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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O INCÊNDIO DE TROIA - p.2 / Marion Zimmer Bradley
O INCÊNDIO DE TROIA - p.2 / Marion Zimmer Bradley

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O INCÊNDIO DE TROIA

Segunda Parte

 

Se Kassandra pensou que a reprimenda a Krises resolveria tudo, estava completamente enganada; parecia que sua paz fora destruída por nada.

E ela não era a única que parecia perturbada; Krises estava pálido e exausto. Ainda era necessário no santuário, pois até então ninguém aprendera o novo método de registro com domínio suficiente para substituí-lo. Ele já conseguira se tornar praticamente indispensável. A maioria dos sacerdotes estava envelhecendo; Krises não tinha mais do que trinta anos, era o único sacerdote do Senhor do Sol que ainda se encontrava no auge do vigor.

A situação não era fácil para Kassandra, pois cada vez que via o sol faiscando nos cabelos dourados não podia deixar de lembrar o momento em que ele lhe falara com a voz do Senhor do Sol. Que idiota ela fora, no final das contas, pensava Kassandra, desolada. Claro que ele era capaz de chamar Apolo... ou fora ela, pelo seu apelo contra a impostura, que convocara o Senhor do Sol para protege-la daquele homem que tanto desprezava? Mas ainda seria Apolo, qualquer que fosse a forma exterior; e se não o tivesse recusado, poderia agora estar esperando o filho do Deus. Mas era o que ela queria? Era o seu destino e o rejeitara?

De qualquer forma, estava feito, e ela podia apenas se regozijar agora, embora com alguma amargura, pela punição, da presunção de Krises. Não se pode escarnecer dos Imortais e agora, pelo menos, Krises sabia disso.

E eu também. O Senhor do Sol escarnece de mim; eu, que falei em reverência contra o que julgava uma blasfêmia, contra os eleitos de Apolo. Eu deveria ser punida tanto quanto o pecador.

A interferência de Apolo não representava um conforto; agora se dizia (e é evidente que a história já se espalhara, primeiro pelo templo e depois por toda a cidade) que ela se recusara ao próprio Deus e que Apolo em troca a amaldiçoara. A verdade só era conhecida das pessoas que se achavam presentes naquela noite; e, pensou Kassandra em desespero, nem mesmo essas pessoas estavam a par de toda a verdade.

Pensavam que Apolo lhe tirara o dom da profecia. Mas tinha a presciência desde a infância, e o Senhor do Sol não podia remove-la, pois não Lhe pertencia. Ele só cuidara para que ninguém acreditasse em suas palavras.

Também não era satisfação ver Krises encarado com a mesma reverência meio assustada que lhe era dispensada. Pelo menos uma vez por dia, mas até duas ou três, ele era possuído e caía ao chão, dominado pela terrível doença, o corpo sacudido por convulsões. Ela já vira (embora raramente) homens, mulheres e até mesmo crianças nesse estado; de um modo geral, eram considerados como vítimas ou favoritos do Deus. Kassandra começou a especular se não seria uma doença como outra qualquer. Mas por que então Krises não mostrara qualquer sinal antes?

Ela não extraía qualquer satisfação dessas dúvidas e indagações interiores; quando muito, ansiava por sua antiga crença infantil. Ainda era constantemente obrigada à companhia de Krises. Depois de algum tempo, compreendeu que o episódio os ligara nas mentes da maioria dos sacerdotes e sacerdotisas... como se ela tivesse de fato cometido o mau comportamento a que Krises tentara seduzi-la, em vez de serem ambos as vítimas comuns da ira de Apolo. Ou da maldade, pensou Kassandra.

O que mais o Senhor do Sol pode me fazer? Tenho a garantia de Seu amor... mas e da!? Seu amor é de qualquer forma melhor do que Sua má vontade? Devo Lhe agradecer porque Ele não me fez também urna vítima de doença das convulsões?

Um dia ela foi chamada ao pátio por Criseide, que estava incumbida de transmitir mensagens dentro do santuário:

- Kassandra, você tem uma visita; acho que é a princesa da Cólquida.

Ela saiu para o pátio e encontrou Andrômaca, o filho no ombro, vestindo a túnica comum de uma plebéia. Correu para abraça-la.

- O que está acontecendo?

- Ah, minha cara, é pior do que você poderia imaginar - respondeu Andrômaca. - Todos estão sob o encantamento da espartana, até mesmo meu querido marido. Tentei repetir para Heitor o que você falou a respeito de Helena, mas ele disse que todas as mulheres sentem inveja de unia beldade, só isso. Acho que você é mais bonita do que Helena, mas ninguém concorda.

Kassandra comentou, muito sóbria:

- E como se ela usasse o cinturão de Afrodite.. .

O que torna os homens capazes de pensarem apenas com os órgãos inferiores, como sabemos. - Andrômaca exibiu um sorriso sarcástico. - Mas será que isso também acontece com as mulheres? Você a acha tão bela assim, Kassandra?

- Acho que ela é tão adorável quanto a Deusa do Amor, - Kassandra ficou chocada com essa declaração arrebatada e tratou de acrescentar, quase num sussurro, como se pedisse desculpas: - Desde a infância tenho visto através dos olhos de Páris.. .

Ela não continuou. Nada podia dizer sobre a estranha intensidade com que reagira a Enone e Helena, nem mesmo a Andrômaca, que fora criada entre as amazonas e provavelmente compreenderia. Depois de uma pausa, prometeu:

- Algum dia lhe contarei tudo... mas agora conte-me o que está acontecendo.

- Sabia que Menelau veio a Tróia?

- Não. Como ele é?

- Tão parecido com o irmão Agamenon quanto eu sou com Afrodite - respondeu Andrômaca. - Apresentou-se fraco e hesitante, exigiu que lhe entregássemos Helena. Príamo, rindo, respondeu que talvez... apenas talvez.. . concordássemos em devolver Helena, quando ele trouxesse Hesíone de volta a Tróia, com um dote para compensar os anos que ela permaneceu sem casar. Menelau declarou que Hesíone tinha um marido, que a tomara sem dote, talvez impressionado pelo fato de ela ser a irmã do rei de Tróia... e pelo menos ele não era um ladrão de mulheres de seus maridos.

- Meu pai deve ter ficado muito satisfeito com isso comentou Kassandra, com uma careta.

- Menelau disse que Hesíone não voltaria. Sugeriu que Príamo mandasse um enviado para perguntar a Hesíone se desejava retornar a Tróia... sem o seu filho, é claro, já que o filho era um bom espartano e pertencia ao marido.

- E o que meu pai respondeu?

- Ele comentou com Hécuba que Menelau se entregara em suas mãos. Chamou Helena e lhe perguntou, na presença de Menelau: "Deseja voltar para seu marido?"

- E o que ela respondeu?

- Helena disse "Não, meu senhor". E, como era de se esperar, Menelau ficou paralisado, dando a impressão de que ela o estava retalhando. E depois Príamo arrematou: "Aí está a sua resposta, Menelau".

- E o que disse Menelau?

- Ele piorou a situação ainda mais, ao dizer: "Como dar atenção ao que quer uma rameira infiel? Ela é minha e vou levá-la." E agarrou Helena pelo pulso, tentou arrastá-la.

- E conseguiu? - indagou Kassandra, pensando que, se Menelau de fato agira com tanta determinação, devia ter impressionado até mesmo Príamo.

- Claro que não - respondeu Andrômaca. - Heitor e Páris se adiantaram e o agarraram. Príamo disse então: "Agradeça a seus Deuses, Menelau, por ser meu hóspede, caso contrário eu deixaria que meus filhos fizessem o que querem com você; mas não haverá ofensa contra qualquer hóspede sob meu teto." Menelau se pôs a gaguejar... com raiva desta vez... e disse: "Tome cuidado com o que diz, velho, ou não terá mais teto de onde poderei arrastá-la." E depois ele disse uma coisa horrível para Helena... que não posso repetir neste recinto sagrado... - Andrômaca fez um gesto supersticioso    jogou longe a taça de que bebia e declarou que não aceitaria a hospitalidade de um... de um pirata que mandava seus filhos roubarem mulheres.

Os olhos de Kassandra estavam arregalados; nunca soubera de ninguém que desafiasse Príamo, a não ser os próprios filhos. Andrômaca continuou:

- Príamo perguntou então: "E como é que os akaios conseguem suas esposas?" Menelau pôs-se a gritar, disse uma porção de coisas de que não me lembro, depois chamou seus servos e foi embora, furioso, depois de acrescentar que Príamo podia não atendê-lo, mas certamente escutaria Agamenon. E Páris teve a última palavra.. .

Andrômaca fez uma pausa nesse ponto do relato, começando a rir.

- Príamo disse: "Quando eu era menino, costumava dizer a quem me provocava que chamaria meu irmão mais velho para lhe dar uma surra." E Páris acrescentou: "Se é esse o caso, Menelau, também tenho um irmão mais velho; você ou Agamenon não gostariam de ter uma conversinha com Heitor?", e Menelau se retirou, praguejando por todo o caminho até o navio.

Kassandra, acabrunhada, mal ouviu as últimas frases. Só conseguia pensar numa coisa: Chegou o momento. Já podia divisar o porto escurecido por navios estrangeiros, o mundo que ela conhecia destruído pela guerra. E não conseguiu mais se conter, interrompendo Andrômaca para exclamar:

- Temos de orar aos Deuses! Orar e fazer sacrifícios! Eu disse a meu pai que não deveria aceitar a espartana!

A voz de Andrômaca soou muito gentil, ignorando a interrupção:

- Não deve ficar tão transtornada, Kassandra. Então até mesmo ela pensa que estou louca.

- O que a faz pensar que não seremos capazes de repelir os akaios de volta às ilhas que ocupam? Uma coisa foi derrotar os pastores que habitavam essas ilhas... mas será muito diferente enfrentar todo o poderio de Tróia! Os akaios é que devem tomar cuidado! Vamos permitir que eles pensem que podem roubar nossas mulheres impunemente, mas são capazes de nos punir se tocamos nas suas?

- Você também está cega, Andrômaca? Não percebe que Helena é apenas um pretexto? Há muitos anos que Agamenon vem procurando um motivo assim para entrar em guerra conosco e agora caímos em sua armadilha. Agora, aqueles homens de armas de ferro tentarão tomar todas as terras que se encontram ao sul de Tróia. Agamenon reunirá todo o poderio desses povos guerreiros para... ora, que diferença isso faz? - Kassandra arriou num banco. - Será que não percebe que você está se comportando como Heitor?... Pensa que a guerra leva apenas à fama e glória!

Andrômaca ajoelhou-se ao lado de Kassandra e enlaçou-a, murmurando:

- Não se preocupe. Eu não deveria tê-la assustado.

Kassandra quase podia ouvi-la pensando: Pobre coitada, está louca; Apolo

a amaldiçoou, no final das contas. Não havia como argumentar, por isso abandonou a advertência e perguntou:

- Como está Enone?

- Ela voltou à montanha e levou o filho. Páris queria ficar com o bebê... afinal, era seu primogênito... mas Enone disse que ele não podia ter tudo o que queria; se era seu filho e ele queria reconhecê-lo, então ela era a primeira esposa legítima e a estrangeira não passava de uma segunda esposa ou concubina.

- Nada mais justo - comentou Kassandra. - Parece que Páris não tem honra nem decência; o pai deveria deixá-lo no monte Ida com as ovelhas, se é que elas o iriam querer.

Kassandra sentia-se profundamente desapontada com o irmão; quisera que o povo da cidade considerasse Páris da mesma forma que a Heitor: seu defensor, seu herói, tanto por sua bondade e comportamento honrado quanto pela beleza.

- Tenho de voltar ao palácio agora, Kassandra. Mas diga-me uma coisa: o que faremos se houver uma guerra?

- Lutaremos, é claro; até mesmo você e eu poderemos nos sentir contentes por nossas armas, se tantos akaios nos atacarem quantos Agamenon tenciona mobilizar - respondeu Kassandra, desesperada.

Andrômaca abraçou-a e foi embora. Depois que ela estava fora de vista, Kassandra saiu pelo portão mais alto da morada de Apolo; subiu e subiu, a caminho do Templo de Palas Atena. Enquanto seguia, o suor encharcando a túnica no calor, tentou em vão formular uma oração. Mas nada lhe ocorreu e continuou a subir.

Contemplou o porto lá embaixo, escurecido pelos navios que já vira tantas

vezes antes. Não sabia se os navios estavam realmente ali ou não, mas desta vez isso não tinha importância. Se não estavam agora, chegariam em breve.

Deus Apolo! Amado Senhor do Sol Se não pode me tirar o dom e remover a Visão indesejável, pelo menos não me condene a que ninguém acredite em mim.,

Ela chegou ao Templo de Palas Atena, no ponto mais alto da cidade, entrou no santuário. Reconhecendo-a como uma filha de Príamo ou como uma sacerdotisa do Senhor do Sol (ou talvez as duas coisas), as guardiães conduziram na à grande imagem da Deusa, apresentada como uma jovem com os cabelos soltos e a grinalda de uma virgem.

Donzela, Você que amou Tróia, Você que nos concedeu as dádivas inestimáveis da videira e da oliveira, Você que estava aqui antes daqueles arrogantes adoradores do Tonante e seus Deuses do céu e suas armas, precisa proteger nossa cidade agora.

Kassandra olhou pelas cortinas puxadas para o santuário interior, que continha a imagem de Palas, trazida do céu, antiga e tosca, e lembrou-se da Deusa das amazonas.

Você que é Virgem como a Donzela Caçadora, vim procurá-la como uma donzela que conheceu a injustiça do Senhor do Sol; devo continuar a servi-lo assim, quando Ele me repudiou e desprezou?

Ela não esperava unia resposta, mas no fundo da mente sentiu o movimento impetuoso das águas escuras da Deusa.

Vagamente confortada, desceu a encosta para o Templo de Apolo, a fim de retomar seus deveres no registro das oferendas.

Krises ali estava, como sempre, anotando seus símbolos nas tábuas de cera, registrando os números de jarros de óleo, de cereais como cevada e painço, as oferendas de vinho ou favos de mel, de lebres, pombos e cabritos. Kassandra ainda relutava em fitá-lo, embora dissesse a si mesma que não era ela quem devia se envergonhar.

Um jarro carregado por uma das sacerdotisas mais jovens caíra e quebrara outro, deixando uma mistura de cevada e mel; os esforços da moça para limpar só serviram para aumentar a sujeira. Kassandra mandou-a buscar uma vassoura e um jarro com água e assumiu a tarefa de limpeza.

Estava orientando a moça para afastar uma gaiola com pombos quando ouviu a voz familiar e odiada:

- Não deveria estar fazendo isso pessoalmente, Senhora Kassandra. É trabalho para uma escrava.

- Somos todos escravos aos olhos dos Imortais, como sabe tão bem quanto eu, Krises - respondeu Kassandra, sem desviar os olhos da vassoura.

- Unia declaração correta; mas quando a Senhora Kassandra foi outra coisa que não correta... qualquer que fosse o custo para si mesma ou outra pessoa? Não podemos continuar assim, Kassandra, você sempre com medo de olhar para mim.

Espicaçada, ela fitou-o, furiosa.

- Quem se atreve a dizer que tenho medo?

- Se não está, por que sempre evita meus olhos?

A voz de Kassandra soou cáustica:

- É um objeto tão bonito que acha que devo sentir prazer em contemplá-lo?

- Pare com isso, Kassandra. Não pode haver paz entre nós?

- Não lhe guardo qualquer ressentimento - respondeu ela, tornando a desviar os olhos. - Fique longe de mini e retribuirei a cortesia, se é isso o que quer que eu faça.

- Não é, não, Kassandra. Sabe muito bem o que quero de você. Kassandra suspirou.

- Nada quero de você, Krises, exceto que me deixe em paz. Falei bem claro?

- Não - insistiu Krises, pegando suas nãos. - Quero você, Kassandra; sua imagem está em minha mente dia e noite. Você me enfeitiçou; se não pode me amar, então pelo menos me liberte de seu encantamento.

- Não sei mais o que lhe dizer - murmurou ela, consternada. - Não lancei qualquer encantamento em você; por que faria isso? Não o desejo; não gosto absolutamente de você e se dependesse de mim estaria em Creta, num dos infernos ou ainda mais longe. Não sei como poderia deixar mais claro para você, mas se conseguisse encontrar uma maneira mais objetiva trataria de usá-la. Pode compreender isso?

- Será que não pode me perdoar, Kassandra? Não quero desonrá-la. Se for a sua vontade, eu, pobre e humilde sacerdote que sou, irei pedir a seu pai a sua mão em casamento. Deve sentir alguma coisa por mim, pois foi gentil com minha filha sem mãe...

Kassandra não o deixou continuar:

- Eu seria igualmente gentil com qualquer gatinho abandonado. Pela última vez, eu não casaria com você, mesmo que fosse o último homem criado pelos Deuses. Se a alternativa fosse permanecer virgem pela vida inteira, casar com um mendigo cego caído no mercado ou até mesmo com um... akaio, eu a escolheria antes de aceitá-lo.

Krises recuou, o rosto tão pálido quanto as paredes de mármore do santuário. E disse, através dos dentes semicerrados:

- Algum dia vai se arrepender por isso, Kassandra. Talvez eu não seja um sacerdote impotente para sempre.

Seu rosto estava contraído; Kassandra especulou subitamente se ele não estivera bebendo vinho sem mistura naquela manhã. Mas o vinho à mesa dos sacerdotes era sempre aguado; e Krises também não tinha a aparência afogueada que teria nesse caso, nem recendia a vinho... mas exalava um cheiro estranho, que parecia aderir a suas roupas. Não pôde identificá-lo e calculou que era algum medicamento que os sacerdotes curandeiros lhe haviam dado para as convulsões.

Ela virou-se, mas Krises tornou a pegar sua mão e puxou-a, acuando-a contra o muro. Comprimiu o corpo com toda força contra o de Kassandra, apertou-lhe as mãos com urna das suas, enquanto a outra tentava arrancar a túnica, a boca espremendo a dela.

- Você me leva à loucura e nenhum homem pode ser culpado por punir uma mulher que o deixe em tal frenesi!

Kassandra se debateu, querendo gritar, acabou por lhe morder o lábio. Krises recuou e ela empurrou-o com as duas mãos, fazendo-o tropeçar e cair. Kassandra cambaleou enquanto ele ainda tentava agarrá-la, desvencilhou-se furiosa e saiu correndo. Krises tentou levantar e ela chutou-o nas costelas. Deixou o santuário e só parou de correr quando se encontrava sã e salva em seu quarto.

 

Kassandra despertou de um sonho de fogo subindo pela colina de Tróia na direção do palácio, sentindo um cheiro de fumaça e ouvindo vozes em clamor nos corredores da morada do Senhor do Sol. Era a parte mais escura da noite, quando a lua está baixa e as estrelas se apagam; mas o cheiro de tochas era inconfundível. Pegando um manto para cobrir a túnica curta com que dormia, ela saiu correndo para o pátio.

Pôde divisar lá embaixo, no porto, as luzes fracas de navios, enquanto tochas, presumivelmente em mãos humanas, subiam pela colina.

S6 pôde pensar numa coisa: Chegou o momento. Soltou um grito e depois ouviu o clamor do alarme, uma enorme matraca de madeira acionada na torre de Príamo. Convocava as mulheres, crianças e velhos a se refugiarem na cidadela principal e os soldados a se apresentarem em seus postos. Kassandra ficou observando as luzes em movimento pela cidade lá embaixo, ouviu o estrépito de armas sendo empunhadas e finalmente as vozes alteadas dos oficiais dando ordens aos soldados.

Sentiu um puxão de leve em sua manga e virou-se para deparar com Criseide parada ao seu lado.

- O que é isso, Kassandra?

- São os akaios. Eles chegaram, como prevíamos. - Kassandra estava espantada com a calma que sentia. - Devemos nos aprontar para nos abrigarmos na cidadela.

- Meu pai...

- Não se preocupe, criança. Ele terá de acompanhar os soldados. Vá se vestir depressa.

- Mas ele está com a doença das convulsões...

- Se os akaios o pegarem, ele sofrerá algo ainda pior. Depressa, criança

Ela pegou a mão de Criseide e levou-a para o interior do templo, vestindo-a rapidamente com uma túnica grossa contra o frio da madrugada, pondo o manto e sandálias nos pés. Assim que Criseide estava pronta, as duas foram para o pátio. Cárites reunia as mulheres e lhes disse que descessem para a torre principal do palácio.

Kassandra, segurando a mão da menina, desceu apressada pelo caminho íngreme. Parecia errado se encaminharem para as tochas e o estrépito das armas; os akaios, com toda certeza, nunca chegariam lá no alto; o que procuravam se encontrava no palácio, não no templo. Agora, ela podia ouvir os aterradores gritos de guerra e as ordens de Heitor, organizando seus homens.

As outras mulheres se agrupavam ao redor, enquanto Kassandra passava pelos portões do palácio. Os guardas e soldados exortavam as mulheres a entrarem mais depressa e cada um pegava uma lança de uma enorme pilha na entrada do arsenal.

Kassandra pensou em também pegar uma lança e descer com os soldados; mas Heitor ficaria furioso. Mas pode chegar a ocasião em que ele não desprezará a minha competência nas armas. Por enquanto, porém, ela decidiu permanecer com as mulheres. Era um bando desgrenhado, a maioria apenas semi vestida, como que arrancadas abruptamente do sono. Muitas não haviam se dado ao trabalho de se vestir, limitando-se a cobrir a nudez com uma manta, o mesmo fazendo com suas crianças; os bebês berravam nos braços das mães ou amas-de-leite. Kassandra e as outras sacerdotisas de Apolo eram quase que as únicas decorosamente vestidas para aparecerem em público, as únicas que mantinham a compostura. A maioria das mulheres chorava, gemia e gritava por uma explicação ou ajuda.

Helena também mantinha o controle, entre as mulheres histéricas. Cada fio de cabelo se encontrava no lugar e ela dava a impressão de que acabara de sair do banho e dos cuidados subseqüentes. Segurava pela mão um menino de cinco ou seis anos; ele estava impecavelmente vestido, os cabelos penteados, o rosto limpo; embora as articulações se mostrassem esbranquiçadas, de tanto que apertava a mão de Helena, não estava chorando.

A espartana correu os olhos pela sala com grande controle e fitou Kassandra. Atravessou a sala, esgueirando-se entre as mulheres a se lamentarem, aproximou-se de Kassandra e disse:

- Lembro-me de você: é a irmã gêmea de meu marido. É bom ver alguém que não se deixou dominar pelo terror. Por que não está chorando e gritando como as outras?

- Não sei - respondeu Kassandra. - Talvez eu não me assuste com tanta facilidade; e talvez eu prefira não chorar enquanto não for ferida. Helena sorriu.

- Isso é ótimo. Quase todas as mulheres não passam de tolas. Acha que existe algum perigo?

- Por que me pergunta? Tenho certeza de que não esqueceram de lhe contar que sou louca.

- Não parece uma louca. E, de qualquer forma, prefiro decidir por mim mesma.

Kassandra franziu um pouco o rosto e desviou os olhos. Não queria gostar daquela mulher nem descobrir alguma coisa admirável nela. Já era bastante ruim que visse, ao fitá-la, algo do que Páris contemplava.

- Então pode decidir por si mesma sobre o perigo - disse ela, bruscamente. - Sei apenas que fui despertada pelo alarme do vigia e desci até aqui em obediência. Como vi navios akaios na enseada, suponho que é uma coisa relacionada com você. Nesse caso, nós devemos temer, embora você não precise recear coisa alguma.

- Acha que não? - murmurou Helena. - Pode estar certa de que Agamenon não tem nada de meu amigo; seu fanico pensamento seria me entregar a Menelau, e com toda certeza gostaria de descobrir que não escapei ilesa.

O menino inesperadamente arrumado que segurava a mão de Helena teve um sobressalto; ela sentiu-o e contemplou-o gentilmente. Kassandra não sabia qual era o motivo para que isso a surpreendesse; por que pensara que a espartana não podia ser também uma mãe terna e preocupada?

- Quantos anos tem seu filho?

- Fará cinco anos no solsticio do verão.

Helena chamou do outro lado do pátio apinhado uma mulher magra e de aparência aristocrática, vestindo a saia rodada e o corpete decotado de unia cretense.

- Aitra, quer levar Nikos e deitá-lo em algum lugar lá embaixo? - Ela beijou a criança, que continuou a agarrá-la, insistente; mas Helena exortou-o, gentilmente: - E agora vá com Aitra e trate de dormir, como um bom menino.

Ele se afastou sem mais protesto, andando obediente ao lado da mulher alta e magra.

- É o filho de Menelau? - indagou Kassandra.

- Talvez você possa dizer assim - murmurou Helena, em tom de indiferença. - Prefiro pensar que ele é meu filho. De qualquer forma, não quero deixá-lo com o pai. Não gosto da maneira como ele trata seus filhos. Não faz mal à minha filha Hermione ser apenas o seu precioso brinquedo dourado; mas o único pensamento na mente de Menelau é fazer Nikos à sua própria imagem... ou pior ainda, à imagem de seu maravilhoso irmão. E mandei Nikos para longe porque alguém disse, insensatamente, perto de mim que o pai, se vinha atrás de nós, poderia matar a ambos; e Aitra também tem motivos para temer.

- Aitra mais parece urna rainha do que umas criada - comentou Kassandra.

- Ela é mesmo uma rainha, a mãe de Teseu, que a mandou para mim. Creio que brigaram por algum motivo. Aitra prefere permanecer comigo e trata meu filho como se fosse seu neto... o que não faria pelo filho da rainha Cavalo. E agora que a criança foi para um lugar seguro, eu gostaria de saber o que está acontecendo.

- Não há perigo aqui, pelos menos por enquanto - garantiu Kassandra. - Creio que seria mais sensato deixar as mulheres da Casa do Deus lá em cima. Certamente eles não subirão além do palácio.

Com Helena ao lado, ela saiu para o pátio, de onde se podia contemplar toda Tróia e a enseada. O sol se levantava; Kassandra pôde divisar homens lutando pela cidade.

- Olhe só - murmurou Helena. - Os soldados troianos, sob o comando de Heitor, cortaram o caminho que sobe para o palácio; e agora os akaios estão saqueando e incendiando a parte inferior da cidade. Aquele é um dos navios de Agamenon; não duvido que Menelau esteja com ele.

Kassandra ficou fascinada pelo tom indiferente de Helena; será que ela não tinha o menor sentimento por seu marido anterior? As chamas se elevavam agora das casas e prédios à beira-mar; as habitações mais pobres e precárias, de troncos empilhados e ripas, desapareciam no fogo. As casas nos pontos mais altos da encosta eram de pedra e não havia como incendiá-las, mas os soldados akaios as arrombavam e saíam com tudo o que podiam carregar.

- Eles não encontrarão muitos tesouros ou pilhagem lá embaixo - comentou Kassandra.

Helena acenou com a cabeça. As duas inclinaram-se sobre o parapeito, observando os homens em ação. Kassandra reconheceu um dos akaios, um homem enorme, quase uma cabeça mais alto do que seus soldados, o elmo faiscando ao sol nascente, como que banhado em ouro. Era o mesmo homem que há muito tempo invadira o palácio e seqüestrara Hesíone a se debater. Fora... há quanto tempo? Sete anos? Ela estremeceu e sentiu o estômago se contrair. - Aquele é Agamenon - informou Helena.

- Sei disso - murmurou Kassandra, a voz apenas um sussurro.

- Repare só. Heitor e seus homens estão tentando bloquear o caminho de volta de Agamenon para o navio. Acha que tencionam queimá-lo?

- Pelo menos tentarão.

Kassandra ficou observando os soldados troianos que procuravam isolar o líder dos akaios e obrigavam-no a lutar a cada passo do caminho de volta ao navio. O sol estava mais alto agora, e elas não conseguiam enxergar, com o clarão ardente que se refletia do oceano. Kassandra virou-se, protegendo os olhos.

- Vamos entrar; está frio. Não será nas mãos de Agamenon que Heitor encontrará seu destino.

Elas foram para a câmara em que se encontravam as mulheres, mais calmas agora. As crianças dormiam em mantas e meia dúzia de parteiras se concentravam em torno de Creusa, que tentava lhes dizer que estava muito bem e não entraria em trabalho de parto só para lhes proporcionar uma distração agora.

Hécuba, com um dos seus xales mais antigos sobre uma velha túnica que só usava em casa, encontrara alguns fios de lã e trabalhava numa roca, distraída; Kassandra compreendeu, pela irregularidade do fio, que era apenas para passar o tempo.

- Ah, aí estão vocês, meninas... Eu já me perguntava para onde teriam ido. O que está acontecendo lá embaixo, filha? Seus olhos são melhores do que os meus. O que tem a dizer sobre Heitor, Kassandra?

- Eu disse que não será nas mãos de Agamenon que ele encontrará seu destino, mãe.

- Espero que não! exclamou Hécuba, irritada. - E seria melhor para aquele grande bruto akaio evitar o nosso Heitor!

Algumas mulheres haviam saído para a sacada, e então Kassandra ouviu-as altearem a voz numa aclamação.

- Eles estão indo embora! Voltaram a seus navios e estão içando as velas! Os akaios se retiram!

- E não podem ter levado muito saque das casas na praia - comentou Hécuba. - Uns poucos sacos de azeitonas, talvez algumas cabras. Você está segura, Helena.

- Pode estar certa de que eles voltarão - declarou Helena.

Kassandra, que estava prestes a dizer a mesma coisa, especulou como ela podia saber. Aquela akaia não era nenhuma tola, o que deixou Kassandra perturbada.

A última coisa que queria era gostar de Helena ou respeitá-la; contudo, não podia deixar de sentir alguma simpatia por ela. Criseide aproximou-se de Kassandra e sussurrou:

- Cárites disse que podemos voltar ao templo. Está pronta?

- Não, minha cara; ficarei aqui por mais algum tempo, com minha mãe, irmãs e esposas de meus irmãos, se Cárites permitir. E irei para o santuário assim ;''que puder.

- Sempre deixam você fazer tudo o que quer - comentou Criseide, desdenhosa. - Tenho certeza de que não será censurada se decidir ficar longe por todo o tempo que quiser.

Hécuba ouviu, mas era gentil demais para perceber a maldade na voz da menina.

- É muita generosidade deixarem que você fique conosco, Kassandra - disse ela. - Não se esqueça de dizer a Cárites o quanto me sinto agradecida. Com todas essas pessoas aqui no palácio, preciso providenciar alguma coisa para comerem. Pode me ajudar, Kassandra, se não precisar voltar imediatamente aos seus deveres no templo?

- Claro, mãe.

Helena se ofereceu no mesmo instante: - Eu também ajudarei.

Kassandra ficou surpresa ao ver Hécuba afagar afetuosamente o rosto de Helena.

- Vou falar com Cárites agora - murmurou ela, afastando-se apressada.

- Claro que deve ficar, se sua mãe precisa de você - decidiu Cárites. - Ainda mais com Creusa grávida e Andrômaca com uma criança no seio. Não se preocupe, Kassandra; fique aqui por todo o tempo que sua mãe precisar de você.

Houve uma batida violenta na porta.

- O que será isso? - balbuciou Andrômaca, escondendo a cabeça do filho sob o xale.

Outras mulheres tremeram e gritaram de medo. Helena, franzindo o rosto com desdém para elas, declarou:

Não sejam tolas. Vimos os akaios irem embora.

Ela foi abrir a porta; seu rosto se iluminou, tomando-a ainda mais bela e radiante. Kassandra soube quem estava ali antes mesmo de ver o irmão gêmeo.

- Páris!

- Eu queria me certificar de que você e o menino estavam bem - disse Páris, correndo os olhos pela câmara à procura da criança. - Não o deixou lá embaixo, enquanto se refugiava aqui, não é mesmo?

- Claro que não. Ele está dormindo ali, nos braços de Aitra.

Páris sorriu... um sorriso que, na opinião de Kassandra, não deveria ser visto fora do quarto conjugal.

- Sentiu medo, minha querida?

- Não, pois sabíamos que estávamos muito bem protegidas, meu amor - murmurou Helena.

Páris pegou sua mão e acrescentou:

- Eu disse a Heitor que deveríamos subir para verificar se nossas esposas e crianças estavam sãs e salvas, mas ele estava muito ocupado, providenciando vinho e provisões para a guarda.

- Heitor jamais negligenciaria seu dever para com os homens que comanda - interveio Andrômaca, bastante tensa. - E eu não gostaria que ele o fizesse.

E o que Páris está .fazendo aqui, entre as mulheres, num momento como este? Kassandra sabia que Heitor se comportara de forma impecável; mas agora, ela também sabia, todas as mulheres de Tróia invejavam Helena por seu marido.

- Menelau estava entre os atacantes? - indagou Helena.

- Se estava, eu não o vi - respondeu Páris. - Eu disse que ele era covarde demais para vir pessoalmente. E agora nos livramos de Agamenon. - Não deve pensar assim - interveio Kassandra. - Ele voltará quase antes mesmo de dispor de tempo para reunir seus homens... e desta vez não conseguirá repeli-lo com tanta facilidade.

Páris fitou-a com uma indulgência jovial.

- Ainda está profetizando a tragédia, minha pobre criança? É como um menestrel que só conhece uma canção e esgota as boas-vindas em qualquer casa. Mas lamento que tenha se assustado com os abutres dos akaios. E vamos esperar que já tenhamos visto o pior deles.

É o que também espero; e ele não tem idéia do quanto espero que assim seja.

- Tenho de ajudar a mãe a providenciar comida para todas essas mulheres - murmurou ela, afastando-se depressa.

Parecia incongruente que, em meio ao terror e à confusão, pudesse haver um banquete; mas os homens também se banqueteavam, celebrando o fato de Agamenon ter sido rechaçado... pelo menos por enquanto.

- Eu preferia ficar com você, Helena - disse Páris. - Mas se não voltar agora e me juntar a Heitor e aos homens, haverá muitas censuras. Perdoe-me, amor.

Ele beijou as mãos de Helena e se retirou. Kassandra parara a alguns passos de distância e ficou imóvel até que Andrômaca a chamou; foi então ajudar a preparar a primeira refeição para as hóspedes inesperadas do palácio.

 

Aquele foi apenas o primeiro dos ataques; durante o resto do inverno, parecia a Kassandra que cada vez que olhava para a enseada lá estavam os navios akaios, enquanto seus passageiros espalhavam-se pelas ruas, lutando. Não demorou muito para que todas as coisas de valor fossem levadas para a cidadela do palácio ou até mais longe, para o Templo de Apolo; a cidade se encontrava sob sítio permanente.

Houve uma ocasião em que os akaios contornaram a cidade e atacaram o monte Ida; antes que o exército pudesse ser chamado, eles capturaram todo o gado de Pr amo e a maior parte das ovelhas. Kassandra se encontrava então de serviço no templo, contando os jarros de óleo e percebendo que a quantidade das oferendas, se não a qualidade também, estava caindo. Abruptamente, foi dominada por um impulso de raiva, pesar e desespero, tão intenso que explodiu num grande gemido de lamento. Não podia compreender o que estava errado, até que reconheceu a qualidade especial da emoção forte que sempre a punha em comunicação íntima com a mente do irmão; ela - ou melhor, Páris - estava parada na encosta e à sua frente, já coberto por um enxame de moscas zumbindo, jazia o cadáver do velho pastor Agelau.

- Foi como se ele tentasse interpor seu velho corpo, frágil como era, entre os rebanhos de Príamo e os atacantes de Agamenon - murmurou Páris.

Kassandra só vira o velho uma vez, por um instante, nos Jogos, quando Páris fora recebido na cidade, mas sentiu todo o pesar e toda a fúria do irmão.

- Ele não tinha outro filho; eu deveria ter continuado a seu lado, para guardá-lo na velhice.

Páris estendeu seu manto ricamente bordado sobre o corpo, com extrema gentileza. Kassandra pôde então se desligar o suficiente do irmão para pensar. Seria mesmo melhor se continuasse com ele! Melhor para você, para Agelau, para Enone... e melhor para Tróia também!

Páris ordenou que o corpo fosse levado para o interior das muralhas de Tróia. Príamo concedeu ao honrado velho o funeral de um herói (e de fato ele tivera a morte de um herói, defendendo os rebanhos do rei), com um banquete e jogos. Uns poucos estrangeiros se encontravam no mercado no dia do primeiro ataque. Os mortos haviam sido sepultados decentemente, no Templo de Hermes, que era o Deus dos viajantes e estrangeiros; mas não houvera ninguém para reclamar seus corpos, não houvera carpideiras e rituais, além dos que eram necessários para apaziguar seus fantasmas irados. O velho pastor foi o primeiro cidadão troiano a morrer na guerra e Páris, pelo menos, jamais esqueceria; cortou os cabelos em luto e Kassandra, ao encontrá-lo de novo, na festa da indicação do nome do primeiro filho de Creusa, mal o reconheceu.

- Isso era necessário? - indagou ela. - Agelau não passava de um servidor, embora idoso e honrado. Mas mesmo assim...

- Ele foi meu pai de criação - declarou Páris. - Durante toda a infância, não conheci nenhum outro.

Os olhos estavam vermelhos de tanto chorar; Kassandra não imaginara que ele fosse capaz de tamanho pesar. E Páris acrescentou:

- Que os' Deuses me esqueçam se algum dia eu esquecer de honrar sua memória.

- Eu não quis sugerir que ele era indigno de seu lamento.

Kassandra sentiu nesse momento que, cie certa forma, Páris era mais seu irmão do que em qualquer outra ocasião anterior. Ela sempre fora a intrusa, partilhando de forma indesejável os sentimentos de Páris; agora, começava a conhecê-lo como pessoa, com seus defeitos e virtudes, a compreendê-lo um pouco.

Ainda estavam parados lado a lado quando o alarme soou outra vez e mulheres e crianças vieram correndo para se refugiarem na cidadela. Kassandra foi ajudar as mulheres que carregavam crianças pequenas, enquanto Páris, grunhindo, sala para se armar e se juntar aos homens de Heitor nas muralhas. Ao lado dos portões da cidade havia uma escada interna, que levava ao topo da grande muralha; os homens se reuniram ali. Observando-os, Kassandra sentiu que talvez ela e o irmão seriam mais felizes se pudessem trocar de lugar.

Ela passou o dia inteiro ocupada a distrair as mulheres e crianças, a mantê-las quietas; o confinamento deixava todas irascíveis e Kassandra especulava às vezes se os homens teriam uma vida mais simples, lá fora, com um alvo contra o qual atirar. Sem dúvida, refletiu ela, teria prazer em mirar alguns daqueles pirralhos insuportáveis... e no mesmo instante ela se controlou: as crianças nada faziam de errado, apenas se comportavam como crianças. Estou me tornando iníqua, deixando-me arrebatar por essas crianças inocentes. Mas ela admitiu para si mesma que gostaria de pegar algumas e sacudi-las, até que os dentes chocalhassem.

Criseide se comportava muito bem; reunira diversas crianças e as distraía com uma brincadeira turbulenta. Era exatamente o que unia boa moça deveria fazer; e se saía tão bem que todas as mulheres no palácio a louvaram. Mas, depois de algum tempo, ela deixou as crianças e subiu para a muralha mais alta do palácio, onde Kassandra se encontrava. Desta vez os atacantes não se haviam limitado à parte inferior da cidade, mas lutavam nas ladeiras íngremes abaixo do palácio, procurando alcançar os celeiros e tesouros de Príamo. Muito em breve, pensou Kassandra, eles terão de reforçar as muralhas e manter os akaios fora da parte inferior da cidade.

Se ao menos eu estivesse com meu arco... Estou sem prática, mas ainda assim poderia repelir alguns, antes que se aproximassem do palácio.

Paciência; esse dia há de chegar. Por um momento, Kassandra pensou que alguém lhe falara. Criseide tocou em seu braço. - Quem são os chefes entre os akaios? Conhece algum deles? - Conheço alguns. Agamenon, aquele homem enorme, de barba preta, que está ali, é o líder.

Como sempre, a visão de Agamenon fez seu estômago se contrair em repulsa. Mas Criseide contemplou-o com uma admiração inequívoca.

- Como ele é forte e bonito! E uma pena que não seja nosso aliado, em vez de inimigo.

Fazendo um esforço para não deixar transparecer sua repulsa e irritação, Kassandra murmurou:

- Nunca pensa em alguma coisa que não seja homens?

- Não com muita freqüência - respondeu Criseide jovialmente. - Em que mais uma mulher deve pensar?

- Mas é uma das virgens prometidas de Apolo...

- Não para sempre... e também não vivi com as amazonas e não assumi o compromisso de odiar os homens. Sou uma mulher; não pedi aos Deuses que me fizessem assim, mas já que é o meu fado, quer me agrade quer não, por que não deveria me regozijar?

- Ser uma mulher não significa que precisa se comportar como uma rameira - protestou Kassandra, cada vez mais irritada.

- Não creio que você saiba a diferença. Preferia ser um homem, não é mesmo? Se as leis permitissem, acho que tomaria uma esposa.

Kassandra já ia dar uma resposta irada, mas se conteve.... Talvez Criseide estivesse certa. E disse, formalmente:

- Todos esquecemos o pobre Agelau e sua pira. Ele já deve ter sido consumido agora; é preciso guardar os ossos numa urna para o sepultamento. Cuidarei disso; Páris é meu irmão e prestarei essa última homenagem a seu pai de criação.

Os ataques continuaram pelo resto do inverno e início da primavera, dia após dia; Príamo acabou instalando os acampamentos nas colinas mais altas ao sul da cidade, onde vigias podiam avistar a aproximação dos navios e acender fogueiras de alerta. Assim, os akaios, ao desembarcarem, nada encontravam além de muralhas nuas e alturas bem defendidas, nada conseguindo em suas expedições.

Depois, os homens de Príamo aproveitaram um longo período de chuva para reparar as muralhas externas e reforçar os grandes portões; e quando os akaios tentaram subir pelas ruas íngremes, a fim de penetrarem em Tróia propriamente dita, não conseguiram entrar. A parte inferior da cidade era um labirinto de ruas estreitas, com degraus íngremes, onde um defensor podia com a maior facilidade derrubar um atacante.

- Eles estão descobrindo que esta cidade não é a maçã madura, pronta para ser colhida, como esperavam - comentou Enéias, exultante, contemplando da muralha do palácio as ruas repletas de akaios, subindo e descendo numa correria.

Até mesmo Heitor, por uma vez, se contentara em deixar que as muralhas os defendessem. A maioria das mulheres da cidade, ao que parecia, viera contemplar a frustração dos akaios. Andrômaca ali estava, com o filho que agora começava a andar, Creusa tinha a filha pequena envolta pelo xale. Os alarmes eram agora tão freqüentes que Hécuba não se dava mais ao trabalho em oferecer uma refeição às hóspedes inesperadas na cidadela, depois de uma noite de luta; mas quando Heitor distribuía punhados de cereais e frascos de vinho a seus guerreiros, a regra era de que qualquer mulher que acompanhasse o marido poderia reclamar uma ração similar. Kassandra ficou observando a distribuição e sugeriu.

- Diga a eles para devolverem os frascos.

Heitor protestou:

- Os frascos não valem tanto assim; por que a avareza?

- Não tem nada a ver com avareza. Os oleiros saem para lutar com o resto dos homens. Se a guerra se prolongar, não poderão fazer mais todos os dias. - Tem toda razão.

Heitor deu a ordem e ninguém se queixou. Os depósitos de Tróia ainda estavam abarrotados de grãos e por enquanto não havia escassez de alimentos. Kassandra ajudava as mulheres da casa de Príamo a encher todos os dias os pequenos frascos de óleo e a servir o vinho. Mesmo ao final do inverno, ainda havia abundância nos celeiros do palácio; mas Heitor já começava a se preocupar.

- Como faremos o plantio da primavera se os akaios nos atacam todos os dias? - indagou ele uma noite, durante o jantar no palácio.

- Eles não virão durante o plantio da primavera - disse Andrômaca. - Na minha terra, todas as guerras são suspensas no plantio e colheita, em homenagem aos Deuses.

- Mas esses akaios não temem a Mãe e talvez não respeitem nossos Deuses - lembrou Enéias.

- Mas todos os Imortais não são os mesmos? - perguntou Kassandra.

- Você sabe disso e eu também - respondeu Enéias. - Mas se os akaios sabem... já é outra história. Pelo que ouvi, não ficaria muito surpreso se eles achassem que a guerra é mais importante do que todos os Deuses. - Ele sorriu e acrescentou: - Mas não se preocupe com isso, Kassandra. É um problema dos homens.

- Mas se eles continuarem a atacar, as mulheres sofrerão mais do que os homens.

Enéias pareceu surpreso por um momento, mas logo concordou:

- Ora, tem razão. Eu nunca havia pensado nisso. Um homem não enfrenta nada pior do que uma morte honrosa, mas as mulheres devem enfrentar a violação, a captura, a escravidão... É verdade: a guerra não é para as mulheres, mas para os homens. Fico imaginando como uma mulher se comportaria, nesta guerra.

Kassandra comentou, com profunda amargura:

- Uma mulher cuidaria para nunca provocá-la. E depois,, se os akaios quisessem o ouro e tesouros de Tróia, viriam nos atacar sabendo que não lutavam pela "honra", mas apenas por ganância, o que os Deuses detestam.

- Não se esqueça, Kassandra, de que há homens que pensam nesta guerra como um campo de jogos, em que os prêmios são apenas coroas de louros e honra.

Kassandra balançou a cabeça.

- Heitor se lança em cada batalha como se fosse ganhar um caldeirão de bronze e um touro branco com os chifres dourados.

- Está enganada - protestou Enéias. - Não há nada de tolo ou inconseqüente em Heitor. Acontece apenas que cada um deve viver pelas regras de seu Deus eleito e Heitor pertence ao Deus das batalhas. Mas o seu Deus não é o meu Deus; a guerra pode ser uma parte da minha vida, mas jamais será a única vida que escolherei.

Ele fez uma pausa, tocou de leve no rosto de Kassandra e depois acrescentou:

- Parece cansada, irmã; não pode haver tanta coisa a fazer aqui para deixá-la tão esgotada. A rainha tem muitas mulheres e qualquer urna pode fazer esses pequenos serviços. Acho que os Deuses ordenaram algo mais importante para você; e os homens podem precisar de suas forças especiais antes que esta guerra chegue ao fim... qualquer que seja o fim decidido pelos Deuses.

Enéias afastou-se e foi parar ao lado da esposa. Kassandra viu-o inclinar-se e olhar dentro do xale, tocando no rosto da criança com um dedo; disse alguma coisa, rindo, depois foi para junto dos homens.

Como ele é diferente de Krises, pensou Kassandra, observando-o descer a encosta. Eu declarei em seu casamento: se meu pai me encontrasse um marido assim, eu ficaria na maior satisfação.

Em toda a minha vida - e sou praticamente a única mulher da minha idade na corte de Príamo que não ganhou um marido - jamais conheci qualquer homem com quem desejasse casar. Este foi o único, mas é o marido de minha meia irmã e o pai de sua filha.

Ela empertigou-se, cansada, e voltou a se concentrar no trabalho de encher os pequenos frascos com óleo.

- Está derramando óleo pelas beiras, Kassandra - disse Creusa, vindo sentar ao seu lado. - Não deve encher tanto a concha. O que meu marido conversou com você por tanto tempo?

- Ele perguntou como eu conduziria esta guerra, se fosse um soldado. Kassandra ficou surpresa com sua sinceridade, mas Creusa riu e disse desdenhosa:

- Não me conte, se não quiser. Não sou do tipo que fica com ciúme se o marido fala com outra mulher.

- Estou dizendo a verdade, Creusa; foi unia das coisas que ele falou. Além disso, especulamos sobre o que faríamos se os akaios não respeitassem a trégua do plantio da primavera.

- Como você é uma sacerdotisa, imagino que deve saber dessas coisas. Mas nem mesmo Agamenon poderia ser tão ímpio. Ou será que poderia? - E

como Kassandra não respondesse imediatamente, Creusa acrescentou: - Você que é profetisa... deve saber dessas coisas. Seria possível?

Kassandra não podia responder à pergunta, mas murmurou:

- Espero que não. De qualquer forma, não sei o que eles costumam fazer ou como servem a seus Deuses.

 

Mas ser uma profetisa não era suficiente; mais tarde, todo o primeiro ano da guerra ,tornou-se em sua mente uma mancha indistinta de incêndios, ataques, homens gritando, meio queimados vivos por flechas de fogo. Uma mulher entrara sem querer no acampamento akaio e fora violentada por uma dúzia de homens. Fora encontrada a gritar em delírio; as sacerdotisas curandeiras do Templo do Senhor da Sol fizeram o maior esforço para salvá-la, mas no primeiro dia em que parecia recuperada o bastante para ser deixada sozinha por um momento, ela se jogou da muralha alta da cidadela e um homem que era humilde demais para se esquivar à tarefa teve de descer e recuperar o corpo mutilado nas pedras lá embaixo.

Poucos dias antes do plantio da primavera, os sacerdotes e as sacerdotisas despertaram com um alegre chamado de trombeta no peio mais abaixo e descobriram que a enseada estava vazia, sem navios; os akaios haviam se retirado, deixando apenas uma faixa preta comprida na praia, imunda e fétida, no lugar em que suas tendas ficaram armadas.

Houve regozijo na cidade, embora todos os homens de Heitor tivessem de descer para remover os detritos e limpar a sujeira. O filho de Heitor, o pequeno Astíanax, também foi. Correndo de um lado para outro e falando sem parar, ele era uma diversão para os soldados; a todo instante descobria entre os detritos alguma coisa que considerava um tesouro. uma reluzente fivela de arreio de bronze, um pente de madeira quebrado, um pedaço de pergaminho usado em que alguém rabiscara um tosco mapa da cidade. Kassandra tirou-o da mão do menino a protestar e examinou-o por um longo tempo, especulando que inimigo de Tróia o teria feito.

- Devolva para mim! - gritou Astíanax, estendendo a mão e tentando pegar o pergaminho.

- Não, menino - respondeu Kassandra. - Seu avô precisa ver isto.

- Ver o quê? - indagou Heitor, tirando o pergaminho da irmã e devolvendo a Astíanax.

Kassandra inclinou-se e recuperou-o, ignorando os gritos furiosos do menino.

- O que há com você, Kassandra? Dê a ele. Os akaios já foram. Não há motivo para se preocupar com o lixo que deixaram. Pare de gritar, filho. Vai ganhar um passeio no carro do pai.

- Eles não ficarão ausentes por muito tempo - garantiu Kassandra. – Por que haveriam de renunciar à vantagem que teriam com isto?

- Está dando uma importância exagerada a esse pergaminho, Kassandra.

O que poderia significar?

Ela tornou a examinar as marcas familiares, mas que ainda não podia compreender inteiramente.

- Alguém de Creta fez isso... e pensei que eram nossos aliados. Tenho de mostrar a ele... - Kassandra hesitou, pensou por um momento. - Helena tem uma cretense no seu séquito; mostrarei isto a Aitra.

Se alguma mulher conhecia aquela estranha escrita, seria ela, como rainha e sacerdotisa.

- Como quiser - disse Heitor, dando de ombros. - Nada como as mulheres para perderem tempo com essas coisas insignificantes.

Mas Aitra examinou o pergaminho sem compreender e disse que já vira aquelas marcas em Creta, mas não fora ensinada a interpretá-las.

- Não posso sequer imaginar de quem foi a mão - acrescentou ela. - Talvez Krises saiba.

Kassandra teve vergonha de explicar à distinta mulher por que não podia procurar o sacerdote. Mas acabou levando o pergaminho a Cárites e a pôs a par da situação; Cárites sabia por que ela temia e detestava Krises e concordou em acompanhá-la, quando fosse consultar o sacerdote.

Krises examinou o pergaminho com toda a atenção, o rosto franzido, os lábios se mexendo, acompanhando os símbolos com a ponta do dedo; depois, levantou os olhos e disse:

- E apenas um mapa da cidade, mas há nomes escritos. Estão vendo? Aqui estão indicados os aposentos da rainha, os celeiros, o grande salão de jantar, cada área do palácio... e também o Templo de Apolo aqui e o de Palas Atena aqui.

- Foi o que pensei - murmurou Kassandra. - Pode me dizer quem escreveu isto?

- Não dá para saber, mas não foi um amigo de Tróia - respondeu Krises. - Só posso dizer que provavelmente não foi um cretense, pois em Creta aprendemos a fazer as letras de maneira um pouco diferente.

Até aí, pensou Kassandra, ela podia ter adivinhado. Mais tarde, levou o

pergaminho a Príamo, que não lhe deu muita atenção, embora reconhecesse no mesmo instante do que se tratava.

- Não posso me lembrar de mais de uma dúzia de homens fora de Tróia

que seriam capazes de desenhar isto. Com essas indicações, não haveria a menor dificuldade para encontrar qualquer lugar em Tróia. Só poderia ser feito por alguém que conhecesse muito bem o palácio e a cidade, e não posso admitir que um de nós fosse capaz de entregar isso ao inimigo. Apenas.. . - Príamo hesitou por um instante, depois sacudiu a cabeça. - Não; ele é meu amigo e foi nosso hóspede. Não posso acreditar que nos traísse.

- Quem, pai?

Tomando a sacudir a cabeça, Príamo murmurou:

- Não. Apenas... Não, não é possível.

- Odisseu?

- Acha mesmo, Kassandra, que meu velho amigo poderia ser tão falso? Ela não queria pensar isso de Odisseu, mas a possibilidade existia. E disse apenas:

- Na guerra, os homens esquecem outros juramentos, pai.

- É possível. Mas ele assumiu comigo o compromisso de não se deixar atrair para esta guerra. E não posso acusá-lo sem ouvi-lo. Seus sonhos estão impregnados de veneno, Kassandra.

- Não fui eu quem pensou nisso, pai. Apenas perguntei se era esse o seu pensamento.

- Ainda estou convencido de que cometo uma injustiça com meu velho amigo por tal suspeita. Esperarei para lhe perguntar pessoalmente se foi obra sua.

Em seu coração, Kassandra tinha certeza; Odisseu, pelo que ouvira dizer, era um homem astuto e engenhoso. Mas ela também não queria pensar que ele pudesse trair sua amizade antiga com Príamo e com Tróia.

Não foi preciso esperar muito tempo; apenas dez dias haviam transcorrido da partida dos akaios quando o navio de Odisseu surgiu na enseada. Kassandra estava no palácio para uma visita a Creusa e para fazer uma poção curativa para sua filha, que contraíra a febre do verão; foi chamada ao grande salão. Enéias adiantou-se no mesmo instante para saudá-la; como sempre, abraçou-a e beijou a na face.

- A criança está bem, irmã?

- Está, sim. Não há nada de muito errado com ela. Seria melhor se eu fizesse uma poção para Creusa, a fim de curar suas ansiedades. Cada vez que o vento muda, ela pensa que a criança está com uma doença mortal. Andrômaca, pelo menos, já aprendeu que os bebês têm pequenos distúrbios e é melhor não lhes dar muitas poções; saram por si mesmas e se isso não acontece sempre há tempo para se chamar um curandeiro.

- Sinto-me aliviado por ouvir isso. Mas seja paciente com Creusa, irmã; ela é jovem e é seu primeiro filho. E agora venha jantar.

Odisseu levantou-se da cadeira de hóspede ao lado de Príamo e adiantou-se para Kassandra; abraçou-a com tanta força que ela gemeu, deu-lhe um beijo estalado.

- Ah, aqui está a mais linda jovem! O que andou fazendo durante esses meses de guerra, Kassandra? Tenho um presente para você: uma fieira de contas de âmbar que combinam à perfeição com a cor de seus olhos brilhantes. Jamais conheci alguém que tivesse esses olhos amarelos, com apenas uma insinuação de vermelho nas profundezas.

Odisseu tirou o colar das dobras da túnica e colocou-o no pescoço de Kassandra. Ela suspirou, tirou o colar e contemplou as contas reluzentes, quase com cobiça.

- Eu agradeço; é muito bonito, mas não teria permissão para usá-lo. Não seria melhor se o oferecesse diretamente como um presente ao Senhor do Sol? Odisseu recuperou o colar, franzindo o rosto.

- Fica muito bem em você; e o Senhor do Sol, embora eu não tenha qualquer discórdia com Ele. . . - Odisseu fez um gesto devoto       não precisa dos presentes que posso lhe dar.

Ele correu os olhos pelo salão e fixou-se ene Helena, sentada à sombra de Páris, recatada. E Helena murmurou:

- Velho e querido amigo, guardarei o colar para Kassandra e ela o terá de volta no momento em que pedir.

Ela estava obviamente grávida agora, mas Kassandra constatou, com um suspiro, que isso parecia torná-la ainda mais bela. Andr3maca mantivera-se forte e saudável durante a gravidez, mas parecera pálida e inchada, enquanto Creusa passara mal por todo o período, sempre enjoada, incapaz de manter no estômago qualquer alimento, definhando a tal ponto que parecia um camundongo arrastando um melão roubado. Helena parecia uma das Deusas grávidas esculpidas que vira na Cólquida, pensou Kassandra; ou como Afrodite, se a Deusa do Amor permitisse que A vissem grávida.

Ela pegou o colar e disse, gentilmente, quase com afeição.

- Quem pode saber, minha irmã? Talvez você não continue para sempre a serviço do Senhor do Sol. E lhe dou minha palavra de que este colar é seu, no momento em que o pedir.

Contra a sua vontade, Kassandra sentiu-se animada pelo calor da presença de Helena. E respondeu, mais afetuosamente do que tencionava: - Obrigada, minha irmã.

Helena apertou suas mãos e sorriu-lhe. Príamo interveio, irritado:

- É ótimo você vir aqui como hóspede e distribuir presentes às mulheres, Odisseu, mas gostaria que me dissesse uma coisa: não vi seu navio entre os atacantes e você não participou dos combates? Pensei que havia prometido que não seria atraído para a guerra contra mim pelos akaios.

- Tem toda razão, meu velho amigo. - Odisseu sorriu e esvaziou a taça de vinho de um só gole. Polixena aproximou-se para tornar a enchê-la e ele sorriu-lhe, quase lascivo, apalpou suas nádegas arredondadas. - Ah, como eu gostaria de não ser casado, coisinha linda... Se seu pai pudesse dá-la para mim... embora eu tenha idade para ser seu avô e não costume procurar esposas em berços... então Agamenon não teria conseguido me persuadir a vir em campanha contra velhos conhecidos.

Príamo tinha uma expressão polidamente cética.

- Confesso que não estou entendendo, meu amigo.

- Bom... - começou Odisseu, levando Kassandra a pensar que ele certamente contaria urna boa história, verdadeira ou falsa. - Deve lembrar que eu me encontrava com os pretendentes de Helena quando ela casou com Menelau. Creio que Helena me perdoou por não ser um dos pretendentes... eu queria apenas casar com Penélope, filha de Ikarios.

Helena sorriu.

- Que os Deuses da Verdade o perdoem tão integralmente quanto eu já o fiz, meu amigo. Eu queria apenas ganhar um marido que me fosse tão fiel quanto você é a Penélope.

- E quando todos os pretendentes começaram a brigar - continuou Odisseu -, fui eu quem imaginou o acordo que superou o impasse: Helena escolheria pessoalmente e todos nós prestaríamos o juramento de defender seu marido contra os contendores. Assim, quando esta guerra irrompeu, lá estava eu, apanhado em minha própria armadilha; Agamenon exigiu-me que cumprisse o juramento que fizera a Menelau.

Príamo amarrou a cara, embora Kassandra pudesse perceber que o pai não estava realmente irado; ele queria ouvir o resto da história.

- E o seu juramento de ser meu hóspede e amigo?

- Posso lhe garantir, Príamo, que fiz o melhor possível para respeitá-lo. Já conheci o mundo o suficiente; preferia ficar em casa, cuidar das minhas terras. Por isso, pedi a Penélope que mandasse a mensagem de que eu estava doente e não podia ir; que minha mente se desgarrara, eu me transformara num pobre louco. E quando Agamenon apareceu, pus meu velho chapéu de camponês, atrelei o cavalo e o boi juntos no arado e comecei a trabalhar num campo de cardos. E .quer saber o que aquele... - Odisseu hesitou           bom, há damas presentes... o que Agamenon fez?

Ele imprimiu ao nome a veemência de uma obscenidade e correu os olhos ao redor para conferir o efeito da história na platéia extasiada.

- Ele pegou meu filho pequeno, Telêmaco... ele mal começava a andar na ocasião, era mais ou menos do tamanho de seu Astíanax, Heitor... e o levou para o campo, pondo bem na frente do meu caminho com o arado. O que eu podia fazer... seguir em frente e passar por cima do menino? Desviei a parelha e Agamenon riu de doer os flancos e disse: "Venha comigo, velha raposa; não está mais louco do que eu!" E exigiu que eu cumprisse o juramento de defender Menelau. E, assim, aqui estou; mas saiba que fui eu quem os mandou de volta para o plantio da primavera. Mas eles voltarão depois e vim avisá-los.

Príamo riu tanto quanto os outros; depois, ficou muito sério e declarou.

- Posso compreender que não seria capaz de agir de outra forma, Odisseu. Assim, ainda é meu amigo.

- E sou mesmo - confirmou Odisseu, servindo-se de peixe e pão.

- E que continue sempre meu amigo, tanto quanto eu sou seu amigo - acrescentou Príamo.

Kassandra estreitou os olhos, observando Odisseu como se esperasse a Visão. Por mais que tentasse, porém, viu apenas um velho inofensivo, genuinamente dividido entre velhos amigos e vizinhos indesejáveis, com os quais precisava manter a paz, para a segurança da própria família. Isso mesmo, ele seria amigo de Tróia... enquanto lhe fosse proveitoso. A menos que houvesse uma boa piada ou uma boa história a se extrair de sua astúcia ou mesmo traição. Nenhuma amizade podia se sobrepor a isso; não para Odisseu.

Ela terminou rapidamente de comer e, levantando-se, pediu permissão ao pai para se retirar. Ele concedeu, distraído; Kassandra beijou a mãe e Andrômaca, levantou o pequeno Astíanax e beijou-o também, embora ele se debatesse e alegasse que era muito grande para ser beijado; depois deixou o salão.

Um instante mais tarde ela percebeu que alguém a seguira. Pensando que fosse uma das irmãs, com uma pergunta à sacerdotisa, íntima demais para ser formulada na presença dos homens, Kassandra parou e esperou. Vigorosos braços de homem a envolveram e por um momento ela relaxou no abraço de Enéias, antes de se desvencilhar, pesarosa.

- Não, Enéias; você é o marido de minha irmã.

- Creusa não se importaria - sussurrou Enéias. - Desde que nosso filho nasceu que ela se encolhe toda vez que vou para seu leito. Juro que Creusa não sente mais o menor desejo por mim. Ficaria contente se eu encontrasse o amor em outra parte.

- Não encontrará comigo - respondeu Kassandra, tristemente. - Também sou comprometida, meu irmão... comprometida com o Senhor do Sol; e precisaria ser um homem muito mais bravo do que você para lutar com ele por uma mulher.

Ainda enlaçando-a, Enéias murmurou:

- Lutarei com Ele se você assim quiser, Kassandra. Por você, eu desafiaria a ira de Apolo.

- Cale-se... - Ela pôs os dedos sobre os lábios de Enéias. - Você não disse isso. Eu não ouvi nada. Mas uma coisa posso garantir, meu querido... - O tratamento carinhoso escapou quase contra a sua vontade            Se ambos estivéssemos livres, eu ficaria na maior alegria por tê-lo, como marido ou amante... o que você preferisse. Mas já testemunhei a ira de Apolo, Senhor do Sol, e não quero desafiá-lo por qualquer homem... e muito menos por você, a quem eu poderia amar.

- Os Deuses proíbem que eu desafie um Deus, a menos que você assim exija de mim, Kassandra. Se está contente em ser a esposa do Senhor do Sol e não de algum outro... - Enéias soltou-a e recuou. - Seja como quiser. Mas juro por Apolo... - Ele levou a mão esguia de Kassandra a seus lábios, num gesto reverente       que serei para sempre seu amigo fiel e irmão. Se algum dia precisar de minha ajuda, juro que a terá, contra qualquer homem... ou qualquer Deus.

Kassandra murmurou, comovida:

- Agradeço por isso... e quero que saiba que serei sempre sua amiga e irmã, não importa o que possa acontecer.

Ele segurou-a pelos ombros, ternamente.

- Kassandra, minha querida, não parece feliz. Está mesmo contente no Templo de Apolo?

- Se eu estivesse - respondeu ela, num sussurro - teria fugido de você antes que chegasse a esse ponto.

Ela se afastou e deixou o palácio em silêncio, o coração ainda batendo tão alto que tinha a impressão de que Enéias não podia deixar de ouvir. Enquanto subia a encosta comprida a caminho da morada do Senhor do Sol, sentiu as lágrimas não vertidas se comprimindo contra os olhos.

Não quero ser falsa com meus votos. Estou comprometida com Apolo e foi Ele quem me abandonou; eu nunca O trairia com qualquer mortal, mas aquele sacerdote blasfemo me desgraçou no templo. Por sua causa, estou profanada aos olhos de todos, quando sou inocente de qualquer erro.

A Deusa a quem servira durante o tempo que passara com as amazonas teria tomado partido de um homem contra a sua sacerdotisa jurada? Ou seria possível que um Deus, quando um homem e uma mulher entravam em conflito, não pudesse defender a mulher, quaisquer que fossem os direitos em questão? Ela era a propriedade do Deus, exatamente como se estivesse com um mortal.

Mas tanto Krises quanto eu pertencemos a Apolo e por isso deveríamos ser iguais a seus olhos.

Ela passou pelas enormes portas de bronze e o vigia da noite inclinou-se em reverência.

- Ficou fora até tarde, princesa.

- Estava no palácio, com meu pai e mãe. Boa noite.

- Boa noite, senhora.

Kassandra foi para os aposentos nos fundos, onde as mulheres dormiam. Tirou as sandálias e a túnica, deitou-se para dormir. Os olhos ainda doíam e no momento em que relaxou os músculos sentiu as lágrimas escorrerem espontâneas pelas faces. A lembrança do abraço de Enéias aflorou e por um instante acalentou-a. Se quisesse, poderia tirá-lo de Creusa e a meia irmã nem mesmo ficaria zangada; ao contrário, iria se sentir satisfeita por estar livre das obrigações conjugais...

Quem seria prejudicado se ela cedesse a Enéias? Deveria esquecer seus votos, já que de nada lhe serviam? Ou apenas acontecia que aquela Deusa estrangeira do amor indiscriminado procurava tentá-la? E de repente, diante de seus olhos, o rosto de Enéias se perdeu na memória ardente do rosto do Senhor do Sol, a música grave e inesquecível de sua voz ao dizer Kassandra...

Enquanto resvalava para o sono, ela especulou: como alguma mulher podia optar por um mero homem acima de um Deus? Talvez fosse melhor ser esquecida ou ignorada pelo Senhor do Sol do que amada por qualquer homem vivo.

 

Começou a circular pela cidade o rumor de que os akaios haviam desistido e nunca mais voltariam. Kassandra sabia que isso não aconteceria, pois ainda havia ocasiões em que olhava lá do alto e por um momento via Tróia engolfada pelas chamas. Por isso, ela sabia que não perdera o dom da profecia.

Mas não adiantava a ela ou a qualquer outra pessoa; quando falava a respeito, ninguém queria escutar. Apesar de tudo, Senhor Apolo, não importa o que possa me ter tirado, ainda virá o dia em que se lembrarão do que eu dizia e saberão que não mentia.

Às vezes ela especulava: É apenas urna maldição, já que ninguém acredita no que eu digo; por que então devo sofrer por saber e ser incapaz de falar? Mas quando começava a orar para que todos os sinais fossem removidos, ela pensava: Oh, não! Seria muito pior tatear às cegas, sem saber o que o Destino determinou!

Mas se aquele era o fado de todos os homens, como eles conseguiam suportá-lo?

Dia após dia, o mar continuava livre de navios de guerra e atacantes. Outros navios surgiam, seguindo para o norte, a caminho da Cólquida e das terras do vento norte, pagando os tributos a Tróia; da Cólquida, a Rainha Imandra enviou presentes e saudações à filha e também a Kassandra.

Certa manhã Kassandra encontrou sua serpente morta no pote, encarando o fato como o pior dos presságios. Não tivera muito tempo para dispensar à criatura ultimamente e culpou-se por não perceber que estava doente. Pediu permissão para sepultá-la no recinto do templo. Depois, Cárites chamou-a e entregou todas as serpentes do Templo de Apolo a seus cuidados.

- Mas por quê? - indagou Kassandra. - Não sou digna; cuidei tão mal da minha que a deixei ficar doente e morrer.

- Quer saber por que lhe damos essa incumbência? Porque não está feliz, Kassandra; pensa que somos cegos? Você é muito importante para min... para todos nós.

Como Kassandra iniciasse um gesto de protesto, ela se apressou em acrescentar:

- E a pura verdade; pensa que ignoramos o que Krises fez com você? Se estivéssemos livres para expulsá-lo, pode estar certa de que muitas pessoas vota riam por tal decisão. E agora temos a oportunidade de lhe oferecer um serviço em que não precisa se encontrar com ele todos os dias, a qualquer hora.

Kassandra ainda não podia entender: por que não estavam livres para expulsá-lo do templo, depois que ele tentara violentar uma virgem do Deus? Era um enigma que ela não podia decifrar; e Cárites não deu explicação, recusando-se a acrescentar qualquer outra coisa; era evidente que não estavam livres sequer para explicar por que Krises exercia tanto domínio sobre todos.

Havia uma sacerdotisa muito idosa no templo que conhecia todas as histórias de serpentes; era mais velha do que Hécuba... pelo menos tão mais velha do que a Rainha quanto Hécuba era mais velha do que a filha. Kassandra, ansiosa em evitar para as outras serpentes do templo o destino que se abatera sobre a sua, empenhou-se em passar muitas horas com a anciã. Seus cabelos eram brancos e uma grande parte caíra, os olhos estavam afundados na cabeça. Com a idade, sofrera de paralisia, as mãos tremiam tanto que nem conseguia segurar direito a colher para comer; fora isso que levara à decisão de substituí-la como encarregada das serpentes.

Havia pouco a fazer depois que as serpentes eram alimentadas, a não ser atender às necessidades da velha Melianta. Kassandra escutava e sonhava,  recordando seu encontro com a Deusa como a Mãe Serpente, no mundo inferior, e especulando como surgira a história de Apolo, Senhor do Sol, matando Píton.

O ano avançava; tardias chuvas de inverno vinham do mar e já, se podia ver nos galhos as pequenas protuberâncias onde as folhas brotariam. Um dia, quando estava no topo do Templo do Senhor do Sol, ela ouviu um grito estridente e distante:

- Os grous estão voando de volta ao norte!

Eu gostaria de conhecer o lugar distante para onde voam, além da terra do Vento Norte, pensou Kassandra. Mas suas companheiras acalentavam pensamentos mais práticos.

- O festival do plantio da primavera chegará em breve - comentou Criseide, com um brilho ansioso nos olhos. - Estou cansada de ficar trancafiada com as mulheres.

Kassandra foi invadida pelo medo; com a primavera, os akaios certamente voltariam. A última lua de inverno inflou e minguou, vieram os dias cinzentos de chuva fina; e poucos dias depois do vôo dos grous para o norte as nuvens se dissiparam e o filete mínimo da lua nova anunciou a chegada da primavera e do festival do plantio.

No primeiro dia depois da lua nova, Kassandra foi chamada ao palácio; encontrou a mãe, com suas mulheres, preparando os implementos para os rituais do plantio, com uma sacerdotisa da Mãe Terra supervisionando todo o trabalho.

Kassandra não tinha a menor idéia do que ia dizer até que ouviu a própria voz:

- Está planejando o festival para que os akaios possam desfrutá-lo? Realizar um festival agora é convidá-los a voltar a semear a devastação!

A sacerdotisa, uma mulher idosa que Kassandra não conhecia muito bem, ficou furiosa.

- O que sugere como alternativa, Senhora Kassandra? Não podemos deixar de semear os grãos...

- Sei muito bem que os grãos devem ser semeados - respondeu Kassandra, quase frenética. - Mas devemos atrair as atenções com um festival? A sacerdotisa indagou, franzindo o rosto:

- Espera receber as dádivas da Deusa sem lhe prestar as honras devidas?

Sem saber o que dizer, Kassandra sentiu vontade de chorar. Se a Deusa é tão grande e benevolente, pensou ela, pode nos dar os grãos sem exigir tanto. A Deusa Terra é uma velha mercadoria a regatear com a gente... tantos grãos por tantas canções e danças? Como não podia dizer isso, não falou nada; sabia que a sacerdotisa a observava com desaprovação.

- O que o festival tem a ver com você, que optou por permanecer virgem na casa do Senhor do Sol e não pagar seu tributo à Deusa?

- Não foi exclusivamente por opção minha - balbuciou Kassandra. - O Senhor do Sol me chamou e a Deusa Terra não protestou. Se Ela exigisse os meus serviços, eu teria obedecido.

E por que então Ela não estendeu seu arco para me salvar do Senhor do Sol? Não sou mais do que um animal em fuga no meio da discórdia dos Deuses?

Mas a sacerdotisa ainda lhe amarrava a cara, parecendo exigir uma resposta; e Kassandra disse.

- Como também sou alimentada por sua generosidade, não vejo motivo para um festival que tornará o plantio inútil. Pois se os akaios vierem destruir o festival, colheremos bem pouco desse plantio.

- Está querendo dizer que os akaios não prestam seu tributo à Deusa?

- Digo apenas que temo pela impiedade dos akaios. Se pensa que eles prestam tributo à Deusa, por que não pergunta a uma de suas devotas ou envia um mensageiro para negociar uma trégua e a promessa de que não vão interferir com os rituais da Mãe Terra?

E por esse medo sou atormentada, como se a impiedade fosse minha; preciso aprender a me manter calada.

Ela se inclinou em silêncio para a sacerdotisa, feita a advertência. Não era parte de seu dever dizer mais. A mãe a ficara observando sem falar e Kassandra atravessou a sala ao seu encontro.

- Não pode compreender meu temor, mãe?

- Confio na bondade da Deusa; Ela pode levantar a mão se quiser fulminar os akaios - disse Hécuba, em tom de censura. - Está com apreensões demais, Kassandra.

- Tem servido à Mãe Terra durante todos esses anos; Ela alguma vez levantou a mão para protege-la?

Hécuba ficou profundamente insatisfeita.

- Não cabe às mulheres formular tais questões; você, que é uma sacerdotisa, deve saber que não se pode dizer tais coisas. Os Deuses não hesitam em punir aqueles que falam contra ou Os questionam.

Eu é que deveria dizer isso, pensou Kassandra. Estou vivendo na casa do Senhor do Sol e testemunhei como Ele agride - e como protege - os seus. Ela suspirou e não disse mais nada. A mãe acrescentou, gentilmente:

- Não a estou reprovando, Kassandra; mas se não encontrou a felicidade na casa do Senhor do Sol, deve voltar para nós. Não posso conceber que seja

uma coisa absolutamente boa para uma moça de sua idade permanecer donzela por tanto tempo; se retornar à casa de Príamo, seu pai lhe arrumará um marido.

Eu ficaria muito satisfeita se a visse casada e com um filho no colo. E não haveria mais essas profecias e sonhos maléficos para atormentá-la.

Apesar do tom afetuoso da mãe, Kassandra sentiu uma onda de raiva tão intensa que a sufocou. Ah, esse é o remédio para todas as, coisas que estão erradas com as mulheres. Se uma mulher é infeliz ou comete um erro, se não faz o que todos esperam, então ela estaria melhor com um marido; e se tivesse um filho, seria remédio para todos os seus males. Ela disse à mãe:

- Você também, mãe? Quando cavalgava com Pentesiléia e suas amazonas, teria a mesma presteza em declarar que era isso o que a afligia? E me daria um marido ou torceria para que eu ficasse grávida, só para não falar a verdade e assustar as pessoas?

Hécuba ficou consternada com o tom furioso da filha. Afagou a mão contraída de Kassandra, tentando relaxá-la.

- Não fique zangada, minha querida; não sei por que está sempre com essa raiva. Só quero vê-la feliz, minha criança.

- Estou zangada por me descobrir cercada por idiotas e a sua única solução é me transformar em mais uma.

Kassandra empertigou-se e saiu correndo da sala. A mãe era um caso perdido. E, no entanto, houvera uma época em que ela era forte e independente; Kassandra tinha as armas de Hécuba para provar isso. E por que deixava que a mãe a desviasse do verdadeiro problema, que era o plantio da; primavera? A mãe preferira substituí-lo pela velha questão do casamento... como se uma mulher casada automaticamente adquirisse sabedoria. Andrômaca certamente não era mais sábia por seu casamento com Heitor, nem Creusa por ter casado com Enéias.

Se eu pensasse que isso poderia acarretar uma grande mudança em mim, então não apenas estaria disposta a casar, mas até ansiosa!

 

Pouco antes do amanhecer Kassandra ouviu o tilintar de sinos e os sons de movimentos na cidade lá embaixo. Ao levantar a cabeça foi dominada por uma onda de vertigem; parecia que o quarto tranqüilo explodia em gritos e o fragor de armas. Oh, não!, pensou ela, caindo de volta sobre o travesseiro e puxando a manta por cima da cabeça. Permaneceu imóvel por alguns minutos. Jurara, que se tinha de haver uma catástrofe, ela estaria longe quando acontecesse; formulara a advertência, o que já era mais do que suficiente.

Mas, além do quarto, os sons do festival continuaram; muito em breve viriam chamá-la e ela acabou se levantando, vestiu-se e foi cuidar das serpentes do templo. Esperava que num dia de presságio tão terrível encontraria todas as serpentes escondidas nos potes e tocas; mas elas pareciam se comportar exatamente como sempre. Foi buscar comida na cozinha e alimentou a velha Melianta com pão encharcado em vinho aguado. Depois de concluir tudo o que pôde encontrar para fazer, olhou por cima do muro e avistou centenas de mulheres saindo pelos .portões de Tróia para a área fértil entre os rios. Não pôs um traje de festival nem se deteve a fazer uma grinalda para usar, apenas prendeu os cabelos escuros para evitar que caíssem pela testa e depois deixou o templo. No caminho lá embaixo reconheceu à sua frente um vulto familiar, uma cabeça vermelho dourada.

Apressou-se para alcançar a mulher.

O que está fazendo aqui, Enone? Não há colheitas a serem semeadas no monte Ida, minha irmã?

Encorajada por suas palavras, Enone sorriu afetuosamente; mas nada falou e depois de um momento Kassandra compreendeu, como se a outra mulher lhe dissesse, que ela esperava um vislumbre de Páris. Não podia oferecer qualquer encorajamento ou esperança a Enone nesse ponto, por isso limitou-se a estender as mãos para o menino rechonchudo que se empoleirava no ombro da mãe.

- Como ele cresceu! Não está muito pesado para carregá-lo no ombro desse jeito?

- Seus olhos são escuros e ele parece cada vez mais com o pai - comentou

Enone, sem responder à pergunta de Kassandra.

Os olhos do menino, de um azul esfumaçado ao nascer, como os de tantos bebês, haviam escurecido para uma cor de avelã, reluzentes, não muito diferentes dos olhos de Páris ou Kassandra.

Por tudo o que isso lhe servirá, pensou Kassandra, tão furiosa que mal podia falar. E como não podia censurar Enone por aquela busca sem esperança e absurda, ela disse:

- Vá para casa, Enone; cuide das colheitas no monte Ida. Nada de bom resultará do plantio aqui. Os Deuses estão irados com Tróia. Páris não estará presente; este festival é para as mulheres... pensei que conhecesse bastante bem os nossos costumes para já saber disso, a esta altura.

- Mas se há necessidade, tenho de orar com a outras, a fim de amainar a ira da Mãe Terra.

Kassandra compreendeu que nada que dissesse faria a menor diferença e por isso acrescentou:

- Deixe-me carregar o bebê para você.

Ela estendeu os braços para a criança. Ele era mesmo pesado, mas já oferecera ajuda e não podia retirá-la. Uma pena que Páris não aparecesse para carregar o filho, pensou ela. Agora, entre as mulheres que desciam do palácio, Kassandra avistou a mãe e Andrômaca, com o filho de Heitor, Astíanax, já bastante crescido para caminhar ao lado, segurando em sua saia.

A criança de Creusa, ainda muito pequena para ser amarrada em seu xale, estava pendurada nos ombros da mãe. Polixena seguia na frente das filhas de Príamo, todas usando a túnica tradicional das donzelas no festival, adornada com fitas, os cabelos flutuando à brisa. Viram Kassandra e acenaram; ela não se sentia bastante intratável para se recusar a retribuir à saudação. Já que não haviam adiado o festival ou que o haviam realizado discretamente, de uma forma que não atraísse a catástrofe que ela previra, bem que podiam se divertir, enquanto ainda era possível. Mais acima, na encosta, alguém começou a entoar a primeira das canções do plantio:

 

Traga o grão, que o inverno escondeu,

Traga com canções, a festa e a alegria...

 

Outras mulheres se puseram a cantar. Kassandra ouviu a voz forte e doce de Creusa e depois as outras; mas quando tentou cantar, sentiu-se sufocada e não foi capaz.

- Olhe ali! - disse Enone, apontando. - Os homens estão na muralha, observando-nos. Lá está seu pai, meu precioso.

Ela tentou focalizar a atenção da criança no lugar em que Páris se encontrava, em sua armadura brilhante, refletindo o sol pálido do início da manhã como flechas.

A criança se contorceu nos braços de Kassandra, procurando divisar o que a mãe apontava; era bastante pesado para desequilibrar Kassandra, que quase caiu.

- É melhor eu pegá-lo de volta - sugeriu Enone.

Kassandra não protestou. Podia avistar as plumas vermelhas que encimavam o elmo de Heitor, a reluzente armadura de Príamo e Enéias, mais alto do que qualquer outro homem.

Haviam agora alcançado os campos; o solo fora preparado dias antes. As mulheres se abaixaram e tiraram as sandálias, pois nenhum pé calçado podia pisar nos seios da Mãe Terra naquele ritual. Hécuba, usando uma túnica escarlate, levantou as mãos para a invocação, depois fez uma pausa e chamou Andrômaca; a mulher mais jovem, em sua brilhante túnica escarlate da Cólquida, adiantou-se para tomar seu lugar.

Kassandra compreendeu: Hécuba era uma velha e, embora tivesse gerado dezessete crianças, das quais mais da metade sobrevivera ao quinto ano, um esplêndido sinal do favor da Mãe Terra, estava agora passando além dos anos de fertilidade, enquanto aquele ritual devia ser efetuado por uma mãe ainda fértil. Durante os últimos anos não tivera muita importância, mas agora, quando os grãos daquele ano seriam cruciais para a sobrevivência da cidade, não se podia correr o risco de que uma mulher estéril pela idade afrontasse a Mãe Terra por sua presença no maior dos rituais.

Andrômaca gesticulou e todas as virgens e as outras que nunca haviam gerado uma criança viva deixaram os campos arados. Kassandra acenou com a cabeça em despedida para Enone e se encaminhou para as pequenas cercas de pedra, sebes de espinheiros e moitas alinhadas na beira do campo. Era uma área que nada tinha de árida; ela podia ouvir ali os sons de pequenos insetos, grilos e besouros, podia ver muitas ervas e outras plantas, cujas utilidades começava a conhecer. Observou uma folha estreita, que servia para curar erupções na pele de crianças e pequenos animais; abaixou-se para cortá-la, murmurando uma prece para a Deusa por essa dádiva, mesmo fora das terras que haviam sido consagradas à sua graça.

Agora que as mulheres se encontravam nos campos, os homens começaram a descer. O rei Príamo, pai de seu povo, numa tanga tingida de escarlate e sem usar mais nada, a não ser uma fieira de pedras púrpuras no pescoço, ergueu o arado de madeira; houve uma aclamação ensurdecedora. Com as próprias mãos, ele atrelou um burro branco ao arado; Kassandra sabia que o animal fora escolhido entre todas as bestas de Tróia por ser imaculado e o dono fora muito bem pago.

Príamo cravou o arado na terra e houve outra aclamação quando abriu uma faixa marrom escura na superfície esbranquiçada pelo sol. As vozes das mulheres se elevaram numa nova canção. Quando era bem pequena, Kassandra fora informada de que as canções serviam para abafar os gritos da Mãe Terra por ser assim violada. Durante a estada com as amazonas aprendera uma teoria mais sofisticada; a de que a Mãe Terra dava alimentos a seus filhos por sua livre e espontânea vontade e as canções eram apenas de louvor e agradecimento; mas mesmo agora ainda teve de reprimir um sobressalto quando o arado rasgou a terra.

Agora, todas as mulheres jovens e férteis da cidade espalharam-se pelo campo; juntas, tiraram as partes superiores dos trajes, expondo os seios e fazendo gestos simbólicos de derramarem seu leite na terra áspera, para nutrir os campos. Mais da metade estava grávida, de moças mal começando a estufar com seus primeiros bebês, os seios não maiores do que pêssegos verdes, às mulheres da idade de Hécuba, que haviam gerado uma criança quase todos os anos, por uma geração, os seios compridos e flácidos, expostos ao céu e sol.

Kassandra aderiu ao clamor que se elevou ao céu:

- Mãe Terra, alimente seus filhos, nós lhe suplicamos...

Cestas de sementes foram distribuídas a todas as mulheres férteis, que começaram a circular pelo campo, espalhando os grãos. Príamo, empurrado às pressas para a beira do campo, cambaleou e caiu estendido sobre o solo, sujando-se. Houve murmúrios consternados por esse presságio ruim; ele foi erguido e conduzido ternamente para o lugar em que o resto das mulheres se encontrava agora, à beira do campo, observando o plantio. O sol estava alto, abatendo-se sobre o campo com uma força intensa.

- Talvez a Terra produza, não importa o que façamos ou deixemos de fazer - sugeriu um homem grande e rude, que Kassandra nunca vira antes. - Já estive em lugares pagãos onde nada sabem de nossos Deuses e ali também há colheitas, da mesma forma que aqui.

- Cale-se, Ajax; não precisamos de suas tolas idéias - disse uma voz profunda e forte, que Kassandra identificou como a de Enéias. - Quer tenha ou não alguma relação com os Deuses, é assim que as coisas são feitas por decoro e costume; e por que não?

Uma trovoada ressoou à distância e nuvens escuras cobriram o sol. Kassandra percebeu que os insetos nas sebes ficaram em silêncio. Depois, umas poucas gotas de chuva caíram sobre os galhos secos e não demorou muito para que as delicadas roupas das mulheres estivessem grudadas nos corpos. Elas elevaram um grito:

Graças à Mãe Terra, que manda a chuva para nos alimentar!

As, canções arrefeceram, à medida que a chuva aumentava. As mulheres acabaram de espalhar as últimas sementes e todas, inclusive as crianças e as que já estavam velhas e estéreis, correram para o campo para ajudar a cobrir os grãos. Kassandra saiu correndo também e se juntou a Enone; foi nesse instante que uma onda escura surgiu diante de seus olhos e ela parou, meio tonta, pensando que o solo tremera sob seus pés.

Soou então um grito de guerra e ela viu homens em túnicas escuras avançando pelo campo. Um homem de armadura agarrou Enone, ajeitou-a em seu ombro e correu para a linha escura de navios, que haviam se aproximado quando todos os olhos se concentravam no plantio.

Pelo costume antigo, os troianos não haviam trazido armas para o campo; a maioria corria agora para a muralha da cidade, onde estavam as armas. Páris foi um dos primeiros a reaparecer na muralha, disparando uma flecha depois da outra contra a multidão de estranhos soldados. O homem que carregava Enone tombou, em estertores, atingido no coração. Enone se libertou. Muitas flechas e lanças foram atiradas, muitos akaios tombaram; quase todos os outros que havia agarrado mulheres trataram de largá-las, conseguindo alcançar os navios antes de serem dizimados pela saraivada de flechas. Enone foi se postar ao lado de Hécuba e olhou ao redor, procurando pelo filho; descobrindo-o são e salvo, juntou-se ao pequeno grupo em torno da rainha. Kassandra ainda se encontrava sob a proteção da sebe. Divisou Helena ao lado de Enone e especulou o que as duas esposas de Páris teriam para dizer uma à outra, se é que encontrariam alguma coisa para dizer. Percebeu também que o corpo perfeito de Helena estufava visivelmente em gravidez.

E se perguntou se Menelau vira isso. Nesse caso, Menelau, com toda certeza, voltaria para sua terra, deixando Helena para Páris, não continuaria a lutar pela mãe da criança de outro homem.

Kassandra, escolhendo o momento com extremo cuidado, deixou a sebe e correu pelo campo, indo se juntar ao círculo em torno da rainha, ao lado de Enone. Todas as mulheres olhavam assustadas para os akaios que se aproximavam dos navios. Ela divisou o vulto alto de Agamenon; ele não era nenhum monstro agora, mas apenas um homem, mais rude, mais forte e mais cruel do que a maioria, o que não impedia que a visão fizesse seu sangue correr gelado. Hécuba olhava ao redor e contava as mulheres.

- Estão todas aqui? Levaram alguém?

Algumas mulheres do Templo do Senhor do Sol se agrupavam perto das mulheres de Hécuba. Filida as contou, discretamente, depois gritou:

- Onde está Criseide? Ela não estava com você, Kassandra? - Pensei te-la visto a seu lado...

- Ela estava mesmo junto de mim; talvez ainda se encontre na sebe. Quer que eu volte para verificar? Todos.. , todos eles já voltaram para os navios, eu acho.

- Você não deve se expor - disse Filida, firmemente. - Não se esqueça de que é filha de Príamo e seria um grande prêmio para qualquer dos invasores. Fique aqui, perto de sua mãe.

Hécuba pegou a mão de Kassandra e murmurou:

- Você está bem? Fiquei preocupada com você... Como soube que eles nos atacariam?

- Pensei que era provável e foi o que aconteceu.

- Mas eles não levaram cativas e assim o ataque foi inútil.

- Não saímos ilesas - informou Kassandra. - Os akaios conseguiram levar uma das donzelas do Templo de Apolo.

- Oh, que coisa terrível! - balbuciou Hécuba.

Particularmente, Kassandra refletiu que a perda não era das maiores; a moça criara problemas desde o primeiro dia e nem se podia ter certeza de que ainda era uma virgem.

Ela sentia-se grata porque o ataque quase não causara mal algum. Resolveu procurar Helena e indagar quando seu filho nasceria. Mais uma vez, parecia que Helena se encontrava sob o encantamento da Deusa; mesmo no estágio mais desgracioso da gravidez, continuava bela e radiante. Não eram apenas os olhos de Páris que a acompanhavam pelo campo.

Helena sorriu numa acolhida tão calorosa que Kassandra sentiu os joelhos fraquejarem, quase vergarem. O favor da Deusa tinha de ser apreciado. Sem isso, as mulheres poderiam acabar com a rainha espartana; afinal, fora ela quem levara os homens de Tróia aos perigos daquela guerra. Mas eu não tenho marido ou amante por quem deva temer, pensou Kassandra. Helena abraçou-a e Kassandra retribuiu ao gesto afetuosamente.

É estranho; quando ela aqui chegou, fui eu quem suplicou a meu pai e minha mãe para que não a aceitassem. Agora, eu a amo muito; e se quisessem expulsá-la, eu seria a primeira a defendê-la. É a vontade da Deusa que ela encarna? Eu A sirvo sendo amiga de Helena? Não agora, esperando um filho, ela deve procurar a proteção da Mãe Terra.

- Quando a criança deve nascer?

- Na colheita do outono.

- É um filho de Páris. Nesse caso, talvez Menelau vá embora e não se incomode mais de deixá-la aqui.

Helena sorriu, cética.

- Se ele apresentasse essa proposta, ninguém o escutaria. Ora, Kassandra, você sabe tão bem quanto eu que meu corpo e meu adultério não passam de um pretexto para esta guerra; há anos que Agamenon vem procurando uma boa desculpa para atacar Tróia. Se eu tentasse voltar para Menelau esta noite, sob a cobertura da escuridão, aposto qualquer coisa que quiser como meu cadáver seria encontrado pendurado na muralha e os akaios continuariam a lutar, sob o pretexto de me vingar.

Era tão provavelmente verdadeiro que Kassandra não se deu ao trabalho de comentar. Helena acrescentou, contrariada:

- Já houve muitas ocasiões em que pensei que seria melhor se tivesse me consagrado como uma virgem à Donzela Lua. Mesmo agora, ainda me sinto tentada a renunciar aos homens para sempre e me refugiar em seu santuário; acha que ela me aceitaria?

- Como posso saber? - respondeu Kassandra, hesitante. - Você é uma sacerdotisa...

- Tudo o que sei é que Ela não repele qualquer mulher que A procura. Mas parece-me que seu destino é se tornar um símbolo de discórdia entre os homens... e ninguém pode escapar ao destino.

- Creio que seria bom demais para ser verdade se eu pudesse procurar a Deusa e à sua sombra evitar o padrão conhecido de meu destino. Mas como posso saber que foi um Deus que determinou esse destino e não que simplesmente me descobri envolvida entre dois homens obstinados que não se importam

com os Deuses?

- Acho que é o tipo de coisa que ninguém jamais poderá saber - comentou Kassandra. - Mas sinto a mão de algum Deus em tudo isso; sei como Páris foi levado a procurá-la.

- Está querendo dizer que esta guerra entre Tróia e meu povo foi determinada pelos Imortais? Por quê? Por que justamente eu e não alguma outra?

- Se eu soubesse, seria a mais privilegiada vidente dos Deuses. Só posso imaginar que a Deusa que a favoreceu com tanta beleza tinha esse propósito em mente.

- E ainda pergunto: por que eu e não alguma outra?

- Pergunte tanto quanto quiser... e se encontrar uma resposta, venha partilhá-la comigo.

 

Kassandra sonhou que os Deuses estavam zangados com a cidade e lutavam por cima de Tróia; projetavam-se para o céu, as lanças se encontrando com relâmpagos, o clarão de suas enormes espadas parecendo raios. Despertou para um dia de chuva forte, com uma dor persistente nos olhos.

Surpreendentemente, sentiu saudade de Criseide; acostumara-se à companhia da moça e não podia deixar de experimentar medo e repugnância pelo que deveria ter lhe acontecido no acampamento dos akaios... afinal, eles estavam há vários meses separados de suas mulheres. Embora soubesse que algumas mulheres da cidade esgueiravam-se pelas muralhas até o acampamento na praia, a fim de venderem seus corpos, ela calculava que não era a mesma coisa. Contudo, quando pensava ter pena de Criseide, descobriu-se a pensar que fora exatamente o que a moça queria; há meses que ela observava os estrangeiros do alto da muralha.

Afastando a moça dos pensamentos, Kassandra pôs a túnica e foi cuidar das serpentes e da sacerdotisa.

Deparou com a maior confusão ao entrar no aposento reservado à velha e às serpentes; duas ou três estátuas haviam sido derrubadas e os fragmentos espalhavam-se pelo chão, não havia nenhuma serpente em qualquer parte. Ela chamou - fora informada de que as serpentes eram surdas e nada podiam ouvir, mas não tinha certeza e não havia mal algum em chamar - e a voz da velha Melianta soou debilmente no outro cômodo:

- É você, Kassandra, filha de Príamo?

Kassandra adiantou-se apressada para o outro cômodo, pequeno e escuro, onde a velha estava deitada em seu catre.

- O que a aflige, Melianta? Está doente?

- Não... estou morrendo.

Kassandra reparou, na semi escuridão, que o rosto da idosa sacerdotisa se encolhera ainda mais; os olhos estavam embaçados, cobertos por uma película branca.

- Não precisa chamar as serpentes, pois elas se foram... todas elas. As serpentes nos deixaram, retornaram às profundezas da terra. As que ainda se encontram por aqui estão mortas em seus potes... pode verificar.

Kassandra foi investigar e encontrou alguns potes intatos, as serpentes frias e imóveis lá dentro. Voltou para junto da velha e perguntou o que acontecera.

- Não sentiu a ira d'Aquele que Sacode a Terra durante a noite? Não apenas os potes quebraram, mas também todas as minhas estátuas.

- Não ouvi nada - respondeu Kassandra. - Mas tive pesadelos da ira dos Deuses. É a Mãe Serpente que está furiosa conosco?

- Não - murmurou a velha sacerdotisa, desdenhosa. - Ela não puniria suas serpentes para demonstrar a raiva que sente; em vez disso, mataria a todos nós só para preservar o bem-estar de suas pequenas criaturas. Qualquer que tenha sido o Deus que fez isso, a Mãe Serpente nada teve a ver.

A velha parecia tão agitada que Kassandra tentou confortá-la:

- Quer que eu vá buscar pão e vinho, mãe?

- Não... não posso pensar em comida num momento como este. Vista me com o traje de sacerdotisa e pinte meu rosto, depois leve-me para o sol no pátio, a fim de que eu possa mais uma vez contemplar a face do Senhor do Sol, a quem dediquei minha vida.

Kassandra atendeu ao pedido, ajudando a velha a pôr a túnica elaborada de linho pregueado, tingido com açafrão para um amarelo brilhante. Encontrou um pote de cosmético e, como a velha desejava, pintou hesitante as faces e os lábios de vermelho, embora achasse que o resultado era grotesco. Ao final, inclinou-se, suspendeu nos braços a velha sacerdotisa e levou-a para a claridade intensa do pátio, onde a ajeitou sobre algumas almofadas. Exausta, a velha recostou-se. Kassandra podia ver a pulsação forte na veia azul em sua têmpora. A respiração

era ofegante e cansada.

- Devo chamar uni curandeiro, Senhora?

- Não precisa. É tarde demais para isso. Estou contente por não viver para testemunhar os dias que se aproximam para Tróia. Mas você tem sido boa para minhas pequenas criaturas e vou orar com meu último alento para que escape de alguma forma ao que as Parcas determinaram para esta infeliz cidade.

Ela fechou os olhos por um momento e Kassandra inclinou-se para a frente, a fim de verificar se ainda respirava. Melianta estendeu a mão trêmula.

- Chegue mais perto, criança. Não posso ver seu rosto... embora brilhe à minha frente como uma estrela. O Senhor do Sol não a abandonou.

Ela beijou Kassandra com os lábios murchos, abriu os olhos vidrados e exclamou:

- Apolo, Senhor do Sol! Deixe-me contemplar Seu rosto luminoso!

Melianta tremeu violentamente e caiu sobre as almofadas; Kassandra compreendeu que ela morrera.

Agora, não poderia haver mal algum em deixá-la sozinha; por isso, Kassandra correu para comunicar a Cárites o que acontecera.

- Ela era a mais velha de todos nós - comentou Cárites. - Cheguei ao templo como uma criança de nove anos e ela já era velha na ocasião. Senti Aquele que Sacode a Terra durante a noite e deveria tê-la procurado. Mas não tem importância... eu não poderia mesmo ajudá-la. Agora, devemos enterrá-la como convém a uma Sacerdotisa de Apolo.

Ela ordenou que as mulheres colhessem flores para as grinaldas, providenciassem bolos de mel e vinho.

- Não lamentamos quando uma das nossas parte para os reinos da eternidade - disse Cárites às moças que choravam. - Ao contrário, devemos nos regozijar porque, depois de uma longa vida de serviços, a Mãe Serpente a levou. E reparem... - Ela indicou as serpentes mortas em seus potes   suas pequenas amigas partiram antes, para recebê-la nesses reinos. Poderá revê-las por lá, brincar com elas, como sempre gostou de fazer.

Dois dias depois Kassandra ouviu o alarme na cidade anunciar mais um ataque akaio. Observou os homens de Tróia correrem para enfrentar os invasores, inclusive Páris. Ficou surpresa ao refletir como essa cena começava a parecer comum, não apenas para ela, mas aparentemente para todos os habitantes de Tróia. Exceto pelos combatentes, ninguém parecia dispensar muita atenção ao ataque. A rotina do templo não se alterou e lá de cima pôde ver as mulheres seguirem calmamente para as cisternas, em busca de água.

Um homem que não era guerreiro, no entanto, ainda se interessava pelas ações dos akaios. Na extremidade da muralha mais próxima do combate estava Krises, observando a luta com o rosto franzido. Sem desejar qualquer contato com ele, Kassandra voltou aos alojamentos das mulheres. O povo de Tróia começa a considerar os akaios com a mesma preocupação que dispensaria a uma súbita tempestade de granizo, pensou ela. Será que as pessoas não podem perceber que isso acarretará a nossa destruição? Mas suponho que ninguém pode viver num estado de terror por anos a fio. Sem dúvida eu sentiria a mesma complacência se não tivesse as visões para me atormentarem.

Pouco depois um mensageiro do palácio procurou-a, comunicando que Helena entrara em trabalho de parto e desejava vê-la. Com a morte de Melianta, Kassandra quase não tinha mais obrigações na morada do Senhor do Sol; por isso, não se deu ao trabalho de pedir licença, descendo imediatamente para o palácio. Encontrou a mãe e as irmãs, à exceção de Andrômaca, reunidas nos aposentos de Helena.

