caiu rapidamente ao solo. As caixas estavam cheias, não de Spam, Klim e Seleções, mas de munição e explosivos para os homens do Kuomintang. O batalhão, com seu apoio de artilharia, estava desalojando as últimas unidades comunistas que ainda se mantinham nas ruínas dos armazéns de Putung. No cais, os cadáveres dos soldados comunistas estavam amontoados como lenha.

No silêncio que sucedeu à passagem dos bombardeiros, Jim pôde ouvir o troar doloroso das barragens de artilharia de Nantao e dos arredores, a oeste de Xangai. Pelo menos três exércitos nacionalistas estavam cercando a cidade, confrontando-se para obter o domínio dos aeródromos, estaleiros, ferrovias e, principalmente, os depósitos de armas e munições abandonados pelos japoneses. Colaborando com os nacionalistas, embora às vezes lutando contra eles, os remanescentes dos exércitos fantoches, grupos de renegados do Kuomintang recuando para a costa e várias milícias recrutadas pelos senhores de guerra locais, que tinham retornado a Xangai.

Varridos diante desses exércitos rivais, como pó diante de um par de vassouras chocando-se, havia dezenas de milhares de camponeses chineses. Colunas de refugiados vagavam pelo interior, procurando abrigo nos campos e aldeias saqueadas, fugidas dos portões de Xangai pelo avanço de unidades dos exércitos nacionalistas.

Eram esses refugiados, os bandos de cules esfomeados, armados de facas e enxadas, que Jim mais temia. Evitando-os a qualquer custo, Basie e seu bando se mantinham perto de toda batalha que estivesse sendo travada. Na orla oriental de Nantao, entre os estaleiros e a base aeronaval, havia uma terra de ninguém de desembarcadouros, armazéns e celeiros vazios, que as milícias do Kuomintang e os camponeses refugiados achavam muito perto do combate do outro lado do rio em Putung. Ali, Basie e os seis membros restantes do bando acamparam nas carvoeiras e entrepostos de cimento, com o pouco que lhes foi deixado, a não ser o Buick de antes da guerra e uma vaga esperança de se venderem a um general nacionalista.

Agora, até o carro estava provando ser um alvo muito evidente aos atiradores do Kuomintang.

- Você fica ao volante, Jim - disse-me Basie, quando os bandidos saíram do veículo na planície enlameada. - Finja estar dirigindo este belo carro.

- Olhe, Basie, eu posso?... - Jim pegou o volante enquanto os homens ficavam na praia escura ao lado do carro e preparavam suas armas. Seus rostos hesitaram ao som das explosões que atravessavam à água. - Você está indo ao estádio, Basie?

- Estou, Jim. Lembre aqueles anos em Lunghua: temos um investimento a proteger. Os nativos querem ocupar Xangai e afastar os interesses comerciais estrangeiros.

- Esses somos nós, Basie?

- São você, Jim. Você faz parte da comunidade de negócios estrangeira. Quando voltarmos, você terá um casaco de peles e uma caixa de uísque escocês para seu pai.

Basie olhou para os armazéns arruinados e os cadáveres empilhados no molhe, como se os tivesse vendo cheios de todos os tesouros do Oriente, prontos para serem embarcados para San Francisco. Jim sentiu pena de Basie e ficou tentado a avisá-lo que o estádio provavelmente estava vazio, despojado pelos soldados do Kuomintang de suas poucas coisas valiosas que tivessem resistido ao sol e à chuva. Porém Basie pegou, o gancho e se dirigiu ansiosamente para lá. Com sorte, se sobrevivesse ao ataque ao estádio, ele atiraria fora a carabina e voltaria para Xangai. Dentro de poucos dias seria um garçom de vinhos no Cathay Hotel, servindo com um salamaleque todos os oficiais americanos que fossem à terra, desembarcados do cruzador ancorado no Bund...

Quando Basie e os homens desapareceram entre os armazéns destruídos do cais, Jim examinou as revistas que estavam no assento ao lado dele. Agora tinha a certeza de que a Segunda Guerra Mundial havia acabado, porém teria a Terceira Guerra Mundial começado? Olhando as fotografias dos desembarques do Dia-D, a travessia do Reno e a tomada de Berlim, sentiu que eles eram parte de uma guerra menor, um ensaio para o verdadeiro conflito que tinha começado aqui no Extremo Oriente com o lançamento das bombas atômicas em Nagasaki e Hiroxima. Jim tornou a lembrar a luz que pairou sobre a terra, a sombra de outro céu. Aqui, nos estuários dos grandes rios da Ásia, tinha sido travada a última guerra para decidir o futuro do planeta.

