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O IMPLACAVEL DESTINO / Al Gallard
O IMPLACAVEL DESTINO / Al Gallard

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O IMPLACAVEL DESTINO

 

     Holmes Kellerman havia criado seus "negócios" com base em impingir o medo, mas sem sujar as mãos com sangue. Além de ser muito mais lucrativo, ainda mantinha a polícia afastada.

     A saída de sua mãe do presídio, começou a trazer-lhe problemas, tanto pessoais como nos negócios. Ela tinha sede de vingança pela morte de seu pai e era adepta aos métodos antigos, onde o derramamento de sangue era necessário e motivo de orgulho.

     Para complicar ainda mais, o policial do FBI que estava tentando pegá-lo era nada menos do que Steven Simenon, um fiel amigo com quem serviu na guerra.

     Agora eles estavam de lados opostos, e Holmes sente-se pressionado: de um lado o amigo que ele não quer eliminar pois lhe deve a vida, e de outro, a mãe cobrando-o para acabar com todos os policiais que encontrar pelo caminho.

    

                    ABRE-SE UM TÚMULO

     Vera Kellerman piscou por alguns momentos. Diante dela abria-se a vida, mesmo que desta estivesse afastada por um parêntese de vinte e cinco anos. Cinco lustros afastada da sociedade; vinte e cinco chuvas hibernais que vira cair através das grades de sua cela; vinte e cinco anos durante os quais só pensara numa coisa: vingar-se.

     Pela mente daquela mulher, enquanto esperava que fossem cumpridas as formalidades burocráticas para que se abrisse a última barreira que a separava da liberdade, desfilaram, fugazmente, numa sequencia alucinante, cenas de um passado que, apesar de distante, continuava vivo em suas recordações.

     — Nome? — perguntou um funcionário da prisão, o mesmo que lhe deveria abrir a porta.

     Tratava-se de uma comprovação dos dados pessoais da recém-libertada.

     — Hein?... O que foi? Ah, sim! — respondeu, compreendendo. — Vera Kellerman.

     — Não, Vera — corrigiu uma matrona do serviço interno da penitenciária de mulheres. — Kellerman é o sobrenome que foi seu marido. É o seu sobrenome, o de solteira, que figura em seu expediente de liberdade.

     — Sim, claro... Kellerman era o sobrenome dele.

     E ao dizer: "dele", a mente daquela mulher reviveu seus últimos instantes de vida. Morrera ao lado dela; em suas mãos apertava compulsivamente a culatra de uma metralhadora portátil, cujo cano ainda fumegava depois de ter lançado, uma e mais vezes, sua mortífera carga. Ela mesma defendera seu cadáver da Polícia Federal que, ajudada pela Metropolitana de Los Angeles, assaltavam a casa onde viviam no Boulevar Ramona. Quando os homens da Lei conseguiram penetrar ali, James Kellerman, o famoso contrabandista de álcool durante a Lei Seca, não era mais do que um cadáver, por cujos múltiplos ferimentos lhe escapara a vida, e o inspetor Pitzer agarrou-o por um braço virando-o para cima.

     Vera Kellerman, sim. Assim se chamava quando lutava contra os agentes federais, defendendo o homem que amava de todo o coração, matando dois agentes do Federal Bureau of Investigation.

     Só o fato de estar grávida livrara-a de sentar-se na cadeira elétrica. Mais tarde, quando dera à luz, o governador do Estado da Califórnia indultara-a, comutando a pena para trinta anos de reclusão numa penitenciária do Estado.

     Foi tirada de sua abstração pela voz do empregado, que tornou a perguntar:

     — Nome? Quer dizer? Não esqueça que é necessário esse requisito para que eu lhe abra a última porta.

     — Ah, sim! — respondeu firmemente. — Vera Brian

     — Idade?

     — Quarenta e sete anos.

     Instintivamente, Vera Kellerman, pois continuaria usando o nome que fora seu marido, passou os dedos pelo rosto, acariciando pequenas rugas que lhe marcavam as faces e a testa. Quarenta e sete anos! Fazia vinte e cinco que estava enterrada naquele túmulo de seres vivos. Vinte e cinco anos! Dia após dia, mês após mês, vendo paulatinamente como eles iam ficando para trás, enfurnando-se no transcurso do tempo.

     Vera Kellerman perdera a mocidade, era certo. Mas também era verdade que, apesar de tudo, ainda conservava um ar elegante e restos de sua deslumbrante beleza, que, mesmo naquele dia, acima dos sofrimentos e penas, destacava-se em seu rosto fino e aristocrático. Entretanto, era uma beleza morta que tentava despontar sobre os quarenta e sete anos de sua vida. Os anos de penitenciária tinham sido duros e deixado uma marca indelével. Deles falavam os fios de prata que se destacavam nos cabelos negros e brilhantes.

     — Estado?

     — Viúva... Será que não sabe? — disse como um protesto. Era uma tentativa de rebeldia contra aquela disciplina que, estupidamente, perguntava o que já sabia de antemão.

     Vinte e tantos anos num estabelecimento penitenciário eram mais do que suficiente para que fosse conhecida por todos os empregados.

     A matrona, que a acompanhava, pôs-lhe a mão no ombro.

     — Tenha calma. Vera — disse-lhe. — Já falta pouco. Isso é só rotina, mas indispensável para que você saia. — Voltou-se para o empregado. — Abra logo, homem. Todos nós sabemos que Vera Brian é... Vera Brian.

     Quando, segundos depois, Vera Kellerman sentiu fecharem-se atrás de si as férreas portas da penitenciária, seu peito dilatou-se voluptuosamente respirando um ar que, apesar de ser igual ao que havia nos pátios internos da prisão, não era o mesmo que enchia naquele momento seus pulmões. Era um oxigênio de liberdade, não filtrado por portas metálicas, grades ou altos muros por cima dos quais não se via mais do que um quadrilátero luminoso.

     Voltou-se lentamente e, antes de avançar para um homem jovem que naquele momento corria para ela de braços abertos, cuspiu para a porta que havia atravessado, enquanto seus lábios murmuravam uma surda maldição sobre a existência daquele estabelecimento penal. Depois avançou para o que vinha a seu encontro.

     Suas duas mãos apoiaram-se nos ombros do recém-chegado. Olhou em seus olhos e com um sorriso disse:

     - Você é igual a seu pai, filho. Eu ansiava por esse momento, porque com ele começa algo que fiquei amadurecendo durante vinte e cinco anos: o momento de minha vingança... De nossa vingança! — Calou-se e com voz dura acrescentou, olhando para o moço: — Escute, Holmes: um homem não chora. Pessoas como você e como eu não choram — repetiu — só fazem chorar. A sociedade vingou-se cruelmente de nós. Lembre-se de seus sofrimentos num orfanato, enquanto sua mãe estava atrás desses muros — acrescentou mostrando as acinzentadas paredes da penitenciária, da qual se ia afastando em direção a um moderno Cadillac que esperava a uns cinquenta metros da prisão.

     — Não estou chorando — disse Holmes Kellerman, dando um safanão no rosto e secando a lágrima que lhe escorria pelas faces. — Mas deve reconhecer que para mim é muito estranho abraçar por primeira vez minha mãe... Pela primeira vez aos vinte e cinco anos — repetiu com um estranho sorriso desenhado nos lábios.

     Vera não respondeu. Pareceu um momento que seus olhos também se umedeciam, mas, cerrando firmemente as mandíbulas até fazer ranger os dentes, murmurou algo que seu filho não chegou a entender.

     — Vamos — disse, segurando o moço pelo braço, quase ao mesmo tempo em que chegava o veículo. Dentro desse havia duas pessoas: um homem sentado ao volante e outro, já de idade, talvez com mais de cinquenta e cinco anos, que, saltando do carro, aproximou-se da mulher.

     Por alguns segundos ficaram silenciosos, um em frente ao outro. Depois, apertaram-se as mãos, enquanto seus lábios murmuravam algumas palavras.

     — Philip! — disse ela.

     — Vera! — falou, por sua vez, o homem. — Parece mentira que já passaram todos esses anos.

     — Vamos deixá-los em paz. Nunca mais falemos neles. Os que nos restam de vida serão suficientes para que sejam recordados por muitos anos. Vamos. Quero começar a viver e apanhar a verdadeira vida no ponto em que a deixei. Sabe como? Usando uma pistola contra os que mataram James Kellerman... Foi o "chefe" mais valente e ousado de Los Angeles... — fez uma pausa para continuar quase em seguida: — Eu lhe prometo, Philip, que se há de falar novamente no nome Kellerman.

     Entraram no carro. Este tomou a estrada de Los Angeles, saindo de Bakersfield, onde estava encravada uma das penitenciárias de mulheres da Califórnia e na qual Vera Kellerman permanecera presa quase todo o tempo de sua condenação.

     Pouco mais de hora e meia gastaram para percorrer as setenta milhas que separavam Bakersfield da cidade dos estúdios cinematográficos. Já passado Burbank e, em frente ao aeroporto Gran Central, Vera viu os estúdios da Warner Bros. Um pouco mais para a direita, ainda chegou a divisar alguns grandes letreiros da Republic e da Universal.

    

     — Hollywood! — disse num sussurro. — Outra vez aqui... Outra vez para dominá-la pelo terror, como James Kellerman o fez até que caiu acossado pelos malditos do FBI.

     — Os tempos já não são os mesmos, Vera — observou-lhe Philip O'Freyton. — Hoje as "gangs" organizam-se sob as ordens de "sindicatos", o que faz com que estejamos mais unidos do que nos tempos da Lei Seca. Ganha-se dinheiro, embora em negócios um pouco mais... digamos, legais.

     A mulher voltou-se rapidamente para o filho, que permanecia silencioso a seu lado. Com voz dura perguntou-lhe:

     — Quer dizer que você não é o chefe de seus homens, como eu sempre pensei?

     — Oh, claro que sim! — respondeu O'Freyton por ele. — O que acontece é que os tempos mudaram. Holmes é o "chefe" indiscutível de todos nós, mas...

     — Cale se, Philip! — interrompeu-o Vera Kellerman. — Passei anos sonhando com esse momento. Desejei como ninguém o prazer de abraçar um filho, meu filho! — repetiu com forte entonação — Como toda mãe tem o dever e o direito de fazê-lo. Talvez que se em meu coração se tivessem albergado o afeto e o carinho, eu não seria hoje mais do que uma mulher com ânsias de viver a vida e esquecer um trágico passado... Mas não, em meu peito não se albergam mais do que rancores e ódios. A sociedade semeou ventos e furacões nele, e não pode dar outros frutos do que tempestades tumultuosas, famintas de destruições... Sindicatos! — gritou com desprezo. — Nos tempos de James Kellerman não havia outro sindicato do que a proteção de uma boa automática. Sim, assim era e assim tornará a ser! — terminou, categoricamente.

     Ficaram em silêncio. Nesse momento atravessavam o Boulevar Cahuenga e entravam por Sunset Boulevar, em frente ao teatro chinês. Depois, entraram pelo de Santa Monica, em direção a Beverlly Hills. Um pouco antes de chegar ali, Holmes Kellerman tinha um magnífico hotelzinho, o qual, por sua vez, era o quartel-general da "gang" por ele dirigida.

     O filho de Vera Kellerman não tinha ainda vinte e cinco anos. Sua infância fora passada num orfanato, até o dia em que atacou um dos professores e fugiu, temendo o castigo. Perambulou pelos "bas-fonds" de São Francisco e, em mais de uma ocasião, teve de fugir da Polícia Metropolitana, que sabia da existência de um bando de jovens ladrões, chefiados por um rapaz louro, de olhos cinzentos, cuja idade não passaria de uns treze anos.

     Foi naquela época que um dia visitou sua mãe; na penitenciária, coincidindo com a chegada de Philip O'Freyton, que fora o único sobrevivente do bando de James Kellerman.

     — Recolha-o, Philip — disse aquela mulher, de mãos crispadas nas grades do locutório. — Recolha-o e que ele fique com você. Se eu sair daqui algum dia e se, até então, ele não tiver terminado como seu pai, eu mesma o guiarei para o caminho da vingança.

     E foi assim que Holmes Kellerman iniciou seus passos pela mesma rota que o pai. Por alguns anos o moço "trabalhou" na "gang" que O'Freyton organizara. Foi bastante útil devido a sua pouca idade. Agiu como "informante" e chegou até a seguir alguns cursos, obrigado por Philip O'Freyton.

     — Estude, Holmes — dissera-lhe um dia. — Os tempos estão se transformando e, com eles, os processos. Você nos será mais útil tendo conhecimentos, do que como um futuro chefe de "gang", com os dedos cheios de calos e incapaz de utilizá-los a não ser para contar dinheiro.

     Kellerman Júnior assim o fez. Seguiu alguns cursos na Universidade de Oakland. Entretanto, nunca deixou de pertencer ao bando de O'Freyton e que muito logo seria seu.

     Chegou a guerra. A América do Norte enviou suas tropas para a Europa e, ainda não tendo dezoito anos, Kellerman ingressou como voluntário na American Air Force. Nunca soube por que o fizera. Fora um impulso repentino que se apoderara dele, ao ver desfilar pelas ruas os moços das Forças Aéreas. E, coisa rara: Holmes Kellerman cobriu-se de glória pilotando um "Mustang", avião de caça que operava numa esquadrilha do Pacífico.

     Ao regressar da guerra, tomou praticamente o comando dos homens que até aquele momento obedeciam a Philip O'Freyton. Esse ficou de lado, porque, como dizia, "seriam mais bem comandados por um homem que fora oficial das Forças Aéreas Americanas, do que por ele, velho e cansado, embora tivesse sido lugar-tenente do famoso "chefe" James Kellerman".

     — No fim de contas — disse a seus homens, quando tomou tal determinação — o moço é digno de seu pai. Temos que obedecê-lo, que ele nos fará ganhar dinheiro e muito.

     Kellerman organizou tudo, de maneira a evitar derramamento de sangue inútil. Foi a partir da terminação da guerra, quando os "sindicatos", chamados por alguns de "sindicatos do crime", começaram a tomar impulso nos Estados Unidos. Os antigos "gangsters" organizavam-se num novo tipo de delito, que a maioria das vezes ficava encoberto por negócios respeitáveis e autênticos. Tony Ascardo, em Nova Iorque, dirigia um deles; um irmão de Al Capone, em Chicago, o outro. E era este, precisamente, quem tinha entre suas mãos o controle dos modernos delinquentes da Califórnia.

     Holmes Kellerman era proprietário de uma rede de "night-clubs". Eram mais de dez, espalhados desde São Francisco à fronteira mexicana. Mas, além disso, a "gang" daquele homem dedicava-se a outro assunto, menos confessável: introduziam, clandestinamente no país, chineses procedentes do outro lado do Pacifico.

     Uma noite (já se haviam passado mais de cinco anos desde a terminação da grande contenda mundial), Kellerman encontrava-se sentado atrás de uma mesa no Topanga Club, um dos cabarés que tinha em Hollywood. A seu lado, Philip O'Freyton; outro de seus homens, chamado Luigi Frasetto, e uma moça de olhos sonhadores, cabelos de ouro caídos nos ombros em estudado descuido, emoldurando um rosto redondo, no qual a pureza das feições completava e aumentava a beleza e harmonia do semblante.

     — Alô, Holmes! — saudou uma voz, às costas do moço.

     Voltou-se, reconhecendo um antigo companheiro dos tempos da guerra. Sinceramente, sentiu alegria. Era um homem jovem que aparentava ainda não ter ultrapassado os trinta anos.

     Kellerman não podia esquecer os dias de camaradagem nas Filipinas, onde tinham operado juntos sob as ordens do general McArthur. Levantou-se com um ar surpreendido.

     — Steven! Quem havia de dizer? — Steven Simenon, depois de tantos anos... — Mas, venha, sente-se, está entre amigos.

     Apresentou-o a seus companheiros e o recém-chegado sentou-se entre eles. Conversaram sobre mil coisas; Kellerman contou que, por assim dizer, estava vivo por causa dos cuidados do Steven Simenon.

     — Isso não tinha a menor importância — disse o outro. — Kellerman era o Benjamim da esquadrilha e todos procurávamos protegê-lo um pouco.

     Já ia bem avançada a madrugada, Simenon quis despedir-se.

     — Já está na hora de me retirar, Holmes — disse. — Mas, eu gostaria muito de falar com você.

     — Pode fazer, estamos entre amigos. Já lhe disse que Carola será minha mulher, algum dia.

     — Não, prefiro deixar para amanhã. No fim de contas, os negócios não devem misturar-se com os prazeres.

     — "O. K.", menino. Mas, se quiser, espere um pouco. Costumo acompanhar Carola até em casa, todas as noites... Venha conosco — fez uma pausa. — Trouxe o carro?

     — Não. Tomei um táxi.

     — Então nem se fala mais. Vamos.

     E, sem esperar pelo consentimento, Holmes Kellerman ajudou a jovem a levantar-se.

     Poucos minutos depois, seu carro corria pelo Boulevar Wilshire em direção a Los Angeles. Passado Figueroa Street, Kellerman parou o carro em frente a uma moderna casa.

     — Adeus, Holmes, até amanhã — despediu-se a moça, com bem timbrada voz, depois de tê-lo feito do outro ocupante do veiculo. Os três tinham vindo na frente; Kellerman dirigindo, a moça no meio e Simenon na outra ponta.

     — Adeus, querida, até logo — corrigiu, com um sorriso.

     E Carola Mason, depois de estender a mão ao amigo de seu futuro noivo, perdeu-se de vista ao entrar em casa.

     O "chefe" dirigiu o carro por Figueroa Street. Voltou para Hollywood por Pico Boulevard.

     — É encantadora — disse, depois de alguns minutos de silêncio.

     — Sim, pelo menos parece. — Nova pausa.

     — Bem — rompeu Kellerman, quando passavam em frente aos estúdios da Twenty Century Fox. — Você queria falar comigo, não é?

     — Sim, Holmes, preciso falar-lhe... Mas, antes, perdoe uma pergunta que pode parecer indiscreta: Essa moça significa muito para você?

     Kellerman franziu o cenho. Parou o carro, quando ainda não haviam passado os muros do estúdio cinematográfico. Voltou-se para o amigo.

     — O que é que quer dizer?

     — Precisamente o que perguntei. O que significa para você Carola Mason?

     O "gangster" ficou em silêncio por alguns segundos. Logo...

     — Não sei por que me faz essa pergunta, mas imagino que irei saber... Sim, de fato, Carola é muito para mim. Trabalha na R.K.O... Não como estrela, não. É "Script-gírl", mas por pouco tempo, eu acho. Espero que minha mãe... volte da Europa para casar-me e abandonar Hollywood.

     — Escute, rapaz — disse-lhe Steven Simenon — tem alguma dúvida de que eu seja seu amigo?

     — Claro que não. As amizades nascidas no perigo e na desgraça são as que perduram. Por quê?

     — Porque quero que compreenda que vim a você como amigo e não de outra forma. Escute com calma, Kellerman: quando sua mãe volta da... Europa?

     Pela mente do "gangster" passou uma idéia. Seu amigo estava inteirado da verdade. Isso não era nada estranho, pois muita gente sabia em Los Angeles, Hollywood e em grande parte da Califórnia, quem era Holmes Kellerman.

     — O que é que quer? — perguntou, olhando com dureza para seu interlocutor.

     — Vou lhe dizer algo que você vai escutar com toda a calma — foi falando lentamente, talvez para que o outro assimilasse tudo o que ia dizendo: — sei de onde volta sua mãe. Sei — repetiu — que "chegará" — acentuou a palavra — no dia cinco de agosto de mil novecentos e cinquenta e um. E sei — tornou a dizer — o "que" motivou sua ausência de vinte e cinco anos.

     Por uns segundos ficaram tão silenciosos que até eles chegavam os sons de uma orquestra tocando dentro dos estúdios da Fox. Talvez estivessem rodando alguma película àquela hora da madrugada.

     Kellerman respirou profundamente.

     — Desde quando está tão bem informado?

     — Desde que lutávamos lado a lado contra aqueles malditos japoneses. E não esqueça uma coisa, Kellerman: um dos inspetores federais que sua mãe matou chamava-se Simenon. Era meu pai.

     Holmes ergueu pouco a pouco a cabeça para olhar os olhos de seu acompanhante.

     — Você sabia disso, quando me protegia nas Filipinas?

     — Sim, eu sabia.

     — E, apesar disso... ?

     — Os filhos não podem arcar com as culpas dos erros dos pais... Além disso, lutávamos pelos Estados Unidos. — Tornou a fazer uma pausa para acrescentar em seguida: — Eu — disse essa palavra muito lentamente, acentuando-a para dar maior significado ao que queria. — "Eu" — repetiu — ainda sigo lutando pelos Estados Unidos. O que lamento é que, nessa nova Filipinas, você faça o papel de japonês.

     Kellerman foi compreendendo um pouco de tudo aquilo.

     — Pertence à Polícia?

     — Não; pertenço ao FBI. Faz dois anos que saí da Academia de Quântico. E só quinze dias que fui destinado a lutar contra o crime organizado em Los Angeles. Vá embora. Se seu prazer é lutar contra a Lei, vá embora para outro lugar; mas não me obrigue a lutar contra você. Não quero ser eu quem vá levá-lo para uma prisão ou... para algo pior. E, sobretudo Kellerman, não influirá nada em mim a amizade que tivemos... que temos — retificou — para cumprir com meu dever. Foi por esse motivo que eu queria falar com você.

     O "gangster" pôs o carro em marcha.

     — Onde quer que eu o deixe? — disse, como única resposta.

     — Aqui mesmo. Creio que nossos caminhos se cruzaram, embora militemos sob diferentes bandeiras.

     Steven Simenon abriu a porta e saltou do carro. Ainda antes de andar, estendeu a mão.

     — Sou seu amigo, Holmes. Mas não esqueça que estou atrás de você, como estou atrás de todos que vivem à margem da Lei. Adeus. Pense em Carola Mason e resolva se por ela vale a pena viver honradamente.

     Holmes Kellerman esboçou um sorriso. Estreitou a mão que lhe estendia o agente do FBI.

     — Apesar de tudo, sou seu amigo — disse. E, pisando o acelerador, afastou-se, rodeando os estúdios da Fox, pelo Boulevar que o levaria até o de Santa Monica, onde ficava sua casa.

     Steven Simenon ficou contemplando a mão que o "gangster" estreitara.

     "Sinto muito, meu amigo — murmurou — mas a Lei é a Lei."

     Pela mente de Holmes Kellerman, enquanto ia no Cadillac ao lado de sua mãe, passou a lembrança de tudo quanto sucedera naqueles dias. Efetivamente, o agente do FBI estava-se tornando perigoso para seus interesses. Talvez, se tivesse aceitado seus conselhos, tudo teria sido mais fácil; mas Philip O'Freyton negou-se categoricamente a secundar um projeto tão descabelado — segundo suas próprias palavras —, com o qual deixariam o campo livre não só aos federais como a outros "gangsters" que tentavam obter a supremacia em Los Angeles e Hollywood.

     Vera Kellerman olhou para o filho. Notava que algo raro passava-lhe pela mente. Foi uma intuição, pois não podia conhecer suas reações.

     — No que é que está pensando?

     — Pois... francamente, mãe. Às vezes acho que devíamos viajar para a Europa. Isso está se tornando um tanto... violento. Pela segunda vez detiveram um barco que trazia chineses para os Estados Unidos. Eram imigrantes clandestinos dos quais nós tínhamos que nos encarregar em Malibu Beach... A Polícia de Imigração, junto aos do FBI, conseguiram detê-los, quando dois de nossos homens estavam esperando por eles. Resistiram e foram metralhados.

     Vera pousou a mão sobre o braço do rapaz.

     — Deixaria de ser filho de seu pai se por sua cabeça passassem tais pensamentos. Eu mesma lhe cuspiria no rosto, se soubesse que era covarde.

     Numa transição, acrescentou:

     — Mas não, filho. Sei que você não pode estragar vinte e cinco anos de espera. Essa é minha oportunidade, a oportunidade de sua mãe, a quem ninguém pode impedir que se vingue. Tenho projetos: não se importe que esse assunto dos chineses vá por terra. Desde hoje estarei junto de você.

     Voltou a cabeça para O'Freyton e, olhando-o de olhos cintilantes, terminou:

     — Você me enganou, Philip. Confiei-lhe meu filho para que fizesse dele um homem como James Kellerman entendia que eram os homens... Mas, não — acrescentou —, talvez seja imaginação minha. Holmes será o dono de Hollywood.

     Nesse momento o carro deteve-se alguns segundos. A porta do jardim da casa do "gangster" abriu-se e o veículo entrou. Minutos depois, Vera Kellerman encontrava-se, pela primeira vez depois de vinte e cinco anos, num luxuoso dormitório.

     Enquanto se despia para entrar no banho, um pensamento acudiu-lhe à mente: "Sim — pensou, — essas roupas que deixo no chão são como a mortalha de um morto que abandonasse a sepultura. Para mim abriu-se o túmulo da penitenciária, mesmo que outros se estejam abrindo nesse momento, esperando sua presa de carne morta." Depois, em voz alta, terminou:

     — Sim, eu tratarei de fazê-los ficar bem cheios.

    

                 O HOMEM DA CAMÉLIA

     Steven Simenon, o agente do FBI, encontrava-se na estação de Policia do bairro chinês de Los Angeles. Mais de dez dias haviam passado desde que Vera Kellerman saira da penitenciária de Bakersfield.