Kassandra perguntou por Andrômaca e foi informada de que ela levara todas as crianças para o seu quarto, a fim de contar-lhes histórias e servir doces.

- Se há uma coisa de que não precisamos numa câmara de parto é de crianças atropelando-se em nossos pés - comentou Creusa.

Kassandra refletiu que provavelmente ela estava certa; e especulou se seria boa vontade da parte de Andrômaca ou se ela temia a lembrança de seu próprio sofrimento. Mas não fazia diferença; era uma coisa que precisava ser feita e os motivos de Andrômaca não tinham importância.

A câmara de nascimento estava apinhada e quase todas as mulheres eram mais obstáculos a serem superados do que ajuda a uma mulher que iniciava o trabalho de parto; mas o costume exigia testemunhas para um nascimento real. Kassandra se perguntou se os akaios teriam o mesmo costume e resolveu indagar a Helena, mais tarde. Naquele momento, Helena estava cercada por tantas parteiras, camareiras insistindo em arrumar seus cabelos e mostrar roupas ou jóias que ela poderia querer usar, sacerdotisas com amuletos e lançando encantamentos e cozinheiras com iguarias e bebidas para tentar seu apetite, que Kassandra não pôde nem se aproximar da cama e decidiu esperar que Helena a chamasse.

Creusa trouxera uma harpa de colo e sentou no canto, dedilhando o instrumento, reproduzindo uma música suave e tranqüilizante. Depois de algum tempo, Helena notou Kassandra na multidão e chamou-a.

- Venha sentar ao meu lado, irmã; isto é como um festival... tenho a impressão de que a maioria sente assim.

- Como um casamento - sugeriu Kassandra. - Uma grande diversão para todos, exceto para as pessoas diretamente envolvidas. Tudo o que precisamos agora é de alguns acrobatas e dançarinas, alguém exibindo um coelho de duas cabeças, um comedor de fogo, um engolidor de espadas...

- Tenho certeza de que Hécuba providenciaria tudo isso se eu pedisse - garantiu Helena, alteando as sobrancelhas numa expressão cômica.

Kassandra notou que ela mantinha a beleza deslumbrante mesmo naquelas circunstâncias penosas.

- Pelo menos acrobatas e dançarinas - comentou ela. - Príamo mantém vários no palácio. Não sei se conseguiria encontrar um coelho de duas cabeças.

- Mas que vergonha, Kassandra! - interveio Creusa, entre os acordes. - Nossa mãe real não faria isso... seria abaixo de sua dignidade tomar conhecimento das dançarinas e flautistas de Príamo.

Kassandra soltou uma risada.

- Não acredite nisso, Creusa. A função de Hécuba é providenciar alimentação para todas as pessoas sob este teto. Provavelmente ela sabe quantas azeitonas cada uma come ao jantar, quais são as gulosas por bolo e mel, quais as que tomam cuidado para não engravidar.

- O que é perfeitamente normal - disse Helena. - Uma acrobata passaria um ano sem trabalhar se engravidasse. Eu tinha duas moças, irmãs, em Micenas, que costumavam dançar para mim. - Era a primeira vez, ao que Kassandra podia se lembrar, que ela falava de sua antiga terra. - Nenhuma moça que trabalha quer assumir o fardo de esperar e dar à luz uma criança. Isso é para as damas de lazer... como nós.

- E talvez sejamos as que mais trabalham - comentou Kassandra. - Minha mãe gerou e amamentou dezessete crianças.

Helena estremeceu.

- Já estou com 23 anos e tenho apenas Hermíone e Nikos. Sou afortunada...

Uma expressão de surpresa estampou-se em seu rosto neste momento, ela fez uma careta e ficou em silêncio por um instante, depois acrescentou:

- Esta contração foi bem forte. Acho que agora não vai demorar muito.

- Quer que eu vá buscar alguma coisa? - perguntou Kassandra.     - Helena sacudiu a cabeça, mas parecia triste. Ela está sozinha aqui, pensou Kassandra. Entre tantas mulheres, ela não tem uma amiga genuína de sua própria terra.

- Onde está Aitra?

- Ela voltou para Creta. Eu não queria ser a causa de seu exílio também. :Helena estendeu a mão para Kassandra, que a segurou e apertou com firmeza. Helena indagou, quase num sussurro:

- Ficará comigo, irmã? Não conheço essas mulheres... e não há nenhuma em quem eu confie.

Com a mão livre, Creusa empurrou um banco para perto delas. Kassandra sentou, ajeitando a túnica volumosa. Notou que Helena estava muito pálida agora, o rosto contraído. Agora que ela não estava possuída por sua Deusa, refletiu Kassandra, com isenção, parecia uma mulher bem pequena, cujos cabelos claros constituíam a maior beleza; mesmo naquela situação, caíam em mechas deslumbrantes pelos lados do rosto suado. Os olhos pareciam exaustos, estavam um pouco vermelhos. Kassandra continuou sentada no banco ao lado do leito, deixando que Helena apertasse sua mão. Creusa tocava baixinho e a música parecia ajudar... ou talvez Helena não estivesse mesmo sofrendo tanto. Kassandra ficou curiosa, mas não se sentia à vontade para fazer perguntas; aquela experiência ainda era uma coisa que parecia não ter nada a ver com ela.

Enquanto o sol da tarde esquentava ainda mais o aposento, Hécuba ordenou que todas se retirassem, à exceção das duas parteiras mais experientes, uma serva para fazer pequenos serviços e uma sacerdotisa com muitos amuletos, que os espalhou em torno da cama. E queria que Kassandra também saísse.

- Você é uma donzela, Kassandra. Seu lugar não é numa câmara de nascimento.

Mas Helena não largou a mão de Kassandra.

- Ela é minha amiga, mãe. E não é apenas uma donzela, mas também uma sacerdotisa. Nenhuma câmara feminina é vedada a uma sacerdotisa da Mãe.

- Trouxe as suas serpentes sagradas? - perguntou Hécuba.

- Não - respondeu Kassandra. - Todas as serpentes do templo morreram no terremoto.

A sacerdotisa, ajeitando um amuleto sob os seios de Helena enquanto murmurava palavras mágicas, levantou a cabeça para dizer:

- Não fale de maus presságios aqui.

- Não sei por que a morte das serpentes no Templo de Apolo poderia ser um presságio para meu bebê, bom ou mau - protestou Helena. - Apolo não é meu Deus e nada tenho a ver com Ele, para o bem ou para o mal. E a Mãe Serpente também não é minha Deusa.

Os olhos da sacerdotisa se encontraram com os de Kassandra e ela fez um sinal contra o infortúnio. Kassandra concordava com Helena; estava acostumada à prática que fazia com que quase todas as ocorrências casuais se tornassem um presságio para o bem ou o mal, mas ainda achava que isso era um absurdo.

A sacerdotisa foi ferver um caldeirão com água sobre o braseiro e o aposento ficou impregnado pelo cheiro das ervas curativas que ali jogou. Pouco antes do pôr-do-sol Helena deu à luz um filho pequeno e enrugado, ao qual deu o nome de Binomos.

Hécuba contemplou o` corpo pequeno e se contorcendo com o rosto franzido.

- Há quanto tempo está entre nós, Helena? Ele é pequeno... nunca vi um bebê de gravidez completa tão pequeno. Não deve pesar mais do que uma galinha depenada para o espeto.

- Também não vi, como me disse tantas vezes - acrescentou Kassandra. - Com toda essa confusão e excitamento... o festival interrompido, o terremoto.. . é possível que o bebê tenha nascido alguns dias ou semanas antes do prazo. Mas isso importa, se ele é forte e saudável?

Helena fez uma careta e sussurrou:

- Ela apenas quer ter certeza de que é filho do seu filho. Posso ser uma leviana, mas não tanto assim; sei que já carregava o filho de Páris antes de fugirmos da casa de Agamenon. Mas não sei como dizer o que ela realmente quer saber sem chocá-la ainda mais.

Kassandra soltou uma risada, mas também não sabia como dizer. Creusa adiantou-se para segurar o bebê e disse, com muito tato:

- Acho que ele vai ter os olhos do pai; bebês que ficarão com os cabelos escuros possuem olhos de um azul mais denso do que aqueles que serão louros.

Kassandra ficou surpresa; não esperava tal apoio da meia irmã Quando criança, Creusa sempre tivera o talento para agravar ainda mais uma situação ruim, além da tendência para acessos de histeria, se por acaso se sentia ignorada. Talvez o casamento com Enéias lhe proporcionasse mais maturidade do que os outros esperavam. Houve um passo junto da porta e Kassandra, reconhecendo-o, foi abri-la para deixar Páris entrar, dizendo:

- Irmão, você tem outro filho.

- Tenho apenas um filho - corrigiu-a Páris. - E se você profetizar qualquer coisa negativa a seu respeito, Kassandra, vou rearrumar os ossos de seu rosto, de tal forma que as pessoas fugirão de você como se fosse a Medusa.

- Não se atreva a fazer ameaças para ela! - protestou Helena. - Sua irmã é minha amiga.

Kassandra pegou o menino nos braços e beijou-o.

- Nenhuma profecia me foi dada para esta criança. Ele é forte e saudável e não me cabe dizer qual o destino que o aguarda quando crescer.

Ela pôs a criança nos braços de Páris. Ele inclinou-se para Helena, enquanto Kassandra ajeitava o véu sobre seu rosto.

- Já vai embora, irmã? - indagou Helena. - Esperava que ficasse para jantar conosco, já que Páris não poderá permanecer nos aposentos das mulheres.

- Não posso ficar, pois tenho de ir ao mercado - explicou Kassandra. - Ainda não soube? Perdemos todas as nossas serpentes no terremoto. As que não morreram nos abandonaram, foram para as profundezas da terra e não voltarão. O Templo de Apolo não pode ficar sem serpentes; preciso substitui-las.

- Mas que estranho presságio! - interveio Creusa. - O que acha que pode significar?

Relutante - não queria assustar ninguém nem irritar Páris ou a mãe pela repetição do que eles não queriam ouvir - Kassandra respondeu:

- Acho que os Deuses estão zangados com a cidade. Não é o primeiro mau presságio que recebemos.

Páris riu.

- Não é preciso um mau presságio para levar as serpentes às profundezas de um terremoto... acontece apenas que as serpentes são sempre assim. Eu as conheci muito bem quando vivia na montanha. Mas lamento a perda de seus bichinhos de estimação. - Ele afagou de leve o braço de Kassandra. - Vá para o mercado, irmã, e escolha com cuidado... talvez as suas novas serpentes se mostrem mais fiéis.

- Que os Deuses assim concedam - murmurou Kassandra, fervorosa, deixando o aposento.

Ela resolveu procurar Andrômaca e lhe falar por um momento, antes de sair do palácio.

- Kassandra! - exclamou Andrômaca, exultante, quando a viu. - Eu não sabia que você estava aqui. Foi chamada para o nascimento?

- Isso mesmo - respondeu Kassandra, abraçando a amiga. - Helena teve um menino e os dois passam bem.

- Eu já sabia que era um menino. A aia me disse quando veio buscar as crianças. Mas... - Andrômaca sorriu, maliciosa - ... Helena teve um filho... não Páris? Que vergonha, Kassandra, sequer insinuar tal coisa!

- Que vergonha, Andrômaca, encontrar esse sentido nas minhas palavras! Quem foi seu pai? Sabe muito bem que vivi entre as amazonas por tempo suficiente para pensar numa criança como sendo da mãe... ainda mais quando acabei de testemunhar o nascimento. Mas se Páris estivesse deitado ali, no esforço do parto.

As duas tornaram a se abraçar, rindo.

- Essa eu gostaria de ver! - exclamou Andrômaca. - E ele bem que merecia!

Kassandra ficou séria abruptamente, contemplando uma imagem de Páris, estendido em convulsões de dor na enxerga da cabana que partilhara com Enone.

E era Enone quem se inclinava sobre ele, removendo o suor da testa com um pano, com um peitoral dourado no chão, ao lado...

- Kassandra! - Mas agarraram-na pelos ombros, levaram-na para um banco, forçaram sua cabeça a baixar entre os joelhos. - Sou uma tola em mant4-la de pé aqui, quando sem dúvida não comeu nada desde o amanhecer. Fique de cabeça baixa até a vertigem passar, enquanto vou buscar alguma coisa para comer.

Andrômaca foi até a porta e chamou uma serva, depois despejou numa taça um pouco do vinho que estava numa mesa no outro lado do quarto.

- Beba isto, Kassandra... e terá de comer pelo menos um pedaço de fruta seca.

Ela estendeu uma travessa, Kassandra pegou um punhado de passas, pôs uma na boca e forçou os maxilares a começarem a mastigar. Andrômaca comentou:

Por uma vez, as crianças não comeram tudo que se encontrava em seu Campo de visão.

- Visão... - Kassandra suspirou. - Eis uma coisa que eu gostaria de não Ter.

- Já vão trazer pão e carne da cozinha, Kassandra. Isso acabará com a vertigem. Minha mãe sempre comia pimentão vermelho e ardente e todo o pão que podia depois de uma grande adivinhação. E tenho certeza de que as sacerdotisas não jejuariam antes de um trabalho ritual se isso não ajudasse na Visão.

- É verdade - concordou Kassandra. - E o parto, à sua maneira, é um ritual.

- Exatamente! - disse Andrômaca, com veemência. - Helena teve um parto difícil?

Kassandra sacudiu a cabeça.

- Não se podia mesmo esperar que fosse assim com ela. - Andrômaca fez

uma careta. - Suponho que se Afrodite vai levá-la a tomar amantes, o mínimo que pode lhe oferecer é a arte de gerar filhos com facilidade. E por falar em filhos... Enone e seu filho não estavam no plantio da primavera?

- Estavam, sim. Ela queria ver Páris. Infelizmente ainda o ama.

- O que de nada lhe serve.

Uma serva entrou com a comida. Depois que ela se retirou, Kassandra continuou:

- Enone era minha amiga. Eu me sinto culpada por não ser capaz de deixar de amar Helena. E agora Páris esquece até mesmo que tem um filho com Enone.

- Acho que todos amam Helena. O próprio Príamo nunca se mostra ríspido com ela, embora seja bem versado nas astúcias das mulheres e não se deixe encantar facilmente. Quanto a Páris... o que se podia esperar? Se você tivesse a Deusa do Amor em seu leito, e pudesse trocá-la por uma ninfa das águas... como a Deusa reagiria, se fizesse isso?

Kassandra estremeceu.

- Não gosto dessa Deusa akaia, Andrômaca. Espero que Ela nunca ponha as mãos em mim.

Andrômaca ficou bastante séria agora.

- Não me agradaria se isto não acontecesse. Fico triste de pensar que você nunca saberá o que é o amor.

- O que a leva a pensar que não sei? - indagou Kassandra, curiosa. - Amo meus irmãos e minha mãe, minhas serpentes, meu Deus...

Andrômaca sorriu, um pouco tristemente.

- Sou afortunada, pois meu amor é pelo homem que me foi dado como marido e não posso me imaginar a amar outro. Pelo pouco que conversei com Helena, compreendo que era o que acontecia com ela até que a Deusa lhe pôs as mãos... e depois ela só pôde pensar em Páris.

- Nesse caso, um amor assim é uma praga e não uma dádiva - comentou Kassandra. - E tenho de orar para que nunca se abata sobre mim.

Andrômaca abraçou-a gentilmente.

- Tenha cuidado com suas orações, Kassandra. Eu queria partir da Cólquida e ter um marido de grande honra e renome. Essa oração me trouxe para cá, para longe de minha mãe e de meus Deuses, para uma cidade nos confins do mundo, nestes tempos tenebrosos.

Ela pegou um pouco do sal que estava na bandeja com a carne e jogou-o pelo ar, com uma palavra sussurrada que Kassandra não conseguiu entender. Cortando uma pequena fatia da carne assada e ajeitando sobre um pedaço de pão, Kassandra alteou as sobrancelhas numa indagação.

- Orei por você -, explicou Andrômaca -, para que suas orações possam ser atendidas apenas da maneira como deseja.

Kassandra tornou a abraçar a amiga e disse, num súbito impulso:

- Não sei se os Deuses alguma vez atendem a tais pedidos... mas fico grata a você.

Depois de acabar a refeição com Andrômaca e ajudá-la a pôr Astíanax na cama, ela deixou o palácio. Passava pelas escuras barracas do mercado noturno quando lembrou que tencionava perguntar a Andrômaca o que podia significar o fato de as serpentes abandonarem um templo. Mas logo recordou que Andrômaca não queria saber de serpentes.

Resolveu perguntar a todas as sacerdotisas que pudesse encontrar se conheciam algum mestre nisso, um sacerdote ou sacerdotisa da Mãe Serpente ou da Píton, antes de comprar urna única serpente para o templo. Em algum lugar, naquela grande cidade de Tróia, devia haver alguém versado em tal sabedoria.

 

Desde o ataque no plantio da primavera que Krises caíra numa depressão profunda; negligenciava seus deveres no templo, passando a maior parte do tempo no parapeito de onde se podia avistar o acampamento akaio lá embaixo.

- Por favor, vá pedir a ele para descer - solicitou Cárites a Kassandra. Ele gosta de você; talvez possa persuadi-lo de que a vida não acabou.

- Não é afeição o que ele sente por mim - protestou Kassandra.

Mas ela sentia pena do homem transtornado e mais tarde, naquele mesmo dia, foi procurar Krises lá em cima.

A refeição vespertina está pronta e aguardam a sua presença, Krises.

- Obrigado, Kassandra, mas não estou com fome.

Ele não tomava banho nem fazia a barba desde o ataque; parecia desgrenhado e sujo, recendia a ervas estranhas. E acrescentou, depois de uma pausa:

- Como posso comer e dormir no conforto quando levaram minha filha? Não suporto pensar na minha pobre menina lá embaixo, entre aqueles soldados selvagens.

- Não poderá melhorar o destino de Criseide por jejuar e negligenciar sua pessoa - ressaltou Kassandra, irrefutável. - Ou pensa que vê-lo nesse estado vai abrandar o coração dos akaios?

- Não, mas pode abrandar o coração de algum Deus - murmurou Krises, surpreendendo-a pela sinceridade em sua voz.

- Acredita realmente nisso?

- Talvez não - respondeu ele, com um suspiro tão fundo que parecia sair das profundezas do corpo. - Mas não tenho disposição para comer ou descansar quando ela está lá embaixo...

- Tenho certeza de que Criseide não foi dada aos soldados. Será um prêmio apreciado por um dos líderes, talvez mesmo o próprio Agamenon.

- E pensa que isso representa algum conforto para mim?

Ele parecia desesperado; Kassandra bem que tentaria dizer palavras de conforto se nesse momento uma onda de escuridão não surgisse diante de seus olhos e por um instante não soubesse onde se encontrava e o que estivera falando.

- Por que guardei sua virgindade com tanto zelo, por todos esses anos, só para trazê-la até aqui? Poderia muito bem tê-la vendido a um bordel! Kassandra ficou furiosa.

- Você a vendeu a Apolo, Senhor do Sol, em troca de uma vida de conforto para si mesmo. Quanto à moça, se a virgindade não habita na alma, é inútil guardá-la no corpo. Se deseja a proteção ou a vingança de Apolo, não posso aconselhá-lo. Só me cabe dizer que é improvável que Ele interfira, quando você se torna imprestável para todos nós. Se quer a ajuda do Deus... ou a Sua misericórdia... deve primeiro servi-lo bem; não se pode barganhar com um Deus.

Ela olhou sobre o parapeito para o denso nevoeiro marinho que escondia os navios akaios lá embaixo. Chegara um momento em que ela detestava contemplar o mar por causa da faixa escura de navios à beira do oceano. Krises virou-se para ela com tanta fúria que por um momento Kassandra pensou que ele ia agredi-la. Mas depois Krises se conteve, recaindo visivelmente na apatia.

- Tem toda razão - murmurou ele. - Descerei para a refeição vespertina... mas primeiro tomarei um banho e recuperarei a aparência apropriada para um sacerdote do Senhor do Sol.

- É o mais sábio, meu irmão.

Kassandra viu algo surgir nos olhos de Krises que preferia não ter enxergado; censurando-se por seu impulso momentâneo de simpatia, ela se afastou.

No início da manhã seguinte bateram em sua porta; Kassandra foi abrir e deparou com um dos jovens sacerdotes que eram usados como mensageiros no Templo de Apolo.

- Você é a filha de Príamo? - perguntou ele, respeitoso. - Está sendo chamada no portão; há um homem ali que diz ser seu tio e deseja lhe falar imediatamente.

Kassandra vestiu o manto, especulando o que - ou quem - poderia ser. Não conhecia qualquer dos irmãos do pai e Hécuba não tinha nenhum. Tarde demais, começou a pensar que talvez fosse um truque; e quando entrou na sala ao lado do portão e deparou com os três homens em mantos argivos, começou a recuar, pronta a gritar por socorro.

- Sou eu, Kassandra - disse uma voz familiar, o homem puxando o capuz que lhe cobria o rosto.

- Odisseu!

- Não fale tão alto, menina, ou todos seremos mortos! Preciso falar com seu pai... e do jeito que a situação está agora, eu não poderia desembarcar entre os akaios e atravessar seu acampamento até os portões de Tróia para uma conferência; eles me linchariam. Meu navio está escondido numa enseada que descobri quando navegava com os piratas. Cheguei lá ontem à noite, sob a cobertura do nevoeiro. Preciso agora conversar com Príamo para descobrir se ainda existe alguma maneira honrosa de acabar com esta guerra. Pensei que talvez aqui, neste templo, fosse possível conceber alguma idéia.

- Mas também não pode sair pelo portão principal e descer até o palácio - disse Kassandra. - Tenho certeza de que há olhos e ouvidos akaios no mercado. Mesmo aqui, na casa do Senhor do Sol, há espiões disfarçados de suplicantes. Seria reconhecido imediatamente. Deixe-me ver primeiro se posso pensar em alguma coisa. Por você, estou certa, meu pai suspenderá o juramento que fez de não aceitar qualquer conferência com um argivo. Mas quem são seus companheiros?

- Tire o manto, Akiles.

O jovem a seu lado não era muito alto, mas tinha os ombros musculosos de um lutador. Os cabelos ainda eram compridos, caindo pelos ombros, pois ele não tinha idade suficiente para que fossem cortados no ritual da maioridade; os cabelos eram louros, quase prateados. O rosto exibia feições firmes e agressivas, mas foram os olhos que impressionaram Kassandra, frios e implacáveis, como os de uma ave de rapina. E ele disse a Odisseu.

- Prometeu que me traria para esta guerra, com meus soldados, mas agora fala em evitá-la... como se houvesse algo honroso em se evitar uma guerra. Isso é conversa de mulher, não de homem! Não quero saber de mais nada!

- Fique quieto, Akiles - disse o outro jovem, que era mais alto e um pouco franzino, com os músculos longos e lisos de um corredor ou ginasta. Era um pouco mais velho do que Akiles, devia ter seus vinte anos. - Há mais na guerra do que apenas honra e glória; e qualquer coisa que Odisseu possa fazer é certamente orientado pelos Deuses. Se você quer a guerra, saiba que nunca houve escassez de combate na vida de um homem. Não precisamos apressar a destruição... mas não é digno de você se precipitar para a guerra apenas pela diversão.

Ele sorriu para Kassandra e acrescentou, lançando um olhar afetuoso para Odisseu:

- Foi assim que esse velho e astuto pirata conseguiu atrai-lo até aqui.

- Como ousa falar em astuto. Pátroklo? - protestou Odisseu, em tom ofendido. - Hera, Mãe da Sabedoria, foi minha guia em cada passo. Deixe-me falar a respeito, Kassandra.

- Com todo prazer - disse ela. - Mas devem estar com fome e cansados. Pedirei uma refeição e poderá me contar tudo enquanto cornemos.

Ela chamou os servos, que trouxeram pão, azeite e vinho. Odisseu pôs-se a contar sua história:

- Quando Menelau nos chamou, exigindo o cumprimento da promessa de lutarmos por Helena, previ esta guerra, assim como os outros. Tétis, sacerdotisa de Zeus Tonante.. .

- Minha mãe - interrompeu Akiles, num murmúrio.

- Tétis procurou descobrir na profecia o que aconteceria com seu filho e a profecia disse...

- Estou cansado de profecias e histórias de velhas - murmurou Akiles. - Não passam de fantasias. Amo minha mãe, mas ela não é mais do que unia idiota, como todas as mulheres, quando se trata de guerra.

- Se parar de me interromper, Akiles, poderemos chegar ao fim da história - disse Odisseu, molhando o pão calmamente no azeite. - Tétis, que é quase tão sábia quanto a Mãe Terra, leu os presságios e foi informada de que se seu precioso filho lutasse nesta guerra poderia ser morto.. . o que exige tanta Visão quanto prever que vai nevar no monte Ida durante o inverno. Assim, ela pensou em ajudá-lo a escapar a seu destino; vestiu-o em trajes de mulher e escondeu-o entre as muitas filhas do rei Licomedes, de Ciro.. .

- E que linda donzela ele devia parecer, com esses ombros! - exclamou Pátroklo. - Eu bem que gostaria de ver essa coisa linda de cachos enfeitados com fitas...

Akiles desferiu um golpe violento entre as omoplatas do amigo, fazendo-o cair de joelhos, enquanto resmungava:

- Já riu o suficiente, meu amigo. Mencione isso outra vez e poderá continuar a rir no Hades! Nem mesmo você pode falar isso a meu respeito!

- Não briguem, rapazes - interveio Odisseu, com uma brandura inesperada. - E um gracejo lamentável que divide grandes amigos. Seja como for, também procurei por presságios e minha Deusa disse que era o destino de Akiles participar desta guerra. Mas pensei que talvez ele tivesse se tomado um covarde por ser criado como mulher. Por isso, reuni muitos presentes para as filhas do rei e espalhei tudo... vestidos, sedas e fitas; mas escondi entre as coisas uma espada e um escudo. Enquanto as outras disputavam todas aquelas coisas bonitas, Akiles pegou a espada.. e, assim, é claro que o tirei de lá.

Kassandra riu.

- Bravo, Odisseu. Mas seu teste não foi tão infalível assim; eu também pegaria armas... vivi com as amazonas e se estivesse entre as filhas do rei Licomedes faria exatamente a mesma coisa. Não se precisa ser um herói para se cansar das intrigas nos aposentos das mulheres.

Akiles riu desdenhoso e Kassandra acrescentou:

- Pentesiléia disse uma vez que só aqueles que odeiam e temem a guerra são bastante sábios para travá-la.

- Uma mulher - insistiu Akiles, com desprezo. - O que uma mulher pode saber da guerra?

- Tanto quanto você - começou Kassandra.

Mas Odisseu, parecendo exausto, interveio:

- Vai nos ajudar, Kassandra?

- Com o maior prazer. Vou avisar a meu pai para se aprontar para recebê-lo esta noite.

- Você é uma boa moça.

Odisseu abraçou-a e Kassandra também o enlaçou, beijando o rosto curtido do velho. Depois, um pouco surpresa com sua impetuosidade, ela murmurou: - Disse que era meu tio... eles estão esperando por isso. Pátroklo  comentou, soltando uma risada:

- Também serei seu tio, se quiser me beijar assim, Kassandra. Akiles amarrou a cara e Kassandra corou.

- Odisseu é um velho amigo; eu o conheço desde que era criança. Não beijo qualquer homem mais jovem do que meu pai.

- Esqueça, Pátroklo - disse Odisseu. - Ela é uma virgem jurada de Apolo. E conheço você. Quando vir Páris, o irmão de Kassandra, vai esquecê-la; são tão parecidos quanto dois pássaros numa moita.

- Um homem com a beleza dela? - murmurou Pátroklo. - Eis uma coisa que eu gostaria de ver.

Akiles interveio, furioso.

- Esse é o tal de Páris, o belo covarde?

- Páris, covarde? - indagou Kassandra.

- Eu o vi na muralha ontem, quando Odisseu me desembarcou com meus soldados, antes de me esgueirar à noite para o lugar em que seu navio ficou escondido - explicou Akiles. - Eu disse então: aqueles troianos não passam de covardes; ficam nas muralhas como mulheres e disparam flechas, a fim de não precisarem se aproximar ao alcance de nossas espadas.

Kassandra só pôde pensar numa coisa para dizer:

- O arco é a arma eleita de Apolo.

- E nem por isso deixa de ser a arma de um covarde - insistiu Akiles.

Ela pensou: É assim que ele vê o mundo, tudo em termos de combate e honra. Talvez, se viver por tempo suficiente, ele possa superar tais idéias. Mas os homens que encaram o mundo assim não vivem por bastante tempo para aprenderem melhor. É quase uma pena; mas talvez o mundo fique melhor sem homens as sim.

Os visitantes de Kassandra esperavam que ela falasse. E Kassandra sugeriu que permanecessem escondidos durante o calor do dia; depois, sob a proteção da noite, ela os conduziria ao palácio e a Príamo.

- Não gosto de me esgueirar com um disfarce - protestou Akiles. - Não tenho medo de todos os troianos que já nasceram ou de qualquer um da horda de filhos e soldados de Príamo. Combaterei a todos na descida até o palácio e na volta.

- Seu jovem tolo - murmurou Pátroklo com afeição, pondo a mão em seu ombro -, ninguém duvida de sua coragem; mas por que se consumir com isso, quando pode aguardar a grande batalha e desafiar qualquer um ou todos os lideres dos exércitos de Príamo? Terá combates suficientes pela frente, Akiles. Não seja impaciente.

Ele sorriu e passou o braço pelo do amigo. Como ele pode ser o maior dos guerreiros, pensou Kassandra, um menino orgulhoso de sua nova espada de brinquedo e armadura reluzente?

E como pode a sobrevivência de Tróia e de nosso mundo depender dessa criança louca?

Ela fechou a porta e deixou-os na sala, depois de adverti-los para que permanecessem escondidos. O sol estava alto agora e Kassandra cobriu a cabeça com um xale, antes de descer a encosta para o palácio. Poucas vezes ela procurara deliberadamente a presença do pai e podia contar nos dedos de uma das mãos as ocasiões em que ficara a sós com Príamo, não apenas participando de uma reunião da família.

Odisseu não acreditaria nisso, pensou ela. Mas eu, que sou filha de Príamo, tenho mais dificuldade para conseguir acesso à sua presença do que o próprio Odisseu.

Ela falou com um velho camareiro, que informou que Príamo estava examinando as armas distribuídas aos soldados, já que os akaios haviam resolvido não atacar naquele dia.

- Depois disso, princesa, ele irá para o banho com os filhos mais velhos e em seguida, provavelmente, ficará bebendo vinho em seus aposentos. Tenho certeza de que ele estará disposto a conversar, se for procurá-lo.

Kassandra passou as horas de espera no quarto de Creusa, brincando com a criança. Creusa avisou-a da hora em que os homens geralmente voltavam e ela foi para os aposentos do pai, em parte esperando - em parte temendo - encontrar a mãe ali. Seria difícil explicar sua missão para Hécuba, que acharia que não era apropriado para uma mulher ter uma participação ativa naquela guerra.. . embora se esta cidade cair para os akaios, pensou Kassandra, em desespero, ela sofrerá tanto quanto qualquer outro e mais do que a maioria.

Encontrou o pai em seus aposentos apenas com o armeiro, que lhe mostrava novas lanças. Príamo interrompeu a conversa para fitá-la com alguma irritação.

- O que está fazendo aqui, Kassandra? Se queria falar comigo, devia primeiro ter comunicado à sua mãe e eu iria procurá-la nos alojamentos das mulheres.

Ela não se deu ao trabalho de protestar.

- Mas já que. estou aqui, pai, não poderia me ouvir? Estaria disposto a conversar com Odisseu, se isso acabasse com esta guerra? - Para acabar com a guerra, eu falaria com o próprio Agamenon. Mas não

vi o navio de Odisseu entre as embarcações akaias.

- Ficou escondido numa enseada secreta - informou Kassandra. - E

Odisseu está no Templo do Senhor do Sol, deseja lhe falar esta noite. Posso trazê-lo e a Akiles ao palácio, na hora do jantar?

- Akiles também? Por acaso Agamenon e Menelau também se escondem por trás de suas saias, prontos para nos atacarem em traição?

- Não, pai; apenas Odisseu, Akiles e seu amigo. Amanhã Odisseu deve apresentar Akiles aos líderes akaios, mas queria antes conferenciar com você, por causa da velha amizade.

- E verdade, ele tem sido um bom amigo por muitos anos - comentou Príamo, pensativo. - Que ele venha com Akiles e seu amigo também... Ouvi dizer que ele não vai a parte alguma sem o amigo.

- Falarei com eles, pai.

Kassandra tratou de se retirar, antes que Príamo pudesse fazer mais perguntas ou mudar de idéia. Não se preocupou em avisar a mãe ou qualquer outra das mulheres do palácio, pois sempre havia comida suficiente para uma dúzia de bocas extras na refeição principal e a mera perspectiva de receber Akiles assustaria a todas.

Ela voltou muito cansada à casa do Senhor do Sol. Só teve tempo de vestir a sua melhor túnica e pôr no pescoço o colar de lápis lazúli que Odisseu lhe dera, antes de ir para o aposento em que deixara os hóspedes. Pátroklo sorriu-lhe jovialmente; mas Akiles andava sem parar de um lado para outro e Odisseu parecia aflito e impaciente.

- Já lhe disse, Akiles, que não podemos seguir de qualquer forma para o palácio de Príamo; não passaríamos pelos guardas. E mesmo que conseguíssemos entrar à força, não seríamos então recebidos cortesmente como embaixadores, o

que é crucial para a nossa missão. Confie em Kassandra, que saberá encontrar um jeito.

- Não confio em mulher alguma - disse Akiles, mal-humorado. - Por tudo o que sei, pode ser uma armadilha, enquanto ela chama os guardas troianos para nos capturarem.

Posso garantir que ela está bem-intencionada em relação a nós, pois ele ia de volta - declarou Odisseu. - Como foi o seu dia, Kassandra?

- Muito bem. Meu pai receberá os três como convidados, na hora do jantar.

E agora, pensou ela, o problema era levá-los dali até o grande salão de Príamo sem encontrar os espiões que podiam estar na cidade.

- Vocês devem usar os mantos de sacerdotes de Apolo, Senhor do Sol - acrescentou ela. - Ninguém estranharia nem questionaria por que... ou se... Príamo os chamou.

Foi providenciado um grande manto para Odisseu, que ficou muito diferente de sua personalidade normal. Akiles protestou por se disfarçar... "corno se tivesse medo de algum troiano, de um simples sacerdote ao próprio Heitor!"

- Deuses no alto! - exclamou Kassandra. - Será que o homem não pensa em outra coisa?

- Já chega, Akiles - interveio Odisseu. - Quando eu o trouxe nesta missão; você jurou por sua linhagem sagrada que me deixaria guiá-lo em todas as coisas. Pois agora lhe peço que se disfarce. Cumpra a promessa.

Resmungando, Akiles envolveu o corpo com o manto; Pátroklo puxou-o por cima da cabeça, explicando:

- Seria reconhecido num instante pelos cabelos. Tem que cobri-los. - Pegando o terceiro manto, ajeitando-o em tomo dos ombros e escondendo o rosto, ele acrescentou: - Os sacerdotes do Senhor do Sol costumam mesmo sair cobertos deste jeito, com um tempo assim, Senhora Kassandra? Vão pensar que todos caímos doentes com dor de dentes!

Kassandra não pôde deixar de rir.

- Quem se importa com o que possam pensar? Os sacerdotes fazem o que parece certo a seus olhos; podem pensar que vocês estão envolvidos em alguma intriga, mas não farão perguntas e não exigirão que mostremos os rostos. E isso é tudo o que importa. Vamos por aqui; sairemos por uma porta pouco usada, o que é melhor para reforçar a idéia de que são três sacerdotes em alguma missão que não querem que seja conhecida.

Akiles ainda resmungava baixinho, mas Kassandra não lhe deu atenção. Levou-os rapidamente para baixo, sob a cobertura do crepúsculo que se adensava; o ano ainda começava e a claridade não se prolongava por muito tempo.

Tochas flamejavam nos degraus inferiores dó palácio e o grande salão estava intensamente iluminado. Príamo sentava em seu assento alto, mas desceu alguns degraus para receber cerimoniosamente os três homens. Ignorou Kassandra, que foi ocupar seu lugar habitual, ao lado de Hécuba, de onde tudo podia ver e ouvir.

A mãe afagou sua mão.

- Eu não sabia que você viria aqui esta noite - sussurrou ela. - Aquele é Akiles? Até que ele é bonito para um akaio; mas minha mãe costumava dizer que o belo depende da opinião de cada pessoa. Ele é mesmo jovem ou apenas parece infantil porque tem o rosto raspado?

- Não sei, mãe; mas tenho a impressão de que ainda é muito jovem para os rituais akaios da maioridade. Talvez tenha dezesseis anos, dezessete no máximo. - E esse menino bonito é o maior de seus guerreiros.

- É o que dizem. Não o vi lutar, mas fui informada de que é possuído pelo Deus da Guerra quando combate.

Odisseu aproximou-se para beijar a mão de Hécuba em homenagem.

- Todas as suas filhas estão mais lindas do que nunca - comentou ele. - A adorável Helena não está à mesa esta noite?

- Ela está na cama, depois do nascimento de seu filho - respondeu Hécuba. - E não gosta de jantar com os homens.

- E uma perda para todos nós... mas se ela deseja manter os costumes de seu povo, suponho que isso lhe deve ser permitido. Quer dizer que ela teve um filho?

- Isso mesmo. O mais lindo dos meninos... não muito grande, mas forte e saudável, uma alegria para qualquer avó.

Hécuba estava visivelmente satisfeita e Odisseu sorriu.

- Se soubesse, teria trazido um presente para o pequeno. Mas talvez o assunto que nos trouxe aqui esta noite, se tudo correr como desejamos, seja um presente melhor para todos os nossos filhos do que qualquer feira de contas.

Ele fez uma reverência e voltou a seu lugar, enquanto as servas começavam a circular com as bandejas de comida e o vinho. O costume exigia que primeiro se satisfizesse a fome de um convidado; só depois que foram levados os restos de cabrito assado, aves no espeto, peixe grelhado, as enormes rodelas de pão e frutas com mel, quando as pessoas da casa e os convidados tomavam vinho e comiam castanhas, é que Príamo virou-se determinado para Odisseu e disse:

- Sempre sinto o maior prazer em tê-lo como convidado à minha mesa, Odisseu; mas esta noite, pelo que fui informado, não veio aqui apenas para partilhar minha comida. Que outro propósito o traz, com seus amigos das terras argivas?

Akiles comera velozmente, mas estava irrequieto; levantara-se ao terminar e andava a esmo pelo salão, examinando algumas armas antigas penduradas nas paredes. Parecia especialmente atraído por um grande machado de duplo gume, com um cabo duas vezes mais comprido que um homem alto. Estava ansioso para pegá-lo e experimentá-lo.

- Este é um machado de verdade a ser usado em batalha ou um remanescente dos titãs, rei Príamo?

Kassandra, quando criança, ouvira histórias fantasiosas sobre a guerra dos titãs, em que armas assim haviam sido usadas; sempre especulara se seriam verdadeiras, mas nunca se atrevera a perguntar. Refletiu que seria preciso um Akiles para fazer tal pergunta a seu pai e receber uma resposta.

- Não sei - respondeu Príamo. - Pelo tamanho, pode muito bem ser uma relíquia da guerra dos titãs, mas não posso garantir.

- Não é uma arma... pelo menos não para uma batalha entre mortais ou até mesmo titãs - declarou Hécuba, firmemente. - É um objeto de ritual da Casa do Machado Duplo na terra dos minoanos, trazido para cá depois que o grande templo afundou no mar. Há machados assim que não são maiores do que o dedo mínimo, mas também existem muitos desse tamanho e já me disseram que até maiores. Ninguém conhece até agora seu verdadeiro propósito, nem mesmo em Knossos; mas uma ocasião disseram-me que os sacerdotes usavam-nos para o sacrifício, quando a cabeça de um touro devia ser cortada com um único golpe.

Akiles avaliou a extensão do enorme machado, como se tentasse decidir de que maneira poderia levantá-lo, já que o cabo era duas vezes a sua altura.

- Aquele templo devia ter sacerdotes excepcionalmente grandes, se não titãs, pelo menos ciclopes - comentou ele. - Creio que nem mesmo o seu Heitor seria capaz de cortar a cabeça de um sacrifício, homem ou touro, com um machado assim.

Heitor saiu de seu lugar e foi se postar ao lado de Akiles, examinando a arma.

- Sempre desejei experimentar para saber se podia fazer isso - disse ele. - Mas me falaram, quando eu era mais jovem, que seria um sacrilégio empunhá-lo. Agora estou crescido e, se há um Deus que possa se sentir ofendido, não sei qual é; assim, sinto-me tentado a experimentar minha força. - Heitor olhou para Príamo, solicitando permissão. - Podemos, pai?

- Não vejo mal algum - respondeu o rei. - Nenhum Deus proibiu; se é sagrado para algum Deus, Ele se encontra em seu templo afundado a uma centena de braças abaixo da superfície do oceano; mesmo que ficasse ofendido, duvido que pudesse ou quisesse puni-lo agora. Faça o que deseja.

Hécuba ainda protestou, indignada:

- É um sacrilégio! A lamina é sagrada para a Mãe Terra!

Mas não falou bastante alto para que Príamo ou mesmo Heitor pudessem ouvi-la. Heitor arrastou um banco para baixo do enorme machado; precisou de três tentativas, mesmo com seus braços musculosos, para tirá-lo dos ganchos.

Segurou no centro do cabo comprido e saltou do banco, começando a girar o machado por cima da cabeça. Akiles adiantou-se, mas Heitor gritou:

- Fique longe! Não chegue perto! - A lâmina girava por cima de sua cabeça, cada vez mais depressa. Tragam o touro para o sacrifício!

Depois, lentamente, ele baixou o machado para o chão.

- E a minha vez! - exclamou Akiles.

- Não seja tolo - disse Heitor, bruscamente. - Tenho certeza de que é forte, menino, mas vai se arrebentar ou partir os tendões só de tentar levantá-lo; é nosso convidado e eu não gostaria que se machucasse.

- Como se atreve a me chamar de "menino" nesse tom, troiano? Aposto o que quiser que sou mais forte do que você e que posso levantar qualquer coisa que você também puder.

Akiles pegou o cabo do machado; mas enquanto Heitor tivera de baixá-lo de cima da cabeça, ele precisava levantá-lo do chão. Pátroklo adiantou-se e advertiu-o em voz baixa, mas Akiles empurrou-o para o lado, furioso. Tinha as mãos grandes para o seu tamanho; agarrou o cabo com firmeza e deu um impulso para cima. As veias saltaram na testa, mas não conseguiu levantar o machado. Largou-o, cuspiu nas mãos para ter uma aderência melhor, tentou de novo. Lentamente, o machado subiu, até que o levantou acima da cabeça, com os braços estendidos; pôs-se então a girá-lo em grandes círculos, com um zunido forte. Soaram aclamações na mesa mais alta; todos os filhos de Príamo acompanharam e Heitor, generoso, comandou os aplausos.

- Que Deus o dotou com tanta força? - indagou Heitor, para logo acrescentar, sem esperar por uma resposta. - Não duvido de que seja mais forte do que eu! Eu gostaria de poder enfrentá-lo algum dia numa luta pacífica. Prefiro ser seu amigo do que seu inimigo, akaio.

Os lábios de Akiles se contraíram numa expressão desdenhosa, mas Odisseu interveio:

- Foi por isso que eu trouxe estes jovens até aqui, Príamo. Se Akiles não entrar em combate, então você ainda poderá fazer a paz com os akaios. Assim disseram os oráculos.

- Eu também preferia tê-lo como amigo a tê-lo como inimigo - declarou Príamo. - Por que devemos lutar, meu jovem? Eu lhe apresento uma oferta: casará com qualquer das minhas filhas que escolher e será herdeiro desta cidade, em igualdade com Heitor; quando eu morrer, o povo escolherá livremente entre você e Heitor para seu novo rei. Está disposto a evitar esta terrível guerra, como meu filho e herdeiro? Pois se não se aliar a eles, os akaios voltarão para suas terras.

- Até mesmo Agamenon? - indagou Hécuba. - Até mesmo Menelau?

- Menelau sabe que Helena não o quer - disse Páris. - Ele cederá ao Destino e a Afrodite, sabendo que é a vontade da Deusa do Amor.

- E Agamenon recebeu maus presságios - acrescentou Odisseu. - Ele lutará se os Deuses assim o quiserem; mas em Aulis, onde sua esquadra ficou em calmaria, ele foi persuadido a oferecer a filha mais velha como um sacrifício aos ventos. Era a sua predileta; Agamenon acha que o preço foi alto demais e a esposa nunca o perdoou. Creio que ficaria contente se pudesse se retirar desta guerra, sem perda de prestígio. A profecia sobre Akiles seria o pretexto perfeito para ele e assim poderíamos ter a paz. E Akiles reinará em Tróia com Heitor, em vez de ambos serem mortos em batalha.

- Não tenho medo de morrer em combate! - gritou Akiles, furioso. - Mas talvez haja glória a ser conquistada como rei de Tróia. Quanto a suas filhas, rei Príamo... - Ele fez uma pausa, seus olhos procuraram Kassandra. - O que me diz daquela?

Kassandra abriu a boca para protestar, mas Príamo falou antes:

- Não me cabe dar aquela em casamento; é uma virgem jurada de Apolo, o Senhor do Sol a reivindicou. Estaria disposto a lutar com Apolo?

- Claro que não - respondeu Akiles, com um sobressalto devoto.

Ele tornou a olhar para os bancos em que as mulheres sentavam e adiantou-se; fez uma reverência para Andrômaca.

- Esta é certamente a mais bela.

Heitor interveio com um grito:

- Não! Ela é minha esposa e a mãe do meu filho!

A boca de Akiles se contraiu no seu sorriso peculiar e ele propôs:

- Lutarei com você por ela.

- Não é possível - insistiu Heitor. - Ela é a filha da rainha da Cólquida.

- Calma, calma... - interveio Odisseu, apreensivo. - Esta guerra começou por causa de uma esposa roubada; não podemos continuá-la com outra.

Akiles, escolha uma das filhas virgens de Príamo que esteja livre para casar. Polixena, que é tão bela quanto a rainha espartana...

- A oferta não foi justa - disse Akiles, desdenhoso. - Escolhi não apenas uma, mas duas vezes, e fui informado de que não poderia ter nenhuma das duas que queria. Heitor, por que não luta comigo por sua esposa?

Heitor soltou uma risada.

- Lutarei com você por qualquer coisa aceitável, no momento em que quiser, mas não porei minha esposa em jogo; ela não merece isso de mim.

- E o que se podia esperar das ofertas de Príamo! - exclamou Akiles, irado. - Pode esquecer; lutarei com você no campo de batalha e ficarei com sua es

posa depois de tomar a cidade.

Heitor adiantou-se com um gesto ameaçador.

- Por cima de meu cadáver!

- Que assim seja; era essa a idéia. E tenho certeza de que ela me prefere a você.

Andrômaca inclinou-se para a frente e sussurrou algumas palavras para Heitor, que sorriu e afagou seu ombro gentilmente, dizendo:

- Se esse dia vier, Akiles, não poderei impedi-lo. Mas essa batalha ainda está muito longe.

- Os Deuses decidiram que Tróia cairá se eu entrar na guerra - declarou Akiles. .

Quer dizer que recusa a minha oferta, Akiles? - indagou Príamo.

- Recuso; prefiro ser seu inimigo a aliado, velho. Tomarei esta cidade eu mesmo e aqui reinarei sem a sua ajuda nem a de Heitor... e com uma, duas ou três das suas filhas, se assim quiser.

- Minha irmã Kassandra é uma profetisa - disse Heitor. - E tenho certeza de que ela pode fazer uma profecia melhor que qualquer das suas. - Virou-se para Kassandra. - Este galo de briga tomará a cidade, irmã, em nome de Apolo?

Kassandra sentiu uma raiva intensa de Heitor por atrair a atenção de todos

' para a sua pessoa. Mas respondeu:

- Assim dizem os Deuses: Akiles ganhará renome diante de Tróia, mas que tenha cuidado. Akiles, ao deixar Tróia esta noite, será para sempre; nunca mais voltará, não reinará aqui.

Toda a pretensão de cortesia desapareceu agora do rosto agressivo de Akiles.

- Também ternos profetisas. Por qualquer moeda barata elas oferecem uma dúzia de profecias... perdição ou triunfo, o que se escolher; minha própria mãe é uma profetisa tão boa quanto qualquer outra e prefiro escutar sua profecia à de qualquer troiana de Apolo. - Ele tirou a espada da bainha e gritou: Aqui e agora, se desejar, Heitor, eu o arrancarei do trono de Tróia; por que perder tempo com a guerra?

Pátroklo agarrou seus braços e fez um esforço para imobilizá-los nas costas, censurando:

- Seu anfitrião é sagrado!

Heitor adiantou-se.

- Eu lutaria aqui e agora, se ele o desejasse; mas ele é convidado de meu pai.

Leve-o daqui, Odisseu - interveio Príamo. - Eu o recebi a seu pedido. Odisseu foi abraçar Príamo e disse:

- Perdoe-me, velho amigo, por trazer esse selvagem para o seu salão. Lamento tudo isso, do fundo de meu coração.

Hécuba comentou, generosa:

Fez o melhor que podia por todos nós, Odisseu. Com guerra ou sem guerra, será sempre bem recebido aqui como nosso convidado. Espero que não esteja longe o dia em que poderá voltar.. . e não em segredo.

Odisseu tomou a se inclinar, pegou a mão de Hécuba e levou-a aos lábios.

Que a Venerável Hera seja testemunha de que só lhe desejo o bem, Hécuba; e se vier o dia em que poderei lhe prestar um bom serviço, espero que Ela me indique como.

- Que os Deuses assim decidam - disse Hécuba, sorrindo-lhe gentilmente.

Kassandra sentiu um tremor; teve vontade de gritar para a mãe, mas o momento passou. Odisseu envolveu-se com o manto; Akiles e Pátroklo já atravessavam o salão, acompanhados pelo olhar furioso de Heitor. Kassandra tomou a estremecer, pois parecia que a luz da tocha adquirira a cor do sangue... o mesmo sangue que envolvia os cabelos louros de Akiles como um halo. Príamo chamou Kassandra, enquanto os hóspedes deixavam o salão.

- Recebi esses convidados porque você me pediu - disse ele, num tom irado de censura. - Não é agora uma amazona; nunca mais se atreva a me falar de, tais questões.

Kassandra inclinou a cabeça. Tinha a sensação de que o cheiro de sangue e carniça exalava do pai, que os dois estavam afundados em sangue até os tornozelos. Como era possível que ele não visse nem cheirasse o sangue? Mas ele lhe pedira que nunca falasse sobre a guerra.

Nunca. Não enquanto eu viver. Ou mesmo depois.

 

Durante os dias seguintes Kassandra observou, do topo do templo, a chegada dos

soldados de Akiles; tinham o apelido de "Mirmídones" - formigas - e daquela altura pareciam de fato tão numerosos e feios quanto os insetos, enxameando pela praia. Até aquele momento, porém, não haviam efetuado qualquer tentativa de avançar para a cidade, limitando-se a marchar de um lado para outro da planície, correndo e fazendo exercícios militares. Aquiles se destacava entre os homens, sobressaindo não apenas pelo manto tingido em cores brilhantes, mas também pelos brilhantes cabelos prateado dourados e pela postura empertigada do corpo.

Poucos dias depois ela desceu para visitar a mãe; ficou perturbada pelo aprofundamento das linhas da idade no rosto de Hécuba. Ao se aproximar dos aposentos da rainha, sentiu-se chocada pelos sons de uma discussão; não dava para entender as palavras, apenas para captar as vozes das mulheres gritando com raiva. Entrando no aposento principal, perto do grande tear, ela ouviu o som de um tapa retumbante e um grito abafado, depois a voz de Hécuba exclamando:

- Nunca!

- Pois então irei sem sua permissão, Senhora, e também sem sua bênção - disse uma voz mais jovem.

As vozes das mulheres silenciaram quando reconheceram Kassandra e todas recuaram para lhe dar passagem. Parecia que todas as mulheres do palácio se apinhavam ali, cercando Hécuba, que usava uma túnica velha, os cabelos caindo do coque habitual em mechas desgrenhadas, e uma de suas costureiras, uma moça que Kassandra não conhecia de nome, embora muitas vezes já tivesse admirado o seu trabalho.

- Aqui está a princesa! Ela é uma sacerdotisa e saberá o que dizer! Kassandra entrou no círculo das mulheres, que no mesmo instante se calaram, exceto por um ou outro murmúrio.

- Qual é o problema, mãe? O que está acontecendo?

A moça, a face avermelhada pelo tapa, empertigou-se orgulhosa. Era esguia e bonita, com cabelos castanhos lisos que arrumava quando fora interrompida e que agora pendiam meio cacheados quase até a cintura. Os olhos grandes e escuros eram ensombreados por enormes pestanas.

- O Deus falou comigo e escolhi meu senhor - declarou ela.

- Essa idiota, essa criança estúpida, meteu na cabeça... ora, tenho quase vergonha de contar! - exclamou Hécuba. - Não é possível que alguma mulher possa se degradar tanto, se humilhar... ela não é nenhuma serva nem escrava, mas bem nascida, uma de minhas melhores bordadeiras, sempre a tratei como uma filha aqui no palácio. Nada lhe faltou...

- Mas o que ela fez? - indagou Kassandra. - Abriu os portões para os akaios invadirem a cidade?

- Não, ainda não chegou a esse ponto - admitiu Hécuba.

- Ela está louca - garantiu Creusa. - Durante o jantar, há poucos dias,. viu Akiles e desde então não fala em outra coisa; como ele é forte, como é hábil nas armas, como é belo... se um homem pode ser belo... e agora meteu na sua cabeça a idéia de que deve descer e se oferecer...

- Aos akaios? - perguntou Kassandra, consternada.

- Não - respondeu a moça, suavemente, os olhos brilhando. - A meu senhor Akiles.

- Nem mesmo o rei Príamo a mandaria para ele como uma escrava - disse Kassandra.

- Nunca poderia ser escravidão, porque eu o amo. Desde a primeira vez em que o vi que compreendi que nunca poderia haver outro homem para mim neste mundo.

- Minha mãe tem razão - comentou Kassandra. - Você perdeu o juízo. Não percebe que ele é um animal, um bruto? Não pensa em outra coisa que não seja a guerra, não encontra prazer em mais nada além de matar. Não há lugar em sua vida para qualquer mulher, nem para o amor de uma mulher; se ele ama alguém, é seu companheiro de arma, Pátroklo.

- Está enganada - declarou a moça. - Ele me amará.

- E se isso acontecesse, seria ainda pior para você. O homem é perturbado, sofre de alguma doença mental que lhe incute o desejo de morte.

- Não - insistiu a moça. - Vi como ele olhou para mim. Como pode dizer tal coisa? O homem mais bonito que os Deuses já criaram; tanta beleza não pode deixar de ser boa. Aqueles olhos...

Com um sobressalto, Kassandra lembrou-se de uma mulher na aldeia dos centauros, os tornozelos furados, com uma corda passada, defendendo sua mutilação como um ato de amor. Era inútil argumentar com uma mulher nesse estado.

Mas, mesmo assim, ela devia tentar, quanto menos não fosse porque ambas

eram mulheres e, portanto, irmãs.

- Você... qual é o seu nome?

- Briseida - informou Hécuba. - Ela é uma trácia.

- Quero que preste muita atenção, Briseida - disse Kassandra. - Será que não percebe como está se iludindo? Isso é alguma fantasia louca metida em sua cabeça por um demônio, não por um Deus. Inventou um homem de seus sonhos e deu-lhe o nome de Akiles. Acredita mesmo que se nos deixar e descer para os akaios representará algo mais para ele do que uma rameira ou uma escrava?

- Não seria possível eu amá-lo tanto sem despertar algum amor em troca - afirmou Briseida.

Creusa adiantou-se e sacudiu-a.

- Escute o que estamos dizendo, sua louca! Esse tipo de amor não passa da fantasia de uma tola! Se está apenas querendo um homem, falarei com meu pai e ele lhe arrumará um casamento; há soldados e chefes aqui do mundo inteiro e seu pai é um homem respeitável em sua terra; meu pai lhe encontrará um marido de valor.

- Mas não quero um marido de valor - protestou Briseida. - Quero apenas Akiles, pois o amo. E você está com inveja porque o amor não lhe chegou assim. Se tivesse, saberia que não posso fazer outra coisa. Não há nada no mundo para mim além de Akiles; não posso comer nem dormir de tanto pensar nele... em seus olhos, suas mãos.. .

O próprio som de sua voz, ao pronunciar o nome, convenceu Kassandra de que era como se estivesse falando para o vento que soprava.

- Deixem-na em paz - murmurou ela, desolada. - Isto é uma febre, como a de Páris por Helena, uma maldição da Deusa do Amor dos akaios. Ela vai recuperar o juízo muito em breve, depois que o tiver, mas a essa altura já será tarde demais.

- Se ao menos eu pudesse tê-lo, não teria a menor importância o que me acontecesse depois.

Hécuba removeu as lágrimas dos olhos de Briseida e murmurou:

- Pobre criança... Não posso impedi-la. Vá, se assim deseja, e assuma as

conseqüências de sua loucura. Falarei com Príamo e você será carregada até lá numa liteira, com a mensagem de que é um presente para Akiles; e se ele se dignar a aceitá-la, em vez de entregá-la a seus soldados para demonstrar seu desprezo por nossos presentes...

A moça empalideceu por um instante, mas logo recuperou o controle e disse:

- Quando ele compreender o quanto o amo, vai retribuir.

E se isso acontecer, você estará numa situação ainda pior do que antes, pensou Kassandra. Ela ficou observando as mulheres vestirem e adornarem Briseida; Hécuba até pôs um colar de ouro em seu pescoço. Quando a moça ficou pronta, Kassandra quase a invejou... de tão alegre que ela estava.

As mulheres sonham com esse tipo de amor. E depois vera a corda pelos tornozelos perfurados, a escravidão, a degradação.

Eu deveria estar em seu lugar, pensou Kassandra. Akilés pediu a mim e certamente me receberia como convém à minha posição. E depois, enquanto ele dormisse, uma adaga na garganta, talvez o fim desta guerra... o grande Akiles, vencido não por um herói, mas por uma mulher, por sua própria paixão, quando nem todos os guerreiros de Tróia poderiam conseguir sua destruição.

Essa mulher está indo ao encontro do meu destino?

Não; os Deuses podem às vezes nos dar o que pertence a outra pessoa, como Páris tem a esposa de Menelau; mas ninguém pode viver o destino de outra pessoa.

Espero que assim seja, acredito que assim seja; pois se não for verdade, nunca saberei como suportar minha culpa.

 

Poucos dias depois Kassandra tornou a descer ao palácio de Príamo e encontrou Helena no pátio, observando o acampamento akaio. Seu filho Binomos se movimentava ao redor de Kassandra; calculando mentalmente, compreendeu que Helena já se encontrava em Tróia há quase dois anos. Era difícil lembrar-se do alojamento das mulheres sem ela ou que houvera um tempo em que a guerra não existia.

Há três anos eu estava cavalgando com as amazonas, pensou ela, desejando retornar às planícies, liberta da cidade e das mulheres do palácio.

Eu deixaria a Casa do Senhor do Sol? Ele me esqueceu, não fala mais comigo, pensou Kassandra. Não sou mais que qualquer outra mulher. Mas é um Deus que eu amo, não um homem... E imagino que é melhor amar um Deus do que um homem como Páris ou Akiles.. .

Ela pensou em Briseida. Procurou a tenda de Akiles lá embaixo e avistou ao lado as cortinas coloridas da liteira em que Hécuba mandara a moça para o acampamento. E agora, parado perto da entrada da tenda, divisou o corpo esguio e empertigado do guerreiro, tendo ao lado o vulto menor, arredondado e vestido em cores brilhantes de uma mulher. Briseida? Então pelo menos ele não desdenhara o presente, não a entregara aos soldados. Kassandra especulou se a moça estaria feliz e contente.

- Pelo menos ela tem o que mais desejava - comentou Helena, aproximando-se do parapeito e gesticulando para a moça envolta pelos véus tingidos com açafrão. - Assim, há pelo menos uma mulher em Tróia que tem o que mais desejava.

- Além de você, Helena?

- Não sei... Amo Páris... Pelo menos sob a bênção da Deusa do Amor, eu o amei; mas quando Ela não está comigo... não sei.

Então ela também só ama à vontade de um Deus.. . Por que os Deuses se intrometem em nossas vidas? Não têm o suficiente para fazer em seus reinos divinos e por isso devem se envolver com as vidas de homens e mulheres mortais? Mas ela se limitou a indagar:

- Acha que haverá um ataque hoje?

- Espero que sim; os homens começam a se entediar, confinados aqui, dentro das muralhas. Se os akaios não nos atacarem dentro de um ou dois dias, nossos homens vão sair para atacá-los, apenas para ocuparem seu tempo... Mas o que há com você, Kassandra? Por que ficou pálida de repente?

- Ocorreu-me que se esta guerra se prolongar por muito tempo -, respondeu Kassandra, falando com dificuldade -, nenhum filho de Tróia sobreviverá para ser um guerreiro.

- Eu preferia que meus filhos fossem qualquer outra coisa que não um guerreiro. Talvez como Odisseu, vivendo pacificamente, um sábio juiz de seu povo... Se tivesse um filho, Kassandra, o que haveria de querer para ele?

Era uma coisa que ela jamais considerara.

- Qualquer coisa... desde que o fizesse um homem feliz. Um guerreiro, rei, sacerdote, lavrador ou pastor... qualquer coisa, menos um escravo dos akaios.

Helena virou-se para o menino e estendeu os braços; ele veio correndo. E ela disse, pensativa:

- Antes deste filho nascer, ainda estava ao meu alcance... e pensei a respeito muitas vezes... deter esta guerra. Podia descer furtivamente ao acampamento, ao encontro de Menelau; creio que ele concordaria em voltar para casa. Quando não houvesse mais nada por que lutar... ou pelo menos mais nenhum pretexto para continuar a guerra... os akaios teriam de voltar para suas ilhas. Mas agora... - Ela estremeceu ligeiramente   ele não me aceitaria; não com o filho de outro homem no seio.

- Pois então deixe-o aqui, em Tróia; o pai cuidará dele e eu também, Helena, se é o que você realmente deseja.

No instante em que acabou de falar, Kassandra refletiu que Helena era praticamente a única pessoa em Tróia com quem podia agora conversar; a mãe não mais a compreendia, nem as irmãs. Sentiria saudade de Helena se ela voltasse a Esparta. Helena franziu o rosto e indagou:

- Eu deveria renunciar a meu filho só porque Menelau é um idiota? - Depois de uma breve pausa, acrescentou: - Para dizer a verdade, Kassandra... a menos que você esteja sob o encantamento de Afrodite, não há muita diferença entre um homem e outro. Mas não se pode esquecer os filhos com tanta facilidade. Não sou responsável por esta guerra. Estou convencida de que Agamenon a faria de qualquer maneira, mais cedo ou mais tarde, independentemente do que eu fizesse ou deixasse de fazer.

Helena suspirou e encostou a cabeça no ombro de Kassandra.

- Não sou tão brava quanto penso, minha irmã. Podia encontrar coragem para voltar a Menelau, até mesmo para deixar Páris, mas não seria capaz de abandonar meu filho.

Ela pegou o menino que se encostava em seus joelhos e apertou-o contra o coração.

- Abandonar seu filho? Por que faria isso? - perguntou Andrômaca, aproximando-se com Creusa, a tempo de ouvir as últimas palavras. - Nenhuma mulher pode deixar uma criança que gerou... e se pudesse, não seria melhor do que uma rameira.

- Fico contente por ouvi-la dizer isso - murmurou Helena. - Eu estava tentando me persuadir de que tinha o dever de voltar para Menelau...

- Nem sequer pense nisso! - exclamou Andrômaca, abraçando Helena. - Você nos pertence agora e não a deixaríamos partir por todos os akaios lá embaixo, mesmo que Páris, Príamo e todos os homens quisessem que fosse... e eles não querem. Os Deuses a mandaram para nós e vamos mantê-la... não é mesmo, Creusa?

A outra mulher acenou com a cabeça e riu.

- A Deusa a abençoou e não a deixaremos ir embora.

Helena sorriu debilmente.

- É bom ouvir isso. Os homens sempre foram gentis comigo, mas as mulheres nunca; é maravilhoso ter amigas aqui.

- Você é bela demais para ser muito amada pelas mulheres - comentou Andrômaca. - Mas já está aqui há dois anos e, ao contrário de muitas mulheres bonitas, não fez qualquer tentativa de seduzir nossos maridos.

- E por que eu faria isso? Já tenho um marido a mais do que preciso; por que haveria de querer os de vocês? - indagou Helena, rindo. - Não sinto grande amor por Tróia, devo confessar, e gostaria de conhecer mais do mundo, mas as mulheres não podem viajar...

Quando ouvia alguém dizer algo como As mulheres não podem..., Kassandra sempre se sentia ansiosa em fazer justamente aquilo. Por isso, disse agora:

- Mas eu estou prestes a viajar, de acordo com a vontade de meu Deus; e se você quisesse, Helena, poderia ir comigo. Eu teria o maior prazer com a sua companhia.

- E eu com a sua. Mas não posso deixar uma criança tão pequena. Para onde você vai e por quê?

- À Cólquida, para procurar a rainha Imandra e saber de coisas sobre as serpentes. Há uma lua as nossas serpentes morreram ou fugiram da gente. Não quero substituí-las enquanto não tiver certeza de que a causa não foi nada que eu fiz ou deixei de fazer.

Ela contou a história e Andrômaca assumiu uma expressão ansiosa.

- Leve minhas saudações para minha mãe e diga-lhe que estou feliz no

casamento e tenho um filho de Heitor.

- Por que não vai comigo e apresenta pessoalmente as saudações? Seu filho já está bastante crescido para ficar aos cuidados de Hécuba e do pai.

- Eu bem que gostaria. Se tivesse me falado a respeito há um mês... mas estou grávida de novo. Talvez desta vez seja uma filha que poderá se tornar uma guerreira de Tróia.

- Uma guerreira?

- Por que não? Você é, Kassandra, e sua mãe também foi.

- Não ouviu o que Páris disse na última vez em que tentei ir com meu arco para as muralhas? - indagou Kassandra, irritada. - Eu poderia atirar agora... e matar Akiles... acabar com esta guerra sem que Helena precise se separar de nós. Mas isso não agradaria aos homens, que não querem acabar com a guerra.

- Tem razão - concordou Andrômaca. - Eles querem apenas vence-la. Heitor reservou Akiles para si mesmo e jamais aceitará qualquer outra forma de acabar com os combates. Pode me dizer quando isso acontecerá e por quanto tempo mais teremos de lutar?

Kassandra sorriu, amargurada.

- Heitor me proibiu de profetizar a desgraça. Pode estar certa de que nada tenho a dizer.

- Talvez seja mesmo melhor que você viaje para a Cólquida - comentou Helena. - Kassandra, minha amiga, os Deuses também me falaram e nada disseram sobre um desastre.

- E possível que os seus Deuses falem a verdade e os meus sejam falsos. Nada me agradaria mais do que voltar e encontrar Akiles morto nas mãos de Heitor, todos os akaios partindo para nunca mais voltarem.

Mas não será assim, não pode ser assim...

 

Kassandra pensava que, depois de tomada a decisão de viajar para a Cólquida, tudo seria uma simples questão de pedir autorização ao sumo sacerdote, reunir as roupas que desejasse levar, escolher uma companheira de viagem (ou talvez duas) e partir.

Mas não foi tão fácil assim. Lembraram-na de que havia oficialmente um estado de guerra entre os akaios e Tróia e por isso era necessário (através de mensagens demoradas, enviadas de um Templo de Apolo para outro) acertar que ela viajasse sob a Paz de Apolo, sendo uma mulher e uma sacerdotisa jurada, sem nenhuma relação com a guerra por qualquer lado; também lhe explicaram que isso era muito mais difícil por ser ela filha de Príamo e estar ligada aos principais combatentes na guerra. Muito antes que as permissões e salvo-condutos oficiais pudessem ser providenciados, Kassandra já estava cansada de toda a idéia, desejando nunca ter pensado na viagem. Ao final, prestou um juramento sagrado a todos os Deuses que conhecia (e até alguns que não conhecia) de que não entregaria nenhuma mensagem relacionada com a guerra de qualquer lado; foi proclamada uma mensageira de Apolo, com permissão para viajar a qualquer lugar que quisesse.

Krises quis acompanhá-la e Kassandra sentiu alguma compaixão por ele; ainda lamentava o destino da filha no acampamento akaio, e não ajudava saber que Agamenon escolhera a moça para sua, amante. Contudo, embora Krises jurasse a Kassandra que respeitaria sua virgindade, como se fosse sua própria filha, ela não confiou em tal juramento e recusou-se a aceitá-lo na expedição. Como Krises era um sacerdote de Apolo altamente respeitável, pareceu por um momento que ela não teria permissão para viajar sem a sua companhia. Mas Kassandra acabou apelando para Cárites, declarando que permaneceria no interior das muralhas até seus cabelos embranquecerem, em vez de dar um único passo numa viagem com Krises; e, assim, a idéia foi abandonada.

Príamo quis enviar mensagens a muitos amigos ao longo do caminho, e ela teve de jurar que eram questões de família ou religiosas, nada tinham a ver com a guerra; não podia entender o motivo para isso, pois com freqüência os viajantes sob imunidades religiosas aproveitavam para espionar por um lado ou outro. E, finalmente, a mãe não quis conceder permissão para a viagem sem uma companhia adequada. Kassandra, que preferia viajar sozinha ou com uma única companheira, de preferência uma amazona corno Pentesiléia, teve de aceitar duas das mais antigas e tímidas servidoras da mãe, Kara e Adréia, e prometer que no caminho sempre partilharia sua cama com elas.

- O que ela pode estar pensando? - especulou Kassandra. - Se eu quisesse me entregar à devassidão, não precisaria viajar ao fim do mundo e deitar no chão duro, depois de um dia inteiro a cavalo. Seria muito mais fácil fazer tudo em meu próprio leito.

Mas ela sabia que era o jeito da mãe e nada podia fazer; por isso, aceitou a indicação de Hécuba.

- Se eu recusar - comentou com Filida, quando finalmente parecia que todos os obstáculos haviam sido removidos e poderia partir no dia seguinte -, ela vai pensar que eu quero de alguma forma escapar à sua supervisão; e não pode pensar em qualquer outro motivo para que eu deseje faze-lo, a menos que seja para assumir algum comportamento errado. O que há nas mulheres que as leva a desconfiarem de tais coisas umas nas outras?

Filida suspirou.

- Tenho a impressão de que é a experiência. Não me contou que Criseide era vigiada dia e noite, mas mesmo assim não pôde garantir a sua inocência?

Kassandra sabia que era verdade, mas isso a deixava furiosa. Lembrou-se de Estrela, dizendo que as mulheres da cidade eram tão devassas que precisavam ser trancafiadas por trás das paredes.

E pensou: As mulheres, com exceção das amazonas, passam o tempo a pensar em quem amam apenas porque não têm outra coisa para ocupar suas mentes. Se tivessem um rebanho de ovelhas ou uma manada de cavalos para cuidar, estariam numa situação muito melhor. Mas isso não evitara que Enone definhasse ao perder Páris, lembrou ela.

Kassandra passou acordada muito tempo da última noite, pensando nessa misteriosa emoção que transformava mulheres sensatas no resto em débeis mentais capazes de se concentrarem apenas nos homens que as inspiraram ao amor.

Fora determinado que ela deveria partir ao amanhecer; levantou assim que a primeira claridade surgiu no céu, comeu um pouco de pão e tomou vinho aguado. Queria viajar num cavalo veloz, mas as companheiras eram muito velhas e austeras para isso e assim escolhera um burro velho e pacato, enquanto elas seriam carregadas em cadeiras. Os carregadores e atendentes - quase guardas - eram servidores do Templo de Apolo, jovens e fortes.

Kassandra esperava partir discretamente, mas ao se aproximar dos portões avistou um pequeno grupo ali reunido, no qual estavam Krises e Filida, para se despedir.

Filida abraçou-a e beijou-a, desejou uma boa viagem e um retorno seguro; Krises também abraçou-a, embora Kassandra se mostrasse um pouco relutante.

- Volte para nós o mais depressa possível, sã e salva - murmurou ele, os lábios próximos do ouvido de Kassandra. - Sentirei saudade de você, mais do que posso expressar. Diga que também sentirá minha falta.

Kassandra pensou: Sentirei sua falta tanto quanto de uma dor de dente, mas era cortês demais para dizer isso.

- Que os Deuses mantenham você são e salvo e lhe devolvam Criseide - disse ela, pensando que não lhe queria o mal, mas gostaria que ele encontrasse uma esposa e parasse de incomodá-la.

Depois, comprimiu os flancos do burro e se afastou. Antes de deixar a costa, a expedição teria de passar pelos navios akaios, quando haveria o primeiro teste da trégua de Apolo.

Um vigia nos arredores do acampamento akaio deu o aviso quando eles se aproximaram; um capitão, numa couraça suntuosa, de metal com frisos dourados, adiantou-se.

- Quem passa? É o rei troiano tentando escapar da cidade e do sítio? Eu sabia que eram covardes.

- Não é nada disso - protestou um guarda. - A dama é uma sacerdotisa de Apolo e viaja sob a sua paz.

- É mesmo? - O capitão fitou Kassandra de uma maneira tão direta e grosseira que pela primeira vez na vida ela pôde compreender o motivo do costume que exigia que as akaias usassem véu. - Uma sacerdotisa, hem? Da Deusa

Afrodite? Ela é bastante bonita para isso.

- Não; ela é uma das virgens juradas do Senhor do Sol - respondeu o comandante da guarda de Kassandra. - Está vedada a qualquer homem, salvo o

Deus.

- Uma virgem, hem? Que desperdício... - A expressão do akaio era pesarosa. - Mas seria preciso um homem mais bravo do que eu para enfrentar o Senhor Apolo por causa de uma de suas donzelas. E que beldades se escondem nas cadeiras?

Ele puxou as cortinas. Kassandra estava cansada de se esconder atrás da guarda e disse:

- São duas servidoras de minha mãe. Viajam para tomar conta de mim e impedir que qualquer homem me ofenda.

- Nada têm a temer de mim e creio que de nenhum outro homem - disse o capitão, recuando, respeitoso.

- Lamento que minhas companheiras não contem com a sua aprovação, mas estão aqui para a minha conveniência e não para a sua - declarou Kassandra. - Além do mais, estou a serviço de Apolo, e não seu. Portanto, peço que me deixe passar logo.

- Para onde vai? E qual o serviço que pode prestar ao Senhor do Sol fora de Seu templo?

- Vou para a Cólquida e estou mesmo a serviço do Deus. Procuro alguém que conheça tudo sobre serpentes, a fim de aprender a cuidar delas da maneira certa no templo.

- Uma jovem dama como você vai viajar sozinha para tão longe? Se fosse minha filha, eu não permitiria; mas suponho que o Deus sabe que aquilo que Lhe pertence está seguro em qualquer parte. Pode passar, dama, e que Apolo a guarde. - Uma pausa e o soldado acrescentou, com um gesto reverente: - Eu lhe peço que me dê a sua bênção.

Era a última coisa que Kassandra esperava, mas estendeu as mãos no gesto de bênção e disse:

- Que Apolo, Senhor do Sol, o abençoe e guarde.

E seguiu em frente. Do topo das muralhas de Tróia podia ver tão longe que esquecera quanto tempo demorava a viagem; acamparam naquela noite e por várias noites subseqüentes à vista da cidade e despertavam a contemplar o clarão do sol no Templo de Apolo. Kassandra recordou a viagem com as amazonas; mal podia acreditar que desde aquela ocasião até agora habitara por trás das muralhas sufocantes da cidade. Tróia, seu lar e sua prisão. Tornaria a vê-la algum dia?

No longo intervalo entre a proposta da viagem e a partida, ela dispusera de bastante tempo para os preparativos e encomendara duas tendas; uma leve, de linho oleado, outra de couro, como as que as amazonas usavam quando chovia. O tempo manteve-se bom durante os primeiros dias e a tenda sob as estrelas era agradavelmente fresca à noite, embora as duas acompanhantes, interpretando as instruções da mãe de forma literal, a obrigassem a dormir entre elas. Kassandra, que sempre tivera um sono difícil, às vezes ficava acordada horas seguidas, sentindo cada pedrinha e depressão no chão por baixo da manta, mas não querendo mudar de posição, a fim de não incomodar as companheiras. Apesar de tudo, porém, podia ouvir o vento e sentir a brisa fresca do lado de fora, que pelo menos era diferente do vento inalterável nas alturas de Tróia.

Dia após dia, a pequena caravana avançou lentamente, sem qualquer incidente, pelas vastas planícies. Encontraram poucos viajantes pelo caminho, exceto por uma grande caravana de carroças, levando ferro para Tróia. Ao saberem que a cidade se encontrava sob sitio, os homens especularam se não deveriam fazer a volta, seguindo para o norte até a Trácia ou mesmo retornando à Cólquida.

- Os akaios não vão querer negociar com o nosso metal - comentou o líder da caravana. - Preferem as suas próprias armas e é bem provável que não nos deixem entrar na cidade; teremos então de voltar, a viagem como a única recompensa por nossos esforços. E também é possível que os akaios confisquem toda a caravana.

Kassandra achava que isso podia mesmo acontecer.

- Conhece algum dos akaios que estão lá? - indagou o homem.

- Akiles, filho de Peleu; Agamenon, rei de Micenas; Menelau, de Esparta; Odisseu...

- Esse é diferente. Podemos negociar com Odisseu, da mesma forma que o faríamos com Príamo. Ele é um homem honesto e um mercador honesto. - Ele acrescentou para os condutores das carroças, alteando a voz: - Parece que, no final das contas, vamos mesmo para Tróia, companheiros.

Depois, o líder da caravana quis saber o que ela estava fazendo; Kassandra explicou, e ele fez o agora esperado comentário de que não permitiria se fosse sua filha.

- Mas imagino que seu pai sabe o que faz - concluiu o homem, em dúvida evidente.

Kassandra não viu sentido em explicar que não fora solicitada a permissão de Príamo, ele não tivera a oportunidade de consentir ou recusar.

- Quer que eu leve alguma mensagem sua para Tróia, senhora?

- Basta avisar no Templo do Senhor do Sol que eu estou viva e bem. A mensagem será então transmitida a meu pai e minha mãe.

E com manifestações mútuas de boa vontade e bênçãos eles se separaram, avançando devagar pela vasta planície, como dois córregos, em direções opostas. Depois de mais algumas noites, Kassandra sabia, sua expedição chegaria aos limites da terra dos centauros.

- Os centauros? - balbuciou Adréia, uma de suas acompanhantes.

- Oh, não, os centauros não! - exclamou Kara, a outra acompanhante.

- É isso mesmo... eles vivem aqui e teremos de passar por seu território. É quase inevitável encontrarmos um -ou mais de seus bandos nômades.

As mulheres haviam sido criadas com as lendas antigas sobre os centauros, e Kara perguntou:

- Não tem medo dos centauros, Senhora Kassandra?

- Não, absolutamente nenhum.

Kassandra refletiu que era uma resposta pouco feminina; Kara dava a impressão de que era ofensivo que alguma mulher pudesse escapar ao medo do que tanto a assustava. Kassandra suspirou e terminou de tomar o vinho em sua taça, antes de dizer:

- Devemos beber logo o vinho. Está começando a azedar e não vai resistir muito tempo ao calor. Talvez possamos conseguir mais algum na próxima aldeia, dentro de um ou dois dias.

E o resto da conversa versou sobre coisas mais simples.

 

De acordo com a predição de Kassandra, encontraram os centauros no início do dia seguinte. A princípio, avançando pelo mar de relva interminável, Kassandra nada pôde ver; depois, bem longe, à beira de seu campo de visão, divisou movimentos e sombras, até que conseguiu definir uma pequena forma... não, duas... não, três, a cavalo, escuras contra a ondulação dourada da relva. Pareciam ter percebido a pequena caravana a se aproximar, pois se reuniram e conferenciavam; em determinado momento, Kassandra pensou que os três fugiriam. Mas acabaram se encaminhando para os troianos.

Kassandra deteve o burro, mas não fez qualquer movimento de recuo; sabia que nunca se deveria deixar que um centauro pensasse que o temia, pois então ele seria implacável em se aproveitar. Ela murmurou pelas cortinas da liteira em que as velhas viajavam:

- Não queriam ver um centauro? Pois aí está um. - Eu? - balbuciou Adréia. - De jeito nenhum!

Mesmo assim, ela esticou a cabeça e espiou entre as cortinas. Kara seguiu seu exemplo.

- Que homenzinhos feios e esquisitos! - sussurrou ela. - E desavergonha dos ainda por cima, nus como animais!

- Por que eles deveriam usar roupas, quando não há ninguém por aqui para ver ou se importar com isso? Mas possuem trajes que podem usar, se quiserem, quando vão às cidades.

Kassandra ficou observando os centauros a se aproximarem. O que vinha na frente era encarquilhado e tinha os cabelos grisalhos, as pernas ainda mais encurvadas e menores do que as dos outros. Usava um colar de dentes de leão no pescoço. Kassandra reconheceu-o, apesar de velho e murcho.

- Quíron - murmurou ela.

O centauro inclinou-se sobre o pescoço do cavalo.

- Parenta de Pentesiléia, saudações. Quando nos encontramos pela última vez havíamos encontrado mel. Nossa tribo é pobre agora. Muitos e muitos viajantes na planície; assustam a caça, pisoteiam as plantas silvestres. Nossas cabras não dão leite nem para as crianças menores. Passamos muita fome.

- Estamos viajando para a Cólquida - informou Kassandra. - Pode nos indicar o caminho?

- Com prazer, se assim deseja - respondeu o velho centauro, com seu sotaque bárbaro. - Mas como pode estar viajando tão longe de Tróia? Parece que o mundo inteiro segue até lá para esta guerra. Se não para lutar, então para vender alguma coisa aos guerreiros, de um lado ou do outro.

Era uma verdade tão incontestável que parecia não haver qualquer propósito em comentá-la.

Antes de deixar Tróia, Kassandra pedira nas cozinhas uma quota extra de pães, sabendo que os centauros não cultivavam nem moíam os grãos e por isso representavam uma iguaria excepcional para eles. Depois que o presente foi desembrulhado e oferecido, os olhos do homenzinho faiscaram - Kassandra refletiu que era uma fome genuína - e ele disse:

- A filha de Príamo é generosa. Seu marido luta nas grandes batalhas à frente de Tróia? Se luta, darei a ele flechas mágicas que nunca deixarão de abater seus inimigos, mesmo que não acertem num ponto vital.

- Não tenho marido. Estou consagrada ao Senhor do Sol e não aceitarei mais ninguém. E ñão preciso de suas flechas, com o veneno tirado de sapos.

Por um momento o centauro fitou-a com uma expressão irada, mas depois inclinou-se para trás e soltou uma gargalhada. Fez alguma coisa, que Kassandra não pôde perceber o que era, para seu cavalo empinar e relinchar, baixando em. seguida..

- A filha de Príamo é esperta e boa; nenhum homem do meu povo fará mal algum a ela enquanto passa por minha terra, nem a qualquer coisa que seja sua. Nem mesmo às velhas que espiam com tanto desejo para meus homens de trás das cortinas. Mas se não tem proveito para essas velhas sapas, pode dar para meus homens; elas não são boas para bongo bongo... - Ele acompanhou as sílabas ininteligíveis com um gesto que as tornava obscenamente claras   mas podemos ferver as duas para veneno de flecha.

Ele riu de novo e Kassandra teve de fazer o maior esforço para se manter séria.

- Não é possível. Não quero viajar sem minhas mulheres, que são boas para mim... e não viajaria por sua terra com acompanhantes jovens e bonitas.

- Muito esperta, muito esperta - murmurou o centauro, virando o cavalo e se afastando rapidamente.

Kassandra levantou a mão para indicar que não terminara a conversa, e ele voltou, embora não chegando muito perto. Ela perguntou:

- O sábio líder do povo-cavalo sabe onde as mulheres de Pentesiléia apascentam suas éguas neste verão?

Ele gesticulou e ofereceu uma explicação apressada. Como não acarretaria um desvio muito grande, Kassandra resolveu seguir na direção indicada. Despediu-se cortesmente de Quíron, que já começara a partilhar os pães com seus homens e exibia migalhas em torno da boca.

Depois de outro longo dia de viagem na direção apontada pelo centauro, Kassandra avistou um vulto montado à distância. Era uma mulher e estava com o arco estendido pelas costas, como faziam as amazonas de Pentesiléia. Kassandra chamou-á e a mulher se aproximou.

- Quem viaja por nossa terra com uma escolta de homens?

- Sou Kassandra, filha de Príamo de Tróia, e procuro minha parenta Pentesiléia, a amazona.

A mulher, vestindo a túnica e culote de couro da tribo, os cabelos pretos compridos presos no alto da cabeça, fitou-a desconfiada e finalmente disse.

- Lembro-me de você quando criança, princesa. Não posso deixar minhas éguas... - Ela gesticulou para a manada esquelética e dispersa que pastava na relva escassa da planície           e não me cabe chamar a rainha. Mas enviarei um sinal para avisar que ela é procurada, e a rainha virá se achar conveniente.

A mulher desmontou e acendeu uma pequena fogueira, lançando nas chamas alguma coisa que provocou grandes nuvens de fumaça; cobriu a fogueira e depois deixou a fumaça subir em sucessivas lufadas triplas. Depois de algum tempo, Kassandra avistou um vulto alto aproximar-se a cavalo. Quando chegou perto, reconheceu a parenta.

Percebeu a expressão de perplexidade de Pentesiléia e compreendeu que a parenta não a reconhecera. Era bem jovem quando a rainha das amazonas a vira pela última vez; agora, mais velha, vestida como uma princesa, uma sacerdotisa, era apenas uma estranha.

- Não me reconhece, tia?

- Kassandra!

O rosto queimado de sol de Pentesiléia relaxou, mas ela ainda parecia tensa e envelhecida. Desmontou e abraçou Kassandra com afeição. - Por que veio até aqui, menina?

- Estava à sua procura, tia.

Quando a vira pela última vez, Pentesiléia parecia jovem e forte; agora, Kassandra especulou qual seria realmente a sua idade. O rosto da amazona estava vincado, com centenas de pequenas rugas em torno da boca e dos olhos; sempre fora esguia, mas agora estava positivamente magra. Kassandra se perguntou se as amazonas, como os centauros, estariam passando fome.

- Como está a guerra em Tróia, Kassandra? Passará esta noite conosco e contará tudo?

- Com o maior prazer. Poderemos conversar à vontade sobre a guerra, embora seja uma coisa que já me cansa.

Kassandra deu ordem à comitiva para seguir a amazona e partiu ao lado de Pentesiléia, na direção de uma caverna na encosta da colina. Havia ali•algumas mulheres, quase todas idosas e umas poucas meninas. Quando viajara com elas, havia meia centena de amazonas. Agora, não havia bebês nem jovens em idade de gerar filhos. Pentesiléia compreendeu sua expressão e explicou:

- Elaria e cinco outras estão na aldeia dos homens. Fiquei com medo, mas sabia que devia deixá-las ir agora ou nunca mais poderia permitir. Ainda não sabe o que aconteceu, não é mesmo? Nossa vergonha não chegou ao conhecimento de Tróia.. .

- Eu não soube de nada, tia.

- Vamos sentar. Conversaremos enquanto comemos. - Ela sorriu e fungou, satisfeita. - Não comemos tão bem assim há muitas luas. Eu lhe agradeço.

A refeição fora complementada com carne-seca e pão das provisões de Kassandra.

- De qualquer forma - acrescentou Pentesiléia -, não estamos tão mal quanto os centauros; eles passam fome e em breve deixarão de existir. Já encontrou com algum?

Kassandra relatou seu encontro com Quíron e Pentesiléia balançou a cabe

- Sempre podemos confiar nele e em seus homens. Em nome da Deusa, eu gostaria... No ano passado combinamos a ida para uma das aldeias dos homens... acertamos a troca de caldeirões de metal, cavalos e algumas de nossas cabras leiteiras. Fomos para lá e tudo parecia estar bem. Duas luas passaram; algumas das nossas estavam grávidas e nos preparávamos para partir. Eles nos suplicaram que ficássemos mais um mês e concordamos. E depois, quando nos aprontamos outra vez para ir embora, eles fios ofereceram um banquete de despedida e serviram um vinho novo. Dormimos profundamente e quando acordamos... o vinho estava drogado, é claro... estávamos amarradas e amordaçadas. Os homens nos disseram que não poderíamos ir embora, que haviam decidido que queriam viver como os homens das cidades, com mulheres para cuidar deles o ano inteiro, partilhar suas camas e suas vidas...

Pentesiléia fez uma pausa, tremendo de indignação e desespero.

- Cada animal tem unia temporada de acasalamento apropriada. Tentamos lembrá-los disso, mas eles não queriam escutar. Falarios que pensaríamos a respeito, se nos deixassem ir embora; e eles disseram que deveríamos lhes preparar uma refeição, pois os homens nas cidades tinham mulheres para cozinhar e cuidar de suas necessidades. Até obrigaram algumas mulheres que estavam ,gravidas a ir para a cama coma eles! Preparamos uma refeição e pode imaginar como era!

Ela sorriu, ferozmente.

- Mas algumas mulheres quiseram poupar os pais de seus filhos... Só a Mãe Terra sabe de onde tiraram tal idéia. E, assim, alguns homens foram avisados. Quando os outros estavam vomitando e defecando, nós nos preparamos para partir. Mas uns poucos nos obrigaram a lutar. Não podíamos matar a todos e por isso acabamos perdendo muitas das nossas: as traidoras resolveram ficar.

- Ficaram com os homens que... que fizeram isso com vocês?

- Exatamente. Elas disseram que estavam cansadas de lutar e cuidar das manadas. - O tom de Pentesiléia era desdenhoso. - Vão para a cama com os homens em troca do pão... não são melhores do que as rameiras em suas cidades. É uma perversão daqueles akaios; eles dizem até que nossa Mãe Terra não passa da esposa de Zeus Tonante.. .

- Blasfêmia! - concordou Kassandra. - Não foi a tribo de Quíron?

- Não. Podemos confiar neles, pois se apegam aos velhos costurares, como a gente. Mas este ano, quando Elaria levou as mulheres à aldeia dos homens, fizemos com que prestassem um juramento que nem mesmo elas se atreveriam a violar. E obrigamos a deixarem as crianças desmamadas. Viemos nos esconder aqui, em cavernas, porque na ausência das mais jovens não ternos guerreiras para defender nossos animais.. .

Kassandra nada encontrou para dizer.' Era o fim ele um modo de v la que persistira por mil anos naquelas planícies; mas o que podiam fazer? E ela se limitou a comentar.

- A seca tem sido grande? Quíron me contou que está cada vez reais difícil encontrar comida.

- Isso também. Algumas tribos foram gananciosas, querendo possuir cavalos demais, que pastaram além do que as planícies podiam alimentar. Tiveram de vende-los em troca de pano, caldeirões de metal e não sei vais o quê. Agora. por tudo isso, os que tratam bens a terra estão morrendo. E a Mãe Terra não estendeu a mão para punir tais pessoas. Não sei... talvez não haja piais Deuses que se importem com o que os homens fazem.. .

O rosto: de Pentesiléia estava tenso e envelhecido.

- Não consigo entender - disse Adréia. - Por que se perturba tanto com o fato de algumas das suas mulheres terem preferido viver como todas as mulheres nas cidades? Vocês poderiam viver muito bem corri maridos para cuidar deles, tomar conta ele seus cavalos; e poderiam criar seus filhos tanto quanto as filhas, não precisariam passar todo o tempo lutando para se defenderem. Muitas e muitas mulheres vivem assim e não acham nada de errado nisso. Está querendo me dizer que todas estão erradas? Por que querem viver apartadas dos homens: Não são mulheres como quaisquer outros?

Pentesiléia suspirou; mas em vez do comentário desdenhoso imediato que Kassandra esperava, ela pensou por uni momento. Kassandra teve a impressão de que ela queria a compreensão daquela idosa mulher da cidade, que tanto a desaprovava.

- Nosso costume tem sido o de vivermos entre nossa espécie e sermos livres - disse Pentesiléia finalmente. - Não gosto de viver entre paredes... e por que deveríamos fiar, tecer e cozinhar? Se os homens usam roupas, por que não deveriam faze-las? E os homens também comem; por que as mulheres devem preparar toda a comida? Os homens em suas aldeias cozinhar tão bem quanto as mulheres, se estas não estão à disposição para lhes preparar a comida. Então por que as mulheres devem viver como escravas dos homens?

- Não me parece escravidão, mas apenas unia troca - protestou a mulher. - Por acaso os homens são escravizados às mulheres quando cuidam dos cavalos e das cobras?

Pentesiléia disse com veemência:

- Mas as mulheres fazem essas coisas como se fosse uma troca por partilhar suas camas e gerar seus filhos. ('orno as rameiras em suas cidades, que se vendem. Não consegue perceber a diferença? Por que as mulheres deveriam viver com homens quando podem cuidar sozinhas de seus rebanhos, se alimentar de suas hortas e vier livres?

- Vilas se uma mulher deseja ler filhos, então precisa de homens. Até mesmo você, rainha Pentesiléia...

Posso lhes perguntar, sem intenção de ofensa, por que não casaram?

Kara foi a primeira a responder:

- Eu teria casado com a maior satisfação, mas assumi o compromisso de permanecer com a rainha Hécuba, enquanto ela desejasse a minha companhia.

Não sinto falta do casamento; seus filhos nasceram no meu colo e participei da criação. E, como a princesa Kassandra, não conheci nenhum homem que amasse bastante para me separar da minha querida senhora.

- Eu a respeito por isso - disse Pentesiléia. - E você, Adréia?

- Infelizmente, eu não era bonita nem rica; por isso, nenhum homem jamais me pediu em casamento. E agora o tempo já passou. Sirvo à minha rainha e a suas filhas, ao ponto de seguir a princesa Kassandra para esta terra esquecida da Deusa, povoada por centauros e outros povos selvagens...

- Ou seja, há outros motivos, além da mera iniqüidade, para que uma mulher resolva não casar - comentou Pentesiléia. - Se está certo para vocês não casarem por lealdade à rainha, por que Kassandra não deveria permanecer leal a seu Deus?

- O problema não é o fato de ela não casar, mas sim o de não querer casar - respondeu Adréia. - Como se pode compreender uma mulher assim?

Era demais para Kassandra, que explodiu, com palavras que vinha reprimindo há dias:

- Não pedi a compreensão e nem a simpatia de vocês, muito menos a sua companhia. Não as convidei a viajarem comigo e podem voltar a Tróia no momento em que quiserem; lá estarão cercadas por mulheres decorosas. Continuarei a viagem para a Cólquida com minhas parentes e sua escolta. Não preciso da proteção de vocês.

. - Eu a conheço desde que era um bebê e o que digo não é mais do que sua própria mãe falaria - protestou Adréia, amuada. - Estou preocupada com o seu próprio bem...

Pentesiléia interveio, apaziguadora:

-+ Eu lhes peço para não brigarem, pois terão uma longa viagem pela frente. Kassandra, minha cara menina, mesmo que eu estivesse livre para acompanhá-la até a Cólquida não poderia garantir sua segurança. Oro para que o nome de Príamo e a paz de Apolo sejam proteção suficiente. Talvez o problema seja esta guerra, talvez seja a difusão dos costumes akaios, agora que o mundo minoano caiu. E ainda nem me explicou por que está indo à Cólquida; é simplesmente porque a rainha é sua velha amiga ou Príamo decidiu procurar aliados tão longe?

Ela falou a Pentesiléia sobre o terremoto e a deserção 'das serpentes do templo. A amazona empalideceu com o presságio.

- Apesar de tudo, confiarei no Senhor do Sol - acrescentou Kassandra. - Não tenho mais nada em que confiar; e se conseguir chegar sã e salva à Cólquida, sem outra salvaguarda que não a Sua bênção, acharei que é um sinal de Sua boa vontade persistente.

- que ele abençoe e a guie e que a Mãe Serpente a aguarde e a conceda a sua bênção na Cólquida... e por parte, minha querida – murmurou Pentesiléia.

Pouco depois elas deitaram; mas Kassandra permaneceu desperta por muito tempo.

Quando finalmente dormiu, os sonhos foram inquietos; procurasse alguma coisa - uma arma perdida, talvez um arco - mas sempre que pensava ter encontrado não era o que queria, estava quebrado, a corda partida ou qualquer outra coisa assim.

O que os Deuses estavam lhe dizendo? Era uma sacerdotisa; fora ensinada que todos os sonhos eram mensagens dos Deuses, se conseguisse descobrir o significado. O fato de não poder interpretar aquele sonho significava apenas que ela era, como há muito desconfiava, inapta para receber o favor do Senhor do Sol, que Ele se afastara. Por mais que tentasse, só pôde extrair do sonho o mau presságio de que não encontraria o que quer que procurava em sua busca.

Pela manhã, Pentesiléia deu presentes a ela e suas companheiras - selas novas e uma túnica quente de couro de cavalo.

- Pode estar certa de que vai precisar na travessia da Grande Planície - garantiu ela. - Os invernos têm sido mais rigorosos ultimamente e ainda pode haver neve.

Kassandra sentiu vontade de chorar quando se abraçaram na despedida.

- Quando voltaremos a nos encontrar, parenta?

- Quando os Deuses assim desejarem. Se for a vontade da Mãe Terra que eu termine meus dias numa cidade, escolherei Tróia; é uma promessa, minha menina. Não creio que sua mãe se recusaria a acolher a última de suas irmãs ou que Príamo me rejeite em sua porta. Talvez eu deva mesmo ir a Tróia com minhas guerreiras e tentar expulsar alguns daqueles akaios.

- Quando esse dia chegar, eu lutarei a seu lado - declarou Kassandra` Mas Pentesiléia apenas abraçou-a com grande ternura e disse:

- Esse não é o seu destino nesta vida, meu amor; não assuma compromissos que não poderá cumprir.

E ela se afastou, sem olhar para trás.

 

O inverno de fato perdurou por mais tempo na Grande Planície; quatro dias depois de passarem a noite com Pentesiléia e suas amazonas remanescentes, o céu escureceu e a neve começou a cair, com tanta intensidade que Kassandra especulou como sua escolta podia seguir a trilha estreita e mal definida. Nevou durante todo aquele dia e no seguinte; embora continuassem a viajar, não encontraram praticamente nenhum sinal de vida humana. Em determinado momento, à distância, através da neve, avistaram uni centauro vigilante, delineado contra o horizonte; mas quando fizeram sinal para que se aproximasse, ele virou o cavalo e afastou-se a galope.

Kassandra não ficou surpresa; pelo que Pentesiléia dissera, sabia que os habitantes da Grande Planície, nunca muito propensos a confiar em forasteiros, estavam ainda menos inclinados a fazê-lo agora. Ainda hem que não precisava negociar com eles por comida ou outros produtos. Dia após dia avançavam pela planície, os cascos dos animais afundando na lama encharcada, onde antes havia relva congelada, a neve jamais se tornando bastante densa para constituir um perigo e as chuvas persistentes nunca dando para degelar mais do que uns poucos centímetros do terreno gelado. As vastas estepes se encontravam vazias e áridas; encontravam pouco alimento para complementar as escassas rações de viagem e Kassandra logo cansou de montar pelas terras vazias, arrastando-se sob um céu interminável, que parecia tão cinzento e hostil quanto os rostos de suas companheiras.

Um dia sombrio se seguia a outro, enquanto a lua definhava e sumia, depois voltava a estufar; por quanto tempo aquele inverno duraria? E de repente, depois de uma visão fugaz da lua cheia através das nuvens, ela desperta,] para ouvir os ventos uivantes e uma chuva forte, que parecia estar acabando com a própria terra.

A nova manhã trouxe uma paisagem transformada, com pequenos rios correndo por toda parte, faiscando ao sol forte. A relva da primavera aflorava por todos os lados, sob os ventos quentes e suaves. Não demorou muito para que esquentasse tanto que Kassandra guardou a túnica de couro de cavalo e passou a viajar apenas com a camisa de pano.