Jim limpou seu sangue no volante, enquanto os obuses recomeçaram da margem de Putung. Seu nariz estivera sangrando intermitentemente durante quatro dias. Ele engoliu o sangue e olhou a estrada que ia dos ancoradouros até o estádio distante. A cem metros do Buick, dois milicianos chineses tinham subido no casco do submarino encalhado. Levavam carabinas penduradas nos ombros e não tomaram conhecimento da batalha no outro lado do rio, caminhando pelo tombadilho na direção da torre blindada.

Jim abriu a porta do motorista. Estava na hora de partir, antes que os milicianos notassem o Buick. Escolheu no monte de latas pacotes de cigarros e pentes de balas no chão do carro, uma barra de chocolate, uma lata de Spam e um exemplar de Life. Quando os chineses ficaram por trás da torre blindada, ele pulou para o chão enlameado. Agachando-se contra o muro do barranco, correu para a rampa de pedra de um molhe da Polícia do Rio de Xangai. A pouco mais de três quilômetros ao norte, ficavam as habitações e armazéns da Cidade Velha e, além deles, os blocos de escritórios do centro da cidade. Porém Jim os desprezou e tornou a partir para o Aeródromo de Lunghua.

Havia fumaça no Estádio Olímpico, uma tênue coluna branca provocada por uma única chama, como se Basie e seu bando tivessem acendido uma fogueira com os móveis das tribunas. As barragens de artilharia de Putung e Hungjao tinham cessado e Jim pôde ouvir as rápidas explosões das carabinas, vindas do estádio.

Procurando abrigo, Jim fugiu da estrada desprotegida. Caminhou pelas canas-de-açúcar silvestres que cobriam o terreno inculto ao lado do perímetro norte do Aeródromo de Lunghua. Uma cortina de árvores e tonéis enferrujados de combustível o separava do campo aberto de pouso, dos hangares destruídos e do pagode. Caixas de cartuchos jaziam na trilha estreita sob seus pés, lascas caídas numa trilha metálica. Seguiu a cerca isolada, evitando as nuvens de moscas que se aglomeravam nos abrigos em miniatura nas moitas de espinheiros.

Em cada lado da trilha, os corpos dos japoneses mortos estavam onde tinham sido baleados ou esfaqueados. Jim parou junto a uma vala rasa de irrigação, onde um soldado da força aérea estava de mãos amarradas às costas. Centenas de moscas devoravam seu rosto, envolvendo-o numa máscara ruidosa. Desembrulhando a barra de chocolate e afastando as moscas do próprio rosto com a revista, Jim caminhou pelas canas-de-açúcar. Havia dezenas de japoneses mortos nos espinheiros como se tivessem caído do céu, membros de um exército de jovens mortos quando tentavam voar para seus aeródromos no Japão.

Jim passou sobre um trecho caído da cerca e caminhou para o avião destruído que estava entre as árvores. Sua fuselagem tinha chorado rios de ferrugem na chuva de verão. As moscas, enfurecidas pela luz da manhã, espalhavam uma vasta raiva contra nada. Saindo dali, Jim atravessou a extensão gramada do aeródromo. Dentro de um dos hangares em ruínas, um grupo de japoneses esperava na sombra, atento aos tiros de carabina no estádio, mas ignoraram Jim .quando este atravessou o campo.

Jim olhou para a pista de cimento a seus pés. Para sua surpresa, descobriu que a superfície estava rachada e manchada, com placas de óleo, marcas de pneumáticos e pedaços de rodas. Mas agora, que a Terceira Guerra Mundial tinha começado, uma nova pista seria logo construída. Jim chegou à extremidade da fita de cimento e caminhou pela grama em direção ao limite sul do aeródromo. O solo ergueu-se sobre os morrinhos deixados pelos aterros originais e depois inclinados para o vale onde os caminhões japoneses tinham antigamente entregue sua carga de cascalho e telhas.

Apesar dos espinheiros agudos e do sol quente de setembro, o vale parecia cheio da mesma poeira acinzentada. As margens do canal estavam tão claras quanto os condutos de um córrego mortuário, no qual os mortos eram lavados. O invólucro arrebentado de uma bomba não explodida estava na água rasa, como uma enorme tartaruga que tivesse adormecido tentando enterrar a cabeça na lama.

Sabedor de que o vôo baixo de um Mustang poderia acionar o detonador, Jim apressou-se vale adentro, separando os espinheiros com a revista. Atirou para o ar a lata de Spam, apanhou-a com uma só mão mas, na segunda vez, perdeu-a entre os caniços. Procurando-a no capim espesso, achou-a finalmente na beira da água e resolveu comer o presunto fatiado antes que ele escapasse de suas mãos para sempre.