     Um "yellow" (¹) o havia informado sobre chineses que viviam clandestinamente na cidade. O capitão da Brigada de Imigração, Martin Gross, enviara um agente com um carro-patrulha para que se apresentasse naquela estação policial. A policia federal e a de Imigração estavam trabalhando conjuntamente, posto que haviam surgido algumas ramificações no caso dos orientais. Além da entrada nos Estados Unidos daqueles homens, fato que já em si violava a Lei federal, fora notado um forte contrabando de drogas, procedente do outro lado do Pacífico.

     O capitão Gross indicava a Simenon a conveniência do exame num certo lugar de Chinatown. Já tinham preparado dois carros, quando o telefone soou estridentemente.

    

     (1) "Yellow": amarelo. Em gíria norte-americana, confidente.

    

     — Alô! — disse Martin Gross, levando-o ao ouvido.

     Escutou durante alguns segundos. Depois, apanhando um lápis, marcou uns sinais sobre um papel.

     — Está bem. Sim, entreguem-lhe um pouco, não tardamos.

     Levantou-se e, ao mesmo tempo em que recolhia o chapéu, explicou a seu acompanhante:

     — Outra vez esse bando de extorsionários. Em Main Street, próximo à ponte que cruza o rio, estão querendo "proteger" a um comerciante. Vamos, tentaremos caçá-los.

     Segundos depois, o carro-patrulha corria por Chinatown em direção ao lugar assinalado. No veículo iam vários homens, dispostos a entrar em ação.

     Joe Capelli era um italiano, cujo restaurante da Main Street tinha fama em todo o bairro chinês e também fora dele. De noite, à saída dos teatros e cinemas, seu estabelecimento enchia-se de um público elegante que ia comer, entre outras coisas, a especialidade da casa: espaguetis ou talharinis. De dia também se enchia o estabelecimento, embora então não fosse o público de custosos trajos de noite e de camisas engomadas.

     No momento em que o carro da Polícia se aproximava de seu estabelecimento, abrindo passagem entre o uivo das sereias, Joe Capelli discutia com dois indivíduos, tentando convencê-los de alguma coisa.

     — "Per la Madonna!" — gritava. — Já lhes disse que não necessito proteção e nenhuma espécie de seguro.

     — Você é um cabeçudo, Capelli — respondia-lhe um dos que falavam com ele. — Vinte e cinco dólares semanais é uma miséria e, dessa forma, afasta um grande peso de cima de você.

     — Olhe — interveio o outro visitante. — Imagine que chegam aqui alguns rapazes com vontade de se divertirem e, quando tiver o estabelecimento cheio desse público elegante, tiram as pistolas e começam a disparar... para o ar. Estou certo de que se isso se repetir mais de uma vez, sua clientela irá se retirando... Ninguém gosta de receber uma bala, não é? Lembre-se do que sucedeu ao Roxy Theatre. O empregado teimou em não se assegurar em nossa Companhia e você viu: por três ou quatro vezes soltaram bombas de gás lacrimogêneo no melhor do espetáculo. Creio — acrescentou, dando uma risadinha — que os poucos espectadores que agora aparecem por lá levam máscaras antigas.

     — Não me interessa — respondia, obstinadamente, o italiano. — Em último caso, a polícia me protegerá. Sim, a polícia; para isso pago uma contribuição ao Estado.

     Um dos visitantes, um homem que usava uma camélia na lapela, apertou as mandíbulas. Agarrou aquela entre o polegar e o índice e, inclinando um pouco a cabeça aproximou o nariz da flor, embora não sentisse nenhum aroma.

     — Você é um estúpido, Capelli. Vinte e cinco dólares por semana é muito menos dinheiro do que perderá num só dia, dos muitos que terá de aborrecimentos. Talvez cheguem mais tarde alguns rapazes bêbados, que se divirtam lançando pedras nas vitrinas... Também isso você poderia evitar com nossa proteção; mas, se teimar, então... Apesar de tudo, estou certo de que dentro de alguns dias, quando passarem uns cinco ou seis, no máximo, vai aceitar o negócio que hoje recusa estupidamente.

     Joe Capelli era um homem de mau gênio e de rápidos impulsos. Por isso, ao ouvir o que o indivíduo dizia, falou além da conta:

     — "Sapristi!" — exclamou. — Se seus imundos homens vierem aqui para me estragar o negócio, não vão conseguir nada, não! Para isso sou um contribuinte, e posso pedir auxílio à polícia. — Ou melhor — acrescentou, sentindo aproximar-se a sereia policial de um carro-patrulha. — Foi o que eu já fiz, sim. Enquanto vocês estavam aqui, minha mulher telefonou para o posto mais próximo.

     Lançou uma gargalhada, acrescentando:

     — Isso é muito engraçado mesmo... Veremos se vocês são capazes de assegurar ou proteger alguém, dentro da Chefatura.

     O homem da camélia lançou uma grosseira praga. Entretanto, o fez sem desconcertar-se, com uma tranquilidade tal, que parecia que conversavam amistosamente.

     — Foi você quem quis, comedor de macarrão — disse, ao mesmo tempo em que, num movimento rápido, puxou uma pistola cujo cano aparecia alargado por um silenciador "Maxim". Sem dizer nada mais, com um frio sorriso nos lábios, disparou uma só vez sobre Joe Capelli.

     — Não! Não! "Madonna!" — gritou este.

     Foi a última coisa que disse. Um feio furo aparecia entre seus olhos, por onde se escapava um filete de sangue.

     O italiano caiu sobre o balcão, ficando numa grotesca posição.

     Enquanto isso, o outro "gangster" empunhara uma automática e com ela ameaçava os poucos clientes que presenciavam com terror o acontecimento.

     — Ninguém se mova! Vamos, rápido, ao chão! Uma gorda mulher, de uns cinquenta anos, saiu dando gritos e lançou-se contra o que havia atirado no italiano. Era a mulher do pobre Joe Capeli que, com uma fúria vingadora cravou-lhe as unhas na cara, deixando-lhe sulcos sangrentos.

     — Cadela! Maldita seja sua alma! E ao mesmo tempo em que lhe dava uma forte patada no ventre, o homem da camélia retrocedeu um passo, antes de atirar contra ela.

     — Vamos, rápido! A Polícia está chegando! — avisou ao outro "gangster", ao mesmo tempo em que corria para a porta com uma pistola "Colt" na mão.

     Sua saída do estabelecimento coincidiu com o carro-patrulha, que, com um forte ranger de freios, parou.

     O homem da camélia e seu companheiro correram desesperadamente para um Ford que, nesse momento, punha-se em marcha. A porta foi-lhes aberta de dentro e os dois lançaram-se, um atrás do outro, para o carro. Depois, este acelerou pela Main Street, em direção ao centro de Los Angeles.

     Do carro-patrulha saltaram dois policiais uniformizados que entraram no restaurante italiano. Só chegaram a tempo de ver algumas pessoas assustadas, que, estendidas no chão, não faziam o menor movimento e uma pobre mulher gravemente ferida, mas que conseguira arrastar-se para chegar junto ao marido, a quem acariciava soluçando, enquanto de seus lábios só saíam palavras incoerentes.

    Steven Simenon e o capitão Gross tinham iniciado a perseguição ao Ford.

     Este saiu para o Sunset Boulevard e nesse momento corria para Hollywood, sempre seguido pelo carro da Polícia.

     — Pise fundo, Luigi — ordenou o homem da camélia. — Temos de deixar aquele carro bem para trás.

     Fez uma pausa, aproveitando para olhar pela janelinha traseira.

     — Maldito seja! — exclamou. — Joe Capelli foi um estúpido. Ele mesmo procurou o chumbo que não pôde digerir... Maldita seja sua alma! — repetiu.

     Era o que, nesse momento, passava os dedos pelos arranhões que tinha no rosto, causados pela mulher do italiano.

     Luigi, o motorista, freou repentinamente o que fez os ocupantes do carro caírem para frente. Nesse momento passavam diante das construções do Rádio City e um carro-patrulha, que desembocava por Vine Street, interceptava-lhes a passagem. Rapidamente deu marcha à ré por alguns metros, até chegar à altura de Gower Street, por onde se meteu.

     O carro do agente do FBI teve que dar uma guinada perigosa para evitar que o dos "gangsters" lhe viesse em cima. Ele mesmo interceptou a passagem ao carro da Polícia que acudira, chamado por rádio, e quando iniciaram a perseguição haviam perdido minutos valiosos. Só conseguiram obter informações dos policiais postados diante da porta dos estúdios da Colúmbia de que um Ford, com as características do que seguiam, tinha dobrado para o Boulevar Santa Monica.

    

     O Topanga Club atingira o máximo de animação na noite. Não havia uma só mesa desocupada e entre os assistentes viam-se caras conhecidas de populares estreias cinematográficas. Sorrisos e saudações eram trocados de mesas para mesas, embora entre dentes ou atrás de um amistoso "Alô!", criticassem o vestido ousado de Jean Simmons ou a última aventura, mais ou menos extravagante, de Eddie Braken.

     O Topanga Club fora decorado por um dos mais famosos decoradores de Hollywood. Seu grande salão de festas era um pequeno anfiteatro, no qual as mesas se iam afastando da pista de danças, seguindo uma série de amplos degraus, a fim de que a visualidade dos assistentes fosse perfeita.

     Em redor de uma mesa, num lugar afastado dos demais e reservado para a direção do estabelecimento, estava Holmes Kellerman, acompanhado de sua mãe e de Philip O'Freyton.

     — Pois eu lhe afirmo — dizia o chefe a seu lugar-tenente, — que é preciso tirar de Los Angeles esses sujeitos — sua voz era modulada, sorria amavelmente a algum conhecido, mas seu tom era firme e enérgico. — Nunca me agradou que trabalhassem para nós. — São sanguinários e usam as armas mais do que a cabeça.

     O'Freyton permanecia silencioso. Voltou o olhar para Vera, ao mesmo tempo em que encolhia os ombros, com um gesto de indiferença.

     Vera Kellerman não parecia a mesma que dias antes saíra da penitenciária. Naquele momento, embora se visse que era uma mulher madura, não representava os quarenta e sete anos, que na realidade tinha. Vestia um traje de noite em "chiffon dorée" que se ajustava ao busto para cair num amplo véu, desde a cintura. Tinha os cabelos recolhidos no alto da cabeça, num artístico penteado, enquanto seu rosto, maquilado, ocultava os estragos do tempo que para ela, mais do que para outra mulher, não havia passado em vão.

     Captou o olhar de O'Freyton. Sem dizer nada, tirou um cigarro de uma pequena cigarreira que estava à sua frente e levou-o aos lábios.

     — Quer me dar fogo? — pediu.

     Depois de lançar umas baforadas de fumaça ao ar, acrescentou:

   — Você é um pusilânime, Holmes. Nos tempos de seu pai não teria progredido. Nos tempos dos lutadores que só deviam a sobrevivência à sua própria autoridade. Era a época em que os peixes grandes engoliam os pequenos e para ser um peixe grande não se podia ter medo de nadar em sangue.

     — Depois — objetou Kellerman — ainda se viveram épocas piores: a de Dillinger, de Al Capone, Torto e tantos outros que não puderam, apesar de nadar em sangue, sobreviver à época. Estando você ausente, nasceu a Federal Bureau of Investigation. É o terrível FBI, do qual suponho que deve ter ouvido falar, não?

     — Está equivocado, Holmes — respondeu Vera com um sorriso. — O FBI já existia quando seu pai...

     Calou-se. Numa brusca transição, acrescentou:

     — Foram homens do FBI, autênticos federais, os que puseram fim à vida daquele valente. . . Sabe que idade tinha eu, então? Claro que sabe. Vinte e dois anos. E já sabia nadar nisso que você chama de sangue. Para me prenderem, tiveram que me ferir e deixar-me sem sentidos. Ali cai, junto a James Kellerman, a quem só puderam caçar quando eu já não vivia. — Verdadeiramente, filho, você está me decepcionando. Não se encaixa ao posto de "chefe". O sangue o assusta, quando o mais provável é que, com o tempo, caia banhado em seu próprio. Você não é mais do que um homem de negócios, dedicado à exploração de vários "night-clubs". Não compreendo como pôde ganhar dinheiro.

     — Bem, Vera — interveio O'Freyton. — Na verdade, o rapaz tem seus métodos. O fato de trazer chineses tampouco nos saiu tão mal. Com eles vinha alguma outra mercadoria... Quando lhe cedi meu lugar, ao terminar a guerra, não o compreendi. Depois, mais tarde, vimos que se ganhava mais e que se evitava um perigoso pequeno móvel: a cadeira elétrica.

     Vera Kellerman fez um gesto de asco, bastante expressivo. Voltou a fumar e ficou silenciosa.

     A Orquestra interpretava uma melodia, dançada por vários pares.

     O "gangster" arrastou sua cadeira, aproximando-se mais da mãe. Depois, falou:

     — Falando claro, nada se disse sobre o que me interessava. Jimmy, o da camélia, e John Lester, devem sumir o quanto antes. Esses idiotas meteram-se numa enrascada e não serei eu quem vá protegê-los... Além do mais, você sabe que não me agradou que trabalhassem para nós. Você os quis e aí estão as consequências. A "proteção" e o "seguro" conseguem-se por outros meios: pelo terror. Um homem com medo, paga; um morto não serve para nada.

     Vera não disse uma só palavra. Limitou-se a fumar e observar o que acontecia em volta. Seu filho ia dizer algo mais, mas pensando melhor, ergueu-se e afastou-se da mesa.

     — É um caso perdido — comentou a mulher. — Essa estúpida sensibilidade vai acabar com ele.

     Holmes Kellerman entrou no luxuoso gabinete que tinha no "night-club", dirigindo-se diretamente ao telefone:

     — Vou lhe passar o setor onde ela se encontra — disse uma voz feminina, respondendo à pergunta que lhe fizera.

     Pouco depois falava com Carola Mason.

     — Estamos terminando — respondeu ela. — Dentro de quinze minutos sairei. Não creio que demore mais de meia hora para estar com você.

     — Está bem, querida. Apresse-se.

     Desligou e, logo, sentando-se numa cômoda poltrona, apoiou a cabeça no respaldar, fechando os olhos. Parecia dormitar, mas a realidade era bem outra. Kellerman lutava consigo mesmo. Desde que sua mãe chegara à casa do Boulevar Santa Monica as coisas não marchavam como antes. Vera propusera-se voltar aos antigos métodos e ele sabia que, com o tempo, aquilo iria afundá-los a todos.

     Tornou a levantar-se. Acendeu um cigarro e, com ele na mão, começou a andar pelo gabinete. Continuou recordando aqueles últimos dias:

     Jimmy, o da camélia, e John Lester eram dois homens que haviam chegado a Los Angeles, procedentes de Chicago. A "garota" de um deles conhecia Vera Kellerman, porque havia passado alguns anos na penitenciária de Bakersfield. Tornaram a encontrar-se e, dessa forma, Vera conheceu os dois "gangsters". Desde que soube quem eram, insistiu com o filho para que os admitisse a trabalhar com ele. Foi dessa forma que aqueles dois indivíduos haviam entrado em sua organização e, precisamente, na primeira vez que saíram para "trabalhar", aconteceu aquilo no restaurante de Joe Capelli.

     Kellerman fumou cigarro atrás de cigarro. Continuou passeando, sem que se desse conta de como ia passando o tempo. Por duas ou três vezes chegou até uma janela e olhou para fora. Dava para o Sunset Boulevard e era ali que estava a entrada do Topanga Club. Naquele momento, o moço voltou a olhar para a rua. Viu um carro que se detinha e dele sair Carola Mason.

     Sua fisionomia distendeu-se num sorriso porque, na realidade, Holmes Kellerman amava aquela moça.

     Ficou contemplando sua graciosa silhueta quando, de repente, seu rosto sofreu uma brusca transformação. Pouco a pouco o sorriso foi-se apagando de seus lábios para converter-se num gesto duro. Franziu o cenho e, jogando fora o cigarro que fumava, retirou-se de seu posto de observação.

     Tinha visto Steven Simenon, o agente do FBI, descendo do carro que trouxera a moça.

     Kellerman sabia que ali estava o perigo. Conhecia suficientemente o agente federal para saber que era tenaz no que se propunha.

     O que teria ele dito a Carola? Jamais amaldiçoara tanto o momento de fraqueza com a mãe, quando admitira entre seus homens a Lester e a Jimmy, o da camélia. Maldição! Até então nunca havia corrido sangue naquela classe de negócios. Referia-se, em seus pensamentos, ao concernente a "seguros" e "proteção". Todo o mundo oficial de Hollywood e de Los Angeles sabia que era ele quem dirigia esse assunto, mas nunca tinham podido provar. Agora tudo mudava. Havia corrido sangue, houvera um morto e, o que era ainda pior, o que fizera com que toda a imprensa fizesse escândalo, fora o fato de que uma mulher saísse gravemente ferida.

     Novamente amaldiçoou o estúpido assassinato daquele italiano. Na verdade, ele não era nenhum puritano, mas também era certo de que suas mãos, pelo menos diretamente, não se haviam manchado de sangue. A guerra era a guerra. Aquilo não contava.

     Serviu-se de meio copo de uísque e bebeu-o em dois goles. Depois encaminhou-se para a porta. Antes, fez girar sobre ocultas dobradiças, um quadro que havia na parede. Ficou a descoberto um pequeno observatório pelo qual se via o salão do Topanga Club. Olhou para sua mesa, vendo Carola Mason que, naquele momento, cumprimentava Vera Kellerman. Esperou alguns segundos, mas não chegou a ver Steven Simenon. Só então fechou o observatório e se encaminhou para a porta. Espichava a mão para apanhar o trinco, quando este girou e alguém a empurrou.

     — Alô, Holmes — saudou o agente do FBI, que era a pessoa que aparecera diante do "gangster".

     Por uns poucos segundos Kellerman ficou indeciso. O ar espantado que começou a desenhar-se em seu rosto apagou-se para dar lugar a um sorriso, mais ou menos hipócrita.

     — Alô, Steven — respondeu, ao mesmo tempo em que se afastava para deixá-lo passar. — Eu o vi chegar com Carola. Estava descendo para ir reunir-me a ela.

     — Sim, tive que ir aos estúdios da R.K.O. Assunto profissional — acrescentou. — Um exame no camarim de uma famosa estrela, que abusa demais de drogas. Na saída encontrei Carola Mason. Levei-a em meu carro até sua casa no Boulevar Wilshire e depois apanhei-a para trazê-la aqui. Seu carro parece ter sofrido uma avaria... Bonito gabinete — acrescentou, olhando-o.

     — Sim, não está mal. Um uísque?

     — Aceito. "Ainda" — acentuou a palavra — somos amigos.

     Holmes serviu dois copos de uma garrafa de uísque escocês. Estendeu um ao agente federal.

     Depois de beber, Simenon largou o sobre urna pequena bandeja. Holmes imitou-o.

     — Bem — disse — agora vai me dizer o que quer, não é?

     O agente do FBI afastou as abas de sua casaca e sentou-se nos braços de uma poltrona.

     — Sim, vou lhe fazer uma só pergunta: onde escondeu os assassinos de Joe Capelli?

     Kellerman, em seu íntimo, amaldiçoou os dois "gangsters". Como temia, já começavam as complicações.

     — O que você está dizendo é japonês para mim — respondeu com tranquilidade. — E sabe que não consegui aprender uma só palavra durante nossa permanência em Tóquio.

     Steven Simenon levantou-se do lugar onde estivera sentado. Avançou um passo, até ficar em frente ao moço.

     — Escute Kellerman: você está brincando com fogo... um fogo carregado de eletricidade, que terminará por atingi-lo. Quer me dizer onde está o pistoleiro que levava uma camélia na lapela, no momento em que assassinou um pobre homem e feriu uma mulher? Quer me dizer onde estão escondidos ele e seu companheiro?

     — Olhe, Steven; estou certo de que você conhece minha vida, pois é agente do FBI. Mas, também, estou certo de que sabe quem são meus homens... Nunca tive entre eles nenhum com mania de usar camélias.

     — Efetivamente esse indivíduo escapou não faz muito de Chicago, quando a Polícia Federal ia agarrá-lo. Mas, o que é que me diz de um Ford, cuja matrícula a polícia pôde captar?

     — Se você se refere ao "Hollywood 10-46-20" tenho que dizer-lhe que essa é a matrícula de um de meus carros mas, precisamente esta tarde, denunciei seu roubo. Desapareceu pela manhã do estacionamento do McArthur Park, quando meu secretário, Philip O'Freyton, deixou-o ali enquanto ia ao Banco Nacional. Pode comprovar como por volta de onze horas, depositou alguns cheques na sucursal da Avenida Vermont.

     Simenon moveu a cabeça de um lado para outro, enquanto um sorriso desenhava-se em seus lábios.

     — O que você está é caminhando para a cadeira elétrica, Holmes. Eu o admiro. Sei que só o meio em que viveu fez com que esteja na beira dessa descida, ou melhor, já está nela, mas ainda não começou a rolar vertiginosamente, empurrado por cadáveres... Acredite que eu daria muito para não estar em Los Angeles e, às vezes até para não ser um agente. Entretanto, creio que eu, seu amigo, serei obrigado a levá-lo para o promotor do distrito ou para um Tribunal Federal.

     Kellerman ia falar, mas não passou de intenção seu movimento de entreabrir os lábios. O agente do FBI estava de costas para a porta; mas ele, de frente, viu naquele momento como sua mãe atravessava a entrada e olhava com olhos cintilantes para o agente federal.

     Um sexto sentido advertiu a este que alguém o olhava pelas costas. Foi algo assim como se seu cérebro captasse o olhar carregado de ódio daquela mulher. Voltou-se lentamente e inclinou a cabeça, numa muda saudação.

   — É... é um amigo — disse Holmes, apresentando o.

     Depois acrescentou, dirigindo-se a Steven:

     — Minha mãe, Simenon.

     Vera Kellerman foi avançando até que chegou junto ao policial. Ergueu a mão, como se a oferecesse para que a beijasse, mas quando o agente do FBI inclinou-se, estendendo a sua para recolher a da dama, esta lançou uma gargalhada, retirando-a.

     — É curioso — disse. — Pelo que ouvi ao entrar, o senhor é um... — ia dizer um "tira", mas não deixou escapar o vocábulo — um polícia, não?

     — Sim, senhora. Um agente federal. Do FBI, melhor.

     — E... chama-se Simenon?

     — Sim, senhora — repetiu, corretamente. Logo, após uma brevíssima pausa, acrescentou:

     — Mas isso nada tem a ver com minha amizade por Holmes Kellerman.

   Vera avançou um pouco mais, ficando seu rosto quase junto ao do jovem.

     — O senhor não parece ser amigo de meu filho. Ouvi suas últimas palavras. Mas, se isso ainda fosse pouco, há algo que ergue um muro entre o senhor e nós.

     Ficou em silêncio por alguns segundos. Depois rompeu-o, dizendo:

     — Escute. Há muitos anos havia um agente federal que se chamava como o senhor, Simenon.

     — Sim, mas não era agente. Era inspetor e... era meu pai.

     Vera abriu os olhos desmesuradamente. Depois, retrocedendo vários passos, soltou uma forte gargalhada. Sentou-se na poltrona que, pouco antes, o agente ocupava o continuou rindo.

     — É curioso — disse, entre risos. — O senhor, filho daquele inspetor.

     Logo sofreu uma brusca transformação. Levantou-se, gritando:

     — Saia! Saia imediatamente daqui! O filho do "tira" que matou Joe Kellerman não pode estar diante de mim, sem que eu lhe cuspa no rosto! Saia, antes que. . .!

     Calou-se e, nervosamente, abriu uma pequena bolsa que combinava com seu trajo de noite.

     Steven Simenon compreendeu a situação. Leu nos olhos daquela mulher algo que, possivelmente, avisou-o do perigo. Com um ágil movimento arrebatou-lhe a bolsa, já aberta. Tirou do interior uma pequena pistola de cabo de nácar, mas que nem por isso era menos perigosa do que outras de mais feio aspecto. Tirou o pente da arma e, guardando-o num bolso, deixou a arma sobre a mesa, depois de comprovar que não tinha nenhuma bala na agulha.

     — Sinto muito, senhora — disse da porta, quando se dispunha a sair. — Mas não posso consentir que faça comigo o mesmo que fez com meu pai.

     E dando meia volta, afastou-se do gabinete com passos firmes e seguros.

     Vera Kellerman seguiu-o com um olhar de ódio. Depois de alguns segundos, voltou-se para o filho e estendendo a mão para a porta, apontou, dizendo :

     — Você tem que matá-lo, Holmes! Mate-o! O filho do homem que matou seu pai não deve viver.

     Depois, como uma cantilena monótona, ainda repeliu por três vezes:

     — Tem que matá-lo... Tem que matá-lo... Tem que matá-lo...

    

                  VERA TOMA UMA DECISÃO

     Quando Steven Simenon abandonou o gabinete onde tinham ficado os Kellerman, desceu vagarosamente a escada, até chegar ao pé dela. Dali via-se todo o salão do Topanga Club. Nesse momento encontrava-se sumido numa semi-penumbra, dissipada em parte por um potente refletor que caia sobre um par de bailarinos acrobáticos, interpretando um número.

   O agente do FBI viu Carola Mason, acompanhada por Philip O'Freyton. Teve intenção de aproximar-se deles, mas não se decidiu e encaminhou-se para a porta. Só recolheu do guarda-vestidos a capa e um bastão com cabo de marfim.