E foi num desses dias de primavera que chegaram a urna aldeia. Não era mais do que um aglomerado de cabanas redondas de pedra n•, planície, mas estava cercada por campos do cereal de inverno verdejante, erguendo-se da neve que derretia depressa. Kassandra lembrou a aldeia condenada de sua viagem com as amazonas, anus antes, com tantas crianças deformadas. Mas se era a mesma aldeia, devia de alguma forma ter sobrevivido à praga, pois as crianças ali eram fortes e saudáveis. Mais tarde, porém, ela viu algumas das meninas e garotos mais velhos, com apenas dois dedos numa cias mãos. Antes disso, não haviam encontrado qualquer habitação humana por oito ou dez dias; e quando a mulher que era líder da aldeia veio saudar a caravana, parecia também contente por vê-las.

- O inverno durou tempo demais nesta terra - disse ela. - Não vimos humanos durante todo o inverno, à exceção de uni pequeno bando de centauros, tão enfraquecidos pela fome que não tentaram qualquer coisa com nossas mulheres, vias apenas nos suplicaram por qualquer tipo de comida.

- Isso é triste - comentou Kassandra.

Mas a mulher franziu o rosto coar desdém.

- Você é uma sacerdotisa; e imagino que sua obrigação é sentir compaixão até mesmo por gente como eles. Mas os centauros nos aterrorizaram vezes demais para que eu sinta qualquer outra coisa que não satisfação quando os vejo tão por baixo. Com um pouco de sorte, todos eles vão morrer ele fome e nunca mais precisaremos temê-los. Tens metais ou armas para negociar? Ninguém mais vem até aqui para negociar; todos os metais que trazem se destinam à guerra em Tróia, e não conseguimos obter nenhum.

- Lamento, mas não trago areias -- respondeu Kassandra. - Compraremos alguns dos seus potes, se ainda os fazem.

Os potes foram trazidos e meticulosamente examinados; a escuridão caiu enquanto o grupo de Kassandra ainda os examinava. A líder da aldeia convidou-os a jantar e continuar as negociações pela manhã. Colocou uma das cabanas de pedra à disposição dos viajantes e convidou-os a jantar na cabana central. A comida era mesmo escassa - carne que parecia ser de algum esquilo, bolotas de carvalho amargas e raízes brancas sem gosto; mas pelo menos fora cozida na hora. Kassandra, recordando a praga, ficou uni tanto relutante em comer ali, mas disse a si mesma que não deveria se preocupar com isso - pois embora eu ainda esteja então idade de gerar filhos, não sou casada e provavelmente nunca serei. Além elo arais, enquanto essas damas dormirem ao meu lado na cama, dificilmente haverá unta possibilidade de eu engravidar.

E se esta aldeia não tivesse de alguma, forma se recuperado da praga, já teria desaparecido, com a morte de todas as almas.

 

Poucos dias depois a caravana avistou os portões de ferro cia Cólquida, tão altos e impressivos como sempre. Kassandra tirou a camisa e o traje de montaria de couro, vestindo as melhores túnicas troianas, tingidas em cores brilhantes. Uma das acompanhantes arrumou seus cabelos na armação elaborada que costumava usar no Templo do Senhor do Sol. A rainha Imandra a receberia como uma princesa de Tróia, não como uma suplicante ambulante.

Ela foi recebida nos portões de ferro da cidade como uma enviada de Tróia e convidada a se alojar no palácio. Kassandra disse que primeiro precisava fazer uma_ visita ao Templo do Senhor do Sol e foi para, o seu enorme santuário, no centro da cidade, onde sacrificou um par de pombas a Apolo do Arco Longo. Depois, foi levada ao palácio e conduzida a luxuosos aposentos de hóspede, onde encontrou servas para ajudá-la no banho e vestir. Durante o prolongado processo de tomar banho - ou melhor, de ser banhada - ela refletiu que durante a viagem quase que esquecera o gosto do luxo. Gostou da água fumegante, os óleos fragrantes, a massagem suave com escovas e as mãos gentis das mulheres. Depois, vestiram-na em trajes para as hóspedes e levaram-na à câmara de audiências da rainha Imandra.

Ela esperava que a rainha parecesse mais velha; afinal, ela própria não era mais a criança que estivera ali, tímida e calada, ao lado de Pentesiléia. Mas a mudança era muito maior do que jamais poderia imaginar; se encontrasse aquela mulher em qualquer outro lugar que não ali, na sala do trono, nunca a reconheceria como a orgulhosa descendente de Medéia.

Imandra engordara incrivelmente; estava mais imponente do que volumosa, com ouro pendurado por toda parte; mas deixara de adornar o corpo agora imenso com serpentes vivas. As faces e os lábios estavam pintados de vermelho e usava túnicas tingidas do tecido mais fino, procedente da tetra dos faraós, a leste. Os cabelos estavam repletos de pedras preciosas, como sempre. Em meio a todo aquele esplendor, somente os olhos escuros e divertidos eram os mesmos, embora quase perdidos nas dobras de carne.

Enquanto Kassandra entrava na sala e parava, a fim de oferecer a saudação ritual, Imandra levantou-se do trono e andou - ou melhor, bamboleou - alguns passos.

- Não, minha cara, nada de prostração da minha parenta - disse ela, envolvendo Kassandra num abraço afetuoso e perfumado; o perfume era tão familiar quanto os olhos. - Estou mais contente do que posso exprimir em palavras, filha de Príamo. Que longa jornada você fez! Sem dúvida traz mensagens de minha filha....

- De sua filha e de seu neto; Andrômaca é mãe e em breve terá.. . não, a esta altura já teve outro filhos, se tudo correu bem.

Imandra ficou radiante.

- Eu sabia, eu sabia! Não falei, meu caro, que já se passara tempo suficiente para que eu fosse avó duas vezes, se minha filha tivesse cumprido o seu dever? - Ela se dirigia a um jovem musculoso, vestido em traje dourado, como um atleta ou vencedor dos Jogos, que ocupava um assento ao lado do trono. - Amanhã devo olhar para o poço de tinta e tentar ver a criança, descobrir se está tudo bem com ela.

A rainha pegou as mãos de Kassandra e levou-a para a mesa elevada. Sentou-se entre Kassandra e o jovem ricamente vestido.

- E agora me conte tudo o que aconteceu em Tróia nesses últimos anos, desde que partiu levando o meu maior tesouro. E o que a traz tão longe sem as suas parentas?

O jovem interveio:

- Talvez a Senhora Kassandra tenha vindo suplicar a nossa ajuda na guerra contra os akaios.

- Não pode ser, se ela viajou sob a trégua de Apolo - explicou a rainha Imandra. - Conheço essas coisas, meu caro menino. - Ela tomou a se virar para Kassandra. - De qualquer forma, não precisa romper seu juramento, se, fez algum. Sem que me peça, enviarei para Príamo todos os guerreiros de que puder dispor, homens ou mulheres, além de carroças com metais e armas.

- É mais do que generosa.

Kassandra explicou sua missão. Imandra sorriu e beijou-a.

- Minhas sacerdotisas e mestras das serpentes serão consultadas amanhã de manhã ou assim que me avisar que é um dia auspicioso para tais coisas. Não preciso dizer que toda sabedoria a ser encontrada em nossa cidade está à sua disposição e do Apolo Troiano. Terá liberdade para lhes falar a qualquer momento; mas deve prometer que me fará uma visita longa.

- Sua Majestade é generosa.

Kassandra estava cansada de viajar e no momento não desejava outra coisa senão uma longa permanência na Cólquida.

- Não precisa agradecer, parenta. Afinal, não é uma companheira de sacerdócio e ainda por cima tão ligada à minha filha? E meus adivinhos disseram que a criança que espero agora será uma filha e acho que é um bom presságio a sua presença aqui para o nascimento.

Kassandra não tivera a menor suspeita de que a rainha estava grávida; e se pensasse a respeito por um momento, ficaria' convencida de que Imandra se encontrava além da idade de gerar filhos. Mas agora, observando com mais atenção, percebeu que a rainha se encontrava de fato nos estágios iniciais da gravidez. Cumprimentou-a por isso e indagou.

- Ela será então a herdeira da Cólquida, no lugar de Andrômaca?

- Isso mesmo. Andrômaca não está interessada em se tornar a rainha; a esta altura, já deve ter descoberto isso. Sei que não é difícil esquecer o encargo de rainha quando unia mulher se sente feliz... mesmo que a mulher já seja rainha. Eu já não lhe disse isso antes, Agon?

E o jovem bonito respondeu:

- E verdade, minha senhora.

O rosto largo de Imandra iluminou-se num sorriso, que Kassandra só pôde classificar de "tolo", ao contemplar seu favorito. Kassandra, compreendendo subitamente a situação, ficou chocada: a independente rainha Imandra, Senhora da Cólquida, apaixonada por uni jovem bonito que não podia ser mais velho do que sua filha? E não podia haver a menor dúvida de que ela estava apaixonada; o próprio tom de sua voz dizia isso. Ele partilhava seu prato e sua taça de vinho, Imandra procurava as melhores iguarias para lhe oferecer.

Depois de comerem, Kassandra mandou trazer as arcas coar os presentes que Andrômaca enviara para a mãe: tapeçarias bordadas, peças de tecidos ricamente tingidos, até mesmo espadas e facas de bronze com adornos intrincados; com um gesto de indiferença, a rainha deu vários a seu consorte.

- Mas não me diga que você quer lutar em Tróia - declarou ela com firmeza ao jovem. - Preciso de você ao nica lado, para me ajudar a criar nossa filha; e ainda mais se os adivinhos estiverem errados e for um filho.

- Eu não pensaria em deixá-la, minha senhora, muito menos para lutar em alguma terra distante. Seria diferente se Agamenon ou qualquer dos outros viesse até aqui para tentar conquistar a Cólquida.

Imandra virou-se para Kassandra.

- Fale-me sobre a guerra e a rainha espartana. Apesar da distância, sei de algumas coisas sobre sua família. Que tipo de pessoa ela pode ser para desencadear unia guerra assim?

- Eu não imaginava que pudesse gostar de Helena ou mesmo respeitá-la - respondeu Kassandra, falando bem devagar. - Mas agora gosto e a respeito. Creio que os Deuses foram rigorosos com ela quando a puseram no caminho de meu irmão Páris.

- Ela tinha lodo o direito de tonar tini consorte - comentou Imandra, com uni sorriso insinuante para o jovem Agon. - Mas cometeu um erro ao não descartar Menelau... e ao deixar de fazer o sacrifício antigo!' Tais coisas devem ser feitas em ordem. O erro de Helena não foi o de tomar uni amante; era uni direito legítimo, que ninguém podia negar. Afinal,. sua mure era rainha de Micenas e Esparta pertencia a Helena. Seu crime... e foi cie fato uni crime para tuna rainha... foi deixar Esparta para Menelau, o que confundiu a questão. Eles entregaram Esparta à sua filha para reinar? Presumo que não, pois Hermíone é muito jovem para se tornar rainha. Esses akaios são uns selvagens que tentam impingir essa história de "reis" a nosso mundo civilizado: e falam em paternidade, como se algum honrem pudesse criar vida. Só a Deusa insufla vida nas crianças; mas alguns homens são bastante arrogantes para dizer que a mulher não passa de um forno em que o filho deles... o filho deles, pode imaginar uni absurdo maior?... é assado. E Esse Agamenon... que ele seja amaldiçoado por todas as Deusas e Fúrias!

- Ele é o líder dos exércitos akaios da própria Micenas - lembrou Kassandra.

- É verdade. Você sabia que ele casou com a irmã de Helena, que sucedeu a mãe em Micenas? Klitemnestra era a gêmea mais velha e muito bonita, mas não tanto quanto Helena. Klitemnestra teve unia filha, Ifigênia... consagrada à Mãe Serpente, guardiã elo Santuário e suma sacerdotisa desde o tempo em que era apenas uma criança. Quando a guerra começou, Agamenon havia jurado ajudar o irmão em todas as coisas; por isso, tinha de deixar Micenas. Ficou com medo de que Klitemnestra o substituísse como consorte; e ela, por sua vez, ficou furiosa porque ele se atrevera a fazer tal juramento sem a sua permissão. Ameaçou levar o primo Egisto para sua cama, se ele a deixasse. E Agamenon ameaçou levar o filho Orestes. Klitemnestra disse que ele podia fazer o que quisesse com o metrino, mas se pervertesse qualquer de suas crianças com os seus Deuses malignos ela expulsaria os dois. Agamenon fez o menino sacerdote de Possêidon... acho que foi Possêidon, o Deus Cavalo... e mandou-o para ser criado entre os centauros. Reuniu seus exércitos e preparou-se para seguir para Tróia, mas ficou detido na praia pelos ventos desfavoráveis. Mandou uma prensagem a Klitemnestra, pedindo que enviasse a filha Ifigênia para conduzir os sacrifícios necessários aos ventos. Ifigênia se apresentou, como sacerdotisa, e Agamenon acabou sacrificando-a, com base enr falsos oráculos. Assim, Klitemnestra não pôde tomar outro consorte, porque a filha menor era pequena demais para sucedê-la. E me informaram que essa filha menor, Elektra, virou-se contra o culto da Mãe Terra; e quem podia culpá-la? Se ela se tornasse uma sacerdotisa, como a irmã, corria o risco de morrer também. Mas Klitemnestra jurou vingança; e Agamenon sofrerá uni dia a v ngança da Mãe Terra. E não tenho a menor dúvida de que ele vai morrer. Não se pode escarnecer assim dos Deuses.

- Em última análise, ó tudo unia questão de determinar se a terra será comandada por reis ou rainhas?

- E o que amais poderia ser? Por que os homens haveriam de reinar na família ou na cidade, já que as mulheres sempre comandaram desde que a primeira Mãe Terra gerou a vida? O costume antigo era melhor; o rei era levado todos os anos a morrer por seu povo e não se pensava em qualquer homem indicar o filho para sucedê-lo. Por milhares de anos essa foi a regra da vida, até que surgiram esses akaios selvagens para tentar mudar nossos costumes...

Imandra fez uma pausa.

- Quem sabe o que aconteceu então? Talvez tenha havido uma guerra e um rei fosse um líder competente demais para morrer assim; ou alguma mulher tola como eu não quisesse perder o seu jovem amante. - Ela lançou um olhar afetuoso para o jovem Agon. - Surgiram aqueles homens cavalo, com os primeiros reis, instalando seus Deuses arrogantes... até mesmo o Senhor do Sol, que alegava ter abatido a Mãe Serpente. - Imandra bocejou. - O mundo está mudando, sei disso... mas é culpa das mulheres, que não souberam manter os homens no seu lugar.

- E acha que essa é a causa da guerra que ocorre agora? - perguntou Kassandra.

- Tenho certeza absoluta, minha cara - respondeu a rainha. - Nunca poderia acontecer na Cólquida.

 

Poucos dias depois, Kassandra, alojada nos aposentos do palácio que eram outrora ocupados pelas filhas reais, dormindo no próprio quarto em que uma noite

ficara acordada com Andrômaca, observando as estrelas cadentes, foi despertada pela rainha Imandra.

 

- Minha cara, a Suma Sacerdotisa do Templo da Mãe Serpente está disposta a recebe-la.

 

Kassandra acordou suas acompanhantes e vestiu uma túnica simples e imaculada, como convinha a uma suplicante. Adréia protestou:

- É uma princesa de Tróia e também uma sacerdotisa; deve se apresentar como igual, minha senhora.

- Mas vou procurá-la em busca da sabedoria que ela possui e eu desconheço - respondeu Kassandra. - Acho que é mais apropriado que eu me apresente com toda humildade, suplicando sua ajuda. As acompanhantes ainda resmungaram, mas a rainha Imandra interveio:

- Você está certa, Kassandra. Quando ela me chama, até eu me apresento com humildade.

Kassandra suspirou aliviada e ajeitou as sandálias nos pés. Detestava usar trajes elaborados e se vestir como uma princesa. Embora o sol não estivesse muito alto, as nuvens da manhã já haviam se dissipado e o calor era intenso em sua cabeça e ombros, através da túnica. Pareceu uma longa caminhada pela cidade e os pés estavam cansados quando finalmente escalaram os degraus construídos por Titãs, entrando no Santuário.

Lá dentro, para alívio de Kassandra, estava escuro e fresco, podia-se ouvir o murmúrio distante e agradável de água caindo. Uma atendente silenciosa, de túnica escura, conduziu-as a um pátio ensombreado, com o chão ladrilhado; no outro lado havia um assento alto formal, onde estava sentada uma mulher enorme e idosa, de cabelos brancos.

- A sacerdotisa Arícia - murmurou Imandra.

Elas foram avançando devagar. A princípio, Kassandra pensou que havia uma serpente viva enroscada sobre a faixa dourada na cabeça da sacerdotisa, mas depois percebeu que era apenas uma imitação muito bem moldada e pintada em argila, talvez em madeira esculpida. A sacerdotisa vestia uma túnica sem mangas de tecido escarlate, com desenhos que pareciam de escamas de serpentes; e envolta na cintura havia uma cobra viva de verdade... a maior que Kassandra já vira: de uma circunferência tão grande quanto os braços da sacerdotisa, que eram enormes. A serpente dava duas voltas na cintura de Arícia e a anciã segurava sua cabeça com uma das mãos, roçando-a indolente por_ baixo do queixo. E disse em voz suave, que mesmo assim ressoou com autoridade:

- Saudações, rainha Imandra. Essa é a princesa troiana de quem me falou?

- É, sim, senhora - respondeu Imandra. - Kassandra, filha da rainha Hécuba, de Tróia.

Kassandra sentiu os olhos da sacerdotisa penetrarem-na, tão escuros e frios quanto os da serpente.

- E o que quer de mim, Kassandra de Tróia?'

Kassandra sentiu-se compelida a se ajoelhar diante da anciã.

- Vim de Tróia para saber de coisas da senhora... ou melhor, da Mãe Serpente.

- Muito bem, diga-me o que procura. Por você, filha de Hécuba, farei qualquer coisa que estiver ao meu alcance.

Assim encorajada, Kassandra falou da morte ou deserção das serpentes da morada do Senhor do Sol e sua relutância em substituí-las enquanto não soubesse mais dos cuidados indispensáveis. A idosa sacerdotisa sorriu, ainda afagando a enorme serpente sob o queixo... ou o lugar em que deveria haver um queixo. E só depois de algum tempo é que falou:

- Eu deveria chamar todas as minhas sacerdotisas, Kassandra, para que viessem vê-la. Pois em toda a Cólquida não consigo encontrar uma só moça que deseje adquirir esse conhecimento, e você percorre todo o caminho desde Tróia para me consultar. Quero que me diga unia coisa, Kassandra: enquanto estiver no Templo da Mãe Serpente, vai lhe prestar a reverência devida?

- Eu, juro, senhora.

Arícia sorriu e estendeu a pião.

- Que, assim seja. Eu a aceito. Pode ficar aqui e nada de nossa sabedoria antiga lhe será negado, enquanto habitar entre nós. Pode deixá-la conosco, Imandra. - Ela olhou para Adréia. - E você também pode ir. Ela não precisará de unia camareira no Templo da Mãe; todo atendimento de que precisar será prestado pelas sacerdotisas.

- Prometi à mãe de Kassandra, minha senhora, que não sairia de seu lado por uni único dia, enquanto ela estivesse em terras estranhas - protestou Adréia, com firmeza.

- Não posso censurá-la por isso, filha - disse Arícia, gentilmente. - Mas acha mesmo que ela precisa de assistência quando se encontra nas mãos da Grande Mãe?

- Acho que não, minha senhora. Sob esse ponto de vista, onde cia poderia estar mais segura do que nas mãos da Grande Deusa? Mas não posso quebrar minha promessa à rainha Hécuba.

- Ainda assim, acho que deve deixá-la contigo e com a Deusa - insistiu Arícia. - Mas pode vir aqui a intervalos de poucos dias e conversar com Kassandra a sós, sem que ninguém as observe, a fim de certificar-se de que ela se encontra sã e salva, que continua aqui por sua livre e espontânea vontade.

- Ela precisa mesmo se alojar no templo, Senhora Arícia? - interveio Imandra. - Eu me sentiria mais feliz se a tivesse no palácio, como minha hóspede, comparecendo aos serviços no templo sempre que desejasse sua presença.

- Não é possível. Ela deve ficar aqui, aprender a viver conosco e cone nossas serpentes. Seria desagradável para você, Kassandra'?

- Claro que não. Respeito a rainha Imandra corno parenta de minha mãe e também como urna amiga, mas estou mais do que disposta a permanecer na Casa da Mãe, como deve fazer uma sacerdotisa.

Imandra abraçou-a e Adréia também, as duas se retirando em seguida.

Depois, a velha sacerdotisa, que percebera o interesse de Kassandra pela serpente, ainda enroscada imóvel em seu corpo, perguntou: - Tem medo das serpentes, Kassandra?

- Absolutamente, senhora. - Unia pausa e ela acrescentou, num súbito impulso: - Essa é muito bonita.

- É unia autentica matriarca entre as serpentes. Gostaria de segurá-la?

- Claro, se ela vier para mini - respondeu Kassandra, embora nunca tivesse segurado antes unia serpente tão grande. - Ela não é venenosa, não é mesmo?

- Não sabe dizer, só de olhar'? Essa é unia das primeiras coisas que precisamos lhe ensinar. Mas não é venenosa, é claro. Eu não me arriscaria a ficar assim com uma serpente venenosa, que raramente são tão calmas. E quase nunca tão grandes quanto esta.

Arícia afastou do corpo a cauda da enorme serpente.

- Isso fará com que se desenrosque, pois não pode se firmar contra meu corpo quando a seguro assim. Estenda a mão e deixe que ela a fareje.

Kassandra obedeceu, sem se contrair quando a cabeça imensa se aproximou, a língua bifurcada se projetando e recolhendo, roçando em sua mão. Depois, a serpente se moveu, fluindo suave, como dobras de seda, pelo braço da sacerdotisa mais velha, passando pelos ombros de Kassandra, indo se enroscar cm sua cintura. A cabeça no formato ele tinia cunha subiu para o rosto de Kassandra, que a pegou em sua mão e se pôs a afagá-la gentilmente. Picou surpresa ao sentir a tensão desaparecer do corpo da serpente, enquanto o peso se distribuía suavemente em torno de sua cintura.

- ótimo... ela gosta de você - murmurou Arícia. - De nada adiantaria eu, aceitá-la aqui, se ela não gostasse. De qualquer forma, mais cedo ou mais tarde, ela pode mordê-la, se ficar assustada ou sobressaltada, enquanto a segura. Sabe o que fazer se isso acontecer?

A velha Melianta, na morada do Senhor do Sol, já ensinara a Kassandra como reagir em tal situação.

Sei, sim; não (levo assusta-la mais nem tentar afastá-la, mas apenas chamar alguém para desenroscá-la, começando pela cauda.

Kassandra estendeu a mão, mostrando a; pequenas cicatrizes da mordida de uma serpente do Templo de Apolo, que sofrera quando era assistente de Mefranla. Arícia sorriu.

- Mas então o que veio aprender com a gente!

- Todas as coisas! - respondeu Kassandra, ansiosa. - Desejo saber como encontrar e pegar serpentes na mata, onde procriam, como chocá-las dos ovos e ensiná-las a ir e vir, como já vi fazer; como alimenta-las e cuidar delas para que tenham uma vida longa; e como conquistar sua confiança e mantê-las satisfeitas, a fim de que não escapem.

A anciã soltou uma risada e estendeu a mão para contornar a cabeça da enorme serpente.

- Muito bem. Creio que podemos lhe ensinar todas essas coisas aqui. Mas é melhor você deixar que eu a recolha agora; estou acostumada com seu peso e não creio que uma criatura tão franzina como você possa carregá-la por muito tempo. Deve comer bem e engordar, como eu ou como Imandra, antes de poder se tornar uma autêntica e completa sacerdotisa da Mãe Serpente. Um dia você poderá sentar e exibi-la às pessoas; ela gosta de ser exibida ou pelo menos assim parece. Só mais uma coisa: algumas moças são muito moles ou sentimentais em relação aos pequenos animais... pombos, camundongos, coelhos... para alimentar as serpentes. Isso vai perturbá-la?

- De jeito nenhum; não fui eu mas sim os Deuses que determinaram que alguns animais se alimentarão com outras coisas vivas. Não os criei e não me cabe decidir com que devem se alimentar.

Kassandra ouvira Melianta dar essa resposta quando uma jovem do templo se mostrara consternada porque camundongos vivos eram dados às serpentes.

- Devemos agora providenciar um aposento para você e uma sacerdotisa para servir como sua atendente - disse Arícia. - Depois, conhecerá as outras que vivem aqui. É uma princesa de Tróia e espero que não considere as acomodações muito pequenas ou humildes para uma pessoa de sua posição.

- Oh, não! - exclamou Kassandra. - Estou ansiosa em viver como uma de vocês!

Arícia abraçou-a afetuosamente e levou-a para o interior da morada da Mãe Serpente.

 

Começou então para Kassandra um período diferente de qualquer outro em sua vida. Como já era sacerdotisa, não houve ordálios nem provações extenuantes, embora tivesse, como a mais jovem (muitas das sacerdotisas no templo eram idosas e frágeis, pois poucas moças optavam por servir à Mãe Serpente), de se revezar em deveres como cuidar dos animais criados para alimentar as serpentes, limpar os vasos e aceitar e registrar as oferendas. Foi bem acolhida por todas e tratada de acordo com a sua posição; a própria rainha Imandra não recebia uma deferência maior e não demorou muito para que Aricia passasse a amá-la como a uma filha.

Sob muitos aspectos, sua estada no Templo da Mãe Serpente foi como os primeiros anos na Casa do Senhor do Sol, mas com uma grande diferença: só mulheres eram devotas da Mãe Serpente, e ela não teve problemas como os que enfrentara com Krises. Os únicos homens na Casa da Serpente eram escravos e nenhum deles se atreveria a tentar qualquer avanço com uma sacerdotisa.

Kassandra aprendeu tudo o que as sacerdotisas podiam ensinar a respeito de serpentes. Logo sabia como distinguir as venenosas das inofensivas, como domar e cuidar de determinadas serpentes inofensivas que pareciam idênticas a certas espécies venenosas; assim, qualquer pessoa pensaria que ela estava desafiando a morte. Não tinha medo nem das serpentes maiores e se tornou uma das principais responsáveis por seus cuidados; muitas vezes, quando a enorme matriarca das serpentes era levada em procissão, Kassandra era uma das escolhidas para carregá-la.

Adquiriu todos os conhecimentos sobre as serpentes: como encontrá-las e capturá-las no mato, como alimentá-las e cuidar delas, como banhá-las e que cuidados dispensar quando descamavam. Até chocou uma, carregando o ovo entre os seios por mais de um mês e depois acalentando o filho contra o próprio corpo, quando rompeu a casca. Por isso, recebeu um cobiçado título honorífico entre as sacerdotisas, o de Mãe Serpente.

Quase nunca pensava em Tróia. De vez em quando chegava à Cólquida, talvez distorcida pela longa viagem, uma notícia sobre o andamento da guerra. Idorneneu de Creta e os reis minoanos tornaram-se aliados de Tróia; a maioria dos continentais estava com os akaios. Os ilhéus, por causa das alianças formadas quando Atlântida ainda reinava sobre os mares, estavam com Príamo e as Deusas de Tróia e da Cólquida.

Às vezes, na lua cheia, Kassandra acendia o fogo das feiticeiras e olhava para a tigela de adivinhação à sua claridade; foi assim que soube quando Andrômaca teve um secundo filho de Heitor, que morreu antes de o cordão umbilical sarar; naquela noite ela desejou estar em Tróia, a fim de consolar a amiga em seu pesar.

Soube também quando Helena teve filhos gêmeos de Paris, o que não chegou a surpreendê-la. Afinal, Paris era um único e Helena também tinha uma irmã Única. Ocorreu-lhe que se ela própria tivesse filhos poderiam ser gêmeos, talvez duas meninas, Os gêmeos de Helena eram fortes e saudáveis, embora não possuíssem a beleza da mãe nem do pai; mas cresceram tão depressa que já estavam andando em meio ano.

Antes que os filhos mais moços de Paris desmamassem, Príamo sofreu uma queda numa escaramuça na praia; a doença que se seguiu deixou-o coam o lado esquerdo do rosto contorcido e murcho e a claudicar do p direito. Ele promoveu Heitor comandante oficial de seus exércitos, o que não foi surpresa para ninguém. Os soldados, embora fossem leais e aclamassem Príamo nas raras ocasiões em que ele aparecia, idolatravam Heitor como se fosse o próprio Marte.

O tempo na Cólquida passava devagar, sem qualquer incidente. Kassandra era sempre bem recebida no palácio e Imandra mandava chama-la com freqüência... às vezes pela simples companhia, ocasionalmente para olhar numa tigela de adivinhação c 'dizer como ia a guerra ou saber por onde andavam as amazonas, para se ter certeza de que não era desesperadora a situação de Pentesiléia e seu

bando. Com os dias ocupados por estudos e deveres, Kassandra ficou surpresa ao descobrir que saíra de Tróia há mais de uni ano. Entre as mulheres, o nascimento era sempre uma festa, e a todo instante havia tinia no palácio tendo uni filho; as mulheres consagradas à Mãe Serpente, no entanto, não casavam, e a maioria fizera votos formais de castidade. Assim, não havia nascimentos no templo. Kassandra especulava quando a rainha teria seu filho.

Pouco depois soube na cidade que a rainha sairia para abençoar as súditas, em nome da Mãe Terra. Kassandra recordava vagamente - era quase que a sua primeira lembrança - que Hécuba fizera isso antes do nascimento de Troilo. Em Tróia, era apenas um costume antigo, meio lembrado e cumprido de rameira informal: sempre que a rainha se apresentava nas ruas, as mulheres corriam para lhe pedir a bênção. Na Cólquida, onde os costumes eram respeitados à maneira antiga, Kassandra não ficou surpresa ao descobrir que havia unia procissão formal. Só que achou que era muito tarde, pois o momento do nascimento devia ser iminente. Imandra não andaria pelas ruas, amas seria carregada numa liteira; e Arícia, a representante terrena da Mãe Serpente, seria carreada em sua companhia, as serpentes da sabedoria adornando-a da cabeça aos pés. Assim, todas as mulheres da cidade poderiam pedir a bênção não apenas da rainha grávida, mas também da Mãe Serpente.

- Mas por que agora? - indagou Kassandra. - Querem que a rainha entre em trabalho de parto na rua.'

- Já aconteceu antes - comentou Arícia. - Não seria o primeiro filho de uma Rainha (Ia Cólquida a nascer rias ruas. Mas haverá muitas parteiras da corte na procissão. E acontece que os adivinhos da rainha escolheram este como o dia mais auspicioso. Além disso, quanto mais perto Imandra estiver do momento, riais bênção poderá conferir.

- É verdade.

Era um argumento que Kassandra podia compreender. Na manhã da procissão, ela e outras sacerdotisas ajudaram Arícia a se vestir e a se adornar, envolvendo a matriarca das serpentes enr torno de sua cintura e duas menores nos braços. Seria bastante cansativo, pois as serpentes deveriam ser levantadas, a fim de que as pessoas pudessem vc-tas. Kassandra gostaria de tomar o lugar da anciã,,) á que era mais jovem e mais forte. Foi o que sugeriu, mas Arícia disse:

- É mais difícil ainda para a rainha, minha cara; ela está tão grande quanto unia píton que engoliu uma vaca. Talvez da próxima vez você possa tonar o meu lugar. Mas Imandra é unia velha amiga e terei o maior prazer em participar da procissão a seu lado. E tem sido muito gentil com você também. Um pouco moais de tinta escarlate na minha face esquerda, por favor. I? providenciem uni pouco de erva moída para ser queimada no braseiro; as serpentes adoram e dão menos trabalho quando podem cheirá-la. Não quer me acompanhar, Kassandra? Pode alimentar o braseiro e ficar de prontidão para pegar as serpentes menores, se ficarem irrequietas. Não é provável, mas tudo pode acontecer.

Kassandra sabia que era um privilégio que deixaria as outras sacerdotisas do templo com inveja;, mas todas lhe eram deferentes, por ser uma princesa de Tróia. Ela foi imediatamente pôr a sua melhor túnica cerimonial e envolveu nos braços duas ou três das serpentes menores, ajeitando outras duas na cabeça, de tal forma que pareciam unia coroa. Assim arrumada (e pensando que talvez as estátuas (Ia lendária Medusa podiam ser inspiradas por tal coroa de serpentes), ela saiu para a rua. Arícia foi levantada para a liteira e Kassandra subiu atrás.

Estava frio; uni vento forte soprava pelas ruas, entre os prédios altos, todas . s folhas haviam desaparecido das árvores e elos arbustos. Via sentou e suspendeu suas serpentes, a finco de que as mulheres nas ruas pudessem vê-las claramente. A liteira de Imandra seguia mais à frente; Kassandra podia observar os contornos Ia rainha, a gravidez bastante volumosa agora, os cabelos sueltos correndo pelas costas. As ruas estavam apinhadas de mulheres, muitas grávidas, adiantando-se, passando pelas guardas, levantando os braços para suplicar uma bênção.

O vento a enregelava; sentiu-se contente pelo peso aconchegante da serpente em sua cintura. As serpentes estavam apáticas. Como eu, também não gostam do frio, pensou Kassandra, com saudade do sol quente de sua terra.

Quase caiu em transe, contemplando o vulto alto de Imandra em sua liteira, envolta pela magia e encanto poderoso da Deusa. As mulheres corriam para estender as mãos, clamando por fertilidade e ansiando pela felicidade de tocar na rainha grávida, que personificava a Deusa. Suspendendo automaticamente suas serpentes, ela ouvira as mulheres gritando para Imandra e a Mãe Terra, para Arícia e a Mãe Serpente. E de repente, em algum lugar na multidão, ela ouviu uma mulher gritar:

- Olhem! E a sacerdotisa troiana, a amada de Apolo!

Isso a levou de volta abruptamente à percepção total. Ainda seria verdade? Ou Apolo a esquecera? Talvez já tivesse chegado o momento, refletiu ela, de voltar a Tróia, a seu povo e seus Deuses; servindo à Deusa, as mulheres eram mais livres ali, mas de que adiantava a liberdade se precisasse habitar para sempre entre estranhos? E no mesmo instante sentiu um aperto no coração; era muito amada ali e tinha várias amigas; suportaria abandoná-las e voltar a uma cidade em que as mulheres deviam se submeter aos maridos e irmãos?

O sol foi se tornando mais quente; ela puxou o véu sobre a cabeça e umedeceu o lenço numa tigela com água, a fim de molhar as cabeças das serpentes, murmurando.

- Muito em breve vai acabar e vocês poderão ir para um lugar fresco e escuro.

Uma das serpentes tentava se infiltrar na escuridão de suas roupas; como a multidão era cada pez menor, ela não tentou impedir. Os carregadores começaram a andar mais devagar e logo pararam. Servas tiraram Imandra de seu assento, com bastante dificuldade. Ela se encaminhou para a liteira em que as sacerdotisas estavam sentadas, cercadas pelas serpentes.

- Kassandra, minha amiga, pode ir ao palácio esta tarde e ver em sua tigela de adivinhação para mim?

- Com o maior prazer - respondeu Kassandra. - Assim que eu acabar de cuidar das serpentes... e se Arícia permitir.

Ela olhou para a suma sacerdotisa, que sorriu e acenou com a cabeça, concedendo sua permissão. Voltando ao Templo da Mãe Serpente, Kassandra ajudou as atendentes a deitarem Arícia num aposento às escuras, depois desenroscou as serpentes e banhou-as na fonte do pátio interior. Comeu frutas e pão, vestiu a sua túnica simples e tornou a sair. Estava um pouco mais quente agora - o pouco calor que o sol oferecia se encontrava no ponto máximo - e as ruas estavam apinhadas, mas ninguém reconheceu a mulher de cabelos escuros, numa túnica simples, como a sacerdotisa que, fora carregada pelas ruas, em túnica cerimonial e coroada de serpentes.

As mulheres da rainha conduziram Kassandra aos aposentos reais. Estava agradavelmente quente ali, com um fogo aceso. Imandra estava deitada numa rede, os cabelos soltos, o corpo enorme apoiado em almofadas. Despojara-se da atracão da Deusa e agora parecia exausta; o rosto contraído se mostraria pálido, se não fosse pelo fato de as faces ainda estarem pintadas.

Ela deveria ter mantido Andrômaca aqui na Cólquida, em vez de mandá-la para Tróia; não precisaria então se expor aos perigos de uma gravidez em sua idade, pensou Kassandra, surpresa consigo mesma; agora, ela precisa de uma filha para sucedê-la no trono da Cólquida.

Como se alguma insinuação do pensamento de Kassandra a alcançasse, a rainha abriu os olhos.

- Ah, filha, você veio me fazer companhia. Fico contente. Acho que a pequena... - Ela pôs a mão na barriga           pode nascer hoje; mas pelo menos a procissão já terminou e não preciso dar à luz a nova rainha nas ruas. Daqui a pouco chamarei as mulheres do palácio... elas ficarão zangadas se não forem avisadas imediatamente. Qual é a sua idade, Kassandra?

Kassandra tentou contar os anos; em Tróia deixavam de contar a idade de uma mulher depois que esta chegava à puberdade.

- Acho que farei dezenove ou vinte anos neste verão. A mãe me disse que nasci no solsticio do verão.

- Um ano mais velha do que a minha Andrômaca. E me contou que o filho mais velho de Andrômaca já tem idade suficiente para usar um elmo de bronze e tomar aulas com a espada. Acho que não conheço qualquer outra mulher de sua idade que ainda não esteja casada. Penso às vezes que você deveria ser minha filha, pois aceita os antigos costumes da Cólquida, enquanto Andrômaca parece teliz em Tróia, até mesmo como uma esposa obediente a Heitor. - Os lábios da rainha se contraíram um pouco, numa expressão quase desdenhosa. - Mas você é filha de Príamo e uma troiana. É sua vontade permanecer solteira por todos os seus dias, minha cara?

- Jamais pensei em outra coisa - respondeu Kassandra. - Estou consagrada a Apolo, Senhor do Sol.

- Mas está perdendo tudo o que faz com que a vida valha a pena - comentou Imandra, suspirando. Ela franziu o rosto e ficou imóvel e silenciosa por algum tempo, antes de acrescentar: - Vai olhar na tigela da adivinhação e deixar que esta velha contemple o filho de sua filha? Kassandra hesitou.

- Talvez neste momento deva pensar apenas na criança que traz em seu ventre. É melhor poupar todas as suas forças e energias até que ela esteja sã e salva entre nós, parenta.

- Fala como unia sacerdotisa... e as sacerdotisas dizem muitos absurdos - protestou Imandra, em tom ríspido. - Não sou uma mocinha de quinze anos que vai ter seu primeiro filho. Sou uma adulta e rainha, tão sacerdotisa quanto você, Kassandra ele Tróia.

- Não tive a intenção de sugerir... - Kassandra começou a falar, defensiva.

- Claro que teve e não deve negar. Faça o que estou pedindo, Kassandra;

se não quiser, encontrarei outras pessoas que me atenderão, embora não vejam tão longe e tão bem quanto você.

Era verdade e Kassandra sabia disso.

- Está bens - concordou, acrescentando mentalmente sua velha teimosa. - Chame as suas mulheres e mande que a preparem para o nascimento. E não me atribua qualquer culpa se as minhas palavras lhe causarem pesar ou sofrimento; sou apenas a mensageira, as asas da ave em que as mensagens voam.

Kassandra ajoelhou-se, iniciando os preparativos para acender o fogo sagrado para o Encantamento da Visão. As mulheres de Imandra entraram e aprontaram tudo para o nascimento. Entre elas estavam as duas acompanhantes de Kassandra, que vieram cumprimentá-la e indagaram cm voz baixa, fora do alcance da audição da rainha:

- Vamos ficar nesta cidade estranha para sempre, princesa? Quando voltaremos a Tróia?

- Partiremos assim que a rainha Imandra desejar - respondeu Kassandra. - Não a deixarei enquanto ela precisar de mim.

- Corno ela pode ter mais necessidade de você do que sua própria meie, princesa? Acha que a rainha I Hécuba não sente saudade e sofre por sua ausência?

- Vocês têm minha permissão para voltarem a Tróia quando quiserem - disse Kassandra, indiferente. - Até esta noite, se acharem conveniente. Mas fiz uma promessa a Imandra e não vou quebrá-la.

Ela se levantou e foi até a cama alta em que as atendentes haviam colocado a rainha para descansar, enquanto não chegasse o momento de ocupar a cadeira do nascimento. Pouco a pouco o aposento ficava lotado com as mulheres do palácio, que vinham testemunhar o nascimento real. Imandra especulou, impaciente:

- Será que alguma vez a Mãe Terra já mandou uma criança para o ventre errado'? Por tudo o que sei a seu respeito, Hécuba julgaria Andrômaca como sua filha perfeita, enquanto você sempre esteve deslocada em Tróia... - Ela apertou com força a mão de Kassandra. - Não me deixe agora. Os Deuses esperarão com a Visão até que nossos olhos estejam prontos para ver.

- Não sei quais foram os propósitos da Deusa ao me mandar para Hécuba de Tróia e não para Imandra da Cólquida - murmurou Kassandra, encostando o rosto na face da mulher mais velha. - Mas quaisquer que tenham sido, parenta, quero que saiba que a amo e reverencio como se fosse minha mãe de verdade.

- Sei disso, criança - sussurrou Imandra, virando o rosto para beijar Kassandra. - Caso a Deusa me leve hoje, como pode acontecer com qualquer mulher que fica sob suas asas em tal ocasião, prometa-me que continuará tia Cólquida e criará minha filha pelos costumes antigos.

- Não deve falar em morrer. Ainda viverá muitos e muitos anos, verá esta filha com seus próprios filhos e filhas.

Unia das atendentes entregou a Kassandra uma taça de vinho e uni prato com bolinhos de mel; ela tomou uni gole de vinho e largou na mesa ao lado o prato, distraída, murmurando:

- E agora vou olhar por você na tigela...

Ajoelhando-se nas pedras, ao lado do fogo sagrado, Kassandra projetou a mente para o (lia cm que o filho de Andrômaca nascera; o rosto de Heitor, pálido e excitado, contemplando a pequena criatura...

Sombras se movimentaram na água, fluindo e se firmando no rosto de Heitor... as plumas escarlates ficaram manchadas com um vermelho mais escuro... Kassandra ofegou, com unia súbita pontada de dor no coração. Heitor! Ele eslava morto ou ela apenas via o que aconteceria mais tarde? Quando tuna cidade estava em guerra, era bem provável que o comandante do exército, sempre o primeiro entre as tropas na batalha, tombasse as mãos... às mãos sangrentas de Akiles!... Aquele rosto desdenhoso, pálido e belo, belo e maligno... A neve caía sobre a superfície da água e Kassandra compreendeu que via o que aconteceria num ano futuro... mas que ano? Aquele mesmo ou algum ano distante? Ela não tinha como saber.

Imandra, os olhos fixados em Kassandra, como se tentasse desesperadamente partilhar a visão, indagou:

- O que você viu?

- A morte de Heitor - murmurou Kassandra. - Mas, para uni guerreiro, não há outro fim e há muito que já sabíamos que isso aconteceria. Mas talvez ainda demore por muitos anos.. .

- Mas a criança... - sussurrou Imandra. - Fale-me da criança!

- Quando vi o menino pela última vez, ele estava saudável e crescido, já tinha uma espada de madeira e um elmo de brinquedo. - Kassandra relutava em olhar de novo e deparar com o desastre, pois não duvidava, por algum motivo, que assim seria. - Os presságios desta noite são maléficos para a visão, Imandra; eu lhe suplico que não me peça para olhar de novo.

- Como quiser - concordou a rainha, mas com o rosto contraído em desapontamento. Eu poderia morrer contente se visse o filho de minha filha, mesmo que fosse por sua visão e não pela minha...

- Já chega agora, interveio o jovem Agon, segurando a mão de Imandra. -

Não permitirei que pense em morrer, contente ou não. Deve permanecer comigo, a fim de ensinar nossa filha a se tomar rainha da Cólquida.

Cores faiscando surgiram na superfície da água; clarão de fogo, chamas nos portões de Tróia... e Kassandra lembrou a voz zombeteira de Heitor.

Você só conhece uma canção, Kassandra, fogo e destruição para Tróia; e entoa a mesma coisa em todas as estações, como um menestrel que só conhece uma melodia...

Sei que Tróia vai perecer, mas não agora... Eu lhe suplico que me deixe ver algo mais...

As chamas se desvaneceram e surgiu uma claridade intensa, a luz do sol se refletindo nas muralhas brancas de Tróia... fundindo-se no rosto sombrio e irado de Krises, distorcido nos sulcos familiares do lamento.

Apolo, Senhor do Sol, se vejo tudo isso em Sua luz, por que não me mostra mais nada além do que já sei?

E depois uma claridade ofuscante, como se ela olhasse diretamente para o sol; parecia que Krises tornava-se mais alto e então Kassandra viu a luz ardente do Deus, compreendeu que Ele vagava pelas muralhas de Tróia, terrível

em Sua ira; o arco reluzente retesado, as flechas douradas disparando... ao acaso, entre akaios e troianos, as terríveis flechas de Apolo atingindo o alvo.. .

Kassandra gritou, cobrindo o rosto com as mãos. A visão se toldou e escorreu como água, desapareceu.

- Não sobre nós - balbuciou ela. - Não sobre o seu próprio povo, Senhor do Sol, não a Sua ira, não as flechas de Apoio...

E no mesmo instante todas as pessoas a cercaram, sacudindo-a, tentando levantá-la, levando vinho a seus lábios.

- O que você viu? Conte-nos, Kassandra. .

- Não, não! - gritou ela, fazendo um esforço para impedir que a voz se tornasse estridente. - Temos de partir imediatamente! Temos de voltar a Tróia...

Mas o medo gelou seu coração, quando pensou nas léguas intermináveis da jornada entre a Cólquida e sua terra.

- Devemos partir agora! - gritou ela, segurando as mãos de sua atendente. - Ao raiar do dia ou esta noite mesmo! Temos de ir... não podemos perder um momento sequer...

Ela se ergueu, trôpega, foi para junto de Imandra, ajoelhou-se e suplicou:

- Os Deuses me chamam a Tróia. Eu lhe peço, parenta, que me permita partir...

- Agora? - Imandra, mente e corpo se concentrando nas contrações do nascimento que sacudiam seu corpo, fitou-a sem entender. - Não, eu proíbo. Prometeu que ficaria ao meu lado...

Desesperada, Kassandra compreendeu que suas necessidades não podiam prevalecer sobre as daquela mulher, em meio ao mais imperativo de todos os chamados. Teria de esperar. Removeu as lágrimas que não percebera antes que escorriam por suas faces e concentrou toda a sua atenção em Imandra.

- Viu o filho de minha Andrômaca? - indagou Imandra.

- Não - respondeu Kassandra, suavemente, eliminando de sua mente a visão do corpo mutilado da criança diante das muralhas de Tróia. Vira isso antes... - Esta noite os Deuses não me concederam essa visão. Vi apenas como era terrível a situação da minha cidade.

O mar negro com os navios akaios, as muralhas de Tróia cobertas pelas formigas impetuosas dos exércitos de Akiles... muralhas desmoronando, as chamas se elevando... Não, ainda não... não essa destruição final, ainda não.. . mas pior, as terríveis flechas da ira de Apolo voando contra akaios e troianos.. .

Uma das mulheres iniciou um dos cantos tradicionais de nascimento e depois de um momento de silêncio atordoado... Como elas podem cantar e se comportar como se fosse uma festa comum das mulheres? Mas não viram o sangue e as chamas, não viram as flechas dos Deuses irados... Kassandra juntou-se ao canto, encorajando a alma à espera da criança a vir para o corpo que lhe fora preparado, suplicando à Deusa para soltar o corpo da criança do ventre aprisionador da rainha. As canções se sucederam, e mais tarde algumas sacerdotisas se lançaram à dança da alma passando pelos guardiães do Mundo Anterior. A noite passou lentamente e quando o céu começava a clarear para o nascer do sol a rainha deu à luz, com um grito de triunfo. A parteira principal do palácio, em cujas mãos a criança nascera, suspendeu-a e anunciou:

- É uma filha! Uma filha forte e saudável! Uma pequena rainha para a Cólquida!

As mulheres iniciaram um canto de boas-vindas à criança, levando-a para a janela e suspendendo-a na direção do sol nascente. O corpo pequeno e nu passou de mãos em mãos, a fim de que cada mulher pudesse abraçar e beijar sua nova irmã. A rainha Imandra f finalmente exigiu:

- Deixem-me pegá-la... quero ver se é mesmo forte e saudável.

- Espere só mais uni pouco - disse a parteira. - Precisamos enfaixá-la contra o frio.

Ela envolveu a criança com uni dos xales da rainha. Lavada e agasalhada, a menina foi entregue às mãos de Imandra, que encostou seu rosto na face da filha, ternamente.

- Ah, esperei tanto tempo para segurá-la, criança... É como gerar minha própria neta. Não conheço nenhuma outra mulher que tenha gerado um filho na minha idade e sobrevivido, mas me sinto tão forte e bem quanto na ocasião em que Andrômaca foi posta em meus braços.

Ela estava desenrolando a criança à maneira de todas as mães, contando cada dedo das mãos e dos pés, depois tornando a contar, como se pudesse ter perdido algum, em seguida dando em cada dedo um beijo separado, como uni tributo especial.

- Ela ó linda - murmurou Imandra, sorrindo feliz, depois de mexer e aconchegar a criança. Tirou de seu dedo una anel valioso e estendeu-o para a parteira da corte.- Isto é uni adicional a seus honorários, que minha cantareira

lhe dará.

A parteira balbuciou uni agradecimento, atordoada por tanta generosidade. Imandra acrescentou:

- Vamos dar o nome no primeiro dia auspicioso. Até lá, ela será a minha pequena pérola... já que é tão lisa e rosada quanto as pérolas que os mergulha

dores das ilhas trazem das profundezas do mar. E a chamarei de Pérola, minha pequena princesa pérola.

Todas as mulheres concordaram que era uni nome adorável Seria usado até que a princesa recebesse uni nome formal das sacerdotisas e informalmente por toda a sua vida.

Depois, a rainha Imandra pediu que Kassandra se aproximasse.

- Seus olhos estão vermelhos, Kassandra, e não parece se regozijar conosco. Viu algum - presságio negativo para minha filha e por isso não partilha minha alegria?

Kassandra se encolheu; tinha medo de não conseguir esconder sua angústia dos olhos perspicazes de Imandra.

- Não, parenta. Eu me regozijo sinceramente por sua felicidade. - Ela inclinou-se e beijou a pequena princesa. - E não tenho palavras para expressar como me regozijo por vê-la sã e salva. Aias meus olhos ficam vermelhos quando durmo tão pouco como nesta noite; e... - Kassandra hesitou, a voz trêmula... os Deuses me enviaram um presságio ruim para Tróia. Sou necessária lá. Eu lhe suplico, parenta, dê-me permissão para partir imediatamente, pois preciso voltar à minha terra.

Imandra pareceu consternada, mas a angústia no abrandou sua irritação.

- Com este tempo? O inverno se aproxima e a jornada seria terrível. Esperava que permanecesse aqui, a fim de me ajudar a criar minha filha. Tive pouca sorte no esforço de criar Andrômaca para ser rainha depois de mim. Não tenho muita fé em oráculos ou presságios, mas nada lhe posso negar no dia em que a Deusa me mandou esta filha linda. Contudo, não é a minha permissão que você deve obter, mas sim a da Mãe Serpente. E a Ela, não a mim, que você está consagrada. E deve esperar pelo menos até que eu providencie os presentes que enviarei a Tróia, para Andrômaca e seu filho, para minha parenta Hécuba... e especialmente para você, minha filha querida.

Kassandra sabia que isso seria necessário e dissera a si mesma que a catástrofe que previra não podia ser trio iminente que uni dia ou mesmo urna semana pudesse fazer diferença. As obrigaçó s de parentesco e cortesia não podiam ser ignoradas, ainda mais com alguém que sempre a tratara tão bem, como a rainha Imandra. Mas seu coração se revelava; tudo que a afastava de Tróia lhe parecia agora odioso. Tinha certeza de que Arícia a condenaria por deslealdade, mas não havia outra coisa honraria a fazer. Haviam lhe oferecido seus conhecimentos e amizade, com extrema generosidade; tinha de partir agora, mas não podia deixar a Cólquida furtivamente, como uma ladra.

Assim, ela se preparou com a firmeza necessária e foi pedir permissão à Sacerdotisa da Serpente.

 

Durante a noite e o longo dia seguinte, e—quanto se aprontavam as carroças, animais e tudo o mais que precisaria na viagem para Tróia, Kassandra teve tempo de recuperar um pouco a calina, quanto menos não fosse porque não podia permanecer naquele nível febril de medo e terror e sobreviver. Embora soubesse que os Deuses haviam - na chamado a Tróia para encontrar seu destino, qualquer que fosse, nunca lhe ocorreu que a permanência na Cólquida podia servir para evitá-lo; a história estava repleta de pessoas que se mostravam egoístas e pensavam em evitar seu destino pela negligência de algum dever, logo descobrindo que assim acarretavam, de forma inevitável, o próprio fado que tanto temiam.

A visão podia não significar a catástrofe; podia mesmo significar que Apolo não toleraria a guerra da maneira como estava sendo travada. Talvez Ele obrigasse todos a alguma espécie de trégua, o que seria ótimo.

Assim, ao final, embora lamentasse deixar a Cólquida, a liberdade e honra que ali conhecera, Kassandra partiu três manhãs depois, animada e contente - ou pelo menos não arrependida - por se encontrar outra vez em viagem.

 

A jornada começou com a primeira claridade do dia, as três mulheres viajando numa carroça resistente, puxada por mulas, que a rainha Imandra fornecera. Enquanto a carroça atravessava a cidade, tudo estava escuro, exceto pelo clarão da forja, em que uma corpulenta artífice trabalhava. Adréia e Kara estavam exultantes em voltarem para sua terra, embora falassem com temor dos longos quilômetros da viagem, dos perigos dos bandidos e centauros, dos desfiladeiros na montanha cobertos por neve e dos homens e mulheres selvagens nômades, que podiam pensar que levavam riquezas... ou que achariam que seus suprimentos de alimentos e roupas eram riquezas suficientes.

Kassandra seguiu em silêncio, já sentindo falta das amigas no Templo da Mãe Serpente, tanto as humanas quanto as répteis. Lamentava também deixar Imandra. Era pouco provável que tornassem a se encontrar neste mundo.

Uns poucos flocos de neve caíam quando elas passaram pelos portões de ferro da Cólquida, o céu estava cinzento e ameaçador. A claridade foi aumentando, embora o sol não aparecesse. Kassandra lançou um último olhar para os altos portões da cidade, com um brilho vermelho no amanhecer cinzento.

Não podia haver muitas mulheres de sua idade que já tivessem feito aquela viagem duas vezes, e se ela percorrera aquele caminho duas vezes, por que não poderia fazê-lo três ou mais? Podia haver ainda muitas aventuras à sua frente; e mesmo que voltasse a Tróia, não havia necessidade de sentir as muralhas da cidade a sufocarem-na outra vez, a menos que não houvesse outro jeito.

Na primeira noite, quando ela e suas mulheres se preparavam para dormir, Adréia perguntou:

- Vai dormir com essa coisa na sua cama, princesa?

Kassandra levou a mão à serpente em sua camisa, quente e macia.

- Claro. Sou sua mãe. Choquei, esta serpente com o calor de meu corpo e ela dormiu em meu seio em todas as noites de sua vida. Além do mais, é frio à noite; ela morreria se eu não a mantivesse aquecida.

- Já fiz muita coisa e estou disposta a fazer ainda mais pela filha de sua mãe - declarou Adréia. - Mas não vou partilhar minha cama com uma serpente! Ela não pode dormir junto ao fogo, numa caixa ou vaso?

- Não, não pode - respondeu Kassandra, experimentando um júbilo secreto. - Mas garanto que não vai morder e é uma companheira de cama melhor do que uma criança humana, pois não molhará nem sujará as roupas como um bebê costuma fazer. Tenho certeza de que nunca dormiu com uma criatura mais limpa. - Ela fez uma pausa, afagando a serpente. - Não precisa se preocupar. A serpente ficará junto de mim. Estou certa de que sente mais medo de você do

que você sente dela.

- Não, por favor, princesa Kassandra - murmurou Adréia, suplicante. - Não vou suportar. Não posso dormir na mesma cama que essa serpente.

- Mas como pode falar assim? Afinal, ela é uma criatura da Deusa tanto quanto você, Adréia. Mas você, Kara, não é tão tola assim, não é mesmo?

Kara anunciou, com toda firmeza:

- Também não vou dormir com uma serpente pegajosa. Ela se arrastaria

por cima de mim durante toda a noite.

- Ela nem mesmo morde... e não faria mal algum a você - protestou Kassandra, irritada. - Seus dentes ainda nem cresceram. Vocês duas não passam de tolas.

Kassandra deitou, afagando indolente a cabeça da serpente, que se projetava para fora de sua camisa apenas pela largura de um dedo. E acrescentou:

- Se tivessem o mínimo de bom senso que os Deuses deram a uma galinha e apenas a tocassem, saberiam que ela não é absolutamente pegajosa, não mais do que uma ave; ao contrário, é macia, lisa e quente. - Kassandra estendeu a serpente, enroscada em sua mão, na direção de Adréia, que recuou, soltando um grito esganiçado. Ela se acomodou sobre as almofadas. - Estou cansada e vou dormir, mesmo que vocês duas prefiram bancar as tolas e deitar no chão frio da carroça. Arrumem-se como quiserem, mas apaguem a luz e vamos todas dormir,

em nome da Deusa.. . de qualquer Deusa.

Não demorou muito para que perdessem a Cólquida de vista, atravessando as colinas sinuosas e passando por unia sucessão de pequenas aldeias. Os dias foram se tornando cada vez mais frios e unia neve fina começou a cair, derretendo no mesmo instante.    T

Unia manhã, partindo quase antes do sol nascer, Kassandra ouviu uni grito estranho e insistente, como um lamento.

- Mas é uma criança e, pelo som, hem pequena - disse ela. - O que uma criança esta fazendo sozinha neste ermo, onde pode haver lobos ou até mesmo ursos?

Kassandra desceu da carroça, procurando entre a neve pela origem do som. Depois de algum tempo, avistou uma trouxa de tecido grosseiro na encosta da colina; era tinia menina, pequena e bem-feita, o cordão umbilical ainda não de todo curado, tuna penugem escura cobrindo a cabeça.

- Não toque nela, princesa! - advertiu Adréia. - G apenas tini bebê exposto de uma das aldeias, alguma meretriz que nano pode criar uma criança ou ai,,tinia m ãe que já tem filhas demais.

Kassandra inclinou-se e pegou a criança. Estava gelada, apesar dos agasalhos, mas ainda esperneava vigorosamente. Quando Kassandra a aconchegou contra o peito, o calor acalmou a criança, que parou de chorar, mas se virou procurando manear.

- Calma, calma... - murmurou Kassandra, embalando a trouxa. - Não tenho nada para você, pobre criança, mas estou certa de que poderemos encontrar algum alimento para lhe dar.

- Por que faríamos unia coisa dessas? - protestou Adréia, horrorizada. - Não está pensando em ficar com essa criança, não é mesmo, princesa?

- Vocês se mostram ansiosas para que eu case e tenha um filho... e agora posso ter uma sem quebrar o voto de castidade e sem sofrer o parto. Por que eu não deveria ficar com esta filha que a Deusa une mandou? - A criança sentia-se mais quente agora e relaxou para cochilar contra o peito de Kassandra. - E não devemos esquecer que é uni feito virtuoso salvar a vida de uma criança.

Ela falara a princípio apenas para provocar Adréia, mas agora começou a pensar nas inconveniências e' dificuldades.

- Como vai alimentá-la? - indagou Adréia. - A criança não tem idade suficiente para mastigar comida dura. Teria de arrumar unia ama de leite em algum lugar e levá-la até Tróia.

- Não há necessidade - garantiu Kassandra, pensando. - Vá até aquela aldeia e arrume uma cabra saudável, com bastante leite. Os bebês se dão hem com

leite de cabra.

O rosto de Adréia se contraiu em consternação e Kassandra acrescentou:

- Vá logo. Tal alimento será ótimo para todo mundo. Ou pode ficar com tainha serpente enquanto eu vou...

Assim pressionada, Adréia correu para a aldeia e voltou logo depois com unia jovem cabra preta e branca, forte e saudável, que no mesmo instante se pôs a fazer a maior algazarra com seus gritos. Nenhuma das duas camareiras sabia ordenhar cabras, mas Kassandra ensinou como se fazia. Depois que encheram unia tigela, ela alimentou a criança com leite pingado da ponta de seu dedo. A criança sugou com a maior voracidade e voltou a cair no sono, ainda chupando o dedo de Kassandra, um tardo quente em seus braços. Kassandra tez urna tipóia com um pedaço de pano, a fim ele que a criança ficasse pendurada em seu pescoço enquanto viajava no burro, como as filhas das amazonas. Decidiu, pelo menos por enquanto, chatear a criança de "Mel", porque, limpa, aconchegada e hena alimentada, exalava um cheiro doce, como unia colmeia.

Teria agora alguma coisa com que se ocupar durante a longa viagem para Tróia. E quando lá chegasse, se não lhe conviesse ficar com unia criança para criar, poderia oferecê-la corno um presente à rainha ou a uni dos templos; as meninas eram sempre úteis para as tarefas intermináveis de fiar e tecer que se tinha de realizar em todas as casas.

A princípio, Adréia e Kara fizeram comentários desdenhosos sobre "a sua pirralha de beira da estrada", mas não demorou muito para que passassem a discutir quem teria o privilégio ele levar Mel no colo em longas estiradas na carroça, cantando e contando histórias que ela era muito pequena para compreender. Mel se tornou rechonchuda e linda; elas arrumavam seus cabelos crespos em anéis e faziam-lhe vestidos de suas próprias roupas. Logo Kassandra não mais podia se lembrar de como era a vida sem a criança pendurada em seu pescoço, quando montava o burro ou aconchegada em seu colo quando viajava na carroça. Mel pareceu descobrir depressa quem era sua mãe; as mulheres eram gentis, nuas ela sempre as deixava (até mesmo quando lhe davam doces) pelos braços ele Kassandra. Dormia na traseira da carroça nos trechos mais longos ela viagem, com a serpente ele Kassandra enroscada ao seu lado. Muitas vezes a criança queria a serpente dentro de suas roupas. Quando as mulheres protestaram, Kassandra riu e comentou:

- Ela tem anais juízo do que vocês, pois não sente medo de unia elas criaturas da Deusa. Nasceu para ser unia sacerdotisa e sabe disso.

Os crias se prolongaram ene semanas, enquanto voltavam na longa jornada. Quando alcançaram as Grandes Planícies, mantiveram-se atentas aos bandos de centauros. Kassandra esperava encontrá-los; sentia unia certa atração pelos homens cavalo, embora tanto as camareiras corno a escolta e os cocheiros torces sem para serem poupados de qualquer confronto. Mas não depararam com qualquer centauro, embora uma noite descobrissem um cavalo morto numa vala, com o corpo magro e contorcido do cavaleiro grudado nele, frio e morto; os ossos, quase se projetando pela pele, indicavam que o pobre coitado morrera de fome e frio.

O coração de Kassandra se contraiu em compaixão, embora seu cocheiro e as mulheres dissessem boa viagem e desejassem a todos os centauros um destino semelhante.

Uma noite, quando montavam acampamento, Kassandra avistou à distância um pequeno grupo de cavaleiros: um velho, mirrado e deformado pelos anos na sela, e meia dúzia do que pareciam ser crianças, mas provavelmente eram jovens pouco desenvolvidos e desnutridos. Kassandra não podia saber com certeza, mas teve a impressão de que talvez fosse Quíron. Fez sinal para que se aproximassem e chamou-os em sua própria língua, mas eles não chegaram perto; ficaram circulando lentamente em tomo do acampamento, longe demais para serem vistos com nitidez ou para ouvirem o que diziam.

- É melhor mantermos uma vigia ou eles podem vir para o acampamento enquanto dormimos e matar a todos - sugeriu um cocheiro. - Nunca se pode confiar num centauro.

- Isso não é verdade - protestou Kassandra. - Não nos fariam mal algum. Têm mais medo de nós do que temos deles.

- Deveriam ser todos exterminados - declarou Kara. - Não são civilizados.

dos.

- Eles estão com fome, mais nada - explicou Kassandra. - Sabem que temos alimentos e animais. Só nossa cabra lhes daria a melhor refeição que já fizeram este ano.

Apesar da desaprovação das mulheres e da escolta, ela ainda estava disposta a lhes dar presentes e alimentos; continuou a tentar atraí-los por algum tempo, mas eles se mantiveram a uma distância cautelosa, circulando em seus cavalos, sem chegarem perto do acampamento. Assim, eles se acomodaram para a noite, um ou dois homens mantendo uma vigília permanente. Kassandra ficou acordada, pensando nos centauros lá longe, no escuro, em seus cavalos. Pela manhã, quando partiram, ela deixou alguns pães de centeio e um pouco de carne numa velha panela rachada, que seu grupo já estava mesmo prestes a jogar fora.

Enquanto se afastavam, Kassandra observou os centauros se aproximarem do acampamento; pelo menos teriam alguma comida.. o que poderia adiar a morte pela fome por mais algum tempo. Para Mel, refletiu ela, serão apenas um mito e todos dirão como eles sempre foram maus. Mas também havia sabedoria entre os centauros e com eles desapareceria um modo de vida que nunca mais voltaria. Será que as amazonas também acabariam assim?

 

Depois do quase encontro com os centauros, o percurso pareceu longo e vazio; dia após dia, avançavam penosamente pelas grandes planícies, encontrando poucos ou nenhum viajante, os dias diferenciados apenas pelas fases da lua e a passagem do tempo bom para a neve. Passando pela região em que poderiam esperar um encontro com as tribos das amazonas, não encontraram ninguém a cavalo, nem homens nem mulheres. Será que todas as amazonas haviam perecido ou sido seqüestradas para servir nas aldeias dos homens? Kassandra gostaria de enviar uma mensagem a Pentesiléia, mas não tinha a menor idéia de como alcançá-la, nem mesmo sabia se ela ainda vivia. Tentou vê-la na tigela de adivinhação, mas não foi capaz de encontrá-la.

A neve se acumulava cada vez mais nas estepes e o frio era intenso. Kassandra temia pela vida de suas serpentes com aquele tempo; ela e Mel permaneciam em suas mantas, um braseiro mantendo-as aquecidas, partilhando seu calor com as serpentes. Às vezes a neve era tão profunda que a carroça não podia avançar e ficavam paradas durante um dia inteiro, sem luz, com pouco calor e incapazes de cozinhar qualquer alimento. Precisavam manter a cabra também na carroça, a fim de que não se perdesse nos montes de neve.

A medida que os meses passavam, houve mudanças também em Mel; havia ocasiões em que parecia a Kassandra que se podia observar a menina crescendo do amanhecer ao pôr-do-sol. A impressão era a de que a cada dia a criança tinha algum truque novo ou desenvolvera uma novidade para fascinar a mãe adotiva. Poucos dias depois do encontro com os centauros nasceu seu primeiro dente; e logo em seguida ela estava comendo pão encharcado em leite de cabra ou alimentos amassados dados numa colher. E mais cedo do que Kassandra esperava, ela tinha vários dentes, pegava e mastigava qualquer coisa que podia tirar dos pratos das outras pessoas. Kassandra não mais a punha no chão nas paradas noturnas, pois ela rastejava para longe e sumia, pela diversão de ser chamada e procurada. E veio o momento (felizmente, depois que o pior da neve já passara) em que precisavam vigiá-la o tempo todo, para que não pulasse da carroça, mesmo em movimento; e muito em breve estava correndo por toda parte. Não era uma criança particularmente bonita, refletia Kassandra, mas era forte e vigorosa, nunca ficava doente e quase não se mostrava impaciente, mesmo quando os dentes estavam nascendo.

O tempo foi passando e a pequena caravana chegou a uma região com melhores estradas e passou a encontrar mais viajantes. Parecia que o mundo inteiro seguia para Tróia, com armas e todos os tipos de mercadorias a serem vendidas aos troianos (ou aos akaios, que pareciam agora estar bloqueando todos os caminhos para Tróia, por terra ou por mar). E, finalmente, veio o dia em que divisaram os contornos familiares do monte Ida, passando a viajar ao longo do Escamandro, a caminho de Tróia.

Quando chegaram à vista da cidade, Kassandra teve a impressão de que outra cidade, espalhada, de cabanas, tendas e dos abrigos mais diversos, surgira aos pés das grandes muralhas. Além disso, o mar estava escurecido pelos navios ancorados na enseada. Havia um forte mau cheiro perto do mar, como se as próprias marés fossem fétidas. As ruas daquela nova cidade estavam atravancadas de. carroças e carros de guerra. Quando a caravana de Kassandra se aproximou, soldados akaios, com armaduras que ela lembrava serem dos soldados de Akiles, cercaram-na no mesmo instante, querendo saber o que ela queria ali.

A escolta não conseguiu explicar e Kassandra, que falava um pouco melhor a língua dos akaios, desceu da carroça, com Mel empoleirada em seu ombro, e disse que era filha de Príamo, voltando de uma longa viagem à Cólquida. A informação, que Kassandra não esperava que fosse das mais surpreendentes, passou de boca em boca e logo houve um clamor geral para que o• comandante fosse convocado.

Ela imaginara que veria Akiles, mas quem apareceu foi o jovem um pouco mais alto e mais corpulento, de cabelos escuros, que vira antes em companhia de Akiles. Seu nome era Pátroklo e lhe falou com alguma polidez... pelo menos mais do que ela se lembrava de ter recebido do próprio Akiles.

- Quer dizer que é a filha do velho rei? Espere um pouco; há uma moça na tenda de Agamenon que foi criada no palácio ou pelo menos assim proclama. Ela poderá nos dizer se você é ou não quem diz ser. Espere aqui.

Ele se afastou. Mel estava pesada em seu ombro e Kassandra tratou de pôla no chão, advertindo:

- Fique perto de mim.

Ela não imaginava que algum dos soldados pudesse conscientemente fazer mal a uma criança, exceto talvez no calor da batalha, mas não tinha certeza e não confiava o suficiente naqueles akaios para desejar testar a teoria. Depois de algum tempo, Pátroklo voltou com uma mulher velada, que puxou o véu para o lado e anunciou:

- E verdade, ela é filha de Príamo.

Kassandra ficou chocada e consternada ao descobrir que a moça era Criseide, mas ao mesmo tempo sentiu-se aliviada por sabe-la viva e bem.

- Criseide, minha cara, tenho me preocupado muito com você e sei que seu pai ainda está perturbado.

Criseide se tornara mais alta e ganhara corpo, mas ainda tinha os cabelos surpreendentemente louros que lhe haviam dado o nome. Pátroklo falou com um dos soldados; pareciam discutir a possibilidade de manter Kassandra para resgate ou para trocar por um dos prisioneiros akaios.

- Não podem fazer isso - protestou o chefe da escolta de Kassandra. - Ela é uma sacerdotisa de Apolo e viaja sob a trégua de Apolo.

- É mesmo? - disse Pátroklo. - Talvez então possamos fazer alguma coisa para silenciar aquele sacerdote de Apolo que nunca pára de se queixar a Agamenon ou a qualquer um que esteja disposto a escutá-lo. Nossos sacerdotes insistem em que devemos fazer oferendas a Apolo; talvez devamos consultá-la sobre o sacrifício apropriado.

Ele virou-se para Kassandra e indagou:

- Faria um sacrifício ao Senhor do Sol por nós?

- Lembro muito bem o destino da última sacerdotisa que Agamenon encarregou de fazer sacrifícios por vocês; sei quem e o que seria sacrificado.

Ela pôde ver, por suas expressões, que a resposta não lhes agradara. Criseide fitou-a nos olhos pela primeira vez e disse:

- Não deve falar assim de Agamenon, Kassandra.

- Ele não é meu amigo nem de minha família - respondeu Kassandra. - Não tenho qualquer dever para com ele, como o de hóspede para anfitrião. Falarei a seu respeito como quiser. Por que é tão deferente com seu nome?

- Porque ele é meu senhor e o mais poderoso de todos os akaios. É melhor você não irritá-lo, pois estamos todos sob o seu poder aqui. Kassandra perguntou, num sussurro:

- Devo tentar, quando voltar à cidade, tomar as providências necessárias para o, seu resgate?

Criseide sacudiu a cabeça e respondeu desdenhosa:

- Não pedi isso. Meu pai vem invocando Apolo por meu retorno, mas Apolo não tem o menor poder aqui, em comparação com Agamenon... e prefiro pertencer a um homem em vez de a um Deus.

Foi nesse instante que Kassandra recordou sua terrível visão. Começou a tremer, olhou para Pátroklo e disse:

- Não me fez qualquer descortesia e por isso lhe darei uma advertência honesta. Vi as terríveis flechas de Apolo caindo sobre esta cidade, atingindo tanto os troianos quanto os akaios. - Ela ouviu a própria voz se alteando, sentiu o calor familiar do Senhor do Sol. - Cuidado com a Sua fúria, cuidado com a ira de Apolo! Não provoquem as Suas flechas implacáveis!

Pátroklo pareceu se encolher um pouco, mas franziu o rosto.

- Já tinha ouvido falar que você é profetisa. Pois escute bem, mulher: não tenho medo do seu Apolo troiano, mas é sempre insensato provocar os Deuses dos outros. Estou propenso a deixá-la partir e nossos sacerdotes provavelmente dirão a mesma coisa. Não me agrada guerrear com mulheres. Mas a decisão final caberá a Akiles.

Ele chamou um rapaz que observava a cena e mandou-o chamar o comandante. Uma multidão considerável se reunira em tomo da carroça e olhava para as duas mulheres idosas. Pátroklo fitou-as também e perguntou a Kassandra:

- Quem são essas mulheres?

- São servas de minha mãe e estão me acompanhando. - Também são sacerdotisas de Apolo?

- Não, mas estão sob a minha proteção e a d'Ele.

Kassandra começou a se sentir contrafeita pela maneira como os homens a observavam. Abaixou-se e pegou Mel, que engatinhava em torno de seus pés, mantendo-a no colo. Pátroklo comentou:

- Não há mulheres em quantidade suficiente no acampamento para fazer os trabalhos de mulheres. Não vou brigar com o Apolo troiano por sua causa, mas essas mulheres são minhas legítimas prisioneiras.

Ele foi até a carroça e pegou Kara pelo braço.

- Desça daí, velha. Vai ficar aqui.

Ela desvencilhou- se, furiosa.

- Tire as mãos de mim, seu animal akaio nojento!

Calmamente, Pátroklo levantou o braço e deu-lhe um tapa na boca, não com muita força.

- Não entendi direito o que falou, mas aqui está a sua primeira lição, velha: entre nós, não se fala assim com os homens. E agora entre naquela tenda; vai encontrar algumas roupas para consertar. Se trabalhar direito, podemos alimentá-la.

Kassandra protestou:

- Eu disse que essas mulheres estão sob a minha proteção e a do Senhor do Sol! Deixe-as irem... ou tome cuidado com a ira de Apolo!

- E eu disse a você que não me importo com o seu Apolo troiano. Respeitarei sua trégua ao ponto de não ofender sua profetisa, mas essas mulheres são minhas prisioneiras e não há nada que você possa fazer a respeito.

Kassandra notou que havia algumas mulheres na multidão, nenhuma das quais parecia surpresa com as palavras ou ações de Pátroklo. Kara soltou um grito e começou a correr na direção dos portões de Tróia; Pátroklo gesticulou para que um dos soldados fosse buscá-la e depois disse a Criseide.

- Você fala a língua dela; repita o que eu disse. Ninguém vai maltratá-la se trabalhar direito. E pode também repetir o que eu disse à filha de Príamo. Parece que ela não entendeu direito.

Criseide começou a repetir as palavras de Pátroklo a Kara, mas Kassandra interrompeu-a:

- Diga ao capitão akaio que entendi muito bem o que ele disse; mas essas mulheres são minhas criadas e se encontram sob a proteção do Senhor Apolo, tanto quanto eu. Ele não pode tirá-las de mim.

- Acha que pode me impedir, princesa? - Pátroklo arrancou Adréia da carroça. - Esta aqui é muito velha para se levar para a cama, mas aposto que sabe cozinhar. Akiles está querendo alguém para servir à mulher que mantém em sua tenda. Alguém leve-a imediatamente para Briseida.

Um dos homens indagou:

- E a criança? Ela parece forte e saudável... Vamos ficar com ela também?

- Deuses do Hades, não! - disse Pátroklo, enquanto Kassandra levava a mão à adaga. - Ela ainda molha as roupas; acha que ficaremos aqui em Tróia por tempo suficiente para que ela alcance a idade de ser levada para a cama? Esqueça. - Ele acrescentou para Kassandra: - Deve dar graças por se encontrar sob a proteção de Apolo. Sugiro que entre em sua carroça e saia logo daqui. Mas antes... - Ele fez um sinal para os homens. - Limpem a carroça, os alimentos que podemos aproveitar e outras coisas.

Os homens subiram na carroça no mesmo instante, jogando no chão as provisões e todo o resto. Kassandra nada podia fazer; sabia que não a escutariam. Depois de algum tempo, como ela sabia que seria inevitável, eles chegaram às mantas enroladas e começaram a desdobrá-las no chão; e de repente um soldado pulou para trás, soltando um grito, enquanto a maior das serpentes se desenroscava à sua frente. Ele pegou a lança, mas Kassandra soltou um grito de advertência em sua língua.

- Não! Ela é sagrada para o Senhor do Sol! Não se atreva a tocá-la!

O homem cambaleou para trás, tão pálido quanto a morte; Kassandra passara tanto tempo na Cólquida que esquecera o terror com que as criaturas eram encaradas nas ilhas. Então, ela enfiou a mão por dentro da túnica e estimulou a serpente que ali se encontrava a sair, lentamente. Esta circulou por sua cintura e deslizou ao longo do braço, enquanto os soldados recuavam, um a um, dominados pelo terror supersticioso.

- Olhem ali! Vejam o que ela criou com sua bruxaria!

- Não sejam tolos - disse Pátroklo. - Em nossa terra as sacerdotisas também aprendem a manipular as serpentes; mas não ponham a mão nela. Não as queremos aqui. - Ele virou-se para Kassandra. - Vá logo e leve essas criaturas amaldiçoadas.

Kassandra sabia que não poderia fazer mais nada. Kara e Adréia estavam ajoelhadas, chorando. Ela se aproximou e disse-lhes suavemente:

- Não fiquem assustadas. Façam o que eles mandarem e não os deixem irritados. Juro por Apolo que voltarei para buscá-las.

Ela não sentia um grande amor pelas criadas, mas estavam sob sua proteção e eram estimadas por sua mãe. Agora, Kassandra podia compreender o motivo para a ira de Apolo. Falaria imediatamente com os sacerdotes do Senhor do Sol.

 

Enquanto a carroça atravessava ruidosamente o espaço diante das muralhas de Tróia, Kassandra compreendeu que todas as sentinelas lá em cima deviam ter testemunhado os acontecimentos. O saque de uma carroça não devia ser uma ocorrência extraordinária, caso contrário eles teriam interferido, pelo menos disparado flechas contra o acampamento atraio. Sem dúvida os viajantes mais bem informados, levando mercadorias para Tróia, sabiam o que era melhor e se aproximavam da cidade pelo outro lado.

Kassandra ainda estava com as serpentes destinadas ao Templo do Senhor do Sol. Ela própria se encontrava ilesa e os akaios não haviam ameaçado Mel seriamente. A situação poderia ter sido bem pior. Mas ela concluiu que houvera uma escalada no nível das hostilidades; deveria ter sido mais previdente e se informado com antecedência sobre o progresso da guerra.

Um soldado troiano deteve-a diante dos portões. Ela reconheceu Deífobo, filho de Príamo com uma das mulheres do palácio.

Ele fez uma reverência.

- A rua principal é muito íngreme para a carroça, princesa. Terá de dar a volta. Mas abriremos o portão pequeno, ao lado do grande, para deixá-la entrar. O portão grande não é mais aberto agora, pois tememos uma investida imediata dos akaios; enquanto permanecer fechado, não poderá ser atravessado, a menos que algum Deus, talvez Posêidon, decida derrubá-lo.

Ele arrematou as palavras com um gesto contra o infortúnio.

- Que tal dia esteja bem longe - murmurou Kassandra. - Pode arrumar alguém para levar a carroça ao Templo de Apolo? Trago serpentes para a morada do Senhor do Sol, que não devem ser assustadas nem expostas a um frio excessivo.

- Mandarei um mensageiro à morada do Senhor do Sol - prometeu Deífobo, cortesmente. - Vai direto para o palácio, irmã?

- Vou, sim. Estou ansiosa para ver minha mãe. Ela está bem?

- A rainha Hécuba? Está, sim.. . embora, como todos nós, não esteja mais jovem.

- E nosso pai? Ainda goza de boa saúde? Soube que ele teve alguma doença...

- A notícia chegou à Cólquida? Ele sofreu o ataque do Deus; está coxo, com o rosto contorcido num lado. E agora o príncipe Heitor comanda os exércitos de Tróia.

- Eu já sabia disso. Mas não tive notícias na longa viagem desde a Cólquida e não recebi a Visão; por tudo o que eu sabia, ele podia ter morrido desde então.

- É com satisfação que eu lhe digo que ele envelhece e está bastante bem para sair às muralhas todos os dias e verificar o que está acontecendo. Enquanto Príamo ainda nos liderar, Heitor não se mostrará por demais temerário. Akiles.. . - Delfobo fez um gesto desdenhoso na direção do acampamento atraio            está sempre tentando atrair Heitor para um combate pessoal; mas meu irmão tem bastante juízo para saber que não deve aceitar. Além do mais, todos sabemos que Agamenon cometeu uma traição com a própria filha. Assim, não é provável que eles respeitem as regras do combate singular; é bem possível que dez homens ou mais o ataquem ao mesmo tempo. Não se pode confiar num atraio; dizem que se um deles o beija, é melhor contar os dentes, pois são ladrões sórdidos. Mas vejo que a deixaram passar sã e salva...

- Mas tive contato com seus costumes de ladrões. Só não roubaram as serpentes de Apolo... e tenho certeza de que não foi por reverência ao Deus, mas apenas por medo das serpentes. Mas ficaram com as camareiras de minha mãe, que não eram servidoras de Apolo, mas minhas... ou melhor, de Hécuba.

Deífobo afagou gentilmente o ombro de Kassandra.

- Não se preocupe, irmã; traremos de volta as suas servidoras. Agora, porém, mandarei chamar homens do Templo do Senhor do Sol para descarregarem a carroça e providenciarei uma escolta para acompanhá-la ao palácio. Não é conveniente que uma princesa ande sozinha pela cidade. Melhor ainda, mandarei trazerem uma liteira do palácio. É o que a princesa Andrômaca usa quando desce para cumprimentar Heitor todos os dias, antes de a batalha começar.

Kassandra ainda pensou em protestar, dizendo que era perfeitamente capaz de andar, mas Mel pesava em seus braços e por isso concordou em usar a liteira.

Não demorou muito para que aparecessem os servos com as túnicas distintivas do Templo do Senhor do Sol. Kassandra deu instruções meticulosas sobre as serpentes e prometeu que iria supervisionar pessoalmente os cuidados logo depois de cumprimentar os pais. Depois, Deffobo conduziu-a pelo pequeno portão lateral para a casa da guarda, onde lhe providenciou um refresco, enquanto ela aguardava a liteira que a levaria ao palácio.

Kassandra se desacostumara do sol forte, produzindo um calor intenso, mesmo naquela estação. Logo achou que estava insuportavelmente quente. Além disso, estava preocupada com Kara e Adréia.

Mel engatinhava pelo chão da pequena casa de guarda. Kassandra notou que a criança estava ficando com a túnica úmida, principalmente nos joelhos, mas sentia-se cansada demais para se importar.

Deífobo chamou sua atenção para uma pequena escada aberta na pedra,

subindo por dentro da muralha.

- Não gostaria de dar uma olhada do alto da muralha? De lá, pode-se ver tudo o que acontece no acampamento akaio. O rei deve estar descendo para dar uma olhada... ele vem todos os dias, mais ou menos a esta hora. Já posso ouvir os seus guardas. - Deífobo olhou para Mel. - A criança estará segura aqui. Já é bastante grande para que ninguém a pise.

Ele pegou a lança que estava encostada na parede e prendeu-a no cinto.

- Pronto... não há mais nada aqui com que ela possa se machucar. Vamos embora.

Kassandra seguiu-o pela escada estreita e íngreme; ele virou-se no topo para ajudá-la. Era verdade: lá de cima ela podia divisar todo o acampamento akaioi Deífobo indicou a grande tenda toda ornamentada de Agamenon, a tenda um pouco menor, mas ainda mais ornamentada, que pertencia a Akiles e Pátroklo, os alojamentos de Odisseu, que davam a impressão de que ele deslocara a cabine de um navio para terra.

- E há muitos outros, princesa. Temos uma extensa lista dos navios lá fora que pertencem aos akaios... algum bardo estava fazendo um canto a respeito. A se ouvir, fica-se com a impressão de que todos os heróis das ilhas e do continente vieram ajudar Agamenon e seus homens. Há também uma lista considerável de nossos aliados, mas creio que não está interessada.

- Não estou mesmo - reconheceu Kassandra. - Já ouvi muita coisa sobre os dois lados na Cólquida.

- Cólquida... - repetiu Deífobo, pensativo. - Por falar nisso, a Cólquida não se aliou a qualquer dos lados. Por que seu rei não mandou soldados para Tróia?

- Porque a Cólquida não tem rei. É governada por uma rainha, que estava grávida neste ano que passou. Sua herdeira nasceu pouco antes de minha partida.

- Não existe rei e uma mulher é soberana? Parece uma estranha maneira de governar uma cidade.

Antes que Deífobo tivesse tempo de dizer mais alguma coisa, a conversa foi interrompida pelo barulho de soldados se aproximando. Príamo apareceu no alto da muralha, acompanhado por vários soldados... muitos dos quais Kassandra reconheceu como filhos das mulheres do palácio.

Ainda bem que ela fora alertada pela Visão, caso contrário só poderia reconhecer o pai pelo manto suntuoso. Príamo era um homem saudável e corado, à beira da meia-idade; agora, ela deparava com um velho, a pele muito pálida, o rosto enrugado e descaído num lado, o canto da boca pendendo. Ele falava com a voz pastosa e engrolada quando perguntou a Deífobo:

- O que aconteceu no acampamento akaio esta manhã? Eles interceptaram armas outra vez? Se isso continuar, teremos de derreter nossas espadas velhas para fazer novas. Precisamos de uma caravana de carroças para trazer ferro da Cólquida, mas teríamos de providenciar uma escolta especial ou subornar alguém para deixá-la passar...

Príamo fez uma breve pausa e depois acrescentou:

- Quantas vezes eu já disse que não quero mulheres aqui em cima, a menos que a rainha esteja presente para fazer com que se comportem? Sabe tão bem quanto eu o tipo de mulheres que vêm aqui para ficar olhando os soldados...

Kassandra interrompeu-o:

- A culpa não é de Deífobo, pai. Ele me ofereceu abrigo contra o sol e uma vista da muralha depois que os akaios capturaram minha carroça.. .

Ela não acabou, mas também não precisava; Príamo reconheceu-a e exclamou.

- Então você voltou como um mau presságio, Kassandra! Pensei que estava determinada a passar o resto da guerra na Cólquida... uma mulher a menos para me preocupar, se a cidade cair. Mas sua mãe tem sentido saudade. - Ele se adiantou e beijou-a na testa. - Está querendo dizer que os akaios se atreveram a violar a trégua de Apolo?

Quando pequena, Kassandra achava assustadora a ira de Príamo; agora, ele parecia apenas impertinente, como um menino mimado já muito crescido.

- Não tem importância, pai - disse ela, gentilmente. - Ninguém saiu ferido e o que pertence a Apolo... inclusive eu... está são e salvo. Assim que chegar a liteira, irei ao palácio tranqüilizar minha mãe.

- Está forte e saudável - disse o rei, irritado. - Por que precisa de uma liteira para transportá-la?

A guerra não está indo como ele gostaria, refletiu Kassandra, mas disse recatada:

Tem toda razão, pai.

- A liteira chegou - anunciou Deífobo.

Kassandra viu-a se aproximando da muralha. Desceu no mesmo instante e pegou Mel, desejando haver um meio de lavar e alimentar a criança antes de levá-la a Hécuba; mas não havia a menor possibilidade agora. Ela própria estava desgrenhada da longa viagem e do interlúdio no poeirento acampamento akaio, além de segurar uma criança imunda; mas não havia como remediar tal situação. E por que eu deveria vestir a melhor túnica e lavar as mãos e o rosto para ir à presença de minha mãe? Mas quando estava diante da rainha Hécuba e percebeu a expressão de desaprovação da mãe, concluiu que devia ter feito alguma coisa.

- Kassandra, minha filha querida!

Hécuba adiantou-se para abraçá-la, mas recuou no instante seguinte, com uma careta de consternação.

- Mas o que andou fazendo com sua pessoa, minha querida? Suas roupas estão uma desgraça e seus cabelos...

- Mãe, depois de meu encontro com os akaios esta manhã é uma sorte que tenham me deixado alguma coisa para vestir - respondeu Kassandra, sorrindo. - Infelizmente, os presentes que eu lhe trouxe da rainha Imandra ficaram no acampamento akaio.

Hécuba mostrou-se aflita.

- Eles não.... não a insultaram?

- Ninguém me violentou, se é isso o que está querendo saber - declarou Kassandra, rindo.

- Como pode achar graça de uma coisa assim?

Kassandra beijou-a.

- Como posso agir de outra forma? Todos eles são uns tolos... mas, pensando bem, também há muita tolice em Tróia.

Os olhos de Hécuba fixaram-se na criança nos braços de Kassandra.

Mas o que é isso? Uma criança... e tão pequena... os cabelos... são crespos como os seus nessa idade... Mas o que... quem.. . como?

- Não, mãe, não é minha... ou melhor, não fui eu quem a gerou. É uma enjeitada. - Hécuba permaneceu cética e Kassandra acrescentou, suspirando: - Pensa que seria fácil encontrar um homem que estaria disposto a partilhar minha cama junto com uma serpente... mesmo tão pequena como esta?

Ela enfiou a mão por dentro da túnica e tirou a serpente que sempre estava enroscada ali, durante as suas horas de vigília. Hécuba soltou um grito.

- Ela é minha filha mais do que a criança, pois a choquei pessoalmente de um ovo - explicou Kassandra, rindo outra vez. - Mas qualquer pessoa da minha caravana poderá lhe contar que encontrei Mel numa colina, durante uma tempestade de neve. Fora abandonada pela mãe, que não queria criar uma filha este ano.

Hécuba adiantou-se e examinou atentamente a criança.

- Posso ver agora que ela não é nada parecida com você. - Eu já tinha dito isso.

- Tem razão. Desculpe. . . eu não estava querendo acreditar.

Podia não estar querendo, mas acreditou assim mesmo, pensou Kassandra.

E foi então que a mãe fez a pergunta a que ela vinha se esquivando:

- E onde estão Kara e Adréia?

- Nas tendas de Agamenon e Akiles, mas não porque assim tenham desejado.

Kassandra explicou o que acontecera.

- Então devemos encontrar alguma maneira de resgatá-las... ou trocá-las por prisioneiros akaios - disse Hécuba.

- Acertar uma troca? Por que deveríamos fazer qualquer acordo com os akaios? - indagou uma voz familiar. Era Andrômaca, entrando na sala. - Oh,

Kassandra, minha irmã querida!

Ela correu para abraçar Kassandra, ignorando sua túnica imunda.

- Você voltou! Eu sabia que não era uma traidora para ficar na Cólquida

durante toda a guerra! Mas que criança linda! Ela é sua? Não? Mas que pena! Andrômaca viu a serpente nesse instante e recuou um pouco, acrescentando:

- Ainda continua a se divertir com serpentes! Eu deveria ter me lembrado.

Mel, vendo a serpente, começou a gritar e estender as mãos para pegá-la. Kassandra, rindo, deixou que a menina ajeitasse a serpente em torno de sua cintura. Andrômaca encolheu-se com uma expressão de repulsa, mas era inegável o prazer da criança com a serpente.

- Por que não dá um gatinho para ela, Kassandra? - sugeriu Hécuba. - Seria um animal de estimação muito mais apropriado.

Kassandra riu de novo.

- Ela gosta muito das serpentes. Devia vê-la com a matriarca das serpentes.... a que é tão grande que tem quase a mesma circunferência que Mel. Andrômaca protestou:

- Não tem medo... afinal, as serpentes não têm uma vista das melhores... e essa não poderia engoli-la por acidente?

- Elas se conhecem, pois Mel já a alimentou com pombos e coelhos - explicou Kassandra. - Mas esse não é um assunto apropriado para os seus aposentos, mãe.

Hécuba indagou, rindo:

- A serpente... ou a criança?        

- As duas. - Kassandra tornou a abraçar a mãe. - Deixe-me chamar alguém para dar um banho e trocar as roupas de Mel. Ela ficará mais bonita então... e ainda por cima a criança não comeu nada desde o início da manhã.     

Com a permissão de Hécuba, Kassandra chamou uma serva para levar a criança e a serpente ao Templo do Senhor do Sol.           

- Também terei de me apresentar no templo muito em breve, embora eles me concedessem certamente uma licença para visitar minha família - comentou     

Kassandra. - Mas antes eu gostaria de conhecer os filhos de Helena.       

- Ah, os filhos de Helena... - murmurou Hécuba, secamente. - Os akaios gracejam que Helena está gerando um exército para Tróia. 

- Como eu não sou capaz de fazer para Heitor - balbuciou Andrômaca, os olhos se enchendo de lágrimas. - Mas aquela akaia desova uma cria e no instante            seguinte já está com outra no bucho...           

- Não deve falar assim - protestou Hécuba. - Você apenas teve azar, mais nada. Deu um lindo filho a Heitor e todos no exército conhecem seu nome e o   

admiram. O que mais você quer?          

- Nada... e aqui entre nós, sinto-me contente por ser poupada de gerar a cada um ou dois anos. Falei a Heitor que se quisesse ter cinqüenta filhos como o    

pai, então deveria fazer como o pai. Mas até agora ele só quer partilhar minha cama e até recusou uma das akaias capturadas. Talvez eu não goste tanto de

crianças como Helena, mas ficaria satisfeita se tivesse uma filha antes de me tornar velha demais. E por falar em filhas, Kassandra, já sabia que Creusa deu à sua segunda filha o nome de Kassandra?     

- Não, não sabia - respondeu Kassandra, especulando se a idéia fora       mesmo de Creusa ou de Enéias.         

- E agora, antes que tenha de ir embora, quero que fale de minha mãe - pediu Andrômaca.

Kassandra falou sobre o nascimento da herdeira da Cólquida e Andrômaca suspirou.

- Eu gostaria de poder ir para a Cólquida, a fim de que Heitor se tomasse rei lá... talvez seja possível dar um jeito, depois que terminar esta guerra horrível.

- Imandra quer criar sua pequena princesa para se tornar uma rainha - explicou Kassandra. - E Heitor não ficaria feliz se tivesse de sentar ao pé do trono, como faz o consorte de sua mãe, divertindo-se apenas em caçadas e pescarias com os companheiros.

Andrômaca tornou a suspirar.

- Talvez não... mas acho que ele acabaria se acostumando, como eu também me acostumei a ficar dentro de casa e fiar até os dedos doerem. Mas agora que você voltou, Kassandra, talvez possamos combinar algumas excursões além das muralhas...

- Se os akaios permitirem...

- Ou se cansarem de ficar sentados além das muralhas, jogando pedras nos guardas. É praticamente tudo o que têm feito nos últimos meses... embora uma ou duas vezes tenham tentado escalar as muralhas, usando enormes escadas. Mas Heitor teve a idéia de derramar sobre suas cabeças a sopa fervendo dos guardas e posso lhe garantir que eles desceram duas vezes mais depressa do que haviam subido.

Andrômaca riu, calorosamente, antes de continuar:

- Agora mantemos sempre um enorme caldeirão com alguma coisa fervendo lá em cima... e se não é nada pior do que era, então os atacantes estão com sorte. Na última vez foi óleo fervendo e desde então os akaios não voltaram.

Não pode imaginar os gritos que partiram do acampamento akaio naquela noite. Todos os seus sacerdotes curandeiros ficaram cantando e oferecendo sacrifícios a Apolo até muito depois do amanhecer. Devem ter aprendido que não podem se esgueirar até as muralhas quando pensam que todos os guardas dormem.

- Você não empunha mais armas... mas não perdeu o gosto pela guerra - comentou Kassandra.

- Tenho um filho para proteger - lembrou Andrômaca.

Kassandra lembrou como ela própria se sentira disposta a matar, quando os soldados ameaçaram Mel.

- E eu tenho muitos filhos, mas todos já têm idade para se defenderem sozinhos - ressaltou Hécuba. - E agora me conte, Kassandra: encontrou Pentesiléia ao passar pela terra das amazonas? Ela mandou algum recado para mim?

- Só a vi na ida.

Kassandra relatou o encontro com as amazonas, contou que muitas haviam resolvido se instalar nas aldeias com os homens. E depois, mais transtornada, falou sobre os famintos centauros que vira na volta, informou que não deparara com qualquer sinal das mulheres das tribos.

- Que a Deusa esteja com ela! - exclamou Hécuba, com o maior fervor. - Não tive qualquer aviso de sua morte e acho que eu saberia. Éramos chegadas como se fôssemos gêmeas, embora ela tivesse quatro anos a menos. Não é impossível que algum dia ainda a vejamos em Tróia.

- Que esse dia esteja longe - disse Kassandra -, pois ela me declarou que se a guerra ficasse desesperadamente desfavorável a nós viria a Tróia para encerrar seus dias aqui.

E com um estranho bruxuleio da luz, como se o sol se escondesse por trás de uma nuvem, ela viu Pentesiléia passar a cavalo pelos portões de Tróia... em triunfo ou em derrota? Não podia determinar; a visa o desapareceu no mesmo instante e elas passaram a falar de outras coisas. Kassandra finalmente se levantou e espreguiçou, dizendo:

- Fico sentada aqui, conversando como uma velha, enquanto os deveres me aguardam no Templo do Senhor do Sol. Mas foi muito bom conversar assim, despreocupada...

Ela refletiu que era bastante agradável conversar sobre as coisas típicas das mulheres, como a criação dos filhos. Houvera um tempo em que achava que seria tedioso, mas agora que tinha uma filha sua começava a compreender que tais conversas podiam ser fascinantes. Mas não falar de outra coisa durante a vida inteira...

- Não é todo dia que se volta de uma viagem tão longa - comentou Andrômaca. - Helena vai querer vê-la e mostrar seus filhos... e Creusa vai querer que conheça sua homônima. Ela é mais parecida com Polixena do que com você, com cabelos vermelhos e olhos azuis... e tão bonita como se Afrodite tivesse lhe concedido a dádiva da beleza no berço. Casará com um príncipe, se esta guerra deixar qualquer de nós com vida para pensar em casamento.

- Tenho a impressão de que ninguém jamais chamará minha filha de linda, mas acho que para a mãe até os filhos mais feios são adoráveis - refletiu Kassandra. - De qualquer forma, se os Deuses permitirem, tenciono mandá-la para Pentesiléia, a fim de que seja criada como uma guerreira. Eu ainda gostaria que isso pudesse ter acontecido comigo.

- Não pode estar falando sério, Kassandra! - exclamou Hécuba, adiantando-se para dar um abraço de despedida na filha.

- Não posso? Saiba que está completamente enganada! Se algum dos presentes de Imandra escapou aos akaios, mãe, eu lhe mandarei assim que a carroça for descarregada.

Pegando Mel, ela pediu licença para se retirar. Andrômaca disse que a acompanharia por uma parte do caminho.

- Raramente saio e Heitor não gosta quando deixo o palácio sozinha - comentou ela, visivelmente insatisfeita. - Mas ele não pode me proibir de acompanhar a irmã de meu marido. Costumo sair com Helena, mas ela não apareceu

- hoje. Páris sofreu um pequeno ferimento no último combate... não foi nada mais sério, mas o suficiente para ter uma desculpa para ficar em casa e ser mimado. Se não fosse por isso, tenho certeza de que Helena viria saudar você.

. As duas se separaram logo depois, Andrômaca voltando ao palácio e Kassandra subindo para o Templo do Senhor do Sol.

Entregou Mel aos cuidados de uma governanta e começara a atravessar o pátio para verificar como estavam as serpentes quando deparou com Krises.

Ele parecia muito cansado e consumido; havia novas rugas em seu rosto outrora bonito e fios prateados foscos entre os cabelos louros. Era difícil acreditar que houvera um momento naquele templo em que fora considerado quase tão bonito quanto o próprio Senhor do Sol.

Krises reconheceu-a no mesmo instante e demonstrou uma intensa satisfação.

- Kassandra! Todos sentimos muita saudade de você!