Sentado na beira do canal, lavou a terra da tampa. Uma gota de sangue caiu do seu nariz na água e foi instantaneamente atacada por miríades de peixinhos não maiores que um palito de fósforo. Quando uma segunda gota bateu na água, houve uma luta violenta que pareceu envolver cardumes inteiros de peixes minúsculos. Eles remoinharam sem se incomodar com a superfície ensolarada, atacando-se ferozmente. Limpando a boca, Jim inclinou-se e soltou uma bola de pus de suas gengivas inflamadas. Ela caiu como um peso entre os peixes, levando-os a um pânico frenético. Em segundos, a água ficou vazia, a não ser pelo pus se dissolvendo.

Perdendo o interesse nos peixes, Jim estirou-se entre os juncos e ficou vendo os anúncios na revista. Prestou atenção ao som profundo dos disparos da artilharia. Os canhões de Siccawei e Hungjao estavam mais altos, à medida que os exércitos nacionalistas rivais apertavam o cerco a Xangai. Queria comer seu presunto e depois fazer um derradeiro esforço para voltar a Xangai. Tinha a certeza de que Basie e seu bando não tinham a menor intenção de retornar ao Buick, deixando-o naquele lugar para despistar os soldados chineses que porventura os tivessem seguido até o rio.

No capim em torno, uma cabeça balançou duas vezes, aprovando essa estratégia. Jim permaneceu imóvel, o último pedaço de chocolate engasgado na garganta, espantado por aquela aparição familiar. Alguém estava ali, a poucos passos dele, os joelhos quase tocando a beira da água. Como que pretendendo tornar a tranqüilizar o rapaz, a cabeça acenou novamente. Jim estendeu a mão e separou o capim, examinando cuidadosamente o rosto da pessoa. As faces redondas e o nariz mole, enrugados pelas privações de uma infância passada na guerra, eram as de um adolescente asiático, algum filho de aldeão indo ali pescar. O rapaz ficou deitado de costas, cercado por um muro de capim e caniços, como se estivesse dividindo com Jim uma cama e silenciosamente prestando atenção aos seus pensamentos.

Jim sentou-se, erguendo a revista enrolada acima da cabeça. Entre o barulho das moscas, esperou o som de passos no capim alto. Mas o vale estava vazio e seu ar claro devorado pelas moscas. O vulto moveu-se ligeiramente, esmagando o capim. Muito preguiçoso para parar, o rapaz estava deslizando pela margem até a água.

Com o cuidado aprendido nos longos anos de guerra, Jim ajoelhou-se, depois levantou-se e andou pelos juncos. Acalmando-se, olhou para aquele vulto sonolento.

À sua frente, vestindo um macacão de vôo manchado de sangue, com a insígnia do grupo especial de combate; estava o corpo do jovem piloto japonês.

 

Missão de Salvamento

Jim ficou desesperado. Alisando o capim com as mãos, preparou um lugarzinho para ele ao lado do japonês. O piloto estava de macacão, com um braço sob as costas. Tinha sido atirado pelo declive para o canal e suas pernas ficaram presas debaixo do corpo. Seu joelho direito tocava a água, que tinha começado a encharcar a parte traseira do seu macacão. Jim pôde ver acima de sua cabeça a rampa de capim amassado por onde tinha caído, os talos endireitando-se ao sol.

Olhou para o piloto, contente pela primeira vez pelo enxame de moscas interpondo-se entre ele e aquele cadáver. O rosto do japonês estava mais infantil do que Jim lembrava, como se com sua morte tivesse retornado à sua verdadeira idade, à sua primitiva adolescência numa aldeia japonesa provinciana. Seus lábios estavam entreabertos, mostrando os dentes irregulares, como se esperasse um pedaço de peixe que lhe seria posto na boca por sua mãe com os pauzinhos.

Estarrecido pela visão do piloto morto, Jim viu os joelhos do rapaz deslizarem para a água, agachou-se no terreno inclinado, folheando a Life e procurando se concentrar nas fotografias de Churchill e Eisenhower. Durante muito tempo tinha posto todas as suas esperanças naquele jovem piloto, no sonho fútil de que iriam voar juntos para longe, abandonando Lunghua, Xangai e a guerra para sempre. Tinha precisado do piloto para ajudá-lo a sobreviver à guerra, aquele gêmeo imaginário que tinha inventado, uma réplica de si mesmo, a quem observou através da cerca de arame farpado. Se o japonês estava morto, parte dele tinha morrido. Ele tinha deixado de perceber a verdade que milhões de chineses conheciam desde o nascimento: que eram todos bons mortos afinal de contas, e que era se enganar acreditar em coisa diferente.