     Quando abandonava o Topanga, uma salva de palmas fê-lo compreender que os bailarinos haviam terminado seu número. Subiu ao carro que o trouxera. Antes de pô-lo em marcha, ficou pensativo, fumando.

     Steven Simenon tinha sido enviado de Washington precisamente para acabar com o império do "gangsterismo" em Los Angeles. Hollywood era uma atração para os fora da Lei, porque em volta do brilho deslumbrante das estrelas cinematográficas, dos altos magnatas da indústria e dos opulentos visitantes à Meca da Sétima Arte, girava um complexo de circunstâncias muito propicio ao desenvolvimento do crime em suas múltiplas facetas.

     Lamentava ter que enfrentar-se com Holmes Kellerman. Era, talvez, o único amigo que tivera em toda a campanha do Pacífico. Amigo na verdadeira acepção da palavra, posto que se a todos os companheiros da esquadrilha os considerava assim, com Kellerman tivera uma amizade íntima da qual nascera um afeto que, naquele momento, dificultava sua missão. Entretanto, Simenon decidira ir até o fim. Estava convencido de que o assassinato do italiano tinha sido executado por homens de seu amigo.

     Olhou para o relógio do carro. Eram quase três horas da madrugada. Só então pôs o veiculo em marcha e, enquanto o dirigia para a Pershing Square, Steven moveu lentamente a cabeça ao pensar em Carola Mason.

     A moça queria de verdade a Kellerman. Sabia, ou melhor, tinha alguma desconfiança de seus sujos negócios, mas nunca chegara a aproximar-se da realidade da situação. Carola não estranhava que seu noivo tivesse um grupo de homens em seu redor, porque os clubes noturnos requeriam certas garantias desnecessárias em outros negócios. Ao mesmo tempo, desculpava o que ela julgava ser um contrabando de bebidas estrangeiras, destinadas aos salões de festa do noivo. Ouvira falar muito mal de Kellerman, mas, embora a moça não fosse nenhuma ingênua, conhecia muito bem as invejas e falatórios de Hollywood, capazes de estragar uma reputação e, talvez, isso mesmo servisse como propaganda eficiente para prestigiá-lo nos estúdios.

     Simenon sentia pena da moça. O encontro com ela nos estúdios da R.K.O. fora preparado de antemão por parte dele. Precisava ter urna longa conversa com Carola. E foi assim, efetivamente, que através dela pôde constatar duas coisas: ou estava alheia a todas as manobras de Kellerman, ou... era digna de figurar entre as maiores estrelas da tela. Mas, Steven, inclinava-se, sem nenhuma dúvida, para a primeira versão.

     O agente do FBI deixou o carro na garagem do hotel em que se hospedava. Subiu a seus aposentos e, antes de deitar-se, ficou andando alguns minutos pelo quarto. O dia seguinte seria muito movimentado, pois pedira um mandado judicial para proceder ao exame de algumas casas suspeitas.

     Simenon largou o cigarro no cinzeiro e, sem mais demora, meteu-se na cama. Pouco depois, ninguém diria que as preocupações o inquietavam, pois dormia um sono tranquilo, do qual foi tirado da maneira que menos poderia esperar.

     Vera Kellerman era uma mulher de ação. Nem bem o agente do FBI tinha saído do "night-club", o que ela comprovou pela janela ao vê-lo subir para o carro, voltou-se para o filho, que permanecia silencioso com outra dose de uísque na mão.

     — O que pensa fazer? — perguntou-lhe. Ao não obter resposta, continuou:

     — Se nesse caso fosse seu pai, eu bem saberia o que ele faria: daria uma ordem para que dois rapazes decididos o deixassem impossibilitado de levá-lo diante do promotor ou ao Tribunal Federal. Não pode negar que ele o ameaçou com isso, não é?

     — Efetivamente, mas... o que devo fazer? Não posso ordenar que o "liquidem". Steven Simenon é meu amigo. Salvou-me a vida, protegeu-me nas Filipinas, porque eu era o mais jovem dos pilotos.

     Arranjou a gravata diante de um espelho preso à parede, depois de largar o copo sobre a mesa e dispôs-se a sair do gabinete.

     Sua mãe interpôs-se entre ele e a porta. Seus olhos brilhavam de ódio. Erguendo a mão, que pousou no peito do jovem, deteve-o.

     — Você não fará isso, Holmes — disse lentamente. — Você não o fará, porque eu mesma seria capaz de matá-lo. Talvez, se fosse um simples "tira", isso não me importasse muito; mas é o filho do que disparou a metralhadora contra seu pai... Compreende? Eu estava ao lado dele; vi, senti os projéteis cravando-se em seu peito e o sangue empapando-lhe a roupa.

     Sua voz ia-se excitando. Chegou um momento em que, agarrando violentamente a curta manga do vestido, deu-lhe um puxão, até ficar de ombro nu. Depois, mostrou uma pequena cicatriz, acrescentando:

     — Tenho quatro como essas no corpo, Holmes. Quatro balaços que recebi daquele polícia, antes de acabar com ele... — lançou uma histérica gargalhada. — E você quer ser sensível como um colegial! Quer se afastar do caminho da Lei, como se isso fosse o bastante!... Estúpido! Assim, só o que conseguirá é que esse agente termine com você, como o pai dele terminou com o seu!

     Kellerman levantou a manga do vestido da mãe, até lhe cobrir de novo o ombro.

     — Não posso. Sinto muito, mas eu não posso matar Steven Simenon.

     — Covarde!

     E, ao mesmo tempo em que dizia isso, retrocedeu um passo. Depois, com toda a força que a cólera lhe dava, ergueu a mão, deixando-a cair por duas vezes, à direita e à esquerda, no rosto de Holmes Kellerman.

     Por cima do abafado ruído da orquestra que chegava até eles, destacaram-se os secos estalos das duas bofetadas.

     O "gangster" apertou as mandíbulas até que se ouviu, claramente, o ranger de seus dentes. Cravou o olhar na mãe, sem dizer ruído, enquanto esta deu meia volta e saiu do gabinete, com uma forte batida na porta que repercutiu por toda a habitação.

     Quando Vera chegou ao andar onde estava o cabaré, já não se viam em seu rosto as tumultuosas paixões que, momentos antes, haviam-se apoderado dela. No curto trajeto entre o gabinete, onde havia ficado seu filho e o salão, tomou uma determinação que decidiu pôr em prática.

     Aproximou-se da mesa onde haviam ficado Carola Mason e Philip O'Freyton.

     — Holmes a está chamando, querida — disse sorridente, olhando para a moça. — Está em seu gabinete. Suba, talvez ele tenha coisas para lhe contar.

     — Está bem — respondeu a moça. — De qualquer maneira, estou aborrecida com ele. Tem-me deixado muito abandonada.

     Quando a moça os deixou, encaminhando-se para onde estava seu noivo, Vera Kellerman fez um sinal a Philip O'Freyton.

     — Vamos, preciso de você. Leve-me em seu carro.

     Pouco depois, estavam instalados no veículo.

     — E dai? — perguntou o lugar-tenente de Kellerman. — O que foi?

     — Vamos dar um passeio. Deixe-me ordenar as ideias, pensar no que decidi fazer.

     — Está bem. Não estou entendendo muito, mas está certo.

     Pôs o carro em marcha. Desceram por Sunset Boulevard, até chegarem ao mar. Tomaram a avenida beira-mar. Passada a pequena aglomeração de vilas e hoteizinhos da Praia do Rei, Vera tocou no braço de O'Freyton.

     — Pare — disse, secamente.

     O veículo ficou detido no lugar de onde se divisava a Universidade de Loyola.

     — O que foi que houve?

     — Onde estão escondidos Lester e Jimmy, o da camélia?

     — Não muito longe daqui. Em Culver City.

     — Formidável. Agora, ouça.

     E Vera Kellerman contou parte do que acontecera com o filho e o que ouvira o agente do FBI dizer. Ainda acrescentou algo mais que não fora dito, o que obrigou o homem a perguntar:

   — Você disse que esse agente tem uma ordem de prisão contra mim?

     — Isso mesmo. Ele disse claramente. Precisamos "silenciá-lo". Leve-me ao lugar onde estão esses rapazes.

     — E Holmes, o que é que diz?

     — Não se preocupe com ele. Deixou o assunto em minhas mãos.

     — Hum... — O'Freyton sacudiu a cabeça de um lado para outro.

     Era um homem que estava beirando os cinquenta e seis anos e aquilo não lhe agradava. Num certo tempo, quando "trabalhara" sob as ordens de James Kellerman — há mais de vinte e cinco anos — inclusive quando ele próprio organizara uma "gang", a ação e a violência eram seus processes favoritos. Mas, desde que Holmes se encarregara do bando e demonstrara que o derramamento de sangue era uma coisa pouco prática, embora às vezes se fizesse necessária, Philip O'Freyton passara a viver mais tranquilo.

     — Bem — disse, com um suspiro. — Quer dizer que vamos voltar aos velhos métodos? Não sei o que dirão os do "sindicato". Isso poderia ser também, perigoso para eles, mas... se o chefe ordena... Creio que ele sabe o que faz. Vamos.

     Fez o carro arrancar. Rodaram em silêncio durante alguns minutos. Antes de chegar a Culver City, depois de atravessar o Boulevar Sepúlveda, O'Freyton parou o carro. Estacionou-o na Avenida Washington e convidou a mulher a descer. Caminharam alguns metros, até chegarem a uma casa de aspeto moderno. Era um "boarding house" onde se alojavam "extras" e pessoal secundário dos estúdios cinematográficos próximos.

     O'Freyton tirou uma chave e abriu o portal. Depois de atravessá-lo, sempre seguido por Vera Kellerman, entraram no elevador.

     — Nono andar — disse secamente ao "boy".

     Pouco depois, Philip batia à porta, de uma forma combinada. Antes havia apertado o botão de uma campainha, cujo som chegou até os recém-chegados.

     A porta abriu-se alguns milímetros e pela fresta viu-se o rosto de John Lester. Só quando viu de quem se tratava é que deixou a passagem livre.

     O'Freyton e Vera entraram no apartamento. Lester tirou uma pistola do bolso do blusão e guardou-a no coldre. Jimmy, o da camélia, saiu de trás de uma porta, com uma pistola "Colt" na mão direita. Estava em mangas de camisa e ao guardar a arma no coldre, a coronha ficou visível para os visitantes.

     — Toda precaução é pouca — esclareceu. — Os "tiras" andam atrás de nós e não podemos descuidar-nos.

     — Sim, já sei — respondeu Vera Kellerman. — Foi exatamente por isso que vim aqui. Há um maldito polícia que está seguindo a pista de vocês. É um agente do FBI, que vem lhes seguindo a sombra desde Chicago. Depois do trabalhinho do restaurante do italiano, Steven Simenon, como se chama o tal sujeito, reconheceu um de vocês.

     — Qual? Desgraçado! — exclamou Lester.

     O'Freyton foi quem respondeu:

     — Segundo consta, só existe uma pessoa que costuma usar flor na lapela quando vai "trabalhar". Toda a culpa disso está nessa maldita mania de usar uma camélia.

     — Claro que isso tinha de acontecer! Eu disse a Jimmy que era uma estupidez, mas ele insiste em não sair, se não for com uma flor na lapela... Flores! — exclamou com nojo. — Vamos ver se quando o levarem para a cadeira elétrica vai ter vontade de usá-las. Flores! — repetiu por segunda vez.

     Vera Kellerman julgou chegado o momento de expor seu plano. Falou-lhes na necessidade de cortar o perigo, antes que fosse demasiado tarde.

     — Há um só homem em Los Angeles que os conhece pessoalmente. É um agente vindo de Chicago... Tirando-o da circulação, o perigo estará afastado. Foi por isso que viemos aqui. Este é um assunto que a vocês interessa mais do que a qualquer dos outros rapazes. Claro, que vai haver também, um punhado de dólares para quem acabar com ele. O assunto lhes interessa?

     Jimmy foi até uma cadeira e apanhou seu paletó que estava ali dependurado. Vestiu o. Na lapela brilhava uma bonita camélia, que endireitou com os dedos.

     — Deve tirar isso, Jimmy — disse lhe O'Freyton. — A essas horas devem estar atrás de você e como dado pessoal devem ter dado o da flor.

     O "gangster" encolheu os ombros.

     — É meu amuleto. No dia em que eu a tirar, sei que vai me acontecer alguma coisa... Mas, falando noutro assunto: quantas notas cabem num punhado de dólares?

     — Digamos — respondeu Vera, — dez de cem para cada um. Está bem?

     — Não é muito, mas serve.

     Pouco minutos depois, os quatro saíam do "boarding-house".

     Na realidade, ignoravam o domicílio do agente federal. Mas Vera concebera um plano para consegui-lo. Fez com que o carro parasse diante de uma agencia que permanecia aberta dia e noite, dedicada a dar e receber mensagens. Ali mesmo escreveu algumas linhas num papel, metendo-o dentro de um envelope. Neste pôs o seguinte endereço:

     "Mister Steven Simenon

     Agente do Federal Bureau of Investigation. Chefatura de Polícia de Los Angeles."

     Depois, com lápis vermelho, sublinhou umas palavras: "Pessoal e muito urgente."

     — Quem vai levá-lo?

     O encarregado noturno da Agência mostrou dois rapazes que cochilavam sentados num canto.

     — Se o levarem agora mesmo, sem esperar que amanheça, a tarifa é dobrada.

     — Sim, tem que ser agora mesmo. Dou gorjeta dobrada se conseguirem que essa carta seja entregue a seu destinatário, antes de meia hora.

   O encarregado chamou um dos garotos a quem explicou o que devia fazer.

     — "O. K.", chefe — respondeu este e apanhando a carta dispôs-se a partir.

     Vera Kellerman pagou o preço estipulado. Depois, apanhou uma nota de cinco dólares e estendeu-o ao portador da carta. Este, um rapaz alto, com ar vivo, vestido com um uniforme de cor atraente, piscou, maliciosamente, dizendo:

     — Com esse salvo conduto, não vou parar enquanto não a entregar.

     Vera saiu e subindo para o carro, ordenou:

     — Vamos, rápido. Leve o carro até a Chefatura de Los Angeles.

     — O quê... Onde?...

     — Não seja idiota. Vamos — repetiu. — Pare num lugar afastado, mas de onde se possa ver a porta.

     Quando, vinte minutos depois, ficaram situados num ponto estratégico, não precisaram esperar muito. Ao longe já se começava a vislumbrar uma leve claridade, precursora do amanhecer.

     Um antigo Ford parou diante da porta da Chefatura de Polícia. Dele saltou o "boy" da Agência de Recados.

     — Depressa, siga-o — ordenou Vera quando, pouco depois, o garoto tornou a sair, entrando no carro.

     No momento determinado, o carro dos "gangsters", ultrapassou o da Agencia. Ao passar por ele, Vera fez-lhe um sinal para que parasse.

     O'Freyton resmungou algo, dizendo o quanto aquele assunto o contrariava. Estavam deixando-se ver por muitas pessoas. Ocultou-se o melhor que pôde na penumbra do carro. Jimmy e Lester imitaram-no. Só Vera, descendo, caminhou para o Ford, parado a poucos metros de distância. Quando chegou junto ao rapaz, perguntou-lhe:

     — Alô! Entregou a carta?

     — Não, senhora. Vendo que era urgente e pessoal e como o destinatário não se encontrava lá, não quis deixá-la.

     A mulher resmungou contra o mau resultado.

     — E agora?

     — Agora vou levá-la. Telefonaram e me deram a indicação.

     — Bem, mas agora já não preciso que a entregue. Tome para beber alguma coisa e me dê a carta.

     Vera estendeu-lhe outra nota de cinco dólares.

     O "boy" encolheu os ombros, como se não compreendesse nada daquele assunto. Assim mesmo, estendeu a mão e recebeu o dinheiro.

     — Bem, como quiser. De qualquer maneira, muito obrigado... Se todos os dias surgissem clientes como a senhora, eu ficaria rico em pouco tempo.

     Vera Kellerman esperou que o carro da Agência se afastasse. Depois, voltou ao seu com o envelope partido (rasgara-o em quatro pedaços, mas sem jogá-los fora) e, sentando-se, estendeu-os sobre os joelhos. Pela luz do mostrador puderam ver que, à tinta, haviam acrescentado algumas linhas com o endereço do agente do FBI.

     - Já o temos — disse a mulher. — Agora só nos falta agarrá-lo.

     Voltou-se para Philip O'Freyton, que dirigia, e com voz rouca e precipitada, acrescentou:

     — Hotel Palos Verdes. Pershing Square, em frente ao Auditorium da Filarmônica.

    

                     PERIGO DE MORTE

     Steven Simenon vestira um "robe" de seda sobre o pijama. Sentado numa confortável poltrona, lia um livro, esperando a chegada de uma carta urgente que lhe haviam anunciado da Chefatura de Polícia. Não compreendia de quem poderia ser, mas ele mesmo dissera ao sargento de plantão, que o chamara por telefone, que desse sua direção ao portador para não perder tempo.

     Lia uma interessante teoria de Freud sobre psicanálise aplicada a um ato criminal, quando, pela segunda vez naquela noite, o telefone tocou.

     Simenon atendeu-o e falou poucas palavras. Era o portador da carta que o esperava no "hall". O "G-Man" já dera instruções para que lhe avisassem quando ele chegasse.

     — Mandem subir — ordenou e, desligando, dispôs-se a esperá-lo.

     Não haviam transcorrido três minutos quando o zumbido de uma campainha com surdina avisou-o que alguém batia à porta. Steven dirigiu-se para ela.

     Ainda não era dia claro. Mas, pela janela de seu apartamento entrava suficiente claridade para que se vissem os objetos sem auxilio da luz elétrica, apesar de esta continuar acesa.

     Simenon abriu a porta. Rapidamente avançou um pé, tentando fechá-la, mas já era demasiado tarde. Diante dele estavam dois homens com pistolas automáticas, ameaçando-o de morte.

     Em seguida deu-se conta da identidade dos pistoleiros. Reconheceu-os por dois motivos: um, e principal, pela camélia que adornava a lapela de um deles e outro, porque recordava a fisionomia de ambos por terem passado pelo "teatro" mais de uma vez.

     Jimmy, o da camélia, foi o primeiro a entrar. Lester veio atrás dele, fechando logo a porta.

     — Parece que estava nos procurando, não é? — disse o da flor. — Pois aqui estamos. Embora isso não vá lhe servir de nada, pelo menos deve estar contente, não é?

     Simenon sabia que sua vida corria um grave perigo. Desconhecia o grau de periculosidade de John Lester, mas não ignorava que Jimmy, o da camélia, era capaz de meter-lhe uma bala na cabeça ao mesmo tempo em que levava a flor ao nariz para sentir-lhe o aroma.

     Foi retrocedendo até chegar ao centro da habitação.

     — Erga os braços! — ordenou-lhe um dos "gangsters". — Estamos decididos a não hesitar um único segundo, se for preciso deixá-lo "frito" aqui mesmo.

     O agente do FBI obedeceu rapidamente. De momento, interessava-lhe ganhar tempo, o máximo de tempo possível.

     — Creio que não vai conseguir grande coisa com minha morte... No lugar em que eu cair chegarão outros e, na verdade, alguém há de triunfar sobre vocês. A Lei é demasiado poderosa e só chegarão a um final: à cadeira elétrica ou à câmara de gás.

     — Cale a boca! — gritou Lester e aproximando-se do agente passou rapidamente, as mãos pelo "robe" e pelo pijama. Ao perceber que não tinha nenhuma arma, permitiu-lhe baixar os braços.

     Enquanto isso, Jimmy contemplava as flores que havia sobre uma mesinha, dentro de um vaso.

     — Estou achando-o simpático — disse. — Nunca encontrei nenhum agente federal que gostasse de flores... Talvez seja — acrescentou, sorrindo — porque nunca lhes perguntei tal coisa. Prometo, se por desgraça lhe acontecer alguma coisa, que lhe mandarei um grande ramo de camélias brancas. Agora — continuou, — vá se vestindo sem fazer nenhuma tolice. Vamos dar um pequeno passeio.

     Steven Simenon decidiu obedecer. Com isso ganharia tempo. Já era dia claro e, se o levassem para a rua, poderia ter alguma possibilidade de escapar. Pensara que iam tentar assassiná-lo ali mesmo; mas, pelo que via, não seria assim. De momento, poderia esperar. Não tentaria nenhuma ação desesperada, que lhe poderia ser fatal.

     Por sua parte, os pistoleiros já tinham um plano preconcebido; um plano indicado por Vera Kellerman, que, dentro do carro, com Philip O'Freyton ao volante, esperava a poucos metros do hotel, mas de um ponto em que não seria vista pelo agente do FBI.

     Vera estivera tentada a acompanhar Simenon até o fim. Queria assistir sua morte, dizer-lhe que fora ela quem matara seu pai e ela mesma quem ordenara seu assassinato; mas O'Freyton conseguiu dissuadi-la disso. E foi só por esse motivo que permaneceu na expectativa e que viu o agente federal sair do hotel, entre os dois "gangsters". Um sorriso distendeu-lhe os lábios e seu rosto tomou uma expressão de ódio profundo, tão demoníaco que seu companheiro não pôde deixar de dizer lhe:

     — Você o odeia tanto assim? O pai desse agente dirigia os homens que assaltaram, há vinte e cinco anos, a casa do Boulevar Ramona; mas... o que tem a ver esse indivíduo com aquilo?

     A mulher voltou a cabeça. Olhou para o que falava.

     — É minha vingança, Philip. Uma vingança amadurecida durante cinco lustros, nos quais não fiz mais do que pensar... "Verrumar", dizem ali, é algo tão diabolicamente certo que você nem pode ter ideia. Um pensamento que se introduz na cabeça e gira; gira uma e outra vez, até que, pouco a pouco, vai perfurando a mente, convertendo-se numa obsessão. Minha hora chegou. Não é esse indivíduo, que caminha para seu fim, o único que odeio. Para mim, todos os chamados defensores da Lei são odiosos; todos, sem exceção, e em particular, os do FBI; foram os que mataram James Kellerman. Hoje começa minha vingança, a vingança de Vera e James Kellerman; a vingança de um morto e de uma mulher que permaneceu encerrada durante vinte e cinco anos.

     Calou-se. Naquele momento seu rosto nada tinha de feminino. Era uma expressão dura. Tão repelente que Philip Freyton sentiu um calafrio passar-lhe pela espinha dorsal.

     — E agora? Perguntou, quando viu sair o a gente federal entre os dois "gangsters".

     Sem responder, Vera olhava estes se afastarem. Só quando se perderam de vista pela Hül Street, pronunciou algumas palavras:

     — Vamos para casa. Estou cansada. Enquanto isso, Simenon caminhava junto a seus dois sequestradores.

     — Escute aqui, "tira" — dissera-lhe John Lester, ao saírem do quarto, — você vai andar entre nós dois. Levamos as pistolas prontas para serem disparadas. Jimmy, no bolso, sem tirar o dedo do gatilho. Eu... — olhou para um lado e outro, até que dentro de um armário encontrou o que buscava: um lenço grande de seda, que atou pelas pontas. Depois, pendurou-o ao pescoço o por ele passou a mão, como se estivesse ferida. Assim, levava sua pistola, devidamente oculta, mas apontando para o peito de Simenon.

     Ao saírem do hotel, passaram pelo porteiro noturno que, naquele momento, estava sendo substituído por seu colega de dia, assim como por um número bastante considerável de serventes que terminavam a limpeza, iniciada de madrugada.

     Steven Simenon sabia que os pistoleiros não hesitariam em meter-lhe uma porção de balas no corpo, se opusesse a menor resistência. Vivo, tinha possibilidades de escapar; morto, tudo estaria terminado. Devia ter paciência, ou melhor, o sangue-frio necessário em momentos como aquele. Mas Simenon tinha sido piloto de caça e isso era algo que temperava os nervos para sempre.

     Quando entraram na Pershing Square, o moço olhou para um lado e outro. Não viu nada nem ninguém que pudesse servir-lhe. Junto a ele, os dois pistoleiros dispostos a matar ao menor sinal de perigo.

     — Para onde vamos? — perguntou Simenon.

     — Não se preocupe. Um passeio a essas horas vai fazer muito bem.

     Caminharam pela Hill Street, até chegarem ao Subway Terminal. Ali entraram num táxi, estacionado em frente à estação.

     Jimmy, o da camélia, que tinha voz cantante, falou algumas palavras com o chofer. O veículo subiu pelo Boulevar Ramona. Passado Garvey, entraram num estreito caminho, paralelo a estrada de ferro South Pacific.

     Antes disso, à saída de Los Angeles, Jimmy ordenou que o carro parasse.

     — Desça! — ordenou ao motorista.

     — O quê?

     — Eu disse que desça! Rápido!

     O motorista ia iniciar um protesto, mas preferiu obedecer logo. A segunda ordem fora apoiada por uma pistola, que se movia diante de seu nariz.

     Lester passou ao volante e o carro saiu da cidade. Quando chegaram a um lugar onde um grupo de árvores ladeava a estrada, parou o carro. Jimmy, que ia atrás, junto ao prisioneiro, abriu a porta.

     - Vamos descer aqui. — E, ao dizer isso, encostou o cano da pistola nas costas do agente.

     Simenon sabia que estava perdido. Sua hora chegara. Sentia no corpo o cano da pistola, empunhada pelo da camélia e sabia que estava impotente nas mãos de seus inimigos. Nesse momento, arrependeu-se de ter-se deixado tirar de Los Angeles, sem ter-se arriscado inteiramente. Conhecia o processo: um tiro na nuca e o deixariam jogado num valo.