Ele se adiantou para abraçá-la. Kassandra ainda pensou em se esquivar, mas não era de todo desagradável encontrar um rosto familiar e saber que alguém se sentia feliz com a sua volta; por isso, permitiu o abraço, mas se arrependeu no instante seguinte e conseguiu desviar o rosto, de tal forma que o beijo de Krises pousou em seu queixo.

Desvencilhando-se rapidamente, ela se pôs fora do alcance de Krises.

Parece que tudo correu bem para você durante a minha ausência, Krises, pois está com uma ótima aparência.

Por nada neste mundo Kassandra lhe contaria que fora seu rosto num oráculo que a impelira a voltar a Tróia.

Isso não é verdade, Kassandra. Nunca mais terei saúde nem alegria, enquanto os Deuses não decidirem me devolver minha pobre filha desonrada.

- Krises, sua filha já não está há quase três anos no acampamento dos akaios?

- Não me importo que seja uma vida inteira! - declarou Krises, com a maior veemência. - Hei de lamentar, protestar e clamar aos Deuses...

- Pois então clame, mas não espere que Eles o escutem. No fundo, lamenta por seu orgulho ferido e não por Criseide. Eu a encontrei esta manhã no acampamento akaio. Ela parece bem, feliz e contente. Indaguei se deveria tentar sua troca por algum prisioneiro akaio e ela me disse que não devia me intrometer em sua vida. Creio que ela se sente satisfeita por ser a mulher de Agamenon, embora não a sua rainha.

O rosto bonito de Krises se contraiu numa ira violenta.

- Só diz isso para me magoar, Kassandra. Não acredito em uma só palavra.

- Por que eu haveria de querer magoá-lo? É meu amigo e Criseide era como minha filha. Pense na felicidade dela, Krises, e deixe-a onde está. Estou lhe avisando: se insistir nesse assunto, acabará atraindo a ira dos Deuses para a nossa cidade.

O rosto do sacerdote se tornou ainda mais contorcido.

- Acha mesmo que vou acreditar que você está interessado em meu bem? Não se importa comigo... eu, que a amei por tanto tempo...

- Oh, Krises, por favor, não comece a falar sobre isso outra vez - suplicou Kassandra, estendendo as mãos para ele, num gesto de compaixão absolutamente sincero. - Por que tem de pensar que quero o seu mal só porque não o desejo?

- O que faria então se me desejasse o mal? Quando destruiu qualquer bondade que eu podia ter no coração...

- Se tal bondade foi destruída, por que acha que tenho alguma culpa? Um homem não pode levar uma mulher a sério a menos que ela se mostre disposta a ir para a cama com ele? Estou falando em amizade sincera, Krises: não insista nesse assunto.

- Está disposta a ver minha filha desgraçada e deixar que Apolo seja insultado...

- Em nome de todos os Deuses, Krises, o problema não é o que você sente, mas sim o que sua filha sente.

Kassandra falou com exasperação, recordando a expressão orgulhosa de Criseide quando Pátroklo recorrera a seus serviços como intérprete. Não queria que a ira de Krises criasse mais problemas; já havia amargura suficiente e aquilo só poderia agravar a situação. Por isso, ela falou com toda a gentileza de que era capaz:

- Se não acredita em mim, por que não vai ao acampamento dos akaios... eles respeitarão a trégua de Apolo para seu sacerdote. . . e pergunta à sua filha se ela se considera desgraçada? Se Criseide quiser deixar Agamenon, juro que procurarei Príamo e farei tudo o que for possível para que ela seja libertada ou trocada. Mas se Criseide estiver feliz com Agamenon e ele com ela... Pode estar certo de que ela não é prisioneira. Chamaram Criseide para servir como intérprete quando levaram minhas criadas.. . mulheres idosas, que não sentem a menor vontade de permanecer entre os akaios. Prometo uma coisa, Krises: se sua filha quiser voltar, farei tudo o que puder junto ao rei e à rainha para conseguir isso.

- Mas a desgraça... minha filha ser a concubina de Agamenon...

- Será que não percebe que está sendo irracional? Por que é tão vergonhoso que ela seja mulher de Agamenon? E se isso o faz estremecer tanto de vergonha, por que se empenha em me convencer de que não haveria mal algum que eu fosse a sua? É diferente para sua filha do que é para a filha de Pr amo?

Kassandra falava agora em tom ríspido, tendo finalmente perdido a paciência. Krises ficou completamente furioso, o que ela achou até bom, pois significava que ele não tentaria mais agarrá-la.

- Como se atreve a falar de minha filha como se ela fosse igual a você? Não se importa com o que possa acontecer a minha filha! Desde que possa seguir por seu caminho antinatural, não querendo se entregar, humilhando qualquer homem...

- Humilhar? É isso o que você pensa? Krises, há centenas de mulheres neste mundo que ficariam felizes em se entregarem a você. Por que tem de escolher... talvez a única... que não o quer?

- Não foi minha opção desejá-la - respondeu ele, com uma expressão furiosa. - Mas descubro que não sou capaz de desejar nenhuma outra. Você me enfeitiçou e por alguma intenção maligna deseja me humilhar. Eu... - Ele fez uma pausa, engoliu em seco e continuou: - Pensa mesmo, feiticeira, que não tentei romper o encantamento que me lançou?

Por um momento, Kassandra quase sentiu pena de Krises. Mas acabou dizendo:

- Se está sob uma maldição, Krises, foi outra pessoa que a lançou, não eu. Juro pela Mãe Serpente e a Mãe Terra, juro pelo próprio Apolo, a quem ambos cultuamos, que não lhe desejo qualquer mal e não guardo nenhum ressentimento. Estou até disposta a suplicar a qualquer Deus que o liberte de tal encantamento. Não quero poder algum sobre você e abençoarei sua virilidade, desde que a concentre em outra mulher.

- Quer dizer que ainda não tem pena de mim? Mesmo sabendo o que me acarretou, ainda não quer se entregar a mim?

- Já chega, Krises. Sou esperada lá em cima, devo me apresentar a Cárites e às sacerdotisas. Eu lhe desejo boa noite.

Kassandra afastou-se, mas ainda pôde ouvi-lo murmurar:

- Vai se arrepender por isso, Kassandra; mesmo que eu morra, juro que vai se arrepender.

Viajei até a Cólquida e voltei para escapar à amargura desse homem; e quando chego aqui, descubro que a situação não está melhor do que antes; ao contrário, a sua ira teve dois anos para aumentar ainda mais.

Senhor Apolo, é Sua vontade que eu me entregue a esse homem que tanto detesto? E Kassandra acrescentou uma especulação, quase assustada com os próprios pensamentos: Mesmo que Apolo exigisse, eu me entregaria a Krises?

Mas o Deus não exigira. E Krises... ele estava sempre criando problemas; por que ela deveria se envolver?

 

Kassandra permaneceu acordada durante boa parte da noite, repassando mentalmente a discussão com Krises e especulando sobre o que deveria ter dito. Sem dúvida ele acabaria vendo a luz da razão, se ela encontrasse as palavras certas.

Ao foral, ela concluiu que Krises, em seu estado atual, não seria absolutamente capaz de qualquer razão. E algum homem era, quando uma mulher estava envolvida? Páris não exercera a razão em relação a Helena... e já tinha uma esposa virtuosa e bela que lhe dera um filho, justamente o que os homens mais desejavam, por tudo o que Kassandra já ouvira.

Mas não acontecia apenas com os homens; as mulheres também pareciam perder toda a razão em suas relações com os homens. Até mesmo a rainha Imandra, que era forte e independente, e Hécuba, que fora criada como uma amazona, haviam demonstrado pouca razão ao se envolverem com seus homens. E Briseida e Criseide, pensou Kassandra, quase com desprezo, elas são como cachorrinhos, virando de barriga para cima e sacudindo as patas no ar, se o dono lhes faz um afago.

Mas o problema talvez não seja por que elas se comportam assim, mas sim por que eu não tenho o menor desejo de fazê-lo.

Ela mudou de posição na cama, a fim de dar espaço à serpente, que se enroscava lentamente em torno de seu braço. Era agradável dormir numa cama, em vez de no chão duro da carroça; e com esse último pensamento, ela lembrou a si mesma de verificar se algum dos presentes de Imandra escapara aos soldados "os. O medo das serpentes talvez os tivesse impedido de explorar as profundezas da carroça.

Kassandra despertou ao nascer do sol. Mel brincava ao pé da cama, deixando a serpente circular pela cintura e deslizar pelos braços. Deu um banho na criança e providenciou-lhe alguma comida, depois subiu ao topo do templo, onde os primeiros raios do sol atingiriam as alturas de Tróia. Pensou que deveria subir hoje até o Templo da Donzela e cumprimentar as amigas entre as sacerdotisas de lá, talvez apresentar um agradecimento por seu retorno a Tróia, sã e salva. Mas antes que tivesse a oportunidade, notou a presença de Krises entre os sacerdotes reunidos para saudar o nascer do sol.

Ele parecia ainda pior do que na noite anterior, as feições inchadas e os olhos avermelhados, como se não tivesse dormido. Pobre coitado, pensou Kassandra. Eu não deveria zombar nem esperar que ele se mostre racional, quando sofre tanto. Talvez não haja sentido em tanto sofrimento, mas quando isso já impediu que alguém sofresse?

Cárites estava falando com ele; Kassandra viu-a apontar para alguns sacerdotes e ouviu-a dizer:

Você, você e você... não, você não, pois não podemos dispensá-lo

agora.

Quando Kassandra se aproximou, Cárites chamou-a e disse:

- Krises me contou que você viu sua filha no acampamento argivo ontem, quando passou por lá. Tem certeza de que era mesmo Criseide? Já se passaram alguns anos e ela era uma moça em processo de crescimento quando... nos deixou.

- Quando ela nos foi roubada cruelmente - corrigiu Krises, com a maior veemência.

- Tenho certeza que era - declarou Kassandra. - Mesmo que eu não a tivesse reconhecido, ela me reconheceu e me tratou pelo nome, advertiu-me de que não deveria irritar Agamenon.

- E contou isso a seu pai?

- Contei, mas o relato deixou-o furioso. Ele até me acusou de inventar, só para atormentá-lo.

Krises interveio, soturno:

- Sabe que ela sempre guardou um ressentimento contra mim.

- Se eu quisesse inventar uma história para irritar Krises, poderia encontrar algo muito melhor. Tudo aconteceu exatamente como eu falei.

- Pois então é melhor você ir com eles ao acampamento akaio – sugeriu Cárites. - Krises está determinado a descer e exigir, em nome de Apolo, que os akaios devolvam sua filha. Eles também têm sacerdotes de Apolo e respeitam sua trégua.

Como era justamente o que sugerira que ele fizesse, Kassandra não ficou surpresa, exceto talvez por Krises já não haver tomado essa providência meses antes. Mas ela imaginou que antes ele esgotara todos os outros recursos, quaisquer que fossem.

Havia cerca de três dúzias de pessoas nas túnicas cerimoniais do Senhor do Sol quando finalmente começaram a descer pelas ruas compridas e chegaram aos grandes portões de Tróia. A guarda não queria abrir, mas Krises explicou que queriam parlamentar com Agamenon para acertar a devolução de uma prisioneira, em nome de Apolo. O comandante da guarda resolveu então enviar um arauto para pedir uma reunião. Ficaram esperando ao sol quente por quase uma hora, até que avistaram um homem alto e forte, com cabelos pretos bem crespos e barba encaracolada aproximar-se em passadas compridas e decididas.

Kassandra já estivera antes tão perto de Agamenon e, como sempre, uma onda de horror e repulsa percorreu seu corpo. Ficou olhando para o chão e não levantou o rosto, com a esperança de que ele não a notasse. E Agamenon não a percebeu. Fitou Krises com uma expressão beligerante e indagou:

- O que você quer? Não sou um sacerdote de Apolo; se deseja combinar uma trégua para uma festa ou qualquer outra coisa assim, deve falar com meus sacerdotes e não comigo.

Krises deu um passo à frente. Era mais alto do que Agamenon, a cabeça imponente mesmo com a perda do lustro dos cabelos louros, as feições ainda impressivas. A voz, profunda e vigorosa, ressoou imponente:

- Se você é Agamenon de Micenas, então é com você mesmo que quero falar. Sou Krises, sacerdote de Apolo. Está mantendo minha filha como prisioneira em seu acampamento; ela foi levada há três anos, no plantio da primavera.

- E mesmo? E qual dos meus homens está com essa mulher?

- O nome dela é Criseide e creio que é você quem a mantém prisioneira, Agamenon. Em nome de Apolo, eu me declaro pronto a pagar o resgate que for apropriado e costumeiro; e se não deseja devolve-la, então exijo que me pague o preço por uma noiva e que testemunhemos o casamento com a formalidade necessária.

- Então é isso, hem? Eu me perguntava o que estaria querendo, todo vestido para uma cerimônia. Pois agora me escute, Krises, Sacerdote de Apolo: tenciono mantê-la para mim mesmo e não posso casar, porque já tenho uma esposa.

Agamenon soltou um enorme urro, que passava por uma risada sarcástica.

- Assim, sugiro que você e seu bando voltem logo para Tróia, antes que eu decida que estamos precisando de mais algumas mulheres no acampamento. - Ele correu os olhos pelas fileiras de sacerdotes e sacerdotisas. - A maioria de suas mulheres parece velha demais para a cama; parece que peguei a única bonita. Mas bem que estamos precisando de algumas cozinheiras e lavadeiras.

- Insiste então, deliberadamente, no insulto a Apolo, Senhor do Sol? - indagou Krises. - Continua a ofender seu Sumo Sacerdote?

Agamenon falou bem devagar, como se estivesse tratando com uma criança ou um idiota:

- Saiba, sacerdote, que eu cultuo o Tonante do Céu, Zeus, e Aquele Que Faz a Terra Tremer, Possêidon, Senhor dos Cavalos. Não vou interferir com coisas de Apolo; Ele não é meu Deus. Mas, da mesma forma, é melhor seu Apolo não interferir comigo. A mulher em minha tenda me pertence e não vou devolvê-la por um resgate nem pagar um preço de noiva. Isso é tudo o que tenho a lhe dizer. E, agora, trate de ir embora.

Controlando a raiva, Krises disse:

- Agamenon, eu lanço uma maldição sobre você. Violou as leis sagradas e nenhum filho seu honrará sua sepultura. E se teme a minha maldição, então tema

a de Apolo, pois é a maldição d'Ele que lanço contra seu povo. Você não poderá escapar. As flechas de Apolo cairão sobre todos vocês.

- Pode falar o que bem quiser - respondeu Agamenon. - Já ouvi muitas vezes antes a ira de meus inimigos e são bem-vindas em meu coração. Quanto ao seu Senhor do Sol, eu desafio Sua maldição; que Ele faça o pior do que for capaz. E agora saiam do meu acampamento ou mandarei que meus arqueiros os usem como alvos em seus exercícios.

- Seja como quiser, meu rei - disse Krises. - Saberá muito em breve que não se pode desdenhar a maldição de Apolo. Um dos arqueiros indagou:

- Devo atirar no troiano insolente, senhor Agamenon?

- Claro que não - respondeu Agamenon. - Ele é um sacerdote, não um guerreiro. Não mato mulheres, meninos, eunucos, cabras nem sacerdotes.

Os risos dos arqueiros roubaram uma grande parte da dignidade da saída de Krises, mas ele se afastou com passos firmes, sem olhar para trás; um a um, os sacerdotes e sacerdotisas seguiram-no. Kassandra manteve os olhos abaixados, 'mas pôde sentir, por algum motivo, os olhos de Agamenon fixados nela. Talvez fosse por ser ela a mais jovem de todas, as outras sacerdotisas já tendo passado dos cinqüenta anos; mas talvez houvesse algum outro motivo. Ela sabia apenas que não queria fitar os olhos de Agamenon.

E Criseide foi para esse homem... por sua livre e espontânea vontade!

Subiram pela cidade até a sacada do Templo do Senhor do Sol, de onde se podia descortinar as planícies diante de Tróia. Krises desapareceu por um instante; quando voltou, usava a máscara dourada do Deus e empunhava o arco ritual. Subitamente, parecia que ele se tornava mais alto, mais imponente; os olhos de todos os akaios lá embaixo se levantaram em sua direção. Krises ergueu o arco e gritou:

- Cuidado, vocês que ofenderam Meu sacerdote!

Kassandra compreendeu quem estava por trás da máscara; a voz, forte e retumbante, mais do que humana, ressoou por toda Tróia e alcançou os cantos mais remotos do acampamento akaio lá embaixo.

- Esta é a Minha cidade, akaios! Eu os advirto solenemente! Minha maldição e Minhas fechas vão se abater sobre todos vocês, atingir até o último homem! Se. não devolverem a Meu sacerdote a que foi arrebatada de forma ilegítimo, tomem cuidado com Minha maldição e Minhas flechas! Estou avisando, chefes ímpios!

Até mesmo Kassandra, que já conhecia a voz do Deus, ficou paralisada pelo terror. Não podia mexer um só músculo, não conseguia falar.

Rapidamente, a forma que era e não era Krises disparou três flechas pelo ar. Uma caiu em cima da tenda de Agamenon, outra diante da tenda de Akiles e a terceira bem no centro do acampamento. Kassandra observava, sentindo uma estranha imobilidade, como se já tivesse testemunhado tudo aquilo antes. Era como se estivesse muito longe e uma grossa muralha de vidro ou o peso de um oceano ondulasse à sua frente, isolando-a do que via e ouvia.

A maldição de Apolo! Veio se abater sobre nós, ó Senhor do Sol!

Seria uma maldição apenas contra os akaios?

Mas se os akaios foram amaldiçoados, de alguma forma também sofreremos por isso; estamos à mercê deles. E me pergunto se Príamo compreende. Se ele não percebe, Heitor com toda certeza já sabe.

E depois, lentamente, ela passou a perceber o que acontecia ao redor: o clarão do sol a pino, a luz refletida nas muralhas da cidade e na planície lá embaixo, os risos e escárnio dos akaios. Pareciam pensar que se tratava de uma encenação, um mero gesto; nunca lhes ocorreu que talvez o próprio Apolo estivesse amaldiçoando sua gente e seu exército.

Ou será que eu sonhei?

Qualquer que fosse a verdade, havia coisas a serem feitas. Ela foi para o templo e se ocupou com a tarefa de receber e registrar as oferendas. Depois de uma hora a contar jarros de óleo e pães de trigo, teve a sensação de que nunca se ausentara de Tróia.

Trabalhou até o por do sol. Quando acabou de registrar as oferendas, foi cuidar dás serpentes e verificar que lugares lhes haviam sido reservados. Depois, foi procurar Cárites, a mais antiga das sacerdotisas. Disse-lhe que não podia cuidar sozinha de tantas serpentes, se tivesse de assumir outras tarefas; pediu alguém que pudesse preparar para ajudá-la e aprender tudo sobre as serpentes. Ç cites indagou se ela aceitaria Filida.

- Claro - respondeu Kassandra. - Ela sempre foi minha amiga.

Cárites mandou chamar Filida e perguntou-lhe se concordava com a função.

- Eu lhe ensinarei tudo o que aprendi na Cólquida - prometeu Kassandra. Filida pareceu satisfeita.

- Claro que aceito; e se trabalharmos juntas, nossos filhos poderão crescer como irmão e irmã. Fui eu quem banhou sua menina ontem e lhe deu de comer. Ela é muito esperta e algum dia será bonita também.

Kassandra desconfiou que Filida só disse isso para agradá-la, mas não se sentiu insatisfeita. Depois que tudo foi acertado, elas saíram para observar de novo o acampamento akaio. A claridade intensa e o calor do dia haviam se desvanecido, soprava uma brisa ligeira; podiam ver a poeira se levantar no acampamento e os movimentos de muitos vultos, alguns vestindo as túnicas brancas dos servidores de Apolo.

- Então eles não estão tão indiferentes quanto pareciam - comentou Filida.

Ela não participara da delegação que fora ao acampamento, mas soubera de tudo o que acontecera. Depois de um momento, Filida acrescentou:

- Eles estão promovendo rituais para purificar o acampamento e apaziguar o Senhor do Sol.

- E melhor mesmo, já que desdenharam Sua maldição - disse Kassandra. - Acho que não foram os soldados que desdenharam a maldição, mas apenas o próprio Agamenon... e já sabemos que ele é um homem ímpio.

- O que eles estão fazendo agora?

- Armando fogueiras para purificar o solo - informou Filida.

No instante seguinte ela se encolheu toda, com o enorme clamor de desespero dos akaios. Eles tiraram um corpo de uma das tendas e o jogaram nas chapas. Estava muito longe para se entender o que diziam, mas elas já tinham ouvi do antes gritos assim. Filida balbuciou:

- A praga está no acampamento!

E Kassandra murmurou, horrorizada:

 

- Então é essa a maldição do Senhor do Sol!

 

Todas as manhãs e à noite, durante dez dias, elas observaram os corpos das vítimas da praga no acampamento serem queimados; depois do terceiro dia, os corpos eram arrastados por uma longa distância pela praia e queimados ali, por medo de contágio. Kassandra, que observara a imundície e desordem no acampamento, não se surpreendeu que houvesse a doença, embora não desdenhasse a maldição do Senhor do Sol e soubesse que os akaios nela acreditavam. Ao amanhecer, com o sol a pino e outra vez ao pôr-do-sol, Krises desfilava pelas ameias de Tróia, usando a máscara de Apolo e empunhando seu arco; sempre que ele aparecia, havia gritos e súplicas de misericórdia no acampamento akaio.

Príamo determinou que todos os soldados e cidadãos troianos deviam comparecer toda manhã à presença dos sacerdotes de Apolo e que qualquer pessoa que apresentasse sinais de doença devia ficar confinada sozinha em sua casa. Isso isolou algumas pessoas com gripes e um ou outro homem que havia sido indiscriminado na exploração do distrito das mulheres. Ele fechou dois ou três bordéis e também um mercado imundo, mas não havia sinais, pelo menos até agora, de praga dentro das muralhas de Tróia. Declarou um feriado para orações e sacrifícios a Apolo, implorando que a cidade continuasse a ser poupada da praga. Mas quando Krises solicitou uma audiência e pediu a Príamo para exigir a devolução de Criseide, o rei respondeu bruscamente:

- Você chamou um Deus para o seu lado; se isso não é suficiente, o que mais você acha que um mortal, mesmo que seja o rei de Tróia, pode fazer?

- Está querendo dizer que nada fará para me ajudar?

- Por que eu deveria me importar com o que acontece com sua desventurada filha? Eu poderia ter o sentimento de um outro pai, se você tivesse me pedido há três anos, assim que ela foi levada. Mas não me fez qualquer apelo até agora. Não posso acreditar que esteja precisando tanto da minha ajuda... exceto, talvez, para se gabar de que o rei de Tróia é seu aliado.

Krises declarou, com veemência:

- Se atraí a maldição de Apolo para o acampamento dos argivos, posso também invocá-la para Tróia...

Príamo levantou a mão para impedi-lo de continuar:

- Não! Não diga mais nada! Levante um dedo ou fale uma sílaba para lançar uma maldição sobre Tróia e, em nome de Apolo, juro que pessoalmente o lançarei no acampamento akaio da mais alta muralha da cidade!

- Como Sua Majestade achar melhor - disse Krises, fazendo uma reverência profunda e se retirando.

Príamo franziu o rosto, irritado.

- Esse homem é orgulhoso demais! Ouviram o que ele disse... ameaçou invocar a praga para a própria Tróia! - Ele olhou ao redor, fitando os conselheiros, na sala do trono. - Caso ele solicite outra audiência comigo, providenciem para que eu não tenha tempo para recebê-lo!

Kassandra não ficou insatisfeita com a entrevista. Ainda tinha um medo antigo no fundo de sua mente: se Krises, como ameaçara uma ocasião, procurasse Príamo e a pedisse em casamento, o pai podia sentir a maior satisfação em entregá-la, mesmo contra a sua vontade, ao casamento - qualquer casamento - e não encontraria motivo para recusar um sacerdote de Apoio aparentemente respeitável. Agora que ela sabia que Príamo considerava Krises quase tão repulsivo quanto lhe parecia, Kassandra pôde deixar escapar um suspiro de alívio.

 

Por dez dias todos observaram a praga devastar o acampamento akaio. No décimo dia os soldados pegaram um magnífico cavalo branco e o sacrificaram a Apolo. Algum tempo depois, um mensageiro com o cajado da serpente de Apolo subiu à cidade e solicitou uma trégua, a fim de falar com os sacerdotes de Apolo.

- Uma delegação irá ao acampamento - informaram-lhe.

Krises, como não podia deixar de ser, foi um dos primeiros. Kassandra não perguntou se podia integrar o grupo; simplesmente pôs a túnica cerimonial e foi

junto.

Agamenon, Akiles e vários outros líderes akaios, entre os quais Kassandra reconheceu Odisseu e Pátroklo, postavam-se por trás dos sacerdotes de Apolo. O sumo sacerdote entre os akaios, um homem esguio e forte que parecia um

atleta, aproximou-se de Krises.

- Parece que o Imortal está zangado com a gente, no final das contas - disse ele. - Mas eu lhe pergunto, colega, está disposto a aceitar alguns presentes nossos?

- Quero minha filha de volta ou devidamente casada com o homem que a levou, para quem ela foi como uma donzela inocente...

Agamenon soltou um grunhido, mas não disse nada; ao que parecia, concordara em deixar que os sacerdotes falassem por ele.

- Não se pode esperar que o rei de Micenas concorde em casar com uma prisioneira de guerra, quando ele já tem uma esposa - protestou o sacerdote akaio.

- Se ele não vai casar, então eu a quero de volta e com um dote apropriado, já que minha filha não é mais virgem e não poderei lhe encontrar um marido sem um dote.

Os sacerdotes akaios conferenciaram por um momento e depois indagaram:

- E se lhe oferecêssemos o direito de escolher entre todas as mulheres de todas as cidades que saqueamos pela região, donzela por donzela?

- Pensam que sou um devasso? - indagou Krises, a voz tremendo de indignação. - Sou um pai desconsolado e peço a Apolo que repare o erro de que fui vítima.

- Parece que não há alternativa, Agamenon - disse o sacerdote argivo. - Devemos agir com justiça e devolver a filha do homem. Agamenon empertigou-se e cruzou os braços. - Nunca! A mulher me pertence!

- Não é bem assim - protestou o sacerdote. - Você a capturou quando deveria haver uma trégua, no plantio da primavera. Por essa impiedade, a Mãe Terra está contrariada.

- Nenhuma mulher, nem mesmo uma Deusa, me diz o que posso ou não fazer!

Kassandra percebeu um tremor visível entre as fileiras de homens; Odisseu

em particular parecia insatisfeito. E foi ele quem interveio nesse momento:

- Os Imortais detestam um orgulho assim, que só Eles podem exibir, Agamenon. Devolva a moça e pague ao pai o preço legítimo.

- Se eu renunciar à moça... - Pela primeira vez, Agamenon hesitou, notando que os outros chefes o fitavam com raiva. - Se eu renunciar à moça, por que todos os outros deveriam manter os prêmios que conquistaram e rirem de mim? Se eu for obrigado a renunciar à minha, Akiles, você também abrirá mão da mulher que se encontra em sua tenda?

Akiles assumiu uma expressão beligerante.

- Não fui bastante tolo para roubar a minha de um sacerdote de Apolo e nos atrair uma maldição, Agamenon. A mulher que está comigo me procurou por me preferir a qualquer dos filhos de Príamo em Tróia. E como vim a Tróia para agradá-lo, Agamenon, quando por direito deveria estar lutando ao lado de meus parentes troianos, não vejo por que minha mulher deveria entrar nessa história. É uma boa moça; veio a mim por sua livre e espontânea vontade, é eficiente em todos os trabalhos de mulheres. Pensei até em levá-la para casa comigo... caso eu volte desta guerra... e torná-la minha esposa, pois ao contrário de você não precisei casar com uma velha megera que era rainha só para obter o domínio de sua cidade.

Agamenon rangeu os dentes; Kassandra podia ver que ele fazia o maior esforço para manter o controle.

- Devo lembrar a você que minha rainha é irmã gêmea da Helena que foi considerada bela o bastante para que sua perda desencadeasse esta guerra. E se ela também era rainha por legítimo direito de uma grande cidade, isso fez com que valesse menos? Ela me deu filhos extraordinários e isso já é suficiente em seu favor. E já chega de falar a seu respeito.

- Tem razão, já chega - disse o sumo sacerdote. - Agamenon, você jurou que faria qualquer coisa que fosse necessária para nos salvar da praga. Por isso, decidimos que a moça Criseide deveria ser devolvida ao pai. Todos nós contribuiremos para o dote que ele pede.

Os punhos de Agamenon estavam cerrados e os maxilares tão comprimidos que Kassandra pensou que seus dentes iam quebrar.

- É o que todos querem, apesar do que fiz por vocês? - indagou ele. - Teriam uma boa lição se eu dissesse "Arrumem outro para comandar seus exércitos". Você, Menelau... fica do lado dessa gente para me roubar?

O homem franzino, de cabelos castanhos, com uma pequena barba crespa, deslocou o peso do corpo de um pé para outro, apreensivo.

- Eu preferia não sofrer a ira de Apolo por sua impiedade... ou seu azar... ao levar uma moça que deveria ser deixada em paz.

- Como eu poderia saber que seu pai era um sacerdote? E acha que me importaria se soubesse? Pensa que aproveitamos nosso tempo juntos para falar sobre seu pai?

A sacerdotisa por trás de Kassandra comprimiu os lábios para reprimir uma risadinha e murmurou:

- E com certeza também não aproveitam o tempo para aprender boas maneiras.

Foi a vez de Kassandra comprimir os lábios para não rir. A cabeça de Agamenon se virou na direção das mulheres; ele parecia mais furioso do que nunca.

- Está bem. Já que todos se unem para me privar do que é meu, podem levar a moça e sejam amaldiçoados. Mas quero uma retribuição, ficando com a mulher que está na tenda de Akiles.

Akiles se adiantou do meio dos akaios e gritou:

- Não! Só a levará por cima de meu cadáver!

- Creio que se pode dar um jeito nisso, se você insistir - sugeriu Agamenon, suavemente. - Pátroklo, não consegue controlar esse menino selvagem? Ele mal tem idade para se intrometer nas coisas dos homens. Para que você precisa de uma mulher na sua idade, Akiles? Eu lhe mandarei a caixa de brinquedos que reuni para meu filho.

Os olhos de Kassandra se estreitaram. Agamenon não deveria dizer isso; Akiles é jovem, mas não tanto para ser escarnecido assim sem reagir. O sumo sacerdote dos troianos disse:

- Krises, você trouxe um manto para Criseide? Com a praga aqui, ela não pode levar qualquer dos trajes que usava no acampamento para a nossa cidade. O que ela estiver usando terá de ser queimado antes da entrada em Tróia e seus cabelos serão cortados.

Krises apresentou uma túnica comprida e um manto.

- Podem queimar todas as roupas que esses homens lhe deram, mas por que cortar também seus cabelos?

- Sinto muito, mas é a única maneira de ter certeza de que ela não levará a praga para a cidade.

Agamenon voltou de sua tenda com Criseide e Krises adiantou-se para abraçá-la. Mas o sumo sacerdote deteve-o.

- Deixe primeiro que as sacerdotisas a dispam e queimem suas roupas.

Cárites e Kassandra aproximaram-se de Criseide, as outras mulheres fazendo um círculo para esconde-la, enquanto seus trajes akaios eram tirados e jogados no chão. Com muita dignidade, Criseide ignorou-as. Mas quando Cárites desmanchou seus cabelos e pegou uma faca para cortá-los, ela recuou.

- Não! Suportei tudo o mais, mas não permitirei que escarneçam de mim com os cabelos cortados! Não sinto a menor necessidade de purificação ou penitência!

Cárites insistiu, gentilmente:

- E apenas por medo da praga; você passará de uma cidade infectada para outra que se mantém limpa até agora.

- Não tenho a praga e nunca cheguei perto de qualquer pessoa contaminada - protestou Criseide, chorando. - Não cortem meus cabelos! - Lamento, mas não há outro jeito.

Cárites pegou os cabelos compridos e cortou-os na altura da nuca. Criseide chorava, desconsolada.

- Oh, veja o que você fez! Ficarei ridícula, todo mundo rindo e escarnecendo! Sempre me odiou, Kassandra! E agora faz isso comigo...

- Não diga bobagens - disse Cárites, bruscamente. - Fizemos apenas o que os sacerdotes ordenaram, nada mais. Não culpe Kassandra. - Ela ajeitou a túnica que Krises trouxera nos ombros de Criseide.- Não tenho alfinete. Terá de segurá-la por cima dos seios.

- Não - murmurou Criseide, soturna. - Se não tem alfinete, pode ficar aberta que não me importo.

Cárites deu de ombros.

- Se quer que todos os soldados akaios fiquem olhando para os seus seios à mostra, não tenho nada com isso. Mas isso pode afligir seu pai. Por ele, segure a túnica, a fim de que seu recato seja preservado.

Ela fez sinal para que as mulheres abrissem uma passagem, a fim de que Criseide pudesse se aproximar do pai. Agamenon deu um passo em sua direção, mas Odisseu o conteve, falando-lhe em voz baixa.

 

No dia seguinte ao retorno de Criseide a Tróia, Kassandra foi chamada para jantar com os pais no palácio; calculou que Príamo queria saber como fora a negociação. Além do rei e da rainha, lá estavam Creusa e Enéias, Heitor e Andrômaca, com seu filho pequeno, e Helena e Páris, com os quatro filhos. Nikos, um lindo menino, era um ano mais velho do que o filho de Heitor; os gêmeos não paravam de se movimentar de um lado para outro, mas isso não chegava a ser um problema maior, pois cada um tinha uma babá para mantê-lo sob um relativo controle.

Kassandra achou um tanto estranho que os anos da guerra quase não tivessem acarretado mudanças no salão de refeições do palácio. Os quadros nas paredes estavam um pouco desbotados e rachados; ela calculou que os servidores do palácio que podiam repintá-los se encontravam ocupados com outros deveres, se não mesmo no exército. Havia muitos tipos de alimentos, inclusive peixe fresco, embora a quantidade não fosse das maiores. Andrômaca lhe dissera que os akaios haviam sujado tanto a enseada que os melhores peixes se mantinham à distância, em mar aberto; e ninguém podia ser dispensado para sair em barcos pesqueiros através do bloqueio dos soldados akaios.

- E quando um barco consegue sair - acrescentou ela -, os akaios o arrastam para a praia quando volta e se apoderam dos melhores peixes.

Mas havia uma abundância de frutas, pão de centeio e mel; e vinho das uvas colhidas nas videiras que cresciam abundantes por toda a cidade, como as ervas daninhas. Príamo insistiu que Kassandra repetisse cada palavra trocada nas negociações. Ele sacudiu a cabeça, furioso, ao saber da arrogância de Agamenon e comentou:

- Não tenho mais vítimas da praga no acampamento argivo; e que os Deuses concedam que não haja nenhuma em nossa cidade. Então a moça está de volta entre nós; o que o pai fará com ela agora?

- Não sei - respondeu Kassandra. - Não lhe perguntei.

E ela pensou: E nem tenho a menor intenção de perguntar e também não me importo. Depois, acrescentou:

- Calculo que ele arrumará um marido para a filha, com o dote que recebeu dos akaios. Eles pareciam muito ansiosos em apaziguar o Senhor do Sol. E quem pode culpá-los por isso, depois da praga?

- Nenhum dos líderes akaios morreu na praga?

- Nenhum, ao que eu saiba - respondeu Enéias. - Posso garantir que nem Agamenon nem Akiles sofreram alguma coisa... mas os dois quase lutaram no momento em que Criseide deixou o acampamento. Ao final, Agamenon, voltou furioso para sua tenda, enquanto Akiles ia para a sua. Parece que houve uma discussão...

- E houve mesmo - confirmou Kassandra.

Ela relatou que Agamenon exigira que a perda de Criseide fosse compensada pela entrega de Briseida e o que Akiles dissera em resposta.

- Isso explica o que vi depois, embora não soubesse o que significava - comentou Enéias. - Alguns soldados de Agamenon foram à tenda de Akiles e tiveram uma briga com os homens de Akiles. Odisseu apareceu e conversou com todos por um longo tempo. Depois, os soldados de Akiles começaram a arrancar

os estandartes e ornamentos. A impressão era a de que se preparavam para voltarem, para sua terra.

- Que assim seja a vontade dos Deuses - disse Heitor. - Agamenon é um inimigo honrado, enquanto Akiles é um louco. Prefiro lutar contra homens sãos. Kassandra tinha no colo a sua homônima, a filha de Creusa. E comentou: - Não creio que qualquer homem que lute nesta guerra seja são.

- Todos sabemos o que você pensa e estamos cansados de ouvir, Kassandra - disse Heitor.

- Acredita mesmo que podemos vencer esta guerra, Heitor? Se os Deuses estão irados com Tróia...

- Ainda não vi qualquer sinal da ira dos Deuses com Tróia - protestou Heitor. - Mas parece que pelo menos o Senhor do Sol está furioso com os akaios. E agora que Akiles vai partir, não temo o resto. Lutaremos contra eles e venceremos honrosamente, depois faremos uma trégua e viveremos em paz com os akaios... se formos afortunados, pelo resto de nossas vidas.

- E o que acontecerá conosco? - indagou Páris.

Ele estava sentado ao lado de Helena, que alimentava um dos gêmeos com fruta amassada, servida numa colher de osso; ela tinha uma aparência serena, estava mais adorável do que nunca, pensou Kassandra, mas sem qualquer vestígio da beleza fantástica que exibia quando era habitada por Afrodite.

- Se conquistarmos a paz - interveio Andrômaca -, haverá paz para vocês também, poderão conduzir suas vidas e criar seus filhos como quiserem.

- Será um mundo insípido sem a guerra - comentou Heitor, bocejando.

Páris discordou:

- Já experimentei tanta guerra quanto gostaria de conhecer. Deve haver coisas melhores para se fazer com a vida.

- Fala como nossa irmã - disse Heitor. - Mas a paz virá, quer gostemos quer não; se tudo o mais falhar, haverá paz na sepultura, o fim de toda a guerra e

conversa sobre honra.

Kassandra comentou, irônica:

- Parece um paraíso projetado especialmente pelo Deus de Akiles.

- Então não é um paraíso para mim - declarou Páris. - Já estou cansado de lutar aqui e não tenho a menor intenção de continuar na outra vida.

- Em suma, não, gostaria de passar a outra vida lutando - disse Heitor. - Mas não tenho certeza se teremos a possibilidade de optar.

Nesse momento houve um clamor alto; as crianças brincavam na outra extremidade do salão e, podia-se ouvir o estrépito de espadas de madeira e gritos

infantis. Heitor e Páris viram o pequeno Astíanax e o filho de Helena, Nikos, caídos no chão, engalfinhados, a se esmurrarem, gritando palavras incoerentes, os rostos vermelhos e manchados de lágrimas.

Helena e Andrômaca correram para separar seus filhos; quando voltaram, cada uma com um menino choramingando sob o braço, Heitor fez sinal para que os largassem.

- Calma, meninos, calma... Mas que história é essa? Já não há guerra suficiente além dos portões? Precisamos ter uma também ao jantar? Astíanax, Nikos é nosso hóspede em Tróia... e um hóspede merece a melhor hospitalidade. Além do mais, ele é menor do que você. Por que o agride?

- Porque ele é covarde como o pai - gritou Astíanax, sacudindo os punhos.

Nikos deu um chute em sua canela e Astíanax murmurou: - Foi você quem disse, pai.

Heitor teve de fazer um esforço para manter uma expressão solene.

- Não, Astíanax. Eu disse que o pai dele, Menelau, era um inimigo honrado. Páris não é o pai de Nikos e você sabe disso. Além disso. . . - Heitor alteou a voz, pois os dois meninos se puseram a berrar ao mesmo tempo          deve sempre haver uma trégua na hora do jantar. Se o próprio Agamenon viesse a esta mesa, seria meu dever, como um homem honrado, oferecer-lhe o que comer, se estivesse com fome. O primeiro dever que temos com os Deuses é a hospitalidade. Está me entendendo?

- Estou, sim - murmurou Astíanax.

Heitor virou-se para Helena e acrescentou:

- Eu lhe peço que mantenha seu filho sob controle na hora do jantar, por respeito a meu pai e minha mãe... ou então tire-o daqui, entregando-o aos cuidados da babá.

- Tentarei - murmurou Helena.

Páris parecia ameaçador como uma nuvem de tempestade, mas não se arriscou a contestar Heitor; ninguém o fazia, ultimamente. Kassandra concentrou-se nas frutas com mel que foram postas em seu prato, ao final da refeição, mas acabou perguntando a Príamo:

- Já houve algum sinal de que as camareiras da mãe podem ser trocadas ou devolvidas?

- Ainda não. Aquela amaldiçoada filha do sacerdote... uma praga por si mesma... - Príamo fez um gesto de devoção   interrompeu todas as outras negociações. Assim que for possível, tentaremos de novo, mas receio que agora não reste muita esperança.

Creusa levantou-se, com a filha aninhada nos braços.

- Tenho de levar a pequena para a cama - anunciou ela. - Não quer me acompanhar, Helena?

Kassandra também se levantou.

- Tenho de ir embora agora - declarou ela -, mãe, pai, boa noite e muito obrigada. Jantei melhor aqui do que no refeitório das sacerdotisas.

- O que não dá para entender - comentou Príamo. - O pessoal lá de cima fica com o melhor de tudo.

Enéias interveio:

- Com sua permissão, senhor, acompanharei a princesa Kassandra pela cidade. Já é tarde e pode haver bandidos à solta pelas ruas, agora que todos os homens capazes e decentes estão com os soldados lá embaixo.

- Eu lhe agradeço, Enéias, mas não é necessário.

- Deixe que ele a acompanhe, Kassandra - exortou Hécuba, com firmeza.

- Isso me deixará mais tranqüila. Polixena não está conosco esta noite porque o Templo da Virgem não podia dispensar nenhum homem para escoltá-la.

- Como está Polixena? - indagou Kassandra.

Ela nem percebera a ausência da irmã. Por tudo o que sabia, Polixena podia estar casada com algum rei ou guerreiro do outro lado do mundo.

- Ela serve à Deusa Virgem - respondeu Hécuba. - É uma história comprida.

Por seu tom, ela indicava que não tinha a menor intenção de contar a história agora, longa ou curta. Kassandra beijou a mãe e as crianças e deixou que Enéias, em vez de uma serva, lhe ajeitasse o manto nos ombros. Heitor também se levantou, abraçou a esposa e o filho e saiu com eles. Despediu-se de Enéias e Kassandra nos portões do palácio.

- Você está ainda mais bonita do que na ocasião em que partiu para a Cólquida - comentou ele, gentilmente. - Fizeram uma balada em que você é apresentada como uma moça bastante bela para despertar o desejo de Apolo. Se quisesse, tenho certeza de que o pai poderia lhe arrumar um marido, sem todas as bobagens que levaram Polixena ao Templo da Virgem.

- Nem pense nisso, meu querido irmão. Estou feliz na morada do Senhor do Sol.

Mas Kassandra retribuiu ao abraço de Heitor com uma afeição genuína, sabendo que ele só queria o seu bem. Não estava muito escuro enquanto subiam Pelas ruas íngremes, pois a lua estava subindo, redonda e brilhante. Enéias parou em determinado momento para contemplar a planície em que estava o exército

akaio.

- Se Agamenon e Akiles não tivessem brigado, esta seria o tipo de noite em que Heitor não poderia jantar em casa com a família - comentou ele. - De um modo geral, nos últimos três anos, sofremos um ataque do lado do mar nas noites de lua cheia. Mas agora tudo está escuro lá embaixo... exceto na tenda de Akiles, onde ainda devem estar discutindo, enquanto tomam vinho.

- O que aconteceu com Polixena, Enéias?

- Não conheço toda a história... ninguém conhece. Akiles... Príamo ofereceu-a a Akiles, esperando com isso criar conflitos entre os akaios. E, depois, começou a dizer que ela era tão bela quanto a espartana Helena, que a concederia ao mais poderoso...

- Polixena tão bela quanto Helena? A vista de meu pai está falhando com a idade?

- Acho que ele tentava provocar a discórdia entre os akaios. Ofereceu-a ao rei de Creta.. .

- Idomeneu? Mas ouvi dizer que ele se aliou a Agamenon. O que constitui uma traição, é claro, pois os minoanos são nossos parentes e aliados antes mesmo do afundamento de Atlântida.

- Seja como for, Príamo tentou oferecê-la como esposa a muitos dos reis da ilha, mas todos os que se dispunham a aceitar já estavam apoiando os akaios. Ao final, Polixena rebelou-se...

- Rebelou-se? Mas Polixena sempre fez tudo o que mandavam!

- Tem razão. Mas ela acabou dizendo que se sentia como uma panela sendo apregoada no mercado e ainda por cima uma panela quebrada, que ninguém queria comprar... e jurou servir à Deusa Virgem. E é no Seu templo que ela se encontra hoje. Príamo ficou mais furioso com Polixena do que na ocasião em que você foi servir ao Senhor do Sol.

- Era de se esperar. Desde que eu era muito pequena que o pai sempre me considerou uma rebelde; mas quando Polixena desobedeceu, deve ter sido como um coelho de estimação se virando para mordê-lo.

- É exatamente o que eu penso. Sua mãe ficou consternada.

- Posso compreender. A mãe nos criou para pensarmos por nós mesmas e depois fica chocada e transtornada quando isso acontece. N1 a, estou contente por minha irmã ter tomado sua decisão.

Eles foram subindo em silêncio pela rua íngreme. Kassandra tropeçou e Enéias prontamente amparou-a.

- Tome cuidado - disse ele. - Pode ser uma longa queda.

O braço de Enéias a enlaçava; ele não usava armadura, apenas a túnica e o manto, Kassandra podia sentir seu corpo quente e forte. Deixou que ele a amparasse por alguns passos; mas quando tentou se empertigar, Enéias aumentou a pressão em sua cintura e inclinou o rosto. No escuro, seus lábios se encontraram, antes que ela pudesse se desvencilhar.

- Não - balbuciou ela, suplicante, afastando-se. - Não, Enéias. Não você também.

Ele não a soltou imediatamente; levantou a cabeça e murmurou:

- Eu a desejo desde que a vi pela primeira vez, Kassandra. E pensei que... isso não lhe era de todo desagradável.

Kassandra descobriu que a voz tremia quando falou:

- Se as coisas fossem diferentes... mas fiz o voto de castidade e você é o marido de minha irmã.

- Não por minha vontade ou de Creusa. Casamos pela vontade de meu pai e do seu.

- Mas ainda assim estão casados. E eu não sou Helena para abandonar um compromisso de honra...

Mas Kassandra deixou a cabeça encostar no braço forte de Enéias. Sentia-se fraca, como se as pernas não fossem mais capazes de sustentá-la.

- Acho que se fala demais em honra e dever, Kassandra. Por que Helena deveria permanecer fiel a Menelau? Ela lhe foi dada sem qualquer pensamento por sua felicidade. Viemos para este mundo apenas para cumprir nosso dever com a família? Os Deuses não nos concedem a vida para que possamos criar algum bem para nossos corações, mentes e almas?

- Se é assim que se sente, então por que concordou em casar? - indagou Kassandra, empertigando-se um pouco (e sentindo frio longe do braço de Enéias).

- Eu era mais jovem na ocasião e por toda a minha vida me disseram que tinha o dever de casar com qualquer princesa que fosse escolhida para mim... e naquele tempo ainda pensava que todas as mulheres eram parecidas.

- E não são?

- Não, não são - respondeu Enéias, com veemência. - Creusa é uma boa mulher, mas é tão diferente de você quanto o vinho da água da fonte. Nada posso dizer contra a mãe de meus filhos; mas na ocasião eu jamais conhecera qualquer mulher que fosse mais para mim do que outra, alguma mulher que realmente desejasse, com quem pudesse falar como uma igual, uma companheira. Se antes de casar com Creusa eu tivesse uma dúzia de oportunidades de conversar com você, Kassandra, juro que diria a Príamo e a meu pai que não casaria com qualquer outra mulher sob o céu... que teria você ou seguiria sem casar para a sepultura.

Ela ficou atordoada

- Não pode estar falando sério... está se divertindo à minha custa.. .

- Por que eu faria isso? Eu não queria... não quero estragar minha vida, perturbar sua paz nem magoar Creusa, mas acho que a Deusa do Amor, que foi tão implacável com Páris, decidiu lançar a discórdia também em meu caminho. Achei que devia dizer logo a você o que sinto.

Kassandra estendeu a mão, mal sabendo o que fazia, pegou a de Enéias; os dedos se entrelaçaram e ele murmurou:

- Quando a vi pela primeira vez, Kassandra, sentada entre as mulheres, os olhos abaixados com recato, compreendi no mesmo instante que era você quem eu queria. E naquele momento deveria ter anunciado isso a Príamo e a meu pai...

O pensamento arrancou uni sorriso de Kassandra.

- E o que Creusa diria?

- Eu não deixaria que isso me influenciasse. Era a minha vida que estava em jogo. Você me aceitaria como marido, Kassandra? Se eu recusasse Creusa e pedisse você... como o preço para lutar por Tróia...

O coração de Kassandra batia descompassado.

- Não sei... Mas o que quer que eu pudesse dizer ou fazer naquela ocasião, já é tarde demais para pensar nisso agora. - Não precisa ser tão tarde...

Enéias abraçou-a. Kassandra não sabia que chorava até que ele removeu uma lágrima com um dedo.

- Não chore, Kassandra. Não quero faze-la infeliz. Mas não suporto pensar que não se pode fazer mais nada, agora que descobri que é você que eu amo.

Ele envolveu-a em seus braços com tanta força, num abraço tão compulsivo, que nada além parecia existir; Kassandra se afogava, sufocava, mergulhava na não existência, incapaz de qualquer pensamento. Mesmo assim, depois de um tempo que pareceu longo demais - mas foi bem curto - ela se desvencilhou e empertigou, enxugando os olhos com a túnica. Então é assim. Ela sabia que a voz tremia quando disse:

- Você é o marido de minha irmã. É meu irmão.

- Por meus ancestrais imortais! Não acha que já pensei nisso até não me agüentar mais? E, agora, só posso lhe suplicar que não fique zangada comigo.

- Não estou zangada com você, Enéias - murmurou ela, sentindo-se tão tola e inadequada pelo momento entre os dois que começou a rir, desamparada.

Enéias tornou a puxá-la para um abraço a que ela não podia e não queria resistir; mas desta vez houve cautela também, como se ele se esforçasse para não machucá-la ou assustá-la. E ele murmurou em seu ouvido:

- Diga que também gosta de mim, Kassandra...

- Oh, Deuses, precisa perguntar?

Sua boca foi tão comprimida pelos lábios de Enéias que ela se perguntou como ele podia compreender suas palavras.

- Não, Kassandra, não preciso perguntar, mas quero ouvir você dizer. Acho que eu não suportaria continuar a viver se não a ouvisse dizer isso.

Subitamente, Kassandra foi dominada pelo mais extraordinário senso de generosidade. Estava em seu poder conceder alguma coisa que ele queria muito. Ela tornou a se encostar em Enéias e sussurrou:

- Eu gosto muito de você. Acho... acho que o amei desde a primeira vez em que o vi.

E ela sentiu que Enéias se movia suavemente contra ela, como se fosse o lugar em que sempre desejara estar. Ele tocava apenas em seus dedos, mas de certa forma esse contato era mais íntimo do que um abraço. Kassandra queria que ele tornasse a enlaçá-la; mas sabia que se Enéias assim fizesse, ela e somente ela seria responsável por qualquer coisa que acontecesse.

- Enéias.. .

Ele parou.

- O que é, Kassandra?

- Acho que eu só queria me ouvir dizendo o seu nome - murmurou ela, com uma profunda sensação de espanto.

Ele apertou-a num abraço, mas gentilmente, como se tivesse medo de que o menor contato pudesse parti-la.

- Meu amor... Não sei... não tenho certeza do que quero., mas não é seduzi-la a ir para a minha cama. Isso eu poderia ter de qualquer uma, a qualquer momento. Eu a amo, Kassandra. Queria lhe dizer isso, tentar fazer com que compreendesse...

- Eu compreendo, Enéias.

Kassandra apertou a mão dele. Lá em cima, a lua pairava tão brilhante que ela podia ver o rosto de Enéias, como se fosse à luz do dia.

- Todas as fogueiras estão apagadas no acampamento akaio - murmurou ele. - Já é tarde. Você deve estar exausta e devo deixá-la ir embora.

Já era mesmo tarde. Kassandra afastou-se um pouco, sentindo frio fora dos braços de Enéias. Estendeu-lhe a mão. Ele se inclinou em sua direção, mas não tornou a beijá-la, apenas sussurrou:

- Boa noite, meu amor, e que a Deusa a guarde. Ficarei esperando aqui, até vê-la passar sã e salva pelos portões do Templo do Senhor do Sol.

Ela subiu sozinha os últimos degraus e parou diante dos portões, que eram abertos por dentro. Um dos servidores do templo veio abrir.

- Ah, princesa Kassandra... Está voltando do jantar no palácio com seus pais? Subiu sozinha?

- Não; o senhor Enéias me acompanhou.

- O senhor Enéias não gostaria de uma tocha para iluminar o caminho na descida?

- Não, obrigado - respondeu Enéias, cortesmente. - A lua está bastante

brilhante. - Ele inclinou-se para Kassandra. - Boa noite, minha irmã e senhora. - Boa noite.

Quando ninguém podia ouvi-la, Kassandra descobriu-se a acrescentar, num sussurro:

- Boa noite, meu amor.

Ela estava abalada. Jurara - sem saber nada a respeito - que nunca serviria à Deusa Afrodite nem sucumbiria a esse tipo de paixão.

E, agora, era como qualquer outra das servidoras da Deusa akaia.

 

Os soldados de Akiles estavam carregando seus navios; era evidente que não acabara a discórdia no acampamento akaio. Um dos agentes prediletos de Príamo, uma velha que vendia bolos no acampamento akaio e todos os dias tornava a entrar na cidade por volta de meio-dia para buscar um novo suprimento (e ter uma longa conversa com o comandante da guarda), informou que Akiles não saíra de sua tenda. Pátroklo tentara dissuadir os soldados de partirem, mas sem muito efeito.

Pátroklo, disse ela, era apreciado pelos soldados, mas todos achavam que deviam lealdade a Akiles; e se ele desistira de lutar, então eles também desistiam.

No meio da manhã, Kassandra foi à muralha para verificar pessoalmente, acompanhada pela maioria das mulheres da casa de Príamo: Hécuba, Andrômaca, Helena e Creusa.

Escutaram o relato da velha vendedora de bolos e especularam sobre as conseqüências para a causa akaia.

- Não fará muita diferença - comentou Páris, que naquela manhã era o comandante da guarda. - Akiles é um maníaco por luta, mas Agamenon e Odisseu são os cérebros da campanha. Akiles é extraordinário num combate singular,

é claro, conduz o seu carro de guerra como um demônio; e seus mirmídones o seguiriam num ataque até o outro lado do mundo.

- É uma pena que alguém não possa persuadi-los a fazer justamente isso - murmurou Creusa. - Isso resolveria a maioria de nossos problemas... pelo menos em relação a Akiles. Alguém conhece um Imortal amigo que possa aparecer sob a forma de Akiles e levar seus homens para uma missão urgente em algum lugar no outro lado do mundo ou convence-los de que são desesperadamente necessários em sua terra?

- A questão é que isso é tudo o que Akiles tem a seu favor: é louco por matar - continuou Páris, ignorando a intervenção de Creusa. - Ele não sabe coisa alguma sobre estratégia ou tática de guerra. A saída de Akiles da guerra, voltando para casa como um garotinho que diz "Não quero mais brincar", não chega a ser um grande golpe para os akaios. Seria muito pior para eles... e melhor para nós... se perdessem Agamenon, Odisseu ou mesmo Menelau.

- E uma pena que não possamos pensar em alguma maneira esperta de nos livrarmos de um deles - disse Hécuba.

- Quase aconteceu - informou Páris. - A briga entre Akiles e Agamenon significava que os akaios teriam de perder um ou outro. Perder Akiles afligiu os soldados... ele é o ídolo de todos... mas os líderes sabiam que não podiam perder Agamenon ou toda a campanha estaria perdida. Por que acham que eles deixaram Agamenon tomar a mulher de Akiles? Sabem como Agamenon é importante para a campanha. E por que acham que Akiles está tão furioso? Porque lhe foi mostrado claramente que ele não é tão importante... e ninguém mais é... quanto Agamenon.

- Alguma coisa está acontecendo no acampamento akaio - interveio Helena. - Lá está Agamenon... seguido por Menelau, como sempre... e seu arauto.

Kassandra já vira o arauto antes: um jovem alto que talvez fosse franzino demais para ter alguma utilidade com espada e escudo, mas que possuía uma esplêndida voz bem grave, que podia ressoar por todo o acampamento. Um desperdício de um excelente músico, comentara Krises; e, de fato, o arauto daria um excelente cantor ou menestrel.

Agamenon deu algumas ordens ao arauto, que atravessou o acampamento e aproximou-se das muralhas. Páris pegou seu escudo alto, pôs o elmo na cabeça e se encaminhou para a beira da muralha. O arauto gritou:

- Páris, filho de Príamo!

- Aqui estou"- respondeu Páris, a voz soando pequena e jovem, em comparação com o tom treinado e retumbante do arauto. - O que quer comigo? Se Agamenon tem alguma mensagem para mim, por que não se aproxima pessoalmente das muralhas, em vez de... como um covarde... mandar você, a quem não posso legitimamente alvejar?

Páris soltou uma risada e depois acrescentou:

- Quando vão declarar aberta a estação de caça aos arautos? Acho que deveriam ser todos exterminados, como os centauros.

- Páris, filho de Príamo, trago urna mensagem para você de Menelau de Esparta, irmão de Agamenon, senhor de Micenas.. .

- Sei perfeitamente quem é Menelau - interrompeu-o Páris. -- Não precisa explicar nem lembrar todos os ressentimentos que temos um contra o outro.

- Deixe que o pobre coitado transmita logo a mensagem, Páris - interveio Helena, a voz alta e firme. - Está deixando o rapaz nervoso. Ele quer pelo menos parecer um guerreiro, mesmo que não possa lutar como tal. Pode até molhar a túnica se você continuar assim... e pense como ele ficaria embaraçado na presença de tantas mulheres.

- Muito bem, se você tem uma mensagem de Menelau, então diga logo - gritou Páris.

O arauto corou visivelmente e se empertigou.

- Ouça as palavras de Menelau, senhor de Esparta: "Páris, filho de Príamo, minha discórdia é com você e não com Príamo ou a grande cidade de Tróia. Proponho agora que esta guerra seja acertada por uni combate pessoal, diante de todos os soldados troianos e akaios reunidos. Se você me matar ou eu me render, então poderá ficar com Helena e todas as minhas coisas que por acaso estejam em seu poder. Meus homens, inclusive meu irmão Agamenon, assumirão o compromisso de não continuarem a luta, nem mesmo para me vingarem; embarcarão em seus navios e deixarão Tróia para sempre, acabando com esta guerra. Mas se eu matá-lo ou você se render, então Helena me será entregue, com todas as suas coisas. Nós a levaremos embora, sem pedir quaisquer outros despojos a Tróia. Qual é a sua resposta?"

Páris empertigou-se.

- Diga a Menelau que ouvi sua proposta. Consultarei o rei Príamo e Heitor, o comandante dos exércitos troianos. Pois me parece que há muitas causas para esta guerra além de Helena; mas se meu pai e meu irmão desejarem acertar tudo assim, então estarei de acordo.

Houve um clamor dos dois lados enquanto Páris recuava e se encaminhava para o canto da muralha de onde as mulheres observavam. Helena adiantou-se em silêncio e beijou-o.

- Essa não! - exclamou Páris. - Qual o sentido do desafio? Menelau sabe tão bem quanto eu que há mais nesta guerra do que apenas Helena. Como Agamenon conseguiu persuadi-lo a apresentar esse desafio? Ou será um ardil para me atrair além das muralhas?

- Menelau tem bastante rancor para tentar isso, mas não a inteligência para pensar em tal plano - comentou Helena.

- Como acham que Príamo gostaria que eu respondesse? - indagou Páris. - Ou Heitor? Tenho a impressão de que Heitor ficaria satisfeito com essa oportunidade de me tirar do caminho, a fim de poder conduzir a guerra como lhe aprouver.

- Está enganado em relação a seu irmão - protestou Hécuba.

- Que você possa sempre pensar assim, mãe, e que eu possa estar sempre presente para contestar.

- O importante é que você não pode lutar com Menelau - disse Kassandra.

- E por que não? Acha que tenho medo dele?

- Se não tem, então é um tolo maior do que eu imaginava - interveio Andrômaca.

- Mas Heitor ficará tão satisfeito pela possibilidade de resolver a guerra por um combate pessoal que provavelmente insistirá para que Páris aceite... mas apenas com a condição de que ele desafie o próprio Agamenon - sugeriu Kassandra.

- Ele pode se oferecer para lutar com Menelau em meu lugar - disse Páris. - Emprestarei meu manto e todos os exércitos pensarão que sou eu.

- Pode perguntar a Heitor o que ele pensa, pois lá vem ele - informou Andrômaca.

Heitor e seus guerreiros avançavam pelas ruas de Tróia, a caminho dos portões. Havia cerca de 150 soldados com armaduras e mais alguns arrastando o carro de guerra de Heitor pelas ruas íngremes. Seria atrelado junto dos portões, a fim de que Heitor pudesse montar e sair. Ele avistou o grupo no alto da muralha e subiu.

- O que aconteceu? - indagou Heitor. - Ouvi gritos nas ruas...

Hécuba relatou rapidamente o desafio de Menelau e Heitor franziu o rosto. - Provavelmente é o melhor para nós, agora que Akiles está fora da guerra - comentou ele. - Vai aceitar o combate, Páris?

- Preferia não aceitar. Não confio ene Menelau para enfrentá-lo num combate pessoal. É bem provável que ele esteja tentando me atrair para uma emboscada além das muralhas.

Heitor amarrou a cara.

- Nunca sei se você fala por covardia ou puro bom senso, Páris.

- Acho que não faz muita diferença - respondeu Páris. - Presumo que você quer que eu saia e aceite o combate.

- Há alguma condição?

Kassandra podia perceber, pela expressão de Heitor, que ele não compreendia por que Páris não estava ansioso pelo combate.

- Há, sim - respondeu Páris. - Se eu o matar, os akaios vão embora e você não terá uma oportunidade de enfrentar Agamenon ou Akiles. O que estragaria a sua diversão, não é mesmo?

- E se ele matar você?

- Eu estava tentando não pensar nessa possibilidade. Duvido que isso estrague sua diversão. Mas tenho certeza de que eles tripudiarão sobre você ao levarem Helena e tudo o mais que quiserem de Tróia. O problema é que talvez não seja o tipo de luta justa que você ofereceria a Akiles, se por acaso ele o desafiasse.

- Helena, você conhece Menelau melhor do que todos nós - disse Heitor. - É provável que ele cumpra sua palavra?

Helena deu de ombros.

- Acho que sim. Duvido que ele seja capaz de pensar numa armadilha. Mas é claro que não tenho a menor idéia do que Agamenon pode ter planejado... é outra questão, muito diferente.

- A decisão é sua, Páris - declarou Heitor. - Não posso obrigá-lo a lutar com Menelau; por outro lado, não quero ser responsável pela recusa ao desafio.

Páris olhou para Menelau, num manto escarlate, ainda andando de um lado para outro, diante da muralha.

- Helena, o que você quer que eu faça? Devo lutar com ele por você?

- Heitor não lhe dará sossego enquanto não o fizer - respondeu ela, sempre perspicaz. - Portanto, acho que é melhor aceitar. Mas devemos encontrar

uma maneira de ajudá-lo; talvez possamos persuadir algum Imortal a interferir. - Mas como conseguiria isso?

- É melhor você não saber, mas não creio que a Deusa do Amor e Beleza tenha me trazido até aqui só para ser arrastada de volta em desgraça, amarrada ao carro de Agamenon. Ao lutar, porém, mantenha-se atento. De um jeito ou de outro, jogaremos uma escada de corda pela muralha. E se a Deusa lhe conceder a possibilidade de alcançá-la... não deve perder a oportunidade, a menos que Menelau já esteja morto a seus pés.

Páris deu de ombros, foi à beira da muralha e gritou para Menelau que o enfrentaria dentro de uma hora, se ele assim queria.

Depois, pôs sua armadura e desceu com Heitor. Quando o viram no carro de guerra, os akaios prorromperam em gritos.

- O que você vai fazer? - indagou Kassandra, aproximando-se de Helena.

Pegando suas mãos, Helena disse:

- Você é irmã gêmea de Páris e sacerdotisa. Quero que me acompanhe num canto e oração para que a Nascida do Mar nos envie um dos seus nevoeiros marinhos. Hécuba, se ama seu filho, eu lhe peço que providencie uma escada de corda bem forte. Não podemos pedir à Deusa que faça por nós o que qualquer fabricante de corda pode fornecer por uma moeda de cobre.

Hécuba mandou um mensageiro buscar uma escada de corda. Quando chegou, Helena foi se postar ao lado de Kassandra na beira da muralha, observando Páris e Menelau se prepararem para o combate, enquanto os respectivos arautos trocavam insultos.

Menelau e Páris andaram cuidadosamente num círculo, delimitando a área em que nenhum outro guerreiro, de qualquer dos lados, poderia entrar, enquanto um dos dois vivesse. Isso feito, eles fizeram uma reverência cerimoniosa um para o outro. Uma trombeta soou e eles iniciaram o combate.

- Cantem! - exortou Helena. - Orem! Supliquem à Deusa para nos mandar o nevoeiro.

As mulheres se puseram a cantar. Kassandra estava tão absorvida a observar os homens brandirem suas espadas que mal podia formar as palavras da oração, embora isso já fosse magia suficiente. A princípio, os homens pareciam equivalentes. Páris era mais alto e tinha um alcance maior, mas Menelau era rápido como um mangusto, embora parecesse ter se tornado meio mole devido à inatividade. Puseram-se a circular, trocando golpes, avaliando um ao outro com todo cuidado, mas ainda não empenhados em combate mais sério.

Os olhos de Kassandra doíam. Havia poeira no campo de batalha diante deles? Ou seria um turbilhão de nevoeiro que chegava do mar? Ela não podia saber com certeza. Helena foi até a beira da muralha e baixou a escada de corda; por segurança, prendera a extremidade nas pedras da muralha. Depois, ela empertigou-se toda e gritou:

- Menelau!

Ele olhou para cima rapidamente e parou no meio de um golpe. Helena soltou lentamente a túnica no pescoço e deixou-a cair, até ficar com os seios expostos.

Enquanto ela estava ali, imóvel, Kassandra teve a impressão de que o ar ficava impregnado de faíscas douradas reluzentes, como se o véu entre os mundos se tornasse mais tênue. Helena, envolta por esse tremeluzir dourado, parecia adquirir mais altura e majestade, a brilhar de dentro com uma beleza além do humano. Não era uma mulher que estava ali na muralha, mas a própria Deusa.

Menelau estava parado, como se os pés tivessem se enraizado na terra por baixo.

O que não aconteceu com Páris. Ao ver Helena parada ali, sob a forma da Deusa, ele correu para a muralha. Gritos de reverência e anseio partiram das fileiras dos akaios; um momento depois Páris estava no alto da muralha, puxando a escada. Com os olhos de todos fixados em Helena - ou melhor, na Deusa - Kassandra compreendeu que provavelmente ninguém o vira subir pela escada. Páris recolheu-a e jogou-a para dentro da muralha.

Helena ainda se mantinha imóvel, o corpo iluminado. Depois, num relance, a ilusão - se é que fora uma ilusão - desfez-se e era apenas Helena que estava ali, o rosto um pouco queimado pelo sol, prendendo a túnica. Ela aproximou-se de Páris e disse:

- Você está ferido.

- Não é grave, senhora - murmurou ele, os olhos ainda arregalados, um filete vermelho escorrendo pela cota de couro. - Venha comigo; cuidarei disso.

Ela levou-o embora, enquanto os akaios começavam a gritar: - Páris! Para onde ele foi? Covarde!

Mas havia também outros gritos, que predominavam:

- A Deusa! Ela apareceu diante de nós na muralha! A Bela, a Nascida do Mar!

O carro de Heitor passou ruidoso pelos portões e logo depois ele subia pela escada por dentro da muralha. Olhou ao redor e perguntou: - Onde ele está?

Hécuba disse, a voz trêmula:

- Não viu a Deusa levá-lo?

- Foi o que os akaios disseram. E quando perguntei ao condutor de meu carro de guerra, ele jurou que vira Afrodite descer da muralha, encobrir Páris com seu manto e levá-lo. Pessoalmente, não sei o que vi; talvez apenas o clarão do sol em meus olhos. Onde está Helena?

- Quando a Deusa trouxe Páris para cá, ela viu que ele estava sangrando - respondeu Andrômaca. - Levou-o para seus aposentos, a fim de cuidar do ferimento. A esta altura, é provável que os dois estejam no banho.

- Não duvido - resmungou Heitor. - Mas se as Deusas pretendem interferir, eu gostaria que esperassem até que as coisas estejam resolvidas. Se a Deusa veio arrebatar Páris para a segurança, eu preferia que levasse Menelau... e Helena também... por todo o  caminho até Esparta. Se Ela é capaz de fazer uma coisa... e notem, Imortais, que não sou ímpio ao ponto de dizer que Ela não pode... também é capaz de fazer a outra. Kassandra, o que você viu? Também vai me contar fábulas sobre a Deusa na muralha levando Páris?

Por um instante, Kassandra sentiu-se exultante; Heitor apelava para ela, como se fosse uma testemunha digna de confiança.

- Claro que não - disse ela. - Mas me pareceu que Menelau teve alguma espécie de visão, pois parou de lutar e ficou olhando para a muralha, enquanto Páris corria para salvar sua vida.

Heitor suspirou e disse:

- Já é tarde demais para qualquer outro combate hoje. Vamos esperar que a notícia se espalhe. Mas é claro que se a Deusa interferiu... até mesmo oferecendo uma visão a Menelau... ninguém poderá culpar Páris.

Mas ele não parecia muito convencido.

 

A DESTRUIÇÃO DE POSSÊIDON

Ao crepúsculo, todos nos dois exércitos e a maioria dos civis na cidade já haviam ouvido a história, que aumentou a cada relato, como era de se esperar.

Segundo a maioria das testemunhas, a Deusa aparecera na muralha da cidade e arrebatara Páris de baixo da espada de Menelau, no momento em que ele desfechava um golpe mortal; em uma versão, Menelau cortara Páris do queixo à pélvis e a Deusa o curara com um toque, fechara os ferimentos com néctar e ambrosia e o transportara para o quarto de Helena.

Kassandra, quando interrogada, respondia apenas que não tinha certeza do que vira; o sol estava em seus olhos.

Particularmente, ela estava convencida de que houvera uma intervenção da Deusa. Mas não sabia como acontecera, embora estivesse absolutamente segura de que pelo menos por um momento Helena assumira a semelhança da Deusa. Afinal, não seria a primeira vez.

Por dois dias a cidade não falou de outra coisa além do duelo e a suposta intervenção dos Deuses. Heitor e Enéias voltaram de conferências dizendo que

os akaios insistiam que Menelau vencera o duelo, porque Páris fugira, ferido.

- E o que responderam? - perguntou Príamo, ansioso.

- O que acha? Declaramos que era evidente que Páris vencera, já que os Deuses interferiram para salvar sua vida - respondeu Heitor.

Kassandra, que passara parte do dia observando das muralhas, lembrando seu treinamento com as armas e refletindo que provavelmente poderia se sair tão bem quanto a maioria dos soldados akaios ou qualquer dos troianos, indagou:

- O que aconteceu esta tarde? Vi dois soldados que não conhecia se adiantarem para um combate e antes de começarem a lutar um deles começou a largar suas armas e depois tirou as roupas, ficando só de tanga. Resolveram se empenhar numa luta livre, em vez de combaterem com as espadas? Enéias riu.

- Não foi isso. Conhece Glauco, o Trácio?

- Já falei com ele - disse Helena. - Era o comandante de um dos navios que nos trouxe para cá.

- Ele desafiou qualquer akaio para um combate. Diomedes aceitou. Começaram a enunciar sua linhagem, a fim de verificarem se podiam se encontrar honrosamente em combate pessoal. Antes de chegarem aos bisavôs, descobriram que eram primos.

- E resolveram então não lutar? - indagou Kassandra.

- Não viu a cena? - perguntou Enéias.

- Não, pois fui chamada ao templo. Uma das grandes serpentes está prestes a descamar e precisa de cuidados especiais; uma serpente fica cega nessas condições e não pode ser tratada por estranhos.

- Eles concordaram que deviam lutar, por uma questão de honra; mas decidiram trocar as armaduras. Diomedes declarou que sua armadura comum não era bastante bonita para um presente honroso e por isso mandou buscar em seu navio um conjunto precioso, de prata, com incrustações de ouro. Glauco, é claro, teve de procurar entre os amigos por uma armadura de igual valor. Pareciam um par de velhos no mercado, barganhando pelo valor de alguma bugiganga. Continuaram assim por muito tempo... e é claro que acabaram lutando em suas velhas armaduras, deixando os conjuntos valiosos de lado, para serem admirados...

- Quem venceu? - perguntou Helena.

- Não tenho á menor idéia. Acho que se derrubaram uma ou duas vezes e

depois ficou escuro demais para se ver alguma coisa. Assim, eles se abraçaram, agradeceram um ao outro pelos lindos presentes e foram jantar. Heitor riu.

- Creio que não houve vantagem para qualquer dos lados, mas pelo menos serviu para passar a tarde. Não tínhamos nada melhor para fazer hoje. Até que os conselheiros dos dois lados decidam se foi Páris ou Menelau quem venceu o duelo, tudo o mais será apenas por diversão. Glauco e Diomedes teriam feito melhor se empenhassem numa luta livre; pelo menos poderíamos fazer algumas apostas sobre o resultado. Eu me senti tentado a desafiar o Grande Ajax para uma luta livre... é o homem maior no acampamento akaio, mas não sei se é capaz de lutar...

- E, sim - garantia o jovem Troilo. - Ele ganhou a grinalda na luta livre dos Jogos Sacrificais.

- Então acho que vou desafiá-lo - disse Heitor.

- Tome cuidado para não levar uma cotovelada no rosto - sugeriu Troilo.

A especialidade de Ajax é quebrar dentes.

Ao jantar, Heitor perguntou a Príamo:

- Senhor, o que acontecerá se o conselho decidir que Menelau venceu o duelo?

Príamo deu de ombros.

- Nada. Os akaios se recusarão a aceitar qualquer decisão desfavorável. A guerra continuará, pois não querem resolve-la. Não desistirão enquanto não derrubarem as muralhas de Tróia e saquearem a cidade.

- Fala como Kassandra, pai.

- Não é bem assim - protestou Príamo. - Sei o que Kassandra pensa.

Mas, por uma vez, enquanto Kassandra levantava os olhos, dominada outra vez por um terrível medo e a visão de Tróia em chamas, que se interpunha entre ela e o mundo dos vivos, Príamo sorriu-lhe gentilmente, como se tentasse dissipar seus temores.

- Eles podem derrubar as muralhas de Tróia, pai? - perguntou Páris.

- Não, a menos que consigam persuadir Posêidon a ajudá-los com um terremoto.

Kassandra podia agora sentir por todo o corpo: as muralhas ruiriam à ira de Posêidon, a seu terremoto. Ela deveria ter imaginado desde o inicio que os esforços comuns dos homens não poderiam derrubar as muralhas de Tróia; somente um Deus poderia derrubar a grande cidadela.

- Nesse caso, devemos fazer sacrifícios a Posêidon o mais depressa possível, pois é o único Deus que pode nos ajudar - sugeriu Heitor.

- Tem toda razão - Kassandra apressou-se em apoiar. - Vamos fazer sacrifícios a Posêidon imediatamente, suplicando que nos ajude! Ele não é o guardião dos Deuses de Tróia?

Sem saber o que ia dizer, até o momento em que ouviu as palavras aflorando em sua mente como um brado de angústia, ela gritou:

- Páris! Você... tome cuidado com o terremoto! Faça um sacrifício a Posêidon! Faça-lhe promessas, pois é você que Ele vai destruir... destruir... destruir...

Ela parou de falar pela força, comprimindo os lábios com as mãos. Príamo fitou-a com a cara amarrada, em raiva e repulsa.

- Não acha que já falou demais, Kassandra? Não pode se controlar nem mesmo à mesa de jantar de sua mãe? Não pode se decidir qual Deus vai destruir a cidade? Estou achando que você enlouqueceu por completo.

Kassandra não podia falar; o aperto em sua garganta era tão terrível que precisava recorrer a toda a sua força só para respirar. Engoliu em seco e sentiu as lágrimas escorrerem pelo rosto. Helena se aproximou e enxugou seu rosto com o véu; a ternura no gesto desarmou Kassandra, que ficou olhando para a esposa do irmão e balbuciou:

- E a você que Ele vai destruir...

- Minha pobre criança... - murmurou Hécuba. - Os Deuses ainda a atormentam com essas visões. Deixe-a sozinha, Helena; não há nada que você possa fazer para ajudá-la. Kassandra, volte para o templo. Ali, tenho certeza de que os sacerdotes encontrarão soluções para esses ataques.

- Nunca mais profetize aqui, Kassandra - ordenou Príamo, com toda firmeza. - Assim falei e serei obedecido.

Incapaz de controlar os soluços, Kassandra levantou-se e saiu correndo do salão, subiu pelas ruas íngremes. Depois de algum tempo, percebeu que passos a seguiam; correu ainda mais depressa, mas os passos continuaram em seu encalço e um momento depois mãos gentis a seguraram, obrigando-a a parar.

- O que houve, Kassandra?

Era Enéias. Kassandra foi dominada pelo pânico e a princípio debateu-se freneticamente, mas acabou compreendendo quem a segurava, relaxou e ficou em silêncio.

- Não pode me contar, Kassandra? Qual é o problema?

- Já sabem o que eles dizem: que estou louca - murmurou ela, apática.

- Não acredito nisso. Pode estar atormentada por um Deus, mas tenho

certeza de que não é louca.

- Não sei qual é a diferença. E não posso me manter em silêncio; quando a Visão surge, tenho de falar...

Ela podia ouvir a voz tremendo tanto que as palavras eram quase incompreensíveis. Enéias passou o braço em torno dela e acrescentou, gentilmente:

- Talvez todos aqueles que vêem mais longe do que o resto sejam considerados loucos pelos que não podem ver além da primeira refeição do dia seguinte. Quando saiu correndo, temi por você... fiquei com medo de que caísse e se machucasse. Não creio que tenha perdido o juízo... parece-me perfeitamente sensata. Também não entendo por que deve ser considerado loucura advertir nosso povo de que os Deuses estão ansiosos em nos destruir. Desde que cheguei a Tróia que tenho a impressão de que nos encontramos sob a sombra de um Imortal irado ou até mais. Posso farejar o perigo de destruição em cada vento.

Ele beijou-a no rosto, ternamente.

- Pode me contar agora o que você viu?

Kassandra fitou-o nos olhos, dominada agora por uma certeza absoluta. - Vi você sobreviver ao perigo, vi você deixar Tróia vivo e ileso.

Enéias afagou-lhe o ombro.

- É bom saber disso, é claro. Mas não foi o que perguntei. E agora vou acompanhá-la até o Templo do Senhor do Sol.

Eles subiram em silêncio por algum tempo e, depois, Enéias indagou.

- Acha mesmo que não há esperança para Tróia nesta guerra?

- Eu sabia disso no momento em que Páris trouxe Helena para cá. Pode estar certo de que não falo isso por maldade. Passei a amar Helena profundamente, como se ela tivesse nascido minha irmã. Soube disso quando Páris passou pelos portões de Tróia para participar dos jogos. Heitor estava certo ao querer mandá-lo embora, só que pelos motivos errados. Heitor temia que Páris quisesse se tornar rei. Mas não era esse o perigo...

Enéias acariciou o queixo de Kassandra e murmurou:

- Não partilho a sua Visão, Kassandra, mas confio em você; sei que está falando a verdade. Pode estar enganada, mas não fala assim por maldade ou loucura. E se é isso o que vê, claro que deve dizer o que os Deuses lhe mostram. - Eles chegaram ao portão do templo e Enéias abraçou-a. - Quando você falar, prometo que sempre a escutarei.

- Acho que algum Imortal iniciou esta guerra... mas acho também que Afrodite teve uma oportunidade de nos ajudar ou destruir. Agora, parece que não é Ela mas sim a discórdia entre outros Imortais o que nos ameaça. Quando o pai disse que nenhum mortal poderia derrubar as muralhas de Tróia, eu sabia que ele falava a verdade; não será às mãos dos akaios que encontraremos a perdição, mas sim às mãos dos Deuses. E não sei por que Eles querem destruir nossa cidade.

- Talvez os Deuses não precisem de razões para o que fazem.

- É o que estou começando a temer - sussurrou Kassandra.

 

O clima de Tróia era bem mais quente que o da Cólquida; as serpentes que Kassandra trouxera da cidade de Imandra estavam mais ativas e ela passava a maior parte do tempo a cuidar delas.

Por esse motivo, não soube imediatamente quando o conselho decidiu que nem Páris nem Menelau haviam vencido o duelo e que uma trégua seria proclamada, enquanto o assunto era analisado com mais profundidade. Kassandra sabia

que não faria a menor diferença - os dois lados estavam determinados a continuar a lutar - e por isso não deu maior atenção. Ainda estava absorvida com as serpentes quando recebeu a notícia de que os combates recomeçaram. Mais tarde, alguém lhe contou que a trégua fora rompida quando um dos comandantes akaios - alegando em seguida que fora assim compelido pela Deusa Virgem - disparara uma flecha contra Príamo, que perfurara sua melhor túnica e quase o matara.

Poucos dias depois, da segurança da muralha, ela e outras mulheres do palácio observaram a concentração das forças de Heitor, carros de guerra e infantes armados. Kassandra pensava às vezes que poderia ser uma guerreira tão vitoriosa quanto qualquer dos soldados de Heitor. Mas se Heitor estava disposto a aproveitar todos os guerreiros, ela estava disposta a cuidar apenas do que era da sua conta. E aquela guerra não era da sua conta... o que lhe fora deixado bem claro, em diversas ocasiões. Não podia deixar de especular: Heitor estava mesmo interessado em ganhar aquela guerra ou apenas queria prevalecer em obscuras questões de honra?

Ela soube por intermédio das mulheres que Enéias aceitara um desafio de Diomedes, o akaio que lutara com Glauco.

Creusa não estava muito preocupada com a perspectiva, comentando:

- Pelo que sei, Diomedes não é um grande guerreiro. Aquela bobagem de trocar presentes... o que foi se não um pretexto para conversar em vez de lutar?

- Eu não contaria muito com isso - interveio Helena. - Reconheço que naquele dia os dois estavam empenhados num jogo, mas já vi Diomedes lutando para valer e acho que talvez ele seja mais forte do que Enéias.

- Está tentando me assustar, Helena? - perguntou Creusa. - Sente ciúme? - Pode estar certa, minha cara, de que não tenho o menor interesse por qualquer marido que não seja o meu.

- Qual deles? - indagou Creusa, bruscamente. - Dois homens a reclamam e ninguém em Tróia fala de qualquer outra mulher.

- Não tenho culpa se as pessoas não têm outra coisa para fazer senão se preocuparem com os assuntos de seus superiores. Diga-me uma coisa: existe alguma mulher em Tróia que possa alegar que falei alguma palavra com seu marido que não possa ser repetida na presença de nossas mães?

- Eu não disse isso - protestou Creusa -, mas parece que sentiu o maior prazer em se mostrar a todos os homens como a Deusa...

- Então seu problema é com Ela e não comigo, Creusa. Não sou culpada pelo que a Deusa faz.

- Acho que não...

Mas Kassandra não deixou Creusa continuar, interferindo na conversa:

- Não seja tola, Creusa. Não acha que a situação já é bastante terrível com todos os homens lá embaixo na guerra? Se as mulheres começarem a brigar entre si, não restará mais qualquer bom senso em Tróia.

- Se os Deuses e Deusas estão brigando, como podemos evitar os conflitos? - indagou Andrômaca. - Talvez os Deuses sintam prazer em nos ver lutar. Sei que o maior prazer de Heitor é a batalha; se esta guerra cessasse amanhã, ele choraria.

- O que me perturba é que ele parece adorar - comentou Helena. - Dá até para pensar que está possuído por Ares. Kassandra, você é uma sacerdotisa; é verdade que os homens podem ser possuídos por seus Deuses?

Ela pensou em Krises e respondeu:

- É verdade, mas não sei como ou por que acontece. Creio que não apenas por desejarem. Eu já a vi dominada pela Deusa, Helena. Como aconteceu?

- Por acaso está querendo se apresentar como Afrodite? - perguntou Helena, rindo. - Pensei que fosse uma de suas inimigas.

Kassandra fez um gesto devoto.

- Longe de mim ser inimiga de qualquer Imortal. Não a sirvo porque me parece que a Bela não é uma Deusa como a Mãe Terra ou a Mãe Serpente.

- Quando uma Deusa não é uma Deusa? - indagou Helena, com um sorriso irônico. - Não estou entendendo, Kassandra.

- Estou querendo dizer que as Deusas dos akaios são diferentes das Deusas de nossa gente. Sua Deusa Virgem... a guerreira, Atena... é o tipo de Deusa que um homem inventaria, pois dizem que não nasceu de uma mulher, mas saiu já toda armada da cabeça e mente de Zeus. Apesar de todas as suas armas, no entanto, Ela é uma mulher com todas as virtudes domésticas, que daria uma boa esposa para algum Deus. Ela gosta de fiar e é padroeira da oliveira e da videira. Um homem não criaria uma donzela guerreira exatamente assim... brava e virtuosa, mas ainda obediente ao maior dos Deuses? E a Hera de vocês... Ela é como a nossa Deusa Terra, mas seu povo a chama apenas de esposa de Zeus Todo-Poderoso e diz que está sujeita a Ele em todas as coisas, enquanto para nós a Mãe Terra é todo poderosa por si mesma. Ela gera todas as coisas, mas seus filhos e amantes vêm e passam e Ela toma quem quiser; quando o Deus da Morte levou sua filha, Ela fez a própria Terra parar, a tal ponto que não produziu qualquer fruto...

- Mas também temos uma Dama Terra, Deméter - protestou Helena. - Quando Hades levou sua filha, dizem que Ela fez um inverno de terrível frio e escuridão. Ao final, Zeus decidiu que a garota deveria voltar para a mãe...

- E justamente isso - interveio Andrômaca. - Eles alegam que até mesmo

a Mãe Terra está sob a obediência desse grande Zeus. Mas não há sentido nisso. Por que a Deusa Terra, que já era antes de tudo e é todo poderosa, deveria estar sujeita a qualquer homem ou Deus?

- Se vamos discutir qual dos Deuses é mais poderoso - começou Helena -, não são as forças do amor que podem desintegrar tudo nas vidas dos homens... e das mulheres também... fazendo com que sejam cegos a todo o resto...

- Ou seja, criar a desordem e confusão - comentou Kassandra.

- Só fala assim porque nunca esteve sob a influência de Afrodite, Kassandra - disse Andrômaca - Mas se desafiá-la, Ela a fará sofrer por isso.

Sem dúvida era verdade; Kassandra podia lembrar o terrível conflito que sofrera nos braços de Enéias. Vocês não sabem que Ela já está me fazendo sofrer. Mas Kassandra não podia falar a respeito, não com qualquer das mulheres que ali estavam.

- Que isso esteja longe de mim - murmurou ela. - Não desafio ninguém... muito menos uma Imortal.

Contudo, antes mesmo de acabar de falar, lembrou que Krises dissera que seu desafio era um desafio a Apolo. Seria assim mesmo ou apenas Krises - como todos os homens - se mostrava vingativo contra uma mulher que não quisera ceder a seu desejo? E ela também desafiara - mesmo que apenas num sonho - o poder de Afrodite. Com. um pequeno calafrio de medo, como se lançasse um desafio ao Senhor do Sol, Kassandra murmurou:

- Dizem que até mesmo Apolo, Senhor do Sol, matou a Mãe Serpente e ficou com seu poder. Entre todos os homens, aquele que liquida as mulheres de quem derivou é certamente o mais iníquo... e os Imortais permitiriam num Deus o que é uma iniqüidade no homem? Se isso fosse verdade, Apolo não seria um Deus, mas sim o mais cruel dos demônios... o que certamente Ele não é.

Helena acrescentou:

- Quanto à Mãe Terra criar um ano em que não nasceram frutas ou flores, em que não houve colheitas, foi no ano em que Atlãntida afundou no mar, como disse o pai do pai de minha mãe; houve grandes terremotos e enormes nuvens de cinza cobriram o sol. Naquele ano, pode-se dizer assim, não houve verão, pois as próprias fundações da terra estavam abaladas. Mas quem pode afirmar se foi o feito de algum Deus? Não seria surpreendente se os homens pensassem que a Mãe Terra os traíra e procurassem acabar com seu mau comportamento pela criação de um superior, que a faria servir aos homens.

- Acho que não é certo ficarmos aqui a questionar as ações dos Imortais - interveio Creusa, bastante nervosa. - Eles não procuram os homens para dar explicações sobre Seus atos e podem nos punir se tentarmos questioná-los.

- Ora, não diga bobagem! - exclamou Kassandra. - Se Eles fossem tão estúpidos e ciumentos de Seu poder, por que alguém haveria de servi-los?

- Você, que prestou o juramento de servir aos Deuses, não Os teme? - perguntou Andrômaca.

Temo os Deuses, mas não o que os homens dizem que Eles são - respondeu Kassandra.

 

No Templo do Senhor do Sol - como Filida informou a Kassandra no instante em que ela voltou - as serpentes pareciam excepcionalmente irrequietas. Algumas haviam se retirado para o fundo de seus abrigos e não queriam sair para serem cuidadas ou banhadas; outras se mostravam sonolentas e lerdas. Enquanto ia de uma para outra, tentando descobrir o que as perturbava, Kassandra lembrou-se do terremoto, quando Melianta morrera. Seria um aviso de que era iminente outro golpe similar de Possêidon?

Eu deveria enviar uma mensagem ao palácio, pensou ela; mas quando lá apresentara a sua última profecia, fora escarnecida e Príamo a proibira de se manifestar outra vez. Não acreditariam em mim, se mandasse um aviso, concluiu Kassandra. E ela compreendeu nesse instante, sem a menor sombra de dúvida, que não devia se recusar a ouvir a voz que lhe enviava o aviso. Não que pudesse fazer alguma coisa para bloquear a mão do Deus, qualquer que fosse, que poderia provocar o terremoto, mas talvez fosse possível evitar um pouco o pior de sua fúria. Transtornada, ela pegou um manto e gritou para Filida tentar acalmar as serpentes da melhor forma possível. Filida pusera seu próprio filho e Mel na cama, cada um abraçando uma serpente irrequieta. Quando Kassandra se inclinou para acariciar as crianças, a mente foi invadida por imagens do teto desabando; prontamente deu ordens para que fossem arrumadas camas no pátio, onde não seriam esmagadas, caso o prédio desmoronasse. Depois, ela correu para o pátio e gritou:

- Ó, senhor Apolo! Contenha a mão do Seu irmão que sacode a terra! Suas serpentes transmitiram o aviso; permita que todos os Seus servidores escutem!

Pessoas se aproximaram correndo ao ouvir seus gritos. Krises perguntou: - O que aconteceu? Você está doente? Foi atingida pela mão do Deus?

Kassandra fez um grande esforço para controlar a terrível tremedeira de todo o seu corpo. Empenhou-se em falar de maneira racional, as palavras compreensíveis.

- As serpentes no Templo do Senhor me deram o aviso - gritou ela, sabendo que parecia transtornada ou ainda pior. - Assim fizeram quando Melianta morreu. Estão irrequietas, tentando escapar; a terra vai tremer antes do amanhecer. Devemos salvar o que for mais precioso; e ninguém deve dormir sob um teto esta noite, para que não caia sobre sua cabeça.

- Ela está louca! - proclamou Krises. - Há muitos anos que já sabemos que delira com profecias.

- Mesmo assim - interveio um dos sacerdotes mais velhos -, independentemente do que possa ou não saber dos Deuses, ela aprendeu na Cólquida os costumes das serpentes, com uma mestra nessa arte. Se as serpentes lhe deram um aviso... Cárites declarou:

- O aviso foi dado, não podemos ignorá-lo. Façam o que quiserem e assumam as conseqüências. Quanto a mim, farei minha cama sob céu aberto, que não cairá sobre nós, pelo menos por enquanto.

O céu já estava escuro; trouxeram tochas e as sacerdotisas se apressaram em remover do interior do templo qualquer coisa que pudesse correr perigo pela queda de pedras ou paredes. Krises continuou a protestar; convinha a ele, Kassandra sabia, fazer com que todos pensassem que não era verdade qualquer coisa que ela dissesse. Ela correu para os portões.

- Abram! Tenho de avisar os habitantes da cidade e o palácio de Príamo! Não! - gritou Krises. - Não a deixem sair!

Ele se adiantou e estendeu as mãos para segurar os braços de Kassandra, a fim de impedi-la à força de sair do templo.

- Se deve dar um aviso, então soe o alarme. Isso fará com que as pessoas saiam de suas casas, sem dar a impressão de que fomos todos atordoados pelo Deus e nos deixamos levar pelo sonhos delirantes de uma idiota!

- Assuma todo risco por me tocar! Vou sair como os Deuses determinaram para avisar a todos!

O grito de Kassandra chocou-o o suficiente para que a largasse. Ela saiu correndo pelos portões, antes que Krises pudesse detê-la. E chegando à rua, pôsse a gritar:

- Prestem atenção! As serpentes do Senhor do Sol deram o aviso: a terra vai tremer! Tratem de ir para os abrigos que puderem encontrar! Ninguém deve dormir sob tetos esta noite, para que não caiam sobre suas cabeças!

As pessoas, despertadas por seus gritos, saíram de suas casas. Impulsiona da por uma terrível urgência, Kassandra continuou a correr, gritando o aviso, incessantemente. Podia ouvir o tumulto em sua esteira, algumas pessoas dizendo:

- Escusem o aviso da sacerdotisa de Apolo!

Mas outras protestavam:

- Ela está amaldiçoada por um Deus; por que deveríamos acreditar em suas palavras?

Era como se ela estivesse envolta pelo fogo; sentia-se compelida pelo calor a espalhar o alerta. Desceu correndo pelas ruas, sempre gritando o aviso. Quando percebeu onde se encontrava, descobriu que era o pátio do palácio; sua garganta estava dolorida e uma dúzia ou mais de moradores do palácio a fitavam, aturdidos. A voz muito rouca, Kassandra contou sua história.

- Ninguém deve dormir sob um teto, pois o Deus vai sacudir a terra e prédios cairão... cairão... Helena, seus filhos... Páris...

Ela segurou os ombros do irmão, que a empurrou rudemente e disse:

- Já chega! Juro, Kassandra, que não agüento mais as suas profecias maléficas! Vou silenciá-la com minhas próprias mãos!

As mãos de Páris envolveram seu pescoço; a consciência de Kassandra hesitou e ela sentiu, quase com alívio, que a escuridão a engolfava, enquanto havia uma explosão de luz em algum lugar de sua cabeça.

A garganta doía muito; ela levantou a mão para tocá-la, debilmente. Uma voz gentil murmurou:

- Fique quieta. Beba isto.

Ela tomou um gole de vinho, engasgou e tossiu, mas a mão insistiu, até que tomasse outro gole. Sua cabeça se desanuviou; estava deitada sobre as lajes de pedra e tinha a sensação de que a cabeça fora rachada com um machado. Enéias estava inclinado sobre ela e murmurou:

- Está tudo bem agora. Páris tentou sufocá-la, mas Heitor e eu impedimos. Se alguém pode ser chamado de louco...

- Mas tenho de falar com ele! - exclamou Kassandra. - Seus filhos... de Helena.. .

- Sinto muito. Príamo ordenou que todas as pessoas do palácio fossem deitar. Diz que você já perturbou demais a todos e proibiu que alguém desse atenção às suas palavras. Mas se isso lhe serve de algum conforto, mandei que Creusa dormisse no pátio, com a criança. E acho que Heitor também acatou seu aviso, pois comentou que você não conhece as coisas dos Deuses, mas certamente conhece os costumes das serpentes. Agora, beba mais um pouco e depois eu a levarei de volta ao Templo do Senhor do Sol. Ou, se preferir, pode ficar aqui e partilhar o leito com Creusa e a criança.

Kassandra sentiu vontade de chorar pelo amor evidente na voz de Enéias; sabia que era isso e não uma profunda convicção no aviso que o levava a tanta gentileza. Ela se levantou, com a sensação de que cada osso de seu corpo fora moído com porretes de madeira.

- Tenho de voltar e falar com as pessoas no templo, verificar como estão as serpentes e minha filha...

- Ah, sim, Creusa me disse que você estava com uma menina. Uma criança exposta, não é mesmo?

- É sim... mas como soube?

- Eu a conheço muito bem para imaginar que poderia desgraçar sua família tendo uma criança fora de um casamento legítimo.

Kassandra pensou: Nem mesmo minha mãe confiou tanto assim em mim. - Vai me acompanhar até o templo, Enéias?

- Com o maior prazer. Mas você saiu sem seu manto. Vou buscar um ou sentirá frio.

Ele trouxe um manto comprido e grosso que Kassandra já vira Creusa usar. A noite esfriara bastante e mesmo sob o manto grosso ela estremeceu, não tanto pelo frio, mas principalmente por algum perigo sutil que pairava no ar. Era como se pudesse ouvir por baixo de seus pés a própria terra rugindo, com uma insistência que pesava de modo insuportável em sua mente e coração. Mal tinha força para estender um pé à frente do outro e apoiou-se em Enéias. Mas se afastou quando ele se inclinou para beijá-la.

- Não faça isso, Enéias. Você deve voltar... tem uma esposa e filha em perigo... de quem precisa cuidar quando acontecer.. .

- Não me lembre disso. - Ele puxou-a para a curva de seu braço e murmurou, depois de um momento: - Eu amo você, Kassandra.

Ele a tocava gentilmente, da maneira que Kassandra achava tão perturbadora. Ela tratou de se afastar. Enéias acrescentou:

- Meu pobre amor... Juro que, se eu tivesse esse direito, daria uma lição em Páris por machucá-la tanto. Se algum dia ele a tocar de novo, vai descobrir que foi a coisa mais perigosa que já fez na vida. Não cabe a ele decidir qualquer coisa sobre você.

- Ele não compreende isso. - Os dois estavam diante dos portões de bronze do Templo do Senhor do Sol, mas Kassandra não entrou; em vez disso, foi sentar num muro baixo. - Não tenho marido e por isso meu irmão pensa que tem o direito de mandar em mim. Imagino que minha profecia deve parecer uma loucura para aqueles que não vêem nem escutam o que faço. Tentam se resguardar pela recusa em acreditar. Eu também me sinto tão ansiosa quanto qualquer outra pessoa em ignorar o que não quero saber.

- Já vi isso acontecer - murmurou Enéias.

Ele puxou Kassandra por baixo de seu manto e ela deixou que a beijasse. Mas suspirou de cansaço e por isso Enéias a largou, acrescentando:

- Voltaremos a conversar sobre isso amanhã. Talvez...

- Se houver um amanhã - sussurrou Kassandra, com tanta exaustão, que ele piscou de espanto.

- Se o amanhã não chegar, mais do que a morte lamentarei não ter conhecido o seu amor.

Ele falou com tanto ardor que Kassandra sentiu um aperto no coração.

- Acho que também vou lamentar, mas me sinto tão cansada...

Ela começou a chorar. Enéias tornou a beijá-la, gentilmente, e sussurrou:

- Então vamos rezar para que haja um amanhã, meu amor.

Ele largou-a. O peso do mundo trêmulo parecia prestes a rachar e se abater sobre a cabeça de Kassandra, enquanto o observava se afastar. Entrando no templo, ela viu pessoas envoltas em mantas, dormindo nos pátios. Tudo parecia tranqüilo... exceto pelo violento latejar de sua cabeça, o que provocava a sensação de que cada passo era dado sobre ondas. Foi para o pátio das serpentes, onde as crianças dormiam. Deitou ao lado de Mel, puxando a criança para seus braços. Imaginou a terra como uma enorme serpente em torno da cintura da Mãe Serpente, a quem via como uma mulher, enorme e imponente, como a rainha Imandra. O solo parecia tremer gentilmente sob seu corpo; enquanto resvalava para o sono, esperava que os anéis da serpente também a envolvessem.