Jim prestou atenção à barragem de artilharia em Hungjao e Siccawei e ao zumbido do avião nacionalista de reconhecimento que voava em círculos. O som dos tiros de armas de pequeno calibre cruzou o aeródromo quando Basie e os bandidos tentaram invadir o estádio. Os mortos estavam jogando suas partidas perigosas.

Resolvido a ignorá-los, Jim continuou a ler a revista, mas as moscas tinham enxameado para longe dos cadáveres ao longo do regato e logo descobriram o corpo do jovem piloto. Jim levantou-se e segurou o japonês pelos ombros. Mantendo-o pelas axilas, tirou suas pernas da água e depois o arrastou para uma saliência estreita de nível mais alto.

Apesar do rosto rechonchudo, o piloto quase não pesava. Seu corpo esfomeado era tão leve quanto os das crianças de Lunghua, com quem Jim lutou quando mais jovem. A parte inferior do macacão de vôo estava empapada de sangue. Ele tinha sido atingido por baioneta na parte inferior das costas e novamente nas coxas e nádegas e depois atirado encosta abaixo com os outros membros da tripulação aérea.

Agachando-se ao lado do corpo, Jim arrancou o abridor da lata da Spam e começou a retirar a tampa. Tão logo tivesse comido, usaria a lata para cavar um túmulo para o japonês. Após ter enterrado o piloto, iria caminhando para Xangai, sem se importar com as ciladas que os mortos estivessem armando. Se encontrasse os pais, lhes diria que a Terceira Guerra Mundial tinha começado e que deviam retornar ao seu campo em Suchau.

A geléia quente de presunto fatiado cresceu em sua mucilagem de gordura derretida. Jim lavou a mão no canal e usou a tampa para cortar um pedaço modesto. Levou a carne à boca, mas cuspiu o fragmento na água. A carne gordurosa ainda estava viva, como se arrancada do corpo de um animal respirando. Seus pulmões e fígado estremeceram na lata, comandados por um coração. Jim cortou uma segunda fatia e colocou-a na boca. Sentiu sua pulsação entre os lábios e o temor da criatura nos momentos que antecederam sua morte.

Tirou a fatia dos lábios e olhou para a carne gordurosa. Carne viva não tinha sido feita para alimentar os mortos. Aquele era um alimento que iria devorar os que tentassem comê-lo. Jim cuspiu o último pedaço no capim, ao lado do japonês. Inclinando-se sobre o cadáver, deu uma batidinha nos lábios esbranquiçados com o indicador, pronto a introduzir o pedaço de presunto naquela boca.

Os dentes aguçados fecharam-se em torno do seu dedo, cortando a epiderme. Jim deixou cair a lata de carne, que rolou pelo capim, indo mergulhar no canal. Afastou a mão violentamente, certo de que o cadáver daquele japonês ia sentar-se e comê-lo.

Impulsivamente, Jim esmurrou o rosto do piloto, depois receou e gritou para ele, através do enxame de moscas.

A boca do piloto abriu-se numa careta silenciosa. Seus olhos vidrados estavam fixos no céu quente, mas uma pálpebra tremeu quando uma mosca bebeu em sua pupila. Um dos ferimentos a baioneta nas suas costas tinha atravessado seu abdome e sangue fresco pingava na junção das pernas do macacão. Seus ombros estreitos tornaram a estremecer contra o capim esmagado, procurando agitar seus braços inúteis.

Jim fixou o olhar no jovem piloto, esforçando-se para captar o milagre que acabara de acontecer. Ao tocar o japonês, fizera com que retornasse à vida; separando seus dentes tinha produzido um pequeno espaço em sua morte e permitira a volta de sua alma.

Firmou os pés no declive úmido e limpou as mãos na calça esfarrapada. As moscas enxameavam em torno dele, picando seus lábios, porém Jim não se preocupou, Lembrou de como tinha inquirido as Sras. Philips e Gilmour sobre a ressurreição de Lázaro e como as mulheres tinham insistido em que, longe de ser um milagre, era o mais comum dos acontecimentos. Diariamente o Dr. Ransome havia trazido gente de volta da morte massageando seus corações.

Jim olhou as próprias mãos, recusando a ser atemorizado por elas. Ergueu as palmas para a luz, deixando o sol aquecer sua pele. Pela primeira vez, desde o começo da guerra, sentiu um impulso de esperança. Se podia reanimar aquele piloto japonês morto, também podia reerguer-se e aos milhões de chineses que tinham morrido durante a guerra e que ainda estavam perecendo na luta pela posse de Xangai, por um saque tão ilusório quanto as riquezas nó Estádio Olímpico. Ele ressuscitaria Basie, quando este fosse morto pelos guardas do Kuomintang que defendiam o estádio, mas não os outros membros da quadrilha de bandidos e nunca o Tenente Price ou o Capitão Sung. Iria ressuscitar seus pais, o Dr. Ransome e a Sra. Vincent, bem como os prisioneiros ingleses no hospital de Lunghua. Devolveria à vida a tripulação japonesa caída nas valas em torno do aeródromo e um destacamento de terra suficiente para reconstruir uma esquadrilha de aviões...