     Steven Simenon sentiu medo. Um medo atroz, que soube dominar para que não fosse percebido.

     Lester saltara do carro e, naquele momento, abria a porta traseira para que seu prisioneiro descesse. Isso fê-lo pensar que não planejavam atirar de dentro do carro. No momento em que punha o pé no asfalto da estrada, ocorreu-lhe o plano.

     Jimmy inclinava-se, sem soltar a arma, para sair do veículo. Lester, junto à porta, ameaçava o agente, já em terra. Nesse momento, Simenon fez dois rapidíssimos movimentos: um, dando um pontapé na porta que, ao fechar-se, bateu no homem da camélia. Um golpe tão forte que o fez perder a pistola, lançando um grito de dor, pois recebera a porta em pleno rosto.

     Ao mesmo tempo, Steven jogou-se num magnífico "mergulho" sobre John Lester que não esperava aquela reação e estava um tanto descuidado, sabendo da vigilância exercida por seu companheiro sobre o preso. Quando quis atirar, a bala passou a vários centímetros por cima da cabeça do homem do FBI.

     Com uma chave de luta japonesa, Simenon obrigou seu adversário a soltar a pistola. Tinha que deixá-lo fora de combate o quanto antes. Sabia que Jimmy não tardaria a reagir e, então, tudo estaria perdido. Mas Lester era corpulento e aguentava bem a luta. Rolaram pelo solo. Lutavam como podiam. Lester para acabar com o policial; Simenon com o desespero de quem sabe que, cada minuto transcorrido, mais o aproximaria morte. Tudo dependia do tempo que tardasse o homem da camélia a correr em auxílio do companheiro.

     O "gangster" estava debaixo de seu adversário. Steven agarrava-o pelo pescoço, enquanto com a outra mão golpeava-o, desesperadamente, uma e mais vezes no rosto. Pouco a pouco notava que a pressão do inimigo começava a afrouxar se. Ergueu o punho para dar-lhe o golpe decisivo quando sentiu sua cabeça parecer estalar em meio a mil luzinhas relampejantes. Antes de sumir nas trevas, um fugaz pensamento, não materializado em palavras, passou pela mente do agente federal: "Por que, Holmes? Por que fez isso?" Depois, o nada. Só um vazio, um abismo profundo no qual foi caindo.

     Jimmy recebera a porta no rosto. Por mais de um minuto esteve estonteado, enquanto o nariz sangrava-lhe abundantemente. Quando se foi refazendo e deu-se conta do que sucedia, viu o agente do FBI golpeando John Lester. Lançou uma obscena praga e, abrindo a porta, saltou do carro. Recolheu a pistola. Com ela na mão, aproximou-se dos dois homens que lutavam, embora, na verdade, só o policial estivesse atacando desesperadamente. Sentiu-se tentado em desferir-lhe um tiro e terminar logo com aquilo, mas o medo que o projétil atravessasse o agente e ainda tivesse forças para ferir seu companheiro, fê-lo desistir. Agarrou a arma pelo cano e golpeou selvagemente, com a coronha, a cabeça do "G-Man".

     Quando este rolou pelo chão, ainda lhe deu um pontapé com todas as suas forças. Mas Steven Simenon não se moveu. Já fazia muito que estava sem sentidos.

     Jimmy aproximou-se do companheiro. Sacudiu-se, sem perder de vista o policial. Lester sentou-se e, passando a mão pelo rosto, lançou uma blasfêmia, seguida por uma grosseira maldição.

     John Lester foi-se erguendo com dificuldade. Quando conseguiu ficar em pé, acariciou o queixo, ao mesmo tempo em que movia as mandíbulas de um lado para outro. Enquanto isso, o outro pistoleiro explicou-lhe seu plano.

     — Formidável! É possível que assim pareça um acidente... Se não parecer, dá no mesmo. No fim de contas, é a mesma coisa que morra com um tiro na cabeça ou esmagado por um trem. Vamos, não percamos tempo.

     Os dois seguraram o corpo inconsciente de Simenon e levaram-no para as árvores que separavam a estrada da via férrea.

     — Faltam cinco para às sete — disse Jimmy, consultando seu relógio de pulso. — Daqui há três ou quatro minutos passa o trem de San Francisco, que chega às sete em Los Angeles.

   Naquele momento ouviram o apito do trem, que possivelmente estava entrando ou saindo da próxima estação do povoado chamado Puente. Depressa! — gritou Lester.

     Tornaram a recolher o corpo inanimado. Levaram no para a via férrea e o colocaram de maneira que a cabeça e a parte inferior das pernas descansassem sobre os trilhos.

     — Vamos embora — ordenou Jimmy. — Mas antes ... — tirou a pistola que havia guardado e desferiu outro golpe na cabeça do agente. — Cão! Isso vai lhe ajudar a não sentir as carícias das rodas de ferro.

     Retiraram-se e ficaram dois ou três minutos esperando a chegada do trem, para terem a certeza de que esmagaria o policial.

     O comboio foi-se aproximando com um ensurdecedor ruído. A sinaleira da máquina balançava-se, lançando suas badaladas ao ar. De súbito, o maquinista deu um grito e puxou a alavanca de freio com todas as suas forças. Vira o corpo de um homem deitado sobre os trilhos. Mas, já era tarde demais. Quando conseguiu parar o trem, a máquina e um vagão já haviam passado pelo lugar onde estava Steven Simenon.

     Só então, quando os dois "gangsters" viram que se detinha o trem é que se afastaram das árvores e subiram ao táxi.

     — Vamos deixar este calhambeque pelos arredores de Los Angeles. O chofer já deve ter dado o alarma. Agora, vamos cobrar o dinheiro oferecido por esse trabalho.

     Jimmy ajeitou a camélia e comentou jocosamente:

     — Nossa casa é muito séria. Só cobra quando o negócio está liquidado.

     O primeiro golpe deixara o agente do FBI sem sentidos; o segundo, que lhe deram ao deixá-lo na via férrea, teve a virtude de reanimá-lo. Entretanto, isso aconteceu de uma forma lenta e paulatina.

     A primeira sensação que teve ao voltar à vida foi algo assim como se estivesse recebendo estranhas vibrações na cabeça, acompanhadas de um ruído que se tornava cada vez mais estridente. Chegou um momento em que aquilo subiu de tom, a ponto de obrigá-lo a abrir os olhos. Com muito trabalho, é verdade, mas muito antes do que se podia esperar após os golpes que recebera, Simenon compreendeu sua situação. Não obstante, teve suficiente serenidade e sangue-frio para não se apressar. Tinha a cabeça apoiada sobre o trilho de ferro e as vibrações do metal, produzidas pelo trem que se aproximava, eram cada vez mais fortes.

     O agente do FBI compreendeu o perigo. Por um lado, os pistoleiros, que possivelmente estariam na expectativa para liquidá-lo, se tentasse levantar-se da posição em que estava; por outro, o trem que se aproximava e que, dobrando a cabeça, já via ao longe. O que fazer? O momento era decisivo, pois o fato de não o terem amarrado confirmava a suposição de que estivessem muito perto dele.

     Steven Simenon era um homem de decisões temerárias. Apoiou as mãos nos trilhos e retesou os músculos no momento decisivo. Não perdia de vista o trem, que cada vez estava mais perto. Aguentava até o último momento, porque tinha alguma probabilidade de que o maquinista o visse e conseguisse deter o comboio. Só cercado das pessoas que saltassem do trem poderia estar em segurança.

     O moço apertou, fortemente, as mandíbulas. Via chegar o monstro de ferro, cuja velocidade diminuíra um pouco, porque devia estar, aproximadamente, há um quilômetro da estação de EI Monte.

     Não podia esperar mais. Da posição em que estava não pôde calcular bem e, quando quis saltar, o limpa-trilhos da máquina já estava tão perto que só conseguiu girar e colocar-se entre os trilhos, achatado contra o desigual terreno. O ruído da máquina estonteou-o. Sentiu o ar que produziam as rodas, assim como o rangido das mesmas ao patinarem impelidas pela inércia, ainda depois de terem cessado de girar, obrigadas pela seca parada do maquinista.

     Quando Steven Simenon foi tirado de debaixo do primeiro vagão, estava desmaiado. A tensão dos nervos fora demasiado forte. Seu rosto apresentava uma palidez de cera, que dava a impressão de já não ser um homem deste mundo.

     Segundos depois, atendido pelo pessoal do trem e por um médico que viajava entre os passageiros, abriu os olhos. O maquinista lançou uma praga ao encará-lo:

     — Você é um perfeito idiota! — disse. — Quando quiser suicidar-se procure fazê-lo num lugar em que não vá comprometer outras pessoas.

     Simenon não respondeu. Para quê? Limitou-se a dar alguns passos, ajudado pelo chefe de trem, que o levou até o vagão de bagagens.

     — Suba — disse-lhe. — deve ir conosco até Los Angeles, onde prestará declarações à Policia da estação.

     O comboio tornou a partir. Só então, o homem do Federal Bureau of Investigation, deu-se a conhecer. Tirou seu "carnet" e sua placa de identidade.

     — "G-Man"! — exclamou um negro, de uniforme branco o que fazia destacar mais seu rosto.

     — Um "G-Man"! — repetiram alguns dos que o atendiam no vagão.

     — Sim, um agente federal que escapou milagrosamente de um atentado criminoso — explicou Simenon. — Agora, senhores, peço-lhes que se retirem e não me olhem com essas caras assombradas. Eu só desejaria um cigarro e um copo de água. Estou com a boca terrivelmente seca.

     Tudo sucedera com tal rapidez que só poucos minutos haviam transcorrido desde o momento em que fora posto sem sentidos na via férrea e sua chegada à estação de Los Angeles. Entretanto, Steven Simenon já era senhor de si. Ninguém diria, ao vê-lo, que acabara de passar por um dos mais perigosos momentos de sua vida. Nem mesmo quando pilotava um caça esteve tão perto da morte.

    

                FLORES ROLAM PELO CHÃO

     Vera Kellerman estava contente. Pagara os dois mil dólares combinados para a morte do odiado agente federal. Sua vingança começava a andar! Não se tratava de assassinar uma determinada pessoa, não. Só queria matar, pelo prazer que lhe dava, os companheiros dos que um dia, já muito distante, haviam matado James Kellerman, seu marido. Não pensava que este fora um perigoso "gangster" e que no mesmo momento em que morrera tinha nas mãos uma metralhadora com a qual acabara com a vida de alguns defensores da Lei. Ela mesma disparara uma e mais vezes, até que a feriram; mas, que importava se as balas da arma empunhada tivessem posto fim à vida de seres que cumpriam um dever e que entre eles se encontrasse o pai de Steven Simenon?

     Distendeu os lábios num sorriso pois pensava que, naquele momento, pai e filho estariam reunidos no inferno.

     Sim, Vera Kellerman estava contente. Quase sem se dar conta, pôs-se a cantarolar uma canção que estivera na moda por volta de 1925.

     Aquela mulher era um caso patológico. Mais concretamente: no tempo em que estivera na prisão, transformara-se numa paranóica com um complexo homicida.

     Terminou de arrumar-se. Seriam, mais ou menos, nove da noite. Vera apressou-se porque seu filho e O'Freyton a esperavam. Quando desceu, os dois homens estavam no "living-room". Aquela casa do Boulevar Santa Monica pertencera a uma conhecida artista de cinema, que a mandara decorar a seu gosto. E, na verdade, não o havia feito mal de todo.

     Quando Vera chegou, Holmes passeava diante de seu "segundo", enquanto este, com um copo de uísque na mão, permanecia silencioso, instalado numa confortável poltrona.

     — Parece que Carola está demorando, não é? — disse Holmes, consultando pela décima vez seu relógio de pulso. — Ficou de vir às nove. Será que lhe aconteceu alguma coisa?

     — Não se preocupe. Nós, mulheres, sempre chegamos tarde aos encontros — fez uma curta pausa para acrescentar: — A que horas é o "negócio"?

     — De madrugada. Às três tenho que me reunir com os rapazes. Se não houver nenhuma novidade, pela manhã teremos metido nos Estados Unidos vinte chineses, acompanhados com um bom fardo de cocaína e cem peças de autêntica seda.

     — E os "seguros"? — perguntou sua mãe. — Acho que ninguém se negará a pagar, depois do que aconteceu com Joe Capelli, não é?

     Holmes Kellerman ia dizer alguma coisa. Mas, nesse momento chegava a moça e calou-se.

     Como no dia anterior, todos estavam vestidos a rigor. Só Holmes se diferençava, pois em lugar de casaca, vestia um "dinner-jacket".

     Carola não beijou, como costumava, o noivo. Sua fisionomia tinha um aspecto um tanto estranho, que, de momento, seus companheiros não souberam definir.

     — Demorei — disse — porque Steven Simenon foi me visitar.

     — Sim? — respondeu Holmes. — E o que é que ele queria?

     Nesse momento, sua mãe lançou uma gargalhada.

     — Isso é impossível — disse. — Steven Simenon está no inferno.

     Carola abriu desmesuradamente os olhos. Retrocedeu um passo, lívida, olhando de Vera para o filho.

     — Então, é verdade! Vocês não passam de uns assassinos!

     Holmes Kellerman não compreendia o que estava acontecendo. Ignorava tudo que acontecera no amanhecer daquele dia. Porque Carola dizia aquilo? Avançou para a moça, que continuava retrocedendo, passo a passo.

     — Não estou entendendo, Carola. O que foi? Por que fala assim?

     A moça olhou para o chefe da "gang".

     — Eu sempre o julguei um homem que vivia um pouco à margem da Lei, contrabandeando bebidas para seus "night-clubs". Mas tinha certeza de que, quando nos casássemos, faria com que se afastasse desses negócios sujos... Mas... — levou as mãos ao rosto, acrescentando: — Oh, Holmes! Por que... fez isso?

     Kellerman chegou até à moça. Suavemente afastou-lhe as mãos que lhe ocultavam o rosto.

     — Venha, sente-se aqui. Diga-me o que lhe contou Steven Simenon.

     Vera, enquanto isso, permanecia silenciosa. Em seu íntimo começava a brotar um surdo ódio contra aquela moça que se escudava num morto para justificar alguma coisa. Porque, indiscutivelmente, Steven Simenon estava bem morto. John Lester e Jimmy haviam-lhe garantido que eles próprios tinham visto o trem passar por cima daquele maldito agente do FBI. Que seu filho o ignorasse, não havia nada de estranho. Nem ela e nem O'Freyton lhe haviam dito uma só palavra. Estava certa de que ele não o teria aprovado, com aquela sensibilidade incompreensível num filho de James Kellerman. Entretanto, chegara o momento dele saber. E, quanto à moça, se havia de casar-se com seu filho, era melhor que soubesse qual era sua obrigação desde aquele momento. Sorriu ao pensar se ela seria capaz de defender o marido com uma metralhadora, como ela mesma o fizera em dias já longínquos.

     — É estúpido! Vocês falam naquele polícia, quando já faz muitas horas que morreu num... acidente — disse. — Essa manhã, quando eu vinha para casa, fiquei sabendo que ele tinha sido esmagado por um trem... creio que foi o noturno de San Diego.

     — Não é verdade — desmentiu Carola. — Falei com ele, há uns dez minutos. Ainda apresentava no rosto sinais da luta travada com uns indivíduos chamados Lester e Jimmy, o da camélia, momentos antes que o deixassem sobre os trilhos, julgando-o desmaiado.

     Holmes Kellerman ergueu-se, voltando se para sua mãe. Depois, olhou para Philip O'Freyton.

     — Quem ordenou isso? — avançou até chegar junto a seu "segundo". Agarrando-o violentamente pelas lapelas, tornou a perguntar: — Não me ouviu? Quem ordenou isso?

     O'Freyton não respondeu. Limitou-se a olhar Vera Kellerman. O "gangster" compreendeu-o perfeitamente. Soltou seu lugar-tenente e dirigiu-se para a mãe.

     — E daí? — disse esta. — O que é que pensa fazer?

     — Você é uma fera, sedenta de sangue. É minha mãe e tenho obrigações com a senhora. Mas, ouça bem o que lhe vou dizer: Não pense nunca mais em ordenar nada a meus homens! Tenho meus métodos que hei de mantê-los até o fim. E, por Deus! Você pode agradecer à Providência que Steven Simenon tenha-se salvado.

     Voltou-se para Carola Mason. Mas nada lhe pôde dizer. A moça dera meia volta e correra desesperada, horrorizada com o que estava ouvindo.

     Holmes Kellerman olhou para O'Freyton.

     — Vamos, Philip — disse-lhe. — Preciso arranjar esse assunto logo.

     Algum tempo depois, detinha seu carro no Boulevar Wilshire, em frente à porta de Carola Mason. Subiu para seu apartamento. A própria moça abriu-lhe a porta. Seus olhos estavam vermelhos de pranto e as lágrimas haviam-lhe produzido grotescas manchas negras, ao se misturarem ao rimei. Ao vê-lo retrocedeu alguns passos.

     Kellerman entrou no apartamento, fechando a porta atrás de si.

     — Tudo isso, Carola — disse suavemente — merece uma explicação. Não vou justificar meus turvos negócios, mas quero que compreenda que eu não faria o menor dano a Steven Simenon. A verdade de minha vida, tudo o que se refere a minhas... especulações, eu pensava contar-lhe antes de nos casarmos. Os acontecimentos precipitaram-se e creio que chegou o momento de lhe contar tudo. Depois... eu a amo com toda minha alma. Sim, também um "gangster" pode ter coração — acrescentou amargamente. — Mas ao meu amor, à minha felicidade, anteponho a sua. Escute....

     Ia começar a falar. Queria contar à moça como sofrera na infância; como estivera sempre só, porque o destino o fizera nascer filho de um homem que escapara da cadeira elétrica quando uma bala bem dirigida poupara o trabalho ao verdugo, e de uma mulher que o trouxera ao mundo na enfermaria de uma penitenciária federal. Queria dizer-lhe a verdade sobre seus negócios; contar-lhe tudo. Mas viu-se interrompido por uma voz conhecida, que, por trás, lhe dizia:

     — Um momento, Holmes. Quero ser leal com você. Não posso usar sua noiva para ouvir coisas que poderia usar contra você.

     Kellerman voltou-se e viu Steven Simenon.

     — O que é que estava fazendo aqui? — perguntou. Depois voltou-se para a moça. Olhou-a interrogando e esperando uma explicação. Foi o próprio agente do FBI quem lha deu:

     — Não se espante. Carola Mason é uma mulher decente — sublinhou estas últimas palavras — e eu tinha a obrigação de lhe contar a verdade a seu respeito. Eu mesmo a levei no meu carro à sua casa. Quando me dispunha a sair, vimo-lo chegar. Isso é tudo.

     — Escute, Steven — disse Kellerman, depois de uma hesitação — você quer me contar o que foi que aconteceu?

     — No princípio — respondeu o homem do Federal Bureau of Investigation, — pensei que você tinha dado a ordem de me darem um "passeio". Mas agora já não penso mais assim. Entretanto, foram seus homens que tentaram fazer o "trabalhinho". Acredite, lamentei que você tivesse esquecido o sentido de nossa amizade, a ponto de instigar minha morte. Sim, sim, — acrescentou, detendo as palavras que o "gangster" ia dizer. — Não é preciso que me explique. Sei... agora sei — repetiu. — que de você não partiu a ordem. Mas, não posso esquecer que militamos em campos opostos. Eu sou a Lei, você... Já lhe disse, numa ocasião, que era algo assim como se estivéssemos na guerra, com a diferença que eu sou um soldado dos Estados Unidos e você um dos japoneses que nos hostilizavam no Pacífico. Em nossas vidas privadas podemos ser amigos, inclusive irmãos. Mais de uma vez aconteceu que seres do mesmo sangue se enfrentassem numa guerra civil... Mas eu como agente federal, devo estar em frente ao "chefe" que agrupa "gangsters" sem escrúpulos como John Lester e o homem da camélia.

     Carola Mason permanecia em pé, junto a Kellerman. Não dizia nada. Em seu rosto desenhava-se um doloroso ríctus, enquanto olhava com olhos cheios de lágrimas as reações daquele homem que amava, apesar de tudo.

     Kellerman olhou-a por um instante. Seus olhos refletiam tristeza. Era algo assim como uma pena profunda que lhe apertava a alma e que teria dado tudo quanto pudesse para arrancá-la do mais íntimo de seu ser. Moveu a cabeça de um lado para outro. Foi um movimento lento, enquanto suas feições se crispavam num gesto indecifrável.

     — Pobre Carola! — murmurou. — Teve confiança em mim e hoje se encontra a ponto de ser a esposa de um "gangster" criminoso e sanguinário... Não é essa a verdade, precisamente — voltou-se para o agente do FBI. — Escute, Steven, nunca me passou pela cabeça a idéia de ordenar sua morte. Você esteve a ponto de perder a vida, mas foi por algo que nunca imaginei... Foram na verdade, os dois homens de Chicago que tentaram matá-lo?

     — Sim, John Lester e o homem da camélia.

     — Perfeitamente. Acho que isso nunca mais acontecerá — fez uma curta pausa. Logo continuou: — Escute, Steven — repetiu. — Não sabe o que eu daria para voltar aos dias do Pacífico. Ali éramos companheiros, lutávamos juntos por algo que valia a pena... Hoje... É curioso: estamos frente a frente e, como então, somos amigos e nos apreciamos... — fez um âmago de sorriso, que ficou cortado sem terminar. — Por isso sou leal com você; por isso lutarei nobremente contra o que você representa: O Federal Bureau of Investigation.

     — Abandone tudo — aconselhou-o o amigo, avançando até ficar ao lado dele. — Cedo ou tarde há de cair nas garras da Lei. Então, talvez já seja demasiado tarde... Ainda está em tempo... Carola o ama. Estou certo de que, longe daqui, na Europa, você seria um perfeito homem de negócios, ao lado de sua mulher.

     Carola Mason olhou-o esperançosa, aguardando a resposta. Kellerman sacudiu a cabeça de um lado para outro.

     — Não posso... por enquanto. Tenho de seguir em frente. Também devo lealdade aos homens que confiaram em mim... Mais tarde, talvez — chegou até a moça e segurando-a pelos ombros, atraiu-a para si. — Eu a amo, Carola. Hoje sabe toda a verdade sobre minha vida. Sou um homem que vive à margem da Lei, mas que não tem as mãos manchadas de sangue. Quando chegar o momento oportuno, virei aqui e lhe direi: vamos, querida. Chegou a hora de abandonar um passado, para viver a realidade de um presente; você e eu...

     — Talvez, então, seja demasiado tarde.

     — Não, nunca será demasiado tarde, se entre nós houver um amor verdadeiro... Tal como estão as coisas, não posso fugir covardemente. Há algo que me impede, mesmo que eu o quisesse.

     — Mais importante do que eu? — perguntou a moça, num sussurro.

     — É diferente. De um lado, está você; mas do outro, há uma mulher que sofreu muito e se eu a deixasse, provavelmente iria acabar numa cadeira elétrica, compreende? Por mais que eu a ame, não posso abandoná-la a suas paixões, porque é minha mãe. Agora, querida, adeus. Continuo sendo o mesmo. Examine tudo com calma e procure ver as coisas do meu ponto de vista.

     Inclinou a cabeça e seus lábios tocaram levemente nos da moça, que estavam frios e rígidos. Depois, separou-se dela, que permaneceu quieta, silenciosa, vendo o afastar-se.

     Quando, momentos depois, Holmes Kellerman chegava ao carro, onde o esperava O'Freyton, sentou-se ao volante, sem dizer uma palavra. Pôs o veiculo em marcha. Desceu por Figueroa Street, até que, entrando no boulevar Washington, chegou a Culver City. Deteve o carro em frente ao "boarding-house", onde viviam os dois pistoleiros de Chicago. Quando descia, O'Freyton disse:

     — Vou com você.

     — Não é preciso. Esse assunto só a mim interessa.

     — Está bem. Você é quem manda, mas tenha cuidado.

     Kellerman não respondeu. Atravessou os poucos metros que o separavam da casa. Na entrada, informou-se do andar e número do apartamento das pessoas que buscava.

     Foi recebido com grandes precauções pelos dois "gangsters".

     — Alô, chefe — saudou Lester. — É uma grande surpresa vê-lo por aqui. Jimmy, naquele momento, estava cortando uma camélia branca do um ramo que havia num vaso, colocando-a na lapela do "smoking" que vestia.

     — Gardênia é muito mais elegante — disse, — mas essa é minha flor favorita — acrescentou, mostrando a que pusera na lapela. — Quando chegar minha vez de ir para o outro mundo, vou pedir que me encham o caixão com essas florzinhas... Mas, chefe... — acrescentou, numa transição -- até agora não disse uma única palavra... Acho que deve estar contente com o trabalho de que a velha nos encarregou, não é?

     Kellerman, com voz fria, metálica, foi dizendo lentamente:

     — Vocês têm a noite toda para saírem de Los Angeles. Se amanhã ainda estiverem aqui, meus homens acabarão com vocês. Foi só para isso que vim aqui. Acho que muitas poucas pessoas vão se preocupar se vocês apareceram com uma porção de balas no corpo, jogados em qualquer rua no fundo do rio. Estou avisando-os, pessoalmente, para que o tomem em consideração.

    E Holmes, tal como havia chegado, deu meia volta, dispondo se a sair. Quando já empunhava o trinco da porta para abri-la, sentiu que o agarravam pelo ombro, obrigando-o a voltar-se.