Em vez disso, parecia resvalar pelas nuvens, intermináveis campos de nuvens, pela vastidão do céu; e finalmente caiu sem ser vista para uma enorme montanha e compreendeu que se encontrava sozinha no pico da montanha proibida, onde os Deuses dos akaios se reuniam. Ouviu o rumor distante da trovoada enquanto Eles falavam. Viu Zeus Tonante como um homem alto e imponente, no vigor da vida, com uma barba cheia e grisalha; parecia que pequenos relâmpagos se movimentavam em torno de seus cabelos, como urna grinalda, enquanto falava.

- Agora que o absurdo de um duelo entre Páris e Menelau acabou, é evidente que Menelau venceu; sugiro que encerremos esta guerra tola e voltemos a tratar das coisas mais importantes.

- Como pode dizer que Menelau venceu, se ele não matou Páris?, - indagou Hera. Era uma mulher alta e imponente, um tanto corpulenta, unia coroa encimando os cabelos. - Insisto que se promova a destruição de Tróia; seus soberanos e seu povo não me servem como deveriam. Além disso, sou a Deusa padroeira do casamento; e Páris me insultou pessoalmente e, fugiu para Tróia, onde Helena foi recebida como a esposa de Páris, sem quaisquer rituais ou sacrifícios a mim.

- Mas eles prestaram homenagem a mim e abençoei o amor entre os dois, disse outra Deusa, num traje reluzente, os cabelos coroados por rosas; Kassandra sabia, por sua semelhança com Helena, que aquela era a deslumbrante Afrodite. Hera riu desdenhosa e disse:

- Seus rituais não são os do casamento legítimo.

- Não são mesmo e me orgulho por isso, pois os seus são apenas os vínculos tediosos da Lei e do Dever. Páris e Helena honram o verdadeiro amor e estou de seu lado.

- Era de se esperar - disse Hera. - Mas sou Rainha dos Imortais e tenho o privilégio de exigir a destruição de Tróia.

Zeus parecia consternado por seu tom, tão mortificado quanto Kassandra vira Príamo ficar quando suas mulheres discutiam. Ele disse: - Minha cara Hera, ninguém contesta o seu direito de exigir isso. Mas deve ser feito da maneira apropriada. Não podemos simplesmente destruir a cidade. Se os troianos podem defender sua cidade, não se pode tirá-la deles de nenhuma maneira. Atena...

Kassandra viu a virgem com elmo de batalha se adiantar, ao chamado de Zeus, a lança faiscando, como uma amazona. Mas foi a imponente Hera quem falou:

- Vá, minha criança, e aconselhe aos akaios; eles estão desanimados e prestes a partirem. Convença-os a recomeçarem a luta e diga que eu, Hera, não permitirei que sejam derrotados.

- Isso me parece ir de encontro a toda sabedoria, pois os troianos nada fizeram de errado, declarou Acena - alta e solene, gentilmente. - E os akaios são orgulhosos. Se lhes entregar a cidade de Tróia, posso garantir, eles cometerão atos terríveis em seu orgulho e iniqüidade, ofendendo a todos os Deuses conhecidos da humanidade. Mas não tenho outra opção senão obedecer à sua ordem, Dama Real.

Ela fez uma mesura para Hera e se afastou. Kassandra, observando a luz lampejante de seu elmo, como um cometa, descobriu-se de pé na planície diante da cidade de Tróia, onde Ateria foi descansar. À sua frente, um enorme garanhão branco bloqueava o caminho de Atena para o acampamento atraio.

Atena disse:

- Posêidon, Aquele Que Sacode a Terra, o que faz aqui? – A figura do cavalo ondulou como uma imagem submarina e tornou-se primeiro um centauro - meio homem, meio cavalo - depois um homem alto e forte, com algas marinhas em vez de cabelos.

Possêidon, irmão de Zeus, pareceu falar com a voz trovejante de seu irmão celestial.

 

- Você foi enviada para trair minha cidade; não a deixarei entrar. - Enquanto falava, Ele bateu com o pé; seguiu-se um estrondo e a terra tremeu...

Kassandra despertou no pátio das serpentes, com as duas crianças ainda dormindo ao seu lado. Mas o chão ondulava como água e ela podia ouvir o rumor da trovoada... ou seria de Posêidon batendo os pés? Kassandra soltou um berro, Mel acordou e começou a choramingar. Ela aninhou a criança em seus braços e observou a grande arcada por cima dos portões balançar para a frente e para trás, à claridade cinzenta do amanhecer, antes de desmoronar.

Um lampião aceso fora instalado no canto do pátio; balançou e caiu, uma língua de fogo se projetando sobre o pano por baixo. Kassandra correu e apagou o fogo. Gritos de terror soavam por todo o templo. O chão se arqueava para cima, não parava de tremer; uma enorme fenda surgiu no chão, estendendo-se pelo pátio e tornando a se fechar. Kassandra observava em silêncio, sentia que se dissolvia o grande peso em sua mente. Acontecera; ela se livrara.

Se tivesse feito sacrifícios a Posêidon, Ele teria se contido? Ela não sabia e !fio podia adivinhar. Largou o cântaro com água que usara para apagar o fogo e correu pelos pátios. Diversas construções haviam desabado, inclusive o dormitório em que as sacerdotisas deveriam estar dormindo. O poste que sustentava um dos portões de bronze do Templo também não resistira; agora, o portão estava pendendo, preso apenas pelas dobradiças. O templo estava em ruínas. Kassandra ;contemplou a cidade, através dos portões entreabertos; casas haviam se transformado em pilhas de escombros e incêndios ardiam por toda parte.

Ela deveria ir ao palácio? Não; dera o aviso ali, mas Príamo proibira que alguém desse atenção; nem ele nem Páris ficariam satisfeitos se ela aparecesse dizendo "Eu não falei?": E falara mesmo. Por que as pessoas tanto relutavam em ouvir a verdade?

Lentamente, Kassandra voltou ao interior do Templo de Apolo. Pelo menos sua própria gente acatara o aviso; parecia que todos haviam sobrevivido e os "poucos incêndios foram apagados num instante. Sua ida ao palácio de Príamo não serviria a qualquer propósito. Ela foi para junto das crianças. Estavam assustadas Com o terremoto e precisavam de seu conforto.

 

A RECONSTRUÇÃO DO TEMPLO

A reconstrução do Templo do Senhor do Sol começou quase que imediatamente. Tantos prédios haviam desmoronado e alguns em tal escala que, Kassandra sabia, seria necessária a fabulosa força dos Titãs para erguê-los de novo. Algumas das pedras maiores não poderiam ser repostas, com a ajuda agora disponível; muitos dos homens aptos da cidade estavam lá fora, combatendo os akaios, sob o comando de Heitor.

Graças ao aviso oportuno de Kassandra, nenhuma vida se perdera no Templo de Apolo. Alguns sacerdotes haviam sido feridos - pernas quebradas, ombros deslocados, um tornozelo esmagado - ao tropeçarem em pedras que não mais se encontravam onde deveriam estar. Havia também queimaduras diversas, sofridas no empenho para se extinguir os incêndios. Uma ou outra serpente escapara na confusão ou se refugiara sob pedras caídas e ainda não fora encontrada. Uma das sacerdotisas mais idosas enlouquecera com o susto e não falara uma só palavra racional desde o terremoto; as outras tratavam-na com poções de ervas e tocavam músicas suaves, mas os curandeiros mais experientes achavam que era impossível que ela recuperasse plenamente o juízo.

Ainda assim, em comparação, os ocupantes da morada de Apolo haviam escapado sem maiores danos. No Templo da Virgem, ao que se informava, algumas sacerdotisas haviam morrido com a queda do teto do dormitório. Ninguém sabia quantas e Kassandra ficou desesperada por causa da irmã Polixena, mas não dispunha de tempo para obter notícias a seu respeito. Consolou-se com o pensamento de que receberia a noticia bem depressa se Polixena estivesse morta.

Como sempre, os distritos mais pobres da cidade, com suas frágeis casas de madeira e lareiras abertas, sem uma proteção adequada, haviam sido os que mais sofreram. Se o terremoto acontecesse poucas horas antes, a devastação seria muito pior; como já era tarde, a maioria dos fogos para cozinhar a refeição noturna já fora apagada.

Mesmo assim, havia uma terrível quantidade de mortos estendidos nas ruas, exceto nos lugares em que casas incendiadas se transformaram em piras fúnebres. Alguns cadáveres ainda se encontravam sob prédios desmoronados, que teriam de ser removidos para recuperá-los, já que os fantasmas dos mortos não enterrados muitas vezes enviavam a pestilência por vingança. Os sacerdotes de Apolo trabalhavam noite e dia, mas levaria algum tempo e todos temiam a vingança de tantos corpos por enterrar.

O palácio de Príamo também não escapara incólume. Os prédios eram de enormes pedras, que resistiam até mesmo à força da fúria de Possêidon, mas um aposento desabara... o aposento em que dormiam os três filhos de Páris e Helena. A maior parte da família de Príamo, inclusive Páris e Helena, escapara ilesa.

O filho de Helena com Menelau, o pequeno Nikos, escondera-se das aias com seu amigo Astíanax. As duas crianças dormiam num pátio (o que lhes fora proibido) e escaparam sem qualquer ferimento... e sem sofrer qualquer punição. Mas o palácio estava dominado pelo desespero por causa dos filhos de Páris e a água foi ampliada para os rituais e sepultamento das crianças.

Kassandra foi se juntar ao lamento nos alojamentos das mulheres no palácio; como nenhum dos meninos tinha mais de sete anos, os guerreiros não tomariam conhecimento oficial das mortes, já que as crianças pequenas ficavam aos cuidados das mulheres. Páris estava lá, tentando confortar Helena, muito pálida e abatida. Nikos, que fora oficialmente entregue aos cuidados do pai apenas poucos dias antes, também estava presente, como a lembrar 'à mãe que ainda tinha um filho.

Helena se adiantou prontamente e abraçou Kassandra.

- Você tentou me avisar, irmã, e me sinto grata por seu empenho.

- Lamento muito - murmurou Kassandra. - Eu só queria.. .

- Eu sabia - disse Helena. - Esta dor não é nova para mim. Minha segunda filha não viveu; era um ano mais moça do que Hermíone e dois anos mais velha do que Nikos. Nunca chegou a respirar. Quando Nikos nasceu, forte e saudável, fiquei com uma Rainha para Esparta e um filho para Menelau criar como guerreiro. Jurei então que não teria mais filhos... mas nada aconteceu como eu decidira.

- Raramente acontece, neste mundo dos mortais - comentou Kassandra.

Páris aproximou-se a tempo de ouvir o comentário foral e lançou um olhar furioso para Kassandra, dizendo:

- Veio tripudiar sobre nós?

- Claro que não. Vim apenas dizei o quanto lamento o que aconteceu.

Não precisamos de sua compaixão, corvo de mau agouro! exclamou Páris, irado. - Sua mera presença só serve para acarretar mais infortúnio!

- Cale-se, Páris! - interveio Helena. - Mas que vergonha! Já esqueceu que ela veio nos alertar sobre a ira de Posêidon? Ou o tratamento que recebeu por sua dedicação?

Páris amarrou a cara, mas Kassandra teve a impressão de que ele parecia um pouco envergonhado. Ela podia muito bem viver sem a boa opinião do irmão; estava muito mais interessada no que Helena pensava a seu respeito.

As crianças foram cremadas e as cinzas enterradas. A trégua prolongou-se por mais dois dias e depois foi rompida por um comandante troiano (como o akaio que encerrara a trégua anterior, ele disse que fora impelido por um Deus, embora se recusasse a informar qual), que disparou uma flecha e feriu Menelau, dolorosamente, mas não (o que era lamentável, comentou Príamo) fatalmente. Se Menelau fosse morto, garantiu o rei, os akaios teriam uma boa desculpa para acabar a guerra e voltar para suas terras. Kassandra não tinha tanta certeza; talvez os Deuses estivessem mesmo ansiosos em destruírem a cidade, como vira em seu... fora de fato um sonho?

Só as mulheres ficaram transtornadas pelo fim da trégua; Heitor, Kassandra pensou, estava contente por voltar aos combates. Em seu carro de guerra, ele comandou os exércitos troianos no dia seguinte, desfilando de um lado para outro das fileiras de infantes, encorajando-os, enquanto os akaios se preparavam para a batalha. As mulheres, como sempre, observavam da muralha.

- Heitor é certamente o melhor auriga - comentou Andrômaca.

Creusa riu.

- O que deve dizer é que ele tem o melhor auriga; mas acho que Enéias não fica muito longe. Quem é o auriga de Heitor? Ele guia como o vento... ou como um demônio.

- E Troilo, o filho mais moço de Príamo - respondeu Andrômaca. - Ele queria participar dos combates, mas Heitor achou melhor mantê-lo sob a sua proteção. Está preocupado porque Troilo não tem mais de doze anos, sem qualquer experiência maior de combate.

- Heitor acha mesmo que Troilo estará mais seguro no carro? Tenho a impressão de que o carro estará nas áreas de luta mais encarniçada e Heitor não terá tempo para protegê-lo.

Andrômaca limitou-se a dar de ombros ao comentário de Kassandra e disse:

- Não me pergunte o que Heitor pensa.

Troilo nada representava para ela, pensou Kassandra, apenas o irmão mais moço de seu marido. Ela lamentaria sua morte, é claro, mas apenas da mesma forma por que lamentara os filhos de Helena; por um dever de família, não mais do que isso.

Helena ainda parecia abatida e acabrunhada pelo pesar, os olhos vermelhos e ardendo, os cabelos sem brilho; mal se dava ao trabalho de afastá-los dos olhos, muito menos em perfumá-los e escová-los com óleo. Ela usava uma velha túnica suja; era praticamente impossível recordar a beleza incrível e deslumbrante que a habitara como a Deusa do Amor. Mas Kassandra não podia esquecer, com a ternura que sempre sentira pela cunhada. Aquilo seria um sinal da negligência de Páris? Seria porque ele se importava muito pouco com os filhos? Kassandra podia perceber que Helena se sentia grata porque o primogênito não morrera no remoto, mas também sentia que os filhos que tivera de Páris lhe eram mais queridos do que o menino que dera a Menelau.

Kassandra tornou a olhar para o campo de batalha, onde Enéias desfilava

um lado para outro em seu esplêndido carro de guerra, gritando o que ela imaginou ser um desafio. A batalha entre exércitos inimigos, ela já observara, muitas vezes assumia a forma de uma sucessão de duelos entre seus campeões. Não eram nada parecidas com as batalhas encarniçadas de que participara quando estava com as amazonas, batalhas que se transformavam numa confusão de lutas implacáveis, em que se matava tantos inimigos quanto possível, de qualquer forma que se pudesse.

- Pronto, ele encontrou alguém para aceitar seu desafio - disse Creusa. - Quem é aquele?

- Diomedes - respondeu Helena.

- O que trocou a armadura.. .

- Isso mesmo - confirmou Andrômaca. - Mas acho que Enéias é um guerreiro mais forte e com aquele carro e seus cavalos...

- Sua mãe era uma sacerdotisa de Afrodite... alguns dizem que foi a própria Afrodite - comentou Creusa. - Deu-lhe os cavalos quando ele veio para Tróia... Mas o que está acontecendo?

Lá embaixo, Diomedes investira como um louco contra Enéias, cujo carro conseguira virar com a lança. Enéias caíra no chão. Creusa gritou, mas o marido levantou-se de um pulo, obviamente ileso, já empunhando a espada. Mas Diomedes cortara os arreios dos cavalos e segurava as rédeas; era evidente, por seus gestos, que reclamava os animais e o carro como seus troféus. Enéias gritou em protesto e raiva, tão alto que as mulheres puderam ouvir sua voz, mas não as palavras. Ele virou-se para Diomedes e, enquanto elas observavam lá de cima, pareceu se tornar mais alto, a cabeça brilhando com uma aura reluzente. Um pensamento aflorou na mente de Kassandra: Eu não sabia que seus cabelos eram da mesma cor que os de Helena! E depois ela compreendeu que contemplava a própria Deusa da Beleza, virando-se para Diomedes com a fúria de um Imortal. Diomedes vacilou visivelmente, pois não estava preparado para aquilo. Mas a coragem não lhe faltou; ele avançou para o vulto imponente de Afrodite, desferindo um golpe com a espada e ferindo a forma da Deusa na mão.

Abruptamente, era outra vez Enéias quem estava no campo de batalha, gritando como uma mulher e sacudindo a mão, da qual o sangue esguichava. Diomedes não perdeu a vantagem, mas levantou o escudo e a espada em defesa. Enéias, no entanto, atacou com todo vigor e depois de um momento Diomedes tombou no chão; poucos segundos depois Agamenon e quatro de seus homens se adiantaram em socorro a Diomedes, rechaçando Enéias com golpes furiosos. O carro de Heitor avançou velozmente, ele saltou e enfrentou Agamenon por um instante, com um violento entrechoque de espadas, enquanto puxava Enéias para seu carro. Depois, eles voltaram para os portões de Tróia, enquanto um punhado de soldados de Heitor afastava Agamenon e seus homens do carro de Enéias e conseguia recuperar seus cavalos.

Ele está ferido! - gritou Creusa, descendo a escada, desabalada.

As outras mulheres seguiram-na apressadas, chegando lá embaixo bem a tempo de receberem o carro de Heitor, que fez sinal para que eles recuassem.

- Voltem para podermos fechar os portões, a menos que prefiram que Agamenon e metade do exército akaio entrem aqui!

As mulheres recuaram e os homens se juntaram para empurrar os enormes portões, encurralando lá dentro um desafortunado soldado akaio.

- Joguem-no por cima da muralha para seus amigos - ordenou Heitor. - Eles o querem e nós não.

Creusa estava junto de Enéias, chamando os curandeiros para tratarem de sua mão. Ele parecia atordoado; mas quando Kassandra se aproximou e começou a cuidar de sua mão, Enéias sorriu e perguntou:

- O que aconteceu?

- Se você não sabe, como podemos contar? - disse Heitor. - Estava lutando com Diomedes e parou de repente...

- Não era você, mas Afrodite - interveio Helena. - Ela lutou através de você.

Enéias soltou uma risada.

- Não me lembro de qualquer coisa, exceto que senti uma raiva intensa porque Diomedes tentava levar meu carro e os cavalos. A próxima coisa de que me lembro é de ouvir alguém gritar e ver minha mão sangrando...

- O grito foi seu ou da Deusa - disse Heitor.

Enéias riu de novo.

- A Bela gritando por todo o caminho de volta ao Olimpo, indo sentar no colo de Zeus Tonante e falando sobre os combates dos homens repulsivos. Espero que o Tonante lhe ordene, com firmeza, que permaneça longe do campo de batalha daqui por diante; não é lugar para mulheres... nem mesmo quando são Deusas.

Kassandra terminou de fazer o curativo em sua mão.

Os olhos de Enéias lhe sorriram. Para ela, ele ainda mantinha o encanto da Deusa e seu coração bateu mais depressa. Será esta a vingança da Deusa porque

eu não quis servi-la? Será que Afrodite me conquistou, quando Apolo não foi capaz?

Foi com relutância que ela largou a mão de Enéias. Havia uma pequena matraca Ai perto, onde os soldados compravam pão e vinho no meio do dia; Heitor foi até lá e voltou com duas taças com vinho. Estendeu uma para Enéias, que queria aceitar. Creusa disse:

- Tome o vinho, pois perdeu muito sangue. Ele sacudiu a cabeça.

- Já me cortei pior e perdi mais sangue ao fazer a barba.

Mas ele acabou tomando um gole do vinho e depois soltou uma risada.

, Fico imaginando se contarão as mesmas histórias absurdas que inventaram quando a Deusa apareceu no momento em que Páris e Menelau lutavam.

- Pode ter certeza de que isso acontecerá - disse Kassandra. Enéias a fitava fixamente. Ela acrescentou: - Os akaios parecem gostar desse tipo de história.

- Os Deuses fazem o que querem e não o que lhes pedimos – comentou Enéias. - Contudo, por minha ancestral divina, eu gostaria que Eles fossem embora e nos deixassem continuar a guerra por nós mesmos. Não é da conta d'Eles, mas apenas da nossa.

- Tenho a impressão de que talvez seja mais uma coisa dos Deuses do que nossa - sugeriu Helena. - E não podemos dizer muita coisa a respeito.

Mas porquê? – indagou Andrômaca. – por que os Deuses se importariam com quem ganha uma guerra entre os mortais?

Heitor deu de ombros. - Por que não?

E para essa indagação nem mesmo Kassandra arriscou uma resposta.

- Houve um tempo em que acreditei que estávamos completamente à mercê dos soldados akaios - acrescentou Heitor. - Mas agora que Akiles os

abandonou...

- Essa situação não pode continuar por muito mais tempo - disse Helena.

Não posso imaginar o grande Akiles permanecendo indefinidamente em sua tenda, amuado, como um garotinho...

- Mas Akiles é exatamente assim - garantiu Enéias. - Pode haver algo de magnífico e heróico em tombar diante de um louco, mas é diferente com um menino doentio, arrogante e cruel.

Heitor comentou, sem qualquer mudança na expressão: - Não devemos questionar as decisões dos Deuses.

- Se os Deuses tomam decisões que seriam repelidas como as decisões de um louco, talvez não devam ser obedecidos às cegas - declarou Enéias. – Talvez... - Mas ele baixou a voz e olhou ao redor, apreensivo talvez Eles estejam nos testando, para saber se temos coragem bastante para Lhes resistir.

- Mas por quê? - indagou Andrômaca. - Por que os Deuses se importa.

- Talvez Eles sejam tão voluntariosos quanto Akiles - disse Helena. - E se não podem fazer o que quiserem no jogo, então não querem mais brincar e se mostram dispostos a destruir tudo, a esmagar os brinquedos.

- Acho que é isso mesmo - murmurou Heitor. - E nós somos os brinquedos.

 

Durante os dias seguintes Kassandra soube das notícias da guerra por intermédio da velha vendedora de bolos. Parecia que Akiles continuava em sua tenda, sem jamais aparecer, nem mesmo para encorajar os companheiros; e a guerra se arrastava sem muitas mudanças. Heitor travou um prolongado duelo com Ajax; lutaram até estar escuro demais para prosseguir, sem que nenhum dos dois levasse qualquer vantagem. Agamenon tentou um blefe, ameaçando sair da guerra também se Akiles não lutasse; mas os akaios receberam essa ameaça com tanto júbilo, correndo para os navios e começando a arrumar suas coisas para a partida, que ele teve de passar a maior parte do dia seguinte persuadindo seus homens a voltarem, oferecendo-lhes presentes e subornos para que continuassem a combater.

Kassandra teve naquela noite sonhos confusos com o Olimpo. Hera, alta e orgulhosa, exigia ajuda para destruir a cidade de Tróia.

- Zeus nos proibiu de interferir - respondeu Atena, sombria e triste. - Mas eu bem que gostaria que ele me permitisse aconselhar os troianos, conceder-lhes minha sabedoria. Por quê os odeia com tanta intensidade, Hera? Ainda está com ciúme porque Páris não lhe deu a coroa da beleza?. Mas o que esperava? Afinal, a Deusa da Beleza; aprendi há muito tempo que não podia competir com ela. E por que se importaria com o que pensa um mortal?

- Você então, Possêidon! - A orgulhosa Hera virou-se para o peludo Deus do Mar, corpulento, barbudo, musculoso como um nadador. - Quero sua ajuda para destruir as muralhas de Tróia. Zeus assim ordenou e não ficará furiosa quando acontecer.

- Não conte comigo - respondeu Posêidon. - Não até chegar o momento perto. Já aprendi que não se deve conspirar com uma mulher contra a vontade de seu marido.

Um relâmpago surgiu quando Hera bateu o pé e gritou:

- Vai se arrepender por isso!

Mas Posêidon assumira a forma de um grande garanhão branco e se afastava a galope pela praia; o ressoar dos cascos parecia o estrépito das ondas ao longo do quebra-mar que os akaios haviam construído.

Kassandra despertou dominada pelo terror, ouvindo o som da ira de Posêidon e especulando se isso pressagiava outro terremoto; mas tudo estava quieto no templo e ela acabou voltando a dormir. Pela manhã descobriu que uns poucos vasos e pratos haviam caído de mesas e prateleiras. Um lampião também caíra, mas a chama se extinguira no chão de pedra sem atear fogo a coisa alguma; se houvera um terremoto, fora bem pequeno, pouco mais que um dar de ombros do Deus. Os Imortais pareciam ter as mesmas discórdias sem solução como os duelos inconclusivos entre os soldados, que nada resolviam. Os soldados, é verdade, aram apenas humanos e não se podia culpá-los por um comportamento tolo; mas Kassandra pensava que os Deuses agiam de outra forma.

Ela decidiu que naquele dia se manteria à distância da muralha da cidade; já visa duelos demais e calculava que não aconteceria nada de novo, enquanto Akiles permanecesse escondido em sua tenda. Era surpreendente, refletiu ela, quanto tempo desperdiçara ultimamente em conversas ociosas com as outras mulheres, observando os combates do alto das muralhas.

Mel estava ficando maior do que suas túnicas. Kassandra passou a manhã procurando entre os seus próprios pertences e indagando a outras sacerdotisas; talvez houvesse alguma coisa apropriada entre as oferendas que pudesse aproveitar para fazer algumas roupas para sua filha. Recebeu uma peça tingida com açafrão (que ela achou que combinaria muito bem com os cachos escuros e os olhos escuros e irrequietos da menina), com a qual poderia fazer uma túnica e um lenço. Mel ainda precisaria de sandálias; agora, já corria por toda parte e depois do terremoto os pátios estavam cheios de detritos, que poderiam machucar seus «s. Kassandra chegou a chamar uma serva para ir ao mercado comprar couro Para as sandálias, mas depois mudou de idéia e resolveu ir pessoalmente, levando a criança.

Mel estava agora bastante grande para andar ao seu lado e para compreender que ganharia sandálias, como uma menina crescida; Kassandra adorou a sensação da mão rechonchuda na sua. Examinou as sandálias à venda; os preços não pareciam exorbitantes. Experimentou um par resistente na criança e constatou que eram sandálias bem-feitas. Permitiu que Mel escolhesse o modelo que mais lhe agradava.

- E para você, dama? - perguntou o vendedor de sandálias.

Por hábito, Kassandra já ia dizer que não, depois acompanhou o olhar do

homem para seus pés. Suas sandálias estavam bem gastas, as solas furas, uma tira remendada duas vezes. Afinal, ela as usara para ir à Cólquida e voltar.

- Estas sandálias já percorreram metade do mundo. Imagino que merecem ser largadas no pasto para descansar, como uma velha égua.

Ela deixou que o homem mostrasse vários pares, todos grandes demais. O homem acabou medindo seus pés e disse:

- A dama tem um pé muito pequeno. Terei de fazer um par sob medida.

- Não fui eu quem fiz meus pés. Se me fizer um par por este modelo... - Ela indicou as sandálias que quase haviam se ajustado a seus pés    será ótimo. Enquanto isso, você pode consertar as tiras destas mais uma vez.

= Acho que não vão agüentar, pois já foram costuradas muitas vezes - protestou o homem. - Se não se incomoda em esperar na minha humilde loja por apenas meia hora, as novas ficarão logo prontas. Posso mandar lhe buscar um copo de vinho? Uma fatia de melão? Alguma coisa para a criança?

- Não, obrigada.

Mel também tinha de aprender a esperar pacientemente quando necessário. Kassandra ficou de pé, observando o homem aparar as solas das sandálias que haviam ficado um pouco grandes demais, reajeitar as tiras e depois costurá-las com o dedal e a pesada agulha para couro. Ele tinha uma agulha de ferro e talvez fosse por isso que trabalhava tão depressa, pensou Kassandra; as agulhas de bronze não penetravam no couro com tanta facilidade. Ela se perguntou se o homem a teria contrabandeado através do bloqueio ou se a negociara com os akaios. Provavelmente era melhor não saber. Tal comércio era proibido; mas se os guardas de Príamo pusessem na prisão todas as pessoas que participavam do comércio ilegal, não haveria qualquer negociação e a cidade pararia por completo.

Já era bastante difícil encontrar muitos alimentos, depois do sítio prolongado; o que salvara a cidade eram as hortas dentro das muralhas, onde cresciam videiras e oliveiras, as fontes de vinho e azeite, onde se cultivavam legumes. Em muitas casas havia pombos e coelhos em gaiolas, antes guardados para sacrifícios; agora, serviam para comer e evitar a fome mais forte. O pão era escasso, exceto para os soldados e o palácio, embora algumas carroças com os grãos tivessem chegado por terra, evitando os navios akaios, durante a trégua.

Agora que a trégua fora oficialmente suspensa, isso significaria um aperto no sitio? Ou os akaios cansariam de lutar sem Akiles e iriam embora outra vez? Talvez isso fosse o melhor que pudesse acontecer.

Mas se eles achassem que tinham os Deuses de seu lado... e nesse ponto os pensamentos de Kassandra recaíram na confusão antiga: por que os Deuses haveriam de se intrometer nos assuntos dos homens? A resposta de Heitor fora Mito simples: Por que não? Ela vinha se fazendo essa pergunta desde o início da perra e ainda não encontrara uma resposta... exceto nos sonhos. Sonhos! De que adiantavam?

Mas os sonhos tinham lhe dado o aviso do grande terremoto; portanto, devia confiar neles. Além do mais, não os tinha por sua vontade. Os sonhos simplesmente ocorriam; ela os ignorava por sua conta e risco... e, por tudo o que sabia, por conta e risco de Tróia e de seu mundo.

Ela estava absorvida em tais devaneios quando ouviu uma grande comoção nas ruas; o cirro de guerra de Heitor descia em disparada pela cidade, a caminho das portões. Para Kassandra, observando de um banco no interior da oficina, parecia que metade da população de Tróia saía às ruas para observar. Depois de tanto tempo, era de se esperar que os troianos encarassem aquela cenas como um fato costumeiro e não mais se, preocupassem em observar. Mas havia tanto entusiasmo evidente quanto nó, principio dia em que Heitor desfilara à frente de seus cavaleiros. Isso era ótimo para Feitor, refletiu ela, corri algum sarcasmo. O homem trouxe o novo par de sandálias e ficou observando a passagem do carro de Heitor, em vez de ajudar Kassandra a calçá-las.

- Ele guia seu barro como o próprio Deus da Batalha - comentou o homem. - Ele é seu irmão, princesa?

- E, sim. Somos filhos do mesmo pai e da mesma mãe.

- Como ele é? Um herói como parece?

- Pode estar certo de que ele é um guerreiro bravo e valoroso.

Mas seria bravura ou apenas falta de imaginação? Páris podia simular bravura, mas apenas porque temia ser considerado um covarde mais do que qualquer outra coisa.

- Mas ele é mais do que isso - acrescentou Kassandra. - Heitor é um homem de bem, além de um bom guerreiro. Possui outras virtudes além da bravura. - O homem parecia um pouco surpreso, como se não pudesse imaginar quaisquer outras virtudes. - O que estou querendo dizer é que ele seria digno de admirar mesmo que não houvesse guerra.

E isso, pensou Kassandra, dificilmente se poderia dizer de qualquer dos seus outros irmãos; pareciam pouco mais do que armas animadas, sem muito

Pensamento sobre o que faziam ou por quê. Páris possuía algumas boas qualidades... embora quase não as manifestasse para uma irmã: era gentil com Helena, demonstrava bondade e respeito pelos pais idosos, fora um pai afetuoso, enquanto os filhos viviam. Era bondoso até com o filho de Helena e Menelau. Enéias também tinha esse tipo de caráter... ou será que penso assim apenas porque o amo? O fabricante de sandálias ainda louvava os atributos de Heitor. Kassandra disse:

- Ele ficará satisfeito em saber que é tão bem considerado na cidade.

O que era a pura verdade. Ela pagou as compras e saiu para a rua. No mesmo instante teve de puxar Mel para afastá-la dos pés da multidão que bloqueavá a passagem, vindo da rua pela qual quatro carros de guerra, conduzidos por Enéias, Páris, Deífobo e o comandante trácio Glauco, desciam na esteira de Heitor, a caminho dos grandes portões.

Será que Príamo resolvera enviar seus melhores campeões contra os akaios, embora Akiles não estivesse participando de qualquer combate... ou na esperança de atrair Akiles para a luta? O pensamento despertou sua curiosidade; Mel já tentava correr atrás da multidão e por isso Kassandra desceu até a muralha. Lá chegando, subiu pela escada interna para o ponto de observação predileto das mulheres.

Como já esperava, encontrou Helena, Andrômaca e Creusa ali, junto com Hécuba. Todas a cumprimentaram com afeição. Ela constatou que Helena não mais parecia abatida. E dali a pouco ela confidenciou a Kassandra que achava estar grá4da de novo. Andrômaca comentou:

- Não entendo como alguma mulher, em sã consciência, pode trazer um filho para um mundo dominado por esta guerra. Falei isso para Heitor, mas ele respondeu que é justamente em ocasiões assim que as crianças são mais necessárias.

- E as crianças também morrem quando não há guerra - disse Helena. - Perdi meu segundo filho para a negligência de uma parteira e três de meus filhos morreram num terremoto. Poderiam ter caído para a morte do ninho de aves num rochedo ou sido pisoteados por um touro fugitivo dos jogos. Não há segurança para as crianças em qualquer parte deste mundo mortal. Mas se todas nós decidíssemos não gerar crianças por causa disso, o que seria do mundo?

- Você tem mais coragem do que eu - murmurou Andrômaca. - Assim como Páris é mais ousado do que Heitor em seu carro... olhem como ele corre para os portões!

Era difícil determinar que homem estava guiando mais impetuosamente; todos os cinco carros passaram pelos portões quase ao mesmo tempo, acompanhados pelos infantes de Heitor. Os akaios ainda não haviam formado linhas de batalha; Kassandra percebeu o caos e a confusão no acampamento argivo, enquanto os soldados corriam entre as tendas, gritando, procurando por armas. Os Carros avançavam ruidosamente para o acampamento. Kassandra percebeu agora t4ue cada carro transportava um braseiro com carvões e mais alguma coisa - alcatrão? piche? - com um arqueiro mergulhando flechas na mistura ardente e depois disparando-as contra os navios na enseada, além do acampamento. Por alguns minutos, enquanto tentavam conter os carros, os akaios não perceberam o objetivo do ataque; depois, ressoou um grito de raiva... mas a esta altura os carros já se encontravam na praia e vários navios estavam em chamas.

Os infantes de Heitor estavam bem organizados, atacando os homens ainda surpresos de Agamenon.

Um navio depois de outro, atingido por uma flecha incendiária nas velas recolhidas, pegou fogo, com os marujos relutando em enfrentar as chamas e se jogando ao mar, o que aumentava ainda mais a confusão. Os homens de Heitor desviaram agora sua atenção dos navios para as tendas dos akaios. Havia gritos e uma tremenda confusão por todo o acampamento, com os homens tentando sem muito ânimo combater as chamas e muitos se ferindo. Um dos navios (Kassandra soube depois que levava uma carga de óleo) já queimara até a linha d'água e afundou. Os homens de Heitor aclamaram.

Os troianos estavam agora cercados por infantes akaios, que, tentavam derrubar os cavaleiros; mas os arqueiros continuaram a disparar suas flechas incendiárias contra as tendas, até que a fumaça se tornou tão deusa que as mulheres na muralha não podiam ver mais nada. Outro navio afundou na enseada e as Chamas se extinguiram na água.

As mulheres aclamaram. Um momento depois houve uma comoção na muralha entre os guardas. Soldados troianos passaram correndo por elas, até o ponto em que alguns arqueiros se encontravam postados. Soaram gritos, uma combinação de aclamações e escárnios, houve um terrível estrondo. Quando o Comandante dos arqueiros voltou, Andrômaca perguntou o que acontecera. Saudando-a respeitosamente, ele disse:

- A princípio pensamos que fosse o próprio Akiles que escolhera este momento para uma diversão. Mas não era ele e sim aquele seu amigo... como é mesmo o nome dele?... ah, sim, Pátroklo. Ele subiu pela muralha do oeste, onde há pedras soltas pelo terremoto.

- E conseguiram acertá-lo? - indagou Andrômaca.

- Não, senhora. Disparamos algumas flechas, que passaram zunindo em torno de sua cabeça. Ele perdeu o equilíbrio e caiu. Seus arqueiros responderam â nossa barragem e lhe deram cobertura, enquanto ele demonstrava possuir um  par de pernas, correndo de volta para o acampamento. É uma pena que não o tenhamos acertado. Se ele levasse uma flechada na garganta, talvez Akiles ficasse tão desolado que iria embora.

- Não importa - disse Andrômaca. - Você fez o melhor que podia. E pelo menos ele não conseguiu entrar na cidade.

- Com sua licença, senhora, o melhor que podemos não é o suficiente para o príncipe Heitor. - O tom do soldado era pessimista. - Mas acho que tem razão: não, há nada que possamos fazer agora e nãe4dianta se preocupar com o que não podemos remediar. Talvez ele nos dê outra chance um dia e vamos então pegá-lo de jeito.

- Que o Deus da Guerra assim permita - murmurou Andrômaca.

As mulheres tornaram a olhar por cima da muralha; os carros se afastavam agora do acampamento akaio e voltavam correndo para os portões da cidade. Embora não pudesse distinguir àquela distância um carro de outro, Kassandra contou-os e constatou que não faltava nenhum. Portanto, o ataque aos navios fora um sucesso total. Lá embaixo, o vigia gritou:

- Todos de prontidão para abrir os portões!

Um momento depois elas ouviram o rangido das cordas que abriam os enormes portões. Helena e Andrômaca desceram para receber seus maridos; as outras mulheres continuaram no topo da muralha. Hécuba aproximou-se e Kassandra perguntou-lhe:

- O rei não estava com os carros?

- Não estava, não, Kassandra. Suas mãos não dão mais para conduzir um carro de guerra. Os sacerdotes curandeiros o tratam com óleos curativos e encantamentos, mas ele piora a cada dia. Mal consegue amarrar as tiras das sandálias.

- Lamento saber disso, mãe, mas para a velhice não há encantamentos curativos, nem mesmo para um rei.

- E acho que também não para uma rainha - murmurou Hécuba.

Observando-a atentamente, Kassandra percebeu como a mãe estava frágil, as costas encurvadas e tão magra que os ossos pareciam se projetar através da pele. Hécuba sempre tivera uma pele que parecia viçosa e brilhante; agora, porém, estava pálida e opaca, os cabelos escorridos pareciam sujos, de um branco amarelecido. Até mesmo os olhos pareciam ter perdido o brilho.

- Você não está bem, mãe.

- Estou bastante bem. Seu pai me preocupa muito mais. E Creusa também. Ela está grávida de novo e é provável que haja uma escassez de alimentos nutritivos na cidade neste inverno. As colheitas não foram boas e os akaios queimaram uma boa parte do que havia.

- Há bastante alimento na Casa do Senhor do Sol - disse Kassandra. – A a parte e de Mel é sempre mais do que podemos comer. Darei um jeito para Creusa receba o suficiente.

- Você é muito boa - murmurou Hécuba, estendendo a mão e afagando os cabelos da filha.

A mãe raramente a acariciara desde que ela era bem pequena e Kassandra sentiu-se enternecida.

- Não temos apenas alimentos, mas também ervas curativas em abundância. Deve sempre me procurar se alguém no palácio estiver doente ou sofrendo privações. Podemos partilhar o que temos com nossas famílias. Mandarei algumas ervas para o pai e deve pô-las numa infusão com água quente. Depois, mo,#4c um pano e cubra as mãos do pai. Pode não curá-lo, mas vai atenuar a dor.

Hécuba olhou para Mel, que estava sentada na muralha, brincando com alguns seixos. Kassandra lembrou de um jogo que fazia quando era pequena; ela e as irmãs, as outras filhas da casa real, escolhiam pedrinhas redondas e as punham em nichos na muralha para cozinhar, como se fossem pães ou bolos, examinando as a intervalos de poucos minutos, a fim de verificar se já estavam bons. Ela sorriu à lembrança. Os carros de guerra estavam agora dentro das muralhas e os portões sendo fechados. Hécuba perguntou:

- Vai jantar no palácio? Embora coma melhor na Casa do Senhor do sol.

- Esta noite, não, mas agradeço. Mandarei as ervas por um mensageiro. Espero que ajudem o pai... não podemos dispensar as suas forças nos dias de

hoje. Nem que Heitor esteja em condições de reinar em Tróia, mesmo que sobres, viva ao pai.

Kassandra parou de falar abruptamente, mas Hécuba ouvira e a fitava com lana expressão chocada. Ela não disse nada, mas Kassandra sabia o que estava pensando.

Então ela acredita que Heitor pode morrer antes do pai, embora Pr(amo esteja velho e doente. O que mais ela viu?

Os aurigas deixaram os carros. Heitor e Páris, acompanhados pelas esposas, subiram a escada. Enéias juntou-se a Creusa. Kassandra pegou Mel no colo; se não tencionava jantar no palácio naquela noite, estava na hora de partir.

Creusa aproximou-se e disse:

- Vou acompanhá-la até a Casa do Senhor do Sol, irmã.

- Terei o maior prazer em sua companhia, mas o sol ainda está alto no C u. Não preciso de escolta... e você não deve se cansar com uma subida tão longa.

- Mas quero ir - insistiu Creusa. - Gostaria de conversar com você. - Está bem; como eu disse, tenho o maior prazer por sua companhia.

Creusa entregou a filha pequena a uma serva instruindo-a a levar a criança para casa e alimentá-la, se ela não voltasse até a hora do jantar. Depois, foi se juntar a Kassandra, que estava amarrando o chapéu de aba larga de Mel, como proteção contra o sol.

- Ela está bastante crescida para sua idade, Kassandra. Quantos anos ela tem? Quando nasceu?

- Tenho certeza de que a mãe já lhe disse que não sei. Mas ela não podia ter mais que uns poucos dias de idade quando a encontrei; e deixei a Cólquida no meio do inverno passado.

- Quase um ano então; ela deve ter mais ou menos a idade de minha filha. Mesmo assim, é mais alta e mais forte, já anda ao seu lado como uma menina crescida. A pequena Kassandra ainda engatinha, como um cachorrinho.

- Os que conhecem bem as crianças dizem que cada uma anda e fala quando chega o seu momento certo... algumas mais cedo, outras mais tarde. A mãe diz que eu andei e falei cedo e lembro de coisas que não devem ter acontecido depois de meu segundo verão.

- Isso é verdade - concordou Creusa. - Astíanax não andou nem falou até já ter mais de dois anos. Sei que Andrômaca já começava a pensar que talvez ele fosse retardado.

- Pois então pare de se preocupar.

Kassandra sentia-se confusa; com toda certeza, Creusa não resolvera assumir a longa subida em sua companhia para falar sobre o desenvolvimento e alimentação de crianças, quando o palácio estava repleto de aias que poderia consultar.

O que quer que fosse, Creusa estava encontrando dificuldades para falar; mas quando Kassandra já começava a especular se Creusa descobrira de alguma forma o que ela dissera a Enéias (Mas como? Alguma serva espionando? Ela podia jurar que ninguém os .ouvira) e a se sentir culpada, Creusa disse:

- Você é uma sacerdotisa e dizem que também uma profetisa; não foi você quem deu o aviso sobre o grande terremoto?

- Pensei que estava presente quando dei o aviso.

- Não, não estava. Enéias foi me dizer para não dormir sob um teto naquela noite e levar as crianças. O que você previu?

Creusa sabe tão bem quanto eu que vi a morte e a destruição de Tróia, pensou Kassandra; mas estava certa de que a irmã tinha algum motivo além do comum para perguntar. E disse, hesitante:

Tem certeza de que quer mesmo saber? Príamo proibiu todas as pessoas de escutarem minhas profecias. Talvez seja melhor não irritá-lo.

- Vou explicar por que pergunto, Kassandra. Enéias me contou que você profetizou que ele sobreviveria à queda de Tróia.

- É verdade - murmurou Kassandra, embaraçada. - Parece que os Deuses tem uma missão para ele longe daqui. Eu o vi partindo ileso, deixando Tróia em chamas.

Creusa levou as mãos ao peito, num estranho gesto.

Então é verdade?

Acha que eu mentiria a respeito?

- Não, claro que não; mas por que ele seria poupado, quando tantos morrerão?

- Não sei; por que você e sua criança foram poupadas, quando Helena perdeu três filhos no grande terremoto?

- Porque Enéias acatou seu aviso e Páris ignorou.

- Não é disso que estou falando, Creusa. Ninguém pode explicar por que os Deuses escolhem uma pessoa para morrer e outra para viver... e talvez as que

,vivem não sejam as mais afortunadas.

Eu gostaria de ter certeza de que só a morte me aguarda, pensou Kassandra, mas não disse isso a Creusa.

- Enéias me ordenou que deixasse a cidade o mais depressa possível e leve as crianças.

- Crianças Pensei que você só tivesse uma filha.

- Mas Enéias tem um filho de um casamento anterior. Talvez eu vá para Creta ou Knossos, até mais longe. Pensei em recusar, dizer que meu lugar era ao seu lado, mesmo com a guerra e morte. Mas se é verdade que ele vai sobreviver com certeza, então posso compreender por que quer que eu parta... a fim de podermos nos encontrar em terra mais segura, quando a guerra acabar.

- Tenho certeza de que ele pensa apenas em sua segurança.

- Enéias tem se comportado de maneira muito estranha ultimamente. Parece até que encontrou outra mulher e deseja me ver fora do caminho.

Kassandra murmurou, através da boca ressequida:

- Mesmo que assim fosse, faria alguma diferença? Como quase todos na cidade deverão morrer com sua queda...

- Acho que não; se alguma mulher pode fazê-lo feliz por algum tempo todos vão morrer... por que eu deveria me importar? Acha então que devo ir embora?

- Não posso lhe dizer isso; só posso garantir que bem poucos sobreviverão à queda da cidade.

- Mas é seguro viajar com uma criança tão pequena?

- Mel não devia ter mais que uns poucos dias quando a encontrei, mas sobreviveu e cresceu. As crianças são mais fortes do que pensamos.

- Pensei que talvez ele quisesse apenas se livrar de mim. Mas você me fez compreender por que devo partir. Obrigada, irmã. - Inesperadamente, ela abraçou Kassandra e apertou-a com força. - Você também deve abandonar a cidade, antes que seja tarde demais. Não é a responsável por esta maldita guerra com os

akaios e não há motivo para que pereça com a cidade. Pedirei a Enéias para que providencie também a sua partida.

- Não, Creusa. Parece que esse é o meu destino e devo aceitá-lo.

- Enéias fala muito bem de você, Kassandra. Ele me disse certa ocasião que você é mais inteligente do que todos os oficiais de Príamo juntos e que poderíamos vencer esta guerra se estivesse no comando.

Kassandra riu, inquieta.

- Ele pensa bem demais de mim. Mas você deve partir, Creusa; reuna os seus pertences e esteja pronta para partir no momento em que ele conseguir um navio ou qualquer outro meio de transporte para levá-la e às crianças para um lugar seguro.

Creusa tornou a abraçá-la.

- Se vou partir em breve, talvez não tornemos a nos encontrar. Mas para onde quer que o destino possa me levar, irmã, quero que saiba que desejo o seu bem; e se Tróia de fato cair, rogo aos Deuses que a preservem.

- E a você também - murmurou Kassandra, beijando-a no rosto.

As duas se separaram. Kassandra ficou observando a irmã desaparecer, sabendo no fundo de seu coração que nunca mais tornaria a ver Creusa.

 

Desde a batalha em que cinco de seus navios foram queimados e afundados e outros bastante danificados que os akaios haviam apertado o bloqueio ainda mais, a tal ponto - como disse Heitor - que um caranguejo não poderia rastejar para a cidade. Por esse motivo, Enéias não fez qualquer tentativa de tirar a esposa de Tróia pelo mar; ela foi despachada numa carroça pelo interior, para depois percorrer muitos quilômetros ao longo da costa, além do bloqueio, onde encontraria um navio que a levaria primeiro ao Egito e depois a Creta. Kassandra observou-a partir e refletiu que Príamo, se tivesse um mínimo de bom senso, ordenaria a evacuação de todas as mulheres e crianças da cidade. Mas ela não fez qualquer comentário a respeito; já se empenhara ao máximo para alertar a todos.

Nem mesmo o lado da cidade para o interior estava agora completamente seguro. Uma caravana com armas de ferro, procedente da Cólquida, foi interceptada e levada para o acampamento akaio, com uma grande comemoração. Pouco depois, um pequeno exército de trácios, vindo por terra para se juntar às forças de Príamo, foi emboscado por comandantes akaios; os rumores diziam que Agamenon e Odisseu estavam no comando da emboscada, em que todos os cavalos foram roubados e os guardas trácios assassinados.

- Isso não é guerra, mas sim uma atrocidade - protestou Heitor. - Os trácios ainda não integravam os exércitos de Tróia e Agamenon nada tinha contra eles.

- E agora nunca terá - comentou Páris, cinicamente.

Isso provocou outro ataque dos akaios, sob o comando de Pátroklo, que tornou a escalar as muralhas à frente de seus homens; os troianos conseguiram repeli-los e veio a noticia de que Pátroklo teria sido ferido, embora não gravemente.

Por insistência de Kassandra, o povo da Casa do Senhor do Sol construiu um altar e sacrificou dois dos melhores cavalos de Príamo a Posêidon. Outro terremoto poderia destruir todas as muralhas e portões de Tróia, deixando a cidade exposta às forças sitiantes dos akaios. Esse era agora o único temor de Kassandra; ela sabia que era inevitável, mas se os troianos envidassem todos os esforços para apaziguar Posêidon, talvez o Deus se contivesse um pouco.

As forças akaias lutavam sem o seu maior guerreiro; Akiles ainda permanecia em sua tenda. De vez em quando ele sala - embora não vestido para o combate - e circulava pelo acampamento, sozinho ou em companhia de Pátroklo. Ninguém sabia o que os dois conversavam. Rumores trazidos pelos espiões diziam que Agamenon procurara Akiles e lhe oferecera a preferência na escolha dos despojos da cidade, para ele próprio e seus homens; mas Akiles respondera que não mais confiava em qualquer oferta que Agamenon pudesse fazer.

- Não se pode culpá-lo por isso - comentou Heitor. - Eu não confiaria em Agamenon em nenhuma circunstância. Seja como for, essa discórdia no campo inimigo é bem conveniente para nós; enquanto eles divergem entre si, temos tempo para reparar as muralhas e reforçar nossas defesas. Se algum dia eles fizerem as pazes e resolverem voltar a lutar juntos, então que o Deus ajude Tróia.

- Que Deus? - perguntou Príamo.

- Qualquer Deus que ainda não tenha sido subornado para ficar do lado dos akaios. Já imaginou se Enéias e eu tivéssemos alguma briga e nos recusássemos a lutar juntos?

- Espero que nunca descubramos - disse Enéias. - Desconfio de que nesse dia estaríamos nos condenando mais depressa do que os Deuses podem nos condenar.

Irrequieto, Príamo empurrou para o lado o seu prato, em que havia apenas um sortimento escasso de legumes e um pedaço de pão.

- Talvez devêssemos organizar uma caçada pelo lado da terra - sugeriu ele. - Eu ficaria contente em comer carne de veado ou coelho.

- Não pensei que o ouviria dizer isso, pai - respondeu Heitor. - Todos nos empanturramos de carne por bastante tempo quando as cabras tiveram de ser abatidas, por falta de forragem; só ficamos com algumas, a fim de ter leite para

as crianças menores. Os porcos podem comer o que sobra das mesas e ainda restam algumas bolotas nos bosques. Mas não é muita coisa e talvez seja uma boa idéia organizar uma caçada.. .

- Acho que os porcos devem ser mortos também - sugeriu Deífobo. - Neste inverno precisaremos das bolotas para o pão. Devemos reunir todos os jovens que ainda não têm idade suficiente para lutar e ordenar que colham as bolotas. Será um inverno com fome, não importa o que façamos ou deixemos de fazer.

- O que se está fazendo no Templo do Senhor do Sol? - indagou Enéias. - Você fica sentada aí em silêncio, Kassandra, sem nos dar qualquer informação. O que diz a sabedoria de Apolo?

- Não importa o que se faça - falou Kassandra, sem pensar. - Tróia não terá mais necessidade de alimentos no inverno.

Páris deu um passo em sua direção, gritando:

- Eu a avisei, irmã, sobre o que faria com você se viesse aqui de novo para

apregoar seus maus presságios!

Enéias pegou o braço de Páris antes que o golpe fosse consumado.

- Ataque alguém do seu tamanho ou tente me agredir, pois fui eu quem fez a pergunta que acarretou a resposta que você não quer ouvir! - Uma pausa e ele acrescentou, gentilmente: - A situação é tão ruim assim, Kassandra?

- Não sei - murmurou Kassandra, fitando a todos com uma expressão desolada. - É possível até que os akaios partam e não haja mais necessidade de guardar alimentos.. .

- Mas você não pensa assim.

Ela sacudiu a cabeça; todos a observavam atentamente agora.

- Mas as coisas não continuarão como estão por muito tempo, isso eu posso garantir. Ocorrerá uma mudança em breve.

Estava ficando tarde e Enéias levantou-se.

- Vou dormir no acampamento com os soldados, já que minha esposa e filhos partiram.

- Imagino que devo também mandar Andrômaca e o menino embora, se há tanto perigo aqui - disse Heitor.

- Podem compreender agora por que acho que Kassandra deve ser silenciada a qualquer custo - declarou Páris. - Ela está disseminando o desespero em Tróia e daqui a pouco todas as mulheres terão partido; e quando isso acontecer, pelo que lutaremos?

- Eu não vou partir - disse Helena. - Para o melhor ou pior, vim para Tróia e não há mais qualquer outro refúgio para mim. Permanecerei ao lado de Páris, enquanto ambos vivermos.

- E eu também - acrescentou Andrômaca. - Enquanto Heitor tiver coragem para permanecer, estarei ao seu lado. E enquanto eu ficar, meu filho também ficará.

Kassandra, lembrando que Andrômaca fora criada para ser uma guerreira, pensou que talvez Imandra sentisse orgulho da filha, no final das contas. Çu gostaria de ter a sua coragem, refletiu Kassandra, para depois recordar que Andrômaca não sabia o que teriam pela frente. Talvez fosse mais fácil ter coragem quando ainda se podia acreditar que não se consumaria o que mais se temia. Em seus ouvidos ressoava a fúria de Possêidon e mal podia ver através da sala, por causa das chamas que pareciam surgir por toda parte.

Mas a sala estava tranqüila e fresca, todos os rostos ao redor eram gentis e afetuosos. Por quanto tempo mais os teria ao seu redor? Já perdera Creusa; quem seria o próximo?

Kassandra sabia que deveria permanecer na Casa do Senhor do Sol; mas não podia se manter longe do palácio e todos os dias ia observar da muralha com as outras mulheres. Foi uma das primeiras a ver as pessoas deixando suas casas, tão depressa que a princípio pensou que fosse outro terremoto. E, no instante seguinte, ouviu o clamor:

- Akiles! É o carro de Akiles!

Heitor praguejou furiosamente e subiu correndo a escada para o posto de observação na muralha.

- Akiles voltou? A pior notícia que podíamos ter... ou será a melhor? - Ele falou bruscamente e se aproximou apressado das mulheres. - Isso mesmo, é o carro de Akiles...

Heitor protegeu os olhos com a mão, depois virou-se, franzindo o rosto.

- Pelo Deus da Batalha! Não é Akiles, mas alguém usando sua armadura! Os ombros de Akiles são duas vezes mais largos! Talvez seja aquele seu "amiguinho”. A armadura nem lhe cabe direito. Em nome de Ares, o que ele está querendo? Pensa realmente que pode enganar alguém que já viu Akiles lutar?

- Acho que é um ardil para animar os homens de Akiles - sugeriu o condutor de seu carro de guerra, o jovem Troilo.

- O que quer que seja, vamos abreviar sua aventura - declarou Heitor. - Posso hesitar em enfrentar Akiles, mesmo num dia propicio, mas ainda não raiou o dia em que terei receio de enfrentar Pátroklo. Talvez, meu jovem, eu deva pôr minha armadura em você e enviá-lo no carro para enfrentá-lo.

- Terei o maior prazer, se você permitir - disse o menino, ansioso.

Heitor riu e segurou-o pelo ombro.

- Não duvido, meu jovem; mas não subestime Pátroklo. Ele não é absolutamente um mau guerreiro. Não está na minha classe ou na de Akiles, é verdade, mas você ainda não está preparado para ele... não este ano e provavelmente também não no próximo.

Ele chamou seu armeiro, que veio lhe ajustar sua melhor armadura; um momento depois, os outros ouviram os portões ranger, enquanto Heitor saía.

- Estou assustada - murmurou Andrômaca, correndo para a beira da muralha. - Grande Mãe, como aquele menino impossível conduz o carro! Será que Heitor não lhe ensinou cautela nem bom senso? Os dois serão projetados para fora do carro daqui a pouco!

Os dois carros avançaram um para o outro como veados machos na época do acasalamento. Troilo estava ocupado com os mirmídones que avançavam para seu carro, repelindo um depois do outro, enquanto Heitor aguardava o campeão deles. Depois, ele saltou do carro, deixando Troilo para defendê-lo, e foi enfrentar o homem que usava a armadura brilhante de Akiles, com ornamentos dourados.

A espada de Heitor se levantou para enfrentar o akaio, que corria em sua direção, brandindo a espada. Um passo rápido e Pátroklo caiu; mas quando Heitor avançou para liquidá-lo, o jovem levantou-se de um pulo, como se a pesada armadura não passasse de um manto de plumas, e recuou. Os dois trocaram uma sucessão de golpes, tão rápidos que Kassandra não podia determinar se qualquer dos dois levava alguma vantagem. Um pequeno grito de Andrômaca informou-a que Heitor sofrera um ferimento; mas quando olhou, Kassandra constatou que Heitor se recuperara no mesmo instante e desfechava uma investida tão violenta que Pátroklo começou a recuar, na direção de seu carro. A espada de Heitor penetrou com toda força no ponto em que o peitoral se encontrava com a proteção do braço, depois saiu com um jorro de sangue. Pátroklo cambaleou para trás; um dos mirmídones amparou-o pela cintura e levantou-o para o carro; ele ainda estava de pé, mas balançando, o rosto muito pálido. Seu auriga - ou seria o auriga de Akiles? - acionou os cavalos, que galoparam na direção da praia e das tendas akaias, com Heitor em perseguição.

Troilo disparou uma flecha que atingiu Pátroklo na perna; ele perdeu o equilíbrio e caiu, só não sendo jogado para fora do carro porque o auriga o segurou a tempo. Heitor fez um gesto a Troilo para que abandonasse a perseguição; Pátroklo já estava morto ou ferido tão gravemente que seria apenas uma questão de tempo antes que morresse. O carro de Heitor voltou na direção de Tróia. Andrômaca começou a descer a escada no instante em que ouviu o rangido das cordas que abriam os portões, mas Kassandra conteve-a e ficaram esperando que Heitor subisse. Seu ajudante se aproximou e começou a ajudá-lo a tirar a armadura, mas Andrômaca fez questão de tomar o lugar do homem.

- Você está ferido!

- Posso lhe garantir que não é nada grave, minha querida - disse Heitor. - Já sofri ferimentos piores nos jogos.

Havia um corte grande em seu antebraço, mas não chegara a lesionar o tendão; podia ser tratado com uma limpeza com vinho e óleo e depois envolto

por uma bandagem firme. Andrômaca, sem esperar por um curandeiro, começou no mesmo instante a cuidar do ferimento, enquanto indagava:

- Você o matou?

- Não tenho certeza se ele já está morto, mas posso assegurar que ninguém se recupera de um golpe até os pulmões como aquele.

Quase que nesse momento eles ouviram uma comoção no acampamento akaio, um terrível uivo de raiva e dor.

- Ele está morto - disse Heitor. - É um golpe contra Akiles, mesmo que indireto.

- Olhem! - exclamou Troilo. - Lá está ele!

Era mesmo Akiles, usando apenas uma tanga, os ombros enormes expostos, os cabelos compridos e claros esvoaçando. Saiu de sua tenda e avançou para

as muralhas de Tróia. Parou fora do alcance dos arcos, levantou o punho cerrado

e sacudiu para as muralhas. Gritou alguma coisa, que se perdeu na distância.

- O que será que ele disse? - indagou Heitor.

Páris, que estava perto, sugeriu:

- Calculo que foi alguma versão de "Heitor, filho de Príamo"... com alguns comentários seletos sobre seus ancestrais e prole... "venha até aqui e deixe-me matá-lo dez vezes".

- Ou, mais provavelmente, dez mil vezes - concordou Heitor. - Não consegui entender as palavras, mas o tom foi evidente.

- E agora vamos comemorar? - perguntou Páris.

- Não - respondeu Heitor, muito sóbrio. - Não me regozijo; ele foi um bravo e acho que também um homem honrado. Talvez tenha sido o único que mantinha a insanidade de Akiles dentro de certos limites. Tenho certeza de que a guerra se tornará pior porque ele não está mais entre os akaios.

- Não consigo entendê-lo, Heitor. Liquidamos um grande guerreiro e você não está satisfeito. Se eu o tivesse matado, estaria pronto para declarar um feriado e promover uma festa.

- Se tudo o que você quer é uma festa, tenho certeza de que se pode dar um jeito - murmurou Heitor. - Muitos se regozijarão, mas se matarmos os homens decentes e honrados entre os akaios só restarão os loucos e patifes para combatermos. Não temo nenhum homem são, mas Akiles... ele é diferente. Provavelmente lamentarei Pátroklo tanto quanto qualquer outro homem, à exceção do próprio Akiles.

Enéias foi dar uma olhada da beira da muralha.

- Akiles sumiu. Onde estará?

- Deve ter voltado à sua tenda, a fim de tentar persuadir Agamenon a pedir uma trégua de alguns dias para o luto.

- Seria o momento oportuno para atacá-los com toda força, antes que Akiles se recupere, enquanto ainda estão desorganizados - sugeriu Páris. Heitor sacudiu a cabeça.

- Se eles pedirem uma trégua, estamos obrigados pela honra a aceitá-la. Afinal, eles nos concederam uma trégua para o funeral de seus filhos, Páris.

- Eu não pedi coisa alguma. Isso não é uma guerra, mas um intercâmbio de honrarias, uma espécie de dança.

- A guerra é um jogo com regras, como qualquer outro - interveio Príamo. - Não foi você, Páris, quem se queixou que Agamenon e Odisseu haviam violado as regras quando capturaram os cavalos trácios?

- Se temos de lutar, então devemos tentar vencer - insistiu Páris. - Não vejo sentido em se trocar cortesias com um homem que estou tentando matar e que se esforça ao máximo para retribuir o favor.

Heitor e Enéias começaram a falar ao mesmo tempo, mas Príamo ordenou:

- Um de cada vez.

Heitor gritou mais alto.

- Essas "cortesias", como você as chama, constituem tudo o que torna a guerra honrosa para os homens civilizados; se algum dia deixarmos de oferecer essas cortesias a nossos inimigos, a guerra se tornará uma coisa sórdida, comandada por carniceiros e pelos canalhas mais vis.

- E se não vamos lutar, por que não acertamos as divergências por uma competição de arco e flecha ou por uma luta livre? - indagou Páris. - E neste caso, parece-me que uma competição faria mais sentido do que uma guerra; afinal, estamos disputando um prêmio.

- E esse prêmio é Helena? - perguntou Deífobo. - Acha que ela estaria disposta a ser o prêmio numa competição de arco e flecha?

- Provavelmente não - respondeu Páris -, mas as mulheres geralmente estão dispostas a se apresentarem como prêmio para a cobiça de alguém e não sei por que isso deveria fazer alguma diferença.

 

No dia seguinte, bem cedo, Agamenon apareceu com a túnica branca de um arauto e foi ao palácio de Príamo, sob uma bandeira de paz. Como uma oferenda de paz, levou as duas camareiras de Hécuba, Kara e Adréia, que haviam sido capturadas quando Kassandra voltara a Tróia. Depois, Agamenon pediu a Príamo que concordasse com uma trégua de sete dias, porque Akiles desejava realizar jogos fúnebres em homenagem ao amigo morto.

- Haverá prêmios e os homens de Tróia poderão competir em igualdade com os nossos.

Ele acrescentou que Príamo poderia servir como juiz das competições para as quais se considerasse qualificado, talvez a corrida de carros ou o arco e flecha. Príamo agradeceu solenemente e ofereceu um touro para sacrifício a Zeus Tonante e um caldeirão de metal como prêmio da luta livre.

Depois que Agamenon aceitou as oferendas e se retirou, com expressões corteses de estima, Páris perguntou, com evidente repugnância:

- Por acaso vai competir nessa farsa, Heitor?

- Por que não? O fantasma de Pátroklo não vai querer me negar um caldeirão ou uma taça, nem mesmo a barriga cheia no banquete fúnebre. Não temos mais divergências agora; e se eu for morto, no saque foral de Tróia, se é que haverá, teremos alguma coisa sobre que conversar no Mundo Posterior.

 

Um silêncio mortal pairou sobre Tróia durante todo o dia seguinte e também sobre o acampamento akaio. No meio da tarde Kassandra desceu até a muralha da cidade. Podia ver o acampamento e a praia repleta de navios do Templo do Senhor do Sol, mas lá de cima não era capaz de ouvir coisa alguma ou saber o que estava acontecendo.

Andrômaca estava na muralha, junto com Heitor e outras pessoas da família de Príamo. Deram as boas-vindas a Kassandra e abriram espaço para que ela pudesse observar tudo lá embaixo.

- Esta seria a melhor ocasião para atacá-los e queimar o resto de seus navios - sugeriu Andrômaca, mas logo recuou diante do olhar irado de Heitor. - Eu estava apenas brincando, meu amor; sei que você é incapaz de violar uma trégua.

- Eles violaram - lembrou Páris. - Se eu morresse e pedíssemos uma trégua para o meu funeral, acha mesmo que eles não nos atacariam no auge do banquete? Odisseu e Agamenon devem estar agora exortando os akaios a nos atacarem quando menos esperarmos.

- O acampamento parece quase deserto - comentou Kassandra. - O que eles estão fazendo?

- Quem sabe? - indagou Páris. - E quem se importa?

- Eu sei - informou Heitor. - Os sacerdotes estão preparando o corpo de Pátroklo para ser sepultado ou incinerado; Akiles lamenta e chora; Agamenon e Menelau tramam alguma maneira de violar a trégua; Odisseu tenta impedi-los de gritarem alto demais para não ouvirmos; os mirmídones se preparam para os jogos de amanhã... enquanto o resto do exército se embriaga.

- Como sabe de tudo isso, pai? - perguntou Astíanax.

Heitor soltou uma risada.

- E o que faríamos se estivéssemos no lugar deles.

Neste momento um jovem mensageiro, com a túnica de sacerdote noviço de Apolo, subiu ao topo da muralha.

- Com licença, nobres; trago uma mensagem urgente para a princesa Kassandra.

Kassandra franziu o rosto. Uma das serpentes teria mordido alguém ou uma criança estaria com febre? Não podia imaginar qualquer outro motivo para ser chamada; seus deveres no templo naquele dia, nunca muito absorventes, já haviam sido realizados e ela recebera licença para se ausentar.

- Estou aqui - disse ela. - Qual é a mensagem?

- Senhora, chegaram hóspedes à Casa do Senhor do Sol; vieram pelas montanhas, a fim de evitar o bloqueio dos akaios, e agora a procuram. Dizem que o assunto é da maior urgência e não pode ser protelado.

Aturdida, Kassandra fez uma reverência ao pai e se retirou. Enquanto subia para o templo, especulou quem poderia ser e por que a procuravam. Foi para

sala em que estavam as visitas; passando da luz do sol à escuridão do aposento, só pôde divisar meia dúzia de formas indefinidas.

Um vulto se levantou e avançou em sua direção, abrindo os braços e dizendo:

- Meu coração se regozija por vê-la, criança.

Kassandra, os olhos se adaptando à pouca claridade da sala, descobriu-se frente a frente com a amazona Pentesiléia. E se entregou ao abraço entusiasmado.

- Oh, como estou contente por ver vocês todas! Quando vim da Cólquida, não encontrei o menor sinal de vocês e pensei que estavam mortas!

- Soube que havia nos procurado, mas estávamos nas ilhas, procurando por ajuda e talvez uma nova terra para nos fixarmos - explicou Pentesiléia. - Nada conseguimos e por isso voltamos, mas não tive como lhe enviar um aviso.

- Mas "que estão fazendo aqui? E quantas são?

- Eu trouxe todas as que permaneceram, as que não preferiram ir viver nas cidades, sob o domínio dos homens. Viemos defender Tróia contra seus inimigos. Príamo me disse certa ocasião, há muitos anos, que Tróia estaria numa situação terrível no dia- em que precisasse chamar mulher para ajudar a defendê-la. Talvez agora eu saiba melhor do que ele como é terrível a situação em que Tróia se encontra.

- Não sei se meu pai concordará com você. O exército se regozija porque Heitor acaba de matar o segundo mais poderoso guerreiro das forças atraias.

- lá me contaram tudo quando cheguei aqui - disse Pentesiléia. - Mas não creio que Tróia se encontre mais perto da salvação só porque Pátroklo morreu.

- Parenta, Tróia cairá, mas não pelas mãos de qualquer homem - declarou Kassandra, solenemente. - Acha então que podemos enfrentar a mão de um

Deus?

Pentesiléia sorriu, à sua maneira antiga.

- Não é a destruição das muralhas que devemos temer, mas sim a destruição de nossas defesas. Tróia pode ser derrotada e saqueada e se for a vontade dos poderes do alto que isso aconteça...

Elo parou de falar e tornou a estender os braços para Kassandra, que se adiantou para seu aconchego, como a criança que já fora.

- Minha pobre criança, há quanto tempo está sozinha com isso? Não há ninguém em Tróia, soldado, rei ou sacerdote, a quem possa confiar sua Visão? - Pentesiléia a apertava como uma criança contra seu peito velho e minguado. - Nenhum dos seus parentes ou irmãos? Nem mesmo a seu pai?

- Ele seria o último - murmurou Kassandra. - Fica furioso quando falo na destruição de Tróia. Ninguém quer ouvir. E talvez, se eu não posso oferecer qualquer meio para evitar esse destino, mas apenas dizer que deve ocorrer... talvez todos estejam certos em não quererem tomar conhecimento.

- Mas sofrer tudo isso sozinha... - Pentesiléia suspirou. - Mas agora devo me apresentar com minhas guerreiras a Príamo e saudar sua mãe, minha irmã.

- Eu a_ levarei ao palácio para que ele a receba bem - sugeriu Kassandra.

A velha amazona soltou uma risada.

- Ele não me receberá bem, minha querida... e quanto mais desesperadamente precisar da competência na guerra das minhas mulheres, menos favorável será a acolhida. O máximo que posso desejar é que Príamo não nos recuse. Talvez eu tenha esperado por tanto tempo que ele já saiba o quanto precisa de boas guerreiras, mesmo que sejam poucas. Eu trouxe 24 guerreiras.

- Sabe tão bem quanto eu que Tróia não pode rejeitar qualquer ajuda, de qualquer fonte, mesmo que você tivesse trazido um exército de centauros.

Pentesiléia suspirou, sacudiu a cabeça e disse, tristemente:

- Nunca mais haverá tal exército. O último de seus guerreiros já desapareceu; recolhemos meia dúzia dos meninos, depois que seus cavalos morreram. Agora, os aldeões, escavando a terra em busca de uma colheita de cevada e nabos, pastam suas cabras e porcos nos lugares em que antes os centauros vagueavam com seus cavalos. Nossas éguas também pereceram, à exceção de umas poucas, que se encontram num estado lamentável. E reparei que há poucos cavalos agora nas planícies perto de Tróia. As manadas foram capturadas pelos akaios ou pelos próprios troianos.

- A manada sagrada de Apolo ainda vagueia livre pelas encostas do monte Ida - lembrou Kassandra. - Ninguém se arriscou a tocá-los até agora. Nem mesmo as sacerdotisas do pai Escamandro se aventuram a pôr arreios em suas cabeças.

Isso a fez pensar em Enone e especulou como ela estaria. Há anos que não a via; agora, as mulheres do monte Ida nunca desciam à cidade, nem mesmo para os festivais. Páris nunca falava em Enone e, até onde Kassandra podia saber, também não pensava nela, embora agora, com a morte dos filhos de Helena, a criança que tivera com ela fosse seu único filho vivo.

- Você e suas mulheres devem estar cansadas da viagem, Pentesiléia. Eu lhe ofereço a hospitalidade da Casa do Senhor do Sol. Vou chamar servas para providenciarem um banho e, se desejarem, túnicas de hóspedes...

- Não se preocupe, minha cara. Um banho seria ótimo, mas minhas quer, refiras e eu vamos nos apresentar com nossas armaduras e trajes de montaria de couro. Somos o que somos e não fingiremos ser outra coisa.

Kassandra foi tomar as providências necessárias e depois se preparou para jantar no palácio. Mandou o aviso de que levaria hóspedes, mas só comunicou

sua identidade à rainha Hécuba. Como parentes, ela sabia que seriar: bem acolhidas; mas também sabia que Príamo não sentia qualquer amor pelas amazonas.

esmo assim, as leis da hospitalidade eram sagradas e Príamo não as violaria.

Numa atitude de desafio, ela pensou em vestir seu antigo traje de montaria e comparecer ao jantar com suas armas; Príamo ficaria furioso, mas ela queria se identificar com as amazonas. Mas quando tirou as velhas roupas do baú, descobriu que a túnica de baixo, bem macia, nem passava pela cabeça; fora feita para a criança que ela era quando cavalgava com as amazonas. As peças de couro estavam velhas e rachadas, também não cabiam nela; por que guardara tudo durante todos aqueles anos? A criança que ela fora já desaparecera para sempre.

No fundo do baú estavam o seu arco de madeira e a trompa. Refletiu que ainda poderia usá-los e mantivera a espada e a adaga limpas, livres de ferrugem.

Eu ainda poderia cavalgar e tenho certeza de que ainda poderia lutar, se precisasse, muito embora não tenha mais os trajes de amazona; talvez antes de minha cidade cair, eu ainda venha a empunhar armas em sua defesa. Não são os trajes e sim as armas e a capacidade que fazem uma amazona. Ela se viu e sentiu - embora não tivesse mexido um músculo sequer - a ajustar uma flecha no grande arco, puxar o coração para trás e disparar... mas contra quem? Não podia ver o alvo para o qual a flecha voava...

Mesmo assim, animava-a pensar que não ficaria impotente na defesa foral de Tróia. Kassandra guardou as armas no baú; as roupas de couro jogaria fora... ou melhor ainda, guardaria para que Mel as usasse um dia. Vestiu uma túnica de linho da Cólquida e pôs seus melhores brincos de ouro, com o formato de cabeças de serpentes. Acrescentou uma pulseira de ouro e o colar de contas azuis do Egito, depois desceu para se encontrar com as hóspedes.

As amazonas estavam agora em companhia de um homem alto e armado; surpresa, Kassandra reconheceu Enéias.

- Vim escoltá-la, Kassandra, e fiquei conversando com suas hóspedes - explicou ele. - Teremos o maior prazer em contar com as amazonas para defender a torre principal. Ficarão postadas nas muralhas...

- Estou à disposição - declarou Pentesiléia. - Tenho uni antigo ressentimento contra o pai de Akiles e pelo menos uma vez enfrentarei seu filho.

Kassandra sentiu que a escuridão lhe apertava a garganta outra vez, a tal ponto que não podia falar nem gritar.

- Não! - sussurrou ela, mas sabendo que ninguém podia escutá-la. Enéias disse, em tom afável:

-.Mas nosso comandante é Heitor e caberá a ele determinar onde deseja que vocês lutem. Podemos resolver isso dentro de um ou dois dias. Vamos embora?

Ele ofereceu o braço cortesmente à Rainha das Amazonas e deixaram a sala, descendo para o palácio. Ainda não estava completamente escuro e Pentesiléia observou consternada os escombros que ainda bloqueavam as ruas. Uns poucos abrigos de madeira haviam sido erguidos às pressas, mas a cidade ainda dava a impressão de que uma criança gigantesca, num acesso de raiva, chutara sua caixa de brinquedos. Enéias comentou:

- Meu pai me contou muitas histórias das guerras entre centauros e amazonas. Havia um menestrel em nossa corte que costumava cantar uma balada a respeito. . . - Ele cantarolou alguns versos. - Conhece a canção?

- Conheço - respondeu Pentesiléia. - Se os menestréis aqui não a conhecem, eu cantarei pessoalmente para você, embora minha voz não seja mais o que já foi quando eu era criança.

Enquanto avançavam pelos pátios, Kassandra observou o pequeno bando de amazonas. Pentesiléia envelhecera mais do que um ou dois anos desde o último encontro, na ida para a Cólquida. Sempre fora alta e magra; agora, estava esquelética, os braços e pernas pareciam tendões esticados e duros, sem qualquer resquício de maciez. Ainda possuía todos os dentes, fortes e brancos; não se podia a rigor descrevê-la como "uma velha".

Nenhuma das outras se aproximava da idade de Pentesiléia; Kassandra calculou que a mais moça mal entrara na adolescência, uma moça pequena, que parecia tão forte e perigosa quanto seu arco.

É isso o que eu poderia ter sido; o que deveria ter sido. Kassandra observou a jovem guerreira com uma inveja mal disfarçada. Pelo menos ela não precisa ficar sentada inutilmente, enquanto desmoronam as defesas de nossa cidade.

- Mas você não tem ficado sem fazer nada - sussurrou Enéias, levando-a a especular se ele lera seus pensamentos ou se ela os enunciara em voz alta, algo que jamais saberia. - É uma sacerdotisa, uma curandeira. Não são apenas os guerreiros que servem a urna cidade em guerra.

Ele passou o braço pela cintura de Kassandra e seguiram enlaçados pelo resto do caminho. O arauto anunciou seus nomes quando entraram no grande salão de Príamo:

- A princesa Kassandra, filha de Príamo; o senhor Enéias, filho de Anquises; Pentesiléia, rainha das tribos guerreiras das amazonas, e duas dúzias de suas damas.:. ahn... - O arauto tossiu para encobrir sua confusão de suas guerreiras... como devo dizer...

- Paz, asno - disse Pentesiléia. - Nenhuma pessoa tem mais sabedoria do que às Deuses lhe concederam. Seu rei e rainha sabem quem eu sou.

Mas ela estava sorrindo, jovial, enquanto o arauto tentava enxugar as palmas suadas na túnica. Hécuba levantou-se e foi abraçar a irmã.

- Minha querida irmã.. .

Pentesiléia retribuiu o abraço. Príamo também se levantou e deu alguns passos, abraçando Pentesiléia da mesma forma que a esposa.

- É bem-vinda aqui, cunhada. Cada mão que pode empunhar uma arma nos é bem-vinda neste dia. Poderá escolher entre todos os despojos do acampamento akaio, junto com os outros guerreiros, isso eu lhe prometo. E qualquer um que se manifestar em contrário não é meu amigo.

Ele lançou um olhar sugestivo para Heitor, que indagou: - Chegamos a esse ponto, pai?

- Eu acolheria até mesmo os centauros para lutar contra o exército de Akiles - respondeu Príamo. - Diga-me, irmã, que armas trouxe?

- Duas dúzias de guerreiras, todas armadas com espadas de ferro da Cólquida. Também somos eficientes com o arco; podemos acertar no olho de um garanhão a galope a cem passos de distância.

- Uma de vocês poderia entrar na competição de arco e flecha dos Jogos Fúnebres amanhã? - perguntou Páris. - Akiles ofereceu como prêmio o melhor dos carros de combate capturados e o vencedor ainda ficará com o arco de Pátroklo.

- Ele não concederia esse prêmio a uma mulher - disse Heitor. - Mesma que ela derrotasse o próprio Pátroklo.

- Ele jurou conceder os prêmios ao vencedor.

- Nada é sagrado para Akiles - declarou Pentesiléia. - Eu estaria disposta a competir, só para mostrar isso a todos os seus homens. Mas não tenho qualquer desejo ou necessidade de um carro de combate; e meu arco já me serve de maneira satisfatória. - Ela soltou uma risada. - Não estou nesta guerra por ouro ou despojos. O que eu faria com uma cativa?

- Se conquistar muitos despojos, pode reconstituir suas cidades - sugeriu Andrômaca. - Ou fundar urna nova cidade em algum lugar, como a família de minha mãe fez na Cólquida.

- Há idéias piores - disse Pentesiléia. - Pensarei a respeito. Se eu ganhar o carro de combate, Príamo, você o trocaria por ouro?

- Se ele não o fizer - interveio Hécuba -, eu farei. Será bem paga.. você e todas as suas guerreiras.

As taças de vinho tornaram a circular, todos os homens rindo e gracejando, cada um anunciando em que competição iria participar e o que faria com o prêmio, se vencesse.

- Você deveria tentar ganhar uma das mulheres, Enéias - disse Deífobo. - Alguém para esquentar sua cama enquanto Creusa está em Creta.

- Nada disso - respondeu Enéias, erguendo sua taça. - Se ganhar uma cativa, eu a mandarei para Creta, como uma criada para atender Creusa e ajudá-la a cuidar das crianças. Ela receberia um salário honesto, a fim de poder algum dia comprar sua herdade. Não me agrada essa distribuição de mulheres como prêmios. Tanto quanto Pentesiléia, não gostaria de qualquer mulher que não viesse para mim por sua livre e espontânea vontade.

Por cima da taça de ouro seus olhos se encontraram com os de Kassandra; ela compreendeu o que ele estava pedindo e qual seria sua resposta.

Mais tarde, Kassandra e Enéias subiram devagar para a Casa do Senhor do Sol; não havia lua e as ruas estavam escuras, exceto pela claridade ocasional que se derramava do interior de uma casa. Kassandra tropeçou numa pedra solta e Enéias envolveu-a com o braço para ampará-la... ou talvez, pensou ela, como uma desculpa para segurá-la; e não tinha certeza se não tropeçara apenas como ,um pretexto para se segurar em Enéias. Embora a noite estivesse quente, ele envolveu os dois com seu manto. Kassandra estava consciente, de maneira opressiva do calor do corpo de Enéias.

Não se sentia exatamente assustada, mas estava nervosa e um ,pouco perturbada. Há muitos anos que levava a vida de uma sacerdotisa e a virgindade fora o centro dessa vida. Descobriu-se á recordar todos os argumentos que apresentara contra Krises e se perguntou se não estaria se comportando como uma hipócrita: agora que resolvera se entregar, era para o marido de sua irmã. Mas tinha a palavra da própria Creusa que isso não tinha importância; não precisava ter escrúpulos por causa de Creusa.

E o Deus? Há muito que ela perdera a crença de que qualquer coisa que fizesse teria alguma importância para Apolo, Senhor do Sol. Ele a abandonara; mas se falasse para proibi-la de dar aquele passo, mesmo agora, Kassandra sabia que não O desafiaria. Haia em seu âmago um ponto pequeno mas incandescente de, curiosa desolação. Ele não se importava. Não azia a menor diferença para Ele que uma de Suas eleitas resolvesse violar o juramento.

Mas tal pensamento estava enterrado bem fundo; na superfície de sua mente não havia espaço para qualquer outra coisa que não fosse Enéias.

Estavam se aproximando dos grandes portões; um sacerdote sempre ficava postado ali, para guardar as entradas e saídas. Kassandra parou e depois desviou-se, a fim de que ele não a visse.

- Não podemos entrar - murmurou ela. - Se eu o levasse para dentro e são o trouxesse de volta logo em seguida...

Enéias compreendeu.

- Tem razão. Deve zelar por sua reputação e eu seria o último a pô-lo em risco, Kassandra. Talvez devêssemos ter permanecido no palácio esta noite...

- Eu não gostaria. Não me sinto envergonhada... não é isso...

- Mas não deve causar um escândalo.

Enéias encaminhou-se para o muro baixo, que descia para as ruas por baixo. Kassandra sentia-se contrafeita; não pensara a respeito até aquele momento. Pentesiléia e suas guerreiras haviam deixado o palácio antes e Kassandra não vira ninguém nas ruas. Saíra com Akiles e Odisseu em mantos de noviços, mas não fazer a mesma coisa com Enéias; e mesmo que pudesse, não havia como arrumar mantos agora. Ela franziu o rosto, tentando pensar numa solução para que ele entrasse sem ser visto; deixá-lo partir pela manhã não seria um grande problema. Ela sussurrou:

- Há um lugar em que o muro desmoronou no grande terremoto. Até mesmo as crianças pequenas podem escalar. Não foi consertado, porque toda a

Menção dos operários se concentrou nos reparos dos portões da cidade. É por aqui.

Kassandra conduziu-o ao longo do muro externo. Não era muito alto e naquele ponto houvera outrora uma porta, que fora bloqueada apenas uma ou duas gerações antes. Quando a velha arcada desabara, deixara uma pilha de escombros e se podia escalar com facilidade. Ninguém pensara que era necessário guardar ,m vigiar aquele ponto. Mesmo com uma túnica comprida, Kassandra não teve problemas na escalada, embora algumas pedras soltas rolassem ruidosamente, sol em pés e os de Enéias.

Ela refletiu que provavelmente não era a primeira mulher do templo a entrar assim com um amante; era o tipo de coisa que se poderia esperar de Criseide. Não queria pensar em si mesma nos mesmos termos, mas tinha de aceitar a realidade. não era melhor. Ela deu a mão a Enéias para ajudá-lo na descida e sentiu a respiração prender na garganta; muitas vezes condenara Criseide mentalmente por fazer aquele tipo de coisa.

Se Creusa não tem qualquer objeção - e se o senhor Apolo não fala para impedir - então não há ninguém, homem, mulher ou Deus, que possa ser ofendido  ela disse a si mesma, com firmeza. Levou Enéias pelas sombras profundas junto ao muro; em vez de conduzi-la à porta do dormitório das sacerdotisas e através do corredor até seu quarto, foi para a janela que se abria para fora.

Entraram. Lá dentro, estava escuro e silêncio; a única claridade provinha de uma pequena vela ardendo num prato... apenas o suficiente para que vissem a cama e a pequena enxerga em que Mel costumava dormir. Ao se aproximar da cama, Kassandra viu a cabeça escura da menina no travesseiro; quando se inclinou para levantá-la, a serpente se desenroscou para cima, os olhos brilhando. Ela percebeu que Enéias recuava e sussurrou:

- Ela não lhe fará qualquer mal; não é venenosa.

- Sei disso - murmurou Enéias. - Minha mãe era sacerdotisa de Afrodite

e partilhava sua cama com coisas mais estranhas do que serpentes. Seu animal de estimação não vai me incomodar.

- Posso p8-la na cama da criança, se você preferir.

Kassandra levantou Mel e levou-a para a enxerga. A criança choramingou e Kassandra sentou ao seu lado, arrulhando baixinho para fazê-la voltar ao sono.

- Não faz diferença para mim, mas sou um estranho para ela - disse Enéias. - Talvez ela passe uma noite mais tranqüila na cama da criança.

Kassandra sentiu o calor subindo por suas faces ao se levantar e pegar a serpente, ajeitando-a junto de Mel; a serpente se acomodou em tomo da cintura da menina. Tranqüilizada pelo contato familiar, Mel mergulhou num sono profundo. Kassandra foi tirar o manto de Enéias e largou-o ao lado da cama.

- Não sabia que sua mãe era uma sacerdotisa de Afrodite.

- Quando eu era pequeno, disseram-me que minha mãe era a própria Afrodite. Mais tarde, compreendi quem ela era de fato e passei a conhecê-la como uma mãe. Não me surpreende que ela parecesse a meu pai a própria Deusa; era muito bonita. As sacerdotisas de Afrodite são escolhidas por sua beleza.

- E se servem à Deusa - acrescentou Kassandra. - Ela certamente lhes emprestaria sua beleza.

- Não pode ser apenas isso ou há muito que você já teria sido escolhido para o serviço de Afrodite.

O comentário fê-la estremecer. Estaria sendo enganada para o serviço da Deusa que promovia o culto perturbador do amor carnal nas vidas dos homens e mulheres? Seria aquela desprezada Deusa que tentava agora envolve-la e arrebatá-la do juramento que fizera a Apolo?

Ela já testemunhara como Afrodite perturbava as vidas das pessoas que a cultuavam? Enéias era um filho da Deusa; será que também a cultuava?

Kassandra não podia lhe perguntar essas coisas. Ele sentou na beira da cama estreita e tirou as sandálias. Kassandra se adiantou e Enéias estendeu a mão em sua direção, puxando o grampo que prendia seus cabelos, deixando-os cair para encobrir seu rosto e todas as perguntas. Não tinha mais importância. Todas as Deusas, quaisquer que fossem seus nomes, eram uma só e ela deveria servi-las como cada mulher as servia.

Ela ouviu o sussurro da serpente ao mudar de posição. Enéias passou o braço por sua cintura.

- Não é de admirar que você tenha permanecido virgem por tanto tempo, com essa guardiã de sua castidade - murmurou ele, rindo. - Todas as donzelas do Senhor do Sol têm essas acompanhantes para salvaguardá-las?

- Oh, não! - respondeu Kassandra, rindo também e se aconchegando em s braços.

Ela se inclinou para apagar a vela. O quarto ficou completamente escuro e ela ouviu-o rir de novo. Além do riso, ouviu também, à distância, o ressoar de uma trovoada, logo seguido pelo barulho da chuva lá fora.

- Deslumbrante Afrodite, se devo servi-la como todas as mulheres, deis de me recusar por tantos anos, então me conceda algumas de Suas dádivas - sussurrou ela.

Kassandra sentiu um tremeluzir de luz ao' seu redor... ou seria apenas o clarão de um relâmpago lá fora, enquanto Enéias começava a acariciá-la?

 

Ao amanhecer ela deixou a cama sem fazer barulho e foi sentar na janela, recordando e saboreando cada detalhe da noite. Dali a pouco o vento dissiparia o nevoeiro que cobria a cidade lá embaixo.

No ponto mais alto da Casa do Senhor do Sol o vento já começava a uivar em torno dos telhados. Enéias se levantou, mas não pôs a armadura.

- Não há razão para me armar, se vou competir na luta livre e na luta com os punhos - comentou ele. - Aceitarei qualquer desafiante, à exceção do próprio

Akiles. Sonhei ontem à noite...

- O Deus lhe mandou um sonho afortunado?

- Se foi afortunado ou desafortunado, não sei. Já conquistei a minha sorte. - Ele inclinou-se e beijou-a. - Prometa que não terá arrependimentos, minha amada.       

- Não terei nenhum.

Não tinha mais importância para ela. Esperara por tantos anos para se entregar, recusando-se até mesmo à personificação do Senhor do Sol, como pensava; e agora, no meio da guerra, à sombra da morte, encontrara o amor e sabia que não podia durar. Quando Mel, no outro lado do quarto, se remexera e gritara - em algum pesadelo, ela saíra da cama para acalmá-la. Pusera-se a ninar e arrulhar para a criança, observara os olhos de Mel se fixarem no vulto estranho em sua cama; subitamente confusa, sentira-se contente pelo fato de a menina ser muito jovem para manifestar surpresa e curiosidade.

Agora, quando estavam outra vez juntos, Kassandra pensou em todas as mulheres de Tróia que, por tantos anos, haviam ajeitado as armaduras de seus homens, enviando-os para o combate - ou para morrer - e que agora, por sua vez, partilhava as preocupações e medos dessas mulheres.

Ela ajudou-o a prender a última fivela do peitoral; o resto seria posto no campo. A trombeta que tocava ao amanhecer para convocar os homens ainda não soara. Não havia certeza se soaria naquela manhã, pois apenas os que competiriam nos Jogos Fúnebres de Pátroklo precisariam se levantar ou sair, embora devesse haver uma vigia cuidadosa, já que havia sempre a possibilidade dos akaios romperem a trégua.

- Dê-me um beijo, amor, pois tenho de ir-murmurou Enéias, abraçando-a. Mas Kassandra protestou:

- Ainda não; posso ir buscar um pouco de pão e vinho?

- Não se preocupe, minha querida, pois devo fazer a primeira refeição com meus soldados. - Ele hesitou por um instante, encostando o rosto na face de Kassandra. - Posso voltar esta noite?

Ela não sabia o que dizer e Enéias interpretou seu silêncio de maneira errada.

- Ah, eu não deveria... seus irmãos são meus amigos, seu pai é meu anfitrião...

- Não pense em meus irmãos ou meu pai, pois não há nenhum homem em toda Tróia a quem eu deva dar explicações por meus atos - respondeu Kassandra, bruscamente. - E sua esposa, minha irmã, me disse ao nos despedirmos que não lhe negaria qualquer coisa que o fizesse feliz.

- Creusa disse isso? Fico imaginando... Sinto-me grato a ela. Eu poderia ter lhe falado isso, mas foi melhor ouvir pessoalmente de Creusa. - Impulsivamente, ele tornou a abraçá-la. - Deixe-me vir... Não nos resta muito tempo... e quem sabe o que pode nos acontecer? Mas nestes dias de trégua...

Por toda Tróia, pensou Kassandra, as mulheres safam das camas em que haviam deitado com seus homens e os ajudavam a prender as armaduras, aproveitando aqueles últimos momentos, aqueles beijos furais, tentando não pensar na vulnerabilidade da carne que acariciavam. Enéias afagou seus cabelos e murmurou:

- Nem mesmo com Afrodite tenho agora qualquer desavença... pois acho que foi Ela quem a trouxe para mim. Sacrificarei uma pomba a Ela assim que puder.

Havia muitas pombas no santuário de Apolo, mas Kassandra sentiu uma certa relutância em sugerir que ele comprasse uma. De certa forma, Enéias roubara uma coisa que pertencia a Apolo... embora ela não soubesse agora e nunca tivesse sabido por que devia pertencer a alguém que não fosse ela própria. Mas jogo Kassandra disse a si mesma, bruscamente, que não devia bancar a tola; tinha certeza de que não fora a primeira virgem do Senhor do Sol a levar um homem „,para sua cama e não seria a última. Ela ergueu-se na ponta dos pés para beijá-lo e sussurrou:

- Até esta noite, meu amor querido.

Kassandra saiu para o pátio e observou-o descer pela cidade. Ainda não havia muita claridade e as nuvens desfilavam sobre a planície diante de Tróia. Apenas uns poucos vultos se movimentavam pelas ruas: eram soldados, encaminhando-se para a primeira refeição.

Ela estava cansada; devia voltar para a cama. Mas se perguntou quantas mulheres na cidade que tinham acabado de enviar seus amantes ou maridos para a batalha - ou, hoje, para a falsa batalha dos jogos - podiam calmamente voltar para a cama e dormir. Foi para o seu quarto, encontrou Mel ainda sob as cobertas e vestiu-se depressa. Não queria circular pelos pátios; por algum motivo, tinha certeza de que encontraria Krises e sentia que ele perceberia no mesmo instante o que acontecera, não poderia suportar seu olhar. Permitira que Filida assumisse os cuidados com as serpentes e por isso não havia motivos para ir ao pátio das serpentes.

Com surpresa, descobriu que o que sentia era solidão; sempre fora tão solitária e em gral acostumada a esse estado que era raro ansiar por companhia. Mas logo se lembrou que havia agora urna pessoa na Casa do Senhor do Sol a quem podia revelar tudo o que se passava em seu coração.

Pentesiléia e algumas de suas mulheres haviam recebido um quarto que não ficava longe do que Kassandra ocupava; a maior parte das amazonas se instalara num pátio próximo, onde dormiam em mantas enroladas. Uma ou duas já estavam acordadas, comendo pão e tomando o vinho novo que era feito no templo. Pentesiléia, como convinha a uma rainha, estava sozinha num pequeno quarto, na extremidade do corredor. Kassandra percorreu o mosaico antigo de conchas é espirais sem fazer barulho, a fim de não despertar as que ainda dormiam. Bateu

de leve na porta; a velha amazona abriu-a e fez sinal para que ela entrasse.

- Bom dia, minha cara criança. Ora, parece exausta e insone!

Ela estendeu os braços e Kassandra se aninhou, chorando sem saber por quê.

- Não precisa chorar - murmurou Pentesiléia. - Mas se quer chorar, eu diria que tem motivos suficientes. Eu a vi deixar o banquete com Enéias ontem à noite. O patife a seduziu, criança?

- Não foi isso o que aconteceu - respondeu Kassandra, furiosa, especulando por que Pentesiléia sorria.

- Mas se é uma ligação amorosa, por que chora?

- Eu... não sei. Acho que é porque sou uma tola, como sempre soube que eram tolas as mulheres que se entregam aos jogos com os homens, falam de amor e choram.. .

E agora, pensou ela, eu não sou melhor do que nenhuma delas.

- O amor pode levar qualquer mulher a se comportar como unia tola - comentou Pentesiléia. - Você começou mais tarde do que a maioria, isso é tudo. A ocasião para se chorar por casos de amor é aos treze anos, não quando se está com 23 anos. E como você não chorou e se lamentou quando tinha treze anos por algum belo rapaz, pensei que talvez fosse do tipo de procurar amantes entre as mulheres...

- Nunca pensei nisso. - Uma pausa e Kassandra acrescentou, pensativa: - Sei o que é desejar mulheres, mas pensei que talvez fosse apenas porque as vira através da mente e olhos de Páris.

Ela se lembrou de Helena e Enone, como se sentira profundamente atraída; alguma coisa nela, o que quer que acontecesse, sempre sentiria unia forte afeição por Helena. Mas aquilo era muito diferente e nada tinha de agradável; sentia-se furiosa por bancar a tola por causa de um homem ao qual nunca poderia unir sua vida.

Estava chorando de novo, desta vez com raiva. Tentou traduzir alguma coisa em palavras, mas Pentesiléia disse:

- É melhor ficar furiosa do que lamentar, Kassandra; haverá muito tempo para se lamentar se esta guerra continuar. E agora venha me ajudar a me preparar, Olhos Brilhantes.

O antigo apelido carinhoso fê-la sorrir entre as lágrimas.

Kassandra pegou a armadura, feita de camadas de couro endurecido e superpostas, reforçadas com placas de bronze; era ornamentada com espirais e rosetas de ouro. Ela ajeitou-a pela cabeça da velha amazona e começou a prender os cordões.

- Caso me aconteça alguma coisa nesta guerra, Kassandra, quero que me prometa que minhas mulheres não serão escravizadas ou obrigadas a casar; isso as deixaria desoladas. Prometa que elas ficarão livres para partirem incólumes, se sua cidade sobreviver.

- Eu prometo.

- E caso eu morra, quero que este arco fique com você. Tenho até algumas flechas de centauros, aqui no fundo da aljava. A maioria das minhas mulheres usa agora flechas com pontas de metal, porque podeis penetrar em armaduras como a minha. Mas as flechas dos centauros... conhece o segredo da magia deles, Kassandra?

- Sei que usam veneno...

- Isso mesmo; venenos pouco conhecidos, feitos da pele de um sapo. Matam até mesmo com um ferimento mínimo. Poucos inimigos se apresentam com armaduras da cabeça aos pés, até mesmo entre os akaios. Estas flechas... diga assim... representam uma maneira de compensar as desvantagens que as mulheres têm no tamanho e força.

- Não me esquecerei, mas peço aos Deuses para não herdar suas mulheres nem seu arco e para que você guarde suas armas até ser levada à sepultura.

- Mas na sepultura meu arco não terá qualquer utilidade para ninguém - declarou Pentesiléia. - Quando eu morrer, Kassandra, fique com ele ou o ponha ,no altar da Virgem Caçadora. Quero que me prometa isso.

 

Os akaios não fizeram qualquer esforço para romper a trégua durante os sete dias dos jogos fúnebres por Pátroklo nem durante os três dias seguintes, que foram devotados a um banquete em que se distribuíram os prêmios. Kassandra não compareceu nem aos jogos nem ao banquete, mas soube de tudo por intermédio de Enéias. Ele venceu a competição de arremesso de lança e ganhou uma taça de ouro. Heitor estava desconsolado porque entrara na competição de luta livre e fora derrotado pelo comandante akaio chamado Grande Ajax, mas encontrara algum conforto na vitória do filho Astíanax na corrida a pé para os meninos, embora ele fosse menor que os outros concorrentes.

- O que ele ganhou? - perguntou Kassandra.

- Unia túnica de seda do Egito, tingida de vermelho. É muito grande para ele e muito boa para ser cortada ao tamanho de um menino, mas ele poderá usá-la quando crescer. Ao final do banquete, os akaios nos agradeceram pela companhia nos jogos e disseram que nos encontrariam no campo de batalha pela manhã. Portanto, amor, vamos dormir, pois eles tocarão a trombeta para nos despertar uma hora antes do amanhecer.

Enéias inclinou-se e puxou-a para os seus braços. Kassandra também o enlaçou, na maior alegria. Mas, depois de um momento, perguntou: - Akiles estava presente?