O piloto japonês ofegou ligeiramente. Seus olhos enviesaram-se como se estivessem tentando revirar como os dos pacientes que o Dr. Ransome ressuscitou. Ele estava penosamente se agarrando à vida, mas Jim sabia que teria de deixá-lo ao lado do canal. Suas mãos e ombros tremiam, eletrificados pela descarga que tinha passado através deles, a mesma energia que envolvia o sol e a bomba de Nagasaki, cuja explosão ele tinha testemunhado. Jim pôde ver imediatamente a Sra. Philips e a Sra. Gilmour levantando-se educadamente de entre os mortos, prestando atenção, de sua maneira preocupada mas confusa, quando ele explicava como as havia salvo. Podia imaginar o Dr. Ransome sacudindo a terra dos ombros e a Sra. Vincent olhando com ar desaprovador para o túmulo...

Jim chupou o sangue e o pus dos dentes e engoliu-os depressa. Pulou para o capim molhado e deslizou para a água rasa do canal. Firmando-se, lavou o rosto. Queria estar alinhado quando a Sra. Vincent abrisse os olhos e tornasse a vê-lo. Enxugou as mãos molhadas nas faces do jovem piloto. Teria de abandoná-lo, mas como o Dr. Ransome, ele tinha apenas poucos segundos a gastar com cada um dos mortos impacientes.

Enquanto corria pelo vale em direção ao campo, Jim reparou que os canhões de Putung e Hungjao tinham silenciado. Atravessando o aeródromo, uma coluna de caminhões tinha parado junto aos hangares e homens armados com capacetes americanos estavam subindo a escada da torre de controle. Esquadrilhas de Mustangs passavam sobre Lunghua em formação cerrada, os motores zumbindo para o capim gasto. Acenando-lhes, Jim correu para a cerca. Ele sabia que os aviões americanos iam pousar, prontos para levar embora as pessoas que ele tinha ressuscitado. No lado dos montículos funerários, a oeste do campo, três chineses estavam parados com suas enxadas entre os caixões desmoronados, os primeiros dos prejudicados pela guerra agora chegavam para cumprimentá-lo. Gritou para dois europeus em uniforme de serviço, que se aproximavam vindos de um riacho, com uma rede de pescar feita em casa. Olharam para Jim e responderam como que surpresos de estarem novamente vivos, com aquele modesto utensílio nas mãos.

Jim pulou a cerca e desceu a trilha cimentada que levava ao hospital do campo. Havia homens com pás no cemitério, protegendo os olhos da luz do dia pouco familiar. Eles teriam cavado para sair de suas próprias tumbas? Quando Jim se aproximou dos degraus do hospital, tentou dominar seu tremor. As portas de bambu se abriram e um enxame de moscas voou para fora, seus dias de banquetes terminados. Afastando-as do rosto, sobre o qual usava uma máscara verde de cirurgia, apareceu um homem ruivo, com um uniforme novo americano. Trazia uma bomba de inseticida.

- Dr. Ransome! - Jim cuspiu o sangue da boca e subiu correndo os degraus apodrecidos. - O senhor voltou, Dr. Ransome! Está tudo bem, todos estão voltando! Estou indo buscar a Sra. Vincent!...

Ultrapassou o médico, mergulhando na escuridão, mas o Dr. Ransome agarrou-o pelos ombros.

- Espere, Jim... Pensei que você poderia estar aqui. - Retirou a máscara e apertou a cabeça de Jim contra o peito, examinando as gengivas do rapaz e ignorando o tecido áspero de sua camisa do exército americano. - Seus pais estão esperando por você, Jim. Pobre rapaz, você nunca vai acreditar que a guerra acabou.

 

A Cidade Terrível

Dois meses depois, na véspera de sua partida para a Inglaterra, Jim lembrou das palavras do Dr. Ransome, enquanto caminhava pelo passadiço do SS Arrawa e pisava no solo chinês pela última vez. Vestindo camisa de seda, gravata e um terno de flanela cinzenta da loja de departamentos da Sincere Company, Jim esperou educadamente por um idoso casal inglês que subia pela rampa de madeira. Abaixo deles, estava o Bund e toda a agitação da noite alegre. Milhares de chineses enchiam o largo, acotovelando-se entre os bondes e limusines, jipes e caminhões militares americanos e uma multidão de jinriquixás e triciclos. Juntos, ficaram vendo os soldados ingleses e americanos entrando e saindo dos hotéis ao longo do Bund. Nos quebra-mares ao lado do Arrawa, ocultos sob suas proas e popas, marinheiros americanos desembarcavam do cruzador ancorado no meio da corrente. Assim que saltavam dos seus botes, apareciam os chineses, bandos de batedores de carteiras e condutores de triciclos, prostitutas e apanhadores de jogo, vendedores de garrafas de Johnny Walker feito em casa, negociantes de ouro e comerciantes de ópio, os cidadãos da noite de Xangai, em todas as suas roupas de seda preta, peles de raposa e brilho.