     — Um momento, chefe — dizia Jimmy, que era quem o havia detido. — Acho que falando é que os homens se entendem. Por que temos de abandonar Los Angeles e por que seus homens vão nos caçar a balas? Será que depois de termos acabado com o "G-Man" já não fazemos mais falta aqui?

     Kellerman apertou as mandíbulas, fazendo seus dentes rangerem. Um ódio profundo ia tomando conta dele, aumentado por ter sido obrigado a voltar-se contra sua vontade.

     — Imbecil! — gritou, embora não bastante alto para ser ouvido dos apartamentos vizinhos.

     — Vocês vão embora porque eu quero... e, outra coisa: nenhum dos dois é suficientemente esperto para terminar com um homem como Steven Simenon, o agente federal. O melhor que têm a fazer é desaparecerem, antes que ele os agarre.

     — Escute — argumentou Lester, intervindo na conversa: — que história é essa? Não vai querer nos fazer acreditar que o "tira" está vivo? — deu uma gargalhada, acrescentando: — Vamos, chefe... não vamos lhe dar muito crédito, porque acho que andou bebendo... Como pode estar vivo um homem que vimos ser esmagado por um trem enorme?

     — Vamos, chefe — acrescentou Jimmy — fale direito. Se foram lhe contar essa história, estamos dispostos a devolver os dois mil, até que isso fique provado.

     — Acabo de falar com ele. Mas não é isso que faz com que eu não queira mais vê-los por aqui. Até agora mantive um grupo de homens, que bastavam para meus negócios. Talvez vocês não compreendam, mas não quero sangue em volta de mim. Vocês podem encaixar melhor junto a um chefe que use de processos sanguinários. E outra coisa, Jimmy: apesar do que acabo de dizer, não hesitarei em meter-lhe algumas balas no estômago, se outra vez puser suas imundas mãos sobre meus ombros.

     O pistoleiro aproximou a mão da flor, para levá-la ao nariz; mas também o fez para ter a direita pronta para empunhar a arma que trazia em baixo do braço.

     — O senhor é muito impulsivo, chefe. Talvez, se fosse outra pessoa que me tivesse dito isso, já não estivesse com disposição de repeti-lo a ninguém... Por quê? Não sei, mas hoje estou muito otimista... Talvez seja porque comprei esse bonito ramo de camélias; e as camélias sempre me tornam compassivo e bom — sorriu e acrescentou, jovialmente: — Está vendo, eu até tinha pensado em enviar um belo ramo ao "tira", aquele, mas, se é verdade que ele não está no outro mundo... — encolheu os ombros e tornou a ajeitar a flor na lapela.

     Lester permanecia silencioso, em expectativa.

     Holmes Kellerman sabia qual era sua obrigação. Se deixasse passar aquilo e seus homens fossem informados, nunca mais seria o "chefe" daquele grupo. O mundo do crime rege-se por leis criadas pelos próprios membros que a compõem. Uma das principais é o respeito ao chefe. Um respeito convencional que, naquele momento, Kellerman estava disposto a impor. Não tanto pelo fato de ter sido ameaçado, mas porque, desde que soubera da morte de Joe Capelli e do perigo corrido por seu amigo, do qual escapara de uma forma milagrosa, odiava os dois "gangsters" com todas as suas forças.

     Retrocedeu alguns passos, até ficar em frente de Jimmy.

     — Repita isso outra vez — disse, lentamente. Jimmy estendeu os lábios num sorriso, que colocou a descoberto uns dentes brancos e recortados.

     — É curioso como alguns indivíduos procuram, sozinhos, complicar-se a vida. Não vou repetir tudo o que disse antes, só porque não estou com vontade de falar. De qualquer forma, se insiste, faça de conta que o repeti. Aconteceu alguma coisa? Acho que... Craque!...

     Jimmy retrocedeu cambaleando, indo cair de costas numa poltrona; esta, com o impacto, voou para trás, arrastando o pistoleiro que deu uma volta, ficando alguns segundos de pernas para o ar.

     O golpe fora tão forte que quando tentou levantar-se, vacilou, cambaleou de novo e caiu de bruços. Nessa posição permaneceu, sem mover-se. Estava desmaiado.

     Enquanto isso, John Lester empunhara uma "F.N.", tipo especial e quando Kellerman tentou levantar o da camélia, ameaçou-o com voz enérgica:

     — Já chega, chefe! Vá embora porque eu seria capaz de esquecer muitas coisas e começar a atirar.

     O moço sabia que Lester atiraria ao menor movimento que fizesse. Leu-o em seus olhos, que tinham um brilho homicida. Por outro lado, tampouco ignorava que o pistoleiro, inconsciente, faria o mesmo, assim que recobrasse os sentidos. Olhou-o de soslaio e viu como iniciava uns breves movimentos, precursores de que logo voltaria a ser dono de seus atos. Decidiu precipitar os acontecimentos, antes que fosse demasiado tarde.

     Kellerman, num momento determinado, meteu o pé em baixo da mesa que estava à sua frente. Com um forte impulso lançou-se sobre Lester, que recebeu o impacto antes que pudesse se dar conta da manobra e evitá-la. O jarro e as flores da mesa caíram, num confuso amontoamento, pelo chão. O chefe só teve que se apressar e recolher a "F.N." que, na queda, havia saltado do pistoleiro. Guardou-a no bolso do "dinner-jacket" e, por duas vezes, deixou cair o punho fechado no parietal esquerdo de seu adversário. Num segundo, John Lester também estava submergido no país dos sonhos.

     Holmes Kellerman olhou em volta. Com as pernas entreabertas e o peito avançado, ficou olhando agressivamente para os dois "gangsters" que permaneciam a seus pés. Depois deu meia volta e encaminhou-se para a saída. Subiu ao carro onde estava Philip O'Freyton esperando.

     — Vamos — disse, secamente. — Já está chagando a hora de fazer os preparativos para a operação dessa madrugada.

     Voltou o espelho retrovisor para si e, enquanto O'Freyton punha o veículo em marcha, arranjou o laço da gravata que estava meio desfeito: Seu companheiro contraiu os lábios num sorriso, pois conhecia as tardias, mas violentas reações do moço. Entretanto, não disse nada. Limitou-se a dirigir o veículo pela avenida Sepulveda para entrar na Sunset Boulevard, onde estava o Topanga Club.

     Enquanto isso, Jimmy recuperou os sentidos e foi-se erguendo lentamente. Ao ver as flores no chão, lançou uma praga abafada. Recolheu-as e, depois de deixá-las sobre a mesa, ajudou seu companheiro a erguer-se. As primeiras palavras que disse, foram:

     — Vamos, Lester, anime-se. Hei de matar esse chefe teimoso e puritano.

     — Sim — respondeu o outro "gangster", — o que ele fez conosco vai ter que pagar.

     — Não, o que fez conosco foi só atacar antes e com mais força. Não! Por isso, não! Hei de matá-lo por ter estragado este belo ramo de flores. Tem que pagar bem caro por isso. E, por todos os diabos do inferno, Holmes Kellerman há de saber quem é Jimmy, o da camélia!

    

     No sul do condado de Los Angeles, existe um promontório de pouco mais de seis milhas de profundidade, por nove ou dez de largura. Adentra o Oceano Pacífico como se quisesse, numa vã tentativa, unir-se à próxima ilha de Santa Catalina, famosa praia onde passam suas férias uma grande parte das estrelas cinematográficas de Hollywood, quando aquelas não são suficientemente longas para que se transfiram para a Florida ou outros pontos não menos visitados.

     No porto, onde está a base naval, assenta-se no lado direito a pequena península vista desde o Pacífico. No lado oposto há uma enseada, chamada Lunada Bay, onde as águas vêm morrer mansamente, como se quisessem justificar o nome do Pacífico, dado paradoxalmente ao oceano de mais violentas tempestades.

     Deviam ser três horas da madrugada. Holmes Kellerman estava sentado sobre uma rocha na enseada de Lunada Bay. A seu lado, estavam Philip O'Freyton, Luigi Frasetto e mais três homens de sua "gang". Nuvens ocultavam a lua, em quarto minguante, e estendiam um véu de escuridão sobre a terra.

     Pela quinta vez ele olhou o relógio de pulso de ponteiros fosforescentes.

     — Que horas são? — perguntou O'Freyton.

     — Três e meia. O sinal está demorando. Já não pode tardar — respondeu Kellerman.

     Efetivamente. Segundos depois, tornou-se visível uma luz verde, procedente do mar. Acendeu-se por três vezes e logo desapareceu na noite.

     — Vamos, o sinal! Responda, Luigi!

     O italiano, oriundo da Sicília, componente do bando de Holmes Kellerman, apanhou uma potente lanterna, acendendo-a por três vezes, como haviam feito os que se aproximavam da margem.

     — Parece que tudo vai sair bem — disse a Frasetto, que permanecia atento, com a lanterna na mão.

     — Sim, eu também acho — respondeu, ao mesmo tempo em que acendia uma vez mais a lanterna, respondendo a uma nova luz verde, procedente do mar.

     Pouco a pouco, o vento trouxe-lhes aos ouvidos o surdo ronco do motor de uma possante lancha.

     A cada trinta segundos, Luigi acendia e apagava, de uma só vez o foco, para servir de guia à lancha que se aproximava. De súbito, nada mais se ouviu. Provavelmente haviam parado o motor embora ela continuasse avançando, devido ao impulso que trazia. Assim era, efetivamente, porque chegou um momento em que se tornou visível da margem. Frasetto acendeu por última vez a lanterna e meteu-se na água até os joelhos. Kellerman, da areia, contemplava a lancha aproximar-se da praia, silenciosamente. Quando já não podia avançar mais, porque sua quilha tocava o fundo, estava a tão pouca distância do italiano que este, sem se preocupar, continuou entrando na água, até esta tocar-lhe o peito. Só, então, ficou junto ao costado da lancha.

     — Vamos, rápido! — disse — o caminhão está esperando. Comecem a jogar os amarelos na água.

     Kellerman, da margem, fez-lhe uma advertência:

     — Ei, Luigi! Recolha o pacote e saia da água — voltou-se para um de seus homens: — Você, Baxter, avise a O'Freyton. Que aproximem o caminhão da estrada, para que possam sair, logo que desembarquem os chineses. Luigi e eu, iremos com a "neve" no carro. — Depois continuou para os que estavam junto a ele: — Vamos, rapazes, aproximem-se e ajudem os que vão desembarcar. Muito cuidado para que não se molhem as peças de seda que os chineses trazem. São vinte, e cada um deles deve trazer cinco ou seis.

     — "Okay", chefe — disse um deles, ao mesmo tempo em que se metia na água, seguido por um companheiro.

     Enquanto isso, Luigi Frasetto rodeava a lancha para receber o pacote que lhe estendiam de dentro. Espichou os braços para recolhê-lo quando, num golpe seco, sentiu seus punhos dentro de algemas de ferro, ao mesmo tempo em que via o negro cano de uma pistola, a poucas polegadas de seu rosto.

     — Se der o alarme você vai ser o primeiro a cair. Continue quieto, como se nada estivesse acontecendo.

     O contrabandista, às ordens de Kellerman, ficou espantado e não disse uma palavra. Pensou que um bando rival se tivesse apoderado do contrabando e que o fosse desembarcar por sua própria conta. Não era a primeira vez que isso acontecia; entretanto, bem logo compreendeu a realidade da situação. Foi ao ver o rosto do capitão Martin Gross da Brigada de Imigração, afeta à do porto. Uma ideia passou-lhe pela mente. Sabia que a Policia disparava sem prévio aviso, quando a enfrentavam com armas; mas, naquele caso... se estava seguro, não o fariam. Compreendeu que seus companheiros seriam caçados, ao ver como se iam jogando à água alguns policiais à paisana, que chegariam tranquilamente à margem, porque seriam tomados pelos chineses que desembarcavam. Além do mais, foi por egoísmo que desejou que o chefe não fosse apanhado. Sabia que seria a única maneira dele conseguir escapar. Hol-mes Kellerman era um homem de dinheiro e tinha bons advogados à sua disposição. Além do mais, dizia-se que havia comprado alguns políticos influentes. Sim, acima de tudo, tinha que dar o alarma.

     — Traição! Polícias! — gritou e, ao mesmo tempo, tentou afastar-se da lancha.

     Não o conseguiu. Um homem da lancha lançou-se atrás dele e, algemado como estava, não pôde oferecer a menor resistência.

     O capitão Gross lançou uma praga. O plano, tão bem preparado, havia fracassado. Puxou a pistola e atirou para o ar. Era o sinal para que Steven Simenon começasse a agir de terra.

     Holmes Kellerman compreendeu rapidamente o que sucedera. Haviam caído numa armadilha, da qual dificilmente conseguiriam sair. Os dois homens postados a seu lado e que ainda não tinham entrado na água, puxaram as pistolas e esperaram suas ordens. Kellerman imitou-as. Tinha previsto o caso de uma possível intervenção da Polícia. Se conseguisse escapar da ratoeira e chegar ao Topanga Club, tudo sairia bem, mas parecia-lhe um pouco difícil.

     — Vamos, dispersem-se! — ordenou a seus homens.

     Cada um saiu por um lado, mas todos afastando-se da praia. De repente, dois grandes refletores acenderam-se. O foco de luz correu pela areia, buscando os fugitivos. Era um equipamento instalado no carro que se aproximara da praia.

     Kellerman jogou-se de bruços, atrás de uma pequena rocha. Esmagou-se contra a areia para não ser visível à luz elétrica. O raio de luz passou sobre ele, sem que fosse assinalada sua presença. Em compensação, um de seus homens ficou visível.

     — Renda-se! — gritou uma voz que Holmes reconheceu como pertencente a Steven Simenon.

     "Como era possível? — pensou. — O agente do FBI estivera com ele nas primeiras horas da noite e não lhe insinuara uma só palavra sobre aquilo. Mas, não seria porque ainda não sabia nada ou, talvez, para deixá-lo confiante e apanhá-lo com as mãos na massa?"

     O "chefe" deixou de pensar. Nesse momento, o homem localizado havia-se voltado e, ao mesmo tempo em que atirava sobre o foco que o iluminava, deixava-se cair no chão.

     O tiro foi certeiro. Com um ruído de vidros partidos, a luz extinguiu-se. Kellerman aplaudiu a ideia e, apontando por alguns segundos, repetiu a operação do outro "gangster".

     Sua posição ficou assinalada, mas já não havia nenhum foco de luz que pudesse localizá-los. Olhou para um lado e outro. Viu como os da lancha se aproximavam da margem. Ao mesmo tempo os que estavam em terra, avançavam para a água. Apertou as mandíbulas furiosamente, porque não via escapatória possível. Entretanto, uma ideia desesperada tomou conta dele. Sim, era a única saída possível.

     Rastejou pela areia como um réptil até que chegou à beira da água. Pouco a pouco foi-se metendo nela, até ficar só com a cabeça de fora. Assim, nessa posição, foi avançando silenciosamente. Ia-se afastando de seus inimigos, nesse momento estendidos pela praia, depois de haverem detido dois de seus homens e a Luigi Frasetto.

     Holmes Kellerman conseguiu escapar. Pôde subir para um carro que tinha a pouca distância dali e dirigir-se ao Topanga Club. Entrou por uma porta que dava para uma estreita ruela, sem que ninguém o visse.

     Minutos depois, o chefe já havia trocado de roupas. Vestia uma impecável casaca e ninguém diria, com seu aspecto correto, que era o mesmo que, vinte minutos antes, arrastava-se pela praia de Lunada Bay.

    

     Nas primeiras horas daquela mesma noite, Steven Simenon entrava na Chefatura de Polícia de Los Angeles. Fazia poucos minutos que deixara o apartamento de Carola Mason, onde estivera Holmes Kellerman. Encontrava-se conversando com o capitão Martin Gross, quando tocou o telefone que estava sobre a mesa. O capitão da Brigada de Imigração atendeu-o.

     — Um momento — disse. Apanhou uma caneta de cima da mesa e escreveu umas linhas sobre um papel. — Bem, já está. Quer me dizer seu nome?

     — Não se preocupe — respondeu a voz do outro lado. — Se lhe interessar a informação tanto melhor, se não, faça com ela o que quiser.

     — Um desconhecido nos avisa que, esta noite, pelas três horas, vão tentar desembarcar um grupo de chineses e alguma droga. Dizem que o assunto já estava previsto há vários dias.

     — Informou o lugar?

     — Sim. Lunada Bay. Uma pequena praia, abrigada por uma enseada, nas proximidades de Palos Verdes.

     Simenon olhou para o relógio.

     — São onze horas — disse. — Há tempo para preparar tudo?

     — Sim. Isso parece ser coisa de Holmes Kellerman... — sorriu e acrescentou: —- Há muito tempo que ando atrás dele. Sabia que era um "gangster", que violava a Lei, mas nunca consegui nenhuma prova. Agora, se o agarrarmos com as mãos na massa, vai conhecer o que é bom.

     O agente do FBI sentiu acelerarem-se as batidas de seu coração. O momento que tanto temia havia chegado. Tinha que prender seu melhor amigo. Sabia que, cedo ou tarde, isto teria que acontecer, mas não esperava que fosse tão depressa. Amaldiçoou, interiormente a ideia que tivera de ingressar na Academia de Quântico, e que o deixara em condições de ser um agente de Tio Sam. Mas, só um caminho lhe restava: seguir em frente até o fim. Acendeu um cigarro. Lançou algumas baforadas de fumaça para o ar. Depois, perguntou:

     — Bem, temos que agir rapidamente. Deu algumas informações que possam nos servir?

     — Sim, muitas. Escute...

     E Martin Gross ficou falando, por muito tempo, com o agente federal.

     Algumas horas depois, duas lanchas rápidas da Polícia marítima sulcavam as águas em direção à ilha de Santa Catalina. A informação fora dada por uma pessoa que conhecia bem o assunto, porque as indicações eram completas. "Nas proximidades de Isthmus Cove, em uma ilha, há uma cavidade nas rochas, chamada a Cova do Dragão. Ali vão esperar pelas duas e meia da madrugada, para saírem de uma lancha em direção à Lunada Bay. São chineses desembarcados de um navio que se dirigia para São Francisco. Isso foi feito na madrugada passada, em alto mar. Esta noite vão ser descidos em terra firme.

     O informante fora muito mais extenso. Graças a ele tudo saíra às mil maravilhas.

     Conseguiram surpreender os que se ocultavam na Cova do Dragão e, embora alguns dos homens que transportavam os imigrantes clandestinos tivessem tentado resistir, não o conseguiram por muito tempo. Duas bombas lacrimogêneas lançadas dentro do refúgio bastaram.

     Meia hora depois, tudo havia terminado. Os contrabandistas estavam devidamente seguros, assim como os orientais que haviam tentado desembarcar em La Union.

     Quando chegaram ao Comissariado do porto, eram mais de duas da madrugada. No trajeto da ilha de Santa Catalina a Los Angeles, Steven Simenon e o capitão Gross tinham conseguido todos os pormenores que lhes faltavam para poderem deter a quadrilha que operava no condado, pois todos os que haviam detido na ilha de Santa Catalina eram tripulantes do barco que trouxera os chineses e, naquele momento, foram comunicados seus nomes e características às autoridades de São Francisco.

     — Bem — disse Simenon, que tomara o comando daquela expedição policial. — Além dos chineses, o pacote de cocaína que apanhamos é mais do que suficiente para mandar esses homens, por alguns anos, para a penitenciária federal. Agora, temos que agarrar os que esperam em Lunada Bay.

     Disse isso firmemente, sem titubear, apesar de saber que naquele lugar iria encontrar Holmes Kellerman.

     — Todos juntos? -   perguntou o capitão Gross.

     — Não, o senhor, com alguns homens, sairão numa lancha rápida, por mar. Faça tudo como se fossem os homens que tinham que levar os chineses. Entendeu? Eu, por minha parte, irei com alguns policiais por terra. Já sabe bem como deve agir. Agora, adeus e muita sorte.

     E assim foi como se preparou o cerco que se iria fechar em redor de Kellerman e de seus homens.

     Simenon deu instruções aos que iriam tomar parte na expedição.

     — As armas prontas — ordenou. — Mas não atirem, se eles não o fizerem primeiro. Assim mesmo — acrescentou, — não atirem para matar a menos que não haja outro remédio.

     Nesse estado de ânimo, cercou Lunada Bay com seus homens. Chegaram um pouco tarde e os contrabandistas já os esperavam.

     Apesar do ataque simultâneo por terra e mar, já se sabe como Holmes Kellerman conseguiu escapar, ocultando-se na água.

     — Maldição! — exclamou o capitão Gross, quando viu os que tinham conseguido capturar. — Esse Kellerman maldito conseguiu escapar!

     No momento, Simenon não pôde evitar que um sorriso lhe distendesse levemente os lábios. Mas, isso durou poucos segundos. Sua obrigação, o dever que jurara um dia ao FBI trazia-lhe agora a parte mais desagradável do assunto. Tinha que realizar a prisão de Holmes Kellerman.

     Regressaram, com os feridos, para a Chefatura de Polícia. Deu ordem para que todos ficassem incomunicáveis, mas isso foi feito já um pouco tarde. Quando ordenou que lhe trouxessem Philip O'Freyton, um dos que foram caçados, este já fizera correr a consigna: "Ignoram quem seja o chefe. Sou eu quem dá as ordens em seu nome. Só desta forma, ele conseguirá nos tirar daqui. Em caso contrário, iremos todos apodrecer em San Quentin ou Alcatraz."

     — Acho que já se deu conta de que foi tudo pelos ares, não? — disse-lhe Simenon, quando o teve à sua frente.

     O'Freyton apresentava um aspecto lamentável. Seu "smoking" estava amarrotado e sujo; o nó da gravata desfeito e os cabelos em desalinho.

     — Não me dou conta senão de que fui agarrado com meus amigos, quando passeávamos, à luz da lua, pelos arredores de Los Angeles.

     — Não se faça de tolo, O'Freyton. Sabemos de tudo. Alguém nos avisou e conseguimos apanhar os chineses em Santa Catalina. Com eles, vinha um bom pacote de ópio e de cocaína. Terei que deixá-lo nas mãos do capitão Gross. Eu vou deter o chefe de vocês. — Parou e depois continuou falando lentamente: — o "chefe" Holmes Kellerman.

     O'Freyton deu uma gargalhada demasiado estridente para que fosse natural. Tinha-se tomado de grande amizade pelo rapaz e queria tirá-lo daquela confusão, fosse como fosse. Sabia, porém, que as coisas deviam ser feitas de tal maneira que parecessem naturais.

     — Ameaça-me com o terceiro grau? Nem mesmo assim eu poderia dizer que estava esperando um filho do Celeste Império. E... outra coisa, quem disse que é ele o chefe? Gostaria de saber. É muito estranho ter-se um chefe que não conhece.

     — Eu disse — respondeu Simenon, — que vou buscar Holmes Kellerman. Quando o tiver aqui e diante dos detidos, tornaremos a conversar.

     — Vai fazer a maior asneira de sua vida, Simenon. Desde já posso garantir-lhe que Holmes Kellerman não sabe nada sobre isso.

     Calou-se.

     Depois, quando o agente federal saía, ainda acrescentou mais algumas palavras que, por alguns segundos, fizeram o "G-Man" apertar os dentes.

     — E outra coisa, agente do Tio Sam. Não se esqueça de Vera Kellerman. É possível que quando veja que vão deter seu filho, sem motivo algum, ela se recorde o que fez há vinte e cinco anos atrás e tenha vontade de repetir o trabalho.

     Steven Simenon não respondeu.

     Saiu do gabinete, dando uma batida com a porta. O'Freyton ficou com o capitão Gross, que retirou o blusão, talvez para ficar mais à vontade para o "hábil interrogatório" a que pensava submeter o detido.

    

                      FRENTE A FRENTE

     Quando o agente do Fbi saiu da Chefatura de Polícia, ficou alguns segundos indeciso. A princípio, pensou levar alguns homens junto, mas, depois, decidiu ir só. Holmes Kellerman não iria atirar nele. Conhecia-o suficientemente para pensar assim.

     Subiu para um carro, posto a seu serviço, sem chofer por exigência sua, e partiu.

     Simenon dirigiu o veículo por Sunset Boulevard. Estava decidido a trazer Kellerman consigo e, possivelmente, não iria encontrá-lo no Topanga Club. Mas, alguma força interior impelia-o para o clube noturno. Talvez fosse, embora ele não acreditasse, que em seu subconsciente entrasse a possibilidade de que o chefe estivesse preparando sua fuga; talvez já estivesse devorando quilômetros com seu carro, afastando-se de Los Angeles. Só em sua casa poderia comprovar essa evidência e, talvez, para evitar isso para dar-lhe tempo, ia primeiro ao "night-club". Era algo que não transluzia em seu exterior e no que nem mesmo quis pensar, pois quando a ideia lhe passou pela mente, afastou-a com raiva.

     Quando chegou ao Topanga, este ainda permanecia com a fachada iluminada. Vários carros esperavam por seus proprietários, frequentadores assíduos do clube.

     Quando fez girar o trinco da porta do gabinete e a empurrou, deixando a passagem livre, teve uma decepção.

     Talvez esperasse não encontrá-lo, pois seu rosto não pôde evitar um gesto de surpresa ao vê-lo sentado numa poltrona. Estava com os pés sobre uma pequena mesa e junto a ele, instalada no braço da poltrona, via-se uma exuberante ruiva que lhe acariciava, suavemente, os cabelos. No chão, ao alcance da mão, havia uma garrafa de champanha, pelo meio. Kellerman tinha uma taça na mão, que levava de quando em quando aos lábios.