Estava. A morte de Pátroklo deixou-o mais furioso do que qualquer

insulto de Agamenon. Devia ter visto a maneira como olhava para Heitor. Parecia que ele era uma Górgona e podia transformar seu irmão em pedra. Sabe que não sou um covarde, mas ainda bem que não é meu destino enfrentar Akiles.

- Ele é louco - murmurou Kassandra; estremecendo.

Ela suspendeu a conversa, puxando a cabeça de Enéias e beijando-o. Adormeceram enlaçados; mas depois de algum tempo, Kassandra teve a impressão de que despertava e se levantava... não, pois olhando para trás podia-se ver ainda na cama, ainda deitada nos braços de Enéias.

Leve como um fantasma, ela flutuou pelo templo, pairando sobre o lugar em que as amazonas ainda se- encontravam em vigília, em seus aposentos, aprontando suas armas; flutuou para o palácio, até os aposentos de Páris e Helena, Páris mergulhado num sono profundo, Helena com as faces molhadas pelas lágrimas vagueando no quarto em que os filhos haviam morrido. Ela ainda tem Páris; mas isso é suficiente? Se formos derrotados, o que acontecerá com ela? Menelau a levará de volta a Esparta, apenas para matá-la? Por um momento, Kassandra pareceu ver os comandantes akaios tirando a sorte em disputa das mulheres conquistadas, arrastando-as para bordo dos navios negros que povoavam a enseada com tanta sujeira e temor...

Não, isso não passava de um sonho, talvez nunca acontecesse. A morte de Pátroklo e a volta de Akiles mudara alguma coisa nos rumos do que poderia acontecer, ela sabia disso; agora, até mesmo os Deuses deviam fazer novos planos. A noite parecia faiscar com os reflexos do luar. Enquanto flutuava como um fantasma pelo acampamento dos akaios, ela teve a impressão de divisar enormes Formas pairando na escuridão. Sabia que nenhum mortal podia vê-la em sua forma atual, mas os Deuses podiam percebe-la, enquanto espionava naquele mundo de fantasmas...

Ela não tinha a menor idéia do lugar para onde ia, mas por alguma razão desconhecida era compelida por um firme senso de propósito. Perdurou por um momento na tenda de Agamenon, onde ele estava dormindo. Ele não era na verdade maior do que a vida, mal apenas um homem de compleição estreita e aparência mesquinha, com uma expressão perturbada. Aquele homem era casado com a irmã de Helena e oferecera a própria filha em sacrifício por um vento favorável... Os Deuses dos akaios exigiam realmente coisas tão hediondas ou apenas tinham sacerdotes que assim diziam só para servir a seus propósitos corruptos? Ela refletiu que um homem maligno era maligno em toda parte, que isso devia ser muito mais fácil entre os akaios. Enquanto ela estava ali, Agamenon virou-se na cama, ficou deitado de costas e abriu os olhos; Kassandra teve a impressão de que ele podia vê-la... e talvez, se estivesse sonhando, pudesse mesmo.

Agamenon disse num sussurro, embora ela refletisse que ele não devia ter realmente falado:

- Foi enviada para me tentar, virgem? Kassandra respondeu:

- Você está apenas sonhando que me encontrou aqui. Sou o espírito da filha que você mandou para a morte e que os Deuses a enviem para seus pesadelos.

Ela flutuou pela parede da tenda, enquanto o ouvia gemer lá atrás, despertando com um terror súbito. Não gostaria de ser Agamenon naquela noite.

Seguiu adiante e descobriu-se na tenda de Akiles. O príncipe akaio estava acordado, deitado de costas, os olhos bem abertos; e estendido sobre uma padiola, no outro lado da tenda, estava o corpo de Pátroklo. Kassandra não compreendeu; ele já deveria ter sido incinerado ou sepultado... ou até mesmo exposto às Vides aves de carniça, como, era o costume de algumas tribos das grandes estepes. Mas o corpo fora embalsamado e Akiles se mantinha em vigília ao seu lado. Os estranhos olhos claros estavam inchados, como se ele chorasse há muito tempo; e Akiles soluçava audivelmente.

- Oh, mãe! - gritava ele, entre soluços; Kassandra não sabia se ele invocava sua mãe terrena ou alguma Deusa. - Oh, mãe, você me disse que Zeus Tonante prometera-me honra e glória e veja o que aconteceu comigo: fui escarnecido por Agamenon e agora meu único amigo está morto!

Ela pensou: Você deveria ser o tipo de pessoa que pode ter mais de um amigo na vida. Ouviu-o gemer sem palavras outra vez e depois clamar por Pátroklo:

- Como pôde me deixar? E o que direi a seu pai? Ele insistiu que você ficasse em casa e cuidasse das coisas de seu reino, mas eu garanti que nenhum mal lhe aconteceria e que o levaria de volta coberto de honra e glória! Vou levá-lo para casa, é verdade... mas não há mais honra e glória para você!

Os soluços tornaram-se incontroláveis. Por um momento, Kassandra quase se condoeu do sofrimento do príncipe akaio; mas já ouvira falar demais sobre sua louca ânsia por batalha. Akiles matava sem misericórdia, infligindo tanto sofrimento quanto podia; mas quando chegava a sua vez de sofrer, ele demonstrava pouca bravura. Se tivesse saído e lutado por si mesmo, aquilo não teria acontecido.

Pátroklo morrera por se encontrar onde Akiles deveria estar. Subitamente. ela compreendeu o que fora fazer ali.

- Akiles... - murmurou Kassandra, imitando o sotaque que ouvira no acampamento atraio.

Ele sentou na cama, olhando ao redor, os olhos revirando em terror. - Quem me chama?

- Fantasmas não têm nove - disse ela, aprofundando a voz. - Estou incluída entre os mortos,

- É você, Pátroklo? Por que veio me atormentar, meu amigo? Por que permanece aqui, em vez de seguir para o seu repouso final?

- Não poderei repousar enquanto não for sepultado; meu espírito permanece para atormentar os que contribuíram para a minha morte.

- Pois então vá atormentar o troiano Heitor! - gritou Akiles em terror, os olhos quase saindo da cabeça. - Foi a lança dele que acabou com a sua vida, não a minha!

- Infelizmente, permaneço aqui, porque fui morto em sua armadura e no lugar em que você deveria estar na batalha... - Numa súbita inspiração, Kassandra acrescentou: - Não me ama mais só porque passei pelas portas da morte? Akiles balbuciou:

- Os mortos não têm mais lugar entre os vivos; não me condene ou morrerei de pesar.

- Não o condeno - gemeu Kassandra, numa voz sepulcral. - Deixo isso para sua consciência; você sabe que tive a morte que deveria ser sua.

- Não! - gritou Akiles. - Não ouvirei mais nada! Guardas!

Mas que coisa!, pensou Kassandra. Ele acredita mesmo que seus guardas podem expulsar um fantasma? Quatro homens armados entraram correndo na tenda.

- Chamou-nos, meu príncipe? - perguntou o primeiro, evitando olhar para o corpo de Pátroklo.

- Revistem a tenda e o acampamento - ordenou Akiles. - Algum intruso entrou sem ser visto e me falou coisas horríveis com a voz de Pátroklo. Descubram-no e tragam-no cá! Arrancarei seus olhos e os queimarei! Arrancarei seu ventre e o fritarei antes dos olhos! Arrancarei... mas primeiro descubram onde ele está!

Ele sacudiu o punho. e os homens saíram correndo. A missão concluída. Kassandra foi atrás deles e ouviu um dos homens comentar:

- Eu sabia. Ele 'está louco desde que se encerrou em sua tenda e a morte de Pátroklo o enlouqueceu ainda mais.

- Acha que há um espião?

- Eu não me cansaria de procurar, rapaz - disse o primeiro homem, cético - Só encontraremos o intruso dentro daquele pobre cérebro doentio.

Kassandra teria rido se fosse capaz. Como um nevoeiro, ela flutuou pela longa colina para as alturas de Tróia, varridas pelo vento. Em silêncio, voltou a se fundir com seu corpo, ainda nos braços de Enéias.

E dormiu sem sonhos.

Agora que tinha um homem entre os guerreiros, Kassandra sentia ainda mais 'forte o impulso que levava as mulheres à muralha para observar os combates. Deixou a Filida os cuidados com as serpentes e com as outras sacerdotisas a tarefa de cuidar dos feridos. Naquela manhã a linha de carros de combate parecia "mais brilhantemente pintada e polida, as armas reluziam com uma ameaça ainda - mais terrível. Heitor estava no comando, flanqueado por Enéias e Páris, de armaduras e imponentes, como se fossem os Deuses da Guerra em pessoa. Por trás da linha de carros vinham as fileiras de infantes, em suas brilhantes armaduras de couro, com suas lanças e espadas. Se estivesse entre os akaios, pensou Kassandra, e visse aquela formidável legião se aproximando, ela poderia muito bem fugir.    "r

Os soldados akaios, já alinhados nas trincheiras construídas entre a planície a praia em que seus navios estavam ancorados, não vacilaram nem mesmo

quando Heitor deu a ordem para atacar e o grito de guerra troiano ressoou. Os carros dispararam ruidosamente, na direção da linha atraia que se mantinha firme. Os akaios dispararam uma chuva de flechas e, como um movimento combinado, os escudos troianos se levantaram; a maioria das flechas caiu sem qualquer dano no telhado assim formado. Uma segunda chuva de flechas seguiu-se à primeira, em rápida sucessão; uns poucos soldados tombaram ou recuaram por trás das fileiras, voltando para as muralhas, mas isso não interrompeu a carga dos carros de combate.

Um grande clamor elevou-se dos dois exércitos. Na frente das trincheiras estava um grande carro de combate de bronze, ornamentado com asas douradas e um sol raiado, ocupado por uma figura resplandecente: Akiles se juntara à batalha, dominando as linhas dos akaios como um galo controla um terreiro; todos, nos dois lados da batalha, pareciam menores e mais opacos em contraste.

Soltando um grito, ele levantou seu escudo e partiu na direção de Heitor, como uma fúria. Saltando do carro, ele lançou seu desafio. Heitor estava pronto para aceitar. Arremessou sua lança, que bateu no escudo de Akiles; depois, com a espada numa das mãos e o escudo na outra, ele se lançou ao combate com Akiles.

Mesmo à distância, Kassandra pôde sentir o choque daquele primeiro golpe, ambos cambaleando para trás, por vários passos.

Ela sabia que Andrômaca estava ao seu lado; apertava seu braço com tanta força que as unhas se cravaram na pele de Kassandra. Aquele combate se tornara inevitável desde a morte de Pátroklo.

Kassandra soltou um grito de excitamento. Por trás dos infantes, que avançavam para os soldados akaios entre os carros, vinham as éguas das amazonas. Suas flechas e espadas abateram muitos inimigos. Heitor, empenhado em combate com Akiles, parecia mais alto e mais formidável; Kassandra sentiu que não era seu irmão, mas sim o próprio Deus da Guerra. Heitor feriu Akiles e o akaio caiu. Um clamor das fileiras troianas pareceu revitalizá-lo e ele logo estava de pé, empurrando Heitor na direção de seu carro. O príncipe troiano deu um pulo e passou a combater Akiles do degrau do carro, depois virou as rodas e derrubou o akaio, quase passando por cima dele. Akiles recuperou-se e arremessou sua lança. Ricocheteou no escudo de Heitor, mas ele seguiu com um violento golpe da espada, que acertou no pescoço de Heitor.

Heitor caiu dentro do carro. Troilo pegou as rédeas, tornou a derrubar Akiles e saiu em disparada para as muralhas. As amazonas, com suas lanças, avançaram para Akiles, mas ele foi cercado por pelo menos duas dúzias de mirmídones, que formaram uma sólida parede de escudos ao seu redor. As amazonas foram forçadas a recuar; chegaram a derrubar dez ou doze homens de Akiles, mas sempre apareciam mais.

Os, mirmídones alcançaram o carro de Heitor quando já se encontrava sob as muralhas de Tróia. Um momento depois, Akiles apareceu atrás deles, em seu carro, com apenas um cavalo, pois soltara o outro. Ele lançou seu carro deliberadamente contra o de Heitor, derrubando no chão o jovem Troilo. O menino caiu de pé e desapareceu sob o enxame de mirmídones. Andrômaca estava gritando; Kassandra virou-se para acalma-la e quando tornou a olhar, Akiles pegara as rédeas do carro de Heitor e voltava para as linhas akaias com Heitor - ou seu cadáver' ainda lá dentro.

Troilo lutava por sua vida. Uma das amazonas salvou-o, matando três homens de Akiles e levantando-o para sua sela. Páris e Enéias partiram no encalço de Akiles, mas os homens em cima das trincheiras os rechaçaram com o que parecia ser uma muralha de lanças, em que seus cavalos foram empalados. Uma carga das amazonas rompeu a muralha de lanças e resgatou Páris e Enéias, mas seus carros virados estavam em poder dos akaios. Akiles, com Heitor e seu carro, desaparecera.

Os troianos tiveram de lutar arduamente por uma hora para conseguirem voltar aos portões, mesmo com a  cobertura de flechas incendiárias disparadas das amuralhas. Andrômaca desceu para encontrá-los.

- Não conseguiram nem mesmo recuperar seu corpo? - gritou ela. -  Deixaram-no nas mãos dos akaios?

- Fizemos o melhor possível - respondeu Páris; ele perdera a maior parte da armadura e se apoiava em seu auriga, um ferimento de espada sangrando na

coxa. - Mas com Akiles levando seus homens...

- Akiles! Amaldiçoado seja ele por toda a eternidade! Que seus ossos apodreçam sem serem sepultados nas margens do Estige! - Andrômaca desatou num lamento alto e estridente. - Heitor está morto! Agora Tróia vai perecer!

Hécuba aderiu ao lamento:

- Ele está morto! Nosso maior herói está morto! Morto ou nas mãos dos akaios...

- Ele está mesmo morto - murmurou Enéias, sombrio.

- Não me agrada reconhecer, mas sem a carga das amazonas estaríamos todos mortos - declarou Deífobo, que tirara o jovem Troilo da sela da amazona e

examinava seus ferimentos.

Hécuba adiantou-se e pegou o filho menor, chamando um sacerdote curandeiro.

- Ah, meus filhos! Meu Heitor! Meu primeiro e meu último filhos perdidos em apenas uma hora! Ah, a mais fatídica das batalhas já começou!

Hécuba desabou, sem sentidos. Kassandra correu para se ajoelhar ao seu lado, subitamente apavorada com a possibilidade de o choque ter matado a mãe

também.       

- Troilo está vivo - disse Enéias; levantando a velha, gentilmente. – deve ser forte, mãe; ele precisará de seus cuidados, se não quisermos perdê-lo também. Ele entregou Troilo a um sacerdote curandeiro, que o fez recuperar os sentidos com um gole de vinho, depois examinou os ferimentos. As mulheres estavam distribuindo vinho; Enéias pegou uma das taças e esvaziou-a.

- Acho que amanhã tentarei acertar Akiles das muralhas para tira-lo do campo de batalha, antes de nos arriscarmos a sair de novo.

- Ele não pode ser morto - disse Deífobo. Sua armadura é forjada pelos Deuses e as flechas vão ricochetear, inofensivas.

- Não é forjada pelos Deuses, mas feita de ferro sólido - explicou Pentesiléia. - Têm alguma idéia do quanto deve pesar? Nem mesmo as flechas de ponta de ferro de minhas guerreiras conseguem penetrá-la.

Páris lembrou, com evidente repulsa:

- Há uma história antiga de que Akiles é protegido por encantamentos e não poderá ser abatido por nenhum ferimento infligido por mortais.

- Deixe-me enfiar uma arma em sua carne e garanto que vou matá-lo - afirmou Enéias. - Mas agora devemos transmitir as notícias a Príamo... as piores notícias em todo este ano.

Kassandra murmurou, entre os dentes semicerrados:

- Devíamos ter esperado por isso. Heitor matou Pátroklo; Akiles estava pronto para enfrentá-lo, no instante em que passasse pelos portões. Não foi guerra, mas assassinato.

Em silêncio, ela especulou se haveria mesmo tanta diferença. Enéias sugeriu:

- Devemos procurar Akiles imediatamente, talvez antes mesmo de contarmos a nosso pai, pedir uma trégua para sepultar e lamentar nosso irmão.

- E acha que eles vão concordar? - indagou Páris, sarcástico. – Pensa muito bem dos akaios.

- Eles devem aceitar - insistiu Enéias. - Nós concedemos unia trégua para os jogos fúnebres de Pátroklo.

- Se for necessário - interveio Andrômaca -, irei pessoalmente e me ajoelharei diante de Akiles, suplicando que devolva o corpo de meu marido.

- Eles vão devolvê-lo - disse Enéias. - Akiles está sempre falando em honra.

- Mas só na sua - ressaltou Kassandra.

- Pois sua honra o levará a fazer o que é honrado - assegurou Enéias. - Eles me conhecem. Irei até lá, com uma delegação da guarda de Heitor, para buscar o corpo.

- Devemos contar ao pai primeiro - disse Troilo, levantando-se e esquivando-se dos cuidados do curandeiro, muito pálido, a cabeça enfaixada. - Se preferirem, eu mesmo direi a ele. Afinal, sou o culpado; deixei-o cair nas mãos de Akiles.

Hécuba abraçou-o impetuosamente.

- Não teve nenhuma culpa, meu querido. E me regozijo por não ter acompanhado seu irmão para a morte. - Uma pausa e ela acrescentou: - Mas está bem, vá falar com Príamo; nada pode confortá-lo pela perda de nosso primogênito, a não ser o conhecimento do filho que ainda temos para nos abençoar...

- Eu falarei com ele - interveio Páris. - Mas, primeiro, devemos reunir todos os irmãos. Vamos nos apresentar a ele, prontos para confortá-lo.

- E eu irei ao Templo da Virgem e contarei a Polixena - declarou Kassandra. - Ela e Heitor eram próximos na idade e se amavam muito.

Eles já começavam a se dispersar, em várias missões, quando Andrômaca foi até a beira da muralha e soltou um grito estridente.

- Ah, o demônio, o monstro! O que ele está fazendo agora?

- Quem? - perguntou Kassandra.

Mas ela já sabia de quem se tratava; demônio e monstro só podiam descrever unia pessoa. Ela correu para a muralha.

O sol estava alto, mas ainda não era meio-dia; apenas parecera que haviam assistido à grande batalha pela metade do dia. Havia uma grande nuvem de poeira na planície diante de Tróia; dissipou-se um pouco e Kassandra pôde ver o carro de combate de Akiles, com o príncipe akaio conduzindo a parelha de cavalos. E na poeira, na esteira do carro, estava um vulto cuja armadura revelava claramente sua identidade.

- Heitor! - exclamou ela. - Mas o que ele está fazendo?

Era evidente o que Akiles fazia; arrastava o cadáver de Heitor pela poeira, guiando o carro em círculos na planície. Os troianos ficaram observando, paralisados pelo horror.

- Mas ele é mesmo louco! - gritou Kassandra. - E eu pensava...

Ela pensara que só o chamavam de louco retoricamente; mas um homem que abusava assim do cadáver de um inimigo abatido - até mesmo de um inimigo que matara o seu melhor amigo - não podia deixar de ser um louco.

Ora, ele não tem condições de ficar sem um guardião, pensou Kassandra, estremecendo.

- Isso vai além da vingança - disse Enéias. - Ele é desumano.

- Talvez tenha ficado demente com a dor - contentou Kassandra. - Amava Pátroklo além da razão e quando o amigo morreu perdeu todos os últimos vínculos com a sanidade.

- Mesmo assim, devemos detê-lo - murmurou Enéias. - Vamos enviar um emissário aos akaios... pelo menos Odisseu é um homem racional... e recuperar o corpo de Heitor antes que isso chegue aos ouvidos do pai.

Os punhos cerrados, Andrômaca disse:

- Mas eu devo ficar aqui e observar tudo isso, sem enlouquecer de dor, enquanto Príamo, uni homem e um rei, deve ser resguardado do mero relato, para não falar da visão. . . - Ela inclinou a cabeça para trás e gritou: - Eu mesma descerei, se for necessário, e persuadirei aquele homens com um chicote de que não pode fazer uma coisa assim diante de todos os parentes de Heitor!

- Não faça isso, Andrômaca - disse Páris, abraçando-a gentilmente. - Ele não a escutaria. E uni louco.

- E mesmo? Ou apenas simula loucura para que lhe ofereçamos um resgate maior pelo corpo de Heitor?

Kassandra não havia pensado nisso.

Finalmente, Troilo, acompanhado por mais dois ou três filhos de Príamo, subiu para comunicar ao rei que Heitor estava morto, enquanto Paris e Enéias armavam-se e saíam num carro de combate, com o arauto favorito de Príamo. Tentaram em vão fazer com que Akiles os ouvisse, mas ele continuou a açoitar os cavalos num frenesi, recusando-se a ouvir uma só palavra do que o arauto dizia.

Depois de algum tempo, eles pararam, conferenciaram por um momento e se encaminharam para o principal acampamento akaio, a fim de falarem com Agamenon e os outros comandantes. Voltaram para Tróia com uma expressão desanimada. Andrômaca correu ao encontro dos dois.

- O que eles disseram? - indagou ela, embora fosse evidente que a missão não tivera o menor sucesso.

Lá embaixo, na planície, o carro de Akiles ainda arrastava o corpo em círculos. Parecia que ele queria continuar assim até o pôr-do-sol, talvez por mais tempo.

- Eles nada farão para deter Akiles - respondeu Enéias. - Alegaram que ele é o líder e deve fazer o que quiser com seus prisioneiros. Ele matou Heitor e o corpo lhe pertence, para cobrar um resgate ou não, conforme preferir.

- Mas isso é monstruoso! - exclamou Andrômaca. - Vocês não hesitaram em conceder uma trégua para o funeral de Pátroklo! Como podem fazer isso?

- Não queriam fazer - explicou Páris. - Agamenon não foi capaz de me fitar nos olhos. Sabe que estão violando todas as regras da guerra. . . regras que eles próprios fizeram e concordamos em respeitar. Mas sabem que não têm a menor possibilidade de triunfar sem Akiles. Irritaram-no urna vez e ele se afastou dos combates; não se arriscarão a deixá-lo furioso de novo.

O sol baixara no céu e uma boa parte da planície de Tróia se encontrava coberta pela longa sombra das muralhas. Páris acrescentou: - Não nos resta mais nada a fazer: devemos sair e lutar por seu corpo.

Ele chamou seu ajudante e começou a pôr sua armadura.

- Vamos chamar as amazonas - disse Enéias. - Seu ataque e suas flechas podem nos dar cobertura. Elas são guerreiras impetuosas, mais do que qualquer homem. Prometo o meu melhor cavalo ao Deus da Guerra se ele nos permitir recuperar o corpo de Heitor.

- Prometo mais do que isso se ele me conceder Akiles - declarou Páris. - Heitor e eu nem sempre fomos chegados, mas ele era meu irmão mais velho e eu o amava; e mesmo que não o amasse, os laços de parentesco me impediriam de ficar de braços cruzados e ver seu cadáver desonrado. Nem mesmo Akiles pode profanar os mortos assim.

- Lembro que Heitor disse que teria muito o que conversar com Pátroklo no Outro Mundo - comentou Kassandra.

- Tem razão - concordou Enéias, muito sombrio. - Se Akiles parasse para pensar, saberia que Heitor e seu amigo se banquetearão lado a lado, como companheiros, nos salões da outra vida.

- Espero que não seja a vontade dos Deuses que eu me encontre com Akiles como companheiro no outro lado da morte - disse Páris. - A menos que eu descubra alguma coisa que não me foi dado conhecer nesta vida, juro que quebrarei a paz daquele mundo quando lá encontrar Akiles.

- É melhor se calar - disse Enéias. - Nenhum de nós sabe o que pensaremos ou faremos depois de passarmos por aqueles portões. Mas neste mundo todos aprendemos que a hostilidade acaba na morte e o que Akiles faz agora é uma afronta e uma atrocidade... além de ser um comportamento abominável. Ele deveria demonstrar respeito por um inimigo caído; você sabe disso, eu sei, os outros akaios também sabem. E lhe dou minha palavra: se Akiles não sabe, ficarei feliz em dar a lição, aqui e agora. Os soldados estão armados e prontos?

- Estão, sim - confirmou Páris. - Abram os portões!

Príamo desceu lentamente do palácio e foi para o trecho das muralhas em que as mulheres se encontravam. Estava branco como a morte, pensou Kassandra era evidente que estivera chorando.

- Se resgatar o corpo de meu filho para um funeral honroso - disse ele, quando Enéias passou a caminho dos portões -, nem preciso dizer que pode ter qualquer recompensa que quiser.

Enéias ajoelhou-se por um momento diante dele e beijou a mão de Príamo.

- Pai, Heitor era meu cunhado e meu irmão de armas. Não quero qualquer recompensa que não a de fazer por ele o que tenho certeza que ele feria o primeiro a fazer por mim.

- Rogo então as bênçãos de todos os Deuses que eu conheço para você.

Quando Enéias se levantou, Príamo abraçou-o rapidamente e beijou-o na face. Os homens desceram para os portões. Quando Troilo fez menção de acompanhá-los, Hécuba gritou:

Não! Você também, não!

Ela segurou-o pela túnica, mas Troilo se desvencilhou. Príamo fez um gesto para que a rainha o deixasse ir. Hécuba desatou a chorar.

- Velho cruel! Pai desnaturado! Perdemos um filho hoje! Quer perder outro?

- Ele não é mais uma criança - declarou Príamo. - Deseja ir e não posso proibi-lo. Eu não o obrigaria a ir, se ele desejasse qualquer pretexto para ficar. Mas acho que você deveria se orgulhar da atitude que ele está assumindo.

- Orgulhar-me? - gritou Hécuba, furiosa, olhando para os carros de combate que saíam em disparada pelos portões. - Há mais de um louco aqui!

Kassandra já vira as amazonas combaterem muitas vezes; desejava agora estar cavalgando com elas. Mas se ela achara que a batalha daquela manhã fora renhida, constatou agora que fora insignificante em comparação com a luta pelo corpo de Heitor.

Por várias vezes os soldados troianos efetuaram o que parecia ser uma arremetida suicida contra o carro de Akiles, tentando virá-lo ou arrebentá-lo e libertar o corpo; mas as forças conjuntas dos soldados de Heitor e das amazonas nem conseguiram se aproximar. A impressão era a de que o próprio Deus da Guerra estava com Akiles e mais de uma dúzia de soldados e sete amazonas morreram naqueles ataques, antes que os aurigas de Agamenon, liderados por Diomedes, e os mais fortes arqueiros espartanos se adiantassem para rechaçá-los.

Quando já estava quase escuro demais para se ver qualquer coisa, os troianos finalmente se retiraram. Quando Troilo tombou, atingido por uma flecha disparada pelo próprio Akiles, Enéias finalmente cedeu e suspendeu o ataque, levando o menino para o interior das muralhas.

- Ele não queria viver - balbuciou Hécuba, soluçando sobre o corpo do filho mais moço. - Estava se culpando.. . eu ouvi... pela morte do irmão...

Ao pôr-do-sol flamejante, a nuvem de poeira na esteira do carro de Akiles não diminuíra.

- Parece que ele tenciona continuar assim durante a noite inteira - comentou Páris. - Não há mais nada que possamos fazer.

- Provavelmente poderei ver melhor no escuro do que os cavalos de Akiles - disse Enéias. - Podemos tentar de novo ao luar...

- Não há razão para fazer isso - objetou Pentesiléia. - Você tem um irmão agora para sepultar e lamentar; amanhã haverá tempo para pensar de novo em Heitor.

Hécuba, ajoelhada diante do cadáver de Troilo, levantou o rosto, inchado de tanto chorar, parecendo de repente vinte anos mais velha.

- Se for preciso, procurarei Akiles e suplicarei, pelo amor de sua própria mãe, para que deixe sepultar meu filho. Estou certa de que ele tem uma mãe e a respeita.

- Pensa mesmo que alguma coisa humana gerou aquele monstro? - balbuciou Andrômaca. - Ele foi chocado do ovo de uma serpente!

- Como uma guardiã das serpentes, protesto em nome delas - disse Kassandra. - Nenhuma serpente jamais foi desnecessariamente cruel: elas só matam piara se alimentarem ou defenderem as crias... e nenhuma serpente jamais fez guerra contra outra, qualquer que seja o Deus a que possam servir.

- Vamos embora; por esta noite, chega - disse Andrômaca. - Talvez o novo dia lhe traga a razão.

Ela desviou os olhos deliberadamente do carro de Akiles e da nuvem de poeira em que estava oculto o corpo de Heitor. Levantou Hécuba pelo braço, gentilmente, sustentando boa parte do peso da mulher mais velha, como Kassandra notou. Juntas, as duas subiram a rua íngreme para o palácio.

Kassandra inclinou-se sobre o corpo sem vida de Troilo. Lembrou quando ele nascera, o bebê doce que fora, de rosto redondo e vermelho, berrando e esticando os pequenos punhos. Como sua mãe rezara por outro filho homem, como ficara feliz quando ele nascera. Mas também ela se sentia feliz a cada filho que nascia no palácio, mesmo os das concubinas; a rainha era sempre a primeira a pegar cada bebê no colo, por mais humilde que fosse a mãe.

Ela prometera contar a Polixena; subiu lentamente pelas ruas íngremes da cidade, a caminho do Templo da Virgem. Os ventos lá em cima esvoaçando seu manto e seus cabelos, Kassandra entrou no pátio externo, onde estava a estátua da Virgem.

Há tantos anos que era sacerdotisa que quase deixara de se perturbar com a natureza dos Deuses ou Deusas, quer fossem de fato de algum lugar além cia humanidade, quer fossem de alguma alma da espécie humana, procurando cultuar as virtudes maiores e o divino interior. Mas agora, contemplando o rosto sereno da Virgem, ela voltou a especular: podia qualquer coisa, humana ou divina, nascer sem mãe`? O próprio conceito não seria uma blasfêmia contra tudo o que era divino? Ela mesma não gerara nenhum filho; mas em sua paixão insatisfeita Dela maternidade, trouxera Mel para seus braços e sabia que a protegeria com a própria vida, como qualquer mãe.

Partilhava agora unia dor intensa com a mãe. Fora culpada de subestimar Akiles; deveria saber que sua loucura o tornava cada vez mais perigoso, como até um cão raivoso podia virar malévolo e suspeito.

Mas se tivesse dado algum aviso, ninguém lhe daria atenção. Uma das atendentes do santuário reconheceu-a e veio perguntar, deferente, em que podia ajudar a filha de Príamo.

- Eu gostaria de falar com minha irmã Polixena.

A atendente se afastou imediatamente para chamar Polixena. Não demorou muito para que Kassandra ouvisse passos. Polixena entrou na sala, deparando com o rosto molhado de lágrimas da irmã.

- Você traz más notícias, irmã! E nossa mãe, nosso pai.. .

- Não, Polixena. Eles ainda vivem, embora eu não saiba como poderão resistir ao que aconteceu.

Polixena, agora uma mulher de vinte e tantos anos, ainda possuía o rosto suave de unia criança. Foi abraçar Kassandra, soluçando. - Mas o que aconteceu? Diga logo!

- Heitor... - murmurou Kassandra, quase desatando a chorar de novo. - Pior... não apenas Heitor, mas Troilo também.

Ela sentiu um aperto na garganta, mal conseguia falar, mas balbuciou:

- Ambos mortos em apenas uma hora, nas mãos de Akiles; e o louco arrasta o cadáver de Heitor por trás de seu carro, não quer entregá-lo para o funeral...

Polixena prorrompeu em soluços e as irmãs se abraçaram, unidas como não haviam sido desde crianças.

- Irei imediatamente - disse Polixena. - Vou buscar meu manto. A mãe precisa de mim.

Ela se afastou apressada e Kassandra refletiu, pesarosa, que aquilo era verdade; não podia confortar a mãe. Até mesmo Andrômaca era mais íntima de Hécuba do que ela. Fora assim por toda a sua vida: entre todos os filhos, Heitor era o mais chegado ao coração dos pais e Kassandra a menos amada. Seria apenas porque ela sempre fora tão diferente dós outros?

Partia-lhe o coração que até mesmo naquele momento terrível não pudesse recorrer à mãe. Como sempre conseguia manter o controle e nunca ficava fora de si de dor, jamais ocorria a alguém que ela própria precisasse de consolo. Ela sabia que tristeza profunda, mas sem lágrimas, parecia à mãe fria e inumana, muito diferente do comportamento esperado de uma mulher.

Polixena voltou, no manto claro de uma sacerdotisa, com alguma coisa amarrada na cintura. Os olhos estavam vermelhos, mas ela parara de chorar; mas Kassandra sabia que a irmã voltaria a chorar assim que visse as lágrimas da mãe.

Eu gostaria de poder ser assim; Heitor vale todas as lágrimas que possamos derramar por ele. E Kassandra se perguntou, desesperada: O que há de errado comigo? Por que não consigo chorar pelos meus irmãos mais queridos, apesar de toda a minha dor?

Mas, no fundo de seu coração, uma voz racional disse: Heitor foi um tolo; sabia que Akiles era um louco e não respeitava quaisquer regras civilizadas para a guerra, mas mesmo assim, por alguma coisa que chamava honra, correra ao encontro de sua morte. Aquela honra lhe era mais preciosa do que a vida, do que Andrômaca ou o filho, do que o pensamento da dor que os pais sofreriam. E apesar de todo o horror, ela não podia sentir qualquer repulsa ou consternação adicional pelo que Akiles fizera com o cadáver. Heitor estava morto e isso já era bastante terrível. O que podia tornar ainda pior?

E, de qualquer forma, todos nós vamos morrer; e poucos tão depressa ou Misericordiosamente. Por que não nos regozijamos por ele ter sido poupado de trais sofrimento?

Polixena entregou uma bolsa de pano a Kassandra, que sentiu alguma coisa dura dentro.

- As jóias que eu tenho - explicou Polixena. - O pai pode precisar para resgatar o corpo de Heitor. Akiles é tão ganancioso por ouro quanto pelo que chama de glória; talvez isso ajude.

- Ele poderá ficar também com as minhas, embora eu tenha bem poucas: apenas os meus anéis e as pérolas da Cólquida.

Juntas, elas desceram para o palácio. Estava ficando tarde; o sol baixo escondia-se por trás de nuvens escuras e o vento trazia um cheiro de chuva. Não havia sinal do carro de Akiles na planície; ele renunciara à sua macabra vingança, pelo menos por aquela noite.

- Talvez haja uma incursão noturna para resgatar o corpo - sugeriu Polixena. - Ou, se chover, Akiles pode aceitar um resgate; ele não vai querer guiar um carro sob a chuva durante o dia inteiro.

- Acho que isso não fará a menor diferença para ele - comentou Kassandra. - Parece-me que o curso mais sensato seria o de aceitar isso e fazer o que ele menos espera: deixá-lo com o cadáver de Heitor. E depois, amanhã, reuniríamos todas as nossas forças para um esforço total de matar Akiles e Agamenon, talvez Menelau também.

Polixena fitou-a com profunda consternação, a chuva começando a se misturar com as lágrimas em seu rosto. 

- Eu lhe suplico, irmã, que não fale isso para nossa mãe nem para nosso pai. Nunca pensei que pudesse ser tão desalmada, a ponto de deixar Heitor insepulto na chuva.

- Não é Heitor quem está insepulto - protestou Kassandra, com veemência. - É apenas um corpo morto, como qualquer outro.

- Não sei se você é muito estúpida ou apenas muito maldosa, Kassandra. Fala como uma bárbara e não como uma mulher civilizada, uma princesa e uma sacerdotisa de Tróia.

Ela desviou os olhos e Kassandra compreendeu que só fizera piorar a situação. Também desviou os olhos para que Polixena não visse suas lágrimas, embora sabendo que a irmã a julgaria melhor por isso. Não tornaram a falar.

Quando chegaram ao palácio, uma serva (Kassandra notou que os olhos da velha estavam tão inchados e vermelhos quanto os de sua mãe; todas as pessoas que trabalhavam na cozinha amavam Heitor e todas as mulheres do palácio lembravam-se de Troilo como um garotinho mimado pegou os mantos encharcados, enxugou seus cavalos e pés com toalhas e depois conduziu-as ao salão de jantar principal.

Parecia quase como sempre - um fogo crepitando a projetar claridade pela sala, velas ene castiçais espalhando um brilho pelo qual os quadros nas paredes tremeluziam, como se estivessem debaixo d'água. O banco esculpido em que Heitor habitualmente sentava se encontrava vazio e Andrômaca estava entre Príamo e Hécuba, como uma criança entre os pais.

Páris e Helena estavam perto, de mãos dadas. Adiantaram-se para cumprimentar Polixena, que foi beijar os pais. Kassandra sentou em seu lugar costumeiro, perto de Helena. Os servos puseram comida em seu prato, mas ela não conseguiu comer e limitou-se a mordiscar os legumes e beber uni pouco de vinho aguado. Páris parecia triste, mas Kassandra sabia que ele estava perfeitamente consciente de que era agora o filho mais velho de Príamo com sua rainha e comandante dos exércitos. Se pode haver alguma esperança para Tróia, pensou ela, alguém precisa dissuadi-lo dessa idéia, pois ele não é um leitor. E no instante seguinte ela ficou surpresa consigo mesma; há muito que já sabia que não havia esperança para Tróia: por que então os pensamentos de esperança insistiam em aflorar?

Isso significava que suas visões de tragédia não passavam de alucinações ou delírios de um cérebro doentio, como todos diziam? Ou significava que, de alguma forma, com a morte de Heitor, havia una nova esperança para Tróia? Não, isso certamente era loucura; ele era o melhor de todos nós, refletiu Kassandra, percebendo depois que alguém - Páris? Príamo? - o dissera em voz alta.

- Ele era o melhor de todos nós - disse Páris -, mas agora está morto e de alguma forma devemos conduzir o resto desta guerra sem o seu comando. Mas não tenho a menor idéia de como será possível.

- Na essência, é sua guerra - disse Andrômaca. - Eu falei a Heitor que deveria tê-la deixado para você desde o início.

Alguém soluçou alto; foi Helena. Andrômaca virou-se para ela com unia raiva súbita.

- Corno ousa? Se não fosse por você, ele estaria vivo e seu filho não seria órfão!

- Ura, minha querida - interveio Príamo, em tons conciliador -, não deveria falar assine com sua irmã... já há dor suficiente nesta casa esta noite.

- Irmã? Nunca! Esta mulher que veio dos nossos inimigos, a causa de todos os nossos problemas... aí está ela a se regozijar porque agora seu amante comandará todos os exércitos de Príamo!

- Os Deuses sabem que não me regozijo - declarou Helena, reprimindo as lágrimas. - Lamento pelos filhos perdidos desta casa que se tornou a minha e pela dor dos que são agora meu pai e minha mãe.

- Como ousa...

Andrômaca não pôde continuar, pois Príamo levantou a mão para contê-la e sussurrou algumas palavras.

- Como gostaria que eu provasse a minha dor?

Helena levantou-se e aproximou-se de Príamo. Os cabelos dourados compridos estavam soltos, caindo sobre os ombros; os olhos azuis, bem fundos no rosto e obscurecidos pelas lágrimas, eram luminosos à luz das velas.

- Pai, se for a sua vontade, eu descerei ao acampamento akaio e me oferecerei em troca do corpo de Heitor.

- Isso mesmo, vá - disse Hécuba, quase antes mesmo que Helena acabasse de falar e antes que Príamo pudesse responder. - Eles não lhe farão qualquer

mal.

Andrômaca acrescentou:

- Pode ser o único ato bom de toda unia vida e expiará o mal que causou a esta casa.

Kassandra estava grudada em seu banco, embora o seu primeiro impulso fosse o de levantar e gritar "Não! Não!" Mesmo assim, lembrou o que profetizara quando Páris se apresentara pela primeira vez nos portões de Tróia: ele era um incendiário que atearia uni incêndio que destruiria toda a cidade... uma profecia repetida quando ele trouxera Helena. Mas isso fora há muito tempo; não mais culpava Helena pelo que aconteceria à cidade: era o destino determinado pelos Deuses. E seu pai e irmãos - até mesmo o próprio Heitor - não haviam dado importância a seus avisos; e qualquer coisa que ela dissesse agora tecia o efeito exatamente oposto. Era melhor se manter em silêncio. Príamo disse, gentilmente:

- É uma oferta generosa, Helena, mas não podemos permitir que faça isso. Não é a única causa desta guerra. Resgataremos o corpo de Heitor... com todo o ouro de Tróia, se for preciso. Aquiles não é o único comandante dos akaios. Tenho certeza de que haverá alguns que ouvirão a voz da razão.

- Não! - Andrômaca levantou-se e fitou Helena com uma expressão sombria; Kassandra percebeu que algumas pessoas a achariam mais bonita do que Helena, embora sua beleza fosse de um tipo diferente: morena, enquanto Helena era loura; esguia, enquanto Helena era cheia. - Não, pai, deixe-a ir, eu lhe suplico. Também me deve alguma coisa, pois gerei o filho de Heitor. Eu lhe suplico que a deixe partir... e se ela não quiser, vamos forçá-la com açoites. Esta mulher nunca foi outra coisa senão uma maldição para todos nós em Tróia.

Páris levantou-se.

- Se expulsarem Helena, eu irei com ela.

- Pois então vá! - gritou Andrômaca. - Isso também seria uma bênção para a nossa cidade! Você não é uma maldição menor do que ela! Seu pai fez bem quando tentou afastá-lo da corte!

- Ela está delirando - interveio Deífobo, em tom ríspido. - Helena não nos deixará enquanto eu viver. A Deusa nos mandou Helena e nenhum outro teto a abrigará enquanto meus irmãos e eu vivermos.

Príamo correu os olhos pelo salão.

- O que devo fazer? - indagou ele. - Minha rainha e a esposa de Heitor nos disseram...

- Ela deve ir! insistiu Andrômaca. - Se permanecer aqui, eu deixarei Tróia esta noite... e exortarei todas as mulheres da casa de Príamo a me acompanharem; devemos permanecer sob o mesmo teto com aquela que lançou nossa cidade na poeira?

- Mas as muralhas de Tróia continuam a resistir - declarou Páris. - Nem tudo está perdido.

Ele se aproximou de Andrômaca, pegou sua mão e levou-a aos lábios, gentilmente.

- Não lhe guardo qualquer ressentimento, pobre criança. Está transtornada pela dor e não é de admirar. E posso garantir que Helena não sente qualquer rancor contra você.

Andrômaca desvencilhou-se bruscamente.

- Mulheres de Tróia, eu lhes suplico, vamos deixar o teto amaldiçoado que abriga essa falsa Deusa que só nos trará ruína e escravidão. . . - Sua voz se alteara, estridente e histérica; ela pegou uma tocha e acrescentou: - Mulheres de Tróia, sigam-me!

Príamo levantou-se e trovejou:

- Já chega! Temos problemas demais sem isso! - Ele virou-se para Andrômaca. - Compreendo a sua dor, minha criança, mas lhe peço que sente e escute a todos. Nada seria resolvido pela expulsão de Helena. Soldados tombaram em batalhas muito antes que Heitor nascesse... ou eu.

Ele se inclinou para abraçar Helena e depois de um momento ela desabou contra seu peito, soluçando. Hécuba se adiantou para também envolvê-la com seus braços.

- Paz - murmurou ela, sombriamente. - Temos Troilo para lamentar e sepultar antes de o sol nascer; e vocês, mulheres, peguem suas jóias para oferecer como resgate pelo corpo de Heitor.

Kassandra, juntando-se às mulheres que se agrupavam para preparar o corpo de Troilo, descobriu-se a especular se Andrômaca não estaria com a razão.

Andrômaca foi a única entre as mulheres que não acompanhou Hécuba; permaneceu aos pés de Príamo, chorando desconsolada.

- Não tenho sequer um corpo sobre o qual lamentar! - Depois, alteou a voz e acrescentou: - Não permita que Helena toque no corpo de Troilo, mãe! Não se lembra da história antiga, de que um cadáver vai sangrar se for tocado pela pessoa que o matou? E resta bem pouco sangue ao pobre rapaz!

 

Durante toda a noite Kassandra ouviu a chuva e o vento, uivando e fustigando em torno do palácio de Príamo, enquanto as mulheres da família real lamentavam Troilo. Lavaram e vestiram o cadáver, cobriram-no com especiarias preciosas e queimaram incenso para encobrir o cheiro nauseante da morte. No intervalo cinzento entre a escuridão e o nascer do sol, elas suspenderam o lamento noturno para tomar vinho e escutar uma canção de uma das mulheres entre os menestréis na sala. Ela louvou a beleza e a bravura do jovem morto, proclamando que ele tombara porque sua beleza era tão grande que o Deus da Guerra o desejara e assumira a forma de Akiles para possuí-lo.

Depois que a canção terminou, Hécuba chamou a música e lhe deu um anel como lembrança por sua nobre elegia. Uma das mulheres persuadiu-a a sentar e tomar uma taça de vinho quente com especiarias. Helena, que também aceitara uma taça, foi sentar ao lado de Kassandra.

- Sentarei em outro lugar se não quiser que a vejam conversando comigo - disse ela. - Mas parece que agora não sou bem-vinda em qualquer lugar entre as mulheres.

Seu rosto estava fino, quase encovado, muito pálido; ela emagrecera desde a morte dos filhos e Kassandra notou algumas mechas sem brilho entre os cabelos dourados.

- Não, Helena, fique aqui. Creio que sabe que sempre serei sua amiga.

- Seja como for, minha oferta foi sincera. Estou disposta a voltar para Menelau. Provavelmente ele me matará, mas talvez eu tenha a oportunidade de ver minha filha antes de morrer. Páris acha que teremos outros filhos e eu até esperava... mas já é tarde demais para isso. Acho que ele queria que nosso filho reinasse sobre Tróia depois de nós.

Ela fitou Kassandra com uma expressão meio inquisitiva. Kassandra acenou com a cabeça, com a sensação chocante de que, por concordar com o que Helena dissera, era como se desejasse que a tragédia se consumasse.

Nos últimos anos ela se acostumara a esse sentimento, mesmo sabendo que era absurdo; a culpa, se culpa devia haver, pertencia apenas aos Deuses ou quaisquer que fossem as forças que levassem os Deuses a agirem como agiam. Kassandra levantou sua taça para Helena e bebeu, sentindo o torpor do vinho envolvê-la com toda força, àquela hora inesperada; ainda por cima, comera muito pouco no dia anterior. Helena pareceu ecoar seus pensamentos ao dizer:

- Eu me pergunto se a rainha é sábia ao servir um vinho tão forte, sem mistura, quando todas estamos fracas de dor ou fome; estas mulheres estarão embriagadas dentro de meia hora.

- Não é urna questão de sabedoria, mas de costume - explicou Kassandra. - Se ela servisse menos que o melhor, todas questionariam seu amor e respeito pelo filho morto.

- É estranha a maneira como as pessoas pensam ou se recusam a pensar sobre a morte. Páris, por exemplo... parece que ele pensa desde a morte dos nossos filhos que talvez os Deuses aceitem o sacrifício de suas vidas e poupem as nossas.

- Se um Deus aceitasse que os inocentes expiassem os pecados dos culpados, eu não poderia ter qualquer reverência por Ele; e, no entanto, há algumas pessoas que acreditam em Deuses que aceitam o sacrifício de sangue inocente. - Uma pausa e Kassandra acrescentou, quase num sussurro: - Talvez seja uma idéia que os Deuses... ou os demônios... puseram na cabeça de todos os homens. Agamenon não sacrificou a própria filha no altar da Virgem por um vento favorável que trouxesse sua esquadra a Tróia?

- E. verdade, embora Agamenon não queira ouvi-lo agora e alegue que o sacrifício foi idéia de sua esposa... minha irmã. Os akaios temem as Deusas antigas, dizendo que estão maculadas. O mais bravo dos homens foge em terror dos Mistérios das mulheres.

Kassandra correu os olhos pela sala escura, onde as mulheres bebiam e conversavam, em pequenos grupos.

- Eu gostaria que de alguma forma pudéssemos lhes incutir esse terror agora - murmurou ela.

Lembrou que visitara a tenda de Akiles num transe... ou fora apenas um sonho? Aflorou em sua mente o pensamento de que talvez ainda pudesse ter algum acesso assim a mente do herói akaio; haveria de tentar, na primeira oportunidade. Levantou a taça em silêncio e bebeu; Helena, fitando-a nos olhos por cima da borda, fez a mesma coisa.

Uma aragem súbita e forte varreu a sala; a porta se abrira e ali estava Andrômaca, segurando uma tocha, as línguas de chama esticadas pelo vento forte que soprava no corredor. Os cabelos compridos pingavam e a túnica e o manto estavam encharcados pela chuva. Ela avançou pela sala como um fantasma, entoando baixinho um hino fúnebre. Inclinou-se sobre o corpo de Troilo e beijou o rosto pálido.

- Adeus, meu querido irmão - disse ela, em voz estridente e clara. - Parte antes do maior dos heróis para falar aos Deuses da eterna vergonha que ele sofre.

Kassandra adiantou-se rapidamente e lhe disse, em voz suave, mas bastante audível:

- A vergonha infligida ao bravo só é vergonha para aquele que comete o crime, não para quem o sofre.

Mas Heitor enfrentara Akiles por sua livre e espontânea vontade, aceitando o jogo d um golpear o outro. Ele fez apenas o que lhe ensinaram a fazer por toda a sua vida.

Ela serviu-se de vinho; estava mais encorpado agora, ainda menos diluído do que antes, quando a ânfora estava mais cheia. Talvez fosse melhor assim; Andrômaca sairia dali para dormir e aliviar um pouco de seu horror, se não mesmo a dor também. Ela pôs a taça na mão da prima, sentindo em seu hábito o cheiro do vinho; onde quer que Andrômaca tivesse estado antes, já bebera um pouco! - Beba, minha irmã.

- Está bem - murmurou Andrômaca, as lágrimas escorrendo pelas faces. - Vim para Tróia com você, quando éramos garotas. Você me contou na viagem muitas histórias de como ele era bravo e bonito. Meu filho nasceu em suas mãos. Você é minha amiga mais querida, por todas as nossas vidas.

Ela abraçou Kassandra e assim ficou, balançando. Kassandra compreendeu que ela já estava embriagada. A própria Kassandra não escapara aos efeitos do vinho que tomara, mas podia sentir a angústia e o anseio de Andrômaca, que se inclinou de novo para beijar o rosto de Troilo e depois disse a Hécuba:

- É afortunada, mãe, por poder adornar seu cadáver e chorar; enquanto isso, meu Heitor está apodrecendo sob a chuva, insepulto, sem ser lamentado.

- Não sem ser lamentado - protestou Kassandra, gentilmente. - Todas nós o lamentamos. Seu espírito escutará as lágrimas e lamentações, não importa que o corpo esteja aqui ou junto dos cavalos de Akiles.

Ela sentiu um aperto na garganta e passou a pensar no dia seguinte à chegada de Andrômaca em Tróia, quando Heitor a proibira de empunhar armas e a ameaçara com uma surra. Falara para tentar confortar Andrômaca, mas subitamente especulou se não agravara a situação. Os olhos de Andrômaca estavam frios e sem lágrimas. Kassandra conduziu-a para um banco; mas quando Andrômaca viu Helena ali, recuou no mesmo instante, os lábios se contraindo e deixando os dentes expostos, numa carranca terrível, que transformava seu rosto quase numa caveira.

- Você aqui, fingindo lamentar?

- Os Deuses sabem que não finjo nada - respondeu Helena, calmamente. Mas se prefere, irei embora... você tem mais direito de estar aqui.

- Oh, Andrômaca, não fale assim! - disse Kassandra. - Vocês duas vieram para esta cidade como estranhas e aqui encontraram um lar. Você perdeu seu marido e Helena perdeu os filhos, nas mãos dos Deuses; devem partilhar o pesar, e não se virarem uma contra a outra. As duas são minhas irmãs e eu as amo.

Com uma das mãos ela puxou Helena e com o outro braço enlaçou Andrômaca.

- Tem razão, somos todas impotentes nas mãos dos Deuses - murmurou Andrômaca. Ela fungou e tomou o resto do vinho. A voz estava trêmula e engrolada quando acrescentou: - Irmã, somos vítimas nesta guerra; que a Deusa impeça que esta loucura dos homens nos se... separe.

Ambas desataram a chorar e se abraçaram. Hécuba aproximou-se e envolveu as três em seus braços, chorando também.

- Tantos mortos! Tantos mortos! Seus preciosos filhos, Helena! Meus filhos! Onde está o filho de Heitor, meu último neto?

- Não é o último, mãe - lembrou Kassandra. - Já esqueceu? Creusa e as crianças foram enviadas para lugar seguro, não correm nenhum risco. Estão fora do alcance da loucura de Akiles e dos exércitos akaios.

- Astíanax está muito velho para continuar nos aposentos das mulheres - disse Andrômaca. - Não posso sequer confortá-lo nem procurar conforto por ver o pai em seu rosto.

A voz era ainda mais triste do que as lágrimas.

- Quando perdi... os pequenos... - murmurou Helena, a voz trêmula - trouxe Nikos para me confortar. Posso ir agora buscar seu filho, Andrômaca. - Abençoada seja por isso! - exclamou Andrômaca. Kassandra interveio:

- Deixe-me levá-la para seu quarto; não vai, querer recebê-lo aqui, entre todas essas mulheres embriagadas...

- Isso mesmo, eu o levarei para lá - acrescentou Helena. - Ainda tem seu filho, e essa é a maior de todas as dádivas.

Uma a uma ou em grupos de duas e três, - as mulheres, exaustas pela dor e pelo vinho forte, foram se deitar. Apenas Hécuba e Polixena, com a túnica de sacerdotisa, continuaram junto de Troilo, à espera dos que viriam para levar o corpo ao fogo. Kassandra se perguntou se não deveria ficar também; mas não lhe haviam pedido nem mesmo para efetuar o serviço de sacerdotisa de purificar a câmara mortuária. Além disso, Andrômaca e até Helena precisavam mais dela; sabia que era uma estranha entre as mulheres de Tróia, tanto quanto a colquidense e a espartana.

Ela permaneceu com as duas, até que Helena foi aos aposentos de Páris e encontrou Nikos e Astíanax. Os dois haviam chorado. O rosto de Astíanax estava manchado de lágrimas; era evidente que alguém lhe contara sobre a morte do pai e tentara confortá-lo. Helena levou os dois para a fonte no centro do pátio e limpou seus rostos com a beira do véu. Astíanax lançou-se agradecido nos braços da mãe e depois murmurou, aturdido:

- Não chore, mãe. Disseram-me que eu não devia chorar, porque meu pai é um herói. Então por que você está chorando?

Helena interveio, gentilmente:

- Astíanax, você deve ajudar a enxugar as lágrimas de sua mãe; tem agora a responsabilidade de cuidar dela, já que seu pai não pode faze-lo.

Ao contato com o filho, Andrômaca tornou a se desmanchar em lágrimas; Helena e Kassandra levaram-na para seu quarto, puseram-na na cama e ajeitaram o menino ao seu lado.

- Nikos ficará comigo - murmurou Helena. - Por que eles os tiram dê nós tão pequenos?

Mas quando ela puxou o filho para seus braços, Nikos se desvencilhou, indignado.

- Não sou mais um bebê, mãe! Voltarei para junto dos homens.

Reprimindo os soluços, Helena disse.

- Como quiser, criança; mas primeiro me dê um abraço.

Relutante, Nikos atendeu e depois se retirou apressado. Helena, as lágrimas escorrendo pelas faces, observou-o partir, sem protestar.

- Páris não se saiu melhor com ele do que Menelau - comentou ela. - Não me agrada o que os homens fazem com os meninos... tornando-os iguais a eles. Graças aos Deuses que Astíanax ainda não se envergonha de ficar com a mãe.

Enquanto falava, ela olhava para a chuva forte que caía do céu cinzento. E depois de um momento, gritou subitamente:

- Kassandra! - A voz estava tão impregnada de temor e ela se agarrou com tanta força às outras mulheres que Kassandra quase deixou cair a tocha. - Se cairmos nas mãos dos akaios, o que acontecerá com meu filho? Talvez os troianos não se detenham diante de nada para garantirem que Menelau não possa reclamá-lo!

- Está querendo dizer que acha que meu pai ou irmãos matariam a criança para evitar que seja levada de volta a Esparta? - indagou Kassandra, mal podendo acreditar em seus ouvidos.

- Não posso realmente acreditar nisso, mas...

- Se acredita nessa possibilidade, então talvez deva mesmo voltar a Menelau e levar a criança para lugar seguro - disse Kassandra. - Tenho certeza de que ele a acolheria muito bem, se levasse seu filho...

- E eu pensei que Nikos estaria muito melhor em Tróia, que Paris seria para ele um pai muito melhor do que Menelau - murmurou Helena, tristemente. - E ele foi, Kassandra, ele foi; mas agora... Páris parece odiá-lo por estar vivo, quando seus próprios filhos morreram...

A voz falhou e, por um momento, abraçada a Kassandra, ela chorou. - Então você vai...?

- Não posso - balbuciou Helena. - Não posso me persuadir a deixar Paris; digo a mim mesma que é a vontade dos Deuses que eu continue até que tudo acabe entre nós. Ele não me ama mais, mas prefiro estar em Tróia do que em Esparta. . . - Ela deixou que a voz definhasse e se calasse, e, depois de uma pausa, acrescentou: - Kassandra, você está exausta; não devo impedi-la por mais tempo de deitar. Ou vai voltar à câmara mortuária e ficará velando Troilo?

- Acho que não me querem por lá - respondeu Kassandra. - Voltarei à Casa do Senhor do Sol.

- Com esta chuva? Escute só a tempestade. Será bem-vinda para dormir aqui, se quiser. Pode dormir em minha cama... é bem pouco provável que Paris apareça. Todos eles devem ter bebido tanto em homenagem ao espírito de Heitor que perderão o caminho nas escadas. Ou posso pedir às criadas para arrumarem uma cama para você no outro aposento.

E muito gentil, irmã, mas as servas já devem estar dormindo a esta altura; deixe-as descansar. E a chuva servirá para me desanuviar a cabeça. - Kassandra pôs o manto, puxou o capuz sobre a cabeça e abraçou Helena. - Andrômaca não estava pensando direito quando falou tudo aquilo a seu respeito.

- Sei disso. No lugar dela, eu também me sentiria assim. Ela tem medo; o que vai acontecer agora a ela e a Astíanax? Paris já decidiu que será o sucessor de Príamo e não deixará lugar para o filho de Heitor. E se Paris conseguir levar

esta guerra a bom termo...

- Não há a menor possibilidade de que isso aconteça - declarou Kassandra. - Mas você não precisa temer, Helena. Menelau não lutou durante todos esses anos por vingança.

- Sei- disso, porque falei com ele - disse Helena, surpreendendo-a. - Não sei por que, mas parece que ele me quer de volta.

- Falou com ele? Quando?

Kassandra já ia perguntar como, mas depois se lembrou que Helena, como esposa de Paris, podia ir onde quisesse, até mesmo descer ao acampamento akaio. Mas por que ela haveria de conferenciar com comandantes inimigos? Kassandra ficou desconfiada, mas logo absolveu mentalmente a amiga de qualquer traição. Nada mais sensato que Helena desejasse barganhar seu destino e o do filho.

- Se falar com ele de novo, pergunte se pode fazer alguma coisa para influenciar Akiles a devolver o corpo de Heitor.

- Pode estar certa de que já tentei e tentarei de novo - respondeu Helena. - Escute, a chuva está diminuindo um pouco; se partir agora, talvez chegue ao templo antes que aumente de novo.

Ela tornou a beijar Kassandra e desceu em sua companhia até o pesado portão do palácio. Kassandra saiu na chuva gelada. Ainda não subira meio lance da longa escadaria quando a chuva voltou a cair com uma fúria redobrada, o vento puxando seu manto como as garras de um animal selvagem.

Ela refletiu por um momento, arrependida, que deveria ter aceitado a oferta de unia cama que Helena fizera. Enéias devia estar se banqueteando e bebendo com os homens, era improvável que fosse procura-la naquela noite. Mas não havia sentido em voltar agora; continuou a subir, lutando contra a tempestade.

Ouviu passos leves por trás quando entrou na rua da Casa do Senhor do Sol. Depois de tantos anos de guerra, sentia-se nervosa com estranhos e virou-se para deparar, à luz das tochas por cima dos portões, com o rosto e o vulto de Criseide envolto por um manto. Mesmo à pouca claridade, ela pôde perceber que as roupas da moça estavam amarrotadas e manchadas de vinho, os cosméticos em seu rosto borrados. Kassandra suspirou, especulando em que cama estranha a moça assara grande parte da noite e por que se dera ao trabalho de partir no meio da tempestade. Ela parece urna gata depois de uma noite a perambular.. .

só que urna gata teria lavado o rosto.

O vigia nos portões da Casa do Senhor do Sol cumprimentou-as com espanto ("Ficaram na rua até tarde com este tempo horrível"), mas ninguém jamais demonstrara curiosidade pelas idas e vindas de Kassandra; ela refletiu que poderia ter tantos amantes quanto Criseide e ninguém jamais saberia ou se importaria. Enquanto subiam pelo pátio íngreme para o dormitório, localizado na parte mais elevada do templo, Kassandra diminuiu seus passos para acompanhar a moça.

- Está ficando tão tarde que já é quase cedo - disse ela. - Não quer entrar em meu quarto para lavar o rosto, antes de ser vista assim no templo?

- Não há necessidade. Por que deveria? Não me envergonho de qualquer coisa que faço.

- Pouparia seu pai de vê-la nesse estado. Isso partiria seu coração.

A risada de Criseide foi tão estridente quanto vidro quebrando.

- Ora, deixe disso! Ele não pode mais acalentar qualquer ilusão de que saí virgem da cama de Agamenon.

- Talvez não, já que ele não pode culpá-la pelos infortúnios da guerra; mas deve compreender que ficaria consternado por encontrá-la nesse estado.

- E acha que me importo com isso? Eu me sentia contente onde estava e preferia que ele tivesse cuidado de sua própria vida, me deixando lá.

- Criseide, tem alguma idéia de o quanto ele lamentou profundamente o que aconteceu com você? Não pensava em outra coisa.

- Então é mais tolo do que eu pensava.

- Criseide... - Kassandra observou-a atentamente, especulando o que haveria em seu coração, se é que ela o tinha. - Não se envergonha de se mostrar aos homens de Tróia e saber que todos a conhecem e reconhecem por ter sido a concubina de Agamenon?

- Claro que não - respondeu Criseide, com um ar de desafio. – Tanto quanto Andrômaca não se envergonha por todos os homens saberem que ela é de Heitor ou que Helena pertence a Páris.

Havia uma diferença, Kassandra sabia, mas não podia ordenar seus pensamentos para explicá-la àquela moça confusa.

- Se a cidade cair - acrescentou Criseide -, todas nós seremos dadas a algum homem; por isso, eu me entregou quem quero, enquanto ainda posso escolher. Continuará a manter sua virgindade só para ser tomada por um conquistador à força, Kassandra?

Não posso absolutamente culpá-la por isso. Kassandra sentiu-se incapaz de falar; limitou-se a virai as costas e entrar em seu quarto.

Lá dentro, descobriu que uma serva negligente deixara as janelas abertas e o vento lançara a chuva pelo interior. A cama de Mel estava toda molhada e a criança fora deitar sobre as cobertas, no chão de pedra, junto à parede, a fim de escapar à chuva. Mesmo assim, estava encharcada.

Kassandra fechou as janelas e levou a criança para sua própria cama. Mel estava tão fria quanto uma rã e choramingou quando Kassandra a levantou, mas não acordou. Kassandra envolveu-a com mantas e embalou-a contra os seios, até sentir que os pés e mãos gelados começavam a esquentar. E, finalmente, Mel mergulhou no sono profundo de qualquer criança saudável.

Deitou a menina e estendeu-se ao lado, cobrindo a ambas com seu manto quente. O barulho da tempestade além das janelas fechadas estava abafado, mas ainda chocalhava as persianas com sua força. Ela fechou os olhos, tentando projetar o espírito para longe.

Para sua surpresa, depois que saiu do corpo, deslocando a percepção da cama e através da janela, não teve mais consciência da tempestade, apenas um silêncio profundo; não havia condições de tempo no nível em que seu espírito agora pairava. Tão depressa quanto o pensamento, ela desceu a colina ao luar, flutuou sobre a planície entre os portões de Tróia e as trincheiras que protegiam o acampamento akaio.

Sob aquele luar impossível, as sombras eram nítidas e pretas na planície, silenciosa e vazia, exceto por um único vigia noturno sonolento. Páris estava certo, pensou Kassandra: deveriam ter lançado todas as suas forças contra o acampamento akaio naquela noite. Mas logo se lembrou de que no mundo físico as trincheiras akaias eram mais bem guardadas pelo aguaceiro do que por todos os vigias da terra. Divisou uma estrutura escura e reconheceu o carro de combate de Akiles, tendo ao lado uma massa indefinida que devia ser o corpo amarrado de Heitor. Seu primeiro pensamento foi de gratidão porque naquele análogo do Outro Mune - e como ela podia vaguear tão facilmente por aquele mundo dos mortos, quando ainda se encontrava entre os vivos? - o corpo de Heitor não era fustigado pela chuva e pelo vento uivante. E quando pensava no irmão viu-o subitamente à ,sua frente, sorrindo.

- Irmã, é você. Eu devia esperar encontrá-la aqui.

- Heitor. . . - Ela hesitou. - Como está?   1

Bem... - Ele fez uma pausa, pareceu refletir. - Melhor do que jamais imaginei. A dor desapareceu e por isso suponho que estou morto. Lembro apenas de ter sido ferido e pensar que devia ser o fim. Depois despertei e Pátroklo veio me ajudar a levantar. Fez-me companhia por algum tempo e, depois, disse que precisava ficar com Akiles e foi embora. Fui ao palácio esta noite, mas Andrômaca não pôde me ver. Tentei falar com ela e depois com a mãe, dizer-lhes que eu estava bem. Mas nenhuma das duas parecia-me ouvir.

- Quando estava vivo, ouviu alguma vez a voz de um morto? - Claro que não. Nunca aprendi a escutar isso.

- E por isso que elas não puderam ouvi-lo. O que posso fazer por você, meu irmão? Quer sacrifícios ou...

- Não posso imaginar de que isso adiantaria, Kassandra. Mas diga ;a Andrômaca para não chorar; é muito estranho não ser capaz de confortá-la. Diga a ela para não se lamentar; e, se puder, diga também que irei em breve buscar Astíanax para ficar comigo. Eu gostaria de deixá-lo aos cuidados de Andrômaca, mas fui avisado...

- Por quem?

- Não sei. Não consigo me lembrar. Talvez tenha sido Pátroklo... mas sei que meu filho virá ao meu encontro muito em breve, assim como o pai e Páris.

Mas não Andrômaca; ela continuará no outro mundo por muito tempo.

Heitor se aproximou e ela sentiu o leve contato de seus lábios na testa.

- Vou me despedir de você também, irmã, mas não tenha medo; haverá muito sofrimento, mas prometo que tudo acabará bem para você. - E Tróia?

- Não... Tróia já caiu. Está vendo?

Ele fez Kassandra virar-se, com mãos gentis e insubstanciais; ela contemplou uma enorme pilha de escombros, as chamas se elevando no lugar em que antes estava Tróia. Mas o som de tanta destruição... como pudera deixar de ouvir?

- Não há tempo aqui, irmã. O que é e o que vai ser, tudo é uma só coisa. Não consigo entender, pois esta noite entrei no salão do palácio de meu pai, onde todos comiam, e agora... veja como a cidade já caiu há muito tempo. Quando eu me encontrava no outro mundo, talvez devesse indagar aos que sabem dessas coisas, mas lá parecia nunca haver tempo para isso. Mas agora vejo Apolo e Posêidon... ali estão Eles, lutando pela cidade...

Ele apontou para um lugar por cima das muralhas desmoronadas, onde parecia que dois vultos monstruosos, estendendo-se pelas nuvens, estavam combatendo, luzindo como relâmpagos.

Kassandra estremeceu à visão do rosto amado do Senhor do Sol, coroado pelos brilhantes cachos dourados; Ele se viraria para vê-la vagueando nos reinos proibidos? Resoluta, ela tornou a se virar para Heitor.

- E Troilo? Ele está bem?

- Estava comigo ainda há pouco. Chegou aqui pouco depois de mim. Mas ficou no palácio com a mãe; está tentando dizer a ela para não se lamentar. Não quis acreditar que não conseguiria fazer com que a mãe o ouvisse. Talvez ela escute você, se lhe contar. Ela sabe que você é uma sacerdotisa e sábia nessas coisas.

- Não sei se ela escutará também a mim, meu querido irmão. A mãe tem opiniões próprias e não aceita as minhas. Mas pelo bem de nossos pais e sua paz de espírito... Kassandra fez uma pausa, refletindo. - Vim aqui para tentar fazer Akiles, talvez assustando-o, trocar seu corpo por um resgate; talvez você consiga isso melhor do que eu.

- Acha que ele tem medo de fantasmas? Akiles já matou muitos, deve viver cercado por eles constantemente. Mas verei o que posso fazer. Volte agora, irmã, para o seu lado da muralha que se ergue entre nós. Diga à mãe e ao pai que não devem perder tempo a lamentar; estarão comigo muito em breve. E não se esqueça de dizer a Andrômaca para não lamentar; estarei esperando aqui por nosso filho. E diga a ele que não precisa ter medo: estarei pronto para recebê-lo. Ela não iria gostar que ele vivesse nos dias que estão chegando.

Heitor afastou-se, flutuando na direção da tenda de Akiles. Ele tornou a se virar depois de um momento; já parecia, pensou Kassandra, distante e estranho, um homem que não conhecia.

- Não, irmã, não me siga; nossos caminhos se separam aqui. Talvez possamos nos encontrar de novo e nos compreender melhor.

- Não vou me juntar a você e Troilo, a nossa mãe e pai?

- Não sei. Você serve a outros Deuses. Se passar para a morte, talvez vá para outro lugar. Mas me foi dado saber que nossos caminhos se separam aqui, por um longo tempo, se não mesmo para sempre. Que tudo esteja sempre bem com você, Kassandra.

Heitor abraçou-a e ela ficou surpresa ao descobrir a força daquele abraço. Não era um fantasma, mas tão real quanto ela. E depois ele se foi, até sua sombra desaparecer na planície.

 

A chuva cessou quase ao amanhecer e foi substituída por ventos fortes. Kassandra mergulhava e emergia do sono, sonhando muitas vezes que tentava seguir Heitor até a tenda de Akiles, que despertou para olhar aturdido e balbuciar aterrorizado diante da visão do príncipe troiano passando pelas paredes, rindo dele; ou então se encontrava na tenda de Agamenon. O rei a fitou desvairado e tentou agarrá-la, mas ela flutuou para longe de seus braços como se fosse feita de brumas. Ele gritou de raiva e arremeteu em seu encalço, uivando de frustração.

Quando finalmente acordou, os raios tênues do sol entravam pelas janelas e Mel a contemplava espantada. Kassandra se perguntou se estivera falando ou chorando no sono. Raramente dormia até tão tarde, mas também permanecera acordada até quase o amanhecer. Vestindo-se rapidamente, ela tentou guardar na memória as mensagens que Heitor lhe pedira para transmitir; sabia quão depressa, como sonhos apenas semi lembrados, tais experiências se desvaneciam. Estava amarrando o cinto da túnica quando Filida entrou correndo.

- Kassandra, venha imediatamente! As serpentes.. .

- Não posso, pois tenho uma mensagem a transmitir. Tenho certeza de que você poderá fazer tudo o que for necessário.

- Mas...

- Está bem, fale depressa... elas fugiram ou rastejaram para suas tocas?

Subitamente, Kassandra teve medo de que pudesse ser o aviso do terrível terremoto; era inevitável que ocorresse em breve... mas, rogo aos Deuses, não hoje, não hoje!

- Não, mas.. .

- Então não me incomode. Tenho coisas da maior importância para tratar e não posso ficar para conversar. Leve Mel com você. Vista-a e arrume um pão... Voltarei para cuidar dela assim que puder.

Kassandra saiu apressada do aposento e começou a descer a encosta. Parou por um instante para contemplar além da muralha; o carro de Akiles circulava outra vez pela planície, os cavalos açoitados para desenvolverem a velocidade máxima. O fardo inerte do corpo de Heitor era arrastado em sua esteira; mas sua Visão era agora tão profunda entre os mundos que podia ver o irmão, parado à beira do campo, uma sombra brilhante, rindo do absurdo que o comandante akaio tentava fazer. Ela sabia o que Heitor achava tão engraçado; e quando se encontrou com os pais, parados na muralha, no lugar habitual, por cima dos portões, não pôde deixar de soltar uma risada.

Os olhos de Hécuba, inchados e quase fechados de tanto chorar, fixaram-se nela, furiosos.

- Como pode rir?

- Mas não pode compreender, mãe querida, como tudo isso é uma tolice? Olhe ali, junto das trincheiras... Heitor está rindo de tudo isso... Veja o sol faiscando em seus cabelos...

Hécuba exibiu uma expressão resignada, que dizia: Mas é claro, ela é louca e não se pode esperar que tenha os sentimentos de uma pessoa normal. Mas Kassandra segurou-a pelos braços.

- Mãe, o que estou dizendo é verdade. Ontem à noite conversei com Heitor na Terra Além da Morte e posso garantir que está tudo bem com ele.

- Você sonhou, minha querida - disse Hécuba, gentilmente.

- Não, mãe; eu o vi como a estou vendo agora, toquei nele.

- Eu gostaria de poder acreditar em você...

As lágrimas se acumularam lentamente e caíram dos olhos da rainha.

- Tem de acreditar em mim, mãe! E ele me pediu para dizer a você que não deve lamentar...

- Ontem à noite eu quase poderia acreditar... tive a impressão de ouvir a voz de Troilo...

- E ouviu, mãe, juro que ouviu! - exclamou Kassandra, no maior excitamento, inebriada por sua mensagem. - Não vi nem falei com Troilo, porque Heitor disse que ele ficou com você, tentando confortá-la, tentando fazer com que o ouvisse.

Hécuba murmurou:

- Quando Polixena e eu estávamos cansadas demais para velar por mais tempo... o sol já nascia... fui ao jardim por um momento e tive a impressão de sentir Troilo tocar em meus cabelos, corno fazia quando se tornou alto demais para me beijar, exceto no topo da cabeça. Ele era um menino tão meigo, o mais querido de todos os meus filhos...

Os olhos de Hécuba voltaram a se encher e derramar lágrimas, Kassandra abraçou-a com força.

- Ele estava mesmo ao seu lado, mãe. Juro que estava.      

- E Heitor... você diz que também ele está em paz.. . mas como seu espírito pode estar livre quando não temos o corpo para lhe dar um funeral decente? E se assim é, por que os ritos fúnebres foram determinados pelos Deuses?

- Sei apenas o que vi, mãe.

- Não adianta - murmurou Hécuba, desesperada, depois de refletir por um momento. - Não posso imaginar o espírito de Heitor livre quando vejo o seu pobre corpo... Veja como a poeira se levanta, mesmo depois de uma noite inteira de chuva forte!

Ela recomeçou a chorar. Kassandra tentou enxugar os olhos da mãe com o véu, censurando-a:

- Heitor ficaria aflito se a visse chorar assim. Akiles não pode atingi-lo agora, faça o que fizer. Mesmo que retalhasse o corpo de Heitor e o desse aos cães, não, haveria mal algum para o Heitor que conhecemos.

Hécuba encolheu-se, angustiada.

- Como pode falar assim, Kassandra?

- Fiz o juramento a Apolo de dizer a verdade; aos que não querem ouvir, só posso dizer que isso não me impede de falar.

Kassandra se perguntou por que somente sua mãe podia deixá-la irritada mesmo - ou especialmente - quando tentava lhe dizer coisas que não podiam

perturbá-la.

- Mas está dizendo que podemos dar o nosso Heitor como alimento aos cães...

- Eu não disse isso, mãe! - Kassandra estava furiosa agora, mas fez um esforço para manter a voz firme e calma. - Não me ouviu direito! Eu disse apenas que, se Akiles, em sua loucura, fizesse isso, não faria a menor diferença para Heitor, mas apenas para nós.

- Mas você estava dizendo... eu ouvi... que não precisávamos dar a Heitor os ritos fúnebres.

Kassandra suspirou, como se estivesse arrastando um peso enorme pela encosta acima.

- Mãe, não creio que os ritos fúnebres tenham qualquer importância para Heitor ou para os Deuses... só têm para nós.

Era como tentar explicar a Mel por que não podia comer uma dúzia de bolinhos. Hécuba empinou o queixo.

- E eu digo que isso é apenas mais uma de suas idéias desvairadas. Ela se virou e Kassandra murmurou, reprimindo a raiva:

- É bem provável, mãe.

Ela é velha; não posso esperar que compreenda qualquer coisa que lhe seja nova.

- Mas não deve dizer nada assim a Andrômaca, Kassandra. Ela já tem bastante sofrimento para suportar sem isso.

- Sem o quê? - indagou Andrômaca, subindo à muralha a tempo de ouvir as últimas palavras.

- Eu estava dizendo a ela... - começou Kassandra.

Hécuba lançou-lhe um olhar irado: Não se atreva! Kassandra compreendeu que a discussão com a mãe a fizera esquecer as palavras exatas que tencionava falar. E disse, cansada:

- Apenas que numa visão ontem à noite falei com Heitor e ele pediu para dizer a você que não deve se lamentar, pois está contente e em paz, não importa o que façam com seu corpo.

Havia mais; Heitor lhe pedira para dizer a Andrômaca... o quê? Que viria em breve buscar o filho.. . mas não! Não posso dizer a ela que o filho morrerá, quando já perdeu Heitor... ela... o que era... que ela não iria gostar que o filho vivesse nos dias que estão chegando.

Andrômaca a fitava com as sobrancelhas arqueadas, numa expressão cética. Kassandra murmurou:

- Ele me pediu para dizer que... que permaneceria para velar pelo filho.

- De muito isso nos adianta, quando ele já nos deixou - disse Andrômaca, os olhos arregalados para reprimir as lágrimas.

- Mas ele não quer que você chore e lamente - insistiu Kassandra. - Isso não pode ajudá-lo agora.

- Todas as videntes nos dizem isso - comentou Andrômaca, amargurada. - Eu esperava algo melhor de você, Kassandra, se de fato pode ver além da morte.

- Falo como os Deuses me ordenam que fale, com as palavras que as pessoas estão dispostas a ouvir.

No campo de batalha, Akiles continuava a açoitar os cavalos, com uma fúria ainda mais frenética. Isso prosseguiu o dia inteiro, enquanto o sol subia e declinava sobre Tróia. Por duas vezes, Páris comandou uma expedição para tentar capturar o carro de Akiles e recuperar o corpo, por duas vezes as tropas de Agameno5 o repeliram; três dos filhos inferiores de Príamo, com mulheres do palácio, foram mortos, até que todos chegaram finalmente à conclusão de que Akiles estava muito bem protegido.

- Já chega - disse Príamo, depois do terceiro ataque. - O sol está se pondo; quando escurecer, procurarei Akiles pessoalmente e tentarei negociar o resgate do corpo de meu filho.

Uma atitude absurda e inútil, pensou Kassandra; Heitor não está naquela massa de carne apodrecendo amarrada na esteira de Akiles e seu maldito carro. Por que ela podia compreender isso, quando os pais não conseguiam? Não deveriam ser mais sensatos do que ela? Assustava-a o fato de não serem.

Ela sentia-se tonta e fraca; passara o dia inteiro de pé ao lado da mãe e nem mesmo partilhara o pão duro e azeite distribuído aos soldados ao meio-dia. Foi comer um pedaço de pão, engolindo-o com um pouco de vinho aguado, depois foi se juntar a Hécuba, que assistia os servos de Príamo a vestirem-no com os trajes mais suntuosos.

- Se eu procurar Akiles sem estar vestido da melhor forma possível - comentou o rei -, ele pode pensar que não o considero digno de honra. Não considero, é claro, mas não quero que ele pense assim.

- Não tenho tanta certeza, pai - disse Páris, parado ao lado de Príamo, aparando sua barba meticulosamente com a tesoura que Helena usava em suas tapeçarias. - Talvez a vaidade daquele louco fosse mais lisonjeada se o procurasse trajado com simplicidade e luto, como um suplicante.

- Mas mostrar-lhe o ouro de Tróia pode despertar sua ganância, se não podemos apelar para sua honra - disse Andrômaca.

- É praticamente impossível apelar para sua honra - comentou Páris. - Parece evidente que ele não tem nenhuma. O problema é definir a melhor maneira de persuadi-lo a nos entregar Heitor para o funeral.

- Irei como suplicante - decidiu Príamo, já começando a arrancar os trajes. - Tragam-me a minha roupa mais simples. E, além disso, irei sozinho.

- Não! - gritou Hécuba, caindo de joelhos diante do marido, numa agonia de desespero. - Já testemunhamos que ele não tem o menor respeito pela honra costumeira, ou Heitor já estaria agora em sua sepultura! Se chegar perto, ele com certeza vai matá-lo ou maltratá-lo, talvez cometer com seu cadáver o mesmo insulto que comete com o de Heitor! Não pode procurá-lo desprotegido!

- Se for preciso, falarei primeiro com nosso velho amigo Odisseu, que me levará em segurança a Akiles - disse Príamo. - Sabemos que ele quer ter uma opinião favorável de Odisseu e por isso não me insultará em sua presença.

- Isso não é suficiente - protestou Hécuba, agarrando-se aos joelhos do marido. - Se está mesmo decidido a esta loucura, não dará um só passo; não o deixarei partir.

Príamo tentou repeli-la, mas ela resistiu. Ele fitou-a irritado.

- Pare com isso! O que quer que eu faça então? Se procurar Akiles com homens armados, ele vai pensar que o estou desafiando para um duelo. É isso o que deseja?

- Não! - exclamou Hécuba, mas ainda se recusando a soltá-lo.

- Mas o que quer que eu faça? Por que uma mulher nunca pode ser sensata? - Não sei, meu senhor e meu amor, mas não vai procurar aquele louco sozinho!

- Eu irei - declarou Andrômaca, com extrema dignidade. - Que ele explique à viúva e ao filho de Heitor por que não quer entregar seu corpo em troca de um resgate.

- Ora, minha cara... - Príamo começou a falar.

Mas Hécuba não o deixou continuar, levantando-se indignada.

- Se pensa que eu permitirei que meu neto fique a menos de uma légua daquele demônio...

- Uma idéia melhor - interveio Helena. - Leve um sacerdote.. . quanto menos não seja, como uma testemunha perante os Deuses. Akiles teme os Deuses.

- Melhor ainda - disse Príamo. - Levarei duas sacerdotisas, Kassandra e Polixena. Uma serve a Apolo, outra à Virgem; assim, qualquer que seja o Imortal que Akiles teme, Ele poderá testemunhar sua impiedade.

Ele virou-se para Kassandra e acrescentou:

- Não tem medo de acompanhar seu velho pai à presença de Akiles, não é mesmo?

- Não, pai... e frei desarmada, se assim quiser, ou armada; já esqueceu que fui treinada como uma guerreira?

- Não, irmã, nada de armas - protestou Polixena, com sua voz infantil. - Iremos descalças, com os cabelos soltos, rezando por sua misericórdia. Sua vaidade ficará lisonjeada por nos ver ajoelhadas a seus pés. Vá vestir uma túnica branca sem qualquer adorno, sem bordados nem fitas, e solte os cabelos... ou melhor ainda. - Ela pegou a tesoura de Páris. - Vamos cortá-los em sinal de luto.

Rapidamente, ela cortou os cachos avermelhados, ignorando os gritos de protesto da mãe. Depois, passou a cortar os de Kassandra, que olhou atordoada para as tranças que desciam até a cintura, agora caídas no chão. Andrômaca indagou:

- Reluta em conceder sua vaidade a Heitor?

De jeito nenhum, se eu achasse que isso faria alguma diferença para Heitor, pensou, Kassandra, mas foi bastante sensata para não se expressar em voz alta. Deixo que Polixena tirasse os anéis e o colar de pérolas que usava; depois, a irmã tirou as próprias jóias. Príamo manteve apenas um lindo e grande anel de esmeralda no dedo - um presente para Akiles, disse ele - e tirou as sandálias. Kassandra pegou uma tocha e Polixena outra, as duas desceram com o pai. Chegando aos portões de Tróia, Príamo mandou que seus servidores voltassem.

- Sei que não querem me abandonar - disse ele -, mas se não posso fazer isso sozinho, então provavelmente não pode ser feito. Se Akiles não atender a um pai e irmãs mortificados, não atenderá a todo o poderio armado de Tróia. Voltem, meus filhos.

A maioria chorou e protestou com angústia e medo pelo rei, mas finalmente, um 'a um, todos voltaram. Os três suplicantes passaram pelos portões e avançaram pela planície, à luz das tochas.

O terreno ainda estava lamacento da chuva da noite anterior; e estava bastante escuro, pois o céu se encontrava coberto por densas nuvens, que só de vez em quando se abriam para mostrar uma lua minguante. Kassandra estremeceu em sua túnica simples, o frio subindo dos pés enlameados, especulou se o céu tornaria a se derramar num aguaceiro. A missão era inútil, mas proporcionava paz de espírito ao pai; como poderia recusar?

Ela notou, com uma pontada de angústia no coração, que Príamo andava devagar, como se as pernas mal pudessem sustenta-lo e só prosseguisse pela força da vontade. Isso acarretará e: então a sua morte? Oh, amaldiçoado Heitor, por ter o azar e o mau juízo de se lançar ao combate e se deixar matar!, pensou ela, cambaleando atrás de Polixena, os olhos tão marejados de lágrimas que mal podia ver para onde ia.

Heitor ainda estaria naquela planície, preso de alguma forma à massa de carne em deterioração amarrada ao carro de Akiles? Por que ele não se apresentava e lhes falava, proibia o pai de se humilhar para Akiles? Não, Heitor se despedira e dissera que não voltariam a se encontrar. Se ela contasse ao pai e, a mãe que vira as ruínas de Tróia, eles acreditariam? Ou isso faria com que ficassem ainda mais ansiosos em pôr tudo em ordem, enquanto ainda havia tempo suficiente? Um vigia solitário perguntou:

- Quem está aí?

A voz de Príamo soou tênue e trêmula; Kassandra ainda não percebera o quanto ele se tornara velho e fraco.

- Príamo, filho de Laomedonte, rei de Tróia; venho para uma conferência com Akiles.

Houve um murmúrio de vozes e depois de algum tempo uma lanterna os iluminou.

- E bem-vindo, meu senhor de Tróia, mas se traz guardas armados deve deixá-los aqui.

- Não trago nenhum guarda, armado ou desarmado - respondeu Príamo.

- Vim como um mero suplicante para Akiles e trago apenas minhas duas jovens filhas como companhia.

Do jeito como ele falava, pensou Kassandra, parecia que elas eram garotinhas e não mulheres adultas, com mais de vinte anos. Como que para explicar isso, Príamo acrescentou:

- As duas são sacerdotisas, uma de Apolo e outra da Virgem, não esposas de guerreiros.

- Então porque vieram?

- Apenas para amparar nosso pai, se seus passos tropeçarem no caminho - respondeu Polixena, enquanto a lanterna iluminava seus rostos. E Kassandra acrescentou.

- Sou conhecida dos comandantes akaios; estava presente nas negociações para a devolução de Criseide, filha do sacerdote de Apolo.

Só depois de falar é que ela especulou se deveria ter dito isso; Akiles não participara da reunião e talvez não quisesse ser lembrado. Mas era evidente que o vigia não sabia ou, não se importava com esse fato, pois disse:

- Muito bem, podem passar. - Ele baixou a lanterna. - Sigam-me.

Ele foi na frente, pelo caminho esburacado pelas rodas dos carros de combate, na direção da luz que se irradiava da tenda de Akiles. Estava quente lá dentro e havia até algum conforto, cadeiras cobertas por peles e couros, tapeçarias penduradas e uma mesa com frutas e vinho. Akiles estava sentado no centro da tenda, dando a impressão de que se preparava para conceder uma audiência. No outro lado da tenda, nas sombras entre a luz de meia dúzia de lampiões, estava o corpo amortalhado e mumificado de Pátroklo, exatamente como Kassandra o contemplara em sua visão. Mais perto da porta se encontrava Agamenon e ao seu lado Odisseu, segurando uma taça com vinho; pareciam posar para um quadro. Akiles, ao que tudo indicava, acabara de sair do banho; parecia muito limpo, a pele tão rosada quanto a de uma criança; os cabelos, bem curtos, dourado prateados à luz, estavam sendo penteados por uma escrava, a quem Kassandra reconheceu como Briseida, uma das servidoras de sua mãe. Quando fitou Príamo, ele levantou a mão interrompendo o penteado e a mulher recuou.

- Ora, meu senhor de Tróia - disse Akiles, os lábios se contraindo no que Kassandra julgou ser um sorriso de desdém -, o que o faz sair numa noite como esta?

Como se ele não soubesse bem! Mas era evidente para todos que Akiles estava disposto a desfrutar ao máximo a situação. Príamo adiantou-se para a luz das lanternas ; Kassandra e Polixena ficaram juntas, observando-o. Príamo ajoelhou-se desajeitado, estendendo as mãos num gesto de súplica para o homem mais moço.

- Meu senhor Akiles, tenho certeza de que não preciso dizer por que vim; eu lhe rogo para aceitar o que é costumeiro e devolver o corpo de meu filho caído Heitor para o funeral.

Os músculos faciais de Akiles mal se contraíram num ligeiro sorriso. Príamo continuou:

- É muito valente, senhor, lutou por tantos anos; mas durante todo esse tempo de batalha sempre devolvemos os seus mortos, para que os corpos fossem entregues ao fogo e os espíritos enviados para o Outro Mundo.

- Heitor me enfureceu - disse Akiles. - Ele não deveria ter a arrogância de me enfrentar, a mim, que os Deuses juraram proteger.

Príamo parou e engoliu em seco; não podia pensar no que responder. Kassandra cerrou os punhos por dentro das mangas compridas. Ele se atreve a falar em arrogância?         o Príamo finalmente acrescentou:

- Meu senhor Akiles, um guerreiro desafia o melhor oponente que encontrar. E ele tombou; você, que é tão poderoso, não pode ter misericórdia da esposa e do filho de Heitor?

- Não, não posso.

Akiles fez uma pausa e Kassandra percebeu que todos estavam atento ás suas palavras seguintes; mas ele se manteve em silêncio por tanto tempo que ela até pensou que não tencionava acrescentar mais nada. Mas Akiles acabou dizendo:

- Jurei que cumpriria até o fim a vingança que me foi concedida.

Príamo inclinou-se para a frente e pôs as mãos nos joelhos de Akiles, sussurrando:

- Príncipe Akiles, já deve ter tido um pai; não pode ser misericordioso, em nome de seu pai? Heitor era o mais velho dos meus filhos eu me sentia orgulhoso dele, como seu pai deve ser de você. E quando o bravo Pátroklo tombou em combate, Heitor não pensou em ficar com o corpo; respeitou um bravo inimigo caído! Compareceu aos jogos fúnebres por Pátroklo, explicando que Pátroklo não lhe negaria um bom jantar; e disse também que aguardava ansioso o momento de conversar com Pátroklo na outra vida; ambos eram guerreiros e Heitor esperava que, quando terminassem as batalhas deste mundo, pudessem se tornar amigos. Deixe-nos dar um funeral digno a Heitor, como você fez com Pátroklo.

Akiles olhou para o canto ensombreado da tenda e Kassandra viu que lágrimas afloravam subitamente a seus olhos. E pôde perceber as emoções que se atropelavam em seu rosto: ódio, desdém, compaixão, pesar; mas o pesar predominou. Era óbvio que seu pai encontrara um meio de se sobrepor à arrogância e ao desdém. E Akiles disse, falando bem devagar:

- Tem razão, meu senhor de Tróia; Pátroklo tem uni amigo na outra vida. Guarda! Vá buscar o corpo do real Heitor!

O soldado fez uma reverência quase até o chão e se retirou apressado. Akiles acrescentou:

- Falou num resgate? E que resgate me oferece? Príamo murmurou:

- Isto é para você, nobre Akiles, se desejar. - Ele tirou o anel de esmeralda e pôs no dedo de Akiles. - Primeiro, ofereço isto como um presente de agradecimento.

Akiles afagou o anel, pensativo, depois disse, com um sorriso cruel:

- Imagino que Heitor vale mais para vocês do que uns poucos carros de combate capturados.

O louco está se divertindo com a situação! Era evidente para Kassandra

que ele estava cogitando de alguma coisa afrontosa. Príamo murmurou:

- Jurei que pagaria sem regatear o que me pedir, príncipe Akiles.

Akiles coçou o queixo, obviamente tencionando extrair o máximo de drama que pudesse da cena.

- Agamenon... e que devo pedir como resgate?

- Peça um bom resgate - respondeu Agamenon, em tom indiferente. - O rei de Tróia pode dar qualquer coisa que pedir; sua cidade possui a metade das riquezas do mundo dentro das muralhas.

Odisseu interveio:

- Sua nobreza será medida pela generosidade, Akiles; permitirá que um troiano o supere em generosidade?

Ele estava com o rosto virado, mas Kassandra teve a impressão de que se sentia envergonhado. Gostaria que pudessem negociar somente com Odisseu.

- É fácil perceber que você já foi um amigo dos troianos, Odisseu - comentou Agamenon. - Não esqueci como foi difícil persuadi-lo a lutar do nosso lado.

- A metade das riquezas do mundo... - murmurou Akiles, olhando para o anel, ganancioso. - Mas não quero ser ganancioso demais; o que faria com a metade das riquezas do mundo? Sendo assim, pedirei apenas o peso de Heitor em ouro.

- Pois o terá - declarou Príamo, resoluto. - Eu jurei.

Mas isso é insuportável, pensou Kassandra; nenhum resgate assim jamais foi pedido ou pago em toda a história da guerra. Somente Akiles se arriscaria a tal coisa. Odisseu fez um movimento brusco, como se estivesse prestes a protestar, mas não falou nada. Kassandra sabia por que: uma palavra errada poderia desencadeara loucura de Akiles e então não haveria resgate algum. Príamo disse:

- Será pesado em sua presença ao amanhecer, diante das muralhas de Tróia, príncipe Akiles.

Príamo inclinou-se para que Akiles não pudesse ver o desdém furioso em seus olhos.

Akiles sorriu; conseguira o que queria e na presença de seus aliados.

- Quer beber comigo pelo acordo, meu senhor de Tróia?

- Obrigado.

Era evidente que Príamo gostaria de cuspir na cara de Akiles, mas levantou a taça que o príncipe pôs em sua mão e tomou alguns goles. Depois, passou a taça a Polixena, que a entregou a Kassandra; e Kassandra apenas a levou aos lábios, sem beber, pois sabia que ficaria engasgada.

- Posso então levar o corpo de Heitor, para que sua mãe e suas irmãs o preparem para o funeral?

- Será devolvido lavado e decentemente amortalhado, ungido com óleo e especiarias, ao amanhecer, diante das muralhas, quando o resgate for pago.

- Akiles, em nome de Zeus Tonante! - explodiu Agamenon. - O rei de Tróia não tentou barganhar com você! Devolva logo o que ele veio procurar!

- Não creio que um pai gostaria de ver o corpo como está agora - respondeu Akiles, deliberadamente, observando o rosto de Príamo enquanto falava. (Urna criança cruel, arrancando as asas de passarinhos implumes no ninho.) - É preciso deixá-lo em condições para que a mãe o veja.

- Meu senhor Akiles é tão generoso quanto acreditamos desde o princípio que era nobre - Kassandra apressou-se em dizer. Isso mesmo, era justamente o que acreditávamos. - Podemos esperar. Até o amanhecer, príncipe Akiles.

Ela puxou a manga do pai; a cabeça de Príamo estava inclinada e ele chorava. Kassandra amparou-o e Polixena pegou o outro braço, enquanto saíam da tenda... bem depressa, a fim de que Príamo não ouvisse a gargalhada de Akiles.

 

Assim que voltaram a Tróia, Príamo acionou todas as pessoas do palácio a uma atividade frenética, removendo todos os ornamentos de ouro do palácio, requisitando os colares, brincos e anéis de ouro das mulheres e as taças de ouro, antes mesmo de abrir a sala do tesouro. Todo o ouro foi carregado para as muralhas.

Príamo mandou chamar um sacerdote do Templo do Senhor do Sol para armar urna balança. Krises foi o designado e por uma vez estava genuinamente ocupado demais para dispensar qualquer atenção a Kassandra, enquanto trabalhava com roldanas e pesos. Ela observou-o trabalhar, compreendendo os princípios do que fazia, mas sabendo que não tinha a competência com as mãos ou o conhecimento para faze-lo pessoalmente. Quando a balança de estranha aparência estava armada, ele pediu que Kassandra deitasse numa das plataformas, a fim de fazer um teste.

- Finja que é um peso morto, Kassandra.

- Como quiser.

Ela ocupou a balança, enquanto as pessoas da casa real empilhavam ouro no outro prato da balança. Ficou surpresa com o tamanho reduzido da pilha que a equilibrava, levantando-a lentamente pelo ar. Krises percebeu sua expressão e comentou:

- O ouro é mais pesado do que pensa a maioria das pessoas.

Kassandra tinha certeza de que Akiles sabia com precisão quanto ouro receberia. Ela sentou, enquanto tiravam o ouro da balança e empilhavam no chão.

- Seu peso em ouro, Kassandra - disse Krises. - Se fosse meu, oferecia tudo a você como o preço de uma esposa.

Ela suspirou.

- Não comece de novo, meu irmão.

Ele se mostrou abatido.

- Tem sempre de destruir qualquer esperança que eu possa ter de felicidade neste mundo?

- Se o que quer é uma esposa - disse Kassandra, com uma risada irritada -, há mulheres suficientes e de sobra em Tróia.

- Sabe que para mim não há outra mulher senão você.

- Nesse caso, receio que viverá e morrerá sem casar, mesmo que todo aquele ouro fosse seu e pudesse oferecê-lo como dote.

Kassandra ficou de pé, olhando para a pilha de ouro que igualava seu peso. Nunca se importara com jóias e não pôde deixar de ficar espantada ao refletir que aquela coisa fria despertava tanta ganância, em tantas pessoas. De certa forma, mesmo conhecendo Akiles tão bem, não pensara que ele pudesse ser influenciado só pelo ouro; calculara que ele poderia tentar alguma humilhação adicional para a casa real de Tróia.

Por cima deles, iluminando o topo da muralha, o sol começava a surgir; ela foi até a beira e estendeu os braços, em silêncio, na saudação matutina ao Senhor do Sol.

- Cante o hino da manhã, Kassandra - exortou Krises. - Sua voz é doce,

mas raramente a ouvimos agora, mesmo em louvor a Apolo.          i Obstinada, ela sacudiu a cabeça; se cantasse, Krises a acusaria de novo de

tentar seduzi-lo.

- Prefiro cantar apenas na presença exclusiva do Deus - murmurou ela. Príamo, aproximando-se com seus servos e outro cesto com ouro - embora o metal precioso mal cobrisse o fundo do cesto, era tão pesado que tinha de ser carregado por dois homens -, perguntou:

- A balança já está pronta, sacerdote? - Aguardam seu prazer, meu senhor.

- Meu prazer? Mas que absurdo! Pensa que sinto alguma satisfação nisso? Príamo ainda usava a túnica branca de um suplicante, manchada da lama

das trincheiras; os pés descalços estavam cobertos por uma camada de lama. Polixena sussurrou-lhe alguma coisa, mas ele acrescentou, em voz alta:

- Está querendo dizer que pelo vilão Akiles eu deveria me banhar, pentear

os cabelos e vestir os melhores trajes, como se fosse um casamento e não um funeral?

E mesmo que esse homem fosse o chefe entre os sacerdotes do Senhor do Sol, não deixaria de ser menos tolo por isso!

Kassandra cobriu a boca com as pontas dos dedos; seria inconveniente sorrir naquele momento. É verdade que não h' via muito motivo para sorrir, a não ser o embaraço de Krises; parecia-lhe que o pai falava coto o tom rabugento da senilidade. Príamo fez um gesto para que os servos pusessem o cesto junto do resto do ouro.

- Agora, vamos aguardar Akiles. Seria típico dele exigir uma barganha tão degradante e depois nos fazer esperar o dia inteiro... ou nem aparecer.

- Akiles aceitou o acordo na presença de testemunhas, pai - lembrou Polixena. - Eles o obrigarão a vir. Estão ansiosos em continuar com a guerra, agora que não mais precisam enfrentar Heitor.

Houve silêncio, enquanto a casa de Príamo se reunia lentamente na muralha. Hécuba e Andrômaca postaram-se ao lado do rei.