Os jovens marujos americanos empurraram os homens dos sampãs e chamaram a polícia militar. Tentavam permanecer juntos e livrar-se da multidão tão ansiosa para recebê-los na China. Mas antes de terem atingido o primeiro setor de trilhos do bonde no meio do Bund, foram arrastados para um comboio de triciclos, abraçados a garotas de bar, gritando obscenidades para os polidos alcoviteiros chineses nos seus Packards de antes da guerra, das garagens nos fundos dos prédios da Estrada de Nanquim.

Dominando esse panorama da noite de Xangai, havia três telas de cinema, que tinham sido instaladas em andaimes ao longo do Bund. Em colaboração com a Marinha dos Estados Unidos, o general nacionalista que era governador geral da cidade, tinha determinado a passagem contínua de cine jornais do teatro de guerra da Europa e do Pacífico, com o objetivo de dar à população de Xangai uma idéia da guerra mundial que tinha recentemente terminado.

Jim venceu o último degrau do oscilante passadiço e olhou para as imagens trêmulas, que mal tinham forças para se agarrarem nas tabuletas a neon e faixas luminosas nas fachadas de hotéis e clubes noturnos. Fragmentos de faixas sonoras ampliadas ressoavam como canhões sobre o ruído do trânsito. Ele tinha começado a guerra vendo os cine jornais na cripta da Catedral de Xangai e agora a estava terminando sob as mesmas imagens repetidas: atiradores russos avançando pelas ruínas de Estalingrado, fuzileiros americanos virando seus lança-chamas sobre os defensores japoneses de uma ilha do Pacífico, os aviões de combate da RAF explodindo um trem de munição num pátio ferroviário alemão. Imediatamente, a intervalos de dez minutos, ideogramas chineses enchiam as telas e enormes exércitos do Kuomintang saudavam o vitorioso Generalissimo Chiang no pódio de desfile em Nanquim. As únicas forças que não eram homenageadas eram as dos comunistas chineses, porém eles tinham sido expulsos de Xangai e das cidades costeiras. Qualquer que fosse a contribuição dada por seus soldados para a vitória aliada, tinha sido, havia muito, desconsiderada, perdida sob as camadas de cine jornais que tinham imposto sua própria verdade a respeito da guerra.

Durante os dois meses desde a sua volta para a Avenida Amherst, Jim visitou com freqüência os cinemas reabertos em Xangai. Seus pais se recuperavam com dificuldade dos anos de prisão no campo de Suchau e Jim tinha tempo de sobra para andar por Xangai. Depois de ter telefonado para o dentista russo branco na Concessão Francesa, ele mandou Yang levá-lo, no Lincoln Zephyr, ao Grand ou ao Cathay, aquelas enormes e vastas salas onde ele sentava na primeira fila e via outra representação de Bataan e The Fighting Lady.

Yang, confuso, perguntava-se por que Jim queria ver esses filmes tantas vezes. Jim, por sua vez, ficava imaginando como o próprio Yang tinha passado os anos da guerra: como criado de quarto de um general chinês fantoche, como intérprete para os japoneses ou como agente do Kuomintang trabalhando escondido para os comunistas? No dia da chegada dos seus pais, Yang tinha aparecido com a limusine, imediatamente vendeu o carro para o pai do rapaz e se empregou novamente como seu motorista. Yang já estava desempenhando pequenos papéis em duas produções dos ressurgidos estúdios cinematográficos de Xangai. Jim desconfiou que enquanto se sentava para assistir a outro programa duplo no Cathay Theatre, o carro estava sendo alugado para alguma produção.

Aqueles filmes de Hollywood, como os cinejornais projetados sobre a cabeça das multidões no Bung, fascinavam Jim eternamente. Após o trabalho de cirurgia dentária em sua mandíbula e a cura dos ferimentos no céu da boca, começou logo a recuperar o peso. Sozinho na mesa de jantar, comia fartas refeições diariamente e de noite dormia pacificamente no seu quarto, no último andar da casa irreal da Avenida Amherst, que antigamente tinha sido seu lar porém, agora, mais parecia uma ilusão como os cenários dos estúdios de filmagem de Xangai.