     — Adiante, velho amigo! — convidou, quando viu o agente à porta. Sua voz era um pouco pastosa. Lançou um olhar para o relógio que havia sobre uma biblioteca. — Imagino que lá em baixo a festa já deve ter acabado, não é? Susana e eu decidimos terminar a garrafa de champanha aqui e já faz um bom tempo que a acabamos... Só que fui pedindo outra... e mais outra... — fez uma pausa. — Quer?

     — Não. Venho... Escute, Kellerman: preciso falar com você.

     — Está bem. Pode começar. Sente-se.

     — A sós.

     — Oh, Steven! Vejo que vai me estragar a noite. Estou com Susana desde a uma, ou uma e meia e... agora você quer que eu a deixe.

     O agente do FBI avançou até ficar junto a Kellerman.

     — Desde quando está com essa mulher?

     — Isso lhe interessa tanto assim? Não posso dizer com exatidão, mas acho que desde a uma... Bem, talvez fosse um pouco mais, pode ser que já fossem quase duas. Sim, é isso. Um pouco depois, veio o número de Mey Tucson... Mas, se isso lhe interessa tanto, pergunte a Susana, ao "maítre", ao garção que nos serviu, a umas quantas pessoas que estiveram conosco — parou como se, de repente, tivesse compreendido. — Mas, o que é que tem? Parece que isso é um interrogatório.

     — Imagine que é.

     — Nesse caso, senhor polícia, não penso dizer-lhe uma só palavra.

     Voltou a sentar-se onde estava quando o agente federal chegara e apanhou um dos copos.

     — Vamos Susana. Seja boazinha, me sirva...

     Simenon dirigiu-se à ruiva e tirando-lhe a garrafa que tinha nas mãos, deixou-a sobre a mesa. Logo disse com voz enérgica:

     — Vamos, menina, dê o fora!

     — Ouça, quem é que está você pensando que é? — protestou o jovem.

     Kellerman tentou levantar-se. Quando já o tinha quase conseguido, o agente pôs-lhe a mão no peito, dando-lhe um pequeno empurrão. Tornou a ficar sentado.

     — Hum! — grunhiu. — A Lei se impõe. "Okay", você ganhou — voltou-se para a moça. — Ande, Susana. Já não tem remédio. Ele nos estragou a noite... Vá embora.

     A ruiva franziu os lábios num muxoxo de aborrecimento. Depois, encolhendo os ombros, deu meia volta e avançou para a porta.

     — Bem, já começou a fazer das suas — disse o "gangster", quando ficaram a sós. — Agora vai me contar o que é que quer, nessa hora tão imprópria.

     Simenon avançou alguns passos, até ficar em frente a Kellerman, que permanecia sentado.

     — Você tem de me acompanhar, Holmes.

     — Acompanhar? Onde?

     — À Chefatura de Policia de Los Angeles. Lá estão alguns de seus homens. Entre eles, Philip O'Freyton.

     — O'Freyton? O que foi que ele fez?

     — O mesmo que você: tentou introduzir alguns chineses nos Estados Unidos, burlando as Leis de imigração e, o que é pior, tentou passar um grande contrabando de entorpecente. Sinto muito, Holmes, mas você vai me acompanhar.

     Kellerman levantou-se da poltrona.

     — Escute — disse com um leve sorriso. — Eu não posso ser responsável pelo que O'Freyton fizer... Ele já é maior de idade, não é? Além disso, quando saí da casa de Carola, onde você estava, vim diretamente para cá e não tornei a sair. Isso podem testemunhar muitos dos que estavam no Topanga. No pior dos casos, se eles não se lembrarem, ainda restam os garções e outras pessoas que não terão nenhum inconveniente em jurar, se for preciso. Como é que eu ia estar aqui e, ao mesmo tempo, em... — deteve-se para perguntar: — Onde foi que você disse?

     — Holmes, é possível que você tenha muitas testemunhas que não se importem de correr o risco de serem apanhados em flagrante delito de perjúrio... Mas, apesar disso, eu sei que você estava, há poucas horas, na praia de Lunada Bay... Vamos, acompanhe-me.

     — É uma detenção? Suponho que deva ter uma ordem, não?

     — Nem é uma detenção e nem tenho a ordem judicial.

     — Então?

     — De momento... precisamos de você como testemunha.

     Ao "gangster" pouco lhe importava uma acusação que não podiam provar, pois nos Estados Unidos são necessárias provas concretas e definitivas para condenar um suposto réu. Nunca prevaleceria uma acusação baseada em indícios ou provas circunstanciais. Tinha suficientes testemunhas para pôr por terra qualquer acusação que houvesse contra si.

     Tornou a encher a taça de champanha. Depois de beber a metade, ainda com ela na mão, sem soltá-la, respondeu a seu interlocutor.

     — Não seja tolo, Steven. Sem um mandato judicial você não me tira daqui. Você pode ser um agente do Tio Sam, mas eu conheço meus direitos. Se me precisar, como testemunha, cite-me. Amanhã, ou melhor, hoje, irei onde você quiser, acompanhado por meu advogado.

     Simenon sabia que pisava num terreno falso e bateu em retirada.

     — Bem, você ganhou. Eu vim disposto a levá-lo, nem que fosse empurrando-o com meu revólver, mas não o faço. Sei que seus próprios homens é que vão levá-lo a uma penitenciária ou à cadeira elétrica... e acredite, Holmes, que eu vou sentir profundamente. Talvez seja eu a única pessoa que o sinta, do ponto de vista de amigo, que lamenta os passos errados de um companheiro e camarada com o qual compartilhou horas de perigo e de alegria — encolheu os ombros e acrescentou: — Direi como você: "Okay", você ganhou. Mas posso acrescentar que isso é uma pobre vitória, Holmes. Hoje caiu O'Freyton; amanhã será você. Está metido num jogo perigoso do qual vai acabar muito mal.

     Holmes Kellerman não perdeu o sangue-frio. Bebeu um novo gole, até esvaziar a taça.

     — É uma lástima que não queira beber — disse. — É um autêntico champanha "Cliquot" fez uma pequena pausa, durante a qual Simenon tentou retirar-se. — Um momento, Steven — chamou-o. — Por você fiquei sabendo que O'Freyton está detido, assim como alguns amigos meus... Ignoro o que aconteceu, mas eu lhe agradeceria se você lhes dissesse que, dentro de uma hora, meu advogado irá vê-los. Pagarei a fiança e...

     — Não há fiança, Holmes.

     — Isso o juiz é quem decidirá. De momento, meu advogado apresentará um recurso de "habeas corpus" que terão que aceitar. Ou os passam à jurisdição de um juiz, com as provas correspondentes, ou os põem em liberdade. Essa é a Lei e devemos aceitá-la para o bem e para o mal... Não é assim senhor policial?

     Steven Simenon não respondeu. Para quê? Sabia por demais que tinha razão. Encaminhou se para a porta. Partia derrotado, porque com Holmes Kellerman queria agir de acordo com a Lei. Talvez, se se tratasse de "outro "gangster", de um dos muitos que tivera que enfrentar durante o tempo em que estava no FBI, seus processos tivessem sido bem outros. A bofetada ter-lhe ia tirado a vontade de reagir e com o revólver às costas tê-lo-ia levado para a Chefatura de Polícia. Mas com Kellerman não podia agir assim.

     Uma vez mais, amaldiçoou o momento em que Hoover, o Diretor do Federal Bureau of Investigation, o chamara para encarregá-lo daquela missão.

     — Adeus, Kellerman — disse, já da porta — você ganha, por hoje. — Ia sair, mas voltando-se, já quase fora, acrescentou: — Não vai demorar muito a cair. Há traidores entre seus homens e eles o venderão. Foram eles que nos informaram da história dos chineses e dos entorpecentes... A primeira vez que os surpreenderam em Malibu Beach, fora casual; hoje, não. Sabíamos e organizamos a vigilância. Adeus, Holmes — repetiu. E fechando a porta, desapareceu das vistas do amigo.

     Simenon tinha um plano preconcebido quando dissera as últimas palavras. Fora algo instintivo, que amadurecera em poucos segundos. Com aquilo perseguia dois fins: Um, que Kellerman tentasse entrar em contato com o resto do bando, que não fora detido; outro, que o moço refletisse e que, talvez, sua reação fosse a de abandonar aquele sujo negócio. Ele, Simenon, não podia fazer mais, sem trair o dever que tinha para com o FBI, e isso era algo que nunca faria.

     Quando Steven Simenon saiu do gabinete de Holmes Kellerman, este ficou pensativo, olhando para a porta que acabava de fechar-se atrás do agente. Suas últimas palavras haviam no preocupado, porque tinham algo de verdade, que o deixou alerta. Olhou para sua mãe que, naquele momento, saía por uma portinha, situada junto à mesa.

     — Ouviu? — perguntou-lhe o "gangster".

     — Sim, ouvi.

     Nada mais disse, aproximou-se da janela, onde ficou olhando o policial que se afastava. O filho estava a seu lado. Quando o carro desapareceu por Sunset Boulevard, em direção a Los Angeles, Holmes Kellerman largou o copo sobre a mesa.

     — Acho que O'Freyton está em dificuldade. Se entre meus homens houver um sujo espião, não passará muito bem.

     — Ora! — exclamou com desprezo a mulher. — Isso são truques para semear a desconfiança entre nós. Nos tempos de James Kellerman...

     Holmes ergueu a mão, interrompendo-a:

     — Não sei o que teria acontecido nos tempos de meu pai. Mas sei o que vai acontecer agora. Tenho que descobrir o traidor.

     Vera tornou a dizer:

     — Esse sujo polícia não diz a verdade... nenhum deles diz a verdade... Talvez quando eu o tiver em minhas mãos, momentos antes de meter-lhe um chumbo no estômago, talvez então — repetiu — diga a verdade para salvar sua asquerosa pele.

     — Não, há uma certa verdade nisso. O serviço não foi casual, porque na lancha que devia vir a "mercadoria" — disse mercadoria referindo-se aos chineses, — só chegaram policiais. Além do mais, cercaram-nos por terra em cooperação com os que chegavam por mar... Sim, não há dúvida. Foi um serviço preparado de antemão. É inegável que tenho um traidor entre meus homens — deteve-se e fazendo estalar os dedos, como uma castanhola, que ecoou no silêncio do gabinete, acrescentou: — Já sei! Só há dois homens que conheciam a operação dessa noite e que não tomaram parte nela. — Malditos! Uma vez os tive diante de mim e não fui capaz de lhes arrebentar as imundas cabeças, mas agora...

     — A quem se refere? Ontem todos estavam preparados para o "negócio". Não deu certo, porque... — de súbito, fez-se uma luz nel, — Você quer dizer Lester e o homem da camélia?

     — Sim, eles. Eram os únicos que sabiam e que não foram junto. Claro que eu os despedi e imaginei que deviam estar a caminho do outro lado dos Estados Unidos... Imundos traidores! Hei de encontrá-los. Sim. Vou encontrá-los e então... — calou-se, deixando flutuar no ar uma certa ameaça.

     No rosto de Vera Kellerman desenhou-se uma estranha expressão. Odiava os "G-Man" de toda a alma, mas odiava ainda mais os espiões. Entretanto, não deixou transparecer seus sentimentos. Precisava daqueles dois homens para uns projetos que estava idealizando; depois, quando os tivesse utilizado, então chegaria o momento de tomar uma vingança completa. Antes, não.

     — O que pensa fazer? — perguntou ao filho.

     — Desde o princípio eu lhe disse que matasse esse agente. Havia outros motivos para fazê-lo. Mas um e o principal é que se chama Simenon; o pai dele acabou com o seu e você tem o dever de vingá-lo na pessoa do filho — distendeu os lábios numa careta espantosa que queria ser um sorriso. — No assassino não pode se vingar, porque isso eu não deixei para ninguém. Como matou, morreu. Apesar de estar ferida, ainda tive tempo, antes de cair desmaiada, de disparar a metralhadora sobre ele — lançou uma gargalhada nervosa. Um riso tão estranho que fez com que o filho a olhasse com atenção, enquanto por sua mente passava uma suspeita. Como se estivesse lendo seus pensamentos, Vera Kellerman tornou a rir. — Acha que estou louca, não é? Louca, porque estou gozando a única coisa que conseguiu manter-me durante esses vinte e cinco anos de minha vida que permaneci numa penitenciária, com o desejo de viver para ver minha vingança — deu uma nova gargalhada. — Louca! Ha... Ha... Ha... Você pensa, sim, pensa que estou louca, mas vou lhe demonstrar que em nossa vida só há um caminho: Matar para que não nos matem! Transformar-se em peixe grande e não numa insignificante sardinha que só serve para acalmar a fome dos mais fortes que nós!

     Calou-se. Deu meia volta e se aproximou da janela, de onde ficou olhando para a rua.

     A vida da cidade já se iniciara. O movimento característico do Sunset Boulevard, bela artéria que partindo de Los Angeles atravessa Hollywood para ir morrer no mar, começara.

     O "gangster" passou o braço pelos ombros de sua mãe.

     — Por que não esquece o passado? — disse lhe. — Você sofreu tanto, durante tantos anos, que agora devia aproveitar tudo que a vida tem de agradável. Ainda é moça... Ainda podia...

     — Cale-se! — como uma chicotada seca, vibrante, a palavra ressoou na manhã. — Cale-se! — repetiu Vera. — É absurdo que me fale assim. Se eu tivesse pensado um único segundo em esquecer o passado, não estaria aqui. Já há muitos anos teria ido reunir-me a James Kellerman. Só o desejo de vingança é que me deu ânsia de viver.

     Viver, sim! Mas viver para ter o prazer de me vingar de uma sociedade estúpida, que se julga mais protegida porque paga homens que podem matar impunemente em nome de uma justiça que, por ter uma venda nos olhos, não sabe distinguir onde acaba o que chamam de mal e começa a senda das pessoas que se intitulam boas — fez uma pausa e, olhando de olhos brilhantes para o filho, terminou: No dia em que eu deixar de pensar assim, no momento em que não sentir desejos de vingança, nesse mesmo dia tomarei o caminho que há cinco lustros tomou seu pai — sua voz suavizou-se. — James Kellerman era um "gangster", mas também era um homem de coração. Quando o declararam "Inimigo Público Número Um" de Los Angeles, todos os policiais da Califórnia se julgaram no direito de atirar contra ele e logo declarar que o haviam detido.

     Guardaram silêncio. O tráfego da rua ia aumentando. Kellerman olhou para o relógio.

     — São sete horas — disse. — Vamos. Preciso trocar de roupa e logo procurar meu advogado. Ontem mesmo eu lhe telefonei e marquei um encontro para as oito, quando ele irá lá em casa. Acho que, de momento, vai poder tirar O'Freyton. Na verdade não podem acusa-lo de nada, a não ser de passear de madrugada pela praia com outros homens. — Ficou pensativo, acrescentando: — O carro, a Policia não conseguiu agarrar. Só ficou o caminhão da lavanderia chinesa. Creio que Fo-Sie-Lig deve ter apresentado uma denúncia de roubo. Foi isso que eu lhe avisei ontem de noite.

     Cinco minutos depois, aquelas duas pessoas tão diferentes uma da outra, apesar de serem mãe e filho, abandonaram o Topanga Club que, naquele momento, estava invadido por um exército de empregados que se dedicavam à limpeza do salão. As mesas estavam todas amontoadas num canto e as cadeiras sobre elas.

     Vera e Holmes Kellerman subiram para o carro, que desceu rumo ao Santa Monica Boulevard. Parecia um casal que se recolhia um pouco tarde, depois de uma noite divertida, embora, também, pudessem ser tomados por artistas de cinema que já saiam de suas casas, prontos para a filmagem; mas, a verdade, era que ninguém poderia adivinhar as estranhas relações daquelas duas pessoas.

    

                     EM "O SOL NASCENTE"

     O agente do FBI, Steven Simenon, também não se deitou naquela noite. Só o que fez foi ir ao hotel onde se hospedava, tomar uma prolongada ducha fria, que o acordou inteiramente, e vestir um terno cinza-claro. Depois, novamente lançou-se à rua.

     Quando chegou à Chefatura de Polícia, o capitão Martin Gross acabava de abandoná-la. Tinha ficado até de manhã tentando arrancar alguma declaração de Philip O'Freyton, sem conseguir fazê-lo dizer uma só palavra. Era um velho astuto que sabia que seria preferível qualquer coisa durante algumas horas, do que passar anos em uma penitenciária, devido à fraqueza de falar mais do que devia.

     Simenon nem se molestou em vê-lo. Sabia bem que não adiantaria nada com palavras, quando outros meios mais... contundentes não tinham sido capazes de lhe arrancarem uma só palavra. Ao ser informado de que o capitão Gross havia partido, decidiu agir por conta própria. Na noite anterior haviam feito uma eficiente inspeção dos arredores da praia, onde tinham sido surpreendidos os "gangsters". Na realidade, não esperava encontrar nada; mas, sem saber por que, num impulso que não soube definir, saiu e dirigiu-se para Palos Verdes.

     Quando ali chegou, nada fazia presumir os acontecimentos da noite. Só alguns grossos vidros quebrados pelo chão, assinalavam o lugar onda tinham estado instalados os faróis, que depois tinham sido apagados a tiros pelos contrabandistas que conseguiram encurralar.

     A praia de Lunada Bay está rodeada por uma série de bosquezinhos de pinheiros que a isolam da estrada, que segue sinuosa pelo sul de Los Angeles, margeando toda a costa.

     Andou pela areia da praia até que, abandonando-a, meteu-se por entre as árvores. De súbito, ao sair de onde havia deixado seu carro, o agente do FBI viu marcas deixadas pelos pneus de outro, que se metiam pelas árvores, afastando-se do asfalto da estrada. Seguiu-as intrigado, até que chegou ao veiculo que as havia produzido.

     Diante dele estava uma camioneta fechada, em cujas costas podia ver-se o anúncio de uma conhecida lavanderia chinesa.

     Por alguns segundos o agente parou indeciso. Intimamente, pensou que aquele era um péssimo lugar ou, pelo menos, um lugar pouco apropriado para deixar um carro comercial. Aproximou-se e examinou-o por breves instantes. Seus lábios se encresparam e deixou escapar um leve e prolongado assobio. Era que, ao olhar para a terra, para baixo do motor do carro, vira uma grande mancha de óleo que escapava por alguma junta arrebentada. Observou durante alguns segundos e comprovou duas coisas: uma, que o óleo caia em forma de gotas, de quando em quando, devendo ter ficado parado durante muitas horas no mesmo lugar para formar aquela grande mancha; outra, e isso o confirmava, que o motor do carro estava completamente frio.

     Steven Simenon era um homem de decisões rápidas. Sem pensar muito, abriu as portas da camioneta e entrou. Depois de examinar o banco, sem encontrar nada, passou para a caixa. Ali, dentro de um cesto, dos que são utilizados para pôr a roupa suja, e tapadas por algumas toalhas e guardanapos, encontrou duas metralhadoras portáteis.

     Novamente tornou a assobiar. Por um longo tempo ficou com uma das "Thompson" nas mãos. Comprovou que estava com o pente intacto. Depois, tomando as duas armas encaminhou-se para seu carro. Minutos depois subia a Figueroa Street, em direção à parte alta de Los Angeles, onde se encontram as estreitas ruas do bairro antigo e, entre elas, as onde vivem a maioria dos orientais com seus típicos estabelecimentos, vendendo antiguidades e curiosidades chinesas: comidas ao estilo do Celeste Império, como escamas de tubarão, gelatina seca e outros manjares incompreensíveis para o gosto ocidental.

     Em uma estreita ruela, que vai desde o Boulevard Macy a Los Angeles Street, Simenon parou o carro diante de uma lavanderia chinesa. Era a mesma anunciada na camioneta. Desceu. Empurrou uma porta de vidro que fez uma campainha soar durante alguns segundos. Embora o estabelecimento estivesse vazio, rapidamente acudiu um homem magro, de tez amarelada. Seus olhos eram estreitos, alongados e suas pálpebras, semicerradas, deixavam escapar um olhar frio, astuto.

     — Bem-vindo casa Fo-Sie-Lig — disse, inclinando-se cerimoniosamente. Depois, sem deixar que o visitante dissesse nada, continuou a falar rapidamente: — Distinto senhor quer humilde chinês se encarregue da sua roupa suja?

     Simenon moveu a cabeça em sentido negativo.

     — Não. Vim aqui para...

     — Entendo — interrompeu-lhe o chinês — quer Fo-Sie-Lig tire brilho colarinho duro, não é? Melhor trabalho do Sol Nascente...

     Calou-se e ficou sorridente, com as mãos metidas nas largas mangas do quimono floreado que vestia.

     — Não, amigo, não sou um futuro cliente — disse Simenon, ao mesmo tempo em que deixava cair sobre o balcão a chapa metálica que o identificava como agente federal. — FBI — disse, simplesmente.

     Por um momento os olhinhos do oriental brilharam além da conta. Mas isso só durou poucos segundos. Depois, fechou-os mais, deixando só uma leve linha por onde olhou para seu visitante.

     — Bem — disse — Fo-Sie-Lig saúda brilhante polícia federal... No que pode ajudar?

     Simenon respondeu-lhe com outra pergunta:

     — Quantos veículos têm para o serviço a domicilio?

     — Caminhões e. . . ? — parou e com um sorriso, acrescentou: —= Ah, sim! Agora mim compreende visita, É o carro que desapareceu e que mim denunciou, de manhã, na Estação de Polícia de Main Street. Não é?

     — Parece. Quando deu pela falta dela?

     — Quando mim abrir garagem. Tem três carros o só encontrou dois,

     Steven Simenon leu nos olhos daquele chinês algo que não lhe agradou.

     — Bom.. . arrebentaram a fechadura... E, a camioneta levava alguma coisa?

     — Pouca. Dois cestas com guardanapo e toalha de cliente hoteleiro. Tinha entregar hoje.

     — Escute: sua camioneta apareceu, mas nas cestas de roupas havia duas metralhadoras. Acha que o hoteleiro mandou para que fossem lavadas?

     — Mim não sabe.

     — Nem eu. Acho que o melhor que pode fazer é deixar-me olhar seu estabelecimento. Sei que não posso fazer isso de momento, mas posso voltar dentro em pouco com um mandado judicial. Então, vou querer examinar até o último cantinho.

     Pelo inescrutável rosto de Fo-Sie-Lig passou uma centelha de ódio. Na verdade aquele estabelecimento pertencia a Holmes Kellerman, embora seu nome não figurasse para nada. A lavanderia "O Sol Nascente" tinha uma grande clientela. Por isso, empregava quinze ou vinte operários, todos eles chineses. Era ali o melhor lugar para que os orientais que entravam clandestinamente pudessem esperar, enquanto não fossem enviados para o interior dos Estados Unidos. Também num porão, secreto, havia um salão de ópio, ao qual só tinham acesso clientes de reconhecida garantia.

     A princípio o chinês decidiu não deixar que aquele maldito agente metesse o nariz em seu estabelecimento, mas pensando que poderia voltar com um mandado ao qual não se poderia opor e que, no pior dos casos, também poderia fazê-lo sem isso, inclinou-se dizendo:

     — Casa Fo-Sie-Lig é casa Polícia Federal. Senhor pode olhar tudo.

     Simenon entrou por uma porta que dava para uma grande peça. Havia várias mesas de passar, nas quais alguns chineses dobravam as roupas. Num canto, duas máquinas de passar lençóis, guardanapos, toalhas e outras peças lisas. Três máquinas, mas a vapor e altas estantes, onde havia grande quantidade de roupa lavada e passada, esperando para serem entregues a seus donos.

     Do centro da sala, o agente do FBI olhou em volta. Depois, passou para um amplo pátio onde havia vários tanques cheios de água e três máquinas de lavar, de diferentes tamanhos.

     — É tudo — explicou o chinês que acompanhava o agente. — Tem mais pátio onde pendura roupa molhada.

     Steven deu uma volta pelo pátio, sem encontrar nada de particular. Voltou à sala de estar. Foi percorrendo as estantes, até ficar parado junto a uma delas.

     A seus pés, no cimento do chão, via um leve sinal como o deixado por uma porta que roçara no solo. Era uma longa linha em arco que partia de uma das estantes cheia de roupas. Simenon aproximou-se. Segurou-a e deu-lhe um puxão. Mas a estante não se moveu um só milímetro.

     Sie-Lig avançou lentamente. Em seus olhos podia ler-se a decisão de evitar que aquele intrometido agente fosse descobrir o segredo da lavanderia "O Sol Nascente". Olhou para um dos chineses que dobravam roupa. Este fez um leve sinal a outro dos operários e ambos, com algumas roupas nas mãos, aproximaram-se da estante. Parecia que iriam largá-las ali, mas na verdade queriam ficar mais perto do agente.

     — Eu gostaria de dar uma olhada atrás dessa estante — disse Steven Simenon. — Vê algum inconveniente que tirem a roupa que está ali? — perguntou, mostrando as que estavam dobradas e passadas à sua frente. — Claro que se não quiser, eu não posso obrigá-lo... agora.

     — Muito trabalho. Mas Fo-Sie-Lig faz.

     O agente do FBI contemplou aqueles chineses que iam desocupando a estante. Quando estava totalmente vazia, aproximou se dela. Novamente puxou-a mas, como na vez anterior, ela não se moveu. Era estranho, pois não tendo peso deveria ceder. Só então compreendeu que ela deveria mover-se por meio de alguma mola, que não conseguiu descobrir.