Kassandra não sabia direito o que esperava que acontecesse: talvez o carro de Akiles avançando na velocidade vertiginosa habitual em direção às muralhas. Ela ficou olhando para o sol nascendo até que os olhos doeram. Krises veio se postar ao seu lado e passou o braço pelo seu, como se a amparasse. Kassandra ficou exasperada, mas não queria atrair a atenção desvencilhando-se com um movimento brusco. O sacerdote disse:

- Já há movimento no acampamento akaio; o que estão esperando?

- Talvez humilhar meu pai ainda mais, fazendo-o desfalecer de exaustão com o calor - murmurou ela. - Krises, em comparação com Akiles, Agamenon é nobre e generoso.

- Pouco sei a seu respeito, mas conheço o suficiente para não querer que o destino de Tróia fique em suas mãos. A saúde e a força de Príamo são agora toda a esperança que temos para Tróia.

E há mesmo pouca esperança, pensou Kassandra, mas permaneceu em silêncio. Não tinha o menor desejo de discutir as apreensões em relação ao pai com qualquer pessoa, muito menos com um homem de quem desconfiava. - Olhem! - exclamou Polixena, apontando, quase sem levantar o braço.

Ao longe, na planície, vultos estavam em movimento; quando chegaram mais perto, Kassandra divisou Akiles, os cabelos claros brilhando num raio ofuscante do sol. Ele andava à frente de uma pequena procissão; atrás, oito soldados carregavam um corpo numa maca - só podia ser o de Heitor - e em seguida vinham meia dúzia de chefes akaios, de armadura, mas sem armas.

Pelo menos por uma vez. Akiles cumpriu a palavra. Kassandra deixou escapar o ar que prendera nos pulmões, só agora compreendendo, ao ver o corpo de Heitor, que não esperara por um momento sequer que ele o faria.

Estavam mais próximos agora; ela podia divisar cada rosto e até os detalhes de bordado na mortalha que cobria o corpo de Heitor. Akiles fez uma reverência diante de Príamo e disse:

- Como prometi, meu senhor de Tróia, aqui está o corpo de seu filho.

- O resgate o espera, príncipe Akiles. - Príamo se adiantou para puxar a pesada cobertura sobre o rosto do corpo. - Mas, primeiro, quero me certificar de

que é mesmo o corpo de meu filho...

Hécuba veio se postar ao seu lado, enquanto ele levantava a mortalha, com Pentesiléia também se adiantando, para o caso de a irmã precisar de amparo. Kassandra estava preparada para ouvir a mãe prorromper em gemidos e gritos, mas Hécuba apenas acenou com a cabeça gravemente e inclinou-se para beijar a testa fria e branca. Príamo disse:

- A balança foi armada por um sacerdote de Apolo, Senhor do Sol, que é competente em tais coisas. Se quiser verificar os pesos pessoalmente...

- Não, não - disse Akiles, com uma jovialidade bizarra. - Conheço muito pouco dessas coisas, meu senhor.

Levando Akiles para junto da balança, Krises comentou:

- Agiu contra os seus próprios interesses, príncipe Akiles, quando permitiu que o corpo de Heitor ficasse tão mutilado; em perfeitas condições, teria lhe proporcionado mais ouro.

O gracejo soou grosseiro e impróprio. Kassandra especulou, observando as mãos trêmulas e as pupilas muito brilhantes de Krises, se ele não andara bebendo vinho puro ou uma mistura de vinho e sementes de papoula, tão cedo naquele dia que até esquecera na presença de quem se encontrava. Príamo empalideceu e disse, muito rígido:

- Vamos resolver logo isso.

Ele gesticulou e o corpo de Heitor foi levado para uma das plataformas. Os escravos de Príamo começaram a pôr o ouro na outra plataforma, um pouco de cada vez. Akiles observava, mal sorrindo, enquanto a plataforma com o corpo tremia e começava a subir. Kassandra se perguntou se, da mesma maneira que ela, os outros espectadores também achavam a cena grotesca.

A balança tremeu e, por um instante, sacudiu bastante, de tal forma que o corpo deslizou para um lado, mas não caiu. Nas alturas por cima de Tróia, o vento aumentava de intensidade; mas ali embaixo, junto das muralhas, o ar estava angustiosamente parado... parado o bastante para dificultar a respiração. Ocorreu a Kassandra que em nenhum lugar da cidade podia ouvir o canto de um único passarinho. Seria uma parte do aviso que lhe fora dado antes? Possêidon estaria prestes a golpear? Pois que golpeie então, acabe de uma vez com esta obscenidade, com esta farsa de decência e honra. Ela fixou o olhar nutria das roldanas e não mais desviou. A corda tremeu enquanto ela observava, uns poucos ornamentos de ouro caíram. Ora, Posêidon, isso é o melhor que pode fazer por Heitor?

Um dos escravos de Príamo recolheu os ornamentos e os colocou de volta na plataforma. Acrescentou um pesado peitoral de ouro e a plataforma baixou, agora mais pesada do que o corpo.

- Pesado demais - murmurou Príamo, tirando o peitoral e substituindo-o por um colar de ouro.

- Agora ficou mais leve - disse Akiles, olhando cobiçoso para o peitoral.

Polixena adiantou-se, tirou os brincos de ouro e largou-os na plataforma. A balança tremeu, depois ficou imóvel, perfeitamente equilibrada.

Pronto - disse ela. - Já é suficiente. Pegue seu ouro e vá.

Akiles olhou do ouro para Polixena, seus olhos se iluminando.

- Por todo o ouro, uma mulher como você bastaria. Rei Príamo, perdoarei metade do resgate em troca desta mulher, mesmo que seja uma de suas escravas ou concubinas.

- Sou filha de Príamo e sirvo à Virgem, que não é amiga do desejo, mesmo de um rei ou filho de rei. Contente-se com seu ouro e sua palavra empenhada, príncipe Akiles, e nos deixe com o nosso morto.

Akiles contraiu os lábios e Kassandra viu uma veia latejar em sua testa. Foi entre os dentes semicerrados que ele disse:

- É isso então? Não quer dá-la a mim... honrosamente, num casamento legítimo... em troca de uma trégua de três dias para o funeral de seu filho? Caso contrário, a guerra recomeçará ao meio-dia.

- Não! - trovejou Odisseu, do meio dos chefes akaios silenciosos. - Assim é demais. Akiles, honre sua palavra, como jurou fazer, ou se descobrirá a lutar contra mim ao meio-dia. Prometemos a Príamo uma trégua de três dias para o funeral e assim será.

Akiles ficou furioso, mas concordou:

- Está bem.

Ele levantou a mão para seus homens, que dividiram o ouro por vários cestos. Os akaios voltaram pela planície, da mesma forma como tinham vindo.

Kassandra não ficou para ouvir o planejamento dos jogos fúnebres, alegando que tinha deveres no templo; precisava verificar imediatamente o que as serpentes pressagiavam. Aparentemente, ninguém mais percebera o toque da mão - ou das pontas dos dedos - de Posêidon. Ela subiu apressada pelo caminho longo e íngreme até a Casa do Senhor do Sol. Depois de algum tempo, percebeu que Krises a seguia. Pois que ele a seguisse; tinha tanto direito quanto ela de ir para a Casa do Senhor do Sol. Mas Krises não se aproximou nem lhe falou até passarem pelos portões.

- Sei o que está pensando, princesa. Também senti. O Deus está irado com Tróia.

Ele parecia pálido e angustiado; o que andara bebendo tão cedo? Talvez alguma coisa para aguçar suas visões, se não a sensibilidade normal?

- Não tenho certeza se senti mesmo, Krises. Não sei se sonhei ou imaginei.

- Se foi isso, então também sonhei. Agora, é apenas uma questão de tempo; por quanto tempo mais Apolo, Senhor do Sol, poderá conter a fúria total do

golpe de Posêidon? Também os vi lutando por Tróia...

Recordando sua própria visão, Kassandra disse:

- É verdade. Nenhum mortal pode romper as muralhas de Tróia. Mas se um Deus quiser destruí-las.. .

- Há um exército lá fora mais forte do que todo o poderio de Tróia. E nosso maior herói aguarda os ritos fúnebres, enquanto eles têm pelo menos três

guerreiros que são superiores aos nossos melhores.

- Três? Concordo em relação a Akiles, mas...

- Agamenon, que pode derrotar Páris e Deífobo juntos, se quiser, e Odisseu e Ajax, que são iguais a Heitor, embora não o superassem.

- Mal isso não importa, enquanto nossas muralhas resistirem – declarou Kassandra, especulando onde ele estava querendo chegar. - E se estiver determinado que devem cair. . . ora, enfrentaremos esse destino quando chegar o momento.

- Não quero ficar para ver a cidade cair. Se eu fosse um guerreiro, permaneceria aqui e lutaria, mas nunca fui treinado para as armas e nem mesmo poderia me defender... muito menos às pessoas que amo. Irá embora comigo, Kassandra? Não quero que morra quando a cidade cair.

- Eu gostaria de só ter a morte para temer.

- Tenciono partir para Creta no primeiro navio que encontrar... e fui informado de que há um navio fenício pronto para zarpar, além da enseada. Venha comigo e não precisará temer coisa alguma.

- Anão ser você.

- Nunca poderá me perdoar aquele momento de loucura? Eu a respeito

muito, Kassandra. Casarei com você, se quiser... e se ainda está decidida a não casar, prestarei qualquer juramento que desejar, a fim de podermos viajar como irmão e irmã. Não encostarei um dedo sequer em você.

Mas eu não confiaria em seu juramento, mesmo que jurasse pela virtude de sua mãe, pensou Kassandra, sacudindo a cabeça, gentilmente.

- Não, Krises. Pode estar certo de que me sinto grata pelo pensamento, mas os Deuses determinaram que ainda tenho algo a fazer em Tróia. Não sei por enquanto o que me ordenaram, mas não tenho a menor dúvida de que Eles me dirão quando chegar o momento.

- Não terá a menor utilidade como mais uma lança quando a cidade cair, Kassandra. Ficará para confortar sua mãe e irmã quando forem levadas como prisioneiras dos comandantes akaios? De que isso lhes adiantará?

Kassandra observou-o atentamente. Parecia que ele não comia há muito tempo, embora não exibisse apenas a aparência de quem sofria de inanição. Seu coração se confrangeu por Krises; não o amava, como ele gostaria, mas o conhecia há muito tempo e não mais guardava qualquer ressentimento.

O toque do Deus por um momento o mataria agora, pensou ela, com uma profunda tristeza.

- Se essa é a única missão que os Deuses me reservam - respondeu ela, com voz firme -, então é a que realizarei.

- Parece que não vale à pena ir sozinho para Creta ou Tera. Você poderia me acompanhar, como foi para a Cólquida, a fim de estudar as histórias das serpentes. Ou podemos ir para o Egito, onde as sacerdotisas são sempre bem-vindas. Há muitas construções no Egito e sempre haverá trabalho... como em Knossos... para um homem que é competente com pesos e medidas. Soube que vão reconstruir o palácio que foi reduzido a escombros pelo último toque de Posêidon.

- Não precisa ir sozinho, Krises. Leve Criseide com você. Ela nunca foi feliz aqui. E não vai querer que ela torne a ser cativa na cama de Agamenon, não é mesmo?

- Não é Criseide que Agamenon deseja e você sabe disso tão bem quanto eu.

Kassandra estremeceu, ouvindo o tom da verdade na voz do sacerdote.

- Aceito meu destino, como você, meu irmão, aceita o seu. Siga para Knossos ou Egito, para onde quer que o destino o leve, e que todos os Deuses o mantenham seguro por lá. - Ela levantou a mão, num gesto de bênção. - Só lhe desejo o bem, Krises, mas devemos nos separar aqui, para sempre.

- Beije-me pelo menos uma vez - suplicou ele, caindo de joelhos.

Ela inclinou-se e roçou os lábios de leve por sua testa enrugada, como uma mãe beijando uma criança pequena.

- Que você leve a bênção do Senhor do Sol para onde quer que vá e lembre-se de mim com generosidade, Krises.

Kassandra continuou a subir, deixando-o ali, ajoelhado e atordoado. Seu espírito não é mais firme, o que talvez seja misericordioso, pensou ela. Assim, ele sofrerá menos quando seu destino o alcançar; não deve demorar muito agora. Para nenhum de nós.

No Salão das Serpentes ela encontrou todas as sacerdotisas correndo de um lado para outro, apenas parcialmente vestidas, tentando recapturar as serpentes; muitas haviam abandonado seus lugares naquela manhã, refugiando-se no jardim. Algumas das mais dóceis, ao serem apanhadas e levadas de volta a seus lugares, haviam mordido as sacerdotisas. Kassandra ficou consternada. Filida tentara lhe contar, mas ela se recusara a escutar. O presságio era de fato terrível, mas o tempo de sentir medo já passara.

- O Senhor do Sol não enviou um falso aviso a seus servidores -- anunciou ela. - A mão de Possêidon Que Sacode a Terra realmente nos atingiu, mas foi apenas um golpe leve. Escutem! Os passarinhos já estão cantando de novo; o perigo passou, pelo menos por este dia.

Mesmo assim, algumas continuaram transtornadas.

- A Grande Serpente, a Mãe de Todas as Serpentes, não aparece para comer há três dias - informou Filida. - Já a tentamos com camundongos e coelhos recém-nascidos, depois um pombo e até mesmo um pires de leite de cabra fresco. (O leite era agora um iguaria rara em Tróia, pois muitas cabras haviam sido abatidas por falta de forragem; o leite que restava era reservado exclusivamente para os bebês ou para as mulheres no início da gravidez, que não conseguiam tocar outro alimento. O que esse presságio significa, Kassandra? A Mãe está zangada com a gente? E o que podemos fazer para evitar sua ira?

- Não sei. Não recebi qualquer mensagem da Deusa, dizendo que está zangada conosco. Talvez devêssemos, todas, pôr as túnicas de festa e cantar para Ela. (Pelo menos, não haveria mal algum nisso.) E depois desceremos para oferecer uma dança de devoção no funeral de Heitor.

A sugestão arrancou exclamações de satisfação das mulheres; como ela esperava, dissipou num instante os temores sobre o presságio. Mas Filida, que aprendera muita coisa com Kassandra do conhecimento colquidense sobre as serpentes, demorou-se por mais um momento, quando as outras se retiraram para vestir as túnicas.

- Tudo isso está ótimo, Kassandra, mas o que faremos se a Grande Serpente continuar se recusando a comer?

- Acho que devemos simplesmente aceitar como o mais terrível dos presságios. Afinal, até mesmo a Mãe das Serpentes não passa de um animal... e nenhum animal passa fome sem motivo. Tenho alimentado à força serpentes menores, mas não me sinto em condições de fazer a mesma coisa com a Grande Serpente. Você acha que pode fazê-lo? - Filida sacudiu a cabeça em silêncio e Kassandra acrescentou: - Sendo assim, tudo o que podemos fazer é oferecer os alimentos que possam tentá-la ao máximo e orar para que se digne a aceitar.

- Em suma, exatamente o que faríamos com um dos Imortais – comentou Filida, com um sorriso cético. - Mais e mais eu me pergunto: de que servem os Deuses?

- Também não sei, Filida, mas lhe peço para não dizer isso às outras... e acho que é melhor sairmos agora para também vestir as túnicas de dança. Filida afagou o rosto da amiga e murmurou:

- Pobre Kassandra... não sente a menor vontade de dançar e se banquetear quando Heitor está morto.

- Heitor está melhor do que a maioria das pessoas que ainda vivem na cidade. Pode estar certa, minha cara, de que eu me regozijo por ele.

- Nenhum dos meus parentes está lutando e faz tanto tempo que não como que bem que ficarei contente pela oportunidade, mesmo que o banquete fosse em homenagem a meu próprio pai. Vamos dançar pela Mãe Serpente e em memória de Heitor e espero que ambos aproveitem o máximo.

Filida saiu e Kassandra foi se inclinar na frente da grande caverna artificial que fora construída na parede para a Mãe de Todas as Serpentes.

Ela hesitou por um momento, a fim de certificar-se de que Apolo não falaria para proibi-la de entrar, depois rastejou pelo interior, com uma tocha acesa na mão, a fim de investigar. A velha serpente conhecia seu cheiro e não lhe faria mal; mas também não gostaria da proximidade de uma tocha acesa. Dentro da caverna, na semi escuridão, Kassandra sentiu o cheiro antigo que incutia medo no âmago da espécie humana; mas ela fora treinada para ignorar essa reação.

Seguiu em frente, evitando um trecho de sujeira na caverna. As serpentes eram mais limpas do que os gatos, em condições normais; aquela não teria sujado o lugar em que habitava se tudo estivesse bem. Começou a divisar a enorme massa de anéis escamados e continuou a rastejar, murmurando suavemente. Estendeu a mão, hesitante, afagou a serpente; mas, em vez das escamas quentes que esperava, tocou no que parecia ser cerâmica fria. Apertou com mais firmeza. Imóvel sob a sua mão, a Grande Serpente jazia morta.

Então foi por isso que ela não saiu para comer. O presságio era pior do que elas imaginavam, pensou Kassandra, suspirando e se mantendo imóvel por um momento, ao lado da criatura morta. Descobriu-se a especular: se saísse para a planície cinzenta da morte em que Heitor se encontrava, aguardando o filho, encontraria a Mãe Serpente ali e esta falaria com Sua sacerdotisa numa voz humana?

Mas não fazia diferença; se tivesse a oportunidade de atravessar outra vez aquela planície, talvez descobrisse; havia muitas indagações sobre a morte a serem respondidas e ela nunca pudera compreender por que alguém deveria temc-1 ou enfrentá-la com outro sentimento que não fosse de curiosidade ansiosa.

Kassandra saiu da caverna e pôs a tocha acesa no suporte à entrada, um aviso para que não incomodassem a ocupante. Filida voltou e perguntou:

- Você entrou na caverna? Ela está bem?

- Muito bem - respondeu Kassandra, a voz firme. - Acaba de descamar e não deve ser incomodada.

Filida mostrou-se aliviada.

- Mas você ainda não vestiu a túnica... nem pôs as sandálias de dança!

- Heitor não vai se importar com meu traje e posso dançar descalça tão bem como se estivesse com sandálias.

Quando todas se reuniram no santuário, Kassandra comandou-as nos passos da dança, que era mais antiga do que Tróia. Ao final, soltou o grito de lamentação e murmurou baixinho uma oração pela velha serpente; depois, indagou a si mesma: era apropriado dizer uma oração pela alma de um animal que provavelmente não tinha alma`? Mas se tinha, então a oração lhe seria bem-vinda; e se não tivesse, não faria mal algum.

- E agora vamos ao banquete! - disse Kassandra às outras sacerdotisas.

Elas desceram para o palácio. Príamo não as esperava, mas foram bem recebidas assim mesmo e Hécuba ficou satisfeita por terem vindo prestar um tributo a Heitor. Kassandra postou-se no centro da dança, observando a longa espiral das mulheres, as túnicas brancas esvoaçando, circulando ao seu redor, iniciando os passos da antiga dança do labirinto. Depois que a dança e a canção terminaram, Kassandra fez sinal às sacerdotisas para que enchessem as taças dos convidados, antes de sentarem. Ela própria serviu uma taça com vinho e levou a Pentesiléia. Cansada e abatida, sentia que não havia mais ninguém ali com quem pudesse conversar, além da velha amazona. Nem mesmo com Enéias, embora ele sorrisse e a chamasse, poderia falar agora.

Pentesiléia não perdeu tempo com perguntas; simplesmente puxou-a para o divã ao seu lado e partilhou sua taça de vinho. Só depois é que ela indagou:

- O que foi, criança? Parece exausta. Não é apenas de dor por Heitor, não é mesmo?

Kassandra sentiu lágrimas lhe aflorarem aos olhos. Para todas as outras pessoas em Tróia, ela era a sacerdotisa, a portadora de fardos, a quem todas as indagações deviam ser encaminhadas. Jamais ocorria a alguém que ela pudesse ter seus temores e suas dúvidas.

- Há ocasiões em que eu gostaria de também ter optado por me tornar uma guerreira - balbuciou ela. - Não vejo qualquer utilidade para alguém no fato de eu ser uma sacerdotisa.

Pentesiléia declarou com firmeza:

- A vida que levamos, Kassandra, é escolhida para nós.

- Então por que algumas pessoas podem optar?

- Talvez as opções que são feitas por algumas de nós decorram de opções que fizemos antes. . . se não nesta vida, então em outra. - Acredita mesmo nisso?

- Para ser franca, minha cara, não sei em que acredito. Sei apenas que, como todas as pessoas, faço o melhor que posso com as opções que me são oferecidas, em qualquer momento. E você também é assim. Mas não deve ficar sentada aqui a discutir os caprichos da vida cone uma velha. Lá está Enéias, tentando atrair sua atenção. Alguns minutos com seu amante fará mais para animá-la do que toda a minha filosofia.

Era bem possível, pensou Kassandra, mas mesmo assim ficou ressentida. Olhou para Enéias e retribuiu seu sorriso. Ele se levantou e veio em sua direção, aceitou outra taça de vinho... embora ela notasse que estava tão diluído que parecia mais água do que vinho.

- A dança foi linda - comentou Enéias. - Nunca vi nada parecido antes. É uma das velhas danças de Tróia?

- É, sim, muito antiga, mas creio que talvez tenha vindo de Creta. É a dança do labirinto... a espiral de anéis da Serpente Terra. Dizem que já era dançada na Casa do Senhor do Sol antes que Ele abatesse a Grande Serpente.

E mais uma vez a Grande Serpente está morta, o Senhor do Sol não deu qualquer aviso ou presságio, pensou ela, acabrunhada por seu medo... O que tudo aquilo podia significar? Com certeza a morte de Heitor era apenas o início de uma sucessão de males...

Enéias estava inclinado em sua direção, ansioso, perturbado por sua aflição. Kassandra não queria assustá-lo também; com ele, poderia até encontrar uma trégua naquele desespero interminável.

- Deixe-me buscar alguma coisa para você comer, Kassandra. Quase não comeu e tem cabrito e carneiro assado... Príamo providenciou tudo o que podia, e Heitor não gostaria que você ficasse sofrendo assim. Onde quer que nosso querido irmão possa estar, devemos ter certeza de que se encontra bem e não ficará melhor com nossos lamentos.

O comentário parecia tão próximo do que Kassandra vinha tentando dizer que ela sentiu a maior alegria; pelo menos Enéias compreende quando eu falo; não preciso tentar abrir caminho por uma montanha de medo e absurdos supersticiosos sobre a morte! O rosto de Enéias parecia reluzir à luz das tochas. Kassandra lembrou que o vira saindo ileso das ruínas de Tróia; ele viveria e a luz em seu rosto era simplesmente a luz da vida, enquanto a palidez da morte se fixava em todos os outros.          

- Não quero comer nada - murmurou ela, embora sentisse fome pouco antes.

- Pois então vamos sair deste salão de lamentações. Todos os Deuses podem testemunhar que eu amava Heitor, mas não vejo como seu destino ou nossa compreensão a respeito possam ser melhorados pelo fato de as pessoas ficarem sentadas aqui comendo até quase não poderem se mexer e bebendo até o estupor.

Enéias passou o braço em torno dela. Enlaçados, saíram para a sacada e contemplaram a vasta extensão escura do acampamento akaio; havia umas poucas luzes dispersas, mas todo o resto estava mergulhado na escuridão.

- O que eles estão fazendo lá embaixo? - perguntou Enéias.

- Não sei. Posso ser urna profetisa, mas não consigo ver tão longe. Eu diria que estão construindo um altar para Posêidon. Mas é muito tarde para isso e eles deviam saber.

- Talvez seus profetas não sejam tão bons quanto você - murmurou Enéias, apertando-a com mais firmeza. - Kassandra, deixe-me ir a seu quarto...

Ela hesitou por um instante, mas acabou dizendo: - Está bem.

'Amanhã haveria tempo suficiente para cuidar das serpentes mortas e cidades agonizantes.

Enquanto subiam pela rua íngreme, uma estrela caiu, projetando-se pelo céu num arco tão vertiginoso que por um instante pareceu que fora a própria terra que se inclinara. Kassandra segurou o braço de Enéias, recordando que ela e Andrômaca haviam observado as estrelas cadentes na Cólquida, quando era apenas uma garota. Desde aquela noite, porém, que observava os céus com atenção e não vira outra estrela cadente, até aquele momento. Seria algum presságio?

Ou não significava absolutamente nada?

- O que foi? - indagou Enéias, inclinando-se para ela e falando com profunda ternura.

- Apenas a estrela...

- Estrela? Não vi nada, meu amor.

Agora estou imaginando coisas. Já chega, por esta noite, Kassandra disse firmemente a si mesma; e levou Enéias para seu quarto, sabendo com uma súbita pontada de angústia que seria a última vez.

 

A trégua, para surpresa de Kassandra, não foi violada pelos akaios. Nenhum deles competiu nos jogos fúnebres por Heitor, à exceção de um anônimo mirmídone que entrou na luta livre, derrotou quatro oponentes sucessivos (terminando por imobilizar Deífobo), pegou a taça de ouro oferecida como prêmio e desapareceu sem revelar sua identidade. Mais tarde, rumores na cidade diziam que era um Imortal disfarçado; mas não era. Páris garantiu tê-lo visto nas fileiras e que era apenas um soldado comum. Troianos e akaios assistiram aos diversos eventos e aplaudiram os vencedores de uma maneira esportiva.

Pentesiléia insistiu em competir no arco e flecha, o que causou algum problema quando venceu facilmente todos os competidores, inclusive Páris, que obviamente reservara aquele prêmio para si. Ele protestou, mas ninguém o apoiou; já que ele dissera várias vezes que nenhum homem vivo podia superá-lo no arco e flecha, muitos dos filhos mais moços de Príamo (que não lamentavam ver o irmão derrotado por uma vez) sustentaram que ele não tinha o direito de se queixar por ser derrotado por uma mulher.

Na terceira manhã Kassandra acordou cedo, ouvindo aliviada muitos passarinhos cantando alto nos jardins da Casa do Senhor do Sol; pelo menos não haveria qualquer terremoto mais forte naquele dia.

Ela foi para os alojamentos no palácio e ajudou Pentesiléia, que deixara os aposentos no templo, a vestir a armadura de couro endurecido, com placas de metal.

- Todas nós estaremos lutando hoje e nos lançaremos contra Akiles. Há muitos anos que lutamos. Um único guerreiro, por mais bravo que seja, não pode vencer a todas.

- Eu preferia que atacassem alguém menos formidável - murmurou Kassandra, perturbada. - Há inimigos em quantidade suficiente; homens como Menelau e Idomeneu também precisam ser mortos. Por que não investem contra Agamenon? Por que devem desafiar o orgulho dos akaios'?

- Porque, se Agamenon ou Menelau for morto, Akiles ainda estará lá para inspirá-los. Mas depois que Akiles morrer, todos eles ficarão como uma colmeia de abelhas quando a rainha desaparece. Os mirmidones, pelo menos, ficarão completamente desmoralizados. Não se esqueça de que durante o período de 'mau humor de Akiles eles quase não lutavam, pelo menos não como o exército disciplinado que constituem hoje.

- Posso compreender por que se sente assim, mas nem mesmo é sua guerra, Pentesiléia. Eu gostaria que todas partissem antes do combate de hoje. Pentesiléia virou-se para fitá-la. - Tem algum presságio, Olhos Brilhantes? - Não - murmurou Kassandra.

Mas depois refletiu que deveria ter dito sim; talvez a amazona acreditasse nela. Abraçando Pentesiléia, Kassandra começou a chorar.

- Eu gostaria que não lutassem - foi tudo o que pôde dizer.

Kassandra se comprimiu contra a mulher mais velha, soluçando. Pentesiléia franziu o rosto.

- Pare com isso, Kassandra. Onde está a guerreira que treinei pessoalmente? Está se comportando como uma mulher fraca que não sai de casa. Pronto... está melhor assim... enxugue esses olhos brilhantes, minha querida, e deixe-me partir.

Relutante, Kassandra largou-a, fazendo um esforço para reprimir os soluços.

- Mas Akiles é invulnerável! Dizem que um Deus o protege e nenhum homem pode matá-lo!

Páris também se gabava de que nenhum homem podia derrotá-lo no arco e flecha - lembrou Pentesiléia, com um sorriso irônico. - Talvez isso signifique apenas que caberá a uma mulher matá-lo. E se eu não estou predestinada a fazer isso, talvez alguma das minhas guerreiras possa liquidá-lo para me vingar. Nenhum homem mortal é invulnerável, minha querida; e se algum Deus protege esse monstro, então esse Deus deveria se envergonhar. Temos conferido muito poder a Akiles; ele é um homem como outro qualquer. .

Mesmo assim, ele matou Heitor, pensou Kassandra. Mas não havia nada a dizer, porque Pentesiléia estava certa. Elas seguiram juntas, acompanhadas pelas outras amazonas, até o lugar em que os cavalos e carros de combate se concentravam para o ataque.

Pentesiléia passou o braço pela cintura de Kassandra.

- Ora, minha criança, ainda está tremendo!

- Não posso deixar de sentir medo por você - balbuciou Kassandra.

Pentesiléia franziu o rosto, mas quando falou a voz estava alterada pela ternura:

- Isso não pode ser parte da vida de uma guerreira, Olhos Brilhantes. Não quero que ninguém a veja chorando assim. E agora deixe-me partir, querida.

Não suporto vê-la partir! Ela nunca mais voltará... Mas, relutante, Kassandra largou a parenta. Pentesiléia beijou-a e disse:

- O que quer que possa acontecer, Kassandra, quero que saiba que para mim foi mais do que uma filha, que a amei mais do que qualquer dos meus amantes. Tem sido minha amiga.

Kassandra deu um passo para o lado e observou a tia subir na sela, através das lágrimas. As amazonas cerraram fileiras ao seu redor, falando em voz baixa sobre as estratégias para a batalha; depois, os portões foram abertos e elas saíram.

Kassandra sabia que deveria ir ao encontro da mãe no palácio ou subir ao templo para cuidar das serpentes. Reinava a confusão por lá, agora que era conhecida a morte da Grande Serpente; mas, em vez disso, ela foi para o topo da muralha e ficou observando, enquanto Pentesiléia e seu grupo investiam contra os akaios. Meia dúzia de carros de combate troianos seguiram na frente, num ataque frontal às forças com lanças e espadas. Depois, como uma trovoada, as amazonas desfecharam seu ataque contra Akiles e seus homens.

O fragor das lanças foi ouvido com nitidez pelas mulheres na muralha.

Quando a poeira se dissipou, duas amazonas estavam no chão, seus cavalos caídos. Uma delas se levantou e matou seu atacante com a lança, mas a outra permaneceu imóvel, enquanto seu cavalo se debatia, tentando ficar de pé. Um soldado akaio viu seus estertores e prontamente lhe cortou a garganta, depois ajoelhou-se ao lado da mulher imóvel no chão para tirar sua bela armadura. Kassandra constatou que Pentesiléia sobrevivera ao primeiro ataque; seu cavalo fora atingido por uma lança, mas continuava de pé.

A rainha das amazonas virou sua montaria e investiu contra um agrupa mento de soldados de Akiles, empurrando-os para o lado, matando mais de um com a lança. Kassandra percebeu o momento exato em que Akiles tomou conhecimento de sua presença: quando ela matou um homem que devia integrar a sua guarda pessoal. Viu o salto que Akiles deu, virando-se para a amazona, como se a desafiasse a desmontar para um combate frente a frente.

Pentesiléia desmontou e aceitou o combate, espada contra espada. Ela era mais alta e tinha um alcance maior com a espada. Os dois se empenharam na luta, numa sucessão de golpes de espada, rápidos demais para poderem ser acompanhados. Akiles cambaleou para trás e por um momento caiu de joelhos. Fez um sinal e no mesmo instante seus homens correram para lutar contra as outras guerreiras. Depois, rápido como uma serpente dando o bote, ele estava de pé, a espada se movendo tão depressa que quase não dava para ver. Pentesiléia recuou alguns passos, até encostar no flanco de seu cavalo. Com sua espada implacável, Akiles continuou a atacar, até que a atingiu, e ela caiu. Kassandra ouviu um soluço escapar de seu peito no momento em que Akiles se ajoelhou ao lado da amazona. O que aquele louco estava fazendo? Ele arrancou as roupas de Pentesiléia num frenesi, inclinou-se para a frente e, enquanto todos observavam horroriza dos, violentou o cadáver.

Monstruoso!, pensou Kassandra. Se ao menos eu estivesse com meu arco!

Akiles já acabara e agora lutava contra as quatro amazonas que o haviam cercado. Derrubou duas de uma só vez, depois atingiu outra com a lança, ferindo-a tão fundo que ela cambaleou para trás e foi retalhada por seus homens. As amazonas restantes fizeram uma tentativa desesperada de recuperar o corpo de Pentesiléia, mas estavam em grande inferioridade numérica e poucos minutos depois não restava uma única guerreira viva. Os soldados capturaram os cavalos sobre viventes. Em apenas uma hora de batalha, uma tribo inteira, com toda a sua cultura e memória, fora exterminada, com o demônio Akiles cometendo o insulto final contra uma guerreira que se atrevera a desafiá-lo. Kassandra não acreditou por um momento sequer que ele estivesse dominado pelo desejo; fora um ato de desdém a sangue-frio.

Nada mais apropriado, pensou ela, se Apolo disparasse Sua flecha naquele momento, atingindo-o no auge de seu orgulho arrogante. O Deus que abominava o excesso na vingança ou mesmo na guerra teria sido o perfeito vingador. Akiles, Kassandra compreendeu, não podia mais ser considerado um oponente honrado na batalha; era como um cão danado.

Mas os Deuses cruzam os braços e não farão coisa alguma. Se Akiles era de fato uni cão danado, refletiu ela, alguém deveria se adiantar e matá-lo, não Para vingar os mortos, mas sim para proteger os vivos e pôr termo ao sofrimento da pobre besta enfurecida.

E se Apolo não vai agir, não é para nada que jurei servi-lo - quanto menos não seja, para fazer o que um sacerdote mais inocente esperaria que o Deus

fizesse. Pela primeira vez desde que se ajoelhara e orara como uma criança para que o Senhor do Sol a aceitasse, Kassandra compreendeu claramente por que fora para o Templo de Apolo. Contemplou mais uma vez o corpo de Pentesiléia, vergonhosamente exposto no campo de batalha, depois virou- se; já chorara tudo o que podia naquela manhã, ao suplicar a Pentesiléia que não fosse, e agora não lhe restavam mais lágrimas.

Subiu para a Casa do Senhor do Sol, entrou em seu quarto, abriu o baú e tirou o arco, um presente de Pentesiléia, todo ornamentado em ouro e incrustado com marfim, como o próprio arco de Apolo. Ajeitou uma flecha simples - poderia precisar para avaliar a distância - e pôs na aljava a última das flechas venenosas feitas pelo velho centauro Quíron.

Kassandra percebeu que tremia da cabeça aos pés. Desceu para a cozinha, pegou m pão duro e u n pouco de mel, forçou-se a comer. As mulheres estavam reunidas ali, fazendo pão fresco para o banquete fúnebre pela Grande Serpente; insistiram para que ela esperasse pela primeira fornada. Mas Kassandra recusou todo o resto, exceto uma caneca de vinho aguado. Todas estavam espantadas por verem uma sacerdotisa armada, mas se abstiveram de fazer perguntas; em sua posição de sacerdotisa mais antiga, presumia-se que todos os seus atos tinham um bom propósito, por mais misteriosos ou obscuros que pudessem ser, não podiam ser questionados em quaisquer circunstâncias.

Depois, determinada, Kassandra desceu para a sala mais secreta do templo. Abriu uma arca, da qual só os sumos sacerdotes e sacerdotisas tinham a chave, e tirou uma túnica ornamentada com ouro, além da máscara dourada do sol. Com mãos condicionadas à firmeza, pôs a túnica e a máscara, prendeu os cordões.

Não sabia direito por que cometia aquele terrível sacrilégio - pensou em Krises pondo aquelas coisas na tentativa de persuadir uma moça inocente a se submeter a seus desejos, que ele não podia satisfazer de outra forma - nem se estava servindo à honra de Apolo ao fazer o que o Deus deveria estar fazendo e jamais faria.

As sandálias eram parte do traje; sandálias douradas, com pequenas asas douradas nos calcanhares. Kassandra calçou-as, desejando que fossem realmente aladas, a fim de poder voar sobre o acampamento atraio. Em silêncio, subiu para a sacada de onde se descortinava o campo de batalha, lembrando que Krises postara-se ali com o traje de Apolo, a fim de disparar as flechas da praga contra o acampamento akaio. Ele gritara também, com a voz de Apolo.

Os corpos das amazonas estavam no meio de densas nuvens de moscas. Os cavalos haviam desaparecido; os carros e os infantes troianos que haviam participado do ataque daquela manhã já tinham se retirado para o interior das muralhas de Tróia. Akiles desfilava no meio de seus guardas, aparentemente esperando que aparecesse alguém que o desafiasse para um combate. Será que seus próprios soldados não podiam perceber que o homem ultrapassara todos os limites de sanidade e decência? Mas, apesar de tudo, ainda o respeitavam como seu comandante!

Kassandra não gritou como Krises fizera; Apolo nada lhe oferecera para dizer, embora fosse o Deus da canção. Talvez outra pessoa compusesse uma canção a respeito, mas não seria com as palavras de Kassandra. Ela simplesmente puxou a corda do arco, mirou Akiles com todo cuidado e disparou. A flecha caiu um pouco antes do alvo, mas agora ela tinha noção da distância. O herói atraio não vira a flecha e continuou a se pavonear entre os carros de combate. Mas onde atirar, quando a armadura de ferro cobria quase todo o seu corpo? Kassandra olhou de alto e baixo; o elmo cobria o rosto e os cabelos, mas nos pés Akiles usava sandálias, não mais do que um par de estreitas tiras de couro. Que assim fosse então; ela atirou para os pés.

A flecha atingiu o calcanhar exposto de Akiles. Era evidente que ele pensou que fosse apenas a picada de um inseto, pois Kassandra viu-o se abaixar para afugentá-lo; e depois ele tirou a flecha, olhando ao redor para descobrir de onde fora disparada. Um a um, os soldados troianos levantaram os olhos, a fim de descobrir o que os mirmidones de Akiles olhavam e apontavam. Kassandra permaneceu imóvel; estava provavelmente fora do alcance de um arco comum disparado direto para cima, mesmo que alguém se atrevesse a atirar uma flecha contra o que poderia ser o Deus. Sentia-se completamente invulnerável e mesmo que uma flecha surgisse da claridade ofuscante não teria importância, pois já realizara sua

missão.

Akiles ainda estava de pé, olhando para cima, na direção da origem da flecha, aparentemente ignorando a natureza do ferimento; mas, depois de algum tempo, Kassandra o viu abaixar e apertar o pé, fazendo sinal a um dos seus homens para que o enfaixasse. Pois que eles tentem; ela sabia que podiam agora até cortar seu pé - o que já fora tentado em pequenos ferimentos localizados -, pois o veneno entrara no sangue e Akiles era um homem morto.

Ele continuou a desfilar pelo campo, arrogante, por mais alguns minutos; depois, tropeçou e caiu. E começou a ter convulsões. Houve a maior confusão entre os akaios... e depois um tremendo clamor de raiva e desespero, não muito diferente do grito de morte que se elevara por Pátroklo. Na muralha, onde as outras mulheres observavam, houve gritos de júbilo e depois uma manifestação de agradecimento a Apolo. Mas a esta altura Kassandra já estava na sala secreta, guardando a túnica e a máscara na arca. Quando voltou, o povo de Tróia se apinhava nas muralhas, querendo descobrir o que acontecera.

- Um dos comandantes akaios está morto - disse alguém a Kassandra. - Talvez seja o próprio Akiles. Dizem que Apolo apareceu no alto de Tróia e atingiu-o com uma de Suas flechas de fogo.

- E mesmo? - murmurou ela, parecendo cética.

E quando a história foi repetida, ela se limitou a um comentário:

- Já não era sem tempo.

 

Agora que Akiles estava morto, um clima de confiança estabeleceu-se em Tróia, todos esperando pelo fim rápido da guerra. Não houve o período formal de lamentação e também não foram promovidos jogos fúnebres; Kassandra desconfiou que havia bem pouco lamento genuíno entre os akaios, embora soassem alguns gritos rituais em torno da pira funerária. Ela se lembrou de Briseida, que fora para Akiles por sua livre e espontânea vontade, e perguntou-se se a moça lamentava o amante que idealizara. Quase torceu para que sim. Mesmo em se tratando de Akiles, não era justo que não houvesse ninguém para lamentar.

Mas Agamenon, que assumira o comando de todas as tropas akaias e até ordenara que os mirmídones continuassem a lutar, parecia não ter qualquer dúvida sobre o resultado final da guerra. Os akaios iniciaram a construção de uma enorme plataforma de terra ao sul, de onde poderiam investir contra a muralha parcialmente desmoronada no último terremoto. Poucas horas se passaram para que os troianos compreendessem o que estavam tentando. Páris ordenou então que todos os arqueiros disponíveis fossem para a muralha mais alta e disparassem contra os soldados lá embaixo. Os akaios continuaram a trabalhar por um tempo considerável sob a cobertura de escudos enormes suspensos por cima de suas cabeças; mas quando os portadores dos escudos foram sendo abatidos, um a um, mais depressa do que podiam ser substituídos, os akaios desistiram da tentativa e retiraram os construtores.

Kassandra não viu a pira funerária nem a batalha dos arqueiros, embora as mulheres na Casa do Senhor do Sol lhe relatassem tudo. O templo estava de luto pela Grande Serpente e assim permaneceria por muito tempo. As serpentes daquela variedade não eram encontradas nas planícies de Tróia e precisariam trazer outra do continente, da Cólquida ou mesmo de Creta. Particularmente, Kassandra estava convencida de que a morte da Grande Serpente era um presságio, não apenas da morte de Akiles, que precedera por tão pouco tempo, mas também da queda de Tróia, que não devia demorar muito mais.

Ela falou sobre isso no palácio uma noite, ao descer para visitar a mãe.

Hécuba nunca se recuperara da morte de Heitor. Estava agora assustadoramente magra e frágil, as mãos pareciam um feixe de gravetos; não comia, alegando sempre:

- Guardem a minha parte para as crianças pequenas; os velhos não sentem tanta) me quanto as crianças...

Parecia um comportamento bastante sensato, mas havia ocasiões em que Kassandra pensava que a mente da mãe degringolara. Hécuba falava com freqüência de Heitor, mas parecia não se lembrar de que ele morrera; falava como se ele estivesse em algum lugar da cidade, no comando do exército.

- O que os akaios estão fazendo agora? - perguntou Kassandra a Polixena.

- Derrubaram muitas árvores nas proximidades da praia e estão agora cortando-as em tábuas. Falei com a mulher que vende bolos de mel aos soldados akaios e ela disse que os ouviu conversarem sobre um plano de construir um enorme altar a Posêidon, em que sacrificarão muitos cavalos.

Posêidon seria de fato um amigo dos akaios, se eles O persuadissem a derrubar nossas muralhas; e seus adivinhos sabem disso, se persuadiram nossos atacantes a invocarem Aquele Que Sacode a Terra..

Kassandra levantou-se do lado de Polixena e foi conversar com Helena. Já

descobrira há muito tempo que Páris não a escutaria, mas podia às vezes alcançá-lo por intermédio da esposa. Helena recebeu-a com o abraço afetuoso habitual.

- Regozije-se comigo, irmã. A Deusa ouviu minha dor e nos mandará outro filho para substituir os que perdemos para o golpe de Posêidon. - Como Kassandra não sorrisse, ela suplicou: - Ora, alegre-se por mim!

- Não vou dizer que não estou contente por você - murmurou Kassandra -, mas neste momento em particular... é sensato?

O sorriso lindo de Helena era cheio de covinhas.

- A Deusa nos manda filhos não como desejamos, mas à Sua vontade. Como você não é mãe, talvez ainda não compreenda isso.

- Mãe ou não, acho que eu tentaria escolher uma ocasião mais oportuna do que o final de um sítio, mesmo que para isso tivesse de enviar meu marido para dormir entre os soldados, quando a lua estivesse cheia ou o vento soprasse do sul.

Helena corou.

- Páris deve ter um filho. Não posso lhe pedir que assuma Nikos como seu herdeiro e ponha o filho de Menelau no trono de Tróia.

- Eu tinha esquecido esse problema. Mas pensei que o filho de Andrômaca fosse reinar depois de Heitor. Páris resolveu então usurpar o trono?

- Astíanax não pode reinar em Tróia aos oito anos. Tudo vai mal para uma terra em que o rei é uma criança. Páris teria de reinar por ele, pelo menos por muitos anos.

- Então talvez seja melhor que Páris não tenha nenhum filho, Helena, a fim de não ser tentado a derrubar o herdeiro legítimo. - Helena parecia tão indignada que Kassandra acrescentou: - De qualquer forma, Páris já tem um filho com Enone, a sacerdotisa do rio, que aqui habitou com ele como sua esposa, até que você veio de Esparta. Não é certo que Páris se recuse a reconhecer seu primogênito.

Helena franziu o rosto.

- Páris me falou sobre ela, mas disse que não há como provar que é o pai do filho de Enone.

Kassandra percebeu a aflição de Helena e resolveu não insistir no assunto.

- Mas não é sobre isso que vim falar com você, Helena. Há mais cavalos no acampamento akaio do que os necessários para puxar os carros de combate de Agamenon e dos outros reis?

- Não tenho a menor idéia. Nada sei sobre essas coisas.

Helena inclinou-se através da mesa para tocar na mão de Páris. Repetiu-lhe a pergunta e Páris ficou surpreso.

- Acho que não. Eles têm se esforçado para capturar os cavalos de nossos carros, mesmo ao custo de abandonar ouro e os próprios carros.

- Se eles estão construindo um altar para Possêidon - disse Kassandra, aflita -, não acha que os reis vão sacrificar os cavalos que puxam seus próprios carros, não é mesmo? Eu lhe peço que mantenha uma vigilância redobrada sobre todos os cavalos de Tróia, onde quer que estejam guardados.

- Nossos cavalos estão bem protegidos dentro das muralhas – respondeu Páris, despreocupado. - Os akaios não podem alcançá-los, assim como não poderiam se apropriar dos cavalos do faraó do Egito.

- Tem certeza? Odisseu, por exemplo, é bastante astucioso; pode inventar algum ardil para entrar na cidade e roubar os cavalos.

Mas Páris limitou-se a rir.

- Ele não conseguiria passar por nossos portões, mesmo que encontrasse uma maneira de se disfarçar como Zeus Tonante. Os portões não se abrirão para homem nem Imortal; até' mesmo o rei Príamo ou eu teríamos dificuldade para persuadir alguém a abri-los depois do anoitecer. E mesmo que ele entrasse de alguma forma, como poderia sair? Se Agamenon quer sacrifícios de cavalos, terá de usar os seus, pois não obterá os troianos.

Kassandra achou que ele estava descartando a possibilidade de um modo muito afoito, mas não havia como continuar; Páris jamais admitiria a falibilidade de suas defesas, muito menos para a irmã. Se ele fosse o único a sofrer com essa atitude de indiferença, Kassandra não falaria mais nada. Mas, se Páris estivesse enganado, toda a Tróia pagaria; foi por isso que ela insistiu:

Eu lhe suplico que ponha guardas extras em torno dos cavalos, pelo menos por algum tempo.

Kassandra repetiu a história que ouvira de Polixena e Páris comentou, com alguma gentileza:

- Irmã, já há tanto trabalho de mulher para você fazer que não precisa se preocupar com a condução da guerra.

Kassandra comprimiu os lábios, sabendo que era inevitável que Páris ignorasse qualquer coisa que ela dissesse.

Ela não podia vigiar os cavalos pessoalmente, mas falou com os sacerdotes da Casa do Senhor do Sol e eles concordaram em manter uma guarda nos estábulos reais.

Naquela madrugada o alarme soou dentro das muralhas e os soldados de Páris, despertados, capturaram meia dúzia de homens, comandados pelo próprio Odisseu, deixando os estábulos reais. Os guardas, que não haviam reconhecido o general akaio, informaram que ele se apresentara no estábulo com o sinete real e uma ordem para levar meia dúzia de cavalos ao palácio. Pensaram que fosse um mensageiro de Príamo e entregaram os cavalos sem protestar. Somente quando eles saíram é que um sacerdote de Apolo notou as sandálias akaias que usavam, desconfiou de um ardil e soou o alarme.

Páris ordenou que o guarda enganado fosse enforcado. E disse, quando levaram Odisseu à sua presença:

- Há algum motivo para que eu não o enforque na muralha mais alta de Tróia como o ladrão de cavalos que você é?

- Na minha terra, troiano, enforcamos os ladrões de mulheres - respondeu Odisseu. - Se não tivesse nos mostrado quão depressa sabe correr, não passaria agora de ossos descarnados pendurados nas muralhas de Esparta e nenhum de nós precisaria deixar sua casa e vir até aqui para lutar por tantos anos.

Príamo foi arrancado do sono. Fitou o velho amigo com uma expressão infeliz e disse:

- Estou vendo que ainda é um pirata, Odisseu. Mas não vejo motivo para enforcá-lo. Sempre nos mostramos dispostos a aceitar um resgate por prisioneiros.

- E que resgate deseja? - indagou Odisseu, olhando apenas para Príamo e ignorando Páris.

- Uma dúzia de cavalos - disse Páris. Odisseu acenou com a mão. - Lá estão.

Páris amarrou a cara pela desfaçatez.

- Aqueles cavalos já são nossos. Queremos uma dúzia dos seus.

- Não tem devoção, amigo? Aqueles cavalos já foram dedicados a Posêidon. Não me pertencem para devolvê-los; já são d'Aquele Que Sacode a Terra.

Páris levantou-se de um pulo e desferiu um golpe contra Odisseu, de que este se defendeu com facilidade.

- Príamo, seu filho carece das boas maneiras da diplomacia. Prefiro negociar com você. Pode ficar com aqueles cavalos, se está disposto a desafiar a ira de Posêidon. Mas jurei sacrificá-los ao Deus. Acha mesmo que ele favorecerá Tróia, se roubar seu sacrifício?

- Se dedicou aqueles cavalos a Posêidon, então são seus - declarou Príamo. - Não serei mais avarento do que você com um Deus. Aqueles cavalos são então para Posêidon e mais uma dúzia dos seus para resgatá-lo. - Que assim seja - concordou Odisseu.

Príamo chamou seu arauto para transmitir a mensagem ao exército akaio. Agamenon não ficaria nada satisfeito, pensou Kassandra. Não desejava mal a Odisseu; apesar de sua posição no campo inimigo, não podia deixar de pensar no velho pirata como um amigo... como ele fora em sua infância. Ainda tinha, em uma de suas caixas, a linda fieira de contas azuis que ele lhe dera há muitos anos.

Quando Odisseu se preparava para partir, a fim de supervisionar a troca e a entrega do resgate, Páris disse ao pai:

- Mas isso é uma tolice! Vai mesmo entregar esses cavalos ao sacrifício? O que representam as promessas de Odisseu? Não acredita que ele vai sacrificá-los, não é mesmo?

- É possível, mas o que temos a perder? Também precisamos da boa vontade de Posêidon. Além disso, receberemos outra dúzia de cavalos como resgate de Odisseu. Portanto, nada perdemos.

- Acho que eles não servirão ao Deus nem a metade do que serviriam a nossos exércitos - ainda resmungou Páris.

Mas quando Príamo tomava uma decisão, não havia mais nada que se pudesse fazer.

Na manhã seguinte, diante das muralhas de Tróia, os cavalos foram sacrificados a Posêidon. Kassandra observou a matança, transtornada. Lembrou-se de tais sacrifícios em sua infância, quando Príamo ainda era bastante forte e vigoroso para decepar a cabeça de um touro com um único golpe. Agora, suas mãos trêmulas mal conseguiam segurar o machado. Depois que ele abençoou a arma,

um sacerdote jovem e forte pegou o machado e completou o sacrifício, enteando invocações a Posêidon.

Na metade do sacrifício, quando o sexto cavalo tombou, houve um pequeno ruído, como uma trovoada distante, depois o chão ondulou ligeiramente. Uni presságio, pensou Kassandra. Ou seria apenas Posêidon reconhecendo o sacrifício?

Apolo, Senhor do Sol, implorou ela, não pode salvar esta cidade que foi Sua por tanto tempo, embora a tenha tomado primeiro da Mãe Serpente?

O clarão do sol doía em seus olhos e a voz muito conhecida pareceu ressoar em seus ouvidos com a arrebentação distante.

Nem mesmo eu posso ir contra o que foi determinado pelo Tonante, criança. O que tem de vir, virá.

O sacrifício continuou, mas Kassandra não estava mais observando. De que adiantava o sacrifício a Posêidon se Ele estava obrigado pelo Tonante - que não é meu Deus e não é Deus de Tróia - a destruir o povo que Lhe sacrificava os cavalos, enquanto Apolo, Senhor do Sol, permanecia impotente, enquanto Aquele Que Sacode a Terra devastava a cidade - Sua própria cidade?

Se tudo aquilo já estava de qualquer forma determinado, por que os sacrifícios e as súplicas aos Imortais? O desafio aflorou nela, para nunca mais ficar completamente silencioso, o grito antigo ainda sem resposta: De que servem os Deuses?

Parecia agora que lá no alto, por cima da cidade, como ela já vira uma vez em sua visão, dois vultos poderosos, moldados de nuvem e tempestade, estavam engalfinhados como participantes de urna luta livre, lutando e se lançando golpes de relãmp4tgos e trovoadas. O som parecia martelar em sua consciência. Ela balançou, os olhos fixados na batalha dos Imortais.

E, depois, Kassandra cambaleou e caiu, mas perdeu os sentidos antes mesmo de bater no chão.

Quando acordou, estava deitada com a cabeça no colo da mãe.

- Deveria ter evitado o sol do meio-dia - censurou-a Hécuba; gentilmente. - Não foi certo provocar um distúrbio durante os sacrifícios.

- Não creio que os Deuses tenham se importado - murmurou Kassandra, levantando-se, com uma dor intensa por trás dos olhos. - Você se importa?

Mas vendo a expressão um pouco aturdida da mãe, teve certeza de que a rainha não compreendia do que estava falando; ela própria não entendia direito.

- Desculpe, mãe. Não tive qualquer intenção de desrespeitar os Deuses, é claro. Estamos todos aqui para honrá-los. Acha que por uma questão de honra Eles se sentirão na obrigação de retribuir?

Mas tudo o que ela viu nos olhos de Hécuba foi a expressão antiga, a que dizia Não consigo compreendê-la.

- Mas, em nove de todos os Deuses, o que eles estão fazendo? - perguntou Helena.

- Polixena foi informada de que eles estão construindo um altar para Posêidon - respondeu Kassandra.

Lá embaixo, no espaço aberto que fora por tanto tempo um campo de batalha, o que parecia ser todo o exército akaio empilhava madeira e, sob a proteção de uma verdadeira muralha de escudos de couro unidos, martelava e serrava freneticamente.

- Os sacerdotes dos akaios planejaram tudo - informou Krises, aproximando-se das mulheres.

Páris também se aproximou e inclinou-se para beijar a mão de Hécuba.

- Parece diferente de todos os altares que já vi - comentou ele. - Dá a impressão de ser mais uma máquina de sítio. Se construírem bastante alto poderão disparar suas flechas por cima das muralhas ou até mesmo entrar na cidade, como abordadores num navio.

Hécuba ficou perturbada pelo tom de sua voz e perguntou:

- Já falou com Heitor a respeito?

Páris abaixou a cabeça e virou-se, mas não antes que Kassandra pudesse perceber que seus olhos estavam cheios de lágrimas.

- Como suporta quando ela começa a falar assim? - murmurou ele.

- A questão não é como nós podemos suportar, mas sim o que ela deve estar sofrendo - respondeu Kassandra bruscamente. - Você, pelo menos, pode sair e tentar vingar os males que se abateram sobre a mente de nossa mãe e desagregam a mente de nosso pai. Mas diga-me uma coisa: eles podem mesmo construir aquela coisa tão alto que seriam capazes de escalar nossas muralhas?

- Provavelmente; mas não o farão enquanto eu viver. E agora tenho de reunir todos os nossos carros restantes e arqueiros.

Páris beijou Helena e desceu a escada. Pouco depois, elas ouviram o grito de guerra, enquanto Páris e os carros restantes arremetiam a toda velocidade contra a estrutura, disparando chuvas de flechas que escureceram o céu. O ataque furioso derrubou um canto da estrutura, fazendo-a desabar ruidosamente. Meia dúzia de homens caíram gritando no chão.

Os soldados akaios desataram a correr, com os troianos em seu encalço nos carros, golpeando-os tão depressa quanto podiam. Quando estavam em plena debandada e pareciam tentar correr para os navios, Paris suspendeu a perseguição e voltou para a estrutura desprotegida. Encontrando uma barrica de alcatrão, espalhou-o por toda parte e ateou fogo à construção. Enquanto queimava, eles ouviram os gritos de Agamenon, tentando inutilmente reunir seus homens. Os troianos voltaram então para o interior das muralhas, antes que Agamenon pudesse reagrupar os akaios e desfechar um ataque.

Os troianos nas muralhas aclamavam delirantes. Era a única batalha que haviam vencido de maneira inequívoca desde o incêndio dos navios akaios. Páris subiu e ajoelhou-se diante de Príamo.

- Se eles querem construir um altar a Posêidon, senhor, que não seja em solo troiano.

- Uma grande vitória! - exclamou Príamo, abraçando-o efusivamente. Helena aproximou-se para ajudar Páris a tirar a armadura.

- Você está ferido! - disse ela, ao vê-lo se encolher quando puxou o braçal.

Páris deu de ombros; o movimento fê-lo se encolher de dor outra vez.

- Um ferimento de flecha. Não atingiu o osso.

- Kassandra - chamou Helena -, venha dar uma olhada no ferimento. O que acha?

Kassandra levantou a manga da túnica de Páris. Era um ferimento na carne, uma pequena depressão logo acima do cotovelo. Roxa e inchada, como lábios espichados, já fechara, uma ou duas gotas de sangue ainda escorrendo.

- Acho que não é muito grave - disse ela -, mas deve ser lavado com vinho e limpado com água bem quente e ervas; se um furo fecha muito depressa, pode ter conseqüências graves. É preciso manter aberto e deixar sangrar livremente para limpar.

- Ela tem razão - disse Krises, trazendo um frasco com vinho, que começou a derramar sobre o ferimento.

Mas Páris pegou o frasco e comentou.

- Um desperdício de um bom vinho. - Ele despejou na boca, fazendo uma careta. - Que porcaria! Nem mesmo para isso serve. Só deve ser bom para lavar os pés.

Krises deu de ombros.

- Há vinho melhor para beber na Casa do Senhor do Sol, príncipe Páris. Este é de uma safra ruim, guardado para limpar ferimentos. Vamos até lá e poderá tomar um vinho melhor enquanto cuidamos do ferimento.

- Tenho uma idéia melhor - interveio Helena. - Vamos para os nossos aposentos e cuidarei de você. Já teve luta suficiente por um dia... e não resta mais ninguém para combater.

- Está enganada - disse Páris, indo até a beira da muralha. - Posso ouvir Agamenon. Ele reuniu alguns dos seus arqueiros e se prepara para desfechar outro ataque. Vamos descer para repeli-los. Já andam comentando que passo tempo demais em seu quarto sendo afagado, minha Helena; estou cansado da reputação de covarde. Amarre este lenço no braço e deixe-me partir.

Ele ajeitou a armadura por cima do braço enfaixado e desceu. Ouviram-no gritar para seus homens.

- Mas por que ele tinha de ter um maldito ataque de heroísmo neste momento? - indagou Helena, furiosa. - E se era mesmo um altar para Posêidon, o Deus não ficará irado porque foi queimado?

- Páris não podia fazer outra coisa, quer o Deus fique irado quer não - disse Kassandra. - Talvez Possêidon se lembre daqueles belos cavalos que Lhe oferecemos há dois dias, numa cortesia de Odisseu.

- Rezo para que o ferimento não afete a sua capacidade no combate - murmurou Helena. - Quando ele voltar... se sobreviver a este ataque... providenciarei para que seja tratado pelo melhor dos curandeiros.

- Vou chamar nosso melhor sacerdote curandeiro para ir ao palácio, princesa Helena - declarou Krises.

Ele começou a subir a colina. Kassandra assistiu ao ataque; Páris lutou como um louco, como se o Deus da Guerra o habitasse. Ela perdeu a conta dos soldados akaios que o irmão abateu e deixou. sangrando no chão.

- Nunca o vi lutar assim antes - comentou Helena.

E reze para que nunca mais torne a ver, foi a reação de Kassandra.

- Talvez o ferimento seja mesmo tão insignificante quanto ele disse. Parece não ter afetado os movimentos do braço.

- Ele se comporta como Heitor - disse Príamo, observando Páris da muralha. - Todos fomos injustos com o menino, achando que ele era menos heróico do que o irmão.

Helena fechou os olhos quando uma espada baixou na direção de Páris; ele aparou o golpe no momento em que parecia que ia separar sua cabeça dos ombros. Foi o último golpe; um momento depois os homens de Agamenon desataram a correr, como se não tencionassem parar até alcançarem os navios. Páris gritou como se fosse persegui-los até a beira da água, mas não demorou muito para que chamasse seus homens de volta.

- Se ainda temos um boi, mande matá-lo para o jantar dos homens - disse

ele a Hécuba, ao subir a escada e se aproximar das mulheres à espera. - Nunca vi um combate assim.

Helena correu para abraçá-lo.

- Graças a Afrodite você está são e salvo!

- Tem razão. Ela ainda vela por nós. Não a trouxe até Tróia só para nos abandonar agora.

Páris olhou para as cinzas da estrutura que os akaios haviam tentado construir.

- Se aquilo era dedicado a algum Deus, peço a Ele que me perdoe. Agora, se arrumou aquele curandeiro, minha Helena, terei o maior prazer em me entregar a seus cuidados. Meu braço dói.

Ele apoiou-se em Helena e os dois desceram para o palácio. Kassandra observou-os, dominada pelo temor.

- É melhor você ir - disse Krises, que voltara sem que ela percebesse. - É uma curandeira tão boa quanto qualquer pessoa na Casa do Senhor do Sol.

Kassandra não tinha certeza quanto a isso, mas não sabia como dize-lo.

- Examinou o ferimento melhor do que 'eu e sabe como é perigoso. Não me agradam ferimentos assim, mesmo quando parecem inofensivos.

Ela partiu apressada para os aposentos de Páris e Helena, apenas para ser informada, ao chegar lá, de que seus serviços não eram necessários.

Aquela noite foi tranqüila, mas na manhã seguinte o andaime fora levantado de novo e os akaios martelavam e serravam; como se nunca tivessem interrompido o trabalho.

- Vamos acabar logo com esse trabalho, como fizemos ontem - disse Deífobo, que saíra naquela manhã com Príamo, apoiado em seu ombro. - Onde está a dádiva de Afrodite às mulheres esta manhã? Ainda se escondendo por trás das saias rodadas de Helena?

- Não fale assim! - disse Príamo, bruscamente. - Ele sofreu um ferimento ontem. Talvez tenha piorado.

O rei chamou um dos jovens mensageiros e ordenou:

- Procure o príncipe Páris e pergunte a ele por que não está aqui com seu exército.

- Que ferimento! - exclamou Deífobo, desdenhoso. - Vi aquele ferimento; um arranhão de gato ou mais provavelmente unia mordida de amor.

O rapaz afastou-se apressado e voltou logo depois, muito pálido. Fez urna reverência para Príamo e disse:

- Meu senhor, a princesa Helena pede que a sacerdotisa Kassandra vá examinar o ferimento do irmão, pois está além de sua capacidade de curar.

- Pai, tenho sua permissão para sair com os carros e expulsar aquelas formigas, como Páris fez ontem? - perguntou Deífobo.

- Pode ir. Mas assim que Páris estiver curado, você lhe devolverá o comando; nada que é dele jamais pertencerá a você.

- E o que veremos - disse Deífobo, saudando Príamo e se afastando.

Kassandra desceu para o palácio, atravessou os salões que pareciam naquela manhã úmidos, frios e silenciosos, invadidos pelo nevoeiro marinho. Nos

aposentos de Páris e Helena encontrou o irmão semi vestido e muito pálido, estendido na cama, murmurando. Helena, ao seu lado, tentava banhar o ferimento com água fumegante, impregnada de ervas. Levantou-se de um pulo e adiantou-se para receber Kassandra.

- Afrodite seja louvada por você ter vindo! Talvez ele a escute, pois a mim não dá atenção!

Kassandra levantou o véu que cobria o ferimento. Toda a parte superior do braço estava bastante inchada, a perfuração ainda obstinadamente fechada e purgando um fluido claro; o braço estava arroxeado, com vergões vermelhos se estendendo na direção do pulso.

Kassandra respirou fundo; nunca vira um ferimento de flecha como aquele.

- Os sacerdotes de Apolo já viram isto?

- Estiveram aqui duas vezes. durante a noite. Disseram-me para banhar

com água quente e que provavelmente teria de ser queimado com um ferro em brasa. Mas não tive coragem de fazê-lo sofrer tanto, quando eles não podiam prometer a cura. Mas na última hora ele parece ter piorado e agora não me reconhece. Até poucos minutos atrás estava gritando para que os servos lhe trouxessem sua armadura e ameaçando-os cone uma surra se não o ajudassem a levantar e vesti-la.

- Isso não tá bom - murmurou Kassandra. - Já vi ferimentos piores sararem, mas..

- Devo deixar que eles queimem?

- Não. Se eu estivesse presente, teria dito: faça um curativo com vinho e óleo doce. Também conheço um cataplasma de pão mofado ou teias de aranha que purifica um ferimento. Os curandeiros são muito apressados com seus ferros em brasa; eu poderia tê-lo cortado na noite passada para sangrar mais livremente, mas não iria além disso. Agora é tarde demais. A infecção já se espalhou e ele viverá ou morrerá. Mas não desespere. Páris é jovem e forte e, como eu disse, já vi ferimentos piores sararem.

- Não há nada que se possa fazer? - perguntou Helena, angustiada. - Sua magia...

- Infelizmente, não tenho a magia curadora. Mas vou orar. Não posso fazer mais do que isso. - Kassandra hesitou por um instante. - Enone, a sacerdotisa do rio... ela era bastante eficiente na magia da cura. Helena se animou prontamente.

- Não pode mandar chamá-la? Suplique a ela que venha curar meu senhor! O que quer que ela peça, vai receber; eu prometo!

Mas a única coisa que ela deseja você já lhe tirou, pensou Kassandra. Mas disse:

- Enviarei uma mensagem, mas não posso prometer que ela virá.

- Mas se ela o amou um dia, pode ser bastante cruel para se recusar a ajudá-lo, mesmo que isso acarrete sua morte?

- Não sei, Helena. Ela estava muito amargurada com Páris quando deixou o palácio.

- Se for preciso eu... rainha de Esparta... me ajoelharei diante dela, com cinzas nos cabelos. Devo então procurar Enone pessoalmente?

- Não. Eu a conheço e irei falar com ela. Fique orando e faça um sacrifício a Afrodite, que a protege.

Helena abraçou-a e apertou-a.

- Kassandra, você não me quer mal, não é mesmo? Tantas mulheres de Tróia me odeiam... posso ver em seus olhos, ouvir em suas vozes...

A voz de Helena parecia quase a de uma criança suplicante e Kassandra afagou seu rosto gentilmente.

- Só desejo o bens para você, isso eu posso jurar.

- Mas me amaldiçoou quando cheguei a Tróia.. .

- Não foi isso. Previ, o que era verdade, que você traria o pesar para nós. O fato de eu ter visto o mal não significa que o causei. Foi obra dos Imortais e não mais culpa minha do que sua. Ninguém escapa ao destino. Irei agora à cabeceira do Escamandro, encontrarei Enone e pedirei que venha curar Páris.

Krises saudou-a quando ela deixou o palácio. Kassandra fitou-o surpresa e comentou.

- Pensava que a esta altura já estava num navio, seguindo para o Egito ou Creta. Por que ainda não foi?

- Talvez eu ainda possa fazer alguma coisa pela cidade que me abrigou ou por Príamo, que foi meu rei... ou... quem sabe?... até mesmo por você.

- Não deve ficar por minha causa, alises. Eu me sentiria mais contente por saber que você está a salvo do que vai acontecer.

- Não quero nada - disse ele, num tone estranhamente solene -, apenas que você acabe sabendo, antes de o fim chegar para todos nós, que meu amor por você é sincero e altruísta, desejando apenas o seu bem.

Isso é verdade, pensou Kassandra, dizendo gentilmente:

- Acredito em você, meu amigo; e lhe suplico que parta para um lugar seguro o mais depressa que puder. Alguém deve lembrar e contar a verdade a respeito de Tróia para os que virão depois; perturba-me que nas histórias es filhos de nossos filhos passem a pensar que Akiles foi um grande herói ou um homem de bem.

- Não é provável que nos faça qualquer mal ou a Akiles qualquer bem o que possam dizer ou cantar a nosso respeito nos tempos futuros, Kassandra. Mas se eu sobreviver, juro que contarei a verdade a qualquer um que queira escutar.

Kassandra subiu apressada para a Casa do Senhor do Sol e tirou a túnica formal. Pôs uma túnica escura, com que poderia andar sem atrair atenção, sandálias de couro resistentes e um manto grosso, que a protegeria do vento ou da chuva. Depois, saiu pelo pequeno portão lateral abandonado e seguiu pelo caminho para o monte Ida, ao longo do Escamandro quase seco. A trilha fora agora transformada numa estrada; muitos cavalos e homens haviam passado por ali e a água, outrora forte e limpa, estava enlameada e fétida. Quando passara por ali pela última vez - já se haviam passado quantos anos? - a água era pura, a trilha quase não pisada.

Mas, mesmo agora, se sua missão fosse menos urgente e desesperada, ela teria desfrutado a jornada. O sol se encontrava oculto pelas nuvens, os cumes das colinas cobertos de árvores se perdiam no denso nevoeiro, os ventos prometiam chuva e provavelmente trovoadas. Ela subiu depressa; mas, embora fosse forte, a inclinação era tão íngreme que logo ficou sem fôlego e teve de parar e descansar. A medida que subia, o que fora um, rio se tornou um córrego, com a água mais limpa, pois lá em cima não fora poluída por nenhum homem nem cavalo. Ela ajoelhou-se e bebeu, pois fazia calor, apesar das nuvens e do vento.

Finalmente chegou ao lugar em que a água saía da rocha, guardada por uma imagem esculpida do Pai Escamandro. Tocou o sino que chamava as ninfas do rio; quando uma garota apareceu, perguntou se podia falar com Enone.

- Acho que ela está aqui - respondeu a garota. - O filho está doente, com a febre de verão, por isso ela não desceu com as outras para a festa da tosquia das ovelhas.

Kassandra esquecera que estava tão próximo da época da tosquia.

A garota se afastou e Kassandra sentou num banco perto da fonte e desfrutou o silêncio; talvez quando Mel estivesse mais velha pudesse servir com as ninfas do Deus Rio. Um lugar aprazível para uma menina crescer... talvez não tão agradável quanto cavalgar comias amazonas, mas isso não seria mais possível. Kassandra compreendeu que mal começara a sentir o pesar por Pentesiléia. Estivera tão ocupada com a vingança e depois com outras mortes que sua dor tivera de esperar, para um momento em que houvesse mais tempo para a lamentação.

Muito tempo se passará antes que eu possa lamentar por meu irmão, pensou ela, especulando o que estava querendo sugerir com isso.

Ouviu um passo às suas costas e virou-se; a princípio, mal reconheceu Enone. A moça esguia se tornara uma mulher alta e corpulenta, de seios grandes e cachos escuros caindo em torno do pescoço. Só os olhos fundos eram os mesmos; mas, mesmo assim, Kassandra hesitou quando pronunciou seu nome.

- Enone? Mal a reconheci.

- Nenhuma de nós continua tão jovem e bela quanto outrora. Não é a princesa... Kassandra?

- Isso mesmo. Suponho que também mudei.

- Mudou mesmo, embora ainda continue bonita, princesa. Kassandra sorriu debilmente.

- Como vai o filho de meu irmão? Soube que ele está doente.

- Não é nada sério.., apenas um desses pequenos distúrbios que ocorrem com as crianças no verão. Ele vai se recuperar dentro de um ou dois dias. Mas em que posso servi-la, princesa?

- Não vim por mim, mas por meu irmão Páris. Ele está morrendo de um ferimento de flecha e você possui muita habilidade para a cura... não quer ir tratá-lo?

Enone alteou as sobrancelhas e demorou um pouco para responder:

- Princesa Kassandra, seu irmão morreu para mim no dia em que deixei o palácio e ele não disse nada para reconhecer seu filho. Durante todos esses anos, ele esteve morto para mim. Não tenho o menor desejo de trazê-lo de volta ã vida agora.

Kassandra sabia, no fundo de seu coração, que deveria ter previsto aquela resposta; que não tinha o direito de vir até ali e pedir qualquer coisa a Enone. Ela abaixou a cabeça e levantou-se.

- Posso compreender a sua amargura. E, no entanto... ele está morrendo. Sua raiva pode ser ainda tão grande? Mesmo diante da morte?

- Morte? Não acha que foi como a morte para mim ser mandada embora sem uma única palavra, como se fosse uma meretriz das ruas de Tróia? E durante todos esses anos não houve uma única palavra para o seu filho? Ainda pergunta se minha raiva é muito grande, Kassandra? Ainda nem começou a tomar conhecimento de minha raiva e acho que não gostaria de saber. Volte para o palácio e chore por seu irmão, como eu o chorei durante todos esses anos. - A voz de Enone se abrandou. - Minha raiva não é contra você, Kassandra. Sempre foi gentil para mim, assim como sua mãe.

- Se não quer ir por Páris nem por mim, não poderia ir por minha mãe? Ela já perdeu tantos filhos...

A voz definhou e ela mordeu a língua com força, não desejando chorar na frente de Enone.

- Se fizesse alguma diferença... Mas agora, com a cidade prestes a cair

pelas mãos de um Deus irado... está surpresa por eu saber disso? Também sou uma sacerdotisa, princesa, volte para sua casa e cuide de sua filha... mande-a para um lugar seguro, se puder; não vai demorar muito agora. Não guardo qualquer ressentimento contra a rainha espartana, mas nada posso fazer por Páris. Quando me abandonou, ele insultou o Pai Escamandro... que está unido a Possêidon.

Nunca ocorrera antes a Kassandra que o Deus Rio Escamandro fosse um aspecto de Posêidon Que Sacode a Terra. Mas Páris abandonara a sacerdotisa do Deus Rio pela filha de Zeus Tonante... e tivera a presunção de ser juiz numa controvérsia entre Imortais, abandonando os Deuses e sua própria terra para servir à akaia Afrodite.

- Não sinto culpa por sua morte - continuou Enone. - O destino dele lhe pertence, assim como o seu, Kassandra, e o meu nos pertencem. Que seus Deuses a guardem, princesa.

Ela levantou a mão num gesto de bênção e Kassandra descobriu-se a descer a colina, sentindo-se como uma camponesa dispensada da presença real.

Demorou menos tempo para descer e quando voltou ao palácio ouviu o som de gemidos. Páris estava morto. Já esperava por isso. Apesar de suas palavras animadoras para Helena, tinha certeza de que ele não poderia sobreviver por muito tempo com um ferimento daquele.

Indo até a sacada para contemplar a planície, Kassandra pôde divisar agora os contornos toscos do que os andaimes envolviam. Erguia-se imenso, desajeitado, inconfundível: a grande forma de madeira de um cavalo.

Então esse é o altar dos akaios, pensou ela: a própria forma de Possêidon Que Sacode a Terra. Será que eles pensam que esse cavalo vai derrubar as muralhas de Tróia ou que chamará o Deus para fazer isso? Mas que infantilidade!

E de repente, sem saber por quê, ela foi dominada por um tremor incontrolável, a tal ponto que teve de se envolver com o manto, apesar da intensidade do sol. A figura do cavalo - ou do Deus - incutia-lhe um terror profundo, embora não soubesse por quê.

 

Antes mesmo dos ritos fúnebres para Páris, Deífobo procurou Príamo e exigiu o comando dos exércitos troianos. Quando Príamo protestou, ele indagou:

- Que opção tem, senhor? Há alguém mais em Tróia, à exceção talvez de Enéias? E ele não pertence a casa real de Tróia, não é um troiano nato.

Príamo limitou-se a olhar para o chão, embaraçado.

- Ou prefere entregar os exércitos à sua filha Kassandra, que já foi uma amazona? - acrescentou Deífobo, desdenhoso.

Hécuba falou em tom incisivo e quase alto, pela primeira vez desde a morte de Heitor:

- Minha filha Kassandra não comandaria os exércitos de Tróia pior do que você, que foi uma criança cruel e invejosa e se tornou um homem arrogante e ganancioso. Meu senhor e rei Príamo, eu lhe suplico que encontre outro para comandar as forças de Tróia ou será pior para todos nós.

Mas todos sabiam que não havia outro. Nenhum dos filhos sobreviventes de Príamo tinha idade ou experiência bastante para liderar os exércitos. Quando foi levado a presença das tropas e Príamo lhe entregou formalmente o comando, Deífobo declarou:

- Só aceitarei o comando se a viúva de Páris, Helena, me for dada como esposa.

- Você está louco - protestou Príamo. - Helena é por direito rainha de Esparta, não um prêmio para ser passado de um homem para outro, como uma concubina.

- Será que não? - indagou Deífobo. - Já não teve problemas suficientes daqueles que uma mulher pode causar quando lhe concedem a possibilidade de escolher o homem que partilhará sua cama? Helena casará comigo e sentirá a maior alegria por isso... não é mesmo, senhora? Ou prefere voltar para Menelau? Eu poderia dar um jeito, se quiser.

Kassandra viu Helena estremecer, mas ela murmurou para Príamo:

- Casarei com Deífobo, se assim desejar, senhor.

Príamo parecia embaraçado.

- Se houvesse algum outro jeito, filha, eu não lhe pediria isso.

Helena abraçou o velho.

- É suficiente que deseje isso para mim, pai.

Príamo envolveu-a gentilmente, com l grimas nos olhos.

- Você se tornou uma de nós, criança. Não há mais o que dizer.

Se isso está resolvido- disse Deífobo, falando bem alto -, então vamos providenciar o banquete de casamento.

Hécuba protestou:

- Este é o momento apropriado para um banquete, com Páris morto e ainda insepulto?

- Pode não haver tempo para um banquete depois - insistiu Deífobo. - Devo ser o único entre todos os filhos de Príamo que entrará no casamento sem banquete e sem honra?

- Há pouca honra aqui- murmurou Príamo.

Ele falou tão baixo que apenas Hécuba e algumas mulheres ouviram. Não obstante, chamou os servos e ordenou que trouxessem vinho, abatessem e assassem um cabrito, providenciassem todos os alimentos que pudessem ser preparados rapidamente.

Kassandra foi com as mulheres do palácio, inclusive a mãe de Deífobo, escolher as frutas prontas para a colheita, arrumando-as em travessas. Concordava com Helena e Hécuba que aquele não era o momento apropriado para um banquete; mas se o casamento tinha de ser realizado, então era melhor que parecesse mais uma questão de opção do que uma coação. Se Helena podia se resignar com uma expressão aceitável, quem era ela para se queixar?

Mas, apesar de toda a comida e dos menestréis convocados às pressas, o casamento não teve alegria. A lembrança da morte de Páris projetava desolação por todo o palácio. Muito antes de o casal ser levado para a cama, Kassandra pediu licença e se retirou. Contemplando as luzes lá embaixo, refletiu que talvez a população de Tróia, aproveitando as dádivas de comida e vinho enviadas por Príamo, acreditasse realmente que se tratava de uma festa genuína. Se criticavam Helena, era apenas por sua disposição para ser dada em casamento outra vez, quando o marido ainda nem fora sepultado. Pois que todos se divirtam, pensou ela. Talvez não tornem a ter outra oportunidade para diversão.

Os ritos fúnebres para Páris foram realizados no dia seguinte, com Helena de véu, solene e pálida, Nikos de nove anos muito pequeno e sério ao seu lado. Ele insistira em cortar os cabelos em sinal de luto.

- Sei que ele não era meu pai, mas foi o único pai que conheci e sempre me tratou com toda gentileza.

Seu esforço para não chorar confrangeu o coração de Kassandra. Depois que as cerimônias terminaram, Deífobo, com uma expressão de alívio, disse bruscamente:

- Agora que está feito, vamos descer e cuidar daquele cavalo, como Páris fez. Começaremos com um barril de alcatrão quente ou algumas flechas incendiárias. O que acha disso, minha esposa? - A voz de Helena soou quase inaudível:

- Deve fazer o que achar melhor, meu marido.

Ela parecia submissa e quieta, como qualquer das esposas dos soldados troianos, sem qualquer vestígio da beleza concedida pela Deusa e que todos consideravam como uma coisa líquida e certa. As palavra também eram submissas, as mesmas que ela poderia ter falado a Páris; mas ocorreu a Kassandra que com essa obediência ela estava escarnecendo do novo marido. Mas Deífobo não parecia perceber; fitava-a com satisfação e prazer: possuía agora o  que sempre invejara, a esposa de Páris e o comando de Páris. Bom, se aquele casamento trazia felicidade a uma pessoa pelo menos, então não era completamente ruim.

A mesma coisa não fora exigida de Andrômaca; ela tivera um tempo decente para lamentar Heitor. Por que não se concedera esse mesmo privilégio a Helena?

Contudo, Helena agira para mostrar a todas as mulheres que elas podiam imitá-la; deveriam ser gratas a ela e admirá-la.

Deífobo estava reunindo os guerreiros dos carros de combate, discutindo rapidamente a estratégia. Kassandra observou Helena despedir-se do novo marido e pedir-lhe que tomasse cuidado na batalha, exatamente como fazia com Páris.

Helena estaria tão acostumada a se submeter à vontade de um homem que não fazia a menor diferença para ela quem era o homem? Ou estava apenas tão atordoada pela dor que nada mais importava? Se eu tivesse amado como ela amou Páris... olhe só para Andrômaca! Amo Enéias e muito, mas quando ele está longe, continuo a ser eu mesma. Se ele morresse, em vez de me deixar para voltar a Creusa, eu lamentaria profundamente a sua morte; mas isso não me destruiria, como a morte de Heitor destruiu Andrômaca. Mas estaria Andrômaca lamentando Heitor ou apenas a perda de sua posição como esposa de Heitor?

Os carros de combate partiram, num ataque contra os trabalhadores que desmontavam os andaimes em torno do monstruoso cavalo de madeira; os akaios se dispersaram e correram, cerca de meia dúzia caindo sob as rodas dos carros. Havia um cheiro estranho no ar que Kassandra não conseguiu identificar. Os guerreiros aproximaram-se do Cavalo e dispararam as flechas incendiárias, mas não conseguiram incendiar a construção.

Os soldados de Agamenon atacaram das sombras dos andaimes. Os troianos nos carros lutaram vigorosamente, mas foram rechaçados para as muralhas. Quando os portões foram abertos para que entrassem em Tróia, houve uma terrível batalha para impedir que os homens de Agamenon e o que parecia ser um punhado dos mirmídones de Akiles, agora sem líder, se espalhassem pelas ruas. Uns poucos conseguiram entrar, mas foram mortos nas ruas estreitas, enquanto os homens de Deífobo fechavam os portões.

- Parece que sofreremos um sítio outra vez - disse Deífobo. - A qualquer custo, não podemos permitir que penetrem na cidade, o que significa que os portões não devem mais ser abertos. A única utilidade daquela monstruosidade lá fora é nos impedir de ter uma boa vista do acampamento akaio. Não podemos nem mesmo queimá-lo; eles devem tê-lo encharcado com alguma coisa que não pega fogo, talvez uma mistura de vinagre e alume. Queimar os andaimes pode ter sido um erro; alertou-os para a primeira coisa que tentaríamos fazer.

- Se o cavalo está mesmo dedicado a nosso Deus Possêidon, não seria um sacrilégio queimá-lo? - indagou Hécuba.

- Acho que eu o queimaria primeiro e faria as pazes com Possêidon depois - declarou Deífobo. - Mas não há como queimá-lo agora.

- Mas não podemos queimá-lo mais tarde? - perguntou Príamo.

- Pode estar certo de que farei o melhor possível, senhor - respondeu Deífobo. - Podemos tentar disparar flechas cobertas com piche, na esperança de que uma parte fique grudada. Fico pensando se eles não puseram esta coisa aqui para nos dar o que pensar, a fim de não percebermos o que mais podem tentar, como escavar um túnel sob as muralhas do lado do interior ou escalar o Templo da Virgem e nos atacar lá de cima.

- Acha que eles poderiam fazer isso? - indagou Hécuba, apreensiva.

- Tenho certeza de que tentarão, senhora. Cabe a nós prever todos os truques que o Mestre da Insídia, Odisseu, possa imaginar, ao mesmo tempo em que mantemos os olhos e as mentes fixados naquela coisa ah fora.

Ele olhou para o Cavalo com uma repulsa intensa e sacudiu o punho para este. A imagem do Cavalo de madeira povoou os sonhos de Kassandra naquela noite. Num pesadelo, adquiriu vida, empinando como um garanhão e escavando a terra; depois desferiu um coice e o impacto dos cascos poderosos derrubou os portões, enquanto um exército saía do interior do cavalo e espalhava pelas ruas, matando e saqueando. Quando acordou, o sonho parecia tão intensamente real que Kassandra saiu de camisola para a sacada e contemplou a planície lá embaixo; viu o Cavalo, de madeira e sólido, sem vida como sempre, sob o luar claro. Nem mesmo era tão grande quanto parecia em seu sonho. É apenas uma coisa de madeira e alcatrão, inofensivo como aquela estátua a beira do Escamandro. Umas poucas tochas ardiam na frente.., uma homenagem a Possêidon? Ela recordou a visão em que Apolo e Possêidon lutavam pela cidade, entrou no santuário para se ajoelhar e orar.

- Meu senhor Apolo, não pode salvar Seu povo? Se não pode, por que é chamado um Deus? E se pode e não o faz, que tipo de Deus é?

Aterrorizada pela forma da oração, ela saiu correndo do santuário. Estava subitamente consciente de que formulara a última pergunta que alguém podia fazer a um Deus, a que nunca seria respondida. Por um momento, sentiu medo de ter cometido uma blasfêmia, mas logo pensou: Se Ele não é um Deus ou se não é bom, então o que há para blasfemar? Diz-se que Ele ama a Verdade; e se não ama, então tudo o que me foi ensinado e falso.         ,.

Mas se Ele não é um Deus, então o que eu vi lutando pela cidade? O que dominou Krises e Helena?

Se os Imortais são piores que os piores entre os homens, mesquinhos e cruéis, então, o que quer que sejam, não podem ser venerados pela humanidade. Kassandra sentia-se desconsolada; uma parte considerável de sua vida fora consumida na paixão intensa pelo Senhor do Sol. Não sou melhor do que Helena, mas escolhi amar um Deus que não é melhor do que o pior dos homens.

Ela voltou a sacada e lá ficou, atordoada pelo horror, enquanto o sol nascia pela última vez sobre a cidade condenada.

 

A sua frente estendia-se a planície de Tróia, ao sol da manhã. Dentro da cidade, não havia qualquer movimento; lá fora, umas poucas tochas ardiam fracamente, contra o sol nascente.

O silencio era absoluto. Até mesmo o mar distante, além do acampamento akaio, estava completamente sereno, as próprias ondas haviam deixado de se desmanchar sobre a praia. As nuvens avermelhadas no céu eram como chamas distantes, tragando o último brilho difuso da lua que se punha. Era outra vez como em seu sonho: o Cavalo de madeira diante das muralhas parecia empinar-se, ameaçando a cidade com os cascos monstruosos.

Ela gritou, escutando a própria voz morrer na garganta sem ser ouvida. Gritou de novo, pressionando contra o silencio, até que finalmente a voz rompeu pela garganta, como se a dilacerasse:

- Oh, cuidado! O Deus está irado e vai golpear a cidade!

Era como se além do silencio ela pudesse ouvir retumbantes ondas sonoras, como se Apolo e Possêidon, lutando pela cidade, tivessem rompido o impasse, com Possêidon derrubando o Senhor do Sol.

Seus gritos não passaram despercebidos; já outras mulheres safam correndo dos prédios, em diversos estágios de vestir.

- O que foi? O que aconteceu?

Kassandra estava apenas vagamente consciente do que as outras diziam.

É Kassandra, filha de Príamo. Não lhe dêem atenção: ela é louca. Não, escutem o que ela diz. É uma profetisa, ela vê...

- O que foi, Kassandra? - perguntou Filida, suavemente. - Não pode nos contar o que viu?

Ela ainda estava gritando. Tentou escutar a si mesma - pois estava tão confusa quanto as ouvintes e parecia que sua cabeça fora rachada por um machado - e pensou: Se eu estivesse escutando, também ficaria convencida de que estou louca. Contudo, apesar da confusão, uma parte de sua mente mantinha-se lúcida, com a fria clareza do desespero. Fez um esforço para focalizar essa parte e ignorar a outra, que era um caos de pânico e terror. E ouviu-se gritar:

- O Deus está irado! Apolo não pode dominar Posêidon! As muralhas da cidade serão destruídas! Nosso próprio Deus fará o que os akaios não conseguiram fazer durante todos esses anos! Estamos perdidos, estamos destruídos! Escutem e fujam!

Mas de que adiantava o aviso? Sabia que ninguém escaparia, só via morte e desastre... Percebeu que estava se debatendo contra as mãos de Filida a segurá-la. A amiga disse a outra sacerdotisa:

- Dê-me uma faixa para amarrá-la, a fim de que ela não se machuque Seu rosto está sangrando onde ela própria se arranhou.

Ela passou a faixa com todo cuidado pelas mãos de Kassandra, que disse, desesperada:

- Não precisa me amarrar! Não vou machucar ninguém!

- Receio que possa machucar a si mesma, minha cara - disse Filida. - Licura, vá buscar vinho misturado com xarope de sementes de papoula, para acalmá-la.

- Nada disso! - exclamou Krises, aproximando-se. Ele empurrou Filida para o lado e tirou a faixa das mãos de Kassandra. - Ela não precisa de nenhuma droga. Nenhuma poção calmante poderá tranqüiliza-la agora. Ela teve uma visão. O que foi, Kassandra? - Ele pôs as mãos na cabeça de Kassandra e disse, em voz forte e firme, fitando-a compulsivamente nos olhos: - Conte o que o Deus lhe transmitiu. Juro por Apolo que ninguém porá as mãos em você enquanto eu viver.

Mas você é tão impotente agora quanto o seu Senhor do Sol, pensou Kassandra freneticamente.

- Pois então escute! - disse ela, tentando silenciar o coração batendo forte com a pressão das mãos cruzadas sobre o peito. - Aquele Que Sacode a Terra derrotou o Senhor do Sol e vai destruir nossa cidade. Sentiremos a ira de Possêidon mais forte do que nunca! Nenhuma muralha, casa e portão, nem o próprio palácio, nada escapará! Avisem ao povo para fugir, mesmo que seja para os braços dos akaios! Cubram os fogos de cozinhar! Cuidem para que nenhum lampião fique perto de piche ou óleo! Que ninguém permaneça dentro de casa, a fim de que seu corpo não seja mutilado pelas pedras caindo!

Krises virou-se para as mulheres.

- Talvez ainda haja algum tempo. Libertem as serpentes, as que ainda não fugiram. Depois, duas de vocês desçam ao palácio e comuniquem ao rei e rainha que temos maus presságios e que devem escapar para campo aberto. Talvez não nos acatem, mas devemos fazer tudo o que pudermos.

- Será tudo em vão! - gritou Kassandra, tentando se conter, mesmo enquanto falava. - Ninguém pode escapar ã ira de Posêidon! As mulheres devem se refugiar no Templo da Virgem, que talvez se compadeça de nós.

- Isso mesmo, tratem de ir - disse Krises as mulheres. - Levem as crianças e permaneçam sob céu aberto até o terremoto passar. Talvez ali possam se esconder de nossos inimigos, se conseguirem entrar na cidade. Há muitas coisas preciosas para saquear em Tróia e talvez eles não subam tanto.

Ele segurou Kassandra, enquanto ela começava a recuperar o controle, sentindo uma dor intensa na cabeça e com uma sensação de afogamento, como se contemplasse o mundo do fundo da água.

- Tenho de ir agora, Kassandra, e fazer o que puder para espalhar o aviso. Quer aquela poção calmante? Vai ficar nos pátios do Senhor do Sol ou descerá para a cidade? O que posso fazer para ajudá-la?

A voz de Krises lhe chegava como se atravessasse planícies e legiões de mortos; mas quando ela falou, sua própria voz estava calma:

- Obrigada, Irmão Mais Velho, mas não preciso de nada. Vá fazer o que deve e eu irei verificar se minha filha está bem.

Krises afastou-se e Kassandra foi para seu quarto. Mel dormia, ainda encolhida sob as cobertas, mas Kassandra notou que a serpente desaparecera. Mais sábia do que os homens, procurara refúgio em algum lugar secreto, conhecido apenas das serpentes. Kassandra inclinou-se e sacudiu a criança gentilmente, acordando-a. Mel estendeu os braços para ser pegada no colo e Kassandra vestiu-a rapidamente. De alguma forma, precisava tirar a criança de Tróia, antes que os invasores rompessem as muralhas.

- Venha, querida. - Mel pegou sua mão e ela acrescentou: - Temos de sair daqui depressa.

Mel parecia confusa, mas foi andando obediente ao lado de Kassandra. Subido apressada para o Templo da Virgem, Kassandra tropeçou de repente e foi amparada por mãos fortes.

- Chegou o momento, Kassandra - murmurou Enéias. - O aviso foi seu?

- Pensei que tinha deixado a cidade - disse ela, fazendo um esforço para manter a voz firme.

- Você não pode continuar aqui. Venha comigo. Encontrarei um navio para Creta...

Não posso, Enéias. Vamos depressa... os Deuses abandonaram Tróia. Ela conduziu-o ao santuário interior do Templo da Virgem. Havia algumas sacerdotisas ali e Kassandra gritou-lhes:

- Depressa, apaguem todas as tochas... até mesmo a Chama Sagrada! Os Deuses nos abandonaram!

Largando a mão de Mel, ela pegou a última tocha e extinguiu o logo que ardia diante da Virgem. Enquanto as sacerdotisas saíam correndo pelas portas, Kassandra arrancou a cortina.

- Este é o objeto mais sagrado em toda Tróia, Enéias; leve-o. - Ela pegou

a estátua antiga, Paládio, envolveu-a com seu véu. - Leve-o através dos mares, para onde quer que vá. Construa um altar a Deusa e acenda o Fogo Sagrado. E conte a verdade sobre Tróia.

Enéias se adiantou, como se fosse puxar o véu e contemplar o objeto sagrado, mas ela deteve sua mão.

- Não! Nenhum homem deve contemplá-lo. Jure que o levará a um novo templo e lá o entregará a uma sacerdotisa da Mãe. Jure! Ele fitou-a nos olhos.

- Juro. Você não tem mais qualquer motivo para ficar aqui, Kassandra. Venha comigo... é preciso uma sacerdotisa para levar esse objeto além dos mares.

Enéias inclinou-se para abraçá-Ia; ela o beijou freneticamente e depois recuou.

- Não é possível. Meu destino está aqui. O seu é deixar Tróia vivo e ileso. Mas parta imediatamente e que todas as nossas esperanças e todos os nossos Deuses o acompanhem.

- Mas não deve ficar, Kassandra...

- Eu prometo que deixarei Tróia antes de o sol nascer outra vez. Não é a morte que me aguarda, mas não estou livre para acompanhá-lo. Os Deuses decidiram de outra forma.

Ele tornou a beijá-la e pegou o objeto sagrado.

- Juro por minha linhagem divina que farei a sua vontade, Kassandra... e a d'Ela.

Os olhos de Kassandra encheram-se de lágrimas, enquanto o observava deixar o templo, apressado.

Ela começava a atravessar o pátio quando ouviu em sua cabeça um terrível estrondo. O chão balançou sob seus pés; ela cambaleou e caiu, com Mel nos braços, ficou imóvel, o corpo comprimido contra a terra subitamente instável, a ondular e corcovear. Sua única emoção não era medo, mas raiva: Mae Terra, por

que permite que seus olhos, façam isso com o que criou?

O movimento pareceu se prolongar por toda uma eternidade, sob os soluços assustados da criança em seus braços. Depois se desvaneceu e ela constatou que o sol ainda se encontrava apenas uma fração acima do horizonte; o tremor não podia ter durado mais que alguns segundos. O choro de Mel se atenuara para suaves soluços.

Kassandra olhou para trás e descobriu que o estrondo fora das paredes da Casa do Senhor do Sol, desabando para dentro. Não havia praticamente nenhum prédio no conjunto ainda de pé. Do prédio principal, em que habitavam, restava apenas uma pilha de escombros. Nada poderia ser salvo de lá. Soaram gritos abafados; alguém ficara preso no interior, sob as pedras caídas. Kassandra olhou desconsolada para os escombros - mesmo com toda a sua força, não conseguiria deslocar uma única pedra - e logo os sons cessaram.

Em algum lugar dos jardins, um passarinho despreocupado começou a cantar.

Isso significava que já acabara?

Como em resposta, o chão pareceu estremecer e balançar de novo, depois ficou imóvel. Atordoada, Kassandra encaminhou-se para o lugar de onde contemplara a planície na noite anterior.

Os grandes portões e a muralha da frente de Tróia haviam desmoronado; em meio aos escombros, Kassandra divisou o Cavalo de madeira caído, uma perna grotescamente levantada, como se tivesse de fato escoiceado as muralhas com seus enormes cascos. As tochas haviam ateado fogo aos andaimes, que ardiam com a maior violência; mais uma vez, porém, as chamas lamberam o Cavalo em vão. E na cidade as chamas também se elevavam, como era de se esperar, dos distritos mais pobres, com suas casas de madeira. Era a visão que ela tivera pela primeira vez em criança, a visão em que ninguém acreditara: o incêndio de Tróia.

Pela brecha na muralha já passavam os soldados akaios, em enxames, entrando nas casas ainda intactas e saindo com tudo o que podiam carregar. Onde ela poderia se esconder? Mais importante ainda: para onde poderia levar Mel? Havia um prédio ainda parcialmente de pé no Templo de Apolo: o santuário. Talvez houvesse comida ali, remanescente das oferendas do dia anterior. Kassandra sentia, espantada, uma fome intensa. Entrou no prédio e parou: se houvesse outro tremor, o santuário poderia desabar por completo. E depois ela viu que a estátua do Senhor do Sol caíra e por baixo, esmagado, havia um vulto humano.

Aproximando-se, com uma curiosidade atordoada - não havia nada que se pudesse fazer - ela descobriu que era Krises.

Finalmente, pensou ela; agora o Deus abateu-o para sempre. Kassandra ajoelhou-se ao lado do corpo, fechou os olhos arregalados, depois se levantou e seguiu adiante.

Na sala por trás da estátua, onde eram guardadas as oferendas, encontrou pães; estavam dormidos, mas ela comeu um, dividindo-o com a criança, que parecia atordoada e não chorava. Guardando outro na dobra da túnica - poderia precisar mais tarde -, Kassandra procurou avaliar a situação. Os akaios já saqueavam a parte baixa da cidade. O palácio teria desmoronado? Estariam todos mortos... seus pais, Andrômaca, Helena? Restariam soldados troianos vivos para conter o saque? Ou ela e Mel eram as únicas pessoas vivas para testemunhar a devastação?

Ficou atenta a qualquer ruído que a levasse a acreditar que havia mais alguém vivo na Casa do Senhor do Sol; mas havia apenas o silêncio. Talvez ainda houvesse pessoas vivas no palácio lá embaixo.' Teriam recebido o aviso a tempo de saírem para os pátios ou jardins?

Embora o sol estivesse agora bastante quente, Kassandra estremeceu. O xale grosso - e todas as suas roupas, à exceção da camisola que vestia - estava sob as ruínas do Templo de Apolo.

Precisava descer ao palácio; embora soubesse que os soldados akaios estavam na cidade, queria desesperadamente descobrir se a mãe ainda vivia. Pegou Mel no colo e começou a correr.

O caminho estava bloqueado por escombros e detritos de casas parcialmente desmoronadas. As pessoas que encontrava, em sua maioria, eram mulheres atordoadas, apenas semi vestidas e descalças, como Kassandra. Deparou com alguns soldados semi armados, que haviam levantado cedo para se juntarem a Deífobo. Quando a viram a caminho do palácio, seguiram-na.

O palácio não desabara. As portas da frente haviam caído, assim como algumas esculturas, mas as paredes continuavam de pé e não havia sinal de incêndio. Ao se aproximar, ouviu um gemido alto e reconheceu a voz da mãe. Desatou a correr ainda mais depressa. Nas lajes de pedra do átrio, agora arqueadas para cima e irregulares, avistou Príamo caído... morto ou desfalecido, ela não podia determinar. Hécuba inclinava-se ao seu lado, gemendo; Helena, envolta por um manto e com Nikos ao seu lado, e Andrômaca, com Astíanax no colo, também estavam ali. Andrômaca olhou para Kassandra e disse, veemente:

- Está contente, Kassandra, agora que a tragédia que profetizou se abateu sobre nós?