Durante os seus dias na Avenida Amherst, pensou freqüentemente no seu estreito compartimento no quarto dos Vincents, no campo. Em fins de outubro, ordenou ao pouco entusiasmado Yang a levá-lo a Lunghua. Partiram pelos subúrbios ocidentais de Xangai e logo chegaram ao primeiro dos postos de controle fortificados que protegiam as entradas da cidade. Os soldados nacionalistas, em seus tanques americanos, estavam fazendo retornar centenas de camponeses desvalidos, sem arroz ou terra para cultivar, procurando o refúgio em Xangai. Aldeias rústicas de habitações de barro, paredes reforçadas por pneus de caminhão e tambores de querosene, cobriam os campos nos arredores do incendiado Estádio Olímpico de Nantao. A fumaça ainda se erguia das tribunas, um farol usado pelos pilotos americanos que voavam pelo Mar da China, partindo de suas bases em Okinawa e no Japão.

Ao rodarem pela estrada ao longo da cerca, Jim olhou para o Aeródromo de Lunghua, agora uma paisagem de sonho. Dezenas de aviões da Marinha e da Força Aérea americanas estavam pousados no capim, aviões de combate recém-saídos das fábricas de transportes revestidos de cromo que pareciam estar esperando ser entregues a um salão de exposição na Estrada de Nanquim.

Jim esperava encontrar o Campo Lunghua vazio, porém, longe de estar abandonada, a antiga prisão estava outra vez funcionando, com arame farpado novo em folha estendido em suas cercas. Embora a guerra tivesse acabado havia quase três meses, mais de uma centena de ingleses ainda estava morando no conjunto severamente vigiado. Famílias inteiras tinham ocupado os antigos dormitórios do Bloco E, onde construíram séries de alojamentos com paredes de caixas de ração americanas, acondicionadores de pára-quedas e pacotes de Seleções não lidas. Quando Jim, procurando o cubículo de Basie, tentou tirar uma das revistas de uma dessas paredes temporárias, foi bruscamente advertido para que não o fizesse.

Deixando os habitantes com seu tesouro, mandou Yang dirigir-se ao Bloco G. O quarto dos Vincents era agora a habitação de uma amah chinesa, que trabalhava para o casal inglês instalado do outro lado do corredor. Ela se recusou a receber Jim ou a abrir mais que uma fresta na porta e ele voltou ao Lincoln e mandou Yang dar uma última volta no campo.

O hospital e o cemitério tinham desaparecido e o local era uma área aberta, coberta de carvão meio queimado e cinzas, onde sobressaíam algumas vigas enegrecidas. As catacumbas tinham sido cuidadosamente niveladas, como se uma série de quadras de tênis estivesse para ser construída. Jim caminhou entre os tambores vazios de querosene que tinham alimentado o incêndio. Olhou para o campo de aviação através da cerca, detendo-se na pista de cimento que levava ao Pagode de Lunghua. Uma vegetação cerrada cobria os destroços dos aviões japoneses. Quando parou perto da cerca, acompanhando o curso do canal no vale estreito, um bombardeiro americano atravessou o campo. Por um instante, projetado pela parte inferior de suas asas prateadas, um clarão lívido correu como um espectro entre os espinheiros e os atordoados salgueiros.

Enquanto Yang dirigia apreensivo, de volta à Avenida Amherst, de certa forma preocupado pela visita a Lunghua, Jim ficou pensando nas últimas semanas da guerra. Perto do fim, tudo se tinha tornado um tanto confuso. Ele ficou morrendo de fome e talvez tivesse se tornado meio maluco. Contudo, ele sabia que tinha visto o relâmpago da bomba atômica de Nagasaki, mesmo através dos seiscentos e cinqüenta quilômetros do Mar da China. Mais importante ainda, tinha visto o início da Terceira Guerra Mundial e compreendeu que ela estava acontecendo à sua volta. As multidões vendo os cine jornais no Bund não tinham compreendido que aqueles eram os trailers de uma guerra que já havia começado. Um dia, não haveria mais cine jornais.

Nas semanas anteriores a sua partida e de sua mãe para a Inglaterra no Arrawa, Jim freqüentemente pensou no jovem piloto japonês que parecia ter ressuscitado. Agora, ele não tinha certeza de que era o mesmo piloto que o alimentou com a manga. Provavelmente, o jovem estava moribundo e os movimentos de Jim no capim o acordaram. Seja como for, certos acontecimentos tinham ocorrido e com mais algum tempo talvez outros voltassem à vida. A Sra. Vincent e o marido tinham morrido na marcha do estádio, longe de Xangai, numa aldeiazinha a sudoeste. Porém Jim podia ter ajudado os prisioneiros no hospital do campo. Quanto a Basie, teria morrido durante seu ataque ao estádio, sob as vistas das ninfas douradas na tribuna presidencial? Ou ele e o Tenente Price ainda estariam perambulando pelos arredores do Yangtze, no Buick do general fantoche, esperando que uma terceira guerra os levasse à sua própria?