     Voltou-se para o chinês e perguntou lhe com voz firme e decidida:

     — O que é que há aí atrás?

     — Parede. Agente federal pensa coisas malucas.

     — Bem, acho que vou embora. Mas, voltarei mais tarde com alguns policiais uniformizados da Brigada de Emergência. Acho que com dois ou três puxões vai aparecer a parede... ou o que houver atrás dela.

     Fo Sie encolheu os ombros sem responder. Só fez uma leve indicação a seus empregados, quando se encaminhava para a saída atrás do agente federal.

     Simenon ia tranquilo. Não pensava que pudesse suceder-lhe alguma coisa, pois dissera, durante a conversa mantida com o amarelo, que na Chefatura sabiam onde ele se encontrava. Não obstante, confiara demais.

     Ainda não tinha atravessado a porta que separava a sala de passar da loja onde o público tinha acesso, quando compreendeu seu erro. Três demônios amarelos caíram-lhe em cima, fazendo-o rolar pelo chão.

     Simenon lançou uma maldição. Sacudiu-os como pôde e, retrocedendo dois passos, foi rápido em busca da pistola que levava sob o braço. Sie-Lig deu-se conta do movimento e foi ainda mais rápido do que ele. De longe, jogou-lhe um monte de lençóis sem dobrar que, ao caírem sobre ele, embaraçaram-lhe os movimentos por alguns segundos. Foram poucos, mas suficientes para que novamente os chineses caíssem-lhe em cima.

     Eram três corpulentos homens os que tentavam dominá-lo. Os outros operários deixaram de trabalhar e contemplavam, impassíveis, o resultado daquela luta.

     O agente do FBI já se havia encontrado em momentos perigosos. Sua vida, desde que saíra da Academia de Quântico, nunca fora tranquila, mas aquele momento era um dos mais difíceis que enfrentava desde que estava ao serviço do Federal Bureau of Investigation.

     Simenon, ao sentir que aqueles três indivíduos lhe caíam em cima, não mais tentou puxar a "Lugger", pois compreendia que não lhe dariam tempo. Concentrou seus esforços sobre um só dos homens. Avançou a cabeça e deu uma feroz cabeçada no rosto do mais próximo. Este lançou um grito de dor e caiu de joelhos, enquanto o sangue que lhe escorria do nariz caía-lhe pelo queixo.

    O agente recebeu uma formidável direita que o derrubou sobre a mesa. Rapidamente, Steven Simenon soube aproveitar a situação. Usando o próprio impulso do soco que recebera, conseguiu subir para a mesa, que era bastante grande por trabalharem nela de ambos os lados.

     O primeiro chinês que tentou segui-lo, recebeu um forte pontapé no queixo. Soou um craque; estridente que o fez compreender que havia deixado outro fora de combate. Efetivamente, o queixo daquele chinês tinha sido quebrado em dois lugares diferentes. A barba tomou uma posição estranha e, depois de dois ou três passos cambaleantes, foi cair de bruços sobre um cesto de roupas, onde ficou com a metade do corpo para dentro.

     O agente julgou que poderia escapar daquele ataque. Já havia deixado fora de combate dois dos amarelos que o atacavam. O outro lançou um rugido de ódio. Proferiu uma praga em gíria de Cantão e dispôs-se a terminar com a luta. Em suas mãos havia aparecido um punhal de lâmina ondulada, igual aos "kriss" malaios que, ao cravarem-se em algum ponto da anatomia humana seriam capazes de provocar um ferimento mortal ou, pelo menos, de cruéis consequências.

     Mas Simenon não havia perdido tempo. Trepado no centro da mesa, teve tempo de empunhar a pistola. Com ela na mão, não tinha nenhuma preocupação. Mesmo que se encontrasse no meio de todos os chineses de Los Angeles, que não eram poucos, saberia abrir caminho até a rua.

     Apontou para o fanático que, de punhal na mão, tentava subir na mesa.

     — Quieto! — gritou Simenon. — Se puser um pé sobre a mesa, vai ser o último movimento de sua vida!

     Por duas vezes repetiu a advertência, mas em vão. Só então, vendo que o chinês tentava terminar com ele, é que disparou a arma.

     A vitalidade daquele indivíduo devia ser extraordinária. Recebeu o tiro no rosto, um pouco abaixo do olho esquerdo. Apesar disso, ainda terminou de subir na mesa. Somente quando ficou de pé sobre ela é que afrouxou as mãos e o punhal caiu de ponta, indo cravar-se no tablado. O chinês cambaleou e, quando estendia os braços para agarrar o agente federal, escorregou, caindo com um surdo baque sobre a mesa e desta ao chão.

     — Quietos todos! — ameaçou Simenon, compreendendo que se tornara dono da situação.

     Fo-Sie-Lig disse algumas palavras em chinês, que Simenon não compreendeu. O dono da lavanderia estava numa das pontas da mesa, com as mãos apoiadas sobre ela. Steven Simenon não viu o perigo dessa posição, pois a mesa era demasiado grande para ser virada por uma só pessoa. Mas, para sua infelicidade, não percebeu de onde poderia vir o verdadeiro perigo. Só o compreendeu quando se viu dando uma volta no ar e o resto daqueles chineses por cima dele, sem poder se mover.

     Tudo tinha sido muito simples. A mesa de passar estava coberta por uma manta e sobre essa havia um pano branco. Sie-Lig agarrara-se a este e, num momento determinado, deu um forte puxão que fez com que o agente federal perdesse o equilíbrio.

     Cinco minutos depois, Steven Simenon estava fortemente amarrado e amordaçado, em poder de seus inimigos. Com olhos cheios de ódio viu Sie-Lig oprimir, de determinada maneira, uma das tábuas da estante e esta abrir-se em forma de porta, afastando-se da parede. Foi introduzido por uma abertura e, depois de baixar alguns degraus, deixaram-no em um porão que havia no fim de um longo corredor.

     — Fica aqui até chefe decidir. Eu gostava meter você na máquina de lavar com sabão, por três horas.

     Enfiou as mãos dentro das largas mangas e afastou-se, deixando o prisioneiro sozinho.

    

     Holmes Kellerman havia conseguido que soltassem Philip O'Freyton. Dispunha de um fabuloso advogado que antes de vinte e quatro horas, conseguira resgatá-lo das mãos da Policia. Mas o que mais influíra fora a amizade de um conselheiro importante, que se impusera ao chefe de policia de Los Angeles. Na verdade, só o podiam acusar de suspeita, pois fora detido nas proximidades de Luana Bay, onde esperavam surpreender alguns contrabandistas.

     Naquele dia, O'Freyton bebia um uísque em companhia de Vera Kellerman e de seu filho Holmes. Estavam sentados na biblioteca da casa do Boulevar Santa Monica.

     Seriam uma três da tarde quando uma camioneta da lavanderia "O sol Nascente" parou diante da casa dos Kellerman. Dela desceu um silencioso chinês que, depois de apanhar um cesto com roupa limpa, aproximou-se da porta, apertando o botão.

     Instantes depois, Fo-Sie-Lig encontrava-se diante de Holmes Kellerman. Com sua fala peculiar relatou-lhe o que acontecera na Lavanderia.

     — Você diz que ele se chama Steven Simenon? — perguntou o chefe, apesar de ter ouvido perfeitamente.

     — Sim, é o que está no carnet de agente federal.

     Os olhos de Vera Kellerman apertaram-se, enquanto seus lábios se contraiam num indecifrável sorriso.

     — Por que não veio antes? Não disse que o caçaram esta manhã?

     —Três vezes vim. Senhor não estar. Senhora mãe não disse nada, porque chinês não sabia que mulher conhecer negócio homem...

     Holmes ficou pensativo. A situação chegara a um ponto em que o sentimentalismo se tornava um inconveniente para a boa marcha dos negócios. Steven Simenon sabia demais e devia morrer. Mesmo que ele, o chefe, não quisesse tinha certeza de que ele, o chefe, não permitiria que um agente federal lhes escapasse das mãos. Especialmente quando estava em jogo toda a organização. Diabos! Por que havia de ser, precisamente, aquele homem que tivessem enviado a Los Angeles?

     — Eu explicar. Agora chefe decidir - Interrompeu seus pensamentos o chinês.

     — Por enquanto, mantenha-o bem vigiado para que não possa escapar. Depois, espere instruções. Esconda-o num lugar onde não possa ser encontrado, para o caso em que a policia, sabendo onde tenha ido, vá procurá-lo... — Ah! Se perguntarem por ele, diga que esteve ali, mas foi embora logo depois de lhe fazer algumas perguntas.

     — Sim, chefe.

     E, sem outra palavra, Fo-Sie-Lig inclinou-se respeitosamente, saindo da biblioteca. Quando tornou a subir no carro, já não trazia a roupa com que descera dele. Para qualquer um que o tivesse visto, o chinês não era mais do que um entregador de roupa limpa de uma das inúmeras lavanderias dirigidas por orientais, tão comuns nas cidades do centro e do sul da Califórnia.

     — E agora? — perguntou Vera Kellerman ao filho, quando ficaram a sós com O'Freyton. — O que é que pensa fazer?

     Sem responder logo, Holmes começou a andar à frente de seus acompanhantes. Depois, parou diante da mãe e metendo as mãos nos bolsos, respondeu lentamente:

     — A situação não está muito boa — disse. — Você — acrescentou, dirigindo-se à mãe — vai partir essa noite para o México. Vai me esperar lá. Creio que chegou o momento de abandonar isso, se não quisermos terminar numa penitenciária federal... ou num lugar pior. Quando o FBI corre atrás de uma pista, è inútil querer apagá-la.

     — Não sairemos de Los Angeles — disse, suavemente, mas com entonação firme, Vera Kellerman. — E não sairemos porque o perigo não exige isso. Se um imundo agente federal descobriu alguma coisa e tivemos a sorte de agarrá-lo, zás! Vamos eliminá-lo e com ele desaparece o perigo, compreende?

     "Por quê? Por que sua mãe havia de pensar assim?" disse-se Kellerman com amargura. Já estava farto de tudo aquilo que começava a desmoronar, quando menos o esperava. Desejava viver tranquilo. Estava certo de que Carola Mason o seguiria ao México, onde poderiam casar-se. Dali iriam para a Europa. Holmes Kellerman dispunha de suficiente dinheiro para não ser um homem pobre. Sim, não continuaria mais com aquele assunto. Naquela mesma noite sua mãe partiria para o país vizinho. Ele o faria dois ou três dias depois. O suficiente para reunir o dinheiro de todos os seus negócios legais e convencer Carola que seus projetos seriam os melhores para ambos. A moça amava-o, saberia aceitar o que fosse mais conveniente para os dois. E, quanto a Simenon... Já tinha decidido o que faria com ele. Iria levá-lo bem seguro para uma das casas que tinha nos arredores de Los Angeles, sob um nome suposto, e lá a Polícia o encontraria quando já não estivesse nos Estados Unidos. Algumas linhas anônimas ou um telefonema para a Chefatura da Policia antes de partir, seria mais do que suficiente para que encontrassem o agente do Federal Bureau of Investigation.

     Voltou-se para sua mãe.

     — Eu não gostaria de ter que lhe falar assim, mas hoje sou eu quem decide esse assunto — fez uma pausa. Depois continuou para seu lugar-tenente: — Escute, Philip. Encarregue-se que minha mãe parta essa noite pelo expresso para a fronteira. Acompanhe-a. Em Tijuana, já no México, poderão me esperar. Não vou demorar mais do que uns dois dias.

     Vera Kellerman pôs-se em pé. Seu rosto estava crispado pela fúria.

     — Imbecil! — gritou. — É inútil querer afastar-se do caminho que lhe está traçado. Quando o Destino comanda, é idiota querer afastar-se dele. Ele nos encontra em qualquer volta da vida e então nos sacode com mais força. É como se sentisse nojo, raiva do insignificante ser humano que tentou fugir a seu inexorável mandato. Sim; o Destino está traçado em nossas vidas e o seu não é precisamente o de viver com tranquilidade, fora do perigo e de morrer rodeado de filhos e de uma esposa amorosa, que o despeça com lágrimas nos olhos — lançou uma gargalhada seca, com trêmulos de histeria ou de loucura e dirigindo-se para a porta, acrescentou: — Faça você o que quiser. Eu não saio de Los Angeles, nem que soubesse que, esta noite, todas as casas da cidade haviam de desmoronar sobre minha cabeça.

     Uma batida violenta com a porta pôs ponto final a essa desagradável cena.

     Holmes Kellerman apertou as mandíbulas até fazer os dentes rangerem. Continuou de mãos nos bolsos, quieto, no meio da sala, olhando para a porta atrás da qual havia desaparecido sua mãe. Voltou um pouco a cabeça para olhar O'Freyton. Este encolheu os ombros num gesto bastante eloquente.

     — Não posso compreendê-la — disse. — Antes ela não era assim. Parece que os anos que passou na penitenciária mudaram-na inteiramente — moveu a cabeça lentamente, em sentido negativo e, tornando a encolher os ombros, terminou repetindo: — Não, antes ela não era assim.

    

                  EM DIREÇÃO A MORTE

     Quando Vera Kellerman saiu da biblioteca onde seu filho ficava, levava uma ideia fixa: evitar que ele abandonasse Los Angeles. Não sabia como iria consegui-lo, mas estava decidida a empregar todos os meios a seu alcance para consegui-lo.

     Quinze minutos depois saía de casa e tomava um taxi no estacionamento próximo. Mandou que a levasse ao Boulevar Wilshire, onde vivia Carola Mason. Quando se viu diante dela, não perdeu tempo em rodeios para lhe fazer saber o motivo de sua visita.

     — É preciso — disse lhe, — que tome urna decisão definitiva a respeito de Holmes.

     — Não a entendo. O que quer dizer?

     — Está bem claro. Holmes Kellerman é um "gangster" perseguido tanto pela Polícia federal como pela Metropolitana. Se você o ama de verdade, deve ficar ao lado dele até o fim. Por outro lado, se a ideia de viver â margem da Lei lhe assusta, tampouco deve ir com ele para o México e casarem-se...

     — Mas... mas eu não sei nada sobre México.

     — Vai saber logo. Mas quando ele lhe fizer a proposta, pense numa coisa só, Carola: que você vai se converter para toda a vida na mulher de um homem perseguido pela polícia internacional. Será um perseguido para o qual não haverá descanso e você, sua esposa, vai saber o que é andar de um lado para outro com o pavor de serem reconhecidos e separados para sempre... porque quando Holmes Kellerman cair, será trazido para os Estados Unidos e sentado à cadeira elétrica, ou introduzido à força na câmara de gás, onde são executados os criminosos.

     A moça levou as mãos ao peito, oprimindo-o com forca.

     — Não... — disse num sussurro.

     — Sim — afirmou aquela mulher, pela qual passava um complexo difícil de discernir. — Sim — repetiu — se você o ama o suficiente para aceitar seu modo de vida, deve obrigá-lo a ficar em Los Angeles, onde corre menos perigo do que em nenhum outro lugar. No momento em que ele fugir, tudo o acusará; mas ficando, enfrentando a situação como homem, ninguém poderá acusá-lo com provas; provas que teriam com o simples fato de ele fugir. Compreende?

     — Mas... mas o contrabando não é um crime que se pague com a cadeira elétrica — arguiu a moça, em cujos lindos olhos notava-se uma umidade precursora das lágrimas que lutavam por escapar.

     Vera riu. Riu com aquela gargalhada de louca que dizia muito sobre seu estado mental.

     — O contrabando não, claro que não — tornou-se séria e acrescentou, acentuando as palavras: — Mas o assassinato, sim. Você é quem sabe se seu amor é suficientemente grande para não se importar com o que ele tiver feito... Se eu estivesse em seu lugar, saberia o que tinha a fazer. Já lhe disse uma vez. Matei. Disparei minha pistola sobre uns imundos policiais que tentavam caçar a James Kellerman — sua voz teve trêmulos de ternura ao dizer: — Conseguiram e ele caiu morto em meus braços...

     Por alguns segundos as duas mulheres permaneceram em silêncio. Carola Mason amava verdadeiramente a James Kellerman. Mas sabia que não poderia unir sua vida à de um assassino. Assassino? Por que pensar nisso? Ela sabia quais eram os sujos negócios do homem a quem, apesar de tudo, amava. Steven Simenon lhe contara tudo. Mas também lhe dissera que Holmes não havia derramado sangue. Por que então, sua própria mãe dizia coisas tão horríveis sobre ele " Essa mesma pergunta que se fazia interiormente, quase sem se dar conta, repetiu em voz alta:"

     — Por que diz isso? Holmes Kellerman não é assassino!

     Vera suavizou a voz. Tão pronto tomava entonações carinhosas, amáveis, como a fazia dura, repulsiva.

     — Acho que precisa saber tudo e eu lhe conto para que escolha entre dois caminhos. Ou termine com ele, sem o animar a fugir dos Estados Unidos, pois é essa a prova de culpabilidade que o FBI busca, ou una-se a ele, mas indicando-lhe a necessidade de ficar era Los Angeles, onde não poderão fazer nada por falta de provas. Compreende?

     — Que provas a Polícia está buscando?

     — As do assassinato de Steven Simenon. Disse isso lentamente, para que a moça fosse assimilando. Mentiu consciente do que fazia.

     — Não... não. Isso não é verdade! Por que me diz coisas tão horrendas?

     Vera encolheu os ombros.

     — Adeus, menina. Logo vai saber. Eu matei pelo homem que amava. Não me importei de viver durante vinte e cinco anos em um inferno, porque a causa foi eu mesma ter vingado James Kellerman. Se seu amor é tão fraco, que lhe assusta o sangue que possa se interpor entre vocês — tornou a encolher os ombros, — afaste-se do caminho dele. Se não for assim, viva ao lado dele, enfrentando todas as consequências.

     E sem dizer nada mais, sem nem sequer olhar para Carola Mason que, apoiando o rosto no braço da poltrona onde estava, rebentara em soluços, Vera Kellerman saiu do apartamento. Na rua tornou a entrar no táxi que a esperava e deu uma direção ao motorista.

     Vinte minutos depois encontrava-se em Culver City, diante dos dois pistoleiros de Chicago. Jimmy, o da camélia e John Lester estavam preparando suas malas. Naquela mesma noite tinham projetado abandonar Los Angeles pelo Transcon-tinental que os deixaria, após cinco dias de viagem, na Estação Terminal de Nova Iorque.

     — Caramba! — exclamou Jimmy. — Tornamos a nos encontrar, mas espero que não seja para nos pedir a devolução de um dinheiro que ganhamos com o nosso suor, não é? Na verdade, não podíamos pensar que aquele maldito "tira" fosse ter tanta sorte.

     — Não, não é isso. Ao contrário, venho para lhes dar mais algumas notas.

     — Das grandes? — perguntou Lester, com ura sorriso.

     — Sim, três das grandes.

     Jimmy avançou um pouco. Tirou a camélia que trazia na lapela e estendeu-a para Vera, enquanto dizia:

     — Se soubesse o quanto me custa ficar sem ela, saberia avaliar a gratidão que sinto por nosso Papai Noel — parou para logo acrescentar:

     E... a quem temos de... Está me entendendo, não é?

     Vera moveu a cabeça, ao mesmo tempo em que recusava a camélia.

     — Sim, entendo. Trata-se do maldito agente do FBI que escapou na outra vez, com tanta sorte.

     Jimmy tornou a colocar a flor.

     — Onde temos que ir buscá-lo?

     — Em lugar algum. Está bem amarrado nos porões do "Sol Nascente", a lavanderia de Fo-Sie-Lig.

     — Quando? — perguntou Lester. — Pensávamos partir esta noite no Transcontinental pelo Central Pacífico.

     — Está bem, vai haver tempo para tudo. Vamos.

     John Lester estava em mangas de camisa. Debaixo do braço, dependurada ao ombro, trazia uma pistola, cuja coronha estava avançada para que lhe ficasse mais perto da mão, no momento em que tivesse que empunhá-la. Vestiu um blusão.

     — Pronto. Quando quiser — disse, e sem mais palavras os três personagens saíram do quarto.

     No mesmo táxi encaminharam-se pelo Boulevar Washington, até entrarem na Main Street. Subiram por essa rua até chegarem em frente ao edifício dos Correios.

     — Vamos parar aqui — disse Jimmy. — Ali perto há uma garagem onde podemos alugar um carro sem chofer.

     Assim o fizeram. Quinze minutos depois, iam num Sedan conversível para onde estava Steven Simenon. Ao chegarem em fronte à Old Mission Church, na praça Velha, o homem da camélia parou o carro.

     — Entramos? — disse, mostrando com a cabeça a rua onde estava a lavanderia de Sie-Lig.

     — Sim, é melhor. Pare o carro em frente à porta — respondeu Vera.

     Quando, obedecendo à indicação, o carro ficou parado e a mulher, seguida pelos dois homens entrou na lavanderia, Fo-Sie-Lig estava atrás do balcão, embrulhando alguns colarinhos. Conhecia os dois "gangsters" como sendo homens de Kellerman, mas ignorava que já não pertenciam à organização. Além disso, ao vê-los chegar com a mãe de Holmes Kellerman, não duvidou de tudo quanto lhe disseram.

     — Casa minha honrada presença senhora — disse. — A que devo tão digna visita?

     — Onde está esse maldito "G-Man"?

     O chinês passou seus astutos olhos de um para outro dos recém-chegados. Depois fixou-os em Vera Kellerman.

     — Aqui não devem matar.

     — Claro que não. Vamos fazer com que ele dê um passeio muito agradável... Vamos, cara de icterícia, — acrescentou Jimmy — leve-nos onde o esconderam, que vai se alegrar muito de nos ver.

     Entraram na sala de passar, onde se travara a luta entre o agente do FBI e os chineses, terminando com a captura do primeiro.

     Sie-Lig fez funcionar o mecanismo da estante e esta girou sobre seus ocultos gonzos.

     Os dois pistoleiros já conheciam o estabelecimento e os equipamentos do porão. Não Vera, que era a primeira vez que visitava a lavanderia.

     Steven Simenon estava bem amarrado e seguro. Não o haviam amordaçado porque, mesmo que gritasse, seus gritos não chegariam a ultrapassar as profundidades daquele porão.

     Muito havia pensado durante o tempo que permanecera, ali. Pela segunda vez escontrava-se nas mãos de pistoleiros que sabia estarem em contato com Holmes Kellerman. Mas o amigo conheceria sua situação? Não seria obra dos mesmos homens?

     Simenon compreendia o quanto é perigoso manejar com homens que num momento determinado, veem sua liberdade em perigo ou mesmo suas próprias vidas ameaçadas. Nada os detém. Se são covardes, fogem; se, ao contrário, não lhes importa matar, matam urna e mais vezes, num instinto de conservação que os empurra para esse caminho.

     Steven Simenon sabia quando encontrava um homem assim e dessa forma logo compreendeu quando viu os pistoleiros. Mas o que lhe fez ver o perigo mais próximo foram os olhos de Vera Kellerman, que, passo a passo, aproximava-se dele, lançando curtas e nervosas gargalhadas.

     O agente do FBI estava amarrado no chão.

     Vera chegou-se para perto dele e, ao mesmo tempo em que lhe dava um pontapé nas costelas, cuspiu-lhe no rosto. Depois...

     — Peste dos infernos! — exclamou. — Conseguiu escapar uma vez, mas isso não vai acontecer agora. Você vai se reunir com o porco de seu pai, que eu mesma matei. Você sabe! Matei-o como vou fazer agora com você! Um Simenon matou James Kellerman e todos os Simenon do mesmo sangue que se atravessarem no meu caminho, hão de morrer! — Lançou uma nova gargalhada e continuou: — Imbecil! Não vai negar que foi bem enganado. Pensou que Holmes podia ser amigo do filho do homem que matou seu pai? Idiota!

     Steven Simenon ficou hesitante. Nunca julgara Holmes capaz de matar alguém e muito menos ordenar a sangue-frio o assassinato de quem lhe salvara a vida no Pacifico. Entretanto, os fatos o acusavam de uma forma que não oferecia dúvidas.

     Era curioso o que se passava no íntimo do agente federal naquele instante crítico. Um tiro na cabeça, dentro daquele porão, terminaria com ele. E, no entanto, sentiu pena de ver-se enganado na amizade daquele homem que, mesmo lutando em campos opostos, nunca, pelo menos de sua parte, havia deixado de ser amigo.

     Apertou as mandíbulas, disposto a morrer como um homem.

     — Não importa que eu morra, contanto que vocês paguem seus crimes — disse, olhando para os pistoleiros. — Atrás de mim virá outro agente e se esse também cair, virão outros, muitos outros ... todos os que forem precisos, até que os levem arrastados para uma cadeira onde serão obrigados a sentar, para que uma corrente de muitos milhares de volts passe por seus cérebros criminosos...

     — Cale a boca, desgraçado! — gritou Jimmy, dando-lhe um pontapé que o atingiu em pleno rosto.

     — Deixem ele cacarejar — disse Vera. — o último esforço da galinha quando sente que lhe cortam o pescoço. Não é com palavras que se acertam os negócios... Vamos, terminemos de uma vez.

     Lester puxou a pistola.

     Jimmy levou a camélia ao nariz, ao mesmo tempo em que dizia:

     — Lu não gosto de maus cheiros e aqui não há quem possa aguentar. Ande logo, Lester.

     — Não, aqui não! — gritou Fo-Sie-Lig. — Tirar homem morto é difícil.