- Cale-se! - exclamou Helena. - Não fale como uma tola, Andrômaca.

Kassandra tentou nos alertar, isso é tudo. Tenho certeza de que ela preferia não ter falado nada. Fico satisfeita por saber que está ilesa, irmã.

Ela abraçou Kassandra e, depois de um momento de hesitação, Andrômaca seguiu o exemplo.

- Como está o pai? - Kassandra foi se inclinar para a mãe e levantou-a gentilmente.- Venha, mãe. Devemos nos refugiar no Templo da Virgem.

- Não! - protestou Hécuba, os gemidos transformando-se em soluços. - Ficarei com meu senhor e rei!

Andrômaca abraçou-a: Astíanax adiantou-se, passou os braços por Hécuba e disse:

- Não chore, avó. Se alguma coisa acontecer a meu avô, o rei, eu tomarei conta de você.

- Fique quieto, querido - murmurou Helena.

Kassandra ajoelhou-se ao lado do pai, pegou sua mão fria e ergueu uma pálpebra. Não havia o menor sinal de movimento ou vida; os olhos já estavam vidrados. Ela sabia que devia acompanhar a mãe no lamento ritual, mas apenas largou a mão e suspirou.

- Sinto muito, mãe. Ele está morto.

Os gritos de Hécuba recomeçaram. Kassandra acrescentou, em tom de urgência:

- Não há tempo para isso, mãe. Os soldados akaios estão na cidade.

- Mas como é possível? - perguntou Hécuba.

- As muralhas foram rompidas pelo terremoto - explicou Kassandra, especulando desesperada se todos careciam de juíza ou estavam atordoados demais pelo choque e nada tinham ouvido. - Já começaram a saquear pelas ruas e não vão demorar muito para chegarem aqui. Onde está Deífobo?

- Acho que está morto - respondeu Helena. - Ouvimos a mãe gritar que o pai caíra, num acesso ou desmaiado. Corremos todos e Deífobo carregou-o do quarto para o pátio, depois saiu à procura de sua própria mãe. Foi então que ocorreu o primeiro choque, os chãos cederam e creio que uma parte dos tetos também. Mal tive tempo de pegar Nikos e sair correndo.

- Nós seis estamos vivos, mas precisamos nos esconder em algum lugar, a menos que desejemos cair nas mãos dos soldados - disse Kassandra. - Não sei qual é o costume akaio em relação às cativas, mas acho que não gostaria de conhecê-lo.

- Helena nada tem a temer deles - disse Andrômaca, olhando fixamente para a espartana. - Tenho certeza de que seu marido estará aqui em breve para reclamá-la; vai enfeitá-la com todas as jóias de Tróia e leve-a para casa em triunfo. Foi sorte sua que Deífobo morresse bem a tempo... não que se importasse, é claro.

Kassandra ficou consternada com o desdém de Andrômaca.

- Não é o momento de discutir, irmã. Devemos nos sentir contentes por uma de nós não precisar temer a captura. Vamos nos refugiar no Templo da Virgem? Foi para lá que mandamos as mulheres da Casa do Senhor do Sol e tenho certeza de que ainda está de pé. - Ela passou o braço pelos ombros de Hécuba. - Vamos embora, mãe.

- Não, ficarei com meu rei e senhor - respondeu a velha, obstinada, tornando a se ajoelhar ao lado do corpo de Príamo.

- Mãe, acha mesmo que o pai haveria de querer que você ficasse aqui para ser capturada por algum comandante akaio? - indagou Kassandra, exasperada.

- Ele foi um soldado até a morte. Não o abandonarei no momento em que caiu. Você é jovem; vá se abrigar em algum lugar em que não a encontrarão, se é que existe um lugar assim em Tróia. Ficarei com meu senhor e Helena ficará comigo. Nem mesmo os akaios poderiam insultar a rainha de Tróia. Caímos para um Deus e não para eles.

Kassandra gostaria de sentir tal certeza pela metade. Mas já podiam ouvir os soldados se aproximando e ela pegou a mão de Mel. Astíanax estava no colo de Andrômaca, protestando que queria descer, mas a mãe não lhe dava atenção.

- Vamos nos esconder numa das casas humildes aqui perto - sugeriu Andrômaca. - Eles nunca pensariam em procurar ali, onde nada haveria para saquear.

Mas Kassandra sacudiu a cabeça.

- Eu e minha filha vamos nos entregar à proteção da Virgem de Tróia. Se nossos Deuses nos abandonaram, talvez a Deusa não o faça.

- Como quiser - murmurou Andrômaca. - Não acredito mais nos Deuses. Adeus, então. Boa sorte para você.

Ela entrou na casa menor e mais humilde, enquanto Kassandra subia correndo a ladeira, levando Mel, até o ponto mais alto de Tróia, onde o Templo da Virgem permanecia incólume, a estátua no átrio ainda de pé. Kassandra largou Mel e se lançou aos pés da estátua; certamente nenhum homem, nem mesmo um bárbaro akaio, ousaria profanar qualquer mulher que se refugiasse ali.

Ela ouviu as vozes das outras mulheres numa cámara interior. Estaria com elas dentro de um momento.

- Ah, lá está! - Era um grito de triunfo na lingua bárbara dos soldados. Dois homens armados passaram correndo pela porta. - Estava me perguntando para onde todas as mulheres tinham ido!

- Esta servirá para mim. É a princesa, filha de Príamo. É uma profetisa e' uma virgem de Apolo... mas se Apolo quisesse proteger suas virgens, já teria feito isso. Não quer dar uma olhada lá dentro para ver se tem mais?

- Não - respondeu o outro soldado. - Ficarei com a pequena. Quando as pessoas acham que já estão bastante grandes, estão velhas demais para o meu gosto. Venha até aqui, menina. Tenho uma coisa bonita para você.

Kassandra virou-se horrorizada para ver um soldado gigantesco chamando

Mel.

- Não! Ela não passa de uma criança! Não, não...

- Gosto delas assim - disse o enorme soldado, sorrindo e avançando para a criança, arrancando-lhe a túnica.

Kassandra atacou-o, usando as unhas e os dentes para arrancar Mel de seus braços; um chute violento arremessou-a quase sem sentidos para um canto da sala. Ouviu Mel gritar, mas não podia se mexer, o corpo estava tão entorpecido que não era capaz de levantar um dedo sequer. Sentiu o outro homem agarrá-la e se debateu freneticamente; um golpe do braço do homem em seu rosto fe-la cair de novo e toda a energia se esvaiu de seu corpo, como areia escorrendo de um saco rasgado.

Ela continuou a ouvir os gritos de Mel até cessarem abruptamente, o que foi ainda mais terrível. Estava consciente - embora não pudesse se mexer nem falar - quando o homem arrancou sua camisola e comprimiu-a contra o chão de mármore.

Deusa! Vai deitar que isso aconteça em seu próprio santuário, diante de seus olhos?

No mesmo instante, Kassandra lembrou-se, chocada, que não mais respeitava os imortais; por que a Virgem deveria protege-la?

Mas Mel não fez nada de errado, ainda é uma criança pequena! Se a Virgem vê isso e não pode impedir, então Ela não é uma Deusa. E se pode e não interfere...

Uma dor intensa a dilacerou no instante em que o homem a penetrou violentamente, sentiu a escuridão envolvê-la.

Sentiu que saía do corpo abalado pela dor, consciente do homem ainda se levantando de seu vulto inerte, de Mel nua e dilacerada, sangrando no chão, ainda se mexendo um pouco, choramingando pelos lábios machucados. Afastou-se sobre a planície extensa e informe. O sol diminuíra no cinzento que era tudo o que existia ali. Kassandra desceu pela planície que era e não era a cidade d.

Tróia, onde o Cavalo de madeira derrubara as muralhas; embora não estivesse

mais de pé, ainda pairava inteiro, como um pesadelo, sobre a cidade morta.

Viu outras pessoas na planície: soldados akaios, uns poucos troianos. Pare ciam confusos, procurando por um líder. E depois ela avistou Deífobo, semi despido, ainda carregando a mãe nos braços, o rosto e as mãos chamuscados pelo fogo. Portanto, eles haviam morrido juntos, como Helena desconfiara.

Ele tentou chamá-la, mas Kassandra não tinha o menor desejo de lhe falar. Ela virou-se e afastou-se apressada na outra direção, especulando sobre o que teria acontecido com Andrômaca.

Lá estava Astíanax, a cabeça sangrando, as roupas rasgadas. Parecia atordoado; mas, enquanto Kassandra observava, o rosto do menino se iluminou e ele desatou a correr pela planície cinzenta, gritando de alegria. Ela viu-o ser envolto pelos braços de Heitor e sufocado de beijos. Heitor viera mesmo buscar o filho; Kassandra não ficou surpresa pelo fato de os soldados akaios não o terem deixado viver. Andrômaca lamentaria; não sabia que o filho estava com o pai, como Heitor prometera. Kassandra esperava que a criança não tivesse sofrido muito terror antes de encontrar o fim numa lança akaia... ou será que o haviam jogado do alto das muralhas?

E então ela viu Príamo, alto e imponente como se lembrava dele do tempo em que era pequena. Ele sorriu e disse:

- A cidade caiu, não é mesmo? Posso supor que estão todos mortos? - Acho que sim, pai.

- Onde está sua mãe, minha querida? Ainda não veio? Esperarei por ela aqui. - Ele olhou ao redor. - Ah, lá estão Heitor e o menino.. .

- É isso mesmo, pai - murmurou Kassandra, sentindo um aperto na garganta; Príamo parecia muito feliz.

- Acho que vou me juntar a eles. Se sua mãe aparecer, avise que estou lá, está bem, meu amor?

Mas não é possível que estar morto seja apenas isso, pensou ela. Deve haver algo mais...

Kassandra levantou os olhos e viu à sua frente Pentesiléia, ilesa, sorridente, o rosto brilhante, cercada por meia dúzia das guerreiras que haviam lutado em sua companhia naquele último dia. Rindo de alegria, Kassandra correu para os braços da amazona. Ficou surpresa ao descobrir que a parenta estava tão sólida, forte e quente como no dia em que a abraçara, antes de sua saída para a batalha diante dos portões de Tróia e a morte nas mãos de Akiles. Kassandra manifestou sua surpresa em voz alta.

- Imagino então que Akiles também deve estar em algum lugar por aqui. - Também pensei assim - comentou Pentesiléia -, mas parece que ele foi para o seu próprio lugar, onde quer que seja.

Além de Pentesiléia, a planície dos mortos se desvanecia e Kassandra só podia ver o que parecia uma luz ofuscante... duas vezes mais brilhante do que o Senhor do Sol,, como o vira em sua primeira visão envolvente; e através da luz, divisou os contornos de um enorme templo, maior do que aquele em que servia na Cólquida e ainda mais bonito. Ela murmurou em reverencia:

- É para lá que irei?

Além da Luz, começou a ouvir música: harpas e outros instrumentos, aumentando de volume e povoando o ar com harmonia, como uma dúzia... não, uma centena de vozes reunidas no canto, aproximando-se. Era como ela sempre pensara que seria a Casa do Senhor do Sol. Krises estava parado na entrada, chamando-a; seu rosto perdera a insatisfação e a cobiça que ela conhecera antes. Portanto, Krises era finalmente o que Kassandra sempre acreditara que ele fosse. Krises estendeu os braços e ela já ia correr para o seu abraço, como Astíanax correra para Heitor.

Mas Pentesiléia estava em seu caminho... ou seria a própria Virgem Guerreira, usando a armadura da amazona? Ela segurava a mão de Mel, risonha e ilesa. O que significa que ela também está morta.

- Não! - disse Pentesiléia. - Não, Kassandra. Ainda não.

Kassandra fez um esforço para formar palavras. Era o lugar que vira em seus sonhos, o lugar a que sempre soubera que pertencia. E não apenas Krises, mas todas as pessoas que a amavam ali estavam, aguardando-a, esperando por sua voz para ocupar seu lugar naquele imenso coro.

- Não! - A voz de Pentesiléia estava pesarosa, mas inflexível; e ela conteve Kassandra como se fazia com uma criança pequena. - Não pode ir ainda; há uma coisa que precisa fazer entre os vivos. Não podia partir com Enéias; não pode vir comigo. Deve voltar, Kassandra; sua hora ainda não chegou.

O belo rosto sob o capacete reluzente começava a se dissolver em faíscas brilhantes, como o sol explodindo. Kassandra fez um esforço para mante-lo em foco.

- Mas quero ir... a luz... a música.. .

A luz se desvanecia e ao seu redor havia escuridão; estava consciente de um cheiro fantasmagórico, como a morte, como vômito; e descobriu-se estendida sobre a terra suja de algum abrigo.

Então não estou morta, no, final das contas. Sua única emoção era de desapontamento amargo. Lutou para preservar a lembrança da Luz, mas já estava desaparecendo. Sentiu a dor no corpo. Sangrava e parte do cheiro que sentia era o de seu próprio sangue no rosto, cobrindo a camisola. O homem que a violentara estava parcialmente estendido sobre seu corpo. Era o cheiro do vômito dele que ela sentia; lentamente, como se aflorasse de um sono muito profundo, Kassandra ouviu uma voz familiar e viu um rosto - de nariz adunco, barba preta - que atormentara seus pesadelos por muitos anos.

- Eu disse que era ela quem eu queria - declarou Agamenon. - Ela está respirando de novo. Se você a tivesse matado, eu o esfolaria vivo. Sabia que ela me coube no sorteio, mas tinha de tentar chegar à minha frente. Sempre foi despeitado, Ajax.

Kassandra sentiu uma agonia invadir todo o seu corpo... agonia misturada

com desespero.

Então não estou morta, no final das contas; a Virgem me salvou. Para isto!

 

Ela estava imóvel, angustiada demais para tentar se mexer.

- Mel? - sussurrou, dolorosamente, através da garganta em carne viva.

Mas não houve resposta. Kassandra lembrou-se de ter visto o corpo, em estado lamentável, sangrando e dilacerado, jogado para o lado pelo soldado que a usara.

Ela deve estar morta agora. Espero que esteja morta. E está mesmo, pois a vi com Pentesiléia.

Está a minha procura por lá.

Não quero viver. Quero voltar para junto de Pentesiléia, do pai... da música.. .

Mas podia sentir a própria respiração, as batidas altas de seu coração. Viveria. O que Pentesiléia dissera? "Há uma coisa que precisa fazer entre os vivos."... Se fosse para cuidar de Mel, eu teria voltado... não de bom grado, mas sem me queixar. Mas ela partiu, não posso ajudá-la agora. Por que estou aqui e todas as pessoas que amo partiram antes de mim?

Kassandra percebeu vagamente que estava deitada no chão de uma construção pequena. Ao redor havia caixas, pacotes e fardos de mercadorias empilhadas: sedas, ricos mantos, tapeçarias, vasos e diversas peças de cerâmica, sacos de grãos e jarros de óleo... todas as riquezas da cidade saqueada. Andrômaca estava estendida ali perto, o rosto virado para baixo, coberta por uma manta áspera.

Kassandra divisou seu rosto na semi escuridão. Os olhos estavam vermelhos e inchados de tanto chorar. Ela abriu-os e fitou Kassandra.

- Então você despertou... Disseram que estava morta quando a trouxeram, mas Agamenon não queria admitir.

- Eu tinha certeza de que estava morta - murmurou Kassandra. - Queria

estar morta.

- E eu também. Eles... pegaram Astíanax.

- Os akaios? Eu já sabia. Vi Astíanax.. , correndo para os braços do pai. Andrômaca pensou por um momento. - Não duvido. Se alguém pudesse ver além da morte, seria você.

- Acredite em mim: ele está livre e feliz, com o pai. - A voz de Kassandra ficou embargada à lembrança. - Eles estão melhor do que nós. Eu gostaria de ir para lá também.

Depois de um momento, indagou:

- Por que eles nos mantém aqui? O que vai nos acontecer? Que lugar é este?

- Não tenho certeza - respondeu Andrômaca. - Acho que é o lugar em que os comandantes akaios juntam os despojos antes de levá-los para os navios.

- Escute! Alguém está vindo!

Kassandra se encolheu, arrepiada. Podia ouvir passos pesados ah perto. Mas perdera a Visão sobrenatural do estado de transe, sentia-se apática e doente, presa nos sentidos mortais comuns. Tinha um gosto horrível na boca. - Tem água aqui?

Andrômaca suspirou e mexeu-se, depois sentou. Pegou uma jarra e levou para Kassandra, que bebeu até não mais sentir sede. Precisou sentar para beber e teve a sensação de que a cabeça ia rachar e rolar pelo chão. Ajudou Andrômaca a pôr a jarra de volta no lugar e tornou a deitar, exausta por aquele movimento mínimo. Depois de um momento, sussurrou:

- Mel também está morta. Eles a arrancaram de meus braços no próprio santuário da Virgem e a violaram... embora fosse uma criança tão pequena...

A mão de Andrômaca fechou-se sobre a dela.

- Sei como deve se sentir, embora ela não fosse sua filha.

Kassandra murmurou, apaticamente:

- Ela era tão minha olha quanto qualquer criança poderia ser.

- Só diz isso porque nunca gerou um filho.

Andrômaca tornou a puxar o manto sobre o rosto.

- Você está bem? Sofreu alguma coisa? - insistiu Kassandra, tentando

romper o desespero apático de Andrômaca.

Baixando o manto, Andrômaca virou-se para fitá-la.

- Eles não puseram a mão em mim. Acho que me pegaram porque ajuda seu orgulho pensarem na esposa de Heitor como uma escrava. Quanto ao meu filho... se fosse filho de alguém inferior, poderiam tê-lo deixado viver... Mas o que aconteceu com você? Foi ferida... - Ela estendeu a mão, parando ao tocar no corte sangrando na testa de Kassandra. - Você foi... espancada além de.. .

- Violentada? Isso também. Pensei... esperava estar morta. Mas por algum motivo... fui mandada de volta.

Kassandra lembrou-se angustiada das palavras de Pentesiléia: Você ainda precisa fazer uma coisa entre os vivos. Mas o que? Não a teriam mandado de volta apenas para confortar Andrômaca e dizer-lhe que o filho estava seguro com o pai. Mas o que mais? Poderia de alguma forma vingar-se de Agamenon? Era absurdo; nem todos os exércitos de Tróia poderiam abate-lo e ela não passava de uma mulher sozinha, ferida e violada. Um vulto escuro bloqueou a claridade que entrava pela porta e uma voz rude disse:

- Muito bem, fique junto das outras!

Uma pessoa foi empurrada para o interior, tropeçou e caiu em cima de Kassandra: uma mulher, pequena e frágil. Ela gemeu e levantou a cabeça. - Kassandra, é você?

- Mãe! - Kassandra sentou e abraçou-a. - Pensei que estava morta.. . - E eu ouvi dizer que Agamenon a pegara...

- Ele me reclamou - respondeu Kassandra, fazendo um grande esforço para manter a voz firme. - Mas ainda não carregaram os navios e assim nos restam uns poucos momentos para a despedida.

- Ainda estão brigando por causa dos despojos - comentou Andrômaca, amargurada, sentando também e abraçando Hécuba. - Inclusive nós.

- Não sei para onde vou nem de que serviria, pois estou muito velha para ser uma escrava- murmurou Hécuba.

- Pelo menos, mãe, não precisa ter medo de se tornar uma concubina - lembrou Andrômaca.

Hécuba riu um pouco.

- Nunca pensei que tornaria a encontrar algum motivo para rir. Mas vocês duas são jovens; mesmo como escravas, podem ainda encontrar alguma coisa boa na vida.

- Nunca! - exclamou Andrômaca. - Mas não vamos começar a discutir qual de nós sofreu mais!

Kassandra ficou paralisada de repente e sussurrou: - Alguém se aproxima!

Era Odisseu; o corpo largo parecia ocupar todo o vão da porta. O guarda perguntou-lhe:

- O que deseja, meu senhor?

- Uma das mulheres aqui me pertence. Perdi no sorteio, mas talvez não tenha sido um prejuízo tão grande. Minha esposa Penélope ficaria furiosa se eu

levasse para casa uma escrava jovem e bonita.

- Oh, desgraça! - balbuciou Hécuba, segurando a mão de Kassandra. – E ele foi muitas vezes hóspede em nosso palácio. Não posso suportar essa humilhação.

Odisseu entrou e inclinou-se para Hécuba. A voz não

gentileza quando disse:

- Muito bem, Hécuba, parece que você vem comigo. Não tenha medo.

Nada tenho contra você e. minha esposa muito menos.

Ele estendeu a mão para ajudá-la a levantar-se, o que Hécuba fez, um tanto rígida. Depois, Odisseu inclinou-se para Kassandra e sussurrou:

- Não se preocupe com sua mãe. Cuidarei bem dela. Hécuba nunca ficará sem um teto enquanto eu viver. Eu queria levar você também, Kassandra, mas

Agamenon estava decidido a toma-la de qualquer maneira. Parece que será a amante de um rei.

- Quem vai levar Andrômaca? - perguntou Kassandra.

- Ela vai para o pai de Akiles, como parte de seus despojos.

- Podia ser pior- murmurou Andrômaca, sombriamente. - E Polixena? - indagou Hécuba. Odisseu baixou os olhos.

- Ela é companheira do próprio Akiles.

- Mas o que isso significa? - insistiu Hécuba.

Ele manteve os olhos baixos, recusando-se a fitá-la. Mas Kassandra percebera tudo em seus olhos e disse abruptamente:

- Ela está morta, sacrificada, a garganta cortada e o corpo lançado na pira fúnebre de Akiles, como se fosse algum animal...

Odisseu se encolheu e Hécuba perguntou:

- Isso é verdade?

- Eu queria poupá-la desse conhecimento - murmurou Odisseu. – Akiles propusera casar com Polixena; por isso, mandaram-na ao seu encontro no Outro Mundo.

Kassandra disse gentilmente, em meio ao choro de Hécuba:

- Não lamente, mãe. Ela está melhor do que a maioria de nós e você irá encontrá-la muito em breve.

Hécuba enxugou os olhos com a túnica.

- Ah, melhor do que a maioria de nós... O Outro Mundo não pode deixar de ser melhor do que isto e daqui a pouco estarei com meu senhor e rei, o pai de meus filhos. Muito bem, Odisseu, vamos embora. - Ela inclinou-se rapidamente para abraçar Kassandra. - Adeus, minha filha. Que possamos voltar a nos encontrar em breve.

- Não será muito em breve para mim - murmurou Kassandra, enquanto se separavam.

Ela se deitou, tentando repousar a cabeça dolorida num fardo de lona. Sabia que não tornaria a ver a mãe neste lado da morte e que Hécuba não estaria sozinha lá.

A luz se deslocava lentamente pelo chão; devia passar de meio-dia. Fora mesmo naquela manhã que a cidade caíra? Parecia semanas.., não, anos. A claridade diminuía quando ela ouviu uma voz akaia dizer suavemente:

- Não precisa ficar esperando aí dentro com elas, senhora.

Houve um protesto cortês, de uma, voz familiar. Depois, um vulto esguio entrou no abrigo, indagando baixinho:

- Quem está aí?

- Helena? - Kassandra sentou. - O que está fazendo aqui?

- Prefiro ficar aqui a ser levada ao navio de Menelau e olhada por todos

os marujos. Ele virá me buscar quando o navio estiver pronto para zarpar. Kassandra tornou a deitar. Sabia que devia sentir algum ressentimento

contra aquela mulher, mas Helena apenas seguira seu destino, da mesma forma que ela, Kassandra, seguia o seu. Helena olhou consternada pára a cabeça ainda sangrando de Kassandra.

- Oh, que horror!

- Não se preocupe - murmurou Kassandra. - Não estou muito ferida.

- E você, que merece o pior de tudo, nem foi tocada - interveio Andrômaca, amargurada. - E está até decentemente vestida!

Ela olhava ressentida para a túnica nova, cor de ferrugem ,o manto com fivelas de ouro e cinto. O sorriso de Helena foi desolado.

- Menelau insistiu. E mandou Nikos para longe com os soldados, dizendo que eu não era digna de tomar conta de uma criança.

- Pelo menos seu filho ainda vive - murmurou Andrômaca.

- Mas eu o perdi para sempre. E Menelau jurou que se este viver... - Helena hesitou por um instante e Kassandra lembrou que ela lhe contara que pensava estar grávida de novo        vai abandoné-lo quando nascer. Pode estar certa, Andrômaca, de que eu preferia ir para as mãos de um estranho, mesmo que os homens jogassem dados para me disputar. Menelau sem dúvida me fará sentir a sua fúria enquanto eu viver. Preferia ser sepultada tranqüilamente aqui, ao lado de Páris, a quem eu amava.

- Não acredito nisso - persistiu Andrômaca. - Tenho certeza de que preferia ter algum homem novo para cativar com sua beleza.

Ela virou-se para o outro lado e não tornou a falar. Kassandra estendeu a mão para Helena, que a apertou, murmurando:

- Será que todas as mulheres de Tróia me consideram responsável...?

- Eu não considero - garantiu Kassandra.

- Sei disso. E também encontrei outras amigas em Tróia. - Helena inclinou-se para beijar Kassandra. - Eu gostaria de nunca ter vindo para cá e destruído tudo...

- Foi Possêidon quem nos destruiu, Helena.

As duas ficaram em silêncio, de mãos dadas, como meninas. Não demorou muito para que soassem passos do lado de fora e Menelau abaixou-se para passar pela porta.

- Helena?

- Estou aqui.

Kassandra levantou os olhos para a claridade intensa que parecia encher toda a cabana. Os cabelos de Helena tinham um brilho dourado e ela estava envolvida pela mesma radiâncìa que exibira quando se postara no topo das muralhas de Tróia: a própria aura da Deusa. Menelau piscou, como se estivesse ofuscado. Depois, relutante, inclinou-se e murmurou:

- Minha senhora e rainha...

Era como se tivesse medo de se aproximar de Helena. Ofereceu-lhe o braço e ela se levantou lentamente. Deixaram a cabana, Menelau seguindo Helena meio passo atrás.

Estava escurecendo do lado de fora quando Kassandra viu finalmente o vulto familiar de Agamenon surgir na entrada da cabana.

- Filha de Príamo, você vem comigo. O navio já está pronto para partir.

O que farei agora? Devo me submeter? Lutar? Não adiantaria. E o Destino.

Ela se levantou e Agamenon segurou-a pelo braço, não cruelmente, mas com um certo orgulho de proprietário. E ele disse, sorrindo:

- Pedi apenas você, entre todos os despojos de Tróia. Pode estar certo de que não vou maltratá-la, Kassandra. E não é pouca coisa ser amada por um rei de Micenas.

Não duvido, pensou ela. Ocorreu-lhe que Príamo poderia, se Agamenon já não fosse casado com a irmã de Helena, te-la dado em casamento àquele homem. O que havia à sua frente agora, exceto por alguns poucos ritos formais e a benção da família, não seria muito diferente. A esposa de qualquer akaio não era menos escrava do que qualquer escrava em Tróia. Ela estremeceu; Agamenon indagou, solícito:

- Está com frio?

Ele abaixou-se e pegou um manto na pilha de trajes saqueados que estavam na cabana, um azul, que ela nunca vira antes.

- Use isto.

Seu tom era magnânimo e ele ajeitou o manto nos ombros de Kassandra. Conduziu-a pelo terreno irregular até a beira d'água e estendeu a mão quando ela subiu no navio. O convés balançou enquanto ele a levava para o outro lado. O navio era maior do que parecera das muralhas de Tróia. Os remadores, em suas posições, fitaram-na, curiosos, enquanto ela fazia um esforço para andar sem tropeçar no manto comprido. Havia uma pequena tenda no convés, parecida com as tendas em que os akaios haviam acampado durante a guerra. Agamenon puxou a aba para que ela entrasse. Havia tapetes macios e um lampião aceso do lado de dentro.

- Terá toda privacidade aqui - disse Agamenon, cerimonioso. - Partiremos com a maré, duas horas antes do amanhecer.

Ele deixou-a e Kassandra arriou nos tapetes, sentindo o suave balanço do convés. Especulou se poderia ir até o outro lado do navio, pular na água e morrer afogada. Mas não, certamente era vigiada e a pegariam antes que chegasse à água. Além do mais, ela fora informada de que não deveria morrer; portanto, seria apenas enviada de volta outra vez.

Recostou-se nos tapetes, tentando se resignar com o momento em que Agamenon viria à sua procura.

Não podia ser pior do que Ajax. E sobrevivera a Ajax. Poderia sobreviver a isso também.

 

Pelo menos ela não estava mais vomitando. Kassandra saiu da tenda para o ar fresco da noite. Ainda não  podia suportar o pensamento de comida; a mera idéia lhe provocava um espasmo de advertência; mas conseguiu permanecer empertigada desta vez, embora de joelhos - o movimento do navio tornava inconcebível ficar de pé sem o risco de uma queda indigna -, e olhou curiosa para-a costa, observando as pequenas ilhas rochosas por que passavam.

Parecia que já se encontravam no mar há uma eternidade; na noite anterior ela vira a lua nova, esguia, pálida e bem-vinda, porque sabia que aparecia a sudoeste, o que lhe proporcionava alguma orientação - agora que não tinha mais quaisquer direções - no mar vasto e sem trilhas. Refletiu que a confusão aumentara seu enjôo; não havia coisa alguma além de um corpo nauseado e turbilhonante, no centro de um vórtice de oceano em eterno movimento e convés balançando. A princípio, sentia-se tão mal que nada importava - nem os cheiros do mar ou os sons dos remadores, nem o uso de seu corpo indiferente por Agamenon, nem a comida que regularmente recusava. A princípio, pensara que tal estado era a conseqüência dos golpes que recebera de Ajax... pois os ferimentos na cabeça muitas vezes causavam náusea e confusão. Como não desaparecesse depois de algum tempo, ela achou que devia ser o movimento do navio.

Agora - contando o tempo pela lua - começara a se perguntar, com consternação e repulsa, se não estaria grávida. Quando levara Enéias para a cama pela primeira vez não pensara muito a respeito. As sacerdotisas aprendiam meios de evitar que isso acontecesse, se assim quisessem; mas tais artes falhavam com freqüência e no navio ela sentia-se muito mal para lembra-las. Resignara-se com que mais cedo ou mais tarde se descobriria ... com um filho de Enéias. Mas era nem pequena a possibilidade de que aquele filho fosse de Enéias; desde o golpe na cabeça que tinha alguma dificuldade para recordar exatamente quando Enéias estivera com ela pela última vez ou quando ocorrera a última prova de que não estava grávida. Portanto, era provável que o filho fosse de Agamenon... ou pior, de Ajax, que a possuíra primeiro. Kassandra não dava muita atenção aos comentários das moças, mas ouvira-as dizer muitas vezes que não era provável engravidar na primeira vez com qualquer homem. Mas vira provas, não importava o que elas acreditassem ou esperassem, de que uma vez era mais do que suficiente. Se pudesse escolher, preferia que o filho fosse de Agamenon: podia detestá-lo, mas não fora ele quem a possuíra à força por cima de sua filha morta. O fato de ser reconhecida como escrava e presa de guerra de Agamenon não lhe agradava. Eu o temi durante toda n minha vida, pensou ela. Lembrando a primeira visão, quando ainda era criança; mas pelo menos ele não se comportara pior do que o costume permitia em tais casos.

Era um costume horrível, sem dúvida, mas Agamenon não o inventara e não era sensato culpá-lo p& seguir a tradição. Se ela fosse dada em casamento pelos pais àquele homem, ele não a teria usado pior e provavelmente também não melhor.

Ela refletiu que Agamenon não era mais condenável do que qualquer outro akaio; na avaliação deles, talvez até ele pudesse ser considerado um bom homem. Kassandra até percebeu que ele ficara assustado com seu enjôo continuo; a princípio, Agamenon tentara tranqüilizá-la, garantindo que era sempre assim no começo de uma viagem e que em breve ela se acostumaria, encorajando-a a sair para respirar ar fresco; como não passasse, ele a deixava sozinha durante a maior parte do tempo, pelo que Kassandra sentia-se vagamente grata.

Pensava às vezes que Agamenon podia estar tentando lhe demonstrar sua bondade. Uma ocasião, quando vomitara em cima dele (sem pedir desculpas; ela não pedira nem lhe dera permissão para trazê-la naquela viagem), Agamenon não a espancara - como ela mais ou menos esperava (vira-o espancar um dos servos por derramar a água limpa de barbear) -, mas pedira água fresca para limpar sua boca, enlaçara-a, cobrira-a com um manto limpo, tentara embalá-la de volta ao sono.

Isso acontecera no inicio da viagem, enquanto ela ainda se encontrava mergulhada numa confusão louca, dominada pela raiva e pelo ódio; não o fitava nem falava e Agamenon logo desistira de tentar conversar sobre as terras por, que passavam. Agora, ela gostaria de tê-lo encorajado naquelas conversas - poderiam fornecer informações úteis se algum dia conseguisse escapar. Não podia voltar a Tróia - não havia nada para que pudesse voltar -, mas podia ir para a Cólquida, onde a rainha Imandra ou qualquer sacerdotisa da casa da Mãe Serpente a acolheria com satisfação. Podia também ir para Creta; e nas ilhas havia muitos templos em que uma sacerdotisa competente nas artes curativas e versada nos hábitos das serpentes poderia encontrar abrigo.

Não era vigiada com muita atenção, talvez porque a princípio ficara óbvio que, com o ferimento na cabeça e o enjôo, era incapaz de andar, muito menos tentar qualquer tipo de rebelião ou fuga.

Agora, estendida no convés banhado pelo sol, ao lado da tenda que partilhava com Agamenon, escutando o lento ressoar do tambor que marcava o ritmo para os remadores, ela pensou: É mais do que isso. Nunca lhes passaria pela cabeça que uma mulher pudesse tentar escapar. Uma semana antes, ao atracarem numa pequena ilha, em busca de água potável, haviam-na deixado desprotegida. Ela não tentara escapar - percebera que a ilha era tão pequena que não teria onde se esconder, não encontraria abrigo. Se alguém vivia ali, pedir-lhe abrigo implicaria em atrair a ira de Agamenon sobre o desafortunado camponês que pudesse se compadecer dela. Se ao menos houvesse um santuário da Virgem - ou do Senhor do Sol -, é que ela ousaria reclamar refúgio.

Ainda poderia fazer isso, se encontrasse tal santuário, embora refletisse que Agamenon podia legitimamente reclamá-la como uma justa prisioneira de guerra. Não havia muita simpatia por escravas fugitivas e ela não podia mais alegar que era uma princesa, já que Tróia caíra. Todos os que falavam a seu respeito (ouvira conversas de soldados e servos de Agamenon) pareciam pensar que não havia motivo para ela não se sentir contente em pertencer a ele pelo resto de sua vida.

Kassandra compreendeu que estava deixando a mente se desviar da possibilidade de estar com um filho de Agamenon no ventre. Devia contar a ele? Não imediatamente; a noticia o deixaria muito satisfeito e ele poderia pensar que ela reivindicava alguma simpatia ou bondade.

Agamenon estava na popa do navio, ao lado do homem que manejava o remo de comando. Como todos os seus homens, vestia apenas uma tanga simples, de linho descorado; mas o colar de ouro no pescoço e os outros ornamentos que usava, assim como o porte militar e o ar de comando, tornavam óbvio quem era o rei e quem eram os servidores.

Ele viu Kassandra sentada à sombra da vela e atravessou o convés ao seu encontro.

- Fico contente em vê-la desperta, Kassandra. O mar está calmo e o sol lhe fará bem. Quando atracamos esta manhã para buscar água potável... - Ela estava dormindo na ocasião e tivera apenas uma vaga sensação da cessação do movimento   os homens colheram alguns cachos de uvas. Não gostaria de provar?

Sem esperar pela resposta, Agamenon gritou para as quatro servas, que passavam a maior parte do tempo acocoradas na popa, conversando.

- Ei, você aí! - Kassandra não tinha a menor idéia dos nomes das mulheres, porque Agamenon só as tratava como "mulher" e "você". - Traga-nos algumas uvas. Ou será que vocês, bestas gulosas, já comeram tudo?

- Oh, não, meu senhor! - murmurou a mais alta, levantando-se no mesmo instante.

Ela tirou quatro ou cinco cachos de pequenas uvas silvestres de um enorme cesto, pôs numa bandeja de prata (Kassandra a vira no palácio; Hécuba também a usava para uvas, porque tinha videiras gravadas) e atravessou o convés.

A moça ajoelhou-se diante de Agamenon; ele gesticulou para que ela oferecesse primeiro a Kassandra. A moça parecia conhecida; ela a teria visto em algum lugar nas ruas de Tróia, naquela outra vida?

- Princesa... - murmurou ela, os olhos humildemente abaixados.

Fez Kassandra se perguntar o que teria acontecido com Criseide quando a cidade caíra. Ela tirou algumas uvas de um cacho e mordeu uma. A acidez suculenta era agradável e ela engoliu, hesitando, meio esperando que a náusea a dominasse outra vez. Agamenon pegara um cacho e comia as uvas com a maior satisfação. Os dentes eram grandes, brancos e fortes - exatamente como os de um cavalo, pensou Kassandra, com uma repulsa fascinada. Ela teve de virar o rosto para evitar um espasmo convulsivo, mas conseguiu engolir algumas uvas e não se sentiu imediatamente compelida a vomitar.

- Fico contente por vê-la comer de novo - comentou Agamenon. - O enjôo no mar raramente dura tanto tempo; e quando tiver recuperado a saúde por completo, estará tão bóina quanto na primeira vez em que a vi e desejei.

Kassandra compreendeu que ele pensava que o comentário a agradaria; estava tentando ser amistoso. Bom, ela parecia estar presa a Agamenon, pelo menos por algum tempo; se estava grávida, teria de adiar qualquer pensamento de fuga até o nascimento da criança. E seria uma tolice obrigá-lo a considerá-la uma inimiga e talvez passar a vigiá-la mais, como sem dúvida aconteceria se pensasse que ela queria fugir.

Mas será que ele realmente acredita que poderei amá-lo e obedecer corno a um marido depois de ter assassinado meus irmãos e meus pais, e destruído nunca cidade.

- Parecia ser exatamente o que Agamenon pensava.

- Não quer mais uvas? - perguntou ele, selecionando um cacho na bandeja.

Kassandra acenou com a cabeça e comeu mais algumas. Depois de um momento, começou a falar; mas nada dissera desde que embarcara no navio e a voz lhe falhou. Teve de limpar a garganta duas vezes, antes de conseguir Falar.

- Por quanto tempo mais ficaremos neste navio?

Agamenon ficou surpreso, como se tivesse ficado tão acostumado à sua recusa em falar que passara à acreditar que ela não era capaz de faze-lo. Alas disse, afável.

- Posso compreender que está cansada da viagem. Alas nunca é possível calcular quanto tempo a viagem levará; com bom tempo e ventos favoráveis, podemos chegar antes de a lua ficar cheia mais duas vezes. Se tivermos tempo ruim e os ventos forem contrários, talvez não cheguemos antes do inverno.

Kassandra arrependeu-se de ter perguntado; sentiu-se consternada pela perspectiva de mais dois meses no navio. E o que lhe aconteceria quando chegassem a Micenas? Esse pensamento deve ter transparecido em seu rosto, pois Agamenon se apressou em dizer, em tom tranqüilizador:

- Não precisa ficar assustada. Minha esposa, Klitemnestra, é uma mulher bondosa e nunca trataria mal a quem já foi uma princesa em "Tróia. Não acha que deve provar sua realeza por tratar os outros como inferiores. Todos em nossa casa, servos e  escravos, são tratados como o costume determina, nem melhor nem pior.

Jamais ocorreria a Kassandra ter medo de Klitemnestra. Afinal, ela era gêmea de Helena e Kassandra amara Helena, fora sua amiga. Ocorreu-lhe então que o próprio Agamenon tinha medo da esposa e era por isso que pensava que o mesmo poderia acontecer com sua nova escrava.

Ele sentia medo porque ela era a rainha da terra e ele se tornara rei apenas como seu consorte? Klitemnestra ainda podia sentir raiva do marido por ter sacrificado a filha Ifigênia ao Deus dos ventos; afinal, Ifigênia era a filha mais velha e Klitemnestra devia considera-la sul herdeira.

Kassandra lembrou as padas antigas sobre megeras que recebiam maridos culpados ou bêbados com golpes, na cabeça, de uma peneira ou um rolo de massa; Agamenon temia tal recepção?

Ela fitou-o e percebeu que o medo era mais profundo e mais sinistro do que apenas isso. Por um instante, pareceu que havia sangue no rosto de Agamenon, um sangue que jamais sairia; Kassandra disse a si mesma que era apenas o reflexo do sol poente. Mas se de fato via sangue, o que havia de surpreendente nisso? Agamenon era um homem sanguinário, um guerreiro que matara centenas de pessoas em sua longa carreira.

Kassandra pôs as uvas de lado e mudou a posição do corpo; a náusea incômoda, que desaparecera por algum tempo, voltou nesse instante. Ela suspirou e voltou a tenda, contente pela oportunidade de descansar de novo. Não havia mais como se esquivar ao conhecimento. Estava mesmo esperando um filho, de Agamenon ou de outro; mais cedo ou mais tarde ele teria de saber.

Naquela noite o tempo piorou; o vento norte fustigava o navio com tanta força que até mesmo a vela foi arriada, enquanto ondas enormes encharcavam a tenda. Agamenon deu ordens para que tudo fosse amarrado. Kassandra sentiu-se tão mal com o balanço frenético do navio que não teve tempo para ficar aterrorizada; permaneceu agarrada a uma corda de segurança que Agamenon lhe passara, vomitando e a intervalos desejando que o navio fosse lançado contra rochedos ou que a tenda caísse no mar e pudesse se afogar, ficar em paz.

A tempestade prolongou-se por muitos dias; mesmo depois que amainou, Kassandra não quis mais nada além de ficar deitada no convés e fingir que estava morta.. Sua única esperança era a de que a violência ao redor provocasse um aborto. O que não se consumou. A raiva alternava com o desespero; o que faria com uma criança no cativeiro... teria de criá-la como mais uma das escravas de Agamenon?

Chegou finalmente o dia, como ela já esperava, em que Agamenon fitou-a e disse:

- Você está esperando.

Ela acenou com a cabeça, soturna, sem fitá-lo; mas ele sorriu e afagou seus cabelos.

- Minha bela, esqueceu a promessa que eu fiz, de que não é uma escrava, mas sim minha legítima consorte?

Agamenon dissera realmente alguma coisa a respeito, mas ela não lhe dera atenção, como não dava a qualquer coisa que ele dizia, enquanto vomitava quase de hora em hora.

- Não deve temer por nosso filho,. Kassandra. Dou minha palavra de que não será um escravo, mas sim reconhecido e criado como meu filho. Não confio nos filhos de Klitemnestra. Nosso filho saberá como prezo a sua mãe, que foi uma princesa de Tróia.

Kassandra tinha uma vaga idéia de que ele tentava agradá-la; de que se considerava muito generoso e indulgente. Será que acreditai a mesmo que ela poderia agradecer por tratá-la como um ser humano?

Ela disse consigo que algumas mulheres se sentiriam gratas por não serem tratadas de maneira pior, já que o poder de Agamenon era ilimitado. Levantando os olhos, disse, sem sorrir:

- É muita generosidade sua, meu senhor.

Pela primeira vez com medo do que ele poderia lhe fazer, Kassandra pronunciou as palavras que jurara orca dizer. Agamenon ficou satisfeito, como ela sabia que era inevitável; os homens eram facilmente iludidos e lisonjeados. Ele sorriu e beijou-a. Foi até uma das muitas arcas em que guardava os despojos de Tróia, tirou um colar de ouro com quatro fieiras, cada uma formada por pequenos elos e placas gravadas.

Inclinou-se e ajeitou o colar no pescoço de Kassandra.

- Isto combina com a sua beleza. E se a criança for um menino, ganhará outro igual.

Kassandra teve vontade de Jogar o colar de volta em sua cara. Que arrogância, dar como presente uma pequena parte do que roubara de sua família! Mas, depois, pensou: Se eu conseguir fugir, este colar- com os elos soltos e vendidos, um de cada vez, me levaria â Cólquida ou ;até mesmo a Creta. Creusa está lá e talvez Enéias também; ela só tem filhas e pode ficar contente com um filho, mesmo que o pai seja Agamenon.

Como ele se sentirá se em vez do filho que deseja só tiver uma filha? Ficaria quase satisfeita em lhe dar o que ele não quer, mas depois perguntou a si mesma: Por que preferir trazer uma menina para este mundo, afim cie sofrer nas mãos dos homens o que todas as mulheres sofrem?

Mas ao pensamento de uma menina como Mel, mesmo filha de Agamenon, seu coração se enterneceu. Se fosse uma menina, haveria de levá-la para a Cólquida, a fim de ser criada num lugar em que nunca precisaria ser uma escrava.

Os dias foram passando e, como já observara em outras mulheres que estavam nas mãos das Forças da Vida, Kassandra tornou-se lerda e pesada, sem vontade de levantar, embora Agamenon, agora que a sabia grávida, se mostrasse mais gentil. Todos os dias, quando o tempo permitia, ele a escoltava pelo convés, insistindo que ela precisava de ar fresco e exercício. Ele manifestou a esperança de que chegassem a Micenas antes do parto.

- Temos excelentes parteiras e você estaria segura aos cuidados delas. Não sei se alguma das mulheres a bordo tem conhecimento dessas coisas.

Uma delas fora camareira de Hécuba e chefe das parteiras do palácio; mas Kassandra não revelou isso a Agamenon. Conseguiu, no entanto, falar em segredo com a mulher, relatando o que acontecera.

- Se lhe der um filho, princesa, ele vai prezá-la ainda mais. Estará segura em Micenas como mãe do filho do rei.

Secretamente, Kassandra acalentara a esperança de que a mulher partilhasse sua indignação e tencionava indagar se ela não podia providenciar alguma poção de ervas que provocasse o aborto. Confirmou sua convicção de que as mulheres por toda parte conspiravam com seus opressores.

Uma ocasião, em que Agamenon estava sentado ao seu lado, falando com o filho, Kassandra perguntou:

- Mas você não tem um filho com Klitemnestra? E, sendo o mais velho, ele não teria precedência?

- Claro - respondeu Agamenon, com um sorriso insidioso. - Mas minha rainha preza apenas as filhas. Está convencida de que uma delas a sucederá como rainha. Até mandou nosso filho ser criado longe do palácio, a fim de que eu não possa lhe ensinar os ofícios de rei.

Era a melhor coisa que já ouvira a respeito de Klitemnestra, pensou Kassandra. E especulou como a irmã de Helena fora capaz, até mesmo por questões de conveniência política, de casar com um homem como Agamenon. Mas talvez seu povo não lhe tivesse dado opção ou tivesse desejado um rei, que comandasse seus exércitos durante as guerras.

- Nosso filho, Kassandra, pode reinar depois de mim sobre a cidade de Micenas. Isso não a agrada?

Agradar-me?

Mas ela limitou-se a sorrir; aprendera que Agamenon encarava seu sorriso como concordância e ficava mais satisfeito do que com quaisquer palavras.

Não houve bom tempo no mar naquela estação, apenas chuva e vento intermináveis; e cada vez que avançavam um pouco no rumo desejado, os ventos aumentavam de intensidade e os empurravam de volta, de tal forma que sempre corriam o risco de serem lançados contra rochedos.

Muitas vezes Agamenon foi obrigado a levar o navio para mar aberto, a fim de não ser arrastado para uma praia em que o navio seria destruído; parecia que com dias e meses de navegação não estavam mais próximos do lugar para onde desejavam ir. Um dia, depois que um vento terrivelmente forte soprara por muito tempo, agastando-os de terra, uma calmaria matutina deixou-os à deriva. Um marujo veio avisar a Agamenon que avistara um fluxo de água verde, como uma corrente separada no mar. Agamenon saiu para o convés praguejando e Kassandra ouviu-o gritar com os homens; quando ele voltou, estava furioso, o rosto contraído e sombrio com indignação.

- O que aconteceu'?- perguntou ela.

Kassandra estava deitada, fazendo um esforço desesperado para manter no estômago o pouco de pão e fruta que comera na primeira refeição. Agamenon explicou.

- Avistamos o despejo do Nilo... o grande rio da terra cios faraós. Posêidon, que domina os mares e sacode a terra, nos trouxe para longe de casa, até as praias do Egito.

- Não parece uma catástrofe. Você mesmo disse que precisamos muito de alimentos frescos e água potável. Eles não podem fornecer isto aqui?

- Claro que podem. Mas, a esta altura, a notícia da queda de Tróia já se espalhou pelo mundo inteiro e todos vão querer muito ouro pelos suprimentos. E cada pessoa contou uma história diferente sobre o que aconteceu...

- As pessoas não sabem que Tróia não caiu ao poder das armas e de estratégia militar, mas sim por causa do terremoto - comentou Kassandra. - Pode contar a história que quiser e ninguém será bastante descortês para duvidar.

Agamenon amarrou a cara, mas neste momento o vigia na proa gritou que avistara terra. Ele foi até lá e voltou pouco depois para informar que haviam de fato chegado ao Egito.

Alguns homens desembarcaram e retornaram com um convite do faraó para um Jantar no palácio. Kassandra esperava ficar sozinha na tenda, desfrutando a cessação dos movimentos do mar, mas isso não foi possível. Agamenon tirou das arcas um sortimento de trajes de seda.

- Use a túnica que mais lhe agrádar, minha querida. Mandarei uma das mulheres para vesti-la e adornar seus cabelos com jóias. Deve ficar linda... isso mesmo, tão linda quanto a própria Helena... para me honrar na corte do faraó.

Pela primeira vez, Kassandra suplicou-lhe:

- Oh, não, eu rogo! Estou passando mal... não me peça isso. Nada desejo, a não ser o bem da criança que estou prestes a trazer a este mundo. Poupe-me deste jantar. Será fácil dizer que estou doente. Não me exiba como uma escrava diante desse monarca estrangeiro.

- Já lhe disse muitas vezes que não é uma estrava e sim minha consorte - protestou Agamenon, parecendo mais pesaroso do que zangado. - Klitemnestra nunca me agradou e você se tornará a rainha quando gerar meu filho.

Kassandra chorou desesperada; Agamenon argumentou, adulou e acabou saindo da tenda furioso, ordenando:

- Não vou mais discutir. Mandarei uma mulher ajudá-la, pois tem de se vestir imediatamente.

Ela continuou deitada, impotente, soluçando; só levantou quando a mulher que fora parteira de Hécuba entrou na tenda.

- Calma, calma, princesa... Não deve continuar a chorar assim ou vai acabar prejudicando a criança. Eu lhe trouxe isto. - Ela estendeu uma taça de cerâmica, com uma poção fragrante. - Beba tudo. Vai assentar seu estômago e estará linda dur me o jantar no palácio.

- Você é uma mulher horrível! - exclamou Kassandra. - Por que Agamenon deve sempre impor sua vontade? Por que você se tornou serva mais leal? Não pode me dar alguma coisa que me deixará tão doente que até mesmo ele compreenderá que não posso ir?

A mulher mostrou-se chocada.

- Mas eu não poderia fazer isso! O rei ficaria furioso.., e não deve deixar o rei furioso, princesa.

Enfurecida, mas sabendo que nada mais poderia fazer, Kassandra deixou que a mulher a vestisse; recusou-se a escolher uma túnica e permitiu que ela lhe pusesse um traje de seda com listras vermelhas e douradas, que vira sua mãe usar ein banquetes no palácio de Tróia. Tomou a poção, que a fez sentir-se melhor... ou talvez fosse apenas sua raiva. Que Agamenon exibisse sua princesa cativa, que importância isso tinha? Se o faraó - que tinha mais de cem esposas, pelo que ela ouvira dizer - sabia alguma coisa sobre a queda de Tróia, então compreenderia que ela não estava ali por sua livre e espontânea vontade; e, se não sabia, também não fazia a menor diferença.

 

- Não se pode confiar nos ventos nesta época - disse o homem calvo que se intitulava faraó e era considerado como um deus encarnado por sua corte. - Muito nos agradaria se permanecesse como nosso hóspede até a estação mudar e poder confiar nos ventos para levá-lo a Micenas ou a qualquer outro lugar para onde deseje ir.

- O Senhor das Duas Terras é generoso - respondeu Agamenon -, mas eu esperava voltar para casa antes disso.

- O faraó deu o mesmo conselho ao nobre Odisseu, quando foi nosso hóspede, mas Odisseu ignorou-o - interveio um cortesão. - E agora chega a notícia de que o navio de Odisseu foi lançado contra os rochedos de Aéia. Nunca mais ouviremos falar de Odisseu.

- Tem razão, acho que é melhor chegar tarde em casa do que chegar cedo nas praias de lugar nenhum - comentou Agamenon. - Aceito o generoso convite, para mim e meus homens.

Kassandra sabia que ele estava contrariado; a estadia significava que teria de tirar de suas arcas presentes de valor para o faraó; e, se ficassem por muito tempo, nada sobraria dos despojos de Tróia quando chegasse a Micenas. Não eram os primeiros akaios procedentes de Tróia que por ali passavam; o palácio do faraó já ostentava despojos reconhecíveis da cidade, inclusive a estátua do Senhor do Sol que havia no santuário.

Nos dias subseqüentes, Kassandra descobriu que alguns sacerdotes e, sacerdotisas do Templo de Apolo haviam se refugiado ali, embora nenhum dos seus amigos mais íntimos, aos quais poderia apelar. Ficaria na maior alegria se soubesse que Filida, ou mesmo Criseide, estava viva.

O Egito era quente e seco, varrido por ventos implacáveis que sopravam do deserto e que podiam exterminar todos os sinais de vida, até mesmo no enorme palácio de pedra do faraó.

Apesar de tudo, pelo menos estavam em terra, o que era melhor do que ser fustigado todos os dias pelo ventos o mar.

Kassandra sentiu-se contente pelo descanso. As egípcias falavam muito sobre Agamenon e uma das aias lhe contou confidencialmente que todos no Egito sabiam que Klitemnestra, depois da morte de Ifigênia, jurara vingança e tomara um amante, um primo seu chamado Egisto, os dois vivendo juntos no palácio em Micenas. A reação de Kassandra foi simples:

- E por que não? Agamenon, ausente, em Tróia, não desempenhava o papel de marido.

Mas as egípcias também cultuavam Deuses masculinos e achavam que a esposa de um homem devia fazer o que ele ordenasse, que a pior coisa que podia acontecer com uma esposa era ir para a cama com outro homem que não seu marido. Se fosse a esposa de um rei, então o comportamento da rainha acarretava a desgraça para toda a terra. Kassandra só podia torcer para que Agamenon não tomasse conhecimento da história e passasse a ter outro motivo de ressentimento. Ele já falava com freqüência em afastar Klitemnestra e promover Kassandra a sua legítima rainha, o que era a última coisa que Kassandra desejava.

Ela soube também que Klitemnestra, sentindo-se jovem outra vez quando levara Egisto para seu quarto, para todos os propósitos deserdara a filha restante, Elektra, casando-a com um homem de baixa extração, que era o porqueiro do palácio ou algo parecido. As pessoas que veneravam as rainhas de um modo geral achavam que uma rainha além da idade de gerar filhos devia abdicar em favor da filha... e, assim, o povo de Micenas pensava que Klitemnestra deveria ter casado Elektra com Egisto e permitido que ela assumisse o seu lugar como rainha. E todos concordavam que o casamento de Elektra fora com um homem que não poderia ser aceito como rei.

Agamenon acabou sabendo da história - não do amante de Klitemnestra, pois todos tiveram a preocupação de evitar que tal notícia chegasse a seus ouvidos - do casamento de Elektra. E por isso ficou furioso.

- Klitemnestra não tinha o direito de fazer isso; foi como se ela tivesse presumido a minha morte. Cabia a mim acertar o casamento de Elektra, um casamento dinástico que me proporcionasse aliados. Odisseu falou em casá-la com seu filho Telêmaco. Agora que o navio de Odisseu desapareceu, Telêmaco precisará de aliados fortes, se quiser defender Ítaca aqueles que gostariam de Tomá-la.

Ele fez uma pausa, pensativo.

- Ou poderia casá-la com o filho de Akiles. Ele nunca casou formalmente com a prima Deidaméia, mas fui informado de que a seduziu e ela teve um filho depois de sua partida para Tróia. Mas quando eu voltar para casa Klitemnestra vai saber que tenciono pôr a casa em ordem e que seu domínio terminou. Elektra como uma viúva será um instrumento para um casamento igualmente valioso. Afinal, ela não deve ter mais de quinze anos ou por aí. E será seu filho e não o filho de Klitemnestra, Orestes, quem sentará no Trono do Leão, depois que eu morrer.

Kassandra já notara que os akaios davam a maior importância à sucessão pelos filhos; parca ser a maneira pela qual lidavam com o pensamento da morte, por não terem qualquer conceito de uma vida posterior. Não era de admirar que não tivessem nenhum código de decência; pareciam não acreditar que seus Deuses os considerariam responsáveis na vida seguinte por qualquer coisa que fizessem nesta.

Os dias na tranqüila terra egípcia eram tão parecidos que Kassandra mal tinha consciência da passagem do tempo; só pelo crescimento da criança em seu ventre é que tinha uma noção do avanço rápido dos dias. Chegou o momento em que o faraó disse que já era seguro partirem; mas naquela mesma noite Kassandra entrou em trabalho de parto e ao nascer do sol do dia seguinte deu à luz a um menino pequeno.

- Meu filho... - murmurou Agamenon, levantando o bebê e examinando o com atenção. - Ele é bem pequeno.

- Mas é saudável e forte - declarou a parteira, ansiosa. - As crianças bem pequenas, senhor Agamenon, muitas vezes crescem para ser tão grandes quanto as que são enormes no nascimento. E a princesa é uma mulher estreita; seria muito difícil para ela gerar um filho com o seu tamanho.

Agamenon sorriu e beijou o bebê.

- Meu filho - ele repetiu para Kassandra.

Mas ela desviou os olhos e murmurou:

- Ou de Ajax.

Ele amarrou a cara, não gostando de ser lembrado dessa possibilidade. - Não creio; ele parece comigo.

Espero que lhe agrade pensar assiro, refletiu Kassandra; mas miro fará com que a pobre criança se torne ranis bonita.

- Vamos lhe dar o nome de Príamo em homenagem a seu pai? Um Príamo no Trono do Leão?

- A decisão é sua.

- Pensarei um pouco a respeito - acrescentou Agamenon. - Você é uma profetisa; talvez possamos encontrar um nome repleto de bons presságios.

Ele se inclinou e colocou o bebê novamente no seio de Kassandra.

Mas não pode haver bons presságios para um filho de Agamenon, pensou ela, lembrando que Klitemnestra e seu novo rei o aguardavam em Micenas. Aquele filho, assim como Orestes, o filho de Klitemnestra, jamais sentaria no Trono do Leão.

Kassandra sentiu na cabeça um distante zumbido familiar e o sol ofuscou seus olhos. A criança parecia pesar menos em seus braços... ou será que a largara? Pensara que a Visão desaparecera para sempre; não conseguira salvar seu povo ou as pessoas que amava com as profecias e julgara que finalmente estava livre.

Viu então o enorme machado de fio duplo que partia as cabeças dos grandes touros em Creta e Agamenon cambaleando, com os olhos cheios de sangue. Levou as mãos aos olhos para apagar a cena.

- Sangue - murmurou ela. - Como um dos touros de Creta. Não vá ao sacrifício.. .

Ele inclinou-se para afagar-lhe os cabelos.

- O que você disse? Um touro? Por este magnífico presente, sem dúvida ofertarei um touro a Zeus Tonante. Mas não aqui no Egito; esperaremos até chegar à minha terra, onde tenho touros em abundância e não precisarei pagar as quantidades absurdas de ouro que os sacerdotes daqui exigem pelos animais para sacrifício. Acho que Zeus pode esperar até lá pelos sacrifícios apropriados. Mas quando você levantar, pode levar duas pombas à Mãe Terra deles, em agradecimento por este lindo filho.

Talvez eu tenha visto apenas isso, pensou Kassandra, um sacrifício que de alguma forma saiu errado... mas no mesmo instante todo seu rancor se desvaneceu; odiara e desprezara Agamenon, mas agora o via entre os mortos e especulou se depois da morte ele teria de se confrontar com todos os homens que abatera em batalha. Heitor dissera que ao atravessar os portões da morte a primeira pessoa que o saudara fora Pátroklo. Mas seria diferente para Agamenon, como também já fora, ela tinha certeza, para Akiles.

Kassandra prolongou sua permanência na cama, sabendo que Agamenon partiria para o porto de Micenas no instante em que ela pudesse andar. Sentira-se tão mal em todos os dias da viagem até ali que agora estava com pavor do mar.

Finalmente decidiu dar ao filho o nome de Agaton. Antes do nascimento, não pudera conceber a possibilidade de amar uma criança nascida naquelas circunstâncias. Começara até a desconfiar que boa parte de sua indisposição durante a gravidez fora apenas repulsa ao pensamento de que aquele parasita do estupro grudara dentro de seu corpo e não poderia ser expelido. Se ele acabasse envenenado por sua aversão, nascendo com duas cabeças ou um rosto desfigurado, ela acharia perfeitamente apropriado.

E, no entanto, ele repousava pequeno e inocente em seu peito, e ela não podia perceber qualquer coisa parecida com Agamenon. Era apenas como qualquer outro bebê recém-nascido, bem pequeno, é verdade, mas perfeito, até as mãos e os pés, com unhas já formadas.

Era estranho pensar que aquele ser tão pequeno e delicado, que podia deitar no meio do escudo do pai e ainda deixar espaço para um cachorro de bom tamanho, pudesse crescer para destruir uma cidade poderosa. Mas, por enquanto, ele era todo ternura e fragrância; quando se aconchegava em seu seio, Kassandra não podia deixar de pensar em Mel, desamparada em setas braços. Por que aquela criatura perfeita deveria ser culpada pelo que o pai fizera?

Mas ela sabia que, conto Klitemnestra, daria um jeito para que o filho fosse enviado para longe, a fim de que Agamenon não pudesse criá-lo no ofício de rei. Não sentia qualquer satisfação com a perspectiva de o filho poder sentar um dia no Trono do Leão. Não desejava que o menino fosse criado como os akaios criavam seus filhos.

Supôs que, àquela altura, Helena já dera à luz o último filho de Páris e especulou se Menelau cumprira a ameaça de expor a criança. Era o tipo de coisa que ele faria; aqueles akaios pareciam se importar apenas com os próprios filhos, como se uma criança pudesse ser de qualquer outra pessoa que não da mãe que o carregava.

O próprio Agamenon não tinha certeza se aquele filho era seu ou de Ajax... ou até, diga-se de passagem, de Enéias. Mas não perderia tempo a lembrá-lo disso. Aquele filho era dela e não de algum homem. Mas manteria a paz e deixaria Agamenon pensar como quisesse, por uma questão de segurança.

Ela pegou a criança nos cueiros que o palácio do faraó fornecera e saiu pelas ruas da cidade, em companhia de uma das mulheres da família real que tivera um filho no dia anterior. No Templo da Deusa - uma estátua repulsiva de uma mulher com seios enormes como uma vaca e cabeça de crocodilo - sacrificou um par de pombas, ajoelhou-se diante da imagem e tentou orar.

Era uma estranha naquela terra e uma estranha para aquela Deusa. Supunha que não havia tanta diferença entre a Deusa dos crocodilos e a Deusa das serpentes; mas nenhuma oração saiu e não pôde ver nem um pouco o futuro para saber se tudo correria bem para seu filho.

Devia procurar a Casa do Senhor do Sol; ali no Egito o Senhor do Sol era o Deus maior, com o nome de Ré; mas ainda desconfiava do Deus que não pudera - ou não quisera - salvar sua cidade e por isso não o procurou.

Se Ele não pôde nos salvar, então não é um Deus; se podia e não quis, que tipo de Deus ¿Ele?

No dia seguinte os suprimentos adquiridos por Agamenon foram embarcados, ele deu os presentes de hóspede ao faraó e partiram.

Kassandra estivera apavorada com o recomeço do enjôo, mas desta vez sentiu apenas uma pequena náusea na primeira noite da viagem. Já estava perfeitamente bem na manhã seguinte. Comeu frutas e o pão duro de bordo com bastante apetite e sentou no convés com a criança no peito. O enjôo, portanto, fora apenas um efeito secundário da pancada na cabeça e, depois, da gravidez.

Ela nada sabia de navios e navegação, mas Agamenon parecia satisfeito com os ventos fortes que sopravam dia após dia, levando-os pelas águas azuis e claras. O bebê provou ser um marujo tão bom quanto o pai. Mamava vigorosamente. Kassandra tinha a impressão de que podia vê-lo crescendo a cada dia, as mãozinhas se tomando mais definidas, o nariz e o queixo deixando de ser meras protuberâncias para adquirirem contornos definidos. Acho que era possível, pelo formato do queixo, que ele fosse mesmo filho de Agamenon. O pai gostava de pegá-lo no colo e sacudi-lo, tentando fazê-lo rir. Era a última coisa que Kassandra podia esperar. Afinal, Heitor e até mesmo Páris também gostavam de brincar com seus filhos. Por mais penoso que fosse admitir, a verdade é que os akaios não eram muito diferentes dos outros homens.

Certa manhã, quando começava a clarear, ela saiu para o convés, a fim de lavar os cueiros do bebê com um balde de água salgada, estendendo-os em seguida para secar. O navio estava silencioso e o único tripulante alerta era o timoneiro na popa, pois os ventos continuavam bastante fortes para que não houvesse necessidade dos remadores, exceto nas manobras perto da terra.

Kassandra olhou de horizonte a horizonte; o mar estava sereno e passavam entre duas praias. Uma era montanhosa, um paredão a se erguer íngreme do mar, sua sombra se projetando quase até o navio: no outro lado havia um promontório comprido, baixo e sem árvores. Subitamente, no lado da montanha, uma língua de fogo disparou para o céu, como uma flor de chama a desabrochar. O timoneiro soltou um grito de exultação e chamou seus companheiros. Agamenon apareceu no convés e gritou para os tripulantes:

- Aí está, meus bravos! O sinal em nosso promontório! Depois de tantos anos, finalmente voltamos para casa! Um touro para Zeus Tonante!

Os raios do sol faiscavam em seus olhos - vermelhos como sangue, pensou Kassandra. Ela sentia os próprios olhos tensos e secos e ocorreu-lhe que Agamenon não devia ficar tão exultante por voltar para casa: quem poderia saber o que ele encontraria ali?

Kassandra foi até a amurada, com o filho nos braços, parou ao lado de Agamenon e indagou:

- O que é isso?

- Quando parti, dei ordens para que uma grande pilha de lenha fosse armada no promontório, com um vigia postado ali durante todo o tempo, à espera de meu navio. Agora fomos avistados e a notícia será levada ao palácio; um banquete e uma recepção serão preparados para nós. Será bom voltar para casa. Estou ansioso em lhe mostrar minha terra e o palácio em que será rainha, Kassandra.

Ele pegou o menino no colo, inclinou-se para o rostinho e murmurou:

- bua terra, meu filho; o trono de seu pai. Está muito calada, Kassandra.

- Não é minha terra e tenho certeza de que Klitemnestra não ficará satisfeita por me receber, por mais ansiosa que esteja em revê-lo. Tenho medo por meu filho. Klitemnestra.. .

- Não precisa temer coisa alguma - afirmou Agamenon, arrogante. - Entre os akaios, as mulheres são esposas submissas. Ela não ousará dizer uma só palavra de protesto. Teve as rédeas livres durante a minha ausência; aprenderá em breve o que espero dela e fará o que eu lhe mandar ou sofrerá por isso, acredite-me.

- Está frio... preciso ir buscar meu manto.

- O tempo está ótimo para mim, mas talvez seja porque volto para minha cidade. Olhe ali... já pode ver o palácio, naquela colina, com as muralhas construídas pelos titãs, há muitos séculos. E ali está o porto, que se chama Nuplia.

Kassandra foi buscar um manto e depois tornou a se postar ao lado de Agamenon, na proa, deixando o filho com a mulher que fora parteira de sua mãe.

A enorme vela fora arriada e os remadores ocuparam seus lugares para conduzirem o navio à enseada; deslizou suavemente pelas águas resguardadas, a sotavento do promontório.

Ela podia ver agora várias pessoas se agrupando no cais. Quando o navio chegou mais perto, um homem levantou uma aclamação e os soldados de Agamenon, concentrados num lado da embarcação, puseram-se a gritar e acenar para as pessoas que reconheciam na praia.

Mas, de um modo geral, os espectadores mantinham-se calados, enquanto o navio se aproximava lentamente do cais. Para Kassandra, esse silêncio pareceu sinistro. Ela estremeceu, apesar do manto grosso que a envolvia, pegou o bebê e comprimiu-o contra o corpo.

A proa do navio bateu gentilmente na areia. Agamenon foi o primeiro a desembarcar; caiu de joelhos no mesmo instante, beijou solenemente as pedras do cais e bradou:

- Dou graças a Zeus Tonante que me trouxe de volta à minha terra, são e salvo!

Um homem alto e ruivo, com um colar de ouro, adiantou-se e disse, com uma reverência:

- Meu senhor Agamenon, sou Egisto, um parente de sua rainha; ela me enviou com estes homens para escoltá-lo com toda pompa até o palácio.

Os homens cercaram Agamenon e o grupo partiu. Parecia a Kassandra que ele era mais um prisioneiro bem vigiado do que um rei com uma escolta de honra. Agamenon estava de cara amarrada... ela podia perceber que aquela situação não lhe agradava. Mesmo assim, ele seguiu sem protestar. Um dos homens do cais subiu a bordo e aproximou-se de Kassandra.

- Você é a filha de Príamo de Tróia? Meu amo mandou dizer que deve me acompanhar e receber toda consideração. Temos uma carroça à sua espera, de seu filho e sua aia.

Ele estendeu a m ao e ajudou Kassandra a desembarcar, instalou-a na carroça com o bebê nos joelhos e a aia agachada ao lado.

Apesar do conforto - e a estrada que subia para o palácio era tão íngreme que ela teria receio em subi-la a pé -, Kassandra sentia-se apreensiva. As muralhas de pedra do grande palácio, quase tão formidáveis quanto as muralhas caídas de Tróia, pareciam acolhê-la de forma ameaçadora, ainda imersas na sombra. Passaram por uma enorme arcada, por cima da qual duas leoas, pintadas em cores brilhantes, mantinham vigi ia. Quando a carroça passou ruidosamente pelo Portão do Leão, Kassandra especulou se representava os antigos Deuses da cidade ou seriam o emblema particular de Agamenon. Mas eram leoas, e não leões; e, além disso, Agamenon ali chegara como consorte da rainha, no costume antigo. Seriam então o símbolo de Klitemnestra?

A frente da carroça marchavam Agamenon e sua guarda de honra, sob o comando de Egisto. Além do Portão do Leão havia uma cidade construída na encosta, no mesmo estilo de Tróia: palácio, templos, jardins, uns por cirna dos outros, as paredes se elevando em sucessivos terraços. Era bonita, mas ao mesmo tempo parecia sombria, as sombras mais profundas se concentrando em Agamenon, no meio dos soldados.

Uma mulher apareceu nos degraus do palácio, alta e dominante, os cabelos arrumados de maneira requintada, em anéis que haviam acabado de passar pelo ferro quente, faiscando dourados ao sol da manhã. Estava vestida suntuosamente, à moda cretense, um corpete rendado e decotado sobre os seios, uma saia de babados de muitas cores, uma em cada babado. Kassandra percebeu no mesmo instante a semelhança com Helena. Só podia ser sua irmã Klitemnestra. A rainha avançou através da escolta e fez uma reverência a Agamenon; a voz era doce e clara quando falou:

- Meu senhor, é uma grande alegria recebê-lo nestas praias e neste palácio, onde outrora reinou ao meu lado. Há muito que aguardávamos por este dia.

Ela estendeu as mãos, Agamenon pegou-as cerimoniosamente e beijou-ás.

- É uma alegria voltar para casa, senhora.

- Preparamos uma celebração e um grande sacrifício apropriado para a

ocasião. Mal posso esperar para matá-lo.

Não, pensou Kassandra, chocada, não pode ter sido isso o que ela disse; mas foi o que ouvi.

Mas Klitemnestra, na verdade, dissera outra coisa: "Mal posso esperar pelo momento em que ocupará o lugar que lhe prepararmos.

- Está tudo pronto para o seu banho e o banquete - acrescentou Klitemnestra. - Estamos todos prontos para vê-lo cair morto entre os sacrifícios.

Mais uma vez, Kassandra ouvira o que Klitemnestra pensava, não o que seus lábios haviam falado. O que significava que a presciência, indesejável, lhe voltara.

Klitemnestra gesticulou para que Agamenon subisse os degraus do palácio.

- Tudo está preparado, meu senhor; entre e presida o sacrifício.

Ele fez uma reverência e começou a subir. Klitemnestra observou-o com um sorriso que fez Kassandra estremecer. Como era possível que ele não percebesse?

Mas o rei avançava sem qualquer hesitação. No momento em que alcançou as enormes portas de bronze, no topo da escadaria, Egisto, empunhando o grande machado de sacrifício, abriu-as e empurrou-o para dentro. As portas se fecharam no instante seguinte. Klitemnestra desceu até a carroça.

- Você é a princesa troiana, filha de Príamo? Minha irmã mandou me dizer que você foi a única amiga que encontrou em Tróia.

Kassandra fez uma reverência; não sabia se o movimento seguinte de Klitemnestra não seria cravar uma faca em seu coração.

- Sou Kassandra de Tróia e na Cólquida me tornei sacerdotisa da Mãe Serpente.

Klitemnestra olhou para o bebê em seu colo.

- Esse é o filho de Agamenon?

- Não - respondeu Kassandra, sem saber de onde vinha a coragem que a levava a falar com tanta determinação e ousadia. - Ele é meu filho.

- Isso é ótimo, porque não queremos filho de rei nesta terra. Assim ele pode viver.

Nesse instante soou um grito estrondoso além das portas de bronze; alguém abriu-as por dentro e Agamenon apareceu em fuga no alto dos degraus, com Egisto em seu encalço, segurando o grande machado de fio duplo. Ele ergueu-o bem alto e depois baixou-o sobre o crânio do rei em fuga. Agamenon cambaleou e tropeçou na beira da escadaria, caindo e rolando pelos degraus, quase até os pés de Klitemnestra. Ela gritou:

- O povo desta cidade é testemunha: assim a Senhora vinga Ifigênia!

Houve uma tremenda aclamação e gritos de triunfo; Egisto desceu com o machado ensangüentado e entregou-o a ela Uns poucos soldados de Agamenon ensaiaram gritos de indignação, mas a guarda de Egisto prontamente silenciou-os. Klitemnestra disse a Kassandra, com a maior veemência:

- Tem alguma coisa a dizer, princesa de Tróia que pensou que seria rainha aqui?

- Só que eu gostaria de ter empunhado o machado - respondeu Kassandra, experimentando uma alegria desvairada. Ela fez uma reverência para Klitemnestra e acrescentou: - Em nome da Deusa, você vingou as afrontas que foram cometidas contra Ela. Quando uma mulher é ultrajada, a Deusa também é ultrajada.

Klitemnestra inclinou-se para ela e pegou suas mãos.

- Você é uma sacerdotisa e eu sabia que compreenderia essas coisas. - Ela fitou o rosto do menino adormecido. - Não tenho qualquer ressentimento contra você. Os costumes antigos serão restaurados aqui. Helena não possui espírito para fazer a mesma coisa em Esparta, mas eu tenho. Permanecerá aqui e será uma sacerdotisa da Deusa? Pode ingressar em Seu templo, se quiser.

Kassandra ainda respirava fundo, o coração disparado, por sua libertação repentina. Podia ver nas feições de Klitemnestra a ânsia por destruição; aquela mulher vingara a desonra contra a Deusa, mas Kassandra ainda a temia. A Deusa assumia muitas formas, mas Kassandra não A amava naquela. Nunca antes deparara com uma mulher tão forte. Encontrava pela primeira vez uma força maior do que a sua.

Ou será que apenas via em Klitemnestra o poder antigo da Deusa, como fora antes que os Deuses e reis invadissem aquela terra? Ela não podia servir àquela Deusa.

- Não posso - declarou ela, tão calmamente quanto podia. - Eu... esta não é a minha terra, rainha.

- Voltará então para sua terra?

- Não posso voltar a Tróia. Se me der permissão para partir, senhora, procurarei minhas parentas na Cólquida.

- Uma jornada como esta com uma criança ainda amamentando? - indagou Klitemnestra, atônita.

E houve então uma curiosa mudança no rosto de Klitemnestra. Uma paz sobrenatural relaxou as feições e ela parecia luzir do interior. E uma voz que Kassandra bem conhecia disse: Isso mesmo, eu a chamo para sua casa. Deve deixar esta terra imediatamente, minha filha.

Kassandra fez uma reverência até o chão; recebera o aviso. Ainda não sabia como viajaria ou o que lhe aconteceria, mas se encontrava outra vez sob a proteção da voz que a chamara pela primeira vez quando era criança.

É verdade que a sacerdotisa na Cólquida dissera: Os Imortais compreendem uns aos outros.

- Peço permissão para partir imediatamente.

E Klitemnestra declarou:

- Não podemos reter uma pessoa que um Deus chamou. Mas não quer descansar antes, receber roupas e alimentos para você e seu filho? Kassandra sacudiu a cabeça.

- Não preciso de nada.

Ela sabia que estava bem suprida com o ouro que Agamenon lhe dera. Não desejava aceitar nada de Klitemnestra... ou da Deusa daquela terra. Partiu uma hora depois.

Com o bebê amarrado no xale, desceu para o porto, à procura de um navio que a transportasse na primeira etapa da árdua jornada pela metade do mundo, que a levaria à sua parenta Imandra e aos portões de ferro da Cólquida. Acima de tudo, não estava mais cega e privada da Visão; era outra vez ela mesma e, depois de tantos sofrimentos, sabia que i Deusa ainda não a abandonara.

Uma mulher abordou-a no cais, vestindo uma túnica esfarrapada, cor de terra, o rosto coberto por um xale andrajoso.

- Você é a princesa troiana? Estou seguindo para a Cólquida e soube que vai para lá.

É verdade. Mas por que...

- Também procuro a Cólquida, pois um Deus me ordenou que fosse para lá. Posso acompanhá-la?

- Quem é você?

- Meu nome é Zakíntia.

Kassandra fitou-a atentamente e nada pôde perceber. Talvez a mulher estivesse ligada a ela pelo destino; de qualquer forma, nenhum Deus proibia. E até mesmo Klitemnestra duvidara de sua capacidade de realizar a longa jornada sozinha, =com uma criança ainda não desmamada. Deixando escapar um suspiro de alívio, ela tirou o xale em que o pusera, como uma tipóia, e entregou-o à mulher.

- Tome aqui. Pode carregar o bebê até eu precisar amamentá-lo de novo.

 

A mulher era obediente, até mesmo submissa; cuidava do bebê, ninando-o e mantendo-o quieto. Kassandra, outra vez dominada pelo enjôo, não tinha muita oportunidade para prestar atenção à criança ou à mulher, embora observasse por vários dias, para se certificar de que a serva - sobre a qual, no final das contas, nada sabia - não iria maltratar ou negligenciar o menino, quando ninguém estivesse olhando. Mas ela parecia conscienciosa, atenta ao bebê, cantando e brincando com ele, como se realmente gostasse de crianças. Depois de alguns dias, Kassandra concluiu que fora afortunada por encontrar uma boa serva para cuidai de seu filho e relaxou um pouco a vigilância.

Apesar disso, Kassandra começou a desconfiar de que sua companheira não era o que dizia. Por baixo dos trajes esfarrapados, a mulher parecia forte e saudável; Kassandra podia apenas calcular sua idade... trinta anos ou talvez mais. Quando Kassandra estava presente, ela mantinha um comportamento retraído, mas sua voz era áspera e rouca e sua atitude com os tripulantes era tão livre quanto a de uma amazona. Um dia, no convés, um vento súbito comprimiu os trajes de Zakíntia contra o corpo e seu peito pareceu muito liso para ser feminino. As pernas, Kassandra notou, eram cabeludas e musculosas; e o rosto dava a impressão de que jamais conhecera cosméticos e óleos amaciantes. Ocorreu a Kassandra que era possível que Zakíntia não fosse uma mulher, mas sim um homem.

Mas por que algum homem a procuraria sob o disfarce de uma mulher? Se era mesmo um homem, pensou ela, era possível que tentasse conquistá-la... embora, depois de vislumbrar seu reflexo numa bacia com água, Kassandra não pudesse conceber que algum homem a desejasse como estava agora: pálida do enjôo do mar, vestida em andrajos, ainda disforme depois do parto. Mesmo assim, passou a dormir com Agaton nos braços; se a amamentação não detivesse um estuprados, provavelmente nada mais o faria, a não ser sua faca.

Numa noite de tempestade, quando o navio balançava como uma cortiça nas ondas violentas, Zakíntia estendeu sua manta perto de Kassandra e ofereceu-se para ficar com a criança. As ondas juntaram as duas mantas, empurrando-as para cima e depois para baixo, na cabine apertada, até que Zakíntia, maior e mais pesada, tomou Kassandra em seus braços.

Exausta e passando mal, Kassandra sentiu apenas alivio pelo abrigo que o corpo da companheira proporcionava contra o balanço constante.

Depois desse incidente, um pouco de seu medo se desvaneceu; afinal, nenhum homem comum teria ignorado aquela oportunidade. Ela começou a considerar outras possibilidades. Talvez ele fosse um eunuco ou um sacerdote curandeiro que fizera votos de castidade. Mas por que então usava trajes femininos e se apresentava como uma mulher? Ela acabou chegando a conclusão de que não tinha importância e depois de algum tempo percebeu que não mais se preocupava se sua companheira era mesmo uma mulher ou um homem; ele ou ela era apenas uma pessoa amiga em quem confiava e que começava a amar. O bebê também adorava sua companhia e estava sempre disposto a deixar o colo da mãe para ser embalado por Zakíntia.

Quando o navio finalmente atracou e eles desembarcaram, Kassandra foi ao mercado para comprar cavalos.

- Mas não pode viajar por terra com um bebê e uma única serva, atravessando a terra dos centauros - protestou o mercador.

- Eu não sabia que restava algum vivo - comentou Kassandra. - E não tenho medo deles.

Ela tinha a esperança de encontrar alguns membros da raça desaparecida na viagem. Trocou um único elo de ouro por um cavalo e alimentos para viagem; também adquiriu um manto grande, que poderia servir como coberta na hora de dormir ou como tenda.

- Você está precisando de outra túnica, Zakíntia. A sua está tão esfarrapada que parece uma mendiga E eu estou pensando em cortar os cabelos e passar a usar trajes de homem, antes de partirmos. O bebê poderá ser desmamado em breve e tenho certeza de que criam cabras na região. Talvez seja a maneira mais segura para viajarmos. nesta terra selvagem. O que acha da idéia? Você é mais alta e mais forte do que eu; talvez ficasse mais convincente como um homem.

Zakíntia ficou imóvel por um momento e depois respirou fundo, consternada antes de responder:

- Deve fazer o que achar melhor, senhora. Mas eu não posso vestir roupa de homem nem viajar como tal.

- Por que não?

Zakíntia não a fitou nos olhos.

- É um voto. Não posso dizer mais nada. Kassandra deu de ombros.

- Então nós duas viajaremos como mulheres.

 

Kassandra contemplou os portões da Cólquida e lembrou a primeira vez em que ali estivera, quando garota, no bando das amazonas de Pentesiléia. Ela mudara e o mundo também mudara, mas os grandes portões continuavam como antes.

- Cólquida... - murmurou ela para Zakíntia. - Os Deuses finalmente nos trouxeram até aqui.

Ela pôs Agaton no chão; o menino já começava a andar. Se a viagem não tivesse sido tão demorada, pensou Kassandra, o filho poderia estar andando direito, não a cambalear, como ainda acontecia; mas fora obrigada a carregá-lo durante a maior parte do tempo, em vez de deixá-lo engatinhar ou andar. Ele estava com quase dois anos agora e Kassandra podia perceber na projeção do queixo, nos olhos escuros e nos cabelos crespos e escuros que era mesmo filho de Agamenon.

Pelo menos ele não seria criado na versão de masculinidade de Agamenon.

Fora um longo caminho, mas ela sabia agora que não era interminável, como a princípio parecera. Haviam viajado por terra principalmente a noite, escondendo-se em bosques e valas durante o dia. Ela consumira diversos pares de sandálias e as roupas estavam puídas; não tivera praticamente qualquer oportunidade de substituí-las.

Houvera encontros na estrada com soldados - veteranos do saque de Tróia -, mas Kassandra nada vira nem ouvira dos centauros; a maioria da pessoas pensava que eles não passavam de uma lenda, acusando-a francamente de inventar histórias ou sorrindo com desdém quando ela dizia que os conhecera na juventude.

Haviam se escondido de bandos errantes de homens, usando a inteligência e às vezes as facas para escaparem do perigo. Haviam passado frio e fome - em algumas ocasiões não conseguiram arrumar comida nem mesmo com ouro - e pararam uma ou duas vezes por uma estação inteira, trabalhando como fiandeiras ou cuidando de animais.

Uma ocasião viajaram por algum tempo com um homem que tinha um espetáculo de serpentes "dançarinas". Reuniram-se algumas vezes a outros viajantes solitários e perderam o caminho por longas distancias.

E depois de incontáveis aventuras - Kassandra sabia que nunca ousaria relatá-las - finalmente chegaram a Cólquida, sãs e salvas.

Ela tornou a pegar a criança no colo e atravessaram os portões. Sabia que parecia uma mendiga. O manto era o mesmo com que Agamenon a cobrira no navio... outrora escarlate, mas agora desbotado, de um cinza indefinido. A túnica era enorme, de lã; os cabelos estavam presos com uma tira de couro que antes servira para segurar uma sandália. Zakíntia parecia ainda pior, se é que isso era possível; não tanto como uma mendiga, mais como uma facínora. As sandálias quase sumiam de tão gastas e teria de adquirir outro par na Cólquida, mesmo sendo aquele o destino procurado.

Mas haviam conseguido manter o menino saudável e bem agasalhado. A túnica de Agaton - embora se tornasse pequena - era de uma boa lã, que Kassandra comprara duas cidades antes, e era presa com uma fivela de seu último ouro. Suas sandálias eram fortes e resistentes. As vezes Kassandra pensava que ele parecia menos com Agamenon e mais com seu irmão Páris.

- Chegamos ao fim da viagem - comentou ela para sua companheira.

Kassandra perguntou a uma transeunte o caminho para o palácio e indagou se a rainha Imandra ainda reinava ali.

- Claro que sim, embora esteja ficando velha - respondeu a mulher. - Houve um rumor de que ela está gravemente doente, mas não acredito.

Ela fez uma pausa, observando o manto puído de Kassandra, antes de também fazer uma pergunta:

- Mas o que uma pessoa como você pode querer com a nossa rainha?

Kassandra limitou-se a agradecer pela ajuda e não respondeu. Dirigiu-se ao palácio. Zakíntia pegou o menino e carregou-o no colo.

Subindo os degraus do palácio, Kassandra alisou os cabelos com os dedos, bastante nervosa. Talvez devesse ter passado pelo mercado e comprado roupas novas, antes de procurar a rainha.

Falou com a guarda de serviço, uma guarda antiga, que Kassandra lembrou de sua longa estada na Cólquida.

- Eu gostaria de ter uma audiência com a rainha Imandra.

- Posso imaginar - respondeu a mulher, desdenhosa. - Mas ela não recebe todas as mendigas que aparecem aqui à sua procura.

Kassandra chamou a mulher pelo nome.

- Não me reconhece? Sua irmã foi uma das minhas aprendizes na Casa da Mãe Serpente.

- Senhora Kassandra! Mas fomos informadas de que morrera... em Micenas, que Klitemnestra também a matou quando assassinou Agamenon.

Kassandra soltou uma risada.

- Como pode ver, aqui estou, viva e bem. Mas peço agora que me leve à presença da rainha.

- Claro. Ela vai se regozijar ao saber que sobreviveu à queda de Tróia. Lamentou sua morte como se fosse sua filha.

A mulher queria levá-la a um quarto de hóspedes, a fim de que pudesse se aprontar para a audiência, mas Kassandra recusou. Pediu a Zakíntia para esperar do lado de fora, mas sua companheira sacudiu a cabeça.

- Eu também fui trazida até aqui pela mão da Deusa. E só posso revelar a Imandra por que vim.

Ansiosa em conhecer a história da companheira, Kassandra concordou. Poucos momentos depois estava nos braços da parenta.

- Pensei que tivesse morrido em Tróia - disse Imandra. - Como Hécuba e as outras.

- E eu pensei que Hécuba tivesse partido com Odisseu.

- Uma de suas mulheres chegou aqui e contou que Hécuba morreu... de coração partido, disse ela... quando os navios estavam sendo carregados.. Talvez tenha sido melhor assim; o navio de Odisseu naufragou e ninguém teve qualquer notícia dele desde então, há quase três anos. Andrômaca foi levada para um dos reis akaios. Não me lembro de seu nome bárbaro, mas soube que ela está viva. E esta criança é sua? - Imandra pegou o menino e beijou-o. - Então alguma coisa de boa resultou de seus pesares?

- Pelo menos sobrevivi é consegui chegar aqui.

Elas passaram a conversar sobre outros personagens da guerra de Tróia. Helena e Menelau ainda reinavam em Tróia, ao que parecia; a filha de Helena, Hermíone, deveria a casar com o filho de Odisseu. Klitemnestra morrera de parto um ano antes; o filho Orestes matara Egisto e ocupara o Trono do Leão,

- E soube alguma coisa de Enéias? - perguntou Kassandra, lembrando com uma doce tristeza as noites estreladas no último e fatídico verão de Tróia.

- Suas aventuras são contadas por toda parte. Ele esteve em Cartago e teve uma ligação amorosa com a rainha. Dizem que ela se matou de desespero quando o~ Deuses ordenaram que ele partisse. Mas não acredito nisso. Se alguma rainha fosse bastante tola para se matar por causa de um homem, tanto pior para ela; não pode ser grande coisa; como mulher e ainda menos como rainha. Os Deuses o chamaram para o norte, onde dizem que Enéias fundou uma cidade, levando o Paládio do Templo da Virgem de Tróia.

- Fico contente por saber que ele está são e salvo. - Talvez ela devesse ter acompanhado Enéias para seu novo mundo; mas nenhum Deus a chamara. Enéias tinha o seu próprio destino e ela não o partilhava. - E Creusa?

- Não sei o que lhe aconteceu. Ela conseguiu escapar de Tróia?

Kassandra pensou por um momento. Lembrava de ter se despedido de Crema, mas fora há tanto tempo que talvez não passasse de um sonho. Todas as coisas relacionadas com a queda da cidade eram agora como sonhos para ela.

- Deve estar lembrada de minha filha Pérola - disse Imandra. - Venha até aqui, criança, e cumprimente sua parenta.

A menina se adiantou e cumprimentou Kassandra com tanta solenidade que Kassandra não a beijou, como fazia com todas as crianças daquela idade. - Com quanto anos ela está agora?

- Quase sete. Vai reinar na Cólquida depois de mim. Ainda mantemos os velhos costumes aqui. Com um pouco de sorte, isso nunca mudará.

- Não resta tanta sorte assim no mundo, mas isso não mudará o amanhã nem o dia seguinte.

- Então você ainda é dotada com a Visão?

- Não durante todo o tempo, não para todas as coisas - respondeu Kassandra.

- Mas o que quer de mim, Kassandra? Posso lhe dar ouro, roupas, abrigo... é minha parenta e é bem-vinda a permanecer em minha casa como uma filha... o que muito me agradaria. E sei que o Templo da Mãe Serpente a receberia como chefe de suas sacerdotisas.

Klitemnestra também apresentara esse oferecimento, mas Kassandra sabia que era tarde demais para passar a vida dentro de muralhas.

- Ou, se preferir - acrescentou Imandra -, farei o que seu pai deveria ter feito há muito tempo e lhe arrumarei um marido.

Kassandra protestou com veemência

- Sinto-me tão pouco disposta quanto antes a me tornar propriedade de algum homem. A experiência que tive com Agamenon, em menos de um ano, correspondeu a uma vida inteira.

Zakíntia interveio subitamente, adiantando-se e prostrando-se diante de Imandra.

- Ó rainha, a Deusa me ordenou que viesse a esta cidade em busca de sua ajuda - suplicou a voz rude. - Os Deuses me chamaram para fundar uma cidade e não posso fazê-lo sozinho. A princípio pensei que a Deusa n1e enviara até aqui para saber se alguma amazona sobrevivera, pois me enviou uma visão de que somente uma mulher assim poderia me ajudar nessa tarefa.

- E quem é você? - perguntou Imandra.

- Meu nome é Zakintos - respondeu o homem que Kassandra conhecera como Zakíntia. - Não restou nenhuma das amazonas que pudesse me ajudar a fundar uma cidade em que a Deusa seja servida, sem Deuses nem reis? Eu não aceitaria uma esposa comum ao estilo dos akaios, mas só aquela que pudesse servir como uma sacerdotisa na cidade. Mas soube que não existem mais mulheres assim.

- E verdade - disse Kassandra -, nenhuma amazona sobreviveu à última batalha, em que Pentesiléia morreu.

- Não posso aceitar isso - declarou Zakintos, tirando o véu que usara como mulher. - Agora estou livre de meu voto e vasculharei o mundo inteiro, se for preciso.

- E qual foi o seu voto? - perguntou Imandra.

- Viver como uma mulher até chegar à Cólquida, a fim de conhecer a vida que as mulheres tem de levar. Em apenas três dias com trajes femininos eu já sabia por que as mulheres têm de temer tanto. Por isso, procurei a proteção da princesa troiana... e em sua companhia, enquanto viajávamos, descobri por que as mulheres procuram se manter livres dos homens. Ela não precisava da proteção ou ajuda de qualquer homem...

Kassandra disse, afetuosa:

- Mas a proteção que você me proporcionou... partilhando minha jornada e os fardos...

- Mas não porque eu era um homem... e reiterei o juramento de que vasculharia o mundo, se preciso, à procura de uma mulher em quem ainda vivesse o espírito das amazonas.

- E não encontrou? - perguntou Imandra.

- Encontrei. - Ele virou-se para Kassandra. - E também passei a conhecê-la bem

Kassandra riu.

- Há muito que abandonei o desejo por armas, Zakintos. Mas... como descobrirá sua cidade?

- Navegarei para oeste, pelo grande 'mar, encontrarei um lugar em que seja possível construir uma cidade. Além daquelas ilhas amaldiçoadas, em que os homens idolatram deuses de ferro e opressão...

Escutando, Kassandra não pôde deixar de se lembrar de Enéias, que também acalentara tal desejo. Estivera disposta a ajudá-lo a realizar o sonho e Zakintos parecia ter sido incendiado pelo mesmo espírito.

- Procuro um mundo em que a Mãe Terra seja cultuada de acordo com os costumes antigos - continuou ele, com entusiasmo. - E Ela quem me dá esta visão; um sonho de uma cidade em que as mulheres não serão escravas, em que os homens não precisar        suas vidas em combates e guerras. Deve haver uma maneira melhor de viver para homens e mulheres do que esta grande guerra que consumiu toda a minha infância e tirou as vidas de meu pai e todos os meus irmãos...

- E dos meus também - murmurou Kassandra.

- E dos seus.

Zakintos ajoelhou-se diante de Imandra.

- Eu lhe suplico, como parenta desta mulher, que me permita Tomá-la em casamento.

- Mas o casamento é um dos males que surgiram com os novos costumes - protestou Imandra. - Quem sou eu para dá-la a você, como se ela fosse uma escrava?

Zakintos suspirou.

- Tem razão. Kassandra, viajamos juntos por tanto tempo; você me conhece bem. Continuará a viajar comigo... para construir um mundo melhor do que Tróia?

Kassandra, pensando na longa viagem, murmurou:

- Mas, como os outros homens, você vai querer um filho...

- Carreguei seu filho pelo menos em metade do caminho. Se posso ser uma mãe para seu filho, duvida que também possa ser um pai para ele? Pois estou convencido de que poderia procurar no mundo inteiro e não encontraria uma mulher mais apropriada do que você a meus propósitos. E acho que talvez eu também sirva a seus propósitos. - Zakintos sorriu. - Ou prefere ficar aqui, na corte de Imandra, fiando?

- Não o incomoda o fato de eu ter sido obrigada a ser concubina de Agamenon e ter gerado um filho seu? Todos os homens saberão.

Zakintos sorriu gentilmente e ela tornou a pensar em Enéias.

- Só me incomodo na medida em que a incomodar. E quanto ao menino, ele é seu filho e já viu o quanto o amo. Algum dia poderemos ter outros, para os quais poderei ser pai e mie... - Sua voz era muito terna quando acrescentou: - Eu gostaria de ter uma filha como você.

Kassandra passara a maior parte de sua vida com a noção de que nunca poderia casar; mas aquela guerra arrebatara toda a sua família e não tinha qualquer lugar que fosse seu. E as amazonas também haviam desaparecido, corno Tróia.

A nova cidade poderia ser um luar em que homens e mulheres não precisassem ser inimigos, em que os Deuses não fossem inimigos implacáveis das Deusas...

Se Tróia não pudera durar para sempre, não havia nenhuma garantia de que a nova cidade duraria. Mas se, como obra de sua vida, pudesse contribuir para a construção de uma cidade em que os homens não deformassem os filhos, transformando-os em guerreiros, a fim de que não precisassem seguir Deuses cruéis para a batalha, ou as filhas em joguetes dos homens, então sua vida teria valido a pena.

Ela lembrou a jovem que fora, sentada na Casa do Senhor do Sol a distribuir sabedoria aos suplicantes. O que dissera naquela ocasião?

Ofereço as respostas que eles próprios poderiam encontrar, se usassem a inteligência que os Deuses lhes concederam, lembrou ela. Mas também acrescentara: Antes de falar, sempre espero por uni momento, para o caso de o Deus ter outra resposta a dar.

Kassandra escutou seu coração, mas havia apenas o silêncio e a lembrança do sorriso ardente de um Deus. Poderia chegar o dia em que qualquer esposa submissa veria a face do Deus no marido? Ela olhou para Zakintos. Ele não era o Senhor do Sol, mas seu rosto era honesto e gentil. Mal podia imaginar um Deus falando por seu intermédio, mas pelo menos o que ele dizia não era cruel nem caprichoso. Agamenon não fora pior do que Possêidon, Páris incendiara Tróia a mando de uma Deusa mais cruel e caprichosa do que qualquer honrem. O pior dos homens, em sua vida, não fora pior do que o melhor dos Deuses. E o mal que haviam causado fora a mando d. Deuses, feitos à sua própria imagem.

Ela escutou, mas nenhuma voz de um Deus se manifestou para proibi-la: compreendeu naquele momento qual seria a sua resposta e seu coração já se projetava para o grande mar, em busca de um novo mundo, que podia não ser melhor do que o antigo, mas pelo menos seria mais harmonioso, na medida em que homens e mulheres se esforçassem para isso.

- Vamos embora, Zakintos, em busca de nossa nova cidade. Talvez um dia aqueles que vierem depois de nós saibam a verdade sobre Tróia e sua queda.

Ela pegou a mão de Zakintos. Em algum lugar, uma Deusa sorriu. Kassandra tinha certeza de que não era Afrodite.

 

PÓS ESCRITO

A Ilíada nada diz sobre o destino de Kassandra de Tróia. Esquilo, em seu Agamenon, apresenta-a a morrer nas mãos de Klitemnestra; era considerado perfeitamente permissível introduzir personagens da Ilíada, se seu destino não fosse parte daquele poema. Eurípides apresenta Kassandra como, uma das prisioneiras troianas; é interessante observar que é ela a mulher que sugere vingança contra os captores, mas também fica patente que é insana. Mas outra apresentação dramática mostra Kassandra a comandar as mulheres de Tróia num heróico suicídio em massa.

Contudo, a placa 803 no Museu Arqueológico de Atenas diz o seguinte:

 

ZEUS DE DODONA, ACEITE ESTA OFERENDA

QUE APRESENTO POR MIM E POR MINHA FAMÍLIA

AGATON, FILHO DE EKEFILOS,

A FAMÍLIA ZAKÍNTIA,

CÔNSULES DOS MOLOSSOS E SEUS ALIADOS,

DESCENDENTE, POR TRINTA GERAÇÕES,

DE KASSANDRA DE TRÓIA.

 

                                                                                 Marion Zimmer Bradley  

 

                      

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