Jim não tinha comunicado aos seus pais nada disso. Nem tinha confessado ao Dr. Ransome, que desconfiava claramente que o rapaz teria preferido ficar em Lunghua após o armistício, realizando suas brincadeiras de guerra e morte. Jim lembrou sua volta à casa da Avenida Amherst e seus pais sorrindo debilmente em suas espreguiçadeiras no jardim. Ao lado da piscina esvaziada, a grama maltratada crescia em volta dos seus ombros e lembrou-lhe o abrigo de espinheiros no qual os aviadores japoneses tinham ficado. Quando o Dr. Ransome perfilou-se formalmente no terraço em seu uniforme americano, Jim desejou explicar aos pais tudo o que ele e o médico tinham feito juntos, porém sua mãe e pai começaram a falar de sua própria guerra. Apesar de todo o afeto que sentiam por ele os pais lhe pareceram velhos e distantes.

Jim caminhou pelo molhe do Arrawa, olhando para os cine jornais projetados acima da multidão noturna. A segunda das telas, defronte do Palace Hotel, estava agora vazia, suas imagens de batalhas de tanques e exércitos desfilando substituídas por um retângulo de luz prateada que pendia no ar noturno, uma janela para outro universo.

Enquanto os técnicos do exército, em sua torre de andaimes, consertavam o projetor, Jim atravessou os trilhos do bonde em direção à tela. Reparando nele pela primeira vez, os chineses pararam para olhar o retângulo branco. A manga da sua jaqueta foi roçada por um jinriquixá quando o cule que o guiava tropeçou, levando duas garotas de bar em casacos de peles. Seus rostos empoados estavam iluminados como máscaras pelo estranho resplendor.

Contudo, as cabeças dos chineses já estavam se virando para outro espetáculo. Uma multidão tinha se aglomerado nos degraus do Clube Xangai. Um grupo de marinheiros americanos e ingleses tinha surgido das portas giratórias e parado no degrau de cima, discutindo e apontando com gestos embriagados para o cruzador atracado no Bund. Os chineses olhavam como se eles fossem um grupo de atores. Insultados por aquela platéia curiosa, embora silenciosa, os marujos começaram a escarnecer dos chineses. A um sinal de um marinheiro mais velho, os homens desabotoaram suas calças bocas de sino e urinaram escada abaixo.

A quinze metros, na rua, os chineses ficaram observando sem comentários, enquanto os arcos de urina formados por aquele jato espumante escorriam ao longo da rua. Quando o jato atingiu o calçamento, os chineses recuaram, com os rostos inexpressivos. Jim examinou o povo à sua volta, os empregados e cules, as camponesas, sabendo perfeitamente o que eles estavam pensando. Um dia a China castigaria o resto do mundo e tiraria uma desforra terrível.

Os projecionistas do exército haviam rebobinado seu filme e um combate aéreo tinha recomeçado sobre a cabeça da multidão. Enquanto os marujos eram levados por um comboio de jinriquixás, Jim caminhou de volta ao Arrawa. Seus pais estavam descansando no salão de passageiros no tombadilho superior e Jim quis passar uma última noite com o pai, antes que ele e sua mãe partissem, no dia seguinte, para a Inglaterra.

Pisou no passadiço, consciente de que estava provavelmente deixando Xangai pela última vez, para se instalar num país pequeno e estranho no outro lado do mundo, que ele nunca visitara, mas que era denominado “lar”. Contudo, apenas parte de sua mente partiria de Xangai. O resto ficaria lá eternamente, voltando com a maré como os caixões lançados do cais funerário de Nantao.

Sob a proa do Arrawa, um caixão de criança moveu-se na corrente noturna. Suas flores de papel balançavam livremente pelas marolas de uma barcaça de desembarque transportando marinheiros do cruzador americano. As flores formavam uma grinalda oscilante em torno do caixão, quando este começou sua longa jornada para o estuário do Yangtze, só para voltar com a maré enchente, entre os molhes e lamaçais, levados mais uma vez para as margens daquela cidade terrível.

 

[1] Espécie de pajem feminina. (N. da T.)

[2] Jogo de origem basca, com alguma semelhança com o andebol, podendo ser praticado por duas ou quatro pessoas, com uma bola e uma espécie de raquete curva de vime, amarrada ao pulso. (N. do T.)

[3] Código de cavalaria japonês feudal-militar, colocando a honra acima da vida. (N. do T.)

 

                                                                                J. G. Ballard  

 

                      

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