     — Não se preocupe, amarelinho — disse-lhe John Lester. — Só estou me garantindo para não deixar que ele faça nenhuma asneira — depois voltou-se para o agente do FBI. Abaixou-se e deixando a pistola no chão, ao alcance da mão, desatou-lhe as pernas. Tornou a recolher a arma e ergueu se. — Ande, vá levantando! — disse — Vamos dar um passeio.

     Pela mente de Simenon passou a ideia de negar-se a sair e terminar ali de uma vez. Mas logo compreendeu a necessidade de ganhar tempo. Não se fez rogar. Levantou-se com dificuldade, pois o tempo que passara no chão, manietado, deixarão entorpecido.

     — Se fizer algum movimento que não me agrade, cravo-lhe umas balas e vamos terminar bem antes, compreendeu? — ameaçou-o o pistoleiro. Depois, voltou-se para Jimmy. — Suba e aproxime o carro o máximo possível. Vamos procurar mete-lo dentro, sem chamar atenção.

     — Mim saber jeito nenhum curioso ver. Em cima, digo.

     Subiram as escadas. Quando chegaram à sala onde estavam as mesas de passar, Sie-Lig fechou a porta secreta. Depois, aproximou-se de um canto e arrastou para os pistoleiros um enorme cesto de vime, em forma de baú, que servia para guardar a roupa para passar.

     - Aqui — disse, — podem tirar polícia da lavanderia. Ninguém ver.

     Vera Kellerman não disse nada. Permanecia olhando para o policial, enquanto em seus olhos brilhava algo que era mais do que ódio: uma luz estranha, um olhar de louca prestes a sofrer um ataque. Viu como o metiam dentro do cesto, depois de o terem amordaçado e amarrado as pernas. Antes haviam metido algumas roupas no fundo da cesta e depois em cima, não para que ficasse mais cômodo, mas para evitar que pudesse bater nas paredes por dentro e chamar a atenção de algum inoportuno curioso.

     — Vem conosco? — perguntou Lester à mulher.

     — Não é preciso. Quando terminarem, telefonem para Santa Monica. Já conhecem a casa. Ali estarei. Então, vou lhes entregar o que prometi... Aonde vão... ?

     O homem da camélia arranjou o nó da gravata. Depois, acariciou suavemente a flor que levava na lapela. Foi ele quem respondeu à pergunta:

     — Vamos descer por Figueroa Street até o porto. Perto da Base Naval, no cais do Arco Iris, vamos lança-lo ao mar, com cesta e tudo. Quero ver se consegue escapar, como o fez no trem.

     Poucos minutos depois, haviam colocado no porta-malas o cesto onde ia Simenon. O veículo dirigiu-se pela Figueroa Street. Ali, lentamente, por causa do tráfego, encaminhou-se para o porto. Vera foi com eles até as proximidades do City Hall, onde desceu passando para um táxi.

     Steven Simenon ia para a morte, sem que vislumbrasse nenhuma esperança de salvação.

     — Nós forçamos a situação, Philip — disse Holmes Kellerman ao companheiro, quando sua mãe abandonou a biblioteca, — O desaparecimento de Simenon vai precipitar os acontecimentos.

     — Sim, é isso mesmo — fez uma pausa e acrescentou: — O que pensa fazer?

     Como se a pergunta lhe tivesse despertado uma ideia, Kellerman começou a agir. Trocou mais algumas palavras com O'Freyton. Depois levantou-se e abandonou a sala. Pouco mais tarde, corria em seu carro pelo Boulevar Wilshire.

     Kellerman compreendia que chegara o momento de abandonar os Estados Unidos. Se Carola concordasse, partiriam para a America do Sul ou para a Europa. Ali começariam uma nova vida e, quem sabe, ainda poderiam ser muito felizes. O moço estava disposto a deixar livre a Simenon, logo que ele pudesse atravessar a fronteira com Carola e sua mãe. Na verdade, nunca lhe passara pela cabeça dar ordem para que o liquidassem. Sim, tentaria convencer sua noiva. Ainda poderiam casar-se antes de partirem. No pior dos casos, o fariam no México.

     Mil pensamentos cruzavam-lhe pela mente, quando parou o carro diante da casa da noiva. Desceu apressado e em grandes passos atravessou a rua para entrar no edifício. Pouco depois estavam frente a frente.

     O que foi? — perguntou, ao vê-la com os olhos vermelhos de tanto chorar.

     A moça não respondeu. Ela mesma abrira a porta do apartamento e ao ver Holmes retrocedera, afastando-se dele.

     Kellerman avançou até ficar a seu lado. Carola sentou-se numa poltrona e ocultou o rosto nas mãos.

     — Oh Holmes! — balbuciou. — Por que fez isso? Por quê?

     Kellerman que ia expor-lhe seu plano de abandonar a Califórnia e os Estados Unidos, nem chegou a falar.

     — O que foi que eu fiz? — e aproximando-se da moça segurou-lhe as mãos, obrigando-a a afastá-las do rosto. Quando encontrou seus olhos, tornou a perguntar: — O que foi que eu fiz, Carola?

     A resposta deixou-o frio, imóvel.

     — Por que... matou Steven Simenon?

     Por alguns segundos não soube o que responder. Quando o fez, sua reação foi um tanto violenta. Agarrou a moça pelos punhos.

     — O que foi que disse? Por que fala assim? Eu nunca faria isso com Steven Simenon. Era precisamente dele que eu vinha lhe falar — encolheu os ombros e soltando a moça, retrocedeu alguns passos. E, com uma expressão, como se uma grande dor lhe dilacerasse a alma, Holmes Kellerman falou-lhe. Contou-lhe toda a verdade; seus projetos, o ambiente em que sempre vivera; as estranhas reações de sua mãe e que, algumas vezes o faziam pensar que ela estivesse louca.

     — Às vezes — continuou — fico pensando se, verdadeiramente, será minha mãe. No entanto, assim é. Compreendo o quanto sofreu e tento assimilar seus pensamentos, sem o conseguir. Nunca serei um criminoso. Não sou mais do que o chefe de um grupo de contrabandistas e de um punhado de homens que vivem dos "seguros" e das "proteções"... Eu poderia viver dos rendimentos de meus clubes noturnos, mas aqui, nos Estados Unidos, isso seria impossível. O Destino governa. Estou metido num negócio do qual só poderei sair de duas maneiras: fugindo ou quando morrer.

     Carola Mason compreendeu os sofrimentos daquele homem. Sim, apesar do que Vera Kellerman lhe dissera, ela tinha o dever de não abandoná-lo. Amava-o e quando o amor é grande e profundo, sabe perdoar erros que não são irremediáveis. Aproximou-se dele, acariciou-lhe suavemente o rosto.

     — Pobre Holmes — disse. — Acredito em você e pode contar comigo. Sim, o melhor é fugir do passado, buscando um futuro cheio de tranquilidade — fez um gesto de dúvida ao acrescentar: — E, no entanto, foi sua própria mãe quem me disse que você havia matado Steven Simenon.

     Até aquele instante Carola não lhe havia dito nada sobre a visita de Vera. Foi, então, que um pensamento horrível assaltou Holmes.

     — Minha mãe? Disse que minha mãe esteve aqui e que falou nisso?

     — Sim, ela mesma.

     Kellerman contraiu as feições. De súbito, dando meia volta, saiu correndo, ao mesmo tempo em que dizia:

     — Tomara que não seja tarde demais. Carola! Implore a Deus para não seja tarde! — e, sem esperar pelo elevador, desceu as escadas tão depressa quanto lhe foi possível...

     Quando entrava na lavanderia de Fo-Sie-Lig, não haviam passado nem quinze minutos.

    

                    O DESTINO COMANDA

     Holmes Kellerman segurava com mãos firmes o volante do carro. Descia por Figueroa Street na velocidade máxima que lhe permitia o tráfego. O chinês contara-lhe tudo o que ouvira o homem da camélia dizer: "Desceremos por Figueroa Street até o porto. Nas proximidades da Base Naval, no cais do Arco Íris, o lançaremos ao mar com cesta e tudo."

     Nunca Kellerman sentira tanta vontade de matar como naquele instante. Lester e o da camélia deviam morrer, sim; e, se chegasse tarde, se aqueles traidores já tivessem consumado o assassinato de seu amigo, então...

     Manteve o volante com uma das mãos, enquanto com a outra apanhava a pistola que colocou a seu lado, no banco.

     Se conseguisse chegar a tempo! Era o que desejava de toda a alma. O chinês dissera-lhe que não fazia nem cinco minutos que tinham levado o agente. Se chegasse a tempo... pensou uma vez mais.

     Terminou de percorrer Figueroa Street. Atravessou a Avenida do Pacífico e, por fim, no Ocean Boulevard viu o carro dos pistoleiros com a cesta de vime enfiada no porta-malas. Estava detido bem perto do cais em forma de semicírculo, conhecido pelo do Arco Íris.

     Diminuiu a marcha e freou violentamente ao chegar junto aos dois "gangsters".

     Talvez, se tivesse calculado tudo com mais serenidade não tivesse agido com tanta precipitação; mas o ódio o dominava e não lhe deixava controlar os nervos.

     Saltou do carro de pistola na mão. Antes que os dois indivíduos se dessem conta, Holmes já estava dentro do veiculo, na parte de trás e os ameaçava energicamente.

     — Traidores nojentos! — gritou-lhes. — Não sei por que me contenho e não começo a atirar... Vamos! — ordenou a Jimmy, que era quem estava sentado ao volante. — Ponha o carro em marcha. Dê a volta e vá para onde eu mandar... E não se faça de idiota, porque não sei o que é que está me contendo de apertar o gatilho!

     Algo eles deviam ter visto nos olhos daquele homem, porque sem dizer uma palavra, obedeceram rapidamente.

     — Não compreendo por que tudo isso, patrão — disse Lester. — Na verdade, só o que fizemos foi obedecer a sua mãe. Ela ordenou em seu nome. No fim de contas, o polícia já se está tornando perigoso para o senhor.

     Com voz fria, Kellerman respondeu:

     — Também ordenou ela, em meu nome, que avisassem à Polícia o dia, a hora e o lugar onde íamos desembarcar um grupo de chineses e alguma droga? Vocês são uns espiões que só merecem a morte.

     Jimmy compreendeu que aquele homem estava disposto a matar. Por isso decidiu arriscar tudo. O carro ia por um lugar de pouco tráfego, seguindo a estrada da costa. Devia andar a uns oitenta quilômetros. O da camélia tocou dissimuladamente com a perna o joelho do companheiro, em sinal de aviso. Depois, acelerou mais a marcha, chegando a quase cem quilômetros. De súbito levou o pé ao pedal de freio, ao mesmo tempo em que puxava o de mão.

     O carro foi parar poucos metros depois, patinando violentamente, quase virando.

     Kellerman foi apanhado desprevenido. A velocidade fê-lo cair para frente, momento que John Lester aproveitou para levantar as mãos e segurar a que o ameaçava com a pistola.

     Mas Holmes não a soltou. Só teve que puxar o gatilho. A bala foi alojar-se no peito do adversário, que afrouxando a pressão sobre sua mão, foi-se dobrando até cair entre as alavancas do carro.

     Enquanto isso, Jimmy não perdia tempo. Puxou a arma com velocidade incrível e, ao mesmo tempo em que abria a porta e se jogava fora, atirou contra Kellerman. A própria precipitação não lhe permitiu mirar melhor, conseguindo apenas ferir Holmes num ombro. Mas isso foi o suficiente. Quando Holmes conseguiu sair do veiculo, o homem da camélia já havia desaparecido entre as árvores que margeavam a estrada.

     Kellerman olhou sua mão esquerda. Pela manga escorria um filete de sangue.

     Dirigiu-se, rapidamente, para a parte traseira do carro. Tirou um pequeno canivete do bolso e cortou as cordas que sujeitavam o cesto de vime. Quando este caiu ao chão, abriu-o. Tirou os lençóis que ocultavam o policial. Tirou-lhe a mordaça.

     — Alô, Steven! — disse-lhe com uma careta que queria ser um sorriso. — Acho que consegui tirá-lo de uma situação difícil. Eu não sabia de nada. Foi coisa de minha mãe.

     — Alô, Holmes! — disse o agente do FBI. — Eu tinha confiança em você; mas... solte-me de uma vez que me doem todos os ossos.

     Kellerman sacudiu a cabeça de um lado para o outro.

     — Não, Simenon, não. Ainda tenho que fazer algumas coisas que, possivelmente, você não me deixaria. Não vai ficar muito tempo assim. Acho que o primeiro carro que passar, vai parar ao ver um cesto na estrada e um cadáver a seu lado. Enquanto isso, eu terei tido tempo suficiente para me afastar.

     — Holmes! Holmes! — chamou o agente, quando o outro se afastava.

     Foi em vão. Kellerman jogou fora do carro o cadáver de John Lester, que ficou grotescamente ao lado da camélia de Jimmy, que a perdera ao fugir desesperadamente. Depois, sem se importar com o sangue que lhe escorria pela mão, afastou-se no carro, pisando fundo o acelerador.

     Vera Kellerman caminhava nervosamente pela biblioteca de sua casa. Esperava impaciente a chegada dos pistoleiros aos quais dera a ordem de matar Steven Simenon. Ou melhor, esperava uma chamada telefônica, porque não acreditava que fossem ali, onde poderiam encontrar seu filho ou alguns de seus homens, que já conheciam a traição dos dois.

     Vera sorria, porque o único pagamento que reservava àqueles dois era a morte. Sim, quando soubesse que haviam terminado com o agente federal, avisaria O'Freyton para que mandasse alguns dos rapazes para agradecerem a informação que haviam dado à Policia.

     Ouviu um carro parar. Aproximou-se da janela e olhou para fora. Viu Jimmy, o da camélia, que descia de um táxi e, erguendo a cabeça, olhava para a casa. Segundos depois, apertava o botão da campainha.

     — Bem? — perguntou a mulher, quando chegou diante dela.

     — Feito — mentiu o da camélia. — Eu mesmo atirei o cesto no mar e ainda esperei ali mais de dez minutos. Acho que ele não sabe respirar em baixo da água, como os peixes. Parece que ganhei as três notas grandes que foram prometidas.

     — E Lester?

     Jimmy encolheu os ombros. Não quis contar a verdade do que acontecera.

     — Quando voltávamos, encontramos a Polícia. Ele partiu para o outro mundo. E eu — acrescentou, mostrando a lapela — perdi a camélia. Ê a primeira vez que isso me acontece e deve me trazer azar. Mas, enfim... O que quero é afastar-me de Los Angeles o quanto antes. Vamos, depressa, passe a "gaita".

     Vera Kellerman distendeu os lábios num enigmático sorriso. Antes de abrir a porta ao pistoleiro, falara com O'Freyton e com Luigi Frascatto, que se encontravam na casa.

     — Bem, Jimmy, vou lhe pagar. Venha — e mostrando o caminho levou-o para a biblioteca do filho. Abriu urna gaveta da mesa e meteu a mão dentro. — Você faz bem em querer ir embora, rapaz — disse, olhando-o. O sorriso foi-se apagando de seu rosto, até converter-se num gesto feroz. — Sim, faz bem — repetiu. — Mas será para reunir-se a John Lester, no paraíso ou no inferno dos traidores, maldito espião!

     Ao dizer isso, Vera tirou a mão da gaveta e mostrou-a empunhando uma pistola, que apontava para o peito do "gangster".

     Jimmy proferiu um palavrão e retrocedeu um passo. Rapidamente passou à ação. Não era homem que se assustasse facilmente e muito menos de uma mulher. Por isso, ao mesmo tempo em que levava a mão à pistola, atravessou a porta... para encontrar-se com O'Freyton e Luigi Frascatto, que entravam empunhando as armas.

     Vera não atirou por receio de ferir seus amigos; eles não o fizeram porque o pistoleiro encontrava-se em frente à mulher. Por isso, quando se deram conta, o da camélia havia atravessado o umbral e corria pelas escadas para ganhar a porta da rua.

     A mulher foi a primeira a reagir. Correu e, de longe, atirou duas vezes sobre o fugitivo.

     O'Freyton secundou-a e momentos depois o tiroteio generalizava-se, pois Jimmy respondia com sua arma. Por fim, pôde abrir a porta e tentar a saída. Tinha sido atingido na cabeça, por onde lhe escorria um filete de sangue que o cegava. Foi no momento de atravessar a rua que encontrou a morte.

     Holmes Kellerman acabava de parar o carro diante da casa. O ruído das detonações transpirara ao exterior e alguns curiosos começavam a deter-se em frente do edifício.

     Foi, então, que Jimmy surgiu atirando para o interior.

     Kellerman não hesitou; empunhou a pistola e dirigiu-se para o "gangster".

     — Entregue-se, Jimmy— gritou.

     — Vá à m... — a palavra grosseira veio precedida de um novo disparo que fez contra Holmes.

     Kellerman tinha o braço esquerdo dependurado. Fora ferido antes e embora o sangue já não escorresse por ele, sentia uma dor aguda no ombro. Talvez isso influísse para que, apertando os dentes, descarregasse toda a arma no inimigo.

     Jimmy afrouxou a mão e a arma que empunhava caiu ao chão. Em seu peito iam aparecendo claras rosas de sangue e, em seu rosto, um ríctus de dor. Caiu de joelhos e quando Kellerman chegou junto dele, ainda pôde ouvi-lo murmurar:

     — Eu... disse que... perder a... camélia... ia me... dar... azar.

     Foi a última coisa que disse. Ali ficou, dobrado sobre si mesmo, aos pés de Holmes Kellerman.

     Vera e Luigi apareceram na porta. O'Freyton fora ferido e ficara dentro.

     Nesse momento, dois altos policiais uniformizados aproximavam-se de Kellerman. Vinham correndo, seguidos por um grupo de curiosos.

     Vera sentiu uma coisa por dentro, um desejo impossível de refrear, que a fez atirar. Por instantes julgou-se ao lado de James Kellerman, vinte e cinco anos atrás, lutando contra os agentes federais que tentavam detê-lo. Pela segunda vez atirou contra a Polícia.

     Um deles, um irlandês alto e ruivo, cambaleou e caiu de bruços no chão. Ali ficou imóvel, enquanto o sangue ia saindo por um pequeno orifício que lhe apareceu na testa.

     Os curiosos dispersaram-se aos gritos. O outro policial atirou, mas em breve recebeu um novo tiro que o pôs fora de combate.

     Tudo acontecera com tanta rapidez que, quando Holmes quis gritar para sua mãe que não atirasse, já era demasiado tarde. Os dois policiais ali estavam, comendo pó, ao lado de Jimmy, o da camélia.

     — Vamos depressa para dentro! — gritou Vera.

     Kellerman obedeceu. Fê-lo de uma forma automática, quase sem vontade própria. Aquilo fora tão terrível, que o deixara atordoado.

     — O que é que fez? — disse para a mãe, quando estavam dentro de casa. — Matou dois polícias ...

     Vera deu uma gargalhada, que tinha muito pouco de humana.

     — Cachorros! Pior do que cachorros! — gritou. — Não mereciam outra coisa... Nenhum deles merece mais do que a morte... Hei de matar a todos, sim, a todos! Eles que venham, se se atreverem! — e voltando-se para Luigi Frascatto ordenou: — Traga as metralhadoras, Luigi. Vamos ver se há bastante polícias

     A situação havia-se complicado de tal forma que Holmes só tinha um caminho: o Destino, com seu mandato inexorável obrigava-o a ser um perigoso "gangster", naquele momento acossado pela polícia na casa do Boulevar Santa Monica. Por nenhum   meio   poderia entregar-se,   pois   com isso entregaria sua mãe que seria levada à cadeira elétrica. Ele próprio já não era mais do que um fora da Lei; um homem em quem a sociedade cuspia abertamente e tentava caçar como um cão raivoso.

     Já estavam naquela situação há mais de cinco horas. A cada tentativa da Polícia de assaltar a casa. Vera era a primeira a disparar a "Thompson". Já era quase meia-noite. A Polícia instalam refletores que iluminavam a fachada, da casa. De quando em quando, um deles era apagado a balas, mas novamente substituído por outro.

     Steven Simenon falara várias vezes pelo telefone, instando com o amigo para que se rendesse. Na última vez, Vera Kellerman, com um tirão arrancara o cabo fora.

     O'Freyton recebera um grave ferimento no peito, durante a luta com Jimmy e gemia mansamente, recostado num sofá. Só Vera, Luigi Frasetto e Holmes resistiam à Policia. De repente... — Atenção, Kellerman! Atenção Kellerman! — gritaram da rua, através de alto-falantes que haviam instalado.

     Vera lançou uma praga e, jogando meio corpo fora da janela, atirou contra a camioneta do serviço de transmissões, de onde falavam. Quando tornou a ocultar-se, tinha um balaço no peito que lhe fez crispar o rosto de dor, embora sem nada dizer. Só proferiu uma nova praga, enquanto voltava a carregar a "Thompson".

     — Atenção, Holmes! — tornou a soar a voz metálica. — Aqui, Simenon! Escute: Carola Mason quer lhe falar!

     Holmes cravou as unhas na coronha da arma que tinha entre as mãos. Nunca mais tornaria a ver Carola Mason. Sabia-o, e isso lhe causava uma dor tão profunda que esteve quase a ponto de soluçar.

     — Holmes... Holmes! — gritava inutilmente a suave voz da moça. — Holmes, entregue-se!

     Vera sentia-se fraca. A bala atingira-a em cheio. Mas ainda conseguiu rir e dizer:

     — Esse é o amor de Carola Mason! Aconselha-o que se entregue à Polícia que o levará para a cadeira elétrica — e insultou a moça com uma praga obscena.

     — Holmes... Holmes... entregue-se! — continuava dizendo Carola, através do alto-falante. Depois, acrescentou: — Vai um grupo de agentes para onde você está. Eu vou na frente deles. Não me importa morrer por suas mãos... porque sei que não farei mais do que ir adiante no seu caminho.

     Kellerman sentiu um nó na garganta. Não pôde evitar que uma lágrima lhe escapasse, rebelde, pelas faces. Era curioso vê-lo lutar com aqueles sentimentos desencontrados, enquanto suas mãos oprimiam, convulsivamente, a metralhadora. "O Destino comanda!" Sim, maldito Destino que o levara por aquele caminho!

     Foi arrancado de seus pensamentos pela aparição de Carola Mason. A seu lado vinham Steven Simenon, o agente do FBI e o capitão Martin Gross. Atrás, vários policiais uniformizados.

     Holmes voltou-se para Luigi Frasetto, que fizera um movimento para levar a "Thompson" ao ombro.

     — Quieto! — gritou. — Quieto, nem um só tiro! — deu um soco na arma de Luigi, que caiu ao chão. Depois, jogou a sua para a rua, exclamando: — Eu me rendo, sim, me rendo! Não posso atirar em Carola Mason. Steven Simenon! Você encontrou a única maneira de...

     Calou-se. Cambaleou, ao mesmo tempo em que soavam alguns tiros atrás dele.

     Vera Kellerman, de feições descompostas, os olhos fora das órbitas, um ar de louca furiosa, atirara no próprio filho as últimas balas que lhe restavam na arma que empunhava.

     — Um Kellerman não se rende! Um Kellerman não se rende! Um... — interrompeu-se, como se naquele momento se tivesse dado conta do que havia feito. Vera Kellerman deixou cair a pistola e levou a mão à boca. Silenciosamente avançou para o filho que, agarrado às cortinas da janela, caía aos poucos, arrastando-as na queda.

     Vera deu uma gargalhada: uma gargalhada que tinha muito pouco de humana. Ao mesmo tempo, lágrimas rolavam-lhe pelas faces e seus lábios repetiam balbuciantes uma palavra: — Filho... filho...

     Quando a policia entrou, encontrou uma mulher sentada no chão, tendo nos joelhos a cabeça do filho, Holmes Kellerman, que agonizava. Levou um dedo aos lábios e murmurou em surdina:

     — Psiu!... Está dormindo — depois, quando tentaram afastá-la dele, revoltou-se de tal maneira, apesar de estar ferida, que só entre cinco homens conseguiram levá-la para a ambulância que a transportaria para o Hospital do Condado de Los Angeles, onde iria morrer poucas horas depois, sem ter recobrado a razão.

     Quando Carola Mason e Steven Simenon ajoelharam-se junto a Holmes Kellerman, este entreabriu os olhos. Através de uma névoa que não o deixava ver bem, reconheceu seus amigos.

     — Alô, Steven! — sussurrou, enquanto apertava muito suavemente a mão da moça.

     — Alô, Holmes! — respondeu o agente do FBI, a quem a umidade que lhe cobria os olhos, transformou-se em lágrimas. — Por quê? Por que fez isso? Não pôde dizer mais nada, pois a emoção não o deixou continuar. Kellerman sorriu levemente, muito levemente. Depois, quase num sussurro, disse:

     — Amigos... como... em... Filipinas, não é? A...mi...gos — inclinou a cabeça e suas últimas palavras foram estas: — Caro...Ia, Caro...Ia.

     Depois, nada. Havia entrado no imponderável, onde já o precedera Philip O'Freyton e onde entraria Vera Kellerman, pouco depois.

     O mundo continuava sua marcha. Hollywood continuava fabricando filmes com argumentos inventados e nem sempre reais, sem saber que, perto dali, escrevia-se o "The End" em uma das mais trágicas histórias que o Destino, com sua força imperativa, lançara ao mundo. Los Angeles iniciava sua vida noturna, sem se importar com os dramas da Humanidade.

     Era o dia 30 de outubro de 1951.

 

                                                                                Al Gallard  

 

                      

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